PLANÍCIES DE PASSAGEM
2."VOLUME
.*- volume
2." edição
JEAN AUEL
2PLANICIES DE PASSAGEM
PUBLICAÇÕES EUROPAAMÉRICA
Título original: Lhe Plains of Passage
Tradução de Sophie Vinga
Tradução portuguesa (c) de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
(c) 1990 Jean M. Auel
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Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor: Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL
Edição n.°: 161644/6119
Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira-Sintra-Mero Martins
Dep6sito legal n.*: 78937/94
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Ayla estava quase inconsciente quando sentiu as pedras do leito do rio
sob si. Tentou pôr-se de pé enquanto a Whinney a arrastava pelo fundo
rochoso, conseguindo dar alguns passos numa praia de seixos lisos numa
curva do rio. Depois caiu. A corda, que continuava firmemente amarra
da à sua mão, deu-lhe um puxão e fez parar o cavalo.
Jondalar também tinha passado pelas primeiras fases de hipotermia ao atravessar o rio, mas tinha conseguido chegar à margem oposta mais depressa que ela, antes de ficar demasiado descoordenado ou irracional. Ela teria conseguido atravessar mais depressa, mas tinham ficado presos tantos destroços à corda da Whinney que o cavalo tinha ficado para trás. Até a Whinney estavajá a começar a ressentir-se da água fria do ño antes de o nó corrediço, apesar de inchado da água, ter finalmente dado de si, libertando-a do peso que a atrapalhava.
Infelizmente, quando chegou ao outro lado, o frio tinha afectado Jondalar o suficiente para que ele não estivesse absolutamente coerente.
Vestiu aparka forrada a pele por cima da roupa encharcada e foi à procura
de Ayla, a pé, levando o garanhão pela arreata, mas tomando a direcção
errada. O exercício aqueceu-o e fez desaparecer a confusão. Tinham sido ambos arrastados rio abaixo durante certa distância, mas como ela
tinha demorado mais tempo a atravessar, tinha de estar mais abaixo.
Deu meia volta e retomou o caminho de volta. Quando o Corredor deu um
relincho e se ouviu um relincho em resposta, Jondalar começou a correr.
Quando Jondalar viu Ayla, ela estava caída de costas na margem rochosa, ao lado da égua paciente, com o braço puxado para cima pela corda que ainda estava amarrada à mão. Correu para ela, com o coração a bater descompassadamente de medo. Depois de se assegurar de que ela estava a respirar, tomou-a nos braços e apertou-a contra si, com os olhos cheios de lágrimas.
m Ayla! Ayla! Estás viva! -- exclamou.-Tive tanto medo que tivesses morrido. Mas estás tão fria!
Tinha de a aquecer. Desamarrou-lhe a corda da mão e pegou nela. Ela mexeu-se e abriu os olhos. Os seus músculos estavam tensos e rígidos e mal conseguia falar, mas estava a tentar dizer qualquer coisa. Ele inclinou-se mais para ela.
O Lobo. Encontra o Lobo-disse ela num murmúrio rouco.
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m Ayla, tenho de tratar de ti!
--Por favor. Encontra oLobo. Perdi demasiados filhos. O Lobo não- disse ela através dos maxilares rigidamente cerrados.
Os olhos dela estavam demasiado carregados de dor e demasiado im plorativos para ele poder recusar.
-- Está bem. You à procura dele, mas primeiro tenho de arranjar um abrigo para ti.
Chovia violentamente enquanto ele subiu uma encosta suave com
Ayla nos braçós. A encosta dava para um pequeno terraço com alguns salgueiros,
arbustos e ciperáceas e, ao fundo, alguns pinheiros. Jondalar
procurou um sítio plano onde não corresse água e montou rapidamente
a tenda. Depois de colocar a pele de mamute sobre a terra para obter melhor
protecção do solo saturado de água, levou Ayla lá para dentro, depois
os alforges, e estendeu as peles de dormir. Tirou-lhe a roupa encharca
da e despiu a dele, meteu-a no meio das peles e deitou-se ao lado dela.
Ela não estava totalmente inconsciente, mas antes num estado de entorpecimento. Tinha a pele fria e peganhenta e o corpo rígido. Ele tentou cobri-la com o seu próprio corpo para a aquecer. Quando ela começou a tremer, Jondalar ficou um pouco mais aliviado. Isso queria dizer que estava a aquecer por dentro, mas ao começar a recuperar totalmente a consciência lembrou-se do Lobo e, irracionalmente, quase loucamente, insistiu em ir à sua procura.
--A culpa é minha-disse ela, com os dentes a bater.-Eu disselhe para saltar para o rio. Assobiei. Ele confiou em mim. Tenho de encontrar o Lobo-disse, tentando levantar-se.
-- Ayla, esquece o Lobo. Nem sequer sabes onde o procurar o disse ele, tentando impedi-la de se levantar.
A tremer e a soluçar histericamente, ela tentou sair de dentro das peles de dormir.
Tenho de o encontrar- exclamou ela.
-- Ayla, Ayla, eu you. Se ficares aqui, eu you à procura dele-disse ele, tentando convencê-la a ficar debaixo das peles quentes.-Mas pro mete-me que ficas aqui, tapada.
-- Por favor encontra-o-disse ela.
Ele vestiu rapidamente roupa seca e a parka. Depois tirou dois quadrados de comida de viagem, enriquecida com gordura e proteínas que proporcionavam energia.
m You agora-disse ele.-Come isto e fica debaixo das peles.
Ela agarrou-lhe a mão quando ele se virou para sair.
--Promete-me que o procuras-disse ela, olhando para os seus olhos
azuis carregados de preocupação, Ayla ainda estava a tremer, mas pare
cia falar com mais facilidade.
Ele olhou para os seus olhos azul-acinzentados, cheios de preocupação e imploração, apertando-a depois contra ele com força.
-- Estava com tanto medo que tivesses morrido.
Ela agarrou-se a ele, tranquilizada pela sua força e pelo seu amor. --Amo-te, Jondalar. Não te quero perder nunca, mas por favor encontra o Lobo. Não suporto perdê-lo. Ele é como.., uma criança.., um filho. Não posso perder outro filho. BA voz dela quebrou e os olhos encheram° -se-lhe de lágrimas.
Ele afastou-a ligeiramente de si e olhou para ela.
Procurá-lo-ei. Mas não posso prometer que o encontrarei, Ayla, e mesmo que o encontre não posso prometer que esteja vivo.
Uma expressão de medo e de horror espelhou-se nos olhos dela; depois fechou-os e assentiu.
--Tenta encontrá-lo B disse ela, mas quando ele se ia a afastar, ela voltou a agarrar-se a ele.
Ele não estava bem certo se realmente tencionava procurar o lobo
quando se preparou para sair. Queria apanhar lenha para acender uma
fogueira e fazer um chá ou uma sopa quente para dar a Ayla, e queria ver
como estavam os cavalos, mas tinha prometido. O Corredor e a Whinney estavam no meio dos salgueiros, ainda com as mantas de montar postas, e o Corredor tinha também os arreios, mas os resistentes animais pare
clam bem, portanto ele desceu a encosta.
Ao chegar ao rio, não soube em que direcção ir, mas acabou por decidir tentar rio abaixo. Puxando o capuz mais para baixo para se proteger
da chuva, começou a caminhar junto à margem, procurando nas pilhas
de lenha e destroços que se tinham acumulado em terra. Encontrou muitos animais mortos e viu tantos carnívoros como animais de rapina, quer
de quatro patas quer alados, a banquetearem-se no que o rio lhes trouxera,
tendo até visto uma matilha de lobos do sul, mas nenhum que se as
semelhasse ao Lobo.
Por fim, deu meia volta e voltou para trás. Percorreria alguma distân
ca rio acima, mas duvidava que tivesse mais sorte. Não estava à espera
de encontrar o animal e apercebeu-se de que isso o entristecia. Por vezes oLobo era maçador, mas ganhara verdadeiro afecto pelo animal. Iria sentir
a sua falta e sabia que Ayla ficaria destroçada.
Chegou à margem rochosa onde encontrara Ayla e foi atd à curva do
rio, não sabendo bem até onde devia ir nessa direcção, sobretudo por ter
reparado que o rio estava a subir. Decidiu que mudariam a tenda para
mais longe do rio assim que Ayla estivesse capaz de viajar. "Talvez dera
desistir de procurar rio acima e ir ver se ela está bem", disse para si pró-prio, hesitando. "Born, talvez vá um pouco mais à frente; ela decerto que
me vai perguntar se procurei em ambas as direcções."
Começou a andar rio acima, dando a volta a um monte de troncos e ramos, mas quando viu a silhueta majestosa de uma águia real, a planar com as asas totalmente abertas, parou e ficou a olhá-la impressionado.
Subitamente, a grande e graciosa ave fechou as asas e desceu a pique em
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direcção à margem do rio, voltando depois a erguer-se no ar com um gray
de rato preso nas garras.
Um pouco mais adiante, no sítio onde a ave tinha encontrado a sin
presa, um afluente bastante grande, que se alargava e formava u
pequeno delta, acrescentava as suas águas às da Irmã. Pensou ver qual
quer coisa que lhe era familiar na vasta extensão de areia onde as água
se juntaram e sorriu quando reconheceu o que era. Tratava-se do barco redondo mas, quando olhou mais atentamente, franziu a testa e começo
a correr na sua direcção. Ayla estavajunto do barco
a cabeça do Lobo no colo. Uma ferida por cima do olho esquerdo ainda dei
tava sangue.
--Ayla! Que é que estás a fazer aqui? Como é que chegaste
mou ele violentamente, mais de medo que de irritação.
-- Ele está vivo, Jondalar m disse ela, a tremer de frio e simultane mente a soluçar tanto que estava quase incoerente.-Está ferido, está vivo.
Depois de o Lobo ter sa]tado para dentro do rio, nadou para Ayla, ma
quando chegou junto do barco leve e vazio que flutuava na água
tou as paras nos paus que estavam presos a ele. Ficou all, com os objec
tos familiares, deixando que o barco e os paus o fossem levando.
quando o nó corrediço se soltou e o barco e os paus começaram a
violentamente na água agitada, é que foi atirado contra um tronco
árvore saturado de água. Nessa altura já estava quase na outra
O barco foi encalhar na margem arenosa, arrastando consigo os paus lobo pendurado neles e parcialmente fora de água. A pancada atordoado, mas ter ficado semi-submerso na água fria foi pior. Até lobos estavam sujeitos a hipotermia e à morte por exposição aos mentos.
--Anda, Ayla, estás a tremer outra vez. Temos de voltar. Por que é saíste da tenda?Eu disse-te que o procurava-di: cá, eu levo-o, m Tirou-lhe o lobo do colo e tentou ajudá-la a levantar-se.
Depois de darem alguns passos, ele percebeu que la ser difícil chega-! term à tenda. Ayla quase não conseguia andar e o lobo era um animal
grande e pesado. O seu pêlo encharcado de água fazia que fosse ainda
mais pesado. O homem não conseguia levá-los a ambos e sabia que Ayla,
nunca permitiria que ele deixasse ficar o Lobo e voltasse depois para o
levar. Se ao menos conseguisse assobiar pelos cavalos como Ayla fazia...
mas por que é que não o fazia? Jondalar tinha criado um assobio para o Corredor, mas não se tinha esforçado muito a treiná-lo a obedecerlhe.
Nunca tinha sido necessário. O jovem garanhão ia sempre com a mãe
quando Ayla assobiava pela Whinney.
Talvez a Whinney desse se ele assobiasse. Pelo menos podia tentar.
Imitou o sinal de Ayla, na esperança de ter conseguido um som semelhante
mas, no caso de eles não virem, estava determinado a continuar
PLANICIES DE PASSAGEM
a andar. Ajeitou o Lobo nos braços e tentou pôr um braço em volta de Ayla
para a ajudar melhor.
Nem sequer tinham chegado ao monte de troncos e ramos que tinham dado à costa e ele já estava cansado do esforço. Estava a dominar a sua própria exaustão por pura força de vontade. Também ele tinha atravessado a nado o poderoso rio e depois levado Ayla ao colo pela encosta íngreme e montado a tenda. E depois tinha andado para cima e para baixo na margem do rio à procura do lobo. Ao ouvir um relincho, Jondalar olhou para cima. Serítiu-se invadido por alívio e alegria ao ver os dois cavalos.
Deitou o lobo sobre o dorso da Whinney, pois ela já olevara antes e esta
va habituada a isso; depois ajudou Ayla a montar o Corredor e conduziuo
na direcção da praia rochosa. A Whinney seguiu-o. Ayla, a tremer devido
à roupa encharcada, enquanto a chuva se abatia sobre eles ainda com
teve dificuldade em manter-se em cima do cavalo quando começaram a subir a encosta. Mas, indo devagar, conseguiram chegar à tenda junto das árvores.
Jondalar ajudou Ayla a descer e a entrar na tenda, mas a hipotermia estava de novo a torná-la irracional e estava a ficar histérica por causa do lobo. Ele tinha de o levar lá para dentro imediatamente e prometer que o secaria. Jondalar procurou nos alforges qualquer coisa com que o esfre gar, mas quando ela quis metê-lo dentro das peles de dormir, ele ÷ecusou -se terminantemente, embora tivesse arranjado uma pele para o tapar. Enquanto Ayla soluçava incontrolavelmente, ele ajudou-a a despir-se e embrulhou-a nas peles.
Depois Jondalar voltou a sair, tirou os arreios do Corredor e as mantas de montar de ambos os cavalos, fazendo-lhes festas de gratidão e di zendo-lhes algumas palavras de agradecimento. Muito embora os cavalos normalmente vivessem ao ar livre com todo o tipo de condições atmosféricas, e estivessem adaptados ao frio, ele sabia que não gostavam lá muito de chuva e esperou que nåo se ressentissem disso. Depois, finalmente, Jondalar entrou na tenda, despiu-se e deitou-se ao lado da mulher que tremia violentamente. Ayla aconchegou-se ao Lobo, enquanto Jondalar se aninhava contra as suas costas, abraçando-a. Passado algum tempo, com o corpo do lobo que ia aquecendo de um lado, e com o homem do outro, a mulher deixou de tremer e ambos cederam à sua exaustão e adormeceram.
Ayla acordou com uma língua molhada a lamber-lhe o rosto. Afastou o Lobo, a sorrir de alegria, e depois abraçou-o. Segurando-lhe a cabeça
com ambas as mãos, olhou atentamente para a ferida. A chuva tinha limpo
a sujidade da ferida e esta tinha parado de sangrar. Embora quisesse
mais tarde tratá-lo com alguns remédios, parecia-lhe óptimo por agora.
Não tinha sido tanto a pancada na cabeça que o enfraquecera, mas sim
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PI..4N]CIES DE PASSAGEM
a água fria do rio. Dormir e calor tinham sido o melhor remédio
Ayla apercebeu-se então de que Jondalar a estava abraçar, embora e vesse a dormir, e ficou quieta nos seus braços, abraçada aoLc go, a chuva a cair sobre a tenda.
Começou então a lembrar-se de fragmentes do dia anterior:
aos tropeções, pelo meio da vegetação e dos troncos e ramos que
dado à margem, à procura do Lobo junto ao rio; de a mão lhe doer
corda que tinha amarrada a ela ter ficado tão apertada; de Jondalar
levar ao colo. Sorriu por ele estar all tão agarrado a ela e de
-se de o ter visto montar a tenda. Sentiu-se um pouco envergonhada não o ter ajudado mais, muito embora estivesse tão rígida de frio se conseguia mexer.
O Lobo libertou-se dos braços que o impediam de se mexer e saiu, empurrando
com o focinho a pele que tapava a saída da a Whinney relinchar e, com uma sensação de alegria, quase lhe respondeu,
mas depois lembrou-se de que Jondalar estava a dormir. ComI
a ficar preocupada por os cavalos estarem à chuva. Estavam habituados
a tempo seco, não àquela chuva que encharcava tudo. Até aguentavam
um frio gélido, desde que fosse seco. Mas lembrou-se de que tinha visto
cavalos, portanto alguns deviam viver nac
uma camada de pêlo sob a camada exterior que era espessa e densa e
se mantinha quente mesmo quando molhada. Achou que eles aguenta
riam, desde que não chovesse sempre.
Apercebeu-se então de que não gostava das chuvas violentas de Outono que caíam na região do sul, embora acolhesse com agrado as longas Primaveras chuvosas do norte, com as suas neblinas e chuviscos cálidos. A caverna do clã de Brun era a sul, onde chovia bastante no Outono, mas não se lembrava de haver chuvas tão violentas. As regiões a sul não eram tedas iguais. Ayla pensou em levantar-se, mas antes de o fazer voltou a adormecer.
Quando acordou pela segunda vez, o homem ao seu lado estava a me
xer-se. All deitada nas peles, Ayla detectou uma diferença que não conseguiu
identificar. Depois apercebeu-se de que o barulho da chuva tinha
parado. Levantou-se e saiu da tenda. Era quase noitinha e fazia um
pouco mais de frio que antes e lamentou não ter vestido qualquer coisa
quente. Urinou junto a um arbusto e depois foi para junto dos cavalos que
estavam a pastar na erva junto aos salgueiros por onde corria um ribeiro. O Lobo estava com eles. Foram todos ao seu encontro quando a viram e
ela esteve a fazer-lhes festas e a coçá-los e a falar com eles durante algum
tempo. Depois voltou para a tenda e meteu-se dentro das peles de
dormir junto do corpo quente do homem.
-- Estás fria, mulher! -- disse ele.
-- E to estás quentinho e sabes bem-disse ela, aconchegando-se a
ele. ,,
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Ele abraçou-a e beijou-lhe o pescoço, aliviado por ver que ela estava
aquecer rapidamente. Tinha demorado tanto tempo a aquecer depois de
ficar gelada pela água.
-- Não sei em que é que estava apensar para deixar que ficasses tão molhada e fria-disse Jondalar.-Não devíamos ter tentado atravessar aquele rio.
-- Mas, Jondalar, que outra coisa podíamos fazer? Tinhas razão. Por mais que estivesse a chover, teríamos de atravessar um rio qualquer e teria sido pior tentarmos atravessar um que viesse das montanhas-dis se ela.
-- Se nos tivéssemos vindo embora dos Sharamudoi mais cedo, não teríamos apanhado chuva. E a Irmã não seria tão difícil de atravessar disse Jondalar, continuando a culpar-se a si próprio.
-- Mas a culpa foi minha de não termos partido mais cedo e até o Car lono pensou que chegaríamos cá antes de começarem as chuvas.
--Não, a culpa foi minha. Eu sabia como é este rio. Se tivesse feito um esforço, teríamos partido mais cedo. E se tivéssemos abandonado o barco, não teríamos demorado tanto tempo a atravessar a montanha, nem ele te teria atrapalhado na travessia do rio. Fui tão estúpido!
--Jondalar, por que é que te estás a culpar?--perguntou Ayla.
não és estúpido. Não podias preyer o que ia acontecer. Nem sequer Um Dos Que Serve A Mãe o pode fazer claramente. Nunca é claro. E nós conseguimos cá chegar. Já cá estamos e estamos todos bem, graças a ti, incluindo o Lobo. Até temos o barco e quem sabe se ainda nos poderá vir a ser útil.
--Mas quase te perdi-disse ele, escondendo o rosto no pescoço dela e agarrando-a com tanta força que a magoou, emb. ora ela não o tivesse impedido. -- Não consigo dizer-te como te amo. Es tão importante para mim, mas as palavras que o dizem são pequenas. Não chegam para dizer o que sinto por ti.-Ele apertou-a como se pensasse que sea agarrasse com suficiente força poderia fazer com que ela se tornasse parte dele e que assim nunca a perderia.
Ela também o abraçou com força, amando-o e desejando poder fazer qualquer coisa para atenuar a sua angústia e a sua súbita e avassaladora necessidade. Depois apercebeu-se de que sabia o que fazer. Soprou-lhe ao de leve na orelha e beijou-lhe o pescoço. A resposta dele foi imediata. Beijou-a com uma paixão feroz, acariciando-lhe os braços e moldando -lhe os seios com as mãos, sugando-lhe os mamilos com um desejo imenso. Ela pôs uma perna à volta dele e ele rolou para cima dela, abrindo-lhe as coxas. Recuou, procurando e apalpando com o sexo erecto, tentando encontrar a sua abertura. Ela estendeu a mão e ajudou-o a entrar e deu por si tão ansiosa por ele como ele estava por ela.
Ao mergulhar nela e sentir o abraço quente do seu poço fundo, ele gemeu
com a súbita e indescritível sensação. Todos os seus pensamentos de
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JEAN A UEL
pesadelo e as suas preocupações temerosas desapareceram de momento
enquanto a alegria sensual daquela maravilhosa Dádiva de Prazer d
Mãe o enchia, não deixando lugar para quaisquer outros pensamentos
não ser o seu amor por ela. Puxou o corpo para trás e depois sentiu o movimento
dela corresponder ao seu quando se voltaram ajuntar. Arespo
PLAN[CIES DE PASSAGEM
estará tão mais pequena que terás dificuldade em reconhecê-la como
sendo o Grande Rio Mãe.
-- Sem toda a água da Irmã, não sei bem se a reconheceria-disse Ayla.
-- Acho que reconhecias. Apesar de a Irmã ser tio grande, no sítio on
ta dela provocou nele uma paixão ainda maior,
de se juntam, a Mãe é ainda maior. Há um grande rio que se alimenta do
Enquanto continuaram a ir ao encontro um do outro, ele estava rã4 outro lado antes dos Montes de Florestas que faz com que wire para este.
bem que ela não pensou em nada. O corpo dele e o corpo dela fluíam paral O Thonolan e eu encontrámos umas pessoas que nos atravessaram para
a frente e para trás num rÌtmo ao qual ela se entregava completamentl o outrolado em jangadas. Há mais afluentes vindos das montanhas a oes
centrando-se bem no seu interior, aoçmaoverem-se ao encontro um °ol jondalarsentou-se.Aconversatinha-odspostoapensaremreto-ma"
°utÉÏ" n'
-- term a sua viagem, embora só pudessem partir na manhã seguinte. en
e se t'a-se a crescer com um poder vulcânico, sendo varrido por on-l tia-se refeito e descontraído e já não lhe apetecia ficar na cama.
das de excitação que o envolviam e depois, quase sem dar por isso, irrom- -- Não temos de atravessar mais rio nenhum até chegarmos às terras
peram numa doce libertação. Enquanto fazia os últimos movimentos, ele
sentiu alguns choques secundários da violenta erupção e depois a sensação
gloriosa e quente do relaxamento total.
Estava em cima dela, a recuperar o fôlego depois do súbito e imenso esforço. Ela fechou os olhos de satisfação. Passado algum tempo, ele rolou de cima dela e aconchegou-se a ela e ela a ele. Ficaram all encaixados um no outro, contentes e felizes.
Passado muito tempo, Ayla disse baixinho:
-- Jondalar?
--Hummm?--murmurou ele. Estava num estado de agradável langor,
não com sono, mas sem lhe apetecer mexer-se, m
-- Quantos mais rios como este é que temos de atravessar?--pergun
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tou ela.
Ele inclinou-se e beijou-lhe a orelha.
-- Nenhum.
-- Nenhum?
--Nenhum, porque não existe mais nenhum rio como a Irmã B explicou Jondalar.
-- Nem sequer o Grande Rio Mãe?
--Nem sequer o Grande Rio Mãe é tão rápido e traiçoeiro ou tão perigoso como a Irmã B disse ele--, mas nós não temos de atravessa.- o Gran de Rio Mãe. Iremos deste lado durante a maior parte do caminho até ao m planalto do glaciar. Quando chegarmos perto do gelo, há umas pessoas'. que eu gostaria de visitar que ,vem do outro lado do Grande Rio Mãe.
Mas isso é muito longe daqui e nessa altura o rio não é mais que um ribeiro
de montanha. Jondalar rolou e ficou deitado de costas.-Isto não
quer dizer que não tenhamos de atravessar alguns rios bastante grandes,
mas do outro lado destas planícies a Mãe ramifica-se em muitos canais
que se dividem e voltam a unir. Quando voltarmos a vê-la de novo jun
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altas do norte-continuou ele.-Pelo menos foi issoque a gente da Ha
duma me disse. Dizem que há alguns montes, mas que é uma região bastante
plana. A maioria dos rios que veremos serão canais da Mãe. Dizem
que ela vagueia por todo o lado nestas paragens. Mas é uma boa região
de caça. A gente da Haduma atravessa frequentemente os canais para vir
cá caçar.
--A gente daHaduma? Creio que a referiste, mas não me contaste nada sobre ela-disse Ayla, levantando-se também e pegando no cesto-al forge.
Não estivemos com eles muito tempo, apenas o tempo suficiente para...-Jondalar hesitou, pensando nos Primeiros Ritos que compartilhara com Noria, uma jovem e bonita mulher. Ayla reparou numa estranha expressão, como se ele estivesse ligeiramente embaraçado mas simultaneamente satisfeito consigo próprio. -- ... uma Cerimónia, uma festa-concluiu ele.
-- Uma festa em honra da Grande Terra Mãe? -- perguntou Ayla.
B Ah... sim, exactamente. Pediram-me... born, pediram ao Thonolan e a mim para a compartilharmos com eles.
-- Vamos visitar a gente da Haduma? -- perguntou Ayla que estava junto da abertura da tenda, com uma pele de camurça dos Sharamudoi na mão para se limpar depois de se lavar no ribeiro junto aos salgueiros.
-- Eu gostava, mas não sei onde vivem-disse Jondalar. Depois, ao
ver a expressão intrigada de Ayla, explicou rapidamente.-Alguns dos
seus caçadores encontraram o nosso acampamento e mandaram chamar
a Haduma. Foi ela que decidiu fazer a festa e mandou vir os outros.-Fez
uma pausa enquanto recordava.-A Haduma era uma mulher espanto
sa. Foi a mulher mais velha q.ue coaheci em toda a minha vida. Era mais
velha que o próprio Mamut. E mãe de seis gerações. -- "Pelo menos espero
que sim", pensou.-Gostava mesmo muito de a voltar a ver, mas não
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
temos tempo para a procurar. De qualquer forma, acho que já deve
morrido, embora o seu filho, Tamen, ainda deva ser vivo. Era o único
falava Zelandonii.
Ayla saiu da tenda e Jondalar estava cheio de vontade
Enfiou rapidamente uma túnica e saiu também da tenda. Enc segurava no seu órgão e observava o arco fumegante de água amarela de cheiro acre a jorrar para o chão, pensou se Noña teria tido o bebé c Haduma tinha dite que teria e se aquele órgão que estava ase responsável por isso.
Viu Ayla dirigir-se para os salgueiros apenas com a
sobre os ombros. Pensou que também devia ir lavar-se, embora se tido a sua conta de água fria para aquele dia. Não se fosse necessário, por exemplo, para atravessar o rio, mas, quando jara com o irmão, não lhe parecera assim quentemente com água fria.
E Ayla nunca lhe dissera nada sobre isso, mas como I
de se lavar por a água ser fria, ele sentia que não podia dar essa de pa para evitar lavar-se me tinha de admitir que gostava que ela normal mente tivesse um cheiro tão fresco. Mas por vezes ela chegava mesmo partir o gelo para chegar à água e ele pensou como é que ela tal frio.
Pelo menos estava a pé e activa. Tinha pensado que talvez tive.. de ficar all acampados durante alguns dias por ela ter ficado tão ou até que ela chegasse mesmo a adoecer. Talvez o facte de se lavar tan te com água gelada a tivesse acostumado a água fria, pensou para s prio. "Talvez não me fizesse mal eu lavar-me." Apercebeu-se então que tinha estado a observar a forma como o seu traseiro nu ai a pele e se movia atraentemente de um lado para o outro enquanto an. dava.
Os seus Prazeres tinham sido excitantes e mais satisfatórios do ele alguma vez imaginara, isto pensando como terminavam rapidamente mas, ao observar Ayla pendurar a pele macia num ramo e entrar ribeiro, sentiu vontade de recomeçar tudo de novo, só que desta vez lh, daria Prazer lentamente, carinhosamente, gozando cada parte dela.
As chuvas continuaram intermitentemente quando começaram
atravessar as planícies aninhadas entre o Grande Rio Mãe e a Irmã,
afluente que tinha quase o mesmo tamanho que este. Diñgiram-se '
noroeste, embora o seu caminho estivesse longe de ser directe. A.,
cies centrais assemelhavam-se às estepes a este e eram na realidade
extensão destas, mas os rios que atravessavam a antiga bacia de norte a
sul desempenharam um papel dominante nas características da terra.
Em especial, o curso do Grande Rio Mãe, que mudava frequentemente
direcção, se ramificava e serpenteava, criava imensas zonas de aluvião nas vastas terras secas de pastagens.
Formavam-se lagos nas curvas apertadas dos canais mais largos que
se espraiavam sobre a terra, e os pântanos, pastagens e campos verdejan
tes que davam diversidade às magnificentes estepes, eram santuáño de quantidades e variedades inimagináveis de aves, mas eram também
causa de desvios para aqueles que viajavam por terra. A diversidade das
espécies aladas era complementada por uma rica vida vegetal e por uma
população variada de animais comparável com a das pastagens a este,
mas mais concentraàas, como se uma paisagem mais vasta tivesse encolhido,
enquanto a sua comunidade de seres vivos mantinha a mesma
dimensão.
Rodeada de montanhas e terras altas que canalizavam humidade para o solo, as planícies centrais, especialmente a sul, eram também mais arborizadas, muitas vezes de formas subtis. Em vez de exemplares anões, os arbustos e as árvores que se concentravam junto das linhas de água !eram frequentemente de tamanho normal. Na parte a sudeste, perte da :confluência larga e turbulenta, havia pântanos e brejos nos vales e zonas mais baixas e estes tornavam-se enormes durante as épocas de inundação.
Pequenos bosques húmidos de fetos, com amieiros, freixos e bétulas eram atoleiros para os incautes, entre outeiros encimados por bosques de
salgueiros, ocasionalmente salpicados de carvalhos e faias, enquanto os
pinheiros lançavam as suas raízes em solos mais arenosos.
A maior parte dos solos eram uma mistura de terra de loess rica e mar
gas negras ou areias e gravilhas aluviais, com um ocasional afloramento
de rocha antiga a interromper o relevo plano. Aquelas terras altas isola
das eram normalmente arborizadas com coníferas, que por vezes se
estendiam até às planícies, proporcionando habitat a várias espécies de animais que não podiam viver exclusivamente em terreno aberto; a vida
era mais rica nas orlas. Mas, apesar de toda a complexidade, a vegetação
"rimária continuava a ser a erva. Com erva alta e erva curta das estepes,
e festucas, as planícies centrais de estepe eram uma zona de
pastagem extraordinariamente rica e abundantemente produtiva a on
dular ao vente.
Enquanto Ayla e Jondalar abandonavam as planícies a sul e se aproximavam do frio do norte, a estação parecia progredir mais rapidamente que normalmente. O vento que lhes fustigava o roste trazia uma sugestão do frio arrepiante da sua origem. A acumulação inconcebivelmente massiva de gelo glacial, que se estendia sobre vastas áreas das terras do norte, estava directamente à sua frente, a uma distância que podia ser percorrida a pé e muite inferior àquela que já tinham percorrido.
Com a estação a mudar, a força crescente do ar gelado encerrava uma
profunda subcorrente da sua potencial força. As chuvas diminuíram e finalmente
pararam de tedo, enquante farrapos brancos tomavam o lugar
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
das nuvens carregadas, pois as nuvens eram rasgadas pelos ventos tos e constantes. Rajadas poderosas arrancavam as folhas
res decíduas e espalhavam-nas numa carpete solta aos seus pés. Depoi,
numa súbita alteração de humor, uma corrente ascen
esqueletos frágeis da vegetação de Verão, fazendo-os girar furiosamel
te e, cansada da brincadeira, lançava-os noutro local.
Mas o tempo seco e frio era mais do agrado dos viajantes,
familiar e atd confortável, com os seus capuzes eparkas forradas de Jondalar tinha sido bem informado; era fácil caçar nas e os animais eram gordos e saudáveis depois de um Verão de boa alimer tação. Era também a época do ano em que muitos cereais, frutos, e raízes estavam maduros para serem colhidos. Não tinham de de utilizar a sua comida de viagem de emergência e até reservas que tinham consumido quando mataram um veado gigante, depois decidiram parar e descansar durante alguns dias enquanto yam a carne. Os seus rostos resplandeciam de vigorosa saúde e dade por estarem vivos e apaixonados.
Os cavalos também tinham rejuvenescido. Aquele era o seu meio ma e as condições às quais estavam adaptados. O seu pêlo espesso ficado mais fofo com a camada de Inverno e todas as manhãs cheios de energia e animados. O lobo, com o focinho apontado ao captava cheiros que eram familiares aos profundos recessos instintivo do seu cérebro, e ia correndo contente, ocasionalmente desaparecendo ra explorar, voltando a aparecer com um ar convencido, achava Ayla.
A travessia dos rios não constituía problema. A maior parte dos sos de água corriam paralelos à direcção norte-sul do Grande Rio embora tivessem atravessado alguns que atravessavam a os padrões eram imprevisíveis. Os canais serpenteavam em curvas amplas que eles nem sempre tinham a certeza se um ribeiro que se lhe deparava no caminho era uma curva do rio ou um dos poucos ribeiros vinham de terrenos mais altos. Alguns canais paralelos abruptamente num ribeiro que corria para oeste que, por sua vez, ia va zar num outro canal da Mãe.
Embora tivessem por vezes que fazer desvios em relação ao seu rum para norte devido a uma curva larga do rio, o terreno era do tipo de pas tagem aberta que fazia que o facto de viajarem a cavalo fosse uma van" tagem em relação a viajar a pé. Avançavam com rapidez, cobrindo distâncias cada dia, o que compensava atrasos anteriores. Jondalar satisfeito ao pensar que até estavam de certa forma a compensar a decisão de ir pelo caminho mais longo para poderem visitar os mudoi.
Os dias frios e límpidos davam-lhes uma vista panorâmica que apenas
era obscurecida pelas neblinas matinais quando o sol aq
dade condensada da noite. A este estavam agora as montanhas lato contornado quando seguiram o grande rio através das planícies
.entes do sul, as mesmas montanhas por cuja vertente sudoeste tinham
Os picos glaciares cintilantes iam-se aproximando imperceptiImente à medida que a cordilheira curvava para noroeste, descreven u.m grande arco.
A sua esquerda, a cadeia mais alta de montanhas no continente,
ntando uma pesada coroa de gelo glaciar que chegava a meio dos seus
marchava de cume em cume, de este para oeste. Os cumes altís
e brilhantes surgiam a uma distâncÌa roxa como uma presença nto sinistra, uma barreira aparentemente intransponível entre "antes e o seu destino final. O Grande Rio Mãe levá-los-ia em vol da ampla face norte da cordilheira até ao glaciar relativamente lequeno que cobria, com uma armadura de gelo, um antigo massivo arre,ndado na extremidade noroeste do promontório alpino das montanhas. Mais abaixo e mais perto, depois de uma planície verdej ante interrora ñda por pinhais, erguÍa-se outro massivo. As terras altas graníticas lavam para prados de estepes e para a Mãe, mas tornavam-se gradual nte menos elevadas à medida que avançavam para norte, vindo a for montes ondulantes que se estendiam atd aos contrafortes das mona oeste. As árvores interrompiam cada vez menos a vastidão da em verdejante e as que Jam aparecendo começaram a assumir as contorsões anãs de árvores esculpidas pelo vento.
Ayla e Jondalar tinham já percorrido quase três quartos da distância
Lotal, de sul a norte, das imensas planícies centrais, antes de começarem
a cair os primeiros flocos de neve.
-- Jonda.lar, olha! Está a nevar! -- exclamou Ayla, e o seu sorriso era radioso.-E a primeira neve do Inverno.-Tinha já cheirado a neve no ar e a primeira neve da estação parecia-lhe sempre especial.
Não consigo perceber por que é que estás tão contente disse ele, mas o sorriso dela era contagioso e ele não conseguiu deixar de lhe sorrir. -- Mas receÌo bem que vás ficar farta de neve e gelo antes de nos vermos livres deles.
Eu sei que tens razão, mas continuo a adorar a primeira neve.
Alguns passos mais adiante, Ayla perguntou:
-- Podemos acampar em breve?
Só passa um pouco do meio-dia-disse Jondalar com uma expressão intrigada.-Por que é que estás já a falar em acampar?
-- Vi há pouco uns ptarmigãs. Já começaram a ficar brancos, mas como ainda não há neve no chão são fáceis de ver. Isso não acontecerá depois de nevar e eles são muÌto bons nesta altura do ano, sobretudo da forma como o Creb gostava deles, mas demoram muito tempo a cozinhar.
-- Ayla estava a recordar, com o olhar perdido na distância. E preciso
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cavar um buraco na terra, forrá-lo com pedras e fazer uma fogueira
dentro; depois põem-se as aves, embrulhadas em palha, tal;
pera-se.-As palavras tinham-lhe saído tão rapidamente da boca c
quase tropeçou nelas.-Mas valem bem o tempo que se espera.
-- Calma, Ayla. Estás toda excitada-disse ele,
encantado. Adorava observá-la quando estava assim entusiasmada. Se tens a certeza de que são assim tão deliciosos, então acho " acampar bem cedo e irrnos caçar ptarmigãs.
-- Oh, são-disse ela, olhando para Jondalar com uma
muito séria--, mas to já os comeste cozinhados dessa forma. Sabes c sabor têm.-Depois reparou no sorriso dele e apercebeu-se de que tinha estado a brincar com ela. Tirou a funda do cinto.-Monta to acampamento que eu you caçar ptarmigãs, e, se me ajudares a cavar buraco, ata te deixarei provar um deles-disse ela com um sorris¢ gado enquanto incitava a Whinney a avançar.
-- Ayla! -- gritou Jondalar antes de ela se afastar demasiado.- me deixares a padiola, terei o acampamento montado para ti, Que Caça".
Ela mostrou-se sobressaltada.
--Não sabia que te lembravas do nome que o Brun me deu
permitiu caçar-disse ela, voltando para trás e parando à frente
--Posso não ter as tuas memórias do Clã,
coisas, especialmente sobre a mulher que amo-disse ele, vendo o: lindo sorriso torná-la ainda mais bela.-Além disso, se me ajudares decidir onde montar o acampamento, saberás para que sítio voltar as aves.
-- Se não te visse, descobria-te, mas deixo-te a padiola.
não consegue virar muito depressa com ela.
Continuaram a cavalo até verem um sítio born para acampar,
um ribeiro com uma área plana para a tenda, algumas árvores e " " portante para Ayla, uma praia rochosa com pedras que podiam ser lizadas para o seu forno de terra.
--Já que estou aqui, mais vale ajudar-te a montar o acam
disse Ayla, desmontando.
-- Vai caçar os teus ptarmigãs. Diz-me só onde queres que eu com, ce a cavar o buraco-disse Jondalar.
Ayla fez uma pausa e depois assentiu. Quanto mais depressa
se as aves, mais depressa começaria a cozinhá-las, e levariam i
tempo a cozinhar e talvez mesmo a caçar. Percorreu a área a pé e lheu um sítio que lhe pareceu born para o forno de terra.
-- Aqui-disse --, não muito longe destas pedras.-Perscrutou. praia e decidiu que,já que all estava, mais valia apanhar algumas ] redondas para a funda.
Depois fez sinal aoLobo para ir com ela e voltou pelo trilho que
procurando os ptarmigãs que avistara. Quando começou à procura
das aves gordas, viu várias espécies que se lhes assemelhavam. Primeiro
foi tentada por uma ninhada de perdizes cinzentas que viu a depenicar
as sementes maduras de erva-castelhana e trigo. Identificou o número
surpreendentemente grande de crias pelas marcas de coloração ligeiramente
menos bem definidas, não pelo seu tamanho. Embora as aves en
corpadas e de tamanho médio pusessem ata vinte ovos em cada postura,
eram normalmente sujeitas e tal predação que não sobreviviam muitos ao estado adulto.
As perdizes cinzentas também eram saborosas, mas Ayla decidiu con:inuar, registando a sua localização para o caso de não encontrar os tão apetecidos ptarmigãs. Um bando, várias famflias de ninhadas de codornizes, mais pequenas e gregárias, sobressaltaram-na ao levantarem voo. As pequenas aves rotundas também eram saborosas e se ela soubesse lançar o pau de atirar que podia derrubar várias de uma só vez, talvez tivesse tentado caçí-las.
Como decidiu passar também por estes, Ayla ficou contente ao ver os ptarmigãs, normalmente bem camuflados, perto do sítio onde os tinha visto antes. Embora ainda tivessem algumas manchas nas costas e nas asas, as suas penas predominantemente brancas tornavam-nos bem visíveis no terreno acinzentado e na erva seca de um dourado-escuro. As aves encorpadas e gordas já tinham penas de Inverno nas pernas, que lhes chegavam às patas para as aquecer e servir de sapatos de neve. Embora as codornizes percorressem muitas vezes distâncias mais longas, as perdizes e os ptarmigãs, os faisões que ficavam brancos na neve, normal! mente ficavam numa área próxima do local onde tinham nascido, migran do apenas numa curta distância entre o Inverno e o Verão.
Na vida do mundo de Inverno, que permitia associações estreitas de seres vivos cujos habitats eram noutras épocas bem afastados, cada um tinha o seu nicho e todos ficariam nas planícies centrais durante o Inverno. Enquanto as perdizes se mantinham nas pastagens abertas e ventosas, alimentando-se de sementes e empoleirando-se à noite em árvores de rios e nas terras altas, os ptarmigãs ficavam no meio da neve, tocas na neve para se manterem quentes e alimentando-se de ga lhos, rebentos da vegetação rasteira, muitas vezes de variedades contendo óleos fortes que eram desagradáveis ou mesmo venenosos para outros animais .
Ayla fez sinal ao Lobo para ficar quieto enquanto tirava duas pedras
da bolsa e preparava a funda. Montada na Whinney, avistou uma das
aves quase toda branca e lançou a primeira pedra. OLobo, compreendendo
o seu movimento como um sinal, lançou-se simultaneamente em perseguição
de outra ave. Com um forte bater de asas e sonoros grasnidos de
protesto, o resto da ninhada das pesadas aves levantou voo, com os seus
grandes músculos de voo a bater fortemente. As suas habituais marcas
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de camuflagem no sol,
a plumagem erecta mostrava padrões distintos, tornando mais
outras aves da sua espécie segui-las e manterem-se juntas num
Após o pñmeiro ímpeto de actividade e do súbito rustilhar de
o voo dos ptarmigãs transformou-se num suave planar. Com uma
são e movimento do seu corpo que era para ela uma segunda
Ayla fez sinal a Whinney para seguir as aves, enquanto se
lançar uma segunda pedra. A jovem mulher agarrou
mente após o lançamento, deslizou a mão na direcç
ta e, com um gesto experiente que acompanhava o movimento, pô-la,
nOV(
sa antes de a soltar. Embora por vezes tomasse"
lançamento, raramente necessitava dele para o segundo.
A sua habilidade em lançar pedras tão rapidamente era tão
se tivesse perguntado, ter-lhe-iam dito que era impossível. Mas tinha tido ninguém a quem perguntar, ninguém que lhe dissesse
impossível, portanto Ayla aprendera sozinha a sua técnica de duplo
çamento. Tinha-a aperfeiçoado ao longo dos anos e era
certeira com ambas as pedras. A ave à qual fizera pontaria no solo
chegou a levantar voo. Quando a segunda ave começou a cair
agarrou rapidamente em mais duas pedras, mas o bando
do seu alcance.
O Lobo dirigiu-se para ela com uma terceira ave
zou de cima da égua e, obedecendo ao seu sinal, o lobo deixou cair o migã aos seus pés. Depois sentou-se, a olhar para ela, satisfeito consi próprio, com uma macia pena branca a um canto da boca.
-- Muito bem, Lobo disse ela, agarrando-o pelo cachaço com a pelagem de Inverno e tocando com a testa dele na sua. Depois rou-se para o cavalo.-Esta mulher aprecia a tua ai se ela na linguagem especial formada em parte por sinais do Clã e ves relinchos. O cavalo levantou a cabeça, resfolegou e ai mulher. Ayla agarrou na cabeça da égua e soprou-lhe para as narina trocando cheiros de reconhecimento e amizade.
Torceu o pescoço a uma das aves que ainda não estava morta:
utilizando umas ervas resistentes, amarrou as patas das aves umas
outras. Montou o cavalo e pendurou as aves no cesto-alforge atrás
No caminho de regresso, deparou de novo com as perdizes e não
a tentar apanhar uma ou duas. Com mais duas I mas falhou a terceira. O Lobo apanhou uma e desta vez Ayla
ficar com ela.
Pensou que cozinharia todas de uma vez para comparar os
de aves. Guardaria os restos para o dia seguinte. Depois começou a
sar com que é que as poderia rechear. Se estivessem a chocar,
do os seus próprios ovos, mas quando vivia com os Mamutoi usava
reais. Mas apanhar cereais demoraria muito tempo. A colheita de cereais era um processo muito moroso e que rendia mais feito com um grupo de pessoas. As grandes raízes talvez fossem boas e podiajuntar-lhes cenouras e cebolas.
Como ia apensar na refeição que tencionava preparar, a jovem mulher não estava aprestar grande atenção ao que se passava à sua volta, mas não pôde deixar de dar por isso quando a Whinney parou. A égua sacudiu a cabeça e relinchou, depois ficou perfeitamente imóvel, mas Ayla sentia a sua tensão. O cavalo estava a tremer e Ayla percebeu porquê.
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Ayla ficou montada na Whinney a olhar directamente em frente, se
tindo uma inexplicável apreensão, enquanto o medo se avolumava
tro de si, provocando-lhe um arrepio pela espinha abaixo.
e abanou a cabeça para se libertar daquela sensação. Afinal de
não havia nada a temer. Abrindo os olhos, voltou a olhar para a
manada de cavalos selvagens à sua frente. Que é que uma manada
cavalos tinha de temível?
A maioria dos cavalos estava a olhar na sua direcção e a atenção Whinney estava tão centrada nos outros membros da sua espécie como
destes estava nela. Ayla fez sinal ao Lobo para ficar imóvel,
que ele estava cheio de curiosidade e de vontade de investigar. Afinal
contas, os cavalos eram frequentemente presa dos lobos e os cavalo.,
vagens não gostariam se ele se aproximasse demasiado.
Enquanto Ayla estudava a manada mais atentamente, sem saber
o que eles, ou a Whinney, fariam, apercebeu-se de que não era um
manada, mas sim duas. As éguas e as suas crias dominavam
partiu do princípio de que o animal que se destacava dos outros e mia um porte agressivo era a égua principal. Em segundo plano
uma manada mais pequena de cavalos sem fèmeas. Subitamente, roll num que estava entre as duas manadas e não pôde deixar de
fixamente. Era o cavalo mais invulgar que alguma vez vira.
A maioria dos cavalos eram variações do tom amareloclaro Whinney, alguns mais escuros, outros mais claros. O tom mais escur Corredor era invulgar e ela nunca tinha viste um cavalo tão escuro com,
ele, mas o term do garanhão da manada era igualmente estranho
tido oposto. Ayla nunca tinha visto um cavalo tão claro. O
adulto e bem formado que se aproximava cautelosamente era
mente branco!
Antes de reparar na Whinney, o cavalo branco tinha estado a
os outros machos à distância, tornando bem claro que se eles não ximassem demasiado seriam tolerados, pois não era a época de acasal mente dos cavalos, mas ele era o único que tinha o direito de se com as fêmeas. No entanto, o súbito aparecimento de uma fêmea. nha, interessou-lhe e também chamou a atenção do resto dos cavalos.
Os cavalos eram, por natureza, animais sociais. Gostavam de m
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ciara outros cavalos. As éguas em particular tendiam a formar relações
permanentes. Mas, ao contrário do padrão da maioria dos animais que
viviam em manadas, nas quais as filhas continuavamjunto das mães em
grupos familiares, os cavalos geralmente formavam manadas de éguas
não aparentadas. As jovens fèmeas normalmente abandonavam o grupo
em que tinham nascido ao chegarem ao estado adulto, por volta dos dois
anos. Estabeleciam hierarquias de predominância, que proporcionavam
i privilégios e benefícios às éguas de elevado estatuto e às suas crias-Ìncluindo
prioridade no acesso à água e às melhores áreas de pastagem m , mas as suas ligações eram consolidadas por cuidados de limpeza mútua
do seu pêlo e por outras actividades amigáveis.
Embora brincassem à luta uns com os outros enquanto potros, só
quando os jovens garanhões sejuntavam aos garanhões adultos, por voluatro
anos, é que começavam a treÌnar a sério para o dia em que
lutariam pelo direito a acasalar. Embora limpassem o pêlo uns aos outros
manada exclusivamente formada por machos não acasalados, a prin
)al actividade era procurar dominar os outros. Começando por empur
- e encontrões e rituais de defecar e cheirar, o grau das competições
, especialmente durante a época de cio na Primavera, passan
a incluir patadas, mordidelas e coices dirigidos à cabeça e ao corpo dos
outros. Só passados alguns anos destas manifestações é que os machos
roubar jovens fêmeas ou expulsar o macho dominante de
Por ser uma fêmea sem macho que se pusera ao seu alcance, a Whinney era objecte de intenso interesse por parte quer da manada de
éguas quer dos machos não acasalados individuais. Ayla decidiu que nåo
da forma como o garanhão da manada se estava a aproximar
delas, numa atitude orgulhosa e segura, como se estivesse prestes a recla- a Whinney para si.
m Já não é preciso ficares quieto, Lobo-disse ela, fazendo-lhe o sinal que o libertava da ordem anterÌor, e ficou a observá-lo enquanto ele avan ara. Para o Lobo, aquela era uma manada inteira de Whinneys e Correaeria brincar com eles. Ayla tinha a certeza de que as suas acções não constituiriam um perigo sério para os cavalos. Sozinho, não consegui ria derrubar um daqueles animais tão fortes. Para isso seria necessária toda uma alcateia de lobos e as alcateias raramente atacam animais adultos absolutamente saudáveis.
Ayla incitou a Whinney a regressar ao acampamento. A égua hesitou por instantes, mas o seu hábito de obedecer à mulher foi mais forte que o seu interesse nos outros cavalos. Começou a andar, mas lentamente, e com contínuas hesitações. Depois, oLobo correu para o meio da manada. Estava a divertir-se a perseguir os cavalos e Ayla ficou contente ao ver que eles se tinham dispersado. Tinha desviado a sua atenção da sua Whinney.
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Quando Ayla chegou ao acampamento, estava tudo pronto para
Jondalar tinha acabado de montar os três paus para manter a comidal
ra do alcance da maioria dos animais que pudessem estar
nela. A tenda estava montada, o buraco estava feito e forrado de
e até tinha delimitado a zona da fogueira com pedras.
m Olha para aquela ilha m disse-lhe ele quando ela
Apontou para uma extensão de terra, composta de sedimento do, no meio do rio, com ciperáceas, juncos e várias árvores. m Há lá bando de cegonhas, pretas e brancas. Vi-as pousar D disse ele com. sorriso de satisfação.-Estava cheio de vontade que aparecesses. E espectáculo que vale a pena ver. Voaram, desceram a pique a subir e até andaram às cambalhotas. Fechavam as asas e C cair do céu para a terra; depois, quando já estavam quase cá em abriam as asas. Parecia que estavam a ir para -ão embora amanhã de manhã.
Ayla olhou para lá da água, para as majestosas aves de compridos. Estavam muito activas, a corner, a andar ou a correr ta ou na água pouco funda, a apanhar tudo o que se mexia com bicos compridos, comendo peixes, lagartixas, rãs, insectos e Pelos vistos aid comiam carne putrefacta, a avaliar cavam os restos de um bisonte morto que fora dar à praia. As duas cies eram bastante semelhantes em estatura, embora de colorido rente. As cegonhas brancas tinham asas com as pontas pretas e eram maior número; as cegonhas pretas tinham a parte de baixo branca maioria estava dentro de água a tentar apanhar peixes.
m No regresso vimos uma grande manada de cavalos D
pegando nos ptarmigãs e nas perdizes.-Muitas éguas e crias,
bém tinha um macho. O garanhão da manada é branco.
-- Branco?
--Tão branco como aquelas cegonhas. Nem sequer tinha as
tas disse ela, desapertando as correias do cesto-alforge.-Não daria por ele no meio da neve.
-- Branco é raro. Nunca vi um cavalo branco-disse Jondalar. recordando Noria e a cerimónia dos Primeiros Ritos, lembrou-se da branca de cavalo que estava pendurada na parede atrás da cama, tada com cabeças vermelhas de pequenos pica-paus. D Mas a pele de um cavalo branco disse ele.
Qualquer coisa no seu tom de voz fez que Ayla olhasse para ele atentamente. Ele viu o olhar dela e corou ligeiramente enq va para tirar o cesto-alforge de cima da Whinney, mas depois na obrigação de lhe explicar.
Foi durante a... cerimónia com os Hadumai.
-- São caçadores de cavalos? -- perguntou Ayla. Dobrou a manta montar, pegou nas aves e dirigiu-se para a beira do rio.
--Born, caçam cavalos. Porquê? D perguntou Jondalar, acompanhan doa.
Lembras-te de o Talut nos contar da caça ao mamute branco? Era muito sagrado para os Mamutoi por serem Caçadores de Mamutes disse Ayla. Se os Hadumai usam uma pele branca de cavalo durante as cerimónias, pensei se considerariam os cavalos como sendo animais especiais. É possível, mas não estivemos com eles tempo suficiente para sabermos disse Jondalar.
Mas caçam cavalos? -- perguntou ela, começando a depenar as aves.
D Sim, estavam a caçar cavalos quando o Thonolan os encontrou. A princípio não ficaram nada contentes connosco, pois dispersámos a manada que perseguiam, mas nós não sabíamos.
--Acho que you pôr os arreios à Whinney esta noite e amarrálajun
to à tenda-disse Ayla.-Se há por aí caçadores de cavalos, prefiro tê-la por perto. Além disso, não gostei da forma como aquele garanhão
branco se estava a dirigir para ela.
-- Talvez tenhas razão. Talvez eu também deva prender o Corredor. Mas não me importava de ver esse garanhão branco-disse Jondalar.
Eu prefiro não o voltar a ver. Estava demasiado interessado na Whinney. Mas é invulgar e belo. Tens razão, um cavalo branco é raro
disse Ayla. Voavam penas enquanto ela as puxava com movimentos rá-pidos. Parou por instantes. D Preto também é raro, disse ela.-Lembraste
quando o Ranec disse isso? Estou convencida de que também se
estava a referir a si próprio, muito embora ele fosse castanho e não verdadeiramente
preto.
Jondalar sentiu um baque de ciúme ao ouvir o nome do homem com o qual Ayla quase tinha acasalado, muito embora tivesse pelo contrário acabado por partir com ele.
-- Tens pena de não teres ficado com os Mamutoi e acasalado com o Ranec? -- perguntou.
Ela virou-se e olhou-o nos olhos, tendo as suas mãos parado de trabalhar.
--Jondalar, sabes que a única razão por que me Prometi ao Ranec foi por pensar que já não me amavas e por saber que ele me amava.., mas, sim, tenho uma certa pena. Podia ter ficado com os Mamutoi. Se não te tivesse conhecido, creio que teria sido feliz com o Ranec. De certa forma amava-o, mas não como te amo a ti.
m Born, pelo menos é uma resposta honesta-disse ele, franzindo a testa.
Também podia ter ficado com os Sharamudoi, mas queria estar
onde to estavas. Se precisas de voltar para o teu lar, então quero ir con26
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tigo m continuou Ayla, tentando explicar. Rel
Ayla percebeu que aquela não era exactamente a resposta que ele
--Perguntaste-me, Jondalar. Quando perguntares,
o que sinto. Quando eu perguntar, quero que me digas o que sentes. mo que eu não pergunte, quero que me digas quando alguma coisa estiver bem. Não quero que haja novamente um mal-entendido aquele que tivemos no Inverno passado, no qual eu não saiba o que to res dizer e to não me digas, ou to sintas que há qualquer coisa mal não me perguntas. Promete que me dirás sempre, Jondalar.
Ela estava com uma expressão tão séria e ansiosa que ele
tade de sortir de ternura.
-- Prometo, Ayla. Também nunca mais quero passar por um como aquele. Não suportava quando to estavas com o Ranec, por ver que qualquer mulher se interessaria por ele. Era divertido e gável. E era um primo escultor, um verdadeiro artista. A teria gostado dele. Gosta de artistas e de escultores. Se diferentes, eu próprio gostaria dele. Fazia-me lembrar de certa forma Thonolan. Podia ter um aspecto diferente, mas era exactamente como Mamutoi, directo e confiante.
--Ele era Mamutoi disse Ayla.-Tenho
to do Leão. Tenho saudades das pessoas. Não temos encontrado pessoas durante esta Viagem. Não sabia que tinhas viajado tanto, que havia tanta terra. Tanta terra e tão poucas pessoas.
Enquanto o sol se aproximava da terra, as nuvens sobre as altas mo1
tanhas a oeste subiam ao encontro da bola de fogo e estavam rosadas
excitação. A clañdade transformou-se num clarão que as
depois foi desaparecendo na escuridão enquanto Ayla e Jondalar
navam a sua refeição. Ayla levantou-se e guardou as aves q brado; tinha cozinhado muito mais do que conseguiam corner. Jondah
voltou a pôr as pedras de cozinhar na fogueira prontas para preparar
seu chá da noite.
-- Estavam deliciosos-disse Jondalar.-Ainda bem que parar cedo. Valeu a pena.
Ayla olhou de relance para a ilha e, dando uma exclamação
ficou com os olhos muito abertos. Jondalar ouviu a exclamação e para cima.
Várias pessoas empunhando lanças tinham saído da penumbra trado na zona da luz dada pela fogueira. Duas delas usavam capas de de cavalo, com a cabeça seca ainda presa e colocada por cima da cabo como um capuz. Jondalar pôs-se de pé. Um dos homens puxou o -cabeça de cavalo para trás e dirigiu-se para ele.
-- Zel-an-don-yee! n disse o homem, apontando para o homem
e louro. Depois deu uma palmada no seu próprio peito, n Hadumai! leren! -- exclamou com um sorñso rasgado.
Jondalar olhou atentamente e depois retribuiu-lhe o sorriso.
-- Jeren! És to? Grande Mãe, não acredito! És mesmo to.
O homem começou a falar numa língua tão ininteligível para Jonda
ar como a sua era para Jeren, mas os sorrisos calorosos foram compreendidos.
-- Ayla[ -- d.isse Jondalar, fazendo-lhe sinal para se aproximar.-
Este é o Jeren. E o caçador Hadumai que nos fez parar quando vínhamos
para cá. Nem acredito!--Continuavam ambos a sorrir encantados. Jeren
olhou para Ayla e o seu sorriso assumiu um brilho apreciativo enquanto
assentia a Jondalar.
--Jeren, esta é Ayla, Ayla dos Mamutoi-disse Jondalar, fazendo as
apresentações formais.-Ayla, este é o Jeren, da gente de Haduma.
Ayla estendeu ambas as mãos.-m Sê bem-vindo ao nosso acampamento, Jeren, da gente de Haduma
disse.
Jeren compreendeu a intenção, embora não fosse uma saudação habientre a sua gente. Meteu a sua lança num suporte que levava às cos agarrou-lhe as mãos e disse:
-- Ayla-pois sabia que aquele era o seu nome, mas não compreendendo o resto das palavras. Voltou a dar uma palmada no próprio peito.
Jeren disse, acrescentando depois algumas palavras incompreensíveis.
Depois o homem teve um movimento de súbita apreensão. Tinha visto um lobo aproximar-se de Ayla. Ao ver a sua reacção, Ayla ajoelhou-se imediatamente e pôs um braço em volta do pescoço do lobo. Os olhos de Jeren abriram-se de surpresa.
Jeren-disse ela, levantando-se e fazendo os gestos de uma apresentação formal.-Este é o Lobo. Lobo, este é o Jeren, da gente de Haduma.
Lobo? disse ele, ainda com uma expressão preocupada.
Ayla pôs a mão à frente do focinho do Lobo, como se estivesse a dar-lhe a cheirar o cheiro do homem. Depois ajoelhou-se ao lado do lobo e vola pôr-lhe o braço à volta do pescoço, demonstrando a sua intimidae ausência de medo. Tocou na mão de Jeren, depois voltou a pôr a mão no nariz do lobo, mostrando-lhe o que queria que ele fizesse. Hesitando, Jeren estendeu a mão na direcção do animal.
O Lobo tocou-lhe como o seu nariz molhado e frio e recuou. Tinha já
passado por apresentações destas durante o tempo em que tinha estado
com os Sharamudoi e parecia compreender a intenção de Ayla. Depois
Ayla pegou na mão de Jeren, olhando para ele, e levou-a à cabeça do lobo
para ele sentir o pêlo, ensinando-lhe a afagar a caboça do animal. Quando
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Jeren olhou para ela com um sorriso de entendimento e fez festas na
beça do Lobo por iniciativa própria, Ayla descontraiu-se.
Jeren virou-se e olhou para os outros.
--Lobo!mdisse, fazendo um gesto na sua direcção. Disse algumas
tras coisas e depois disse o nome dela. Quatro homens avançaram
a luz da fogueira. Ayla fez gestos para que se aproximassem e
Jondalar, que tinha estado a observar, estava a sorrir de -- Foi boa ideia, Ayla-disse ele. m Achas que têm fome? Sobrou-nos muita comida-disse ela. -- Por que é que não lhes ofereces e vês?
Ayla tirou um prate de marfim de mamute que usara para as aves c tinham comido, pegou numa coisa que parecia um molho de palha abriu-o, revelando um ptarmigã cozinhado inteiro. Estendeuo e aos outros. O aroma precedeu-o. Jeren puxou uma perna e viu-se mão com um pedaço de carne tenra. O sorriso no seu rosto var encorajou os outros.
Ayla também foi buscar uma perdiz, servindo o recheio de raízes e c reais numa série de malgas e prates mais pequenos, alguns tecidos
tros de maním e um de madeira. Deixou os homens dividir a carne
quiseram enquanto foi buscar uma grande malga de madeira, que
própria fizera, e encheu-a de água para chá.
Os homens pareciam muito mais descontraídos depois da
mesmo quando Ayla levou o Lobo para os cheirar. Depois, todos
em volta da fogueira, tentaram comunicar além do nível dos
amistosos e de hospitalidade.
Jondalar começou.
-- Haduma? perguntou.
Jeren abanou a cabeça e mostrou-se triste. Fez um gesto com a
na direcção da terra que Ayla sentiu que ele queria dizer que
sara à Grande Terra Mãe. Jondalar também compreendeu ql
mulher a quem tanto se afeiçoara tinha morrido.
-- Tamen? -- perguntou.
A sorñr, Jeren assentiu de forma exagerada. Depois apontou
dos outros e disse qualquer coisa que incluía o nome de Tamen. Um pouco mais que um rapaz, sorriu-lhes e Jondalar viu o homem que conhecera.
-- Tamen, sim-disse Jondalar, sorrindo e assentindo.-O filhe Tamen, ou talvez o neto, creio. Gostava que o Tamen cá estivesse, Tame1 -- disse a Ayla.-Sabia algum Zelandonii e podíamos falar um Fez uma longa Viagem ata lá quando era jovem.
Jeren olhou em volta do acampamento e depois para Jondal:
* Zel-an-don-yee... Thon... Thonolan?
Desta vez Jondalar abanou a cabeça e ficou com uma expressão tri.
te. Depois, pensando nisso, fez um gesto na direcção da terra. Jeren mos surpreendido, mas assentiu e disse uma palavra que era uma
ta. Jondalar não compreendeu e olhou para Ayla.-Sabes o que
ele está a perguntar?
Embora a linguagem não lhe fosse familiar, havia uma qualidade na
aioria das linguagens que ela ouvia que lhe parecia familiar. Jerem vola
dizer a palavra e qualquer coisa na sua expressão ou no seu tom deuuma
ideia. Pôs a mão em forma de garra e rosnou como um leão das
O som que ela fez foi tão realista que todos os homens ficaram a olhar
ela boquiabertos, chocados e surpreendidos, mas Jeren assentiu,
ndendo. Tinha perguntado como é que Thonolan tinha morñdo
ela tinha-lhe dito. Um dos outros homens disse qualquer coisa a Jeren.
ndo Jeren respondeu, Jondalar ouviu um outro nome conhecido, No
O homem que tinha feito a pergunta sorriu ao homem alto e louro,
)ontou para ele e depois para os seus prdprios olhos e voltou a sorrir.
Jondalar sentiu um frémito de entusiasmo. Talvez quisesse dizer que
Noria tinha um bebé com olhos azuis. Mas depois pensou se não seria
"enas por o caçador ter ouvido falar do homem de olhos azuis que cele
os Primeiros Ritos com ela? Não podia ter a certeza. Os outros
omens estavam a apontar para os seus próprios olhos e a sorrir. Esta
a sorrir por causa de um bebé com olhos azuis? Ou a sorrir por cau a de Prazeres com um homem de olhos azuis?
Pensou em dizer o nome de Noria e embalar os braços como se estives
num bebé, mas depois olhou para Ayla e conteve-se. Não lhe
dito nada sobre a Noria, nem sobre o anúncio que Haduma tinha
no dia seguinte de que a Mãe tinha abençoado a cerimónia e que a
ovem mulher ia ter uma criança, um rapaz chamado Jondal, que teria
ele. Sabia que Ayla queria uma criança dele.., ou do seu espí-o é que reagiria se soubesse que a Noriajá tinha uma? Se ele fos
a Ayla, provavelmente teria ciúmes.
Ayla estava a fazer gestos indicando que os caçadores deviam dormir
unto da fogueira. Váños assentiram e levantaram-se para ir buscar os
de dormir. Tinham-nos escondido ao pé do rio antes de se apro
da fogueira cujo cheiro tinham sentido, com esperança de que
uma fogueira de gente amistosa, mas sem terem a certeza. Mas la os viu contornar a tenda, indo em direcção ao sítio onde pren os cavalos, correu a pôr-se à frente dos homens e ergueu a mão para s impedir de avançar. Eles olharam uns para os outros interrogativaenquanto ela desaparecia na escuridão. Quando se preparavam )ara recomeçar a andar, Jondalar fez-lhes um gesto para esperarem. sorriram e assentiram.
A sua expressão transformou-se numa de medo quando Ayla voltou
aparecer com dois cavalos pela arreata. Estava no meio dos dois animais
- tentou explicar com movimentos e até com expressivos gestos do Clã que
3º
31
PLI[CIES DE PASSAGEM
JEAN A UEL
aqueles eram cavalos especiais que não deviam ser caçados, mas nem
nem Jondalar estavam seguros de que eles tinham compreendido.
dalar ficou preocupado com a possibilidade de eles pensarem que
tinha poderes especiais para Chamar cavalos e que tinha levado ac
para all expressamente para eles os caçarem. Disse a Ayla que
que ajudaria fazer uma demonstração.
Foi buscar uma lança dentro da tenda e fez gestos com ela como fosse atingir o Corredor, mas Ayla interpôs-se, cruzados à sua frente, abanando a cabeça enfaticamente. Jeren co, cabeça e os outros homens ficaram com expressões intrigadas. Jeren assentiu, tirou uma das suas lanças do suporte que tinha e apontou-a ao Corredor, cravando-a depois se o homem pensava que Ayla lhes estava a dizer para não cal les dois cavalos ou para não caçarem quaisquer cavalos, mas tinham cebido o essencial.
Os homens dormiram junto da fogueira nessa noite,
-se à primeira luz da madrugada. Jeren disse algumas que Jondalar se lembrava vagamente que se refeñam a apre mente a comida. O visitante sorriu à mulher quando o Lobo o voltou a deixar que ele lhe fizesse festas. Ayla tentou convidá-lo partilharem a sua refeição da manhã, mas eles foram-se rapidamer embora.
-- Gostava de saber um pouco da sua linguagem m disse Ayla. m l uma visita agradável, mas não pudemos falar.
-- Sim, eu também gostava-disse Jondalar, desej
te poder ter sabido sea Noria tinha realmente fido um bebé e se olhos azuis.
toNo Clã, os diferentes clãs usavam algumas p
gem do dia-a-dia que nem sempre eram compreendidas por todos, toda a gente sabia a linguagçm silenciosa dos gestos. Podia-se comunicar-disse Ayla.-E pena que os Outros não tenham uma guagem que todos consigam compreender.
-- Seria útil, especialmente quando se faz uma Viagem, mas difícil imaginar uma linguagem que todos compreendessem. Achas mente que as pessoas do Clã em todo o lado conseguem mesma linguagem de sinais? m perguntou Jondalar.
-- Não é uma linguagem que têm de aprender. Nascem com ela dalar. É tão antiga que está nas suas memórias e as suas remontam ao princípio. Não consegues imaginar até que ponto no do-disse Ayla.
Ayla sentiu um arrepio de medo ao recordar aquela vez em que para lhe salvar a vida, a levara com eles, contra todas as tradições. lei não escñta do Clã, devia tê-la deixado morrer. Mas agora, para ela estava morta. Ocorreu-lhe como isso era irónico. Quando Br L com a morte, não o devia ter feito. Não tinha razão paraisso. b tinha tido razão para o fazer; ela tinha violado o tabu mais podero do Clã. Talvez devesse ter assegurado a sua morte, mas não o fez.
Começaram a levantar o acampamento e a guardar a tenda, as peles dormir, os utensílios de cozinhar, as cordas e o resto do equipamento cestos-aforge, com a eficiência de uma rotina que dispensa palavras. estava a encher sacos de água no rio quando Jeren e os seus caçassaram. Com sorrisos e muitas palavras que eram claramente , os homens deram a Ayla uma coisa embrulha la numa pele de auroque. Ela abriu a pele e viu um lombo tenro do ani rol recémcaçado.
-- Estou-te grata, Jeren-disse Ayla e lançou-lhe o seu lindo sorri que fazia sempre Jondalar derreter-se de amor. Parecia ter um efeisemelhante em Jeren e Jondalar sortiu para si próprio quando viu a xpressão atordoada no rosto do homem. Jerem levou alguns instantes a recompor-se; depois virou-se para Jondalar e começou a falar, esforçanpor comunicar qualquer coisa. Parou quando viu que não esa ser compreendido e falou com os outros homens. Depois voltou a a Jondalar.
--Tamen-disse ele, começando a andar em direcção ao sul e fazen sinal para o acompanhar.-Tamen m repetiu, acenando e acres centando outras palavras.
-- Creio que quer que vás com ele-disse Ayla-falar com esse que conheces. O que fala Zelandonñ.
Tamen, Zel-andon-yee. Hadumai-disse Jeren, fazendo sinal a para o seguirem.
-- Deve querer que o vamos visitar. Que é que achas? disse Jon
-- Sim, creio que tens razão m disse Ayla. Queres ir visitã-los?
--Isso significaria voltar para trás disse Jondalar , e não sei qual distância. Se os tivéssemos encontrado mais a sul, não me teria imporfazer uma paragem, mas como já chegámos aqui, não quero vol )ara trás. Ayla assentiu.
Tens de arranjar forma de lhe dizeres.
Jondalar sorriu a Jeren e depois abanou a cabeça.
m Lamento m disse , mas precisamos de ir para norte. Norte repetiu, apontando nessa direcção.
Jeren mostrou-se perturbado e abanou a cabeça; depois fechou os
olhos, como se estivesse a tentar pensar. Dirigiu-se para eles e tirou um
pequeno bastão do cinto. Jondalar reparou que a parte superior estava
,sculpida. Sabia que já tinha visto um antes e tentou lembrar-se onde.
ou uma zona na terra e desenhou uma linha com o bastão e outra
a atravessá-la. Por baixo da primeira linha, desenhou uma figura que
JEAN A UEL
se assemelhava vagamente a um cavalo. No fim da segunda linha
apontava para o canal do Grande Rio Mãe, desenhou um círculo com
gumas linhas a irradiar dele. Ayla olhou mais atentamente.
--Jondalar-disse ela numavoz excitada--, quando oMamut me tava a ensinar os símbolos e o que significavam, esse era o símbolo "sol".
-- E essa linha aponta na direcção do sol
apontar para oeste.-No sítio onde desenhou o cavalo, deve ser o sul E indicou a direcção quando a disse.
Jeren estava a assentir rigorosamente. Depois apontou para
fez uma expressão preocupada. Dirigiu-se para a extremidade norte linha que desenhara e ficou virado para eles. Ergueu os braços e -os à sua frente, da mesma forma como Ayla f'mera ¢ tar dizer a Jeren para não caçar a Whinney e o Corredor. Depois a cabeça, fazendo que não. Ayla e Jondalar olharam um para o outro e pois de novo para Jeren.
-- Achas que nos está a dizer para não irmos para norte? --
teu Ayla.
Jondalar sentiu que começava a entender o que Jeren estava comunicar.
-- Ayla, não creio que ele apenas queira que vamos com ele para ,, visitar a sua gente. Acho que nos está a tentar dizer mais sa. Creio que está a tentar avisar-nos para não irmos para norte.
--A avisar-nos? Que é que pode haver a norte contra o qual nos ra avisar? -- disse Ayla.
-- Poderá ser a grande parede de gelo? -- disse Jondalar.
-- Nós sabemos acerca do gelo. Caçámos mamutes perto dele com :
Mamutoi. É frio, mas não é realmente perigoso, pois não?
-- Desloca-se-disse Jondalar-ao longo de muitos anos e
zes chega a arrancar árvores pelas raízes com a mudança das
mas não se desloca tão depressa que não possamos sair do seu
--Não creio que seja o gelo-disse Ayla.-Mas está a dizer-nos ra não irmos para norte e parece muito preocupado.
-- Creio que tens razão, mas não consigo imaginar que é que pode ver de tão perigoso-disse Jondalar.-Por vezes as jam muito para lá do seu território habitual imaginam que a terra lá deste é perigosa por ser diferente.
-- Não creio que o Jeren seja um homem que tenha medo de coisas-disse Ayla.
-- Tenho de concordar-disse Jondalar, voltando a dirigir-se mem.-Jeren, gostava de te compreender.
Jeren tinha estado a observá-los. Calculou pelas suas expressões ¢ tinham compreendido o seu aviso e estava à espera da sua resposta.
PLANÍCIES DE PASSAGEM
Achas que devemos ir com ele falar com o Tamen? -- perguntou
-- Detesto a ideia de voltarmos para trás e perdermos tempo. Ainda os de chegar ao glaciar antes do fim do Inverno. Se continuarmos, vemos ter tempo de sobra paraisso, mas se qualquer coisa fizer que nos podemos só lá chegar na Primavera e no degelo e será demaiado perigoso para o atravessamos-disse Jondalar.
-- Então continuamos a ir para norte-disse Ayla.
--Acho que é o que devemos fazer, mas estaremos atentos. Só gosta a de saber a que é que devo estar atento.-Voltou a olhar para o homem.
meu amigo, agradeço-te o teu aviso-disse.-Teremos cuida
Lo, mas acho que devemos continuar.-Apontou para sul, abanou a caa e apontou para norte.
Jeren, tentando protestar, voltou a abanar a cabeça, mas acabou por
sistir a assentiu a sua aceitação. Tinha feito o que podia. Foi falar com
utro homem com a capa com a cabeça de cavalo, falou durante alguns
e depois voltou, indicando que se iam embora.
Ayla e Jondalar acenaram enquanto Jeren e os seus caçadores se afasDepois
acabaram de arrumar as coisas e, com algumas reservas,
para norte.
Enquanto os Viajantes atravessavam a extremidade norte da vasta
,lanície central, viam que o terreno à sua frente ia mudando; as terras
,aixas e planas estavam a dar lugar a montes acidentados. As ocasionais
altas que tinham interrompido a planície central estavam ligaembora
parcialmente submersas sob o solo na bacia central, a
blocos fracturados de rocha sedimentar que corria formando
espinha irregular de noroeste para sudoeste através da planície.
rupções vulcânicas relativamente recentes tinham coberto as terras ai
solos férteis que alimentavam florestas de pinheiros, espruces e
'.os nas zonas mais altas, com bétulas e salgueiros nas encostas infeenquanto
cresciam arbustos e erva das estepes nas encostas secas
sotavento.
Quando começaram a subir os montes acidentados, viram-se obñga
[os a contornar buracos fundos e formações fracturadas que lhes bloo
caminho. Ayla achou que a terra parecia mais árida, mas,
',orno o frio se tinha acentuado, pensou se seria a mudança de estação que
essa sensação. Ao olharem para trás ao chegar a uma elevação,
a perspectiva nova da terra que tinham atravessado. As pou
as árvores decíduas e os arbustos estavam completamente despidos de
mas a planície central estava coberta pelo dourado poeirento do
que alimentaria milhares durante o Inverno.
Avistaram muitos animais ruminantes, em manadas e individual
JEAN A UEL
mento. Pareceu a Ayla que predominavam os cavalos, talvez
pecialmento consciento deles, mas também havia alces gigantes,
e, sobretudo ao chegarem às estopes do norto, renas, em abundância.
bisontos estavam a formar grandes manadas migratórias e a diri
para sul. Duranto um dia intoiro, os enormes animais com bossa e
tescos chifres negros percorreram os montos ondulantos da
de pastagem do norte numa carpeto espessa e ondulante e Ayla e
lar pararam frequentemento para os observar. O pó que
formava uma mancha sobre a grande massa em movimento
do-a, a terra estremecia com o bater dos seus cascos ao
do conjugado dos seus grunhidos graves e mugidos ribombava como
voada.
Também viram mamutes, mas com menos frequência, norma]m
a dirigirem-se para norto, mas mesmo à distância os enormes
peludos atraíam as atonções. Quando não estavam dominados pelas
gências da reprodução, os mamutes macho tinham tendência para
mar pequenas manadas com uma relação de companheirismo animais . Ocasionalmento, um delesjuntava-se a uma manada de fêm
e viajava com ela durante algum tompo, mas sempre que os Viajantes
contravam um mamuto solitário, este era invariavelmento macho.
grandes manadas permanentos eram formadas por fêmeas ligadas
fortos laços; uma avó, a velha e matreira matriarca que era a sua
e por vezes uma ou duas irmãs, com as suas filhas e netos.
de fèmeas eram fáceis de identificar, pois os seus chifres eram li
mento mais pequenos e menos curvos e iam sempre crias com elas.
Embora também fossem impressionantos quando
rinocerontos peludos eram mais raros e menos sociáveis. Regra geral, i se juntavam em manadas. As fêmeas mantinham-se em pequenos pos familiares e, excepto duranto a época de acasalamento, os eram solitários. Nem os mamutos nem os rinocerontos, a não e os animais muito velhos, tinham muito que temer dos caçadores de ¢ tro paras, nem sequer do enorme leão das cavernas. Os machos em ticular podiam dar-se ao luxo de ser solitários; as fêmeas precisavam manadas para as ajudarem a proteger as suas crias.
No entanto, os bois-almiscarados peludos, que eram mais
e se assemelhavam a cabras, juntavam-se para varo sob ataque, os adultos normalmente formavam uma falange cular, virados para fora, com os mais novos no meio. Ayla e ram algumas camuças ibex ao subirem a montes mais altos; vezes para torreno mais baixo com a proximidade do Inverno.
Muitos dos pequenos animais estavam seguros nos seus ninhos
debaixo de terra, rodeados de reservas de sementes, nozes, bolbos,
e, no caso dospikas, montos de palha que tinham
lhos e as lebres estavam a mudar de coloração, não para branco, mas
PI.,3NICIES DE PASSAGEM
a um tom mais claro e pintalgado, e num outeiro viram um castor e um
;squilo. Jondalar usou o lançador de lanças para matar o castor. Além da
.,ame, o rabo gordo e cheio de gordura eraum petisco raro e apreciado, asado
no espeto à fogueira.
Normalmento utilizaram o lançador de lanças para caçar os animais
aiores. Eram ambos muito certeiros com as armas, mas Jondalar tinha
',a e lançava a lança mais longe. Ayla muitas vezes abatia os animais mais pequenos com a sua funda.
Embora não os caçassem, repararam que as lontras, as toupeiras, as
oninhas e as martas eram tambdm numerosas. Os carnívoros m rapo
lobos, linces e felinos maiores m encontravam sustonto na caça mais
"equena ou noutros herbívoros. E embora raramento pescassem naque
,a da sua Viagem, Jondalar sabia que havia peixes bastante gran- les no rio, incluindo percas, lúcios e carpas muito grandes.
À tardinha, viram uma caverna com uma grande abertura e decidiram
os cavalos não mostraram qualquer sinal
de nervosismo, facto que os seres humanos tomaram como born sinal. Lobo farejou com intoresse quando entraram na caverna, obviamento
mas sem eriçar os pêlos. Ao ver o comportamento despreocupados animais , Ayla sentiu-se confiante de que a caverna estava vazia
decidiram acampar all naquela noito.
Depois de acenderem uma fogueira, fizeram um archote para exploarem
um pouco mais adianto. Perto da frente havia muitos indícios de
ue a caverna já tinha sido usada antos. Jondalar achou que as marcas
)aredes tinham sido feitas por um urso ou por um leão das cavernas.
iou alguns excrementos que havia all perto, mas estavam tão
secos e eram tão antigos que era difícil dizer de que animal eram. Encongrandes
ossos de pernas secos que tinham sido parcialmento
'.omidos. A forma como estavam partidos e as marcas dos dentes levaram
que tinham sido hienas das cavernas a parti-los com as suas
nto fortos. Estremeceu de repugnância ao pensar
As hienas não eram piores que qualquer outro animal. Alimentavam
das carcaças dos animais que morriam naturalmente e das presas
lheias, mas outros animais de rapina faziam o mesmo, incluindo lobos,
eões e seres humanos, e as hienas também eram caçadores eficazes em
Isso não importava, pois o ódio de Ayla por elas era irracional.
as hienas representavam o pior de tudo o que era mau.
Mas a caverna não tinha sido utilizada recentomente. Todos os vestí-eram antigos, incluindo o carvão numa fossa pouco funda da fogueira
qualquer outra visita humana. Ayla e Jondalar percorreram uma cer
extensão da caverna, mas esta parecia continuar eternamente e para
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37
lá da abertura seca não havia quaisquer sinais de uso. Colunas de
que pareciam erguer-se do chão e descer do tecto, e por
a meio, eram os únicos habÌtantes do interior frio e húmido.
Quando chegaram a uma curva, pensaram ouvir água
terior e decidiram voltar para trás. Sabiam que o archote " não duraria muito tempo e nenhum deles q, na ao ponto de deixar de ver a luz tdnue da entrada. Voltaram para a tactear as paredes de calcário, e ficaram contentes por ver o baço da erva seca e a luz dourada e brilhante que delineava as nuvex oeste.
Ao avançarem pelas terras altas do norte da grande i
Ayla e Jondalar notaram mais alterações. O terreno estava a ficar marcado por cavernas e grutas e buracos que iam desde cheias de erva a inacessíveis penhascos que atingiam grande altura. uma paisagem estranha que fazia que se sentissem vagamente in" Ao passo que eram raros ribeiros e lagos à superfície, por vezes o ruído fantasmagórico de rios subterrâneos.
Criaturas desconhecidas de antigos mares q
na estranha e imprevisível terra. Ao longo de incalculáveis milénios fundo dos mares tornou-se espesso com cascas e esqueletos. eras ainda mais longas, o sedimento de cálcio endureceu, foi erguido I movimentos contrários da terra cio, calcários. Subjacentes a grandes extensões de terra, a maior das cavernas da terra eram formadas por calcário pois, tas, a rocha sedimentar dura dissolve-se.
Em água pura, praticamente não é solúvel, mas uma á nimamente ácida ataca o calcário. Durante as estações mais quentol quando os climas eram húmidos, a água que circulava no solo tando ácido carbónico das plantas e carregada d solda vastas quantidades de rocha calcária.
Correndo ao longo das estratificações planas
nas juntas verticais das espessas camadas de pedra calcáña, a água solo tornava gradualmente as fissuras mais largas e fundas. Formava vimentos irregulares e intricados regos ao transportar o vido, escapando-se por infiltrações e nascentes. Forçada para feriores pela gravidade, a água ácida aum entava as formando grutas. As grutas ribeiros, com aberturas verticais dentro delas, e acabavam por se outran e formar sistemas subterrâneos de água.
Arocha em dissolução debaixo da terra tinha um enorme efeito
ra acima dela e a paisagem, chamada karst, apresentava car
invulgares e distintas. A medida que as cavernas se tornavam maiore
PLAN]CIES DE PASSAGF
JEAN A UEL
de cima se aproximava da superiície, cediam, criando poços de pa
íngremes. Restos naturais dos telhados das cavernas formavam
)ontes naturais. Ribeiros e rios que corriam ao longo da superfície desa)areciam
subitamente nos poços e corriam subterraneamente, por vezes
ixando os vales que tinham sido formados anteriormente por rios absolutamente secos.
Estava a tornar-se difícil encontrar água. A água corrente desapare
cia rapidamente em cavidades e buracos nas rochas. Mesmo depois de
uma forte chuvada, a água desaparecia quase instantaneamente, sem
que ficassem fios de água ou riachos a correr pela superfície. Uma vez, os
viajantes tiveram de ir a um pequeno lago no fundo de um poço para ir
buscar o precioso líquido. De uma outra vez, a água apareceu subitamente
numa grande nascente, correu pela superfície durante uma certa distância
e depois voltou a desaparecer dentro da terra.
0 terreno era áñdo e rochoso, com rocha a aparecer sob a .fina camada de terra da superfície. A vida animal também era escassa. A excepção de alguns carneiros, com o seu pêlo muito encaracolado ainda mais espes so devido ao Inverno, e pesados cornos enroscados, os únicos animais que viram foram algumas marmotas. As pequenas cñaturas rápidas e ma freiras eram peritas a escapar aos seus muitos predadores. Quer se tratasse de lobos, raposas árcticas, falcões ou águias douradas, um assobio agudo de um vigia fazia que desaparecessem em pequenos buracos e cavernas.
O Lobo tentou persegui-las, sem êxito, mas, como os cavalos de pernas
compridas não eram normalmente considerados perigosos, Ayla conseguiu
apanhar algumas com a funda. Os pequenos roedores peludos, que
tinham engordado para a hibernação de Inverno, tinham um sabor pare
cido com o de coelho, mas eram pequenos e, pela primeira vez desde o Verão anterior, eles muitas vezes pescaram o jantar no Grande Rio Mãe.
A princípio, a insegurança que sentiam fez que Ayla e Jondalar atravessassem com extremo cuidado a paisagem de karst, com as suas estranhas formações, cavernas e buracos, mas à medida que se foram habituando, a sua preocupação diminuiu. Iama pé para os cavalos descansarem.
Jondalar levava o Corredor por uma corda comprida, mas de vez
em quando deixava-o parar para corner um pouco da escassa erva seca. A Whinney fazia o mesmo, enchendo a boca e depois indo atrás de Ayla,
embora ela não a levasse presa.
-- Será que o perigo contra o qual o Jeren nos tentou avisar era esta terra árida cheia de cavernas e buracos? -- dizia Ayla.-Não gosto nada disto aqui.
-- Eu também não gosto. Não sabia que era assim-disse Jondalar.
--Nunca estiveste aqui? Pensei que tinhas vindo por este caminho-
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JEAN A UEL
disse a mulher, mostrando-se surpreendida, m Disseste que
guido o Grande Rio Mãe.
m Seguimos o Grande Rio Mãe, mas
sámos quando estávamos muito mais a sul. Pensei q por esta margem e tinha curiosidade em ver como era. O rio faz um muito apertada não muito longe daqui. Nessa altura íamos em, a este e interroguei-me como seriam as terras altas que ter para sul. Sabia que esta era a única oportunidade que teria ver.
Gostava que me tivesses dito isso antes.
-- Que diferença é que isso faz? Continuamos a seguir o rio. -- Mas eu pensei que estivesses familiañzado com esta área. tanto sobre ela como eu. Ayla não sabia bem por que é que" modava tanto, a não ser que contara que ele soubesse o que agora descobrira que ele não sabia. Isso fez que se sentisse nervosa, relação àquele estranho lugar.
Tinham continuado a andar, embrenhados na conversa que se
a transformar num desentendimento, ou mesmo numa discussão, e prestarem grande atenção ao caminho. Subitamente, o Lobo, que tar ao lado de Ayla, latiu e deu-lhe um encontrão na [ ambos para olhar e estacaram. Ayla sentiu um baque de medo e lar empalideceu.
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A mulher e o homem olharam para o chão à sua frente e não viram
kada. A terra à sua frente tinha deixado de existir. Por pouco não tinham
num precipício. Jondalar sentiu a sensação familiar de tensão en
ernas ao olhar fixamente para o abismo, mas ficou surpreendido por
e lá em baixo havia um grande campo plano e verdejante, com o
iro a atravessá-lo.
O fundo destes fossos estavam normalmente cobertos por uma espescamada
de terra, o resíduo insolúvel do calcário, e alguns dos fossos
e abriam para depressões alongadas, cñando grandes áreas de
,rra muito abaixo da superfície normal. Dispondo de terra e água, a
e convidativa. O problema era que nenhum deles via
,rma de chegar ao prado verde no fundo do fosso altíssimo e de paredes
-- Jondalar, há qualquer coisa de errado neste sítio-disse Ayla.-
tão seco e árido que quase nada pode cá viver; lá em baixo há um belo
fado com um ribeiro e árvores, mas nada pode ir para lá. Qualquer ani
que tentasse morreria da queda. Está tudo baralhado. Parece-me
mal.
-- Parece de facto estar mal. E talvez tenhas razão, Ayla. Talvez tivessido
em relação a isto que Jeren nos tentou alertar. Não há aqui grande
',oisa para caçadores e é perigoso. Nunca soube de nenhum sítio onde uma
)essoa tivesse de se preocupar em não cair num precipício ao andar na
Ayla baixou-se, agarrou a cabeça doLobo com ambas as mãos e tocou
a sua testa com a dela.
-- Obrigada, Lobo, por nos teres alertado quando não estívamos a )re star atenção-disse. Ele ganiu de afeição e lambeu-lhe a cara em teso osta.
Voltaram para trás, levando os cavalos à mão, e contornaram o fun fosso sem falar. Ayla já nem sequer se lembrava do que havia de tão lue quase tinham tido. Só pensou que nunca se [eviam ter distraído daquela forma, ao ponto de nem sequer vetem o que ,stavam a fazer.
Ao continuarem para norte, o rio à sua esquerda começou a correr
ama garganta que se tornava mais profunda à medida que os
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penhascos rochosos iam ficando mais altos. Jondalar I
tentar seguir a água de perto, ou manterem-se nas terras altas
desta, mas ficou contente por estarem a seguir o curso do rio e não a
tar atravessá-lo. Nas regiões de karst, os grandes rios que se
superfície tendiam a correr por fundas gargantas de rocha
vez de por vales com encostas verdejantes e vastas
Apesar de ser difícil utilizar os cursos de água como meio de viagem estes terem uma margem por onde caminhar, era ainda mais difícil vessá-los.
Lembrando-se da grande garganta mais a sul, com longas extenï onde não havia margens, Jondalar decidiu seguir pelas terras alt continuarem a subir, ficou aliviado por v.er um fino e comprido cair pela face da rocha para a água do rio lá em baixo. Embora a de água fosse do outro lado do rio, isso significava que havia água no reno mais elevado, muito embora a maior parte desaparecesse mente pelas rachas do karst.
Mas o karst era também uma paisagem com muitas cavernas. E1
tão frequentes que Ayla e Jondalar, e os cavalos, passaram as duas n
seguintes abrigados por paredes rochosas, sem terem de
Depois de examinar várias, começaram a adquirir conhecimento s¢ quais as aberturas na rocha que eram susceptíveis de ser adequadas eles.
Embora profundas cavernas subterrâneas cheias de á
sem a aumentar de dimensão, a maioria das cavernas onde era
entrar perto da superfície já não estavam a aumentar de tamanho.
contrário, o espaço no seu interior começava a diminuir, por vezes
damente, quando as condições gerais eram de humidade, embora
mente alterando-se durante períodos mais secos. Só se podia entrar
algumas cavernas durante o tempo seco; ficavam cheias de água
te a época das chuvas. Algumas, embora estivessem sempre
tinham ribeiros a cobrir o seu fundo. Os viajantes procuravam
secas, normalmente a maior altitude, mas tinha sido a
te com o calcário, o instrumento q
A água das chuvas, que se filtrava através da rocha do tecto,
o calcário dissolvido. Cada pingo de água calcária, até mesmo a
mais pequena de humidade no ar, estava saturada de carbonato de
cio em solução, que era redepositado dentro da caverna. Emt
mente de um branco puro, o mineral solidificado podia ser tram,
belo, ou manchado e com tens de cinzento, ou levemente colorido de
vermelhos ou amarelos. Eram criados pavimentos de travertino,
nas imóveis engalanavam as paredes. Pingentes de rocha
tecto esforçavam-se com cada gota a ir ao encontro daqueles q
lentamente do chão. Alguns estavam unidos em colunas
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meio, que se tornavam mais grossas com ò tempo no ciclo sempre em mutaçãO
da terra viva.
Os dias estavam a ficar perceptivelmente mais frios e ventosos e Ayla
e Jondalar ficaram contentes por haver um número tão grande de cavernas
para quebrar o frio do vento. Antes de entrarem, normalmente invespotenciais
abrigos para se assegurarem de que não estavam
ados por habitantes de quatro patas, mas verificaram que podiam
confiar no sentido mais apurado dos seus companheiros de viagem para
os avisarem de perigo. Sem o dizerem, ou considerando-o consciente
mente, dependiam do cheiro do fumo para lhes dizer se os ocupantes eram
nos-os seres humanos eram os únicos animais que utilizavam o
mas não encontraram ninguém, e até outras espécies animais
ram raras.
Assim, ficaram surpreendidos quando chegaram a uma região que era
nvulgarmente rica em vegetação, pelo menos comparada com o resto da
paisagem árida e rochosa. O calcário não era todo igual. Variava muito
na facilidade com que se dissolvia e na proporção que era insolúvel. Como
resultado, algumas áreas do karst de calcário eram férteis, com prados e
árvores a crescer junto de ribeiros normais que corriam à superfície. Existiam
terras afundadas e rios subterrâneos nessas áreas, mas eram mais
Quando depararam com uma manada de renas a pastar num campo
seca, Jondalar olhou para Ayla com um sorriso e puxou do lança
de lanças. Ayla assentiu o seu acordo e incitou a Whinney a seguir o
garanhão. Sem nada à sua volta, à excepção de alguns animais
a caça tinha sido pobre e como o rio estava muito lá em baixo,
garganta, não tinham conseguido pescar. Tinham subsistinte
da comida seca e de rações de viagem de emergência,
a compartilhá-las com o lobo. Os cavalos também se
A erva esparsa que conseguia crescer no solo mal chegava
eles.
Jondalar cortou o pescoço do veado de armações pequenas que tinham
para o sangrar. Depois colocaram a carcaça no barco redondo preso
à padiola e procuraram um sítio para acampar all perto. Ayla queria
ecar
da carne e aproveitar a gordura de Inverno do animal, e
estava a antecipar um born pedaço de carne assada e de fígado
Pensaram ficar lá um ou dois dias, sobretudo com o prado all per
Os cavalos precisavam de corner. O Lobo tinha descoberto pequenas
em abundância, ratos silvestres, lemingues epikas, e tinha ido
e explorar.
Ao repararem numa caverna numa encosta, dirigiram-se para lá. Era
que gostariam, mas pareceu-lhes suficiente. Pousaram
JEAN A UEL
a padiola e descarregaram os càvalos para os deixar ir
ram os cestos-alforge junto da caverna e arrastaram eles
padiola até lá, indo depois em direcções diferentes apanhar
lenhosos e excrementos secos.
Ayla estava cheia de vontade de fazer uma refeição com carne
e estava apensar no que iria cozinhar para a acomp
guinas vagens secas e cereais das ervas do prado e punhados de
tes pretas de anserina que crescia junto a um pequeno ribeiro um'
a norte da caverna. Quando regressou, Jondalar já tinha
fogueira e ela pediu-lhe que fosse ao ribeiro encher os sacos de
O Lobo chegou antes de o homem regressar, mas quando o
aproximou da caverna mostrou os dentes e rosnou ameaç
Ayla sentiu os pêlos na parte de trás do pescoço eriçarem-se-lhe.
mLobo, que d? m disse, tirando inconscientemente a funda e do numa pedra, embora o seu lançador de lanças estivesse mão. O lobo avançou cautelosamente para a caverna, a rosnar Ayla foi atrás dele, baixando a cabeça para entrar na escura na rocha, e lamentou não ter levado um archote. disse-lhe aquilo que os seus olhos não conseguiam ver. Já tinham do muitos anos desde que sentira aquele cheiro, mas Subitamente, reviu aquela primeira vez há tanto tempo atrás.
Estavam nos contrafortes das montanhas, não muito longe
tro do Clã. Ela levava o filho à anca, seguro pela sua capa de viajar, e, bora ela fosse jovem e uma dos Outros, caminhava na deira. Tinham todos estacado e ficado a olhar para o monstruoso urso cavernas que displicentemente coçava as costas contra a casca árvore.
Embora a gigantesca criatura, com o dobro do tamanho dos vul
ursos pardos, fosse o totem mais sagrado do Clã, os jovens do clã de
nunca tinham visto um urso vivo. Já não existiam nas montanhas
da sua caverna, embora ossos secos provassem o facto
Devido à poderosa magia que encerravam, Creb tinha ido buscar al pêlos que tinham ficado presos à casca da árvore depois de o urso sei finalmente afastado pesadamente, deixando apenas o seu cheiro terístico.
Ayla fez sinal ao Lobo e saiu da caverna. Reparou na funda "
na mão e enfiou-a no cinto, fazendo uma careta. De que
da contra um urso das cavernas? Estava grata por o urso ter iniciado o..
longo sono e não se ter perturbado com a sua intromissão. Deitou
mente terra sobre a fogueira e apagou-a com os
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sto-alforge e afastou-o da caverna. Felizmente não tinham desarruLdo
muitas coisas. Voltou atrás para ir buscar o cesto-alforge de Jonlar
e puxou sozinha a padiola. Tinha acabado de pegar no seu ceste-al
para o levar para mais longe quando Jondalar apareceu com os
de água cheios.
--
Que é que estás a fazer, Ayla? m perguntou ele.
--
Há um urso das cavernas naquela caverna-disse ela. Ao ver a sua
.xpressão apreensiva, acrescentou, m Creio que já iniciou o seu longo
. mas por vezes mexem-se se forem perturbados no princípio do In
pelo menos é o que dizem.
-- Quem é que diz?
-- Os caçadores do clã do Brun. Eu costumava observá-los quando fade
caça... às vezes- explicou Ayla. Depois sorriu.- Não, não era
às vezes. Observava-os sempre que podia, especialmente depois de
.,ar a treinar com a funda. Os homens normalmente não prestavam
:ão a uma rapariga que estivesse ocupada all por perto. Eu sabia que
,les nunca me ensinariam e observá-los enquanto eles contavam histd
de caça uns aos outros era uma forma de aprender. Pensei que se ,odiam zangar se descobrissem o que eu estava a fazer, mas não sabia até ue ponto as punições podiam ser severas.., a não ser mais tarde.
--Acho que se há pessoas que conhecem os ursos das cavernas-disJondalar m são as pessoas do Clã. Achas que é seguro ficarmos aqui erto?
-- Não sei, mas acho que não me apetece disse ela.
--Por que é que não chamas a Whinney?Ainda temos tempo de enconoutro lugar antes de anoitecer.
Depois de passarem a noite na tenda em terreno aberto, partiram de
bem cedo, pois queriam afastar-se o mais possível do urso das
:avernas. Jondalar não queria perder tempo a secar a carne e convenceu que estava frio suficiente para que não se estragasse. Estava com *ressa de abandonar daquela região. Normalmente onde havia um urso [as cavernas, havia mais.
Mas pararam quando chegaram ao cimo de um espinhaço. Ao ar cor frio podiam ver em todas as direcções e a vista era espectacular. nte a este, uma montanha coberta de neve, com uma elevação primeiro plano, chamando a atenção ara a cordilheira a este, agora mais perto e descrevendo uma curva à sua ,olta. Embora não fosse excepcionalmente alta, a montanha do glaciar o seu ponto mais elevado a norte, formando uma linha de picos manchados de um azul glaciar contra o céu de um profundo.
As montanhas geladas a norte localizavam-se na faixa exterior, mais
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larga, da curva do arco; os viajantes estavam no arco interior, nos
fortes da cordilheira que os rodeava, de pé num espinhaço que se
dia através da extremidade norte da antiga bacia que formava a
central. O grande glaciar, uma massa densamente compacta de gelo
do que se tinha estendido a partir do norte atd cobrir quase um quarto i
terra, terrninava numa parede montanhosa que estava e
diatamente atrás dos picos mais distantes. A noroeste altas, mais baixas mas dominando o horizonte. Vislumbrava-se, a
lar à distância, o glaciar a norte, pairando como um horizonte
acima das elevações mais próximas. A enorme cordilheira de
muito mais altas a oeste estava perdida nas nuvens.
As montanhas distantes que os rodeavam eram magnificentes, vista mais deslumbrante estava mais perto. Lá em baixo, na. profunda, o curso do Grande Rio Mãe tinha mudado de direcção. agora de oeste. Ao olharem boquiabertos de cima jectria serpenteante do rio, também Ayla e Jondalar sentiram tinham chegado a um ponto de viragem.
-- O glaciar que temos de atravessar é directamente a oeste daquidisse Jondalar, mas a sua voz tinha um tom distante que aos seus pensamentos --, mas seguiremos o Grande Rio Mãe se desvia ligeiramente para noroeste um pouco mais à frente e depois novo para sudoeste até lá chegarmos. Não é um glaciar enorme, a não numa região mais elevada a nordeste que é quase plana depois de se chegar acima, como uma grande planície feita de gelo. De vessarmos, voltaremos a ir para sudoeste, mas iremos para oeste durante todo o resto do caminho.
Ao atravessar o espinhaço de calcário e de rocha cristalina,
que hesitando, incapaz de se decidir, desviava-se para norte, nava para sul, e seguia de novo para norte, pelo ri.o, antes de finalmente se dirigir para sul através da planície.
-- E a Mãe? -- perguntou Ayla.-Isto é, toda ela e não apenas canal?
-- É toda ela. Ainda é um rio de tamanho razoável, mas nada do c era concedeu Jondalar.
--Então temos vindo junto a ela durante bastante tempo.
isso. Estou habituada a ver o Grande Rio Mãe muito mais cheio c não está todo espraiado. Pensei que estivéssemos a seguir um atravessámos afluentes maiores disse Ayla, um pouco por a enorme Mãe de todos os rios se ter tornado apenas um outro de curso de água.
--Estamos cá em cima. Daqui parece diferente. É maior do que pens
-- disse ele.-Ainda temos de atravessar alguns afluentes
zonas em que se volta a dividir em canais, mas vai
pequeno.-Jondalar olhou fixamente para oeste em silêncio
tempo; depois acrescentou: -- Ainda estamos no princípio do
rno. Devemos chegar ao glaciar a tempo.., se não acontecer nada que
Nos atrase.
Os Viajantes viraram para oeste ao longo do espinhaço alto, seguincurva
exterior do rio. A elevação continuou a aumentar no lado norte
atd ficarem a olhar para baixo de um ponto elevado por cima do
eno lóbulo a sul. A vertente a oeste era bastante íngreme e eles di
iram-se para norte por uma encosta mais gradual, através de uma
1egetação esparsa. Lá em baixo, um afluente que seguiaa base da gran
- vindo de nordeste, formava uma garganta funda. Seguiramm contra a corrente atd encontrarem um sítio para atravessar. Do outro Ldo só havia colinas e eles seguiram a cavalo junto ao afluente até vol rem a encontrar o Grande Rio Mãe, continuando depois para oeste.
Na vasta planície central só havia alguns afluentes, mas estavam ago
numa região onde muitos rios e ribeiros vindos de norte se juntavam
Mãe. Mais tarde nesse dia, chegaram a um outro grande afluente e fica
n com as pernas molhadas na travessia. Não era como atravessar um
tempo quente de Verão, quando não fazia diferença se se molhas
um pouco. A temperatura caía para valores negativos durante a
oite. Ficaram a tiritar com a água gelada e decidiram acampar na outra
para se aquecer e secar.
Depois continuaram directamente para oeste. Depois de passar aquela ião de colinas, voltaram a encontrar terras baixas, um prado pantamas nada que se parecesse com as terras muito irrigadas rio abaio. All o solo era ácido e mais alagadiço do que pantanoso, com brejos de usgos que em certos sítios estavam a ficar compactos e a formar turfa.
}escobriram que a turfa ardia quando um dia acamparam e inadvertidaaente
acenderam a fogueira em cima de uma zona de turfa seca. No dia
eguinte apanharam alguns pedaços para usarem nas suas próximas
Quando chegaram a um afluente grande e rápido que se abria em
que e formava um vasto delta na sua confluência com a Mãe, decidiram
contra a corrente para ver se encontravam um sítio onde fosse ais fácil atravessar. Chegaram a uma bifurcação onde os dois rios conseguiram a ramificação do lado direito e chegaram a nova bifuronde mais um rio se lhe juntava. Os cavalos atravessaram facilaentea passo o pequeno rio, e a bifurcação do meio, apesar de ser maior, ão foi demasiado difícil. A terra entre o canal do meio e o da es era pantanosa, com musgo, e foi difícil de atravessar.
A última ramificação era funda e não havia forma de a atravessar sem
molharem, mas já do outro lado assustaram um megacero com uma
armação e decidiram ir atrás dele. O veado gigante, com as suas
ernas compridas, distanciou-se facilmente dos cavalos atarracados, o Corredor e o Lobo lhe tivessem dado boa luta. A Whinney, que
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ia a arrastar a padiola, não conseguiu companhá-los, mas o " "
tinha posto todos bem-dispostos.
Jondalar, afogueado e despenteado ,lo vento, com o capuz de
atirado para trás, regressou a sorrir. Ayl sentiu um
de amor e saudade quando ele se aproximo..=
cera barba muito loura, como normalmente razia no Inverno
a manter o rosto quente, e ela sempre gosta, a de o ver de barba. Ele
tava de dizer que ela era bela mas, no pensan,ento dela, ele é que era belo
m Muito corre aquele animal! m exclamou ele. m E viste a
magnífica armação? Um dos chifres devia ter o
Ayla também estava a sorrir.
mera magnñíco e belo, mas estou contente por não o termos
do. De qualquer forma, era demasiado grande para nós. Não
levar aquela carne toda e teria sido uma pena matá-lo sem termos
sidade disso.
Dirigiram-se de novo para a Mãe e, embora a sua roupa tivesse seca. do um pouco, ficaram satisfeitos quando acamparam e se mudaram. zeram questão em pendurar a roupa húmida perto da fogueira ainda mais.
No dia seguinte, retomaram o seu caminho para oeste; depois o
nou para noroeste. Viram, um pouco mais adiante, outro espinhaço Agrande elevação que se estendia aid junto do Grande Rio Mãe era o mais a noroeste, o último que veriam, da grande cadeia de montanhas os tinha acompanhado quase desde o início da sua viagem. Nessa altura, i a cordilheira estava a oeste deles e eles tinham contornado extremidade sul, seguindo o percurso inferior do Grande Rio Mãe. Os: picos brancos das montanhas tinham marchado para este deles, forman do um grande arco curvo ao atravessarem a grande planície central do curso do meio do grande rio serpenteante. Continuando para oeste a longo do curso superior da Mãe, o espinhaço era o último testemunho.
Nenhum afluente sejuntou ao ño até eles estarem quase junto ao espinhaço e Ayla e Jondalar aperceberam-se de que deviam ter vindo de novo por entre canais. O rio vindo de este que se juntou no sopé do rio rochoso era a outra extremidade do canal norte da Mãe. Daí, o corria por entre o espinhaço e um monte alto do outro lado da água, havia uma margem suficientemente plana por onde puderam seguir cavalo para contornarem a base do monte rochoso.
Atravessaram um outro grande afluente logo do outro lado do
nhaço, um rio cujo grande vale marcava a separação entre os dois gruposi
de cordilheiras de montanhas. Os montes alto, s a oeste eram o promon
tdrio mais a este da enorme cadeia ocidental. A medida que o espinhaço
ia ficando para trás, o Grande Rio Mãe voltava a dividir-se em três
canais. Eles seguiram a margem exterior do canal mais a norte atravési
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das estepes de uma bacia mais pequena a norte que era a continuação da
planície central.
No tempo em que a bacia central tinha sido um grande mar, aquele vasto vale do rio com estepes cobertas de erva, juntamente com os pântanos e brejos das terras alagadiças da beira-rio e as terras de pastagem a norte delas, eram todas elas entradas para aquele antigo corpo interno de água. A curva interior da cadeia de montanhas a este continha linhas de falhas na crosta dura da terra que se tornaram saídas para os grandes jorros de mateñal vulcânico. Este material, conjugado com os depósitos do antigo mar e do loess varrido pelo vento, criaram um solo rico e fértil. Mas apenas os esqueletos de Inverno das árvores davam indício disso.
Os dedos ossudos e os ramos nus de algumas bdtulas perto do rio batiam ao vento voraz do norte. A ladear as margens havia vegetação rasteira seca, juncos e fetes mortos, onde se começavam já a formar crostas de gelo que se tornariam mais espessas e viriam a formar molhes irregulares; o princípio das massas de gelo flutuantes da Primavera. Nas faces viradas a norte e no terreno mais elevado das colinas ondulantes nos limites do vale, as ondas de vento varriam os campos de feno acinzentado em movimentos rítmicos, enquanto ramadas escuras e sempre-verdes de espruces e pinheiros oscilavam e estremeciam ao saber das rajadas irregulares que conseguiam chegar às faces protegidas viradas a sul. Neve em pó redemoinhava no ar, assentando depois ao de leve no chão.
O tempo tinha esfriado nitidamente, mas as lufadas de neve não constituíam
problema. Os cavalos, o lobe e atd as pessoas estavam habitua
dos às estepes de loess do norte com o seu frio seco e leves nevões de
Inverno. Ayla só se começaria a preocupar quando a neve se tornasse bastante
funda, atolando os cavalos e cansando-os e tornando mais difícil encontrar
pasto. Tinha visto cavalos à distância e a Whinney e o Corredor também tinham dado por eles.
De uma das vezes que por acaso olhou para trás, Jondalar pensou ver fumo vindo de um monte alto do outro lado do rio, na última cordilheira que tinham acabado de contornar. Pensou se haveria pessoas all por perto, mas não voltou a ver fumo, embora tivesse olhado para trás várias vezes para verificar.
Ao fim da tarde, seguiram um pequeno afluente contracorrente através de uma floresta aberta de salgueiros e bétulas de ramos nus, aid um outeiro de pinheiros. As noites gélidas tinham feito aparecer uma camada transparente de gelo na superfície de um pequeno lago e feito gelar as margens do ribeiro, mas este continuava a correr livremente no centro. Foi aí que acamparam. Caía uma neve seca que tingiu de branco as encostas viradas a norte.
A Whinney tinha estado agitada desde que avistaram os cavalos à distãncia,
o que por sua vez fez que Ayla ficasse enervada. Nessa noite de
JEAN AUEL
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cidiu pôr o arnês à égua, prendendo-a a um pinheiro resistente
corda comprida. Jondalar prendeu o Corredor com uma corda a
árvore perto dela. Depois apanharam ramos secos e partiram
tos que ainda estavam presos aos troncos dos pinheiros por baixo dos
ramos vivos; "lenha de mulher era como a gente de Jondalar lhe chamava.
Existia na maior parte das coníferas e atd no tempo mais chuvoso.
estavam normalmente secos. Podia ser apanhada sem recorrer a um machado
ou faca. Acenderam a fogueira mesmo junto à entrada da tenda e
deixaram a badana aberta para aquecer o interior.
Uma lebre já quase toda branca atravessou o acampamento quando, por mero acaso, Jondalar estava a verificar o peso do sou lançador de lanno qual tinha estado a trabalhar nas últimas noites. Fez o lançamento quase por instinto, mas ficou admirado quando a lança mais curta, com uma ponta mais pequena, feita de pedreneira e não de osso, atingiu o alvo. Dirigiu-se para o animal abatido, pegou nele e tentou retirar a lança.
Ao ver que esta não saía facilmente, puxou da faca, cortou a ponta e ficou satisfeito por ver que a nova lança não estava danificada.
m Já temos carne para logo à noite-disse Jondalar, estendendo a
lebre a Ayla. m Quase parece que esta apareceu aqui para me ajudar a
testar as novas lanças. São leves e fáceis de lançar. Tens de experimentar
lançar uma. "
--Acho que é mais provável termos acampado no meio do seu percurso
habitual-disse Ayla --, mas foi um born lançamento. Gostava de experimentar
uma dessas lanças leves. Mas neste momento creio que you
começar a cozinhá-la e ver o que consigo encontrar para servir de acompanhamento.
Ayla tirou as tripas à lebre mas não a esfolou, para que a gordura de
Inverno não se perdesse. Depois enfiou-a num ramo de salgueiro afiado
e colocou-o sobre a fogueira assente em dois paus em forquilha. A seguir,
apesar de ter de partir o gelo para lhes chegar, Ayla apanhou várias
raízes de tifáceas e rizomas de uns fetos alcaçuz. Esmagou-os com uma
pedra arredondada numa malga de madeira com um pouco de água para
extrair as fibras duras, deixando a polpa branca e farinhenta assentar no
fundo da malga enquanto verificava os seus mantimentos para ver o que
tinha.
Depois de o amido assentar e o líquido estar quase transparente, deitou cuidadosamente fora a maior parte e juntou bagas de sabugueiro secas.
Enquanto esperava que inchassem e absorvessem a água, arrancou
alguns pedaços da casca exterior de uma bétula, raspou parte da camada
comestível macia e doce do câmbio e acrescenteu-a à sua mistura de amido e bagas. Apanhou pinhas dos pinheiros e, quando as pôs na fogueira,
ficou satisfeita por ver que havia várias que ainda tinham grandes pi
nhões e que o calor ajudara a abrir.
Quando a lebre ficou pronta, tirou parte da pele enegrecida e esfregou na parte de dentro algumas pedras que tinha posto na fogueira, para que
ficassem com gordura. Depois pegou em pequenos punhados da mistura
de amido de raízes, misturada com as bagas e temperada com o fete alcaçuz
e com o câmbio de bétula de sabor adocicado e deixou-os cair sobre as
pedras quentes.
Jondalar tinha estado a observá-la. Continuava a surpreendê-lo com
os seus enormes conhecimentos sobre as coisas vivas. A maioria das pessoas,
sobretudo as mulheres, sabiam onde encontrar plantas comestí-veis, mas ele nunca conhecera ninguém que soubesse tantas coisas.
Depois de alguns dos biscoitos farinhentos e não levedados estarem prontos,
ele deu uma dentada num deles.
-- São deliciosos! disse ele.-És realmente espantosa, Ayla. Não há muitas pessoas que consigam encontrar alimentos vivos no pino do Inverno.
Ainda não estamos no pino do Inverno, Jondalar, e não é muito difí-cil encontrar coisas para corner nesta altura. Espera que a terra gele e
fique sólida m disse Ayla, tirando a lebre do espeto e arrancando a pele
estaladiça e enegrecida. Depois pôs a carne no prato de marfim de mamute
de onde ambos comeriam.
-- Creio que mesmo nessa altura conseguirias encontrar alguma coisa para corner-disse Jondalar.
--Mas talvez não plantas-disse ela, oferecendo-lhe uma perna ten ra de lebre.
Quando acabaram de corner a lebre e os biscoitos de raiz de tifácea, Ayla deu os restos ao Lobo, incluindo os ossos. Começou a fazer a infusão de chá de ervas, acrescentando-lhe câmbio de bétula para lhe dar um travo de gualtdria, e tirou as pinhas da beira do lume. Ficaram sentados à fogueira durante algum tempo, a beber o chá e a corner pinhões, partidos com pedras ou por vezes com os dentes. Depois da refeição, prepararam tudo para partirem de manhã bem cedo, verificaram que os cavalos estavaro bem e meteram-se nas peles quentes para dormir.
Ayla olhou para o fundo do corredor da caverna comprida e serpenteante
e para a linha de fogueiras que alumiaram o caminho e lançavam
luz sobre as belas formações de linhas ondulantes. Viu uma que parecia
o rabo ondeante de um cavalo. Ao aproximar-se, o animal amareloclaro
relinchou e abanou o rabo escuro, parecendo chamá-la. Ela ia a avançar,
mas a caverna rochosa tornou-se escura e as estalagmites pareciam formar
uma barreira.
Olhou para ver para onde ia e, quando olhou para cima, afinal não era
um cavalo que lhe estava a fazer sinal para se aproximar. Parecia ser um
homem. Esforqou-se por ver qtem era e sobressaltou-se ao ver Creb sair
JEAN A UEL
das sombras. Ele fez-lhe sinal para avançar, incitando-a a apressar-se
e ir com ele; depois virou-se e afastou-se a coxear.
Ela foi atrds dele, mas ouviu um relincho de cavalo. Quando se virou para procurar a égua amarela, o rabo escuro tinha desaparecido no meio de uma manada de cavalos de rabos escuros. Correu atrds deles, mas eles transformaram-se empedra e depois num emaranhado de colunas de pedra. Quando olhou para trás, Creb ia a desaparecer num túnel escuro.
Ela correu atrás dele, tentando apanhá-lo, até chegar a uma bifurcaqão,
mas não sabia por qual dos caminhos Creb tinha ido. Entrou em på-
nico, olhando para um e para o outro. Por fim, decidiu ir pelo da direita
e deparou com um homem que lhe bloqueava o caminho.
Era Jeren! Enchia toda a passagem, pois estava de pé, com as pernas abertas e os braços cruzados sobre o peito, a abanar a cabeça num não. Ela implorou-lhe que a deixasse passar, mas ele não compreendeu. Depois, apontou com um pequeno bastão esculpido para a parede atrás dela.
Quando ela se virou para olhar, viu um cavalo amarelo-escuro a correr e um homem de cabelo louro a correr atrás dele. Subitamente, a manada cercou o homem, ocultando-o da sua vista. Ela sentiu um nó de medo no estômago. Enquanto corria para ele, ouviu os cavalos a relinchar e Creb estava à entrada da caverna a fazer-lhe sinal para se aproximar, com grande urgência, dizendo-lhe para se apressar antes que fosse demasiado tarde. Subitamente, o trovejar dos cascos dos cavalos tornou-se mais forte. Depois ouviu relinchos e, com uma tenebrosa sensação de horror e pânico, o som de um cavalo a gritar.
Ayla acordou de repente. Jondalar também acordou. Havia agitação
do lado de fora da tenda, cavalos a relinchar e cascos a bater no chão. Ouviram
o Lobo rosnar e depois latir de dor. Atiraram as peles para trás e
correram para fora da tenda.
Estava muito escuro, apenas com uma nesga de lua que pouca luz da va, mas havia mais cavalos no meio dos pinheiros do que os dois que lá tinham deixado. Perceberam isso pelo ruído, embora não conseguissem ver nada. Ao correr em direcção ao ruído dos cavalos, Ayla tropeçou numa raiz exposta e caiu pesadamente no chão, ficando sem tõlego.
-- Ayla! Estás bem? m exclamou Jondalar, procurando-a no escuro.
Apenas a tinha ouvido cair.
m Estou aqui m disse ela, com a voz rouca, tentando recuperar o
fõlego. Sentiu as mãos dele no seu corpo e tentou levantar-se. Quando ouviram
o som de cavalos a afastarem-se a galope na noite, ela pôs-se de
pé e correram ambos para o sítio onde os cavalos estavam presos. A Whinney tinha desaparecido!
-- Ela desapareceu-exclamou Ayla. Assobiou e chamou-a pelo nome.
Ouviram um relincho em resposta à distância.
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--É ela! É a Whinney!Aqueles cavalos levaram-na. Tenho de airbus
car! -- A mulher começou a correr atrás dos cavalos, aos tropeções através
das árvores na escuridão.
Jondalar chegou junto dela com algumas passadas.
m Ayla, espera! Não podemos ir agora, está escuro. Nem sequer con
segues ver por onde vais.
m Mas tenho de a ir buscar, Jondalar!
-- E iremos. De manhã-disse ele, abraçando-a.
m Nessa altura já estarão longe m disse a mulher num lamento senfido.
Masjá será dia e podemos ver o seu rasto. Iremos atrás deles. Havemos
de a trazer de volta, Ayla. Prometo-te que havemos de a trazer de
volta.
Oh, Jondalar. e é que farei sem a Whinney? Ela é minha amiga. Durante muito tempo foi a minha única amiga m disse Ayla, cedendo à lógica do seu argumento, mas desatando a chorar.
O homem abraçou-a e deixou-a chorar durante alguns instantes e depois disse:
Neste momento é preciso irmos ver se o Uorredor também desapareceu e encontrar o Lobo.
Ayla lembrou-se de ter ouvido o lobo ganir de dor e ficou subitamente preocupada por ele e pelo jovem garanhão. Assobiou peloLobo e depois fez o som que usava para chamar os cavalos.
Ouviram primeiro um relincho e depois um ganido. Jondalar foi à procura do Uorredor, enquante Ayla seguia o som do lobo ferido aé o encontrar. Baixou-se para consolar o animal e sentiu uma coisa molhada e peganhenta.
-- Lobo! Estás ferido. Tentou pegar nele ao colo e levá-lo para junto do sítio da fogueira, para a voltar a acender e conseguir ver. Ele latiu de dor enquanto ela cambaleava devido ao seu peso. Depois soltou-se dos seus braços e aguentou-se de pé, e, embora ela soubesse que isso lhe exigia considerável esforço, foi a andar até ao acampamento.
Jondalar também voltou para o acampamento com o Corredor pela arreata, quando Ayla estava já a reacender a fogueira.
w A corda dele aguentou-anunciou o homem. Tinha-se habituado
a utilizar cordas resistentes para prender o garanhão, pois tinha tido sempre mais dificuldade em controlá-lo que Ayla em relação à Whinney.
w Estou tão contente por ele estar a salvo-disse a mulher, abraçan
do o pescoço do garanhão e depois recuando para o observar melhor para se certificar de que estava mesmo born.-Por que é que eu não usei uma
corda mais resistente, Jondalar? m disse Ayla, zangada consigo própria.
-- Se eu tivesse tido mais cuidado, a Whinney não se teria ido embora.-A sua relação com a égua era mais íntima. A Whiníey era uma amiga que
fazia o que ela queria de sua livre vontade e Ayla só utilizava uma sim
lEAN A UEL
pies arreata para evitar que o cavalo se afastasse demasiado. Tinha sido
sempre o suficiente.
--A culpa não foi tua, Ayla. A manada não queria o Corredor. Queria uma égua, não um garanhão. A Whinney não teria ido se os cavalos não a tivessem obrigado.
-- Mas eu sabia que esses cavalos andavam aqui por perto e devia ter percebido que poderiam vir atrás da Whinney. Agora ela foi-se embora e até o Lpbo está ferido.
-- E muito grave? -- perguntou Jondalar.
-- Não sei-disse Afia.-Dói-lhe muito quando lhe toco para verificar
e creio que term uma costela muito magoada ou mesmo partida. Deve
ter apanhado um coice. Vou-lhe dar uma coisa para as dores e de manhã
tentarei ver ao certo o que é... antes de irmos à procura da Whinney.-Subitamente, estendeu os braços para o homem.-Oh, Jondalar, e se não
a encontrarmos? E sea perdi para sempre? -- exclamou desesperada.
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-- Olha, Ayla-disse Jondalar, baixando-se e pondo um joelho em
terra para observar o terreno coberto de marcas de cascos de cavalo, m
Ontem à noite deve cá ter estado a manada inteira. O seu rasto é bem
claro. Eu disse-te que seria fácil apanhar-lhes o rasto assim que fosse
dia.
Ayla olhou para as marcas e depois para nordeste, para onde pareciam
dirigir-se. Estavam perto da orla da pequena mata e ela conseguia ver a
grande distância para lá da planície aberta, mas, por mais que se esforçasse,
não conseguia ver um único cavalo. Deu por si apensar: "Os rastos
estão bastante claros aqui, mas quem sabe durante que distância conseguiremos
seguilos?"
A jovem mulher não tinha conseguido dormir depois de ter sido acor dada pela agitação e descoberto que a sua amiga querida tinha desapatecido. Assim que o céu começou a clarear, passando de um tom de ébano para azul-escuro, pôs-se a pé, embora ainda estivesse demasiado escuro para ver quaisquer traços distintos na terra. Tinha espevitado o lume e posto água a ferver para fazer chá enquanto o céu se transformava, passando por um espectro monocromático de tons gradualmente mais claros de azul.
OLobo tinha rastejado para junto dela enquanto ela olhava fixamente as chamas, mas teve de ganir para lhe chamar a atenção. Ela tinha aproveitado a oportunidade para o observar atentamente. Embora ele tivesse reagido quando ela o apalpou com força, ficou aliviada por não encontrar quaisquer fracturas. Um hematemajá era suficientemente mau. Jondalar tinha-se levantado assim que o chá da manhã ficou pronto, muito antes de estar suficientemente claro para poderem procurar pistas.
mVamo-nos despachar e partir já, para eles não se distanciarem demasiado de nós-disse Ayla.-Podemos empilhar tudo no barco e... não, não podemos fazer isso.-Ayla apercebeu-se subitamente de que, sem a égua que queria encontrar, não podiam limitar-se a pegar nas suas coisas e partir. O Corredor não sabe puxar a padiola, portanto não podemos levar o barco. Nem sequer podemos levar o ce sto-alforge da Whinney.
-- E para termos alguma hipótese de apanhar a manada, temos de ir
ambos montados no Corredor. Isso significa que também não podemos le
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
var o cesto-alforge dele. Vamos ter de reduzir a nossa carga ao mínimo
indispensável-disse Jondalar.
Detiveram-se para digerir a nova situação em que a perda da Whinney os colocara. Aperceberam-se ambos de que era necessário toma- term algumas decisões difíceis.
m Se só levamos as peles de dormir e a cobertura do chão, que pode ser utilizada como tenda baixa e as enrolarmos, deve caber atrás de nós no dorso do Corredor n sugeriu Jondalar.
n Uma tenda baixa deve chegar-concordou Ayla.-Era o que cos
tumávamos levar quando íamos com os caçadores do nosso clã. Utilizá-vamos um pau para levantar a parte da frente e pedras ou ossos pesados
que encontrávamos para fazer peso nas bordas, n Começou a lembrar
-se das vezes que ela e várias outras mulheres acompanharam os homens
quando estes iam caçar, nas mulheres tinham de levar tudo, excepto as
lanças para caçar, e tínhamos que andar depressa para os acompanhar,
portanto¿viajávamos com o mínimo.
-- Que mais é que levavam? Qual é o mínimo com que achas que podemos
viajar? -- perguntou Jondalar, com a curiosidade espicaçada.
n Precisamos dos instrumentos de fazer fogo e alguns utensflios. Um
machado para cortar lenha e partir os ossos dos animais que precisemos
de esquartejar. Podemos usar excrementos secos e erva para fazer lume,
mas precisamos de ter qualquer coisa para cortar a erva. Uma faca para
esfolar animais e outra afiada para cortar carne-começou ela a enumerar. Ayla estava a lembrar-se não só das vezes que tinha acompanhado os caçadores, mas da época em que viajara sozinha depois de abandonar o clã.
--Eu levo o meu cinto com as presilhas para meter o meu machado e a minha faca de cabo de maríím n disse Jondalar.-E to também deves pôr a tua.
wUm pau de escavar é sempre muito útil e pode ser usado para erguer a tenda. Roupa quente de reserva para o caso de ficar muito frio e também protecções de pés extra w continuou a mulher.
--Um par extra de forros de botas. É boa ideia. Túnicas e calças, luvas
de pele e se for preciso podemos embrulhar-nos nas peles de dormir. --Um ou dois sacos de água... mTambém os podemos prender aos nossos cintos, com corda suficiente para os pormos ao ombro e podemos mantê-los junte do corpo para a água não gelar.
-- Eu you precisar da minha bolsa das ervas medicinais e talvez também deva levar o meu estojo de costura.., não ocupa muito espaço.., e a minha funda.
Não te esqueças dos lançadores de lanças e as lanças m acrescentou Jondalar. nAchas que eu devo levar as minhas ferramentas de trabalhar a pedreneira e alguns nódulos de pedreneira para o caso de algu ma coisa se partir?
m Não podemos levar mais do que eu possa levar às costas.., ou pode
ria, se tivesse um cesto.
m Se um de nós term de levar coisas às costas, acho que devo ser eu- disse Jondalar --, mas não tenho a mÌnha mochila.
Tenho a certeza de que conseguimos fazer uma mochila com qualquer coisa, talvez com um dos cestos-alforge e corda, mas como é que eu posso ir montada atrás de ti se o levares posto? n perguntou Ayla.
riMas sou eu que you atrás...-Olharam um para o outro e sorriram. Até tinham decidido como iriam montados e tinham ambos chegado à sua própria conclusão. Era a primeira vez que Ayla sorria nessa manhã e Jondalar deu por isso.
To tens de guiar o Corredor, portanto eu tenho de ir atrás m disse Ayla.
-- Posso guiá-lo contigo à minha frente-disse o homem --, mas se
fores atrás não conseguirás ver nada a não ser as minhas costas. Não creio
que te sintas satisfeita sem poderes ver nada e precisamos ambos de ir
atentos aos rastos dos cavalos. Provavelmente serão mais diffceis de seguir em terreno mais duro ou onde houver outros rastos a criar confusão
e to és boa batedora.
Ayla sorriu mais abertamente.
--Tens razão, Jondalar. Não sei se aguentaria não ver nada em frente. -- Compreendeu que ele estava tão preocupado em conseguir seguir o rastos dos cavalos como ela própria e até levara em conta os seus sentimentos. Os olhos marejaram-se-lhe subitamente de lágrimas, o amor que sentia por ele transbordando dentro de si e depois as lágrimas transbordaram também.
Não chores, Ayla. Encontraremos a Whinney.
n Não estava a chorar pela Whinney. Estava apensar como te amo
tanto e as lágrimas caíram.
--Eu também te amo-disse ele, estendendo-lhe os braços e sentin do tambdm um nd na garganta.
Subitamente ela estava nos seus braços, a soluçar contra o seu ombro,
e as lágrimas que caíam eram também pela Whinney.
-- Jondalar, temos de a encontrar.
-- E encontramos. Vamos continuar a procurar atd a encontrarmos. E agora que tal arranjares uma mochila para eu põr às costas? E que d$ para levar os lançadores de lanças e algumas lanças da parte de fora, de onde se possam tirar facilmente.
Não deve ser muito difícil. E í claro que temos de levar toda a nossa comida seca de viagem-disse Ayla, limpando os olhos com as costas da mão.
--Que quantidade é que achas que vamos precisar? m perguntou ele.
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-- Depende. Quanto tempo é que demoraremos? m perguntou ela.
A pergunta travou-os a ambos. Quanto tempo demorariam? Quanto tempo demorariam a encontrar a Whinney e a trazê-la de volta?
m Provavelmente só levaremos alguns dias a descobrir a manada e a encontrar a Whinney, mas talvez devamos levar o suficiente para meio ciclo de lua-disse Jonda]ar.
Ayla fez uma pausa, pensando nas palavras de contar.
-- Isso é mais de dez dias, talvez mesmo três mãos, quinze dias. Achas que levará tanto tempo?
-- Não, creio que não, mas é melhor irmos preparados-disse Jonda]ar. --Não podemos deixar este acampamento abandonado durante tanto tempo-disse Ayla.-Será destruído por um animal qualquer, lobos ou hienas ou ursos.., não, os ursos estão a dormir, mas outros. Roerão a tenda, o barco, tudo que seja de couro, e comerão a comida que deixarmos. Que é que havemos de fazer com tudo que temos de cá deixar?
mTalvez o Lobo possa cá ficar a guardar o acampamento disse Jondalar, franzindo a testa.-Se o mandates ficar ele não fica? De qualquer forma, está ferido. Não será melhor ele não fazer a viagem?
-- Sim, seña melhor para ele, mas não ficará. Ficaria durante algum tempo, mas depois iria à nossa procura se não voltássemos passado um dia.
-- Talvez se o prendêssemos perto do acampamento...
m Não, ele odiaria isso, Jondalar! To não havias de gostar se ser forçado
a ficar num sítio onde não quisesses estar! Além disso, se apareces- sem lobos ou quaisquer outros animais, podiam atacá-lo sem ele poder
lutar ou fugir. Vamos ter de pensar noutra forma de proteger as nossas
coisas.
Regressaram ao acampamento em silêncio, Jondalar um pouco aborrecido e Ayla preocupada, mas ambos a tentar resolver o problema de que fazer com as suas coisas enquanto estivessem ausentes. Ao aproximarem-se da tenda, Ayla lembrou-se de uma coisa.
--Tenho uma ideia-disse ela.-Talvez possamos pôr tudo na tenda e fechá-la. Ainda tenho algum repelente de lobo que fiz para impedir que oLobo roesse as nossas coisas. Posso amolecê-lo e espalhá-lo na tenda. Talvez afaste os animais.
--Talvez, pelo menos durante algum tempo, até a chuva o fazer desaparecer, e isso poderá demorar algum tempo. Mas não mantém à distância os animais que podem escavar ou fazer um túnel por baixo dela.-
Jondalar fez uma pausa, m Por que é que não embrulhamos tudo na tenda?
Assim podes pôr o teu repelente em toda ela.., mas não a devíamos
deixar ao ar livre.
Não, acho que temos de a pendurar de forma a não tocar no chão,
como fazemos com a carne-disse Ayla, e depois, mais entusiasmada,
continuou:-- Talvez a possamos içar para cima dos paus. E cobri-la com o barco, para não se molhar com a chuva.
-- E boa ideia! -- disse Jondalar, fazendo depois nova pausa.-Mas os paus podem ser derrubados por um leão das cavernas ou até por uma alcateia de lobos ou de hienas.-Olhou em volta a tentar pensar e reparou num silvado com grandes canas sem folhas cheias de espinhos pontiagudos a meio. m Ayla-disse --, que é que achas de espetarmos os paus no meio daquele silvado, amarrá-los mais ou menos a meio e pormos o embrulho da tenda por cima, tapando-o com o barco?
O sorriso de Ayla foi-se alargando enquanto ele falava.
Acho que podemos cortar algumas das canas com muito cuidado
para nos podermos aproximar o suficiente para espetarmos os paus, pôr
tudo em cima deles e depois voltar a entrelaçar as canas nas outras, os animais mais pequenos poderão lá chegar, mas a maioria está a dormir
ou nas tocas e aqueles espinhos provavelmente manterão à distância os animais maiores. Atd os leões evitam os espinhos. Jondalar, acho que
resultará!
A selecção do pequeno número de coisas que podiam levar exigiu cuidado e reflexão. Decidiram levar um pedaço de pedreneira extra e alguns utensílios essenciais para a talhar, corda sobressalente e o máximo de comida que podiam carregar. Enquanto seleccionava as suas coisas, Ayla encontrou o cinto especial e o punhal de cabo de martim que Talut lhe tinha dado na cerimónia em que fora adoptada pelo Acampamento do Leão. O cinto tinha presilhas de couro que podiam ser puxadas para prender coisas, sobretudo o punhal, embora este cinto também pudesse ser usado para levar à mão muitos outros objectos úteis.
Ayla pôs o cinto à volta das ancas por cima da túnica exterior e depois tirou o punhal, ficando com ele na mão e virando-o, pensando se o deve ria levar. Apesar de ter um bico muito afiado, era mais uma peça cerimonia] do que prática. O Mamut usara um semelhante para lhe cortar o braço e depois, com o sangue que fizera, marcar a placa de marfim que tinha pendurada ao pescoço, incluindo-a assim entre os Mamutei. Ela também vira um punhal semelhante ser usado para fazer tatuagens, cortando tinas linhas na pele com o bico. Depois, carvão preto pro veniente de madeira de freixo era colocado nas feridas abertas. Ela não sabia que as cinzas de freixo produziam um anti-séptico natural que im pedia a infecção e era improvável que o próprio Mamut que lhe explica ra o método soubesse por que é que este resultava. Só sabia que lhe tinha ficado gravado no espírito que, quando fizesse uma tatuagem, nunca deveria utilizar senão madeira de freixo queimada para escurecer a cicatriz.
Ayla voltou a pôr o punhal na sua bainha de couro e deixou-o lá ficar.
Depois pegou noutra bainha de couro que protegia a låmina de pedrenei
ra extremamente afiada de uma pequena faca de cabo de maním que Jon
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dalar lhe tinha feito. Meteu-a numa das presilhas do cinto e pôs o cabo
do machado que ele tambdm lhe tinha dado noutra presilha. A cabeça de
madeira do pequeno machado também estava embrulhada em couro para
a proteger.
Decidiu que não havia qualquer razão para que o cinto não aguentas
se o lançador de lanças. Depois enfiou nele a funda finalmente prendeu a bolsa que continha pedras para a funda. Sentia-se pesada, mas era uma
forma conveniente de levar coisas quando tinham de visjar com muito pouco. Juntou as suas lanças às que Jondalar já tinha posto na mochila.
Levaram mais tempo do que tinham pensado a decidir o que levar mais tempo ainda a guardar a salvo tudo o que deixavam ficar. Ayla estava preocupada com a demora, mas por volta do meio dia finalmente montaram e partiram.
Quando se meteram a caminho, o Lobo foi ao seu lado, mas não tardou
a ficar para trás, obviamente com dores. Ayla estava preocupada com ele,
sem saber bem até onde e a que velocidade ele poderia ir, mas decidiu que o deixaria segui-los ao seu próprio passo e se ele não aguentasse teria de
os apanhar quando parassem. Estava dividida pela sua preocupação em
relação a ambos os animais, mas o Lobo estava all perto e, embora ferido,
sentia-se confiante de que recuperaria. A Whinney podia estar em
qualquer sítio e, quanto mais se atrasassem, mais longe poderia estar.
Seguiram o rasto da manada mais ou menos em direcção a nordeste
durante alguma distância; depois, as marcas dos cascos dos cavalos mudaram
inexplicavelmente de direcção. Ayla e Jondalar cortaram a curva
e, por momentos, pensaram que tinham perdido o rasto. Voltaram para
trás, mas só ao fim da tarde é que o voltaram a encontrar, em direcção a
este, e estava quase escuro quando chegaram a um rio.
Era evidente que os cavalos o tinham atravessado, mas estava a ficar
demasiado escuro para ver as marcas dos cascos dos cavalos e decidiram
acampar junto ao rio. A questão que se punha era, de que lado? Se o atravessassem
agora, a sua roupa molhada provavelmente estaria seca de
manhã, mas Ayla tinha medo de que o Lobo não os conseguisse encontrar
se atravessassem a água antes de ele os apanhar. Decidiram esperar por
ele e montar o acampamento no sítio onde estavam.
Com os escassos haveres que tinham levado, o acampamento parecia vazio e deprimente. Não tinham visto mais rastos durante todo o dia. Ayla estava a começar a preocupar-se com a possibilidade de estarem a seguir outra manada e também estava preocupada com o LObo. Jondalar tentou tranquilizá-la, mas quando a noite caiu e o céu se encheu de estrelas e ele ainda não tinha aparecido, a preocupação de Ayla por ele aumentou.
Ficou a pé atd bastante tarde, mas quando Jondalar finalmente a
convenceu a deitar-se ao seu lado nas peles de dormir, ela continuou a
não conseguir dormir, embora estivesse cansada. Estava quase a adormecer quando sentiu um nariz frio a cheirá-la.
mLobo! Conseguiste! Estás cá! Jondalar, olha! O Lobo está aquiexclamou
Ayla, sentindo o animal encolher-se com os seus abraços. Jondalar
ficou aliviado e também contente por o ver, embora dissesse a si pró-prio que a sua alegria era sobretudo por causa da Ayla. Pelo menos já con
seguiria dormir. Mas primeiro levantou-se para dar ao animal a comida
que guardara para ele, um guisado feito de carne seca, raízes e um bolo
de comida de viagem.
Tinha também preparado uma mistura de chá de casca de salgueiro e água, que pusera de parte numa malga para ele, e o animal estava com tanta sede que bebeu tudo, incluindo a medicação para as dores. Depois enroscou-se junto das peles de dormir e Ayla adormeceu com um braço por cima dele, enquanto Jondalar se aconchegou a ela com um braço em volta dela. Naquela noite gélida mas límpida, tinham-se deitado vestidos, à excepção das botas e roupa exterior de pele, e não se deram ao trabalho de montar a pequena tenda.
De manhã, Ayla achou que oLobo já estava melhor, mas tirou um pouco
de casca de salgueiro da sua bolsa de pele de lontra e juntou uma chá-vena de infusão à sua comida. Tinham todos que enfrentar a travessia do
rio frio e ela não sabia bem até que ponto é que isso afectaria o ferimento
do animal. Poderia arrefecê-lo demasiado mas, por outro lado, a água
fria poderia também aliviar a ferida que já estava a sarar e os hematomas
internos.
Contudo, não estava a agradar à jovem mulher ter de molhar a roupa. Não era tanto o banho de água fria-já tinha tornado muitas vezes banho em água mais fria m mas sim a perspectiva de ter de ficar com as calças e as protecções de pés molhadas à temperatura quase gelada do ar. Quando começou a dobrar a parte de cima das botas altas semelhantes a mocasins à volta do tornozelo, mudou subitamente de ideia.
-- Não you para a água com as botas calçadas-declarou.-Prefiro ir descalça e molhar os pés. Pelo menos terei protecções de pés secas quando chegarmos ao lado de lá.
-- Talvez não seja má ideia-disse Jondalar.
-- Mais, nem sequer levo isto vestido m disse Ayla, tirando as calças e ficando nua da túnica para baixo, o que fez Jondalar sorrir e ter vontade de fazer outra coisa além de andar atrás dos cavalos. Mas sabia que Ayla estava demasiado preocupada com a Whinney para pensar em divertimentos.
Por mais engraçada que ela estivesse, Jondalar teve de reconhecer
que era uma ideia inteligente. O rio não era excepcionalmente grande,
embora a corrente parecesse ser rápida. Podiam atravessá-lo ambos
montados no Corredor, com as pernas e os pés nus, e depois vestir a roll
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pa seca quando chegassem ao outro lado. Não só seria mais confortável,
como evitaria ficarem frios duran, te um longo período.
-- Creio que tens razão, Ayla. E melhor não as molharmos-disse ele, tirando as protecções das pernas.
Jondalar pôs a mochila e Ayla pegou no rolo das peles de dormir para se assegurar de que não se molhariam. O homem sentiu-se um pouco ridículo por montar o cavalo nu da cintura para baixo, mas ao sentir a pele de Ayla entre as suas pernas esqueceu-se disso. O resultado evidente dos seus pensamentos não passou despercebido a Ayla. Se não es tivesse com tanta pressa, também ela se sentiria tentada a ficar all um pouco mais. Ocorreu-lhe fugazmente que numa outra ocasião poderiam voltar a montar juntes, só por graça, mas aquela não era altura para graças.
A água estava gelada quando o garanhão castanho entrou na corrente,
partindo a crosta de gelo junto à margem. Embora o rio fosse rápido,
não tardando a ser suficientemente fundo para lhes molhar as pernas atd
meio das coxas, o cavalo continuou a ter pé; não era tão fundo que o obri
gasse a nadar. A princípio, os dois cavaleiros do Corredor tentaram encolher
as pernas para as manter fora de água, mas não tardaram a ficar
com elas entorpecidas pela água fria. A meio do rio, Ayla virou-se para
procurar o Lobo. Este continuava na margem, a andar de um lado para o outro, a tentar furtar-se ao mergulho inicial, como tantas vezes fazia.
Ayla assobiou para o incitar e por fim viuo atirar-se.
Chegaram à outra margem sem qualquer incidente, a não ser terem ficado gelados. O vento frio que lhes fustigou as pernas molhadas quando desmontaram não ajudou. Depois de limparem a maior parte da água com as mãos, apressaram-se a vestir as calças e as botas, com forro de pêlo de camurça feltrado m um presente de despedida dos Sharamudoi pelo qual naquele momento se sentiram mais que grates. As suas pernas e pés reagiram ao calor. Quando o Lobo chegou à beira da água, subiu a margem e sacudiu-se. Ayla examinou-o para se assegurar de que a travessia gelada não lhe tinha feito mal.
Localizaram facilmente o rasto dos cavalos e voltaram a montar o
jovem garanhão. OLobo voltou a tentar acompanhá-los, mas não tardou
a começar a ficar para trás. Ayla viu com preocupação que ele la ficando
cada vez mais para trás. O facto de ele os ter encontrado na noite anterior
atenuou ligeiramente os seus receios e consolou-se com a ideia de que
ele se tinha afastado frequentemente para caçar ou explorar sozinho e
que os tinha sempre apanhado. Detestava ter de o deixar para trás, mas tinham de encontrar a Whinney.
Só a meio da tarde é que finalmente avistaram os cavalos à distância.
Ao aproximarem-se, Ayla esforçou-se por descobrir a sua amiga no meio
dos outros. Achou que tinha vislumbrado o seu familiar pêlo cor de feno,
PI.Y]CIES DE PASSAGEM
mas não tinha a certeza. Havia demasiados cavalos com pêlo semelhante
e quando o vento levou o seu rasto atd à manada, esta afasteu-se a galope.
Aqueles cavalos já foram caçados m comentou Jondalar. Mas ficou contente por não ter expresso em voz alta o seu pensamento seguinte:
"Deve haver pessoas nesta região que gostam de carne de cavalo." Não
queria perturbar ainda mais a Ayla. A manada não tardou a distanciar
-se do jovem garanhão com os seus dois cavaleiros, mas eles continuaram
a seguir os rastos. Era a única coisa que de momento podiam fazer.
A manada virou para sul, por qualquer razão que só os cavalos sabiam, dirigindo-se de novo para o Grande Rio Mãe. O terreno não tardou a ter nar-se íngreme. O solo ternou-se rochoso e acidentado e a erva mais esparsa.
Continuaram atd chegar a um grande campo bastante mais acima
do reste da paisagem. Quando avistaram a água a cintilar lá em baixo,
aperceberam-se de que estavam num planalto no cume da elevação cuja
base tinham contornado alguns dias antes. O rio que tinham atravessa
do passava junto à sua base virada para oeste antes de se juntar à Mãe.
Aproximaram-se mais quando a manada começou a pastar.
-- Lá está ela, Jondalar! -- exclamou Ayla, excitada, apontando para determinado animal.
-- Como é que podes ter a certeza? Há vários cavalos da mesma cor.
Embora a coloração da égua fosse semelhante à de outros cavalos, a
mulher conhecia demasiado bem a configuração específica da sua amiga
para ter dúvidas. Assobiou e a Whinney ergueu a cabeça.
-- Eu disse-te. E ela!
Voltou a assobiar e a Whinney começou a dirigir-se para ela. Mas a égua-chefe, um animal grande e gracioso com um pêlo de um amarelo-acinzentado mais escuro que o habitual, viu a nova aquisição da manada a afastar-se dos outros e avançou para a impedir. O garanhão da manada foi ajudá-la. Era um cavalo espectacular, grande, de cor bege, com crinas prateadas e com uma risca a todo o comprimente do dorso e um comprido rabo prateado que parecia quase branco quando ele o sacudia. A parte inferior das suas paras era também prateada. Mordiscou os jarretes da Whinney e obñgou-a a ir para junto das outras fêmeas que observavam a cena com interesse e nervosismo; depois foi a galope desafiar o garanhão mais jovem. Bateu com as patas no chão, empinou-se e relinchou, desafiando o Corredor a lutar.
O jovem garanhão castanho recuou, intimidado, e não pôde ser con vencido a aproximar-se mais, para grande frustração dos seus companheiros humanos. A uma distância segura, relinchou para a sua mãe e eles ouviram o relincho familiar da Whinney em resposta. Ayla e Jondalar desmontaram para discutir a situação.
-- Que é que vamos fazer, Jondalar? -- exclamou Ayla desesperada.
--
Eles não a deixam vir. Como é que a podemos levar connosco?
--Não te preocupes, pois havemos de conseguir disse ele. Se for
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necessário, utilizaremos os lançadores de lanças, mas não creio que
tenhamos de o fazer.
A segurança dele acalmou-a, pois não se lembrara dos lançadores de
lanças. Não queria matar nenhum cavalo a menos que fosse preciso, mas
faria qualquer coisa para conseguir a Whinney de volta.
m Tens algum plano? m perguntou ela.
--Tenho quase a certeza de que esta manada já foi caçada, portanto os cavalos têm medo das pessoas. Isso é uma vantagem para nós. O garanhão da manada provavelmente pensa que o Corredor o estava a desafiar.
Ele e aquela égua grande estavam a tentar impedir que ele roubasse um
cavalo da sua manada. Portanto temos de manter o Corredor longe deles
--começou Jondalar a explicar, mA Whinney virá quando assobiares por
ela. Se eu conseguir distrair a atenção do garanhão, to podes ajudá-la a escapar-se da égua até te aproximares o suficiente para a montares.
Depois, se gritares à égua, ou até a espicaçares com a tua lança se ela se
encostar à Whinney, creio que ela se manterá à distância até to te afas
tares montada na Whinney.
Ayla sorriu, sentindo alívio.
-- Parece-me bastante fácil. Que é que vamos fazer ao Corredor? Havia uma rocha com alguns arbustos all atrás.
-- Posso prendê-lo a um deles. Se ele puxar com muita força não aguentam, mas ele está habituado a estar preso e creio que ficará lá.-
Pegando na arreata do jovem garanhão, Jondalar voltou para trás a passos
largos.
Quando chegaram à rocha, Jondalar disse:
-- Olha, leva o teu lançador e uma ou duas lanças.-Depois tirou a mochila.-You rifar a mochila e deixá-la aqui. Limita-me os movimentos.-- E tirou o seu lançador e as lanças do suporte, m Assim que apanhes a Whinney, podes vir buscar o Corredor e ires buscar-me.
O terreno elevado curvava bruscamente na direcção nordeste para sudoeste, com umainclinaçåo gradual a norte que se tornava um pouco mais íngreme para este. Na extremidade sudoeste, projectava-se sobre um precipício. No lado oeste, virado para o rio que tinham atravessado pouco antes, era bastante escarpado, mas para sul, na direcção do Grande Rio Mãe, havia um precipício alto com uma ravina funda. O dia estava limpo e o sol ta alto no céu, embora já tivesse ultrapassado em muito o seu zénite, enquanto Ayla e Jondalar se dirigiram de novo para junto dos cavalos. Junto à beira escarpada de oeste, olharam lá para baixo e recuaram, temendo que um passo em falso ou um tropeção os fizesse cair.
Quando chegaram mais perto da manada que pastava, pararam e tentaram
descobrir a Whinney. A manada-potros, éguas e cavalos de ano
-- estava a pastar no meio de um campo coberto de erva que lhe chega
va à cintura; o garanhão da manada estava a um lado, um pouco afastado
dos outros. Ayla pensou ver a sua égua ao fundo, para sul. Assobiou,
a cabeça da égua cor de palha ergueu-se e a Whinney começou a dirigir -se para eles. Empunhando o lançador pronto a ser usado, Jondalar aproximou-se lentamente do garanhão bege, tentando interpor-se entre ele e a manada, enquanto Ayla avançava na direcção das éguas, determinada a chegar junto da Whinney.
Enquanto avançava para a égua, alguns dos cavalos pararam de pas tar e olharam para cima, mas não estavam a olhar para ela. Subitamente, Ayla teve a sensação de que havia qualquer coisa que não estava bem. Virou-se para procurar Jondalar e viu uma pluma de fumo e depois outra. Tinha sido o cheiro do fumo que lhe tinha chamado a atenção. O campo de erva seca estava a arder em vários sítios. Subitamente, através do fumo, viu figuras a correr para os cavalos, a gritar e a brandir archotes! Estavam a perseguir os cavalos para a orla do campo, na direcção do precipício, e a Whinney estava no meio deles!
Os cavalos estavam a começar a entrar em pânico, mas por entre os sons agudos Ayla pensou ouvir um relincho familiar vindo de outra direcção.
Olhando para norte, avistou o Corredor com a corda a arrastar, a
galopar em direcção à manada. Por que é que ele tinha que se ter solta
do naquela altura? E onde é que estava o Jondalar? O ar não estava apenas
cheio de fumo. Ela sentia a tensão e o cheiro do medo contagiante dos cavalos que se afastavam das chamas.
Ayla estava rodeada de cavalos e já não conseguia ver a Whinney, mas o Corredor vinha na sua direcção, a galopar velozmente, contagiado pelo
pânico. Ela deu um longo e forte assobio e depois correu para ele. O garanhão
abrandou e virou-se na sua direcção, mas tinha as orelhas achatadas
e estava a revirar os olhos de medo. Ayla conseguiu agarrar a corda
que estava presa ao seu arnês e puxou-lhe a cabeça. Ele relinchou e em
pinou-se enquanto os outros cavalos corriam à sua volta. A corda queimou
as mãos de Ayla, mas ela não a largou e quando as patas dianteiras
do animal tocaram no chão ela agarrou-lhe as cñnas e saltou-lhe para
o dorso.
O Corredor voltou a empinar-se. Ayla foi quase atirada ao chão, mas
conseguiu aguentar-se. O cavalo continuava cheio de medo, mas estava
habituado a sentir peso em cima. O peso e a mulher que lhe era familiar
representavam um certo conforto para ele. Acalmou-se e abrandou para
um meio galope, mas Ayla tinha dificuldade em controlar o cavalo que
Jondalar treinara. Embora já tivesse montado várias vezes o Corredor e conhecesse os sinais que tinham sido estabelecidos com o cavalo, não estava
habituada a guiá-lo pela arreata ou com uma corda. O homem uti
lizava ambos os métodos com igual facilidade e o garanhão conhecia a
confiança do seu cavaleiro habitual. Não correspondeu bem às primeiras
tentativas de Ayla, mas ela estava à procura da Whinney ao mesmo tempo
que tentava acalmá-lo e estava enervada com a sua necessidade premente
de encontrar a sua amiga.
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
Os cavalos corriam e cercavam-na, a relinchar e a gritar, e ela sentia
nas narinas o cheiro forte do seu medo. Voltou a assobiar com força, um
assobio agudo e penentrante, mas não teve a certeza que este se ouvisse
no meio da comoção e sabia que o instinto de fuga era extremamente forte.
Subitamente, no meio da nuvem de pó e do fumo, Ayla viu um cavalo
abrandar, tentar virar e resistir ao incitamento dos cavalos em pânico
que passavam por ela num galope desenfreado, com o seu conta¿dante
medo do fogo. Embora o seu pêlo estivesse da cor do pó sufocante, Ayla
soube que era a Whinney. Voltou a assobiar para a encorajar e viu a sua
égua querida parar, indecisa. O instinto para correr com a manada era
muito forte nela, mas aquele assobio significara sempre segurança e
amor e ela não estava tão assustada com o fogo como a manada. Tinha
sido criada com o cheiro do fumo, que apenas assinalava a presença pró-xima de pessoas.
Ayla viu a Whinney aguentar-se parada enquanto os outros cavalos
roçavam por ela e lhe davam encontrões ao tentarem desviar-se dela. A
mulher incitou o Corredor a avançar. A égua voltou-se e começou dirigir
--se para a mulher, mas subitamente apareceu um cavalo claro, parecendo
surgir do pó. O grande garanhão da manada tentou desviá-la com a
cabeça, gritando um aviso que era simultaneamente um desafio ao Corredor, tentando mesmo no meio do seu pânico afastar a sua nova companheira
do macho mais jovem. Desta vez, o Corredor gritou em resposta,
depois fez uma cabriola e bateu com as patas no chão e avançou para o animal maior, esquecendo-se com a excitação de que era demasiado
jovem e inexperiente para lutar com um garanhão adulto.
Depois, por qualquer razão m por ter mudado subitamente de ideias ou por ter sido conta¿dado pelo medo m, o garanhão deu meia volta e afastou-se a galope. Whinney começou a segui-lo e o Corredor acelerou para a ultrapassar. Enquanto a manada corria e se aproximava cada vez mais da beira do penhasco e da morte certa que os aguardava lá em baixo, a égua de pêlo da cor da erva amadurecida pelo sol e o jovem garanhão castanho que ela dera à luz, com a mulher no seu dorso, estavam a ser arrastados com eles! Com feroz determinação, Ayla obrigou o Corredor a parar à frente da mãe. Ele relinchou de medo, querendo correr em pânico com o resto dos cavalos, mas foi impedido de o fazer pela mulher e pelos comandos a que estava habituado a obedecer.
Depois, todos os cavalos tinham passado flor ela. Enquanto a Whinney e o Corredorficavam imóveis, a tremer de medo, os últimos cavalos da manada desapareceram para lá da beÌra do penhasco. Ayla estremeceu com o som distante de cavalos a relinchar e a gritar e depois foi abalado com o silêncio. A Whinney e o Corredor e ela, ela própña, podiam ter ido com eles. Respirou fundo para se recompor de ter escapado por um triz e depois olhou em volta, à procura de Jondalar.
Não o viu. O fogo deslocava-se para sudeste; o vento estava a soprar
para lá da beira sudoeste do campo m mas as chamas tinham servido o seu propósito. Ayla olhou em rodas as direcções, mas não viu Jondalar em lado nenhum. Ayla e os dois cavalos estavam sozinhos no campo fumegante. Ela sentiu um nó de medo e ansiedade na garganta. Que é que teria acontecido ao Jondalar?
Deslizou de cima do Corredor e, continuando a segurar na corda que servia de arreata, saltou agilmente para o dorso da Whinney, diri¿dndo -se para o sitio onde se tinham separado. Observou atentamente a área, andando de trás para diante, procurando rastos, mas o terreno estava coberto de pegadas. Depois, pelo canto do olho, reparou numa coisa e correu para ver o que era. Com o coração a bater descompassadamente, apanhou o lançador de lanças de Jondalar!
Olhando mais atentamente, viu pegadas, obviamente de muitas pessoas mas, em destaque no meio delas, estavam as marcas dos pés grandes de Jondalar, metidos nas suas botas bastante usadas. Tinha visto aquelas marcas demasiadas vezes nos sítios onde tinham acampado para se enganar. Depois viu uma mancha escura na torra. Baixou-se para lhe tocar e o seu dedo veio vermelho, sujo de sangue.
Os olhos de Ayla dilataram-se e a garganta contraiu-se-lhe de medo. Ficando quieta onde estava para não apagar as marcas, olhou cuidadosamente em volta, tentando perceber o que se tinha passado. Ela era uma batedora experiente e, aos seus olhos treinados, não tardou a tornar-se claro que alguém tinha ferido Jondalar e o tinha arrastado para longe dali. Seguiu os rastos para norte durante certa distância. Depois anotou mentalmente o local onde estava, para poder voltar a encontrar o rasto, montou a Whinney, agarrando com força a arreata do Corredor, e virou para oeste para ir buscar a mochila.
Enquanto galopava para oeste, a sua expressão era carrancuda e a sua testa franzida de ira expressava exactamente o que sentia, mas tinha de pensar nas coisas e decidir o que la fazer. Alguém tinha ferido Jondalar e tinha-o levado e ninguém tinha o direito de fazer isso. Talvez ela não compreendesse todos os costumes dos Outros, mas isso ela sabia. Sabia também outra coisa. Ainda não sabia como, mas ia trazê-lo de volta.
Ficou aliviada quando viu a mochila, que continuava encostada à rocha,
exactamente onde a tinham deixado. Despejou tudo o que lá estava
dentro, fez alguns ajustes para o Corredor a poder levar sobre o dorso e
depois voltou a arrumá-la. Nessa manhã não tinha posto o seu cinto m
era incómodo-e metera tudo na mochila. Pegou no cinto e examinou o punhal cerimonial bem afiado que continuava na presilha, picando-se
acidentalmente com o bico. Ficou a olhar para a gotícula de sangue que
se formou e, por qualquer estranha razão, sentiu vontade de chorar. Estava
de novo sozinha. Alguém tinha levado Jondalar.
Subitamente, pôs o cinto e enfiou o punhal, a faca e o machado e as armas de caça nas presilhas. Ele não estaria ausente durante muito tempo!
JEAN A UEL
PLAN [C IES DE PASSAGEM
Colocou a tenda no dorso do Corredor, mas levou consigo o rolo das peles
de dormir. Quem sabia que tipo de tempo poderia apanhar? Também
levou um saco de água. Depois tirou um bolo de comida de viagem e sentou-se
na rocha. Não era que tivesse fome, mas sim porque sabia que
tinha de conservar as suas forças para poder seguir o rasto e encontrar
Jondalar.
A outra preocupação que a tinha estado a afectar para além do homem desaparecido era o lobo que ainda não aparecera. Não podia ir à procura de Jondalar enquanto não encontrasse oLobo. Ele era mais que um com panheiro animal de quem gostava, podia ser essencial para seguir o rasto. Ayla estava com esperança de que ele aparecesse antes de a noite cair e pensou se poderia voltar para trás até o encontrar. E se ele andasse à caça? Podia desencontrar-se dele. Apesar da sua impaciência, decidiu que era melhor esperar.
Tentou pensar no que podia fazer, mas nem sequer conseguiu pensar em possíveis vias de acção. O próprio acto de ferir uma pessoa e de a levar era tão estranho para ela que sentia dificuldade em pensar para além dele. Parecia-lhe uma coisa sem nexo e i]ógica.
Os seus pensamentos foram interrompidos por um ganido e depois por um latido. Ayla virou-se e viu o Lobo a correr para ela, obviamente contente por a ver. Sentiu-se extremamente aliviada.
--Lobo.t-exclamou cheia de alegria.-Conseguiste e muito mais cedo que ontem. Estás me]hor?--Depois de o saudar afectuosamente, examinouo e ficou contente quando voltou a confirmar que apesar de estar realmente magoado, não tinha nada partido e parecia ter melhorado muito.
Decidiu partir imediatamente, para poder reencontrar o rasto enquanto havia luz. Prendeu a arreata do Corredor a uma das correias que segurava a manta de montar da Whinney e montou a égua. Chamando o Lobo para que a seguisse, dirigiu-se para o rasto e foi a cavalo atd ao sítio onde encontrara as pegadas dele no meio das outras, o seu lançador de lanças e a mancha de sangue que era agora uma nódoa acastanhada do chão. Desmontou para voltar a examinar o local.
--Temos de encontrar o Jondalar, Lobo disse. O animal olhou para ela com uma expressão intrigada.
Ayla baixou-se e, sentando-se confortavelmente sobre os calcanhares, observou mais atentamente as pegadas, fazendo um esforço para identificar as pegadas individuais para calcular quantas pessoas eram e para memorizar o seu tamanho e formato. O lobo esperou, sentado sobre as paras traseiras a olhar fixamente para ela, com a percepção de que se passava qualquer coisa de invulgar e importante. Por fim, Ayla apontou para a mancha de sangue.
--Alguém feriu o Jonda]ar e ]evou-o. Precisamos de o encontrar.-
O lobo farejou o sangue, abanou o rabo e latiu.-Aquela é a pegada do
Jondalar-disse ela, apontando para a marca grande e distinta no meio das outras mais pequenas. O Lobo voltou a farejar no sítio para onde ela apontava e depois olhou para ela, como se esperasse a sua reacção seguinte. --Eles levaram-no-disse ela, apontando para as outras marcas de pés humanos.
Subitamente levantou-se e dirigiu-se ao Corredor. Tirou o lançador de lanças de Jondalar da mochila presa ao dorso do Corredor e ajoelhou -se para deixar o lobo cheirá-lo.
-- Temos de encontrar o Jondalar, Lobo! Alguém o levou e nós vamos trazê-lo de volta!
26
Jondalar apercebeu-se lentamente de que estava acordado, mas a
cautela fez que continuasse deitado até perceber o que estava mal, pois
não havia qualquer dúvida de que alguma coisa havia de errado. Primeiro,
tinha a cabeça a latejar. Entreabriu ligeiramente os olhos. A luz
era fraca, mas conseguiu ver o chão frio de terra batida onde estava dei
tado. Sentiu qualquer coisa seca empastada do lado da cara, mas quando
tentou levar lá a mão para ver o que era descobriu que tinha as mãos
amarradas atrás das costas. Os seus pés também estavam amarrados.
Rolou de forma a ficar de lado e olhou em volta. Estava no interior de uma pequena estrutura redonda, uma espécie de armação de madeira coberta de peles, e que estava dentro de um local fechado maior. Não ouvia o barulho do vento, não sentia qualquer corrente de ar e nem as peles ondulavam como teria acontecido se estivesse ao ar livre e, embora estivesse frio, o ar não era gelado. E subitamente apercebeu-se de que já não tinha aparka de pele vestida.
Jondalar tentou sentar-se e foi invadido por uma onda de vertigem. O latejar na sua cabeça localizou-se numa dor aguda por cima da têmpora esquerda, perto do resíduo seco e empastado. Parou quando ouviu o ruído de vozes a aproximarem-se. Duas mulheres estavam a falar numa língua que lhe era desconhecida, embora tivesse pensado detectar algumas palavras que lhe pareceram vagamente Mamutoi.
-- Oi, vocês aí. Estou acordado-gritou na língua dos Caçadores de Mamutes.-Não há ninguém que me venha desamarrar? Estas cordas não são necessárias. Estou certo de que houve um mal-entendido qualquer. Venho em paz.-As vozes pararam por instantes e depois continuaram, mas nenhuma delas lhe respondeu nem ninguém apareceu.
Jondalar, de barriga para baixo no chão de terra, tentou lembrar-se como all tinha chegado e que é que poderia ter feito que levasse alguém a amarrá-lo. Pela sua experiência, a única situação em que as pessoas eram amarradas era quando tinham um comportamento selvagem e ten tavam ferir alguém. Recordou-se de uma parede de fogo-e cavalos a correr para o precipício na beira do campo. Devia haver pessoas a caçar os cavalos e ele tinha sido apanhado no meio.
Depois lembrou-se de ter visto Ayla montada no Corredor, mas com
dificuldade em controlá-lo. Pensou como é que o garanhão teria ido pa
PLAN]CIES DE PASSAGEM
rar ao meio da manada descontrolada quando ele o tinha deixado amarrado
a um årbusto.
Nessa altura, Jondalar quase entrara em pânico, receando que o cavalo obedecesse ao instinto de manada e fosse atrás dos outros, caindo no precipício, levando Ayla com ele. Lembrou-se de que tinha corrido na sua direcção com a lança pronta a ser arremessada pelo lançador. Por muito que gostasse daquele garanhão castanho, teña morto o Corr¢da¢ para impedir que este levam Ayla para o predpído, h era a última coisa de que se lembrava, a não ser de uma senço fugaz de uma dor aguda antes de tudo ficar escuro.
"Alguém me deve ter batido com qualquer coisa", pensou Jondalar. "l.
a pancada foi forte, pois não me lembro de ter sido traído para aqui a cabeça ainda me dói. Será que eles pensaram que eu estava a estragar a
sua estratégia de caça? Da primeira vez que encontrei o Jeren os seus
caçadores foi em circunståncias semelhantes." Ele Thonolan tinham
inadvertidamente feito dispersar uma manada de cavalos que os caçadores
tinham estado a conduzir para uma armadilha. Mas Jeren tinha com
preendido, assim que a ira lhe passou, que não tinha sido intentional,
tinham-se tornado amigos. Não estraguei a caçada desta gente, pois no?
Voltou a tentar sentar-se. Apoiando-se de lado, puxou os joelhos para cima e depois fez um esforço para rolar e ficar sentado. Foi preciso tentar várias vezes e o esforço fez que a cabeça lhe ficasse a latejar, mas por fim conseguiu. Ficou sentado de olhos fechados, na esperança de que a dor se atenuaria rapidamente. Mas à medida que esta ia abrandando, a sua preocupação por Ayla e pelos animais aumentou. Teriam a Whinney e o Corredor sido arrastados para o precipício, e o Corredor levado Ay la com ele?
Estaria ela morta? Sentiu o coração bater de medo só de pensar naquilo. Teriam todos morrido, Ayla e os cavalos? E o Lobo? Quando o animal ferido acabasse por chegar ao campo, não encontraria ninguém. Jondalar imaginou-o a farejar, a tentar encontrar um rasto que não ia dar a lado nenhum. Que é que ele faña? OLobo era um born caçador, mas esta va ferido. Conseguiria caçar para sobreviver estando feñdo? Iria sentir a falta de Ayla e do resto da sua "alcateia". Não estava habituado a viver sozinho. Como é que reagiria? Que é que aconteceria quando encontras se uma alcateia de lobos selvagens? Seria capaz de se defender?
"Será que não vem ninguém? Queña beber água", pensou Jondalar. "Devem ter-me ouvido. Também tenho fome, mas sobretudo sede." Sentia a boca cada vez mais seca e a sua ânsia de água aumentou.
-- Eh, vocês aí! Tenho sede! Não há ninguém que traga um pouco de água a um homem? -- gritou.-Que raio de gente são vocês? Amarram
um homem e nem sequer lhe dão água[
Ninguém respondeu. Depois de gritar mais algumas vezes, decidiu
poupar energias. Aquilo só estava a fazer que ficasse ainda com mais sede
JEAN AUEL
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e a cabeça continuava a doer-lhe. Pensou em deitar-se, mas tinha feito
um esforço tão grande para se sentar que não sabia se conseguiria voltar
a fazê-lo.
À medida que o tempo foi passando, Jondalar começou a ficar deprimido.
Estava fraco, quase a delirar, e imaginou o pior em imagens vívidas.
Convenceu-se a si prdprio de que Ayla tinha morrido, bem como os
dois cavalos. Quando pensou no Lobo, imaginou o pobre animal a vaguear
sozinho, ferido e incapaz de caçar, à procura de Ayla e sujeito a ser atacado
por lobos das redondezas, ou hienas, ou quaisquer outros animais...
talvez uma perspectiva melhor que morrer de fome. Pensou se ele próprio
iria ser deixado all para morrer de sede e quase desejou que assim fosse,
se Ayla tivesse morrido. Identhícando-se com a situação dramática que
imaginara para o lobo, o homem decidiu que ele e o Lobo deviam ser os
últimos sobreviventes do invulgar grupo de viajantes e que não tarda
riam também a morrer.
Foi arrancado ao seu desespero pelo som de pessoas a aproximarem -se. A badana da entrada da pequena estrutura foi atirada para trás e através da abertura viu uma figura, de pé, com as pernas afastadas e as mãos nas ancas, recortada pela luz de um archote. Esta deu uma ordem num tom autoritário. Duas mulheres entraram no espaço fechado, puseram-se cada uma de um lado, ergueram-no e arrastaram-no para fora. Puseram-no de joelhos à frente dela, com as mãos e os pés ainda amarrados. Jondalar tinha novamente a cabeça a latejar e encostou-se a uma das mulheres. Ela afastou-o com um empurrão.
A mulher que tinha dado a ordem para o trazerem olhou para eledurante alguns instantes e depois riu. Era um som áspero e dissonante, uma maldição grosseira e demente. Jondalar recuou involuntariamente e sentiu um arrepio de medo. Ela dirigiu-lhe algumas palavras ásperas. Ele não compreendeu, mas tentou endireitar-se e olhar para ela. Tinha a visão nublada e o seu corpo oscilava. Com uma expressão carrancuda, a mulher ladrou mais algumas ordens e depois deu meia volta e foi-se embora. As mulheres que o estavam a segurar deixaram-no cair e foram atrás dela, juntamente com mais algumas. Jondalar caiu de lado, tonto e fraco.
Sentiu as cordas que o amarravam a serem cortadas e depois deitaramlhe água na boca, quase sufocando-o. Mas tentou beber avidamente a que podia. A mulher que estava a segurar no saco de água disse al gumas palavras num tom de desagrado e depois atirou o saco de água a um homem mais velho. Este avançou e levou-o à boca de Jondalar, inclinandoo, não propriamente com cuidado mas com mais paciência, para que Jondalar pudesse beber e saciar a sua sede avassaladora.
Antes de estar completamente saciado, a mulher cuspiu impacientemente
uma palavra e o homem foi-se embora com o saco de água. Depois
ela puxou Jondalar, forçando-o a ficar de pé. Ele cambaleou com tonturas enquanto ela o empurrava para fora do abrigo, para junto de um grupo de outros homens. Estava frio, mas ninguém lhe deu a suaparka de pele, nem sequer lhe desamarraram as mãos para ele as poder esfregar.
Mas o ar frio reanÌmou-o e ele reparou que alguns dos outros homens também tinham as mãos amarradas atrás das costas. Olhou mais atentamente para as pessoas para o meio das quais tinha sido atirado. Eram de todas as idades, desde jovens homens m mais propriamente rapazes m a homens velhos. Estavam todos magros, fracos e sujos, cheios de sangue seco e sujidade.
Jondalar tentou falar em Mamutoi com o homem que estava ao seu lado, mas este abanou a cabeça. Jondalar pensou que ele não compreendia e tentou Sharamudoi. O homem desviou o olhar no instante em que entrou uma mulher empunhando uma lança e se dirigiu para Jondalar, brandindo-a ameaçadoramente, dando uma ordem ríspida mum tom agressivo. Jondalar não compreendeu as suas palavras, mas as suas acções eram bem claras e pensou sea razão pela qual o homem não lhe tinha respondido seria não o compreender ou, se compreendera, não tinha querido falar.
Várias mulheres com lanças colocaram-se a intervalos em volta do
grupo de homens. Uma dela gritou algumas palavras e os homens começaram
a andar. Jondalar aproveitou a oportunidade para olhar em volta
e tentar perceber onde estava. O aldeamento, que consistia de várias habitações redondas, parecia-lhe vagamente familiar, o que era estranho
pois desconhecia em completo aquela região. Depois apercebeu-se de
que eram as habitações que lhe eram familiares. Assemelhavam-se às
habitações de terra batida dos Mamutoi. Embora não fossem exactamente
iguais, pareciam ser construídas da mesma maneira, provavelmente
utilizando ossos de mamutes como apoios estruturais que depois eram
cobertos de palha, lama e argila.
Começaram a subir uma colina, que proporcionou um panorama mais vasto a Jondalar. A região era essencialmente formada por estepes cobertas de erva, ou tundra-planícies sem árvores em terreno de subsolo gelado que no Verão descongelava e formava uma superfície negra e lamacenta. Na tundra apenas sobreviviam ervas anãs mas, na Primavera, as suas flores de cores vÌvas davam-lhe cor e beleza e serviam de alimento a bois-almiscarados, renas e outros animais que as conseguiam digerir. Havia também extensões de taiga, árvores sempre-verdes baixas, de uma altura tão uniforme que as suas copas pareciam ter sido aparadas por um qualquer instrumento cortante gigante, e na realidade tinham si do. Os ventos gelados que lançavam agulhas de granizo e pedaços roía dos de loess cortavam qualquer galho ou ramito que ousasse crescer mais que os seus irmãos.
Enquanto continuavam a subir, Jondalar viu uma manada de mamu
JEAN AUEL
PL4NICIES DE PASSAGEM
tesa pastar à distância a norte e, um pouco mais perto, renas. Sabia que
havia cavalos all por perto m e as pessoas tinham andado a caçá-los m
e calculou que ursos e bisontes também frequentavam a região nas estações
mais quentes. A terra parecia-se mais com a sua própria região natal
que as estepes secas, cobertas de erva, a este, pelo menos nos tipos de
plantas que lá cresciam, embora a vegetação dominante fosse diferente
e provavelmente tambdm a mistura proporcional de animais.
Pelo canto do olho, Jondalar detectou movimento à sua esquerda. Virou-se a tempo de ver uma lebre branca atravessar a correr o monte, perseguida por uma raposa árctica. Enquanto observava, o grande coelho deu subitamente um salto noutra direcção, passando pelo crânio parcialmente decomposto de um rinoceronte peludo, e depois mergulhou na sua toca.
"Onde há mamutes e rinocerontes*, pensou Jondalar, "há também
leões das cavernas, provavelmento hienas e sem dúvida lobos. Carne e animais de pêlo em abundância e alimentos que crescem na terra. Esta
é uma terra de abundância." Fazer estas avaliações era uma segunda
natureza para ele, como também o era em certa medida para a maioria
das pessoas. Viviam da terra e a observação atenta dos seus recursos era
-lhes necessária.
Quando o grupo chegou a um sítio alto e plano do outro lado da colina,
pararam. Jondalar olhou pela encosta abaixo e viu que os caçadores
que viviam naquela área dispunham de uma vantagem única. Não só os animais podiam ser vistos à distância, como as várias e enormes manadas
que vagueavam pela terra tinham de passar por uma estreita passagem
que existia entre as paredes escarpadas de calcário e o rio. Seria fácil
caçar all e isso fez que ele se interrogasse por que é que teriam ido caçar
cavalos para junto do Grande Rio Mãe.
Um lamento pungente chamou a atenção de Jondalar para olocal onde se encontrava. Uma mulher, com cabelo grisalho comprido e desgrenhado, era apoiada por duas mulheres um pouco mais novas enquanto grifava e chorava de evidente desgosto. Subitamente, libertou-se, caiu de joelhos e atirou-se para cima de qualquer coisa que estava no chão. Jondalar avançou um pouco para ver melhor. Era mais alto que a maioria dos outros homens e, alguns passos mais adiante, compreendeu a dor da mulher.
Aquilo era obviamente um funeral. Havia três pessoas estendidas no
chão jovens, provavelmente com idades entre os dezoito e os vinte e
poucos anos, calculou ele. Duas delas eram indubitavelmente machos;
tinham barbas. O maior era provavelmente o mais novo. A sua barba clara
ainda era esparsa. A mulher de cabelos grisalhos estava a soluçar
sobre o corpo do outro macho, cujo cabelo e barba curta castanhos eram
mais visíveis. A terceira era bastante alta mas magra e havia qualquer
coisa no seu corpo e na posição em que estava que o fez pensar se aquela
pessoa não teria um problema físico qualquer. Não lhe via pêlos faciais, o que a princípio o fez pensar que se tratava de uma mulher, mas podia bem ser um homem novo bastante alto que usasse a barba cortada.
Os pormenores da roupa não foram grande ajuda. Estavam todos vesfidos com protecções de pernas e túnicas largas que disfarçavam as características que distinguiam os sexos. A roupa parecia nova, mas não tinha quaisquer enfeites. Era quase como se alguém não quisesse que fossem reconhecidos no outro mundo e tivesse tent, ado torná-los anónimos.
A mulher de cabelos grisalhos foi erguida, quase arrastada m embora não rudemente-de junto do corpo do jovem homem pelas duas mulheres que a tinham tentado segurar. Depois, uma outra mulher avançou e havia qualquer nela que fez que Jondalar voltasse a olhar. O seu rosto era estranho, invulgarmente assimétrico, parecendo que um dos lados tinha sido empurrado para trás, e era ligeiramente mais pequeno que o outro. Não fazia qualquer esforço para o esconder. O seu cabelo era claro, talvez cinzento, e estava puxado para trás e apanhado num carrapito no alto da cabeça.
Jondalar achou que ela teria aproximadamente a idade da sua mãe e movia-se com a mesma graciosidade e dignidade, embora não tivesse qualquer semelhança física com Marthona. Apesar da sua ligeira deformidade, a mulher não era feia e o seu rosto chamava a atenção. Quando o olhar dela encontrou o seu, Jondalar apercebeu-se de que tinha estado a olhar fixamente para ela, mas foi ela quem desviou primeiro o olhar, bastante apressadamente, pensou ele. Quando ela começou a falar, ele percebeu que era ela que estava a dirigir a cerimónia do funeral. Devia ser uma mamut, pensou, uma mulher que comunica com o mundo dos espíritos, uma zelandonii para aquelas pessoas.
Houve qualquer coisa que fez que ele se virasse e olhasse para um dos
lados do grupo de pessoas all reunidas. Uma outra mulher estava a olhar
fixamente para ele. Era alta, bastante musculada e com feições marca
das, mas era uma mulher atraente, com cabelo castanho e olhos muito
escuros e interessantes. Não desviou o olhar quando ele olhou para ela fazendo, pelo contrário, uma avaliação bastante franca dele. Era uma
mulher com altura, formas e aparência geral pela qual ele normalmente
se sentiria atraído, pensou, mas o sorriso dela inquietavao.
Depois reparou que estava de pé com as pernas afastadas e as mãos nas ancas e subitamente percebeu quem era: era a mulher que tinha rido tão ameaçadoramente. Jondalar controlou a vontade que sentiu em recuar e esconder-se no meio dos outros homens, sabendo que mesmo que tentasse não conseguiria. Não só era bastante mais alto, como de longe mais saudável e musculado que eles. Estaria em evidência onde quer que estivesse.
A cerimónia pareceu-lhe bastante mecânica, como se fosse uma
necessidade desagradável e não uma ocasião solene e importante. Os cor
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PI..4N]CIF-,S DE PASSAGEM
pos, sem serem embrulhados em mortalhas, foram simplesmente trans
portados para uma única sepultura, um de cada vez. Jondalar reparou
que ainda estavam flácidos quando foram erguidos. Não podiam estar
mortos há muito tempo; a rigidez ainda não se tinha instalado e não
tinham qualquer cheiro. 0 corpo alto e magro foi o primeiro a ser posto
na sepultura, de costas, tendo sido polvilhado ocre vermelho na sua
cabeça e, estranhamente, sobre o pélvis, a poderosa zona procriadora,
fazendo que Jondalar pensasse se não seria na realidade uma mulher.
Os outros dois foram tratados de forma diferente, mas ainda mais
estranhamente. O macho de cabelo castanho foi colocado na sepultura
comum, à esquerda do primeiro corpo do ponto de visão de Jondalar, mas
do lado direito da figura, tendo sido posto de lado, virado para o primeiro
corpo. Depois, o seu braço foi esticado de forma a que a mão ticasse
sobre a região pélvica coberta de ocre vermelho do outro. 0 terceiro corpo
foi quase atirado para dentro da sepultura, de cara para baixo, do lado
direito do corpo que tinha sido colocado em primeiro lugar. As suas cabeças
foram também polvilhadas com ocre vermelho. O pó vermelho sagrado
destinava-se obviamente a protegê-los, mas de quem? E contra quê? pensou Jondalar.
No momento em que a terra solta estava a ser deitada na sepultura pouco funda, a mulher de cabelos grisalhos voltou a libertar-se. Correu para a sepultura e atirou qualquer coisa lá para dentro. Jondalar viu duas facas de pedra e algumas pontas de lança de pedreneira.
J
JEAN A UEL
nhando lanças apontadas a ele. Jondalar ignorou-as e abriu caminho por
entre elas saindo pela abertura.
-- Desamarra-me! -- disse, virando-se de lado para que pudessem vê-lo a erguer as mãos atadas atrás das costas.-Tirem-me estas cordas!
O homem mais velho, que o tinha ajudado a beber água, avançou.
mZelandonñ! To... muito.., longe mdisse, obviamente esforçando-se por se lembrar das palavras.
Jondalar não se apercebera de que, na sua ira, tinha estado a falar a sua língua natal.
-- Falas Zelandonii? -- disse, surpreendido, ao homem, mas a sua necessidade avassaladora estava primeiro, m Então diz-lhes que me tirem estas cordas antes que eu me molhe todo!
O homem falou a uma das mulheres. Ela respondeu, abanando a cabeça, mas ele voltou a falar. Por fim, ela tirou uma faca da bainha que tinha à cintura e, dando uma ordem que fez que o resto das mulheres o cercassem de lanças apontadas, avançou e fez-lhe sinal para se virar. Ele virou-se de costas para ela e esperou enquanto ela cortava as cordas.
"Bem precisam por cá de um artífice que trabalhe bem a pederneira", não
pôde deixar de pensar. "A faca está romba."
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, sentiu as cordas caírem. Começou imediatamente a desapertar a badana que servia de braguilha e, demasiado aflito para se sentir embaraçado, puxou o órgão para fora, procurando desesperadamente um canto ou um sítio afastado onde pudesse urinar. Mas as mulheres de lanças apontadas a ele não o deixaram afastar-se. Irado e num desafio, virou-se propositadamente para elas e, dando um grande suspiro de alívio, deixou a urina correr.
Observou-as enquanto o longo jacto amarelo lhe esvaziava lentamente a bexiga, fumegando ao cair no chão frio e deitando um cheiro forte. A mulher em comando parecia horrorizada, embora tentasse não o mostrar. Duas ou três mulheres viraram a cara ou desviaram o olhar; outras olharam fascinadas, como se nunca tivessem visto um homem urinar. O homem mais velho estava a fazer um grande esforço para não sorrir, embora não conseguisse esconder o seu contentamento.
Quando Jondalar terminou, voltou a meter o seu órgão dentro das calças
e depois enfrentou os seus captores, determinado a não deixar que lhe voltassem a amarrar as mãos. Dirigiu-se ao homem.
m Sou Jondalar, dos Zelandonii, e estou em Viagem.
Viajaste para longe, Zelandonii. Talvez... longe de mais.
-- Já viajei ainda mais longe. Passei o Inverno do ano passado com os Mamutoi. Agora estou de regresso a casa.
Foi o que pensei ter-te ouvido falar há pouco dÌsse o velho
homem, passando para a língua que falava mais fluentemente.-Há cá
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algumas pessoas que compreendem a língua dos Caçadores de Mamutes,
mas os Mamutoi normalmente vêm do norte. To vieste do sul.
-- Se me ouviste a falar há pouco, por que é que não vieste? Tenho a certeza de que houve um mal-entendido qualquer. Por que é que me amarraram?
O velho homem abanou a cabeça, com tristeza pensou Jondalar.
-- Não tardarás a saber, Zelandonii.
Subitamente, a mulher interrompeu com uma torrente de palavras iradas. O velho afastou-se t coxear, apoiado num cajado.
-- Espera! Não te vás embora! Quem és? Quem é esta gente? E quem é a mulher que lhes disse para me trazerem para cá? -- perguntou Jondalar. O velho parou e olhou para trás.
--Aqui, chamam-me Ardemun. As pessoas são os S'Armunai. E a mulher é... Attaroa.
Jondalar não detectou a ênfase que ele dera ao nome da mulher.
--S'Armunai? Onde é que eu já ouvi esse nome.., espera.., já me lembro.
Laduni, o chefe dos Losadunai...
-- Laduni é chefe? -- disse Ardemun.
--Sim, falou-me dos Sarmunai quando nos dirigíamos para este, mas o meu irmão não quis parar-disse Jondalar.
-- Ainda bem que não pararam e é pena estares aqui agora.
-- Porquê?
A mulher que comandava as outras que empunhavam lanças voltou a interrompê-los com uma ordem ríspida.
-- Dantes eu era Losadunai. Infelizmente, fiz uma Viagem-disse Ardemun ao sair a coxear da habitação.
Depois de ele sair, a mulher em comando disse algumas palavras ásperas a Jondalar. Ele calculou que ela o quisesse levar para algum lado, mas decidiu fingir ignorância.
-- Não te compreendo-disse Jondalar.-Vais ter de voltar a chamar o Ardemun.
Ela voltou a dirigir-se a ele, mais zangada, picando-o com a lança. A pele ficou ferida e um fio de sangue escorreu-lhe pelo braço. Os seus olhos incendiaram-se de ira. Levou a mão ao braço, tocou no corte e depois olhou para os dedos ensanguentados.
m Não havia necessi...-começou a dizer.
Ela interrompeu-o com mais palavras iradas. As outras mulheres cer caram-nos com as armas enquanto a mulher saía da habitação e depois espicaçaram Jondalar.para ele a seguir. Lá fora, o frio -lo tremer.
Passaram pela zona cercada pela paliçada e, embora não pudesse ver,
sentiu que estava a ser observado pelas frestas por aqueles que estavam
lá dentro. Tudo aquilo o intrigava. Os animais eram por vezes conduzi
dos para cercas como aquela para não poderem fugir. Era uma das formas
JEAN AUEL
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de os caçar, mas por que é que estavam lá pessoas? Quantas estariam lá
dentro?
"Não é lá muito grande", pensou, "não podem lá estar muitas." Imaginou o trabalho que tinha dado construir uma cerca em volta de uma área mesmo pequena com estacas de madeira. Havia poucas árvores na encosta do monte. Havia alguma vegetação lenhosa sob a forma de arbustos, mas as árvores para a paliçada tinham de ser provenientes do vale lá em baixo. Tinham tido que cortar as árvores, limpá-las dos seus ramos, transportí-las colina acima, cavar buracos suficientemente fundos para as manter de pé, fazer corda e depois amarrar as árvores umas às outras. Por que é que aquela gente se teria dado àquele trabalho todo para fazer uma coisa que tão pouco sentido fazia?
Foi levado para junto de um pequeno ribeiro, quase todo coberto de gelo, onde Attaroa e várias outras mulheres estavam a supervisionar alguns jovens que estavam a transportar grandes e pesados ossos de mamute. Os homens pareciam passar fome e ele pensou onde é que ar ranjariam forças para um trabalho tão árduo.
Attaroa voltou a olhá-lo de alto a baixo, o único indício de que dera
pela sua presença, e depois ignorou-o. Jondalar esperou, ainda intriga
do com o comportamento daquelas estranhas pessoas. Passado algum
tempo, começou a sentir frio e começou a mexer-se, saltando e abanan
do os braços, tentando aquecer-se. Estava a ficar cada vez mais zangado
com a estupidez de tudo aquilo e, finalmente decidindo que não ia ficar all mais tempo, deu meia volta e começou a voltar para trás. Na habitação, pelo menos estaria abrigado do vento. O seu movimento súbito apanhou desprevenidas as mulheres das lanças e, quando ergueram a
sua falange de bicos, ele afastou-os com os braços e continuou a andar.
Ouviu gritos, que ignorou.
Ainda estava com frio quando entrou na habitação. Olhando em volta, à procura de qualquer coisa com que se aquecer, dirigiu-se para a estrutura redonda, arrancou a cobertura de peles e embrulhou-se nela. Nesse preciso momento, irromperam na habitação várias mulheres, de novo a brandir as suas lanças. A mulher que já o tinha ferido e stava entre elas e era patente que estava furiosa. Lançou-se contra ele com a lança. Ele desviou-se rapidamente e deitou a mão à lança, mas foram detidos por um riso áspero e sinistro.
m Zelandonii! m exclamou Attaroa num tom trocista e depois proferiu outras palavras que ele não compreendeu.
--Ela quer que vás lá para fora m disse Ardemun. Jondalar não tinha reparado que ele estava perto da entrada.-Ela acha que és esperto, demasiado esperto. Creio que te quer num sítio onde possas ficar cerca do pelas suas mulheres.
m E se eu não quiser ir lá para fora? m disse Jondalar.
--Então provavelmente ela manda-te matar aqui e agora.-As pa
lavras foram ditas por uma mulher, falando num Zelandonii perfeito, sem o menor vestígio de sotaque! Jondalar lançou um olhar de surpresa na direcção da mulher que tinha falado. Era a shaman! Se fores lá para fora, a Attaroa provavelmente deixar-te-á viver um pouco mais. To tens interesse para ela, mas de qualquer forma acabará por te matar.
-- Porquê? Que é que eu sou para ela? perguntou Jondalar.
-- Uma ameaça.
-- Uma ameaça? Eu nunca a ameacei.
-- Ameaças o domínio dela. Há-de querer fazer de ti um exemplo. Attaroa interrompeu e, embora Jondalar não a compreendesse, a fúria mal contida das suas palavras pareceu dirigida àsharnan. Arespos ta da mulher mais velha foi reservada mas não mostrava medo. Depois da troca de palavras, ela voltou a falar a Jondalar.
Queria saber o que eu te disse. Eu disselhe.
Diz-lhe que irei lá para fora disse ele.
Depois de a mensagem ser transmitida, Attaroa riu, disse qualquer coisa e saiu altivamente.
-- Que é que ela disse? m perguntou Jondalar.
Disse que já sabia. Os homens farão qualquer coisa para terem mais uma batida de coração da sua miserável vida.
-- Talvez não tudo disse Jondalar, dirigindo-se para a entrada.
Depois virou-se para a shaman. Como te chamas?
Chamam-me S'Armuna disse ela.
m Era o que eu pensava. Onde é que aprendeste a falar a minha língua
tão bem?
-- Vivi entre a tua gente durante algum tempo disse S'Arpuna, mas depois travou o evidente desejo de Jondalar de saber mais. m E uma longa históña.
Embora o homem estivesse à espera que por sua vez ela lhe pedisse para dar a sua identidade completa, S'Armuna virou-lhe simplesmente as costas. Ele deu voluntariamente a informação.
Sou Jondalar, da Nona Caverna dos Zelandonii disse.
Os olhos de S'Armuna dilataram-se de surpresa.
Da Nona Caverna? disse ela.
-- Sim disse ele.-Teria continuado a enumerar os seus laços, mas
foi detido pela expressão no rosto dela, embora não conseguisse imaginar
qual o seu significado. Instantes depois, a sua expressão nada revelava
e Jondalar pensou se a teña imaginado.
Ela está à espera m disse S'Armuna, saindo da habitação.
Lá fora, Attaroa estava sentada num banco coberto de peles sobre uma plataforma de terra batida, que tinha sido escavada do chão da grande habitação semi-subterrânea atrás dela. Estava em frente à área cerca da pela paliçada e, ao passar por ela, Jondalar voltou a sentir que esta va a ser observado pelas frestas.
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Ao aproximar-se, teve a certeza de que a pele do seu banco era uma
pele de lobo. O capuz da suaparka, posto para trás, era orlado de pele de
lobo e tinha à volta do pescoço um colar feito sobretudo de afiados dentes
caninos de lobos, embora alguns fossem de raposas árcticas e pelo menos
um de um urso das cavernas. Empunhava um bastão esculpido, semelhante
ao Bastão de Falar que Talut usava quando havia assuntos a
discutir ou zangas a resolver. Aquele bastão ajudava a manter ordem na
conversa. Quem quer que o empunhaste tinha o direito de falar e quando
alguém tinha qualquer coisa a dizer era necessário primeiro pedir o
Bastão de Falar.
Havia mais qualquer coisa que lhe era familiar no bastão que ela em punhava, embora ele não a conseguisse identificar. Seriam as gravaçSes? Tinha gravada a forma de uma mulher sentada, com uma série de círculos concêntricos que iam alargando, representando os seios e a barriga e uma estranha cabeça triangular, estreita no queixo, com um rosto com desenhos enigmáticos. Não eram parecidas com as gravações Mamutoi, mas ele sentia que já as tinha visto antes.
Várias mulheres rodeavam Attaroa. Outras mulheres que ele ainda não tinha visto, algumas com crianças, estavam de pé all perto. Ela observouo durante algum tempo; depois falou, olhando para ele. Ardemun, que estava a um dos lados, começou a gaguejar a tradução para Zelandonii.
Jondalar ia a sugerir que ele falasse Mamutoi, mas S'Armuna inter
rompeu, disse qualquer coisa a Attaroa e depois olhou para ele.
-- Eu traduzo-disse ela.
Attaroa fez um comentário trocista que fez que as mulheres à sua volta rissem, mas S'Armuna não o traduziu.
--Ela estava a falar comigo-foi a única coisa que disse, com um rosto impassível. A mulher sentada voltou a falar, desta vez dirigindo-se a Jondalar.
-- Falarei agora como Attaroa-disse S'Armuna, começando a traduzir.
-- Por que é que vieste para cá?
-- Não vim voluntariamente. Fui trazido, amarrado-disse Jondalar, enquanto S'Armuna traduzia quase simultaneamente.-Estou na minha Viagem. Ou estava. Não percebo por que é que fui amarrado. Ninguém se deu ao trabalho de me dizer.
--De onde é que vieste?--perguntou Attaroa, através de S'Armuna, ignorando os comentários dele.
-- Passei o Inverno do ano passado com os Mamutoi.
-- Mentes! Vieste do sul.
--Dei uma grande volta. Queria visitar uns parentes meus que vivem perto do Grande Rio Mãe, na extremidade sul das montanhas a este.
-- Mentes de novo! Os Zelandonii vivem muito a oeste daqui. Como é que podes ter parentes a este?
--Não estou a mentir. Viajei com o meu irmão. Ao contrário dos S'Armunai, os Sharamudoi acolheram-nos com amizade. O meu irmão acasa lou-se com uma mulher de lá. São meus parentes através dele.
Depois, cheio de indignação, Jondalar continuou. Era a primeira oportunidade que tinha de falar com alguém que o escutava.
--Não sabes que os que fazem uma Viagem têm direito de passagem? A maioria das pessoas acolhe bem os visitantes. Trocam histórias, compartilham com eles. Mas aqui não[ Bateram-me na cabeça e fiquei ferido e a minha ferida não foi tratada. Ninguém me deu nem água nem comida. Foi-me tirada a minhaparka de pele e não me foi devolvida quando me obrigaram a sair.
Quanto mais falava, mais zangado ficava. Tinha sido muito mal tratado.
-- Fui levado para o frio e deixado lá. Durante a minha longa Viagem, não houve gente alguma que me tivesse tratado assim. Até os animais d"s planícies compartilham o seu pasto, a sua água. Que tipo de gente é que vocês são?
Attaroa interrompeuo.
--Por que é que tentaste roubar a nossa carne? --Estava furibunda, mas tentou não o mostrar. Embora soubesse que tudo o que ele dissera era verdade, não gostava que lhe dissessem que era menos que os outros, especialmente à frente da sua própria gente.
-- Eu não estava a tentar roubar a vossa carne-disse Jondalar, negando veementemente as acusações. A tradução de S'Armuna era tão fluente e rápida e a necessidade de comunicação de Jondalar tão intensa que ele quase se esqueceu da intérprete. Sentia que estava a falar directamente com Attaroa.
--Mentes! Foste visto a correr com uma lança na mão pelo meio da manada que nós estávamos a caçar.
-- Não estou a mentir! Estava apenas a tentar salvar a Ayla. Ela ia
montada num desses cavalos e eu não podia deixar que eles a arrastas
sem com eles.
--Ayla?
-- Não a viram? É a mulher com quem tenho viajado.
Attaroa riu-se.
-- Viajavas com uma mulher que anda em cima do dorso de cavalos? Se não és um contador de histórias que anda de região em região, fugiste à tua vocação.-Depois inclinou-se para a frente, espetando-o com o dedo para dar maior ênfase e: -- Nada do que disseste é verdade. És um mentiroso e um ladrão!
-- Não sou nem mentiroso, nem ladrão! Contei-te a verdade e não roubei nada-disse Jondalar com convicção. Mas no fundo não a podia censurar por não acreditar nele. A menos que alguém tivesse visto Ayla, quem é que acreditaria que eles tinham viajado no dorso dos cavalos?
Começou a ficar preocupado. Como é que conseguiria convencer Attaroa
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PLANICIES DE PASSAGEM
de que não estava a mentir, que não tinha intencionalmente interferido
com a sua caçada. Se tivesse conhecimento de toda a extensão do sarilho
em que estava metido, estaria mais que preocupado.
Attaroa estudou o belo homem alto e musculado que estava de pé à sua frente, embrulhado nas peles que arrancara da jaula. Reparou que a sua barba loura era de um tom mais escuro que o seu cabelo e que os seus olhos, de um azul inacreditavelmente vívido, eram extremamente atraentes. Sentiu-se fortemente atraída por ele, mas a própria força da sua resposta suscitou nela recordações dolorosas e provocou uma fortíssima reacção, embora estranhamente retorcida. Recusava-se a ser atraída por qualquer homem, pois ter sentimentos por um deles poderia dar-lhe con trolo sobre ela m e ela nunca mais permitiria que ninguém, sobretudo um homem, tivesse controlo sobre ela.
Ela tinha-lhe tirado aparka e deixado que ele ficasse ao frio pela mesma
razão que não lhe dera água e comida. As privações tornavam os
homens mais fáceis de controlar. Enquanto tinham forças para resistir,
era necessário mantê-los amarrados. Mas o homem Zelandonii, embrulhado
naquelas peles que não era suposto ter, não mostrava qualquer medo,
pensou ela. "A maneira como ele all está, tão seguro de si próprio."
Tinha uma atitude tão desafiadora e segura e até ousara criticá-la à frente de toda a gente, incluindo os homens no Cercado. Não se encolheu, nem implorou, nem se apressou a agradar-lhe como os outros faziam. Mas ela jurou que o poria a fazer tudo isso. Estava determinada a arra sá-lo. Mostraria a todos como se lidava com um homem como aquele, e depois.., ele morreria.
"Mas antes de o quebrar", disse a si própria, "brincarei com ele durante algum tempo. Além disso, é um homem forte e será difícil de controlar se decidir resistir. Está desconfiado, portanto preciso de fazer que perca a cautela. Precisa de ser enfraquecido. A S'Armuna saberá de que forma." Attaroa chamou a shaman com um gesto e falou com ela em privado. Depois olhou para o homem e sorriu, mas o seu sorriso tinha tal malícia que lhe provocou um arrepio pela espinha abaixo.
Jondalar não só ameaçava a sua chefia, como ameaçava o mundo frá-gil que a sua mente doente a levara a criar. Até ameaçava a sua ténue
ligação à realidade que recentemente se tornara ainda mais frágil.
-- Vem comigo-disse S'Armuna, quando acabou de falar com At taroa.
-- Onde é que vamos? m perguntou Jondalar, começando a caminhar
ao seu lado. Duas mulheres com lanças iam atrás deles.
Attaroa quer que eu trate a tua ferida.
Levou Jondalar para uma habitação na outra extremidade do aldea
mento, semelhante à grande habitação de terra batida junto à qual At
taroa estivera sentada, mas mais pequena e em forma de cúpula. A seguir
à entrada baixa e estreita havia um pequeno corredor que dava para uma
J
JEAN AUEL
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Ele sabia que não estava a lidar muito bem com a situação, mas con
tinuava a sentir tal incredulidade face às suas recentes experiências, que
deu por si a ter uma necessidade quase infantil de explicar como as coisas
deviam ser, como se isso as resolvesse. Decidiu tentar outra abordagem.
-- Como viveste lá tanto tempo, será que conheceste a minha mãe? Sou filho de Marthona...-Teria continuado, mas a expressão no rosto ligeiramente distorcido dela f'e-lo parar de falar. Ela tinha sofrido um choquç tal que as suas feições ficaram ainda mais contercidas.
--Es o filho de Marthona, nascido do lar de Joconan-disse finalmente ela, mais como uma pergunta.
-- Não, esse é o meu irmão Joharran. Eu nasci do lar de Dalanar, o homem com quem ela mais tarde se acasalou. Conheceste o Joconan?
-- Sim disse S'Armuna, baixando os olhos e depois desviando a sua atenção para o recipiente de pele que estava quase a ferver.
Então também deves ter conhecido a minha mãe! -- Jondalar estava excitado. Se conheceste a Marthona, então sabes que não sou mentiroso. Ela nunca teria tolerado isso num filho dela. Sei que parece inacreditável.., nem tenho a certeza de que eu próprio acreditaria se não soubesse que é verdade.., mas a mulher com quem viajo estava sentada no dorso de um daqueles cavalos que estavam a ser conduzidos para o penhasco. É um cavalo que ela criou desde potro, não um dos da manada. Agora nem sequer sei se está viva. Tens de dizer a Attaroa que não estou a mentir! Tenho de ir à procura dela. Tenho de saber se ainda está viva!
O apelo apaixonado de Jondalar não suscitou qualquer resposta da mulher. Nem sequer ergueu os olhos do recipiente com água a ferver que estava a mexer. Mas, ao contrário de Attaroa, não duvidava dele. Um dos caçadores de Attaroa tinha ido ter com ela e contado uma história de ter visto uma mulher montada num dos cavalos, cheio de medo por pensar que era um espírito. S'Armuna pensou que podia haver alguma verdade na histSria de Jondalar, mas interrogava-se sobre se seria real ou sobrenatural.
Conheceste Marthona, não conheceste? perguntou Jondalar,
aproximando-se da fogueira para atrair a sua atenção. Da primeira vez
tinha conseguido fazer que ela lhe respondesse invocando a mãe.
Quando ela olhou para cima, o seu rosto estava impassível.
Sim, vi a Marthona uma vez. Quando era nova, fui mandada para
ser treinada pelo Zelandoni da Nona Caverna. Senta-te aqui disse ela.
Depois afastou a armação do lume, virou-se e pegou numa pele macia.
Ele encolheu-se quando ela lavou a ferida com a solução anti-séptica que
preparara, mas tinha a certeza de que o seu remédio era born. Ela tinha
aprendido a fazê-lo com a sua gente.
Depois de limpar a ferida, S'Armuna observou atentamente a ferida.
-- Ficaste atordoado durante um pedaço, mas não é grave. Sarará por
si.-Desviou o olhar e depois disse: -- Mas provavelmente vai-te doer a cabeça. You dar-te uma coisa para as dores.
--Não, não preciso de nada, mas continuo com sede. A única coisa que realmente quero é água. Posso beber da água do teu saco? -- disse Jondalar, dirigindo-se para a grande bexiga de água da qual enchera o recipiente. -- Se quiseres volto a encher-te. Tens uma malga que possa usar?
Ela hesitou e depois foi a uma prateleira buscar uma malga.
-- Onde é que posso encher o teu saco de água? --perguntou quando
acabou de beber.-Há algum sítio de que gostes aqui perto?
-- Não te preocupes com a água-disse ela.
Ele aproximou-se, apercebendo-se de que ela não o deixaria andar por all à vontade, nem sequer para ir buscar água.
--Nós não estávamos a tentar caçar os cavalos que eles iam a perseguir.
Mesmo que estivéssemos, Attaroa devia saber que teríamos oferecido
qualquer coisa em compensação. Embora com aquela manada toda
que caiu no penhasco devesse haver carne de sobra. Só espero que a Ayla
não esteja com eles. S'Armuna, preciso de ir à procura dela!
To ama-la, não é? -- perguntou S'Armuna.
--Sim, amo-a-disse ele. Ele viu a expressão dela alterar-se de no.vo.
Havia um elemento de amargura, mas também algo de mais suave.-Ia
mos de regresso ao meu lar para nos acasalarmos, mas também preciso
de dizer à minha mãe da morte do meu irmão mais novo, Thonolan. Começámos
a viagem juntos, mas ele.., morreu. Ela vai ficar muito infeliz. E difícil perder um filho.
S'Armuna assentiu mas não fez qualquer comentário.
-- Aquele funeral que houve, que é que aconteceu àqueles jovens?
--Não eram muito mais novos que tu-disse S'Armuna.-Eram suficientemente adultos para tomarem decisões erradas.
Jondalar achou que ela estava claramente pouco à-vontade.
-- Como é que morreram? -- perguntou.
-- Comeram qualquer coisa que lhes fez mal.
Jondalar não acreditou que ela estivesse a dizer a verdade, mas antes de poder dizer mais alguma coisa ela estendeu-lhe as peles e levou-o lá para fora, entregando-o às duas mulheres que tinham estado a guardar a entrada. Elas marcharam uma de cada lado dele mas, desta vez, não foi levado para a habitação. Levaram-no para a zona cercada pela paliçada e o portão foi aberto apenas o suficiente para ele poder entrar.
Ayla bebeu lentamente o seu chá à fogueira que acendera ao entardecer, olhando para a paisagem verdejante sem a ver. Quando parara para deixar o Lobo descansar, reparou numa grande formação rochosa recortada contra o céu azul a noroeste, mas enquanto o monte de calcário se tornava indistinto, envolto na neblina e nas nuvens, desapareceu da sua memória enquanto os seus pensamentos se focavam no fundo de si, preocupada com Jondalar.
Conjugando a sua perícia como batedora e o faro apurado do Lobo,
tinham conseguido seguir o rasto que ela estava certa tinha sido deixa
do pelas pessoas que tinham levado Jondalar. Depois de descer a inclinação
gradual das terras altas, em direcção a norte, tinham virado para oeste até chegarem ao rio que ela e Jonàalar tinham atravessado pouco
tempo antes, mas não o atravessaram. Viraram de novo para norte, ao
longo do rio, deixando um rasto fácil de seguir.
Na primeira noite, Ayla acampou junto do ribeiro e de manhã continuou
a seguir o rasto. Não tinha a certeza de quantas pessoas estava a seguir, mas viu ocasionalmente vários conjuntos de pegaàas nas margens
lamacentas do rio, uma ou duas que já começava a reconhecer. No
entanto, nenhuma delas era a marca grande dos pés de Jondalar e ela
começou a interrogar-se sobre se ele ainda estaria com eles.
Depois lembrou-se que de vez em quando algo grande era pousado, alisando a erva ou deixando uma marca no pó ou na terra molhada, e ela lembrou-se de ter visto essa marca, juntamente com outras, logo desde o princípio. Não podia ser carne de cavalo, pensou, porque os cavalos tinham sido impelidos para o precipício e aquela carga tinha sido trans portada lá de cima para baixo. Decidiu que tinha de ser o homem que esta va a ser transportado numa espécie de padìo]a, o que ]he causou simultaneamente preocupação e alívio.
Se tinham de o transportar, isso devia significar que ele não conseguia andar sozinho, portanto o sangue que encontrara indicava um ferimento'grave, mas certamente que não se dariam ao trabalho de o transportar se estivesse morto. Chegou à conclusão de que ele estava vivo mas gravemente ferido e esperava que o estivessem a levar para qualquer sitio onde os seus ferimentos pudessem ser tratados. Mas por que é que alguém o tinha ferido?
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Quem quer que ela estava a seguir deslocava-se depressa, mas o rasto
começou a ficar cada vez mais frio e ela sabia que estava a ficar para
trás. Os sinais indicativos que mostravam o caminho por onde tinham se
guido nem sempre eram fáceis de encontrar, o que a fazia atrasar, e até
o Lobo tinha alguma dificuldade em acompanhá-la. Sem o animal, ela
não tinha a certeza de ter conseguido seguir o rasto até all, sobretudo em
terreno rochoso, onde as marcas ténues da sua passagem eram quase inexistentes.
Mas, mais que isso, nåo queria perder de vista o Lobo e arriscar-se
também a perdê-lo. No entanto, sentia uma tremenda necessidade
de se apressar e estava grata por ele parecer melhorar de dia para dia.
Acordara nessa manhã com uma forte sensação de mau augúrio e ficou contente por ver que o Lobo parecia ansioso por partir, embora ao cair da tarde percebesse que estava cansado. Decidiu parar e fazer chá para o deixar descansar e para dar tempo para os cavalos pastarem.
Pouco depois de se ter metido ao caminho, chegou a uma bifurcação no rio. Tinha atravessado sem dificuldade alguns pequenos ribeiros que cor riam das terras altas, mas não sabia bem como iria atravessar aquele. Há bastante tempo que não via quaisquer marcas e não sabia se devia seguir pelo canal em direcção a este e atravessar o rio ou seguir o que seguia para oeste. Seguiu pelo de este durante algum tempo, andando para a frente e para trás a tentar encontrar o rasto, e quase ao anoitecer viu uma coisa que lhe indicava claramente o caminho a seguir.
Mesmo ao lusco-fusco, Ayla viu que os postes que saíam da água tinham sido lá postos com uma finalidade. Tinham sido cravados no leito do rio perto de alguns troncos colocadosjunto à margem. Do tempo que passara com os Sharamudoi, Ayla reconheceu a construção de uma doca de amarração muito simples para um tipo qualquer de embarcações. Ayla começou a fazer preparativos para acampar all, mas mudou de ideias. Não sabia nada acerca das pessoas que estava a seguir, a não ser que tinham ferido Jondalar, levando-o com eles. Não queria que tal gente a apanhasse desprevenida enquanto estava a dormir e vulnerável. Escolheu um sítio a seguir a uma curva do rio.
De manhã, examinou cuidadosamente o lobo antes de entrar no rio. Embora este não fosse especialmente largo, a água estava fria e o rio era fundo e ele teria que nadar. Os ferimentos ainda lhe doíam quando se lhes tocava, mas estava muito melhor e ansioso por partir. Parecia ter tanta vontade de encontrar Jondalar como ela.
Como já f'mera antes, Ayla decidiu tirar as protecções das pernas antes de montar a Whinney, para não se molharem. Não queria perder tempo a preocupar-se em secar roupa. Para sua surpresa, oLobo não hesitou em meter-se na água. Em vez de ficar a andar de um lado para o outro na margem, saltou e começou a nadar ao lado dela, como se quisesse tanto perdê-la de vista como ela a ele.
Quando chegaram ao outro lad0, Ayla afastou-se para evitar os sal
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picos dos animais a sacudirem-se para ficarem mais secos, enquanto
punha as protecções de pernas. Voltou a examinar o lobo para se tranquilizar,
embora ele não tivesse mostrado qualquer desconforto quando se sacudiu vigorosamente, começando depois a procurar o rasto. Algures a
montante do sítio onde tinham atravessado, o Lobo descobriu as embar
cações que tinham sido usadas para atravessar pela gente que estavam
a seguir, escondidas nuns arbustos e árvores que cresciam junto à água.
No entanto, levou um certo tempo a compreender para que serviam.
Partita do princípio de que as pessoas utilizariam um barco, algo
semelhante aos barcos dos Sharamudoi-canoas muito bem aparelha
das, com graciosas proas e rés pontiagudas, ou talvez como os barcos
circulares mais práticos que ela e Jondalar usavam. Mas aquilo que o
Lobo encontrou era uma plataforma de troncos e ela não estava familiañ-zada com jangadas. Assim que compreendeu a sua utilidade, achou que
era uma ideia inteligente, embora pouco atraente. O Lobo farejou a embarcação
grosseira com curiosidade. Quando chegou a certo sitio, parou
e rosnou.
m Que d, Lobo? mperguntou Ayla, olhando mais atentamente, encon
trando uma mancha castanha num dos troncos e sentindo que o pânico a fizera empalidecer. Tinha a certeza de que era sangue seco, provavel mente sangue de Jondalar. Fez festas na cabeça do lobo. m Havemos de o encontrar m disse, para se tranquilizar a si própria tanto como para tranquilizar o lobo, mas não tinha a menor certeza de o endontrarem vivo.
O trilho que saia do local de desembarque passava pelo meio de campos de erva alta, misturada com arbustos, e era muito mais fácil de seguir.
O problema era que estava tão pisado que ela não podia ter a certeza de
ter sido o caminho tornado pelas pessoas que ela estava a seguir. O Lobo ia à frente e Ayla sentia-se mais que grata por isso. Pouco tinham andado
pelo trilho quando ele estacou, franzindo o focinho e mostrando os den
teu num rosnido.
-- Lobo, que d? Vem aí alguém? -- disse Ayla, ao mesmo tempo que conduzia a Whinney para fora do trilho e se dirigia para uns arbustos espessos, fazendo sinal ao Lobo para a seguir. Deslizou de cima do dorso da égua assim que estavam escondidos pelo ramos altos e nus e pela erva, agarrou a corda do Corredor para o conduzir para junto da égua, pois era ele que transportava a mochila, e escondeu-se entre os cavalos. Assentou um joelho no chão e pôs o braço à volta do pescoço do Lobo para o manter calado e depois esperou.
A sua avaliação não tinha sido errada. Não tardou que duas jovens mulheres passassem a correr, obviamente dirigindo-se para o ño. Ayla fez sinal ao LObo para ficar all e, utilizando o andar furtivo que aprendera quando perseguia carnívoros quando era garota, seguiu-as, rastejando junto da erva e depois escondendo-se atrás de uns arbustos para as obser- VaT.
PL4N]CIES DE PASSAGEM
As duas mulheres conversaram uma com a outra enquanto tiravam a
jangada e, embora a sua língua não lhe fosse familiar, Ayla reparou que
tinha semelhanças com a língua Mamutoi. Não conseguia compreendê-las, mas achou que percebera o significado de uma ou duas palavras.
As mulheres empurraram a plataforma de troncos quase atd dentro de água e depois tiraram dois paus compridos que estavam por baixo. Amarraram uma extremidade de um grande rolo de corda em volta de uma árvore e subiram para a jangada. Enquanto uma começava a empurrar a jangada pelo rio, a outra ia dando folga à corda. Quando já estavam perto da outra margem, onde a corrente não era tão rápida, começaram aim pelir a jangada rio acima até chegarem ao local de atracagem. Com a corda amarrada à jangada, prenderam-na aos pontes cravados junto à margem e saltaram para os troncos presos à margem. Deixando a jangada, começaram a correr pelo caminho por onde Ayla tinha vindo.
Ayla voltou para junto dos animais, apensar no que devia fazer. Tinha a certeza de que as mulheres regressariam em breve, mas "em breve" podia ser naquele dia, ou no dia seguinte ou ainda no outro. Queria encontrar Jondalar o mais depressa possível, mas não queria continuar a seguir o rasto e que elas acabassem por a apanhar. Também tinha relutância em abordá-las directamente atd saber mais a seu respeito. Finalmente decidiu procurar um sítio onde as esperar e de onde pudesse obser vá-las a aproxìmarem-se sem ser vista.
Estava satisfeita por a sua espera não ter sido muito longa. k tarde, viu as duas mulheres regressarem, juntamente com várias outran pessoas, rodas elas transportando padiolas com carne esquartejada e bocados de cavalo. Deslocavam-se surpreendentemente depressa apesar da carga. Quando se aproximaram mais, Ayla apercebeu-se de que não havia um único homem no grupo de caçadoras. Todas as caçadoras eram mulheres! Observou-as enquanto carregavam a carne para cima da jangada e a impeliram pelo rio utilizando um pau. Esconderam a jangada depois de a descarregar, mas deixaram a corda atravessada de um lado ao outro do rio, o que a intrigou.
Ao começarem a subir pelo trilho, Ayla ficou surpreendida com a rapidez com que se deslocavam. Quase sem dar por isso, tinham desapareci do. Esperou algum tempo antes de as seguir, mantendo-se a uma boa distância.
Jondalar ficou horrorizado com as condições dentro da paliçada. O
único abrigo era uma espécie de alpendre, que pouca protecção oferecia
da chuva ou da neve, e a própria paliçada, que travava o vento. Não ha
via fogueiras nem comida e a água era escassa. As únicas pessoas dentro
do Cercado eram machos, que mostravam bem os efeitos das más condi
ções. Quando saíram do abrigo para o olharem, ele viu que estavam ma
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JEAN AUEL
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gros, sujos e mal vestidos. Nenhum deles tinha roupa suficiente para o
tempo que fazia e provavelmente tinham de se aconchegar todos uns aos
outros no abrigo numa tentativa de se aquecer.
Ele reconheceu um ou dois do regresso do funeral e pensou por que é que os homens e os rapazes viviam num sítio daqueles. Subitamente, várias coisas intrigantes fizeram sentido: a atitude das mulheres que em punhavam as lanças, os estranhos comentários de Ardemun, o comportamento dos homens no funeral, a reticência de S'Armuna, a tardia observação das suas feridas e o tratamento rude a que tinha sido sujeito. Talvez não fosse o resultado de um mal-entendido que podia ser esclarecido assim que convencesse Attaroa de que não estava a mentir.
A conclusão a que era forçado a chegar parecia-lhe grotesca, mas a percepção plena da realidade atingiu-o com uma força tal que estilhaçou
a sua incredulidade. Era tão óbvia que ele pensou por que é que teria levado
tanto tempo a perceber. Os homens eram mantidos all contra a sua
vontade pelas mulheres!
Mas porquê? Era um enorme desperdício manter pessoas inactivas daquela maneira quando todos podiam estar a contribuir para o bem-estar e benefício de toda a comunidade. Pensou no próspero Acampamento do Leão dos Mamutoi, com Talut e Tulie a organizarem as actividades necessárias do Acampamento em benefício de todos. Todos contrÌbuíam e continuavam a ter tempo para trabalhar nos seus projectos individuais.
Attaroa! Até que ponto aquilo seria responsabilidade dela? Ela era obviamente a mulher chefe ou a dirigente daquele Acampamento. Se não fosse inteiramente responsável, pelo menos parecia determinada a manter aquela estranha situação.
Aqueles homens deviam andar à caça ou a apanhar alimentos, pensou Jondalar, e a cavar valas para guardar alimentos, a fazer novos abrigos e a reparar os velhos; deviam estar a contribuir, não all todos em molho a tentar aquecer-se. Não era de admirar que aquelas pessoas andassem a caçar cavalos numa altura tão adiantada da estação. Teriam comida suficiente armazenada que desse para o Inverno todo? E por que é que caçavam tão longe dali, quando tinham perfeitas oportunidades de caça tão perto?
-- To és aquele a quem chamam o homem Zelandonii-disse um dos homens, falando Mamutoi. Jondalar achou que o reconhecia como sendo um daqueles cujas mãos tinham sido amarradas quando tinham ido ao funeral.
-- Sim. Sou Jondalar dos Zelandonii.
-- Eu sou Ebulan dos S'Armunai-disse ele, acrescentando sarcasticamente. -- Em nome de Muna, a Mãe de Todos, deixa-me dar-te as boas-vindas ao Cercado, como Attaroa gosta de chamar a este lugar. Temos outros nomes: Acampamento dos Homens, Submundo Gelado da Mãe e Armadilha de Homens de Attaroa. Escolhe.
-- Não compreendo. Por que é que estão.., todos aqui? m perguntou Jondalar.
mÉ uma história muito longa, mas essencialmente fomos todos enganados,
de uma forma ou de outra m disse Ebulan. Depois, com um trejei
to irónico, continuou: m Até fomos enganados para construÌr este local. Ou a maior parte.
m Por que é que não trepam pela cerca e saem? m perguntou Jondalar.
rePara sermos atravessados por uma lança de Epadoa e das suas mulheres
com lanças? m disse um outro homem.
m O Olamun term razão. Além disso, não tenho a certeza de quantos
de nós é que ainda aguentariam o esforço m acrescentou Ebulan. mAt taroa gosta de nos manter fracos.., ou pior.
m Pior? -- disse Jondalar, franzindo a testa.
m Mostra-lhe S'Amodun m disse Ebulan a um homem alto e cadavericamente magro com um rosto forte e sulcado de rugas, com um nariz
adunco como o bico de um pássaro e sobrancelhas grossas que acentuavaro
o seu rosto emaciado, mas eram os seus olhos que atraíam a atenção.
Eram penetrantes, tão escuros como os de Attaroa mas, em vez de
malícia, continham a profundidade de uma sabedoria antiga, mistdrio e
compaixão. Jondalar não estava bem certo do que havia nele, um certo
porte ou forma de estar, mas sentiu que aquele era um homem que suscitava
enorme respeito, mesmo naquelas condições miseráveis.
O homem mais velho assentiu e conduziu-o para o abrigo. Ao aproximarem-se, Jondalar viu que ainda havia gente lá dentro. Ao baixar-se para passar sob o telhado inclinado, foi atingido por um cheiro avassalador. Deitado numa prancha que podia ter sido arrancada do telhado, esta va um homem coberto com apenas um pedaço rasgado de pele. O velho puxou-a para trás e deixou à mostra uma ferida em putrefacção de um dos lados do seu corpo.
Jondalar ficou horrorizado.
m Por que é que este homem está aqui?
m Foram as mulheres das lanças de Epadoa que fizeram isto m disse
Ebulan.
m A S'Armuna term conhecimento disto? Ela podia fazer qualquer
coisa por ele.
m A S'Armuna! Hah! Que é que te leva apensar que faria alguma coisa? m disse Olamun, que estava entre oshomens que os tinham segui do. m Quem é que achas que ajudou Attaroa desde sempre?
m Mas ela limpou a ferida da minha cabeça m disse Jondalar.
-- Então Attaroa deve ter planos para ti m disse Ebulan. m Planos para mim? Que é que queres dizer com isso?
m Ela gosta de ter homens que sejam novos e que tenham forças para trabalhar, desde que os consiga controlar m disse Olamun.
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n E se alguém não quiser fazer o trabalho dela? n perguntou Jondalar.
m Como é que ela o controla?
m Privando-o de água e de comida. Se isso não resultar, ameaçando
os seus parentes m disse Ebulan.-Se souberes que o homem do teu lar ou o teu irmão serão postos na jaula sem comida e sem água, fazes o que ela quer.
m Na jaula?
--No sítio onde te meteram-disse Ebulan. Depois sorriu de esguelha. -- Onde é que arranjaste essa magnífica capa? -- Outros homens também estavam a sorrir.
Jondalar olhou para a pele rasgada que tinha arrancado da estrutura dentro da habitação e na qual se tinha embrulhado.
Essa foi boa! m disse Olamun. O Ardemun contou-nos como também quase deitaste abaixo a jaula. Não creio que ela estivesse à espera disso.
--Próxima vez, faz jaula mais forte-disse outro homem. Era evidente que não estava absolutamente familiarizado com a língua. Ebulan e Olamun falaram-na tão fluentemente que Jondalar já se esquecera de que o Mamutoi não era a língua mãe daquela gente. Mas aparentemente outros sabiam alguma coisa e a maioria parecia compreender o que estava a ser dito.
O homem que estava no chão gemeu e o velho ajoelhou-se para o confortar. Jondalar reparou em algumas figuras que se estavam a mexer ao fundo do abrigo.
-- Não importa. Se ela não tiver a jaula, ameaçará fazer mal aos nossos parentes para nos obrigar a fazer o que ela quer. Se uma pessoa se aca salou antes de ela ser mulher-chefe e teve a pouca sorte de ter um filho nascido do seu lar, ela consegue obrigá-la a fazer qualquer coisa-disse Ebulan.
Jondalar não gostou da implicação e a sua expressão tornou-se mais carrancuda.
Por que é que é pouca sorte ter um filho nascido do vosso lar?
Ebulan olhou de relance para o velho.
m S'Amodun?
-- Vou-lhe perguntar se quer conhecer o homem Zelandonii-disse
ele.
Fo a primeira vez que S Amodun falou e Jondalar pensou como é que
uma voz tão profunda e rica podia emanar de um homem tão magro. Ele
dirigiu-se para o fundo do abrigo, baixando-se para falar com as figuras
que estavam encolhidas no espaço onde o telhado chegava ao chão.
Podiam ouvir o tom profundo da sua voz, mas não as suas palavras, e depois
o som de vozes mais jovens. Com a ajuda do velho, uma das figuras
mais jovens levantou-se e coxeou em direcção a eles.
Este é Ardoban anunciou o velho.
-- Sou Jondalar da Nona Caverna dos Zelandonii e em nome de Doni, a Grande Terra Mãe, saúdo-te, Ardoban-disse ele com grande for realismo, estendendo ambas as mãos ao jovem, de alguma forma sentin do que o rapaz precisava de ser tratado com dignidade.
O rapaz tentou endireitar-se e segurar-lhe nas mãos, mas Jondalar viu-o fazer um trejeito de dor. Ia a estender as mãos para o ajudar, mas controlou o seu impulso.
m Na verdade pretíro que me chamem Jondalar disse com um sorriso, tentando atenuar o momento difícil.
-- Chamo-me Doban. Não como Ardoban. Attaroa diz sempre Ardo
ban. Ela quer que eu diga S'Attaroa. Mas não direi mais.
Jondalar ficou intrigado
É diñcil de traduzir. E uma forma de respeito disse Ebulan.-
Significa que uma pessoa é tida na mais alta estima.
E o Doban já não respeita Attaroa.
--Doban odeia Attaroa!-- exclamou o jovem, com a voz denotando estar à beira das lágrimas, enquanto tentava virar-se e afastar-se a coxear. S'Amodun acenou-lhes para que se fossem embora enquanto ajudava o rapaz.
-- Que é que lhe aconteceu? -- perguntou Jondalar depois de se afastarem um pouco do abrigo.
-- A perna foi-lhe puxada até se deslocar da anca m disse Ebulan. n Foi Attaroa, ou antes, mandou Epadoa fazê-lo.
-- O quê! exclamou Jondalar, abrindo muito os olhos de incredulidade. -- Está a dizer que ela deslocou propositadamente a perna desta criança? Que raio de abominação é esta mulher?
-- Fez o mesmo a outro rapaz e ao mais novo do Odevan.
Que justificação possível é que ela pode dar a si própria para fazer tais coisas?
-- Com o mais novo, foi para servir de exemplo. A mãe do rapaz não gostava cta forma como Attaroa nos tratava e queria o companheiro de volta ao seu lar. Avanoa até conseguia entrar aqui algumas vezes e passar a noite com ele e costumava trazer-nos mais comida às escondidas. Ela não é a única mulher que por vezes faz isso, mas estava a agitar as outras mulheres e Armodan, o homem dela, estava a... resistir a Attaroa, recusando-se a trabalhar. Ela vingou-se no rapaz. Disse que aos sete anos tinha idade suficiente para sair de ao pé da mãe e viver com os homens, mas primeiro deslocou-lhe a perna.
m Aquele rapaz term sete anos? -- disse Jondalar, abanando a cabeça e estremecendo de horror. Nunca ouvi nada de tão terrível.
Odevan sofre, pois sente a falta da mãe, mas a história de Ardoban é pior.-Foi S'Amodum quem falou. Tinha saído do abrigo e acabado de se jun .tar ao grupo.
-- E difícil imaginar coisa pior-disse Jondalar.
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n Creio que ele sofre mais com a dor da traição que com a dor física
n disse S'Amodun. m Ardoban pensava que Attaroa era sua mãe. A sua
própria mãe morreu quando ele era pequeno e Attaroa recolheu-o, mas
tratava-o mais como um brinquedo que como uma criança. Gostava de o
vestir com roupa de rapariga e enfeitá-lo com coisas idiotas., mas alimen
tava-o bem e dava-lhe frequentemente coisas especiais. As vezes atdo
acarinhava, levava-o para a cama dela para dormir com ela quando esta
va bem-disposta. Mas quando se fartava dele, empurrava-o e obrigava-o
a dormir no chão. Há alguns anos, Attaroa começou apensar que as pessoas
estavam a tentar envenená-la.
m Dizem que foi isso que ela fez ao seu companheiro-exclamou Ola mun.
-- Obrigava Ardoban aprovar tudo antes de ela corner n continuou
o velho n, e quando ele já era mais velho, por vezes amarrava-o, conven
cida de que ele ia fugir. Mas foi a única mãe que ele conheceu. Amava-a e tentava agradar-lhe. Tratava os outros ra.pazes como ela tratava os
homens e começou a dar ordens aos homens. E claro que ela o encorajava.
-- Era insuportável-acrescentou Ebulan.-Parecia que o Acampa
mento inteiro lhe pertencia e fazia a vida negra aos outros rapazes.-Mas que é que aconteceu? perguntou Jondalar.
Ele chegou à idade adulta-disse S'Amodun. Depois, ao ver a expressão intrigada de Jondalar, explicou, m A Mãe foi ter com ele durante o sono sob a forma de uma jovem mulher e deu vida à sua virilidade.
É claro. Isso acontece a todos os jovens disse Jondalar.
Attaroa descobriu m explicou S'Amodun m, e foi como se ele se tivesse transformado em homem propositadamente só para lhe desagra dar. Ficou furibunda! Gritou com ele e chamou-lhe nomes horríveis, expulsando-o para o Acampamento dos Homens, mas só depois de ter mandado deslocar a sua perna.
Com Odevan foi mais fácil-disse Ebulan. m Era mais novo. Nem sequer estou certo de que tivessem tido a intenção de lhe rasgar o ligamento. Creio que só queriam fazer que a mãe e o seu companheiro sofres sem a ouvir os seus gritos, mas depois de isso ter acontecido, creio que Attaroa achou que seria uma boa forma de incapacitar um homem e de o tornar mais fácil de controlar.
Tinha Ardemun como exemplo-disse Olamun.
Também lhe deslocou a perna? perguntou Jondalar.
-- De certa forma disse S'Amodun.-Foi um acidente, mas aconteceu quando ele estava a tentar fugir. Attaroa não permitiu que a S'Ar muna o ajudasse, embora creia que ela o queria fazer.
m Mas era mais difícil incapacitar um rapaz de doze anos. Ele lutou e gritou, mas não serviu de nada-disse Ebulan. E digo-te que depois de escutar a agonia em que esteve, ninguém aqui conseguiu continuar zangado com ele. Pagou mais que a conta pelo seu comportamento infantil.
mÉ verdade que ela disse às mulheres que todas as crianças, incluindo as que já estão para nascer, terão a perna deslocada se forem rapazes? -- perguntou Olamun.
-- Foi o que o Ardemun disse-confirmou Ebulan.
nSerá que ela pensa que pode dizer à Mãe o que fazer? Forçá-la a só
fazer bebés raparigas? -- perguntou Jondalar. m Acho que está a tentar a sua sorte.
Talvez disse Ebulan , mas receio que só a Própria Mãe a poderá deter.
Acho que o Zelandonii pode ter razão-disse S'Amodun. m Creio que a Mãe já a tentou avisar. Repara como nasceram poucas crianças nos últimos anos. Esta última afronta dela, de aleijar crianças, poderá ser demais para que Ela o suporte. É suposte as crianças serem protegidas, não aleijadas.
n Sei que a Ayla não toleraria isto. Não toleraria nada disto disse
Jondalar. Depois, lembrando-se, franziu a testa e baixou a cabeça. Mas nem sequer sei se está viva.
Os homens olharam uns para os outros, hesitando em falar, embora todos eles quisessem fazer a mesma pergunta. Por fim, Ebulan conseguiu falar.
nEssa é a mulher que to afirmas que consegue andar no dorso dos cavalos? Deve ser uma mulher com grandes poderes para conseguir contro lar os cavalos para fazer uma coisa dessas.
mEla diria que não. Jondalar sorriu. Mas creio que ela term mais "poder" do que admite ter. Não monta todos os cavalos. Só monta a égua que criou, embora também já tenha montado o meu cavalo. Mas ele é um pouco mais difícil de controlar. Foi esse o problema quando...
m To também consegues montar cavalos? disse Olamun num tom de incredulidade.
Consigo montar um... born, também consigo montar o dela, mas...
--Estás a dizer que a histSria que contaste a Attaroa é verdade? disse Ebulan.
É claro que é verdade. Quem é que inventaria uma coisa dessas?
Olhou para os rostos cépticos, m Talvez seja melhor eu começar do princípio.
A Ayla criou uma potrazinha...
Onde é que ela arranjou a potrazinha? -- perguntou Olamun.
Andava à caça e matou a mãe e depois viu a cria.
Mas por que é que a criou? perguntou Ebulan.
u Porque estava sozinha e ela estava sozinha.., e isso é uma histdria
muito comprida-disse Jondalar, desviando o assunto m, mas queria
companhia e decidiu recolher a potra. Quando a Whinney cresceu... Ayla
deu o nome de Whinney ao cavalo.., deu à luz um potro, mais ou menos
Nbula 44 -- 7
JEAN AUEL
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na altura em que nos conhecemos. Ensinou-me a mon .tar e deu-me o
potro para eu o treinar. Dei-lhe o nome de Corredor. E uma palavra
Zelandonii que significa aquele que anda depressa e ele gosta de correr.
Viajámos desde o Encontro de Verão dos Mamutei, passando pela extremidade
sul daquelas montanhas até ao este, montado,s nesses cavalos.
Na verdade não term nada a ver com poderes especiais. E uma questão de
os criar desde que nascem, exactamente ¿omo uma mãe cuida de um bebé.
-- Born... se to o dizes-disse Ebulan.
-- Digo porque é verdade-contrapôs Jondalar, decidindo depois que era inútil continuar com aquele assunto. Teriam de ver para acreditar e era improvável que alguma vez isso acontecesse. Ayla desaparecera, assim como os cavalos.
Nesse momento o portão abriu-se e todos se viraram para ver. Epa doa entrou primeiro com algumas das suas mulheres. Agora que já sabia mais sobre ela, Jondalar estudou a mulher que causara tanto sofrimento a duas crianças. Já não sabia bem quem era maior abominação, se aquela que concebera a ideia ou a que a tinha posto em prática. Embora não tivesse qualquer dúvida de que Attaroa teria ela própria feito aquilo, era evidente que se passava qualquer coisa de errado com ela. Náo estavainteira. Algum espírito negro devia ter-lhe tocado e roubado uma parte vital do seu ser-mas, e a Epadoa? Parecia inteira e saudável, mas como é que podia estar assim e ser tão cruel e insensível? Faltarlhe-ia também alguma parte essencial?
Para surpresa de todos, a própria Attaroa entrou a seguir.
m Ela nunca cá vem m disse Olamun.-Que é que quererá? -- O comportamento invulgar dela assustavao.
Ao seu lado vinham várias mulheres com bandejas fumegantes de carne cozinhada,juntamente com cestos com uma sopa substancial e com um cheiro delicioso. "Carne de cavalo! Os caçadores já regressaram", pensou Jondalar. Já não coreia carne de cavalo há muito tempo, a ideia normalmente não lhe agradava, mas naquele momento tinha um cheiro delicioso. Um grande saco de água e algumas malgas foram também trazidas.
Os homens observaram avidamente o cortejo que chegava, mas nenhum deles mexeu nada a não ser os olhos, receando fazer qualquer coisa que pudesse levar Attaroa a mudar de ideias. Receavam que aquele pudesse ser mais um truque cruel, levar para lá tudo aquilo e depois le vá-lo de volta.
-- Zelandonii! -- disse Attaroa, proferindo a palavra como uma ordem. Jondalar olhou-a atentamente enquanto se aproximava. Ela parecia quase masculina.., não, decidiu, não era exactamente isso. As suas feições eram fortes e afiladas, mas bem definidas e bem formadas. Era mesmo bela, à sua maneira, ou poderia ter sido se não fosse tão dura. Mas via-se crueldade nojeite da sua boca e a ausência de alma via-se nos seus olhos.
S'Armuna apareceu ao seu lado. Devia ter entrado com as outras mulheres, pensou ele, embora não tivesse dado por ela antes.
-- Agora falo por Attaroa-disse S'Armuna em Zelandonii.
-- To própña tens muito a que responder-disse Jondalar.-Como
é que permites isto? Attaroa não term siso, mas to tens. Considero-te res
ponsável.-Os seus olhos azuis estavam gelados de indignação.
Attaroa falou num tom irado à shaman.
-- Ela não quer que fales comigo. Estou aqui para traduzir para ela.
Attaroa quer que olhes para ela quando falas-disse S'Armuna.
Jondalar olhou para a mulher-chefe e esperou enquanto ela falava.
Depois S'Armuna começou a traduzir.
-- Attaroa está agora a falar: Gostas das tuas novas.., instalações?
-- Como é que podes esperar que goste? disse Jondalar a S'Armu na, que evitou o seu olhar e se dirigiu a Attaroa.
Um sorriso malicioso desenhou-se no rosto da mulherchefe.
-- Esteu certa de que já ouviste muitas coisas a meu respeite, mas não deves acreditar em tudo o que ouves.
-- Acredite no que vejo-disse Jondalar.
-- Born, viste-me trazer comida para cá.
-- Não vejo ninguém a comê-la e sei que têm fome.
O sorriso dela alargou-se quando ouviu a tradução.
-- Irão corner e to também tens de corner. Precisas de ter força. taroa riu alto.
-- Estou certo disso-disse Jondalar.
Depois de S'Armuna traduzir, Attaroa foi-se embora abruptamente, fazendo sinal à mulher para a seguir.
-- Considero-te responsável-disse Jondalar a S'Armuna, que já se estava a afastar.
Assim que o portão se fechou, uma das mulheres de guarda disse:
-- Mais vale virem cá buscar isto antes que ela mude de ideias.
Os homens correram para as bandejas de comida que estavam no chão. Quando S'Amodun passou por Jondalar, parou.
-- Term, muito cuidado, Zelandonii. Ela term qualquer ideia especial em relação a ti.
Os dias que se seguiram passaram lentamente para Jondalar. Foi
levada alguma água para o Cercado, mas pouca comida, e ninguém foi
autorizado a sair, nem sequer para trabalhar, o que era extremamente
invulgar. Isso fez que os homens ficassem inquietes, sobretudo por Ardemun
também ficar dentro do Cercado. O conhecimento que tinha de
várias línguas tornara Ardemun o primeiro tradutor e depois porta-voz
entre Attaroa e os homens. Devido à sua perna deslocada, era manco e ela
sentia que ele não constituía qualquer ameaça e, além disso, não conse
JEAN A UEL
guiria fugir. Era-lhe dada mais liberdade para se movimentar no Acampamento
e muitas vezes regressava com informações sobre a vida fora do
Acampamento dos Homens e, ocasionalmente, com comida extra.
Amaior parte dos homens passava o tempo a jogar e a apostar em futuras promessas, utilizando pequenos galhos, pedrinhas e atd pedaços partidos de ossos da carne que lhes tinha sido dada. O osso da perna da carne de cavalo tinha sido posto de lado, depois de limpo e partido, para tirar o tutano, para uma possível utilização.
Jondalar passou o pñmeiro dia do seu cativeiro a examiná-lo em pormenor e a testar a resistência de toda a cerca em volta. Descobriu vários sítios que achava que podium ser abertos ou por onde se poderia saltar, mas através das fendas viu Epadoa e as suas mulheres diligentemente de guarda e a terrível infecção do homem que fora ferido impediu-o de uma abordagem directa. Também olhou por cima do abrigo, pensando em várias coisas que podiam ser feitas para o reparar e torná-lo mais à prova de água... se tivesse instrumentos e materiais.
Por mútuo consentimento, uma das extremidades do espaço fechado, por detrás de um monte de pedras-a única outra característica além do abrigo no espaço árido a que estavam limitados --, tinha sido destinado a urinarem e a eliminarem os seus excrementos. No segundo dia, Jondalar teve nauseante consciência do cheiro que invadiu todo o cercado. Era pior junto do abrigo, onde a ele se juntava o mau cheiro da carne em putrefacção da horrível infecção, mas à noite não tinha outra alternativa. Juntou-se aos outros para se aquecer, compartilhando a sua capa improvisada com aqueles que ainda tinham menos com que se cobrir.
Nos dias que se seguiram, a sua sensibilidade ao cheiro diminuiu e mal deu porque tinha fome, embora parecesse sentir mais o frio e ocasionalmente sentia-se tonto e de cabeça vazia. E gostaria de ter casca de salgueiro para as dores de cabeça.
As circunstâncias começaram a alterar-se quando o homem com a ferida finalmente morreu. Ardemun foi ao portão e pediu para falar com
Attaroa ou Epadoa, para que o corpo fosse retirado e enterrado. Víños
homens foram autorizados a sair para esse fim e mais tarde disseram-lhes
que todos aqueles que pudessem assistiriam aos ñtos funerários.
Jondalar quase se envergonhou da excitação que sentiu ao pensar que ia
sair do Cercado, dado que a razão pela libertação temporária era uma
morte.
Lá fora, as longas sombras do fim da tarde estenderam-se sobre a terra, acentuando aspectos do vale distante e do rio lá em baixo, e Jondalar sentiu uma sensação de beleza e grandiosidade da paisagem aberta que era quase insuportável. A sua contemplação foi interrompida por uma picada no braço. Olhou irritado para Epadoa e três das suas mulheres que o cercavam com lanças em riste e foi-lhe necessária uma grande dose de autodomínio para não as afastar do seu caminho com um empurrão.
PLAN]CIES DE PASSAGEM
-- Ela quer que ponhas as mãos atrás das costas para as poderem
amarrar D disse Ardemun. D Não podes ir se as tuas mãos não estiverem
amarradas.
Jondalar ficou com uma expressão zangada, mas obedeceu. Ao seguir Ardemun, pensou na sua situação. Nem sequer subiu bem onde estava, nem há quanto tempo lá estava, mas a ideia de passar mais tempo fechado naquele Cercado, sem ver mais nada a não ser a paliçada, era mais do que ele conseguiu suportar. De uma forma ou de outra, sairia dali, e muito em breve. Se não o fizesse, podia prever uma altura em que já não con seguiria. Alguns dias sem comida não eram problema, mas se isso continuasse durante muito tempo, acabaria por ser. Além disso, se houvesse alguma possibilidade de Ayla ainda estar viva, talvez ferida, mas viva, ele tinha de a encontrar rapidamente. Ainda não subiu como é que ia fazer, só subiu que não ia ficar all muito mais tempo.
Caminharam ao longo de certa distância, atravessando um ribeiro e
molhando-se durante a travessia. O funeral não demorou muito e Jondalar
pensou por que é que Attaroa se tinha dado ao trabalho de fazer
uma cerimónia funerária quando não se tinha preocupado minimamente
com o homem quando estava vivo. Se tivesse, talvez ele não tivesse
morrido. Jondalar não conhecera o homem, nem sequer subiu o seu nome, apenas o tinha visto a sofrer um sofrimento desnecessário. Agora
estava morto e caminhava no outro mundo, mas livre de Attaroa. Talvez
isso fosse melhor que passar anos a olhar para o interior de uma paliçada.
Apesar de a cerimdnia ter sido curta, os pés de Jondalar estavam fños por estar all de pé com as protecções de pés molhadas. No caminho de regresso, prestou mais atenção ao pequeno ribeiro, tentando encontrar pedras ou um caminho que lhe permitisse ficar com os pés secos. Mas, quando olhou para baixo, deixou de se ralar. Quase como se all estives sem de propdsito, viu duas pedras uma ao lado da outra à beira do ribeiro. Uma era um pequeno nódulo de pedreneira mas que dava para trabalhar; a outra era uma pedra arredondada que lhe parecia caber na mão a forma perfeita para uma pedra de martelar.
--Ardemun disse ao homem que ia atrás dele, falando depois em
Zelandonii. Estás a ver a.quelas pedras? -- disse, indicando-as com o
pé. Podes apanhá-las? E muito importante.
Aquilo é pedreneira?
-- Sim, e eu sou talhador de pedreneira.
Subitamente, Ardemun pareceu tropeçar e caiu pesadamente. O homem aleijado teve dificuldade em se levantar e uma mulher empunhando uma lança aproximou-se. Dirigiu-se asperamente a um dos homens que lhe estendeu a mão para o ajudar. Epadoa voltou para trás para ver o que estava a atrasar os homens. Ardemun pôs-se de pé instantes antes de ela lá chegar e sorriu apologeticamente enquanto ela o invectivava.
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
Quando chegaram, Ardemun e Jondalar foram para o fundo do Cer
cado, junto do monte de pedras, para urinarem. Quando voltaram para
o abrigo, Ardemun disse aos homens que os caçadores tinham regressa
do com mais carne da matança dos cavalos, mas que tinha acontecido
qualquer coisa durante o regresso do último grupo. Não sabia o que era,
mas causara alguma perturbação nas mulheres. Todas elas comenta
yam, mas ele não conseguira ouvir nada de específico.
Nessa noite, foi de novo levada comida e água aos homens, mas nem sequer as mulheres que as levaram foram autorizadas a ficar para cortar a carne. Tinha sido dividida em grande pedaços e deixada all para os homens em cima de uns troncos, sem mais conversa. Os homens comentaram o facto enquanto comiam.
m Passa-se qualquer coisa de estranho m disse Ebulan, falando em
Mamutoi para Jondalar poder entender.-Creio que as mulheres receberam ordens para não falarem connosco.
-- Isso não faz sentido disse Olamun.-Mesmo que soubéssemos alguma coisa, que é que podíamos fazer?
m Tens razão, Olamun. Não faz sentido, mas concordo com o Ebulan. -- Creio que foi dito às mulheres para não falarem connosco-disse S'Amodun.
--Então talvez seja a altura certa- disse Jondalar. m Se as mulhe
res de Epadoa estão entretidas a falar, talvez não dêem por nada.
Não dêem por quê? -- perguntou Olamun.
-- O Ardemun conseguiu apanhar um pedaço de pedreneira...
-- Então foi isso que se passou-disse Ebulan. m Não vi nada que o tivesse feito tropeçar e cair.
-- Mas de que serve um pedaço de pedreneira? disse Olamun.-
Precisas de utensflios para a transformares em qualquer coisa. Eu cos
tumava observar o artífice que trabalhava a pedreneira, antes de ele
morrer.
-- Sim, ma.s também apanhou uma pedra de martelar e há alguns ossos por aqui. E suficiente para fazer algumas lâminas e dar-lhes a forma de facas e pontas e de alguns outros utensflios... é um born bocado de pedreneira.
m Trabalhas a pedreneira? -- perguntou Olamun.
-- Sim, mas you precisar de ajuda. E necessário haver algum barulho para abafar o ruído das pedras a bater-disse Jondalar.
--Mas mesmo que ele consiga fazer algumas facas, que é que isso nos adianta? As mulheres têm lanças m disse Olamun.
Primeiro, servem para cortar a corda quando alguém term as mãos amarradas-disse Ebulan.-Tenho a certeza de que conseguiremos inventar uma competição ou um jogo para abafar o barulho. Mas já quase não há luz.
Deve ser suficiente. Não levarei muito tempo a fazer os utensflios
e as pontas. Amanhã poderei trabalhar dentro do abrigo, onde não me poderão
ver. You precisar daquele osso da perna e dos troncos e talvez de
um pedaço de madeira do abrigo. Ajudaria se tivesse alguns tendões, mas
umas tiras tinas de couro devem servir. E, Ardemun, se encontrares al
gumas penas quando estiveres fora do Cercado, ser-me-ão úteis.
Ardemun assentiu e depois disse:
m Vais fazer uma coisa que voa? Como uma lança de arremessar?
-- Sim, you fazer uma coisa que voa. Terei de a desbastar e aparar com
muito cuidado e isso vai levar um certo tempo. Mas creio que consigo fazer
uma arma que vos irá surpreender-disse Jondalar.
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Na manhã seguinte, antes de recomeçar a trabalhar nos utensflios de
pedreneira, Jondalar falou com S'Amodun sobre os dois jovens aleijados.
Tinha pensado nisso na noite anterior e, recordando-se como Darvo se
tinha interessado pelo ofício de trabalhar a pedreneira quando ainda era
muito novo, sentiu que se eles pudessem aprender um ofício, como o de
trabalhar a pedreneira, poderiam levar uma vida independente e útil
muito embora fossem aleijados.
m Com Attaroa como mulher-chefe, achas realmente que alguma vez irão ter essa oportunidade? -- perguntou S'Amodun.
--Ela dá bastante mais liberdade ao Ardemun; talvez também venha a achar que os dois rapazes não constituem uma ameaça e os deixe sair do Cercado com mais frequência. Até a Attaroa talvez possa ser persuadida a ver a lógica de ter dois artífices no acampamento. As armas das suas caçadoras são rudimentares-disse Jondalar.-E, quem sabe? Talvez já não seja chefe durante muito mais tempo.
S'Amodun olhou para o estranho louro com uma expressão de especulação. --Será que to sabes alguma coisa que eu não sei?--disse. De qualquer forma, encorajá-los-ei a virem observarte.
Jondalar tinha trabalhado fora do abrigo na tarde anterior, para que
as lascas atiadas que se soltaram enquanto partia a pedreneira não se espalhassem
pelo seu único abrigo. Tinha escolhido um sítio um pouco atrás
do monte de pedras ao pé do ]oca] onde urinavam. Devido ao cheiro, era
um sítio que as guardas tinham tendência a evitar e era aquele que era
menos vigiado.
Os pedaços em forma de lâmina que ele tinha rapidamente lascado do núcleo de pedreneira tinham pelo menos quatro vezes mais de comprimento que de largura, com extremidades arredondadas, e eram a base a partir da qual outros utensílios seriam feitos. As bordas saíam afiadas como lâminas ao serem lascadas do núcleo de pedreneira, suficientemente afiadas para cortar couro duro como se fosse gordura congelada. As lâminas eram na realidade tão afiadas que muitas vezes as bordas tinham de ser tomadas mais tombas para não cortarem quem as utilizava. Na manhã seguinte, no interior do abrigo, a primeira coisa que Jon dalar fez foi escolher um sítio sob uma fenda no telhado para ter luz suficiente para trabalhar. Depois cortou um pedaço de pele da sua capa im provisada e estendeu-o no chão para apanhar os inevitáveis fragmentos de pedreneira. Com os dois rapazes aleijados e vários homens sentados à sua volta, começou a mostrar como com um pedaço de pedra dura oval e alguns pedaços de osso se podiam fazer instrumentos de pedreneira que, por sua vez, podiam ser utilizados para dar forma e fazer coisas de pele, madeira e osso. Embora tivessem que ter o cuidado de não chamar a atenção para a sua actividade, levantando-se de vez em quando e mantendo uma rotina normal, regressando depois e encostando-se uns aos outros para se aquecerem, o que também servia para tapar a visão das guardas, todos eles observaram fascinados.
Jondalar pegou numa lâmina e examinou-a criticamente. Queria
fazer vários tipos de utensflios e estava a tentar decidir qual deles se pres
taria melhor àquele determinado tipo de lâmina. Uma das bordas com
pridas era quase direita e a outra formava uma certa ondulação. Começou
por tornar mais romba a borda irregular, raspando-a várias vezes com a pedra de martelar. Deixou a outra borda como estava. Depois, com
um pedaço comprido e atilado de um osso da perna, lascou por pressão a
extremidade arredondada, partindo cuidadosa e controladamente pequenas
lascas até formar um bico. Se tivesse tendões, ou cola, ou resina ou
qualquer outro de uma série de outros materiais com os quais a prender,
podia ter-lhe acrescentado um cabo mas, quando acabou, mesmo assim
era uma boa faca.
Enquanto o utensflio era passado de mão em mão e experimentado nos pêlos do braço ou em pedaços de couro, Jondalar pegou noutra lâmina. Ambas as bordas formavam uma parte central mais fina. Fazendo cuidadosamente pressão com a extremidade arredondada do osso da perna, partiu não só a borda mais afiada de ambos os lados, o que fez que ficas sem ligeiramente menos cortantes, mas, mais importante, as tornava mais resistentes, para aquele pedaço poder ser usado como raspador para dar forma e alisar um pedaço de madeira ou de osso. Mostrou-lhes como era usado e também este utensílio foi passado de mão em mão.
Com a lâmina seguinte, tornou mais rombas as duas bordas, para a peça ser facilmente manejada. Depois, com duas pancadas cuidadosamente dirigidas numa das suas extremidades, partiu duas lascas, deixando um bico afiado semelhante a um cinzel. Para demonstrar a sua utilização, cortou um sulco num pedaço de osso e depois passou-o várÌas vezes pelo sulco, ternando-o cada vez mais fundo e criando um pequeno monte de aparas encaracoladas. Explicou como uma lança, ou uma ponta, ou um cabo, podiam ser cortados grosseiramente da forma desejada e depois raspados ou alisados até estarem acabados.
A demonstração de Jondalar foi quase uma revelação. Nenhum dos rapazes
ou dos homens mais novos alguma vez tinham visto um artífice de
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pedreneira a trabalhar e alguns dos homens mais velhos nunca tinham
visto nenhum tão hábil. Nos breves momentos de lusco-fusco da noite
anterior, ele tinha conseguido lascar quase trinta lâminas utilizáveis
daquele único nódulo de pedreneira antes de o núcleo ficar demasiado
pequeno para o poder trabalhar. No dia seguinte, a maioria dos homens
tinha já usado um ou mais utensílios que ele fw.era com elas.
Depois tentou explicar como era a arma de caça que lhes queria mostrar. Alguns dos homens pareceram compreendê-lo de imediato, embora questionassem invariavelmente a precisão e velocidade que ele defendia que o lançador de lanças assegurava ao arremessar uma lança. Outros pareciam não conseguir apreender o próprio conceito, mas não impor tava.
O facto de terem instrumentos eficazes nas mãos, e trabalharem em algo de construtivo com eles, deu aos homens uma sensação de finalidade. E fazer qualquer coisa contra Attaroa e as condições em que os forçara a viver dissipou o desespero do Acampamento dos Homens e alimen tou a esperança de que talvez fosse possível, um dia, voltar a assumir o controlo do seu próprio destino.
Durante os dias que se seguiram, Epadoa e as guardas tiveram a percepção de uma diferença de atitude e esta tinha a certeza de que algo se passava. Os homens pareciam caminhar mais animadamente e sorriam demasiado mas, por mais atentamente que os observasse, não conseguia ver nada de diferente. Os homens tinham tido extremo cuidado em esconder não só as facas e os raspadores e cinzéis que Jondalar fizera, e todos os objectos que estavam a fazer, como até os desperdícios dos seus esforços.
Os fragmentos ou as lascas mais íntimas, as aparas encaracoladas de madeira ou osso mais minúsculas, eram enterrados dentro do abrigo e
cobertos com uma tábua do tellhado ou um pedaço de couro.
Mas a maior alteração de todas foi nos dois rapazes aleijados. Jonda lar não só lhes mostrou como os instrumentos eram feitos, como fez alguns especiais para eles e ensinou-lhes a usá-los. Os rapazes deixaram de se esconder nas sombras do abrigo e começaram a conviver com os outros rapazes mais velhos do Cercado. Ambos idolatrizavam o Zelandonii alto, em particular Doban, que já tinha idade suficiente para compreender mais, embora tivesse relutância em demonstrá-lo.
Desde que se lembrava, vivendo com a perturbada e irracional Atta
roa, Ardoban sempre se sentira impotente, completamente à mercê das
circunstâncias que escapavam ao seu controlo. Numa minúscula parte
recôndita do seu ser, estava sempre à espera que lhe acontecesse algo de
terrível e, depois do trauma violentamente doloroso e aterrorizador da
sua experiência, ficou convencido de que a vida apenas pioraria. Muitas
vezes desejava estar morto. Mas ver alguém pegar em duas pedras que
tinha encontrado junto ao rio e com ela, com a perícia das suas mãos e o
conhecimento do seu espírito, vir oferecer a esperança de alterar o seu
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mundo, teve um forte eco nele. Doban tinha medo de pedir w ainda não
conseguia confiar em ninguém m mas, mais que tudo, queria aprender
a fazer utensílios de pedra.
O homem apercebeu-se do seu interesse e lamentou não ter mais pedreneira para o poder começar a ensinar, pelo menos os primeiros rudimentos. Aquelas pessoas iriam a algum tipo de Encontro ou Reunião de Verão, pensou, onde podiam ter trocadas ideias e informações e bens? Tinha de haver alguns artífices de pedreneira na região que pudessem treinar o Doban. O rapaz precisava de aprender um ofício como aquele, em relação ao qual ser coxo não tinha importância.
Depois de Jondalar fazer um lançador de lanças experimental de madeira, para lhes mostrar qual era o seu aspecto e como era feito, alguns dos homens começaram a fazer cópias daquele estranho instrumento. Também fez algumas pontas de lança com algumas das lâminas e corta ta tiras tinas do couro mais resistente que tinham para as prender. Arde mun até encontrou o ninho de uma águia real construído no solo e trouxe algumas penas. A únicacoisa que faltava eram os paus para aslanças.
Tentando fazer uma com o escasso material disponível, Jondalar cortou um pedaço fino e relativamente comprido de uma tAbua com o formão afiado. Utilizou-o para mostrar aos homens mais novos como se prendia a ponta e as penas e demonstrou como se segurava o lançador e a técnica básica da sua utilização, sem arremessar a lança. Mas cortar um pau de lança de uma tábua era uma tarefa árdua e maçadora e a madeira es tava seca e estaladiça, sem tensão, partindo-se facilmente.
Do que ele precisava era de árvores novas e tinas ou de ramos relativamente compridos que pudessem ser endireitados; embora para isso precisasse do calor de uma fogueira. Sentia-se tão frustrado all preso no Cercado. Se ao menos pudesse sair dali e ir à procura de qualquer coisa com que fazer os paus para as lanças! Se ao menos conseguisse convencer Attaroa a deixá-lo sair dali. Quando contou o que sentia a Ebulan, quando se preparavam já para dormir, o homem olhou para ele com uma expressão estranha, indo a dizer qualquer coisa, mas depois abanou a cabeça, fechou os olhos e desviou o rosto. Jondalar achou que tinha sido uma reacção estranha, mas não tardou a esquecê-la e a adormecer enquanto pensava no problema.
Attaroa também tinha estado apensar em Jondalar. Estava a antecipar
a diversão que ele lhe proporcionaria durante o longo Inverno, assumindo
controlo sobre ele e vendo-o obedecer-lhe, mostrando a toda a
gente que ela era mais poderosa que o belo homem alto. Depois, quando
se fartasse, tinha outros planos para ele. Tinha estado apensar se ele já
estaria capaz de sair do Cercado e ser posto a trabalhar. Epadoa tinha
-lhe dito que achava que qualquer coisa se passava dentro do Cercado e
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que o estranho estava envolvido nisso, mas ainda não tinha descoberto o
que era. Talvez fosse altura de o separar dos outros homens durante algum
tempo, pensou Attaroa, talvez de o voltar a meter na jaula. Era uma
boa maneira de os destabilizar a todos.
De manhã, disse às suas mulheres que queria um grupo de trabalho e para incluírem o homem Zelandonii. Jondalar ficou contente só por sair e poder ver mais alguma coisa a não ser terra nua e homens desesperados. Era a primeira vez que fora autorizado a sair do Cercado para trabalhar e não fazia ideia o que é que ela queria que ele fizesse, mas esperava ter oportunidade de procurar algumas árvores tinas e direitas. Arranjar forma de as levar para o Cercado era um outro problema.
Mais tarde nesse mesmo dia, Attaroa saiu da sua habitação, acompanhada
por duas das suas mulheres e S'Armuna e vestindo-exibindo-aparka de pele de Jondalar. Os homens tinham estado a transportar ossos
de mamute que tinham sido levados para lá de um outro lugar e a pô-los onde Attaroa queria. Tinham trabalhado toda a manhã e tarde sem
nada para corner e pouco para beber. Muito embora estivesse fora do Cer
"ado, não tinha conseguido ir à procura de potenciais paus para as lanças
e muito menos pensar numa forma de os cortar e levar de volta. Esta- va a ser observado com demasiada atenção, sem lhe ser dado tempo para
descansar. Não só se sentia frustrado, como estava cansado e com fome,
com sede e irritado.
Jondalar pousou uma das extremidades do osso da perna que ele e Olamun estavam a transportar, endireitou-se e enfrentou as mulheres que se aproximaram. Quando Attaroa chegou perto dele, reparou como era alta, mais alta que muitos homens. Podia ter sido uma mulher muito atraente. Que é que lhe teria acontecido para que odiasse tanto os homens?, pensou. Quando ela se dirigiu a ele, o seu sarcasmo era evidente, embora ele não compreendesse as suas palavras.
-- Então, Zelandonii, estás pronto para nos contares outra hist6ria como a última? Quero divertir-me-traduziu S'Armuna, ao pormenor da entoação sarcástica.
--Não te contei nenhuma história. Contei-te a verdade disse Jondalar.
Que estavas a viajar com uma mulher que monta no dorso de cavalos?
Então onde é que está essa mulher? Se term o poder que dizes ter, por
que é que não veio exigir a tua libertação? -- disse Attaroa, com as mãos
nas ancas e como se estivesse pronta a dar cabo dele.
--Não sei onde ela está. Bem gostava de saber. Receio que tenha caí-do pelo penhasco juntamente com os cavalos que vocês estavam a caçar
-- disse Jondalar.
--Mentes, Zelandonii! As minhas caçadoras não viram nenhuma mulher a cavalo e não foi encontrado o corpo de nenhuma mulher no meio dos cavalos. Creio que já sabes que o castigo por roubar os S'Armunai é a morte e estás a tentar livrar-te dela através de mentiras-disse Attaroa.
Não tinha sido encontrado nenhum corpo? Jondalar ficou exultante quando S'Armuna traduziu, sentindo uma onda de esperança de que Ayla pudesse estar viva.
-- Por que é que sorris quando acabei de te dizer que o castigo para o roubo é a morte? Duvidas que o aplicarei?-- exclamou Attaroa, apontando para ele e depois para si própria para dar mais ênfase à sua pergunta.
-- Morte? -- disse ele, empalidecendo. Uma pessoa podia ser morta
por caçar comida? Tinha ficado tão contente ao pensar que Ayla podia estar
viva que não compreendera realmente o que ela dissera. Quando compreendeu,
a sua ira reacendeu-se.-Os cavalos não foram dados apenas
aos S'Armunai. Estão cá para todos os Filhos da Terra. Como é que caçá-los pode ser roubar? Mesmo que estivesse a caçar os cavalos, teña sido
para obter comida.
-- Ha! Vês, apanhei-te a mentir. Admitiste que estavas a caçar os cavalos.
--Não admiti nada! Disse, "mesmo que estivesse a caçar os cavalos".
Não disse que estava. Olhou para a tradutera. J Diz-lhe, S'Armuna.
Jondalar dos Zelandonii, filho de Mar[hona, antiga chefe da Nona Caverna,
não mente.
J Agora dizes que és filho de uma mulher que era chefe? Este Zelandonii é um refinado mentiroso, cobrindo uma mentira sobre uma mulher milagrosa com outra sobre uma mulherchefe.
-- Conheci muitas mulheres que eram chefes. To não és a única mulherchefe, Attaroa. Muitos chefes dos Mamutoi são mulheres disse Jondalar.
Co-chefes! Compartilham a liderança com um homem.
A minha mãe foi chefe durante dez anos. Tornou-se chefe quando o seu companheiro morreu e não compartilhou a liderança com ninguém. Era respeitada quer pelas mulheres, quer pelos homens, e passou voluntariamente a chefia ao meu irmão Joharran. E as pessoas não queriam.
Respeitada por homens e mulheres? Ouçam o que ele diz! Achas que eu não conheço os homens, Zelandonii? Achas que nunca me acasalei? Serei tão feia que nenhum homem me quisesse?
Attaroa estava quase a gritar com ele e S'Armuna traduzia quase simultaneamente, como se soubesse as palavras que a mulher chefe ia dizer. Jondalar quase se esquecia de que a shaman estava a falar por ela, pois parecia que estava a ouvir e a compreender a própria Attaroa, mas o tom neutro dashaman conferia às palavras um certo distanciamento da mulher que estava a ter um comportamento tão agressivo. Uma expressão amarga e perturbada espelhou-se-lhe nos olhos enquanto continuou a arengar a Jondalar.
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m O meu companheiro era chefe aqui. Era um chefe forte, um homem
forte.-Attaroa fez uma pausa.
m Há multas pessoas fortes. A força não faz um chefe-disse Jondalar.
Na verdade, Attaroa não o ouviu. Não estava a escutá-lo. Apausa que
fez foi para ouvir os seus próprios pensamentos, para reunir as suas pró-prias recordações.
m Brugar era um chefe tão forte que tinha de me bater todos os dias
para o provar.-A mulher teve um sorriso trocista.-Não é pena que os cogumelos que ele comeu fossem venenosos? b O seu sorriso era de malvadez. Venci a sua própria irmã numa luta leal para me tornar chefe. Ele era um fraco. Morreu.-Olhou para Jondalar. b Mas to não és nenhum fraco, Zelandonii. Não gostarias de ter oportunidade de lutar comigo pela tua vida?
u Não tenho nenhum desejo de lutar contigo, Attaroa. Mas defender
-me-ei se for caso disso.
u Não, não lutarás comigo, porque sabes que te ganharia. Sou uma mulher. Tenho o poder de Muna do meu lado. A Mãe honrou as mulheres; são elas que dão vida. Devem ser chefes-disse Attaroa.
Não-disse Jondalar. Algumas das pessoas que os observavam estremeceram ao ouvi-lo discordar tão abertamente de Attaroa.-A liderança não pertence necessariamente a quem é abençoada pela Mãe, como não pertence a quem é fisicamente forte. O chefe dos apanhadores de amoras é aquele que sabe onde há amoras e a melhor forma de as apanhar. -- Jondalar estava a desenvolver a sua própria arenga, mum chefe term de ser digno de confiança; o chefe term de saber o que está a fazer.
A expressão de Attaroa era carrancuda. As palavras dele não tinham tido o menor efeito sobre ela, pois ouvia apenas o que queria, mas não gostou do tom de admoestação da voz dele, como se achasse que tinha o direito de falar tão livremente ou presumisse que lhe podia ensinar qualquer coisa.
m Não importa qual é a tarefa-continuou Jondalar.-O chefe da
caçada é aquele que sabe onde os.animais irão estar e quando lá estarão; é aquele que os consegue seguir. E aquele que é mais hábil a caçar. A Mar thona dizia sempre que os chefes de pessoas se devem preocupar com as pessoas que chefiam. Se não o fizerem, não serão chefes durante muito tempo. Jondalar estava a fazer-lhe uma preleção, a descarregar a sua ira, indiferente à expressão furibunda de Attaroa. m Por que é que havia de importar serem homens ou mulheres?
m Não permitirei nunca mais que os homens sejam chefes-inter
rompeu Attaroa.-Aqui, os homens sabem que as mulheres são os chefes e as crianças são criadas para o compreenderem. Aqui, as mulheres é que são os caçadores. Não precisamos de homens para seguir os animais nem para nos chefiar. Achas que as mulheres não conseguem caçar?
PLAN]CIES DE PASSAGEM
-- É claro que as mulheres conseguem caçar. A minha mãe era caçadora
antes de se tornar chefe e a mulher com quem viajava era um dos melhores
caçadores que alguma vez conheci. Adorava caçar e era muito boa
batedora. Eu conseguia arremessar uma lança mais longe, mas ela tinha
melhor pontaria. Conseguia abater um pássaro do céu ou um coelho a correr
com uma única pedra da sua funda.
-- Mais histórias! m troçou Attaroa.-É fácil fazer afirmações sobre uma mulher que não existe. As minhas mulheres não caçavam; não era permitido que caçassem. Quando Brugar era chefe, nenhuma mulher podia tocar numa arma e não foi fácil para nds quando me tornei chefe. Nenhuma delas sabia caçar, mas eu ensinei-as. Estás a ver aqueles alvos para treino?
Attaroa apontou para uma série de postes resistentes fixos no chão. Jondalar já reparara neles ao passar por lá antes, mas não sabia para que serviam. Agora viu um grande pedaço de uma carcaça de cavalo pendurado numa estaca grossa de madeira perto do cimo de um deles. Algumas lanças estavam lá espetadas.
Todas as mulheres têm de treinar todos os dias e não apenas a cravar as lanças com força suficiente para matar.., mas também a lançá-las. As melhores tornam-se minhas caçadoras. Mas mesmo antes de aprendermos a fazer e a utilizar lanças, conseguíamos caçar. Há um determinado penhasco a norte daqui, perto do sítio onde cresci. As pessoas de lá perseguem os cavalos de forma a caírem no penhasco, pelo menos uma vez por ano. Aprendemos a caçar cavalos dessa forma. Não é muito difícil assustar os cavalos e lerá-los a cair no penhasco, desde que os saibamos atrair lá para cima.
Attaroa olhou para Epadoa com evidente orgulho.
--A Epadoa descobriu que os cavalos gostam muito de sal. Faz que as mulheres guardem as águas que vertem e utiliza-as para atrair os cavalos. As minhas caçadoras são os meus lobos m disse Attaroa a sorrir na direcção das mulheres que empunhavam lanças e que se tinham junta do à sua volta.
Estas ficaram claramente satisfeitas com os seus elogios, assumindo um porte mais altivo enquanto ela falava. Até all, Jondalar não tinha prestado grande atenção à sua roupa, mas agora apercebeu-se de que to das as caçadoras usaram qualquer coisa proveniente de um lobo. A maior parte tinha uma orla de pêlo de lobo nos capuzes e tinham pelo menos um dente de lobo, mas frequentemente maÌs do que um, pendurados ao pescoço.
Algumas tinham também uma orla de pêlo de lobo em volta das
mangas das suasparkas ou na bainha de baixo, além de enfeites também
de pêlo. O capuz de Epadoa era todo de pêlo, com parte de uma cabeça de
lobo, com os dentes arreganhados, a enfeitar a parte de cima. A bainha
e os punhos da suaparka eram debruados com franjas, nos ombros esta
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vam penduradas patas de lobo e um rabo farfalhudo pendia por detrás de
uma aplicação central de pele de lobo.
--As suas lanças são as suas presas, matam em alcateia e trazem a comida de volta. Os seus pés são as suas patas, correm rápidas durante todo o dia e percorrem grandes distâncias-disse Attaroa numa métrica ritmada que Jondalar tinha a certeza de que fora repetida muitas vezes, m Ep.adoa é a sua chefe, Zelandonii. Eu se fosse a ti não tentaria enganá-la. E muito inteligente.
-- Estou certo de que í-disse Jondalar, sentindo-se em minoria.
Mas também não podia deixar de sentir uma certa admiração por aquilo
que elas tinham realizado, a partir de tão escassos conhecimentos.-Mas
parece-me um desperdício ter homens sentados sem fazer nada quando
também podiam estar a ajudar a caçar, a recolher alimentos e a fazer instrumentos.
Assim as mulheres não teriam de ser as únicas a trabalhar
tanto. Não estou a dizer que as mulheres não o possam fazer, mas por que
é que hão-de fazer tudo o que é preciso para homens e mulheres?
Attaroa riu-se, aquele riso áspero e demente que lhe provocava arrepios. --Já pensei o mesmo. São as mulheres que produzem vida; para que é que precisamos dos homens? Algumas das mulheres ainda não querem ficar sem os homens, mas para que é que servem? Para os Prazeres? São os homens que têm os Prazeres. Aqui não nos preocupamos em dar os Prazeres aos homens. Em vez de compartilharmos o lar com um homem, pus mulheres juntas. Compartilham o trabalho, ajudam-se umas às outras com os filhos, compreendem-se umas às outras. Quando não houver cá homens, a Mãe terá de misturar os espíritos das mulheres e só nascerão crianças fëmea.
Será que isso resultaria, pensou Jondalar. A S'Amodun tinha dito que tinham nascido muito poucos bebés nos últimos anos. Subitamente, lembrou-se da ideia de Ayla de que eram os Prazeres que os homens e as mulheres compartilhavam que davam início à nova vida que crescia dentro das mulheres. Attaroa tinha separado as mulheres e os homens. Seria por isso que havia tão poucos bebés?
-- Quantas crianças nasceram? -- perguntou ele, por curiosidade.
-- Não muitas, mas algumas, e onde há algumas haverá mais.
-- Têm sido rodas raparigas? m perguntou ele.
-- Os homens ainda estão demasiado perto. Isso confunde a Mãe. Não tardará que os homens desapareçam e nessa altura veremos quantos bebés rapazes irão nascer-disse Attaroa.
-- Ou quantos bebés nascerão-disse Jondalar.-A Grande Mãe Terra fez mulheres e homens e, como Ela, as mulheres são abençoadas para dar à luz machos e fêmeas, mas é a Mae que decide o espírito de que homem que se mistura com o da mulher. E sempre o espírito de um homem. Achas realmente que podes alterar aquilo que Ela destinou?
-- Não me tentes dizer o que a Mãe irá fazer! To não és mulher, Zelandonii -- disse num tom de desprezo.-O que acontece é que não gostas que te digam que não vales nada ou talvez não queiras ficar sem os teus Prazeres. E isso, não d?
Subitamente, Attaroa mudou de tom, fingindo-se atraída por ele.-Queres Prazeres, Zelandonii? Como não queres lutar comigo, que
é que farás para ganhares a tua liberdade? Ah,já sei! Os Prazeres. Sen
do to um homem tão forte e belo, Attaroa talvez esteja disposta a darte
Prazeres. Mas conseguirás to dar Prazeres a Attaroa?
Quando S'Armuna começou a falar sobre a mulher, e não como ela, ele teve súbita consciência de que as palavras que ouvira tinham sido traduzidas. Uma coisa era falar como sendo a voz de Attaroa, a chefe. Mas era outra falar como sendo a voz de Attaroa, a mulher. S'Armuna conseguia traduzir as palavras; só que não conseguia assumir a personalidade íntima da mulher. Enquanto S'Armuna continuava a traduzir, Jondalar ouviu ambas.
--Tão alto, tão louro, tão perfeito, podia ser o companheiro da Própria Mãe. Olhem, até é mais alto que Attaroa e não há muitos homens que o sejam. Já deste Prazeres a muitas mulheres, não deste? Um sorriso do belo homem alto e grande, com os seus olhos muito azuis, e as mulheres im ploram-lhe para ir para as suas peles. Dás Prazeres a todas elas, homem Zelandonii?
Jondalar recusou-se a responder. Sim, tinha havido uma época em que ele gostara de dar Prazeres a muitas mulheres, mas agora apenas queria Ayla. Uma terrível dor e angústia ameaçou dominá-lo. Que í que ele faria sem ela? Importaria estar vivo ou morto?
-- Anda, Zelandonii, se deres grande prazer a Attaroa, podes ter a tua liberdade. Attaroa sabe que consegues.-A mulher-chefe alta e atraente avançou para ele sedutoramente.-Vês? Attaroa dar-se-á a ti. Mostra a todos como um homem forte dá Prazeres a uma mulher. Compartilha a dádiva de Muna, a Grande Terra Mãe, com Attaroa, Jondalar dos Zelandonii. Attaroa pôs os braços em volta do pescoço dele e encostou-se a ele. Jondalar não correspondeu. Ela tentou beijá-lo, mas ele era demasiado alto para ela e recusou-se a inclinar-se. Attaroa não estava habituada a um homem mais alto; não era frequente ter de se esticar para chegar a um homem, sobretudo a um homem que não se inclinava. Isso fie-la sentir-se idiota e reacendeu a sua ira.
--Zelandonii! Estou disposta a copular contigo e dar-te a oportunidade de ganhares a tua liberdade!
-- Não compartilharei a Dádiva dos Prazeres da Mãe nestas circunstânciasdisse
Jondalar. O seu tom baixo e controlado transmitiu a sua
ira, mas ele não tentou escondê-la. Como é que ela ousava insultar a Mãe
daquela maneira? -- A Dádiva é sagrada, destinada a ser compartilha
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da voluntariamente e com alegria. Copular desta maneira seria ter desprezo
pela Mãe. Seña aviltar a Sua Dádiva e suscitar a Sua ira, tanto
como tomar uma mulher contra sua vontade. Eu escolho a mulher com
quem quero copular e não tenho o menor desejo de compartilhar a Sua
Dádiva contigo, Attaroa.
Jondalar podia ter correspondido ao convite de Attaroa, mas sabia que não era verdadeiro. Era um homem excitante e atraente para a maioria das mulheres. Tinha ganho peñcia em dar-lhes prazer e tinha experiência da arte da atracção e do convite mútuos. Apesar do seu andar coleante, não havia qualquer calor em Attaroa, e ela não suscitava nele qualquer centelha de desejo. Sentiu que, mesmo que tentasse, não conseguiria dar-lhe prazer.
Mas Attaroa ficou atordoada quando ouviu a tradução. A maioria dos homens estariam mais que dispostos em compartilhar a Dádiva dos Prazeres com aquela bela mulher para obterem a sua liberdade. Os visitantes que tinham o azar de passar pelo seu territdrio e ser apanhados pelas suas caçadoras normalmente aceitavam ansiosamente a oportunidade de se livrarem das Mulheres Lobo dos S'Armunai com tanta facilidade. Embora alguns tivessem hesitado, duvidando e interrogando-se sobre o que ela estaria a maquinar, nenhum a]guma vez a recusara frontal mente. E não tardavam a descobrir que tinham tido razão para duvidar.
-- To recusas... E exclamou a mulher-chefe, incrédula. A tradução foi feita sem a menor emoção, mas a sua reacção foi bem clara. E To recusas Attaroa. Como ousas recusar! gritou ela, virando-se depois para as suas Mulheres Lobo.-Disparo-no e amarrem-no ao alvo de treino.
Essa fora sempre a sua intenção, mas não tão cedo. Tinha querido que Jondalar a mantivesse ocupada durante todo o longo e maçador Inverno. Gostava de atormentar os homens com promessas de liberdade em troca de Prazeres. Para ela, era o cúmulo da ironia. A partir desse ponte, for çava-os a mais actos de humilhação ou degradação e normalmente con seguia levá-los a fazerem o que quer que quisesse deles antes de estar pronta para o seu jogo final. Os homens chegavam mesmo a despir-se quando ela lhes dizia que os libertaria se o fizessem, na esperança de que isso lhe agradasse o suficiente.
Mas nenhum homem conseguia dar Prazeres a Attaroa. Tinha sido
usada com violência quando era garota e tinha aceite entusiasticamente
acasalar-se com o poderoso chefe de um outro grupo. Depois descobriu
que o homem a quem sejuntara era pior que a situação que deixara para
trás. Os seus Prazeres eram sempre feitos com dolorosos espancamentos
e humilhações, até que por fim se rebelara e fizera que ele tivesse uma
morte dolorosa e humilhante. Mas tinha aprendido a sua lição demasiado
bem. Pervertida pela crueldade que sofrera, não conseguia sentir Prazer
sem causar dor. Attaroa não gostava de compartilhar a Dádiva da
Mãe com homens, nem mesmo com mulheres. Dava a si própria Prazeres a ver os homens morrer uma morte lenta e dolorosa.
Quando se passava muito tempo entre visitantes, Attaroa atd brinca ra com homens S'Armunai mas, depois de dois ou três caírem nos seus "Prazeres", ficaram a saber qual era o seu jogo e recusavam-se a participar. Limitavam-se a implorar pela sua vida. Ela normalmente, mas não sempre, cedia àqueles que tinham uma mulher para pedir por eles. Algumas mulheres não colaboravam tanto-não compreendiam que era por elas que ela precisava de eliminar os homens --, mas normalmente podiam ser controladas através dos machos a quem estavam ligadas, portanto mantinha-os vivos.
Os viajantes apareciam normalmente durante a estação mais quente.
As pessoas raramente viajavam para muito longe durante o frio do Inverno,
sobretudo as que estavam a fazer uma Viagem, e ultimamente tinha havido poucos viajantes, e nenhum durante o Verão anterior. Algur.s
homens, por mera sorte, tinham conseguido escapar, e algumas mulheres
fugiram. Avisaram outras pessoas. A maioria das pessoas que ouvia
as histórias encarava-as como boatos ou contos fantásticos dos contadores
de histórias, mas os boatos sobre as malvadas Mulheres Lobo tinham
vindo a aumentar e as pessoas mantinham-se à distância.
Attaroa tinha ficado encantada quando Jondalar foi levado para o al deamento, mas verificou que era pior que os seus próprios homens. Re cusava-se a entrar no seu jogo e nem sequer lhe deu a satisfação de o ver implorar. Se tivesse, talvez ela o tivesse deixado viver um pouco mais, só para saborear o prazer de o ver dobrar-se à sua vontade.
Obedecendo à sua ordem, as Mulheres Lobo de Attaroa correram para Jondalar. Ele resistiu, empurrando as suas lanças e batendo-lhes de forma que os efeitos secundários não deixariam de ser visíveis. O esforço que fez para se libertar foi quase bem sucedido, mas acabou por ser subjuga do pela mera vantagem numérica. Continuou a lutar enquanto elas cor tavam os atilhos da sua túnica e calças para o despirem. Mas elas já estavam à espera disso e encostaram-lhe as lâminas afiadas das lanças ao pescoço.
Depois de lhe arrancarem a túnica e de o deixarem em tronco nu,
amarraram-lhe as mãos com um pedaço de corda com uma ligeira folga
entre ambas as mãos, depois erguendo-o e pendurando-o com as mãos
acima da cabeça pela estaca no alto do poste. Ele deu pontapés enquanto
elas lhe arrancavam as botas e as calças, alguns dos quais iriam deixar nódoas negras, mas a sua resistência só serviu para fazer que as mulheres
tivessem vontade de se vingar. E sabiam que podiam.
Assim que ele ficou nu, pendurado no poste, todas elas recuaram e
ficaram a olhar para ele com sorrisos trocistas, satisfeitas consigo pró-prias. Apesar de ser grande e forte, a sua resistência de nada servira. Os
dedos dos pés de Jondalar raspavam no chão e era evidente que a maio
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ria dos homens teria ficado completamente suspenso. Deu-lhe uma ligeira
sensação de segurança tocar no chão e enviou um vago e mudo apelo
à Grande Terra Mãe para de alguma forma o livrar daquela inesperada
e temível situação.
Attaroa ficou interessada na enorme cicatriz na parte superior da sua coxa e entre pernas. Ele não dera a menor indicação de que sofrera um ferimento tão grave, não coxeando nem favorecendo aquela perna. Sen do assim tão forte, talvez aguentasse mais tempo que a maioria. Talvez ainda lhe viesse a dar prazer. Attaroa sorriu com esta ideia.
A avaliação fria de Attaroa fez Jondalar reflectir. Sentiu a brisa fazer-lhe
pele de galinha e estremeceu, mas não apenas de frio. Quando olhou
para cima, viu Attaroa a sortir-lhe. O seu rosto estava corado e a sua respiração
arfante; parecia contente e estranhamente sensual. O gozo dela
era sempre maior quando o homem com quem dava Prazeres a si própria
ela belo. Atraída à sua própria maneira pelo homem alto com inconsciente
carisma, antecipava fazer que aquele durasse o mais possível.
Ele olhou para a paliçada e sabia que os homens o estavam a observar pelas fendas. Pensou por que é que não o tinham avisado. Era evidente que não era a primeira vez que aquilo acontecera. Teria adiantado algu ma coisa se o tivessem avisado? Não serviria isso apenas para fazer que ele antecipasse aquele momento com medo? Talvez pensassem que era melhor ele não saber.
Na realidade, alguns dos homens tinham falado sobre isso. Todos eles gostaram do Zelandonii e admiraram a sua perícia a fabricar instrumentos. Com as facas afiadas e os intrumentos que ele lhes legara, cada um esperava encontrar uma oportunidade para fugir. Lembrar-se-iam sempre dele por isso, mas cada um sabia no fundo de si próprio que, quando havia um intervalo demasiado grande entre visitantes, Attaroa acabava por pendurar um deles no poste de treino. Já tinham sido lá pendurados dois e eles sabiam que os seus apelos abjectos provavelmente não a comoveriam para voltar a adiar o seu jogo de morte. Aclamavam secretamente a sua recusa em ceder às suas exigências, mas temiam que qualquer barulho chamasse a atenção para eles. Assim, observaram em silêncio enquanto a cena familiar se desenrolava, cada um sentindo compaixão e medo e uma certa vergonha.
Era suposto não só as Mulheres Lobo como todas as mulheres do
Acampamento testemunharem a provação do homem. A maioria odiava
observar, mas temiam Attaroa, até as suas caçadoras. Ficavam o mais
atrás que ousavam. Algumas delas ficavam indispostas mas, se não aparecessem,
qualquer homem pelo qual tivessem intercedido no passado
era o próximo a ser escolhido. Algumas mulheres tinham tentado fugir,
e algumas tinham conseguido, mas a maioria era apanhada e trazida de
volta. Se houvesse no Cercado algum homem de quem gostassem m com
panheiro, irmãos, filhos --, como castigo as mulheres eram obrigadas a vê-los sofrer durante dias na jaula sem comida ou água. E, ocasionalmente,
embora raramente, eram elas próprias metidas na jaula.
As mulheres com rapazes tinham muito medo, pois não sabiam o que aconteceria aos seus falhos, sobretudo depois do que ela fizera a Odevan e a Ardoban, mas as mulheres que mais medo tinham eram as duas com crianças pequenas e a que estava grávida. Attaroa estava encantada com elas, dando-lhes mimos especiais e preocupando-se com o seu bem-estar, mas cada uma tinha um segredo e temiam que se ela alguma vez descobrisse acabariam penduradas no poste.
A mulher-chefe colocou-se à frente das suas caçadoras e pegou numa lança. Jondalar reparou que era bastante pesada e desajeitada e, apesar
da sua situação, pensou como é que lhes poderia fazer uma melhor. No entanto,
a ponta grosseira era afiada e eficaz. Observou a mulher a fazer
cuidadosamente pontaria e reparou que apontava a lança para baixo.
Não era sua intenção matá-lo, mas sim incapacitá-lo. Jondalar tinha
consciência da sua nudez que o expunha a qualquer dor que ela decidisse
infligir-lhe e combateu a vontade que tinha de levantar as pernas para
se proteger. Mas continuaria a ficar pendurado e sentiu que isso o torna
ria ainda mais vulnerável e mostraria o seu medo.
Attaroa observou-o através dos olhos semicerrados, sabendo que ele a temia e gostando disso. Alguns chegavam mesmo a implorar. Sabia que aquele não o faria, pelo menos não de imediato. Levou o braço atrás, pre parando-se para o arremesso. Ele fechou os olhos e pensou em Ayla, pen sando se estaria viva ou morta, com o corpo esmagado e partido sob uma manada de cavalos no fundo de um penhasco. Com uma dor mais aguda que aquela que qualquer lança lhe poderia infligir, sentiu que se ela estivesse morta a vida não teria qualquer sentido para ele.
Ouviu um thunk quando uma lança atingiu o alvo, mas acima dele, não mais abaixo e acompanhada de dor. De repente, viu-se assente sobre os calcanhares, enquanto ficava com os braços libertos. Olhou para as mãos e viu que a pequena extensão de corda com que tinha sido pendurado na estaca estava cortada. Attaroa continuava com a lança na mão. Alança que ele ouvira não tinha sido lançada por ela. Jondalar olhou para o cimo do poste e viu uma lança pequena de ponta de pedreneira crava da junto à estaca, com a pena ainda a vibrar. A ponta fina e perfeita tinha cortado a corda. Ele conhecia aquela lança!
Virou-se para trás para olhar na direcção da qual a lança tinha vindo. Viu movimento directamente atrás de Attaroa. A sua visão tornou-se nublada enquanto os seus olhos se enchiam de lágrimas. Mal conseguia acreditar. Podia mesmo ser ela? Estaria realmente viva? Olhou para baixo para piscar os olhos várias vezes, para ver mais claramente. Olhando para cima, viu quatro paras de cavalo quase rodas pretas, ligadas a um cavalo cor de palha, com uma mulher sobre o dorso.
m Ayla! -- exclamou.-Estás viva!
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Attaroa girou para ver quem tinha arremessado a lança. Vindo da outra
extremidade do campo junto ao Acampamento, viu uma mulher aproximar-se
montada no dorso de um cavalo. O capuz daparka da mulher
estava lançado para trás e o seu cabelo Iouro-escuro e o pêlo dourado do
cavalo eram de um tom tão semelhante que a temível aparição parecia na
realidade ser apenas uma. Poderia a lança ter vindo da mulhercavalo?,
pensou. Mas como é que alguém podia arremessar uma lança àquela distância?
Depois viu que a mulher tinha outra lança bem à mão.
Uma arrepiante onda de medo aflorou o couro cabeludo de Attaroa, dando-lhe a sensação de ter ficado com os cabelos em pé, mas o terror frio que sentiu naquele momento pouco tinha a ver com qualquer coisa de tão material como lanças. A aparição que via não era uma mulher; disso tinha a certeza. Num momento de súbita lucidez, percebeu a plena e indescritível atrocidade dos seus actos hedionhos e viu a figura que atravessava o campo como sendo uma das formas espírito da Mãe, uma rnunai, sen do aquela um espírito vingador enviado para a punir. No seu coração, Attaroa quase A desejava; seria um alívio pôr termo ao pesadelo da sua vida.
Não era só a mulher-chefe que temia a estranha mulher-cavalo. Jondalar tinha tentado dizer-lhes, mas ninguém acreditara nele. Ninguém concebia que fosse possível um ser humano montar um cavalo; mesmo vendo, era difícil de acreditar. O súbito aparecimento de Ayla impressionou cada uma das pessoas individualmente. Para algumas, era apenas intimidante devido à estranheza que uma mulher a cavalo suscitava e ao seu medo do desconhecido; outras consideraram o seu fantástico aparecimento como um sinal de um poder sobrenatural e foram invadidos por uma sensação de mau augúrio. Muitas delas viam-na como Attaroa a via: como a sua nemesis pessoal, um reflexo das suas próprias consciências em relação aos seus actos malvados. Encorajadas ou forçadas por Attaroa, mais do que uma tinha cometido, permitido, ou sido conivente em horríveis atrocidades, pelas quais, na calada da noite, sentiam uma profunda vergonha ou medo de virem a ser castigadas.
O próprio Jondalar interrogou-se por instantes se Ayla tinha vindo do
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outro mundo para lhe salvar a vida, convencido nesse momento de que se
ela quisesse o faria. Observou-a a aproximar-se sem pressa, estudando
todos os seus pormenores, atentamente, carinhosamente, querendo encher
o olhar com uma visão que pensara nunca mais ver: a mulher que
amava, montada na sua égua. O rosto de Ayla estava corado do frio e far
ripas de cabelo, que tinham escapado à fita de couro que as prendia na
nuca, sopravam ao vento. Formavam-se pequenas nuvens de ar quente
a cada expiração da mulher e do cavalo, fazendo que Jondalar tivesse
súbita consciência do seu corpo nu e dentes a bater.
Ayla trazia o seu cinto de presilhas por cima daparka de pele e, numa das presilhas, o punhal feito de dente de mamute que fora presente de Ta lut. A faca de pedreneira com cabo de marfim que ele lhe fizera também estava presa no cinto, além do seu machado. A pele de lontra já coçada da sua bolsa de ervas medicinais estava pendurada do lado oposto.
Montando o cavalo com graciosidade e facilidade, Ayla parecia intimi dantemente segura e confiante, mas Jondalar via que estava tensa e pronta a agir. Levava a funda na mão direita e ele sabia com que rapidez ela a manobrava dessa posição. Com a mão esquerda, na qual ele tinha a certeza de que estavam duas ou três pedras, empunhava uma lança, colocada no seu lançador de lanças e equilibrada diagonalmente na cer nelha da Whinney, da perna direita de Ayla ao quarto dianteiro esquerdo da égua. Trazia mais lanças enfiadas num suporte feito de ervas entretecidas imediatamente atrás da sua perna.
Ao aproximar-se, Ayla tinha visto o rosto da mulher-chefe alta reflectir as suas reacções interiores, revelando choque e medo e o desespero do seu momento de lucidez mas, à medida que a mulher a cavalo se aproximava mais, sombras escuras e dementes voltaram a toldar o rosto da chefe. Attaroa semicerrou os olhos para observar a mulher loura e depois sorriu lentamente, um sorriso carregado de uma malícia deturpada e calculista. Ayla nunca tinha visto loucura, mas interpretou as expressões inconscientes de Attaroa e compreendeu que aquela mulher que ameaçava Jondalar era uma pessoa de quem era preciso desconfiar; era uma hiena. A mulher a cavalo tinha já morto muitos animais carnívoros, por mais imprevisíveis que fossem, mas eram só as hienas que desprezava. Eram a sua metáfora para o pior que as pessoas podiam ser, e Attaroa era uma hiena, uma manifestação perigosa do mal na qual nunca se poderia confiar.
O olhar irado de Jondalar estava centrado na mulher-chefe alta, embora
tivesse o cuidado de observar todo o grupo, incluindo as estupefactas
Mulheres Lobo, e ainda bem que o fez. Quando a Whinney estava a pouca distância de Attaroa, Ayla detectou com a sua visão periférica um
movimento subtil de um dos lados. Com movimentos tão rápidos que
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eram difíceis de acompanhar, uma pedra foi colocada na sua funda, feita
girar e lançada.
Epadoa deu um guincho de dor e agarrou o braço, enquanto a sua lança
.caía ruidosamente no chão gelado. Ayla podia ter-lhe partido o osso se qmsesse, mas tinha deliberadamente feito pontaria ao ante-braço da
mulher e controlado a força. Mesmo assim, a chefe das Mulheres Lobo
ficaria com uma nódoa negra muito dolorosa durante algum tempo.
-- Diz mulheres-lança parar! -- exigiu Ayla.
Jondalar levou alguns instantes a perceber que ela estava a falar numa língua estranha, pois verificou que tinha dificuldade em compreender o que ela estava a dizer. Depois ficou estarrecido quando se apercebeu de que as palavras que ela proferira eram em S'Armunai. Como é que era possível que a Ayla soubesse falar S'Armunai? Nunca ouvira esta língua antes, pois não?
A mulher-chefe também ficou surpreendida por ouvir uma estranha dirigir-se-lhe pelo seu nome, mas chocou-a ainda mais ouvir a estranha qualidade da fala de Ayla, que era como um sotaque de uma outra língua qualquer e no entanto não era. A voz despertou sentimentos que Attaroa quase já esquecera; uma memória enterrada de um complexo de emoções, incluindo medo, que a encheu de mal-estar e inquietação. Isso reforçou a sua convicção íntima de que a figura que se aproximava não era simplesmente a de uma mulher a cavalo.
Já há muitos anos que ela não tinha aqueles sentimentos. Attaroa não
gostava das condições que os tinham provocado e gostava ainda menos
que lhos recordassem naquela altura. Isso tornou-a nervosa, agitada
zangada. Queria afastar aquela recordação, de que se livrar dela, destruí-la por completo, para que nunca mais voltasse. Mas como? Olhou para
Ayla sentada no cavalo e nesse instante decidiu que a culpa era da mulher
loura. Tinha sido ela a trazer aquilo tudo de volta, a memória, os sentimentos.
Se aquela mulher desaparecesse, se fosse destruída, aquilo tudo
desapareceria e ficaria outra vez tudo bem. Com a sua inteligência rápida,
embora retorcida, Attaroa começou apensar como é que poderia
destruir a mulher. Um sorriso matreiro e dissimulado espalhouselhe no rosto.
Born, afinal parece que o Zelandonii estava a falar verdade m disse ela. u Chegaste mesmo a tempo. Pensamos que ele estava a roubar carne e mal temos que chegue para nós. Entre os S'Armunai, a pena para o roubo é a morte. Ele contou-nos uma histdria sobre montar cavalos, mas compreendes por que é que tivemos tanta dificuldade em acreditar... --Attaroa reparou que as suas palavras não estavam a ser traduzidas e parou, u S'Armuna! Não estás a falar as minhas palavras E exclamou irritada.
S'Armuna tinha estado a olhar boquiaberta para Ayla. Lembrou-se
que uma das primeiras caçadoras a regressar com o grupo que trazia o horoem lhe tinha relatado uma aterrorizadora visão que tinha tido durante
a caçada, querendo que ela a interpretasse. Falou de uma mulher senta
da no dorso de um dos cavalos que estavam a conduzir para o penhasco,
tentando controlá-lo e conseguindo finalmente forçá-lo a voltar para
trás. Quando as caçadoras que transportaram o segundo carregamento
de carne disseram que tinham visto uma mulher a afastar-se montada
num cavalo, S'Armuna interrogou-se sobre o significado das estranhas visões.
Há já algum tempo que muitas coisas incomodavam Aquela Que Servia a Mãe, mas quando viu que o homem que trouxeram parecia terse materializado do seu prdprio passado, e contado a história de uma mulher a cavalo, isso tinha-a perturbado profundamente. Tinha de ser um sinal, mas ela não conseguia descobrir o seu significado. Esta ideia não saía do espírito de S'Armuna enquanto considerava várias interpretações da visão reincidente. Uma mulher a entrar a cavalo no seu Acampamento dava ao sinal uma força sem precedentes. Era a manifestação de uma visão, e o seu impacte pôs-lhe o cérebro em torvelinho. Não tinha estado a dar total atenção a Attaroa, mas parte dela tinha ouvido e traduziu rapidamente as palavras da mulher-chefe para Zelandonii.
E A morte para um caçador como castigo por estar a caçar não está de acordo com a Grande Mãe de Todos m disse Ayla em Zelandonii quando ouviu a tradução, embora tivesse compreendido a essência da afirmação de Attaroa. S'Armunai era tão parecido com Mamutoi que ela conseguia compreender grande parte do que era dito e tinha aprendido algumas palavras, mas o Zelandonii era mais fácil e conseguia exprimir -se melhor nesta língua, mA Mãe exige que os Seus filhos compartilhem a comida e ofereçam hospitalidade aos visitantes.
Foi quando Ayla falou em Zelandonii que S'Armuna detectou a particularidade de fala de Ayla. Embora falasse a língua perfeitamente, ha via qualquer coisa.., mas não era altura de pensar nisso, Attaroa estava à espe.ra.
--E por isso que temos o castigo-explicou Attaroa calmamente, embora a ira que se esforçava por controlar fosse evidente quer para S'Armuna quer p ara Ayla. m Desencoraj a o roubo, para haver o suñciente para compartilhar. Mas como é que uma mulher como to, tão hábil a manejar armas, pode compreender como era quando nenhuma mulher podia caçar? A comida era escassa. Todos nós sofremos.
m Mas a Grande Terra Mãe oferece mais do que carne aos Seus filhos.
Decerto que as mulheres daqui conhecem alimentos que crescem que podem ser apanhados m disse Ayla.
-- Mas tive de proibir isso! Se eu tivesse permitido que passassem o seu tempo a apanhar alimentos, não teriam aprendido a caçar.
--Então a vossa escassez de comida foi culpa tua e a opção tomada por
aqueles que te obedeceram. Isso não é razão para matares pessoas que
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não conhecem os vossos costumes-disse Ayla.-Assumiste para ti o direito da Mãe. Ela chama os Seus filhos a Si quando Ela escolhe. Não te
cabe a ti assumir a Sua autoridade.
--Todas as pessoas têm costumes e tradições que são importantes, e, se os seus hábitos são quebrados, algumas exigem pena de morte-disse Attaroa.
Era verdade; Ayla sabia-o por experiência própria.
-- Mas por que é que os vossos costumes hão-de exigir pena de morte para querer corner? Os preceitos da Mãe devem sobrepor-se a todos os outros costumes. Ela exige que se compartilhe a comida e hospitalidade para com os visitantes. To não és... nem cortês nem hospitaleira, Attaroa.
Nem cortês nem hospitaleira! Jondalar repñmiu a vontade que sen riu de dar uma gargalhada de desprezo. Seria mais apropriado chamar -lhe assassina e desumana! Tinha estado a observar e a escutar cheio de espanto e com um sorriso de apreço pela insinuação de Ayla. Ainda se lembrava da época em que ela não conseguia compreender uma graça e muito menos proferir insultos subtis.
Attaroa estava obviamente irritada; quase não se conseguia contro lar. Tinha sentido a farpa da crítica "cortês" de Ayla. Tinha levado um ralhete como se não passasse de uma criança; uma criança mal comportada. Teria preferido o poder implícito de lhe chamarem má, uma mulher poderosamente má a ser respeitada e muito temida. A brandura das palavras pareceu-lhe ñsível. Attaroa reparou no sorriso de Jondalar e olhou para ele irada e aborrecida, certa de que toda a gente que estava a obser vat também estava com vontade de se rir. Jurou a si própria que ele se arrependeria, bem como aquela mulher!
Ayla pareceu ajeitar-se melhor sobre a Whinney mas, na realidade, estava a mudar disfarçadamente de posição a fim de agarrar melhor no lançador de lanças.
-- Creio que Jondalar precisa da sua roupa-continuou Ayla, erguendo ligeiramente a lança e tornando evidente que a empunhava sem ser abertamente ameaçadora.-Não te esqueças da sua pele exterior, a que tens vestida. E talvez devas mandar alguém à tua habitação buscar o seu cinto, as suas luvas, o seu saco de água, a sua faca e os instrumentos que trazia com ele.-Esperou que S'Armuna traduzisse.
Attaroa cerrou os dentes mas sorriu, embora fosse mais uma careta
que um sorriso. Fez sinal com a cabeça a Epadoa. Com o braço esquerdo, o que não lhe doía-Epadoa sabia que iria ficar com uma nódoa negra
na perna onde Jondalar lhe tinha dado um pontapé-a mulher que era
a chefe das Mulheres Lobo pegou na roupa que tanto trabalho dera a arrancar
ao homem e deixou-a cair à frente dele; depois entrou na grande
habitação.
Enquanto esperavam, a mulher-chefe falou subitamente, tentando assumir um tom amigável.
--Vocês vieram de longe, devem estar cansados.., como é que ele disse que era o teu nome? Ayla?
A mulher a cavalo assentiu, entendendo-a muito bem. Aquela chefe não queria saber de apresentações formais, reparou Ayla; o que não era muito subtil.
-- Como fazes tanta questão nisso, têm de me permitir que vos ofereça a hospitalidade da minha habitação. Ficarão comigo, não é verdade?
Mas antes de Ayla ou de Jondalar poderem responder, S'Armuna falou.
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PLAN [C IES DE PASSAGEM
-se. O sorriso de Attaroa espelhava uma maldade pura ao ficar all de pé,
ao frio, com a sua roupa fina.
m E o resto das coisas dele? m recordou-lhe Ayla.
Attaroa olhou de relance para a entrada da sua habitação e fez sinal à mulher que já lá estava há algum tempo. Epadoa levou rapidamente os pertences de Jondalar e colocou-os no chão a certa diståncia dele. Não lhe agradava devolver-lhe as suas coisas. Attaroa tinha-lhe prometido algumas. Afaca infere ssava-lhe particularmente. Nunca tinha visto nenhuma tão perfeita.
Jondalar pôs o cinto e depois os seus utensflios e ferramentas nos devidos sítios, mal conseguindo acreditar que tinha tudo de volta. Duvidara de que alguma vez os voltasse a ver. Mais, duvidara que saísse dali vivo. Depois, para surpresa de todos, saltou para cima do cavalo, atrás da mulher.
Aquele era um Acampamento que lhe agradava ver pelas costas.
Ayla estudou atentamente a zona, assegurando-se de que ninguém estava
em posiçåo para os impedir de partir ou para lhes arremessar uma
lança. Depois, fez a Whinney dar meia volta e partiu a galope.
-- Sigam-nos! Quero-os de volta. Não irão escapar tão facilmente- rosnou Attaroa a Epadoa, dirigindo-se pesadamente para a sua habitação, a escaldar de ira e a tremer de frio.
Ayla manteve a Whinney àquela velocidade até já estarem a certa distãncia,
a descer a colina. Abrandou quando chegaram a uma zona arborizada
no sopé, perto do rio, e depois voltou para trás, tomando a direcção
por onde tinha vindo, em dÌrecção ao seu acampamento, que na realidade
ficava muito perto do acampamento dos S'Armunai. Quando a velocidade
do cavalo era já mais regular, Jondalar teve consciência da proximidade
de Ayla e sentiu-se avassalado por uma tal gratidão por estar de novo
com ela que quase não conseguia respirar. Pôs os braços em volta da
cintura dela e abraçou-a, sentindo o cabelo dela na sua face e o cheiro da
sua feminilidade única.
Estás aqui, comigo! Custa-me tanto a acreditar. Estava com medo que tivesses morrido e estivesses no outro mundo disse ele baixinho. m Estou tão grato por te ter de volta que não sei o que dizer.
m Amo-te tanto, Jondalar respondeu ela. Ayla encostou-se para
trás, fazendo mais pressão contra os seus braços, sentindo um imenso
alívio por estar de novo com ele. O seu amor por ele parecia não caber dentro
dela. Encontrei uma mancha de sangue e durante todo o tempo que
segui o teu rasto, a tentar encontrar-te, não sabia se estavas vivo ou
morto. Quando me apercebi de que estavas a ser transportado, pensei que
devias estar vivo, mas ferido ao ponto de não poderes andar. Fiquei tão
preocupada, mas o rasto não era fácil de seguir e eu sabia que estava a
ficar para trás. As caçadoras de Attaroa conseguem viajar muito depressa, para quem vai a pé, e conheciam o caminho.
m Chegaste mesmo a tempo. Ainda bem que chegaste naquela altura.
Um pouco mais tarde e teria sido tarde de mais-disse Jondalar.
-- Eu não cheguei naquela altura.
-- Não? Então quando é que chegaste?
-- Cheguei logo a seguir ao segundo carregamento de carne de cavalo.
De início, ia à frente de ambos, mas os que transportavam o primeiro carregamento
apanharam-me na travessia do rio. Tive sorte em ver duas
mulheres irem ao seu encontro. Descobri um sítio onde me esconder e esperei
que passassem; depois segui-as, mas as caçadoras com o segundo
carregamento de carne estavam mais perto do que eu pensava. Acho que
provavelmente me viram, pelo menos à distância. Euia a cavalo nessa altura
e afastei-me rapidamente do trilho. Mais tarde, regressei e voltei a
segui-lo, mas mais cautelosamente, não fosse haver um terceiro carregamento.
-- Isso explica a "perturbação" de que o Ardemun falou. Não sabia o que era, só sabia que estavam todas nervosas e a comentar qualquer coisa
depois de levarem o segundo carregamento. Mas se já lá tinhas estado,
por que é que esperaste tanto tempo para me tirares dali? perguntou
Jondalar.
Tive de observar o acampamento durante muito tempo, à espera de uma oportunidade de te tirar daquele sítio fechado com a cerca.., como é que eles lhe chamam? Cercado?
Jondalar fez um ruído de assentimento.
-- Não tiveste medo de que alguém te visse? m Já observei lobos verdadeiros na sua toca;junto deles. Os Lobos de Attaroa são ruidosos e fáceis de evitar. Durante a maior parte do tempo estive suficientemente perto para as ouvir falar. Há um outeiro por detrás do Acampamento. Daí vê-se todo o aldeamento e directamente para dentro do tal Cercado. Por detrás dele, se olhares para cima, verás três grandes rochas brancas em fila na encosta do monte.
Reparei nelas. Tenho pena de não ter sabido que lá estavas. Ter -meia feito sentir melhor de cada vez que visse aquelas pedras brancas.
Ouvi umas mulheres chamar-lhes as Três Raparigas, ou talvez as Três Irmãs disse Ayla.
Chamam ao acampamento o Acampamento das Três Irmãs mdisse Jondalar.
Creio que ainda não sei muito bem a língua delas.
Sabes mais que eu. Creio que surpreendeste Attaroa quando falaste na sua língua.
m O S'Armunai é tão parecido com o Mamutoi que é fácil entender o sentido das palavras disse Ayla.
JEAN A UEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
--Não me lembrei de perguntar se aquelas rochas brancas tinham no
me. São um ponto de referência tão born, que parece lógico terem nome. -- Todas estas terras altas são um born ponto de referência. Vê-se de muito longe. À distância parece um animal a dormir, mesmo deste lado. Verás que mais lá à frente há um sítio com boa vista.
--Tenho a certeza de que o monte também term nome, sobretudo por ser um sítio tão born para caçar, mas só vi um pouco quando fui aos funerais. Já houve dois desde que cá cheguei e da primeira vez enterraram três jovens-disse Jondalar, baixando a cabeça para não bater nos ramos nus de uma árvore.
--Segui-te ao segundo funeral-disse Ayla.-Pensei que consegui ria tirar-te de lá nessa altura, mas estavas a ser muito vigiado. E depois encontraste aquela pedreneira e ensinaste a toda a gente como funciona va o lançador de lanças-disse Ayla.-Tive de esperar pela altura certa, para os poder surpreender. Desculpa ter demorado tanto tempo.
-- Como é que sabias da pedreneira? Pensámos que tínhamos tido todo o cuidado disse Jondalar.
--Estive a observar-te o tempo todo. Aquelas Mulheres Lobo não são nada eficazes. Terias percebido isso e arranjado forma de sair de lá se não te tivesses distraído com a pedreneira. Além disso não são boas caçadoras -- disse ela.
Quando se pensa que não tinham quaisquer conhecimentos, term de se admitir que não se saíram nada mal. Attaroa disse que não sabiam usar lanças e que por isso tinham de perseguir os animais-disse Jondalar. -- Perdem tempo em fazer toda aquela distância aid ao Grande Rio Mãe para espantar cavalos pelo penhasco abaixo, quando podiam caçar melhor aqui mesmo. Os animais que seguem este rio têm de passar por uma zona estreita entre a água e a escarpa e vêem-se facilmente a aproximarem-se disse Ayla.
--Vi isso quando fui ao primeiro funeral. O sítio onde eles foram en- terrados seria um born ponto de vigia e dantes houve quem fizesse de lá
sinal com fogueiras, embora não saiba há quanto tempo. Vi carvão pro
veniente de grandes fogueiras-comentou Jondalar.
-- Em vez de construir cercados para os homens, elas podiam ter feito um para animais e espantá-los lá para dentro, sem precisarem de lanças -- disse Ayla, fazendo a Whinney parar.-Olha, cá está.-E apontou para o monte de calcário recortado contra o horizonte.
-- De facto parece um animal a dormir e, repara, atd se consegue ver as três pedras brancas, as Três Irmãs-disse Jondalar.
Continuaram em silêncio durante algum tempo. Depois, como se tivesse estado apensar nisso, Jondalar disse:
-- Se é assim tão fácil escapar do Cercado, por que é que os homens não o fizeram?
-- Não creio que tenham tentado verdadeiramente-disse Ayla.-
Talvez seja por isso que as mulheres já não os vigiam tão atentamente.
Mas muitas das mulheres, mesmo das caçadoras, já não querem lá os
homens. Mas têm medo de Attaroa.-Ayla parou de falar nisso.-Term
sido aqui que tenho acampado.
Como que numa confirmação, o Corredor relinchou uma saudação ao entrarem para o pequeno espaço rodeado de arbustos. O jovem garanhão estava bem amarrado a uma árvore. Todas as noites, Ayla montava um acampamento com o mínimo possível, mas de manhã acondicionava tudo no dorso do Corredor para estar pronta para partir imediatamente se fosse necessário.
-- Salvaste-os a ambos de caírem pelo penhasco! -- exclamou Jondalar. --Não sabia se tinhas conseguido e tinha medo de perguntar. A última coisa de que me lembro, antes de me baterem na cabeça; foi de te ver montada no Corredor e com dificuldade em controlá-lo.
-- Apenas tive de me habituar a usar a rédea. O maior problema foi o outro garanhão, mas já morreu e lamento-o. A Whinney obedeceu ao meu assobio assim que eles deixaram de a impedir de vir-disse Ayla.
O Corredor ficou igualmente satisfeito por ver Jondalar. Baixou a cabeça e depois ergueu-a num cumprimento, e teria ido para junto do homem se não estivesse amarrado. O garanhão, com as orelhas espeta das para a frente e o rabo bem alto, relinchou a Jondalar com ansiosa antecipação enquanto ele se aproximava. Depois baixou a cabeça para afocinhar ternamente a mão do homem. Jondalar saudou o garanhão como um amigo que pensava nunca mais ver, tendo abraçado, coçado, feito festas e falado com o animal.
Franziu a testa quando pensou noutra pergunta que quase detestava ter de fazer.
-- E o Lobo?
Ayla sorriu e estilhaçou o ar com um assobio desconhecido. O Lobo saiu aos saltos do meio dos arbustos, tão contente por ver Jondalar que
não conseguia estar quieto. Correu para ele, a abanar o rabo, a latir e
depois saltou para cima dele, pondo as patas dianteiras nos ombros do
homem e lambendo-lhe o maxilar. Jondalar agarrou-o pelo pescoço como
já vira Ayla fazer tantas vezes, acariciou-o e depois encostou a testa à testa
do lobo.
-- Ele nunca me fez isto-disse Jondalar, surpreendido.
-- Sentiu a tua falta. Creio que queria encontrar-te tanto como eu e não tenho a certeza de que conseguiria seguir o teu rasto sem ele. Estamos a uma certa distância do Grande Rio Mãe e passámos por grandes extensões de terreno rochoso e seco onde não se viam quaisquer marcas. Mas o nariz dele encontrou o rasto-disse Ayla. Depois saudou o lobo.
Mas ele ficou à tua espera all nos arbustos durante todo o tempo?
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E só veio quando lhe deste o sinal? Deve ter sido difícil ensinar-lhe isso,
mas por que í que o fizeste?
mTive de o ensinar a esconder-se porque não sabia quem é que cá podia vir e não queria que soubessem que ele existia. Eles comem carne de lobo.
m Quem é que come carne de lobo? m perguntou Jondalar, franzindo
o nariz com repugnância.
m Attaroa e as suas caçadoras. m Terão assim tanta fome? m perguntou Jondalar. n Talvez tivessem tido em tempos, mas agora fazem-no como ritual. Observei-as uma noite. Estavam a iniciar uma nova caçadora, a tornar uma jovem mulher parte da sua Alcateia de Lobos. Fazem-no em segredo em relação às outras mulheres, indo para um lugar especial longe das habitações. Tinham um lobo vivo numa jaula e mataram-no, esquartejaram-no e depois cozinharam-no e comeram-no. Gostam de pensar que dessa forma ficam com a força e a astúcia do lobo. Seria melhor que se limitassem a observar os lobos. Aprenderiam mais m disse Ayla.
Não era de admirar que parecesse reprovar tão fortemente as Mulheres
Lobo e as suas capacidades como caçadoras, pensou Jondalar, compreendendo
subitamente por que é que não gostava delas. Os seus ritos de iniciação ameaçavam o seu lobo. mE então ensinaste oLobo a ficar escondido
atd to o chamares. E um assobio absolutamente novo, não d? m
disse.
m Ensinar-to-ei, mas embora ele fique escondido.., a maior parte do
tempo.., quando o mando, continuo a preocupar-me. E também com a Whinney e o Corredor. Os únicos animais que vi as mulheres de Attaroa
matar foram cavalos e lobos m disse ela, olhando para os seus animais
queridos.
n Aprendeste muito sobre elas, Ayla m disse Jondalar.
mTive de aprender tudo o que podia, para te poder tirar de lá m disse ela. m Mas talvez tenha aprendido de mais.
m De mais? Como é que podias ter aprendido de mais?
m Quando te descobri, só pensei em tirar-te daquele sítio e depois
irmo-nos embora o mais depressa possível, mas agora não podemos ir.
m Que é que queres dizer com isso de não podermos ir? Por que é que
não podemos? m perguntou Jondalar, franzindo a testa.
Não podemos deixar aquelas crianças a viver em condições tão terríveis, nem os homens. Temos de os tirar daquele Cercado m disse Ayla.
Jondalar ficou preocupado. Já lhe tinha visto aquela expressão determinada.
m É perigoso ficar aqui, Ayla, e não apenas para nds. Pensa no alvo
fácil que são aqueles dois cavalos. Não fogem das pessoas. E decerto que
não queres ver os dentes do Lobo pendurados ao pescoço de Attaroa, pois
não? Eu também quero ajudar aquelas pessoas. Vivi lá dentro e ninguém devia viver assim, sobretudo crianças, mas que é que podemos fazer?
Somos apenas dois.
Ele queria mesmo ajudá-los, mas temia que se all ficassem Attaroa pudesse fazer mal a Ayla. Tinha pensado que a tinha perdido e agora, que já estavam de novo juntes, tinha medo que se ficassem ele pudesse per dê-la mesmo. Estava a tentar encontrar uma razão forte para a convencer a partir.
m Não estamos sozinhos. Há mais que duas pessoas a quererem
mudar as coisas. Temos de encontrar forma de os ajudar disse Ayla, fazendo depois uma pausa e pensando, m Creio que a S'Armuna quer que voltemos lá... foi por isso que nos ofereceu a sua hospitalidade. Temos de ir à festa amanhã.
mAttaroajá usou veneno antes. Selá voltarmos, podemos nunca mais partir-avisou Jondalar. To sabes que ela te odeia.
m Eu sei, mas, seja como for, temos de voltar. Por causa das crianças.
Não comeremos nada a não ser o que eu levar e só se não sair da nossa vista. Achas que devemos mudar o sítio do acampamento ou ficar aqui? -- disse Ayla. n Tenho muito que fazer para amanhã.
m Não creio, que adiante estarmos a mudar. Limitar-se-ão a seguir
o nosso rasto. E por isso que acho que devemos partir já m disse Jondalar, abraçando-a. Olhou-a nos olhos, concentrando-se, como se estives se a tentar forçá-la a mudar de ideias. Por fim, largou-a, pois sabia que ela não partiria e que ele ficaria para a ajudar. Era isso que no fundo do coração queria fazer, mas tinha de acreditar que não conseguia convencê-la a partir. Jurou a si próprio que não deixaria que ninguém lhe fizesse mal.
-- Está bem m disse, m Disse aos homens que to não suportarias que ninguém fosse tratado daquela forma. Não creio que tivessem acreditado, mas vamos precisar de ajuda para os libertar. Reconheço que fiquei admirado ao ouvir a sugestão de S'Armuna para ficarmos com ela m disse Jondalar.-Não creio que faça isso muitas vezes. A habitação dela é pequena e afastada. Não está preparada para receber visitantes, mas por que é que achas que ela quer que voltemos lá?
m Porque interrompeu Attaroa para nos convidar. Não creio que a
mulher-chefe tenha ficado satisfeita. Confias em S'Armuna, Jondalar?
O homem deteve-se para pensar.
m Não sei. Confio mais nela do que confio em Attaroa, mas isso não
quer dizer nada. Sabes que S'Armuna conheceu a minha mãe? Viveu com a Nona Caverna quando era nova e eram amigas.
m Então é por isso que ela fala tão bem a tua língua. Mas se conheceu
a tua mãe, por que é que não te ajudou?
m Perguntei isso mesmo a mim próprio. Talvez não quisesse. Creio
que terá acontecido qualquer coisa entre ela e a Marthona. E não me lembro
de alguma vez a minha mãe ter dito que conhecera uma pessoa que
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Nbula 44 -- ç
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vivera com eles quando era nova. Mas tenho um pressentimento acerca
de S'Armuna. Tratou-me a ferida e, embora isso tenha sido mais do que
ela alguma vez fez pelos outros homens, creio que quer fazer mais. Mas
não creio que Attaroa a deixe.
Tiraram as coisas do dorso do Corredor e montaram o acampamento, embora se sentissem ambos inquietos. Jondalar acendeu a fogueira enquanto Ayla começou a preparar a refeição. Começou com as porções que normalmente fazia para ambos, mas depois lembrou-se como os homens no Cercado tinham pouca comida e decidiu aumentar a quantidade. Assim que ele começasse a corner, sentiria muita fome.
Jondalar ficou acocorado junto à fogueira durante algum tempo, a
observar a mulher que amava. Depois diñgiu-se para ela.
m Antes de estares demasiado ocupada-disse ele, abraçando-a m
já saudei um cavalo e um lobo, mas ainda não saudei quem é mais importante para mim.
Ela sorriu com aquele jeito que suscitava sempre nele uma sensação de amor e ternura.
-- Nunca estou demasiado ocupada para ti-disse ela.
Ele inclinou-se para lhe beijar a boca, primeiro lentamente, mas depois foi subitamente invadido pelo medo e angústia de pensar que a podia perder.
Estava com tanto medo de nunca mais te ver. Pensei que tinhas morrido.-A voz dele cedeu com um soluço tenso e de alívio enquanto a abraçava.-Nada que Attaroa me pudesse ter feito seria pior que per der-te.
Apertou-a tanto contra si que ela mal conseguia respirar, mas não o queria largar. Ele beijou-lhe a boca, depois o pescoço e começou a explorar o seu corpo familiar com as suas mãos experientes.
-- Jondalar, tenho a certeza de que Epadoa nos está a seguir...
O homem recuou ligeiramente e reteve a respiração por instantes. mTens razão, não é boa altura. Estariamos demasiado vulneráveis se elas nos atacassem. Devia ter pensado nisso. Sentia-se na necessidade de dar uma explicação.-E só que.., pensei que nunca mais te veria. Estar aqui contigo é como ter recebido uma Dádiva da Mãe... bem.., tive vontade de A honrar.
Ayla abraçou-o, querendo que ele soubesse que ela sentia o mesmo. Occoreu-lhe a ideia de que nunca o ouvira tentar explicar por que é que a desejava. Ela não precisava de explicações. Ela própria tinha de se con trolar para não se esquecer do perigo que corriam e se entregar ao desejo que ela própria sentia. Depois, ao sentir o seu próprio calor pelo homem aumentar, reconsiderou a situação.
--Jondalar...-O tom da sua voz chamou-lhe a atenção.-Se se pen sar bem, provavelmente estamos muito adiantados em relação a Epadoa e ela ainda levará algum tempo a seguir-nos até cá... e o Lobo avisar nos-á...
Enquanto Jondalar olhava para ela, começando a perceber o que ela queria dizer, a sua expressão preocupada deulentamente lugar a um sorriso e os seus penetrantes olhos azuis encheram-se de desejo e de amor.
m Ayla, minha mulher, minha bela e querida mulher disse, com uma voz enrouquecida pelo desejo.
Já há muito tempo que não a tinha, e Jondalar estava pronto, mas beijou-a lentamente. Os lábios dela a entreabrirem-se para lhe dar acesso à boca encorajaram pensamentos de outros lábios entreabertos e de aberturas quentes e húmidas, e ele sentiu o pulsar do órgão da sua virilidade em antecipação. Ia-lhe ser difícil aguentar-se o suficiente paralhe dar Prazeres.
Ayla apertou-o contra si, fechando os olhos e pensando apenas na boca dele sobre a sua e na sua língua que a explorava suavemente. Sentiu o calor túrgido a fazer pressão contra ela e a sua resposta foi tão imediata como a dele; sentiu um desejo tão forte que não queria esperar. Queria estar mais perto dele, estar tão perto como só senti-lo dentro de si has taria. Mantendo os lábios contra os dele, fez deslizar os braços para desapertar o cinto das suas protecções de pernas. Deixou-as cair e começou a desapertar as dele.
Jondalar sentiu-a a tentar desfazer os nós que tinha tido que dar nas tiras de couro que tinham sido cortadas. Endireitou-se, interrompendo o contacto entre eles, sorriu, olhando para aqueles olhos de uma cor azul -acinzentada de uma certa qualidade de excelente pedreneira, desembainhou a faca e voltou a cortar os atilhos de couro. De qualquer forma precisavam de ser substituídos. Sorriu, ergueu a peça de roupa inferior o suficiente para se aproximarem um pouco mais das peles de dormir e atiraram-se ambos para cima delas. Observou-a enquanto ela desapertava as botas e depois fez o mesmo.
Deitados de lado, voltaram a beijar-se, enquanto Jondalar metia a mão por baixo daparka de pele e da túnica para tocar num seio firme. Sentiu o mamilo contrair-se na palma da sua mão e puxou para cima a pesada roupa para deixar à mostra o bico. Este contraiu-se com o frio, até ele o meter na boca. Então aqueceu, mas não se descontraiu. Não querendo esperar, ela rolou de forma a ficar de costas, puxando-o com ela, e abriu-se para o receber.
Com uma sensação de alegria por ela estar tão pronta como ele, Jondalar ajoelhou-se entre as suas coxas quentes e guiou o seu membro ansioso para o seu poço fundo. O calor húmido dela envolveu-o, acariciando todo o órgão tumefacto enquanto ele penetrava mais fundo, suspirando e gemendo de prazer.
Ayla sentiu-o dentro de si, a penetrar bem fundo, levando-o mais perto
do âmago do seu ser. Permitiu-se esquecer de tudo a não ser do seu ca130
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lor que a enchia enquanto se arqueava para ir ao seu encontro. Sentiuo
recuar, acariciando-a por dentro, e depois voltar a enchê-la. Deu uma exclamação
de saudação e de encanto enquanto o seu longo membro recuou
e a penetrou novamente, na posição exacta para esfregar o seu pequeno
centro de prazer de cada vez que entrava e provocando em todo o seu corpo
choques de excitação.
Jondalar estava a atingir rapidamente o auge; por instantes temeu estar
a ser demasiado rápido-mas não teria conseguido travar-se mesmo
que quisesse e desta vez não tentou. Deixou-se avançar e recuar ao
sabor do desejo, apercebendo-se da sua vontade no ritmo dos seus movimentos
que acompanharam os dele à medida que se tornaram mais rá-pidos. Subitamente, avassaladoramente, ele estava lá.
Com uma intensidade igual à dele, ela estava pronta para ele. Murmurou:
--Agora, oh, agora-indo ao seu encontro. O encorajamento dela foi
uma surpresa para Jondalar. Nunca o fizera antes, mas teve efeito imediato.
Ao penetrá-la novamente, o seu desejo atingiu um auge explosivo
e irrompeu numa erupção de libertação e prazer. Ela estava apenas um
passo atrás dele e, com um grito de encanto, atingiu o auge no momento
seguinte. Depois de mais alguns movimentos, ficaram ambos deitados,
quietos.
Embora tivesse terminado rapidamente, o momento tinha fido tal intensidade que a mulher demorou algum tempo a descer do pico culminante. Quando Jondalar, sentindo que o seu peso em cima dela se esta va a tornar excessivo, rolou para o lado e saiu de dentro dela, Ayla sentiu uma inexplicável sensação de perda, desejando que pudessem continuar unidos mais tempo. De alguma forma ele complementava-a, e depois a percepção plena de quanto temera por ele e sentira a sua falta abateu-se sobre ela com tal violência que sentiu lágrimas nos olhos.
Jondalar viu uma gota transparente de água escorrer pelo canto exterior do seu olho e correr-lhe pela cara até à orelha. Soergueu-se e olhou para ela.
-- Que é que se passa, Ayla?
--Estou só muito contente por estar contigo-disse ela, enquanto outra lágrima se formava e tremeu junto à pálpebra antes de cair.
Jondalar tocou-lhe com o dedo e levou a gota salgada aos lábios.
--Se estás contente, por que é que estás a chorar?--disse ele, embora soubesse.
Ela abanou a cabeça, sem conseguir falar nesse instante. Ele sorriu por saber que ela compartilhava os seus poderosos sentimentos de alívio e gratidão por estafem de novo juntos. Inclinou-se para lhe beijar os olhos, a face e, por fim, a sua linda boca sorridente.
-- Também te amo-murmurou-lhe ao ouvido.
Sentiu uma leve reacção no seu membro e desejou poderem recomeçar
tudo outra vez, mas não era altura para isso. Decerto que Epadoa os vinha a seguir e, mais cedo ou mais tarde, encontrálos-ia.
-- Há um ribeiro aqui perto-disse Ayla.-Preciso de me lavar e mais vale encher já os sacos de água.
--You contigo-disse o homem, em parte por querer continuar perto dela e em parte por sentir vontade de a proteger.
Pegaram na sua roupa inferior e nas botas, depois nos sacos de água, e dirigiram-se para um ribeiro relativamente largo, quase totalmente coberto de gelo, tendo apenas uma pequena parte central com água a correr.
Ele estremeceu com o choque da água gelada e percebeu que só se
lavava porque ela o fazia. Por ele deixar-se-ia secar com o calor da roupa,
mas Ayla, quando tinha oportunidade de se lavar, mesmo na água mais
gelada, fazia-o. Ele sabia que era um ritual no seu Clã que a madrasta lhe ensinara, embora ela agora invocasse a Mãe num murmúrio de palavras
ditas em Mamutoi.
Encheram os sacos de água e, ao regressarem ao acampamento, Ayla recordou a cena que tostemunhara antes de os atilhos dele serem corta dos pela primeira vez.
-- Por que é que não copulaste com Attaroa? -- perguntou.-Feriste o seu orgulho à frente de toda a gente.
-- Eu também tenho o meu orgulho. Ninguém me pode forçar a compartilhar a Dádiva da Mãe. E de nada teria adiantado. Tenho a certeza de que a intenção dela foi sempre fazer de mim alvo. Mas agora, acho que és to que tens de ter cuidado. "Falta de cortesia e de hospitalidade"...- disse, rindo baixinho, mas ficando subitamente sério.-Ela odeia-te, sabes? Se tiver oportunidade, matar-nos-á a ambos.
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Enquanto Ayla e Jondalar se preparavam para dormir, estavam ambos
extremamente conscientes de cada som que ouviam. Os cavalos estavam
presos all perto e Ayla manteve o Lobo junto à sua pele de dormir,
sabendo que ele a avisaria de qualquer coisa de invulgar da qual se apercebesse,
mas mesmo assim dormiu mal. Os seus sonhos deram-lhe uma
sensação de ameaça, mas foram amorfos e desorganizados, sem quaisquer
mensagens ou alertas que ela conseguisse definir, a não ser que o
Lobo aparecia constantemente neles.
Acordou quando os primeiros raios da madrugada penetraram através dos ramos nus dos salgueiros e das bétulas a este, perto do ribeiro. Ainda estava escuro no resto da clareira protegida onde se encontravam, mas enquanto ela la observando começou a ver os espruces de agulhas grossas e os pinheiros com agulhas mais compridas e tinas a detinirem -se à luz que ia aumentando. Tinha caído um pouco de neve seca durante a noite, pintando de branco as sempre-verdes, os arbustos emaranhados, a erva seca e as suas peles de dormir, mas Ayla estava aconchegada e quente.
Quase se esquecera de como era born ter o Jondalar a dormir ao seu lado e ficou all quieta durante algum tempo, gozando a sua proximidade. Mas o seu espírito não sossegava. Estava preocupada com o dia que tinha pela frente e no que iria fazer para a festa. Finalmente, decidiu levantar -se mas, quando tentou deslizar para fora das peles, sentiu o braço de Jondalar a apertA-la, impedindo-a.
--Tens mesmo que te levantar? Há tanto tempo que não te sintojunto de mim que detesto ter de te deixar ir-disse Jondalar, beijando-lhe o pescoço.
Ela aninhou-se no calor dele.
--Também não me apetece levantar. Está frio e gostaria de ficar aqui nas peles contigo, mas preciso de começar a cozinhar qualquer coisa para a "festa" de Attaroa e fazer a tua refeição da manhã. Não tens fome?
mAgora que falas nisso, acho que comeria um cavalo!-- disse Jondalar, olhando com uma expressão de exagerado interesse para os dois all perto.
-- Jondalar! -- exclamou Ayla, sentindo-se chocada.
Ele sorríulhe.
PLAN[CIES DE PASSAGEM
-- Nenhum dos nossos, mas foi isso que comi ultimamente.., quando
comia. Se não tivesse tanta fome, creio que não conseguiria corner carne
de cavalo, mas quando não se term mais nada, come-se o que se consegue.
E não term nada de mal.
--Eu sei, mas já não precisas de corner mais. Temos mais comidadisse ela. Voltaram a aconchegar-se os dois durante mais algum tempo e depois Ayla atirou para trás as peles.-A fogueira apagou-se. Sea vol tares a acender, eu farei o nosso chá da manhã. Hoje precisamos de uma grande fogueira e de muita lenha.
Com os restos da refeição do dia anterior, Ayla preparou uma sopa
bem suculenta e em maior quantidade do que habitualmente, com carne
de bisonte e raízes secas, juntando-lhe alguns pinhões que tirou das pinhas, mas Jondalar já não conseguiu corner tanto quanto pensava.
Depois de põr o que sobrou de parte, tirou um cesto cheio de maçãs inteiras,
pouco maiores que cerejas, que encontrara quando seguia Jondalar
Tinham congelado, mas ainda estavam presas a um grupo de árvores
anãs, sem folhas, na face virada a sul de um monte. Ela tinha cortado as
pequenas maçãs ao meio, tirado os caroços e tinha-as fervido durante
algum tempo com rebentos de rosa secos. Deixara o resultado junto à
fogueira durante a noite. De manhã, estavam frias e a mistura engrossa
ta devido à pectina natural, parecendo um molho com uma consistência
gelatinosa com pedaços de pele de maçã.
Antes de fazer o chá da manhã, Ayla acrescentou um pouco de água à sopa que restara e pôs mais pedras de cozinhar no lume para a aquecer para o pequeno-almoço. Também provou a mistura espessa de maçã. O facto de estarem congeladas tinha atenuado o sabor normalmente acre das maçãs duras e os rebentos de rosa que acrescentara tinham-lhe con ferido um tom avermelhado e um sabor adocicado. Serviu uma malga para Jondalar corner juntamente com a sopa.
-- Nunca comi nada tão bom[ -- disse Jondalar depois de corner um
pouco-Que é que lá puseste dentro para saber tão bem?
Ayla sorriu.
-- Está temperada com a fome.
Jondalar assentiu e, enquanto comia, disse:
--Creio que tens razão. E isso faz-me sentir muita pena pelos que ainda estão no Cercado.
-- Ninguém deve passar fome quando, existe comida m disse Ayla, a sua ira reacendendo-se por instantes, m E outra coisa quando toda a gente passa fome.
-- Por vezes, no final de um Inverno mau, isso pode acontecer disse Jondalar.-Já alguma vez passaste fome?
--Já passei sem algumas refeições e a comida de que mais gostava pao
recia desaparecer sempre primeiro, mas, se se souber onde procurar,
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
normalmente consegue-se encontrar alguma coisa para corner.., isto se
se estiver livre para ir à procura!
k Conheci pessoas que morreram de fome por a comida se ter acaba
do e não saberem onde procurar mais, mas parece-me que to consegues sempre encontrar comida, Ayla. Como é que sabes tantas coisas?
kA Iza ensinou-me. Creio que sempre me interessei por comida e por coisas que crescem-disse Ayla, fazendo uma pausa.-Creio que houve uma altura em que quase morri à fome, pouco antes de a Iza me encontrar. Era pequena e não me lembro.-Um sorriso muito torno de recordação perpassou-lhe no rosto.-A Iza dizia que nunca encontrara ninguém que tivesse aprendido tão depressa a encontrar comida como eu, sobretudo não tondo nascido com a memória de onde ou como a procurar. Disse-me que a fome me ensinava.
Depois de ter devorado um segundo prato de sopa, Jondalar observou Ayla enquanto ela escolhia alimentos das reservas cuidadosamente guardadas e começava os preparativos para o prato que queria fazer para a festa. Ela tinha estado apensar em que recipiento o cozinharia, pois precisava de um que fosse suficientemente grande para fazer a quantidade que precisava para todo o Acampamento S'Armunai, dado que tinham escondido a maior parte do seu equipamento e trazido consigo apenas o essencial.
Ayla pegou no maior saco de água que tinha, esvaziou-o para dentro de malgas e utensflios de cozinha mais pequenos, depois separou o forro da pele exterior, que tinha sido cosida com o pêlo para fora. O forro tinha sido feito com o estômago de um auroque, que não era exactamento à prova de água mas que apenas permitia que a água se escoasse muito lentamento. A humidade era absorvida pelo couro macio da cobertura e escorria pelo pêlo, que mantinha a parte exterior praticamente seca. Cortou a parto de cima do forro, amarrou-o a uma armação de madeira presa com tendões tirados do seu estojo de costura, voltou a enchê-lo de água e esperou até uma levíssima camada de humidade repassar.
Nessa altura, o lume que tinham acendido já estava reduzido a brasas incandescentes e ela colocou o saco de água montado na armação di rectamento por cima delas, assegurando-se de que tinha água adicional à mão para manter a panela de couro cheia. Enquanto esperava que a água fervesse, começou a entretocer um cesto de malha muito apertada com ramos finos de salgueiro e ervas amarelecidas tornadas flexíveis pela humidade da neve.
Quando começaram a aparecer bolhas, partiu algumas tiras de carne magra seca e alguns bolos de viagem para dentro da água para fazer um caldo suculento e a saber a carne. Depois juntou uma mistura de cereais.
Tencionava mais tarde acrescentar algumas raízes secas-cenouras silvestres
e amendoins , além de vagens e folhas de legumes e corintos e
mirtilos secos. Temperou a mistura com uma selecção de ervas, incluindo
tussilagem, alho, azedas, manjericão e ulmiria, um pouco de sal que guardara desde o Encontro de Verão dos Mamutoi e que Jondalar nem
sequer sabia que ela ainda tinha.
Ele não tinha o menor desejo de se afastar muito dali e ficou por per
to, indo apanhar lenha, buscar mais água, apanhar ervas e cortar ramos
de salgueiro para os cestos que ela estava a fazer. Estava tão contonto por
estar com ela que não queria que ela ficasse fora da sua vista. Ela estava igualmente contento por estar de novo na sua companhia. Mas quando o
homem reparou na grande quantidade de comida de reserva que ela esta
va a utilizar, ficou preocupado. Tinha acabado de passar por um período
em que tivera muita fome e ficara com uma invulgar consciência da
comida.
Ayla, muita da nossa comida de emergência está nesse prato. Se usares demasiada, as nossas reservas poderão não chegar.
-- Quero fazer o suficiente para todos, para as mulheres e homens do
Acampamento de Attaroa, para lhes mostrar o que podiam ter armazenado se trabalhassem todos juntos-explicou Ayla.
-- Talvez deva pegar no meu lançador de lanças e ver se consigo encontrar carne fresca disse ele, com uma expressão preocupada.
Ela olhou para ele, surpreendida com a sua preocupação. Na sua larga maioria, a comida que tinham comido durante a sua Viagem tinha sido apanhada na torra por onde passavam e, a maior parto das vezes, quando recorriam às suas reservas, era mais por conveniência que por necessidade. Além disso, tinham mais reservas de comida escondidas com o resto das suas coisas, perto do rio. Olhou para ele atontamente. Reparou, pela primeira vez, que estava mais magro e começou a compreender aquela preocupação tão pouco caractorística nele.
--Talvez seja boa ideia-concordou ela.-Talvez devas levar oLobo contigo. Ele é muito hábil a descobrir e espantar a caça e poderá avisar-te
se alguém se aproximar. Tenho a certoza de que Epadoa e as Mulheres
Lobo de Attaroa andam à nossa procura.
Mas se eu levo o Lobo, quem é que te avisa a ti? -- disse Jondalar. A Whinney. Ela dará por estranhos a aproximarem-se. Mas gosta
ria de ir embora daqui assim que isto estiver pronto, e regressar ao acampamento
dos S'Armunai.
-- Ainda demora muito? -- perguntou ele, franzindo ainda mais a testa ao pesar as alternativas.
-- Não muito, espero, mas não estou habituada a cozinhar tanto de uma vez, portanto não tenho a certeza.
Talvez eu deva esperar e ir caçar mais tarde.
--A decisão é tua, mas se cá ficares estou a precisar de mais lenha- disse ela.
-- You buscar lenha-decidiu ele. Olhando em volta, acrescentou:--
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E arrumarei tudo o que não estás a usar para estarmos prontos para
partir.
Ayla levou mais tempo do que calculara e, por volta do meio-dia, Jondalar
acabou por levar o Lobo para fazer o reconhecimento da área, mais
para se assegurar de que Epadoa não andava por perto do que para pro°
curar caça. Ficou um pouco admirado por o Lobo se mostrar tão ansioso
por ir com ele.., depois de Ayla lhe dizer para ir. Tinha considerado sempre
o animal como sendo exclusivamente dela e nunca pensara em levar o Lobo consigo. Verificou que o animal era boa companhia e descobriu
uma peça de caça, mas Jondalar decidiu deixá-lo ficar com o coelho todo
para corner.
Quando regressaram, Ayla deu a Jondalar uma grande dose da deliciosa mistura que preparara para o Acampamento. Embora normalmente não comessem senão duas vezes por dia, assim que viu a malga cheia de comida, Jondalar apercebeu-se de que estava cheio de fome. Ela também comeu um pouco e deu uma malga ao Lobo.
Passava um pouco do meio-dia quando ficaram prontos para partir. Enquanto a comida estava ao lume, Ayla tinha acabado dois cestos bastante altos em forma de malga, ambos de born tamanho mas um deles um pouco maior que o outro, e encheu ambos com a mistura espessa e saborosa. Tinha juntado alguns pinhões oleosos que tirou das pinhas. Sabia que como a sua alimentação era sobretudo composta por carne magra, a suculência das gorduras e óleos seria o que mais agradaria às pessoas do Acampamento. Também sabia, sem compreender totalmente porquê, que era disso que mais precisavam, sobretudo no Inverno, para terem calor e energia e, juntamente com os cereais, o que faria que todos se sentissem cheios e satisfeitos.
Ayla tapou os recipientes com cestos pouco fundos virados para baixo que usou como tampas, pS-los no dorso da Whinney e amarrou-os a um suporte grosseiro que fizera com ervas secas e ramos finos de salgueiro, que entretecera rapidamente e sem grande perfeição pois seria apenas usado uma vez e deitado fora. Depois iniciaram o regresso ao aldeamento dos S'Armunai, utilizando um caminho diferente. Pelo caminho, discuti ram o que fazer com os animais quando chegassem ao Acampamento de Attaroa.
-- Podemos esconder os cavalos na floresta junto ao rio, amarrálos a uma árvore e fazer o resto do caminho a pé-sugeriu Jondalar.
--Não os quero amarrar. Se as caçadoras de Attaroa por acaso os en contrarem, seria extremamente fácil matá-los disse Ayla. m Se estiverem soltos, pelo menos terão possibilidade de fugir e virão ter connos co quando assobiarmos. Prefiro tê-los por perto, onde os possamos ver.
m Nesse caso, o campo de erva seca ao lado do Acampamento poderá ser um born sítio para eles. Creio que ficarão lá sem estarem amarrados. Normalmente não se afastam quando os pomos num sítio onde podem pastar disse Jondalar.-E terá um certo efeito em Attaroa e nos S'Armunai se entrarmos ambos no Acampanento a cavalo. Se forem como toda a gente que encontrámos até aqui, os S'Armunai provavelmente terão um certo medo de pessoas que conseguem controlar cavalos. Todos pen sam que tom a ver com espíritos ou poderes mágicos ou qualquer coisa assim, mas, enquanto tiverem medo, isso dar-nos-á uma certa vantagem. Como somos apenas dois, precisamos de ter todas as vantagens possíveis.
-- Isso é verdade-disse Ayla, franzindo a tosta devido à sua preocupação por eles e pelos animais e porque detestava a ideia de obter vantagem com o medo infundado dos S'Armunai. Fazia que ficasse com a sensação de estar a mentir, mas as suas vidas estavam em jogo e muito provavelmente a vida dos rapazes e dos homens no Cercado.
Foi um momento difícil para Ayla. Era-lhe exigido que fizesse uma escolha entre dois males, mas tinha sido ela a insistir que regressassem para ajudar, muito embora isso pusesse a sua vida em ñsco. Teve de superar a compulsão bem enraizada nela de ser absolutamente verdadeira; tinha de escolher o mal menor, adaptar-se, para terem oportunidade de salvar os rapazes e os homens do Acampamento, e eles próprios, da loucura de Attaroa.
-- Ayla disse Jondalar.-Ayla? m repetiu quando viu que ela não
respondia à sua pergunta.
-- Uh... sim?
-- Eu disse, e o Lobo? Também o vais levar para o Acampamento?
Ela fez uma pausa para pensar nisso.
Não, creio que não. Eles sabem dos cavalos, mas não sabem da existência de um lobo. Dado o que fazem com os lobos, não vejo qualquer razão para lhes darmos oportunidade de se aproximarem demasiado dele. Vou-lhe dizer para ficar escondido. Creio que ficará, se me vir de vez em quando.
-- Onde é que se poderá esconder? À volta do aldeamento só há praticamente campo aberto.
Ayla pensou durante alguns instantes.
O Lobo pode ficar onde eu estive escondida quando te observava. Daqui podemos dar a volta até ao lado mais íngreme do monte. Há algumas árvores e arbustos ao longo de um pequeno ribeiro que passa por lá. Podes esperar lá por mim com os cavalos; depois damos a volta e entramos no Acampamento a cavalo vindo de outra direcção.
Ninguém deu por eles a entrarem no campo pela orla da floresta e os
primeiros a verem a mulher e o homem, cada um num cavalo diferente,
a galopar pelo terreno aberto em direcção ao aldeamento, tiveram a sensação
de que tinham simplesmente aparecido. Quando chegaram à
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grande habitação de Attaroa, todos os que podiam tinham-se juntado
para os ver. Atd os homens no Cercado estavam apinhados por detrás da
paliçada a espreitar pelas fendas.
Attaroa estava de pé, com as mãos nas ancas e as pernas afastadas,
na sua atitude de comando. Embora nunca o reconhecesse, estava choca
da e mais do que ligeiramente preocupada ao vê-los, desta vez ambos
montados em cavalos. As poucas vezes que alguém conseguira fugir dela,
tinha-se afastado o mais possível e o mais depressa que podia. Ninguém
tinha regressado voluntariamente. Que poder é que aqueles dois tinham
para se sentirem confiantes ao ponto de voltar? Com o seu medo latente
de represálias da Grande Mãe e do Seu mundo de espíritos, Attaroa in-i
terrogou-se sobre o que poderia significar o reaparecimento da enigmá-tica mulher e do homem alto e belo, mas as suas palavras não revelaram
nada da sua preocupação.
m Então decidiram voltar m disse, olhando para S'Armuna para ela
traduzir.
Jondalar achou que a shaman também parecia surpreendida, mas apercebeu-se do seu alívio. Antes de ela ter traduzido as palavras de Attaroa para Zelandonii, diñgiu-se directamente a eles.
-- Independentemente do que ela disser, aconselho-te a não ficares na habitação dela, filho de Marthona. A minha oferta ainda está de pé para ambos-disse, antes de repetir o comentáño de Attaroa.
A mulher chefe olhou para S'Armuna, tendo a certeza de que ela dissera mais palavras que as necessárias para traduzir. Mas não conhecendo a língua, não podia ter a certeza.
--Por que é que não havíamos de voltar? Não fomos convidados para uma festa em nossa honra? -- disse Ayla.-Trouxemos a nossa contribuição de comida.
Enquanto as suas palavras estavam a ser traduzidas, Ayla lançou a
perna por cima da garupa do cavalo e deslizou de cima do dorso da Whinney, pegando depois no recipiente maior e colocando-o no chão entre
Attaroa e S'Armuna. Levantou o cesto que servia de tampa e o aroma
delicioso da enorme quantidade de cereais cozinhados com outros ingredientes
fez que toda a gente ficasse estupefacta e com água na boca. Era
um petisco que raramente tinham tido nos últimos anos, sobretudo no In
verno. Até Attaroa ficou momentaneamente avassalada.
m Parece chegar para todos-disse ela.
-- Isto é apenas para as mulheres e crianças-disse Ayla.-Depois
pegou no recipiente ligeiramente mais pequeno que Jondalar acabara de lhe trazer e pô-lo ao lado do primeiro. Levantou a tampa e anunciou: --
Isto é para os homens.
Um murmúrio colectivo ergueu-se de detrás da paliçada e das mulheres que tinham saído das suas habitações, mas Attaroa estava furiosa.
-- Que é que queres dizer com isso ser para os homens?
PLAN]CIES DE PASSAGEM
-- Decerto que quando o chefe de um Acampamento anuncia uma
festa em honra de um visitante, isso inclui toda a gente, não é? Parti do
princípio de que eraschefe de todo o Acampamento e que era suposto eu
trazer comida que chegasse para todos. És chefe de todos, não és?
-- Claro que sou chefe de todos-exclamou Attaroa, sem saber o que dizer.
-- Se ainda não está tudo pronto, acho que deves levar a comida lá para
dentro para não congelar-disse Ayla, pegando de novo no recipiente
maior e virando para S'Armuna. Jondalar pegou no outro.
Attaroa recompôs-se rapidamente.
-- Convidei-os a ficar na minha habitação-disse.
Tenho a certeza de que estás muito atarefada com os preparativos m disse Ay.la--, e não quero impor a nossa presença à chefe deste Acampamento. E mais apropriado ficarmos com Aquela Que Serve a Mãe.-
S'Armuna traduziu e acrescentou: -- É sempre assim que se faz.
Ayla virou-se para ir, murmurando a Jondalar:
-- Começa a andar em direcção à habitação da S'Armuna! Enquanto Attaroa os observava a afastarem-se com a shaman, um
sorriso de pura maldade alterou lentamente as suas feições, transformando
um rosto que podia ter sido belo numa medonha caricatura sub
humana. Tinham sido estúpidos em voltar, pensou, sabendo que o seu regresso lhe tinha dado a oportunidade que queria: a oportunidade de os
destruir. Mas também sabia que tinha de os apanhar desprevenidos. Enquanto
pensava nisso, ficou contente por os ter deixado ir com S'Armu
na. Assim não a atrapalhariam. Queria tempo para pensar e discutir os
seus planos com Epadoa, que ainda não regressara.
No entanto, por agora, tinha de aceitar aquela festa. Fez sinal a uma das mulheres, a que tinha um bebé rapariga e era uma das suas preferi das, e disse-lhe para dizer às outras mulheres para prepararem alguma comida para a festa.
Façam o sciente para todos disse a mulher-chefe --, incluindo os homensno Cercado.
A mulher ficou surpreeendida, mas assentiu e afastou-se apressada mente.
m Calculo que lhes apetece um chá quente-disse S'Armuna, depois
de indicar a Ayla e Jondalar o sítio onde dormiriam, e à espera que At
taroa aparecesse a qualquer momento. Mas depois de terem bebido o chá
sem serem perturbados, descontraiu-se um pouco. Quanto mais tempo
Ayla e Jondalar lá estivessem sem a mulher-chefe levantar objecções,
mais provável era que lhes fosse permitido lá ficar.
Mas à medida que a tensão de se preocupar com Attaroa se atenuava,
um silêncio desconfortável desceu sobre as três pessoas sentadas à la
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reira. Ayla estudou a mulher Que Servia a Mãe, tentando não ser demasiado
ostensiva. O seu rosto tinha um formato estranho, com o lado
esquerdo bastante mais proeminente que o direito e calculou que S'Ar
muna podia mesmo ter dores no maxilar subdesenvolvido quando mas
tigava. A mulher nada fazia para esconder a anomalia, usando o cabelo
castanho-claro, já a ficar grisalho, com indisfarçada dignidade, puxado
para trás e preso num carrapito liso perto do cimo da cabeça. Por qualquer
razão inexplicável, Ayla sentia-se atraída pela mulher mais velha.
No entanto, Ayla não pôde deixar de reparar numa certa hesitação nos seus modos e sentiu que S'Armuna estava dilacerada pela indecisão.
Olhava repetidamente para Jondalar, como se lhe quisesse dizer qualquer
coisa mas tivesse dificuldade em começar, como se estivesse a ten
tar encontrar uma maneira delicada de abordar um assunto difícil.
Agindo por instinto, Ayla falou.
-- Jondalar disse-me que conheceste a sua mãe, S'Armuna-disse.-Interroguei-me sobre onde é que terias aprendido a falar a sua língua
tão bem.
A mulher voltou-se para a visitante com uma expressão de surpresa. -- A língua dele, não a sua? -- Ayla quase sentiu a intensa avaliação que a shaman lhe estava a fazer, mas correspondeu ao olhar da mulher com igual intensidade.
-- Sim, conheci bem Marthona e o homem com quem se acasalou. Parecia querer dizer mais, mas ficou calada. Jondalar preencheu o vazio, ansioso por falar do seu lar e da sua família, sobretudo com alguém que os tinha conhecido.
-- Quando lá estiveste, Joconan era o chefe da Nona Caverna?-- perguntou Jondalar.
-- Não, mas não me surpreende que se tenha tornado chefe.
-- Dizem que Marthona era quase co-chefe, como uma mulher-chefe dos Mamutoi. Foi por isso que, depois de o Joconan morrer...
--Joconan morreu? --interrompeu S'Armuna. Ayla sentiu o choque da mulher e reparou numa expressão que mostrava algo semelhante a dor. Depois pareceu recuperar a compostura. Deve ter sido uma altura difícil para a tua mãe.
-- Tenho a certeza de que foi, embora ache que não teve muito tempo para pensar nisso nem para o chorar longamente. Toda a gente a pres sionava para ser chefe. Não sei quando é que conheceu Dalanar, mas quando se acasalou com ele já era chefe da Nona Caverna há vários anos. A Zelandoni disse-me que já estava abençoada comigo antes do acasala mento, portanto devia ser um acasalamento bem sucedido, mas eles cortaram o nó um ou dois anos depois de eu ter nascido e ele optou por se ir embora. Não sei o que aconteceu, mas ainda são recordadas histórias e canções tristes sobre o seu amor, e que embaraçam a Mãe.
Foi Ayla quem o incitou a continuar, no interesse dele, embora o interesse de S'Armuna fosse também evidente.
-- Ela voltou a acasalar e teve mais crianças, não foi? Sei que tinhas outro irmão.
Jondalar continuou, dirigindo a sua narrativa a S'Armuna.
-- O meu irmão Thonolan nasceu do lar de Willomar, bem como a minha irmã Folara. Creio que foi um acasalamento born para ela. Marthona está muito feliz com ele e ele foi sempre muito born para mim. Costuma va viajar muito, ir em missões de trocas a pedido da minha mãe. Por vezes levava-me com ele. E ao Thonolan também, quando já tinha idade suficiente. Durante muito tempo pensei em Willomar como o homem do meu lar, até ter ido viver com Danalar e o conhecer um pouco melhor. Ainda me sinto ligado a ele, embora Danalar tivesse sido muito born para mim e eu tivesse acabado por também gostar dele. Ele descobriu uma mina de pedreneira, conheceu Jerika e deu início à sua própria Caverna. Tiveram uma filha, Joplaya, minha prima-irmã.
Ocorreu subitamente a Ayla que se um homem fosse tão responsável
por dar início a uma nova vida dentro de uma mulher como a própria mulher,
então a "prima" a quem ele chamava Joplaya era na verdade sua
irmã; tão sua irmã como a que se chamava Folara. Chamara-lhe prima
-imã; seria por reconhecerem que era um laço mais íntimo que a relação
com as crianças das irmãs da mãe ou das companheiras dos seus irmãos? A conversa sobre a mãe de Jondalar tinha continuado enquanto
ela reflectia sobre as implicações dos parentescos de Jondalar.
-- Depois a minha mãe passou a chefia para Joharran, embora ele tivesse insistido para ela continuar para o aconselhar-dizia Jondalar. Como é que conheceste a minha mãe?
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m Conheci-a como Zolena.
m Zolena? É demasiado nova para ser Primeira! Era apenas uma ra parigu.inha bonita quando lá estive.
-- E nova, talvez, mas é muito dedicada D disse Jondalar.
S'Armuna assentiu e depois retomou o fio à sua própria história.
D Marthona e eu tínhamos praticamente a mesma idade e o lar da sua mãe tinha um estatuto elevado. O meu tio e a tua avó, Jondalar, fizeram um acordo para eu ir viver com ela. Ele apenas lá ficou o tempo smíciente para se assegurar de que eu estava bem.-Os olhos de S'Armuna ficaram com uma expressão distante. Marthona e eu éramos como irmãs.
Mais próximas que irmãs, mesmo, mais como gémeas. Gostávamos das
mesmas coisas e compartilhávamos tudo. Ela até decidiu treinar para ser zelandoni comigo.
-- Não sabia isso-disse Jondalar.-Talvez tenha sido aí que ganhou as suas qualidades de liderança.
-- Talvez, mas nessa altura nenhuma de nós pensava em ser chefe. Eramos inseparáveis e queríamos as mesmas coisas.., até isso se transformar num problema. E S'Armuna parou de falar.
-- Um problema? D encorajou Ayla.-Havia algum problema em serem assim tão amigas?-- Estava apensar na Deegie e como tinha sido maravilhoso ter uma amiga, embora durante pouco tempo. Teña adora do conhecer alguém assim enquanto crescera. Uba tinha sido como uma irmã para ela mas, por mais que ela tivesse gostado dela, a Uba era Clã. Por mais sua amiga que fosse, havia algumas coisas que nunca compreenderiam uma acerca da outra, tais como a curiosidade inata de Ayla e as memórias de Uba.
-- Sim m disse S'Armuna, olhando para a jovem mulher, voltando a ter consciência do seu estranho sotaque.-O problema foi termo-nos apaixonado pelo mesmo homem. Creio que Joconan podia ter-nos ama do às duas. Uma vez chegou a falar num acasalamento duplo e creio que Marthona e eu teríamos aceite, mas nessa altura o velho Zelandoni já tinha morrido e quando Joconan procurou o novo para se aconselhar, ele disse-lhe para escolher Marthona. Nessa altura pensei que era por Mar thona ser tão bela e o seu rosto não ser torto, mas agora creio que foi porque o meu tio lhe tinha dito que queria que eu regressasse. Não fiquei lá até ao Matrimonial; estava demasiado amargurada e zangada. Regressei assim que me disseram.
-- Voltaste para cá sozinha? D perguntou Jondalar.-Atravessaste o glaciar sozinha?
-- Sim m disse a mulher.
--Não há muitas mulheres que façam Viagens tão longas, sobretudo sozinhas. Foi uma coisa perigosa e corajosa para fazeres sozinha-disse Jondalar.
m Perigosa, sim. Quase caí numa ravina, mas não sei aid que ponto
foi uma coisa corajosa. Creio que foi a ira que me deu forças. Mas quando regressei, tudo tinha mudado; eu já estava ausente há muitos anos. A minha mãe e a minha tia tinham-se mudado para o norte, onde vivem muitos S'Armunai, juntamente com os meus primos e irmãos, e a minha mãe tinha morñdo lá. O meu tio também já morrera e um outro homem era chefe, um estranho chamado Brugar. Não sei bem de onde é que tinha vindo. A princípio, parecia encantador, não belo, mas muito atraente com o seu ar rude, mas era cruel e mau.
-- Brugar... Brugar-disse Jondalar, fechando os olhos e tentando lembrar-se onde é que tinha ouvido aquele nome.-Não era o companheiro de Attaroa?
S'Armuna levantou-se, subitamente muito agitada.
D Alguém quer mais chá? -- perguntou. Ayla e Jondalar aceitaram ambos. Elalevou-lhes malgas com a bebida de ervas bem quente e depois foi buscar uma para ela, mas, antes de se sentar, dirigiu-se aos visitantes. -- Nunca contei tudo isto a ninguém.
Por que é que nos estás a contar? -- perguntou Ayla.
-- Para que compreendam.-Virou-se para Jondalar. D Sim, Bru
gar era o companheiro de Attaroa. Aparentemente, ele começou a introduzir
alterações pouco depois de se tornar chefe e começou a tornar os
homens mais importantes que as mulheres. A princípio, foram coisas
pequenas. As mulheres tinham de se sentar e esperar até lhes ser dada
autorização para falar. As mulheres não podiam tocar em armas. A princípio
não nos pareceu grave e os homens gostavam do poder que tinham,
mas, depois de a primeira mulher ser espancada atd à morte como punição
por ter expressado a sua opinião, as outras começaram a perceber que a situação era muito grave. Mas as pessoas já não sabiam o que tinha
acontecido, nem como repor a situação anterior. Brugar suscitava o pior
nos homens. Tinha um grupo de seguidores e creio que os outros tinham
medo de não o seguir.
-- Onde é que ele terá ido buscar essas ideias? -- disse Jondalar.
Com uma inspiração súbita, Ayla perguntou:
Como era o aspecto desse tal Brugar?
Tinha feições marcadas, rudes, como já disse, mas era encantador e atraente quando queria.
-- Há muita gente do Clã, muitos cabeças achatadas, nesta zona? -- perguntou Ayla.
-- Dantes havia, mas já não há muitos. Há muitos mais a oeste daqui.
Prquê?
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nheiras e as crianças são toleradas, mas, tanto quanto sei, não são bem
aceites por nenhum dos lados.
m Achas que o Brugar pode ter nascido de espíritos misturados? --
perguntou Ayla.
-- Por que é que estás a fazer estas perguntas?
m Porque creio que terá vívido, talvez sido criado, por aqueles a quem vocês chamam cabeças achatadas-respondeu Ayla.
Por que é que pensas isso? -- perguntou a shaman.-Porque as coisas que descreves são hábitos do Clã.-Clã?
-- É assim que os cabeças achatadas chamam a si próprios-explicou Ayla e depois começou a especular.-Mas se ele falava tão bem e era encantador, não .podia ter vivido sempre com eles. Provavelmente não nasceu deles, mas foi viver com eles mais tarde e, como era de espíritos misturados, foi mal tolerado ou talvez considerado deformado. Duvido que ele tivesse realmente compreendido os seus hábitos, portanto terá sido sempre um estranho. A sua vida provavelmente foi infeliz.
S'Armuna ficou surpreendida. Pensou como é que Ayla, uma estranha absoluta, podia saber tanto.
-- Para alguém que nunca conheceste, pareces saber muito sobre o Brugar.
Então ele nasceu de espíritos misturados? -- disse Jondalar.
-- Sim. Attaroa contou-me quais eram os seus antecedentes, o que sabia. Aparentemente, a mãe era de mistura pura, semi-humana, semi --cabeça achatada; tinha nascido de uma mãe cabeça achatada pura- começou S'Armuna.
"Provavelmente uma criança causada por um homem dos Outros que
a tinha forçado", pensou Ayla, "como a rapariga bebé no Encontro do Clã
que estava prometida ao Durc."
--A sua infância deve ter sido infeliz. Deixou a sua gente quando era quase mulher, com um homem de uma Caverna da gente que vivem a oeste daqui.
-- Os Losadunai? -- perguntou Jondalar.
-- Sim, creio que é assim que se chamam. De qualquer forma, pouco depois de ela ter fugido, teve um bebé rapaz. Foi o Brugar-continuou S'Armuna.
Brugar, por vezes chamado Brug? -- exclamou Ayla.
-- Como é que sabes?
-- Brug podia ser o seu nome do Clã.
-- Creio que o homem com quem a mãe fugiu costumava baterlhe.
Quem sabe porquê? Alguns homens são assim.
--As mulheres do Clã são criadas para aceitar isso m disse Ayla. Não é permitido aos homens bater uns aos outros, mas podem bater numa mulher para a castigar. Não é suposto bater-lhes, mas alguns homens fa zem-no.
S'Armuna assentiu, compreendendo.
--Portanto talvez a princípio a mãe de Brugar aceitasse que o homem
com quem vivia lhe batesse, mas ele deve ter começado a abusar. E o que
os homens normalmente fazem e deve ambém ter começado a bater no
rapaz. Pode ter sido isso que acabou por fazer que ela se fosse embora. De qualquer forma, levou-o com ela e fugiu do companheiro, tendo regressado
para junto da sua gente-disse S'Armuna.
-- E se foi difícil para ela crescer com o Clã, deve ter sido pior para o filho, que nem sequer era uma mistura pura-disse Ayla.
-- Se os espíritos se misturaram como seria de esperar, ele seria três partes humano e apenas uma parte cabeça achatad.a-disse S'Arrnuna.
Ayla pensou subitamente no seu filho, Durc. "E provável que Broud lhe torne a vida difícil. E se ele ficar como o Brugar? Mas o Durc é uma
mistura pura e term a Uba que o ama e o Brun para o treinar. O Brun aceitouo
no Clã do qual era chefe e Durc era ainda bebé. Assegurar-se-á de
que o Durc aprende os hábitos do Clã. Sei que seria capaz de falar, se
tivesse alguém que o ensinasse, mas pode também ter as memórias. Se
tiver, pode ser Clã puro, com a ajuda de Brun."
S'Armuna teve uma súbita suspeita acerca daquela misteriosajovem mulher.
--Como é que sabes tantas coisas acerca dos cabeças achatadas, Ayla? perguntou.
A pergunta apanhouAyla desprevenida. Não estava de pé atrás, como estaria com Attaroa, e não estava preparada para se esquivar à pergunta. Pelo contrário, disse a verdade.
-- Fui criada por eles-disse.-A minha gente morreu num tremor de terra e eles ficaram comigo.
-- A tua infância deve ter sido ainda mais dificil que a do Brugar- disse S'Armuna.
-- Não, creio que de certa forma foi mais fácil. Eu não era considerada uma criança deformada do Clã; era apenas diferente. Uma dos Outros.., que é como nos chamam. Não esperavam nada de mim. Algumas coisas que eu fazia eram tão estranhas para eles que não sabiam o que pensar de mim. Excepto que tenho a certeza de que alguns pensavam que eu era um pouco lenta, pois tinha muita dificuldade em memorizar as coisas. Não estou a dizer que foi fácil para mim crescer com eles. Tive de aprender a falar à maneira deles e tive de aprender a viver de acordo com os sus hábitos, aprendeï as suas tradições. Foi difícil para mim integrar -níe, mas tive sorte. Iza e Creb, as pessoas que me criaram, amavam-me e sei que sem eles não teria sequer sobrevivido.
Praticamente rodas as afirmações de Ayla suscitaram perguntas no espírito de S'Armuna, mas não era a altura apropriada para as fazer.
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--É born não teres qualquer mistura dentro de ti disse ela, olhando
com uma expressão significativa para Jondalar u, sobretudo por ires
conhecer os Zelandonñ.
Ayla percebeu o olhar e ficou com ideia do que a mulher queria dizer. Lembrou-se da forma como Jondalar reagira inicialmente quando descobriu quem a tinha criado e tinha sido ainda pior quando soube do seu filho de espíritos misturados.
m Como é que sabes que ela ainda não os conheceu? m perguntou Jondalar.
S'Armuna fez uma pausa para reflectir sobre a pergunta. Como é que
sabia? Depois sorriu ao homem.
u Disseste que estavas de regresso a casa e ela disse "a língua dele",
não a dela. u Subitamente, ocorreu-lhe uma ideia, uma revelação, u A língua! O sotaque! Agora já sei onde é que o ouvi. Brugar tinha um sotaque como este! Não tão forte como o teu, Ayla, embora ele não falasse a sua língua tão bem como to falas a de Jondalar. Mas ele devia ter desenvolvido essa fala.., esse maneirismo.., não é bem um sotaque.., quando viveu com os cabeças achatadas. Há qualquer coisa na forma como falas e, agora que a ouvi, creio que nunca mais a esquecerei.
Ayla sentiu-se embaraçada. Tinha-se esforçado tanto por falar correctamente, mas nunca conseguira realmente fazer alguns sons. A maior parte das vezes já não a incomodava quando as pessoas se referiam a isso, mas S'Armuna estava a insistir tanto.
A shaman reparou no seu embaraço. mDesculpa, Ayla, não foi minhaintenção embaraçar-te. Falas Zelandonii muito bem, provavelmente .melhor que eu, pois já esqueci muito. E não tens realmente um sotaque. E outra coisa. Tenho a certeza de que a maioria das pessoas nem sequer dá por isso. Só que me deste uma tal compreensão de Brugar e isso ajuda-me a entender Attaroa.
m Ajuda-te a entender Attaroa? -- perguntou Jondalar. m Gostava
de conseguir compreender como é que alguém pode ser tão cruel.
mEla não foi sempre má. Quando voltei, cheguei a admirá-la, embora também sentisse muita pena dela. Mas, de certa forma, ela estava pre parada para o Brugar como poucas mulheres estariam.
Preparada? E uma coisa estranha de se dizer. Preparada para quê?
m Preparada para a sua crueldade m explicou S'Armuna. m Attaroa
foi cruelmente usada quando era rapariga. Nunca falou muito disso, mas sei que sentia que a própria mãe a odiava. Soube por outra pessoa que a mãe a abandonou, pelo menos era o que se pensava. Foi-se embora e nunca mais se soube nada dela. Attaroa acabou por ser recolhida por um homem cuja companheira morrera ao ter uma criança, em circunstâncias que levantaram muitas suspeitas, e o bebd morreu com ela. As suspeitas surgiram quando se descobriu que ele baila em Attaroa e que a temara mesmo antes de ela ser mulher, mas mais ninguém quis ser responsável por ela. Isso devia-se a qualquer coisa relacionada com a mãe, com uma questão qualquer sobre o seu passado, mas fez que Attaroa crescesse e ficasse marcada pela crueldade dele. Por fim o homem morreu e algumas pessoas do seu Acampamento trataram do seu acasalamento como novo chefe deste Acampamento.
m Trataram do acasalamento sem o consentimento dela? m perguntou Jondalar.
m "Encorajaram-na" a concordar, e levaram-na para que conheces
se Brugar. Como já disse, ele conseguia ser encantador e tenho a certeza de que a achou atraente.
Jondalar assentiu, concordando. Reparara que ela conseguia ser bastante atraente.
m Creio que ela estava ansiosa pelo acasalamento-continuou S'Armuna.
m Sentiu que seria uma oportunidade de começar de novo. Depois
descobriu que o homem a quem se juntara era ainda pior que aquele que
conhecera antes. Os Prazeres de Br .ugar eram sempre acompanhados de
espancamento, humilhação e pior. A sua maneira, ele.., hesito em dizer
que a amava, mas creio que gostava dela. Só que era tão.., retorcido. No
entanto, ela era a única que ousava desafiá-lo, apesar de tudo o que ele lhe fazia.
S'Armuna fez uma pausa, abanou a cabeça e depois continuou.
m Brugar era um homem forte, muito forte, e gostava de magoar as
pessoas, sobretudo as mulheres. Creio que gostava realmente de causar dor às mulheres. Disseste que não é pevmitido aos cabeças achatadas ba terem noutros homens, embora possam bater nas mulheres. Isso pode ter a ver com o que ele fazia. Mas Brugar gostava da atitude de desafio de At taroa. Ela era bastante mais alta que ele e term muita força. Ele gostava do desafio de lhe quebrar a resistência e ficava encantado quando ela lutava com ele. Dava-lhe um pretexto para a magoar, o que parecia fazer que se sentisse poderoso.
Ayla estremeceu, recordando uma situação bastante parecida e sentindo
um momento de empatia e compaixão pela mulherchefe. m Gabava-se disso aos outros homens e eles encorajavam-no, ou pe
lo menos concordavam-disse a mulher mais velha, m Quanto mais ela resistia, pior ele era para ela, até ela finalmente ceder. Nessa altura ele queria-a. Eu costumava pensar se ela tivesse sido agradável para com ele, será que ele teria acabado lor se fartar dela e parado de lhe bater?
Ayla pensou nisso. Broud tinha-se fartado dela quando ela deixou de
resistir.
m Mas, de certa forms, duvido m continuou S'Armuna. m Mais tar
de,lñdo ela foi abençoada e deixou de lutar, ele não mudou. Ela era a sua companheira e, na sua ideia, pertencia-lhe. Podia fazer o que quisesse com ela.
"Eu nunca fui companheira de Broud", pensou Ayla, "e, depois da148
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quela primeira vez, o Brun não deixava que ele me batesse. Embora tivesse
esse direito, o resto do Clã achava que o seu interesse por mim era estranho.
Desencorajaram o seu comportamento."
-- O Brugar não deixou de lhe bater nem sequer quando Attaroa ficou grávida? -- perguntou Jondalar, horrorizado.
-- Não, embora parecesse satisfeito por ela ir ter um bebé-disse a mulher.
"Eu também fiquei grávida", pensou Ayla. A sua vida e a vida de At taroa tinham muitas semelhanças.
Attaroa veio ter comigo para eu a tratar-continuava S'Armuna, fechando os olhos e abanando a cabeça como que para fazer desaparecer a recordação.-As coisas que ele lhe fazia eram tão horríveis que não vos posso contar. O menos grave eram as nódoas negras resultantes dos es pancamentos.
Por que é que ela se sujeitou a isso? perguntou Jondalar.
Não tinha nenhum sítio para onde ir. Não tinha nem parentes nem amigos. As pessoas do seu outro Acampamento tinham deixado bem claro que não a queriam e inicialmente ela teve demasiado orgulho para regressar e dar-lhes a saber que o seu acasalamento com o novo chefe era assim tão mau. De certa forma, sei como ela se sentia-disse S'Armu na.-Ninguém me batia, embora o Brugar tivesse tentado uma vez, mas achei que não tinha nenhum sítio para onde ir, muito embora tenha parentes. Eu era Aquela Que Serve a Mãe e não podia admitir que as coisas tinham chegado àquele ponto. Teria parecido que eu tinha falhado.
Jondalar assentiu, compreendendo. Também ele já sentira que era um fracassado. Olhou de relance para Ayla e sentiu o seu amor por ela aquecê-lo.
--Attaroa odiava Brugar-continuou S'Armuna-mas, de uma forma estranha, talvez também o amasse. Por vezes creio que o provocava de propSsito. Pensei se não seria por, quando a dor desaparecia, ele a pos suir e, mesmo não a amando, ou dando-lhe Prazeres, pelo menos fazia que se sentisse desejada. Ela pode ter aprendido a retirar um tipo perver so de Prazer da sua crueldade. Agora não quer ninguém. Dá Prazer a si própria causando dor aos homens. Sea observarem, poderão ver a sua excitação.
-- Quase tenho pena dela-disse Jondalar.
:-Tem pena dela, se quiseres, mas não confies nela-disse ahaman.-E louca, está possuída por um grande mal. Será que compreendem? A1
guma vez se sentiram tão cheios de raiva que a razão vos tivesse aban
donado?
Os olhos de Jondalar estavam muito abertos ao sentir-se obrigado a
assentir. Já sentira uma raiva assim. Batera num homem até ele ficar inconsciente
e mesmo então não tinha conseguido parar.
-- Em relação a Attaroa, é como se ela esteja constanteemente cheia de
PLAN]CIES DE PASSAGEM
uma tal raiva. Nem sempre a mostra.., na realidade, é muito hábil a
escondê-la.., mas os seus pensamentos e sentimentos estão tão cheios
desta raiva malévola que ela deixa de conseguir pensar ou sentir como as
pessoas normais fazem. Deixa de ser humana-explicou a shaman.
-- Decerto que ela term alguns sentimentos humanos? -- disse Jondalar. -- Lembras-te do funeral pouco depois de cá teres chegado?-- perguntou S'Armuna.
-- Sim, de trêsjovens. De dois homens e não tive a certeza em relação ao terceiro, muito embora estivessem todos vestidos de igual. Lembro -me de ter pensado que é que teria causado a sua morte. Eram tão novos.
-- Foi Attaroa que causou a sua morte-disse S'Armuna.-E aquele em relação ao qual não tiveste a certeza, esse era o seu próprio filho.
Ouviram um ruído e viraram-se todos em simultâneo para a entrada da habitação de S'Armuna.
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Uma jovem mulher estava na passagem da entrada da habitação,
olhando nervosamente para as três pessoas que lá estavam dentro. Jondalar
reparou de imediato que ela era bastante nova, quase uma rapari
ga; Ayla reparou que ela estava bastante grávida.-Que é, Cavoa? n disse S'Armuna.
n Epadoa e as suas caçadoras acabaram de chegar e Attaroa está a
gritar com ela.
-- Obrigada por me wires dizer-disse a mulher mais velha, voltan do-se depois para os seus convidados.-As paredes desta habitação são tão espessas que é difícil ouvir qualquer coisa do outro lado. Talvez devamos lá ir.
Apressaram-se a sair, passando pela jovem grávida, que tentou recuar para os deixar passar. Ayla sortiulhe.
n Não esperar muito mais? n disse em S'Armunai.
Cavoa sorriu nervosa e baixou os olhos.
Ayla achou que ela parecia assustada e infeliz, o que era invulgar numa futura mãe, mas depois, reflectiu, a maioria das mulheres que espe ram o primeiro bebé ficavam um pouco nervosas. Assim que saíram da habitação, ouviram Attaroa.
--... diz-me que encontraste o sítio onde acamparam. Perdeste a tua oportunidade! Não és grande Mulher Lobo se nem sequer consegues seguir uma pista invectivou a mulher-chefe aos gritos.
Epadoa estava com os lábios comprimidos, com os olhos a faiscar de
ira, mas não lhe deu resposta. Tinha-se juntado uma pequena multidão all em volta, não demasiado perto, mas a jovem mulher vestida de peles
de lobo reparou que a maioña se tinha virado para olhar noutra direcção.
Olhou de relance para ver o que lhes tinha chamado a atenção e ficou so
bressaltada ao ver a mulher loura a vir na sua direcção, seguida, o que era
ainda mais surpreendente, pelo homem alto. Não tinha conhecimento de
que qualquer homem all tivesse regressado depois de conseguir fugir.
Que é que eles estão a fazer aqui? -- exclamou.
Já te disse. Perdeste a tua oportunidade n troçou Attaroa. Regressaram de sua livre vontade.
nPor que é que não havíamos de estar cá?-- disse Ayla.-Não fomos convidados para uma festa? traduziu S'Armuna.
PLAN[CIES DE PASSAGEM
nA festa ainda não está pronta. Logo à noite-disse Attaroa aos visitantes,
deixando de lhes prestar atenção e dirigindo-se depois à chefe das
Mulheres Lobo.-Vem cá para dentro, Epadoa. Quero falar contigo.-
Virou as costas a todos quantos a observavam e entrou na sua habitação.
Epadoa olhou fixamente para Ayla, enquanto uma ruga funda se desenhava
na sua testa; depois foi atrás da mulherchefe.
Depois de ela desaparecer, Ayla olhou para o fundo do campo com certa apreensão. Afinal de contas, sabia-se que Epadoa e as suas caçadoras caçavam cavalos. Ficou aliviada quando viu a Whinney e o Corredor no lado oposto do campo de erva seca a alguma distância dali. Virou-se e estudou a mata e os arbustos na encosta para lá do Acampamento, lamentando não poder ver o Lobo, no entanto contente por não poder. Queria que ele ficasse escondido, mas fez questão de se colocar bem à sua vista e de olhar na sua direcção, na esperança de que ele a conseguisse ver.
Enquanto os visitantes se dirigiam com S'Armuna de volta à sua habitação, Jondalar lembrou-se de um comentário que ela fizera anterior mente e que lhe picara a curiosidade.
-- Como é que conseguiste manter Brugar longe de ti? perguntou. -- Disseste que ele tentou bater-te uma vez, como fazia a todas as outras mulheres; como é que o impediste?
A mulher mais velha parou e olhou com dureza para o jovem homem e depois para a mulher que ia ao seu lado. Ayla sentiu a indecisão da shaman e sentiu que ela os estava a avaliar, tentando decidir quanto lhes devia contar.
-- Ele tolerava-me porque eu era curandeira.., referia-se sempre a mim como curandeira-disse S'Armuna --, mas, acima de tudo, temia o mundo dos espíritos.
Os comentários dela levantaram uma pergunta no espírito de Ayla.
--As curandeiras têm um estatuto único no Clã disse--, mas apenas curam. São os Mog-urs que comunicam com os espíritos.
-- Com os espíritos conhecidos dos cabeças achatadas talvez, mas Brugar temia o poder da Mãe. Creio que tinha consciência de que Ela sa bia o mal que ele fazia e que o mal corrompia o seu espírito. Creio que ele temia o Seu castigo. Quando lhe mostrei que conseguia usar o Seu poder, ele nunca mais me incomodou-disse S'Armuna.
-- Consegues usar o Seu poder? Como? -- perguntou Jondalar.
S'Armuna meteu a mão dentro da camisa e retirou a pequena figura
de uma mulher, talvez com um dez centímetros de altura. Ayla e Jondalar
já tinham ambos visto muitos objectos semelhantes, normalmente
esculpidos em maním, osso ou madeira. Jondalar atdjá vira alguns que
tinham sido cuidadosa eternamente esculpidos de pedra, utilizando apenas
utensflios de pedra. Eram figuras da Mãe e, à excepção do Clã, todos
os grupos de pessoas que quer um quer outro tinham conhecido, desde os
JEAN A UEL
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Caçadores de Mamutes do leste, à gente de Jondalar no oeste, tinham a
sua própria versão Dela.
Algumas das figuras eram bastante grosseiras, outras esculpidas com perfeição; algumas eram altamente abstractas, outras imagens perfeita mente proporcionadas de mulheres maduras de corpo inteiro, à excepção de alguns aspectos abstractos. A maioria das esculturas davam ênfase aos atributos de uma maternidade fértil m seios grandes, barrigas arredondadas, ancas largas-e minimizavam propositamente outras características.
Multas vezes tinham apenas uma sugestão de braços, ou as
pernas terminavam num bico e não em pés, para a figura poder ser cravada
no chão. E não tinham, invañavelmente, feições. Não era suposto as figuras serem um retrato de nenhuma mulher em particular e certamente
nenhum artista podia saber como era o rosto da Grande Terra
Mãe. Por vezes o rosto era deixado liso, ou tinha marcas enigmáticas, por
vezes o cabelo tinha um penteado elaberado e continuava em terno da cabeça,
cobrindo o rosto.
O único retrato de uma mulher que qualquer um deles tinha visto tinha sido a escultura doce e terna que Jondalar fizera de Ayla quando estavam sozinhos no vale, pouco depois de se terem conhecido. Mas Jondalar por vezes lamentava a sua impulsiva indiscrição. Não era sua intenção ser uma figura da Mãe; tinha-a feito porque se apaixonara por Ayla e queria capturar o seu.espírito. Mas apercebeu-se, depois de a ter feito, de que encerrava um tremendo poder. Temia que lhe causasse mal, sobretudo se caísse nas mãos de alguém que quisesse ter controlo sobre ela. Até teve medo de a destruir, com medo de que a sua destruição lhe pudesse fazer mal. Tinha decidido dar-lha para ele a guardar em segurança. Ayla adorava a pequena escultura de uma mulher, com um rosto esculpido que se assemelhava ao seu por ter sido Jondalar a fazê-la. Nunca pensou que pudesse ter algum poder; apenas a achava bela.
Embora as figuras da Mãe fossem frequentemente consideradas belas, não eram de jovens mulheres núbeis feitas para agradar a um cânone de beleza masculino. Eram representações simbólicas da Mulher, da sua capacidade de criar e produzir vida dentro do seu corpo e de a alimentar com a sua própria maturidade fértil e, por analogia, simbolizavam a Grande Terra Mãe, que criava e produzia toda a vida no Seu corpo e alimentava todos os Seus filhos com a Sua maravilhosa generosidade. As figuras eram também receptáculo para o espírito da Grande Mãe de Todos, um espírito que podia assumir multas formas.
Mas aquela figura da Mãe era única. S'Armuna deu a munai a Jondalar.
-- Diz-me de que é feita-disse.
Jondalar virou a pequena figura nas suas mãos, examinando-a cuidadosamente.
Tinha seios pendentes e ancas largas, os braços eram sugeridos
apenas até aos cotovelos, as pernas estreitaram para baixo e, em
bora estivesse indicado um penteado, o rosto não tinha quaisquer marcas. Não era muito diferente em tamanho ou forma de multas que ele já vira, mas o material de que era feita era absolutamente invulgar. A cor era uniformemente escura. Quando tentou deixar uma marca com a unha, não conseguiu. Não era feita de madeira, nem de osso, nem de mar fim ou da armação de um veado. Era dura como pedra, mas muito lisa, sem qualquer indicação ou marcas de ter sido esculpida. Não se assemelhava a nenhuma pedra que ele alguma vez vira.
Olhou para S'Armuna com uma expressão intrigada.
-- Nunca vi nada de semelhante-disse.
Jondalar deu a figura a Ayla e ela sentiu-se atravessada por um arrepio assim que tocou nela. "Devia ter levado a minhaparka de pele quando fomos lá para fora", pensou, mas não conseguiu deixar de sentir que tinha sido algo mais que o frio que a tinha feito sentir aquele fortíssimo arrepio.
Essa munai começou por ser o pó da terra afirmou a mulher.
-- Pó? -- disse Ayla.-Mas isto é pedra!
m Sim, agora é. Eu transformei-o em pedra.
Transformaste-o em pedra? Como é que podes transformar pó em
pedra? -- disse Jondalar, cheio de incredulidade.
A mulher sorriu.
-- Se eu vos disser, isso faria que acreditassem no meu poder?
Se me conseguires convencer-retorquiu o homem.
--Dir-te-ei, mas não tentarei convencer-te. Terás de te convencer a
ti próprio. Comecei com barro duro e seco da margem do rio e esmigalheio
atd ficar em pó. Depois misturei-lhe água. S'Armuna parou de
falar por instantes, pensando se deveria dizer mais alguma coisa sobre
a mistura. Decidiu que não o faria, por enquanto.-Quando ficou com a
consistência certa, dei-lhe as formas. O lume e o ar quente transformaram-na
em pedra-declarou a shaman, observando para ver como é que
os dois jovens estranhos reagiriam, se mostravam desdém ou se ficavam
impressionados, se duvidavam ou acreditavam nela.
O homem fechou os olhos, tentando recordar-se de qualquer coisa.
-- Lembro-me de ter ouvido.., a um homem Losadunai, creio.., qualquer coisa sobre figuras da Mãe feitas de lama.
S'Armuna sorriu.
--Sim, pode-se dizer que fazemos munai de lama. E também animais, quando precisamos de invocar os seus espíritos, muitas espécies de animais, ursos, leões, mamutes, rinocerontes, cavalos, o que quer que queiramos.
Mas são feitos de lama apenas enquanto lhes damos forma. Uma
figura feita do pó da terra misturado com água, mesmo depois de ter en
durecido, derrete-se na água e transforma-se na lama da qual foi feita,
e depois em pó, mas depois de ter sido trazida à vida pela Sua chama sagrada,
está transformada para sempre. Quando passam pelo calor escal
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
dante da Mãe, as figuras tornam-se duras como pedra. O espírito vivo do
lume faz que durem.
Ayla viu uma chama de entusiasmo nos olhos da mulher que lhe fez recordar a excitação de Jondalar quando estava a criar o lançador de lanças.Apercebeu-se de que S'Armuna estava a reviver a emoção da descoberta e ficou convencida.
B São estaiadiças, ainda mais que a pedreneira B continuou a mulher. BA Própria Mãe mostrou como podem ser partidas, mas a água não as transforma. Uma munai feita de lama, uma vez tocada pelo Seu fogo vivo, pode ficar ao ar livre à chuva e à neve, pode ficar ensopada em água, que não derreterá.
m Na verdade deténs o poder da Mãe B disse Ayla.
A mulher hesitou por instantes e depois perguntou:
B Gostariam de ver?
B Oh, sim, eu gostava B disse Ayla ao mesmo tempo que Jondalar respondia:
m Sim, estaria muito interessado.
B Então venham. Mostrarvosei.
B Posso ir buscar a minha parka? B disse Ayla.
B Claro B disse S'Armuna. B Todos nós devemos vestir roupa mais quente, embora, se fizermos a Cerimónia do Fogo, estará tanto calor que se se estiver perto não são precisas peles, nem sequer num dia como o de hoje. Está tudo quase pronto. Teríamos acendido o lume e começado a cerimónia esta noite, mas leva tempo e a necessária concentração. Esperaremos por amanhã. Esta noite temos uma festa importante onde ir.
S'Armuna parou de falar por instantes e fechou os olhos, como se estivesse a escutar ou a reflectir num pensamento que lhe tivesse ocorrido.
B Sim, uma festa muito importante B repetiu, olhando directamente
para Ayla. "Será que ela term consciência do perigo que a ameaça?",
pensou a shaman. "Se é quem eu penso, term de ter."
Entraram na habitação da shaman e vestiram a roupa exterior. Ayla reparou que a jovem mulher se tinha ido embora. Depois S'Armuna levou-os para certa distância da sua habitação, para a orla mais afastada do aldeamento, na direcção de algumas mulheres que estavam a trabalhar à volta de uma construção de aspecto bastante inóquo e que se assemelhava a uma pequena habitação de terra com telhado inclinado. As mulheres estavam a levar excrementos secos, lenha e ossos para dentro da pequena estrutura, materiais para fazer lume, apercebeu-se Ayla. Reconheceu a jovem grávida entre elas e sorriu-lhe. Cavoa retribuiulhe envergonhadamente o sorriso.
S'Armuna dirigiu-se para a entrada baixa da pequena estrutura, baixou a cabeça e depois virou-se e fez sinal aos visitantes para se aproximarem ao ver que eles tinham ficado à distância, pois não sabiam bem se deviam ou não segui-la. Lá dentro, uma fogueira,com chamas que envolviam as brasas incandescentes, mantinha bastante quente a pequena an tecâmara mais ou menos circular. Pilhas separadas de ossos, lenhas e excrementos quase enchiam a metade esquerda do espaço. Ao longo da parede curva do lado direito havia várias prateleiras grosseiras, ossos achatados dos quartos dianteiros e ossos pélvicos de mamutes sustenta dos por pedras, cheias de muitos objectos pequenos.
Aproximaram-se e ficaram surpreendidos ao ver que os objectos eram figuras que tinham sido formadas e moldadas de barro lamacento e dei xadas a secar. Várias das figuras eram de mulheres. Figuras da Mãe, mas algumas nåo estavam completas, sendo apenas as partes distintas das mulheres, a parte inferior do corpo, incluindo as pernas, por exemplo, ou os seios. Noutras prateleiras havia animais, de novo não na sua forma completa, cabeças de leões e de ursos e as formas distintas de mamutes, com as suas cabeças em forma de cúpula, cernelhas volumosas e dorsos inclinados.
As figuras pareciam ter sido feitas por pessoas diferentes; algumas eram bastante imperfeitas, mostrando pouca capacidade artística, outros objectos eram muito sofisticados em termos de concepção e bem feitos. Embora nem Ayla nem Jondalar compreendessem por que é que as pessoas que tinham moldado as peças tinham feito aquelas formas específicas, sentiam que cada uma tinha sido inspirada por alguma razão ou sentimento individual.
Do lado oposto ao da entrada, havia uma pequena abertura que dava para um espaço fechado no inte.rior da estrutura, que tinha sido escava do no terreno loess da encosta. A excepção de abrir para o lado, fez lembrar a Ayla um grande forno de chão, do tipo que era cavado na terra, aquecido com pedras quentes e utilizado para cozinhar alimentos, mas sentiu que nunca tinham sido cozinhados alimentos naquele forno. Quando foi espreitar lá para dentro, viu que havia uma fogueira no interior daquela segunda dependência.
Dos pequenos pedaços de material carbonizado no meio das cinzas, apercebeu-se de que tinha sido utilizado osso como combustível e, olhando mais atentamente, reconheceu que era um fosso de lume semelhante aos que eram usados pelos Mamutei, mas ainda mais fundo. Ayla olhou em volta, pensando onde é que era o buraco de entrada de ar. Para fazer arder osso, era necessário um lume extremamente quente, o que exigia que o ar fosse fowado a entrar. Os fossos de lume dos Mamutoi eram alimentados pelo vento que soprava constantemente do exterior, levado para lá por entradas-trincheira que eram controladas por abafadores.
Jondalar examinou atentamente o interior da segunda dependência e
chegou a conclusões semelhantes; da cor e da dureza das paredes ficou
com a certeza de que naquele espaço tinham sido mantidas fogueiras
extremamente quentes durante longos períodos de tempo. Calculou que
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os pequenos objectos de barro nas prateleiras se destinavam ao mesmo
tratamento.
O homem tinha razão ao dizer que nunca tinha visto nada semelhante
à figura da Mãe que S'Armuna lhe mostrou. A figura, feita pela mulher
que estava à sua frente, não tinha sido fabricada através da modificação-escultura, formação ou polimento-de um material que ocorria naturalmente.
Era feita de cerâmica, de barro cozido, o primeiro material a ser
criado pela mão humana e pela inteligência humana. A câmara de aquecimento
não era um forno de cozinhar, era uma estufa.
E a primeira estufa a ser engendrada não foi inventada com o propó-sito de fazer recipientes úteis à prova de água. Muito antes de haver utensílios
de barro cozido, pequenas esculturas de cerâmica eram cozidas,
ficando com uma dureza impecável. As figuras que tinham visto nas prateleiras
assemelhavam-se a animais e a seres humanos, mas as imagens
de mulheres-não eram feitos homens, apenas mulheres e de outras
criaturas vivas não eram consideradas reproduções. Eram símbolos, metáforas,
destinadas a representar mais do que mostravam, a sugerir uma
analogia, uma semelhança espiritual. Eram arre; a arte nasceu antes da
utilidade.
Jondalar indicou o espaço que seria aquecido e disse à shaman.
É este o sítio onde arde o fogo sagrado da Mãe? Era tanto uma afirmação como uma pergunta.
S'Armuna assentiu, sabendo que ele já acreditava nela. A mulher tinha sabido antes de verem aquele local; o homem demorara um pouco mais.
Ayla ficou contente quando a mulher os levou para fora daquele sítio. Não sabia se era do calor do lume no interior do pequeno espaço, ou dos objectos de barro, ou de qualquer outra coisa, mas tinha começado a sentir-se bastante inquieta. Sentia que podia ser perigoso estar lá dentro.
-- Como é que descobriste isto? perguntou Jondalar, fazendo um
gesto com o braço que abarcava o forno e os objectos de cerâmica.
-- Foi a Mãe que me guiou disse a mulher.
Estou certo disso, mas como? voltou a perguntar.
S'Armuna sorñu devido à sua insistência. Parecia-lhe natural um filho de Marthona querer compreender.
A primeira ideia veio-me quando estávamos a construir uma habitação de terra-disse. Sabes como as fazemos?
-- Creio que sim. As vossas parecem-me semelhantes às habitações Mamutoi e nós ajudámos Talut a fazer uma para aumentar o Acampamento do Leão disse Jondalar. Começaram com uma estrutura feita de ossos de mamute e sobre ela estenderam uma camada de ramos de salgueiro, seguida de outra camada de erva e juncos. Depois puseram uma camada de terra com raízes. Por cima desta camada puseram outra de barro lamacento tirado do rio, que endurecia muito quando secava.
-- É essencialmente como nós fazemos-disse S'Armuna.-Foi quando estávamos a pôr a última camada de barro que a Mãe me reve lou a primeira parte do Seu segredo. Estávamos a acabar a última secção, mas estava a escurecer e acendemos uma grande fogueira. O barro estava a começar a endurecer e alguns pedaços caíram acidentalmente no lume. Era um lume muito quente, pois utilizamos osso como combustível e man tivemo-lo aceso durante a maior parte da noite. De manhã, Brugar disse-me para limpar o sítio onde tínhamos feito a fogueira e encontrei os pedaços de barro que tinham endurecido. Reparei, em particular, num pedaço que parecia um leão.
-- O totem protector de Ayla é um leão-comentou Jondalar.
A shaman olhou-a de relance e depois assentiu, como se para si pró-pria, enquanto continuava.
--Quando descobri que a figura do leão não amolecia quando posta em água, decidi fazer mais algumas. Foram necessárias muitas experiências e outras indicações da Mãe, antes de conseguir que resultasse.
Por que é que nos estás a contar os teus segredos? A mostrar-nos o teu poder? -- perguntou Ayla.
A pergunta foi tão directa que apanhou a mulher desprevenida, mas depois sorriu.
--Não imaginem que vos estou a contar todos os meus segredos. Estou a mostrar-lhes o que é evidente. O Brugar pensava que sabia os meus segredos, mas não tardou a perceber que não era assim.
--Tenho a certeza de que Brugar se apercebeu das tuas tentativas- disse Ayla.-Não se pode fazer uma fogueira muito quente sem toda a gente dar por isso. Como é que conseguiste esconder os teus segredos dele?
--A princípio ele não se ralou com o que eu estava a fazer, desde que arranjasse o meu próprio combustível, até que viu alguns dos resultados.
Depois pensou que também conseguia fazer figuras, mas não sabia tudo
o que a Mãe me revelara. O sorriso de Aquela Que Servia a Mãe reve
lava o seu sentimento de vingança e de triunfo.-A Mãe rejeitou os seus esforços com grande fúria. As figuras de Brugar rebentaram com grande
ruído, partindo-se em muitos pedaços quando ele as tentou cozer. A
Grande Mãe lançou-as para longe com tal força que causaram dolorosos
ferimentos às pessoas que estavam all perto. Depois disso, Brugar passou
a temer o meu poder e deixou de tentar controlar-me.
Ayla conseguia imaginar estar dentro da pequena antecâmara com pedaços de barro incandescente a voar a grande velocidade.
-- Mas isso continua a não exp.licar por que é que nos estás a contar tantas coisas sobre o teu poder. E possível que outra pessoa que com preenda os desígnios da Mãe possa aprender os teus segredos.
S'Armuna assentiu. Era o que já esperava daquela mulher e já decidira que a total franqueza seña o melhor caminho a seguir.
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PLAN[CIES DE PASSA GEM
--É claro.que estás certa no que dizes. Tenho uma razão para isso.
Preciso da vossa ajuda. Com esta magia, a Mãe deu-me um grande poder,
mesmo sobre Attaroa. Ela teme a minha magia, mas é astuta e imprevisível e estou certa de que um dia superará o seu medo. Nessa altura ma
tar-me-á.-A mulher olhou para Jondalar. m A minha morte não seria
muito importante, a não ser para mim própria. É pelo resto das pessoas,
por todo o Acampamento, que mais temo. Quando disseste que Martho
na tinha passado a chefia ao seu filho, isso fez-me perceber até que ponto
as coisas se tornaram más. Sei que Attaroa nunca entregará voluntariamente
a chefia a ninguém, e quando ela desaparecer, receio que já não
haja Acampamento.
m Que é que faz que estejas tão segura disso? Se ela é tão imprevisí-vel como dizes, não poderá acontecer que se farte de tudo isto?-- perguntou
Jondalar.
-- Estou certa porque ela já matou uma pessoa a quem podia passar a chefia, o seu próprio filho.
-- Ela matou o seu filho?! -- exclamou Jondalar.-Quando disseste que Attaroa causou a morte dos três jovens, parti do princípio de que tinha sido um acidente.
--Não foi um acidente. Attaroa envenenou-os, embora não reconheça tê-lo feito.
mEnvenenar o seu próprio filho! Como é que alguém pode matar o seu próprio filho? disse Jondalar.-E porquê?
Porquê? Por conspirar para ajudar um amigo. Cavoa, a jovem mulher
que conheceram, estava apaixonada por um homem e planeava fugir
com ele. O seu irmão também estava a tentar ajudá-los. Foram os quatro
apanhados. Attaroa poupou Cavoa apenas porque estava grávida, mas já ameaçou que se o bebé for rapaz matará ambos.
-- Não admira que tenha um ar tão infeliz e assustado m disse Ayla.
-- Eu também devo ser responsabilizada por isso disse S'Armuna, empalidecendo ao dizer estas palavras.
-- ToI Que é que fizeste contra esses jovens? disse Jondalar.
--Não fiz nada contra eles. A criança de Attaroa era meu acólito, era quase como se fosse minha, mas com tanta certeza como se tivesse sido eu própria a dar-lhe o veneno, sou responsável pela sua morte. Se não fosse eu, Attaroa nåo saberia onde arranjar o veneno e como o usar.
Viam ambos que a mulher estava evidentemente perturbada, embora se controlasse bem.
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PLAN[C IES DE PASSAGEM
m Não te apercebeste de nada enquanto a criança crescia? mpergunteu
Ayla.
"A mulher é arguta", pensou S'Armuna, e depois assentiu.
m No meu coração, pensei sempre em Omel como sendo uma rapañ-ga, mas talvez fosse isso que quisesse. Brugar queria que as pessoas pen
sassem na criança como sendo macho.
Provavelmente tens razão em relação a Brugar-disse Ayla.- No Clã, todos os homens querem que a companheira tenha filhos. Julgam -se menos homens sea companheira não tiver pelo menos um filho. Isso significa que o espírito do seu totem é fraco. Se o bebe fosse rapariga, Bru gar talvez tentasse esconder o facto de que a sua companheira tinha dado à luz uma fêmea-explicou Ayla, fazendo depois uma pausa e considerando um ponto de vista diferente.-Mas os recém-nascidos deformados são normalmente levados para longe e abandonados. Portanto pode ter acontecido, se o bebé nasceu deformado, sobretudo sendo rapaz e incapaz de aprender as necessárias capacidades de caçar exigidas aos homens, que Brugar tenha querido esconder esse facto.
-- Não é fácil interpretar as suas motivações mas, fossem elas quais fossem, Attaroa fez o mesmo.
m Mas como é que Omel morreu? E os outros dois jovens?- perguntou Jondalar.
-- É uma história estranha e complicada-disse S'Armuna, não querendo que a apressassem.-Apesar de todos os problemas e do secretis mo, a criança tornou-se a favorita de Brugar. Omel era a única pessoa a quem ele nunca bateu nem tentou fazer mal de qualquer forma. Isso ale grou-me, mas muitas vezes interrogava-me por que seria.
m Terá ele suspeitado de que podia ter sido ele o causador da deformidade por bater tanto em Attaroa antes de ela dar à luz? perguntou Jondalar. Estaria a tentar redimir-se?
Talvez, mas Brugar culpava Attaroa. Dizia-lhe muitas vezes que
não era uma mulher sã que pudesse dar à luz um bebé perfeito. Depois
irritava-se com ela e batia-lhe. Mas os espancamentos já não eram um
prelúdio de Prazeres com a sua companheira. Pelo contrário, menosprezava
Attaroa e mostrava afecto pela criança. Omel começou a tratar At
taroa da mesma maneira que ele a tratava e, à medida que a mulher se
ia sentindo cada vez mais isolada, começou a mostrar ciúmes da sua pró-pria criança, ciúmes pelo afecto que Brugar mostrava por ela e ainda mais
do amor que Omel tinha por Brugar.
Isso deve ter sido muito duro de suportar m disse Ayla.
-- Sim. Brugar descobriu uma nova forma de causar dor a Attaroa, mas ela não era a única a sofrer por causa dele continuou S'Armuna. À medida que o tempo ia passando, todas as mulheres começaram a ser tratadas cada vez de forma pior, por Brugar e pelos outros homens. Os homens que tentavam resistir-lhe eram por vezes espancados, ou forçados a irem-se embora. Por fim, depois de uma ocasião particularmente má que deixou Attaroa com um braço partido e várias costelas partidas por ele ter saltado em cima dela e dado pontapés, ela rebelou-se. Jurou que o mataria e implorou-me para lhe dar qualquer coisa para o fazer.
E deste? -- perguntou Jondalar, incapaz de controlar a sua curiosidade.
Uma Das Que Servem a Mãe aprende muitos segredos, Jondalar, muitas vezes segredos perigosos, especialmente se estudou com a zelandonia explicou S'Armuna. m Mas aqueles que são admitidos na Confraria da Mãe têm de jurar pelas Cavernas Sagradas e pelas Antigas Lendas que os segredos não serão usados para o mal. Aquele Que Serve a Mãe desiste do seu nome e identidade e assume o nome e a identidade da sua gente, torna-se o elo entre a Grande Terra Mãe e os Seus filhos e o meio através do qual os Filhos da Terra comunicam com o mundo dos espíritos. Assim, Servir a Mãe significa também servir os Seus filhos.
-- Compreendo isso disse Jondalar.
-- Mas talvez não compreendas que as pessoas ficam gravadas no espírito Daquele Que Serve a Mãe. A necessidade de considerar o seu bem-estar torna-se muito forte, apenas a seguir às necessidades da Mãe. É muitas vezes uma questão de chefia. Não directa, normalmente, mas no sentido de mostrar o caminho. Aquele Que Serve a Mãe torna-se o guia para a compreensão e para encontrar o significado inerente ao desconhecido.
Parte do treino consiste em aprender as histSrias, o conhecimento
que Lhe permite interpretar os sinais, as visões e os sonhos enviados aos
Seus filhos. São instrumentos de ajuda e formas de procurar orientação
no mundo dos espíritos, mas em última análise tudo isso vem do Seu pró-priojuízo das coisas. Lutei com a ideia de como Servir melhor, mas receio
que o meu juízo tenha sido nublado pela minha própria amargura e ira.
Voltei para cá a odiar os homens e ao observar Brugar aprendi a odiálos
ainda mais.
Dizes que te sentes responsável pela morte dos três jovens. Ensinaste-a a usar venenos? perguntou Jondalar, incapaz de deixar cair a questão.
Ensinei muitas coisas a Attaroa, filho de Marthona, mas ela não estava a treinar para ser Aquela Que Serve a Mãe. No entanto, term um espírito vivo e consegue aprender mais do que é suposto.., mas eu também sabia isso.-S'Armuna parou de falar, quase à beira de reconhecer uma penosa transgressão, deixando-a ficar bem clara, mas permitindo que eles retirassem as suas próprias conclusões. Esperou até ver Jondalar franzir a testa de preocupação e Ayla assentir, reconhecendo o facto.
-- De qualquer forma, no início ajudei Attaroa a estabelecer o seu poder sobre os homens.., talvez eu própria quisesse ter poder sobre eles.
Na verdade, fiz mais que isso. Incitei-a e encorajei-a, convenci-a de que
a Grande Terra Mãe queria que as mulheres chefiassem e ajudei-a a con1ó2
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vencer as mulheres, ou a sua maioria. Depois da forma como tinham sido i
tratadas por Brugar e pelos homens, não foi dÌfícil. Dei-lhe uma coisa
para pôr os homens a dormir e disse-lhe para a pôr na sua bebida prefe
fida.., uma bebida fermentada feita com seiva de bétula.
-- Os Mamutoi fazem uma bebida semelhante-comentou Jondalar, escutando-a espantado.
-- Quando os homens estavam a dormir, as mulheres amarraram -nos. Fizeram-no de born grado. Era quase um jogo, uma forma de se vin garem dos homens. Mas Brugar não voltou a acordar. Attaroa tentou insinuar que ele era apenas mais susceptível ao líquido do sono, mas estou convencida de que põs mais alguma coisa na bebida dele. Disse que o que ria matar e creio que o fez. Agora quase admite tê-lo feito, mas, seja qual for a verdade, fui eu quem a levou a acreditar que as mulheres estariam melhor se os homens desaparecessem. Fui eu que a convenci de que se não existissem homens os espíritos das mulheres teriam de se misturar com os espíritos de outras mulheres para criar nova vida e que só nasceriam bebés raparigas.
-- Acreditas realmente nisso? -- perguntou Jondalar, com a testa franzida.
-- Creio que quase me convenci a mim própria de que acreditava. Não o disse expressamente.., não queria que a Mãe se zangasse.., mas sei que a fiz acreditar. Attaroa pensa que a prova é o facto de tão poucas mulheres estarem grávidas.
-- Está enganada-disse Ayla.
-- Sim, é claro que está e eu devia ter percebido. A Mãe não se iludiu com a minha trapaça. Sei no meu coração que os homens estão cá porque a Mãe assim o planeou. Se Ela não quisesse que houvesse homens, Ela não os teria feito. Os seus espíritos são necessários. Mas se os homens são fracos,.os seus espíritos não são suficientemente fortes para a Mãe os utilizar. E por isso que nasceram tão poucas crianças.-Sorriu a Jondalar. --To és um jovem forte e não duvido que o teu espírito já tenha sido usado por Ela.
-- Se os homens fossem soltes, creio que descobririas que são suficientemente fortes para engravidar as mulheres-disse Ayla, sem qualquer ajuda do Jondalar.
O homem alto e louro olhou de relance para ela e sorriu.
-- Mas eu teria todo o gosto em ajudar-disse ele, sabendo exactamente o que ela queria dizer, embora não tivesse a certeza absoluta de compartilhar a sua opinião.
-- E talvez devas-disse Ayla. Eu só disse que não achava que isso fosse necessário.
Jondalar deixou subitamente de sortir. Ocorreu-lhe que, independentemente de quem tivesse razão, ele não tinha razão para pensar que era capaz de gerar uma criança.
S'Armuna olhou para ambos, percebendo que estavam a fazer referência PLAN]CIES DE PASSAGEM
a qualquer coisa que ela desconhecia. Esperou, mas quando se tornou
evidente que eles estavam à espera que ela continuasse, prosseguiu.
--Ajudei-a e encorajei-a, mas não sabia que seria pior com Attaroa como chefe do que era com Brugar. Na realidade, imediatamente após ele ter morrido, foi melhor.., pelo menos para as mulheres. Mas não para os homens, nem para Omel. O irmão de Cavoa compreendeu; era um amigo espçcial de Cavoa. Aquela criança foi a única a chorar por ele.
-- E compreensível, dadas as circunstâncias-disse Jondalar.
-- Attaroa não entendeu assim-disse S'Armuna.-Omel tinha a certeza de que Attaroa tinha causado a morte de Brugar, ficou muito zangado e desafiou-a e foi espancado. Attaroa disse-me uma vez que só que ria fazer que Omel compreendesse o que Brugar lhe tinha feito a ela e às outras mulheres. Embora não o dissesse, creio que pensava, ou espera va, que com a morte de Brugar Omel voltasse para ela e a amasse.
--Não é provável que espancamentos façam uma pessoa gostar de outra -- disse Ayla.
-- Tens razão-disse a mulher mais velha.-Omel nunca tinha si do espancado até aí e passou a odiar Attaroa ainda mais depois disso. Eram mãe e filho, mas parecia que não suportavam estar ao pé um do outro.
Foi por isso que me ofereci para aceitar Omel como meu acólito.
S'Armuna parou de falar, pegou na sua malga para beber,viu que estava vazia e voltou a pousá-la.
--Attaroa pareceu satisfeita por Omel sair da sua habitação. Mas, ao pensar no que aconteceu, apercebo-me que se vingou nos homens. Na realidade, desde que Omel saiu da sua habitação, Attaroa term vindo a piorar. Tornou-se ainda mais cruel do que Brugar conseguiu ser. Eu de via ter percebido antes. Em vez de os afastar, devia ter tentado encontr.ar maneira de os reconciliar. Que é que ela fará agora que Omel morreu? As suas próprias mãos?
A mulher olhou fixamente para o ar em movÌmento por cima do lume, como se estivesse a ver algo que mais ninguém conseguia ver.
-- Oh, Grande Mãe! Tenho sido cega! -- exclamou subitamente.-
Mandou aleijar o Ardoban e prendeu-o no Cercado e sei que gostava do
rapaz. E matou Omel e os outros.
--Mandou-o aleijar?--disse Ayla.-Aquelas crianças no Cercado?
Foi feito de propósito?
Sim, para tornar os rapazes fracos e medrosos-disse S'Armuna, abanando a cabeça.-Attaroa perdeu todo o seu juízo. Temo por todos nós.-Subitamente, não aguentou e escondeu o rosto nas mãos.-Onde é que isto terminará? Toda esta dor e sofrimento que provoquei? -- soluçou.
-- A responsabilidade não foi só tua, S'Armuna-disse Ayla.-Podes
tê-lo permitido, até encorajado, mas não assumas tudo para ti. O mal
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está em Attaroa e talvez também esteja naqueles que a trataram tão
cruelmente.-Ayla abanou a cabeça. D A crueldade gera crueldade, a
dor gera dor, a violência gera violência.
D E quantos dos mais novos a quem ela causou dor a irão passar à pró-xima geração? D exclamou a mulher mais velha, como se ela própria sofresse dor. Começou a oscilar para a frente e para trás, presa de um terrível sofrimento.-Qual dos rapazes que estão atrás da paliçada é que ela condenou a dar continuação ao seu terrível legado? E qual das raparigas olhará para ela e quererá ser como ela? Ver Jondalar aqui recor.dou -me o meu treino. De rodas as pessoas, eu não o devia ter permitido. E isso que me terna responsável. Oh, Mãe! ,Que é que eu fz?
-- A questão não é o que fizeste. E o que agora podes fazer D disse Ayla.
DTenho de os ajudar. Tenho de os ajudar de qualquer forma, mas que é que p.osso fazer?
-- E demasiado tarde para ajudar Attaroa, mas ela term de ser impedida de continuar. São as crianças e os homens no Cerdado que temos de ajudar, mas primeiro têm de ser libertados. Temos de pensar como é que os podemos ajudar.
S'Armuna olhou para a jovem mulher, que naquele momento parecia
tão positiva e tão poderosa, e interrogou-se sobre quem na realidade ela
seria. Aquela Que Servia a Mãe tinha sido levada a ver os danos que causara
e a perceber que tinha abusado do seu poder. Temia pelo seu próprio espírito, assim como pela vida do Acampamento.
Fez-se silêncio na habitação. Ayla levantou-se e pegou na malga usada para fazer o chá.
Desta vez deixa-me ser eu a fazer chá. Tenho comigo uma óptima mistura de ervas D disse. Quando S'Armuna assentiu sem dizer qualquer palavra, Ayla pegou na sua bolsa de pele de lontra onde guardava as suas ervas medicinais.
Estive apensar naqueles dois jovens aleijados que estão no Cerca do-disse Jondalar. D Mesmo que não consigam andar bem, podiam aprender a trabalhar a pedreneira, ou qualquer coisa assim, se tivessem alguém para os treinar. Deve haver alguém entre os S'Armunai que os possa ensinar. Talvez consigas encontrar alguém no vosso Encontro de Verão que esteja nessa disposição.
--Já não vamos aos Encontros de Verão com os outros S'Armunai- disse S'Armuna.
D Por que não? D perguntou ele.
D Attaroa não quer q disse S'Armuna, falando num tom monocórdico.
DAs outras pessoas nunca foram particularmente boas para com ela;
o seu próprio Acampamento mal a tolerava. Depois de se tornar chefe, não
quis ter nada a ver com mais ninguém. Pouco depois de assumir a chefia,
alguns dos Acampamentos enviaram delegações, convidando-nos ajuntarmo-nos
a eles. Não sei como, souberam que nós tínhamos muitas mulheres
sem companheiros. Attaroainsultou-os e mandou-os embora e, no espaço de alguns anos, conseguiu afastar toda a gente. Agora já não vem
cá ninguém, nem parentes, nem amigos. Todos eles nos evitam.
D Ser amarrado a um poste de alvo é mais que um insulto D disse Jondalar.
-- Eu disse-te que ela term vindo a piorar. To não foste o primeiro. O
que ela te fez, já tinha feito antes-disse a mulher. D Há alguns anos,
veio cá um homem, um visitante, que estava a fazer uma Viagem. Ao ver
tantas mulheres aparentemente sozinhas, tornou-se arrogante e condescendente.
Partiu do princípio de que não só seria bem-vindo, mas que te
ria grande procura. Attaroa brincou com ele, da mesma forma como um
leão brinca com a sua presa; depois matou-o. Gostou tanto do jogo que começou
a deter todos os visitantes. Gostava de lhes fazer a vida negra, depois
de lhes fazer promessas, de os atormentar, antes de se livrar deles.
Era esse o seu plano para ti, Jondalar.
Ayla estremeceu e acrescentou alguns remédios calmantes aos ingredientes para o chá de S'Armuna.
D Tinhas razão ao dizeres que ela não é humana. Às vezes o Mogur
falava-me dos espíritos maus, mas eu pensei sempre que eram lendas, histórias para assustar as cñanças e fazer que fossem ob.edientes e arrepiar toda a gente. Mas Attaroa não é nenhuma lenda. E má.
DSim, e quando deixaram de cá vir visitantes, começou a brincar com
os homens no Cercado D continuou S'Armuna, como se não conseguisse parar de falar uma vez que começara a contar o que vira e ouvira, mas até aí reprimira. D Primeiro escolheu os mais fortes, os chefes ou os rebeldes. Há cada vez menos homens e os que restam estão a perder a capacidade de se rebelar. Mantdm-nos meios-mortos de fome, expostos ao frio e às intempéries. Põe-nos em jaulas ou amarra-os. Nem sequer se podem limpar. Muitos morreram das más condições em que vivem. E não estão a nascer crianças suficientes para os substituir. À medida que os homens vão morrendo, o Acampamento está a morrer. Ficámos todos surpreendidos quando Cavoa engravidou.
D Ela deve ter ido ao Cercado para estar com um homem D disse Ay
la. D Provavelmente com aquele por quem se apaixonou. Estou certa de que sabes isso.
S'Armuna sabia, mas pensou como é que Ayla sabia.
D Algumas mulheres vão lá às escondidas para ver os homens e por
vezes levam-lhes comida. Jondalar provavelmente disse-te D disse ela.
D Não, não lhe disse D disse Jondalar. D Mas não compreendo por
que é que as mulheres permitem que os homens estejam presos.
DTemem Attaroa. Algumas obedecem-lhe de sua livre vontade, mas a maioria preferiria ter os seus homens de volta. E agora ela está a ameaçar
aleijar-lhes os filhps.
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-- Diz às mulheres que os homens têm de ser libertados, senão não
nascerão mais crianças m disse Ayla num tom que provocou um arrepio
na espinha de Jondalar e de S'Armuna. Viraram-se para a olhar. Jonda
lar reconheceu a sua expressão. Era aquela expressão distante e de certa
forma objectiva que ela assumia quando o seu espírito estava ocupa
do com alguém que estava doente ou ferido, embora neste caso ele visse
mais que a sua necessidade de ajudar. Viu também uma ira fria e dura
que nunca vira antes.
Mas a mulher mais velha viu Ayla como outra coisa e interpretou a sua afirmação como uma profecia ou um juízo.
Depois de Ayla ter servido o chá, sentaram-se em silêncio, cada um profundamente impressionado. Subitamente, Ayla sentiu uma forte necessidade de ir lá fora respirar o ar limpo e frio e queria ver se os animais estavam bem mas, ao observar S'Armuna, achou que não era a melhor altura para sair dali. Sabia que a mulher mais velha ficara devasta da e sentiu que ela precisava de algo com significado a que se agarrar.
Jondalar deu por si a reflectir sobre os homens que deixara no Cerca
do e em que estariam a pensar. Sem dúvida que sabiam que ele tinha
regressado e que não tinha sido posto junto deles. Gostava de poder falar
com Ebulan e S'Amodun e de tranquilizar Doban, mas precisava ele pró-prio de ser tranquilizado. Estavam em território perigoso e ainda não
tinham feito nada, a não ser falar. Parte dele queria sair dali o mais
depressa possível, mas a sua maior parte queria ajudar. Se fossem fazer
qualquer coisa, queria fazê-la rapidamente. Odiava limitar-se a estar all
sentado.
Por fim, desesperado, disse:
m Quero fazer qualquer coisa pelos homens no Cercado. Como é que os posso ajudar?
--Jondalar,já os ajudaste-disse S'Armuna, sentindo ela própria necessidade de planear uma estratégia.-Quando a recusaste, isso deu ânimo aos homens, mas isso em si não teria bastado. Já aconteceu homens terem-lhe resistido, durante algum tempo, mas esta foi a primeira vez que um homem se foi embora e, mais importante ainda, regressou-
disse S'Armuna.-Attaroa perdeu face e isso dá esperança aos outros.-Mas a esperança não os irá tirar de lá-respondeu ele.
-- Não, e Attaroa não os libertará por sua própria iniciativa. Por sua vontade, nenhum homem sai daqui vivo, embora alguns tenham, conse guido fugir, mas não é frequente as mulheres fazerem Viagens. Es a primeira mulher a passar por aqui, Ayla.
-- Ela m ataria uma mulher?-- perguntou Jondalar, aproxim and0-se inconscientemente para proteger a mulher que amava.
--É difícil para ela justificar matar uma mulher, ou mesmo metê-la
no Cercado, embora muitas das mulheres que cá estão o estejam contra
sua vontade, embora não estejam presas dentro de uma cerca. Ela amea
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PLAN]CIES DE PASSAGEM
çou os que elas amam e elas estão presas pelos seus sentimentos pelos
seus filhos ou companheiros. É por isso que a tua vida está em perigo-
disse S'Armuna, olhando directamente para Ayla.-Não tens quaisquer
laços que te prendam a este lugar. Ela não term nenhum poder sobre ti e,
se conseguir matar-te, isso fará que lhe seja mais fácil matar 0utras mulheres.
Estou a dizer-te isto não apenas para te avisar, mas devido ao
perigo que representa para todo o Acampamento. Ainda é possível ambos
fugirem e talvez seja isso que devam fazer.
-- Não, não me posso ir embora-disse Ayla. --¡Como é que posso virar costas àquelas crianças? Ou àqueles homens? AS mulheres também precisam de ajuda. Brugar chamou-te curandeira, S'Armuna. Não sei se sabes o que isso significa, mas eu sou uma curandeira do Clã.
--To és uma curandeira? Devia ter percebido-disse S'Armuna. Não tinha a certeza absoluta do que era uma curandeira, mas tinha ganho tanto respeito de Brugar depois de ele a ter incluído nessa classificação, que tinha atribuído a esta posição o mais elevado significado.
-- É por isso que não me posso ir embora-disse Ayla. b Não é algo que decida fazer; é aquilo que uma curandeira term de fazer, é isso que ela é. Está dentro dela. Uma parte do seu espírito já está no outro mundo... -- Ayla levou a mão ao amuleto que tinha ao pescoço --... dada em troca da obrigação do espírito das pessoas que venham a precisar da minha ajuda. E difícil de explicar, mas não posso permitir que Attaroa os atormente mais e este Acampamento irá precisar de ajuda depois de aqueles que estão no Cercado serem libertes. Tenho de ficar o tempo que for necessário.
S'Armuna assentiu, sentindo que compreendia. Não era um conceito fcil de explicar. Equacionava a fascinaçãõde Ayla em curar e a sua necessidade nascida da compaixão de ajudar com os seus próprios sentimentos de ter sido chamada a Servir a Mãe, e identificava-se com a jovem mulher.
-- Ficaremos o máximo de tempo que pudermos emendou Jonda lar, lembrando-se de que ainda tinham de atravessar um glaciar nesse Inverno.-A questão d, como é que vamos convencer Attaroa a libertar os homens?
Ela teme-te, Ayla disse a shaman m, e creio que a maioria das suas Mulheres Lobo também. Aquelas que não te temem, respeitam-te.
Os S'Armunai são um povo que caça cavalos. Tambdm caçamos outros animais , incluindo mamutes, mas conhecemos os cavalos. A norte há um
penhasco para o qual perseguimos cavalos há gerações.. Não podes negar
que o teu controlo sobre os cavalos é poderosa magia. E tão poderosa que
é difícil de acreditar nela, mesmo vendo-a.
-- Não term nada de misterioso-contrapôs Ayla.-Eu criei a égua
desde pequena. Estava a viver sozinha e ela era a minha única amiga. A
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Whinney faz o que eu quero porque quer, porque somos amigas-disse,
tentando explicar.
A forma como disse o nome era o suave relincho que era o som feito por um cavalo. Viajava sozinha com Jondalar e com os animais há já tanto i tempo que voltara ao seu antigo hábito de dizer o nome da Whinney na sua forma oñginal. O relincho vindo da boca da mulher sobressaltou S'Armuna e a própria ideia de ser amiga de um cavalo estava para lá da sua compreensão. Não importava que Ayla dissesse que não era magia. Acabara de convencer S'Armuna de que era.
-- Talvez disse a mulher. Mas pensou, "Por mais simples que tentes torná-la, não podes impedir que as pessoas se interroguem sobre quem realmente és e por que é que cá vieste". As pessoas querem pen- I sare ter esperança de que vieste para as ajudar continuou. Temem I Attaroa, mas creio que com a tua ajuda e a de Jondalar estarão dispos-i tas a fazer-lhe frente e obrigá-la a libertar os homens. Podem-se recusar a deixar que ela continue a intimidálas.
Ayla voltou a sentir uma necessidade premente de sair da habitação, que estava ainda mais desconfortável.
-- Bebi muito chá-disse, levantando-se. Preciso de verter águas. Podes-me dizer onde ir, S'Armuna? Depois de escutar as instruções,' acrescentou. Precisamos de ir ver os cavalos enquanto lá estivermos fora, para nos assegurarmos de que estão bem. Podemos deixar aqui estes recipientes durante algum tempo? Tinha levantado uma das mpas e estava a verificar o conteúdo.-Está a arrefecer rapidamente. E pena não o p.odermos servir quente. Saberia melhor.
-- E claro, deixa isso aqui disse S'Armuna, pegando na sua malga e bebendo o resto do chá enquanto observava os dois estranhos que iam a sair.
Talvez Ayla não fosse uma incarnação da Grande Mãe e Jondalar fosse na realidade filho de Marthona, mas a ideia de que um dia a Mãe aplicaria o Seu castigo tinha pesado fortemente Naquela Que A Servia. Afinal de contas, ela era S'Armuna. Tinha trocado a sua identidade pessoal pelo poder do mundo dos espíritos e era responsável por aquele Acampamento, por todas as pessoas, mulheres e homens. Tinha-lhe sido confiado cuidar da essência espiritual do Acampamento e as Suas crianias i dependiam dela. Olhando para a situação do ponto de vista dos estranhos, do homem que servira para lhe recordar o seu chamamento e da mulher com poderes invulgares, S'Armuna sabia que tinha fracassado. Apenas esperava que ainda fosse possível redimir-se e ajudar o Acampamento a voltar a ter uma vida normal e saudável.
S'Armuna saiu da habitação e observou os dois visitantes enquanto se afastavam em direcção ao fundo do Acampamento. Viu que Attaroa e Epadoa, que estavam de pé à frente da habitação da mulher-chefe, se tinham virado igualmente para os observar. A shaman ia a voltar a entrar na habitação quando reparou que Ayla tinha mudado subitamente de direcção e se estava a dirigir para a paliçada. Attaroa e a chefe das suas Mulheres Lobo também a viram desviar-se e avançaram rapidamente com passos largos para interceptar a mulher loura. Chegaram à cerca quase em simultâneo. A mulher mais velha chegou instantes depois.
Através das fendas, Ayla olhou directamente para os olhos e os rostos de observadores silenciosos do outro lado da resistente paliçada. Uma observação mais atenta revelou o seu estado miserável, sujos e desleixados, vestidos com peles em farrapos, mas ainda pior era o horrível cheiro que emanava do Cercado. Não era apenas mau cheiro; para o olfacte treinado da curandeira, era revelador. Os odores corporais normais de indivíduos sãos não a incomodavam, e mesmo uma certa quantidade de desperdícios corporais não era ofensiva, mas ela detectou o cheiro da doença. O halito fétido da fome, a porcaria nojenta de excrementos resultantes de doenças de estômago e da febre, o odor nauseante de feridas infectadas e a supurar, e até o apodrecimento pútrido de processos de gangrena, as saltaram-lhe os sentidos e enfureceram-na.
Epadoa pôs-se à frente de Ayla, tentando tapar-lhe a visão, mas ela já tinha visto o suficiente. Virou-se e confrontou Attaroa.
-- Por que é que esta gente está all presa atrás da cerca, como animais num cercado?
Ouviu-se uma exclamação de surpresa vinda das pessoas que estavam a observar quando ouviram a tradução e retiveram a respiração, à espera da reacção da mulher-chefe. Nunca ninguém ousara fazer-lhe essa pergunta.
Attaroa olhou irada para Ayla, que retribuiu o olhar com uma destemida
ira. Eram as duas praticamente da mesma altura, embora a mulher
de olhos escuros fosse ligeiramente mais alta. Eram ambas mulheres fisicamente
fortes, mas Attaroa era mais musculosa, um atributo natural
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hereditário, enquanto Ayla tinha músculos lisos e rijos, desenvolvidos
pelo uso. A muiher-chefe era um pouco mais velha que a estranha, mais
experiente, astuta e absolutamente imprevisível; a visitante era uma
batedora e caçadora hábil, rápida a reparar em pormenores, a retirar con
clusões e com capacidade de reagir rapidamente com base no seu juízo.
Subitamente, Attaroa riu e o familiar som maníaco fez que Jondalar sentisse um arrepio pela espinha abaixo.
-- Porque merecem! m disse a mulherchefe.
--Ninguém merece esse tipo de tratamento m retorquiu Ayla, antes de S'Armuna conseguir traduzir. A mulher limitou-se a traduzir o comentário de Ayla para Attaroa.
m Que é que to sabes? Não estavas cá. Não sabes como eles nos trataram m disse a mulher de olhos escuros.
m Obrigaram-vos a ficar fora das habitações quando estava frio? Não vos davam comida e roupa? m Algumas das mulheres que se tinham agrupado em volta delas mostraram-se um pouco inquietas, m Será que vocês são melhores que eles, ao tratarem-nos de forma pior do que eles vos trataram?
Attaroa não se deu ao trabalho de responder às palavras repetidas pela shaman, mas o seu sorriso foi cruel e duro.
Ayla reparou num movimento do outro lado da paliçada e viu alguns homens afastarem-se para dois rapazes, que atd aí tinham estado no abrigo, poderem coxear para junto da cerca. Todos os outros se apinharam em volta deles. Ficou ainda mais irada ao ver os jovens aleijados, assim como outros rapazes, cheios de frio e de fome. Depois viu que algumas Mulheres Lobo tinham entrado no Cercado com as suas lanças. Ayla sentiu uma tal fúria que mal se conseguia controlar, e dirigiu-se à mulher directamente.
m E aqueles rapazes também vos trataram mal? Que é que eles fize
ram para justificar isto? -- S'Armuna assegurou-se de que todos com preendiam.
m Onde é que estão as mães destas crianças? m perguntou a Epadoa.
A chefe das Mulheres Lobo olhou de relance para Attaroa depois de ouvir
as palavras na sua própña língua, procurando uma orientação, mas
a mulher-chefe limitou-se a olhar para ela com um sorriso cruel, como se
estivesse à espera de ouvir o que ela la dizer. m Algumas morreram-disse Epadoa. m Mortas ao tentar fugir com os seus filhos-disse uma das mulheres do meio da multidão, mAs outras têm medo de fazer alguma coisa com medo de que os seus filhos soltam.
Ayla olhou e viu que quem tinha falado era uma velha mulher e Jondalar reparou que era a mulher que tinha chorado abertamente no funeral dos três jovens. Epadoa lançou-lhe um olhar ameaçador.
-- Que mais é que me podes fazer, Epadoa? m disse a mulher, diriginPLAN[CIES
DE PASSAGEM
do-se ousadamente para a frente.-Já me mataram o meu falho, e a minha
filha não tardará tambdm a morrer, de uma forma ou de outra. Sou
demasiado velha para me importar se vivo ou morro.
--Traíram-nos m disse Epadoa.-Agora todos eles sabem o que lhes acontecerá se tentarem fugir.
Attaroa não deu qualquer mostra de aprovação ou desaprovação para
indicar que Epadoa tinha manifestado a sua própria opinião. Pelo contrá-rio, com uma expressão maçada, virou costas à cena carregada de tensão
e dirigiu-se para a sua habitação, deixando Epadoa e as suas Mulheres
Lobo de guarda ao Cercado. Mas parou e girou rapidamente quando
ouviu um assobio agudo. Uma fugaz expressão de medo substituiu o seu
sorriso frio e cruel quando viu os dois cavalos, que tinham estado quase
fora do alcance da vista ao fundo do campo, galopar em direcção a Ayla.
E entrou rapidamente na habitação.
Um espanto atordoado abateu-se sobre o resto do aldeamento quando a mulher loura, e o homem com cabelo ainda mais louro, saltaram para o dorso dos animais e se afastaram a galope. A maioria dos que lá ficaram desejaram poder partir tão rápida e facilmente e muitos interrogaram -se se voltariam a ver aqueles dois.
m Gostava que pudéssemos continuar m disse Jondalar, depois de
terem abrandado e de ele ter conduzido o Corredor para o lado de Ayla e
da Whinney.
m Eu também m disse ela. mAquele Acampamento é absolutamente
insuportável; enche-me de ira e de tristeza. Atd estou zangada por S'Armuna ter permitido que a situação se arrastasse durante tanto tempo, embora tenha pena dela e compreenda os seus remorsos. Jondalar, como é que vamos libertar aqueles rapazes e aqueles homens?
m Vamos ter de resolver isso com S'Armuna m disse Jondalar. m
Creio que é evidente que a maioria das mulheres quer que as coisas mudem, e tenho a certeza de que muitas ajudariam, se soubessem o que fazer. S'Armuna saberá quem são.
Tinham entrado na mata aberta vindos do campo e atravessaram-na por entre as árvores, embora em certas partes fossem bastante esparsas, dirigindo-se para o rio e depois voltando para trás até ao sítio onde tinham deixado o lobo. Assim que se aproximaram, Ayla fez-lhe sinal com um assobio suave e oLobo saltou ao seu encontro, quase fora de si de felicidade. Tinha estado a observar do sítio onde Ayla lhe dissera para ficar e ambos o louvaram e lhe deram atenção por ter ficado all à espera.
Ayla reparou que ele tinha ido caçar e levado para lá a sua presa, o que
significava que abandonara o seu esconderijo pelo menos durante algum
tempo. Isso preocupou-a, dado estarem tão perto do Acampamento e das
Mulheres Lobo, mas não teve coragem para o censurar. No entanto, isso
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fez que ficasse ainda mais determinada a afastá-lo das mulheres que
comÌam lobos o mais depressa possível.
Levaram silenciosamente os cavalos pela arreata em direcção ao rio, para o outeiro onde tinham escondido as mochilas. Ayla tirou um bolo de comida de viagem, partiu-o em dois e deu o pedaço maior a Jondalar. Sentaram-se no meio da vegetação rasteira, a corner, contentes por estarem fora do ambiente depressivo do Acampamento dos S'Armunai.
Subitamente, Ayla ouviu o Lobo rosnar em surdina e os pêlos da nuca eriçaramselhe.
m Vem aí alguém m murmurou Jondalar, sentindo um frémito de
alarme ao ouvir o ruído.
Tendo sido levada ao extremo da percepção pelo aviso, Ayla e Jondalar
perscrutaram a zona, certos de que os sentidos mais apurados doLobo
tinham detectado perigo imediato. Olhando na direcção para onde o focinho doLobo estava a apontar, Ayla espreitou cautelosamente através da
cortina de arbustos e viu duas mulheres a aproximarem-se. Uma delas,
estava quase certa, era Epadoa. Tocou no braço de Jondalar e apontou.
Ele assentiu quando as viu.
--To espera, mantém cavalos calados-disse-lhe Ayla por sinais, na linguagem silenciosa do Clã.-You mandar Lobo esconder-se. You seguir mulheres, afastar mulheres.
-- Eu you m disse Jondalar, também por sinais, abanando a cabeça.
-- Mulheres ouvem-me melhor a mim respondeu Ayla.
Jondalar assentiu relutantemente.
-- Eu vigio aqui com lançador de lanças disse por gestos.-To leva lançador de lanças.
Ayla assentiu em concordância.
-- E funda m respondeu por sinais.
Avançando silenciosamente, Ayla descreveu um círculo pela frente das duas mulheres e depois esperou. Quando elas se aproximaram lentamente, ouviu-as a falar.
-- Tenho a certeza de que vieram por aqui depois de deixarem o local onde acamparam ontem à noite, Unavoa-disse a chefe das Mulheres Lobo.
--Mas já estão no nosso Acampamento desde ontem à noite. Por que é que ainda os estamos a procurar aqui?
-- Podem voltar por aqui, e mesmo que não os encontremos podemos descobrir qualquer coisa sobre eles.
-- Algumas pessoas dizem que eles desaparecem, ou se transformam em aves ou cavalos quando partem m disse a Mulher Lobo mais nova.
Não sejas tola-disse Epadoa.-Não encontrámos o sítio onde acamparam ontem à noite? Por que é que haviam de montar um acampamento se conseguissem transformar-se em animais?
"Ela term razão", pensou Ayla. "Pelo menos usa a cabeça e pensa e não
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é má batedora. Provavelmente até é boa caçadora; é pena ser tão íntima
de Attaroa."
Ayla, que estava acocorada atrás de vegetação emaranhada e de erva amarelada que lhe dava pelo joelho, observou-as enquanto se aproximavaro. Num momento em que ambas as mulheres estavam a olhar para o chão, ela ergueu-se silenciosamente, com o lançador de lanças pronto a disparar.
Epadoa olhou-a surpreendida e Unavoa deu um salto para trás, dando um pequeno guincho de susto quando olharam para cima e viram a estranha loura.
Estão à minha procura? -- disse Ayla, falando na sua língua.-
Estou aqui.
Unavoa parecia prestes a fugir e até Epadoa parecia nervosa e as sustada.
-- Nós estávamos.., estávamos a caçar m disse Epadoa.
Aqui não há cavalos para afugentar para o precipício-disse Ayla.-Não estávamos a caçar cavalos.
Eu sei. Caçavam Ayla e Jondalar.
O seu súbito aparecimento e a estranha qualidade da forma como Ayla dizia as palavras na sua língua lê-la parecer exótica, vinda de um lugar longínquo, talvez mesmo de um outro mundo. Fez que as mulheres nada mais quisessem senão afastar-se o mais possível daquela mulher que pa recia ter atributos mais que humanos.
-- Creio que estas duas devem regressar ao Acampamento, senão podem perder a grande festa desta noite.
A voz veio da mata e estava a falar Mamutoi, mas ambas as mulheres compreendiam a língua e reconheceram que tinha sido Jondalar quem falara. Olharam na direcção de onde a voz tinha vindo e viram o homem alto e louro encostado displicentemente ao tronco de uma grande bétula de casca branca, empunhando o lançador de lanças pronto a disparar.
Sim. Tens razão. Não queremos perder a festa-disse Epadoa. E, dando um empurrão à sua jovem companheira que estava boquiaberta, não perdeu tempo a virar costas e ir-se embora.
Quando elas desapareceram, Jondalar não resistiu a dar um grande sorriso.
O sol já estava a mergulhar no céu daquele fim da tarde do curto dia
de Inverno quando Ayla e Jondalar voltaram a cavalo para o Acampamento
S'Armunai. Tinham arranjado outro esconderijo para o Lobo, deixando-o um pouco mais perto do aldeamento, pois não tardaria a ser
noite e à noite as pessoas raramente se afastavam do conforto da luz da
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fogueira, embora Ayla ainda estivesse preocupada com a possibilidade de ele ser apanhado.
S'Armuna ia a sair da sua habitação quando eles desmontaram na orla do campo e a mulher sorriu de alívio quando os viu. Apesar das suas promessas, não tinha deixado de pensar se voltariam. Afinal de contas, por que é que estranhos haviam de arriscar a sua vida para ajudar pessoas que nem sequer conheciam? Nem os seus própriosparentes lá tinham ido ver se estava tudo bem durante os últimos anos. E claro que os parentes e amigos não tinham sido bem recebidos da última vez que lá tinham ido.
Jondalar tirou o arnês do Corredor para ele não se sentir de forma ai
guina limitado e deu uma palmada carinhosa no quarto traseiro dos dois animais para os encorajar a afastarem-se do Acampamento. S'Armuna
foi ao encontro dos dois.
Estamos a terminar os preparativos para a Cerimónia do Fogo de amanhã. Acendemos sempre uma fogueira de aquecimento na noite anterior; querem vir aquecer-se? m disse a mulher.
-- Está frio m disse Jondalar. Dirigiram-se ambos com ela para o forno
do outro lado do Acampamento.
m Descobri forma de aquecer a comida que trouxeste, Ayla. Disseste
que seria melhor comida quente e estou certa de que tens razão. Term um cheiro maravilhoso, m S'Armuna sorriu.
m Como é que conseguiste aquecer uma mistura tão espessa nos
cestos?
-- Eu mostro-te-disse a mulher, baixando a cabeça para entrar na antecâmara da pequena estrutura. Ayla seguiu-a, com Jondalar logo
atrás. Embora não houvesse nenhuma fogueira acesa na pequena lareira,
estava bastante quente lá dentro. S'Armuna foi direita à abertura da
segunda câmara e tirou o osso da pá de um mamute que o tapava. O ar
lá dentro estava quente, suficientemente quente para cozinhar, pensou
Ayla. Olhou e viu que tinha sido acendida uma fogueira dentro da câmara
e que logo à entrada, a certa distância da fogueira, estavam os seus dois
cestos.
m De facto cheira bem-disse Jondalar.
--Não fazes ideia de quantas pessoas me perguntaram quando é que a festa começaria-disse S'Armuna.-O cheiro até chega ao Cercado.
O Ardemun veio ter comigo e perguntou se os homens iam realmente ter
uma parte. Não é apenas isso. Fiquei admirada, mas Attaroa disse às mulheres
para prepararem comida para uma festa e para fazerem o suficiente
para chegar para todos. Já nem me lembro quando foi a última vez que
tivemos uma festa.., mas não temos tido motivos para celebrar. E isso faz
que eu me interrogue sobre o que é que vamos celebrar esta noite.
-- Visitantes-disse Ayla. m Estão a honrar visitantes.
-- Sim, visitantes disse a mulher.-Lembrem-se de que foi esse
o pretexto que ela usou para que vocês voltassem. Tenho de os avisar. Não bebam nem comam nada que esteja num prate do qual ela não tenha
comido primeiro. Attaroa conhece muitas coisas perigosas que podem ser
disfarçadas na comida. Se necessário, comam apenas do que trouxeram.
Vigiei sempre de perto a vossa comida.
Mesmo aqui? m perguntou Jondalar. m Ninguém ousa vir aqui sem a minha autorização disse Aquela Que Servia a Mãe , mas tenham muito cuidado fora deste lugar. Attaroa e Epadoa estiveram a conferenciar durante a maior parte do dia. Estão a planear qualquer coisa.
E têm muita gente para as ajudar, todas as Mulheres Lobo. Com quem é que podemos contar para nos ajudar? -- disse Jondalar.
Quase toda a gente quer que a situação mude-disse S'Armuna.
Mas quem é que ajudará? m disse Ayla.
-- Creio que podemos contar com Cavoa, a minha acólita.
Mas está grávida disse Jondalar.
-- Mais uma razão disse a mulher.-Todos os sinais indicam que
terá um rapaz. Ela lutará pela vida do seu bebé, bem como pela sua pró-pria vida. Mesmo que tenha uma rapariga, o mais provável é que Attaroa
não permita que ela continue viva assim que o bebé deixe de mamar
e Cavoa sabeo.
m E aquela mulher que hoje se manifestou? -- disse Ayla.
-- Essa era Esadoa, mãe de Cavoa. Estou certa de que podemos contar com ela, embora ela me culpe tanto quanto culpa Attaroa pela morte do seu filho.
-- Lembro-me dela no funeral disse Jondalar. Atirou qualquer coisa para dentro da sepultura que enfureceu Attaroa.
Sim, alguns utensflios para o outro mundo. Attaroa tinha proibido que alguém lhes desse qualquer coisa que os pudesse ajudar no mundo dos espíritos.
-- Creio que a defendeste.
S'Armuna encolheu os ombros, como se não quisesse falar nisso.
Disse-lhe que os utensflios já tinham sido dados e que não podiam
ser tirados. Nem ela ousou ir lá buscálos.
Jondalar assentiu.
mTenho a certeza de que todos os homens no Cercado nos ajudam m
disse.
É claro, mas primeiro temos de os tirar de lá-disse S'Armuna. As guardas estão particularmente atentas. Não creio que ninguém possa lá entrar às escondidas. Daqui a alguns dias, talvez. Isso dar-nos-á tempo para falar discretamente com as mulheres. Quando soubermos com quantas podemos contar, então podemos fazer um plano para sub jugar .Attaroa e as Mulheres Lobo. Receio que tenhamos de lutar contra elas. E a única forma de libertarmos os homens do Cercado.
-- Creio que tens razão disse Jondalar com uma expressão sombria.
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Ayla abanou a cabeça tristemente ao pensar nisso. Já tinha havido
tanto sofrimento naquele Acampamento que a ideia de lutar, ou de causar
mais problemas e sofrimento, era perturbante. Gostaria que houvesse
uma outra saída.
m Disseste que tinhas dado a Attaroa uma coisa para pôr os homens
a dormir. Não podes dar nada a Attaroa e às suas Mulheres Lobo para as pôr a dormir? m perguntou Ayla.
Attaroa é desconfiada. Não beberá nem comerá nada que não seja primeiro provado por outra pessoa. Era isso o que Doban costumava fazer. Agora creio que escolherá uma das outras crianças-disse S'Armu na, olhando lá para fora.-Está quase escuro. Se estão prontos, acho que é altura de a festa começar.
Ayla e Jondalar pegaram cada um num cesto que estava na câmara interior; depois, Aquela Que Servia voltou a fechá-la. Quando saíram do forno, viram que tinha sido acendida uma grande fogueira à frente da habitação de Attaroa.
-- Pensei se ela os convidaria a entrar, mas ao que parece a festa vai ser cá fora, apesar do frio m disse S'Armuna.
Ao aproximarem-se, transportando os cestos, Attaroa virou-se para
os enfrentar.
-- Como queriam compartilhar esta festa com os homens, parece-me correcto fazê-la cá fora, de onde os poderão ver-disse. S'Armuna traduziu, embora Ayla tivesse compreendido a mulher perfeitamente e até Jondalar conhecia a sua língua o suficiente para apanhar o sentido das suas palavras.
-- Mas é difícil vê-los no escuro. Ajudaria se mandasses acender outra fogueira do lado deles-disse Ayla.
Attaroa ficou calada durante alguns instantes e depois riu-se, mas não fez qualquer menção de satisfazer o seu pedido.
A festa parecia ser uma ocasião extravagante, com muitos pratos, mas a comida era essencialmente composta de carne magra, quase sem gordura, muito poucos legumes ou cereais ou raízes com amido que enchiam, e sem frutos secos ou qualquer sugestão de doçura, nem sequer da casca interior de uma árvore. Havia uma bebida ligeiramente fermentada feita de seiva de bétula, mas Ayla decidiu que não a beberia e ficou satisfeita quando viu uma mulher chegar e começar a deitar chá a ferver em malgas para quem quisesse. Tinha experimentado a bebida de Talut e sabia que podia toldar-lhe o raciocínio e naquela noite queria estar perfeita: mente consciente.
Cômputo geral, a festa era bastante frugal, pensou Ayla, embora as
pessoas do Acampamento não concordassem com ela. A comida era mais
do tipo que restaria no final de uma estação, não a que estaria disponí-vel a meio do Inverno. Tinham sido espalhadas algumas peles para os
convidados em volta do estrado de Attaroa, erguido perto da grande fogueira.
O resto das pessoas tinham levado as suas próprias peles para se
sentarem enquanto comiam.
S'Armuna conduziu Ayla e Jondalar para a plataforma coberta de
peles de Attaroa e ficaram all à espera que a mulher-chefe se dirigisse altivamente
para o seu lugar. Tinha vestidas todas as suas melhores peles
de lobo e os seus colares de dentes, osso, marfim e conchas, enfeitados com
pedaços de pêlo e penas. Para Ayla, o mais interessante era o bastão que
ela empunhava que era feito de um dente de mamute que fora endireitado.
Attaroa deu ordens para a comida ser servida e, olhando directamente
para Ayla, ordenou que a parte destinada aos homens fosse levada para
o Cercado, incluindo o recipiente que Ayla e Jondalar tinham levado.
Todas as outras pessoas tomaram isso como sinal para se sentarem nas
suas peles. Ayla reparou que o banco erguido colocava a mulher-chefe nt
-ma posição interessante. Estava acima de todas as outras pessoas, o que lhe permitia ver por cima das cabeças das outras e também olhar para
baixo para elas. Ayla lembrou-se que tinha visto algumas vezes pessoas
porem-se em cima de troncos ou de rochas quando tinham alguma coisa
a dizer a um grupo e queriam que todos ouvissem, mas tinha sido sempre
uma posição temporária.
Ayla apercebeu-se de que Attaroa tinha criado uma posição poderosa, enquanto observava a postura e os gestos inconscientes das pessoas em volta. Todas pareciam expressar a Attaroa a atitude de deferência que as mulheres do Clã expressavam quando se sentavam em silêncio à frente de um homem, à espera que este lhes tocasse no ombro, gesto esse que lhes dava o direito de dar a conhecer os seus pensamentos. Mas havia uma diferença difícil de caracterizar. No Clã, nunca sentira o ressenti mente nas mulheres que all sentia, nem falta de respeito por parte dos homens. Era assim que as coisas eram feitas, um comportamento inerente e não forçado ou coercivo, e servia para garantir que ambas as partes estavam aprestar grande atenção à comunicação entre elas, que era expressa principalmente por sinais e gestos.
Enquanto esperavam ser servidos, Ayla tentou ver melhor o bastão da
mulher-chefe. Era semelhante ao Bastão de Falar usado por Talut e pelo
Acampamento do Leão, à excepção dos entalhes que eram extremamente
invulgares, nada parecidos com os do bastão de Talut e, contudo, que lhe pareciam muito familiares. Ayla lembrou-se que Talut tinha usado
o Bastão de Falar em várias ocasiões, incluindo cerimónias, mas sobretudo
em reuniões ou discussões.
O Bastão de Falar conferia à pessoa que o empunhava o direito de falar
e permitia que cada pessoa fizesse uma afirmação, ou expressasse um
ponto de vista sem ser interrompido. A próxima pessoa que tivesse algu
ma coisa a dizer, pedia o bastão. Em princípio, era suposto que apenas
falasse aquele que empunhasse o Bastão de Falar, embora no Acampa
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mente do Leão, especialmente no auge de uma discussão acesa, as pessoas
nem sempre esperassem pela sua vez. Mas com algumas admoestações
Talut conseguia normalmente fazer que as pessoas respeitassem o
princípio, para que todos aqueles que queriam falar tivessem oportunidade
de o fazer.
m Esse é um Bastão de Falar extremamente invulgar e com entalhes
lindos m disse Ayla.-Posso vê-lo?
Attaroa sorrÌu quando ouviu a tradução de S'Armuna. Estendeu-o na direcção de Ayla e para mais perto da luz da fogueira, mas não lho deu. Não tardou a tornar-se evidente que ela não fazia a menor intenção de o largar e Ayla sentiu que a mulher-chefe estava a usar o Bastão de Falar para se investir do seu poder. Enquanto Attaroa o empunhasse, qualquer pessoa que quisesse falar tinha de lhe pedir autorização e, por extensão, outras acções-quando servir a comida, ou quando com.eçar a corner, por exemplo estavam dependentes da sua autorização. A semelhança da sua plataforma sobreelevada, apercebeu-se Ayla, era uma forma de afectar e controlar a maneira como as pessoas se comportavam em relação a ela. Isso deu bastante que pensar à jovem mulher.
O bastão era em si bastante invulgar. Não tinha sido esculpido recentemente, isso era evidente. A cor do maním de mamute já tinha começado a ficar creme e a parte por onde era normalmente seguro estava cinzenta e brilhante, resultante do pó acumulado e da gordura de muitas mãos que o empunharam. Tinha sido usado por muitas gerações.
O desenho esculpido no dente endireitado era uma abstracção geomé-trica da Grande Terra Mãe, formada por ovais concêntricos para desenhar
os seios pendentes, a barriga arredondada e as coxas voluptuosas.
O círculo era o símbolo de tudo, todas as coisas, a tetalidade dos mundos
conhecidos e desconhecidos, e simbolizava a Grande Mãe de Todos. Os círculos
concêntricos, especialmente da forma como eram usados para simbolizar
os importantes elementos maternais, reforçavam o simbolismo.
A cabeça era um triângulo invertido, com o bico a formar o queixo, e a base curvava ligeiramente em forma de cúpula no cimo. O triângulo in vertido era o símbolo universal da Mulher; era a forma exterior do órgão generativo e portanto também simbolizava a maternidade e a Grande Mãe de Todos. A área do rosto continha uma série horizontal de traços paralelos duplos, unidos por linhas lateralmente incisivas que iam do queixo pontiagudo aid ao sítio dos olhos. O espaço maior entre a parte superior das linhas horizontais duplas e as linhas arredondadas paralelas ao topo arredondado estava preenchido por três conjuntos de linhas duplas perpendiculares, que se uniam no sítio dos olhos.
Mas os desenhos geométricos não eram um rosto. Se não fosse o triângulo invertido estar colocado na posição da cabeça, os traços esculpidos não teriam sequer sugerido um rosto. A impressionante face da Grande Mãe era demasiado para um ser humano vulgar contemplar. Os seus poderes eram tão grandes que só o Seu olhar podia ser opressivo. O simbolismo abstracte da figura no Bastão de Falar de Attaroa transmitia essa sensação de poder com subtileza e elegância.
Ayla lembrava-se, do treino que iniciara com o Mamut, do significado mais profundo de alguns dos símbolos. Os três lados do triângulo três era o seu número principal-representavam as três principais estações do ano, Primavera, Verão e Inverno, embora também fossem reconhecidas duas outras estações menores, o Outeno e o Meio Inverno, as estações que assinalavam as alterações futuras, tetalizando cinco. Cinco, aprendera Ayla, era o Seu número oculte de poder, mas os triângulos de três lados, invertidos, eram compreendidos por tedos.
Recordou as formas triangulares nos entalhes da mulherpássaro, representando a Mãe transcendente a transformar-se na Sua forma de pássaro que Ranec tinha leite... Ranec. Subitamente, Ayla lembrou-se onde tinha visto a figura do Bastão de Falar de Attaroa. A camisa de Ranec! A linda camisa de macia pele branca-creme que ele usara na sua cerimónia de adopção. Era espantosa em parte devido ao seu invulgar corte, com o corpo justo e grandes mangas largas, e porque a cor ficava bem com a sua pele castanha, mas sobretudo devido aos seus enfeites.
Tinha sido bordada com espinhos de porco-espinho fingidos de cores vivas e com fios de tendões, com uma figura abstracta da Mãe que podia ter sido copiada directamente da figura no bordão que Attaroa empunha va. Tinha os mesmos círculos concêntricos, a mesma cabeça triangular; os S'Armunai deviam ser parentes afastados dos Mamutoi, de onde a camisa de Ranec viera originalmente, apercebeu-se ela. Se ela e Jondalar tivessem tornado o caminho do norte como Talut sugerira, remam de passar por este Acampamente.
Quando se vieram embora, o filho de Nezzie, Danug, o jovem homem que estava a tornar-se a imagem de Talut, tinha-lhe dite que um dia faria uma Viagem aos Zelandonii para a visitar a ela e ao Jondalar. Se Danug decidisse fazer tal Viagem daí a alguns anos, que aconteceria se ele passasse por all? E se Danug, ou qualquer outro Mamutei, fosse cap turado pelo acampamente de Attaroa e lhe fizessem mal? Esta ideia deu força à sua decisão de ajudar aquelas pessoas e de pôr termo ao poder de Attaroa.
A mulher-chefe puxou o bastão que Ayla tinha estado a observar para trás e virou-se para ela com uma tigela de madeira. Como és a nossa visitante que estamos a honrar e dado que trouxeste um acompanhamente para esta festa que está a suscitar tantos louvores -- disse Attaroa num tom carregado de sarcasmo-deixa que te ofereça a especialidade de uma das nossas mulheres, m A tigela estava cheia de cogumelos, mas como estavam cortados e cozinhados, não havia forma de identificar qual a sua variedade.
S'Armuna traduziu, acrescentando um aviso:
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-- Term cuidado.
Mas Ayla não precisava nem da tradução nem do aviso.
-- Neste momento não me apetece cogumelos-disse.
Attaroa riu-se quando ouviu a repetição das palavras de Ayla, como se já estivesse à espera de tal resposta.
-- É pena-disse, metendo os dedos na tigela e uma grande porçåo que meteu na boca. Depois de engolir o suficiente para poder falar, acres tentou:--Estão deliciosos!--Comeu mais algumas porções e depois passou a tigela a Epadoa, sorrindo com um ar sabedor, e esvaziou a sua malga de bebida de bétula.
À medida que a refeição se ia desenrolando, bebeu mais algumas malgas e estava a começar a manifestar o seu efeito; estava a falar cada vez mais alto e num tom insultuoso. Uma das Mulheres Lobo que tinha estado a vigiar o Cercado-tinham ido substituir as outras guardas para rodas poderem compartilhar a festa-aproximou-se de Epadoa, que depois se dirigiu para Attaroa e lhe falou baixinho ao ouvido.
-- Parece que Ardemun quer sair para agradecer a festa em nome dos homens- disse Attaroa, rindo com d.esprezo.- Tenho a certeza de que não é a mim que querem agradecer. E à nossa distinta visitante.-Vi rou-se para Epadoa.-Traz o velho.
A guarda regressou ao Cercado e passado pouco tempo Ardemun saiu pelo portão da cerca de madeira e coxeou para junto da fogueira. Jondalar ficou admirado por se sentir tão contente por o ver e apercebeu-se de que não vira nenhum dos homens desde que saíra do Cercado. Interrogou-se sobre como estariam todos.
Então os homens querem-me agradecer por esta festa-disse a mulherchefe.
-- Sim, Attaroa. Pediram-me para vir cá dizer-to.
--Diz-me, velho, por que é que tenho dificuldade em acreditar em ti?
Ardemun não caiu na asneira de lhe responder. Limitou-se a ficar all de pé, com os.olhos baixos, embora desejasse poder desaparecer.
-- Inútil! E um inútil! Não term nenhuma capacidade de luta-Attaroa parecia cuspir as palavras com repugnância.-Exactamente como todos os outros. São todos inúteis.-Virou-se para Ayla.-Por que é que vives amarrada a esse homem? -- disse, apontando para Jondalar.-
Não és suficientemente forte para te libertares dele?
Ayla esperou até S'Armuna traduzir, o que lhe deu algum tempo para pensar na resposta.
Escolhi estar com ele. Vivi sozinha de mais-respondeu Ayla. --De que te servirá quando ficar fraco e velho como Ardemun?--disse Attaroa, lançando um olhar trocista ao velho.-Quando o seu instrumento estiver demasiado mole para te dar Prazeres, será tão inútil como todos os outros.
Ayla voltou a esperar pela mulher mais velha, embora tivesse com preendido a mulherchefe.
--Ninguém se mantém jovem para sempre. Há mais num homem do que o seu instrumento.
--Mas deves livrar-te desse; näo irá durar muito tempo.-E apontou para o homem alto e louro.-Parece forte, mas é só aparência. Não teve força para tomar Attaroa, ou talvez tivesse tido medo.-Riu-se e bebeu outra malga de bebida e depois virou-se para Jondalar.-Foi isso! Admite que tens medo de mim. Foi por isso que não me conseguiste tomar.
Jondalar também a compreendeu e ficou zangado.
--Há uma diferença entre medo e ausência de desejo, Attaroa. Não podes forçar o desejo. Não compartilhei a Dádiva da Mãe contigo porque não te queria-disse Jondalar.
S'Armuna olhou para Attaroa e encolheu-se antes de começar a traduzir, quase forçando-se a não alterar as palavras dele.
-- Isso é mentira! -- gritou Attaroa, fora de si. Levantou-se e olhou para baixo para ele.-Tiveste medo de mim, Zelandonii. Vi-o. Já lutei com homens e to até tiveste medo de lutar comigo.
Jondalar levantou-se também e Ayla com ele. Algumas das mulheres aproximaram-se mais.
--Estas pessoas são nossas convidadas-disse S'Armuna, levantan do-se também.-Foram convidadas a compartilhar a nossa festa. Já nos esquecemos como se tratam os visitantes?
--Sim, é claro. Nossos visitantes-disse Attaroa num tom de desdém.-Temos de ser cortezes e hospitaleiros para com os visitantes, senão a
mulher não pensará bem de nós. Vou-te mostrar quanto me importo com
o que ela pensa de nós. Saíram ambos daqui sem minha autorização.
Sabem o que fazemos às pessoas que fogem daqui? Matamo-las! -- guinchou
a mulher-chefe, lançando-se contra Ayla com uma fibula de cavalo
aliada na mão, um temível punhal.
Jondalar tentou intervir, mas as Mulheres Lobo de Attaroa tinham:
-no cercado e as pontas das suas lanças estavam encostadas ao seu peito
e estômago e costas com tal força que tinham ferido a pele e feito sangue.
Antes de ter tempo para perceber, as mãos foram-lhe atadas atrás das
costas, enquanto Attaroa derrubava Ayla, se escarranchava nela e erguia
o punhal dirigindo-o à sua garganta, sem a menor sugestão da bebedeira
que mostrara anteriormente.
Tinha planeado exactamente aquilo, apercebeu-se Jondalar. Enquanto eles tinham falado, a tentar descobñr formas de dimunuir o poder de Attaroa, ela tinha planeado matá-los. Sentia-se tão estúpido, pois devia ter pensado nisso. Tinha jurado a si próprio proteger Ayla. Em vez de o fazer, estava all a observar a cena, impotente, cheio de medo por ela, enquanto a mulher que amava tentava libertar-se da sua atacante. Era por isso que todos temiam Attaroa. Matava sem hesitação ou remorso.
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Ayla tinha sido apanhada completamente desprevenida. Não teve
tempo de tirar nem a faca, nem a funda, nem nada, e não tinha experiência
de lutar com pessoas. Nunca tinha lutado com ninguém na sua vida.
Mas Attaroa estava em cima dela, com um punhal afiado na mão, a tentar
matá-la. Ayla agarrou o pulso da mulher-chefe e tentou manter o seu
braço à distância. Ayla era forte, mas Attaroa era simultaneamente forte
e astuta e estava a fazer força para baixo, contra a resistência de Ayla,
forçando a ponta do punhal na direcção da garganta de Ayla.
Instintivamente, Ayla rolou no chão no último instante, mas o punhal raspou-lhe o pescoço, deixando um fio de sangue, antes de o punhal se cravar até meio no chão. Ayla continuava presa pela mulher, cuja ira demente aumentava a sua força. Attaroa puxou o punhal do chão e bateu na mulher loura, atordoando-a, voltando a escarranchar-se nela e puxando o punhal para trás para a golpear.
Jondalar fechou os olhos, incapaz de observar o violento momento final da vida de Ayla. A sua própria vida deixaria de ter sentido quando ela morresse... Então por que é que estava all com medo das lanças que o ameaçavam, quando não se importava se viveria ou morreria? Tinha as mãos amarradas, mas não as pernas. Podia correr para ela e talvez derrubar Attaroa.
Ouviu um burburinhojunto do portão do Cercado no instante em que
decidiu ignorar as lanças afiadas e tentar ajudar Ayla. O barulho vindo
do Cercado distraiu as guardas à sua volta enquanto ele se atirou inesperadamente
para a frente, afastando as lanças e correndo para as duas
mulheres que lutavam o chão.
Subitamente, uma mancha escura passou velozmente pelas pessoas que observavam, roçou-lhe a perna e saltou sobre Attaroa. 0 impacte do ataque fez a mulher-chefe cair para trás enquanto umas presas aguçadas se fechavam em volta da sua garganta, rasgando a pele. A mulherche fe deu por si de costas no chão, tentando libertar-se de uma fúria de dentes arreganhados e pêlo. Conseguiu golpear o corpo pesado e peludo antes de deixar cair o punhal, mas isso apenas provocou um rosnido letal e o apertar das mandulas que pareciam um torno que se fecharam, cortandolhe a respiração.
Attaroa tentou gritar ao sentir-se envolvida pela escuridão, mas nesse instante um dente canino afiado cortou uma artéria e o som que saiu foi um horrível gorgulhar de sufocação. Depois, a mulher alta e bem pare cida ficou inerte e deixou de lutar. Ainda a rosnar, oLobo sacudiu-a, as segurando-se de que já não oferecia resistência.
mLobo! exclamou Ayla, superando o choque e sentando-se.-Oh, Lobo!
Quando o lobo largou o corpo, o sangue jorrou da artéria cortada e mo lhou-o. Ele rastejou para junte de Ayla, com o rabo entre as pernas, a ganir apologeticamente, pedindo a sua aprovação. A mulher tinhalhe dito para ficar escondido e ele sabia que tinha agido contra o seu desejo.
Quando viu o ataque e percebeu que ela estava em perigo, tinha-se lançado
em sua defesa, mas agora não sabia bem como é que a sua desobediência
seria recebida. Odiava, acima de qualquer outra coisa, que aquela mulher lhe ralhasse.
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Ayla abriu os braços para o acolher. Percebendo rapidamente que
tinha agido bem e que a sua transgressão tinha sido perdoada, correu
para ela cheio de alegria. Ela abraçou-o, escondendo o rosto no seu pêlo,
enquanto lhe saltavam dos olhos lágrimas de alívio.
--Lobo, salvaste-me a vida-soluçou ela. Ele lambeu-a, sujando-lhe o rosto com o sangue de Attaroa, sangue quente que ainda tinha no focinho.
As pessoas do Acampamento recuaram diante daquela cena, olhando
fixamente, boquiabertas de incompreensão e maravilhadas com a mulher
loura que abraçava um grande lobo que acabara de matar outra mulher
num ataque furioso. Tinha-se dirigido ao animal com o nome Mamutoi
para lobo, que era semelhante ao seu próprio nome para o caçador carní-voro, e perceberam que ela estava a falar com ele, como se ele a compreendesse,
da mesma maneira como falava com os cavalos.
Não era de admirar que aquela estranha não tivesse mostrado medo de Attaroa. A sua magia era tão poderosa que não só conseguia que os cavalos lhe obedecessem, como também conseguia controlar lobos! O homem também não se tinha mostrado preocupado, aperceberam-se, quando o viram cair de joelhos junto da mulher e do lobo. Até ignorara as lanças das Mulheres Lobo, que também tinham recuado alguns passos e estavam estupefactas. Subitamente, viram um homem atrás de Jondalar, um homem que empunhava uma faca! De onde é que tinha vindo aquela faca?
m Deixa-me cortar essas cordas, Jondalar m disse Ebulan, golpeando-as.
Jondalar olhou em volta ao sentir as mãos soltas. Outros homens
tinham-se misturado na multidão e estavam mais a vir da direcção do
Cercado.
-- Quem é que vos soltou?
-- Foste to-disse Ebulan.
Que é que queres dizer com isso? Eu estava amarrado.
--Mas deste-nos as facas.., e a coragem para tentarmos disse Ebu lan.-Ardemun foi sorrateiramente por detrás da guarda que estava ao portão e bateu-lhe com o cajado. Depois cortámos as cordas que mantinham o portão fechado. Toda a gente estava a observar a luta e depois o lobo veio.., m A sua voz esmoreceu e ele abanou a cabeça ao observar a mulher e o lobo.
Jondalar não reparou que o homem estava demasiado estupefacto para continuar. Havia uma outra coisa mais importante.
Estás bem, Ayla? Ela feriu-te? -- disse, abraçando a mulher e o lobo. O animal deixou de lamber Ayla para o lamber a ele.
$5 tenho um arranhão no pescoço. Não é nada disse ela, agarran dose ao homem e ao lobo excitado--, e creio que o Lobo foi golpeado, embora isso não pareça estar a incomodá-lo.
m Nunca teria permitido que voltasses se pensasse que ela te tenta ria matar, Ayla, aqui no meio da festa. Mas tinha obrigação de saber. Fui estúpido em não me aperceber de como ela era perigosa disse, abraçan do-a com força.
-- Não, não és estúpido. Nem sequer me passou pela cabeça que ela tentasse atacar-me, e não soube defender-me. Se não fosse o LObo... Olharam ambos para o animal, cheios de gratidão.
-- Tenho de admitir que já houve alturas nesta Viagem em que quis deixar ficar o Lobo, Ayla. Pensei que era mais uma preocupação que nos dificultava a viagem. Quando descobri que tinhas ido à procura dele depois de termos atravessado a Irmã, fiquei furioso. A ideia de que tinhas posto a tua vida em risco por causa deste animal perturbou-me.
Jondalar pegou na cabeça do lobo com ambas as mãos e olhou-o nos olhos.
Lobo, prometo que nunca te deixarei ficar para trás. Arriscaria a minha vida para salvar a tua, meu furioso e magnífico animal-disse o homem, esfregando-lhe o pele e coçando-o atrás das orelhas.
O LObo lambeu o pescoço e a cara de Jondalar e, com as paras, agarrou o pescoço nu e o maxilar do homem e apertou ligeiramente, manifestandolhe o seu afecto. O Lobo gostava quase tanto de Jondalar como gostava de Ayla e rosnou de satisfação com a atenção e aprovação que estava a receber de ambos os seus seres humanos.
Mas as pessoas que estavam a observar fizeram ruídos de espanto e medo ao ver o homem expor a sua garganta vulnerável ao animal. Tinham visto aquele mesmo lobo agarrar Attaroa com aquelas poderosas mandíbulas e matá-la e, para eles, o gesto de Jondalar significava magia, um controlo inimaginável sobre os espíritos dos animais.
Ayla e Jondalar levantaram-se com o lobo entre ambos, enquanto as pessoas observavam com algum temor, sem saber bem o que esperar a seguir. Várias olharam para S'Armuna. Esta avançou para os visitantes, a olhar desconfiada para o lobo.
-- Estamos finalmente livres dela disse.
Ayla sorriu; via a ansiedade da mulher.
O LObo não te fará mal m disse. Só atacou para me proteger. S'Armuna reparou que Ayla não traduziu o nome do animal para
Zelandonii e sentiu que aquela palavra era usada como nome pessoal do
animal.
É justo que o fim dela tivesse vindo de um lobo. Eu sabia que vocês estavam cá por uma razão. Já não estamos sob o seu jugo, prisioneiros da sua loucura disse a mulher. Mas que é que agora vamos fazer? A pergunta era retdrica, feita mais a si própria do que a qualquer das pessoas que a escutava.
Ayla olhou para o corpo imóvel da mulher que apenas instantes antes
tinha sido tão má, mas vibrantemente viva, o que fez com que tivesse
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consciência de como a vida era uma coisa frágil. Se não fosse oLobo, podia
ser ela a estar all morta no chão. A ideia f'e-la estremecer.
m Creio que alguém deve levar esta mulher-chefe para a preparar
para ser enterrada, m Falou em Mamutoi, para que mais pessoas a com preendessem sem necessidade de tradução.
mEla merece ser enterrada? Por que é que não atiramos o corpo dela
às aves de rapina? m A voz que falara era masculina.
m Quem fala? m perguntou Ayla.
Jondalar conhecia o homem que deu um passo em frente, um pouco hesitante.
m Chamo-me Olamun.
Ayla assentiu.
-- Tens direito de estar zangado, Olamun, mas Attaroa foi levada à violência pela violência a que foi sujeita. O mal no seu espírito anseia por prosseguir, por vos deixar uma herança de violência. Não deixem que isso aconteça. Não permitam que a vossa justa ira vos torne presa da armadilha que o seu espírito inquieto vos armou. E altura de quebrar o padrão. Attaroa era humana. Enterrem-na com a dignidade que ela não conseguiu encontrar em vida e deixem que o seu espírito repouse.
Jondalar ficou surpreendido com a resposta dela. Era o tipo de res
posta que uma Zelandonii poderia dar, sensata e controlada. Olamun assentiu em aquiescência. m Mas quem é que a enterrará? Quem é que a preparará? Não term parentes m disse.
m Isso é da responsabilidade Daquela Que Serve a Mãe-disse S'Armuna.
m Talvez com a ajuda daquelas que a seguiram nesta vida m sugeriu
Ayla. O corpo era obviamente demasiado pesado para a mulher mais velha o poder preparar.
Todos se viraram para Epadoa e para as Mulheres Lobo. Parecia que se encostaram umas às outras para arranjar força umas nas outras.
mE depois segui-la para o outro mundo N disse uma outra voz masculina. Ouviram-se gritos de concordância da multidão e um movimento colectivo na direcção das Mulheres Lobo. Epadoa aguentou firme, brandindo a lança.
Subitamente, uma Mulher Lobo jovem separou-se das outras.
-- Eu nunca pedi para ser Mulher Lobo. Só queria aprender a caçar para não passar fome.
Epadoa olhou para ela com uma expressão de fúria, mas a jovem mulher olhou-a com uma expressão de desafio.
mA Epadoa que descubra o que é ter fome-disse de novo a voz masculina, m Que ela fique sem comida atd chegar ao outro mundo. Assim o seu espírito tambdm terá fome.
As pessoas que estavam a avançar para as caçadoras, e para Ayla, pro
vocaram um rosnido ameaçador do Lobo. Jondalar ajoelhou-se rapidamente
para o sossegar, mas a sua reacção teve o efeito de fazer as pessoas
recuar. Olharam para a mulher e para o animal com alguma agitação.
Desta vez, Ayla nåo perguntou quem falara. m O espírito de Attaroa continua entre nós m disse Ayla m encorajan
do a violência e a vingança.
m Mas Epadoa term de pagar pelo mal que fez.-Ayla viu a mãe de
Cavoa avançar, mA sua jovem falha grávida estava atrás dela, a darlhe apoio moral.
Jondalar levantou-se e pôs-se ao lado de Ayla. Não pôde deixar de pensar que a mulher tinha direito à vingança pela morte do filho. Olhou para S'Armuna. Aquela Que Servia a Mãe devia responder, pensou, mas também ela estava ì espera que Ayla respondesse.
m A mulher que matou o teu filho já foi para o outro mundo disse
Ayla. m Epadoa deve pagar pelo mal que fez.
m Então term muito por que pagar. E o mal que fez a estes rapazes? m Foi Ebulan quem falou, recuando para deixar Ayla ver os jovens apoiados ao velho cadavérico.
Ayla sobressaltou-se quando viu o homem; pensou, por instantes, que estava a olhar para Creb! Era alto e magro, ao passo que o homem santo do Clã era baixo e entroncado, mas o seu rosto enrugado e olhos escuros tinham o mesmo tipo de compaixão e dignidade e era evidente que suscitava o mesmo tipo de estima.
O primeiro pensamento de Ayla foi fazer-lhe o gesto de respeito do Clã, sentando-se aos seus pés e esperando que ele lhe tocasse no ombro, mas sabia que a sua atitute seria mal interpretada. Decidiu dar-lhe a consideração da cortesia formal. Virou-se para o homem alto que estava ao seu lado.
Jondalar, não me posso dirigir correctamente a este homem sem lhe ser apresentada m disse.
Ele percebeu rapidamente o que ela sentia. Também ele se sentira im pressionado com o homem. Avançou e conduziu Ayla atd ele.
m S'Amodun, o mais respeitado dos S'Armunai, permites-me que te
apresente Ayla, do Acampamento do Leão, Filha do Lar do Mamute, Escolhida pelo espírito do Leão das Caverna e Protegida pelo Urso das Cavernas.
Ayla ficou surpreendida por Jondalar acrescentar a última parte. Nunca ninguém invocara o Leão das Cavernas como seu protector, mas ao pensar nisso achou que podia ser verdade, pelo menos através de Creb.
O Urso das Cavernas tinha-o escolhido m era o totem do Mog-ur m e Creb aparecera-lhe tanto em sonhos que ela estava certa de que a estava
a guiar e proteger, talvez com a ajuda do Grande Urso das Cavernas do
Clã.
S'Amodun dos S'Armunai dá as boas-vindas à Filha do Lar do
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Mamute D disse o velho, estendendo-lhe as duas mãos. Não foi só ele a
referir o Lar do Mamute como sendo o mais importante das suas relações.
A maioria das pessoas que all estavam compreendiam a importância que
o Lar do Mamute tinha para os Mamutoi; isso significava que ela tinha
estatuto igual ao de S'Armuna, Aquela Que Servia a Mãe.
"E claro, o Lar do Mamute", pensou S'Armuna. Isso respondia a muitas perguntas que se lhe tinham posto. Mas onde estava a sua tatuagem? Aqueles que eram aceites no Lar do Mamute não eram marcados com uma tatuagem?
--Estou contente por me dares as boas-vindas, Muito Respeitado
S'Amodun D disse Ayla, falando em S'Armunai.
O homem sorriu.
Aprendeste muito da nossa língua, mas acabaste de dizer uma coisa
duas vezes. O meu nome é Amodum. S'Amodun significa "Muito Res
peitado Amodun", ou "Muito Digno" ou o que penses p.ara indicar alguém
que queiras destacar especiamente-disse ele.-E um título imposto
pela vontade do Acampamento. Não sei bem por que é que o mereci.
Ela sabia porquê.
Agradeço-te, S'Amodun-disse Ayla, baixando os olhos e assentindo com gratidão. A tão curta distância, fazia-a recordar ainda mais Creb, com os seus olhos escuros e luminosos, nariz saliente, sobrancelhas espessas e feições fortes. Teve de forçar-se conscientemente a não ceder ao seu treino do Clã... não era suposto as mulheres olharem directamente para os homens.., para olhar para cima e falar com ele. D Gostava de te fazer uma pergunta-disse ela, falando em Mamutoi, língua que fala va mais fluentemente.
-- Se puder, responder-te-ei-disse ele.
Ela olhou para os dois rapazes que estavam um de cada lado dele. --As pessoas deste Acampamento querem que Epadoa pague o mal que fez. Estes rapazes, em particular, sofreram grande mal às suas mãos. Amanhã verei se posso fazer alguma coisa para os ajudar, mas que castigo deverá Epadoa ter por ter levado a cabo os desejos da sua chefe?
Involuntariamente, a maioria das pessoas olhou para o corpo de At taroa, ainda caído no sítio onde o Lobo o deixara; depois o seu olhar foi atraído por Epadoa. A mulher estava muito direita e sem mostrar medo, pronta a aceitar o seu castigo. No seu coração sempre soubera que um dia teria de pagar.
Jondalar olhou para Ayla, impressionado. Ela tinha feito exactamente o que era certo fazer, pensou. Dissesse ela o que dissesse, mesmo com o temor e respeito que suscitara naquela gente, as palavras de uma estranha nunca seriam tão bem aceites como as palavras de S'Amodun.
--Acho que Epadoa deve pagar o mal que fez D disse o homem. Muitas pessoas assentiram de satisfação, sobretudo Cavoa e a mãe. Mas neste mundo, não no próximo. Tinhas razão ao dizeres que era altura de quebrar o padrão. Term havido demasiada violência e malvadez neste Acampamento durante demasiado tempo. Os homens sofreram muito durapte os últimos anos, mas primeiro os homens fizeram mal às mulheres. E altura de pôr termo a isto.
--Então como é que Epadoa irá pagar? perguntou a mãe enlutada.-Qual será o seu castigo?
-- Não terá castigo, mas terá de dar uma compensação. Deve dar em troca tanto quanto tirou, e mais. Pode começar com o Doban. Independentemente do que a Filha do Lar do Mamute puder fazer por ele, não é provável que Doban se cure completamente. Sofrerá os efeitos do que lhe foi feito durante toda a vida. O Odevan também sofrerá, mas ele term mãe e parentes. Doban não term mãe, nem parentes que cuidem dele, ninguém para se responsabÌlizar por ele nem para garantir que receberá treÌno em qualquer ofício. Eu tornaria Epadoa responsável por ele, como se fosse sua mãe. Poderá nunca o amar e ele poderá odiá-la, mas ela deve assumir responsabilidade por ele.
Algumas pessoas assentiram, aprovando. Nem todos concordavam, mas alguém tinha de cuidar de Doban. Embora todos tivessem lamenta do a sua sorte, ele não era muito querido quando vivia com Attaroa e ninguém queria acolhê-lo. A maioria das pessoas sentia que se levantasse objecções à ideia de S'Amodun poderia ser-lhe pedido que lhe abrisse a sua habitação.
Ayla sorriu. Achava que era uma solução perfeita e, embora a princí-pio pudesse haver ódio e falta de confiança, a relação acabaria por ter ternura.Tinha compreendido que S'Amodun era sábio. A ideia da compensação parecia mais útil que o castigo e deu-lhe uma ideia.
-- Gostaria de fazer outra sugestão disse.-Este Acampamento
não term provisões suficientes para o Inverno e quando chegar a Primavera
todos poderão passar fome. Os homens estão fracos e há vários anos
que não caçam. Muitos poderão ter perdido a sua perícia. Epadoa e as mulheres
que ela treinou são os melhores caçadores deste Acampamento. Acho que seria sensato que continuassem a caçar, mas têm de compartilhar
a carne com todos.
As pessoas assentiram. A ideia de passarem fome não lhes agradava.
-- Assim que os homens estiverem capazes e quiserem começar a caçar,
Epadoa terá a responsabilidade de os ajudar, de caçar com eles. A única forma de evitar a fome na próxima Primavera é as mulheres e os
homens trabalharem juntos. Toda a gente do Acampamento precisa da
contribuição de uns e outros para sobreviver. O resto das mulheres, e os
homens mais velhos e fracos, devem apanhar quaisquer alimentos que
consigam encontrar.
E Inverno! Não há nada para apanhar D disse uma das jovens Mulheres Lobo.
É verdade que não há muitos alimentos para apanhar no Inverno,
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e aquilo que há exigirá o trabalho da colheita, mas consegue-se
alimentos e o que houver ajudará E disse Ayla.
-- Ela term razão-disse Jondalar. E Já vi e comi alimentos que a Ayla encontrou, mesmo no Inverno. Vocês comeram alguns esta noite, i Ela tirou os pinhões das pinhas que apanhou nos pinheiros junto ao rio.
-- Os líquenes de que as renas gostam podem ser comidos E disse uma das mulheres mais velhas-se forem cozinhados como deve ser.
mE alguns dos trigos e outros cereais e ervas ainda têm espigas Edis se Epasoa. m Podem ser apanhadas.
E Sim, mas tenham cuidado com o azevém. Pode ter um fungo que é
frequentemente fatal. Se tiver mau ar e mau cheiro, provavelmente está cheio de ferrugem e deve ser evitado E aconselhou Ayla. E Mas há certas bagas e frutos que ficam nos ramos durante quase todo o Inverno... até encontrei uma árvore com algumas maçãs.., e a parte interior da casca de muitas árvores pode ser comida.
--Precisamos de facas para as cortar E disse Epasoa. EAs que temos não são muito boas.
E Eu faço-vos algumas E ofereceu-se Jondalar.
-- Ensinas-me a fazer facas, Zelandonii? E perguntou subitamente Doban.
A pergunta agradoulhe.
E Sim, ensinar-te-ei a fazer facas e também outros instrumentos.
-- Eu também gostaria de aprender mais do que sei E disse Ebulan.
E Vamos precisar de armas para caçar.
E Ensinarei todas as pessoas que quiserem aprender, ou pelo menos os rudimentos. São precisos muitos anos para se ganhar verdadeira perícia. Talvez no próximo Verão, se forem ao Encontro dos S'Armunai, encontrem alguém que continue o vosso treino E disse Jondalar.
O sorriso do jovem transformou-se num a expressão aborrecida; sabia que o homem alto não iria lá ficar.
E Mas ajudá-los-ei o máximo que puder E disse Jondalar. E Tivemos de fazer muitas armas de caça para esta Viagem.
E E esse.., pau que lança lanças.., como o que ela utilizou para te liber
tar? E Foi Epadoa quem falou e todos se viraram para a olhar. A chefe das Mulheres Lobo ainda não tinha falado, mas a sua intervenção fez -lhes lembrar o lançamento preciso e feito à distância que Ayla fizera para libertar Jondalar do poste alto. Parecera-lhes tão milagroso que a maioria das pessoas não o considerava uma arto que pudesse ser aprendida. O lançador de lanças? Sim, ensinarei como se usa a quem estiver interessado.
E Incluindo as mulheres? E perguntou Epadoa.
E Incluindo as mulheres disse Jondalar. E Quando souberem utilizar
boas armas de caça, não terão de ir ao Grande Rio Mãe perseguir ca
valos para caírem em penhascos. Têm aqui uma das melhores zonas de caça que já vi, aqui mesmo junto ao rio.
E Sim, temos E disse Ebulan. E Lembro-me especialmente bem de
lá caçar mamutes. Quando era rapaz, costumavam pôr um vigia e fazer
sinal acendendo fogueiras quando avistavam qualquer coisa.
E Foi o que eu pensei E disse Jondalar.
Ayla estava a sorrir.
E Creio que o padrão se está a quebrar. Já não ouço o espírito de Attatoa a falar E disse, fazendo festas no pêlo do Lobo. Depois diñgiu-se à chefe das Mulheres Lobo. E Epadoa, a primeira coisa que aprendi foi a caçar predadores de quatro paras, incluindo lobos. As peles dos lobos são quentes e úteis para fazer capuzes e um lobo que seja uma ameaça séria deve ser morto, mas aprende-se mais a observar lobos vivos do que a ar mar-lhes armadilhas e a comê-los depois de estarem mortos.
Todas as Mulheres Lobo olharam umas para as outras com expressões de remorso. Como é que ela sabia? Entre os S'Armunai, a carne de lobo era proibida e considerada especialmente má para as mulheres.
A caçadora-chefe estudou a mulher loura, tentando ver se haveria nela mais do que parecia. Agora que Attaroa estava morta e ela sabia que não ia ser morta pelo que fizera, Epadoa sentiu-se aliviada. Estava contente por tudo ter terminado. A mulher-chefe tinha sido tão convincente que a jovem caçadora se enamorara dela e fizera muitas coisas para lhe agradar sobre as quais não gostava de pensar. Muitas dessas coisas in comodavam-na mesmo enquanto as estava a fazer, embora nunca o tivesse reconhecido, nem sequer a si própña. Quando viu o homem alto, quando estavam a caçar cavalos, tinha tido esperança de que se o levas se para Attaroa brincar com ele pudesse poupar um dos seus próprios homens do Cercado.
Não tinha querido magoar Doban, mas tinha tido medo que se não fizesse o que Attaroa lhe ordenara a mulher-chefe a mataria, como matara o seu prdprio filho. Por que é que aquela Filha do Lar do Mamute teria escolhido S'Amodun e não Epasoa para se pronunciar sobre o seu destino? Tinha sido uma escolha que lhe salvara a vida. Já não lhe seria fácil viver naquele Acampamento. Muitas pessoas odiavam-na, mas ela sentia-se grata pela oportunidade que lhe foi dada para se redimir. Cui daria do rapaz, mesmo que ele a odiasse. Devia-lhe isso.
Mas quem era aquela Ayla? Teria vindo para destruir o domínio de Attaroa sobre o Acampamento como todos achavam? E o homem? Que
magia é que ele tinha para as lanças não lhe tocarem? E como é que os
homens no Cercado tinham arranjado facas? Tinha sido ele responsável
por isso? Montariam eles cavalos por ser o animal que as Mulheres Lobo
mais caçavam, muito embora o resto dos S'Armunai fossem caçadores de mamutes como os seus parentes, os Mamutoi? Seria o lobo um espíñto de
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lobo vindo para vingar os da sua espécie? Uma coisa ela sabia. Nunca
mais caçaria um lobo e deixaria de se intitular Mulher Lobo.
Ayla dirigiu-se para a chefe morta e viu S'Armuna. Aquela Que Servia a Mãe tinha observado tudo mas falado pouco e Ayla lembrou-se da sua angústia e remorso. Falou com ela num tom baixo e privado.
-- S'Armuna, mesmo que o espírito de Attaroa esteja finalmente a abandonar este Acampamento, não será fácil alterar hábitos antigos. Os homens saíram do Cercado... estou contente por terem conseguido liber tar-se e eles recordarão isso com orgulho.., mas levarão muito tempo a esquecer Attaroa e os anos que lá estiveram presos. A pessoa que os pode ajudar és to, mas isso será uma pesada responsabilidade.
A mulher assentiu. Sentia que lhe tinha sido dada uma oportunidade para remediar o abuso do poder da Mãe; era mais do que esperara. A primeira coisa a fazer era enterrar Attaroa e esquecê-la. Virou-se para a multidão.
-- Sobrou comida. Vamos terminar esta festa juntos. É altura de destruir a paliçada.que foi erguida entre os homens e as mulheres deste Acampamento. E altura de compartilharmos a comida, e o lume, e o calor da comunidade. É altura de voltarmos a ser um povo inteiro, sem que ninguém tenha mais que qualquer outro. Toda a gente term os seus talentos e capacidades e, com cada pessoa a contribuir e a ajudar, este Acampamento florescerá.
As mulheres e os homens assentiram em concordância. Muitos tinham encontrado as companheiras de quem há muito estavam separados; os outrosjuntaram-se para compartilhar a comida e o lume e a companhia humana.
N Epadoa-chamou S'Armuna, enquanto as pessoas iam buscar
comida. Quando a mulher se dirigiu para ela, S'Armuna disse:- Acho que é altura de levar o corpo de Attaroa daqui e de o preparar para o enterro.
-- Levamo-lo para a habitação? -- perguntou a caçadora.
S'Armuna reflectiu.
-- Não-disse.-Levem-na para o Cercado e ponham-na no abrigo. Acho que oshomens devem ficar no calor da habitação de Attaroa esta noite. Muitos estão fracos e doentes. Poderemos precisar dela durante algum tempo. Tens outro sítio onde possas dormir?
-- Sim. Quando me conseguia afastar de Attaroa, tinha um lugar com Unavoa na habitação que ela compartilha.
--Podes pensar em mudar-te temporariamente para lá com ela se vos agradar a ela e a ti.
-- Acho que ambas gostaríamos disso-disse Epadoa.-Mais tarde, combinaremos outra solução com o Doban.-Sim-disse Epadoa --, faremos isso.
Jondalar observou Ayla enquanto ela se dirigia com Epadoa e as caçadoras para o corpo da mulher-chefe e sentiu orgulho dela e alguma surpresa. Ayla tinha, de alguma forma, assumido a sabedoria e a estatura da própria Zelandoni. As únicas ocasiões em que tinha visto Ayla assumir o controlo de uma situação tinham sido quando alguém estava ferido, ou doente, necessitando dos seus conhecimentos especiais. Depois, continuando apensar nisso, apercebeu-se de que aquelas pessoas estavam feridas e doentes. Talvez não fosse assim tão estranho Ayla saber o que fazer.
De manhã, Jondalar levou os cavalos e trouxe para o Acampamento
as coisas que tinham levado quando deixaram o Grande Rio Mãe para ir
buscar a Whinney. Parecia-lhe que isso já tinha acontecido há muito
tempo e isso fez que se apercebesse de que a sua Viagem tinha sido con
sideravelmente atrasada. Tinham estado com um avanço tão grande em
relação à distância que ele pensava ter de cobrir para chegar ao glaciar,
que ele tinha tido a certeza de que teriam tempo de sobra para lá chegar.
Agora estavam em pleno Inverno e estavam mais longe.
Aquele Acampamento precisava de ajuda e ele sabia que Ayla não se iria embora antes de ter feito tudo o que sentia que podia fazer. Ele também tinha prometido ajudá-la e estava entusiasmado com a perspectiva de ensinar a Doban e aos outros a trabalhar a pedreneira e, àqueles que quisessem, a utilizar o lançador de lanças, mas começara a sentir um pequeno nó de preocupação. Tinham de atravessar aquele glaciar antes de o degelo da Primavera o tornar demasiado traiçoeiro e queria pôr-se a caminho em breve.
S'Armuna e Ayla trabalharam juntas a examinar e a tratar os rapazes e os homens do Acampamento. A sua ajuda veio demasiado tarde para um velho. Morreu na habitação de Attaroa na primeira noite que passou fora do Cercado, de uma grangrena que estava tão avançada que tinha ambas as pernas mortas. A maior parte dos outros precisavam de tratamento para ferimentos ou doenças e estavam todos sub-alimentados. Também cheiraram à doença do Cercado e estavam incrivelmente sujos.
S'Armuna decidiu adiar acender o forno. Não tinha tempo, nem sentia
que houvesse ambiente para isso, embora achasse que, na altura
certa, seria uma poderosa cerimónia curativa. Utilizaram a câmara de
lume interior para aquecer água para lavagem e tratamento de feridas,
mas o tratamento mais necessário era comida e calor. Depois de as curandeiras
terem administrado a ajuda que podiam dar, aqueles que não esta
yam em sérias dificuldades e que tinham mães ou companheiras, ou outros parentes com quem viver, voltaram para a sua companhia.
Foram os rapazes, sobretudo aqueles que estavam prestes a entrar na
adolescência ou que tinham acabado de entrar nela, que provocaram par194
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ticular ira em Ayla. Até S'Armuna ficou horrorizada. Tinha fechado os
olhos à gravidade da situação.
Nessa noite, depois de outra refeição compartilhada em conjunto, Ayla e S'Armuna descreveram alguns dos problemas que tinham encontrado, explicando o que era necessário fazer e respondendo a perguntas:
Mas o dia tinha sido comprido e Ayla disse finalmente que precisava dé
descansar. Aolevantar-se para se ir embora, alguém fez uma última pergunta
sobre um dos rapazes. Quando Ayla respondeu, outra mulher fez um comentário sobre a malvada mulher-chefe, deitando rodas as culpas
para cima de Attaroa e absolvendo-se de toda a responsabilidade.
provocou a ira de Ayla que fez uma declaração que provinha da ira que
tinha vindo a crescer durante todo o dia.
-- Attaroa era uma mulher com uma vontade forte, mas por mais forte
que uma pessoa seja, duas pessoas, ou cinco pessoas, ou dez pessoas são
mais fortes. Se todos vocês estivessem dispostos a resistir-lhe, ela podia
ter sido impedida de continuar muito antes de tudo isto acontecer. Logo,
todos vocês, enquanto Acampamento, homens e mulheres, são parcialmente
responsáveis pelo sofrimento destas crianças. E dir-vos-ei agora
que qualquer um destes rapazes, ou mesmo qualquer um destes homens
que irão sofrer durante muito tempo em consequência desta.., abominação
m Ayla esforçou-se por conter a sua fúria m devem ser tratados por i todo o Acampamento. São todos responsáveis por eles, durante o resto das
suas vidas. Sofreram, e no seu sofrimento tornaram-se os escolhidos de Muna. Qualquer um que se recuse a ajudá-los responderá perante Ela. i
Ayla deu meia volta e foi-se embora e Jondalar seguiu-a, mas as suas palavras tinham fido maior peso do que ela podia saber. A maioria das pessoas já sentiam que ela não era uma mulher vulgar e muitas diziam que ela era umaincarnação da Própria Grande Mãe; uma munai viva sob a forma humana, que tinha vindo para levar Attaroa e libertar os homens. Que outra coisa é que podia explicar que os cavalos obedecessem ao seu assobio? Ou um lobo, enorme mesmo para a raça do norte a que per tencia, que a seguia para onde quer que ela fosse e se sentava c do ela o mandava? Não tinha sido a Grande Terra Mãe que dera vida àsi formas do espírito de todos os animais?
Segundo se dizia, a Mãe tinha criado quer os homens, quer as mulheres,
com um objectivo e tinha-lhes dado a Dádiva dos Prazeres para A
honrar. Os espírÍtos quer dos homens, quer das mulheres, eram necessá-rios para fazer nova vida e a Muna tinha vindo para deixar ficar bem claro
que qualquer um que tentasse criar os Seus filhos de qualquer outra
forma era uma abominação para Ela. Não levara lá o Zelandonii para lhes
mostrar o que Ela sentia? Um homem que era a personificação do Seu
amante e companheiro? Mais alto e maÌs belo que a maioria dos homens,
e claro e louro com a lua. Jondalar começava a reparar na forma diferente
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como o Acampamento reagia para com ele e isso inquietava-o. Não lhe
agradava particularmente.
Tinha havido tanto que fazer no primeiro dia, mesmo com duas curandeiras
e ajuda da maioria das pessoas do Acampamento, que Ayla adiou
o tratamento especial que queria experimentar nos rapazes com os ossos
deslocados. S'Armuna até tinha adiado o enterro de Attaroa. Na manhã
seguinte, foi escolhido o local e cavada a sepultura. Uma cerimónia simples feita por Aquela Que Servia fez finalmente voltar a mulher-chefe ao
seio da Grande Terra Mãe.
Algumas pessoas chegaram mesmo a manifestar alguma dor. Epadoa não estava à espera de sentir nada e, no entanto, sentiu. Dados os sentimentos da maioria das pessoas do Acampamento, não o podia manifestar, mas Ayla percebeu, através da sua linguagem corporal, da sua postura e das suas expressões, que ela se estava a esforçar para se controlar. Doban também teve um comportamento estranho e ela calculou que ele estivesse a tentar resolver os seus sentimentos contraditdrios. Durante a maior parte da sua curta vida, Attaroa tinha sido a única mãe que ele conhecera. Ele tinha-se sentido traído quando ela se virou contra ele, mas o seu amor tinha sido sempre irregular e ele não conseguia desistir por completo dos seus sentimentos por ela.
A dor precisava de ser libertada. Ayla sabia isso pelas suas próprias perdas. Tinha planeado tentar tratar o rapaz logo após o enterro, mas pensou se não deveria esperar mais algum tempo. Aquele podia não ser o dia certo para isso, mas talvez se tivesse outra coisa na qual se concentrar fosse melhor para ambos. Abordou Epadoa no caminho de regresso ao Acampamento.
-- You tentar reencaixar a perna deslocada do Doban e you precisar de ajuda. Ajudas-me?
Não será doloroso para ele?--perguntou Epadoa. Lembrava-se demasiado bem dos seus gritos de dor e estava a começar a sentir um sentimento de protecção em relação a ele. Ele era, senão seu filho, pelo menos sua responsabilidade, e levava isso a sério. Tinha a certeza de que a sua vida dependia disso.
Pô-lo-ei a dormir. Não sentirá nada, embora tenha algumas dores
quando acordar, mas terá de ser deslocado com muito cuidado durante al
gum tempo explicou Ayla. Não conseguirá andar.
Eu pegar-lhe-ei ao colo-disse Epadoa.
Quando chegaram à grande habitação, Ayla explicou ao rapaz que queria tentar endireÌtar-lhe a perna. Ele afastou-se dela, mostrando-se muito nervoso quando viu Epadoa entrar na habitação, e os seus olhos espelharam o seu medo.
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
--Não! Ela vai fazer-me mal! m gritou Doban ao ver a Mulher Lobo.
Se pudesse, teria fugido.
Epadoa estava muito direita e hirta ao lado da plataforma de dormir onde ele estava sentado.
-- Não te farei mal.
mE nunca deixarei que mais ninguém te faça mal, nem sequer esta mulher.
O rapaz olhou para Ayla com apreensåo, mas querendo acreditar nel& Querendo desesperadamente acreditar nela.
-- S'Armuna, por favor assegura-te de que ele compreende o que lhe you fazer-disse Ayla. Depois baixou-se atd o poder olhar nos
assustados.
--Doban, vou-te dar uma coisa para beberes. Não term born sabor mesmo assim quero que bebas tudo. Passado um pouco, começarás a sentirte com sono. Quando te apetecer, podes-te deitar aqui mesmo. Enquanto estiveres a dormir, you tentar pôr-te a perna um pouco melhor como era dantes. Não sentirás nada porque estarás a dormir. acordares, sentirás algumas dores, mas de certa forma também te sentirás melhor. Se tiveres multas dores, quero que me digas a mim, a S'Armuna ou a Epadoa. Alguém estará sempre aqui contigo, e darteemos uma coisa para beberes que fará que as dores desapareçam. Compreendes?
O Zelandon pode vir cá ver-me?
-- Sim, se quiseres, you chamá-lo agora.
-- E S'Amodun?
-- Sim, ambos, se quiseres.
Doban olhou para Epadoa.
m E não deixas que ela me faça mal?
m Prometo. Não deixarei que ela te faça mal. Não deixarei que ninguém
te faça mal.
Ele olhou para S'Armuna e depois de novo para Ayla.
-- Dá-me a bebida m disse.
O processo não era muito diferente daquele de reencaixar o braço partido de Roshario. A bebida não só lhe relaxou os músculos como o pôs a dormir. Foi necessária pura força física para puxar a perna de forma a ficar direita, mas foi evidente para todos quando voltou a encaixar no sitio. Ayla apercebeu-se de que tinha havido uma certa ruptura e que nunca ficaria absolutamente direita, mas o seu corpo ficou a parecer quase normal.
Epadoa mudou-se para o fundo da habitação, dado que a maioria dos homens e rapazes tinham voltado para as suas famflias, mas ficou quase constantemente junto de Doban. Ayla reconheceu o início tentativo da confiança a desenvolver-se entre ambos. Estava segura de que tinha sido exactamente isso que S'Armuna imaginara que aconteceria.
Recorreram a um processo semelhante com Odevan, mas Ayla temia que o seu processo de cura fosse mais diñcil e que a sua perna viesse a ter tendência para se desencaixar e ficar deslocada mais facilmente no futuro.
S'Armuna ficou impressionada e um pouco receosa de Ayla, interrogando-se
intimamente se os boatos que corriam sobre ela não teriam
alguma verdade. Parecia uma mulher vulgar, falava e dormia e compartilhava
os Prazeres com o homem alto e louro como qualquer outra mulher,
mas os seus conhecimentos sobre a vida vegetal que crescia na terra
e sobretudo das suas propriedades medicinais eram fenomenais. Toda a
gente falava disso; S'Armuna ganhou prestígio por associação. E embora
a mulher mais velha tivesse aprendido a não temer o lobo, era quase impossível vê-lo junto de Ayla e não acreditar que ela controlava o seu espí-rito. Quando não a seguia, os seus olhos seguiam-na. Acontecia o mesmo
com o homem, embora não o fizesse de uma forma tão óbvia.
A mulher mais velha não dava tanta atenção aos cavalos, pois a maior parte do tempo eram deixados a pastar-Ayla disse que estava satisfeita por lhes dar descanso-mas S'Armuna viu as duas pessoas montalos. O homem montava o garanhão castanho com à-vontade, mas ver a jovem mulher no dorso da égua fazia que se pensasse que eram um só corpo.
Mas, embora se interrogasse, Aquela Que Servia a Mãe estava céptica. Tinha sido treinada pela zelandonia e sabia que este tipo de ideias eram frequentemente encorajadas. Tinha aprendido, e frequentemente empregue, formas de induzir em erro as pessoas, para as levar a acreditar naquilo que ela, e elas, queriam acreditar. Não considerava isto fraudulento-ninguém estava mais convencido da verdade do seu chamamente -- mas usava os meios ao seu dispor para alisar o caminho e convencer os outros a segui-la. Era frequente as pessoas poderem ser ajudadas por estes meios, especialmente algumas cujos problemas e doenças não tinham uma causa evidente, a não ser, é claro, maldições lançadas por gente malvada.
Embora ela própria não estivesse disposta a aceitar todos os boatos, S'Armuna não os desencorajou. As pessoas do Acampamento queriam acreditar que qualquer coisa que Ayla e Jondalar dissessem era uma declaração da Mãe e utilizou a sua crença para levar a cabo algumas alterações necessárias. Quando Ayla falou no Conselho de Irmãos e no Conselho de Irmãos dos Mamutoi, por exemplo, S'Armuna organizou o Acampamento criando Conselhos semelhantes. Quando Jondalar mencionou encontrarem alguém de outro Acampamento para continuar o seu treino como artifices de pedreneira que ele iniciara, ela instigou os planos para mandarem uma delegação a vários outros Acampamentos S'Armunai para reatar laços com parentes e restabelecer amizades.
Uma noite tão fria e clara que as estrelas ardiam no céu, um grupo de
pessoas estava agrupadojunte à entrada da grande habitação que fora da
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mulher-chefe, que se estava a tornar num centro para as actividades da
comunidade, depois de ter servido como sítio para tratamentos e recuperação.
Estavam a falar nas misteriosasluzes cintilantes no céu e S'Armu
na estava a responder às perguntas e a oferecer interpretações. Tinha de
passar muito tempo all N a fazer tratamentos com remédios e cerimónias
e a reunir-se com pessoas para fazer planos e discutir problemas N que
mudara algumas das suas coisas para lá e deixava Ayla e Jondalar frequentemente
sozinhos na sua pequena habitação. Esta organização
estava a começar a assemelhar-se a outros Acampamentos e Cavernas
que Ayla e Jondalar conheciam, com a habitação Daquela Que Servia a
Mãe funcionando como centro e local de reunião das pessoas.
Depois de os dois visitantes deixarem as pessoas que estavam a obser var as estrelas, com o Lobo no seu encalce, alguém fez uma pergunta a S'Armuna sobre o lobo que seguia Ayla para todo o lado. Aquela Que Servia a Mãe apontou para uma das luzes vivas no céu.
-- Aquela é a Estrela Lobo-disse apenas.
Os dias passaram rapidamente. À medida que os homens e os rapazes
começavam a melhorar, deixando de precisar dela como curandeira, Ayla
foi com aqueles que andavam a recolher os escassos alimentos de Inverno.
Jondalar não tardou a começar a ensinar o seu ofício e a demonstrar
como se fazia o lançador de lanças e se caçava com ele. O Acampamento
começou a acumular reservas de uma variedade de alimentos que eram
fáceis de conservar e de armazenar durante o tempo gelado, sobretudo
carne. A princípio, as pessoas tinham tido uma certa dificuldade em
adaptar-se às novas situações, com os homens a mudarem-se para as
habitações que as mulheres consideravam suas, mas estavam a resolver
os problemas.
S'Armuna sentiu que era a altura certa de cozer as figuras que esta varo no forno e falara em instituir uma nova Cerimónia de Cozimento com os dois visitantes. Estavam no forno, a apanhar parte do combustível que ela recolhera ao longo do Verão e Outono para o cozimento, para fins medicinais e para utilizar no dia-a-dia. Ela explicou que teriam de apanhar mais combustível e que isso daria muito trabalho.
-- Podes fazer alguns instrumentos para cortar árvores, Jondalar?-- perguntou ela.
Terei todo o gosto em fazer alguns machados e malhos e cunhas, o que quiserem, mas as árvores verdes não ardem bem m disse ele.
--Também queimarei ossos de mamute, mas primeiro temos de fazer uma boa fogueira que dê muito calor e term de continuar a arder durante muito tempo. A Ceñmónia do Cozimento consome muito combustível.
Quando saíram da pequena habitação, Ayla olhou para o Cercado do
outro lado do aldeamento. Embora as pessoas tivessem começado a usar
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alguns pedaços, ainda não o tinham deitado abaixo. Ela tinha referido
uma vez que os paus podiam ser utilizados para fazer um cercado para
mamutes, um curral para onde os animais pudessem ser enxotados.
Depois disso, as pessoas do Acampamento tinham evitado usar a madei
ra e agora, que já se tinham todos acostumado a ele, quase não o viam.
Subitamente, Ayla disse:
-- Não é preciso cortarem árvores. O Jondalar. pode fazer instrumentos de cortar madeira para cortarem a madeira do Cercado.
Todos eles olharam para a paliçada de uma forma diferente, mas S'Ar muna ainda viu mais. Começou a ver o esboço da sua nova ce.rimónia.
-- É perfeito! m disse.-A destruição daquele sítio para criar uma nova cerimónia! Todos poderão tomar parte nela e ficarão todos satisfeitos por o ver desaparecer. Assinalará um novo começo para todos, e vocês também cá estarão.
-- Não tenho a certeza disso-disse Jondalar. m Quanto tempo levará?
Não é uma coisa que possa ser feita com pressa. É demasiado importante.
-- Foi o que eu pensei. Temos de nos ir embora dentro de pouco tempo -- disse ele.
-- Mas não tardará a ser a parte mais fria do Inverno-contrapôs S'Armuna.
-- E, pouco depois, dar-se-í o degelo da Primavera. To já atravessaste aquele glaciar, S'Armuna. Sabes que só pode ser atravessado no Inverno.
E eu prometi a alguns Losadunai que visitaria a sua Caverna no
regresso e que passaria algum tempo com eles. Embora não possamos lá
ficar durante muito tempo, será um born sítio para pararmos e nos pre
pararmos para a travessia.
S'Armuna assentiu.
-- Então utilizarei também a Cerimónia de Cozimento para atenuar a vossa partida. Há muitos de nós que tinham esperança de que ficassem e todos sentirão a vossa ausência.
m Eu estava com esperança de ver o cozimento-disse Ayla --, e o bebé de Cavoa, mas o Jondalar term razão. E altura de nos irmos embora.
Jondalar decidiu fazer os instrumentos para S'Armuna imediatamente.
Tinha localizado all perto uma boa quantidade de pedreneira e,
com mais dois, foi buscar o suficiente para fazer machados e implementos
para cortar madeira. Ayla foi à pequena habitação reunir as suas
coisas e ver de que mais poderiam precisar. Tinha espalhado tudo no chão
quando ouviu um barulho à entrada. Olhou e viu que era Cavoa -- Estou a importunar-te, Ayla? -- perguntou ela. -- Não, entra.
A jovem mulher extremamente grávida entrou e acomodou-se na beira de uma plataforma de dormir em frente de Ayla.
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-- S'Armuna disse-me que se vão embora.
-- Sim, dentro de um ou dois dias.
-- Pensei que cá ficassem para o cozimento.
-- Eu queria ficar, mas o Jondalar está ansiose por partir. Diz que temos de atravessar um glaciar antes da Primavera.
-- Fiz uma coisa que te ia dar depois do cozimento-disse Cavoa, tirando um pequeno embrulho de pele da camisa.-Mesmo assim que rota dar, mas se se molhar não durará, m E deu o embrulho a Ayla.
Dentro do embrulho estava uma pequena cabeça de leoa, magnifica mente modelada em barro.
-- Cavoa! Mas que bela. É mais que bela. É a essência de uma leoa das
cavernas. Não sabia que eras tão dotada.
A jovem mulher sorriu.-Gostas?
-- Conheci um homem, um homem Mamutoi, que esculpia maním,
um belo artista. Ensinou-me a ver as coisas que são gravadas e pintadas
e sei que ele adoraria isto-disse Ayla.
--Já fiz figuras de madeira, marfim, osso e de armações de veado. Desde que me lembro de ser gente que as faço. Foi por isso que S'Armuna me pediu para fazer um treino com ela. Term sido maravilhosa para mim. Tentou ajudar-nos... Também foiboa para Omel. Deixou que Omel guar dasse o seu segredo e nunca lhe exigiu nada em troca, como algumas pessoas teriam feito. Muitas pessoas tinham curiosidade.-Cavoa baixou os olhos e parecia estar a tentar controlar as lágrimas.
--Acho que sentes a falta dos teus amigos-disse Ayla com ternura.
--
Deve ter sido difícil para Omel guardar um segredo como esse.
-- Omel tinha de guardar esse segredo.
-- Por causa do Brugar? S'Armuna disse que pensava que ele tivesse sido ameaçado de grandes represálias.
mNão, não era nem por causa de Brugar nem de Attaroa. Eu não gostava de Brugar, e lembro-me como ele a culpava por causa de Omel, embora eu fosse pequena, mas creio que temia mais Omel do que Omel o temia a ele e Attaroa sabia porquê.
Ayla apercebeu-se do que estava a perturbar Cavoa.-E to também sabias, não d?
A jovem mulher franziu a testa.
--Sim-murmurou; depois olhou Ayla nos olhos. Estava com esperança de que cá estivesses quando chegasse a altura. Quero que corra tudo bem com o bebé, não como...
Não era necessário ela dizer mais nada, nem explicar em pormenor. Cavoa temia que o seu bebd pudesse nascer com alguma deformidade, e dar o nome a um mal só lhe dava poder.
Born, não me you já embora e, quem sabe? Parece-me que podes ter o bebé a qualquer altura-disse Ayla.-Talvez ainda cá estejamos.
PLAN[CIES DE PASSAGEM
-- Espero que sim. Fizeram tanto por nós. Só tenho pena de não terem
chegado antes de Omel e os outros...
Ayla viu que ela tinha os olhos marejados de lágrimas.
-- Sentes falta dos teus amigos, eu sei, mas não tardarás a ter o teu próprio bebé novinho em folha. Acho que irá ajudar. Já pensaste num nome?
-- Durante muito tempo não pensei. Sabia que não faria grande sentido em pensar num nome de rapaz e não sabia se me seria permitido dar o nome a uma rapariga. Agora, se for rapaz, não sei se lhe hei-de dar o nome do meu irmão, ou... se de outro homem que conheci. Mas se for rapariga, quero que se chame S'Armuna. Ela ajudou-me a... vê-lo... soluço de angústia interrompeu-lhe as palavras.
Ayla abraçou a jovem mulher. A dor precisava de ser expressada. Era born para ela deixá-la sair. Aquele Acampamento ainda estava cheio de
dor que precisava de sair. Ayla esperava que a cerimónia que S'Armuna estava a planear ajudasse. Quando finalmente as suas lágrimas abrandaram,
Cavoa recuou e limpou os olhos com as costas da mão. Ayla olhou
em volta, procurando qualquer coisa para lhe dar para limpar as lágrimas,
e abriu um pacote que há anos que levava consigo para deixar a
jovem mulher usar a envolta de pele. Mas quando Cavoa viu o que lá estava
dentro, os seus olhos abriram-se muito de incredulidade. Era uma munai, a pequena figura de uma mulher, esculpida em marfim, mas
aquela munai tinha um rosto e o rosto era o de Ayla!
Desviou os olhos, como se tivesse visto algo que não devia, limpou os
olhos e foi-se rapidamente embora. Ayla franziu a testa enquanto voltava
a embrulhar a escultura que Jondalar fizera dela na pele macia.
Sabia que tinha assustado Cavoa.
Tentou esquecer o incidente enquanto arrumava os seus escassos ha veres. Pegou na bolsa onde guardaram as suas pedras de fogo e esvaziou-a para ver quantos pedaços de pirite de ferro de um amareloacinzentado metálico ainda tinham. Queria dar uma a S'Armuna, mas não sabia se as iria encontrar perto do lar de Jondalar e queña ter alguns presentes para dar aos seus parentes. Decidiu desfazer-se de uma, mas apenas de uma, e escolheu um nódulo de tamanho razoável e guardou os restantes.
Quando Ayla la a sair, reparou em Cavoa que estava a abandonar a grande habitação. Sorriu àjovem mulher que lhe retribuiu nervosamente o sorriso e, quando entrou, achou que S'Armuna a olhava com uma expressão estranha. Ao que parecia, a escultura de Jondalar tinha cña do alguma perturbação. Ayla esperou atd que outra pessoa saiu da habitação e S'Armuna ficou sozinha.
--Tenho uma coisa que te quero dar antes de me ir embora. Descobñ
isto quando vivia sozinha no meu vale-disse ela, abrindo a palma da
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S'Armuna olhou para a pedra e depois para Ayla, com uma expressão
interrogativa.
Sei que não parece ser grande coisa, mas há fogo dentro desta pedra.
Deixa-me mostrar-to.
Ayla dirigiu-se para a lareira, tirou um pouco da acendalha que eles
usavam e dispôs pequenas aparas de madeira em volta de felpa de tifá-ceas. Colocou alguns gravetos à mão e depois inclinou-se e bateu na pirito
de ferro com um pedaço de pedreneira. Surgiu uma grande faúlha quen
to que caiu na acendalha e, quando soprou nela, uma pequena chama
apareceu milagrosamento. Depois juntou alguns gravetos para alimentar
o lume e quando olhou para cima viu a mulher estupefacta a olhá-la
boquiaberta.
-- Cavoa disse-me que viu uma rnunai com o tou rosto e agora fazes
aparecer fogo. És... quem eles dizem que és?
Ayla sorriu.
m Foi o Jondalar que fez aquela escultura porque me amava. Disse
que queria capturar o meu espírito e depois deu-ma. Não é uma donii, nem uma munai. E apenas uma lembrança do seu amor e terei todo o
gosto em mostrar-to como se faz lume. Não é de mim, é qualquer coisa que
a pedra de lume term.
m Será que devia cá estar? m A voz veio da entrada e ambas as mu
lheres se viraram para olhar para Cavoa. mEsqueci-me aqui das minhas luvas e voltoi para as vir buscar.
S'Armuna e Ayla olharam uma para a outra.
-- Não vejo porque não-disse Ayla.
m Cavoa é a minha acólita m referiu S'Armuna.
-- Então mostrarei às duas como funciona a minha pedra de lume m
disse Ayla.
Depois de repetir o processo e de as deixar ambas tentar, as duas mulheres
já estavam mais descontraídas, embora não estivessem menos es
pantadas com as propriedades da estranha pedra. Cavoa até se sentiu
com coragem suficiento para falar a Ayla sobre a munai.
m Aquela figura que eu vi...
m Jondalar fê-la para mim, pouco depois de nos conhecermos. A sua intonção era mostrar o que sentia por mim-explicou Ayla.
Queres dizer que se eu quisesse mostrar a uma pessoa como ela era importanto para mim podia fazer uma escultura do rosto dessa pessoa?
disse Cavoa.
mNão vejo porque não disse Ayla. m Quando fazes uma munai, sa
bes por que é que a estás a fazer. Tens um sentimento especial dentro de ti em relação a isso, não tens?
-- Sim, e é acompanhado de certos rituais disse a jovem mulher.
PLAN[CIES DE PASSAGEM
mão para mostrar a pedra.-Achei que a poderias usar na tua Cerimó-nia do Fogo.
m Creio que é o sentimento que se põe nisso que faz que seja diferento.
--Então eu posso fazer o rosto de uma pessoa se o sentimento que puser nisso for born.
-- Não creio que haja absolutamento nada de mal nisso. És uma ex celento artista, Cavoa.
-- Mas talvez seja melhor-acautolou S'Armuna m não fazeres toda a figura. Se só fizeres a cabeça, não haverá lugar a qualquer confusão.
Cavoa assentiu, concordando; depois ambas olharam para Ayla, como se aguardassem a sua aprovação. No lugar mais recôndito dos seus pensamentos privados, ambas as mulheres continuavam a intorrogar-se sobre quem na realidade era aquela visitanto.
Ayla e Jondalar acordaram na manhã seguinto com toda a intonção de
partirem mas, ao saírem da habitação, viram que uma neve seca estava
a ser tão violentamente batida pelo vento que até tinham dificuldade em
ver o outro lado do aldeamento.
-- Não creio que nos vamos embora hoje, com esta ameaça de tempestade de neve m disse Jondalar, embora detestasse a ideia do atraso.-
Espero que termine rapidamente.
Ayla foi ao campo e assobiou pelos cavalos para se assegurar de que estavam bem. Ficou aliviada por os ver aparecer no meio da neve batida pelo vento e levou-os para uma zona mais perto do Acampamento que estava protogida do vento.
Ao regressar, ia apensar na sua viagem de regresso ao Grande Rio Mãe, pois era a única que sabia o caminho. Aprincípio, não ouviu chamar baixinho pelo seu nome.
Ayla! O murmúrio foi mais forte. Olhou em volta e viu Cavoa por detrás da pequena habitação, mantendo-se escondida e fazendo-lhe sinal.
-- Que d, Cavoa?
-- Quero mostrar-to uma coisa, para ver se gostas m disse a jovem mulher. Quando Ayla se aproximou, Cavoa tirou aluva. Tinha na mão um pequeno objecto arredondado, da cor de martim de mamuto. Depois colocouo cuidadosamento na palma da mão de Ayla.-Acabei-a mesmo agora-disse.
Ayla pegou nela e sorriu com uma expressão maravilhada.
Cavoa! Eu sabia que eras muito boa. Mas não sabia que eras tão boa-disse, examinando cuidadosamente a pequena escultura de S'Armuna.
Era apenas a cabeça da mulher, sem qualquer sugestão de corpo, nem
sequer de pescoço, mas não havia qualquer dúvida de quem era suposto
representar. O cabelo estava puxado para trás e apanhado num carrapi
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to perto do cimo da cabeça e o rosto estreito era ligeiramente assimétrico,
com um dos lados ligeiramente mais pequeno que o outro; no entanto, a
beleza e a dignidade da mulher estavam patentes. Pareciam emanar da
pequena obra de arte.
-- Achas que está bem? Achas que ela irá gostar? m disse Cavoa.-
Queria fazer uma coisa especial para ela.
m Eu gostaria-disse Ayla m e creio que exprime muito bem os teus
sentimentos para com ela. Tens um Dom raro e maravilhoso, Cavoa, mas tens de ter a certeza de que o usas bem. Pode ter grande poder. S'Armuna foi inteligente em te escolher como sua acólita.
k noite, a violenta tempestade de neve continuava a cair, tornando
perigoso afastarem-se da entrada da habitação. S'Armuna ia a tirar um
ramo de ervas secas que estava pendurado numa armação perto da entrada,
tencionando acrescentá-lo a um novo love de ervas que estava a mis
tarar para preparar uma potente bebida que estava a preparar para a
Cerimónia do Fogo. A fogueira dentro da habitação estava a arder baixinho
e Ayla e Jondalar tinham acabado de se deitar. A mulher tenciona
va também deitar-se assim que acabasse.
Subitamente, uma rajada de ar frio e uma lufada de neve acompanhou
a abertura da pesada pele que tapava a entrada da antecâmara. Esadoa
afastou a segunda pele, num estado de evidente agitação.
-- S'Armuna! Depressa! É Cavoa! Chegou a sua hora!
Ayla já saíra da cama e começara a vestir-se antes de a mulher poder responder.
--Escolheu uma óptima noite-disse S'Armuna, conservando a calma, em parte para tranquilizar a agitada futura avó.-Vai correr tudo bem, Esadoa. Ela não terá o bebé antes de chegarmos à tua habitação.
--Ela não está na minha habitação. Insistiu em sair com esta tempestade para ir para a habitação grande. Não sei porquê, mas quer lá ter o bebé. E quer que a Ayla também vá. Diz que é a única forma de ter a certeza de que o bebé nascerá bem.
S'Armuna franziu a testa, preocupada.
--Não há lá ninguém esta nóite e não foi nada sensato da parte dela sair com este tempo.
-- Eu sei, mas não a consegui impedir-disse Esadoa, já de saída.-Espera um instante-disse S'Armuna.-Mais vale irmos todas
juntas. Podemo-nos perder ao ir de uma habitação para outra numa tempestade
como esta.
-- O Lobo não deixará que nos percamos-disse Ayla, fazendo sinal ao animal que se tinha enroscado ao lado da sua cama.
-- Seria imprdprio se eu também fosse? -- disse Jondalar. Não era
tanto que lá quisesse estar para o parto, mas estava preocupado por Ayla ir sair no meio daquela tempestade. S'Armuna olhou para Esadoa.
m Eu não me importo. Mas será correcto um homem estar presente num parto? -- disse Esadoa.
--Não existe nenhuma razão para que não esteja-disse S'Armuna, e talvez seja born haver um homem por perto, dado que ela não term com panheiro.
Todos eles enfrentaram o vento cortante quando as três mulheres e o homem se meteram na violenta tempestade. Quando chegaram à habitação grande, encontraram a jovem mulher encolhida junte de uma lareira fria e vazia, com o corpo tenso de dores e uma expressão de medo nos olhos. Animou-se, cheia de alívio, quando viu a mãe chegar com os outros. Instantes depois, Aylajá tinha a fogueira acesa-para grande surpresa de Esadoa--, Jondalar tinha voltado a sair para ir buscar neve para derreter em água, Esadoa descobriu umas peles de dormir que tinham sido arrumadas e voltou a pô-las numa plataforma de dormir e S'Armuna estava a escolher várias ervas das quais poderia vir a precisar da reserva que tinha levado anteriormente para lá.
Ayla instalou a jovem mulher confortavelmente, dispondo as peles de
forma a ela poder sentar-se ou deitar-se conforme preferisse, mas esperou
por S'Armuna para depois ambas a examinarem. Depois de terem
tranquilizado Cavoa, deixando-a com a mãe, as duas curandeiras foram
para junto da lareira e falaram uma com a outra em voz baixa.
-- Reparaste? -- perguntou S'Armuna.
-- Sim. Sabes o que significa? -- disse Ayla.
-- Tenho uma ideia, mas creio que teremos de esperar para ver. Jondalar tinha tentado não atrapalhar e dirigiu-se lentamente para junto das duas mulheres. Algo nas suas expressões f'e-lo sentir que elas estavam com algnma preocupação, o que fez que ele também se preocupasse. Sentou-se numa plataforma de dormir e, inconscientemente, foi fazendo festas na cabeça do lobo.
Enquanto esperavam, Jondalar começou a andar nervosamente de
um lado para o outro, enquanto o Lobo o observava. Desejou que o tempo
passasse mais depressa, ou que a tempestade abrandasse, ou que tivesse
alguma coisa para fazer. Falou um pouco com a jovem mulher, tentando
encorajá-la, e sorria-lhe frequentemente, mas sentia-se absolutamente
inútil. Não havia nada que ele pudesse fazer. Finalmente, à
medida que a noite se arrastava, dormitou um pouco numa das camas,
enquanto o som fantasmagóñco da tempestade lá fora gemia num assustador
contraponto à cena de espera no interior, pontuada por sons perió-dicos do esforço do parto que se ia lenta e inexoravelmente aproximando.
Acordou com o barulho de vozes excitadas por entre uma actividade
agitada. A luz começava a entrar pelas frestas em volta do buraco de saí-da do fumo. Levantou-se, espreguiçou-se e esfregou os olhos. Ignorado
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pelas três mulheres, saiu para verter as suas águas da manhã. Ficou contente
por ver que a tempestade tinha abrandado, embora alguns flocos de
neve ainda rodopiassem ao vento.
Ao entrar na habitação, ouviu o som inconfundível de um recém-nas- i cido. Sortiu, mas esperou cá fora, sem saber se era altura apropriada para entrar. Subitamente, para sua surpresa, ouviu outro vagido, que formou um dueto com o primeiro. Eram dois! Não conseguiu resistir. Tinha de entrar.
Ayla, com um bebé já embrulhado nos braços, sortiu-lhe quando ele entrou.
m Um rapaz, Jondalar!
S'Armuna estava a pegar num segundo bebé, preparando-se para atar o cordão umbilical.
m E uma rapariga-disse ela.-Gémeos! É um sinal favorável. Nasceram tão poucos bebés enquanto Attaroa foi chefe, mas agora penso que isso irá mudar. Creio que esta é a forma de a Mãe nos dizer que o Acampamento das Três Irmãs em breve aumentará e voltará a ficar cheio de vida.
--Voltarão um dia? --perguntou Doban ao homem alto. Já se conseguia
deslocar muito melhor, embora ainda usasse a muleta que Jondalar lhe tinha feito.
mNão creio, Doban. Uma longa Viagem basta. É altura de eu ir para casa, de me instalar e criar o meu lar.
-- Gostava que vivesses mais perto, Zelandon.
m Também eu. Vais ser um born artífice de pedreneira e gostaria
te continuar a treinar. A propósito, Doban, podes-me chamar Jondalar.
-- Não. To és Zelandon.
-- Queres dizer Zelandonii?
m Não, quero dizer Zelandon.
S'Amodun sorriu.
-- Ele não se está a referir ao nome da tua gente. Deu-te o nome de
Elandon, mas honra-te com S'Elandon.
Jondalar corou de embaraço e prazer.
-- Obrigado, Doban. Talvez te deva chamar S'Ardoban.
Ainda não. Quando souber trabalhar a pedreneira como to, então eles poderão chamar-me S'Ardoban.
Jondalar deu ao jovem homem um abraço afectuoso, agarrou os ombros de alguns outros e conversou com eles. Os cavalos, já carregados e prontos para partir, tinham-se afastado ligeiramente e o Lobo tinha-se deitado no chão, a observar o homem. Levantou-se quando viu Ayla e S'Armuna saírem da habitação. Jondalar tambdm ficou contente por as ver.
--... é bela-dizia a mulher mais velha m e estou estupefacta por ela gostar de mim ao ponto de a querer fazer, mas.., não achas que pode ser perigosa?
-- Desde que guardes a escultura do teu rosto, como é que pode ser perigosa? Poderá aproximar-te mais da Mãe, dar-te uma compreensão mais profunda-disse Ayla.
As duas abraçaram-se e depois S'Armuna deu um grande abraço a Jondalar. Depois recuou quando eles chamaram os cavalos, mas estendeu o braço para o reter por um instante mais.
--Jondalar, quando wires a Marthona, diz-lhe que S'Armu... não, diz-lhe que Bodoa lhe manda um abraço.
-- Assim farei. Creio que ficará contente-disse ele, montando o garanhão.
Viraram-se e acenaram, mas Jondalar sentiu-se aliviado por estar a caminho. Nunca poderia pensar naquele Acampamento sem ter sentimentos contraditdrios.
A neve recomeçou a cair enquanto se afastavam. As pessoas do Acampamento acenaram-lhes e desejaram-lhes boa viagem.
-- Boa Viagem, S'Elandon. Uma Viagem segura, S'Ayla.
Ao desaparecerem no meio dos flocos brancos que os obscureciam suavemente, não havia nenhuma alma que não acreditasse-ou quisesse acreditar m que Ayla e Jondalar tinham vindo para os livrar de Attaroa e para libertar os seus homens. Assim que o casal a cavalo desapareces se da sua vista, transformar-se-iam na Grande Terra Mãe e no Seu Belo Companheiro Celestial e cavalgariam o vento através dos céus, segui dos pelo seu fiel protector, a Estrela Lobo.
Tomaram o caminho de regresso ao Grande Rio Mãe com Ayla a indicar o caminho, seguindo pelo mesmo trilho que ela seguira para encontrar o Acampamento S'Armunai mas, quando chegaram ao local de travessia do rio, decidiram passar o pequeno afluente e seguir para sudoeste. Atravessaram pelo meio dos campos, pelas planícies ventosas da antiga bacia de terras baixas que separava os dois principais sistemas montanhosos, em direcção ao rio.
Apesar de nevar pouco, tiveram frequentemente que se abrigar de condições semelhantes a tempestades de neve. No frio intenso, os flocos secos de neve eram fustigados de um lado para o outro pelos ventos impiedosos atd se acumularem no solo sob a forma de terra gelada, por vezes misturados com as partículas pulverizadas de pó de rocha mloess m das orlas dos glaciares em movimento. Quando o vento soprava com particular violência, queimava-lhes a pele. A erva seca nos lugares mais expostos há muito que estava alisada, mas os ventos que impediam a neve de se acumular, excepto em bolsas abrigadas, deixavam a descoberto a pastagem ressequida e amarelada o suficiente para os cavalos poderem pastar.
Para Ayla, o caminho de volta foi muito mais rápido m não estava a tentar seguir um rasto por terreno acidentado-mas Jondalar ficou admirado com a distância que tinham de percorrer até chegar ao rio. Não se apercebera de que tinham estado tão a norte. Calculou que o Acampamento S'Armunai não ficava longe do Grande Gelo.
A sua especulação estava certa. Se tivessem seguido para norte, podiam ter chegado à parede frontal do lençol continental de gelo em poucos dias de marcha. No princípio do Verão, pouco antes de terem ini ciado a sua Viagem, tinham caçado mamutes na face gelada da mesma vasta barreira do norte, mas muito a este. Desde então, tinham percorfido toda a extensão do lado este de um grande arco curvo de montanhas, contornado a base sul e depois subido o flanco ocidental da cordilheira quase voltando a chegar ao glaciar que se estendia sobre uma vasta área.
Deixando para trás os últimos testemunhos e os contrafortes das montanhas que tinham dominado a sua viagem, viraram para oeste quando chegaram ao Grande Rio Mãe e começaram a aproximar-se do grande promontdrio a norte de uma cordilheira ainda maior e mais alta a oeste.
PI.AN[CIES DE PASSAGEM
Estavam a percorrer o mesmo caminho, procurando o sítio onde
tinham deixado o seu equipamento e mantimentos, seguindo o mesmo
caminho que tinham tornado anteriormente, quando Jondalar achava
que tinham muito tempo.., até à noite em que a Whinney foi levada pela
manada selvagem.
--As marcas do terreno parecem familiares.., deve ser por aquim disse ele.
--Acho que tens razão. Lembro-me daquela encosta íngreme, mas tudo o resto parece-me diferente-disse Ayla, desanimada, estudando a paisagem que estava diferente.
Tinha-se acumulado mais neve naquela zona. A borda do rio estava
gelada e, como a neve tinha formado grandes montes e enchido todas as depressões, era difícil saber onde a margem terminava e o rio começava.
Ventos fortes e gelo, que se tinha formado nos ramos das árvores durante
uma altura no início da estação em que se tinham verificado alternativamente
temperaturas geladas e menos frias que provocavam degelo,
tinham derrubado várias árvores. Os arbustos e a vegetação rasteira do
bravam-se sob o peso da água gelada que os envolvia; cobertos de neve,
pareciam muitas vezes aos viajantes serem pequenos montes ou forma
ções rochosas atd se quebrarem quando eles tentavam subilos.
A mulher e o homem pararam junto a um pequeno grupo de árvores e estudaram cuidadosamente a área, tentando encontrar qualquer coisa que lhes desse uma indicação do sítio onde tinham escondido a tenda e a comida.
-- Temos de estar perto. Sei que estamos na zona certa, mas está tudo muito diferente-disse Ayla, parando de falar para olhar para o homem. Há muitas coisas que são diferentes daquilo que parecem, não há, Jondalar?
Ele olhou para ela com uma expressão intrigada.
-- Born, é verdade, no Inverno as coisas ficam com um aspecto diferente do que têm no Verão.
m Não me estava a referir apenas à terra-disse Ayla.-É difícil de explicar. É como quando partimos e S'Armuna te disse para dizeres à tua mãe que ela lhe mandava um abraço, mas disse que era Bodoa que o man dava. Esse era o nome que a tua mãe lhe chamava, não era?
-- Sim, tenho a certeza de que era isso que ela queria dizer. Quando era nova, chamava-se provavelmente Bodoa.
Mas teve que desistir do seu próprio nome quando se tornou S'Armuna. Exactamente como a Zelandoni de quem falas, aquela que conheceste como Zolena-disse Ayla.
u Desistem do nome de sua livre vontade. Faz parte de se tornarem Aquela Que Serve a Mãe m disse Jondalar.
Compreendo. Aconteceu a mesma coisa quando Creb se tornou Mog-ur. Não teve de desistir do seu nome de nascimento, mas quando es
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PLAN]CIES DE PASSAGEM
tava a conduzir uma cerimónia como Mog-ur era uma pessoa
Quando era Creb, era como o seu totem de nascimento, o Veado, tímido e calado, sem falar muito, quase como se estivesse a observar de um i esconderijo. Mas quando era Mog-ur, então era poderoso e autoritário, i como o seu totem do Urso das Cavernas-disse Ayla.-Nunca era exactamente o que parecia ser.
m To és um pouco assim, Ayla. Durante a maior parte do tempo
escutas muito e falas pouco, mas quando alguém está a sofrer ou com: problemas, tornas-te uma pessoa diferente. Assumes o controlo da situação. Dizes às pessoas o que têm de fazer e elas fazem-no.
Ayla ficou com uma expressão pensativa.
-- Nunca pensei nisso dessa maneira. Apenas quero ajudar. m Eu sei. Mas é mais do que quereres ajudar. Normalmente sabes o que fazer e a maioria das pessoas reconhece isso. Penso que é por isso que fazem o que to dizes. Acho que se quisesses podias ser uma Das que Servem a Mãe-disse Jondalar.
A expressão de Ayla revelou preocupação.
Creio que não quereria isso. Não quereria desistir do meu nome. É
a única coisa que me resta da minha mãe verdadeira, de antes do tempo
em que vivi com o Clã disse a jovem mulher. Depois ficou subitamente
tensa e apontou para um monte de neve que parecia invulgarmente simé-trico.-Jondalar! Olha para all.
O homem olhou para onde ela estava a apontar, a princípio não vendo o que ela via; depois apercebeu-se da forma.
-- Poderá ser...? m disse, incitando o Corredor a avançar.
0 monte estava no meio de um emaranhado de silvas, o que fez que o seu entusiasmo aumentasse. Desmontaram. Jondalar encontrou um ramo resistente e abriu caminho por entre o silvado. Quando chegou ao meio e bateu no monte simétrico, a neve caiu, deixando à mostra o seu barco redondo.
É mesmo[ exclamou Ayla.
Pisaram e bateram nas silvas espinhosas até conseguirem chegar ao barco e aos pacotes cuidadosamente embrulhados escondidos por baixo dele.
O esconderijo não tinha sido totalmente eficaz, embora tivesse sido o Lobo que lhes deu a primeira indicação disso. Estava obviamente agitado por um cheiro que aindahavia naquele sítio e quando encontraram excrementos de lobo perceberam porquê. As suas coisas tinham sido vandalizadas por lobos. As tentativas de rasgar os pacotes cuidadosamente embrulhados tinham sido bem sucedidas em alguns casos. Até a tenda estava rasgada, mas ficaram surpreendidos por não estar em pior estado. Normalmente os lobos não conseguiam resistir ao couro e, depois de o con seguirem apanhar, adoravam roê-lo.
-- O repelente! Deve ter sido isso que os impediu de fazerem mais estragos- disse Jondalar, satisfeito por a mistura de Ayla ter mantido não só o seu companheiro de viagem longe das suas coisas, como também outros lobos.-E eu que durante tanto tempo pensei que o Lobo estava a tornar a nossa Viagem mais difícil. Pelo contrário, se não fosse ele, pro vavelmente nem sequer teríamos tenda. Anda cá, rapaz disse Jondalar, fazendo-lhe festas no peito e na cabeça e incitando o animal a saltar e a pôr-lhe as patas nos ombros.-Voltaste a fazer o mesmo! Salvaste a nossa vida, ou pelo menos a nossa tenda.
Ayla viu-o agarrar o pêlo do pescoço do animal e sorriu. Estava contente por ver que a sua atitude para com o animal tinha mudado. Não que Jondalar tivesse alguma vez sido mau para ele, nem sequer que não gostasse dele. Apenas nunca tinha sido tão abertamente amigável ou afectuoso. Era evidente que o Lobo também gostava da sua atenção.
Embora tivessem tido maiores prejuízos se não fosse o repelente de lobo, este não tinha impedido que os lobos chegassem à sua reserva de emergência de mantimentos. Sofreram uma perda devastadora. Amaior parte da carne seca e dos bolos de comida de viagem tinham desapareci do e muitos pacotes de frutas secas, legumes e cereais estavam rasgados ou tinham desaparecido, talvez levados por outros animais depois de os lobos se terem ido embora.
Talvez devêssemos ter trazido mais da comida que os S'Armunai
nos ofereceram disse Ayla m, mas já tinham pouca para eles. Talvez possamos voltar para trás.
-- Prefiro não voltar lá disse Jondalar. Vamos ver o que ainda temos. Se caçarmos, talvez tenhamos o suficiente para chegarmos aos Losadunai. Thonolan e eu conhecemos alguns e ficámos uma noite com eles. Convidaram-nos a voltar e passar lá mais tempo com eles.
E eles dar-nos-åo comida para continuarmos a nossa Viagem? -- perguntou Ayla.
Creio que sim m disse Jondalar. Depois sorriu. Na verdade, sei que darão. Tenho uma exigência futura em relação a eles!
Uma exigência futura? disse Ayla com uma expressão interrogativa.
São teus parentes? Como os Sharamudoi?
m Não, não são parentes, mas são amigos e já fizeram trocas com os Zelandonii. Alguns conhecem a língua.
Já falaste nisso de outras vezes, mas nunca percebi bem o que significa uma "exigência futura", Jondalar.
Uma exigência futura é uma promessa de dar o que quer que seja
pedido, em qualquer altura no futuro, em troca de qualquer coi, sa dada ou,
o que é mais frequente, de qualquer coisa ganha no passado. E sobretudo
usada para pagar uma dívida quando se joga e se perde mais do que se
pode pagar, mas também é usada noutras situações explicou o homem.
m Em que outras situações? perguntou Ayla. Tinha a sensação de
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que havia mais relativamente àquela ideia e que seria importante ela
compreender.
-- Born, por vezes para pagar a alguém o que essa pessoa fez, normalmente uma coisa especial, mas difícil de avaliar-disse Jonda]ar. Como não é estabelecido qualquer limite, uma exigência futura pode ser uma obrigação pesada, mas a maioria das pessoas não pede mais do que é apropriado. Muitas vezes, apenas o facto de se aceitar a obrigação de uma exigência futura mostra confiança e boa-f. É uma forma de oferecer amizade.
Ayla assentiu. De facto a ideia era complexa.
m Laduni deve-me uma exigência futura-continuou o homem.-
Não é uma grande exigência, mas ele term de me dar o que quer que eu lhe peça e eu podia pedir qualquer coisa. Creio que ficará contente por cumprir a sua obrigação dando-me apenas alguma comida, que de qualquer forma até nos ofereceria.
m Os Losadunai vivem longe daqui? -- perguntou Ayla.
--A uma certa distância. Vivem na extremidade oeste destas montanhas e e.stamos na extremidade este, mas não é difícil lá chegar se seguir mos o rio, embora tenhamos de o atravessar. Vivem do outro ]ado, mas podemos atravessá-lo mais acima disse Jondalar.
Decidiram acampar all naquela noite e examinaram cuidadosamente
todas as suas coisas. O que tinha sobretudo desaparecido tinha sido a
comida. Quando juntaram tudo o que podiam aproveitar, viram que o
monte era pequeno, mas aperceberam-se de que podia ter sido bem pior. Teria.m de caçar e apanhar bastantes alimentos durante o caminho, mas
a minor parte do seu equipamento estava intacto e depois de alguns
remendos e reparações ficaria abso]utamente operacional, à excepção do
recipiente para guardar carne que tinha sido completamente roído. O
barco redondo tinha protegido as suas coisas do tempo, embora não dos
lobos. De manhã, tiveram que tomar a decisão de continuar ou não a
arrastar consigo o barco redondo coberto de pele.
--Estamos a chegar a terreno mais montanhoso. Poderá ser mais difí-cil levá-lo que deixá-lo cá disse Jondalar.
Ayla tinha estado a verificar os paus. Dos três paus que tinha usado para manter a comida fora do alcance dos animais, um estava partido, mas apenas precisavam de dois para a padiola.
--Por que é que não o levamos connosco por agora e, se virmos que se transforma num verdadeiro problema, podemos abandoná-lo-disse ela.
Avançando para oeste, não tardaram a deixar para trás a bacia baixa
de planícies ventosas. O curso este-oeste do Grande Rio Mãe, que seguiram,
delimitava a linha de uma grande batalha entre as forças mais pode
PLAN[CIES DE PASSAGEM
rosas da terra, travada no movimento incrivelmente lento do tempo geológico.
A sul encontrava-se o promontdrio das altas montanhas a oeste,
cujos cumes nunca eram aquecidos pelos dias suaves do Verão. As
grandes elevações acumulavam neve e gelo ano após ano e, mais atrás,
os picos mais elevados cintilavam no ar límpido e frio.
As terras altas a norte eram basicamente formadas pela rocha cristalina de um imenso maciço, vestígios arredondados e alisados de anti gas montanhas desgastadas ao longo das eras. Tinham-se erguido da terra numa época anterior e estavam ancoradas à camada rochosa mais profunda. Contra aquela fundação inamovível, a força irresistível dos continentes, deslocando-se lenta e inexoravelmente de sul, tinha esmagado e dobrado a crosta de rocha dura da terra, erguendo o sistema maciço de montanhas que se estendiam através da terra.
Mas o antigo maciço não escapou incólume às grandes forças que criaram as montanhas de altos picos. As inclinações, falhas e rupturas das rochas, vistas na disrupção da sua estrutura de cristral solidiiícada, con tavam uma histdria em pedra dos violentos movimentos que sofrera enquanto se aguentava firme contra as inconcebíveis pressões exercidas de sul. Na mesma época, não só a alta cordilheira a oeste à sua esquerda, como outra ainda mais a oeste, foram erguidas pelos continentes em movimento que empurravam contra a camada rochosa que não cedia, o mesmo tendo acontecido com a longa e curva cordilheira a este que tinham contornado e toda a série de cordilheiras que continuavam para este até aos picos mais altos da terra.
Mais tarde, durante a era do gelo, quando as temperaturas anuais eram mais baixas, a coroa gelada estendeu-se numa grande distância pelas encostas das massivas cordilheiras montanhosas, cobrindo até as elevações moderadas com uma crosta de cristal cintilante. Enchendo e alagando vales e precipícios ao avançar lentamente, o gelo glacial dei xava atrás de silençóis e terraços de gravilha e nos pináculos mais recen tes esculpia pontiagudas torres de pedra. A neve e o gelo também cobriam as terras altas do norte no Inverno. Mas só a maior elevação, a que mais perto se encontrava das montanhas geladas, tinha realmente um glaciar, uma camada de gelo duradoura que persistia durante Verão e Inverno.
Com as raízes arredondadas das montanhas erodidas a norte, estendendo-se
e formamdo planaltos e terraços relativamente planos, os cursos
superiores dos rios que atravessavam a terra antiga tinham vales
pouco fundos e margens,baixas, embora se tornassem mais acidentados
a meio dos seus cursos. A excepção daqueles que caiam directamente da
face do massivo, os rios que corriam pelas encostas mais íngremes do lado
sul tinham uma corrente mais rápida. A demarcação entre as terras altas
suaves a norte e as terras montanhosas a sul era uma região de terra fértil de loess rico por onde corria o Grande Rio Mãe.
Ayla e Jondalar estavam a dirigir-se quase directamente para oeste
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ao continuarem a sua Viagem, seguindo a margem norte do curso de água
através das planícies abertas do vale do rio. Não sendojá o volumoso rio
Mãe de todos os rios que fora ajuzante, o Grande Rio Mãe ainda era substancial
e, passados alguns dias, fiel à sua natureza, voltava a dividir-se
em vários canais.
Depois de meio dia de viagem, chegaram a um outro grande afluente cuja confluência agitada, caindo de terreno mais elevado, tinha um aspecto grandioso, com pingentes de gelo formando cortinas geladas e com montes de gelo ladeando ambas as margens. Já não eram rios que sejuntavam a norte vindos das terras altas e dos contrafortes das montanhas familiares que estavam a deixar para trás. Aquela água provinha do terreno desconhecido a oeste. Em vez de atravessarem o perigoso rio, ou tentarem segui-lo contra a sua corrente, Jondalar decidiu voltar para trás e atravessar os vários canais da mãe.
Verificaram que tinha sido uma decisão correcta. Embora alguns dos canais fossem largos e tivessem as margens cheias de gelo, na maioria dos casos a água gelada mal chegava aos flancos dos cavalos. Não deram grande importância a isso atd essa noite, mas Ayla e Jondalar, os dois cavalos e o lobo tinham finalmente atravessado o Grande Rio Mãe. Depois das suas aventuras perigosas e traumatizantes noutros rios, conseguiram fazer a travessia de tal forma sem incidentes que lhes pareceu um anticlímax, embora não o lamentassem.
No frio profundo do Inverno, viajar já era em si um grande perigo. A maioria das pessoas estava acomodada em habitações quentes, e os amigos e parentes iam à procura de qualquer pessoa se esta ficasse lá fora demasiado tempo. Ayla e Jondalar estavam completamente sozinhos. Se acontecesse qualquer coisa, apenas se tinham um ao outro, e os seus com panheiros animais, com quem contar.
A terra começava a erguer-se gradualmente e eles repararam numa subtil alteração na vegetação. Abetos e lariços começaram a aparecer entre os espruces e os pinheiros junto ao rio. A temperatura nas planícies dos vales do rio eram extremamente frias; devido a inversões atmosféricas, eram frequentemente mais frias que nas montanhas mais altas que os circundaram. Embora a neve e o gelo cobrissem de branco as terras altas que os flanqueavam, raramente nevava no vale do rio. Os fracos nevões secos que ocorriam não provocavam acumulação de neve no solo gelado, a não ser em buracos e depressões e por vezes nem sequer aí. Quando não nevava, a única forma que tinham de obter água para beber para si e para os animais era utilizarem os machados para cortar gelo do rio gelado e depois derretê-lo.
Isso fez que Ayla tivesse uma maior consciência dos animais que va gueavam pelo vale da Mãe. Eram das mesmas variedades daquelas que tinham visto nas estepes durante o caminho, mas predominavam as criaturas que gostavam do frio. Ela conhecia os animais que conseguiam sobreviver com vegetação seca à qual se chegava facilmente nas planícies quase geladas mas essencialmente sem neve, mas interrogou-se sobre como é que arranjariam água.
Pensou que os lobos e outros carnívoros provavelmente obtinham parte da sua necessidade de líquidos do sangue dos animais que caçavam para corner, e, como cobriam um grande território, encontrariam bolsas de neve ou de gelo solto para mastigar. Mas os cavalos e outros ruminan tes? Como é que encontravam água numa terra que no Inverno era um deserto gelado? Havia neve suficiente em certas áreas, mas havia outras que eram regiões áridas de rocha e gelo. No entanto, por mais secas que fossem, tinham algum tipo de alimentos e eram habitadas por animais.
Embora ainda raros, Ayla viu mais rinocerontes peludos do que algu ma vez vira num só lugar e, embora não formassem manadas, sempre que via rinocerontes, via também bois-almiscarados. Estas duas espécies preferiam as terras abertas, ventosas e secas, mas os rinocerontes gostavam de erva e de ciperáceas e os bois-almiscarados, fazendojuz à sua condição de criaturas semelhantes a cabras, alimentavam-se de arbustos mais lenhosos. Grandes renas e gigantescos megaceros com massivas ar mações compartilhavam com eles a terra gelada, bem como cavalos com pêlo mais espesso, mas se havia um animal que se destacava entre a população do vale do curso superior do Grande Rio Mãe, esse animal era o mamute.
Ayla não se cansava de observar as enormes criaturas. Embora fossem ocasionalmente caçadas, eram tão destemidas que pareciam quase man sas. Deixavam muitas vezes a mulher o o homem aproximarem-se bastante delas, sentindo que não corriam perigo com eles. Ahaver perigo, era para os seres humanos. Embora os mamutes peludos não fossem os mais gigantescos da sua espécie, eram os animais mais gigantescos que os seres humanos tinham alguma vez viste u ou que a maioria das pessoas alguma vez veria com o seu pêlo espesso e comprido ainda mais volumoso como protecção para o Inverno, e os seus enormes dentes curvos, pare ciam ainda maiores de perto do que Ayla se conseguia lembrar.
Os seus enormes dentes curvos começavam, quando vitelos, por ser dentes caninos com cerca de três centímetros de comprimento, grandes incisivos superiores. Passado um ano, os dentes de leite caíam e eram substituídos por dentes permanentes que nunca mais deixavam de crescer. Enquanto os dentes dos mamutes eram adornos sociais, importantes nas suas interacções com outros da sua espécie, tinham também uma outra função mais prática. Eram utilizados para quebrar gelo e a habilidade dos mamutes para quebrar gelo era fenomenal.
Da primeira vez que Ayla os observou nesta tarefa, tinha estado a
observar uma manada de fêmeas que se aproximara do rio gelado. Algumas
tinham utilizado os seus dentes, um pouco mais pequenos e direitos
que os dentes de marfim maiores dos machos, para arrancar o gelo pre216
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so nas fendas das rochas. A princípio ficou intrigada, até que reparou que
uma delas pegou num pedaço de gelo com a sua pequena tromba e o meteu
na boca.
--Água!- exclamou Ayla.- É assim que arranjam água, Jonda]ar.
Tinha estado apensar como arranjariam água.
--Tens razão. Também nunca pensei muito nisso, mas, agora que falas nisso, creio que o Dana]ar me disse qualquer coisa a esse respeite. Mas há muitos ditados acerca dos mamutes. O único de que me lembro é "Nunca avances quando os mamutes vão para norte", embora se possa dizer o mesmo em relação aos rinocerontes.
w Não compreendo esse ditado-disse Ayla. w Significa que se aproxima uma tempestade de neve-disse Jonda lar.-Eles parecem sempre saber. Aqueles grandes animais peludos não gostam lá muito de neve. Tapa-lhes a comida. Podem utilizar os dentes e a tromba para afastar uma leve camada de neve, mas quando esta fica muito al.ta eles ficam atolados nela. E especia]mente mau quando gela ou degela. A noite deitam-se quando a neve ainda está mole do sol da tarde e, de manhã, o pêlo está gelado e preso à terra. Não se conseguem mexer. Nessa altura é fácil caçá-los, mas se não houver caçadores por perto, e a neve não derreter, morrem lentamente à fome. Alguns chegam mesmo a morrer gelados, especia]mente os pequenos.
-- Que é que isso term a ver com irem para norte?
-- Quanto mais perto se está do gelo, menos neve há. Lembras-te
como foi quando fomos caçar mamutes com os Mamutei? Aúnica água all
em volta era a do ribeiro que vinha do próprio glaciar e foi no Verão. No Inverno, está tudo gelado.
-- Então é por isso que há aqui tão pouca neve?
-- Sim, esta região é sempre fria e seca, sobretudo no Inverno. Todos dizem que é por os glaciares estarem tão perto. Estão nas montanhas a sul e o Grande Gelo não fica muito a norte. A maior parte da terra até lá é territSrio dos cabeças.., quero dizer, território do Clã. Começa ligeiramente a oeste daqui.-Jonda]ar reparou na expressão de Ayla com o seu deslize e ficou embaraçado.-Seja como for, há um outro ditado acerca dos mamutes e da água, mas não me lembro exactamente como é. E qualquer coisa como "Se não conseguires encontrar água, procura um mamute".
--Esse ditado compreendo-disse Ayla, olhando para além dele. Jon da]ar virou-se para ver.
Os mamutes fêmea tinham avançado rio acima e unido os seus esforços
aos de alguns machos. Várias fêmeas estavam a trabalhar num monte estreite, quase vertical, de gelo que se tinha formado ao longo da beira do
rio. Os machos maiores, incluindo o ancião, de aspecto digno e com o pêlo
já tingido de branco, cujos dentes impressionantes, ainda que menos
úteis, tinham crescido tanto que se cruzavam à frente, estavam a raspar
e atirar grandes blocos de gelo das margens. Depois, erguendo-os bem
alto com as trombas, os mamutes atiravam o gelo ao chão, onde se esti
lhaçava em pedaços mais úteis, isto acompanhado de urros e de um rui
doso resfolegar, de bater de patas e de grites. As enormes criaturas pelu
das pareciam estar a fazer daquilo um jogo.
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pudesse discernir se eram de salgueiro, bétula ou amieiro. As coníferas
de um verde-escuro-espruces, abetos e pinheiros m eram mais fáceis
de distinguir e, embora os lariços tivessem perdido as suas folhas, a sua
forma era inconfundível. Quando subiam às elevações maiores para
caçar viam bétulas anãs e pinheiros da altura do joelho junto ao chão.
As maioria das suas refeições eram constituídas por caça pequena; a caça grossa exigia normalmente mais tempo para a perseguir e caçar do que aquele que queriam perder, embora não tivessem hesitado em tentar caçar um veado quando o viram. A carne congelou rapidamente e nem sequer o lobo teve que caçar durante algum tempo. Coelhos, lebres e oca sionalmente um castor, abundantes na região montanhosa, eram o alimento habitual, mas também all havia bastantes animais das estepes dos climas continentais mais secos, marmotas e hamsters gigantes, e eles ficavam sempre contentes quando viam ptarmigãs, as aves brancas e gor das com patas cobertas de penas.
A funda de Ayla era normalmente utilizada com eficiência; tinham tendência para guardar o lançador de lanças para caça mais grossa. Era mais fácil encontrar pedras que fazer novas lanças para substituir aquelas que se perdiam ou partiam. Mas nalguns dias caçar levava mais tempo do que lhes agradava e qualquer coisa que levasse tempo tornava Jondalar irritadiço.
Complementavam frequentemente a sua alimentação, que se concen trava fortemente em carne magra, com a casca interior de coníferas e de outras árvores, normalmente sob a forma de sopa com carne, e ficavam encantados quando encontravam bagas, congeladas, mas ainda presas aos ramos. Havia bagas de zimbros que eram particularmente boas com carne se não se usassem em demasia; os frutos da roseira brava eram mais esporádicos, mas normalmente abundantes quando encontrados e eram sempre mais doces depois de congelados; os empretros, com uma folhagem com agulhas semelhante à das sempre-verdes, tinham pequenas bagas pretas que muitas vezes aguentavam todo o Inverno, o mesmo acontecendo às uvas-de-urso azuis.
Eram também acrescentados cereais e sementes às sopas de carne, pacientemente apanhados das ervas secas que ainda tinham espigas, embora demorasse tempo a encontrá-las. A maior parte da folhagem das ervas com espigas há muito que desaparecera e as plantas estavam dormentes até serem acordadas para a vida pelo degelo da Primavera. Ayla lamentou não ter os legumes e os frutos secos que tinham sido destruídos pelos lobos, embora não lamentasse os alimentos que tinha dado aos S'Armunai.
Embora a Whinney e o Corredor se alimentassem quase exclusivamente
de erva, Ayla reparou que a sua dieta se tinha alargado a pontas
de galhos, à casca interior de árvores e que incluía determinada variedade
de líquen, do tipo preferido pelas renas. Apanhou uma pequena por
PLAN[CIES DE PASSAGEM
ção e experimentou-a, fazendo depois uma sopa para ambos. Acharam o
sabor forte mas suportável e ela começou a fazer experiências com outras
formas de o cozinhar.
Uma outra fonte de comida de Inverno era pequenos roedores, tais como ratos silvestres e lemingues; não os animais em si mAyla costuma va dá-los ao Lobo como recompensa de os ter ajudado a caçar-mas sim os seus ninhos. Procurava os subtis indícios de uma toca, escavava o solo gelado com um pau de escavar e para descobrir os pequenos animais rodeados de sementes, nozes e bolbos que tinham armazenado.
E Ayla tinha também a sua bolsa de ervas medicinais. Quando pen sou nos danos feitos nas coisas que tinham escondido, arrepiava-se ao pensar o que teria acontecido se tivesse deixado lá a sua bolsa de ervas medicinais. Não que ela o pudesse ter feito, mas a ideia de a perder dava-lhe volta ao estômago. Era de tal maneira parte dela que se teria sentido perdida sem ela. Mas, mais que tudo o resto, os materiais que estavam dentro da bolsa de pele de lontra e a longa história que se tinha formado de experimentações e erros que lhe tinha sido transmitida, mantinham os viajantes mais saudáveis do que qualquer um podia imaginar.
Por exemplo, Ayla sabia que várias ervas, cascas de árvore e raízes podiam ser utilizadas para tratar e evitar certas doenças. Embora não lhe chamasse doenças por deficiência, nem tivesse nome para as vitaminas e vestígios de minerais que as ervas continham, nem sequer soubesse exactamente como funcionavam, levava muitas delas na sua bolsa medicinal e incluía-as regularmente nos chás que bebiam.
Também utilizava a vegetação que ia encontrando mesmo no Inverno, tal como as agulhas das sempre-verdes, particularmente os rebentos mais recentes das pontas dos ramos, que eram ricas nas vitaminas que impedem o escorbuto. Juntava-as regularmente aos seus chás diários, sobretudo porque gostavam do seu sabor acre e citrino, embora ela soubesse que faziam bem e tivesse uma ideia geral de como e quando as usar. Tinha muitas vezes feito chá de agulhas para pessoas com gengivas en sanguentadas, cujos dentes se soltavam durante os longos Invernos com uma alimentação quase exclusiva de carne seca, quer por opção, quer por necessidade.
Ao avançarem para oeste, desenvolveram um padrão de recolha de alimentos segundo a oportunidade, o que lhes permitia o máximo de tempo possível para viajar. Embora ocasionalmente uma refeição fosse pouco abundante, raramente passavam sem corner de todo, mas com tão pou cas gorduras na sua dieta e com o constante exercício diário, perderam peso. Não falavam muito sobre isso, mas estavam ambos a ficar cansados de viajar e ansiosos por chegar ao seu destino. Durante o dia não falavam muito.
Montados nos cavalos ou a pé a conduzi-los, Ayla e Jondalar iam multas
vezes em fila indiana, suficientemente perto para ouvirem um comen
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tário ocasional se este fosse feito numa voz forte, mas não suficientemente
perto para manterem uma conversa casual. Como resultado,
tinham ambos grandes períodos de tempo para pensarem os seus pró-prios pensamentos, sobre os quais por vezes falavam à noite quando estavam
a corner ou deitados lado a lado nas suas peles de dormÌr.
Ayla pensava muitas vezes nas suas experiências recentes. Tinha vindo apensar no Acampamento das Três Irmãs, comparando os S'Armunai e os seus cruéis chefes, como Attaroa e Brugar, com os seus parentes, os Mamutei e os seus co-chefes irmã-irmão tão amigáveis e cooperantes. E pensou como seriam os Zelandonii, a gente do homem que amava. Jondalar tinha tantas boas qualidades que ela sentia que tinha de ser uma gente basicamente boa, mas ao reflectir sobre os seus sentimentos para com o Clã não podia deixar de se interrogar como é que a aceitariam. Até S'Armuna tinha feito referências indirectas à sua forte aversão por aqueles a quem chamavam cabeças achatadas, mas tinha a certeza de que os Zelandonii nunca seriam tão cruéis como a mulher que tinha sido chefe dos S'Armunai.
--Não sei como é que Attaroa conseguiu fazer as coisas que fez, Jondalar D comentou Ayla quando estavam a terminar a refeição da noite.-Faz-me pensar.
-- Faz-te pensar em quê?
--Na minha gente, nos Outros. Quando te conheci, senti-me extremamente grata por finalmente encontrar alguém que gostasse de mim. Foi um alÍvio saber que não estava só no mundo. Depois, quando vi que eras tão maravilhoso e born e terno, pensei que toda a minha própria gente se ria como to D disse ela e isso fez-me sentir bem.-Ayla ia a acrescentar, até ele reagir com repugnância quando lhe contou a sua vida no Clã, mas mudou de ideias quando viu Jondalar a sorrir e corado de embaraço e felicidade, obviamente contente.
Ele tinha-se sentido invadido de felicidade ao ouvir as palavras dela, e pensado que ela também era maravilhosa.
-- Depois, quando conhecemos os Mamutoi, Talut e o Acampamento do Leão-continuou Ayla , tive a certeza de que os Outros eram todos boa gente. Ajudavam-se uns aos outros e todos participavam nas decisões. Eram amigáveis e riam-se mu.ito e não rejeitavam uma ideia só porque nunca a tinham ouvido antes. E claro que havia o Frebec, mas afinal não era tão mau como parecia. Até aqueles no Encontro de Verão que se puseram contra mim durante algum tempo por causa do Clã, e até alguns dos Sharamudoi, fizeram-no por medo e não por má intenção. Mas Attaroa era malvada como uma hiena.
Attaroa era apenas uma pessoa D lembrou-lhe Jondalar.
--Sim, mas repara quantas ela não influenciou. S'Armuna utilizou os
seus conhecimentos sagrados para ajudar Attaroa a matar e fazer mal a pessoas, muito embora o viesse a lamentar mais tarde, e Epadoa estava
disposta a fazer qualquer coisa que Attaroa mandasse disse Ayla.
Tinham razões para isso. As mulheres tinham sido maltratadas disse Jondalar.
-- Eu sei quais eram as razões. S'Armuna achava que estava a fazer
o que era certo e creio que Epadoa adorava caçar e adorava Attaroa por lhe permitir fazê-lo. Sei o que isso é. Eu também adorava caçar e fui contra
o Clã e fiz coisas que não era suposte fazer para poder caçar.
D Born, agora a Epadoa pode caçar para todo o Acampamento e não creio que fosse muito má disse Jondalar. Parecia estar a descobrir o tipo de amor que uma mãe sente. Doban disse-me que ela lhe prometeu nunca mais lhe fazer mal, nem permitir que ninguém lhe fizesse mal disse Jondalar. Os sentimentos dela por ele podem ser mais fortes por lhe ter feito tanto mal e ter agora uma oportunidade de se redimir.
-- Epadoa não queria fazer mal àqueles rapazes. Disse a S'Armuna que tinha medo que Attaroa os matasse se ela não fizesse o que ela que ria. As suas razões eram essas. Até Attaroa tinha as suas próprias razões. Houve tanta coisa má na sua vida que ela se tornou uma coisa má. Já não era humana, mas não há razões que a possam desculpar pelo que fez. Como é que ela conseguiu fazer o que fez? Nem sequer o Broud, mau como era, era tão mau, e odiava-me. Nunca fazia deliberadamente mal às crianças. Eu costumava pensar que o meu tipo de gente era boa, mas já não estou tão certa disso disse ela, com uma expressão triste e perturbada. Há pessoas boas e pessoas más, Ayla, e toda a gente term born e mau dentro de si D disse Jondalar, com a testa franzida numa expressão de preocupação. Apercebia-se de que ela estava a tentar enquadrar as novas sensibilidades que adquirira da sua última experiência desagradável no seu esquema pessoal das coisas e sabia que era importante. Mas a maioria das pessoas é decente e tenta ajudar-se mutuamente. Sabem que é necessário.., afinal de contas, nunca se sabe quando poderemos vir a precisar de ajuda.., e a maioria das pessoas prefere ser amiga.
Mas há algumas que são retorcidas, como Attaroa disse Ayla. --É verdade. O homem assentiu, vendo-se forçado a concordar. D E há outras que só dão o que têm que dar e preferem não dar nada, mas isso não faz que sejam más.
Mas uma pessoa má pode trazer ao de cima o pior das pessoas boas, como Attaroa fez com S'Armuna e Epadoa.
Creio que o melhor a fazer é tentar impedir que as pessoas más e cruéis façam demasiado mal. Talvez nos devamos sentir felizes por não haver muitas como ela. Mas, Ayla, não deixes que uma pessoa má estrague o que sentes pelas pessoas.
Attaroa não pode fazer que eu fique com sentimentos diferentes em
relação às pessoas que conheço, e tenho a certeza de que tens razão acer
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ca da maioria das pessoas, Jondalar, mas ela tornou-me desconfiada e
mais cautelosa.
--Não faz mal seres um pouco cautelosa, mas dá oportunidade às pessoas de mostrarem o seu lado born antes de as considerares más.
A terra alta do lado norte do rio acompanhou-os enquando prosse
guiam o seu caminho para oeste. Sempre-verdes esculpidas pelo vento
nos cumes arredondados e nos planaltos planos do massivo eram recor
tadas em silhueta contra o céu. O rio voltou a dividir-se em vários canais
ao atravessar uma bacia de terras baixas que formava uma enseada. Os
limites norte e sul do vale conservavam as suas diferenças características,
mas a rocha base estava fissurada e tinha falhas que atingiam grande
profundidade entre o rio e o promontório de calcário das montanhas
altas a sul. Para oeste, havia a orla de calcário íngreme da linha de uma
falha. O curso do rio virou para noroeste.
A extremidade este da bacia também era delimitada por um espinhaço de uma falha, provocado não tanto pelo levantamento do calcário, como pela depressão do terreno da enseada. Para sul, a terra estendia-se plana durante alguma distância até se erguer em direcção às montanhas, mas o planalto de granite a norte aproximava-se cada vez mais do rio atd se erguer, íngreme, do outro lado da água.
Acamparam no interior da enseada. No vale perto do rio, a casca lisa e cinzenta e os ramos nus das bdtulas apareciam por entre espruces, abetos, pinheiros e lariços; a zona era suficientemente protegida para permitir que aí crescessem algumas árvores decíduas de folha larga. As voltas por entre as árvores em aparente confusão estava uma pequena manada de mamutes, composta por fêmeas e machos. Ayla aproximou-se cautelosamente para ver o que se passava.
Um mamute estava caído por terra, um gigantesco animal velho com enormes dentes que se cruzavam na frente. Ela interrogou-se sobre se seria o mesmo grupo que tinham visto antes a partir o gelo. Haveria naquela região dois mamutes tão velhos? Jondalar dirigiu-se para junto dela.
--Receio que esteja a morrer. Gostava de poder fazer alguma coisa por ele-disse Ayla.
--Provavelmentejá não term dentes. Quando isso acontece, não há nada a fazer, a não ser o que eles estão a fazer. Estão all com ele, a fazer-lhe companhia-disse Jondalar.
-- Talvez nenhum de nós possa pedir mais que isso-disse Ayla.
Apesar do seu tamanho relativamente compacto, cada mamute adulto
consumia grandes quantidades de comida diariamente, sobretudo erva
alta de caules lenhosos e, ocasionalmente, árvores pequenas. Com uma
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dieta tão grosseira, os seus dentes eram essenciais. Eram tão importantes
que o tempo de vida dos mamutes era determinado pelos seus dentes.
Os mamutes peludos desenvolviam vários conjuntos de grandes mola res ao longo do seu período de vida de cerca de setenta anos, normalmente seis de cada lado em cima e em baixo. Cada dente pesava aproximada mente quatro quilos e era especialmente adaptado a moer ervas grossas.
A superfície era constituída por muitas saliências paralelas, extremamente
duras e tinas-placas de dentina cobertas de esmalte-e tinham
coroas mais altas e mais saliências que os dentes de qualquer outro animal
da sua espécie, anterior ou posterior a eles. Os mamutes alimenta
vam-se principalmente de ervas. Os pedaços de casca que arrancavam
das árvores, sobretudo durante o Inverno, os rebentos da Primavera e as
ocasionais folhas, ramos e pequenas árvores, eram apenas incidentais na sua dieta principal de erva dura e fibrosa.
Os molares mais pequenos e que apareciam primeiro formavam-se perto da parte da frente de cada mandula; o reste crescia por detrás e avançava numa progressão regular durante a vida do animal, enquanto este utilizava apenas um ou dois dentes de cada vez. Apesar de tão dura, a importante superfície de moer gastava-se ao avançar para a frente e as raízes dissolviam-se. Por fim, os últimos fragmentos finos e inúteis de dente caiam quando os novos iam para o seu sítio.
Os últimos dentes eram utilizados por volta dos cinquenta anos e, quando já tinham quase desaparecido, o velho animal grisalho deixava de poder mastigar a erva dura. Ainda podia corner folhas e plantas mais tenras, plantas de Primavera, mas que não existiam nas outras estações. Desesperado, o velho subalimentado muitas vezes deixava a manada, indo à procura de pastes mais verdejantes, mas apenas encontrava a morte. A manada sabia quando o fim estava perto e era frequente vê-la a compartilhar os últimos dias do velho animal.
Os outros mamutes eram tão protectores em relação aos moribundos como o eram em relação aos recém-nascidos e juntavam-se à volta deste tentando forçar o animal caído a levantar-se. Quando o velho morria, eles enterravam o antepassado morto sob pilhas de terra, erva, folhas ou neve. Atd havia conhecimento de mamutes enterrarem outros animais mortos, incluindo seres humanos.
Ayla e Jondalar e os seus companheiros de viagem de quatro patas
depararam com um caminho cada vez mais íngreme e difícil quando deixaram
para trás as terras baixas e os mamutes. Estavam a aproximar
-se de uma garganta. Um pé do antigo maciço do norte tinha-se estendido
demasiado para sul e f-ora dividido pelas águas do rio. Eles tinham
subido mais alto que o rio que corria veloz através do desfiladeiro, com
uma corrente demasiado rápida para gelar, mas levando consigo blocos
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de gelo de zonas mais calmas mais a oeste. Era estranho ver a água a correr
depois de tanto gelo. Em frente das plataformas nos picos altos a sul
havia mesas, montes semelhantes a maciços encimados por extensos planaltos,
cobertos de coníferas com os ramos salpicados de neve. Os ramos
finos das árvores decíduas e dos arbustos estavam desenhados a branco
devido a uma fina camada de neve gelada que acentuava cada galho era
- mo, cativando Ayla com a sua beleza invernosa.
A altitude continuava a aumentar e as terras baixas entre os espinhanunca desciam abaixo da altitude das anteriores. O ar era frio e límpido, e mesmo quando o céu estava nublado não nevava. A precipitação diminuiu à medida que o Inverno avançava. A única humidade no ar era a do bafo quente expelido pelos seres humanos e pelos animais.
O rio de gelo tornava-se mais pequeno de cada vez que passavam pelo vale de um afluente. Na extremidade oeste das terras baixas havia outra garganta. Subiram a um espinhaço rochoso e quando chegaram a um sítio mais alto olharam em frente e pararam, impressionados com a vista. Mais adiante, o rio tinha voltado a dividir-se. Os viajantes não sabiam que era a última vez que se dividia nos ramos e canais que tinham caracterizado o seu avanço através das planícies sobre as quais tinha corrido durante tão grande extensão do seu percurso. A garganta imediatamente antes das terras baixas fazia uma curva apertada ao reunir os vários canais num único, causando um furioso redemoinho que lançava o gelo e os destroços nas suas profundezas antes de as águas se libertarem e con tÌnuarem a correr para jusante onde voltavam a gelar.
Eles pararam no sítio mais alto, a olhar para baixo, vendo um pequeno tronco a rodopiar incessantemente, a afundar-se cada vez mais com cada volta em espiral.
m Não gostava de lá cair-disse Ayla, estremecendo com a ideia.
-- Nem eu-respondeu Jondalar.
O olhar de Ayla foi atraído para um outro ponto à distância.
m De onde é que vêm aquelas nuvens de vapor, Jondalar?--perguntou.
-- Está um frio de gelar e aqueles montes estão cobertos de neve.
-- Há poços de água quente all, com água aquecida pela respÌração quente da Própria Doni. Algumas pessoas têm medo de se aproximar desses sítios, mas as pessoas que eu quero visitar vivem perto de um poço fundo e quente, ou pelo menos foi o que me disseram. Os poços quentes são sagrados para eles, muito embora alguns cheirem muito mal. Diz-se que usam a água para curar doenças.
-- Quanto .tempo falta atd chegarmos às pessoas que conheces?
Àquelas que usam água para curar doenças-perguntou ela.-Qualquer
coisa que pudesse aumentar os seus conhecimentos médicos estimulavalhe
sempre a curiosidade. Além disso, os alimentos estavam a
tornar-se escassos ou então eles não queriam perder tempo a procurá-los... mas já se tinham ido deitar com fome uma ou duas vezes.
A inclinação da terra aumentou significativamente do outro lado da última bacia plana. Estavam entalados por terras altas de ambos os lados e as montanhas estavam cada vez mais próximas. O manto de gelo a sul ia aumentando em altura à medida que avançavam para oeste. Bastante a sul, e ainda um pouco a oeste, dois picos erguiam-se bastante acima dos cumes escarpados das outras montanhas, um mais alto que o outro, como um par acasalado a vigiar a sua ninhada.
Quando as terras altas se nivelaram num sítio menos fundo do rio, Jondalar virou para sul, afastando-se do rio, em direcção a uma nuvem de vapor que se erguia à distância. Subiram a um espinhaço baixo e de lá de cima olharam através de um campo coberto de neve para um lago fumegante de água perto de uma caverna.
Várias pessoas tinham-nos visto aproximar e olhavam-nos fixa e consternadamente, demasiado chocados para se mexerem. No entanto, um homem estava a apontar-lhes uma lança.
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B Creio que é melhor desmontamos e aproximarmo-nos deles a
B disse Jondalar, vendo vários outros homens
punhar lanças e a avançarem cautelosamente para eles.-Nunca
lembro que as pessoas têm medo e desconfiam quando nos vêm montado
nos cavalos. Provavelmente devíamos tê-los deixado e
a pé e voltado atrás para os ir buscar depois de termos tido oportunida,
de de lhes explicar sobre os animais.
Desmontaram ambos e subitamente
de do seu "irmãozinho", de Thonolan com o seu sorriso aberto e sim
a dirigir-se confiantemente para uma Caverna
estranhos. Tomando isso como um sinal, o homem alto e louro sorriu, acenou num gesto de amizade, atirou para trás o capuz da sua
o poderem ver melhor e depois avançou com ambas as mãos
mostrando que se dirigia a eles abertamente, sem nada para
--Estou à procura de Laduni dos Losadunai. Sot
donii-disse, m O meu irmão e eu viajámos para este há alguns anos Laduni convidou-nos a visitarmo-lo e a ficarmos com ele " sássemos.
-- Eu sou LaduniB disse um homem, falando em Zelandonii mas um acentuado sotaque. Dirigiu-se para eles, empunhando a lan ta a usar, olhando atentamente para ver se o homem estranho era dizia ser.-Jondalar? Dos Zelandonii? Sim, pareces-te com o homem conheci.
Jondalar apercebeu-se d.o seu term cauteloso.
Isso é porque sou eu! E born voltar a ver-te, Laduni-disse rosamente.-Não tinha a certeza de ter vindo no fim do Grande Rio Mãe e mais além, e depois, mais perto de casa dificuldade em encontrar a vossa Caverna, mas o vapor dos vossos po quentes ajudou. Trouxe uma pessoa que gostava que conhecesses.
O homem mais velho olhou para Jondalar, tentando detectar qualquer indício de ele não ser o que parecia: um homem que ele cia que tinha all chegado de uma forma absolutamente estranha.
cia um pouco mais velho, o que era normal, e estava ainda mais do com Dalanar. Tinha voltado a ver o velho artífice de
anos antes quando viera numa missão de trocas e, Laduni
PLAN]CIES DE PASSAGEM
para saber se o filho do seu lar e o seu irmão tinham passado por all.
"Dalanar vai ficar muito contente por o ver", pensou Laduni. Diñgiu-se
para Jondalar, empunhando a lança menos rigidamente, embora numa
posição da qual a poderia lançar rapidamente. Olhou de relance para os
dois cavalos invulgarmente dóceis e viu pela primeira vez que quem estara
junto deles era uma mulher.
B Aqueles cavalos não são nada parecidos com os que há por aqui. Os cavalos do este são mais dóceis? Devem ser mais fáceis de caçar disse Laduni.
Subitamente o homem ficou tenso, levando a lança para a posição de arremesso, mas apontou-a a Ayla.
-- Não te mexas, Jondalar! -- disse.
Aconteceu tudo tão depressa que Jondalar não teve tempo para reagir.
-- Laduni! Que é que estás a fazer?
B Um lobo tem-vos vindo a seguir. Um lobo tão destemido ao ponto de se mostrar.
-- Não! -- gritou Ayla, lançando-se entre o lobo e o homem com a lança.
--Este lobo viaja connosco. Não o mates! disse Jondalar, correndo a interpor-se entre Laduni e Ayla.
Ela baixou-se e abraçou-se ao lobo, segurando-o firmemente, em parte para o proteger e em parte para proteger o homem com a lança. Os pêlos do Lobo estavam eriçados, tinha os dentes arreganhados e estava a rosnar ferozmente.
Laduni ficou espantado. Tinha avançado para proteger os visitantes, mas eles estavam a agir como se ele pretendesse fazer-lhes mal. Olhou para Jondalar com uma expressão interrogativa.
B Baixa a tua lança, Laduni. Por favor m disse Jondalar.-O lobo é nosso companheiro, exactamente como os cavalos o são. Salvou-nos a vida. Prometo-te que não fará mal a ninguém, desde que ninguém o ameace a ele ou à mulher. Sei que deve parecer estranho, mas se me deres uma oportunidade explicar-te-ei tudo.
Laduni baixou lentamente a lança, olhando para o lobo com uma expressão desconfiada. Desaparecida a ameaça, Ayla acalmou o animal, levantando-se e dirigindo-se para junte de Jondalar e Laduni e fazendo sinal ao Lobo para se manter junto dela.
-- Por favor desculpa o Lobo por se ter enfurecido-disse Ayla.-
Depois de as conhecer, gosta das pessoas, mas tivemos uma má experiência
com algumas a este daqui. Isso tornou-o mais nervoso quando encontra
estranhos e mais protector.
Laduni reparou que ela falava Zelandonii bastante bem, mas o seu estranho
sotaque denunciava-a imediatamente como estrangeira. Também
reparou.., havia outra coisa.., mas não tinha a certeza. Não era uma coisa que ele conseguisse definir especificamente. Já tinha viste muitas
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mulheres louras de olhos azuis, mas os traços das suas maçãs do
das suas feições ou do seu rosto, qualquer coisa, também lhe
aspecto de estrangeira. Fosse o que fosse, não diminuía minimamente
facto de ela ser uma mulher espantosamente bela. De qualquer form
acrescentava-lhe um elemento de mistéño.
Olhou para Jondalar e sorriu. Lembrando-se da sua última visita
o surpreendeu que o Zelandonii alto e bem parecido regressasse longa Viagem com uma beldade exótica, mas ninguém poderia recordações vivas das suas aventuras, como cavalos e um lobo. desejoso por ouvir as histórias que eles tinham para contar.
Jondalar tinha visto a expressão de apreço nos olhos de Laduni ao ver Ayla e, quando o homem sorriu, descontraiu-se.
Esta é a pessoa que eu queria que conhecesses-disse Jondalar.
Laduni, caçador dos Losadunai, esta é Ayla do Acampamento do Leão
dos Mamutoi, Escolhida pelo Leão das Cavernas, Protegida pelo Urso das
Cavernas e Filha do Lar do Mamute.
Ayla erguera ambas as mãos, com as palmas viradas para cima, na saudação de abertura e amizade, quando Jondalar iniciou a apresentação formal.
m Saúdo-te, Laduni, Mestre Caçador dos Losadunai m disse Ayla.
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com o S'Armunai. Tinha compreendido algumas palavras e apanhado o
sentido de alguns dos seus comentários. Daí a alguns dias estaria
com aquela gente.
O dom de Ayla para as línguas não lhe parecia invulgar. Não tentava aprendê-las conscientemente, mas o seu ouvido atento às nuances e às inflexões e a sua capacidade de detectar relações tornava-lhe fácil a aprendizagem. O facto de ter perdido a sua própria língua com o traumai de ter perdido a sua gente quando era muito pequena, e de ter tido que . aprender uma forma diferente de comunicar, mas tambdm uma forma que utilizava as mesmas áreas do cérebro que a linguagem falada, i aumentara a sua capacidade de aprendizagem de línguas. A sua necessidade de voltar a comunicar quando descobriu que não conseguia, dava-lhe um incentivo inconsciente mas profundo para aprender qualquer língua desconhecida. A sua perícia advinha da conjugação da sua capacidade natural e das circunstâncias.
-- Losaduna diz que são bem-vindos a ficarem no lar dos visitantes- disse-lhes Laduni depois da sua explicação.
-- Primeiro precisamos de descarregar os cavalos e de os instalar- disse Jondalar. Este campo junto à vossa caverna parece-me ter born pasto de Inverno. Alguém se importará que os deixemos all?
-- São bem-vindos a usar o campo-disse Laduni.-Creio que todos terão interesse em ver os cavalos de tão perto.-Não pôde deixar de olhar de relance para Ayla, pensando no que ela teria feito aos animais. Pare cia-lhe evidente que ela comandava espíritos extremamente poderosos.
Tenho de pedir outra coisa-disse Ayla.-O Lobo está habitua do a dormir ao pé de nós. Ficaria infeliz noutro sítio qualquer. Se o facto de o lobo dormir lá dentro incomodar a vossa Losaduna, ou a vossa Caverna, montamos a nossa tenda e dormimos cá fora.
Laduni voltou a falar às pesso, as e, depois de algum diálogo, virou-se de novo para os visitantes.
-- Eles querem que vocês entrem, mas algumas das mães receiam pelos filhos-disse.
-- Compreendo o seu medo. Posso prometer que o Lobo não fará mal
a ninguém, mas se isso não bastar podemos ficar cá fora.
Houve mais conversa e depois Laduni disse:
-- Eles dizem que vocês devem entrar.
Laduni acompanhou-os enquanto Ayla e Jondalar foram descarregar
os cavalos e ficou tão entusiasmado por conhecer a Whinney e o Corredor como ficara em relação ao Lobo. Já tinha fido a sua quota parte de caçar
cavalos, mas nunca tocara em nenhum, a não ser por acaso quando con
seguia aproximar-se o suficiente durante a perseguição. Ayla reconheceu
a sua alegria e pensou que mais tarde lhe poderia dar a oportunidade
de um passeio no dorso da Whinney.
Ao dirigirem-se de novo para a caverna, a arrastar as suas coisas den
tro do barco redondo, Laduni perguntou a Jondalar pelo seu irmão. Quando
viu uma expressão de dor passar pelo rosto do homem alto, percebeu
que tinha havido uma tragédia antes mesmo de Jondalar responder.
-- Thonolan morreu. Foi morto por um leão das cavernas.
-- Lamento saber isso. Gostava dele-disse Laduni.
-- Toda a gente gostava dele.
Estava tão ansioso por seguir o Grande Rio Mãe atd ao fim.
Chegou lá?
Sim, chegou ao fim da Donau antes de morrer, mas já não tinha o
seu coração empenhado nisso. Apaixonou-se por uma mulher e acasalou
-se com ela, mas ela morreu de parto-disse Jondalar.-Isso fez que
ele mudasse, tirou-lhe a vontade de viver.
Laduni abanou a cabeça.
-- Que pena. Era tão cheio de vida. Filonia pensou nele durante muito tempo depois de vocês se terem ido embora. Estava com esperança de que voltassem.
-- Como está Filonia? perguntou Jondalar, lembrando-se da jovem e bonita filha do lar de Laduni.
O homem mais velho sorriu.
-- Já se acasalou e Duna sofri-lhe. Term duas crianças. Pouco depois de to e Thonolan se terem ido embora, descobriu que estava abençoada. Quando se soube que ela estava grávida, creio que todos os Losadunai disponíveis descobriram uma razão para visitar a nossa caverna.
--Posso imaginar. Lembro-me de que ela era uma jovem muito bela.
Ela fez uma Viagem, não fez?
-- Sim, com uma prima mais velha.
-- E term duas crianças? -- disse Jondalar.
Os olhos de Laduni cintilaram de prazer.
--Uma filha da sua primeira bênção, Thonolia... Filonia tinha a certeza
de que era uma criança do espírito do teu irmão.., e há pouco tempo
teve um filho. Está a viver com a Caverna do companheiro. Eles têm mais
espaço, mas não é demasiado longe para a vermos a ela e às crianças regularmente.
-- Havia satisfação e alegria na voz de Laduni.
Espero que Thonolia seja uma criança do espírito de Thonolan. Gosfaria de pensar que ainda há um pedaço do seu espírito neste mundo- disse Jondalar.
Aquilo poderia acontecer tão depressa?, pensou Jondalar. Ele só tinha
passado uma noite com ela. O seu espírito seria assim tão poderoso? Ou,
se Ayla estiver certa, será que Thonolan fez que um bebé começasse a
crescer dentro de Filonia com a essência da sua viñlidade naquela noite
em que ficou com ela? Lembrou-se das mulheres com quem tinha estado.
-- Como está Lanalia? -- perguntou.
Está óptima. Foi visitar uns parentes noutra Caverna. Estão a tentar
arranjar um acasalamento para ela. Um homem perdeu a compa
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nheira e ficou com três crianças pequenas no seu lar. Lanalia nunca tev
cñanças, embora sempre quisesse ter. Se ela o achar compatível, acasalarseão
e ela adoptará as crianças. Poderá ser uma excelente
e ela está muito entusiasmada.
-- Fico contente por ela e desejo-lhe muitas felicidades m disse Jondalar, ocultando a sua decepção. Estava com esperança de que ela pudesse ter ficado grávida depois de compartilhar os Prazeres com ele. o que fosse, o espíñto do homem ou a essência da sua virilidade, Thono-: lan tinha provado a força do seu, mas e eu? Serão a minha essência ou o meu espírÌto suficientemente fortes?", pensou Jondalar.
Ao entrar na Caverna, Ayla olhou em volta com interesse. Tinha visto
muitas habitações dos Outros: abrigos leves ou portáteis que eram uti
lizados durante o Verão e estruturas mais resistentes e permanentes,
capazes de suportar o rigor do Inverno. Algumas eram construídas com
ossos de mamutes e cobertas de lama e barro, outras de madeira ou numa
plataforma flutuante, mas nunca vira uma caverna como aquela desde
que deixara o Clã. Tinha uma grande boca virada a sudeste e o seu interior
era agradável e espaçoso. "Brun teria gostado desta caverna", pen
SOU.
Quando os seus olhos se habituaram à luz fraca e viu o interior, ficou surpreendida. Estava à espera de ver várias lareiras em diversos sítios, os lares de cada família. Havia lareiras de famflias dentro da caverna, mas estavam no interior ou perto das aberturas de estruturas feitas com peles amarradas a paus. Eram semelhantes a tendas, mas não de forma cónica, e eram abertas em cima m não precisavam de ser protegidas do tempo por estafem dentro da caverna. Tanto quanto ela conseguia perceber, eram utilizadas como painéis para proteger o espaço interior dos olhares alheios. Ayla recordou-se da proibição do Clã de olhar directamente para o espaço de viver, definido por uma delimitação de pedras, do lar de um outro homem. Era uma questão de tradição e de autodomínio, mas apercebeu-se de que o objectivo era o mesmo: privacidade.
Laduni estava a conduzi-los na direcção de um dos espaços de habitação tapado por um destes painéis.
mAvossa má experiência não envolveu um grupo de desordeiros, pois não? m perguntou.
mNão, term havido problemas? m perguntou Jondalar. mQuando nos conhecemos, falaste de um jovem que tinha juntado a si vários seguidores. Divertiam-se com os C1... cabeças achatadas, m Olhou de relance para Ayla, mas sabia que Laduni não perceberia se dissesse "Clã".-
Atraíam os homens e depois tinham Prazeres com as mulheres. Disseste
qualquer coisa sobre o seu espírito de aventura estar a criar problemas a todos.
Quando Ayla ouviu "cabeças achatadas" escutou atentamente, com curiosidade em saber se havia muita gente do Clã all perto.
-- Sim, são esses. Charoli e o seu bando-disse Laduni. m Pode ter começado por ser espírito de aventura, mas foi muito além disso.
-- Seria de pensar que esses jovens já teriam desistido desse tipo de compo.rtamento-disse Jondalar.
m E o Charoli. Creio que individualmente não são maus jovens, mas
ele encoraja-os. Losaduna diz que ele quer mostrar como é corajoso, mostrar que é homem, pois cresceu sem um homem no seu lar.
m Houve muitas mulheres que criaram sozinhas rapazes que se
transformaram em óptÌmos homens m disse Jondalar. Estavam tão em brenhados na conversa que pararam e estavam de pé no meio da caverna. As pessoas estavam a começar a juntar-se à sua volta.
m Sim, é claro. Mas o companheiro da mãe desapareceu quando ele
era bebé e ela nunca teve novo companheiro. Pelo contrário, toda a sua atenção ia para ele e mimou-o para lá dos seus primeiros anos, quando deviajá estar a aprender um ofício e os deveres de um adulto. Agora cabe a nós todos fazê-lo parar.
m Que é que aconteceu? m perguntou Jondalar. m Uma rapariga da nossa Caverna estava ao pé do rio a montar armadilhas. Tinha-se tornado mulher poucas luas antes e ainda não tinha fido os seus Ritos de Primeiros Prazeres. Estava ansiosa pela cerimónia no próximo encontro. Charoli e o seu bando viram-na sozinha e todos eles a possuíram...
m Todos eles? Possuíram-na? Pela força? m disse Jondalar, horrorizado.
-- Uma rapariga, ainda não mulher. Não posso acreditar!
m Todos eles m disse Laduni com uma ira fria que era pior que o calor do momento, mE não aguentaremos mais! Não sei se se cansaram das fêmeas dos cabeças achatadas, ou que desculpa arranjarão paraisso, mas foram demasiado longe. Causaram-lhe dor e sangramento. Ela diz que nunca mais quer nada com homens, nunca mais. Recusou-se a cumprir os seu ritos de mulher.
-- Isso é terrível, mas é difícil censurá-la. Não é forma de uma jovem mulher conhecer a Dádiva da Doni m disse Jondalar.
mA mãe dela term medo que, se ela se recusar a Honrar a Mãe com a cerimónia, nunca tenha crianças.
mPode ter razão, mas que é que se pode fazer? m perguntou Jondalar. -- A mãe dela quer que o Charoli morra e quer que declaremos um feudo sangrento contra a sua Caverna m disse Laduni. m Ela term direito à vingança, mas um feudo de sangue pode destruir toda a gente. Além disso, não foi a Caverna de Charoli que causou os problemas. Foi o seu bando e alguns nem sequer são da Caverna onde o Charoli nasceu. Já mandei uma mensagem a Tomasi, o chefe dos caçadores de lá, e apresenteÌlhe uma ideia.
m Uma ideia? Qual é o teu plano?
m Creio que cabe a todos os Losadunai impedir Charoli e o seu ban234
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
do de continuarem nisto. Estou com esperança de que Tomasi se junte
mim para tentarmos convencer toda a gente a pôr esses jovens sob a
pervisão das Cavernas. Ate sugeri que ele permita à mãe de Madenia
sua vingança, em vez de sofrermos o derramamento de sangue de
feudo por causa deles. Mas Tomasi é parente da mãe de Charoli.
-- Seria uma decisão difícil de tomar n disse Jondalar. Reparou " Ayla tinha estado a escutar atentamente, n Alguém sabe onde de Charoli se aloja? Não pode ser com nenhuma da tua gente. Não acreditar que qualquer Caverna dos Losadunai acolheña desordeiro como esses no seu meio.
-- A sul daqui há uma região árida, com rios subterrâneos e
cavernas. Corre o boato de que eles se escondem numa das cavernas
orla dessa região.
-- Seria difícil encontrá-los se há muitas cavernas.
-- Mas eles não podem lá ficar sempre. Têm de arranjar comida e
demos descobrir o seu rasto e segui-los. Um born batedor pode se
-lhes o rasto melhor que a um animal, mas precisamos que todas
Cavernas colaborem. Assim não levaremos tanto tempo a
-- Que é que lhes farão quando os e
quem fez a pergunta.
-- Creio que assim que os desordeiros sejam separados não muito tempo a quebrarem os seus laços uns com os outros. Cada na poderá lidar com um ou dois à sua maneira. Duvido que a queira realmente viver fora dos Losadunai e não fazer parte de Caverna. Um dia quererão companheiras e não há muitas mulheres c queiram viver como eles vivem.
-- Creio que tens razão-disse Jondalar.
-- Lamento o que aconteceu a essa jovem mulher-disse Ayla. Como é que se chama? Madenia? -- A sua expressão mostrava como tava perturbada.
-- Eu também-acrescentou Jondalar.-Gostava de podermos ficar e ajudá-los, mas se não atravessarmos o glaciar em breve de ficar atd ao próximo Inverno.
--Talvez já seja tarde de mais para o atravessar este
Laduni.
-- Demasiado tarde?-- disse Jondalar.-Mas está frio.
tá tudo sólido de tão gelado. Todas as fendas devem estar cheias de neve.
-- Sim. É Inverno, mas nunca se sabe quando a estação já vai tão adiantada. Podem ainda conseguir, mas se os ventos foehn chegarern cedo.., e podem born chegar.., então a neve derreterá rapidamente. O glaciar pode ser traiçoeiro durante o degelo da Primavera e, nas actuais circunstâncias, não creio que seja seguro atravessar o territdrio dos cabeças achatadas a norte. Presentemente não são nada tolerantes. O bando de Charoli antagonizou-os. Até os animais têm um certo sentimento de pro tecção em relação às suas fêmeas e lutarão para proteger os seus.
Eles não são animais n disse Ayla, saltando em sua defesa, m São pessoas, apenas um tipo diferente de pessoas.
Laduni não respondeu; não queria ofender um visitante e um convidado.
Como tinha tanta intimidade com os animais, ela podia pensar em
todos os animais como sendo pessoas. "Se um lobo a protege e ela o trata
como um ser humano, não será de espantar que pense nos cabeças
achatadas como sendo pessoas", pensou. "Sei que podem ser espertos,
mas não são humanos."
Tinham-se juntado várias pessoas à sua volta enquanto falavam. Uma delas, um homem de meia-idade, pequeno e magro e um pouco ama chucado, e com um sorriso tímido, falou.
-- Não achas que os deves deixar instalar, Laduni?
-- Estava a começar a pensar se os ias manter aqui a falar durante todo o dia-acrescentou a mulher que estava ao lado dele. Era uma mulher roliça, apenas ligeiramente mais pequena que ele, com um rosto simpático.
--Desculpem, é claro que vocês têm razão. Permitam-me que os apresente -- disse Laduni. Olhou primeiro para Ayla e depois virou-se para o homem, m Losaduna, Aquele Que Serve a Mãe para a Caverna do Poço Quente dos Losadunai, esta é Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutoi, Escolhida pelo Leão, Protegida pelo Grande Urso e Filha do Lar do Mamute.
-- O Lar do Mamute! Então também és Uma que Serve a Mãe-disse o homem com um sorriso de surpresa antes sequer de a saudar.
--Não, sou uma Filha do Lar do Mamute. O Mamut estava a treinar -me, mas nunca cheguei a ser iniciada-explicou Ayla.
--Mas nasceste dele! Também deves ter sido escolhida pela Mãe, além de tudo o resto-disse o homem, obviamente encantado.
-- Losaduna, ainda não a saudaste-ralhou a mulher roliça.
O homem ficou momentaneamente embaraçado.
--Oh, creio que não. Sempre estas formalidades. Em nome de Duna, a Grande Terra Mãe, saúdo-te, Ayla dos Mamutoi, Escolhida pelo Acampamento
do Leão e Filha do Lar do Mamute.
A mulher que estava ao lado dele suspirou e abanou a cabeça.
-- Confundiu tudo, mas se fosse alguma cerimónia pouco conhecida ou uma lenda sobre a Mãe, não se esqueceria de absolutamente nada-disse ela.
Ayla não pôde deixar de sortir. Nunca tinha conhecido Um Que Servia a Mãe que parecesse tão inadequado para as suas funções nessa capacidade.
Os que ela conhecera eram controlados, indivíduos fáceis de reconhecer,
com uma presença poderosa, nada parecidos com aquele homem
distraído e modesto, indiferente à sua aparência, com modos agradáveis
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PLANÍCIES DE PASSAGEM
e ligeiramente tímidos. Mas a mulher parecia saber onde estava a sua força
e Laduni não mostrou a menor falta de respeite. Losaduna era obviamente
mais do que parecia ser.
-- Não faz mal-disse Ayla.-Ele não se enganou tanto como isso.
-- Afinal de contas, ela também tinha sido escolhida pelo Acampamento
do Leão; adoptada, não nascida dele, pensou Ayla. Depois dirigiu-se ao
homem que lhe tinha agarrado nas duas mãos e continuava a segurá-las.-Saúdo Aquele Que Serve a Grande Mãe de Todos e agradeço as tuas
boas-vindas, Losaduna.
Ele sorriu ao ouvir Ayla usar outro dos nomes de Duna, enquanto Laduni começava a falar.
-- Solandia dos Losadunai, nascida da Caverna do Monte do Rio, Companheira de Losaduna, esta é Ayla do Acampamento do Leão dos Mamu tei, Escolhida pelo Leão, Protegida pelo Grande Urso e Filha do Lar do Mamute.
--Saúdo-te, Ayla dos Mamutoi, e convido-te para a nossa habitação-disse Solandia. Os títulos completos e os parentescos tinham já sido
ditos vezes suficientes. Achou que não era preciso voltar a repeti-los.
-- Obrigada, Solandia-disse ela.
Laduni olhou depois para Jondalar.
-- Losaduna, Um Dos Que Serve a Mãe para a Caverna do Poço
Quente dos Losadunai, este é Jondalar, Mestre Artífice da Pedreneira da
Nona Caverna dos Zelandonii, filho de Marthona, antiga chefe da Nona
Caverna, irmão de Joharran, chefe da Nona Caverna, nascido do Lar de
Danalar, chefe e fundador dos Zelandonii.
Ayla nunca tinha ouvido todos os títulos e parentescos de Jondalar e ficou surpreendida. Embora não compreendesse por complete o seu significado, impressionavam. Depois de Jondalar repetir a ladainha e ser formalmente apresentado, foram finalmente levados para o grande espaço de viver e de cerimónias atribuído a Losaduna.
O Lobo, que tinha estado sentado muito quieto ao lado da perna de Ayla, deu um latido quando chegaram à entrada do espaço. Tinha vÌsto uma criança lá dentro, mas a sua reacção assustou Solandia. Correu lá para dentro e pegou rapidamente na criança que estava no chão.
--Tenho quatro crianças; não sei se esse lobo cá deve ficar-disse ela, num tom de voz estridente causado pelo medo.-O Micheri nem sequer ainda anda. Como é que eu posso ter a certeza de que ele não ataca o meu rapazinho?
-- OLobo não fará mal ao pequenino-disse Ayla.-Cresceu no meio de crianças e adora-as. É mais meigo com crianças que com os adultos. Ele não ia atacar o bebé, apenas ficou contente por o ver.
Ayla tinha feito sinal ao Lobo para se sentar, mas ele não conseguÌa
esconder o seu entusiasmo ao ver as crianças. Solandia olhou desconfiada
para o carnívoro. Não percebia se ele estava entusiasmado de felicidade
ou de fome, mas também sentia curiosidade em relação aos visitantes. Uma das melhores facetas de ser companheira de Losaduna era ter a vantagem
de ser a primeira a falar com os raros visitantes e poder passar
mais tempo com eles, pois normalmente ficavam no lar cerimonial.-Born, eu já tinha dito que ele podia cá ficar-disse.
Ayla levou o Lobo lá para dentro, conduziu-o para um canto afastado e fez-lhe sinal para all ficar. Ficou com ele durante algum tempo, pois sabia que seria particularmente difícil para e.le, mas só o facto de ter crianças que podia observar parecia de momento satisfazê-lo.
O seu comportamento acalmou Solandia e, depois de servir um chá
quente, apresentou as suas crianças, tendo depois retemado os prepara
tivos para a refeição que tinha interrompido. A presença do animal
passou para segundo plano, mas as crianças ficaram fascinadas. Ayla
estudou-as, tentando ser discreta. A mais velha das quatro crianças,
Larogi, era um rapaz de cerca de dez anos, calculou. Havia uma rapañ-ga com talvez sete anos, Dosalia, e uma outra de uns quatro, Neladia. Embora
o bebé ainda não andasse, isso não restringia a sua mobilidade.
Estava na fase de gatinhar e era eficiente e rápido.
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JEAN A UEL
PLAN ]C IES DE PASSAGEM
na, rodas as crianças da comunidade observaram fascinadas as
Solandia e o lobo. As crianças de Solandia eram invejadas pelo privilégio especial que tinham por viver com o animal.
Antes de escurecer, Ayla saiu para ver como estavam os cavalos.
Quando saiu da caverna, ouviu a Whinney saudá-la com um relincho
sentiu que a amiga tinha estado ligeiramente preocupada.
chou em resposta, fazendo que várias cabeças se virassem na sua
ção e a olhassem com surpresa, o Corredor respondeu com um relincho ligeiramente mais sonoro. Ayla atravessou o campo, com neve mais: espessajunto da caverna, para dar atenção aos cavalos e se assegurar de que estavam ambos bem. Enquanto se aproximava, a Whinney obser vou-a com o rabo erguido, numa atitude atenta. Quando a mulher gou mais perto, baixou a cabeça e depois lançou-a para cima, descrevendo um círculo com o focinho. O Corredor, igualmente contente por a ver, saltou e empinou-se sobre as paras traseiras.
Era uma nova situação para eles estarem outra vez junto de tantas
pessoas e a mulher que lhes era tão familiar dava-lhes segurança. O Corredor arqueou o pescoço e arrebitou as orelhas
ceu à entrada da caverna e foi ao encontro do homem a meio do
Depois de abraçar e fazer festas à égua, Ayla decidiu que escovaria a Whinney no dia seguinte, por ser uma actividade que as descontraía a am- has .
Conduzidas pelos quatro falhos de Solandia, todas as cñanças tinham
formado um grupo compacto e estavam a avançar lentamente na sua direcção
e na dos cavalos. Os visitantes fascinantes deixaram as crianças
tocar e fazer festas num ou no outro cavalo e Ayla deixou algumas montar a Whinney, o que muitos dos adultos observaram com alguma inveja.
Ayla tencionava deixar os adultos que quisessem experimentar montar a Whinney, mas sentia que era demasiado cedo para isso. Os cavalos pre- i
cisavam de descansar e ela não os queria esforçar demasiado.
Com pás feitas de grandes armaçõs de veado, ela e Jondalar começaram a limpar a neve de uma zona de pasto mais perto da caverna, para os cavalos poderem pastar mais facilmente. Várias outras pessoas ajuda ram-nos, e o trabalho foi acabado rapidamente, mas enquanto estava a tirar a neve Jondalar lembrou-se de uma preocupação que andava a tentar resolver há algum tempo. Como é que iam encontrar comida e pasto e, mais importante ainda, água potável suficiente, para si próprios, um lobo e dois cavalos durante a travessia de uma extensão gelada de gelo glaciar.
Nessa noite, toda a gente se juntou no grande espaço cerimonial para
ouvir Jondalar e Ayla falarem sobre as suas viagens e aventuras. Os
Losadunai interessavam-se particularmente por animais. Solandia já
começara a contar com o Lobo para manter as suas crianças entretidas e até os adultos se distraíam a ver o lobo a brincar com as crianças. Era difícil de acreditar. Ayla não entrou em pormenores sobre o Clã, nem sobre a maldição de morte que a forçara a ir-se embora, embora tivesse referido que tinham surgido problemas.
Os Losadunai pensavam que o Clã era apenas um grupo de pessoas que viviam muito a este e, embora ela tivesse tentado explicar que o processo de fazer que os animais se habituassem às pessoas não era uma coisa sobrenatural, ninguém acreditou realmente. A ideia de que qualquer pessoa podia domar um cavalo ou um lobo selvagem era demasiado difícil de aceitar. A maioria das pessoas partiu do princípio de que o tempo que ela tinha vivido sozinha num vale tinha sido um período de prova e abstinência por que muitos que se sentiam chamados a Servir a Mãe passavam, e para eles o comportamento dela para com os animais prova va o seu Chamamento. Se ainda não Era Uma Que Servia, isso seria apenas uma questão de tempo.
Mas os Losadunai ficaram perturbados quando souberam dos problemas que os seus visitantes tinham tido com Attaroa e os Sarmunai.
-- Não admira que tivéssemos tido tão poucos visitantes vindos de este durante os últimos anos. E to dizes que um dos homens que lá estava preso era um Losadunai? -- perguntou Laduni.
--Sim. Não sei como se chamava, mas lá chamavam-lhe Ardemun- disse Jondalar. m Tinha-se ferido e estava aleijado. Não conseguia andar muito bem e não podia de todo fugir, portanto Attaroa deixava-o andar em liberdade pelo Acampamento. Foi um dos que libertou os homens.
-- Lembro-me de um jovem homem que partiu numa Viagem-disse uma mulher mais velha.-Dantes sabia o seu nome, mas não me lembro.., deixa-me pensar.., tinha uma alcunha... Ardemun... Ardi... não, Mardi. Dizia que se chamava Mardi!
Referes-te ao Menardi? disse um homem. Lembro-me dele dos Encontros de Verão. Chamavam-lhe Mardi e fez de facto uma Viagem. Então foi isso que lhe aconteceu. Term um irmão que ficará contente por ,saber que ele ainda é vivo.
E born saber que já é de novo seguro passar por lá. Tiveste sorte em não os teres encontrado quando ias para este-disse Laduni.
-- O Thonolan estava com pressa para irmos o mais longe possível ao
longo do Grande Rio Mãe. Não quis parar-explicou Jondalar--, e ficá-mos deste lado do rio. Tivemos sorte. Quando a reunião terminou,
soube bem a Ayla ir para a cama num sítio quente e seco, sem vento, e
adormeceu rapidamente.
Ayla sorriu a Solandia, que estava sentada ao lado da lareira a dar de
mamar a Micheri. Tinha acordado cedo e decidira fazer o chá da manhã
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Nébul 44 -- 1
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PLANÍCIES DE PASSA GEM
para si própria e para Jondalar. Procurou a pilha de lenha ou de excre
mentes secos ou fosse qual fosse o combustível que utilizassem, que
estava normalmente junte da lareira, mas apenas viu um monte de
pedras castanhas.
-- Quero fazer chá-disse ela.-Que é que põem na fogueira? Se me disseres onde está, eu you buscá-lo.
m Não é preciso. Há muite aqui m disse Solandia.
Ayla olhou em volta e, continuando a não ver o mateñal para queimar na fogueira, pensou se se teria feito compreender.
Solandia viu a sua expressão intrigada e sorriu-lhe. Estendeu a mão e pegou numa das pedras castanhas.
-- Usamos iste, pedra de queimar-disse.
Ayla tirou-lhe a pedra da mão e examinou-a atentamente. Viu claramente que tinha um certe grão de madeira, mas era definitivamente pedra, não madeira. Nunca tinha visto nada parecido; era lignita, carvão castanho, um material intermédio entre a turfa e o carvão betuminoso. Jondalar já tinha acordado e aproximou-se dela pelas costas. Ela sortiu-lhe e deu-lhe a pedra.
--Solandia diz que é iste que põem na fogueira disse, reparando na mancha castanha que lhe tinha ficado na mão.
Foi a vez de Jondalar o examinar e ficar intñgado.
mParece-se com madeira, mas é pedra. Não uma pedra dura como a pedreneira. Deve-se partir com facilidade.
Sim-disse Solandia. A pedra de queimar parte-se facilmente. -- De onde é que vem? -- pergunteu Jondalar. m No sul, perto das montanhas, há campos cheios delas. Ainda usamos alguma lenha, para acender a fogueira, mas isto arde com maior calor e durante mais tempo que a lenha-disse a mulher.
Ayla e Jondalar olharam um para o outro e tiveram ambos uma expressão de entendimente.
--Eu you buscar uma-disse Jondalar. Quando voltou, Losaduna e o rapaz mais velho, Larogi, já estavam acordados.-Vocês têm pedras de arder e nós temos uma pedra de lume, uma pedra que faz lume.
--E foi Ayla quem a descobriu? --disse Losaduna, num tom mais de afirmação que de interrogação.
-- Como é que sabias? -- disse Jondalar.
-- Talvez por ter sido ele a descobrir as pedras que ardem-disse Solandia.
-- Pareciam-se tante com madeira que pensei em tentar que ardes
sem. E resulteu-disse Losaduna.
Jondalar assentiu.
m Ayla, por que é que não lhes mostras como é? -- disse, dandolhe
o bocado de pirite de ferro e de pedreneira e a acendalha.
Ayla dispôs a acendalha e depois virou a pedra amarela e metálica na
mão atd a sentir numa posição confortável, de forma que a depressão feita no bocado de pirite de ferro com o uso continuo ficasse voltada para o lado certe. Depois pegou no pedaço de pedreneira. O seu geste era tão experiente que quase sempre bastava uma pancada para conseguir fazer faísca. Esta caiu na acendalha e, com alguns sopros, uma pequena chama irrompeu. Ouviu-se um suspiro colectivo da assistência que tinha estado a reter a respiração.
-- É espanteso-disse Losaduna.
-- Não é mais espantoso que as pedras que vocês queimam-disse Ayla.-Temos algumas a mais. Gostaria de te dar uma para a Caverna. Talvez possamos mostrar como funciona durante a Cerimónia.
-- Sim! Seria uma altura perfeita e eu terei todo o gosto em aceitar o teu presente para a Caverna m disse Losaduna.-Mas temos de te dr qualquer coisa em troca.
-- Laduni já nos prometeu dar tudo o que precisarmos para atravessar o glaciare continuarmos a nossa Viagem. Deve-me uma exigência futura, embora de qualquer forma fizesse o mesmo. Os lobos entraram no nosso esconderijo e foram à nossa comida de viagem-disse Jondalar.
--Tencionam atravessar o glaciar com os cavalos? mperguntou Losaduna.
-- Claro que sim-disse Ayla.
-- Como é que arranjarão comida para eles? E dois cavalos devem
beber mais que duas pessoas.., como é que arranjarão água quando está
tudo completamente gelado e sólido? -- pergunteu Aquele Que Serve.
Ayla olhou para Jondalar.
--Tenho pensado nisso-disse ele. m Pensei que podíamos levar erva seca no barco redondo.
--E talvez pedras de arder? Se conseguirem encontrar um sítio onde fazer uma fogueira em cima do gelo. Não têm que se preocupar com o facte de se poderem molhar e serão mais leves de transportar-disse Losaduna. Jondalar ficou com uma expressão pensativa e depois um grande sorriso de felicidade iluminou-lhe o roste.
-- É isso! Podemos pô-las no barco redondo, que deslizará pelo gelo mesmo com uma carga pesada, e levamos também outras pedras para utilizar como base para a fogueira. Há tante tempo que ando preocupado com isso.., não sei como te agradecer, Losaduna.
Ayla descobriu por acaso, quando ouviu algumas pessoas a falar sobre
ela, que consideravam o invulgar maneirismo da sua fala como sendo um
sotaque Mamutoi, embora Solandia pensasse que era uma ligeira deficiência
da fala. Por mais que se esforçasse, Ayla não conseguia vencer a
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dificuldade que tinha em fazer certos sons, mas ficou contente por as ou
tras pessoas não se incomodarem com isse.
Durante os dias seguintes, Ayla foi conhecendo melhor o grupo de Losadunai que vivia perto do poço quente mo grupo chamava-se "Caverna" quer vivesse ou não numa caverna. Gostava em especial das pessoas cujo espaço de viver compartilhavam, Solandia, Losaduna e as crian e apercebeu-se da falta que sentia de pessoas simpáticas que se compor-: tavam normalmente. A mulher falava bastante bem a língua da gente de Jondalar, com algumas palavras Losadunai pelo meio, mas ela e Ayla não tinham dificuldade em entender-se uma à outra.
Sentiu-se ainda mais atraída pela companheira Daquele Que Servia quando descobriu que tinham um interesse comum. Embora fosse supos to ser Losaduna quem tinha aprendido sobre plantas, ervas e remédios, era na realidade Solandia que conhecia a maioria das receitas. Esta situação fez lembrar a Ayla Iza e Creb, com Solandia a tratar as doenças da Caverna através da medicina herbal prática, deixando o exorcismo de espíritos e outras emanações desconhecidas e perigosas para o seu com-:! panheiro. Ayla também ficou intrigada com Losaduna pelo seu interes-i', se por histórias, lendas, mitos, e pelo mundo dos espíritos-os aspectos intelectuais que fora proibida de conhecer quando vivia com o Clã-e começou a apreciar a riqueza de conhecimentos que ele tinha.
Assim que ele descobriu o interesse genuíno de Ayla
ra Mãe e pelo mundo não material dos espíritos, e a sua inteligência rá-pida e espantesa capacidade para memorizar, mostrou-se
simo em transmitir-lhe as tradições. Sem sequer as compreender completamente,
Ayla não tardou a ser capaz de recitar longos versos de
das e histSrias e o conteúdo exacto de rituais-e cerimónias. Ele
fluentemente Zelandonii, embora com um forte maneirismo Losa¢
na expressão e formação de frases
que a maior parte do ritmo e da métrica dos versos era mantida,
ra alguma da rima se perdesse. Ainda mais fascinante para ambo.,
diferenças menores, e as muitas semelhanças, entre a interpretação
lee a sabedoria recebida dos Mamutoi: Losaduna queria conhecer as
riações e as divergências e Ayla deu por si a ser não só acólita,
com Mamut, mas uma espécie de professora, explicando os costumes
leste, pelo menos os que conhecia.
Jondalar também estava a gostar das pessoas da
beu-se de quanto perdera por não ter uma variedade de indivíduos à
volta. Passava muito tempo com Laduni e alguns dos caçadores,
Solandia ficou surpreendida pelo interesse que ele mostrava nos
filhos. Ele gostava de crianças, mas não era tanto a sua descendência
o interessava, mas sim observá-la com os mais novos.
quando ela dava de.mamar ao bebé, Jondalar ansiava
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se um bebé, uma criança do seu espírito, esperava, mas pelo menos um
filho ou filha do seu lar.
O filho mais novo de Solandia, Micheri, suscitava sentimentos semelhantes em Ayla, mas ela continuou a fazer o seu chá contraceptivo especial rodas as manhãs. As descrições do glaciar que ainda tinham de atravessar eram tão intimidantes que nem sequer admitia a hipótese de tentar fazer um bebé com Jondalar naquela altura.
Embora se sentisse grato por isso não ter acontecido enquanto esta varo a viajar, Jondalar estava cheio de sentimentos contraditórios. Esta va a começar a ficar preocupado com o facto de a Grande Terra Mãe ainda não ter abençoadoAyla com uma gravidez, sentindo de certa forma que a culpa era sua. Uma tarde, falou na sua preocupação a Losaduna.
-- A Mãe decidirá quando é a altura certa m disse o homem.-Talvez Ela soubesse como as vossas viagens seriam difíceis. No entanto, talvez seja altura de uma cerimónia para A honrar. Nessa altura poderás pedir-Lhe para dar um bebé a Ayla.
-- Talvez tenhas razão-disse Jondalar.-Mal certamente não fará. --Depois riu-se depreciativamente.-Alguém me disse uma vez que eu era um dos preferidos da Mãe e que Ela não me recusaria nada que Lhe pedisse.-Depois, franziu a testa.-Mas mesmo assim o Thonolan morreu.
--Pediste-Lhe especificamente para não deixar que ele morresse?-- disse Losaduna.
-- Bem, não. Aconteceu tudo demasiado depressa-reconheceu Jon dalar.-O leão também me feriu.
-- Pensa um pouco nisso. Tenta-te lembrar se alguma vez Lhe pediste
alguma coisa e se Ela acedeu ou recusou o teu pedido. De qualquer forma, you falar com Laduni e com o conselho acerca de uma cerimónia para
honrar a Mãe-disse Losaduna.-Quero fazer qualquer coisa para ajudar
a Madenia, e uma Cerimónia para Honrar a Mãe talvez seja exactamente
o que é preciso. Ela recusa-se a sair da cama. Nem sequer se quis
levantar para ouvÌr as vossas histórias, e Madenia costumava adorar histórias
sobre viagens.
-- Que terrível provação que deve ter sido para ela-disse Jondalar, arrepiando-se com a ideia.
-- Sim. Estava à espera que já se tivesse recomposto. Será que um ritual
de purificação no Poço Quente ajudaria? -- disse ele, embora fosse
óbvio que não estava à espera de uma resposta de Jondalar. O seu espí-rito já estava embrenhado em pensamentos, enquanto começava a pen
sar no ritual. Subitamente olhou para cima.-Onde está a Ayla? Acho
que lhe you pedir para vir para ao pé de nós. Poderá ajudar.
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-- Losaduna esteve a explicar-me, e estou muito interessada no ritual
que estamos a planear-disse Ay]a.-Mas não tenho a certeza acerca
da Cer.imónia para Honrar a Mãe.
-- E uma cerimónia importante-disse Jondalar, franzindo a testa. -- .A maioria das pessoas deseja-a, m "Não estando ela contente com a cenmónia, será que resulta?", pensou ele.
-- Talvez se eu soubesse mais sobre ela também a desejasse. Tenho tanto que aprender e Losaduna está disposto a ensinar-me. Gostaria de cá ficar algum tempo.
Temos de partir em breve. Se esperarmos muito mais, será Primavera. Ficaremos para a Cerimónia para Honrar a Mãe e depois temos de ir-disse Jondalar.
-- Quase desejo que pudéssemos cá ficar atd ao próximo Inverno. Es
teu tão cansada de viajar-disse Ayla. Não exprimiu o seu pensamento
seguinte, embora a andasse a incomodar. "Estas pessoas estão dispostas
a aceitar-me; não sei se a tua gente estará."
--Eu também estou cansado de viajar, mas assim que atravessarmos o glaciar já não é longe. Pararemos para visitar Dalanar e lhe dar conhecimento de que voltei e depois o resto do caminho será fácil.
Ayla assentiu, concordando, mas ficou com a sensação de que ainda tinham um longo caminho a percorrer e que era mais fácil falar que fa- zê-lo.
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-- Queres que eu faça alguma coisa? perguntou Ayla.
Ainda não sei-disse Losaduna. m Sinto que nas actuais circunstâncias deve estar connosco uma mulher. A Madenia sabe que eu sou Aquele Que Serve a Mãe, mas sou homem e neste momento ela term medo dos homens. Creio que seria muito útil se ela falasse sobre o que aconteceu e por vezes é mais fácil falar com um estranho compreensivo. As pessoas têm medo de que alguém que conhecem se lembre sempre dos segredos mais íntimos que lhes revelem e de cada vezque voltam a ver essa pessoa poderão recordar-se da sua dor e ira.
Há alguma coisa que eu não deva dizer ou fazer?
--Tens uma sensibilidade natural e saberás isso por ti própria. E também tens uma capacidade rara e natural para uma nova língua. Estou verdadeiramente espantado com a rapidez com que aprendeste a falar Losadunai e, pela Madenia, também muito grato por isso m disse Losa duna.
Ayla sentiu-se embaraçada com os seus elogios e desviou o olhar. A ela não lhç parecia particularmente espantoso.
-- E bastante parecido com o Zelandonii-disse ela.
Ele viu o embaraço dela e não voltou a falar no assunto. Olharam am-' bos para cima quando Solania entrou.
-- Está tudo pronto-disse ela.-You levar as crianças e preparar isto aqui para quando terminarem. Oh, a propósito, Ayla, importas-te que leve o Lobo? O bebé está muito agarrado a ele e ele entretém-no.-
A mulher riu baixinho. Quem diria que eu algum dia pediria para levar
um lobo para vigiar os meus filhos?
-- Acho que é melhor ele ir contigo-disse Ayla.-A Madenia não conhece o Lobo.
Então vamos ter com ela? disse Losaduna.
Ao dirigirem-se juntos para o espaço onde Madenia vivia com a mãe, Ayla reparou que era mais alta que o homem e lembrou-se da primeira impressão que tivera dele de ser pequeno e tímido. Ficou admirada por a sua percepção dele ter mudado tanto. Embora fosse baixo e tivesse modos reservados, o seu intelecto conferia-lhe estatura e a sua dignidade calma ocultava uma profunda sensibilidade e uma forte presença.
Losaduna raspou na pele dura esticada entre um triângulo de paus
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finos. A porta de entrada foi empurrada para fora e a entrada franquea
da por uma mulher mais velha. A mulher ficou com uma expressão car
rancula ao ver AyIa e lançou-lhe um olhar contrañado, sendo óbvio que lhe desagradava o facto de a estranha all estar.
A mulher voltou a entrar, cheia de amargura e ira.
-- Já encontraram esse homem? Aquele que roubou os meus netos mesmo antes de terem tido oportunidade de nascer?
--Encontrar o Charoli não te devolverá os teus netos, Verdegia, e neste momento não é ele que me preocupa. Quem me preocupa é a Madenia. Como é que ela está? -- disse Losaduna.
-- Recusa-se a sair da cama e quase não come nada. Nem sequer fala comigo. Era uma rapariga tão bonita e estava a transformar-se numa mulher muito bela. Não teria dificuldade em encontrar um companhei to, até o Charoli e os seus homens a terem desgraçado.
-- Por que é que pensas que está desgraçada? -- perguntou Ayla.
A mulher mais velha olhou para Ayla como se ela fosse estúpida.
--Esta mulher não sabe nada?--disse Verdegia a Losaduna, viran
do-se depois para Ayla.-A Medenia nem sequer tinha tido os seus Primeiros
Ritos. Está estragada, desgraçada. Agora a Mãe já não a abençoará.
Não tenhas tanta certeza disso. A Mãe não é assim tão cruel-disse o homem.-Ela sabe como os Seus filhos agem e deu-nos outros meios, outras formas de os ajudar. A Madenia pode ser limpa e purificada, feno vada, de forma a continuar a poder ter os seus Ritos dos Primeiros Prazeres.
Não servirá de nada. Ela recusa-se a aceitar os homens seja para o que for, nem sequer para os Pñmeiros Ritos-disse Verdegia.-Todos os meus filhos foram viver com as suas companheiras; toda a gente dizia que não tínhamos espaço na nossa caverna para multas famílias novas.
A Madenia é a minha última criança, a minha única filha. Desde que o
meu homem morreu que tenho ansiado por que ela traga um companhei- to para cá, para haver um homem que ajude a sustentar as crianças que
ela teria, os meus netos. Agora não terei netos a viver aqui. Tudo isso por
causa daquele.., homem-exclamou irada e ninguém faz nada.
--To sabes que o Laduni está à espera de notícias do Tomasi-disse Losaduna.
--Tomasi! Verdegia cuspiu o nome.-Para que é que ele serve? Foi a caverna dele que teve aquele.., aquele homem.
--Tens de lhes dar uma oportunidade. Mas não temos que esperar por eles para ajudar a Madenia. Depois de ela ser purificada e renovada, poderá mudar de ideias quanto aos Pñmeiros Ritos. Pelo menos precisa mos de tentar.
-- Podem tentar, mas ela não se levantará-disse a mulher.
248
PLAN[CIES DE PASSAGEM
-- Talvez a possamos encorajar-disse Losaduna.-Onde é que ela
es?
--Além, atrás da cortina-disse Verdegia, apontando para a alcova na penumbra. A rapariga que estava na cama levou a mão aos olhos para se proteger da luz.
-- Madenia, levanta-te m disse ele. O seu tom era firme mas meigo.
Ela virou-lhe a cara.-Ayla, ajuda-me com ela.
Os dois ergueram-na de forma a ficar sentada e depois ajudaram-na a pôr-se de pé. Madenia não resistiu, mas nåo colaborou. Um de cada lado dela, levaram-na para fora do espaço fechado e depois para fora da caverna. A rapariga parecia não dar pelo solo gelado, coberto de neve, apesar de estar descalça. Conduziram-na para uma grande tenda cónica na qual Ayla ainda não tinha reparado. Estava semiescondida de um dos lados da caverna, por detrás de umas tochas e arbustos, e saía vapor do buraco de fumo no cimo. O ar escava carregado de um forte cheiro a enxofre.
Depois de entrarem, Losaduna puxou uma cobertura de pele de forma a tapar a entrada e prendeu-a. Estavam num pequeno espaço de entrada
que estava separado do resto do interior por pesadas cortinas de pele,
pele de mamute, pensou Ayla. Embora a temperatura estivesse gelada,
lá dentro estava quente. Uma tenda de paredes duplas tinha sido montada
sobre uma nascente quente que fornecia o calor; mas, apesar de todo
o vapor, as paredes estavam relativamente secas. Embora houvesse al
guina humidade, formando gotas que escorriam pelas paredes inclinadas
para a orla da protecção de chão, a maior parte da condensação ocorria
no interior da parede externa, onde o frio entrava em contacto com o calor
e o vapor do interior. O espaço de ar isolante entre ambas era mais quente
e mantinha o pano interior praticamente seco.
Losaduna mandou-as despir e, quando Madenia não o fez, disse a Ayla para o fazer por ela. A jovem mulher agarrou-se à roupa quando Ayla tentou rifar-lha, olhando fixamente com os olhos muito abertos para Aquele Que Servia a Mãe.
-- Tenta rifar-lhe a roupa, mas se ela não deixar leva-a lá para dentro mesmo vestida-disse Losaduna, passando para o lado de dentro da pesada cortina e deixando escapar uma pluma de vapor. Assim que o homem desapareceu, Ay]a conseguiu tirar a roupa da rapariga, depois despiu-se rapidamente e levou Madenia para a sala do outro lado da cortina.
No interior, nuvens de vapor obscureciam o espaço com um nevoeiro
quente que tornava os contornos indistintos e ocultavaos pormenores,
mas Ayla conseguiu distinguir um pequeno lago forrado de pedras junto
a uma fumegante nascente quente natural. Eram ligados por um buraco
que estava tapado por uma rolha feita de madeira com entalhes. Do outro
lado do pequeno lago, um tronco escavado, que trazia água fria de um
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JEAN A UEL
PI..4NICIES DE PASSAGEM
ribeiro all perto, tinha sido inclinado na direcção inversa, impedindo que
a água entrasse no pequeno lago. Quando por instantes a nuvem de vapor
se tornou menos densa, ela viu que o interior da tenda estava pintado com animais , muitos deles prenhos, a maioria já desbotados da condensação
de água,juntamente com enigmáticos triângulos, círculos, trapézios e ou
tras formas geométricas.
Em volta do pequeno lago, indo quase até à parede da tenda, grossas almofadas de pêlo de carneiro tinham sido colocadas sobre a protecção de chão, e eram macias e maravilhosas sob os pé nus. Estavam marcadas com formas e linhas que levaram ao lado esquerdo, menos fundo, do pequeno lago. Viam-se bancos de pedra debaixo de água, encostados à: parede do lado direito que era mais fundo. Junto à parte de trás havia uma plataforma erguida de terra, sobre a qual estavam três lamparinas de pedra acesas u malgas em forma de pires cheias de gordura derretida com um pavio de qualquer coisa aromática que flutuava no centro ue que rodeavam uma pequena estátua de uma mulher de formas generosas. Ayla reconheceu-a como sendo a figura que representava a Grande Terra Mãe.
Uma lareira cuidadosamente preparada no interior de um círculo quase perfeito de pedras redondas, quase idênticas em forma e tamanho, estava em frente ao altar de terra. Losaduna apareceu por entre o vapor e pegou num pequeno pau que estava ao lado de uma das lamparinas que inha numa das pontas um bocado de material escuro e levou-o à chama. Incendiou-se rapidamente e, pelo cheiro, Ayla percebeu que tinha sido mergulhado em resina de pinheiro. Losaduna levou o pequeno archote, protegendo a chama com a mão em concha, à fogueira que estava pronta e, incendiando a acendelha, acendeu o lume. A fogueira lançava um cheiro fortemente aromático mas agradável que mascarava o cheiro a enxofre.
-- Sigam-me-disse ele. Depois, pondo o pé esquerdo numa das almofadas de lã entre duas linhas paralelas, começou a andar em volta do pequeno lago por um caminho previamente delineado. Madenia foi atrás dele a arrastar os pés, sem saber nem se importar onde punha os pés, mas Ayla, observando-o, seguiu as suas pegadas. Fizeram a volta completa do pequeno lago e da nascente quente, passando por cima da entrada de água fria e de uma vala funda de saída de água. Quando iniciou a segunda volta, Losaduna começou a entoar uma cantilena, invocando a Mãe com nomes e títulos.
Ó Duna, Grande Terra Mãe, Grande e Generosa Sustentadora, Grande Mãe de Todos, Mãe Original, Primeira Mãe, Ela Que abençoa tedas as mulheres, Mãe Extremamente Compassiva, ouve o nosso pedido. -- O homem repetiu várias vezes a invocação enquanto davam a volta à água pela segunda vez.
Quando colocou o pé esquerdo entre as linhas paralelas da almofada para iniciar a terceira volta, chegara à parte "Mãe Extremamente Com passiv,a, ouve o nosso pedido", mas em vez de repetir, continuou com:
-- O Duna, Grande Terra Mãe, fizeram mal a um dos Teus. Um dos Teus foi violada. Um dos Teus term de ser limpa e purificada para receber a Tua bênção. Grande e Generosa Sustentadora, Um dos Teus precisa da Tua ajuda. Ela term de ser curada. Ela term de ser sarada. Renova-a, Grande Mãe de Todos, e ajuda-a a conhecer a alegria das Tuas Dádivas. Ajuda-a, Mãe Original, a conhecer os Teus Ritos de Primeiros Prazeres. Ajuda-a, Primeira Mãe, a receber a Tua Bênção. Mãe Extremamente Compassiva, ajuda Madenia, filha de Verdegia, filha dos Losadunai, os Filhos da Terra que vivem perto das montanhas altas.
Ayla ficou comovida e fascinada pelas palavras e pela cerimónia e
achou que via sinais de interesse em Madenia, o que lhe agradou. Depois
de completar a terceira volta, Losaduna conduziu-as, uma vez mais com
passos cuidadosos ao continuar os seus rogos, para o altar de terra onde
as três lamparinas ardiam em volta da pequena figura da Mãe, a dunai. Junte auma outra lâmpadahavia um objecte semelhante a uma faca, feito
de osso. Era relativamente largo, com lâminas duplas e uma ponta
ligeiramente arredondada. Losaduna pegou nele e levou-as para junto
da fogueira.
Sentaram-se em volta da fogueira de frente para o pequeno lago, muito juntos, com Madenia no meio. O homem juntou pedras de arder castanhas às chamas, tirando-as de uma pilha que estava all perto. Depois, Losaduna tirou uma malga de uma alcova ao lado da plataforma de terra. Era feita de pedra e talvez originalmente tivesse tido uma forma natural de malga, mas esta tinha sido acentuada com golpes dados por uma pedra de martelar dura. O fundo estava enegrecido. Ele encheu a malga de água de um pequeno saco de água que também estava no nicho, juntou-lhe folhas secas que tirou de um pequeno cesto e colocou a malga directamente em cima das brasas quentes.
Depois, numa parte plana de terra fina e seca rodeada de almofadas de lã, fez uma marca com a faca de osso. Subitamente, Ayla compreendeu o que era o instrumento de osso. Os Mamutoi utilizavam uma ferramenta semelhante para fazer marcas na terra, para registar pontuações de jogos e contagens de apostas, para planear estratdgias de caça e como faca de contar histdrias, para desenhar bonecos como ilustrações. Enquanto Losaduna continuava a fazer marcas, Ayla apercebeu-se de que ele esta va a utilizar a faca para ajudar a contar uma história, mas não uma his tdria cujo objectivo fosse mero entretenimento. Contou-a no mesmo tom de cantilena que usara para fazer o seu pedido, desenhando aves para dar ênfase e reforçar as questões que queria frisar. Ayla depressa se apercebeu de que a histdria era um relato alegórico do ataque a Madenia, utilizando aves como personagens.
Nessa altura, a jovem mulher j á estava a reagir, identificando-se com
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JEAN A UEL
PLAN [C IES DE PASSAGEM
a jovem ave fêmea sobre a qual ele estava a falar e, subitamente,
um grande soluço, começou a chorar. Com o lado achatado da faca de
nhar, Aquele Que Servia a Mãe limpou toda a cena.
-- Desapareceu! Nunca aconteceu m disse ele, desenhando
apenas a imagem da jovem ave.-Ela está de
te como estava no início. Com a ajuda da Mãe, será isso que te
tá a ti, Madenia. Tudo desaparecerá, como se nunca tivesse acontecido.i
Um aroma a hortelã-pimenta, com uma pungência familiar,
não conseguia identificar claramente, começou a encher a ten,
da de vapor. Losaduna verificou a água que começava a ferver sobre
brasas e encheu uma pequena malga.
m Bebe isto-disse ele.
Madenia foi apanhada desprevenida e, antes de poder pensar ou of tar, bebeu rapidamente o líquido. Ele retirou outra malga para Ayla bebeu ele próprio outra. Depois levantou-se e conduziu-as para o pe, queno lago.
Losaduna entrou lentamente na água, mas sem hesitação. seguiu-o e, sem pensar, Ayla foi atrás dela. Mas quando meteu o tro de água, retirou-o rapidamente. Estava quente! "Aquela água quase suficientemente quente para se poder cozinhar com ela", Só com grande concentração e força de vontade é a voltar a meter o pé dentro de água, mas ficou all parada antes de seguir dar mais um passo. Ayla já tinha tornado banho ou nadado águas frias de rios, ribeiros e lagos, mesmo em água gelada na ra que quebrar uma fina camada de gelo para poder entrar, e lavado com água aquecida pelo lume, mas nunca se metera dentro água quente.
Apesar de Losaduna as ter levado lentamente para o
para as deixar irem-se habituando ao calor, Ayla demorou muito m " chegar aos bancos de pedra. Mas, ao avançar para tiu-se envolvida por um agradável calor. Quando se sentou a água pelo queixo, começou a descontrair-se. Não era nada C vel, depois de uma pessoa se habituar, pensou. Na verdade, bem o calor.
Uma vez instalados e habituados à água, Losaduna disse a Ayla ta reter a respiração e mergulhar a cabeça na água. Quando ela voltou superfície, a sorrir, disse a Madenia para fazer o mesmo. Depois mergulhou ele e levou-as para fora do pequeno lago.
Dirigiu-se para a entrada tapada pela cortina e
madeira que estava junto desta. A malga estava cheia de um material
espesso, amarelo-claro, que se assemelhava a espuma pesada.
pSs a malga numa área pavimentada com pedras achatadas muito
tas umas às outras. Meteu a mão, tirou uma mão cheia de espuma e es
252
fregou-a no corpo, dizendo a Ayla para fazer o mesmo a Madenia e depois
a si própria e para não se esquecer do cabelo.
Enquanto se esfregava com o material macio e viscoso, o homem entoou uma cantilena sem palavras, mas Ayla ficou com a sensação de que a sua cantilena não era tanto um ritual como uma expressão de prazer. Ela estava a sentir a cabeça ligeiramente leve e pensou se seria da deco ção que tinham bebido.
Quando acabaram, tendo gasto toda a espuma, Losaduna pegou na malga de madeira, dirigiu-se para o pequeno lago e encheu-a de água, voltando depois para a área pavimentada de pedra e despejando-a por cima dele para tirar a espuma. Deitou mais duas malgas de água por cima de si, depois foi buscar mais e deitou-a por cima de Madenia e depois de Ayla. A água escorreu por entre as rachas entre as pedras, não indo para dentro do lago. Depois, Aquele Que Servia a Mãe levou-as de novo para o lago quente, recomeçando a cantar sem palavras.
Enquanto all ficaram sentados de molho, quase a flutuar na água mi neralizada, Ayla sentiu-se completamente relaxada. O pequeno lago quente fazia-lhe recordar os banhos de suar dos Mamutoi, mas talvez fosse ainda melhor. Quando Losaduna decidiu que já chegava, meteu a mão no sítio mais fundo e tirou uma rolha de madeira. Enquanto a água ia escorrendo pela vala de escoamento, o homem começou a gritar, o que chocou Ayla.
-- Espíritos maus, vão-se! -uas purificadoras da Mãe, limpem todos
os vestígios do toque de Charoli e dos seus homens. Impurezas, vão-se
com as águas, deixem este lugar. Quando esta água desaparecer, Made
nia ficará limpa, puriiícada. Os poderes da Mãe tornaram-na como era antes! -- E saíram da água.
Sem parar para pegarem na roupa, Losaduna conduziu-as para fora da tenda. Estavam tão quentes da água quente que o vento frio e a terra gelada sob os seus pés eram refrescantes. As poucas pessoas que estavam cá fora ignoraram-nos ou viraram a cabeça quando passaram. Com uma sensação desagradável, Ayla recordou-se subitamente de uma outra altura em que as pessoas a olhavam directamente mas se recusavam a vê-la. Mas aquilo não era como ser amaldiçoada pelo Clã. Percebia que as pessoas os viam. Apenas fingiam não ver, mais por cortesia que como uma maldição. O percurso arrefeceu-os rapidamente e, quando chegaram ao abrigo cerimonial, ficaram contentes por encontrarem cobertores finos e macios para se embrulharem e chá de menta para beberem.
Ayla olhou para as suas mãos que seguravam a malga. Estavam en gelhadas, mas absolutamente limpas. Quando começou a pentear o cabelo com um instrumento com vários dentes feito de osso, reparou que quando puxava o cabelo entre os dedos este fazia um ruído.
Que era aquela espuma macia e escorregadia?-- perguntou ela.-
Limpa como raiz de saponária, mas muito melhor.
AN A UEL
--É a Solandia que a faz n disse Losaduna.-Tem qualquer coisa
ver com cinzas de lenha e gordura, mas é melhor perguntar-lhe.
Quando acabou de pentear o seu cabelo, Ayla começou a pentear o de Madenia.
-- Como é que a água fica tão quente?
O homem sortiu.
m É uma Dádiva da Mãe aos Losadunai. Há várias nascentes quen
tes nesta região. Algumas são usadas por todos, em qualquer altura, mas
há outras que são mais sagradas. Consideramos esta a principal, aque-i
la de onde todas as outras provêm, portanto é a mais. sagrada de todas.
Faz que esta Caverna seja especialmente honrada. E por isso que é
difícil alguém ir-se embora, mas a nossa caverna está a ficar tão cheia
que um grupo de jovens está apensar em fundar uma nova caverna.
um sítio rio abaixo e na outra margem do qual gostam, mas é territdric
dos cabeças achatadas ou pelo menos muito perto do deles, portanto ainda
não decidiram o que vão fazer.
Ayla assentiu, sentindo-se tão quente e descontraída que não lhe ape tecia mexer-se. Reparou que Madenia também estava mais relaxada, já não estando tão hirta e retraída.
-- .Que Dádiva maravilhosa que é a água aquecida[ n disse Ayla. m E importante aprendermos a apreciar todas as Dádivas da Mãe-
disse o homem --, em especial a Sua Dádiva do Prazer.
Madenia contraiu-se.
-- A Sua Dádiva é uma mentira[ Não é prazer, apenas dor[ -- Era a primeira vez que ela falava.-Por mais que eu tivesse implorado, não pararam. Apenas se riram e quando um acabava outro começava! Quis morrer m disse com um enorme soluço.
Ayla levantou-se, foi para junto da rapariga e abraçou-a.
Era a minha primeira vez e eles não paravam[ Não paravam exclamou Madenia repetidas vezes.-Nenhum homem voltará a tocar em mim!
-- Tens direito de estar zangada. Tens direito de chorar. O que eles te
fzeram foi uma coisa terrível. Sei como te sentes-disse Ayla.
A jovem mulher afastou-se dela.
-- Como é que sabes como me sinto?-- disse, cheia de amargura e ira.
-- Houve uma vez que também representou dor e humilhação para mim n disse Ayla.
A jovem mulher mostrou-se surpreendida, mas Losaduna assentiu, como se subitamente tivesse entendido qualquer coisa.
Madenia disse Ayla num tom meigo --, quando eu tinha a tua idade, creio que era um pouco mais nova, mas pouco depois de ter inicia do o meu tempo de lua, também fui forçada. Foi a minha primeira vez. Não sabia que se destinava ao Prazer. Para mim foi apenas dor.
-- Mas foi apenas um homem? -- disse Madenia.
PLAN]CIES DE PASSAGEM
E-Foi apenas um homem, mas quis-me muitas vezes depois disso e
eu odiava-o! -- disse Ayla, surpreendida pela ira que ainda sentia.
-- Multas vezes? Mesmo depois de teres sido forçada da primeira vez?
Por que é que ninguém o impediu? perguntou Madenia.
Acreditavam que ele tinha esse direito. Achavam que eu estava errada por sentir tal ira e ódio e não compreendiam por que é que eu sentia dor. Comecei apensar se haveria algo de errado comigo. Passado algum tempo, deixei de sentir dor, mas também não senti Prazer. Não era feito por Prazer. Era feito para me humilhar e nunca deixei de o odiar.
Mas... deixei de me importar. Aconteceu uma coisa maravilhosa e, fizesse
ele o que fizesse, eu pensava noutra coisa, numa coisa que me desse felicidade,
e ignorava-o. Quando ele deixou de conseguir que eu sentisse
alguma coisa, nem sequer ira, creio que se sentiu humilhado e por fim
parou. Mas eu náo queria que mais nenhum homem me voltasse a tocar.
-- Nenhum homem me voltará a tocar! -- disse Madenia.
-- Os homens não são todos como o Charoli e o seu bando, Madenia. Alguns são como o Jondalar. Foi ele que me ensinou a alegria e os Prazeres da Dádiva da Mãe, e prometo-te que é uma Dádiva Maravilhosa.
Dá a ti própria a oportunidade de conheceres um homem como Jondalar
e também aprenderás a alegria.
Madenia abanou a cabeça.
-- Não! Não! É terrível!
-- Eu sei que foi terrível. Atd as melhores Dádivas podem ser utiliza
das de forma errada e o bem transformar-se em mal. Mas um dia hás-de
querer ser mãe e nunca serás mãe, Madenia, se não compartilhares a
Dádiva da Mãe com um homem disse Ayla.
Madenia estava a chorar e tinha as faces molhadas de lágrimas. -- Não digas Ìsso. Não quero ouvir isso. n Sei que não queres, mas é verdade. Não deixes que o Charoli estrague o teu bem. Não deixes que ele te roube a oportunidade de seres mãe. Celebra os teus Primeiros Ritos para aprenderes que pode não ser tão terrível. Eu finalmente aprendi, embora não tivesse havìdo uma reunião ou uma celebração para os comemorar. A Mãe encontrou forma de me dar essa alegria. Mandou-me o Jondalar. ADádiva é mais que Prazeres; Made nia, muito mais, se for compartilhada com ternura e amor. Sea dor que eu senti da primeira vez tivesse sido o preço que eu tinha de pagar, teria de born grado pago esse preço muitas vezes pelo amor que conheci. To sofreste tanto que talvez a Mãe também te dê alguém especial, se Lhe deres oportunidade para isso. Pensa nisso, Madenia. Não digas não aid pensares nisso.
Ayla acordou sentindo-se mais descansada e recuperada do que se
lembrava de alguma vez se ter sentido. Sortiu preguiçosamente para si
PLAN IC IE5 DE PASSAGEM
JEAN A UEL
própria e estendeu a mão para Jondalar, mas ele já se tinha levantado
saído. Ayla sentiu-se momentaneamente desapontada, depois lembrou.
-se de que ele a tinha acordado para lhe recordar "
e alguns dos caçadores e paralhe voltar a perguntar se queria ir com ele
Ela recusara o convite que já lhe tinha sido feito na noite anterior
tinha outros planos para aquele dia e tinha ficado na cama a
luxo de se voltar a aconchegar nas peles quentes.
Desta vez, decidiu levantar-se. Espreguiçou-se e passou as mãos cabelo, encantada com a sua suavidade sedosa. Solandia tinha do ensinar-lhe como se fazia a espuma que a pusera tão limpa e com cabelo tão macio.
O pequeno-almoço era composto pela mesma comida que
comido desde que lá tinham chegado, um caldo com pedaços de peixe água doce seco, pescado no início do ano no Grande Rio Mãe.
Jondalar tinha-lhe dito que a Caverna não tinha grandes reservas comida e que era por isso que iam à caça, embora não fosse nem i carne que a maioria das pessoas desejava. Não estavam a passar fome, nem sequer tinham falta de comida m tinham comida suficiente m, mas estavam tão próximos do fim do Inverno que a variedade era já limitada.:
Toda a gente estava cansada de corner carne e peixe s
ca seria uma variante, embora não os satisfizesse por completo.
ansiosos por verdes e rebentos de legumes, e por frutas novas, os primeiros
produtos da Primavera. Ayla tinha ido
volta da caverna, mas os Losadunai tinham lá andado durante toda a estação
e não havia lá nada para apanhar. Ainda tinham uma
zoável de gordura, que os impedia de entrar em carência de proteínas
fornecia calorias suficientes para os manter saudáveis, embora
normalmente acrescentada às sopas que eram feitas para refeições posteriores.
A festa que faria parte da Cerimónia em Honra da Mãe no
seria parca. Ayla já decidira contribuir com o resto do seu sal e algumas ervas para temperar e dar mais sabor, assim como valiosos nutrientes; as vitaminas e os sais minerais de que os seus corpos necessitavam, que era a causa principal dos seus desejos. Solandia tinha-lhe mostrado a sua pequena provisão de bebidas fermentadas, sobretudo cerveja de bétula,i e disse que tornaria festiva a ocasião.
A mulher também ia usar parte da gordura que tinha guardada
fazer um novo fornecimento de sabão. Quando Ayla manifestou a sua
preocupação por estarem a usar um alimento que era necessário, Solandia
disse que Losaduna gostava de o usar para as cerimónias e afirmou
que já quase que não tinha sabão. Enquanto a mulher mais velha trata
va das suas crianças e preparava tudo, Ayla saiu com o Lobo para ver se a Whinney e o Corredor estavam bem e para passar algum tempo com
eles.
Solandia foi à grande abertura da caverna para dizer a Ayla que estava pronta, mas ficou all durante algum tempo a observar a visitante. Ayla acabara de regressar de um galope através do campo e estava a rir -see a brincar com os animais. Ocorreu à mulher mais velha, pela forma como Ayla se comportava com eles, que os animais eram como se fossem filhos dela.
Alguns jovens da Caverna também a estavam a observar, incluindo duas das crianças de Solandia. Estavam a gritar e a chamar o Lobo, que olhou para Ayla, obviamente ansioso por ir para ao pé delas mas esperan do pela autorização dela. Ayla viu a mulher à entrada da caverna e apres sou-se a ir ao seu encontro.
-- Estava com esperança de que o Lobo pudesse ficar a entreter o bebé
m disse Solandia. mA Verdegia e a Madenia vêm-nos ajudar, mas o pro
cesso exige concentração.
m Oh, Mãe m exclamou Dosalia, a. rapariga mais velha. Tinha sido ela
que tinha estado a chamar o lobo. mE sempre o bebé que fica com ele para brincar.
m Born, se quiseres ser to a tomar conta do bebé...
A rapariga franziu a testa mas depois sorriu.
m Podemos levá-lo lá para fora? Não esta a nevar e eu visto-lhe roll
pa quente.
m Acho que sim m disse Solandia.
Ayla olhou para o lobo que estava a olhar para ela com expectativa. m Toma conta do bebé, Lobo m disse ela. m Ele latiu, aparentemente respondendolhe.
m Tenho boa gordura de mamute que arranjei no Outono passado m
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
m Losaduna disse-me que usavas gordura e
m E água m acrescentou Solandia.
-- Parece-me uma estranha combinação.
m Sim, é.
-- Como é que decidiste misturar essas coisas? Quero dizer, como é
o fizeste, da primeira vez, isto d?
Solandia sorriu.
m Na realidade foi um acidente. Tínhamos ido à caça e
uma fogueira ao ar livre, numa lareira numa vala funda onde
a assar carne de mamute que tinha bastante gordura. Começ
muito. Eu agarrei a carne, com o espeto e tudo, e corri a
Assim que deixou de chover, voltámos para a caverna
de uma malga de madeira de cozinhar e fui buscá-la no dia seguinte.
"A lareira estava cheia de água e tinha uma coisa que parecia espuma espessa a flutuar à superfície. Noutras circunstâncias não teria pres tado atenção, mas deixei cair uma concha lá dentro e tive de meter a mão para atirar. Depois fui ao rio passá-la por água. A espuma era escorregadia e suave, como a de raiz de saponária, mas ainda mais, e as minhas i mãos ficaram limpíssimas. E a concha também. Agordura saiu toda. Voltei atr.ás, pus a espuma na malga e trouxe-a comigo. -- E assim tão fácil de fazer? -- perguntou Ayla. m Não, na realidade não é. Não é que seja difícil, mas exige uma certa prática-disse Solandia.-Da primeira vez, tive sorte. Devia estar tudo como devia ser. Desde então que tenho vindo a fazer a espuma, mas às vezes não sai bem.
Como é que a fazes? Deves ter desenvolvido formas para sair bem a maioria das vezes.
Não é difícil de explicar. Derreti gordura limpa.., qualquer gordura serve, mas fica diferente com as várias gorduras. Gosto mais de usar: gordura de mamute. Depois pego em cinzas de madeira, misturo-as com água quente e deixo-as de molho durante algum tempo. Depois passo-as por uma esteira fina, ou por um cesto com buracos no fundo. A mistura que lixivia é forte. Descobri que pode queimar os olhos ou a pele. É preciso passar as mãos por água logo a seguir. Born, depois mistura-se isso na gordura. Se se tiver sorte, o resultado é uma espuma macia que limpa tudo, até couro.
-- Mas nem sempre se term sorte-disse Verdegia.
-- Não. Há muitas coisas que podem correr mal. Por vezes mexe-se, mexe-se e mexe-se e não se consegue misturar as coisas. Quando isso acontece, às vezes ajuda aquecer um pouco a mistura. Por vezes separa -see fica-se com uma camada demasiado forte e outra demasiado gordurosa. Por vezes talha e forma grumos que não estão bem misturados. Umas vezes sai mais dura que outras, mas isso não é mau. De qualquer forma, tende a endurecer com o tempo.
m Mas por vezes resulta, como da primeira vez m disse Ayla.
--Uma das coisas que aprendi é que a gordura e o líquido das cinzas term de ter a mesma temperatura que a pele do nosso pulso-disse Solandia.
-- Quando se sa.lpica um pouco no pulso, não deve estar nem mais fria
nem mais quente. E mais diffcil de perceber qual é a temperura do líquido
das cinzas, pois queima um pouco e depois é preciso passar logo água
fria. Se queimar demasiado, ficamos a saber que é preciso juntar mais
água. Normalmente não queima muito, mas não gostaria que me entras
se para os olhos. Ficam a arder só de estarmos demasiado perto dos vapores.
-- E também faz arder! -- disse Madenia. m É verdade-disse Solandia.-Também faz arder. É por isso que normalmente you para o meio da caverna misturá-la, muito embora prepare tudo aqui.
Mãe! Mãe! Vem depressa!- Neladia, a segunda filha de Solandia, entrou a correr e voltou a sair.
-- Que é que foi? Aconteceu alguma coisa ao bebé? m disse a mulher, saindo a correr atrás dela. Todos os outros também correram para a entrada da caverna.
-- Olhem! -- disse Dosalia. Olharam todos lá para fora. O bebé está a andar[
Lá estava Micheri, de pé junto do lobo, agarrado ao seu pêlo, com um enorme sorriso de satisfação, a dar passos inseguros enquanto o Lobo ia avançando lenta e cuidadosamente. Todos sortiram de alívio e depois de satisfação.
O lobo está a sorrir? m perguntou Solandia. Parece-me que está.
Parece tão contente consigo próprio que está a sorrir.
Também acho que está disse Ayla. Já me tinha esquecido de que ele sabia sorrir.
--Não é apenas para a cerimónia, Ayla-dizia Losaduna. m Usamos
muitas vezes as águas quentes só para nos pormos de molho. Se quiseres
levar o Jgndalar lá só para se descontraírem, não temos qualquer objecção.
As Aguas Sagradas da Mãe são como as Suas outras Dádivas aos
Seus Filhos. E suposto serem usadas e apreciadas. Exactamente como este
chá que fizeste deve ser apreciado acrescentou ele, erguendo a sua
malga.
Quase toda a Caverna, aqueles que não tinham ido caçar, estava sentada
em volta da lareira na parte central aberta da caverna. A maioria
das refeições eram pouco organizadas, excepto em ocasiões especiais. As
pessoas por vezes comiam separadamente, em grupos familiares, e por
vezes com outros. Daquela vez, aqueles que tinham ficado na caverna
tinham parado para corner ao princípio da tarde e tinham-no feito todos
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juntos, em grande parte por estarem todos interessados nos visitantes
refeição consistia numa sopa suculenta feita com carne magra e seca
veado, enriquecida com gordura de mamute, que a tornava num"
ção suficientemente alimentícia. Estavam a terminar a refeição
que Ayla tinha feito e todos tinham comentado como era born.
-- Quando eles voltarem, talvez utilizemos o lago. Acho que ele tará de ficar de molho na água quente e eu gostaria de compartilhar is com e].e w disse Ayla.
--E melhor avisá-la, Losaduna-disse uma mulher, com um ..
so entendido. Tinha sido apresentada como a companheira de Laduni-Avisar-me de quê, Laronia? -- disse Ayla.
-- Por vezes é preciso escolher entre as Dádivas da Mãe.
-- Que é que queres dizer com isso?
--Ela quer dizer que as/-uas Sagradas podem descontrair em dema. sia-disse Solandia.
-- Continuo a não compreender-disse Ayla, franzindo a testa.
que estavam todos a falar no assunto e este envolvia um certo,
de humor.
-- Se levares o Jondalar para ficar de molho nas águas quentes, eh
ficará tão descontraído que a sua virilidade não terá forç
degia, mais directa que os outros-e talvez demore al
poder voltar a ficar de pé. Portanto não esperes demasiado dele
estar de molho. Pelo menos não de imediato. Alguns homens recu.,
a ficar de molho nas Águas Sagrad.as da Mãe por essa razão. Têm medoi
que a sua virilidade se esgote nas Aguas Sagradas e nunca mais volte.
-- Isso pode acontecer? -- perguntou Ayla, olhando para
-- Que eu tivesse visto ou tido conhecimento, não-disse o-Embora o oposto pareça ser verdade. Passado algum tempo,
homem fica mais ansioso, mas creio que isso é por se sentir,
e bem.
-- Senti-me muito bem depois de ter estado de molho e dormi
bem, mas acho que não foi só a água-disse Afia.-Terá sido do
O homem sortiu.
Foi um ritual importante. Num ritual há sempre mais
coisa.
-- Born, estou pronta a voltar às Águas Sagradas, mas creio esperar pelo Jondalar. Achas que os caçadores voltarão em breve?
--Tenho a certeza que sim-disse Laronia. m O Laduni sabe que há coisas a fazer antes do Festival da Mãe, amanhã. Acho que não teñam ido hoje se ele não estivesse tão ansioso por ver a arma de caça de longo alcance do Jonda]ar. Como é que ele lhe chama?
-- Lançador de lanças e funciona muito bem-disse Ayla --, mas, como tudo, exige prática. Praticámos muito durante esta Viagem.
m To usas o lançador de lanças dele? perguntou Madenia.
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
J Tenho o meu-disse Ayla.-Gostei sempre de caçar.
-- Por que é que não foste com eles hoje? -- perguntou a rapariga. mPorque queria aprender a fazer aquele material de limpeza. E tenho roupa que quero limpar e remendar m disse Ayla, levantando-se e diri gindo-se para a tenda cerimonial. Depois parou.-Também tenho uma coisa que gostava de mostrar a todos-disse.-Alguém já viu um puxa dor de fio? -- Viu expressões intrigadas e cabeças a abanar.-Se espe tarem um instante, you buscar o meu e mostro-lhes.
Ayla voltou do espaço de habitação com o seu estojo de costura e algu
mas roupas que queria arranjar. Com toda a gente à sua volta para ver
mais uma coisa espantosa trazida pelos visitantes, ela fitou um pequeno
cilindro do estojo-tinha sido feito de um osso leve e oco de uma ave-e sacudiu-o para tirar duas agulhas de marfim. Deu uma a Solandia.
A mulher examinou atentamente a miniatura muito polida de um pau. Tinha sido aguçada para formar um bico numa das extremidades, assemelhando-se a uma sovela. A outra extremidade era mais grossa e, surpreendentemente, tinha um orifício muito pequeno que la de um lado ao outro. Pensou nisso e, subitamente, vislumbrou para que servia.
wDisseste que era um puxador de fio?w disse, passando-o a Laronia.
-- Sim, vou-te ensinar a utilizá-lo disse Ayla, separando um fio de tendão de uma meada de fios mais grossos. Molhou a extremidade, alisou -a de forma a ficar pontiaguda e esperou que secasse. O fio de tendão endureceu ligeiramente e manteve a forma. Depois passou-o pelo buraco na ponta da fina agulha de maním e pS-la de lado por instantes. Depois, pegou num pequeno instrumento de pedreneira com um bico afiado e uti lizou-o para fazer furos na orla de uma peça de vestuário cujos pontos se tinham partido, alguns deles rasgando a pele. Os novos furos estavam ligeiramente atrás dos anteriores.
Depois de ter feito os furos para uma nova costura, Ayla começou a demonstrar como se usava o novo instrumento. Meteu a extremidade afiada da agulha de marfim pelos furos feitos na pele e, agarrando nela, passou o fio pelo buraco, fazendo o movimento final com um floreado.
-- Ohhh! -- As pessoas sentadas em volta, especialmente as mulheres, deram um suspiro colectivo.-Olhem para aquilo! Não teve de puxar o fio para fora, passou-o logo de um lado ao outro. Posso experimentar?
Ayla passou a peça de roupa em volta para as deixar experimentar, explicando-lhes e mostrando-lhes e dizendo-lhes como lhe ocorrera a ideia e como toda a gente no Acampamento do Leão a tinha ajudado a desenvolver e a fazer o instrumento.
-- É uma sovela muito bem feita-comentou Solandia, examinan doa atentamente.
-- Foi Wymez, do Acampamento do Leão, que a fez. Também fez o furador que foi usado para fazer o furo por onde passa o fio-disse Ayla. -- E um instrumento muito difícil de fazer-disse Losaduna.
26/
JEAN A UEL
PLAN [C IES DE PASSAGEM
-- O Jondalar diz que o Wymez é o único artífice de pedreneira
conheceu que é tão born como o Dalanar e, possivelmente, até um
melhor.
--Vindo dele é um grande elogio- disse Losaduna.-Toda a
reconhece que Dalanar é o mestre artífice da pedra. A sua perícia
cida até do outro lado do glaciar, entre os Losadunai.
-- Mas o Wymez também é um mestre.
Viraram-se todos surpreendidos ao ouvirem a voz que tinha acabade de falar e viram Jondalar, Laduni e alguns outros a entrar na trazendo um ibex que tinham morto.
Tiveram sorte[ disse Verdegia. Se ninguém se importar, gostaria de ficar com a pele. Andava com vontade de ter uma pele de ibex para fazer a pele de dormir para o Matrimonial de Madenia. Queria apresentar a sua pretensão antes que mais alguém o fisesse.
-- Mãe! exclamou Madenia, embaraçada. Como é que podes falar em Matrimonial?
A Madenia term de ter os seus Primeiros Ritos antes de se pensar num Matrimonial-disse Losaduna.
--Por mim, ela pode ficar com a pele-disse Laronia , seja para que
fim for. Sabia que havia um certo egoísmo no pedido de Verdegia. Não
era frequente caçarem aquele tipo de cabra selvagem e a sua pele era rara
e portanto valiosa, sobretudo no final do Inverno, depois de toda uma
estação em que se tornara espessa, mas antes de a despelagem da Primavera lhe dar mau aspecto.
Também não me importo. A Verdegia pode ficar com ela-disse Solandia.-A carne de ibex fresca vai saber bem, independentemente de quem ficar com a pele, e será especialmente agradável para o Festival da Mãe.
Váños outros assentiram e ninguém se opôs. Verdegia serriu e tentou não parecer demasiado satisfeita consigo própria. Ao apresentar o seu pedido em primeiro lugar, garantira a posse da valiosa pele, exactamente como esperara.
-- O ibex fresco também ficará bem com as cebolas secas que trouxe e também tenho mirtilos.
Voltaram todos a olhar para a entrada da caverna. Ayla viu uma jovem mulher que ainda não conhecia, que trazia um bebé e uma garotinha pela mão, seguida por um jovem homem.
-- Filonia! -- exclamaram em coro várias pessoas.
Laronia e Laduni correram para ela, seguidos por todo o resto da Caverna. Ea evidente que a jovem mulher não era uma estranha. Depois de vários abraços calorosos de saudação, Laronia pegou no bebé e Laduni pegou na garotinha que correra para ele e pô-la aos ombros. Ela olhou para toda a gente com um sorriso de alegria.
Jondalar estava ao lado de Ayla a sorrir àquela cena de felicidade.
-- Aquela garotinha podia ser minha irmã! -- disse ele.
--Filonia, olha quem cá está-disse Laduni, conduzindo aj ovem mulher na sua direcção.
-- Jondalar? Es to?-- disse ela com uma entoação de surpresa.-Pen sei que nunca mais voltasses. Onde está o Thonolan? Quero que ele conheça uma pessoa!
--Filonia, lamente. Ele agora anda no outro mundo-disse Jondalar.
-- Oh, lamente saber isse. Queria que ele conheŒesse a Thonolia.
Tenho a certeza de .que é uma criança do seu espírito.
--Também eu. E igual à minha irmã e eles nasceram ambos do mesmo lar. Gostava que a minha mãe a pudesse ver, mas creio que ficará contente por saber que resta alguma coisa dele neste mundo, uma criança do seu espírito-disse Jondalar.
A jovem mulher reparou em Ayla.
-- Mas não voltaste sozinho-disse ela.
-- Não, não voltou-disse Laduni --, e espera até vetes alguns dos seus outros companheiros de viagem. Não vais acreditar.
-- E vieram mesmo na altura certa. Amanhã vamos ter um Festival da Mãe-disse Laronia.
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37
As gentes da Caverna das Nascentes Quentes Sa
com grande entusiasmo o Festival para Honrar a Mãe. No auge do verno, quando a vida era extremamente maçadora e entediante, Jondalar tinham chegado e provocado suficiente entusiasmo para mular a Caverna durante muito tempo, histórias que resultariam da sua visita, e o interesse manterse-ia durante muitos anos. Desde o momento em que se tinham aproximado sentados no dorso de cavalos e seguidos pelo Lobo Que Gostava dei Crianças, toda a gente se agitara em especulações. Eles tinham histSriasi maravilhosas para contar das suas viagens, cativantes ideias novas a compartilhar e instrumentos fascinantes como lançadores de lanças e puxadores de fio para lhes mostrar.
Agora toda a gente falava em algo de mágico que a mulher tinha e que lhes mostraria durante a cerimónia, qualquer coisa a ver com fogo, como as suas pedras de arder. Losaduna tinha falado nisso durante a refeição da noite. Os visitantes também tinham prometido fazer-lhes uma demonstração do lançador de lanças no campo em frente à caverna, para toda a gente ver as suas potencialidades, e Ayla ia mostrar o que se podia fazer com uma funda. Mas nem as demonstraçSes prometidas lhes espicaçavam tanto a curiosidade como o mistério que envolvia fogo.
Ayla descobriu que estar constantemente no centro das atenções podia ser tão esgotante, embora de uma forma diferente, como viajar constantemente. Durante toda a noite, as pessoas tinham-na cravado de perguntas ansiosas e pedido a sua opinião e ideias sobre assuntos sobre os quais não tinha conhecimentos. Quando o sol se pôs, estava cansada e não lhe apetecia falar mais. Pouco depois de ficar escuro, deixou o grupo que estaca reunido em volta da fogueira na parte central da caverna para ir para a cama. OLobo foi com ela e Jondalar foi ter com ela pouco depois, deixando a Caverna à vontade para comentar e especular sobre a sua ausência.
Já na zona de dormir que lhes tinha sido destinada dentro do espaço
cerimonial e de habitação de Losaduna, fizeram alguns preparativos
para o dia seguinte e depois meteram-se nas peles de dormir. Jondalar
abraçou-a e ainda pensou em fazer os avanços iniciais que Ayla considefava
como sendo o seu "sinal" para copularem, mas ela parecia nervosa
PLAN/CIES DE PASSAGEM
e inquieta e ele queria poupar-se. Nunca se sabia com o que contar num
Festival da Mãe e Losaduna tinha insinuado que talvez fosse boa ideia
que ele se abstivesse e esperasse parahonrar a Mãe depois do ritual especial
que tinham planeado.
Tinha falado com Aquele Que Servia a Mie sobre a sua preocupação relativamente à sua capacidade de ter crianças nascidas do seu lar, sea Grande Mãe consideraria o seu espírito aceitável para uma nova vida. Tinham decidido fazer um ritual pñvado antes do Festival para pedir à Mãe a Sua ajuda.
Ayla ficou acordada até muito depois de ouvir a respiração pesada do sono do homem ao seu lado, cansada mas sem conseguir adormecer. Mudou frequentemente de posição, tentando não incomodar Jondalar com as suas reviravoltas. Embora tivesse dormitado, o sono não veio e os seus pensamentos perderam-se em estranhos padrões enquanto ela tinha períodos em que estava semiacordada, a imaginar, e períodos de sonhos inquietos...
O campo estaca verdejante com a erva nova da Primavera, colorido
com os tons variados de flores coloridas. À distância, a face escarpada de
um branco-marfim de uma parede rochosa, marcada por cavernas e com
manchas negras em volta e por cima de grandes saliências rochosas, quase
cintilava à luz que incidia sobre ela do alto do azul límpido. A luz do
sol reflectia-se no rio que corria junto à sua base, abraçando-a e depois
afastando-se, acompanhando em linhas gerais os contornos da parede
sem a seguir exactamente.
Mais ou menos a meio do campo que se estendia pelo terreno plano para
ld do rio, estaca um homem a observá-la, um homem do Clã. Depois
virou-se e dirigiu-se para o penhasco, apoiado a um cajado e a arrastar
um pé, no entanto a andar bastante depressa. Embora não dissesse nem fizesse o sinal de qualquer palavra, ela sabia que ele queria que o seguis
se. Apressou-se na sua direcção e, quando estacam lado a lado, ele
olhou-a de relance com o seu olho são. Era de um castanho liquido, cheio
de compaixão e poder. Ela sabia que a sua capa de pele de urso cobria o
toco de um braço que tinha sido amputado no cotovelo quando era rapaz.
A sua avó, curandeira de reconhecida reputação, tinha cortado o membro
paralisado e inútil quando este gangrenou em consequência de ter sido
ferido por um urso das cavernas. Creb tinha perdido o olho nesse mesmo
recontro.
Ao aproximarem-se da parede rochosa, ela reparou numa estranha
formação perto do cimo de uma saliência. Um pedregulho comprido e
achatado, em forma de coluna, mais escuro que o tom leitoso do calcário
em volta, estaca pendente como se tivesse congelado all quando começara
a cair. A pedra dava a sensação de poder cair a qualquer momento, in265
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JEAN A UEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
quietando-a, mas ela sabia que havia qualquer coisa de m
te em relação àquela pedra; qualquer coisa da qual ela se devia qualquer coisa que ela tinha feito, ou era suposto fazer-ou não to fazer.
Fechou os olhos e tentou lembrar-se. Viu escuridão,
espessa, aveludada e palpável, com tal ausência de luz, caverna no interior de uma montanha pode haver. Un luz apareceu à diståncia e ela foi às apalpadelas ao passagem em direcção a ela. Ao aproximar-se, viu Creb com outros -urs e subitamente sentiu um enorme medo. Não queria aquela ção e abriu rapidamente os olhos.
E deu por si na margem do pequeno rio que serpenteava ao
base da parede rochosa. Olhou para o outro lado e viu Creb a subir carreiro em direcção à formação de rocha pendente. Ela tinha fwado trds e agora nem sequer sabia como atravessar o rio para voltar junto dele. Chamouo:
-- Creb, desculpa. Não quis ir atrás de ti para aquela caverna.
Ele virou-se e voltou a chamá-la com um gesto, fazendo-lhe sinal com grande urgência.
m Depressa-assinalou do outro lado do rio, que se tinha
mais largo e mais fundo e cheio de gelo.-Não esperes
O gelo estava a alastrar, afastando-o dela.
-- Espera por mim! Creb, não me deixes aqui! --gritou ela.
--Ayla! Ayla, acorda! Estás a sonhar outra vez-disse Jondalar, aba
nando-a suavemente.
Ela abriu os olhos e sentiu uma enorme sensação de perda e um estranho e intenso medo. Ao olhar para a silhueta do homem ao seu lado, reparou nas paredes cobertas de peles do espaço de viver e num bñlho avermelhado na lareira. Estendeu-lhe os braços e agarrou-se a ele.
-- Temos de nos apressar, Jondalar! Temos de ir já embora-disse ela.
E iremos-disse ele.-Assim que for possível. Mas amanhã é o Festival da Mãe e depois temos de decidir o que precisamos para atravessar o gelo.
Gelo! -- exclamou ela.-Temos de atravessar um rio de gelo! Sim, eu sei-disse ele, abraçando-a com força e tentando acalmá--la.-Mas temos de planear como o vamos fazer com os cavalos e com o Lobo. Vamos precisar de comida e temos de arranjar forma de levarmos água para todos nós. Lá em cima, o gelo está sólido de tão gelado.
O Creb disse para nos apressarmos. Temos de nos ir embora!
--Assim que pudermos, Ayla. Prometo-te, assim que pudermos- disse Jondalar, sentindo uma ligeira preocupação. Precisavam de partir e atravessar o glaciar o mais depressa possível, mas não podiam partir antes do Festival da Måe, pois não?
Embora pouco aquecesse o ar gélido, o sol do fim de tarde irrompeu por
entre os ramos das árvores, o que quebrou os raios cintilantes mas não
bloqueou a encandeante luz a oeste. A este, os picos da montanhas cobertos
pelo glaciar reflectiam a brilhante esfera que se afundava nas nuvens
cor de fogo, ficando envoltos numa luz rosada que parecia emanar de dentro
do gelo. A luz não tardaria a desaparecer, mas Jondalar e Ayla ainda
estavam no campo em frente à caverna, embora ele estivesse a observar
a cena como todos os outros.
Ayla respirou fundo e reteve a respiração, pois não queria prejudicar a visão com a nuvem de vapor da sua respiração, enquanto apontava cuidadosamente. Ajeitou as duas pedras que tinha na mio, colocou uma delas na bolsa da funda, gírou-a e fez o lançamento, largando uma das pontas. Depois, começando com a ponta que ainda tinha na mão, passou a funda rapidamente pela mão para agarrar a outra ponta, colocou a segunda pedra na bolsa, girou-a e lançou-a. Conseguialançar duas pedras mais rapidamente que qualquer pessoa podia imaginar.
-- Oooohh! Olhem para aquilo! --As pessoas que tinham estado à entrada da caverna durante a demonstração dos lançamentos com o lançador de lanças e com a funda soltaram a respiração que também elas tinham estado a reter e fizeram comentários de surpresa e apreço.-Ela partiu as duas bolas de neve do outro lado do campo. Achei que ela era boa com o lançador de lanças, mas ainda é melhor com a funda.
-- Ela disse que era preciso prática para lançar lanças com precisão, mas quanto é que ela terá praticado para lançar pedras daquela maneira? w disse Larogi.-Creio que seria mais fácil aprender a usar o lançador de lanças.
A demonstração terminara, pois estava a cair a noite, e Laduni pôs -se à frente das pessoas e anunciou que a festa estava quase pronta.
-- Será servida na lareira central mas, primeiro, Losaduna dedicará o Festival à Mãe no Lar Cerimonial e Ayla fará outra demonstração. O que ela vos vai mostrar é notável.
Enquanto as pessoas, muito excitadas, iam entrando na caverna, deixando
a grande abertura, Ayla reparou que Madenia estava a falar com
algumas amigas e ficou contente por ver que estava a sorrir. Muitas
pessoas tinham comentado como estavam contentes por ver que ela se
juntava às actividades do grupo, embora ainda se mostrasse tímida e
reservada. Ayla não pôde deixar de pensar na diferença que fazia quando
as pessoas se importavam umas com as outras. Ao contrário da sua experiência,
em que toda a gente sentira que Broud tinha tido direito a forçá-la sempre que queria e achava que ela era estranha por resistir a ele e
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YEAN A UEL
odiá-lo, Madenia tinha o apoio da sua gente. Ficaram do lado dela.
tavam zangados com aqueles que a tinham forçado, compreendiam a
vação por que ela passara e queriam corrigir o mal que
Depois de toda a gente estar instalada no espaço delimitado do Cerimonial, Aquele Que Servia a Mãe saiu das sombras e atrás de uma fogueira acesa rodeada por um círculo de I quase absolutamente iguais. Pegou num pequeno pau com uma mergulhada em resina, levou-o ao lume atd pegar fogo e depois e dirigiu-se para a parede rochosa da caverna.
Como o corpo dele lhe tapava a visão, Ayla não conseguiu ver o que estava a fazer, mas quando uma luz brilhante se espalhou percebeu que tinha acendido qualquer coisa, provavelmente uma rina. Ele fez alguns gestos e começou a entoar uma litania já familiar, mesma repetição dos vários nomes da Mãe que entoara durante o de purificação de Madenia. Estava a invocar o espírito da Mãe.
Quando recuou e se virou para a assistência, Ayla viu que e
de uma lamparina de pedra que acendera num nicho na parede da
na. A chama lançava sombras bruxuleantes, maiores que a realidade, uma pequena dunai e acentuava a figura perfeita esculpida de uma mi
lher com atributos maternais substanciais m grandes seios e
arredondada, não grávida mas ostentando reservas de gordura.
-- Grande Terra Mãe, Antepassada Original e Criadora de Toda Vida, os Teus filhos vieram mostrar o seu apreço, agradecerTe as Tuas Dádivas, grandes e pequenas, para te Honrar-e na e as pessoas da Caverna juntaram e pedras, os ossos da terra que dåo o seu espírito para alimentar o viemos honrar-Te. Pelo solo que dá o seu espírito para alimentar as tas que crescem, viemos honrar-Te. Pelas plantas que crescem e dão o espírito para alimentar os animais, viemos honrar-Te. Pelos animais c dão o seu espírito para alimentar os carnívoros, viemos honrar-Te. E todos eles que dão o seu espírito para alimentar e vestir e filhos, viemos honrarTe.
Toda a gente sabia as palavras. Atd Jondalar
ticipado, embora dissesse as palavras em Zelandonii. Não tardou que
própria estivesse a repetir a parte "viemos honrar-Te" e
}3esse o resto, sabia que era importante e, depois de o ouvir, sabia nunca mais o esqueceria.
-- Pelo Teu grande e cintilante filho que alumia o dia e o Teu companheiro brilhante que guarda a noite, viemos honrar-Te. Pelas Tuas águas que dão vida, que enchem os rios e os mares e caem como chuva dos céus, viemos honrar-Te. Pela Tua Dádiva da Vida e pela TUa bênção às mulheres que lhes permite dar nova vida como To fazes, viemos honrar-Te.
Pelos homens, que foram feitos para ajudar as mulheres a suston
tar a nova vida e cujo espírito To tomas para ajudar as mulheres a criá-i
PLAN[CIES DE PASSAGEM
-la, viemos honrar-Te. E pela Tua Dádiva dos Prazeres que homem e mulher
têm um com o outro e que abrem a mulher de forma a poder dar àluz,
viemos honrar-Te. Grande Terra Mãe, os Teus filhos juntam-se esta
noite para Te honrar.
O silêncio que encheu a caverna quando a invocação conjunta terminou era profundo. Depois um bebé chorou e o seu choro pareceu absolutamente adequado.
Losaduna recuou e pareceu dissolver-se nas sombras. Depois, Solandia
levantou-se, pegou num cesto que eståva ao pé do Lar Cerimonia] e
espalhou cinzas e terra sobre as chamas na lareira redonda, apagando o
fogo cerimonial e mergulhando a caverna numa escuridão quase total. Ouviram-se alguns oohhs e aahhs de surpresa da multidão enquanto as
pessoas se inclinaram para a frente cheias de expectativa. A única luz
provinha da pequena lamparina a óleo que ardia no nicho, que fazia que
as sombras bruxuleantes da figura da Mãe parecessem maiores, até
derem a sensação de encherem todo o espaço. Embora o lume nunca
tivesse sido apagado daquela maneira, Losaduna foi sensível ao efeito
criado.
Os dois visitantes e as pessoas que viviam no Lar Cerimonia] já tinham treinado a encenação e cada um sabia o que fazer. Quando todos se acalmaram, Ayla dirigiu-se para a área escurecida, para uma outra lareira. Tinha sido decidido que as capacidades da pedra de fogo seriam demonstradas de forma a revelar toda a extensão das suas capacidades e com o efeito mais dramático se Ayla acendesse uma outra fogueira o mais depressa possível depois de o fogo cerimonia] ter sido apagado. Um montinho de acenda]ha de combustão rápida, feita de musgo seco, tinha sido colocado na segunda fogueira, havendo gravetos e galhos já prepafados ao lado e algumas achas maiores para arderem. Depois seria acres centado carvão castanho e alguns troncos maiores para alimentar a fogueira.
Enquanto treinavam, descobriram que o vento ajudava a aumentar a faísca, sobretudo a corrente de ar que entrava quando a cortina de pele do espaço Cerimonial era aberta e Jonda]ar estava junto dela. Ayla ajoelhou-se, com a pirite de ferro numa mão e um pedaço de pedreneira na outra, bateu uma contra a outra, criando uma faísca que podia ser facilmente vista na área escura. Voltou a bater uma contra a outra, segurando nelas a um ângulo ligeiramente diferente, o que fez que a faísca caísse na acendalha.
Esse era o sinal para Jondalar, que abriu a porta de entrada. Quando
a corrente de ar frio entrou, Ayla, inclinando-se de forma a ficar bem
perto da faísca que fumegava no fumo seco, soprou suavemente. Subita
mente, o musgo pegou fogo e envolveu a acendalha, provocando um coro
de comentários de surpresa e excitação. Depois foram acrescentados
ga]hos e gravetos. Na lareira abrigada, a chama lançou um clarão aver269
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JEAN A UEL
melhado que iluminou o rosto de todos, parecendo maior do que na realidade
era.
As pessoas começaram a falar, rápida e excitadamente, cheias de panto, e isso aliviou a tensão que Ayla provocara com o suspense. Daí instantes m à Caverna pareceu quase instantaneamente ma fo tava acesa. Ayla ouviu alguns dos comentários.
m Como é que ela fez aquilo? Como é que alguém consegue fazer
me tão depressa? m Uma segunda fogueira foi acendida a partir da meira do Lar Cerimonial; depois, Aquele Que Servia a Mãe col tre as duas áreas de chamas brilhantes e falou.
mA maioria das pessoas que não viu isto não acredita que as ardem, a menos que isso lhes seja mostrado, mas as pedras que ardem a dádiva da Terra Mãe aos Losadunai. Os nossos visitante beram uma dádiva, uma pedra de fogo; uma pedra que faz lume se lhe bate com um pedaço de pedreneira. Ayla e Jondalar estão dispos: tos a dar-nos um pedaço de pedra de fogo, não só para a utilizarmos, mas também para podermos reconhecer outras se as encontrarmos. Em troca,: querem comida suficiente e outras coisas de que precisam para atravessar o glaciar m disse Losaduna.
m já lhes prometi isso m disse Laduni. m O Jondalar term uma Exigência Futura sobre mim e foi isso que ele pediu.., não que seja grande exigência. De qualquer forma, dar-lhes-íamos comida e o que precisassem. m Ouviu-se um refrão de assentimento da assembleia.
Jondalar sabia que os Losadunai lhes teriam dado comida, exactamente como Ayla e ele teñam dado uma pedra de fogo à Caverna, mas não quis que eles lamentassem mais tarde terem-lhes dado alimentos que os deixariam com poucas reservas se a Primavera e a nova estação de crescimento chegasse mais tarde. Queria que eles sentissem que estavam a fazer um born negócio, além de querer outra coisa. E levantou-se.
m Demos a Losaduna uma pedra de fogo para uso de todos m disse ele
--, mas a minha exigência é maior do que se possa pensar. Precisamos de mais que comida. Não viajamos sozinhos. Os nossos companheiros são dois cavalos e um lobo e precisamos de ajuda para atravessar o gelo com eles. Precisamos de comida para nós e para eles mas, ainda mais importante, precisamos de água. Se fosse apenas Ayla e eu, podíamos pôr um saco de água cheia de neve ou de gelo por baixo das nossas túnicas, junto à pele, para derreter água que desse para nós, e talvez para o Lobo, mas os cavalos bebem muita água. Dessa forma, não conseguiremos derreter água suficiente para eles. Vou-lhes dizer a verdade; precisamos de encontrar uma forma de levar ou arranjar água suficiente para todos para a travessia do glaciar.
Ouviu-se um coro de sugestes e ideias, mas Laduni calou-as.
--Vamos pensar nisso e encontramo-nos amanhã para estudarmos as várias sugestSes. Esta noite é o Festival.
PLAN[CIES DE PASSAGEM
Jondalar e Ayla já tinham proporcionado uma deliciosa excitação e
mistério para animar os meses de Inverno da Caverna que eram normalmente
sossegados, bem como histórias para contarem nos Encontros de
Verão. Agora tinham recebido o presente da pedra de fogo e, como bónus,
o desafio de resolverem um problema singular, um enigma prático e intelectual
fascinante que daria a todos a possibilidade de exercitarem os
seus músculos mentais. Os viajantes teñam uma assistência atenta e
empenhada.
Madenia tinha ido ao Lar Cerimonial para ver a demonstração da
pedra de fogo e Jondalar não pôde deixar de reparar que ela o tinha estado
a observar atentamente. Tinha-lhe sorrido várias vezes, ao que ela
respondera corando e desviando o olhar. Quando a assistência começou
a dispersar e a deixar o Lar Cerimonial, dirigiu-se para ela.
m Olá, Madenia m disse ele. m Que é que achas da pedra de fogo?
Jondalar sentiu a atracção que frequentemente sentira por jovens tí-midas antes dos seus Primeiros Ritos, que não sabiam o que esperar e
estavam um pouco receosas, especialmente aquelas em relação às quais
ele tinha sido chamado a iniciar na Dádiva dos Prazeres da Mãe. Tivera
sempre prazer em lhes mostrar a Sua Dádiva durante os Primeiros Ritos
e tinha um geito especial para isso, razão pela qual era tantas vezes chamado
a desempenhar esse papel. O medo de Madenia era bem fundado,
não se assemelhando às preocupações amorfas da maioria das jovens, e
ele teria considerado como sendo um desafio ainda maior poder fazer que
ela conhecesse alegria em vez de dor.
Jondalar olhou para ela com os seus olhos azuis espantosamente vivos e lamentou não poderem lá ficar o tempo suficiente para participarem nos rituais de Verão dos Losadunai. Desejava verdadeiramente poder ajudá-la a vencer o seu medo, o que fazia ressaltar todo o seu charme e magnetismo masculino. O homem belo e sensível sorriu-lhe e deixou-a quase sem conseguir respirar.
Madenia nunca tinha sentido uma sensação daquelas. Toda ela se
sentiu quente, quase em fogo, e sentiu uma vontade quase insuperável de lhe tocar, e de que ele lhe tocasse, mas a jovem mulher não fazia ideia do
que fazer com tais sensações. Tentou sorrir; depois, embaraçada, abriu
muito os olhos e deu uma exclamação abafada ao aperceber-se da sua
audácia. Recuou e fugiu quase a correr para o seu espaço de viver. A mãe
viu-a ir-se embora e foi atrás dela. Jondalar já tinha visto reacções semelhantes
ì de Madenia. Não era invulgar as jovens tímidas reagirem a ele
daquela forma e isso apenas a tornava mais cativante.
m Que é que fizeste àquela pobre criança, Jondalar?
Ele olhou para a mulher que tinha falado e dirigiu o seu sorriso para ela.
271
27º
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
m Será que preciso perguntar? Lembro-me de uma vez que esse olh
quase me subjugou a mim. Mas o teu irmão também tinha os seus
cantos.
m E deixou-te abençoada-disse Jondalar.-Estás com
aspecto, Filonia. Feliz.
m Sim. Thonolan deixou uma parte do seu espírito comigo
To também pareces feliz. Onde é que conheceste essa Ayla?
-- É uma longa histdria, mas ela salvou-me a vida. Já era tarde mais para salvar o Thonolan.
m Ouvi dizer que foi apanhado por um leão das cavernas. Lamento,
Jondalar assentiu e fechou os olhos com a inevitável
m Mãe? m disse uma garotinha. Era Thonolia, de mão dada com
filha mais velha de Solandia. mPosso corner no lar da'Salia e brinc
o lobo? Sabes, ele gosta de crianças.
Filonia olhou para Jondalar com uma expressão apreensiva.
m O Lobo não lhe fará mal. Gosta mesmo de crianças. Pergunta
Solandia. Ela usa-o para manter o bebé entretido m disse Jondalar. O Lobo foi criado com crianças e a Ayla treinou-o. Tens razão, ela mulher espantosa, sobretudo com aninais.
mAcho que podes, Thonolia. Não creio que este homem te deixasse zer qualquer coisa que te prejudicasse. É irmão do homem de quem o nome.
Ouviu-se uma grande agitação. Eles olharam para ver o q
quanto as garotas se iam embora.
m Quando é que alguém faz alguma coisa acerca.., daq
Quanto tempo é que uma mãe term de esperar? m q a Laduni. m Talvez seja preciso convocarmos um Conselho de Mães que os homens não conseguem resolver o assunto. Tenho a certeza de c compreenderiam o que uma mãe sente no seu coração e tomariam rapidamente uma decisão.
Losaduna tinha ido para junto de Laduni, para lhe dar
vocação de um Conselho de Mãe era normalmente feito em so. Podia ter graves repercussões e era apenas utilizado
contrava outra forma de resolver um problema.
--Não sejamos precipitados, Verdegia. O mensageiro que mandámos falar com Tomasi deve estar a regressar a qualquer momento. Decert que podes esperar um pouco mais. E a Madenia está muito melhor, não achas?
m Não sei bem. Acabou de fugir para o nosso lar e recusa-se a dizer
-me o que term. Diz que não é nada e diz-me para eu não me preocupar, mas como é que eu posso deixar de me preocupar? m disse Verdegia.
-- Eu dir-lhe-ia o que se passa m murmurou Filonia --, mas não tenho
a certeza de que Verdegia compreenderia. Mas ela term razão. Term de se fazer alguma coisa em relação ao Charoli. Todas as Cavernas falam
dele.
m Que í que pode ser feito? m perguntou Ayla, juntando-se a eles.
-- Não sei-disse Filonia, sorrindo à mulher. Ayla tinha ido ver o seu bebé e tinha claramente gostado de lhe pegar ao colo.-Mas penso que o plano de Laduni d born. Ele acha que todas as Cavernas devem colaborar para encontrar e trazer de volta aqueles jovens. Ele gostaria de ver os membros do bando separados uns dos outros e longe da influência de Charoli. m Parece-me boa ideia m disse Jondalar. m O problema é se a Caverna de Charoli e de Tomasi, que é parente da mãe de Charoli, está na disposição de concordar com isso-disse Filo nia.-Iremos saber isso quando o mensageiro regressar, mas compreendo o que a Verdegia sente. Se qualquer coisa de semelhante acontecesse a Thonolia... m e abanou a cabeça, não conseguindo continuar.
reCreio que a maioria das pessoas compreende o que Madenia e a mãe sentem m disse Jondalar. mA maioria das pessoas é decente, mas uma pessoa má pode causar problemas a rodas as outran.
Ayla estava a lembrar-se de Attaroa e apensar o mesmo.
m Vem aí alguém! Vem aí alguém! m Larogi e alguns dos seus amigos
entraram a correr na caverna a gritar a novidade, fazendo com que
Ayla pensasse o que é que estariam a fazer lá fora no escuro e ao frio. Instantes
depois, entrou um homem de meiaidade.
m Rendoli! Não podias ter vindo em melhor altura m disse Laduni,
com evidente alívio, m Olha, dá-me a tua mochila e vou-te buscar uma bebida quente. Regressaste a tempo de um Festival da Mãe.
m Esse é o mensageiro que Laduni mndou falar com Tomasi-disse
Filonia, surpreendia por vê-lo.
m Born, que é que ele disse? m perguntou Verdegia.
--Verdegia mdisse Losaduna. m Deixa o homem descansar e recuperar o fôlego. Acabou de chegar!
-- Não há problema m disse Rendoli, tirando a mochila e aceitando uma malga de chá quente de Solandia. m O bando de Charoli atacou a Caverna que vive junto da terra árida onde term estado escondido. Roubaram comida e quase mataram uma pessoa que os tentou impedir. A mulher ainda está gravemente ferida e talvez não recupere. Todas as Cavernas estão iradas. Quando ouviram o que aconteceu a Madenia, foi a gota de água. Apesar do seu parentesco com a mãe de Charoli, Toma si está disposto a juntar-se às outran Cavernas para os perseguir e pôr termo ao que andam a fazer. Tomasi convocou uma reunião com o maior número possível de Cavernas... foi por isso que demorei tanto tempo a regressar. Esperei pela reunião. A maioria das Cavernas mais próximas mandaram várias pessoas. Tive de tomar algumas decisões por nós.
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Nébula 44.-- 18
JEAN AUEL
PLAN]CIES DE PASSAGEM
w Estou certo de que foram born tomadas-disse Laduni.
contente por lá estares. Que é que acharam da minha sugestão?
w Já a aceitaram, Laduni. Cada Caverna vai mandar batedores curá-los.., alguns já partiram. Assim que o bando d trado, a maioria dos caçadores de cada Caverna irá em sua para os trazer de volta. Ninguém está dispo te mais tempo. Tomasi quer levá-los perante o Encontro de Verão. m { homem voltou-se para olhar para Verdegia.-E gostava que lá ses para fazer a acusação e a tua exigência m disse.
Verdegia estava quase apaziguada,
a relutância de Madenia em não participar na cerimónia que oficialmente mulher e, com sorte, capaz de ter filhos-os seus netos.
-- Farei de born grado a acusação e a exigência-disse Verdegia, se ela não concordar em ter os seus Primeiros Ritos, podem ter a certeza de que não me esquecerei desse facto.
--Tenho esperança de que no próximo Verão ela já terá mudado de ideias. Tenho visto progressos desde o ritual de purificação. viver mais com as pessoas. Creio que a Ayla ajudou m disse Losaduna.
Depois de Rendoli ir para o seu espaço de viver, Losaduna captou a atenção de Jondalar e fez-lhe um sinal discreto. O homem alto pediu desculpa por se ausentar e seguiu Losaduna até ao Lar Cerimonial. Ayla gostaria de ir com ele, mas pelos modos de ambos apercebeu-se de que que riam estar sozinhos.
-- Que é que irão fazer? -- disse Ayla.
-- Eu diria que se trata de um ritual pessoal qualquer-disse Filo nia, o que fez que Ayla sentisse ainda mais curiosidade.
m Trouxeste alguma coisa que tenhas feito? -- perguntou Losaduna.
-- Fiz uma lâmina. Não tive tempo para a afeiçoar, mas está o mais
perfeita que consegui fazer-disse Jondalar, tirando de dentro da túni-i
ca um pequeno volume embrulhado numa pele. Abriu-o revelando uma
pequena ponta de pedreneira com o fio por retocar mas que era smícien-i
temente afiado para fazer a barba. Uma das extremidades terminava
num bico. A outra tinha um entalhe que podia ser encaixado no cabo de
uma faca.
Losaduna examinou-a cuidadosamente.
-- É um excelente trabalho comentou, m Tenho a certeza de que será aceitável.
Jondalar deu um suspiro de alívio, embora não se tivesse apercebido
de que estava tão preocupado.
m E qualquer coisa dela?
m Isso foi mais difícil. Temos viajado basicamente apenas com as coisas
essenciais e ela sabe sempre onde põe tudo o que term. Term algumas coisas guardadas, na sua maioria presentes para pessoas, e não lhes quis
mexer. Depois lembrei-me que disseste que não fazia mal ser uma coisa
pequena, desde que fosse muito pessoal disse Jondalar, pegando num
obj ecto minúsculo que tambdm estava no embrulho de pele, e explicou.-
Ela usa um amulçto, uma pequena bolsa enfeitada que contém objectos
da sua infância. E muito importante para ela e a única vez que a tira é
quando vai nadar ou tomar banho e mesmo assim nem sempre. Deixouo
cá quando foi à nascente quente sagrada e eu cortei uma das contas dos enfeites.
Losaduna sorriu.
Óptimo! É perfeito! E muito inteligente. Já vi esse amuleto e é muito pessoal. Volta a embrulhar as duas coisas e dá-me o pacote.
Jondalar fez o que ele lhe disse, mas Losaduna reparou numa expressão interrogativa quando Jondalar lhe deu o embrulho.
Não te posso dizer onde o you pôr, mas Ela saberá. Agora há algumas
coisas que preciso de te explicar e algumas perguntas que preciso de
te fazer disse Losaduna.
Jondalar assentiu.
Tentarei responder-te.
Queres que nasça uma criança do teu lar, à mulher, Ayla, é isso? m Sim.
Compreendes que uma criança que nasça do teu lar pode não ser do
teu espírito?
Sim.
Que é que sentes em relação a isso? Para ti term alguma importância qual o espírito usado?
Gostaria que fosse do meu espírito, mas.., o meu espírÌto pode não
ser aquele que í certo. Talvez não seja suficientemente forte, ou a Mãe
não o possa usar, ou talvez Ela não o queira usar. De qualquer forma,
nunca ninguém term a certeza de quem é o espírito, mas se nascesse uma
criança de Ayla, nascida do meu lar, isso bastar-me-ia. Creio que eu pró-prio quase me sentiria mãe disse Jondalar e a sua convicção era evidente.
Losaduna assentiu.
Óptimo. Esta noite honramos a Mãe, portanto é uma altura muito propícia. Sabes que as mulheres que mais A honram são aquelas que são mais frequentemente abençoadas. Ayla é uma mulher muito bela e não terá dificuldade em encontrar um homem ou homens com quem compartilhar os Prazeres.
Quando Aquele Que Servia a Mãe viu o homem alto franzir a testa,
apercebou-se de que Jondalar era daqueles que tnham dificuldade em
ver a mulher que tinham escolhido escolher outra pessoa, muito embora
fosse apenas para a cerimónia
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
--Tens de a encorajar, Jondalar. Isso honra a Mãe e
importante que sejas sincero em quereres que Ayla tenha uma crian, nascida do teu lar. Já vi isto resultar noutros casos. Muitas ficam grávidas quase de imediato. A Mãe pode ficar tão contente go que até poderá usar o teu espírito, sobretudo se também A bem.
Jondalar fechou os olhos e assentiu, mas Losaduna viu-o cerrar maxilares e ranger os dentes. Não ia ser fácil para aquele homem.
n Ela nunca tomou parte num Festival para Honrar a Mãe. E se ela...
não quiser mais ninguém? m perguntou Jondalar.-
a ela?
-- Deves encorajá-la a compartilhar com outros, mas é claro que opção é dela. Nunca te deves recusar especialmente aquela que te escolheu como seu companheiro. Não tel preocupes com isso, Jondalar. A maioña das da situação e não term problemas em gozar o Festival da Mãe-disse Losaduna. m Mas é estranho que Ayla não tivesse sido criada a cera Mãe. Não sabia que havia gente que não A reconhece.
mAs pessoas que a criaram eram.., invulgares em
disse Jondalar.
m Estou certo de que isso é verdade m disse Losaduna.
mos pedir à Mãe.
Pedir à Mãe. Pedir à Mãe. A frase martelou o pensamento
lar enquanto se dirigiam para o fundo do espaço cerimonial.
lembrou-se de lhe terem dito que ele era um dos favorecidos da Mãe
favorecido que nenhuma mulher o podia recusar, nem seq
Doni; era tão favorecido que se alguma vez pedisse à Mãe qualquer coisa Ela acederia ao seu pedido. Também tinha sido avisado para ter do com o facto de ser favorecido; podia obter aquilo que queria.
mento, esperava fervorosamente que isso fosse verdade.
Pararam no nicho onde a lamparina ainda ardia.
m Pega na dunai e segura-a nas tuas mãos m disse-lhe Aquele Que
Servia a Mãe.
Jondalar levou as mãos ao nicho e pegou cuidadosamente na fi
Mãe. Era uma das esculturas mais belas que alguma vez vira. O seu corpo tinha formas perfeitas. Parecia que o escultor tinha feito a figura na sua mão a partir de um modelo vivo de uma mulher bem proporcionada que era de tamanho bastante substancial. Já tinha visto muitas mulheres nuas ao longo da sua vida normal em espaços restritos para saber como eram. Os braços, pousados sobre os seios volumosos da figura, eram apenas sugeridos mas, mesmo assim, os dedos estavam definidos, bem como as pulseiras nos seus braços. As suas duas pernas uniam-se numa espécie de estaca que era cravada no chão.
Acabeça era espantosa. A maioria das donii que ele tinha viste tinham
uma cabeça que pouco mais era que uma forma arredondada, por vezes com um rosto definido pelo cabelo mas sem feições. Aquela tinha um pen teado elaborado,.com falas de pequenos caracóis que lhe envolviam a cabeça e o rosto. A excepção da diferença na forma, não havia diferença entre a parte da frente e a parte de trás da cabeça.
Quando olhou mais atentamente, ficou surpreendido por ver que
tinha sido esculpida em calcário. Era muito mais fácil esculpir em mar
t3m ou osso, e a figura tinha pormenores tão perfeitos e belos que era difí-cil de acreditar que alguém a tinha feito de pedra. "Muitos instrumentos
de pedreneira ficaram rombos para fazer isto", pensou ele.
Jondalar apercebeu-se de que Aquele Que Servia a Mãe estava a entoar uma cantilena, Tinha estado tão absorvido a estudar a donii que não dera por isso, mas tinha aprendido suficiente Losadunai para, ao escutar atentamente, compreender alguns dos nomes da Mãe e percebeu que Losaduna tinha dado início ao ritual. Esperou, esperando que a sua apreciação das qualidades materiais estdticas da escultura não o distraíssem da mais importante essência espiritual da cerimónia. Embora adonii fosse um símbolo da Mãe e, ao que se pensava, constituía um lugar de repouso para uma das Suas muitas formas de espírito, ele sabia que a figura esculpida não era a Grande Mãe Terra.
-- Agora pensa claramente, com as tuas próprias palavras, do fundo
do teu coração, e pede à Mãe o que queres-disse Losaduna.- O facto de estares a segurar na donii ajudar-te-á a concentrar todos os teus pensamentos
e sentimentos no teu pedido. Não hesites em dizer qualquer
coisa que te ocorra. Lembra-te, aquilo que estás a pedir agrada à Mãe de
Todos.
Jondalar fechou os olhos para pensar nisso, para o ajudar a concentrar-se. m Ó Doni, Grande Terra Mãe-começou, m Houve muitas vezes na
minha vida em que pensei.., algumas coisas que talvez Te tenham desagradado. Não era minha intenção desagradar-Te, mas.., aconteceram coisas. Houve uma altura em que pensei que nunca encontraria uma mulher que pudesse realmente amar e pensei se isso seria por estares zangada por causa.., daquelas coisas.
"Deve ter acontecido qualquer coisa muito má na vida deste homem. É um homem tão born e parece tão confiante; é difícil de acreditar que ele possa sofrer de tal vergonha e preocupação", pensou Losaduna.
mDepois de viajar para lá do fim do Teu rio e de perder.., o meu irmão, que eu amava mais que ninguém, To trouxeste Ayla para a minha vida e soube finalmente o que significava apaixonar-me. Estou grato por Ayla.
Se não houvesse mais ninguém na minha vida, famia, amigos, estaria
contente desde que Ayla estivesse comigo. Mas se isso Te agradar,
Grande Mãe, gostaria.., desejaria.., mais uma coisa. Queria pedirte...
uma criança. Uma criança, nascida de Ayla, nascida do meu lar e, se for
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
possível, nascida do meu espírito, ou nascida da minha
como Ayla acredita. Se não for possível, se o meu espírito não for.., suficiente,
então deixa que Ayla tenha o bebé que ela quer e deixa que
do meu lar para que possa ser meu no meu coração.
Jondalar ia a voltar a pôr a donii no seu lugar, mas ainda
nara. Parou e segurou a figura com ambas as mãos.
M Mais uma coisa. Se Ayla alguma vez ficar grávida de uma criança
do meu espírito, gostaria de saber que é a criança do meu espírito.
"Um pedido interessante", pensou Losaduna. "A maioria dos homen
gostaria de saber, mas não é assim realmente tão importante. Por que é
que será tão importante para ele? E que é que ele quereria dizer com
criança da sua essência.., como Ayla acredita? Gostaria de lhe
mas este é um ritual privado. Não lhe posso dizer o que ele disse aqui. Talvez
um dia possamos discutir a questão de um ponto de vista filosófico."
Ayla observou os dois homens a saírem do Lar Cerimonial. Sentiu que
ambos tinham feito o que queriam fazer, mas o homem mais baixo tinha
uma expressão interrogativa e a postura dos seus ombros traía uma certa
insatisfação, e o homem alto tinha ficado tenso, com um certo ar infeliz
mas determinado. Esta estranha percepção aumentou ainda mais a sua
curiosidade sobre o que se tinha passado lá dentro.
M Espero que ela mude de ideias-dizia Losaduna quando se aproximaram, b Creio que a melhor forma para ela superar a terrível experiência
por que passou é ir por diante com os seus Primeiros Ritos. Mas
teremos de ter muito cuidado com quem escolhemos para ela. Gostava
que cá ficasses, Jondalar. Ela parece ter criado interesse por ti. Acho que
é born vê-la interessar-se por um homem.
Gostaria de ajudar, mas não podemos de forma alguma ficar. Temos que partir o mais depressa possível, amanhã ou no dia seguinte, se possível.
-- Tens razão, é claro. A estação pode mudar a qualquer momento.
Term cuidado se um de vocês se tornar irritável b disse Losaduna.
A Doença disse Jondalar.
B Que é a Doença? B perguntou Ayla.
-- Vem com o foehn, o vento do degelo, o vento da Primavera-disse Losaduna.-O vento que vem de sudoeste, quente e seco: e com força suficiente para arrancar árvores pelas raízes. Derrete a neve tão depressa que os montes altos de neve podem desaparecer num único dia e se vos atingir quando estiverem no glaciar poderão não conseguir atravessá-lo. O gelo pode derreter-se sob os vossos pés e fazer que caiam numa ravina, ou abrir um rio no vosso caminho, ou abrir um precipício. Vem tão depressa que os espíritos maus que gostam do frio não conseguem .fugir-lhe.
Espanta-os, varre-os de sítios escondidos, fá-los avançar. E por isso que os espíritos maus vêm montados nos primeiros ventos do degelo
e chegam pouco antes dele. Trazem a Doença. Se souberem o que espe
tar e os conseguirem controlar, podem servir de aviso, mas são subtis e
nåo é fácil transformar os espíritos maus numa vantagem.
-- Como é que sabes que os espíritos maus chegaram? -- perguntou Ayla.
--Como já disse, estejam atentos se começarem a sentir-se irritáveis. Eles podem fazer que adoeçam, e sejá estiverem doentes podem agravar a doença, mas o mais frequente é fazerem com que as pessoas tenham vontade de discutir ou brigar. Algumas pessoas entram em fúria, mas todos sabem que isse é causado pela Doença e as pessoas não são culpa das.., a menos que façam grande mal ou grandes estragos, e mesmo assim muito é desculpado. Depois, as pessoas ficam contentes com a chegada dos ventos do degelo, pois trazem novo crescimento, nova vida, mas ninguém fica contente com a Doença.
--Venham cornerI-Foi Solandia quem falou; não a tinham visto chegar. -- As pessoas já estão a servir-se pela segunda vez. Se não vierem depressa, já não haverá comida.
Dirigiram-se para o lar central onde ardia uma grande fogueira, avivada
pelas correntes de ar que entravam pela boca da caverna. Embora
não estivessem vestidas para o frio intenso de lá de fora, a maioria das
pessoas usava roupa quente nas áreas não protegidas da caverna que
estavam abertas ao frio e ao vento. Aperna de ibex assada estava mal passada
no meio, embora fosse assando um pouco mais enquanto era man
tida quente; a carne fresca era um petisco. Havia também uma sopa de
carne suculenta, feita com carne seca, gordura de mamute, alguns pedaços
de raízes secas e mirtilos da montanha; praticamente os seus últimos legumes e frutos. Estavam todos ansiosos pelos legumes frescos da Primavera.
Mas o duro e frio Inverno ainda estava sobre eles e, por mais que an siassem pela Primavera, Jondalar ansiava ainda mais para que o Inverno durasse um pouco mais, até eles terem atravessado o glaciar que ainda tinham pela frente.
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Depois da refeição, Losaduna anunciou que ia ser oferecida uma
no Lar Cerimonial. Ayla e Jondalar não compreenderam a palavra, mas depressa perceberam que se tratava de uma bebida que era servidal quente. O sabor era agradável e vagamente familiar. Ayla achou que podia ser uma espécie de sumo de fruta ligeiramente fermentado temperado com ervas. Ficou admirada ao saber por Solandia que o seu principal ingrediente era seiva de bétula, embora sumo de fruta fosse apenas parte da receita.
Verificou que o sabor induzia em erro. A bebida era mais forte do que Ay]a pensara e, quando perguntou, Solandia confidenciou que as ervas contribuíam em grande parte para isso. Depois Ayla apercebeu-se de que o sabor vagamente familiar vinha da artemísia, uma erva muito potente que podia ser perigosa se ingerida em excesso ou com demasiada frequência. Tinha sido difícil de detectar devido à aspéru]a de sabor agradável e muito perfumada e a outros sabores aromáticos. Fez com que se interrogasse sobre que mais coisas conteria, o que a levou aprovar e analisar a bebida de uma forma mais séria.
Falou a Solandia na potente erva, referindo os seus possíveis perigos. A mulher explicou que a planta, à qual chamava absinte, era raramente utilizada, a não ser naquela bebida, reservada aos Festivais da Mãe. Devido à sua natureza sagrada, So]andia tinha normalmente relutância em revelar os ingredientes específicos da bebida, mas as perguntas de Ayla eram tão precisas e conhecedoras que não pôde deixar de responder.
Ayla descobriu que a bebida não era de todo o que parecia ser. Aquilo que
inicialmente pensara ser uma bebida suave e simples, de gosto agradá-vel, era na realidade uma mistura potente e complexa feita especial
mente para encorajar a descontracção, a .espontaneidade e a calorosa
infracção desejáveis durante um Festival para Honrar a Mãe.
A medida que as pessoas da Caverna começaram a ir ao Lar Cerimonial,
Ay]a reparou pela primeira vez na maior acuidade da sua percepção
como consequência da bebida que ingeñra, mas isso em breve deu lugar
a uma sensação agradável, langorosa e cálida que fez que esquecesse a
sua análise. Reparou que Jondalar e vários outros homens estavam a falar
com Madenia e, deixando abruptamente Solandia, dirigiu-se para
eles. Todos os homens que all estavam viram-na aproximar-se e gostaPLAN[CIES
DE PA.çSAGEM
ram do que viram. Ela sorriu ao aproximar-se do grupo e Jondalar senriu
o fortíssimo amor que o seu sorriso sempre evocava. Não ia ser fácil
seguir as instruções de Losaduna e encorajá-la a participar plenamente
no Festival da Mãe, mesmo com a bebida relaxante que Aquele Que Servia
a Måe o incitara a beber. Respirou fundo e emborcou o resto do líquido
que tinha na malga.
Filonia, e especialmente o seu companheiro, Daraldi, a quem já tinha sido apresentada antes, foram daqueles que saudaram Ayla mais calorosamente.
-- A tua malga está vazÌa m disse ele, tirando uma concha de líquido de um recipiente de madeira e enchendo a malga de Ayla.
-- Podes também servir-me mais um pouco-dísse Jondalar numa voz excessivamente jovial. Losaduna reparou no forçado tom caloroso do homem, mas achou que os outros não prestariam grande atenção. No entanto, houve uma pessoa que prestou. Ayla olhou de relance para ele, viu o seu maxilar cerrado e percebeu que qualquer coisa o estava a perturbar.
Além disso, reparou tambdm no olhar de Losaduna. Passava-se qualquer
coisa entre aqueles dois, apercebeu-se, mas a bebida também estava a
fazer efeito nela e reservou essa ideia para pensar nela mais tarde. Subitamente,
o espaço encheu-se do toque de tambores.
-- A dança está a começar! -- disse Filonia.-Anda, Jondalar. Dei xa-me ensinar-te os passos.-Pegou-lhe na mão e conduziu-o para o meio da área.
-- Madenia, vai to também-incitou Losaduna.
m Sim disse Jondalar--, vem também. Sabes os passos?--Sorriu-lhe e Ayla achou que ele parecia ter-se descontraído.
Jondalar tinha falado e prestado atenção a Madenia durante todo o
dia e, embora ela se sentisse envergonhada e sem saber o que dizer, tinha
tido uma forte consciência da presença do homem alto. De cada vez que
ele a olhava com os seus olhos cativantes, sentia o coração bater desordenadamente.
Quando ele lhe pegou na mão para a conduzir para a área de
dança, sentiu simultaneamente um arrepio tintflante e calor e, mesmo
que tivesse tentado, não teria conseguido resistir.
Filonia franziu a testa por instantes, mas depois sorriu à rapariga.
--Podemos ambas ensinar-lhe os passos-disse ela, conduzindo-os para a área de dança.
-- Posso ensinar-te.., m começou Daraldi a dizer a Ayla quando Laduni disse:
-- Gostaria muito...-Os dois sorriram um ao outro, tentando dar-se
mutuamente oportunidade para falar.
O sorriso de Ayla abarcou os dois.
-- Talvez possam ambos ensinar-me os passes-disse ela.
Daraldi assentiu e Laduni dirigiu-lhe um grande sorrÌso de contentamento
enquanto cada um lhe pegava numa mão e a conduziam para a
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JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
área onde os dançarinos se estavam a juntar. Enquanto se estavam
organizar num círculo, foram ensinados alguns passos básicos
" "
tantes; depois deram todos as mãos e ouviu-se uma flauta.
saltou-se com o som. Já não ouvia tocar flauta desde que
no Encontro de Verão dos Mamutoi. Teria passado menos de um ano
de que tinham deixado o Encontro? Parecia que tinha sido há tanto term
e ela nunca mais os veria.
Pestanejou para afastar as lágrimas que este pensamento lhe
vir aos olhos, mas quando a dança começou não teve tempo em recordações tristes. A princípio o ritmo era fácil de acompanhar, foi-se tornando cada vez mais rápido e complexo pela era indiscutivelmente o c irresistível. Rodeavam-na, procurando que ela lhes desse do insinuações e até convites velados sob a forma de gracejos. flirtou ligeiramente com Madenia e mais obviamente com Filonia, tinha consciência de todos os homens que rodeavam Ayla.
A dança tornou-se mais complicada, com passos ela
lugares e Ayla dançou com todos eles. Ria-se das suas graças e rios ousados quando algumas pessoas se afastavam para encher as suas malgas ou um ou outro casal se ia refugiar em cantos mais isolados. Laduni saltou para o meio e deu uma enérgica exibição a solo. Perto do fim, a sua companheira juntou-se a ele.
Ayla estava com sede e várias pessoas foram com ela buscar outra bebida, tendo dado por si acompanhada por Daraldi.
-- Eu também gostava de beber-disse Madenia.
--Desculpa-disse Losaduna, pondo a mão sobre a malga, m Ainda
não tiveste os teus Ritos de Primeiros Prazeres, minha querida. Terás de
te contentar com chá. m Madenia franziu a testa e
depois foi buscar uma malga da bebida inóquoa que tinha estado
Ele não tencionava permitir-lhe nenhum dos privilégios da idade adulta feminina atd ela celebrar a cerimónia que lhe conferiria e a fazer todos os possíveis para a encorajar a concordar em realizar portante ritual. Simultaneamente, estava a mostrar a toda a gente que, apesar da sua terrível experiência, ela tinha sido purificada, que o seu estado anterior lhe tinha sido restituído e que devia ser sujeita às mesmas restrições e tratada com o mesmo cuidado e atenção dados a qualquer outra rapariga prestes a tornar-se mulher. Sentia que era a única forma de ela se recompor totalmente do ataque inconsciente e das múltiplas violações que sofrera.
Ayla e Daraldi foram os últimos a beber e, como todos os outros se tinham afastado numa ou noutra direcção, viram-se sozinhos. Ele virou -se para ela.
-- Ayla, és uma mulher extremamente bela-disse ele.
Enquanto crescera tinha sido sempre a rapariga alta e feia e, apesar das inúmeras vezes que Jondalar lhe tinha dito que era bela, Ayla sempre achara que isso era por ele a amar. Não se considerava bela e o comentário dele surpreendeu-a.
-- Não-disse ela a rir.-Não sou bela.
O comentário dela apanhou-o desprevenido. Não era o que estava à espera de ouvir.
-- Mas... mas, és mesmo-disse ele.
Daraldi tinha estado a tentar interessá-la durante toda a noite e embora a sua conversa fosse amistosa e calorosa e fosse evidente que ela gostara das danças, movendo-se com uma sensualidade natural que encorajou os seus esforços, não conseguira provocar a centelha que levaria a outros avanços. Ele sabia que era um homem atraente e aquele era o Festival da Mãe, mas parecia não conseguir dar-lhe a conhecer os seus desejos. Por fim, decidiu fazer uma abordagem mais directa.
--Ayla-disse, pondo o braço em volta da sua cintura. Sentiu-a ficar
hirta por instantes mas insistiu, inclinando-se para lhe beijar a orelha.-És mesmo uma mulher bela murmurou.
Ela virou-se de frente para ele mas, em vez de se inclinar para lhe corresponder,
recuou. Ele pôs o outro braço em volta da sua cintura para a
puxar mais para si. Ela inclinou-se para trás e pôs-lhe as mãos nos ombros,
olhando-o nos olhos.
Ayla não compreendera plenamente o verdadeiro significado do Festival
da Mãe. Achara que era apenas uma reunião calorosa e amistosa,
muito embora tivessem falado em "honrar" a Mãe e ela soubesse o que isso normalmente significava. Quando começou a ver casais, e por vezes
três e mais pessoas, a ir para as zonas mais escuras junto às divisóñas
de pele, ficou com uma ideia mais precisa, mas só quando olhou para
Daraldi e viu o seu desejo é que compreendeu finalmente o que ele esperava.
Ele puxou-a para si e inclinou-se para a beijar. Ayla sentiu-se atraí-da por ele e correspondeu com algum calor. A mão dele encontrou o seio
dela e depois ele tentou metê-la por debaixo da túnica. Ele era atraente,
a sensação não era desagradável, ela estava descontraída e com disposição
para ceder, mas queria tempo para pensar. Era difícil resistir e o seu
espírito não estava absolutamente claro; depois ouviu os sons rítmicos.
-- Vamos voltar para ao pé dos que estão a dançar-disse ela.
Porquê? Já há pouca gente a dançar.
-- Quero fazer uma dança Mamutoi-disse ela. E!e acedeu. Ela tinha-lhe correspondido; ele podia esperar um pouco mms.
Quando chegaram à zona central, Ayla reparou que Jondalar ainda lá
estava. Estava a dançar com Madenia, a segurar-lhe nas duas mãos e a
ensinar-lhe um passo que aprendera com os Sharamudoi. Filonia, Losaduna,
Solandia e alguns outros estavam à sua volta a bater palmas; o
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JEAN AUEI.
PI..4NICIES DE PASSAGEM
tocador de flauta e o que estava a bater os ritmos tinham encontrado
ceiros.
Ayla e Daraldijuntaram-se a eles, ambos a bater palmas. O olhar, Ayla cruzou-se com o de Jondalar e ambos pararam de bater palmas começaram a bater com as mãos nas coxas, à maneira Mamutoi. nia parou para olhar e depois recuou enquanto Jondalar se num complicado ritmo marcado a bater com as mãos nas coxas. tardou que estivessem a dançar juntos, depois afastando-se e dando volta um ao outro e olhando-se por cima do ombro. Quando ficaram, frente um para o outro, deram as mãos. Desde o instante em que os olhares se cruzaram, Ayla passou a ver apenas Jondalar. O caloroso e amistoso que sentira por Daraldi perdeu-se na sua resposta ao desejo, à necessidade e ao amor nos olhos azuis, azuis que i olhavam naquele momento.
A intensidade entre ambos era evidente a todos. Losaduna
-os atentamente durante algum tempo e de mente. Era bem claro que a Mãe estava a dar a conhecer os Daraldi encolheu os ombros e sortiu a Filonia. A expressão era de espanto. Estava a ver algo de raro e belo.
Quando Ayla e Jondalar pararam de dançar, ficaram esquecidos de tudo e todos. Solandia começou a bater palmas e não dou a que todos aqueles que ainda fim, o som chegou atd eles. Afastaram-se, sentindo-se um pouco gonhados.
-- Acho que ainda há uma ou duas malgas de bebida-disse
dia.-Vamos acabá-la?
-- É boa ideia! -- disse Jondalar, com o braço em volta de Naquele momento não estava disposto a largá-la.
Daraldi pegou no grande recipiente de madeira para servir o c
tava da bebida especial e depois olhou para Filonia. "Tenho mesmo ta sorte", pensou. "Ela d uma mulher muito bela e deu duas crian meu lar." Só por ser um Festival da Mãe não significava que honrar com outra mulher que não a sua companheira.
Jondalar terminou a sua bebida de um trago, pousou a malga e tamente pegou em Ayla ao colo e levou-a para a cama de ambos. sentia-se estranhamente tonta, cheia de alegria, escapado a um destino desagradável, mas a sua ale parada com a de Jondalar. Ele tinha-a observado durante toda a noite visto como todos os homens a desejavam, tentado dar-lhe todas as oportunidades como Losaduna aconselhara, e tinha tido a certeza de que ela acabaria por escolher outra pessoa.
Ele próprio podia ter ido com outras pessoas inúmeras vezes,
se quis ir embora atd ter a certeza de que ela tinha ido. Ficou junte de Madenia, sabendo que ela ainda não estava disponível para nenhum homem. Agradou-lhe prestar-lhe atenção, vê-la tão descontraída junto dele, apreciando as primeiras manifestações da mulher em que viria a tornar-se. Embora não tivesse censurado Filonia por ir com outra pessoa, e ela tinha tido multas oportunidades, ficou contente por ela ficar junto dele. Teria odiado ficar sozinho se Ayla tivesse escolhido outra pessoa. Falaram de multas coisas. De Thonolan e das suas viagens juntos, dos fdhos dela, sobretudo de Thonolia, e de Daraldi, e de como ela gostava dele, mas Jondalar não conseguiu falar de Ayla.
Depois, no'fim, quando ela tinha ido ter com ele, ele mal conseguia acreditar. Pousou-a cuidadosamente na plataforma de dormir, olhou para ela e viu o amor nos seus olhos e sentiu um nó na garganta enquanto reprimia as lágrimas. Tinha feito tudo o que Losaduna lhe dissera, tinha-lhe dado rodas as oportunidades, até a tinha encorajado, mas ela tinha ido ter com ele. Pensou se isso não seria um sinal da Mãe a dizer-lhe que se Ayla engravidasse a criança seria do seu espírito.
Mudou de posição ao biombo móvel que assegurava a privacidade e, quando ela se la a levantar para tirar a roupa, ele empurrou-a terna mente para trás.
-- Esta noite é minha-disse.-Quero fazer tudo.
Elavoltou a deitar-see assentiu com um leve sorriso, sentindo um ar repio de antecipação. Ele foi ao outro lado do biombo e voltou com um pau a arder, com o qual acendeu uma pequena lamparina, pondo-a num nicho. Não dava muita luz, apenas a suficiente para a distinguir. Ia a começar a tirar-lhe a roupa mas parou.
--Achas que encontramos o caminho até às nascentes quentes com isto? -- perguntou, indicando a lamparina.
-- Dizem que esgotam os homens e fazem o seu membro viril ficar mole-disse Ayla.
-- Garanto-te que esta noite isso não acontecerá-disse ele com um sorriso aberto.
-- Então acho que talvez seja agradável-disse ela.
Vestiram asparkas, pegaram na lamparina e dirigiram-se em silêncio lá para fora. Losaduna pensou se se iriam aliviar mas pensou melhor e sorriu. As nascentes quentes nunca o tinham impedido durante muito tempo. s vezes apenas lhe davam uma certa capacidade extra de autodomínio. Mas Losaduna não era o único que os estava a observar.
As crianças nunca eram excluídas dos Festivais da Mãe. A observar
os adultos, aprendiam a arte e as actividades que era suposto saberem
quando adultos. Enquanto faziam jogos, imitavam frequentemente os
mais velhos e antes de serem capazes de quaisquer actos sexuais sérios,
os rapazes saltavam sobre as raparigas numa imitação dos seus pais e as
raparigas fingiam dar à luz bonecas numa imitação das suas måes. Pouco
depois de estarem aptos, passavam à idade adulta com rituais que não só
lhes conferiam estatuto de adulto como tambdm responsabilidades de
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EAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
adultos, embora não escolhessem necessariamente um com
senåo daí a vários anos. Os bebés nasciam quando era altura de na
quando a Mãe decidia abençoar uma mulher, mas, surpreendentemen
raramente nasciam de mulheres muito jovens. Todos os bebés lhidos com alegria, sustentados e tratados pela famia alargada
amigos íntimos que constituíam uma Caverna.
Madenia tinha observado Festivais da Mãe desde que lembrava aquele assumÌu um significado novo. Tinha observado vários não parecia magoar ninguém, não da forma como ela fora mo quando algumas das mulheres escolhiam vários homens-ma, va particularmente interessada em Ayla e Jondalar. Assim que eles ram da caverna, vestiu a suaparka e foi atrás deles.
Eles conseguiram encontrar a tenda de paredes duplas e entraram segundo espaço, sabendo-lhes bem o calor acolhedor. Ficaram olharam em volta e depois pousaram a lamparina no altar de terra. De piram asparkas e sentaram-se nas almofadas de lã que cobriam o chão.
Jondalar começou por tirar as botas de Ayla; depois tirou as suas. Bei jou-a longa eternamente enquanto lhe desapertava o atilhos da e da roupa de baixo, puxando-as por cima da cabeça dela, e depois nou-se para lhe beijar os mamilos. Desapertou-lhe as das pernas e da roupa interior e tirou-lhas, parando para acariciar, montículo coberto de pêlos macios-não se tinham dado ao trabalho vestir as protecções de pernas exteriores com o pêlo virado para Depois despiu-se e abraçou-a, encantado por sentir a sua dele, desejando-a naquele mesmo instante.
Jondalar conduziu Ayla para o lago fumegante e mergulharam uma vez, dirigindo-se depois para a área de lavagem. Jondalar tirou' cheia de sabão macio da tigela e começou a esfregar as costas de Ayla e as suas nádegas arredondadas, evitando de momento os seus sítios ten tadoramente quentes e húmidos. A sensação era suave e deslizante e ele adorava senti-la na sua pele. Ayla fechou os olhos, sentiu as mãos de Jon- I dalar acariciarem-na da forma como ele sabia tão bem que lhe agrada va e entregou-se ao seu toque maravilhosamente suave, sentindo cada sensação tintilante.
Ele pegou noutra mão cheia de sabão passou-o pelas suas pernas,
levantando-lhe os pés e sentindo o ligeiro espasmo quando lhe tocou na
planta dos pés. Depois virou-a de frente para si, mas levou o seu tempo a beijá-la, explorando terna e lentamente os seus lábios e a sua língua,
sentindo a resposta dela. A sua própria resposta tinha aumentado e o seu
membro parecia mover-se por iniciativa própria, procurando alcançá-la.
Com outra mão cheia de sabão começou a acariciá-la debaixo dos braços
com a espuma encantadoramente escorregadia até chegar aos seus seios firmes e cheios, sentindo os seus mamilos endurecer sob as palmas
das suas mãos. O corpo de Ayla foÍ trespassado por arrepios semelhantesa
relâmpagos quando ele lhe tocou nos mamilos espantosamente sensíveis e ele encontrou o lugar fundo, dentro dela, que o queria. Quando as
mãos dele lhe chegaram à barriga, ela gemeu de antecipação. Com as
mãos ainda com espuma, Jondalar acariciou-lhe as dobras e encontrou
o seu lugar dos Prazeres, esfregando-o ao de leve. Depois pegou na tigela
de deitar água, encheu-a de água do lago quente e começou a deitá-la
por cima dela. Deitou várias tigelas de água por cima dela antes de a voltar
a levar para a água quente.
Sentaram-se nos bancos de pedra e ficaram abraçados, pele quente contra pele quente, metendo-se depois na água até ficarem apenas com a cabeça fora de água. Depois, dando-lhe a mão, Jondalar voltou a levar Ayla para fora de água. Deitou-a nas almofadas macias e ficou a olhar para ela, resplandecente e molhada e à sua espera.
J
JEAN AUEI.,
PLANICIES DE PASSAGEM
para o ajudar. Ele deitou-se para trás para gozar as sensações q
diam, enquanto ela abarcava o máximo que podia, sugando-o
depois libertando-o e deixando-o voltar a deslizar para dentro.
trou a prega dura do lado de baixo e
depois, puxando para trás a pele, fez a língua descrever cículos cada
mais rápidos na cabeça macia. Ele gemeu com as ondas de fogo que o corriam, depois puxou-a para cima dele até ele conseguir soerguer-se
provar a pétala quente da sua flor.
Quase no mesmo instante, sentiram-se a si próprios e um ao atingir o auge e quando ele voltou a sentir o sabor dela, recuou, de forma a ela ficar de joelhos, penetrou-a e voltou a sentir o seu do. Ela fazia força contra ele a cada movimento, oscilando, movendo-se mergulhando e recuando, sentindo cada golpe e, depois, voltou a aconte-.! cer, primeiro ela, depois, no movimento seguinte, ele, sentindo o impul-i so maravilhoso da grande Dádiva dos Prazeres da Mãe.
Deixaram-se ambos cair no chão, exaustos, agraàavelmente exaustos, langorosamente exaustos. Sentiram uma breve corrente de ar, mas não se mexeram, e até dormitaram durante um pouco. Quando acordaram, levantaram-se e lavaram-se outra vez, deixando-se depois ficar de molho na água quente. Para sua surpresa, quando saíram encon junte da entrada cobertores de pele macia, limpos e secos, aveludados, para se secarem.
Madenia regressou à caverna com sentimentos que nunca conhecera
antes. Tinha ficado comovida com a paixão intensa mas controlada de
Jondalar, com a sua imensa ternura, com a resposta ansiosa de Ay]a e ai
sua vontade irresistível de se abandonar a ele, de confiar tão completamente
nele. A sua experiência não era de todo como aquela que suporta
ta. Os seus Prazeres tinham sido fogosos e físicos, mas nåo brutais; não
tiravam um ao outro para satisfazer a sua própria necessidade, pelo contrário
dando e compartilhando para agradar e gratificar um ao outro.
Ayla tinha falado verdade; os Prazeres da Mãe podiam ser maravilhosamente
excitantes e sensuais, uma celebração alegre e agradável do seu
amor.
E embora ainda não soubesse bem o que fazer de tal sensação, esta va física e emocionalmente excitada. Tinha lágrimas nos olhos. Naquele momento desejava Jondalar. Desejava poder ser ele a compartilhar os seus ritos de passagem ao estado de mulher adulta, embora soubesse que isso não era possível. Mas decidiu, nesse momento, que se pudesse ter alguém como ele, concordaria em celebrar a cerimónia e ter os seus Ritos dos Primeiros Prazeres no Acampamento de Verão seguinte.
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Na manhã seguinte, ninguém se sentia particularmente animado.
Ayla fez o seu chá da "manhã seguinte" que concebera para as dores de
cabeça após-comemorações no Acampamento do Leão, embora só tivesse
ingredientes suficientes para os membros do Lar Cerimonial. Verificou
cuidadosamente as suas reservas do chá anticoncepcional que bebia
rodas as manhãs e achou que chegaria até à próxima estação de crescimento,
altura em que poderia apanhar mais. Felizmente não era preciso
usar grandes quantidades.
Madenia foi ver os visitantes antes do meio-dia. Sorrindo timida mente a Jondalar, anunciou que tinha decidido ter os seus Primeiros Ritos.
-- Isso é maravilhoso, Madenia. Não te arrependerás-disse o homem alto e belo e encantadoramente terno. Ela olhou para ele com tal expressão de adoração que ele se inclinou para a beijar na face, encostando depois a cara ao seu pescoço e soprando-lhe ao ouvido. Ele endireitou -see sortiu-lhe e ela ficou perdìda nos seus olhos espantosamente azuis. O seu coração estava a bater tão depressa que mal conseguia respirar. Nesse momento, acima de tudo, Madenia desejava que Jondalar pudesse ser o escolhido para os seus Ritos dos Primeiros Prazeres. Depois ficou embaraçada, com receio de que ele pudesse de alguma forma saber o que ela estava a pensar. Subitamente, correu para fora da zona do lar.
--É pena não vivermos perto dos Losadunai-disse ele, observando a sua retirada.-Gostava de ajudar aquela jovem mulher, mas tenho a certeza de que encontrarão alguém.
-- Sim, estou convencida de que encontrarão, mas espero que ela não se tenha entusiasmado demasiado. Disse-lhe que um dia talvez encontrasse um homem como to, Jondalar, que ela já sofreu o suficiente e que o merecia. Espero que encontre, para bem dela m disse Ayla. m Mas não há muitos homens como to.
mTodas as jovens mulheres têm grandes esperanças e entusiasmo- disse Jondalar-mas antes da primeira vez tudo isso não passa de imaginação.
-- Mas ela term qualquer coisa em que basear a sua imaginação.
-- É claro, todos sabem mais ou menos o que esperar. Não é como se nunca tivessem estado ao pé de homens e mulheres-disse ele.
--É mais que isso, Jondalar. Quem é que achas que nos pôs lá os cobertores ontem à noite?
-- Pensei que tivesse sido o Losaduna, ou talvez a Solandia.
--Eles foram para a cama antes de nós; tinham as suas próprias honras
a fazer. Perguntei-lhes. Nem sequer sabiam que tínhamos ido às
águas sagradas.., embora o Losaduna parecesse particularmente satisfeito com isso.
Se não foram eles, então quem... Madenia?
Tenho quase a certeza de que foi ela.
JEAN A UEL
PLAN ]C IES DE PASSAGEM
Jondalar franziu a testa de concentração.
mHá tanto tempo que viajamos sozinhos que.
mas.., sinto-me um pouco.., não sei.., relutante, creio, em ser tão impetuoso,
tão livre, quando estamos junto de pessoas. Ontem à noite
que estávamos sozinhos. Se soubesse que elalá estava, talvez
sido tão.., ousado-disse ele.
Ayla sorriu.
m Eu sei-disse. Estava a ter cada vez mais consciência de que
não gostava de mostrar o lado profundamente sensível da sua naturez
e ficou contente por ele lhe conseguir exprimir os seus sentimentos em
lavras e acções.-Ainda bem que não sabias que ela lá estava,
mim, quer por ela.
-- Porquê por ela? -- perguntou ele.
-- Creio que foi isso que a convenceu a ir por diante com a
de passagem à idade de mulher adulta. Já tinha estado tantas vezes de homens e mulheres que compartilhavam os Prazeres que não va muito nisso, até aqueles homens a terem forçado. Depois disso nas conseguia pensar na dor e no horror de ser usada como coisa, qualquer consideração por ela como mulher. É difícil lar. E uma coisa que faz que uma mulher se sinta.., terrível.
-- Estou certo de que isso é verdade, mas creio que era mais que
m disse o homem.-Depois de uma rapariga ter a sua primeira da lua, mas antes de ter os seus Primeiros Ritos, a mulher é extremamente vulnerável.., e desejável. Todos os homens são atraídos ' porque ela não possa ser tocada. Em qualquer outra altura, uma mulher é livre de escolher qualquer homem, ou nenhum, mas nessa altura é goso para ela.
-- Como a Latie, que nem sequer era suposto olhar i
disse Ayla. O Mamut explicou isso.
-- Talvez não totalmente m disse Jondalar. Nessa altura cabe rapariga-mulher mostrar recato e isso nem sempre é fácil. Ela é o tro das atenções; todos os homens a desejam, sobretudo os mais novos pode-lhe ser difícil resistir. Eles andam atrás dela, a tentar meios fazer que ela ceda. Algumas raparigas fazem-no, aquelas que têm de esperar muito tempo pelo Encontro de Verão. Mas se uma rapariga permitir que seja aberta sem os rituais adequados, não... pensam bem dela. Se se descobre, e por vezes a Mãe abençoa-a antes de ser mulher, assegurando que todos saibam que ela foi aberta.., as pessoas podem ser cruéis. Culpam-na e troçam dela.
-- Mas por que é que a culpam? Deviam culpar os homens que não a deixaram em paz-disse Ayla, irritada com a injustiça da situação.
As pessoas dizem que se ela não consegue ser recatada, não term qualidades para assumir as responsabilidades da Maternidade e da Chefia.
Nunca será escolhida para o Conselho de Mães, ou de Irmãs, ou como se chamar o conselho de autoridade máxima do seu povo, portanto perde
estatuto, o que a torna menos desejável como companheira. Não que
perca o estatuto da sua mãe ou do seu lar-nada com o que tenha nascido lhe é retirado --, mas nunca será escolhida por um homem de estatuto
elevado, nem sequer por um que tenha potencial para o ser. Creio que
a Madenia teve tanto medo disso como do resto m disse Jondalar.
-- Não admira que a Verdegia dissesse que ela estava arruinada.-
Ayla franziu a testa de preocupação.-Jondalar, a gente dela aceitará
o ritual de purificação de Losaduna? Sabes que a partir do momento em
que ela foi aberta, não pode realmente voltar a ser como era.
-- Creio que sim. Não foi o caso de ela não mostrar recato. Foi forçada
e as pessoas estão tão zangadas com o Charoli por causa disso ao ponto
de usarem isso contra ele. Talvez haja algumas que tenham algumas
reservas, mas ela também irá ter muitos defensores.
Ayla ficou calada durante algum tempo.
-- As pessoas são complicadas, não são? Por vezes penso se alguma coisa é realmente o que parece ser.
m Acho que resultará, Laduni-disse Jondalar.-Acho mesmo que
irá resultar! Vamos fever como é. Usaremos o barco redondo para levar
erva seca e pedras de arder suficientes para derretermos gelo em água,
além de pedras extra sobre as quais acendermos a fogueira, e a pele de
mamute grossa para pormos as pedras para não se afundarem no gelo
quando ficarem quentes. Podemos levar comida para nós e provavel
mente também para o Lobo nos cestos-alforge e nas nossas mochilas.
-- Será uma carga pesada-disse Laduni m mas não têm de ferver a água... isso poupará pedras de arder. Basta derreter o gelo para os cavalos poderem beber; além de vocês próprios e do lobo. Não é necessário estar quente, mas assegurem-se de que não está gelada. E assegurem -se também de que bebem o suficiente; não tentem poupar na água. Se levarem roupa quente e descansarem o suficiente e beberem bastante água, conseguem resistir ao frio.
Acho que eles deviam experimentar antes de partirem para ver as quantidades de que irão precisar-disse Laronia.
Ayla viu que tinha sido a companheira de Laduni que tinha feito a sugestã% E boa ideia disse ela.
Mas o Laduni term razão, a carga será pesada acrescentou La ronia.
Então teremos de fever as nossas coisas e deixar ficar tudo o que pudermos disse Jondalar. m Não precisamos de muito. Logo que atravessamos o glaciar, estaremos perto do Acampamento de Dalanar.
Já levavam apenas o essencial. De que mais coisas poderiam prescin
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
dir, pensou Ayla quando a reuniáo terminou. Mad
regresso ao lugar de dormir. A rapariga-mulher não só tinha ficado,
um fraquinho por Jondalar, como
Ayla, o que fazia que esta se sentisse um pouco embaraçada. Mas va de Madenia e pergunteu-se se ela gostaria de ficar com ela escolhia as suas coisas.
Enquanto Ayla desempacotava e espalhava as suas c,
tentou lembrar-se quantas vezes já fizera aq
Ia-lhe ser difícil fazerescolhas. Todas as coisas tinham ai do para ela, mas para poderem atravessar aquele portentoso o qual Jondalar se preocupara desde o princípio, com a Whinney redor, e com o Lobo, ela tinha de eliminar o máximo possível.
O primeiro embrulho que abñu continha o belo fato feito de
macia que RosarÌo]he tinha dado. Ergueu-o e
frente.
-- Ooohhh! Que belo! Os padrões são cosidos e term um corte difer te. Nunca vi nenhum assim m disse Madenia, não conseguindo a tocar-lhe.-E é tão macio! Nunca toquei em nada tão macio.
--Foi-me dado por uma mulher dos Sharamudoi, pessoas que longe daqui, perto do fim do Grande Rio Mãe, onde ele te um grande rio. Nem imaginas como a o Rio Mãe se terna grande.
Sharamudoi são na realidade duas gentes. Os Shamudoi vivem em terra
e caçam camurças. Conheces esse animal? -- perguntou Ayla. Made
nia abanou a cabeça.-E um animal de montanha, parecido com o
mas mais pequeno. .-Sim, isso sei, mas damos-lhe um nome diferente-disse Madenia"
--Os Ramudi são Gente do Rio e caçam esturjões, que é um
me. Juntos, têm uma forma especial de curtir as peles
as tornar macias e flexíveis como esta.
Ayla pegou na túnica bordada e pensou na gente Sharamudoi
conhecera. Parecia-lhe ter sido há tanto tempo. Podia ter vivido com
ainda sentia o mesmo e sabia que nunca mais os veria. Odiava
não levar a prenda de Rhosario. Depois olhou para os olhos brilhante
Madenia que a admiravam e tomou uma decisão.
-- Gestavas de ter isto, Madenia?
Madenia afastou rapidamente as mãos como se tivesse tocado numa coisa quente.
-- Não posso! Foi uma prenda para ti-disse.
--Temos de aliviar a nossa carga. Creio que a Roshario ficaria contente se to aceitares, já que gostas tanto dele. E suposte ser um fato matrimonial, mas eu já tenho um.
-- Tens-a certeza? -- disse Madenia.
Ayla via os olhos dela a brilhar de incredulidade ao pensar num fato tão belo e exdtico.
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-- Sim, tenho a certeza. Podes pensar em usá-lo no teu Matrimonial, se for adequado. Considera-o como uma prenda para te lembrares de mim.
-- Não preciso de uma prenda para me lembrar de ti u disse Made nia com os olhos marejados de lágrimas.-Nunca te esquecerei. Por tua causa, talvez eu um dia tenha um Matrimonial e, se tiver, usarei este fato.
Estava ansiosa por o mostrar à mãe e a todas as suas amigas e amigos da sua idade no Encontro de Verão.
Ayla ficou contente por ter decidido darlho.
-- Gostavas de ver o meu fato Matrimonial?
-- Oh, sim! -- disse Madenia.
Ayla desembrulhou a túnica que Nezzie lhe tinha feito quando ela
pensara em acasalar-se com Ranec. Era de um amarelo-ocre, a cor do seu
cabelo. Tinha uma escultura de um cavalo embrulhada nela e dois pedaços
quase abso!utamente idênticos de âmbar cor de mel. Madenia não conseguia acreditar que Ayla tivesse dois fatos tão exoticamente belos e
no entanto tão diferentes um do outro, mas teve receio de falar de mais,
por medo que Ayla se sentisse na obrigação lhe também lhe dar aquele.
Ayla estudou-o, tentando decidir o que fazer com ele. Depois abanou a cabeça. Não, não se podÌa desfazer dele, era a sua túnica Matrimonial. Usá-la-ia quando se acasalasse com Jondalar. TÌnha tambdm, de certa forma, uma parte de Ranec. Pegou no pequeno cavalo esculpido em mar fim de mamute e acaricÌou-o distraidamente. Também conservaña aquilo. Pensou em Ranec, pensou como estaria. Nunca nÌnguém a tinha ama do mais e ela nunca o esqueceria. Podia ter-se acasalado com ele e sido feliz se não amasse tanto Jondalar.
Madenia tentou reprimir a sua curiosidade, mas acabou por perguntar.
-- Que são essas pedras?
-- Chamam-se âmbar. Foram-me dadas pela mulher-chefe do Acampamento do Leão.
-- Essa é uma escultura do teu cavalo?
Ayla sorñulhe.
u Sim, é uma escultura da Whinney. Foi feita para mim por um
homem com olhos risonhos e com pele da cor do pêlo do Corredor. Até o
Jondalar disse que nunca conhecera melhor escultor.
-- Um homem com pele castanha?-- perguntou Madenia, incrédula.
Ayla sorriu. Não a podia censurar por duvidar.
-- Sim. Era um Mamutoi e o seu nome era Ranec. Da primeira vez que o vi não pude deixar de olhar fixamente para ele. Receio bem ter sido muito malcriada. Foi-me dito que a sua mãe era tão escura como.., um pedaço daquela pedra de arder. Vivia muito ao sul, do outro lado de um grande mar. Um homem Mamutoi chamado Wymez fez uma longa Viagem.
Acasalou-se com ela e o seu filho nasceu do seu lar. Ela morreu na
JEAN AUEL
PLANICIES DE PASSAGEM
viagem de regresso, portanto ele voltou apenas com o rapaz. A irmã do
homem criouo.
Madenia estremeceu de excitação. Pensava que a única coisa que havia a sul era montanhas e que nunca mais acabavam. Ayla tinha via-. jado para tão longe e sabÌa tantas coisas. Talvez um dia ela fizesse umai Viagem como Ayla e encontrasse um homem castanho que lhe esculpis se um belo cavalo e gente que lhe desse belos fatos e encontrasse cavalos que deixassem que ela os montasse e um lobo que adorasse crianças e um homem como Jondalar que montasse os cavalos e que fizesse a longa Via geh com ela. Madenia estava a sonhar acordada com uma grande aventura.
Nunca conhecera ninguém como Ayla. Idolatrava a bela mulher levava uma vida tão excitante e esperava que pudesse de alguma maneira ser como ela. Ayla falava com um sotaque estranho, mas isso só a tornava ainda mais misteriosa, e não tinha ela também sofrido um ataque de um homem quando era rapariga? Ayla superara isso mas com preendia como os outros se sentiam. Rodeada do calor, do amor e da compreensão da sua gente, Madenia estava a começar a recompor-se do horror do incidente. Começou a imaginar-se a si própria, cheia de matu- I ridade e sensatez, a contar a uma jovem rapariga qualquer, que sofrera idêntico ataque, a sua própria experiência para a ajudar a superá-la.
Enquanto Madenia sonhava acordada, observou Ayla que pegou num pacote muito bem embrulhado. A mulher pegou nele mas não o abriu; sa bia exactamente o que estava lá dentro e não tinha a menor intenção de o deixar ficar.
-- Que é isso?--perguntou a rapariga enquanto Ayla o punha de lado. Ayla voltou a pegar no embrulho; ela própria já não o via há algum tempo. Olhou em volta para se assegurar de que Jondalar não andava por perto e depois desfez os nós. Lá dentro estava uma túnica de um branco puro enfeitada com rabos de arminho. Os olhos de Madenia ficaram muito gran.des de espanto.
--E branco como neve! Nunca vi pele colorida de branco como essa m disse ela.
-- Fazer pele branca é um segredo do Lar da Garça. Aprendi a fazê-la com uma velha mulher, que aprendeu com a mãe dela-explicou
Ayla.-Não tinha ninguém a quem passar os seus conhecimentos, portanto,
quando eu lhe pedi para me ensinar, concordou em fazê-lo.
Foste to que fizeste isso? -- perguntou Madenia.
Sim, para o Jondalar, mas ele não sabe. Vou-lha dar quando chegarmos ao lar dele, creio que para o nosso Matrimonial m disse Ayla.
Quando a ergueu, também caiu lá de dentro um pequeno embrulho.
Madenia viu que era uma túnica de homem. Não tinha qualquer outra
decoração à excepção dos rabos de arminho; não tinha padrões nem desenhos
bordados, nem conchas ou contas, mas não precisava. Os enfeites tê-la-iam estragado. Na sua simplicidade, a sua cor branca pura tornava-a
espectacular.
Ayla abriu o embrulho mais pequeno. Lá dentro estava a estranha
tigura de uma mulher com o rosto esculpido. Sea rapariga não tivesse
estado a ver maravilha após maravilha, ter-se-ia assustado; as dunai nunca tinham rosto. Mas parecia-lhe de alguma forma certo que Ayla
tivesse uma com rosto.
-- Foi o Jondalar que a fez para me dar-disse Ayla.-Disse-me que a tinha feito para capturar o meu espírito e para a minha cerimónia de feminilidade, a primeira vez que me ensinou a Dádiva dos Prazeres da Mãe. Não havia mais ninguém com quem a compartilhar, mas não pre cisamos. O Jondalar fez uma cerimónia. Depois deu-me isto para eu guardar, pois term grande poder, segundo ele.
-- Acredito-disse Madenia.-Não sentia o menor desejo de lhe tocar, mas não duvidava de que Ayla conseguisse controlar o poder que ela tivesse.
Ayla sentiu a inquietaçåo da rapariga e voltou a embrulhar a figura. Meteu-a cuidadosamente dentro da túnica branca dobrada e embrulhou esta nas peles de coelhos tinas cosidas umas às outras que a protegiam e depois atou-a com as cordas.
Um outro embrulho continha os presentes que ela recebera na sua ce rimónia de adopção, quando fora aceite nos Mamutoi. Conserválos-ia.
A sua bolsa de plantas medicinais iria obviamente com ela, bem como as
pedras de lume e o seu estojo de fazer lume, o seu estojo de costura, uma
muda de roupa interior e forros finos para as botas, as peles de dormir e
as armas de caça. Olhou para as suas tigelas e utensflios de cozinha e elÌ-minou tudo a não ser o que era estritamente essencial. Teria de esperar
por Jondalar para tomar uma decisão sobre as tendas, cordas e outro
equipamento.
Quando ela e Madenia se preparavam para sair, Jondalar entrou no espaço de viver. Ele e mais alguns outros tinham acabado de chegar com um carregamento de carvão castanho e ele tinha ido escolher as suas coisas. Váñas outras pessoas vieram com ele, incluindo Solandia e as suas crianças com o Lobo.
Acabei por ficar realmente dependente deste animal e you sentir a sua falta. Imagino que não o queiras cá deixar? disse ela.
Ayla fez sinal ao Lobo. Por mais que gostasse das crianças, foi ter com
ela imediatamente e ficou aos seus pés a olhar para ela expectante. m Não, Solandia, não creio que pudesse.
-- Eu tambdm não, mas tinha de perguntar. Também you sentir a tua falta, sabes-acrescentou ela.
-- E eu a tua. A parte mais difícil desta Viagem term sido fazer amigos e depois deixá-los e saber que provavelmente nunca mais os verei- disse Ayla.
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
-- Ladunim disse Jondalar, segurando num pedaço
mute com estranhas marcas gravadas, m Talut, o homemchefe
Acampamento do Leão, fez este mapa da região que fica muito a este,
que mostra a primeira parte na nossa Viagem. Estava com esperanfa
o poder conservar como lembrança dele. Não é essencial, mas não
ria de o deitar fora. Queres guardá-lo para mim? Quem sabe,
dia volte para o vir buscar.
m Sim, guardar-to-ei- disse Laduni, pegando no
e examinando-o.-Parece-me interessante. Talvez mo antes de te ires embora. Espero que voltes, mas se não voltares talvez guém que vá para a tua terra tenha espaço para ele e eu to possa dar.
-- Também you deixar ficar alguns instrumentos. Podes
ou não. Detesto ficar sem uma pedra martelo à qual estouhabituado, tenho a certeza de que conseguirei substituí-la quando chegarmos ao Lanzadonii. O Dalanar term sempre boas reservas. You deixar ficar meus martelos de osso e também algumas lâminas. Mas you levar enxó e um machado para cortar gelo.
Quando se dirigiram para a sua zona de dormir, Jondalar perguntou."
Que é que vais levar, Ayla?
m Está tudo aqui, na plataforma de dormir.
Jondalar viu o misterioso embrulho no meio das suas coisas.
-- O que quer que lá esteja dentro deve ser muito valioso m disse.
-- Eu transporto-o-disse ela.
Madenia sorriu timidamente, satisfeita por saber o segredo. Isso fie-la sentir-se muito especial.
m E isto? m perguntou ele, apontando para outro embrulho.
m São os presentes do Acampamento do Leão m disse ela, abrindoo
para lhe mostrar. Ele reparou na bela ponta de lança que Wymez lhe
tinha dado e pegou nela para a mostrar a Laduni.
m Olha para isto-disse.
Era uma lâmina grande, mais comprida que a sua mão e tão larga como a sua palma, mas com uma espessura menor que a ponta do seu dedo mindinho e que ia diminuindo até formar um fio afiado.
-- Foi trabalhada em ambas as faces
Mas como é que ele a tornou tão fina? Pensei que trabalhar ambas as faces de uma pedra era uma tdcnica grosseira usada para machado.s e outros instrumentos simples, mas esta ponta não é nada grosseira. E uma das peças mais primorosamente executadas que já vi.
Foi o Wymez que a fez m disse Jondalar. w Eu disse-te que ele era born . Aquece a pedreneira antes de a trabalhar. Isso altera a qualidade
da pedra, torna mais fácil destacar as lascas, e é assim que consegue fazer
lâminas tão tinas. Estou ansioso por mostrá-la ao Dalanar.
m Estou certo de que gostará de a ver m disse Laduni.
Jondalar devolveu-a a Ayla e esta voltou a embrulhá-la cuidadosamente.
--Acho que levaremos uma única tenda, para usar mais como um pá-ta-ventos m disse ele.
-- E um pano de chão? -- disse Ayla.
w Temos um carregamento tão pesado de tochas e pedras que acho que apenas devemos levar o essencial.
--Um glaciar é gelo. Se calhar irá saber-nos bem ter um pano de chão.
-- Creio que tens razão m disse ele.
E estas cordas?
Achas que precisamos mesmo delas?
Sugiro que as levem disse Laduni. mAs cordas podem ser muito úteis num glaciar.
Se achas que sim, you seguir o teu conselho-disse Jondalar.
Arrumaram o máximo que puderam na noite anterior e passaram o resto do tempo a despedir-se das pessoas a quem se tinham afeiçoado
durante a sua breve estada. Verdegia fez questão de ir falar com Ayla.
Quero agradecer-te, Ayla.
mNão é necessário agradeceres-me. Nós é que temos de agradecer a
toda a gente daqui.
m Estou a referir-me ao que fizeste pela Madenia. Para ser franca,
não sei bem o que fizeste, nem o que lhe disseste, mas sei que resultou.
Antes de vocês chegarem, ela escondia-se num canto escuro, com vontade
de morrer. Nem sequer falava comigo e não quèria ouvir falar em tor
nar-se mulher. Pensei que estava tudo perdido. Agora parece a mesma
que era antes e está entusiasmada em fazer os seus Primeiros Ritos. Só
espero que não aconteça nada que a faça mudar de ideias antes do Verão.
m Acho que ela continuará bem, desde que todos a apoiem-disse
Ayla. m O que a ajudou mais foi isso, sabes.
m Continuo a querer que o Charoli seja castigado disse Verdegia. m Acho que toda a gente quer. Agora que todos concordaram em ir à procura dele, creio que acabará por ser castigado. A Madenia será vinga da e terá os seus Primeiros Ritos e tornar-se-á mulher. E to terás netos, Verdegia.
De manhã, levantaram-se cedo, acabaram de arrumar as suas coisas
e regressaram à caverna para tomarem a última refeição da manhã com
os Losadunai. Estavam lá todos para lhes dizer adeus. Losaduna fez que
Ayla memorizasse mais alguns versos e depois quase cedeu à emoção
quando ela o abraçou para se despedir dele. Depois foi rapidamente falar
com Jondalar. Solandia não escondeu o que sentia e disse-lhes como
lamentava vê-los partir. Até oLobo parecia saber que não voltaria a ver
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JEAN A UEL
as crianças e elas também. Lambeu a cara do bebé e, pela primeira
Micheri chorou.
Mas quando saíram da caverna foi Madenia que os surpreendeu Tinha vestido o magnífico fato que Ayla lhe dera e agarrou-se a el tando não chorar. Jondalar disse-lhe que estava muito bela e o gio foi sincero. A roupa dava-lhe uma beleza e uma maturidad e dava indícios da verdadeira mulher em que um dia ela se tornaria.
Ao montarem os cavalos, que estavam descansados e ansiosos por
meterem a caminho, eles olharam para trás para as pessoas q
à entrada da caverna e era Madenia que se destacava. Mas ela ainda era novita e enquanto eles acenavam as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.
-- Nunca esquecerei nenhum dos dois m gritou ela, correndo depois para dentro da caverna.
Ao afastarem-se, em direcção ao Grande Rio Mãe que mal passava de um ribeiro, Ayla pensou que nunca esqueceria nem Madenia nem a sua l gente. Jondalar também teve pena de se despedir deles, mas os seus pensamentos centravam-se nas dificuldades que ainda tinham de enfrentar. Sabia que a parte mais difícil da sua Viagem ainda estava para vir.
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Jondalar e Ayla dirigiram-se para norte, de regresso ao Donau, o Grande Rio Mãe que lhes guiara os passos durante a maior parte da sua
Viagem. Quando lá chegaram, viraram de novo para oeste e continuaram
a seguir o ribeiro no sentido da sua nascente, mas as caracteñsticas do
grande curso de água tinham-se alterado. Já não era um imenso rio serpenteante,
rolando com portentosa dignidade através das planícies planas,
recebendo inúmeros afluentes e quantidades de sedimento e depois
dividindo-se em canais e formando lagos.
Perto da sua nascente, era mais fresco e ágil, um ribeiro mais estreito e menos fundo que corria pelo seu leite rochoso e largo ao descer a íngreme encosta da montanha. Mas o caminho em direcção a oeste dos viajantes ao longo do rio de corrente rápida tìnha'se tornado numa escalada contínua que os conduzia cada vez para mais perto do seu inevitável encontro com a espessa camada de gelo eterno que cobria o amplo planalto no cimo das terras altas acidentadas à sua frente.
As formas dos glaciares seguiam os contornos da terra. Os no cimo das montanhas eram toros irregulares de gelo, os em terreno plano estendiam-se como panquecas, com uma espessura quase uniforme, ligeiramente mais altos no meio, deixando para trás rastos de gravilha e escavando depressões que se tornavam lagos grendes e pequenos. Na sua parte mais afastada, na zona mais a sul do vasto bolo de gelo continental, cujo cume quase plano era tão alto como as montanhas à sua volta, apenas não se encontrava por uma margem de cinco graus de latitude com o extremo mais a norte dos glacìares de montanha. A terra entre ambos era a mais fria de rodas no mundo.
Ao contrário dos glaciares de montanha, os rios gelados que desciam lentamente as encostas das montanhas, o gelo eterno nas terras altas quase planas-o glaciar que tanto preocupava Jondalar e que ainda estava a oeste deles mera um glaciar de planalto, uma versão em miniatura da grande camada de gelo que se estendia pelas planícies do continente a norte.
Enquanto Ayla e Jondalar iam seguindo o rio, ganhavam altitude a cada
passo. Fizeram a subida atentos aos cavalos que transportavam uma
carga pesadíssima, muitas vezes conduzindo-os pela arreata em vez de
irem montados neles. Ayla estava particularmente preocupada com a
JEAN AUEL
PLANICIES DE PASSAGEM
Whinney, que la a puxar a maior parto das pedras de arder que
varo que assegurassem a sobrevivência dos seu:
durante a travessia da superfície gelada, um terreno que os cavalo
ca tentariam atravessar de sua livre iniciativa.
Além da padiola que a Whinney puxava, ambos os cavalol
alforges muito pesados, embora a carga da égua fosse menor para pensar a padiola que puxava. A carga do Corredor era tão alta que quase incómoda, mas atd as mochilas da mulher e do homem eram tanciais. Só o lobo la sem qualquer carga e Ayla tinha começado dar os seus movimentos livres, pensando que também ele poderia a sua quota parte da carga.
BTodo este esforço para levarmos pedras m com,
nhã, enquanto punha a mochila às costas, mAlgumas pessoas ach que somos esquisitos por transportarmos este carregamento de montanha acima.
B Muitas mais achariam esquisito viajarmos com dois cavalos e
lobo contrapôs Jondalar , mas para atravessarmos o gelo com
mos de levar as pedras. E há uma coisa que nos deve alegrar.
-- Qual d?
-- Como tudo será fácil assim que chegarmos ao outro lado. O curso superior do rio atravessava a região a norte da montanhas a sul, que era tão grande que os viajantos não deira noção da sua imensidão. Os Losadunai viviam numa re tamento a sul do rio, com montanhas massivas de calcário mais dadas e com extensas áreas de planaltos relativamente planos. Em erodidos por milénios de vento e água, os afloramentos eram mento portontosos para ostentarem coroas de gelo durante todo o Entre o rio e as montanhas, havia uma paisagem de vegetação te sobre uma zona de arenito. Esta, por sua vez, estava coberta ligeiro lençol de neve que ocultava a fronteira de gelo etorno, mas o brilho do azul glacial revelava a sua natureza.
Mais a sul, a cintilar ao sol como gigantoscos fragmentos de partido, os imensos penhascos da zona central, quase formand dilheira independento dentro da grande massa de torra erguida, erguiam, --se bem alto acima dos outros picos. A medida que os viajantes continua varo a subida em direcção à cadeia mais alta a cordilheira, a marcha silenciosa das montanhas centrais a sua progressão, vigiada por dois picos irregulares que se destacavam cima dos restantes.
A norte, do outro lado do rio, o antigo maciço cristalino erguia-se íngreme, com a sua superfície ondulanto ocasionalmente encimada por afloramentos rochosos e coberta por campos com prados no meio. Olhando em frento, para oeste, montos mais altos e arredondados, alguns com o cume coberto de pequenas coroas geladas, estendiam-se pelo rio gelado, para se juntarem às cristas mais recentos da cordilheira a sul.
A neve poeirenta e seca caía com menos frequência à medida que a sua Viagem os levava para mais perto da parto mais fria do continente, a região entre a extensão mais a norte do glaciar de montanha e a zona mais a sul dos vastos lençóis de gelo que cobrìam o continento. Nem sequer o extremo frio das estepes de loess varridas pelo vento das planícies de este se podia comparar à severidade do seu clima. A terra foi salva da desolação dos lençóis gelados apenas pela influência marítima moderadora do oceano ocidental.
O glaciar das terras altas que toncionavam atravessar, sem o ar aquecido pelo oceano não gelado que travava o avanço do gelo, podia terse expandido e tornado impossível de atravessar. As influências marítimas que permitiam a passagem para as estepes e tundras a oesto também mantinham os glaciares afastados da terra dos Zelandonñ, poupando-os à pesada camada de gelo que cobria outras terras à mesma latitude.
Jondalar e Ayla adaptaram-se bem à sua rotina de viagem, embora
parecesse a Ayla que viajavam há uma etornidade. Estava ansiosa por
chegar ao fim da sua Viagem. Recordações do Inverno sossegado na habitação
do Acampamento do Leão passavam-lhe pelo espírito enquanto
iam avançando na monotonia da paisagem de Inverno. Recordava com
prazer pequenos incidentes, esquecendo a tristoza que lhe ensombrara os
dias duranto todo o tempo em que pensara que Jondalar deixara de a
amar.
Embora tivessem que derretor toda a água que consumiam, normalmente do gelo do rio de preferência a neve-a terra era árida, com poucas acumulações de neve-Ayla decidiu que o frio gélido tinha alguns benefícios. Os afluentes do Grande Rio Mãe eram mais pequenos e estavaro gelados, tornando a sua travessia mais fácil. Mas atravessavam in variavelmento o mais depressa possível as aberturas na margem direita devido aos ventos ferozes que rugiam pelos vales dos rios e ribeiros. Estas rajadas impeliam o ar gélido das áreas de alta pressão das montanhas de sul, juntando vento gelado à tomperatura já gélida do ar.
A tremer dentro das suas peles de Inverno, Ayla sentiu-se aliviada quando conseguiram finalmento atravessar um vale largo até à barreira protectora de terreno alto all perto.
--Tenho tanto frio! -- disse, com os dentes a bator.-Gostava que o tompo aquecesse um pouco.
Jondalar ficou com uma expressão alarmada.-Não desejes isso, Ayla! -- Por que não?
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PI.I[CIES DE PASSAGEM
-- Temos de atravessar o glaciar antes de o tempo mudar. O vent
quente traz ofoehn, o vento que derrete a neve, que faz mudar a estação.
Nesse caso teríamos de dar a volta pelo norte, através de territdrio do Clã.
Demorará muito mais tempo e com todos os problemas que Charoli lh term causado não creio que se mostrem muito hospitaleiros m c
da]ar.
Ela assentiu, compreendendo, olhando
de o estudar ao longo de certa distância, Ayla disse:
-- Eles têm o lado melhor.
-- Que é que te faz dizer isso?
--Mesmo daquivê-se que há planícies com boa erva e isso faz que haja mais animais para caçar. Deste lado há pinheiros, o que significa terra arenosa e erva pobre, excepto ha]guns sítios. Este lado deve estar mais perto do gelo para ser mais frio e menos rico-disse ela.
--Talvez tenhas razão-disse Jonda]ar, pensando que a análise dela tinha sido astuta, u Não sei como é no Verão; só cá estive no Inverno.
Ayla tinha feito uma análise correcta. O solo das planícies norte do vale do grande rio eram pñncipalmente formadas por loess sobre uma camada de ca]cário e era mais fértil que o solo do lado sul. Além disso, os glaciates de montanha do sul estavam mais perto, tornando os Invernos. mais severos e os Verões mais frescos, quase não dando para derreter a neve acumulada e a geada que cobria o solo até à linha de neve do Verão anterior. A maioria dos glaciates estavam a crescer de novo, lentamen - te, mas o suficiente para assinalar uma mudança no meio corrente, um intervalo ligeiramente mais quente, regressando aos tempos mais frios, e um último avanço glacial antes do longo degelo que apenas deixaria gelo nas regiões polares.
O estado dormente das árvores deixava multas vezes Ayla insegura quanto à sua variedade, atd provar um botão ou a extremidade de um ga]ho um um pedacito de casca interior. Quando predominavam amieitos junte ao rio, e ao longo dos vales mais baixos dos seus afluentes, ela sabia que no Verão havia all bosques turfosos e pantanosos; quando se misturavam com salgueiros e plátanos, esses seriam os locais mais húmidos, e ocasionais freixos, olmos e betuláceas, pouco mais que vegetação lenhosa rasteira, indicaram solo mais seco. Os raros carvalhos anões, lutando por sobreviverem em nichos mais protegidos, representavam apenas uma leve sugestão das massivas florestas de carvalhos que um dia cobririam a terra mais temperada. As árvores estavam absoluta mente ausentes dos solos arenosos da charneca mais elevada, apenas capaz de sustentar urze, ervas esparsas, musgos e líquenes.
Mesmo naquele clima frígido existiam all a]gumas aves e animais;
abundavam animais das estepes e das montanhas adaptados ao frio e era
fácil caçar. Só raramente utilizavam as reservas que lhes tinham sido da
das pelos Losadunai, que de qualquer maneira queriam guardar para a travessia do glaciar. Sd quando chegassem à terra gelada é que precisafiam
de recorrer exclusivamente aos mantimentos que levavam.
Ayla viu um invulgar mocho da neve anão e indicou-o a Jonda]ar. Ele tornou-se perito em encontrar perdizes, que tinham o mesmo sabor dos ptarmigãs de penas brancas de que tanto gostava, particularmente da forma como Ayla os cozinhava. A sua coloração mista dava-lhes uma melhor camuflagem numa paisagem que não estava totalmente coberta de neve. Jonda]ar teve a impressão de que havia mais neve all da última vez que por lá passara.
A região era influenciada quer pelo este continental, quer pelo oeste
marítimo, revelados pela invulgar mistura de plantas e animais que
raramente viviam perto uns dos outros. As pequenas criaturas peludas
eram um exemplo que Ayla detectou, embora durante a estação gelada
raramente se vissem ratos, arganazes, ratos-calunga, esquilos terrestres
e hamsters, excepto quando ela abriu um ninho para tirar os a]imentos
vegetais que eles guardavam. Embora por vezes também matasse os animais , para o Lobo ou, particularmente, quando encontrava hamsters gigantes, para si próprios, os pequenos animais serviam sobretudo de a]i
mento a marras, raposas e pequenos gatos selvagens.
Nas planícies elevadas, e ao longo dos vales ds rios, avistavam com frequência mamutes peludos, normalmente em mnadas de fèmeas aparentadas, com um macho ocasiona] a viajar na sua companhia, embora durante a estação fria grupos de machos muitas vezes também se agrupassem em manadas. Os rinocerontes eram invariavelmente animais solitáños, à excepção das fêmeas com uma ou duas crias pequenas. Na estação mais quente, eram numerosos os bisontes, auroques e rodas as variedades de veados, desde os megaceros gigantes aos pequenos veados tímidos, mas apenas as renas continuavam all durante o Inverno. Pelo contrário, os carneiros, as camurças e os ibex tinham migrado do seu habitat de Verão nas montanhas e Jonda]ar nunca vira tantos bois-a]miscarados. Devia ter sido um ano em que a população de bois-a]miscarados esta va num ponto alto do seu ciclo. No ano seguinte, provavelmente desceria a números mínimos mas, entretanto, Ayla e Jondalar provaram o valor do seu lançador de lanças. Quando ameaçados, os boisalmiscarados, particularmente os machos beligerantes, formavam uma falange aperta da de cornos baixados virados para fora em círculo, a fim de proteger as crias e certas fèmeas. Este comportamento era eficaz contra a maioria dos predadores, mas não contra um lançador de lanças.
Sem terem de se aproximar o suficiente para correrem o perigo de uma carga rápida e súbita, Ayla e Jonda]ar podiam escolher de entre os animais que defendiam a sua posição e fazer pontaria a uma distância segura. Era quase demasiado fácil, embora tivessem de ser precisos e lançar com força para que a lança penetrasse a densa camada inferior de pêlo.
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Tendo diversas variedades de animais por onde escolher, era
ferem falta de comida e deixavam frequentemente os pedaços de
menos suculentos para outros carnívoros e, tara de desperdiçar alimentos, mas sim de necessidade. A,, em proteínas deixava-os frequentemente insatisfeitos, mesmo
uma refeição abundante. A casca interior das árvores e chás feito.,
lhas e de pontas de galhos proporcionaram-lhes apenas limitado alívio
Os seres humanos omnívoros podiam subsistir com uma variedade de i
alimentos e as proteínas eram essenciais, mas por si só não chegaram, i
Havia conhecimento de ferem morrido pessoas por falta de proteínas!
sem, pelo menos, um ou outro produto vegetal ou gordura. Estando a viajar
no final do Inverno, com muito poucas possibilidades de arranjar alimentos
vegetais, precisavam de gordura para sobreviver, mas a estação
já ia tão adiantada que os animais que caçavam já tinham usado a maior
parte das suas próprias reservas. Os viajantes seleccionavam a carne e os órgãos internos que tinham maior gordura e deixavam a carne magra,
ou davam-na ao Lobo. Ele arranjava alimento mais que suficiente pelos
seus próprios meios nos bosques e nas planícies por onde iam passando.
Um outro animal habitava aquela região e, embora dessem sempre por ele, nem Jondalar nem Ayla conseguiam caçar cavalos. Os seus com panheiros de viagem alimentavam-se bem de ervas secas, de líquenes e até de pequenos galhos e casca fina das árvores.
Ayla e Jondalar viajaram para oeste, seguindo o curso do rio e inflec-:
tindo ligeiramente para norte, com o maciço do outro lado do rio a acorn
panhá-los. Quando o rio curvou ligeiramente para sudoeste, Jondalar
soube que se estavam a aproximar. A depressão entre as antigas terras
altas a norte e as montanhas a sul começou a subir em direcção a uma paisagem
selvagem onde se formavam afloramentos rochosos e escarpados.
Passaram pelo sítio onde três ribeiros se juntavam para formar aquilo.
que reconheceram ser o início do Grande Rio Mãe, depois atravessaram
-no e seguiram a margem esquerda do ribeiro do meio, a Mãe do Meio. Era
aquele que tinham dito a Jondalar ser o verdadeiro Rio Mãe, embora
qualquer dos três pudesse sê-lo.
Chegar àquilo que era essencialmente o início do grande rio não foi a
experiência profunda que Ayla tinha pensado que seria. O Grande Rio
Mãe não irrompia de um local específico, como o grande mar interno onde
terminava. Não havia um princípio claro, e até a delimitação do territó-rio a norte, considerado territdrio dos cabeças achatadas, era incerta,
mas Jondalar teve uma sensação familiar em relação à área em que esta
yam. Achou que estavam perto da orla do glaciar, embora estivessem há
já algum tempo a viajar sobre neve e fosse difÍcil de dizer.
Embora ainda fosse de tarde, tinham decidido começar a procurar um
PLAN[CIES DE PASSAGEM
sítio onde montar o seu acampamento e cortaram pela terra atd à margem
direita do afluente superior. Decidiram parar um pouco mais à
frente, do outro lado do vale de um ribeiro relativamente grande vindo do
lado norte e que se juntava ao primeiro.
Quando Ayla viu uma faixa de gravilha à mostra junto do ño, parou para apanhar várias pedras redondas e lisas que seriam perfeitas para a sua funda e meteu-as na sua bolsa. Pensou que poderia ir caçar ptarmigãs ou lebres brancas ao fim da tarde ou talvez na manhã seguinte.
As recordações da sua breve estada com os Losadunaijá começavam a desaparecer, dando lugar a preocupações relativamente ao glaciar em frente, particularmente para Jondalar. A pé e muito carregados, tinham avançado mais lentamente do que ele tinha planeado e ele temia que o fim do longo Inverno chegasse demasiado depressa. A chegada da Primavera era sempre imprevisível mas aquele era um ano em que ele desejava que chegasse tarde.
Descarregaram os cavalos e montaram o acampamento. Como ainda era cedo, decidiram ir caçar carne fresca. Entraram numazona ligeiramente arborizada e encontraram pegadas de veado, o que surpreendeu ambos e preocupou Jondalar. Estava com esperança de que os veados já de regresso não fossem sinal de que a Primavera em breve chegaria. Ayla fez sinal ao Lobo e avançaram pelo bosque em fila indiana, com Jondalar à frente. Ayla ia logo atrás dele, com o Lobo ao seu lado. Ela não que ria que ele desatasse a correr e espantasse a caça.
Seguiram o rasto através do bosque esparso em direcção a um aflora mente rochoso que lhes bloqueava a vista em frente. Ayla viu os ombros de Jondalar descontraírem-se e a tensão no seu andar abrandar e compreendeu porquê quando o rasto do veado indicou que este tinha fugido a correr. Era óbvio que alguma coisa o tinha assustado.
Ficaram ambos imóveis ao ouvir o som do rosnar surdo do Lobo. Tinha-se apercebido de qualquer coisa e eles tinham aprendido a respeitar os seus avisos. Ayla tinha a certeza de que ouvira ruídos do outro lado da grande rocha que se projectava da terra e bloqueava o seu caminho. Ela e Jondalar olharam um para o outro; o homem também os tinha ouvido. Avançaram lentamente, contornando o afloramento rochoso. Depois ouviram gritos, o som de qualquer coisa a cair pesadamente e, quase simultaneamente, um grito de dor.
O grite tinha uma qualidade que fez que Ayla sentisse um arrepio pela espinha abaixo, um arrepio de reconhecimento.
D Jondalar! Alguém está com problemas! N disse ela, correndo em
volta da pedra.
D Espera, Ayla! Pode ser perigoso! -- gritou ele num aviso, mas era já demasiado tarde. Empunhando a sua lança, correu para a apanhar.
Do outro lado do afloramento rochoso, vários jovens estavam a lutar
com alguém caído no chão que estava a tentar libertar-se sem grande su
JEAN A UEL
cesso. Outros estavam a dirigir comentários
estava de joelhos e estendido sobre uma pessoa que os outros dois
varo a tentar imobilizar.
-- Despacha-te, Danasi! Ainda precisas de mais ajuda? Esta está lutar.
-- Talvez precise de ajuda para o encontrar.
-- Ele sabe lá o que fazer com ele.
Então que dê uma oportunidade a outro.
Ayla vislumbrou cabelo louro e, zangada e cheia de no"
-se de que estavam a imobilizar uma mulher e percebeu o c a tentar fazer. Ao correr para eles, teve outra percepção. Talvez fosse forma de uma perna ou de um braço, ou o som de uma voz, mas mente percebeu que era uma mulher do Clã m uma mulher Ficou estupefacta, mas apenas por instantes.
O Lobo estava a rosnar, ansioso, mas a observar A
de atacar.
m Deve ser o grupo do Charoli!- disse Jondalar, aproximando-s detrás dela.
Tirou a mochila com o suporte das lanças e em três
chegou junto dos três homens que estavam a
o que estava em cima dela pelas costas da sua parka junto ao pescoço
arrancou-o de cima da mulher. Depois deu a volta e, fechando o
assentou-o na cara do homem. O homem caiu no chão.
ram momentaneamente boquiabertos de choque, mas de
mulher para atacar o estranho. Um deles saltou-lhe para as costas.
enquanto o outro lhe dava murros na cara e no rosto. O homem
atirou para o chão o que estava sobre as suas costas, apanhou um to forte no ombro e contra-atacou com um poderoso golpe no estômago do
homem que estava à sua frente.
A mulher rolou e recuou para se desviar quando os dois homens perseguiram Jondalar e correu para o outro grupo de homens que lutavam. Enquanto um dos homens se dobrava sobre si com dores, Jondalar virou- -se para o outro. Ayla viu o primeiro a tentar levantar-se.
--Lobo! Ajuda Jondalar! Apanha aqueles homens! disse ela
do sinal ao animal.
O grande lobo correu de born grado para o meio da refrega enquanto
ela tirava a mochila, desamarrava a funda que tinha em volta da cabeça
e puxava da bolsa onde tinha as pedras. Um dos três homens estava de novo no chão e ele viu um outro, com uma expressão aterrorizada
erguer um braço para se defender do enorme lobo que o ia atacar. O animal
ergueu-se nas patas traseiras, cravou os dentes no braço de um
sado casaco de Inverno e arrancou a manga, enquanto Jondalar assenta
va um poderoso murro no maxilar do terceiro.
Pondo uma pedra na funda, Ayla virou a sua atenção para o outro
PLAN]CIES DE PASSAGEM
grupo de homens a lutar. Um deles tinha erguido uma pesada moca de
osso com ambas as mãos e estava prestes a desferir um golpe. Ela lançou
rapidamente a pedra e viu o homem com a moca cair no chão. Um outro
homem, que empunhava uma lança num gesto ameaçador sobre alguém
caído no chão, viu o seu amigo cair com uma expressão deincredulidade.
Abanou a cabeça e não viu a segunda pedra vir, mas gritou de dor quando
esta o atingiu. A lança caiu no chão enquanto ele agarrava o braço ferido.
Seis homens tÌnham estado a lutar com um outro caído no chão, mas a luta era renhida. A funda de Ayla tinha feito cair dois e a mulher que tinha sido atacada estava a bater num terceiro, com bons resultados. O homem estava com os braços erguidos em defesa. Um outro, que se tinha aproximado de mais do homem que tinham estado a tentar imobilizar, foi atordoado por um poderoso murro, cambaleando para trás. Ayla tinha mais duas pedras prontas a lançar. Lançou uma, dirigida a uma coxa musculosa não vital, dando ao homem caído no chão-um homem do Clã, como Ayla calculara-uma aberta. Embora estivesse sentado, agarrou o homem mais perto de si, ergueu-o do chão e atirou-o contra outro homem.
A mulher do Clã renovou o seu ataque enfreneziado, acabando por fazer fugir o homem com quem tinha estado a lutar. Embora não estives sem habituadas a lutar, as mulheres do Clã eram tão fortes como os homens, em proporção ao seu tamanho. E embora tivesse preferido ceder em vez de lutar para se defender de um homem que a queria usar para aliviar as suas necessidades, aquela mulher tinha sido levada a atacar em defesa do seu companheiro ferido.
Mas os jovens já não tinham forças para lutar. Um deles estava inconsciente perto da perna do homem do Clã, com uma ferida na cabeça a escorrer sangue que manchava o seu cabelo louro e que estava a inchar e a formar uma mancha descorada. Um outro estava a esfregar o braço, a olhar furioso para a mulher que empunhava a funda pronta para novo lançamento. Os outros estavam magoados e feridos, um com um olho que começara já a inchar e a fechar. Os três que tinham estado a atacar a mulher estavam todos encolhidos no chão, com a roupa em farrapos, cheios de medo do lobo que os vigiava com os dentes arreganhados e a rosnar ameaçadoramente.
Jondalar, que tinha apanhado a sua quota parte de pancada mas não parecia dar por isso, dirigiu-se para Ayla para se assegurar de que ela estava bem, depois olhou atentamente para o homem no chão e subita mente apercebeu-se de que era um homem do Clã. Tinha sabido antes de terem deparado com aquela cena, mas só naquela altura é que o facto teve impacte. Pensou por que é que o homem ainda estaria por terra. Puxou o homem inconsciente para longe dele e rolou-o ao contrário; estava a respirar. Depois viu por que é que o homem do Clã não se levantava.
A razão era imediatamente aparente. A coxa da sua perna direita,
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imediatamente acima do joelho, estava dobrada, formando um ångulc
estranho. Jondalar olhou para o homem com admiração. Com uma perna
partida, tinha conseguido bater-se com seis homens. Sabia que os
cabeças achatadas eram fortes, mas nunca se apercebera de como tinham
força, nem da sua determinação. O homem tinha de estar cheio de dores,
mas não o demonstrava.
Subitamente, um outro homem, que não tinha estado envolvido na refrega, apareceu com um andar sobranceiro. Olhou para o grupo derro - tado e ergueu uma sobrancelha. Todos os jovens pareceram encolher-se sob o seu olhar de desdém. Não sabiam como explicar o que acontecera.
Num instante estavam no meio da briga e a divertir-se com os dois cabeças
achatadas que tinham tido o azar de se lhes atravessar no caminho, e no instante seguinte estavam à mercê de uma mulher que atirava
pedras, de um homem com punhos duros como tochas e do maior lobe que
alguma vez tinham visto! Para não falar nos dois cabeças achatadas. m Que é que aconteceu? m perguntou ele.
m Os teus homens apanharam finalmente uma lição-disse Ayla.-
A seguir será a tua vez.
A mulher era uma absoluta estranha. Como é que ela sabia que aquele:
era o seu bando ou fosse o que fosse a seu respeito? Falava a sua língua,
mas com um estranho sotaque, e ele pensou quem ela seria. A mulher do
Clã virou a cabeça ao ouvir a voz de Ayla e estudou-a atentamente, embora
mais ninguém tivesse dado por isso. O homem com o galo na cabeça
estava a recuperar consciência e Ayla foiver a extensão do seu ferimento.
Afasta-te dele! m disse o homem, mas a sua bravata foi negada pelo medo que ela lhe detectou na voz.
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PLAN]CIE$ DE PASSAGEM
O próprio Jondalar ficou surpreendido. Ela já lhe tinha feito
na]mente isso, quando tinha qualquer coisa importante a dizerlhe
ficava frustrada por não encontrar as palavras para se expressar,
aquela era a primeira vez que ele a via usar aquela postura no
dadeiro contexto. Era um gesto de respeito. Estava a pedir
para se dirigir a ele, mas o homem alto ficou espantado por
era tão capaz e independente, abordar aquele cabeça achatada,
homem do Clã, com tal deferência. Ela já uma vez lhe tinha tentado,
car que era cortesia, tradição, a sua forma de falar, -
te humilhante, mas Jonda]ar sabia que nenhuma mulher
nem qualquer outra mulher que ele conhecesse, alguma vez
um homem ou uma mulher dessa forma.
Enquanto Ayla estava pacientemente à espera que ohom
se no ombro, nem sequer estava segura de que aquela sea mesma linguagem que o clã que a tinha cñado. A distância era grande e aquela gente tinha um aspecto diferente. Mas ela semelhanças nas línguas faladas, embora quanto mais longe vivessem menos parecida era a língua. Só podia esperar de sinais daquela gente fosse igual.
Pensava que a sua linguagem gestua], bem como muitos dos conhecimentos e padrões de actividades, provinham das suas mero, das memóñas rácicas, semelhantes ao instinto, com as quais rodas crianças nasciam. Se aquelas pessoas do Clã proviessem das mesmas an figas origens como aquelas que ela conhecera, a sua língua seria, nos, semelhante.
Enquanto esperava nervosamente, começou apensar se o homem ria a]guma ideia do que ela estava a tentar fazer. Depois sentiu um to no ombro e respirou fundo. Há muito tempo que não fa]ava com gente Clã, desde que tinha sido amaldiçoada... Tinha de esquecer isso. Não podia deixar que aquela gente soubesse que ela estava morta em termos do Clã, senão deixariam de a ver, exactamente como se não existisse. Olhou para o homem e os dois estudaram-se mutuamente.
Ele não via qualquer sugestão de Clã nela. Era uma mulher dos Outros. Não se parecia com aqueles que pareciam estranhamente deforma dos por uma mistura de espíritos, como tantos que actualmente nasciam. Mas onde é que aquela mulher dos Outros teria aprendido a forma correcta de se dirigir a um homem?
Há muitos anos que Ayla não via um rosto Clã e o dele era verdadeiramente
um rosto Clã, embora não idêntico ao rosto da gente que ela
conhecera. O seu cabelo e barba eram de um castanho mais claro e pare
ciam macios e não tão encaracolados. Os seus olhos também eram mais
claros, castanhos, não dos olhos profundos e líquidos, quase negros, da
sua gente. As suas feições eram mais fortes, mais acentuadas: as suas arcadas
superciliares eram mais pesadas, o nariz mais atilado, o seu rosto era mais projectado para a frente, a sua testa parecia inclinar-se para
trás mais abruptamente e a sua cabeça era mais comprida. Parecialhe,
de certa forma, mais Clã que o seu Clã.
Ayla começou a falar com os gestos e as palavras da linguagem do dia-adia do clã de Brun,alinguagem do Clã que ela aprendera em criança. Foi imediatamente aparente que ele não compreendia. Depois, o homem fez alguns sons. Tinham o tom e áqíalidade do Clã, bastante guturais e com as vogais quase engolidas, e ela esforçou-se por compreender.
O homem tinha uma perna partida e ela queria ajudá-lo, mas tambdm queria saber mais sobre aquela gente do Clã. De certa forma, sentia-se mais à-vontade junto deles que junto da gente dos Outros. Mas, para o ajudar, precisava de comunicar com ele, para o fazer compreender. Ele voltou a falar e fez sinais. Os gestos pareciam como se lhe devessem ser familiares, mas ela não conseguia entender o seu sentido e os seus sons -palavras não lhe eram de todo conhecidos. Seria a linguagem do Clã de la tão diferente que ela não conseguiria comunicar com os clãs daquela região?
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Olhando de relance para a jovem mulher sentada all ao pé e que pare
cia nervosa e perturbada, Ayla pensou como é que se poderia fazer entender
ao homem do Clã. Depois, lembrando-se do Encontro do Clã,
a linguagem antiga e formal e essencialmente silenciosa usada para
comunicar com o mundo dos espíritos e com outros clãs que tinham umalíngua
comum diferente.
O homem assentiu e fez um gesto. Ayla sentiu-se varrida por uma onda de alívio quando descobriu que ele a entendia, e um frémito de entusiasmo. Aquelas pessoas tinham a mesma origem que o seu Clã! A determinada altura, num passado muito remoto, aquele homem tinha tido os mesmos antepassados que Creb e Iza. Com uma súbita percepção, recordou uma estranha visão e soube que, também ela, compartilhava raízes, ainda mais antigas, com ele, mas que a sua linha tinha divergido, segui do um caminho diferente.
Jondalar observou, fascinado, enquanto eles começavam a falar com sinais. Era difícil seguir os movimentos rápidos e fluidos que eles faziam, que dava uma sensação de ainda maior complexidade e subtileza à linguagem do que ele supusera ter. Quando Ayla ensinou à gente do Acampamento do Leão alguma linguagem de sinais do Clã para que Rydag pudesse comunicar com eles pela primeira vez da sua vidama linguagem formal, pois era mais fácil para o garoto aprender-apenas lhes ensina ra os rudimentos básicos. O rapaz gostara sempre mais de falar com ela que com qualquer outra pessoa. Jondalar calculou que Rydag conseguia comunicar com ela mais plenamente, mas estava a começar a compreender o alcance e a profundidade da língua.
Ayla ficou surpreendida quando o homem passou por cima de alguns dos formalismos da apresentação. Não estabeleceu nomes, lugares nem linhas de parentesco.
m Mulher dos Outros, este homem gostava de saber onde aprendeste a falar.
-- Quando esta mulher era uma criança pequena, a família e a gente morreram num tremor de terra. Esta mulher foi criada por um clã m explicou ela.
Este homem não conhece nenhum clã que recolheu uma criança dos Outros-disse o homem por sinais.
PLAN]CIES DE PASSAGEM
-- O clã desta mulher vive muito longe. O homem conhece o rio conhecido
dos Outros como a Grande Mãe?
m É a fronteira-disSe ele com gestos impacientes.
O rio continua por rena distância maior do que muitos sabem, até a um grande mar, muito longe a este. O clã desta mulher vive do outro lado da Grande Mãe-disse Ayla.
Ele ficou com uma expressão de incredulidade e depois estudou-a.
Sabia que, ao contrário da gente do Clã cuja linguagem incluía a compreensão
de movimentos do corpo e de gestos inconscientes, que tornava
quase impossível dizer uma coisa e querer dizer outra, a gente dos
Outros, que falava com sons, era diferente. Não podia ter a certeza em
relação a ela. Não via qualquer indício de dissimulação, mas a sua histó-ria parecia-lhe muito fantasiosa.
-- Esta mulher está a viajar desde o início da última estação quente -- acrescentou ela.
Ele voltou a ficar impaciente e Ayla apercebeu-se de que estava cheio de dores.
-- Que é que a mulher quer? Os Outros foram-se embora, por que é que a mulher não vai? Ele sabia que ela tinha provavelmente salvo a sua vida e ajudara a sua companheira, o que significava que lhe devia uma obrigação; isso faria que viessem logo a seguir aos parentes. Aquela ideia era-lhe inquietante.
m Esta mulher é curandeira. Esta mulher gostava de ver a perna do homem-explicou Ayla.
O homem fez um som de desdém.
-- A mulher não pode ser curandeira. A mulher não é Clã.
Ayla não discutiu. Pensou por instantes e depois decidiu tentar outra abordagem.
--Esta mulher gostaria de falar com o homem dos Outros mpediu. Ele assentiu. Ayla levantou-se e recuou antes de se virar para ir falar com Jondalar.
-- Consegues comunicar bem com ele? -- perguntou-lhe ele.-Sei que estás a fazer uma tentativa, mas o Clã com quem viveste fica tão longe que não posso deixar de me interrogar sobre o teu êxito.
m Comecei por usar a linguagem do dia-a-dia do meu clã e não nos conseguimos compreender. Eu devia ter percebido que os seus sinais e palavras vulgares não seriam os mesmos, mas quando usei a antiga linguagem formal não tivemos qualquer problema de comunicação-explicou Ayla.
-- Será que te entendi bem? Estás a dizer que o Clã consegue comunicar
de uma forma que é compreendida por todos eles? Onde quer que
viram? É difícil de acreditar.
-- Talvez seja-disse ela --, mas a forma antiga está nas suas memórias.
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-- Queres dizer que nascem a saber falar dessa forma?
sabe?
m Não exactamente. Nascem com as memórias, mas têm de ser
sinados a utilizá-las. Não sei bem como d, nåo tenho as memórias, parece ser mais como "recordar-lhes" do que sabem. nas têm de ser recordados uma vez para ficarem a saber tudo. Era que algumas pessoas pensavam que eu lenta a aprender até me ensinar a mim própria a m mesmo assim não foi fácil. O Rydag tinha as memórias. guém para lhe ensinar.., para o fazer recordar. Era por isso a linguagem de sinais até eu chegar.
m To, lenta a aprenderes! Nunca vi ninguém aprender línguas depressa disse Jondalar.
Ela encolheu os ombros, não dando importância ao comentário. -- luso é diferente. Creio que os Outros têm uma es[ para a linguagem de palavras, mas nós aprendemos leu que estão à nossa volta. Para aprender uma linguagem diferente, nas é necessário memorizar um conjunto de sons, e de os juntar m disse ela. m Mesmo que não se seja perfeito, compreender uns aos outros. A linguagem dele é mais difícil, para mas o problema que estou a ter com ele não é de comunicação. O ma é a obrigação.
Obrigação. Não entendo-disse Jondalar.
--Ele está com dores terríveis, embora nunca te deixe perceber. { to ajudá-lo. Quero encaixar a perna. Não sei como é que vão conse
gressar ao seu clã, mas poderemos preocupar-nos com
Primeiro, preciso de lhe tratar da perna. Mas ele já está em dívida
connosco e sabe que se eu entendo a sua língua também compreendo
obrigaçåo. Se ele acreditar que lhe salvámos a vida, é uma
parentesco. Não nos quer dever mais nada disse Ayla,
car uma relação extremamente complexa de uma forma simples.
,Que é uma dívida de parentesco?
E uma obrigação.., m Ayla tentou pensar numa forma
aquilo de uma forma clara.-Normalmente é entre caçadores de
Se um homem salvar a vida a outro, fica a "pertencer-lhe" um
espírito do outro. O homem que teria morrido dá um pedaço do
rito para poder viver. Como um homem não quer que morram ' seu espírito.., nem que caminhem no outro mundo antes dele.., se
homem deriver um pedaço do seu espírito, ele fará tudo para salvar
da desse homem. Isso torna-os parentes, mais chegados que irmãos.
Faz sentido-disse Jondalar, assentindo.
-- Quando os homens caçam juntos-continuou Ayla têm de se
dar uns aos outros e muitas vezes salvam a vida uns aos outros
to um pedaço do espírito de cada um normalmente'
PLAN [C IES DE PASSAGEM
outros. Isso torna-os parentes de uma forma que ultrapassa a família. Os
caçadores de um clã podem ser a! .. rentados, mas o parentesco da famí-lia não pode ser mais forte que o{elo entre caçadores, porque não podem
sobrepor um ao outro. Estão todos dependentes uns dos outros.
m Há sabedoria nisso-disse Jondalar, pensativo.
-- Chama-se aisso dívida de parentesco. O homem não conhece os costumes dos Outros e não term em grande conta aquilo que sabe.
-- Depois de Charoli e do seu bando, quem é que o pode censurar por luso?
mVai mais longe que isso, Jondalar. Mas não está contente por estar em dívida para connosco.
-- Ele disse-te tudo isso?
--Não, é claro que não, mas a linguagem do Clã é mais que sinais feitos com as mãos. E a forma como uma pessoa está sentada, ou de pé, expressões do rosto, pequenas coisas, mas todas elas têm significado. Cresci num clã. Essas coisas são tão parte de mim como são dele. Sei o que o está a incomodar. Se ele me aceitasse como curandeira do Clã, isso ajudaria. -- Que diferença é que isso faria? -- disse Jondalar.
-- Significa que já possuo uma parte do seu espírito m disse Ayla.
--Mas to nem sequer o conheces! Como é que podes possuir uma parte do seu espírito?
--Uma curandeira salva vidas. Pode reclamar um pedaço do espírito de cada uma que salva, pode "possuir" pedaços de toda a gente em muito poucos anos. Portanto quando é declarada curandeira dá um pedaço do seu espírito ao Clã e recebe uma parte do espírito de toda. s as pessoas do Clã. Assim, salve ela quem salvar, a dívida já está paga. E por isso que uma curandeira term estatuto por direito próprio.-Ayla ficou pensativa e depois disse: -- Esta é a primeira vez que estou contente por os espíritos do Clã não me terem sido retirados-disse, fazendo depois" uma pausa.
Jondalar ia a falar. Depois reparou que ela estava com o olhar ausente e apercebeu-se de que ela estava a olhar para dentro de si própria.
--... Quando fui amaldiçoada com a morte-continuou ela.-Preocupei-me com isso durante muito tempo. Depois da Iza morrer, o Creb tirou-lhe todos os pedaços dos espíritos para que não fossem com ela para o outro mundo. Mas quando o Broud me amaldiçoou, ninguém mos tirou, muito embora para o Clã eu esteja morta.
m Que é que aconteceria se eles soubessem isso? -- perguntou Jondalar, indicando com um movimento discreto da cabeça as duas pessoas do Clã que os estavam a observar.
Eu deixaria de existir para eles. Não me veriam; não permitiriam
a si próprios verem-me. Eu podia estar mesmo à sua frente e gritar que
eles não ouviriam. Pensariam que eu era um espírito mau a tentar atraí-
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-los para o outro mundo-disse Ayla, fechando os olhos
com a recordação.
-- Por que é que disseste que estavas contente por ainda teres os daços dos espíritos? -- perguntou Jondalar.
-- Porque não posso dizer uma coisa e querer dizer outra
Não lhes posso mentir. Ele perceberia. Mas posso abster-me de
Isso é permitido, por cortesia, para garantir a privacidade. Não tenho
dizer nada sobre a maldição, muito embora ele provavelmente percebe
se que eu estava a calar qualquer coisa, mas posso dizer que sou
deita do Clã, porque é verdade. Ainda sou. Ainda possuo os
esplYitos.-Ayla franziu a testa de preocupaão.-Mas um dia m
rei mesmo, Jondalar. Se eu for para o outro múndo com os pedaços do
pírito de toda a gente do Clã, que é que lhes acontecerá?
-- Não sei, Ayla m disse ele.
Ela encolheu os ombros, afastando aquele pensamento. reborn, é com este mundo que tenho de me aceitar como curandeira do Clã, não terá que se preocupar tanto com facto de ficar em dívida para comigo. Já é mau ficar a dever uma de parentesco a um dos Outros, mas seria pior se fosse a uma sobretudo uma mulher que usou uma arma.
--Mas to caçavas quando vivias com o Clã-recordou-lhe Jon -- Isso foi uma excepção especial e apenas porque sobrevivi a maldição de morte de um ciclo de lua por caçar e usar a funda. O Brun mitiu-o porque o meu totem do Leão das Cavernas me protegeu. achou que era um teste e creio que isso lhe deu uma razão para uma mulher com um totem tão poderoso. Foi ele que mã de caça e me chamou a Mulher Que Caça.
Ayla tocou na bolsa de pele que usava sempre ao pescoço e pensou primeira que tivera, uma bolsa simples com fios para a fechar " fizera. Como sua mãe, Iza tinha posto o pedaço de ocre vermelho lá c fro quando Ayla foi aceite pelo Clã. O amuleto não se parecia nada o que ela agora usava, magnificamente enfeitado, que lhe tinha do na sua cerimónia de adopção pelos Mamutei, mas ainda continha suas recordações especiais, incluindo o pedaço de ocre vermelho original. Todos os sinais que o seu totem lhe tinha dado estavam lá dentro, como o pedaço oval manchado de vermelho da ponta de um mamute que era o seu talismã de caça, e a pedra negra, o pequeno pedaço de dióxido de manganésio que continha os pedaços dos espíritos do Clã, q sido dado quando ela se ternara a curandeira do clã de Brun.
--Jondalar, acho que ajudaria se falasses com ele. Ele está inseguro. Os seus costumes são muito tradicionais e aconteceram demasiadas coisas invulgares. Se ele pudesse falar com um homem, mesmo um homem dos Outros, em vez de uma mulher, talvez tranquilizasse o seu espírito. Lembras-te do sinal para saudar um homem?
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Jondalar fez um gesto e Ayla assentiu. Sabia que não era um gesto
nem subtil nem eleganCe, mas o significado era claro.
--Por enquanto, não tentes saudar a mulher. Seria de mau gosto e ele
talvez o tomasse como um insulte. Não é nem habitual nem apropriado
os homens falarem com as mulheres sem terem boa razão para o fazerem, especialmente estranhos, e mesmo nesse caso precisarias da autorização
dele. Com os parentes, há menos formalidades, e um amigo íntimo podia
até satisfazer as suas necessidades.., compartilhar Prazeres... com ela,
embora seja considerada boa educação primeiro pedir autorização.
-- Pedir a autorização dele, mas não a dela? Por que é que as mulheres se deixam tratar como se fossem menos importantes que os homens? -- perguntou Jondalar.
-- Elas não o interpretam dessa forma. Sabem, no seu íntimo, que mulheres e homens são igualmente importantes, mas os homens e as mulheres do Clã são muito diferentes entre si-tentou explicar Ayla.
--É claro que são diferentes. Todos os homens e mulheres são diferentes...
E ainda bem.
--Não me retiro a diferentes da forma como to entendes. To consegues
fazer tudo o que uma mulher faz, Jondalar, excepto ter um bebé, e embora
sej as mais forte eu consigo fazer quase tudo o que to fazes. Mas os homens
do Clã não conseguem fazer multas coisas que as mulheres fazem, exactamente
como as mulheres não conseguem fazer as coisas que os homens
fazem. Não têm memórias para isso. Quando eu me ensinei a mim pró-pria a caçar, multas pessoas ficaram mais surpreendidas por eu ter a
capacidade de aprender, ou mesmo o desejo, que com o facto de ter ido contra
os costumes do Clã. Não os espantaña mais se to desses à luz um bebé,
Jondalar. Creio que as mulheres ficaram mais surpreendidas que os
homens. A ideia nunca teria ocorrido a uma mulher do Clã.
-- Pensei que tinhas dito que a gente do Clã e dos Outros era muito parecida m disse Jondalar.
--E é. Mas em algumas coisas são mais diferentes do que possas imaginar.
Ou mesmo do que eu possa imaginar e fui um deles durante algum
tempo-disse Ayla.-Estás pronto para falar com ele?
-- Creio que sim.
O homem alto e louro dirigiu-se para o homem forte e atarracado que continuava sentado no chão, com a coxa dobrada num ângulo que não era natural. Ayla seguiu-o. Jondalar baixou-se para se sentar à frente do homem, olhando de relance para Ayla, que assentiu em aprovação.
Ele nunca tinha estado tão perto de um macho adulto cabeça achata da e a sua primeira ideia foi uma recordação de Rydag. Ao olhar para aquele homem, foi ainda mais óbvio para ele que o rapaz não era Clã puro.
Enquanto Jondalar recordava a estranha criança doente, apercebeu-se
de que, por comparação, as feições de Rydag tinham sido muito atenua
das-suavizadas foi a palavra que lhe ocorreu. O rosto daquele homem
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era grande, quer largo, quer comprido, e um pouco projectado para
com um nariz bastante grande e afdado. A sua barba de pêlos finos
tinha vestígios de ter sido recentemente aparada para ficar de um tamanho
uniforme, não conseguia esconder totalmente um "
te recuado, sem queixo.
Os seus pêlos faciais misturavam-se com uma massa de cabelo
nho-claro encaracolado que cobria uma enorme cabeça comprida, cheia
arredondada na parte de trás. Mas as pesadas arcadas superciliares do
homem ocupavam a maior parte da testa, que era inclinada para trás
à linha do cabelo pouco alta. Jondalar teve de se controlar para não ceder ao impulso de tocar na sua própria testa alta e cabeça em forma de cúpula" Não compreendia bem por que é que lhes chamaram cabeç Era como se alguém tivesse pegado numa cabeça como a dele pouco maior e feita de um material maleável como barro molhado, e vol tado a dar-lhe forma, carregando nela para baixo e achatando a testa e forçando o volume do tamanho para trás.
As pesadas arcadas superciliaris do homem eram acentuadas por es, pessas sobrancelhas e os seus olhos salpicados de dourado, quase verdes, mostravam curiosidade, inteligência e vestígios de dor. Jondalar perce bia por que é que Ayla o queria judar.
Jondalar sentiu-se desajeitado ao fazer o gesto de saudação; animado com a expressão de surpresa no rosto do homem do Clã, retribuiu o gesto. Jondalar não estava bem certo do que fazer a seguir.
Pensou no que faria se estivesse a falar com um estranho de uma outra'
Caverna ou Acampamento e tentou lembrar-se dos sinais que
ra com Rydag.
Fez gestos.
-- Este homem chama-se...-e disse o seu nome e filiação --Jondalar dos Zelandonii.
Era demasiado melódico, demasiado carregado de silabas,
para um homem do Clã ouvir de uma só vez. Abanou a cabeça, como se estivesse a tentar desentupir o ouvido, inclinou a cabeça, como se isso ajudasse a ouvir melhor, e depois bateu no peito de Jondalar.
Não era difícil perceber o que ele queria dizer, pensou Jondalar. Voltou a fazer os sinais para "Este homem chama-se..." e depois voltou a dizer o seu nome, apenas o nome próprio, e mais lentamente-Jondalar.
O homem fechou os olhos, concentrando-se, depois abriu-os e, respi
rando fundo, disse em voz alta:
-- Dyondar.
Jondalar sorriu e assentiu que sim.
-- A palavra tinha uma qualidade de articulação incompleta, numa
voz profunda, e dava a sensação de vogais engolidas, mas era uma aproximação
suficiente. E estranhamente familiar. Depois ocorreu-lhe. E claro! Ayla! As palavras dela continuaram a ter a mesma qualidade, em
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bota não tão forte. Era esse o seu' estranho sotaque. Não admirava que
ninguém o conseguisse identificar. Tinha um sotaque do Clã e ninguém
sabia que eles conseguiam falar.
Ayla ficou surpreendida com o facto de o homem ter dito tão bem o
nome de Jondalar. Duvidava que ela própria o tivesse dito tão bem da primeira
vez que tentou e pensou se aquele homem já teria tido contacto com
os Outros. Se tivesse sido escolhido para representar a sua gente, ou estabelecer
qualquer tipo de contacto com aqueles conhecidos como os Outros,
isso indicaria o seu elevado estatuto. Mais uma razão, percebeu Ayla,
para ele desconfiar de laços de parentesco com os Outros, especialmente
com Outros de estatuto desconhecido. Não quereria rebaixar o seu pró-prio estatuto, mas uma obñgação era uma obrigação, e quer ele e a companheira
quisessem ou não admitir, precisavam de ajuda. Ela tinha de
o convencer de alguma forma de que eles eram Outros que compreendiam
o significado da situação e eram dignos da associação.
O homem que estava virado para Jondalar bateu no peito uma vez e
inclinou-se ligeiramente para a frente.
-- Guban disse.
Jondalar teve a mesma dificuldade em repetir o seu nome que Guban tivera com Jondalar e Guban mostrou-se tão generoso ao aceitar a má pronúncia do homem louro como este fora com ele.
Ayla sentiu-se aliviada. Uma troca de nomes ñão era muito, mas era um começo. Olhou de relance para a mulher, ainda surpreendida por ver uma cor de cabelo mais clara que a sua numa mulher do Clã. Tinha a cabeça coberta por uma massa de caracóis macios, tão claros que eram quase brancos, mas era muito nova a atraente. Era provavelmente uma segunda mulher do seu lar. Guban era um homem em plena forma e aquela mulher era provavelmente de um outro clã, e era um privilégio tê-la.
A mulher olhou para Ayla e desviou rapidamente o olhar. Ayla ficou intrigada. Tinha visto preocupação e medo nos olhos da mulher e olhou-a mais atentamente, mas de uma forma tão subtil como a que a mulher do Clã usara. Não tinha a cintura mais grossa? A sua capa não estava um pouco apertada em volta dos seios? "Está grávida! Não admira que esteja preocupada. Um homem com uma perna partida mal sarada deixaria de estar em plena forma. E enquanto o homem podia ter elevado estatuto, tinha também sem dúvida pesadas responsabilidades. Tinha de alguma forma que convencer Guban a deixá-la ajdá-lo", pensou Ayla.
Os dois homens tinham estado sentados a observarem-se um ao outro. Jondalar não sabia bem o que fazer a seguir e Guban estava à espera para ver o que ele faria. Por fim, em desespero de causa, Jonda lar virou-se para Ayla.
Esta mulher é Ayla-disse, usando sinais simples e depois dizendo o seu nome.
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Inicialmente, Ayla pensou que ele tinha cometido uma gaffe mas, ao ver a reacção de Guban, decidiu que talvez não. O facto de a
sentar tão rapidamente era indicação da elevada estima que
adequada ao seu estatuto de curandeira. Depois, ao continuar, I
ele teria lido os seus pensamentos.
D Ayla é curandeira. Muito boa curandeira. Boa medicina.
ajudar Guban.
Para o homem do Clã, os sinais de Jondalar pouco mais eram
versa infantil. O seu significado não tinha quaisquer nuancesi nem sugestivos, ou graus de complexidade, mas a sua sinceridade era dente. Era em si uma surpresa encontrar um homem dos Outros seguia falar como devia ser. A maioria tagarelava, murmurava, va como animais. Eram como crianças com o seu uso excessivo mas o que era certo é que os Outros não eram considerados como muito inteligentes.
Por outro lado, a mulher tinha uma surpreendente profundidade compreensão, com um enorme domínio da nuance; e uma capacidade ta e expressiva de comunicar. Com discreta finesse, traduziu significados mais subtis de Dyondar, facilitando a comunicação baraço para ninguém. Por mais difícil que fosse acreditar que sido criada por um clã e viajado tal distância, era tão hábil a falar quase se acreditava que ela era Clã.
Guban nunca ouvira falar do clã do qual a mulher falava,
muitos, mas a linguagem comum que ela usava era-lhe comi desconhecida. Nem a linguagem do clã da sua mulher de cabelo era tão estranha, no entanto aquela mulher dos Outros conhecia os " sagrados e utilizava-os com grande habilidade e precisão. para uma mulher. Havia uma sugestão de ela estar a ocultar coisa, embora ele não pudesse ter a certeza. Afinal de contas, ela era mulher dos Outros, e de qualquer forma não lhe podia perguntar. lheres, sobretudo as curandeiras, gostaram de guardar para si coisas.
A sua perna partida latejava de dor, ameaçando escapar ao seu con trolo, e por instantes teve de se concentrar em a dominar.
Mas como é que ela podia ser curandeira? Não era
mórias para o ser. Dyondar afirmava que ela era curandeira e falara sua competência com grande convicção.., e a sua perna estava ' Guban estremeceu interiormente e depois cerrou os dentes. Talvez fosse curandeira; os Outros também as têm, mas isse não a curandeira do Clã. A sua obrigação já era tão grande. Já er dívida de parentesco para com aquele homem, mas e para com uma mulher, uma mulher que usava uma arma?
No entanto, onde é que ele e a sua companheira de cabelo amarelo estariam
sem a sua ajuda? Este pensamento fè-lo sentir-se brando por
dentro. Tinha sentido uma ira maior do que alguma vez sentira quando aqueles homens a perseguiram, a magoaram e tentaram possuí-la. Tinha sido por isso que ele saltara de cima da rocha. Tinha levado muito tempo a subir atd lá acima e não podia esperar tanto tempo para descer.
Tinha visto os rastos dos veados e subido à rocha para olhar em volta, para ver o que poderia caçar, enquanto ela apanhava a casca interior e punha recipientes para apanhar a seiva que não tardaria a correr. Ela tinha dito que o tempo em breve aqueceria, embora alguns dos outros não tivessem acreditado nela. Continuava a ser uma estranha, mas dizia que tinha memórias disso e que sabia. Ele tinha querido deixá-la provar isso aos outros e concordara em levá,la, embora soubesse o perigo que cor fiam.., daqueles homens.
Mas estava frio e ele pensou que os podiam evitar se se mantivessem
perto da parte de cima do gelo. O cimo da rocha parecera-lhe um born sí-tio para examinar a área. A dor agonizante quando caiu com toda a força
e sentiu a perna partir tinha-o entontecido, mas não podia sucumbir. Os homens estavam em cima dele e ele tinha de os combater, dor ou não
dor. Sentiu prazer quando se lembrou como ela correra para ele. Tinha
ficado admirado por a ver bater nos homens. Nunca vira nenhuma mulher
fazer isso e nunca diria a ninguém, mas tinha-lhe agradado ela ter-se
esforçado tanto por o ajudar.
Mudou o peso do corpo, controlando a punhalada de dor. Mas o problema não era tanto a dor. Há muito que aprendera a resistir à dor. Os outros medos eram mais difíceis de controlar. Que é que aconteceria se nunca mais conseguisse andar? Um braço ou uma perna partida podia levar muito tempo a sarar e se os ossos se unissem mal, tortos ou ficassem demasiado curtos.., e se nunca mais pudesse caçar?
Se não pudesse caçar, perderia estatuto. Deixaria de ser chefe. Tinha prometido ao chefe do clã cuidar dela. Ela era uma das favoritas, mas o seu estatuto era grande e ela queria ir com ele. Até lhe disse, na privacidade das suas próprias peles, que o tinha desejado.
A sua primeira mulher não tinha ficado lá muito contente quando ele voltou para casa com uma segunda mulher jovem e bela, mas era uma boa mulher do Clã. Tinha tratado bem do seu lar e conservaria o estatuto de Primeira Mulher. Ele tinha prometido cuidar dela e das suas duas filhas. Não se importava. Embora tivesse sempre desejado ter um filho, era um encanto ter as filhas da sua companheira no seu lar, embora não tardas sem a ser crescidas e ir-se embora.
Mas se ele não pudesse caçar não poderia cuidar de ninguém. Como
um velho, o clã teria de cuidar dele. Como é que poderia cuidar da sua bela mulher de cabelo amarelo, que talvez desse à luz um filho? Ela não teria
dificuldade em encontrar um homem disposto a ficar com ela, mas ele per
dêla-ia.
Se não conseguisse andar, nem sequer conseguiria regressar ao seu
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clã. Ela teria de ir buscar ajuda e eles teriam de o vir buscar. Se não
seguisse voltar por si, passaria a ser menos aos olhos do
ainda pior se a perna partida o obrigasse a andar mais devagar
desse a sua perícia a caçar, ou nunca mais pudesse caçar.
"Talvez deva falar com esta curandeira dos Outros", pensou,
sendo uma mulher que usa uma arma. O seu estatuto deve s pois Dyondar tem-na em grande conta, e o estatuto dele deve do, senão não estaria acasalado com uma c les homens a fugir tanto como o homem.., ela e o lobo." Por que lobo os ajudaria? Tinha-a visto falar com o animal. O sinal era " e directo, ela tinha-lhe dito para esperar além, ao pé da árvore j cavalos, mas o lobo compreendeu-a e obedeceu-lhe. Continuava all, pera.
Guban desviou o olhar. Era difícil até pensar naqueles animais sentir um profundo medo dos espíritos. Que outra coisa atrair a eles o lobo ou os cavalos? Que outra coisa podia fazer que os mais se comportassem tão.., pouco como animais?
Percebia que a sua mulher de cabelo amarelo estava
como é que a podia censurar? Como Dyc do fazer referência à mulher dele, talvez fosse apropriado ele a sua. Não queria que eles pensassem que o estatuto que ela c era inferior ao de Dyondar. Guban fez um gesto muito subtil à mulher c o estivera a observar e vira tudo mas, como uma boa mulher do Clã, seguira manter-se discretamente em segundo plano.
-- Esta mulher é...-indicou, tocando-lhe depois no ombro e dizendo -- Yorga.
Jondalar teve a impressão de ouvir engolir duas vezes,
um R rolado. Nem sequer conseguiu tentar reproduzir o som. cebeu a sua dificuldade e teve de pensar numa forma de re damente a situação. Repetiu o nome de uma forma qu guia dizê-lo, mas dirigiu-se a ela como mulher.
--Yorga-acrescentando com sinais--, esta mulher saúdate. mulher chama-se.., m e muito lenta e cuidadosamente disse: m Ayla.
Depois, utilizando quer sinais quer sons, para Jondalar poder perceber,
--
O homem chamado Dyondar também saúda a mulher de Guban.
Não era a forma como seria feito no Clã, pensou Guban, mas
era gente dos Outros e não era uma forma ofensiva. Ficou com
de em ver o que Yorga faria.
Ela olhou de relance na direcção de Jondalar, muito brevemente, e voltou a baixar os olhos. Guban alterou a sua posição o suficiente indicar que ficara satisfeito. Tinha reconhecido a presença de mas apenas isso.
Jondalar foi menos subtil. Nunca tinha estado tão perto de i
Clã... e estava fascinado. O seu olhar foi muito mais demorado.
PLAN]CIES DE PASSAGEM
dela eram semelhantes às de Guban, com modificações femininas, e ele
já reparara que ela era entroncada mas baixa, da altura de uma rapariga.
Estava longe de ser bela, pelo menos em sua opinião, à excepção da
sua massa de caracóis amarelos e macios, mas conseguia compreender
por que é que Guban poderia considerá-la bela. Subitamente, aperceben
dose de que Guban o observava, baixou cerimoniosamente a cabeça
desviou o olhar. O homem do Clã estava com uma expressão furiosa; Jondalar
teria que ter cuidado.
Guban não tinha gostado da atenção que Jondalar prestara à sua mulher mas sentiu que não era por falta de respeito, e estava com mais dificuldade em controlar as dores. Precisava de saber mais sobre aquela curandeira.
-- Quero falar com a tua.., curandeira, Dyondar-indicou Guban. Jondalar apercebou-se do significado e assentiu. Ayla tinha estado a observar e avançou rapidamente, sentando-se numa postura respeitosa à frente do homem.
-- Dyondar disse que a mulher é curandeira. Guban quer saber como uma mulher dos Outros pode ser curandeira do Clã.
Ayla falou enquanto razia os sinais, para Jondalar poder compreender exactamente o que ela estava a dizer a Guban.
m A mulher que me recolheu, que me criou, era curandeira do mais elevado estatuto. Iza vinha da mais antiga linha de curandeiras. Iza foi como mãe desta mulher, treinou esta mulher com a filha nascida da linha -- explicou Ayla. Via que ele estava céptico mas interessado em saber mais.-Iza sabia que esta mulher não tinha as memórias como a sua verdadeira filha.
Guban assentiu, é claro que não.
-- Iza fez esta mulher lembrar-se, fez esta mulher dizer a Iza muitas, muitas vezes, mostou-lhe muitas, muitas vezes, até a curandeira saber que esta mulher não perderia as memórias. Esta mulher tinha gosto em praticar, em repetir muitas vezes para aprender os hábitos de uma curandeira. Embora os seus gestos continuassem a ser estilizados e formais, as suas palavras tornaram-se menos rígidas ao prosseguir a sua explicação.
-- Iza disse-me que pensava que esta mulher provinha de uma longa linha de curandeiras dos Outros. Iza disse que eu pensava como curandeira, mas ensinou-me a pensar como curandeira do Clã. Esta mulher não nasceu com as memórias das curandeiras, mas as memórias de Iza são agora as minhas memórias.
Ayla captara a atenção de todos.
-- Iza adoeceu, com uma doença de tossir que nem sequer ela conseguia
curar, e eu comecei a fazer mais coisas. Atd o chefe ficou contente
quando tratei uma queimadura, mas Iza dava estatuto ao clã. Quando
ficou demasiado doente para fazer a viagem atd ao Encontro do Clã, e a
JEAN AUEL
PLANICIES DE PASSAGEM
sua filha verdadeira era ainda demasiado nova, o
diram fazer-me curandeira. Disseram que, como eu tinha as
dela, era uma curandeira da sua linha. Os outros mog-urs e contro do Clã a princípio não, gostaram a ideia, mas também
por me aceitar.
Ayla via que Guban estava interessado e sentiu que ele queria ditar nela, mas que continuava a ter dúvidas. Tirou a bolsa enfeitada ¢ tinha pendurada ao pescoço, desapertou os fios e deitou parte do seu con-. teúdo na mão; depois pegou numa pequena pedra negra e ergueu-a para ele a ver.
Guban sabia o que era, a pedra negra que deixava uma marca era um mistdrio. Até um pedacinho podia conter uma parte ínfima do espírito de I toda a gente do Clã e era dado a uma curandeira quando um pedaço do espírito dela lhe era tirado. O amuleto que ela usava era estranho, pen sou, característico da forma como os Outros faziam as coisas, mas nem sequer sabia que eles usavam amuletos. Talvez os Outros afinal não fossem todos ignorantes e abrutalhados.
Guban reparou num outro objecto do seu amuleto e apontou para ele. m Que é aquilo?
Ayla voltou a meter o reste dos seus objectos no amuleto e pousouo para p.oder responder.
m E o meu talismã de caça-disse.
"Não pode ser verdade", pensou Guban. "Isso provaria que estava
errada."
-- As mulheres do Clã não caçam.
-- Eu sei, mas eu não nasci do Clã. Fui escolhida por um totem do Clã
que me protegeu e conduziu até ao clã que se tornou meu e o meu totem
queria que eu caçasse. O nosso rnog-ur foi ao passado e encontrou espí-ñtos antigos que lhe disseram. Fizeram uma cerimónia especial. Chamaram-me
a Mulher Que Caça.
-- Qual é esse totem do Clã que te escolheu?
Para grande surpresa de Guban, Ayla levantou a túnica, desapertou os atilhos das protecções de pernas e baixou um dos lados o suficiente para mostrar a sua coxa esquerda. Viam-se claramente quatro linhas paralelas, as cicatrizes deixadas pelas garras que lhe tinham rasgado a coxa quando era garota.
m O meu totem é o Leão das Cavernas.
A mulher do Clã reteve a respiração. Esse totem era demasiado poderoso para uma mulher. Seria difícil para ela ter crianças.
Guban grunhiu, assentindo. O Leão das Cavernas era o totem de caça mais poderoso, um totem de homem. Não tinha conhecimento de qualquer mulher com tal totem, no entanto aquelas eram as marcas que tinham sido feitas na coxa direita de um rapaz cujo totem era o Leão das Cavernas, depois de ele ter abatido a sua primeira grande presa e se ter tornado homem.
-- Está na perna esquerda. A marca é feita na perna direita de um ho
memo
-- Eu sou uma mulher, não um homem. O lado da mulher é o esquerdo.-O teu mog-ur marcou-te m. .
Marcou-me o próprio Leão das Cavernas, quando eu era garotinha, antes de o meu clã me encontrar.
Isso explicaria usares uma arma indicou Guban com sinais m, mas e as crianças? Este homem com cabelo da cor do da Yorga term um totem suficientemente poderoso para vencer tal totem?
Jondalar ficou embaraçado. Ele próprio já tinha pensado algo como isso.
O Leão das Cavernas também o escolheu a ele e deixou-lhe a sua
marca. Eu sei porque o mog-ur me disse que o Leão das Cavernas me escolheu
e pôs as marcas na minha perna para o mostrar, exactamente como
o Leão das Cavernas o escolheu a ele e lhe tirou o olho...
Guban sentou-se mais direito, visivelmente abalado.
Abandonou a linguagem formal, mas Ayla compreendeuo.-Mogor Um-Olho! Conheces Mogor Um-Olho? m Vivi no seu lar. Ele criou-me. Ele e Iza eram irmãos e depois de o
companheiro dela morrer ele acolheu-a a ela e às suas crianças. No Encontro do Clã chamavam-lhe o mog-ur, mas para aqueles que viviam no seu lar era Creb.
Atd nos nossos Encontros do Clã se fala de Mogor Um-Olho e do seu poderoso... ia a dizer mais, mas pensou melhor. Não era suposto os homens falarem das cerimónias esotdricas exclusivamente masculinas e privadas quando estavam mulheres presentes. Ter sido criada pelo Mo gor Um-Olho também explicaria a sua perícia relativamente aos sinais antigos. E Guban recordava-se de que o grande Mogor Um-Olho tinha uma irmã que era uma curandeira respeitada, de uma antiga linha. Subitamente, Guban pareceu descontrair-se e permitiu que uma fugaz expressão de dor lhe nublasse o rosto. Respirou fundo e depois olhou para Ayla, que estava sentada de pernas cruzadas, de olhos no chão, na posição correcta de uma mulher do Clã. Tocou-lhe no ombro.
Respeitada curandeira, este homem term um... pequeno problema indicou Guban na antiga língua silenciosa do Clã do Urso das Cavernas. m Este homem pede à curandeira que olhe para a sua perna. A perna pode estar partida.
Ayla fechou os olhos e expirou. Tinha conseguido convencê-lo. Ele per
mitia que ela lhe tratasse a perna. Fez sinal a Yorga, dizendo-lhe para lhe preparar um sítio para dormir. O osso partido não tinha furado a pele
e Ayla achava que havia boas hipóteses de a poder vir a utilizar plenamente
mas, para a perna sarar correctamente, ela tinha de a endireitar
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PLANICIES DE PASSAGEM
e voltar a encaixar os ossos e depois faria um molde de casca de
para imobilizar a perna, de forma a ele não a poder mexer.
-- Será doloroso endireitar a perna, mas tenho uma coisa que descontrairá a perna e o fará dormir.-Depois virou-se -- Importas-te de mudar o nosso. maçada, com rodas aquelas pedras de arder, mas quero montar a nos., tenda para ele. Eles não tencionavam passar a noite fora e ele t estar abrigado do frio, especialmente quando eu lhe der o remédio dormir. Também vamos precisar de lenha. Não quero gastar as I arder e precisamos de cortar madeira para as talas. Irei buscar case bétula enquanto ele estiver a dormir e talvez consiga fazerlhe muletas. Depois há-de querer desloar-se.
Jondalar observou-a enquanto ela assumia o controlo da situação,
sorriu para consigo próprio. Detestava o atraso, até um dia lhe
demasiado, mas também os queria ajudar. Além disso, a Ayla "
"
embora numa altura daquelas. Só esperava que não ficassem lá ¢
do tempo.
Jondalar levou os cavalos para o seu primeiro acampamento, desmon
teu e arrumou tudo, fez o percurso de volta, voltou a montar tudo, e
pois levou a Whinney e o Corredor para uma clareira onde podiam
curar erva seca. Havia alguma erva seca ainda de pé, mas
contra a terra sob neve antiga. Ficava a pouca distância da sua
localização, longe da vista, para que os animais incomodassem menos
pessoas do Clã. Pareciam pensar que os animais mansos eram outra
nifestação do estranho comportamento dos Outros, mas Ayla reparou {
Guban e Yorga pareceram aliviados quando os cavalo
ceia desapareceram da sua vista e ficou satisfeita por Jondalar ter
sado nisso.
Assim que ele voltou, Ayla tirou a bolsa das ervas medicinais de um dos cestos-alforge. Apesar de ter decidido aceitar a sua ajuda como curandeira, Guban ficou aliviado por ver a sua bolsa de pele de lontra, bem ao estilo do Clã, funcional e não enfeitada. Ayla fez questão de manter o Lobo afastado deles e, estranhamente, o animal, embora normalmente curioso e afoito com pessoas com quem Ayla e Jondalar travavam amizade, não mostrou a menor inclinação para se relacionar com a gente do Clã. Parecia satisfeito por ficar à distância, atento, embora de forma alguma ameaçador, e Ayla pensou se ele sentiria a inquietação por sua causa.
Jondalar ajudou Yorga e Ayla a meterem Guban na tenda. Ficou
admirado ao ver como o homem era pesado, mas seria natural que o mero
volume de músculo num corpo tão forte que seis homens mal o conse-i
guiam dominar fizesse aumentar o seu peso. Jondalar também se apercebeu
de que a transferência de lugar lhe era extremamente dolorosa, embora o rosto impassível de Guban não desse a menor indicação disso.
A recusa do homem em admitir a dor fez que Jondalar se interrogasse
sobre se ele a sentiria tantö,'.até Ayla explicar que aquela recusa estóica
era enraizada nos homens do Clã desde a sua infância. O respeite de Jondalar
pelo homem aumentou. A sua própria raça não era uma raça de fracos.
A mulher também era espantosamente forte, mais pequena que o homem, mas não muito. Conseguia levantar tanto peso como Jondalar e, quando decidia fazer força, a sua mão era incrivelmente forte; no entanto, ele tinha-a viste usar as mãos com fina precisão e autodomínio. Estava a ficar intñgado ao descobrir as semelhanças entre a gente do Clã e a sua própria espécie, assim como as diferenças. Não sabia exactamente quando tinha acontecido mas, a determinada altura, apercebeu-se de que já não questionava de qualquer forma o facto de serem humanos. Eram diferentes, sem dúvida, mas a gente do Clã era sem qualquer sombra de dúvida humana, não animais.
Afinal Ayla acabou por utilizar algumas pedras de arder para fazer uma fogueira mais forte para preparar a datura mais rapidamente, colocando pedras de cozinhar quentes directamente na água para a fazer ferver. Mas Guban recusou-se a beber toda a quantidade que ela achava que ele devia beber, tendo afirmado que não gostava da ideia de esperar demasiado tempo para o efeito passar, mas Ayla pensou se parte do problema não seria a sua dúvida sobre se ela saberia preparar correctamente a datura. Com a ajuda de Yorga e de Jondalar, Ayla encaixou o osso da perna e fez talas resistentes. Depois de acabar, Guban acabou por adormecer.
Yorga insistiu em fazer a refeição, embora o interesse de Jondalar nos
processos e sabores a tivesse embaraçado. k noite, à fogueira, ele começou
a fazer um par de muletas para Guban enquanto Ayla se ia relacionando
com Yorga e lhe explicava como se fazia o remédio para as dores. Ayla descreveu como as muletas eram utilizadas e a necessidade de usar
uma protecção debaixo dos braços. Yorga não parou de se surpreender
com os conhecimentos que Ayla tinha do Clã e dos costumes do Clã, mas
já reparara no seu "sotaque" do Clã. Acabou por falar de si a Ayla e Ayla
traduziu para Jondalar perceber.
Yorga tinha queñdo ir apanhar casca interior e colocar recipientes
para apanhar a seiva de determinadas árvores. Guban tinha ido com ela
para a proteger, pois já tinham sido atacadas tantas mulheres pelo bando
de Charoli que estas não estavam autorizadas a sair sozinhas, o que
era um peso para o clã. Os homens tinham menos tempo para caçar, pois
tinham que perder tempo a acompanhar as mulheres. Tinha sido por isso
que Guban decidira subir à grande rocha, para procurar animais para
caçar enquanto ela apanhava casca de árvore. Os homens de Charoli pro328
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vavImente pensaram que ela estava sozinha e se tivessem visto Guban
talv'ez não a tivessem atacado mas, quando ele os viu atacá-la, saltou de
cima da rocha em sua defesa.
Admira-me que só tenha partido uma perna m disse Jondalar, olhando para o cimo da rocha.
Os ossos do Clã são muito pesados e largos m disse Ayla. mNão se partem com facilidade.
Não era preciso aqueles homens serem tão brutos comigo m comentou orga, com sinais, w Eu ter-me-ia posto em posição se eles me tivessem dado o sinal e se não o tivesse ouvido gritar. Nessa altura percebi que se tínha passado qualquer coisa de muito grave.
] continuou com a história. Vários homens atacaram Guban, enquanto
três tentaram forçar Yorga. Ao ouvir o seu grito de dor, ela tinha
percebido que tinha acontecido qualquer coisa a Guban, portanto tentou
livrr-se dos homens. Foi nessa altura que os outros dois a tinham imo
bilizado. Depois, subitamente, Jondalar entrou na refrega, batendo nos
homens dos Outros, e o lobo saltou para eles e mordeu-os.
Yorga olhou de soslaio para Ayla.
-- O teu homem é muito alto e term um nariz muito pequeno, mas, quando o vi all a lutar com os outros homens, esta mulher podia pensar nele como numa criança.
Ayla ficou intrigada mas depois sorriu.
Não percebi bem o que ela disse, nem o que quis dizer com isso m disse Jondalar.
-- Disse uma piada.
Uma piada? m disse ele. Pensara que eles não conseguiam dizer piadas.
Ela disse, mais ou menos, que muito embora sejas um homem feio, quando foste em sua defesa ela sentiu vontade de te beijar m disse Ayla, explicando depois a Yorga.
A mulher ficou embaraçada, mas olhou de relance para Jondalar e depois de novo para Ayla.
---Estou grata ao teu homem alto. Talvez, sea cñança que trago dentro de mim for rapaz, e se o Guban me permitir sugerir um nome, lhe diga, Dyondar não é um mau nome.
- Isso não foi uma piada, pois não, Ayla? m perguntou Jondalar, sur preendido por se sentir subitamente comovido.
- Não, não creio que tenha sido uma piada, mas ela apenas pode fazer rima sugestão, e esse nome pode vir a ser difícil para um rapaz do Clã, pois invulgar. Mas o Guban poderá estar de acordo. Para um homem do Clã, excepcionalmente aberto a ideias novas. A Yorga contou-me como se acasalaram e creio que se apaixonaram, o que é muito raro. A maioria dos tìcasalamentos são planeados e combinados.
PLAN]CIES DE PASSAGEM
-- Que é que te leva apensar que se apaixonaram?-- perguntou Jondalar.
Estava interessado em ouvir uma história de amor do Clã.
m A Yorga é a segunda mulher de Guban. O clã dela vive bastante
longe daqui, mas ele foi lá dar notícia de um grande Encontro do Clã e de planos para nos discutir, aos Outros. Uma das questes era o facto de Charoli andar a molestar as suas mulheres.., contei-lhe os planos dos Losadunai para pôr termo a isso.., mas se bem entendi um grupo dos Outros abordou um ou dois Clãs com vista a fazerem trocas.
m Isso é uma surpresa!
Sim. O maior problema é a comunicação, mas os homens do Clã, incluindo Guban, não confiam nos Outros. Enquanto Guban estava de visita ao clã distante, viu Yorga e ela viu-o a ele. Guban queña-a, mas a razão que deu foi que era para estabelecer relações mais estreitas com alguns dos clãs distantes, para poderem trocar notícias, sobretudo acerca de rodas estas novas ideias. Trouxe-a de volta consigo! Os homens do Clã não costumam fazer isso. A maioria tema dado a conhecer a sua intenção ao chefe, regressado e discutido a questão com o seu próprio clã e dado à sua primeira mulher uma oportunidade de se habituar à ideia de compartilhar o seu lar com outra mulher m disse Ayla.
m A primeira mulher do seu lar não sabia? Homem corajoso! m dis
se Jondalar.
mA sua primeira mulher tinha duas filhas; ele quer uma mulher que faça um filho. Os homens do Clã dão muita importância aos falhos das suas companheiras e, é claro, a Yorga espera que o bebd que traz dentro dela seja o rapaz que ele deseja. Term tido alguns problemas a adaptar -se ao novo clã.., têm demorado a aceitá-la.., e sea perna de Guban não sarar como deve ser ele perderá estatuto e ela term medo que os outros a culpem a ela.
m Não admira que pareça tão preocupada.
Ayla absteve-se de referir a Jondalar que dissera a Yorga que também ia a caminho do lar do seu homem, para longe da sua gente. Não via qualquer razão para aumentar as suas preocupações, mas continuava preocupada sobre como a gente dele a aceitaria.
Ayla e Yorga ficaram com pena de não ser possível visitarem-se e com partilharem as suas experiências. Sentiam-se quase parentes, dado que havia uma dívida de parentesco entre Guban e Jondalar, e Yorga senti ra-se mais próxima de Ayla durante o breve tempo em que se tinham conhecido, do que de qualquer outra mulher que conhecera. Mas o Clã e os Outros não se visitavam.
Guban acordou a meio da noite, mas ainda estava zonzo. De manhã, recuperou consciência, mas a reacção às tensões do dia anterior tinham -no deixado exausto. tarde, quando Jondalar meteu a cabeça na tenda, Guban ficou surpreendido ao ver como ficou satisfeito por ver o homem alto, mas não sabia o que pensar das muletas que ele levava.
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mUsei o mesmo quando o leão me atacou-explicou Join
daram-me a andar.
Guban ficou subitamente interessado e quis experimentalas, Ay]a não deixou. Era demasiado cedo. Guban acabou por ce.der, pois de anunciar que as experimentaria no dia seguinte. A noite disse a Ayla que Guban queria falar com Jondalar sobre questes importantes e que pedia a ajuda dela para traduzir. Ela percebeu c um assunto sério, calculou o que seria e falou previamente para o poder ajudar a compreender quais seriam as dificuldades.
Guban continuava preocupado em ter uma divida de parentesco com Ayla, além da aceitável troca de espíritos com uma curandeira. que ela lhe tinha salvo a vida utilizando uma arma.
-- Precisamos de o convencer de que a dívida é para
lar. Se lhe disseres que és meu companheiro, podes-lhe dizer que,
és responsável por mim, todas as dívidas a mim são na verdade a ti.
Jondalar concordou e, depois de alguns preliminares para definir cessos, entraram na discussão mais séria.
-- Ayla é minha companheira, pertence-me-disse ele, en¢
Ayla traduzia com toda a gama de subtilezas.-Sou responsável'
as dívidas para com ela são dívidas para comigo.-Depois,
sa de]a, Jondalar acrescentou:-- Também eu tenho uma obrigação
me pesa no espírito. Tenho uma dívida de parentesco para com o Clã.
Guban ficou curioso.
--Essa dívida tem-me pesado muito no espírito porque
como a pagar.
-- Fala-me dela-indicou Guban.-Talvez te possa ajudar. -- Fui atacado por um leão das cavernas, como Ayla referiu. cado, escolhido, pelo Leão das Cavernas que é agora quem me encontrou. Eu estava quase a morrer e o meu irmão, que esta va comigo, já caminhava no mundo dos espíritos.
-- Lamento saber isso. É difícil perder um irmão.
Jondalar apenas assentiu.
-- Sea Ay]a não me tivesse encontrado, eu teria morrido, mas quando Ayla era criança, e estava quase a morrer, o Clã acolheu-a e criou-a. Se o Clã não tivesse acolhido a Ayla quando ela era criança, ela não teria vivido. Se Ayla não tivesse vivido e sido ensinada a curar por uma curandeita do Clã, eu não estaria vivo. Estaria agora a caminhar no outro mundo. Devo a minha vida ao Clã, mas não sei como pagar essa dívida, ou a quem.
Guban assentiu com grande compreensão.
Era um problema grave e uma grande dívida.
-- Gostaria de fazer um pedido a Guban-continuou Jondalar.-
Como Guban term uma dívida de parentesco para comigo, peço-lhe que
aceite em troca a minha dívida de parentesco para com o Clã.
O homem do Clã reflectiu muito seriamente sobre o pedido, mas sentiu-se grato ao saber deste problema. Trocar uma dívida de parentesco era muito mais aceitavel do que simplesmente dever a sua vida a um homem dos Outros, e dar-lhe um pedaço do seu espírito. Por fim, assentiu.
-- Guban aceita a troca-disse, sentindo grande alívio.
Guban tirou o amuleto que tinha ao pescoço e abriu-o. Deitou o conteúdo na palma da mão e escolheu um dos objectos, um dente, um dos seus próprios molares. Embora não tivesse cavidades, os seus dentes estavam desgastados de uma forma estranha, principalmente por os usar como instrumento. O dente que tinha na mão estava gasto, mas não tanto como os seus dentes permanentes.
-- Por favor aceita isto como prova de parentesco-disse Guban. Jondalar ficou embaraçado. Não se apercebera de que haveria uma troca de um objecto pessoal para assinar a troca de dividas e não sabia o que dar ao homem do Clå que pudesse ter significado. Ele e Ayla estavam a viajar com muito poucas coisas e tinha muito pouco que pudesse dar. Subitamente ocorreulhe.
Tirou uma bolsa de uma presilha do cinto e deitou o seu conteúdo na mão. Guban ficou surpreendido. Na mão de Jondalar estavam várias unhas e dois dentes caninos de um urso das cavernas, o urso das cavernas que ele matara no Verão anterior, pouco depois de terem iniciado a sua longa Viagem. Estende-.-lhe um dos dentes.
-- Por favor aceita isto como prova de parentesco.
Guban controlou a sua impetuosidade. Um dente de um urso das cavernas era uma prova poderosa, conferia elevado estatuto e a sua oferta representava uma grande honra. Agradou-lhe pensar que aquele homem dos Outros tinha reconhecido de forma tão apropriada a sua posição e a dívida que devia a todo o Clã. Daria a impressão adequada quando contasse aos outros daquela troca. Aceitou a prova de parentesco, fechou a mão e agarrou-a com força.
-- BornI-exclamou Guban num tom decisivo, como se tivesse acabado de concluir um negócio. Depois fez um pedido.-Como agora somos parentes, talvez devamos saber a localização do clã um do outro e o ter ritSrio que usam.
Jondalar descreveu a localização geral da sua terra natal. A maior parte do território do outro lado do glaciar era dos Zelandonñ ou aparentado, e depois descreveu especificamente a Nona Caverna dos Zelandonñ. Guban descreveu a sua terra natal e Ayla ficou com a impressão de que não eram tão distantes uma da outra como ela supusera.
O nome de Charoli voltou a vir à baila antes de terminarem a conversa. Jondalar falou dos problemas que o jovem tinha criado a todos, e explicou em pormenor o que tencionaram fazer para o impedir de continuar.
Guban considerou a informação suficientemente importante para
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a transmitir aos outros clãs e pensou para si próprio sea sua perna
tida não acabaria por se tornar numa vantagem para ele.
Guban teria muito a contar ao seu clã. Não só que os Outros e
eles próprios a ter problemas com o homem, e planeavam tomar m mas também que os Outros estavam dispostos a lutar contra a sua pria gente para ajudar gente do Clã. Havia também alguns que falar como devia ser! Uma mulher que sabia comunicar muito bem e homem com uma capacidade de comunicação limitada mas útil, que certa forma podia ser mais valioso por ser macho e por agora te. Este contacto com os Outros e a percepção e os conhecimentos sobre eles podiam confeñr-lhe um estatuto ainda maior, sobretudo se voltas, se a. poder utilizar plenamente a sua perna.
A noite Ayla pôs-lhe a protecção de casca de bétula. Guban foi cama a sentir-se muito bem. E a perna mal lhe doía.
Ayla acordou de manhã com uma sensação de grande inquietação. Tinha voltado a ter um sonho estranho, muito vívido, com cavernas e o Creb. Falou dele a Jondalar; depois falaram como iriam levar Guban para a sua gente. Jondalar sugeriu os cavalos, mas estava muito preocupado com mais esse atraso. Ayla sentia que Guban nunca concordaria. Os cavalos mansos perturbavam-no. .
Quando se levantaram, ajudaram Guban a sair da tenda e, enquanto
Ayla e Yorga preparavam a refeição da manhã, Jondalar mostrou-lhe
como usar as muletas. Guban insistiu em experimentA-las, ignorando as
objecções de Ayla e, depois de praticar um pouco, ficou surpreendido por ver como eram eficazes. Podia andar sem fazer peso na sua perna.
-- Yorga-disse Guban à mulher, depois de pousar as muletas m, prepa.ra as coisas para partirmos. Depois da refeição da manhã, partiremos. E altura de regressarmos ao clã.
mAinda é demasiado cedo-disse Ayla, utilizando simultaneamen to os gestos do Clã.-Precisas de descansar a tua perna, senão não sara como deve ser.
-- A minha perna descansará enquanto andar com isto-disse, indicando as muletas.
Se têm de se ir embora já, podes ir montado num dos cavalos-dis se Jondalar.
Guban sobressaltou-se.
-- Não! Guban anda com as suas próprias pernas. Com a ajuda destes paus de andar. Vamos compartilhar uma última refeição com os novos parentes e depois partiremos.
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Depois de compartilharem a refeição da manhã, os dois casais prepararam-se
para seguir cada um o seu caminho. Quando Guban e Yorga
estavam prontos, limitaram-se a olhar por instantes para Jondalar e
Ayla, evitando olhar para o lobo e para os dois cavalos carregados. Depois,
apoiando-se nas muletas, Guban afastou-se a coxear, seguido porYorga.
Não houve despedidas, nem agradecimentos; estes conceitos eram estranhos
à gente do Clã. Não era hábito comentar a partida de alguém, era
óbvia, e os actos de ajuda ou bondade, especialmente de parentes, eram
esperados. As obrigações estabelecidas não implicavam agradecimento,
apenas reciprocidade, se algumavez esta se tornasse necessária. Ayla sa
bia como a reciprocidade seria difícil para Guban. No seu espírito, ele de
via mais do que alguma vez poderia pagar. Tinha-lhe sido dado mais que
a sua vida; tinha-lhe sido dada uma oportunidade de manter a sua posição,
o seu estatuto, que significavam mais para ele que simplesmente estar vivo m sobretudo se isso significasse viver aleijado.
--Espero que não tenham de andar muito. Não é fácil percorrer qualquer distância com muletas-disse Jondalar.-Espero que consiga lá chegar.
-- Vai conseguir m disse Ayla --, por mais longe que seja. Regressa ria mesmo sem os paus de andar, nem que tivesse de rastejar todo o caminho. Não te preocupes, Jondalar. Guban é um homem do Clã. Vai conseguir.., ou então morrerá a tentar.
Jondalar franziu a testa pensativamente. Observou Ayla pegar na corda que servia de arreata da Whinney; depois abanou a cabeça e pegou na do Corredor. Apesar da dificuldade para Guban, tinha de admitir que ficara satisfeito por ele ter recusado a sua oferta de regressar ao seu clã montado num dos cavalos. Já tinham tido atrasos de sobra.
Quando saíram do sítio onde tinham acampado, continuaram a atravessar
os bosques abertos atd chegarem a um sítio alto; aí pararam e olharam
para trás, pelo caminho por onde tinham ido. Pinheiros altos,
aprumados como sentinelas, guardavam as margens do Rio Mãe ao longo
de grande distância; uma coluna serpenteante de árvores que partia
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da legião de coníferas que se espalhava
se agrupavam a sul.
A subida que tinha pela frente nivelava-se momentaneamente. extensão de pinhal, que começava junto ao rio, atravessava um vale. Desmontaram para conduzir os cavalos pela arreata zona arborizada e entraram num espaço sombrio envolto num profundo e fantasmagórico. Troncos direitos e escuros copas com compridos ramos carregados de agulhas e que tapavam trada do sol e impediam o crescimento de vegetação rasteira. Uma da de caruma castanha, acumulada ao longo de séculos, abafava os sos e o som dos cascos dos cavalos.
Ayla reparou numa série de cogumelos junto de uma árvore e lhou-se para os examinar. Estavam absolutamente congelados, sido apanhados por uma súbita os libertara. Mas a neve não se tinha filtrado para denunciar Era como se o tempo das colheitas tivesse sido capturado e suspensão, ficando preservado na floresta imóvel e fria. ao seu lado e meteu o focinho na sua mão sem luva Ela esfregoulhe parte de cima da cabeça, reparou na sua respiração fumegante e na dela própria e teve a impressão fugaz de que o seu pequeno grupo viajantes era a única coisa viva.
Do outro lado do vale a subida tornou-se íngreme e apareceu o ] dourado dos abetos, acentuado pelo verde-escuro dos majestosos ces. As agulhas compridas tornaram-se mais curtas à medida que titude aumentava e acabaram por desaparecer, deixando os espruces e abetos a marchar junto à Mãe do Meio.
Enquanto ia andando, o pensamento de Jondalar
mente à gente do Clã que conheceram nunca mais conseguiria pensar neles senão como sendo pessoas. "Preciso de convencer o meu irmão vez ele possa tentar estabelecer contacto com eles.., se ainda for o chefe." Quando pararam para descansar e fazer chá quente, Jondalar disse o que estava apensar em voz alta.
n Quando chegarmos, you falar com o Joharran sobre a gente do Clã,
Ayla. Se outra gente pode fazer trocas com eles, nós também podemos, e é preciso que ele saiba que eles se vão reunir com clãs distantes para discutir os problemas que estão a ter connosco m disse Jondalar. m Isso pode querer dizer que iremos ter lutas e não queria lutar com pessoas como o Guban.
-- Não creio que haja grande pressa. Eles vão levar muito tempo a' tomar qualquer decisão. Têm dificuldade em fazer mudanças-disse Ayla.
-- E as trocas.., achas que estarão dispostos a isso?
n Creio que o Guban está mais aberto a isso que os outros. Está interessado
em saber mais a nosso respeito e aceitou experimentar os paus
PLAN[CIES DE PASSAGEM
de andar, muito embora se recusasse a montar os cavalos. O facto de ele
levar para o seu clã uma mulher ão invulgar de um outro clã distante
também reve]a qualquer coisa a seu respeito. Assumiu um risco, muito
embora ela seja bela.
Achas que ela é bela?
-- To não achas?
-- Percebo por que é que o Guban a considera bela m disse Jondalar.
-- Creio que aquilo que um homem considera como sendo belo depende de quem ele é-disse ela.
Sim, e acho que to és bela.
Ayla sorriu-lhe, fazendo que ele se apercebesse ainda mais da sua beleza.
-- Fico contente por achares.
-- Sabes, é verdade. Lembras-te de toda a atenção que tiveste no Festival da Mãe? Será que te cheguei a dizer que fiquei contente por me escolheres? -- disse ele, sorrindo ao lembrar-se.
Ayla lembrou-se de uma coisa que ele tinha dito a Guban.
-- Born, pertenço-te, não d? m disse ela, com um sorriso rasgado. É born não conheceres bem a linguagem do Clã. O Guban teria percebi do que não estavas a falar verdade quando disseste que eu era tua companheira.
-- Não, não teria. Podemos ainda não ter tido o nosso Matrimonial mas, no meu coração, estamos acasalados. Não foi uma mentira m disse Jondalar.
Ayla ficou comovida. m Eu também sinte o mesmo-disse baixinho, baixando os olhos, pois queria mostrar deferência pelas emoções que a inundavam. D Desde o vale que o sinto.
Jondalar sentiu-se invadido por uma onda tão feroz de amor que achou que ia rebentar. Estendeu os braços e apertou-a contra si, sentin do naquele momento, com aquelas breves palavras, que tinha acabado de celebrar um Cerimonial de Acasalamento. Não importava vir a ter um que fosse reconhecido pela sua gente. Celebrá-lo-ia, para agradar aAyla, mas não precisava dele. Só precisava de a conseguir levar em segurança para o seu lar.
Uma súbita rajada de vento arrepiou Jondalar, fazendo dissipar a onda de calor que sentira e deixando-o numa estranha ambivalência. Levantou-se e, afastando-se do calor da pequena fogueira, respirou fundo.
O ar frio e seco rasgou-lhe os pulmões e cortou-lhe a respiração. Encolheu-se
mais no capuz de pele e aconchegou-o mais junto ao rosto para
deixar o calor do seu corpo aquecer o ar que respirava. Embora a última
coisa que desejasse fosse um vento quente, sabia que um tal frio era extremamente
perigoso.
A norte deles, ogrande glaciar continental tinha virado para sul, como
JEAN AUEL
PLAN]CIES DE PASSAGEM
se tentasse abarcar as belas montanhas geladas no
doramente gélido. Estavam na parte mais gelada da terra, entre as
tanhas cintilantes e o imenso gelo do norte, e o Inverno estava no
auge. O próprio ar era seco pelos glaciares que absorviam avidam
cada gotícula da humidade para aumentar a sua massa que esmagava
camada rochosa, para aumentar as suas reservas
do calor do Verão.
A batalha entre o frio glacial e o calor derretedor pelo controlo Grande Terra Mãe estava quase num impasse; o glaciar estava a ganhar. Faña mais um avanço e chegaria ao seu te mais a sul, antes de ser forçado a recuar para as terras polares. mesmo aí, apenas aguardaria a sua vez.
Enquanto continuavam a subir, cada momento parecia mais frio ¢
o anterior. A crescente altitude estava a levá-los inexoravelmente
mais perto do seu ponto de encontro com o gelo. Os cavalos tinham
vez mais dificuldade em encontrar comida. A erva seca junto ao
de gelo sólido estava achatada contra a terra gelada. A pouca neve
havia era formada por grãos duros e secos, fustigados pelo vento
Eles avançavam em silêncio, mas depois de montarem o acam
te e de estafem os dois lá dentro, aconchegados nas peles de dormir versaram.
-- O cabelo da Yorga é muito lindo-disse Ayla,
peles.
-- Sim, é mesmo-disse Jondalar, com honesta convicção. -- Gostava que a Iza o pudesse ver, ou alguém do clã do Brun. ram sempre que o meu cabelo era invulgar, embora que era o que eu tinha de melhor. Dantes era claro como o dela, ra está mais escuro.
--Adoro a cor do teu cabelo, Ayla, e também como cai em ondas ¢
do o usas solto-comentou Jondalar, tocando numa madeixa junto rosto dela.
--Não sabia que havia gente do Clã que vivia tão longe da península. Jondalar percebeu que o pensamento dela não estava no cabelo, nem em nada próximo ou pessoal. Estava apensar na gente do Clã, como ele fizera antes.
-- Mas o Guban term um aspecto diferente. Parece... não sei, é difícil de explicar. Term as sobrancelhas mais pesadas, o nariz maior e a cara dele está mais.., para fora. Tudo nele parece mais.., acentuado, de certa forma mais Clã. Creio que atd é mais musculado que o Brun. Também não! parecia dar muito pelo frio. A pele dele era quente ao toque, mesmo quando estava estendido na terra gelada. E o coração dele batia mais depressa.
--Talvez se tenham habituado ao frio. O Laduni disse que há muitos que vivem a norte daqui, e lá em cima raramente faz um pouco de calor, mesmo no Verão-disse Jondalar.
-- Podes ter razão. Mas pensam da mesma forma. Que é que te levou a dizer ao Guban que estavas a pagar uma dívida de parentesco ao Clã? Foi o melhor argumento que poderias ter utilizado.
-- Não sei bem. Mas é verdade. Devo a minha vida ao Clã. Se eles não te tivessem recolhido, não estarias viva, e nesse caso nem eu estaria.
-- E não lhe podias ter dado uma melhor prova que aquele dente de urso das cavernas. Entendeste rapidamente os costumes deles, Jondalar.
--Não são lá muito diferentes. Os Zelandonii também dão muita importância às obrigações. Uma obrigação que fique por pagar quando se vai para o outro mundo pode dar o controlo do espírito da pessoa àquela para com quem está em dívida. Ouvi dizer que há alguns Dos Que Servem a Mãe que tentam manter as pessoas em dívida para consigo para poderem controlar o seu espírito, mas provavelmente são apenas histd rias. Só porque as pessoas dizem coisas, isso não significa que sejam verdade -- disse o homem.
-- O Guban acredita que o seu espírito e o teu estão agora entrelaçados, nesta vida e na próxima. Um pedaço do teu espírito estará sempre com ele, exactamente como um pedaço do dele estará sempre contigo. Era por isso que estava tão preocupado. Perdeu um pedaço do seu espírito quando to lhe salvaste a vida, mas deste-lhe um em troca, portanto não existe nenhum buraco, nenhum vazio.
-- Não fui o único a salvar-lhe a vida. To fizeste tanto como eu, e mais ainda.
-- Mas eu sou mulher e uma mulher do Clã não é o mesmo que um homem do Clã. Nem sequer é uma troca, pois um não pode fazer o mesmo que o outro faz. Não têm memórias para isso.
-- Mas to trataste-lhe da perna para ele poder regressar.
-- Ele teria regressado à mesma. Não estava preocupada com isso. Esfava com medo que a perna dele não sarasse como deve ser. Se isso acontecesse, deixaria de poder caçar.
--E é assim tão mau não poder caçar? Não poderia fazer outra coisa?
Como aqueles rapazes S'Armunai?
-- O estatuto de um homem do Clã depende da sua perícia como caçador e o seu estatuto significa mais para ele que a sua própria vida. O Guban term responsabilidades. Term duas mulheres no seu lar. A sua primeira mulher term duas filhas e a Yorga está grávida. Ele prometeu cuidar de rodas elas.
-- E se não puder? -- perguntou Jondalar.-Que é que lhes acontecerá?
-- Não morreriam à fome, seu clã cuidaria delas, mas o seu estatute..,
a forma como vivem, a sua comida e a sua roupa, o respeite que lhes
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é mostrado, dependem do estatuto dele. E perderia a Yorga. Ela é
e bela, um outro homem ficaria contente por ficar com ela, mas se el
o filho que o Guban sempre quis levá-lo-ia com ela.
-- Que é que acontecerá quando ele for demasiado velho -- Um homem velho pode deixar de caçar lentamente, Iria viver com os filhos da sua companheira, ou com as filhas, se estivessem a viver com o mesmo clã, e não seria um peso para O Zoug aperfeiçoou a sua habilidade com a funda para poder a contribuir, e até os conselhos do Dory continuavam a ser ouvidos bora ele já mal conseguisse ver. Mas o Guban é um homem que flor da idade e é um chefe. Perder tudo de uma vez dar-lhe-ia cabo coração.
Jondalar assentiu.
--Creio que compreendo. Não
Mas odiaria que acontecesse alguma coisa que me im:
a trabalhar a pedreneira.-Fez uma pausa para reflectir e disse:
Fizeste muito por ele, Ayla. Embora as mulheres do Clã sej.
isso não conta para alguma coisa? Ele não podia ao menos
isso?
-- O Guban exprimiu-me a sua gratidão, Jondalar, mas de uma ma. neira tão subtil como tinha de ser.
-- Deve ter sido muito subtil. Não dei por nada-disse Jondalar, preendido.
-- Comunicou-ma directamente a mim, não através de ti, atenção às minhas opiniões. Permitiu que a mulher dele falasse o que significa que me reconheceu como sua igual, e como ele term um tatuto muito elevado, ela também term. Sabes, tem-te em Fez-te um elogio.
-- Fez?
trabalho. De contrário, não teria aceite nem os paus de andar nem a
prova de parentesco explicou Ayla.
-- Que é que ele faria? Eu aceitei o dente dele. Achei que era uma
da estranha, mas compreendi o seu significado. Teria aceite a prova dele fosse ela qual fosse.
--Se ele sentisse que não era apropriada, tê-la-ia recusado, mas prova foi mais que uma prenda. Ele aceitou-a como uma obrigação séria. Se não te respeitasse, não teria aceite o pedaço do teu espírito em troca do dele; dá demasiado valor ao seu espírito. Preferiria ter um buraco vazio, que aceitar um pedaço de um espírito indigno.
Tens razão. Essa gente do Clã term muitas subtilezas, graus significado dentro de graus de significado. Não sei se algum dia ria destrinçar tudo-disse Jondalar.
-- Achas que os Outros são diferentes? Ainda tenho dificuldade em
compreender todos os graus dentro dos graus de significado-disse Ayla --, mas a tua gente é mais tolerante. A tua gente faz mais visitas, viaja mais queo Clã e está mais habituada a estranhos. Tenho a certeza de que cometi erros, mas acho que a tua gente os ignorou porque sou visita e se apercebem de que os hábitos da minha gente podem ser diferentes.
-- Ayla, a minha gente é também a tua gente-disse Jondalar terna mente.
Ela olhou para ele como sea princípio não o compreendesse bem.
Depois disse:
-- Espero que sim, Jondalar. Espero que sim.
ìk medida que os viajantes iam subindo, os espruces e os abetos estavam
a ficar cada vez mais esparsos e raquíticos, mas apesar de consegui
rem ver através da vegetação o seu caminho ao longo do rio fazia-os
passar junto a afloramentos rochosos e através de vales fundos que bloqueavam
a sua vista dos cumes à sua volta. Numa curva do rio, um rio das
terras altas ia desaguar na Mãe do Meio, que por sua vez também vinha
das terras altas. O ar que gelava os ossos tinha apanhado as águas no seu
movimento de queda e os ventos fortes e secos tinham-nas esculpido em
estranhas e grotestas formas. Caricaturas de criaturas vivas capturadas
pela geada, em posição para iniciar um voo ao longo do curso do comprido
rio, pareciam esperar impacientemente, como se soubessem que a
viragem da estação, e a sua libertação, não tardariam.
O homem e a mulher conduziram cuidadosamente os cavalos por cima
da barafunda de gelo partido e deram a volta para o terreno mais elevado
da cascata gelada, depois pararam, estupefactos, quando o planalto
massivo se ergueu à sua vista. Já o tinham vislumbrado, mas agora pa
recia suficientemente perto para lhes poderem tocar, mas o efeito de estupefacção
pela sua proximidade era enganador. O gelo majestoso com o
cume quase plano estava mais longe do que parecia.
O ribeiro gelado ao seu lado não se movia, mas o seu olhar seguiu o seu caminho tortuoso enquanto este serpenteava e desaparecia da vista. Voltava a aparecer mais acima, juntamente com outros canais estreitos espaçados a intervalos irregulares que escorriam do glaciar como uma mão cheia de fitas prateadas que pareciam enfeitar o massivo capacete de gelo. Montanhas distantes e montes mais próximos emolduravam o planalto com os seus cumes gelados e escarpados, tão violentamente brancos com uma leve tonalidade de azul glacial que pareciam reflectir apenas o azul límpido do céu.
Os dois picos idênticos a sul, que os tinham acompanhado durante as suas recentes caminhadas, há muito que tinham desaparecido da vista.
Um novo pináculo alto que aparecera a oeste estava a afastar-se a leste
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e os cumes da cordilheira a sul que flanqueara o seu caminho ainda exi!
biam as suas coroas cintilantes.
A norte havia duas cordilheiras de rocha mais antiga, mas o maciç que formara a orla norte do vale do rio tinha ficado para trás na curva de o rio voltava para trás depois de ter atingido o seu ponto mais a n, antes do sítio onde tinham encontrado as pessoas do Clã. Ao subirem sudeste, em direcção à nascente do rio, este ficou mais ras altas de calcário que este tomara como limite norte.
A vegetação continuou a mudar enquanto subiam. Os espruces e
abetos deram lugar a lariços e pinheiros nos solos ácidos que cobriam com
uma fina camada a camada rochosa impermeável, mas já não eram as imponentes
sentinelas das elevações mais baixas. Tinham chegado a uma
pequena zona de taiga montanhosa, com sempre-verdes cujas coroas os,
tentaram uma camada compacta de neve e gelo que ficava cimentada aos
ramos durante a maior parte do ano. Embora bastante densa nalguns sí-tios, qualquer rebento que tivesse coragem para se projectar acima do:
outros era rapidamente cortado pelo frio e pela geada, o que reduzia as
copas de rodas as árvores a um mesmo nível.
Pequenos animais deslocam-se com facilidade ao longo dos trilhos que tinham feito sob as árvores, mas as presas maiores abriam caminho pela força. Jondalar decidiu desviar-se do pequeno ribeiro sem nome que tinham vindo a seguir, um dos muitos que acabariam por formar o início de um grande rio, e seguir por um trilho feito por animais através da orla espessa de coníferas anãs.
Ao aproximarem-se da linha das árvores, estas ternaram-se mais esparsas e eles podiam ver a região além delas, completamente nua de vegetação lenhosa. Mas a vida é tenaz. Arbustos baixos e ervas, e exten-i sos campos de turfa e erva, em parte cobertos por um manto de neve, ainda aí cresciam.
Embora muito mais vastas, existiam regiões semelhantes nas elevações baixas dos continentes a norte. Continuava ahaver áreas relictas de' árvores decíduas temperadas em certas zonas protegidas e a latitudes mais baixas, surgindo sempre-verdes com agulhas mais resistentes nasi regiões boreais a norte delas. Mais a norte, onde quer que existissem, as árvores eram anãs e raquíticas. Devido aos extensos glaciares, o equivalente dos prados altos que rodeavam o gelo perpétuo das montanhas eram as vastas estepes e tundras, onde apenas sobreviviam as plantas que po diam completar o seu ciclo de vida rapidamente.
Acima da linha das árvores, multas plantas resistentes adaptavam -se ao rigor do meio ambiente. Ayla, que conduzia a sua égua pela arreata, reparou nas alterações com interesse, lamentando não ter mais tempo para examinar as diferenças. As montanhas na região onde ela crescera eram muito mais a sul e, devido à influência quente do mar interno, a vegetação era essencialmente formada por variedades das regiões frias temperadas. As plantas que existiam nas elevações mais altas das regiões gélidas e áridas fascinaram-na.
Os májestosos salgueiros, que tinham embelezado praticamente todos os rios, ribeiros ou riachos que detinham uma gota que fosse de humidade, tinham all o tamanho de arbustos, e altas e resistentes bétulas e pinheiros estavam transformados em vegetação lenhosa rasteira que avançava ao longo do solo. Vacínios e uvas-do-monte estendiam-se como uma carpete espessa, com apenas dez centímetros de altura. Ela pensou se, à semelhança das bagas que cresciam junto do glaciar a norte, teriam frutos do tamanho habitual mas mais doces e mais silvestres. Embora os esqueletos nus dos ramos murchos provassem a existência de multas plantas, ela nem sempre sabia de que variedade eram, nem atd que ponto plantas conhecidas poderiam ser diferentes, e pensou que aspecto tefiam os prados altos nas estações mais quentes.
Viajando no pino do Inverno, Ayla e Jondalar não viam a beleza da Primavera e do Verão das terras altas. A paisagem não estava colorida pelas flores cor-de-rosa das rosas silvestres ou dos rododendros; nem crocos e anémonas, nem as lindas gencianas azuis ou os narcisos amarelos ousaram desafiar o vento áspero; e as primaveras e as violetas só irrompefiam num esplendor policromático no primeiro calor da Primavera. Não havia campânulas, raponços, tasneiras, malmequeres, lírios, saxífragas, cravos, acónitos, nem belas edelvaisses para atenuar a fria monotonia dos campos gelados do Inverno.
Mas surgiu-lhes um outro panorama mais impressionante. Uma fortaleza encandeante de gelo cintilante atravessava-se no seu caminho. Refulgia ao sol como um magnificente diamante multifacetado. O seu branco puro e cristalino brilhava com sombras azuis luminosas que ocultavam as suas falhas: as fendas, os túneis, as cavernas e as bolsas que co briam a gigantesca gema.
Tinham chegado ao glaciar.
Enquanto os viajantes se aproximavam da crista do cote desgastado da montanha milenar, que ostentava a coroa de gelo achatada, nem sequer tinham a certeza se o estreito ribeiro de montanha junte deles ainda era o mesmo rio que tinha sido o seu companheiro durante tanto tempo. O rasto diminuto de gelo era impossível de distinguir dos inúmeros cursos de água pequenos e gelados que aguardavam a Primavera para libertarem as suas correntes que correriam pelas tochas cristalinas do alto planalto.
O Grande Rio Mãe que tinham seguido ao longo de todo o seu percurso
desde o largo delta onde se esvaziava no mar interno, o grande curso
de água que tinha guiado os seus passos durante uma tão grande parte
da sua árdua Viagem, desaparecera. Até a sugestão gelada de um pequeno
ribeiro selvagem em breve seria deixada para trás. Os viajantes dei
xariam de ter a segurança reconfortante do rio para lhes indicar o cami
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nho. Teriam de continuar a sua Viagem para oeste guiando-se por l
pite, apenas com o sol e as estrelas como guias, além de
rísticas do terreno das quais Jondalar esperava lembrar-se.
Acima do prado alto, a vegetaç
líquenes e musgos que eram típicos das zonas rochosas e de podiam sobreviver, além das plantas rasteitas e de outras taras e Ayla tinha começado a alimentar os cavalos com alguma da erva " vam para eles. Sem o seu pêlo pesado e espessa camada interior, cavalos nem o lobo teriam sobrevivido, mas a natureza tinha-os tado ao frio. Como não tinham o seu próprio pêlo, os seres hum tinham feito as suas adaptações. Usavam as peles dos animais que ca varo; sem elas, não teriam sobrevivido. Mas o que é certo é que sem a tecçAo das peles e do fogo, os seus antepassados também para norte.
O habitat natural dos ibex, camurças e carneiros era os prados
montanha, incluindo aqueles nas regiões mais escarpadas, e fre
tavam as terras mais altas, embora normalmente não tão
ção, mas não era normal os cavalos estarem a tão grande altitude. as encostas mais suaves do maciço encorajavam os animais da sua pécie a subir tão alto, mas a Whinney e o Corredor tinham um andar : guro.
Os cavalos, com a cabeça baixa, Jam subindo a encosta na base do
a puxar os mantimentos e as pedras de arder castanho-escuras
representariam a diferença entre a vida e a morte para todos eles.
seres humanos, que conduziam os cavalos para sítios por onde
mente estes não iriam, estavam à procura de um sítio plano onde a tenda e montar o seu acampamento.
Estavam todos cansados de resistir ao frio intenso e ao vento gélido forte, de subirem o terreno íngreme. Era extenuante. Atdo lobo ficar perto deles em vez de se afastar para fazer as suas explorações.
m Estou tão cansada m disse Ayla enquanto tentavam montar o
acampamento sob as fortes rajadas de vento. Cansada do vento e can, sada do frio. Acho que nunca mais vai aquecer. Não sabia que o frio ser assim.
Jondalar assentiu, admitindo o frio, mas sabia que o frio que ainda tinham de enfrentar seria pior. Viu-a olhar de relance para a grande massa de gelo e depois desviar o olhar como se não a quisesse ver e suspeitou de que ela estava preocupada com mais que o frio.
--Vamos mesmo atravessar todo aqueleelo? mperguntou ela, admitindo finalmente os seus temores.-E possível? Nem sequer sei como é que vamos chegar lá acima.
-- Não é fácil, mas é possível-disse Jondalar.-O Thonolan e eu atravessámos. Enquanto ainda há luz, gostaria de procurar o melhor sítio para conduzirmos os cavalos até lá acima.
mTenho a sensação de estar a viaj ar há uma eternidade. Quanto mais ainda temos que andar, Jondalar?
m Ainda falta bastante para chegarmos à Nona Caverna, mas não
tanto como já andámos e, assim que atravessarmos o gelo, a Caverna de Dalanar fica a pouca distância. Ficaremos lá durante algum tempo; assim terás oportunidade de o conhecer, e à Jerika e a todos.., estou ansio so por mostrar a Dalanar e a Joplaya algumas das técnicas de trabalhar a pedreneira que aprendi com o Wymez... mas mesmo que lá fiquemos de visita temos de partir antes do Verão.
Ayla ficou angustiada. Verão! Mas agora é Inverno, pensou. Se tivesse
realmente compreendido como a Viagem era longa, teria acedido com
tanto entusiasmo a fazer todo aquele percurso com Jondalar até ao seu
lar?, interrogou-se ela. Talvez se tivesse esforçado mais por o convencer a ficar com os Mamutoi.
mVamos ver o glaciar mais de perto-disse Jondalar-e planear o melhor caminho para lá chegarmos acima. Depois temos de verificar se temos tudo o que precisamos para atravessar o gelo.
-- Hoje vamos ter de gastar algumas das pedras de arder para fazer mos uma fogueira-disse Ayla.-Aqui não há nada que arda. mE temos que derreter gelo para termos água... não devemos ter dificuldade em arranjar gelo suficiente.
A excepção de algumas bolsas de fraca acumulação, não havia neve na
zona onde tinham acampado e pouca tinham visto durante a subida da
encosta. Jondalar só tinha passado por all uma vez, mas toda a área pare
cia-lhe muito mais seca do que ele se recordava. E tinha razão. Estavam
na sombra da chuva das terras altas, no lado de trás; a escassa neve que
caía na região normalmente vinha um pouco mais tarde, depois de a estação
começar a virar. Ele e Thonolan tinham apanhado uma tempestade de neve ao descerem.
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Em muitas áreas do sopé, a antiga rocha das terras altas
exposta. O maciço, dobrado e erguido pelas enormes pressões q
criado as montanhas a sul, tinha sido outrora um bloco sólido de
to cristalino que incorporava semelhantes terras altas a oeste.
que tinham empurrado a antiga montanha inamovível, a rocha mái
riga na terra, deixaram provas sob a forma de uma grande brecha
falha que tinha dividido o bloco.
Directamente para oeste, do lado oposto do glaciar, a encosta oeste maciço era íngreme, com uma parede paralela virada para este do lado do vale da falha. Um rio corria ao Ion da falha, protegido pelos lados paralelos e altos do maciço fendido.
Jondalar tencionava dirigir-se para sudoeste, atravessar o g nalmente e descer por uma encosta mais gradual. Queria atrave.,
mais perto da sua origem no alto das montanhas a sul, antes de
volta do maciço coberto pelo glaciar e através do vale da falha.
-- De onde é que veio isto? -- perguntou Ayla, erguendo o objecto
causa. Consistia de dois discos ovais de madeira, montados numa estrutura
que os tornava rígidos e os apertava bastante perto um do outro,
tiras tinas de couro presas à parte exterior. Uma pequena fend
do aberta horizontalmente pelo meio das peças ovais quase a toda a
extensão, dividindo-as praticamente ao meio.
-- Fi-los antes de partirmos. Tambdm tenho um para ti. É
olhos. Por vezes o brilho do gelo do glaciar é tão forte que nao se vê
branco.., as pessoas chamam a isso cegueira da neve. Ace
mento desaparece passado algum tempo, mas os olhos
velmente vermelhos e doridos. Isto protege-te os olhos. Vá,
-- disse Jondalar. Depois, ao ver que ela não conseguia, acrescentou:
Olha, eu mostro-te como é.-Pôs as invulgares protecções de sol e amarrou
as tiras de couro na parte de trás da cabeça.
-- Como é que consegues ver? m perguntou Ayla. Mal lhe distin os olhos por detrás das fendas horizontais, mas pôs o par que ele lhe deu.
-- Vê-se quase tudo! Basta virar a cabeça e olhar de lado.-Ficou sur
preendida; depois sorriu.-Ficas tão engraçado com esses grandes olhos
vazios, como uma espécie de espírito estranho.., ou um insecto. Talvez o espírito de um insecto.
q To também ficas engraçada-disse ele, retribuindo-lhe o sorriso --mas esses olhos de insecto podem salvar-te a vida. Lá em cima no gelo vais precisar de ver por onde vais.
-- Estes forros de botas de pêlo de carneiro que a mãe da Madenia fez têm sido tão confortáveis-comentou Ayla enquanto os guardava à mão. Mesmo quando estão molhados, conservam-nos os pés quentes.
--Vai saber-nos bem ter outro par quando estivermos no gelo mdisse Jondalar.
m Quando vivia com o Clã, costumava meterjunças nas minhas coberturas
de pés.
m Junças?
m Sim. Mantdm os pés quentes e seca depressa.
m É útil saber isso m disse Jondalar, pegando numa bota. m Põe as
botas com as solas de pele de mamute. São quase à prova de água, além
de resistentes. As vezes o gelo é afiado e como as solas são ásperas não
escorregam, sobretudo na subida. Ora vejamos, vamos precisar de uma
enxó para partir gelo. m Pôs a ferramenta em cima de uma pilha de coisas
que estava a separar, mE corda. E também de corda forte. Vamos pre
cisar da tenda, das peles de dormir e, é claro, de comida. Podemos deixar
alguns utensflios de cozinhar? Não vamos precisar de muitos no gelo e podemos
arranjar outros nos Lanzadonii.
m Vamos utilizar comida de viagem. Não irei cozinhar e decidi utilizar o recipiente grande de pele preso à armação que a Solandia nos deu para derreter o gelo para fazer água, pondo-o directamente sobre o lume. Desta forma é mais rápido e não precisamos de ferver a água, só de derreter o gelo m disse Ayla.
-- Não te esqueças de ter sempre uma lança contigo.-Porquê? Não há animais no gelo, pois não?mNão, mas podes usá-la para espetar o chão à tua frente para te assegurares de que o gelo é sólido. E esta pele de mamute? m perguntou Jondalar. -- Desde.que partimos que a trazemos connosco, mas será que pre cisamos dela? E pesada.
m É uma boa pele e está macia e flexível. É uma boa cobertura à prova
de água para o barco. Disseste que lá em cima no gelo nevava, m Detestava a ideia de a deitar fora.
m Mas podemos usar a tenda como cobertura. m Isso é verdade.., mas m disse Ayla, comprimindo os lábios, a reflectir... Depois reparou noutra coisa, m Onde é que arranjaste esses archotes?
mDeu-mos o Laduni. Vamo-nos levantar antes do nascer do Sol e iremos precisar de luz para arrumarmos as coisas. Quero chegar ao cimo do planalto antes de o sol ir muito alto, enquanto está tudo completamente gelado e sólido m disse Jondalar. m Mesmo com um frio destes, o sol pode derreter um pouco o gelo e será difícil chegar lá acima.
Deitaram-se cedo, mas Ayla não conseguia adormecer. Estava nervosa e excitada. Aquele era o glaciar do qual Jondalar falara logo desde o início.
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-- Qu... Que é que se passa? -- disse Ayla, acordando sobres
M Não se passa nad:a. São horas de nos levantarmos D disse
lar, erguendo o archote. Espetou a outra extremidade na gravilha o manter na vertical e ceu-lhe uma malga de chá fumegante, u
a fogueira. Tens aqui cthá.
Ela sorriu com uma expressão de satisfação. Tinha sido ela
chá da manhã praticamente todos os dias da sua Viagem e ele ficou " tado por, uma vez que fo,sse, se ter levantado primeiro e feito chá Na realidade, não chegara a dormir. Estava demasiado nervoso, siado excitado e demasiiado preocupado.
OLobo observou os humanos com a luz reflectida nos seus olhos. cebendo-se de qualquer coisa invulgar, andava aos saltos de um para o outro. Os cavalos também estavam inquietos, não parando ¢ folegar e de relinchar, soltando nuvens de vapor. Utilizando as pedras arder, Ayla derreteu gelo em água e deu-lhes cereais para comerem. um bolo de comida de ,iagem dos Losadunai ao Lobo e ela e comeram um cada. k luíZ do archote, guardaram a tenda, as peles mire alguns implementOS. Deixaram ficar alguns objectos, um rec te de cereais vazio, algtmas ferramentas de pedreneira mas, no instante, Ayla atirou a pele de mamute por cima do carvão castanho I la no barco.
Jondalar pegou no archote para alumiar o caminho. Pegando na reata do Corredor, cor¢eçou a andar, mas a luz confundia-o, a pequeno círculo de luz j unto de si, mas não muito além, mesmo o levantava mais alto. lstava quase lua cheia e ele começou a achar encontraria melhor o caminho sem a luz. O homem acabou por atirar archote para o chão e avnçou na escuridão. Ayla seguiu-o e, guns momentos, os seu olhos adaptaram-se. Atrás deles, o archote tinuou a arder no solo de gravilha enquanto eles se afastavam.
À luz da lua, à qual apenas faltava uma pequena lasca para cheia, o monstruoso bastião de gelo cintilava com uma luz fantasm rica e evanescente. O céu negro estava nublado de estrelas, o ar seco brante de frio; um éter amorfo carregado de vida própria.
Com todo o frio que jí fazia, o ar gélido tinha uma qualidade mais
funda à medida que se aproximaram da grande parede de gelo, mas o
arrepio de Ayla foi causdo pela sensação de temor e antecipação. Jonda- lar observou os seus olhos brilhantes, a sua boca ligeiramente entreaberta
à medida que respirava mais depressa e mais fundo. Reagia sempre à
sua excitação e sentiu am frémito entre-pernas. Mas abanou a cabeça.
Agora não havia tempo. O glaciar estava à espera.
Jondalar tirou uma corda comprida da mochila.
D É preciso amarrarmo-nos um ao outro-disse.
-- E os cavalos também?
Não. Talvez consigamos aguentar-nos um ao outro, mas se os cava
PLAN]CIES DE PASSAGEM
los escorregarem arrastar-nos-ão com eles. Por mais que odiasse a
ideia de perder o Corredor ou a Whinney, era com Ayla que estava preocupado.
Ayla franziu a testa, mas assentiu, concordando.
Falavam em murmúrios abafados, pois a massa de gelo silenciosa ate nuava-lhes o tom de voz. Não queriam perturbar o seu massivo esplendor nem alertá-lo para o seu breve ataque.
Jondalar amarrou uma das extremidades da corda em volta da cintura e a outra em volta da de Ayla, enrolando o reste do comprimento e enfiando o braço nele para o levar ao ombro. Depois cada um pegou na arreata de um cavalo. O Lobo teria de se desenvencilhar por si.
Jondalar sentiu um instante de pânico antes de se pôr a caminho. Em que diabo é que ele teria estado apensar? Que é que o levara a pensar que conseguiria atravessar o glaciar com Ayla e os cavalos? Deviam ter ido pelo caminho mais comprido. Mesmo que demorassem mais, era mais seguro. Pelo menos conseguiriam lá chegar. Depois pisou gelo.
No sopé do glaciar havia frequentemente uma separação entre o gelo e a terra, que criava um espaço semelhante a uma caverna sob o gelo, ou uma plataforma de gelo que se projectava por cima da gravilha acumulada de conglomerado argiloso do glaliaç. No sítio que Jondalar escolheu como ponto de partida, a plataforma projectada tinha ruído, formando uma subida gradual. Também tinha gravilha misturada, o que tornava o piso mais seguro. Partindo da extremidade da plataforma que ruíra, uma forte acumulação de gravilha D uma morena dava acesso à encosta de gelo sob a forma de um caminho bem definido e, à excepção da parte superior, não parecia demasiado íngreme nem para eles nem para os cavalos. Passar para cima poderia ser um problema, mas ele só sabe ria até que ponto quando lá chegasse.
Com Jondalar à frente, começaram a subir a encosta. O Corredor re cusou-se por instantes a avançar. Embora a tivessem diminuído, a sua carga continuava demasiado volumosa e a alteração na elevação de moderada para mais inclinada perturbou-o. Um dos seus cascos escorregou, firmou-se e, com alguma hesitação, o jovem garanhão iniciou a subida. Depois foi a vez de Ayla e da Whinney, que ia a arrastar a padiola. Mas a égua já puxava a padiola há tanto tenpo, por terreno tão diverso, que estava habituada e, ao contrário da grande carga que o Corredor trans portava sobre o dorso, os paus espaçados entre si ajudaram a égua a rirmar-se. OLobo ia em último. Era mais fácil para ele. Estava mais junto ao chåo e as suas patas calejadas faziam fricção, impedindo-o de escorregar. Mas sentiu o perigo para os seus companheiros e colocou-se atrás deles, como que a guardar a retaguarda, atento a qualquer ameaça invisível.
Ao luar forte, os reflexos dos afloramentos irregulares de gelo nu cintilavam
e as superfícies espelhadas dos planos tinham uma qualidade
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PLAN[CIES DE PASSAGEM
líquida profunda, como lagos negros imóveis. Não era difícil ver a
na que escorria encosta abaixo, como um rio de areia e pedras visto
cåmara lenta, mas a iluminação nocturna obscurecia a dimensão e a
pectiva dos objectos e ocultava pequenos detalhes.
Jondalar marcou um passo lento e cauteloso, conduzindo cuidado,, mente o seu cavalo em torno dos obstáculos. Ayla estava mais em encontrar o melhor ca,minho para o cavalo que ela conduzia que a sua própria segurança. A medida que a subida se " me, os cavalos, desequilibrados pela inclinação e pela pesada carga levaram, esforçavam-se por se firmar. Quando um casco enquanto Jondalar tentava levar o Corredor a subir uma elevação que assemelhava a um precipício perto do cume, o cavalo relinchou e empinar-se.
-- Anda, Corredor-incitou Jondalar, puxando a arreata até ficar esticada, como se o pudesse puxar para cima por mera força -- Estamos quase lá, to consegues subir.
O garanhão fez mais um esforço, mas os seus cascos escorregaram
gelo traiçoeiro sob uma fina camada de neve e o próprio Jondal
-se puxado para baixo pela arreata. Deu um pouco de folga à corda xando que o Corredor mexesse a cabeça e acabou por a largar. coisas na carga que ele transportava que detestaria perder, e sofreria por perder o animal, mas temeu que o garanhão não cons se lá chegar.
Mas quando os seus cascos tocaram na gravilha, o Corredor parou deslizar, ergueu a cabeça e lançou-se para a frente. Subitamente, o garanhão estava lá em cima, saltando agilmente por cima de uma estreita fenda no sítio onde o terreno começava a nivelar. Enquanto fazia festas ao cavalo e o elogiava calorosamente, Jondalar reparou que o céu tinhai passado de negro para um azul-escuro, com um ligeiro clareamento de tom no horizonte a este.
Depois sentiu um puxão na corda que tinha por cima do ombro. Ayla:
devia ter escorregado para trás, pensou, e deu mais folga à corda. Devia
ter chegado à parte mais a pique da subida. Subitamente, sentiu a corda
a escorregar-lhe pela mão, até sentir um forte puxão na cintura. "Ela
deve estar agarrada à arreata da Whinney", pensou. "Term de a largar." Jondalar agarrou a corda com ambas as mãos e gritou:
-- Larga, Ayla. Ela vai-te arrastar com ela!
Mas Ayla não ouviu ou, se ouviu, não compreendeu. A Whinney tinha começado a subir, mas os seus cascos não encontravam sítio onde se firmar e estava a escorregar para trás. Ayla estava a segurar na arreata, como se pudesse impedir a égua de cair, mas estava também a escorre gar para baixo. O próprio Jondalar estava a ser perigosamente puxado para junto da beira. Procurando com o olhar qualquer a que se agarrar, deitou a mão à arreata do Corredor. O garanhão relinchou.
Mas foi a padiola que travou a descida da Whinney. Um dos paus ficou preso numa fenda e aguentou o suficiente para que a égua conseguisse recuperar o equflño. Depois os seus cascos mergulharam num monte de neve que a sustentou e depois pisaram gravilha. Ao sentir a tensão abrandar, Jondalar largou a arreata do Corredor. Carregando com o pé contra a fenda no gelo, puxou a corda que tinha amarrada à cintura.
-- Dá-me folga-gritou Ayla, agarrada à arreata da Whinney enquanto a égua avançava.
Subitamente, milagrosamente, ele viu Ayla surgir acima da beira e puxou-a o resto do caminho. Depois apareceu a Whinney. Com um salto em frente, trepou junto à fenda até ficar com as patas sobre o gelo plano, com os paus da padiola virados para o ar e o barco redondo apoiado na beira da plataforma para onde tinham acabado de subir. Um raiar rosado apareceu no céu da madrugada, definindo a orla da terra, enquanto Jondalar dava um grande suspiro.
O Lobo saltou subitamente para cima e correu para Ayla. Ia a saltar para cima dela mas Ayla, não se sentindo suficientemente segura, fez -lhe sinal para se pôr para baixo. Ele recuou, olhou para Jondalar e depois para os cavalos. Erguendo a cabeça e começando com alguns latidos preliminares, uivou então a sua canção forte e prolongadamente.
Embora tivessem vencido uma subida extremamente íngreme e o gelo
tivesse depois nivelado, ainda não estavam bem no cimo do glaciar. Havia
fendas junto à beira e blocos partidos de gelo expandido. Jondalar atravessou
um monte de gelo que cobria uma pilha de pedaços irregulares de
gelo partido por detrás da beira da plataforma e finalmente pôs pé numa
superfície plana do planalto de gelo. O Corredor seguiu-o, fazendo rolar
e saltar pedaços de gelo numa queda ruidosa pela encosta abaixo. O
homem manteve a corda que tinha amarrada à cintura bem esticada enquanto
Ayla avançava pelo sítio por onde ele acabara de passar. O Lobo correu à frente, enquanto a Whinney seguia atrás.
O céu tinha fugazmente ficado de um tom invulgar de azul, anunciando a madrugada, enquanto raios encandeantes de luz irradiavam de detrás da orla da terra. Ayla olhou para trás para a encosta quase a pique e pensou como é que a tinham conseguido subir. Daquele sítio, lá no cimo, não parecia possível. Depois virou-se para continuar, mas reteve a respiração.
O sol nascente estava a espreitar por cima da orla a este com uma
explosão de luz que iluminava uma cena inacreditável. A oeste, uma planície
encandeantemente branca, plana, sem o menor acidente, estendia
-se à sua frente. Por cima dela, o céu era de um tom de azul que ela nunca
vira na sua vida. Tinha de alguma forma absorvido o reflexo avermelhado
do nascer do Sol e o tom azul-esverdeado do gelo e, no entanto, continuava
a ser azul. Mas era de um azul tão espantosamente brilhante que
parecia refulgir com a sua própria luz, formando uma cor além de qual
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quer descrição. No horizonte a sudoeste, à distancia, assumia um
azul-negro difuso.
Enquanto o sol se erguia a este, a imagem nublada de um círculo " se perfeito que bri]hara com um reflexo tao brilhante no céu acordar antes da madrugada pairava sobre a distante orla oeste ga memória da sua anterior glória. Mas nada interrompia irreal do vasto deserto de água gelada; nenhuma árvore nenhum movimento de qualquer espécie maculava a grandiosidade sua superfície aparentemente intacta.
Ay]a libertou a respiração explosivamente. Não sabia que a estava reter.
-- Jondalar! É magnificente! Por que é que não me
viajado o dobro da distância só para ver isto-disse ela numa voz gada d.e emoção.
- E espectacular m disse ele, sortindo da reacção dela, mas
mente impressionado, w Mas não te podia dizer. Nunca o vi
é frequente estar tão imóvel. As tempestades de neve também são pressionantes. Vamos continuar enquanto conseguimos ver o Não é tão sólido quanto parece e com este céu límpido e sol forte abrir-se sob os nossos pés uma fenda ou um pedaço de gelo ceder.
Começaram a atravessar a planície de gelo, precedidos pelas sombras compridas. Antes de o sol estar muito alto, já estavam dentro da sua roupa pesada. Ayla começou atirar a suaparka exterior pele.
m Tira-a, se quiseres m disse Jondalar m, mas deixa-te ficar vesti,
da. Aqui pode-se ficar gravemente queimado, e não apenas por Quando o sol incide nele, o gelo também queima.
Pequenas nuvens cumulus começaram a formar-se durante a manhL
Ao meio-dia já formavam grandes nuvens cumulus. O vento começou a
soprar com mais força durante a tarde. Por volta da hora em "
Jondalar decidiram parar para derreter neve e gelo para terem á
ficou mais que contente por voltar a vestir a sua parka de pele. O sol
estava escondido por cumulonimbos carregados de humidade que espalhavam
um leve pó de neve seca sobre os viajantes. O glaciar estava a
crescer.
O glaciar do planalto que estavam a atravessar tinha nascido nos picos
das montanhas escarpadas muito a sul. O ar húmido, subindo ao varrer
as altas barreiras, condensava em gotículas, mas a temperatura decio
dia se iriam cair sob a forma de chuva fria ou, tornando-se ligeiramente
mais baixa, como neve. Não era uma temperatura gélida constante que
formava os glaciares; pelo contrário, uma acumulação de neve de um ano para o outro dava origem a glaciares que, com o tempo, se tornavam lençóis
de gelo que acabavam por se estender através dos continentes. Ape- sar de alguns dias quentes, os Invernos solidamente frios, conjugados
com Verões frescos e nublados que não derretiam o resto da neve e do gelo do final do Inverno-uma temperatura anual média mais baixa determinam
a tendência para uma época glaciar.
Imediatamente abaixo dos altos pináculos das montanhas do sul, elas próprias demasiado íngremes para a neve all se acumular, formavam-se pequenas bacias, circos que se aninhavam jun aos lados dos pináculos, e estes circos eram onde nasciam os glaciares. A medida que os flocos de neve, leves e secos, caíam nas depressões no alto das montanhas, criadas por minúsculas quantidades de água que gelava nas fendas, expandiam se soltando toneladas de rocha onde se acumulavam. Por fim, o peso da massa de água gelada partia os delicados flocos em pedaços que coagulavam em pequenas bolas redondas de gelo: neve granulosa.
A neve granulosa não se formava à supeície, mas bem no fundo dos circos e, quando caía mais neve, as esferas mais pesadas e compactas eram empurradas para cima e para fora do ninho. A medida que mais se iam acumulando, as bolas quase circulares de gelo eram pressionadas umas contra as outras com tanta força que, pelo mero peso por cima, uma fracção da energia era libertada como calor. Por um instante apenas, der retiam nos muitos pontos de contacto e voltavam imediatamente a gelar, fundindo as bolas. A medida que as camadas de gelo se tornavam mais fundas, o aumento de pressão reorganizava a estrutura das moléculas, formando gelo sólido e cristalino mas com uma subtil diferença: o gelo fluía.
O gelo glaciar, formado sob tremenda pressão, era mais denso; no ,entanto, nas camadas inferiores, a grande massa de gelo sólido fluía tao :suavemente como qualquer líquido. Dividindo-se em torno de obsta,cu]os, como os altos pináculos das montanhas, e voltando a unr-se do ,outro lado muitas vezes arrastando grande parte da rocha consigo e ,deixando para trás ilhas de picos pontiagudos o glaciai soguia os con ternos da terra, moendo-a e dando-lhe nova forma à medida que avanfava. O ño de gelo sólido tinha correntes e redemoinhos, lagos estagnados e centros de correntes rápidas, mas deslocava-se segundo um tempo diferente, tao ponderosamente lente como massivamente enorme. Podia levar anos a avançar alguns centímetros. Mas o tempo não importava. Ele tinha todo o tempo do mundo. Desde que a temperatura média se mantivesse abaixo da linha crítica, o glaciar alimentava-se e crescia.
Os circos das montanhas não eram os únicos locais onde nasciam. Os
glaciates também se formavam em terreno plano e, assim que cobrisse
uma área suficientemente grande, o efeito gélido estendia a precipitação
para lá do túnel anticiclónico, centrado no meio, para as margens extre
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JEAN A UEL
mas; a espessura do gelo mantinha-se praticamente a mesma ao
deste processo.
Os glaciates nunca eram completamente secos. Havia sempre alguma
água que se escoava do degelo causado pela pressão. Enchia peff
suras e escaninhos e, quando arrefecia e voltava a gelar, expandia-se em rodas as direcções. O movimento de um glaciar era
direcções a partir da sua origem e a veloc
dia da inclinação da sua superfície, não da inclinação do terreno sob ele.I
Sea inclinação da superfície fosse grande, a água dentro do glaciar fluía
para baixo mais rapidamente através das fendas no gelo e espalhava-se
ao voltar a gelar. Cresciam mais depressa quando eram novos, perto de
grandes oceanos ou mares, ou em montanhas cujos picos elevados asse-:
guravam fortes queda de neve. Abrandavam depois de se estonderem,
pois a sua ampla superfície reflectia para longe a luz do sol e o ar por cima
do centro tornava-se mais frio e seco e com menos neve.
Os glaciares nas montanhas a sul tinham-se estendido dos seus altos picos, enchido os vales atd ao nível dos altos desfiladeiros das montanhas e irrompido através destes. Durante um período anteñor de avanço, os! glaciares das montanhas encheram o cavado fundo de uma linha de falha que separava o promontório do antigo maciço. Cobriu as terras altas, depois estendeu-se até às antigas montanhas erodidas na franja norte. O gelo recuou durante o período temporário de aquecimento-que esta va a terminar m e derreteu no vale da falha nas terras baixas, cñando um grande rio e um comprido lago pejado de morenas, mas o glaciar do planalto nas terras altas que estavam a atravessar continuou gelado.
Eles não podiam acender uma fogueira directamente sobre o gelo e
tinham planeado utilizar o barco como base para as pedras de rio que
tinham trazido para acender a fogueira sobre elas. Mas primeiro tinham :
que tirar todas as pedras de arder de dentro do barco redondo. Quando.
Ayla pegou na pesada pele de mamute, ocorreu-lhe que podiam usá-la
como base para acender a fogueira. Mesmo que ficasse chamuscada, não
importaria. Ficou contente por ter pensado em levá-la. Todos, incluindo
os cavalos, beberam água e comeram alguma coisa.
Enquanto estavam parados, o sol desapareceu por completo por detrás de pesadas nuvens e, antes de se porem novamente a caminho, começou a cair uma neve grossa com soturna determinação. O vento norte uivava através da imensidão gelada e não havia nada em todo aquele vasto lençol que cobria o maciço que lhe fizesse frente. Estava a caminho uma tempestade de neve.
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À medida que a tempestade de neve se agravava, a força do vento de
noroeste aumentou subitamente. Fustigava-os com um impacte de ar
frio que os empurrava como se não passassem de um pedaço insignificante
da cortina horizontal de branco que os rodeava.
macho que é melhor esperarmos que passe-gritou Jondalar acima do uivo do vento.
Lutaram para montar a tenda enquanto as rajadas geladas arrancavam as estacas do gelo e deixavam a tenda enfolada e a bater ao vento. O vento violento e sinuoso ameaçava rasgar o lençol de pele das mãos daquelas duas almas corajosas que tentavam atravessar o gelo, ousando representar um obstáculo para a furiosa tempestade carregada de neve que varria a superfície plana.
-- Como é que vamos manter a tenda presa? -- perguntou Ayla.-O tempo é sempre tão mau aqui?
-- Não me lembro de uma tempestade tão forte, mas não me admiro.
Os cavalos estavam de pé, mudos, de cabeça baixa, a aguentar estoicamente
a tempestade. O Lobo estava junto a eles, a escavar um buraco
onde se meter, n Talvez possamos pôr um dos cavalos de pé em cima de
uma das extremidades para a segurar enquanto prendemos a outra com
as estacas-sugeriu Ayla.
Uma coisa levando a outra, acabaram por optar por uma solução de recurso,
utilizando ambos os cavalos como estacas e suportes. Puseram a
pele por cima do dorso de ambos os cavalos, depois Ayla convenceu a Whinney a pôr-se em cima de uma das extremidades virada para dentro,
esperando que a égua não se mexesse muito para que não se soltasse.
Ayla e Jondalar aconchegaram-se um ao outro, com o lobo sob os seus joelhos
dobrados, sentados, quase debaixo da barriga dos cavalos, na outra
extremidade da tenda que estava dobrada sob eles.
Já escurecera quando a tempestade parou e tiveram de acampar no mesmo sítio para aí passar a noite, mas primeiro montaram a tenda como devia ser. De manhã, Ayla ficou intrigada com umas manchas escuras perto da orla da tenda onde a Whinney tinha estado. Ficou apensar nelas enquanto se apressaram a desmontar o acampamento logo bem cedo.
Fizeram mais progressos do segundo dia, apesar de terem tido que subir
a alguns montes de gelo partido e conrnar várias fendas largas,
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todas elas orientadas na mesma direcção. Voltou a haver uma tempesta.
de à tarde, embora o vento não fosse tão forte e tivesse passado mais
depressa, permitindo-lhes centinuar a sua Viagem ao fim da tarde.
Quase ao anoitecer, Ayla reparou que a Whinney estava a coxear.
riu o coração bater mais depressa e uma onda de medo invadiu-a.
mais atentamente e viu manchas de sangue no gelo. Pegou na pata Whinney e examinou-lhe o casco. Estava cortado até ao osso
mJondalar, olha para isto. Ela term as patas todas cortadas. Que
lhe fez isso? -- disse Ayla.
Ele olhou e depois examinou os c
minava o resto dos cascos da Whinney. Descobriu o mesmo tipo mentos e franziu a testa.
-- Deve ser do gelo-disse.-É melhor examinares
As almofadas das patas do lobo também estavam cortadas,
tão gravemente como os cascos dos cavalos.
-- Que é que vamos fazer? disse Ayla.-Estão aleijados
estão, em breve estarão.
-- Nunca me ocorreu que o gelo pudesse ser tão cortante ao
lhes ferir os cascos-disse Jondalar, muito perturbado.-Tentei sar em tudo, mas não pensei nisso, w Estava cheio de remorsos.
-- Os cascos são duros, mas não como pedra. Parecem-se mais unhas. Podem ferir-se. Jondalar, eles não e ficam tão aleijados que nem andar conseguirão-disse Ayla. de os ajudar.
-- Mas que é que podemos fazer? -- disse Jondalar.
-- Born, tenho comigo a minha bolsa de
tar-lhes as feridas.
Mas não podemos ficar aqui até sararem. Assim que recomeçarem
andar, ficarão na mesma.-O homem parou de falar e fechou os olhos
Nem queria sequer pensar no que estava a pensar, e muito m
-lo, mas só via uma saída para o seu dilema.-Ayla, vamos ter de os xar-disse o homem, o mais brandamente que pode.
-- Deixá-los? Que é que queres dizer com "deixá-los"? Não
deixar a Whinney nem o Corredor. Onde é que encontrariam água? Ou comida? Não há nada para pastar no gelo, nem sequer pontas de Morreriam de fome, ou de frio. Não podemos fazer isso! uma expressão de angústia. Não os podemos deixar aqui dessa Não podemos, Jondalar!
-- Tens razão, não os podemos deixar aqui assim. Não seria justo,:
Sofreriam demasiado.., mas.., temos as lanças e os lançadores de lan
m disse Jondalar.
-- Não! Não! -- gritou Ayla.-Não te deixarei fazer isso!
m Seria melhor que deixá-los aqui para morrerem lentamente, I sofrerem. Não é como se cavalos nunca tenham sido.., caçados. É o que a maioria das pessoas faz.
-- Mas estes não são cavalos como os outros. A Whinney e o Corredor são amigos. Passámos tanto juntos. Eles ajudaram-nos. A Whinney sal- vou-me a vida. Não a posso deixar aqui.
--Eu quero cá deixá-los tanto como to-disse Jondalar--, mas que outra coisa é que podemos fazer? -- A ideia de matar o garanhão depois de ter viajado tanto com ele era-lhe quase insuportável e sabia o que Ayla sentia pela Whinney.
--Voltamos para trás. Temos de voltar para trás. Disseste que havia
um outro caminho à volta[
Já viajámos durante dois dias neste gelo e os cavalos estão quase
aleijados. Podemos tentar voltar para trás, Ayla, mas não creio que eles
consigam lá chegar-disse Jondalar. Nem sequer tinha a certeza de que o Lobo conseguisse. Uma sensação de culpa e de remorso invadiu-o.-
Desculpa, Ayla. A culpa é minha. Fui estúpido em pensar que conseguiríamos
atravessar este glaciar com os cavalos. Devíamos ter ido pelo
caminho à volta, mas receio que seja tarde de mais.
Ayla viu que ele tinha lágrimas nos olhos. Não o tinha visto com lágrimas nos olhos multas vezes. Embora não fosse assim tão invulgar os homens dos Outros chorarem, estava-lhe na natureza esconder essas emoções. De certa forma, isso tornava o seu amor por ela mais intenso. Tinha-se dado a si próprio, quase inteiramente, apenas a ela, e ela ama va-o por isso, mas não podia desistir da Whinney. A égua era sua amiga; a única amiga que ela tivera no vale, até Jondalar aparecer.
-- Temos de fazer qualquer coisa, Jondalar! disse ela a soluçar.
-- Mas o quê? Ele nunca se sentira tão inconformado, tão absolu tamente frustrado com a sua incapacidade para encontrar uma solução.
Born, para já-disse Ayla, limpando os olhos, com as lágrimas a gelarem-lhes nas faces-you tratar-lhes as feridas. Isso posso fazer- e pegou na sua bolsa de ervas medicinais de pele de lontra.-Vamos ter de fazer uma boa fogueira, suficientemente forte para ferver água, não apenas para derreter gelo.
Tirou a pele de mamute de cima das pedras de arder e estondeu-a sobre o gelo. Reparou numas partes chamuscadas na pele flexível, mas que não tinham estragado a velha pele resistente. Pôs as pedras de rio numa parte diferente, mas perto do meio, para servir de base para acender a fogueira. Pelo menos já não tinham que se preocupar em poupar combustível. Podiam deixar ficar a maior parte.
Não falou, não conseguia, e Jondalar também não tinha nada para dizer. Parecia impossível. Todo o cuidado, todos os planos, todos os pre parativos que tinham feito para a travessia daquele glaciar, só para serem impedidos por uma coisa na qual nem sequer tinham pensado.
Ayla olhou fixamente para a pequena fogueira. OLobo rastejou aé junte
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PI.N]CIES DE PASSAGEM
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PL/tN[CIES DE PASSAGEM
dela e ganiu, não de dor, mas porque sabia que havia qualquer coisa
errado. Ayla voltou a examinar-lhe as paras. Não estavam muito
Ele tinha mais eotrolo sobre os sítios onde pisava e lambia cuidadosa-! mente a neve e o gelo quando paravam para descansar. querÌa pensar em perdê-lo.
Há algum tempo que não pensava conscientemente em Durc,
ele estivesse sempre presente, uma memória, uma dor fria que nunca esqueceria. Deu por si a pensar nele. Terá já começado a caçar com o Já terá aprendido a usar a funda? A Uba seria boa mãe para ele, ria dele, far-lhe-ia a comida, far-lhe-ia roupa quente para o Inverno.
Ayla estremeceu, pensando no frio, depois pensou na primeira roll
de Inverno que Iza lhe tinha feito. Adorara o gorro de pele de coelho
a pele do lado de dentro. As coberturas de pés de Inverno também 1
êelo por dentro. Recordou-se de quando calçara um par novo e
-se como as simples coberturas de pés eram feitas. Era apenas um pedaço i de pele, puxada para cima e apertada nos tornozelos. Passado algum tempo
adaptavam-se à forma do pé mas a princípio eram bastante desajei-i
tadas, mas isso fazia parte do divertimento quando se tinha um par novo.
Ayla continuou a olhar fixamente para a fogueira, a
çar a ferver. Havia qualquer coisa que não a largava. Uma coisa impor°
tante, tinha a certeza. Qualquer coisa acerca...
Subitamente, inspirou ruidosamente.
-- Jondalar! Oh, Jondalar!
A ele, ela pareceu-lhe agitada.
-- Que é que se passa, Ayla?
--Não se passa nada de mal, mas sim de bem! --exclamou ela.-Acabei de me lembrar de uma coisa!
Ele achou que ela se estava a comportar de uma forma estranha. --Não ccmpreendo-disse.-Pensou seaideia de cavalos teria sido demasiado para ela. Depois ela puxou a pesada pele de mamute de debaixo da fogueira, fazendo cair uma brasa directamente em cima da pele.
-- Dá-me uma faca, Jondalar. A tua faca mais afiada.
-- A minha faca? -- disse ele.
-- Sim, a tua faca-disse ela.-You fazer botas para os cavalos!
-- Vais fazer o quê?
You fazer botas para os cavalos e também para o Lobo. Com esta pele de mamute!
-- Como é que fazes botas para cavalos?
--You cortar círculos nesta pele de mamute, depois faço buracos em volta da extremidade, passo uma tira de couro fina por eles e amarro-a à volta dos tornozelos dos cavalos. Se a pele de mamute impede que os nossos pés se cortem no gelo, é natural que proteja as patas deles-explicou Ayla.
Jondalar pensou durante alguns instantes, tentando vizualizar o que ela descrevera; depois sortiu.
D Ayla! Acho que irá resultar. Pela Grande Mãe, acho que irá resul
tar! Que ideia maravilhosa! Como é que te lembraste de uma coisa dessas?
D Era assim que a Iza fazia as mÌnhas botas. É assim que a gente do
clå faz protecções de pés. E também protecções de mãos. Estou a tentar
lembrar-se se as que a Yorga e o Guban usavam eram do mesmo tipo. E
difícil de ver, pois passado algum tempo moldam-se aos pés.
Achas que essa pele chega?
--Deve chegar. Enquanto a fogueira está acesa, you acabar de preparar este remédio para os cortes e talvez fazer chá quente para nós. Há dois dias que não bebemos chá e provavelmente só voltaremos a beber quando sairmos deste gelo. Vamos ter de poupar combustível, mas creio que nos vai saber muito bem uma chávena de chá quente.
--Acho que tens razão!-- concordou Jondalar, voltando a sorrir e sentindo-se muito bem.
Ayla voltou a examinar cuidadosamente cada casco de ambos os cavalos, cortou as irregularidades, apiÌcou o remédio e depois pôs-lhes as botas de cavalos. A princípio eles tentaram sacudir aquelas estranhas coberturas, mas elas estavam firmemente amarradas e os cavalos habituaram-se rapidamente a elas. Depois pegou no conjunto que tinha feito para o Lobo e pôs-lhas. Ele roeu-as, tentando livrar-se daqueles empecilhos desconhecidos, mas passado pouco tempo tambdm deixou de lutar contra elas. As suas enormes patas de lobo estavam muito melhor assim.
Na manhã seguinte carregaram os cavalos com uma carga ligeÌra mente mais leve; tinham usado algum do carvão castanho e a pesada pele de mamute estava agora nas suas patas. Ayla tirou-lhes a carga quando pararam para descansar e levou ela própria um pouco mais de peso. Mas nem por sombras conseguia transportar o que os fortes cavalos transportavam. Apesar da viagem, nessa noite os seus cascos e patas pareciam estar muito melhores. As do Lobo pareciam perfeitamente normais, o que foi um grande alívio quer para Ayla quer para Jondalar. As botas trouxeram uma vantagem inesperada: funcionavam como uma espécie de sapato de neve quando a neve era mais funda e os animais grandes e pesados não se afundavam tanto nela.
O padrão do primeiro dia manteve-se com algumas variações. Faziam mais progressos de manhã; a tarde trazÌa neve e vento de diversa intensidade. Por vezes conseguiam avançar um pouco mais depois da tempestade, outras vezes tinham de passar a noite no sítio onde tinham parado à tarde e, numa ocasião, durante dois dÍas, mas nenhuma das tempestades foi tão violenta como a que tinham enfrentado no primeiro dia.
A superfície do glaciar não era tão plana e lisa como parecera naquele
primeiro dia em que a viram a brilhar ao sol. Enterravam-se em montes
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de neve acumulada por tempestades de neve localizadas. Outras vezes,
quando os ventos fortes limpavam a superfície, pisavam pedaços pontia-i
gudos de gelo e escorregavam para dentro de pequenas valas e ficavam
com os pés presos em espaços estreitos, torcendo os tornozelos na superfície
irregular. Abruptas borrascas surgiam sem o menor aviso, o vento i
feroz quase nunca abrandava e eles estavam permanentemente preocupados
com ravinas escondidas, cobertas apenas por frágeis pontes ou
cornijas de neve.
Contornaram fendas abertas, especialmente perto do centro, onde o ar seco tinha tão pouca humidade que a neve não era suficientemente pesada para encher as ravinas. E o frio gélido, arrepiante, que os enregelava até aos ossos, nunca abrandava. A sua respiração congelava no pêlo dos capuzes à volta da boca; uma gota de água que caísse de uma malga gela va antes de tocar no chão. Os seus rostos, expostos aos ventos violentos e ao sol forte, gretavam, pelavam e enegreciam. As queimaduras pelo frio eram uma ameaça constante.
A tensão começava a notar-se. As suas respostas estavam a começar a deteriorar-se, bem como o seu discernimento. Uma furiosa tempestade que começara de tarde tinha-se prolongado pela noite dentro. De manhã, Jondalar estava ansioso por partir. Tinham perdido muito mais tempo do que ele planeara. Com aquele frio gélido, a água demorava mais tempo a aquecer e as suas reservas de pedras de arder estava a diminuir.
Ayla estava a procurar qualquer coisa na mochila; depois começou a procurar no meio das suas peles de dormir. Não se lembrava há quantos dias estavam no gelo mas, na sua opinião, estavam já há demasiados, pensou enquanto procurava.
-- Despacha-te, Ayla! Por que é que estás a demorar tanto?-- exclamou Jondalar, irritado.
-- Não consigo encontrar os meus protectores de olhos-disse ela.
-- Eu bem to disse para não os perderes. Queres ficar cega? -- explodiu ele.
--Não, não quero ficar cega. Por que é que achas que estou à procura deles? -- retorquiu Ayla. Jondalar puxou a pele e sacudiu-a vigorosa mente. Os óculos de madeira caíram no chão.
--Term cuidado onde os pões da próxima vez-disse ele.-Vamo-nos lá despachar!
Desmontaram rapidamente o acampamento, mas Ayla amuou e re cusou-se a falar com Jondalar. Ele foi junto dela verificar o equipamento dela como de costume. Ayla agarrou a arreata da Whinney e tomou a dianteira, afastando o cavalo antes de Jondalar poder examinar o cesto-alforge. -- Achas que eu não sei pôr o cesto-alforge num cavalo? Não disseste que te querias despachar? Por que é que estás a perder tempo? -- disse-lhe, irritada, por cima do ombro.
"Estava apenas a tentar ser cuidadoso", pensou Jondalar, zangado. "Ela nem sequer sabe o caminho. You esperar que ande às voltas durante um bocado. Depois virá ter comigo para me pedir que vá à frente", pen sou ele, seguindo-a.
Ayla estava cheia de frio e cansada da marcha forçada. Avançou sem
se ralar por onde Ìa. "Se ele está com tanta pressa, então vamos depressa",
pensou. "Se conseguirmos chegar ao fim deste gelo, espero nunca
mais ver um glaciar."
O Lobo corria nervosamente entre Ayla, na frente, e Jondalar, que seguia atrás. Não gostou da súbita mudança de posições. O homem alto tinha ido sempre à frente. O lobo correu à frente da mulher, que avança va pesadamente, indiferente a tudo a não ser ao terrível frio e à ofensa que sofrera. Subitamente, o animal parou mesmo à sua frente, barrandolhe o caminho.
Ayla, que conduzia a égua pela arreata, contornou-o. Ele voltou a correr para a sua frente. Ela ignorou-o. Ele deu-lhe um pequeno empurrão nas pernas com o focinho; ela afastou-o para o lado. Ele correu um pouco mais em frente e depois sentou-se a ganir, paralhe chamar a atenção. Ela passou por ele. Ele correu para Jondalar, saltou e ganiu à sua frente e depois deu alguns saltos na direcção de Ayla, a ganir, voltando a avançar para o homem.
-- Passa-se alguma coisa, Lobo? -- disse Jondalar, reparando finalmente na agitação do animal.
Subitamente, ouviu um som aterrorizador, um baque abafado. Ergueu bruscamente a cabeça enquanto repuxos de neve leve irrompiam no ar à sua frente.
-- Não! Oh, não! -- gritou Jondalar, desesperado, correndo em frente. Quando a neve assentou, um animal solitário estava à beira de uma grande fenda. O Lobo apontou o focinho para o céu e deu um longo e desolado uivo.
Jondalar atirou-se de bruços sobre o gelo à beira da fenda e olhou lá para baixo.
--Ayla!- gritou, cheio de desespero.- Ayla!- O seu estômago estava
feito num nó duro. Sabia que era inútil. Ela nunca o ouviria. Esta
va morta, no fundo daquela fenda funda no gelo.
--Jondalar?
Ele ouviu uma vozita assustada vinda de muito longe.
-- Ayla? -- Jondalar sentiu um frémito de esperança e olhou para baixo. Lá muito em baixo, numa estreita plataforma junto à parede íngreme da fenda, estava a mulher assustada.-Ayla, não te mexas! -- ordenou ele. Fica absolutamente imóvel. Essa plataforma também pode ceder.
"Está viva", pensou ele. "Quase nem acredito. É um milagre. Mas
como é que a you tirar dali?"
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Dentro do precipício gelado, Ayla encostou-se à'
desesperadamente a uma fenda e a um pedaço de gelo projectado, ficada de medo. Ia a andar com neve quase pelos joelhos, entregue seus pensamentos. Estava tão cansada sada do frio, cansada de abrir caminho por entre a neve alta; cansada c glaciar. A travessia do elo tinha-lhe esgotado as energias e estava lutamento exausta. Embora continuasse a avançar, o seu único mento era chegar ao fim daquele glaciar imenso.
Depois os seus pensamentos foram subitamento interrompidos um barulho forte de algo a estalar. Sentiu a sensação arrepiante do sólido a ceder sob os seus pés e subitamente isso recordoulhe de terra há muitos anos atrás. Instintivamente, tentou agarrar-se a qualquer coisa, mas nada encontrou no meio do gelo e da neve que Sentiu-se a cair, quase a sufocar no meio da avalanche da ponto de que cedera sob os seus pés, e não fazia a minima ideia como fora àquela plataforma estreita.
Olhou para cima, tendo até medo de fazer esse movimento, com medo de que a menor deslocação do seu peso fizesse soltar o seu poiso. Lá em cima, o céu parecia quase negro e ela pensou ver o leve tilar de estrelas. Caía ocasionalmente um pequeno fragmento de pedaço de neve do topo da fenda, largando finalmente o seu suporte precário e salpicando a mulher ao cair.
A plataforma era uma extensão projectada de uma superfície mais antiga há muito soterrada por novas camadas de neve. Estava assente num grande pedregulho irregular, arrancado à rocha sólida quando o gelo chera lentamente um vale e escorrera pelas vertentes cente. O majestoso rio de gelo que ia avançando acumulava quantidades de pó, areia, gravilha e pedregulhos que arrancava à rocha dura, que eram lentamente arrastados para a corrente mais rápida no'i centro. Estas morenas formavam longas fitas de cascalho à superfície ao i deslocarem-se ao longo da corrente. Quando por fim a temperatura! viesse a subir o suficiente para derreter os massivos glaciates, eles dei xariam vestígios da sua passagem em cordilheiras e montes de rocha.
Enquanto esperava, com medo de se mexer e mantendo-se muito
quieta, ela ouviu sons abafados na funda caverna gelada. Aprincípio pen
sou que era imaginação sua. Mas a massa de gelo não era tão sólida como
parecia na superfície dura lá em cima. Estava constantemente a reajustar-se, a expandir-se, a deslocar-se, a deslizar. O explosivo baque de
uma nova fenda que se abria ou fechava num ponto distante, na superfície
ou muito no inteñor do glaciar, provocava vibrações alargadas no
sólido estranhamente viscoso. Agrande montanha de gelo estava reinada
de catacumbas; passagens que paravam abruptamente, longas galerias
que serpenteavam interminavelmente, desciam ou subiam em direcção
à superfície; bolsas e cavernas que se abriam convidativamente e depois
se fechavam hermeticamente.
Ayla começou a olhar à sua volta. As paredes de gelo, a pique, cintilavam com uma luz luminosa, de um azul inacreditavelmente profundo que tinha umaleve tonalidade verde. Com um sobressalto, apercebeu-se de que já tinha visto aquela tonalidade antes, mas apenas num outro sítio. Os olhos de Jondalar eram daquele mesmo azul espectacular! An siava por voltar a vê-los. Os planos lapidados do enorme cristal de gelo davam-lhe a sensação de um ligeiríssimo e misterioso movimente junto à sua visão periférica. Sentia que se mexesse a cabeça num movimento suficientemente rápido veria uma qualquer forma efémera a desaparecer nas paredes espelhadas.
Mas era apenas uma ilusão, um truque de prestidigitador com ângulos e luzes. O cristal de gelo filtrava quase todo o espectro vermelho da luz do círculo incandescente no céu, deixando o azul-esverdeado profundo, e a arestas e os planos das superficies tingidas faziam jogos de cores de refracção e reflexão uns com os outros.
Ayla olhou para cima quando sentiu uma chuva de neve. Viu a cabeça de Jondalar projectada para além da beira da ravina e depois uma extensão de corda começar a serpentear na direcção dela.
-- Amarra a corda à cintura, Ayla m gritou ele m, e assegura-te de que fica bem presa. Avisa-me quando estiveres pronta.
Lá estava ele outra vez, disse Jondalar para consigo próprio. Por que é que tinha de voltar a verificar o que ela fazia, quando sabia que ela era mais que capaz de o fazer? Por que é que lhe dizia para fazer aquilo que era absolutamente evidente? Ela sabia que a corda tinha de ficar bem amarrada. Tinha sido por causa disso que ela se tinha zangado e decidido ir à frente e estava agora naquela perigosa situação.., mas ela devia terse acautelado.
Estou pronta, Jondalar-gritou ela, depois de atar a corda à cintura e de fazer vários nós.-Estes nós não deslizam.
-- Óptimo. Agora segura-te à corda. Vamos puxar-te para cima m disse ele.
Ayla sentiu a corda ficar esticada e depois erguê-la de cima da plataforma. Tinha os pés pendurados no ar e sentiu que subia lentamente em direcção ao cimo da ravina. Viu o rosto de Jondalar e os seus belos olhos azuis, muito preocupados, e agarrou a mão que ele lhe estendia para a ajudar a passar a beira. Depois estava de novo à superficie e Jondalar apertava-a nos braços. Ela agarrou-se a ele com igual força.
-- Pensei que tinhas mesmo morrido-disse ele, beijando-a e abraçando-a. -- Desculpa ter gritado contigo, Ayla. Sei que sabes colocar os teus cestos-alforge. Preocupo-me demasiado.
--Não, a culpa é minha. Não devia ter sido tão descuidada com as mi362
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nhas protecções de olhos e não devìa ter desatado a andar à tua
como fiz. Ainda não estou familiarizada com o gelo.
m Mas eu deixei-te e não te devia ter deixado.
-- Mas eu devia ter tido senso m disse Ayla ao mesmo term Ambos sorriram por terem dito inadvertidamente o mesmo.
Ayla sentiu um leve puxão na cÍntura e viu que a
da corda estava amarrada ao garanhão castanho. O Corredor puxado de dentro da ravina. Ayla tentou desapertar os nós em volta
cintura enquanto Jonda]ar segurava o possante cavalo junto dela.
fim, teve de usar uma faca para cortar a corda. Tinha dado tantos
puxado com tanta força m e tinham ficado ainda mais ai
ela fora içada m que não era possível desfazêlos.
Contornando a fenda que quase originara uma desgraça, continua.
ram o seu caminho para sudoeste através do gelo. Estavam a começar
ficar seriamente preocupados por as suas reservas de I
tarem a esgotar-se.
--Quanto tempo ainda falta para chegarmos ao outro lado,
perguntou Ayla de manhã, depois de terem derretido gelo para água para todos.-Já não temos muitas pedras de arder.
-- Eu sei. Esperava que já lá estivéssemos. As tempestades
raro-nos mais do que eu tinha contado e estou preocupado com a
bilidade de o tempo mudar enquanto estamos no gelo. Isso
cer tão depressa m disse Jondalar, examinando cuidadosamente o
enquanto falava.-Receio que já não demore.
-- Porquê?
--Estive apensar na discussão idiota que tivemos antes de caíres na ravina. Lembras-te como todos nos avisaram acerca dos espíritos que vêm montados nos ventos à frente do vento do degelo?
-- Sim! -- exclamou Ayla. m A Solandia a Verdegia disseram fazem que fiquemos irritáveis e eu estava muito irritável. Ainda estou. Estou completamente farta deste gelo e tenho de me forçar a continuar.
Achas que pode ser disso?
-- Era isso que eu estava apensar. Ayla, se for verdade, temos de nos apressar. Se ofoehn chegar enquanto estivermos neste glaciar, podemos todos cair nas fendas-disse Jondalar.
Tentaram racionar mais cuidadosamente as pedras castanhas, bebendo
a água assim que o gelo derretia. Ayla e Jondalar começaram a transportar
os seus sacos de água por baixo dasparkas de pele para o calor do
seu corpo derreter o suficiente para eles e para o Lobo. Mas o racionamento
não bastou. O seu corpo não conseguia derreter daquela forma
água suficiente para os cavalos e, quando gastaram as últimas pedras de
arder, deixou de haver água para os cavalos. A comida também já tinha
acabado, mas a água era mais importante. Ayla viu-os a mastigar gelo e isso preocupou-a. A desÌdratação e comerem gelo arrefecê-los-ia ao ponto de não conseguirem conservar o calor do corpo a uma temperatura suficiemente alta para se manterem quentes no glaciar gélido.
Os dois cavalos tinham ido ter com ela à procura de água depois de eles terem montado a tenda, mas Ayla apenas lhes pôde dar alguns golos da sua própria água e partir algum gelo para eles mastigarem. Nessa tarde não tinha havido nenhuma tempestade e eles tinham continuado viagem até estar tão escuro que já quase não conseguiam ver. Tinham percorri do uma grande distância e deviam estar satisfeitos, mas Ayla sentia-se estranhamente incomodada. Nessa noite, teve dificuldade em adormecer. Tentou ignorar o que sentia, dizendo a si própria que apenas estava preocupada com os cavalos.
Jondalar também ficou acordado durante muito tempo. Achou que o horizonte parecia estar mais perto, mas teve medo que isso não passas se de uma ilusão por tanto o desejar e não quis falar nisso. Acabou por adormecer, mas acordou a meio da noite e deu com Ayla também acorda da. Levantaram-se assim que o céu clareou de negro para azul e partiram ainda com estrelas no céu.
A meio da manhã, o vento mudou e Jondalar teve a certeza de que os seus piores receios estavam prestes a materializar-se. O vento não era muito mais quente e sim menos frio, mas soprava de sul.
-- Despacha-te, Ayla! Temos de nos despachar-disse ele, quase desatando a correr. Ela assentiu e acompanhou o seu passo.
Ao meio-dia, o céu estava límpido e a brisa fresca que lhes batia no rosto era tão branda que era quase quente. A força do vento aumentou, o suficiente para os fazer a abrandar enquanto se inclinavam para lhe fazer frente. E o seu calor, que varria a superfície gelada do gelo, era uma carícia mortífera. Os montes de neve seca e em pó tornaram-se húmidos e compactos e depois lamacentos. Começaram a formar-se pequenas poças de água nas pequenas depressões à superfície. Depois começaram a tornar-se mais fundas e ficaram de um azul-vivo que parecia brilhar do centro do gelo, mas a mulher e o homem não tinham nem tempo nem alma para apreciar a beleza. A necessidade de água dos cavalos foi facilmente satisfeita, mas isso não lhes serviu de consolo.
Começou a formar-se uma neblina suave que pairavajunto à super ffcie; o vento quente de sul arrastava-a antes de se tornar demasiado espessa. Jondalar usava uma lança comprida para verificar o terreno em frente, mas continuava num air tão depressa que quase corria e Ayla teve de fazer um esforço para o acompanhar. Sentiu vontade de saltar para o dorso da Whinney e deixar que o cavalo a levasse para longe, mas cada vez se abriam mais fendas no gelo. Jondalar tinha quase a certeza de que o horizonte estava mais perto, mas a neblina junto ao solo tornava as distâncias enganadoras.
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Pequenos regatos começaram a correr sobre o gelo, ligando-se às
poças e tornando o piso traiçoeiro. Eles tam esparrinhando através
água, sentindo a sua temperatura gelada e depois as betas completa-:
mente ensopadas. Subitamento, poucos metros à sua frente, uma grande
parte daquilo que parecia gelo sólido cedeu, deixando à vista um enorme
precipício. O Lobo ganiu e latiu e os cavalos espantaram-se, relinchando
de medo. Jondalar deu meia volta e seguiu ao longo da beira da fenda,
procurando um sítio onde a pudessem contornar.
-- Jondalar, não consigo continuar. Estou exausta. Tenho de parar-
disse Ayla, com um soluço e começando a chorar.-Não vamos conseguir.
Ele parou, voltou atrás e consolou-a.
-- Estamos quase lá, Afia. Olha, consegue-se ver como a orla está perto.
-- Mas quase caímos numa ravina e algumas daquelas poças trans formaram-se em grandes buracos azuis com ribeiros a escorrer lá para dentro.
-- Queres ficar aqui? disse ele.
Ayla respirou fundo.
m Não, é claro que não-disse ela. m Não sei por que é que estou a
chorar desta forma. Se ficarmos aqui, decerto que morreremos.
Jondalar conseguiu encontrar forma de contornar a grande fenda mas, ao virarem de novo para sul, os ventostornaram-se tão fortes como os ventos de norte e ambos sentiram a temperatura a aumentar. Os riachos transformaram-se em ribeiros que se intercruzavam sobre o gelo e formaram rios. Eles contornaram mais duas grandes fendas e conseguiram ver para lá do gelo. Correram a curta distância que faltava e ficaram a olhar para o outro lado.
Tinham chegado ao outro lado do g]aciar.
Uma queda de água leitosa, leite do g]ac.iar, caía imediatamente abaixo deles, irrompendo de dentro do glaciar. A distância, abaixo da linha da neve, estava um leve tapete de um verdeclaro.
-- Queres parar aqui para descansar um pouco?-- perguntou Jondalar, mas parecendo preocupado.
-- Só quero sair deste gelo. Podemos descansar quando chegarmos àquele.prado disse Ayla.
-- E mais longe do que parece. Este não é um sítio onde possamos apressar-nos ou ser descuidados. Vamo-nos amarrar um ao outro e acho que deves ir prÌmeiro. Se escorregares, eu aguento o teu peso. Vê bem o caminho por onde vais. Podemos levar os cavalos pela arreata.
Não, acho que não devemos fazer isso. Acho que é melhor tirarmos-lhes os cabrestos e os cestos-alforge e a padiola e deixar que eles desçam sozinhos disse Ayla.
Talvez tenhas razão, mas assim teremos que deixar os cestosalfor ge aqui.., a menos que...
Ayla viu para onde ele estava a olhar.
-- Vamos pôr tudo no barco e deslizar até lá abaixo m disse ela.
-- À excepção de uma mochila pequena com algumas coisas de primeira necessidade que podemos levar connosco m disse ele, sorrindo.
-- Se amarrarmos tudo muito bem e virmos por onde o barco vai, devemos
conseguir encontrá-lo.
E se se partir?
m Que é que se pode partir?
-- A estrutura pode estalar-disse Jondalar , mas, mesmo que
estale, provavelmento a pele mantém-no firme.
-- E o que quer que lá esteja dentro estará a salvo, certo?
-- Deve estar m disse Jondalar com um sorriso.-Acho que é boa ideia.
Depois de meterem tudo no barco redondo, Jondalar pegou na pequena
mochila com coisas indispensáveis, enquanto Ayla conduzia a Whinney. Embora com algum receio de escorregarem, dirigiram-se ambos para a
beira, procurando um caminho para descer. Como que para os compensar
dos atrasos e dos perigos por que tinham passado na travessia,
depressa encontraram a encosta pouco íngreme de uma morena, com
toda a sua gravilha, que parecia possível de descer, logo adiante de uma
outra vertente um pouco mais inclinada de gelo escorregadio. Arrastaram
o barco até à encosta gelada; depois Ayla desamarrou a padiola.
Tinham tirado os cabrestos e as arreatas aos dois animais, mas não as
botas de cavalo de pele de mamute. Ayla verificou se estavam firmemente
amarradas; tinham-se adaptado à forma dos cascos dos cavalos e ajustavam-se
bem. Depois conduziram os cavalos aid ao cimo da morena.
A Wlzinney relinchou e Ayla acalmou-a, tratando-a pelo nome relinchado com o qual a égua estava mais familiarizada, e falou com ela na sua linguagem de sinais e sons e palavras inventadas. Whinney, é preciso que desças sozinha disse a mulher. Ninguém melhor que to consegue descobrir born piso neste gelo.
Jondalar tranquilizou o jovem garanhão. Adescida era perigosa, tudo podia acontecer, mas pelo menos tinham conseguido que os cavalos atravessassœm o glaciar. Agora tinham de descer por si. OLobo estava a andar de um lado para o outro, muito nervoso, ao longo da beira do gelo, como razia quando tinha medo de saltar para dentro de um rio.
Com Ayla a incitá-la, a Whinney foi a primeira a saltar, procurando cuidadosamente o melhor caminho. O Corredor foi logo atrás dela e não tardou a deixá-la para trás. Chegaram a uma parte difícil, escorregaram e deslizaram, ganharam balanço e começaram a andar mais depressa para manter o equilio. Já estariam lá em baixo m sãos e salvos, ou não quando Ayla e Jondalar lá chegassem.
O Lobo estava a ganir, com o rabo entre as pernas, sem vergonha de mostrar o medo que sentia ao ver os cavalos descer.
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m Vamos empurrar o barco para também podermos seguir.
da é comprida e não vai ser fácil m disse Jondalar.
Enquanto estavam a empurrar o barco para junto da beira do Lobo saltou subitamente lá para dentro.
--Deve pensar que nos estamos a preparar para
disse Ayla.-Bem gostava de flutuar sobre o gelo atd lá abaixo.
Olharam um para o outro e começaram a sorrir.
-- Que é que achas? -- disse Jondalar.
-- Por que não? Disseste que o barco deve resistir.
E nós?
-- Vamos ver!
Mudaram algumas coisas para fazer espaço e depois
barco redondo juntamente com o Lobo. Jondalar apelou silenciosam te à Mãe e, utilizando um dos paus da padiola, empurrou o barco, i em movimento.
-- Agarra-te! disse Jondalar quando passaram a beira do gelo. Ganharam rapidamente velocidade, mas inicialmente foram a reito. Bateram num obstáculo e o barco saltou e girou. Guinaram lado, subiram uma pequena inclinação e viram-se no ar. Ambos num misto de medo e excitação. Aterraram com um baque que fez todos fossem ao ar, incluindo o lobo, e o barco voltou a girar enquanto ele se agarravam às bordas. O lobo tentava simultaneamente agachar-se, deitar o focinho fora do barco.
Ayla e Jondalar iam agarrados com toda a força; era a única coisa que podiam fazer. Não tinham o menor controlo sobre o barco redondo que deslizava pela encosta do glaciar, em ziguezagues, aos saltos e a girar, como se saltasse de alegria mas, como tinha uma carga pesada, tinha o fundo suficientemente pesado para não se virar. Embora o homem e a' mulher gritassem involuntariamente, não conseguiam deixar de sorrir. Aquela era a viagem mais rápida e mais emocionante que algum deles fizera, mas ainda não terminara.
Não pensaram como é que terminaria e, ao aproximarem-se do fundo, Jondalar lembrou-se da habitual ravina que havia no sopé a separar o gelo do solo abaixo dele. Uma aterragem violenta em gravilha podia pro jectá-los e causar-lhes ferimentos, ou pior. Jondalar não registou o som que já se ouvia e só quando caíram com um forte baque e um enorme cha pão no meio de uma queda de água que rugia ensurdecedoramente é que se apercebeu de que a sua descida pelo gelo molhado e escorregadio os tinha levado para trás, em direcção ao rio da água do degelo que irrom pia do fundo do glaciar.
Caíram no fundo da queda de água com novo chapa e não tardaram a
estar a flutuar calmamente no meio de um pequeno lago de água de um
verde nebuloso do degelo do glaciar. O Lobo ficou tão contente que saltou
para cima deles a lamber-lhes a cara. Por fim sentou-se e ergueu a cabeça num uivo de saudação.
Jondalar olhou para a mulher. mAyla, conseguimos! Conseguimos! Estamos do outro lado do glaciar! -- Conseguimos, não foi? disse ela, com um sorñso rasgado.
Mas isto foi muito perigoso disse ele. Podíamos ter ficado feridos, ou mesmo morrido.
m Pode ter sido perigoso, mas foi divertido disse Ayla, com os olhos ainda a brilhar de excitação.
O entusiasmo dela era contagioso e, apesar de toda a preocupação em levá-la para o seu lar em segurança, Jondalar não pôde deixar de sorrir.
Tens razão. Foi divertido e de certa forma adequado. Creio que nunca mais tentarei atravessar um glaciar. Duas vezes na vida basta, mas estou contente por poder dizer que o fiz e nunca esquecerei esta descida.
Agora só temos de chegar àquela terra além-disse Ayla, apontando para a margem e encontrar a Whinney e o Corredor.
O sol estava no ocaso e era difícil ver por entre a claridade encandeante no horizonte e as sombras enganadoras do lusco-fusco. O frio da noite fez a temperatura voltar a descer abaixo de zero. Eles viam a segurança reconfortante da mancha negra de terra firme, misturada com manchas de neve, em volta do perímetro do lago, mas não sabiam como lá chegar. Não tinham nenhum remo, tinham deixado o pau no cimo do glaciar.
Mas embora o lago parecesse calmo, o rápido degelo do glaciar provo- cava uma corrente que os estava a arrastar lentamente para a margem.Quando já estavam perto, saltaram ambos do barco, seguidos pelo lobo, e puxaram-no para terra. O Lobo sacudiu-se, salpicando-os, mas nem Ayla nem Jondalar deram por isso. Estavam nos braços um do outro, a expressar o seu amor e o seu alívio por terem finalmente chegado a terra firme.
m Conseguimos mesmo! Estamos quase em casa, Ayla. Estamos quase em casa disse Jondalar, abraçando-a, grato por ela all estar para ser abraçada.
A neve à volta do lago estava a começar a voltar a gelar e a lama mole a transformar-se em gelo de crosta dura. Na quase escuridão, atravessaram a gravilha de mãos dadas até chegarem a um campo. Não havia lenha para acenderem uma fogueira, mas não se importaram. Comeram a comida de viagem seca e concentrada que tinha sido o seu sustento no gelo e beberam água dos sacos que tinham enchido no glaciar. Depois montaram a tenda e estenderam as peles de dormir mas, antes de se dei tarem, Ayla olhou para a paisagem envolta na escuridão e pensou onde estariam os cavalos.
Assobiou pela Whinney e esperou para ouvir o barulho de cascos, mas
os cavalos não vieram. Olhou para as nuvens redemoinhantes lá em cima
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no céu, pensou onde é que estariam e voltou a assobiar. Estava demasia
do escuro para os procurar; teria de esperar pela manhã. Ay
nas peles de dormir ao lado do homem alto e estendeu a mão para
no lobo que estava enroscado junte do lugar dela. Foi a pensar nos cava'
los que mergulhou num sono exausto.
O homem olhou para o cabelo louro da mulher ao seu lado, com a
cabeça confortavelmento apoiada na depressão junto ao seu ombro, e mudou
de ideias quanto a levantar-se. Já não havia grande necessidade de
seguirem rapidamente viagem,
qualquer preocupação. Teve de recordar a si próprio que já estavam do la-i
do de lá do glaciar; já não tinham que se apressar. Podiam ficar deitados'.
nas peles de dormir todo o dia se lhes apetecesse.
O glaciar tinha ficado para trás e Ayla estava em segurança. Estremeceu
ao pensar como apenas escapara por um triz e abraçou-a com mais
força. A mulher soergueu-se, apoiando-se no cotovelo, e olhou
Adorava olhar para ele. A luz difusa no interior da tenda de pele atenua
va o azul-vivo dos seus olhos e a sua tosta, tantas vezes franzida de concentração
ou preocupação, estava agora descontraída. Ela passou o dedo
ao de leve ao longo das rugas de preocupação e depois pelas suas feições.
-- Sabes, antes de te conhecer tentei imaginar como é que seria um
homem. Não um homem .do Clã, um como eu. Nunca consegui. To és belo,
Jondalar-disse ela.
Jondalar riu-se.
-- Ayla, as mulheres é que são belas. Não os homens.
-- Então que é que um homem d?
-- Podes dizer que é forte, ou corajoso.
-- To és forte e corajoso, mas isso não é o mesmo que ser belo. Que é que chamas a um homem que é belo?
--Bem parecido, suponho eu.-Jondalar sentiu-se ligeiramente embaraçado.
Tinham-lhe dito demasiadas vezes que ele era bem-parecido.
-- Bem-parecido. Bem-parecido-repetiu ela para si mesma.-
Gosto mais de belo. Belo compreendo.
Jondalar voltou a rir-se, o seu riso profundo, surpreendentemente alegre. O calor desinibido do seu riso foi inesperado e Ayla deu por si a olhar fixamente para ele. Tinha estado tão sério durante aquela viagem. Embora sorrisse, raramente ria alto.
--Se me queres chamar belo, chama-disse ele, puxando-a para si.
--
Como é que eu posso opor-me a que uma mulher bela me chame belo?
Ayla sentiu os espasmos do seu riso e começou a dar risadinhas.
--Adoro quando ris, Jondalar.
-- E eu amo-te, mulher engraçada.
Ele abraçou-a e ambos pararam de rir. Sentindo o calor dela e os seus seios cheios e macios, Jondalar tocou num e puxou Ayla para baixo para
a poder beijar. Ela deslizou a língua para dentro da boca dele e sentiu-se
corresponder-lhe com surpreendente ardor. Apercebeu-se de que há já
algum tempo que não se possuíam. Durante todo o tempo em que tinham
viajado no glaciar, tinham estado ambos tão preocupados e tão exaustos
que não tinham tido disposiçåo, nem tinham conseguido descontrair-se
o suficiente para lá chegar.
Ele apercebeu-se do desejo dela e sentiu a sua própria necessidade. Rolou por cima dela enquanto se beijavam; depois, afastando as peles, beijou-lhe a garganta e o pescoço a caminho dos seios. Envolveu um mamilo duro com a boca e sugou.
Ela gemeu enquanto um arrepio de inacreditável Prazer a percorreu com uma intensidade que a deixou sem fòlego. Estava estupefacta com a sua própria reacção. Ele mal lhe tocara e ela estava pronta para ele e sebetia tanto desejo. Não tinha passado assÌm tanto tempo, pois não? E encostou-se mais a ele.
Jondalar estendeu a mão para tocar no seu sítio dos Prazeres entre as coxas, sentiu o seu nódulo duro e massaj ou-o. Dando pequenos gritos, ela atingiu subitamente o auge e ficou pronta para ele e cheia de desejo de o ter.
Ele sentiu o súbito calor húmÌdo dela e compreendeu que ela estava pronta. A necessidade dele tinha aumentado para ir ao encontro da dela. Empurrando as peles para não atrapalharem, ela abriu-se para ele. Ele procurou o seu poço fundo com a sua orgulhosa virilidade e penetrou-a.
Ela ergueu-se contra ele enquanto ele avançava, penetrando-a profundamente.
Ele sentiu o seu pleno abraço e ela gritou a sua alegria.
Tinha precisado dele e sentia-o all tão bem que era mais que encanto,
mais que Prazer.
Ele estava tão pronto como ela. Puxou-se para trás, voltou a avançar e apenas mais uma vez e, subitamente, não conseguiu aguentar mais. Sentiu-se chegar e transbordar. Com alguns últimos movimentos, esgotou-se, voltou a penetrá-la e descontraiu-se em cima dela.
Ela ficou imóvel com os olhos fechados, a sentir o peso dele, com uma sensação maravilhosa. Não se queria mexer. Quando ele finalmente se levantou e olhou para ela, teve de a beijar. Ela abriu os olhos e olhou para ele.
-- Foi maravilhoso, Jondalar-disse ela, sentindo-se lânguida e saciada.
-- Foi rápido. To estavas pronta; estávámos ambos prontos. E tinhas
agora mesmo um sorriso estranhíssimo nos lábios.
-- Isso é porque estou muito feliz.
-- Também eu-disse ele, voltando a beijá-la e depois rolando para o lado.
Ficaram ambos all deitadcs calmamente e adormeceram. Jondalar
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PLAN]CIES DE PASSAGEM
acordou antes de Ayla e ficou a observá-la enquanto dormia.
sorriso voltou a aparecer e fez que ele pens
ele. Não conseguiu resistir. Beijou-a suavemente e acariciou-lhe o
Ela abriu os olhos. Estavam dilatados, escuros e líquÌdos e cheios
segredos profundos.
Ele beijou-lhe primeiro uma e depois a outra pálpebra, mordiscou
brincar o lóbulo da orelha e depois um mamilo. Ela sorriu-lhe quando
estendeu a mão para o seu montículo e lhe acariciou os pêlos macios,
tindo-a receptiva, embora ainda não totalmente pronta,
desejar que estivessem apenas a começar e não tendo acabado.
mente, abraçou-a, beijou-a ferozmente, acariciou-lhe o corpo,
as ancas e as coxas. Quase não conseguia deixar de lhe tocar, como se
facto de ter estado tão perto de a perder
dade tão profunda como a ravina que quase a levara. Não se saciava lhe tocar, de a abraçar, de a amar.
M Nunca pensei que me apaixonasse m disse ele, voltando a
trair-se e acariciando-lhe ternamente as nádegas e o peq mais à frente, m Por que é que tive de viajar para lá do Grande para encontrar uma mulher que pudesse amar?
Ele tinha estado apensar nisso quase desde que acordara e se cebera de que estavam quase a chegar ao seular. Era born estar deste do glaciar e sentia-se cheio de expectativa, pensando em toda a gente ansioso por õs ver.
m Porque o meu totem te destinou para mim. O Leão das
guiou-te.
--Então por que é que a Mãe fez que nascêssemos tão longe um
tro?
Ayla ergueu a cabeça e olhou para ele.
m Tenho vindo a aprender, mas continuo a saber muito
dos desígnios da Grande Terra Mãe e também não sei muito mais ca dos espíritos protectores dos tótemes do Clã, mas isto eu te-me.
ME depois quase te perdi, mE foi tornado por um súbito acesso de medo frio. m Ayla, e se eu te tivesse perdido? -- disse ele, com a da emoção que ele raramente mostrava abertamente. Jondalar rolou cima dela, cobrindo o corpo dela com o seu, e escondeu a cabeça contra pescoço dela, abraçando-a com tanta força que ela mal conseguia respirar. --Que é que eu faria?
Ela agarrou-se a ele, desejando que houvesse uma forma de se tornar parte dele, e abriu-se gratamente a ele quando sentiu a sua necessidade voltar a aumentar. Com uma urgência tão feroz quanto o seu amor, ele possuiu-a enquanto ela ia ao seu encontro com idêntico desejo.
Terminou ainda mais rapidamente e, com a libertação, a tensão da sua
feroz emoção derreteu, transformando-se numalanguidez terna. Quando i ele se ia a afastar para o lado, ela agarrou-o, querendo conservar a intensidade
do momento.
m Eu sem ti não quereña viver, Jondalar-disse Ayla, retomando a
conversa que estavam a ter antes de fazer amor. mUma parte de mim iria
contigo para o mundo dos espíritos, nunca mais ficaria inteira. Mas temos sorte. Pensa em todas as pessoas que nunca encontram o amor e aquelas
que amam alguém que não os pode amar.
m Como o Ranec?
m Sim, como o Ranec. Ainda me dói cá dentro quando penso nele.
Jondalar rolou para o lado e sentou-se.
mTenho pena dele. Gostava do Ranec... ou podia ter gostado. M Subi
tamente, pareceu ansioso por partir, m Assim nunca mais chegamos ao
Dalanar m disse, começando e enrolar as peles de dormir.-Estou an
sioso por o voltar a ver.
-- Mas primeiro temos de encontrar os cavalos m disse Ayla.
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Ayla levantou-se e saiu da tenda. Uma neblina pairavajunto
e ela sentiu o ar frio e húmido na pele nua. Ouvia o rugido da queda de água à distância, mas o vapor tinha-se transformado num nevoeiro den" so ao fundo do lago, um corpo comprido e estreito de água esverdeada, turva que era quase opaca.
Não viviam all quaisquer peixes, tinha a certeza, exactamente com
não crescia qualquer vegetação ao longo das margens; era dem
recente para ter vida. Só havia all água e pedra e uma qualidade de 1
po antes do tempo, de antigos princípios antes de a vida começar. Ayla estremeceu
e sentiu um desolado travo da Sua terrível solidão antes de
Grande Terra Mãe dar à luz todas as coisas vivas.
Parou para urinar, depois atravessou apressadamente a margem coberta de gravilha irregular e mergulhou. A água estava gelada e áspera, carregada de sedimentos. Ela queria tomar banho D isso não tinha sido possível enquanto estavam a atravessar o gelo D mas não naquela água. Não se importava que estivesse gelada, mas queria água límpida e fresca.
Dirigiu-se para a tenda para se vestir e ajudar Jondalar a desmontar
o acampamento. No caminho, olhou através da neblina para uma suges
tão de árvores ao fundo da paisagem sem vida. Subitamente sorriu.
Estão allI exclamou, dando um forte assobio.
Jondalar saiu da tenda num instante. Sorriu com a mesma satisfação de Ayla ao ver os dois cavalos a galopar na sua direcção. OLobo vinha logo atrás e Ayla achou que ele parecia muito satisfeito consigo próprio. Tinha desaparecido logo de manhã e ela pensou se ele teria tido alguma coisa a ver com o regresso dos cavalos. Mas abanou a cabeça, apercebendo-se de que provavelmente nunca saberia.
Saudaram cada cavalo com abraços, festas, coçadelas afectuosas e palavras
de afecto, ao mesmo tempo que Ayla os examinava cuidadosamente,
pois queria assegurar-se de que não se tinham ferido. A Whinney tinha perdido a bota da pata traseira direita e pareceu doer-lhe quando
Ayla lhe examinou a perna. Teria aberto caminho pelo gelo na beira do
glaciar e, ao libertar-se, arrancado a bota e magoado a perna? Era a única
coisa que lhe ocorria.
Ayla tirou o resto das botas à égua, levantando-lhe cada perna para
PLAN[CIES DE PASSAGF.M
as desamarrar enquanto Jondalar estava a postos para acalmar o animal.
0 Corredor ainda tinha todas as botas, embora Jondalar reparasse
que estavam já gastas junto aos cascos; nem a pele de mamute durava
muito posta por cima de cascos de cavalo.
Depois de juntarem rodas as suas coisas e Ìdo arrastar o barco para mais perto, descobriram que o fundo estava molhado e empapado. O barco tinha um rombo.
-- Acho que não quero voltar a atravessar um rio nesta coisa-disse Jondalar. D Achas que o deixemos ficar aqui?
--Temos de deixar, a menos que queiramos ser nós a arrastá-lo. Não temos os paus para a padiola. Deixámo-los lá em cima quando viemos a voar sobre o gelo e não há aqui árvores para arranjarmos outros-disse Ayla.
-- Então está resolvido! -- disse Jondalar.-Ainda bem que já não precisamos de carregar pedras e aliviámos tanto a nossa carga que creio que podíamos ser nós a levar tudo se não tivéssemos os cavalos.
-- Se eles não tivem regressado, era isso que faríamos enquanto os procurávamos disse Ayla D, mas estou muito contente por eles nos terem encontrado.
-- Eu também estava preocupado com eles-disse Jondalar.
Enquanto desciam a íngreme vertente sudoeste do antigo maciço que
sustentava o tenebroso campo de gelo no seu cume desgastado, começou
a cair uma leve chuva, limpando as bolsas de neve suja que enchiam as
depressões mais protegidas da floresta de espruces enquanto eles passa
yam. Mas um tom verde de aguarela tingia a terra castanha de um prado
inclinado e colorira as extremidades dos ramos dos arbustos all perto. Lá
em baixo, através de aberturas no espesso nevoeiro, vislumbraram um
rio que curvava de oeste para norte, forçado pelas terras altas circundantes
a seguir o fundo vale de uma falha. Do outro lado do rio, a sul, o pro
montdrio alpino escarpado desaparecia numa neblina arroxeada mas,
erguendo-se fantasmagoricamente da neblina, via-se a alta cordilheira
de montanhas com gelo atd meio das suas encostas.
Vais gostar do Dalanar dizia Jondalar enquanto seguiam confortavelmente lado a lado, montados nos cavalos. DVais gostar de todos os Lanzadonii. A maioña dantes era Zelandonii como eu.
-- Que é que o levou a decidir a fundar uma nova Caverna?
-- Não sei bem. Eu era tão novo quando ele e a minha mãe se separaram que só o conheci bem quando fui viver com ele e ele me ensinou a mim e à Joplaya a trabalhar a pedra. Creio que só decidiu fundar uma nova Caverna quando conheceu Jerika, mas escolheu este sítio por ter aqui encontrado a mina de pedreneira. As pessoas já falavam da pedra Lanza donñ quando eu era rapaz-explicou Jondalar.
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PLVICIES DE PASSAGEM
-- Jerika é a companheira dele e... Joplaya... é tua prima, certo?
-- Sim. Prima-irmã. Filha da Jerika, nascida do lar de Dalanar. Ela também é uma hábil artñíce da pedreneira, mas não lhe digas que eu te disse isso. Ela é muito brincalhona e está sempre a meter-se com as pessoas. Será que já encontrou companheiro? Grande Mãe! Já foi há tanto tempo! Vão ficar admirados por nos verem!
-- Jondalar! -- exclamou Ayla num murmúrio forte e urgente. Ele
estacou.-Olha para all, junto daquelas árvores. É um veado!
O homem sorriu.
--Vamos apanhá-lo!--disse, puxando simultaneamente de uma lança e do lançador de lanças e fazendo sinal ao Corredor com os joelhos. Embora o seu método de guiar a sua montada não fosse idêntico â de Ayla, passado quase um ano de viagem era tão born cavaleiro como ela.
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JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
e alguma água escorria pelas fissuras, começando lentamente a forma
ribeiros, depois rios, que ]evariam o precioso líquido à terra sedenta no
Verão. Mas mais importante ainda eram os nevoeiros e as neblinas "
se evaporavam nas massas de água gelada, pois enchiam os céus
nuvens carregadas de chuva.
Na Primavera, a luz do sol quente fazia que a grande massa de ]ibertasse a sua humidade para não a absorver. Praticamente na única altura durante todo o ano, chovia, não no glaciar, mas na terra e fértil que o rodeava. O Verão na Era do Gelo podia ser quente, mas curto a Primavera primitiva era longa e chuvosa e o crescimento das planta explosivo e profuse.
Os animais da Era do Gelo também cresciam durante a Primavera quando estava tudo fresco e verdejante e rico nos nutrientes de que pre-i cisavam, exactamente na altura em que precisavam deles. Por natureza, I quer a estação seja verdejante ou seca, a Primavera é a altura do ano em que os animais dão maior dimensão aos seus ossos jovens ou aos dentes e cornos velhos, ou lhes crescem armações novas e maiores, ou largam o pêlo espesso do Inverno e lhes cresce outro. Como a Primavera começava cedo e era longa, a estação de crescimento dos animais era igualmente longa, facto que encorajava o seu enorme tamanho e os seus impressionantes adornos córneos.
Durante a longa Primavera, todas as espécies compartilhavam indiscriminadamente a riqueza verdejante mas, no final da estação de cresci mente, entravam numa feroz competição uns com os outros pelas ervas menos nutritivas ou menos digestivas que restavam. A competição não se traduzia em lutas para saber quem comeria primeiro ou mais, nem na defesa de territórios. Os animais que viviam em manadas nas planícies não delimitavam o seu território. Migravam ao longo de grandes distâncias e eram muito sociáveis, procurando a companhia dos da sua espécie durante as suas viagens, e compartilharam a terra onde se encontravam com outros que estavam adaptados aos pastos abertes.
Mas sempre que mais que uma espécie de animais tinham hábitos alimentares
e de vida praticamente iguais, invariavelmente uma delas pre
valeiia. As outras desenvolviam novas formas de explorar um outro
nicho, de utilizar um outro elemento dos alimentos disponíveis, migravam
para uma nova área ou extinguiam-se. Nenhum dos muitos e diferentes animais de pasto estava em competição directa com os outros exactamente
pelo mesmo alimento.
As lutas ocorriam sempre entre machos da mesma espécie e limitava --se à época do cio, quando frequentemente uma mera exibição de uma armação particularmente imponente ou de um par de dentes ou de cornos bastava para estabelecer o domínio e o direito de procriar-razões genericamente compulsivas para os magnificentes adornos que o rico cresci mente da Primavera encorajavam.
Mas assim que os excessos da Primavera terminavam, a vida para os habitantes itinerantes das estepes entrava nos padrões estabelecidos e nunca era tão fácil. No Verão, tinham de manter o espectacular crescimento que a Primavera provocara e engordar e ganhar gordura para a estação rigorosa que viria a seguir. O Outono trazia consigo a exigente época do cio para alguns; para outros o crescimento de espessa pelagem e outras medidas de protecção. Mas o mais difícil era o Inverno; no Inverno tinham de sobreviver.
O Inverno determinava a capacidade de sustento da terra; o Inverno
decidia quem viveria e quem morreria. O Inverno era difícil para os machos,
com uma grande dimensão de corpo e pesados adornos sociais a
manter ou renovar. O Inverno era difícil para as fèmeas, que tinham uma
dimensão mais pequena, porque tinham de se sustentar não só a si pró-prias com essencialmente a mesma quantidade de comida disponível,
como também a geraçåo seguinte que se desenvolvia dentro de si ou que
estavam a amamentar, ou ambas as coisas. Mas o Inverno era particularmente
diñcil para as crias, que não tinham o tamanho dos adultos para
armazenar reservas e gastavam as escassas reservas que tinham acumulado
a crescer. Se conseguissem sobreviver ao primeiro ano, as suas hipó-teses de sobevivência tornavam-se maiores.
Nas antigas pastagens secas e frias junto aos glaciares, a grande diversidade de animais compartilhavam a complexa e produtiva terra e conseguiam sustentar-se porque os hábitos alimentares e de vida de uma espécie se enquadravam entre ou em torno dos de uma outra. Atd os carnívoros tinham presas preferidas. Mas uma nova espécie inventiva, uma espécie que mais do que se adaptar ao meio ambiente alterava o meio ambiente para se adequar a si, estava a começar a fazer sentir a sua presença.
Ayla estava estranhamente calada quando pararam para descansar
perto de outro ribeiro de montanha gorgolejante, para acabar de corner
a carne de veado e legumes frescos que tinham cozinhado nessa manhã.
--Já não falta muito. Thonolan e eu parámos aqui quando nos viemos embora-disse Jondalar.
m É de tirar a respiração-respondeu ela, mas apenas parte do seu
espírito apreciava a espectacular vista.
-- Por que é que estás tão calada, Ayla?
-- Tenho estado apensar nos teus parentes. E isso fez que me apercebesse de que não tenho parentes.
-- To tens parentes! E os Mamutoi? Não és Ayla dos Mamutoi?
-- Não é a mesma coisa. Tenho saudades deles e amá-los-ei sempre,
mas não me foi muito difícil deixá-los. Foi mais difícil da outra vez, quan
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PI..4N]CIES DE PASSAGE.M
do tive que deixar ficar o Durc.-Os seus olhos encheram-se de uma
expressão de dor.
-- Ayla, eu sei que deve ter sido difícil deixar um falho-disse Jondalar,
abraçando-a.-Isso não o trará de volta, mas a Mãe talvez te dê
outras crianças.., um dia.., talvez até crianças do meu espírito.
Ela pareceu não o ouvir.
m Disseram que o Durc era deformado, mas não era. Era Clã, mas
também era meu. Era parte de ambos. Eles não pensavam que eu era deformada, apenas feia; eu era mais alta que qualquer homem do Clã... era grande e feia...
--Ayla, to não és grande e feia. És bela, e lembra-te, os meus parentes são teus parentes.
Ela olhou para ele.
m Até to apareceres, eu não tinha ninguém, Jondalar. Agora tenho-te a ti para amar e talvez um dia tenha um filho teu. Isso far-me-ia feliz -- disse ela, a sorrir.
O sorriso dela aliviou-o e ainda mais o facto de ela se ter referido a uma criança. Jondalar olhou para a posição do sol no céu.
--Se não nos despacharmos, não conseguiremos chegar hoje à caverna de Dalanar. Anda, Ayla, os cavalos precisam de um born galope. Vamo fazer uma corrida até ao outro lado do prado. Estando nós tão perto que não aguento passar outra noite numa tenda.
O Lobo saiu da mata a correr, cheio de energia e de vontade de brincar.
Deu um salto, pôs as patas no peito de Ayla e lambeu-lhe o queixo.
Aquela era a sua família, pensou ela, agarrando-lhe o pêlo do pescoço.
Aquele magnífico lobo, a fiel e paciente égua, o fogoso garanhão, e o
homem, o maravilho homem terno. Em breve conheceria a sua família.
Arrumou as coisas em silêncio; depois, subitamente, começou a rifar coisas de outra mochila.
-- Jondalar, you tomar banho neste ribeiro e vestir uma túnica e pro tecções de pernas lavadas-disse, despindo a túnica de pele que tinha vestida.
-- Por que é que não esperas lá chegarmos? Vais ficar gelada, Afia.
Essa água provavelmente vem directa do glaciar.
mNão quero saber. Não quero conhecer os teus parentes toda suja da viagem.
Chegaram a um rio, turvo e verde devido à água do degelo do glaciar,
e bastante cheio, embora a corrente fosse muito maior quando atingisse
o seu volume máximo mais tarde na estação. Viraram para este, subindo
o rio, atd encontrarem um sítio pouco fundo onde o podiam atravessar
e depois começaram a subir em direcção a sudeste. Ao fim da tarde, chegaram
a uma encosta pouco íngreme que nivelavajunto a uma parede to
chosa. Protegida sob uma saliência na rocha, viram a abertura escura de uma caverna.
Uma jovem mulher estava sentada no chão, de costas para eles, rodea da de lascas e de nddulos de pedreneira. Com uma mão, estava a apontar um furador, um pequeno pau pontiagudo, ao núcleo de uma pedra cinzentaescura, concentrada no ponto exacto e preparando-se para dar uma pancada no furador com um pesado martelo de osso que empunha va com a outra. Estava tão absorta na sua tarefa que não viu Jondalar aproximar-se silenciosamente dela pelas costas.
-- Continua a praticar, Joplaya. Um dia serás tão hábil como eu-dis se ele com um grande sorriso.
O martelo de osso desviou-se do alvo e estilhaçou a lâmina que ela se preparava para partir enquanto ela se virava buscamente, com uma expressão de estupefacção e inçredulidade estampada no rosto.
Jondalar! Oh, Jondalar! Es mesmo to? -- exclamou ela, lançando -se nos seus braços. Com os braços em volta da cintura dela, Jondalar pegou-lhe e f'e-la rodopiar. Ela agarrou-se a ele como se não o quisesse largar mais. Mãe! Dalanar! O Jonda]ar voltou! O Jondalar voltou! gritou.
Saíram pessoas a correr da caverna e um homem mais velho, tão alto como Jondalar, correu para ele. Agarraram-se um ao outro, recuaram ligeiramente, olharam-se e voltaram a abraçar-se.
Ayla fez sinal aoLobo, que foi para junto de]a, enquanto ela se man tinha à distância e observava, segurando nas arreatas dos dois cavalos.
Então voltaste! Estiveste tanto tempo ausente que pensei que não voltarias m disse o homem.
Depois, por cima do ombro de Jondalar, o homem deparou com uma cena abso]utamente espantosa. Dois cavalos, com cestos e embrulhos amarrados a eles e peles penduradas sobre o dorso, e um grande lobo, estavam junto de uma mulher alta, vestida com umaparka de pele e pro tecções de pernas de um corte invulgar e decoradas com desenhos desconhecidos. O capuz estava atirado para trás e o cabelo louro da mulher caía-lhe numa cascata de ondas em volta do rosto. As suas feições tinham traços claramente estrangeiros, à semelhança do corte invulgar da sua roupa, mas isso só aumentava a sua espectacular beleza.
-- Não vejo o teu irmão, mas não voltaste sozinho-disse o homem. -- O Thonolan morreu-disse Jondalar, fechando involuntariamente os olhos. E eu também teria morrido se não fosse a Ayla.
Lamento muito. Gostava do rapaz. O Willomar e a tua mãe vão ficar abaladíssimos. Mas reparo que o teu gosto em termos de mulheres não mudou. Tiveste sempre um fraquinho por belas zelandonia.
Jondalar pensou por que é que ele acharia que Ayla era Uma Que Servia
a Mãe. Depois olhou para ela, rodeada pelos animais, subitamente
viu-a como o homem mais velho a via e sorriu. Dirigiu-se para a orla da
JEAN A UEL
clareira, pegou na arreata do Corredor e voltou para junto deles, seguida
por Ayla, pela Whinney e pelo Lobo.
-- Dalanar dos Lanzadonii, por favor dá as boas-vindas a Ayla dos Mamutoi-disse.
Dalanar estendeu as duas mãos, com as palmas viradas para cima, na
saudação que significava abertura e amizade. Ayla agarrou-as com am- has as mãos.
-- Em nome de Doni, a Grande Terra Mãe, dou-te as boas-vindas, Ayla dos Mamutoi-disse Dalanar.
-- Saúdo-te, Dalanar dos Lanzadonii B respondeu Ayla, com o for malismo apropriado.
-- Falas bem a nossa língua para alguém que vem de tão longe. Tenho muito prazer em conhecer-te. B O seu formalismo era contrariado pelo seu sorriso. Tinha reparado na forma como ela falava e ficou extremamente intrigado.
Foi o Jondalar que me ensinou a falar-disse ela, com dificuldade
em se controlar para não ficar especada a olhar para ele. Olhou para Jon
dalar e depois de novo para Dalanar, estupefacta por serem tão pareci
dos.
O comprido cabelo louro de Dalanar era ligeiramente mais ralo junto à testa e a sua cintura um pouco mais grossa, mas tinha os mesmos olhos de um azul intenso-com mais algumas rugas aos cantos-e a mesma testa alta, com rugas de preocupação um pouco mais fundas. A sua voz também tinha a mesma qualidade, o mesmo tom, a mesma inflexão. Até frisou a palavra prazer da mesma forma, dando-lhe uma sugestão de segundo sentido. Era impressionante. O calor das suas mãos pro vocou nela um frémito. Por breves instantes, a parecença entre ambos até confundira o seu corpo.
Dalanar sentiu a resposta dela e sortiu o sorriso de Jondalar, compreendendo a reacção e gostando dela por isso. "Com aquele estranho sotaque", pensou, "deve ter vindo de um sítio muito longe." Quando lhe largou as mãos, o lobo aproximou-se subitamente dele, sem mostrar qualquer medo, embora ele não pudesse dizer o mesmo. O Lobo insinuou a cabeça sob a mão de Dalanar, procurando atenção, como se conhecesse o homem. Para sua surpresa, Dalanar deu por si a fazer festas no belo animal, como se fosse perfeitamente natural fazer festas a um grande lobo vivo.
Jondalar sorria.
O Lobo pensa que to és eu, Toda a gente dizia que éramos muito pa recidos, Não tardarás a estar em cima do dorso do Corredor, E estendeu a arreata para o homem.
B Disseste "no dorso do Corredor"? perguntou Dalanar.
Sim. Durante a maior parte do caminho até cá viemos montados no
dorso destes cavalos: Corredor é o nome que dei ao garanhão explicou
382
PLAN[CIES DE PASSAGEM
Jondalar.-O cavalo da Ayla chama-se Whinney e este grande animal
que gostou tanto de ti chama-se Lobo, que é a palavra Mamutoi paralobo.
-- Como é que arranjaste um lobo, e cavalos...-começou Dalanar a dizer.
-- Dalanar, esqueceste as boas maneiras? Não achas que as outras pessoas também os querem conhecer e ouvir as suas histSrias?
Ayla, ainda ligeiramente perturbada pela extraordinária parecença
de Dalanar com Jondalar, virou-se para a pessoa que tinha falado e deu
por si de novo especada a olhar. A mulher não se parecia com ninguém que
Ayla alguma vez tivesse visto. O seu cabelo, puxado para trás e apanhado
num carrapito na nuca, era de um preto lustroso, riscado de grisalho
nas têmporas. Mas foi a sua cabeça que atraiu a atenção de Ayla. Era
redonda e achatada, com as maçãs do rosto altas, um nariz pequeníssimo
e olhos escuros e rasgados. O sorriso da mulher contradizia a sua voz
severa e Dalanar sorriu ternamente ao olhar para ela.
B Jerika! -- disse Jondalar, sortindo encantado.
--Jondalar! É born ter-te de volta.-E os dois abraçaram-se com evidente afecto.-Como este grande urso do meu homem não term maneiras, por que é que não me apresentas à tua companheira? E depois podes-me dizer por que é que esses animais estão aí quietos e não fogem disse a mulher.
Colocou-se no meio dos dois homens, parecendo ainda mais pequena. Eles eram exactamente da mesma altura e o topo da cabeça dela mal che gava a meio do seu peito. O seu andar era rápido e enérgico. Lembrava a Ayla um pássaro, impressão esta que foi reforçada pelo seu tamanho diminuto.
-- Jerika dos Lanzadonii, por favor saúda Ayla dos Mamutoi. É ela quem é responsável pelo comportamento dos animais-disse Jondalar, sorrindo à pequena mulher com a expressão de Dalanar. Ela pode dizer-te melhor que eu por que é que não fogem.
-- És bem-vinda a este lugar, Ayla dos Mamutoi B disse Jerika, com as mãos estendidas.-E os animais também, se me prometeres que continuam a portar-se desta forma invulgar disse, olhando para o Lobo enquanto falava.
-- Saúdo-te, Jerika dos Lanzadonii.-Ayla retribuiu-lhe o sorriso. O aperto de mão da pequena mulher era surpreendentemente forte e, Ayla sentiu, tinha uma força de carácter correspondente.-O lobo não fará mal a ninguém, a menos que alguém ameace um de nós. É amigável, mas muito protector. Os cavalos ficam nervosos quando estão ao pé de estranhos e empinarão se as pessoas se aproximarem demasiado, o que poderá ser perigoso. Seria melhor a princípio as pessoas manterem-se afastadas, até eles conhecerem todos melhor.
B I, sensato, mas ainda bem que nos avisaste respondeu ela,
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JEAN A UEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
olhando para Ayla de uma maneira desconcertantemente directa.
Vieste de muito longe. Os Mamutoi vivem para lá do fim da Donau.
m Conheces a terra dos Caçadores de Mamutes? --
surpreendida.
--Sim, e a terra ainda mais a este, embora não me lembre muito bem
O Hochaman terá todo o gosto em falar-te disso. Nada lhe agrada mai
que ter uma nova pessoa a quem contar as suas histórias. A minha
e ele vieram de uma terra perto do Mar Sem Fim, a terra mais a e
todas as terras. Eu nasci no caminho. Vivemos com muitas gentes por ve-i
zes durante alguns anos. Lembro-me dos Mamutoi. Boa gente. Optimos
caçadores. Queriam qie nós ficássemos com eles m contou Jerika. m Por que é que não ficaram? m Hochaman não estava ainda pronto para se fixar num sitio. O seu. sonho era viajar até aos confins do mundo, para ver até onde ia a terra. Conhecemos Dalanar pouco depois de a minha mãe ter morrido e decidimos ficar para o ajudar a abrir a mina de pedreneira. Mas Hochaman viveu para ver o seu sonho realizado m disse Jerika, olhando para o seu alto companheiro, m Viajou desde o Mar Sem fim a este até às Grandes Aguas a oeste. Dalanar ajudou-o a terminar a sua Viagem, há alguns anos, levando-o às costas a maior parte do caminho. Hochaman chorou quando viu o grande mar di oeste e depois lavou as lágrimas com água salgada. Agora já não consegue praticamente andar, mas ninguém fez uma Viagem tão grande como Hocahman.
-- Nem como to, Jerika m acrescentou Dalanar com orgulho, m Viajaste praticamente tanto como ele.
m Hrnmrnmf. m Jerika encolheu os ombros, m Não foi por opção
minha. Mas estou aqui a ralhar ao Dalanar e falo demasiado.
Jondalar tinha o braço em volta da mulher que tinha apanhado de surpresa.
-- Gostaria de conhecer os teus companheiros de viagem m disse ela.
m Desculpa, é claro m disse Jondalar. m Ayla dos Mamutoi, esta é a
minha prima, Joplaya dos Lanzadonii.
m Dou-te as boas-vindas, Ayla dos Mamutoi m disse ela, estenden
do as mãos.
m Saúdo-te, Joplaya dos Lanzadonii-disse Ayla, tendo subita
mente consciência do seu sotaque e contente por estar com uma túnica lavada por baixo daparka. Joplaya era tão alta como ela, talvez ligeiramente mais alta. Tinha as maçãs do rosto altas da mãe, mas o seu rosto não era tão achatado e o seu nariz era parecido com o de Jondalar, só que mais delicado e com traços mais finos. Umas sobrancelhas escuras e lisas combinavam com o seu longo cabelo preto e umas pestanas espessas e pretas emolduravam-lhe os olhos ligeiramente rasgados como os da mãe mas de um verde cintilante!
Joplaya era uma mulher espectacularmente bela.
m Tenho todo o gosto em saudar-te-disse Ayla. m Jondalar falou -me muitas vezes de ti.
mEstou contente por ele não me ter esquecido por completomrespondeu Joplaya, dando um passo para trás, enquanto o braço de Jondalar contornava de novo a sua cintura.
Tinham-sejuntado outras pessoas e Ayla foi formalmente apresenta da a cada membro da Caverna. Estavam todos curiosos acerca da mulher que Jondalar trouxera consigo, mas a sua atenção e perguntas fizeram -na sentir-se pouco à-vontade e ficou contente quando Jerika interveio. m Acho que devemos guardar algumas perguntas para mais tarde.
Estou certa de que ambos têm muitas histdrias para contar, mas devem estar cansados. Vem, Ayla, vou-te mostrar onde podem ficar. Os animais precisam de alguma coisa de especial?
m Só preciso de lhes tirar a carga e encontrar um sítio onde possam
pastar. OLobo fica connosco lá dentro, se não se importarem m disse Ay la.
Ela viu que Jondalar estava embrenhado numa conversa com Joplaya e tirou ela própria a carga dos dois cavalos, mas ele apressou-se a ajudá-la a levar as coisas para dentro da caverna.
m Acho que sei de um sítio ideal para os cavalos m disse ele. m You
levá-los para lá. Queres que a Whinney fique com a arreata? You prender o Corredor com uma corda comprida.
mNão, acho que não. Ela ficará ao pé do Corredor. mAyla reparou que Jondalar estava completamente à vontade. Mas por que não?Aquela gente eram seus parentes, m Mas you contigo, para ver se ela fica bem.
Dirigiram-se para um pequeno vale atravessado por um ribeiro que iícava um pouco para o lado da caverna. O Lobo foi com eles. Depois de ter amarrado tirmemente a arreata do Corredor, Jondalar fez menção de regressar.
m Vens? m perguntou. m You ficar um pouco mais com a Whinney m disse ela. m Então por que é que eu não levo as tuas coisas? inSiro, vai andando, mele parecia ansioso por voltar e ela não o censurava por isso. Fez sinal ao lobo para ficar com ela. Tudo aquilo também era novo para ele. Precisavam todos de algum tempo para se adaptarem, à excepção de Jondalar. Quando voltou, foi à procura dele e encontrouo em conversa animada com Joplaya. Hesitou em interrompêlos.
m Ayla m disse ele quando a viu. m Estava a falar à Joplaya do Wy
mez. Depois mostras-lhe a ponta de lança que ele te deu?
Ela assentiu. Jondalar virou-se de novo para Joplaya.
mVais ver. Os Mamutoi são excelentes caçadores de mamutes, fazem
as pontas das suas lanças de pedreneira em vez de osso. Furam melhor
a pele, sobretudo se as lâminas forem tinas. O Wymez desenvolveu uma
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tdcnica nova. A ponta é cortada bifacialmente, mas não como um machado
grosseiro. Ele aquece a pedreneira.., a diferença está aí. Podem ser
lascadas lâminas mais tinas. Ele consegue fazer uma ponta de lança mais
comprida que a minha mão, com uma secção transversal tão fina e com
um fio tão afiado que só vendo é que se acredita.
Estavam tão perto um do outro que os seus corpos se tocavam, enquanto Jondalar explicava excitadamente os pormenores da nova técnica, e a sua intimidade acidental fez que Ayla ficasse inquieta. Eles tinham vivi do juntos durante os anos da adolescência. Que segredos é que ele lhe toña contado? Que alegrias e tristezas teriam ambos vívido? Que frustra ções e triunfos teriam compartilhado, ao aprenderem a difícil arte de trabalhar a pedreneira? Aid que ponto é que Joplaya não o conheceria melhor que ela?
Anteriormente, tinham sido ambos estranhos para as pessoas que tinham encontrado na sua Viagem. Agora, apenas ela era uma estranha. Ele voltou a virar-se para Ayla.
-- Por que é que eu não you buscar a ponta de lança? Em qual dos cestos é que está? -- perguntou, já a caminho.
Depois de ele se ir embora, ela disse-lhe e sorriu nervosamente à mulher de cabelos escuros, mas nenhuma delas falou. Jondalar voltou quase de imediato.
mJoplaya, eu disse ao Dalanar para vir., tenho estado desejoso de lhe mostrar a ponta de lança. Vais ver.
Abriu cuidadosamente o embrulho e deixou à vista uma belíssima ponta de lança de pedreneira no momento em que Dalanar chegava. Ao ver a bela ponta de lança, Dalanar tirou-a da mão de Jondalar e examinou-a atentamente.
--É uma obra de arte[ Nunca vi trabalho assim-exclamou Dalanar. -- Olha para isto, Joplaya. É talhada bifacialmente mas é muito fina; foi talhada tirando lascas muito pequenas. Pensa no autodomínio, na concentração que deve ter exigido. Esta pedreneira tom um toque e um brilho diferente. Parece quase.., oleosa. Onde é que a arranjaste? Lá no este têm um tipo diferente de pedreneira?
-- Não, é um processo novo, desenvolvido por um homem Mamutoi chamado Wymez. E o único artífice que conheço que se pode comparar contigo, Dalanar. Ele aquece a pedreneira. E isso que lhe dá esse brilho e esse toque mas, o que é ainda melhor, é que depois de aquecida se podem tirar essas lascas tinas-explicava Jondalar, com grande entusiasmo. Ayla deu por si a observá-lo.
-- Quase saem por si... é por isso que se consegue ter autodomínio. Mostrar-vos-ei como ele faz. Não sou tão born como e ele preciso de trabalhar para aperfeiçoar a tdcnica.., mas verão o que eu quero dizer. Quero arranjar alguns pedaços de boa pedreneira enquanto cá estou. Com os cavalos, podemos levar mais peso, e gostaria de levar comigo para casa alguma pedra Lanzadonii.
--Este também é o teular, Jondalar m disse Dalanar serenamente.-
Mas, sim, amanhã podemos ir à mina extrair alguma pedra fresca. Gostava
de ver como se faz, mas isto é mesmo uma ponta de lança? Term um
ar tão tino e gracioso que quase parece demasiado frágil para usar para
caçar.
-- Eles usam estas pontas de lança para caçar mamutes. Partem-se mais facilmente, mas a pedreneira atiada penetra melhor a pele do que uma ponta de osso e desliza por entre as costelas-disse Jondalar.-
Tenho outra coisa para te mostrar. Desenvolvi-9. enquanto recuperava do
ataque do leão das cavernas, no vale da Ayla. E um lançador de lanças.
Com ele, uma lança voa o dobro da distância. Espera para veres como funcional
-- Creio que querem que vamos para dentro para corner, Jondalar- disse Dalanar, reparando nalgumas pessoas que estavam à entrada da caverna a chamá-los por gestos.-Toda a gente quer ouvir as vossas histórias. Vamos lá para dentro onde estaremos confortáveis e todos poderão ouvir. To brincas connosco com esses animais que obedecem aos vossos desejos e falas em ataques de leões, lançadores de lanças e de novas tdcnicas de trabalhar a pedreneira. Que outras aventuras e maravilhas têm para compartilhar connosco?
Jondalar riu-se.
-- Ainda nem começámos. Acreditarias se te dissesse que vimos pedras que fazem lume e pedras que ardem? Habitações feitas de ossos de mamutes, pontas de marfim que puxam tio e enormes embarcações de rio usadas para caçar peixes tão grandes que seriam precisos cinco homens do teu tamanho, um em cima do outro, para ir da cabeça ao rabo?
Ayla nunca vira Jondalar tão feliz e descontraído, tão livre e sem res trições, e apercebeu-se de como ele estava satisfeito por estar com a sua gente.
Jondalar pôs simultaneamente os braços em volta de Ayla e de Joplaya enquanto se dirigiam para a caverna.
--Já escolheste um companheiro, Joplaya?--perguntou Jondalar.-
Ainda não vi ninguém que parecesse ter um compromisso contigo.
Joplaya riu-se.
-- Não, tenho estado à tua espera, Jondalar...
-- Lá estás to, sempre a brincar-disse Jondalar, dando uma risadinha. Virou-se para Ayla e explicou:- Sabes, os primos-irmãos não se podem acasalar.
Planeei tudo continuou Joplaya.-Pensei que podíamos fugir os dois e fundar a nossa própria Caverna, como fez o Dalanar. Mas é claro que só permitiríamos que lá vivessem artítices da pedreneira.-O riso dela parecia forçado e ela olhou apenas para Jondalar.
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-- Estás a ver o que eu queria dizer, Ayla? M disse Jondalar, virando
-se para ela mas apertando Joplaya ligeiramente, m Está sempre com
piadas. A Joplaya é a pessoa mais brincalhona que conheço, m Ayla não
teve a certeza de que entendera a piada.
m A sério, Joplaya, já deves estar prometida.
-- O Echozar pediu-me, mas ainda não me decidi. m Echozar? Não creio que o conheça. É Zelandonñ? mÉ Lanzadonii. Juntou-se a nóshá alguns anos. Dalanar salvoulhe a vida, encontrou-o quase afogado. Creio que ainda está na caverna. É en vergonhado; perceberás porquê quando o conheceres. Term um ar... born, diferente. Não gosta de conhecer estranhos, diz que não quer ir connos co ao Encontro de Verão dos Zelandonii. Mas depois de se conhecer, é um homem terno e fará qualquer coisa pelo Dalanar.
m Vais ao Encontro de Verão este ano? Espero que sim, pelo menos
para o Matrimonial. A Ayla e eu vamo-nos acasalar, m Desta vez deu um pequeno apertão a Ayla.
-- Não sei m disse Joplaya, olhando para o chão. Depois olhou para ele. meu sempre soube que nunca te acasalarias com aquela Marona que estava à tua espera no ano em que partiste, mas não pensei que trouxesses uma mulher contigo.
Jondalar corou ao ouvir a referência à mulher com quem prometera acasalar-se e que deixara, mas não reparou que Ayla ficou tensa enquanto Joplaya se dirigia apressadamente para um homem que vinha a sair da caverna.
m Jondalar! Aquele homem! m Ele detectou o tom sobressaltado na
sua voz e virou-se para olhar para ela. Ayla estava lívida.
M Que é que se passa, Ayla?
m Parece o Durc! Ou pelo menos como o meu filho será quando cres
cer. Jondalar, aquele homem é parte Clã!
Jondalar olhou mais atentamente. O homem que Joplaya estava a convencer a juntar-se a eles parecia Clã. Mas, ao aproximarem-se, Ayla reparou numa clara diferença entre aquele homem e os homens do Clã que ela conhecia. Era quase tão alto como ela.
Quando ele se aproximou, ela fez um gesto com a mão. Foi um gesto subtil, quase imperceptível para qualquer um dos outros, mas os grandes olhos castanhos do homem dilataram-se de surpresa.
mOnde é que aprendeste isso? m perguntou ele, fazendo o mesmo gesto. A voz dele era grave, mas clara e distinta. Não tinha qualquer problema de fala; uma prova de que era uma mistura.
m Fui criada por um clã. Encontraram-me quando eu era uma gatotinha.
Não me lembro da minha famia antes disso.
m Foste criada por um clã? Eles amaldiçoaram a minha mãe por ela
me ter dado à luz m disse ele amargamente.-Que clã é que te criaria?
m Não achei que o sotaque dela fosse Mamutoi m exclamou Jerika.
Tinham-se juntado várias pessoas.
Jondalar respirou fundo e endireitou as costas. Desde o princípio que soubera que os antecedentes de Ayla viriam à baila mais cedo ou mais tarde.
m Quando a encontrei, nem sequer sabia falar, Jerika, pelo menos
com palavra Mas ela salvou-me a vida quando fui atacado por um leão das cavernas. Foi adoptada pelos Mamutoi para o Lar do Mamute por ser tão boa curandeira.
-- Ela é Mamut ? Uma Que Serve a Mãe? Onde está a sua marca? Não vejo nenhuma tatuagem na sua face m disse Jerika.
mAyla aprendeu com a mulher que a criou, uma curandeira da gente
a quem ela chama Clã... cabeças achatadas.., mas é tão boa como qualquer zelandoni. O Mamut apenas começou a treiná-la para Servir a Mãe
antes de nos virmos embora; não chegou a ser iniciada. E por isso que não term nenhuma marca.
m Eu sabia que ela era zelandoni. Tinha de ser, para conseguir con
trolar animais como controla, mas como é pode ter aprendido a curar com uma mulher cabeça achatada? m perguntou Dalanar. m Antes de conhecer o Echozar, achava que eram pouco mais que animais. Compreendi através dele que sabem falar, de certa forma, e agora to dizes que têm curandeiras. Devias ter-me dito, Echozar.
m Como é que eu havia de saber? Não sou cabeça achatada! m disse
Echozar, cuspindo as palavras, m Apenas conheci a minha mãe e An dovan.
Ayla ficou surpreendida com o veneno na sua voz.
--Disseste que a tua mãe foi amaldiçoada? E contudo sobreviveu para te criar? Deve ter sido uma mulher extraordinária.
Echozar olhou directamente para os olhos azul-acinzentados da mulher alta e loura. Não viu qualquer hesitação, qualquer reserva para evitar olhar para ele. Sentiu-se estranhamente atraído por aquela mulher que nunca tinha visto antes, sentiu-se à-vontade com ela.
m Ela não falava muito nisso m disse Echozar. m Foi atacada por uns
homens, que mataram o seu companheiro quando ele a tentou proteger. Era o irmão do chefe do seu clã e ela foi culpada pela sua morte. O chefe disse que ela trouxera azar. Mas, mais tarde, quando descobriram que ela estava grávida, tomou-a como segunda mulher. Quando eu nasci, ele disse que isso provava que ela era uma mulher que dava azar. Não sd tinha morto o seu companheiro, como dera à luz um bebé deformado. Depois amaldiçoou-a, uma maldição de morte, m Estava a falar mais abertamente com aquela mulher do que normalmente fazia e estava sur preendido consigo próprio.
mNão estou bem certo do que isso significa.., uma maldição de morte
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-- continuou Echozar.-Ela só me falou nisso uma vez e não conseguiu
acabar. Disse que toda a gente se afastava dela, como se não a vissem.
Disseram que ela estava morta e embora ela tentasse obrigá-los a verem-.
-na, era como se ela não estivesse lá, como se estivesse morta. Deve ter
sido terrível.
-- Foi-disse Ayla baixinho.-É difícil continuar a viver como si não se existisse para as pessoas que amamos.-Os seus olhos ficaram nublados com a recordação.
-- A minha mãe pegou em mim e deixou-os para ir morrer, como era
suposto fazer, mas o Andovan encontrou-a. Já nessa altura era velho e
vivia sozinho. Nunca me disse por que é que tinha abandonado a sua
Caverna, mas disse qualquer coisa acerca de um chefe cruel...
-- Andovan...-interrompeu Ayla.-Ele era S'Armunai?
-- Sim, creio que sim-disse Echozar.-Não falava muito na sua gente.
-- Nós sabemos tudo acerca da chefe cruel-disse Jondalar com uma expressão severa.
-- Andovan cuidou de nós-continuou Echozar.-Ensinou-me a caçar. Ele aprendeu a falar a linguagem de gestos do Clã com a minha mãe, mas ela apenas conseguiu aprender a dizer algumas palavras. Eu aprendi as duas linguagens, embora ela tivesse ficado surpreendida por eu conseguir fazer sons de palavras. O Andovan morreu há alguns anos e com ele a vontade de viver da minha mãe. A maldição de morte acabou por a levar.
-- Então que é que fizeste? -- perguntou Jondalar.
-- Vivi sozinho.
-- Isso não é fácil-disse Ayla.
--Não, não é fácil. Tentei encontrar alguém com quem viver. Nenhum clã me deixava aproximar. Atiravam-me pedras e diziam que eu era deformado e que trazia azar. Também não houve nenhuma caverna que quisesse ter alguma coisa a ver comigo. Diziam que eu era uma abominação de espíritos mistos, meio homem, meio animal. Passado algum tempo, cansei-me de tentar. Não queria continuar a viver sozinho. Um dia, atirei-me de um penhasco para o rio. Quando recuperei consciência, vi o Dalanar a olhar para mim. Levou-me para a sua caverna. Agora sou Echozar dos Lanzadonii-concluiu com orgulho, olhando de relance para o homem alto que idolatrava.
Ayla pensou no seu filho, grata por ele ter sido aceite como bebé e grata por haver pessoas que o amavam e o tinham querido quando ela teve de o deixar.
-- Echozar, não odeies a gente da tua mãe-disse ela.-Não é que sejam maus, são apenas tão antigos que lhes é difícil mudar. As suas tra dições remontam muito atrás e não compreendem novos costumes.
-- E são gente-disse Jondalar a Dalanar.-Isso foi uma coisa que eu aprendi nesta Viagem. Conhecemos um casal pouco antes de atravessamos o glaciar.., e isso é outra história.., mas eles estão a planear teuniões sobre os problemas que têm tido com alguns de nós, sobretudo com alguns jovens homens Losadunai. Houve alguém que até os abordou sobre fazerem trocas.
-- Os cabeças achatadas têm reuniões? Trocas? Este mundo está a
mudar com uma rapidez que não consigo acompanhar-disse Dalanar.-Até conhecer o Echozar, nem sequer acreditaria.
--As pessoas podem-lhes chamar cabeças achatadas, e animais, mas to sabes que a tua mãe era uma mulher corajosa, Echozar-disse Ayla, estendendo-lhe depois as mãos. JEu sei como é não ter gente. Agora sou
Ayla dos Mamutei. Queres dar-me as boas-vindas, Echozar dos Lanzadonii?
Ele estendeu-lhe as mãos e ela sentiu-as tremer.
-- És bem-vinda aqui, Ayla dos Mamutoi-disse ele.
Jondalar deu um passo em frente com as mãos estendidas.-Saúdo-te, Echozar dos Lanzadonii J disse.
--Dou-te as boas-vindas, Jondalar dos Zelandonii-disse Echo
zar , mas não pre¢isas que te sejam dadas boas-vindas. Ouvi falar ,do
filho do lar de Dalanar. Nãohá dúvida de que nasceste do seu espírito. Es
muito parecido com ele.
Jondalar sorriu.
--Toda a gente diz isso, mas não achas que ele term o nariz maior que o meu?
--Eu não. Acho que o teu nariz é maior que o meu.-Dalanar riu, dando uma palmada no ombro do homem mais novo.-Vem para dentro. A comida está a esfriar.
Ayla ficou para trás para falar com Echozar e, quando se virou para entrar, Joplaya reteve-a.
-- Quero falar com a Ayla, Echozar, mas não vás já lá para dentro. Também quero falar cohtigo disse ela. Ele afastou-se rapidamente para deixar as duas mulheres sozinhas, mas não antes de Ayla poder ver a adoração nos seus olhos ao olhar para Joplaya.
-- Ayla, eu... começou Joplaya. E... creio que sei por que é que Jondalar te ama. Quero dizer.., quero desejar-vos a ambos felicidades.
Ayla estudou a mulher de cabelos pretos. Sentiu uma mudança nela, uma reserva, uma sensação de grave determinação. Subitamente, Ayla percebeu por que é que se sentira tão inquieta em relação à mulher.
-- Obrigada, Joplaya. Amo-o muito; ser-meia muito difícil viver sem
ele. Ficaria com um grande vazio dentro de mim que me seria muito difí-cil de suportar.
Sim, muito difícil de suportar J disse Joplaya, fechando os olhos por instantes.
-- Não vens para dentro para com er?-- disse Jondalar, voltando a sair da caverna.
-- Vai andando, Ayla. Há uma coisa que tenho de fazer primeiro.
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Echozar olhou de relance para o grande pedaço de obsidiana e depois
desviou o olhar. As ondas concêntricas no grande vidro negro distorciam
o seu reflexo, mas nada o alteraria e naquele dia ele não se queria ver a
si próprio. Tinha vestida uma túnica de pele de veado, com franjas e tufos
de pêlo e enfeitada com contas feitas de ossos ocos de aves, espinhos tin
gidos e dentes aguçados de animais. Nunca tivera nada de tão belo. Joplaya
tinha-a feito para ele, para a cerimónia em que fora oficialmente
adoptado pela Primeira Caverna dos Lanzadonii.
Ao entrar na área principal da caverna, sentiu a pele macia, alisan doa reverentemente por saber que tinham sido as mãos dela a fazê-la. Quase lhe doía pensar nela. Tinha-a amado desde o primeiro dia. Era ela que falava com ele, o escutava, tentava integrá-lo. Ele nunca teria con seguido enfrentar todos aqueles Zelandonii no Encontro de Verão daquele ano se não tivesse sido ela, e quando viu o número de homens que a rodeava sentiu vontade de morrer. Tinha demorado meses a ganhar coragem para lhe pedir. Como é que alguém com o aspecto dele ousava sonhar com uma mulher como ela? Quando ela não recusou, ele alimentou esperanças. Mas ela adiara durante tanto tempo a sua resposta que ele estava certo de que essa era a sua maneira de dizer que não.
Depois, no dia em que Ayla e Jondalar chegaram, quando ela lhe perguntou se ele ainda a queria, ele não conseguira acreditar. Se a queria! Nunca tinha querido nada na vida cotåo a queria a ela. Esperou por uma altura em que pudesse falar com Dalanar a sós. Mas os visitantes estavam sempre com ele. Não os queria incomodar. E tinha medo de perguntar. Só o medo de perder a sua única oportunidade de uma felicidade maior do que ele alguma vez sonhara poder ter lhe dava coragem.
Depois Dalanar disse que ela era filha de Jerika e que tinha de falar com ela sobre isso, mas a única coisa que perguntou foi se Joplaya esta va de acordo e se ele a amava. Se a amava? Sea amava? Oh, Mãe, se a amava!
Echozar tomou o seu lugar no meio das pessoas que aguardavam
expectantemente e sentiu o coração bater mais depressa quando viu
Dalanar levantar-se e dirigir-se para um lar no meio da caverna. Uma
pequena escultura de uma fêmea de formas arredondadas estava espetada
no chão à frente do lar. Os seios grandes, a barriga arredondada, as
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ancas largas da donii estavam correctamente representadas, mas a
cabeça pouco mais era que uma saliência arredondada, sem feições, e as
pernas e os braços estavam apenas sugeridos. Dalanar colocou-se ao lado
do lar e virou-se para o grupo all reunido.
m Primeiro quero anunciar que este ano vamos de novo ao Encontro
de Verão dos Zel.andonii m começou Dalanar-e convidamos todos os que queiram a vir. E uma longa viagem, mas espero conseguir convencer alguns dosj ovens Zelandonii a regressarem connosco e a fazerem aqui o seu lar. Não temos nenhum lanzadoni, e precisamos de Um Que Serve a Mãe. Estamos a crescer, em breve haverá uma Segunda Caverna e um dia os Lanzadonii terão os seus próprios Encontros de Verão.
"Há uma outra razão para irmos. Não só o acasalamento de Jondalar e Ayla será santificado no Matrimonial, como este ano teremos também
outra razão para comemorar.
Dalanar pegou na representação em madeira da Grande Terra Mãe e assentiu. Echozar estava nervoso, muito embora soubesse que aquela era apenas uma cerimónia de anúncio e muito mais informal que o elabora do Matrimonial, com os seus rituais de purificação e tabus. Quando ambos se colocaram à sua frente, Dalanar começou.
Echozar, Filho de Mulher abençoada pela Doni, da Primeira Caverna dos Lanzadonii, pediste a Joplaya, Filha de Jerika acasalada com Dalan.ar, para ser tua companheira. Isto é verdade?
E verdade dosse Echozar numa voz tão fraca que mal se ouvia. m Joplaya, Filha de Jerika acasalada com Dalanar...
As palavras não eram as mesmas, mas o significado era e Ayla estremeceu a soluçar enquanto recordava uma cerimónia semelhante quando ela estivera ao lado de um homem escuro que a olhava como Echozar olhao va para Joplaya.
Ayla, não chores, esta é uma ocasião feliz disse Jondalar, abraçando-a ternamente.
Ela mal conseguia falar; sabia como era estar ao lado do homem errado. Mas não havia qualquer esperança para Joplaya, nem sequer podia sonhar que um dia o homem que ela amava violasse os costumes por ela. Ele nem sequer sabia que ela o amava e ela não lho podia dizer. Ele era seu primo, primo-irmão, mais irmão que primo, um homem com quem ela não se podia acasalar-e ele amava outra. Ayla sentiu a dor de Joplaya como sua enquanto soluçava junto do homem que ambas amavam.
Estava a pensar na altura em que estive ao lado do Ranec daquela forma m disse finalmente.
Jondalar lembrava-se bem de mais. Sentiu um aperto no peito, uma dor na garganta e abraçou-a ferozmente.
Olha, mulher, daqui a pouco pões-me a mim a chorar.
Olhou de relance para Jerika que estava sentada com severa dignidade, enquanto as lágrimas lhe rolavam pelo rosto.
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-- Por.que é que as mulheres choram sempre nestas coisas? -- disse
ele.
Jerika olhou para Jondalar com uma expressão indecifrável e depois para Avla que soluçava nos seus braços.
--E altura de ela se acasalar, de pôr de lado sonhos impossíveis. Nem rodas nós podemos ter o homem perfeito-murmurou baixinho, virando -se depois para a cerimónia.
-- ... A Primeira Caverna dos Lanzadonii aceita este acasalamento?
-- perguntou Dalanar, erguendo o olhar.
-- Aceitamos-responderam todos em unissono.
--Echozar, Joplaya, prometeram acasalar-se. Que a Doni, a Grande terra Mãe, abençoe o vosso acasalamento-concluiu o chefe, tocando com a figura de madeira no cimo da cabeça de Echozar e na barriga de Joplaya. Voltou a pôra donii no chão à frente do lar, cravando as pernas em forma de pequenas estacas para ficar de pé.
O casal virou-se de frente para a Caverna all reunida e começou a andar lentamente em volta do lar central. Num silêncio solene, o inefável ar melancólico que envolvia a linda mulher acrescentava uma qualidade que a tornava ainda mais estranhamente bela.
O homem que ia ao seu lado era ligeiramente mais baixo que ela. O seu
grande nariz adunco projectava-se além de um pesado maxilar sem queixo
que também se projectava para fora. As suas arcadas superciliares
uniam-se ao centro, acentuadas por espessas sobrancelhas hirsutas que lhe atravessavam a testa numa linha peluda ininterrupta. Os seus braços
eram fortemente musculosos e o seu enorme tronco em forma de barril e
corpo comprido eram sustentados por pernas pequenas, arqueadas e
peludas. Aquelas eram as características físicas que o marcavam como
sendo Clã. Mas não se podia dizer que era um cabeça achatada. Ao contrário
destes, não tinha a testa baixa e inclinada que continuava formando
uma grande cabeça comprida-o ar achatado que originara o nome.
Pelo contrário, a testa de Echozar erguia-se direita e alta acima das suas
arcadas supercilares ossudas como a de qualquer outro membro da
Caverna.
Mas Echozar era incrivelmente feio. A antítese da mulher ao seu lado. Apenas os seus olhos desmentiam a comparação, mas avassalavam. Os seus grandes olhos castanhos e líquidos estavam tão cheios de uma terna adoração pela mulher que amava que até se sobrepunham à indescritível tristeza que pairava na atmosfera através da qual Joplaya se moda.
Mas nem sequer a evidência do amor de Echozar podia eliminar a dor que Ayla sentia por Joplaya. Escondeu a cabeça no peito de Jondalar, pois doía-lhe demasiado olhar, embora se esforçasse por vencer o desolamen to da sua empatia.
Quando o casal completou a terceira volta, o silêncio foi quebrado
pelas pessoas que se levantaram para lhes desejar felicidades. Ayla dei
PLANÉIES DE PASSAGEM
xou-se ficar para trás, tentando recompor-se. Fin.inalmente, incitada por
Jondalar, foram manifestar os seus votos de felici,idades.
--Joplaya, estou tão contente por celebrares o o teu latrimonial con nosco-disse Jondalar, dando-lhe um abraço. Elaila agaru-se a ele e ele ficou surpreendido com a intensidade do seu abraçoço. Teve a sensação des concertante de que ela se estava a despedir, como sa se nunca mais o visse.
-- Não tenho de te desejar felicidades, Echozar--- disse Ayla.-Desejo, sim, que sejas sempre tão feliz como és agora ....
-- Com Joplaya, como é que posso não ser? - d" disse ele. Espontaneamente, ela abraçou-o. Para ela, Echozar não era fe?eio, tinha um ar confortavelmente familiar. Ele demorou alguns instanes a corresponder; não era frequente mulheres belas abraçarem-no e mnlntiu um caloroso afecto pela mulher de cabelos dourados.
Depois Ayla virou-se para Joplaya. Ao olhar pacata os olhos tão verdes quanto os de Jondalar eram azuis, as palavras queue queria dizer ficaram-lhe presas na garganta. Com uma exclamação de d,' dor, estendeu os braços a Joplaya, avassalada pela sua desesperada ace:Ceitaçã0. Joplaya abraçou-a, fazendo-lhe festas como se fosse Ayla quem pr.ecimsse de consolo.
-- Esta tudo bem, Ayla-disse Joplaya numa v voz ¿lUe pareca oca, vazia. Os seus olhos estavam secos.-Que é que e' eu podia fazer? Nunca encontrarei um homem que me ame tanto como oo o Echozar me ama. Há muito tempo que sei que me acasalaria com ele. Agorajá nãohá nenhuma razão para esperar mais.
Ayla recuou, esforçando-se por controlar as 11 lágrimas que chorava pela mulher que não o podia fazer e viu Echozar alproximar-se. Pôs ten tativamente o braço em volta da cintura de Joplay'a, ainda quase sem conseguir acreditar. Tinha medo de acordar e de aqu'ïilo não ter passado de um sonho. Não sabia que apenas tinha a concha ct da mulher que amava. Não importava. A concha bastava.
Born, não, não o vi com os meus próposls olhos-disseHocha
man--, e não posso dizer que nessa altura tenha a,creditado. Mas se consegues
montar cavalos e ensinar um lobo a seguir-te, então por que é que
alguém não montaria um mamute?
-- Onde é que disseste que isso aconteceu?-- perguntou Dalanar.
-- Foi pouco depois de termos partido, bastant#te a este. Devia ser um mamute de quatro dedos-disse Hochaman.
--Um mamute de quatro dedos? Nunca ouvifal,Ilar de semelhante coisa-disse Jondalar --, nem sequer aos Mamutoi.
-- Sabes, eles não não os únicos que caçam man,mutes-disse Hocha
man-e não vivem suficientemente a este. Acrediita no que te digo, comparativamente,
são vizinhos próximos. Quando s,e vai mesmo para este
e se chega junto do Mar Sem Fim, os mamutestêrn quatro dedos nas pa394
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JEAN AUEL
PLANICIES DE PASSAGEM
tas de trás. E também têm tendência para ser mais escuros. Muitos são
quase pretos.
m Born, sea Ayla podia andar no dorso de um leão das cavernas, não
duvido que alguém pudesse aprender a montar um mamute. Que é que achas? m perguntou Jondalar, olhando para Ayla.
m Se se arranja sse um suficientemente novo mdisse ela.-Creio que se se criar praticamente qualquer animal desde bebd se pode ensinarlhe alguma coisa. Pelo menos a não ter medo das pessoas. Os mamutes são espertos; podem aprender muitas coisas. Nós vimo-los partirem gelo para ter água. Muitos outros animais também a usavam.
Eles cheiram-na a grande distância m disse Hochaman. mA terra é muito mais seca a este e as pessoas de lá dizem sempre, "Se a água se esgotar, procurem um mamute". Se for preciso, podem passar muito tempo sem, água, mas acabam por nos levar a ela. -- E born saber isso disse Echozar.
m Sim, sobretudo quando se viaja muito m disse Joplaya.
-- Não tenciono viajar muito disse ele.
-- Mas irás ao Encontro de Verão dos Zelandonii-disse Jondalar. m É claro, para o nosso Matrimonial m disse Echozar.-E gostarei de te voltar a ver. m Sorriu tentativamente, m Seria born se to e a Ayla vivessem aqui.
--Sim, espero que ambos considerem a nossa oferta m disse Dalanar. To sabes que este será sempre o teu lar, Jondalar, e não temos curandeira,
à excepção da Jerika que não recebeu verdadeiro treino. Precisamos
de uma lanzadoni e ambos achamos que Ayla seria perfeita. Podias
visitar a tua mãe e regressar connosco depois do Encontro de Verão.
--Acredita que apreciamos a tua oferta, Dalanarmdisse Jondalar m, e que a iremos considerar.
Ayla olhou de relance para Joplaya. Tinha-se retraído, fechado dentro
de si prdpria. Ela gostava da mulher, mas falavam sobretudo de coisas superficiais. Ayla não conseguia vencer a sua tristeza pela provação
de Joplaya m tinha estado demasiado perto de uma situação semelhante
e a sua própria felicidade lembrava-lhe constantemente a dor de
Joplaya. Apesar de se ter afeiçoado a todos, ficou contente por partirem
na manhå seguinte.
Sentiria falta de Jerika e de Dalanar em particular e de escutar as suas acaloradas "discussões". A mulher era pequeníssima; quando Dalanar estendia o braço, ela passava por baixo dele, ficando ainda espaço de sobra, mas tinha uma vontade indómita. Era tanto chefe da Caverna como ele e argumentava violentamente quando a sua opinião divergia da dele. Dalanar escutava-a seriamente, mas nem sempre cedia. O bem-estar da sua gente era a sua maior preocupação e muitas vezes punhalhes à consideração o assunto em questão, mas tomava ele próprio a maioria das decisões com a mesma naturalidade de um chefe nato. Nunca fazia exigências, simplesmente inspirava respeito.
Depois das primeiras ocasiões, em que interpretara erradamente o que se estava a passar, Ayla adorava ouvi-los discutir, quase sem se dar ao trabalho de disfarçar um sorriso face à cena da mulher que tinha o tamanho de uma criança em acalorada discussão com o gigantesco homem. O que mais a espantava era a forma como interrompiam uma violenta discussão com uma palavra terna de afecto, ou falavam de qualquer outra coisa, como se momentos antes não tivessem estado a ferro e fogo um com o outro, e depois retomavam o combate verbal como se fossem inimigos fidagais. Assim que a discussão ficava resolvida, era imediatamente esquecida. Mas pareciam ter prazer nos seus duelos intelectuais e, ape sar da sua diferença de tamanho, era uma batalha entre iguais. Não só se amavam, como tinham um enorme respeito um pelo outro.
O tempo estava a aquecer e a Primavera estava no seu auge quando
Ayla e Jondalar retomaram a sua viagem. Dalanar pediu-lhes para
transmitir à Nona Caverna dos Zelandonii os seus desejos de felicidades
e relembrou-lhes a sua oferta. Tinham ambos sentido que eram bem-vindos,
mas a sensibilidade de Ayla em relação a Joplaya fazia que lhe fosse dÌfícil pensar em viver com os Lanzadonñ. Seria difícil para ambas,
mas não era uma coisa que ela conseguisse explicar a Jondalar.
Ele apercebeu-se de uma estranha tensão na relação entre as duas mulheres, embora parecessem gostar uma da outra. Joplaya também passara a terum comportamento diferente para com ele. Estava mais distante, não dizia piadas nem brincava com ele como sempre fizera. Mas ele tinha ficado surpreendido com a veemência do seu último abraço. Tinha os olhos marejados de lágrimas. Ele tinha-lhe lembrado que não estava a partir para uma longa Viagem, que acabara de regressar e que em breve se veriam no Encontro de Verão.
Jondalar tinha ficado aliviado por ter sido acolhido de forma tão calorosa
e sem dúvÌda consideraria a oferta de Dalanar, sobretudo se os
Zelandonñ não aceitassem Ayla tão abertamente. Era born saber que
tinham um sítio para onde ir mas, no seu coração, por mais que amasse
Dalanar e os Lanzadonñ, os Zelandonii eram a sua gente. Se possível, era all que ele queria viver com Ayla.
Quando finalmente partiram, Ayla sentiu como se se tivesse liberta do de um fardo. Apesar das chuvas, estava satisfeita por sentir o tempo a aquecer e os dias cheios de sol eram demasiado belos para ela poder ficar tñste durante muito tempo. Era uma mulher apaixonada, a viajar com o seu homem, e ia conhecer a gente dele, ia para o seu novo lar. Mas não conseguia deixar de ter sentimentos ambivalentes acerca disso, esperança e preocupação.
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JEAN AUEL
PLAN]ClES DE PASSAGEM
Estavam numa região que Jondalar conhecia e ele saudava cada
marco familiar do terreno com excitação e frequentemente com um
comentário ou uma histdria acerca deles. Atravessaram uma garganta
entre duas cordilheiras e depois seguiram um rio que serpenteava na
direcção certa. Deixaram-no na sua nascente e atravessaram vários rios
grandes que corriam de norte para sul através de um vale baixo e depois
subiram um grande maciço cujos cumes eram formados por vulcões, alguns
ainda fumegantes, outros extintos. Ao atravessarem um planalto
perto da nascente de um rio, passaram por umas nascentes quentes.
-- Tenho a certeza de que isto é o início do rio que corre mesmo em frente à Nona Caverna-disse Jondalar, cheio de entusiasmo.-Estamos quase lá, Ayla! Podemos estar em casa ao cair da noite.
-- Estas são aquelas águas quentes medicinais de que me falaste? -- perguntou Ayla.
-- Sim. Chamamos-lhes as Águas Curativas da Doni-disse ele.-Vamos passar aqui a noite-disse ela.
-- Mas estamos quase lá-disse Jondalar --, estamos quase no fim da nossa Viagem e eu estou ausente há tanto t.empo.
-- É por isso que quero passar aqui a noite. E o fim da nossa Viagem.
Quero tomar banho na água quente e passar uma última noite sozinha
contigo, antes de conhecer todos os teus parentes.
Jondalar olhou para ela e sorriu.
--Tens razão. Ao fim deste tempo todo, que é mais uma noite? E será a última vez que estaremos sozinhos durante muito tempo. Além disso-
e o seu sorriso tornou-se cálido-gosto de estar contigo junto às nascentes quentes.
Montaram a tenda num sítio que era evidente que já tinha sido usado antes. Ayla achou que os cavalos pareciam agitados quando os soltou para pastarem na erva fresca do planalto, mas ela vira tussilagem e folhas de azeda. Quando foi apanhá-las, viu alguns cogumelos de Primavera e depois flores de macieiras silvestres e rebentos de sabugueiro. Regressou ao acampamento com a frente da túnica estendida e cheia de legumes e outros petiscos.
-- Acho que estás a planear uma festa-disse Jondalar.
-- Não é má ideia. Vi um ninho e quero lá voltar para ver se term ovos -- disse Ayla.
--E que é que achas diste?--disse ele, erguendo uma truta. Ayla Sorriu encantada.-Pareceu-me vê-la no rio, agucei um pau verde e arranjei uma minhoca para enrolar à volta dele. O peixe mordeu tão depressa que foi quase como se estivesse à minha espera.
-- Definitivamente o que é preciso para uma festa!
-- Mas pode esperar, não pode? m disse Jondalar.-Neste momento acho que prefiro um banho quente.-Os seus olhos azuis encheram -se com os seus pensamentos dela e suscitaram a sua resposta.
--Uma óptima ideia-disse ela, esvaziando a túnica junto ao fosso da fogueira e dirigindo-se para os braços dele.
Sentaram-se lado a lado, ligeiramente afastados da fogueira, saciados,
satisfeitos e totalmente descontraídos, vendo as faúlhas dançar em
arabescos e desaparecer na noite. O Lobo estava a dormitar all perto.
Subitamente, ergueu a cabeça e arrebitou as orelhas na direcção do planalto
escuro. Ouviram um relincho sonoro, mas que não lhes era familiar.
Depois a égua deu um guincho e o Corredor relinchou.
--Há um cavalo estranho no campo-disse Ayla, pondo-se de pé num salto. Não havia luar e era difícil ver na escuridão.
--Não vais conseguir lá chegar na escuridão. Deixa-me tentar arranjar qualquer coisa com que fazer um archote.
A Whinney voltou a guinchar e o cavalo estranho a relinchar e ouviram o barulho de cascos de cavalo a desaparecer na noite.
--Pronto-disse Jondalar.-Já não vamos a tempo. Acho que ela se foi embora. Foi de novo apanhada por um cavalo.
--Desta vez creio que foi com ele porque quis. Achei-a nervosa, devia ter prestado mais atenção-disse Ayla.-Está na estação dela, Jondalar. Estou certa de que era um garanhão e creio que o Corredor foi com eles. Ainda é muito novo, mas tenho a certeza de que haverá outras éguas no cio e é natural ele sentir-se atraído por elas.
-- Está demasiado escuro para os procurarmos, mas conheço esta região. Podemos ir atrás deles de manhã.
m Da última vez, levei-a para longe e o garanhão castanho foi buscá-la. Ela voltou para mim de sua livre vontade e mais tarde teve o Corredor. Creio que foi outra vez dar início a um bebé-disse Ayla, sentando-sejunto
da fogueira. Depois olhou para Jondalar e sorriu.-Parece mesmo
certo estarmos ambas grávidas ao mesmo tempo.
Sd passados alguns instantes é que ele registou a afirmação dela.
--Ambas... grávidas.., ao mesmo tempo? Ayla! Estás a dizer que estás grávida? Vais ter um bebé?
-- Sim-disse ela, assentindo.-You ter o teu bebé, Jondalar.
-- O meu bebé? Vais ter o meu bebé? Ayla! Ayla! --Pegou nela ao colo
e fie-la girar e depois beijou-a.-Tens a certeza? Quero dizer, tens a certeza
de que vais ter um bebé? O espírito pode ter vindo de um dos homens da Caverna do Dalanar, ou até dos Losadunai... Mas não importa se é esse
o desejo da Mãe.
-- Passei o meu tempo de lua sem sangrar e sinto-me grávida. Até tenho tido alguns enjoos de manhã. Mas não muitos. Acho que o fizemos quando saímos do glaciar-disse Ayla.-E é o teu bebé, Jondalar, tenho a certeza. Não pode ser de mais ninguém. Feito com a tua essência. Com a essência da tua virilidade.
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-- O meu bebé?-- disse ele, com uma expressão de ternura e espanto
nos olhos. Pôs-lhe a mão na barriga, m Tens aí o meu bebé? Quis tanto
isso m disse ele, desviando o olhar e pestanejando. Sabes, até pedi isso à Mãe.
-- Não me disseste que a Mãe te dá sempre o que Lhe pedes, Jondalar? Ayla sorriu com a felicidade dele e com a sua. Diz-me, pediste-Lhe um rapaz ou uma rapariga?
-- Apenas um bebé, Ayla. Não interessa o que seja.
--Então não te importas que eu deseje que desta vez seja uma rapariga?
Ele abanou a cabeça.
Apenas o teu bebé e, talvez, meu.
m O problema de ir atrás de cavalos a pé é eles deslocarem-se muito
mais depressa que nós-disse Ayla.
-- Mas eu creio que sei para onde vão-disse Jondalar , e conheço um atalho, all por cima daquele cume.
--E se não estiverem onde pensas?
Então teremos de voltar para trás e voltar a seguir o seu rasto, mas as marcas apontam para a direcção certa disse ele. m Não te preocupes, Ayla. Encontrálosemos.
-- Temos de encontrar, Jondalar. Passámos por demasiadas coisas juntas. Não a posso deixar voltar para uma manada.
Jondalar foi à frente atd chegarem a um campo abrigado onde já vira frequentemente cavalos. Encontraram lá muitos cavalos. Ayla não demorou a identificar a sua amiga. Desceram até ao campo coberto de erva, embora Jondalar observasse Ayla atentamente, preocupado com a possibilidade de ela se estar a esforçar mais do que devia. Ela assobiou o chamamento familiar.
A Whinney ergueu a cabeça e galopou na direcção da mulher, seguida
de um grande garanhão claro e de um jovem castanho. O garanhão
claro desviou-se para desafiar o mais novo, que recuou rapidamente. Embora
estivesse excitado pela presença de fêmeas no cio, não estava pronto
a desafiar o expeñente garanhão da manada por causa da sua própria
mãe. Jondalar correu para o Corredor, empunhando o lançador de lanças,
pronto a protegê-lo do poderoso animal dominador, mas a atitude do pró-prio jovem garanhão tinha-o protegido. O cavalo claro voltou a desviar
-se na direcção da égua receptiva.
Ayla estava abraçada ao pescoço da Whinney quando o garanhão chegou, empinou-se e mostrou todo o seu potencial. A Whinney afastou-se da mulher e respondeu-lhe. Jondalar aproximou-se, preocupado, conduzindo o Corredor por uma resistente corda presa ao seu cabresto.
-- Podes tentar pôr-lhe o cabresto disse Jondalar.
Não. Vamos acampar aqui esta noite. Ela ainda não está pronta para vir. Eles estão a fazer um bebé e a Whinney deseja-o. E eu quero dei xá-la tê-lo-disse Ayla.
Jondalar encolheu os ombros, aquiescendo.
--Por que não? Não há pressa. Podemos acampar aqui durante algum tempo.-Observou o Corredor, que se queria juntar à manada.-Ele também quer ir para junto dos outros. Achas que é seguro deixá-lo ir?
Não creio que vão para lado nenhum. O campo é grande e se saírem daqui podemos subir lá acima e ver para onde se dirigem. Talvez seja born para ele estar com outros cavalos durante algum tempo. Talvez possa aprender com eles disse Ayla.
m Acho que tens razão disse ele, tirando-lhe o cabresto e ficando a observar enquanto o Corredor galopava pelo campo. Será que algum dia o Corredor será garanhão de manada? E compartilhará Prazeres com rodas as fêmeas? "E talvez dê início a pequenos cavalos dentro delas", pensou..
E melhor encontrarmos um sítio onde possamos acampar e ficar confortavelmente instalados m disse Ayla.-E pensar em caçar qualquer coisa para comermos. Talvez haja algumas perdizes naquelas árvores jun.to ao ribeiro.
-- E pena não haver aqui nascentes quentes disse Jondalar. É espantoso como um banho quente é relaxante.
A yla olhou de uma grande altura para uma infinddvel expansão de
água. Na direcção oposta, as vastas planícies verdejantes estendiam-se
até perder de vista. All perto havia um prado de montanha familiar, com
uma pequena caverna na parede rochosa na orla. Junto à parede cresciam
avelazeiros, ocultando a entrada.
Ela estava com medo. Estava a nevar fora da cavernc:, bloqueando a entrada, mas quando ela afastou os arbustos e saiu, era Primavera. As fio res floresciam e os pássaros cantavam. Havia vida nova por todo o lado. O choro vigoroso de um recém-nascido soou vindo da c,,Jerna.
Ela estava a seguir alguém montanha abaixo, levando um bebé à anca com a ajuda de uma capa de transporte. Ele coxeava e caminhava apoiado a um cajado e levava às costas qualquer coisa volumosa numa capa. Era Creb e estava a proteger o seu recém-nascido. Pareca que caminha yam há jd uma eternidade, mas viajaram uma grande distância através de montanhas e de vastas planícies, até chegarem a um vale com um campo verdejante e abrigado. Iam frequentemente para lá cavalos.
Creb parou, tirou a capa e pousou-a no chão. Ela pensou ver o branco de ossos ld dentro, mas um jovem cavalo castanho afastou-se da capa e galopou para junto de uma égua amarela. Ela assobiou ao cavalo, mas ela afastou-se com um garanhão claro.
JEAN AUEL
PLAN[CIES DE PASSAGEM
Creb voltou-se e fez-lhe sinal, mas ela não compreendeu bem. Era
numa linguagem do dia-a-dia que ela não sabia. Ele fez outro sinal. "Vem,
podemos lá chegar antes de anoitecer."
Ela estava num túnel comprido, no interior de uma caverna. Ao fundo,
tremeluzia uma luz. Era uma abertura para o exterior. Ela estava acamio nhar por um carreiro £ngreme ao longo de uma parede de rocha branca.
-leitosa, atrás de um homem que dava passadas largas e ansiosas. Ela conhecia aquele lugar e apressou-se para o apanhar.
-- Espera.t Espera por mim. Estou a ir-gritou ela.
-- Ayla! Ayla! m Jondalar estava a abaná-la.-Estavas a ter um pesadelo?
mUm sonho estranho, mas não um pesadelo m disse ela. Levantou -se, sentiu uma onda de náusea e voltou a deitar-se, na esperança de que passasse.
Jondalar abanou a pele que servia de pano de chão ao garanhão claro
e o Lobo latiu-lhe e arreliou-o enquanto Ayla passava o cabresto por
cima da cabeça da Whinney. Tinha apenas uma pequena mochila. O Corredor, firmemente preso a uma árvore, levava a maior parte da carga.
Ayla saltou para o dorso da égua e incitou-a ao galope, guiando-a ao longo da orla do grande campo. O garanhão perseguiu-as, mas abrandou quando começaram a distanciar-se do resto das éguas. Por fim, parou, empinou-se e relinchou, chamando a Whinney. Voltou a empinar-se e correu çaa a manada. Vários garanhões já tinham tentado aproveitar -se da sua ausência. Aproximou-se mais e voltou a empinar-se, gritando um desafio.
Ayla e a Whinney continuaram, mas abrandaram o rápido galope. Quando Ayla ouviu o ruído de cascos de cavalo atrás dela, parou e esperou por Jondalar e pelo Corredor, com o Lobo no seu encalce.
m Se nos apressarmos, podemos lá chegar antes de anoitecer m dis
se Jondalar.
Ayla e a Whinney passaram para o seu lado. Ela tinha a estranha sensação de já ter feito aquilo antes.
Continuaram a um passo confortável.
m Creio que vamos ambas ter bebés m disse Ayla m, o nosso segun
do bebé, e já ambas tivemos filhos. Acho que isso é born. Desta vez podemos compartilhar.
m Vais ter muitas pessoas com quem compartilhar a tua gravidez-
disse Jondalar.
m Estou certa de que tens razão, mas vai ser born compartilhá-la com
a Whinney, dado que ambas ficámos grávidas durante esta Viagem. m Continuaram em silêncio durante algum tempo, m Ela é bastante mais nova que eu. Já sou velha para ter um bebé.
m Não és tão velha assim. Eu é que sou velho.
-- Faço dezanove anos esta Primavera. Isso é ser velha para ter um bebé.
m Eu sou muito mais velho. Já passei dos vinte e três anos. Isso é velho
para um homem assentar e ter o seu lar pela primeira vez. Tens consciência de que estive ausente cinco anos? Será que alguém se lembrará de mim? q disse Jondalar.
mÉ claro que se lembrarão de ti. O Dalanar não teve o menor problema,
nem a Joplaya m disse Ayla. "Toda a gente o reconhecerá a ele, mas
ninguém me conhecerá a mim."
m Olhai Estás a ver aquela rocha além? Logo a seguir à curva do rio?
Foi aí que matei a minha primeira presa! m disse Jondalar, incitando o Corredor a andar um pouco mais depressa, mEra um veado grande. Não
sei de que é que tive mais medo.., se das grandes armações, se de falhar
e regressar a casa de mãos a abanar. .
Ayla sorriu, contente com as suas recordações, mas não havia nada para ela recordar. Seria outra vez uma estranha. Ficariam todos a olhar para ela e depois far-lhe-iam perguntas sobre o seu estranho sotaque e de onde tinha vindo.
mUma vez fzemos aqui um Encontro de Verão m disse Jondalar. m Havia lares montados por todo o lado. Foi o meu primeiro Encontro de Verão depois de ser homem. Como me pavoneei, a tentar passar por mais velho, mas tão cheio de medo que nenhuma mulher me convidasse para os seus Primeiros Ritos. Creio que não tinha razão para me preocupar. Fui convidado para três e isso assustou-me ainda mais!
m E. stão all algumas pessoas a observar-nos, Jondalar m disse Ayla. mE a Décima Quarta Caverna!--disse ele, acenando. Ninguém retribuiu o aceno e todos desapareceram sob uma funda plataforma saliente. m Deve ser por causa dos cavalos-disse Ayla.
Ele franziu a testa e depois abanou a cabeça.
m Hão-de habituar-se a eles.
"Espero que sim", pensou Ayla, "e também a mim. A única coisa que
me será familiar aqui será o Jondalar."
mAyla! Lá está! m exclamou Jondalar. mA Nona Caverna dos Zelandoniio Ela olhou na direcção para onde ele estava a apontar e sentiu-se em palide.cer.
mE sempre fácil de encontrar por causa daquele afloramento rochoso
no cimo. Estás a ver, onde a rocha parece que está a cair? Mas não cai, a
menos que tudo caia. m Jndalar virou-se para olhar para ela. m Ayla,
estás doente? Estás tão pálida.
Ela parou.
m Jondalar, já vi aquele lugar antes!
m Como é que pode ser? Nunca cá estiveste.
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Subitamente, as coisas encaixaram-se todas. "Era a caverna
meus sonhos! A caverna que vinha das memórias de Creb, pensou
"Agora sei o que ele me estava a tentar dizer nos meus sonhos."
m Eu disse-to que o meu totom to destinava para mim
ires-me buscar. Queria que me trouxesses para casa, para o sítio meu espírito do Leão das Cavernas será feliz. E aqui. Tambdm estou em casa, Jondalar. O teu lar é o meu lar m disse Ayla.
Ele sorriu, mas, antos de poder responder, ouviram uma voz a
o nome dele.
m Jondalar! Jondalar!
Olharam para um caminho ao longo da parede rochosa que dava para uma plataforma saliento e viram uma jovem mulher.
Mie! Vem depressa disse ela. O Jondalar voltou. O Jondalar voltou para casa.
"E eu também", pensou Ayla.
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AGRADECIMENTOS
Cada um dos livros desta Saga dos Filhos da Terra colocou os seus pró-prios desafios, mas, desde o início, quando foi delineada a série, que o
quarto livro, o livro de viagem, foi o mais difícil e intoressante de fazer e
pesquisar. Planícies de Passagem requiseram mais viagens da autora, incluindo uma nova visita à Checoslováquia, e viagens à Hungria,
Áustria e Alemanha, com o fim de seguir parte do percurso do Danúbio.
Mas, para localizar a acção na Era Glaciar, foi necessária mais investigação
em bibliotoca.
Estou novamento em dívida para com o Dr. Jan Jelinek, distinto director, Anthropos Institute, Brno, Checoslováquia, pela sua gentileza ímpar, colaboração e intoligentos observações e intorptretações em relação aos ricos artofactos do Paleolítico Superior da região.
Estou igualmento grata ao Dr. Bohuslav IGima, Archeologicky Ustav CSAV, pelas maravilhosas provas dos vinhos de DolniVestonice nas suas caves, mas mais ainda por tot partilhado comigo toda a sua sabedoria e experiência.
Gostariaigualmente de agradecer ao DrJiri Svoboda, Archeologicky Ustav CSAV, pela informação acerca das sùas espantosas descobertas que vêm acrescentar algo novo e importante ao conhecimento que tomos acerca dos nossos antopassados humanos que viveram há mais de duzentos e cinquenta séculos, quandöo gelo cobria um quarto do globo.
À Dr.- Olga Sofrer, eminento especialista do Paleolítico Superior na Europa Central e de Leste, estondo os meus agradecimentosinfinitos por
me tor informado acerca dos progressos mais -recentes, e fornecido os últimos trabalhos sobre o assunto, incluindo os resultados de um
novo estudo acerca da primeira arte da cerâmica na histdria da humanidade.
Quero agradecer ao Dr. Milford Wolpoff, Universidade de Michigan,
pelas suas achegas durante a nossa discussão sobre a distribuição de
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JEAN A UEL
PLAN]CIES DE PASSAGEM
população nos continentes do norte durante a última Era Glaciar, quando
os nossos antepassados se concentravam em certas áreas favorá-veis e deixavam a maior parte da terra, embora rica em vida animal, sem
gente.
Encontrar as peças do puzzle necessáñas para a criação deste mundo ficcional de passado pré-histórico foi um desafio. Reuni-las foi outro. Após ter estudado o material existente acerca de glaciates e do ambiente que os rodeava, não consegui ficar com uma imagem nítida de rodas as terras do norte, a fim de poder deslocar as minhas personagens através do seu mundo. Havia interrogações, teorias e palpites, muitos dos quais não pareciam ser muito bem pensados, peças que não encai xavam.
Finalmente, com grande alívio e crescente entusiasmo, encontrei um estudo explícito e bem elaberado que dava nova dimensão à Era Glaciar. Respondia às questões que se tinham erguido no meu espírito e permitia -me encaixar as peças obtidas de outras fontes, e atd as minhas próprias especulações, de forma a ficarem com lógica. Estarei eternamente grata a R. Dale Guthrie pelo seu artigo "Mammals of lhe Mammoth Steppe as Paleoenvironmental Indicators", pp. 307-326, de Paleoecology of Bering/a (Ed. David M. Hopkins, John V. Matlhews, Jr., Charles E. Scchwegger e Stoven B. Young, Academic Press, 1982). Mais do que qualquer outro documento, este trabalho ajudou a que o meu livro se tornasse um todo coeso e compreensível.
Uma vez que os peludos mamutes simbolizam a Era Glaciar, foi
devotado um esforço considerável no sentido de dar vida a esses paquidermes
pré-históricos. A minha pesquisa incluiu procurar tudo o que fosse
possível sobre mamutes, e, uma vez que estão intimamente ligados, tudo
o que fosse possível arranjar sobre elefantes. Entre essas fontes, Elephant
Memories: Thirteen Years in lhe Life o fan Elephant Family da
Cynthia Moss (William Morrow & Co., Inc., 1988), destaca-se como de maior importância. Estou em dívida para com a Dr.- Moss pelos seus anos de estudo e pelo seu livro inteligente e de tão agradável leitura.
Além da investigação, o autor preocupa-se com a forma como as palavras se ligam entre si e com a qualidade do trabalho acabado. Estarei sempre grata a Laurie Stark, editora executiva de Crown Publishing Group, que fez que um manuscrito acabado se transformasse em páginas impressas de um livro bem feito. Ela foi responsável pelos quatro volumes e, num mundo em mudança, aprecio a continuidade e alta qualidade que ela lhes deu.
Também estou grata a Betty Prashkar, editora-chefe, vice
40ó
-presidente e que cuidou do manuscrito até ele ter a sua forma definitiva.
Os meus agradecimentos vão, sem reservas, para JeanV. Naggar; nas
Olímpiadas Literárias, uma agente de primeira classe e medalha de
Ouro.
E, finalmente, para Ray Auel, amor e gratidão que não cabem em palavras.
FORMA FEMININA ESTILIZADA. Gravação num dente de
Altura 15,5 cm. Predmost, Morávia, Checoslováquia.
FWRADO com Decorações
Abstractas. Encontrado em Laugerie
Museu Les Eyzies, Dordogne, França.
CABEÇA DE LEO/-, Pequena
escultura em barro cozido. Altura 4,5 cm.
Dolni Vestonice, Morávia, Checoslováquia.
FILHOS DA TERRA
EUROPA PRË-HISTÓRICA
DURANTE A ERA GLACIAR
Extensão de gelo e alteração nas linhas
costeiras durante os dez mil anos
interestadiais, quando se verificou uma
tendëncia para o aquecimento climatérico
durante a Glaciação Wurm no final do
Pleistoceno, que se estendeu dos anos 35 000
a 25 000 antes do presente.
CABEÇA DE MULHER
Escultura em marfim.
Atura 4,8 cm Dolni Vestonice,
Moravia, Checoslováquia.
de Ver&o
Abandonado
(Grande Rio Måe)
MAR BERAN
Mapa por Palacios' segunl
Obras publicadas nesta colecção:
1 Star Wars-O Regresso de Jedi, James Kahn
2 --Robot Completo-I, Isaac Asimov
3 --Robot Completo-II, Isaac Asimov
4 --2010, Segunda Odisseia, Arthur C. Clarke
5 --A Sombra do Torturador, Gene Wolfe
6 -- Terra, Campo de Batalha-I, L. Ron Hubbard
7 -- Terra, Campo de Batalha-II, L. Ron Hubbard
8 --2001 -- Odisseia no Espaço, Arthur C. Clarke
9 -- Malevil, Robert Merle
10 --A Garra do Conciliador, Gene Wolfe
11 -- O Clã do Urso das Cavernas, Jean M. Auel
12 --A Espada do Lictor, Gene Wolfe
13 -- Shikasta, Doris Lessing
14 -- Os Casamentos Entre as Zonas Trs, Quatro e Cinco, Doris Lessing
15 --As Experiências Sirianas, Doris Lessing
16 -- O Vale dos Cavalos, Jean M. Auel
17 --A Formação do Representante do Planeta 8, Doris Lessing
18 --A Cidadela do Autarca, Gene Wolfe
19 r-Agentes Sentimentais no Império Volyen, Doris Lessing
20 Canções da Terra Distante, Arthur C. Clarke
21 -- Os Caçadores de Mamutes-I, Jean M. Auel
22 -- Os Caçadores de Mamutes II, Jean M. Auel
23 --Missão Terra-I, O Plano Invasor, L. Ron Hubbard
24 -- Crónica de Urna Serva, Margaret Atwood
25 --2061: Terceira Odisseia, Arthur C. Clarke
26 -- Viagem Fantdstica H m Destino Cérebro, Isaac Asimov
27 -- Willow-Na Terra da Magia, Wayland Drew
28 -- Fiasco, Stanislaw Lem
29 -- O Rei que Foi e Um Dia Será-I, T. H. White
30 -- O Rei que Foi e Um Dia Será-II, T. H. White
31 --A Lua da Rena, Elisabeth Marshall Thomas
32 --Missão Terra-II, Génese Negra, L. Ron Hubbard
33 Urth do Novo Sol, Gene Wolfe
34 - Unhas de Gato, Joan D. Vinge
35 m Berço, Arthur C. Clarke
36 --Némesis, Isaac Asimov
37 --A Saga de Kinsman-I, Ben Bova
38 -- A Saga de Kinsman-II, Ben Bova
39 -- Sonhos de Robot, Isaac Asimov
40 --Narabedla, Frederik Pohl
41 -- O Barco com Um Milhão de Anos, Poul Anderson
42 -- O Fantasma dos Grandes Bancos, Arthur C. Clarke
43 --Planícies de Passagem I-Jean M. Auel
44 --Planícies de Passagem II-Jean M. Auel
PLANÍCIES DE PASSAGEM
1.o. VOLUME
.
2.a edição
JEAN AUEL
lPLANICIES DE PASSAGEM
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
Título original: Lhe plains of Passage
Tradução de Sophie Vinga
Tradução portuguesa (c) de P. E. A.
Capa: estúdios P. E. A.
(c) 1990 Jean M. Auel
Direitos reservados por
Publicações Europa-América, Lda.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânicoou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendoextensiva àtranscrição detextos emrecolhasantológicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor: Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL
Edição n.°: 141643/5975
Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira-Sintra-Mem Martins
Depósito legal n.": 71898/93
Para LENORE a última a vir para casa, cuja homónima aparece nestas páginas, e para MICHAEL que com ela aguarda ansiosamente, e para DUSTIN JOYCE e WENDY, com amor.
FORMA FEMININA ESTILIZADA. Gravação num dente de Altura 15,5 cm. Predmost, Morávia, Checoslováquia.
Museu
CABEÇA DE LEOA Pequena
Escultura em barro cozido. Altura 4,5 cm. lni Vestonice, Morávia, Checoslováquia.
FILHOS DA TERRA
EUROPA PRé-HISTóRICA
DURANTE A ERA GLACiAR
Extensão de gelo e alteração nas linhas costeiras durante os dez mil anos interestadiais, quando se verificou uma tendência para o aquecimento climatérico durante a Glaciação Wurm no final do Pleistoceno, que se estendeu dos anos 35 000 a 25 000 antes do presente.
CABEÇA DE MULHER Escultura em marfim.
Altura 4,8 cm. Dolni Vestonice, Moravia, Checoslováquia.
Acampamento
Abandonado (Grande Rio Mãe)
MAR BERAN
Mapa por Palácios, se
A mulher vislumbrou um ligeiro movimento através da nuvem de pó em frente e pensou se seria o lobo que tinha visto a correr à sua frente mais cedo.
Olhou de relance para o seu companheiro com uma expressão preocupada
e voltou a olhar para o lobo, tentando ver através do pó no ar.-Jondalar! "Olha!" disse, apontando para a frente.
À sua esquerda, viam-se os contornos indistintos de várias tendas có-nicas através do vento seco e carregado de pó.
O lobo aproximava-se silenciosamente de umas criaturas de duas pernas que começavam a materializar-se no ar poeirento, empunhando lanças directamente apontadas a eles.
--Creio que chegámos ao rio, Ayla, mas acho que não somos os únicos a querer acampar aqui-disse o homem, puxando a rédea de comando para fazer o cavalo parar.
A mulher fez sinal ao seu cavalo para parar, contraindo um dos músculos da coxa, exercendo uma pressão tão subtil e de tal forma reflexa que nem sequer a considerava um meio de controlar o animal.
Ayla ouviu um rosnar ameaçador vindo do fundo da garganta do lobo e viu que a sua postura passara de uma posição defensiva para uma agressiva. Estava pronto a atacar! Ela assobiou, um assobio agudo e distinto, semelhante ao piar de um pássaro, embora não de um pássaro que alguma vez alguém ouvira. O lobo abandonou a sua perseguição silenciosa e correu para a mulher escarranchada no cavalo.
"Lobo, aqui! -- disse ela, fazendo simultaneamente um sinal com a mão. O lobo trotou ao lado da égua castanha-dourada enquanto a mulher e o homem, a cavalo, se aproximaram lentamente das pessoas que estavam entre eles e as tendas.
Um vento forte e constante, que mantinha em suspensão a terra fina loess, redemoinhava à sua volta, obscurecendo a sua visão das pessoas que empunhavam as lanças. Ayla passou a perna por cima do dorso do cavalo e deslizou para o chão. Ajoelhou-se junto ao lobo, passando uma mão sobre o seu dorso e outra pela frente do seu peito para o acalmar e segurar, se necessário. Sentia o rosnar a ressoar na sua garganta e os músculos contraídos e prontos para o salto. Olhou para cima, para Jondalar. Uma leve camada de pó cobria os ombros e os compridos cabelos louros do homem
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alto e dava ao pêlo escuro da sua montada um tom dourado usual a essa raça robusta. Ela e Whinney tinham o mesmo aspecto, embora ainda estivessem no princípio do Verão, os ventos fortes do massivo glaciar a norte já dissecavam as estepes numa larga faixa sul do gelo.
Ela sentia o lobo tenso e a fazer pressão contra o seu braço
uma outra pessoa aparecer por detrás das que empunhavam vestido como o Mamut se vestiria para uma cerimónia importante, uma máscara com cornos de auroque e com rou[ símbolos enigmáticos.
O mamut brandiu vigorosamente um cajado na direcção deles e gritou:
--Vão-se embora, espíritos malignos! Deixem este lugar! Ayla achou que era a voz de uma mulher a gritar por cara, mas não tinha a certeza; mas as palavras tinham sido ditas Mamutoi. O mamut correu para eles, continuando a brandir o c enquanto Ayla segurava no lobo. Depois, a figura mascarada começou cantar e a dançar, voltando a brandir o cajado e aproximando-se e recuando aos saltos, como se tentasse assustá-los ou pô-los em fuga, tendo pelo menos conseguido assustar os cavalos.
Ela estava admirada por o Lobo estar pronto para atacar, pois os lobos raramente ameaçam as pessoas. Mas, ao lembrar-se do comportamento que observara, pensou entender. Ayla observara frequentemente os lobos enquanto aprendia sozinha a caçar e sabia que eram afectuosos e leais à sua alcateia. Mas expulsavam rapidamente os estranhos do seu território e havia casos em que matavam outros lobos para proteger aquilo que sentiam ser seu.
Para o pequeno lobinho que ela encontrara e levara para o lar Mamutoi, o Acampamento do Leão era a sua acateia; para ele, as outras pessoas eram como lobos estranhos. Ainda não era adulto e já costumava rosnar a seres humanos desconhecidos que lá iam de visita. Agora, em territó-ro desconhecido, talvez no território de outra alcateia, era natural ficar na defensiva ao aperceber-se da existência de estranhos, especialmente estranhos hostis com lanças. Por que é que as pessoas daquele Acampamento empunhavam lanças?
Ayla achou que havia qualquer coisa de familiar na cantilena; depois apercebeu-se do que era. As palavras eram ditas na linguagem arcaica sagrada só conhecida dos mamutis. Ayla não compreendia tudo, pois o Mamut tinha começado a ensinar-lhe a linguagem pouco tempo antes de ela partir, mas entendeu que o sentido da sonora cantilena era o mesmo das palavras anteriormente gritadas, embora em termos mais persuasivos. Era uma exortação aos estranhos espíritos do lobo e das pessoas-cavalo para se irem embora e os deixarem em paz, para voltarem para o mundo dos espíritos ao qual pertenciam.
Falando em Zelandonii, para as pessoas do Acampamento não entenderem, Ayla disse a Jondalar o que o Mamut estava a dizer.
-- Eles pensam que somos espíritos? Claro[ D disse ele. D Eu devia ter percebido. Têm medo de nós. E por isso que nos ameaçam com as lanças. Ayla, poderemos ter este problema sempre que encontremos pessoas pelo caminho. Nós estamos habituados aos animais, mas a maioria das pessoas nuncapensou em lobos ou em cavalos a não ser como comida ou para aproveitar as peles disse ele.
"No Encontro de Verão, a pñncípio os Mamutoi ficaram perturbados. Levaram algum tempo até se habituarem à ideia de ferem os cavalos e o Lobo ao pé deles, mas acabaram por os aceitar disse Ayla.
Quando abri os olhos pela primeira vez na caverna do teu vale e te vi a ajudar a Whinney a parir o Corredor, pensei que o leão me tinha morto e que tinha acordado no mundo dos espíritos disse Jondalar.
"Talvez eu também deva desmontar e mostrar-lhes que sou um homem e que não estou unido ao Racer como uma espécie de espírito de homemcavalo.
Jondalar desmontou, mas continuou a agarrar na corda presa ao ca- bresto que tinha feito. O Corredor estava a sacudir a cabeça e a tentar afastar-se do Mamut que avançava e continuava a brandir o cajado e a cantar bem alto. A Whinney estava atrás da mulher ajoelhada, de cabeça baixa, a tocar nela. Ayla não usava nem cordas nem cabrestos para guiar o seu cavalo. Diñgia o cavalo exclusivamente pela pressão das pernas e dos movimentos do seu corpo.
Distinguindo alguns sons da estranha linguagem que os espíritos falavam, e vendo Jondalar desmontar, o shamam cantou mais alto, implorando para que os espíritos se fossem embora, prometendo-lhes cerimónias, tentando aplacá-los com ofertas de presentes.
D Acho que lhes deves dizer quem somos-disse Ayla. O Mamut está a ficar muito perturbado.
Jondalar segurou a corda bem perto da cabeça do garanhão. O Corredor estava alarmado e tentava empinar-se, e o Mamut com o seu cajado e os seus gritos não ajudava nada. Até a Whinney parecia prestes a assustar-se e ela era normalmente muito mais calma que a sua cria excitável. m Nós não somos espíritos m gritou Jondalar quando o marnut fez
uma pausa para recuperar o fôlego. Sou um visitante, um viajante numa Viagem, e ela e apontou para Ayla é Mamutoi, do Lar do Mamute.
As pessoas olharam umas para as outras interrogativamente e o mamut deixou de gritar e de dançar, mas agitava de vez em quando o cajado enquanto os estudava. Talvez fossem espíritos que estivessem apregarlhes uma partida, mas pelo menos tinham falado numa linguagem que todos compreendiam. Finalmente, o mamu$ falou.
Por que é que havemos de acreditar em ti? Como é que sabemos que
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não estás a tentar enganar-nos? Dizes que ela é do Lar do Mamute.
onde está a marca dela? Não term nenhuma tatuagem na cara.
Foi Ayla que respondeu.
-- Ele não disse que eu era Mamut. Ele disse que eu era do Lar Mamute. O velho Mamut do Acampamento do Leão estava a ensinarr antes de eu partir, mas não tenho a preparação completa.
O mamut conferenciou com um homem e uma mulher e depois virou-se de novo para eles.
-- Este-disse ela, apontando para Jondalar - é, como disse, um visitante. Embora fale bastante bem, fala com o tom de uma língua estrangeira. To dizes que és Mamutoi, no entanto há qualquer coisa na forma como falas que não é Mamutoi.
Jondalar reteve a respiração e aguardou. A fala de Ayla tinha características invulgares. Havia certos sons que ela não conseguia fazer bem e a forma como os dizia era curiosamente inimitável. Era perfeitament{ claro o que ela queria dizer, e não era desagradável-ele gostava bastante mas era bem perceptível. Não era como o sotaque de uma outra língua; era mais que isso, e diferente. No entanto, era apenas isso; um sotaque, mas de uma linguagem que a maioria das pessoas nunca ouvira e nem sequer reconheceria como sendo uma linguagem. Ayla falava com o sotaque da linguagem difícil, gutural e vocalmente limitada das pessoas que tinham recolhido a pequena rapariga órfã e a tinham criado.
-- Não nasci nos Mamutoi-disse Ayla, continuando a agarrar o Lobo, embora ele tivesse parado de rosnar.-Fui adoptada pelo Lar do Mamute, pelo próprio Mamut.
Houve um bruáá de comentários entre as pessoas e nova consulta privada entre o mamut e a mulher e o homem.
-- Se não são do mundo dos espíritos, como é que controlam o lobo e fazem que os cavalos vos levem nas suas costas? -- perguntou o mamut, decidindo ser directo.
* Não é difícil quando os encontramos ainda pequenos-disse Ayla.
* - Da maneira como falas, até parece que é muito simples. Tem de haver mais alguma coisa. A mulher não conseguia enganar um mamut, que também era do Lar do Mamute.
--Eu estava lá quando ela levou o lobinho para o abrigo-tentou explicar Jondalar.-Era tão pequeno que ainda mamava e eu estava con- vencido de que morreria. Mas ela alimentou-o de pedacinhos de carne e caldo, acordando a meio da noite como se ele fosse um bebé. Toda a gente ficou admirada quando ele sobreviveu e começou a crescer, mas isso foi apenas o princípio. Mais tarde, ela ensinou-o a fazer o que ela queria... a não urinar ou fazer porcarias dentro do abrigo, a não se virar contra as crianças mesmo quando elas o magoavam. Se eu não estivesse lá, não teria acreditado que era possível ensinar tantas coisas a um lobo, nem que este compreenderia tanto. É verdade, é preciso fazer mais que encontrá-los quando são pequenos. Ela cuidou dele como uma criança. É mãe desse animal e é por isso que ele faz o que ela quer.
E os cavalos?--perguntou o homem que estava ao lado do shaman. Tinha estado a olhar para o garanhão fogoso e para o homem alto que o controlava.
--Acontece o mesmo com os cavalos. É possível ensiná-los se os encontrarmos ainda pequenos e cuidarmos deles. Demora tempo e é preciso paciência, mas eles aprendem.
As pessoas tinham baixado as lanças e estavam a escutar com grande interesse. Não era suposto os espíritos falarem numa linguagem vulgar, embora toda aquela conversa sobre ela servir de mãe a animais fosse exactamente o tipo de conversa estranha que se sabia que os espíritos
usavam palavras que não eram exactamente aquilo que pareciam. Depois falou a mulher do Acampamento.
Não sei nada sobre isso de servir de mãe a animais, mas sei que o Lar do Mamute não adopta estranhos nem os torna Mamutoi. Não é um lar vulgar. É dedicado àqueles que Servem a Mãe. As pessoas escolhem o Lar do Mamute, ou são escolhidas. Tenho parentes no Acampamento do Leão. O Mamut é muito velho, talvez o homem mais velho vivo. Por que é que ele havia de querer adoptar alguém? E não creio que a Lutie tivesse deixado. é muito difícil acreditar no que dizes e não percebo por que é que havemos de acreditar.
Ayla apercebeu-se de algo de ambíguo na forma como a mulher falava, ou antes, nos subtis maneirismos que acompanhavam as suas palavras: a rigidez das suas costas, a tensão na postura dos seus ombros, a testa franzida com ansiedade. Parecia estar a antecipar qualquer coisa desagradável. Depois Ayla apercebeu-se de que não tinha sido um lapso de língua; a mulher tinha deliberadamente incluído uma mentira na sua afirmação, um truque subtil na sua contestação. Mas devido aos seus antecedentes únicos, o truque era gritantemente evidente.
As pessoas que tinham criado Ayla, conhecidos por cabeças achatadas, mas que se chamavam a si próprias Clã, comunicavam com profundidade e precisão, embora não basicamente por palavras. Poucas pessoas compreendiam que tinham efectivamente uma linguagem. A sua capacidade de articulação era limitada e eram muitas vezes desprezados como sendo menos que humanos, animais que não conseguiam falar. Usavam uma linguagem de gestos e sinais, mas que não deixava de ser complexa.
O número relativamente escasso de palavras que o Clã falava-que Jondalar mal conseguia reproduzir, exactamente como ela quase não era capaz de pronunciar certos sons em Zelandonii ou Mamutoi-eram feitas com um tipo de vocalização peculiar e eram normalmente usadas para dar ênfase ou como nomes de pessoas ou coisas. As nuances ou as insinuações mais subtis de significado eram indicadas pela atitude, postura e aspectos faciais, que acrescentavam profundidade e variedade à
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linguagem, exactamente como os tons e as inflexões verbais Mas com tal meio aberto de comunicação era quase impossível expressar uma inverdade sem assinalar o facto; não conseguiam
Ayla tinha aprendido a notar e a entender os sinais subtis do movimento do corpo e da expressão facial enquanto aprendia a falar com sinais; era necessário para uma compreensão total. Ao aprender a falar verbalmente com Jondalar, e ao começar a falar Mamutoi fluentemente Ayla descobriu que apreendia os sinais inadvertentes que estavam contidos nos ligeiros movimentos do rosto e da postura, mesmo nas que falavam com palavras, embora tais gestos não fossem normalmente destinados a fazer parte da sua linguagem.
Descobriu que estava a compreender mais do que palavras, embora ao princípio isso lhe tivesse causado alguma confusão e sofrimento, i as palavras que eram proferidas nem sempre correspondiam aos sinais que eram dados e ela não conhecia mentiras. O mais perturbador de uma mentira era abster-se de falar.
Acabou por aprender que determinadas pequenas mentiras frequentemente ditas por cortesia. Mas foi quando com m que normalmente dependia de se dizer uma coisa mas querer dizer I
tra-que subitamente apreendeu a natureza da linguagem falada pessoas que a usavam. A sua capacidade para interpretar " " " cientes acrescentava uma dimensão inesperada à sua capacidade aprendizagem da linguagem: uma percepção quase inq pessoas realmente queriam dizer. Isso dava-lhe uma invul gem. Embora ela própria não conseguisse mentir, a não ser por normalmente sabia quando outra pessoa não estava a falar verdade.
m Não havia ninguém chamada Lutie no Acampamento do quando eu lá estive.-Ayla decidiu ser directa.-A Tulie é a mi -chefe e o seu irmão Talut é o homem-chefe.
A mulher assentiu imperceptivelmente enquanto Ayla continuou. Sei que normalmente uma pessoa é dedicada ao Lar do Mamute não adoptada. Foram Talut e Nezzie que me convidaram e o mentou o abrigo para fazer uma protecção especial de Inverno i valos, mas o velho Mamut surpreendeu toda a gente. Durante a, nia, adoptou-me. Disse que eu pertencia ao Lar do Mamute, que tinha nascido para ele.
-- Se levaste contigo os cavalos para o Acampamento do Leão, perceber por que é que o velho Mamut diria isso disse o homem.
A mulher olhou para ele aborrecida e disse algumas palavras em voz baixa. Depois, as três pessoas voltaram a conferenciar. O homem tinha decidido que os estranhos eram provavelmente pessoas e não espíritos a pregar-lhes uma partida-ou, se fossem, eram inofensivos E, mas não acreditava que fossem exactamente o que diziam ser. A explicação do homem alto para o estranho comportamento dos animais era demasiado
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simples, mas ele estava interessado. Os cavalos e o lobo intrigavam-no. A mulher achava que falavam com excessivo à-vontade, que diziam coisas de mais, que eram demasiado abertos, e tinha a certeza de que ha- via mais para lá do que qualquer um deles tinha dito. Não confiava neles e não queria ter nada a ver com eles.
A aceitação da mamut como seres humanos deu-se apenas depois de apreender um outro pensamento que, para quem compreendesse tais coisas, explicaria o extraordinário comportamento dos animais de uma forma muito mais plausível. Ela tinha a certeza de que a mulher loura era uma poderosa Chamadora e que o velho Mamut devia saber que ela nas- cera com um misterioso controlo sobre animais. Talvez o homem também fosse. Futuramente, quando o seu Acampamento chegasse ao Encontro de Verão, seria interessante falar com o Acampamento do Leão e os mamuti teriam decerto algumas ideias sobre aqueles dois. Era mais fácil acreditar em magia que na ideia absurda de que os animais podiam ser domesticados.
Houve desacordo durante a conferência. A mulher não se sentia à vontade, os estranhos perturbavam-na. Se tivesse pensado nisso, talvez admitisse que tinha medo. Não gostava de estar perto de uma demonstração tão evidente de poderes ocultos, mas foi vencida. O homem falou.
Este sítio onde os rios se unem é bom para acampar. Temos tido boa' caça e dirige-se para cá uma manada de veados gigantes. Devem cá chegar daqui a poucos dias. Não nos importamos que acampem perto de nós e participem na caçada.
Agradecemos a vossa oferta-disse Jondalar. Talvez acampemos aqui perto por esta noite, mas de manhã temos de nos pôr a caminho.
Era um convite reservado, não bem o acolhimento afável que tinha frequentemente por parte de estranhos quando ele e o seu irmão tinham via- jado juntos a pé. A saudação formal, feita em nome da Mãe, oferecia mais que hospitalidade. Era considerada um convite para se juntarem a eles, ficarem com eles e viverem durante algum tempo com eles. O convite mais restrito do homem mostrava a sua insegurança, mas pelo menos já não eram ameaçados com lanças.
Então, em nome de Mut, pelo menos compartilhem a refeição da noite connosco, e comam também connosco de manhã. O homemchefe podia oferecer esse acolhimento e Jondalar pressentiu que gostaria de oferecer mais.
E Em nome da Grande Mãe Terra, teremos todo o gosto em comer convosco esta noite, depois de montarmos o nosso acampamento aceitou
Jondalar , mas teremos que partir cedo.
Para onde vão com tanta pressa?
Estes modos directos que eram característicos dos Mamutoi ainda apanhavam Jondalar desprevenido, apesar de todo o tempo que tinha vi- vido com eles, sobretudo vindos de um estranho. A pergunta do homem-
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-chefe teria sido considerada de certa forma mal-criada para Jondalar; não uma indiscrição grave, apenas sinal de imaturid falta de apreço pelo discurso mais subtil e indirecto dos adultos conhecedores.
Mas Jondalar tinha aprendido que a franqueza e os modos
eram considerados correctos pelos Mamutoi e que a falta de suspeita, embora os seus modos não fossem tão abertos como Existiam subtilezas. A questão era a forma directa como uma expressava, como esta era recebida, e não o que era dito. Mas a curiosidade do homem-chefe daquele Acampamento era, entre os mutoi, absolutamente correcta.
--Regresso ao meu lar-disse Jondalar-e levo comigo esta q Por que é que um dia ou dois há-de fazer diferença? q O meu lar é longe, para oeste. Estive ausente... Jondalar para pensar-quatro anos, e demoraremos mais um ano a lá chegar, tivermos sorte. Há algumas travessias difíceis pelo caminho.., rios e lo... e não quero lá chegar na época errada.
u Oeste? Parece-me que estão a viajar para sul.
Sim. Vamos a caminho do Mar Beran e do Grande Rio Mãe. Se -lo-emos corrente acima.
Há alguns anos, o meu primo foi para oeste numa missão de trocas Disse que havia lá umas pessoas que viviam perto de um rio ao c bém chamavam a Grande Mãe-disse o homem.-Achava que mesmo. Eles tinham viajado daqui para oeste. Depende até onde é c quer ir, mas há uma passagem a sul do Grande Gelo, mas a norte montanhas a oeste. Podes tornar a tua Viagem muito mais curta indo
esse caminho, ai
Talut falou-me no caminho do norte, mas ninguém parece ter
certeza de que seja o mesmo rio. Se não for, poderei levar mais tempo a encontrar o rio certo. Vim pelo caminho do sul e conheço-o. Além disso, tenho parentes entre a Gente do Rio. O meu irmão acasalou-se com uma mulher Sharamudoi e eu vivi com eles. Gostava de os voltar a ver. O mais provável é depois nunca mais os ver.
--Nós fazemos trocas com a Gente do Rio... parece-me que ouvi falar de uns estranhos, há um ou dois anos, que viviam com esse grupo ao qual se tinhajuntado uma mulher Mamutoi. Lembro-me agora que eram dois irmãos. Os Sharamudoi têm hábitos de acasalamento diferentes, mas, tanto quanto me lembro, ela e o seu companheiro iam-se juntar com outro casal.., uma espécie de adopção, creio eu. Mandaram mensageiros convidando os parentes Mamutoi que quisessem ir. Foram vários e um ou dois já regressaram depois disso.
u Era Thonolan, o meu irmão-disse Jondalar, satisfeito por este relato ajudar a confirmar a sua história, embora ainda não conseguisse dizer o nome do irmão sem sentir dor.-Foi o seu Matrimonial. Uniu-se
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a Jetamio e tornaram-se companheiros-cruzados de Markeno e Tholie.
A Tholie foi a primeira pessoa que me ensinou a falar Mamutoi.
A Tholie é minha prima afastada e to és irmão de um dos seus companheiros9 m O homem virou-se para a irmã. m Thurie, este homem é
prente. Äeho que temos de lhes dar as boas-vindas.- E, sem esperar por resposta, disse:m Sou Rutan, homem-chefe do Acampamento do Falcão. Em nome de Mut, a Grande Mãe, são bem-vindos.
A mulher não teve outra alternativa. Não podia embaraçar o irmão recusando-se a dar-lhes as boas-vindas, embora lhe tivessem ocorrido umas tantas coisas que lhe diria em privado.
-- Eu sou Thurie, mulher-chefe do Acampamento do Falcão. Em nome da Mãe, são bem-vindos aqui. No Verão somos o Acampamento da Estipa.
Não eram as boas-vindas mais calorosas que ele já recebera. Jondalar detectou uma clara reserva e restrição. Ela estava a dar-lhes as boas-vindas "aqui", especificamente àquele lugar, mas tratava-se de um acampamento temporário. Ele sabia que o Acampamento da Estipa indì-cava qualquer local de acampamento de Verão. Os Mamutoi eram sedentários no Inverno e aquele grupo, como o resto, vivia num acampamento ou comunidade permanente de um ou dois abrigos semi-subterrâneos grandes ou vários mais pequenos, ao qual chamavam Acampamento do Falcão. Ela não lhes tinha dado as boas-vindas para lá.
-- Sou Jondalar dos Zelandonii e saúdo-vos em nome da Grande Mãe Terra, a quem chamamos Doni.
Temos lugares a mais para dormir na tenda do mamut continuou Thurie m, mas não sei, em relação aos.., animais.
Se não se importarem m disse Jondalar, nem que fosse por uma questão de cortesia , seria mais fácil para nós montarmos o nosso próprio acampamento aqui perto, em vez de ficarmos no vosso Acampamento. Agradecemos a vossa hospitalidade, mas os cavalos precisam de pastar e como conhecem a nossa tenda voltarão para junto dela. Talvez os perturbe entrarem no vosso Acampamento.
Claro m disse Thurie, aliviada. Eles também a perturbariam. Ayla apercebeu-se de que também precisava de trocar saudações. O Lobo parecia menos na defensiva e Ayla experimentou segurá-lo com menos força. "Não posso continuar aqui sentada a segurar noLobo", pensou. Quando se levantou, ele ia a saltar, mas ela fez um gesto para ele ficar quieto.
Sem estender as mãos nem fazer menção de se aproximar, Rutan deu-lhe as boas-vindas ao seu Acampamento. Ela retribuiu a saudação da mesma forma.
Sou Ayla, dos Mamutoi-disse e depois acrescentou , do Lar do Mamute. Saúdo-vos em nome de Mut.
Thurie repetiu as suas boas-vindas, mas restringindo-as apenas
àquele lugar, como tinha feito com Jondalar. Ayla res
Gostava que tivesse sido demonstrada maior afabilidade, mas não os podia censurar. O conceito de animais a viajar de livre vontade com pessoas podia ser assustador. Nem toda a gente aceitaria a vação de forma tão aberta como Talut a aceitara. Ayla al tristeza, de que sentia saudades das pessoas de quem gostava do pamento do Leão.
Ayla virou-se para Jondalar.
-- O Lobo já não se sente tão protector. Acho que me
é melhor eu arranjar qualquer coisa para o segurar enquanto ele junto do Acampamento e para mais tarde o segurar q outras pessoas-disse em Zelandonii, não se sentindo à-vontade lar livremente naquele Acampamento de Mamutoi, embora der fazê-lo.-Talvez qualquer coisa como essa corda que fizeste Corredor. Temos bastantes cordas e tiras de couro no fundo de um meus cestos. You ter de o ensinar a não ir atrás de estranhos; aprender a ficar onde eu mandar.
O Lobo devia ter percebido que erguerem as lanças era um ameaçador. Não o podia censurar por saltar em defesa das pessoas cavalos que constituíam a sua estranha alcateia. Deste ponto de vista perfeitamente compreensível, mas isso não significava que fosse vel. Não podia abordar todas as pessoas que pudessem vir a encontrar sua viagem como se fossem lobos estranhos. Ela teria de o ensinar a terar o seu comportamento, a ser mais reservado quando deparava estranhos. Ao pensar nisto, interrogou-se se haveria outras pessoas compreendessem que um lobo podia corresponder aos desejos de lher, ou que um cavalo deixaria um ser humano cavalgar no seu
-- Fica aqui com ele. You buscar a corda-disse Jondal
a segurar na rédea do Corredor, apesar de o jovem garanhão j mado, procurou a corda nos cestos de Ayla. Ahostilidade do Acam tinha diminuído um pouco e as pessoas pareciam das do que normalmente estariam perante quaisquer estranhos. ma como os observavam, o seu medo parecia ter dado
A Whinney também se tinha acalmado. Jondalar coçou-a e festas e falou-lhe com ternura enquanto procurava nos cestos presos seu dorso. Tinha especial ternura pela égua robusta e, a fogosidade do Corredor, admirava a serena paciência de Whinney. Eh tinha um efeito tranquilizante no jovem garanhão. Atou a rédea do dor à tira de couro que prendia os cestos ao dorso da sua mãe. desejava frequentemente conseguir controlar o Corredor da forma com Ayla controlava a Whinney, sem cabresto nem rédea. Mas ao montar animal, ia descobrindo a espantosa sensibilidade da pele do cavalo e tara a desenvolver um born estilo de montar, começando já a guiar o Corredor através de pressão e da sua postura.
21
Ayla passou para o outro lado da égua com o Lobo. Quando Jondalar
lhe deu a corda, disse-lhe em voz baixa.
Não temos que ficar aqui, Ayla. Ainda é ceco. Podemos encontrar
outro sítio, neste rio ou noutro.
Acho que é boa ideia oLobo habituar-se apessoas, sobretudo estranhos,
e ainda que não sejam muito afáveis não me importo de os visitar. So Mamutoi, Jondalar, a minha gente. Estes podem ser os últimos Ma- mutoi que eu vejo. Será que vão ao Encontro de Verão? Talvez possamos mandar um recado para o Acampamento do Leão por eles.
Ayla e Jondalar montaram o seu próprio acampamento a pouca distância do Acampamento da Estipa, a montante do grande afluente. Ti- taram a carga dos cavalos e deixaram-nos à solta para pastarem. Ayla sentiu um momento de preocupação ao vê-los desaparecer na nuvem de pó varrida pelo vento, enquanto se afastavam do acampamento.
A mulher e o homem tinham vindo a seguir a margem direita de um grande rio, mas a certa distância. Embora corresse para sul, o rio serpenteava pela paisagem, virando e curvando enquanto abria um fundo canal nas planícies planas. Avançando pelas estepes acima do vale do rio, os viajantes podiam seguir um caminho mais directo, mas desabrigado, dei- xando-os à mercê do vento implacável e dos efeitos mais agrestes do sol e da chuva em terreno aberto.
--Este é o rio de que Talut nos falou? mperguntou Ayla, desenrolando as peles de dormir.
O homem tirou de um dos cestos um pedaço bastante grande e achatado de dente de mamute com marcas gravadas. Olhou para cima, para a parte do céu pardo que brilhava com uma luz insuportavelmente encadeante mas difusa, e depois para a paisagem obscurecida. Era fim da tarde, isso conseguia ver, mas nada mais.
-- Não temos forma de saber, Ayla-disse Jondalar, voltando a guardar o mapa.-Não consigo ver nenhumas marcas do terreno e estou habituado a avaliar a distância que viajo a pé. O Corredor anda a um passo diferente.
-- Levaremos mesmo um ano inteiro a chegar ao teu lar? -- perguntou a mulher.
--É difícil dizer ao certo. Depende do que encontrarmos pelo caminho, dos problemas que tivermos e da frequência com que pararmos. Se con- seguirmos chegar aos Zelandonñ nesta altura para o ano, podemos dar- -nos por felizes. Ainda nem sequer chegámos ao Mar Beran, onde o Grande Rio Mãe termina, e teremos de o seguir aid ao glaciar, onde começa, e mais além-disse Jondalar. Os seus olhos, de um tom de azul intenso e invulgarmente forte, pareciam inquietos e tinha a testa franzida numa expressão bem característica de preocupação.
22
--Teremos de atravessar alguns rios grandes, mas o que me
ma's é o glaciar, Ayla. Teremos de o atravessar quando o lide, o que significa que temos de lá chegar antes da Primavera e " sempre imprevisível. Nessa região há um forte vento do sul que zer que o gelo mais frio comece a derreter apenas num dia. Depois e o gelo de cima derretem e grandes rachas e a neve que está por cima abate; formam-se mesmo rios de água do degelo sobre o gelo, que por vezes desaparecem ï buracos fundos. Nessa altura é muito perigoso e isso pode acon to rapidamente. Estamos agora no Verão e, embora pareça que o ainda vem muito longe, temos de viajar mais do que possas pensar.
A mulher assentiu. Não adiantava sequer pensar no tempo que gem levaria, ou no que aconteceria quando chegassem. Era melhor sar dia a dia e apenas fazer planos para os próximos um ou dois di melhor não se preocupar com a gente de Jondalar e se " como um deles, como os Mamutoi tinham feito.
-- Gostava que o vento parasse-comentou ela.
-- Também estou cansado de corner pó-disse Jondalar.-
é que não vamos visitar os nossos vizinhos para ver se arranjamos quer coisa melhor para corner?
Levaram o Lobo com eles quando regressaram ao Acampamento Estipa, mas Ayla manteve-o junto de si. Juntaram-se a um grupo tinha reunido à volta de uma fogueira por cima da qual um grande assava num espeto. A conversa demorou algum tempo a iniciar-se, não tardou que a curiosidade se transformasse num interesse caloroso i a temerosa reserva desse lugar a uma conversa animada. As poucas pel soas que habitavam aquelas estepes periglaciares não tinham oportunidades de encontrar pessoas novas, e a excitação daq tro fortuito alimentaria discussões e seria o assunto das histórias d, Acampamento do Falcão durante muito tempo. Ayla travou um conh mento amigável com várias pessoas, sobretudo com uma jovem mulh com uma filha bebé que estava na idade de se sentar sozinha e de se alto, e que os encantou a todos mas em especial o Lobo.
A princípio, a jovem mãe ficou muito nervosa quando o animal lheu a sua filha para a sua atenção solícita, mas quando as delas ávidas a fizeram rir, encantada, e ele mostrou ter um controlo rinhoso mesmo quando ela lhe agarrava tufos de pêlo e puxava, todos se admiraram.
As outras crianças estavam ansiosas por lhe tocar e não tardou que o Lobo estivesse a brincar com elas. Ayla explicou que o lobo tinha sido criado com as crianças do Acampamento do Leão e que provavelmente sentia a sua falta. Tinha sido sempre especialmente carinhoso com os muito pequenos, ou com os fracos, e parecia distinguir a diferença entre um apertão não intencional que uma criança pequena lhe dava de um
puxão prop ositado da orelha ou do rabo dado por uma criança mais velha. permitia o primeiro com paciente indulgência, enquanto reagia ao segundo rosnando um aviso ou dando uma ligeira mordidela que não feria a pele mas que mostrava que ele o poderia fazer.
Jondalar referiu que tinham recentemente deixado o Encontro de Verão e Rutan disse-lhes que as reparações necessárias no seu abrigo tinham atrasado a sua partida, pois de contrário não estariam all. Fez perguntas a Jondalar sobre as suas viagens e sobre o Corredor, enquanto muitas pessoas escutavam. Pareciam ter maior relutância em fazer perguntas a Ayla e ela não falou muito, embora o Mamut tivesse gostado de falar com ela em privado para discutirem assuntos mais esotéricos, mas ela preferiu ficar com o Acampamento. Quando chegou a altura de re- gressarem ao seu acampamento até a mulher-chefe já estava mais descontraída e afável e Ayla pediu-lhe para transmitir saudades e cumprimentes ao Acampamento do Leão quando finalmente chegassem ao Encontro de Verão.
Nessa noite, Ayla ficou acordada apensar. Estava contente por não ter deixado que a sua natural hesitação a impedisse de se juntar ao Acampamento que se tinha mostrado tão pouco amigável. Tendo-lhes sido dada a oportunidade de superar o seu medo do que era estranho ou desconhecido, tinham-se mostrado interessados e dispostos a aprender. Ela também tinha aprendido que viajar com companheiros tão invulgares era natural que inspirasse reacções fortes por parte de qualquer um que pudessem vir a encontrar pelo caminho. Não fazia ideia do que podia esperar, mas não tinha a menor dúvida de que aquela Viagem ia constituir um desafio muito maior do que ela imaginara.
2
Jondalar estava ansioso por partir bem cedo na manhã seguinte Ayla queria voltar a ver as pessoas que conhecera no Acaro Estipa antes de se irem embora e, enquanto Jondalar se im
Ayla levou algum tempo a fazer as suas despedidas. Quando finalm partiram, era quase meiodia.
As pastagens abertas com montes suavemente ondulantes e zontes longínquos, através das quais tinham viajado desde. deixado o Encontro de Verão, começavam a ganhar altura. A corrente pida do afluente, com a sua nascente em terreno mais elevado. mais força do que o serpenteante rio principal e cortava um canal fundo na terra loess peneirada pelo vento. Embora Jondalar para sul, foram forçados a dirigir-se para oeste, depois para noro quanto procuravam um sítio conveniente para atravessar.
Quanto mais se afastavam do seu caminho, mais irritável
Jondalar ficava. No seu espírito, punha em causa a sua decisåo de o caminho pelo sul, mais longo, em vez de seguir pelo caminho de noro que lh.e fora sugerido m e em cuja direcção o rio parecia decidido a l -los. E certo que não o c0nhecia, mas se era assim tão curto, talvez sem ter ido por lá. Se ao menos pudesse ter a certeza de ao plana|to do g|aciar mais a oeste, na nascente do Grande Rio Mãe, tes da Primavera, fá-lo-ia, disse a si próprio.
Significaria prescindir da sua última oportunidade de ver os mudoi, mas isso seria assim tão importante? Tinha de reconhecer queria de facto vê-los. Há muito que pensava nisso. Jondalar não tinh a certeza sea sua decisão de ir pelo sul se devia realmente ao seu de de escolher o caminho que conhecia, logo o mais seguro, e ele próprio de volta, ou ao seu desejo se ver pessoas que para ele como famflia. Estava preocupado com as consequências de fazer a errada.
Ayla interrompeu a sua introspecção.
-- Jondalar, acho que podemos atravessar aqui-disse ela.-Amar- gem do outro lado parece fácil de subir.
Estavam numa curva do rio e pararam para estudar a situação.
II, AN[CIES DE PASSAGEM I
Quando a corrente turbulenta e rápida descrevia a curva, abria um canal fundo na parte exterior onde eles estavam, formando uma margem alta r íngreme. Mas a parte interior da curva, na margem oposta, erguia-se adualmente para fora da água, formando uma estreita margem de terra castanha-acinzentada e compacta com alguma vegetação por detrás.
-- Achas que os cavalos conseguem descer esta margem?
-- Acho que sim. A parte mgis funda do rio deve ser perto deste lado, onde a água corta a margem. E difícil dizer até que ponto é funda ou se os cavalos terão de nadar. Talvez seja melhor desmontarmos e também nadarmos-disse Ayla, reparando que Jondalar parecia aborrecido I, mas se não for demasiado funda podemos atravessar a cavalo. Detesto molhar a roupa, mas também não me apetece tirá-la para nadar para o outro lado.
Incitaram os cavalos a descer pela margem íngreme. Os seus cascos escorregaram e deslizaram pela terra fina da margem e os cavalos entraram na água com um chapão, sendo momentaneamente submersos e arrastados rio abaixo. A água era mais funda do que Ayla pensara. Os cavalos tiveram um momento de pânico antes de se habituarem ao novo elemento e começarem a nadar contra a corrente em direcção à margem oposta. Quando começaram a subir o terreno de inclinação gradual na parte interior da curva, Ayla procurou o Lobo. Virando-se, viu que ainda estava na margem alta, a ganir e a latir e a correr de um lado para o outro.
-- Term medo de saltar-disse Jondalar.
--Anda, Lobo!Andamgritou Ayla. tatu sabes nadar.-Mas o jovem lobo ganiu aflito e meteu o rabo entre as pernas.
-- Que é que se passa com ele? Já atravessou outros rios m disse Jondalar, aborrecido com este novo atraso. Tinha contado poder cobrir uma boa distância naquele dia, mas tudo parecia conspirar para os atrasar.
Tinham saído já tarde, depois tinham sido forçados a virar para norte e para oeste, direcção essa para onde não queria ir, e agora o Lobo recusava-se a atravessar o rio. Sabia também que deviam parar e verificar o conteúdo dos cestos-alforge depois da molha que tinham apanhado, muito embora fosse de tecitura apertada e essencialmente à prova de água. Para aumentar ainda mais a sua irritação, estava molhado e estava a ficar tarde. Sentia o vento a arrefecer e sabia que deviam mudar de roupa e deixar a que tinham vestida secar. Os dias de Verão estavam bastante quentes, mas os sussurrantes ventos da noite ainda traziam consigo o bafo gelado do gelo. Os efeitos do massivo glaciar, que esmagava as terras do norte sob lençóis de gelo do tamanho de montanhas, sentia-se em toda a terra, mas em mais lado algum tanto como nas frias estepes perto da sua orla.
26
Se fosse mais cedo, poderiam continuar a viaj
o vento e o sol secá-las-iam enquanto cavalgavam. Sentiu-se
virar mesmo para sul, nem que fosse para sentir que deixava al
tância para trás.., se ao menos conseguissem pôr-se a caminho,
q Este rio é mais rápido do que ele está habituado e não
entrar na água a pé. Term de saltar e nunca fez isso
q Que é que vais fazer?
-- Se não o conseguir incitar a saltar
ela.
--Ayla, tenho a certeza de que se nos formos embora, ele
ir atrás de ti. Se queremos percorrer alguma distância ainda ho
de ir.
A expressão fulminante de incredulidade e ira q
rosto fez Jondalar desejar poder retirar as suas palavras.
Gostavas de ser deixado para trás por teres medo? Ele não
tar para dentro do rio porque nunca fez nada de semelhante
é que estavas à espera?-
-- Quero dizer.., ele é apenas um lobo, Ayla. Os lobos
frequentemente rios. Apenas precisa de uma razão para saltar. Se,i
nos apanhasse, podíamos voltar atrás para o vir buscar. Não quis
que o deixássemos aqui.
-- Não tens que te preocupar em voltar atrás para o wires busca
you lá buscá-lo já-disse Ayla, virando as costas ao homem e incita
Whinney a entrar na água.
• O jovem lobo continuava a ganir, a cheirar a terra pisada pelos cas,
dos cavalos e a olhar para as pessoas e para os cavalos do outro lado ',
extensão de água. Ayla chamou-o de novo quando o cavalo entrou na e
rente. Mais ou menos a meio do ño, Whinney sentiu a terra sob si a ced
Relinchou alarmada, tentan, do encontrar terra firme. :
Lobo! Vem cá, Lobo/E apenas água. Anda, Lobo! Salta! -- gri
Ayla, tentando convencer o jovem e apreensivo animal a saltar pa dentro da água redemoinhante. Deslizou de cima do dorso de Whin decidindo que nadaria até à margem íngreme. OLobo ganhou finalmenl coragem e saltou. Caiu na água de chapão e começou a nadar I Isso mesmo! Muito bem, Lobo!
Whinney estava a recuar, procurando não perder o pé, e Ayla, com braço em volta do lobo, estava a tentar chegar junto dela. Jondalar já estava, com a água pelo peito, a segurar na Chegaram todos juntos à margem.
E melhor despacharmo-nos para ver se conseguimos cobrir algum distância ainda hoje-disse Ayla, com os olhos ainda a faiscar de ira, quanto voltava a montar a égua.
--Não disse Jondalar, detendo-a. Não nos vamos embora até ti. rares essa roupa molhada. Acho que devemos escovar os cavalos
?D4N[CIES DE PASSAGEM I 27
secar e talvez também o lobo. Já viajámos o suficiente por hoje. Podemos "eanapar aqui esta noite. Demorei quatro anos a chegar aqui. Não me importo de .de.morar quatro anos a regressar desde que te faça lá chegar sã
e salva, Ayla.
Quando ela olhou para ele, a expressão de preocupação e de amor nos
seus olhos muito azuis derreteu os últimos vestígios da sua ira. Estendeu"lhe as mãos enquanto ele inelinava a cabeça na direcção dela e sentiu o resmO inconcebível encantamento que sentira da primeira vez que ele pusera os lábios sobre os seus e lhe mostrara o que era um beijo; e sentiu uma alegria inexpressável por saber que estava a viajar com ele, que ia
ara casa com ele. Amava-o mais do que sabia expressar, ainda mais ågora, depois do longo Inverno em que pensara que ele não a amara e que se iria embora sem ela.
Ele tinha temido por ela quando a vira voltar ao rio e estava agora muito junto dela, a abraçá-la. Amava-a mais do que alguma vez achata possível amar alguém. Até encontrar Ayla, não sabia que podia amar tanto. Uma vez quase a perdera. Tinha fido a certeza de que ela ia ficar com o homem eseuro com olhos risonhos e não suportou a ideia de poder voltar a perdê-la.
Com dois cavalos e um lobo como eompanheiros, num mundo que até aí nunca soubera que eles podiam ser domestieados, um homem estava sozinho com a mulher que amava no meio de uma vasta e fria pastagem, cheia de grande abundância e diversidade de animais, mas poucos seres humanos, e eontemplavam umaViagem que se estenderia através de um continente.
No entanto, havia alturas em que só a ideia de que lhe podia acontecer algum mal o invadia de um tal medo que mal eonseguia respirar. Nesses momentos, gostava de a poder abraçar para sempre.
Jondalar sentiu o calor do seu corpo e a sua boca desejosa sobre a dele e sentiu aumentar a sua necessidade de a possuir. Masisso podia esperar. Ela estava com frio e molhada; preeisava de roupa seca e de uma fogueira. All à beira do rio era um sítio tão born para acampar como outro qualquer, e apesar de ainda ser demasiado cedo para pararem, born, darlhes-ia tempo para secar a roupa que tinham vestida e podiam partir cedo na manhã seguinte.
Lobo/Larga isso! -- gritou Ayla, correndo para tirar o pacote embrulhado em couro ao pequeno animal. D Pensei que já tinhas aprendido a nåo ires ao couro.-Quando tentou tirar-lho ele, a brincar, continuou a segurá-lo com os dentes e a abanar a cabeça e a rosnar. Elalargou, pondo termo à brincadeira, m Larga! -- disse rispidamente e fez um gesto com a mão como se tencionasse bater-lhe no focinho. Em resposta ao sinal e à ordem, o Lobo meteu o rabo entre as pernas, rastejou para
janto dela e deixou cair o pacote aos seus pés, ganindo como apazig, ar.
-- E a segunda vez que pega nestas coisas-
pacote e noutros que ele também já roera, m Sabe que não
parece não conseguir resistir ao couro.
Jondalar foi ajudá-la.
-- Não sei que dizer. Ele larga-os quando to mandas,
podes dizer nada se não estiveres presente e não podes estar vigiá-lo ... Que é isto? Não me lembro de alguma vez ter visto ele, olhando intrigado para o pacote que estava cuidadosamente lhado numa pele macia e bem atado.
Corando ligeiramente, Ayla tirou-lho rapidamente das
-- É... é uma coisa que eu trouxe.., uma coisa...do
Leo-disse ela, metendo-o no fundo de um
A sua atitude intrigou Jondalar. Tinham ambos ado
coisas pessoais e a roupa de viagem ao mínimo, levando
não eram essenciais. O pacote não era grande, mas também não queno. Ela provavelmente podia ter metido um outro fato no es
OCupava. Que seria que ela levava all?
--Lobo! Pára com isso!
Jondalar observou Ayla a correr de novo atrás do jovem lob. sorrir. Não tinha a certeza, mas quase parecia que oLobo estava a -se mal de propósito, a arreliar Ayla para a obrigar a correr atrás, a brincar com ela. Tinha descoberto um sapato de acampamento uma protecção macia do tipo mocassin que por vezes usava para mais confortável depois de montarem o acampamento, sobretudo terreno estava gelado ou húmido e frio e ela queria arejar o seu normal e mais resistente.
--Não sei que lhe hei-de fazer! --dis.,
-se do homem. Segurava no objecto da sua última escapadela e olh. veramente para o infractor. OLobo vinha a rastejar para junto dela rentemente arrependido, a ganir com a mais abjecta sua censura; mas por detrás da sua aflição espreitava uma diabrura. Ele sabia que ela gostava muito dele e, no instante em que cedesse, pôr-se-ia aos saltos e a latir, de novo pronto para brincar.
Embora tivesse já o tamanho de um lobo adulto, apesar de ainda ter o correspondente peso, o Lobc pouco mais era q nascido no Inverno, fora de época, de uma mãe solitária morrera. O pêlo do Lobo era do habitual tom cinzentoamarelado sultado das faixas de branco, avermelhado, castanho e preto q cada pêlo exteñor, formando um padrão indistinto que permitia bos passassem despercebidos e fossem invisíveis na paisagem natural vegetação, erva, terra, rocha e neve D mas a sua mãe era preta.
A sua cor invulgar tinha feito que o chefe e as outras fêmeas
?b3I[CIES DE PASSAGEM I 29
# incomod.as,sem perma,ne, nt, eme,nte, dando-lhe, o esta.tu, to mais ba, ixo, e t.do acaDaclo por expulsa-la. ,la passou a anaar somnna, aprenaenao sobreviver no meio dos territórios das alcateias durante uma estação,
#té finalmente -encontrar outro lobo solitário, um velho macho que tinha A.ixado a sua alcateia por já não conseguir acompanhá-la. Viveram bem - --^ -l-,m temno Ela era melhor caçadora, mas ele era ex.peri.'ente éå:ìñhañco .meça.d,õ a delimitar e defender um pequeno território para
ammOs, rode er sino a melhor alimentação que ambos conseguiam obter caçando juntos, ou o companheirismo e a proximidade de um macho amigável,-ou a sua própria predisposição genética que fez que ela tivesse
o cio fora de época, mas o seu idoso companheiro não ficou infeliz e, não tendo concorrência, correspondeu de born grado e com êxito.
Lamentavelmente, os seus velhos ossos não conseguiram sobreviver
aos rigores de outro difícil Inverno nas estepes periglaciares. Não durou muito na estação fria. Foi uma perda devastadora para a fêmea preta que ficou sozinha para parir D no Inverno. O meio ambiente natural não tolera bem animais com grandes desvios em relação à norma e os ciclos sazonais vão-se cumprindo. Um caçador preto numa paisagem de erva amarelada, terra castanha-clara e neve alta ou varrida pelo vento, é visto com demasiada facilidade por predadores astutos e esfomeados devido à falta de presas no Inverno. Sem companheiro ou tias, tios, primos e parentes mais velhos para ajudar a alimentar e cuidar da mãe a amamentar e das crias recém-nascidas, a fêmea preta enfraqueceu e os seus bebés foram sucumbindo até restar apenas um.
Ayla conhecia os lobos. Tinha-os observado e estudado desde a altura em que começara a caçar, mas não tinha forma de saber que o lobo preto que tentou roubar o arminho que ela matara com a sua funda era uma fêmea a amamentar que estava esfomeada; não era época de crias. Quando tentou recuperar a pele e o lobo a atacou, o que também não era usual, matou-o em legítima defesa. Depois viu o estado do animal e apercebeu-se de que devia ser uma loba solitária. Sentindo uma estranha afinidade com um lobo que sabia que tinha sido escorraçado da sua alcateia, Ayla decidiu encontrar as crias órfãs, que não teriam famflia que as adoptasse. Seguindo o rasto da loba, encontrou o covil, entrou de gatas e encontrou a última cria, enfraquecida e ainda mal tendo aberto os olhos. Levou-a com ela para o Acampamento do Leão.
Tinham ficado todos muito surpreendidos quando Ayla lhes mostrou o minúsculo lobinho, mas o que é certo é que ela lá tinha chegado com dois cavalos que lhe obedeciam. Tinham-se habituado a eles e à mulher que tinha uma'afinidade com os animais, e sentiram curiosidade em relação ao lobo e ao que ela faria com ele. Consideraram espantoso o facto de ela ter conseguido criá-lo e treiní-lo. Jondalar continuava a surpreender-se com a inteligência que o animal mostrava; uma inteligência que parecia quase humana.
1
-- Acho que ele está a brincar contigo, Ayla m disse o horn
Ela olhou para o Lobo e não conseguiu reprimir um sorriso, o que ele levantasse a cabeça e começasse a dar ao rabo em
m Creio que tens razão, mas isso não me ajuda a impedir que
tudo m disse ela, olhando para o sapato esfrangalhado.- MaL, xar que ele fique com isto. Já o estragou e talvez assim durante tempo não se interesse tanto pelo resto das nossas coisas. e ele deu um salto e apanhou-o no ar com
É melhor começarmos a guardar as coisas disse ele,
-se que no dia anterior pouco tinham andado para sul. :
Ayla olhou em volta, protegendo os olhos do sol que
guer-se no céu a este. Vendo Whinney e Corredor m outro lado do pedaço de terra arborizada em terno do qual o rio teava, assobiou um sinal distinto, semelhante ao assobio q chamar o Lobo, mas não igual. A égua castanha-dourada ergueu a I ça, relinchou e depois galopou para junto da mulher. O jovem i foi atrás dela.
Levantaram o acampamento, carregaram os cavalos e estavam, prontos para partir quando Jondalar decidiu pôr os paus da tenc cesto e as suas lanças noutro para equilibrar a carga. Ayla estav tada a Whinney enquanto esperava. Era uma posição confortável e tual para ambas, uma forma de se tocarem que tinham criado " pequena potra era a sua única companhia no vale rico mas
Ela também tinha morto a mãe da Whinney. Nessa altura. çavahá anos, mas apenas com a sua funda. Ayla tinha aprendido a usar a arma fácil de ocultar e racionalizara a sua viola,
Clã caçando essencialmente predadores, que competiam pelos alimentos e por vezes até lhes roubavam carne. Mas o cavalo foi o to animal grande e que dava carne que ela matou, e a primeira vez ¢ usou uma lança para o fazer.
No Clã, teria representado o primeiro animal que matava s rapaz e tivesse autorização para caçar com lança; sendo fêmea uma lança, não lhe permitiriam que vivesse. Mas tinha sido
à sua sobrevivência matar o cavalo, embora não tivesse escolhido uma t mea a amamentar para cair no fosso que fizera como armadilha. ( viu o potro, teve pena dele, pois sabia que morreria sem a mãe, não lhe ocorreu a ideia de a criar. Não havia qualquer razão para isso: nunca ninguém o fizera.
Mas quando as hienas perseguiram o assustado cavalo-bebé, lembrou-se da hiena que tinha tentado levar o filho bebé de Oga. odiava hienas, talvez devido à provação que tinha tido que quando matara essa, revelando assim o seu segredo. As hienas não piores que qualquer outro animal predador que se alim ta, mas para Ayla tinham passado a representar tudo o que era
3IíCIES DE PASSAGEM I
at e errado. A sua reacção nessa altura foi tão espontânea como a da tra vez e as pedras rápidas lançadas com a funda foram igualmente ficazes. Matou uma, afugentou as outras e salvou o jovem animal in- efeso mas, nessa.ocasião, e-m vez de ter que enfrentar uma provação, ncontro.u companhia para a!iviar a sua solidão, e alegria na extraordi- ária relação que se desenvolveu.
Ayla adorava o jovem lobo como adoraria uma criança inteligente e entoas os seus sentimentos para com o cavalo eram de natureza Crente. A Whinney tinha compartilhado o seu isolamento; tinham-se ado tão unidas quanto era possível entre duas criaturas tão dies. Conheciam-se uma à outra, compreendiam-se uma ì outra, nfiavam uma na outra. A égua amarela não era apenas uma companheira animal útil, nem um animal de estimação, nem sequer uma criança muito querida. A Whinney tinha sido a sua única companheira durante vários anos e era sua amiga.
Mas tinha sido um acto espontâneo e mesmo irracional da primeira vez que Ayla lhe saltara para o dorso e galopara como o vento. A pura excitação do que acontecera fez que voltasse a fazê-lo. A princípio, não tentou deliberadamente dirigir o cavalo, mas eram tão unidas que a sua compreensão mútua aumentou com cada experiência.
Enquanto esperava que Jondalar acabasse, Ayla observou oLobo que, muito divertido, roía o seu sapato e pensou que gostava de encontrar uma forma de controlar o seu hábito destrutivo. Casualmente, o seu olhar recaiu na vegetação que crescia na parte do terreno onde tinham acampa- do. Isolado entre as margens altas no outro lado do rio, onde este descreuma
curva apertada, a terra baixa daquele lado era inundada todos os anos, ficando marga fértil para nutrir uma variedade rica de vegetação, pequenas árvores, e a pastagem verdejante mais adiante. Ela 3arava sempre nas plantas à sua volta. Para ela era uma segunda ter consciência de tudo o que crescia e, com conhecimentos tão nte enraizados que eram quase instintivos, catalogá-lo e in-
Viu um arbusto de uva-ursina, uma planta anã perene de charneca, from pequenas folhas verde-escuras e coriáceas, e abundantes flores tingidas de cor-de-rosa, pequenas e arredondadas, que promeuma boa colheita de bagas vermelhas. Apesar de amargas e ligeiraastringentes, sabiam muito bem quando cozinhadas com outros bem mais importante do que serem um alimento, Ayla saque o suco das bagas era born para aliviar a sensação de ardor que )ode ocorrer, quando se urina, especialmente quando tinha um tom rodevido à presença de sangue.
All perto havia também uma armorácia, com pequenas flores brancas os caules, com pequenas folhas estreitas e, mais abaixo, junto terra, com compridas folhas verde-escuras e brilhantes. A raiz seria
32
grossa e bastante comprida, com um aroma pungente e um Em quantidades muito pequenas, era um sabor interessante' às carnes, mas Ayla estava mais interessada na sua utiliza, - como estimulante para o estômago e para urinar, e para ticulações doridas e inchadas. Pensou se devia demorar-se a mas decidiu que provavelmente não devia perder tempo.
Mas pegou sem hesitar no seu pau de escavar
a artemísia. Araiz era um dos ingredientes do seu chá es! que bebia durante a sua época da lua ras, usava diferentes plantas no seu chá, em especial o fio crescia noutras plantas e que muitas vezes as matava. Há muito Iza tinha-lhe falado nas plantas mágicas que fariam que o espírito totem fosse suficientemente forte para derrotar o espírito do qualquer homem, para que um bebé não começasse a crescer la. Iza tinha-a sempre avisado para nunca contar isso a nin tudo a um homem.
Ayla não estava muito certa de que eram
bés. Pensava que era sobretudo o homem que tinha a ver com" fosse como fosse, as plantas secretas resultavam. meçava dentro dela quando bebia os chás especiais, quer estivesse de um homem ou não. Não que ela se importasse, se e, dos num lugar. Mas Jondalar tinha tornado bem claro que, gem tão grande à sua frente, seria um risco ela engravidar pelo
Ao puxar a raiz da artemísia e sacudir a terra, viu a:
de coração e as compridas flores tubulares amarelas da eram boas para impedir o aborto. Com um frémito de dor, le quando Iza tinha ido apanhar essa planta para ela. Quando se e foi guardar as raízes que acabara de apanhar no seu cesto espe amarrado na parte de cima de um dos cestos-alforge, viu a mordiscar selectivamente a parte superior da aveia. Também desses grãos depois de cozinhados, pensou, e o seu espírito, q a fazer a catalogação medicinal automática, acrescentou a que as flores e os caules ajudavam a digestão.
O cavalo tinha defecado e ela reparou nas moscas em volta. Em épocas, os insectos eram terríveis, pensou, e decidiu que plantas repelentes de insectos. Quem sabia por que viajar?
Na sua avaliação casual da vegetação local, notou um arbusto e nhoso que sabia ser uma variedade de absinto com sabor amargo cheiro a cânfora, não um repelente de insectos, pensou, mas com a sua lidade. Mais adiante viu bicos-de-cegonha, gerânios selvagens com lhas multidentadas e flores rosa-avermelhadas com cinco transformavam em frutos que se assemelhavam a bicos de cegonha. folhas secas e feitas em pó ajudavam a parar de
fI[CIES DE PASSAGEM 1 33
itas em chá curavam feridas e irrupções na boca; e as raízes eram boas
ta fezes líquidas e problemas de estômago. Tinha um sabor amargo e
e. -so, mas era tolerado por crianças e velhos.
iOÓhando na direcção de Jondalar, voltou a reparar no Lobo, que conti
nuava a roer o sapato. Subitamente, parou com as suas rummações
entais e voltou a centrar a sua atenção nas últimas plantas em que reds
Por cue é cue lhe tinham chamado a atenção? Havia qualqu.er
cPÕiã' ñlas qùe parecia importante. Depois ocorreu-lhe. Pegou rapida-
mente no seu pau de escavar e começou a soltar a terra em volta do
sbsinto de sabor amargo e com forte cheiro a cânfora e depois do gerånio
sstringente e de cheiro intenso mas relativamente inofensivo.
Jondalar tinha montado e estava pronto para partir quando se virou
para ela.-Ayla, por que é que estás a apanhar plantas? Temos de nos ir em-
bora. Precisas mesmo delas agora?
-- Sim-respondeu ela.-Não me demoro-disse, passando à raiz
comprida e grossa da armorácea de sabor picante.-Creio que sei uma
forma de o manter afastado das nossas coisas-disse, apontando para
o jovem canino que roía o que restava do sapato de couro, mVou fazer "re-
pelente" de Lobo.
Dirigiram-se para sudeste do sítio onde tinham acampado para voltarem ao rio que tinham vindo a seguir. O pó varrido pelo vento tinha assentado durante a noite e, no ar límpido e puro, o céu infinito revela- va todo o horizonte distante que tinha estado obscurecido. Ao avançarem, toda a sua vìsão, de um lado da terra ao outro, de norte a sul, de este a oeste, era erva, a ondular, a agitar-se, em constante movimento; uma vasta e abrangente pastagem. As poucas árvores que existiam perto de linhas de água apenas acentuavam a vegetação dominante. Mas a magnitude das planícies verdejantes era mais extensa do que podiam pensar.
Massivos lençóis de gelo, com três, quatro e até seis quilómetros de espessura, abafavam as extremìdades da terra e estendiam-se sobre as terras para norte, esmagando a crosta rochosa do continente e provocando uma depressão no próprio leito de rocha com o seu peso inconcebível. A sul do gelo havia as estepes-pastagens secas e frias, tão vastas como o continente, estendendo-se desde o oceano ocidental até ao mar oriental. Toda a terra em volta do gelo era uma imensa planície coberta de pastagens. Por todo o lado, varrendo a terra, desde os pequenos vales até às colinas batidas'pelo vento, havia erva. As montanhas, os rios, os lagos e os mares que forneciam a humidade necessária para as árvores eram as únicas excepções no carácter essencialmente herboso das terras do norte durante a Idade do Gelo.
Ayla e Jondalar sentiram o terreno plano começar a descer em direc-
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ção ao vale do grande rio, embora ainda estivessem a certa água. Não tardou que se vissem rodeados de erva alta. ver por cima da vegetação de mais de dois metros de alura, Ayla mais via que a cabeça e os ombros de Jondalar por entre as mease os caules ondulantes das minúsculas florículas, dourado com um tom ligeiramente avermelhado sobre os seus caules verde-azulados. Vislumbrava de vez em quando a sua castanha, mas apenas reconhecia o Corredor porque sabia que ele va all. Ficou contento com a vantagem em altura que os cavalos yam. Apercebeu-se de que, se fossem a pé, toria sido como uma floresta de erva alta e verde a ondular ao vento.
A erva alta não constituía obstáculo, afastando-se facilmente frento ao avançarem, mas apenas conseguiam ver a uma peq cia dos caules mais próximos e, assim que passavam, a erva voltava direitar-se, deixando poucos vestígios do caminho por onde tinham do. A sua visão estava limitada à área imediatamento ì sua volta, se levassem consigo, ao avançarem, uma bolsa do seu próprio Apenas com a incandescência brilhanto a percorrer o seu percurso tual no céu límpido e profundamento azul lá no alto, e a erva a indicando a direcção do vento dominante, teria sido mais difícil rem o caminho e muito fácil separarem-se.
Enquanto avançava montada no cavalo, ela ouviu o sussurro ¢
e o zumbido agudo dos mosquitos a zunir-lhe aos ouvidos. Estava e abafado no meio da vegetação densa. Apesar de ver a erva lar, mal sentia a brisa. O zumbido das moscas e um bafo a bosta fresca " se-lhe que o Corredor tinha acabado de defecar. Mesmo se ele não fi alguns passos à frento, ela toria sabido que tinha sido o jovem a passar por all. O seu cheiro era-lhe tão claramento familiar como o { cavalo que montava-e o seu próprio. À sua volta havia o cheiro rico, húmus do solo e o cheiro verde da vegetação a rebentar. Ela não ficava os cheiros como bons ou maus; usava o nariz da mesma forma c usava os olhos e os ouvidos, fazendo uma conhecimentos para a ajudar a investigar e analisar o mundo
Passado algum tompo, a monotonia da paisagem, de longos
des seguidos de longos caules verdes, o passo rítmico do cavalo e o quento quase directamento por cima, fizeram que Ayla ficasse acordada, mas não absolutamento consciento. Os caules das ervas titivos, altos e finos, tornaram-se numa mancha indistinta que xou de ver. Começou a reparar na outra vegetação. Havia all muito mai do que ervas e ela tomou mentalmento nota de tudo, sem pensar cientomento nisso. Era simplesmento a forma como ela via o seu m biento.
"All", pensou Ayla, "naquele espaço aberto-que deviator sido por algum animal que all se espojara mhá anserinas, aquilo a c
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chamava a.nserinas, como a fedegosa perto da caverna do Clã. Devia apanhar a-lguma", pensou, mas não fez qualquer esforço para o fazer. "Aquela planta, com as flores amarelas e as folhas muito juntas ao cau-
le, é palmito. Saberia bem logo à noito." Mas também passou por ele. "Aquelas flores azul-arroxeadas, com as folhas pequenas, são astrágalos
e têm muitas vagens. Já estarão boas para apanhar? Provavelmento não. All adiante, aquela flor branca larga, quase arredondada, cor-de-rosa no meio, é de cenoura. Parece que o Corredor pisou algumas das folhas. De- via rifar o meu pau de escavar, mas há mais all adiante. Parece haver muito. Posso esperar e está tanto calor." Tentou afastar um par de moscas que zumbia em volta do cabelo molhado de suor. "Há algum tompo que não vejo o Lobo. Onde é que ele estará? "
Virou-se para procurar o lobo e viu que vinha logo atrás da égua, a cheirar a torra. Parou, levantou a cabeça para apanhar outro rasto, e desapareceu no meio da erva alta à sua esquerda. Ela viu uma grande libélula azul com asas sarapintadas, perturbada pela passagem do lobo atravé s do denso biombo vivo, a pairar perto do sítio onde ele tinha estado, como se o estivesse a marcar.
Pouco depois, um piar agudo e um roçagar de asas precedeu o súbito aparecimento de uma grande abetarda a levantar voo. Ayla pegou na funda que levava enrolada ì cabeça sobre a testa. Era um sítio conveniente para a ter rapidamente à mão e além disso impedia que o cabelo lhe cais- se para a cara.
Mas a enorme abetarda-que era, com os seus cerca de cinquenta qui- los, a ave mais pesada das estopes-voava velozmente para o tamanho que tinha e estavajå fora do seu alcance quando ela tirou uma pedra da bolsa. Viu o pássaro malhado, com asas bran"as com as pontas escuras, ganhar velocidade, com a cabeça esticada para a frente, as pernas para trás, afastar-se, e lamentou não saber o que é que o Lobo tinha detocta- do. A abetarda toria dado uma excelente refeição para os três e ainda so- braria muito.
m Foi pena não sermos suficientemente rápidos-disse Jondalar. Ayla reparou que ele estava a pôr uma pequena lança no lançador na parte de trás do seu cesto-alforge. Assentiu enquanto voltava a enrolar a funda à cabeça.
Tenho pena de não ter aprendido a usar o pau de lançar da Brecie. É muito mais rápido. Quando parámos naquele pântano onde todos aqueles pássaros tinham os seus ninhos, quando fomos caçar mamutes, quase nem se acreditava na sua rapidez. E Conseguia apanhar mais que um pássaro de uma vez.
-- Ela era boa. Mas provavelmento treinou-se com o pau de lançar como to to treinaste com a tua funda. Não creio que se consiga uma perícia daquelas numa estação.
Mas se esta erva não fosse tão alta, eu podia ter visto o que é que
o Lobo ia a perseguir a tempo de pegar na minha funda e em pedras. Penso que provavelmente era um arganaz.
-- Temos de nos manter atentos a mais qualquer coisa que o espante-disse Jondalar.
--Eu estava atenta. Só que não consigo ver nada! q.
para o céu para verificar a posição do sol e esticou-se para cima da erva.-Mas tens razão. Não seria nada mau começarmos a sar em arranjar carne fresca para logo à noite. Vi todo o tipo de boas para corner. Ia parar para apanhar algumas, mas parece ¢ por todo o lado e prefiro fazê-lo depois para serem frescas e com este sol tão quente. Ainda temos algum bisonte assado que ram no Acampamento da Estipa, mas só dá para mais uma refeição e 1 há nenhuma razão para gastarmos a carne seca do ano, quando há tanta comida fresca por aí. Quanto mais, andar antes de pararmos?
-- Creio que não estamos longe do rio.., está a ficar mais fresco e pastagens esta erva alta normalmente cresce junto à água. Assim, chegarmos podemos começar a procurar um sítio para acamparmos quanto avançamos rio abaixo-disse Jondalar, recomeçando a and
A erva alta estendia-se mesmo aid à beira do rio, embora perto margem molhada houvesse árvores aqui e all. Pararam para deixar cavalos beber e desmontaram para saciar a sua própria sede, pequeno cesto de malha apertada como púcaro para tirar e beber OLobo não tardou a sair a correr do meio da erva e air beber ruidosam" depois deitando-se e ficando a observar Ayla, com a língua de fora e arfar.
Ayla sorriu.
OLobo também term calor. Acho que term estado a fazer exploraçõ -- disse.-Gostava de saber todas as coisas que descobriu. Eh mais do que nós nesta erva alta.
--Gostava de sair do meio da erva antes de montarmos,
Estou habituado a ver mais longe e isto faz-me sentir encurralado. N sei o que há lá adiante e gosto de saber o que tenho à minha volta-di se Jondalar, dirigindo-se para a sua montada. Apoiando-se ao dorso Corredor, logo abaixo das suas crinas duras e espetadas, salte forte e passou uma das pernas para o outro lad6, eq com os braços e ficando escarranchado, embora ligeiramente torto, cima do garanhão robusto. Guiou o cavalo para longe da margem de terra mole para terreno mais firme antes de se dirigir rio abaixo.
As grandes estepes não eram de forma alguma uma paisagem
e imensa e indiferenciada de graciosos caules ondulantes. A erva alta crescia em áreas específicas de grande humidade que tambdm continham uma grande variedade de outras plantas. Dominada por ervas com mais de um metro e meio de altura, mas que chegavam a atingir quase quatro
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metros-grandes ervas-de-febra bolbosas, ervas plúmeas e festucas to- fadas-os coloridos prados acres¢entavam uma variedade de plantas herbáceas de floração e de folha larga: íster e tussilagem; nulacampanas amarelas, de muitas pétalas, e as grandes cornucúpias brancas das daturas; tubérculos, cenouras, nabos e couves; rábanos, mostarda e pe- quenas cebolas, íris, lírios e ranúnculos; corintes e morangos; framboesas vermelhas e pretas.
Nas regiões semiáridas com pouca precipitação, tinham-se desenvolvido ervas baixas, com menos de meio metro de altura. Mantinham-se perto do solo, com quase teda a vegetação sob elas, lançando novos rebentos, especialmente em alturas de seca. Compartilhavam a terra com a vegetação rasteira, em particular com artemísias, como absinto e salva.
Entre esses dois extremos havia as ervas médias, que preenchiam nichos demasiado frios para as ervas rasteiras ou demasiado secos para as ervas altas. Os prados com humidade moderada também podiam ser coloridos, com muitas plantas de floração misturadas com uma cobertura do solo de aveia, cevada e, sobretudo nas colinas e terras mais altas, com pe- quenas ervas-de-febra. As ervas cordiformes cresciam onde a terra era mais húmida, as ervas agulha em áreas mais frescas com solos pobres e arenosos.
Havia também muitas ciperáceas-nas ciperáceas os caules eram só-lidos, com nós nos sítios onde as folhas cresciam nos caules-incluindo erióforos, principalmente em tundras e solos mais húmidos. Nos pântanos abundavam altos juncos, espadanas e vimes.
Estava mais fresco junto ao rio e, à medida que a tarde ia avançando, Ayla sentiu-se puxada em dois sentidos opostos. Queria apressar-se e ver o fim à abafante erva alta, mas também queria parar e apanhar alguns dos legumes que ia vendo ao longo do caminho para a sua refeição da noite. Começou a desenvolver-se um ritmo na sua tensão, sim, para- ria, não, não pararia, que se ia repetindo no seu espírito.
Não tardou que o próprio ritmo se sobrepusesse a qualquer significado das palavras e um latejar silencioso que lhe dava a sensação de que de- via ser sonoro encheu-a de apreensão. Era inquietante aquela sensação de som profundo e sonoro que não conseguia realmente ouvir. O seu desconforto foi acentuado pela erva alta que a rodeava e atabafava, que lhe permitia ver, mas não suficientemente longe. Estava mais habituada a ver longas distâncias, vistas longínquas, a ver, pelo menos, para lá do biombo imediato dos caules das ervas. Ao continuarem, a sensação tornou-se mais aguda, como se se estivesse a aproximar, ou eles se estivessem a aproximar da origem do som silencioso.
Ayla reparou que o solo parecia ter sido recentemente perturbado em vários sítios e franziu o nariz ao sentir um cheiro almiscarado forte e pun
gente, tentando localizá-lo. Depois ouviu um rosnido sair da
m Jondalar! -- gritou, e viu que ele tinha parado e estava de guida, a fazer-lb.e sinal para parar. Havia realmente ¢ adiante. Subitamene, o ar foi rasgado por um forte grito explosivo.,.
mLobo.f Aqui!-- ordenou Ayla ao jovem animal que estava a avançar lentamente mas cheio de curiosidade. Deslizou de cima do dorso de Whinney e foi para junto de Jondalar, que também tinha desmontado e se estava a mover cautelosamente através da erva menos espessa na direcção dos gritos agudos e dos fortes roncos. Chegou junto dele quando ele parou e ambos afastaram os caules altos para ver. Ayla baixou-se, com um joelho no chão, para segurar no Lobo enquanto olhava, mas não conseguiu tirar os olhos da cena da clareira.
Uma manada agitada de mamutes peludos andava all de um lado para o outro-tinham sido os próprios animais, aos pastarem, que tinham formado a clareira na orla da área de erva alta; um mamute grande precisava de mais de trezentos quilos de alimento todos os dias e uma manada conseguia limpar uma área considerável de vegetação muito rapidamente.
Os animais eram de todas as idades e tamanhos, incluindo alguns que não deviam ter mais de algumas semanas. Isso signhícava que era essencialmente uma manada de fêmeas aparentadas: mães, filhas, irmãs, tias e as suas crias; uma família alargada dirigida por uma velha matriarca sábia e astuta que era visivelmente maior.
À primeira vista, a cor geral dos mamutes peludos era castanho-avermelhado, mas uma observação mais atenta revelava muitas variações do tom básico. Alguns eram mais avermelhados, alguns tendiam para o amarelado ou dourado e outros pareciam quase pretos à distância. 0 pêlo espesso, de dupla camada, cobriam-nos totalmente, desde as suas largas trombas e orelhas excepcionalmente pequenas, aos seus rabos curtos e pernas atarracadas e patas largas. As duas camadas de pêlo contribuíam para as diferenças na cor.
Embora grande parte do pêlo interior, quente, denso, e espantosamente sedoso, tivesse caído no princípio do Verão, o do ano seguinte já tinha começado a crescer, sendo de um tom mais claro que a camada exterior, mais fofa, embora mais áspera, e que os protegia do vento, dando-lhe pro- fundidade e brilho. Os pêlos exteriores, de vários comprimentos, alguns com um metro, pendiam como uma saia ao longo dos flancos e eram muito
espessos no abdómen e na barbela m a parto solta de pele no pescoço peito-criando uma protecção para quando se deitavam na torra
Ayla ficou encantada com dois jovens gémeos com um lindo melho-dourado acentuado por hirsutos pêlos pretos que espreitavan detrás das enormes pernas e da saia cor de ocre da sua mãe. O nho-escuro da velha matriarca estava raiado de cinzento. Também parou nos pássaros brancos que eram companheiros constantes mamutes, tolerados ou ignorados, quer estivessem pousados em cim sua cabeça peluda ou evitassem agilmente serem pisados por uma massiva, enquanto se banquetoavam com os insectos que os enormes mais perturbavam.
O Lobo ganiu, ansioso por investigar mais de perto os
animais, mas Ayla segurou-o, enquanto Jondalar foi buscar a corda o prender ao cesto da Whinney. A matriarca grisalha virou-se na sua direcção durante um longo momento m eles repararam que dos seus grandes dentos estava partido-e depois voltou a centrar a atenção em actividades mais importantes.
Só os machos muito novos ficavam com as fêmeas, pois normalm abandonavam a manada natal assim que chegavam à puberdade, volta dos doze anos, mas vários jovens não acasalados e mesmo mais velhos estavam incluídos neste grupo. Tinham sido atraídos uma fêmea com pêlo castanho-escuro. Ela estava no cio e era essa a cau da agitação que Ayla e Jondalar tinham ouvido. Uma fêmea no cio, tro, o período reprodutivo no qual as fêmeas podem conceber xualmento todos os machos, por vezes mais do que ela gostaria.
A fêmea castanha-escura tinha acabado de se juntar ao seu miliar depois de escapar a três jovens machos dos seus vinte anos, que tinham perseguido. Os machos, que tinham desistido, embora tomporariamente, estavam parados, ligeiramente afastados da m compacta que descansava, enquanto ela procurava uma trégua para seus esforços no meio das fêmeas excitadas. Uma cria de dois anos para o animal objecto da atenção dos machos, sendo saudado com um l we toque da tromba, tendo encontrado as duas totas entre as suas da frente e começado a mamar, enquanto a fêmea puxava um molh erva com a tromba. Tinha sido perseguida e incomodada pelos machos ranto todo o dia e tinha tido poucas oportunidades para alimentar cria ou sequer para ela prdpria corner ou beber. Mas am tão que teria.
Um macho de tamanho médio aproximou-se da manada e começou tocar nas outras fémeas com a tromba, ao longo do rabo, entre as' traseiras, a cheirar e a lamber, a testar se estavam prontas. Como mamutos continuam a crescer durante toda a sua vida, o seu tamanho dicava que era mais velho que os três que tinham estado a mea assediada, tendo provavelmente uns trinta
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da fêmea castanha-escura, ela afastou-se rapidamento. Ele imediatamento abandonou os outros, indo atrás dela. Ayla soltou uma exclamação abafada quando ele libertou o seu enorme órgão e este começou a aumentar, formando um longo S.
O jovem homem ao seu lado ouviu a brusca exclamação abafada e olhou para ela. Ela virou-se para olhar para ele e os seus olhares, igualmento espantados e maravilhados, fLxaram-se por instantos. Embora já tivessem ambos caçado mamutes, nenhum deles tinha observado os enormes animais peludos de tão perto, nem nenhum deles os tinha visto acasalar. Jondalar sentiu um frémito no seu próprio sexo ao olhar para Ayla. Ela estava excitada, corada, com a boca entre-aberta, com a respiração ofeganto, e tinha os olhos muito abertos, com um brilho de curiosidade. Fascinado pelo espectáculo impressionanto das duas criaturas massivas prestes a honrar a Grande Mãe Terra, como Ela exigia a todos os Seus filhos, recuaram rapidamento.
Mas a fêmea correu num grande arco, mantendo-se à frento do macho maior, atd conseguir voltar para a manada da famflia, embora isso pouco tivesse adiantado. Não tardou a ser novamente perseguida. Um dos machos conseguiu apanhí-la e montA-la, mas ela não colaborou e saiu de debaixo dele, embora ele lhe tivesse aberto as pernas traseiras. Por vezes a cria tentava seguir a fèmea castanha-escura quando ela fugiu mais algumas vezes dos machos, atd decidir ficar com as outras fêmeas. Jondalar pensou por que é que ela estava tão empenhada em evitar os machos interessados. A Mãe não esperava que os mamutes fèmeas também A honrassem?
E embora tivessem decidido mutuamente parar e corner, duranto algum tempo houve calma, com todos os mamutes a avançarem lentamente para sul através da erva alta, arrancando tufos de erva com as trombas a um ritmo regular. No raro momento de alívio do assédio dos machos, a fêmea castanha-escura ficou quieta, de cabeça baixa, com um ar extremamente cansado, enquanto tentava corner.
Os mamutes passavam a maior parte do dia e da noite a corner. Embora pudesse ser da pior qualidade maté comiam pedaços de casca de árvore arrancados com os dentos, embora isso acontecesse mais no Inverno, já que os mamutes precisavam de enormes quantidades de alimento fibroso para se sustentarem. Incluída nas várias dezenas de quilos de alimento consumidos todos os dias, que passavam pelo seu corpo no espaço de doze horas, estava uma pequena, embora necessária, quantidade de suculêntas plantas de folha larga, muito nutritivas, ou ocasionalmente algumas folhas de salgueiros, bétulas, ou amieiros, com um valor nutritivo superior ao da erva alta e das ciperáceas mas, em grandes quantidades, tdxicas para os mamutes.
Quando os enormes animais peludos se afastaram para certa distância, Ayla amarrou a corda que prendia o jovem lobo que estava ainda mais
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interessado do que eles. Não deixava de querer aproximar-se, mas, não queria que ele perturbasse ou aborrecesse a matriarca os tinha autorizado a ficar, mas apenas se
à distância. Levando pela mão os cavalos, que mostravam sismo e também alguma excitação, deram a volta através da erva seguiram a manada. Embora já estivessem a observá-la há po, nem Ayla nem Jondalar pareciam ainda dis
Havia ainda uma sensação de antecipação em volta dos mamute acontecer qualquer coisa. Talvez fosse apenas pelo acasalamento, nham tido o privilégio de presenciar, quase um convite para o
ainda estar incomplete, mas [ lue isso.
Enquanto seguiam lentamente a manada,
mente os enormes animais, mas cada um de uma perspectiva diferel Ayla era caçadora desde tenra idade e já observara animais frequer mente, mas as suas presas eram normalmente muito mais pequenas. mamutes não eram normalmente caçados individualmente; dos por grupos grandes, organizados e coordenados. Ela já tinha perto daqueles enormes animais, quando os tinha ido caçar Mamutoi. Mas durante a caçada havia pouco tempo para aprender, e ela não sabia quando é que voltaria a ter oportunidade os observar tão bem, aos machos e às fêmeas.
Embora tivesse consciência da sua forma distinta em perfil, tomou particular atenção. A cabeça dada m com grandes seios nasais que ajudavam a aquecer o cortant de Inverno ao ser inspirado m acentuada por uma bossa de gordura e tufo de pêlo duro e escuro. Imediatamente abaixo da cabeça alta, a profunda indentação da parte de trás do seu curte pescoço, que para uma segunda bossa de gordura na parte superior das cernelhas cima dos quartos dianteiros. A partir daí, o dorso tomava uma forte in nação atd ao pequeno pélvis e ancas quase elegantes. Ela sabia por riência de esquartejar e corner carne de mamute que a gordura da gunda bossa tinha uma qualidade diferente da gordura da cam centímetros sob a pele dura de quase três centímetros. da, mais saborosa.
Os mamutes peludos tinham pernas relativamente curtas para tamanho, tornando de certa forma mais fácil obterem comida, alimentavam-se principalmente de ervas e não das folhas verdes e das árvores como os seus parentes de climas mais quentes; havia ] árvores nas estepes. Mas, à semelhança destes, a cabeç tava bem acima do solo e era demasiado grande e pesada, esi com presas enormes, para ser suportada por um pescol ma a poder chegar aos alimentos e beber água directamente os cavalos ou os veados. A evolução da tromba tinha resolvido o problem de levar a comida e a água à boca.
pLANÍCIES DE PASSAGEM I
A tromba peluda e sinuosa do mamute peludo era suficientemente forte p.ara, a-rrancar uma árvore ou pegar num grande pedaço de gelo e lançá-lo c[e tbrma a partir-se em pedaços mais pequenos e que serviam de água no Inverno, e suficientemente hábil para escolher e apanhar uma única folha. Estava também maravilhosamente adaptada para arrancar erva. Tinha duas projecções na extremidade. Um apêndice com a forma de um dedo na parte superior, que o animal controlava com precisão, e urna estrutura mais larga, achatada e muito flexível na parte inferior, quase como uma mão, mas sem ossos ou dedos separados.
Jondalar ficou espantado com a habilidade e força da tromba ao obser- var um mamute enrolar a projecção inferior em volta de um tufo de erva alta, segurá-lo enquanto a parte superior agarrava mais ervas que cresciam em volta, até ter acumulado um born molho. Fechando o dedo superior em volta do molho como se fosse um polegar, a tromba peluda arrancava a erva da terra, com raízís e tudo. Depois de sacudir grande parte da terra, o mamute metia tudo na boca e, enquanto mastigava, ia apanhando mais.
A devastação que as manadas deixaram atrás de si ao efectuarem as suas longas migrações através das estepes era considerável, ou pelo menos assim parecia. Mas, apesar das ervas puxadas pela raiz e da casca arrancada das árvores, a sua perturbação era benéfica às estepes e a outros animais . Ao limparem a erva alta lenhosa e as pequenas árvores, criavam espaço para o crescimente de pastes mais ricos e erva nova, alimentos que eram essenciais a vários outros habitantes das estepes.
Ayla estremeceu subitamente e sentiu uma sensação estranha nos ossos. Depois reparou que os mamutes tinham parado de corner. Vários levantaram a cabeça e viraram-se para sul, arrebitando as suas orelhas peludas e abanando a cabeça de um lado para o outro. Jondalar reparou numa alteração na fêmea vermelha-acastanhada que tinha sido perseguida por todos os machos.
O seu ar cansado desaparecera; parecia, pelo contrário, estar a antecipar qualquer coisa. Subitamente, rugiu, um rugido profundo e vibrante. Ayla apercebeu-se de uma ressonâcia que lhe enchia a cabeça, depois sentiu a pele arrepiada ao ouvir-se a resposta, como o ribombar de um trovejar distante, vinda de sudoeste.
-- Jondalar disse Ayla.-Olha para allI
Ele olhou na direcção em que ela apontava. A correr para eles, no meio de uma nuvem de pó que se erguia como que lançada por um redemoinho, apenas com a sua cabeça abobadada e os seus quartos dianteiros visíveia acima da erva alta, vinha um gigantesco mamute castanhoavermelhado claro, com enormes e fantásticas presas curvadas para cima. Eram enormes no sítio onde começavam, lado a lado na queixada superior. Afastavam-se ao crescerem para baixo e depois curvavam para cima e formavam uma espiral para dentro, estreitando atd terminarem em pon-
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tas gastas. Se ele não as partisse, acabariam por formar um círculo com as pontas gastas a cruzarem-se na frente.
Os elefantes de pêlo espesso da Idade do Gelo eram bastante com raramente excedendo três metros nos quartos dianteiros, mas as presas atingiam dimensões enormes, as mais espectaculare., espécies. Quando um mamute macho os seus grandes dentes curvos de marfim podiam ter um com cinco metros e pesar cento e trinta quilos.
Sentiram um forte odor acre e almiscarado muito antes de o castanho-avermelhado lá chegar, o que provocou uma onda de fren, entre as fèmeas. Quando chegou à clareira, elas correram para dando-lhe o seu cheiro com grandes jorros de urina, aos guinchos, barridos e a trovejar as suas saudações. Rodearam-no, virando-se e gando-se a ele, ou tentando tocar-lhe com as trombas. por ele, mas também avassaladas pela sua presença. No entanto chos recuaram para a parte de fora do grupo.
Quando ele se aproximou o suficiente para Ayla e Jondalar o observar bem, também eles se sentiram impressionados. Erguia bem! to a sua cabeça abobadada, exibindo orgulhosamente as suas espirai maním. Excedendo em muito em comprimento e diâmetro as pequenas e mais direitas das fêmeas, os seus dentes impressionantes 1 ziam que os dentes de maním mais respeitáveis dos grandes machos recessem insignificantes. As suas pequenas orelhas o seu tufo de pêlos escuros e espetados no cimo da cabeça, o seu tanho-avermelhado claro, com os pêlos compridos soltos acrescentavam volume à sua estatura já massiva. Quase meio mais alto que os machos maiores e com o dobro do peso das fêmeas, de longe o animal mais gigantesco que qualquer um deles alguma vez ra. Tendo sobrevivido com êxito a épocas difíceis durante q anos, estava nas melhores condições, um mamute macho dominante seu apogeu, e era magnífico.
Mas tinha sido mais que o domínio do seu tamanho que tinha feito outros machos recuar. Ayla reparou que as suas têmI inchadas e, na parte entre os olhos e as orelhas, o pêlo lhado do focinho estava manchado de preto por um líquido almi., e viscoso que não parava de correr. Também se babava e ocasionalmente lançava jorros de uma urina acre e de cheiro forte lhe cobria o pêlo das pernas e a pele do seu órgão com uma esverdeada. Ayla pensou se ele estaria doente.
Mas as glândulas temporais inchadas e os outros sintomas não uma doença. Nos mamutes peludos, não eram só as fêmeas no cio, no estro, pois todos os anos os machos adultos entravam num do de luxúria, num per/odo de intenso desejo sexual, chamado freto Embora os mamutes machos atingissem a puberdade por volta do
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anos, só começavam a ter frenesim perto dos trinta, mas apenas durante aproximadamente uma semana. Contudo, quando chegavam ao fim da década dos quarenta, estando no seu auge, e se estivessem em boas con- dições físicas, o período de frenesim podia durar três ou quatro meses por ano. Embora qualquer macho que já tivesse ultrapassado a puberdade pudesse acasalar com uma fêmea receptiva durante o cio, os machos eram bastante mais bem sucedidos quando estavam no período de frenesim.
O grande macho castanho-avermelhado não só era dominante, como estava em pleno cio e tinha vindo, em resposta ao seu chamamento, para se acasalar com a fêmea no cio.
A pouca distância, os mamutes macho sabiam pelo seu cheiro quando as fêmeas estavam prontas para conceber, exactamente como a maioria dos animais de quatro patas sabia. Mas os mamutes estendiam-se por territórios tão vastos que tinham desenvolvido um meio adicional de comunicar que estavam prontos para acasalar. Quando uma fêmea esfava no cio, ou um macho no período de frensim, o timbre da sua voz tor- nava-se mais grave. Os sons muito graves não desaparecem através de longas distâncias como acontece com os sons mais agudos e os roncos ri- bombantes que só nessa altura eram dados ouviam-se por quilómetros através das vastas planícies.
Jondalar e Ayla ouviam claramente os roncos graves da fêmea no cio, mas os do macho no período de frenesim tinham um tom tão profundo e grave que mal o ouviam. Mesmo em circunstâncias normais, os mamutes comunicavam frequentemente através de grandes diståncias com roncos e chamamentos que passavam despercebidos à maioria das pessoas. No entanto, os chamamentos dos mamutes macho em período de frenesim eram realmente extremamente fortes, rugidos profundos numa voz grave; o chamamento da fêmea no cio era ainda mais forte. Embora algumas pessoas conseguissem detectar as vibrações sónicas dos tons graves, a maioria dos elementos dos sons eram tão graves que ficavam abaixo da capacidade auditiva humana.
A fêmea castanha tinha mantido à distância o grupo de jovens machos que também tinham sido atraídos pelos seus odores e pelos seus sonoros roncos graves que podiam ser ouvidos a grande distância pelos outros mamutes, ainda que não pelas pessoas. Mas ela queria um tu-acho mais velho, dominante, para procriar a sua potencial cria, um macho cujos anos de vida já tinham provado a sua saúde e instinto de sobrevivência, um macho que ela sabia que seria suficientemente viril para ser procriador; por outras palavras, um macho em período de frenesim. Ela não pensava nisso desta forma, mas o seu corpo sabia.
Agora que ele estava all, ela estava pronta. Com a sua longa franja de pëlos a ondular a cada passo, a fêmea castanha correu para o grande maCho, emitindo os seus roncos sonoros e a abanar as pequenas orelhas pe- ltdas. Urinou num grande jacte e depois, esticando a tromba na direcção
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do comprido órgão em forma de S do macho, cheirou e
A gemer com um som trovejante, girou e recuou contra ele, de cabe! erguida.
O enorme macho assentou a tromba sobre o seu dorso
e acalmando-a; o seu enorme órgão quase tocava no chão. Depois, nou-se e montou-a, colocando as duas patas da frente sobre a frente do dorso dela. Ele tinha quase o dobro do tamanho do que ela que parecia que aia esmagar, mas a maior parte do seu assentava sobre as pernas traseiras. Com a ponta curva do seu forma de S e maravilhosamente móvel, encontrou a abertura ergueu-o e penetrou-a profundamente. Abriu a boca para lançar forte ronco.
O ruído grave e trovejante que Jondalar ouviu soou abafado e gínquo, embora ele tivesse sentido uma sensação latejante. Ayla apenal ouviu o ronco de uma forma ligeiramente mais forte. tamente enquanto uma vibração arrepiante lhe dilacerou o corpo. mute fêmea castanho e o macho castanho-avermelhado aguentaram posição durante um longo momento. As franjas do seu pêlo por todo o seu corpo com a intensidade e esforço, apesar de ser ligeiro. Depois desmontou-a, jorrando enquanto retirava. Ela çou e deu um prolongado ronco grave e pulsante ¢ um arrepio pela espinha abaixo e a pele arrepiarselhe.
Toda a manada correu para a fêmea vermelha-escura, a dar barridos e roncos, a tocar-lhe na boca e na sua abertura molhada com as trombas, a defecare urinar num rompante de excitação. O macho castanho-avermelhado parecia não dar pelo alegre pandemónio enquanto ficava imóvel a descansar. Por fim, acalmaram-se e começaram a afastar-se para corner . Só a cria dela ficou por perto. A fêmea castanha-escura voltou a roncar e depois esfregou a cabeça contra um quarto dianteiro do macho castanhoavermelhado.
Nenhum dos machos se aproximou da manada estando o grande macho all perto, embora a fêmea castanha continuasse a ser uma tentação. Além de conferir um encanto irresistível aos mamutes macho em relação às fêmeas, o período de frenesim também lhes dava domínio sobre os machos, tornando-os muito agressivos mesmo para com aqueles que eram maiores, a menos que estes também estivessem nesse período de excitação. Os outros machos afastaram-se, sabendo que o castanhoavermelhado se irritaria facilmente. Só um outro macho no período de frenesim tentaria enfrentí-lo e mesmo assim só se tivesse aproximadamente o mesmo tamanho. Depois, se ambos estivessem atraídos pela mesma fê-mea, e se se vissem perto um do outro, invariavelmente lutariam, com o possível resultado de ferimentos graves ou mesmo a morte.
Quase como se soubessem quais eram as consequências, faziam todos os esforços para se evitarem e assim evitarem lutas. Os chamamentos em tons graves e os rastos pungentes de urina do macho em período de frenesim faziam mais que anunciar a sua presença às fêmeas ansiosas, pois anunciavam também a sua localização aos outros machos. Apenas três ou quatro machos estavam em período.de frenesim ao mesmo tempo, durante o período de seis ou sete meses em que as fêmeas podiam entrar em cio, mas não era provável que qualquer dos machos que também estivesse em período de frenesim desmíasse o grande macho castanhoavermelha- do pela fêmea em cio. Ele era o macho dominante da população, estivesse ou não em período de .frenesim, e eles sabiam que assim era.
Enquanto continuavam a observar, Ayla reparou que mesmo quando a fêmea vermelha-escura e o macho mais claro começaram a corner, se mantinham bem juntos. A certa altura, a fêmea afastou-se um pouco mais para apanhar um molho mais suculento de ervas. Um jovem macho, praticamente ainda adolescente, tentou aproximar-se ligeiramente, mas enquanto ela corria para junto do seu consorte o macho castanho-avermelhado investiu contra ele, lançando o seu ronco trovejante. O forte cheiro pungente e o ronco profundo e distinto impressionaram o jovem macho. Fugiu rapidamente, baixando a cabeça em defesa e mantendo a distância. Finalmente, desde que se mantivesse junto do macho em período de frenesim, a fêmea castanha-avermelhada podia descansar e corner sem ser perseguida.
A mulher e o homem não conseguiram ir-se embora imediatamente, embora soubessem que tinha terminado e Jondalar começava a sentir-se de novo pressionado para se porem a caminho. Estavam impressionados e honrados por terem sido incluídos no testemunho do acasalamento dos mamutes. Mais do que terem sido apenas autorizados a observar, sentiam-se parte dele, como se tivessem participado numa cerimónia comovente e importante. Ayla teve pena de não poder também correr a tocar-lhes, para expressar o seu apreço e compartilhar a sua alegria.
Antes de se irem embora, Ayla reparou que muitas das plantas que servíam de alimento que tinha visto ao longo do caminho cresciam também all perto e decidiu apanhar algumas, utilizando o seu pau de escavar para as raízes e uma faca especial, grossa mas forte, para cortar os caules e as folhas. Jondalar baixou-se para a ajudar, mas tinha de lhe pedir para ela apontar exactamente para aquelas que queria. Isso ainda a surpreendia. Durante o tempo que tinham vivido com o Acampamento do Leão, ela tinha aprendido os hábitos e os padrões de trabalho dos Mamutoi, que eram diferentes dos costumes do Clã. Mas mesmo lá, trabalhara frequentemente com Deegie ou Nezzie, ou muitas pessoas trabalhavam juntas, e ela tinha-se esquecido da sua disponibilidade para fazer tarefas que os homens do Clã teriam considerado como sendo tarefas para mulheres. No entanto, desde os primeiros tempos no seu vale que
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Jondalar nunca hesitara em fazer nada que ela fazia e tinha ficado sur- preendido por ela não esperar que ele compartilhasse o trabalho que era preciso fazer. Estando all apenas os dois, ela voltou a ter consciência dessa sua faceta.
Quando finalmente retomaram o seu caminho, foram montados em silêncio durante algum tempo. Ayla estava apensar nos mamutes; não conseguia tirá-los do pensamento. Também pensou nos Mamutoi, que lhe tinham dado um lar e um lugar ao qual passara a pertencer quando não tinha ninguém. Chamavam-se a si próprios os Caçadores de Matou- tos, embora caçassem animais de muitas outras espécies, e davam aos enormes animais peludos um lugar de honra único mesmo quando os caçavam. Além de lhes fornecer tanto do que era necessário para a sua existência-carne, gordura, peles, lã para fibras e cordames, maním para ferramentas e esculturas, ossos para habitações e até combustível m para eles, as caçadas aos mamutes tinham um profundo significado espiritual.
Ela sentia-se ainda mais Mamutoi agora, apesar de se ter ido embora. Não tinha sido por acaso, pensou, que tinham encontrado aquela manada naquela altura precisa. Tinha a certeza de que isso tinha uma razão e pensou se Mut, a Terra Mãe, ou talvez o seu totem, lhe estaria a tentar dizer alguma coisa. Ultimamente, tinha dado por si apensar com frequência sobre o espírito do Grande Leão das Cavernas que tinha sido o totem que Creb lhe tinha dado, pensando se ele a continuaria a proteger, embora ela já não fosse Clã, e se um espírito de totem do Clã se enqua- draria na sua nova vida com Jondalar.
A erva alta começou finalmente a tornar-se menos densa e eles apro- ximaram-se mais do rio, procurando um sítio onde acampar. Jondalar olhou na direcção do sol a pôr-se a oeste e decidiu que era demasiado tarde para tentar caçar nessa tarde. Não lamentou terem ficado a observar os mamutes, mas esperara poder caçar carne, não só para a sua refeição da noite, mas para lhes dar para os próximos dias. Não queria gastar a comida seca para viagem que levavam, a menos que precisassem realmente. Agora teriam de arranjar tempo para o fazer de manhã.
O vale, com as suas luxuriantes terras de aluvião junto ao rio, tinha vindo a alterar-se e com ele a vegetação. A medida que as margens do veloz curso de água aumentavam em elevação, a natureza da erva mudou e, para alívio de Jondalar, ternou-se mais baixa. Mal chegava ì barriga dos cavalos. Ele preferia conseguir ver por onde iam. Quando o terreno começou a ficar mais plano perto do cimo de uma encosta, a paisagem tor- nou-se familiar. Não que tivessem alguma vez estado naquele local, mas este era semelhante à região em volta do Acampamento do Leão, com margens altas e ravirias fundas que iam até ao rio.
Subiram uma ligeira elevação e Jondalar reparou que o curso do rio curvava acentuadamente para a esquerda, para este. Era altura de
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deixarem o curso de água com o seu líquido que sustentava a vida e que serpenteava lentamente para sul, e rumarem para oeste, através do campo. Parou para consultar o mapa que Talut tinha gravado num pedaço achatado de maním. Quando olhou para cima, viu que Ayla tinha desmontado e estava na beira da margem a olhar para o outro lado do rio. Algo na sua postura deu-lhe a impressão de que ela estava perturbada ou triste.
Jondalar passou a perna por cima do cavalo, desmontou e foi ter com ela à margem do rio. Viu, do outro lado do rio, aquilo que a tinha atraído all . Semioculto na encosta, num terraço a meio da margem oposta, havia um montículo arredondado com tufos de erva a crescer dos lados. Pare- cia fazer parte da própria margem do rio, mas a entrada em arco tapada com uma pesada pele de mamute revelava a sua verdadeira natureza. Era um abrigo como aquele a que o Acampamento do Leão chamava o seu lar, onde tinham vívido durante o Inverno passado.
Enquanto Ayla olhava fixamente para a estrutura de aspecto familiar, lembrou-se com acuidade do interior do abrigo do Acampamento do Leão. A habitação espaçosa e semi-subterrânea era resistente e fora construída para durar muitos anos. O chão tinha sido escavado na fina terra loess da margem do rio e ficava abaixo do nível do terreno. As suas paredes e tecto arredondado de terra revestida com barro do rio estavam firmemente sustentados por uma estrutura de mais de uma tonelada de ossos de mamute, com chifres de veado entrelaçados e amarrados uns aos outros no tecto e uma espessa camada de erva e juncos entre os ossos e o barro. Bancadas de terra ao longo das paredes serviam de camas quentes, e zonas de armazenagem eram escavadas ao nível frio do solo gelado. O arco da entrada era constituído por dois dentes curvos de mamute, com as extremidades mais grossas no chão e as pontas unidas e amarradas. Não era de forma alguma uma construção temporária, mas sim uma habitação permanente sob um único tecto, suficientemente grande para albergar várias famflias grandes. Ela estava segura de que os construtores daquele abrigo tinham toda a intenção de regressar, exactamente como o Acampamento do Leão fazia todos os Invernos.
-- Devem estar no Encontro de Verão m disse Ayla.-De que Acampamento será este lar? -- Talvez pertença ao Acampamento da Estipa m sugeriu Jondalar. Talvez m disse Ayla, voltando a olhar fixamente para o outro lado da corrente rápida, m Parece tão vazio m acrescentou passado algum tempo, m Quando nos viemos embora, não pensei que nunca mais veria o Acampamento do Leão. Lembro-me de quando escolhi as coisas para levar ao Encontro. Deixei ficar algumas coisas. Se soubesse que não ia regressar, talvez as tivesse levado comigo.
Ayla, estás arrependida de te teres vindo embora?mA preocupação de Jondalar fazia aparecer, como sempre, rugas na testa, m Eu dissete
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que ficaria e me tornaria também Mamutoi se to quisesses. Sei que encontraste um lar junto deles e que eras feliz. Não é tarde de mais. Ainda podemos voltar para trás.
-- Não, estou triste por me vir embora, mas não estou arrependida. Quero estar contigo. Foi isso que sempre quis desde o princípio. E sei que to queres ir para casa, Jondalar. Desde que te conheço que queres voltar para casa. Talvez te habituasses a viver aqui, mas nunca serias verdadeiramente feliz. Sentirias sempre a falta da tua gente, da tua famflia, daqueles de quem nasceste. Para mim não é tão importante. Nunca saberei de quem nasci. O Clã era a minha gente.
Os pensamentos de Ayla voltaram-se para dentro e Jondalar viu um sorriso terno suavizar-lhe o rosto.
mA Iza ficaria tão feliz por mim se pudesse ter sabido que eu you contigo. Teria gostado de ti. Muito antes de eu me ir embora, disse-me que eu não era Clã, embora eu já não me lembrasse de ninguém ou de nada a não ser de viver com eles. A Iza era a minha mãe, a única que conheci, mas queria que eu deixasse o Clã. Temia por mim. Antes de morrer, disse-me, "Encontra a tua gente, encontra o teu próprio companheiro". Não um homem do Clã, um homem como eu; alguém que eu pudesse amar, que cuidaria de mim. Mas eu estive sozinha durante tanto tempo no vale que nunca pensei que encontraria alguém. E depois to vieste. A Iza tinha razão. Por mais difícil que tenha sido ir-me embora, precisava de encontrar a minha própria gente. Se não fosse pelo Durc, quase podia agradecer ao Broud ter-me obñgado a partir. Se eu não tivesse deixado o Clã, nunca teria encontrado um homem que me amasse, nem um homem de quem eu gostasse tanto.
--Nós não somos assim tão diferentes, Ayla. Eu também pensava que nunca iria encontrar alguém que pudesse amar, muito embora tivesse conhecido muitas mulheres dos Zelandonii e tivéssemos conhecido muitas mais durante a nossa Viagem. Thonolan fazia amigos com facilidade, mesmo entre estranhos, e tornou as coisas fáceis para mim.-Jondalar fechou os olhos durante um instante, angustiado, sofrendo com a recordação, enquanto uma expressão de profunda dor se lhe espelhava no rosto. A dor ainda era forte. Ayla via-a sempre que ele falava no irmão.
Olhou para Jondalar, para o seu corpo excepcionalmente alto e musculado, para o seu comprido cabelo louro preso na nuca Com uma tira de couro, para as suas feições tinas e perfeitas. Depois de o observar no Encontro de Verão, tinha duvidado de que ele tivesse precisado da ajuda do irmão para fazer amigos, especialmente entre as mulheres, e sabia porquê. Ainda mais que a sua estatura ou rosto bem parecido, eram os seus olhos, os seus olhos espantosamente vibrantes e expressivos, que pare- ciam revelar o próprio fundo daquele homem extremamente reservado, que lhe conferiam um apelo magnético e uma presença tão atractiva que o tornava quase irresistível.
Exactamente da forma como ele a estava a olhar naquele momento, com os olhos cheios de calor e desejo. Ela sentia o seu corpo a responder ao mero toque do seu olhar. Pensou no mamute castanhoavermelhado que recusara todos os outros machos e esperara que chegasse o grande macho avermelhado e depois deixara de querer esperar mais, mas também havia prazer em prolongar a sensação de antecipação.
Ela adorava olhar para ele, encher-se a si própria dele. Tinhao achado belo da primeira vez que o vira, embora não tivesse ninguém com quem o comparar. Depois aprendira que outras mulheres também adoravam olhar para ele; consideravam-no espantosa e mesmo avassaladoramente atraente; e ele ficava embaraçado quando lho diziam. A sua notdria beleza tinha-lhe causado pelo menos tanta dor quanto prazer, e destacar-se por qualidades com as quais nada tinha a ver não lhe trazia a satisfação da realização. Eram dádivas da Mãe, não o resultado dos seus próprios esforços.
Mas a Grande Terra Mãe não se limitara à aparência exterior. Tinha-lhe dado uma inteligência rica e viva, que tendia m ais para a sensibilidade e compreensão dos aspectos físicos do seu mundo e para uma habilidade natural. Beneficiando do ensino do homem com quem a mãe estava aca- salada quando ele nascera, que era reconhecido como sendo o melhor no seu campo, Jondalar era um hábil fabricante de utensflios de pedra que refinara a sua arte durante a sua Viagem aprendendo as tdcnicas de outros talhadores de pedreneira.
No entanto, para Ayla, ele era belo não apenas por ser excepcional- mente atraente pelos padrões da sua gente, mas porque foi a primeira pessoa que ela se lembrava de ver que se parecia com ela. Era um homem dos Outros, não do Clã. Quando ele chegou ao seu vale, tinha estudado mi- nuciosamente o seu rosto, embora não abertamente, até enquanto dor- mia. Era maravilhoso ver um rosto com o mesmo aspecto familiar do seu, depois de tantos anos de ser a única que era diferente e que não tinha arcadas superciliares salientes e uma testa inclinada para trás ou um grande nariz saliente num rosto que se projectava para a frente e um maxilar sem queixo.
Como a dela, a testa de Jondalar erguia-se alta e lisa, sem arcadas superciliares salientes. O seu nariz, e até os seus dentes, eram pequenos por comparação, e tinha uma protuberância sob a boca, um queixo, exactamente como ela. Depois de o ver, conseguiu compreender por que é que o Clã achava que ela tinha a cara achatada e a testa saliente. Tinha viste o seu próprio reflexo na água parada e acreditara no que lhe tinham dito. Apesar do facto de Jondalar ser muito mais alto que ela, exactamente como ela era muito mais alta que a gente do Clã, e de desde então mais do que um homem lhe ter dito que era bela, no fundo continuava a achar- -se grande e feia.
Mas como Jondalar era macho, com feições mais fortes e ângulos mais
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pronunciados, para Ayla ele parecia-se mais com o Clã do que ela própria. Esta tinha sido a gente junto de quem ela tinha crescido, eram o seu padrão de medida e, ao contrário do resto da sua espécie, ela achava */*que eram bastante bem parecidos. Jondalar, com um rosto que se parecia com o dela, e contudo mais parecido com um rosto do Clã que o dela, era belo. A testa alta de Jondalar ficou sem rugas quando ele sortiu.
m Ainda born que achas que ela me teria aprovado. Gostava de ter
conhecido a tua Iza m disse ele m e o resto do teu Clã. Mas tinha de te conhecer a ti primeiro, senão nunca teria compreendido que eles eram pessoas e quepodia conhecê-los. Da forma como to falas do Clã, devem ser boas pessoas e gostava de as vir a conhecer.
Há muitas pessoas que são boas. O Clã recolheu-me depois do tremor de terra, quando eu era pequena. Depois de o Broud me expulsar do Clã, fiquei sem ninguém. Era a Ayla da Não Gente até o Acampamento do Leão me aceitar e me dar um lugar onde passei a pertencer, e me tornar Ayla dos Mamutoi.
Os Mamutoi e os Zelandonii não são muito diferentes. Acho que vais gostar da minha gente e que eles irão gostar de ti.
-- Nem sempre estiveste tão seguro disso-disse Ayla.-Lembro- -me de quando tinhas medo que eles não me quisessem, porque cresci com o Clã e por causa do Durc.
Jondalar sentiu-se corar de embaraço.
-- Chamariam ao meu filho uma abominação, uma criança nascida de espíritos mistos, meio-animal.., to próprio lhe chamaste isso uma vez... e como eu o dei à luz ainda pensariam pior de mim.
--Ayla, antes de deixarmos o encontro de Verão, obrigaste-me a pro- meter que te diria sempre a verdade e que não guardaria as coisas para mim. A verdade é que a princípio estava preocupado. Queria que viesses comigo, mas não queria ter de falar de ti às pessoas. Queria que ocultasses a tua infância, até que mentisses, muito embora eu odeie mentiras... e to nunca aprendeste a mentir. Tinha medo que te rejeitassem. Sei o que é isso e não queria que fosses magoadadessa forma. Mas também tinha medo por mim. Tinha medo que me rejeitassem por te levar e não queria voltar a passar pelo mesmo outra vez. No entanto, não suportava a ideia de viver sem ti. Não sabia o que fazer.
Ayla lembrava-se demasiado claramente da sua confusão e desespero com a sua agonizante indecisão. Apesar de se sentir feliz com os Mamutoi, também se sentira profundamente infeliz por causa de Jondalar.
m Ora eu sei, e foi preciso quase perder-te para me aperceber disso m continuou Jondalar --, que ninguém é mais importante para mim do que to, Ayla. Quero que sejas to própria, quero que digas ou faças o que pensas que deves dizer ou fazer, porque é isso que eu amo em ti, e acredito, agora, que a maioria das pessoas te receberá bem. Já vi isso acontecer. Aprendi uma coisa importante com o Acampamento do Leão e com
os Mamutoi. Nem todas as pessoas pensam da mesma forma e as opiniões podem ser aiteradas. Há pessoas que nos apoiam, por vezes aquelas que menos esperamos, e outras pessoas têm compaixão suficiente para amar e criar uma criança a quem os outros chamam abominação.
--Não gostei da forma como trataram o Rydag no Encontro de Verão, disse Ayla. ----Alguns deles nem sequer queriam que ele tivesse um enterro decente.-Jondalar ouviu a ira na sua voz, mas via lágrimas a ameaçar irromper por detrás da ira.
m Eu também não gostei. Há pessoas que não mudam. Recusam-se
a abrir os olhos e a ver o que é evidente. Eu demorei muito tempo. Não te posso prometer que os Zelandonii te irão aceitar, Ayla, mas se não aceitarem, encontraremos um outro lugar. Sim, quero voltar para junto da minha gente, quero ver a minha famflia, os meus amigos. Quero contar à minha mãe o que aconteceu ao Thonolan e pedir a Zelandonii para procurar o seu espírito para o caso de ele ainda não ter encontrado o caminho para o outro mundo. Espero que encontremos lá um lugar. Mas se isso não acontecer, já não é importante para mim. Essa foi outra das coisas que aprendi. Foi por isso que te disse que estava disposto a ficar aqui contigo, se quisesses. A sério.
Ele segurava-lhe nos ombros com ambas as mãos, olhando-a nos olhos com feroz determinação, querendo ter a certeza de que ela o com- preendia.
Ela viu a sua convicção e o seu amor, mas naquele momento interrogava-se sobre se deviam ter partido.
-- Se a tua gente não nos quiser, para onde iremos?
Ele sortiulhe.
-- Se for preciso encontraremos outro lugar, Ayla. Já te disse que os Zelandonñ não são muito diferentes dos Mamutoi. Vão adorar-te, exactamente como eu te adoro. Já nem sequer estou preocupado com isso. Nem sei born por que é que alguma vez estive.
Ayla sorriu-lhe, satisfeita por ele estar tão seguro de que a sua gente a aceitaria. Mas gostava de poder compartilhar a confiança dele. Ele talvez se tivesse esquecido, ou talvez não se apercebesse, da impressão extremamente forte e duradoura que provocara nela a sua primeira reacção ao sabor que ela tinha um filho e quais tinham sido os seus antecedentes.
Ele tinha-se afastado bruscamente e com uma expressão de tal desagrado que ela nunca esqueceria. Era como se ela fosse uma hiena suja e nojenta.
Ao meterem-se novamente a caminho, Ayla continuou apensar no que a esperaria no fim da sua Viagem. Era verdade que as pessoas podiam mudar.
Jondalar tinha mudado por completo. Ela sabia que não restava nele o mais íntimo sentimento de aversão, mas como seria em relação às
pessoas com as quais ele o aprendera? Se a sua resposta foi tão imediata e tão forte, a sua gente devia tê-lo ensinado desde pequeno. Por que é que haviam de reagir de forma diferente da dele? Por muito que quisesse estar com Jondalar, e por mais contente que estivesse por ele a querer levar para casa consigo, Ayla não estava lá muito entusiasmada para conhecer os Zelandonñ.
Ao continuarem o seu caminho, tinham-se mantido junto ao rio. Jondalar tinha quase a certeza de que o curso de água estava a fazer uma curva para este, mas estava preocupado por poder se apenas um amplo desvio no seu contínuo serpentear. Se o rio estivesse a mudar de direcção, aquele seria o lugar em que o deixariam-e a segurança de seguirem um percurso definido-para se embrenharem no campo, e queria assegurar- -se de que estavam no local exacto.
Havia vários sítios onde podiam parar para passar a noite mas, consultando frequentemente o mapa, Jondalar procurava o local para acampar que Talut lhe indicara. Era o marco no terreno de que ele precisava para verificar a sua localização. O sítio era regularmente utilizado e ele esperava estar certo ao pensar que era all próximo, mas o mapa apenas mostrava direcções e marcos no terreno gerais e o mínimo que se podia dizer é que era impreciso. Tinha sido apressadamente riscado num pedaço de maním como auxiliar das explicações verbais que lhe tinham sido dadas e não era suposto ser uma representação exacta do caminho.
Qual-do a margem continuou a tornar-se mais alta e a recuar, eles se- g-.-iram pelo terreno elevado, aproveitando a ampla vista que este lhes proporcionava, embora isso fizesse que se afastassem um pouco do rio. Lá em baixo, mais perto da corrente, um lago no cotovelo do rio que estava a secar transformava-se num pântano. Tinha começado por ser uma curva do rio em forma de S, como acontecia sempre que o rio atravessava terreno plano. A curva acabou por se fechar sobre si própria, enchendo-se de água e formando um pequeno lago que ficou isolado quando o rio mudou de direcção. Sem fonte de água, começou a secar. As terras baixas abrigadas eram agora um prado húmido onde medravam juncos e espadanas, cheio de plantas de água na parte mais funda. Ao longo do tempo, o terreno pantanoso verde transformar-se-ia num prado verdejante en- riquecido por aquela zona mais húmida.
Jondalar quase sacou de uma lança ao ver um alce sair da zona arborizada perto da orla e dirigir-se para a água, mas o grande veado estava fora do seu alcance, mesmo com o lançador de lanças, e ser-lhes-ia dificil tirá-lo do pântano. Ayla observou o animal de aspecto deselegante,
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com um grande focinho pendente e grandes chifres, ainda aveludados, a entrar no pântano. Erguia bem alto as suas compridas pernas e metia na água as suas paras largas que o impediam de se afundar no fundo lamacento, até a água lhe chegar aos flancos. Depois submergiu a cabeça e retirou-a com a boca cheia de lentilhas e bistorta a escorrer água. All perto, aves aquáticas, com ninho nos juncos, ignoraram a sua presença.
Do outro lado do pântano, encostas bem drenadas com sulcos e superfícies rasgadas, ofereciam abrigo a plantas como anserinas, urtigas e tapetes de alsinas de folhas peludas e amendoadas com pequenas flores brancas. Ayla desamarrou afunda e tirou algumas pedras arredondadas de uma bolsa, pronta a fazer o lançamento. Ao fundo do seu vale havia um local parecido onde ela observara e caçara com frequência os grandes es- quilos das estepes. Um ou dois davam uma boa refeição.
Aquele terreno acidentado que dava para campos abortos de erva era o seu habitar preferido. As ricas sementes dos prados vizinhos, armazena- das em esconderijos enquanto os esquilos hibernavam, sustentavam-nos durante a Primavera para poderem procriar, de forma que, na altura em que as novas plantas apareciam, eles tinham as crias. As ervas ricas em proteínas eram essenciais para as crias chegarem à maturidade antes do Inverno. Mas nenhum esquilo apareceu enquanto as pessoas passaram e o Lobo parecia incapaz, ou sem vontade, de os espantar.
Ao continuarem para sul, a grande plataforma de granito sob a larga planície que se estendia a perder de vista para este, começou a transformar- se, formando montes ondulantes. Outrora, em tempos idos, a terra que estavam a atravessar tinha sido formada por montanhas que desde então se tinham desgastado. Os seus cotes eram o escudo de rocha que re- sistira às enormes pressões que comprimiam a terra e formaram novas montanhas, e às forças interiores de fogo que podiam abalar e devastar terreno menos estável. Tinham-se formado rochas novas no antigo maciço, mas afloramentos rochosos das montanhas originais ainda irrom- piam na crosta sedimentária.
Na época em que os mamutes pastavam nas estepes, as ervas, à semelhança dos animais dessa antiga terra, floresciam não só em grande abundância, como com uma surpreendente gama e diversidade e em as- sociações inesperadas. Ao contrário dos prados posteriores, aquelas estepes não estavam dispostas em largas faixas de certos tipos limitados de vegetação, determinadas pela temperatura e pelo clima. Constituíam, pelo contrário, um mosaico complexo com uma diversidade mais rica de plantas, que incluíam muitas variedades de ervas e prolíferas plantas herbáceas e arbustos.
Um vale bem abastecido de água, um prado num terreno elevado, o topo de um monte, ou uma ligeira depressão em altura, cada um convi- dava a sua própria comunidade de vida vegetal que se desenvolvia perto de complexos de vegetação sem qualquer relação entre si. Uma encosta
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virada a sul podia conter vegetação de clima quente, surpreendentemente diferente da vegetação boreal adaptada ao frio na encosta virada a norte do mesmo monte.
O terreno da terra alta acidentada que Ayla e Jondalar estavam a atravessar era pobre e a sua camada de erva esparsa e curta. O vento tinha aberto sulcos mais profundos e no vale superior de um antigo afluente formado pelo degelo da Primavera, o leito do rio tinha secado e, por falta de vegetação, tinha-se transformado em dunas de areia.
Embora encontrados mais tarde apenas no cume de montanhas altas, naquele terreno acidentado que não ficava muito longe dos rios das terras baixas; arganazes e picas cortavam afanosamente erva, para ser seca e armazenada. Em vez de hibernarem no Inverno, construíam túneis e ninhos sob a camada de neve que se acumulava nas depressões e nos lados abrigados das rochas, alimentando-se da palha que tinham armazenado. OLobo viu os pequenos roedores e correu atrás deles, mas Ayla não se deu ao trabalho de usar a funda. Eram demasiado pequenos para chegarem para uma refeição para pessoas, a não ser em grande número.
As ervas árcticas, que se davam bem nos terrenos pantanosos e nos brejos mais húmidos do norte, beneflciavam na Primavera de maior humidade da neve que derretia e cresciam, numa associação invulgar, ao lado de pequenos arbustos resistentes alpinos em afloramentos rochosos expostos e em montes varridos pelo vento. Potentilha árctica, com pequenas flores amarelas, encontrava protecção do vento nas mesmas bolsas e nichos abrigados preferidos pelas picas, enquanto que nas superfícies expostas almofadas de candelárias com flores roxas ou cor-de-rosa forma- vam os seus próprios cômoros de protecção com os seus caules folhosos ao vento frio e seco. Além destas, erva-benta de montanha crescia agarra- da aos afloramentos rochosos e aos montes desta terra mais baixa acidentada, exactamente como fazia nas encostas das montanhas, com os seus ramos baixos perenes de minúsculas folhas e solitárias flores amarelas a formar, ao longo de muitos anos, densos tapetes.
Ayla reparou no cheiro fragrante das pega-moscas cor-de-rosa que começavam a florir. Isso fez que se apercebesse de que estava a ficar tarde e olhou para o sol que se afundava no céu a oeste, para verificar a pista que o seu olfacto lhe dera. As flores peganhentas abriam à noite, proporcionando um refúgio para os insectos m borboletas e moscas-em troca de estes espalharem o seu pólen. Tinham pouco valor medicinal ou nutritivo, mas as flores de perfume agradável agradavam-lhe e chegou apensar por instantes em apanhar algumas. Mas já era tão tarde que não queria parar. Deveriam parar para acampar daí a pouco, pensava ela, sobretudo se ia fazer a refeição que tinha pensado fazer antes de anoitecer.
Viu pulsatilas azul-arroxeadas, erectas e belas, cada uma saindo de folhas cobertas de finos pêlos e, instintivamente, vieram-lhe à ideia as associações medicinais-a planta seca era boa para dores de cabeça e
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cólicas de mulher --, mas ela gostava tmlto delas pela sua beleza como pela sua utilidade. Quando reparou nos ásteres alpinos, com compridas pétalas amarelas e violeta a crescer no meio de rosetas de folhas sedosas e peludas, a sua ideia fugaz de apanhar algumas tornou-se uma tentação consciente,juntamente com algumas das outras flores, por nenhuma razão excepto desfrutá-las. Mas onde é que as poria?Apenas murchariam, pensou.
Jondalar estava a começar apensar se não teriam já passado o local de acampamento assinalado sem dar por isso, ou se estariam mais longe dele do que tinha pensado. Estava relutantemente a chegar à conclusão de que teriam de acampar daí a pouco e procurar o local de acampamento que era um marco no terreno no dia seguinte. Com isso, e com a necessidade de caçar, perderiam provavelmente outro dia e ele achava que não podiam perder tantos dias. Estava absorto nos seus pensamentos, preocupado sobre se teria tornado a decisão certa em continuar para sul e a imaginar as terríveis consequências, não estando aprestar grande atenção a uma sarrafusca num monto à sua direita, a não ser notar que parecia ser uma alcateia de hienas que tinham morto uma presa.
Embora comessem frequentemente carne morta e quando tinham fome comessem até as mais horríveis carcaças apodrecidas, as hienas grandes, com os seus poderosos maxilares de partir ossos, eram também caçadores eficazes. Tinham morto uma cria de bisonte de um ano, quase de tamanho adulto mas ainda não totalmente desenvolvido. A sua falta de experiência em relação aos hábitos dos predadores tinha sido a sua desgraça. Alguns outros bisontes estavam all perto, aparentemente seguros agora que o outro sucumbira, e um deles observava as hienas que uivavam inquietas com o cheiro de sangue fresco.
Ao contrário dos mamutes e dos cavalos das estepes, que não eram excepcionalmente grandes para a sua espécie, os bisontes eram gigantescos. O que estava all perto tinha quase dois metros à altura da cernelha e era bem constituído no peito e nas espáduas, embora os seus flancos fossem quase elegantes. Os seus cascos eram pequenos, adaptados a correr muito velozmente em terrenos firmes e secos, e evitava pântanos onde ficaria preso. A sua grande cabeça estava protegida por massivos e compridos chifres pretos, com uma envergadura de um metro e oitenta, que curvavam para fora e para cima. O seu pêlo castanho-escuro era espes- so, especialmente no peito e nas espáduas. Os bisontes costumavam vi- rar-se de frente para os ventos gelados e estavam mais born protegidos à frente, onde os pêlos formavam uma franja que chegava a ter quase um metro de comprimento, mas aid o seu curto rabo estava coborto de pêlo.
Embora fossem todos herbívoros, os vários ruminantes não comiam exactamente os mesmos alimentos. Tinham sistemas digestivos diferentes ou hábitos diferentes e faziam adaptações subtilmente diferentes. Os caules extremamente fibrosos que sustentavam os cavalos e os mamutes
não eram alimento suficiente para os bisontes e outros ruminantes. Estes precisavam de ervas e folhas mais ricas em proteínas, e os bisontes pre- feriam a erva curta, mais nutritiva e de desenvolvimento mais lento, das regiões mais secas. Apenas se aventuravam nas regiões de erva média e alta das estepes para procurar novos rebentos, normalmente na Primavera, quando toda a terra estava cheia de erva nova-que era também a única altura do ano em que os seus ossos e chifres cresciam. Alonga, verdejante e chuvosa Pñmavera dos prados periglaciares proporcionavam aos bisontes e a váños outros animais uma prolongada estação de crescimento, da qual resultavam as suas heróicas proporções.
Na disposição sombria e introspectiva em que estava, Jondalar levou alguns momentos a apreender as possibilidades da cena no monte. Quando deitou mão ao seu lançador de lanças e a uma lança com a ideia de também matar um bisonte, como as hienas tinham feito, Ayla já avaliara a situação, mas decidira tomar uma acção ligeiramente diferente. m Xó! Xó! Vão-se embora! Ponham-se a andar, seus animais nojentos!
Saiam daqui! m gritou, fazendo a Whinney galopar na sua direcção, enquanto lançava pedras com a sua funda. O Lobo estava ao seu lado, parecendo satisfeito consigo próprio enquanto rosnava e ladrava à alcateia que batia em retirada.
Alguns latidos de dor indicaram a Ayla que as suas pedras tinham atingido o alvo, embora tivesse controlado a força dos lançamentos e feito pontaria para partes não vitais. Se tivesse querido, as suas pedras po- diam ser fatais; não seria a primeira vez que matava uma hiena, mas não era essa a sua intenção.
--Ayla, que é que estás a fazer? perguntou Jondalar, aproximando- -se dela ainda a cavalo enquanto ela voltava para junto do bisonte que as hienas tinham morto.
-- Estou a afugentar aquelas hienas nojentas-disse ela, embora de-
certo que isso era óbvio.-Mas porquê? m Porque elas vão partilhar connosco aquele bisonte-re spondeu ela.
-- Eu preparava-me para ir atrás de um desses que estão aí-disse Jondalar.
--Não precisamos de um bisonte inteiro, a menos que sequemos a carne, e este é novo e tenro. Os que estão aí são na maioria machos velhos-disse ela, deslizando de cima de Whinney para enxotar o Lobo de ao pé do animal morto.
Jondalar olhou mais atentamente para os gigantescos machos que tambdm tinham batido em retirada com os gritos de Ayla, e depois para o jovem animal no chão.
--Tens razão. Esta é uma manada de machos e este deixou provavel- mente a manada da mãe há pouco tempo e juntou-se a este grupo de machos. Ainda tinha muito que aprender.
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-- Foi morto há pouco m anunciou Ayla, depois de o examinar, m Elas só rasgaram a garganta e os intestinos e um pouco do flanco. Podemos levar o que quisermos e deixar-lhes o reste. Assim não precisamos de perder tempo a caçar um dos outros. Correm depressa e talvez conseguissem fugir. Creio que vi um sítio junto ao rio que pode ter sido um acampamen- te. Se for o que nós procuramos, ainda tenho tempo para fazer uma boa refeição para esta noite com os alimentos que apanhámos e esta carne.
Ayla estava já a cortar a pele desde o estômago até ao flanco quando Jondalar percebeu realmente tudo o que ela tinha dito. Tinha tudo acontecido tão depressa mas, subitamente, todas as suas preocupações por terem de caçar e procurar o acampamento desapareceram.
Ayla, és maravilhosa! -- disse ele, sorrindo enquanto desmontava o jovem garanhão. Sacou de uma afiada faca de pedreneira amarrada a um cabo de marfim de uma bainha de couro, presa ao seu cinte por.uma tira de couro, e foi ajudar a esquartejar as partes que queriam. E isso que eu adoro em ti. Es sempre um poço de surp.resas que acabam por ser óptimas ideias. Vamos também levar a língua. E pena que já tenham chegado ao fígado mas, afinal de contas, a presa é delas.
-- Quero lá saber que seja delas-disse Ayla --, desde que seja carne fresca. Já me tiraram muito. Não me importo de tirar alguma coisa a esses animais nojentos. Odeio hienas!
m Odeias mesmo, não d? Nunca te ouvi falar assim de outros animais, nem sequer das lobas que às vezes comem carne podre e são mais ferozes e cheiram pior.
A alcateia de hienas tinha-se vindo a aproximar do bisonte com que esperavam banquetear-se, rosnando o seu desagrado. Ayla voltou a lançar mais algumas pedras para as afugentar. Uma delas deu um uivo cas- quinante e várias irromperam em gargalhadas dissonantes que lhe fizeram pele de galinha. Quando as hienas decidiram voltar a enfrentar a sua funda, Ayla e Jondalar já tinham tirado o que queriam.
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Em volta da parte inferior da cobertura da tenda havia cordas que eram amarradas a estacas cravadas no chão. No caso de ventos fortes, o pano oval assente no chão podia ser amarrado sobre a cobertura com outras cordas e a badana da entrada presa. Eles levavam uma segunda cobertura para fazerem uma tenda de duas paredes, dando melhor isolamento, embora ainda não tivessem tido muitas ocasiões para a usar.
Estenderam as suas peles de dormir ao comprido, o que deixava espaço dos lados para porem os cestos-alforge e outros pertences, e para o Lobo aos seus pés se o tempo estivesse mau. Tinham começado por ter dois sacos de dormir separados, mas tinham rapidamente unidos os dois de forma a dormirem juntos. Assim que a tenda ficou montada, Jondalar foi apanhar lenha para substituir a que usassem, enquanto Ayla começou a preparar a comida.
Embora ela soubesse fazer lume com o disrositivo que havia no esconderijo no monte de pedras, fazendo girar o pau entre as palmas das mãos com a pequena plataforma de madeira para fazer uma brasa que, soprando, se transformava em chama, o dispositivo de fazer lume de Ayla era único. Quando vivia sozinha no seu vale, tinha feito uma descoberta. Tinha acidentalmente pegado num pedaço de pirite de ferro do meio das pedras que havia junto ao rio, em vez de pegar na pedra-martelo que estava a usar para fazer novas ferramentas com pedreneira. Mas ela tinha acendido muitas fogueiras e compreendeu rapidamente as implicações quando, ao bater com a pirite de ferro na pedreneira, se formou uma faísca de longa duração que lhe queimou a perna.
Foi preciso fazer várias experiências, mas há muito que descobrira a melhor forma de usar a pedra de lume. Agora conseguia fazer lume mais rapidamente que qualquer outra pessoa com o pau e o pedaço de madeira. Da primeira vez que Jondalar a tinha visto, mal conseguira acreditar e a maravilha que isso era contribuiu para ela ser aceite pelo Acampamento do Leão quando Talut quis adoptá-la. Pensavam que ela fazia isto através de magia.
Ayla também pensava que era magia, mas acreditava que a magia estava na pedra de lume e não nela. Antes de deixarem definitivamente o vale, ela e Jondalar tinham apanhado o maior número possível daquelas pedras metálicas cinzento-amareladas, pois não sabiam se alguma vez as voltariam a encontrar em qualquer outro lugar. Tinham dado algumas ao Acampamento do Leão e a outros Mamutoi, mas ainda lhes restavam multas. Jondalar queria compartilhá-las com a s ua gente. A capacidade de fazer lume rapidamente podia ser extremamente útil para muitos fins.
No interior do círculo de pedras, a jovem mulher fez uma pequena pilha de pedacinhos de casca de árvore muito seca e felpa de ervas para servir de isca, pondo ao seu lado um montinho de gravetos e galhos para servir de acendalha. Ao pé havia pedaços de lenha seca. Aproximando-se bem da isca, Ayla segurou num pedaço de pirite de ferro ao ângulo que ela
sabia por experiência própria que resultava melhor, bateu com a pedra amarelada mágica num pedaço de pedreneira, no meio de um sulco que já se estava a formar com o uso. Uma grande faísca brilhante voou da pedra e foi cair na isca, fazendo erguer-se no ar uma pequena pluma de fumo. Rapidamente, Ayla protegeu-a com a mão e soprou suavemente. Uma pequena brasa brilhou com uma luz vermelha e uma chuva de minúsculas faíscas amarelas como o sol. Um segundo sopro produziu uma pequena chama. Acrescentou gravetos e pequenos galhos e, quando estes já ardiam bem, um pedaço de lenha.
Quando Jondalar regressou, Ayla tinha várias pedras arredondadas, apanhadasjunto ao rio, a aquecer na fogueira e um born pedaço de bisonte enfiado num pau a assar sobre as chamas, com a camada exterior de gordura a chiar. Tinha lavado e estava a cortar as raízes de espadana e um outro tubérculo branco com pele castanha-escura, preparando-se para os meter num cesto de malha apertada e à prova de água cheio até metade com água, no qual a língua rica em gordura já as esperava. Ao lado, tinha um pequeno monte de cenouras inteiras. O homem alto pôs o monte de lenha no chão.
-- Já cheira bem! -- disse ele.-Que é que estás a fazer?
--Estou a assar o bisonte, mas será sobretudo para quando viaj armos. É fácil comermos carne assada fria pelo caminho. Para esta noite e amanhã de manhã estou a fazer sopa com a língua e os legumes e o bocadinho que nos sobrou do Acampamento da Estipa m disse ela.
Com um pau, tirou uma pedra quente do lume e raspou as cinzas com um galho folhudo. Depois, pegando num segundo pau e usando os dois como tenazes, levantou a pedra e deixou-a cair dentro do cesto com a água e a língua. A água chiou e fumegou quando a pedra transferiu o seu calor para a água. Deixou rapidamente cair mais algumas pedras no cesto-panela e juntou algumas folhas que tinha cortado, pondo em seguinda uma tampa.
-- Que é que estás a pôr na sopa?
Ayla sorriu para si própria. Ele gostava sempre de saber os pormenores dos seus cozinhados e até as ervas que ela usava para fazer chá. Era mais uma das suas características que a tinham surpreendido, pois nenhum homem do Clã sonharia sequer em mostrar tanto interesse, muito embora pudesse ter curiosidade, em qualquer coisa que pertencesse às memórias das mulheres.
m Além destas raízes, you acrescentar as extremidades verdes da espadana,
os bolbos, as folhas e as flores destas cebolas verdes, bocados de caules de alcachofra, as ervilhas das vagens de astrágalo e acabei de pôr folhas de salva e tomilho para dar sabor. E talvez também ponha tussilagem porque dá um gostinho salgado. Se passarmos perto do Mar Beran, talvez possamos arranjar mais sal. Tínhamos sempre sal quando eu vivia com o Clã m referiu. Acho que you esmagar um pouco de rábano-
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-picante que apanhçi esta manhã para pôr no assado. Aprendi isso no Encontro de Verão. E picante e não é preciso muito, mas dá um sabor interessante à carne. Talvez gostes.
-- Para que são essas folhas? -- perguntou ele, apontando para um ramo em que ela pegara mas não referira. Gostava de saber o que ela usava e o que pensava sobre a comida. Gostava dos seus cozinhados, mas estes eram invulgares. Havia alguns paladares e sabores que eram únicos aos seus métodos e não se assemelhavam em nada aos sabores da comida da sua infância.
-- Isto é anseñna, para embrulhar o assado quando o guardar. Combinam bem quando estão frios. Ayla fez uma pausa, parecendo pensativa. Talvez salpique o assado com algumas cinzas de madeira; também têm um sabor ligeiramente salgado. E talvez junte um pouco de carne as- sada à sopa, depois de ficar tostada, para lhe dar mais sabor. Com a língua e a carne assada, deve ficar um caldo suculento, e para amanhã de manhã saberá bem cozer um pouco dos cereais que trouxemos. Também teremos o resto da língua, mas you embrulhá-la em erva e guardá-la no meu recipiente de guardar carne para comermos mais tarde. Ainda tenho espaço, mesmo com o resto da carne crua, incluindo o pedaço que tirámos para o Lobo. Desde que a noite esteja fresca, deve aguentar-se durante algum tempo.
Parece-me tão delicioso que mal consigo esperar-disse Jondalar a sorrir de expectativa e com mais alguma coisa, pensou Ayla. A pro-
pósito, tens algum cesto a mais que eu possa utilizar?
Tenho, mas para quê?
-- Digo-te quando voltar disse ele, sorrindo com o seu segredo. Ayla virou o assado, tirou as pedras e meteu outras pedras quentes na sopa. Enquanto a comida estava a fazer, escolheu as ervas que tinha apanhado para fazer o "repelente de Lobo", pondo de lado as ervas que tinha apanhado para o seu próprio uso. Esmagou alguma da anserina num pouco de caldo para a refeição e depois começou a esmagar o reste da raiz picante e a picar as outras ervas ásperas e amargas, de cheiro forte, que tinha apanhado de manhã, tentando fazer a mistura de plantas mais repelente que podia imaginar. Pensou que a anserina seria a mais eficaz, mas o forte cheiro a cânfora da artemísia também ajudaria.
Mas o seu pensamento estava ocupado pela planta que tinha posto de lado. "Ainda bem que a encontrei", pensou. "Não sei se tenho ervas suficientes para o meu chá da manhã para toda a Viagem. You ter de apanhar mais pelo caminho para ter a certeza de que não terei um bebé, especial- mente estando tanto com o Jondalar." Sorriu ao pensar nisso.
"Tenho a certeza de que é assim que começam ,s bebds, apesar do que as pessoas dizem sobre os espíritos. Creio que é por isso que os homens querem meter os seus órgãos no sítio por onde vêm os bebés e por isso que as mulheres querem que eles o façam. E a razão porquea Mãe fez disso
a Sua Dádiva de Prazer. A Dádiva da Vida também vem Dela e Ela quer que os Seus filhos tenham prazer em fazer novas vidas, especialmente por dar à luz não ser fácil. As mulheres poderiam não querer dar à luz se a Mãe não tivesse feito que o início da vida fosse a Sua Dádiva de Prazer. Os bebés são maravilhosos, mas só se percebe até que ponto são maravilhosos depois de se ter um." Ayla tinha desenvolvido em segredo as suas ideias nada ortodoxas sobre a concepção da vida durante o Inverno em que aprendera sobre Mut, a Grande Mãe Terra, com Mamut, o velho professor do Acampamento do Leão, embora a ideia original lhe tivesse ocorrido muito antes disso.
"Mas Broud não foi um prazer para mim", recordou. "Odiei quando ele me forçou, mas agora tenho a certeza de que foi assim que a vida de Durc começou. Ninguém acreditava que eu teria um bebé. Pensavam que o meu totem do Leão das Cavernas era demasiado forte para ser vencido pelo espírito do totem de qualquer homem. Ficaram todos admirados. Mas isso só aconteceu depois de o Broud me ter começado a forçar e eu vi o ar dele no meu bebé. Teve de ser ele que fez que o Durc começasse a crescer dentro de mim. O meu totem sabia como eu queria ter o meu próprio bebé.., talvez a Mãe também soubesse. Talvez fosse essa a única forma. O Mamut disse que a forma de s.abermos que os Prazeres são uma Dádiva da Mãe é serem tão poderosos. E muito difícil resistir-lhes. Disse que era ainda mais difícil para os homens que para as mulheres."
"Foi assim que foi com o mamute fêmea avermelhada. Todos os machos a queriam, mas ela não os queria. Queria esperar pelo seu grande macho. Seria por isso que Broud nunca me largava? Mesmo apesar de me odiar, a Dádiva da Mãe dos Prazeres era mais forte que o seu ódio?"
Talvez, mas não creio que ele o fizesse apenas pelos Prazeres. Podia tê-los com a sua própria companheira, ou com qualquer mulher que quisesse. Creio que ele sabia quanto eu odiava fazê-lo e isso ternava o seu Prazer ainda maior. O Broud pode ter começado um bebé dentro de mim... ou talvez o meu Leão das Cavernas se tivesse deixado derrotar por sabor como eu queria um bebé.., mas o Broud apenas me podia dar o seu órgão. Não me podia dar a Dádiva da Mãe dos Prazeres. Só Jondalar o fez."
"Deve haver mais que os Prazeres na Sua Dádiva. Se Ela apenas quisesse dar aos Seus filhos uma Dádiva de Prazer, por que é que Ela a poria naquele sítio, por onde nascem as crianças? Um sítio de Prazeres podia ser em qualquer lugar. Os meus não são exactamente onde são os do Jondalar. O seu Prazer vem quando está dentro de mim, mas o meu está nesse outro sítio. Quando ele me dá Prazer aí, tudo é maravilhoso, dentro e à minha volta. Depois quero senti-ló dentro de mim. Não gostaria de ter o meu sítio de Prazer dentro de mim. Quando estou muito sensável, o Jondalar term de ter muito cuidado, senão dói-me, e dar à luz não é fácil. Se o sítio de Prazer de uma mulher fosse dentro dela, isso faria que fosse muito mais difícil dar à luz e já é suficientemente difícil."
"Como é que o Jondalar sabe sempre exactamente o que fazer? Soube dar-me Prazeres muito antes de eu saber o que eram. E creio que aquele grande mamute também soube dar Prazeres à pequena e bonita fêmea avermelhada. Creio que ela fez aquele ruído forte e grave porque ele fez que ela os Sentisse e foi por isso que toda a sua famflia ficou tão contente por ela." Os pensamentos de Ayla estavam a provocar-lhe sensações tintilantes e de agradável calor. Olhou de relance para a zona arboñzada por onde Jondalar desaparecera, pensando quando é que ele voltaria.
"Mas um bebé não começa de cada vez que se compartilham os Prazeres. Talvez os espíritos fossem também necessários. Quer sejam os espí-ritos do totem dos homens do Clã, ou a essência do espírito do homem que a Mãe tira e dá à mulher, a vida do bebé começa quando.um homem põe o seu órgão dentro da mulher e deixa lá a sua essência. E assim que Ela dá uma criança a uma mulher, não com espíritos, mas com a Sua Dádiva dos Prazeres. Mas Ela decide qual é a essência de que homem que dará início à nova vida e quando essa vida começará."
"Sea Mãe decide, por que é que o remédio de Iza impede uma mulher de ficar grávida? Talvez não deixe que a essência do homem, ou o seu espí-rite, se misture com o da mulher. A Iza não sabia como é que funciona- va, mas parece de facto resultar a maior parte das vezes."
"Gostava de deixar começar um bebé quando o Jondalar compartilha os Prazeres comigo. Quero muito ter um bebé que seja parte dele. Da sua essência, ou do seu espírito. Mas ele term razão. Devemos esperar. Foi tão difícil para mim ter o Durc. Sea Iza não estivesse lá, que é que eu teria feito? Quero ter a certeza de ter pessoas comigo que me saibam ajudar."
"Continuarei a beber o chá da Iza todas as manhãs e não direi nada. Ela tinha razão. Também não devo falar muito sobre bebés começarem com o órgão do homem. Jondalar ficou muito preocupado quando falei nisso e pensou que teríamos que deixar de ter Prazeres. Se por enquanto não posso ter um bebé, quero pelo menos ter Prazeres com ele."
"Como aqueles mamutes tiveram. Seria isso que o grande mamute es- tava a fazer? A fazer começar um bebé na fêmea avermelhada? Foi mao ravilhoso compartilharem os seus Prazeres com a manada. Estou muito contente por termos ficado a ver. Não percebi por que é que ela estava a fugir de todos os outros, mas não estava interessada neles. Queria escolher o seu próprio companheiro e não ir com qualquer um que a quisesse. Estava à espera do grande macho castanho-claro e, assim que ele apareceu, ela soube que aquele é que era. Não conseguiu esperar e correu para ele. Já tinha esperado tempo de mais. Sei o que ela sentiu."
OLobo correu para a clareira, trazendo orgulhosamente um velho osso apodrecido para ela ver. Deixou-o cair aos seus pés e olhou expectante para ela.
-- Pffuu! Que cheiro horrível! Onde é que apanhaste isso, Lobo? Deves tê-lo encontrado onde estavam enterrados os restos de alguém. Eu sei
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que adoras coisas podres. Talvez seja uma boa altura de ver se também gostas de coisas picantes e fortes m disse ela. Pegou no osso e besuntou com a mistura que tinha estado a fazer o troféu do Lobo. Depois atirouo para o meio da clareira.
O jovem animal correu imediatamente atrás dele, mas cheirou-o desconfiado antes de o abocanhar. Continuava a ter aquele maravilhoso cheiro a podre que ele adorava, mas não estava bem certo do outro cheiro estranho. Por fim, abocanhou-o. Mas largou-o muito rapidamente e começou a espirrar e a resfolegar e a abanar a cabeça. Ayla não resistiu. As suas cabriolas eram tão divertidas que desatou a rir. O LObo voltou a cheirar o osso e voltou a recuar, espirrando, com um ar extremamente de- sagradado, e correu para a nascente.
m Não gostas disso, pois não, LObo? Óptimo! Não é suposto gostares-disse ela, voltando a sentir as gargalhadas a borbulhar dentro dela enquanto o observava. Beber água pareceu não ajudar lá muito. Levantou uma pata e esfregou o lado do focinho, tentando limpá-lo, como se pen- sasse que isso faria desaparecer o sabor. Ainda estava a espirrar e a res- folegar e a abanar a cabeça quando correu para o meio das árvores.
Jondalar passou por ele e quando chegou à clareira encontrou Ayla a
rir tanto que tinha lágrimas nos olhos.
-- Qual é a graça? perguntou.
-- Devias tê-lo visto-disse ela ainda a rir.-Pobre Lobo, tinha tanto orgulho no velho osso podre que descobriu. Não percebeu o que é que lhe aconteceu e tentou tudo para tirar o sabor da boca. Se achas que consegues suportar o cheiro da anserina e da cânfora, acho que descobri uma forma de fazer que o Lobo não roa as nossas coisas. E mostrou-lhe a malga de madeira que usara para misturar os ingredientes.-Aqui está. "Repelente de Lobo"!
Ainda bem que resulta-disse Jondalar. Também sorria, mas a alegria que se lhe espelhava nos olhos não se devia aoLobo. Finalmente, Ayla reparou que ele tinha as mãos atrás das costas.
Que é que tens atrás das costas? m perguntou ela, subitamente curiosa.
-- Born, acontece que quando andava à procura de lenha, encontrei
outra coisa. E se prometeres ser boazinha, talvez ta dê.
Que é?
Ele pôs o grande cesto cheio à sua frente. Grandes e sumarentas framboesas! Os olhos de Ayla iluminaram-se. Oh, adoro framboesas.
E achas que eu não sei? Que é que me dás por elas? m perguntou com os olhos a brilhar com uma expressão marota.
Ayla olhou para ele e, dirigindo-se para ele, sorriu, um grande sorriso aberto e lindo que lhe encheu os olhos e revelou todo o amor que sentia
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por ele e o calor que tinha estado a sentir e o seu encanto por ele ter q rido fazer-lhe uma surpresa.
-- Acho que já sei-disse ele, soltando a respiração que então apercebeu de que tinha estado a suster.-Oh, Mãe, és tão bola quan sorris. Es sempre bela, mas especialmente quando sorris.
Subitamente, teve uma percepção consciente dela, a percepção de Ç da feição e cada pormenor. O seu cabelo louro-escuro, compñdo e esp so, a brilhar onde o sol o tinha tornado mais claro, e preso com uma f de couro. Mas era naturalmente ondulado e as madeixas que tinham capado da ftta de couro encaracolavam em volta do seu rosto bronzea, uma caía-]he pela testa, à frente dos olhos. Ele reprimiu a vontade ç teve de a afastar para o lado.
Ela era alta, combinandó born com a sua própria estatura de um v troe oitenta, e os seus músculos flexíveis e enérgicos de verdadeira foi física estavam nitidamente definidos nos seus braços e pernas compñd Era uma das mulheres mais fortes que ele conhecera; fisicamente tão f te com muitos homens que ele conhecia. As pessoas que a tinham cri eram dotadas de uma força física consideravelmente maior que as soas mais altas mas com menos peso de quem ela nascera, e embora A não fosse considerada particularmente forte quando vivia com o Clã nha desenvolvido uma maior força física do que normalmente teria para não ficar para trás. Isto, juntamente com anos de observação, seguição e caça enquanto caçadora, fazia com que usasse o corpo com cilidade e se movesse com invulgar elegância.
A túnica de pele, sem mangas, que usava, com cinto, por cima de p tecç5es de pele, assentava-lhe de forma confortável, mas não escondi$ seus seios cheios e firmes que podiam parecer pesados mas não era nem as suas ancas de mulher que curvavam até ao seu traseiro arred, dado e firme.
As fitas que amarraram as protecções das pernas estavam aborta., parte inferior e ela estava descalça. Tinha ao pescoço uma pequena sa de couro, delicadamente bordada e decorada, com penas de garça longo da parte inferior, que revelava o volume dos vários objectos mi! riosos que continha.
Pendurada do cinto, havia a bainha de uma faca feita de couro dr a pele de um animal que tinha sido limpa e raspada mas não de qualq forma curada, tendo secado e ftcado dura na forma que lhe tinha sido da, apesar de poder ficar de novo macia se fosse posta de molho. El nha prendido a funda no lado direito do cinto, ao lado de uma bolsa continha várias pedras. Do lado direito tinha um objecto parecido ¢ uma bolsa. Apesar de ser velha e de já estar gasta, era evidente que ti sido feita da pele inteira de uma lontra, curada com as patas, o rabo caboça. A garganta tinha sido cortada e as tripas tiradas pelo pesco! depois enfiada uma corda por pequenos cortes e puxada com força p
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har. A cabeça achatada servia de badana. Era a sua bolsa medicinal, e tinha ]evado do Clã, a bolsa que Iza lhe dera.
"Ela não term o rosto de uma mulher Zelandonii", pensou Jondalar; s detectariam o seu aspecto estrangeiro, mas a sua beleza era ineñvoca. Os seus grandes olhos eram de um cinzento-azulado-a cor da ;dreneira pura, pensou-e bem afastados, delineados com pestanas li- dramente mais escuras que o seu cabelo; as suas sobrancelhas eram li- dramente mais claras, de um tom intermédio. O seu rosto tinha a forma ; coração, bastante largo, com maçãs do rosto altas, um maxilar bem de- üdo e um queixo estreito. O seu nariz era direito e ftno,, e os seus lábios eios, curvos nas extremidades, estavam abertos e afastados,.mostrando dentes num sorriso que lhe iluminava os olhos e anunciava o seu enso prazer no próprio acto de sorrir.
Embora os seus sorrisos e o seu riso a tivessem outrora marcado co sendo diferente, fazendo que ela os reprimisse, Jondalar adorava .ando ela sorr/a e o seu encanto no riso e nas brincadeiras dele trans- "mavam magicamente a disposição já de si agradável das suas feições; era ainda mais bela quando sorria. Subitamente, ele sentiu-se avaslado com a imagem dela e com o seu amor por ela e agradeceu à Mãe silêncio ter-lha voltado a dar.
Que é que queres que eu te dê pelas fram boesas?-- perguntou Ayla. Diz-me e têloás. ' Quero-to a ti, Ayla disse ele, com a voz subitamente tensa de loção. Pousou o cesto e, num instante, tinha-a nos braços, beijando-a m feroz emoção.-Amo-te. Nunca te quero perder disse ele num armúrio rouco, beijando-a de novo.
Um calor percorreu-lhe o corpo e ela respondeu com um sentimento aalmente forte.-Também te amo-disse ela--, e quero-to, mas posso primeìro tirar arne do lume? Não quero que se queime enquanto estivermos.., ocupaS.
Jondalar olhou para ela por instantes, como se não tivesse percebido suas palavras; depois descontraiu-se, deu-lhe um abraço e recuou ]i- iramente, sortindo ligeiramente envergonhado..
Não era minha intenção ser tão insistente. E só que te amo tanto e por vezes é difícil aguentar. Podemos esperar até logo.
Ela ainda estava a sentir a sua resposta tintilante e quente ao seu iore não sabia bem se estaria disposta a parar. Estava ligeiramente • ependida do comentário que fizera e que interrompera o momento. Não é preciso tirar a carne disse ela.
Jondalar riu-se.
i Ayla, és uma mulher inacreditável-disse, abanando a cabeça e rrindo.-Fazes ideia até que ponto ds maravilhosa? Estás sempre )nta para mim, a qualquer altura que eu te queira. Foste sempre assim.
JEAN A U EL
Não apenas disposta a fazê-lo, quer te apeteça ou não, mas sempre
pronta, pronta a interromper seja o que for, se eu quiser.-Mas eu quero-te sempre que to me queres. mNão sabes como isso é invulgar. A maioria das mulheres precisa de ser convencida e, se estiverem a meio de a]guma coisa, a maior parte não está disposta a ser interrompida.
--As mulheres com quem eu cresci estavam sempre prontas quando um homem lhes fazia o sinal. To deste-me o teu sinal, beijaste-me e mos- traste-me que me querias.
m Eu talvez me arrependa de te dizer isto, mas sabes, podes recusar.-A sua testa franziu-se com o esforço de tentar explicar.-Espero que não peases que tens de querer sempre que eu quero. Já não estás a viver cem o Clã.
To não percebes-disse Ayla, abanando a cabeça e fazendo um esforço igual para o fazer compreender.-Eu não acho que tenho que querer. Quando to me dás o teu sinal, eu quero. Talvez seja por ser assim que as mulheres do Clã se comportavam sempre. Talvez seja por teres sido to que me mostraste como é maravilhoso compartilhar os Prazeres. Talvez seja por eu te amar tanto, mas quando me dás o teu sinal, não penso nisso, sinto-o dentro de mim. O teu sinal, o teu beijo que me diz que me queres, faz que eu te queira.
Ele estava de novo a sorrir, de alívio e de prazer.
--To também fazes com que eu queira. Só de olhar para ti.-Inclinou a cabeça e ela ergueu a de]a para ele, moldando-se contra ele enquanto el a apertava com força contra si.
Ele reprimiu a ansiedade impetuosa que sentia, embora lhe tivesse passado fugazmente pela ideia uma estranha sensação de prazer por ainda se sentir tão atraído por ela. Tinha-se cansado de algumas mulheres depois da primeira experiência, mas com Ayla parecia sempre novo. Sentia o seu corpo firme e forte contra o dele e os seus braços em volta do seu pescoço. Deslizou as mãos para a frente e pô-las contra os lados dos seus seios, enquanto se inc]inava mais para lhe beijar a curva do pescoço.
Ayla tirou os braços do pescoço dele e começou a desapertar o cinto, deixando-o cair, com todas as coisas que lhe estavam presas, no chão. Jondalar meteu as mãos por dentro da sua túnica, erguendo-a ao encontrar as formas arredondadas com os mamilos duros e salientes. Ergueu ainda mais a túnica, pondo à mostra uma auréola cor-de-rosa-escuro em volta do nódu]o erecto e sensível. Sentindo o seio quente na sua mão, tocou no raamilo com a língua e depois meteu-o na boca e sugou-o.
Torrentes tinti]antes de fogo projectaram-se para o sítio bem no fundo dela enquanto um pequeno gemido de prazer se lhe escapou dos lábios. Ayla mal conseguia acreditar como estava pronta. Como o mamute fêmea avermel.hada, ela sentiu que tinha esperado durante todo o dia e que mal consegua esperar mais um instante. Uma imagem fugaz do grande
PLAN[CIES DE PASSAGEM 1
macho claro, com o seu grande órgão curvo, passou-lhe pelo pensamento. Jondalar largou-a e ela agarrou a abertura da túnica e puxou-a por cima da cabeça num único movimento harmonioso.
Ele reteve a respiração ao vê-la, acariciou-lhe a pele macia e agarrou-lhe ambos os seios. Acariciou um dos mamilos duros e mordiscou-lhe o outro. Ayla sentiu deliciosas ondas de excitação a percorrê-la, fechou os olhos e entregou-se a elas. Quando ele parou as maravilhosas carícias e mordidelas, ela manteve os olhos fechados e não tardou a sentir-se beijada. Abriu a boca para deixar entrar uma língua suavemente exploratória. Quando lhe pôs os braços em volta do pescoço, sentiu as rugas da sua túnica de pele contra os seus mamilos ainda sensíveis.
Ele passou as mãos pela pele macia das suas costas e sentiu o movimento firme dos seus músculos firmes. A resposta imediata dela tinha feito aumentar o seu próprio ardor e o seu sexo duro e erecto fazia pressão contra a sua roupa.
-- Oh, mulher m murmurou ele. Como te quero.
-- Estou pronta para ti.
-- Deixa-me só tirar isto-disse ele, desapertando o cinto e puxando a túnica por cima da cabeça. Ayla viu o volume palpitante do seu sexo, começou a acariciá-lo e a desapertar o cordão que prendia as protecções das pernas, enquanto ele desapertava as dela. Tiraram ambos as protocções de pernas e estenderam as mãos um para o outro, ficando depois muito juntos num longo e lento beijo sensual. Jondalar olhou rapidamente em volta da clareira à procura de um sítio, mas Ayla tinha-se deixado cair com os joelhos e as mãos no chão e olhou para trás, para ele, com um sorriso brincalhão. •
O teu pêlo pode ser amarelo e não castanho-claro, mas és aquele que eu escolho-disse ela.
Ele sorriu-lhe e deixou-se cair junto dela.
--E o teu cabelo não é avermelhado-escuro, é da cor da palha madura, mas term qualquer coisa que é como uma flor vermelha com muitas pétalas. Mas não tenho uma tromba peluda para te tocar com ela. Terei de usar outra coisa m disse ele.
Empurrou-a ligeiramente para a frente, abriu-lhe as nádegas e pôs- -lhe à mostra a sua abertura húmida de fêmea, baixando-se depois para saborear o seu sai quente. Estendeu a língua e encontrou o seu nódulo duro enterrado bem fundo nas suas pregas. Ela deu uma exclamação abafada e mexeu-se para lhe facilitar o acesso, enquanto ele a estimulava e beijava, e depois foi mais fundo na sua abertura convidativa para a saborear e explorar. Adorava o sabor dela.
Ayla movia-se numa vaga de sensações, mal se apercebendo de qualquer outra coisa a não ser o pulsar quente que a percorria. Estava mais sensível do que habitualmente e cada síti que ele tocava ou beijava queimava-a até chegar ao último sítio dentro dela que tintilava com fogo
JEAN A UEL
e desejo. Não ouviu a sua própria respiração ficar mais acelerada, nem os gritos de prazer que dava, mas Jondalar ouvia.
Endireitou-se por detrás dela, aproximou-se e encontrou o seu poço com o seu sexo arquejante. Ao começar a penetrá-la ela fez pressão para trás, empurrando contra ele atd ficar com todo ele dentro de si. Ele gri- teu com o acolhimento inacreditavelmente caloroso e depois, segurando-a pela ancas, puxou o corpo para trás. Apalpou com a mão e encontrou o seu pequeno nódulo de prazer e acariciou-o enquanto ela voltava a ir ao seu encontro. A sua sensação quase atingiu o auge. Voltou a puxar o corpo para trás e, apercebendo-se de que ela estava pronta, penetrou-a repe- tidas vezes, cada vez com mais força. Ela gritou a sua libertação e a sua própria voz gritou com ela.
Ayla estava deitada de bruços, com o rosto na erva, com o agradável peso de Jondalar sobre ela, e sentiu a sua respiração do lado esquerdo das suas costas. Abriu os olhos e, sem o menor desejo de se mexer, observou uma formiga a andar pelo chão em volta de uma única erva. Sentiu o homem mexer-se e rolar para o chão, mantendo o braço em volta da sua cintura.
m Jondalar, és um homem incrível. Fazes ideia de como és maravi-
lhoso? m disse Ay]a.
-- Será que já ouvi essas palavras antes? Parece-me bem que fui eu que tas disse-disse ele.
--Mas são verdade em relação a ti. Como é que me conheces tão bem?
Perco-me dentro de mim própria só a sentir o que me fazes.-Acho que estavas pronta. m É verdade. É sempre maravilhoso mas, desta vez, não sei. Talvez tivessem sido os mamutes. Pensei na fèmea avermelhada e no seu grande e maravilhoso macho.., e em ti... durante todo o dia.
Born, talvez tenhamos que voltar a brincar aos mamutes disse
ele, com um grande sorriso, enquanto se virava de costas.
Ayla sentou-se.
Está bem, mas agora you brincar no rio antes que escureça e baixou-se e beijou-o e sentiu o seu próprio sabor nele --, depois de ver como está a comida.
Correu para a fogueira, voltou a virar o bisonte a assar, tirou as pedras de cozinhar e juntou mais duas que tirou do lume quase a apagar-se, mas que ainda estavam quentes, pôs mais lenha nas chamas e correu para o rio. Sentiu frio quando entrou, mas não se importou. Estava habituada a água fria. Jondalar não tardou a ir para junto dela, levando uma grande pele de veado macia. Pousou-a e entrou na água mais devagar, finalmente respirando fundo e mergulhando. Veio à superfície a afastar o cabelo dos olhos.
m Está fria! -- disse ele.
Ela foi para junto dele e, com um sorriso brincalhão, salpicou-o. Ele
PLAN[CIES DE PASSAGEM I
salpicou-a em resposta e seguiu-se uma luta molhada. Salpicandoo pela última vez, Ayla saiu a correr da água, agarrou a pele macia e começou a secar-se. Deu-a a Jondalar quando ele saiu do rio e depois foi apressadamente para o acampamento e vestiu-se rapidamente. Estava a servir a sopa nas suas malgas individuais quando Jondalar chegou do rio.
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Os últimos raios do sol de Verão filtraram-se através dos ramos das árvores enquanto este se afundava na orla das terras altas a oeste. Sorrindo a Jondalar de contentamento, Ayla tirou a última framboesa madura da sua malga e meteu-a no boca. Depois levanteu-se para limpar e arrumar tudo para a partida ser fácil e rápida na manhã seguinte.
Deu os restos das suas malgas ao Lobo e pôs grãos de cereais partidos e secos-o trigo selvagem, a cevada e as sem entes de ansarina que Nezzie lhe tinha dado quando partiram-na sopa morna, deixando-ajunto àfo- gueira. A carne de bisonte assada e a língua que tinham sobrado da refeição foram postas numa bolsa de couro cru na qual guardava a comida. Dobrou o grande envelope de couro duro, amarrou-o com cordas resistentes e pendurou-o do centro de um tripé feito com grandes paus para o manter fora do alcance dos ladrões da noite.
Os paus eram feitos de árvores inteiras, altas, tinas e direitas, com os ramos e a casca arrancados, e Ayla levava-os em suportes especiais que saíam da parte de trás dos cestos-alforge de Whinney, exactamente como Jondalar levava os mastros mais curtos da tenda. Os paus compridos eram também usados em certas ocasiSes para fazer uma padiola que podia ser puxada pelos cavalos para transportar cargas pesadas ou volumosas. Levavam os compridos paus com eles pois as árvores que serviriam para fazer outros em substituição eram muito raras nas estepes abertas. Mesmo ao pé dos rios muitas vezes pouco mais havia que arbustos emaranhados.
Enquanto o crepúsculo aumentava, Jondalar acrescentou mais lenha à fogueira e foi buscar o pedaço de marfim com o mapa riscado e levouo para junto da luz do lume para o estudar. Quando Ayla acabou e se sentou ao seu lado, ele parecia distraído e com aquela expressão ansiosa de preocupação que ela já notavahá vários dias. Observou-o durante algum tempo, pôs umas pedras na fogueira para ferver água para fazer o chá da noite que habitualmente fazia, mas em vez das ervas saborosas mas inóquas que normalmente usava tirou alguns pacotes da sua bolsa medicinal de pele de lontra. Talvez qualquer coisa para o acalmar ajudasse, talvez matricária ou raiz de aquilégia, num chá de aspérula, pensou, embora gostasse de saber qual era o problema. Queria perguntar-lhe, mas não sabia bem se devia. Por fim, tomou uma decisão.
B Jondalar, lembras-te daquele último Inverno em que não tinha a certeza do que sentia por ti e eu não sabia o que sentias por mim? B disse ela.
Ele estava tão absorto nos seus pensamentos que só passados alguns momentos é que compreendeu a pergunta dela.
Claro que me lembro. Não tens dúvidas quanto ao meu amor por ti, pois não? Eu não tenho qualquer dúvida sobre o que to sentes por mim.
-- Não, não tenho dúvidas quanto a isso, mas pode haver mal entendidos em relação a muitas coisas, não apenas sobre se to me amas ou se eu te amo a ti, e não quero que volte a acontecer uma coisa dessas. Creio que não aguentaña ter mais problemas desses só porque não falamos neles. Antes de deixarmos o Encontro de Verão, prometeste-me que me dizias se alguma coisa te estivesse a preocupar. Jondalar, há qualquer coisa que te preocupa e eu gostava que me dissesses o que é.
-- Não é nada, Ayla. Nada com que to tenhas que te preocupar.
-- Mas é qualquer coisa com a qual to tens que te preocupar? Se há qualquer coisa que te preocupa, não achas que eu devo saber? B disse ela. Tirou dois passadores para chá, cada um feito de juntos tecidos numa malha muito apertada, de um cesto de verga onde guardava várias malgas e utensflios. Parou por instantes, apensar, e depois escolheu folhas secas de matricária e aspérula, acrescentadas a camomila para Jondalar, pôs apenas camomila no dela, e encheu os passadores.-Se te diz respeito a ti, term também que me dizer respeito a mim. Não viajamos juntos?
m Born, sim, mas fui eu quem tomou a decisão e não te quero
preocupar desnecessariamente-disse Jondalar, levantando-se para ir buscar o saco da água que estava pendurado num poste perto da entrada da tenda e que estava ligeiramente recuada em relação à fogueira. Dei- teu uma quantidade de líquido na malga de cozinhar e acrescentou as pedras quentes.
Não sei se é necessário ou não, mas já me estas a preocupar. Por que é que não me dizes a razão? --Ayla pôs os passadores nas chávenas de madeira individuais, deitou água a ferver em cima e pô-las de lado para abrir.
Jondalar pegou no pedaço de dente de mamute riscado e olhou para ele, desejando que ele lhe pudesse dizer o que iria acontecer e se estava a tomar a decisão certa. Quando era apenas o irmão e ele não era muito importante. Iam numa Viagem, numa aventura, e o que quer que acontecesse fazia parte dela. Nessa altura não tinha a certeza de que regressariara; nem sequer tinha a certeza de que queria regressar. A mulher que ele tinha sido proibido de amar tinha escolhido um caminho que a afastava ainda mais dele, e a mulher com quem era suposto ele acasalar-se.., não era de todo aquela que ele queria. Mas esta Viagem era diferente. Desta vez, estava com a mulher que ele amava mais que a própria vida. Não só queria regressar a casa, como queria fazer que ela lá
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chegasse sã e salva. Quanto mais pensava nos possíveis perigos com que podiam deparar ao longo do caminho, mais imaginava perigos maiores, mas as suas preocupações vagas não eram fáceis de explicar.
-- Estou apenas preocupado com o tempo que esta Viagem irá levar.
-- Precisamos de chegar ao glaciar antes do fim do Inverno-disse ele.-Já me disseste isso m disse ela.-Mas porquê? Que é que aconte-
cerá se não chegarmos lá nessa altura? -- perguntou ela.
-- O gelo começa a derreter na Primavera e torna-se demasiado perigoso para se tentar atravessá-lo.
--Born, se é demasiado perigoso, então não tentaremos. Mas se não pudermos atravessar, então que é que fazemos? -- perguntou ela, for- çando-o a pensar em alternativas em que ele evitara pensar.-Há algum outro caminho por onde possamos ir?
-- Não tenho a certeza. O gelo que temos de atravessar é apenas um pequeno glaciar em planalto que há nas terras altas a norte das grandes montanhas. Há terra a norte dele, mas nunca ninguém vai por lá. Afastar-nos-ia ainda mais do nosso caminho e é uma região muito fria. Dizem que o gelo do norte fica mais perto dali, pois estende-se para sul nessa região. A terra entre as montanhas altas do sul e o grande gelo do norte é a mais fria de rodas. Nunca faz calor, nem sequer no Verão-disse Jondalar.
-- Mas não faz frio nesse glaciar que queres atravessar?
--Claro, também faz frio no glaciar, mas é um caminho mais curto e depois de chegarmos ao outro lado só demoramos alguns dias a chegar à caverna de Danalar.-Jondalar pousou o mapa para pegar na chávena de chá quente que Ayla lhe estendia e ficou a olhar para o líquido fumegante durante algum tempo.-Creio que poderíamos tentar um caminho a norte em volta do glaciar da montanha, se fosse mesmo preciso, mas não gostaria de o fazer. De qualquer forma, é território dos cabeças achata- das.-Jondalar tentou explicar.
-- Queres dizer que há pessoas do Clã que vivem a norte desse glaciar que é suposto termos de atravessar? -- perguntou Ayla, parando no momento em que ia a tirar o passador de chá de dentro da chávena. Estava a sentir uma estranha mistura de temor e excitação.
--Desculpa, acho que lhes devia chamar gente do Clã, mas não são as mesmas que to conheceste. Vivem muito longe daqui, nem podes avaliar quanto. Não são de todo os mesmos.
-- São, Jondalar-disse Ayla, bebendo um golo do líquido quente e saboroso.-Talvez a sua linguagem e os seus hábitos de todos os dias possam ser ligeiramente diferentes, mas toda a gente do Clã term as mesmas memórias, pelo menos as memórias mais antigas. No Encontro do Clã toda a gente conhecia a antiga linguagem de si nais que é usada para falar com o mundo dos espíritos, e falavam-na uns com os outros.
-- Mas eles não nos querem no seu território-disse Jondalar.-
Foram bem claros quanto a isso quando Thonolan e eu por acaso passá-mos para a margem errada do rio.
-- Tenho a certeza de que isso é verdade. As pessoas do Clã não gostam de estar perto dos Outros. Portanto se não conseguirmos atravessar o glaciar quando lá chegarmos, e não o podemos contornar, então que é que fazemos?-- perguntou Ayla, voltando ao problema inicial.-Não podemos esperar que seja seguro atravessar o glaciar?
Sim, acho que seria isso que teríamos de fazer, mas pode levar quase um ano até ao próximo Inverno.
--Mas se esperássemos um ano, conseguíamos passar? Há algum sí-tio onde pudéssemos esperar?
-- Bem, sim, há pessoas com quem podíamos ficar. Os Losadunai foram sempre amigáveis. Mas eu quero chegar a casa, Ayla-disse ele, num tom tão angustiado que ela se apercebeu de como isso era importante para ele.-Quero que assentemos a nossa vida.
-- Eu também, Jondalar, e acho que devemos fazer tudo o que pudermos para tentar lá chegar enquanto for seguro atravessar o glaciar. Mas se for demasiado tarde, isso não significa que não chegaremos à tua casa. Só significa uma espera maior. E continuaríamos juntos.
-- Isso é verdade-disse Jondalar, concordando, mas não satisfeito.-Acho que não seria mau se lá chegássemos tarde, mas não quero esperar mais um ano inteiro-disse ele, franzindo a testa.-E se fôssemos pelo outro caminho, talvez lá chegássemos a tempo. Ainda o podemos fazer.
m Há outro caminho para lá?
-- Sim, o Talut disse-me que podíamos contornar a extremidade norte da cordilheira de montanhas que iremos encontrar. E Rutan, do Acampamento da Estipa, disse que o caminho era para nordeste daqui. Tenho estado apensar que talvez devêssemos ir por esse caminho, mas estava com esperança de voltarmos a ver os Sharamudoi. Se não os vir agora, receio bem que nunca mais os verei e eles vivem na extremidade sul das
montanhas, ao longo do Grande Rio Mãe-explicou Jondalar. Ayla assentiu, enquanto pensava, "Agora compreendo". m Os Sharamudoi são as pessoas com quem to viveste durante algum
tempo; o teu irmão acasalou-se com uma mulher dessa gente, certo? -- Sim, são como famflia para mim.
-- Então é claro que temos de ir para sul para os poderes visitar uma última vez. São pessoas que to amas. Se isso significar que podemos não chegar ao glaciar a tempo, então teremos de esperar pela próxima estação para o atravessarmos. Mesmo que isso signifique esperar mais um ano até chegares a casa, não achas que vale a pena veres de novo a famflia do teu irmão? Se parte da razão pela qual queres ir para casa é para dizeres à tua mãe o que aconteceu ao teu irmão, não achas que os Sharamudoi gostariam de saber o que lhe aconteceu? Também eram famflia dele.
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Jondalar franziu a tosta e depois a sua expressão animou-se.
-- Tens razão, Ayla. Eles hão-de querer saber o que acontoceu a Thonolan. Tenho estado tão preocupado se terei ou não tornado a decisão certa que não pensei em todos os aspectos.-E sorriu de alívio.
Jondalar observou as chamas a dançar sobre os pedaços de lenha enegrecidos, a saltar e a rodopiar na sua breve alegria, enquanto derrotavam a escuridão à sua volta. Bebeu o chá em pequenos golos, apensar na longa Viagem à sua frente, mas já não se sentia tão ansioso. Olhou para Ayla.
-- Foi boa ideia falarmos nisto. Acho que ainda não estou habituado a ter alguém com quem possa falar sobre.., as coisas. E acho que podemos chegar a tempo, senão à partida não teria decidido vir por esto caminho. A viagem será mais longa, mas pelo menos conheço o caminho. Não conheço o caminho pelo norte.
Acho que tomasto a decisão certa. Se eu pudesse, se não tivesse sido amaldiçoada com a morte, visitaria o clã de Broud disse Ayla, acres- centando depois tão baixinho que ele mal a conseguiu ouvir, m Se pudesse, se pudesse de alguma forma, iria ver o Durc pela última vez. m O som profundamente tristo e vazio da sua voz fez com que ele se apercebesse
de que naquele momento ela sentia dolorosamente a sua perda.
Queres tontar encontrá-lo, Ayla?
Sim, é claro que quero, mas não posso. Isso só traria angústia para todos. Fui amaldiçoada. Se eles me vissem, pensariam que eu era um espírito mau. Para eles eu estou morta e não há nada que eu possa dizer ou fazer que os convencesse de que estou viva.
Os olhos de Ayla pareciam estar a olhar para longe, mas estavam a ver uma visão intorior, uma memória.
Além disso, o Durc já não é o bebé que eu deixei. Está quase na idade adulta, embora eu tivesse atingido a idade adulta tarde para uma mulher do Clã. Ele é meu filho, e também pode estar menos desenvolvido que os outros rapazes. Mas em breve a Ura irá viver com o clã de Brun... não, ago- rajá é o clã de Broud-disse Ayla, franzindo a testa. Este é o Verão do Encontro do Clã, portanto este Outono a Ura deixará o seu clã e irá viver com o Brune a Ebra, e quando tiverem ambos idade para isso ela será a companheira de Durc. Fez uma pausa e acrescentou: Gostava de poder lá estar para lhe dar as boas-vindas, mas apenas a assustaria e talvez fizesse que ela pensasse que Durc tinha má sorte, se o espírito da sua estranha mãe não ficar onde deve, no outro mundo.
--Tens a certeza, Ayla? Quero dizer, se quiseres arranjaremos tompo para os procurar disse Jondalar.
-- Mesmo que eu o quisesse encontrar disse ela m não sabeña onde o procurar. Não sei onde é a sua nova caverna e não sei onde é o Encontro do Clã. Não está destinado que eu veja o Durc. Ele já não é meu filho. Dei-o à Uba. Ele agora é filho da Uba. Ayla olhou para Jondalar. Ele
reparou que as lágrimas ameaçavam correr.-Quando o Rydag morreu, eu soube que nunca mais veria o Durc. Enterrei o Rydag na capa de pele que servia para transportar o Durc, a capa que eu trouxe comigo quando deixei o Clã e, no meu coração, enterrei o Durc na mesma altura. Sei que nunca mais verei o Durc. Estou morta para ele e é melhor que ele esteja morto para mim.
As lágrimas molhavam-lhe o rosto, embora parecesse não dar por isso, como se não soubesse como tinham surgido.
-- Tenho muita sorto, sabes. Pensa na Nezzie. O Rydag era um filho para ela; amamentou-o, embora não o tivesse dado à luz, e sabia que o perderia. Até sabia que por mais tempo que ele vivesse, nunca teria uma vida normal. As outras mães que perdem os filhos só os podem imaginar num outro mundo, a viver com os espíritos, mas eu posso imaginar o Durc aqui, em segurança, sempre com sorte, sempre feliz. Posso pensar nele a viver com a Ura, com crianças no seu lar.., mesmo que nunca mais o veja. O soluço na sua voz abriu finalmente caminho à expressão da sua dor.
Jondalar estendeu os braços para ela e abraçou-a. Também se sentia triste quando pensava em Rydag. Não havia nada que alguém pudesse fazer por ele, embora todos soubessem que Ayla tinha tentado. Era uma criança fraca. Nezzie disse que tinha sido sempre assim. Mas Ayla tinha-lhe dado uma coisa que mais ninguém lhe podia dar. Depois de ela chegar e de o começar a ensinar, e ao resto do Acampamento do Leão, a falar da forma como o Clã falava, com sinais de mãos, ele tinha sido mais feliz do que alguma vez fora. Era a primeira vez na sua curta vida que con- seguira comunicar com as pessoas que amava. Conseguia dar a conhecer as suas necessidades e os seus desejos e dizer às pessoas o que sentia, especialmente a Nezzie, que cuidara dele desde que a sua mãe verdadeira morrera de parto. Podia finalmente dizer que a amava.
Tinha sido uma surpresa para os membros do Acampamento do Leão, mas assim que se aperceberam de que ele não era apenas um animal bastante esperto, sem a capacidade de falar mas, em vez disso, que era uma pessoa de um tipo diferente, com um tipo de linguagem diferento, começaram a compreender que ele era inteligente e aceitaram-no como pessoa. Não constituíra menos surpresa para Jondalar, muito embora ela lhe tivesse tentado dizer, quando ele começou a ensiná-la a voltar a falar com palavras. Ele tinha aprendido os sinais com os outros e a ap,'eciar o humor brando e a profundidade de compreensão do jovem rapaz da antiga raça.
Jondalar abraçou a mulher que amava enquanto ela soluçava violentamente, dando largas à sua dor. Sabia que Ayla tinha reprimido a dor pela morte da criança meia-Clã que Nezzie adoptara, que tanto lhe re- cordava o seu próprio filho, e compreendeu que ela também chorava por esse filho.
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Mas era mais que Rydag ou Durc. Ayla chorava rodas as suas perdas; aqueles do seu passado, os seres amados do Clã, e a perda do próprio Clã. O clã de Brun tinha sido a sua famflia, Iza e Creb tinham-na criado, cuidado dela e, apesar da sua diferença, tinha havido uma altura em que ela pensava em si própria como pertencendo ao Clã. Embora tivesse optado por partir com Jondalar porque o amava e queria estar com ele, a sua conversa tinha-a feito perceber como era distante o sítio onde ele vida; le- variam um ano, talvez dois anos, só a lá chegar. Tinha finalmente tido plena compreensão do que isso signifícava; ela nunca regressaria.
Não estava apenas a desistir da sua nova vida com os Mamutoi, que lhe tinham oferecido um lugar entre eles, estava a desistir de qualquer vaga esperança que pudesse ter de voltar a ver a gente do Clã, ou o filho que tinha deixado com eles. Tinha vivido com o seu antigo sofrimento durante muito tempo e este tinha abrandado ligeiramente, mas Rydag tinha morrido pouco antes de deixarem o Acampamento de Verão e a sua morte ainda era demasiado recente, a dor ainda era demasiado aguda. Esta dor tinha trazido à superfície a dor das suas outran perdas, e a percepção da distância que ela iria pôr entre eles tinha trazido a certeza de que a esperança de recuperar essa parte do passado tambdm teria de morrer.
Ayla já tinha perdido parte da sua primeira vida; não fazia ideia de quem era a sua m.ãe verdadeira, ou quem era a sua gente, aqueles de quem ela nascera. A excepção de vagas recordações-mais sentimentos que qualquer outra coisa m não se lembrava de nada anterior ao tremor de terra, nem de quaisquer pessoas antes do Clã. Mas o Clã tinha-a ba- nido; Broud tinha-a amaldiçoado com a morte. Para eles ela estava morta e agora compreendia plenamente que tinha perdido essa parte da sua vida quando eles a expulsaram. A partir desta altura, nunca saberia donde tinha vindo, nunca encontraria um amigo de infância, nunca co- nheceria ninguém, nem sequer Jondalar, que compreendesse o meio que tinha feito que ela fosse quem era.
Ayla aceitou a perda do seu passado, excepto a que vivia no seu espírito e no seu coração, mas chorava-a, e pensava o que a esperaria quando chegasse ao fimda sua Viagem. O que quer que a esperasse, fosse como fosse a gente dele, ela não teria mais nada; apenas as suas memórias.., e o futuro.
Estava escuro como breu no meio da clareira entre as árvores. Nem a mais leve sugestão de uma silhueta ou sombra mais escura podia ser discernida contra a escuridão envolvente, a não ser uma ténue luz avermelhada das brasas que ainda restavam na fogueira e a epifânia cintilante das estrelas. Apenas com uma ligeira bñsa a entrar na clareira protogida, eles tinham levado as peles de dormir para fora da tenda. Ayla
estava acordada sob o céu estrelado, a olhar para os padrões das constelações e a escutar os sons da noite: o vento a perpassar nas árvores, o correr líquido e suave do rio, o cri-cri dos grilos, o rumpfde uma rã. Ouviu um baque forte e água a esparramar e o ú-ú de uma coruja à distância e o rugido profundo de um leão e o forte barrido de um mamute.
Mais cedo, oLobo tinha estremecido de excitação ao ouvir uivos de lobo e desaparecera. Pouco depois, ela voltou a ouvir a canção dos lobos e um uivo em resposta muito mais perto. A mulher estava à espera que o animal regressasse. Quando ouviu a sua respiração ofegante m devia ter vindo a correr, pensou m e o sentiu aconchegar-se aos seus pés, descontraiu-se.
Tinha acabado de adormecer quando subitamente deu por si completamente acordada. Alerta e tensa, ficou deitada, quieta, a tentar descobrir o que a tinha acordado. Primeiro sentiu o rosnar profundo, quase silencioso, a vibrar através das peles vindo do sítio quente aos seus pés. Depois ouviu leves fungadelas. Havia alguém no acampamento com eles. m Jondalar? m disse ela, baixinho.
m Creio que a carne está a atrair alguma coisa. Pode ser um urso, mas é mais provável que seja uma loba ou uma hiena m respondeu Jondalar, num murmúrio quase inaudível.
m Que é que vamos fazer? Não quero que nada nos roube a nossa
carne.
-- Por enquanto, nada. Seja o que for, talvez não consiga lá chegar. Vamos esperar.
Mas o Lobo sabia exactamente o que andava all a farejar e não tinha a menor intenção de esperar. Sempre que montavam acampamento, ele definia-o como o seu territdrio e assumia a sua defesa. Ayla sentiu-o sair e instantes depois ouviu-o rosnar ameaçadoramente. O rosnado em resposta tinha um tom completamente diferente e parecia vir mais de cima. Ayla sentou-se e pegou na funda, mas Jondalarjá estava de pé com a comprida lança assente 'no lançador, pronto a disparar.
m E um urso! m disse ele. mAcho que está de pé, mas não consigo ver
nada.
Ouviram movimento, sons de passos arrastados vindos de algures entre a fogueira e os paus dos quais a carne estava suspensa, e depois o rosnar dos animais que se enfrentavam em tom de aviso. Subitamente, do outro lado, a Whinney relinchou, depois, mais alto ainda, o Corredor deu voz ao seu nervosismo. Houve mais sons de movimento no escuro e depois Ayla ouviu o rosnar trovejante e profundo que assinalava especiricamente a intenção de o Lobo atacar.
m Lobo! m gritou Ayla, tentando evitar o perigoso confronto.
Subitamente, no meio de rosnadelas ferozes, ouviram um sonoro berro e depois um latido de dor, enquanto uma chuva de faíscas vivas voavam em volta de uma grande forma que tropeçara na fogueira. Ayla ouviu o
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assobiu de um objecte a deslocar-se rapidamente através do ar próximo. Um bum sólido foi seguido por um uivo e depois o barulho de qualquer coisa a irromper através das árvores, afastando-se rapidamente. Ayla deu o assobio que usava para chamar o Lobo. Não queria que ele fosse atrás.
Ajoelhou-se para abraçar com alívio o jovem lobo quan,do ele chegou junte dela, enquanto Jondalar voltou a acender a fogueira. Aluz do lume, viu um rasto de sangue que o animal em fuga deixara para trás.
m Tinha a certeza de que a minha lança tinha acertado no. urso-
disse o homem m, mas não consegui ver onde tinha acertado. E melhor segui-lo de manhã. Um urso ferido pode ser perigoso e não sabemos quais
serão as próximas pessoas a usar este acampamento. Ayla foi examinar o rasto. m Acho que está a perder muito sangue. Talvez não vá longe disse ela --, mas eu estava preocupada com o Lobo. Era um animal muito grande. Podia tê-lo ferido.
m Não sei bem se o Lobo devia ter atacado daquela forma. Podia ter feito com que o urso perseguisse outra pessoa, mas foi corajoso da sua parte e fico contente por ver que ele é tão pronto a proteger-te. Gostava de saber o que é que ele faria se alguém tentasse realmente fazer-te mal disse Jondalar.
-- Não sei, mas a Whinney e o Corredor estavam inquietos por causa do urso. Acho que you ver como estão.
Jondalar também os quis ir ver. Descobriram que os cavalos se tinham aproximado da fogueira. Há muito que a Y¢hinney descobrira que o lume feito pelas pessoas normalmente significava segurança, mas o Corredor estava a aprender por experiência própria, além de com a mãe. Pareceram ficar calmos depois das palavras reconfortantes e das festas das pessoas em quem confiavam, mas Ayla sentia-se inquieta e sabia que iria ter dificuldade em voltar a adormecer. Decidiu fazer mais um pouco de chá calmante e entrou na tenda para ir buscar a sua bolsa medicinal de pele de lontra. Enquanto as pedras de cozinhar estavam a aquecer, ela acariciou a pele da bolsa gasta, lembrando-se de quando Iza lha tinha dado e recordando a sua vida com o Clã, especialmente o último dia. Por que é que Creb teve de voltar a entrar na caverna? Talvez ainda estivesse vivo, embora estivesse a ficar velho e fraco. Mas não estava fraco durante aquela última cerimónia na noite anterior, quando fez Goov o novoMog-ur. Estava de novo forte, o Mog-ur, exactamente como era dantes. O Goov nunca será tão poderoso como Creb.
Jondalar reparou que ela estava pensativa. Pensou que ela ainda estava apensar ma criança que tinha morrido e no filho que nunca mais veria, e não sabia bem o que dizer. Queria ajudá-la, mas não se queria intrometer. Estavam sentados os dois bem junto da fogueira, a beber o chá, quando Ayla olhou por acaso para o céu. Susteve a respiração.
Olha, Jondalar disse ela.-O céu. Está vermelho, como lume, mas lá no alto e ao longe. Que d?
-- Fogos de Gelo! disse ele.-É isso que lhe chamamos quando d assim vermelho, ou por vezes chamamos-lhe Fogos do Norte.
Observaram o espectáculo luminoso durante algum tempo, enquanto as luzes do norte corriam pelo céu como véus diáfanos a soprar com um vento cósmico.
Term faixas brancas disse Ayla e está a mover-se, como plumas de fumo ou como se uma água branca como giz estivesse a correr por entre ela. E também term outras cores.
-- Fumo de Estrelas, como lhe chamam, ou Nuvens de Estrelas, quando é branco. Term nomes diferentes. A maioria das pessoas sabe a que é que nos estamos a referir quando usamos um nome como esse.
Por que será que nunca vi esta luz no céu antes? m disse Ayla, sentindo-se intimidada e ligeiramente temerosa..
Talvez tenhas vivido demasiado a sul. E por isso que também se chamam Fogos do Norte. Não os vi muitas vezes e nunca tão fortes como estes, nem tão vermelhos, mas as pessoas que fizeram Viagens pelo norte dizeíh que quanto mais para norte se vai, mais se vêem. Mas o máximo que se pode ir para norte é até ao muro de gelo.
"Pode-se viajar para norte para além do gelo, se se for por água. A oeste do sítio onde eu nasci, a vários dias de distância) dependendo da estação, a terra chega ao fim junto à orla das Grandes Aguas. São muito salgadas e nunca gelam, embora às vezes se vejam grandes pedaços de gelo. Dizem que há pessoas que viajaram para lá do muro de gelo em barcos, quando andavam à caça de animais que vivem na água dise Jondalar.
Queres dizer como os barcos que os Mamutoi usavam para atravessar os rios?
Sim, como eles, creio, mas maiores e mais fortes. Nunca os vi e não sabia bem se acreditava nas histórias atd conhecer os Sharamudoi e ver os barcos que eles faziam. Crescem muitas árvores ao longo do Rio Mãe, perto do seu Acampamento, árvores grandes. Eles fazem barcos com elas. Verás quando os conheceres. Não irás acreditar, Ayla. Não se limitam a atravessar o rio, viajam nele, naqueles barcos, e nåo só a favor da corrente como também contra ela.
Ayla reparou no seu entusiasmo. Estava cheio de vontade de os voltar a ver, agora que já resolvera o seu dilema. Mas ela não estava apensar no encontro com a outra gente de Jondalar. A estranha luz no céu preocupava-a. Não sabia exactamente porquê. Era enervante e gostava de saber o que ela significava, mas não a encheu de medo como as perturbações na terra enchiam. Ficava aterrorizada com quaisquer movimentos da terra, especialmente tremores de terra, não apenas porque o facto de abalarem aquilo que devia ser terra sólida já era em si assustador, mas
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porque tinham sempre assinalado uma mudança drástica e terrível na sua vida.
Um tremor de terra timha-a arrancado à sua própria gente e tinha-lhe dado uma infância estranha a tudo o que conhecia, e um tremor de terra tinha-a levado ao ostracismo do Clã, ou pelo menos dado um pretexto a Broud para o fazer. Até a erupção vulcânica lá longe a sudeste que os tinha coberto de uma cinza fina e em pó pareceu ter prenunciado a sua partida dos Mamutoi, embora a opção tivesse sido dela e não forçada sobre ela.
Mas ela não sabia o que os sinais do céu significavam, nem sequer se aquilo era um sinal. m Tenho a certeza de que o Creb diria que um céu como este era um
sinal de qualquer coisa-disse Ayla. m Ele era o mais poderoso mog-ur de todos os clãs e uma coisa destas faria com que quisesse meditar até compreender o que significava. Também creio que o Mamut acharia que era um sinal. Que é que achas, Jondalar? Será um sinal de alguma coisa? Talvez de qualquer coisa.., que não seja boa?
-- Eu... eu não sei, Ayla. m Estava hesitante em contar-lhe qual era a crença da sua gente quando as luzes do norte eram vermelhas, pois isso era frequentemente considerado um aviso, mas não sempre. Por vezes era apenas o presságio de qualquer coisa importante. Não sou Um Que Serve a Mãe. Pode ser um sinal de qualquer coisa boa.
-- Mas estes Fogos de Gelo são um sinal poderoso de qualquer coisa, não são?
-- Sim, normalmente são. Pelo menos a maioria das pessoas assim acha.
Ayla misturou um pouco de raiz de aquilégia e de absinto no seu chá de camomila, fazendo para si uma bebida bastante mais forte que um chá calmante, mas sentia-se inquieta depois de o urso teraparecido no acampamento e com o estranho clarão no céu. Mesmo com o sedativo, Ayla sen- riu que resistia ao sono. Experimentou todas as posições para adormecer, primeiro de lado, depois de costas, depois do outro lado, até de barriga para baixo, e tinha a certeza de que as voltas que dava estavam a incomodar Jondalar. Quando finalmente adormeceu, o seu sono foi perturbado por sonhos intensos.
Um rugido estilhaçou o silêncio, e as pessoas que observavam saltaram para trás com medo. O enorme urso das cavernas empurrou o portão da jaula e fê-lo cair no chão com um estrondo. O urso enlouqz'ecido estava à solta! Broud estava de pé sobre os seus ombros; dois outros homens agar- ravam o seu pêlo. Subitamente, um deles foi agarrado pela sua poderosa pata, mas o seu grito agonizante cessou bruscamente quando o urso lhe partiu a espinha. Os mog-urs pegaram no corpo e, com uma dignidade so-
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lene, levaram-no para a caverna. Creb, na sua capa de pele de urso, coxeava à frente.
Ayla olhou f¿r.amente para um líquido branco a mover-se numa tigela de madeira estalada. O líquido tornou-se vermelho sangue, tornou-se mais espesso, enquanto faixas brancas e luminosas ondulavam len tamente através dele. Sentiu-se preocupada e ansiosa, pensando que tinha feito qualquer coisa mal. Não era suposto restar nenhum líquido na tigela. Le- vou-a aos lábios e esvaziou-a.
A sua perspectiva alterou-se, a luz branca estava dentro dela e ela parecia estar a tornar-se maior e esta r a olhar de cima para as esrelas que
ardiam ao formar um caminho. As estrelas transformaram-se em pequenas luzes tremeluzentes, estendendo-se por uma caverna infindável. Depois, ao fundo, uma luz vermelha tornou-se grande, enchendo o seu campo de visão e, com uma sensação de desespero e náusea, viu os mogurs sentados num círculo, semiocultos por estalagmites.
Ela estava a afundar-se cada vez mais num abismo negro, petrifica- da de medo. Subitarnente, Creb estava all com a luz brilhante dentro de- la, a ajadá-la, a ampará-la, a acalmar os seus medos. Guiou-a numa estranha viagem de regresso aos seus princípios mútuos, através de água salgada e de dolorosas inspiraç5es de ar, de terra margosa e árvores muito altas. Depois estavam no solo, a andar erectos sobre duas pernas, a percorrer uma grande distância, a irem para oeste em direcção a um grande mar salgado. Chegaram a um muro íngreme que dava para um rio e uma planície plana, com uma profunda reentrância sob uma grande parte saliente; era a caverna de um antigo antepassado dele. Mas ao aproximarem-se da caverna, Creb começou a desaparecer, deixando-a.
A cena tornou-se indistinta, Creb estava a desaparecer cada vez mais rapidamente, quase se fora e ela sentiu-se a começar a entrar em pdnico.
-- Creb.t Não vds, por favor não vás!--gritou. Perscrutou a paisagem, procurando-o desesperadamente. Depois viu-o no cimo da fal¿sia, por
cima da caverna do seu antepassado, perto de uma grande pedra, uma coluna de rocha comprida e ligeiramente achatada que pendia sobre a borda, como se all tivesse congelado ao ir a cair. Ela voltou a gritar-lhe, mas
ele tinha desaparecido na rocha. A yla sentiu-se desolada; Creb tinha de- sapareciclo e ela estava sozinha, trespassada pela dor, lamentando não ter
nada dele com o qual recordá-lo, algo que pudesse tocar, segurar, mas a única coisa que tinha era uma dor avassaladora. Subitamente estava a correr, a correr o mais depressa que podia; tinha de fugir, tinha de fugir.
-- Ayla! Ayla! Acorda! -- disse Jondalar, abanando-a.-Jondalar-disse ela, sentando-se. Depois, ainda sentindo a desolação, agarrou-se a ele enquanto as lágrimas lhe caíam pelo rosto.-Ele desapareceu... Oh, Jondalar.
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-- Está tudo bem-disse ele, abraçando-a.-Deve ter sido um sonho
hon'ívl. Estavas a gritar e a chorar. Achas que ajuda se me contares? --Era o Creb. Sonhei com o Creb e com aquela altura no Encontro do Clã quando fui para a caverna e aconteceram aquelas coisas estranhas. Ele fic¢.u aborrecido comigo durante muito tempo. Depois, quando está-var.os finalmente a voltar ao que éramos, ele morreu, antes sequer de podernos falar muito. Ele disse-me que o Durc era filho do Clã. Nunca soube bem o que isso queria dizer. Havia tantas coisas sobre as quais eu gostava de ter podido falar com ele. Algumas pessoas apenas o viam como um poderoso Mog-ur, e a falta do olho e do braço faziam-no parecer feio e ainda mais assustador. Mas não o conheciam. O Creb era sábio e bon- doso. Compreendia o mundo dos espíritos, mas também compreendia as pessoas. Queria falar-lhe no meu sonho, e creio que ele estava a tentar falar comigo.
-- Talvez estivesse. Eu nunca consegui compreender os sonhos-disse Jondalar.-Já te sentes melhor?
--Já estou bem-disse Ayla --, mas gostava de saber mais sobre os sonhos.
--Acho que não deves ir sozinho à procura do urso-disse Ayla depois do p.equeno-almoço.-Foste to que disseste que um urso ferido podia ser perigoso.
-- Terei atenção.
-- Se eu for contigo, podemos ambos estar atentos, e não será mais seguro para mim ficar aqui no acampamento. O urso pode voltar enquanto estiveres ausente.
-- Isso é verdade. Está bem, vem.
Meteram-se pela floresta, seguindo o rasto do urso. O Lobo decidiu ir atrás do urso e mergulhou no meio da cobertura vegetal à sua frente, dirigindo-se rio acima. Tinham andado menos de dois quilómetros quando ouviram uma sarrafusca mais à frente, rosnar e latidos. Apressaram-se a ir ver o que era e depararam com o Lobo, de pëlos em pé, a rosnar ferozmente e baixinho, mas de cabeça baixa e com o rabo entre as pernas, mantendo uma certa distância de uma pequena alcateia de lobos que guardavama carcaça castanha do urso.
--Pelo menos não temos de nos preocupar com um urso ferido perigoso-dss.e Ayla, empunhando a lança e o lançador prontos a disparar.
-- E apenas uma alcateia de lobos perigosos.-Jondalar também estara pronto a atirar a sua lança.-Queres alguma carne de urso?
-- Não, temos carne suficiente. Não tenho espaço para mais. Deixê-mos-lhes o urso.
-- Não me interessa a carne, mas não me importaria de ficar com as unhas e os dentes grandes m disse Jondalar.
k Por que é que não os tiras? São teus por direito próprio. Mataste o urso. Eu posso afugentar os lobos com a minha funda durante o tempo que for preciso para os tirares.
Jondalar achou que isso era uma coisa que ele não tentaria fazer sozinho. A ideia de afugentar uma alcateia de lobos da carne que tinham assumido como sua parecia-lhe uma coisa perigosa, mas lembrou-se do
que ela tinha feito na véspera quando afugentara as hienas.
-- Então, força-disse ele, puxando da faca afiada.
O LObo ficou muito excitado quando Ayla começou a atirar pedras para afugentar a alcateia e ficou de guarda à carcaça do urso enquanto Jondalar cortava rapidamente as unhas. Foi bastante mais difícil tirar os dentes dos maxilares, mas não tardou que o homem tivesse os seus troléus. Ayla estava a observar o Lobo, a sorrir. Assim que a sua "alcateia" afugentou a alcateia selvagem, os seus modos e postura mudaram. Tinha a cabeça bem erguida, o rabo direito e a postura de um lobo dominante, e o seu rosnar era mais agressivo. O chefe da alcateia estava a observá-lo atentamente e parecia prestes a desafiá-lo.
Depois de terem devolvido a carcaça do urso à alcateia e já se item embora, o chefe da alcateia lançou a cabeça para trás e uivou. Era um uivo forte e sonoro. O Lobo ergueu a cabeça e uivou em resposta, mas a sua canção não tinha a mesma ressonância. Era mais novo, ainda não completamente adulto, e isso estava patente no seu tom.
-- Anda, LObo. Esse é maior que to, já para não dizer que é mais velho e mais sábio. Punha-te de patas para o ar em três tempos-disse Ayla, mas o LObo voltou a uivar, não em desafio, mas porque estava numa comunidade da sua própria espécie.
Os outros lobos da alcateia juntaram-se-lhes, até que Jondalar se sentiu rodeado por um coro de latidos e uivos. Depois, apenas porque lhe apeteceu, Ayla ergueu a cabeça e uivou. O seu uivo fez que o homem sentisse um arrepio pela espinha abaixo e ficasse com pele de galinha. Ao seu ouvido, era uma imitação perfeita dos lobos. Até o Lobo inclinou a cabeça na sua direcção e depois deu um novo e prolongado uivo num tom mais comíante. Os outros lobos responderam-lhe da mesma forma, e a floresta encheu-se de novo com a bela e arrepiante canção dos lobos.
Quando chegaram ao acampamento, Jondalar limpou as unhas e os dentes caninos do urso, enquanto Ayla carregava a Whinney, e ele ainda estava a arrumar as suas coisas quando ela acabou. Ela estava encostada à égua, a coçá-la distraidamente e a sentir o conforto da sua presença, quando reparou que o Lobo tinha encontrado um outro osso apodrecido. Desta vez, manteve-se afastado, na orla da clareira, a rosnar divertido com o seu prémio, a olhar para a mulher, mas sem fazer qualquer tentativa para lho levar.
--Lobo! Vem cá, Lobo/ Ele deixou cair o osso e foi para junto dela. m Acho que é altura de te ensinar outra coisa nova-disse ela.
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Queria ensiná-lo a ficar num determinado sítio quando ela mandasse, mesmo que ela se fosse embora. Era uma ordem que ela achava que era importante que ele aprendesse, embora receasse que ele demorasse muito tempo a aprender. A julgar pela recepção que até aí tinham tido das pessoas que tinham encontrado, Ayla temia que ele fosse atrás de estranhos de uma outra "alcateia" de seres humanos.
Ayla tinha em tempos prometido a Talut que ela própria mataña o lobo se ele alguma vez fizesse mal a alguém do Acampamento do Leão e continuava a sentir que tinha a responsabilidade de assegurar que o animal carnívoro que levara para viver com as pessoas não faria mal a ninguém. Para além disso, preocupava-se com a sua segurança. A sua abordagem ameaçadora causava imediatamente uma reacção defensiva e ela tinha medo de que um caçador mais assustado tentasse matar o estranho lobo que parecia ameaçar o seu Acampamento antes de ela o poder impedir.
Decidiu começar por tentar amarrá-lo a uma árvore e dizer-lhe para ficar all enquanto ela se afastava, mas a corda que ele tinha ao pescoço estava demasiado lassa e ele passava a cabeça e soltava-se. Da vez seguinte, amarrou-a mais apertada, mas teve medo que o estrangulasse se estivesse demasiado apertada.
Como já suspeitav.a, ele ganiu e uivou e saltou e tentou segui-la quando ela se afastou. A distância de vários metros, gritou-lhe para lá ficar, fazendo-lhe sinal de parar com a mão.
Quando ele finalmente se acalmou, ela regressou e elogiou-o. Depois de mais algumas tentativas, viu que Jondalar estava pronto e deixou o Lobo ir. Já chegava de treino por um dia, mas depois de se esforçar por desatar os nós que oLobo tinha apertado ainda mais com os seus puxões, ela não ficou nada agradada com a corda em volta do seu pescoço. Primeiro tinha de a ajustar bem, nem demasiado apertada nem demasiado lassa, e depois via que era difícil desatar os nós. Teria de pensar nisso.
mAchas mesmo que vais conseguir ensiná-lo a não ameaçar os estranhos? mperguntou Jondalar, depois de observar as primeiras tentativas aparentemente sem êxito. mNão me disseste que é natural os lobos des- confiarem dos outros? Como é que podes esperar ensinar-lhe uma coisa que vai contra as suas tendências naturais? m Montou o Corredor enquanto, ela guardava a corda e subia para o dorso da Whinney.
-- E uma tendência natural esse cavalo deixar-te montar no seu dorso? m perguntou ela.
--Não creio que seja a mesma coisa, Ayla-disse Jondalar enquanto saíam do local onde tinham acampado a cavalo, lado a lado. m Os cavalos comem erva, não comem carne, e creio que são por natureza mais pre- dispostos a evitarem problemas. Quando vêem estranhos, ou qualquer coisa de ameaçador, querem fugir. Um garanhão poderá por vezes lutar com outro garanhão, ou com qualquer coisa que o ameace directamente,
mas o Corredor e a Whinney querem fugir a situações estranhas. O Lobo põe-se na defensiva. Está muito mais pronto para lutar.
mEle também fugiria, Jondalar, se fugíssemos com ele. Põe-se na defensiva porque nos está a proteger a nós. E, sim, ele come carne, e pode matar um homem, mas não o faz. Não creio que o fizesse a menos que um de nós estivesse a ser ameaçado. Os animais podem aprender, exactamente como as pessoas. Não é a sua tendência natural pensar que pessoas e cavalos fazem parte da sua "alcateia". Até a Whinney aprendeu coisas que não teria aprendido se vivesse com outros cavalos. Até que ponto é natural um cavalo achar que um lobo é seu amigo? Ela até teve um leão das cavernas como seu amigo. Será isso uma tendência natural?
-- Talvez não m disse Jondalar m, mas posso-te dizer que fiquei extremamente preocupado quando o Bébé apareceu no Encontro de Verão e to foste ter com ele montada na Whinney. Como é que sabias que ele se
lembrava de ti? Ou da Whinney? Ou que a Whinney se lembraria dele? -- Cresceram juntos. O Bebé... quero dizer, o Bebé...
A palavra que ela usou significava "bebé", mas tinha um som e uma inflecção estranha, diferente de qualquer linguagem que ela e Jodalar normalmente falavam, uma qualidade áspera e gutural, como se fosse dita com a garganta. Jondalar não a conseguia reproduzir, mal conseguia fazer um som aproximado; era uma das relativamente poucas palavras faladas da linguagem do Clã. Embora ela a tivesse dito com frequência suficiente para ele a reconhecer, Ayla tinha adquirido o hábito de traduzir de imediato qualquer palavra do Clã que por acaso usasse para tornar a compreensão mais fácil. Quando Jondalar se referia ao leão que Ayla criara desde bebé, usava a forma traduzida do nome que ela lhe dera, mas pareceu-lhe sempre incongruente um gigantesco leão das cavernas ter o nome de Bebé.
--... OBebé era.., uma cria quando eu o encontrei, um bebé. Ainda não tinha sido desmamado. Tinha apanhado uma patada na cabeça de um veado em fuga, creio, e estava quase morto. Foi por isso que a mãe o deixou. Ele também era um bebé para a Whinney. Ela ajudou-me a cuidar dele.., foi tão engraçado quando começaram a brincar um com o outro, especialmente quando o Bebé se aproximava disfarçadamente para tentar apanhar o rabo da Whinney. Sei que havia alturas em que ela o abana- va à frente dele de propósito. Ou cada um apanhava a extremidade de uma pele e tentava rirá-la ao outro. Perdi tantas peles nesse ano, mas eles fizeram-me rir.
A expressão de Ayla tornou-se pensativa.
m Só nessa altura é que aprendi a rir. As pessoas do Clã não se riam
alto. Não gostavam de ruídos desnecessáños e os sons altos eram normalmente feitos como avisos. E esse ar de que to gostas, com os dentes à mostra, a que nós chamamos sorriso? Para eles o seu significado era que estavam nervosos, ou a proteger e defender ou, acompanhado de um
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determinado sinal de mão, implicava um gesto ameaçador. Para eles não era um ar feliz. Quando eu era pequena não gostavam que eu sorrisse ou risse, portanto aprendi a não fazer isso muitas vezes.
Foram pela beira do rio durante algum tempo, numa extensão plana e larga coberta de gravilha.
--Muitas pessoas sorriem quando estão nervosas e quando encontram estranhos m disse Jondalar. m Mas não é suposto ser um ar defensivo ou ameaçador.
Seguindo à frente em fila indiana, Ayla inclinou-se para o lado para guiar o cavalo para contornar um arbusto que crescia junto a um ribeiro a caminho do rio. Depois de Jondalar ter inventado uma espécie de ca- bresto que utilizava para guiar o Corredor, Ayla também começou a usar um para ocasionalmente a ajudar a guiar a Whinney, ou para a prender a qualquer coisa para a manter num sítio, mas mesmo quando o cavalo o tinha posto, Ayla nunca o usava quando o montava. Quando saltou pela primeira vez para o dorso da égua, não tencionava treinar o animal, e o processo de aprendizagem mútua tinha sido gradual e, a princípio, inconsciente. Apesar de assim que se apercebeu do que estava a acontecer a mulher ter começado deliberadamente a treinar o cavalo a fazer certas coisas, f'e-lo sempre dentro do âmbito da profunda compreensão que se desenvolvera entre ambas.
Mas se um sorriso é suposto mostrar que não se term medo, isso não significa que se pensa que não há nada de que ter medo? Que uma pessoa se sente forte e sem nada a temer? perguntou Ayla, quando voltaram a ficar lado a lado.
Nunca pensei nisso. O Thonolan sorria sempre e parecia tão confiante quando encontrava novas pessoas, mas nem sempre estava tão seguro quanto parecia. Tentava fazer que as pessoas pensassem que ele não tinha medo, portanto creio que se poderá dizer que era um gesto defensivo, uma forma de dizer: Sou forte e não tenho nada a temer de vocês.
E mostrar a própria força não é uma forma de ameaçar? Quando o Lobo mostra os dentes aos estranhos, não está a mostrar-lhes a sua força? m insistiu Ayla.
Pode haver qualquer coisa de comum, mas existe uma grande diferença entre um sorriso de boas-vindas e o Lobo a mostrar os dentes e a rosnar.
-- Sim, isso é verdade concedeu Ayla. Um sorriso faz-nos sentir felizes.
-- Ou pelo menos aliviados. Quando encontras um estranho e ele retribui o teu sorriso, isso normalmente significa que te foram dadas as boas-vindas e portanto sabes qual é a situação em que estás. Nem todos os sorrisos se destinam necessariamente a fazer-nos felizes.
Talvez a sensação de alívio seja o princípio de nos sentirmos felizes m disse Ayla. Continuaram em silêncio durante algum tempo; depois a
mulher continuou.-Acho que há qualquer coisa de semelhante numa pessoa que sorri numa saudação quando se sente nervoso ao pés de estranhos, e as pessoas do Clã terem um gesto na sua linguagem de mostrar os dentes e que significa que estão nervosos ou que implica uma ameaça. E quando o Lobo mostra os dentes aos estranhos, está a ameaçálos porque se sente nervoso e protector.
-- Depois, quando nos mostra os dentes a nós, ou à sua própria alcateia, isso é o seu sorriso-disse Jondalar.-Há alturas em que me convenço de que está a sorrir e sei que ele brinca contigo. Também tenho a certeza de que te ama, mas o problema é que 4 natural ele mostrar os dentes e ameaçar as pessoas que não conhece. Se te está a proteger, como é que o vais treinar para ficar onde to o mandares ficar, se não estás lá? Como é que lhe podes ensinar a não atacar estranhos se ele decidir fazê-lo? --A preocupação de Jondalar era séria. Não estava bem certo de que le- varem consigo o animal tinha sido lá muito boa ideia. OLobo podia criar muitos problemas.-Lembra-te que os lobos atacam para se alimenta- rem; foi assim que a Mãe os fez. OLobo é um caçador. Podes ensinarlhe multas coisas, mas como é que podes ensinar um caçador a não ser caçador? A não atacar estranhos?
-- To eras um estranho quando foste para o meu vale, Jondalar. Lembras-te quando o Bebé voltou para me visitar e te encontrou lá? -- perguntou Ayla, enquanto se separaram de novo e seguiram em fila indiana para atravessar uma ravina que ia do rio em direcção às terras altas.
Jondalar sentiu uma onda de calor, não propriamente de embaraço, mas uma recordação das fortes emoções desse encontro. Nunca tinha ti- do tanto medo na vida; tinha tido a certeza de que ia morrer.
Levaram algum tempo a atravessar a pequena ravina em volta de tochas que eram arrastadas durante as inundações da Primavera e de arbustos de artemísia de caules negros que irrompiam em vida quando as chuvas chegavam e voltavam a transformar-se em caules secos que pa- reciam mortos quando estas paravam. Pensou na altura em que o Bebé tinha voltado ao sítio onde Ayla o criara e encontrara um estranho na plataforma larga em frente da sua pequena caverna.
Nenhum deles era pequeno, mas o Bebé era o maior leão das cavernas que ele alguma vez vira, quase tão alto quanto a Whinney e mais encorpado. Jondalar ainda estava a convalescer dos ferimentos feitos por esse mesmo leão, ou pela sua companheira, quando ele e o irmão tinham imprudentemente entrado no seu covil. Tinha sido a última coisa que Thonolan faria. Jondalar tinha a certeza de estar a viver os seus últimos momentos quando o leão das cavernas rugiu e se preparou para saltar. Subitamente, Ayla estava entre eles, de mão erguida num sinal de parar, e o leão tinha parado! Se ele não estivesse tão petrificado, teña achado cómica a forma como o enorme animal travou o salto e se contorceu e
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desviou para não a atingir. Logo a seguir, deparara com a cena dela a coçar o gigantesco gato e a brincar com ele.
m Sim, lembro-me m disse ele quando chegaram à terra alta e volta-
ram a ficar lado a lado. m Continuo sem saber como é que o fizeste parar a meio do seu ataque a mim.
m Quando o Bebé era ainda pequeno, brincava a atacar-me, mas quando começou a crescer, tornou-se grande de mais para eu poder brincar com ele a esse jogo: Era demasiado bruto. Tive de o ensinar a parar explicou Ayla. Agora tenho de ensinar o lobo a não atacar estranhos e a ficar para trás se eu o mandar. Não só para não fazer mal às pessoas, mas também para elas não lhe fazerem mal a ele.
Se há alguém que o possa ensinar, essa pessoa és to, Ayla disse Jondalar. Ela tinha apresentado argumentos claros e, se conseguisse, isso tornaria mais fácil viajar com o Lobo, mas ele continuava a interrogar-se quais seriam os problemas que o lobo ainda lhes poderia trazer. Tinha atrasado a sua travessia do rio e roído as suas coisas, embora aparentemente Ayla tivesse também resolvido esse problema. Não que ele não gostasse do animal. Gostava. Era fascinante observar um lobo de tão perto, e surpreendeu-o ver como o Lobo era amigável e afectuoso, mas exigia mais tempo, atenção e alimentos. Os cavalos também precisavam de cuidados, mas o Corredor corréspondia lindamente a ele e eram uma ajuda verdadeira. A viagem de volta ia ser bem difícil; dispensavam per- feitamente um animal que dava quase tantas preocupações como uma criança.
"Uma criança, isso sim, seria um problema", pensou Jondalar enquanto continuavam. "Só espero que a Grande Terra Mãe não dê uma criança a Ayla antes de chegarmos. Sejá lá estivéssemos instalados, seria diferente. Nessa altura podemos pensar em crianças. Não que possamos fazer nada, a não ser pedir à Mãe. Como seria ter um pequenino?"
"E sea Ayla tiver razão? E se as crianças forem começadas com os Prazeres? Mas já estamos juntos há algum tempo e ainda não há qualquer sinal de crianças. Term de ser a Doni que põe o bebé dentro da mulher, mas e se a Mãe decidir não dar uma criança a Ayla? Ela já teve um, muito embora fosse misturado. Quando a Doni dá uma criança, normalmente dá mais. Talvez seja de mim. Será que a Ayla pode ter um bebé que venha do meu espírito? Alguma mulher poderá?"
"Já compartilhei os Prazeres e honrei a Doni com multas. Será que al- guma delas teve um bebé que eu tenha começado? Como é que um homem sabe? O Ranec soube. A sua cor era tão forte e as suas feições tão invulgares que se via a sua essência em algumas das crianças no Encontro de Verão. Eu não tenho uma cor ou feições tão fortes.., ou terei?"
"E daquela vez que os caçadores Hadumai nos detiveram no caminho para cá? Aquela velha Haduma queria que a Noria tivesse um bebé com olhos azuis como os meus, e depois dos seus Primeiros Ritos a Noria disse-me que teria um filho do meu espírito, com os meus olhos azuis. A Haduma tinha-lhe dito. Será que ela chegou a ter esse bebé?"
"A Serenio pensava que talvez estivesse grávida quando me vim embora. Será que ela teve uma criança com olhos azuis, da cor dos meus? A Serênio tinha um filho, mas nunca mais teve nenhum depois dele e o Darvo era quase um homem. Que é que ela pensará da Ayla e que é que a Ayla pensará dela?"
"Talvez ela não estivesse grávida. Talvez a Mãe ainda não tenha esquecido o que eu fiz e esta seja a Sua maneira de me dizer que não mereço uma criança no meu lar. Mas Ela deu-me a Ayla. A Zelandoni disse- -me sempre que aDoni nunca me recusaria nada que eu Lhe pedisse, mas avisou-me para ter cuidado com o que pedisse, porque o teria, disse-me ela. Foi por isso que me obrigou a prometer que não a pediria à Mãe, quando era ainda Zolena."
"Por que é que alguém pediria uma coisa se não a quisesse? Nunca compreendi realmente os que falam com o mundo dos espíritos. Têm quase sempre uma sombra na sua língua. Costumavam dizer que Thonolan era um favorito da Doni, quando falavam da sua habilidade em dar-se com as pessoas. Mas depois dizem que é preciso ter cuidado com os favores da Mãe. Se Ela concede demasiados favores, não quer que se esteja longe Dela durante muito tempo. Terá sido por isso que Thonolan morreu? Tê-lo-á a Grande Mãe Terra levado de volta? Qual é o verdadeiro significado quando dizem que a Doni favorece alguém?"
"Não sei se Ela me favorece ou não. Mas agora sei que a Zolena fez a escolha certa quando decidiu entrar para a zelandonia. Também foi certo para mim. O que eu fiz foi errado, mas eu nunca teria feito a Viagem com o Thonolan se ela não se tivesse tornado Zelandoni, e nunca teria encontrado a Ayla. Talvez Ela me favoreça um pouco, mas não me quero aproveitar da bondade da Doni para comigo. Já Lhe pedi para nos levar de volta sãos e salvos; não Lhe posso pedir que dê a Ayla uma criança do meu espírito, sobretudo agora. Mas será que ela algumavez terá alguma?"
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Ayla e Jondalar abandonaram o rio que tinham vindo a seguir, virando para oeste no seu percurso em geral em direcção a sul, e embrenharam-se no campo. Foram dar ao vale de um outro grande curso de água que corria para este para se ir juntar, mais a jusante, àquele que tinham deixado. O vale era largo, com uma vertente suave e verdejante que dava para um rio veloz que atravessava o meio de uma planície aluvial cheia de roch.as de vários tamanhos, desde grandes pedras a gravilha arenosa e fina. A excepção de alguns tufos de erva e de uma ocasional erva em flor, o curso rochoso era árido, desprovido de vegetação pelo dilúvio da Primavera. Alguns troncos de árvore, árvores inteiras sem folhas e sem casca, estavam espalhadas pela clareira rochosa, enquanto um emaranha- do de vegetação rasteira e pequenos arbustos com folhas acinzentadas e peludas crescia junto à orla. Uma pequena manada de veados gigantes, cujos extravagantes chifres palmados faziam que as grandes armações dos alces parecessem pequenas, estavam a pastar ao longo da franja de salgueiros agrupados na terra baixa húmida perto da água.
OLobo estava animadíssimo e tinha vindo a meter-se por entre e em volta das patas dos cavalos, sobretudo do Corredor. A Whinney parecia conseguir ignorar a sua exuberância, mas o garanhão era mais excitável. Ayla achava que o jovem cavalo teria respondido de igual modo à brincadeira do Lobo se o deixassem, mas com Jondalar a guiar os seus movimentos, as cabriolas do lobo apenas o distraíam. O homem não estava satisfeito, pois isso exigia um controlo mais apertado sobre o cavalo. A sua irritação estava a aumentar e estava apensar se deveria perguntar a Ayla se não conseguia manter o lobo longe do Corredor.
Subitamente, para alívio de Jondalar, o Lobo afasteu-se a correr. Tinha sentido o cheiro dos veados e ido investigar. A sua primeira visão das compridas pernas de um veado gigante foiirresistível; oLobo decidiu que era um outro animal alto de quatro paras com quem podia brincar. Mas quando o macho do qual se aproximou baixou a cabeça para se defender do animal que investia contra ele, o Lobo parou. Os chifres magnifica- mente afastados do poderoso veado tinham mais de três metros de comprimente! O grande animal mordiscava a erva de folha larga aos seus pés, não sem prestar atenção ao carnívoro, mas indiferente a ele, como se soubesse que pouco tinha a temer de um lobo solitário.
Ayla, que o observava, sorriu.
m Olha para ele, Jondalar. OLobo pensou que aquele megaceros era
outro cavalo que podia arreliar. Jondalar também sorriu. u Está com um ar surpreendido. Os chifres são um pouco mais do que
ele esperava.
Avançaram lentamente em direcção à água, compreendendo, sem que fosse necessário dizê-lo, que nenhum deles queria espantar o enorme veado. Sentiram-se ambos profundamente impressionados ao aproximarem-se das enormes criaturas que se erguiam bem alto acima deles, mesmo a cavalo. Com uma graciosidade majestosa, a manada afastou-se ligeiramente quando as pessoas e os cavalos se aproximaram, não assustados, mas cautelosos, enquanto iam comendo as folhas castanhas dos salgueiros.
-- Também são um pouco mais do que eu esperava-disse Ayla.-Nunca estive tão perto deles.
Apesar de serem apenas ligeiramente maiores que os alces em tamanho físico, os gigantescos veados, com os seus magníficos e elaborados chifres que se estendiam da parte de cima da sua cabeça, pareciam enormes. Todos os anos, os fantásticos chifres caíam e o novo par que crescia para os substituir atingia dimensões maiores e de maior complexidade, acabando por terem quase quatro metros ou mais em alguns machos numa única estação. Mas mesmo quando a sua cabeça estava nua, o maior membro da tribe de veados era enorme comparado com qualquer outro da sua espécie. O seu pêlo espesso e os músculos massivos dos quartos dianteiros e do pescoço, que se tinham desenvolvido para suportar o peso dos enormes chifres, contribuíam para o seu aspecto impressionante. Os veados gigantes eram animais das planícies. Os prodigiosos chifres eram um estorvo na floresta e eles evitavam todas as árvores mais altas que arbustos;havia conhecimento de alguns terem morrido de fome por as suas gloriosas armações ficarem presas nos ramos de uma árvore.
Quando chegaram ao rio, Ayla e Jondalar pararam e estudaram o curso de água e a área envolvente para determinar qual seria o melhor lugar para atravessarem. O rio era fundo e a corrente rápida e grandes pedregulhos irregulares criavam cachoeiras em alguns sítios. Verificaram as condições a montante e a jusante, mas a natureza do rio parecia consistente em certa distância. Por fim, decidiram tentar atravessar num sítio que lhes pareceu relativamente livre de rochas.
Desmontaram ambos, amarraram os cestos-alforge ao dorso dos seus cavalos e meteram lá dentro as protecções de pernas e as peças de roupa exterior mais quentes que tinham vestido na madrugada fria. Jondalar tirou a camisa sem mangas e Ayla ainda pensou em despir-se por completo para não ter de se preocupar em secar a roupa, mas mudou de ideias quando experimentou a temperatura da água com um pé. Estava habi-
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tuada à água fria, mas aquele rio rápido parecia estar tão gelado como a água que tinha deixado ao relento durante a noite e que encontrara de manhã com uma fina camada de gelo à superñcie. Mesmo molhada, a tú-nica e as protecções de pernas de macia pele de veado dar-lhe-iam um certo calor.
Ambos os cavalos estavam agitados, afastando-se da margem da água com passos saltitantes, a relinchar e a abanar a cabeça. Ayla pôs o cabresto com a corda na Whinney para ajudar a guiar o cavalo pela água. Depois, apercebendo-se da crescente inquietação da égua, a jovem mulher abraçou o pescoço peludo e falou com ela na linguagem reconfortante e privada que inventara quando estavam as duas juntas no vale.
Tinha-a desenvolvido inconscientemente, baseando-se nos sinais complexos, mas sobretudo nas poucas palavras que faziam parte da linguagem do Clã, e acrescentara os sons repetitivos e sem sentido que ela e o filho tinham começado a usar e aos quais atribuíra significado. Também incluía sons de cavalo, dos quaìs tinha ganho percepção e aprendera a imitar, um ocasional grunhido e até alguns assobios de pássaro.
Jondalar virou-se para escutar. Embora estivesse acostumado a ela falar com o cavalo daquela forma, não fazia ideia do que ela estava a dizer. Ayla tinha uma capacidade impressionante de reproduzir os sons que os animais faziam-tinha aprendido a sua linguagem quando vivia sozinha, antes de ele a ter ensinado de novo a falar verbalmente-e ele achava que a linguagem tinha uma qualidade estranha e sobrenatural.
O Corredor estava a levantar as patas, a abanar a cabeça e a relinchar ansioso. Jondalar falou-lhe num tom suave enquanto o afagava e coçava. Ayla observou-o, reparando como as mãos maravilhosamente sensíveis do homem alto tinham um efeito calmante quase instantâneo no potro nervoso. Agradou-lhe ver a intimidade que se tinha desenvolvido entre ambos. Depois os seus pensamentos voltaram-se por instantes para a forma como as suas mãos a faziam sentir e corou ligeiramente. Não a acalmavam.
Os cavalos não eram os únicos animais nervosos. O Lobo sabia o que estava para acontecer e não lhe agradava a perspectiva de um banho frio. A ganir e a andar de um lado para o outro na margem, acabou por se sentar e, erguendo o focinho, uivou o seu desagrado num uivo triste.
m Vem cá, Lobo disse Ayla, baixando-se para abraçar o jovem animal.-
Também estás com medo?
-- Será que ele nos vai dar outra vez problemas a atravessar este rio? disse Jondalar, ainda aborrecido com o lobo por este o ter incomodado a ele e ao Corredor.
Para mim não é um problema. Ele só está um pouco nervoso, como os cavalos-dosse Ayla, interrogando-se por que é que o medo compreensível do Lobo parecia aborrecer Jondalar, especialmente quando se mostrava tão compreensivo quanto ao jovem garanhão.
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O rio estava frio, mas os cavalos nadavam bem e assim que se dei xaram convencer a entrar não tiveram qualquer problema em chegar à outra margem, guiando tanto os seres humanos como estes os guiaram a eles. Nem oLobo deu problemas. Saltou e ganiu na margem, avançando para a água fria e recuando várias vezes, mas depois acabou por mergulhar. Com o focinho bem erguido, nadou atrás dos cavalos que iam carregados com embrulhos e cestos e dos seres humanos que nadavam ao seu lado.
Assim que chegaram ao outro lado, pararam para mudar de roupa e para secar os animais, continuando depois o seu caminho. Ayla lembrou- -se de anteriores travessias de rios quando viajara sozinha depois de deixar o Clã e sentiu-se grata por ter os poderosos cavalos. Nunca era fácil ir de uma margem de um rio para a outra. No mínimo, quando se viajava a pé, normalmente implicava ficar molhado. Mas, com os cavalos, podiam atravessar muitos cursos de água mais pequenos ficando pouco mais que salpicados, e atd os rios maiores apresentavam menos dificuldade.
À medida que continuaram a viajar para sudoeste, o terreno mudou. Os montes das terras altas, que se tornavam mais altos ao aproximarem- se das montanhas a oeste, eram atravessados por profundos e estreitos vales com rios que tinham de atravessar. Havia dias em que Jondalar sentia qüe passavam muito tempo a subir e a descer, que faziam poucos progressos em termos de distância, mas os vales proporcionavam-lhes sí-tios para acampar abrigados do vento e os rios davam-lhes a água necessária numa terra que, à excepção destes, era seca.
Pararam no cimo de um monte alto dentro da área central das planí-cies montanhosas das terras altas que corriam paralelas aos rios. Um vasto panorama abria-se à sua vista em todas as direcções. A excepção das vagas formas acinzentadas das montanhas muito ao longe a oeste, a vista abrangente era ininterrupta.
Apesar de a terra ventosa e árida não poder ser mais diferente das estepes, estendendo-se monotonamente à frente dos dois cavaleiros com erva ondulante que fluía sobre suaves colinas, evocava o mar com a sua regularidade incaracterística. A analogia era mais profunda. Pois, apesar da sua monótona uniformidade, as antigas pastagens que estremeciam ao vento eram enganadoramente ricas e variadas e, à semelhança do mar, sustentava uma plêiade de vida profusa e exótica. Criaturas estranhas, exibindo um esplendor de adornos sociais biologicamente sumptuosos sob a forma de luxuriantes armações e chifres, grenhas, coleiras de penas ou pêlos em volta do pescoço, corcovas, compartilhavam as grandes estepes com outros animais que atingiam dimensões maguificentes.
Os gigantes peludos, mamutes e ñnocerontes, resplandecentes com o seu espesso pêlo de dupla camada longos pêlos caídos sobre uma
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camada quente e macia m, com espessas camadas de gordura, exibiam extravagantes dentes e exagerados cornos. Veados gigantes, ornamenta- dos com majestosas armações de enormes chifres palmados, pastavam ao lado de auroques, os esplêndidos antepassados das manadas do plácido gado doméstico, que eram quase tão enormes como os massivos bisontes que ostentavam os tais enormes chifres. Até os pequenos animais exibiam um tamanho que era resultado da riqueza das estepes; havia grandes jerboas, hamsters gigantes e esquilos que se contavam entre os maiores existentes em qualquer parte.
As extensas pastagens também sustentavam uma enorme quantidade de outros animais, muitos com proporções notáveis. Cavalos, burras e onagros compartilhavam espaço e comida nas terras baixas; carneiros selvagens, camurças e cabrites-monteses dividiam o terreno mais elevado. Antflopes de saiga corriam pelas terras baixas. Florestas em galeria ao longo de vales de rios, ou perto de lagos, e ocasionalmente estepes arborizadas e zonas de tundra acolhiam veados de todas as variedades, desde gamos sarapintados e meigos cabrites-monteses a alces e cervos e renas-chamados alces e caribus quando migravam para outras terras. Lebres e coelhos, ratos e arganazes, marmotas, esquilos terrestres e lé-mingues abundavam em enormes quantidades; sapos, rãs, cobras e sardaniscas tinham o seu lugar. Pássaros de tedas as formas e tamanhos, desde os grandes grous aos minúsculos pipetas, acrescentavam a sua voz e cor. Até os insectos tinham um papel a desempenhar.
As enormes manadas de ruminantes, bem como os animais que se alimentavam de grãos e ramos novos, eram limitados e controlados pelos carnívoros. Estes, que se adaptavam melhor na vasta gama de meios ambientes e podiam viver onde quer que as suas presas vivessem, também atingiam enormes dimensões devido à abundância e qualidade dos alimentos disponíveis. Gigantescos leões das cavernas, que chegavam a atingir o dobro do tamanho dos seus posteriores descendentes do sul, caçavam os jovens e velhos até dos maiores ruminantes, embora um mamute peludo no seu auge pouco tivesse a temer. A habitual escolha dos grandes felinos era os enormes bisontes, auroques e gamos, enquanto al- cateias de descomunais hienas e lobos escolhiam caça de tamanho médio. Dividiam as abundantes presas com linces, leopardos e pequenos gates selvagens.
Monstruosos ursos das cavernas, essencialmente vegetarianos e apenas caçadores ocasionais, tinham o dobro do tamanho dos ursos castanhos ou pretos mais pequenos, que também preferiam uma dieta omnívora que incluía erva, embora o urso branco das costas geladas subsistisse com carne do mar. Ferozes lobas e furões das estepes alimentavam-se dos animais mais pequenos, incluindo o vasto número e variedade de roedores, o mesmo acontecendo com as sinuosas zibelinas, doninhas, furões, marras e visons que se tornavam arminhos na neve. Algumas raposas também ficavam brancas, ou do cinzento rico. chamado azul, para condizer com a paisagem de Inverno e caçar ocultas. Aguias castanhas e douradas, falcões, gaviões, corvos e corujas, apanhavam insuspeitas ou desafortunadas presas em voos rasantes, enquanto os abutres e os milhafres negros limpavam os restos dos outros no solo.
A grande diversidade e dimensão dos animais que viviam nessas an- tigas estepes e o seu bónus de exagerados e ricamente realçados adornos e enfeites suplementares, só podia ser sustentada por um meio ambiente de excepcional qualidade. No entanto, era uma terra gelada, seca e exigente, rodeada por barreiras de gelo do tamanho de montanhas e por oceanos de água gelada.
Parecia uma contradição que este meio ambiente inóspito pudesse fornecer a riqueza que era necessária para o sumptuoso desenvolvimento dos animais mas, na realidade, o meio ambiente era absolutamente certo para ele. O clima frio e seco proporcionava o crescimento de erva e ini- bia o desenvolvimento de árvores.
As árvores, tais como carvalhos ou espruces, são plantas luxuriantes, mas demoram muito tempo e necessitam de muita humidade para atingirem a maturidade. As regiões arborizadas podem alimentar e sustentar uma gama de outras plantas e animais, mas as árvores necessitam de recursos para elas próprias se sustentarem, e não encorajam o desenvolvimento de uma plêiade de animais. Alguns animais podem corner nozes ou frutos e outros folhas ou até rebentes de árvores, mas a casca e a madeira são principalmente incomestíveis e uma vez destruídas demoram muito a voltar a crescer. A mesma energia e nutrientes do solo, postos em igual peso de erva, alimentarão muitos, muitos mais, e a erva renova-se constantemente. Uma floresta pode ser o exemplo perfeito da vida vegetal rica e produtiva, mas foi a erva que deu origem à extraordinária e abundante vida animal e foi a complexa terra de pastagem que a sustentou e manteve.
Ayla sentia-se desconfortável mas não sabia porquê. Não era nada de específico, apenas uma sensação estranha, de enervamento. Antes de começarem a descer o alto monte, tinham observado nuvens de tempestade ajuntar-se sobre as montanhas a oeste, viste clarões de relâmpagos e ouvido o ribombar d.stante dos trovões. No entanto, o céu por cima deles estava de um azul límpido e claro, com o sol ainda alto, embora já tivesse passado do zénite. Era improvável que chovesse all perto, mas ela não gostava de trovões. O rugido ribombante fazia-lhe sempre lembrar um tremor de terra.
"E talvez seja apenas por o meu tempo da lua ir começar.daqui a um ou dois dias", pensou Ayla, tentando mudar de disposição. "E melhor ter à mão as minhas tiras de couro e a lã de carneiro que Nezzie me deu.
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Disse-me que era a melhor protecção que se podia usar quando se viaja e tinha razão. O sangue sai todo em água fria."
Ayla nunca tinha visto onagres e, com o pensamento virado para dentro de si, não estava aprestar atenção enquanto desciam a encosta. Pensou que os animais que via à distância eram cavalos. Mas quando se aproximaram, começou a notar as diferenças. Eram ligeiramente mais pequenos, as suas orelhas eram mais compridas e os seus rabos não eram um penacho formado por muitos pêlos compridos, mas uma extremidade fina e mais curta coberta dos mesmos pêlos que tinham no corpo, com um tufo mais escuro na ponta. Ambos os tipos de animais tinham crinas erec- taS, mas as dos onagres eram mais irregulares. O pêlo dos animais da manada mais pequena era de um castanho-avermelhado claro no dorso e dos lados, e de um tom mais claro, quase branco, por baixo, e até nas pernas e focinhos, mas tinham uma risca escura ao longo da espinha e outra a atravessar-lhes os quartos dianteiros e várias faixas do tom mais escu- to nas pernas.
A jovem mulher comparou-os com o colorido geral dos cavalos. Apesar de o seu pêlo castanho-claro ser um tom mais claro do que era habitual, com uma tonalidade rica de um amarelo-dourado, a maioria dos cavalos das estepes eram do mesmo tom castanho-acinzentado e pareciam-se com a Whinney. A cor castanha-escura do Corredor era invulgar na sua raça. As crinas espessas e tesas da égua eram de um cinzento-escuro e esta cor estendia-se pelo meio do seu dorso até ao seu rabo comprido e solto. Aparte inferior das suas pernas também era escura, quase preta e, por cima, tinha uma mera sugestão de riscas. A cor do garanhão baio era demasiado escura para se notar bem a risca feral que acompanhava a sua espinha dorsal, mas as suas crinas pretas, o rabo e as pernas seguiam o padrão típico. Para alguém que tivesse conhecimentos sobre cavalos, a conformação dos animais à sua frente também era de certa forma diferente; no entanto, pareciam de facto cavalos. Ayla reparou que até a Whinney mostrou maior interesse do que normalmente mostrava ao avistar outros animais, e a manada tinha parado de pastar e estava a observá-los. O Lobo também estava interessado e tinha assumido uma postura de perseguição, pronto a ir no seu encalce, mas Ayla tinha-lhe dado a ordem para ficar. Queria observá-los. Subitamente, um dos ona- gres fez um som e a mulher reparou noutra diferença. Não era um relincho, nem um guincho, mas um som de surrar mais estridente.
O Corredor sacudiu a cabeça e relinchou em resposta, depois estendeu cautelosamente a cabeça para cheirar uma grande bosta recente. A Ayla, pareceu-lhe e cheirou-lhe a besta de cavalo, quando avançou para ficar ao lado de Jondalar. A Whinney também relinchou e cheirou a bosta e, enquanto o odor se ergueu e se manteve no ar durante um pouco mais de tempo, Ayla pensou detectar uma leve sugestão de qualquer outra coisa, talvez devido a diferentes preferências alimentares.
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-- São cavalos? -- perguntou ela.
--Não exactamente. Parecem cavalos, da mesma forma que os alces parecem renas, ou os veados parecem mégaceros. Chamam-se onagres-explicou Jondalar.
-- Não sei por que é que nunca os vi antes.
--Não sei, mas parecem gostar deste tipo de terreno-disse ele, inclinando a cabeça num gesto que indicava as colinas rochosas e a vegetação esparsa das planícies superiores áridas e semidesérticas que estavam a atravessar. Os onagres não eram um cruzamento entre cavalos e burras, embora parecessem, sendo antes uma espécie única e viável, com algumas características de ambos, e extremamente resistentes. Conseguiam sobreviver com uma alimentação mais pobre do que os cavalos, incluindo casca de árvores, folhas e raízes.
Quando se aproximaram mais da manada, Ayla reparou num par de crias e não pôde deixar de sorrir. Faziam-lhe lembrar a Whinney quando ela era pequena. E nesse instante o lobo latiu para lhe chamar a atenção.
mEstá bem, Lobo. Se queres ir atrás desses.., onagres m e disse a palavra desconhecida lentamente, habituando-se ao som: Vai lá.-Esfava satisfeita com os progressos que estava a fazer no seu treino, mas ele não gostava de ficar num sitio durante muito tempo. Ainda estava cheio do entusiasmo e curiosidade de cachorrinho. O Lobo latiu e correu atrás da manada. Com um rompante .assustado, os onagres galoparam com uma velocidade constante que não tardou a fazer que o jovem aspirante a caçador ficasse para trás. Apanhou Ayla e Jondalar quando estes se aproximavam de um vale largo.
Embora os vales dos rios que levavam o sedimento das montanhas que se erodiam lentamente ainda atravessassem o seu caminho, o terreno estava a descer len .tamente na direcção da bacia do delta do Grande Rio Mãe e do Mar Beran. A medida que avançavam para sul, o Verão tornava-se mais nítido, e ventos quentes causados pela passagem de depressões através do mar faziam aumentar as temperaturas já altas da estação, dando origem a perturbações no tempo.
Os dois viajantes já não usavam roupa exterior, nem sequer quando se levantaram. Ayla achava que o ar fresco e vivo da madrugada era a melhor altura do dia. Mas o fim da tarde estava quente, mais quente do que habitualmente, pensou ela, desejando ter um agradável riacho fresco onde pudesse nadar. Olhou de relance para o homem que ia alguns passos à sua frente. Estava de tronco e de pernas nuas, usando apenas uma tanga. O seu cabelo louro comprido, amarrado na nuca com uma tira de couro, tinha madeixas mais claras do sol e estava mais escuro onde o suor o molhara.
Ela vislumbrava ocasionalmente o seu rosto de barba feita e gostava de poder ver o seu maxilar forte e queixo bem definido, embora ainda tivesse uma impressão residual de que era estranho ver um homem
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adulto sem barba. Ele tinha-lhe explicado uma vez que gostava de deixar crescer a barba no Inverno, para lhe aquecer o rosto, mas cortava-a sempre no Verão porque era mais fresco. Usava uma afiada lâmina de pe- dreneira especial, que ele próprio tinha feito, e que substituía sempre que era necessário para fazer a barba todas as manhãs.
Ayla também estava reduzida a uma única peça de roupa curta, feita à semelhança da tanga de Jondalar. Basicamente, era um pedaço de pele macia, passada por entre as pernas e presa à cintura por uma corda. Ele usava a sua tanga com a ponta solta na parte de trás metida para dentro e a da frente solta, formando uma pequena aba. A dela também era presa com uma corda à cintura, mas a pele era mais comprida e ela usa- va ambas as pontas caída, formando uma espécie de avental à frente e atrás. O efeito era o de uma saia curta aberta dos lados. Com a pele macia a porosa, andar a cavalo durante longos períodos no dorso de um cavalo suado tornava-se mais confortável, embora a pele de veado posta sobre o dorso do cavalo também ajudasse.
Jondalar tinha aproveitado o monte alto para verificar onde estavam. Estava satisfeito com os seus progressos, que o tranquilizaram quanto à Viagem. Ayla reparou que ele parecia mais descontraído. Sabia que em parte isso se devia à sua crescente perícia em controlar o jovem garanhão. Embora ele já tivesse montado o animal com frequência, viajar a cavalo proporcionava-lhe a constante associação que desenvolvia a compreensão do carácter e dos hábitos do Corredor e que permitia ao cavalo aprender os dele. Até os seus músculos tinham aprendido a adaptar-se ao movimento do cavalo e a sua posição era mais confortável quer para ele quer para o cavalo.
Mas Ayla achava que o facto de ele montar com desenvoltura e des- contracção indicava mais que uma maior facilidade em montar. Havia menos tensão nos seus movimentos e ela teve a percepção de que a sua preocupação tinha diminuído. Embora não pudesse ver o seu rosto, calculou que as rugas de preocupação teriam desaparecido e que talvez estivesse com disposição para sorrir. Ela adorava quando ele sorria e brincava. Observou a forma como os seus músculos se moviam sob a pele bronzeada ao acompanhar o passo do Corredor com um suave movimento a:cendente e descendente e sentiu um leve acesso de calor que não se devia à temperatura.., e sorriu para si própria. Adorava observá-lo.
A oeste, continuavam a ver as montanhas a erguerem-se roxas à distância, encimadas por um branco cintilante que furava as nuvens escuras que 9aivaram mais abaixo. Raramente viam os picos gelados e Jondalar estava a desfrutar o raro prazer. Estavam praticamente sempre escondidos por nuvens baixas e nebulosas que se agarravam como peles brancas emacias a envolver um mistério cintilante, abrindo-se apenas o suficiente para se ter vislumbres tentadores e terná-las mais desejáveis.
Ele também sentia calor e pensou como seria born se estivessem mais perto daquelas montanhas com os picos cobertos de neve, pelo menos tão perto como as habitações dos Sharamudoi. Mas quando reparou no brilho da água no vale lá em baixo e olhou de relance para o céu para verificar a posição do sol, embora fosse mais cedo do que habitualmente, decidiu que mais valia pararem e montarem o acampamento. Estavam a avançar a born ñtmo, a andar mais depressa do que ele previra e não sa- bia quanto tempo demorariam a chegar à nova fonte de água.
A encosta estava coberta por luxuriantes ervas, principalmente esti- pa e festuca, misturadas com uma variedade de ervas anuais de queda de semente rápida. O subsolo loess espesso, que suportava uma marga preta e fértil que tinha um elevado teor de húmus de plantas em decomposição, até encorajava o crescimento de árvores que, à excepção de um ocasional pinheiro que procurava a água do subsolo, eram invulgares nas estepes das proximidades. Uma floresta mista de bétulas, lariços, coníferas que deixavam cair as suas agulhas no Inverno, acompanhou-os colina abaixo, com amieiros e salgueiros a preencher a parte inferior. Ao fundo da encosta, onde a terra se tornava plana a certa distância do riacho cantante, Ayla ficou admirada por ver ocasionais carvalhos, faias ou tflias anãs em alguns dos sítios abertos. Não vira muitas árvores de folha larga desde que deixara a caverna do clã de Brun, na bem irrigada ponta sul da península que se projectava no Mar Beran.
O pequeno rio abria caminho por entre vegetação rasa enquanto serpenteava através do chão plano do vale, mas uma das curvas passava muito perto de uns salgueiros altos e finos que eram uma extensão da encosta mais densamente arborizada do outro lado. Normalmente gostavam de atravessar um rio antes de montarem o acampamento, para não terem de se molhar ao retemarem a viagem de manhã, e decidiram acampar perto dos salgueiros. Andaram rio abaixo à procura de um sítio para atravessar e encontraram um local largo e com pedras que era de travessia fácil e depois voltaram para trás.
Enquanto estavam a montar a tenda, Jondalar deu por si a observar Ayla, consciente do seu corpo quente e bronzeado, e apensar na sorte que tinha. Ela não só era bela-a sua força, a sua graciosidade flexível e a segurança dos seus movimentos, tudo isto lhe agradava-como era uma boa companheira de viagem, contribuindo tanto quanto ele para o seu bem-estar. Embora se sentisse responsável pela sua segurança e a quisesse proteger de todo o mal, sentia conforto em saber que podia contar com ela. De certa forma, viajar com Ayla era como viajar com o seu irmão. Também se sentira protector em relação a Thonolan. Estava na sua natureza preocupar-se com aqueles que amava.
Mas apenas de certa forma. Quando a jovem mulher ergueu os braços para sacudir a cobertura do chão, ele teve consciência de que a sua pele era mais clara na parte de baixo dos seus seios arredondados e sentiu
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vontade de comparar o tom com o do seu braço bronzeado. Não lhe passou pela cabeça que estivesse a olhar fLxamente para ela, mas reparou quando ela parou de trabalhar e se virou para ele. Quando os seus olhares se cruzaram, Ayla sorriu lentamente.
Subitamente, Jondalar sentiuvontade de mais do que comparar o tom das peles. Agradava-lhe saber que se ele quisesse compartilhar com ela os Prazeres naquele instante ela também quereria. Também sentia con- forro nesse facto. Não era necessário aproveitar cada oportunidade. O seu desejo era forte, mas a urgência era menor e por vezes esperar um pouco tornava as coisas melhores. Podia pensar nisso e gozar a antecipação. Jondalar retribuiu-lhe o sorriso.
Depois de terem montado o acampamento, Ayla quis explorar o vale. Não era vulgar encontrar uma zona tão densamente arborizada no meio das estepes e ela estava curiosa. Há anos que não via essa vegetação.
Jondalar também queria explorar. Depois da sua experiência com o urso no acampamento ao pé do outeiro, queria verificar se havia rastos ou outros indícios de animais nas proximidades. Ayla levou a sua funda e o seu cesto e Jondalar o seu lançador e duas lanças e dirigiram-se para os salgueiros. Deixaram os cavalos a pastår, mas o Lobo mostrou-se an- sioso por ir com eles. A floresta também era um sítio desconhecido para ele, cheio de cheiros fascinantes.
Na parte de trás da margem, os salgueiros davam lugar a amieiros e depois tornaram-se frequentes bétulas misturadas com lariços e havia também alguns pinheiros de tamanho razoável. Ayla apanhou ansiosa- mente algumas pinhas quando viu que eram pinhas mansas, para aproveitar os deliciosos pinhões que tinham dentro. Mas mais invulgares para ela eram as ocasionais árvores de folha larga. Numa zona, ainda na planície do vale mas já perto do sopé da encosta que dava para a pastagem aberta mais acima, havia um outeiro de faias.
Ayla olhou-as cuidadosamente, comparando-as com a sua memória de árvores semelhantes que cresciam perto da caverna onde vivera enquanto pequena. A casca era lisa e cinzenta e as folhas eram ovais, estreitando e formando um bico na extremidade, pronunciadamente dentadas em toda a volta e de um branco sedoso por baixo. As pequenas nozes castanhas, envoltas na sua casca espinhosa, ainda não estavam maduras, mas as pernadas e as cascas no chão da última estação mostraram uma abundamente safra. Lembrou-se que estas nozes eram difíceis de partir. As árvores não eram tão grandes como as que ela recordava, mas já eram respeitáveis. Depois reparou nas invulgares plantas que cresciam debaixo das árvores e ajoelhou-se para as observar mais atentamente.
--Vais apanhá-las?-- perguntou Jondalar.-Parecem mortas. Não têm folhas.
-- Não estão mortas. É assim que crescem. Olha, sente como estão frescas-disse Ayla, partindo a parte superior de um caule de uns trinta
centímetros de altura, macio e sem folhas e com ramos em toda a sua extensão. A planta era toda ela de um tom avermelhado-baço, incluindo os botões das flores, sem qualquer sugestão de verde.
--Crescem das raízes das outras planta s-disse Ayla--, como as que a Iza me costumava pôr nos olhos quando eu chorava, excepto que essas eram brancas e brilhantes. Algumas pessoas tinham medo delas porque achavam que a sua cor parecia a pele de uma pessoa morta. Até se chamavam.., m e pensou durante alguns instantes-qualquer coisa como planta do homem morto ou planta cadáver.
Ficou com uma expressão absorta ao pensar nisso.
--A Iza pensava que os meus olhos eram fracos por deitarem água e isso incomodava-a.-Ayla sorriu ao pensar nisso.-la apanhar uma dessas plantas frescas e espremia a selva directamente do caule para os meus olhos. Se estavam doridos por ter chorado muito, isso razia sempre que ficassem melhores.-Ficou em silêncio durante algum tempo, depois abanou ligeiramente a cabeça.-Não tenho a certeza de que estas sejam boas para os olhos. A Iza usava-as para cortes e esfoladelas e para certos tumores.
-- Como é que se chamam?
-- Creio que o nome que ela lhes daria seña..: qual é o teu nome para esta árvore, Jondalar?
-- Não sei bem. Não crescem perto do meu lar, mas o nome dos Sharamudoi é "faia".
-- Então acho que se chamariam "caídos da faia" -- disse ela, levan- tando-se e esfregando as mãos para as limpar.
Subitamente, o Lobo ficou imóvel, com o focinho apontado para a fioresta densa. Jondalar reparou na sua postura de caça e, lembrando-se de como o Lobo tinha assinalado a presença do urso, pegou numa lança. Colocou-a em cima da ranhura do lançador, um pedaço de madeira afeiçoado com cerca de metade do comprimento da lança, que era empunhado numa posição horizontal com a mão direita. Encaixou a extremidade romba da lança na reentrância na parte de trás do lançador. Depois meteu os dedos nas duas laçadas perto da frente da arma de lançar, que chegavam mais ou menos a meio da lança, para a segurar enquanto ficava pousada em cima do lançador. Isto foi feito num movimento rápido e há-bil enquanto flectia ligeiramente os joelhos, pronto para o lançamento. Ayla tinha pegado nas pedras e tinha a funda pronta a disparar, lamentando não ter também levado o seu lançador.
Avançando pelo meio da vegetação esparsa, o Lobo correu para uma árvore. Houve um movimento rápido no meio das ramadas caídas no chão e depois um pequeno animal subiu pelo tronco liso. Pondo-se de pé sobre as patas traseiras, como se estivesse também a tentar subir à árvore, o LObo latia ao animal peludo.
Subitamente, uma agitação nos ramos da árvore chamou-lhes a ateu-
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ção. Viram o pêlo castanho-claro e a forma comprida e sinuosa de uma marta de faia a perseguir o esquilo que tinha acabado de fugir para a ár- wore. OLobo não era o único apensar que o esquilo tinha interesse, mas o animal grande, parecido com uma doninha, com cerca de meio metro de comprimento e com um rabo peludo que acrescentava mais trinta centí-metros ao seu comprimento, tinha probabilidades muito maiores de êxito. Correndo pelos ramos altos, era tão ágil e rápido como a sua presa em fuga.
macho que aquele esquilo saltou da pele de cozinhar para as brasas
m disse Jondalar, observando o drama que se desenrolava.-Talvez consiga escapar m disse Ayla.-Duvido. Não apostaña nisso.
O esquilo estava a chilrear muito alto. Um gaio excitado que crocita- va, aumentava a confusão e depois um sezerino anunciou estridentemente a sua presença. OLobo não aguentou e teve de participar. Lançando a cabeça para trás, soltou um longo uivo. O pequeno esquilo tinha trepado até à extremidade de um ramo; depois, para surpresa das duas pessoas que observavam, saltou para o ar. Afastando as pernas, estendeu a larga badana de pele que se estendia de ambos os lados do corpo, unindo as pernas da frente e de trás, e voou pelo ar.
Ayla reteve a respiração enquanto observava o esquilo voador a evitar os ramos e as árvores. O rabo peludo funcionava como leme e, mudando a posição das pernas e do rabo, que alteravam a tensão da membrana des- lizante, o esquilo conseguia afastar-se de objectos no seu percurso de voo, enquanto descia numa longa e suave curva. O seu objectivo era uma árvore a certa distância e, quando se aproximou, virou o rabo e o corpo para cima, aterrando ao fundo do tronco e correndo rapidamente para o cimo da árvore. Quando chegou aos ramos mais altos, o pequeno animal peludo virou-se e voltou a descer, de cabeça, com as unhas das patas traseiras cravadas na casca da árvore para se segurar. Olhou em volta e depois desapareceu num pequeno buraco. O dramático salto e a planagem tinham impedido a sua captura, embora nem sempre esse espantoso feito fosse bem sucedido.
O Lobo ainda estava de pé sobre as patas traseiras junto à árvore à procura do esquilo que o enganara tão facilmente. Deixou cair as patas e começou a farejar a vegetação e subitamente afastou-se a correr, cheirando outra coisa.
-- Jondalar! Não sabia que os esquilos podiam voar disse Ayla com um sorriso de maravilhado espanto.
-- Eu devia ter feito a aposta, mas nunca tinha visto isto antes, embora já tivesse ouvido contar. Não creio que realmente acreditasse. As pessoas sempre falaram de esquilos que voavam à noite e pensei que era provavelmente um morcego que alguém confundira com um esquilo. Mas aquilo não era de todo um morcego.-E com um sorriso semiembaraçado
acrescentou: mAgora serei eu um daqueles em quem os outros não acreditam verdadeiramente quando disser que vi um esquilo voador.
m Ainda bem que era apenas um esquilo-disse Ayla subitamente,
sentindo frio. Olhou para cima e reparou que havia uma nuvem a tapar o sol. Sentiu um arrepio pelos ombros e pela espinha abaixo, embora não estivesse realmente frio.-Não sabia o que o Lobo estava a perseguir desta vez.
Sentindo-se ligeiramente idiota por ter reagido tão exageradamente a uma ameaça que apenas imaginara, Jondalar deixou de agarrar o lançador e a lança com tanta força, mas continuou a empunhálos.
m Pensei que pudesse ser um urso disse. Sobretudo nesta
floresta densa.
Algumas árvores crescem sempre junto aos rios, mas nunca vi árvores como estas desde que deixei o Clã. Não é estranho estarem num sí-tio como este?
--É invulgar. Este sítio faz-me lembrar a terra dos Sharamudoi, mas é a sul daqui, até a sul daquelas montanhas que vemos a oeste, e perto de Donau, o Grande Rio Mãe.
Subitamente, Ayla estacou. Dando uma cotovelada a Jondalar, apontou em silêncio. A princípio ele não viu o que lhe chamara a atenção, depois reparou num ligeiro movimento de um pêlo avermelhado como o de uma raposa e viu os chifres de três hastes de um cabrito-montês. A agitação e o cheiro do lobo tinham feito que o pequeno animal ficasse absolutamente imóvel. Tinhaficado all, sem se mexer, escondido na vegetação, à espera de ver se havia alguma coisa a temer do predador. Como o caçador de quatro patas se tinha afastado, tinha começado a afastar-se cautelosamente. Jondalar ainda tinha a lança e o lançador na mão. Ergueuo lentamente e, apontando, arremessou a lança à garganta do animal. O perigo que este temia tinha vindo de uma direcção inesperada. A lança arremeçada com força atingiu em cheio o alvo. No instante em que foi atingido, o cabrito ainda tentou saltar, deu alguns passos inseguros e caiu pesadamente.
A fuga do esquilo e a marta mal sucedida foram rapidamente esquecidos. Jondalar atravessou a distância até ao cabrito-montês em poucos passos, com Ayla ao seu lado. Enquanto Ayla virava a cabeça, ele ajoelhousejunto do animal que ainda se debatia e cortou-lhe a garganta com a lâmina afiada para o matar e deixar sangrar. Depois levantou-se.
-- Cabrito-montês, quando o teu espírito regressar à Grande Mãe Terra, agradece-Lhe por nos ter dado um da tua espécie para podermos corner disse Jondalar baixinho.
Ayla, de pé ao lado do homem, assentiu, e depois ajudou-o a esfolar e a esquartejar o seu jantar.
PLANÍCIES DE PASSAGEM I 109
-- Detesto ter de deixar a pele. A pele de cabrito faz couro tão macio -- disse Ayla enquanto punha o último pedaço de carne na sua bolsa de couro cru.-E viste a pele da marta?
-- Mas não temos tempo para fazercouro e não podemos levar muito mais do que já levamos-disse Jondalar. Estava a montar um tripé fei-
to com paus no qual seria suspensa a bolsa de couro cru com a carne.-Eu sei, mas continuo a detestar ter de a deixar.
Penduraram a bolsa; depois Ayla olhou de relance para a fogueira, pensando na comida que tinha acabado de pôr a cozinhar, embora nada ' estivesse visível. Estava a cozinhar num forno de chão, um buraco no chão forrado com pedras quentes no qual ela pusera a carne de cabrito temperada com ervas, juntamente com cogumelos, samambaia e espadana que apanhara, tudo embrulhado em folhas de tussilagem. Depois pôs mais pedras quentes por cima e uma camada de terra. Demoraria algum tempo a ficar pronta, mas ela estava contente por terem parado bastante cedo-e por terem tido a sorte de arranjar logo carne fresca-para a cozinhar daquela forma. Era um dos seus métodos preferidos, pois tornava a comida saborosa e tenra.
--Tenho calor e o ar está pesado e húmido. You refrescar-me-disse ela.-Até you lavar o cabelo. Vi raiz de saponária lá em baixo no rio, Vens nadar?
-- Sim, acho que sim. Talvez também lave o cabelo se encontrares raiz de saponária que chegue para mim-disse Jondalar, com os olhos azuis a sorrir, enquanto mostrava uma farripa de cabelo louro oleoso que lhe caíra sobre a testa.
Caminharam lado a lado pela margem larga e arenosa do rio. O Lobo correu atrás deles, entrando e saindo da vegetação, a explorar novos cheiros. Depois, correu para a frente deles e desapareceu numa curva.
Jondalar reparou no rasto de cascos de cavalo e patas de lobo que tinham feito ao chegar.
-- Que seña que alguém pensaria deste rasto? -- disse, Sortindo da ideia.
Que é que to pensarias? -- perguntou Ayla.
-- Se o rasto do Lobo fosse nítido, acharia que um lobo estava a seguir dois cavalos, mas nalguns sítios é evidente que as marcas dos cascos dos
cavalos estão em cima das marcas das paras do lobo, portanto ele não podia ir a segui-los. Ia com eles. Isso confundiria um batedor-disse ele.
-- Mesmo se as marcas do Lobo fossem claras, eu pensaria por que razão é que um lobo iria a seguir estes dois cavalos. As marcas mostram que são ambos fortes e saudáveis, mas olha como as marcas dos cascos são
fundas. Vê-se que transportavam peso-disse Ayla.
Isso também confundiria um batedor.
-- Oh, cá estão elas-disse Ayla ao ver as plantas altas e ligeiramente dispersas, com flores cor-de-rosa claras e folhas em forma de pontas de lança, que vira mais cedo. Com o seu pau de escavar, soltou rapidamente algumas raízes e arrancou-as.
Já de volta, procurou uma pedra chata e dura ou um pedaço de madeira e uma pedra arredondada para esmagar as raízes de saponária e libertar a saponina, que na água faria uma espuma leve e lavante. Numa curva na parte de cima do rio, embora não demasiado longe do acampamento, o pequeno rio tinha escavado um lago cuja água lhes dava pela cintura. A água estava fresca e refrescante e, depois de se lavarem, exploraram o rio rochoso, nadando e subindo mais o rio até serem impedidos de continuar por uma cascata e rápidos onde as encostas do vale estreitavam e se tornavam mais íngremes.
Fazia lembrar a Ayla o pequeno rio no seu vale, com a sua cascata revolta a impedir-lhe a passagem, embora o resto da área lhe fizesse lembrar mais as encostas das montanhas em volta da caverna onde cres- cera. Havia lá uma cascata de que ela se lembrava, uma cascata mais suave e com musgo que dava para uma pequena caverna que ela tinha tornado para si e que mais do que uma vez lhe servira de refúgio.
No regresso, deixaram-se arrastar pela corrente, salpicando-se um ao outro e rindo todo o caminho. Ayla adorava o som do riso de Jondalar. Embora ele sorrisse, não ria com frequência, tendo tendência para ter uma atitude mais séria, mas quando o fazia, era um riso tão franco e exuberante que surpreendia.
Ainda estava calor quando saíram da água e se secaram. A nuvem es- cura que Ayla tinha visto mais cedo tinha desaparecido do céu por cima deles, mas o sol estava a pôr-se na direcção de uma massa negra e sombria que pairava a oeste e cujo movimento ponderoso era acentuado por uma camada de nuvens esfarrapadas que passavam rapidamente sob ela na direcção contrária. Assim que a bola de fogo se afundasse por detrás das nuvens sombrias acumuladas por cima do cume a oeste, rapidamente refrescaria. Ayla procurou os cavalos e viu-os num prado aberto na encosta, a certa distância do acampamento, mas ao alcance de um assobio. Não viu o Lobo; "anda em explorações rio abaixo", pensou ela.
Foi buscar um pente de marfim de dentes compridos e uma escova feita de pêlos duros de mamute que a Deegie lhe tinha dado, puxou as peles de dormir para fora da tenda e abriu-as para se sentar enquanto pen
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teava os cabelos. Jondalar foi sentar-se ao seu lado e começou a pentear- -se com um pente de três dentes, tentando desembaraçar alguns nós.
m Deixa-me fazer-te isso, Jondalar-disse ela, pondo-se de joelhos
por detrás dele, começando a desembaraçar os nós no seu comprido cabe-: lo louro, ligeiramente mais claro que o dela, admirando a cor. Quando ela era mais nova, o seu cabelo era quase branco, mas tinha escurecido e :
parecia o pêlo da Whinney com o seu term louroacinzentado. .
Jondalar fechou os olhos enquantoAyla lhe ia penteando o cabelo, mas '
tinha consciência da sua presença quente atrás de si quando a sua pele
nua lhe tocava ocasionalmente e, quando ela acabou, ele sentia um calor
que não se devia apenas ao sol.
--Agora é a minha vez de te pentear o cabelo-disse ele, levantando-
-se para se colocar por detrás dela. Por instantes, Ayla pensou em opor-
-se. Ele não tinha que lhe pentear o cabelo lá porque ela lhe tinha pen-
teado o dele, mas quando ele lhe levantou o cabelo espesso do pescoço e
passou os dedos por ele como numa carícia, ela acedeu.
O cabelo dela tinha tendência para encaracolar e emaranhava-se
facilmente, mas ele penteou-o com cuidado, libertando cada nó sem lhe
puxar o cabelo. Depois escovou-o até ficar muito macio e quase seco. Ela
fechou os olhos, sentindo um encanto estranho e arrepiante. A Iza costu
mava pentear-lhe o cabelo quando ela era garotinha, desembaraçandoo
com um comprido pau macio e afiado, mas nunca nenhum homem o tinha
feito. Jondalar a pentear-lhe o cabelo dava-lhe uma sensação intensa de
ser acarinhada e amada.
E ele descobriu que gostava de lhe pentear e escovar o cabelo. A sua
cor loura-escura fazia-lhe lembrar a erva madura, mas com tons brilhantes
mais claros que eram quase brancos. Era belo, e tão espesso e macio, e to-
car-lhe dava-lhe um prazer sensual que fazia com que quisesse mais.
Quando terminou, pousou a escova e ergueu ligeiramente as madeixas
húmidas e, afastando-as, inclinou-se para lhe beijar os ombros e a parte
de trás do pescoço.
Ayla deixou-se ficar de olhos fechados, sentindo o tintilar causado
pela respiração e pelos lábios quentes de Jondalar enquanto ele os roçava
pela sua pele. Mordiscou-lhe o pescoço e acariciou-lhe os dois braços, de-
pois estendeu as mãos para lhe segurar nos dois seios, erguendo-os e sen
tindo o seu peso substancial, com os mamilos firmes e contraídos nas pal-
mas das mãos.
Quando se virou para lhe beijar a garganta, Ayla ergueu a cabeça e vi-
rou-se ligeiramente, sentindo depois o seu órgão duro e quente contra as
suas costas. Virou-se e pegou-lhe, gostando de sentir a pele macia que
o cobria. Pôs uma mão por cima da outra e moveu-as firmemente para ci-
ma e para baixo e Jondalar sentiu uma sensação de imenso prazer, mas
esta sensação aumentou desmedidamente quando sentiu a humidade
quente da sua boca envolvê-lo.
Deixando escapar um suspiro explosivo, fechou os olhos enquanto a sensação o percorria. Depois abriu ligeiramente os olhos para a observar e não resistiu a acariciar o cabelo macio que lhe enchia o colo. Quando ela o sugou mais profundamente ele pensou por instantes que não ia conseguir resistir e que aconteceria naquele momento. Mas queria esperar, queria o delicioso prazer que lhe dava dar-lhe Prazer. Adorava fazê-lo, sabendo que podia. Estaria quase na disposição de desistir do seu próprio Prazer para lhe dar Prazer a ela.., quase.
Mal percebendo como all fora parar, Ayla deu por si estendida de costas em cima da pele de dormir, com Jondalar deitado ao seu lado. Ele beijou-a. Ela abriu ligeiramente a boca, apenas o suficiente para deixar a língua dele entrar e pôs os braços em volta dele. Adorava a forma como os seus lábios assentavam firmemente sobre os dela, com a língua a ex-
plorar suavemente. Depois afastou-se e othou para ela.
-- Mulher, fazes ideia de quanto te amo?
Ela sabia que era verdade. Via-o nos seus olhos, nos seus olhos brilhantes, vívidos, incrivelmente azuis que a acariciavam com o seu olhar e que até à distância conseguiam fazer que ela sentisse arrepios. Os seus
olhos expressavam as emoções que ele tanto se esforçava por controlar. -- Sei quanto te amo a ti-disse Ayla.
I Ainda mal consigo acreditar que estás aqui comigo e não no Encontro de Verão acasalada com o Ranec. I Ao pensar como tinha estado perto de a perder para o encantador escultor de marfim de pele escura, agarrou-a subitamente e apertou-a contra si com feroz necessidade.
Ela também o abraçou, grata por o seu longo Inverno de incompreensão ter finalmente terminado. Ela tinha amado Ranec sinceramente m era um homem born e teria sido um born companheiro para elamas não era Jondalar e o seu amor pelo homem alto que a abraçava estava para lá de qualquer explicação.
O imenso temor que ele tinha em perdê-la tinha abrandado e sido substituído, ao sentir o seu corpo quente ao lado do dele, com um desejo igualmente forte. Subitamente, estava a beijar-lhe o pescoço e os ombros e os seios, como se não fosse possível saciar-se.
Depois parou para respirar fundo. Queria que durasse e queria usar a sua perícia para lhe dar o melhor que podia e ele era perito. Tinha sido ensinado por uma mulher que sabia e com mais amor do que devia ter sentido. Ele tinha querido agradar-lhe e estado muito ansioso por aprender. Tinha aprendido tão bem que havia uma história picaresca entre a sua gente que era frequentemente contada: dizia-se que era pe- rite em dois ofícios; que era também um excelente talhador de ferramentas de pedreneira.
Jondalar olhou para ela, observando-a a respirar, adorando ver o seu corpo cheio de mulher e encantado pelo mero facto da sua existência. A sombra dele caiu sobre ela, bloqueando o calor do sol. Ayla abriu os olhos
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e olhou para cima. O sol incandescente atrás dele brilhava através cabelo louro que lhe emoldurava o rosto com uma aura dourada. java-o, estava pronta para ele, mas quando ele sortiu e se inclinou para lhe beijar o umbigo, ela voltou a fechar os olhos, entregandoselhe, bendo o que ele queria e os Prazeres que conseguia fazê-la sentir.
Ele segurou-lhe nos seios e depois passou lentamente a mão pelo seu corpo até à cintura, pela curva opulenta da sua anca, depois pela coxa. vibrou com a caricia. Ele levou a mão até à parte de dentro da coxa, tindo a pele mais macia, e passou-a por cima dos caracóis dourados o seu sexo. Acariciou-lhe a barriga e inclinou-se para lhe beijar goantes de voltar a acariciar-lhe os seios e a beijar os mamilos. As mãos dele eram como fogo brando, quentes e maravilhosas; deixavam-na a arder de excitação. Ele voltou a acariciá-la e a pele dela lembrou-se de cada sítio em que ele tocava.
Ele beijou-a na boca e depois suave, lentamente nos olhos e nas faces e no queixo e no maxilar e depois respirou-lhe ao ouvido. A língua dele encontrou a pequena depressão na sua garganta e continuou a deslizar aid aos seios. Pegou em cada um deles com as mãos e juntou-os, delícia- do com o seu volume, com o sabor ligeiramente salgado dela e com o te- que da sua pele, à medida que o seu próprio desejo crescia. A sua língua fez cócegas num dos mamilos e depois no outro e ela sentiu um latejar profundo quando ele o meteu na beca. Ele explorou o mamilo com a língua, carregando, puxando, mordiscando ligeiramente, depois agarrou o outro
com a mão,
Ela fez mais pressão contra ele, perdendo-se nas sensações que lhe percorriam o corpo e se centravam no fulcro do prazer que sentia bem fundo nela. Ele voltou a encontrar o seu umbigo com a língua quente e uma leve brisa fresca passou-lhe pela pele enquanto ele fazia a língua descrever um círculo e descer, para o montículo coberto de pêlos macios e encaracolados, depois por breves instantes para a sua abertura quente e para o nódulo duro do seu Prazer. Ela ergueu as ancas para ele e deu um grito de prazer.
Aninhou-se entre as pernas dela e, com as mãos, abriu-a para olhar para a flor rosada de pétalas e dobras. Mergulhou para a saborear D co- nhecia o seu sabor e adorava-o D, depois não conseguiu aguentar mais e deleiteu-se em explorá-la profundamente. A sua língua encontrou as dobras bem conhecidas entrou bem fundo no seu poço e depois deteve-se no pequeno nódulo duro.
Enquantoia passando alínguasobre ele, chupando-o e mordiscandoo, ela dava repetidas exclamações de prazer, a sua re'spiração tornou-se mais rápida e a tensão dentro dela aumentava. Todas as sensações esta- yam voltadas para dentro e não havia vento, nem sol, apenas a crescente intensidade dos seus sentidos. Ele sabia que estava quase a acontecer e, embora ele próprio quase não conseguisse aguentar mais tempo, abrandou
e afa.stou-se, esperando poder atrasar, mas ela puxou-o, sem poder esperar. Amedida que se aproximava, aumentava, ganhava intensidade, contraía-se de expectativa, ele ouvia os seus gemidos de prazer.
Subitamente, all estavam as poderosas ondas que a faziam estremecer e, com um grito convulsivo, abateram-se sobre ela. Ela arqueou-se com o espasmo de libertação e com ele veio o indescritível desejo de sentir o sexo dele dentro de si. Puxou-o, tentando levá-lo até ela.
Ele sentiu o jorro de humidade dela, apercebeu-se da sua necessidade, soergueu-se, agarrando o sexo ansioso para o guiar para dentro do seu poço profundo e ansioso. Ela sentiu-o entrar e foi ao encontro dele enquanto ele a penetrava mais profundamente. As dobras macias en- volveram-no e o seu sexo foi mais fundo, não temendo que o seu tamanho fosse excessivo para ela aguentar. Isso fazia parte do espanto que ela lhe provocava: ela condizer com ele.
Recuou, sentindo o imenso prazer do movimento e, com completo abandono, voltou a penetrá-la, bem fundo, enquanto ela se erguia ao seu encontro. Ele tinha quase atingido o auge, mas a intensidade recrudesceu e ele voltou a puxar o sexo para trás e continuou a penetrá-la, golpe após golpe, cada vez com maior intensidade. Pulsando com as sensações dos seus movimentos, ela sentia o sexo tumefacto dentro dela, depois a sair e a voltar a enchê-la, e aquilo era de mais para poder sentir qualquer outra coisa.
Ela ouviu a respiração forte dele, e a sua própria, enquanto os seus gritos soavam em uníssono. Depois ele gritou o nome dela e ela ergueu-se ao seu encontro e, com uma sensação avassaladora, sentiram ambos uma libertação igual ao sol feérico que lançou os seus raios incandescentes sobre o vale e se afundou por detrás das grandes nuvens negras orladas de dourado.
Depois de mais alguns movimentos, ele descontraiu-se em cima dela, sentindo as suas curvas arredondadas sob o seu corpo. Ela adorava sempre aquele momento com ele, sentir o seu peso em cima dela. Nunca sentia que era pesado; era apenas uma pressão confortável e tfma proximidade que a aquecia enquanto descansavam.
Subitamente, uma língua quente estava a lamber-lhe a cara e um nariz frio a explorar os dois corpos juntos.
Vai-te embora, Lobo disse ela, empurrando o animal. Vá, vai-te embora daqui.
Lobo, vai-te embora! D disse Jondalar num tom áspero, juntando a sua ordem à dela, afastando o nariz frio, mas o momento tinha sido interrompido. Enquanto saía de cima de Ayla, Jondalar sentiu-se ligeiramente irritado, mas não verdadeiramente zangado; sentia-se demasiado bem para isso.
Soerguendo-se e apoiando-se num cotovelo, Jondalar olhou para o animal que recuara alguns passos e estava sentado sobre os quartos tra-
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seiros a olhar para eles, com a língua de fora e a arfar. Iriajurar que o animal se estava a rir deles e sorriu à mulher que amara.
-- Tens-lhe estado a ensinar a ficar num sítio. Achas que lhe consegues
ensinar a ir-se embora quando quisermos?
Acho que you tentar.
-- Dá muito trabalho ter um lobo-disse Jondalar.
--Born, sim, exige um certo esforço, sobretudo por ser tão pequeno. Os cavalos também dão, mas vale a pena. Gosto de os ter comigo. São como uns amigos muito especiais.
Pelo menos os cavalos davam alguma coisa em troca, pensou o homem. A Whinney e o Corredor transportavam-nos a eles e às suas coisas. Por os terem, a sua Viagem talvez não levasse tanto tempo. Mas, à exeepção de descobrir ocasionalmente um animal para eles caçarem, o Lobo pare- cia não contribuir grande coisa. No entanto, Jondalar decidiu não dizer o que estava apensar.
Com o sol por detrás das nuvens negras e ameaçadoras, que ficaram de um vermelho e roxo vivo, como se tivessem sido agredidas e magoadas, ficou rapidamente fresco no vale arborizado. Ayla levanteu-se e voltou a ir para o rio. Jondalar foi atrás dela. Há muito tempo, quando era pequena, Iza, a curandeira do Clã, tinha-lhe ensinado os ritos purificadores da sua feminilidade, muito embora duvidasse que a sua estranha-e até ela reconhecia-e feia filha adoptiva pudesse vir a precisar deles. No entanto, sentia que era o seu dever e explicou-lhe, entre outras coisas, como devia tratar de si própria depois de ter estado com um homem. Frisara que, sempre que isso fosse possível, a purificação com ágata era especia]- mente importante para o espírito do totem da mulher. Lavar-se, por mais fria que a água estivesse, era um ritual de que Ayla se lembrava sempre.
Voltaram a secar-se e vestiram-se, meteram as peles de dormir na tenda e puseram mais lenha na fogueira. Ayla tirou a terra e as pedras do forno de chão e, com as suas pinças de madeira, tirou a carne. Depois, Jondalar arrumou os cestos e ela fez os preparativos para ser fácil par- fitem de manhã, incluindo a sua refeição habitual da manhã com restos do jantar, comidos frios à excepção do chá de ervas quente. Depois pôs as pedras de cozinhar a aquecer para ferver água; razia muitas vezes chá, variando os ingredientes segundo as suas necessidades ou vontade.
Os cavalos tinham voltado para junto deles quando os últimos raios do sol que desaparecia tingiam o céu. Normalmente pastavam durante parte da noite, pois andaram muito durante o dia e precisavam de grandes quantidades da erva grossa das estepes para se sustentarem. Mas a erva do prado era exeepcionalmente rica e verdejante e eles gostaram de à noite ficar ao pé da fogueira.
Enquanto Ayla esperava que as pedras aquecessem, contemplou o vale à luz do crepúsculo, acrescentando à sua observação o conhecimento: adquirido durante o dia: as encostas íngremes uniam-se abruptamente
para formar o chão amplo do vale, com o seu pequeno rio a serpentear pelo meio. Era um vale fértil, fazendo-lhe lembrar a sua infância com o Clã, mas não gostava daquele sítio. Havia all qualquer coisa que a inquietava e esta sensação agravou-se com o cair da noite. Sentia-se também ligeiramente inchada e com dores de rins, e atribuiu a sua inquietação aos pequenos desconfortos que de vez em quando sentia quando o seu tempo de lua se aproximava. Gostava de poder dar um passeio; a actividade física costumava ajudar, mas já estava demasiado escuro.
Escuteu o vento a gemer ao perpassar pelos salgueiros ondulantes, re- cortados contra as nuvens prateadas. Alua cheia, envolta por uma nítida auréola de luz, escondia-se de vez em quando, para surgir depois a iluminar brilhantemente o céu de textura suave. Ayla decidiu que chá de casca de salgueiro talvez aliviasse o seu desconforto e foi rapidamente apanhar alguma casca. Aproveitou para apanhar também alguns ramos flexíveis.
Quando o chá da noite estava pronto e Jondalar foi para ao pé dela, o ar da noite estava húmido e frio, suficientemente frio para vestirem roupa exterior. Sentaram-se junto da fogueira, sabendo-lhes bem o chá quente. O Lobo não tinha largado Ayla durante toda a tarde, seguindo-lhe todos os passos, mas pareceu satisfeito por se enroscar aos seus pés quando ela se sentou junto às chamas quentes, como sejá tivesse feito ex- plorações que bastassem durante o dia. Ayla pegou nos galhos finos de salgueiro e começou a tecêlos.
-- Que é que estás a fazer? -- perguntou Jondalar.
--Uma cobertura para a cabeça, para fazer sombra e proteger do Fica muito quente a meio do dia-explicou Ayla. Parou por instantes e acrescentou, m Pensei que te fosse útil.
--Estás a fazer-me uma? --disse ele com um sorriso.- Como é que sabias que eu hoje desejei ter qualquer coisa que me protegesse do sol?
-- Uma mulher do Clã aprende a antecipar as necessidades do seu
companheiro.-Ayla sorriu.-E to és o meu companheiro, não és? Ele retribuiu-lhe o sorriso.
-- Sem dúvida, minha mulher do Clã. E anunciá-lo-emos a todos os Zelandonii no Matrimonial do primeiro Encontro a que formos. Mas como é que consegues antecipar necessidades? E por que é que as mulheres do Clã têm de aprender isso?
-- Não é difícil. Basta pensar numa pessoa. Hoje esteve calor e eu pensei em fazer uma cobertura de cabeça.., um chapéu de sol.., para mim, portanto percebi que to também devias ter calor-disse ela, pegando noutro raminho para acrescentar ao largo chapéu cónico que estava a começar a ganhar forma.-Os homens do Clã não gostam de ter de pedir nada, especialmente para o seu próprio conforto. Não é considerado um comportamento viril preocuparem-se com o conforto, portanto uma mulher term de antecipar as necessidades de um homem. Ele protege-a
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do perigo; é a forma de ela o proteger, assegurar-se de que ele term vestuário adequado e de que come bem. Ela não quer que lhe nada..Nesse caso, quem é que a protegeria a ela e aos seus filhos?
-- E isso que to estás a fazer? A proteger-me para eu te
-- perguntou ele com um sorriso rasgado.-E aos teus filhos? das chamas, os seus olhos azuis estavam de uma fonalidade violeta e bri. lhavam divertidos.
-- Born, não exactamente-disse ela, olhando para as suas mãos. Acho que na realidade é a forma como uma mulher do Clã diz ao companheiro que gosta dele, tenha ou não crianças. EEla es var os movimentos rápidos das suas mãos, embora Jondalar tivesse a sensação de que ela não precisava de ver o que estava a fazer. Conseguiria fazer o chapéu na escuridão. Ayla pegou noutro galho comprido e olhou directamente para ele. EMas quero ter outra crian siado velha.
--Ainda te falta muito para isso-disse ele, pondo outro pedaço de lenha na fogueira.-Ainda és nova.
-- Não, já estou a ficar uma mulher velha. Já tenho...-Fechou olhos para se concentrar enquanto fazia pressão com os dedos contra a perna, dizendo as palavras de números que ele lhe tinha ensinado, para ter a certeza da palavra certa para o número de anos que vivera. --... Dezoito anos.
--Tantos! -- Jondalar riu-se.-Eu já tenho vinte e dois. Eu é que sou velho.
E Se demorarmos um ano a viajar, terei dezanove anos quando chegarmos ao teu lar. No Clã, isso seria quase velha de mais para poder ter filhos.
Muitas mulheres Zelandonii têm filhos nessa idade. Talvez não o seu primeiro, mas o segundo ou terceiro. To és forte e saudável. Não acho que sejas demasiado velha para teres filhos, Ayla. Mas digo-te uma coisa, há alturas em que os teus olhos parecem antigos, como se já tivesses vi- vido muitas vidas nos teus dezoito anos.
Era estranho ele dizer uma coisa assim e ela parou de trabalhar para olhar para ele. A sensação que ela evocou nele foi quase assustadora. Era tão bela à luz da fogueira e ele amava-a tanto que não sabia o que faria se lhe viesse a acontecer qualquer coisa. Profundamente impressionado, Jondalar desviou o olhar. Depois, para alij eirar o momento, ele tentou levantar um assunto mais leve.
Eu é que devia estar preocupado com a idade. Aposto que serei o homem mais velho no Matrimonial-disse, rinda-se. Vinte e três é velho para um homem que se acasala pela primeira vez. A maioria dos homens da minha idade têm várias crianças nos seus lares.
Ele olhou para ela e ela voltou a ver a mesma expressão de amor avassalador e de medo nos seus olhos.
--Ayla, quero que tenhas uma criança, mas não enquanto estivermos
a viajar. Só depois de estarmos em segurança. Por enquanto não.
E Não, por enquanto não-disse ela.
Ela trabalhou em silêncio durante algum tempo, apensar no filho que tinha deixado com a Uba e em Rydag, que em muitas coisas era parecido com o seu filho. Tinha perdido ambos. Até o Bebé, que de uma estranha forma também tinha sido um filho para ela-pelo menos tinha sido o primeiro animal macho que encontrara e de quem cuidara , a tinha dei- xado. Nunca mais o veria. Olhou para o Lobo, subitamente preocupada por também o poder perder a ele. "Por que será", pensou, "que o meu te- term me tira todos os meus filhos? Não devo ter sorte com os filhos."
--Jondalar, a tua gente term algqns costumes especiais sobre querer ter crianças? -- perguntou Ayla.-E suposto as mulheres do Clã quere- term sempre ter filhos.
E Não, francamente não. Creio que os homens querem que a mulher leve filhos para o seu lar, mas creio que as mulheres gostam de ter filhas primeiro.
-- Que é que to gostavas de ter? Um dia.
Ele virou-se para a observar à luz da fogueira. Parecia haver qualquer coisa que a perturbava.
-- Ayla, não importa. O que to quiseres, ou o que a Mãe te der.
Foi a vez de ela o observar. Queria ter a certeza de que ele estava a ser sincero.
-- Então acho que you desejar uma filha. Não quero perder mais crianças.
Jondalar não sabia bem o que ela queria dizer com aquilo e não sabia o que responder.
Eu também não quero que to percas mais crianças.
Ficaram sentados em silêncio, enquanto Ayla trabalhava no chapéu de sol. Subitamente, ele perguntou:
-- Ayla, e se to tiveres razão? E se as crianças não forem dadas pela Doni? E se começarem quando se compartilham os Prazeres? Podes ter um bebé a começar dentro de ti neste momento e nem sequer saberes.
-- Não, Jondalar, não creio. Acho que o meu tempo de lua vem aí E disse--, e to sabes que isso quer dizer que não foi começado nenhum bebé.
Normalmente ela não gostava de falar destes assuntos pessoais com um homem, mas Jondalar tinha-se mostrado sempre muito à-vontade naquelas alturas, ao contrário dos homens do Clã. Uma mulher do Clã tinha de ter cuidados redobrados para não olhar directamente para um homem quando estava a passar pela sua maldição de mulher. Mas mesmo que quisesse, não podia propriamente isolar-se ou evitar Jondalar quando viajavam e apercebeu-se de que ele precisava de ser tranquilizado. Pensou por instantes em falar-lhe do remédio secreto de Iza que tomava para combater quaisquer essencias impregnantes, mas não
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conseguia. Ayla era ão capaz de dizer uma mentira como Iza mas, desde que não ]he fosse feita uma pergunta directa, podia abster-se de fazer re-, ferê ncia a isso. Se ela não ]evantasse a questão, era improvável que um i homem se lembrasse de ]he perguntar se ela estava a fazer alguma coisa para impedir uma gravidez. A maioria das pessoas não acharia possível que existisse uma magia tão forte.
-- Tens a certeza? -- perguntou ele.
-- Sim, tenho a certeza-disse ela.-Não estou grávida. Nenhum bebé começou a crescer dentro de mim.-Ele descontraiu-se ao ouvir isto.
Enquanto Ayla acabava os chapéus de sol, sentiu chuviscar. Apres- sou-se a acabá-los. Levaram tudo para dentro da tenda, à excepção da bolsa de couro cru com a carne que estava pendurada nos paus e, até o Lobo, que tinha ficado molhado, ficou contente por se enroscar aos pés de Ayla. Ela deixou a parte inferior da tenda aberta para o caso de ele pre- cisar de sair, mas fechou a badana do buraco para o fumo quando começou a chover com mais força. Aconchegaram-se um ao outro quando se deitaram, depois ficaram lado a lado, mas tiveram ambos dificuldade em adormecer.
Ayla sentia-se ansiosa e com algumas dores, mas tentou não se mexer demasiado para não incomodar Jondalar. Escutou a chuva a bater na tenda, mas o barulho não a embalou até adormecer como normalmente acontecia e, passado muito tempo, começou a ansiar que fosse manhã para se poder levantar e partir.
Jondalar, depois da preocupação que tivera e de ter sido tranquilizado de que Ayla não tinha sido abençoada pela Doni, começou a interrogar- -se de novo sobre se não haveria algo de mal com ele. Ficou acordado a pensar se o seu espírito, ou lá que essência fosse que a Doni tirava dele, seria suficientemente forte, ou sea Mãe teria perdoado as suas indis- criçõesjuvenis e o permitira. Talvez fosse ela. Ayla disse que queda uma criança. Mas, depois de tanto tempo juntos, o facto de ela não estar grá-vida podia significar que não podia ter crianças. A Serenio não tinha ti- do mais.., a não ser que estivesse à espera quando ele se foi embora... Enquanto olhava a escuridão do interior da tenda, a escutar a chuva, pen- sou se algumas das mulheres que ele tinha conhecido teriam dado à luz, e se teria nascido algum bebé com olhos azuis.
Ayla estava a subir, a subir, uma tngreme parede rochosa, como o caminho íngreme que dava para a sua caverna no vale, mas era muito mais comprida e ela não tinha pressa. Olhou para baixo, para o pequeno rio que redemoinhava junto à curva, mas não era um rio. Era uma cascata, que
cala n um lençol de dgua sobre rochas irregulares que se erguiam da água, atenuadas por um musgo espesso e verdejante.
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Olhou para cima e Creb estava lá! Estava a chamá-la com a måo e a fazer-lhe o sinal para se apressar. Ele virou-se e começou também a subir, apoiando-se pesadamente ao seu cajado, guiando-a por um carreiro íngreme mas vidrei junto à cascata, em direcção a uma pequena caverna numa parede rochosa escondida por arbustos de aveleira. Por cima da caverna, no cimo de um penhasco, havia uma grande rocha achatada inclinada sobre a borda, prestes a cair.
Subitamente, ela viu-se ao fundo da caverna, a caminhar por uma
longa e estreita passagem. Havia uma luz! Um archote com a sua chama convidativa, e depois outra, e depois o rugido aterrorizador de um tremor
de terra. Um lobo uivou. Ela sentiu uma vertigem redemoinhante e depois Creb estava dentro do seu esptrito.
--- Vai-te embora! ordenou ele. Depressa Vai-te já embora!
Ela sentou-se num rompante, atirando para o lado as peles de dormir, e quase se atirou para a abertura.
--Ayla! Que é!- disse Jondalar, agarrando-a.
Subitamente, viram um clarão brilhante de luz através do tecido da tenda e recortado vivamente nas costuras da badana do buraco para o fumo e da frincha em volta da abertura deixada aberta para o Lobo. Seguiu-se quase de imediato um enorme estrondo. Ayla gritou e o Lobo uivou do lado de fora da tenda.
-- Ayla, Ayla. Está tudo bem m disse o homem, abraçando-a.-São apenas relâmpagos e trovões.
Temos de nos ir embora! Ele disse-me para me apressar. Vamos embora já! disse ela, tentando vestir-se depressa.
-- Quem é que disse? Não podemos ir lá fora. Está escuro e a chover.
-- O Creb. No meu sonho. Voltei a ter aquele sonho com o Creb. Ele disse. Anda, Jondalar! Temos de nos apressar.
-- Ayla, acalma-te. Foi apenas um sonho e provavelmente a tempestade. Escuta-a. Parece que há uma cascata lá fora. To não queres com certeza apanhar aquela chuva. Vamos esperar até de manhã.
-- Jondalar! Tenho de ir. O Creb disse-me para ir e não suporto estar aqui disse ela. Por favor, Jondalar. Depressa. As lágrimas cor- riam-lhe pelo rosto, embora ela nem se apercebesse, enquanto emíava as coisas nos cestosalforge.
Ele decidiu que mais valia item embora. Era evidente que ela não la esperar que amanhecesse e ele já não conseguiria voltar a adormecer. Pegou na roupa enquanto Ayla abria a badana da entrada. A chuva caía como se alguém a estivesse a deitar de um saco de água. Ela saiu da tenda e deu um assobio prolongado e agudo. Este foi seguido de um novo uivo de lobo. Depois de esperar um pouco, Ayla voltou a assobiar e começou a arrancar as estacas da tenda do chão.
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Ouviu os cascos dos cavalos e deu um grito de alívio ao vêlos,
o sal das suas lágrimas se perdesse no dilúvio. Estendeu a mão para a. Whinney que a tinha vindo ajudar e abraçou o pescoço da égua encharca- da e sentiu que estava a tremer e assustada. A égua abanava o rabo e não parava quieta, virando a cabeça e mexendo as orelhas para a frente e para trás, tentando encontrar e identificar a causa da sua apreensão. O medo do cavalo ajudou a mulher a controlar o seu próprio medo. A Whinney precisava dela. Falou com o animal num tom suave, fazendo-lhe festas e tentando acalmá-la, e depois sentiu o Corredor a encostar-se a elas, se possível ainda mais assustado que a mãe.
Ayla tentou acalmá-lo, mas ele recuou com passos nervosos. Deixou os cavalos juntos, apressando-se a ir à tenda buscar os arreios e os cestos-alforge. Jondalar tinha enrolado as peles de dormir e tinha-as empilhado no seu saco antes de ouvir o barulho dos cascos dos cavalos e já tinha o arnês do Corredor à mão.
-- Os cavalos estão muito assustados, Jondalar-disse Ayla quando entrou na tenda, mAcho que o Corredor está prestes a fugir. A Whinney está a acalmá-lo, mas ela também está cheia de medo e ele está a enervá-la ainda mais.
Ele pegou nos arnês e saiu da tenda. O vento e a chuva torrencial var- reram-o, quase derrubando-o. Estava a chover tanto que ele sentiu-se como se estivesse debaixo de uma cascata. Estava muito pior do que ele imaginara.
Não tardaria que a tenda fosse levada na enxurrada ou pelo menos que a chuva encharcasse a protecção do chão e as peles de dormir. Ficou satisfeito por Ayla ter insistido para se item embora. Com novo clarão, viu-a a tentar amarrar os cestos-alforge à Whinney. O garanhão baio estava ao lado delas.
Corredor! Corredor, anda cá. Anda, Corredor m gritou ele. Um grande ribombar rasgou o ar, como se o próprio céu se estivesse a abrir. O jovem garanhão empinou-se e relinchou, depois começou aos pinotes e a correr às voltas. Estava a revirar os olhos e a mostrar a parte branca, e tinha as nañnas muito abertas. Abanava violentamente o rabo e as orelhas moviam-se em todas as direcções, tentando encontrar o centro dos seus medos mas estes estavam em todo o lado à sua volta e isso era aterrorizador.
O homem alto estendeu os braços para o cavalo, tentando agarrá-lo pelo pescoço para o puxar para si, falando com o animal para o acalmar. Havia um forte laço de confiança entre eles e as mãos e a voz familiar tranquilizaram-no. Jondalar conseguiu colocar o arnês e, pegando nas ré-deas, desejou que o próximo enervante relâmpago e o ribombar do trovão tardassem um pouco.
Ayla foi dentro da tenda buscar o resto das suas coisas. O lobo estava atrás dela, embora ela ainda não tivesse dado pelo animal. Quando re-
cuou para sair do abrigo cónico, o Lobo latiu, começou a correr em direcção ao bosque de salgueiros e depois voltou atrás, latindo de novo.
m já vamos, Lobo m disse ela, e depois, virando-se para Jondalar: m
Está vazia. Depressa! m Correu para a Whinney e atirou o que trazia nos braços para dentro de um dos cestosalforge.
Ayla tinha transmitido a sua preocupação e Jondalar receava que o Corredor já não aguentasse muito mais. Não se preocupou em desmontar a tenda. Puxou os postes de suporte pela abertura de cima, rasgando a badana, meteu-os no cesto e enrolou as peles encharcadas e pesadas, metendo-as por cima. O cavalo enervado continuava a revirar os olhos e recuou quando Jondalar tentou agarrar-lhe as crinas para o montar. Apesar de o seu salto ter sido desajeitado, conseguiu equilibrar-se, mas quase foi lançado ao chão quando o Corredor se empinou. Mas agarrou- -se ao pesçoco do cavalo e aguentou-se.
Ayla ouviu um prolongado uivo de lobo e um estranho e profundo rugido quando montou para o dorso da Whinney e virou-se, vendo Jondalar agarrado ao garanhão aos saltos. Assim que o Corredor se acalmou, ela inclinou-se para a frente, incitando a Whinney a andar. A égua lan- çou-se num rápido galope, como se estivesse a ser perseguida, como se ela própria, à semelhança de Ayla, estivesse morta por se afastar daquele sí-tio. O Lobo corria à frente, metendo-se pelo meio dos arbustos, e enquanto o Corredor e Jondalar os seguiam de perto, o rugido ameaçador tornou-se mais forte.
A Whinney galopou através do bosque do chão plano do vale, esquivan- do-se às árvores, saltando por cima dos obstáculos. Mantendo a cabeça baixa, com os braços em volta do pescoço da égua, Ayla deixou que esta seguisse o seu próprio caminho. Não conseguia ver nada na escuridão e na chuva, mas pressentiu que se estavam a dirigir para a encosta que da- va para as estepes acima destas. Subitamente, houve novo clarão, enchendo o vale com instantânea claridade. Estavam no bosque de faias e a encosta estava perto. Olhou para trás, para Jondalar, e soltou uma exclamação abafada.
As árvores atrás dele estavam a mover-se! Antes de aluz desaparecer, vários pinheiros inclinaram-se precariamente e depois ficou tudo escuro. Ela não tinha reparado que o ribombar estava mais próximo até esperar ouvir as árvores cair e ter consciência de que o som foi abafado pelo ruí-do avassalador. Até o estrondo do trovão pareceu dissolver-se no rugido ribombante.
Estavam na encosta. Ela percebeu, pela mudança de passo da Whinney, que estavam a subir, embora ainda não conseguisse ver. $6 podia confiar no instinto da égua. Sentiu o animal escorregar e reequilibrar-se de seguida. Depois saíram do bosque e entraram numa clareira. Ela até via as nuvens a rolar através da chuva. Deviam estar no prado na encosta onde os cavalos tinham pastado, pensou. O Corredor e Jondalar pararam junto
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dela. Ele também estava dobrado sobre o pescoço do cavalo, embora tivesse demasiado escuro para ver mais que a forma da sua silhueta sombra negra sobre negro.
A Whinney estava a abrandar o passo e Ayla sentia a
ofegante. Os bosques do outro lado do prado eram mais esparsos e a Whinney já não ia naquele galope frenético, a esquivar-se às Ayla endireitou-se umpouco, mas manteve os braços em volta do da égua. O Corredor já a tinha ultrapassado no seu galope veloz, tardou que passasse a passo e a Whinney apanhou-o de novo. A chuva. tava a abrandar. As árvores deram lugar a arbustos e depois a erva encosta nivelou-se enquanto as estepes se abriam à sua frente numa escuridão apenas atenuada por nuvens iluminadas pela lua escondida atrás de um véu de chuva.
Pararam e Ayla desmontou para deixar a Whinney
fez o mesmo e ficaram ao lado um do outro a tentar ver para a escuridão lá e.m baixo. Os relâmpagos sucediam-se, mas mais longe, e os trovões se- gmam-se passado mais tempo e com um troar surdo. Estupefactos olharam para o abismo negro do vale, sabendo que estava a ocorrer uma grande destruição embora não conseguissem ver nada. Aperceberam-se de que tinham escapado por um triz a uma terrível desgraça, mas não compreendiam ainda as suas dimensões.
Ayla sentiu uma sensação de arrepio no couro cabeludo e sentiu um leve crepitar. Franziu o nariz ao sentir o cheiro acre do ozono; era um cheiro a queimado peculiar, mas não de fogo, nada de tão terrestre como isso. Ocorreu-lhe subitamente que devia ser o cheiro do fogo que cruzava os céus. Então abriu os olhos de espanto e medo e, num instante de pânico, agarrou o braço de Jondalar. Um pinheiro alto, enraizado na encosta mais abaixo mas abrigado dos ventos cortantes por um afloramento rochoso, e projectando-se bem alto acima das estepes, brilhava com uma fantasmagórica luz azulada.
Ele pôs o braço em volta dela, querendo protegê-la, mas sentiu as mes- mas sensações e medos e sabia que aqueles fogos sobrenaturais estavam além do seu controlo. Apenas a podia abraçar. Depois, numa exibição impressionante, um relâmpago ziguezagueante atravessou as nuvens brilhantes, irrompendo numa rede de feixes luminosos e, com um clarão encandeante, saltou e atingiu o pinheiro alto, iluminando o vale e as estepes com a claridade do meio-dia. Ayla deu um salte ao ouvir o forte estampido, tão forte que ficou com os ouvidos a zunir, e encolheu-se quando o rugido ribombante reverberou através do céu. Nesse momento de claridade radiosa viram a destruição a que tinham escapado por um triz.
O vale verde estava destruído. Todo o seu chão plano era um pesado redemoinho. Em frente, na outra encosta, uma enxurrada de lama tinha empilhado um monte de pedregulhos e de árvores caídos a meio das águas revoltas, deixando à mostra uma cicatriz de terra avermelhada.
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A causa do fenómeno torrencial era um conjunto de circunstâncias que não era invulgar. Tinha começado nas montanhas a oeste, com depressões atmosféricas sobre o mar interno; o ar quente, carregado de humidade, tinha-se elevado e condensado em enormes nuvens com cumes brancos e varridos pelo vento que pairaram imóveis sobre os montes rochosos. Aquele ar quente tinha sido invadido por uma frente fria e a turbulência da resultante combinação tinha criado uma tempestade de in- vulgar intensidade. A chuva tinha caído do céu carregado, enchendo rachas e depressões que correram para riachos, irromperam sobre tochas e invadiram os ribeiros que rapidamente transbordavam. Ganhando ímpeto, a água tumultuosa, reforçada pelo dilúvio contínuo, varria montes íngremes, caía em cascata sobre as barreiras e abatia-se sobre outros rios que, juntos, formavam paredes de uma forma imparável e devastadora.
Quando a súbita inundação chegou ao vale verdejante, irrompeu sobre a cascata e, com um rugido voraz, cobriu todo o vale, mas a depressão verdejante e luxuriante detinha uma surpresa para as águas revoltas. Durante essa era, extensos movimentos da terra estavam a levantar a terra, erguendo o nível do pequeno mar interno a sul e abrindo passa: gens para um mar ainda maior mais a sul. Nas décadas mais recentes, este levantamento tinha fechado o vale, formando a bacia pouco funda que tinha sido cheia pelo rio, criando um pequeno lago por detrás do dique natural. Mas uma saída tinha sido aberta há alguns anos e drenado o pequeno reservatório de água, deixando atrás de si suficiente humidade para um vale arborizado no meio das estepes secas.
Um segundo deslizamento de lama, mais abaixo no rio, tinha voltado a tapar o canal de saída, prendendo as tumultuosas águas diluviais nos limites do vale e causando o movimento inverso das águas. Jondalar achou que a cena lá em baixo devia ter saído de um pesadelo. Mal acre- ditava no que vira. Todo o vale era um mar agitado e turbulento de lama e rochas que avançava e recuava, levando consigo vegetação e árvores inteiras arrancadas pelas raízes e partidas com a violência.
Nenhuma coisa viva podia ter sobrevivido naquele sítio e ele estremeceu ao pensar no que teria acontecido se Ayla não o tivesse acordado e insistido em partir. Duvidava que tivessem conseguido escapar sem os cavalos. Olhou em volta; estes estavam ambos de cabeça caída, patas afastadas, com um ar tão exausto como ele achava que deviam estar. O Lobo estava ao lado de Ayla e, quando viu Jondalar olhar para ele, ergueu a cabeça e uivou. O homem teve uma recordação fugaz de um uivo de lobo a perturbar-lhe o sono, imediatamente antes de Ayla ter acordado.
Houve outro relâmpago e, ao ouvir o trovão, sentiu Ayla estremecer violentamente nos seus braços. Ainda não estavam fora de perigo. Estavam molhados e com frio, estava tudo encharcado e, no meio da planície aberta, no meio de uma tempestade, ele não fazia ideia onde encontrar um abrigo.
O pinheiro alto que tinha sido atingido pelo relâmpago estava a arder, mas a resina quente que alimentava o fogo teve de lutar com a chuva forte e as chamas irregulares pouca luz davam. No entanto, bastava para deixar ver os contornos gerais da paisagem próxima. Não havia grande possibilidade de abrigo na planície aberta, à excepção de alguma vegetação baixa que crescia junto a uma vala de drenagem quase inundada que costumava estar seca a maior parte do ano.
Ayla estava a olhar para a escuñdão do vale, como se estivesse hipno- tizada pela cena que tinham visto lá em baixo. Enquanto all estavam, a chuva começou a cair com mais força, ensopando a sua roupa já encharcada e finalmente vencendo o fogo na árvore.
-- Ayla, anda-disse Jondalar.-Temos de encontrar abrigo para sairmos desta chuva. Estás cheia de frio. Estamos ambos molhados e com frio.
Ela olhou durante mais um instante e estremeceu.
-- Nós estávamos lá em baixo, m Olhou para ela.-Jondalar, teríamos morrido se tivéssemos sido apanhados por aquilo.
Mas viemo-nos embora a tempo. Agora precisamos de encontrar um abrigo. Se não encontrarmos um sítio onde nos possamos aquecer, de nada adiantará termos saído do vale.
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vinham quando ela os chamava, quer lhes oferecesse ou não grãos, e naram-se a sua companhia naqueles dias de solidão. A cotovia fëmet aproximou-se, procurando o pássaro que estava a invadir o território seu ninho, mas não encontrando outras cotovias voltou à tarefa de mentar os seus filhotes. :
Um assobio de frases repetitivas, mais melodiosas e terminal
um som casquinado, suscitou o maior interesse de Ayla. Os galos silv¢ tres eram suficientemente grandes para dar uma refeição decente, bem como aquelas rolas que ouvia arrulhar, pensou, olhando em volta para ver se conseguia localizar as aves rechonchudas que se assemelhavam, aos galos silvestres em tamanho e forma. Nos ramos baixos, viu um nho simples, de gravetos, com três ovos brancos lá dentro, antes de ver o pombo anafado, com a sua cabeça e bico pequenos e pernas baixas. A sua plumagem macia e espessa era de um castanho-claro, quase rosado, e as suas costas e asas com um padrão distinto, e que de certa forma se asse- melhava à carapaça de uma tartaruga, cintilava com manchas iridiscen- tes.
Jondalar voltou-se e Ayla virou-se para observar o homem deitado ao seu lado, com a respiração regular e profunda de quem dorme. Depois apercebeu-se da necessidade que sentia de se levantar e se aliviar. Tinha medo de que se se levantasse ele acordaria e não o queria incomodar, mas quanto mais tentava esquecer-se disso, mais urgente a sua necessidade se tornava. Talvez se se mexesse devagar, pensou, tentando esgueirar-se de dentro das peles quentes e ligeiramente húmidas em que estavam embrulhados. Ele resfolegou e gemeu quando ela se libertou, mas foi
quando estendeu a mão para lhe tocar e não a sentiu lá que ele acordou.-Ayla? Ah, estás aí- disse ele numa voz entaramelada de sono.
-- Dorme, Jondalar. Nåo precisas de te levantar já-disse ela, enquanto gatinhava para fora do seu ninho na vegetação.
Amanhã estava clara e fresca e o céu de um azul límpido e cintilante, sem uma única nuvem à vista. OLobo não estava all, tendo provavelmente ido caçar ou explorar, pensou Ayla. Os cavalos também se tinham afastado; viu-os a pastar perto da orla do vale. Embora o sol ainda estives- se baixo, já se erguia vapor do solo molhado e Ayla sentiu a humidade ao acocorar-se para urinar. Depois reparou nas manchas vermelhas na parte de dentro das pernas. O seu tempo da lua, pensou. Já estava à espera dele; teria de se lavar a si e à peça de vestuário interior, mas primeiro pre- eisava da lã de carneiro.
A vala de drenagem estava apenas semicheia, mas a água que corria por ela estava límpida. Inclinou-se e lavou as mãos, bebeu várias mãos- -cheias do líquido fresco e depois apressou-se a voltar ao sítio onde tinham dormido. Jondalar tinha-se levantado e sorriu quando ela abriu caminho até ao abrigo no meio dos arbustos de salgueiro para ir buscar um dos seus cestos-alforge. Puxou-o para fora e.começou a procurar
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qualquer coisa. Jondalar foi buscar os seus dois cestos e depois foi buscar o resto das suas coisas. Queria ver os estragos que a chuva torrencial tinha feito. Nessa altura o Lobo voltou a correr e foi direito para a Ayla.
Pareces muito satisfeito contigo próprio-disse ela, acariandolhe o pêlo do pescoço, tão espesso que quase parecia uma crina. Quando parou, ele saltou para ela, pondo as patas enlameadas no seu peito, quase ao nível dos seus ombros. Apanhou-a desprevenida, quase deitando-a ao chão, mas ela recuperou o equilíbrio.
--Lobo! Olha para toda esta lama-disse ela, enquanto ele se esti- cava para lhe lamber a garganta e a cara, e depois, com um rosnar surdo, abriu a boca e apanhou-lhe o maxilar com a boca. Mas apesar dos seus dentes de canino impressionantes, a sua acção foi suave e controlada, com se estivesse a lidar com uma cria pequena. Nenhum dos dentes lhe feriu a pele; mal fizeram marca. Ela voltou a enterrar as mãos no pêlo do pescoço, empurrou-lhe a cabeça para trás e olhou para a dedicação espelhada nos seus olhos de lobo com tanto afecto como ele demonstrava. Depois agarrou-lhe os maxilares com os dentes e, também rosnando, deu-lhe o mesmo tipo de dentadinha de amor.
-- Agora põe-te para baixo, Lobo. Olha para como me sujaste toda! You ter também que lavar isto.-Sacudiu a túnica de pele sem mangas que usava por cima das protecções de pernas curtas que usava como roupa interior.
-- Se eu não estivesse habituado, Ayla, quase me assustaria quando ele te faz isso-disse Jondalar. w Está muito grande e não te esqueças de que é um caçador. Podia matar alguém.
--Não tens que te preocupar com o Lobo quando ele faz isso. É a forma como os lobos se cumprimentam uns aos outros e mostram o seu amor. Acho que também está contente por termos acordado a tempo de fugirmos do vale.
Já olhaste lá para baixo?
--Ainda não... Lobo, vai-te embora daqui disse ela, empurrandoo quando ele começou a cheirá-la entre as pernas.-E o meu tempo de lua.-Desviou o olhar e corou ligeiramente.-Vim buscar a minha lã e ainda não tive oportunidade para ir ver.
Enquanto Ayla cuidava das suas necessidades pessoais, lavando-se a si e à sua roupa no pequeno ribeiro, amarrando as tiras de couro que man- tinham a lã no sítio e indo buscar outra roupa para vestir, Jondalar di- rigiu-se para a orla do vale para urinar e olhou lá para baixo. Não havia vestígios do sítio do acampamento ou de qualquer lugar onde pudesse haver algum. A bacia natural do vale estava parcialmente cheia de água e os troncos e as madeiras e outros destroços apareciam e desapareciam à superfície enquanto a água agitada continuava a subir. O pequeno rio que a alimentava continuava com a saída bloqueada e a criar um movimento inverso à água, embora não tão violento na sua ida e vinda como na noite
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anterior. Silenciosamente, Ayla foi ter com Jondalar, que tinha a olhar fixamente para o vale, apensar. Olhou para cima quando a sua presença.
m Este vale deve estreitar mais abaixo e deve haver qualquer coisa
bloquear o rio m disse ele--, provavelmente rochas ou um deslizamen de lama. Está a impedir a saída da água. Talvez seja por isso que verde, pois pode já ter acontecido isto.
-- A inundação repentina podia ter-nos arrastado se nos tive apanhado-disse Ayla.-O meu vale costumava inundar todas as Pri maveras e já era bastante mau, mas isto...-Não conseguia palavras para exprimir o seu pensamento e terminou inconscientem a frase com os gestos da linguagem de sinais do Clã que para miriam mais forte e precisamente o seu sentimento de desânimo
Jondalar compreendeu. Também ele não tinha palavras e
lhava os seus sentimentos. Ficaram ambos em silêncio a observar o m" vimento lá em baixo; depois Ayla reparou que ele tinha a testa franzida, numa expressão de concentração e preocupação. Por fim, ele falou.
-- Se o deslizamento de lama, ou lá o que é, ceder demasiado rapida: mente, essa água que se escoará rio abaixo será muito perigosa. Espero que não haja pessoas no seu caminho-disse.
-- Não será mais perigoso que a noite passada-disse Ayla.-Poi não?
-- Ontem à noite estava a chover, portanto as pessoas podiam já estar à espera de que acontecesse qualquer coisa como uma inundação, mas se isto ceder, sem o aviso de uma tempestade, as pessoas seriam apanha-
das desprevenidas e ísso seria devastador-explicou ele.
Ayla assentiu e disse:
-- Mas se as pessoas usarem este rio, não reparariam que ele tinha
deixado de correr e tentariam descobrir porquê?
Ele virou-se para olhar para ela.
-- E nós, Ayla? Estamos a viajar e não teríamos forma de saber que o rio tinha parado de correr. Em qualquer altura podíamos estar ajusan- te de qualquer coisa como esta e nada nos alertaria para isso.
Ay]a virou-se para olhar para a água no vale e não respondeu imediatamente.
Tens razão, Jondalar-acabou por dizer, mPodíamos ser apanhados por uma inundação repentina. Ou o relâmpago podia-nos ter atingido a nós em vez de atingir a árvore. Ou um tremor de terra podia abrir uma fenda na terra e levar toda a gente a não ser uma garotinha, deixando-a sozinha no mundo. Ou alguém podia adoecer, ou nascer com uma fraqueza ou uma deformidade. O Mamut disse que ninguém pode saber quando a Mãe decide chamar um dos Seus filhos de novo para perto De- la. Não se ganha nada em preocuparmo-nos com coisas como essas. Não podemos fazer nada. Isso cabe-lhe a Ela decidir.
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Jondalar escutou-a, continuando com uma expressão preocupada; depois descontraiu-se e abraçou-a.
-- Preocupo-me demasiado. O Thonolan costumava dizer-me isso. Mas comecei a pensar no que teña acontecido se estivéssemos ajusante do vale e lembrei-me de ontem à noite. Depois pensei no que seria per- der-te e...-Abraçou-a com mais força.-Ayla, não sei o que faria se al- guma vez te perdesse m disse ele, com súbito fervor, puxando-a contra si. m Não tenho a certeza de que quereña continuar a viver.
Ela sentiu um leve arrepio de preocupação ao ver a sua forte reacção.-Espero que continues a viver, Jondalar, e que encontres outra pessoa que ames. Se alguma coisa te acontecesse a ti, uma parte de mim, do meu espírito, desapareceria contigo, porque te. amo, mas eu continuaria a viver, e uma parte do teu espírito viveria sempre comigo.
--Não seria fácil encontrar uma pessoa para amar. Nunca pensei que te encontraria. Não sei se quereria sequer procurar-disse Jondalar.
Voltaram para trás, caminhando juntos. Ayla foi em silêncio durante algum tempo, apensar, e depois disse:
m Será que é isso que acontece quando se ama alguém e essa pessoa também nos ama? Será que se troca uma parte do nosso espírito por parte do espírito da outra pessoa? Talvez seja por isso que dói tan.to perder alguém que se ama.-Fez uma pausa e depois continuou.-E como os homens do Clã. São irmãos de caça e trocam entre si uma parte do seu espírito, sobretudo quando um salva a vida de outro. Não é fácil continuar a viver quando falta uma parte do espírito e cada caçador sabe que uma parte de si irá para o outro mundo se o outro for, portanto estará atento e protege o seu irmão, fazendo praticamente qualquer coisa para lhe salvar a vida.-Parou de falar e olhou para ele.-Achas que trocamos uma parte dos nossos espíritos, Jondalar? Somos companheiros de caça, não somos?
E to já me salvaste a vida uma vez, mas és muito mais que um irmão de caça-disse ele, sortindo da ideia.-Amo-te. Compreendo por que é que o Thonolan não quis continuar a viver quando a Jetamio morreu. Por vezes penso que ele andava à procura de um caminho para o outro mundo, para os encontrar, à Jetamio e ao bebé que nunca chegou a nascer.
-- Mas se me acontecesse alguma coisa, eu não quereria que to me seguisses para nenhum mundo dos espíritos. Quereria que ficasses aqui e encontrasses outra pessoa-disse Ayla com convicção. Não lhe agradava nada aquela conversa sobre outros mundos. Não sabia bem como se- ria um outro mundo depois daquele, nem mesmo sabia, no fundo do seu coração, se existiria mesmo um outro mundo. O que ela sabia era que para se ir para qualquer outro mundo era preciso morrer neste e ela não que- rìa ouvir falar na morte de Jondalar, nem antes nem depois da sua.
Pensar nos mundos dos espíritos levou a outros pensamentos.
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m Talvez seja isso que acontece quando se envelhece m disse ela. Se se troca uma parte do espírito com as pessoas que se ama, quando perdem muitas delas foram com elas para o outro mundo tantas partesI do nosso espírito que se de.ixa de ter espírito suficiente para mos a viver neste mundo. E como um buraco dentro de nós que não pára de aumentar e portanto uma pessoa acaba por querer ir para o outro mundo onde está a maior parte do nosso espírito e as pessoas que amamos
mComo é que sabes tanto?-- perguntou Jondalar¢om um ligeiro sorriso. Apesar de toda a sua falta de conhecimento sobre o mundo dos espíritos, as suas observações ingénuas e espontâneas faziam-lhe de certa forma sentido e demonstravam uma inteligência genuína e reflectida, embora ele não tivesse forma de saber se tais ideias teriam algum mérito. Sea Zelandonii estivesse all, podia perguntar-lhe, pensou. Depois apercebeu-se subitamente de que iam para casa e que em breve lhe po- deria perguntar.
-- Eu perdi partes do meu espírito quando era pequena e as pessoas de quem eu nasci foram levadas pelo tremor de terra. Depois a Iza levou uma parte quando morreu, e Creb também, além do Ryday. Muito embora não esteja morto, o Durc tom uma parte de mim, do meu espírito, que eu nunca verei. O teu irmão levou uma parte de ti com ele, não levou?
-- Sim-disse Jondalar--, levou. Sentirei sempre a sua falta e sofro sempre com isso. Por vezes continuo a achar que a culpa foi minha e te- ria feito qualquer coisa para o salvar.
-- Não creio que pudesses ter feito nada, Jondalar. A Mãe queria-o e Ela é que decide, não alguém que procurasse um caminho para o outro mundo.
Quando chegaram juntos dos pequenos salgueiros onde tinham passado a noite, começaram a verificar as suas coisas. Estava quase tudo pelo menos húmido e muitas coisas estavam ainda muito molhadas. Desfi- zeram os nds inchados que ainda prendiam a protecção do chão à parte superior da tenda e, cada um pegando numa extremidade e torcendo-a em sentidos opostos, tentaram torcer as peles. Mas se torcessem demasiado, as costuras podiam ceder. Quando decidiram montar a tenda para a deixar secar, descobriram que tinham perdido alguns dos postes.
Estonderam a protecção do chão sobre os arbustos e depois verificaram a sua roupa exterior, que também estava ainda muito molhada. Os objectos que estavam dentro dos cestos-alforge tinham ficado em melhores condições. Muitas das coisas estavam molhadas mas não tardariam a secar se eles tivessem um sítio quente e seco onde as pôr a arejar. As estepes abertas seriam óptimas durante o dia, mas era durante essa altura que precisavam de viajar, e à noite o solo ficava húmido e frio. Não lhes agradava a ideia de dormirem numa tenda molhada.
-- Acho que é altura de bebermos um pouco de chá quente disse Ayla, sentindo-se desencorajada. Era já mais tarde do que habitual-
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mente. Acendeu uma fogueira e pôs lá dentro pedras de cozinhar, a pen- sar no pequeno-almoço. Foi nessa altura que se apercebeu de que não tinham a comida que tinha sobrado da refeição da noite anterior.
-- Oh, Jondalar, não temos nada para corner esta manhã-queixou-se ela. Está lá em baixo no vale. Deixei os cereais no meu cesto de cozinhar bem ao pé das brasas quentes da fogueira. O cesto de cozinhar também desapareceu. Tenho outros, mas aquele era muito born. Pelo menos tenho a minha bolsa medicinal-disse ela com evidente alívio quando a encontrou. E a pele de lontra ainda resiste à água, apesar de ser muito velha. Tudo o que lá está dentro está seco. Pelo menos posso fazer chá. Tenho aqui algumas ervas saborosas. You buscar água-disse ela, olhando depois em volta.-Onde está o meu cesto de fazer chá? Também o perdi? Pensei que o tinha levado para dentro da tenda quando começou a chover. Devo tê-lo deixado cair na pressa de nos virmos embora.
Também lá deixámos uma coisa que não te vai agradar nada-disse Jondalar.
-- O quê? -- perguntou Ayla, com uma expressão preocupada.-A tua bolsa de couro cru e os paus compridos. Ela fechou os olhos e abanou a cabeça, consternada.
-- Oh, não. Era uma boa bolsa para carne e estava cheia de carne de cabrito-montês. E os paus. Tinham mesmo o tamanho certo. Vai ser difícil substituí-los. É melhor eu verificar se falta mais alguma coisa e as- segurar-me de que a comida de emergência está em ordem.
Pegou no cesto-alforge onde guardava os poucos artigos pessoais que levava consigo e a roupa e o equipamento que seria usado mais tarde. Embora todos os cestos estivessem molhados, e deformados, as cordas e os fios no fundo tinham mantido o conteúdo daquele cesto relativamente seco e em boas condições. A comida que estavam a usar estava perto do cimo do cesto; por baixo estava o pacote de viagem de comida de emergência, ainda bem amarrado e essencialmente seco. Ayla decidiu que talvez fosse boa altura para verificar todas as provisões para se assegurar de que nada estava estragado e verificar para quanto tempo duraria a comida que tinham com eles.
Tirou todos os tipos de comida seca e preservada que levara consigo e espalhou-os em cima das peles de dormir. Havia bagas-amoras, fram- boesas, uvas-do-monte, sabugos, vacínios, morangos, sozinhas ou mis- turadas-que tinham sido esmagadas e secas em forma de bolos. Outras variedades doces tinham sido cozidas, secas até terem uma textura de couro, por vezes com pedacinhos de pequenas maçãs duras, ácidas mas ricas em pectina. Bagas inteiras e maçãs silvestres, juntamente com outros frutos tais como pêras e ameixas silvestres, eram cortadas em pedaços ou deixadas inteiras e adoçavam ligeiramente ao ser secas ao sol. Qualquer uma destas vañedades podia ser comida como estava, posta de molho, ou cozida em água, e eram frequentemento usadas para dar sabor
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a sopas e carnes. Havia tambdm grãos de cereais e sementes, tinham sido parcialmente cozinhados e depois secos; algumas avelãs C cascadas e torradas; e as pinhas mansas cheias de' apanhado no vale na véspera.
Os legumes também eram secos-caules, nozes,
raízes ficas em amido como espadanas, alcachofras, fetos e vários de lírios. Alguns eram cozidos ao vapor em fornos de chão antes de secos, mas outros eram apanhados do chão, descascados e te pendurados em cordas feitas da casca fibrosa de certas plantas ou dos tendões da espinha dorsal ou das pernas de vários animais. Os.
]os também eram enfiados e pendurados sobre fogueiras fumegantes para secarem e ficarem mais saborosos e certos líquenes comestíveis eram cozidos ao vapor e secos sob a forma de pães densos e nutritivos. As suas provisões terminavam com uma grande selecção de carne e peixe secos e fumados e, num pacote especial, guardado para uma emergência, havia uma mistura de carne moída e seca, gordura limpa e frutos secos, moldados em pequenos bolos.
A comida seca era compacta e estava bem preparada; alguma tinha mais de um ano e provinha das provisões do Inverno anterior, mas as quantidades de certos alimentos eram bastante limitadas. A Nezzie tinha feito uma recolha junto de amigos e parentes que as tinham levado para o Encontro de Verão.
Ayla tinha recorrido muito pouco àquelas reservas de comida; tinham sobretudo vivido com aquilo que a terra lhes ia dando. Era a altura do ano para isso. Se não podessem sobreviver com o que colhiam da generosidade da Grande Mãe Terra quando as Suas oferendas eram abundantes, nunca podiam esperar sobreviver à viagem através da terra em tempos de maior escassez.
Ayla voltou a guardar tudo. Não tinha a menor intenção de recorrer à comida seca para viagem para a sua refeição da manhã, embora as estepes tivessem ficado com menos aves gordas depois de eles comerem. Um par de galos silvestres caíram alvo da sua funda e foram assados num espeto; alguns ovos de pombo que nunca chocariam foram ligeiramente partidos e postos directamente na fogueira ainda na casca. Contribuindo para um pequeno-almoço nutritivo foi a descoberta feliz das reservas de uma marmota de cormos da Primavera. O buraco no solo estava por baixo das suas peles de dormir e cheio dos legumes doces e ñcos em amido que tinham sido apanhados pelo pequeno animal quando os cormos semelhantes a raízes estavam no seu auge. Foram cozinhados com os belos pinhões que Ayla tinha apanhado na véspera, que foram soltos da pinha ao lume e partidos com uma pedra. Algumas amoras frescas e maduras serviram de sobremesa.
PLANÍCIES DE PASSAGEM I
Depois de deixarem o vale inundado, Ayla e Jondalar continuaram para sul, desviando-se ligeiramente para oeste e apreximando-se quase imperceptivelmente da cordilheira de montanhas. Embora não fosse uma cordilheira excepcionalmente alta, os cumes mais altos estavam permanentemente cobertos de neve, muitas vezes envoltos por neblinas e nuvens.
Estavam na região sul do continente frio e as características das pastagens tinham-se alterado subtilmente. Era mais que uma profusão de ervas que justificava a diversidade de animais que viviam nas planícies frias. Os próprios animais tinham desenvolvido diferenças em termos de dieta e padrões migratdrios, separações espaciais e variações sazonais, tudo isto contribuindo para a ñqueza da vida. Como mais tarde aconteceu nas grandes planícies equatoñais muito ao sul-o único sítio que quase correspondeu à profunda riqueza das estepes da Idade do Gelo -- , a grande abundåncia e variedade de animais compartilhava a terra pro- dutiva de várias formas complexas e mutuamente sustentadoras.
Alguns especializaram-se em corner determinadas plantas, outros em partes específicas de plantas; alguns pastavam as mesmas plantas em diferentes fases de desenvolvimento; outros alimentavam-se em sí-tios onde os outros não Jam, ou para onde Jam mais tarde, ou migravam de forma diferente. A diversidade era mantida porque os hábitos alimentares e de vida de uma espécie se enquadravam entre ou em volta dos de uma outra em nichos complementares.
Os mamutes peludos precisavam de grandes quantidades de fibras que enchiam, ervas e buxos grosseiros, e como tinham tendência para ficar presos em neve alta, pântanos ou prados de esfagnos, mantinham-se no solo firme e varrido pelo vento perto dos glaciares. Faziam longas migrações ao longo da parede de gelo, deslocando-se para sul apenas na Primavera e no Verão.
Os cavalos das estepes também necessitavam de um grande volume de alimentos; à semelhança dos mamutes, digeriam rapidamente caules e ervas grosseiras, mas eram um pouco mais selectivos, preferindo as variedades de erva de tamanhi médio. Conseguiam escavar através da neve para encontrar pasto, mas gastavam mais energia do que obtinham, e era-lhes dificil deslocarem-se quando a neve se acumulava. Não con- seguiam subsistir durante muito tempo em neve alta e preferiam as planícies de superfície dura e ventosas.
Ao contrário dos mamutes e dos cavalos, os bisontes precisavam das folhas das ervas devido ao seu elevado teor proteico e tendiam a escolher as ervas curtas, utilizando as áreas de erva média e alta apenas no início do seu crescimento, normalmente na Primavera. No entanto, no Verão, era praticada uma importante, embora inadvertente,cooperação. Os cavalos utilizavam os seus dentes como alicates para cortar Os caules duros. Depois de os cavalos passarem e terem cortado os caules, a erva de
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raízes densas era estimulada a lançar rebentos novos. As migrações dos cavalos eram frequentemente seguidas, após um intervalo de alguns. dias, por migrações de gigantescos bisontes, que se deleitavam com os novos rebentos.
No Inverno, os bisontes iam para as regiões do sul de condições atmosféricas variáveis e com mais neve, o que mantinha as folhas da erva curta húmida e mais tenra do que nas planícies mais secas do norte. Eram peritos a varrer a neve para o lado com o nariz e, com o focinho rente ao solo, encontrarem o seu alimento preferido, mas as estepes cobertas de neve do sul não deixavam de ter riscos.
Embora os mantivesse quentes no frio relativamente seco, mesmo no sul onde caía mais neve, o pêlo pesado e comprido dos bisontes e dos outros animais de pêlo quente que migravam para o sul no Inverno podia ser perigoso ou mesmo fatal quando o clima se tornava frio e húmido, com frequentes variações entre gelo e degelo. Se o seu pêlo ficava ensopado durante um degelo, podiam ficar sujeitos a um resfriado fatal durante um período de gelo subsequente, sobretudo se o auge do frio os apanhasse a descansar no solo. Nesse caso, se o seu pêlo comprido gelasse rapidamente, não conseguiriam levantar-se. A neve excessivamente alta ou camadas! de gelo por cima da neve podiam também ser fatais, assim como tempestades de neve de Inverno, ou caírem pelo gelo fino de lagos nos cotovelos dos rios ou em rios de vales inundados.
Os carneiros e os antflopes também se sustentavam através do pasto selectivo de plantas adaptadas a condições muito secas, pequenas plano tas e ervas curtas que cresciam rentes ao solo com folhas largas mas, ao contrário dos bisontes, os antflopes não se davam bem em terrenos acidentados ou na neve alta, pois não conseguiam dar grandes saltos. Eram velozes corredores de fundo, conseguindo distanciar-se dos seus preda- i dores apenas nas superfícies planas e firmes das estepes ventosas. Por outro lado, os carneiros selvagens eram trepadores exímios e usavam os : terrenos íngremes como meio de fuga, mas não conseguiam escavar a neve alta. Preferiam o terreno elevado e rochoso varrido pelo vento.
As espécies semelhantes às cabras, aparentadas com os carneiros, ca- murças e cabritos-monteses, dividiam o seu território por altitude ou por diferenças no solo e na paisagem, com as cabras selvagens e cabritos-monteses ficando com o terreno mais elevado, com as escarpas mais íngremes, seguidos em elevações ligeiramente mais baixas pelas camurças, mais pequenas e muito ágeis, com os carneiros abaixo destas. Mas todos eles viviam em terrenosacidentados, mesmo aos níveis mais baixos das estepes áridas, pois estavam adaptados ao frio, desde que fosse seco.
Os bois-almiscarados eram também animais parecidos com as cabras e o seu pesado pêlo duplo, que se assemelhava ao pêlo dos mamutes e dos rinocerontes peludos, fazia que tivessem mais o aspecto de boi. Mordis, cavam continuamente os arbustos e buxos baixos e estavam particular-
mente adaptados às regiões mais frias, preferindo as planícies abertas extremamente frias e ventosas junto do glaciar. Embora a parte interior do seu pêlo caísse no Verão, os bois-almiscarados ternavam-se irrequietos se o tempo aquecia excessivamente.
Os veados gigantes e as renas mantinham-se em manadas em terreno aberto, mas a maioria dos outros veados alimentavam-se de folhas de árvores. Os alces solitários do terreno arborizado eram raros. Adoravam as folhas de Verão das árvores caducas e as suculentas ervas e plantas aquá-ticas dos lagos e pântanos e, com os seus cascos largos e pernas compri- das, conseguiam vencer os terrenos pantanosos. No Inverno, sobreviviam à custa de ervas mais indigestas, ou de galhos altos das árvores que cresciam nas terras baixas dos vales dos rios, as suas pernas altas le- vando-os facilmente através da neve varrida pelo vento e que all se acumulava.
As renas eram animais que gostavam do Inverno, alimentando-se de líquenes que cresciam na terra árida e nas tochas. Conseguiam sentir o cheiro das suas plantas preferidas, mesmo através da neve, à distância, e os seus cascos estavam adaptados a escavar através da neve alta se tal fosse necessário. No Verão, comiam erva e arbustos frondosos.
Os veados e as renas preferiam ambos os prados alpinos ou as terras altas herbáceas durante a Primavera e o Verão, mas abaixo do nível dos carneiros, e tendiam a corner mais ervas que arbustos. Os asnos e os onagres preferiam invariavelmente os áridos montes mais altos, enquanto os bisontes ocupavam a área imediatamente abaixo, embora geralmente subissem mais alto que os cavalos, que tinham uma escolha mais alargada de terreno do que os mamutes ou os rinocerontes.
Essas planícies primitivas, com as suas complexas e diversas pastagens, sustentavam grandes multidões de uma fantástica mistura de animais. Mais tarde, não houve um único lugar na terra onde existisse mais do que uma parte aproximada destes. O meio ambiente seco e frio das montanhas altas não se podia comparar com esta zona, embora existis- sem semelhanças. Nesse tempo, os carneiros, as cabras e os antflopes, cujo habitat era a montanha, estendiam-se até aos terrenos mais baixos, mas grandes manadas de animais de planície não podiam existir no terreno íngreme e rochoso das montanhas altas, onde o clima das terras baixas se alterava.
Os pântanos ensopados e frágeis do norte não eram iguais. Eram demasiado húmidos para que a erva crescesse, e o seu solo ácido fazia que as plantas desenvolvessem toxinas para evitar servirem de paste a grandes multidões de animais que destruiriam essa delicada flora de crescimento lento. As variedades eram limitadas e proporcionavam nutrientes pobres para a diversidade de animais que viviam em grandes manadas; não havia pasto suficiente. E só aqueles com cascos muito largos, como as renas, podiam lá viver. Enormes criaturas de grande peso, com pernas
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grandes e curtas, ou corredores velozes com cascos finos e delicados, terravam-se na terra macia e húmida. Precisavam de solo firme e seco
e sólido.
II
Mais tarde, as grandes planícies cobertas de erva de regiões mais temperadas desenvolveram faixas distintas de vegetação mais limitada, : controlada pela temperatura e pelo clima. Ofereciam muito pouca diversidade no Verão e demasiada neve no Inverno. A neve também aprisiona- va os animais que necessitavam de terra firme e para muitos era difícil afastá-la para obter alimento. Os veados podiam viver nas florestas onde a neve era alta, mas apenas porque se alimentavam de folhas e rebentos de galhos das árvores que cresciam acima da neve; as renas conseguiam escavar através da neve para chegar aos líquenes de que se alimentavam no Inverno. Os bisontes e os auroques subsistiam, mas o seu tamanho diminuiu, deixando de atingir o seu potencial pleno. Outros animais, tais como cavalos, decresceram em número à medida que o seu meio ambiente preferido se tornou mais restrito.
Foi a conjugação única de muitos elementos das estepes da Idade do Gelo que deu origem às magníficas multidões, e cada um era essencial, incluindo os ventos gélidos e devastadores, e o próprio gelo. Quando os rastos glaciares se reduziram às regiões polares e desapareceram das latitudes mais baixas, o mesmo aconteceu às grandes manadas e os gigantescos animais tornaram-se anãos ou desapareceram por completo de uma terra que tinha mudado, uma terra que já não os podia sustentar.
Enquanto viajavam, a bolsa de couro cru com a carne e os compridos postes não saíram da ideia de Ayla. Eram mais que úteis, pois podiam vir a ser necessários durante a longa viagem que tinham pela frente. Que- ria substituí-los, mas isso demoraña mais que a mera paragem por uma noite e ela sabia que Jondalar estava ansioso por avançar.
No entanto, Jondalar não estava tranquilo com a tenda molhada, nem com a ideia de ter de depender dela para se abrigarem. Além disso, não era born para as peles serem dobradas molhadas daquela forma apertada, pois podiam apodrecer. Precisavam de ser estendidas a secar e as peles provavelmente precisavam de ser trabalhadas enquanto secavam para ficarem flexíveis, apesar de terem sido tratadas com fumo quando fora feito o couro. Tinha a certeza de que isso levaria mais de um dia.
Já de tarde, aproximaram-se do leito fundo de um outro grande rio, que separava a planície das montanhas. Do ponto mais elevado de onde estavam no planalto das estepes abertas, sobre o largo vale com o seu curso de água largo e rápido, viam o terreno do outro lado. Os contrafortes do outro lado do rio eram cortados por muitas ravinas e desfiladeiros secos, sinais de inundação, assim como com muitos mais afluentes. Era um rio principal, que canalizava uma boa proporção das águas que drenavam da face este da montanha para o mar interno.
Ao contornarem o cotovelo do planalto das estepes e descerem a cavalo
PLANÍCIES DE PASSAGEM I 137
a encosta, a paisagem fez lembrar a Ayla o territ6ño em volta do Acampamento do Leão, apesar de a paisagem mais acidentada do outro lado do rio ser diferente. Mas desse lado viu o mesmo tipo de ravinas fundas cor- tadas no solo loess pela chuva e pela neve derretida, e a erva alta a secar, transformando-se em palha. Na planície de aluvião lá em baixo, havia lariços e pinheiros isolados, espalhados por entre arbustos frondosos, e zonas de espadana e altos juncos fragmitas assinalavam a orla do rio.
Quando chegaram ao rio, pararam. Era um rio principal, largo e fundo, e cheio com as chuvas recentes. Não sabiam bem como iam atravessar. Exigia planeamento.
-- É pena não termos um barco-malga-disse Ayla, pensando nos barcos redondos cobertos de pele que o Acampamento do Leão usava para atravessar o rio perto da sua habitação.
--Tens razão. Acho que vamos precisar de uma espécie de barco para atravessarmos este rio sem ficarmos com tudo molhado. Não seibem porquê, mas não me lembro de ter tido grandes problemas a atravessar os rios quando o Thonolan e eu viajávamos. Empilhávamos as nossas coisas nuns troncos e nadávamos para o outro lado-disse Jondalar. m Mas o que é certo é que não tínhamos multas coisas, apenas uma mochila para cada um. Não podíamos levar mais nada. Com os cavalos, podemos levar mais coisas connosco, mas também temos mais com que nos preocuparmos.
Ao continuarem rio abaixo, a estudar a situação, Ayla reparou num grupo de bétulas altas e esguias que cresciam junto à água. O sítio dava-lhe uma sensação de tal forma familiar que quase esperava ver a habitação comprida e semi-subterrânea do Acampamento do Leio aninhado na encosta na parte de trás de uma plataforma sobre o rio, com erva dos lados e cobertura arredondada, e a entrada em arco, perfeita- mente simétrica, que tanto a surpreendera quando a vira pela primeira vez. Mas quando na realidade viu tal arco, sentiu um choque estranho e arrepiante.
-- Jondalar! Olha!
Ele olhou para a encosta para onde ela estava a apontar. Viu aí não uma mas várias entradas em forma de arco perfeitamente simétricas, cada uma a entrada para uma estrutura circular e abobadada. Desmontaram ambos e, descobrindo o caminho da beira do rio até lá acima, subiram para o Acampamento.
Ayla ficou admirada por estar tão ansiosa por conhecer as pessoas que lá viviam e apercebeu-se de há quanto tempo não viam ou falavam com alguém excepto um com o outro. Mas o sítio estava vazio e, colocada no chão entre os dois dentes curvos de mamute cujas pontas se uniam no topo, formando a entrada em arco para uma das habitações, estava uma pequena figura esculpida em marfim de uma fêmea com seios e ancas voluptuosos.
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m Devem-se ter ido embora m disse Jondalar. mDeixaram uma donii a guardar cada habitação.
m Foram provavelmente caçar ou a um Encontro de Verão, ou fazer uma visita-disse Ayla, .sentindo-se profundamente decepcionada por não estar lá ninguém, m E pena. Estava cheia de vontade de ver alguém. E virou-se para se ir embora.
m Espera, Ayla. Onde é que vais?
You voltar para o rio-disse, com um ar intrigado.
Mas isto é perfeito disse ele. Podemos cá ficar.
Eles deixaram uma mutoi.., umadonii.., a guardar as suas habitações. O espírito da Mãe protege-as. Não podemos ficar cá a perturbar o Seu espírito. Dar-nos-á azar-disse ela, sabendo muito bem que ele sabia isso.
Podemos ficar se precisarmos. Só não podemos tirar nada de que não precisemos. Isso é do conhecimento de todos. Ayla, precisamos de abrigo. A nossa tenda está ensopada. Precisamos de a pôr a secar. Enquanto esperamos, podemos ir à caça. Se apanharmos o tipo de animal adequado, podemos usar a pele para fazer um barco para atravessarmos o rio. A expressão preocupada de Ayla transformou-se num sorriso iluminado enquanto apreendia o significado do que ele estava a dizer e se apercebeu das implicações. De facto precisavam de alguns dias para re- cuperarem da quase calamidade e reporem algumas das coisas que tinham perdido.
Talvez também consigamos arranjar couro suficiente para fazermos uma nova bolsa para carne disse ela. Uma vez limpa, e tirado o pêlo, o couro cru não leva muito tempo a preparar e não mais do que leva a secar carne. Só é preciso esticá-lo e deixar que endureça.-Ayla olhou de relance para o rio. E olha para aquelas bétulas lá em baixo. Acho que podemos fazer uns bons paus com algumas. Jondalar, tens razão. Precisamos de cá ficar durante alguns dias. A Mãe compreenderá. E podemos deixar alguma carne seca para as pessoas que cá vivem, para lhes agradecer a utilização do seu Acampamento... se tivermos sorte com a caça. Em que habitação é. que vamos ficar?
-- No Lar do Mamute. E normalmente aí que as visitas ficam.
-- Achas que há um Lar do Mamute? Quero dizer, achas que é um Acampamento Mamutoi? perguntou Ayla.
m Não sei. Não é uma grande habitação onde toda a gente vive junta como no Acampamento do Leão disse Jondalar, olhando para o grupo de sete habitações redondas cobertas com uma camada lisa de terra en- durecida e barro do rio. Em vez de uma única habitação grande e multi- familiar, como aquela em que tinham vivido durante o Inverno, all havia várias habitações mais pequenas todas juntas, mas o objectivo era idêntico. Era um aldeamento, uma comunidade de famflias mais ou menos aparentadas.
m Não, é como o Acampamento do Lobo, onde foi o Encontro de Verão -- disse Ayla, parando à frente da entrada de uma das pequenas habitações, ainda um pouco relutante em afastar a pesada cortina e entrar no lar de estranhos sem ser convidada, apesar do hábito geralmente aceite que se tinha desenvolvido da necessidade mútua para a sobrevivência em alturas de carência.
mAlguns dos jovens no Encontro de Verão achavam que as habitações grandes eram antiquadas disse Jondalar. Agradava-lhes a ideia de uma habitação individual para apenas uma ou duas famflias.
-- Queres dizer que queriam viver sozinhos? Apenas uma habitação com uma ou duas famílias? Para um Acampamento de Inverno? -- perguntou Ayla.
Não m disse ele. Ninguém queda viver sozinho durante todo o Inverno. Nunca se vê uma dessas habitações pequenas isolada; há sempre pelo menos cinco ou seis, às vezes mais. A ideia era essa. As pessoas com quem eu falei achavam mais fácil construir uma habitação mais pequena para uma ou duas famflias novas do que juntar todas numa única habitação grande até terem que construir outra. Mas queriam construir habitações mais pequenas junto das suas famflias e ficar com os seus Acampamentos e participar nas actividades e na comida que todos arranjavam e guardavam para o Inverno.
Afastou a pesada pele que estava pendurada dos dentes unidos que formavam a entrada, baixou a cabeça e entrou.
Ayla deixou-se ficar para trás a segurar a cortina para deixar entrar alguma luz.
Que é que ,achas, Ayla? Parece-te uma habitação Mamutoi?
-- Podia ser. E difícil de dizer. Lembras-te do Acampamento Sungaea onde parámos a caminho do Encontro de Verão? Não era muito diferente de um Acampamento Mamutei. Os seus costumes podiam ser ligeiramente diferentes, mas em muitas coisas eram parecidos com os Caçadores de Mamutes. O Mamut disse que até a cerimónia fúnebre era muito pareci- da. Achava que tinham sido aparentados com os Mamutoi. Mas reparei que os padrões das suas decorações não eram iguais, m Fez uma pausa, tentando pensar noutras diferenças.-E algumas das suas roupas., como aquela bela manta de pôr aos ombros feita de lã de mamute e de outras lãs que tinha a rapariga que morreu. Mas até os Acampamentos Ma- mutoi têm padrões diferentes. A Nezzie sabia sempre de que Acampamento alguém era só pelas pequenas diferenças no feitio e na forma dos padrões das suas túnicas, mesmo quando eu não conseguia ver grande diferença.
Com a luz da entrada, via-se bem a construção principal de apoio. A habitação não era suportada por madeira, embora tivessem sido estrategicamente colocados alguns ramos de bétula; tinha sido construída com ossos de mamute. Os grandes ossos resistentes dos enormes animais
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eram o material de construção mais abundante e acessível na essencialmente nuas de árvores.
A maior parte dos ossos de mamute usados como material de constru. ção não provinham dos animais que tinham sido caçados e mortos com esse objectivo. Eram de animais que tinham morrido de causas naturais, apanhados onde quer que estivessem nas estepes ou, mais frequentemente, de pilhas onde se tinham acumulado, empurrados pelos rios inun- dados e depositados em determinadas curvas ou barreiras nos rios, como pedaços de madeira lançados nas margens. Os abñgos permanentes de Inverno eram frequentemente construídos em terraços sobre os rios perto destas pilhas, pois os ossos e os dentes de mamute eram pesados.
Eram normalmente necessários vários indivíduos para levantar um único osso e ninguém estava na disposição de os levar para muito longe; o peso total dos ossos de mamute que eram usados para construir uma única habitação era uns cem ou cento e cinquenta quilos ou mais. A construção destes abñgos não era uma actividade empreendida apenas por uma famflia, mas um esforço da comunidade, dìrigido por algudm com conhecimentos e experiência e organizado por alguém com capacidade para persuadir os outros a ajudar.
O lugar a que chamavam Acampamento era um aldeamento permanente, e as pessoas que lá viviam não eram nómadas que seguiam caça itinerante, mas essencialmente caçadores sendentários e colhedores de alimentos. 0 Acampamento podia ficar vazio durante algum tempo no Verão, quando os habitantes iam caçar ou colher alimentos, que traziam de volta e guardavam em fossas de armazenagem, ou para visitar familiares e amigos noutros aldeamentos e trocar mexericos e histórias e artigos, mas era um lar permanente.
--Não creio que este seja o Lar do Mamute, ou lá como chamam aqui a esse lar-disse Jondalar, deixando a cortina cair atrás de si, o que levantou uma nuvem de pó.
Ayla endireitou a pequena figura feminina, cujos pés eram proposita- damente apenas uma sugestão, deixando as pernas com uma forma de mola que tinha sido enfiada na terra para ficar de guarda em frente da entrada e depois seguiu Jondalar até à habitação seguinte.
-- Esta é provavelmente a do chefe ou do Mamut, talvez de ambos-disse Jondalar.
Afia reparou que era ligeiramente maior e que a figura de mulher à frente era um pouco mais elaborada e assentiu, concordando.
--Do Mamut, creio eu, se forem Mamutoi, ou pessoas como eles. A mu- lher-chefe e o homem-chefe do Acampamento do Leão tinham lares que eram mais pequenos que o do Mamut, mas este era usado pelas visitas e por toda a gente quando se reuniam.
Ficaram ambos à entrada, a segurar na cortina, à espera que os seus olhos se adaptassem à luz mais fraca do interior. Mas duas pequenas
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]uzinhas continuaram a brilhar. O Lobo rosnou e o nariz de Ayla detectou um cheiro que a enervou.
--Não entres, Jondalar[ Lobo! Fica[ -- ordenou, fazendo também o sinal com a mão.
-- Que é, Ayla? -- disse Jondalar.
m Não sentes o cheiro? Está lá um animal, qualquer coisa que deita
um cheiro forte, um texugo, creio, e se o assustarmos deitará um cheiro terrível que nunca mais desaparecerá. Não poderemos usar esta habitação e as pessoas que cá vivem terão dificuldade em livrarem-se do cheiro. Talvez se segurares na cortina para trás ele saia por si, Jondalar. Fazem túneis e não gostam muito da luz, muito embora por vezes cacem de dia.
OLobo começou a rosnar baixinho e era evidente que estava morto por perseguir aquela criatura fascinante. Mas à semelhança da maioria dos membros da famflia das doninhas, o texugo podia molhar os atacantes com o conteúdo de cheiro forte e acre das suas glãndulas anais. A última coisa que Ayla queña era estar ao pé de um lobo que cheirasse a esse forte odor almiscarado e não sabia bem durante quanto mais tempo conseguiria segurar o LObo. Se o texugo nåo saísse em breve, teria de recorrer a um meio mais drástico para expulsar o animal da habitação.
O texugo não via bem com os seus pequenos olhos inconspícuos, mas eles estavam a observar a abertura iluminada com uma atenção fLxa. Quando se tornou evidente que o texugo não la sair, ela tirou a funda que tinha enrolada à volta da cabeça e meteu a mão na bolsa com pedras que tinha pendurada à cintura. Ayla põs uma pedra na parte côncava da funda, apontou nos pontos de luz e com um movimento giratório, rápido e experiente, para ganhar força, lançou a pedra. Ouviu um baque e as duas pequenas luzes extinguiram-se.
--Acho que o apanhaste, Ay]a! --disse Jondalar, mas esperaram um pouco para se assegurarem de que não havia qualquer movimento antes de entrarem na habitação.
Quando o fizeram, ficaram horrorizados. Oanimal bastante grande, com cerca de um metro desde a ponta do focinho à ponta do rabo, estava caído no chão com uma ferida ensanguentada na cabeça, mas era evidente que tinha passado algum tempo dentro da habitação, explorando destrutivamente tudo o que encontrara. Estava tudo num pandemónio! O chão de terra batida estava todo revolto e tinham sido escavados buracos, alguns contendo os excrementos do animal. Os tapetes tecidos que cobriam o chio tinham sido esfarrapados,juntamente com alguns recipientes. Os pedaços de couro e as peles sobre as plataformas er- guidas estavam roídos e rasgados e os enchimentos de penas, lã ou ervas dos colchões estavam espalhados por todo o lado. Até um bocado de parede densamente compactada tinha sido escavada; o texugo tinha feito a sua própria entrada.
-- Olha para isto! Detestaria voltar e ver isto-disse Ayla.
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-- Há sempre perigo quando se deixa um sítio vazio. A Mãe não protege as habitações das Suas outras criaturas. Os Seus filhos têm de apelar directamente ao espírito do animal e lidar eles próprios com os animais deste mundo m disse Jondalar. m Talvez possamos limpar um pouco esta habitação, embora não possamos reparar todos os estragos.
--You esfolar o texugo e deixar cá a pele para eles verem o que causou tudo isto. De qualquer forma, devem poder utilizar a pele-disse Ayla, pegando no animal para o levar lá para fora.
Aluz, reparou no dorso cinzento com os seus pêlos duros de protecção, a parte inferior mais escura e o focinho bem distinto com riscas pretas e brancas, verificando que era efectivamente um texugo. Cortou-lhe a garganta com uma faca afiada de pedreneira e deixou-o a sangrar. Depois voltou à habitação, parando por instantes antes de entrar para olhar em volta do resto das habitações abobadadas all perto. Tentou vizualizá-las como seriam com gente e sentiu uma enorme pena por não estarem lá. Uma pessoa podia sentir-se muito só sem outras pessoas. Subitamente, sentiu-se muito grata por Jondalar e por momentos sentiu-se avassala- da pelo amor que sentia por ele.
Agarrou no amuleto que tinha ao pescoço, sentiu os objectos reconfor- tantes dentro da bolsa de pele decorada e pensou no seu totem. Não pen- sava no seu Leão das Cavernas como protegendo o seu espírito tanto quanto dantes.
Era um espírito do Clã, embora o Mamut lhe tivesse dito que o seu totem estaria sempre com ela. Jondalar referia-se sempre à Grande Mãe Terra quando falava no mundo dos espíritos e ela agora pensava mais na Mãe, desde a formação que tinha recebido do Mamut, mas sentia sempre que era o seu Leão das Cavernas que lhe levara Jondalar e sentiu vontade de comunicar com o seu espírito do totem.
Utilizando a antiga linguagem sagrada de sinais de mãos silenciosos que eram usados para comunicar com o mundo dos espíritos e com outros clãs cujas escassas palavras do dia a dia e sinais de mãos mais comuns eram diferentes, Ayla fechou os olhos e dirigiu os seus pensamentos para o seu totem.
"Grande Espírito do Leão das Cavernas", gesticulou, "esta mulher sente-se grata por ter sido merecedora; grata por ter sido escolhida pelo poderoso Leão das Cavernas. O Mog-ur ¿isse sempre a esta mulher que era difícil viver com um espírito poderoso, mas que vale sempre a pena. O Mog-ur tinha razão. Embora os testes e as provas tivessem por vezes sido difíceis, as dádivas corresponderam sempre às dificuldades. Esta mulher está extremamente grata pelas dádivas interiores, as dádivas da aprendizagem e da compreensão. Esta mulher também está grata pelo homem que o seu grande espírito do totem guiou até ela, que está a levar esta mulher de volta para o seu lar. O homem não conhece os Espíritos do Clã e não compreende totalmente que também foi escolhido pelo Es-
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pírito do Grande Leão das Cavernas, mas esta mulher está grata por ele também ter sido considerado merecedor."
Ia a abrir os olhos quando teve outro pensamento. "Grande Espírito do Leão das Cavernas", continuou, mentalmente e com a sua linguagem silenciosa, "o Mog-ur disse a esta mulher que os espíritos dos t6temes querem sempre um lar, um lugar para onde regressar e onde são born- -vindos e querem ficar. Esta viagem terminará, mas as pessoas do homem não conhecem os espíritos dos tStêmes do Clã. O novo lar desta mulher não será igual, mas o homem honra o animal espírito de cada um e a gente do homem deve conhecer e honrar o Espírito do Leão das Cavernas. Esta mulher quer dizer que o Grande Espírito do Leão das Cavernas será sempre bem-vindo e terá sempre um lugar onde quer que esta mulher seja bem-vinda."
Quando Ayla abriu os olhos, viu que Jondalar a observava.
-- Parecias... ocupada disse ele.-Não te quis interromper.
Estava... apensar no meu totem, no meu Leão das Cavernas disse ela --, e no teu lar. Espero que lá ele.., se sinta confortável.
Os animais espíritos sentem-se todos confortáveis perto da Doni. A Grande Mãe Terra criou e deu à luz todos eles. As lendas falam nisso -- disse ele.
Lendas? Histórias de tempos passados?
--Acho que se pode dizer que são histSrias, mas são contadas de uma certa forma.
Também havia lendas no Clã. Eu costumava adorar quando o Dorv as contava. O Mog-ur deu o nome ao meu filho tirado de uma das minhas preferidas, A Lenda de Durc-disse Ayla.
Jondalar teve um instante de surpresa e de incredulidade face à ideia de as pessoas do Clã, os cabeças achatadas, poderem ter lendas e histó-rias.
Era-lhe ainda difícil superar certas ideias enraizadas que lhe tinham sido incutidas desde criança, mas já fora levado a tomar consciência de que eram muito mais complexas do que ele pensara ser possível; por que é que não podiam também ter lendas e histórias?
m Conheçes algumas lendas da Mãe Terra? perguntou Ayla.
Born, acho que me lembro de parte de uma. São contadas de uma forma que se tornam mais fáceis de fixar, mas só as zelandonia especiais as sabem todas.-Fez uma pausa para se recordar e depois começou a dizer uma cantilena:
"As suas águas de nascimento enchendo rios e mares irromperam, Depois inundaram as terras e deram vida às árvores. De cada gota caída, nova erva e folhas cresceram
Até novas plantas verdes encherem toda a vista da terra."
Ayla sorriu.
É maravilhoso, Jondalar! Conta a história com um sentimento go
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nito, um som bonito, parecido com os ritmos das canções mamutoi. Seria muito fácil de fixar.
"Écantado frequentemente. As diferentes gentes por vezes fazem canções diferentes, mas as palavras são basicamente as mesmas. Algu-
mas pessoas conseguem cantar toda a história, com rodas as lendas. m Sabes mais alguma parte?
m Sei um pouco mais. Já a ouvi toda e sei a histdria em geral, mas os versos são compridos e é muita coisa para saber de cor. A primeira parte é sobre a Doni que se sente só e dá à luz o sol,Bali, "a grande alegria da Mãe, um rapaz brilhante" e depois conta como Ela o perde e fica de novo só. A lua é o Seu amante, Lutai, mas Ela também o cñou. A históña é mais uma lenda de mulher; fala dos tempos de lua e de como Ela se tornou mulher. Há outras lendas sobre Ela dar à luz todos os animais espí-rito e a mulher e o homem espírito, todos os Filhos da Terra.
Nessa altura o Lobo latiu, um latido de cachorro que quer chamar a atenção e que ele descobrira que alcançava os seus objectivos, encora- jando-o a mantê-lo depois de passada a sua fase de cachorñnho. Olharam ambos na sua direcção e viram a causa da sua excitação. Lá em baixo, na planície de aluvião verdejante e esparsamente arborizada do grande rio, passava uma pequena manada de auroques. O gado selvagem era enorme, com chifres massivos e pêlos compridos, na sua maioria de uma cor avermelhada tão escura que era quase preta. Mas no meio da manada iam dois animais que tinham manchas brancas, sobretudo em volta do focinho e nos quar-tos dianteiros, ligeiras aberrações genéticas que se we- rificavam ocasionalmente, particularmente entre os auroques.
Quase em simultâneo, Ayla e Jondalar olharam um para o outro, assentiram o seu acordo e chamaram os cavalos. Tirando rapidamente os cestos-alforge, que levaram para dentro da habitação, e pegando nos seus lançadores e nas lanças, montaram e dirigiram-se em direcção ao rio. Ao aproximarem-se da manada que pastava, Jondalar parou para estudar a situação e decidir qual seria a melhor abordagem. Ayla também parou, seguindo o seu exemplo. Conhecia os animais carnívoros, particularmente os mais mais pequenos, embora já tivesse caçado outros tão grandes como linces e as enormes e poderosas hienas das cavernas, e um leão tinha em tempos vivido com ela, mas não estava tão familiarizada com os animais ruminantes que normalmente caçavam como alimento. Embora tivesse descoberto as suas próprias formas de os caçar quando vi- via sozinha, Jondalar tinha crescido a caçí-los e tinha muito mais experiência.
Talvez porque estivesse numa disposição comunicativa com o seu totem, e com o mundo dos espíritos, Ayla estava num estado de espírito estranho enquanto observava a manada. Parecia-lhe quase coincidência a mais o facto de, depois de decidirem que a Mãe não se oporia se all ficas- sem alguns dias para reporem as coisas que tinham perdido e caçarem
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um animal com uma pele resistente e bastante carne, aparecer subita- mente uma manada de auroques. Ayla pensou se não seria um sinal da Mãe ou, talvez, do seu totem, ferem sido guiados até all.
No entanto, aquilo não era tão invulgar quanto isso. Durante todo o ano, especialmente durante as estações mais quentes, vários animais, em manadas ou isoladamente, migravam através das florestas em galeria e dos prados verdejantes dos grandes vales dos rios. Era vulgar ver, em qualquer sítio ao longo de um rio principal, algum tipo de animal a vaguear pelo menos com o intervalo de alguns dias e, em certas estações, passavam diariamente verdadeiras procissões de animais. Desta vez aconteceu ser uma manada de gado selvagem, exactamente o tipo de animal para as suas necessidades, embora várias outras espécies também tivessem servido.
-- Ayla, vês aquela vaca grande que está all? -- perguntou Jondalar.
A que term branco no focinho e no quarto dianteiro esquerdo?
Sim disse ela.
--Acho que devemos tentar apanhá-la disse Jondalar. É adulta, mas pelo tamanho dos seus chifres não parece ser demasiado velha e está afastada dos outros.
Ayla sentiu um arrepio de compreensão. Agora estava convencida de que era um sinal. Jondalar tinha escolhido o animal invulgar. Aquele que tinha manchas brancas. Sempre que se via confrontada com escolhas difí-ceis na sua vida, e depois de muito pensar ter racionciado, ou racionali- zado, a sua forma de chegar a uma decisão, o seu totem tinha-lhe confirmado que tomara a decisão certa dando-lhe um sinal, um objecto invulgar de qualquer tipo. Quando era pequena, Creb tinha-lhe explica- do estes sinais e dito para ela os conservar para lhe darem sorte. A maioria dos pequenos objectos que levava consigo na pequena bolsa decorada posta ao pescoço eram sinais do seu totem. O súbito aparecimento da manada de auroques, depois de eles terem tornado a decisão de ficar, e a decisão de Jondalar de caçar o animal invulgar, pareciam-lhe estranhamente semelhantes a sinais de um totem.
Apesar de a decisão de ficarem naquele Acampamento não tivesse si- do uma angustiante decisão pessoal, era uma decisão importante que exi- gia uma reflexão profunda. Aquele era o lar permanente de Inverno de um grupo de pessoas que tinham invocado o poder da Mãe para o proteger na sua ausência. Embora as necessidades de sobrevivência permitissem a um estranho de passagem utilizá-lo em caso de necessidade, tinha de o fazer com uma razão legítima. Não se incorria com ligeireza na ira da Mãe.
A terra era ricamente povoada com criaturas vivas. Nas suas viagens, eles tinham viste um número incontável de uma grande variedade de animais , mas poucas pessoas..Num mundo tão escasso em vida humana, havia um certo conforto na ideia de que um mundo invisível de espíritos
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tinha consciência da sua existência, que se preocupava com as suas acções e que talvez orientasse os seus passos. AtA um espírito severo e hostil que se importava o suficiente para exigir certas acções de
mento seria melhor que aimpiedosa insensibÌlidade de um mundo dÌfí-cil e indiferente, no qual as suas vidas estivessem inteiramente nas suas mãos, sem ninguém a quem recorrer em alturas de necessidade, nem sequer nos seus pensamentos.
Ayla tinha chegado à conclusão de que se a sua caçada fosse bem sucedida, isso significaria que era correcto utilizarem o Acampamento, mas se fracassassem teñam de se ir embora. Tinha-lhes sido mostrado o sinal, o animal invulgar, e para obterem boa sorte tinham de guardar uma parte dele. Se não conseguissem fazê-lo, sea sua caçada fosse um fracasso, isso significaria azar, um sina] de que a Mãe não queria que eles lá ficassem e que teriam de se ir embora imediatamente. A jovem mulher pensou qual seria o desfecho.
Jondalar estudou a disposição da manada de auroques ao longo do rio. O gado estava espalhado entre o fundo da encosta e a orla da água, entre várias pequenas pastagens de erva verdejante, intercalados com arbustos e árvores. A vaca malhada estava sozinha no pequeno prado, com um espesso grupo de bétulas e de amieiros numa extremidade a separá-la de vários outros membros da manada. Os arbustos continuavam ao longo da base da encosta, dando lugar a moitas de buxo e a juncos aguçados no solo molhado na outra extremidade, que dava para uma enseada pantanosa cheia de canas altas e espadanas.
Virou-se para Ayla e apontou para o pântano.
-- Se seguires a cavalo ao longo do rio até passares aquelas canas e a espadana, eu aproximo-me dela por aquela abertura nos amieiros e ficaremos com ela entre ambos, podendo aproximar-nos a cavalo.
Ayla estudou a situação e assentiu o seu acordo. Depois desmontolx.-Quero amarrar o meu guarda-lanças antes de começarmos-d:"-se, prendendo o tubo comprido feito de couro às tiras de couro que atavam o cobertor de montar de pele de veado macia. Dentro do tubo de couro duro havia várias lanças bem acabadas e graciosas, com esguias pontas de osso, lixadas e polidas até ficarem afiadas na extremidade e com uma pequena depressåo na base arredondada pela qual estavam presas a longos paus. Cada lança terminava com duas penas direitas e com um entalhe no punho.
Enquanto Ayla estava a amarrar este tubo, Jondalar fitou uma lança do seu que tinha às costas, preso com uma tira de couro que lhe passava por cima de um ombro. Sempre usara o seu dispositivo para guardar lanças da mesma forma que o usava quando caçava a pé, embora quando viajava sobre as suas duas pernas usasse uma mochila e guardasse as lanças numa parte especial de lado. Tinha posto a lança no seu lançador para a ter pronta a arremeçar.
Jondalar tinha inventado o lançador durante o Verão em que vivera com Ayla no seu vale. Era uma inovação única e surpreendente, uma cñação insvirada de absoluto génio que surgira da sua natural aptidão técnica e de um sentido intuitivo dos princpios físicos que só seriam
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4definidos e codificados daia centenas de séculos. Embora a ideia fosse e genhosa, o lançador era enganadoramente simples.
Formado de um único pedaço de madeira, tinha cerca de quarenta cinco centímetros de comprimento e quatro centímetros de tornando-se mais fino perto da extremidade da frente. Era horizontalmente e tinha uma ranhura ao longo do centro onde a assentava. Um simples gancho falhado na parte de trás, caixava-se na ranhura no punho da lança, funcionando como travão ajudando a manter a lança no lugar enquanto era lançada, o que buía para a precisão da arma de caça. Perto da extremidade do lan, de Jondalar havia duas argolas de pele macia de veado de cada lado.
Para o utilizar, a lança era colocada no lançador com o punho contra o gancho-travão. O dedo indicador e do meio eram enfiados nas argolas de couro na parte da frente do lançador, que chegavam algures um pouco atrás do meio da lança bastante mais comprida, num born ponto de equilíbrio, e mantinham a lança em posição. Mas verificava-se uma função mais importante quando a lança era arremessada. Segurando firmemente na parte da frente do lançador enquanto a lança era arremessada, razia que a extremidade de trás se erguesse como uma extensão do braço, o que ]he acrescentava comprimento. O maior comprimento aumentava o efeito de alavanca e o ímpeto o que, por sua vez, aumentava a força e a distância do percurso da lança.
Arremessar uma lança com o lançador era semelhante a lançá-la à måo; a diferença estava nos resultados. Com ele, o comprido pau com a ponta afiada podia ser lançado ao dobro da distância da de uma lança ar- remessada à mão, com multas vezes a sua força.
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deteriorar. As vacas tinham começado a mugir e o vitelo, pressentin, perigo, começou a berrar. Pareciam prestes a fugir. Aquilo que come por .,;er uma situação praticamente perfeita para um abate fácil, rapidaraente a tornar-se um esforço perdido.
Antes de as coisas piorarem, Jondalar incitou o Corredor
te, na itistante em que a vaca de cor uniforme começou a correr do cavalo e do homem que se aproximavam, na direcção das árvores e do arbustos. O vitelo a berrar correu atrás dela. Ayla esperou apenas se assegurar de qual dos animais Jondalar ia atacar e depois também atrás da vaca malhada. Estavam a convergir para os auroquesi que ainda estavam na pastagem, a observá-los e a mugir, nervosos, quando o animal desatou subitamente a correr, dirigindo-se para o pântano. Correram atrás dele mas, ao aproximarem-se, a vaca esquivou-se subitamente e voltou para trás, correndo por entre os dois cavalos em direcção às árvores na extremidade oposta do prado.
Ayla mudou ligeiramente o peso do corpo e a Whinney depressa mudou de direcção. A égua estava habituada a rápidas mudanças. Ayla já tinha caçado a cavalo antes, embora visasse animais mais pequenos que eram abatidos com a sua funda. Jondalar teve maior dificuldade. Uma ré-dea de comando não era um meio tão rápido de comando como uma mudança no peso do corpo e o homem e o jovem garanhão tinham muito menos experiência de caçar juntos, mas depois de alguma hesitação inicial, depressa galopavam também atrás do auroque malhado.
Avaca estava a dirigir-se a toda a velocidade para o otftiro de árvores e arbustos densos. Se conseguisse chegar a essa protecção, seria difícil se- gui-la e teria boas hipóteses de escapar. Ayla, a cavalo na Whinney, e atrás delas Jondalar, montado no Corredor, estavam a ganhar vantagem sobre os auroques, mas todos os animais ruminantes dependiam da velocidade para escapar aos predadores e, quando pressionado, o gado selvagem conseguia ser quase tão veloz como os cavalos.
Jondalar incitou o Corredor e o cavalo correspondeu com um surto de velocidade. Tentando manter a lança direita para tentar acertar no animal em fuga, Jondalar ficou a par de Ayla, depois ultrapassou-a mas, a um sinal subtil da mulher, a égua acompanhou-o. Ayla também empu- nhava a lança prestes a arremessar mas, mesmo a galope, montava com uma graciosidade descontraída e sem esforço, resultado da prática e do seu treino inicial do cavalo que não tinha sido intencional. Sentia que muitos dos seus sinais ao cavalo eram mais uma extensão do que ela pensava que um acto de orientação. Tinha apenas que pensar como e para onde queda que a égua fosse e a Whinney cumpria. Tinham uma compreensão tão íntima uma da outra que Ayla mal se apercebia de que os movimentos subtis do seu corpo que acompanhavam o pensamento tinham dado um sinal ao animal sensível e inteligente.
Enquanto Ayla fazia pontaria com a lança, subitamente o Lobo come-
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çou a correr ao lado da vaca em fuga. O auroque foi distraído pelo predador que lhe era mais familiar e guinou para o lado, abrandando o passo. OLobo saltou ao enorme auroque e a grande vaca malhada virou- -se para afastar com os seus grandes chifres pontiagudos o predador de quatro patas. O lobo caiu para trás, pôs-se de pé com um salto e, tentando encontrar um sítio vulnerável, cravou o focinho macio com os seus dentes afiados e maxilares poderosos. A enorme vaca mugiu, ergueu a cabeça, levantando o Lobo do chão e abanou a cabeça, tentando livrar-se da causa das dores. Pendurado como um saco de pele vazio, o jovem canino atordoado não largou.
Jondalar tinha sido rápido a ver a mudança de passo e estava preparado para a aproveitar. Galopou na sua direcção e arremessou a lança com grande força de bastante perto. A ponta afiada de osso furou a parte lateral do dorso do animal que arfava, deslizando por entre duas costelas e atingindo órgãos vitais internos. Ayla ia imediatamente atrás dele e a sua lança atingiu o alvo instantes depois, entrando a um ângulo logo atrás das costelas do lado oposto e penetrando profundamente. O Lobo continuou agarrado ao focinho da vaca até ela cair no chão. Com o peso do grande lobo a arrastA-la, caiu pesadamente de lado, partindo a lança de Jondalar.
--Mas ele ajudou-disse Ayla.-Impediu que avaca chegasse às árvores.-O homem e a mulher esforçavam-se por rolar o enorme auroque de forma a ficar com a barriga macia para cima, passando por cima do sangue espesso que formara uma poça por debaixo do golpe profundo que Jondalar fizera na garganta.
-- Se ele não a tivesse perseguido quando o fez, provavelmente a vaca não teria começado a correr até nos estarmos quase junto dela. Teria sido fácil matA-la-disse Jondalar. Pegou no pau da lança partida e voltou a deitA-la para o chão, pensando que talvez a tivesse conseguido aproveitar se o Lobo não tivesse feito a vaca cair sobre ela. Dava muito trabalho fazer uma boa lança.
-- Não podes ter a certeza disso. A vaca foi rápida a esquivar-se a nós e também corria bem.
-- Aquelas vacas não se incomodaram connosco até o Lobo chegar. Tentei dizer-te para o chamares, mas não quis gritar para não as assustar.
--Não percebi o que querias. Por que é que não me disseste por sinais do Clã? Fartei-me de te perguntar, mas não estavas aprestar atenção-disse Ayla.
"Sinais do Clã?" pensou Jondalar. Não lhe tinha ocorrido que ela estivesse a usar a linguagem do Clã. Seria uma boa maneira de comunicar. Depois abanou a cabeça.
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m Duvido que tivesse adiantado grande coisa-disse.-Ele provavelmente não teria parado mesmo que tivesses tentado chamá-lo.
-- Talvez não, mas creio que o Lobo pode aprender a ajudar. Já m ajuda a levantar caça pequena. O Bebé aprendeu a caçar comigo. Era um born companheiro de caça. Se um leão das cavernas pode aprender a com pessoas, o Lobo também pode-disse Ayla, sentindo-se defensiva: em relação a ele. Afinal de contas, tinham morto o auroque e oLobo tinha ajudado.
Jondalar pensou que a avaliação de Ayla quanto à capacidade de aprendizagem de um lobo era irrealista, mas não adiantava discutir com ela. Ela tratava o animal como uma criança e isso só serviria para defendesse ainda mais.
Born, é melhor tirarmos as entranhas à vaca antes que comece char. E teremos de a esfolar aqui e dividi-la em pedaços para os levarmos para o Acampamento m disse Jondalar, e depois ocorreu-lhe outro pro-
blema. Mas que é que vamos fazer com o lobo?
-- Que é que term o Lobo? perguntou Ayla.
--Se cortarmos o auroque em pedaços e levarmos parte para o Acampamento, ele pode corner a carne que deixarmos aqui-disse o homem, sentindo a sua irritação a aumentar--, e quando voltarmos pode ir à carne que levamos para o Acampamento. Um de nós terá de ficar aqui de guarda e o outro terá de ficar lá, mas nesse caso como é que levamos mais carne para lá? Vamos ter de montar aqui uma tenda para secar a carne em vez de usarmos a habitação no Acampamento, e isto só por causa do Lobo!--Estava exasperado com os problemas que percebia que o lobo estava a causar e não estava apensar com clareza.
Mas fez que Ayla se zangasse. Talvez o Lobo fosse à carne se ela não estivesse lá, mas não a tocaria desde que ela estivesse com ele. Ela faria que oLobo ficasse ao pé dela. Isso não seria um problema por aí além. Por que é que o Jondalar andava a embirrar tanto com ele? Começou a res- ponder-lhe, depois mudou de ideias e assobiou pela Whinney. Montou-a com um salto ágil e virou-se para Jondalar.
-- Não te preocupes. Eu levo a vaca para o Acampamento disse enquanto se afastava, chamando o Lobo para a acompanhar.
Foi a galope até à habitação, saltou para o chão e correulá para dentro, saindo com um machado de pedra de cabo curto que Jondalar lhe tinha feito. Depois voltou a montar e incitou a Whinney na direcção da floresta de bétulas.
Jondalar observou-a enquanto se dirigia para o Acampamento e voltou a descer para ir para a floresta, e pensou no que ela estaria a engendrar. Tinha começado a cortar a barriga para retirar os intestinos e o estô-mago da vaca, mas estava com sentimentos contradit6rios enquanto trabalhava. Achava que as suas preocupações em relação ao jovem lobo se justificavam, mas lamentava tê-las transmitido a Ayla. Sabia o que ela
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sentia pelo animal. As suas queixas não iam alterar nada e tinha de admitir que o treino dela tinha tido resultados muito melhores do que ele pensara ser possível.
Quando a ouviu a cortar madeira, apereebeu-se subitamente do que ela teneionava fazer e dirigiu-se também para a floresta. Viu Ayla a cortar ferozmente uma bétula alta e muito direita no centro do outeiro de árvores muito juntas, dando assim largas à sua ira.
"OLobo não é tão mau como Jondalar diz", pensava ela. Talvez tivesse quase assustado os auroques, mas o que é certo é que também ajudou. Parou por instantes, a descansar, e franziu a testa. E se não tivessem morte o animal isso significaria que não eram bem-vindos all? Que o espírito da Mãe não queria que ficassem no Aeampamento? Se o Lobo tivesse estragado a eaçada, ela não estaria apensar como transportaria a vaca, estariam a ir embora. Mas se era suposto fiearem, ele não podia tragar a caçada, pois não? Recomeçou a dar machadadas. As coisas estaram a eomplicar-se. Tinham morto a vaca malhada, mesmo eom a interferência do Lobo e com a sua ajuda portanto era correcto utiliza- term a habitação. "Talvez tivessem mesmo sido guiados até all", pensou.
Subitamente, Jondalar apareceu. Tentou rifar-lhe o machado da mão.
Por que é que não procuras outra árvore e me deixas acabar esta? -- disse ele.
Embora já não tão zangada, Ayla resistiu à sua ajuda.
Eu disse-te que levaria a vaca para o Acampamento. Consigo faê-lo sem a tua ajuda.
Eu sei que consegues, da mesma forma como me levaste para a tua caverna no vale. Mas com ambos, terás os teus novos paus muito mais depressa-disse ele, acrescentando: -- E, sim, tenho de reconhecer que tens razão. O Lobo ajudou.
Ela parou a meio de um movimento e olhou para ele. A testa dele re- velava a sua enorme preocupação, mas os seus olhos azuis expressivos mostravam sentimentos contraditórios. Embora ela não compreendesse os seus receios em relação ao Lobo, o imenso amor que ele sentia por ela estava patente no seu olhar. Ela sentiu-se atraída por aqueles olhos, pelo puro magnetismo da sua proximidade, pelo fascínio do qual ele não .tinha perfeita consciência ou cujo poder desconhecia, e sentiu a sua resistência evaporar-se.
-- Mas to também tens razão-disse ela, sentindo-se ligeiramente arrependida.-Ele f'e-las fugir antes de nós estarmos prontos e podia ter estragado a caçada.
A expressão de preocupação de Jondalar desapareceu num sorriso de alívio.
-- Então temos ambos razão-disse. Ela retribuiu-lhe o sorriso e no instante seguinte estavam nos braços um do outro e a boca dele encontrou
154 JEAN PLANÍCIES DE PASSAGEM I 155
a dela. Ficaram abraçados, aliviados por a discussão ter querendo eliminar com a sua proximidade física a distância q interposto entre eles.
Quando pararam de expressar o seu fervoroso alívio,
abraçados, Ayla disse:
--Acho mesmo que oLobo pode ser ensinado a aj
mos de o ensinar.
--Não sei. Talvez. Mas como ele vai viajar connosco, acho que lhe ves ensinar tudo o que ele conseguir aprender. Pelo menos, talvez o pos-!
sas treinar a não interferir quando estamos a caçar-disse ele. -- To também devias ajudar, para ele nos obedecer a ambos.-Duvido que ele me preste atenção-disse ele. Depois, vendo estava pronta a discordar, acrescentou: -- Mas se quiseres tentarei. Tirou-lhe o machado de pedra e decidiu levantar uma outra questão que ela já referira.-Disseste qualquer coisa sobre usarmos sinais do Clã quando não queremos gritar. Isso pode ser muito útil.-Ayla sorriu enquanto procurava outra árvore do tamanho e da forma certa.
Jondalar examinou a árvore em que ela tinha estado a trabalhar para: ver quanto mais seria preciso cortar. Era difícil cortar uma árvore dura com um machado de pedra. A pedreneira quebradiça da cabeça do martelo era bastante grossa para não partir facilmente com a força da pancada, e cada golpe não era fundo, antes lascando um pouco a madeira. A árvore parecia mais que tinha sido roída do que cortada. Ayla escutou o som ritmado da pedra a bater na madeira enquanto examinava cuidadosamente as árvores do outeiro. Quando encontrou uma que servia, fez uma marca no tronco e começou à procura de uma terceira.
Quando as árvores necessárias tinham sido cortadas, arrastaram-nas para a clareira e, usando as facas e o machado, retiraram os ramos, alinhando-as depois no chão. Ayla calculou o tamanho e marcou-as e depois cortaram-nas com comprimentos iguais. Enquanto Jondalar tirava os órgãos internos do auroque, ela foi a pé à habitação para ir buscar cordas e um dispositivo que fizera com tiras e fios de couro atados e en- trançados. Levou também um dos tapetes, fez sinal a Whinney e pôs-lhe o arnês especial.
Usando dois dos paus compridos-o terceiro só era necessário para o tripé que usava para manter a comida fora do alcance dos animais-prendeu as extremidades mais tinas ao arnês que pusera no cavalo, cruzando-os por cima da cernelha. As extremidades mais pesadas arrastavam pelo chão, um de cada lado da égua. Com cordas, estenderam e prenderam o tapete de palha sobre os paus mais afastados da armação, perto do chão, e ataram mais cordas para prender o auroque.
Olhando para o tamanho da enorme vaca, Ayla começou a pensar se não seria um peso excessivo mesmo para um forte cavalo das estepes. O homem e a mulher fizeram um enorme esforço para pôr o auroque em
cima da armação. O tapete servia apenas de suporte mínimo mas, amarrando o animal directamente aos paus, não ficava a arrastar pelo chão. Depois dos seus esforços, Ayla ficou ainda mais preocupada se a carga não seria excessiva para a Whinney e quase mudou de ideias. Jondalar já tinha retirado o est5mago, os intestinos e os outros órgãos; talvez devessem esfolá-la all mesmo e cortá-la em pedaços mais fáceis de transportar. Aylaj á não sentia necessidade de lhe mostrar que conseguia levá-lo para o Acampamento sozinha, mas, como já estava colocado sobre a armação, decidiu deixar a Whinney fazer uma tentativa.
Se Ayla ficou surpreendida quando o cavalo começou a puxar a pesada carga pelo terreno acidentado, Jondalar ficou ainda mais. Os auroques eram maiores e mais pesados que a Whinney e era um esforço, mas apenas com dois paus a arrastar no chão,e quase todo o peso sustentado pelos paus, era-lhe possivel transportar a carga. A encosta foi mais difícil de vencer, mas o resistente cavalo das estepes também conseguiu realizar esse esforço. No terreno irregular de qualquer superfície natural, a armação era de longe o meio mais eficiente de transportar cargas.
O dispositivo fora invenção de Ayla, resultado da necessidade, oportunidade e um avanço intuitivo. Vivendo sozinha, sem ninguém para a ajudar, viu-se muitas vezes na necessidade de deslocar coisas que eram demasiado pesadas para levar ou arrastar sozinha, tais como um animal adulto, inteiro-e normalmente tinha de os cortar em pedaços mais pequenos e depois tinha de descobrir forma de proteger dos animais o que \ deixava para trás. A sua oportunidade única foi a égua que criara e a hipó-
tese de utilizar a força de um cavalo para a ajudar. Mas a sua vantagem especial era um cérebro que conseguia reconhecer uma oportunidade e engendrar os meios.
Quando chegaram à habitação, Ayla e Jondalar desamarraram o au- roque e, depois de palavras e abraços de agradecimento e louvor, levaram o cavalo de volta para irem buscar as entranhas do animal. Estas também eram úteis. Quando chegaram à clareira, Jondalar pegou na lança partida. A parte da frente do pau estava quebrada; a ponta ainda estava cravada na carcaça, mas a secção comprida e direita ainda estava inteira. Talvez ele conseguisse dar-lhe algum uso, pensou, levando-a consigo.
De volta ao Acampamento, tiraram o arnês à Whinney. O Lobo estava a cheirar as entranhas; os intestinos eram o seu petisco prefeñdo. Ayla hesitou por instantes. Se precisasse, tê-los-ia usado para vários fins, desde servirem para a armazenagem de gordura a recipientes à prova de
* água, mas não era possível levarem muito mais coisas com eles do que já levaram.
"Por que é que parecia", pensou ela, "que só por terem os cavalos e po- diam levar mais coisas com eles, que precisavam de mais?" Recordou que quando deixara o Clã e viajara a pé, levava tudo o que precisava num cestomochila às costas. Era certo que a sua tenda era muito mais eonfor-
JEAN A
tável que o abrigo baixo feito de couro que então usava, e que roupa para mudar, e roupa de Inverno de reserva, e mais comida e sílios e... Ayla apercebeu-se de que nunca conseguiria levar tudo num cesto-mochila.
Atirou os intestinos, úteis embora de momento desnecessários
go e ela e Jondalar começaram a esquartejar o animal. De
alguns cortes estratégicos, começaram ambos a puxar a pele, um
so que era mais eficiente que esfolá-lo com uma faca. Usaram a
instrumento afiado para cortar a]gumas ligações. Sem grande esforço,
membrana entre a pele e os músculos separou-se em, te
ficaram com uma pele intacta, à excepção dos dois cortes feitos
ças. Enrolaram-na para impedir que secasse demasiado depressa e
seram a cabeça de parte. A língua e os miolos eram suculentos e
e tencionavam corner esses petiscos nessa noite. No entanto,
o crânio, com os seus grandes chifres, para o Acampamento. Poderia
um significado especial para alguém e, se nåo tivesse,
partes úteis.
Depois Ayla levou o estômago e a bexiga ao pequeno ribeiro
abastecia o Acampamento para os lavar e Jondalar foi ao rio apanhar
bustos e árvores esguias que pudessem ser dobrados para fazer a e
tura arredondada de um pequeno barco. Também procuraram
madeira lançados à margem. Precisariam de várias fogueiras
manter os animais e os insectos longe da sua carne, assim como.
fogueira que durasse toda a noite.
Trabalharam até ser quase noite, dividindo a vaca em grandes seg,
mentos, depois cortando a carne em pequenos pedaços em forma de lín-'
gua e pendurando-os a secar em armações improvisadas feitas de ramos
de arbustos, mas não conseguiram acabar. Levaram as armações para:
dentro da habitação para all ficarem de noite. A sua tenda ainda estava.
húmida, mas dobraram-na e levaram-na também para dentro. Voltariam
a estendê-la no dia seguinte quando levassem a carne para o ar livre,:.
para que o vento e o sol acabassem de a secar.
De manhã, depois de terem cortado o resto da carne, Jondalar
começou a construir o barco. Usando vapor e rochas aquecidas na foguei-
ra, dobrou a madeira para a estrutura do barco. Ayla estava muito inte-
ressada e quis saber onde é queele tinha aprendido aquele método.-Com o meu irmão Thonolan. Ele era artífice de lanças-explicou
Jondalar, segurando na extremidade de uma pequena árvore que moldara
numa curva, enquanto ela a amarrava a uma secção circular com uma
corda feita do tendão da perna traseira do auroque.-Mas que é que o fabrico de lanças term a ver com fazer um barco?
-- O Thonolan conseguia fazer o pau de uma lança absolutamente di-
reito. Mas, para aprender atirar a curva da madeira, é preciso primeiro
aprender a dobrar madeira, e ele conseguia fazer isso igualmente bem.
PLAN[CIES DE PASSAGEM I
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Fazia-o muito melhor que eu. Tinha verdadeira mão para isso. Creio que se pode dizer que o seu ofício não era apenas fazer lanças, mas moldar madeira. Conseguia fazer os melhores sapatos de neve e isso significa pegar num ramo ou numa árvore e dobrá-lo atd ficar completamente curvo. Talvez tenha sido por isso que se sentia tão bem com os Sharamudoi. Eram peritos a trabalhar madeira. Usavam água quente e vapor para dobrar as suas pirogas da forma que pretendiam.
-- ,Que é uma piroga? -- perguntou Ayla.
--E um barco escavado de uma árvore inteira. Aparte da frente é trabalhada de forma a ficar pontiaguda e a parte de trás também, e desliza na água fácil e velozmente, como cortar com uma faca afiada. São barcos lindos. Em comparação, este que estamos a fazer é desajeitado, mas não há árvores grandes aqui perto. Verás pirogas quando encontrarmos os Sharamudoi.
-- Quanto falta para lá chegarmos?
--Ainda é bastante longe. Do outro lado daquelas montanhas-disse ele, olhando para oeste, na direcção dos cumes altos e indistintos na neblina de Verão.
-- Oh-disse ela, sentindo-se desapontada.-Estava na esperança de não ser muito longe. Seria agradável encontrarmos algumas pessoas. Tenho pena de não estar ninguém neste Acampamento. Talvez voltem antes de nos irmos embora.-Jondalar detectou uma certa tristeza na sua VOZ.
-- Tens saudades de pessoas? -- perguntou ele.-Passaste tanto tempo sozinha no teu vale que pensei que estivesses habituada.
--Talvez seja por isso mesmo. Passei tempo de mais sozinha. Não me importo durante algum tempo, mas já não vemos pessoas há tanto tempo.., achei que seria agradável falarmos com alguém-disse ela, olhando depois para ele. Estou tão feliz por estares comigo, Jondalar. Sentir-me-ia muito só sem ti.
-- Eu também estou feliz, Ayla. Feliz por não ter de fazer esta viagem sozinho, mais feliz do que consigo exprimir por teres vindo comigo. Também estou ansioso por encontrarmos pessoas. Quando chegarmos ao Grande Rio Mãe, devemos encontrar algumas. Temos atravessado terras. As pessoas têm tendência para viverem perto de água fresca, de rios ou lagos, não em terra aberta.
Ayla assentiu, pegando depois na extremidade de uma árvore esguia que tinha estado a aquecer sobre rochas quentes e vapor, enquanto Jondalar a dobrava cuidadosamente em círculo, e depois ajudou-o a atar às outras. A julgar pelo seu tamanho, ela começou a ver que la ser precisa a pele inteira do auroque para o cobrir. Não sobrariam senão pedaços da pele, que não seriam suficientes para fazer uma nova bolsa de couro cru para substituir a que perdera na inundação. Precisavam do barco para atravessar o rio e ela teria de descobrir uma outra coisa para usar como
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tal. Talvez um cesto servisse, pensou, um cesto de malha muito aperta- da, comprido e bastante achatado, com tampa. Havia espadana e juncos e salgueiros, muito material para fabricar cestos, mas seria que um cesto servia?
O problema em transportar carne recém-abatida era que o sangue continuava a escorrer e, por mais apertada que fosse a malha, pingaria de um cesto. Era por isso que o grosso e duro couro cru resultava tão bem. Absorvia o sangue, mas lentamente, e não o deixava passar. Para além disso, após um período de uso podia ser lavado e seco de novo. Precisava::i de qualquer coisa que t'messe o mesmo. Teria de pensar nisso.
O problema da substituição da bolsa de couro cru ficou-lhe na ideia e depois de a estrutura estar terminada e a deixarem à espera que os tendões secassem e ficassem duros, Ayla dirigiu-se para o rio para apanhar materiais para fazer um cesto. Jondalar foi com ela mas apenas até ao outeiro de bétulas. Dado que estava a trabalhar em moldar madeira, decidiu fazer algumas lanças novas para substituir as que tinham sido perdidas ou partidas.
O Wymez tinha-lhe dado uns bons pedaços de pedreneira antes de ele se ir embora, já com a forma básica para poderem ser facilmente feitas pontas novas. Ele tinha feito as pontas de lança de osso antes de deixarem o Encontro de Verão, para mostrar como eram feitas. Eram típicas do tipo que a sua gente usava, mas também aprendera a fazer as pontas de lança de pedreneira dos Mamutoi e, como era um artífice hábil a trabalhar a pedreneira, era-lhe mais rápido fazê-las do que dar forma e alisar.as pontas de osso.
A tarde, Ayla começou a fazer um cesto especial para guardar carne. Quando vivia no vale, passara muitas longas noites de Inverno a mitigar a sua solidão fazendo cestos e tapetes, entre outras coisas, e tinha-se tornado muito rápida e eficiente a tecer. Quase conseguia fazer um cesto no escuro e acabou o seu novo recipiente para carne antes de se deitar. Es- tava extremamente bem feito, pois ela tinha pensado cuidadosamente na forma e no tamanho, nos materiais e na malha, mas não tinha ficado completamente satisfeita com ele.
Saiu para o crepúsculo que escurecia rapidamente para mudar a lã absorvente e lavar no rio o bocado que tinha usado. Pô-lo ao pé da fogueira para secar, mas longe da vista de Jondalar. Depois, sem olhar para ele directamente, deitou-se nas peles de dormir ao seu lado: As mulheres do Clã eram ensinadas a evitar os homens o mais que podiam quando sangravam e a nunca os olhar directamente. Os homens do Clã ficavam muito nervosos quando estavam ao pé de mulheres nessa altura. Ficara surpreendida ao ver que Jondalar não tinha qualquer problema nisso, mas continuava a não se sentir à vontade e esforçava-se por ser discreta quando tratava de si.
Jondalar tinha sido sempre muito compreensivo durante as suas épo-
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tas de lua, sentindo a sua inquietação mas, depois de ela se deitar, in- clinou-se para a beijar. Apesar de ela ter mantido os olhos fechados, correspondeu calorosamente ao seu beijo e quando ele voltou a deitar-se de costas, e estavam ambos a ver a luz da fogueira a dançar contra as paredes e o tecto da confortável estrutura, conversaram, embora ela tivesse o cuidado de não olhar para ele.
m Gostava de revestir a pele depois de a montar na estrutura m disse
ele.-Se cozer os cascos e pedaços de pele e alguns ossos em água durante muito tempo, terei um caldo muito espesso e peganhento que fica duro depois de seco. Temos alguma coisa onde eu possa fazer isso?
Tenho a certeza de que descobriremos alguma coisa. Precisa de cozinhar durante muito tempo?
-- Sim, precisa de ir fervendo, para engrossar.
Então talvez seja melhor cozinhá-lo directamente por cima do lume, como uma sopa.., talvez um pedaço de pele. Teremos de ir vigiando e ir juntando água, mas desde que se mantenha molhada não queimará... espera. Que tal o estômago do auroque? Tenho-me servido dele para guardar água, para não secar e para o ter à mão para cozinhar e lavar, mas dará um óptimo saco para cozinhar disse Ayla.
Acho que não dosse Jondalar.-Nós não queremos ir juntando água. Queremos que engrosse.
m Então acho que será melhor utilizar um born cesto à prova de água e pedras quentes. Posso fazer um de manhã-disse Ayla, mas enquanto all estava deitada, quieta, o seu cérebro não a deixava dormir. Não con- seguia deixar de pensar que havia uma forma melhor de ferver a mistura que Jondalar queria fazer. Só que não se conseguia lembrar. Estava
quase a adormecer quando lhe ocorreu. Jondalar! Já me lembro. Ele também já estava a dormitar, mas acordou sobressaltado. Hum! Que é que foi?
-- Não foi nada. Acabei de me lembrar como é que a Nezzie fazia gordura e acho que será a melhor maneira de fazer a tua mistura grossa. Escavas um buraco no chão, com a forma de uma malga, que depois forras com um pedaço de couro.., deve ter sobrado um pedaço do auroque. Partes alguns ossos e pões os pedaços no fundo, depois pões a água e os cascos ou o que quiseres. Podes fervê-lo durante o tempo que quiseres, desde que vamos aquecendo pedras, e os pedaços de osso impedirão as pedras quentes de tocarem no couro, portanto não se queimará.
Óptimo, Ayla! É isso que faremos disse Jondalar, ainda meio a dormir. Virou-se e não tardou a ressonar.
Mas Ayla ainda tinha qualquer coisa na ideia que a mantinha acorda- da. Tinha planeado deixar o estômago do auroque para as pessoas do Acampamento usarem como saco de água quando se fosse embora, mas este precisava de ser mantido molhado. Se secasse ficava duro e nunca mais voltaria à sua forma original nem ao seu estado flexível e quase à
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prova de água. Mesmo que o enchesse de água, esta acabaria por coar e evaporar e ela não sabia quando é que as pessoas regressariam.!
Subitamente, ocorreu-lhe. Quase voltou a dar um grito,
a tempo. Ele estava a dormir e ela não o queria acordar. Deixaria o mago seca e usá-lo-ia para forrar a nova bolsa para guardar carne, dando-lhe forma enquanto ainda estava molhado para ficar à medida. Enquanto adormecia na habitação às escuras, Ayla sentiu-se satisfeita por ter descoberto uma forma de substituir o artigo indispensável que ti, nha sido perdido.
Durante os dias que se seguiram, enquanto a carne secava, estiveram: ambos muito ocupados. Acabaram o barco e revestiram-no com a cola " Jondalar fez cozendo os cascos, ossos e aparas de couro. Enquanto seca-, va, Ayla fez cestos para a carne que ia deixar como presente para as pes-! soas do Acampamento, para cozinhar, substituindo os que tinha perdido,: e para recolha de alimentos, alguns dos quais tencionava deixar ficar. Apanhava legumes e ervas medicinais diariamente, secando algumas para levarem.
Jondalar acompanhou-a um dia para procurarem qualquer coisa que servisse de remos para o barco. Pouco depois de começarem a procurar, ele ficou satisfeito por encontrar o crânio de um veado gigante que tinha morrido antes e dos grandes chifres palmados terem caído, dando-lhe dois remos de igual tamanho. Embora ainda fosse cedo, ficou com Ayla durante o resto da manhã. Estava a aprender a identificar certos alimentos e entretanto começava a perceber o muito que Ayla realmente
Os conhecimentos dela sobre plantas e a sua memória das suas uti- lizações eram inacreditáveis. Quando regressaram ao Acampamento, Jondalar aparou as pontas dos chifres largos e prendeu-os a uns paus resistentes e relativamente curtos, fazendo assim uns remos perfeitamen- te aceitáveis.
No dia seguinte, decidiu utilizar o aparelho de dar forma à madeira, que tinha montado para dobrar a madeira para a estrutura do barco, para' endireitar paus para fazer novas lanças. O trabalho de lhes dar forma e alisar demorou praticamente os dois dias seguintes, mesmo com as ferramentas especiais que tinha consigo e que transportava enroladas num pedaço de couro amarrado com tiras também de couro. Mas enquanto tra- balhava, de cada vez que passava pelo lado da habitação para onde a tinha atirado, Jondalar reparava no pedaço de lança partida que trouxe- ra do vale e sentia-se corar de irritação. Era aborrecido não haver forma de aproveitar aquele pau direito a não ser fazer dali uma lança curta e sem o necessário equilrio. Qualquer das lanças que ele estava a ter tanto trabalho a fazer podia partir-se tão facilmente como aquela.
Quando se assegurou de que as lanças estavam certeiras, utilizou
PLANÍCIES DE PASSAGEM I
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uma outra ferramenta, uma lâmina estreita de pedreneira com uma ponta semelhante a um cinzel, presa a um cabo feito de chifre de veado, para escavar um sulco fundo nas extremidades mais grossas dos paus. Depois, dos nódulos de pedreneira previamente preparados que levava consigo, Jondalar fez novas pontas e prendeu-as aos paus das lanças com a grossa cola que fizera para revestir o barco e com tendões recémobti- dos. Os tendões duros encolhiam ao secar, fazendo uma ligação forte e sólida. Terminou colocando pares de compridas penas, encontradas perto do rio, das numerosas águas de rabo branco, falcões e milhafres negros que viviam na região, alimentando-se da abundância de esquilos terrestres e outros pequenos roedores.
Tinham montado um alvo, utilizando um colchão grosso com enchimento de ervas que o texugo tinha inutilizado por completo. Remendado com bocados de pele do auroque, absorvia o impacte de cada lançamento sem danificar as lanças. Jondalar e Ayla treinavam um pouco todos os dias. Ayla fazia-o para conservar a sua pontaria, mas Jondalar experimentava diferentes comprimentos de lanças e tamanhos de pontas para ver quais resultavam melhor com o lançador.
Quando as suas novas lanças estavam acabadas e secas, ele e Ayla levaram-nas para o sítio onde o alvo estava montado para as experimentar com o lançador e escolher as que cada um queria. Embora fossem ambos peritos a utilizar a arma de caça, alguns dos seus lançamentos de expeñência passaram inevitavelmente ao largo do alvo, indo normalmente cair inofensivamente no chão. Mas Jondalar estremeceu quando arremessou uma das lanças acabadas de fazer com bastante força e não só falhou o alvo como atingiu um grande osso de mamute que era usado como banco no exterior da habitação. Ouviu o barulho de madeira a partir quando esta se dobrou e caiu para trás. O pau de madeira tinha-se estilhaçado num ponto fraco a cerca de trinta centímetros da ponta.
Aproximando-se para a examinar, notou que a ponta quebradiça de pedreneira também se tinha estilhaçado junto a um lado, ficando com uma grande lasca partida e deixando uma ponta torta que não valia a pena aproveitar. Estava fuñoso consigo próprio por ter desperdiçado uma lança que levara tanto tempo, e tanto esforço a fazer antes de poder ser usada com utilidade. Num rompante de ira, bateu com a lança quebrada sobre o joelho, partindo-a em duas, e depois atirou os dois paus para o chão. Quando olhou para cima reparou que Ayla o estava a observar e virou-se, corado de embaraço pelo seu ataque de mau génio; depois baixou-se e apanhou os pedaços, cheio de vontade de se livrar deles discretamente. Quando voltou a olhar, Ayla estava a preparar-se para arremessar outra lança, como se não tivesse visto nada. Jondalar dirigiu- -se para a habitação e deixou cair a lança partida junto da outra que se tinha partido durante a caçada, ficando a olhar para os pedaços e sentin- dose idiota. Era ridículo ficar tão zangado por ter partido uma lança.
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"Mas dá muito trabalho fazer uma lança", pensou, olhando para o pau comprido com a extremidade partida e para a secção da outra lança com a ponta de pedreneira ainda presa a ela que estava à frente da primeira. "E pena esses pedaços não poderem ser unidos para formar uma lança inteira."
Enquanto o]hava para eles, pensou se isso não seria mesmo possível, e voltou a pegar nos dois pedaços, examinando atentamente as extremi- dades partidas. Encaixou uma na outra e, durante algum tempo, os pedaços estilhaçados mantiveram-se unidos e depois soltaram-se. Olhando para a lança inteira, reparou na indentação que escavara na extremidade mais grossa para o gancho pontiagudo do lançador e depois virou-a para voltar a olhar para a extremidade partida.
"Se eu fizer uma indentação nesta extremidade", pensou, "e aparar a extremidade deste pedaço com a pedreneira partida e os encaixar, será que se aguentam?" Excitado, Jondalar entrou na habitação e foi buscar o seu rolo de couro, levando-o lá para fora. Sentou-se no chão e desenro- lou-o, pondo à mostra a variedade de ferramentas de pedreneira cuidadosamente feitas, e escolheu o cinzel. Pousando-o à sua frente, examinou o pau partido e tirou a sua faca de pedreneira da bainha presa ao cinto e começou a cortar as falhas de madeira e a fazer uma extremidade lisa.
Ayla tinha parado de treinar com o lançador e tinha-o posto, bem como as lanças, no suporte que adaptara de forma a levá-lo a tiracolo, como Jondalar fazia. Dirigia-se para a habitação com algumas plantas que apanhara quando ele foi ao seu encontro com um grande sorriso.
--Olha, Ayla!--disse ele, erguendo a lança. O pedaço que ainda tinha a ponta partida fixa a ele estava encaixado na parte superior da lança comprida.-Consertei-a. Agora you ver se funciona[
Ela seguiu-o até à zona onde treinavam e observou-o a colocar a lança no lançador, puxá-la para trás e fazer pontaria, arremessando depois a lança com grande força. O longo míssil atingiu o alvo e fez ricochete. Mas quando Jondalar foi verificar, viu que a ponta partida unida à parte mais pequena estava firmemente cravada no alvo. Com o impacte, o pau comprido tinha-se so]tado e feito ricochete, mas quando o foì inspeccionar, verificou que não estava danificado. A,lança de duas peças tinha fun- cionado.
--Ayla, apercebes-te do que isto significa?--Jondalar quase gritava
de excitação. '
-- Não sei bem m disse ela.
-- Olha, a ponta acertou no alvo, depois separou-se do pau sem se partir. Isso significa que da próxima vez apenas tenho de fazer uma ponta nova e uni-la a um pedaço curto como este. Não preciso de fazer uma lança completa de novo. Posso fazer duas extremidades como esta, ou mesmo mais, pois apenas precisaremos de alguns paus compridos. Podemos levar multas mais lanças curtas com pontas do que lanças compri-
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das, e se perdermos alguma não será tão difícil substituí-la. Olha, experimenta
to-disse ele, soltando a ponta partida do alvo.
Ayla observou-a.
-- Não tenho grande jeito para fazer lanças compridas e as minhas pontas não são tão belas como as tuas wdisse--, mas creio que atd eu consigo fazer uma destas, w Estava tão excitada quanto Jondalar.
Na véspera do dia em que tencionavam partir, verificaram as reparações que tinham feito daquilo que o texugo danificara, colocaram a pele do animal de uma forma que esperavam que tornasse óbvio que tinha si- do ele o causador dos estragos e puseram as suas prendas. O cesto de carne seca foi pendurado de uma viga de osso de mamute para tornar difícil algum animal chegar-lhe. Ayla dispôs os outros cestos e pendurou vários ramos de ervas medicinais secas e também de plantas para corner, particularmente as que eram vulgarmente utilizadas pelos Mamutoi. Jondalar deixou ao dono da habitação uma lança excepcionalmente bem feita.
Também colocaram o crânio parcialmente seco da vaca auroque, com os seus enormes chifres, num pau do lado de fora da habitação, para que os predadores não lhe pudessem chegar. Os chifres e as partes de osso do crânio eram úteis e era uma forma de explicar qual era o tipo de carne que estava no cesto.
O jovem lobo e os cavalos pareceram pressentir uma mudança próxima. O Lobo corria atrás deles cheio de excitação e energia e os cavalos estavam inquietos, com o Corredor a fazer juz ao seu nome, irrompendo repentinamente a galope, e com a Whinney a manter-se mais próxima do Acampamento para ver Ayla e relinchando quando isso acontecia.
Antes de irem para a cama, arrumaram tudo à excepção das peles de dormir e das coisas indispensáveis para o pequeno-almoço, incluindo a tenda já seca, embora fosse agora mais difícil dobrá-la e fazer que coubesse no cesto-alforge. O couro tinha sido fumado antes de as peles serem transformadas numa tenda, e portanto mesmo depois de ensopadas man- ter-se-iam relativamente flexíveis, mas o abrigo portátil estava um pouco ressequido. Voltaria a tornar-se flexível com o uso.
Na sua última noite no conforto da habitação, Ayla observou a luz bruxuleante da fogueira, já quase a apagar-se, a dançar nas paredes do sólido abrigo, sentindo as suas emoções a passar-lhe pelo espírito num jogo semelhante de luz e sombra. Estava ansiosa por retomar a viagem, mas lamentava deixar um sítio que, durante o curto período em que lá tinham estado, tinham sentido como sendo o seu lar-excepto que não havia lá pessoas. Nos últimos dias, ela deu por si a olhar para o cimo da encosta na esperança de ver as pessoas que viviam no Acampamento a regressar antes de eles se irem embora.
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JEAN AUEL
Embora ainda desejasse que aparecessem inesperadamente,já deixara de ter esperança que isso acontecesse e estava ànsiosa por chegar ao Grande Rio Mãe e talvez encontrar alguém ao longo deste. Adorava Jon- dalar, mas tinha saudades de pessoas, de mulheres e crianças e velhos, de rir e de falar e de compartilhar com outros da sua espécie. Mas não que- ria pensar muito além do dia seguinte ou do próximo Acampamento com pessoas. Não queria pensar na gente de Jondalar nem no tempo durante o qual .teriam de viajar até chegarem ao seu lar e não queria pensar como é que m atravessar aquele rio grande e rápido apenas com o pequeno
barco redondo.
Jondalar tambdm estava acordado, preocupado com a sua Viagem e ansioso por se meter de novo ao caminho, embora pensasse que a sua estada tinha sido muito proveitosa. A tenda estava seca, tinham substituído a carne e o equipamento necessário que tinham perdido ou que es- tava danificado e estava excitado com o desenvolvimento da lança de duas partes. Estava contente por terem o barco redondo mas, mesmo ten- do-o, estava preocupado com a travessia do rio. Era um grande curso de água, largo e rápido. Provavelmente não estavam muito longe do mar e não era provável que se tornasse mais pequeno. Tudo podia acontecer. Ia sentir-se contente quando chegassem ao outro lado.
1º
Ayla acordou muitas vezes durante a noite e estava acordada quando a primeira claridade da manhã entrou pelo buraco do fumo e estendeu os seus dedos ligeiramente luminosos para os recantos sombrios para dispersar a escuridão e revelar as formas escondidas nas sombras. Quando a noite obscura tinha já batido em retirada para uma meia-luz, ela esta- va completamente acordada e não conseguia voltar a adormecer.
Deixando com cuidado o calor de Jondalar, foi lá para fora. O fresco da noite envolveu a sua pele nua e, com a sugestão fria das massivas camadas de gelo a norte, vestiu-a de pele de galinha. Olhando para o vale do rio enevoado, viu as vagas formações de terra ainda escura do outro lado, recortadaS contra o céu fulgurante. Desejou que já lá estivessem.
Um pêlo áspero e quente roçou-lhe a perna. Distraidamente, fez uma festa na cabeça e coçou o pêlo espesso em volta do pescoço do lobo que tinha ido para junto dela. Ele cheirou o ar e, encontrando qualquer coisa interessante, correu encosta abaixo. Ayla procurou os cavalos e distinguiu o pêlo amarelado da égua que pastava num dos pequenos prados verdejantes perto da água. Não viu o cavalo castanho-escuro, mas tinha a certeza de que estava all perto.
A tremer, caminhou sobre a erva molhada em direcção ao pequeno ribeiro e pressentiu o sol que nascia a este. Observou o céu a este que passava de um tom cinzento cintilante para um azul muito claro, com al- gumas nuvens rosadas, reflectindo a glória do sol da madrugada escondido por detrás do cume da encosta.
Ayla sentiu-se tentada airlá acima ver o sol nascer, mas parou ao ver um brilho encadeante vindo da direcção oposta. Apesar de as encostas marcadas por ravinas do outro lado do rio ainda estarem envoltas num sombrio véu cinzento-pardo, as montanhas a oeste, banhadas pela luz clara do sol de um novo dia, destacavam-se em nítido relevo, desenhadas num pormenor tão perfeito que parecia que ela poderia estender a mão e tocar-lhes. Coroando a cordilheira baixa a sul, uma tiara cintilante brilhava dos cumes cobertos de gelo. Maravilhada, observou os padrões que iam mudando lentamente, presa pela magnificência do lado de trás do nascer do Sol.
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Quando chegou ao pequeno ribeiro de água límpida que corña e saltava encosta abaixo, o frio da manhã desaparecera. Pousou o saco de água que tinha levado da habitação e, verificando a lã, ficou contente por parecer que o seu tempo de lua tinha terminado. Desapertou as fitas de couro, tirou o amuleto, e meteu-se num pequeno lago para se lavar. Quando acabou, encheu o saco de água na cascata que caía numa pequena depressão do lago, saiu e empurrou a água primeiro com uma mão e depois com a outra. Voltando a pôr o amuleto e pegando na lã que lavara e nas tiras de couro, apressou-se a voltar para a habitação.
Jondalar estava a amarrar as peles de dormir que enrolara quando ela entrou na habitação semi-subterrânea. Olhou para ela e sorriu. Reparando que não tinha postas as tiras de couro, o seu sorriso assumiu uma expressão decididamente sugestiva.
-- Talvez eu não devesse ter sido tão pronto a enrolar as peles esta manhã-disse ele.
Ela corou quando se apercebeu de que ele percebera que o seu tempo de lua tinha terminado. Depois olhou-o directamente nos olhos que es-
tavam cheios de um riso brincalhão, de amor, de desejo, e sorriu-lhe.-Podes sempre desenrolá-las.
-- Lá se vão os meus planos para partirmos cedo-disse ele, puxando a ponta da tira de couro para soltar o nó da pele de dormir. Desenrolou-a e levantou-se, enquanto ela se dirigia para ele.
Depois da refeição da manhã, não demoraram muito a acabar de ar- rumar as coisas. Pegando em tudo e no barco, juntamente com os seus companheiros de viagem, dirigiram-se para o rio. Mas ainda era preciso decidirem qual era o melhor sítio para o atravessarem. Ficaram a olhar para a larga extensão de água de corrente rápida, tão larga que era difí-cil ver os pormenores da margem oposta. Com a sua rápida corrente a passar por cima e em volta de si própria, formando redemoínhos e fundões e ondas encarpeladas, o som do rio fundo era quase mais revelador que o seu aspecto. Exprimia a sua força num rugido abafado e ribombante.
Enquanto fazia o barco circular, Jondalar tinha pensado muito no rio e em como usaria o barco para o atravessarem. Nunca tinha feito um barco antes e só tinha andado num algumas vezes. Tinha-se tornado relativamente hábil a manobrar as canoas esguias quando vivia com os Sharamudoi mas, quando tentara dirigir os barcos redondos dos Mamu- toi, verificara que eram muito mal jeitosos. Flutuavam bem, dificilmente se viravam, mas eram difíceis de controlar.
Os dois povos não só tinham materiais diferentes disponíveis para construir as suas embarcações, como usavam os barcos para fins diferentes. Os Mamutoi eram principalmente caçadores das estepes abertas; a pesca era apenas uma actividade ocasional. Os seus barcos eram sobre-
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tudo usados para os levar a si e às suas coisas de um lado para o outro de cursos de água, quer fossem os pequenos afluentes ou os grandes rios que por todo o continente corñam dos glaciares do norte para os mares internos do sul.
Os Ramudoi, a parte da Gente do Rio dos Sharamudoi, pescavam no Grande Rio Mãe-embora se referissem a essa actividade como caça quando perseguiam os grandes esturjões de quase dez metros-enquanto a parte Shamudoi caçava camurças e outros animais que viviam nos penhascos e nas montanhas altas junte ao rio e, perto do seu lar, que o confinavam a um enorme desfiladeiro. Os Ramudoi viviam no rio durante as estações quentes, aproveitando os seus recursos, incluindo os grandes carvalhos que ladeavam as suas margens e que eram utilizados para fazer os seus barcos de excelente fabrico e extremamente fáceis de manobrar.
-- Born, acho que devemos pôr tudo lá dentro-disse Jondalar, pegando num dos seus cestes-alforge. Depois pousou-o e pegou noutro.-E provavelmente boa ideia pôr as coisas mais pesadas no fundo, e este term a minha pedreneira e as minhas ferramentas.
Ayla assentiu. Também ela tinha estado apensar como é que iam atravessar o rio de forma a ficarem com as suas coisas intactas e tinha ten- tado antever alguns dos potenciais problemas, lembrando-se das poucas excursões que tinha feito nos barcos do Acampamento do Leão.
Temos que deixar um lugar para cada um em lados opostos para ficar equilibrado. Eu deixo espaço para o Lobo ir comigo.
Jondalar pensou como é que o lobo se portaria na frágil embarcação flutuante, embora nada dissesse. Ayla viu a sua testa franzida mas também ficou calada.
-- Cada um de nós deve ter um remo disse ele, dando-lhe um.
-- Com tudo isto, espero que caibamos disse ela, pondo a tenda no barco e pensando que a poderia utilizar como assento.
Embora apertados, conseguiram meter tudo no barco revestido de pele, à excepção dos paus.
--Talvez tenhamos que os deixar ficar. Já não temos espaço-disse Jondalar. Tinham acabado de substituir os que tinham perdido.
Ayla sorriu e mostrou um pedaço de corda que tinha deixado ficar de fora.
Não temos nada. Os paus flutuam. You amarrá-los ao barco para não os perdermos disse ela.
Jondalar não estava muito convencido de que era boa ideia e ia a le-
vantar objecções quando foi distraído pela pergunta seguinte de Ayla. Como é que vamos fazer com os cavalos? perguntou ela.
-- Que é que têm os cavalos? Podem nadar até ao outro lado, não podem?
Sim, mas to sabes como eles ficam nervosos, sobretudo com coisas
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que nunca fizeram. E se eles se assustarem com qualquer coisa na água e decidirem voltar para trás? Não voltarão a tentar atravessar o rio sozinhos. Nem sequer perceberão que nós estamos do outro lado. Teremos de voltar a este lado para os conduzirmos para lá, portanto por que é que não começamos logo por a-explicou Ayla.
Ela tinha razão. "Muito provavelmente os cavalos ficarão apreensivos e tanto podem ir para a frente como para voltar trás", pensou Jondalar.
--Mas como é que os vamos conduzir estando dentro do barco? mdisse ele. As coisas estavam a complicar-se. Já ia ser complicado tentar manobrar o barco, quanto mais ainda tentar conduzir cavalos assustados. Es- tava a ficar cada vez mais preocupado com a travessia do rio.
m Podemos pôr-lhes os arnês com as cordas e amarrar as cordas ao barco-disse Ayla.
--Não sei... Talvez não seja a melhor forma. Talvez seja melhor pen- sarmos mais sobre isso disse ele.
-- Que é que há que pensar? -- disse ela, enquanto amarrava os três paus com a corda. Depois mediu um pedaço e ateu-o ao barco.-Quem estava ansioso por partir eras to-acrescentou, enquanto punha o arnês à Whinney, prendia a corda que servia de rédea a este e a amarrava ao barco do lado oposto ao que tinha prendido os paus. Segurando na corda,
ficou junto ao barco e depois virou-se para Jondalar. m Estou pronta. Ele hesitou e depois assentiu, decidido.
--Está bem disse, indo buscar o arnês do Corredor ao cesto-alforge e chamando o cavalo. O jovem garanhão ergueu a cabeça e relinchou quando o homem tentou enfiar-lhe o arnês pela cabeça, mas depois de Jondalar falar com ele e de lhe fazer festas no focinho e no pescoço, o Corredor acalmou-se e deixou que ele lho pusesse. Jondalar amarrou a
corda ao barco e virou-se para Ayla.
-- Vamos-disse.
Ayla fez sinal ao Lobo para entrar no barco. Depois, com ambos a segurar nas cordas que prendiam os cavalos, para manter os animais sob controlo, empurraram o barco para dentro de água e saltaram para dentro dele.
Tiveram problemas desde logo. A corrente rápida apanhou a pequena embarcação e arrastou-a, mas os cavalos ainda não estavam preparados para entrar no rio largo. Empinaram-se quando o barco os puxou, sacu- dindo-o tão violentamente que quase o viraram, fazendo oLobo tropeçar, recuperar o equilrio e encarar a situação nervosamente. Mas a carga era tão pesada que o barco se endireitou rapidamente, embora o casco estivesse quase submerso na .água. Os paus iam a flutuar à frente, tentando seguir a forte corrente.
A força da água do rio a tentar puxar o barco rio abaixo e as palavras ansiosas de encorajamento de Ayla e Jondalar acabaram por convencer os cavalos nervosos a entrar na água. Primeiro a Whinney experimentou
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meter um casco e encontrou pé, depois o Corredor e, com a força constante da água, finalmente ambos entraram. A margem tinha um declive acentuado e não tardaram a estar ambos a nadar. Ayla e Jondalar não tinham outra opção senão deixar que a corrente os levasse rio abaixo atd que todo aquele improvável conjunto de três longos paus, seguidos por um barco redondo e muitíssimo carregado com uma mulher, um homem e um lobo extremamente nervoso e dois cavalos atrás, estabilizasse. Depois largaram as cordas e cada um deles pegou num remo e tentaram mudar a direcção de forma a avançarem lateralmente à corrente.
Ayla, do lado de frente para a margem oposta, não estava familiarizada com a utilização de um remo. Teve de fazer várias tentativas, com Jondalar a aconselhá-la enquanto tentava remar para longe da margem, antes de apanhar o jeito e conseguir utilizá-lo em conjugação com ele para impulsionar o barco. Mesmo assim avançavam lentamente, com os paus compridos à frente e os cavalos atrás, a revirar os olhos cheios de medo enquanto eram involuntariamente puxados pela corrente.
Começaram a fazer progressos na travessia do rio, embora estivessem a ser puxados pela corrente muito mais rapidamente. Mas um pouco mais à frente o grande curso de água, seguindo a inclinação suave da terra a caminho do mar, fazia uma curva acentuada para este. Uma corrente de refluxo, provocada por uma língua de areia da margem mais próxima, " apanhou os paus que avançaram rapidamente à frente do barco.
Os compridos paus de bétula, que flutuavam livremente presos às cordas que os atavam ao barco, giraram e embateram no barco revestido a pele, dando-lhe uma forte pancada perto de Jondalar, que teve medo que tivesse feito um buraco no casco.
Isto sobressaltou todos os que Jam a bordo e fez o pequeno barco redondo girar sobre si mesmo, o que fez que as cordas que prendiam os cavalos fossem puxadas com força. Os cavalos relincharam de pânico, engolindo água e tentando desesperadamente nadar para longe, mas eram arrastados pela corrente impiedosa que puxava o barco a que estavam inexoravelmente presos.
Mas os seus esforços não foram em vão. Fizeram que o pequeno barco abanasse e girasse, puxando os paus e voltando a fazer que embatessem no barco. A corrente turbu!enta e os abanões e puxões da embarcação so- brecarregada fizeram que ela metosse água, aumentando o peso. O barco ameaçava afundar-se.
O lobo assustado tinha estado encolhido com o rabo entre as pernas ao lado de Ayla, em cima da tenda dobrada, enquanto ela tentava desesperadamente equilibrar o barco com o remo que não sabia utilizar, com Jondalar a gritar-lhe instruções que ela não sabia aplicar. Os relinchos dos cavalos em pânico chamaram-lhe a atenção e, vendo o seu medo, apercebeu-se subitamento de que tinha de os soltar. Deixando cair o remo no fundo do barco, tirou a faca da bainha presa ao cinto. Sabendo
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que o Corredor era mais excitável, começou pela corda dele e a lâmina afiada de pedreneira cortou-a sem grande esforço.
Isto causou mais solavancos que oLobo não aguentou. Saltou do barco para dentro de água. Ayla observou-o enquanto ele nadava desesperada- mente, depois cortou rapidamente a corda da Whinney e saltou para a água, indo atrás dela.
-- Ayla! -- gritou Jondalar, mas voltou a sentiu um violento balanço quando o barco, subitamente mais leve, começou a girar e a embater nos paus. Quando olhou de novo, Ayla estava a tentar nadar no mesmo sitio e a encorajar o lobo que nadava na sua direcção. A Whinney e, mais adiante, o Corredor, dirigiam-se para a margem mais distante e a corrente es- tava a arrastá-los ainda mais depressa rio abaixo, para longe de Ayla.
Ela olhou para trás e vislumbrou Jondalar e o barco pela última vez enquanto este descrevia a curva do rio e sentiu um baque de medo de que nunca mais o voltasse a ver. Passou-lhe fugazmente pelo espírito a ideia de que nunca deveria ter saltado do barco, mas não tinha tempo para se preocupar com isso. O lobo vinha na sua direcção, lutando contra a corrente. Ela deu algumas braçadas na sua direcção mas, quando chegou ao pé dele, ele tentou pôr-lhe as patas nos ombros e lamber-lhe a cara e, na sua ansiedade, fez que ela submergisse. Ayla voltou à superfície a tossir, pôs um braço em volta do pescoço dele e procurou os cavalos.
A égua nadava em direcção à margem, afastando-se dela. Ayla respirou fundo e deu um assobio agudo e prolongado. O cavalo arrebitou as orelhas e virou-se na direcção do som. Ayla assobiou de novo e o cavalo mudou de direcção e tentou nadar para junto dela, enquanto Ayla ia ao encontro de Whinney com braçadas fortes. Ayla nadava muito bem. Dei- xando-se ir na corrente, embora nadando em diagonal, teve contudo al- guina dificuldade em chegar junto do animal molhado. Quando conseguiu, quase chorou de alívio. O lobo não tardou a chegar junto delas, mas continuou a nadar.
Ayla descansou por instantes, agarrada ao pescoço da Whinney, e só nessa altura é que reparou como a água estava fria. Viu a corda na água, ainda presa ao arnês que a Whinney tinha posto, e ocorreu-lhe como se- ria perigoso para o cavalo sea corda se prendesse a qualquer coisa na água. A mulher gastou alguns instantes a tentar desapertar o nó, mas es- tara demasiado apertado por ter inchado com a água, e ela tinha os dedos entorpecidos do frio. Respirou fundo e recomeçou a nadar, não querendo sobrecarregar o cavalo e esperando que o exercício a ajudasse a aquecer.
Quando finalmente chegaram à outra margem, Ayla saiu da água aos tropeções, a tremer, e caiu por terra. O lobo e o cavalo pouco melhor es- taram. Sacudiram-se ambos, salpicando água por todo o lado, e depois o Lobo deitou-se, com a respiração ofegante. O pêlo da Whinney era espesso mesmo no Verão, embora se tcrnasse muito mais espesso no
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PLANÍCIES DE PASSAGEM I
Inverno, quando crescesse a densa camada interior. Ficou de pé, com as pernas abertas e com o corpo a tremer, com a cabeça caída e as orelhas para baixo.
Mas o sol de Verão la alto e o dia tinha aquecido e, depois de descansar, Ayla parou de tremer. Levantou-se à procura do Corredor, certa de que se eles tinham conseguido atravessar o rio, o garanhão também tinha. Assobiou, primeiro o seu assobio para a Whinney, pois o Corredor normalmente acorria quando ela chamava pela mãe. Depois deu o assobio de chamar que Jondalar tinha para ele e sentiu subitamente um baque de preocupação pelo homem. Teria conseguido atravessar o rio naquele barco tão frágil? E se sim, onde estaria? Voltou a assobiar, na esperança de que o homem a ouvisse e respondesse, mas não ficou infeliz quando o garanhão castanho-escuro apareceu a galope, ainda com o arnê.s posto e com um pedaço de corda preso a este.
Corredor/ gritou ela.-Conseguiste. Eu sabia que conseguias. A Whinney saudou-o com um relincho de boas-vindas e o Lobo com entusiásticos latidos que terminaram num sonoro uivo. O Corredor respondeu com fortes relinchos que Ayla estava certa que continham um tom de alívio por ter encontrado os seus amigos. Quando chegou junto deles, o Corredor tocou com o focinho no do Lobo e depois foi para ao pé da mãe, pondo a cabeça por cima do pescoço dela e procurando conforto depois da assustadora travessia do rio.
Ayla juntou-se a eles e deu-lhe um abraço, fazendo-lhe depois festas antes de lhe tirar o arnês. Ele estava tão habituado às tiras de couro que estas pareciam não o incomodar e não interferiam quando pastava, mas Ayla achou que a corda pendurada podia criar problemas e sabìa que ela própria não gostarìa de andar sempre com uma coisa parecida. Depois ti- roll o arnês da Whinney e enfiou-os ambos no cinto da túnica. Ainda pen- sou em tirar a roupa molhada, mas sentia que tinha de se apressar e esta já tinha começado a secar no corpo.
-- Born, já encontrámos o Corredor. É altura de encontrarmos o Jondalar-disse em voz alta. O lobo olhou para ela com uma expressáo expectante e ela dirigiu-lhe os seus comentários.-Lobo, vamos à procura do Jondalar! -- Montou na Whinney e dirigiu-se rio abaixo.
Depois de muitas voltas e reviravoltas e pancadas, o pequeno barco redondo revestido a pele, com a ajuda de Jondalar, começou a seguir calmamente a corrente, desta vez com os paus a arrastar atrás. Depois, com o único remo e considerável esforço, ele começou a impelir a pequena embarcação para o outro lado do grande rio. Descobriu que os três paus que iam atrás tendiam a estabilizar o barco circular, impedindo-o de girar e tornando-o mais fácil de controlar.
Enquanto se ia esforçando para alcançar a terra que ia passando por
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ele, censurava-se por não ter saltado para o rio atrás de Ayla. Mas tinha tudo acontecido tão depressa. Antes de dar por isso, ela já tinha saltado do barco e estava a ser arrastada pela corrente rápida. Era inútil saltar para o rio depois de a ter perdido de vista. Não teria conseguido nadar atrás dela corrente acima e perderiam o barco e tudo o que lá tinham dentro.
Tentou consolar-se com a certeza de que ela nadava muito bem, mas a sua preocupação fazia com que aumentasse os seus esforços para atravessar o rio. Quando finalmente chegou à outra margem, a grande distãn- cia rio abaixo do sítio de onde tinham partido, e sentiu fundo raspar na praia rochosa que se projectava da parte interior de uma curva, deu um longo suspiro entrecortado. Depois saltou para terra e arrastou o barco carregadíssimo pela margem e deixou-se cair no chão, cedendo à exaustão. No entanto, passados alguns momentos levantou-se e começou a andar rio acima à procura de Ayla.
Manteve-se junto à água e, quando chegou a um pequeno ribeiro afluente que juntava a sua água ao rio, atravessou-o metendo-se a pé pela água. Mas, passado algum tempo, quando chegou a um rio de um tamanho mais respeitável, hesitou. Não era um rio que pudesse atravessar a pé e, se tentasse nadar para o outro lado all tão perto de um curso de água principal, seria arrastado para este. Teria de subir o rio mais pequeno aid encontrar um sítio melhor para tentar atravessar.
Ayla, montada na Whinney, chegou ao mesmo rio pouco depois e também seguiu rio acima. Mas a decisão sobre onde deveria atravessar a cavalo obedecia a condições diferentes. Não tbi tão longe quanto Jondalar antes de meter o cavalo na água. O Corredor e o Lobo seguiram-na e, tendo apenas tido que nadar um pouco no meio, não tardou que estivessem do outro lado. Ayla começou a dirigir-se para o grande rio mas, a olhar para trás, viu o Lobo ir na direcção oposta.
-- Anda, Lobo. Por aqui m gritou. Assobiou impaciente e depois fez final a Whinney para continuar. O canídeo hesitou, começou a ir na sua direcção mas voltou para trás antes de, finalmente, a seguir. Quando chegaram ao grande rio, ela virou e foi ao sabor da corrente, incitando a égua a galopar.
O coração de Ayla bateu mais depressa quando pensou ver um objecto redondo numa praia rochosa em frente.
m Jondalar! Jondalar! -- gritou, galopando a toda a velocidade. Saltou para o chão ainda antes de o cavalo ter parado por completo e correu para o barco. Olhou lá para dentro e depois em volta da praia. Parecia lá estar tudo, incluindo os três paus, tudo à excepção de Jondalar.
-- O barco está aqui, mas não consigo encontrar o Jondalar disse em voz alta. Ouviu o Lobo latir em resr.osta, nPor que é que não consigo
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encontrar o Jondalar? Onde é que ele está? Terá o barco vindo aquiparar sozinho? Será que não conseguiu cá chegar? -- Nessa altura é que lhe ocorreu. "Talvez tenha ido à minha procura", pensou. "Mas se eu vim rio abaixo e ele ia rio acima, como é que não nos cruzámos..."
-- O rio! -- disse quase num grito. OLobo voltou a latir. Subitamente Ayla lembrou-se dahesitação dele quando tinham atravessado o grande afluente.-Lobo! -- gritou ela.
O grande animal de quatro patas correu para ela e deu um salto, pondolhe as patas nos ombros. Ela agarrou-lhe o pêlo espesso do pescoço com ambas as mãos, olhou para o seu focinho comprido e olhos inteligentes e lembrou-se do rapazito fraco que tanto lhe fazia recordar o seu filho. Rydag tinha mandado o LObo procurá-la e ele tinha percorrido uma grande distância até a encontrar. Sabia que ele conseguiria encontrar Jondalar se ela conseguisse fazer que ele compreendesse o que ela queria.
Lobo, encontra o Jondalar! m disse ela. Ele saltou para o chão e começou a cheirar em volta do barco, diñgindo-se depois rio acima, por onde tinham vindo.
Jondalar estava com a água pela cintura, a atravessar cuidadosamente o pequeno rio, quando pensou ouvir um leve piar de pássaro que lhe parecia de certa forma familiar-e impaciente. Parou e fechou os olhos, tentando localizá-lo, depois abanou a cabeça, pois nem sequer tinha a certeza de que realmente o ouvira, e continuou a atravessar. Quando chegou ao outro lado e começou a andar na direcção do grande rio, não conseguia deixar de pensar nisso. Por fim, a sua preocupação em encontrar Ayla começou a distrair-lhe o pensamento disso, embora a ideia não o largasse.
Já estava a andar há um born pedaço com a roupa molhada no corpo, sabendo que Ayla também estava molhada, quando lhe ocorreu que talvez devesse ter levado consigo a tenda, ou pelo menos qualquer coisa que servisse de abrigo. Estava a ficar tarde e tudo podia ter acontecido a Ayla. Podia até estar ferida. Esta ideia faz que perscrutasse a água, a margem e a vegetação próxima com mais atenção. Subitamente, voltou a ouvir o assobio, desta vez muito mais forte e próximo, seguido por um latido, e outro, e outro ainda, e depois o uivo forte de um lobo e o som de cascos de cavalo. Virando-se, irrompeu num grande sorriso de boas-vindas ao ver olobo a correr direito para ele, com o Corredor logo atrás e, melhor que tudo isso, all vinha Ayla montada na Whinney.
O LObo saltou para o homem, pondo as enormes patas no peito de Jondalar e esticando o focinho para lhe lamber acata. O homem alto agarrou-o pelo pëlo do pescoço como já vira Ayla fazer e empurrou o lobo para baixo, enquanto Ayla chegou a galope no cavalo, saltou para o chão e correu para ele.
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* Jondalar! Jondalar! -- disse ela, enquanto ele a abraçava.
Ayla! Oh, minha Ayla! -- disse ele, apertando-a contra si.
O lobo saltou e lambeu a cara a ambos e nenhum deles o afastou.
O grande rio que os dois cavaleiros, juntamente com os seus cavalos e o lobo tinham atravessado, desaguava no mar interno de água pan- tanosa ao qual os Mamutoi chamavam o Mar Beran, imediatamente a norte do imenso delta do Grande Rio Mãe. k medida que os viajantes se aproximavam no fim do curso de água com as suas múltiplas ramiflcações que serpenteara através de toda a largura do continente ao longo de quase três mil e duzentos quilómetros, a inclinação descendente do terreno tornava-se plana.
As magníficas pastagens daquela região plana do sul surpreenderam Ayla e Jondalar. Uma vegetação luxuriante e nova, invulgar tão tardiamente na estação, irrompia por toda a paisagem aberta. A violenta tempestade com as suas chuvas torrenciais, excepcionais naquela altura do ano e que tinham coberto uma vasta área, eram responsáveis pelo invul- gar cresciménto vegetal. Provocara um ressurgimento quase primaveril nas estepes, não só de erva, mas tambdm de flores coloridas; íris anãs to- xas e amarelas, peónias de pétalas dobradas de um vermelho rico, lírios cor-de-rosa e ervilhacas de várias cores, desde amarelo a cor de laranja, a vermelho e roxo.
Uns assobios e guinchos agudos chamaram a atenção de Ayla para os melros vociferantes que voavam em círculos, picavam, separavam-se e voltavam ajuntar-se em grandes bandos, criando uma confusão de incessante actividade. A grande concentração de estorninhos rosados, ruido- sae gregária, que se tinha formado all perto, tornaram a jovem mulher inquieta. Embora se reproduzissem em colónias, se alimentassem em bandos e dormissem todos juntos à noite, não se lembrava de alguma vez ter visto tantos de uma só vez.
Reparou que havia também grandes bandos de francelhos e de outros pássaros. O ruído estava a aumentar, acompanhado de um zumbido estridente de antecipação. Depois reparou numa grande nuvem preta, embora, estranhamente, à excepção dessa única nuvem, o céu estivesse limpo. Parecia estar a deslocar-se para mais perto, levada pelo vento. Su- bitamente, a grande horda de estorninhos tornou-se ainda mais agitada.
-- Jondalar gritou ela ao homem que ia a cavalo à sua frente.-Olha para aquela nuvem tão estranha.
O homem olhou e depois parou quando Ayla parou ao seu l'do. Enquanto observavam, a nuvem tornou-se visivelmente maior, ou talvez mais próxima.
Não creio que seja uma nuvem de chuva disse Jondalar.
Eu também não, mas que outra coisa poderá ser?-- disse Ayla, que
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sentia um inexplicável desejo de procurar qualquer tipo de abrigo.-Achas que devemos montar a tenda e esperar que passe?
m Prefiro continuar. Talvez possamos fugir-lhe se nos apressarmos
m disse Jondalar.
Incitaram os cavalos a um passo mais rápido através do campo verde, mas os pássaros e a estranha nuvem continuaram a segui-los. O ruído estridente aumentou em intensidade, sobrepondo-se atd aos barulhentos estorninhos. Subitamente, Ayla sentiu qualquer coisa bater-lhe no braço.
-- Que foi isto?-- disse ela, mas mesmo antes de acabar a frase qualquer coisa voltou a bater-lhe uma e outra vez ainda. Qualquer coisa bateu também na Whinney e afastou-se, mas vieram mais. Quando olhou para Jondalar, que ia um pouco mais adiante, viu mais daquelas coisas que voavam e saltavam. Uma delas caiu mesmo à sua frente e, no instante em que ia a voar para longe, ela bateu-lhe com a mão.
Apanhou-a cuidadosamente para a observar mais atentamente. Era um insecto, com o comprimento do seu dedo do meio, com um corpo grosso e grandes pernas traseiras. Parecia um gafanhoto grande, mas não era da mesma cor verde parda que se confundia facilmente com a vegetação, como aqueles que ela vira a saltar na erva alta. Aquele insecto era bem visível, com as suas ñscas petas, amarelas e cor de laranja.
A diferença tinha sido provocada pelas chuvas. Durante a estação que era normalmente seca, eram gafanhotos, criaturas tímidas e solitárias que só suportavam estar com outras da sua espécie o tempo indispensá-vel para acasalarem, mas uma notdria alteração tinha tido lugar depois das chuvas torrenciais. Com o crescimento de nova erva, as fêmeas aproveitaram a abundância de alimento pondo muitos mais ovos e muitas mais larvas sobreviveram. À medida que a população de gafanhotos au- mentava, ocorreram alterações surpreendentes. Os jovens gafanhotos desenvolveram novas cores espantosas e começaram a procurar a companhia uns dos outros. Já não eram gafanhotos, tinham-se tornado locustas.
Em breve, grandes bandos de locustas de cores vivas juntaram-se a outros bandos e depois de esgotarem as reservas de comida locais, os lo- custas levantaram voo em massa. Era vulgar formarem uma nuvem de cinco milhões, cobrindo facilmente noventa e cinco quilómetros quadrados e comendo oitenta mil toneladas de vegetação numa única noite.
Quando a orla da frente da nuvem de locustas começou a baixar para se alimentar da erva nova, Ayla e Jondalar foram envolvidos pelos insectos que os rodeavam por todos os lados, batendo e fazendo ricochete neles e nos cavalos. Não foi difícil incitarem a Whinney e o Corredor a ga- loparem; teria sido praticamente impossível impedi-los. Enquanto estes galopavam desenfreadamente, bombardeados pelos insectos, Ayla tentou ver onde estava o Lobo, mas o ar estava cheio dos insectos que voavam,
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saltavam e pulavam. Assobiou o mais alto que conseguiu, na esperança de que ele a ouviria no meio daquele rugido estridente.
Ayla quase bateu num estorninho rosado que descia em voo picado e apanhou com uma locusta em cheio na cara. Depois apercebeu-se por que é que os pássaros se tinham juntado em bandos tão grandes. Tinham sido atraídos pela imensa quantidade de comida, cuj as cores viva eram fáceis de ver. Mas o contraste nítido que atraía os pássaros também permitia aos locustas localizarem-se uns aos outros quando precisavam de voar para novos sítios com alimento, e os enormes bandos de pássaros pouco contribuíam para reduzir as nuvens de locustas, desde que a vegetação continuasse suficientemente abundante para sustentar as novas gerações. Sd quando as chuvas parassem e as pastagens voltassem à sua secura normal, que apenas sustentaria pequenos números, é que os locustas se tornariam de novo gafanhotos bem camuflados e inóquos.
O lobo encontrou-os pouco depois de terem deixado a nuvem de locus- tas para trás. Quando os insectos vorazes se instalaram no solo para passar a noite, já Ayla e Jondalar estavam acampados bem longe. Quando retomaram o seu caminho na manhã seguinte, dirigiram-se para norte e ligeiramente para este, em direcção a um monte alto para terem uma vista sobre a paisagem plana que lhes pudesse dar uma indicação da distância a que estavam do Grande Rio Måe. Imediatamente além do cume do monte, viram a orla de uma área que tinha sido visitada pela nuvem de locustas, a massa viva levada pelos ventos fortes em direcção ao mar. Ficaram estupefactos com a destruição.
A bela paisagem que parecia de Primavera, cheia de flores vivas e erva nova, desaparecera, ficando limpa. Tanto quanto conseguiam ver, a terra tinha ficado nua. Não restava uma única folha, uma única erva, uma única sugestão de verde na terra. Toda a vegetação tinha sido devo- rada pela horda faminta. Os únicos sinais de vida eram alguns estorni- nhos que procuravam os últimos lacustas que tinham ficado para trás. A terra tinha sido pilhada, rasgada e deixada indecentemente nua. No entanto, recuperaria daquela indignidade provocada por criaturas a que ela própria dera vida nos seus ciclos naturais de vida e, das raízes escondi- das e das sementes varridas pelo vento, voltaria a vestir-se de verde.
Quando a mulher e o homem olharam para o outro lado, foram sauda- dos por uma paisagem completamente diferente que fez que a sua pulsação se acelerasse. Aeste, uma vasta extensão de água cintilava ao sol; era o Mar Beran.
Enquanto olhava, Ayla apercebeu-se de que era o mesmo mar que ela conhecera na sua infância. Na extremidade sul de uma península, que se projectava de norte para aquele grande corpo de água, estava a caverna onde ela tinha vivido com o clã de Brun quando era pequena. Tinha sido
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multas vezes difícil viver com as pessoas do Clã. Mesmo assim, ela tinha muitas recordações felizes da sua infância, embora a recordação do filho que tinha sido forçada a deixar para trás inevitavelmente a entristeces- se. Sabia que estava agora o mais perto que alguma vez estaria do filho que nunca mais veria.
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Queria que a Mãe o levasse-disse Jondalar. Depois, olhando para baixo, acrescentou, m E depois encontrámos o Bebé.
Jondalar olhou para Ayla e ela viu a sua expressão alterar-se. A dor continuava lá e ela reconheceu aquela expressão especial que mostrava que o seu amor por ela era quase mais do que ele conseguia suportar; mais do que ela conseguiria suportar. Mas mostrava outra coisa, uma coisa que
a assustes.
m Nunca percebi por que é que o Thonolan queria morrer.., nessa altura.-Virou-se e inciteu o Corredor a ir mais depressa, gritando: mAnda. Eras to que te querias apressar.
Ayla fez sinal a Whinney para entrar num galope, tentando ter mais cuidado, e indo atrás do homem montado no garanhão que galopava em direcção ao rio. Mas a corrida era enebriante e teve o efeito de varrer a estranha disposição de tristeza que aquele sítio evocava em ambos. O lobo, excitado pelo rápido galope, correu ao lado deles e, quando finalmente chegaram à beira da água e pararam, o Lobo ergueu a cabeça e irrompeu numa melodiosa canção de lobo composta de longos uivos. Ayla e Jondalar olharam um para o outro e sortiram, pensando que era uma forma adequada de anunciar que tinham chegado ao rio que seria seu companheiro durante a maior parte do resto da sua Viagem.
-- É este? Chegámos ao Grande Rio Mãe? m perguntou Ayla, com os olhos a brilhar. m Sim, é este disse Jondalar e depois olhou para oeste, para montante.
Não queria estragar a excitação de Ayla por terem chegado ao rio, mas sabia que ainda lhes faltava muito.
Teriam de seguir o caminho por onde ele tinha vindo, atravessar teda a largura do continente atd ao planalto do glaciar que cobria as terras altas na nascente do grande rio, e depois ir ainda mais longe, quase aid às Grandes Aguas, na beira da terra, lá muito a oeste. Ao longo do seu percurso serpenteante de dois mil e novecentes quilómetros, o Donaum o rio da Doni, a Grande TerraMãe dos Zelandonii m ta aumentando com as águas de mais de trezentos afluentes, o escoamento de duas cordilheiras de montanhas de glaciares, e adquiria sedimento.
Frequentemente dividindo-se em muites canais enquante serpentea- va através de extensões mais planas de terra, o grande curso de água transportava a prodigiosa acumulação de sedimento em suspensão no seu imenso caudal. Mas, antes de chegar ao fim do seu curso, a terra fina e arenosa assentava num imenso depdsite em forma de leque, uma zona selvagem feita de lama e de ilhas e margens baixas rodeadas de lagos pouco profundos e ribeiros serpenteantes, como sea Grande Mãe dos rios estivesse tão exausta da sua longa viagem que tivesse deixado cair o seu pesado carregamento de sedimente ainda antes de chegar ao seu destino e depois cambaleasse até ao mar.
O largo delta onde tinham chegado, com um comprimento duas vezes
maior que a largura, começava a muitos quildmetros do mar. O rio, demasiado cheio para ficar contido num único canal na planície entre o antigo massivo rochoso a este e os rios ondulantes que se formavam gradualmente a partir das montanhas a oeste, dividia-se em quatro braços principais, cada um tomando uma direcção diferente. Havia canais a ligar os braços divergentes, criando um labirinte deribeiros serpenteantes que se estendiam e formavam numerosos lagos e lagoas. Grandes extensões de bancos de juncos rodeados por terra firme, desde línguas de areia nuas a grandes ilhas com florestas e estepes, eram povoadas por auroques e veados e pelos seus predadores.
-- De onde é que vinha aquele fumo? perguntou Ayla. Deve haver um Acampamento aqui perte.
Creio que podia vir daquela ilha grande que vimos lá em baixo no rio, do outro lado do canal disse Jondalar, apontando nessa direcção.
Quando Ayla olhou, apenas viu uma alta barreira de juncos, com as suas pontas felpudas roxas a ondular na brisa, a mais de quatro metros da terra ensopada de água onde cresciam. Depois reparou nas lindas folhas verde-prateadas dos chorões que se estendiam para lá destes. Só passados alguns instantes é que fez nova observação que a intrigou. Os chorões eram normalmente arbustes que cresciam tão perte da água que as suas raízes ficavam muitas vezes inundadas nas estações chuvosas. Pareciam-se com certos salgueiros, mas os chorões nunca atingiam o tamanho de árvores. Ter-se-ia enganado? Podiam ser salgueiros? Ela raramente cometiaúm engano daqueles.
Começaram a descer o rio e, quando chegaram em frente da ilha, dirigiram-se para o canal. Ayla olhou para trás para verificar que os paus da padiola, com o barco circular amarrado entre ambos, não se tinham partido; depois verificou que as extremidades cruzadas à frente se deslocavam livremente enquanto os paus se erguiam atrás da égua. Quando estaram a arrumar as coisas, preparando-se para deixar para trás o grande rio, a sua ideia inicial tinha sido deixarem o barco. Tinha cumprido a sua função de os fazer passar, com as suas coisas, para a outra margem, mas depois de tanto trabalho a fazê-lo, muite embora a travessia não tivesse corrido exactamente como tinham planeado, nenhum gosteu da ideia de abandonar o pequeno barco circular.
Foi Ayla quem se lembrou de o amarrar aos paus, muito embora isso significasse que a Whinney teria de ir com o arnês posto e a arrastá-lo constantemente, mas foi Jondalar que se apercebeu de que ele facilitaria a travessia de outros rios. Podiam carregar o barco com as suas coisas para não se molharem mas, em vez de tentar conduzir os cavalos para o outro lado com cordas amarradas ao barco, a Whinney podia nadar para a outra margem à sua vontade, a puxar uma carga flutuante. Quando experimentaram no rio seguinte que tiveram de atravessar, verificaram que nem sequer era preciso tirar-lhe o arnês.
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A tendência era para a corrente arrastar o barco e os paus, o que preo. cupava Ayla, sobretudo depois da forma como a Whinney e o Corredor tinham entrado em pânico quando no outro rio foram arrastados para uma situação sobre a qual não tinham controlo. Ayla decidiu dar nova forma às tiras de couro que formavam o arnês, para as poder cortar num instante se este parecesse estar a pôr em perigo a sua égua, mas o cavalo compensou a força da corrente e aceitou sem problema a carga. Ayla tinha dado tempo ao cavalo para se familiarizar com a nova ideia e a Whinney estava já habituada à padiola e confiava na mulher.
Mas o barco circular era um recipiente que convidava a que o enches- sem. Começaram por levar lenha, excrementos secos de vaca e outros materiais combustíveis que lato.apanhando pelo caminho para a fogueira da noite e por vezes deixavam os cestos-alforge no barco depois de atraves- sarem cursos de água. Tinham atravessado vários ribeiros de tamanhos diferentes que se dirigiam para o mar interior e Jondalar sabia que o seu caminho seria cruzado por muitos afluentes ao continuarem a sua Viagem seguindo o Grande Rio Mãe.
Quanto entraram na água límpida do canal exterior do delta, o garanhão assustou-se e relinchou, nervoso. O Corredor mostrava-se inquieto junto de rios desde a sua assustadora aventura, mas Jondalar tinha sido muito paciente a conduzir o jovem animal na travessia de cursos de água mais pequenos com que tinham deparado, e o cavalo estava a superar o seu medo. Isso agradou ao homem, pois teriam de atravessar muitos mais rios até chegarem ao seu lar.
A água deslocava-se lentamente, mas era tão transparente que viam os peixes a nadar por entre as plantas aquáticas. Depois de abrirem caminho por entre os juncos altos, chegaram à ilha comprida e estreita. O Lobo foi o primeiro a chegar à língua de terra. Abanou-se vigorosamen- te e correu pela encosta suave de areia molhada e compactada mistura- da com argila e que dava para uma mata de belos chorões com folhas ver-
de-prateadas do tamanho de árvores.
-- Eu sabia-disse Ayla.
-- Que é que sabias?-- perguntou Jondalar, sorrindo ao ver a sua expressão satisfeita.
Estas árvores são exactamente iguais àqueles arbustos onde dormimos na noite em que houve aquela chuva toda. Pensei que fossem chorões, mas nunca vi nenhuns do tamanho de árvores. Os chorões são normalmente arbustos, mas estes podiam ser salgueiros.
Desmontaram e conduziram os cavalos para o meio das árvores frescas e arejadas. Caminhando em silêncio, repararam nas sombras das folhas, a ondular ao vento na brisa, lançando pequenas manchas de sombra na terra rica e verdejante, banhada pelo sol, e através da mata pouco densa viram auroqves a pastar à distância. Estavam a favor do vento e
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quando os animais sentiram o seu cheiro afastaram-se rapidamente. Já foram caçados por pessoas, pensou Jondalar.
Os cavalos iam também cortando pedaços da verdura luxuriante com os dentes da frente enquanto passavam por aquela deliciosa terra arborizada, o que fez que Ayla parasse e começasse a desatar o arnês da Whinney.
-- Por que é que estás a parar aqui? -- perguntou Jondalar.
w Os cavalos querem pastar. Pensei que podíamos parar um bocado.
Jondalar mostrou-se preocupado.
w Acho que devemos avançar um pouco mais. Tenho a certeza de que
há pessoas nesta ilha e gostava de saber quem são antes de pararmos. Ayl.a sorriu.
E isso! Disseste que era daqui que vinha o fumo. É um sítio tão bonito... que quase me esqueci.
O terreno tinha aumentado gradualmente em elevação e mais no interior começaram a aparecer amieiros, plátanos e salgueiros brancos no meio da mata de chorões, acrescentando variedade à folhagem verde-prateada. Pouco depois, algums abetos e uma variedade antiga de pinheiros, que existiam naquela região desde que as próprias montanhas existiam, acrescentavam um fundo de um verde mais profundo ao mosai- co, com lariços a contribuir para um tom mais claro, todos eles acentua- dos por tufos de um verde-dourado das ervas das estepes que ondulavam ao vento. Havia hera a trepar pelos troncos das árvores e lianas brancas pendiam dos ramos das copas da floresta mais densa; nas clareiras inundadas pelo sol, arbustos de carvalhos púberes e aveleiras mais altas lançavam o seu tom contra a paisagem viva.
A ilha não se erguia a mais de sete metros e meio acima da água e depois tornava-se plana, estendendo-se num grande campo-que era uma estepe em miniatura, com fetos e ervas a tornarem-se douradas com o sol. Atravessaram a estreita largura da ilha e olharam para uma encosta mais acidentada de dunas de areia, ancorada com erva, azevinhomarinho e couves-marinhas. As encostas arenosas davam para uma enseada muito pronunciada, quase uma lagoa, delineada por altos juncos com pontas roxas, misturadas com espadana e papiros e muitas variedades de plantas aquáticas mais pequenas. Na enseada, os nenúfares eram tão densos que mal se via a água e, empoleirados neles, havia um número incalculável de garças.
Para lá da ilha havia um canal largo de água lamacenta e acastanhada, o braço mais a norte do grande rio. Perto do fim da ilha, viram um ñbeiro de água límpida que desaguava no canal principal e Ayla ficou admirada por ver duas correntes, uma transparente, a outra castanha, carregada de sedimento, a correrem uma junto à outra, com uma divisão distinta de cor. No entanto, a água castanha acabava por dominar e o canal pñncipal enlameava a corrente límpida.
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-- Olha para aquilo, Jondalar-disse Ayla, apontando para a nítida definição das águas que corriam paralelas.
-- I', assim que se sabe que se estd no Grande Rio Mãe. Esse braço leva- -nos d:.rectamente até ao mar-disse ele.-Mas olha para all.
Para lá de um outeiro ligeiramente afastado da enseada, uma fina pluma de fumo erguia-se para o céu. Ayla sorriu em antecipação, mas Jon- dalar tinha algumas reservas enquanto se dirigiam para o fumo. Se era fumo proveniente de uma fogueira, por que é que ainda não tinham visto ninguém? As pessoas já os deviam ter visto. Por que é que não tinha vindo ninguém recebê-los? Jondalar encurtou a corda que usava para conduzir o Corredor e fez-lhe festas no pescoço, tranquilizando-o.
Quando viram a silhueta de uma tenda cónica, Ayla percebeu que tinham chegado a um Acampamento, mas interrogou-se sobre quem se- riam aquelas pessoas. Podiam até ser Mamutoi, pensou, enquanto fazia sinal à Whinney para a seguir de perto. Depois reparou no Lobo, que as- sumira a sua posição defensiva, e assobiou o sinal que lhe ensinara. Ele recuou para junto dela enquanto entravam no pequeno acampamento.
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A Whinney seguia Ayla de perto enquanto a mulher entrou no acampamento, indo até à fogueira que ainda lançava a pluma ondulante de fumo. Havia cinco abrigos dispostos num semicírculo e o fosso para a fogueira, ligeiramente escavado na terra, estava em frente ao do meio. O lume ardia bem, era evidente que o Acampamento tinha sido usado recentemente, mas ninguém reclamou aquele lugar como seu saindo para os saudar. Ayla olhou em volta, espreitando discretamente para dentro das habitações que estavam abertas, mas não viu ninguém. Intrigada, estudou mais atentamente os abrigos e o Acampamento para ver se conseguia descobrir mais alguma coisa sobre quem eram as pessoas e por que é que se tinham ido embora.
A parte principal de cada uma das estruturas era semelhante às tendas cónicas usadas pelos Mamutoi nos seus Acampamentos de Verão, mas havia nítidas diferenças. Onde os Caçadores de Mamutes frequentemente alargavam o espaço onde viviam, ligando tendas laterais semicirculares feitas de peles ì principal unidade da habitação, muitas vezes usando úm outro poste para ajudar a suportar os acrescentos laterais, os abrigos daquele Acampamento tinham extensões feitas de juncos. Algumas eram meros telhados inclinados, montados sobre paus finos, outras eram acrescentos completamente fechados e redondos, feitos de colmo e de esteiras tecidas, ligados à habitação principal.
Junto à protecção da entrada da habitação mais próxima, Aylaviu um monte de raízes de espadana em cima de uma esteira feita de juncos en- tretecidos. Ao lado da esteira estavam dois cestos. Um era de malha apertada e continha água ligeiramente lamacenta e o outro estava semicheio de raízes de um branco brilhante, acabadas de descascar. Ayla aproxi- mou-se e tirou uma raiz do cesto. Ainda estava molhada; devia ter sido all posta apenas há instantes.
Quando a voltou a pôr no cesto, reparou num estranho objecto caído no chão. Era feito de folhas de espadana tecidas de forma a assemelhar- -sea uma pessoa, com dois braços a sair dos lados e duas pernas e um pedaço de pele enrolado à volta como uma túnica. Na cara tinham sido desenhados a carvão dois riscos curtos no sítio dos olhos e um outro risc, com a forma de um sorriso. Tufos de estipa tinham sido presos à cabeça como cabelo.
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As pessoas com quem Ayla tinha sido criada não faziam imagens, a não ser simples sinais de totem, tais como as marcas que ela tinha na perna. Ela tinha sido arranhada por um leão das cavernas quando era muite pequena, que lhe deixara a coxa esquerda marcada por cicarizes na forma de quatro linhas direitas. Uma marca semelhante era utilizada pelo Clã para indicar o totem do leão das cavernas. Tinha sido por isso que Creb tinha tido a certeza de que o Leão das Cavernas era o seu totem, ape- sar do facto de este ser considerado um ttetem masculino. O próprio Espí-rito do Leão das Cavernas tinha-a escolhido e marcado e portanto protegêla-ia.
Outros tótemes do Clã eram indicados de formas semelhantes, com sinais simples, frequentemente derivados dos movimentes ou gestos da sua linguagem de sinais. Mas a primeira imagem verdadeiramente re- presentativa que ela alguma vez vira tinha sido o esboço grosseiro que Jondalar desenhara num pedaço de couro usado como alvo e ela ficou in- trigada com o objecto que estava no chão. Depois, com um clarão de compreensão, percebeu o que era. Nunca tinha tido uma boneca durante a sua infância, mas lembrava-se de objectos semelhantes com os quais as crianças Mamutei brincavam e apercebeu-se de que era um brinquedo de criança.
Tornou-se subitamente evidente para Ayla que uma mulher tinha estado all sentada instantes antes com a sua criança. Entretanto desaparecera e devia ter partido apressadamente, pois abandonara a comida e nem sequer tinha levado consigo o brinquedo da sua criança. Por que é que teria partido tão apressadamente?
Ayla virou-se e viu Jondalar, que ainda segurava na corda do Corredor, com um joelho no chão inclinado sobre aparas de pedreneira espalha- das pelo chão a observar um pedaço de pedra que lhe chamara a atenção. Ele olhou para cima.
Alguém deu cabo de uma ponta muito boa com uma última pancada mal dada. Devia ter sido dado apenas um pequeno toque, mas foi dado fora do sítio e com demasiada força.., como se o artífice tivesse sido subita- mente interrompido. E está aqui a pedra-martelo! Deixaram-na cair. m As pequenas falhas na dura pedra oval indicavam muito uso e o experiente artífice tinha dificuldade em imaginar alguém a deixar cair e a abandonar uma ferramenta preferida.
Ayla olhou em volta e viu um peixe a secar numa armação, com peixes inteiros no chão all perto. Um tinha sido aberto ao meio, mas deixa- do no chão. Havia mais indícios de tarefas interrompidas, mas nenhum sinal das pessoas.
w Jondalar, havia aqui pessoas há pouco tempo, mas foram-se embora apressadamente. Até a fogueira ainda está a arder. Onde é que estão todos?
-- Como se tivessem tido.., medo.
-- Mas porquê? -- disse Ayla, olhando em volta.-Não vejo nada de que pudessem ter fido medo.
Jondalar começou a abanar a cabeça e depois reparou no Lobo, que andava a farejar o Acampamento abandonado, metendo o focinho nas entradas das tendas e em volta dos sítios onde as coisas tinham sido abandonadas. Depois a sua atenção foi atraída pela égua cor de palha que pastava all perto, a m-rastar um dispositivo de paus com um barco circular, estranhamente indiferente às pessoas e ao lobo. O homem virou-se para olhar para o jovem garanhão castanho-escuro que o seguira tão prontamente. O animal estava carregado com os cestes-alforge e com a manta de montar e estava pacientemente ao seu lado, preso apenas por uma única corda amarrada à cabeça com cordame e tiras de couro.
-- Creio que talvez haja um problema, Ayla. Nós é que não o vimos-disse ele. O Lobo parou subitamente o farejar intrometido, olhou fixamente para a mata e correu para lá.-Lobo!-- chamou ele. O animal parou e olhou para o homem, a abanar o rabo.-Ayla, é melhor chamá-lo, senão ainda descobre as pessoas deste Acampamento e ainda as assustará mais.
Ela assobiou e ele correu para ela. Ayla acariciou-lhe o pÊlo áspero do pescoço, mas olhava para Jondalar com uma expressão preocupada.
--Estás a dizer que os assustámos? Que fugiram por terem medo de nós?
-- Lembras-te do Acampamento da Estipa? Da forma como se com- portaran quando nos viram? Pensa no que as pessoas pensarão quando nos vêem chegar, Ayla. Viajamos com dois cavalos e um lobo. Os animais não viajam com as pessoas, normalmente evitam-nas. Até os Mamutoi no Encontro de Verão levaram um certo tempo a habituarem-se a nós e chegámos com o Acampamento do Leão. Quando se pensa nisso, o Talut foi muito corajoso em convidar-nos, com os nossos cavalos, a ficar no seu
Acampamento quando o conhecemos-disse Jondalar.
-- Que é que devemos fazer?
--Acho que nos devemos ir embora. As pessoas deste Acampamento estão provavelmente escondidas na mata a observar-nos, apensar que devemos vir de um sítio como o mundo dos espíritos. Seria isso que eu pen- saria se nos visse chegar sem qualquer aviso prévio.
-- Oh, Jondalar-chorou Ayla, sentindo uma profunda decepção, e solidão, all no meio do Acampamento abandonado.-Queria tanto visitar pessoas.-Voltou a olhar em volta do Acampamento e depois abanou a cabeça afirmativamente.-Tens razão. Se as pessoas se foram embora e não nos quiseram receber, devemos ir-nos embora. Sd tenho pena de não ter conhecido a mulher com a criança que deixou este brinquedo, e falado com ela.-Começou a andar na direcção da Whinney, que estava na orla do Acampamento.-Não quero que as pessoas tenham medo de mim
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clã? Incluindo a Uba e o Durc. Para eles, ela estaria a regressar do mundo dos espíritos, e os animais seus companheiros seriam prova disso. Eles acreditavam que um espíñto que regressava da terra dos mortos vinha fazer-lhes mal.
Mas uma vez que virassem para oeste, seria definitivo. A partir daí, e para o resto da sua vida, o Durc não seria mais que uma recordação. Não teria qualquer esperança de alguma vez o voltar a ver. Era essa a opção que ela tinha de fazer. Ayla pensou que j$. a tinha feito há muito; não sa- bia que a dor ainda seria tão forte. Virando a cabeça para Jondalar não ver as lágrimas que lhe marejavam os olhos enquanto olhava fixamente para a vasta extensão de água, de um azul profundo, Ayla despediu-se em silêncio do seu filho pela última vez. Sentiu-se invadida por um novo frémito de dor e percebeu que levaria aquela dor no seu coração para sempre.
Viraram as costas ao mar e começaram a caminhar por entre a erva das estepes da grande ilha, que lhes dava pela cintura, para que os cavalos pudessem.descansar e pastar. O sol ia alto no céu e estava calor. Ondas de calor tremeluzentes erguiam-se da terra poeirenta, fazendo-lhes chegar o aroma da terra e de coisas a crescer. Na planície sem árvores no cimo da estreita faixa de terra caminharam na sombra dos seus chapéus de erva, mas a evaporação dos canais do rio all em volta tornava o ar húmido e gotas de suor escorriam-lhes pela pele poeirenta. Sentiram-se grates pela ocasional brisa fresca vinda do mar, uma brisa esporádica, com o cheiro rico da vida que existia dentro das suas águas profundas.
Ayla parou, tirou a funda que levava enrolada à cabeça e enfiou-a no cinte, não querendo que ficasse demasiado húmida. Substituiu-a por uma tira de couro enrolado, semelhante à que Jondalar usava, prenden- doa em volta da cabeça e amarrando-a atrás, para absorver a humidade que lhe escorria da testa.
Ao continuar, reparounum gafanhoto de um verde pardo que saltou e depois voltou a cair, escondendo-se no seu disfarce camuflado. Depois viu outro. Mais alguns freteniam esporadicamente, trazendo-lhe à ideia a nuvem de locustas. Mas all eram apenas um de uma variedade de insectos, como as borboletas que exibiam as suas cores vivas numa dança ondulante sobre as pontas das festucas e as inofensivas moscas, que se pareciam com abelhas, que pairavam sobre os ranúnculos.
Embora o campo elevado fosse muito mais pequeno, tinha a mesma sensação familiar das estepes secas, mas quando chegaram ao outro lado da ilha e olharam para trás ficaram espantados com o vasto e estranho mundo molhado do imenso delta. A norte, e à sua direita, estava o continente; para lá de uma franja de vegetação ribeirinha, pastagens de um verde-dourado claro. Mas a sul e a oeste, estendendo-se atd ao hori-
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zonte e parecendo à distância tão sólido e substancial como a terra, viram a boca pantanosa do grande rio. Era um leito extenso de juncos verdes, que ondulavam num movimente tão constante como o mar, com o ritmo do vento, interrompido apenas por ocasionais árvores que lançavam a sua sombra sobre o verde ondulante e por cursos serpenteantes de rios.
Ao descerem a encosta através da floresta aberta, Ayla tomou consciência dos pássaros, mais variedades do que ela alguma vez vira num único sítio, alguns deles desconhecidos para ela. Corvos, cucos, estorninhos e rolas, cada um chamava os da sua espécie com vozes distintas. Uma andorinha perseguida por um falcão desceu em voo picado, deu uma volta rápida e mergulhou nos juncos. Milhafres negros, que voavam bem alto, e gaviões dos pântanos de voo rasante, procuravam peixes mortos ou moribundos. Pequenas aves canoras e papa-moscas voavam dos arbustos para as árvores altas, enquanto pequenos maçaricos-das-rochas, ra- bos-ruivos e picanços esvoaçavam de ramo em ramo. Gaivotas flutuavam em correntes de ar, malmexendo uma pena, e poderosos pelicanos, de voo majestoso, passavam lá no alto, a bater as suas grandes e poderosas asas.
Quando chegaram de novo à água, Ayla e Jondalar saíram junto a uma parte diferente do rio, perto de um grupo de chorões, habitat deuma coló-nia mista de aves dos påntanos: garças, pequenas garças-reais, garças roxas, cormorões, e naquele sítio, na sua maioria brilhantes ises, todos all com os seus ninhos. Na mesma árvore, o sítio de descanso de uma variedade era frequentemente apenas a um ramo de distância do ninho de uma espécie completamente diferente, e vários continham ovos ou pequenas ave As aves pareciam tão indiferentes às pessoas e aos animais como o eram uns aos outros, mas aquele sítio tão povoado, tão cheio de actividade, era uma atracção impossível para o jovem e curioso lobo ignorar.
Aproximou-se lentamente, tentando perseguir as aves, mas foi distraído pela plêiade de possibilidades. Por fim, correu para uma determinada árvore pequena. Com fortes grasnidos e bater de asas, os pássaros mais próximos levantaram voo e foram imediatamente seguidos por outros que deram pelo aviso. Mais pássaros ainda levantaram voo. O ar estava a encher-se de aves dos pântanos, claramente o tipo de pássaros dominante no delta, atd que mais de dez mil aves de várias espécies diferentes da colónia mista rodopiavam e volteavam numa fuga dramática.
O Lobo voltou a correr para a floresta, com o rabo entre as pernas, a uivar e a latir de medo com a comoção que causara. Para aumentar o tumulto, os cavalos nervosos e assustados estavam a empinar e a relinchar e depois galoparam para a água.
Apadiola funcionou como travão à égua, que já de si tinha melhor temperamento. Não tardou a acalmar-se, mas Jondalar teve mais problemas com o jovem garanhão. Correu para a água atrás do cavalo, nadando onde esta era mais profunda, e não tardou a desaparecer da vista. Ayla con
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seguiu fazer que a Whinney atravessasse o canal e regressasse ao continente. Depois de acalmar e reconfortar o cavalo, desamarrou os paus e ti- rou-lhe o arnês para este correr em liberdade e descontrair-se à sua maneira. Depois assobiou peloLobo. Foram precisos váños assobios antes de ele vir e f'e-lo de uma direcção bastante mais abaixo no rio, longe do sítio dos pássaros.
Ayla despiu a roupa molhada e vestiu outra seca que tirou do cesto-alforge, indo depois apanhar lenha para fazer uma fogueira enquanto esperava por Jondalar. Também ele precisaria de mudar de roupa e felizmente os seus cestos-alforge estavam por acaso no barco circular, o que tinha feito que ficassem secos. Ele demorou algum tempo a regressar, dirigindo-se a cavalo para a fogueira de Ayla vindo de oeste. O Corredor tinha subido bastante o ño antes de Jondalar o apanhar.
O homem ainda estava zangado com oLobo e isso era evidente não só a Ayla como ao próprio animal. O lobo esperou que Jondalar finalmente se sentasse a beber uma chávena de chá quente depois de ter mudado de roupa e reaproximou-se, agachando-se sobre as patas da frente e aba- nando o rabo como um cachorrinho que quer brincar, a ganir num tom im- plorativo. Quando se aproximou o suficiente, tentou lamber-lhe a cara. A princípio, o homem empurrou-o. Quando acabou por permitir que o persistente animal se aproximasse, o Lobo pareceu tão contente que Jondalar teve de ceder.
m Parece que está a tentar pedir desculpa, mas isso é difícil de acre-
ditar. Como é que podia? Ele é um animal, Ayla, mas o Lobo poderá saber que se portou mal e estar a pedir desculpa? -- perguntou Jondalar.
Ayla não ficou surpreendida. Já tinha visto este tipo de comportamento quando ensinara a si prdpria a caçar e a observar animais carnívoros que escolhera como suas presas. As atitudes do Lobo para com o homem eram semelhantes às de um jovem lobo para com o chefe-macho de uma alcateia.
-- Não sei o que ele sabe ou o que pensa m disse Ayla. Só posso julgá-lo pelas suas acções. Mas não é assim que é com as pessoas? Nunca se sabe o que uma pessoa realmente sabe ou pensa. É preciso julgar pelas suas acções, não d?
Jondalar assentiu, continuando sem saber bem o que acreditar. Ayla não duvidava de que oLobo estava arrependido, mas não achava que isso fizesse grande diferença. O Lobo costumava portar-se da mesma forma para com ela quando ela tentara ensiná-lo a manter-se longe do calçado das pessoas do Acampamento do Leão. Levou muito tempo a treinar o lobo a deixá-lo em paz e não achava que ele estivesse pronto para desistir de caçar pássaros.
O sol roçava os picos altos e escarpados da extremidade sul da longa cordilheira de montanhas a oeste, dando um brilho cintilante às facetas geladas. A cordilheira caía em altura dos seus cumes a sul ao avançar para norte e os ângulos agudos atenuavam-se, formando cristas arredondadas cobertas de um branco cintilante. A noroeste, os cumes das montanhas desapareciam por detrás de uma cortina de nuvens.
Ayla virou para uma abertura convidativa na franja arborizada do delta do rio e parou. Jondalar, que ia atrás dela, fez o mesmo. A pequena clareira verdejante era um espaço relativamente maior no meio de uma agradável faixa de floresta aberta que dava directamente para uma lagoa tranquila.
Apesar de os braços principais do grande rio estarem cheios de sedimento enlameado, a complexa rede de canais e ribeiros que serpenteavam através dos juncos do enorme delta era limpa e potável. Ocasional- mente, os canais alargavam, formando grandes lagos ou tranquilas lagoas rodeadas por uma variedade de juncos, junças e outras plantas aquáticas, estando muitas vezes cobertos de nenúfares. Estas resistentes plantas serviam frequentemente de poiso às garças mais pequenas e a inúmeras rãs.
-- Parece-me um born lugar m disse Jondalar, passando a perna por cima do dorso do Corredor e saltando com leveza para o chão. Tirou os dois cestos-alforge, a manta e o arnês e deixou o jovem garanhão à solta. O cavalo foi direito à água e, instantes depois, a Whinney juntou-se a ele.
A égua foi a primeira a entrar no rio e começou a beber. Passado pouco tempo, começou a dar patadas na água, molhando-se a ela e ao jovem garanhão que bebia all perto. Baixou a cabeça, a cheirar a água, com as orelhas arrebitadas. Depois, encolhendo as pernas, ajoelhou-se, baixou- -se ainda mais e deixou-se cair de lado e finalmente de costas. Mantendo a cabeça erguida e com as patas a mexer no ar, contorceu-se de prazer, esfregando o corpo contra o fundo da lagoa, atirando-se depois para o outro lado. O Corredor, que tinha estado a observar a mãe a espojar-se na água fresca, não esperou mais e fez o mesmo que ela para se espojar na água pouco funda perto da margem.
-- Seria de pensar que já tinham tido água suficiente por hoje-disse Ayla, aproximando-se de Jondalar.
Ele virou-se, ainda a sortir dos cavalos a espojarem-se na água.
Adoram espojar-se na água, para não falar da lama ou do pó. Não sabia que os cavalos gostavam tanto de se espojar.
m Sabes como eles gostam que os cocemos. Acho que é a maneira de
eles se coçarem comentou a mulher, m Às vezes coçam-se um ao outro, e dizem um ao outro onde querem ser coçados.
Como é que podem dizer isso um ao outro, Ayla? Às vezes acho que imaginas que os cavalos são pessoas.
mNão, os cavalos não são pessoas. São eles próprios, mas observa-os
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durante algum tempo, quando um fica com a cabeça virada para o rabo do outro. Um coça o outro com os dentes e depois espera até ser coçado no mesmo sítio m disse Ayla.-Talvez dê uma boa penteadela à Whinney com o cardo penteador. Andar com as tiras de couro todo o dia deve fazer calor e comichão. Às vezes penso que devíamos ter deixado o barco.., mas tem-nos sido útil.
--Eu é que estou cheio de calor e de comichões. Acho que também you nadar. Desta vez sem roupa-disse Jondalar.
-- Eu também you, mas primeiro quero tirar as coisas dos cestos. A roupa que se molhou ainda está húmida. Quero estendê-la naqueles arbustos para secar.-Tirou uma trouxa húmida de um dos cestos e começou a estender as peças de roupa nos ramos de um arbusto de amieiro. -- Não me importei que a roupa se molhasse-disse Ayla, pendurando uma tanga.-Encontrei raiz de saponária e lavei a minha enquanto espera- va por ti.
Jondalar sacudiu uma peça de roupa, para a ajudar a estendê-la, e descobriu que era a sua túnica. Ergueu-a para lha mostrar.
-- Pensei que tivesses dito que tinhas lavado a tua roupa enquanto estavas à minha espera m disse.
Lavei a tua depois de a mudares. O suor em excesso faz que a pele apodreça e já estava a ficar muito manchada-explicou ela.
Ele não se ]embrava de se preocupar demasiado com o suor ou com manchas quando viajara com o irmão, mas ficou bastante satisfeito por Ayla se preocupar com isso.
Quando finalmente estavam prontos para ir para o rio,a Whinney vinha a sair. Parou na margem com as pernas abertas e começou a sacudir a cabeça. A forte sacudidela percorreu-lhe o corpo todo até ao rabo. Jon- dar ergueu os braços para se proteger dos salpicos. Ayla, a rir, correu para a água e, com ambas as mãos, apanhou um pouco de água para atirar ao homem enquanto ele entrava na água. Assim que tinha a água pelos joelhos, ele retribuiu o favor. O Corredor, que tinha terminado o seu banho e estava all perto de pé, recebeu a sua quota parte de salpicos e recuou, dirigindo-se depois para terra. Gostava de água, mas em condições esco- lhidas por si próprio.
Depois de se cansarem de brincar e nadar, Ayla começou a aperceber- -se das possibilidades para a refeição da noite. Na água cresciam umas plantas com folhas em forma de ponta de lança, com flores brancas de três pétalas que eram roxas no centro e ela sabia que o tuberculo da planta era um alimento substancial e agradável. Escavou o fundo lamacento com os dedos dos pés e arrancou alguns; os caules eram demasiado frágeis e par- tiam-se se se tentasse arrancí-los desta forma. Ao dirigir-se para terra, Ayla apanhou também algumas bananas-da-terra aquáticas para cozinhar e agriões para comerem crus. Um padrão regular de pequenas
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folhas largas que cresciam de um centro que flutuava na água chamou-lhe a atenção.
n Jondalar, term cuidado, não pises essas castanhasdeágua-dis- se ela, apontando para as sementes espinhosas espalhadas na margem arenosa.
Ele apanhou uma para a observar mais atentamente. Os seus quatro picos estavam dispostos de forma a que um tocava sempre no chão, com os outros apontados para cima. Abanou a cabeça e atirou-a para o chão. Ayla baixou-se e apanhou essa e mais algumas.
-- Não é born pisá-]as-disse ela, respondendo à sua expressão in- terrogativa mas é bem comê-las.
Na margem, à sombra junto da água, Ayla viu uma planta alta que lhe era familiar, com folhas verdes-azuladas, e olhou em volta, procurando uma outra planta qualquer com folhas largas e relativamente flexíveis com as quais proteger as mãos para as apanhar. Embora tivesse que ter muito cuidado enquanto estavam frescas, as folhas de urtiga seriam de]iciosas quando cozinhadas. Uma labaça aquática, que crescia mesmo à beira da água e que quase atingia a altura do homem, tinha três folhas básicas qui serviam muito bem e que também podiam ser cozinhadas. All perto havia também tussilagem e vários tipos de fetos que tinham raízes saborosas. O delta oferecia alimentos abundantes.
Ao largo da costa, Ayla reparou numa ilha de juncos altos com espadana a crescer ao longo da orla. Era provável que a espadana fosse sempre um elemento principal para eles. Existiam em todo o lado e em grande quantidade e tinham multas partes comestíveis. As raízes, esmagadas para separar as fibras do amido, eram transformadas em massa ou ser- viam para engrossar as sopas, e as raízes novas podiam ser comidas cruas ou cozinhadas, juntamente com a base dos caules das flores, para não falar na forte concentração de pólen que também servia para fazer uma espécie de pão, tudo isto delicioso. Quando novas, as flores cresciam em molho perto da extremidade do caule alto, como um pedaço de rabo de gato, e também eram saborosas.
O resto da planta era útil de multas outras formas: as folhas para tecer e fazer cestos e esteiras e o algodão das flores depois de estas se transformarem em sementes era um excelente enchimento e também isca. Embora Ayla tivesse as suas pedras de lume de pirite de ferro e não precisas- se de o utilizar, sabia que os caules lenhosos secos do ano anterior podiam ser esfregados entre as palmas das mãos para fazer lume ou usados como combustível.
n Jondalar, vamos buscar o barco para irmos àquela ilha apanhar espadanas disse Ayla. Também há na água multas outras coisas boas para corner, como as vagens e as raízes daqueles nenúfares. Os ñzomas daqueles juncos também não são maus. Estão debaixo de água, mas, como
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já estamos molhados de nadar, mais vale aproveitarmos para apanhar alguns. Podemos pôr tudo no barco para trazermos de volta.
-- To nunca estiveste aqui. Como é que sabes que estas plantas são boas para corner? u perguntou Jondalar enquanto desamarravam o barco da padiola.
Ayla sorriu.
-- Havia sítios pantanosos como este junto do mar que havia perto da nossa caverna na península. Não era tão grande como este, mas também lá fazia calor no Verão, como aqui, e a Iza conhecia as plantas e sabia on-
de as encontrar. A Nezzie falou-me de algumas outras.
-- Acho que conheces rodas as plantas que existem.
--Muitas delas sim, mas não rodas, especialmente aqui. Gostava que houvesse alguém a quem pudesse perguntar. A mulher naquela ilha grande, que se foi embora enquanto estava a descascar as raízes, prova- velmente saberia. Tenho pena de não termos podido visitá-los u disse Ayla.
A sua decepção era evidente e Jondalar sabia como ela sentia falta de outras pessoas. Ele também sentia falta de pessoas e tinha pena de não ferem podido visitá-las.
Levaram o barco para a beira da água e saltaram lá para dentro. A corrente era lenta, mas notava-se mais no barco redondo com grande capacidade de flutuação, e depressa tiveram de começar a usar os remos para não serem arrastados rio abaixo. Longe da margem e da agitação que tinham causado ao nadarem, a água era tão límpida que se viam cardumes de peìxes a nadar por cima e em volta das plantas submersas. Alguns eram de um tamanho razoável e Ayla pensou que apanharia alguns mais tarde. -
Pararam junto a uma concentração de nenúfares que era tão densa que mal conseguiam ver a superfície da lagoa. Quando Ayla saiu do barco e deslizou para dentro de água, não foi fácil para Jondalar sozinho aguentar o barco no mesmo sítio. O barco tinha tendência para girar quando ele tentava remar para trás, mas quando os pés de Ayla tocaram no fundo enquanto ainda estava agarrada ao barco, a pequena embarcação estabilizou. Utilizando os caules para se guiar, ela procurou as raízes com os dedos dos pés e soltou-as da terra mole, apanhando-as quando su- biam à superfície numa nuvem de sedimento.
Quando Ayla voltou a içar-se para dentro do barco, fez que este recomeçasse a girar, mas com ambos a utilizar os remos conseguiram contro- lá-lo e dirigiram-se depois para a ilha que estava densamente coberta de juncos. Quando se aproximaram, Ayla reparou que as plantas que cres- ciam tão espessas junto à orla eram uma variedade mais pequena de espadana,juntamente com arbustos de chorão, alguns quase do tamanho de árvores.
Remaram pelo meio da vegetação espessa, procurando uma margem '
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ouum baixio de areia, abrindo caminho por entre a vegetação. Mas quando afastaram os juncos não conseguiram encontrar terra firme, nem sequer um banco de areia submerso, e depois de passarem a abertura que tinham feito fechava-se rapidamente atrás deles. Ayla sentiu um mau presságio e Jondalar uma arrepiante sensação de ter sido capturado por alguma presença invisível, enquanto a selva de altos juncos os rodeava. No céu, viram pelicanos a voar, mas tiveram a sensação entontecedora de que o seu voo direito curvava. Quando olharam por entre os grandes caules para o sítio por onde tinham vindo, a margem oposta parecia estar a girar lentamente e a passar por eles.
-- Ayla, estamos a andar! A virar! -- disse Jondalar, apercebendo-se subitamente de que não era a terra do outro lado que estava a girar e sim
eles, enquanto o rio serpenteante razia girar o barco e toda a ilha.
-- Vamos embora daqui-disse ela, pegando no remo.
As ilhas do delta eram, na melhor das hipóteses, temporárias, sempre sujeitas aos caprichos da Grande Mãe dos rios. Mesmo aquelas que suportavam uma densa quantidade de juncos podiam ser varridas de debaixo destes, ou a vegetação que começava numa ilha pouco funda podia tornar- -se tão densa que estenderia um emaranhado de plantas sobre a água.
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sas pendentes cuidavam de bandos de crias peludas. Os pequenos e rui- dosos pássaros silvavam e grunhiam, os adultos respondiam com gritos roucos, e eram em tão grande número que a combinação de sons era en- surdecedora.
Parcialmente escondidos pelos juncos, Ayla e Jondalar observaram a enorme colónia em criação, fascinados. Ouvindo um grito que parecia um grunhido, olharam para cima enquanto um pelicano a voar baixo, prepa- rando-se para aterrar, passou por cima deles sustentado por asas com uma envergadura de três metros. Chegou a um sítio perto do meio do lago, recolheu as asas e caiu como uma pedra, batendo na água numa aterragem desajeitada e deselegante. Não muito longe, um outro pelicano, com as asas abertas, corria sobre a vasta extensão de água, tentando levantar voo. Ayla começou a compreender por que é que tinham decidido fazer os seus ninhos no lago. Precisavam de muito espaço para se ergue- rein no ar, embora uma vez no ar o seu voo fosse habilmente gracioso.
Jondalar tocou-lhe no braço e apontou para a água pouco funda perto da ilha onde vários dos grandes pássaros nadavam lado a lado, avançando lentamente. Ayla observou-os durante algum tempo e depois sorriu para o homem. De vez em quando, toda a fila de pelicanos mergu]bava simultaneamente a cabeça na água e, todos juntos, como se obedecessem a uma ordem, tiravam-nas, com água a escorrer-lhes dos longos bicos. Alguns, mas não todos, tinham apanhado alguns dos peixes que estavam a arrebanhar. Da próxima vez outros comeriam, mas continuavam todos a deslocar-se e a mergulhar perfeitamente sincronizados uns com os outros.
Pares isolados de uma outra variedade de pelicanos com marcas ligeiramente diferentes, nascidos mais cedo, crias mais velhas, estavam em ninhos na orla da grande coldnia. No interior e em volta do compacto agregado, outras espécies de aves aquáticas também tinham os seus ninhos e estavam a fazer criação: cormorões, mergulhões e uma variedade de patos, incluindo tarrantanas de olhos brancos e cristas vermelhas e vulgares patos selvagens. O pântano estava cheio de uma profusão de pássaros, todos a caçar e a corner quantidades incalculáveis de peixes.
Toda a área do delta era uma demonstraçåo extravagante e ostensiva de abundância natural; uma riqueza de vida exibia-se sem vergonha. In.cdlume, intocada, dominada pela sua própria lei natural e sujeita apenas a sua própña vontade-e do grande vazio donde tinha vindo--, a grande Mãe Terra tinha prazer em criar e sustentar a vida em toda a sua prolífera diversidade. Mas pilhada por dominações devastadoras, violada e privada dos seus recursos, despojada pela poluição sem tréguas e cons- purcada pelo excesso e pela corrupção, a sua fecunda capacidade de criar e sustentar podia ser destruída.
Embora tornada estéril pela subjugação destrutiva, exausta a sua grande ferti]ìdade produtiva, a ironia final pertencer-lhe-ia. Mesmo ári-
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da e nua, a pobre mãe possuía o poder de destruir o que tinha criado. A dominação não pode ser imposta; as suas riquezas não podem ser levadas sem o seu consentimento, sem a convencer a colaborar e sem respeitar as suas necessidades. A sua vontade de viver não pode ser suprimida sem que se pague o preço final. Sem ela, a vida arrogante que ela criou não pode sobreviver.
Embora Ayla pudesse ter ficado a observar os pelicanos durante muito mais tempo, acabou por começar a arrancar alguma espadana e a pîla no barco, pois tinha sido essa a razão pela qual lá tinham ido. Depois começaram a remar para terra, contornando a massa de juncos flutuantes. Quando avistaram terra de novo, foram saudados por um prolonga- do uivo, cheio de inquietação. Depois da sua expedição de caça, o Lobo tinha seguido o rasto deles e encontrado o acampamento sem qualquer dificuldade, mas quando os não encontrou o jovem animal ficou cheio de ansiedade.
A mulher assobiou em resposta para acalmar os seus receios. Ele correu para a beira da água, ergueu a cabeça e voltou a uivar. Quando parou, cheirou o rasto deles, começou a correr de um lado para o outro na margem e depois saltou para dentro de água, começando a nadar para eles. Ao aproximar-se, desviou-se do barco e dirigiu-se para a massa de juncos flutuantes, confundindo-a com uma ilha.
O Lobo tentou chegar à margem inexistente, exactamente como Ayla e Jondalar tinham feito, mas ficou a debater-se no meio dos juncos, sem encontrar terra firme. Por fim, voltou a nadar para o barco. Com dificuldade, o homem e a mulher agarraram o pêlo ensopado do animal e puxaram-no para dentro do barco revestido de pele. O Lobo estava tão excitado e aliviado que saltou para cima de Ayla e lambeu-lhe a cara e depois fez o mesmo a Jondalar. Quando finalmente se acalmou, pôs-se no meio do barco e sacudiu-se, voltando a uivar.
Para sua surpresa, ouviram um uivo de lobo em resposta, depois alguns latidos e uma outra resposta. Foram rodeados por uma nova série de uivos de lobo, desta vez soando bastante perto. Ayla e Jondalar olharam um para o outro com um arrepio de apreensão, all sentados nus no pequeno barco, e ficaram a escutar os uivos de umaalcateia que não vinha da margem do outro lado da água, mas sim da insubstancial ilha riutuante!
-- Como é que pode haver lobos all? J disse Jondalar.-Aquilo não é uma ilha, não term terra, nem sequer é um banco de areia. --"Talvez não sejam lobos", pensou, estremecendo. "Talvez sejam.., outra coisa..."
Olhando atentamente por entre os caules dos juncos na direcção do último uivo de lobo, Ayla vislumbrou pêlo de lobo e dois olhos amarelos que a observavam. Depois um movimento por cima dela chamou-lhe a atenção. Olhou para cima e, parcialmente escondido pela folhagem, viu um
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lobo a olhar para eles de uma forquilha de uma árvores, com a língua de fora.
Os lobos não subiam às árvores! Pelo menos os lobos que ela tinha visto nunca tinham subido a nenhuma árvore e ela já tinha observado muitos lobos. Tocou em Jondalar e apontou. Ele viu o animal e reteve a respiração. Parecia um lobo a sério, mas como é que tinha ido parar à árvore?
-- Jondalar-murmurou ela E, vamos embora. Não gosto desta ilha que não é uma ilha, com lobos que sobem às árvores e caminham sobre terra onde esta não existe.
O homem sentia-se igualmente enervado. Remaram rapidamente pelo canal. Quando já estavam perto da margem, o Lobo saltou do barco. Eles também saíram, arrastaram rapidamente a pequena embarcação para terra seca e foram buscar as suas lanças e lançadores. Os dois cavalos estavam a olhar na direcção da ilha flutuante, com as orelhas arrebi- tadas, a sua postura revelando a sua tensão. Normalmente os lobos eram tímidos e não os incomodavam, sobretudo por o cheiro misturado de cavalos, seres humanos e um outro lobo formarem um conjunto desconhecido, mas eles não estavam seguros destes lobos. Seriam lobos vulgares, verdadeiros ou qualquer coisa.., sobrenatural?
Se não fosse o seu controlo aparentemente sobrenatural sobre os animais ter assustado os habitantes da grande ilha, teriam talvez sabido pelas pessoas que estavam familiarizadas com a terra pantanosa que os estranhos lobos eram tão sobrenaturais como eles próprios. A terra alagada do grande delta era habitat de muitos animais, incluindo lobos dos juncos. Estes viviam principalmente nas florestas das ilhas, mas tinham- -se adaptado tão bem ao seu meio quase aquático que ao longo de milha- res de anos que conseguiam deslocar-se com grande facilidade sobre as camadas de juncos flutuantes. Tinham at& aprendido a subir às árvores o que, numa paisagem inconstante e alagada, lhes dava uma enorme vantagem quando estavam isolados pelas cheias.
O facto de os lobos poderem viver num meio quase aquático provava a sua grande capacidade de adaptação. Era a mesma capacidade de adaptação que lhes permìtia viver com seres humanos tão bem ao longo dos tempos, embora ainda podendo cruzar-se com os seus antepassados selvagens, tornarem-se tão domesticados que quase pareciam ser uma espécie diferente, muitos deles mal parecendo lobos.
Do outro lado do canal, viam-se agora vários lobos, dois grupos de três. OLobo c,lbou expectante de Ayla para Jondalar, como se aguardasse ins- truções dos chefes da sua alcateia. Um dos lobos dos juncos deu novo uivo; depois os outros acompanharam-no, fazendo que Ayla sentisse um arre- pio pela espinha abaixo. O som parecia diferente da canção dos lobos que estava habituada a ouvir, embora não pudesse dizer exactamente em quê. Podia ser que as reverberaiões da água alterassem o tom, mas isso sd serviu para aumentar a sua inquietação quanto aos misteriosos lobos.
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O confronto à distância terminou subitamente quando os lobos desapareceram, partindo tão silenciosamente como tinham vindo. Num instante ohomem e a mulher, com os seus lançadores, e oLobo, enfrentavam uma alcateia de estranhos lobos do outro lado de um canal aberto de água, como no instante seguinte os animais tinham desaparecido. Ayla e Jondalar, ainda a empunharem as suas armas, deram por si a olhar fixamente para os inofensivos juncos e espadanas, sentindo-se vagamente ridículos e inquietos.
Uma brisa fresca, que lhes punha o corpo nu em pele de galinha, fez que se apercebessem de que o sol se tinha afundado por detrás das montanhas a oeste e que a noite se aproximava. Pousaram as armas, vestiram-se apressadamente e depois acenderam rapidamente a fogueira e acabaram de montar o acampamento. Mas a sua disposição era de aca- brunhamento. Ayla deu por si a verificar com frequência se os cavalos estavam bem e ficou contente por terem optado por pastar no campo verdejante onde tinham acampado.
Enquanto a escuñdão envolvia o fulgor dourado da sua fogueira, as duas pessoas estavam estranhamente caladas, à escuta, enquanto os sons da noite do delta do rio enchiam o ar. As garças da noite que davam gritos roucos tornaram-se activas ao crepúsculo, depois os grilos, a cantar. Uma coruja emitiu uma série de pios sombrios. Ayla ouviu uma rustilhada na árvores all perto e pensou que era um javali. Conseguindo ver à distância, sobressaltou-se com o riso casquinado de uma hiena das cavernas e depois, mais perto, o grito frustrado de um grande felino que não conseguiu apanhar a sua presa. Pensou se seria um lince, ou talvez um leopardo da neve, e continuava à espera de ouvir uivos de lobo, mas isso não aconteceu.
Com a escuridão aveludada a encher cada sombra e silhueta, aumentou um acompanhamento aos outros sons que preenchia todos os intervalos entre eles. De cada canal e margem, lago e lagoa coberta de nenú-fares, um coro de rãs fazia uma serenata à sua assistência invisível. As vozes profundas de baixo de rãs dos pântanos de de rãs comestíveis de- senvolviam o tom do coro anfio, enquanto sapos de barrigas vermelhas acrescentavam a sua melodia Edlãooo num tom de sino. Em contraponto, ouviam-se os trinados aflautados de uma variedade de sapos, mis- turados com o trautear suave dos sapos patas de pá, tudo isto seguindo a cadência do karreck-karreck-karreck agudo das rãs de árvore.
Quando Ayla e Jondalar finalmente se meteram nas peles de dormir, a canção incessante das rãs tinha-se já misturado com o ruído de fundo de sons familiares, mas os já esperados uivos de lobo, quando finalmente se feram ouvir à distância, continuaram a provocar arrepios a Ayla. O Lobo sentou-se e respondeu ao seu chamamento.
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w Será que sente falta de uma alcateia? -- disse Jondalar, pondo o braço em volta de Ayla. Ela aconchegou-se a ele, contente por sentir o seu calor e a sua proximidade.
-- Não sei, mas às vezes preocupo-me com isso. O Bebé deixou-me para ir à procura da sua companheira, mas os leões deixam sempre os seus territdrios para procurar fêmeas de outros bandos.
w Achas que o Corredor quererá deixar-nos? perguntou o homem. A Whinney fè-lo durante algum tempo e viveu com uma manada. Não sei bem como as outras éguas se deram com ela, mas ela voltou depois de o seu garanhão morrer. Nem todos os cavalos machos vivem com manadas de fèmeas. Cada manada apenas escolhe um e ele term de expul- sar todos os outros machos. Os jovens garanhões, e também os mais velhos, vivem normalmente todos juntos na sua própria manada, mas são todos atraídos pelas éguas quando é altura de compartilharem os Prazeres. Tenho a certeza de que o Corredor tambdm será, mas terá de lutar com o garanhão escolhido-explicou Ayla.
--Talvez eu o possa manter preso com a corda durante esse tempo disse Jondalar.
-- Creio que não tens de te preocupar com isso durante algum tempo. É normalmente na Primavera que os cavalos compartilham os Prazeres, pouco depois de largarem os potros. Estou mais preocupada com as pessoas que iremos encontrar durante a nossa Viagem. Não compreendem que a Whinney e o Corredor são especiais. Algumas talvez tentem mesmo fazer-lhes mal. Tambdm não parecem muito dispostos a aceitarem- -nos.
All aninhada nos braços de Jondalar, Ayla pensou no que a gente dele pensaria dela. Ele reparou que ela estava calada e pensativa. Beijou-a, mas ela não pareceu corresponder tão animadamente como de costume. Talvez estivesse cansada, pensou, pois tinha sido um dia em cheio. Ele próprio estava cansado. Adormeceu a escutar o coro das rãs. Acordou com
a agitação e\os gritos da mulher que tinha nos braços.
Ayla! Ayla! Acorda! Não é nada.
Jondalar! Oh, Jondalar-exclamou Ayla, agarrando-se a ele. Estava a sonhar.., com o Clã. O Creb estava a tentar dizer-me qualquer coisa importante, mas estávamos no meio de uma caverna e estava es- curo. Não consegui ver o que ele estava a dizer.
Provavelmente pensaste neles hoje. Falaste neles quando estáva- mos naquela ilha grande a olhar para o mar. Achei que tinhas ficado per- turbada. Estavas apensar que os estavas a deixar? perguntou ele.
Ela fechou os olhos e assentiu, não sabendo se conseguiria falar sem começar a chorar e hesitou em referir os seus receios sobre a gente dele, sea aceìtarìa não só a ela como aos cavalos e ao Lobo. Tinha perdido o Clã
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e o seu filho, não queria também perder a sua famflia de animais se con- seguissem chegar ao lar dele sãos e salvos. Sd gostava de saber o que é que o Creb lhe tinha tentado dizer no seu sonho.
Jondalar abraçou-a, confortando-a com o seu calor e amor, compreendendo a sua tristeza mas não sabendo que dizer. Mas bastava estar junte dela.
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O braço norte do Grande Rio Mãe, com a sua rede serpenteante de canais, era o afluente superior do extenso delta. Havia arbustos e árvores junto à beira do rio, mas para lá da margem estreita, mais longe da fonte imediata de humidade, a vegetação arbórea dava rapidamente lugar às ervas das estepes. Montados nos cavalos e rumando quase direc: tamente para oeste através das pastagens secas, perto da faixa arborizada mas evitando as curvas sinuosas do rio, Ayla e Jondalar seguiram a margem esquerda rio acima.
Aventuraram-se frequentemente pelas terras pantanosas, normalmente acampando perto do rio, e ficaram frequentemente surpreendidos pela diversidade que encontravam. Aimensa boca do rio parecera tão uniforme à distância, quando a tinham avistado da grande ilha, mas de perto revelava uma vasta gama de paisagens e vegetação, desde areia árida a floresta densa.
Um dia, atravessaram campos atrás de campos de espadanas, com flores castanhas, todas agrupadas em forma de salsichas, encimadas por picos carregados de pólen amarelo. No dia seguinte, viram vastas extensões de juncos, com o dobro da altura de Jondalar, a crescer juntamente com uma outr.a variedade mais baixa e mais graciosa; as plantas esguias cres- clam mms perto da água e mais juntas.
As ilhas formadas pela deposição do sedimento em suspensão, normalmente línguas de terra compridas e estreitas feitas de areia e barro, eram fustigadas pelas águas do rio e pelas correntes contrárias do mar. O resultado era um mosaico variado de bancos de juncos, pântanos, estepes e florestas em estádios muito diferentes de desenvolvimento, todos sujeitos a rápidas alterações e cheios de surpresas. A diversidade em mutação estendia-se além destes limites. Os viajantes depararam inesperadamente com lagos nos cotovelos dos rios, completamente cortados do delta, entre margens que tinham começado por ser ilhas de sedimentação no rio.
A maioria das ilhas era inicialmente estabílizada por plantas de praia e por eapim-elimo gigantesco que quase atingia um metro e meio, que os cavalos adoravam-o seu elevado conteúdo de sal também atraía muitos outros animais ruminantes. Mas a paisagem mudava tão rapidamente que por vezes encontraram ilhas dentro dos limites da imensa boca do
rio, com plantas de areia que sobreviviam nas dunas interiores junto afiorestas onde até havia lianas.
Enquanto a mulher e o homem iam avançando junto ao grande rio, tinham muitas vezes que atravessar pequenos afluentes, mas mal davam pelos ribeiros que os cavalos atravessavam e os pequenos rios eram facilmente transponíveis. As zonas pantanosas dos canais que iam lentamente secando e que tinham mudado de rumo eram outra coisa. Jondalar normalmente evitava-os. Tinha perfeita consciência do perigo dos pântanos e do solo sedimentar mole que frequentemente se formava naqueles sítios, devido à má experiência que ele e o irmão tinham tido ao passarem por all. Mas não sabia que perigos por vezes se escondiam no meio da vegetação luxuriante.
O dia tinha sido muito compñdo e quente. Jondalar e Ayla, ao procura- term um sítio onde acampar, tinham-se afastado ligeiramente do rio e visto o que parecia ser uma boa possibilidade. Dirigiram-se por uma encosta para um estreito vale, convidativo e fresco, com altos choupos que davam sombra para uma clareira particularmente verdejante. Subita- mente, uma lebre castanha surgiu à sua vista, aos saltes do outro lado do campo. Ayla incitou a Whinney, enquanto tirava a funda que tinha à cintura mas, ao começar a atravessar o prado, o cavalo hesitou quando a terra firme sob os seus cascos se tornou esponjosa.
A mulher sentiu a alteração de passo quase imediatamente efeliz- mente que a sua primeira reacção instintiva foi seguir a indicação da égua, muito embora estivesse empenhada em arranjar jantar. Parou no instante em que Jondalar, montado no Corredor, chegaroujunto dela. O garanhåo também notou a terra mais mole, mas a sua embalagem era grande e fez que avançasse mais alguns passos.
O homem foi quase atirado para o chão quando as paras dianteiras do Corredor se afundaram numa lama espessa e sedimentar, mas aguenteu- -see saltou para o lado do cavalo. Com um relincho agudo e um forte puxão, o jovem garanhão, com as patas traseiras ainda em terra firme, conseguiu retirar uma das pernas para fora do pântano que o sugava. Recuando e cncontrando apoio mais firme, o Corredor continuou a puxar até libertar a outra pata das areias movediças com um ruído de sucção.
O jovem cavalo ficou abalado e o homem pôs-lhe a mão sobre o pescoço para o acalmar; depois partiu um galho de um arbusto próximo e utilizou-o para experimentar a terra. Quando o galho foi engolido, pegou no terceiro pau comprido, que não era utilizado para a padiola, e experimentou com ele. Embora coberto de juncos ejunças, verificou que o pequeno campo era um sumidouro fundo de barro e sedimento, alagado de água. A retirada ágil dos cavalos tinha impedido uma possível desgraça, mas a partir dessa altura aproximaram-se do Grande Rio Mãe com maior precaução. A sua diversidade caprichosa podia esconder algumas surpresas indesejáveis.
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Os pássaros continuavam a ser a vida selvagem dominante do delta, em especial várias variedades de garças e patos selvagens, com grandes números de pelicanos, cisnes, gansos, grous e algumas cegonhas pretas e ibises coloridos e sedosos que faziam os ninhos nas árvores. As dpocas de reprodução variavam com as espécies, mas rodas elas tinham que o fazer durante as estações mais quentes do ano. Os viajantes apanharam ovos de todos os diferentes pássaros para assim terem refeições rápidas e fáceis m até o Lobo descobriu o truque de partir as cascas m e gostavam particularmente das variedades com um ligeiro sabor a peixe.
Passado algum tempo, habituaram-se aos pássaros do delta. Tinham menos surpresas quando começaram a saber o que esperar mas uma tarde, enquanto passavam perto de uma floresta prateada de choupos junto ao rio, depararam com uma cena que os deixou estupefactos. As árvores davam para uma grande lagoa, quase um lago, embora a princípio eles pensassem que fosse uma paisagem mais firme, pois grandes nenú-fares cobriam-na por completo. A cena que lhes prendeu a atenção era milhares de pequena garças squacco, de pé m com os pescoços compridos curvados em S e os compridos bicos apontados para apanhar um peixe-em praticamente todas as resistentes plataformas de folhas de nenúfar que rodeavam cada flor branca e fragrante.
Fascinados, observaram-nas durante algum tempo, decidindo depois continuar, temendo que oLobo aparecesse aos saltos e assustasse os pássaros. Estavam a pouca distância daquele sítio, a montar o acampamento, quando viram centenas de garças de pescoço comprido a levantar voo. Jondalar e Ayla pararam e ficaram a olhar, enquanto os pássaros, a bater as suas grandes asas, se tornaram silhuetas escuras contra as nuvens cor-de-rosa do céu a este. Nessa altura o lobo apareceu a correr no acampamento e Ayla penou que tinha sido ele a assustá-las. Embora não tivesse feito nenhuma tentativa séria para apanhar algum, ele divertia-se tanto a perseguir os bandos de pássaros dos pântanos que ela pensou se ele não o faria por gostar de os ver levantar voo. Mas Ayla tinha ficado fas- cinada com aquele espectáculo.
Na manhã seguinte, Ayla acordou quente e suada. O calor já estava a ganhar força e ela não se queria levantar. Gostava que pudessem descansar durante um ou dois dias. Não que se sentisse cansada, apenas estava cansada de viajar. Atd os cavalos precisavam de descansar, pen- sou. Jondalar tinha vindo a insistir para continuarem a avançar e ela apercebia-se da necessidade que o estava a impelir, mas se um dia fizesse assim tanta diferença na travessia do glaciar sobre o qual ele não para- va de falar, então era porque já tinham chegado tarde de mais. Precisa- riam de mais que um dia seguro de born tempo para se assegurarem de
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uma travessia segura. Mas quando ele se levantou e começou a arrumar as coisas, ela fez o mesmo.
A medida que a manhã ia avançando, o calor e a humidade, mesmo na plarñcie aberta, ternaram-se opressivos, e quando Jondalar sugeriu que parassem para nadar Ayla concordou de imediato. Viraram em direcção ao rio e ficaram contentes por ver uma clareira com sombra que dava para a água. Um ribeiro sazonal que ainda estava ensopado e cheio de folhas em putrefacção deixava apenas uma pequena área com erva, mas criava uma bolsa fresca e convidativa rodeada por pinheiros e salgueiros. Dava para uma vala cheia de água lamacenta mas, a pouca distância desta, numa curva do rio, uma estreita praia coberta de seixos projectava-se para um lago calmo, sombreado pelo sol que se ffltrava através dos choupos da.margem.
-- E perfeito! -- disse Ayla com um grande sorriso.
Quando ela começou a desamarrar a padiola, Jondalar perguntou:
-- Achas que isso é mesmo necessário? Não vamos cá ficar muito tempo.
Os cavalos também precisam de descansar e talvez lhes apeteça espojar-so ou nadar disse ela, tirando os cestos-alforge e a manta do dorso da Whinney. E gostava de esperar que o Lobo nos apanhasse. Não o vi durante toda a manhã. Deve ter apanhado o rasto de qualquer coisa maravilhosa e ido em sua perseguição.
-- Está bem disse Jondalar, começando a desapertar as tiras de couro dos cestos-alforge do Corredor. Pô-las no barco circular ao lado dos da Ayla e deu uma palmada carinhosa nos quartos traseiros do garanhão, para lhe dizer que estava livre para ir atrás da mãe.
A jovem mulher despiu rapidamente as poucas peças de vestuário que tinha vestidas e entrou no lago, enquanto Jondalar parava para urinar. Ele olhou para ela e não conseguiu desviar os olhos. Ayla estava de pé com a água cintilante pelos joelhos, sob um raio de sol que entrava por uma abertura nas árvores, banhada pela luz que incidia no seu cabelo e o transformava num halo dourado e fazia brilhar a pele bronzeada do seu corpo esguio.
Enquanto a observava, Jondalar ficou impressionado pela sua beleza. Por instantes, foi avassalado pelo seu forte sentimento de amor, que pa- recia provocar-lhe um aperto na garganta. Ela baixou-se para apanhar um pouco de água para se molhar, o que acentuou as curvas generosas do seu traseiro e pôs à mostra a pele mais clara da parte inteñor da coxa, pro- vocando nele uma onda de calor e de desejo. Jondalar olhou para o membro que ainda segurava na mão e sorriu, começando apensar em mais do que apenas ir nadar.
Ela olhou para ele quando ele entrou na água, viu o seu sorriso e a expressão familiar e magnética nos seus intensos olhos azuis e depois reparou que a forma do seu membro viril estava a mudar. Sentiu uma pro
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funda vibração em resposta; depois descontraiu-se e uma tensão que não se apercebera que existia abandonou-a. Não iam viajar mais naquele dia, pelo menos faria tudo por isso. Precisavam ambos de uma mudança de ritmo, de uma diversão agradável e excitante.
Ele tinha reparado que ela o tinha olhado e a certo nível sentiu a sua resposta calorosa e uma ligeira alteração na sua postura. Sem mudar verdadeiramente de posição, o corpo dela tornou-se de certa forma mais con- vidativo. A reacção dele foi óbvia. Mesmo se quisesse, não a teria podido esconder.
-- A água está maravilhosa-disse ela.-Foi uma óptima ideia que tiveste a de irmos nadar. Estava cheia de calor.
-- Sim, estou a sentir calor-disse ele com um sorriso maroto, aproximando-se dela.-Não sei como é que consegues, mas ao pé de ti perco todo o controlo.
--Por que é que havias de te querer controlar? Eu não me controlo contigo. Basta olhares para mim dessa maneira que fico logo pronta para ti.-Ayla sorriu, aquele grande sorriso que ele adorava.
-- Oh, mulher-murmurou ele, enquanto a abraçava. Ela foi ao seu encontro quando ele se inclinou para lhe tocar nos lábios macios com os dele um beijo longo e sem pressa. Passou as mãos pelas costas dela, sen,rindo a sua pele aquecida pelo sol. Ela adorava que ele lhe tocasse e correspondeu à sua carícia com imediata e surpreendente antecipação.
As mãos dele desceram mais, até às suas nádegas arredondadas e ma- cias e puxou-a contra si. Ela sentiu todo o comprimento do seu sexo duro contra a barriga, mas o movimento tinha-a feito desequilibrar-se. Tentou conservar o equilíbrio, mas uma pedra cedeu sob o seu pé. Agarrou- -sea ele para não cair mas ffe-lo também desequilibrar-se e escorregar.
Caíram ambos na água de chapão e depois sentaram-se, a rir.
-- Não te magoaste, pois não? -- perguntou Jondalar.
--Não-disse ela m, mas a água está fria e eu estava a tentar entrar devagarinho. Agora que estou molhada, acho que you nadar. Não foi isso que cá viemos fazer?
-- Sim, mas isso não quer dizer que não façamos também outras coisas-disse ele, reparando que a água lhe chegava debaixo dos braços e que os seus seios cheios estavam a flutuar, fazendo-lhe lembrar as proas curvas de dois barcos com bicos cor-de-rosa endurecidos. Ele inclinou-se e passou a língua ao de leve por um dos mamilos, sentindo o calor dela dentro da água fria.
Ela sentiu-se corresponder com um arrepio e inclinou a cabeça para trás para se deixar invadir pela sensação. Ele agarrou-lhe no outro seio e passou-lhe a mão pelas costas para a puxar para si. Ela sentia-se extremamente sensível e bastava a pressão da palma da mão dele a deslizar pelo seu mamilo duro para a fazer estremecer de novo de prazer. Ele sugou o outro, depois largou-o e beijou-a a longo do seio e na garganta e no
pescoço. Soprou-lhe suavemente no ouvido e proeurou os seus lábios. Ela abriu ligeiramente a beca e sentiu o toque da sua língua, depois o seu beijo.
--Anda-disse ele quando se separaram, levantando-se e estendendolhe a mão para a ajudar.-Vamos nadar.
Levou-a mais para dentro do lago, até a água lhe dar pela cintura, puxando-a depois para si para a beijar de novo. Ela sentiu a mão dele entre as suas pernas, o frio da água enquanto ele lhe abria as dobras e uma sensação mais forte quando ele encontrou o seu pequeno nódulo duro e o esfregou.
Ayla deixou-se invadir pela sensação. Depois pensou, "isto está a acontecer demasiado depressa. Estou quase pronta". Respirou fundo, afastou-se dele e, com uma gargalhada, salpicuo.
--Acho que devemos nadar-disse ela, dando algumas braçadas. A parte mais funda onde podiam nadar era pequena, fechada em frente por uma ilha submersa coberta por uma extensa camada de juncos. Já do outro lado, ela pôs-se de pé e virou-se para ele. Ele sorriu e ela sentiu a força do seu maguetismo, do seu desejo, do seu amor, e desejou-o. Ele nadou para ela enquanto ela recomeçava a nadar em direcção à praia. Quando se encontraram, ele virou-se e seguiu-a.
Quando a água se tornou pouco funda, ele pôs-se de pé e disse:
-- Pronto,já nadámos-e pegou-lhe na mão e levou-a para fora da água para a praia. Voltou a beijá-la e sentiu-a puxá-lo para si e parecer derreter-se-lhe nos braços enquanto os seus seios e a sua barriga e coxas se comprimiam contra o seu corpo.
m Agora é altura para outras coisas disse ele.
A respiração de Ayla ficou-lhe presa na garganta e ele viu os seus olhos dilatarem-se. A sua voz ficou ligeiramente trémula ao tentar falar.
-- Que outras coisas? -- perguntou ela, tentando sorrir-lhe de uma forma trocista.
Ele deixou-se cair no chão e estendeu-lhe a mão.
-- Vem cá que eu mostrote.
Ela sentou-se ao lado dele. Ele empurrou-a para trás enquanto a beijava. Depois, sem qualquer preliminar, pôs-se em cima dela, desceu, afastou-lhe as pernas e passou-lhe a língua quente pelas dobras frias. Os olhos dela abriram-se muito por instantes enquanto estremecia com o sú-bito rompante pulsante de prazer que a percorreu, sentindo-o bem dentro de si. Depois sentiu um doce puxar enquanto ele sugava o seu sítio dos Prazeres.
Ele queria saboreí-la, bebê-la e sabia que ela estava pronta. A sua própria excitação aumentou ao sentir a resposta dela e o sexo doía-lhe de desejo enquanto o seu grande sexo ligeiramente curvo aumentava ao má-ximo. Acariciou, mordiscou, sugou, manipulando-a com a língua, depois foimais fundo para aprovar por dentro e saboreou-a. Apesar do seu enor-
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me desejo, gostava de poder continuar para sempre. Adorava darlhe Prazeres.
Ela sentiu o frenesim de excitação a aumentar dentro dela e gemeu, depois deu um grito ao sentir-se quase a chegar ao auge.
Se ela tivesse deixado, ele próprio teria atingido o auge sem sequer a penetrar, mas também adorava senti-la quando estava dentro dela. Gostava que houvesse forma de fazer tudo aquilo ao mesmo tempo.
Ela estendeu-lhe os braços e ergueu o corpo ao seu encontro enquanto a clamorosa tempestade se intensificava dentro dela e depois, quase sem aviso, irrompeu. Ele sentiu a sua humidade e calor, ergueu-se e, mo- vendo-se para cima, encontrou a sua entrada convidativa e, com um forte impulso, encheu-a por completo. O seu sexo ansioso estava mais que pronto. Não sabia bem quanto mais conseguiria aguentar.
Ela disse o seu nome, indo ao seu encontro, desejando-o, arqueando- -se ao mesmo tempo que ele a penetrava. Ele voltou a entrar e sentiu-a a apertá-lo. Depois, estremecendo e gemendo, recuou, sentindo a deliciosa tensão entre pernas enquanto o seu órgão sensitivo suscitava sen- sações maravilhosas bem fundo dentro de si. Depois, subitamente, não conseguiu esperar mais e, quando voltou a dar novo impulso, sentiu-se invadido pelo rompante de Prazeres. Ela gritou em uníssono com ele, enquanto era tomada por um feroz e delicioso prazer.
Ele fez alguns últimos movimentos e deixou-se cair em cima dela, descansando ambos do estimulante desejo e da tempestuosa libertação. Passado algum tempo, ela beijou-o, sentindo o seu próprio cheiro e sabor, que lhe fazia sempre lembrar os incríveis sentimentos que ele suscitava nela. m Pensei que queria fazer com que durasse muito tempo, mas eu estava
tão pronta para ti.
m Isso não quer dizer que não dure, sabes disse ele, observando um longo sorriso que se desenhou no seu rosto.
Jondalar rolou e pôs-se de lado e depois sentou-se.
Esta praia rochosa não é lá muito confortável disse ele. Por que é que não me disseste?
mNão reparei, mas já que falas nisso tenho uma pedra debaixo da anca e outra debaixo do ombro. Acho que devemos procurar um sítio mais macio... para to te deitares disse ela com um sorriso matreiro e um brilho
no olhar. Mas primeiro gostava de ir nadar a sério. Talvez haja por aqui perto um canal mais fundo.
Foram a pé pela água atd ao rio, nadaram a curta distância do lago e continuaram rio acima, atravessando a zona pouco funda coberta de juncos. Do outro lado, a água ficou subitamente mais fria, depois o fundo sob os seus pés desapareceu subitamente e viram-se num canal aberto que serpenteava por entre os juncos.
Ayla começou a nadar mais vigorosamente e distanciou-se de Jondalar, mas ele fez um esforço e apanhou-a. Eram ambos muito bons nadadores
e não tardou que estivessem a fazer uma corrida amigável, nadando ao longo do canal aberto que curvava e voltava a curvar através dos altos juncos. A sua capacidade era tão semelhante que a mais pequena vantagem dava a dianteira a qualquer um deles. Ayla ia por acaso à frente quando chegaram a uma bifurcação com dois novos canais que faziam uma curva tão apertada que, quando Jondalar olhou para cima, Ayla desaparecera.
Ayla! Ayla! Onde estás? gritou ele. Não houve resposta. Ele voltou a chamá-la, começando a subir um dos canais. Este curvava sobre si próprio e a única coisa que ele conseguia ver eram juncos; para onde quer que olhasse, apenas paredes de altos juncos. Entrando subitamente em pânico, voltou a gritar, m Ayla! Em que outro mundo frio da Mãe é que to estás?
Subitamente, ouviu um assobio, o mesmo que a Ayla usava para chamar o Lobo. Sentiu-se invadido por uma onda de alívio, mas o assobio soou-lhe muito mais distante do que ele pensava que devia soar. Assobiou em resposta e ouviu a sua resposta, depois recomeçou a nadar ao longo do canal. Chegou ao sítio onde este bifurcava e virou para o outro braço.
Este também serpenteava sobre si próprio, ligando-se a outro canal. Sentiu-se levado por uma forte corrente e subitamente viu que estava a ir rio abaixo. Mas viu Ayla a nadar mais à frente, contra a corrente, e nadou ao seu encontro. Ela continuou a nadar quando ele chegou junto dela, temendo que a corrente voltasse a puxá-la para o canal errado se parasse. Ele virou-se e nadou rio acima ao lado dela. Quando chegaram à bifurcação, pararam para descansar, movimentando-se na água sem nadar.
Ayla! Em que é que estavas apensar? Por que é que não te asseguraste primeiro de que eu sabia por onde tinhas ido? ralhouJondalar numa voz bastante alta.
Ela sorriu-lhe, sabendo que a sua ira era a libertação da tensão causada pelo seu medo e preocupação.
Estava apenas a tentar manter-me à tua frente. Não sabia que o canal curvava tão rapidamente sobre si próprio nem que a corrente era tão forte. Fui arrastada rio abaixo sem que me apercebesse. Por que é que é tão forte?
Desaparecida a sua tensão e aliviado por ela estar bem, a ira de Jondalar dissipou-se rapidamen.
Não sei bem m disse. E estranho. Talvez estejamos perto do canal principal ou a terra debaixo da água baixe muito aqui.
--Born, vamos voltar para trás. Esta água é fria e está a apetecer-me ir para aquela praia cheia de sol disse Ayla.
Deixando-se ajudar pela corrente, nadaram mais calmamente no regresso. Embora não fosse tão forte como no outro canal, ia-os empur-
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rando. Ayla voltou-se de forma a boiar e observou os juncos verdes a passar e o céu de um azul límpido lá em cima. O sol continuava no céu a este, mas bem alto.
m Lembras-te onde é que entrámos neste canal, Ayla? m perguntou
Jondalar.-A mim parecem-me todos iguais.
-- Havia três pinheiros altos em fila na margem do rio, e o do meio era maior. Estavam atrás de uns choupos-disse ela, virando-se para voltar a nadar.
--Aqui há muitos pinheiros junto à água. Talvez devamos dirigir-nos para a margem. Podemos já os ter passado n disse ele.
m Creio que não. O pinheiro do lado esquerdo do grande tinha uma forma estranha, retorcida. Ainda não o vi. Espera... olha all adiante.., lá está ele, vês? disse ela, dirigindo-se para a camada de juncos.
-- Tens razão-disse Jondalar. n Foi por aqui que viemos. Os juncos estão dobrados.
Passaram por cima da camada de juncos para chegarem ao pequeno lago cuja água lhes pareceu quente. Dirigiram-se para a pequena língua de terreno rochoso com a sensação de chegarem a casa.
-- Acho que you acender uma fogueira e fazer chá-disse Ayla, passando as mãos pelos braços para limpar a água. Pegou no cabelo e apertouo para escorrer a água e dirigiu-se para os cestos-alforge, apanhando alguns gravetos pelo caminho.
-- Queres a tua roupa? -- perguntou Jondalar, apanhando mais lenha.
m Prefiro secar mais um pouco-disse ela, reparando que os cavalos estavam a pastar nas estepes all perto, mas não vendo sinais do Lobo. Ficou ligeiramente preocupada, mas não era a primeira vez que ele se afastava durante metade de um dia. Por que é que não estendes a cobertura do chão naquele bocado de relva que está ao sol? Podes descansar enquanto eu faço o chá.
Ayla acendeu uma boa fogueira enquanto Jondalar ia buscar água. Depois escolheu as ervas secas da sua reserva, pensando nelas atentamente. Achou que chá de alfalfa saberia bem, pois era estimulante e refrescante, com algumas flores e folhas de borragem, que constituía um excelente tSnico, com flores de goivo para o adoçar e lhe dar um saber ligeiramente picante. Para Jondalar escolheu também alguns dos amen- tilhos macho vermelho-escuros de amieiros que tinha apanhado logo no início da Primavera. Lembrava-se ter tido sentimentos contraditdrios quando os apanhara, per.sando na sua Promessa em acasalar-se com o Ranec, mas desejando que fosse antes com o Jondalar. Sentiu um fulgor cálido de felicidade e juntou os amentilhos à sua malga.
Quando o chá ficou pronto, levou as duas malga s para a erva onde Jondalar estava a descansar. Parte da cobertura do chão que ele tinha estendido já estava ì sombra, mas isso agradou-lhe. O calor do dia já a tinha
aquecido do frio da água. Deu-lhe a malga e sentou-se ao seu lado. Ficaram all a descansar, a beber lentamente a bebida refrescante, sem falar muito, a olhar para os cavalos que estavam virados ao contrário de um para o outro a sacudir as moscas do focinho um do outro com os rabes.
Quando acabeu de beber, Jondalar deitou-se, com as mãos atrás da cabeça. Ayla ficou contente por o ver mais descontraído e sem pressa de se porem imediatamente a caminho. Pousou a malga e estendeu-se ao seu lado, pondo a cabeça na concavidade por baixo do seu ombro e o braço por cima do seu peito. Fechou os olhos, aspirando o seu cheiro ahomem e sentiu-o a pôr-lhe o braço em cima e a sua mão a passar-lhe pela anca numa carícia suave e inconsciente.
Ayla virou a cabeça e beijou a sua pele quente e depois expirou o seu hálito quente sobre o seu pescoço. Ele sentiu um arrepio e fechou os olhos. Ela voltou a beijá-lo e depois semiergueu-se e deu-lhe uma série de pequenos beijos e mordiscadelas no ombro e no pescoço. Os beijos dela fzeram-lhe cócegas que mal conseguiu aguentar, mas provocoulhe também deliciosos frémitos de excitação que a resistiu mexer-se e forçou- --se a ficar deitado quieto.
Ela beijou-lhe o pescoço e a garganta e o maxilar, sentindo os pêlos da barba por fazer nos seus lábios; depois ergueu-se até lhe chegar aos lá-bios e cobriu-os de um lado ao outro de pequenas e meigas mordiscadelas. Quando chegou ao outro lado, parou e olhou para ele. Ele tinha os olhos fechados, mas estava com uma expressão de antecipação. Por fim, abriu os olhos e viu-a inclinada sobre ele e a sorrir encantada, com o cabelo ainda húmido e caído sobre um dos ombros. Queria agarrá-la e puxá-la contra si, mas apenas lhe retribuiu o sorriso.
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o peite e depois os mamilos. Depois, mudando subitamente, pôs-se de joelhos ao seu lado e inclinou-se sobre ele ao contrário, agarrando-lhe no órgão tumefacte. Enquanto ela metia o máximo que podia na sua boca quente, ele sentiu o seu calor húmido fechar-se sobre a extremidade sensível dí seu sexo e ir mais fundo. Ela recuou lentamente, criando sucção, e ele sentiu um puxar que parecia vir de algum sítio profundamente interno e estender-se a cada parte do seu corpo. Fechou os olhos e ficou a sentir o crescente prazer, enquante ela acariciava com as mãos e puxa- va com a boca o seu sexo comprido.
Depois explorou com a língua a extremidade, descrevendo círculos em volta dela, e ele começou a desejá-la com mais urgência. Ela estendeu a mão para agarrar a bolsa macia por baixo do seu membro e, muite suavemente u ele tinha-lhe dito para mexer all sempre muite suavemente m apalpou os dois misteriosos e macios seixos redondos lá dentro. Ela
pensava por vezes neles, para que serviriam, e sentia que eram de algu- ma forma importantes. Enquanto as suas mãos envolviam o seu saco macio, ele sentiu uma sensação diferente, agradável, mas também uma certa preocupação por aquele sítio sensível que parecia estimulá-lo de outra forma.
Ela afastou-se e olhou para ele. O seu intense prazer por ela e por aquilo que ela estava a fazer estava espelhado no seu roste e nos seus olhos enquante lhe sorria, encorajando-a. Ela estava a gostar de lhe dar Prazeres. Isso estimulava-a de uma forma diferente, mas profunda e violentamente, e ela compreendeu por que é que ele gostava tante de lhe dar Prazeres. Beijou-o então, um longo beijo, e afastou-se, pondo uma perna por cima dele, escarranchada nele, voltada para os seus pés.
Sentada no seu peite, baixou-se e agarrou no seu membro duro e latejante com ambas as mãos, uma por cima da outra. Apesar de estar duro e distendido, a pele era macia e, quando o meteu na boca, ele sentiu suavidade e calor. Deu-lhe pequenas mordiscadelas e beijos ao longo de teda a extensão. Quando chegou ao fundo, foi mais abaixo, até ao saco, metendoo suavemente na boca, sentindo a dureza arredondada no interior.
Ele estremeceu enquanto inesperados frémites de prazer o invadiram. Era quase de mais. Não só as sensações tumultuosas que estava a sentir, como estar a vê-la. Ela tinha-se semierguido para chegar a ele e, com ela assim escarranchada sobre ele, ele via as suas pétalas e dobras cor-de-rosa, húmidas, e até a sua deliciosa abertura. Ela largou a sua bolsa e volteu a meter o seu sexo latejante e excitado na boca para o voltar a chupar, quando subitamente sentiu que ele se tinha posto um pouco mais para trás. Depois, com um inesperado choque de excitação, a língua dele tinha encontrado as suas dobras e o sítio dos seus Prazeres.
Ele explorou-a ansiosamente, completamente, usando as mãos e a boca, sugando, manipulando, sentindo o prazer de lhe dar Prazeres e, ao
mesmo tempo, a excitação que ela provocava no fundo dele ao esfregá-lo de cima para baixo enquanto o sugava.
Ela ficou pronta muite rapidamente e não conseguiu aguentar, mas ele estava a tentar faz-lo, esforçando-se por não se deixar ir por enquanto. Podia ter facilmente cedido, mas queria mais, portando quando ela parou enquanto os seus sentidos galopantes a invadiram, arqueando- -see gritando, ele ficou contente. Sentiu a humidade dela e, cerrando os dentes, esforçou-se por se controlar. Sem os Prazeres que tinham tido antes, tinha a certeza de que não teria conseguido, mas reteve-se e atingiu uma plataforma antes de chegar ao auge.
-- Ayla, põe-te ao contrário! Quero-te toda-disse ele.
Ela assentiu, compreendendo. E, querendoo também tedo, recuou e escarranchou-se nele ao contrário. Soerguendo-se, abriu caminho para que todo o seu órgão viril a penetrasse e depois baixou-se. Ele gemeu e exclamou o nome dela, repetidas vezes, sentindo o seu poço fundo e quente recebê-lo. Ela sentia pressão em diferentes sítios enquante se mexia para cima e para baixo, orientando a direcção do sexo duro dentro dela.
Na plataforma que ele atingira, o seu desejo já não era tão urgente. Podia demorar algum tempo. Ela inclinou-se para a frente, pondo-se numa outra posição ligeiramente diferente. Ele puxou-a contra si para lhe poder agarrar os seios convidativos, levou um à boca e chupou com força; depois agarrou no outro e, finalmente, segurou ambos ao mesmo tempo. Como sempre quando lhe sugara os seios, ele sentiu a excitação ar- queante bem no fundo dela.
Ela sentia-se a chegar de novo ao auge enquanto se mexia de cima para baixo e de trás para diante sobre ele. Ele estava a começar a ultrapassar a plataforma, sentindooe cada vez mais dominado por uma vontade mais forte, e quando ela se sentou para trás ele agarrou-lhe as ancas e ajudou-a a guiar os seus movimentes, puxando-a para cima e para baixo. Ele sentiu um rompante quando ela puxou para trás e depois, subitamente, estava lá. Ela volteu a mover-se para baixo e ele gritou com o avassalador tremor que se ergueu do fundo do seu sexo numa poderosa erupção, enquanto ela gemia e estremecia com a explosão que rugia dentro de si.
Jondalar guiou-a para cima e para baixo mais algumas vezes e depois puxou-a sobre si, beijando-lhe os mamilos. Ayla volteu a estremecer e depois deixou-se cair sobre ele. Ficaram all deitados, imóveis, arquejantes, a tentar recuperar o fõlego.
Ayla estava a começar a respirar normalmente quando sentiu qualquer coisa húmida na face. Por instantes pensou que fosse Jondalar, mas era uma coisa fria além de húmida e o cheiro era diferente, embora não desconhecido. Abriu os olhos e deparou com os dentes serñdentes de um lobo. Ele voltou a cheirá-la e depois pôs-se no meio dos dois.
-- Lobo/Sai daqui! -- disse ela, empurrando-lhe o nariz frio e o bafo
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de lobo, rolando depois e ficando deitada ao lado do homem. Estendeu a mão e :agarrou a pele áspera do pescoço do Lobo, passando-lhe os dedos pelt, pëlo. m Mas estou muito contente por te ver. Onde é que estiveste o dia todo? Já estava a ficar preocupada.-Ayla sentou-se e segurou-lhe na cabeça com ambas as mãos, encostando a testa à dele, virando-se de- poh. para o homem.-Há quanto tempo é que ele terá voltado?
--Born, ainda bem que o ensinaste a não nos incomodar. Se ele nos tivesse interrompido a meio disto, não sei bem o que lhe teria feito-disse Jondalar.
Ele levantou-se a ajudou-a a ela a pôr-se de pé. Abraçando-a, olhou para ela.
-- Ay]a, isto foi.., que é que posso dizer? Nåo tenho palavras para te explicar.
Ela viu uma tal expressão de amor e adoração nos seus olhos que teve de fazer um esforço para reprimir as lágrimas.
--Jondalar, gostava de ter palavras para te dizer o que sinto, mas nem sequer sei nenhuns sinais do Clã. Nem seì se existem.
-- Acabaste de me mostrar, Ayla muito mais que por palavras. Mos- tras-me todos os dias, de tantas formas.-Subitamente puxou-a para ele e abraçou-a com força, sentindo um nó nagarganta.-Mìnha mulher, minha Ayla. Se algum dia te perdesse...
Ayla sentiu um frémito de medo ao ouvir as palavras dele, mas apenas o abraçou com mais força.
-- Jondalar, como é que sabes sempre o que eu realmente quero? m perguntou Ayla. Estavam sentados ao clarão dourado da fogueira, a beber chá, a ver as faúlhas da lenha de pinheiro irromperem em chuva no ar da noite.
Jondalar sentia-se descansado e descontraído como há muito tempo não se sentia. Tinham pescado durante a tarde-Ayla tinha-lhe mostra- do como apanhava os peixes ì mão e depois encontrou saponária e tomaram banho e lavaram a cabeça. Tinha acabado de corner uma excelente refeição de peixe e de ovos das aves do pântano que também sabiam ligeiramente a peixe, um biscoito de espadana cozido sobre pedras quen-
tes e algumas bagas doces.
Sorriu-lhe.
-- Limito-me aprestar atenção ao que me dizes-disse ele.-Mas, Jondalar, da primeira vez eu pensei que queria fazer com que durassse, mas to sabias melhor o que eu realmente queria. E depois, da vez seguinte, sabia que te queria dar Prazeres e deixaste-me, até eu estar de novo pronta para ti. E sabias que eu estava pronta para ti. Não fui eu que te disse.
Disseste, embora não por palavras. Ensinaste-me a falar como o
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Clã, com sinais e gestos, não com palavras. Apenas tento compreender os teus outros sinais.
--Mas eu não te ensinei nenhuns sinais desses. Não conheço nenhuns. E to sabias como me dar Prazeres antes sequer de aprenderes a falar a linguagem do Clã. q Ayla tinha a testa franzida com o esforço de tentar compreender, o que o fez sorrir.
-- Isso é verdade. Mas existe uma linguagem sem palavras entre as pessoas que falam, muito mais importante do que possam entender.
-- Sim, já reparei nisso-disse Ayla, pensando no quanto conseguia compreender sobre as pessoas que encontravam apenas prestando atenção aos sinais que davam sem saber.
E às vezes aprende-se a... fazer certas coisas só porque se quer, portanto presta-se atenção-disse ele.
Ela estava a olhá-lo nos olhos, vendo neles o amor que sentia por ela e o encanto que parecia sentir pelas suas perguntas, e reparou no olhar distante com que ficava quando falava. Olhou para o infinito, como se por instantes estivesse a ver qualquer coisa muito ao longe, e ela percebeu que ele estava a pensar noutra pessoa.
-- Especialmente quando a própria pessoa que queremos que nos ensine está na disposição de o fazer-disse ela. AZolena ensinou-te bem.
Ele corou e ficou a olhar para ela com uma surpresa chocada e depois desviou o olhar, perturbado.
-- Eu também aprendi muito contigo-disse ela, sabendo que o seu comentário o tinha perturbado.
Ele parecia não conseguir olhá-la de frente. E, quando finalmente o fez, tinha a testa franzida.
Ay]a, como é que sabias o que eu estava apensar?-- perguntou.-Quero dizer, eu sei que tens Dons especiais. Foi por isso que o Mamut te aceitou no Lar do Mamute quando foste adoptada, mas às vezes pareces conhecer os meus pensamentos. Tiraste esses pensamentos da minha cabeça?
Ela apercebeu-se da sua preocupação e de uma coisa coisa mais per- turbante, quase medo dela. Tinha enfrentado um medo semelhante em alguns dos Mamutoi no Encontro de Verão, quando acharam que ela tinha estranhas capacidades, mas tinha-se tratado sobretudo de mal entendidos. Como pensarem que ela tinha um controlo especial sobre os animais , quando a única coisa que ela fizera fora encontrá-los quando eram bebés e criá-los como seus.
Mas desde a Reunião do Clã que algo tinha mudado. Ayla não tinha tido intenção de beber a bebida especial de raizes que fizera para os rnog-urs, mas acabou por o fazer, e não tinha tido intenção de entrar naquela caverna e encontrar os rnog-urs, mas também isso acontecera. Quando os viu sentados num círculo naquela alcova nas produndidades da caverna e... caiu no vazio negro que estava dentro dela, pensou que estava per
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dida para sempre e que nunca mais encontraria o caminho de volta. Depois, de alguma forma, Creb tinha ido dentro dela e falado com ela. Desde então, havia alturas em que parecia saber coisas que não conseguia explicar. Como quando o Mamut a levou com ele quando foi Procurar e ela se sentiu erguer para o seguir através das estepes. Mas ao olhar para Jon- dalar e ver a forma estranha como ele a olhava, sentiu-se invadida por medo, pelo medo de poder vir a perdê-lo.
Olhou para ele à luz da fogueira e depois baixou o olhar. Não podia haver inverdades m não podia haver mentiras entre eles. Não que ela con- seguisse deliberadamente dizer qualquer coisa que não fosse verdade, mas nem sequer o aceite "abster-se de falar que o Clã permitia para defender a privacidade das pessoas podia interpor-se entre eles agora. Mesmo correndo o risco de o perder se lhe contasse a verdade, tinha de lhe dizer e tentar descobrir o que é que o perturbava. Olhou então directamente para ele, tentando encontrar palavras para começar.
m Não sei os teus pensamentos, Jondalar, mas podia adivinhá-los. Nós não estávamos a falar dos sinais silenciosos que as pessoas que falam com palavras fazem? Sabes, to também os fizesto, e eu... eu procuro lê-los e multas vezes sei o que significam. Talvez porque te amo tanto e quero saber, estou semp.re atenta a ti. Desviou o olhar por instantes e depois acrescentou: E isso que as mulheres do Clã são treinadas para fazer.
Ele olhou para ela. Havia um certo alívio na sua expressão, e curiosidade, enquanto ela continuou:
Não é apenas em relação a ti. Eu não fui criada com.., pessoas do meu tipo e estou habituada a ver o significado nos sinais que as pessoas fazem. Foi-me útil aprender coisas sobre as pessoas que encontro. Embora a princípio fosse muito confuso, pois as pessoas que falam com palavras muitas vezes dizem uma coisa e os seus sinais silenciosos querem dizer outra diferente. Quando finalmente aprendi isso, começei a perceber mais do que as palavras que as pessoas diziam. Foi por isso que a Cro- zie já não conseguia apostar comigo quando jogávamos ao jogo dos ossi- nhos. Sabia sempre em qual das mãos segurava o ossinho marcado pela forma como a estendia.
-- Sempre quis saber como isso era. Ela era considerada muito boa nesse jogo.
E era.
--Mas como é que sabias.., como é quepodias saber que eu estava a pensar na Zolena? Ela agora é Zelandoni. E assim que eu penso normalmente nela, não pelo nome que tinha quando era nova.
Eu estava a observar-te e os teus olhos estavam a dizer que me amavas e que eras muito feliz comigo e eu estava a sentir-me maravilhosamente. Mas quando falaste em querer aprender certas coisas, por instantes não me viste. Era como se estivesses a olhar para a distância. Já
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me tinhas falado na Zolena, na mulher que te tinha ensinado.., o teu dom.., aquilo que consegues fazer uma mulher sentir. Também tínhamos estado a falar disso, portanto eu sabia que devia ser nela que estavas a pensar.
m Ayla, isso é espantoso! exclamou ele com um grande sorriso de alívio. Vai-me lembrando para nunca sequer tentar ter um segredo em relação a ti. Talvez não consigas tirar os pensamentos da cabeça de uma pessoa, mas não há dúvida de que consegues fazer o que vem logo a seguir a isso.
Mas há mais uma coisa que deves saber disse ela. Jondalar franziu de novo a testa. -- O quê?
Por vezes penso que talvez tenha.., uma espécie de Dom. Aconteceu- -me uma coisa quando estava numa Reunião do Clã, da vez em que fui com o clã de Brun, quando o Durc era bebé. Fiz uma coisa que não devia ter feito. Não era minha intenção fazê-lo, mas bebi o líquido que fiz para os mog-urs e depois encontrei-os na caverna. Não fui à procura deles. Nem sequer sei como é que fui parar à caverna. Eles estavam... Ayla estremeceu e não conseguiu acabar. Aconteceu-me uma coisa. Perdi- -me na escuridão. Não na caverna, na escuridão dentro de mim. Pensei que ia morrer, mas o Creb ajudou-me. Pôs os seus pensamentos dentro
da minha cabeça...
m Fez o quê?
-- Não sei como te explicar de outra forma. Pôs os seus pensamentos dentro da minha cabeça e desde essa altura... às vezes... é como se ele tivesse mudado qualquer coisa em mim. Por vezes penso que talvez tenha uma espécie de... Dom. Acontecem-me coisas que eu não compreendo e não consigo explicar. Creio que o Mamut sabia.
Jondalar ficou calado durante algum tempo.
Então ele teve razão em adoptar-te para o Lar do Mamute, pois tens
mais que a tua capacidade de curar.
Ela assentiu.
Talvez. Acho que sim.
m Mas há pouco não sabias quais eram os meus pensamentos?
Não. O Dom não é exactamente assim. É mais como ir com o Ma-
rout quando ele Procurava. Ou como ir a sítios profundos e longínquos. m Mundos dos espíritos? Não sei.
Jondalar olhou para o ar por cima da cabeça dela, a reflectir sobre as implicações. Depois abanou a cabeça e olhou para ela com um sorriso con- trito.
Acho que deve ser uma partida da Mãe disse ele. A primeira mulher que amei foi chamada a Servi-La e pensei que nunca mais ama
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ria. E agora que encontrei uma mulher que amo, descubro que está des- tinada a Servi-la. Também te irei perder?
m Por que é que havias de me perder? Não sei se estou destinada a Servi-la.
Não quero Servir ninguém. Quero estar contigo e compartilhar o teu lar e ter os teus bebés m objecteu Ayla num tom vociferante.
-- Ter os meus bebés? m disse Jondalar, surpreendido com a sua escolha de palavras.-Como é que podes ter os meus bebés? Eu não terei bebés, pois os homens não têm filhos. A Grande Mãe dá crianças às mulheres. Pode utilizar o espírito de um homem para os criar, mas não são dele. A não ser para os sustentar quando a sua companheira os term. Nessa altura são os filhos do seu lar.
Ayla já tinha falado nisso, sobre os homens darem início à nova vida que crescia dentro da barriga das mulheres, mas nessa altura ele não se tinha apercebido totalmente de que ela era uma verdadeira filha do Lar do Mamute. Que podia visitar os mundos dos espíritos e talvez estives- se destinada a Servir a Doni. Talvez soubesse mesmo qualquer coisa.
-- Chamas aos meus bebés filhos do teu lar, Jondalar. Quero que os meus bebds sejam filhos do teu lar. Quero ficar contigo para sempre.
Eu também quero isso, Ayla. Queria-te a ti e aos teus filhos, mesmo antes de te conhecer. Só que não sabia que te encontraria. Só espero que a Mãe não faça nenhum crescer dentro de ti antes de regressarmos.-Eu sei, Jondalar m disse Ayla.-Eu também prefiro esperar.
Ayla pegou nas malgas, passou-as por água e acabou os seus preparativos para partirem cedo, enquanto Jondalar guardava tudo à excepção das peles de dormir. Aninharam-se um no outro, agradavelmente cansa- dos. O homem Zelandonii observou a mulher ao seu lado a respirar serenamente, mas não conseguia adormecer.
"Os meus filhos", pensava ele. "A Ayla disse que os bebés dela seriam os meus filhos. Estaríamos os dois a fazer vida quando hoje compartilhá-mos os Prazeres? Se uma nova vida começa disso, então teria de ser muito especial, porque esses Prazeres foram.., melhores.., do que.., alguma vez..."
"Por que é que tinham sido melhores? Não é que eu nunca tenha fei- te aquelas coisas antes, mas com a Ayla é diferente.., nunca me canso dela.., ela faz-me querer mais e mais.., só pensar nisso faz que volte a que- rê-la.., e ela pensa que eu lhe sei dar Prazeres..."
"Mas e se ela fica grávida? Ainda não ficou.., talvez não possa. Há mulheres que não podem ter crianças. Mas ela já teve um filho. Poderá ser de mim?"
"Vivi com a Serenio durante muito tempo. Ela não engravidou durante todo o tempo que eu lá estive e já tinha tido uma criança antes de mim. Talvez tivesse ficado com os Sharamudoi se ela tivesse tido filhos.., creio. Antes de me vir embora ela disse-me que pensava estar grávida. Por que é que eu não fiquei? Ela disse-me que não se queria acasalar comigo
muito embora me amasse, porque eu não a amava da mesma forma. Disse que eu amava mais o meu irmão que qualquer outra mulher. Mas eu gostava dela, talvez não da forma como amo a Ayla, mas se eu tivesse realmente querido creio que ela se teria acasalado comigo. E eu sabia-o nessa altura. Teria usado isso como um pretexto para me vir embora? Por que é que eu me vim embora? Por que o Thonolan tinha partido e eu estava preocupado com ele? Teria sido essa a única razão?"
"Sea Serenio estivesse grávida quando me vim embora, se teve outra criança, terá sido começada pela essência da minha virilidade? Seria... meu filho? E o que a Ayla diria. Não, não é possível. Os homens não têm crianças, a menos que a Grande Mãe utilize o espírito dos homens para as fazer. Uma criança do meu espírito?"
"Quando lá chegarmos, pelo menos saberemos se teve um bebé. Que é que a Ayla sentiria se a Selenio tivesse tido uma criança que de algu- ma forma pudesse ser parte de mim? Que é que a Serenio pensará quando vir a Ayla? E que é que a Ayla pensará dela?"
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Na manhã seguinte, Ayla estava ansiosa por se levantar e se mexer, embora fizesse menos calor que no dia anterior. Enquanto fazia faúlhas com a sua pedra de lume, pensou como seria born não ter de se preocupar em acender uma fogueira. A comida que tinha preparado na noite anterior e água bastariam para a refeição da manhã e, ao pensar nos Prazeres que ela e Jondalar tinham compartilhado, pensou que seria born esquecer-se do remédio mágico de Iza. Se não bebesse o seu chá especial, talvez descobrisse se tinham começado um bebé. Mas Jondalar ficava tão perturbado com a ideia de ela ficar grávida durante aquela Viagem que ela tinha de beber o chá.
A jovem mulher não sabia como é que o remédio funcionava. Apenas sabia que se bebesse alguns golos de uma infusão forte e amarga de vara de ouro todas as manhãs até ao seu tempo de lua, e uma pequena malga do líquido onde tinha sido fervida raiz de salva todos os dias em que sangrava, não engravidaria.
Não seria demasiado difícil cuidar de um bebé enquanto viajavam, mas ela não queria estar sozinha quando desse à luz. Não sabia se teria sobrevivido ao nascimento do Durc se a Iza não estivesse lá.
Ayla deu uma palmada a um mosquito que lhe pousara no braço e verificou a sua reserva de ervas enquanto a água estava a aquecer. Tinha ingredientes suficientes para o seu chá da manhå para algum tempo, o que era born, pois não vira nenhumas dessas plantas a crescer junte aos pântanos. Gostavam de terrenos mais elevados e de condições mais secas. Verificando as bolsas e os pequenos embrulhos dentro destas que estavam guardados no seu saco de ervas medicinais feito de pele de lontra já muito gasta, decidiu que tinha quantidades suficientes da maioria das ervas medicinais necessárias num caso de emergência, embora tivesse gostado de substituir algumas das plantas da colheita do ano anterior por plantas frescas. Felizmente, até aí não tinha tido verdadeira necessidade de usar as suas ervas medicinais.
Pouco depois de terem recomeçado a viajar para oeste, chegaram a um ribeiro relativamente grande. Enquanto Jondalar desapertava os cestos-alforge que pendiam bastante baixo nos flancos do Corredor, metendo- -os no barco circular montado na padiola, estudou os rios durante algum
tempo. O pequeno riojuntava-se à Grande Mãe ao fazer uma curva apertada a montante.
-- Ayla, já reparaste como este afluente entra na Mãe? Vai a direito e corre para baixo sem sequer alargar. Acho que é esta a causa da corrente rápida em que ontem fomos apanhados.
--Acho que tens razão m disse ela, vendo o que ele queria dizer. Depois sorriu ao homem.-To gostas de saber a razão das coisas, não gostas?
m Born, a água não desata subitamente a correr depressa sem qualquer
razão. Achei que devia haver uma explicação para isso.
-- Encontraste-a-disse ela.
Ayla achou que Jondalar estava particularmente bem disposto quando continuaram depois de atravessar o rio e isso tornou-a feliz. O Lobo mantinha-sejunto deles, não tendo voltado a desaparecer, o que também lhe agradou. Até os cavalos pareciam mais animados. O descanso tinha sido born para eles. Ela também se sentia alerta e descansada e, talvez porque tivesse acabado de verificar as suas ervas medicinais, apercebia- -se com grande acuidade dos pormenores da vida vegetal e animal da grande foz do rio e dos prados adjacentes que estavam a atravessar. Embora fossem subtis, reparou em certas diferenças.
Os pássaros continuavam a ser a forma dominante de vida selvagem à sua volta, sendo os da famflia das garças os mais numerosos, mas a abundância de outras aves era apenas menor por comparação. Grandes bandos de pelicanos e belos cisnes mudos voavam no céu e muitos tipos de aves de rapina, incluindo gaviões negros e águias de rabo branco, buzardos e falcões. Ela viu grandes números de pequenos pássaros a saltitar, voar, cantar e a exibir as suas cores vivas: rouxinóis e o pequenos pássaros canoros, toutinegras, papa-amoras, papa-moscas de peito vermelho, papa-figos dourados e muitas outras variedades.
Os pequenos abetouros eram vulgares no delta, mas os tímidos e bem camuflados pássaros dos pântanos eram mais frequentemente ouvidos do que vistos. Cantavam as suas notas características, bastante cavas e parecendo quase grunhidos durante todo o dia e mais intensamente quando a noite começava a cair. Mas quando qualquer pessoa se aproximava, apontavam os bicos para cima e disfarçavam-se tão bem no meio dos juncos onde faziam os ninhos que quase pareciam desaparecer. No entanto, viu muitos a voar sobre as águas à procura de peixe. Os abetouros distinguiam-se muito bem a voar. As suas pequenas penas ao longo da parte da frente das asas e a base do rabo, que cobriam as extremidades das rémiges das penas maiores de voo, eram bastante claras, fazendo um nítido contraste com as asas e as costas escuras.
Mas os pintanos acomodavam também um número surpreendente de animais que necessitavam de uma variedade de meio ambientes: cabritosmonteses e javalis nas florestas; lebres e cobaias gigantes e veados
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gigantes nas orlas, por exemplo. Enquanto avançavam, viram muitas criaturas que já não viam há algum tempo e chamaram a atenção um do outro para elas: antflopes saiga a correr velozmente por pesados auroques; um pequeno gato selvagem riscado a perseguir um pássaro e observado por um leopardo numa árvore; uma famflia de raposas com as suas crias; um casal de gordas toupeiras; e uns invulgares furões-bravos com o pêlo marmoreado branco, amarelo e castanho. Viram lontras na água e arminhos, juntamente com o seu alimento prefeñdo, ratos almiscara- dos.
E havia insectos. As grandes libélulas amarelas a voar a grande velocidade e delicadas borboletas de azuis e verdes brilhantes a decorar os espigões das flores sem graça das bananas-de-são-tomé eram belas ex- cepções às irritantes nuvens de insectos que apareciam subitamente. Parecia acontecer tudo num dia, embora a ampla humidade e calor nos ribeiros lentos e lagos fétidos tivessem sustentado os minúsculos ovos durante o tempo necessário. As primeiras nuvens de pequenas melgas tinham aparecido de manhã, ficando a pairar sobre a água, mas os pastos secos all perto ainda estavam livres delas e elas foram esquecidos.
tarde, era impossível esquecê-las. As melgas metiam-se no pêlo espesso e ensopado de suor dos cavalos, zumbiam à volta dos seus olhos e entravam-lhes na bocas e nas narinas. O lobo não teve melhor sorte. Os pobres animais estavam desesperados com o desconforto provocado por milhões de insectos minúsculos. Os irritantes insectos até se meteram no cabelo dos seres humanos e Ayla e Jondalar deram por si a cuspir e a esfregar os olhos para se livrarem ds pequenas criaturas enquanto avançavam. A nuvem de melgas era mais espessa mais perto do delta e eles começaram apensar onde é que poderiam acampar para passar essa noite.
Jondalar avistou um monte coberto de erva à direita e pensou que a elevação do terreno lhe daria uma vista melhor. Subiram até ao cimo e olharam para as águas cintilantes de um lago formado no cotovelo de um rio. Não tinha a vegetação luxuriante do delta-e os lagos estagnados que originavam as imagens emergentes-mas escassas árvores e alguns arbustos orlavam as suas margens, delimitando uma praia larga e con- vidativa.
OLobo desceu para lá a correr e os cavalos seguiram-no sem ser preciso incitá-los. A mulher e o homem tiveram dificuldade em sustêlos para prinmeiro tirarem os cestos-alforge e desapertar a padiola da Whinney. Meteram-se todos pela água dentro num rompante que apenas foi refreado pela força da água. Nem sequer o nervoso Lobo, que não gosta- va de atravessar rios, hesitou em meter-se a nadar no lago.
--Achas que está finalmente a começar a gostar de água?--perguntou Ayle.
-- Espero que sim. Temos de atravessar muitos mais rios.
Os cavalos meteram o focinho dentro de água para beberem, resfolegaram e expeliram água pelas narinas e pela beca e voltaram para a parte menos funda. Deixaram-se cair na margem lamacenta para se espojareme coçarem e Ayla não pode deixar de rir alto ao ver as suas caretas e os olhos a rolar e a faiscar de puro deleite. Quando se levantaram, estavam cobertos de lama mas, quando secava, o suor, a pele morta, os ovos de insecto e outras causas de comichão caiam com o pó.
Acamparam na orla do lago e partiram cedo na manhã seguinte. Ao fim da tarde, desejavam conseguir encontrar um local para acampar tão agradável como aquele. Uma onda de mosquitos, seguida pelo chocar dos ovos das melgas, provocavam babas vermelhas e que faziam muita comichão, o que obrigou Ayla e Jondalar a procurarem protecção, vestindo roupa mais pesada, embora sentissem um calor desagradável por esta- rem habituados ao mínimo indispensável. Nenhum deles estava bem certo de onde tinham vindo as moscas. Havia sempre algumas varejeiras, mas agora eram as moscas mais pequenas e que mordiam que tinham subitamente aumentado. Muito embora a tarde estivesse quente, mete- ram-se dentro das peles de dormir bem cedo, para escaparem às hordas voadoras.
No dia seguinte, só levantaram o acampamento já a manhã ia avançada, depois de Ayla ter procurado ervas que pudesse usar para acalmar as picadas e fazer repelente de insectos. Encontrou escrofulária, com o seu espigão isolado de flores castanhas de formato estranho, num sitio húmido e cheio de sombra junto à água e apanhou plantas inteiras para fazer uma loção com propriedades cicatrizantes e anti-puriginosas. Quando viu as folhas largas da banana-de-são-tomé, apanhou-as para juntar à loção; eram excelentes para curar desde mordeduras a bolhas e até úlceras graves e feridas. No meio das estepes, uma zona mais seca, apanhou flores de absinto para acrescentar como antídoto geral para venenos e reacções t6xicas.
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te que tinham em viajar com uma pessoa que conseguia fazer qualquer coisa contra os insectos. Se estivesse sozinho, teria de aguentar.
A meio da manhã já iam de novo a caminho e as alterações que Ayla já notara aumentaram dramaticamente. Estavam a ver cada vez menos pântanos e mais água, com menos ilhas. O braço norte do delta estava a perder a sua rede de cursos de água serpenteantes, tornando-se todos um único. Depois, quase inesperadamente, o braço norte e o braço do meio do grande delta do rio uniram-se, duplicando o tamanho do canal e criando uma enorme massa de água corrente. Um pouco mais adiante, o rio vol- tava a aumentar, enquanto o seu braço sul, que se tinha juntado ao canal principal, se juntava aos restantes, ficando os quatro braços unidos, formando um único canal profundo.
O grande curso de água tinha recebido centenas de afluentes e as águas do degelo de duas cordilheiras cobertas de gelo enquanto atraves- sava toda alargura do continente, mas os cotos de granito de antigas montanhas tinham bloqueado a sua passagem para o mar mais a sul. Por fim, incapaz de resistir à pressão inexorável do rio que avançava, estes acabaram por ser vencidos, mas o obstinado leito de rocha cedeu relutantemente. A Grande Mãe, limitada pela estreita passagem, pegou nas am- plas saias durante um breve instante antes de fazer uma apertada curva e irromper através do massivo delta para o mar que a esperava.
Era a primeira vez que Ayla via toda a magnitude do enorme rio e, embora já tivesse passado por all antes, Jondalar tinha-o viste de uma perspectiva diferente. Ficaram estupefactos, irresistivelmente atraídos pelo espectículo. A impressionante extensão parecia mais um mar a fluir do que um rio e a sua superfície cintilante e ondulante traía apenas uma sugestão da força contida nas suas profundezas.
Ayla reparou num ramo partido que avançava para eles, pouco maior que um pau levado pela corrente funda e rápida, mas algo nele chamou- -lhe a atenção. Levou mais tempo do que ela esperava a chegar junto deles e ao aproximar-se ela reteve a respiração, surpreendida. Não era de forma alguma um ramo; era uma árvore completa. Enquanto ela passou a flutuar serenamente, Ayla ficou a olhar, maravilhada, pois era uma das maiores árvores que ela alguma vez vira.
-- Este é o Grande Rio Mãe-disse Jondalar.
Ele já viajara ao longo de toda a sua extensão uma vez e sabia a dis- tîncia que ele percorria, o terreno que atravessava e a Viagem que ainda tinham pela frente. Embora Ayla não apreendesse por completo rodas as implicações, compreendia que, todos reunidos num único sítio pela úti- ma vez, no final da sua Viagem, o vasto, profundo, poderoso Rio Mãe tinha chegado ao seu fim; all era tão Grande quanto alguma vez seria.
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Continuaram rio acima junto ao imenso curso de água, deixando a foz do rio para trás, e com ela muitos dos insectos que os tinham atormenta- do, e descobriram que também estavam a deixar as estepes abertas. As amplas pastagens e pântanos planos davam lugar a montes ondulantes com extensas zonas arborizadas intercaladas com prados verdejantes.
Estava mais fresco na sombra das matas abertas. Era uma diferença tão agradável que, quando chegaram a um grande lago rodeado por árvores, perto de um lindo prado verdejante, sentiram-se tentados a parar e a acampar, apesar de ser apenas meio da tarde. Seguiram a cavalo ao longo de um riacho em direcção a uma margem arenosa mas, ao aproximarem-se, o Lobo começou a rosnar, ficando com os pêlos em pé e numa postura defensiva. Ayla e Jondalar perscrutaram a área, tentando ver o que tinha perturbado o animal.
-- Não vejo nada-disse Ayla , mas há aqui qualquer coisa de que o Lobo não gosta.
Jondalar voltou a olhar para o lago convidativo.
-- De qualquer forma é demasiado cedo para acamparmos. Vamos continuar-disse ele, virando o Corredor para o lado e voltando a dirigir-se para o rio. O Lobo deixou-se ficar para trás um pouco mais e depois apanhou-os.
Enquanto atravessavam as agradáveis regiões arborizadas, Jondalar ficou satisfeito por terem decidido não parar no lago. Durante a tarde passaram por mais lagos de tamanhos diferentes; aquela área estava cheia deles. Ele achou que se deveria lembrar deles da sua anterior viagem até que se lembrou que ele e Thonolan tinham descido o rio num barco Ra- mudoi, parando apenas ocasionalmente na margem do rio.
Mas, mais que isso, sentiu que devia haver pessoas a viver num local tão aprazível e tentou recordar-se se alguns dos Ramudoi teriam falado outros Povos do Rio que viviam all. Mas não compartilhou os seus pensamentos com a Ayla. Se não se estavam a mostrar era porque não que- riam ser vistos. No entanto, não pôde deixar de pensar por que é que o Lobo tinha reagido de uma forma tão defensiva. Poderia ter sido o cheiro do medo humano? Hostilidade?
Quando o sol começava a descer por detrás das montanhas que se er- guiam muito altas â sua frente, pararam junto a um lago mais pequeno que recolhia a água de vários ribeiros que corriam do terren. mais elevado. Tinha uma saída directamente para o rio e grandes trutas e salmões de rio tinham nadado rio acima até ao lago.
Desde que tinham chegado ao rio e acrescentado numa base regular peixe à sua dieta, Ayla trabalhara ocasionalmente numa rede que esta- va a fazer, semelhante ao tipo usado pelo clã de Brun para apanhar grandes peixes do mar. Primeiro tinha de fazer o cordame e fez experiências com vários tipos de plantas que tinham partes fibrosas. O cânhamo e o li
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nho pareciam resultar particularmente bem, embora o cânhamo fosse mais grosseiro.
Ayla achou que tinha um pedaço suficientemente grande de rede para experimentar no lago e, com Jondalar a segurar numa ponta e ela noutra, começaram a certa distância dentro de água e dirigiram-se depois para a margem, puxando a rede entre eles. Quando apanharam duas trutas grandes, Jondalar ficou ainda mais interessado e pensou se haveria forma de ligar um cabo à rede de forma a uma pessoa poder apanhar peixe sem se meter na água. Esta ideia ficoulhe.
De manhã, dirigiram-se para as montanhas que se estendiam em frente através de uma rara zona arborizada rica e diversa. As árvores, uma grande diversidade de variedades de folha caduca e coníferas que, como as plantas das estepes, estavam distribuídas em forma de mosaico de florestas distintas, interrompidas apenas por prados e lagos e, nalgumas terras baixas, por turfeiras ou pântanos. Algumas árvores cresciam em outeiros puros ou associadas a outras árvores ou vegetação, dependendo de variações menores de clima, altitude, disponibilidade de água, ou terreno, que podia ser pantanoso, arenoso ou arenoso misturado com argila, ou de várias outras combinações.
As árvores de folha perene prefeñam encostas viradas a norte e terrenos mais arenosos e, onde quer que houvesse humidade suficiente, atingiam grandes alturas. Uma densa floresta de enormes espruces, que atingiam quarenta e oito metros de altura, ocupavam uma encosta mais baixa que se misturava depois com pinheiros que pareciam atingir a mesma altura mas que, embora altos, com os seus quarenta metros, cresciam em terreno mais elevado. Zonas de abetos muito verdes davam lugar a ex- tensões de bétulas altas, largas, de casca esbranquiçada. Atd os salgueiros atingiam mais de vinte e três metros.
Onde as colinas davam para sul e a terra era húmida e fértil, grandes árvores de folhas decíduas também atingiam alturas espantosas. Grupos de gigantescos carvalhos com troncos perfeitamente direitos e sem ramos estendidos, à excepção de uma copa de folhas verdes, atingiam quarenta e cinco metros de altura. Enormes tflias e freixos atingiam quase a mesma altura, com magnificentes áceres fazendo pouca diferença destes em altura.
Em frente, à distância, os viajantes viam as folhas prateadas de plá-tanos brancos misturados no meio da mata de carvalhos e quando lá chegaram viram que esta estava cheia de pardais que tinham feito ninho em todos os sítios possíveis e imagináveis. Ayla até encontrou ninhos de par- dais com ovos e pequenas aves construídos dentro dos ninhos de pegas e buzardos que por sua Vez também estavam habitados por ovos e cñas. Havia também muitos tordos nas matas, mas as suas crias já tinham crescido.
Nas encostas íngremes, onde as aberturas nas copas das árvores permitiam que o sol chegasse ao chão, a vegetação rasteira era luxuriante, com clematites e outras lianas multas vezes a cair dos ramos altos. Os cavaleiros chegaram a uma pequena mata de olmos e salgueiros brancos cobertos de trepadeiras que subiam pelos troncos e caíam dos ramos altos. Aí encontraram ninhos de muitas águias malhadas e cegonhas negras. Passaram por álamos cujos ramos estremeciam sobre amoras silvestres e grossos salgueiros junto a um ribeiro. Uma mata mista de majestosos olmos, elegantes bdtulas e fragrantes tílias subia uma encosta, fazendo sombra sobre um matagal de plantas comestíveis onde pararam para os apanhar: framboesas, urtigas, avelãzeiros com avelãs ainda não completamente maduras, exactamente como Ayla gostava delas, e alguns pinheiros mansos com grandes pinhas cheias de pinhões.
Mais adiante, uma mata de betuláceas expulsava as bdtulas, só para ser de novo substituída por estas a pouca distância m e com uma gigantesca betulácea caída por terra, coberta por uma capa de cogumelos ama- relos-alaranjados que Ayla começou logo a apanhar. O homem ajudou- -a a apanhar os deliciosos fungos comestíveis que ela encontrara, mas foi Jondalar quem descobriu a árvore das abelhas. Com a ajuda de um archote que deitava fumo e o seu machado, subiu por uma escada improvisa- da feita do tronco caído de um abeto e que ainda tinha os cotos dos ramos e aguentou algumas picadas para apanhar alguns favos de mel. Comeram logo all aquela rara delícia, comendo também a cera e algumas abelhas à mistura, rindo como crianças da besuntice que tinham feito.
Aquelas regiões do sul há muito que eram reservas naturais de árvores, plantas e animais de clima temperado, expulsos pelo clima seco e frio do resto do continente. Algumas espécies de pinheiros eram tão antigas que atd tinham visto as montanhas crescer. Criadas em pequenas áreas favoráveis à sua sobrevivência, as relictas espécies estavam disponíveis, quando o clima voltasse a mudar, para se espalharem rapidamente por novas terras recentemente abertas a elas.
O homem e a mulher, com os dois cavalos e o lobo, continuaram o seu caminho para oeste junto ao largo rio, dirigindo-se para as montanhas. Os pormenores estavam a tornar-se mais nítidos, mas os cumes cobertos de neve eram um espectáculo sempre presente, e o seu avanço nessa direcção era tão gradual que mal reparavam que se estavam a aproximar. Faziam ocasionais incursões às zonas arborizadas nos montes a norte, que podiam ser escarpados e acidentados, mas que na sua maioria se mantinham perto da planície junto ao leito do rio. Os terrenos eram diferentes, mas as planícies arborizadas tinham muitas plantas e árvores em comum com as montanhas.
Os viajantes aperceberam-se de que tinham chegado a um local de grande alteração nas características do rio quando depararam com um
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grande afluente que descia das terras altas. Atravessaram-no com a ajuda do barco circular mas pouco depois chegaram a um outro rio de corrente rápida exactamente quando iam a virar para sul, para onde a Grande Mãe Rio fora depois de contornar a extremidade mais baixa da cordilheira. O rio, não conseguindo subir as terras altas a norte, tinha feito uma curva apertada e contornado a cordilheira para chegar ao mar.
O barco circular voltou aprovar a sua utilidade na travessia do segundo afluente, embora tivessem tido que subir o rio aid encontrarem um sí-tio com menos turbulência para atravessar. Vários outros ribeiros mais pequenos entravam na Mãe imediatamente abaixo da curva. Depois, seguindo a margem esquerda, os viajantes viraram ligeiramente para oeste e depois voltaram à sua direcção inicial. Apesar de o rio continuar a estar à sua esquerda, já não estavam de frente para as montanhas. A cordilheira estava agora à sua direita e eles estavam virados para sul, para as estepes abertas e secas. Ao longe, elevações arroxeadas afloravam o horizonte.
Ayla ia observando o rio enquanto o subiam. Sabia que todos os afluentes eram levados rio abaixo e que o grande rio estava agora menos cheio do que estivera. A larga extensão de água corrente não parecia diferente, contudo ela sentia que as águas da Grande Mãe tinham diminuído. Era uma sensação mais profunda que o conhecimento e ela não parava de verificar se o imenso rio se tinha alterado de alguma forma visível.
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te e definindo a fronteira sul, se juntava à cadeia de montanhas junto deles. Perto do canto sudeste mais distante, dois picos altos elevavam-se mais alto que todos os outros.
Continuando para sul ao longo do ño e afastando-se dada vez mais da cordilheira principal, eles ganharam perspectiva de distância. Olhando para trás, começaram a ver toda a extensão da longa linha de altos cumes que se estendiam para oeste. O gelo cintilava nos cumes mais altos, enquanto a neve atapetava as suas encostas íngremes e cobria de branco as montanhas adjacentes-fazendo constantemente lembrar que a curta estação do calor de Verão nas planícies do sul era apenas um breve interlúdio numa terra dominada pelo gelo.
Depois de deixarem as montanhas para trás, o panorama para oeste parecia vazio: estepes áridas inintorrompidas constituíam uma planície incaracterística a perder de vista. Sem a vañedade de montes arborizados para obrigar a alterar o passo, ou cumes escarpados para interromper a vista, um dia confundia-se com os dias. seguintes, com poucas alterações enquanto seguiam a margem esquerda do curso de água pan- tanoso para sul. O rio unia-se num sítio e eles viram estepes e uma vegetação arbórea mais rica na margem oposta, embora ainda houvesse ilhas e bancos de juncos no grande curso de água.
No entanto, antes de o dia terminar, o Grande Rio Mãe voltou a alargar. Seguindo-o, os viajantes continuaram para sul, desviando-se apenas ligeiramente para oeste. Ao aproximarem-se, os montes arroxeados distantes ganharam altitude e começaram a exibir o seu próprio carác- ter. Contrastanto com os picos abruptos do norte, as montanhas a sul, embora atingissem alturas suficientes para conservarem um manto de neve e gelo até o Verão ir já adiantado, eram arredondadas, dando a aparência de terras altas.
As montanhas a sul também afectavam o curso do rio. Quando os viajantes chegaram perto delas, repararam que o grande rio se alterava, com um padrão que nunca tinham viste antes. Canais serpenteantes uniam- --see ternavam-se direitos, depois juntavam-se a outros e finalmente com os braços principais. Os bancos de juncos e as ilhas desapareceram e os vários canais formaram um único, profundo e largo, enquanto o imenso rio descrevia uma curva larga em direcção a eles.
Jondalar e Ayla seguiram-no pela parte interior da curva até estarem de novo virados para oeste, na direcção do sol que se afundava num céu vermelho-escuro nublado. Jondalar não viu quaisquer nuvens e pensou o que é que causaria a vibrante cor uniforme que se reflectia dos pináculos escarpados a norte e das terras altas acidentadas do outro lado do rio, fingindo a água corrente de um tom ensanguentado.
Continuaram rio acima ao longo da margem esquerda, procurando um lugar para acampar. Ayla deu por si a estudar novamente o rio, intriga- da com o magnífico caudal. Vários afluentes de diversos tamanhos, ai-
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guns deles grandes, tinham-se juntado ao rio largo de ambos os lados, cada um contribuindo para o seu prodigioso caudal ajusante. Ayla compreendeu que o Grande Rio Mãe era agora mais pequeno pelo volume de cada rio por que passavam, mas era tão vasto que continuava a ser difí-cil ver qualquer diminuição na sua tremenda capacidade. No entanto, a um qualquer nível profundo, a jovem mulher sentiuo.
Ayla acordou antes de amanhecer. Adorava as manhãs quando ainda estava fresco. Fez o seu chá contraceptivo de sabor amargo, preparou uma malga de chá de estragão e salva para o homem que dormia e outra para si prdpria. Bebeu-a a observar o sol da manhã acordar as montanhas a norte. Começou com a primeira sugestão rosada do pré-amanhe- cer a definir os dois picos gelados, estendendo-se primeiro lentamente, reflectindo um clarão rosado a este. Depois, sùbitamente, ainda antes de a orla da bola de fogo incandescente lançar um brilho tentativo acima do horizonte, os cumes das montanhas ardentes anunciaram a sua chegada.
Quando a mulher e o homem retomaram o seu caminho estavam à espera de ver o grande rio estender-se; assim, ficaram surpreendidos quando ele continuou delimitado num único canal largo. Algumas ilhas cobertas de vegetação rasteira formavam-se dentro do rio largo, mas este não se dividia em cursos separados. Eles estavam tão habituados a vê-lo serpentear pelos prados planos num percurso largo e indisciplinado que lhes pareceu estranho ver o enorme caudal contido durante qualquer distância que fosse. Mas o Grande Rio Mãe temava sempre o caminho mais baixo ao serpentear em volta e por entre altas montanhas através do con- tinente. O rio corria para este através das planícies mais a sul da sua longa passagem. As terras baixas eram no sopé das montanhas erodidas, que delimitavam e definiam a sua margem direita.
Na sua margem esquerda, entre o rio e os picos escarpados e cintilantes de granito e ardósia a norte, havia uma plataforma, um promontdño essencialmente de calcário, coberto por um manto de loess. Era uma terra acidentada, sujeita a extremos violentos. Ventos cortantes do sul dissecavam a terra no Verão; altas pressões sobre o glaciar a norte lançavam ventanias geladas pelo espaço aberto no Inverno; ferozes tempestades com origem no mar a este abatiam-se frequentemente sobre ela. As ocasionais chuvas terrenciais e os ventos que secavam rapidamente a terra, juntamente com as temperaturas extremas, faziam que o calcário sob a terra loess fracturasse, o que criava vertentes íngremes e escarpadas nos planaltos abertos.
Ervas resistentes sobreviviam na paisagem seca e ventosa, mas as árvores estavam praticamente ausentes. A única vegetação lenhosa era certos tipos de arbustos que suportavam não só o calor árido como o frio cortante. Um ocasional arbusto de tamarisco, de ramos finos e folhagem
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com penugem e espigões de minúsculas flores cor-de-rosa, ou um sanguinheiro, com grandes bagas pretas, redondas, e com espinhos pontiagu- dos, salpicavam a paisagem e atd se viam alguns pequenos e frondosos arbustos de groselha. Mais frequentes eram diferentes variedades de artemísia, incluindo uma variedade de absinto que Ayla não conhecia.
Os seus caules pretos pareciam secos e mortos mas, quando apanhou alguns, pensando que dariam born combustível para a fogueira, descobriu que não estavam secos e estaladiços, mas verdes e vivos. Depois de um breve aguaceiro, as suas folhas denteadas, com uma penugem pratea- da na parte de baixo, desencaracolavam de junte ao tronco e apareciam nos espigões ordenados como ramos numerosas pequenas flores amareladas, como os centros de folhas unidas das margaridas. A excepção dos caules mais escuros, assemelhavam-se às espécies mais vulgares, de cor mais clara, que frequentemente cresciam ao lado de festucas e de capim, até o vento e o sol secar as planícies. Então voltava a parecer sem vida e morta.
Com a sua variedade de ervas e vegetação rasteira, as planícies do sul sustentavam uma multidão de animais. Nenhuns que não tivessem viste nas estepes mais a norte, mas em proporções diferentes e algumas das espécies que gostavam mais do frio, como o boi almiscarado, nunca se aventuravam tanto para sul. Por outro lado, Ayla nunca tinha visto tan- tes antflopes saiga num único sítio. Era um animal muito espalhado, que era visto praticamente por tedo o lado nas planícies abertas, mas normalmente não eram muite numerosos.
Ayla parou e estava a observar uma manada de animais estranhos e de aspecto desajeitado. Jondalar tinha ido investigar uma enseada do rio Com alguns troncos enfiados na margem e que pareciam fora do lugar. Não havia nenhumas árvores desse lado do rio e aquele arranjo parecia propositado. Quando ele voltou para junte dela, Ayla parecia estar a olhar para a distância.
--Não tenho a certeza- disse ele. Aqueles troncos podiam ter si- do all colocados por Gente do Rio; podem servir para amarrar barcos. Mas também podem ser troncos arrastados pelo rio.
Ayla assentiu e depois apontou para as estepes secas.
Olha para tedos aqueles antílopes saiga.
A princípio, Jondalar não os conseguia ver. Eram da cor do pó. Depois viu o contorno dos seus chifres direitos e estriados, ligeiramente inclina- dos nas pontas.
-- Fazem-me lembrar a Iza. O espírite da Salga era o seu tetem disse a mulher, a sorrir.
Os antflopes saiga faziam-na sempre sorrir, com os seus focinhos compridos e andar peculiar, que não os impedia de serem velozes, noteu ela.
O Lobo gostava de os perseguir, mas eram tão rápidos que ele raramente se conseguia aproximar, pelo menos durante muite tempo.
Aqueles antflopes salga pareciam gostar particularmente do absinte de caules pretos e formavam bandos muite maiores que as habituais manadas. Uma pequena manada de dez ou quinze animais, normalmente fê-meas, com uma ou duas crias era vulgar; algumas mães não tinham elas próprias mais de um ano. Mas naquela região as manadas contavam com mais de cinquenta animais. Ayla pensou onde estariam os machos. Aúni- ca vez que os vira em abundância tinha sido durante a época de cio, quando tentavam dar Prazeres ao maior número de fèmeas possível e o maior número de vezes que conseguiam. Depois disso, encontravam-se sempre carcaças de antflopes salga machos. Era quase como se os machos se esgotassem com os Prazeres e durante o resto do ano deixassem o escasso alimento existente para as fêmeas e as crias.
Havia também alguns ibexes e carneiros nas planícies, que muitas vezes preferiam ficar perto das vertentes íngremes e escarpadas que as cabras selvagens e os carneiros conseguiam subir com facilidade. Havia enormes manadas de auroques espalhadas pela terra, na sua maioria com pêlo de cor sólida de um prete-avermelhado, mas um número sur- preendente tinha manchas brancas, algumas bastante grandes. Viram veados castanho-claros malhados, avermelhados e bisontes e muites onagres. A Whinney e o Corredor estavam atentos à maioria dos ruminantes de quatro patas, mas os onagres em especial chamavam-lhes a atenção. Observavam as manadas de asnos parecidos com cavalos e cheiravam os montes de bostas semelhantes.
Havia o habitual complemente de pequenos animais das pastagens; esquilos terrestres, marmotas, jerboas, cobaias, lebres e uma espécie de porco-espinho com crista que era nova para a mulher. Para controlar o seu número, existiam os animais que os matavam para subsistir. Viram pequenos gates selvagens, linces maiores e enormes leões das cavernas e ouviram as gargalhadas casquinadas das hienas.
Nos dias que se seguiram, o rio mudou frequentemente de curso e de direcção. Enquanto a paisagem na margem esquerda, através da qual estavam a viajar, se mantinha praticamente na mesma pequenos montes ondulantes e verdejantes e planícies com vertentes íngremes e alcantiladas e montanhas escarpadas por detrás--, repararam que a margem oposta se tornava mais rugosa e diversa. Afluentes talhavam vales profundos, árvores erguiam-se nas montanhas erodidas, ocasionalmente cobrindo teda uma encosta até à beira da água. Os contrafortes endenta- dos e o terreno acidentado, que definia a margem sul, contribuía para as curvas largas em tedas as direcções, até curvando para trás sobre si pró-prias, mas o seu percurso geral era em direcção a este, para o mar.
Com as suas poderosas curvas e contracurvas, o grande corpo de água que corria para eles estendia-se e dividia-se em canais separados, mas
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mas não voltou a formar pântanos como no delta. Era simplesmente um enorme rio, correndo sobre terreno mais plano, uma série serpenteante de grandes ñbeiros paralelos com vegetação rasteira mais rica e erva mais verdejante junto à água.
Embora parecesse por vezes irritante, Ayla sentia falta do coro de rãs dos pântanos, embora o trinado aflautado dos vários tipos de sapos ainda fosse um refrão na mistura aleatdria da música da noite. Lagartixas e voras das estepes tinham tambem o seu lugar e juntamente com elas as cegonhas-ávegras que viviam de répteis, bem como de insectos e caracóis. Ayla estava a observar um par de aves de pernas compridas azul- -acinzentadas, com cabeças pretas e tufos de penas brancas por detrás de cada olho e que estavam a dar de corner às suas crias.
Não sentia, no entanto, falta dos mosquitos. Sem o seu habitat de reprodução pantanoso, os irritantes insectos mordedores tinham na sua grande maioña desaparecido. O mesmo não acontecia com as melgas. Grandes nuvens destes insectos continuavam a atormentar os viajantes, sobretudo os peludos.
--Ayla! Olha!-- exclamou Jondalar apontando para uma construção simples de troncos e tábuas à beira do rio.-É um ancoradouro de barcos. Foi feito pela Gente do Rio.
Embora ela não soubesse o que era um ancoradouro, era evidente que não se tratava de um arranjo acidental de materiais. Tinha sido propositadamente construído para qualquer utilizaçãohumana. A mulher sentiu um frémito de excitação.
-- Isso significa que há gente por aqui?
-- Neste momento provavelmente não.., não há barco nenhum no an- coradouro.., mas não estão longe. Este sitio deve ser usado com frequência. Eles não se dariam ao trabalho de fazer um ancoradouro se não 0 uti- lizassem muito e não utilizariam frequentemente um sítio que ficasse muito longe.
Jondalar estudou o ancoradouro por instantes e depois olhou rio acima e para a outra margem.
--Não tenho a certeza, mas diña que quem quer que tenha construí-do isto vive do outro lado do rio e que atracam aqui quando atravessam. Talvez venham cá para caçar, ou apanhar raízes, ou qualquer coisa.
Continuando rio acima, ambos iam olhando para o outro lado do ño largo. A não ser na generalidade, até aí não tinham prestado grande atenção ao território do outro lado e ocorreu a Ayla que talvez tivesse havido lá pessoas nas quais não tinham reparado antes. Não tinham andando muito quando Jondalar reparou num movimento na água a certa distância a montante. Parou para verificar.
-- Ayla, olha para all disse, quando ela parou ao seu lado.-Aquilo pode ser um barco Ramudoi.
Ela olhou e viu qualquer coisa, mas não estava bem certa do que esfava a ver. Incitaram os cavalos a avançar. Quando se aproximaram, Ayla viu um barco completamente diferente de tudo o que alguma vez vira. Só conhecia os barcos do estilo daqueles que os Mamutei faziam, armações cobertas de peles em forma de malga, como o que ia sobre a padiola. Aquele que ela viu no rio era feito de madeira e formava um bico à frente. Levava várias pessoas em fila. Ao chegarem a par dele, Ayla reparou que havia mais pessoas na margem oposta.
Hola.t-gritou Jondalar, acenando com o braço numa saudação. Gritou mais algumas palavras numa língua que ela não conhecia, embora parecesse ter vagas semelhanças com Mamutoi.
As pessoas no barco não responderam e Jondalar pensou se teriam ouvido, embora achasse que sim. Voltou a gritar e desta vez ficou com a certeza de que o tinham ouvido, mas não lhe acenaram em resposta. Pelo contrário, começaram a remar para a outra margem o mais rapidamente que podiam.
Ayla reparou que uma das pessoas que estava na margem oposta também os tinha visto. Correu na direcção de outras pessoas e apontou para eles do outro lado do rio e depois essa pessoa e algumas das outras foram- -se embora apressadamente. Duas ou três pessoas ficaram até o barco chegar. à margem; depois partiram.
-- E de novo os cavalos, não d? -- disse ela.
Jondalar pensou ver uma lágrima a brilhar.
-- De qualquer forma não teria sido boa ideia atravessar o rio aqui. A Caverna dos Sharamudoi que eu conheço é deste lado.
-- Talvez tenhas razão-disse ela, fazendo sinal a Whinney para avançar.-Mas eles podiam ter atravessado no barco deles. Pelo menos podiam ter respondido ì tua saudação.
-- Ayla, pensa como devemos parecer estranhos sentados nestes cavalos. Devemos parecer vindos de algum mundo dos espíritos, com quatro patas e duas cabeças disse ele.-Não podes culpar as pessoas por te- rein medo de uma coisa que não conhecem.
Mais adiante, do outro lado da água, viam um espaçoso vale ao fundo das montanhas e quase ao mesmo nível que a água ao seu lado. Um rio bastante grande irrompia pelo meio e entrava no Grande Rio Mãe com uma turbulência que lançava redemoínhos em ambas as direcções e alar- gavam a sua largura. Agravando o jogo de contracorrentes, logo a seguir ao afluente a cordilheira sul que delimitava a margem direita do rio cur- vara para trás.
No vale, perto da confluência dos dois rios, mas numa encosta, viram várias habitações feitas de madeira, obviamente uma povoação. Em vol-
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ta, estavam as pessoas que lá viviam, boquiabertas com os viajantes que passavam do outro lado do rio.
-- Jondalar-disse Ayla --, vamos sair de cima dos cavalos.
-- Porquê?
-- Para aquelas pessoas pelo menos verem que somos pessoas e que os cavalos são apenas cavalos e não criaturas de duas cabeças com quatro patas-disse ela. Ayla desmontou e começou a andar à frente da égua.
Jondalar assentiu, lançou a perna por cima do dorso do cavalo e saltou para o chão. Pegando na corda que servia de rédea, seguiu-a. Mas mal a mulher tinha começado a andar, o lobo correu para ela e saudou-a como habitualmente. Saltou, pôs as paras nos seus ombros, lambeu-a e mor- discou-lhe delicadamente a face com os dentes. Quando saltou para o chão, qualquer coisa, talvez um rasto que atravessasse o rio, fez que se apercebesse das pessoas que os estavam a observar. Foi até à beira da margem e, erguendo a cabeça, começou a dar uma série de latidos que terminaram numa arrepiante canção de lobo.
-- Por que é que ele está a fazer isso? -- perguntou Jondalar.-Não sei. Ele também já não vê mais ninguém há muito tempo. Talvez esteja contente por os ter visto e os queira saudar-disse Ayla.-Eu também gostava, mas não podemos atravessar para o seu lado facilmente e eles não querem vir aqui.
Desde que tinham deixado para trás a grande curva do rio que tinha mudado o seu rumo para a direcção do sol que se punha, os viajantes tinham estado a desviar-se ligeiramente para sul no seu caminho para oeste. Mas do outro lado do vale, onde as montanhas viravam para trás, começaram a dirigir-se directamente para oeste. Estavam o mais a sul que chegariam na sua Viagem e era a estação mais quente do ano.
Durante os dias mais quentes do ano, com um sol incandescente a escaldar as planícies sem sombra, mesmo quando gelo da espessura de montanhas cobria um quarto da terra, o calor podia ser opressivo nas ex- tensões da parte sul do continente. Um vento forte, quente e permanente, que lhes dava cabo dos nervos apenas servia para agravar a situação. 0 homem e a mulher, cavalgando lado a lado, ou indo a pé pelas estepes escaldantes para que os cavalos descançassem, entraram numa rotina que tornava a viagem, senão mais fácil, pelo menos possível.
Acordavam com a primeira luz da madrugada a cintilar nos cumes mais altos a norte e, depois de um pequeno-almoço ligeiro, composto por chá quente e comida fria, punham-se a caminho antes de o dia estar completamente claro. A medida que o sol se ia erguendo no céu, incidia sobre as estepes com tal intensidade que se erguiam da terra fulgurantes ondas de calor. Uma leve camada de suor desidratante brilhava na pele extremamente bronzeada dos seres humanos e ensopava o pêlo do Lobo e
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dos cavalos. A língua do lobo saía-lhe da boca enquanto ele arfava com calor. Não sentia a menor vontade de se afastar sozinho para explorar ou caçar, mantendo-se a par com a Whinney e o Corredor que lá iam avançando pesadamente, de cabeça baixa. Os passageiros iam montados sem ânimo, deixando que os cavalos caminhassem à sua vontade, pouco falando durante o calor sufocante do meio do dia.
Quando já não aguentavam mais, procuravam uma praia plana, de preferência perto de águas paradas ou de um canal de corrente lenta do Grande Rio Mãe. Nem o Lobo resistia às correntes mais lentas, embora ainda hesitasse um pouco quando um rio corria mais depressa. Quando os seres humanos com os quais viajava viravam para o rio, desmontaram e começavam a desamarrar os cestos, corria em frente e era o primeiro a lançar-se à água. Se era um afluente, normalmente mergulhavam na água fresca e refrescante, atravessando antes de tirarem as cordas dos cestos-alforge ou a padiola.
Depois de revigorados com o banho, Ayla e Jondalar procuravam o que houvesse all perto para corner se não tivessem sobras suficientes ou não tivessem encontrado nada pelo caminho. A comida era abundante mesmo nas estepes quentes e poeirentas, particularmente no elemento aquá-tico fresco-se se soubesse onde e como apanhá-la.
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lho de três anos, mas sem prestar realmente atenção à sua forma. Mas a armação ficou-lhe na ideia, atd subitamente se lembrar da parte virada para trás junto à testa e voltou a trás para o ir buscar. As armações eram resistentes e duras e muito difíceis de partir, e aquela era exactamente do tamanho e da forma adequada. Añando-a um pouco, faria um excelente arpão.
Ayla continuava a pescar à mão em determinadas situações, da forma como Iza lhe ensinara. Jondalar ficava espantado quando a observava. O processo era simples, dizia constantemente a si próprio, embora não o tivesse conseguido dominar. Exigia apenas treino e habilidade e paciência Dinfinita paciência. Ayla procurava raízes ou pedaços de ramos a flutuar no rio ou rochas pendentes sobre a margem e depois peixes que gostavam de descansar nesses sítios. Viravam-se sempre contra a corrente, mexendo o músculos nadatórios e as barbatanas apenas o suficiente para se manterem no mesmo sítio, para não serem arrastados pela corrente.
Quando via uma truta ou um pequeno salmão, entrava dentro de água ajusante, deixava cair a mão dentro de água e ia caminhando lentamente rio acima. Movia-se ainda mais lentamente quando avistava o peixe, tentando não levantar lama ou agitar a água que faria que o nadador em descanso fugisse imediatamente. Cuidadosamente, por detrás dele, me- tia-lhe a mão por baixo, tocando-lhe ao de leve ou fazendo-lhe cócegas, o que o peixe parecia não notar. Quando chegava às guelras, agarravao rapidamente a atirava-o de dentro da água para a margem. Jondalar normalmente corria a apanhá-lo antes de voltar a saltar para dentro do rio.
Ayla também descobriu mexilhões de água doce, semelhantes àqueles que havia no mar perto da caverna do clã de Brun. Procurou plantas como fedegosa, arbusto de sal e tussilagem, com elevado teor de sal natural, para reabastecer as suas reservas bastante depauperadas, além de outras raízes, folhas e sementes que começavam a amadurecer. As perdizes eram vulgares nas pastagens abertas e na vegetação rasteira junto à água, com pequenas ninhadas juntando-se e formando grandes bandos. Os pássaros rechonchudos eram bons para corner e não eram difíceis de apanhar.
Descansavam durante o período de maior calor do dia, depois do meiodia, enquanto a comida para a sua refeição principal estava a ser cozinha- da. Havendo apenas árvores anãs junto ao rio, montaram a tenda como um abrigo para dar um pouco de sombra no violento calor da paisagem aberta. Mais ao fim da tarde, quando começava a ficar mais fresco, retomavam viagem. Viajando na direcção do pôr do Sol, utilizavam chapéus de palha entrelaçada para proteger os olhos. Começavam a procurar um lugar para passarem a noite quando a bola incandescente mergulhava abaixo do horizonte, montando um acampamento extremamente simples
ao lusco-fusco e, ocasionalmente, quando havia lua cheia e as estepes estavam inundadas pelo luar fresco, continuavam a viajar durante a noite.
A sua refeição da noite era relativamente simples, muitas vezes comida que tinha sobrado do meio-dia, com alguns legumes frescos, cereais ou carne, sea encontrassem pelo caminho. Preparavam coisas que podiam ser comidas rapidamente e frias para de manhã. Normalmente também davam de corner ao Lobo. Embora ele procurasse comida durante a noite, tinha desenvolvido goste por carne cozinhada e até comia cereais e legumes. Raramente montavam a tenda, muito embora as peles de dormir quentes lhes soubessem bem. As noites arrefeciam rapidamente e de manhã havia frequentemente neblina.
Ocasionais tempestades de Verão e chuvas fortes traziam um inesperado e multas vezes agradável refrescamento, embora às vezes depois a atmosfera ficasse ainda mais opressiva e Ayla detestava trovoadas. Faziam-lhe lembrar demasiado o som de tremores de terra. Os relâmpagos que rasgavam os céus, iluminando o céu da noite, enchiam-na sempre de temor, mas os relâmpagos que caíam perto eram os que mais preocupavam Jondalar. Odiava estar em terreno aberto quando eles ocorriam e sentia sempre vontade de se enfiar dentro das peles de dormir e tapar- -se com a tenda, embora resistisse e nunca o admitisse.
Àmedida que o tempo ia passando, além do calor, eram os insectes que eles mais notavam. Borboletas, abelhas, vespas e até moscas e alguns mosquites não eram particularmente incomodativos. Eram os mais pequenos, as nuvens de melgas, que mais problemas lhes davam. Mas se as pessoas se sentiam incomodadas, os animais ficavam atormentados. As persistentes criaturas estavam em todo o lado, nos olhos, nas narinas e na boca, e na pele suada sob o pêlo farto.
Os cavalos das estepes normalmente migravam para norte durante o Verão. O seu pêlo espesso e corpos compactos estavam adaptados para o frio e, apesar de haver lobos nas planícies do sul-nenhum predador existia em tantas zonas D o Lobo era de uma raça do norte. Ao longo do tempo, os lobos que viviam nas regiões do sul tinham feite adaptações às condições extremas do sul, com os seus Verões quentes e secos e Invernos que eram quase tão frios como na terra mais perto dos glaciares, mas que também podiam ter uma quantidade muite maior de neve. Por exemplo, largavam mais pêlo quando o tempo aquecia e a língua sempre de fora re- frescava-os mais eficientemente.
Ayla fazia tudo o que podia pelos animais em sofrimento, mas nem sequer os banhos diários no rio e várias medicações eliminavam por completo as minúsculas melgas. AS feridas abertas infestadas dos ovos de rá-pida maturação aumentavam apesar dos tratamentos da curandeira. Os cavalos e oLobo largavam pêlo às mãos-cheias, deixando peladas, e o seu pêlo espesso e brilhante ternou-se baço e sem vida.
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Enquanto aplicava uma loção balsâmica a uma ferida aberta pega- nhenta junto a uma das orelhas da Whinney, Ayla disse:
--Estou farta deste tempo quente e destas terríveis melgas! Será que nunca mais refresca?
-- Talvez ainda venhas a desejar este calor antes do fim da viagem, Ayla.
Gradualmente, ao continuarem a avançar rio acima junto à margem do grande rio, as terras altas acidentadas e os picos elevados do norte ficaram mais próximos e a altitude da cordilheira erodida de montanhas a sul aumentou. Com todas as curvas e contra-curvas no seu caminho para oeste, tinham-se vindo a desviar ligeiramente para norte. Depois viraram para sul, antes de fazerem uma curva apertada que começou a levá-los para noroeste, descrevendo um arco para norte e, finalmente, até para este durante certa distância, antes de curvar a certa altura e prosseguir de novo para noroeste.
Embora não soubesse exactamente porquê não existiam quaisquer marcos na terra que ele conseguisse identificar positivamente Jonda- lar sentiu que a paisagem lhe era de certa forma familiar. Se seguissem o rio, seriam levados para noroeste, mas ele não tinha a certeza de que este não voltaria a curvar para trás. Decidiu, pela primeira vez desde que tinham chegado ao grande delta, deixar a segurança do Grande Rio Mãe e seguir para norte junto a um afluente, até aos contrafortes das montanhas de picos altos e escarpados que estavam agora muito mais próximas do rio. O caminho que seguiram junto ao afluente virava gradualmente para noroeste.
Em frente, as montanhas começavam a unir-se; uma cordilheira, que se juntava ao longo arco da cordilheira de cumes cobertos de gelo, apro- ximava-se das terras altas erodidas a sul, que se tinham tornado mais es- carpadas, mais altas e mais geladas, atd ficarem separadas apenas por um estreito desfiladeiro. A cordilheira tinha outrora contido um profundo mar interior que era rodeado pelas altas montanhas. Mas, ao longo dos milénios, o curso de água por onde se escoava a acumulação anual de água começou a erodir o calcário, o arenito e o xisto das montanhas. O nível da bacia interior baixou lentamente para corresponder à altura do corredor que estava a ser escavado na rocha atd que o mar acabou por ser drena- do, deixando atrás de si o fundo plano que se tornaña num mar de erva.
O estreito desfiladeiro delimitava o Grande Rio Mãe com as suas paredes rugosas e a pique de granito cristalino. E as rochas vulcânicas, que tinham outrora sido afloramentos rochosos e intrusSes na pedra mais macia e erodível das montanhas, erguiam-se de ambos os lados. Era uma longa passagem através das montanhas para as planícies de sul e finalmente para o Mar Beran, e Jondalar sabia que não havia forma de acompanhar o rio quando este entrava no desfiladeiro. Não havia outra alternativa senão contorná-lo.
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ìk excepção da ausência do poderoso caudal, o terreno mantinha-se inalterado quando viraram e começaram a seguir o pequeno ribeiro: pastagens abertas e secas, com vegetação rasteira atrofiada junto à água-mas Ayla teve uma sensação de perda. A ampla extensão do Grande Rio Mãe tinha sido sua companheira durante tanto tempo que era desconcertante não ver a sua presença reconfortante all ao seu lado, a indicarlhes o caminho. Ao avançarem na direcção dos contrafortes e à medida que iam ganhando altitude, os arbustos tornavam-se mais frondosos, mais altos e com mais folhas, estendendo-se mais pelas planícies.
A ausência do grande rio também afectou Jondalar. Os dias confundiam-se uns com os outros com tranquilizante monotonia enquanto via- javam ao lado das suas águas produtivas sob o calor normal do Verão. A previsibilidade da sua imensa abundância tinha-o embalado e tornado complacente, atenuando a sua ansiedade e preoc.upação em levar Ayla para o seu lar em segurança. Depois de se afastarem da generosa Mãe de todos os rios, as suas preocupações voltaram e a paisagem em mutação f'e-lo pensar na paisagem em frente. Começou apensar nas suas pro- visões e se levariam comida suficiente. Não tinha grande certeza de con- seguirem peixe facilmente e tinha ainda menos certeza de que conseguiriam alimentos nas montanhas arborizadas.
Jondalar não estava familiarizado com a organização da vida selvagem nas regiões arborizadas. Os animais das planícies tendiam a congregar-se em manadas e podiam ser vistos à distância, mas a fauna que vivia na floresta era mais solitária e aí havia árvores e vegetação a ocultálos. Quando vivera com os Sharamudoi, caçara sempre com alguém que conhecia a região.
Ametade da gente Shamudoi gostava de caçar camurças nas escarpas altas e conheciam os hábitos dos ursos, javalis, bisontes da floresta e outras esquivas presas das regiões arborizadas. Jondalar recordou que Thonolan tinha desenvolvido uma preferência por caçar com eles nas montanhas. Por outro lado, a metade Ramudoi, conhecia o rio e caçava as suas criaturas, especialmente os gigantescos esturjões. Jondalar tinha- -se interessado mais pelos barcos e em aprender sobre a vida no rio. Em
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bora numa ocasião tivesse subido às montanhas com os caçadores de ca- murças, não gostava particularmente de alturas.
Avistando uma pequena manada de veados, Jondalar decidiu que se- ria uma boa oportunidade para tentar obter reservas de carne que lhes desse para os próximos dias até chegarem aos Sharamudoi, e talvez levar alguma para compartilhar com eles. Ayla mostrou-se entusiasmada quando ele fez a sugestão. Ela gostava de caçar e ultimamente não tinha tido muitas oportunidades de o fazer, a não ser abater algumas perdizes e outra caça pequena, o que normalmente fazia com a sua funda. O Grande Rio Mãe tinha sido tão generoso que não tinha sido praticamente necessário caçar.
Encontraram um sítio para montar o acampamento perto do pequeno rio, deixaram os cestos-alforge e a padiola e partiram na direcção da manada munidos dos seus lançadores e de lanças. O Lobo estava excita- do; tinham alterado a rotina e as lanças e os lançadores indicaram-lhe as suas intenções. A Whinney e o Corredor também pareciam mais vivaços, ainda que fosse por já não transportarem os cestos-alforge ou arrastarem os paus da padiola.
O grupo de veados era uma manada de machos e as armações dos antigos alces tinham uma espessa camada de veludo. No Outono, o tempo da época do cio, quando os chifres ramificados tinham já atingido o seu tamanho máximo desse ano, a cobertura macia de pele e vasos sanguí-neos secava e caía-com a ajuda dos veados que os esfregavam em árvores ou rochas.
A mulher e o homem pararam para avaliar a situação. O Lobo estava cheio de expectativa, ganindo e fazendo falsas partidas. Ayla teve de o mandar estar quieto para que ele não os perseguisse e espantasse a manada. Jondalar, satisfeito por ver que ele se acalmara, teve um pensa- mente fugaz de admiração pela forma como Ayla o tinha treinado, e depois voltou a estudar os veados. O facto de estar escarranchado no cavalo dava ao homem uma visão geral, vantagem que não teria se fosse a pé. Vários dos animais tinham parado de pastar, apercebendo-se da presença dos recém-chegados, mas os cavalos não eram ameaçadores. Eram ruminantes como eles e eram geralmente telerados ou ignorados se não mostrassem medo. Mesmo com a presença dos seres humanos e do lobo, os veados ainda não estavam suficientemente preocupados para fugirem.
Olhando para a manada e tentando decidir qual deles atacar, Jondalar sentiu-se tentado por um magnífico veado adulto com uma armação impressionante, que parecia estar a olhar directamente para ele, como se por sua vez estivesse a avaliar o homem. Se estivesse com um grupo de caçadores que precisavam de comida para toda uma Caverna e quisesse mostrar a sua bravura, talvez tivesse considerado perseguir o majestoso animal. Mas o homem tinha a certeza de que, quando o Outono trouxesse a sua época de Prazeres, muitas fêmeas estariam ansiosas por se
juntar à manada que o escolhera. Jondalar não conseguiu decidir-se a matar um animal tão altivo e belo só para obter um pouco de carne. Escolheu um outro veado.
mAyla,vês aquele junto ao arbusto alto? Na orla da manada? mAmulher assentiu, m Parece estar em boa posição para se afastar dos outros. Vamos tentar apanhá-lo.
Discutiram a sua estratégia e depois separaram-se. OLobo observou atentamente a mulher a cavalo e, ao seu sinal, arremeteu contra o veado que ela indicara. Ayla, montada na égua, foi imediatamente atrás dele. Jondalar iria pelo outro lado, com o lançador e a lança preparados.
O veado pressentiu perigo, o mesmo acontecendo ao reste da manada. Estavam a dispersar em tedas as direcções. O veado que eles tinham escolhido fugiu do lobo que o atacara e da mulher que o perseguia, direito ao homem montado no garanhão. Aproximou-se tanto que o Corredor se empinou.
Jondalar estava pronto a arremessar a lança, mas o súbito movimento do garanhão prejudicou a sua pontaria e distraiu-o. O veado mudou de direcção, tentando fugir do cavalo e do ser humano que lhe impediam a passagem, mas deparou com um enorme lobo no seu caminho. Cheio de medo, o veado deu um salte para o lado, para longe do predador que rosnava, e correu por entre Ayla e Jondalar.
Quando o veado deu novo salto, Ayla mudou o peso do corpo ao fazer pontaria. A Whinney compreendeu o sinal e galopou atrás dele. Jondalar recuperou o equilrio e lançou a sua lança contra o veado em fuga, no mo- mente em que Ayla soltava a sua.
A altiva armação estremeceu uma vez e uma outra. As duas lanças ti- nham-no atingido com grande força, quase em simultâneo. O grande veado tentou dar outro salto, mas era demasiado tarde. As lanças tinham atingido o seu alvo. O veado tropeçou e depois caiu desamparado.
As planícies estavam vazias. A manada tinha desaparecido, mas os caçadores não repararam, ao saltarem dos cavalos junto ao veado. Jondalar tirou a sua faca de cabo de osso da bainha, agarrou na armação aveludada, puxou a cabeça para trás e cortou a garganta do grande antigo alce. Ficaram em silêncio enquanto observavam o sangue a formar uma poça em volta da cabeça do veado. A terra seca absorveuo.
m Quando voltares para a Grande Terra Mãe, dá-Lhe os nossos agradecimentos
m disse Jondalar ao veado que jazia morto no chão.
Ayla assentiu, concordando. Estava habituada àquele seu ritual. Jondalar dizia palavras semelhantes de cada vez que matavam um animal, mesmo que fosse pequeno, mas pressentia que ele nunca o fazia por rotina, só por dizer. Havia sentimento e reverência nas suas palavras. O seu agradecimento era verdadeiro.
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As grandes planícies baixas e ondulantes deram lugar a montes íngremes e apareceram bétulas no meio da vegetação rasteira, depois matas de betuláceas e falas, com alguns carvalhos. Nas elevações mais baixas, a região assemelhava-se aos montes arborizados por onde tinham passado perto do delta do Grande Rio Mãe. Subindo mais, começaram a ver abetos e espruces e alguns lariços e pinheiros no meio das enormes árvores de folha decídua.
Chegaram a uma clareira, um outeiro aberto e arredondado um pouco mais alto que a floresta envolvente. Jondalar parou para se localizar, mas Ayla parou por causa da vista.',Estavam a maior altitude do que ela se apercebera. Para oeste, olhando para baixo por cima das copas das árvores, via o Grande Rio Mãe à distância, com todos os seus canais de novo unidos, a serpentear por um desfiladeiro profundo de paredes rochosas a pique. Percebia agora por que é que Jondalar procurara um caminho em volta.
-- Já fui num barco por aquela passagem-disse ele.-Chama-se o Portão.
-- O Portão? Queres dizer como o portão que se faz numa cerca? Para fechar a abertura e prender os animais lá dentro? -- perguntou Ayla.
--Não sei. Nunca perguntei, mas talvez tenha sido daí que veio o nome. Embora seja mais como a cercadura que se faz de ambos os lados que dão para o portão. Continua durante uma distância bastante grande. Tenho pena de não te poder levar por lá-disse, sorrindo, w Talvez ainda leve.
Dirigiram-se para norte, em direcção à monta,nha, descendo a encosta do outeiro e depois entrando em terreno plano. A sua frente, como uma imensa parede, havia uma longa linha de árvores, o início de uma profunda e densa floresta mista de árvores de folha decídua e perene. No momento em que entraram na sombra das copas altas das árvores, viram- -se num mundo diferente. Os seus olhos levaram alguns instantes a adaptar-se do sol intenso à sombra profunda e silenciosa da floresta primitiva, mas sentiram imediatamente o ar fresco e húmido e o cheiro fétido do luxuriante crescimento e decomposição.
Musgo espesso cobria o solo, formando um manto ininterrupto de verde, que alastrava sobre tochas, se espalhava sobre as formas arredonda- das de árvores antigas há muito caídas e envolvia cepos de árvores em desintegração e árvores vivas, indiferentemente. O grande lobo que cor- ria à sua frente saltou para um tronco apodrecido, desfazendo a antiga madeira que estava lentamente a dissolver-se de novo para o solo, expon- do pequenos vermes brancos que se reterciam, surpreendidos pela luz do dia. O homem e a mulher desmontaram para lhes ser mais fácil encontrar o caminho através do chão de uma floresta coberta de restos de vida e de novos rebentos regenerantes.
Plantas novas cresciam em troncos apodrecidos cobertos de musgo e
pequenas árvores procuravam um lugar ao sol onde uma árvore atingi- da por um raio tinha arrastado consigo várias outras na sua queda. Moscas zumbiam em volta de espigões com flores cor-de-rosa de gualtérias que balançavam na brisa sob os fulgurantes raios de sol que chegavam ao chão da floresta através de uma abertura nas copas das árvores. O silêncio era impressionante; os mais pequenos sons eram amplificados. Eles falavam em murmúrios sem qualquer razão.
Havia fungos por todo o lado; cogumelos de tedas as variedades para onde quer que olhassem. Ervas sem folhas, como alfazema e dentilária e várias pequenas orquídeas com flores de cores vivas, multas vezes sem folhas verdes, que cresciam das raízes de outras plantas vivas ou dos seus restos em decomposição. Quando Ayla viu vários pequenos caules claros e de aspecto ceroso, sem folhas, com cabeças que ondulavam ao vento, e parou para apanhar algumas.
w Isto ajudará a aliviar os olhos do Lobo e dos cavalos m explicou, ç Jondalar reparou que um sorriso sentido e triste lhe aflorou o rosto.-E a planta que a Iza usava para os meus olhos quando eu chorava.
Aproveitou ainda para apanhar alguns cogumelos que tinha a certeza de que eram comestíveis. Ayla nunca arriscava; era extremamente cuidadosa com os cogumelos. Havia muitas variedades que eram deliciosas, muitas que não eram lá muito saborosas mas que eram inofensivas, outras que tinham utilidade medicinal, e outras ainda que faziam ligeiramente mal; algumas ajudavam a ver os mundos dos espíritos e algumas, poucas, eram mortíferas. E algumas confundiam-se facilmente com outras.
Tiveram alguma dificuldade em atravessar a floresta com a padiola com os seus paus muito espaçados. Ficava frequentemente presa entre as árvores muito juntas. Quando Ayla concebera aquele método simples mas eficiente de utilizar a força da Whnney para a ajudar a transportar obj ectos demasiado pesados para ela carregar, engendrara uma forma de o cavalo subir o caminho estreito e íngreme que dava para a sua caverna, aproximando mais os paus. Mas com o barco circular montado sobre ela não conseguiam mover os compridos paus e tinham dificuldade em contornar objectes ao mesmo tempo que os arrastavam. A padiola era muito eficaz em terreno acidentado, pois não ficava presa em buracos ou nas valas ou na lama, mas exigia uma paisagem aberta.
Levaram o reste da tarde naquilo. Por fim, Jondalar desamarrou por completo o barco circular e arrastou-o ele próprio. Estavam a começar a pensar seriamente em abandoná-lo. Tinha sido mais do que útil na travessia dos muitos rios e afluentes mais pequenos que corriam para o Grande Rio Mãe, mas não estavam seguros de que valesse a pena o trabalho de o levar através daquela floresta tão densa. Mesmo que deparas- sem com mais rios, decerto que os atravessariam sem o barco e este estava a atrasálos.
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A escuridão foi apanhá-los ainda na floresta. Montaram acampamento para passarem a noite, mas sentiam-se ambos inquietos e mais expostos que no meio das vastas estepes. Em terreno aberto, mesmo no escuro, conseguiam ver alguma coisa: nuvens, ou estrelas, silhuetas de formas em movimento. Na floresta densa, com troncos massivos de árvores altíssimas que até escondiam animais grandes, a escuridão era absoluta. O silêncio amplificante que lhes parecera inquietante quando tinham entrado no mundo arborizado era aterrorizador à noite, no coração da floresta, embora eles tentassem não o mostrar.
Os cavalos também estavam tensos e mantiveram-se perto do conforto familiar da fogueira. O Lobo também ficou no acampamento. Ayla ficou contente e, como lhe deu um bocado da sua comida, achou que de qualquer maneira o teria mantido all por perto. Até Jondalar ficou satisfeito; era tranquilizador ter um grande lobo amigável all perto. Cheirava coisas, sentia coisas que um ser humano não conseguia.
A noite era mais fria na floresta húmida, com uma espécie de humidade peganhenta tão pesada que parecia chuva. Meteram-se nas peles de dormir cedo e, embora estivessem cansados, conversaram noite dentro, pois ainda não estavam preparados para confiar no sono.
-- Não sei se nos devemos continuar a preocupar com o barco-comentou Jondalar.-Os cavalos podem passar os ribeiros mais pequenos sem que praticamente nada fique molhado. Nos rios mais fundos, podemos içar os cestes-alforge sobre o seu dorso em vez de os deixarmos pendurados.
-- Uma vez amarrei as minhas coisas a um tronco. Depois de deixar o Clã e andar à procura de pessoas como eu, cheguei a um rio largo. Atravesseio a nadar e a empurrar o tronco-disse Ayla.
-- Deve ter sido difícil e talvez mais perigoso por não teres os braços livres.
--Foi difícil, mas tinha de chegar ao lado de lá e não consegui descobrir outra maneira-disse Ayla.
Ficou calada durante algum tempo, a pensar. O homem, deitado ao seu lado, pensou se ela teria adormecido; depois ela revelou o rumo que os seus pensamentos tinham tornado.
-- Jondalar, tenho a certeza de que já viajámos muito mais longe do que eu viajei antes de encontrar o meu vale. Já andámos muito, não andámos?
-- Sim, andámos muito-respondeu ele, dando uma resposta ligeiramente reservada. Pôs-se de lado e soergueu-se sobre um braço para poder vê-la.-Mas ainda estamos muito longe da minha casa. Já estás cansada de viajar, Ayla?
--Um pouco. Gostaria de descansar durante algum tempo. Depois estarei pronta para voltar a viajar. Desde que esteja contigo, não me impor-
to quanto teremos de andar. Sd não sabia que este mundo era tão grande. Será que alguma vez acaba?
--A oeste da minha casa, a terra acaba nas Grandes,,guas. Ninguém sabe o que há para além delas. Conheço um homem que diz que viajou ainda mais longe e que viu grandes águas a este, embora muita gente duvide. A maioria das pessoas viaja um pouco, mas poucas viajam para muito longe e têm dificuldade em acreditar nas histdrias de longas Viagens, a menos que vejam qualquer coisa que as convença. Mas há sempre um pequeno número que viaja para muito longe.-Jondalar deu uma risadinha depreciativa.-Embora nunca esperasse ser um deles. O Wymez viajou em volta do Mar do Sul e descobriu que há mais terra ainda mais a sul.
--Também encontrou a mãe de Ranec e trouxe-a com ele. É difícil duvidar de Wymez. Alguma vez viste mais alguém com pele castanha como a de Ranec? O Wymez teve de viajar para muito longe para encontrar uma mulher como aquela-disse Ayla.
Jondalar olhou para o rosto que brilhava à luz da fogueira, sentindo um profundo amor pela mulher que estava ao seu lado mas também uma grande preocupação. Aquelas conversas sobre longas Viagens faziam-no sempre pensar no longo caminho que ainda tinham que fazer.
-- No norte, a terra termina em gelo-continuou ela.-Ninguém pode ir além do glaciar. m A menos que vão de barco-disse Jondalar.-Mas disseram-me
que a única coisa que se encontra é uma terra de gelo e neve, onde os grandes ursos brancos espíritos vivem, e dizem que há lá peixes maiores que mamutes. Algumas das pessoas do oeste afirmam que existem shamans suficientemente poderosos para os Chamar a terra. E uma vez em terra, não podem voltar, mas...
Subitamente ouviram um grande estrondo no meio da árvores. O homem e a mulher deram ambos um salte de susto, depois ficaram absolutamente imóveis, sem proferir qualquer som. Quase não respiravam. O Lobo rosnou surda e ferozmente, mas Ayla pôs o braço por cima dele para o impedir de sair dali. Ouviram mais ruídos e depois silêncio. Passado algum tempo, o Lobo também deixou de rosnar. Jondalar não sabia bem se conseguiria dormir alguma coisa naquela noite. Por fim levantou-se para pôr outra acha na fogueira, satisfeito por ter encontrado alguns ramos partidos de born tamanho que podia partir com o seu machado de pedreneira com cabo de maním.
O glaciar que temos de atravessar não é a norte, pois não?--perguntou Ayla quando ele voltou para a cama, pois continuava apensar na sua Viagem.
-- Born, é a norte daqui, mas não tão longe como a grande parede de gelo a norte. Há uma outra cordilheira de montanhas a oeste destas e o
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gelo que temos de atravessar é numas terras altas a norte dessas montanhas.
-- É difícil atravessar gelo?
-- Faz muito frio e às vezes há tempestades terríveis. Na Primavera e no Verão derrete um pouco e o gelo fica podre. Abrem-se grandes rachas. Se se cai numa racha funda, ninguém nos consegue tirar de lá. No Inverno, a maior parte das rachas ficam cheias de neve e de gelo, embo-
ra possa continuar a ser perigeso.
Avia estremeceu subitamente.
Disseste que havia um caminho em volta. Por que é que temos de atravessar o gelo?
-- É a única forma de evitarmos o terñtório dos cabe.., do Clã.-Ias a dizer território dos cabeças achatadas. m É apenas o nome que eu sempre ouvi, Ayla-tentou explicar Jondalar.
-- E o que toda, a gente lhes chama. Vais ter de te habituar a essas
palavras, sabes. E como a maioria das pessoas lhes chama. Ela ignorou o comentáño e continuou: m Por que é que temos de os evitar?
Term havido alguns problem as. Jondalar franziu a testa.-Nem sequer sei se aqueles cabeças achatadas do norte são iguais aos do teu Clã. Parou de falar e depois continuou. Mas não foram eles que deram origem aos problemas. A vinda para cá, ouvimos falar de um grupo de jovens que os andavam a... perseguir. São Losadunai, as pessoas que vivem perto planalto do glaciar.
--Por que é que os Losadunai hão-de querer arranjar problemas com o Clã? -- Avia estava intrigada.
--Não são os Losadunai. Não são todos. Eles não querem problemas. É apenas aquele grupo de jovens. Creio que acham que é divertido, pelo menos foi assim que começou.
Ayla achou que a ideia que algumas pessoas tinham de divertimento não lhe parecia nada divertida, mas era a sua Viagem que ela não conseguia afastar do pensamento o quanto mais ainda tinham que viajar. Pela forma como Jondalar falava, ainda nem sequer estavam perto. Decidiu que talvez fosse melhor não pensar demasiado para a frente. Tentou afastar aquelas ideias do espírito.
Olhou fixamente para a escuñdão, lamentando não conseguir ver o céu através das copas altas das árvores.
-- Jondalar, acho que vejo estrelas lá em cima. Consegues vêlas? Onde? D disse ele, olhando para cima.
--Além. Tens de olhar directamente para cima e depois um pouco para trás. Vês?
D Sim... Sim, creio que sim. Não é nada que se pareça com o caminho
de leite da Mãe, mas vejo algumas estrelas-disse Jondalar.
-- Que é o caminho de leite da Mãe?
-- Essa é outra parte da história sobre a Mãe e o Seu filho D explicou ele.
D Conta-ma."
-- Não sei bem se me lembro. Deixa-me cá ver, é mais ou menos assim... DE começou a entoar o ritmo sem palavras e depois começou a meio de um verso:
O Seu sangue coagulou e em terra vermelho-ocre secou, Mas a criança luminosa todo o esforço justificou.
A grande alegria da Mãe.
Um lindo rapaz cintilante.
Ergueram-se montanhas e dos seus picos fogo jorrou
E com os Seus seios portentosos Ela Seu Filho amamentou
Ele mamou com tal furor que um mar de centelhas alto voou,
E o leite quente da Mãe um caminho no céu rasgou.
-- É isso-concluiu ele. D A Zelandoni ficaria satisfeita em saber que eu me lembro.
m É maravilhoso, Jondalar. Adoro o som, o som do que faz sentir.
Ayla fechou os olhos e repetiu várias vezes para si em voz alta os versos.
Jondalar escutou-a e voltou a lembrar-se de como ela conseguia me- morizar rapidamente. Repetiu-os com exactidão tendo-os apenas ouvido uma vez. Ele gostaria que a sua memória e que a sua capacidade de aprender novas línguas fossem tão boas como as dela.
-- Não é realmente verdade, pois não? perguntou Avia.
--Que é que não é verdade?
-- Que as estrelas são o leite da Mãe.
--Não creio que sejam realmente leite D disse Jondalar. DMas creio que há alguma verdade naquilo que a história realmente significa. Toda a história.
-- Que é que a história significa?
-- Conta como foi o começo das coisas, como fomos criados. Que fomos feitos pela Grande Mãe Terra, do Seu próprio corpo; que Ela vive no mesmo lugar do sol e da lua e que é a Grande Mãe Terra deles como Ela é nos-
sa; e que as estrelas são parte do seu mundo.
Avia assentiu.
D Pode haver alguma verdade nisso-disse ela. Gostava do que ele dizia e pensou que talvez, um dia, gostaria de conhecer aquela Zelandoni e de lhe pedir que lhe contasse a história toda.-O Creb disse-me que as estrelas eram os lares das pessoas que vivem no mundo dos espíritos.
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De todas as pessoas que regressaram e de todas as pessoas que ainda nâo nasceram. E o lar dos espíritos dos tótemes.
--Também pode haver alguma verdade nisso J disse Jondalar. "Os cabeças achatadas devem realmente ser quase humanos", pensou. Nenhum animal pensaria assim.
-- Ele uma vez mostrou-me onde era o lar do meu totem, o Grande Leão das Cavernas-disse Ayla e, reprimindo um bocejo, virou-se de lado.
Afia tentou ver o caminho em frente, mas enormes troncos de árvore, cobertos de musgo, taparam-lhe a vista. Continuou a subir, sem saber bem para onde la ou por que é que la, desejando apenas poder parar para descansar. Estava tão cansada. Se ao menos se pudesse sentar. O tronco à sua frente era convidativo, se lá conseguisse chegar, mas parecia-lhe sempre um passo mais distante. Depois viu-se em cima dele, mas este cedeu sob ela, desfazendo-se em madeira podre e em larvas que se contor- claro. Ela estava a cair através dele, a esgatanhar a terra e a tentar voltar à superfície.
Depois a floresta densa desapareceu e ela estava a subir pela encosta íngreme de uma montanha através de uma mata aberta, ao longo de um caminho que lhe era familiar. No cimo havia um prado de montanha onde pastava uma pequena família de veados. Avelãzeiras cresciam contra a parede de rocha da montanha. Ela estava com medo e sabia que estaria em segurança por detrás dos arbustos, mas não conseguia encontrar o caminho. A abertura estava tapada pelas avelãzeiras que estavam a crescer e com o tamanho de enormes árvores, com troncos cobertos de musgo. Tentou ver o caminho em frente, mas a única coisa que conseguia ver eram as árvores, e estava a escurecer. Sentiu medo, mas depois, à distância, viu alguém a mover-se através da sombra espessa.
Era Creb. Estava de pé em frente à entrada de uma pequena caverna, a tapar-lhe o caminho, a dizer-lhe com sinais de mãos que ela nãopodia ficar all. Aquele não era o seu lugar. Tinha de se ir embora, encontrar outro sítio, o sítio onde pertencesse. Tentou ensinar-lhe o caminho, mas es- tara escuro e ela não via bem o que ele estava a dizer, apenas que tinha de continuar a andar. Depois ele estendeu o seu braço são e apontou.
Quando ela olhou em frente, as árvores tinham desaparecido. Recomeçou a subir, na direcção da entrada de uma outra caverna. Embora ela soubesse que nunca a tinha visto untes, a caverna era-lhe estranhamente familiar, com um pedregulho numa posição pouco natural recortado em silhueta contra o céu por cima dele. Quando ela olhou para trás, Creb es- tara a ir-se embora. Ela chamou-o, implorando-lhe.
Creb! Creb! Ajuda-me! Não vás/
PLANÍCIES DE PASSAGEM I
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J Ayla! Acorda! Estás a sonhar-disse Jondalar, abanando-a sua- vemento.
Ela abñu os olhos, mas a fogueira tinha-se apagado e estava escuro. Agarrou-se ao homem.
-- Oh, Jondalar, era o Creb. Estava a tapar-me o caminho. Não me deixou entrar.., não me deixou ficar. Estava a tentar dizer-me qualquer coisa, mas estava tão escuro que eu não consegui ver. Estava a apontar para uma caverna e esta tinha qualquer coisa de familiar, mas ele recu- souse a ficar.
Jondalar sentia-a a tremer nos seus braços enquanto a abraçava, con- fortando-a com a sua presença. Subitamente, ela sentou-se.
--Aquela caverna! A caverna onde ele não me deixou entrar era a minha caverna. Foi para lá que eu fui depois de o Durc nascer, quando tive medo que não me deixassem ficar com ele.
--Os sonhos são tão difíceis de compreender. Por vezes uma zelandoni consegue dizer-nos o que significam. Talvez ainda sofras por teres dei- xado o teu filho-disse o homem.
-- Talvez-disse ela. Sentia de facto dor por ter deixado Durc, mas se era isso o que o sonho significava, por que é que o estava a ter agora? Por que não depois de ter estado na ilha, a olhar para o Mar Beran, a ton- tar ver a península, a chorar a Sua última despedida? Havia qualquer coisa que fazia que ela sentisse que o sonho era mais que isso. Por fim aconchegou-se e ambos dormitaram durante algum tempo. Quando ela voltou a acordar era dia, embora ainda estivessem na penumbra sombria da floresta.
De manhã, Ayla e Jondalar partiram para norte a pé, com os paus da padiola amarradosjuntos e presos sobre o meio do barco circular. Com cada um a pegar numa das extremidades, conseguiam erguer os paus e o barco, fazendo-o passar por cima e em volta dos obstáculos com muito mais facilidade que tentando arrastá-lo com os cavalos. Também serviu para que os cavalos descansassem, pois apenas tinham que se preocupar com os cestos-alforge e com as suas próprias paras. Mas, passado algum tempo, sem a mão do homem sobre o seu dorso a controlá-lo, o Corredor teve tendência a afastar-se para pastar um pouco as folhas das árvores novas, pois o pasto não era abundante. Fez um ligeiro desvio para o lado e para trás quando cheirou erva numa clareira onde o vento tinha der- rubado várias árvores, permitindo assim que o sol entrasse.
Jondalar, cansado de ir atrás dele, tentou durante algum tempo segurar a corda do Corredor e a sua extremidade dos paus, mas era-lhe difí-cil ver quando Ayla ia erguer os paus, ver onde ele próprio punha os pés e ter cuidado em não estar a levar o jovem cavalo para algum buraco ou algo ainda pior. Lamentou que o Corredor não o seguisse sem rédea ou ar
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nês, como a Whinney seguia a Ayla. Por fim, quando Jondalar acidental- mente magoou Ayla com os paus, ela fez uma sugestão.
-- Por que é que não amarras a corda do Corredor à Whinney? m per- gunteu ela. m Sabes que ela me segue a mim e term cuidado onde põe as patas e não fará que o Corredor se afaste; além disso, ele está habituado a segui-la. Assim não tens de te preocupar que ele se afaste ou se meta nalgum sarilho; só terás de te preocupar com a tua extremidade dos paus.
Ele parou por instantes, de testa franzida; depois, subitamente, deu um grande sorriso.
m Por que é que eu não pensei nisso? m disse.
Embora tivessem lentamente vindo a ganhar elevação, quando a terra começou a ficar notoriamente mais íngreme a floresta mudou de características bastante abruptamente. As árvores tornaram-se mais espar- sas e eles depressa deixaram para trás as árvores decíduas. As árvores dominantes passaram a ser os abetos e os espruces, sendo as restantes árvores decíduas, mesmo as das mesmas variedades, muito mais pequenas.
Chegaram ao cimo de um cume e olharam para um vasto planalto que descia suavemente e se estendia quase plano durante uma certa distância. Uma floresta principalmente de coníferas, com abetos verde-escuros, espruces e pinheiros, acentuada por alguns lariços cujas agulhas começavam já a ficar douradas, dominava o planalto. Havia igualmente prados verde-dourados, sapicados de pequenos lagos que reflectiam o céu límpido e as nuvens à distância. Um rio rápido compartilhava o espaço, alimentado por cascatas cantantes que jorravam pela encosta da montanha ao fundo. Erguendo-se acima do planalto, e enchendo o céu, a deslumbrante vista de um elevado pico com o cume branco, parcialmente rapado pelas nuvens.
Parecia tão perto que Ayla sentia que quase conseguia estender a mão e tocar-lhe. O sol por detrás dela iluminava as cores e as formas da pedra da montanha; rocha castanha claríssima a sair da paredes cinzento- -claras; faces quase brancas contrastando com o cinzente-escuro das colunas estranhamente regulares que tinham emergido do núcleo de fogo da terra e arrefecido nas formas angulosas da sua estrutura de cristal bá-sica. E a cintilar acima disso viram o belo gelo azul-esverdeado de um gla- ciar verdadeiro, orlado de neve que ainda permanecia nos sítios mais altos. E enquanto observavam, como que por magia, o sol e as nuvens de chuva criaram um arco-íris resplandecente sobre a montanha.
O homem e a mulher ficaram a olhar maravilhados, a absorver a beleza e serenidade. Ayla pensou se o arco-íris se destinaria a dizer-lhes qualquer coisa, ainda que fosse apenas que eram bem-vindos. Reparou que o ar que respiravam era deliciosamente fresco e respirou com alívio por estar longe do calor sufocante da planície. Depois apercebeu-se su- bitamente de que os horríveis e incomodativos mosquitos tinham desa-
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parecido. Para ela, não precisavam de dar nem mais um passo para lá daquele planalto. Teria feito o seu lar all mesmo.
Virou-se, a sorrir, para olhar para o homem. Jondalar ficou momentaneamente estupefacto com a pura força das emoçSes de Ayla, com o seu prazer na beleza daquele sítio e o seu desejo de all ficar, mas sentiuo como prazer pela sua beleza e desejou-a. Desejou-a naquele instante e mostrou-o nos seus olhos profundamente azuis e na sua expressão de amor. Ayla sentiu a força dele, um reflexo da sua própria força, mas trans- mutada e aumentada através dele.
Montados nos seus cavalos, olharam-se nos olhos, transfixos por qualquer coisa que não conseguiam explicar mas cuja força sentiam: as suas emoções idênticas, embora únicas; a força de um carisma que ambos pos- suíam, dirigida um ao outro; e a força do seu amor mútuo. Sem pensar, inclinaram-se um para o outro-o que os cavalos interpretaram erradamente. A Whinney começou a descer a encosta e o Corredor seguiu-a. O movimento fez que a mulher e o homem voltassem a ter consciência de onde estavam. Sentindo um calor e uma ternura inexplicável, e um ligeiro embaraço por não saberem exactamente o que tinha acontecido, sorriram um ao outro com uma expressão que encerrava uma promessa e continuaram a descer a encosta, virando para noroeste para seguirem ao longo do planalto.
Na manhã em que Jondalar pensou que chegariam ao aldeamento Sharamudoi o ar tinha um toque a geada, prenunciando a mudança das estações, e Ayla sentiu-se contente. Enquanto atravessavam a cavalo as encostas arborizadas, ela quase conseguia acreditar que já lá tinha estado antes, se não soubesse que de facto assim não era. Por qualquer razão, estava sempre à espera de reconhecer uma qualquer marca do terreno. Tudo lhe parecìa extremamente familiar: as árvores, as plantas, as encostas, o aspecto da terra. Quanto mais via, mais em casa se sentia.
Quando viu as avelãs, ainda na árvore, nas suas cascas cobertas de picos verdes, exactamente como gostava delas, teve de parar para apanhar algumas. Enquanto as partia com os dentes, ocorreu-lhe subitamente a razão pela qual sentia que conhecia aquela zona. O facto de lhe parecer familiar era por se assemelhar à região montanhosa na extremidade da península, em volta da caverna do clã de Brun. Ela tinha crescido num sítio muito parecido com aquele.
A área também estava a tornar-se mais familiar a Jondalar, com toda a razão, e quando encontrou um carreiro nitidamente marcado que reconheceu, que descia em direcção a um caminho que dava para a parte exterior da face de um penhasco, soube que já não estavam longe. Sentia a excitação a aumentar dentro de si. Quando Ayla encontrou um grande silvado cheio de espinhos, alto no meio e com grandes ramos pesados com
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amoras sumarentas, ele sentiu uma ligeira irritação por ela querer atrasar a sua chegada só para apanhar algumas.
-- Jondalar! Pára. Olha. Amoras! -- exclamou Ayla, deslizando de ci-
ma da Whinney e correndo para o silvado.
-- Mas estamos quase lá.
-- Podemos levar-lhes algumas.-Tinha a boca cheia.-Não como amoras como estas desde que deixei o Clã. Prova-as, Jondalar! Já algu- ma vez comeste alguma coisa tão doce e saborosa? -- Tinha as mãos roxas de apanhar as amoras às mãos-cheias, metendo-as todas na boca ao mesmo tempo.
Ao olhar para ela, Jondalar subitamente riu-se.
-- Devias ver-te m disse.-Pareces uma garota, toda suja de amoras e toda excitada.-Abanou a cabeça e continuou a rir. Ela não respondeu. Tinha a boca demasiado cheia.
Ele apanhou algumas, decidiu que eram doces e saborosas e apanhou mais umas tantas. Depois de corner alguns punhados de amoras, parou.
--Pensei que tinhas dito que íamos apanhar algumas para lhes levarmos.
Nem sequer temos uma coisa onde as pôr.
Ayla parou por instantes e depois sorriu.
-- Claro que temos m disse, tarando o chapéu cónico de palha entretecida, manchado de suor, procurando algumas folhas para o forrar.-Usa o teu chapéu.
Cada um tinha já enchido três-quartos do seu chapéu quando ouviram o Lobo rosnar num tom de aviso. Olharam para cima e viram um jovem alto, quase adulto, que tinha vindo pelo carreiro e.que ficou especado a olhar para eles e para o lobo que estava tão perto, com os olhos muito abertos de medo. Jondalar voltou a olhar.
Darvo? Darvo, és to? Sou eu, Jondalar. Jondalar dos Zelandonii-disse, dirigindo-se para o jovem.
Jondalar estava a falar uma língua que Ayla não conhecia, apesar de ter ouvido algumas palavras e tons que lhe faziam lembrar a língua Ma- mutoi. Viu a expressão do jovem passar de medo a espante e depois reconhecimente.
-- Jondalar? Jondalar! Que é que estás a fazer aqui? Pensei que te tinhas ado embora e nunca mais voltasses-disse Darvo.
Correram um para o outro e abraçaram-se; depois o homem recuou e olhou para o jovem, segurando-o pelos ombros.
--Deixa-me olhar bem para ti! Nem acredito como cresceste.-Ayla estava a olhar fixamente para o jovem, atraída pela visão de uma outra pessoa depois de tanto tempo sem ver mais ninguém.
Jondalar voltou a abraçá-lo. Ayla via o afecte genuíno que compartilhavam mas, após o primeiro ímpeto de saudação, Darvo pareceu um pouco embaraçado. Jondalar percebeu a sua súbita reticência. Afinal de contas, Darvo era quase um homem. Os abraços formais de saudação eram
uma coisa, mas manifestações exuberantes de afecte irreprimido, mesmo para com alguém que tinha sido o homem do lar durante algum tempo, eram outra. Darvo olhou para Ayla. Depois reparou no lobo que ela segufava para impedir que avançasse e voltou a abrir muito os olhos. Depois viu os cavalos all perto, com cestos e paus pendurados neles, e os seus olhos abriram-se ainda mais.
--Acho que é melhor que te apresente os meus.., amigos-disse Jondalar.
--Darvo dos Sharamudoi, esta é Ayla dos Mamutoi-disse Jondalar. Ayla reconheceu a cadência da apresentação formal e palavras smí-cientes. Fez sinal ao Lobo para ficar quieto e dirigiu-se para o rapaz, com ambas as mãos estendidas, com as palmas varadas para cima.
-- Sou Darvalo dos Sharamudoi disse o jovem, pegando-lhe nas mãos e falando alíngua Mamutoi.-Dou-te as boas-vindas, Ayla dos Ma- mutoi.
-- A Tholie ensinou-te bem! Estás a falar Mamutoi como se tivesses nascido deles, Darvo. Ou agora terei de dizer Darvalo? disse Jondalar.
-- Agora chamo-me Darvalo. Darvo é nome de criança-disse o jovem e subitamente corou.-Mas se quiseres podes chamar-me Darvo. Quero dizer, esse é o nome que to conheces.
--Acho que Darvalo é um óptimo nome-disse Jondalar.-Fico contente por teres continuado as tuas lições com a Tholie.
-- O Dolando achou que era boa ideia. Disse que aria precisar de saber a língua para quando formos fazer trocas com os Mamutoi na prdxi- ma Primavera.
-- Talvez queiras conhecer o Lobo, Darvalo? -- disse Ayla.
O jovem franziu a testa consternado. Nunca, em toda a sua vida, esperara encontrar um lobo cara a cara, nem quisera. "Mas o Jondalar não term medo dele", pensou Darvalo, "nem a mulher.., ela é uma mulher um bocado estranha.., e também fala de uma maneira estranha. Não fala mal, mas também não fala como a Tholie."
Se estenderes a tua mão e deixares que ele a cheire, asso dará uma oportunidade ao Lobo para te conhecer-disse Ayla.
Darvalo não estava bem certo de que queria pôr a mão tão perto dos dentes de um lobo, mas achava que não tinha forma de sair daquela situação. Estendeu a mão meio a medo. OLobo cheirou-lhe a mão e, inesperadamente, lambeu-a. A sua língua era quente e molhada mas não o magoou. Na verdade, foi uma sensação bastante agradável. O jovem olhou para o animal e para a mulher. Ela tinha descuidada e confortavel- mente um braço por cima do pescoço do lobo e estava a fazer-lhe festas na cabeça com a outra mão. "Como seria fazer festas na cabeça de um lobo vivo?", pensou ele.
-- Gostavas de sentir o seu pêlo? m perguntou Ayla.
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Darvalo ficou surpreendido; depois estendeu a mão para tocar, mas o Lobo mexeu-se para o cheirar e ele retirou a mão.
-- Assim-disse Ayla, pegando-lhe na mão e pondo-a firmemente em cima da cabeça do Lobo.-Ele gosta que o cocem assim-disse, ensinandolhe.
Subitamente, o Lobo sentiu uma pulga, ou o tímido coçar fez-lhe lembrar uma. Sentou-se e, com um espasmo de movimento rápido, coçou-se atrás da orelha com a para traseira. Darvalo sorriu. Nunca tinha visto um lobo numa posição tão cómica, a coçar-se rapida e furiosamente.
--Eu disse-te que ele gostava de ser coçado. Os cavalos também gostam-disse Ayla, fazendo sinal a Whinney para se aproximar.
Darvalo olhou de relance para Jondalar. Ele estava a sorrir, como se não houvesse nada de estranho numa mulher que coçava lobos e cavalos.
-- Darvalo dos Sharamudoi, esta é a whinny m Ayla disse o nome da Whinney num tom de relincho suave, da forma como inicialmente chama- ra ao cavalo, e quando o disse pareceu exactamente um cavalo.-Esse é o seu verdadeiro nome, mas às vezes chamamos-lhe só Whinney. É mais fácil para o Jondalar dizer.
--Consegues falar com cavalos?--perguntou Darvalo, absolutamente estupefacto.
-- Qualquer pessoa pode falar com um cavalo, mas um cavalo não escuta qualquer pessoa. Primeiro é preciso conhecerem-se um ao outro. É por isso que o Corredor escuta o Jondalar. Ele conheceu o Corredor quando ele era bebé.
Darvalo virou-se subitamente para olhar para Jondalar e recuou dois passos.
-- Estás sentado nesse cavalo! -- exclamou.
-- Sim, estou sentado no cavalo. Isso é porque ele me conhece, Darvo, quero dizer, Darvalo. Ele até me deixa sentar no seu dorso quando corre e podemos ir muito depressa.
O jovem parecia ele próprio prestes a desatar a correr e Jondalar passou uma perna por cima do cavalo e deslizou para o chão.
-- Quanto a estes animais, to podias ajudar-nos, Darvo, s.e quiseres-disse ele. O rapaz ficou petrificado e pronto a fugir.-Estamos a viajar há muito tempo e estamos ansiosos por fazer uma visita a Dolando e Roshario e a todos, mas a maioria das pessoas fica um pouco nervosa quando vê os animais. Não está habituada a eles. Importas-te de vir con- nosco, Darvalo? Creio que se todos virem que to não tens medo de estar ao lado dos animais, não ficarão tão preocupados.
O jovem descontraiu-se um pouco. Isso não lhe parecia difícil. Afinal de contas ele já estava ao lado deles, e ficariam todos admiradíssimos por o verem chegar com Jondalar e os animais. Especialmente Dolando e Roshario...
-- Quase me esqueci-disse Darvalo.-Disse à Roshario que apanharia amoras para ela, pois ela já não as pode apanhar.
--Nós temos amoras-disse Ayla, ao mesmo tempo que Jondalar per- guntava:
-- Por que é que ela não as pode apanhar?
Darvalo olhou de Ayla para Jondalar.
-- Caiu do penhasco para a doca dos barcos e partiu o braço. Não creio que fique bem. Não foi ligado.
-- Porquê? -- perguntaram ambos.
-- Não havia ninguém para o ligar.
-- Onde está a Shamud? Ou a tua mãe? -- perguntou Jondalar. -- A Sharnud morreu o Inverno passado.
-- Lamento saber isso-comentou o homem.
-- E a minha mãe foi-se embora. Um homem Mamutoi veio visitar a Tholie pouco depois de te teres ido embora. É parente, um primo. Acho que gostou da minha mãe e pediu-lhe para ser sua companheira. Ela surpreendeu toda a gente indo viver com os Mamutoi. Ele também me disse para ir, mas o Dolando e a Roshario pediram-me para ficar com eles. E eu fiquei. Sou Sharamudoi, não Mamutoi-explicou Darvalo. Depois olhou para Ayla e corou. Não que haja qualquer mal em ser Mamutoi-acrescentou apressadamente.
-- Não, é claro que não-disse Jondalar, com uma expressão preocupada.-Compreendo o que sentes, Darvalo. Eu continuo a ser Jondalar dos Zelandonii. Há quanto tempo é que a Roshario caiu?
-- Na Lua de Verão, por volta desta altura-disse o rapaz.
Ayla olhou para Jondalar com uma expressão interrogativa.
-- Por volta desta fase da última lua-explicou ele.-Achas que é tarde de mais?
-- Só saberei depois de a ver-disse Ayla.
-- A Ayla é curandeira, Darvalo. Uma curandeira muito boa. Talvez consiga ajudar-disse Jondalar.
-- Pensei se ela não seria sharnud. Com esses animais e tudo.-Darvalo parou de falar por instantes, a olhar para os cavalos e para o lobo e assentiu.-Deve ser uma curandeira muito boa.-Era alto para os seus treze anos e nessa altura pareceu ainda mais alto.-Irei convosco para que ninguém tenha medo dos animais.
-- Importas-te também de levar estas amoras? Para eu poder ficar perto do Lobo e da Whinney. Eles/s vezes também têm medo das pessoas.
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Darvalo foi à frente pelo caminho que descia através da paisagem arborizada. Ao fundo da encosta chegaram a um outro caminho que virava para a direita, com uma inclinação mais gradual. Este novo caminho era um canal de drenagem de águas durante o degelo da Primavera e durante as estações mais chuvosas, e embora por vezes o leito do ribeiro estivesse seco no fim de um Verão quente, era rochoso, o que tornava difícil o caminhar.
Embora os cavalos fossem animais das planícies, a Whinney e o Corredor tinham segurança a andar em terreno montanhoso. Tinham aprendido enquanto muito novos a vencer o caminho íngreme e estreito que da- va para a caverna de Ayla no vale. Mas ela continuava a preocupar-se, não fossem os cavalos magoarem-se devido ao piso irregular, e ficou contente quando viraram para outro caminho que vinha algures do cimo da encosta e continuava para baixo. O novo caminho tinha muito uso e na maior parte dos sítios era suficientemente largo para duas pessoas caminharem lado a lado, embora não dois cavalos.
Depois de atravessarem o lado de uma vertente íngreme e virado para a direita, chegaram a uma parede rochosa a pique. Quando chegaram a uma encosta escarpada, Ayla sentiu uma sensação de familiaridade. Já tinha visto concentrações semelhantes de detritos rochosos na base de paredes de rocha nas montanhas onde tinha crescido. Até reparou nas grandes flores brancas em forma de corneta de uma planta vigorosa com folhas de recorte irregular. Os membros do Lar do Mamute que conhecera chamavam àquelas flores de cheiro desagradável maçã-espinho, devido ao seu fruto verde espinhoso,, mas isso trouxe-lhe recordações da sua infância. Era datura. Creb e Iza usavam-na ambos, mas com fins diferentes.
O sítio era familiar a Jondalar pois já tinha apanhado gravilha daquele monte para pôr nos carreiros e nas lareiras. Sentiu uma onda de antecipação, sabendo que estavam perto. Depois da encosta rochosa, o caminho tinha sido arranjado com uma cobertura de lascas de rocha e serpenteava em volta do sopé da enorme parede. Em frente, viam o céu por entre as árvores e a vegetação e Jondalar sabia que se estavam a aproximar da beira do penhasco.
-- Ayla, acho que devemos tirar os paus e os cestos-alforge dos cava-
los aqui-disse o homem.-O caminho em volta desta parede não é lá muito largo. Podemos cá voltar depois a buscálos.
Depois de tirarem tudo, Ayla foi atrás do jovem e percorreram a curta distância ao longo da parede em direcção ao céu aberto. Jondalar, deixan- dose ficar para trás para observar, sorriu quando ela chegou à beira do penhasco e olhou para baixo.., recuando depois rapidamente. Apoiou-se à parede rochosa, sentindo uma ligeira vertigem, e depois avançou lentamente, voltando a olhar para baixo. Ficou boquiaberta de espanto.
Lá muito em baixo, ao fundo do penhasco a pique, corria o mesmo Grande Rio Mãe que tinham vindo a seguir, mas Ayla nunca o tinha visto daquela perspectiva. Tinha viste tedas as ramificações do rio contidas num único canal, mas sempre ao nível de uma margem que não era muito mais alta que a própria água. A vontade de olhar para baixo e observá-lo daquela altura era obsessiva.
O rio que frequentemente se alargava e serpenteava estava unido entre paredes de rocha que saíam a pique da água, com raízes que se estendiam bem fundo dentro da terra. Enquanto a profunda corrente subterrânea corria competindo com os seus próprios elementos que se moviam contra a rocha, a força contida do Grande Rio Mãe rolava com a sua silenciosa força, ondulando com uma fluência oleosa de grandes ondas que rebentavam sobre si mesmas. Embora muitos mais afluentes se lhe juntassem antes de o magnificente rio atingir a sua capacidade má-xima, mesmo àquela distância do delta, atingia já tal dimensão que esta diminuição de volume mal se notava, sobretudo quando se olhava para toda a sua água em movimento.
Pináculos ocasionais de rocha quebravam a superfície a meio da corrente, afastando as águas com espirais de espuma e, enquanto Ayla observava, um tronco, encontrando o caminho obstruído, bateu contra um deles. Havia uma construção de madeira que mal se via directamente por baixo,junto ao penhasco. Quando finalmente olhou para cima, Ayla perscrutou as montanhas do outro lado. Embora ainda fossem arredondadas, eram mais altas e mais íngremes do que eram a jusante, quase atingindo a mesma altura dos picos mais escarpados do seu lado. Separadas apenas pela largura do rio, as duas cordilheiras tinham estado outrora unidas, atd o fio afiado do tempo e das marés ter cortado um caminho entre elas.
Darvalo estava pacientemente à espera que Ayla tivesse a sua primeira visão da dramática entrada para a casa da sua gente. Tinha vívido all toda a sua vida e tomava aquilo como certo, mas já vira a reacção dos estranhos. Dava-lhe uma sensação de orgulho quando as pessoas ficavam tão impressionadas e isso fazia que olhasse mais atentamente, vendo tudo aquilo com novos olhos através dos deles. Quando finalmente a mulher se virou para ele, ele sorriu, e depois conduziu-a, contornando a beira da parede da montanha, por um caminho que tinha sido laboriosamente
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alargado a partir do estreito carreiro inicial. O caminho dava para duas pessoas irem lado a lado, se fossem bastante juntas, o que signhícava que era suficientemente largo para uma pessoa transportar lenha, animais que tinham sido caçados e outros abastecimentes, com facilidade, sendo também suficientemente largo para os cavalos.
Quando Jondalar se aproximou da beira do penhasco, sentiu a já conhecida dor entre pernas por olhar para baixo para o espaço vazio, a dor que nunca tinha conseguido superar por complete em todo o tempo que all vivera. Não era tão grave que não a conseguisse controlar, e ele apreciava a vista espectacular, bem como o trabalho que tinha dado escavar mesmo uma pequena secção de rocha sólida usando apenas pedregrulhos e pesados machados de pedra, mas isso não alterou a sensação que invariavelmente o avassalava. Mesmo assim, era melhor que o outro caminho habitualmente utilizado como entrada.
Mantendo oLobojunto dela, e a Whinney logo atrás, Ayla seguiu o jovem em volta da parede rochosa. Do outro lado havia uma área plana, mais ou menos em forma de U e bastante grande. Outrora, em tempos idos, quando a enorme bacia a oeste era um mar, e começara a esvaziar- -se através do desfiladeiro que la abrindo pela cordilheira de montanhas, o nível da água era muito mais alto e tinha-se formado uma baía protegida. Agora era uma enseada protegida, bem alto acima do rio.
Erva verde cobria a parte da frente do terreno, indo quase até à beira do declive. A meio do terreno, os arbustos, que se aconchegavam às paredes laterais a pique, tornavam-se mais densos e acabavam por se transformar em pequenas árvores que continuaram a crescer pela vertente íngreme da parte de trás. Jondalar sabia que era possível subir a parede rochosa de trás, embora poucas pessoas o fizessem. Era uma saí-da inconveniente e fora de mão que raramente era utilizada. Na parte mais próxima, no canto arredondado ao fundo, havia uma plataforma saliente de arenito, suficientemente grande para proteger várias habitações feitas de madeira, formando uma zona confortável e protegida.
Do outro lado, na parte mais distante de musgo verde, encontrava-se o elemento mais importante do local. Uma nascente de água pura que começava bem no alto e corria sobre rochas, ressaltos e la cair de uma saliência de arenito mais pequena numa longa e estreita cascata e forma- va um lago. Corria ao longo da parede oposta até à beira do penhasco e por cima dos afloramentos rochosos até ao rio.
Várias pessoas tinham parado de fazer o que estavam a fazer quando o cortejo, sobretudo o lobe e o cavalo, começou a contornar a parede rochosa. Quando Jondalar passou, viu uma expressão de apreensão e estupefacção em todos os rostos.
-- Darvo! Que é que estás a trazer para cá? -- gritou uma voz.
E Hola! disse Jondalar, saudando as pessoas na sua língua. De-
pois, ao ver Dolando, deu a corda do Corredor a Ayla e, pondo o braço por
cima dos ombros de Darvo, dirigiu-se para o chefe da Caverna. E Dolando! Sgu eu, Jondalar! -- disse ao aproximar-se.
--Jondalar? Es mesmo to? --disse Dolando, reconhecendo o homem mas ainda hesitante.-De onde é que vens?
-- De este. Passei o Inverno com os Mamutoi.
-- Quem é aquela? perguntou Dolando.
Jondalar sabia que o homem devia estar muito perturbado para ter ignorado as formas habituais de cortesia.
EO seu nome é Ayla, Ayla dos Mamutei. Os animais também viajam connosco. Obedecem-lhe a ela, ou a mim, e nenhum deles fará mal a ninguém-disse Jondalar.
Incluindo o lobo? -- perguntou Dolando.
-- Eu toquei na cabeça do lobo e apalpei-lhe o pêlo-disse Darvalo.
-- Ele nem sequer tentou fazer-me mal. Dolando olhou para o rapaz.-Tocaste nele?
E Sim. Ela diz que basta que eles nos conheçam.
--Ele term razão, Dolando. Eu não viria aqui com alguém, ou alguma coisa que fizesse mal. Vem conhecer a Ayla e os animais. Verás.
Jondalar levou o homem para o centro do campo. Várias pessoas se- guiram-no. O cavalos tinham começado a pastar, mas pararam quando o grupo se aproximou. A Whinney aproximou-se mais da mulher e pôs- -se ao lado do Corredor, cuja corda Ayla ainda segurava. A sua outra mão estava pousada na cabeça do Lobo. O enorme lobo do norte estava ao lado de Ayla, a observar na defensiva, mas não com uma atitude aberta- mente ameaçadora.
-- Como é que ela faz para os cavalos não terem medo do lobo? -- perguntou Dolando.
--Eles sabem que não têm que ter medo dele. Conhecem-no desde que ele era uma cria minúscula explicou Jondalar.
Por que é que eles não fogem de nós? -- perguntou a seguir o chefe, ao aproximarem-se.
--Viveram sempre junto de pessoas. Eu estava lá quando o garanhão nasceu-re spondeu Jondalar. E Estava muito ferido e a Ayla salvou-me a vida.
Dolando parou subitamente e olhou atentamente para o homem.-Ela é uma shamud? perguntou.-Ela é membro do Lar do Mamute.
Uma jovem mulher, baixa e bastante gorducha, falou então.
-- Se ela é Mamut, onde é que está a sua tatuagem?
--Viemo-nos embora antes de ela terminar a aprendizagem, Tholie, -- disse Jondalar, sorrindo-lhe. A jovem mulher Mamutoi não tinha mudado nada. Continuava tão directa e franca como sempre fora.
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Dolando fechou os olhos e abanou a cabeça.
--É pena-disse, os seus olhos revelando o seu desespero.-ARosha- rio caiu e magoou-se gravemente.
-- O Darvo contou-me. Disse que a sharnucl tinha morrido.
-- Sim, o Inverno passado. Gostava que a mulher fosse uma curandei- ra devidamente treinada. Mandámos um mensageiro a uma outra Caverna, mas a sua sharnud tinha ido fazer uma viagem. Um estafeta foi a outra Caverna, rio acima, mas é longe e receio que já seja tarde de mais para a tratar.
O treino que ela não teve não foi como curandeira. AAyla é curan- deira, Dolando. Uma curandeira muito boa. Foi treinada por...-Jonda- lar recordou-se de um dos poucos pontos fracos de Dolando-r.pela mulher que a criou. É uma longa histSria, mas acredita em mim. E competente.
Tinham chegado junto de Ayla e dos animais e ela escutou e observou Jondalar atentamente enquanto ele falava. Havia algumas semelhanças entre a língua que ele estava a falar e o Mamutoi, mas foi mais pela observação que se apercebeu do sentido das suas palavras e compreendeu que tinha estado a convencer o homem de qualquer coisa. J0ndalar virou-se para ela.
--Ayla dos Mamutoi, este é Dolando, chefe dos Sharamudoi, a metade dos Sharamudoi que ive em terra-disse Jondalar em Mamutoi. Depois mudou para a língua de Dolando: Dolando dos Sharamudoi, esta é Ayla, Filha do Lar do Mamute dos Mamutoi.
Dolando hesitou por instantes, olhando para os cavalos e depois para o lobo. Este era um belo animal e estava atento e sossegado ao lado da mulher alta. O homem estava intrigado. Nunca tinha estado tão perto de um lobo, apenas junto de algumas peles. Eles não caçavam lobos com frequência e ele só os tinha visto à distância ou a fugir. O Lobo olhou para ele de uma forma que fez Dolando achar que ele estava por sua vez a ava- liá-lo a ele e depois virou-se para observar os outros animais. O lobo pa- recia não constituir uma ameaça, pensou Dolando, e talvez uma mulher que tinha tal controlo sobre os animais fosse uma sharnud competente, independentemente do seu treino. Ofereceu à mulher ambas as mãos, abertas e de palmas para cima.
Em nome da Grande Mãe, Mudo, dou-te as boas-vindas, Ayla dos Mumub"i.
-- Em nome de Mut, a Grande Mãe Terra, agradeço-te, Dolando dos Sharamudoi-disse Ayla, pegando-lhe nas mãos.
"A mulher term um sotaque estranho", pensou Dolando. "Fala Mamu- toi, mas term uma entoação invulgar. Não soa exactamente como a Tho- lie. Talvez seja de uma região diferente." Dolando sabia suficiente Mamutoi para o compreender. Tinha viajado até ao fim do grande ño vá-rias vezes durante a sua vida para fazer trocas com eles e tinha judado
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a trazer Tholie, a mulher Mamutoi, de volta. Tinha sido o mínimo que tinha podido fazer pelo chefe Ramudoi, ajudar o filho do seu lar a acasalar-se com a mulher que estava decidido a ter. A Tholie tinha feito um esforço para que o máximo de pessoas conhecesse a sua língua e isso tinha sido útil em subsequentes expedições de trocas.
O facto de Dolando aceitar Ayla tinha aberto caminho para toda a gente dar as boas-vindas a Jondalar e conhecer a mulher que ele tinha trazido consigo. Tholie avançou e Jondalar sortiu-lhe. De uma forma complexa, através do acasalamento do seu irmão, eram parentes e ele gostava muito dela.
-- Tholie!-- exclamou ele com um enorme sorriso, enquanto lhe segufava em ambas as mãos.-Nem sabes como é maravilhoso verte.
-- Também é maravilhoso ver-te a ti. E não há dúvida de que aprendeste a falar Mamutoi muito bem, Jondalar. Tenho de admitir que houve alturas em que duvidei de que alguma vez viesses a falar fluentemente.
Ela largou-lhe as mãos para lhe estender os braços e lhe dar um grande abraço de boas-vindas. Num impulso, por se sentir tão feliz por all estar, ele baixou-se e pegou na mulher baixa para lhe dar um abraço. Ligeiramente desconcertada, ela corou e ocorreu-lhe que o homem alto e bem parecido e por vezes taciturno tinha mudado. Não se lembrava de ele ser tão espontaneamente demonstrativo do seu afecto no passado. Quando ele a pôs no chão, ela estudou-o a ele e à mulher que ele tinha trazido, segura de que ela tinha alguma coisa a ver com isso.
-- Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutoi, esta é Tholie dos Sharamudoi, anteriormente dos Mamutoi.
-- Em nome de Mut ou Mudo, ou como quer que se Lhe chame, dou-te as boas-vindas, Ayla dos Mamutoi.
-- Em nome da Mãe de Todos, agradeço-te, Tholie dos Sharamudoi, e estou muito contente por te conhecer. Ouvi falar muito de ti. Não tens parentes no Acampamento do Leão? Creio que o Talut disse que eram parentes quando o Jondalar falou de ti-disse Ayla. Apercebeu-se de que a mulher perspicaz a estava a estudar. Sea Tholie não soubesse já, não tardaria a descobrir que Ayla não nascera dos Mamutoi.
-- Sim, somos parentes. Mas não próximos. Eu vim de um Acampamento do sul. O Acampamento do Leão é mais a porte-disse Tholie.-Mas conheço-os. Toda a gente conhece o Talut. E difícil não o conhecer e a sua irmã, a Tulie, é muito respeitada, disse Tholie.
"Não é um sotaque Mamutoi", pensou ela, "e Ayla não é um nome Ma- mutoi. Nem sequer tenho a certeza de que é um sotaque, é apenas uma forma estranha de dizer algumas palavras. Mas fala bem. O Talut foi sempre muito aberto a receber pessoas. Até recebeu aquela mulher velha que não parava de se queixar e a sua filha que se acasalou abaixo do seu
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estatuto. Gostava de saber mais sobre esta Ayla e sobre estes animais, pensou ela, olhando depois para Jondalar.
-- O Thonolan está com os Mamutoi? -- perguntou Tholie. A dor no seu olhar deu-lhe a resposta antes das palavras.-O Thonolan morreu.
-- Lamento saber isso. Markeno também sentirá muito. Mas não posso dizer que não estava à espera disso. O seu desejo de viver morreu com a Jetamio. Algumas pessoas conseguem recuperar da tragédia, outras não-disse Tholie.
Ayla gostava da forma de a mulher se exprimir. Não sem sentimento, mas de uma forma aberta e directa. Era ainda muito Mamutoi.
O resto dos membros da Caverna que estavam presentes saudaram Ayla. Ela apercebeu-se de uma aceitação reservada, mas também curiosidade. A sua saudação a Jondalar foi muito menos controlada. Ele era famflia; não restaram dúvidas de que o consideravam um deles e foi cao lorosamente recebido no seu regresso a casa.
Darvalo continuava a segurar no chapéu-cesto de amoras, à espera
que as saudações terminassem. Deu-as então a Dolando.
-- Estão aqui amoras para a Roshario-disse.
Dolando reparou no invulgar cesto; não era feito da forma como eles faziam cestos.
-- Foi a Ayla quem mas deu-continuou Darvalo.-Eles estavam a apanhar amoras quando os encontrei. Estas já estavam apanhadas.
Enquanto observava o jovem, Jondalar pensou subitamente na mãe de Darvalo. Não estava à espera que Serenio se tivesse ido embora e estava decepcionado. Tinha-a amado verdadeiramente, de certa forma, e apercebeu-se de que estava com vontade de a ver. Estaria à espera de criança quando se foi embora? Uma criança do seu espírito? Talvez pudesse perguntar a Roshario. Ela saberia.
-- Vamos levar-lhas-disse Dolando, assentindo em silêncio num gesto de agradecimento a Ayla.-Estou certo de que gostará. Se quiseres vir, Jondalar, creio que está acordad.a e sei que te quererá ver. Trás também a Ayla: Vai querer conhecê-la. E difícil para ela. Sabes como ela é. Sempre de um lado para o outro, atarefada, sempre a primeira a saudar as visitas.
Jondalar traduziu para Ayla e ela assentiu a sua concordância. Deixaram os cavalos a pastar no prado, mas ela fez sinal aoLobo para ir com ela. Percebia que o animal carnívoro continuava a incomodar as pessoas. Cavalos mansos eram estranhos, mas não eram considerados perigosos. Um lobo era um caçador, capaz de fazer mal.
--Jondalar, acho que é melhor oLobo andar comigo por enquanto. Im- portas-te de perguntar ao Dolando se o posso levar? Diz-lhe que ele está habituado a estar dentro de casa-disse Ayla, falando Mamutoi.
Jondalar repetiu o seu pedido, embora Dolando a tivesse compreeno
dido e, observando as suas reacções subtis, Ayla suspeitou disso mesmo. Lembrar-se-ia disso.
Dirigiram-se para a parte de trás da plataforma de arenito, passando por uma habitação central que era obviamente um local de reunião, até chegarem a uma estrutura de madeira que se assemelhava a uma tenda inclinada. Ayla reparou na sua construção ao aproximarem-se. Havia um pau de cumeeira ancirado no chão na parte de trás e suportado por um poste na frente. Pranchas de carvalho mais largas em cima do que em baixo tinham sido cortadas de um grande tronco e estavam encostadas a esta estrutura, mais baixa na parte do fundo e mais alta na parte da frente. Quando se aproximou, viu que as pranchas estavam unidas com tinas cordas de salgueiro, cosidas através de furos previamente feitos.
Dolando afastou uma cortina amarela de pele fina e segurou-a enquanto todos entravam. Prendeu-a para deixar entrar mais luz. Lá dentro, pequenas frinchas na madeira deixavam entrar a luz do dia, mas havia peles a forrar as paredes para impedir correntes de ar, embora nunca houvesse muito vento no nicho escavado na montanha. Havia uma pequena lareira junto à entrada, com uma prancha mais pequena a fazer um buraco no tecto por cima dela, mas sem cobertura para a chuva. Aplataforma protegia a habitação da neve e da chuva. Ao longo de uma parede quase ao fundo havia uma cama, uma prateleira larga de madeira pre- sa à pared.e de um lado e com pés do outro, coberta de um colchão de couro e pele. A luz fraca, Ayla apenas distinguia uma mulher reclinada na cama.
Darvalo ajoelhou-se junto à cama e estendeu as amoras.
--Aqui estão as amoras que te prometi, Roshario. Mas não fui eu que as apanhei. Foi a Ayla.
A mulher abriu os olhos. Não estava a dormir, apenas a tentar descansar, mas não sabia que tinham chegado visitas. Não percebeu bem o nome que Darvalo tinha dito.
-- Quem é que as apanhou? -- perguntou ela numa voz fraca. Dolando, inclinando-se sobre a cama, pôs-lhe a mão na testa.-Roshario, olha quem está aqui! O Jondalar voltou m disse ele.-Jondalar? -- disse ela, olhando para o homem que estava ajoelha- do junto da cama ao la.do de Darvalo..Ele quase estremeu ao ver a dor gravada no rosto dela. Es mesmo to? As vezes sonho e penso q.ue vejo o meu filho, ou a Jetamio, e depois verifico que não é verdade.-Es mesmo to, Jondalar, ou é um sonho?
-- Não é um sonho, Rosh-disse Dolando. Jondalar pensou ver lágrimas nos seus olhos.-Ele está mesmo aqui. Trouxe uma pessoa com ele. Uma mulher Mamutoi. O seu nome é Ayla. m E fez um gesto para ela se aproximar.
Ayla fez sinal para o Lobo ficar quieto e dirigiu-se para junto da mulher. Foi-lhe imediatamente aparente que ela estava em grande sofri-
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mento. Os seus olhos estavam vidrados e cheios de olheiras escuras, fazendo que parecessem encovados; tinha as faces afogueadas da febre. Até à distancia e sob a fina coberta, Ayla viu que o seu braço, entre o ombro e o cotovelo, estava dobrado num ângulo grotesco.
-- Ayla dos Mamutoi, esta é Roshario dos Sharamudoi-disse Jondalar. Darvalo afastou-se e Ayla ocupou o seu lugar junto à cama.
-- Em nome da Mãe, és bem-vinda, Ayla dos Mamutoi-disse Roshario, tentando levantar-se e desistindo, voltando a deitar-se. Lamento não poder saudar-te como deve ser.
--Em nome da Mãe, agradeço-te-disse Ayla.-Não há necessidade de te levantares.
Jondalar traduziu, mas Tholie tinha incluído toda a gente em certo grau nas suas explicações da sua língua e tinha-lhes dado uma boa base de compreensão do Mamutoi. Roshaño tinha compreendido o sentido das palavras de Ayla e assentiu.
-- Jondalar, ela está com dores terriveis. Receio que possa ser muito grave. Quero examinar-lhe o braço-disse Ayla, falando em Zelandonii, para a mulher não perceber que o seu ferimento era grave, mas sem disfarçar a urgência na sua voz.
m Roshario, Ayla é curandeira, filha do Lar do Mamute. Gostava de
ver o teu braço m disse Jondalar, olhando depois para Dolando para se assegurar de que ele não discordava. O homem estava na disposição de tentar qualquer coisa que a pudesse ajudar, desde que Roshario concordasse.
m Curandeira? -- disse a mulher.-Shamud?
-- Sim, como uma shamud. Pode examinarte?
--Receio que seja demasiado tarde para ela me poder ajudar, mas poder ver.
Ayla destapou o braço. Tinha sido feita uma tentativa para o endireitar e o ferimento tinha sido limpo e estava a cicatrizar, mas estava inchado e o osso estava saído sob a pele a um ångulo anormal. Ayla apalpou o braço, tentando magoá-la o menos possível. A mulher apenas fez um trejeito de dor quando ela lhe levantou o braço para apalpar por baixo, mas não se queixou. Ay]a sabia que a observação era dolorosa, mas precisa- va de sentir o osso sob a pele. Ayla olhou para os olhos de Roshario, cheiroulhe o hálito, sentiu-lhe a pulsação no pescoço e no pulso e depois sentou-se sobre os calcanhares.
--Está a sarar, mas não está no lugar. Ela poderá recuperar, mas não creio que volte a poder usar o braço, nem a mão, da forma como esta, e terá sempre dores-disse Ayla, falando a língua que todos eles compreendiam melhor ou pior. Esperou que Jondalar traduzisse.
Podes fazer alguma coisa? perguntou Jondalar.
--Creio que sim. Poderá já ser tarde de mais, mas gostaria de tentar
voltar a partir-lhe o braço onde está a sarar mal e p¿-lo direito. O problema é que o sítio onde um osso partido começa a sarar é muìtas vezes mais forte que o próprio osso. Posso parti-lo mal. Nesse caso ficaria com o osso partido em dois sítios e teria mais dores para nada.
Fez-se silêncio depois da tradução de Jondalar. Por fim, Roshario falou.
-- Se partir mal não fica pior do que está, pois não? Era mais uma afirmação que uma pergunta, m Quero dizer, não o poderei usar da forma como está agora, portanto parti-lo noutro sítio não irá fazer que pio- re. m Jondalar traduziu as suas palavras, mas Ayla já estava a começar a perceber os sons e os ritmos da lingua Sharamudoi e a relacioná-los com o Mamutei. O tom e a expressão da mulher transmitiam ainda mais. Ayla percebeu a essência da afirmação de Roshario.
Mas poderás sofrer muito mais dores para nada m disse Ayla, adivinhando qual seña a decisão de Roshario mas querendo que ela com- preendesse plenamente rodas as implicações.
-- Agora não tenho nada disse a mulher, sem esperar pela tradução.- Se conseguires pô-lo bem, poderei voltar a usar o braço?
Ayla esperou que Jondalar dissesse as suas palavras na língua que conhecia para ter a certeza de que o significado era correcto.
m Poderás não o poder usar como dantes, mas poderás fazer alguns
movimentos. Mas ninguém pode ter a certeza. Roshario não hesitou. m Se houver uma possibilidade de eu poder voltar a usar o braço outra
vez, quero que o faças. Não me importo com as dores. A dor não é nada. Uma Sharamudoi precisa de dois braços bons para descer pelo caminho até ao rio. De que serve uma mulher Sharamudoi que nem sequer consegue ir à doca Ramudoi?
Ayla escutou a tradução das suas palavras. Depois, olhando directamente para a mulher, disse:
m Jondalar, diz-lhe que tentarei ajudá-la, mas diz-lhe também que o mais importante não é uma pessoa ter ou não dois braços bons. Conheci em tempos um homem apenas com um braço e um olho, mas levou uma vida útil e era amado e muito respeitado por toda a sua gente. Não creio que com a Roshario fosse diferente. Uma coisa eu sei, ela não é uma mulher que desista facilmente. Seja qual for o resultado, esta mulher continuará a levar uma vida útil. Encontrará uma forma de o fazer e será sempre amada e respeitada.
Rosharìo olhou fixamente para Ayla enquanto escutava Jondalar dizer as suas palavras. Depois comprimiu ligeiramente os lábios e assentiu. Respirou fundo e fechou os olhos.
Ayla levantou-se, já a pensar no que precisava de fazer.
-- Jondalar, por favor vai-me buscar o cesto-alforge do lado direito. E diz ao Dolando que preciso de uns pedaços de madeira fina para fazer
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as talas. E lenha, e uma malga de cozinhar bastante grande, mas que ele não se importe que se estrague. Talvez não seja boa ideia voltar a usá-la para cozinhar. Será usada para fazer um remédio forte contra as dores.
Os seus pensamentos continuavam a surgir a grande velocidade. "Preciso de qualquer coisa que a faça dorm. ir enquanto o braço é partido de novo", pensava. "A Iza usaria datura. E forte, mas seria melhor para as dores e faria que ela dormisse. Tenho alguma datura seca, mas fresca seria melhor.., espera.., eu não vi datura há pouco tempo?" Fechou os olhos, tentando lembrar-se. "Sim! Vi!"
-- Jondalar, enquanto vais buscar o meu cesto, eu you apanhar um pouco daquela maçã-espinho que vimos ao virmos para cá-disse, chegando à porta em poucas passadas.-Lobo, vem comigo.-Aylajá esta- va a meio do prado quando Jondalar a apanhou.
Dolando ficou à porta da habitação a observar Jondalar e a mulher e o lobo. Embora não tivesse dito nada, tinha estado muito atento à presença do animal. Reparou que o Lobo ia mesmo junto da mulher, acertando o passo com o dela. Tinha observado os subtis sinais de mãos que Ayla fizera ao aproximar-se da cama de Rosahaño e visto que o lobo se deita- ra no chão, embora mantivesse a cabeça erguída e as orelhas arrebitadas, a observar cada movimento da mulher. Quando ela saiu, tinha-se levantado em resposta a uma ordem dela, ansioso por ir com ela.
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Ayla foi à entrada e chamou oLobo para dentro, levando-o depois para conhecer Roshario.
-- O seu nome é Lobo m disse.
De alguma forma, quando ela olhou para os olhos do belo animal, ele pareceu aperceber-se do seu sofrimento e da sua vulnerabilidade. Levar,- tou uma para e pS-la em cima da cama. Depois, baixando as orelhas, esticou a cabeça, sem dar a menor sensação ameaçadora, e lambeu-lhe a cara, ganindo baixinho, quase como se sentisse o seu sofrimento. Aylalem- brou-se subitamente de Rydag e do forte laço que se tinha criado entre a criança doente e o lobito. Ter-lhe-ia essa experiência ensinado a compreender a necessidade e o sofrimento humano?
Ficaram todos supreendidos com a atitude de ternura do lobo, mas Roshaño ficou estupefacta. Sentia que qualquer coisa milagrosa tinha acontecido que só podia ser um born augúrio. Estendeu o braço born e te- cou-lhe:
-- Obrigada, Lobo m disse.
Ayla pôs os pedaços de madeira ao lado do braço de Roshario e depois deu-os a Dolando, indicando o tamanho que queria. Quando Dolando saiu, levou o Lobo para um canto da habitação de madeira, foi verificar as pedras de cozinhar e decidiu que estavam prontas. Começou atirar uma pedra do lume com dois pedaços de madeira, mas Jondalar apareceu com uma ferramenta de madeira dobrada especialmente concebida com tensão suficiente para agarrar firmemente as pedras de cozinhar quentes e ensinou-a a usí-la. Enquanto punha várias pedras dentro da caixa de cozinhar quadrada para ferver a datura, olhou mais atentamente para o recipiente invulgar.
Nunca tinha visto nada de parecido. A caixa quadrada tinha sido feita de uma única tábua, dobrada por meio de pequenos cortes em três dos cantos; estava presa com pequenas cavilhas de madeira no quarto cante. Ao ser dobrada, o fundo quadrado tinha sido encaixado num sulco corta- do a toda a extensão da tábua. Tinham sido gravados desenhos na parte de fora e tinha uma tampa com uma pega.
Aquelas pessoas tinham tantas coisas invulgares feitas de madeira. Ayla pensou que seria interessante ver como eram feitas. Dolando voltou
nessa altura com algumas peles de tom amarelo e deu-lhas.
-- Chegam? perguntou.
-- São demasiado boas-disse ela.-Precisamos de peles macias e
absorventes, mas não é preciso que sejam as melhores que tens. Jondalar e Dolando sortiram ambos.
Mas estas não são as melhores disse Dolando. Nunca ofere- ceríamos estas para troca. Têm demasiadas imperfeições. São para uso normal.
Ayla tinha alguns conhecimentos de como se tratavam as peles e se fa- zia couro e viu que aquelas peles eram flexíveis emacias e tinham um to-
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que e uma textura invulgarmente suave. Ficou muito impressionada e queria saber mais sobre o seu fabrico, mas não era altura para isso. Usando a faca que Jondalar tinha feito para ela, com uma lâmina fina montada num cabo de marfim feito de dente de mamute, cortou a pele de camurça em tiras largas.
Depois abriu um dos pequenos pacotes e despejou-o numa pequena malga o pó grosso de raízes secas e moídas de espicanardo, cujas folhas se assemelhavam bastante às de dedaleira, mas com flores amarelas como as de dente de leão. Juntou um pouco de água quente que tirou da caixa de cozinhar. Como estava a fazer uma cataplasma para ajudar o osso partido a cicatrizar, uma pequena porção de datura não faria mal e o seu efeito analgésico talvez ajudasse. Mas também juntou milefólio em pó para tirar as dores exteñores e pelo seu efeito de acelerar a cicatrização. Tirou as pedras do lume e pôs outras já quente na caixa de cozinhar para manter a mistura a ferver e cheirou-a para verificar se estava suficientemente forte.
Quando decidiu que tinha atingido o ponto certo, tirou um pouco para uma malga para arrefecer e depois levou-a a Roshario. Dolando estava sentado ao lado dela. Depois Ayla pediu a Jondalar para traduzir exactamente o que ela diza, para que não houvesse mal-entendidos.
--Este remédio irá atenuar a dor e fazer que adormeças disse Ayla-mas é muito poderoso e é perigoso. Algumas pessoas não conseguem tolerar uma dosagem tão forte. Fará que os teus músculos se descontraiam, para eu poder sentir os ossos, mas poderás urinar ou sujareste porque esses músculos também se descontrairão. Já houve alguns casos de pessoas que pararam de respirar. Se isso acontecer, morrerás, Roshario.
Ayla esperou que Jondalar repetisse a sua afirmação e depois um pouco mais para ter a certeza de que tinha sido totalmente compreendi- da. Dolando estava obviamente perturbado.
-- Tens de o usar? Não lhe podes partir o braço sem isso? -- perguntou ele.
-- Não. Seria demasiado doloroso e os mUsculos dela estão demasiado contraídos. Resistiriam e isso tornaria muito mais difícil parti-lo no sítio certo. Não tenho mais nada que também atenue as dores. Não posso voltar a partir o osso e juntar os ossos sem isto, mas têm de saber quais são os perigos. Se eu não fazer nada, ela provavelmente viverá, Dolando.
m Mas serei inútil e viverei cheia de dores E disse Roshario. E Isso não é viver.
--Terás dores, mas isso não significa que sejas inútil. Há remédios para diminuir as dores, embora possam ter outros efeitos. Poderá acontecer que não consigas pensar tão claramente-explicou Ayla.
Então serei inútil ou terei a cabeça fraca disse Roshario. Se eu morrer, não será doloroso?
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-- Adormecerás e não acordarás, mas ninguém sabe o que poderá acontecer nos teus sonhos. Poderás sentir grande medo ou dor nos teus. sonhos. A tua dor poder-te-á seguir atd ao outro mundo.
--Acreditas que a dor pode seguir alguém até ao outro mundo?-- guntou Roshario.
Ayla abanou a cabeça.
-- Creio que não, mas não sei.
-- Achas que morrerei se beber isso?
--Não to daria se pensasse que morrerias. Mas poderás ter sonhos estranhos. É usado por algumas pessoas, preparado de outra forma, para viajar a outros mundos, a mundos dos espíritos.
Embora Jondalar tivesse estado a traduzir a troca de comunicação, existia suficiente compreensão entre ambas que as suas palavras apenas clarificavam. Ayla e Roshario sentiam que estavam a falar uma com a outra.
-- Talvez não devas arriscar, Roshario-disse Dolando.-Não te quero perder também a ti.
Ela olhou para o homem com ternura e amor.
-- A Mãe chamará a Ela um ou outro pñmeiro. Ou to me perderás a mim ou eu te perderei a ti. Nada que façamos o poderá impedir. Mas se Ela quiser deixar-me passar mais algum tempo contigo, meu Dolando, não quero passá-lo com dores e inútil. Prefiro morrer agora. E to ouviste a Ayla, que nem sequer é provávol que morra. Mesmo que não resulte e não fique melhor, saberei que tentei e isso dar-me-á alento para continuar.
Dolando, sentado na cama ao seu lado, a segurar-lhe na mão boa, olhou para a mulher com quem tinha compartilhado tanto da sua vida. Finalmente, assentiu. Depois olhou para Ayla.
-- Tens sido honesta. Agora tenho eu que ser honesto. Não te culparei se não conseguires ajudá-la, mas se ela morrer tens de te ir embora daqui rapidamente. Não tenho a certeza de que consiga não te culpar e não sei o que poderei fazer. Pensa nisso antes de começares.
Jondalar, que estava a traduzir, sabia das perdas que Dolando tinha sofrido: o filho de Roshario, o filho do seu lar e o filho do seu coração, morto ao atingir o apogeu da suajuvntude; e Jetamio, a rapariga que tinha sido como uma filha para Roshario e que também tinha cativado o coração de Dolando. Tinha acabado por preencher o vazio deixado pela morte do primeiro filho depois de a sua própria mãe morrer. O seu esforço por voltar a andar, por superar a mesma paralisia que tinha levado tantos, conferia-lhe um carácter que cativara toda a gente, incluindo Thonolan. Parecia tão injusto que ela tivesse sido levada durante a agonia do parto. Ele compreenderia se Dolando culpasse Ayla se Roshario morresse, mas matá-lo-ia antes de deixar o homem fazer-lhe mal. Pensou se Ayla não estaria a assumir uma responsabilidade demasiado grande.
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-- Ayla, talvez devas reconsiderar-disse ele, falando Zelandonii.-A Roshario está em sofrimento, Jondalar. Se ela quiser, tenho de tentar ajudá-la. Se ela está disposta a correr o risco, eu não posso fazer menos. Há sempre risco, mas eu sou curandeira; é isso que eu sou. Não
posso alterar isso, da mesma forma como Iza não pôde. Olhou para a mulher deitada na cama.-Estou pronta se to estiveres, Roshario.
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Ayla, segurando uma malga com o líquido que estava a arrefecer, in- clinou-se sobre a mulher deitada na cama. Meteu o dedo mindinho na malga para verificar a temperatura e, sentando-se com graciosidade no chão de pernas cruzadas, ficou all calada durante alguns instantes.
Os seus pensamentos recuaram até ao tempo da sua vida com o Clã, e particularmente para o treino que recebera de uma curandeira hábil e competente que a tinha criado. Iza tratava da maioria das doenças vulgares e acidentes menos graves com presteza prática, mas quando tinha de tratar um problema grave-e especialmente acidentes de caça graves ou uma doença que ameaçava a vida-pedia a Creb, na sua qualidade de Mog-ur, para pedir a ajuda dos poderes superiores. Iza era curan- deira mas, no Clã, Creb era o mágico, o homem santo, que tinha acesso ao mundo dos espíritos.
Entre os Mamutoi e, pelo que Jondalar contava, aparentemente também entre a sua gente as funções de curandeira e de Mog-ur não estavam necessariamente separadas. Aqueles que curavam muitas vezes interce- diam com o mundo dos espíritos, embora nem Todos Os que Serviam a Mãe fossem igualmente versados em tedas as capacidades que lhes esta- vam abertas. O Mamut do Acampamento do Leão era muito mais como Creb. O seu interesse era em coisas do espírito e do pensamento. Embora tivesse conhecimentos de certos remédios e métodos de procedimento, as suas capacidades curativas estavam relativamente subdesenvolvidas e cabia muitas vezes à companheira de Talut, Nezzie, tratar os acidentes menores e as doenças do Acampamento. No entanto, no Encontro de Verão, Ayla tinha conhecido muitos curandeiros competentes entre os ma- mutii e tinha trocado conhecimentos com eles.
Mas o treino de Ayla tinha sido do tipo prático. À semelhança de Iza, era curandeira. Sentìa-se ignorante relativamente aos processos do mundo do espíritos e naquele momento lamentou não ter alguém como Creb a quem recorrer. Queria, e sentia que necessitava, da ajuda de quaisquer poderes superiores aos dela que estivessem dispostos a ajudar. Embora o Mamut tivesse começado a treiná-la na compreensão do reino espiritual da Grande Mãe, ela ainda se sentia mais à vontade com o mundo dos espíritos com o qual tinha sido criada, sobretudo com o seu próprio totem, o espírito do Grande Leão das Cavernas.
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Embora fosse um espírito do Clã, ela sabia que ele era poderoso e oMamut dissera-lhe que os espíritos de todos os animais, na verdade todos os espíritos, faziam parte da Grande Mãe Terra. Ele até tinha incluído o seu totem protector do Grande Leão das Cavernas na cerimónia da sua adopção e ela sabia como pedir a ajuda do seu totem. Muito embora ela não fosse Clã, pensouAyla, talvez o espírito do seu Leão das Cavernas ajudas- se a Roshaño.
Ayla fechou os olhos e começou a fazer os belos movimentos fluidos da linguagem mais antiga, sagrada e secreta do Clã, aquela conhecida por todos os Clãs, usada para comunicar com o mundo dos espíritos.
Grande Leão das Cavernas, esta mulher, que foi escolhida pelo poderoso espírito de totem, está grata por ter sido escolhida. Esta mulher está grata por todas as Dádivas que term recebido e está extremamente grata pelas Dádivas interiores, pelas lições aprendidas e pelos conhecidos adquiridos.
Grande e Poderoso Protector, que se sabe que escolhe machos que são valorosos e necessitam de grande protecção, mas que escolheste esta mulher e a marcaste com o sinal do totem quando ela era pequena, esta mulher está-te grata. Esta mulher não sabe por que é que o Grande Leão das Cavernas do Clã escolheu uma criança rapariga, e uma dos Outros, mas esta mulher está grata por ter sido considerada merecedora e esta mulher está grata pela protecção do grande totem.
Grande Espírito do Totem, esta mulher que já te pediu orientações, pe- de-te agora ajuda. O Grande Leão das Cavernas guiou esta mulher para aprender as coisas de uma curandeira. Esta mulher sabe curar. Esta mulher conhece remédios para doenças e ferimentos, conhece chás e loções e cataplasmas e outros remédios feitos com plantas, esta mulher conhece tratamentos e métodos de tratar. Esta mulher está grata pelos seus conhecimentos e esta grata pelo conhecimento desconhecido de curar que o Espírito do Totem possa dar a esta mulher. Mas esta mulher não conhece os caminhos do mundo dos espíritos.
Grande Espírito do Leão das Cavernas, que vives com as estrelas no mundos dos espíritos, a mulher que está aqui deitada não é do Clã; a mulher é uma dos Outros, como esta mulher que escolheste, mas é pedida ajuda para a mulher. A mulher está em grande sofimento, mas o sofrimento dentro dela é ainda maior. A mulher suportaria a dor, mas a mulher teme que sem os dois braços seria inútil. A mulher quer ficar boa, quer ser uma mulher útil. Esta curandeira quer ajudar a mulher, mas a ajuda pode ser perigosa. Esta mulher quer pedir a ajuda do espírito do Grande Leão das Cavernas e de quaisquer espíñtos de totem que queiram guiar esta mulher e ajudar a mulher que está aqui deitada.
Roshario, Dolando e Jondalar estavam tão em silêncio quanto Ayla enquanto ela executava aquelas invulgares acções. Dos três, Jondalar era o único que sabia o que ela estava a fazer e deu por si a observar tanto
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os outros dois como Ayla. Embora os seus conhecimentos da linguagem do Clã fossem rudimentares-era muito mais complexa do que ele ima- ginava m compreendia que ela estava a pedir a ajuda do mundo dos espíritos.
Jondalar simplesmente não via algumas das nuances mais subtis de um método de comunicação que tinha sido desenvolvido numa base com- pletamento diferente da da linguagem verbal. De qualquer forma, era impossível de traduzir completamente. Na melhor das hipóteses, qualquer tradução para palavras parecia simplista, mas ele achava realmente belos os seus movimentos graciosos. Recordou que tinha havido uma altura em que ele talvez se tivesse sentido embaraçado com as suas acções e sorriu para si próprio pela sua idiotice, mas tinha curiosidade em saber como é que Roshario e Dolando interpretariam o comportamento de Ayla.
Dolando estava perplexo e um pouco perturbado, dado que as suas acções lhe eram completamente desconhecidas. A sua preocupação era por Roshario e sentia qualquer coisa estranha, mesmo que pudesse ter um born propósito, como ligeiramente ameaçadora. Quando Ayla terminou, Dolando olhou para Jondalar com uma expressão interrogativa, mas o jovem homem apenas sorriu.
O ferimento tinha debilitado Roshario, deixando-a fraca e febril, não o suficiente para que delirasse, mas esgotada e desorientada e mais sugestionável. Deu por si a centrar a sua atenção na mulher desconhecida e ficou estranhamente comovida. Não fazia a menor ideia do que significavam os movimentos de Ayla, mas apreciou a sua graciosidade fluida. Era como sea mulher estivesse a dançar com as mãos, na verdade mais que apenas com as mãos. Evocava uma beleza subtil com os seus movimentos. Os seus braços e ombros, e até mesmo o seu corpo, pareciam partes integrais das suas mãos dançantes, respondendo ao mesmo ritmo interno que tinha um propósito definido. Embora não compreendesse, como não compreendia como é que Ayla soubera que ela precisava da sua ajuda, Roshario tinha a certeza de que era importante e que tinha alguma coisa a ver com o seu chamamento. Ela era Shamud; isso bastava. Tinha conhecimentos que ultrapassavam a compreensão das pessoas vulgares e qualquer coisa que parecesse misteriosa só aumentava a sua credibilidade.
Ayla pegou na malga e pôs-se de joelhos ao lado da cama. Voltou a verificar o líquido com o dedo mindinho e depois sorriu a Roshario.
m Que a Grande Mãe de Todos te proteja, Roshario-disse Ayla, erguendo a cabeça e os ombros da mulher o suficiente para ela beber con- fortavelmente e levou-lhe a malga aos lábios. Era uma mistela amarga, bastante fétida, e Roshario fez uma careta, mas Ayla encorajou-a a beber até ter esvaziado toda a malga. Ayla voltou a deitá-la suavemente e voltou a sorrir-lhe para tranquilizar a mulher ferida, mas já estava a observar indícios do seu efeito.
--Diz-me quando te começares a sentir sonolenta m disse Ayla, embora isso apenas viesse confirmar outras indicações que já estava a notar, tais como alteração do tamanho das suas pupilas e uma respiração mais profunda.
A curandeira não podia ter dito que tinha administrado uma droga que inibia o sistema nervoso parasimpático e paralisava as extremidades dos nervos, mas sabia detectar os efeitos e tinha suficiente experiência para saber se eram apropriados. Quando Ayla viu que as pálpebras de Roshario estavam a fechar-se de sono, pôs-lhe a mão sobre o peito e a barriga para verificar se os músculos lisos do seu tracto alimentar estavam descontraídos, embora não o tivesse podido descrever desta forma, e observou atentamente a sua respiração para saber a resposta dos seus pulmões e árvore bronquial. Quando teve a certeza de que a mulher esfava a dormir confortavelmente e sem correr qualquer perigo aparente, Ayla pôs-se de pé.
-- Dolando, é melhor que agora te vás embora. O Jondalar fica para me ajudar m disse numa voz firme, embora baixa, mas a sua atitude segura e competente conferia-lhe autoñdade.
O chefe ia a objectar, mas recordou-se que a Shamud também nunca deixava as pessoas amadas ao pé dos doentes, recusando-se simplesmente a ajudar fosse de que forma fosse até as pessoas se item embora. Talvez fossem todas assim, pensou Dolando, olhando longamente para a mulher adormecida e abandonando depois a habitação.
Jondalar já tinha viste Ayla assumir o comando em situações semelhantes. Parecia esquecer-se a si própria por completo na sua concentração numa pessoa doente ou em sofrimento e sem pensar ordenava aos outros que fizessem o que quer que fosse necessário. Não lhe ocorria pôr em causa a sua prerrogativa de ajudar qualquer pessoa que precisasse da sua ajuda e, como resultado, ninguém a punha em causa a ela.
Mesmo estando a dormir, não é fácil ver alguém partir o braço de uma pessoa que se ama m disse Ayla ao homem alto que a amava.
Jondalar assentiu e pensou se seria essa a razão pela qual a Shamud não o tinha deixado ficar quando Thonolan foi corneado. Tinha sido uma ferida assustadora, um furo rasgado, aberto, que quase fizera Jondalar vomitar quando o vira e, embora tivesse querido ficar, provavelmente ter-
-lhe-ia sido difícil ver a Shamud fazer o que quer que tinha de fazer. Não tinha sequer a certeza absoluta de querer ficar all a ajudar Ayla, mas não havia mais ninguém. Respirou fundo. Se ela conseguia, o mínimo que ele podia fazer era tentar.
-- Que é que queres que eu faça? perguntou.
Ayla estava a examinar o braço de Roshario, vendo até que ponto esti- cava e como ela reagia a essa manipulação. Ela murmurou qualquer coisa e mexeu a cabeça de um lado para o outro, mas parecia ser em resposta a um sonho ou solicitação interna, não directamente devido à dor. Ayla
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carregou com mais força no músculo descontraído, tentando localizar a posiçã¢, do osso. Quando finalmente ficou satisfeita, pediu a Jondalar que foss, para ao pé dela, vendo de relance oLobo a observá-la atentamente do seu lugar no canto.
--Primeiro quero que segures no braço dela pelo cotovelo enquanto eu tento parti-lo onde está a cicatrizar mal-disse ela.-Depois de estar partido, temos de puxar com força para o endireitar e unir como deve ser. Como term os músculos lassos, os ossos de uma articulação podem ser de- sencaixados e posso deslocar-lhe o cotovelo ou o ombro, portanto terás de a agarrar com força e talvez mesmo puxar no sentido contrário.
-- Compreendo-disse ele; pelo menos achava que compreendia.-Assegura-te de que estás numa posição confortável e segura, endireitalhe o braço e segura-lhe no cotovelo; avisa-me quando estiveres pronto.
Ele segurou-lhe no braço e preparou-se.
-- Estou pronto-disse ele.
Com ambas as mãos, uma de cada lado da fractura que o estava a dobrar num ângulo não natural, Ayla pegou no antebraço de Roshario, agar- rando-o experimentalmente em vários pontes, tentando apalpar as ex- tremidades salientes do osso mal encaixado sob a pele e o músculo. Sejá estivesse demasiado cicatrizado, nunca conseguiria parti-lo com as mãos e teria de tentar através de um outro meio menos controlável, e talvez não fosse capaz de o voltar a partir capazmente. Pondo-se de pé junto à cama para ficar na melhor posição possível, Ayla respirou fundo duas vezes e depois exerceu uma forte pressão contra o osso curvo com as suas duas mãos fortes.
Ayla sentiu partir. Jondalar ouviu um estalo angustiante. Roshario mexeu-se espasmodicamente a dormir e depois voltou a acalmar-se. Ay- la apalpou o músculo para sentir o osso acabado de partir. Os tecidos de cicatrização do osso ainda não tinham cimentado a fractura firmemente, talvez porque na sua posição não natural o osso não tivesse ficado unido de uma forma que encorajasse a cicatrização. Foi uma fractura limpa. Ayla suspirou de alívio. Aquela parte já estava. Limpou o suor da testa com as costas da mão.
Jondalar estava a observá-la espantado. Embora apenas parcialmente cicatrizado, era preciso ter umas mãos muito fortes para partir um osso daquela forma. Ele sempre adorara a sua força física pura desde que se apercebera dela no vale. Percebeu que ela precisava de ter força vivendo sozinha como vivera e pensou que ter tido que fazer tudo ela mesma tinha provavelmente encorajado um maior desenvolvimento muscular, mas não percebera até que ponto ela tinha realmente força.
A força de Ayla não era apenas resultado de ela ter sido forçada a esforçar-se para sobreviver quando vivia no vale; tinha-se desenvolvido desde que fora adoptada por Iza. As tarefas vulgares que era suposto ela
desempenhar tinham sido um processo condicionante. Só para corresponder ao nível mínimo de competência para uma mulher do Clã, ela tinha-se tornado uma mulher dos Outros excepcionalmente forte.
--Foi born, Jondalar. Agora quero que te prepares de novo e lhe segures no braço aqui no ombro-disse-lhe Ayla, mostrando-lhe o sítio.-Não podes largar, mas se sentires que estás a ceder tens de me dizer imediatamente.-Ayla apercebeu-se de que o osso tinha resistido a cicatrizar na forma errada, tornando-o mais fácil de partir do que se tivesse sido mantido direito durante esse período de tempo, mas o músculo e o tendão tinham cicatrizado muito mais.-Quando eu endireitar o braço, parte do músculo irá rasgar, exactamente como aconteceu da primeira vez que foi partido, e os tendões partir-se-ão. O músculo e os tendões são difíceis de forçar e isso fará que venha a ter dores mais tarde, mas term de ser feito. Diz-me quando estiveres pronto.
-- Como é que to sabes tudo isto, Ayla?
-- A Iza ensinou-me.
-- Eu sei que ela te ensinou, mas como é que sabes isto? Sobre volta- res a partir um osso que já começou a cicatrizar?
-- Uma vez o Brun levou os seus caçadores numa caçada para um lugar distante. Estiveram ausentes durante muito tempo. Não me lembro quanto tempo. Um dos caçadores partiu o braço pouco depois de terem partido, mas recusou-se a voltar para trás. Amarrou o braço ao corpo e caçou apenas com um braço. Quando voltou, a Iza teve deo pôr bem-explicou Ayla rapidamente.
--Mas como é que ele conseguiu? Continuar a caçar com um braço partido? -- perguntou Jondalar com incredulidade.-Não tinha imensas dores?
-- Claro que tinha imensas dores, mas não lhes deu importância. Os homens do Clã preferiam morrer a reconhecer que tinham dores. São as-
sim; é assim que são treinados-disse Ayla.-Já estás pronto? Ele queria fazer-lhe mais perguntas, mas não era altura. -- Sim, estou pronto.
Ayla agarrou firmemente o braço de Roshario imediatamente acima do cotovelo, enquanto Jondalar a agarrava logo abaixo do ombro. Com uma força lenta mas regular, Ayla começou a puxar para trás, não apenas endireitando mas também rodando-o, para evitar que osso raspasse contra osso e o esmagasse e para impedir que os ligamentos se rompes- sem. A certa altura, este teve de ser esticado mais do que a sua forma original para o colocar numa posição normal.
Jondalar não sabia como ¿ que ela mantinha aquela tensão constante e forte quando ele próprio mal aguentava. Ayla, estava cansada do esforço e o suor escorria-lhe pelo rosto, mas agora não podia parar. Para o osso ficar bem, precisava de ser endireitado num movimento regular e suave. Mas uma vez vencido o ligeiro excesso de pressão, ultrapassando
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a extremidade partida do osso, o braço encaixou na posição correcta " se por si próprio. Ela sentiu-o encaixar-se, pousou-o cuidadosamente n cama e finalmente largou-o.
Quando Jondalar olhou para cima, ela estava a tremer
dos e com a respiração ofegante. Manter o controlo sob tensão tinha sic a parte mais difícil e agora estava a esforçar-se para controlar os próprios músculos.
-- Acho que conseguiste, Ayla-disse ele.
Ela respirou fundo mais algumas vezes e depois olhou para ele riu, um grande sorñso feliz de vit6ria.
-- Sim, creio que sim disse ela.-Agora preciso de pôr as talas. Apalpou toda a extensão direita do braço que estava agora com um aspecto normal. Se cicatrizar bem e se eu não provoquei nenhum dano braço enquanto estava sem sensibilidade, creio que ela poderá voltar usá-lo, embora ainda vá ficar muito magoado e inchado.
Ayla molhou as tiras de pele de camurça em água quente, colocou es- picanardo e milefólio sobre elas, enrolou-as lassamente em volta do braço e depois disse a Jondalar para perguntar a Dolando se tinha as talas! prontas.
Quando Jonda|ar saiu da habitação, foi saudado por uma multidão de rostos. Não apenas Dolando, mas todo o resto da Caverna, Shamudoi e Ramudoi, tinham estado a fazer vigqia no local de reunião em volta da grande fogueira.
-- Afia precisa das talas, Dolando-disse ele.
--Resultou?--perguntou o chefe Shamudoi, dando-lhe os pedaços de madeira lisa.
Jondalar achou que devia esperar por Ayla para lhe dizer, mas sorriu e Dolando fechou os olhos e respirou fundo, estremecendo de alívio.
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Tholie, aproximando-se do lago. Trazia nos braços algumas das peles amarelas e muito maeias.
Ayla não a tinha visto chegar. A mulher Mamutoi tinha tentado m tor-se o mais longe possível do lobo, fazendo um desvio e
-se do lado aberto da zona. Uma garotinha de três ou quatro anos tinha vindo atrás dela agarrou-se à perna da måe e ficou a olhar para os estranhos com uma expressão muito admirada enquanto chuchava no polegar.
-- Deixei-lhes uma refeição ligeira lá dentro-disse Tholie, pousan- do as peles. Tinham sido arranjadas camas para Jondalar e Ayla na habitação que ela e Markeno utflizavam quando estavam em terra. Era o mesmo abrigo que Thonolan e Jetamio tinham compartilhado com eles e Jondalar passou um mau bocado quando all entrou pela primeira vez, recordando a tragédia que tinha feito que o seu irmão se fosse embora e por fim acabasse por morrer.
b Mas nåo percam o apetite-acrescentou Tho]ie.-Vamos fazer uma grande festa esta noite em honra do regresso de Jondalar.-Não acrescentou que também era em honra de Ayla por ter ajudado a Roshario. A mulher ainda estava a dormir e ninguém queria tentar o destino dizendo-o em voz alta antes de se saber que iria acordar e recuperar.
-- Obrigado, Tholie. Por tudo-disse Jondalar. Depois sortiu à gatotinha. Ela baixou a cabeça e escondeu-se ainda mais atrás da mãe, mas continuou a olhar fixamente para Jondalar.-Parece que a última mancha vermelha da queimadura desapareceu do rosto da Shamio. Não vejo qualquer vestígio.
Tholie pegou na garotinha ao colo, dando a Jondalar a possibilidade de a ver melhor.
Se olhares com muita atenção, consegues ver onde foi a queimadura, ma.s mal se vë. Estou muito grata por a Mãe ter sido bondosa com ela.
--E uma criança linda-disse Ayla, sorrindo-lhes e olhando para a garotinha com verdadeira ternura.-Tens muita sorte. Gostava de um dia ter uma filha como ela. Ayla começou a sair da água. Era refrescante,
mas quase fria de mais para lá ficar muito tempo.
-- Disseste que o nome de]a é Shamio?
--Sim, e sinto que tenho muita sorte em tê-]a- disse a jovem mãe, pondo a criança no chão. Tholie não resistiu ao elogio à filha e sorriu lorosamente à mulher alta e bela que, no entanto, não era quem dizia ser.
Tho]ie decidira tratá-]a com reserva e cautela até saber mais sobre ela. Ayla pegou numa pele e começou a limpar-se.
-- É tão macia e agradável-disse ela, embru]hando-se na pele e prendendo-a ì cintura. Pegou noutra para limpar o cabelo e envolveu a cabeça com ela. Reparou então que Shamio estava a observar o lobo, ainda agarrada à mãe mas obviamente curiosa. O Lobo também estava interessado nela, inquieto com antecipação, mas ficando onde o tinham
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mandado ficar. Ayla fez sinal ao animal para ir para junto dela e depois ajoelhou-se sobre um joelho e pôs-lhe o braço em volta do corpo.
-- A Shamio gostaria de conhecer o Lobo? perguntou Ayla à garotinha. Quando ela assentiu, Ayla olhou para a mãe, aguardando a sua aprovação. Tholie olhou apreensivamente para o enorme animal com dentes afiados.-Ele não a magoará, Tholie. O Lobo adora crianças. Cresceu com as crianças do Acampamento do Leão.
Shamio já tinha largado a mãe e dado um passo hesitante na sua direcção, fascinada pela criatura que tinha estado a olhar para ela com igual fascinação. A criança observou-o com um olhar sério e solene, enquanto o lobo gania baixinho, ansioso por ir para junto dela. Por fim, deu novo passo em frente e estendeu-lhe as duas mãos. Tholie deu uma exclamação abafada, mas o som foi abafado pelo riso de Shamio quando o Lobo lhe lambeu a cara. Ela empurrou-lhe o focinho, agarrou-lhe o pêlo, mas desequilibrou-sœ e caiu por cima dele. O lobo esperou pacientemente que a garota se levantasse, depois voltou a lamber-lhe o rosto, provocando novas gargalhadas..
-- Anda, Wuffie m disse a garota, agarrando-lhe o pêlo do pescoço e puxando-o para ele a seguir, reclamando-o como seu brinquedo vivo.
O Lobo olhou para Ayla e deu um pequeno latido. Ela ainda não tinha dado o sina] permitindo-lhe sair dali.
Podes ir com a Shamio, Lobo disse ela, dando-lhe o sinal de que ele estava à espera. Quase acreditou que o olhar que ele lhe lançou era de gratidão, mas não havia dúvida da sua alegria ao seguir a garota. Até a Tholie sorriu.
Jondalar tinha estado a observar a interacção com interesse enquanto se secava. Pegou na roupa de ambos e dirigiu-se para a protecção de arenito com as duas mulheres. Pelo sim, pelo não, Tholie estava a vigiar Shamio e o Lobo, mas também ela estava íntrigada com o animal manso. E não era ela a única. Muitas pessoas estavam a observar a rapariga e o lobo. Quando um garoto, um pouco mais velho que Shamio, se aproximou, foi também saudado com uma lambidela que era um convite para brincar. Nessa altura, saíram duas outras crianças di imã das habiœ tações que vinham a disputar um objecto qualquer de madeira. O mais pequeno atirou-o para impedir o outro de ficar com ele e oLobo interpretou isso como um sinal de que eles queriam fazer um dos seus jogos pre- feridos. Correu atrás do pau entalhado, levou-o de volta e pousou-o no chão, com a língua de fora e o rabo a abanar, pronto a brincar de novo. O rapaz pegou no pau e voltou a atirá-lo.
--Acho que tens razão.., está a brincar com eles. Deve gostar de c.rian- ças-disse Tholie. m Mas por que é que há-de gostar de brincar? E um lobo!
-- Os lobos e as pessoas são parecidos em multas coisas w disse Ayla. Os lobos gostam de bñncar. Desde muito pequenos, os irmãos da mes-
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ma ninhada brincam uns com os outros, e os lobos semiadultos e brincam com as crias. O Lobo não tinha irmãos qtmndo o encontrei; o único que restava e ainda mal abria os olhos. Não foi criado numa al. eateia, cresceu a brincai com crianças.
--Mas olha para ele. É Lão telerante, ark mesmo brando. Tenho acer. teza de que quando a Shamio lho puxa a pele lhe deve doer. Por que é ele tolera isso? h perguntou Tholie, ainda tentando perceber,
-- Para um lobe adulto é natural ser brando para com as eria, eateia, portanto não foi difícil ensinar-lhe a ter cuidado, Tholie. É especialmente cuidadoso com crianças pequenas-e bebés eamente tudo. Não fui eu que lhe ensinei isso, é ele que é assim mesmo. Quando eles se tornam demasiado brutos, afasta-se, mas depois volta. Não é tão tolerante com crianças mais velhas e parece saber distinguir quando uma o magoa aeidentalmente e quando fazem de propósito. Nunca feriu ninguém a sério, mas às vezes dá umas dentaditas.., um beliscão com os dentes.., para lembrar a uma criança mais velha que lhe está a puxar o rabo ou o plo que há coisas que magoam.
-- 1 difícil de imaginar alguém, sobretudo uma criança, sequer pen- sat em puxar o rabe de um lobo.., isto é, era at hoje--- disse Tholie.-E eu não teria acreditado que veria o dia em que Shamio brincaria com um lobo. To puseste.., algumas pessoas apensar, Ayla... Ayla dos Mamutoi.-Tho]ie queria dizer mais, fazer a]gumas perguntas, mas não queria exactamente acusar a mulher de mentir, depois do que ela tinha feito pela Roshario, ou pelo menos parcela ter feito. Por enquanto ainda ninguém sabia ao certo.
Ayla apereebeu-se da reserva de Tholie e lamentou-a. Provocava uma tensão silenciosa entre ambas e ela gostava da mulher Mamutoi baixa e gorducha. Deram algures passos em silêncio, observando plebe com Shamio e as outras eriançaz, e Ayla voltou apensar como gostaria de ter uma filha como a do Tholie... desta vez uma filha, não um filho. Ela era uma garotinha linda e o seu nome fieava-lhe bem.
-- Shamio um nome lindo, Tholie, e um nome invulgar. Parece um
nome Sharamu.doi, mas também parece Mamutoi h disse Ayla.
Tholie não resistiu a sortir de novo.
-- Tens razão. Nem toda a gente sabe, mas era exactamente isso que eu pretendia. Ela chamar-se-ia Shamie se fosse Mamutoi, embora esse não seja um nome muito habituai em qualquer Acampamento. Vem da língua Sharamudoi, portanto o seu nome é uma mistura. Eu agora posso ser Sharamudoi, mas nasci do Lar do Veado Vermelho, uma linha de elevado estatuto. A minha mãe insistiu num born Preço de Noiva para mim da gente do Markeno, muito embora ele não fosse Mamutoi. A Shamio poderá orgulhar-se tanto da sua origem Mamutoi como da sua herança Sharamudoi. Foi por isso que quis que o seu nome mostrasse am- has .
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Tholie parou, como se lhe tivesse ocorrido um pensamento. Virou-se para olhar para a visitante.
--Ayla também é um nome invulgar. Nasceste de que Lar? perguntou, pensando entretanto, ora vamos lá ver como é que explicas esse nome.
-- Eu não nasci Mamutoi. Fui adoptada pelo Lar do Mamute-disse Ayla, satisfeita por a mulher ter feito as perguntas que era evidente que a estavam a incomodar.
Tholie tinha a certeza de que tinha apanhado a mulher numa mentira. As pessoas não são adoptadas pelo Lar do Mamute-afirmou.-Esse é o lar dos mamutii. As pessoas escolhem os caminhos dos espíñtos e podem ser aceites pelo Lar do Mamute, mas não são adoptadas.
-- Habitualmente é assim, Tholie, mas a Ayla foi adoptada-inter- veio Jondalar. Eu estava lá. O Talut ia adoptá-la para o seu Lar do Leão, mas o Marnut surpreendeu toda a gente e adoptou-a no Lar do Mamute, como sua. Viu qualquer coisa nela.., era por isso que a estava a treinar. Afirmava que ela tinha nascido do Lar do Mamute, tivesse ou não nascido dos Mamutoi.
Adoptada pelo Lar do Mamute? De fora?-- disse Tholie, surpreendida, mas não duvidando de Jondalar. Afinal de contas, conhecia-o e ele era seu parente, mas ficou ainda mais interessada. Agora que já não se sentia tão forçada a manter-se atenta e cautelosa, a sua curiosidade natural e directa veio à superffcie.-De quem é que nasceste, Ayla?
--Não sei, Tholie. A minha gente morreu num tremor de terra quando eu tinha pouco mais do que a idade da Shamio. Fui criada pelo Clã disse Ayla.
Tholie nunca ouvira falar de nenhuma ginte chamada o Clã. Deviam ser uma daquelas tribos de este, pensou. Isso explcaria muita coisa. Não admirava que ela tivesse um sotaque tão estranho, embora falasse a língua bem, para alguém de fora. Aquele Velho Mamut do Acampamento do Leão era um velho sábio e astuto, pensou. Parecia ter sido sempre velho. Mesmo quando ela era garota, ninguém se lembrava de ele ser novo e ninguém duvidava da sua perspicácia.
Com natural instinto maternal, Tholie olhou em volta para ver a filha. Reparando no Lobo, voltou a pensar como era estranho um animal pre- ferir associar-se a seres humanos. Depois 'olhou na direcção dos cavalos que estavam a pastar sossegados e satisfeitos no campo tão perto do seu local de habitação. O controlo de Ayla sobre os animais não era apenas surpreendente, era também interessante por eles parecerem tão dedica- dos a ela. O lobo parecia adorá-la.
E olha para o Jondalar. Estava obviamente cativado pela bela mulher loura e Tholie achava que não era apenas por ela ser bela. A Serenio era bela e tinha havido inúmeras outras mulheres atraentes que tinham feito tudo para o interessar numa relação mais séria. Ele estava mais ligado
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ao irmão e Tholie lembrou-se de ter pensado se alguma vez alguma lher teria tocado o seu coração, mas aquela mulher tinha. Mesmo sem suas aparentes capacidades como curandeira, parecia possuir uma " lidade invulgar. O Velho Mamut devia ter raz destino pertencer ao Lar do Mamute.
Dentro da habitação, Ayla penteou o cabelo, prendeu-o com
de couro macio e vestiu a túnica e os calções lavados que tinha do para o caso de encontrarem pessoas, para não ter de usar a sua pa de viagem manchada para fazer visitas. Depois foi ver a Roshario. , riu a Darva]o que, com um ar bastante acabrunhado lado de fora da habitação, e cumprimentou Dolando com um aceno cabeça quando ele entrou e se aproximou da mulher que estava na cama. Ayla examinou-a rapidamente, só para se asse tava bem.
mÉ natural ela ainda estar a dormir?--perguntou Dolando expressão preocupada.
m Ela está prima. Ainda irá dormir durante mais algum tempo.-
Ayla olhou para a sua bolsa de ervas medicinais e decidiu que seria boa altura para apanhar alguns ingredientes frescos para fazer um chá revigorante para ajudar Roshario a sair do sono induzido pela datura quando começasse a acordar, reVi uma tflia quando vinha para cá. Preciso de al- guinas flores para um chá para ela e, se as encontrar, de mais algumas ervas. Sea Roshario acordar antes de eu voltar, podes dar-lhe um pouco de água. Conta que ela se mostre confusa e um pouco tonta. As talas devem manter-lhe o braço direito, mas não deixes que ela o mexa demasiado.
m Consegues descobrir o caminho? -- perguntou Dolando. Talvez devas levar o Darvo contigo.
Ayla estava segura de que não teria a menor dificuldade em encontrar o caminho, mas decidiu levar o rapaz. Com toda a preocupação pela Roshario, o rapaz tinha sido de certa forma posto.de lado e ele também esta- va preocupado com a mulher.
Obrigada, levá-lo-ei-disse ela.
Darvalo tinha ouvido a conversa e estavajá de pé, pronto para ir com ela, contente por poder ser útil.
Acho que sei onde estda tflia m disse ele.-Nesta altura do ano, há sempre multas abelhas à sua volta.
-- E a melhor altura para apanhar as flores disse Ayla --, quando cheiram a mel. Sabes onde posso arranjar um cesto para as trazer?
-- A Roshario guarda os seus cestos aqui disse Darvalo, mostrando a Ayla um espaço de arrumos na parte de trás da habitação. Escolheram dois.
Ao saírem de debaixo da plataforma de arenito, Ayla viu o Lobo a observá-la e chamou-o. Não se sentia à vontade em deixar por enquan-
to o lobo all sozinho com aquelas pessoas tedas, embora as crianças tivessem protestado quando ele se foi embora. Mais tarde, quando todos estivessem mais familiarizados com os animais, talvez fosse diferente.
Jondalar estava no prado com os cavalos e dois homens. Ayla dirigiu- -sea eles para lhe dizer onde ia. O Lobo correu à frente e todos se viraram para o observar enquanto ele e a Whinney esfregavam osfocinhos e a égua relinchava saudando-o. Depois o canídeo pôs-se numa atitude brincalhona e latiu ao jovem garanhão. O Corredor ergueu a cabeça, relinchou e deu umas patadas no chão, correspondendo à brincadeira. Depois a égua aproximou-se de Ayla e pousou a cabeça no seu ombro. A mulher abraçou-se ao pescoço da Whinney e as duas ficaram encostadas uma à outra numa posição familiar de conforto e segurança. O Corredor deu alguns passos em frente e acariciou-as com o focinho, querendo também o seu contacto. Ela abraçou o seu pescoço, e fez-lhe festas, apercebendo-se de que ambos gostavam da presença familiar dos outros naquele lugar com tantos estranhos.
-- Tenho de te apresentar, Ayla-disse Jondalar.
Ela virou-se para os dois homens. Um deles era quase tão alto como Jondalar, mas mais magro, o outro era mais baixo e mais velho, mas no entanto a sua parecença era notória. O m ais baixo avançou primeiro, com ambas as mãos estendidas.
mAyla dos Mamutoi, este é Carlono, chefe Ramudoi dos Sharamudoi.-Em nome de Mudo, a Mãe de Todos na água e em terra, dou-te as boas-vindas, Ayla dos Mamutoi-disse Carlono, pegando-lhe nas duas mãos. Falava Mamutoi ainda melhor que Dolando, resultado de várias missões de trocas na foz do Grande Rio Mãe, bem como das lições de Tholie.
m Em nome de Mut, agradeço-te as boas-vindas, Carlono dos Sharamudoi -- respondeu ela.
Tens de ir em breve à nossa doca-disse Carlono, pensando, "Que estranho sotaque que ela term. Acho que nunca ouvi nada de parecido e já ouvi muitos".-O Jondalar disse-me que te prometeu que andarias num barco como deve ser, não num daqueles enormes barcos redondos dos Mamutoi.
Terei muito goste-disse Ayla, dando-lhe um dos seus espectaculares sorrisos.
Os pensamentos de Carlono desviaram-se dos seus maneirismos da fala para a apreciar. "Não há dúvida de que esta mulher que o Jondalar trouxe é muito bela. Está bem para ele", decidiu.
-- O Jondalar falou-me dos vossos barcos e de como caçam esturjões m continuou Ayla.
Os dois homens riram-se, como se ela tivesse dito uma piada, e olharam para Jondalar que também sorriu, embora tivesse corado ligeiramente.
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--Ele alguma vez te contou como é que caçou metade de um, -- perguntou o jovem homem alto.
-- Ayla dos Mamutoi-exclamou Jondalar --, este é Markeno do Ramudoi, o filho do lar de Carlono e companheiro de Tholie.
--Sê bem-vinda, Ayla dos Mamutoi-disse Markeno informalmente sabendo que ela tinha sido saudada muitas vezes com o ritual com
--Já conheces a Tholie? Ela vai ficar muito contente por cá estarem. vezes sente falta dos seus parentes Mamutoi. O seu sua companheira era quase perfeito.
-- Sim, já a conheço e também a Shamio. É uma garota linda. Markeno deu-lhe um grande sorriso.
--Eu também acho, embora não seja suposte uma pessoa dizer isso da falha do seu próprio lar.-Depois, virando-se para o jovem:- Como está a Roshario, Darvo?
-- A Ayla tratou-lhe o braço-disse ele.-Ela é curandeira.
--Jondalar disse-nos que ela tinha encaixado a fractura-disse Car- lono, tendo o cuidado para não se comprometer. Esperaria para ver como é que o braço sararia.
Ayla reparou na resposta do chefe dos Ramudoi, mas achou que dadas as circunstâncias era compreensível. Por muito que gostassem de Jonda- lar, afinal de contas ela era uma estranha.
-- O Darvalo e eu vamos apanhar algumas ervas que eu vi a caminho de cá, Jondalar-disse ela.-A Roshario ainda está a dormir, mas quero fazer uma bebida para lhe dar quando ela acordar. O Dolando está com ela. Também não gosto do aspecto dos olhos do Corredor. Mais tarde irei à procura daquelas flores brancas para o tratar, mas agora não quero perder tempo. Talvez possas tentar lavá-los com água fria-disse ela. Depois, sorrindo a todos, fez sinal ao Lobo, acenou com a cabeça a Dar- valo, chamando-o, e dirigiu-se para a beira da enseada.
A vista do caminho ao fundo da parede rochosa não foi menos impressionante do que fora da primeira vez que ela a viu. Teve de reter a respiração ao olhar para baixo, mas não conseguiu resistir a fazê-lo. Deixou Darvalo ir à frente e ficou contente quando ele lhe mostrou um atalho que conhecia. O lobo explorou a área em volta do caminho, correndo atrás de rastos intrigantes e depois voltando para junto deles. Das primeiras vezes que o Lobo reapareceu subitamente, assustou o jovem mas, à medida que foram andando, Darvalo começou a habituar-se às suas idas e vindas.
A grande e velha tflia anunciou a sua presença muito antes de a avis- tarem, com a sua rica fragrância lembrando mel e o zumbido de abelhas. A árvore apareceu a seguir a uma curva do caminho e revelou a origem do Seu aroma luxuriante, pequenas flores verdes e amarelas que pendiam de brácteas oblongas e que pareciam ter asas. As abelhas estavam tão atarefadas a colher néctar que não se preocuparam com as pessoas que
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as perturbaram, embora a mulher tivesse tido que sacudir algumas abelhas das ramadas de flores que cortaram. Os insectos limitaram-se a voar de novo para a árvore e ir para outras.
--Por que é que isto é particularmente born para a Rosh? --perguntou Darvalo.-As pessoas bebem muito chá de filia.
Sabe bem, não sabe? Mas também é born para a saúde. Quando se está perturbado, nervoso, ou mesmo zangado, serve de calmante; se se está cansado, estimula e levanta o moral. Pode também fazer desaparecer uma dor de cabeça e acalmar dores de estômago. A Roshario irá sentir tudo isso, por causa da bebida que a pôs a dormir.
--Não sabia que serve para tudo isso mdisse o jovem, voltando a olhar para a grande árvore que lhe era tão familiar, com a sua casca macia cas- tanha-escura, impressionado por uma coisa tão vulgar ter qualidades que a tornavam muito superior ao que parecia.
-- Há uma outra árvore que eu gostava de encon.trar, Darvalo, mas não sei como se chama em MamutoiEdisse Ayla. EE uma árvore pequena e que às vezes não passa mesmo de um arbusto. Term espinhos, mas as folhas têm a forma de uma pequena mão com dedos. Term cachos de flores brancas no início do Verão e agora deve ter bagas redondas vermelhas.
Não é uma roseira que to queres, pois não?
Não, mas foi um born palpite. O que eu quero é normalmente maior
que uma roseira, mas as flores são mais pequenas e as folhas diferentes. Concentrando-se, Darvalo franziu a testa e subitamente sorriu.
-- Creio que sei a que é que te estás a referir, e há-as não longe daqui. Na Primavera, quando passamos por lá apanhamos sempre os rebentos das folhas e comemolos.
-- Sim, dá ideia de que é isso. Podes levar-me lá?
O Lobo não estava à vista, portanto Ayla assobiou. Ele apareceu quase de imediato e olhou para ela com ansiosa antecipação. Ayla fez-lhe sinal para a seguir. Caminharam um pouco até chegarem a uma moita de pilriteiros.
Era exactamente isto que eu procurava, Darvalo! disse Ayla. Não tinha a certeza de que a minha descrição fosse suficientemente clara.
E Para que serve isto? perguntou ele enquanto apanhavam bagas e algu.mas folhas.
E born para o coração, é um reconstituinte; fortalece-o e estimulao e faz que bata com força.., mas é suave, para um coração saudável. E não serve para alguém que tenha problemas de coração, que precisa de um remédio forte disse Ayla, tentando encontrar palavras para explicar de forma que o jovem compreendesse o que ela aprendera pela observação e experiência. Aprendera com Iza através de uma linguagem e uma forma de ensinar que era difícil de traduzir. Mas também é born para mis- turar com outros remédios. Estimula-os e faz que actuem melhor.
Darvalo começou a achar que era divertido apanhar coisas
Ela sabia todo o tipo de coisas que mais ninguém sabia e não se im va de lhe falar delas. Já no regresso, ela parou numa encosta seca e
renga para apanhar algumas flores de hissopo de aroma agradável.-Que é que isso faz? m perguntou ele. m Limpa o peito, ajuda a respirar. E isto disse, apanhando ai folhas macias e aveludadas de pilosela que estavam all la tudo. É mais forte e não tom muito bem sabor, portantO) utilizarei muito pouco. Quero dar-lhe a beber uma coisa agradável, mas isto irá desa- nuviar-lhe a cabeça e fazer que se sinta desperta.
No caminho de regresso, Ayla voltou a parar para apanhar um gran. de ramo de bonitos goivos cor-de-rosa. Darvalo estava à espera de aprender mais efeitos medicinais quando lhe perguntou para que serviam.
--Apanhei-os porque cheiram bem e dão um sabor doce e forte. Porei alguns no chá e os outros num recipiento com água junto à cama dela para ela se sentir bem. As mulheres gostam de coisas bonitas e que cheiram bem, Darvalo, sobretudo quando estão doentes.
Darvalo decidiu que, como Ayla, também gostava de coisas bonitas e que cheiravam bem. Gostava da forma como ela o tratava sempre por Darvalo e não por Darvo, como todos os outros. Não que ele se importas- se muito quando era o Dolando ou o Jondalar a fazê-lo, mas era agradá-vel ouvi-la dizer o seu nome de adulto. Avoz dela também era agradável, muito embora pronunciasse algumas palavras de uma forma esquisita. Isso só fazia que se prestasse mais atonção quando ela falava e passado pouco tompo se reparasse na voz bonita que tinha.
Tinha havido uma altura em que o que ele mais desejava era que Jon- dalar se acasalasse com a mãe e ficasse com os Sharamudoi. O compa- nheiro da mãe tinha morrido quando ele era pequeno e nunca nenhum homem tinha vivido com eles atd o homem alto Zelandonii chegar. Jon- dalar tinha-o tratado como o filho do seu lar atd lhe tinha começado a ensinar a talhar a pedreneira-e Darvalo tinha fícado magoado quando ele se fora embora.
Tinha esperado que Jondalar voltasse, mas no fundo não acreditava que isso acontecesse. Quando a mãe se foi embora com Gulec, o homem Mamutoi, Darvalo tove a certoza de que não havia qualquer razão para o homem Zelandonii lá ficar se voltasse. Mas agora que ele tinha vindo, e com outra mulher, não era preciso a mãe lá estar. Todos gostavam de Jondalar e, sobretudo depois do acidente de Roshario, todos diziam que precisavam de arranjar uma curandeira. Darvalo tinha a certoza de que Ayla era boa curandeira. Por que é que não podiam ambos lá ficar?
-- Ela acordou uma vez m disse Dolando no instante em que Ayla entrou na habitação.-Pelo menos achei que sim. Podia ser que estivesse apenas a mexer-se enquanto dormia. Mas voltou a acalmar e está de novo a dormir.
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O homem estava aliviado por vê-la, embora fosse claro que não que- ria que isso fosse óbvio. Ao contrário de Talut, que era completamento aberto e amistoso e cujaliderança se baseava na força do seu carácter, na sua disponibilidade para escutar, para aceitar diferenças e arranjar compromissos.., e numa voz suficientomento alta para chamar a atenção de um grupo ruidoso no meio de uma discussão acesa... Dolando fazialhe lembrar mais Brun. Era mais reservado e, embora fosse bem ouvinto e avaliasse as situações cuidadosamente, não gostava de mostrar os seus sentimentos. Mas Ayla estava habituada a intorpretar os maneiñsmos subtis de um homem como ele.
O Lobo entrou com ela e foi para o seu canto mesmo antos de ela lhe fazer sinal. Ayla pousou o cesto de ervas e flores medicinais para ir ver Roshario e depois falou com o homem preocupado.
--Não tardará a acordar, mas ainda devo tor tempo para fazer um chá especial para ela beber quando acordar.
Dolando tinha notado a fragrância das flores assim que Ayla entrou e o líquido fumeganto que ela preparou tinha um quento aroma floral quando ela lhe deu uma malga e arranjou outra para a mulher deitada na cama.
-- Para que é isto? D perguntou ele.
-- Fi-lo para ajudar a Roshario a acordar, mas talvez o aches agradá-vel.
Ele provou-o, à espera de uma essência leve e floral, e ficou surpreendido
po.r um sabor subtilmento doce e cheio de carácter lhe encher a boca. E bornI exclamou, m Que é que tom?
Pergunta ao Darvalo. Creio que ele ficará contente por te poder dizer.
O homem assentiu, compreendendo a sugestão implícita.
-- Tenho de lhe prestar mais atenção. Tenho estado tão preocupado com a Roshario que não tenho pensado em mais nada e tenho a certoza de que ele também se term preocupado com ela.
Ayla sorriu. Estava a começar a captar as qualidades que faziam que ele fosse o chefe daquele grupo. Gostou da sua rapidez de raciocínio e estava rapidamento a gostar dele. Roshario fez um ruído e a sua atenção foi subitamente desviada para ela.
-- Dolando? -- disse ela numa voz fraca.
-- Estou aqui-disse ele, e a tornura na sua voz fez que Ayla sentis- se um nó na garganta, m Como é que te sentes?
-- Um pouco tonta e tive um sonho estranhíssimo-disse ela.
-- Trouxe-to uma coisa para beberes. A mulher fez uma careta, lembrando-se da última bebida que ela lhe dera.-Creio que irás gostar. Cheira-disse Ayla, aproximando a malga para o aroma delicioso lhe ficar perto do nariz. A careta desapareceu e a curandeira levantou a cabeça de Roshario e levou-lhe a malga aos lábios.
SEAN
-- É born-disse Roshario, depois de beber alguns golos, mais. Recosteu-se quando terminou e fechou os olhos, mas não tardou
voltar a abri-los, m O meu braço! Como está o meu braço?
-- Como é que o sentes? -- perguntou Ay]a.
-- Dói-me um pouco, mas não tanto como antes e de uma forma, rente m disse ela. m Deixa-me vê-lo, w Esticou o pescoço para braço e tentou sentar-se.
Deixa-me ajudar-te m disse Ayla, amparando-a.-Está direito! O meu braço parece estar direito. Cons, sea mulher. Depois os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas ao voltar deitar-se.-Já não terei de ser uma velha inútil.
Talvez não o possas usar plenamente avisou Ayla--, mas
o osso está no sítio e term hipótese de sarar correctamente.
-- Dolando, consegues acreditar? Vai correr tudo bem disse a çar, mas as suas lágrimas eram de alegria e alívio.
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--Term cuidado-disse Ayla, ajudando Roshario a avançar na direcção de Jondalar e Marleno que estavam acocorados de cada lado junto à cama.-O lenço sustenta-te o braço e conserva-o no sítio, mas tens de o manter junto de ti.
--Tens a certeza de que ela já se pode levantar?-- perguntou Dolando a Ayla, com a testa franzida de preocupação.
--Tenho a certeza m disse Roshario.-Já estou há demasiado tempo nesta cama. Não quero perder a comemoração de boas-vindas ao Jondalar.
Desde que não se canse excessivamente, provavelmente far-lhe-á bem estar com todos durante algum tempo-disse Ayla. Depois virou-
-se para Roshario.-Mas não muito tempo. Neste momento, o descanso é a melhor cura.
-- Quero ver toda a gente feliz para variar. Cada vez que alguém me vinha ver, via como estavam com pena de mim. Quero que saibam que you ìcar boa-disse a mulher, deslizando da cama para os braços dos dois homens que a aguardavam.
m Cuidado com o lenço-disse Ayla. Roshario pôs o braço born em volta do pescoço de Jondalar.-Pronto, levantem-na ao mesmo tempo.
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nem sequer me apetecia pentear-me ou lavar-me. Isso deve querer diz que estou melhor-disse Roshario.
-- Isso deve-se em parte ao remédio contra as dores que te dei. M o efeito acaba por passar. Diz-me assim que começares a sentir muit dores. Não tentes ser corajosa. E diz-me também quando te começares sentir cansada-disse Afia.
-- Fica descansada. Estou pronta.-Olhem quem vem aí! -- É a Roshario!
--Deve estar melhor-exclamaram várias vozes quando a mulher: levada para fora da habitação.
-- Ponham-na aqui-disse Tholie.-Preparei-lhe um lugar. Numa altura qualquer do passado, um grande pedaço de tinha-se partido da plataforma superior e ca/do perto do círculo reunião. Tho]ie tinha encostado all um banco, cobrindo-o de peles. homens levaram Roshario para lá e baixaram-na cuidadosamente.
--Estás confortável?--perguntou Markeno depois de a ferem sen do no banco almofadado.
Sim, sim, estou óptima-disse Roshario. Não estava habituada ser alvo de tantas atenções.
O lobo tinha-os seguido desde a habitação e, assim que a
foi-se deitar ao seu lado. Roshario ficou surpreendida, mas "
a forma como ele olhava para ela e reparou como ele observava todos
que se aproximaram, teve a estranha mas clara sensaçãode que
va que a estava a proteger.
-- Ayla, por que é que o lobo não sai de ao pé da Roshario? Acho
o deves mandar embora dali-disse Dolando, pensando o que é que
mal quereña de uma mulher que ainda estava tão fraca e vulneráveL:
Sabia que as a]cateias multas vezes caçavam os membros velhos, doen-
tes e fracos das manadas, i
--Não, não o mandes embora-disse Roshaño, estendendo a mão sãl
e fazendo-lhe festas na cabeça.-Acho que não me quer fazer mal e c
me está a guardar.-Eu também acho, Roshario disse Ay]a. No Acampamento do
Leão havia um rapazito fraco e doente, mas o Lobo tinha uma relação
especial com ele e protegia-o. Creio que sente que estás fraca e quer pro-
teger-te
Es se rapaz não era o Rydag?-- perguntou Tholie.-Aquele que a
Nezzie adoptou e que era...-mas fez uma pausa, lembrando-se da reac-
ção violenta e irracional de Dolando -- ... um estranho.
Ayla teve consciência da hesitação e percebeu que ela não tinha dito
o que originalmente tencionara dizer e interrogou-se sobre qual seria ra-
zão.
pLANíCIES DE PASSAGEM I
-- Ele ainda vive com eles? -- perguntou Tholie, inexplicavelmente perturbada.
--Não-disse Ayla.-Morreu no pñncípio da estação, no Encontro de Verão.-A morte de Rydag ainda a perturbava e entristecia e isso era bem evidente.
A curiosidade de Tholie rivalizava com o seu sentido de discrição; que- ria fazer mais perguntas, mas aquela não era altura para fazer perguntas sobre aquela determinada criança.
-- Mais ninguém term fome? Por que é que não comemos? -- disse. Depois de todos se terem saciado, incluindo Roshario que, apesar de não ter comido muito, comeu mais do que há já algum tempo não comia numa refeição, as pessoasjuntaram-se em volta da fogueira com malgas de chá ou de vinho de dente-de-leão ligeiramente fermentado. Era a altura de serem contarem histórias, recordarem aventuras e, em especial, saberem mais sobre os visitantes e os seus invulgares companheiros de viagem.
Estava lá todo o grupo dos Sharamudoi, ì excepção dos poucos que estavam ausentes: os Shamudoi, que viviam em terra, no aterro alto ao longo de todo o ano, e os seus parentes que viviam no rio, os Ramudoi. Durante as estações mais quentes, a Gente do Rio vivia numa doca flutuante acostada mesmo por baixo, mas no Inverno mudavam-se para o terraço alto e compartilharam as habitações dos primos cruzados unidos em cerimónia especial. Consideravam os casais duplos como companheiros intimamente ligados e as crianças das duas famflias eram tratadas como irmãos.
Era a organização mais invulgar de grupos estreitamente ligados que Jondalar conhecia, mas funcionava bem devido aos seus laços familiares e a uma relação recíproca única que era mutuamente benéfica. Havia muitos laços práticos e de ritual entre as duas metades, mas essencialmente os Shamudoi forneciam os produtos da terra e um local seguro durante o mau tempo, enquanto os Ramudoi forneciam os produtos do rio e transporte fluvial especializado.
Apesar de lhe ser muito doloroso falar nisso, Jondalar sabia que keno tinha o direito de saber. Markeno e Tholie tinham-se com Thonolan e Jetamìo; Markeno tinha um laço familiar tão como ele e era um irmão nascido da mesma mãe. Contou como tinham viajado ño abaixo no barco que Carlono lhes tinha alguns dos perigos que tinham corrìdo, a mulher-chefe Mamutoi do Acampament? do Salgueiro.
-- Somos parentes! m disse Tholie.-E minha prima.
-- Soube ìsso depois, quando vivemos no Acampamento do Leão, ela foi muito boa para nós mesmo antes de saber que éramos disse Jondalar.-Foi isso que fez que o Thonolan decidisse ir visitar outros Acampamentos Mamutoi. Falava muito em" tos com eles. Tentei convencê-lo do contrário, tentei fazer que comigo para cá. Tínhamos chegado ao fim do Grande Rio Mãe pre dissera que só queria ir até lá.-O homem alto fechou os abanou a cabeça como se estivesse a tentar negar o facto e depois a cabeça cheio de angústia. As pessoas esperaram, compartilhando a sua dor.
Mas não eram os Mamutoi continuou ele passado algum tempo.-Isso era um pretexto. Não conseguia recompor-se da morte de Jetamio. A única coisa que ele queria era segui-la para o outro mundo. Disse-me que ia continuar a viajar até a Mãe o levar. Estava pronto, disse ele, mas estava mais que pronto. Queria tanto morrer que corria todos os riscos. Foi por isso que morreu. E eu não lhe prestei atenção. Fui estúpido em se- gui-lo quando ele foi atrás da leoa que roubou a presa que caçara. Se não fosse a Ayla, teria morrido com ele.
Os últimos comentários de Jondalar excitaram a curiosidade de toda a gente, mas ninguém lhe queria fazer perguntas que o forçassem a reviver ainda mais a sua dor. Por fim, Tholie rompeu o silêncio.
Como é que encontraste a Ayla? Estavas perto do Acampamento do Leão?
Jondalar olhou para Tholie e depois para Ayla. Tinha estado a falar em Sharamudoi e não sabia bem quanto é que ela compreendera. Teve pena de ela não saber melhor a língua para poder ser ela a contar a sua própria história. Não iria ser fácil explicar, ou antes, tornar a explicação credível. Quanto mais o tempo ia passando, mais irreal tudo aquilo lhe parecia mesmo a ele, mas quando era a Ayla a contar, parecia-lhe mais fácil de aceitar.
--Não. Nessa altura ainda não conhecíamos o Acampamento do Leão. AAyla vivia sozinha, num vale, a vários dias de viagem do Acampamento do Leão disse.
-- Sozinha? m perguntou Roshario.
-- Born, não completamente sozinha. Compartilhava a sua pequena caverna com dois animais para ter companhia.
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-- Queres dizer que ela tinha outro lobo como este?-- perguntou a mulher, estendendo a mão para fazer uma festa ao animal.
--Não, nessa altura ainda não tinha o Lobo. Arranjou-o quando vivía-
mos no Acampamento do Leão. Tinha a Whinney. -- Que é uma Whinney? -- A Whinney é um cavalo.
-- Um cavalo? Queres dizer que ela também tinha um cavalo? --Sim. Aquele que está ali-disse Jondalar, apontando para os cavalos que estavam no campo, recortados contra o céu crepuscular raiado de vermelho.
Os olhos de Roshario abriram-se de surpresa, o que fez que todos os outros sorrissem. Tinham todos passado pelo mesmo choque inicial, mas ela ainda não tinha reparado nos cavalos.
-- A Ayla vivia com aqueles dois cavalos?
-- Não exactamente. Eu estava lá quando o garanhão nasceu. Antes disso vivia apenas com a Whinney... e com o leão das cavernas, rematou Jondalar, quase num murmúrio.
-- E com quê? -- Roshario falou então no seu Mamutoi não absoluta- mente perfeito.-Ayla, tens de ser to a contar-nos. Creio que o Jondalar está confuso. E talvez a Tholie possa traduzir.
Ayla tinha apanhado aqui e a all fragmentos da conversa, mas olhou para Jondalar para ter a certeza. Ele estava com um ar de profundo alívio.
--Receio não ter sido muito claro, Ayla. A Roshario quer ouvi-lo vindo de ti. Por que é que não lhes contas como vivias no teu vale com a Whinney e o Bebé e como me encontraste-disse ele.
E por que é que vivias sozinha num vale? -- acrescentou Tholie. -- É uma longa história-disse Ayla, respirando fundo. As pessoas sorridentes prepararam-se para ouvir. Era exactamente aquilo que que- riam ouvir, uma longa história nova e interessante. Ayla bebeu um golo do seu chá e pensou como havia de começar.-Já disse à Tholie. Não me lembro quem a minha gente era. Morreram num tremor de terra quando eu era muito pequena e fui encontrada e criada pelo Clã. Iza, a mulher que me encontrou, era curandeira, e começou a ensinar-me a curar quando eu era muito nova.
"Born, isso explica por que é que a jovem mulher term tanta experiência", pensou Dolando enquanto Tholie traduzia. Depois Ayla continuou a sua narrativa.
Vivi com a Iza e com o seu irmão, Creb; o companheiro dela tinha morrido no mesmo tremor de terra que levou a minha gente. Creb era como se fosse o homem do lar; ajudou-a a criar-me. Ela morreu há alguns anos mas, antes de isso acontecer, disse-me que eu me devia ir embora e procurar a minha gente. Não fui, não consegui ir...-Ayla hesitou, tentando decidir até que ponto devia contar.-Nessa altura não, mas depois.., o Creb morreu.., e tive de me ir embora.
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Ayla fez uma pausa e bebeu um pouco mais de chá enquanto Th, traduzia as suas palavras, atrapalhando-se um pouco com os nome estranhos. O relato trouxe de volta a Ayla as fortes emoções dessa, e Ayla precisava de recuperar a sua compostura.
m Tentei encontrar a minha gente, como Iza me tinha dito
-- continuou--, mas não sabia onde procurar. Procurei desde o início Primavera até quase ao fim do Verão sem encontrar ninguém. apensar se os viria a encontrar e já começava a estar cansada de Depois cheguei a um pequeno vale verde no meio das estepes secas, que era atravessado por um ribeiro e que até tinha uma pequena caverna. Tinha tudo o que eu precisava.., excepto pessoas. Eu não sabia se viria a encontrar alguém, mas sabia que o Inverno estava a chegar e que não es- tava preparada para ele. Não sobreviveria. Decidi ficar no vale atd à Primavera seguinte.
As pessoas estavam tão embrenhadas na sua histdria que faziam co- mentáños em voz alta, assentiam o seu acordo, dizendo que tinha razão, que ela tinha tornado a única decisão possível. Ayla explicou como tinha apanhado um cavalo numa armadilha, vindo a descobrir que era uma égua que tinha tido uma cria e que mais tarde vira uma alcateia de hienas a perseguir o potro.
-- Não consegui resistir-disse ela. Era um bebé e absolutamen- te indefesa. Afugentei as hienas e levei-o para viver comigo na minha caverna. E ainda bem. A égua bebé compartilhou a minha solidão e tornou-a mais suportável. Tornou-se uma amiga.
Pelo menos as mulheres conseguiam compreender que ela tivesse sido atraída por um bebé indefeso, mesmo sendo um cavalo bebé. A forma como Ayla explicava tornava a situação perfeitamente compreensível, embora nunca ninguém tivesse conhecimento de que alguém tivesse alguma vez adoptado um animal. Mas não foram apenas as mulheres que estavam cativadas. Jondalar estava a observar as pessoas. Mulheres e homens estavam igualmente fascinados e apercebeu-se de que Ayla se tinha tornado numa boa contadora de histórias. Até ele estava preso às suas palavras, apesar de conhecer a histdria. Observou-a atentamente, tentando perceber o que é que a tornava tão cativante e reparou que, para além das palavras, ela utilizava gestos subtis mas evocativos.
Não se tratava de um esforço consciente ou feito com um objectivo determinado. Ayla cresceu a comunicar à maneira do Clã e era natural para ela falar com gestos assim como com palavras, mas quando ela utilizou pela primeira vez gritos de pássaros e relinchos de cavalos, a assistência ficou surpreendida. Quando vivia sozinha no seu vale, ouvindo apenas a vida animal nas proximidades, começara a imitá-la e aprende- ra a reproduzir os seus sons com absoluta fidelidade. Passado o choque inicial, os seus sons de animais espantosamente realistas acrescentavam uma dimensão fascinante ao seu relato.
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À medida que a sua hist6ria se ia desenrolando, especialmente quando contou como começara a montar e a treinar o cavalo, até a Tho- lie ficava ansiosa por acabar de traduzir as palavras de Ayla para poder ouvir o resto. A jovem mulher Mamutoi falava ambas as línguas muito bem, embora não soubesse reproduzir o relincho de um cavalo ou os gritos de pássaros feitos com espantosa correcção, mas isso não era necessário. As pessoas apercebiam-¢se do que Ayla estava a dizer, em parte por as duas línguas serem semelhantes, mas também devido ao seu expressivo relato. Compreendiam os sons na altura certa, mas esperavam pela tradução de Tholie para apreenderem o que não tinham captado.
Ayla antecipava as palavras de Tholie como todos os outros, mas por uma razão completamente diferente. Jondalar tinha observado a sua espantosa capacidade para aprender rapidamente novas línguas quando a começara a ensinar a falar a sua, e interrogou-se como é que ela o faria. Não sabia que a sua capacidade de aprendizagem de novas línguas derivava de um conjunto de circunstâncias único. Afim de existir no meio de pessoas que aprendiam das memórias dos seus antepassados, que esta- yam armazenadas desde a nascença nos seus cérebros enormes como uma espécie de forma evoluída e consciente de instinto, a rapariga dos Outros tinha sido forçada a desenvolver a sua própria capacidade de ar- mazenagem. Tinha-se treinado a si própria a lembrar-se rapidamente para não ser considerada estúpida pelo resto do clã.
Antes de ser adoptada, tinha sido uma rapariguinha normal e falado- ra e, embora tivesse perdido a maior parte da sua linguagem vocal quando começou a falar à maneira do Clã, os padrões estavam criados. A sua necessidade premente de reaprender a fala verbal para poder comunicar com Jondalar tinha dado um impulso adicional à sua capacidade natural. Uma vez iniciado, o processo que tinha utilizado inconscientemente foi desenvolvido ainda mais quando foi viver com o Acampamento do Leão e teve de aprender mais uma língua. Conseguia memorizar vocabulário ao ouvi-lo pela primeira vez, embora a sintaxe e a estrutura demorassem um pouco mais. Mas a estrutura da linguagem dos Sharamudoi era muito semelhante à estrutura da Mamutoi e muitas palavras eram pareci- das. Ayla escutava atentamente a tradução de Tholie das suas palavras porque, à medida que ia relacionando a sua história, estava a aprender a sua língua.
Por mais fascinante que fosse a sua histSria de ter adoptado um cavalo bebé, até a Tholie teve de parar e pedir-lhe para repetir quando Ayla referiu que encontrara a cria de leão das cavernas ferido. Talvez a solidão pudesse forçar alguém a viver com um cavalo que se alimentava de erva, mas um carnívoro gigantesco? Um leão das cavernas adulto, com as quatro patas assentes no chão, quase atingia o tamanho dos cavalos das estepes de estatura relativamente pequena, mas era mais massivo. Tho-
300 JEAN AUEL , PLANÍCIES DE PASSAGEM I 301
lie quis saber como que ela pôde sequer pensar em acolher um leão das cavernas bebé.
-- Nessa altura ele não era tão grande, nem sequer tinha o tamanho de um lobo pequeno, e era um bebé.., e estava ferido.
Embora a intenção de Ayla fosse descrever um animal mais pequeno, as pessoas olharam de relance para o canídeo que estava ao pé de Roshario. OLobo era da espécie do norte e era grande mesmo para essa raça. Era o maior lobo que aquela gente alguma vez vira. A ideia de acolher um leão daquele tamanho não era perspectiva que agradasse a muitos.
-- A palavra que ela lhe deu como nome significava "bebé" e ela continuou a chamar-lhe assim mesmo depois dele ser adulto. Era o maior Bebé que eu alguma vez vi-acrescentou Jondalar, o que provocou vá-rias gargalhadas.
Jondalar também sorriu, mas depois contou um facto bem menos hilariante.
--Também achei isso engraçado mais tarde, mas a primeira vez que o vi não teve nada de engraçado. O Bebé foi o leão que matou o Jondalar e quase me matou a mim.-Dolando voltou a olhar apreensivamente para o lobo que estava junto da sua mulher, w Mas também que é que se pode esperar quando se entra no covil de um leão? Embora tivéssemos visto a fêmea sair, não sabiamos que o Bebé lá estava dentro e foi estú-pido termo-lo feito. Mas acontece que tive sorte em ter sido aquele particular leão.
Que é que queres dizer com isso de teres tido "sorte"? perguntou Markeno.
-- Fui gravemente ferido e fiquei inconsciente, mas a Ayla conseguiu
detê-lo antes que ele me matasse m disse Jondalar.
Todos se viraram de novo para a mulher.
-- Como é que conseguiste deter um leão das cavernas?
--Da mesma forma como ela controla o Lobo e a Whinney disse Jondalar.
Disse-lhe para parar e ele assim fez.
Incrédulas, as pessoas abanavam a cabeça.
-- Como é que sabes que foi isso que ela fez? Disseste que estavas inconsciente -- gritou alguém.
Jondalar olhou para ver quem é que tinha falado. Era um jovem do Rio que ele conhecia, embora não muito bem.
--Porque a vi fazer a mesma coisa mais tarde, Rondo. Um dia o Bebé foi visitá-la quando eu ainda estava convalescente. Sabia que eu era um estranho e talvez se lembrasse quando eu e Thonolan entrámos no seu covil. Fosse qual fosse a razão, nåo me queria perto da caverna de Ayla e saltou imediatamente para me atacar. Mas ela meteu-se à sua frente e disse-lhe para parar. E ele parou. Foi quase engraçada a forma como ele interrompeu o salto, mas nessa altura eu estava demasiado assusta- do para reparar.
-- Onde é que está agora o leão das cavernas? --perguntou Dolando, olhando para o lobo e pensando se o leão a teria também seguido. Não estava particularmente interessado em ser visitado por um leão, por melhor que ela o controlasse.
-- Fez a sua própria vida disse Ayla.-Ficou comigo até ser adulto. Depois, como muitos filhos, encontrou uma companheira e provavel- mente agora já term várias. A Whinney também me deixou durante algum tempo, mas voltou. Estava prenha quando regressou.
-- E o lobo? Achas que um dia se irá embora? perguntou Tholie. Ayla reteve a respiração. Era uma pergunta que se tinha recusado a considerar. Já lhe tinha ocorrido mais do que uma vez, mas afastara-a sempre, sem sequer querer admiti-la. Agora tinha sido formulada abertamente e esperava uma resposta.
O Lobo era tão pequeno quando o encontrei que creio que cresceu a pensar que as pessoas do Acampamento do Leão eram a sua alcateia-disse ela.-Muitos lobos ficam com a sua alcateia, mas outros vão-se embora e tornam-se lobos solitários atd encontrarem uma fèmea solitária com quem acasalar. Então forma-se uma nova alcateia. O Lobo ainda é novo, pouco mais que uma cria. Parece mais velho por ser tão grande. Não sei o que ele fartl, Tholie, mas por vezes preocupo-me com isso. Não que-
to que ele se vá embora.
Tholie assentiu.
--Partir é difícil, quer para aquele que parte, quer para os que ficam -- disse, pensando na sua própria decisílo difícil de deixar a sua gente para ir viver com Markeno.-Eu sei como me senti. Não disseste que tinhas deixado as pessoas que te criaram? Como é que lhes chamaste? Clã? Nunca ouvi falar nessas pessoas. Onde é que vivem?
Ayla olhou de relance para Jondalar. Estava sentado, perfeitamente imóvel, cheio de tensão, com uma expressão estranha no rosto. Estava muito nervoso com qualquer coisa e ela pensou subitamente se ele ainda se envergonharia do seu passado e das pessoas que a tinham criado. Pen- sava que ele já tinha ultrapassado esses sentimentos. Ela não se envergonhava do Clã. Apesar de Broud e do sofrimento que ele lhe tinha pro- vocado, ela tinha sido criada e amada, muito embora fosse diferente, e por sua vez tinha -os amado a eles. Sentindo-se ligeiramente irritada e pica-
da pelo orgulho, decidiu que não ia negar as pessoas que tinha amado. -- Vivem na península do Mar Beran-respondeu Ayla. m Na península? Não sabia que viviam pessoas na peninsula. É ter- ritdrio dos cabeças achatadas...-Tholie parou de falar. "Não podia ser, ou podia?"
Tholie não foi a única a perceber as implicações. Roshario tinha dado uma exclamação abafada e estava a observar Dolando furtivamente, tentando ver se ele teria relacionado as coisas, mas sem querer que pareces- se que ela tinha percebido qualquer coisa de extraordinário. Os nomes
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estranhos que ela tinha referido, aqueles que eram tão difíceis de pronunciar, poderiam ser nomes que ela tinha dado a outro tipo de animais? Mas tinha dito que a mulher que a tinha criado lhe tinha ensinado a fazer remédios que curavam. Teria havido uma mulher assim a viver entre eles? Mas que mulher é que escolheria viver com eles, especialmente se soubesse curar? Uma shamud viveria com cabeças achatadas?
Ayla reparou nas reacções estranhas de muitas das pessoas, mas quando olhou de relance para Dolando e viu que ele a olhava fixamente, sentiu um arrepio de medo. Não parecia o mesmo homem, o chefe cheio de autodomínio que cuidara da sua mulher com tanta ternura. Não esta- va a olhar para ela com o alívio e gratidão que os seus poderes de curar tinham invocado, nem sequer mesmo com a desconfiada aceitação do seu primeiro encontro. Pelo contrário, Ayla detectou uma profunda dor e viu um distanciamento; uma ira dura e ameaçadora encheu-lhe os olhos, como se não conseguisse ver claramente, mas apenas através da nuvem vermelha da ira.
m Cabeças achatadas! -- explodiu ele. m Viveste com esses animais
nojentos e assassinos! Gostava de matar todos eles. E to viveste com eles. Como é que uma mulher decente consegue viver com eles?
Tinha os punhos cerrados ao avançar para ela. Jondalar e Markeno puseram-se de pé num salto para o agarrar. O Lobo estava de pé em frente de Roshario, a mostrar os dentes e a rosnar ferozmente. Shamio começou a chorar e Tholie pegou nela e apertou-a contra si num gesto protector. Na maioria das circunstâncias não temeria pela filha junto de Dolando, mas ele não era racional acerca dos cabeças achatadas e naquele momento parecia estar preso por uma loucura incontrolável.
-- Jondalar! Como ousas trazer uma mulher dessas para cá?--exclamou Dolando, tentando soltar-se do homem alto louro.
-- Dolando! Que é que estás a dizer? -- disse Roshario, tentando levantar-se.-Ela ajudou-me! Que é que importa onde é que ela foi criado? Ela ajudou-me!
As pessoas que se tinham reunido para comemorar o regresso de Jondalar estavam estupefactas, boquiabertas de choque e sem saber o que fazer. Carlono levantou-se para ajudar Markeno e Jondalar e para tentar acalmar o seu co-chefe.
Ayla também estava estupefacta. A reacção virulenta de Dolando foi tão completamente inesperada que a apanhou desprevenida. Viu Roshario a tentar levantar-se, tentando afastar o lobo que estava defensivamente à frente dela, confuso como todos os outros pela agitação, mas determinado a proteger a mulher que considerava sua responsabilidade. "Ela não se pode levantar", pensou Ayla, dirigindo-se apressadamente para a mulher.
-- Afasta-te da minha mulher. Não quero que fique suja da tua porcaria
--gritou Dolando, tentando libertar-se doshomens que o seguravaro.
Ayla parou. Embora quisesse ajudar Roshario, nåo queria arranjar mais problemas com Dolando. "Que é que ele term?", pensou. Depois reparou que o Lobo parecia prestes a atacar e fez-lhe sinal para ele vir para junto dela. Era a última coisa de que precisava, que o lobo ferisse alguém. Era evidente que o Lobo estava em luta consigo próprio. A sua vontade era continuar de guarda ou saltar para a contenda, mas não se queria afastar dela; no entanto, estava tudo muito confuso. O segundo sinal de Ayla foi acompanhado do seu assobio e isso fez que se decidisse. Correu para ela e assumiu uma posição defensiva à sua frente.
Embora tivesse falado Sharamudoi, Ayla apercebeu-se de que Dolando tinha estado a gritar sobre os cabeças achatadas e a dirigir palavras ira- das contra ela, mas o seu significado não fora absolutamente claro. Enquanto esperava all com o lobo, percebeu subitamente por que é que fica- ra assim e começou ela própria a sentir-se irada. As pessoas do Clã não eram assassinos nojentos. Por que é que ele tinha ficado tão irado ao pen- sar neles?
Roshario tinha-se levantado e estava a tentar aproximar-se dos homens que se debatiam. Tholie deu Shamio a alguém que estava all perto e correu a ajudá-la.
-- Dolando! Dolando, para com isso! -- disse Roshario. A sua voz pareceu chegar a ele; deixou de se debater, embora os três homens continuassem a agarrá-lo.
Dolando olhou irado para Jondalar.
-- Por que é que a trouxeste para cá?
-- Dolando, que é que se passa contigo? Olha para mim! -- disse Roshario.-Que é que teria acontecido se ele não o tivesse feito? Não foi a Ayla que matou o Doraldo.
Ele olhou para Roshario e, pela primeira vez, pareceu ver a mulher fraca e abatida com o braço ao peito. Foi abalado por um breve espasmo e, como água que se escoa, a fúria irracional abandonouo.
--Roshario, não deves estar de pé-disse, estendendo-lhe os braços, mas viu-se preso.-Podes-me largar-disse a Jondalar com uma voz carregada, irada e fria.
O homem Zelandonii largou-o. Markeno e Carlono esperaram atd terem a certeza de que ele não se estava a debater, mas mantiveram-se junto dele para o que desse e viesse.
-- Dolando, não tens razão para estares zangado com o Jondalar-disse Roshario.-Ele trouxe a Ayla porque eu precisava dela.Estão todos perturbados, Dolando. Vem-te sentar e mostra-lhes que estás bem.
Ela viu uma expressão obstinada no olhar de Dolando, mas ele foi com ela para o banco e sentou-se ao seu lado. Uma mulher levou-lhes chá e
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depois voltou para o sitio onde Ayla, Jondalar, Carlono e Markeno esta- vam, juntamente com o Lobo.
D Querem chá ou vinho? n perguntou.
D Será que tens aquele maravilhoso vinho de uva-do-monte, Caro- mio? D disse ele. Ayla reparou que ela se parecia muito com Carlono e Markeno.
n O vinho novo ainda não está born, mas talvez ainda haja algum do ano passado. Também queres? -- perguntou a Ayla.
--Sim, se o Jondalar quiser, eu provo. Creio que não nos conhecemos acrescentou.
D Não-disse a mulher, enquanto Jondalar se preparava para fazer
as apresentações. D Não é preciso sermon formais. Todos nós sabemos quem és, Ayla. Eu sou Carolio, irmã daquele D disse, apontando para Carlono.
nVejo a... parecença-disse Ayla, procurando a palavra certa e Jon- dalar apercebeu-se subitamente de que ela estava a falar Sharamudoi. Olhou para ela estupefacto. Como é que ela aprendia tão depressa?
-- Espero que possas esquecer o rompante de Dolando D disse Caro- mio. O filho do seu lar, filho de Roshario, foi morto por cabeças achata- das e ele odeia-os a todos. O Doraldo era jovem, alguns anos mais velho que o Darvo, e era um rapaz cheio de energia; estava na flor da vida. Foi muito duro para o Dolando. Nunca se recompôs totalmente.
Ayla assentiu, mas franziu a tosta. Não era habitual o Clã matar os Outros. "Que é que o jovem teria feito?", pensou. Viu que Roshario esta- va a chamá-la com um aceno. Embora o olhar zangado de Dolando não fosse convidativo, ela apressou-se a ir.para junto da mulher.
--Estás cansada?--perguntou, n E altura de ires para a cama? Tens dores?
-- Algumas. Não muitas. Daqui a pouco you para a cama, mas não já.
Quero-te dizer como lamento tudo isto. Tive um filho...
A Carolio contou-me. Disse que foi morte.
D Cabeças achatadas...-resmungou Dolando entredentes.
-- Talvez nos tenhamos precipitado nas nossas conclusões n disse Roshario.-Disseste que viveste com.., umas pessoas na península? D Subitamente fez-se um silêncio absoluto.
-- Sim-disse Ayla. Depois olhou para Dolando e respirou fundo.-Com o Clã. Aqueles a quem chamam cabeças achatadas. E assim que se chamam a si prdprios.
Como? Eles não falam n exclamou uma jovem mulher. Jondalar viu que foi a mulher que estava sentada ao lado de Chalono, um outro jovem que ele conhecia. Era-lhe familiar, mas não se lembrava do seu nome.
Ayla antecipou o comentário que ela não fizera.
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3º5
D Nåo são animais. São pessoas e falam, mas não com muitas palavras, embora usem algumas. A sua linguagem é de sinais e gestos.
--Era isso que estavas a fazer? Dperguntou Roshario. DAntes de me
pores a dormir? Pensei que estivesses a dançar com as mãos.
Ayla sortiu.
D Estava a falar com o mundo dos espíritos, a pedir ao meu espírito
de totem que te ajudasse.
D Mundo dos espíritos? Falar com as mãos? Que disparate! -- exclamou
Dolando com desprezo.
D .Dolando D disse Roshario, dando-lhe a mão.
D E verdade, Dolando D disse Jondalar. D Eu até aprendi um pouco. Toda a gente do Acampamento do Leão aprendeu. A Ayla ensinou-nos para podermos comunicar com o Rydag. Ficaram todos admirados ao des- cobrirem que ele conseguia falar dessa forma, muito embora não dissesse as palavras bem. Fez que percebessem que ele não era um animal.
D Referes-te ao rapaz que a Nezzie recolheu? D perguntou Tholie.
D Rapaz? Estás a falar dessa abominação de espíritos mistos que ouvimos dizer que uma mulher Mamutoi maluca recolheu?
Ayla ergueu o queixo. Estava a começar a ficar zangada.
D O Rydag era uma criança D disse.-Podia ter vindo de espíritos mistos, mas como é que se pode culpar uma criança por aquilo que d? Ele não escolheu nascer assim. Não dizem que é a Mãe que escolhe os espí-ritos? Então ele era tanto uma criança da Mãe como qualquer outra. Que direito é que tens de lhe chamar uma abominação?
Ayla estava a olhar para Dolando com uma expressão zangada e estavam todos a olhar fLxamente para ambos, supreendidos com a defesa de Ayla e pensando qual seria a reacião de Dolando. Este mostrou-se tão surpreendido como os outros.
-- E a Nezzie não é maluca. É uma mulher terna e sensível que acolheu uma criança órfã e não se importou com o que os outros poderiam pensar-continuou Ayla. D Era como a Iza, a mulher que me acolheu quando eu não tinha ninguém, muito embora eu fosse diferente, pertencesse aos Outros.
D Os cabeças achatadas mataram o filho do meu lar n disse Dolando. D Pode ter sido, mas não é habitual. O Clã prefere manter-se longe dos Outros... é assim que consideram as pessoas como nós. D Ayla fe,z uma pausa e olhou para o homem que ainda sofria daquela forma.-E difícil perder um filho, Dolando, mas deixa-me falar-te de uma outra pessoa que também perdeu um filho. Foi uma mulher que conheci quando muitos dos clãs se reuniam.., era como um Encontro de Verão, mas não eram tão frequentes. Ela e outras mulheres estavam a apanhar alimentos quando subitamente vários homens as atacaram, homens dos Outros. Um deles agarrou-a e forçou-a a ter aquilo a que vocês chamam Prazeres.
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Ouviram-se várias exclamações abafadas. Ayla estava a falar de um assunto que nunca era discutido abertamdnte, dos muito novos já tivessem ouvido falar nisso. Algumas mães que deviam levar as crianças dali, mas ninguém se queria ir embora.
--As mulheres do Clã fazem o que os homens
de ser forçadas, mas o homem que a agarrou não podia esperar. Nem quer esperou que ela o bebd caiu e ele nem sequer reparou. Só depois, quando ele ela se levantasse, é que ela viu que o bebé tinha batido com a cabeça numa pedra. O seu bebd estava morto.
Alguns dos ouvintes tinham lágrimas nos olhos. Jondalar falou.
-- Sei que essas coisas podem acontecer. Ouvi falar de alguns jovens que vivem a oeste daqui e que gostam de fazer desporto com os cabeças
achatadas, juntando-se vários para forçar uma mulher do clã.
-- Cá também acontece isso m reconheceu Chalono.
As mulheres olharam para ele admiradas por ele o ter dìto e a maioria dos homens evitaram encará-lo, à excepção de Rondo que estava a olhá-lo como se ele fosse um verme.
-- Os rapazes crescidos falam nisso como se fosse um grande feito-disse Chalono, tentando defender-se, m Mas já não há muitos que continuem a fazê-lo, sobretudo depois do que aconteceu a Doral...-Parou subitamente de falar, olhou em volta e depois para baixo, desejando nunca ter aberto a boca.
O silêncio inquieto que se seguiu foi quebrado quando Tholie disse:
-- Roshario, pareces muito cansada. Não achas que é altura de ires para a cama?
Sìm, acho que sim-disse ela.
Jondalar e Markeno apressaram-se a ajudá-la e todos os outros consideraram isso como um sinal para se levantarem e irem embora. Naquela noite ninguém estava com vontade de ficar junto às brasas que ainda restavam na fogueira a falar ou a brincar. Os dois homens levaram a mulher para a habitação, enquanto Dolando, com um ar amarfanhado, os seguia.
--Obrigada, Tholie, mas creio que é melhor eu dormir junto da Rosha- rio esta noite m disse Ayla.-Espero que o Dolando não se oponha. Aconteceram muitas coisas e ela vai ter uma noite difícil. Na verdade, os pró-ximos dias não serão fáceis. O braço já está a inchar e terá dores. Não tenho a certeza de que devesse ter-se levantado èsta noite, mas ela insistiu tanto que acho que não a teria conseguido impedir. Não parava de dizer que se sentia bem e isso foi porque a bebida que a pôs a dormir também tira as dores e o seu efeito ainda não tinha passado por completo.
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Além disso dei-lhe outra coisa, mas o efeito também passará durante a noite e gostava de lá estar.
Ayla tinha acabado de entrar na habitação depois de ter estado a esco- var e a pentear a Whinney à luz fraca do pôr do Sol. Tratar da égua des- contraía-a sempre e fazia que se sentisse melhor quando estava perturbada. Jondalar esteve junto dela durante um pouco, mas apercebeu-se de que ela queria estar sozinha e depois de fazer algumas festas, de coçar e dizer algumas palavras reconfortantes ao garanhão, tinha-os deixado.
m Talvez o Darvo possa ficar contigo-sugeriu Jondalar.-Provavelmente dormirá melhor. Incomoda-o vê-la sofrer.
m Claro-disse Markeno.-You buscá-lo. Gostava de conseguir convencer o Dolando a ficar connosco durante um tempo, mas sei que não o fará, sobretudo depois do que aconteceu esta noite. Nunca ninguém lhe contou toda a história sobre a morte de Doraldo.
-- Talvez seja melhor ter sabido. Talvez consiga finalmente pS-la de lado-disse Tholie.-Há muito tempo que o Dolando alimenta um verdadeiro ódio contra os cabeças achatadas. Parecia ser relativamente inofensivo,
pois ninguém se rala com eles.., desculpa Ayla, mas é verdade. Ala assentiu. m Eu sei-disse.
-- E raramente temos contactos com eles. Em muitos aspectos é um born chefe-continuou Tholie --, a não ser no que respeita aos cabeças achatadas, e é fácil pôr os outros contra eles. Mas um ódio tão grande deixa forçosamente marcas. Creio que é pior para a pessoa que odeia.
m Creio que é altura de irmos descansar-disse Markeno. Deves estar exausta, Ayla.
Jondalar, Markeno e Ayla, seguida do Lobo, subiram juntos a meia dúzia de degraus que davam para a habitação. Markeno raspou na pele que tapava a entrada com os dedos e esperou. Em vez de falar, Dolando foi à entrada e afastou a pele, ficando depois na sombra a olhar para eles.
Dolando, acho que a Roshario vai ter uma má noite. Gostava de ficar junto dela-disse Ayla.
O homem olhou para ela e depois para o interior, para a mulher dei- tada na cama.
-- Entra m disse. m Quero ficar com a Ayla m disse Jondalar. Estava determinado a não a deixar sozinha com o homem que a tinha ameaçado e gritado com ela, embora parecesse ter aca]mado.
Dolando assentiu e foi para dentro da habitação.
Vim perguntar se o Darvo quer passar a noite connosco disse Markeno.
-- Ache que deve ir-disse Dolando.-Darvo, pega nas tuas peles de dormir e vai passar a noite a casa do Markeno.
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O rapaz levantou-se, pegou nas peles de dormir e dirigiu-se para a entrada. Ayla achou que ele parecia aliviado mas não feliz.
O Lobo instalou-se no seu canto assim que entraram. Ayla dirigiu-se para o fundo da habitação que estava na penumbra para ver como estava Roshario.
-- Tens uma lamparina ou um archote, Dolando? Gostava de ter um pouco mais de luz-disse ela.
--E talvez mais algumas peles para dormir-acrescentou Jon- dalar --, ou queres que peça à Tholie?
Dolando teria preferido ficar sozinho na penumbra, mas se Roshario acordasse com dores sabia que a jovem mulher a poderia ajudar muito melhor que ele. Tirou de uma prateleira uma malga de arenito pouco funda que tinha sido moldada com pancadas dadas com outra pedra.
-- As peles para dormir estão all-disse a Jondalar.-Há gordura para a lamparina na caixa ao pé da porta, mas preciso de reacender a fogueira para depois acender a lamparina. Apagou-se.
-- Eu acendo o lume-disse Ayla-se me disseres onde tens os gra- vetos e as mechas.
Ele deu-lhe o material que ela lhe pedira,juntamente com um pau redondo, preto de fuligem numa extremidade, e um pedaço de madeira achatada com vários buracos queimados de fazer lume, mas ela não os utilizou. Tirou duas pedras de uma bolsa que tinha presa ao cinto. Dolando observou com curiosidade enquanto ela fazia um montinho com aparas de madeira e, curvando-se sobre ele, bateu com uma pedra na outra. Para sua surpresa, uma grande centelha saltou das pedras e caiu no material combustível, fazendo erguer uma fina pluma de fumo. Ela apro- ximou-se mais e soprou e as aparas de madeira incendiaram-se.
m Como é que fizeste isso? -- perguntou, surpreendido e um pouco
receoso. Qualquer coisa tão espantosa e desconhecida provocava sempre um certo temor. "Será que a magia de shamud daquela mulher não term fim?", pensou.
--Vem da pedra de fogo-disse Ayla, enquanto juntava mais grave- tos para conservar o lume aceso, e depois pedaços de madeira maiores.
--Ayla descobriu-a quando vivia no seu vale m disse Jondalar.-Ha- via muitas na margem rochosa e eu apanhei algumas de reserva. Amanhã mostro-te como se faz e dou-te uma para ficares a saber como são. Pode ser que haja mais aqui perto. Como podes ver, fazem lume muito mais depressa.
Onde é que disseste que tinhas a gordura? -- perguntou Ayla. Na caixa junto à entrada. You buscá-la. As mechas também lá estão-disse Dolando. Deitou uma porção de sebo branco e macio, gordura que tinha sido derretida em água e limpa depois de arrefecida, dentro da malga de pedra e enfiou uma mecha de líquen seco torcidojunto à beira e depois pegou num pau em chama e acendeu-a. Ardeu irregularmente
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durante instantes mas depois começou a forrnar-se uma mancha de óleo no fundo da malga que foi absorvida pelo líquen, dando origem a uma chama mais regular e a ainda mais luz no interior da estrutura de madeira.
Ayla pôs as pedras de cozinhar na fogueira e depois verificou o nível da caixa de madeira onde estava guardada a água. Fez menção de a levar para o exterior, mas Dolando tirou-lha das mãos e foi ele buscar mais água. Enquanto ele esteve ausente, Ayla e Jondalar puseram as peles numa plataforma de dormir. Depois Ayla escolheu algumas ervas medicinais dos seus pequenos pacotes para fazer um chá calmante para todos eles. Pôs outros ingredientes em algumas das suas malgas para estafem prontos a usar quando a Roshaño acordasse. Pouco depois de Dolando trazer a água, arranjou malgas de chá para todos.
Ficaram sentados em silêncio, a beber o líquido quente, o que foi um alívio para Dolando. Tinha tido receio de que eles o obrigassem a fazer conversa e não estava com a menor disposição para isso. Para Ayla não era uma questão de disposição. Muito simplesmente não sabia o que dizer. Tinha ido para lá pela Roshario, embora preferisse não estar lá. A perspectiva de passar a noite na habitação de um homem que se tinha enfurecido com ela não era agradável e sentia-se grata por Jondalar ter decidido ficar com ela. Jondalar tambdm não sabia o que dizer e estava à espera que um dos outros falasse. Como ninguém falou, achou que talvez o silêncio fosse de facto mais adequado.
Quase como se tivesse sido planeado, exactamente quando estavam a acabar de beber o chá, Roshario começou a gemer e a mexer-se agitada- mente. Ayla pegou na lamparina e foi para junto dela. Pousou a lamparina num banco de madeira que também servia de mesinhadecabeceira, afastando uma malga feita de ervas entretecidas, cheia de goivos aromáticos. O braço da mulher estava inchado e quente ao toque, mesmo através das ligaduras que estavam agora mais apertadas. A luz e o toque de Ayla acordaram a mulher. O seu olhar, vidrado de dor, centrou-se na curandeira e tentou sorrir.
m Ainda bem que acordaste-disse Ayla.-Preciso de afrouxar as
ligaduras e as talas, mas estavas a mexer-te muito a dormir e é preciso que fiques com o braço imóvel. You fazer uma cataplasma para diminuir o inchaço, mas primeiro quero arranjar-te uma coisa para as dores. Ficas bem durante um bocadinho?
m Sim, vai fazer o que precisas de fazer. O Dolando pode ficar a conversar comigo-disse Roshario, olhando por cima do ombro de Ayla para um dos homens que estavam atrás dela.-Jondalar, não achas que deves ir ajudar a Ayla?
Ele assentiu. Era evidente que ela queria falar com Dolando em privado e ele ficaria igualmente contente em deixá-los sozinhos. Levou mais lenha para a fogueira, depois mais água e mais algumas pedras lisas do rio para aquecer o líquido. Uma das pedras de cozinhar tinha-se rachado
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quando foi transferida do lume para a água fria que Dolando levara para fazer o chá. Enquanto observava Ayla a preparar a sua medicação, ouviu o murmúrio abafado de vozes vindo do fundo da habitação. Ficou contente por vão conseguir ouvir o que estavam a dizer. Depois de Ayla acabar de tatar a Roshario, fazendo que ficasse mais confortável, estavam todos can:ados e prontos para dormir.
Na manhã seguinte Ayla foi acordada pelo som encantador de crianças a rir e a brincar e pelo nariz molhado doLobo. Quando abriu os olhos, o Lobo olhou para a entrada, de onde vinham os sons. Depois voltou a olhar para ela e ganiu.
-- Queres ir lá para fora brincar com as crianças, não queres? m disse ela. Ele voltou a ganir.
Ayla destapou-se e sentou-se, reparando que Jondalar estava esparramado ao seu lado, a dormir profundamente. Espreguiçou-se, esfregou os olhos e olhou para Roshario. A mulher continuava a dormir; tinha de recuperar muitas noites sem dormir. Dolando, embrulhado numa pele, estava a dormir no chão ao lado da sua cama. Também ele tinha passado muitas noites sem dormir.
Quando Ayla se levantou, o Lobo correu para a entrada e ficou all à espera dela, com o corpo todo a estremecer de antecipação. Ela afastou a pele da entrada e saiu rapidamente, mas disse aoLobo para ficar all. Não queria que ele assustasse ninguém ao correr inesperadamente para o meio de qualquer coisa. Ayla olhou e viu algumas crianças de várias idades no lago formado pela queda de água, juntamente com algumas mulheres, todos a tomarem o seu banho matinal. Diñgiu-se para eles com o Lobo ao seu lado. Shamio guinchou de alegria ao vê-lo.
-- Anda, Wuffie. Também tens de tomar banho-disse a garota. O Lobo ganiu, olhando para Ayla.
-- Será que alguém se importa que o Lobo vá para dentro do lago, Tho- lie? A Shamio parece querer que ele vá para lá brincar. m Eu iajá sair-disse a jovem mulher m, mas ela pode ficar a brin-
car com ele se os outros não se importarem.
Como ninguém levantou qualquer objecção, Ayla fez-lhe sinal.
-- Vai lá, Lobo disse. O lobo saltou para dentro de água, salpicando todos de ågua, e foi direito a Shamio.
Uma mulher que estava a sair de dentro de água com a Tholie sorriu e disse:
-- Gostava que os meus filhos fossem tão obedientes como esse lobo. Como é que fazes para.que ele faça o que queres?
m Demora tempo. E preciso insistir muito, fazê-lo repetir o que se quer muitas vezes e por vezes é difícil fazê-lo compreend.er a princípio, mas assim que aprende uma coisa nunca mais esquece. E de facto muito esperto-disse Ayla.-Tenho-o ensinado todos os dias desde que estamos a viajar.
u É como ensinar uma criança m disse Tholie m, mas porquê um lobo? Não sabia que era possível ensinar-lhes a fazer seja o que for, mas porquê fazê-lo?
-- Sei que pode ser assustador para as pessoas que não o conhecem e não quero que ele assuste ninguém u disse Ayla. Vendo Tholie sair do lago e secar-se, Ayla apercebeu-se subitamente de que ela estava grávida. Não de muito tempo, e como era rechonchuda disfarçava quando esta- va vestida, mas estava definitivamente grávida.-Acho que também gostava de me lavar, mas primeiro tenho que verter água.
:--Se fores por aquele carreiro na parte de trás, encontrarás uma vala.-E bastante lá em cima, do outro lado da parede rochosa, para correr para o outro lado quando chove, mas é mais perto que dar a volta-disse Tholie.
312 JEAN A UEL
colina, ou com vegetação semelhante. Parou para apanhar algumas avelãs de um arbusto que crescia contra uma parede rochosa e não resistir a afastar os ramos baixos para ver se ocultavam um caverna.
Encontrou um grande silvado com grandes ramos cheios de es
e carregados de frutos maduros e sumarentos. Comeu atd não poder mais e pensou o que é que teria acontecido às amoras que tinha apanhado na véspera. Depois lembrou-se de que tinha comido algumas na festa de boas-vindas. Decidiu que tinha de lá voltar para apanhar mais para a. Roshario. Subitamente, apercebeu-se de que tinha que regressar. A mulher podia já ter acordado e precisar de cuidados. O bosque era-lhe tão familiar que por momentos Ayla esqueceu-se onde estava. Sentiu-se de novo rapariguinha, a vaguear pelos bosques, aproveitando o pretexto de estar a procurar plantas medicinais para Iza para os explorar.
Talvez por ser uma segunda natureza nela, ou porque procurava sempre plantas mais atentamente no caminho de regresso para justificar as suas saídas, Ayla prestou enorme atenção à vegetação. Quase gritou de excitação e de alívio quando viu as pequenas trepadeiras amarelas com folhas e flores minúsculas enroladas nas outras plantas que estavam secas e mortas, estranguladas pelas trepadeiras que se assemelhavam a fios dourados.
"Éisso! É fio dourado, a planta mágica de Iza", pensou. "É disso que eu preciso para o meu chá da manhã para não deixar que um bebé cresça dentro de mim. E há muito. Eu já estava com muito pouco e não sabia se daria para toda a Viagem. Será que também há aqui raiz de artemísia? Devia haver. Terei de cá voltar e procurar."
Encontrou plantas com grandes folhas e entreteceu-as com galhos, improvisando um recipiente, apanhando depois o máximo das pequenas plantas, sem contudo esgotar por completo a zona. Há muito tempo, Iza tinha-lhe ensinado a deixar sempre algumas para dar origem à produção do ano seguinte.
No caminho de regresso, fez um pequeno desvio através de uma parte mais cerrada e sombria do bosque para procurar mais plantas brancas cerosas que desinflamariam os olhos dos cavalos, muito embora pareces- se que já estavam a melhorar. Procurou cuidadosamente na terra por baixo das árvores. Com tanta coisa que lhe era familiar não se devia ter surpreendido, mas quando viu as folhas verdes de uma determinada planta Ayla soltou uma exclamação abafada e sentiu um arrepio frio em todo o corpo.
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Ayla ajoelhou-se na terra húmida e ficou sentada a olhar para as plantas, a respirar o ar rico da floresta, enquanto era invadida por recordações. Mesmo no Clã o segredo da raiz não era muito conhecido. Este conhecimento pertencia à linha de Iza e só aqueles que descendiam dos mesmos antepassados-ou aqueles a quem ela o ensinara-sabiam o complicado tratamento que era preciso levar a cabo para produzir o resultado final. Ayla lembrou-se de Iza a explicar o invulgar, método de secar a planta de forma a que as suas propriedades se concentrassem nas raí-zes e lembrou-se que o seu efeito se tornava mais forte quando eram guar- dadas durante muito tempo, desde que não apanhassem luz.
Embora Iza lhe tivesse dito, cuidadosamente e repetidas vezes, como se fazia a bebida das raízes secas, não deixou Ayla prepará-la antes de ela ir à Reunião dos Clãs; não podia ser utilizada sem o ritual adequado e, Iza frisara, era demasiado sagrada para deitar fora. Tinha sido essa a razão pela qual Ayla tinha bebido os restes que encontrou no fundo da antiga malga de Iza, depois de a ter preparado para os mog-urs, muito embora fosse proibido às mulheres, de forma a não ser deitada fora. Nessa altura não estava apensar claramente. Estavam a passar-se tantas coisas, outras bebidas turvavam-lhe o espírito, e a bebida feita com a raiz era tão poderosa que mesmo o pouco que ela ingerira enquanto a estava a fazer tinha tido um efeito fortíssimo.
Tinha vagueado pelas estreitas passagens, através do labirinto de cavernas e, quando viu Creb e os outros rnog-urs não podia ter recuado mesmo que quisesse. Foi nessa altura que tudo aconteceu. De alguma forma Creb soube que ela lá estava e levou-a com eles até às memórias. Se não o tivesse feito, ela teria ficado perdida para sempre naquele vazio negro, mas naquela noite aconteceu qualquer coisa que o modificou. Passou a não ser o Mog-ur, pois não tinha alma para isso, até àquela última vez.
Ayla tinha consigo algumas raízes quando deixou o Clã. Estavam na sua bolsa de plantas medicinais, na bolsa vermelha sagrada, e o Mamut tinha mostrado grande curiosidade quando ela lhe falou nisso. Mas não tinha o poder do Mog-ur, ou talvez a planta afectasse os Outros de uma
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forma diferente. Ela e o Mamut foram ambos atraídos para o vazio negro e quase não tinham regressado.
All sentada no chão, a olhar fLxamente para a planta aparentemente inóqua que se podia transformar em algo de tão poderoso, Ayla recordou a experiência. Subitamente sentiu novo arrepio e apercebeu-se de uma sombra de escuridão, como se uma nuvem estivesse a passar no céu, e depois viu que não estava apenas a recordar, estava a reviver a estranha Viagem com o Mamut. O bosque verde dissolveu-se e ficou obscuro enquanto ela se sentia de novo atraída para a memória da habitação es- cura. Sentiu no fundo da garganta o sabor escuro e frio da marga e dos fungos de antigas florestas prìmitivas. Sentiu que se movia a grande velocidade para os estranhos mundos por onde tinha viajado com o Mamut e sentiu o terror do vazio negro.
Depois, tenuemente, muito ao longe, ouviu a voz de Jondalar, carregada de um medo agonizante e de amor, a chamá-la, a puxá-la a ela e ao Mamut, através da mera força do seu amor e do muito que precisava de- la. Num instante estava de volta, sentindo-se gelada até aos ossos mesmo ao sol quente do final do Verão.
-- O Jondalar trouxe-nos de volta! -- exclamou em voz alta. Na altura não se tinha apercebido disso. Tinha sid0 ele que ela vira ao abrir os olhos, mas depois ele desapareceu e era Ranec que lá estava, levando-lhe uma bebida quente para a aquecer. O Mamut tinha-lhe dito que alguém os tinha ajudado a regressar. Ela não se tinha apercebido de que tinha si- do Jondalar, mas subitamente soube, quase como se estivesse destinado que soubesse.
O velho homem tinha-lhe dito que nunca mais usaria a raiz e tinha-a avisado para ela também não o fazer, mas também disse que se ela algu- ma vez o fizesse, que estaria lá alguém para a chamar de volta. Tinha-lhe dito que a raiz era mais que letal. Podia roubar-lhe o espírito; ela ficaria perdida para sempre no vazio negro e nunca mais poderia regressar à Grande Terra Mãe. De qualquer forma, nessa altura isso não lhe interes- sava. Já não tinha mais raízes. Tinha gasto as últimas com oMamut. Mas agora, all à sua frente, estava a planta.
O facto de all estar não significava que ela tinha de a levar, pensou. Se a deixasse all, nunca mais teria de se preocupar se a voltaña a usar e em perder o seu espírito. De qualquer forma tinha-lhe sido dito que a bebida lhe estava proibida. Era para os mog-urs que lidavam com o mundo dos espíritos, não para curandeiras que apenas era suposto prepara- rem-na para eles, mas ela já a tinha bebido por duas vezes. E, além dis- so, o Broud tinha-a amaldiçoado; para o Clã, ela estava morta. Quem é que a podia proibir agora?
Ayla nem sequer se interrogou por que é que o estava a fazer quando apanhou um ramo partido e começou a utilizá-lo como pau de escavar para extrair cuidadosamente váñas plantas sem danificar as raizes. Ela era
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uma das poucas pessoas na terra que conhecia as suas propriedades e como as preparar. Não as podia deixar all. Não que tivesse qualquer intenção específica de as utilizar, o que em si não era ìnvulgar. Tinha muitos preparados de plantas que talvez nunca viesse a usar, mas aquilo era diferente. As outras tinham potenciais utilizações medicinais. Até o fio dourado, o remédio mágico de Izapara combater as essências impregnan- tes, era born para picadas e ferroadas quando aplicado externamente mas, tanto quanto sabia, aquela planta não tinha qualquer outra utilização. A raiz era magia de espíritos.
-- Ah, estás aí! Estávamos a começar a ficar preocupados u gritou. Tholie quando viu Ayla a descer pelo carteiro.-O Jondalar disse que se não voltasses depressa ia mandar o Lobo à tua procura.
--Ayla, por que é que te demoraste tanto? u disse Jondalar antes de ela poder responder.-A Tholie disse que voltarias logo.-Tinha falado Zelandonii sem pensar, o que lhe mostrou como estava preocupado.
-- O carteiro nunca mais acabava e decidi ir um pouco mais adiante. Depois encontrei umas plantas que queria disse Ayla, mostrando o material que apanhara.-Esta zona é muito parecida com o sítio onde cresci. Desde que parti que não via muitas destas plantas.
Que é que essas plantas têm de tão importante para teres que as apanhar já? Para que serve essa?-- disse Jondalar, apontando para o fio dourado.
Ayla já o conhecia suficientemente bem paraçerceber que o seu tom zangado era resultado da sua preocupação, mas a sua pergunta apanhou-a desprevenida.
-- É... isto é para picadas.., e ferroadas-disse, agitada e embaraçada. Era como se estivesse a mentir; muito embora a resposta fosse absolutamente verdadeira, não era completa.
Ayla tinha sido criada como mulher do Clã e as mulheres do Clã não se podiam recusar a responder a uma pergunta directa, sobretudo quando era feita por um homem, mas a Iza tinha frisado bem que ela nunca deveña dizer a ninguém, sobretudo a um homem, o poder que os minúsculos fios dourados continham. A própria Iza não teria conseguido resistir a responder totalmente à pergunta de Jondalar, mas nunca teria de o fazer. Nenhum homem do Clã pensaria em interrogar uma curandeira sobre as suas plantas ou práticas. Aintenção de Iza era de que Ayla nunca avançasse voluntariamente com a informação.
Era aceitável não fazer referência a ela, mas Ayla sabia que essa concessão era uma forma de cortesia e visava permitir algum grau de privacidade, e ela tinha ultrapassado tudo isso. Estava deliberadamente a reter informação. Podia dar o remédio, se achasse que era adequado, mas a Iza tinha-lhe dito que podia ser perigoso se as pessoas, sobretudo os ho
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mens, se apercebessem de que ela sabia derrotar os espíritos mais fortes e impedir a gravidez. Era um conhecimento secreto apenas para curan' deitas.
Uma ideia ocorreu subitamente a Ayla. Se podia impedi-La de abençoar uma mulher, poderia o remédio mágico de Iza ser mais forte que a Mãe? Como é que podia ser? Mas se Ela tinha criado todas as plantas, de- via,a ter feito propositadamente! Devia ser Sua intenção que fosse usada para ajudar as mulheres quando fosse perigoso ou difícil ficarem grá-vidas. Mas então por que é que mais mulheres não a conheciam? Talvez conhecessem. Como crescia all tão perto, talvez aquelas mulheres Sharamudoi estivessem familiarizadas com ela. Podia perguntar, mas seria que lhe diriam? E se não soubessem, como é que ela podia perguntar sem lhes falar nisso? Mas sea Mãe a tinha criado para as mulheres, não se- ria certo dizer-lhes? O espírito de Ayla estava às voltas com todas estas perguntas, mas não tinha respostas.
m Por que é que precisavas de ir apanhar plantas para picadas e ferroadas
agora? m disse Jondalar, ainda com um olhar preocupado.
-- Não era minha intenção preocupar-te-disse Ayla, sorrindo--, só
que esta zona parece tanto o sítio onde cresci que a quis explorar. Subitamente, ele também teve que sortir. m E encontraste amoras para o teu pequeno-almoço, não foi? Agora
percebo por que é que te demoraste tanto. Nunca conheci ninguém que gostasse tanto de amoras como to. m Tinha reparado no embaraço dela, mas ficou encantado quando pensou que tinha descoberto a razão porque ela se mostrava tão relutante em falar na sua pequena escapadela.
--Born, sim, comi a]gumas. Talvez lá possamos ir mais tarde apanhar amoras para todos. Estão tão maduras e boas. Também há outras coisas que eu quero procurar.
-- Tenho a sensação de que vamos ter todas as amoras que possamos querer contigo cá, Ayla m disse Jondalar, beijando-lhe a boca manchada de roxo.
Estava tão aliviado por ela estar bem, e tão satisfeito consigo próprio por pensar que a tinha apanhado e descoberto o seu fraquinho por bagas doces, que ela apenas sortiu e deixou-o pensar o que ele queria. Gostava de amoras, mas o seu verdadeiro fraquinho era ele, e sentiu subitamente um amor tão avassalador por ele que desejou que esti.vessem sozinhos. Queria abraçá-lo e tocar-lhe e dar-lhe Prazeres e senti-lo a dar-lhe Prazeres a ela como ele tão bem fazia. O seu olhar revelou os seus pensamentos e os olhos dele, excepcionalmente azuis, retribuíram-nos ainda em maior medida. Ayla sentiu um tintilar bem dentro de si e teve que desviar o olhar para se recompor.
-- Como está a Roshario? -- perguntou.-Já acordou?
"-Sim, e diz que term fome. A Carolio veio da doca e está-nos a arran-
jar qualquer coisa, mas achámos que devíamos esperar por ti antes de ela corner .
You ver como ela está e depois gostava de ir nadar-disse Ayla. Enquanto se dirigia para a habitação, Dolando afastou a pele da entrada para sair e o Lobo saiu aos saltos. Saltou para ela e pôs-lhe as pa- tas nos ombros, lambendo-lhe o queixo.
Lobo, para baixo! Tenho as mãos cheias-disse ela.
m Parece contente por te ver-disse Dolando. Hesitou, mas depois acrescentou. Eu também, Ayla. A Roshario precisa de ti.
Era uma espécie de reconhecimento, pelo menos a admissão de que não a queria longe da sua companheira, apesar da sua fúria da noite anterior. Ela percebera isso quando ele permitira que entrasse na sua habitação, embora ele não o tenha dito.
-- Precisas de alguma coisa? Queres que te vá buscar alguma coisa? perguntou o homem. Reparara que ela tinha as mãos cheias.
-- Gostava de secar estas plantas e preciso de uma armação-disse ela.-Posso fazê-la, mas preciso de madeira e lianas ou pedaços de tendão seco para atar.
--Talvez tenha uma coisa melhor. A Shamud costumava secar plantas para as suas práticas e creio que sei onde estão as armações. Gosta- rias de usar uma delas?
m Acho que seria perfeito, Dolando-disse ela. Ele assentiu e afastou-se
a passos largos enquanto ela entrava. Ayla sorriu quando viu Roshario sentada na cama. Pousando as plantas, dirigiu-se para junto dela.
-- Não sabia que o Lobo tinha voltado cá para dentro m disse Ayla. Espero que não te tenha incomodado.
--Não, tenho a certeza de que me estava a guardar. Quando entrou... ele sabe contornar a pele da entrada.., veio direito para aqui. Depois de eu lhe fazer festas, instalou-se naquele canto e ficou a olhar para cá. Sabes, agora é o sítio dele-disse Roshario.
-- Dormiste bem? -- perguntou Ayla à mulher, arranjando-lhe a cama e colocando peles para ela se poder encostar e para ficar mais confortável.
--Melhor do que alguma vez me senti depois de cair. Sobretudo depois de o Dolando e eu termos tido uma longa conversa-disse. Olhou para a mulher alta e loura, a estranha que Jondalar tinha trazido com ele, que tinha agitado a sua vida e provocado tantas alterações em tão curto espaço de tempo, m Ele não queria dizer o que disse sobre ti, Ayla, mas está perturbado. Há anos que vive com a morte de Doraldo, sem nunca ser realmente capaz de a superar. Não sabia em que circunstância se deu, atd ontem à noite. Agora está a tentar reconciliar anos de ódio e de violência contra aquilo que estava convencido serem animais malvados com tudo o que veio a saber sobre eles, incluindo to.
m E to, Roshario? Ele era teu filho-disse Ayla.
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-- Também os odiei, mas depois a mãe da Jetamio morreu e nós acolhêmo-na. Ela não ocupou o seu lugar, mas estava tão doente e precisa- va de tantos cuidados que não tive tempo para ficar a remoer a morte dele. Quando comecei a sentir como se ela fosse minha própria filha pôr em paz a recordação do meu filho. O Dolando acabou por também amar a Jetamío, mas os rapazes são especiais para os homens, especial- mente os rapazes que nasceram no seu lar. Não conseguiu superar a perda do Dota]do na altura em que tinha atingido a idade adulta e tinha a vida à sua frente.-Roshario tinha os olhos brilhantes de lágrimas. Agora a Jetamio também morreu. Quase tive medo em acolher o Darvo, ' com medo de que ele morresse novo.
-- Nunca é fácil perder um filho-disse Ayla --, ou uma filha. Roshario pensou ver uma breve expressão de dor no rosto da jovem mulher quando esta se levantou e foi para junte da fogueira iniciar os seus preparativos. Quando voltou, trazia os seus remédios nas suas interessantes malgas de madeira. A mulher nunca tinha visto nada de semelhante. A maior parte dos seus instrumentos, utensflios e recipientes eram decorados com entalhes ou pinturas, ou ambos, particularmente os da Shamud. As malgas de Ayla eram cuidadosamente fabricadas, lisas e perfeitas na sua forma, mas cruamente simples. Não tinham decorações de qualquer tipo, a não ser o grão da própria madeira.
-- Neste momento tens muitas dores? -- perguntou Ayla enquanto ajudava Roshario a deitar-se.
-- Algumas, mas nem por sombras as que tinha antes-disse a mulher, enquanto Ayla tirava as ligaduras.
-- Creio que o inchaço diminuiu-disse Ayla, observando o braço.-É born sinal. Para já you pôr as talas e voltar a pôr-to ao peito, para o caso de te quereres levantar um bocadinho. Logo à noite ponho-te outra cataplasma. Quando o inchaço desaparecer, embrulho-o em casca de bétula que tens que conservar até o osso estar sarado; pelo menos durante uma lua e metade da seguinte-explicou Ayla, enquanto tirava habilmente a pele de camurça húmida e olhava para a nódoa negra que se estava a
espalhar, resultante das suas manipulações da véspera.
-- Casca de bétula? -- perguntou Roshario.
-- Quando é posta de molho em água quente, amolece e é fácil de mol- dar e fixar. Depois endurece e fica rija e manterá o teu braço rígido para o osso sarar direito, estando to a pé e activa.
-- Queres dizer que poderei levantar-me e fazer qualquer coisa em vez de estar aqui deitada? -- perguntou Roshario com um grande sorriso encantado.
-- Só poderás usar um braço, mas não há qualquer razão para não te pores de pé sobre as tuas duas pernas. Eram as dores que te mantinham aqui.
Roshario assentiu.
-- Isso é verdade.
--Há uma coisa que eu quero que tentes antes de te pôr as ligaduras. Se conseguires, quero que mexas os dedos; talvez te doa um pouco.
Ayla tentou nåo mostrar a sua preocupação. Se houvesse alguma lesão interna que impedisse Roshario de mexer os dedos naquele momento, talvez fosse uma indicação de que apenas teria o uso limitado daquele braço. Estavam ambas a olhar atentamente para a mão dela e ambas sorriram de alívio quando ela levantou o dedo do meio e depois os outros.
-- Muito bem! -- disse Ayla.-Agora vê se consegues encolher os dedos.
-- Sinto-os-disse Roshario, enquanto flectia os dedos.
-- Dói-te muito se tentares cerrar o punho?-- Ayla observou enquan-
to ela fechava lentamente a mão.
-- Dói, mas consigo.
-- Muito bem. Até que ponto é que consegues mexer a mão? Consegues dobrá-la no pulso?
Roshario fez uma careta devido ao esforço e respirou entredentes, mas curvou a mão para a frente.
-- Já chega-disse Ayla.
Viraram-se ambas quando ouviram o Lobo anunciar a chegada de Jondalar com um único latido que parecia o tossir de um cavalo, e sorri- ram quando ele entrou.
--Vim ver se podia ajudar nalguma coisa. Queres que ajude a Roshario a ir lá para fora?--perguntou Jondalar. Tinha olhado de relance para o braço à mostra de Roshario e desviado rapidamente o olhar. Aquela coisa inchada e descorada não lhe parecia estar nada bem.
-- Por agora nada, mas num dos próximos dias irei precisar de tiras largas de casca fresca de bétula. Se por acaso wires uma bétula de tama-
nho razoável, não te esqueças para me poderes mostrar onde está.-P.ara quê?
-- E para lhe manter o braço rígido enquanto sara-respondeu Ayla enquanto o lìgava juntamente com as talas.
--Não me chegaste a dizer para que é que foram todos aqueles movimentos
com os dedos, Ayla-disse Roshario.-Que é que significam? Ala sorriu.
-- Significam que, com sorte, tens boas probabilidades de voltares a ter o uso pleno do teu braço, ou muito perto disso.
-- São de facto boas notícias-disse Dolando. Tinha ouvido o seu comentário ao entrar na habitação a segurar numa extremidade de uma armação. A outra era segura por Darvalo.-Isto serve?
--Sim, e muito obrigada por a teres trazido cá para dentro. Algumas das plantas têm de secar longe da luz.
-- A Carolio diz que a nossa refeição da manhã está pronta-disse o
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jovem.-Quer saber se querem corner lá fora, pois está um dia bonito.
--Sim, gostaria muito-disse Roshario, virando-se depois Ayla --, se to achares que posso.
-- Deixa-me só pôr-te o braço ao peito e depois podes ir pelo teu pró-' prio pé se o Dolando te ajudar-disse Ayla. O sorriso do chefe doi era incaracteristicamente rasgado.-E se ninguém se importar tava de ir nadar um pouco antes de corner.
--Tens a certeza de que esta coisa é um barco?-- disse Markeno, ajudando Jondalar a encostar a estrutura redonda coberta de peles à parede juntamente com os dois paus compridos.-Como é que se manobra esta malga?
-- Não é tão fácil de controlar como os vossos barcos, mas é usado sobretudo par.a atravessar rios e os remos resultam para o empurrar para o outro lado. E claro que com os cavalos apenas o amarrávamos aos paus que eles levam presos e eles puxam-no-disse Jondalar.
Olharam ambos de relance para o campo onde Ayla estava a escovar a Whinney, enquanto o Corredor se mantinha all perto. Jondalarjá tinha escovado o pêlo do garanhão mais cedo e reparara que as partes sem pêlo, que tinha caído nas planícies quentes, tinham pêlo a crescer. Ayla tinha tratado os olhos de ambos os cavalos. Agora que estavam a maior altitude, onde estava mais fresco, longe dos incomodativos mosquitos, notava-
--se uma evidente melhoria. -- O mais surpreendente são os cavalos-disse Markeno.-Nunca imaginei que estivessem dispostos a estar junto de pessoas, mas aqueles dois parecem gostar. Embora ache que a princípio fiquei ainda mais sur- preendido com o lobo.
--Já estás mais habituado aoLobo. AAyla manteve-ojunto dela porque achava que podia ser mais assustador para as pessoas do que os cavalos.
Viram Tholie dirigir-se para Ayla, com Shamio e oLobo a correr à sua volta.
-- A Shamio adora-o-disse Markeno.-Olha para ela. Eu devia ter medo que o animal a fizesse em pedaços, mas ele não é nada ameaçador. Está a brincar com ela.
-- Os cavalos também são brincalhões, mas nem imaginas o que é montar no dorso daquele garanhão. Podes experimentar, se quiseres, embora não haja aqui espaço para ele realmente correr.
-- Não, deixa lá, Jondalar. Acho que me fico por andar de barco-disse Markeno. Quando um homem apareceu junto à beira do penhasco, acrescentou:--Vem aí o Carlono. Acho que é altura de a Ayla andar num.
Encontraram-se todos perto dos cavalos e depois dirigiram-se todos
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juntos para o penhasco e pararam no sítio onde o pequeno ribeiro extra- vasava e caía para o Grande Rio Mãe lá em baixo.
--Achas que ela deve realmente descer? A queda seria grande e pode ser assustador-disse Jondalar.-Até a mim me enerva um pouco. Há bastante tempo que não faço esta descida.
-- Disseste que querias que ela andasse num barco a sério, Jondalar -- disse Markeno.-E talvez ela queira ver a nossa doca.
-- Não é tão difícil como isse-disse Tholie.-H sitios onde podemos pôr os pés e cordas para nos agarrarmos. Posso mostrarlhe.
-- Ela não precisa de descer-disse Carlono.-Podemos baixá-la no cesto dos alimentos, da mesma forma como te trouxemos para cima da primeira vez, Jondalar.
-- Talvez seja melhor-disse Jondalar.
-- Desce comigo para o mandamos para cima.
Ayla tinha escutado a conversa enquanto olhava para o rio e para o caminho acidentado que utilizaram para descer-o caminho onde Roshario tinha caído, embora este lhe fosse absolutalmente familiar. Viu as cordas resistentes, com nós, que estavam presas a estacas de madeira cravadas nas fendas da rocha, que começavam all onde estavam. Parte da descida era varrida pelo rio ao cair de rocha para rocha.
Observou Carlono que passou a perna por cima da borda comum com um à-vontade resultante da prática e agarrou uma corda com uma mão enquanto o pé encontrava o primeiro degrau estreito. Viu Jondalar hesitar ligeiramente, respirar fundo e depois começar a descer atrás do homem, um pouco mais devagar e com muito mais cuidado. Entretanto, Markeno, com Shamio a querer ajudar, pegou num rolo de corda grossa. O rolo terminava numa laçada que tinha sido tecida a fazer parte integrante da corda e caia sobre uma grande estaca que estava a meio entre as paredes rochosas na borda da plataforma. O resto da grande corda foi lançado pela borda do penhasco. Ayla penseu que tipo de fibra utilizañam para fazer as cordas. Era o cordame mais forte que alguma vez vira.
Pouco depois, Carlono regressou trazendo a outra extremidade da corda. Dirigiu-se para uma outra estaca não longe da primeira e depois comcou a puxar a corda, deixando-a cair enrolada ao seu lado. Um objec- to pouco fundo, semelhante a um cesto, não tardou a aparecer junto à borda do penhasco entre as duas estacas. Cheia de curiosidade, Ayla foivê-lo e alroximou-se para o observar melhor.
A semelhança das cordas, o cesto era extremamente resistente. O fundo, entretecido e plano, reforçado com tábuas de madeira, tinha uma forma oval comprida, com lados direitos como uma cerca baixa. Era suficientemente grande para levar uma pessoa deitada, ou um esturjão de tamanho médio com a cabeça e o rabo de fora. Os esturjões maiores, uma de duas variedades que apenas viviam no rio e nos seus principais afluentes, atingiam nove metros de comprimento e pesavam mais de
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cento e cinquenta quilos, e tinham de ser cortados aos
içados.
O cesto dos alimentos estava pendurado entre duas cordas que yam enfiadas e presas a quatro anéis feitos de fibra, dois deles presos cada um dos seus lados compridos. Cada corda entrava por um anel e sair pelo outro que estava no lado diagonalmente oposto, cruzando baixo. As quatro extremidades das cordas estavam entrançadas e forma- vam uma laçada forte e pesada no topo e a corda que tinha por cima da borda do penhasco passava por essa laçada.
m Mete-te lá dentro, Ayla. Nós seguramo-lo e baixamos-te m diss
Markeno, calçando umas luvasjustas de pele e enrolando a comprida ex:
tremidade da corda à segunda estaca, preparando-se para baixãr o cesto. Quando ela hesitou, Tholie disse:
Se preferires descer pelo caminho, eu mostro-to como é. Eu nunca gostoi de ir no cesto.
Ayla voltou a olhar para o caminho íngreme. Nenhuma das alternativas lhe parecia convidativa.
Desta vez you experimentar o cesto-disse.
Por onde passava o carreiro, a parede abaixo do penhasco era íngreme mas com inclinação suficiente para ser minimamento transitável; perto do meio, onde estavam as estacas, a parto superior do penhasco estava projectada por cima da parede rochosa. Ayla meteu-se dentro do cesto, sentou-se no fundo e agarrou-se à borda com tanta força que ficou com os nós dos dedos brancos.
Estás pronta? -- perguntou Carlono. Ayla virou a cabeça sem deixar de se agarrar e assentiu. Baixa-a, Markeno.
O jovem abrandou a força que estava a fazer na corda enquanto Car- lono guiava o cesto dos alimentos por cima da borda do penhasco. Enquanto Markeno deixava a corda deslizar pelas mãos com luvas de pele, controlando a descida com a ajuda da laçada em volta da estaca, a laça- da no topo do cesto ia deslizando ao longo da pesada corda e Ayla, suspensa no espaço vazio por cima da doca, foi lentamento baixada.
Aquele dispositivo para o transporto de mantimentos e pessoas entre a plataforma rochosa lá no alto e a doca lá em baixo era simples mas eficaz. Dependia de força muscular, mas o cesto em si, apesar de resistente, era relativamente leve, possibilitando até uma só pessoa deslocar carregamentos relativamente pesados. Com mais pessoas, podiam ser deslo- cados carregamentos bastante pesados.
Quando passou a borda do penhasco, Ayla fechou os olhos e agarrou- -se com força ao cesto, ouvindo o coração a bater nos ouvidos. Mas à medida que se sentia a descer lentamente, entreabñu os olhos e olhou em volta boquiaberta com tal maravilha. Era uma vista de uma perspectiva que nunca vira antes e que provavelmento nunca mais veria.
Pendurada sobre o grande rio em movimento junto à parede íngreme
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do desfiladeiro, Ayla sentia que estava a flutuar no ar. A parede rocho- sa do outro lado do rio estava a pouco mais de um quilómetro de distância, mas parecia muito perto, embora nalguns sítios ao longo do Portão as paredes fossem muito mais juntas. Era uma secção do rio bastante direita e, ao olhar para este e depois para oesto ao longo do seu comprimento, sentiu o seu poder. Quase ao chegar à doca, olhou para cima e viu uma pequena nuvem aparecer por cima da borda do penhasco e reparou em duas figuras: uma bastanto pequena e o lobo que olhavam para ela. Acenou-lhes. Depois aterrou com um pequeno solavanco enquanto ainda estava a olhar para cima.
Quando viu o rosto sorridento de Jondalar, disse: -- Foi magnífico! m É um espectáculo bonito, não é? -- disse ele, ajudando-a a sair.
Havia uma multidão à sua espera, mas ela estava mais intoressada no local que nas pessoas. Sentiu um movimento oscilanto sob os pés quando saiu do cesto para as tábuas de madeira e apercebeu-se de que estavam a flutuar na água. Era uma doca bastanto grande, suficientemento grande para conter váriashabitações de uma construção semelhante à daquelas sob a plataforma de arenito, além de zonas abertas. Havia uma fogueira all perto, feita em cima de uma laje de arenito e rodeada de rochas.
Alguns dos interessantes barcos que já vira, utilizados pela gento do rio estreitos e torminando em bico nas duas extremidades estavam amarrados à construção flutuanto. Eram de vários tamanhos, não havendo dois exactamento iguais, indo daqueles que mal davam para uma pessoa a outros com vários bancos.
Ao virar-se para olhar em volta, viu dois barcos muito grandes que a sobressaltaram. As suas proas prolongavam-se para formar a cabeça de estranhos pássaros e os barcos estavam pintados com várias formas geográficas que,juntas, davam a impressão de penas. Junto à linha de água tinham sido pintados mais dois olhos. A embarcação maior tinha um toldo sobre a parto do meio. Quando Ayla olhou para Jondalar para manifestar o seu espanto, ele tinha os olhos fechados e o rosto marcado por uma profunda angústia e ela percebeu que o barco grande deviator alguma coisa a ver com o seu irmão.
Mas nenhum deles teve muito tempo para fazer uma pausa ou pensar. Foram levados pelo grupo que estava ansioso por mostrar àvisitante quer as suas invulgares embarcações quer a sua perícia de marinheiros. Ayla reparou em pessoas que subiam rapidamento uma ligação semelhanto a uma escada entre a doca e o barco. Quando foi incitada para junto dela, percebeu que era suposto fazer o mesmo. A maior parto das pessoas atravessaram a prancha equilibrando-se facilmente apesar de o barco e a doca oscilarem desencontrados, mas Ayla sentiu-se grata pela mão que Carlono lhe estondeu.
Sentou-se entre Carlono e Jondalar por baixo do toldo que se eston-
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dia de um lado ao outro, num banco que podia facilmente ter acomodado mais gente. Outras pessoas sentaram-se em bancos na parte da frente dei! trás, várias empunhando remos muito compridos. Sem ela dar por isso, tinham desamarrado as cordas que prendiam o barco à doca e estavam no meio do rio.
Carolio, a irmã de Carlono, instalada na proa do barco, começou a cantar numa voz forte e aguda uma cantilena rítmica que se erguia acima da melodia líquida do Grande Rio Mãe. Ayla observou fascinada enquanto os remadores faziam frente à poderosa corrente, intrigada pela forma como remavam em uníssono ao ritmo da cantilena, e ficou surpreendida pela velocidade e suavidade com que estavam a subir o rio.
Na curva do rio, os lados do desfiladeiro rochoso estreitavam. Entre as paredes altíssimas que se erguiam das profundezas do imenso rio, o som da água tornava-se mais forte e intenso. Ayla sentia o ar a ficar mais frio e húmido e as suas narinas dilataram-se quando sentiu o cheiro molhado e límpido do rio e da vida viva e morta dentro dele, tão diferente dos aromas secos e frescos das planícies.
No sítio onde o desfiladeiro voltava a alargar, havia árvores em am- has as margens até junto da água.
w Estou a começar a conhecer isto m disse Jondalar. w O sítio onde
constroem os barcos não é all à frente? Vamos parar lá?
-- Desta vez não. Vamos continuar e parar no Meio-Peixe.
w Meio-Peixe? -- disse Ayla. m Que é isso?
Um homem que estava sentado à frente dela virou-se e sorriu. Ayla lembrou-se que era o companheiro de Carolio.
Deves perguntar-lhe a ele disse, olhando de relance para o homem que ia ao seu lado. Ayla viu o rosto de Jondalar tingir-se de vermelho ao corar de embaraço, w Foi aí que ele se tornou meio homem Ramudoi. Não te contou? Várias pessoas riram-se.
Por que é que não contas to, Barono? -- disse Jondalar.-Tenho a certeza de que não será a primeira vez.
--O Jondalar term razão quanto a isso-disse Markeno.-É uma das histórias preferidas do Barono. A Carolio diz que já está farta de a ouvir, mas toda a gente sabe que ele não consegue deixar de contar uma boahis- tória por mais vezes que já a tenha contado.
-- Born, tens de admitir que foi muito engraçado, Jondalar-disse
Barono. m Mas deves ser to a contá-la.
Jondalar não pode deixar de sorrir.
--Talvez para os outros.-Ayla estava a olhar para ele com um sorriso intrigado.-Eu estava a aprender a manobrar os barcos pequenos m começou ele.-Tinha um arpão.., uma lança para peixe.., comigo e comecei a subir o rio quando vi um esturjão. Pensei que talvez fosse a minha oportunidade de apanhar o meu primeiro peixe, sem sequer pensar
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como é que levaria sozinho para terra um peixe tão grande como aquele ou no que poderia acontecer num barco tão pequeno.
-- Aquele peixe fez que ele fizesse a corrida da sua vida! -- disse Barono, sem conseguir resistir.
-- Nem sequer tinha a certeza de que conseguiria acertar-lhe com o arpão; não estava habituado a usar uma lança com uma corda amarra- da a ela continuou Jondalar.-Devia ter-me preocupado com o que
aconteceria se o fizesse.
Não entendo.
Quando se está a caçar em terra e se acerta com uma lança em qualquer animal, num veado, por exemplo, mesmo que só fique feñdo e a lança caia, podemos seguir-lhe o rasto-explicou Carlono.-Não se pode seguir um peixe na água. Os arpões têm farpas viradas para trás e uma corda forte presa a eles, portanto quando se arpoa um peixe, a lança com a corda fica presa e não se perde na água. A outra extremidade da corda pode ser amarrada ao barco.
O sturjão que ele arpoou puxou-o rio acima, com barco e tudo-interrompeu de novo Barlono.-Nós estávamos na margem lá atrás e vimo- -lo passar, agarrado à extremidade da corda que estava amarrada ao barco. Nunca na minha vida vi alguém ir tão depressa. Foi a coisa mais engraçada que alguma vez vi. O Jondalar pensou que tinha apanhado o peixe, mas foi o peixe que o apanhou a ele!
Ayla sorria, à semelhança de todos os outros.
-- Quando o peixe finalmente perdeu sangue suficiente e morreu, eu já estava a uma boa distância rio acima m continuou Jondalar.-O barco estava quase submerso e acabei por nadar até à margem. Na confusão, o barco foi rio abaixo, mas o peixe foi para a água pouco funda perto da margem. Puxei-o para terra. Nessa altura já estava gelado, mas tinha perdido aminha faca e não consegui encontrar ramos secos nem nada para acender uma fogueira. Subitamente, um jovem cabeça achatada.., um Clã... apareceu.
Surpreendida, Ayla abriu muito os olhos. A histdria passara a ter outro significado.
-- Levou-me para a sua fogueira. Havia uma mulher mais velha no seu acampamento e eu estava a tremer tanto que ela me deu uma pele de lobo. Depois de me aquecer, regressámos à margem do rio. 0 cabeç.., jovem queria metade do peixe e eu tive todo o gosto em dar-lha. Cortou o esturjão ao meio, ao alto, e levou consigo a sua metade. Toda a gente que me viu passar veio ì minha procura e foi nessa altura que me encontraram. Embora se riam disso, fiquei mais do que contente ao vêlos.
-- Continua a ser difícil de acreditar que apenas um cabeça achatada tenha conseguido levar sozinho a metade do peixe. Lembro-me de que foram precisos três ou quatro homens para carregar a metade que ele deixou ficar disse Markeno.-Era um esturjão muito grande.
JEAN AUEL
-- Os homens do Clã são fortes-disse Ayla--, mas não sabia que
via gente do Clã nesta região. Pensei que vivessem todos na península.: -- Costumava haver aqui alguns do outro lado do rio-disse Barono.-Que é que lhes aconteceu? -- perguntou Ayla.
As pessoas no barco ficaram subitamente embaraçadas e desviaram o olhar. Por fim, Markeno disse:
-- Depois de o Doraldo morrer, o Dolando arranjou um grupo de pessoas e... perseguiu-os. Passado algum tempo, a maioria.., despareceu... acho que se foram embora.
--Mostra-me isso outra vez-disse Roshario, com pena de não poder tentar com as suas próprias mãos. Ayla tinha posto o molde de casca de bétula no seu braço nessa manhã. Embora não estivesse ainda bem seco, o material resistente e leve já estava suficientemente rígido para imobilizar bem o braço, e Roshario estava contente com a maior mobilidade que ele lhe permitia, embora Ayla não quisesse que ela tentasse utilizar a mão por enquanto.
Estavam sentadas com Tholie ao so], no meio de várias peles macias de camurças. Ayla estava com o seu estojo de costura, a mostrar-lhes o puxador de fio que tinha concebido com a ajuda do Acampamento do Leão.
--Primeiro é preciso abrir buracos com um furador em ambos os pedaços da pele que querem coser-disse Ayla.
-- Como fazemos sempre-disse Tholie.
-- Mas usa-se isto para puxar o fio através dos buracos. O fio passa por este buraquinho na parte de trás e depois, quando se mete o bico nos buracos feitos na pele, ele puxa o fio com ele através dos dois pedaços que se quer unir.-Ocorreu uma ideia a Ayla enquanto estava a exemplificar com a agulha de marfim. Se fosse suficientemente afiado, será que o puxador de fio consegue também fazer os buracos? Mas as peles são por vezes bem duras.
-- Deixa-me ver-disse Tholie.-Como é que enfias o fio no bura- quinho?
--Assim, estás a ver?-- disse Ayla, mostrando-lhe e devolvendo-lhe o puxa.dr de fio. Tholie experimentou dar alguns pontos.
-- E tão fácil!-- disse ela.-Quase se pode fazer apenas com uma mão. Roshario, observando atentamente, pensou que Tholie talvez tivesse razão. Apesar de não poder usar o braço partido, podia usar a mão apenas para segurar nos pedaços e com um puxador de fio como aquele talvez pudesse coser com a mão boa.
-- Nunca vi nada assim. Como é que pensaste numa coisa dessas? -- perguntou Roshario.
--Não sei-disse Ayla.-Foi uma ideia que tive quando estava com dificuldade em tentar coser uma coisa, mas fui ajudada por multas pes-
PLAN]CIES DE PASSAGEM I
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soas. Creio que o mais difícil foi fazer um furador de pedreneira suficientemente pequeno para fazer o buraquinho na ponta. O Jondalar e o Wymez trabalharam nisso.
-- O Wymez é o artífice de pedreneira do Acampamento do Leão-explicou Tholie a Roshario.-Dizem que é muito born.
--O Jondalar sei eu que é w disse Roshario.-Fez tantos aperfeiçoamentos nas ferramentas que usamos para fazer os barcos, que as pessoas não paravam de falar nele. Pequenas coisas, mas que faziam grande diferença. Estava a ensinar o Darvo antes de se ir embora. O Jondalar term muito jeito para ensinar jovens. Talvez lhe ensine mais coisas.
-- O Jondalar diz que aprendeu muito com o Wymez-disse Ayla.-Pode ser, mas parece que vocês os dois são óptimos a imaginar formas melhores de fazerem as coisas-disse Tholie.-Este teu puxador de fio vai tornar a costura muito mais fácil. Mesmo quando se sabe, é difícil enfiar o fio nos buracos com um furador e estão todos entusiasmados com o lançador de lanças do Jondalar. Quando mostraste como o usavas bem, fizeste que todos achassem que também o podiam usar, embora não creia que seja tão fácil como nos levaste a crer. Acho que deves ter pra- ticado muito.
Jondalar e Ayla tinham exemplificado como se usava o lançador de lanças. Era preciso muita habilidade e paciëncia para chegar perto de uma camurça para a matar, e quando os caçadores Shamudoiviram a distãncia à qual podia ser lançada uma lança com o lançador, ficaram ansio- sos por o experimentar nos ariscos antílopes de montanha. Vários dos Ramudoi caçadores de esturjões ficaram tão entusiasmados que tinham decidido adaptar-lhe um arpão, para ver qual seria o resultado. Durante a conversa, Jondalar referiu a sua ideia de fazer uma lança em duas partes, com uma parte comprida guarnecida com duas ou três penas e uma segunda parte frontal destacável com um bico. O potencial foi imediatamente compreendido e, nos dias que se seguiram, várias abordagens foram tentadas por ambos os grupos.
Subitamente, ouviram uma agitação ao fundo do campo. As três mulheres olharam e viram várias pessoas a puxar o cesto dos mantimentos. Alguns jovens correram para elas.
Apanharam um! Apanharam um com o lançador de arpão! -- gritou
Darvalo ao aproximar-se das mulheres, w E é uma fêmea!
-- Vamos ver! -- exclamou Tholie.
--Vão andando. Eu apanho-vos assim que guardar o meu puxador de
fio.
-- Eu espero por ti, Ayla-disse Roshario.
Quando chegaram ao pé dos outros, a primeira parte do esturjão já tinha sido descarregada e o cesto mandado de novo lá para baixo. Era um peixe enorme, demasiado grande para ser içado de uma só vez, mas a melhor parte tinha sido mandada primeiro; quase cem quilos de minúsculos
ovos de esturjão. Parecia oportuno que a grande fêmea fosse o resul da primeira caça ao esturjão com a nova arma coneebida a çador de lanças de Jondalar.
Foram ]evadas armações para secar peixe para o fundo do campo maior parte das pessoas estavam a começar a cortar o grande peixe pequenos pedaços. No entanto, a grande massa de caviar foi levada ra a zona de convívio. Roshario era responsável pela supervisão da distribuição. Pediu a Ayla e a Tholie para a ajudarem e deu uma a todos para provarem.
-- Há anos quenão como isto! -- exclamou Ayla, metendo mais pouco na boca.-E sempre melhor quando se come fresco, saído do xe, e há tanto.
--O que é primo, senão não comeríamos grande coisa-disse Tholie.-Por que não? -- perguntou Ayla.
-- Porque ovas de esturjão é uma das coisas que usamos para tornar a pele de camurça tão macia-disse Tholie.-A maior parte vai para
isso.
-- Um dia gostava de ver Como é que tornam a pele tão macia-dis-' se Ayla.-Gostei sempre de trabalhar com couro e peles. Quando vivia com o Acampamento do Leão, aprendi a dar cor às peles e fiz uma mesmo vermelha e a Crozie ensinou-me a fazer pele branca. Também gosto: da vossa cor amarela.
--Admira-me que a Crozie to tenha ensinado-disse Tholie, olhan. do para Roshario com uma expressão e]oquete.-Pensei que a pele branca fosse segredo do Lar da Garça.
-- Ela não disse que era segredo. Disse que a mãe lhe tinha ensinado • que a filha dela não tinha interesse em trabalhar as peles. Pareceu satisfeita em passar os seus conhecimentos a alguém.
-- Born, como pertonciam ambas ao Acampamento do Leão, eram como se fossem famflia-disse Tholie, embora estive bastante admirada. -- Não creio que ela tivesse ensinado uma estrarda, da mesma forma como nós não ensinaríamos. O método Sharamudoi de tratar a camurça é segredo. As nossas peles são admiradas e êm um grande valor para as trocas. Se toda a gente soubesse fazê-las, não seriam tão va]iosas, portanto não compartilhamos o segredo-disse Tholie.
Ayla assentiu, mas o seu desapontamento era evidente.
-- Born, é bonito e o amarelo é tão vivo e agradável.
-- O amarelo é dado pelo mirtiio dos pântanos, mas não o utilizamos pela cor. Acontece que fica assim. O mirtilo ajuda a manter as peles matias, mesmo depois de molhada-explicou Roshario. Depois fez uma pausa e acrescentou: -- Se cá ficasses, Ayla, ensinar-te-íamos a fazer pele de camurça amarela.
Se cá tîcasse? Durante quanto tempo?
-- O tempo que quisesses; enquanto fores viva, Ayla-disse Roshario,
PLANCIES DE PASSAGEM I
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olhando para ela com uma expressão ansiosa.-O Jondalar é parente; consideramo-lo um de nós. Não seria difícil ele tornar-se Sharamudoi. Até já audou a fazer um barco. Disseste que ainda não se acasalaram. Tenho a certeza de que encontrariam um casal disposto a interacasalar- -se convosco e depois podiam acasalar-se aqui. Sei que seriam bem-vindos entre nós. Desde que a nossa velha Shamud morreu que precisamos de uma curandeira.
-- Nós estaríamos dispostos a interacasalar-nos convosco-disse Tholie. Embora a oferta de Roshario tivesse sido espontânea, pareceu apropriada no instante que a fez.-Terei de falar com o Markeno, mas estou convencida de que ele concordarìa. Depois da Jetamio e do Thono- lan, tem-nos sido difícil encontrar um outro casal a quem nos queiramos unir. O irmão de Thonolan seria perfeito. O Markeno gostou sempre do Jondalar e eu gostaria de compartilhar a habitação com uma mulher Ma- mutoi. Sorriu a Ayla. E a Shamio adoraria que o seu Wuffie vivesse com ela.
A oferta apanhou Ayla desprevenida. Quando compreendeu plenamente o que significava, ficou impressionadíssima. Sentiu lágrimas nos olhos.
-- Roshario, não sei que dizer. Tenho-me sentido em casa desde que cheguei. Tholie, adoraria compartilhar contigo...-e começou a chorar.
As duas mulheres Sharamudoi foram contagiadas pelas lágrimas e piscaram os olhos para que elas não corressem, sorrindo uma para a outra como se tivessem conspirado um plano maravilhoso.
Assim que o Markeno e o Jondalar regressem, dir-lhes-emos-disse Tholie. O Markeno vai ficar tão aliviado...
-- Não sei o que é que o Jondalar pensa-disse Ayla.-Sei que que- ria cá vir. Até desistiu de ir por um caminho mais curto para vos ver, mas
não sei se quererá ficar. Diz que quer voltar para a sua gente.
-- Mas nds somos a sua gente-disse Tholie.
-- Não, Tholie. Muito embora ele estivesse cá tanto tempo como o irmão, o Jondalar continua a ser Zelandonii. Nunca deixou de estar liga- do a eles. Pensei que talvez fosse por isso que os seus sentimentos pela Serenio não eram mais fortes disse Roshario.
-- Era a mãe do Darvalo? perguntou Ayla.
Sim-disse a mulher mais velha, pensando o que é que Jondalar lhe teria contado sobre Serenio , mas como é evidente o que ele sente por ti, talvez, depois de passado tanto tempo, os seus laços com a sua pró-pria gente estejam mais fracos. Não viajaram já o suficiente? Por que é que hão-de fazer uma Viagem tão longa se podem fazer aqui o vosso lar?
Além disso, é altura de o Markeno e eu escolhermos um casal para nos interacasalarmos.., antes do Inverno e antes.., não te disse, mas a Mãe voltou a abençoar-me;., e devemo-nos acasalar antes de este chegar.
-- Foi o que eu pensei. E maravilhoso, Tholie-disse Ayla. Depois os
k
33º
JEAN AUEL
seus olhos ficaram com uma expressão sonhadora.-Talvez um dia eu venha a ter um bebé para acarinhar...
-- Se nos interacasalarmos, o bebé que trago dentro de mim também será ¿eu, Ayla. E seña born saber que há cá alguém que pode ajudar no caso de... embora não tivesse fido qualquer problema em dar à luz a Sha- mio.
Ayla pensou que gostaria um dia de ter um bebé seu, um bebé de Jon- dalar, mas e se não pudesse ter? Tinha fido o cuidado de beber todos os dias o seu chá da manhã e não engravidara, mas e se não fosse o chá? E se e.]a não conseguisse que um bebé começasse a crescer dentro dela? Não sera maravilhoso saber que as crianças de Tholie seriam dela e de Jon- dalar? Também era verdade que a zona all em volta se assemelhava tanto à região da caverna no clã de Brun que ela se sentia em casa. As pessoas eram simpáticas.., embora não estivesse bem certa em relação a Dolan- do. Será que ele quereria que ela lá ficasse? E também não estava bem certa em relação aos cavalos. Era born para eles descansarem, mas teriam comida suficiente para todo o Inverno? E teriam espaço suficiente para correr? "
Mais importante ainda, e o Jondalar? Estaña ele disposto a desistir da sua Viagem de regresso à terra dos Zelandonii para se fixar all?
19
Tholie dirigiu-se para a frente da grande fogueira e a sua si]hueta ficou recortada contra o clarão avermelhado das brasas e contra o céu da noite emoldurado pelas altas paredes rochosas da plataforma. A maioria das pessoas ainda estavam no local de convívio sob a saliência de arenito, a corner o resto das amoras ou a beber chá ou vinho espumoso de bagas recém-fermentado. O banquete de esturjão fresco tinha começado quando provaram o caviar retirado da fêmea que fora apanhada, que já não voltariam a corner. O resto dos ovos oleosos teria uma utilidade mais prática no fabrico de peles de camurça macias.
-- Dolando, quero dizer uma coisa enquanto estamos todos aqui reunidos -- disse Tholie.
O homem assentiu, embora não tivesse tido importância se não o tivesse feito. Tholie continuou sem esperar pela sua anuência.
-- Creio que posso falar por todos ao dizer dizer como estamos contentes em ter cá o Jondalar e a Ayla w disse ela. Várias pessoas expressaram a sua concordância.-Estávamos todos preocupados com a Roshario, não só pelo seu sofrimento, mas porque receávamos que perdesse o uso do braço. A Ayla mudou tudo isso. A Roshario diz que já não term dores e, com sorte, há boas hipóteses de voltar a poder usar plenamente o braço.
Houve um coro de comentários positivos expressando gratidão e desejos de boa sorte.
Também temos de agradecer ao nosso parente Jondalar continuou Tholie. m Quando cá esteve da outra vez, as suas ideias de alterações para as nossas ferramentas ajudaram-nos muito e agora mostrou-nos o seu lançador, cujo resultado é esta festa. De novo o grupo emitiu manifestações vocais de apreço.-Durante o tempo que viveu con- nosco, caçou esturjões e camurças, mas nunca disse se prefere a água ou a terra. Creio que daria um born homem de Rio...
--Tens razão, Tholie, o Jondalar é um Ramudoi-gritou um homem. -- Ou pelo menos metade Ramudoi! m acrescentou Barono, provo¢ando uma onda de gargalhadas.-Não, não, ele term aprendido a vida na água, mas conhece a terra-disse uma mulher.
-- Exacto! Perguntem-lhe! Arremessou uma lança antes de lançar o
seu primeiro arpão, é um Shamudoi! m acrescentou um homem mais velho. h Até gosta de mulheres que caçam!
Ayla olhou para ver quem tinha feito este último comentário. Tinha sido uma jovem mulher, um pouco mais velha que Darvaio, chamada Rakario.
m Gostava de estar sempre ao pé de Jondalar, o que irritava o jovem, que se queixava de que ela estava sempre a atrapalhar.
Jonda]ar sorria abertamente enquanto ouvia a discussão bem-humo- rada. A babúrdia era sinal de uma competitividade amigável entre as duas metades daquela gente; uma rivalidade dentro da famflia que suscìtava entusiasmo, mas que nunca permitiam que ultrapassasse limites bem conhecidos. Eram permitidas piadas, gabarolices e um certo nivel de insultos, mas qualquer coisa que pudesse indevidamente ofender ou causar verdadeira ira era rapidamente travada, ambos os lados aliando-se para serenar os inimos e atenuar as ofensas.
--Como já disse, o Jondalar daria um born homem do Rio-continuou Tholie quando todos se acalmaram-mas a Ayla está mais familiarizada com a terra e eu gostaria de encorajar o Jondalar a ficar com os caçadores de terra se ele assim estiver disposto e se estes o aceitarem. Se Jondalar e Ayla quiserem ficar e tornar-se Sharamudoi, nós faríamos a oferta de nosinteracasalarmos com eles, mas como o Markeno e eu somos Ramudoi eles teriam de ser Shamudoi.
Houve uma grande onda de excitação entre as pessoas, com comentários
de.encorajamento e atd de parabéns dirigidos aos dois casais.-E um plano maravilhoso, Tholie-disse Carolio. m Foi a Roshario que me deu a ideia - disse Tholie.
--Mas que é que o Dolando pensa sobre aceitar Jondalar e Ayla, uma mulher que foi criada por aqueles que vivem na peninsula?--perguntou Carolio, olhando directamente para o chefe Shamudoi.
Subitamente, fez-se silêncio. Toda a gente sabia quais eram as implicações da sua pergunta. Depois da sua violenta reacção a Ayla, estaria Dolando disposto a aceitá-la? Afia tinha esperado que o seu ataque de fú-ria fosse esquecido e pensou por que é que Carolio o teria mencionado, mas ela tinha que o fazer. Era sua obrigação.
Carlono e a sua companheira tinham estado oñginalmente interacasalados com Dolando e Roshario e juntos tinham fundado aquele determinado grupo de Sharamudoi quando, juntamente com outros, tinham deixado o grupo bastante grande onde tinham nascido. As posições de chefia eram normalmente conferidas por consenso informai e eles tinham sido uma escolha natural. Na prática, a companheira do chefe assumia normalmente as responsabilidades de co-chefe, mas a mulher de Carlo- no tinha morrido quando Markeno era bastante pequeno. O chefe Ramudoi nunca mais se acasalou formalmente e a sua irmã gémea, Carolio, que fora viver com ele para cuidar do rapaz, começou também a assumir os
deveres de companheira do chefe./k medida que o tempo foi passando, foi aceite como co-chefe e, como tal, era seu dever fazer aquela pergunta.
As pessoas sabiam que Dolando tinha permitido que Ayla continuas- sea tratar da sua mulher, mas Roshario precisava de ajuda e Ayla esta- va obviamente a ajudá-la. Isso não significava necessariamente que ele a quisesse permanentemente all. Podia estar apenas a controlar os seus sentimentos temporariamente e, muito embora precisassem de uma curandeira, Dolando era um deles. Não queriam acolher uma estranha que pudesse causar problemas ao seu chefe e uma possível divisão dentro do grupo.
Enquanto Dolando estava a pensar na resposta, Ayla sentiu o estSma- go às voltas e um nó na garganta. Tinha a inquietante sensação de que tinha feito algo de mal e que estava a ser julgada por isso. No entanto, sa- bia que não era por nada que tivesse feito. Começou a sentir-se perturbada e um pouco zangada e cheia de vontade de se levantar e ir embora. O que era mal era quem ela era. Tinha acontecido o mesmo com os Mamutoi. Irá ser sempre assim? Iria acontecer o mesmo com a gente de Jondalar? Born, pensou, a Iza e o Creb e o clã de Brun tinham cuidado dela e ela não ia negar aqueles que amava, mas sentia-se isolada e vulnerável.
Depois apercebeu-se de que alguém tinha ido silenciosamente para junto dela. Virou-se e sortiu com gratidão a Jondalar e sentiu-se melhor, mas sabia que aquilo continuava a ser um julgamento e que ele estava à espera de ver o que aconteceria. Ayla tinha-observado atentamente e sa- bia qual seria a resposta dele à oferta de Tholie. Mas Jondalar estava à espera da resposta de Dolando antes de dar a sua.
Subitamente, no meio da tensão, ouviu-se Shamio dar uma gargalhada. Ela e outras crianças saíram a correr de uma das habitações com o Lobo no meio delas.
-- Não é espantoso como aquele lobo brinca com as crianças? -- disse Roshario.-Há alguns dias atrás nunca acreditaria que veria um animal como aquele no meio de crianças que eu amo e não temeria pela sua vida. Talvez seja uma coisa a não esquecer. Quando se conhece um animal que outrora se odiou e temeu, é possível criar grande afecto por ele. Acho que é melhor tentar compreender do que odiar cegamente.
Dolando tinha estado a reflectir calmamente como responderia à pergunta de Carolio. Sabia o que lhe estava a ser perguntado e quanto dependia da sua resposta, mas não estava bem certo de como podia formular o que pensava e sentia. Sortiu à mulher que amava, grato por a conhecer tão bem. Ela tinha-se apercebido da sua necessidade e mostrado a forma de ele responder.
-- Tenho odiado cegamente-começou ele-e tenho cegamente tira- do a vida daqueles que odiava, porque pensava que eles tinham tirado a vida daquele que eu amava. Pensei que eram animais ferozes e o.ueria matá-los a todos, mas isso não trouxe Doraldo de volta. Agora sei que não
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mereciam tal ódio. Animais ou não, foram provocados. Tenho que viver com isso, mas...
Do]ando parou de falar, la a dizer qualquer coisa sobre aqueles que sa- biam mais do que ]he tinham dito e o tinham ajudado nas suas perse- guições.., mas mudou de ideias.
I Esta mulher-continuou, olhando para Ay]a --, esta curanàeira diz que foi criada por eles, treinada por aqueles que eujulgava serem animais ferozes, aqueles que eu odiava. Mesmo se contånuasse a odiá-]os, não a podia odiar a ela. Por causa de]a, tenho de novo Roshario. Talvez seja altura de eu tentar compreender.
"Acho que a ideia de Tho]ie é boa. Ficaria contente se os Shamudoi aceitassem Ayla e Jondalar.
Ayla sentiu-se inundada de alívio. Agora compreendia verdadeira- -mente por que é que aquele homem tinha sido escolhido pela sua gente para os comandar. Tinham acabado por o conhecer bem na sua vida quotidiana e conheciam a qualidade essencial daquele homem.
-- Então, Jondalar? -- disse Roshario.-Que é q.ue dizes? Não achas que é altura de desistires dessa tua longa Viagem? E altura de assenta- res, de teres o teu próprio lar, é altura de dares oportunidade à Mãe de abençoar a Ay]a com um ou dois bebés,
-- Não consigo encontrar palavras para vos dizer como estou grato-começou Jondalar n por nos terem aco]hido assim, Roshario. Sinto que os Sharamudoi são a minha gente, os meus parentes. Seria muito fácil fazer o meu lar aqui entre vós, e a vossa oferta é muito tentadora. Mas tenho de regressar aos Zelandonii... n hesitou por instantes--.., nem que seja pelo Thonolan.
Fez uma pausa e Ayla voltou-se para olhar para ele. Sabia que ele recusaria, mas não era aquilo que estava à espera que ele dissesse. Reparou que ele assentiu subtil e quase imperceptivelmente, como se tivesse pensado noutra coisa. Depois sorriu-lhe.
Quando ele morreu, a Ayla deu ao espírito de Thono]an o conforto que pôde para a sua Viagem para o outro mundo, mas o seu espírito não foi posto em descanso e tenho medo; tenho a sensação de que ele está a errar, perdido e sozinho, a tentar voltar a encontrar a Mãe.
O seu comentário surpreendeu Ayla e ela observou-o atentamente quando ele continuou. n Não o posso deixar assim. É preciso que alguém o ajude a encontrar
o caminho, mas só conheço uma pessoa que talvez o saiba fazer: Zelan- doni, uma shamud, uma shamud muito poderosa, que estava presente quando ele nasceu. Talvez com a ajuda de Marthona na mãe dele e a minha n a Zelandoni possa encontrar o seu espírito e guiá-lo para o caminho certo.
Ay]a sabia que não era por essa razão que ele queria regressar, pelo menos que essa não era a razåo principal. Apercebeu-se de que aquilo que
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ele dissera era absolutamente verdade, mas também subitamente se apercebeu de que, à semelhança da resposta que ela lhe dera sobre a planta de fio douradb, não era completa.
-- Estiveste ausente muito tempo, Jondalar n disse Tholie, a sua decepção bem patente, n Mesmo que elas o possam ajudar, como é que sabes que a tua mãe ou esta Zelandoni ainda são vivas?
--Não sei, Tholie, mas tenho de tentar. Mesmo que elas não o possam ajudar, creio que Marthona e o resto dos seus parentes gostariam de saber como ele foi feliz aqui, com a Jetamio, e contigo e o Markeno. Tenho a certeza de que a minha mãe teria gostado da Jetamio e sei que gosta- ria de ti, Tholie.-A mulher tentou não o mostrar, mas não pôde deixar de se sentir satisfeita com este comentário, muito embora se sentisse decepcionada. O Thonolan fez uma grande Viagem... e foi sempre a sua Viagem. Eu apenas fui com ele para olhar por ele. Quero contar-lhes a sua Viagem. Ele foi até ao fim do Grande Rio Mãe mas, mais .importante ainda, encontrou aqui um lugar, com pessoas que o amam. E uma his- tSria que merece ser contada.
-- Jondalar, acho que ainda estás a tentar seguir o teu irmão, para olhares por ele, mesmo no outro mundo-disse Roshario.-Se é isso que tens de fazer, só te podemos desejar sorte. Creio que a Shamud nos teria dito que tens de seguir o teu próprio caminho.
Ayla pensou no que Jondalar tinha feito. A oferta feita por Tholie e pelos Sharamudoi, de se tornar um deles, não fora feita de ânimo leve. Era generosa e constituía uma grande honra e por essas razÕes era difícil re- cusá-la sem ofender. SÓ uma grande necessidade de atingir um objectivo mais importante, procurar algo mais valoroso, podia tornar a recusa aceitável. Jondalar optou por não dizer que muito embora os consideras- se como sua família, não era a famflia de quem ele estava saudoso, mas a sua verdade incompleta tinha constituído uma recusa graciosa que lhe tinha salvo a face.
No Clã, não referir algo era aceitável, o que permitia um elemento de privacidade numa sociedade na qual era difícil esconder qualquer coisa, pois as emoções e os pensamentos podiam ser muito facilmente detecta- dos através das posturas, expressões e gestos subtis. Jondalar tinha opta- do por mostrar a consideração necessária. Ela tinha a sensação de que Roshario suspeitara da verdade, que tinha aceite o seu pretexto pela mesma razão que ele o dera. Ayla percebeu a subtileza, mas quis pensar nela e apercebeu-se de que as generosas ofertas podiam ter mais do que um sentido.
m Quanto tempo cá vais ficar, Jondalar? n perguntou Markeno.
--Já viajámos mais do que eu pensei que faríamos. Só esperava cá chegar no Outono. Creio que por causa dos cavalos estamos a andar mais depressa do que eu contava-explicou ele mas ainda temos um grande
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caminho à nossa frente e teremos obstáculos difíceis a enfrentar. Gosta- ria de partir o mais depressa possível.
-- Jondalar, não nos podemos ir embora tão depressa-exclam Ayla. m Não posso ir até o braço da Roshario estar curado.
-- Quanto tempo é que levará? -- perguntou Jondalar, franzindo a testa.
-- Eu disse à Roshario que o braço teria de ficar imobilizado na cas-
ca de bétula durante uma lua e mais metade da seguinte m disse Ayla. m É demasiado tempo. Não podemos cá ficar tanto tempo! m Quanto tempo é que podemos ficar? -- perguntou Ayla.-Muito pouco.
--Mas quem é que tirará a casca de bétula? Quem é que saberá quando é a altura certa?
-- Mandámos um estafeta chamar uma shamud informou Dolan- do.-Uma outra curandeira não saberá?
-- Acho que sim-disse Ayla m mas gostaria de falar com essa sha- mud. Jondalar, não podemos pelo menos ficar até ela chegar?
Se não demorar muito, mas pelo sim pelo não talvez possas pensar em dizer ao Dolando ou à Tholie o que fazer.
Jondalar estava a escovar o Corredor e parecia que o pêlo do garanhão estava a crescer rapidamente e a tornar-se mais espesso. Acho que tinha detectado um ar mais frio nessa manhã e o garanhão parecia particularmente enérgico.
macho que estás tão ansioso como eu por partir, não estás, Corredor? m disse. Ao ouvir o seu nome, o cavalo arrebitou as orelhas na direcção
de Jondalar e a Whinney sacudiu a cabeça e relinchou. Também queres ir, não d, Whinney? Este não é um born sítio para cavalos. Vocês pre- cisam de campo aberto onde possam correr. Acho que devo lembrar isso à Ayla.
Deu uma última palmada no quarto traseiro do Corredor e dirigiu-se para a plataforma. "A Roshario parece estar muito melhor, pensou, ao ver a mulher sentada sozinha junto à grande fogueira, a coser com uma
mão, utÌlizando um dos puxadores de fio de Ayla.
m Sabes onde está a Ayla? m perguntou-lhe.
-- Ela e a Tholie saíram com o Lobo e a Sbamio. Disseram que iam àquele sítio on.de os barcos são construídos, mas creio que a Tholie que- ria mostrar a Arvore dos Desejos à Ayla e fazer uma oferta para um nascimento fácil e um bebé saudável. Já se começa a notar que a Tholie foi abençoada-disse Roshario.
Jondalar acocorou-se ao lado dela.
Roshario, ando há tempos para te perguntar uma coisa sobre a
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Serenio-disse ele. m Sento-me pessimamente por a ter deixado daquela forma. Ela estava.., feliz quando se foi embora?
--A princípio ficou muito perturbada e triste. Disse que te tinhas oferecido para ficar, mas que ela te disse para ires com o Thonolan. Ele pre- cisava mais de ti. Depois o primo de Tholie chegou inesperadamente. Ele
é muito parecido com ela em muitos aspectos, diz sempre o que pensa. Jondalar sortiu. -- Eles são assim.
-- E também se parece com ela. É um born palmo mais baixo que a Serenio, mas é forte. Também se decidiu num instante. Olhou para ela e decidiu que ela era a mulher para ele.., chamou-lhe "o seu lindo salgueiro", a palavra Mamutoi para isso. Nunca pensei que ele a convenceria, quase lhe disse para não estar a incomodá-la.., não que alguma coisa que eu tivesse dito o teria impedido.., mas achei que era impossível, que ela nunca ficaria satisfeita com mais ninguém depois de ti. Depois, um dia, vi-os a rir juntos e percebi que estava enganada. Foi como se ela tivesse voltado à vida depois de um longo Inverno. Floresceu. Creio que nunca a vi tão feliz desde o seu primeiro homem, quando teve o Darvo.
m Fico contente por ela-disse Jondalar. mEla merece ser feliz. Mas
estive apensar, quando a deixei.., ela disse que achava que talvez a Mãe a tivesse abençoado. A Serenio estava grávida? Tinha começado uma nova vida, talvez do meu espírito?
m Não sei, Jondalar. Lembro-me que quando te foste embora ela dis-
se que pensava que talvez estivesse. Se estava, seria uma bênção especial para o seu novo acasalamento, mas ela nunca me disse.
Mas que é que achas, Roshario? Parecia que estava? Quero dizer, consegue-se perceber só de olhar com tão pouco tempo?
m Gostava de te poder dizer com certeza, Jondalar, mas não sei. Só
posso dizer que talvez estivesse.
Roshario observou-o atentamente, intïigada por ele mostrar tanta curiosidade. Não era o caso de uma criança nascida no seular ele desistira disso ao partir. Embora, se ela estivesse grávida, o bebé que Serenio agora já teria seria provavelmente do seu espírito. Subitamente sorriu com a ideia de um filho de Serenio, crescido e do tamanho de Jondalar, nascido no lar do pequeno homem Mamutoi. Roshario achou que isso pro- vavelmente lhe agradaria.
Jondalar abriu os olhos e viu as mantas de dormir enrodilhadas no espaço vazio ao seu lado. Afastou as suas peles de dormir, sentou-se na beira da plataforma da cama, bocejou e espreguiçou-se. Ao olhar em volta, apercebeu-se de que devia ter adormecido. Todos os outros já se tinham levantado e saído. Na noite anterior, à volta da fogueira, tinham falado em ir caçar camurças. Alguém as tinha visto a descer das escarpas mais
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altas, o que significava que a estação para caçar os ágeis antflopes pare- cidos com cabras da montanha em breve começaria.
Ayla tinha ficado excitada com a perspectiva de uma caçada a camur- ças, mas quando foram para a cama e ficaram a conversar um com o outro em voz baixa, como muitas vezes faziam, Jondalar lembrou-lhe que tinham de partir dentro de muito pouco tempo. Se as camurças estavam a começar a descer das escarpas, isso significava que estava a ficar frio nos prados altos, o que assinalava a mudança de estação. Ainda tinham um longo caminho a percorrer e precisavam de partir.
Não tinham propriamente discutido, mas Ayla dissera que não que- ria ir. Falou sobre o braço de Roshario e ele sabia que ela queria caçar ca- murças. Na realidade, ele tinha a certeza de que ela queria ficar a viver com os Sharamudoi e pensou se ela não estaria a tentar atrasar a partida na esperança de que ele mudasse de ideias. Ela e Tholie já eram grandes amigas e todos pareciam gostar dela. Agradava-lhe que toda a gente gostasse tanto dela, mas isso iria tornar a partida mais difícil e, quanto mais tempo ficassem, mais difícil seria.
Ficou acordado pela noite dentro apensar. Pensou se deveriam ficar, por ela, mas o que é certo é que podiam também ter ficado com os Mamutoi. Por fim chegou à conclusão de que teriam de partir o mais depressa possível, daí a um ou dois dias. Sabia que a Ayla não iria ficar contente e não sabia bem como lhe havia de dizer.
Levantou-se, vestiu as calças e dirigiu-se para a entrada. Afastando a pele que a tapava, saiu e sentiu um vento cortante e frio no peito. Ia pre- cisar de roupa mais quente, pensou, dirigindo-se rapidamente para o sítio onde os homens vertiam águas de manhã. Em vez da nuvem de borboletas coloridas que normalmente pairava por all-interrogara-se por que é que se sentiriam tão atraídas por aquele lugar de cheiro tão intenso-reparou subitamente numa folha colorida que flutuou para o chão e depois viu que a maior parte das que ainda estavam nas árvores estavaro a começar a mudar de cor.
Por que é que não tinha reparado nisso antes? Os dias tinham passado tão depressa e o tempo tinha estado tão agradável que não prestara atenção à mudança de estação. Lembrou-se subitamente que estavam vi- rados para sul, numa região do sul da terra. A estação podiajá estar bastante mais adiantada do que ele pensara, e bastante mais fria a norte, para onde se dirigiam. Ao regressar apressadamente à habitação, estava mais determinado que nunca quanto a terem de partir rapidamente.
-- Estás acordado w disse Ayla, entrando com Darvalo enquanto Jondalar se estava a vestir.-Vinha-te chamar antes de guardarem a comida.
-- Ia só vestir qualquer coisa mais quente. Está frio lá fora-disse ele.-Não tardará que seja altura de deixar crescer a barba. Ayla sabia que ele lhe estava a dizer mais do que as suas palavras
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significaram. Continuava a falar sobre a mesma coisa sobre a qual tinham estado a falar na noite anterior; a estação estava a mudar e tinham dese pôr a caminho. Ela não queña falar sobre isso.
--Provavelmente é melhor desempaeotarmos a nossa roupa de Inverno para termos a certeza de que não está estragada, Ayla. Os eestos-al- forge ainda estão na habitação ào Dolando? -- disse ele.
"Ele sabe que estão. Por que é que me está a perguntar? To sabes porquê, Ayla", disse ela a si própria, tentando lembrar-se de qualquer coisa para mudar de assunto.
-- Estão, sim-disse Darvalo, tentando ajudar.
-- Preciso de uma camisa mais quente. Lembras-te em que cesto está a minha roupa de Inverno, Ayla?
É claro que ela se lembrava. E ele também.
-- A roupa que tens vestida não term nada a ver com a roupa que usa- was quando vieste cá da primeira vez-disse Darvalo.
-- Esta foi-medada por um a mulher Mamutoi. Quando cá cheguei da primeira vez, trazia a minha roupa Zelandonii.
Esta manhã experimentei a camisa que me deste. Ainda me está grande, mas não muito-disse o jovem.
--Ainda tens essa camisa, Darvo? Já quase não me lembro como era. Queres vê-la?
-- Sim. Sim, gostava muito disse Jondalar.
Ayla também não conseguiu deixar de sentir curiosidade'. Percorreram a curta distância até à barraca de madeira de Dolando. Darvalo tirou um pacote cuidadosamente embrulhado de uma prateleira por cima da cama. Desamarrou a corda e abriu o embrulho envolto em pele macia e mostrou a camisa.
"É invulga,, pensou Ayla. Nem os padrSes decorativos, nem o corte mais largo e comprido se pareciam com a roupa Mamutoi a que e stava ha- bituada. Mas houve uma coisa que a surpreendeu mais que tudo. Esta- va enfeitada com rabos de arminhos brancos de ponta preta.
Até o Jondalar a achava estranha. Tinham acontecido tantas coisas desde a última vez que vestira aquela camisa que parecia quas.e curiosa, antiquada. Não a tinha usado muito durante os anos em que vavera com os Sharamudoi, tendo preferido vestir-se como eles, e embora só tivessem passado algumas luas mais um ano desde que a dera a Darvo, sentiu que há anos que não via roupa da sua terra natal.
--É suposto ficar larga, Darvo. Usa-se com cinto. Veste-a lá. Tens al- guma coisa com que a atar? -- disse Jondalar.
O jovem enfiou a camisa de pele, cheia de enfeites e padrões e com corte de túnica, pela cabeça, e depois deu a Jondalar uma tira de couro relativamente comprida. O homem disse a Darvo para esticar os braços e atou a tira de couro um pouco abaixo da cintura, quase sobre as ancas, de
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forma à camisa ficar ablusada e os rabos dos arminhos ficarem pendura- dos.
-- Vês? Não te está grande, Darvo-disse Jondalar.-Que é que achas,.Aya?
--E invuIgar. Nunca vi uma camisa assim. Mas acho que te fica muito born , Darvalo m disse ela.
-- Gosto-disse o jovem, estendendo os braços e olhando para baixo, tentando ver como ficava. Talvez a usasse da próxima vez que fossem visitar os Sharamudoi que viviam rio abaixo. Aquela rapariga que lá tinha visto talvez gostasse.
--Ainda born que tive oportunidade para te mostrar como se usa.., disse Jonda]ar-antes de nos irmos embora.
-- Quando é que se vão embora?m perguntou Darvalo, sobressaltado.
--Amanhã, ou depois, o mais tardar N disse Jondalar, olhando directamente para Ayla.-Assim que estivermos prontos.
As chuvas talvez já tenham começado do outro lado das montanhas-disse Dolando e to lembras-te como a Irmã é quando transborda.
Espero que não seja tão mau como isso disse Jondalar. N Pre- cisaríamos de um dos vossos barcos grandes para a atravessarmos.
Se quiserem ir de barco, podemos levá-los até à Irmã disse Car- lono.
--De qúalquer forma precisamos de ir apanhar mirtilo dos pântanos-disse Carlono e é aí que o vamos apanhar.
-- Gostaria muito de subir o rio no vosso barco, mas não creio que os cavalos possam lá ir dentro-disse Jondalar.
--Não disseste que conseguem atravessar os rios a nado? Talvez possam ir a nadar atrás do barco-sugeriu'Carlono.-E o lobo pode ir lá dentro.
-- Sim, os cavalos conseguem atravessar os rios a nado, mas a Irmã fica muito longe, se bem me lembro, a vários dias de distância disse Jondalar --, e não creio que conseguissem nadar uma tal distância rio acima.
--Há um caminho pelas montanhas-disse Dolando.-Terão de andar um pouco para trás e depois subir e contornar um dos cumes mais baixos, mas o trilho está assinalado e acabará por vos levar bastante perto do sítio onde a Irmã se junta à Mãe. Há uma crista alta imediatamente a sul que faz que seja muito fácil ver o sítio à distância assim que cheguem às terras baixas a oeste.
-- Mas será esse o melhor sítio para atravessar a Irmã? perguntou Jondalar, lembrando-se das águas redemoinhantes e revoltas que vira da última vez.
--Talvez não, mas daí poderão seguir a Irmã para norte até encontra-
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rein um sítio melhor, embora não seja um rio fácil. Os seus afluentes vêm das montanhas com muita velocidade e força • a sua corrente é muito mais rápida que a da Mãe e mais traiçoeira-disse Carlono.-Uma vez um grupo nosso navegou rio acima durante quase uma lua. A corrente manteve-se sempre rápida e difícil durante todo esse tempo.
-- Para regressar tenho qdeue seguir a Mãe e isso significa atravessar a Irmã-disse Jondalar.
Então desejo-te boa sorte.
-- Vão precisar de comida-disse Roshario-e eu tenho uma coisa que gostaria de te dar, Jondalar.
-- Nåo temos lá muito espaço para levarmos coisas a mais-disse Jondalar.
-- É para a tua mãe-disse Roshaño.-O colar prefeñdo da Jetamio. Guardei-o para o dar ao Thonolan, se ele regressasse. Não ocupará muito espaço. Depois da mãe morrer, a Jetamio precisava de saber que pertencia a um lugar. Eu disse-lhe para se lembrar sempre que era Sharamudoi. Ela fez o colar de dentes de camurça e espinhas de um esturjão pequeno para representar a terra e o rio. Achei que a tua mãe gostaria de ter uma coisa que pertenceu à mulher que o filho escolheu.
m Tens razão. Gostaría-disse Jondalar. Obrigado. Sei que terá
grande significado para Marthona.
-- Onde está a Ayla? Também tenho uma coisa para lhe dar. Espero que tenha espaço para ela-disse Roshario.
--Está com a Tholie, a arrumar as coisas-disse Jondalar.-Não se quer ir já embora, atd o teu braço estar curado. Mas nåo podemos mesmo esperar mais tempo.
Tenho a certeza de que vai correr tudo bem.-Roshario acertou o passo com o dele enquanto se dirigiam para a habitação. Ontem a Ayla tirou a casca de bétula que eu tinha e pôs outra. O meu braço parece estar curado e apenas está mais pequeno por falta de uso, mas a Ayla quer que eu fique com a casca de bétula durante mais algum tempo. Diz que assim
que comece a usar o braço, ficará igual ao outro.
Tenho a certeza de que sim.
-- Não sei por que é que o estafeta e o Shamud estão a demorar tanto a chegar, mas a Ayla explicou o que fazer, não só a mim, mas ao Dolando, ì Tholie, a Carolio e a vários outros. Estou certa de que cá nos arranjaremos sem ela.., embora todos preferíssemos que ambos ñcassem. Não é tarde de mais para mudares de ideias...
-- Não consigo dizer o que isso significa para mim, vocês quererem-
-nos cá... especialmente com o Dolando e os... antecedentes da Ayla. Roshario parou e olhou para o homem alto. Isso tem-te incomodado, não term?
Jondalar sentiu o calor vermelho do seu embaraço.
-- Sim-reconheceu.-Agora já não, mas depois de ver o que o
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Dolando sentia em relação a eles e como mesm.o assim vocês estavam dispostos a aceitá-la, faz que... Não sei explicar. E um alívio para mim. Não que.'o que ela seja magoada. Já sofreu muito.
-- Mas isso fez que se tornasse mais forte.-Roshario estudou-o, reparou na sua expressão preocupada, no olhar perturbado dos seus es- pan osos olhos azuis.-Estiveste longe durante muito tempo, Jondalar. Conheceste muitas pessoas, aprendeste outros costumes, outros hábitos, até outras línguas. A tua própria gente talvez já não te conheça.., nem sequer és a mesma pessoa que eras quando saíste daqui.., e eles já não serão bem as pessoas de quem to te lembras. To e eles irão pensar uns nos outros conforme eram, não como são agora.
--Tenho estado tão preocupado com a Ayla que nem pensei nisso, mas tens razão. Já passou muito tempo. Ela talvez se enquadre melhor que eu. Eles serão estranhos e ela aprenderá a conhecê-los muito depressa, como acontece sempre...
-- E to terás expectativas-disse Roshario, recomeçando a andar em direcção às habitações. Antes de entrarem, a mulher voltou a parar.-Serás sempre bem-vindo aqui, Jondalar. Sê-lo-ão ambos.
m Obrigado, mas é uma viagem muito longa. Não fazes ideia de como
é longa, Roshario.
mTens razão, não faço. Mas to fazes e estás habituado a viajar. Se al- guma vez decidires que queres regressar, a viagem não te parecerá tão longa.
--Para alguém que nunca sonhou em fazer uma longa Viagem,já viajei mais do que quereria-disse Jondalar.-Quando chegar, creio que os meus dias de Viajante terão terminado. Tinhas razão quando disseste que era altura de eu assentar, mas talvez o facto de saber que tenho uma alternativa me ajude a habituar-me a estar de novo com a minha gente.
Quando afastaram a pele da entrada, apenas encontraram Markeno lá dentro.
-- Onde está a Ayla? -- perguntou Jondalar.
Foi com a Tholie buscar as plantas que ela estava a secar. Não as viste, Roshario?
--Viemos do campo. Pensei que ela estivesse aqui disse Jondalar.-E estava. A Ayla esteve a ensinar à Tholie a fazer alguns dos seus remédios. Desde que ontem esteve a ver o teu braço e começou a explicar o que te devia fazer, nunca mais pararam de falar de plantas e para que servem. Aquela mulher sabe muito, Jondalar.
-- Eu sei[ Só não sei como é que se lembra de tudo.
Saíram esta manhã e voltaram com cestos cheios de plantas de todos os tipos. Atd com plantas com minúsculos fios dourados. Agora está a explicar como se preparam-disse Markeno.-É uma pena irem-se
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embora, Jondalar. A Tholie vai sentir a falta da Ayla. Todos nós vamos sentir a falta de ambos.
D Não é fácil partir, mas...
D Eu sei. O Thonolan. Isso faz-me lembrar que te quero dar uma coisadisse Markeno, procurando numa caixa de madeira cheia de várias ferramentas e instrumentos feitos de madeira, osso e chifre.
Tirou um objecto de aspecto estranho feito de uma armação de veado, com os galhos cortados e um orificio aberto imediatamente abaixo da sua ramificação. Estava cheio de decorações entalhadas, mas não com as formas geométricas e estilizadas de pássaros e peixes características dos Sharamudoi. Tinha figuras de animais, veados e ibex extremamente belos e realistas em volta do punho. Havia qualquer coisa nele que pro- vocou um arrepio em Jondalar. Quando olhou mais atentamente e o reconheceu, o arrepio transformou-se num calafrio.
É o endireitador de lanças do Thonolan! -- exclamou. Quantas vezes tinha ele observado o irmão usar aquele instrumento, pensou. Até se lembrava quando Thonolan o tinha arranjado.
--Achei que gostarias de o ter, para te lembrares dele. E pensei que talvez seja útil quando procurares o seu espírito. Além disso.., quando o puseres.., o seu espírito.., em descanso, ele talvez o queira disse Mar- keno.
Obrigado, Markeno-disse Jondalar, pegando no instrumento re- sisteénte e examinando-o maravilhado e com reverência. Tinha sido de tal maneira parte do irmão que lhe provocou súbitos fragmentos de recordações. Isto term um grande significado para mim.-Sopesou-o, equi- librou-o na mão, sentindo no seu peso a presença de Thonolan.-Penso que talvez tenhas razão. Há tanto dele nisto que quase o sinto.
-- Tenho uma coisa para dar à Ayla e parece-me que é boa altura para lha dar disse Roshario, saindo. Jondalar foi com ela.
Ayla e Tholie olharam rapidamente para eles quando os dois entraram na habitação de Roshario e por instantes a mulher teve a estranha sensação de que estava a intrometer-se em algo de pessoal ou num segredo, mas os seus sorrisos de boas-vindas desfizeram essa impressão. Roshario dirigiu-se para o fundo da habitação e tirou um embrulho de uma prateleira.
-- Isto ¿ para ti, Ayla disse Roshario , por me teres ajudado. Em- brulhei-o para se manter limpo durante a tua Viagem. Mais tarde, poderás sempre usar o que vai a embrulhar como toalha.
Ayla, surpreendida e satisfeita, desapertou a corda e abriu a pele macia de camurça que revelou mais peles amarelas, maravilhosamente en- feitadas com contas e penas. Pegou nelas e reteve a respiração. Era a túnica mais bela que alguma vez vira. Dobrada por baixo da túnica esta- va um par de calças de mulher, todas enfeitadas na parte da frente das pernas e em volta da parte do traseiro num padrão igual ao da túnica.
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d -- .Ros.hario! É linda! Nunca vi nada tão lindo na minha vida. São emasaao belas para usar m disse Ayla. Depois pousou as peças de ves-
t, uáo e al)raçou a mulher. Pela primeira vez desde que ela tinha chega"o, Kosnatio reparou no estranho sotaque de Ayla, sobretudo na forma como pronnciava certas palavras, mas não o achou desagradável.
* Espy-to que te sirva. Por que é que não as experimentas para nós vermos?
-- Aches mesmo que devo? -- disse Ayla, quase com medo de lhes tocar.
-- Temos de saber se te servem, para as poderes usar quando to e o Jondalar s acasalarem, não achas?
Ayla sofriu a Jondalar, excitada e feliz com o fato, mas não refeñu que já tinhaura túnica para quando se acasalasse, que lhe fora dada pela
c°mpanneìa de Talut,Nezzie, do Acampamento do Leão. Não podia lá muito born sar ambas, mas arranjaria uma ocasião especial para aquele
maravilh°o fato novo.
--- Tamlém tenho uma coisa para ti, Ayla. Nada de tão belo, mas é útil
u qado numa bolsa que trazia presa ao cinto.
Ayla Pesou selas e evitou olhar para Jondalar. Sabia exactamente
para que e"m"
-- Comb é que sabias que eu precisava de tiras novas para o meu
tempo de lt rPhlç .
, -T-. a tnulher precisa sempre de tiras novas, especialmente quan- a,o wa.3itnbém tenho um belo enchimento macio e absorvente para te
aar. e loSl/ario e eu falámos sobre isso. Ela mostrou-me o fato que te
tinha feito . eu também te queria dar uma coisa bonita, mas não se pode levar muitos coisas quando se viaja. Portanto comecei apensar numa coisa deque precisarias disse Tholie, explicando a sua prenda tão prá-tica.
ÉpertPeito" Não me podias ter dado uma coisa que eu precisasse ou quisesse mis. És tão atenciosa, Tholie m disse Ayla, virando a caboça e tentando di afarçar as lágrimas.-You ter saudades tuas.
Vá lá,, não te vais embora já. Sd amanhã de manhã. Nessa altura será mais- qtae tempo para lágrimas-disse Roshario, apesar de as suas próprias lárrimas ameaçarem transbordar.
,.Nessa, Salte, Ayla esvaziou os seus dois cestos-alforge e espalhou à sua voa tuao e que queria levar consigo, tentando decidir como arrumar tudo, incluido as quantidades de comida que lhes tinham sido dadas. Jondalar learia algumas coisas, mas ele também já não tinha muito espaço disp rível. Tinham debatido várias vezes a questão do barco-mal- ga, tentandç decidir sea sua utilidade para a travessia de rios valia o esforço de o transportar através das encostas florestadas das montanhas. Por fim, dec:ìdiram levá-lo, mas não sem alguma apreensão.
PLAN[CIES DE PASSAGEM I
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-- Como d que vais meter tudo isso em apenas dois cestos?-- perguntou Jondalar, olhando para a pilha de misteriosos embrulhos e pacotes, todos eles cuidadosamente embrulhados, preocupado em levar demasia- das coisas.-Tens a certeza de que precisas de tudo isso? Que é que está nesse embrulho?
-- Toda a minha roupa de Verão-disse Ayla.-Será este que cá deixarei ficar se for preciso, mas precisarei de roupa para usar no próximo Verão. Ainda bem que já não tenho de empacotar a minha roupa de Inverso.
-- Hummm rum I-grunhiu ele, sem con seguir encontrar qualquer falha no seu raciocínio, mas ainda preocupado com a carga. Olhou atentamente para a pilha e reparou num embrulho que sabiajá ter visto antes. Ela trazia-o desde que tinham partido, mas ele continuava sem saber o que lá estava dentro. Que é isso?
-- Jondalar, não estás a ajudar nada-disse Ayla. m Por que é que não levas estes quadrados de comida para viagem que o Carolio nos deu e vês se tens espaço para eles no teu cestoalforge.
Pronto, Corredor. Acalma-te disse Jondalar, puxando pela corda que servia de rédea e mantendo-a bem curta enquanto fazia festas no focinho do garanhão e lhe afagava 0 pescoço, tentando acalmá-lo. Creio que sabe que estamos prontos e está ansioso por ir.
Tenho a certeza de que a Ayla não tarda aí-disse Markeno.-Aquelas duas tornaram-se grandes amigas no pouco tempo que cá estiveram. A Tholie esteve a chorar ontem à noite, com pena de não ficarem. Para te dizer a verdade, tambdm tenho pena que se vão embora. Já pro- curámos e falámos com várias pessoas, mas não encontrámos ninguém com quem nos quiséssemos interacasalar, isto até vocês chegarem. Pre- cisamos de assumir um compromisso em breve. Tens a certeza de que não queres mudar de ideias?
Nem sabes como me foi difícil tomar esta decisão, Markeno. Quem sabe o que encontrarei quando lá chegar. A minha irmã já estará cresci- da e provavelmente nem se lembrará de mim. Não faço ideia do que o meu irmão mais velho estará a fazer, ou onde estará. Só espero que a minha mãe ainda esteja viva disse Jondalar , e Dalanar, o homem do meu lar. Aminha prima-irmã, a filha do seu segundo lar,já deve ser mãe, mas nem sequer sei se term um companheiro. Se tiver, provavelmente não o conhecerei. Na verdade, já não conhecerei ninguém e sinto-me muito ligado a todos daqui. Mas tenho de ir.
Markeno assentiu. A Whinney relinchou baixinho e ambos olharam para cima. Roshario, Ayla e Tholie, que trazia Shamio ao colo, vinham a sair da sua habitação. A garotinha tentou ir para o chão quando viu o
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-- Não sei o que irei fazer à Shamio quando esse lobo se for embora m disse Markeno. m Ela quer estar sempre ao pé dele. Sea deixasse, dor- mia com ele.
-- Talvez consigas encontrar uma cria de lobo para ela m disse Car- lono, juntando-se a eles. Tinha acabado de vir da doca.
m Não tinha pensado nisso. Não será fácil, mas talvez possa tirar uma cña de um covil de lobos-pensou Markeno em voz alta. q Pelo menos posso prometer-lhe tentar. You ter de lhe dizer qualquer coisa.
Se o fizeres-disse Jondalar--, toma cuidado para que seja muito no- vinha. O Lobo ainda mamava quando a mãe morreu.
-- Como é que a Ayla o alimentou sem amãe para lhe dar leite?--perguntou Carlono.
q Eu próprio pensei nisso w disse Jondalar.-Ela disse-me que um bebé pode corner tudo o que a mãe come, mas que term de ser mais mole e mais fácil de mastigar. Fazia sopa, molhava um pedaço de pele e deixa- va-o sugar nele e cortava carne em pedacinhos muito pequenos para lhe dar. Ele agora come tudo o que nós comemos, mas continua a gostar de caçar para corner de vez em quando. Até nos levanta caça e ajudou-nos a apanhar o alce que trazíamos connosco quando cá chegámos.
-- Como é que fazem que ele faça o que querem? perguntou Mar- keno.
-- AAyla passa mui tempo a ensiná-lo. Mostra-lhe o que quer e repete até ele fazer bem. E surpreendente o que ele consegue aprender e adora agradar-lhe disse Jondalar.
Qualquer pessoa vê isso. Achas que será só a ela? Afinal de contas, ela é shamud disse Carlono. w Qualquer pessoa conseguirá que os animais façam o que ela quer?
Eu monto no dorso do Corredor m disse Jondalar-e náo sou sha- mud. m Não estou lá muito certo disso-disse Markeno, rindo-se.-Lem-
bra-te de que já te vi junto das mulheres. Acho que consegues que elas façam tudo o que queiras.
Jondalar corou. Há bastante tempo que não pensava nisso.
Ao dirigir-se para junto deles, Ayla pensou por que é que ele estaria tão vermelho, mas depois apareceu Dolando, contornando a parede rochosa.
--You com vocês parte do caminho para vos mostrar os trilhos e o me-
lhor caminho para atravessarem as montanhas m disse. m Obrigado. E uma grande ajuda m disse Jondalar. m Eu também you disse Markeno. m Eu gostarìa de ir disse Darvalo. Ayla olhou para ele e reparou que
tinha vestida a camisa que Jondalar lhe dera.
m E eu também disse Rakario.
Darvalo olhou para ela com uma expressão irritada, à espera de a ver
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especada a olhar para Jondalar, mas era para ele que ela estava a olhar com um sorriso de adoração. Ayla observou-o enquanto a sua irritação passava a espanto, depois a compreensão e por fim viu-o corar de surpresa.
Quase toda a gente se tinha reunido no meio do campo para dizer adeus aos visitantes e várias outras manifestaram vontade de os acompanhar durante parte do caminho.
-- Eu não irei m disse Roshario, olhando para Jondalar e depois para Ayla--, mas gostava muito que cá ficassem. Desejo a ambos boa viagem.
-- Obrigado, Roshario-disse ele, abraçando a mulher.-Podemos bem precisar da sorte que nos desejas até chegarmos ao nosso destino.
m Jondalar, preciso de te agradecer por teres trazido a Ayla. Nem sequer quero pensar no que me teria acontecido se ela não tivesse vindo.-Roshario estendeu a mão a Ayla. A jovem curandeira agarrou-a e depois a outra que ainda estava ao peito e apertou ambas, satisfeita por sentir a força das duas mios. Depois abraçaram-se.
Houve várias outras despedidas, mas a maioria das pessoas tenciona- va seguir pelo trilho pelo menos durante uma pequena parte do caminho.
-- Vens, Tholie? -- perguntou Markeno, acertando o passo pelo de Jondalar.
--Não. m Tinha os olhos marejados de lágrimas.-Não quero ir. Não será mais fácil dizer-lhes adeus no caminho do que aqui-e dirigiu-se ao alto homem Zelandonii. mE-me difícil ser simpática para ti neste momento, Jondalar. Gostei sempre muito de ti e passei a gostar ainda mais depois de teres trazido cá a Ayla. Queria muito que to e ela ficassem, mas to não queres. Muito embora compreenda por que é que não queres, isso não me consola nada.
-- Lamento que sintas tanto, Tholie m disse Jondalar.-Gostava de
poder fazer qualquer coisa para te fazer sentir melhor.
-- Mas podes e não fazes-disse ela.
Era mesmo dela dizer exactamente o que estava a pensar. Era uma das coisas que ele gostava nela. Nunca era preciso adivinhar o que ela quereria dizer.
--Não fiques zangada comigo. Se eu pudesse cá ficar, nada me agradaria mais que juntar-me a ti e ao Markeno. To nem sabes como fiquei orgulhoso quando nos convidaste, nem como me é difícil ir embora neste momento, mas há qualquer coisa que me puxa. Para ser franco, nem sequer tenho a certeza do que seja, mas tenho de ir, Tholie.-Olhou para ela com os seus olhos surpreendentemente azuis cheios de verdadeira tristeza, preocupação e ternura.
--Jondalar... não me devias dizer essas coisas trio bonitas e olhar para mim assim. Faz que queira ainda mais que fiques. Dá-me só um abraço-disse Tholie.
Ele inclinou-se e pôs os braços em volta da jovem mulher e sentiu-a
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a tremer do esforço que estava a fazer para contro]ar as lágrimas. Ela lar- gou-o e olhou para a jovem mulher loura e alta que estava ao lado dele.
m Oh, Ayla. Não quero que vás-disse ela, dando um grande soluço
quando caíram nos braços uma da outra.
-- Não me quero ir embora, gostava tanto de ficar. Não sei bem por- quë, mas o Jondalar term de ir e eu tenho de ir com ele-disse Afia a chorar tanto como Tholie. Subitamente, a jovem mãe largou-a, pegou na
Shamio ao colo e correu para as habitações. O Lobo começou a correr atrás delas.-Fica aqui, Lobo./ ordenou Ayla.
Wuffie! Quero o meu Wuffie gritou a garotinha, estendendo os
braços para o carnívoro peludo de quatro patas.
O Lobo ganiu e olhou para Ayla.
-- Fica, Lobo-disse ela.-Vamo-nos embora.
20
Ayla e Jondalar pararam numa clareira com ampla vista para a montanha, com uma sensação de perda e solidão ao observarem Dolando, Markeno, Carlono e Darvalo a regressarem pelo trilho. O resto da multidão que tinha partido com eles fora ficando para trás aos dois e três ao longo do caminho. Quando os últimos quatro homens chegaram a uma curva no trilho, viraram-se e acenaram.
Afia respondeu ao seu aceno com um gesto de "voltem" com as costas da mão viradas para eles, subitamente avassalada pela certeza de que nunca mais veria os Sharamudoi. Durante o pouco tempo que os conhecem, tinha ficado com um grande afecto por eles. Tinham-na recebido de coração aberto, convidado-a a ficar, e ela teria vivido com eles de born grado.
Aquela partida razia-lhe recordar quando tinham deixado os Mamutoi no início do Verão. Também eles a tinham recebido de braços abertos e ela tinha criado laços de amizade com muitos deles. Podia ter sido feliz a viver com eles, excepto que teña de viver com a infelicidade que causa- ta a Ranec e, quando partita, sentira a excitação de ir para casa com o homem que amava. Não havia quaisquer elementos de infelicidade em relação aos Sharamudoi, o que tornava a partida bem mais difícil e, embora amasse Jondalar e não tivesse dúvidas de que queria ir com ele, senriu que a aceitaçåo e a amizade eram difíceis de terminar daquela forma tão definitiva.
"As Viagens são cheias dedespedídas", pensou Ayla. Atd tinha dito o seu último adeus ao filho que deixara com o Clã... embora se tivesse fica- do all talvez um dia pudesse ir com os Ramudoi num barco pelo Grande Rio Mãe até ao delta. Depois, talvez pudesse ir por terra até à península, procurar a nova caverna do clã do seu filho.., mas nåo adiantava pen- sat mais nisso.
Não haveria qualquer oportunidade para lá voltar, não haveria qualquer última possibilidade com a qual sonhar. A sua vida levava-a numa direcção, a vida do seu filho levava-o noutra. Iza tinha-lhe dito "encontra a tua própria gente, encontra o teu próprio companheiro". Eìa tinha encontrado aceitação entre o seu próprio tipo de gente e tinha encontrado um homem a quem amar e que a amava. Mas apesar do muito que
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tinha ganho, existiam perdas. O seu filho era uma delas; tinha de aceitar esse facto.
Jondalar também estava desolado, a observar os últimos quatro a voltar para trás em direcção ao seu lar. Eram todos amigos com quem tinha vivido durante vários anos e que conhecia bem. Embora a sua relação não fosse através da sua mãe e dos seus laços, sentia que eram tanto sua família como os do seu próprio sangue. No seu empenhamento em regressar às suas raízes de origem, eram a famflia que ele nunca mais veria e isso entristeciao.
Quando os últimos Sharamudoi que os tinham acompanhado desapareceram da vista, o Lobo sentou-se sobre os quartos traseiros, ergueu a cabeça e deu vários latidos que deram lugar a um forte uivo que estilhaçou a quietude da manhã solarenga. Os quatro homens reapareceram no trilho mais abaixo e acenaram pela última vez, em resposta ao adeus do lobo. Subitamente, ouviu-se um uivo de resposta de outro da sua própria raça. Markeno olhou para ver de que direcção vinha o segundo uivo antes de continuarem a descer o trilho. Depois, Ayla e Jondalar viraram-se para a montanha com os seus picos cintilantes de gelo glaciar azul-esverdeado.
Embora não tão altas como a cordilheira a oeste, as montanhas pelas quais viajavam tinham-se formado ao mesmo tempo, durante a mais recente época de formação de montanhas-recente apenas em relação aos ponderosamente lentos movimentos da espessa crosta pedregosa a flutuar no centro fundido da antiga terra. Erguido e dobrado numa série de espinhaços paralelos durante a orogenia que provocara um forte relevo em todo o continente, oterreno acidentado daquela expansão do extremo leste do extenso sistema montanhoso, estava coberto de vida verdejante.
Uma franja de árvores decíduas formava uma estreita faixa entre as planícies em baixo, ainda aquecida pelos vestígios do Verão, e o terreno mais alto-constituído principalmente por carvalhos e faias, mas incluindo também muitas betuláceas e áceres. As suas folhas já estavam a transformar-se numa tapeçaria colorida de vermelhos e amarelos, acentuados pelo verde-escuro dos espruces na orla mais elevada. Um manto de coníferas, que incluíam não apenas espruces, mas também teixos, abetos, pinheiros e lariços decíduos com agulhas, começava em baixo, subia até às projecções das proeminências inferiores e cobria as encostas íngremes dos picos mais altos com subtis variações de verde que iam clareando até ao tom amarelado dos lariços. Acima da orla florestada, havia um anel de pastagem alpina de um verde de Verão que se tornava branco com neve no início da estação. Cobrindo o pico, havia um duro capacete de gelo glaciar tingido de azul.
O calor que aflorara as planícies do sul lá em baixo com o toque efémero do curto Verão quentej á estava a desaparecer, dando lugar à garra possante do frio. Embora uma tendência quente tivesse moderado os seus
piores efeitos m um período interestadial que durou vários milhares de anos--, o gelo glaciar estava a reagrupar-se para um assalto final à terra antes de a retirada se transformar numa debandada milhares de anos mais tarde. Mas mesmo durante o tempo mais ameno antes da investida final, o gelo glaciar não só cobria os picos mais baixos e os flancos das montanhas altas, como mantinha o continente sob o seu domínio.
Na paisagem florestada agreste, com a dificuldade acrescida de terem de arrastar o barco redondo preso aos paus, Ayla e Jondalar iam mais tempo a pé que montados nos cavalos. Subiam as encostas íngremes, pas- savam por cima dos espinhaços, atravessavam ladeiras cobertas de seixos e desciam as encostas quase a pique com desfiladeiros secos originados pelo degelo da neve e gelo da Primavera e pelas fortes chuvas das montanhas a sul. Algumas das valas maiores tinham água no fundo que corria por entre lama macia e vegetação apodrecida que sugavam os pés dos humanos e dos animais. Outras levavam ribeiros límpidos, mas tedas elas ficariam em breve cheias com o tempestuoso volume das chuvas de Outono.
Nas elevações mais baixas, nas florestas abertas de árvores de folha larga, eram atrapalhados pela vegetação rasteira, tendo que abrir caminho por entre arbustos e silvas ou contorná-los. As canas duras e as ramadas com espinhos das silvas que davam as deliciosas amoras eram uma barreira monumental que rasgavam o cabelo, a roupa, a pele, assim como as peles e o pêlo dos animais.
O quente pêlo espesso e comprido dos cavalos das estepes, adaptado para viverem nas planícies abertas e frias, ficava facilmente preso e emaranhado e até o Lobo apanhou a sua parte de ouriços e galhos.
Ficaram contentes quando finalmente chegaram à elevação de árvores de folhas perenes, cuja sombra relativamente constante mantinha a vegetação rasteira no mínimo, embora nas encostas íngremes onde as copas não eram tão densas o sol se filtrasse mais que em terreno plano, permitindo o crescimento de alguns arbustos. Não era muito mais fácil atravessar a cavalo a densa floresta de árvores altas, pois os cavalos tinham de escolher o caminho, contornando os obstáculos e os passageiros tinham de se baixar por causa dos ramos baixos. Na primeira noite, acamparam numa pequena clareira num outeiro rodeado de espirais de agulhas.
Já era quase noite no segundo dia quando chegaram à linha além da qual não cresciam árvores. Finalmente livres dos arbustos que lhes travavam o caminho e dos obstáculos das árvores mais altas, montaram a tenda junto a um ribeiro de corrente rápida e fria numa pastagem aberta. Os cavalos, depois de livres da carga, ficaram ansiosos por ir pastar. Apesar de a sua alimentação habitual mais grosseira e seca das elevações menos altas e mais quentes ser adequada, a erva doce e as ervas alpinas do prado verdejante eram um apetecido petisco.
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Uma pequena manada de veados compartilhava a pastagem, estando os machos atarefados a esfregar as armações em ramos e ro,chas para os libertar da camada macia de pele e veias chamada veludo, preparan- do-se para o cio do Outono.
-- Não tardará a ser a sua estação para os Prazeres-comemtou Jondalar enquanto preparavam a fogueira.-Estão a preparar-se para lutar e para as fêmeas.
m Lutar é um Prazer para os machos? m perguntou Ayla..
mNunca pensei nisso dessa forma, mas talvez seja para algluns conheceu ele.
-, Gostas de lutar com outros homens?
Jondalar franziu a testa enquanto pensava seriamente na questão. m Já tive a minha conta. Por vezes somos arrastados para as"lutas, por uma razão ou por outra, mas não posso dizer que tenha gostado), pelo menos quando é a sério. Mas não me importo de fazer luta corpo a corpo e de outras competições.
m Os homens do Clã não lutam uns com os outros. Não é p)ermitido, mas têm competições disse Ayla. As mulheres também, rmas de um tipo diferente.
-- Diferentes como?
Ayla parou para pensar nisso.
Os homens competem no que realizam; as mulheres no ue fazem-disse ela, sorrindo e acrescentado --, incluindo os bebés, emlbora essa seja uma competição muito subtil e quase rodas pensam que gmnharam.
Mais acima na encosta da montanha, Jondalar reparou nurma famflia de carneiros e apontou para os carneiros selvagens com grandes chifres que se enrolavam muito junto da cabeça.
--Aqueles são verdadeiros lutadores disse Jondalar. Quando investem um contra o outro e as cabeças batem, quase parece rum trovão.
Quando os veados e os alces investem uns contra os outrros com as suas armações ou chifres, achas que estão mesmo a lutar? Ou estarão a competir? -- pe.rguntou Ayla.
m Não sei. As vezes ferem-se uns aos outros, mas isso nãco acontece com muita frequência. Normalmente um desiste quando o outro mostra que é mais forte e por vezes apenas se pavoneiam e urram eneem sequer chegam a lutar. Talvez seja mais uma competição do que umaL luta a sé-rio disse, sorrindo a Ayla. Fazes perguntas interessantess, mulher.
Uma brisa fresca tornou-se mais fria enquanto o sol merguIIhava abaixo do seu campo de visão. Durante o dia, leves nuvens de neve tiinham caí-do e derretido nos espaços abertos com sol, mas alguma neve tinha-se acumulado nos recantos mais sombrios, antecipando a possibiilidade de uma noite fria e nevões mais fortes a vir.
O Lobo desapareceu pouco depois de terem montado o abrigo de pele. Ao ver que ele não tinha regressado ao anoitecer, Ayla ficou preocupada.
D Achas que deva assobiar para o chamar? D perguntou quando se
estavam a preparar para dormir.
DNão é a primeira vez que ele desaparece para ir caçar sozinho, Ayla.
Estás habituada a vê-lo sempre porque o tens mantido junto de ti. Ele volta D disse Jondalar.
-- Espero que de manhã já tenha voltado disse Ayla, levantando- -se para olhar em volta, tentando em vão ver na escuridão para lá da fogueira.
DEle é um animal, portanto sabe o caminho de volta. Vem para aqui e senta-te D disse. Pôs mais um pedaço de lenha na fogueira e ficou a ver as faúlhas a subir para o céu. D Olha para as estrelas. Alguma vez viste tantas?
Ayla olhou para cima e foi invadida por uma sensação de encantamento.
DParecem de facto muitas. Talvez seja por estarmos mais perto e estarmos a ver mais, especialmente as mais pequenas.., ou será que essas estão mais longe? Achas que continuam e continuam sem parar?
D Não sei. Nunca pensei nisso. Quem é que pode saber? D perguntou
Jondalar.
D Achas que a tua Zelandonii poderá saber?
DTalvez, mas não sei bem se diria. Há certas coisas que é suposto apenas Aqueles Que Servem a Mãe saberem. Fazes as perguntas mais estranhas, Ayla D disse Jondalar, sentindo um arrepio. Embora não tivesse a certeza de que fosse de frio, acrescentou: Estou a ficar com frio e amanhã temos de partir bem cedo. O Dolando disse que as chuvas podiam começar a qualquer altura. E isso cá em cima pode significar neve. Gostaria de já não estar cá quando isso acontecer.
--You já. Só quero ver sea Whinney e o Corredor estão bem. Talvez o Lobo esteja com eles.
Ayla continuava preocupada ao meter-se nas peles de dormir e demorou a adormecer, pois esforçava-se por ouvir algum som que pudesse ser o animal a regressar.
Estava escuro, demasiado escuro para ver as muitas, muitas estrelas que irrompiam do fogo para a noite, mas ela continuava a olhar. Então, na escuridão, duas estrelas, duas luzes amarelas, aproximaram-se. Eram olhos, os olhos de um lobo que a fitavam. Ele virou-se e começou a afastar-se, e ela percebeu que ele queria que ela o seguisse, mas quando começou a andar o seu caminho foi travado por um enorme urso.
Recuou com medo e o urso ergueu-se sobre as patas traseiras e rosnou. Mas quando ela voltou a olhar, descobriu que não era um urso verdadeiro. Era Creb, o Mog-ur, com a sua capa de pele de urso.
Ouviu, à distância, o seu filho a chamá-la. Olhou para lá do grande mágico e viu o lobo, mas não era apenas um lobo. Era o espírito do Lobo,
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o totem de Durc, e ele queria que ela o seguisse. Depois o espírito do Lobo transformou-se no filho dela e era Durc que queria que ela o seguisse. Voltou a chamá-la, mas quando ela tentou ir para junto dele, Creb barrou-lhe o caminho. Apontou para qualquer coisa atrás dela.
Ela virou-se e viu um caminho que dava para uma caverna, não uma caverna funda, mas uma saliência de rocha clara na face de um penhasco, e por cima havia um pedregulho que parecia gelado no acto de cair por cima da beira. Quando olhou para trás, Creb e Durc tinham desaparecido.
m Creb! Durc[ Onde estão? m gritou Ayla, sentando-se repentinamente.
m Ayla, estás outra vez a sonhar-disse Jondalar, sentando-se também.
m Desapareceram. Por que é que não me deixaram ir com eles? m dis-
se Ayla, com lágrimas nos olhos e um soluço na voz.
-- Quem é que desapareceu? -- perguntou ele, abraçando-a.
-- O Durc desapareceu e o Creb não me deixou ir com ele. Barrou-me o caminho. Por que é que não me deixou ir com ele?-- disse ela, a chorar-lhe nos braços.
Foi um sonho, Ayla. Foi só um sonho. Talvez signifique qualquer coisa, mas foi só um sonho.
Tens razão. Sei que tens razão, mas pareceu-me tão real disse Ayla.
m Tens pensado no teu filho, Ayla?
-- Acho que sim-disse ela.-Tenho pensado que nunca mais o verei.
Talvez tenha sido por causa disso que sonhaste com ele. A Zelan- doni diz sempre que quando temos um sonho desses, devemos tentar re- cordar-nos de cada coisa e que um dia talvez o compreendamos-disse Jondalar, tentando ver-lhe o rosto na escuridão.-Agora vê se dormes.
Ficaram ambos acordados durante algum tempo, mas voltaram finalmente a adormecer. Quando acordaram na manhã seguinte, o céu esta- va nublado e Jondalar estava ansioso por partir, mas o Lobo continuava sem aparecer. Ayla assobiou por ele periodicamente enquanto desmontavam a tenda e arrumavam as coisas, mas ele continuou sem aparecer.
--Ayla, precisamos de ir. Ele apanha-nos depois, como de costume m disse Jondalar.
Não me you embora sem saber onde é que ele está m disse ela. -- To podes ir ou esperar aqui. You à procura dele.
Como é que podes ir à procura dele? O animal pode estar sabe-se lá onde.
Talvez tenha voltado lá para baixo. Ele gostava muito da Shamio-disse Ayla.-Talvez devamos voltar para trás para o procurarmos.
m Não vamos voltar para trás depois de já termos andado tanto!
-- Se tiver que ser, volto. Não continuo sem encontrar o Lobo-disse ela.
Jondalar abanou a cabeça quando Ayla começou a fazer o caminho de volta. Era evidente que ela não cederia. Já podiam estar a caminho se não fosse aquele animal. Por ele, os Sharamudoi bem podiam ficar com ele!
Ayla continuou a assobiar ao andar e, subitamente, quando iajá a entrar na floresta, ele reapareceu do outro lado da clareira e começou a correr para ela. Saltou-lhe para cima, quase derrubando-a, pôs-lhe as patas nos ombros e lambeu-lhe a boca, mordendo-lhe ao de leve o maxilar.
Lobot. Lobo, estás aqui! Onde é que estiveste? exclamou Ayla, agarrando-o pelo cachaço e esfregando o rosto contra ele, mordendolhe também ao de leve o focinho para o saudar.-Estava tão preocupada contigo. Não devias ter fugido!
Achas que já nos podemos ir embora? m disse Jondalar. - A manhã já vai quase a meio.
Pelo menos ele voltou e não tivemos que fazer todo o caminho de volta disse Ayla, saltando para o dorso da Whinney. Para que lado queres ir? Estou pronta.
Atravessaram a pastagem sem falar, irritados um com o outro, até chegarem a um espinhaço. Com os cavalos lado a lado, procuraram um sítio por onde pudessem atravessá-lo e chegaram finalmente a uma encosta com gravilha solta e rochas. Parecia muito instável e Jondalar continuou à procura de outro sítio. Se fossem sozinhos, talvez pudessem passar em vários sítios, mas o único caminho de todo possível para os cavalos era a encosta coberta de gravilha.
Ayla, achas que os cavalos conseguem subir aqui? Não creio que haja outro caminho, a não ser voltarmos a descer e tentarmos dar a volta disse Jondalar.
m Disseste que não querias voltar a descer disse ela --, sobretudo por causa de um animal.
Não quero, mas se tivermos que o fazer, fazemos. Se achares que é demasiado perigoso para os cavalos, nem sequer tentamos.
--E se eu achasse que era demasiado perigoso para oLobo? Deixávamo-lo para trás? -- disse Ayla.
Para Jondalar, os cavalos eram úteis e, embora gostasse do Lobo, o homem simplesmente não achava necessário atrasar a sua passagem por sua causa. Mas era evidente que Ayla não concordava e ele apercebeu-se de uma divisão latente entre ambos, uma sensação de tensão provavel- mente porque ela queria ficar com os Sharamudoi. Tinha pensado que assim que estivessem a certa distância deles, ela se entusiasmaria com a perspectiva de chegarem ao seu destino, mas não queria entristecê-la mais do que ela já estava.
Não é que eu queira deixar o Lobo para trás. Só pensei que ele nos
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apanharia, como já aconteceu-disse Jondalar, embora tivesse estado quase disposto a deixá-lo.
Ela sentiu que havia algo mais que o que ele tinha dito, mas não gostava que houvesse a distância da discórdia entre ambos e agora que oLo- go regressarajá estava aliviada. Desaparecida a sua ansiedade, a ira dissipou-se. Desmontou e começou a subir a encosta para a testar. Não esta- va absolutamente segura de que os cavalos a conseguiriam subir, mas ele tinha dito que procurariam outro caminho se não conseguissem.
-- Não tenho a certeza, mas acho que devemos tentar, Jondalar. Não creio que seja tão mau como parece. Se eles não conseguirem, então podemos voltar para trás e procurar outro caminho m disse ela.
Na realidade não era tão instável como parecia. Embora tivesse havi- do alguns maus momentos, ficaram ambos surpreendidos com a relativa facilidade com que os cavalos subiram a encosta. Ficaram contentes por a deixaram para trás mas, ao continuarem a subir, depararam com outras zonas difíceis. Na sua preocupação mútua um pelo outro, e pelos cavalos, estavam de novo a falar bem um com o outro.
O Lobo não teve dificuldade em subir a encosta. Tinha corrido atd ao cimo e de novo para baixo enquanto eles conduziam cuidadosamente os cavalos para cima. Quando chegaram lá acima, Ayla assobiou por ele e esperou. Jondalar observou-a e achou que ela estava a proteger muito mais o animal. Pensou porque seria, pensou em perguntar-lhe, mas mudou de ideias não fosse ela ficar zangada e depois decidiu que mesmo assim levantaria a questão.
-- Ayla; será que estou enganado, ou estás mais preocupada com o Lobo que dantes? Costumavas deixá-lo andar à vontade. Gostava que me dissesses o que é que te anda a preocupar. Foste to que disseste que não devíamos esconder coisas um do outro.
Ela respirou fundo e fechou os olhos, franzindo a testa com uma expressão preocupada. Depois olhou para ele.
-- Tens razão. Não é que eu te tenha estado a esconder o que sinto. Tenho tentado escondê-lo de mim própria. Lembras-te daqueles veados
lá em baixo, que estavam a esfregar as armações para o veludo sair? m Sim-disse Jondalar.
D Não tenho a certeza, mas talvez também seja a estação dos Prazeres para os lobos. Nem sequer quero pensar nisso, com medo de fazer com que aconteça, mas a Tholie levantou a questão quando eu estava a contar como o Bebé se tinha ido embora para encontrar uma fêmea. Perguntou-me se eu pensava que oLobo se iria embora um dia, como oBebé. Não quero que o Lobo se vá embora, Jondalar. Ele é quase como uma criança para mim, como um filho.
-- Que é que te faz pensar que ele irá?
D Antes de o Bebé se ir embora, começou a ausentar-se durante períodos cada vez maiores. Primeiro um dia, depois vários dias e, por vezes,
quando voltava, eu percebia que ele tinha andado à luta. E sabia que ele andava à procura de uma fêmea. E encontrou uma. Agora, de cada vez que o Lobo se vai embora, tenho medo de que ande à procura de uma fêmea disse Ayla.
--Então é isso. Não sei bem se podemos fazer alguma coisa, mas será que isso é provável? m perguntou Jondalar. Sem querer, veio-lhe a ideia de que desejava que fosse. Não a queria ver infeliz, mas o lobo já mais do que uma vez os atrasara ou fora causa de tensão entre ambos. Tinha de admitir que se o Lobo encontrasse uma fèmea e se fosse embora com ela, ele desejar-lhe-ia boa sorte e ficaria satisfeito por ele se ter ido embora.
m Não sei disse Ayla. Atd agora term voltado sempre e parece satisfeito por viajar connosco. Saúda-me como se pensasse que nós somos a sua alcateia, mas sabes como é com os Prazeres. São um Dom poderoso. A necessidade pode ser muito forte.
m Isso é verdade. Born, não sei se podes fazer alguma coisa, mas ainda bem que me contaste.
Continuaram a andar em silêncio durante algum tempo, atravessando outra pastagem, mas era um silêncio carregado de companheirismo. Estava contente por ela lhe ter contado. Pelo menos assim compreendia um pouco melhor o seu estranho comportamento. Andava a agir como uma mãe excessivamente ansiosa, embora ele se sentisse contente por is- so não ser habitual nela. Sentira sempre muita pena dos rapazitos cujas mães não os deixavam fazer coisas que pudessem ser um pouco perigosas, como entrar numa caverna ou trepar a sítios altos.
Olha, Ayla. Está all um ibex disse Jondalar, apontando para um animal ágil, parecido com uma cabra, com grandes chifres curvos. Esta- va empoleirado numa saliência rochosa bem no alto da montanha.-Já os cacei. E olha para all. São camurças!
São mesmo esses os animais que os Sharamudoi caçam?--perguntou Ayla enquanto observava o antflope aparentado com as cabras de montanha, com chifres mais pequenos e direitos, a saltar por entre os picos
inacessíveis e as faces escarpadas das rochas.
Sim. Já fui com eles.
Como é que alguém consegue caçar animais como aqueles? Como é qu.e se chega junto deles?
E uma questão de se trepar as rochas atrás deles. A tendência deles é para estar sempre a olhar para baixo para ver se há perigo, portanto, se conseguirmos subir acima deles, normalmente dá para nos aproximarmos o suficiente para os matarmos. Podes agora perceber por que é uma grande vantagem ter um lançador de lanças explicou Jondalar.
Faz que eu aprecie ainda mais o fato que a Roshario me deu disse Ayla.
Continuaram a subir e à tarde chegaram muito perto da linha de neve. Erguiam-se paredes rochosas de ambos os lados, com manchas de neve
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e de gelo pouco mais acima. O cume da encosta em frente esteve recorta- do contra o céu azul e parecia dar para o fim da terra. Ao chegarem mesmo ao cimo, pararam e olharam. A vista era espectacular.
Atrás deles havia uma vista clara da montanha que tinham subido desde a orla da zona arborizada. Abaixo disso, as encostas atapetadas de árvores de folha perene cobriam a rocha dura e disfarçavam o terreno acidentado que tinham atravessado. A este, até viam a planície lá em baixo, com as suas fitas entrelaçadas de água a atravessarem-na preguiçosamente, o que surpreendeu Ayla. O Grande Rio Mãe pouco mais pare- cia que um ribeiro daquele ponto alto no cimo da montanha gelada e ela não conseguia bem acreditar que ,há tempos tinham suado em bica sob o calor ao seguirem a sua margem. A sua frente viam a próxima cordilheira de montanhas ligeiramente mais abaixo e o profundo vale de espirais verdes, parecendo plumas, que as separavam. Erguendo-se bastante próximo, viam os picos cobertos de gelo cintilante.
Ayla olhou impressionada, com os olhos a brilhar de espanto, comovida pela grandiosidade e beleza do panorama. No ar frio e cortante, saíam- -lhe da boca pequenas nuvens de fumo, que tornavam perceptível a sua respiração excitada.
-- Oh, Jondalar, estamos mais alto que tudo. Nunca estive num sítio tão alto. Sinto que estou no cimo do mundo! -- disse ela.-E é tão.., tão belo, tão excitante.
Enquanto o homem observava a sua expressão encantada e os seus olhos cintilantes, o seu lindo sorriso, o seu próprio entusiasmo pelo panorama dramático foi depoletado pelo entusiasmo dele e sentiu-se tornado de desejo por ela.
-- Sim, tão belo, tão excitante-disse ele. Algo na sua voz provocou um arrepio nela e fê-la desviar os olhos da extraordinária vista para olhar para ele.
Os seus olhos eram de um tom tão impossível de azul que pareceu por instantes que ele tinha roubado dois pedacinhos do azul profundo e lumi- noso do céu, enchendo-os do seu amor e desejo. Ela ficou presa neles, pelo seu inefável encante, cuja origem era para ela tão desconhecida como a magia do seu amor, mas que ela não podia e não queria-negar. Exactamente como o desejo dele por ela tinha sido sempre o seu "sinal". Para Ayla não era um acto de vontade, mas uma reacção física, uma necessidade tão forte e irresistível como a dele.
Sem ter consciência de que se movera, Ayla viu-se nos seus braços, sentindo o seu abraço forte e a sua boca quente e ansiosa sobre a dele. De facto não havia falta de Prazeres na sua vida; compartilhavam o Dom da Mãe regularmente, com grande prazer, mas aquele momento era excepcional. Talvez fosse a excitação da paisagem, mas ela sentiu consciência acrescida de cada sensação. Em cada sítio onde sentia a pressão do corpo dele, era atravessada por um arrepio de prazer; as mãos dele nas suas
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costas, oss seus braços a envolvê-la, as suas coxas contra as dele. O volume entre, as pernas dele, sentido através dosparkas de Inverno grossos e forrados a pele, parecia quente e os lábios dele sobre os dele davamlhe uma sensação indescritível de desejo que ele nunca mais parasse.
No instante em que ele a largou e recuou apenas o suficiente para desapertar a sua roupa exterior, o seu corpo doeu-lhe de desejo e de expectatfiva se ser tocado por ele. Mal conseguia esperar, no entanto não queda que ele se apressasse. Quando ele meteu a mão por debaixo da sua túnica para lhe agarrar os seios, agradou-lhe que as suas mãos estives- sem fña pelo choque do contraste com o calor que sentia por dentro. Soltou uma exclamação abafada quando ele apertou um mamilo, sentin- do-se inwadida por fogo e depois ficando com a pele toda arrepiada de prazer enqu.anto o calor disparou para o sítio bem no fundo dele que ardia com desejo de mais.
Jondalar apercebeu-se das suas fortíssimas reacções e sentiu um aumento correspondente no seu próprio desejo. O seu sexo surgiu erecto, a latejar de tão tumefacte. Sentiu a língua macia dela a procurer a dele dentro da su.a boca e sugou-a. Depois libertou-a para procurer o calor quente da dele e sentiu um desejo avassalador de prover o seu sal quente e sentir as dolbras húmidas da sua outra abertura, mas não queria deixar de a beijar. Lamentou não poder tê-la toda ao mesmo tempo. Agarroulhe nos dois :seios, acariciou-lhe ambos os mamilos, apertou-os, esfregou-os e depois,, levantando-lhe a túnica, levou a boca a um deles e sugou-o com força, sentindo-a a fazer força contra ele e a gemer de prazer.
Sentiiu-se latejar e imaginou o seu sexo tumefacto dentro dela. Voltaram a beijar-se e ela sentiu a força do desejo dele e do seu próprio desejo aumetntarem. Ansiava por ser tocada por ele, pelas suas mãos, pela sua boca, pe]lo seu sexo.
Ele etava a despir oparka e ela tirou o dele, deliciando-se com o vento frio que lparecia quente com a boca dele na sua e as mãos dele no seu corpo. Ele desapertou os cordões da sua protecção de pernas e ela sentiu-as a serem puxadas para baixo e a serem tirades. Depois viram-se ambos em cima do parka dele e as mãos dele acariciavam-lhe as ancas e a barriga e a parte de dentro das coxas. Ela abriu-se às carícias dele.
Ele passou para dentro das pernas dela e o calor da sua língua, ao saboreá-la, provocou frémitos de excitação em toda ela. Ela esteve tão sensívell, as suas reacções eram tão fortes, que era quase insuportável,insuporta'velmente estimulante.
Ele lercebeu a resposta forte e imediata ao seu ligeiro toque. Jondalar tinha sido treinado como cortador de pedreneira, artífice de instrumentos e de armas de caça e era dos mais hábeis por ser tão sensível à pedra com as suas vadações delicadas e subtis. As mulheres correspon- diem à sina percepção e toque hábil, da mesma maneira que acontecia com um borra pedaço de pedreneira, e ambos faziam vir à superfície o melhor
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que havia nele. Gostava sinceramente de ver sair um belo instrumento de um born pedaço de pedreneira sob o trabalho hábil dos seus dedos, ou de sentir uma mulher excitada ao máximo do seu potencial, e ele passa- ra muito tempo a treinar ambas as coisas.
Com a sua inclinação natural e verdadeiro desejo de conhecer os sentimentos das mulheres, sobretudo de Ayla, nesse momento mais íntimo de todos, ele sabia que um toque leve como o de uma pena a excitaria ainda mais, nesse nomento, embora uma técnica diferente pudesse ser ade- quada mais tarde.
Beijou-lhe a parte de dentro das coxas, depois fez a língua subir e reparou que ela ficou com a pele arrepiada. Sentiu-a tremer sob o vento frio e embora ela estivesse de olhos fechados e não protestasse, viu que estava toda arrepiada de frio. Levantou-se e tirou o seuparka para a tapar, deixando-a nua apenas da cintura para baixo.
Embora não se importasse de estar com frio, oparka forrado de pele, ainda quente do corpo dele e com o seu cheiro masculino, soube-lhe mag- nificamente. O contraste do vento frio a soprar contra a pele das suas coxas, molhadas da língua dele, fez que ela estremecesse de prazer. Sen- tiu a humidade invadir-lhe as dobras e o arrepio imediato do frio en- cheu-a de um calor feroz. Com um gemido, arqueou-se para ele.
Com ambas as mãos, Jondalar afastou-lhe as dobras, admirou a linda flor cor-de-rosa do seu ser feminino e, sem se conseguir controlar, aqueceu as pétalas que esfriavam com a sua língua molhada, saboreando o gosto dela. Ela sentiu o calor e depois o frio e estremeceu em resposta. Aquela era uma sensação nova, algo que ele nunca tinha feito. Esta- va a usar o próprio ar da montanha como meio de lhe dar Prazer e a um qualquer nível interior ela maravilhou-se.
Mas enquanto ele continuava o ar foi esquecido. Com uma pressão mais forte e com a provocação familiar da sua boca e mãos, estimulando, encorajando, incitando os seus sentidos a corresponder, perdeu todo o sentido de onde estava. Apenas sentia a boca dele a sugar, a sua língua a lamber e a penetrar o seu lugar de Prazeres, os seus dedos hábeis a explorar o interior e depois apenas a maré crescente dentro dela a atingir o pico e a varrê-la, enquanto ela pegava no seu sexo e o orientava para dentro do seu poço, fazendo força para cima ao senti-lo a enchê-ln.
Ele enterrou-o bem fundo, fechando os olhos ao sentir o seu abraço quente e húmido. Esperou um instante, puxou-o para trás e sentiu a ca- ríciado túnel fundo, voltado a enterrá-lo. Ele voltou a penetrar, recuou, aumentando de cada vez a pressão que se ia avolumando dentro de si. Ou- viu-a gemer, sentia-a a erguer-se para ele e depois, pronto, explodiu com a libertação de onda após onda de Prazer.
No silêncio, apenas o vento falava. Os cavalos tinham esperado pacientemente; o lobo tinha observado com interesse, mas já aprendera a
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conter a sua curiosidade mais viva. Por fim, Jondalar soergueu-se e
apoiou-se nos braços, olhando para baixo para a mulher que amava.-Ayla, e se começámos um bebé? -- perguntou ele.
--Não te preocupes, Jondalar. Não creio que tenhamos começado.-Ayla sentia-se grata por ter encontrado mais plantas contraceptivas e sentiu-se tentada a dizer-lhe, como dissera a Tholie. Mas a princípio Tholie tinha-se mostrado tão chocada, muito embora fosse mulher, que Ayla não se atreveu a falar nisso.-Não tenho a certeza, mas não creio que seja altura de eu poder ficar grávida disse, e era verdade que não tinha a certeza absoluta.
"A Iza acabou por ter uma filha, muito embora tomasse o chá contra- ceptivo durante anos." Talvez as plantas especiais perdessem o efeito depois de muito tempo de utilização, pensou Ayla, ou talvez a Iza se tivesse esquecido de o tomar, embora isso fosse improvável. Ayla pensou que é que aconteceria se deixasse de tomar o seu chá da manhã.
Jondalar esperava que ela tivesse razão, embora uma parte de si de- sejasse o contrário. Pensou se algum dia haveria uma criança do seu lar, uma cñança nascida do seu espírito, ou talvez uma criança da sua pró-pria essência.
Só passados alguns dias.é que chegaram ao espinhaço seguinte, que era mais baixo, pouco acima da orla da zona florestada, mas foi daí que avistaram pela primeira vez as extensas estepes ocidentais. Era um dia límpido e frio, embora já tivesse nevado, e à distância viram outra cordilheira mais alta de montanhas encrustadas de gelo. Nas planícies lá em baixo viram um rio a correr para sul para aquilo que parecia um imenso lago.
-- Aquele é o Grande Rio Mãe? -- perguntou Ayla.
--Não, é a Irmã e temos de o atravessar. Receio que seja a travessia mais difícil de toda a nossa Viagem explicou Jondalar. ,Estás a ver all a sul? Onde a água se alarga de forma a parecer um lago? E a Mãe, ou antes, é onde a Irmã se junta à Mãe... ou tenta. Volta para trás e inunda as margens e as correntes são traiçoeiras. Não tentaremos atravessar all , mas o Carlono disse que é um ño turbulento, mesmo a montante.
Aconteceu que aquele dia em que olharam para oeste daquele segundo espinhaço foi o último dia limpo. Na manhã seguinte, ao acordar, depararam com um céu nublado e pesado, com nuvens tão baixas que se fun- diam com o nevoeiro que se erguia das depressões e dos buracos. O nevoeiro pairava palpavelmente no ar e juntava-se em minúsculas gotículas no cabelo e nas peles. A paisagem estava envolta num manto insubstancial que faziam que as árvores e os pedregulhos se mateñalizassem em formas indistintas apenas quando chegavam perto delas.
À tarde, com o inesperado ribombar de um trovão, o céu abriu-se, ilu-
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minado apenas uma fracção de segundo antes pelo súbito clarão de um raio. Ayla sobressaltou-se e estremeceu de medo enquanto os clarões de luz encadeante e ramificada brincava com os cumes das montanhas por detrás deles. Mas não foram os trovões que a assustaram, foi a antecipação do ruído explosivo qu,e prenunciavam.
Encolhia-se cada vez que ouvia o rugido distante ou um trovão mais próximo e a cada estrondo parecia-lhe que a chuva caía com mais força, como se o barulho a fizesse sair assustada das nuvens. Enquanto desciam a encosta virada para oeste da montanha, a chuva abatia-se em lençóis de água, espessos como cascatas. Os ribeiros enchiam-se e transborda- vam e os fios de água que c,aíam das rochas transformaram-se em torrentes rápidas. O piso tornou-se escorregadio e nalguns sítios perigoso.
Sentiram-se ambos satisfeitos por terem os seus parkas para chuva dos Mamutoi, feitos de pele de veado sem pêlo, o de Jondalar feito da pele de um megacero, o veado gigantesco das estepes, o de Ayla de uma rena do norte. Vestiam-nos por cima das suas parkas de pêlo, quando fazia frio, ou por cima das suas túnicas habituais quando o tempo estava mais ameno. A parte de fora era tingida com ocres vermelhos e amarelos. Os pigmentos minerais tinham sido misturados com gorduras e a cor trabalhada nas peles com um instrumento especial de brunir, feito de um osso de costela, que fazia que o vestuário ficasse com um lustro resistente e brilhante que também repelia a água. Mesmo quando molhado, dava algu- ma protecção, mas o acabamento burnido e gorduroso não resistiu àquele dilúvio.
Quando pararam para passar a noite e montaram a tenda, estava tudo húmido, até as suas peles de dormir, e era impossível acender uma fogueira. Levaram lenha para dentro da tenda, sobretudo os ramos inferiores e mortos de coníferas, na esperança de que secassem durante a noite. De manhã, a chuva continuava a cair e a sua roupa continuava húmida mas, utilizando a sua pedra de lume e as aparas que levava consigo, Ayla conseguiu acender uma pequena fogueira que deu para ferver um pouco de água para fazer um chá reconfortante. Comeram apenas os bolos quadrados comprimidos de comida de viagem que Roshario lhes tinha dado, que eram uma variação da comida nutritiva e compacta normalmente utili- zada, que sustentava uma pessoa indefinidamente mesmo que não comesse mais nada. Consistia numa variedade de carne que era seca e depois moída e misturada com gordura, normalmente fruta ou bagas secas e ocasionalmente cereais ou raízes parcialmente cozinhados.
Impassíveis, os cavalos estavam do lado de fora da tenda, de cabeça baixa e com a água a escorrer do seu pêlo comprido de Inverno e o barco redondo tinha tombado e estava semicheio de água. Estavam dispostos a deixá-lo all, juntamente com os paus. A padiola, que tinha sido tão útil para transportar cargas através das pastagens abertas, além do barco redondo que servia para levar as suas coisas na travessia dos rios, tinham
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sido um estorvo nas montanhas de piso acidentado e florestadas. Tinham atrapalhado o seu avanço e atd podiam ser perigosos ao descerem encostas difíceis sob a chuva torrencial. Se Jondalar não soubesse que a maior parte da sua Viagem seria a atravessar planícies, há muito que os teria abandonado.
Tinham desamarrado o barco dos paus e esvaziado a água, virando o barco ao contrário, erguendo-o sobre ambos. De pé por baixo do barco redondo, a segurá-lo por cima da cabeça, olharam um para o outro e sortiram. Por instantes deixaram de estar à chuva. Não lhes tinha ocorrido que o barco que os mantinha fora da água de um rio também podia servir de tecto para os proteger da chuva. Talvez não enquanto estivessem em andamento, mas pelo menos podiam ficar protegidos da chuva durante algum tempo quando esta fosse demasiado forte.
Mas essa descoberta não resolvia o problema de como é que iam trans- portá-lo. Depois, como se tivessem ambos tido a mesma ideia ao mesmo tempo, ergueram o barco redondo sobre o dorso da Whinney. Se conseguissem descobrir uma forma de o prender, ajudaria a manter a tenda e dois dos cestos-alforge secos. Utilizando os paus e umas cordas, engendraram forma de manter o barco preso sobre o dorso da égua. Era uma solução um pouco desajeitada e sabiam que seria demasiado largo nalgumas situações, exigindo que procurassem outro caminho ou que o tiras- sem do dorso da égua, mas acharam que daria menos trabalho do que anteriormente e que talvez lhes trouxesse benefícios.
Arrearam e carregaram os cavalos, mas sem intenção de os montar. Em vez disso, a pesada tenda de couro molhado e a pele de protecção que punham no chão foram colocadas sobre o dorso da Whinney e o barco redondo foi içado sobre eles, suportado pelos paus cruzados. Uma cobertura feita de pele de mamute, que Ayla costumava usar para tapar o cesto-alforge onde levavam a comida, foi colocada por cima do dorso do Corredor para tapar os seus dois cestos.
Antes de se porem a caminho, Ayla passou algum tempo com a Whinney, a tranquilizá-la e a agradecer-lhe, utilizando a linguagem especial que desenvolvera no vale. Não ocorreu a Ayla interrogar-se sobre sea Whinney realmente a compreenderia. A linguagem era-lhe familiar e tranquilizadora e a égua respondia efectivamente a determinados sons e movimentos como sinais.
Até o Corredor arrebitou as orelhas, sacudiu a cabeça e relinchou enquanto ela falava, e Jondalar presumiu que ela estava a comunicar com os cavalos de uma forma especial que ele não conseguia entender totalmente, muito embora percebesse algumas coisas. Fazia parte do misté-rio de Ayla que não deixava de o fascinar.
Começaram a descer o terreno acidentado ì frente dos cavalos, indicandolhes o caminho. OLobo, que passara a noite dentro da tenda e não tinha ficado encharcado, não tardou a ficar em pior estado que os cava
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los. O seu pêlo normalmente espesso e fofo, ficou colado ao corpo, parecendo fazer diminuir o seu tamanho e mostrando os contornos dos ossos e dos músculos. Osparkas de pele molhados do homem e da mulher eram suficientemente quentes, ainda que não absolutamente confortáveis, sobretudo com a pele molhada e acachapada no interior dos capuzes. Pouco depois, a água começou a escorrer-lhes pelo pescoço, mas não podiam fazer nada quanto aisse. Enquanto o céu soturno continuava a verter, Ayla decidiu que a chuva era o tipo de tempo de que ela menos gostava.
Choveu quase constantemente durante os dias que se seguiram, enquanto desceram a vertente da montanha. Quando chegaram às altas coníferas, tiveram alguma protecção sob as suas copas, mas deixaram a maior parte das árvores para trás quando chegaram a um amplo terraço, embora o rio ainda estivesse bastante mais abaixo. Ayla começou a aper- ceber-se de que o rio que tinha visto lá de cima devia ficar mais longe e ser ainda maior do que ela imaginara. Embora abrandasse ocasional- mente, a chuva não parou e, sem a protecção das árvores, apesar de es- parsas, eles estavam molhados e deprimidos, mas tinham obtido uma vantagem. Conseguiram montar os cavalos pelo menos durante parte do caminho.
Dirigiram-se para oeste, atravessando uma série de terraços de loess que se tinham formado na encosta da montanha, os mais altos atravessados por inúmeros ribeiros cheios e a transbordar das águas que se escoavam das terras altas em consequência do dilúvio que se abateu do céu. Atravessaram o terreno cheio de lama e vários pequenos cursos de águas revoltas que corriam das zonas altas. Depois desceram para outro terraço e depararam inesperadamente com um pequeno aldeamento.
Os pequenos e grosseiros abrigos de madeira, pouco mais que pro- tecções, obviamente montados apressadamente, pareciam quase em ruínas, mas ofereciam alguma protecção contra a chuva constante e eram uma visão agradável para os viajantes. Ayla e Jondalar apressaram-se na sua direcção. Desmontaram, conscientes do medo que os animais do- mesticados podiam causar e chamaram em Sharamudoi, na esperança de que fosse uma língua conhecida. Mas não obtiveram resposta e, quando olharam mais atentamente, tornou-se evidente que não estava lá ninguém.
--Tenho a certeza de que a Mãe entende que precisamos de abrigo. A Doni não se oporá a que entremos m disse Jondalar, entrando num dos abrigos e olhando em volta. Estava absolutamente vazio, à excepção de uma tira de couro pendurada numa cavilha, e o seu chão de terra batida estava transformado em lama no sítio por onde passara um pequeno riacho antes de ser desviado. Saíram e dirigiram-se para o abrigo maior.
Ao aproximarem-se, Ayla apercebeu-se de que faltava algo importante.
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--Jondalar, onde está adonii?Nãohá nenhumafigura da Mãe a guardar a entrada.
Ele olhou em volta e assentiu.
-- Deve ser um acampamento temporário de Veråo. Não deixaram uma donii porque não A invocaram para o proteger. As pessoas que construíram este acampamento, não contaram que resistisse ao Inverno. Abandonaram-no, foram-se embora e levaram tudo consigo. Provavel- mente mudaram-se para um terreno mais alto quando as chuvas começaram.
Entraram na estrutura maior e descobriram que era mais substancial que a outra. Tinha rachas abertas nas paredes e a chuva tinha entrado pelo telhado em vários sítios, mas o cháo de madeira estava acima do nível da lama peganhenta e alguns pedaços de madeira restavam espalhados perto de uma lareira feita com pedra até à altura do chåo. Era o sítio mais seco e confortável que tinham visto desde há vários dias.
Saíram, desamarraram a padiola e levaram os cavalos lá para dentro. Ayla acendeu uma fogueira enquanto Jondalar foi a uma das estruturas mais pequenas e começou a arrancar pedaços de madeira das paredes interiores para usar como lenha. Quando voltou, Ayla tinha prendido cordas de um lado ao outro da sala, usando cavilhas que encontrou na parede, e estava a pendurar a roupa seca e as peles de dormir. Jondalar ajudou-a a estender a tenda numa corda, mas tiveram de a montar para evitar a água que caía em fio de uma racha no telhado.
-- Devíamos fazer qualquer coisa às rachas no telhado-disse Jondalar.
--Vi espadana a crescer aqui perto-disse Ayla.-Não levará muito tempo a tecer as folhas e a fazer tapetes para tapar os buracos.
Saíram para apanhar as folhas resistentes e pouco flexíveis de espadana para remendar o telhado esburacado, apanhando ambos um bra- çado de plantas. As folhas que estavam em volta do caule tinham em média sessenta centímetros de comprimento, cerca de três centímetros de largura e terminaram num bico. Ayla tinha ensinado a Jondalar os rudimentos da tecelagem e, depois de a observar para ver que método é que estava a usar para fazer quadrados de tapetes, começou também a fazer um. Ayla olhou para o seu trabalho e sortiu. Era impossível não sorrir. Continuava a ter uma sensação de surpresa pelo facto de Jondalar conseguir fazer trabalhos de mulher e ficava encantada com a sua vontade de aprender. Com os dois a trabalhar, não tardaram a ter tantos quadrados quantos os buracos.
As estruturas eram feitas de um entrançado bastante fino de juncos presos à estrutura básica de compridos troncos de árvores novas, amarrados uns aos outros. Embora náo fossem feitas de pranchas, eram semelhantes às habitações em forma de A dos Sharamudoi, à excepção de o pau de cumeeira não ser inclinado e serem assimétricas. O lado da abertura
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da entrada, que dava para o rio, era quase vertical; o lado oposto estava inclinado contra ele a um ângulo fechado. As extremidades eram fecha- das, mas podiam ser erguidas como anteparos.
Saíram e prenderam os remendos, atando-os com pedaços das folhas resistente e lenhosas de espadana. Havia dois buracos perto da parte de cima que eram de acesso difícil e mesmo com o metro e noventa de altura de Jondalar acharam que a estrutura não suportaria o peso de qualquer um deles. Decidiram voltar lá para dentro e tentar pensar numa forma de os tapar, lembrando-se no último instante de encher um saco de água e algumas malgas com água para beber e cozinhar. Quando Jondalar ergueu o braço e tapou um dos buracos com a mão, ocorreu-lhes finalmente tapá-los pela parte de dentro.
Depois de cobrirem a entrada com a cobertura feita com a pele de mamute, Ayla olhou em volta do interior escuro, apenas iluminado pela fogueira que começava já a aquecer e a tornar a habituação acolhedora. A chuva estava lá fora e eles estavam dentro de um sítio seco e quente, embora começasse a ficar cheio de vapor das coisas que começavam a secar e não houvesse buraco para a saída do fumo na habitação de Verão. O fumo das fogueiras normalmente saía pelas paredes e pelo tecto que não eram absolutamente estanques ou pelas extremidades que eram dei° xadas abertas durante o tempo quente. Mas a erva seca e os juncos tinham-se dilatado com a humidade, tornando mais difícil o fumo sair, e este começou a acumular-se ao longo do pau de cumeeira junto ao telhado.
Embora os cavalos estivessem habituados a estar expostos aos elementos e normalmente preferissem isso, a Whinney e o Corredor tinham sido criados junto de pessoas e estavam acostumados a compartilhar as habitaçSes dos seres humanos, até habitações escuras e cheias de fumo. Ficaram na extremidade que Ayla achou que era o seu sítio e até pareciam satisfeitos por estarem longe do mundo inundado de água. Ayla pôs as pedras de cozinhar no lume; depois, ela e Jondalar escovaram os cavalos e o Lobo para os ajudar a secar.
Abriram todos os embrulhos e pacotes para ver se alguma coisa tinha ficado estragada pelo excesso de humidade, encontraram roupa seca e mudaram-se, sentando-se depois junto à fogueira a beber chá quente, enquanto uma sopa, feita de comida de viagem comprimida, estava a fazer. Quando o fumo começou a encher a parte superior da habitação, abriram buracos na cobertura fina de colmo em ambas as extremidades que ajudaram a desanuviar o ar e deram mais luz.
Era born p6derem descontrair-se. Não se tinham apercebido de como estavam cansados e mesmo antes de ser noite cerrada a mulher e o homem meteram-se nas suas peles de dormir ainda ligeiramente húmi- das. Mas, apesar de estar muito cansado, Jondalar não conseguiu adormecer. Lembrou-se da última vez que tinha enfrentado o rio veloz e traiçoeiro chamado Irmã e, all deitado na escuridão, sentiu um arrepio de medo ao pensar que tinha de o atravessar com a mulher que amava.
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Ayla e Jondalar ficaram no acampamento de Verão abandonado durante o dia seguinte e ainda o outro. Na manhã do terceiro dia, a chuva finalmente abrandou. A camada de nuvens soturna e de um cinzento sólido abriu-se e à tarde já o sol brilhava no céu azul salpicado de fofas nuvens brancas. Um vento veloz soprava ora numa direcção, ora noutra, como se estivesse a experimentar várias direcções, incapaz de decidir qual a melhor para aquela ocasião.
A maior parte das suas coisas já estavam secas, mas eles tinham aberto as extremidades dahabitação para deixar entrar o vento para deixar secar por completo as últimas peças pesadas e para arejar tudo. Algumas das suas coisas de couro tinham ficado retesadas. Precisavam de ser trabalhadas e esticadas, embora o seu uso regular fosse provavelmente suficiente para que voltassem a ficar flexíveis, mas não tinham ficado estragadas. No entanto, os seus cestos-alforge entretecidos era outra questão. Ao secar, tinham perdido a sua forma e estavam muito esfiampados, além de terem fungos e estarem a apodrecer. Ahumidade tinha-os amolecido e o peso do seu conteúdo tinha feito com que se deformassem e as fibras esbambeassem e se partissem.
Ayla decidiu que teria de fazer outros, muito embora as ervas secas, as plantas e as árvores de Outono não fossem os materiais mais fortes ou melhores para usar. Quando disse isto a Jondalar, ele levantou outro problema.
mAlém disso esses cestos-alforge têm-me sempre incomodado-disse ele.-Sempre que atravessamos um rio tão fundo que os cavalos têm de nadar, se não os tiramos, os cestos ficam molhados. Com o barco e os paus não term havido grande problema. Pomos os cestos no barco e desde que estejamos em terreno aberto é fácil arrastá-lo. O caminho que temos à nossa frente é quase todo de pastagens, mas também teremos de passar por algumas florestas e por zonas de terreno acidentado. Nesses casos, como aconteceu nestas montanhas, talvez não seja tão fácil arrastar os paus e o barco. Talvez um dia decidamos abandoná-lo mas, se o fizermos, precisamos de cestos-alforge que não se molhem quando os cavalos tiverem de atravessar os rios a nado. Consegues fazer desses cestos?
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Foi a vez de Ayla ficar pensativa.
m Tens razão, de facto molham-se. Quando fiz os cestos-alforge não
tinha de atravessar muitos rios e os que atravessei náo eram muito fundos.-Franziu a testa preocupada, mas depois lembrou-se da primeira cesta que engendrara, m A princípio não utilizei cestos-alforge. Da primeira vez que quis que a Whinney levasse uma coisa no dorso, fiz uma grande cesta pouco funda. Talvez consiga pensar numa coisa parecida. Seria mais fácil se nós não fôssemos montados nos cavalos, mas...
Ayla fechou os olhos, tentando visualizar uma ideia que lhe ocorrera. m Talvez... possa fazer cestos-alforge que possam ser içados para cima do seu dorso quando estamos dentro de água... Não, isso não resul- taria se fõssemos montados nos cavalos ao mesmo tempo.., mas.., talvez possa fazer qualquer coisa que os cavalos possam transportar nos quartos traseiros, atrás de nós...-Ayla olhou para Jondalar.-Sim, acho que consigo fazer recipientes que resultem.
Apanharam juncos e folhas de espadana, ramos de salgueiro, compñ-das raízes de espruces e tudo o mais que Ayla achou que podia ser usado como material para os cestos ou para fazer cordas para tecer recipientes. Tentando várias abordagens e experimentando-as na Whinney, Ayla e Jondalar trabalharam nesse projecto durante todo o dia. Ao fim da tarde, tinham conseguido fazer uma espécie de cesto suficientemente grande para levar as coisas de Ayla e o equipamento de viagem, que podia ser transportado pela égua enquanto ela a montava e que se manteña razoavelmente seco enquanto ela estivesse a nadar. Começaram imediatamente a fazer outro para o Corredor. Este foi feito muito mais depressa pois. já sabiam qual era o método e os pormenores.
A noitinha o vento intensificou-se e mudou de direcção, transforman- dose numa nortada que impeliu rapidamente as nuvens para sul. Quando o lusco-fusco deu lugar à noite, o céu estava quase limpo, mas estava muito mais frio. Tencionavam partir de manhã e tinham ambos decidido verificar as suas coisas para diminuirem a carga. Os cestos-al- forge eram maiores e tiveram dificuldade em fazer que as coisas coubes- sem nos novos cestos. Por mais que alterassem a disposição, o espaço era menor. Tinham de se desfazer de algumas coisas. Espalharam no chão tudo o que ambos levaram.
Ayla apontou para a placa de maním onde Talut tinha gravado o mapa indicando a primeira parte da sua Viagem.
--Já não precisamos disso. A terra do Talut já está bem longe-disse ela, com alguma tristeza.
--Tens razão, não precisamos. Mas tenho muita pena de a deixar-disse Jondalar, fazendo uma careta ao pensar em desfazer-se dela.-Se- ria interessante mostrar o tipo de mapas que os Mamutoi fazem e recor- da-me, o Talut.
Ayla assentiu, compreensiva.
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-- Born, se tens espaço, leva-a, mas não é essencial.
Jondalar olhou para o estendal de coisas que Ayla fizera no chão e
pegou no pacote misteriosamente embrulhado que já vira.
-- ,Que é isto?
-- E uma coisa que fiz no Inverno passado disse ela, tirando-lho das mãos e desviando o olhar enquanto corava. Pô-lo atrás de si, enfiandoo por baixo de uma pilha de coisas que ia levar.-You deixar ficar a minha roupa de viagem de Verão; está toda manchada e gasta e agora you usar roupa de Inverno. Já ficarei com mais espaço.
Jondalar olhou para ela atentamente, mas não fez mais nenhum comentário.
Estava frio quando acordaram na manhã seguinte. Uma leve nuvem de neblina quente formava-se cada vez que expiravam. Ayla e Jondalar vestiram-se apressadamente e, depois de acender uma fogueira para fazer o chá da manhã, arrumaram as peles de dormir, ansiosos por se porem a caminho. Mas quando saíram da habitação, pararam e ficaram a olhar.
Uma leve camada de geada cintilante tinha transformado os montes circundantes. Brilhava e cintilava sob o sol vivo da manhã com invulgar fulgor. A medida que a geada derretia, cada gota de água tornava-se um prisma, reflectindo um pedacinho brilhante do arco-íris, numa minúscula explosão de vermelhö, verde, azul ou dourado, que tremeluzia e pas- sara de uma cor para a outra quando se moviam e viam o espectro de um ângulo diferente. Mas a beleza das efémeras jóias da geada constituía um alerta de que a estação do calor era pouco mais que um clarão fugaz de cor num mundo controlado pelo Inverno e de que o curto Verão terminara.
Depois de terem arrumado tudo e estarem já prontos para partir, Ayla olhou para trás para o acampamento de Verão que tinha sido um refúgio tão acolhedor. Estava ainda mais delapidado, pois eles tinham arranca- do partes dos outros abrigos para usar como lenha, mas ela sabia que as frágeis habitações temporárias pouco mais iriam durar. Sentia-se grata por as terem encontrado naquela determinada altura.
Continuaram para oeste, em direcção ao Rio Irmã, descendo uma encosta até novo terraço, embora ainda estivessem em terreno smícientemente elevado para poderem ver as vastas pastagens das estepes do outro lado do turbulento curso de água do qual se iam aproximando. Dava-lhes também uma perspectiva da região, além de lhes mostrar a extensão da planície inundada pelo rio ì sua frente. O terreno plano, que estava normalmente submerso durante a época de inundação, tinha cerca de quinze quilómetros de largura, mas era mais largo na margem oposta. Os contrafortes do lado de cá delimitavam a expansão normal das
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águas transbordantes, embora também existissem elevações, montes e fragas do outro lado do rio.
Contrastando com as pastagens, a planície de aluvião era uma área de pântanos, pequenos lagos e matas, com um emaranhado de vegetação rasteira a atravessá-lo. Apesar de não ter canais serpenteantes, fez lembrar a Ayla o imenso delta do Grande Rio Mãe, mas em menor escala. Os salgueiros e os arbustos sazonais que pareciam crescer de dentro da água ao longo das margens do rio de corrente rápida indicavam o volume da inundação causada pelas chuvas recentes, bem como a parte substancial de terra que já fora tomada pelo rio.
A atenção de Ayla foi trazida de volta ao meio em que estava quando o andar da Whinney mudou subitamente, devido aos seus cascos se terem afundado na areia. Os pequenos ribeiros que tinham cortado através dos terraços superiores tinham-se tornado leitos de água profundamente en- trincheirados entre dunas de marga arenosa. Os cavalos perderam estabilidade ao avançarem, levantando a cada passo repuxos de terra solta e rica em cálcio.
Quase à tardinha, quando sol poente, quase encadeante na sua intensidade, se aproximava da terra, o homem e a mulher, tentando proteger os olhos, olharam em frente, procurando um lugar para acampar. Apro- ximando-se da planície de aluvião, repararam que a areia muito fina es- tava a ficar com características ligeiramente diferentes. A sem elhança da dos terraços superiores, era principalmente composta por loess n pó de rocha criado pela acção de fricção do glaciar e depositado pelo vento n, mas ocasionalmente o transbordamento do rio era suficiente para chegar a essa altura. O sedimento barrento que foi adicionado ao solo endureceu e estabilizou o solo. Quando começaram a ver as ervas das estepes que lhes eram familiares a crescer junto ao ribeiro que estavam a seguir, um dos muitos que corriam montanha abaixo em direcção à Irmã, decidiram parar.
Depois de montarem a tenda, a mulher e o homem foram em direcções opostas caçar o seu jantar. Ayla levou o Lobo, que correu à sua frente e não tardou a levantar um bando de ptarmigãs. Saltou sobre uma delas, enquanto Ayla tirava rapidamente a funda e abatia outra que pensava ter alcançado a segurança do céu. Ayla pensou em deixar oLobo ficar com a ave que tinha apanhado, mas quando ele resistiu a entregá-la à primeira decidiu não o fazer. Embora uma das aves gordas sem dúvida has- tasse para a satisfazer a ela e ao Jondalar, queria reforçar no lobo a compreensão de que, quando ela o esperava, ele teria de compartilhar com eles a sua caça, pois ela não sabia o que o futuro lhes reservava.
Não foi um raciocínio totalmente consciente, mas o ar frio fie-la aper- ceber-se de que iriam viajar durante a estação fria para uma terra desconhecida. As pessoas que ela conhecera, quer as do Clã quer as Mamu- tei, raramente viajavam para muito longe durante os rigorosos Invernos
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glaciares. Instalavam-se num lugar a salvo do frio gélido e das tempestades de neve fustigadas pelo vento e alimentavam-se da comida que tinham armazenado. A ideia de viajar durante o Inverno inquietava-a.
O lançador de lanças de Jondalar tinha abatido uma grande lebre, que decidiram guardar para depois. Ayla queria assar as aves num espeto, mas estavam acampados nas estepes abertas, junto a um ribeiro, apenas com esparsos arbustos all perto. Olhando em volta, viu duas armações de veado, de tamanhos diferentes e obviamente de animais diferentes, que tinham sido largadas no Inverno anterior. Embora as armações de veado fossem muito mais difíceis de partir que madeira, com a ajuda de Jondalar, das afiadas facas de pedreneira e do pequeno machado que ele trazia no cinto, ela partiu-as. Ayla utilizou parte como espetos para atravessar as aves e as pontas foram partidas para usar como forquilhas para sustentar os espetos. Depois de tanto esforço, decidiu que os guardaria para voltar a usar, sobretudo por as armações de veado demorarem a arder.
Deu ao Lobo a sua parte da ave assada, juntamente com um bocado de raízes de juncos que apanhara numa vala pouco funda junto ao ribeiro, e cogumelos que reconhecera como sendo comestíveis e saborosos. Depois da refeição da noite, sentaram-sejunto da fogueira e ficaram a ver a noite cair. Os dias estavam a ficar mais curtos e à noite não estavam tão can- sados, sobretudo porque era muito mais fácil atravessarem montados nos cavalos através das planícies abertas do que abrir caminho pelas montanhas florestadas.
-- As aves estavam muito boas-disse Jondalar.-Gosto assim da pele estaladiça.
-- Nesta altura do ano, quando estão gordas, é a melhor maneira de as cozinhar-disse Ayla. As penas já estão a mudar de cor e a penugem do peito está muito espessa. Queria levá-la, pois daria um born enchimento para qualquer coisa. As penas dos ptarmigãs são o melhor enchimento para protecções de dormir, mas não tenho espaço.
-- Talvez para o ano, Ayla. Os Zelandonii também caçam ptarmigãs-disse Jondalar, como ligeiro encorajamento, algo que ela pudesse antecipar com gosto no final da sua Viagem.
Os ptarmigãs eram as aves preferidas de Creb-disse Ayla. Pareceu a Jondalar que ela estava triste e, ao ver que ela não conti, nuava a falar, foi ele falando, na esperança de lhe desviar a atenção do que quer que a estivesse a incomodar.
Até há um tipo de ptarmigã, não perto das nossas Cavernas, mas a sul, que não fica branco. Term durante todo o ano o aspecto que os ptarmigãs têm no Verão e term o mesmo sabor. As pessoas dessa região chamamlhe tetraz, e gostam de usar as suas penas nos seus enfeites de cabeça e na roupa. Fazem roupa especial para a cerimónia do Tetraz e dançam como a ave dança, batendo com os pés e tudo, como os machos fa
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zem quando estão a tentar seduzir as fêmas. Faz parte do seu Festival da Mãe.-Jondalar fez uma pausa mas, ao ver que ela continuava calada, continuou: -- Caçam as aves com redes e apanham multas de cada vez.
-- Apanhei uma destas com a minha funda, mas foi o Lobo que apanhou a outra-disse Ayla. Ao ver que ela não dizia mais nada, Jondalar achou que não lhe apetecia falar e ficaram ambos em silêncio durante algum tempo, a ver as chamas consumirem pedaços de arbustos e excrementos secos que tinham voltado a secar o suficiente depois das chuvas para arderem. Por fim ela falou.
-- Lembras-te do pau de atirar da Brecie? Gostava de saber usar uma coisa dessas. Com ele ela conseguiu matar várias aves de uma só vez.
A noite arrefeceu rapidamente e ambos se sentiram satisfeitos por te- term a tenda. Apesar de Ayla estar invulgarmente calada, cheia de tristeza e de recordações, respondeu ardentemente às suas carícias e Jondalar não tardou a esquecer o seu silêncio.
De manhã, o ar continuava fresco e a humidade condensada voltara a cobrir a terra do fulgor fantasmagórico da geada. O ribeiro gelado estava frio mas revigorante quando o usaram para se lavar. Tinham en- terrado a lebre de Jondalar, embrulhada numa pele, debaixo de brasas quentes para ficar a cozinhar durante a noite. Quando tiraram a pele enegrecida, a espessa camada de gordura de Inverno imediatamente por baixo tinha dado sabor à carne magra e frequentemente seca, e o calor brando em que cozinhara, acrescido ao facto de estar no seu recipiente natural, tornou-a saborosa e tenra. Era a melhor altura do ano para caçar aqueles animais de orelhas compridas.
Montados nos cavalos, seguiram lado a lado através da erva alta, não apressadamente, mas mantendo um passo certo e falando ocasional- mente. Viram bastante caça pequena ao dirigirem-se na direcçåo da Irmã, mas os únicos animais grandes que viram durante toda a manhã foi à distância, do outro lado do rio: um pequeno bando de mamutes machos, dirigindo-se para norte. Mais tarde, viram uma manada de cavalos e de antflopes saiga, também do outro lado do rio. A Whinney e o Corredor também deram por eles.
-- O totem de Iza era o Antflope Salga-disse Ayla.-Era um totem muito poderoso pa.ra uma mulher. Mais poderoso que o do próprio Creb, que era o Veado. E claro que o Urso das Cavernas o tinha escolhido e foi o seu segundo totem antes de se tornar Mogur.
-- Mas o teu totem é o Leão das Cavernas. É um animal muito mais poderoso que .um antílope saiga-disse Jondalar.
-- Eu sei. E um totem de homem, um totem de caçador. Foi por isso que eles a princípio tiveram tanta dificuldade em acreditar-disse Ayla. -- Não me lembro, mas a Iza contou-me que o Brun até se zangou com
pLANÍCIES DE PASSAGEM I
o Creb quando ele me deu o nome na cerimónia da minha adopção. Foi por isso que toda a gente estava tão certa de que eu nunca teria filhos. Nenhum homem term um totem tão poderoso que possa derrotar o Leão das Cavernas. Foi uma grande surpresa quando fiquei grávida do Durc, mas tenho a certeza de que foi o Broud que o começou dentro de mim, quando me forçou.-Franziu a testa com a desagradável ideia.-E se os espíritos dos tótemes têm alguma coisa a ver com começar bebés, o totem do Broud era o Rinoceronte Peludo. Lembro-me de os caçadores do Clã falarem de um rinoceronte peludo que tinha morto um leão das cavernas, portanto podia ser suficientemente forte e, como o Broud, também podem ser maus.
-- Os rinocerontes peludos são imprevisíveis e podem ser ferozes-disse Jondalar.-O Thonolan foi colhido por um não longe daqui. Teria morrido se os Sharamudoi não nos tivessem encontrado.-O homem fechou os olhos com a dolorosa recordação, deixando-se levar pelo Corredor. Não falaram durante um bocado, mas depois ele perguntou-Toda a gente do Clã term um totem?
-- Sim-respondeu Ayla.-Um totem serve de guia e de protecção. O mog-ur de cada clã descobre qual é o totem de cada novo bebé, normalmente antes do final do primeiro ano depois do seu nascimento. Dá um amuleto à criança, com um pedaço da pedra vermelha lá dentro, na cerimónia do totem. O amuleto é o lar do espírito do totem.
-- Queres dizer como uma donii é o sítio para o espírito da Mãe descansar? -- perguntou Jondalar.
--Uma coisa assim, creio, mas o totem protege as pessoas, nã.o o lar, embora se sinta mais feliz se viver n.um sítio que lhe é familiar. E preciso andar-se sempre com o amuleto. E por ele que o espírito do totem nos conhece. O Creb disse-me que o espírito do meu Leão das Cavernas não me conseguiria encontrar se eu não o trouxesse comigo. Nessa altura eu perderia a sua protecção. O Creb disse-me que se algum dia eu perdes- se o meu amuleto, morreria-explicou Ayla.
Jondalar ainda não tinha compreendido todas as implicações do amuleto de Ayla, nem a razão porque ela tinha tanto cuidado com ele. Por vezes achava que ela levava tudo aquilo longe de mais. Raramente o tira- va, excepto para se lavar ou nadar e por vezes nem sequer nessas altutas. Imaginara que era a sua forma de se agarrar à sua infância com o Clã e esperava que um dia isso lhe passasse. Agora apercebeu-se de que era muito mais que isso. Se um homem com um grande poder mágico lhe tivesse dado uma coisa, dizendo-lhe que morreria se algum dia a perdes- se, ele também teria um cuidado extremo com ela. Jondalar já não tinha qualquer dúvida de que o homem santo do Clã, que a tinha criado, possuía verdadeiro poder derivado do mundo dos espíritos.
--Também serve para os sinais que o totem nos dá se tomarmos uma decisão certa sobre qualquer coisa importante na nossa vida-continuou
JEAN A UEL
yla. )mtpreocupação insistente que a tinha estado a afligir fez-se sen-
Ir coimaiis força. Por que é que o seu totem não lhe tinha dado um sinal
lata c,".tfrn ar que ela tinha tornado a decisão certa ao decidir ir com Jon-
,alar ra 0 seu lar? Nao encontrara um único objecto que pudesse inter-
Ireta¢tioo sendo um sinal do seu totem desde que tinham deixado os
--oá muitos Zelandonii que tenham totems pessoais-disse Jon-
r/alar JJç, mas alguns têm. Normalmente é considerad
) ,,.i, . . o como dando sorte.
w trr lem um.
-- !e$ o companheiro da tua mãe, não é?- perguntou Ayla.
-- r. O Thonolan e a Fo]ara nasceram do seu lar e ele sem re me
/atodioo se eu também tivesse nascido P
-- tu] é o totem dele? "
-- I aÁguia Dourada. Conta-se a bistória que quando ele era bebé ima ïus dourada o apanhou, mas a sua mãe agarrou-o antes de l
V " e a o
ar. liada term as ccatrmes das garras da águia no peito. A suazelan-
Ioni¢, qûe a águia o reconheceu como pertencendo-]he e foz buscá
i Ji . " -lo.
o a tnque souberam qual era o seu totem. AMarthona acha que é por
lso qyt. ele gosta tanto de viajar. Não pode voar como a águia, mas term
eces < li,da,te de ver a terra.
-- r, un totem poderoso, como o Leão das Cavernas o
.... i u o Urso das
ave tas comentou Ayla. O Creb dizia sempre que não era fácil ví-
çer cc:t tttemes poderosos e é verdade, mas a mim foi-me dado muito.
le ar, temandou para junto de mim. Acho que tenho tido muita sorte.
çspe.! qe o Leão das Cavernas te traga sorte a ti, Jondalar Ele a ora
tan"'émo teu totem. " g
Jo:ilahr sorriu.
---I'á ósseste isso antes.
fi
i Lo das Cavernas escolheu-te e tens as cicatrizes para o urovar. xaci!tnte como Willomar foi marcado pelo seu totem
Jo-"dar ficou pensativo durante alguns instantes. "
-,o::. • --- - " • . : .
ara
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alce . ,dorava ir explorar os campos sozinho, mas voltava sempre, o ue çt zt feliz. Tamb6m se sentia feliz montada na sua é a ao lado d
om¢ !a r garanhão, gu o -:,,el forma como falas dele, acho que o teu irmão devia ser pareci- coi( omem do teu lar-disse Ayla, retomando a conversa. O
PLAN[CIES DE PASSAGEM
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Sim, mas não tanto como eu me pareço com Dalanar. Toda a gente comenta isso. ThonoIan tinha mais de Marthona disse Jondalar a sorrir , mas nunca foi eseolhido por uma águia, portanto isso não explica a necessidade que tinha em viajar. O sorriso desapareceu. As cicatrizes do meu irmão foram feitas por esse imprevisível rinoceronte peludo. Ficou pensativo durante algum tempo. Mas o que é certo é que o Thonolan foi sempre um pouco imprevisível. Talvez fosse o seu totem. Não pareceu dar-lhe muita sorte, embora os Sharamudoi nos tivessem encontrado, e nunca o vi tão feliz como depois de conhecer a Jetarnio.
Não acho que o Rinoceronte Peludo seja um totem que dê sorte disse Ayla , mas acho que o Leão das Cavernas é. Quando ele me escolheu, até me deu as mesmas marcas que o Clã usa para o totem do Leão das Cavernas, para que o Creb percebesse. As tuas cicatrizes não são marcas do Clã, mas são claras. Foste marcado por um Leão das Cavernas.
Não há dúvida de que tenho as cicatrizes para provar que fui marcado pelo teu leão das cavernas, Ayla.
Creio que o espírito do Leão das Cavernas te escolheu para que o espírito do teu totem fosse suficientemente forte para o meu, para um dia eu poder ter os teus filhos.
Pensei que tivesses dito que era o homem que fazia um behé crescer dentro de uma mulher, não os espíritos disse Jondalar.
Éum homem, mas talvez seja preciso que os espíritos ajudem. Como eu tenho um totem muito forte, o homem que é meu companheiro também precisa de ter um totem forte. Talvez a Mãe tivesse decidido dizer ao Leão das Cavernas para te escolher, para podermos os dois fazer bebés.
Continuaram em silêncio, cada um com os seus pensamentos. Ayla estara a imaginar um bebé parecido com Jondalar, excepto que era uma rapariga, não um rapaz. Ela parecia não ter sorte com filhos. Talvez pudesse ficar com uma filha.
Jondalar também estava apensar em crianças. Se era verdade que um homem começava uma nova vida com o seu órgão, não havia dúvida de que eles tinham dado muitas oportunidades a um bebé para começar. Por que é que ela não estava grávida?
cA Serenio estaria grávida quando eu me fui embora?", pensou. "Ainda bem que ela encontrou uma pessoa com quem ser feliz, mas gostava que tivesse dito alguma coisa à Roshario. Haverá algumas crianças no mundo que sejam de alguma forma parte de mim?" Jondalar tentou pen- sar nas mulheres que conhecera e lembrou-se de Noria, a jovem mulher da gente de Haduma com quem tinha eompartilhado os Primeiros Ritos. Quer Noria quer a velha Haduma tinham pareeido convencidas de que o seu espírito tinha entrado nela e que uma nova vida tinha começado. Era suposto ela dar à luz um filho com olhos azuis como ele. Até lhe iam cha-
'-- A •
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mar Jondal. Seria verdade, pensou. Teria o seu espírito sido misturado com o de Noria para dar início a uma nova vida?
Mas a gente de Haduma não viviam muito longe e era na direcção certa, a norte e a oeste. Talvez lá pudessem ir fazer uma visita, excepto que, apercebeu-se ele subitamente, não sabia realmente como os encontrar. Eles tinham ido ao sítio onde ele e Thonolan tinham estado acampados. Sabia que as Cavernas onde tinham o seular eram não apenas a oeste da Irmã, como eram também a oeste do Grande Rio Mãe, mas não sabia aonde. Lembrava-se de que eles porvezes caçavam na região entre os dois rios, mas isso pouco ajudava. Provavelmente nunca saberia se Noria tinha tido esse bebé.
Os pensamentos de Ayla tinham passado de esperar até chegarem ao lar de Jondalar antes de começarem um bebé para a sua gente e como serìam. Pensou sea achariam aceitável. Depois de conhecer os Sharamudoi sentia-se um pouco mais confiante, certa de que havia um lugar para ela algures, mas não estava segura de que fosse com os Zelandonñ. Lembrou-se de que Jondalar tinha reagido com uma forte repulsa quando descobriu que ela tinha sido criada pelo Clã e lembrou-se também do seu estranho comportamento no Inverno anterior quando estavam a viver com os Mamutoi.
Em parte fora por causa do Ranec. Tinha sabido isso antes de se virem embora, apesar de a princípio não ter compreendido. O ciúme não fera parte da sua educação. Mesmo que sentisse tal emoção, nenhum homem do Clã mostraria que tinha ciúmes de uma mulher. Mas parte do estranho comportamento de Jondalar também derivava da sua preocupação de como a sua gente a aceitaria. Ela sabia agora que, embora a amasse, ele tinha tido vergonha de ela t.er vivido com o Clã e, especialmente, tinha tido vergonha do seu filho. E certo que já não se mostrava preocupa- do com isso. Protegia-a e não se sentira embaraçado quando a sua vida com o Clã se veio a saber quando estavam com os Sharamudoi, mas devia ter qualquer razão para sentir o que sentiu no princípio.
Born, ela amava Jondalar e queria viver com ele e, além disso, agora era demasiado tarde para mudar de ideias, mas esperava ter feito bem em ter vindo com ele. Desejava de todo o coração que o seu totem do Leão das Cavernas lhe desse um sinal para ela saber que tinha tornado a decisão certa, mas não parecia que qualquer sinal estivesse para aparecer.
A medida que os viajantes se aproximavam da turbulenta expansão de água na confluência do Rio Irmã com o Grande Rio Mãe, as margas soltas m areias e barros ricos em cálcio-dos terraços superiores começaram a dar lugar a gravilhas e a solos de loess nos níveis mais baixos:
Nesse mundo invernoso, os picos das montanhas glaciares enchiam ribeiros e rios durante a estação mais quente com as águas do degelo. Perto do final da estação, com as águas das chuvas pesadas adicionais que se acumulavam sob a forma de neve nas elevações mais altas, que rípi-
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PLAN]C/ES DE PASSAGEM l
das alterações de temperatura podiam libertar subitamente, os ribeiros rápidos tornavam-se dilúvios terrenciais. Sem lagos na face ocidental
das montanhas para conter o dilúvio acumulado num reservat6rio natu-
* " sipróral,
doseando-o mais comeddamente, a mare crescente crua sobre pria pelas encostas íngremes abaixo. As águas em cascata arrancavam areia e gravilha dos arenitos, calcários e xistos das montanhas, que eram varadas até ao poderoso rio e depositadas nos leitos e nas planícies de aluvião.
As planícies centrais, outrora o fundo de um mar interno, ocupavam uma bacia entre as duas cordilheiras massivas de montanhas a este e a oeste e nas terras altas a norte e a sul. Quase igual em volume à Mãe que ia ganhando forma, ao aproximar-se do seu ponto de encontro, a Irmã era responsável pelo escoamento de parte das planícies e de toda a face ocidental da cadeia de montanhas que curvavam num grande arco para noroeste. O Rio Irmã corria ao longo da depressão inferior da bacia para fazer a sua oferta de água à Grande Mãe dos Rios, mas a sua corrente era contrariada pelo elevado nível de água da Mãe já cheia atd máxima capacidade. Recuando sobre si própria, dissipava a sua oferta num vórtex de contra-correntes e de destrutiva inundação.
Perto do meio do dia, o homem e a mulher aproximaram-se da zona selvagem de pântanos, com arbustos semi-submersos e ocasionais grupos de árvores com a parte inferior dos seus troncos debaixo de água. Ayla pensou que a sua semelhança com as terras pantanosas do delta a este aumentava de dia para dia ao aproximarem-se, à excepção de que as cor-
tes e contracorrentes dos rios que se juntaram formavam terríveis
ren. • h-stante mais fria, os insectos incomodavaro-nos
menos, mas as carcaças de animais inchados, parcialmente de- vorados e em putrefaeção, que tinham sido apanhados pela inundação atraíam a sua quota parte. A sul, um massivo com encostas densamente flore stadas erguia-se no meio de uma neblina arroxeada eausada pelos redemoínhos que se formaram.
Aqueles devem ser os Montes das Florestas de que o Carlono nos falou-disse Ayla.
-- Sim, mas são mais que montes-disse Jondalar. J São mais altos do que pensas e são muito extensos. O Grande Rio Mãe corre para sul até chegar àquela barreira. Aqueles montes fazem que a Mãe wire para este.
Montados nos cavalos, contornaram um pequeno lago calmo, formado por água que ficara separada das águas em movimento, e pararam na orla este do rio em enchente, ligeiramente a montante da confluência. Ao olhar para a poderosa extensão de água do outro lado, Ayla começou a perceber os avisos de Jondalar sobre a dificuldade de atravessar a Irmã.
As águas lamacentas, redemoinhando em volta do troncos esguios de salgueiros e bétulas, arrancavam as árvores cujas raizes não estavam tão
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seguramente ancoradas no solo das ilhas baixas que ficavam rodeadas de canais nas estações mais secas. Muitas árvores estavam inclinadas a ângulos precários e ramos e troncos que tinham sido arrancados nas matas a montante estavam presos na lama ao longo das margens ou giravam numa dança entontecedora o meio do rio.
Ayla pensou em silêncio como é que conseguiriam atravessar o rio e perguntou:
-- Onde é que achas que devemos atravessar?
Jondalar desejou que o grande barco Ramudoi que o tinha salvo a ele e ao Thonolan há alguns anos atrás aparecesse para os levar para o outro lado. A recordação do irmão voltou a provocar-lhe uma dor aguda, mas também uma súbita preocupação por Ayla.
-- Creio que é evidente que não podemos atravessar aqui m disse ele.-Não sabia que já estaria tão mau nesta altura. Teremos de subir o rio e procurar um sítio mais fácil para tentarmos atravessar. Sd espero que não chora outra vez antes de o encontrarmos. Outro temporal como o último e toda esta planície ficará debaixo de água. Não admira que aquele acampamento de Verão estivesse abandonado.
-- Este rio não chegaria lá, pois não?-- perguntou Ayla, com os olhos muito abertos de espanto.
m Creio que por enquanto não, mas pode vir a chegar. Toda a água que
cai dessas montanhas acaba por vir para aqui. Além disso, pode haver inundações súbitas no ribeiro que passa perto do acampamento. E provavelmente há. Com frequência, Acho que nos devemos apressar, Ayla. Este não é um lugar seguro para estar se começar a chover outra vez-disse Jondalar, olhando para o céu. Incitou o garanhão a um galope e man- teve um andamento tão rápido que o Lobo teve de se esforçar para os acompanhar. Passado algum tempo, abrandou, mas não voltou ao passo descansado em que iam antes.
Jondalar foi parando de vez em quando para estudar o rio e a margem oposta antes de prosseguir para norte, olhando para o céu, ansioso. O rio parecia mais estreito nalguns sítios e mais largo noutros, mas ia tão cheio e era tão largo que era difícil ter a certeza. Continuaram atd ser quase noite, sem encontrarem um sítio adequado para atravessar, mas Jondalar insistiu que fossem para terreno mais elevado para acamparem nessa noite e só pararam quando já estava demasiado escuro para poderem continuar em segurança.
--Ayla! Ayla! Acorda! m disse Jondalar, abanando-a suavemente. Temos de nos pôr a caminho.
-- O quê? Jondalar! Que é que se passa? -- disse Ayla.
Normalmente ela acordava antes dele e sentiu-se desconcertada por ser acordada tão cedo. Quando afastou as peles de dormir, sentiu uma briPLANiCIES
DE PASSAGEM I 379
sa fria e reparou que a badana da abertura da tenda estava aberta. O fulgor difuso das nuvens estava recortado pela abertura, constituindo a dnicailuminação no interior do seu local de descanso. Mal conseguia distinguir o rosto de Jondalar à luz fraca e acinzentada, mas deu para ver que ele estava preocupado e ela estremeceu com um mau presságio.
-- Temos de ir-disse Jondalar. Mal dormita nessa noite. Não sabia exactamente por que é que sentia que tinham de atravessar o rio o mais deprissa possível, mas esta sensação era ão forte que lhe provocava um nó de medo no fundo do estômago, não por ele, mas por Ayla.
Ela levantou-se, sem perguntar porquê. Sabia que ele não a teria acordado se não achasse que a sua situação era grave. Vestiu-se rapidamente e foi buscar o seu estojo de fazer lume.
Não vamos perder tempo a acender uma fogueira esta manhã disse Jondalar.
Ela franziu a testa, depois assentiu e deitou água fria nas malgas para beberem. Arrumaram as coisas enquanto comiam bolos de comida de viagem. Quando já estavam prontos para partir, Ayla procurou o Lobo mas ele não estava no acampamento.
Onde é que está o Lobo? m disse Ayla com um tom de desespero na
VOZ.
Provavelmente a caçar. Ele depois apanha-nos, Ayla. Apanha sempre.
You assobiar para o chamar-disse ela, estilhaçando o ar da ma- drugada com o som distinto que utilizava para o chamar.
Anda, Ayla. Temos de ir disse Jondalar, sentindo uma irritação que já lhe era familiar em relação ao lobo.
-- Não you sem ele disse ela, voltando a assobiar ainda mais alto e dando mais urgência ao seu tom.
-- Temos de encontrar um sítio para atravessar o rio antes de começar a chover, senão podemos não conseguir passar-disse Jondalar.
-- Não podemos continuar a subir o rio? Não é natural que o rio se torne mais pequeno? -- argumentou ela.
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-- É apenas um animal. A tua vida é mais importante para mim do que a dele.
Ela virou-se e olhou para ele e depois de novo para baixo, com uma expressão profundamente preocupada. Seria tão perigoso esperar como Jondalar pensava? Ou estaria ele apenas a ser impaciente? Se era, a vida dele não seria também mais importante para ela que a doLobo? Nesse instante, o Lobo apareceu. Ayla deu um suspiro de alívio e preparou-se enquanto ele saltava para a saudar, pondo-lhe as patas nos ombros e lambendo-lhe o maxilar. Ayla saltou para o dorso da Whinney, utilizando um dos paus da padiola como ajuda. Depois, fazendo sinal ao Lobo para se manter perto dela, seguiu Jondalar e o Corredor.
Não houve nascer do Sol. O dia foi apenas ficando imperceptivelmente mais claro, mas não luminoso. O tecto de nuvens era baixo, dando ao céu um tom cinzento uniforme, e pairava uma humidade fria no ar. Um pouco mais tarde, pararam para descansar. Ayla fez um chá quente para se aquecerem e depois uma sopa suculenta com um bolo de comida de viagem. Juntou-lhe folhas de azedas quetinham um travo a limão e frutos de roseira brava, depois de lhes tirar as sementes e os pêlos duros, bem como algumas folhas das pontas de roseiras que cresciam all perto. Durante algum tempo, o chá e a sopa quente pareceram atenuar as preocu- pações de Jondalar, até reparar numas nuvens mais escuras que se es- tavam a juntar.
Incitou-a a arrumar as coisas depressa e retomaram rapidamente o seu caminho. Jondalar observava ansiosamente o céu para verificar o progresso da tempestade que se avizinhava. Também observava o rio, procurando um sítio onde o atravessar. Estava na esperança de que houvesse um abrandamento na corrente veloz: um local menos fundo, ou uma ilha ou até mesmo um banco de areia entre as duas margens. Por fim, temendo que a tempestade já não demorasse muito, decidiu correr o risco, embora a Irmã tumultuosa não parecesse diferente. Sabendo que uma vez que as chuvas começassem a situação apenas se agravaria, diñgiu- -se para uma zona da margem de acesso relativamente fácil. Pararam e desmontaram.
m Achas que devemos tentar atravessar montados nos cavalos? m
perguntou Jondalar, olhando nervosamente para o céu ameaçador.
Ayla estudou o rio veloz e os detritos que arrastava consigo. Passavam frequentemente grandes árvores inteiras a flutuar,juntamente com mui- tas outras partidas, que tinham sido varridas de matas nas montanhas. Ela estremeceu quando reparou numa grande carcaça de veado inchada, com as armações presas e entrelaçadas nos ramos de uma árvore que es- tava imobilizadajunto à margem. O animal morto fez que ela temesse pelos cavalos.
-- Acho que seria mais fácil para eles atravessarem se não formos montados neles-disse ela. Acho que devemos nadar ao lado deles.
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-- Foi isso que eu pensei disse ¿Jondalar.
-- Mas precisamos de uma corda ppara nos agarrarmos disse ela. Foram buscar alguns pedaços curkos de corda, verificaram os arreios e os cestos para se assegurarem de que a tenda, a comida e algumas coisas preciosas estavam bem presas. Ay)la desamarrou a padiola da Whinney, decidindo que talvez fosse demasiado perigoso para ela tentar nadar no rio tumultuoso com aquilo, mas se i possível não queriam ficar sem os paus e sem o barco redondo.
Com essa preocupação, amarraïarm os paus compridos um ao outro com cordas. Enquanto Jondalar amarrava uma das extremidades ao lado do barco, Ayla amarrava a outra ao, arreio que era usado para segurar o cesto-alforge da Whinney. Utilizou um nó de correr que podia ser rapidamente desfeito se necessário. Depoiis, a mulher amarrou outra corda, apertando-a muito mais, à corda entrançada e plana que passava por baixo das paras dianteiras da égua e que ia até ao peito e que servia para prender o cobertor de montar da Ayla.
Jondalar prendeu uma corda semellhante ao Corredor; depois tirou as botas, as protecções interiores dos pés.e a sua pesada roupa e as peles exteriores. Quando ensopadas, poderiann puxá-lo para o fundo e fazer que fosse quase impossível ele nadar. Emb)rulharam-nas todas juntas e em- pilharam-nas em cima da sela, mas elee conservou a túnica e as protecções das pernas. Mesmo molhada, a pele Iproporcionar-lhe-ia algum calor. Ayla fez o mesmo.
Os animais aperceberam-se da u.rgência e da ansiedade dos seres humanos e estavam perturbados corm as águas revoltas. Os cavalos tinham-se assustado com o veado mo)rto e estavam a saltitar nervosamente, a sacudir a cabeça e a rolar os )lhos, mas tinham as orelhas arrebitadas e inclinadas para a frente, sig,mificando atenção. Por outro lado, o Lobo tinha ido à beira da água inve.'stigar o veado, mas não entrou.
--Como é que achas que os cavalos, se irão portar, Ayla? perguntou Jondalar, enquanto começavam a cabr grossos pingos de chuva.
-- Estão nervosos, mas acho que c;onseguirão atravessar, sobretudo por irmos com eles, mas não estou tãío segura quanto ao Lobo-disse Ayla.
-- Não o podemos levar ao colo parta o lado de lá. Term de ir por ele... to sabes isso disse Jondalar mas, ao ver a aflição de Ayla, acrescentou: -- O Lobo é born nadador e não lhe acontecerá nada.
Espero que não m disse ela, ajoelhando-se para abraçar o lobo.
Jondalar reparou que os pingos de huva estavam a cair cada vezmais grossos e rápidos.
E melhor irmos disse, pegand directamente no cabresto do Corredor, dado que a rédea estava presa aais atrás. Fechou os olhos por instantes e desejou que tivessem sorte. :Pensou em Doni, a Grande Terra Mãe, mas não conseguiu lembrar-se de nada que Lhe pudesse prometer
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em troca da sua segurança. Mas mesmo assim fez um pedido silencioso de ajuda para atravessar a Irmã. Embora soubesse que um dia o faria, não queria por enquanto conhecer a Mãe mas, mais ainda, não queria perder Ayla.
O garanhão sacudiu a cabeça e tentou empinar-se quando Jondalar o conduziu em direcção ao rio.
m Calma, Corredor disse o homem. A água que ia redemoinhando
em volta dos seus pés nus e tornozelos e coxas estava fria. Uma vez dentro de água, Jondalar largou o cabresto do Corredor, libertando-lhe a cabeça, e amarrou a corda em volta da mão, confiando que o jovem garanhão possante conseguiria chegar ao outro lado.
Ayla passou várias vezes a corda que estava presa à parte de cima da cernelha da égua em volta da sua mão, metendo para dentro a extremidade e fechou o punho com força para a segurar. Depois meteu-se na água atrás do homem alto, caminhando ao lado da Whinney. Puxou a outra corda, a que estava presa aos paus e ao barco, assegurando-se de que não se emaranhava ao entrarem no rio.
A jovem mulher sentiu imediatamente a água fria e o puxão da forte corrente. Olhou para trás, para terra. O Lobo continuava na margem, a avançar e a recuar, a ganir ansiosamente, hesitante em entrar no rio veloz. Ayla chamou-o para o encorajar. Ele andou de um lado para o outro, a olhar para a água e para a distância cada vez maior entre ele e a mulher. Subitamente, no instante em que a chuva começou a cair com força, sentou-se e uivou. Ayla assobiou-lhe e, depois de mais algumas falsas partidas, ele finalmente atirou-se e começou a nadar na sua direcção. Ela voltou a sua atenção para o cavalo e para o rio à sua frente.
A chuva cada vez mais intensa parecia alisar as ondas picadas à distância, mas perto dela a água estava ainda mais cheia de destroços do que ela pensara. Troncos e ramos partidos rodopiavam à sua volta ou embatiam nela, alguns ainda com folhas, outros encharcados de água e quase escondidos. Os animais inchados eram piores, estando muitas vezes abertos pela violência da inundação que os apanhara e varrera da montanha para o rio lamacento.
Ela viu alguns ratos de bétulas e um arganaz. Um grande esquilo era mais difícil de reconhecer; o seu pêlo castanho-claro estava escuro e o rabo felpudo achatado. Um lémingue, com a sua pelagem branca e comprida de Inverno, fina mas brilhante, que crescia através do pêlo cinzento de Verão que parecia preto, tinha a parte de baixo das patas já cobertas de pêlo branco. Tinha provavelmente vindo do alto das montanhas perto da neve. Os animais grandes estavam em pior estado. Passou por ela uma camurça a boiar que tinha um chifre partido e sem pêlo em metade do focinho, deixando ver os músculos rosados. Quando Ayla viu a carcaça de um jovem leopardo das neves, voltou a olhar para trás, para o Lobo, mas ele não estava visível.
Reparou, no entanto, que a corda que a égua arrastava estava a puxar não só os paus e o barco como também um empecilho. Um cepo de árvore, com raízes ramitícadas, estava a acrescentar um peso desnecessário e a atrasar a Whinney. Ayla puxou a corda, tentando aproximá-lo dela, mas ele de repente soltou-se. Um pequeno ramo em forquilha continua- va preso à corda, mas não era razão para preocupação. Ela estava preocupada sim com o facto de não ver sinais do Lobo, muito embora estivesse tão submersa na água que não conseguia ver grande coisa. Isso perturbou-a, sobretudo porque não podia fazer nada. Assobiou por ele uma vez, mas pensou se ele a conseguiria ouvir com o barulho da corrente.
Obras publicadas nesta colecção:
1 --Star Wars-O Regresso de Jedi,
James Kahn
2 --Robot Completo-I, Isaac Asimov 3 -- Robot Completo-II, Isaac Asimov 4 -- 2010, Segunda Odisseia, Arthur C.
Clarke
5 --A Sombra do Torturador, G. Wolfe 6 --Terra, Campo de Batalha-I, L.
Ron Hubbard
7 -- Terra, Campo de Batalha-II, L.
Ron Hubbard
8 -- 2001 -- Odisseia no Espaço, Arthur
C. Clarke
9 --Malevil, Robert Merle
10 -- A Garra do Conciliador, GeneWolfe 11 --O Clã do Urso das Cavernas, Jean
M. Auel
12 --A Espada do Lictor, Gene Wolfe 13 --Shikasta, Doris Lessing
14 -- Os Casamentos Entre as Zonas Três,
Quatro e Cinco, Doris Lessing
15 --As Experiências Sirianas, Doris Les-
sing
16 -- O Vale dos Cavalos, Jean M. Auel 17 --A Formação do Representante do
Planeta 8, Doris Lessing
18 -- A Cidadela do Autarca, Gene Wolfe 19--Agentes Sentimentais no Império
Volyen, Doris Lessing
20 -- Canções da Terra Distante, Arthur
C. Clarke
21 -- Os Caçadores de Mamutes-I, Jean
M. Auel
22 Os Caçadores de Mamutes-II, Jean M. Auel
23 -- Missão Terra-I, O Plano Invasor,
L. Ron Hubbard
24 --Crónica de Uma Serva, Margaret
Atwood
25 --2061: Terceira Odisseia, Arthur C.
Clarke
26- Viagem Fantástica II-Destino
Cérebro, Isaac Asimov
27 Willow -- Na Terra da Magia, Wayland Drew
28 -- Fiasco, Stanislaw Lem
29 -- O Rei que Foi e Um Dia Será-I, T.
H. White
30 -- O Rei que Foi e Um Dia Será-II,
T. H. White
31 -- A Lua da Rena, Elisabeth Marshall
Thomas
32 --Missão Terra-II, Génese Negra,
L. Ron Hubbard
33 -- Urth do Novo Sol, Gene Wolfe 34 -- Unhas de Gato, Joan D. Vinge 35 -- Berço, Arthur C. Clarke 36 --Némesis, Isaac Asimov
37 --A Saga de Kinsman-I, Ben Bova 38 -- A Saga de Kinsman-li, Ben Bova 39 -- Sonhos de Robot, Isaac Asimov 40 -- Narabedla, Frederik Pohl
41 -- O Barco com Un Milhão de Anos,
Poul Anderson
42 --O Fantasma dos Grandes Bancos,
Arthur C. Clarke
43 -- Planícies de Passagem I-Jean M.
Auel
44 -- Plan ícies de Passagem II-Jean M.
Auel
45 -- Rendez-Vous com Rama, Arthur C.
Clarke
46 -- Visões de Robot, Isaac Asimov
47 -- Anoitecer, Isaac Asimov e Robert
Silverberg
48 -- Rama II, Arthur C. Clarke e Gentry
Lee
49 -- A FacedasÁguas, Robert Silverberg
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