Livros F

Ruy Castro

Carmen, Uma biografia


Copyright (c) 2005 by Ruy Castro

Projeto grafico e capa Hélio de Almeida

Créditos das imagens de sobrecapa e capa ver p 577

Preparação Beatriz de Freitas Moreira

índice onomástico Miguel Said Vieira

Revisão Manse Simões Leal Isabel Jorge Cury

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro SP Brasil)

Castro Ruy

Carmen uma biografia / Ruy Castro - São Paulo Companhia das Letras 2005

Bibliografia

ISBN 85 359 0760 2

1 Miranda Carmen 1909 1955



CDD-927 84

índice para catalogo sistemático

1 Brasil Cantores Biografía

2005

Todos os direitos desta edição reservados a

EDITORA SCHWARCZ LTDA

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04532-002 - São Paulo - SP

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Para

Isabel e João Ruy, que são a continuação da vida


SUMÁRIO


Prólogo 9

1 - 1909 - 1924 Coquete 11

2 - 1925 - 1928 "If girl" 26

3 - 1929 - 1930 "Taí" 42

4 - 1930 - 1931 Rainha do disco 58

5 - 1932 - 1933 Aurora 77

6 - 1933 - 1934 Pequena Notável 93

7 - 1934 - 1935 Cantoras do rádio 110

8 - 1936 - 1937 Cassino da Urca 131

9 - 1937 - 1938 "Uva de caminhão" 150

10 - 1938 - 1939 O que é que a baiana tem 167

11 - 1939 OsimaShubert 182

12 - 1939 "Brazilian bombshell" 200

13 - 1939 Cápsulas mágicas 219

14 - 1940 Silêncio na Urca 237

15 - 1940 Estrela da Fox 258

16 - 1940 Deusa do cinema 276

17 - 1941 Paixões fugidias 294

18 - 1941 - 1942 Livre de Shubert 312

19 - 1942 Boa vizinhança de araque 330

20 - 1943 Entre a vida e a morte 350

21 - 1944 Dependente 369

22 - 1945 Rolinha Spring 387

23 - 1946 Dinheiro a rodo 406

24 - 1947 Sebastian 423

25 - 1948 Sonho abortado 441

26 - 1948 - 1950 A câmera nada gentil 460

27 - 1950-1951 Mulher-maratona 478

28 - 1952 - 1954 Choques elétricos 497

29 - 1954 - 1955 Noites cariocas 516

30 - 1955 Última batucada 536

Epílogo 547


PRÓLOGO

No fim da tarde de 12 de fevereiro de 1908, o rei de Portugal, dom
Carlos I, fardado de generalíssimo, desceu do vapor São Luís no Terreiro
do Paço, em Lisboa. Passou a tropa em revista, conferiu a presença dos
ministros, piscou para uma ou duas marquesas de sua intimidade e subiu à
carruagem puxada por cavalos de penacho. Com ele estavam sua mulher,
dona Amélia de Orleans, princesa da França, e os dois filhos, o príncipe
herdeiro Luís Filipe e o infante Manuel. Voltavam de uma temporada de
caça no Palácio de Vila Viçosa, no Alentejo, onde dom Carlos, senhor de
mira implacável, desfalcara a fauna local em alguns milhares, entre
tordos, coelhos, corças, veados e raposas. A corte e o ministério tinham
ido recebê-lo e formar o séquito que rumaria ao Palácio das
Necessidades. Entre os quiosques do Paço, no entanto, dois homens
esperavam o rei com intenções nada regulamentares. Estavam ali para
matá-lo.

Poucos dias antes, com dom Carlos ainda em férias, a polícia abortara
mais uma tentativa de insurreição republicana e prendera o sombrio Luz
de Almeida, líder de uma sociedade de embuçados que faziam juramentos de
sangue e se comunicavam por códigos - a Carbonária. O chefe de polícia
aconselhara a que, devido à turbulência política, o percurso do rei ao
palácio fosse em carro fechado. Mas dom Carlos insistira no landau - o
que diriam do rei se não pudesse mostrar-se ao povo?

Não que, aos 45 anos, ele fosse um monarca dos mais populares. Os
portugueses se queixavam de que, nos dezenove anos de reinado de dom
Carlos, os ingleses só faltaram dar-lhe ordens e, na prática, já tinham
se apossado dos diamantes das colónias africanas. O analfabetismo no
país passava de 75%. E, numa população de 5 milhões de habitantes, 420
mil cidadãos (a maioria, homens, jovens e solteiros) tinham vindo, a
partir de 1890, para o Brasil, numa cruel hemorragia populacional. O rei
via esse fato como dos males o menor, porque eram as remessas dos
emigrados, principalmente os radicados no Rio, que equilibravam as
contas nacionais.

O fato de dom Carlos ser também um cientista, um oceanógrafo de
respeito, não queria dizer muito. Os súditos não perdoavam seu
desinteresse pelos negócios de Estado, a obsessão pelas caçadas, a
constante troca de iates (todos chamados Amélia, em homenagem à rainha)
e os sobrados que comprava com dinheiro público para seus recreios
extraconjugais. Por tudo isso, a pregação republicana era intensa nas
tribunas, na imprensa e nas esquinas. Só a Carbonária não perdia tempo
com palavras - preferia jogar bombas e atirar para matar.

O carbonário Manuel Buíça, de capa comprida até os pés e barba preta
quase idem, postou-se na calçada. O rei, a rainha e os jovens príncipes
se acomodaram nos assentos do landau e o cocheiro deu a partida. Quando
a carruagem passou, Buíça, em segundos, tirou da capa uma carabina
Winchester, dobrou um joelho para fazer a mira e, a cinco metros,
fuzilou o rei pelas costas. Um dos tiros acertou a nuca de dom Carlos,
matando-o no ato. Outro carbonário, Alfredo Costa, armado com uma
pistola Browning, materializou-se ao lado de Buíça, saltou para o
estribo do carro e também disparou várias vezes, à queima-roupa, contra
o rei já morto. Os cavalos, assustados, davam coices no vento. O
príncipe Luís Filipe sacou seu Colt .38 e apontou contra Costa. Costa
foi mais rápido e atingiu-o no peito, com a bala atravessando o pulmão
do herdeiro. Mesmo assim, Luís Filipe ainda conseguiu dar quatro tiros
em Costa, que tombou morto na rua. O barbudo Buíça voltou a disparar:
acertou um tiro na cabeça de Luís Filipe e feriu o infante Manuel no
braço. Um tenente investiu contra Buíça e o matou com uma estocada de
baioneta. Cessado o fogo, o cocheiro, também ferido, conseguiu conter os
cavalos. O tiroteio durara pouco mais de um minuto, mas o cheiro de
pólvora e uma grande comoção tomavam o Terreiro do Paço.

A condessa de Figueiró, o marquês de Lavradio e os outros nobres
correram para a carruagem ensangüentada. O corpo do rei pendia sobre o
ombro da rainha, que estava em choque. Luís Filipe, de vinte anos,
morreu nos braços da condessa. Se dom Carlos pudesse ter usado o Smith &
Wesson .32 que trazia no bolso, os fados seriam outros. Mas, do jeito
que eles se deram, pode-se dizer que a brava monarquia portuguesa, velha
de oito séculos, acabava ali.

O resto seria mera formalidade. Três meses depois, o infante, de dezoito
anos, assumiria o trono, com o nome dom Manuel II. Seu tíbio reinado,
abalado por golpes e conjuras, só chegaria até o dia 5 de outubro de
1910, quando uma insurreição final proclamaria a República em Portugal.




Capítulo 1

1909 - 1924

Coquete



O futuro não costumava figurar na agenda dos cerca de trezentos
habitantes de Várzea de Ovelha, uma aldeola da freguesia de São Martinho
da Aliviada, concelho de Marco de Canavezes, distrito do Porto,
província da Beira-Alta, no Norte de Portugal. (Na divisão
administrativa brasileira, Várzea de Ovelha seria um subdistrito do
município de Marco de Canavezes.) Até então, só o passado existia, e
mesmo o presente custava a chegar àquele platô perdido nas montanhas, a
que se tinha acesso, a pé ou a cavalo, por uma trilha cheia de curvas e
contornando os despenhadeiros da serra do Marão. Um lugar tão bonito e
fora do mundo quanto algumas das outras freguesias de Marco de
Canavezes, com seus nomes tão sugestivos: Magrelos, Rio de Galinhas,
Paredes de Viadores, Paços de Gaiolos. O Ovelha e o Tâmega, os poéticos
rios da região, seguiam seu curso sem perturbações. Mas, depois do que
acontecera no Terreiro do Paço, em Lisboa, nem a poesia conseguiria
poupar Várzea de Ovelha das atribulações nacionais - porque a incerteza
já fazia parte da vida de todos os portugueses.

Os jovens José Maria e Maria Emília, recém-casados, eram protegidos da
família de Francisco de Assis Teixeira de Miranda, rico proprietário de
terras na região, inclusive do sobrado em que o casalzinho morava de
graça. Os Assis, como o povo chamava os donos do lugar, eram
monarquistas com intensa atuação política e muito ligados à Coroa. A
morte do rei, a ascensão de um menino ao trono e a iminência de queda do
regime faziam antever uma crise que tornaria as coisas ainda mais
difíceis. A guerra e a fome no campo eram uma possibilidade. Os Assis
ficariam para defender suas terras. Mas, para José Maria e Maria Emília,
que eram pobres, só restava tomar o vapor para onde zarpavam tantos de
seus patrícios: o Brasil.



12

Dois anos antes, em 1906, quando eles se casaram, nada parecia indicar
esse destino. José Maria Pinto da Cunha tinha dezenove anos. Os pais
dele, José Pinto da Cunha e Emília de Jesus, eram camponeses, curvados
por séculos de enxada. Mas José Maria, moreno e aprumado, fizera o
serviço militar na Cavalaria e atraía os olhares das moças nas datas
patrióticas, ao desfilar a cavalo no uniforme dos Lanceiros da Rainha.
Um dos olhares que ele atraiu foi o da bela tecelã Maria Emília de
Barros Miranda, vinte anos, filha de José de Barros Miranda e Maria da
Conceição Miranda. O pai de Maria Emília era entalhador, habilidoso em
trabalhos de madeira, mas um homem simples. Já a mãe dela tinha algum
parentesco com os Assis, e seu próprio casamento fora um problema: a
família não aprovava seu amor por um artesão. José e Conceição se
casaram assim mesmo e tiveram uma fieira de filhos: Eulália, Amaro,
João, Cecília, Florisbela, Aurora e Maria Emília. Vinte anos depois, ao
se casar com José Maria, a intrépida Maria Emília repetiria o gesto da
mãe, porque seu noivo também não tinha eira nem beira: apesar de
Lanceiro da Rainha - título meramente simbólico de seu regimento -, José
Maria era simples lavrador, empregado nos olivais dos Assis, e, nas
horas vagas, barbeiro - um reles rapa-queixos, como se dizia com
desprezo.

Quando lhes nasceu a primeira filha, Olinda, no dia 8 de dezembro de
1907, Várzea de Ovelha ainda estava fora do mundo. Dois meses depois
aconteceram o assassinato de dom Carlos, os desaires da monarquia e o
começo das perseguições aos Assis. Foi então que José Maria decidiu
mudar-se com mulher e filha para o Brasil. Planejou a viagem para o
segundo semestre de 1908 e começou a cuidar dos papéis para a imigração.
Mas, então, Maria Emília viu-se de novo grávida. A burocracia atrasou,
porque os documentos tinham de ser tratados na Cidade do Porto, a
quarenta quilômetros de distância, e a gravidez avançou. A mudança foi
adiada, por medo de perder o filho ou de que a criança viesse à luz no
meio do Atlântico, num porão de navio, atapetado de ratos, em pavorosas
condições de higiene e talvez sem médico a bordo.

E apenas por isso Maria do Carmo Miranda da Cunha, como a chamaram,
nasceu em Várzea de Ovelha, no dia 9 de fevereiro de 1909 - um ano e
oito dias depois do regicídio -, e Carmen Miranda deixou de nascer no
Brasil.

Maria do Carmo nasceu às três horas da tarde de um inverno gelado, no
sobrado de pedra composto de um térreo e de um andar, com chão de terra
batida, sem luz e sem água, em que seus pais moravam de favor. Nasceu de
bruços - donde, como rezava a superstição, seu pai pensou que fosse um
menino. (A superstição dizia também que mulher que nasce de bruços é
estéril.) Cinco dias depois, a miúda foi batizada na igrejinha de São
Martinho, severa, rústica, de pedra, junto a um muro também de pedra. Os
padrinhos foram o senhor Assis e sua mulher, dona Maria do Carmo Monteiro,
de quem Maria do Carmo herdou o nome. Normalmente, as Marias do Carmo
portuguesas tornavam-se apenas Carmo. Mas Amaro, irmão de Maria Emília e
eventualmente também barbeiro, era boêmio, tocava violino e cantava -
talvez nunca tivesse ouvido falar em Prosper Mérimée, mas sabia uns
tostões de ópera e, ao ver a pequena Maria do Carmo, "morena como uma
espanhola", associou-a à então popularíssima Carmen de Bizet. O apelido
pegou em família, e Maria do Carmo tornou-se, para sempre, Carmen.

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Amaro (que os parentes preferiam chamar de Mário) não era o único
Miranda com veia artística. Eulália, Cecília, Felisbela e Aurora, irmãs
de Maria Emília, também eram musicais e festeiras: gostavam de cantar,
dançar, fantasiar-se e se destacavam nas janeiras e reisadas, que eram
os prolongamentos das celebrações de Natal e Ano-Bom. Outro hábito era o
de cantar enquanto ceifavam o trigo, entoando cantigas de sentido dúbio
e, às vezes, francamente malicioso. Já Maria Emília, mais católica do
que as irmãs, e, se calhar, mais até do que o pároco de São Martinho,
reservava sua voz para cantar nas festas e procissões de santo Antônio.

Em setembro de 1909, deixando para trás a mulher e as duas filhas -
Olinda, dois anos e nove meses; Carmen, sete meses -, José Maria e seu
cunhado Amaro foram para o Porto e, de lá, tomaram um navio de carga no
porto de Leixões, em Matosinhos, para o Rio de Janeiro. Munido de duas
tesouras, uma navalha e dinheiro para se manter pelas primeiras semanas,
José Maria resolvera vir na frente. Primeiro, tentaria estabelecer-se;
quando isso acontecesse, mandaria buscar a família. Somente naquele
navio, cerca de cem emigrantes legais, fora os clandestinos, uns sobre
os outros na terceira classe, rumavam para a aventura brasileira - como
seus compatriotas vinham fazendo havia quatrocentos anos. O mar, para os
portugueses, era historicamente apenas outro nome para o seu próprio
litoral e, exceto pelo cheiro de vômito no dormitório coletivo, os dez
ou onze dias de travessia pareciam uma continuação da vida na província
- muitos desses imigrantes eram parentes entre si ou já se conheciam de
antes do embarque. E o Rio em que eles desembarcaram era tão português
quanto a terra de onde tinham saído - talvez mais.

Já havia muitas avenidas ao figurino de Paris, mas a cidade em que José
Maria pôs os pés, ao descer na praça Mauá no dia 27 de setembro de 1909,
podia lhe ser bem familiar - pelas ruas calçadas com pedras, ora veja,
portuguesas; pelo traçado irregular dos becos e das vielas coloniais;
pelas fachadas mouriscas dos sobrados e manuelinas das igrejas; pelas
conservas e latarias nas prateleiras dos armazéns; e pelo aroma dos
chouriços, sardinhas, rabadas, dobradinhas e ovos moles que emanava dos
restaurantes, tascas e biroscas. A música de sua língua era a mesma que
ele já começou a ouvir no próprio cais, bradada pelos estivadores,
cocheiros e puxadores de carroças, e que também saía dos açougues,
armarinhos e casas de ferragem. Os portugueses dominavam no Rio o
comércio de tecidos, cigarros, feijão, café, milho, azeite, pescado,
vinhos, gelo e praticamente todo o varejo. Numa população de cerca de 1
milhão, o Rio tinha perto de 200 mil portugueses natos - muito mais do
que o Porto, cuja população era de 150 mil, incluindo os estrangeiros
que lá viviam. Se se contassem os descendentes diretos dos imigrantes (e
muitos eram cariocas filhos de pai e mãe portugueses), esse número seria
ainda mais espetacular - seria o dobro. Era normal que um português
recém-chegado, ao andar pelas ruas do Rio, encontrasse não apenas
patrícios aos magotes, reconhecíveis pelos bigodes,
mas gente de sua aldeia ou freguesia, conterrâneos já aclimatados e,
bem ou mal, postos na vida.

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É quase certo que, ao tomar o navio, José Maria trouxesse na algibeira o
nome de alguém a procurar no Rio - fala-se de um comerciante de secos e
molhados na rua Primeiro de Março. Seja como for, foi um conterrâneo que
o instalou numa pensão na rua da Misericórdia e, dali a alguns dias, o
levou a um cidadão também de Marco de Canavezes, só que da freguesia de
Aviz: Álvaro Vieira Pinto, dono de um salão de barbearia na esquina da
então avenida Central com a rua Mayrink Veiga. Seguindo uma prática
comum na colônia, seu Álvaro estava à cata de um patrício que fosse seu
sócio minoritário, e tanto fazia que este entrasse apenas com o trabalho
- com isso, ele dobraria o faturamento e se dispensaria de pagar o
salário de um auxiliar. Mas, como candidatos, só lhe apareciam estróinas
e aldrabões. José Maria lhe cheirou a um rapaz sério: tinha 22 anos, era
casado e pai de filhos, que pretendia mandar buscar na aldeia. Seu
Álvaro propôs-lhe sociedade e José Maria aceitou. Dois meses depois, já
situado em seu novo país, José Maria despachou o dinheiro

para a vinda da família.

Carmen chegou ao Rio, com sua mãe e irmã, no dia 17 de dezembro de 1909.
Tinha dez meses e oito dias. E, se parece pequeno o intervalo entre a
chegada de José Maria e a da família, teria sido menor ainda se
dependesse de Maria Emília. As esfuziantes cartas que seu irmão Amaro
enviava do Rio, contando as peripécias da dupla na cidade, davam a
entender que tanto ele como José Maria estavam se esbaldando entre
mulheres, chopes duplos e patuscadas - o que não deixava de ser verdade.
Ciosa de seu casamento, Maria Emília exigiu que José Maria mandasse o
dinheiro e, assim que este lhe chegou às mãos, embarcou, também num
vapor de carga. Era uma jornada heróica, mesmo para uma mulher que sabia
ler bem, escrever razoavelmente e fazer as quatro operações. Tratava-se
de cruzar sozinha o oceano, em condições indescritíveis, com uma criança
no colo e outra pela mão. Uma tarefa que exigia coragem e determinação,
e, por sorte, ela tinha essas qualidades.

Ser sócio-proprietário de uma barbearia no Centro do Rio também podia
ser uma proeza para um camponês recém-chegado de Várzea de Ovelha, mas
não permitia a José Maria dar luxos à família. Em seus primeiros quatro
anos no Rio, eles tiveram três endereços. O primeiro foi em São
Cristóvão, tradicional reduto da imigração portuguesa e para onde
marchara uma parte dos desalojados pelas demolições que o prefeito
Pereira Passos promovera entre 1903 e 1906. Mas antigo bairro imperial,
já sem as românticas ilhotas que tinham sido engolidas pelos aterros
para as obras de expansão do cais do porto, começava a se tornar uma
zona industrial. Além disso, para os padrões de distância de José Maria,
ficava muito longe de seu trabalho.


15

Em 1911, à custa de milhares de queixos raspados, José Maria desfez a
sociedade com seu Álvaro, de quem continuou amigo, e instalou com o
cunhado o seu próprio salão de barbeiro, na rua da Misericórdia, 70,
perto do Mercado Municipal. Pouco depois, nesse mesmo ano, a família se
mudou para um sobrado na rua Senhor dos Passos, 59, no Centro -
relativamente perto da barbearia, mas bem na zona de prostituição que
transbordava da praça Tiradentes pela avenida Passos. Não era o ambiente
ideal para uma família, mas eles não tinham escolha. Amaro Miranda da
Cunha, o terceiro filho do casal, o primeiro do sexo masculino e o
primeiro a nascer no Brasil, veio à luz ali, no dia 15 de junho de 1912.
Uma das testemunhas do registro (daí o nome da criança) foi o cunhado
Amaro, e esta foi a última informação que a família guardou a seu
respeito - sabe-se que, dali a algum tempo, ele fechou a navalha, tomou
alegremente o navio de volta para a Europa em busca de uns "negócios de
pescaria" na Inglaterra, e nunca mais deu notícias. E, com grande
coerência familiar, o pequeno Amaro, assim como seu tio, também passou a
ser chamado de Mário.

Quando Maria Emília se pôs de pé, depois do parto, a família se mudou
novamente, agora para uma vizinhança não muito distante, mas bem melhor:
outro sobrado, na rua da Candelária, 50, de esquina com o beco do
Bragança, em cima de uma serraria. Ali nasceram as outras duas filhas,
Cecília, no dia 20 de outubro de 1913, e Aurora, no dia 20 de abril de
1915 - nomes também em homenagem às irmãs de Maria Emília. Com o aumento
da família, os rendimentos da barbearia deixaram de ser suficientes -
nem sempre o bacalhau dava para todos. Para complementá-los, o casal
espremeu-se em dois quartos e alugou os restantes para dois comerciantes
portugueses que José Maria conhecera no Mercado. Numa casa onde o jantar
era à base de caldo verde e em que se lia um dos cinco jornais
portugueses publicados diariamente no Rio com as notícias da terra, era
normal que Carmen, aos cinco anos, chamada a cantar para seu pai num dia
de aniversário, apresentasse a única música que conhecia: um fado que
lhe fora ensinado por Olinda.

A região da Candelária, desde a reforma de Pereira Passos, estava
deixando de ser uma zona residencial para se tornar uma área exclusiva
de negócios. Já era então o distrito de menor população fixa na cidade:
das dezenas de milhares de pessoas que passavam por ali durante o dia,
apenas 5 mil eram residentes efetivos. Qualquer prédio decrépito ou
terreno baldio ficara supervalorizado, e em breve os Miranda não teriam
como pagar o aluguel. Além disso, um andar num prédio cercado por
bancos, escritórios e lojas, e com um trânsito de bondes, carroças e
automóveis era uma prisão para a penca de crianças que eles agora tinham
em casa: Olinda, oito anos; Carmen, seis; Mário, três; Cecília, dois; e
a recém-nascida Aurora.

Os acidentes já tinham começado a acontecer. Aos cinco anos, Carmen
debruçara-se em uma das janelas do sobrado para mostrar sua boneca à
menina do prédio em frente e caíra lá de cima. Por sorte, sua queda foi
amortecida por um rolo de fios telefônicos, e Carmen nada sofreu. Meses
depois, foi a vez de Cecília despencar de outra janela. Da mesma
maneira, sua queda também foi atenuada, mas por alguns barris deitados
na calçada do prédio. O pequeno Mário, sentado na porta do sobrado,
assistiu desesperado à queda da irmã e, chorando, correu para avisar à
mãe. Cecília não quebrou nenhum osso, mas ficou estrábica, pelo provável
deslocamento de um nervo ocular. O folclore da família atribuiu o
estrabismo ao susto. Quanto a Mário, por coincidência ou não, ficou gago
pelo resto da vida.


16


José Maria e Maria Emília decidiram que as crianças precisavam de uma
casa com quintal, perto de uma escola e em uma rua onde elas pudessem
brincar. Por isso, em 1915 mudaram-se para uma casa de vila na Lapa -
rua Joaquim Silva, 53, casa 4, bem no começo da curva em que, descendo,
se chegava à praia da Lapa. (Sim, havia uma prainha ali, chamada
oficialmente de praia das Areias de Espanha, rente à avenida Augusto
Severo, que já existia.) Nesse endereço, eles passariam os dez anos
seguintes, dos seis aos dezesseis anos de Carmen- justamente a idade em
que, para a criança, o mundo se torna maior que a família. E, a quem já
se perguntou onde e quando Carmen começou a ser Carmen Miranda, eis aí a
resposta: na Lapa.

Para seus novos vizinhos da rua Joaquim Silva, os ainda jovens José
Maria, 28 anos, e Maria Emília, 29, tornaram-se seu Pinto e dona Maria -
ele, pelo sobrenome; ela porque era assim que todas as portuguesas, cedo
ou tarde, acabavam se chamando. Os moleques gritavam quando ela passava:

"Dona Maria, como vai o seu Pinto?". A malícia na Lapa começava cedo.

Não que tivesse sido sempre assim. Em seus primeiros 150 anos de
história, a Lapa fora um dos bairros mais pacatos do Rio. Em 1750, era
um reduto de padres em torno de um convento, um seminário e uma igreja,
a da Lapa do Desterro, e os únicos frissons eram os que aconteciam nos
confessionários. O sossego não foi perturbado nem pela inauguração, em
1783, do Passeio Público, o primeiro espaço criado para o lazer no
Brasil. À noite, a rua em frente ao portão do jardim se iluminava e
havia canto e dança - daí o seu nome, rua das Belas Noites (depois, rua
das Marrecas). Mas a agitação parava na esquina com a rua dos Barbonos
(depois, Evaristo da Veiga), e o resto da Lapa dormia em paz. Em 1808,
com a chegada da Corte, a aristocracia tomou a Lapa com seus casarões e
atraiu a classe média que lhe oferecia comércio e serviços. Em 1830,
quando os bacanas começaram a se mudar para Botafogo, a classe média
ficou na Lapa e, pélas décadas seguintes, a ela se juntaram as famílias
pobres de imigrantes portugueses, espanhóis e italianos. Ao entrar no
século xx, a região já estava tomada por casebres e cortiços, muitos dos
quais foram arrasados pelo prefeito Pereira Passos em 1904 para a
abertura da avenida Mem de Sá. Mas a nova avenida logo atraiu a
prostituição, tendo como primeiros clientes os estudantes de direito e
medicina vindos da província, que se instalavam nas pensoes baratas
dirigidas pelos portugueses. E só então as noites da Lapa conheceram os
cafetões, os leões-de-chácara e os navalhistas.

17


Durante o dia, no entanto, a Lapa continuava estritamente família, e foi
nessas condições que seu Pinto instalou a sua na rua Joaquim Silva, em
1915. No ano seguinte, Olinda e Carmen foram matriculadas no Colégio
Santa Teresa, das freiras vicentinas, na rua da Lapa, 24, a duzentos
passos de sua casa. O colégio era dirigido pela irmã Maria de Jesus
(também Maria do Carmo na vida secular) e, apesar de singelo, as
mensalidades pesavam no bolso de seu Pinto. Para garantir o toucinho à
mesa, dona Maria passou a lavar roupa para fora, principalmente para uma
loja famosa, a Casa das Fazendas Pretas, na esquina da rua Sete de
Setembro com a avenida Rio Branco.

Não era um trabalho fácil. A água tinha de ser apanhada em alguma bica
fora de casa (as bicas mais próximas ficavam na rua da Glória e no largo
da Lapa) e levada em latões até o tanque no quintal. A lavagem consistia
em ferver a roupa em bacias. Depois de fervida, a roupa era esfregada,
torcida, batida, anilada, enxaguada, torcida e batida de novo, e
finalmente engomada. Os tecidos - sempre nobres, como linho, algodão,
morim, pesadíssimos quando molhados - eram postos e tirados dos
quaradouros, presos às cordas para secar, recolhidos, feitos em trouxas
e só então levados de volta à loja - o que dona Maria também fazia,
equilibrando-as na cabeça, às vezes com a ajuda dos filhos. Falando em
filhos, dona Maria ainda encontrou tempo e forças para ter outro - o
último: Oscar, chamado Tatá, nascido na rua Joaquim Silva, no dia 19 de
julho de 1917.

O regime do colégio não era de internato ou, pelo menos, Carmen não era
interna. Seu horário na escola era das oito às três da tarde, o que lhe
deixava o resto do dia para ajudar a mãe nas entregas e varejar a rua
com seus amiguinhos Rita, Josefa, Arnaldo, José Joaquim, Mário, Armando,
Glória e Guilherme. Havia na Joaquim Silva uma casa abandonada, em que
brincavam de teatrinho, fazendo pequenas encenações, cantando e
declamando. Um garoto retardado, Constantino, também morava por ali -
tinha um jeito torto de andar e Carmen, com a crueldade típica das
crianças, o imitava. Com os meninos, Carmen jogava futebol. E, com as
meninas, ia para um terreno nos fundos da casa abandonada - arriavam as
calcinhas e disputavam para ver quem fazia xixi mais longe.

Aos oito ou nove anos, o jeito de Carmen já devia ser especial porque,
pelo menos uma vez, suas colegas no Santa Teresa se juntaram para
agredi-la na hora do recreio. Mas Olinda, dois anos mais velha, a
defendeu. Com as mãos, Olinda produziu o som de um tabefe e disse: "É
comigo e é lá fora, depois da aula". Horas depois, saiu de lá vitoriosa,
mas com a pasta de livros e cadernos estropiada. Fora isso, não tinha
nada de anjo - em casa, Olinda gostava de botar as pequenas Cecília e
Aurora para brigar no chão e ficava torcendo, como numa rinha doméstica.
Mas seus pais confiavam no seu jeito responsável, e era ela que, aos
domingos, bem cedo de manhã, antes da missa, levava seus irmãos à praia
da Lapa, onde eles aprenderam a nadar.


18


Por ser a mais velha, Olinda foi também a mais sacrificada: aos doze
anos, em 1919, teve de largar os estudos, na terceira série primária,
para trabalhar como aprendiz no ateliê de chapéus de uma francesa,
Madame Anais Grandjean, na rua do Passeio, e para quem dona Maria também
lavava roupa.

Nessa mesma época, aos dez anos, Carmen já demonstrava habilidades e
aptidões que, um dia, lhe seriam fundamentais. Sua coleção de
bonequinhas tinha um vasto estoque de roupas, costuradas à mão por ela
mesma com os retalhos de dona Maria. Era boa aluna de francês e
espanhol, com facilidade para reproduzir os sons dessas línguas. Em
setembro de 1920, quando Carmen estava na quinta série, o colégio levou
as alunas à embaixada da Bélgica, na rua Paissandu, para formar alas
numa recepção aos reis daquele país, Alberto e Elizabeth, em visita ao
Rio. O Rei-Herói, como o chamavam (pela bravura ao resistir à invasão do
território belga pelos alemães na Grande Guerra), muito alto e bonito,
foi o primeiro homem a impressionar Carmen - e estabeleceria um padrão
de estampa masculina para suas preferências futuras. A embaixada belga
foi o primeiro ambiente de luxo que ela conheceu, além da igreja da
Lapa, onde ajudava a dizer a missa fazendo as vezes do sacristão. Também
nessa altura, Carmen declamou um poema para o núncio apostólico quando
este visitou o colégio, e ganhou seu primeiro cachê: uma bênção e um
beijo na testa.

As freiras admiravam seu desembaraço ao se apresentar nos corais e nas
peças da escola, embora lhe reprovassem a gesticulação e a tendência a
enxertar cacos nos textos (no íntimo de suas vestes pretas, achavam que
isso denotava voluntarismo e pouca humildade). Segundo relato de uma
delas, por mais de uma vez, em 1923, as religiosas levaram esses
pequenos recitais ao estúdio da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, na
rua da Carioca, a primeira emissora brasileira, inaugurada naquele ano
pelo escritor e antropólogo Edgar Roquette-Pinto e pelo cientista
Henrique Morize. A ser verdade, terá sido a estréia de Carmen ao
microfone, ainda que perdida entre as trinta meninas do coral e sem
quase ninguém ouvindo - ao começar no Brasil, o rádio era uma ação entre
meia dúzia de amigos de Roquette, que se cotizavam para receber as
transmissões em aparelhos feitos com uma caixa de charutos, uma vara de
bambu à guisa de antena, e um fio terra ligado na torneira da pia. O ano
de 1923 foi também o último de Carmen na escola - ao completar o
ginásio, aos quatorze anos, tornou-se a única dos filhos de seu Pinto e
dona Maria a receber uma instrução razoável.


19

Data também daí a propalada vontade de Carmen, nunca muito bem
explicada, de entrar para um convento. Pode ter sido por uma real (e
passageira) devoção pela vida religiosa ou por uma sensação de vazio ao
deixar o colégio. O mais provável é que a idéia ou o estímulo tenha
partido de dona Maria, cujo apego à religião era assombroso - ia à
igreja todos os dias, rezava terços intermináveis e suas leituras se
limitavam ao missal ou à vida dos santos. Seja como for, a idéia de
Carmen tornar-se freira encontrou a pronta oposição de seu pai, católico
só até certo ponto, e não se falou mais no assunto. Com seu Pinto,
aliás, falava-se apenas o essencial. Para ele, as refeições deviam ser
feitas em silêncio - e mantinha uma vara de marmelo à mesa, para acertar
a mão de quem piasse fora de hora.

Mas, com toda a sua lusitana autoridade, seu Pinto não podia obrigar o
mundo a girar ao contrário. Três anos antes, em 1920, uma moradora da
rua Joaquim Silva perguntara a Carmen se não queria ganhar uns trocados
varrendo sua casa no fim da tarde. Carmen aceitou, toda contente. Levou
alguns dias para a família descobrir e, horrorizada, proibi-la de voltar
lá.

Não era o tipo de casa em que uma menina de onze anos devesse entrar,
nem mesmo para varrer.

Definitivamente, a Lapa de 1920 - pelo menos, à noite - já não era a
mesma de 1915. A proximidade com o Palácio do Catete, o Senado, a Câmara
e os ministérios tornou-a ideal para os políticos e comerciantes de
visita, nacionais e estrangeiros. A Lapa ficara, de repente, importante.
Na rua Visconde de Maranguape, surgiram hotéis com portas de bronze,
mensageiros de luvas e saguões iluminados: o Bragança, o Nacional e,
fazendo jus ao nome, o Grande Hotel da Lapa. O trânsito não parava: além
dos bondes elétricos, havia agora também os táxis - um deles, com ponto
no largo da Lapa, dirigido pelo futuro cantor Francisco Alves.
Abriram-se cafés e restaurantes com orquestras de violinos,
chopes-berrantes, cafés-cantantes. A música estava em toda parte - a
quantidade de pianos per capita devia ser a maior do Rio. E a mistura de
intelectuais, boêmios e malandros dava à Lapa uma nova e deliciosa
atmosfera canalha.

Era agora uma Lapa noturna e cosmopolita, freqüentada ao mesmo tempo por
homens de smoking e cavanhaque e por apaches de dente furado e chinelo,
e em que se marcavam encontros para as três da manhã, em restaurantes
que serviam lagosta ou canja de galinha. Discutia-se Mallarmé em cabarés
de luxo, regado a champanhe e pernod, ao som de valsas francesas como
"Amoureuse" e "Frou-frou". A cocaína, fabricada pelos grandes
laboratórios e chamada de "fubá Mimoso", era vendida às claras em
vidrinhos. Não faltava na Lapa nem uma célula leninista, nos fundos de
uma banca de sapateiro na rua do Lavradio, onde a queda de Kerenski, em
outubro de 1917, foi ruidosamente comemorada. Era a Lapa ultramoderna de
Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Jaime Ovalle, Ribeiro Couto, Zeca Patrocínio
e dos outros músicos, pintores, poetas, cronistas e jornalistas que
começavam a fazer dela uma Montmartre guanabarina; e das mulheres de
lábios pintados e vestidos coloridos, cuja presença já fora percebida
havia algum tempo em uma crônica pelo romancista Lima Barreto. À luz do
dia, fingindo indiferença, as famílias continuavam tocando a vida. Os
armarinhos e as farmácias funcionavam normalmente, e o seminário, a
igreja, o convento e as freiras do colégio impregnavam o bairro de
piedade e contrição. Mas ninguém mais era inocente na Lapa.


20


A prostituição, enxotada da avenida Mem de Sá, mudara-se para a beira do
mar, na avenida Augusto Severo. Tomara o beco dos Carmelitas,
espalharase pela rua Moraes e Vale e começava a penetrar pelos baixos da
Joaquim Silva. Três madames ligadas às máfias francesa e judaica -
Suzanne Casterat, Lina Tatti e Lina Bonalis - instalaram suas pensions
em estilo art nouveau e iniciaram a importação de meretrizes
internacionais, algumas com um passado de lenda: ex- mulheres de
embaixadores, ex-favoritas de cortes européias, ex-dançarinas de bales
russos - a imaginação era livre. Com toda a pompa, ali estavam agora, de
porta com os bordéis mais ordinários, que só podiam oferecer o artigo
nacional. Essas mulheres eram também as principais vítimas da cocaína -
muitas tinham um fim ainda pior que o das mulatas e nordestinas
cafetinadas pela também célebre Alice Cavalo-de-Pau.

De repente, a Lapa já não era tão Montmartre; era Pigalle. Em 1923, na
tentativa de sanear a beira-mar, a polícia obrigou a prostituição a
subir as ruas, fazendo-a cruzar a rua da Lapa e empurrando-a até que
atingisse as ruas Taylor e Conde de Lage e dominasse também a parte alta
da Joaquim Silva. Quando isso aconteceu, quase toda a Joaquim Silva foi
ocupada pelas pensões. Para seu Pinto e dona Maria, era humilhante viver
entre casas em que, apesar de as portas serem mantidas fechadas, as
mulheres chegavam quase nuas às janelas, pelas quais os homens espiavam
com olhos lúbricos e a boca cheia d"água. E se esses homens pensassem
que suas filhas também eram da bagunça?

Seu Pinto e dona Maria decidiram sair dali. Mas não era fácil encontrar
um lugar que os acomodasse e que eles pudessem pagar com seus
rendimentos de barbeiro e lavadeira. Finalmente, em 1925, os
burros-sem-rabo recolheram os trastes da família e eles levaram seus
filhos - Olinda, dezoito anos; Carmen, dezesseis; Mário, treze; Cecília,
doze; Aurora, dez; e Tatá, oito - de volta para a zona comercial do Rio:
um sobrado na travessa do Comércio, 13, de propriedade da Santa Casa de
Misericórdia.

A Lapa ficara para trás, mas só na geografia. Tudo que, por dez anos, a
menina Carmen testemunhara nas ruas ao se construir como pessoa - os
esplendores e as misérias, as euforias e solidões, os vícios e virtudes
de seus habitantes - a acompanharia para sempre.


21

Pele morena, olhos verdes e muito vivos, boca rasgada, dentes brancos e
perfeitos, farto cabelo castanho-claro. Pequenina, é verdade - 1,52
metro e nunca passaria disso -, mas um pitéu: seios de granito, quadris
anchos, pernas grossas e firmes, Carmen já estava pronta desde a
adolescência. Só não gostava de seu nariz, que, de tão arrebitado,
comparava ao de Cyrano, e de uma pinta amarela que trazia no olho
esquerdo. Mas era coquete - sabia de seu poder de sedução e gostava
disso. Deixava-se ficar conversando com algum rapaz na porta do sobrado
e não via o tempo passar. Sua mãe chegava à janela e gritava: "Suba,
Carmen!". Mas dona Maria tinha de dar a ordem várias vezes até que ela
subisse.

Na Lapa, ela ouvira precocemente sobre os "fatos da vida" e, pelo visto,
sem nenhum trauma. (Diria depois que, aos doze anos, adorara a primeira
menstruação - donde, ao contrário de muitas meninas de seu tempo, sabia
bem do que se tratava.) Pela simples observação de seus vizinhos, Carmen
desenvolvera a agilidade de raciocínio, a capacidade de ser safa e de
ter sempre uma resposta pronta. Numa época em que se exigia das moças um
recato de porcelana, inclusive lingüístico, ela trouxera da Lapa um
farto repertório de gíria, talvez em reação aos excessivos bons modos
impostos pelas freiras. Para ela, uma pessoa era "velhinho", "filhote"
ou "meu nego"; íntima até de estranhos, "querido" e "meu bem" eram
tratamentos que ela dispensava à primeira vista; uma coisa boa e
diferente era "de matar"; um sucesso era "um chuá"; dinheiro era
"arame"; fugir ou desaparecer era "azular"; flertar ou exibir-se era
"fazer farol". Dominava também o patoá portenho que, através do tango,
tinha se implantado na fala do Rio: "bacana", "otário", "engrupir",
"afanar". A gíria era a moeda corrente que igualava finos e grossos e
fazia de todos, não importava a origem, cariocas. E, com todo o peso de
sua família portuguesa, a jovem Carmen era carioquíssima, íntima das
manemolências e à vontade em qualquer situação.

Não era só a gíria. Muito cedo Carmen incorporou os palavrões ao seu
dia-a-dia, embora, nesse caso, a Lapa não fosse a única responsável -
parte do crédito deveria caber a seu pai. Como tantos portugueses de sua
origem, seu Pinto era exuberantemente desbocado, e as palavras cabeludas
(algumas, como "cu" ou "puto", sem conotação negativa em Portugal) lhe
escapavam com simplicidade, quase com candura. Todos os seus filhos,
inclusive Olinda, Cecília e Aurora, saíram a ele nessa exuberância. A
Lapa era apenas um território onde as palavras menos nobres não causavam
sobressaltos.

A velha travessa do Mercado, uma viela da praça Quinze com entrada pelo
arco do Telles e saída em L pela rua do Ouvidor, era bem diferente -
néris de liberalismo ou sofisticação. Desde 1730 era um reduto de
mascates, por onde circulavam mulheres com cestas de peixes às costas e
homens arrastando sacos de farinha. Os tamancos ressoavam no calçamento
de pedras. Quase duzentos anos depois, em 1925, ainda era uma rua de
secos e molhados, onde alguns viviam, todos comerciavam, e o cheiro
vinha do fundo do mar.



22

O sobrado onde os Miranda foram morar era apenas suficiente para
acomodá-los. Subindo-se a escada da rua, saía-se numa boa sala, com
cozinha adjacente. Um longo corredor levava a uma saleta, aos quatro
quartos e ao único banheiro. No térreo, havia um armazém de propriedade
de outro português. Uma das vantagens de morar ali era que a travessa do
Mercado ficava a cinco minutos a pé da barbearia de seu Pinto, a passos
descansados. Mas a família teria de apertar o cinto ou inventar outras
fontes de renda para se virar - o aluguel era mais caro que o da Lapa e,
apesar de um pequeno quintal nos fundos, a lavagem de roupa para fora
ficara difícil. Mário, Cecília e Aurora estavam matriculados no Liceu de
Artes e Ofícios. Olinda, efetivada no ateliê de costura, era a única a
contribuir para o orçamento. Carmen saíra do colégio e não trabalhava.
Assim, várias decisões foram tomadas. Dona Maria daria pensão para a
vizinhança, com Cecília de copeira e Mário trazendo as compras do
mercado - para isso, os dois sairiam da escola. E Carmen iria à cata de
um emprego. A pensão diurna, oferecendo exclusivamente refeições, era
outro serviço dominado pelos portugueses no Rio. Os clientes eram, quase
sempre, os patrícios empregados no comércio. Daí o cardápio quase fixo:
uma sopa, pão à vontade, uma bacalhoada ou peixada, e vinho verde
acompanhando. Pagava-se por mês ou por quinzena. Com o tempo, os
portugueses levavam seus colegas brasileiros, e dona Maria logo
conquistou uma boa clientela: os atacadistas de mantimentos da rua do
Acre e os funcionários dos bancos ali perto. A bóia era servida numa
grande mesa da sala, com capacidade para dez ou doze pessoas. Os
comensais podiam variar, menos a presença de seu Pinto à cabeceira - ia
almoçar em casa todos os dias, não só pela proximidade da barbearia, mas
para mostrar que o chefe da família estava atento. Com tantas filhas
bonitas à solta, convinha não facilitar com aqueles rapazes famintos.

A mais bonita - morena, de traços finos, bem-proporcionada - raramente
aparecia, porque trabalhava fora. Ela era exultante, independente e
feliz. Gostava de cantar e, para todos, sua voz era sem concorrentes na
família. Na verdade, sonhava ser cantora e já se apresentara nos
festivais de amadores do Teatro Lyrico, na rua Treze de Maio. Ou atriz,
porque, quando queria, também sabia ser engraçada - ninguém resistia às
suas imitações. E tinha um senso natural de elegância, com as roupas que
ela mesma costurava, copiadas do que via nas vitrines ou nos figurinos
estrangeiros. No Carnaval, era quem criava as fantasias para si mesma e
para as irmãs - a dela era a de melindrosa - e as liderava nas batalhas
de confete da avenida Rio Branco. Sua entrega à festa era tão
avassaladora que, no Carnaval de 1923, seu pai mandara-a para o sítio de
seu amigo e ex-sócio Álvaro Vieira Pinto, em Teresópolis, para afastá-la
da folia. Pois ela se dera ao luxo de mastigar uma pedrinha para quebrar
um dente de trás de propósito e, com isso, ter de voltar ao Rio para se
tratar no dentista - e se meter nos blocos e cordões.

Pode parecer uma descrição de Carmen, mas essa é Olinda - que o destino
impediria de tentar tornar-se o que estava reservado à sua irmã.

23

Foi em Olinda que Carmen encontrou um espelho para seu temperamento.
Ambas eram falantes, criativas, esfuziantes. Era Olinda quem ensinava a
Carmen os sambas, os tangos e as modinhas que aprendia na rua. Ensinou-a
também a costurar e a fazer de qualquer pedaço de pano uma saia ou uma
blusa, a combinar as roupas e a se vestir, a se maquiar e a valorizar
seus pontos fortes e esconder os fracos. (Só não conseguia ensinar-lhe
que, depois de remover com o dedo o excesso de batom, era feio limpá-lo
na parede, como Carmen insistia em fazer, em vez de ir lavar a mão.)

Com tantas virtudes, não faltavam candidatos para Olinda. E, de fato,
desde a Lapa, ela tinha um namorado, que a família aprovava e que ela
via como firme: um comerciante um pouco mais velho, chamado Feliciano,
também de família portuguesa. A tradição na colônia era a de que os
rapazes se casassem com brasileiras (brancas, negras ou mulatas, não
importava), mas que as raparigas dessem preferência aos patrícios ou aos
filhos deles. Não era uma imposição - mesmo porque, em pouco tempo, já
não se sabia quem era português ou carioca. Mas, mesmo que fosse, Olinda
a dispensaria, porque gostava de verdade de Feliciano e os dois já
tinham até falado em casamento.

Daí sua surpresa, em certo dia de 1925, ao atender à porta de sua casa e
ver uma mulher em adiantado estado de gravidez, que lhe jogou na cara:

"Você é Olinda, não é? Pois você pode ser a noiva do Feliciano. Mas quem
vai ter um filho com ele sou eu!"

Ao ouvir isso, foi como se o chão lhe fugisse, o céu desabasse, ou outra
sensação que se tem quando se recebe esse tipo de notícia. Mas Olinda
refezse da surpresa, juntou os pedaços de sua dignidade e disse apenas:

"Se isso é verdade, você pode ficar com o filho e com o Feliciano. Ele
não me deve nada", querendo dizer que nunca tinha havido nada mais
drástico entre os dois.

Era verdade - como o próprio rapaz, de orelhas murchas, teve de admitir.
A mulher estava grávida dele. Feliciano ainda lutou com os argumentos de
praxe (que tinha sido enganado, que a mulher não lhe significava nada,
que fora apenas uma aventura), mas Olinda encerrou o noivado ali mesmo.
E caiu numa tristeza sem paralelo nem nas letras dos fados cantados por
sua família.



24

Carmen seguiu as pegadas de Olinda inclusive ao sair para trabalhar: foi
ser aprendiz no mesmo ateliê de Madame Anais, na rua do Passeio. No
começo, sua função não passava de catar grampos no chão, varrer retalhos
ou cantarolar modinhas para as colegas. Ao lado do ateliê havia um
bistrô, Lê Chat Noir, em que, ao fim do expediente, ela e Olinda às
vezes cantavam de brincadeira. Os clientes do bistrô gostavam delas.
Carmen pode ter passado ainda por outra casa de chapéus, a Maison
Marigny, também dirigida por uma francesa, na rua Uruguaiana. Mas, para
valer mesmo, o primeiro salário a que fez jus lhe foi pago por outra
casa do gênero, La Femme Chie, de Luiz Vassalo Caruso, na rua do
Ouvidor, 141.

Em 1925, Luiz Caruso era sócio de seu irmão Domingos em uma rede de
cinemas na Zona Norte. Com os lucros da exibição de filmes, abriu uma
loja de chapéus femininos, de confecção própria, no ponto mais disputado
da cidade. Não era um capricho de empresário. Na época, se uma mulher
saísse à rua sem chapéu, era melhor que saísse logo nua, e por isso
tantas casas especializadas. Ainda mais na Ouvidor, que continuava a ser
o ponto elegante, francês por excelência, do Rio, e com nomes de acordo,
como La Femme Chie. A oficina nos fundos da loja de Caruso era comandada
por Madame Boss. Foi ela quem admitiu Carmen entre as oficiais,
diplomou-a na arte de fazer chapéus, ensinoua a decorar vitrines e deu
um trato mais mundano ao francês tipo "Frère Jacques" que ela aprendera
com as freiras. Injustamente passou à história como a ferrabrás que
reprimia Carmen por cantar em serviço, terminando por demiti-la - o que
nunca aconteceu.

Que Carmen cantava à meia-voz enquanto preparava os chapéus, não há
dúvida, e os sucessos do momento eram as marchinhas de José Francisco de
Freitas, o Freitinhas, como "Zizinha", e os sambas de Sinhô, como "Ora,
vejam só". Segundo Caruso, que ficara amigo de seu Pinto e freqüentava a
pensão de dona Maria, todos gostavam de ouvir Carmen cantando, inclusive
Madame Boss. Se esta a repreendia, era em nome da disciplina: "Menina,
isto aqui não é lugar para cantar."

Assim que a contramestra virava as costas, as colegas de Carmen pediam:
"Canta mais, canta mais!"

Carmen acedia, mas avisava, meio de molecagem: "Eu vou acabar sendo
despedida por causa de vocês!" Não foi despedida. Ao contrário: por ser
"alegre, bonita e comunicativa", Caruso promoveu-a da oficina para o
balcão, onde ela se tornou sua melhor funcionária, capaz de vender
qualquer peça. Diante de uma cliente em dúvida sobre se determinado
chapéu lhe ficava bem, Carmen fazia uma demonstração: sacudia a cascata
de cabelos, prendia-os e experimentava o chapéu em si mesma. Como tudo
assentava em Carmen, a cliente se via como em um espelho, convencia-se
de que ficaria linda e acabava levando o objeto. Certo dia, aconteceu de
Carmen estar andando na rua, usando um chapéu de sua própria invenção, e
ser abordada por uma mulher que lhe perguntou onde o tinha comprado. Ao
saber que ela o havia criado, fez-lhe ali mesmo, na calçada, uma oferta
por ele - que Carmen, achando graça, aceitou.


25

Seu jeito para desenhar ou dar um toque diferente em qualquer tipo de
adereço foi percebido fora da loja e passou a render-lhe uns trocados
extras, na forma de chapéus para as amigas ou para as mães delas. E, nos
fins de semana, Carmen ainda encontrava tempo para costurar seus
próprios vestidos. Resolvia de manhã que, à noite, sairia de vestido
novo, inspirado em algum modelo que vira no cinema ou no Jornal das
Moças - cortava o tecido, levava-o à Singer e, no fim da tarde, estava
pronto. Já tinha, então, um considerável guarda-roupa, que praticamente
só lhe custara a matéria-prima.

Carmen trocou de emprego naquele mesmo ano, mas por um salário melhor.
Foi trabalhar em A Principal, uma loja de artigos masculinos na rua
Gonçalves Dias, 55, em frente à Confeitaria Colombo. O proprietário era
o português Cepeda, fanático torcedor do Fluminense. Quando se tratava
de gravatas, camisas e acessórios para homens, havia duas casas bem
reputadas no Centro: a Soares & Maia, procurada pelos mais
conservadores, e A Principal, preferida pelos smarts, os janotas de
1925, com seus chapéus de palhinha e paletós peçoa-palavra. A presença
de Carmen entre as três vendedoras atraiu uma quantidade de novos
clientes para A Principal. Para o patrão Cepeda, era óbvio que aqueles
rapazes que ele nunca tinha visto, e que passavam uma hora no recinto
para comprar um simples par de abotoaduras, estavam de olho na sua
funcionária. Nada de surpreendente nisso - porque ele também estava.

Até pouco antes, um programa típico para Carmen eram as matinês do
Cinema Lapa, com atrações virginais como Pollyanna, com Mary Pickford, e
o seriado Os perigos de Paulina, com Pearl (Pérola) White, heroínas de
olhos claros e cabelos cacheados, como os das bonecas, e sempre em
alguma espécie de apuro. Mas, para a adolescente Carmen, morando na
travessa do Comércio, trabalhando no eixo Ouvidor-Gonçalves Dias e com
uma súbita autonomia de vôo, o cinema agora queria dizer Rodolfo
Valentino, John Gilbert e John Barrymore, ou Vilma Banky, Norma Talmadge
e Clara Bow - astros maduros, sensuais, com olheiras, e ainda mais
sedutores e misteriosos porque os filmes eram mudos e não se ouviam suas
vozes. O carioca chamava Clara Bow de Clara Boa. Ao assistir aos filmes
de Clara, a fornida Carmen também se sentia parte da categoria. E tinha
bons motivos para se certificar disso, porque os estudantes, ao passar
de bonde pela Cinelândia e vê-la comprando o ingresso para o cinema,
gritavam em coro:

"Olha a boa!"

Sob o pretexto de comprar uma gravata - e pedir que ela lhes desse o
laço no pescoço - inúmeros rapazes passaram o ano sussurrando-lhe
propostas entre os balcões da Principal. Mas só um deles, ao convidá-la
para um cinema ao fim do expediente, teve um sim como resposta.




Capítulo 2

1925 - 1928


"If girl"




Mário Cunha era bonito, queimado de sol e, com seu 1,81
metro, não se contentava em ser alto para os padrões da época -
julgava-se ainda mais alto. E era forte à beça, tipo atleta de
caricatura: os ternos bem cortados, quase sempre brancos,
ressaltavam-lhe os ombros largos, o tórax amplo e os quadris estreitos,
resultado do treinamento com o banco fixo de areia que usava para
simular remadas. Para conquistar Carmen em uma de suas visitas à
Principal bastaram-lhe um olhar e uma frase. Mas o olhar e a frase foram
irrelevantes, porque foi Carmen, quase trinta centímetros menor que ele,
quem decidiu deixar-se conquistar. Mário Cunha fazia o seu tipo de
homem, até o último milímetro.

Era remador do Flamengo, e não apenas isso. Seu pai, José Agostinho
Pereira da Cunha, fora o jovem que, em 1895, perguntara numa roda de
praia no Flamengo: "E se nós fundássemos um clube de regatas?". E
fundaram: o Clube de Regatas do Flamengo, que, ao incorporar o futebol
em 1912, se tornaria o mais popular do Brasil. Em 1925, o futebol já
superara o remo em matéria de público, mas os domingos de regatas no
Pavilhão de Botafogo continuavam a ser grandes eventos, especialmente em
dia de Flamengo x Vasco. Numa população de pálidos e esquálidos, aqueles
remadores que faziam saltar os músculos dos braços eram comidos com os
olhos pelas moças. No barco, com sua camiseta de listras vermelhas e
pretas, sem mangas, Mário Augusto Pereira da Cunha, de 24 anos, era um
banquete aos olhos de Carmen, com seus ardentes dezesseis.

Carmen se referia a Mário Cunha como "o meu pedaço", uma simplificação
da gíria "pedaço de homem", significando um homem que chamava a atenção.
E ele não deixava por menos. Não fumava, não bebia e passava longe dos
"vícios elegantes", como aspirar cocaína ou tomar champanhe com éter.
Praticava ginástica respiratória e seguia uma alimentação especial para
competir - ao sair para uma regata, tomava uma gemada com três ovos e
açúcar, porque sabia que o açúcar era o que mais se queimava ao remar.
Numa ocasião, ao ajudar a carregar uma baleeira para a largada, houve um
acidente e o barco caiu sobre ele, quebrando-lhe uma costela - Mário
Cunha fingiu que isso era rotina, tomou o seu lugar no barco e remou
assim mesmo, até o fim. De outra feita, participou de três páreos numa
só manhã, para que o Flamengo não perdesse pontos por falta de um
representante. Para Carmen, atitudes como essas beiravam os feitos do
rei Alberto da Bélgica.

27


Toda a família de Mário Cunha a impressionava, e ela nem precisava
compará-la à sua. Entre os avós e bisavós do rapaz, contavam-se
marqueses do Império, médicos da Corte, fornecedores do Exército na
Guerra do Paraguai e um diplomata que fora redator da primeira
Constituição do Brasil, a de 1824, e regente por três dias na menoridade
de dom Pedro II. Nessa galeria de ilustres, a ovelha negra era
justamente o pai dele, José Agostinho, o único que nunca quisera saber
de estudar. Ou uma ovelha rubro-negra porque, de certo modo, o Brasil
lhe devia o Flamengo, do qual tinha os títulos de fundador, sócio número
um, ex-presidente e patrono. O próprio Mário Cunha era funcionário da
Caixa Econômica, na sede da rua Treze de Maio, o que o tornava um bom
partido sob qualquer circunstância.

Apesar disso, entre o primeiro beijo e o dia em que Carmen apresentou o
namorado à família, passaram-se semanas, por ela não saber como seu
Pinto reagiria. Enquanto foi possível, os dois namoraram às escondidas -
ou era o que pensavam porque, com tanto lugar para se esconderem,
preferiam se exibir na mais recente e brilhante vitrine da cidade: a
Cinelândia.

Esta era a última sensação do Rio. O empresário Francisco Serrador
acabara de converter o terreno do antigo Convento da Ajuda numa espécie
de Broadway carioca, com palácios cinematográficos em que as fachadas,
piscando o título do filme e os nomes das estrelas, tomavam dois dos
oito andares de cada edifício e só faltavam atirar-se sobre os
pedestres. Os primeiros desses novos cinemas foram o Império, o Glória,
o Capitólio e o Odeon. Serrador cercouos de ruas internas ou adjacentes,
com teatros, lojas, bares, tabacarias, e injetou vida 24 horas por dia
naqueles quarteirões. Na Cinelândia podia-se engraxar os sapatos,
comprar charutos ou mandar flores, digamos, às quatro da manhã. Duas
confeitarias dominavam o território: a Brasileira, com suas porcelanas,
o waffle com mel e o quarteto de piano, flauta, cello e violino; e a
Americana, igualmente elegante, mas eleita pelos mais jovens, atraídos
pelos sundaes, bananas split, milk- shakes e cachorros-quentes. Em
poucos meses, a Cinelândia se tornara a passarela carioca e um
permanente desfile de modas. Ao passearem por ela aos arrufos, Carmen e
Mário Cunha não tinham como evitar os olhares. Nem queriam: cientes de
sua beleza, elegância e juventude, eles se orgulhavam de ser vistos
juntos.

Com a diferença de altura a separá-los, Carmen, mesmo de salto alto,
precisava pôr-se na ponta dos pés para beijá-lo. Milhares de beijos
depois, trocados no cinema ou entre as alamedas do Passeio Público,
Carmen levou Mário Cunha à sua casa e apresentou-o aos pais. Se já
sabiam do caso, seu Pinto e dona Maria não passaram recibo nem fizeram
objeção, exceto quanto à hora- limite para Carmen ficar na rua: dez da
noite. Mas essa hora se prolongava quando Mário Cunha a levava em casa e
os dois arfavam até a meia-noite à porta do sobrado da travessa do
Comércio. Numa noite de temporal, dona Maria preocupou-se com a volta de
Mário Cunha para a casa de seus pais na Glória e, num rasgo de ousadia
para a vizinhança, convenceu-o a dormir lá. Nos fins de semana, Carmen e
Mário Cunha também iam muito a Paquetá, embora, em quase todos os
passeios, uma das meninas, Cecília ou Aurora, estivesse à cote.


28


O encantamento da família por ele estendeu-se a Mário, irmão de Carmen,
então com quatorze anos. Por artes de Mário Cunha, o jovem Mário
arranjou um bom emprego de vendedor ("zangão", como se dizia) numa firma
de cereais na rua do Acre. E, também por sua influência, começou a
praticar remo - não no Flamengo, mas no Vasco da Gama, para onde foi
levado por seus patrões portugueses. Três anos depois, em 1928, Mário já
se destacaria no remo do Vasco, como proeiro de iole a oito ou a quatro,
por seu perfeito controle das remadas. Em altura, nunca passaria de 1,61
metro, mas era socado, troncudinho, e seus tornozelos e pernas grossas
(uma constante na família) lhe valeram o apelido pelo qual seria
conhecido pelo resto da vida: Mocotó.

Iniciada por Mário Cunha, cuja família significava o próprio Flamengo,
Carmen passou a ser torcedora do clube e a acompanhar as regatas. E,
como namorada de um famoso sportsman, tinha acesso à tribuna especial do
Pavilhão de Botafogo, onde as moças exibiam chapéus e toaletes. Mas era
toda a cidade, com os seus deslumbramentos, que se abria para ela. Em
fins dos anos 20, começava no Rio o uso da praia a toda hora, para lazer
ou mesmo volúpia, e não mais de cinco às oito da manhã, para fins
"medicinais". Com Mário Cunha para transportá-las, Carmen e suas irmãs
abandonaram a velha praia do Boqueirão, a que iam a pé, de tão pertinho,
pelas praias mais distantes e bonitas, na Urca, no Lido ou em frente ao
Copacabana Palace, onde havia os melhores balneários - bares e
restaurantes com acomodações para se tomar uma chuveirada e trocar de
roupa. Os próprios trajes de praia estavam ficando galopantemente mais
leves: caíam aqueles tétricos vestidos frouxos, com gola à marinheira e
touca, e surgiam os primeiros maiôs, com um saiote que deixava à mostra
metade das coxas (e que logo seria também abolido, revelando a perna
inteira). Carmen, com a boquinha em coração, axilas sem raspar e uma
pinta a lápis que dançava em lugares diferentes de seu rosto, foi
assídua personagem dessas transformações.




29

À noite, em qualquer época do ano, a vida no Rio parecia intensa para
eles - às vezes, intensa demais. Carmen e Mário Cunha podiam escolher
entre uma serenata na Glória; um sorvete- dançante no Catete; o footing
noturno, ao cheiro gelado do mar, na Praia do Flamengo ou na avenida
Atlântica; o rinque de patinação da praça do Lido e, a partir de 1928,
jantar e dançar ao som da orquestra Kolman no Pavilhão Normando, também
no Lido, sem falar nos bailes de Carnaval que se realizavam ali e que
iam até às onze da manhã seguinte. Havia ainda os bailes ao som de
Pixinguinha na sede do Fluminense, nas Laranjeiras, onde Mário Cunha,
apesar de sua ligação umbilical com o Flamengo, era muito bem recebido.
Há registros da presença deles em todos esses lugares, nos quais, por
serem instâncias em que os jovens formavam a grande maioria, pairava
sempre uma atmosfera de flerte e conquista. Mas Carmen só tinha olhos
para Mário Cunha.

Sua paixão por ele era absoluta, como se vê pelas dedicatórias das fotos
cuidadosamente posadas, que tirava em estúdios da avenida Rio Branco e
lambe-lambes do Passeio, e de que lhe fazia presente a mancheias. Os
dois chamavam um ao outro de Bituca, ou pelo menos Carmen se assinava e
o chamava assim (às vezes assinava-se Carminha e o chamava de Marinho ou
Marico): "Para o meu Bituca, oferece a sua Vênus de Milo" (Carmen, mais
do que ciente de suas formas); "Ao meu moreninho piquinininho, com um
milhão de beijinhos da sua nenenzinha, sim? Sim?" (os diminutivos
infantis e os sins com interrogação, marcas de Carmen); "Marinho, meu
único amor, como eu te amo, minino. Como eu tenho ciúmes de ti, meu
Marinho, se tu soubesses... Meu Marinho, como eu te adoro e te desejo"
(Carmen, mal conseguindo conter seus calores). Com esse desejo tão
incendiário e, claro, recíproco, era inevitável que o namoro fosse além
dos beijos e afagos em lugares públicos. E, como era inevitável,
aconteceu.

Homem de seu século e de sua década, fascinado pela nova velocidade,
Mário Cunha tinha sempre à mão um carro ou moto último tipo. Gostava de
contar como, ao descer chispado a rua Santo Amaro numa Harley-Davidson,
o bonde surgiu sem aviso à sua frente. Freou com força e foi projetado
da moto. Incrivelmente, atravessou voando o bonde, caiu do outro lado da
calçada e não se machucou. Incrível, mesmo - mas, se Carmen não
acreditava nessa história, Mário Cunha nunca percebeu. Num misto de
hobby e negócios, Mário vivia trocando de carro: importava um deles,
usava-o para exibi-lo pela cidade e o vendia, sempre com lucro (afinal,
era o carro "do Mário Cunha"), para comprar um novo. Um dos que
conservou por mais tempo foi uma barata Ford, em que às vezes
"seqüestrava" Carmen para lugares então remotos, como o Joá, o Alto da
Boa Vista e, mais remoto ainda, Jacarepaguá, que, para o carioca, era
uma espécie de sertão. Em fins dos anos 20, esses bairros do Rio,
acessíveis apenas a quem fosse motorizado, eram desertos e ideais para
carícias mais radicais - e sem irmãs por perto. Em algum deles,
escondidos entre pés de cambucá ou de abio, e com trilha sonora de
canários e coleiros, Carmen e Mário Cunha foram às últimas
conseqüências.



30

A depender do fogo de Carmen, não havia por que esperar para ter sua
primeira relação. E o implacável Mário também não era de deixar para
depois. Os dois fizeram amor pouco depois de se conhecerem, com Carmen
absolutamente "de menor" e Mário Cunha arriscando-se a aborrecimentos
caso algo desse errado. Mas nada deu errado - ao contrário. No futuro,
ela diria que, ao perder a virgindade, só sentira algo parecido com "uma
dorzinha de dente; culpa, nenhuma".

Essa ausência de culpa pode parecer estranha em uma jovem educada por
uma mãe como dona Maria, tão religiosa e ciosa dos sacramentos. Não
esquecer, no entanto, que ao redor de Carmen em criança havia a Lapa, de
cujo surgimento ela foi contemporânea - assim como seria, depois, da
Cinelândia e da praia. Todos esses eram enclaves onde as noções de
pecado e culpa eram, no mínimo, relativas. E, como não há memória de
crise na família por causa do assunto, é de se supor que dona Maria não
tenha ficado sabendo logo, ou que a verdade só lhe tenha sido revelada
muito depois, quando Carmen já estava em outro patamar. Patamar que
Carmen galgaria subindo os degraus de dois em dois.

De braço com Mário Cunha, passara a circular num meio privilegiado, em
que as moças cortavam os cabelos à la garçonne, fumavam sem tragar,
cruzavam as pernas em público e se misturavam às profissionais chiques
nos fins de tarde - heure bleue - na Colombo. Essas moças tinham
diplomatas e políticos na família, falavam uma ou duas línguas, liam
Colette e D"Annunzio, freqüentavam a Hípica, o Yacht e o Aeroclube,
praticavam esportes como tênis ou arco-eflecha e se vestiam por Londres
e Paris. No inverno carioca, então muito mais frio e sujeito a neblina,
saíam à rua embrulhadas em mantos forrados de peles. Mas, no verão,
comportavam-se como cariocas - eram as primeiras a aparecer de maiô nos
clichês de Beira-Mar, o jornal-society de Copacabana, dirigido pelo
escritor Théo-Filho. De algumas, sussurrava-se que eram "moças livres",
porque se sabia que tinham relações sexuais com os namorados. (E, exceto
pelo banco traseiro das baratas, onde isso acontecia? Nas garçonnieres
dos rapazes, que ficavam em prédios comerciais de ruas como Santa Luzia
ou Senador Dantas, no Centro - mais discretos que o Hotel Leblon, no pé
da avenida Niemeyer, ou que os edifícios de apartamentos da Glória ou do
Flamengo.) Pela posição social de suas famílias, ou pela simples
independência em relação a seus pais, essas moças passavam ao largo de
certas condenações morais.

Carmen estava longe de ter um pedigree como o delas, mas seu à-vontade
nesse meio era absoluto. Para todos os efeitos, ela era a namorada de
Mário Cunha, não a caixeira da loja de gravatas. Na verdade, Carmen
conquistava qualquer meio com seu temperamento radiante, cômico,
espontâneo e franco - os próprios palavrões que disparava como se fossem
vírgulas eram mais aceitos nesse ambiente do que entre suas colegas de
balcão. E, ao mesmo tempo que divertia os amigos de Mário Cunha e se
divertia, Carmen observava - e aprendia depressa. Sua família também
aprendia depressa.

Depois que Carmen passara a ter vida amorosa, suas dedicatórias nas
fotos para Mário Cunha continuaram infantis, mas refletiam a nova
situação:

31

"Eu te quero muito, meu Marinho. Não quero que o meu amorzinho pense que
essa piquinininha deseja outra pessoa na vida. Eu só quero a ti, meu
idolatrado maridinho. [...] Meu minino, fostes tu o primeiro que me
ensinastes a gozar a vida" (Carmen tentando mostrar a Mário Cunha que só
se entregara a ele por amor). Ou: "Meu maridinho... Meu grande e
profundo amor. Minha alegria. Meu Marinho, como eu te desejo quando
estou longe de ti. Meu Marinho, como eu sinto que te adoro,
piquinirünho, e tu não acreditas. Hominho de meus sonhos. Meu maridinho.
Sim? Sim? Sim?".

"Maridinho"? Sim. Mas Mário Cunha - com quem Carmen ficaria por sete
anos, dos dezesseis aos 23 - seria apenas o primeiro namorado que ela
chamaria assim. Como se, para Carmen, a paixão, por si só, já
configurasse um casamento.

Para Olinda, ferida no seu íntimo, a paixão era outra coisa. A vida
perdera o sentido para ela ao saber que seu noivo engravidara uma mulher
com quem teria de se casar. O choque deu lugar à depressão. Sair para o
trabalho, ir ao teatro, cantar, dançar, pintar-se e até comer, nada mais
tinha graça. A fraqueza e a perda de peso se instalaram e, em pouco
tempo, começaram a tosse, a febre, os suores noturnos e os primeiros
vestígios de sangue no escarro. Para o médico da família, doutor Agenor
Porto, não havia dúvida: tuberculose pulmonar. Foi tão rápido que,
segundo ele, era certo que, desde a Lapa, o organismo de Olinda já
hospedasse o bacilo, que afinal se manifestara porque ela parecia ter
abdicado da vida.

Desde o século xix, a tuberculose era considerada a "doença romântica",
por atingir músicos, atores e poetas. Na verdade, atingia todo mundo,
mas somente aqueles eram famosos. Para a família, Olinda ficara
"tuberculosa de paixão". Em 1925, qualquer que fosse a causa, esses
diagnósticos eram apenas uma filigrana poética para uma quase inevitável
condenação à morte.

Sete anos antes, a família de seu Pinto passara incólume por uma ameaça
ainda mais assustadora, porque súbita e maciça: a "gripe espanhola",
que, em quinze dias de outubro de 1918, dizimara 15 mil pessoas no Rio.
Fora uma epidemia trazida pelos navios que vinham da Europa e, dizia-se,
provocada pelos cadáveres insepultos da recém-finda Primeira Guerra. A
"espanhola" atacara a população carioca sem distinção de classe, matando
desde favelados até famílias inteiras de classe média, e o próprio
presidente da República eleito, Rodrigues Alves. A família de seu Pinto
morava na Lapa, bairro densamente povoado, com gente morrendo na porta
ao lado - e, mesmo assim, fora poupada. Nenhum deles caíra doente. Por
quê? Para dona Maria, porque eram abençoados. Para os médicos, porque
eram fortes e seus organismos tinham as defesas para resistir à gripe.
Não era de se esperar que, tanto tempo depois, por causa de uma decepção
amorosa, uma filha do casal ficasse tuberculosa.


32

A estreptomicina ainda levaria algumas décadas para existir, e o
procedimento de praxe, sem garantia de sucesso, era a longa internação
num sanatório em lugar montanhoso e de clima seco. O tratamento
consistia de alimentação, repouso e, às vezes, práticas brutais, como o
pneumotórax (injeções diretamente no pulmão) e o corte de costelas.
Olinda poderia se tratar aqui mesmo, em Corrêas, distrito de Petrópolis,
ou em Campos do Jordão, no estado de São Paulo, onde havia bons
sanatórios. Mas a proximidade de Feliciano era perigosa - ele a
procuraria nos dias de visita, reacenderia suas esperanças e agravaria
ainda mais a doença. A alternativa foi sugerida pelo doutor Agenor: uma
internação na nova mas já respeitada Estação Sanatorial do Caramulo, em
Portugal, a sessenta quilômetros do Porto, perto de Tondela e Viseu, a
1200 metros de altitude. Lá, Olinda teria por perto a família de seus
tios, em Várzea de Ovelha, e haveria um oceano a separá-la de Feliciano.

Quando Olinda ficou doente, eles tinham se mudado havia pouco para a
travessa do Comércio. Seu Pinto tocava a barbearia, dona Maria
inaugurara a pensão diurna, e Carmen já começara a trabalhar na
chapelaria. Mas o dinheiro continuava curto, e a perspectiva de manter
uma filha numa clínica particular em outro país estava além de suas
possibilidades. Uma troca de cartas com os parentes de Várzea de Ovelha
animou-os, pela garantia de ajuda que lhes seria dada por um casal da
região, o doutor Antunes Guimarães e sua mulher, dona Cecília. Essa ajuda
pode ter se materializado numa internação a preço reduzido, por uma
possível amizade entre o doutor Antunes e o médico Jerônimo Lacerda,
fundador e proprietário do sanatório do Caramulo.

Assim, em 1926, antes que a doença chegasse a um estado desesperador,
Olinda separou-se de seus pais e irmãos e tomou o navio para uma terra
que, embora fosse sua de origem, lhe era completamente estranha.
Embarcou sozinha para os dez dias e noites de viagem, consciente de que
podia estar indo ao encontro da morte. Tinha dezoito anos.

Olinda foi recebida pelos tios na Cidade do Porto e levada de início
para Várzea de Ovelha. Lá conheceu seus benfeitores e eles a
apresentaram a outras pessoas de posses na região de Marco de Canavezes.
Por algumas semanas, Olinda recuperou a alegria. Nas festas,
fantasiava-se, dançava, cantava músicas brasileiras e encantava os
locais com sua graça carioca e o jeito de falar. Mas era difícil manter
seu estado de saúde em segredo e, assim que a sabiam tuberculosa, as
pessoas ficavam reticentes ou evitavam aproximar-se. Para visitar outros
parentes que moravam na margem oposta do rio Ovelha, Olinda tinha de
usar os serviços de um canoeiro. Ele a transportava, mas, quando
chegavam à margem, recusava-se a lhe dar a mão para ajudá-la a descer da
canoa. Como era arriscado continuar adiando a internação, Olinda foi
finalmente levada para o Caramulo, a cem quilômetros de Várzea de Ovelha
- uma imensidão para os padrões portugueses.


33

O sanatório ficava na serra do Caramulo, depois de uma longa subida por
estrada de terra, cortando uma região coberta de maias amarelas e roxas,
cercada de pinheiros e carvalhos bravios e abundante em lebres e
raposas. O ar era muito seco, como convém aos tuberculosos, e ficou
famosa a frase de um paciente que não pensou antes de falar: "E preciso
ter uma saúde de ferro para agüentar esse clima!". Embora fundado havia
apenas seis anos, o sanatório já se tornara a maior instituição do
gênero na península Ibérica e era procurado por doentes de todo o país e
da Espanha. No alto da serra, ao fim de uma estrada em forma de
ferradura (para "dar sorte"), via-se a entrada do sanatório, guarnecida
por dois leões de bronze. Um pouco abaixo ficava a aldeia do Caramulo,
onde moravam as famílias da região, uma delas a do futuro ditador
Antônio de Oliveira Salazar, que em 1928 tomaria o poder no país e se
atracaria ao cargo pelos 42 anos seguintes. Os pacientes eram proibidos
de atravessar os leões em direção à aldeia, para evitar constrangimentos
provocados pelo temor do contágio.

O Caramulo consistia de dezesseis sanatórios, dos mais diversos níveis,
entre os quais um militar e um infantil, todos pagos. Não havia
enfermarias, o que salvava os internos da triste cacofonia de tosses e
gemidos noturnos - cada qual, em seu quarto, só ouvia a si próprio. Os
sanatórios eram mistos, com o que namoros entre pacientes (ou entre
pacientes e médicos) eram possíveis. Mas nada de escandaloso acontecia,
nem os amantes tinham muita saúde para arroubos. A liberdade de
locomoção entre as unidades era total, exceto das duas às quatro da
tarde, a hora de "fazei a cura", com os pacientes sentados em cadeiras
de palhinha nas varandas e mantendo obrigatório silêncio. Havia também
uma capela e um café, além de um palco para pequenos espetáculos
montados por eles mesmos. Era nele que Olinda às vezes se apresentava,
com seu repertório de choros e tangos e de trechos de revistas a que
tinha assistido nos teatros da praça Tiradentes. Contava anedotas para
os colegas, ajudava-os a se fantasiar e a se maquiar, dirigia-os no
palco. Seu jeito para o teatro era evidente, e seu lado palhaço e
musical parecia o melhor remédio contra a doença.

Em 1927, Olinda escreveu às tias em Várzea de Ovelha e à família no Rio,
insinuando que um médico do sanatório estava apaixonado por ela. Nunca
deu o nome, mas pela freqüência com que falava de um certo doutor Arnaldo
Quintela, convenceram-se de que só podia ser ele. O reencontro com o
amor era, talvez, um sinal de sua recuperação e a esperança de que um
dia a tivessem de volta. Mas Olinda nunca mais voltaria ao Rio. Na
verdade, não sairia viva do Caramulo.



34

Carmen ficou menos de um ano vendendo gravatas e colarinhos em A
Principal. O proprietário, o português Cepeda, não a deixava em paz.
Quase grená de paixão, seguia-a pela loja sussurrando- lhe propostas
indecentes e prometendo aumentos e gratificações. Carmen fingia
ignorá-lo ou levava na brincadeira, mas Cepeda falava sério. Quando
descobriu que sua funcionária só queria saber do remador que ia buscá-la
quase todos os dias ao fim do serviço, adotou a mesquinha atitude de
obrigá-la a ficar até mais tarde, redecorando as vitrines, para atrasar
os seus encontros. Por causa disso, Carmen preferiu pedir demissão.
Podia ganhar a vida fabricando chapéus em casa, enquanto não lhe
surgisse coisa melhor. E teria todo o tempo para vigiar Mário Cunha.

Aquele era um namoro turbulento. Se Carmen registrava, mas não respondia
aos olhares que a despiam na rua ou às graçolas que ouvia dia e noite,
não se podia dizer o mesmo de seu namorado. Mário Cunha se orgulhava de
seu poder de sedução sobre as mulheres. E não recusava serviço - se
percebesse um indício de flerte, e a costa estivesse limpa, atacava.
Carmen não fora a primeira virgem que ele deflorara e não seria a
última, mas ele não fazia exigências nesse particular - não distinguia
entre as muito jovens ou um pouco mais velhas, louras ou morenas,
solteiras ou casadas, com ou sem óculos. As únicas que não o
interessavam eram as profissionais, nem Mário Cunha precisava delas. E,
para um homem sobre quem não restava a menor dúvida, ele podia ser um
prodígio de vaidade. Ao se arrumar para sair, passava um bom tempo ao
espelho produzindo largas ondas no cabelo, como as de Richard Dix ou
Ronald Colman nos filmes americanos.

Quando um amigo o repreendia por tanto capricho, justificava-se: "É
nessas ondas que elas se afogam..."

Ninguém o pegava desprevenido: estava sempre impecável, do chapéu aos
sapatos, e seu toque final na indumentária costumava ser um cachecol,
mesmo que a noite lá fora estivesse pelos trinta graus.

Durante todo o namoro com Carmen, Mário Cunha dedicou-se a um
considerável estoque de mulheres, manobrando os encontros de modo que a
titular não ficasse sabendo. Nem sempre conseguia - como na vez em que,
ao visitar uma delas, na rua do Catete, ele foi imprudente ao estacionar
a barata defronte à casa da fulana. Passou horas lá dentro e, ao sair,
quem estava sentada dentro do carro, à espera? Carmen - que passara
casualmente pela rua, reconhecera a barata e, sabendo que ali morava uma
mulher que Mário freqüentava, resolveu esperá-lo para tomar satisfações.

As brigas eram muitas, quase todas provocadas por justos ciúmes de
Carmen. Mas, de alguma forma, Mário Cunha sabia que sempre sairia
ganhando e que ela não seria capaz de romper com ele. A própria Carmen
devia achar isso - que as aventuras de Mário eram algo com que teria de
conviver. E, por essa razão, não dispensava um toque de humor nem quando
se irritava. Como nesta dedicatória no verso de uma bela foto de seu
rosto: "Para o meu bestalhão, para que, olhando para essa linda
boquinha, me troque menos pelas outras vacas. Bituca". Mário nunca
abandonou a militância sexual, mas, na onipotência da juventude,
conseguia aplacar a violenta atração que Carmen sentia por ele e ainda
dava brilhantemente conta das outras. O impressionante é que ainda
tivesse forças para remar.

35


Em dado momento, Carmen sugeriu que, para maior conforto, deveriam ter
um ninho fixo para os seus encontros. Nesse caso, o normal seria que
Mário Cunha fizesse como os amigos e montasse uma garçonniere - um
pequeno apartamento de solteiro, que ele teria de alugar e, minimamente,
mobiliar. Mas ali entrava outra de suas características: a sovinice. Às
vezes dava presentes a Carmen, como perfumes e lenços, mas nunca jóias -
no máximo, bijuterias. Numa relação custo- benefício, a garçonniere lhe
sairia antieconômica, porque ele não poderia usá-la para aventuras
extracurriculares - estaria sempre sujeito às incertas de Carmen. Além
disso, a existência de um apartamento só para os dois se aproximaria
muito da idéia de um casamento - algo que ele sempre conseguia contornar
quando Carmen tocava no assunto. Então, continuou a ir com ela aonde ia
com todas: aos pequenos hotéis da Glória que alugavam quartos para
casais, de preferência um na rua Santo Amaro, não muito longe da
Beneficência Portuguesa.

Mário, surpreendentemente, não tinha ciúmes de Carmen - ou por confiança
no próprio taco ou, quem sabe, porque ela ainda não fosse Carmen
Miranda. Numa das poucas vezes em que a briga partiu dele, com os dois
dentro do carro, Carmen, olhando-o fixo e sorrindo, deixou-o esbravejar
à vontade. Em meio ao estrilo, foi levantando devagarinho a saia e,
quando esta lhe chegou acima dos joelhos, perguntou, sempre sorrindo:

"Vai continuar brigando?"

Nem ela sabia, mas era Carmen Miranda que já estava a caminho.

As garotas mais românticas sonhavam com que Ramon Novarro descesse da
tela, vestido de Ben- Hur, e as arrebatasse da poltrona com um beijo de
sufocar. As mais ambiciosas, ao contrário, já se viam na própria tela,
com moldura de volutas e cortinas, nos braços de um daqueles deuses
mudos, nem que fosse Lon Chaney ou Buster Keaton. Em 1926, Hollywood
tinha pouco mais de dez anos e já era a grande ilusão. Os estúdios
inventaram o star system, passaram a abastecer gratuitamente as revistas
com centenas de fotos de suas estrelas e, no mundo todo, as mulheres
queriam se parecer com elas. No Rio, desfilavam garçonetes com pestanas
à Joan Crawford, manicures com batom à Gloria Swanson, e até jornalistas
com franjinha à Pola Negri. Entrar para o cinema era uma aspiração geral
e, já que Hollywood parecia inatingível, uma chance no cinema nacional
também servia. Por isso, revistas como Selecta, Para... Todos e a
especializada Cinearte tentavam inventar similares nacionais das
estrelas americanas, para criar uma espécie de star system que
estimulasse o cinema brasileiro.



36

E, bem ou mal, este já tinha a sua estrela: a portuguesa Carmen Santos,
de 22 anos, no Brasil desde os doze. Era uma mulher bonita, expedita e
esperta. Suas fotos saíam nas revistas a três por dois, mostrando-a em
cena nos importantes filmes que vivia produzindo, dirigindo e
interpretando. O problema era: onde estavam esses filmes? Por vários
motivos, ninguém conseguia vê-los. Ou não eram completados ou não saíam
do papel. De um deles, se disse que foi rodado sem filme na máquina;
outro "incendiou-se" sem que ninguém lhe deitasse os olhos. Carmen
Santos se considerava vítima de produtores e colegas desonestos. Mas,
com ou sem filmes para mostrar, era uma celebridade. Na sua esteira,
milhares de jovens brasileiras mandavam cartas com fotos para as
revistas, esperando ser "descobertas". Entre elas, Carmen Miranda.

Possivelmente por intermédio de seu ex-patrão Luiz Caruso, Carmen
conheceu um rapaz chamado Marcos, programador dos cinemas de Francisco
Serrador e amigo de Pedro Lima, que, por sua vez, era redator da Selecta
e participava das filmagens da Benedetti Film como assistente de
produção. Marcos apresentou-a a Pedro Lima como uma jovem que "sabia
cantar e tinha vontade de trabalhar no cinema". O jornalista, pelo
visto, aprovou-a, porque a foto de Carmen, sorriso aberto, chapéu de aba
debruada e segurando a barra do vestido, foi publicada na edição de 7 de
julho daquele ano de 1926, ilustrando o artigo "Quem será a rainha do
cinema brasileiro?". O artigo referia-se a um concurso de calouros
cinematográficos promovido pelo Circuito Nacional dos Exibidores. O nome
de Carmen não era mencionado nem na legenda, que, mesmo assim, a tratava
com carinho: "Uma extra de nossa filmagem... E depois disso haverá ainda
quem duvide se podemos ou não ter estrelas?".

Não, nenhuma dúvida. A dúvida é sobre se Carmen chegou a participar como
figurante em tal filmagem. Ninguém viu essa figuração, e o filme em
produção na época do artigo de Pedro Lima, A esposa do solteiro, se
perdeu - só restaram três minutos, nos quais não há sinal de Carmen. Mas
é possível que, passando a freqüentar o "estúdio" - uma vila na rua
Tavares Bastos, nos altos do Catete, onde Paulo Benedetti rodava suas
produções -, ela tivesse sido aproveitada pelo menos numa cena, nem que
fosse de costas, para compor um grupo.

Nos dois ou três anos seguintes, Carmen continuou incansável em suas
tentativas de entrar para o cinema. Se já conhecia Paulo Benedetti e
Pedro Lima, podia dispensar-se de continuar mandando fotos para
"concursos de fotogenia feminina e varonil". Mas um desses concursos a
atraiu: o da companhia americana Fox Films, por intermédio de seu
escritório brasileiro - porque, nele, o prêmio ao rapaz e à moça
vencedores era um contrato para trabalhar em Hollywood.


37

Em janeiro de 1927, quando a Fox anunciou sua caçada aos "novos
talentos", chegaram cartas com fotos de concorrentes de todo o Brasil,
entupindo as salas da empresa, na rua da Constituição. Um júri de
figurões nacionais, presidido por um representante do magnata William
Fox, foi encarregado da seleção inicial. A primeira peneirada levou
semanas para se completar, rendendo a cobertura diária da imprensa com o
farto material publicitário produzido pela Fox. As mais lindas
expectativas se frustraram logo nesse estágio, porque o grosso dos
aspirantes já parou por ali mesmo. Entre as que foram reprovadas de
saída pelo júri inicial estavam Carmen e a paulistana Patrícia Galvão,
que em breve se tornaria Pagu, mulher de Oswald de Andrade e militante
comunista. Várias peneiradas depois, restaram três sobreviventes de cada
sexo, que foram submetidos a testes de cinema supervisionados pelo
famoso diretor de fotografia da Fox, Paul Ivano, vindo especialmente de
Hollywood. Ser filmado por Ivano já era um acontecimento, porque ele era
o fotógrafo e amante da atriz russa Alia Nazimova, que contracenara com
Valentino em A dama das camélias em 1921 - e era de retalhos como esses
que se faziam os sonhos.

Os testes foram levados para Hollywood e, dois meses depois,
anunciaram-se os vencedores: a carioca Lia Tora (née Horacia Corrêa
d"Avila), de vinte anos, com alguma experiência em dança clássica e
popular, e o jornalista paulistano Olympio Guilherme, 22 anos, sem
experiência nenhuma. Em agosto, os dois embarcaram festivamente para
Hollywood via Nova York, sob as luzes e as câmeras da Fox e abençoados
pela esperança de milhares de jovens brasileiros: a de que valia a pena
sonhar - Hollywood não era uma utopia.

Enquanto Lia Tora partia para a glória, Carmen via a sua realidade com
desgosto. Até mesmo o pífio cinema nacional parecia inatingível para
ela. E quais eram as alternativas para alguém, como ela, que tinha a
arte no sangue, no coração e no arco da sobrancelha? Do ponto de vista
da época, muito poucas.

O rádio, ainda amador e incipiente, não contava - só havia duas
emissoras, a Rádio Sociedade e a Rádio Clube do Brasil, que transmitiam
em horários alternados (não havia público para as duas ao mesmo tempo).
Como eram amadoras, não podiam sequer convidar oficialmente alguém para
se apresentar. Mas nada as impedia de receber "visitas", daí os
exercícios de piano por senhorinhas da sociedade ou recitais de poesia
pelo Clube das Vitórias-Régias. O grosso da sua programação musical, no
entanto, consistia em tocar discos de ópera e de concertos, como os do
famoso selo vermelho da Victor, todos importados. As rádios, portanto,
não contavam. A indústria de discos nacionais, por sua vez, estava em
expansão, mas era quase monopolizada por uma gravadora, a inglesa Odeon,
representada pela Casa Edison - os outros selos nacionais eram
insignificantes. E, mesmo que houvesse muitos, o predomínio da música
instrumental era absoluto, com espaço apenas para meia dúzia de cantores
(e nenhuma mulher).



38

O melhor veículo para uma garota com alguma vocação artística era o
teatro - aliás, o teatro musicado da praça Tiradentes, onde reinavam
Margarida Max, Aracy Cortes, Lia Binatti e Ottilia Amorim. Este, sim,
era uma indústria, que sustentava uma multidão de dramaturgos, coristas,
músicos, técnicos e carpinteiros. Era também do palco que saíam os
maxixes, foxes, valsas, sambas e marchas que o povo cantava durante o
ano. Como espectadora, Carmen assistia a todas as principais revistas.
Voltava para casa cantarolando, "Dondoca, Dondoca/ Anda depressa que eu
belisco essa pernoca", do popular Freitinhas, e imitando as cantoras e
os comediantes. Mas não há registro de que tenha tentado aproximar-se
das grandes companhias, como a Ba-ta-clan, a Tro-lo-ló ou a de Manuel
Pinto, para pedir emprego.

Visto de hoje, no entanto, o acaso não poderia ter escolhido época mais
favorável para Carmen despontar. Em 1927, o cinema sonoro acabara de
surgir em Hollywood. A princípio fanho e desajeitado, mas, dois anos
depois, com os primeiros filmes "falados, cantados e dançados",
provar-se-ia irreversível - e, cedo ou tarde, a novidade chegaria por
aqui. Também em 1927, no Rio, a fábrica Odeon aderiu à gravação
elétrica, lançada dois anos antes nos Estados Unidos e que fazia com que
até os cantores "sem voz" pudessem gravar. A qualidade do som melhoraria
muito, impulsionando a venda de discos e revelando o primeiro cantor
nacional de grande público: Francisco Alves. Isso atrairia outras
gravadoras para o Brasil, como a também inglesa Parlophon, subsidiária
da Odeon, a alemã Brunswick e a americana Victor, dispostas a revelar
seus próprios cartazes. A radiofonia também ganharia em potência com a
instalação de novos transmissores. Com o surgimento de mais estações, o
rádio perderia aos poucos a mania de só tocar discos de música clássica
e começaria a se abrir para a música popular. Finalmente, a partir de
1930, o samba seria entronizado como a música brasileira por excelência
e, junto com as marchinhas de Carnaval, produziria uma extraordinária
geração de compositores, letristas e cantores. E também de cantoras.

Os antigos patrões não gostavam que Carmen cantasse ao fabricar chapéus
ou vender gravatas. Mas ninguém a impedia de fazer isso na pensão de sua
mãe, enquanto ajudava a servir à mesa ou a preparar marmitas para os
clientes da vizinhança (e que ela própria ia entregar, cantando pelo
caminho). Os comensais, por sinal, gostavam muito. Um deles parecia
admirá-la mais que todos: o baiano Anibal Duarte de Oliveira, de
quarenta anos, filho de usineiros e políticos também baianos. Anibal era
boêmio, pé-de-valsa, aprendiz de violão, cantor de banheiro e, de
profissão, vagamente jornalista. Como sua carga diária de trabalho não
chegasse a extenuá-lo, podia dedicar-se a organizar festivais (shows)
beneficentes de música, bale e poesia, com amadores recrutados na
sociedade e o enxerto de um ou outro profissional. Para um show a
realizar-se em janeiro de 1929 no Instituto Nacional de Música, na rua
do Passeio, em benefício da Policlínica de Botafogo, pensou
imediatamente em Carmen. Mas o convite dependeria da aprovação do homem
que ele chamara para dirigir a parte musical do espetáculo: seu
conterrâneo, o violonista e compositor Josué de Barros. Anibal falou-lhe
da garota, mas todo o seu entusiasmo não foi suficiente - Josué insistiu
em que precisava ouvi-la.

39


Cerca de um mês antes do festival, em dezembro de 1928, Anibal levou
Carmen a Josué. O encontro foi marcado para as oito da noite, debaixo do
relógio da Galeria Cruzeiro, na avenida Rio Branco. Como Josué contaria
depois, Carmen "chegou tímida, vestida à Clara Bow" - vestidinho curto e
leve, chapéu cloche, sobrancelhas a lápis, um pega-rapaz na testa e
outro em cada orelha. A mistura de timidez com Clara Bow (famosa pelos
namoros na tela e fora dela) parecia uma contradição em termos, mas o
instinto de Josué estava certo. Clara Bow era a ""it" girl" oficial,
eleita em Hollywood pela criadora da expressão, a escritora Elinor Glyn.
Desde então, as revistas não falavam em outra coisa, e ter "it"
tornara-se uma questão de vida ou morte para todas as mulheres do mundo.
Mas, o que era "it"? Nem Elinor Glyn sabia. Segundo ela, era um quê de
difícil definição, "algo que poucas mulheres têm, que as torna
diferentes, carismáticas, e de que elas não são conscientes". Fosse o
que fosse, não era artigo que, no Rio, se comprasse na Notre Dame ou se
encomendasse à modista da rua do Ouvidor. A ditadura do "it" ficou tão
asfixiante que, por suspeitar que não o tinham, mulheres ameaçavam
atirar-se do terraço do cinema Capitólio, que era o prédio mais alto do
Rio. Carmen tinha "it" - como Josué de Barros foi o primeiro a perceber.

Não que aquele mulato alto e sisudo parecesse uma autoridade no assunto.
Aos quarenta anos, mesma idade de Anibal, Josué aparentava muito mais.
Mas seu ar cansado, paternal e quase triste apenas escondia a vida
agitada que ele levara em jovem, da Bahia à Europa, onde se apresentara
em toda espécie de palco. Com essa experiência, aprendera a reconhecer à
primeira vista o potencial de uma estrela.

"Havia uma luz intensa nos olhos de Carmen e algo de elétrico no seu
sorriso", ele diria depois.

Mas cantar era outra coisa, e só ouvindo-a para saber. Então tomaram o
carro de Anibal e foram para o palacete de um diplomata amigo deles, na
Lagoa. Ali, acompanhada por Josué ao violão, Carmen cantou um repertório
com o qual estava familiarizada: os tangos "Garufa", de Juan Antônio
Collazo, Roberto Fontaina e Victor Solino, e "Mama, yo quiero un novio",
de Ramón Collazo e do mesmo Roberto Fontaina, ambos em espanhol. Josué
vibrou com o que ouviu. O "it" da moça também se revelava no jeito de
cantar: visual, interpretativo, cheio de ademanes vocais e um jogo de
mãos e braços - mas com uma firmeza de cantora, uma musicalidade natural
e uma impecável afinação. A história dessa audição de Carmen para Josué
de Barros é conhecida, mas, no futuro, o que daria margem a especulações
seria a escolha das canções. Por que uma jovem cantora brasileira,
submetendo-se a uma espécie de teste, escolheria tangos para cantar?


40

A resposta é: porque sim. Desde pelo menos 1910, o tango saíra dos
puteiros portenhos para se consagrar nos salões de Paris e de lá voltar
como a música mais popular das Américas. E, por incrível que pareça, sua
mais forte penetração fora nos Estados Unidos. A primeira parte de "Saint
Louis blues" (1914), por exemplo, era um tango. No filme Os quatro
cavaleiros do Apocalipse (1921), Rodolfo Valentino fazia um argentino e,
embora o filme fosse mudo, milhões de mulheres queriam estar em seus
braços na seqüência em que ele dançava o tango com Alice Terry. E o que
era o charleston, a dança da juventude americana, senão um tango
acelerado? No Brasil, a presença do tango era tão maciça que não nos
contentávamos com a produção dos argentinos Discépolo, Gardel e Lê Pêra
- nos anos 20, até os brasileiríssimos Eduardo Souto, Freire Júnior,
Américo Jacomino, Joubert de Carvalho, Gastão Lamounier, Marcelo
Tupinambá, Augusto Vasseur, Henrique Vogeler e o próprio Josué de Barros
já tinham composto os seus tangos.

E Carmen estava sendo apenas coerente em relação ao que ela depois se
tornaria. Na audição para Josué, ao invés de cantar os habituais
dramalhões de adiós muchachos à média luz, Carmen escolheu dois tangos
arrabaleros, cafajestes e humorísticos:

Garufa

Pucha que sós divertido!

Garufa

YÍZ sós un caso perdido!

Tu mama

Dice que sós un bandido

Porque supo que te vieron

La otra noche

En el Parque Japonês.

Mama, yo quiero un novio Que sea milonguero Guapo y compadrón! Que no se
ponga gomina Ni fume tabaco inglês. Que non sea un almidonado Con perfil
de medallón Mama, yo quiero un novio Que ai bailar se arrugue Como un
bandoneón!

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O impressionante era o grau de atualização de Carmen - porque aqueles
tangos tinham acabado de ser lançados lá fora. "Mama, yo quiero un
novio" fora gravado pelo cantor Alberto Vila no dia 21 de setembro de
1928, menos de dois meses antes. E "Garufa" era mais recente ainda: fora
gravado, também por Vila, no dia 2 de novembro! Se estávamos em dezembro
de 1928, Carmen deve ter sido das primeiras a comprar os discos, ambos
da Victor, assim que eles chegaram ao Rio. Detalhe: nem Alberto Vila,
nem os autores daqueles tangos eram argentinos. Eram uruguaios, do grupo
tangueiro Los Atenienses, de Montevidéu - onde, aliás, os discos foram
gravados, e não em Buenos Aires.

A atualização de Carmen não se limitava aos tangos. Sua canção seguinte
na audição para Josué foi a toada "Chora, violão", recém-gravada por
Aracy Cortes e lançada também em novembro, pela Parlophon. Era o outro
lado do disco em que Aracy cantava "Jura", de Sinhô. Já era curioso que,
ao escolher um dos lados desse disco, Carmen tivesse preferido o que
fora esmagado pelo espetacular sucesso de "Jura". E, a se acreditar em
Josué, houve também o diálogo em que Carmen, ainda toda cerimoniosa, lhe
teria dito:

"Estou encantada com a maneira como o senhor me acompanhou nesta toada."

E o modesto Josué, com o rubor lhe aflorando à pele escura:

"É que eu sou o autor da letra e da música..."

Se Carmen realmente não sabia que Josué era o autor de "Chora, violão",
isso o conquistou de vez para a cantora. A partir dali, ele a
consideraria sua descoberta e, com um coração de pai, guiaria seus
primeiros passos. Mas talvez ela soubesse muito bem que a música era
dele e só por isso a tivesse escolhido. Não importa. Esse tipo de
esperteza inocente também fazia parte do seu "it".

Novos ventos iriam varrer a música popular. Até então, as canções vinham
do teatro. Não se aprendiam canções novas pelo rádio. A presença de
sambas em discos era insignificante e a de marchinhas, quase nula. Tudo
isso logo mudaria e, em grande parte, porque haveria uma Carmen Miranda.



Capítulo 3


1929 - 1930

TAÍ




Quando o baiano Josué de Barros chegou ao Rio aos dezessete anos, em
1905, quem fosse visto com um violão na rua sem motivo justo podia
acabar em cana. Para a polícia, o violão era a arma dos vagabundos,
principalmente quando mal tocado. E, por acaso, toda a bagagem de Josué
consistia em um violão, um colarinho sobressalente e as gingas que
aprendera com os boémios de Salvador. Não era muito, mas, pelo visto,
suficiente. No Rio, Josué foi morar na rua do Senado e fez amizade com
compositores da praça Onze, como o suave Caninha, o valentão Chico da
Baiana e outros bambambãs que, como ele, eram dedicados às mulheres, ao
chope e à música. Josué deu-se bem nas duas primeiras categorias e um
pouco menos na última. Até que, em 1912, sua sorte começou a mudar.

Como acompanhante de um cantor chamado Arthur Castro Budd, gravou alguns
discos que foram percebidos pelo dançarino Duque, de férias no Rio e já
famoso na Europa por ter introduzido o maxixe como dança nos salões
parisienses. Estimulados por Duque, resolveram tentar a carreira na
França. Embarcaram e, não se sabe como, agüentaram-se por alguns meses
em Paris, embora suas temporadas nas boates se limitassem a uma noite:
os proprietários gostavam da música, mas não da letra (Budd só cantava
em português), e os dispensavam de voltar no dia seguinte. Quando o pão
começou a faltar, e o brioche também, decidiram tomar o barco de volta,
o que só foi possível porque o cônsul brasileiro lhes pagou a passagem.
Na escala do navio em Lisboa, Josué e Budd pensaram em se dar uma nova
chance. Ali, quem sabe, pela identidade de língua, talvez fossem mais
bem entendidos. E foram mesmo - nem tanto pelos portugueses, mas por um
alemão, proprietário do selo Bekka, que os convidou a ir para Berlim a
fim de gravar discos de música brasileira. Eles aceitaram e, segundo
Josué, em um ano produziram na Alemanha 140 discos de maxixes, modinhas
e valsas -, o que, a ser verdade, os tornou os primeiros a gravar música
brasileira na Europa, Ganharam dinheiro, namoraram louras de tranças e,
quando já estavam se habituando a comer joelho de porco com chucrute no
café-da-manhã, Budd preferiu desfazer a dupla e voltar. E Josué, sem o
cantor, teve de voltar também. O dinheiro já fora integralmente torrado.

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De novo no Brasil, e sem ilusões para com a música, Josué começou um
longo período em que fez de tudo, inclusive casar-se, em 1915, com a
alagoana Hosanna, prima em terceiro grau do marechal Floriano Peixoto,
ex-presidente da República. Josué tinha 27 anos; Hosanna, quatorze. Em
1918, nasceu seu filho Betinho, a quem Josué, meio que por desfastio,
começou a ensinar violão quase nos intervalos das mamadeiras. Em 1922,
como capataz das obras de demolição do morro do Castelo, no Rio, e já
descrente da lenda de que havia tesouros entre os escombros, Josué
assistiu à chegada dos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura
Cabral, vindos de Lisboa na primeira travessia aérea do Atlântico Sul.
Para espanto até dele próprio, Josué resolveu igualar a proeza: pediu
demissão da obra, pegou suas economias e investiu-as na invenção de um
guarda-chuva aéreo - um pára-quedas em forma de guarda-chuva -, com que
pretendia atirar- se de um avião e pousar em triunfo no Jockey Club.

Comprou gorgorão de seda verde-amarela, barbatanas de junco e, para
servir de cabo, uma bengala de maçaranduba. Com a ajuda de um empregado
numa fábrica de guarda-chuvas, Josué conseguiu construir o bicho, no
quintal de sua casa, em Santa Teresa. Marcou o vôo para o dia seguinte e
foi pegar a licença na polícia. Assustada, Hosanna correu a uma
cartomante para saber o que o baralho reservava a seu marido. O baralho
estava contra: só saíram espadas e paus, cartas pretas, sinal de morte
certa. Mas, por sorte, a polícia negou a licença para a façanha. Josué
voltou para casa arrasado, sob forte chuva e ventania, apenas para
descobrir que, apesar dos esforços de seu parceiro, o vento arrancara o
guarda-chuva do cavalete em que estava montado e o levara céu afora -
àquela altura, já devia estar sobrevoando o Méier.

Baldado o delírio aéreo, Josué dedicou-se de novo à música. Naquele
mesmo ano, aceitou um convite de Pixinguinha para juntar-se aos Oito
Batutas, e seguiu com eles para Buenos Aires. Apresentaram-se no Teatro
Empire, gravaram na Victor argentina, beberam todo o dinheiro, brigaram
entre si e também só conseguiram voltar porque o embaixador lhes pagou
as passagens. Menos Josué, que ficou por lá - mas, para ganhar a vida,
foi trabalhar como faquir. Seu número consistia em ficar preso em uma
garrafa gigante arrolhada, sem comer, enquanto Hosanna, que o
acompanhara, jazia numa urna de cristal iluminada por quatro círios.
Josué pretendia bater o recorde do faquirismo local, chegando a dez dias
dentro da garrafa. Quando estava a ponto de igualar a marca, a mulher do
chefe de polícia fez com que o libertassem - não por compaixão, mas
porque o recorde pertencia a um argentino. Josué e Hosanna trouxeram o
número para o Brasil e se apresentaram em São Paulo, na Bahia, em
Pernambuco e no Ceará. Em meados da década, cansado de aventuras, Josué
finalmente tomou jeito. Voltou a levar o violão a sério e a compor e se
apresentar. Tornou-se um homem grave e respeitado, a quem os novos
cantores iam pedir conselhos e chamavam de "professor". E, de repente,
viu-se com um cristal bruto nas mãos - Carmen Miranda.


44

Foi Josué quem ensaiou Carmen para o festival no Instituto Nacional de
Música em janeiro de 1929. O estranho é ele ter se apresentado num
número à parte, em vez de acompanhá-la no espetáculo. Como revelou o
cronista Jota Efegê, o acompanhante de Carmen naquela noite foi o
pianista e compositor Júlio de Oliveira. Aquela seria a primeira
apresentação de Carmen para uma platéia - quatro números num programa de
amadores e principiantes, mas de que participou também um lendário
profissional: o compositor e pianista Ernesto Nazareth, aos 66 anos.
Numa histórica foto dessa noite, vêem-se Nazareth, de pé, na fila de
trás, várias pessoas não identificadas, e, na frente, sentadas no chão,
Carmen e a pequena Aurora, aos quatorze anos, ambas fingindo tocar
violão.

Assim como fizera na audição para Josué, Carmen abriu sua participação
com dois tangos, mas não os mesmos. Um deles, "Che, papusa, oi"
(aproximadamente, "Hei, beleza, escuta"), também fora lançado por
Alberto Vila, em 1927, e era igualmente de autores uruguaios, Hernán
Matos Rodríguez e Domingo Enrico Cadícamo. Se não podia ser classificado
de humorístico, "Che, papusa, oi" era um tango de costumes, vivaz e
sugestivo:

Muneca, munequita, que hablás com zeta Y que con grada posta batís
"Miché" Que con tus aspavientos de pandereta Sós Ia milonguerita de más
chique... Trajeada de bacana, bailas con corte Y por raro snobismo tomas
prissé Y que en un auto camba, de Sur a Norte Paseás como una dama
degran cachei...

Talvez vivaz e sugestivo demais: a letra falava de uma jovem airosa e
demimondaine. Mas era tão carregada de lunfardo e letras trocadas
(camba, por exemplo, era o mesmo que bacan, bacana, com as sílabas
invertidas) que devia ser incompreensível - tanto que ninguém na platéia
se chocou. (A própria Carmen não deve ter entendido metade do que
cantou.) O outro tango, o já famoso "Caminito", de 1926, era um digno
tango argentino, dos portenhos Juan de Dios Filiberto e Gabino Coria
Penaloza, e, ao contrário do que se pensa, não era uma homenagem à velha
rua de Buenos Aires - a rua é que mudara de nome por causa dele. E
também estava longe de ser um tango trágico e melodramático.

Muito mais tristes eram os dois outros números de Carmen no festival,
ambos brasileiros: o "Chora, violão", de Josué, e o novíssimo samba
"Linda flor", de Henrique Vogeler, ainda com a letra de Cândido Costa
com que fora lançado pela cantora Dulce de Almeida no Teatro Carlos
Gomes, cinco meses antes, em agosto de 1928:

45

Linda flor Tu não sabes talvez Quanto é puro o amor Que me inspira, não
crês...,

e não com a de Luiz Peixoto, que o transformara em "Ai, ioiô" para Aracy
Cortes no Teatro Recreio, em dezembro:

Ai, ioiô

Eu nasci pra sofrê Fui oiá pra você Meus oinho fechô...

"Linda flor" era um samba, um ritmo ainda considerado impróprio para a
fidalguia de certos salões - mas um samba-canção, o primeiro de que se
teve notícia, inaugurando o gênero. Em 1929, essas escolhas eram quase
as únicas possíveis num palco como o do Instituto Nacional de Música -
um reduto de eruditos e engomados, em que a simples palavra "nacional"
já impunha um tom de sobriedade e circunspecção. Nada de saracoteios em
território federal. Carmen não tomou conhecimento dessas formalidades.
Ao subir ao palco, ela era apenas parte do programa ou, mais
precisamente, ninguém. Dez minutos depois, ao descer dele, os aplausos
entusiasmados já lhe conferiam sua identidade. Chamava-se Carmen
Miranda, era de uma graça e um rebuliço nunca vistos, e dali a um mês
estaria completando vinte anos.

É certo que, naquela noite, seu Pinto, dona Maria e os irmãos de Carmen
estavam na platéia do Instituto Nacional de Música - e nem podia haver
palco mais nobre para uma estreante. Isso desfaz a história que Carmen
inventaria anos depois (e repetiria inúmeras vezes), de que começara a
cantar às escondidas do pai. A prova de que seu Pinto nada tinha a opor
a uma possível carreira artística da filha é que Carmen apresentou Josué
de Barros à família assim que o conheceu. Josué passou a freqüentar o
sobrado da travessa do Comércio e se tornou mais que um cliente da
pensão. Os ensaios com Carmen (dos quais Cecília e Aurora também se
beneficiavam) eram feitos na saleta, depois das refeições, e Josué tinha
a bóia garantida em troca do trabalho com ela. Seus planos para Carmen
eram discutidos em conselho. E seu Pinto gostou dele: com o severo Josué
como tutor, sua filha estaria "protegida" no trêfego meio musical -
ninguém lhe contou sobre o guarda-chuva aéreo e o passado de Josué como
faquir. Além disso, eles conheceram sua mulher, Hosanna, e as duas
famílias se tornaram uma só. Quanto a Carmen, em poucos dias despiu-se
de qualquer cerimônia para com Josué e passou a chamá-lo de "Barrocas".


46

Pelos cinco meses seguintes, durante o primeiro semestre de 1929, Josué
dedicou-se a aprimorar Carmen, apresentá-la a seus amigos da música e
levá-la para cantar nas estações de rádio. A principal ainda era a Rádio
Sociedade, onde ele atuava esporadicamente - e, mais uma vez, não é
verdade que os pais vissem com desagrado a presença de suas filhas no
rádio. Pelo menos, não em 1929. Em seu sexto ano no ar, a Rádio
Sociedade, agora com o italiano Felicio Mastrangelo como diretor
artístico, continuava a ser uma espécie de grêmio literomusical cujas
atividades eram captadas por um aparelho em forma de catedral e em torno
do qual as famílias ainda se reuniam com solenidade. Não por acaso, seu
diretor, Roquette-Pinto, era tido como um candidato a santo. Mas
Roquette teria de adiar a canonização - nem ele podia ser tão inflexível
quanto à programação. Sua rádio deixara de ser a única no ar. Além da
Rádio Clube, tinham surgido a Mayrink Veiga, a Philips e a Educadora, e
todas, naquele ano crucial, iriam se abrir para a música popular. Nada
que constrangesse as famílias, mas era o fim do monopólio do éter pelos
discos do Rigoletto, de Verdi, ou do I pagliacci, de Leoncavallo. Quando
Josué iniciou o périplo de Carmen pelas emissoras, já havia várias moças
"de família" se apresentando nelas - por "família", leia-se que não eram
filhas de artistas de circo ou de teatro. Algumas eram cantoras com um
sotaque lírico-dramático, como Jesy (pronuncia-se Jeci) Barbosa;
popular, como Elisa Coelho; ou folclórico, como Stefana de Macedo e Olga
Praguer. Elas eram jovens, disputadas pelos compositores, cantavam bem,
e, como tinham começado um ou dois anos antes de Carmen, podiam se
orgulhar de alguns discos gravados. Mas, em menos de um ano, Carmen já
as teria eclipsado.

Em 1929, no entanto, mesmo com o sucesso no Instituto Nacional de
Música, o coração de Carmen continuava balançando entre a música e o
cinema. Para uma jovem com as suas aspirações, era impossível resistir à
magia dos filmes. Carmen teve certeza disso quando foi inaugurado o
maior e mais bonito cineteatro da Cinelândia, o Palácio, na rua do
Passeio, com 2115 lugares entre orquestra, balcões, frisas e camarotes.
Pela primeira vez no Rio, um cinema se parecia com o nome que lhe tinham
dado. A fachada era no estilo neomourisco, típico de seu autor, o
arquiteto Adolfo Morales de los Rios. As vitrines do foyer exibiam as
roupas usadas pelas estrelas do filme, deixando Carmen extática diante
dos vestidos que acabara de ver na tela e que ali estavam, quase
palpáveis, através do vidro. As salas de espera eram perfumadas, os
lanterninhas se vestiam como soldadinhos de chumbo, as bonbonnieres
vendiam produtos da Suíça. Foi no Palácio, em junho, que Carmen assistiu
a Melodia da Broadway, o primeiro musical "de verdade", ou seja, todo
sonoro, com Bessie Love e Charles King. O cinema era mesmo uma coisa de
reis.


47

Por uma foto que mandou para a revista Cinearte (e que foi publicada),
Carmen candidatou-se a um dos três papéis femininos em Barro humano, o
filme que Adhemar Gonzaga estava produzindo em parceria com Paulo
Benedetti e que já se anunciava como o mais ambicioso do cinema
brasileiro. Mas, pesando-se os prós e os contras, sabia-se que Carmen
jamais ganharia esse papel. Podia ser desinibida e com um "despropósito
de dengues", como depois diria a seu respeito o escritor Marques Rebelo,
mas era imatura para uma personagem principal. E seu rosto, com aquele
encanto moreno, era bonito no conjunto, mas fino e anguloso, e os
padrões da época exigiam caras de lua cheia. O máximo que lhe
permitiriam seria uma figuração. Carmen tornou-se habituée das filmagens
de Barro humano na rua Tavares Bastos e, de fato, há de novo uma
possibilidade de que ela tenha aparecido como figurante em alguma cena.
Mas, se isso aconteceu, ao assistir à estréia do filme em junho, no
Império, de mãos dadas com Mário Cunha, deve ter deixado escapar uma
furtiva lágrima ao constatar que sua cena ficara no chão da sala de
montagem. Barro humano foi o filme nacional de maior bilheteria até
então, e fez com que Gonzaga, que o dirigira e escrevera, partisse para
um projeto ambicioso: a construção de um estúdio, a Cinédia, num terreno
de 8 mil metros quadrados, de propriedade de sua família, em São
Cristóvão. O entusiasmo de Gonzaga contaminou o pessoal do cinema. Um
figurante de Barro humano, Lourival Agra, fundou uma produtora, a Agra
Film, e enxergou um grande talento dramático em Carmen - tanto que,
temerariamente, a convidou a estrelar o primeiro filme de sua empresa, o
drama Degraus da vida. Com isso, dessa vez, Carmen foi um pouco mais
longe: chegou a posar para fotos de publicidade da futura produção. Mas
tudo em vão porque, depois de algumas cenas filmadas na quinta da Boa
Vista - que não a incluíam -, o projeto foi abandonado. Carmen nem
chegou perto da câmera Mitchell.

Um dos empecilhos à sonhada carreira cinematográfica de Carmen eram
certas imperfeições em seu rosto: os vestígios da violenta acne que ela
tivera quando adolescente. Certo dia, ao sair à rua com a mãe, com o
rosto cheio de bolhas supuradas, fora apontada por uma mulher que, sem o
menor tato, comentara em voz alta:

"Como é que a saúde pública permite isso?" - atribuindo seu estado a uma
varicela ou coisa pior, e insinuando que ela deveria ser isolada.

A menina Carmen fora chorando para casa. Em 1925 ou 1926, sua mãe a
levara à Beneficência Portuguesa, onde lhe fizeram um tratamento com
vacina autógena, à base da própria acne. As espinhas secaram, mas
deixaram inúmeras pequenas cicatrizes, que Carmen tentava esconder com
maquiagem. Em 1929, um amigo de Josué, o doutor Hernani de Irajá, médico e
freqüentador da Lapa, ofereceu-se para tentar resolver o problema. O
tratamento, em seu consultório na Cinelândia, consistiu na aplicação de
ácido tricloro acético e radioterapia. Por causa do ácido, Carmen teve
de ficar escondida durante mais de uma semana, esperando que as crostas
caíssem para dar lugar à pele nova. O resultado foi satisfatório, mas
Carmen nunca teria uma pele perfeita.


48

Enquanto, para ela, o cinema insistia em ser uma miragem, a música era
cada vez mais uma realidade. Josué conseguiu que Carmen se apresentasse
nas rádios, sempre de graça. E, sob a promessa de "Vou trazer uma menina
que é um colosso!", levou-a para cantar em festas e reuniões de famílias
da sociedade.

Mas o importante era gravar um disco - e, para isso, melhor do que cavar
um espaço na Odeon, já cheia de cartazes, o ideal seria submetê-la a uma
gravadora ainda sem cast, que se instalara no Rio em meados daquele ano:
a

Brunswick.

Em agosto ou setembro, Josué levou Carmen ao diretor artístico da
Brunswick, o pianista e compositor Henrique Vogeler - o mesmo autor da
melodia de "Linda flor" ("Ai, ioiô"). Se Vogeler não ouvira Carmen
cantar seu samba-canção no Instituto Nacional de Música, ouviu-a ali
mesmo, no estúdio da rua Sotero dos Reis, na praça da Bandeira, e
gostou. Mas, para a gravação do disco, talvez por insistência de Carmen,
selecionaram duas composições de Josué: o samba "Não vá simbora" [sic] e
o choro "Se o samba é moda".

Hoje, com tudo que Carmen e que nós, por tabela, ficamos devendo a Josué
de Barros, pode-se dizer que ele talvez fosse bom instrumentista, era um
homem humilde e tinha um coração do tamanho de um bonde - mas era
limitado como compositor. Pertencia à mesma geração de Eduardo Souto,
Caninha, João Pernambuco, Donga e Sinhô, e era dez anos mais velho que
Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, mas sem o brilho de qualquer um
deles. E, como letrista, aderiu a uma praga da época: os versos em
estilo matuto, popularizados em 1927 pelos Turunas da Mauricéia, o
grande conjunto pernambucano que o Rio canhestramente tentou copiar.
(Josué era um homem de poucas letras, donde certos erros típicos, como
"muié", "vancê" e "Carnavá", lhe caíam com naturalidade. Mas a praga
contaminaria também, por algum tempo, rapazes instruídos como Luiz
Peixoto, Ary Barroso, Almirante, João de Barro e até

Noel Rosa.)

Tudo, no entanto, deve ser perdoado a Josué - porque apresentar Carmen
ao mundo tornou-se, para ele, uma obsessão. E Josué tinha de lidar com
as gafes que ela cometia. No corredor da Brunswick, a caminho do estúdio
onde gravaria as duas músicas, Carmen passou por um homem alto e gordo,
com uma barriga intransponível, e que ela nunca vira. Deu-lhe uma
palmadinha na pança e comentou, com linda desfaçatez:

"Chope, hein?"

O gordo era o alemão presidente da companhia.


49

A Brunswick gravou Carmen e, como aconteceu com todos os artistas que
revelou, não soube o que fazer com ela. Em seu ano e meio de atividade
no Brasil, a companhia revelaria jovens promissores, como os cantores
Sylvio Caldas e Gastão Formenti, o flautista Benedito Lacerda e seu
grupo Gente do Morro, o conjunto vocal Bando da Lua e o cantor e
compositor Paulo de Oliveira, mais tarde lendário como Paulo da Portela.
Mas nenhum deles arrebatou de saída os lojistas. A Brunswick, fiel à sua
origem - começara na Alemanha como uma fábrica de artigos de sinuca e se
habituara a lucros rápidos -, ficou desapontada com as vendas e não teve
paciência para esperar. Em 1931, empacotou as máquinas, voltou para casa
e incendiou as pontes. Não quis saber nem dos copyrights que deixava
para trás. Pior para ela: quase em seguida, todos aqueles novatos se
tornaram grandes nomes nas outras gravadoras.

Mas os alemães nunca se enganaram tanto quanto no caso de Carmen
Miranda. Eles a tiveram em primeira mão, em fins de 1929, e a deixaram
escapar enquanto apostavam em outras que não pagaram nem o custo da
cera. Com o disco pronto desde pelo menos setembro, Carmen e Josué foram
informados de que ele só sairia em janeiro de 1930. Os dois viram nisso
um sinal de pouco- caso e não estavam dispostos a esperar pelo resultado
para saber se teriam nova chance. E a Brunswick não era a única nova
gravadora no mercado.

A outra recém-chegada ao Brasil era a Victor, singelamente conhecida
como "a marca do cachorrinho". Mas a Victor - cujos discos ajudavam a
vender os amplificadores, alto-falantes e vitrolas que sua co-irmã, a
gigante RCA, fabricava nos Estados Unidos - não tinha nada de singelo.
Seu diretor artístico no Rio, o americano Walter George Ridge, sabia o
que fazia. Para começar, cercouse de dois eminentes músicos brasileiros:
o compositor e ás do violão Rogério Guimarães, para responder pelo cast
e pelo repertório, e Pixinguinha, para cuidar dos arranjos e da regência
dos vários grupos instrumentais da gravadora. Esta última contratação
era audaciosa: pela primeira vez no Brasil, uma gravadora se atrevia a
ter um músico brasileiro - e, como se não bastasse, negro - à frente de
uma orquestra, composta de brasileiros de todas as cores, para
acompanhar seus cantores. Até então, eram os maestros e os músicos
europeus que imperavam nos estúdios por aqui. Podiam ser formidáveis em
seus países, mas maxixe nunca foi tarantela ou mazurca - o que explica o
caráter meio invertebrado e arrítmico da música gravada no Brasil até
1929. Com Pixinguinha na caneta e na batuta, isso iria mudar.

Em novembro, Josué de Barros foi ao escritório da Victor, na rua do
Ouvidor, 15, a cem metros do sobrado onde Carmen morava, para tentar que
Rogério Guimarães ouvisse sua protegida. Mas Rogério não estava
interessado. Não que tivesse algo contra ela - apenas a Victor
contratara Jesy Barbosa e já se julgava servida no quesito cantora. O
que se passou ali, pelo que Rogério contaria depois, lembrava uma cena
de comédia de Harold Lloyd: o querido Josué, de joelhos, implorando para
que ele aceitasse testar Carmen. Finalmente, Rogério concordou - embora
em sua decisão deva ter pesado a opinião de Pixinguinha, que, desde que
a Victor se instalara ao lado da travessa do Comércio, se tornara
cliente da pensão de dona Maria e já ouvira Carmen cantar. Rogério não
apenas ouviu Carmen e a aprovou como se encantou com sua voz e sua
personalidade.


50

Ali estava uma cantora como nenhuma outra no Brasil. Aliás, praticamente
não havia com quem compará-la. Havia as cantoras de salão, como Elisinha
Coelho e a própria Jesy, muito competentes, mas de uma reverência quase
religiosa diante do microfone. E havia as cantoras do teatro, que só às
vezes gravavam, como a estupenda Aracy Cortes, uma soprano valente e
afinadíssima, mas mais interessada na nota certa (que ela infalivelmente
alcançava) do que na interpretação. Seus agudos causavam sensação no
palco. Só que o teatro era uma coisa e o disco, outra. Carmen, também
soprano e também afinadíssima, com uma dicção de cristal, não alcançava
a extensão de Aracy nos agudos, mas tinha mais peso na voz e capacidade
de trabalhar igualmente nos médios. Isso indicava seu potencial para
cantar numa variedade de ritmos e estilos. E Carmen tinha a
interpretação, a bossa da cantora de rua - um talento para enxergar nas
entrelinhas das frases, tomar liberdades com a melodia e surpreender o
ouvinte com seus achados. Não precisava ser vista para agradar - embora
quando isso acontecesse, nas fotos e nas apresentações em público, sua
beleza e vivacidade e o fato de cantar sorrindo pudessem torná-la muito
popular.

Rogério pensou em termos estratégicos. Ali se decidiu que Carmen
ganharia um contrato para alguns discos, a ser assinado por seu pai, por
ela ainda não ter 21 anos. Se os discos dessem certo, firmaria um
contrato de exclusividade. Mais importante: só cantaria música
brasileira (nada de tangos) e, enquanto pudesse, a publicidade da
companhia omitiria o fato de ela ter nascido em Portugal - para não
pensarem que era uma cantora de fados, viras e fandangos.

O estúdio da Victor ficava na rua do Mercado, 22, também a cem metros da
travessa do Comércio - jamais alguém precisou andar tão pouco para sair
do anonimato. Foi essa a distância que, no dia 4 de dezembro, Carmen
percorreu entre sua casa e o microfone para gravar a canção-toada
"Triste jandaia" e o samba "Dona Balbina", sempre de Josué. Dias depois,
ao voltar à Victor para escutar a prova, Carmen gostou tanto do som de
sua voz que se sentou no chão para rir.

A Victor não perdeu tempo. Acelerou a prensagem em sua fábrica,
instalada em São Paulo, e pôs o disco nas lojas do Rio em princípios de
janeiro de 1930, quase ao mesmo tempo que o da Brunswick. E, enquanto
este passou em branco pelas lojas, o da Victor não deixou dúvidas para o
público: havia uma nova cantora na praça. Ou duas - uma em cada lado do
disco. A Carmen de "Triste jandaia" era ingênua, quase infantil, bem de
acordo com a letra; a de "Dona Balbina" era adulta, sensual e maliciosa,
especialmente com os cacos de "meu nego" e "não é?", acrescentados à
letra por ela. Ao se escutar os dois lados, tinha-se a impressão de uma
intérprete completa. Mas era só impressão - porque o ano de 1930 ainda
reservava um punhado de outras Carmens para revelar.


51

Nos dias 22 e 23 de janeiro, muito antes do que esperava, Carmen foi
chamada de volta ao estúdio para gravar. Dessa vez o repertório
consistia do samba "Burucutum", de Sinhô, o samba-canção "Mamãe não
quer...", de Américo de Carvalho, e a marchinha "Iaiá, ioiô", de Josué.
De olho no Carnaval, que cairia no começo de março, a Victor acoplou as
duas faixas mais alegres, "Burucutum" e "Iaiá, ioiô", e mandou prensar.
Mas, antes que o novo disco chegasse às lojas, um encontro fortuito,
numa loja de música, reuniu Carmen e o compositor Joubert de Carvalho.

Fortuito mesmo, porque, pela soma de improbabilidades, dele não deveria
ter saído nada de mais. Mas desse encontro, em janeiro, resultou a
marchinha "Pra você gostar de mim", mais conhecida por "Taí". E, dali, a
fulminante consagração de Carmen, num Carnaval tão rico que dividiria a
música popular brasileira em antes e depois daqueles três ou quatro dias
de 1930.

Conforme a história já muito contada, o educado e retraído Joubert de
Carvalho, então famoso pela canção "Tutu marambá", passava pela rua
Gonçalves Dias quando foi chamado pelo senhor Abreu, gerente de A Melodia,
loja de discos e partituras ao lado da Confeitaria Colombo, para ouvir
um disco que acabara de sair. O disco era "Triste jandaia", com a
desconhecida Carmen Miranda. Segundo Joubert, a audição lhe provocou uma
sensação inédita: a de estar vendo a cantora, "como se ela estivesse
dentro da vitrola". Joubert fez Abreu tocar o disco várias vezes, sempre
gostando mais, e lhe pediu que, um dia, o apresentasse à garota. Abreu
respondeu que não haveria dificuldade nisso, porque Carmen, como muitos
cantores e compositores, ia com freqüência à loja. O acaso então fez das
suas, e Carmen em pessoa - maquiada, saltos altos, elegantíssima -
entrou pela porta da Melodia.

"Taí a nova cantora!", exclamou Abreu.

Os dois foram apresentados e Joubert falou de seu interesse em compor
algo para ela. Carmen, encantada, deu-lhe o endereço, e os dois se
despediram. Joubert saiu da loja com uma palavra - "Taí" - e uma melodia
na cabeça. Menos de 24 horas depois, com a partitura debaixo do braço,
tocou a campainha de Carmen na travessa do Comércio.

A porta se abriu lá em cima e Carmen surgiu no alto da escada, com um
vestido caseiro, sem pintura e descalça. A princípio, Joubert não a
identificou.

"Sou eu mesma", disse Carmen. "Você não está me reconhecendo porque
estou sem a máscara de ontem. Vamos lá, suba!"

A música era uma marchinha, "Pra você gostar de mim", não
necessariamente carnavalesca. Não havia piano em casa - sintoma de
pobreza numa família cheia de moças -, donde Joubert cantou-a para
Carmen em seu estilo seresteiro:


Taí!

Eu fiz tudo pra você gostar de mim

Oh, meu bem, não faz assim comigo, não...

Carmen a aprendeu logo e, quando Joubert tentou orientar sua
interpretação, ela disse, com um brilho no olhar:

"Não precisa me ensinar, não, que, na hora da bossa, eu entro com a
boçalidade."

E, captando um certo choque no rosto do educado Joubert, logo se
corrigiu:

"Desculpe, mas eu sou assim mesmo, meio desabrida!" Não se sabe o dia do
encontro entre Carmen e Joubert na Melodia. Pode-se garantir que foi nos
primeiros dias de janeiro de 1930, porque "Triste jandaia" tinha acabado
de sair. Mas sabe-se o dia exato em que ela gravou "Pra você gostar de
mim": 27 de janeiro. Isso significa que, em cerca de vinte dias, Carmen
criou sua interpretação da marchinha, submeteu-a a Rogério Guimarães,
este a aprovou, ela foi orquestrada por Pixinguinha, ensaiada por Carmen
com a orquestra e finalmente gravada. A matriz foi enviada para São
Paulo, prensaram-se os discos e eles foram despachados para o Rio. A
Victor pode ter açulado a fábrica para acelerar o processo, mas, com o
abismo de comunicação entre as duas cidades, dificilmente os discos
chegaram às lojas cariocas antes de 10 de fevereiro.

Quando isso aconteceu, a cidade, já numa euforia de pré-Carnaval,
cantava dois surpreendentes sucessos: "Iaiá, ioiô", o disco anterior de
Carmen, e "Dá nela", do também novato Ary Barroso, gravada por Francisco
Alves na Odeon. Nas duas semanas e meia seguintes, deu-se a outra
surpresa: "Taí", como o povo chamou "Pra você gostar de mim",
alastrou-se pelos blocos de rua e pelos bailes, e chegou ao sábado de
Carnaval, no dia 1 de março, cantada por milhares de bocas. Por que a
surpresa? Porque eram três marchinhas - coisa praticamente inédita na
história do Carnaval.

Não havia, até então, o Carnaval das marchinhas. As poucas que o povo
cantara desde a invenção do gênero, por volta de 1920, nunca tinham
suplantado os sambas, que dominavam o Carnaval. O próprio samba, só ali,
pelo fim da década, começava a perder o acento do maxixe, substituído
pelas frases longas e langorosas dos sambistas do Estácio, mais fáceis
de cantar em movimento. Mesmo assim, em 1930, foi ainda um samba
(chamado de choro no selo do disco) que prevaleceu: "Na Pavuna", de
Homero Dornellas e Almirante, gravado por este e pelo Bando de Tangarás
num revolucionário disco da Parlophon. E por que revolucionário? Por ter
sido o primeiro a usar os instrumentos de percussão dos blocos numa
gravação - pandeiros, cuícas, tamborins, surdo e ganzá. Que diferença
isso passou a fazer numa orquestra! Era como se, de repente, um exército
de arma branca fosse equipado com canhões. A idéia do acompanhamento
também tinha sido de Almirante, mas ele tivera primeiro de convencer
Herr Strauss, diretor da gravadora, a permitir a entrada em estúdio
daqueles negros portando os instrumentos da barbárie. O resultado foi o
que se viu - e não admira que, pelos anos afora, Almirante falasse na
"loucura do Carnaval de 1930".

53


Foi nessa maravilhosa loucura que Carmen e Almirante se conheceram - um
encontro festivo na Avenida, provocado pela multidão que os espremeu e
aproximou, sob muita chuva, em meio a nuvens de confete molhado e jatos
de lança-perfume. Naquele momento, ao som de seus discos nos
alto-falantes e da massa que fazia coro, o Rio lhes pertencia. Carmen,
com "Iaiá, ioiô" e "Taí", e Almirante, com "Na Pavuna", eram os
porta-vozes da alegria nacional. Para a asfixiante juventude de ambos -
ela, 21 anos recém-feitos; ele, 22 -, aquele Carnaval deveria durar para
sempre, estender-se pelo resto do ano, atropelar a Quaresma, não chegar
nunca à Quarta-Feira de Cinzas. Pouco depois, uma nova onda de foliões
fantasiados os separou, cada qual com sua glória. Carmen e Almirante não
sabiam, mas, graças a eles, os ecos daquele Carnaval ficariam no ar por
muitos anos: as marchinhas reinariam por três décadas e os estúdios de
gravação nunca mais calariam os tamborins.

Por ter saído pelo menos uma semana antes, "Iaiá, ioiô" superou "Taí" em
popularidade no Carnaval de 1930. Mas a marchinha de Josué de Barros
morreu de morte natural na Quarta-Feira de Cinzas, ao passo que a de
Joubert de Carvalho continuou a ser executada o ano inteiro e chegou com
toda a força ao Carnaval de 1931 - primeira e única vez que isso
aconteceu na história do Carnaval. A Victor estimou a venda de "Taí" em
35 mil discos somente no primeiro ano - número descomunal, sabendo-se
que, até então, mil discos representavam uma vendagem muito boa até para
cartazes como Chico Alves ou Mário Reis. (Se isso parece pouco, deve-se
considerar que o Brasil tinha menos de 40 milhões de habitantes, 70% dos
quais vivendo na roça ou em pequenas cidades, aonde os discos mal
chegavam; que, na maioria das capitais, o número de vitrolas era ínfimo;
e que o rádio, com seus aparelhos baratos e audição gratuita, provocara
uma crise mundial na indústria fonográfica. Em 1930, os 35 mil discos de
"Taí" eram o equivalente a 3 milhões e meio de hoje.)

Ninguém mais espantado com aqueles números do que o mineiro Joubert de
Carvalho, filho de ricos fazendeiros e pianista autodidata. Aos trinta
anos, e já com uma fieira de sucessos no embornal, nunca escrevera uma
marchinha, nem mesmo um samba, e o Carnaval era a última de suas
preocupações. Seu forte eram os tangos, valsas, foxes, canções e outros
andamentos românticos, em que ele próprio, ou Olegario Mariano, o "poeta
das cigarras", pudesse encaixar letras que falassem ao coração. Na vida
profana, Joubert era, não por acaso, cardiologista, formado pela
Faculdade Nacional de Medicina - sua tese de conclusão do curso, em
1925, se intitulara "Sopros musicais do coração". Era também casado,
constante leitor de filosofia e com forte inclinação mística. Por dormir
cedo, ou por timidez, não se passava pela boêmia musical da Lapa e,
quando encontrava os colegas na calçada do Café Nice, na avenida Rio
Branco, mantinha-se a um braço de distância. Os sambistas o tratavam,
com respeito ou ironia, por "Doutor Joubert". É quase incompreensível
que, depois de ouvir Carmen num disco e vê-la por menos de cinco
minutos, ela lhe tenha inspirado uma marchinha tão incendiariamente
carnavalesca.


54


Na verdade, Joubert não criara "Taí" com essa intenção. Escrevera-a como
uma marcha-canção, a ser cantada, talvez, com olhos cismadores e um
travo de melancolia - como faria, dois anos depois, com "Maringá", para
Gastão Formenti. Foi Carmen quem transformou "Taí" numa marcha de
Carnaval, e o arranjo de Pixinguinha, com a cumplicidade de Rogério
Guimarães, completou a mágica. A Victor fingiu respeitar a concepção de
Joubert e imprimiu "marcha-canção" no selo do disco - mas, na folha de
registro da gravação, para uso interno, o funcionário escreveu: "Marcha
carnavalesca". E foi assim que a Victor a tratou, apressando sua
prensagem para que ela conseguisse sair antes do Carnaval.

Ao contrário da norma de então - que era a de o compositor assistir à
gravação de dentro do estúdio -, Joubert, de acordo com sua
personalidade, não participou. Só foi ouvir o disco depois que ele ficou
pronto. E sua reação é conhecida: gostou de Carmen, mas detestou o
acompanhamento. Acusou Pixinguinha de ter feito um arranjo de "bandinha
de circo", confessou ter ficado "indignado" e ameaçou "armar um bruto
barulho", inclusive para impedir a circulação do disco. Mas teve bom
senso e ficou só na ameaça. O espantoso sucesso da marchinha dissipou as
querelas.

Para Carmen, "Taí" foi o primeiro sinal do que a vida lhe reservava - o
dinheiro em dimensões que ela nunca imaginara. O contrato com a Victor,
relativo apenas àquela gravação, lhe assegurava duzentos réis por face
(ou seja, quatrocentos réis por disco vendido). Ninguém deu atenção ao
lado A do disco, com "Mamãe não quer...", do obscuro Américo de
Carvalho. Foi "Taí", no lado B, que vendeu as 35 mil cópias e rendeu a
Carmen a fortuna de quatorze contos de réis - cerca de quinhentos
dólares de 1930.* Para se avaliar melhor esse valor, o grande prêmio da
Loteria Federal pagava, na mesma época, 25 contos - donde "Taí"
equivaleu a mais de meio bilhete premiado. Mas Carmen não recebeu os
bagarotes todos de uma vez. A praxe era o cantor passar de tempos em
tempos na gravadora, para saber se havia "algum". O pagamento era feito
em dinheiro, na boca do caixa, e, de mês em mês, Carmen voltava para
casa com a carteira estufada de notas.

* As quantias em dólar devem ser multiplicadas por pelo menos trinta
para se ter uma idéia do seu valor em nossos dias. E, quando se diz que
Carmen ou qualquer cantor "gravou um disco", isso se refere a um disco
simples, de 78 rpm, com uma música em cada lado (ou "face").

55

A cada bolada que recebia, Carmen tomava uma providência quanto à
família. A primeira foi contratar uma cozinheira para dona Maria, para
aliviá-la da estiva no fogão, a que a obrigavam os pensionistas. Depois,
tirou seu Pinto das modestas instalações da barbearia na rua da
Misericórdia e montou-lhe um grande salão na rua Primeiro de Março, 95 -
ainda mais perto de casa e com uma cadeira de luxo só para ele. Comprou
também um telefone para a família (embora fosse ela a usá-lo quase o
tempo todo) e uma nova mobília de quarto para os pais. Juntando seus
rendimentos aos da barbearia e da pensão, já não se podia dizer que
levavam uma vida apertada. E Carmen começou a fazer planos para se
mudarem da travessa do Comércio.

Naquele ano de 1930, a família se reuniu para uma foto num estúdio da
cidade. O resultado foi um belo retrato para o álbum. Na frente, dona
Maria e seu Pinto, entre Tatá e Mocotó. Atrás, as quatro filhas: Olinda,
Aurora, Carmen e Cecília, com Carmen bem ao centro, entre os pais, e a
única ensaiando um sorriso. Era uma bonita família. As moças eram todas
morenas - morenice herdada do pai. Os rapazes eram mais claros,
principalmente o caçula Tatá. Mas os únicos olhos verdes eram os de
Carmen, puxados de um irmão de dona Maria. E dona Maria também era
bonita. Tinha dentes grandes e bem alinhados. Todos os seus filhos
nasceram com esses dentes.

A foto só tinha um senão: ao bater-se a chapa, Olinda não estava ali.
Era uma colagem. Uma foto sua, tirada em outro lugar e época, fora
recortada e aplicada à foto da família, talvez pelo mesmo profissional.
As cópias já foram feitas com a inclusão de Olinda. Era falso, mas, com
isso, dona Maria tinha a ilusão de estar cercada pela família completa.
Naquele dia, Olinda continuava no sanatório do Caramulo, em Portugal, e
o rosto sereno que ela exibe na montagem não correspondia ao tormento
que voltara à sua vida.

Um ano antes, quando parecia ter superado o trauma que a levara à
tuberculose, ela recebera uma inesperada visita no sanatório: seu
ex-noivo Feliciano. Ele lhe aparecera sozinho, sem aliança no dedo e
alegando ter se separado da mulher com quem, segundo jurou, tivera de se
casar à força. Agora propunha que, quando Olinda recebesse alta e
voltasse para o Rio, ela lhe desse uma nova oportunidade. Olinda
acreditou em Feliciano e, por alguns dias, viveu com ele um idílio no
Caramulo. Quando Feliciano se despediu para o retorno ao Brasil, era
como se estivessem mais uma vez noivos. Nos meses seguintes, escrevendo
para a família, Olinda falou de sua alegria e de como aquilo contribuía
para sua recuperação. Até chegar a notícia fatal: numa carta, Feliciano
contou que se casara de novo no Rio, não se sabe se com a mesma ou se
com outra mulher. Olinda voltou a se abater e, dessa vez, para sempre.

Enquanto Olinda vivia seu drama no sanatório, outra irmã de Carmen,
Cecília, protagonizava momentos mais felizes no Rio. Aos dezesseis anos,
ela gostou de Abílio, jovem comerciante português da rua do Acre, amigo
de Mocotó e que tomava pensão com dona Maria. Abílio também gostou de
Cecília


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e a pediu em casamento, embora se sentisse muito olhado por Carmen e até
por Aurora, que só tinha quinze anos. O interesse de Carmen por Abílio
era apenas esportivo, sabendo-se de sua paixão por Mário Cunha. Mas isso
não a impediu de, ao passar por ele, dizer, com ar gaiato:

"Aí, hein? Escolheu a zarolha, né?" - numa referência ao estrabismo de
Cecília, que se seguira à sua queda da janela na rua da Candelária.

Seu Pinto e dona Maria consentiram no casamento, que foi marcado para
julho de 1931. A única nota destoante na festa de noivado foi dada por
Joubert de Carvalho, em sua função de médico. Já amigo da família e
conhecendo Abílio (pode tê-lo examinado em seu consultório), ele se
sentiu na obrigação de advertir seu Pinto:

"Abílio sofre de reumatismo muscular cardíaco. Pode escrever o que estou
dizendo: Cecília só terá marido para sete ou oito anos."

Mário Cunha assistia ao sucesso de Carmen com indisfarçável orgulho. Nos
primeiros anos do namoro, por ser a vedete do remo do Flamengo, era ele
a celebridade do casal. Agora, a situação se invertera: Carmen é que era
a estrela, com nome nos jornais e foto nas revistas. Mário Cunha, a seu
lado em público, limitava-se a fazer número, mas nem por isso sentia seu
status diminuído. Nas ruas, de carro ou a pé, era apontado como "o
namorado de Carmen Miranda" - o que o tornava ainda mais desejável para
as mulheres. E com Carmen tão ocupada, sobrava tempo para Mário Cunha
dedicar-se às matinês e vesperais amorosas. Mas a notoriedade extra que
adquirira o deixara também mais exposto, e não faltava quem informasse a
Carmen ou a uma de suas irmãs que ele tinha sido visto a bordo de alguma
mulher. Por fazer Carmen sofrer, a cotação de Mário Cunha perdeu pontos
junto a dona Maria. Suas visitas à travessa do Comércio escassearam.

Carmen calculou que era hora de dar-lhe uma lição. E a melhor maneira de
fazer isso seria simular interesse por um dos muitos que, ultimamente,
caíam feito moscas sobre ela.

Um deles era um importante comerciante, baixinho e obeso, que lhe
mandava, todos os dias, um vidro de perfume francês. Quando o motorista
estacionava o Lancia do patrão na porta da travessa da Comércio, Carmen
dizia,

com tédio:

"Xiii! Lá vem mais um frasco de perfume. Acho que vou abrir uma botica!"


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Mário Cunha e toda a rua sabiam dele, e sabiam também que ela o achava
ridículo. Donde este estava fora de questão. Mas havia um colega de
Carmen na Victor, o cantor Breno Ferreira, boa- pinta, descendente de
alemães e futuro autor de "Andorinha preta". Breno arrastou a asa para
Carmen e ela lhe deu corda, especialmente quando sabia que Mário Cunha
estava nas proximidades. Nunca houve nada entre eles, no máximo um
jantar em São Paulo, onde os dois foram gravar em agosto. Mas isso foi
suficiente para Breno sair da história convencido de que namorara
Carmen. E o efeito sobre Mário Cunha também foi nenhum, porque ele sabia
que era uma encenação. Assim, Mário continuou nas lides, como sempre.

Uma rica madame, moradora da praia do Russell, pediu a seu amigo, o
violonista Bororó, que convidasse para cear com ela, a sós e à luz de
velas, "aquele rapaz bonito que se veste de branco e que vive grudado na
Carmen Miranda". Bororó ainda estava longe de ser o autor de "Curare" e
"Da cor do pecado", e embolsou alegremente os 200 mil réis que ela lhe
deu pelo serviço de alcoviteiro. Mário Cunha aceitou o convite e bateu à
porta do palacete na hora marcada. Talvez por a mulher não preencher
certos requisitos - devia ser muito, muito velha -, ele se limitou a
exibir seus bíceps e arcada dentária e a falar de seus feitos náuticos.
Mais tarde, a excelente comida e os vinhos, a que ele não estava
habituado, fizeram efeito - e Mário Cunha teve de ser conduzido a um
sofá, onde dormiu e roncou direto. No meio da noite, a mulher telefonou
para Bororó:

"Quer ganhar mais duzentos, Bororó? Então venha tirar esse "atleta"
daqui."

No dia seguinte, Bororó, morrendo de rir, contou a história a Carmen,
que fingiu também achar uma pândega. Mas, à noite, cobrou-a, dente por
dente, de Mário Cunha. E, como sempre, o perdoou.

Mário Cunha tinha razões até por escrito para se sentir tão seguro em
relação a Carmen. Era só ler as dedicatórias das fotos que ela lhe
oferecia - "Bituca, todo o meu sucesso será para você, se eu o tiver,
sim? Bituquinha", ou: "Para você, para que te lembres sempre desta feia,
sim?", ou: "Marinho, meu idolatrado. Como eu tenho ciúmes de ti". Pois
todas essas dedicatórias são posteriores a "Taí", quando Carmen já não
conseguia dar conta de seus compromissos de estúdio, apresentações em
clubes e teatros, solicitações para fotos e entrevistas.

E quando, no papel de Carmen Miranda, estava se tornando a mulher mais
admirada e desejada do Brasil.



Capítulo 4



1930 - 1931

Rainha do disco




No dia 13 de setembro de 1930, Carmen estava na coxia do Teatro João
Caetano, na praça Tiradentes, pronta para entrar e cantar "Taí" em Vai
dar o que falar, a nova revista musical da cidade. A produção era
caprichada, com cenários que tomavam o enorme palco do João Caetano. No
fosso, uma orquestra de vinte figuras. Do teto, efeitos de luz "dignos
de Paris". O espetáculo tinha 35 quadros, entre esquetes humorísticos de
Luiz Peixoto e Marques Porto e números musicais a cargo do veterano
Augusto Vasseur e do compositor revelação do ano, Ary Barroso.

Era a estréia de Carmen no gênero que tradicionalmente consagrava os
cantores brasileiros. Mas Carmen, invertendo essa longa tradição, já
chegava a ele consagrada. Até ali, os cantores tinham de se tornar
estrelas do teatro de revista para serem convidados a gravar um disco.
Carmen começara por cima, pelos discos, e só agora, pelo assédio de Luiz
Peixoto, se dava ao luxo de aparecer numa revista. Houve até quem se
espantasse por ela ter aceitado - o que só fez sob a garantia de não ter
de participar de esquetes cômicos, limitando-se a cantar alguns de seus
sucessos. Mas, pelo que aconteceu no João Caetano pouco antes de sua
entrada em cena, a carreira de Carmen no teatro de revista não passaria
daquela noite.

O número que a antecedia mostrava o Mangue, a zona do baixo meretrício
carioca, num cenário altamente estilizado, com malandros, marinheiros e
cafetões desfilando diante de janelas em que se viam silhuetas de
mulheres seminuas. Em dado momento, PMS montando cavalos de verdade
desfilariam pelo palco, certificando-se de que a zona estava em paz e
sossego. Não se sabe quais seriam as demais atrações do quadro, porque
ele acabou logo depois de começar.

Assim que o pano subiu e o elenco se movimentou, parte da platéia
reconheceu o cenário e começou a vaiar. Os que tentavam fazer "Psiu!"
foram silenciados pelos assobios e pela pateada. Ouviram-se gritos de
"Canalhas! Imorais! Depravados!". Um homem nas frisas berrou,
apoplético: "Isto é uma afronta à família brasileira!". Objetos eram
atirados ao palco. O elenco fugiu correndo, com as coristas chorando e
os figurantes se chocando no atropelo. Em meio ao pandemônio, ouviu-se
um estampido, talvez de tiro. Os cavalos se assustaram nas coxias e
invadiram o cenário a galope. Zoeira geral - caos no palco, na platéia e
nos bastidores. As cortinas desceram e continuaram a ser bombardeadas
por objetos, enquanto metade dos espectadores se retirava. Lá dentro, o
telão do Mangue foi levantado às pressas, deixando o palco nu. O
espetáculo tinha sido literalmente posto abaixo.

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O contra-regra ordenou:

"Vai, Carmen! Vai!"

Era sob esse clima que a aturdida Carmen, também chorando, deveria
entrar para cantar "Taí".

O experiente comediante Palitos, tio de um jovem chamado Oscarito,
mandou Carmen esperar e entrou na frente. Pediu calma à platéia e chamou
de volta os espectadores que estavam indo embora. Depois se desculpou em
nome da companhia. Mas fez isso só formalmente, porque não havia do que
se desculpar - o quadro do Mangue não era muito diferente do que se
praticava no teatro de revista que, desde 1859, fazia a delícia da
"família brasileira". E desde quando a prostituição era novidade? Pois,
se era a especialidade do bairro mais famoso do Rio, a Lapa -
freqüentada pelas mesmas pessoas que estavam ali vaiando!

Na verdade, a aversão a Vai dar o que falar começara na véspera, como se
tivesse sido encomendada. Os jornais de oposição ao prefeito estavam
revoltados pela cessão do Teatro João Caetano, controlado pela
prefeitura, a um tipo de espetáculo que para eles só cabia em palcos
fuleiros, como o do Teatro Recreio. Mas o Recreio estava em obras, e o
produtor, o português Antônio Neves, misto de importador de banha e
empresário teatral, conseguira justamente o João Caetano. E aí estava o
problema: a cidade ainda não se recuperara da demolição do lindo Teatro
São Pedro de Alcântara, que existia naquele lugar desde 1813, e sua
substituição pelo João Caetano, inaugurado em junho, menos de três meses
antes. O velho São Pedro tinha toda uma história. Fora de seu camarote
real, quando ainda se chamava Teatro São João, que, na noite de 10 de
janeiro de 1822, o príncipe dom Pedro foi aclamado pela sociedade ao
repetir o "Fico!" que dissera à tarde de uma janela do Paço. Depois, o
teatro se tornara o favorito do imperador Pedro I, e seu palco recebera
um naipe de divas européias, de Bernhardt a Galli-Curci. Mesmo assim,
fora derrubado pelo prefeito do Rio, o paulista Prado Júnior, nomeado
pelo presidente Washington Luiz. E, quando se pensava que o novo prédio,
apesar da fachada futurista e art déco, fosse respeitar aquele passado,
vinha a prefeitura e o cedia à "troupe da maxixada". O quadro do Mangue
fora só o pretexto para o tumulto.

Outra versão, muito menos nobre, afirmava que o distúrbio fora incitado
por Mathias da Silva, o notório proprietário da Casa Mathias, uma loja
de artigos gerais na avenida Passos. Teria sido dele o grito contra a
"afronta à família brasileira" - mas por motivos estritamente pessoais
contra seu patrício Antônio Neves. Só podia ser, dizia-se - porque
Mathias estava longe de poder dar lições de moral a quem quer que fosse.
Os anúncios de seu estabelecimento nos jornais, escritos por ele, também
eram uma "afronta à família", pela formidável grossura. Tinham como mote
as aventuras entre o próprio Mathias e a cabrocha Virgulina (que o
chamava de "meu xodó cheiroso"), porta-bandeira do Bloco dos
Lanfranhudos, o qual saía da Casa Mathias no Carnaval. (Lánfranhudo
queria dizer valentão.) Não admira que Mathias visse Antônio Neves como
seu concorrente direto na colônia. Os dois deviam estar às turras
naquela época. Mathias tentou melar o sucesso do rival e, com isso, quem
quase levou a breca foi o elenco da revista.


60


Palitos conseguiu acalmar a turba e convocou Carmen. Isso é que era
prova de fogo - principalmente porque, de certa forma, era a primeira
vez que ela enfrentava uma platéia de verdade, não a dos shows
beneficentes. Carmen recompôs-se. Entrou, cantou "Taí", relampejou o
brilho dos dentes, despejou chispas com os olhos e saiu sob aplausos.
Depois disso, a revista pôde chegar ao final. No dia seguinte, os
jornais arrasaram todo mundo - os autores, o espetáculo e a platéia -, e
pouparam Carmen, em quem viram um talento para o teatro musicado. Mas
Carmen não precisava daquilo. Pediu dispensa a Luiz Peixoto. Não voltou
mais e Vai dar o que falar, mesmo com o expurgo do quadro maldito, só se
agüentou por uma semana em cartaz.

Nada atingia Carmen. Seu começo de carreira fora tão explosivo que, em
apenas nove meses daquele ano, de janeiro a setembro, ela fizera de si
uma estrela. Apenas nesse período, enquanto as vendas de "Taí" exigiam
prensagens sucessivas, a Victor lhe dera outras 28 músicas - quatorze
discos - para gravar. Era um investimento inédito de uma gravadora
brasileira numa só artista. Significava que, a cada dezoito dias de
1930, saía um disco novo de Carmen Miranda.

Um ano antes, em novembro de 1929, quando Carmen ainda não tinha nenhum
disco na praça e só uns poucos a conheciam, Beira-Mar publicara uma foto
sua (de maio, na praia) com a legenda, "Mademoiselle" Carmen Miranda, silhueta
iluminada e galante de nossa sociedade, que será uma séria competidora
ao concurso de beleza de 1930". O jornal se referia ao concurso que
escolheria a Miss Rio de Janeiro, a qual disputaria o concurso de Miss
Brasil, e a vencedora deste, o de Miss Universo - tudo isso no Rio, no
primeiro semestre de 1930. A iniciativa de lançar Carmen parece ter
partido do jornal, embora não se possa desprezar um possível dedo de
Mário Cunha na história. Mas, entre a publicação da foto, em novembro, e
a disputa do título de Miss Rio de Janeiro, no dia 20 de março, Carmen
já não poderia ser candidata a miss, mesmo que quisesse - ficara famosa
demais como cantora.


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E, assim, em vez de desfilar pelo Praia Club, na avenida Atlântica, como
uma humilde representante da praça Quinze ou de qualquer bairro na festa
em homenagem às misses cariocas, Carmen foi a convidada de honra do
evento. "Taí" a tornara mais importante que a vencedora, que acabou
sendo a senhorita Marina Torre, ou que a beldade gaúcha Yolanda Pereira,
que, meses depois, venceria o Miss Brasil e o Miss Universo. (Não que
Carmen não pudesse ter concorrido. Como se não bastassem seus atributos
óbvios, o humorista Barbosa Júnior a definiria como tendo "um
quequequé-catrai" - um quê qualquer que atrai.)

No começo de 1930, Carmen já não chegava para os convites. Os colegas da
música exigiam sua presença nas "noites de arte" ou "de samba e violões"
que realizavam nos teatros e cinemas. Eram espetáculos em que vários
artistas se apresentavam (de graça) em torno de um deles. Em março,
cantou com Vicente Celestino numa cerimônia religiosa na Igreja do
Salete, no Catumbi; em abril, Francisco Alves a chamou para sua "noite
brasileira" no Teatro República; em maio, Pixinguinha a arrastou para a
sua "tarde do folclore" no Lyrico. Em junho, Carmen promoveu seu próprio
festival no Lyrico, para o qual convidou grandes nomes da cidade, como
os cronistas Eugenia e Álvaro Moreyra, os atores Procopio Ferreira, Alda
Garrido e Raul Roulien, os cantores Gastão Formenti e Patrício Teixeira
e a Orquestra Victor. Todos os veteranos com quem ela dividia o palco já
a viam como um deles. Os acenos para se apresentar no rádio eram agora
semanais e vinham com promessa de cachê, como os convites de Valdo
Abreu, que fazia o Esplêndido Programa, na Mayrink Veiga. O rádio
começava a sair da fase romântica e, a exemplo do futebol, vivia a época
do amadorismo marrom, em que o artista recebia por apresentação - 50
mil-réis era o maior cachê da praça, e só dois cantores valiam esse
dinheiro: Carmen Miranda e Francisco Alves.

Ali também Carmen começou sua associação com o Leite de Rosas. O
desodorante tinha sido criado no Rio havia apenas dois anos e ainda era
fabricado no quintal da casa de seu inventor, na estrada das Paineiras.
Com toda essa simplicidade, ele surpreendeu os potentados concorrentes e
foi o primeiro produto a explorar a imagem de Carmen num anúncio. Se
Carmen era sinônimo de "it", o Leite de Rosas prometia dar "it" a quem o
usasse. A campanha agradou, porque Carmen seria a garota-propaganda do
produto pelos anos seguintes. Na mesma época, Francisco Alves anunciava
o cigarro Monroe, "o único que nunca fez mal à garganta" (embora o
fizesse cuspir em seco de dois em dois minutos). Mas Carmen e Chico eram
exceções. A cidade regurgitava de celebridades do teatro, da literatura
e da música popular, mas a utilização de famosos para endossar produtos
ainda era quase inexistente na propaganda brasileira. E talvez fosse
melhor assim, porque o grosso dos anúncios em jornais e revistas
referia-se a purgantes, xaropes e remédios para brotoejas.

Mesmo nos lugares a que ia para se divertir, Carmen era obrigada a
cantar. O teatrólogo (e autor do hino do Flamengo) Paulo Magalhães
levou-a ao Praia Club, e ela teve de dar um recital. Em outra ocasião,
Arnaldo Guinle, presidente do Fluminense, convidou-a pessoalmente a se
apresentar na festa de inauguração de uma piscina de seu clube. Quando
Carmen terminou o show, o dirigente tricolor Mário Polo entregou- lhe um
cheque. Carmen nem abriu o envelope para saber o valor. Rasgou-o ali
mesmo, dizendo:


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"O Fluminense é uma sociedade amadorista. Eu não vim cantar por
dinheiro. Vim porque vim."

A partir dali, Arnaldo Guinle passou a reservar-lhe uma mesa nos bailes
a rigor do Fluminense, todos os sábados, animados pela orquestra de
Pixinguinha - que, também por causa de Guinle, era uma atração fixa do
clube. Sempre que Carmen comparecia, Pixinguinha lhe pedia um ou dois
números. Ao se ver cercada pelos amigos da orquestra - Donga, ao violão,
e sua mulher, a soprano Zaira de Oliveira; João da Baiana, ao pandeiro;
Eleazar de Carvalho, à tuba; Radamés Gnatalli, ao piano; Luiz Americano,
ao saxofone; Bonfiglio de Oliveira, ao trompete; e tantos outros músicos
de primeira -, Carmen não tinha como recusar. E como sempre acontecia
quando esses músicos a acompanhavam, nenhum deles olhava para a batuta
de Pixinguinha a fim de seguir o andamento. Olhavam para as cadeiras de
Carmen dentro dos vestidos justos e para o seu requebrado, que marcava o
ritmo tão bem quanto o maestro. Mário Cunha, que escoltava Carmen por
toda parte, perguntou a ela: "Por quanto tempo você quer ser Carmen
Miranda?" "Por muito tempo, ué! Por quê?" "Porque, se continuar assim,
vai durar pouco. Comece a recusar alguns convites."

Carmen deve ter escutado o conselho. Em agosto, ao comparecer como
espectadora à festa da eleição de "O melhor escoteiro do Brasil",
promovida pelo Diário Carioca (o que ela estava fazendo ali?), a
platéia, de caqui e calças curtas, a reconheceu e começou a gritar seu
nome, chamando-a ao palco. Dessa vez, para desgosto dos escoteiros,
Carmen se recusou.

Com tantos compromissos, gratuitos ou remunerados, a vida de Carmen
mudou. A voz tornou-se uma de suas preocupações - para proteger a
garganta, trocou os milk-shakes da Americana pelos chás da Brasileira. A
falta de tempo impediu também que continuasse a costurar suas roupas -
não abria mão de desenhar os modelos, mas contratou uma costureira, dona
Helena, para executá-los. E, nos fins de semana, continuou indo à praia
no Lido com Mário Cunha e os irmãos, mas os fãs já não lhe davam sossego
para se dedicar à sua prática favorita na areia enquanto tomava sol:
fazer croché.

Na praia ou na rua, a aproximação dos admiradores era respeitosa, mas
acontecia de um ou outro fã se exceder. Um desses afoitos foi o que se
meteu pela janela do carro de Mário Cunha para falar com Carmen, mas
cometeu o erro de fazer isso pelo lado do motorista. Mário Cunha enfiou
dois dedos no colarinho do sujeito e acelerou, arrastando-o por vários
metros pela avenida Rio Branco e quase lhe quebrando o pescoço.

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Uma coisa não mudara em Carmen. Em meados de 1930, quando os jornais já
a chamavam de "rainha do disco" e "a maior expressão da nossa música
popular", ela não via nada de mais em pegar as marmitas preparadas por
sua mãe e, vestida como estivesse, atravessar a rua e levá-las para
Pixinguinha, Donga e João da Baiana no estúdio da Victor,
impossibilitados de ir à pensão por estarem gravando. A luz vermelha da
porta se apagava, indicando o fim de uma gravação, e Carmen entrava
anunciando:

"Olha o grude, pessoal!"

Ninguém mais pensava em Carmen como "a cantora de Josué de Barros".
Agora era a Victor que lhe fornecia material escrito especialmente para
ela, com Rogério Guimarães instruindo os compositores a produzir sambas
e marchas que explorassem seu lado "ingênuo", malandro ou humorístico.
Rogério fez isso com André Filho, do que saiu "Eu quero casar com você",
e com Ary Barroso, do que resultou "Sou da pontinha" - que começava com
o verso, "Meu bem, eu dei...", e só depois se explicava: "Não sei em
quem/ Um beijinho que me fez mal". A Victor cooptou até Joubert de
Carvalho, que, sem guardar rancor pelo tratamento que a gravadora dera a
"Taí", abriu seu leque rítmico e passou a produzir ótimos sambas para
Carmen, como "Gostinho diferente" e "Esta vida é muito engraçada", e
marchinhas, como "Eu sou do barulho" e "Quero ver você chorar", estas
para o Carnaval de 1931. Foi também a Victor que tornou Carmen
"parceira" de Pixinguinha, no samba "Os home implica comigo" - a idéia
da letra pode ter sido dela, mas os versos tortos tinham todos os
cacoetes de Josué. E foi ainda a Victor que encomendou a Randoval
Montenegro o samba "Eu gosto da minha terra", dias depois de Carmen ter
traído a estratégia da gravadora de esconder sua origem portuguesa.

Carmen fizera isso em uma entrevista a R. Magalhães Júnior para a revista
Vida Doméstica, de julho de 1930, ao responder candidamente sobre se
nascera "aqui mesmo, no Rio". Antes de Magalhães Júnior, a ninguém ocorrera
fazer essa pergunta.

"Aí uma coisa interessante", disse Carmen ao repórter. "Todos que me
conhecem pensam que sou brasileira, nascida no Rio. Como se vê, sou
morena e tenho o verdadeiro tipo da brasileira. Mas sou filha de
Portugal. Nasci em Marco de Canavezes e vim para o Brasil com um ano de
idade (na verdade, menos). Mas meu coração é brasileiro e, se assim não
fosse, eu não compreenderia tão bem a música desta maravilhosa e
encantadora terra."

Rogério Guimarães e os americanos da Victor leram aquilo e subiram pelas
paredes. O Rio ainda era uma cidade profundamente portuguesa, mas, até
por isso, certos setores, inclusive da imprensa, se dedicavam a uma
amarga lusofobia. Uma confissão como aquela não contribuía em nada para
firmar a posição de Carmen como a cantora mais brasileira que já
existira. Daí a Victor ter pedido socorro ao pianista e compositor
Randoval Montenegro, uma espécie de pau-para-toda- obra junto à
gravadora. Montenegro, ex-colega de Noel Rosa na Faculdade Nacional de
Medicina, produziu em dois tempos o ótimo "Eu gosto da minha terra", um
autêntico precursor do samba-exaltação, gravado por Carmen em agosto:

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Deste Brasil tão formoso Eu filha sou, vivo feliz Tenho orgulho da raça
Da gente pura do meu país. Sou brasileira, reparem No meu olhar, que ele
diz E o meu sambar denuncia Que eu filha sou deste país...

e mais quatro estrofes de brasileirismos roxos, sobrando até para o
foxtrote: Que não se compara Ao nosso samba Que é coisa rara.

Pau-para-toda-obra, mesmo: apenas dois meses antes, em junho, Carmen
gravara um foxtrote, "De quem eu gosto", de quem? De Randoval
Montenegro.

Mas, como se descobriu, não havia motivo para alvoroço. O público não
tomou conhecimento da origem portuguesa de Carmen nem se ofendeu quando,
naquele mesmo mês de agosto, ela gravou dois tangos em espanhol -
inéditos, escritos para ela por brasileiros, e um deles, "Muchachito de
mi amor", composto também por Montenegro.

A Victor montara um estúdio em São Paulo, no quinto andar da praça da
República, 44, para concentrar sua produção regional. Mas, de tempos em
tempos, levava os artistas do Rio para gravar nele. Por falta de uma
estrada decente, a viagem levava dias. Iam de navio até Santos, bem
devagar para apreciar as belezas do caminho, dormindo a bordo e parando
para almoços e passeios em Angra dos Reis, Ubatuba, São Sebastião.
Finalmente em Santos, dependendo da hora da chegada, tinham de
pernoitar, e só então, de lá, tomavam o trem para a capital paulista,
diminuindo a marcha para subir a serra e atravessar os túneis. Para
garantir o decoro, Carmen viajava acompanhada de seu Pinto, que deixava
a barbearia com um auxiliar e ia com ela na maior satisfação.


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Essas excursões faziam parte de um esforço promocional da Victor,
movimentando fotógrafos, comitês de recepção e muitas braçadas de flores
em cada escala da viagem. O grupo, liderado por Rogério Guimarães,
levava as músicas e os arranjos e consistia de dois ou mais cantores do
cast - Carmen, Sylvio Caldas, Breno Ferreira, Jesy Barbosa - e dos
ritmistas da orquestra carioca, porque se considerava que os de São
Paulo ainda se atrapalhavam com o samba. Os sopros, as cordas e o coro
eram paulistas, regidos pelo maestro Ghiraldini. Entre as sessões de
gravação, os artistas iam às estações de rádio, participavam de eventos
organizados pela Victor e eram convidados a cantar em recepções nas
casas da elite paulistana - como a que lhes foi oferecida pela senhora
Arthur Bernardes Filho, em que Carmen cantou "Taí" e conheceu um jovem
locutor chamado César Ladeira. A comitiva ficava hospedada no Hotel
Terminus, na avenida Ipiranga, ou no Esplanada, na praça Ramos de
Azevedo. Quando saíam para comer, a pedida, quase invariável, era o
restaurante Palhaço, na avenida São João. O prato forte do Palhaço
chamava-se "Catarina" - risoto de frango com batata palha e um ovo
estrelado -, em homenagem a seu inventor, o boêmio Catarina.

Não se fazia uma viagem dessas para gravar somente um disco. Na primeira
ida de Carmen, em agosto de 1930, ela gravou quatorze músicas em seis
sessões durante doze dias, resultando em sete discos que foram lançados
um a um até o fim do ano - mantendo sua média de soltar um disco na
praça a cada dezoito dias. Em dezembro, Carmen voltou a São Paulo,
gravando doze músicas em seis sessões durante sete dias, resultando em
seis discos que foram distribuídos durante o primeiro semestre de 1931,
inclusive os feitos para o Carnaval.

O processo de gravação era o mesmo em qualquer estúdio. O registro era
feito direto numa mistura de goma-laca com cera de carnaúba, de uma só
vez, com o cantor e a orquestra juntos, diante de um único microfone - o
cantor, com a boca bem perto dele, e a orquestra, logo atrás; terminada
a sua parte, o cantor tinha de se agachar ou de sair da frente, para não
bloquear o som da orquestra. Gravavam-se dois takes de cada música; no
máximo, três. O primeiro, para repassar o arranjo em relação ao tempo -
um relógio na parede marcava o limite dos três minutos e meio,
compatível com o espaço de um disco normal, de dez polegadas
(preferia-se que a gravação não ultrapassasse três minutos). O segundo
take já era para valer. No caso de alguma imperfeição (quase sempre
técnica, porque era raro um artista errar), tirava-se um terceiro, que
era o definitivo, embora às vezes o segundo take fosse conservado. Um
disco, correspondendo a duas faces, podia ser gravado em menos de vinte
minutos.

Carmen chegou ao fim de 1930 com quarenta músicas gravadas, entre
sambas, sambas-canção, marchinhas, toadas, cançonetas cômicas e até um
lundu, sem falar no foxtrote e nos tangos (os jornais às vezes a
chamavam de "folclorista" - o termo sambista ainda não entrara de todo
em circulação). Era um recorde para qualquer cantor e mais ainda para
uma estreante. Carmen só foi superada em quantidade de músicas pelo já
consagrado Francisco Alves, que, naquele ano, gravou mais de oitenta,
embora nem todas na Odeon com seu próprio nome - dezenas foram com seu
pseudônimo de Chico Viola, na Parlophon. Por via das dúvidas, Chico
passou a despachar emissários para assistir às apresentações de Carmen
em clubes e teatros. Queria saber se ela enchia casas como ele.


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Quando o emissário voltava, a resposta era sim.

Carmen estava tão nas nuvens com sua ascensão que nem devia se lembrar
de Lia Tora e Olympio Guilherme, os brasileiros eleitos em 1927 para o
estrelato em Hollywood. Em 1931 eles estavam de volta ao Brasil, e só
então se soube o que lhes acontecera na "fábrica dos sonhos". No caso de
Lia, tão bonita e talentosa, ficava explicado por que ninguém jamais a
vira sendo disputada a floretes nos filmes por Douglas Fairbanks ou
Adolphe Menjou. Simplesmente porque esses filmes não existiam.

O retumbante concurso de fotogenia "feminina e varonil", que empolgara
tantos corações, inclusive o de Carmen, tinha sido um golpe da Fox para
ganhar publicidade de graça no Brasil. Sem dúvida, Lia fora levada sob
contrato para Hollywood como prometido - mas na condição de figurante,
com o salário mínimo do sindicato e sem a menor garantia de que lhe
dariam bons papéis. É verdade também que a Fox a escalara em cinco
filmes em 1928, mas sua presença na tela era tão a jato que, em cada um
deles, sua participação só lhe tomara um dia de trabalho. Nos outros 360
dias do ano, Lia ficara em casa, à espera de um telefonema do estúdio -
que não vinha nunca. Não passou fome, como milhares de outras jovens na
sua situação em Hollywood, mas apenas porque, antes de embarcar, se
casara com um rico empresário carioca, Júlio de Moraes, que fora para lá
com ela.

Em 1929, revoltado com o tratamento dado à sua mulher, Júlio submeteu à
Fox um argumento de sua autoria, o drama A mulher-enignw, e se ofereceu
para bancar a produção, desde que Lia fosse a atriz principal. A Fox
aceitou e rodou o filme, mas engavetou-o e, quando o lançou, meses
depois, foi num cinema de subúrbio em Los Angeles. Naquele ano, para
piorar, os estúdios reconheceram a vitória definitiva do cinema falado e
a situação ficou difícil para os atores estrangeiros, por causa do
sotaque. Nem os maiores nomes, como o alemão Emil Jannings e a francesa
Renée Adorée, foram poupados. Eles não eram demitidos - os estúdios os
encostavam e os deixavam sofrendo, enquanto decidiam o que fazer com
eles. Para abreviar o suplício de Lia, Júlio comprou seu contrato da Fox
(que o vendeu correndo) e criou uma pequena produtora em Hollywood, com
a qual fizeram um filme mudo, Alma camponesa, dirigido por ele e com um
elenco quase todo de brasileiros.


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Em 1930, os estúdios começaram a produzir versões em espanhol de seus
filmes para exibição na América Latina. Essas versões eram rodadas
simultaneamente - quando uma cena do filme original ficava pronta, o
diretor e os atores americanos saíam de cena e entravam um diretor
americano de segunda ou terceira linha e o elenco latino. Com isso,
muitos atores de cabelo preto e sobrenome terminado em vogal ganharam um
certo mercado de trabalho. Lia participou de alguns desses filmes, mas
não fora para isso que saíra do Rio. Em 1931, deu adeus a Hollywood e
voltou para o Brasil.

O destino de Olympio Guilherme, que esperava se tornar o Valentino da
sua geração, foi ainda mais terrível. A exemplo do que fizera com Lia, a
Fox o recebeu festivamente em Hollywood e o fotografou ao lado dos
astros do estúdio, como se ele fizesse parte da turma. As fotos saíram
no Brasil. Mas, assim que o fotógrafo terminou o serviço, os astros lhe
deram as costas e ele nunca mais os viu. Era só uma encenação. A Fox o
mandou ficar em casa esperando ser chamado. Nas poucas vezes em que o
estúdio o solicitou, era para aparecer de costas ou de longe em algum
filme bobo. Com seu salário de figurante, Olympio passou fome em
Hollywood - que ele depois descreveria "não como a fome sórdida, sem
poesia, esfarrapada e trágica, de cidades como Londres, Paris ou
Chicago", mas a fome típica de Hollywood, "que se barbeia duas vezes por
dia, a fome dandy, que sorri e passeia pelo Sunset Boulevard à tardinha,
com uma flor na lapela".

Olympio tinha vergonha de que no Brasil soubessem de seu fracasso. Por
isso, engoliu as humilhações e passou a ir diariamente ao estúdio, nem
que fosse para aprender como se fazia um filme. Em 1929, com dinheiro
que economizou centavo a centavo, escreveu, produziu e dirigiu um filme
nas ruas de Hollywood - um drama de ficção ultra-realista, intitulado
Fome, mostrando o dia-a-dia dos desempregados, dos que assaltavam latas
de lixo para comer, e dos que eram atropelados na rua e enterrados como
indigentes na cidade mais glamourosa do mundo.

Como não podia pagar atores profissionais, Olympio usou técnica de
documentário, filmando gente de verdade com a câmera camuflada. E,
quando tinha de encenar uma situação mais complicada, ele próprio ia
para a frente da câmera. Em duas dessas cenas, quase se deu mal. A
primeira foi ao roubar a mamadeira de um bebê num carrinho - a mãe fez
um escândalo, o bebê idem, e ele quase foi preso (mas conseguiu filmar
tudo). Na segunda, com uma coragem inacreditável, deixou-se atropelar
por um automóvel - por sorte, o motorista freou em cima e o choque foi
mínimo (mas a cena também foi feita). O pior, no entanto, aconteceu
quando ele foi pesquisar o cenário para uma locação em Pasadena, a
cidade dos grã-finos, separada de Los Angeles por uma ponte sob a qual
não havia um rio, mas uma garganta de pedra. No meio da ponte, pela
janela do carro, percebeu uma mulher que ameaçava atirar-se da amurada.
Olympio desceu do carro e correu para tentar salvá-la, mas não houve
tempo. Quando a moça se jogou, ele estava muito perto dela. Os ocupantes
de outro carro que passava acharam que ele a tinha atirado e alertaram a
polícia no outro lado da ponte. Olympio foi preso por suspeita de
assassinato. Seu clichê saiu nos tablóides e só a intervenção do cônsul
brasileiro o livrou de boa. Fome foi terminado, mas Olympio teve
dificuldade para distribuí-lo e poucos o assistiram. Em 1931, também
voltou para o Brasil. Radicou-se no Rio e escreveu um romance chamado
Hollywood - a história, do seu ponto de vista, da capital da solidão.

Se ainda havia por aqui algum tolo que suspirasse pela "fábrica de
sonhos", devia ter se desiludido ao saber das desventuras de Lia e
Olympio. Mas, àquela altura, outro artista brasileiro já tinha partido
para a aventura do cinema americano: o ator, compositor e cantor Raul
Roulien.

De longe, entregue a seu martírio no sanatório, Olinda participou dos
primeiros sucessos de Carmen. A família lhe mandava os discos, as fotos
de publicidade e os recortes sobre sua irmã, que ficara famosa quase da
noite para o dia. As cartas de Olinda não chegaram até nós, mas sabe- se
que, em várias, ela falou de sua felicidade pela carreira de Carmen -
carreira que, embora nunca tocasse no assunto, poderia estar sendo
também a dela.

Em 1931, com o dinheiro entrando em quantidade nem sequer sonhada, parte
do que Carmen entregava a dona Maria era enviada para os parentes em
Portugal, a fim de custear o tratamento de Olinda. Mas, para esta, já
era tarde demais - tarde para o amor, tarde para uma possível carreira,
e tarde até mesmo para a vida. Olinda morreu no Caramulo, pouco depois
do Carnaval, no dia 3 de março, com a discrição e o silêncio com que se
morria nessas instituições - um dia, a pessoa estava à vista e
participando das atividades; no dia seguinte, já não aparecia e ninguém
dava ou pedia explicações. O corpo era removido pelos fundos e os amigos
não o viam sair. O de Olinda foi levado para Várzea de Ovelha, onde o
enterraram no pequeno cemitério de São Martinho. Tinha 23 anos.

O fato de a notícia ser esperada não diminuiu seu impacto ao chegar ao
Rio. Dona Maria se cobriu de luto e fez toda a família se vestir de
preto por um bom tempo. Segundo alguns, Carmen teria cogitado abandonar
a carreira - sua ligação com Olinda era muito forte e ela sempre se
referia à irmã como sua inspiradora. Na prática, Carmen se afastou por
três meses das atividades - só voltou a gravar em junho e, dali por
diante, sempre no Rio. Para amenizar a dor, prometeu que, um dia, iriam
todos a Portugal para visitar o túmulo de Olinda.


69

No meio do ano, Carmen cumpriu uma outra promessa que se fizera: a de
levar sua família para um lugar melhor, mais residencial, longe do
inferno comercial do Rio. Para tanto, teve de convencer dona Maria a
fechar a pensão, argumentando que, com os rendimentos de seus discos e
apresentações, já não era necessário que ela trabalhasse para fora. Na
verdade, nem ficava bem para uma artista tão importante que sua mãe
continuasse a manter uma pensão - não pela atividade em si, mas por
Carmen ser agora uma figura pública, e a pensão funcionar na própria
residência da família. Era um entra-e-sai de homens, supostamente para
comer, mas que não tiravam os olhos de suas coxas, as quais só faltavam
estourar as costuras dos calções justos que ela gostava de usar em casa.

Numa conversa com o cineasta Adhemar Gonzaga, Carmen ficou sabendo de
uma casa no Curvelo, em Santa Teresa, de propriedade da família Peixoto
de Castro, parente de Gonzaga. Eles lhe fariam um aluguel camarada.
Carmen foi vê-la, gostou e levou seus pais, que também a aprovaram. Com
isso, adeus, travessa do Comércio, onde tinham passado seis anos.

A nova casa ficava na rua André Cavalcanti, 229, e era aprazível, com
boa sala e cinco quartos - um para o casal e um para cada filho. (Logo
depois, em julho, quando Cecília se casou com Abílio e foram morar no
Rio Comprido, vagou o quarto da irmã e Carmen o transformou num estúdio,
onde acomodou sua coleção de bonecas japonesas.) Na frente, havia um
jardim com pés de caju, goiaba, acerola, romã, sapoti, abacate e onze
mangueiras (entre duas delas, Carmen armou uma rede), além de um mirante
com a vista abrangendo da baía de Guanabara à velha estação da Central
do Brasil. Nos fundos, o quintal tinha uma casinha independente para os
empregados, uma horta, um galinheiro e um tanque para patos. Carmen
ganhou um cachorro preto, ao qual deu o nome Kiss, e um gato siamês
cinza, dignamente vesgo.

O único problema era a localização: a casa ficava no alto da rua, num
cocuruto a cume - um teste para qualquer carro e quase mortal para quem
tentava subi-la a pé vindo da rua do Riachuelo, na Lapa. O melhor acesso
era pela rua Almirante Alexandrino, já em Santa Teresa. Como ninguém da
família tinha automóvel, os deslocamentos eram feitos de bonde até o
largo da Carioca e, de lá, se tomava a condução para o destino.

Por mal dos pecados, assim que se mudaram para lá, Carmen teve uma crise
de apendicite e foi obrigada a encarar uma cirurgia na Beneficência
Portuguesa (da qual, como toda a sua família, também se tornara sócia).
Ficou internada de 24 de agosto a 4 de setembro, e, para se vingar da
inatividade, não sossegou nem um minuto. Ia para a enfermaria e contava
piadas, imitava pessoas famosas e fazia toda espécie de macaquices para
os colegas de internação. As gargalhadas estouravam em uníssono. Às
vezes, juntava três ou quatro numa rodinha e cantava, aos sussurros, uma
hilariante paródia pornográfica de algum samba ou marchinha recente.

As enfermeiras não se agüentavam de rir - uma delas, na verdade, não se
agüentou, molhou as calcinhas - e suplicavam:

"Pelo amor de Deus, Carmen, pare!"

Tinham medo de que os pacientes, vários também recém-operados, estourassem os pontos de tanto se sacudir. Quem passasse por ali, e não
soubesse do que se tratava, acharia que tinha entrado no hospital
errado.


70


Quando Carmen recebeu alta, Mário Cunha apanhou-a e levou-a para o
Curvelo. Carmen contratou um chofer de praça para ficar à sua disposição
enquanto se recuperava, mas isso não eliminava o problema de ter se
instalado num lugar meio fora de mão. Na mesma época, os outros dois
cantores da sua magnitude gozavam de muito mais conforto: Chico Alves
morava numa casa no Leme; Mário Reis, num casarão na Tijuca; e ambos
tinham carro, sendo que Chico tinha também um motorista - o sambista
Germano Augusto, que, apesar de português nato, era o rei da gíria
carioca.

Chico Alves e Mário Reis ainda eram as maiores potências da música
popular. Chico Alves era uma máquina de cantar. Em 1928 e 1929, gravara
quase trezentas músicas pela Odeon e sua subsidiária Parlophon - ou
seja, cerca de 150 discos em dois anos, um recorde que nem Bing Crosby
alcançaria. Dava-se bem em qualquer gênero e qualquer ritmo, com ou sem
microfone, com qualquer parceiro ou qualquer acompanhamento. Por ser o
cantor mais poderoso, era também o mais influente, e seu tenor robusto,
redondo e caudaloso, de opereta, gerava um imitador em cada esquina.
Nenhum deles abalava seu prestígio. O único cantor que, ao surgir,
sacudiu sua popularidade, foi Mário Reis, que era justamente o
anti-Chico - voz muito menor, quase coloquial, mas alegre e articulada,
uma espécie de irmã sonora das caricaturas de J. Carlos. Quando Chico
Alves e Mário Reis, gravando para o mesmo selo, formaram uma dupla, o
resultado foi mágico: a seriedade de um contrabalançada pelo humor do
outro, e as duas vozes se completando, com Chico, surpreendentemente,
cedendo o primeiro plano a Mário. Mais surpreendente ainda: a partir
dali, ao gravar em solo, Chico Alves passaria a controlar seus arroubos,
como se um invisível Mário Reis estivesse a seu lado, medindo o nível
dos decibéis. Depois deles, a única novidade na música brasileira era
Carmen Miranda.

Não por acaso, Chico Alves e Mário Reis foram os primeiros a ser
contratados por um empresário argentino para uma temporada de música
brasileira, em outubro, no Cine-Teatro Broadway, de Buenos Aires. Carmen
foi a terceira. Com eles embarcaram, pelo Desna, no dia 30 de setembro,
o bandolinista Luperce Miranda, o violonista Arthur ("Tute") Nascimento
e os dançarinos Célia Zenatti, mulher de Chico, e Nestor Americano.
(Como se vê, nenhum percussionista, e nem isso era tido como
indispensável - os próprios músicos faziam o ritmo.) Chico já se
apresentara em Buenos Aires no ano anterior e sobrevivera à dura crítica
portenha, habituada a chacinar os mais pomposos artistas estrangeiros.
Para Carmen e Mário Reis era o batismo, a estréia internacional.




71

Internacional era a palavra, porque, então, poucas cidades faziam frente
à capital argentina. Em 1931, quando a população do Rio era de 1 milhão
e 800 mil habitantes, Buenos Aires já tinha 3 milhões - a maioria dos
quais viajava de metrô desde 1913, usava ternos ingleses e fora criada a
costela e picanha. Em várias de suas ruas, o movimento às quatro da
manhã era o mesmo que o das quatro da tarde. E seu rádio já era o
segundo do mundo, com duas possantes emissoras, a Belgrano e a El Mundo,
só perdendo para o dos Estados Unidos. Era também uma cidade cheia de
teatros, e o Broadway, pioneiro continental dos espetáculos de "palco e
tela" (com artistas que se apresentavam nos intervalos das sessões de
cinema), engolia 3 mil espectadores de cada vez. Com todo esse tamanho,
o Broadway podia manter a mesma atração em cartaz durante um mês, em
duas sessões diárias de trinta minutos, às 18h30 e às 23h30, formando
filas na calle Corrientes, tantos eram os portenhos com plata para
prestigiá-lo. Pois era o que se esperava dos artistas brasileiros - que
tivessem público para se agüentar por um mês. Naturalmente, Carlos
Gardel, o grande ídolo nacional, ficaria em cartaz o ano inteiro - ou
pelo resto da vida - se quisesse. Aliás, Gardel fazia o show das 21
horas e, às vezes, permanecia no teatro para assistir ao show dos
brasileiros.

Apesar da concorrência, Chico Alves, Carmen e Mário Reis tiveram casa
lotada e críticas brilhantes durante os trinta dias da temporada,
cantando solo, em dupla ou em trio. O repertório de Chico e Mário Reis,
juntos, incluía os sambas que eles tinham descoberto no bairro carioca
do Estácio, como "Se você jurar" e "Deixa essa mulher chorar", e que
estavam dando os contornos modernos ao ritmo. Para os portenhos, isso
não queria dizer muito, embora fosse uma revolução equivalente à feita
por Gardel dez anos antes, ao limar as asperezas do tango e criar o
tango- canção. Chico, em números solo, lhes soava mais familiar, por ser
um cantor ao estilo Gardel e, por isso, sujeito a comparações com o
mestre. Daí terem valor extra os aplausos às suas interpretações de "A
voz do violão" e, segundo Mário Reis, de "Confesión", um sucesso de
Gardel que Chico se atreveu a cantar em espanhol. Já o próprio Mário
Reis não tinha nenhum similar argentino - sua enunciação natural, cheia
de síncopes e fraturas, sem os gorjeios do bel canto, pareceu-lhes coisa
de marciano. Quanto a Carmen, podiam não entender o que ela estava
fazendo com as letras, mas sabiam que, ao contrário do que estavam
habituados, ali havia uma mulher que combinava doses maciças de
sensualidade e alegria. Eles nunca tinham visto nada igual.

Cada um cantava cerca de cinco números por show. Chico era o diretor
musical do grupo - ou assim se julgava, ao se referir ao fato de que era
ele quem "ensaiava Mário e Carmen". Chico só não podia ser o diretor dos
figurinos. Cada espetáculo obrigava a uma troca de indumentária, o que
não era problema para Mário Reis e Carmen - cada qual tinha levado um
vasto guarda- roupa e passava as horas de folga reforçando-o nas lojas
chiques de Buenos Aires. Chico Alves, às vezes, também trocava de terno
- mas, segundo Mário Reis, todos de ombros tortos e calças malfeitas, de
autoria do mesmo alfaiate da rua Maxwell, na Aldeia Campista, que lhe
fazia as roupas nos tempos em que ele era pobre.


72


A excursão aproximou Carmen de Mário Reis. Os dois se entenderam como
irmãos - e nisso está dito tudo. Muitos anos depois, em seus devaneios
entre amigos à beira da piscina do Country, em Ipanema, Mário Reis
deixaria no ar a suspeita de que algo se passara entre eles.

Mas os amigos sabiam: Carmen e Mário Reis juntos? Só se fosse dentro da
cabeça do cantor.

Como acontecera nas suas idas a São Paulo, Carmen fora a Buenos Aires
acompanhada do pai. Isso não impediria que, se fosse o caso - num surto
inadiável de desejo -, Carmen e Mário Reis achassem um jeito de burlar a
vigilância (nem tão severa) de seu Pinto. Mas não era absolutamente o
caso. Carmen admirava Mário Reis como cantor e o adorava como amigo.
Mas, para fins imorais - pouco mais alto que ela, com um histórico
amoroso zero, cavalheiro demais, nada viril, quase efeminado -, ele era
exatamente o contrário do seu tipo.

Mesmo porque, enquanto cumpria a temporada em Buenos Aires, Carmen
pensava em seu namorado, Mário Cunha, perigosamente à solta no harém. Ao
viajar, ela lhe deixara mais uma foto com dedicatória: "Bituquinha, meu,
só meu. Fica muito direitinho no Rio, sim? Senão eu choro, ouviu? E não
faço mais nada pensando em ti, sabe? Um beijinho bem chupadinho, da sua
Bituca".

Mas, dessa vez, Carmen não tinha tantos motivos para se preocupar.
Exceto por uma eventual escapada a algum colchão ilícito, Mário Cunha,
assim como outros remadores do Flamengo, do Botafogo, do Boqueirão do
Passeio e do Icaraí, estava mais ocupado naquela época com outro
esporte: arranjar briga com os gaúchos que, um ano depois da Revolução
de 1930, não paravam de chegar ao Rio e desfilavam pela cidade como se
fossem os donos da situação. E, na verdade, eram mesmo, porque o
presidente provisório, o gaúcho Getúlio Vargas, ocupara o governo com os
conterrâneos, os quais tinham trazido seus amigos, e agora era a vez de
estes trazerem os seus.

No começo, a cidade se divertia ao ver aqueles homens de chapelão,
poncho, bombacha e botas, suando ao sol de 35 graus do Rio. Mas, quando
eles começaram a ocupar todos os cargos federais e a namorar as
cariocas, deixaram de ter graça - e já ninguém dizia "deixa disso"
quando um grupo de remadores, fortíssimos e cruéis, criava qualquer
pretexto para justiçá-los.

Ou, como aconteceu pelo menos uma vez, amarrá-los no Obelisco - como
eles tinham feito com seus cavalos na vitória da Revolução.


73

O coro que acompanhava o cantor Castro Barbosa na gravação original de
"Teu cabelo não nega", feita na Victor no dia 21 de dezembro de 1931,
continha cinco vozes masculinas e uma feminina. A voz feminina,
inconfundível, era a de Carmen Miranda. Seu nome não apareceu no disco.

Nem era para aparecer. Carmen estava no estúdio, cuidando da sua vida,
quando ouviu a marchinha sendo repassada pelos músicos de Pixinguinha, e
a adorou. Era amiga de Castro Barbosa e resolveu juntar-se ao coro na
gravação. Naquele dia, ninguém poderia adivinhar que "Teu cabelo não
nega" se tornaria o hino do Carnaval carioca. Seis meses antes, outro
amigo, Sylvio Caldas, também fizera um contracanto para um disco seu -
apenas dez minutos depois de ter gravado "Faceira", o samba de Ary
Barroso que o projetaria como um dos maiores nomes da música popular.
Eles eram assim, acima de mesquinharias.

Era possível que, nos bastidores do Teatro Recreio, um ator desse um
calço sem querer num concorrente e o fizesse esbodegar-se escada abaixo
pouco antes de entrar em cena. Ou que, na Editora Leite Ribeiro, um
escritor derramasse acidentalmente um tinteiro sobre o manuscrito que um
rival deixara em cima da mesa. Mas, no meio musical, era o coleguismo
que imperava. No Café Nice, ponto de encontro dos sambistas na esquina
de Rio Branco com a rua Bitencourt da Silva, um compositor se oferecia
para fazer a segunda parte do samba de outro, ou um letrista escrevia
uma introdução nova para a marchinha de um amigo - sem pedir parceria e,
às vezes, até sem aceitá-la. Nas gravadoras, a mesma coisa: um cantor de
passagem pelo estúdio se metia na gravação do colega, participando do
coro ou contribuindo com uma segunda voz, sem que seu nome aparecesse no
disco. Em meio a esse clima de camaradagem, se fazia história.

Carmen tinha ido à Victor naquele dia para gravar outra marchinha, a
divertida "Isola! Isola!", em dueto com Murilo Caldas, irmão de Sylvio.
Era um dos três ou quatro discos que estava produzindo para o Carnaval
de 1932, embora apenas um deles, o samba "Bamboleô", de André Filho,
gravado dias antes, fosse fazer sucesso. Terminado o registro de "Isola!
Isola!", Carmen se deixou ficar por ali. Menos de dez minutos depois,
Castro Barbosa iria gravar uma marchinha adaptada por Lamartine Babo de
um frevo que chegara à Victor, enviado pelos irmãos João e Raul Valença,
dois compositores pernambucanos.

Lamartine só aproveitara o estribilho dos dois irmãos:

O teu cabelo não nega, mulata Porque és mulata na cor Mas como a cor não
pega, mulata Mulata, eu quero o teu amor

- tão elegante em seu absurdo que custa a crer que o resto da letra,
ruim de doer, fosse dos mesmos autores. Como a estrofe:


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Ti/ nunca morre de fome

Que os Home

Te dá sapato de sarto

Bem arto

Pra tudo abalança o gererê...,

que Lamartine transformou em:

Quem te inventou

Meu pancadão

Teve uma consagração

A lua te invejando fez careta

Porque, mulata, tu não és deste planeta.

Depois de alterar outras partes da melodia e criar uma nova introdução
instrumental, Lamartine deu a música por pronta. Hoje sabemos que "Teu
cabelo não nega" nasceu obra-prima, mas, se você pensa que os cantores
se atiraram mutuamente às aortas para disputá-la, engana-se. O primeiro
cantor a quem Lamartine a ofereceu foi Francisco Alves, que a recusou.
Chico preferiu outra, a também excepcional "Marchinha do amor", que
Lamartine lhe mostrara pouco antes. A segunda opção do compositor foi a
dupla Castro Barbosa e Jonjoca. Eles gostaram e se dispuseram a
gravá-la. Mas Jonjoca tinha um samba, "Bandonô", que achava pouco
adequado para a dupla e que ele pretendia gravar sozinho. Mesmo assim,
propôs a Castro que disputassem as duas músicas no cara ou coroa. Castro
topou. Deu cara, e Jonjoca ficou com "Bandonô", que teve o seu momento e
sumiu. Castro Barbosa, derrotado na moedinha, gravou "Teu cabelo não
nega". Com o dinheiro que o disco lhe rendeu, Castro comprou um
apartamento em Copacabana e entrou para a história do Carnaval.

A dupla tinha se conhecido no ano anterior, no Lloyd Brasileiro, do qual
Castro, 25 anos, era funcionário. Jonjoca, dezenove, era filho do
comandante. Castro cantava parecido com Chico Alves; Jonjoca, com Mário
Reis. A Victor fez deles uma dupla para tentar concorrer com Chico e
Mário, que gravavam em duo na Odeon. Mas era impossível superar o charme
da dupla original. Na Victor, Castro e Jonjoca ficaram amigos de Carmen.
Era apenas normal que ela, incógnita, tomasse parte no coro de "Teu
cabelo não nega" (do qual Jonjoca também participou). Com o tempo,
Carmen se aproximou mais de Jonjoca, de quem chegou a gravar dois
sambas.


75

Jonjoca ainda pegou os últimos tempos da família na travessa do Comércio
e acompanhou a ida para Santa Teresa. De tanto conviver com Carmen, em
casa, na rua e no estúdio, desenvolveu por ela uma fatal paixonite -
que, por saber sem futuro, tentou manter em segredo. A já experiente
Carmen entrou no jogo: se percebeu o que ele sentia por ela, fez de
conta que não. Mas, para Jonjoca, era claro que ela sabia. Tanto que, um
dia, Carmen lhe deu um longo beijo na boca - um beijo de verdade. Só que
de farra, entre risos, como quem dissesse que, entre amigos, tais
carinhos não eram para valer. Mas o jovem e sonhador Jonjoca quase
desmaiou.

Era bem o jeito de Carmen: a sedutora que se misturava com os rapazes,
como se fosse um deles, e com isso neutralizava os possíveis avanços. O
mesmo quanto aos palavrões, que disparava como se fossem vírgulas e, se
houvesse uma senhora presente, que pusesse algodão nas oiças. Ou às
piadas de papagaio, de que sabia dezenas - quando Carmen as contava,
elas eram só engraçadas, nada licenciosas, e tão infantis quanto suas
dedicatórias para Mário Cunha ou seus palavrões.

Ninguém podia fazer qualquer restrição a Carmen do ponto de vista moral.
Mas os que não a conheciam direito tinham razão de se assustar. Quando
ela se encontrava com o humorista Jorge Murad, na Mayrink Veiga, ou com
o compositor e pianista Gadé, na Victor (seus principais interlocutores
no item papagaio), a rádio saía do ar e a gravadora perdia horas de
trabalho - porque os microfones tinham de ser desligados.

Em fins de 1931, uma fabulosa geração de compositores e letristas
brasileiros, que vinha se formando havia dois anos, já estava pronta.
Seus instrumentos para compor eram o violão, o piano, um ou outro
instrumento de sopro ou percussão e, em último caso, a caixa de fósforos
(os sambistas preferiam os da marca Olho - mais fáceis de afinar -,
fabricados pela Companhia Fiat Lux, do Rio). Poucos liam ou escreviam
música, mas não faltava quem fizesse isso por eles nos estúdios. Como
letristas, alguns tinham diploma de médico ou de advogado, embora seus
amigos não fossem malucos de se tratar ou se deixar defender por eles.
Outros desses letristas mal haviam sido apresentados à cartilha, mas
eram capazes de citações até em francês. A maioria tinha um insuperável
jeito para as palavras, uma veia poética intuitiva e um olho afiado para
a observação romântica ou humorística. Todos (uma ou duas exceções) eram
homens da rua e da esquina, bons de café e de botequim. Sua língua comum
era o samba, enfim estabelecido como o ritmo nacional, com suas novas e
ricas variações: o samba-canção, o samba-choro, o samba de breque. Mas
eles dominavam também outros idiomas, como a marchinha, a valsa, o fox,
o tango, a toada, o cateretê, a embolada, a batucada e até a macumba. E,
claro, todos, mesmo os nascidos em outros estados, tinham a verve
carioca - a alma da Avenida, a malandragem dos morros, a sabedoria dos
subúrbios. Em 1932, o país inteiro iria cantar o que sairia de sua
inspiração.

Alguns desses rapazes (e uma moça) eram Ary Barroso, Noel Rosa,
Lamartine Babo, João de Barro (Braguinha), Almirante, Antônio Nássara,
André Filho, Benedito Lacerda, Ismael Silva, Newton Bastos, Alcebíades
Barcellos, Armando Marcai, Cartola, Custódio Mesquita, Orestes Barbosa,
Luiz Peixoto, a dupla Gadé e Walfrido Silva, Hervê Cordovil, Ataulpho
Alves, Frazão, Synval Silva, Assis Valente, Alcyr Pires Vermelho,
Oswaldo Santiago, Vicente Paiva, Cristóvão de Alencar, José Maria de
Abreu, Mário Travassos de Araújo, Alberto Ribeiro, Wilson Batista,
Herivelto Martins, os irmãos Henrique e Marilia Batista. Exceto Orestes
Barbosa, nenhum tinha mais de trinta anos. Com aquele presente, a música
brasileira podia ter a certeza de um glorioso futuro.


76


Com todo esse sangue novo em cena, a música do passado não estava
absolutamente morta em 1932. Quem morrera fora Sinhô, em agosto de 1930,
a bordo da barca Sétima, entre Rio e Niterói, e, com ele, o maxixe. Mas
vários de seus contemporâneos, sobreviventes da casa da Tia Ciata, das
salas de espera do cinema mudo e dos antigos orquidários líricos,
continuavam ativos, como Caninha, Pixinguinha, Donga, João da Baiana,
Heitor dos Prazeres, Augusto Vasseur, Eduardo Souto, Freire Júnior,
Cândido das Neves, Hekel Tavares, Joubert de Carvalho, Olegario Mariano
e, naturalmente, Josué de Barros. Incrível, Chiquinha Gonzaga e Ernesto
Nazareth ainda estavam vivos - e também produzindo! Bolas, em 1932, a
própria Tia Ciata continuava viva, embora aposentada das mandingas no
terreiro e da venda de acarajés no largo da Carioca.

Para cantar a música daquele escrete de criadores, também surgira uma
nova geração de intérpretes: Carmen, Mário Reis, Sylvio Caldas,
Almirante, Luiz Barbosa, Moreira da Silva, Gastão Formenti, Breno
Ferreira, Jorge Fernandes, Patrício Teixeira, Carlos Galhardo, João
Petra de Barros, Albenzio Perrone, Castro Barbosa e Jonjoca, Joel e
Gaúcho, os irmãos Tapajós, o Bando da Lua e, dali a pouco, Dircinha
Batista, Marilia Batista, Aracy de Almeida e Aurora Miranda. Todos
tinham também menos de trinta anos; algumas das moças, menos de vinte -
e Dircinha Batista, acredite ou não, menos de dez.

Havia também os mais velhos, que vinham do tempo do microfone de chifre,
e que nem eram tão velhos assim: Vicente Celestino estava com 38 anos em
1932; Francisco Alves, com 34. Aracy Cortes era vista como uma veterana,
uma cantora da outra geração, mas tinha apenas 28 anos. E, por diversos
motivos, todas as cantoras que haviam surgido com Carmen naqueles idos
de 1929 perderiam espaço no decorrer dos anos 30: Elisinha Coelho, Jesy
Barbosa, Olga Praguer Coelho, Stefana de Macedo, a mirandiana Yolanda
Ozorio, a linda Laura Suarez. Algumas iriam se casar e mudar, outras
sairiam de cena, e ainda outras apenas se apagariam - e um motivo para
isso seria a existência de Carmen.

Em 1932, haveria novidades radicais no Carnaval, no rádio, no disco, no
teatro, no cinema e nos direitos autorais. Era o começo de uma era que
se chamaria a época de ouro da música popular brasileira. Ouro
artístico, bem entendido, porque, para o bolso dos que o produziram, não
foi quase nenhum.

Mas, como sempre, haveria exceções. E pelo menos um desses artistas
enriqueceria: Carmen.



Capítulo 5



1932 - 1933

Aurora




O Carnaval de 1932, no Rio, não esperou fevereiro. Começou cedo, em
janeiro mesmo, com batalhas de flores e de confete em Vila Isabel e na
avenida Rio Branco, banhos de mar a fantasia no Flamengo e em Copacabana
(as fantasias eram de papel crepom), e bailes em teatros, clubes e
praças pela cidade inteira. Sem falar nos bondes, que eram a folia sobre
trilhos. A cidade cantava, de Lamartine Babo e Noel Rosa:

A-e-i-o-u Dabliú, dabliú Na cartilha da Juju Juju...,

ou, de Ismael Silva e Noel,

Olha, escuta, meu bem É com você que eu estou falando, neném Esse
negócio de amor não convém Gosto de você, mas não é mui... to Mui... to,

e, claro, "Teu cabelo não nega", de Lamartine e irmãos Valença. Eram as
marchinhas que vinham para se tornar a voz da cidade nessa época. Para
se fazer ouvir no resto do Brasil, bastava a uma delas ser cantada da
praça Tiradentes à Cinelândia. O problema era sobreviver a esse curto
percurso - a concorrência era colossal.

A partir do sábado de Carnaval, 6 de fevereiro, houve corso todas as
tardes nas avenidas; desfiles de blocos, ranchos e cordões nos bairros;
e música, éter e beijos a todo tempo e hora. Aquele seria um Carnaval de
estréias. No domingo, aconteceu o primeiro campeonato das escolas de
samba, promovido pelo jornal Mundo Sportivo, de Mário Filho, na praça
Onze, e vencido pela Mangueira. Na segunda-feira, o primeiro baile do
Theatro Municipal, de gala, para os gringos e granfas, com três
orquestras, concurso de fantasias e a présença de 4 mil foliões, entre
os quais Getúlio Vargas. E, na terça, o ponto alto do Carnaval: o
tradicional desfile das grandes sociedades - Fenianos, Democratas,
Tenentes do Diabo, Pierrôs da Caverna -, com seus dragões de boca
aberta, mulheres jogando beijos para as sacadas da Avenida e, quem sabe,
o próprio Diabo disfarçado entre os fantasiados de diabo. Na madrugada
de quarta-feira, foliões e folionas voltaram para casa com as roupas
rasgadas, o batom borrado, as ilusões perdidas, e já antecipando a frase
do escritor Dante Milano: "Brasileiros, vocês hão de ter saudades do
Carnaval".


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Mal os confetes foram varridos, os cariocas puderam se ver no filme O
Carnaval cantado de 1932, produzido pelo exibidor Vital Ramos de Castro
com o apoio do pessoal da Cinédia. Era um documentário sonoro, de cerca
de quarenta minutos, mostrando, talvez, boa parte do que se descreveu
acima. Infelizmente só se pode presumir porque, cumprida sua temporada
nas telas do Rio, o filme saiu para percorrer o país e as poucas cópias
foram se destruindo pelo caminho, deixando um pedaço em cada poeira, até
que todas desapareceram. Como o negativo também sumiu, o filme se perdeu
para sempre. Foi pena - pela primeira vez, tinham sido filmadas externas
noturnas do Carnaval, com a equipe de Adhemar Gonzaga usando refletores
emprestados pelo Exército para iluminar a Avenida e compensar a baixa
sensibilidade da película.

É pena ainda maior porque o filme continha a primeira aparição de Carmen
no cinema, cantando "Bamboleô". Ou parecendo cantar - porque o que se
ouvia era a sua gravação da Victor, aplicada aos discos Vitaphone de
dezesseis polegadas que rodavam sincronizados com o projetor. (Aliás,
todo o áudio do filme era pré-gravado - naquele ano, nenhuma equipe
brasileira de filmagem tinha condições de gravar o som na rua, muito
menos na barafunda do Carnaval.) O irônico é que, quando Carmen
finalmente realizou o sonho de se ver na tela, isso foi apenas uma
conseqüência inevitável de seu sucesso nos discos - como se,
subitamente, o cinema não pudesse prescindir mais dela, e ela lhe
fizesse um favor em se deixar filmar.

Nas pequenas questões práticas, Carmen não tinha tanto poder assim. Uma
famosa foto de lambe- lambe mostra Carmen naquele Carnaval, ao volante
da barata de Mário Cunha, com ele a seu lado, de pernas cruzadas para
fora do carro, e este abarrotado de foliões, todos de camisa listrada e
boné, prontos para sair no corso. Entre eles, é possível identificar
Aurora, Mocotó, Tatá e as amigas de Carmen, as irmãs Lulu e Sylvia
Henriques. E Carmen estava mesmo ao volante - mas só para a fotografia.
Poucos minutos depois, teria de ceder o lugar a Mário Cunha e voltar
para o banco do carona. Por mais que ela insistisse, ele não a ensinava
a dirigir e não permitia que outro o fizesse. A maior estrela da música
popular poderia comprar um carro, se quisesse, mas não tinha autonomia
para dirigi-lo.

A desculpa de Mário Cunha era a de que ele tinha o maior orgulho em
transportá-la - o que era verdade. Carmen se submetia. Em janeiro, ele a
escoltara mais uma vez pela sede do Fluminense, para suas apresentações
nos bailes pré- carnavalescos do tricolor, acompanhada pela orquestra de
Pixinguinha. No mesmo mês, estava à sua espera na porta do Cine
Eldorado, na avenida Rio Branco, ao fim de cada um dos shows que ela
fizera para a Victor com seus novos colegas de gravadora, Lamartine Babo
e Almirante. E Mário Cunha não era apenas um homem galante. Era também
solidário e compreensivo: enquanto o mundo se divertia, sua namorada
tinha de trabalhar no Carnaval, mas ele não reclamava.



79


Em termos estritos de folia (ou seja, sem que Carmen precisasse cantar),
o ponto alto do tríduo de 1932, para eles, foi o baile promovido por
Jonjoca em casa de seus pais, na rua Sorocaba, em Botafogo, animado pelo
incansável Pixinguinha. Eram dezenas de amigos eufóricos, ruidosos e com
fantasias iguais. Mocotó, Mário Travassos (pianista, niteroiense, autor
de "Palavra doce"), Laércio, Zuza, Inácio, Maurício e o próprio Jonjoca,
entre outros, estavam de havaianos; Carmen, Aurora e mais seis amigas
estavam à marinheira. "Teu cabelo não nega" - a marchinha que o dono da
casa perdera na moeda - foi tocada incontáveis vezes pela orquestra
aquela noite. Carmen e Mário Cunha pularam, suaram e se esbaldaram,
indiferentes às horas. E, enquanto seus amigos adernavam pelos cantos ou
já estavam indo embora, os dois continuaram brincando até o sol raiar.
Era o sétimo Carnaval que passavam juntos e, para todos os efeitos,
ainda tinham muitos pela frente.

Mas sete é um número traiçoeiro, e um relacionamento não vive só de
confetes e serpentinas - ou do que as duas pessoas fazem quando ninguém
está olhando. Coincidência ou não, aquele seria o último Carnaval em que
Carmen e Mário Cunha fariam suas fantasias na mesma costureira.

Na tarde de 19 de junho, domingo, o presidente Getúlio Vargas foi ao
estádio do Fluminense para assistir às apresentações dos atletas que
iriam representar o Brasil nas Olimpíadas de Los Angeles, em julho. A
caçula e única mulher da delegação, a nadadora Maria Lenk, de dezessete
anos, deu um show na piscina e entusiasmou Getúlio. Mas, aos rapazes de
remo, ele só desejou boa sorte, porque, naturalmente, nas Laranjeiras
não se podia vê-los em ação. Dois desses rapazes eram o remador
rubro-negro Mário Cunha, trinta anos, e o sota-proa do oito vascaíno,
Mocotó, vinte anos. Não há indício de que Carmen tenha comparecido ao
evento. O fato de que seu irmão estava a ponto de se tornar um atleta
olímpico era um motivo de orgulho para ela, mas a idéia de ver seu
namorado saracoteando no estrangeiro a deixava uma arara. Por conhecer
Mário Cunha tão bem, ela já o via aproveitando cada minuto de folga em
Los Angeles para ir a Hollywood e penetrar em algum estúdio para seduzir
Jean Harlow, Myrna Loy ou alguma outra sirigaita do cinema. Decidiu
dar-lhe um ultimato: se ele embarcasse, o namoro estava encerrado.


80

Contraditoriamente, Carmen acabara de assinar um contrato para se
apresentar no Teatro Jandaia, em Salvador, em setembro - mais ou menos
na época em que a delegação olímpica deveria estar voltando de Los
Angeles. Quando Carmen o encostou à parede, Mário Cunha tentou
argumentar:

"Mas, Carminha, você foi não sei quantas vezes a São Paulo e eu nunca
disse nada. Já foi até a Buenos Aires. E essa excursão à Bahia, eu é que
fiz força para você aceitar. Agora eu tenho uma oportunidade de conhecer
os Estados Unidos, de graça, sem o menor ônus, e você não quer que eu
vá?"

Carmen não queria saber:

"Se você for, nós terminamos."

Então, para grande surpresa de ambos, ouviu-se a voz de Mário Cunha,
como que saindo de outra pessoa, dizendo:

"Então terminamos!"

E terminaram mesmo.

Poucos dias depois, Mário Cunha, Mocotó e os outros atletas começaram a
viagem para Los Angeles a bordo do Itaquicê. Tudo deu errado no caminho.
Sem verba oficial, a delegação levava 55 mil sacas de café, que
precisaria vender nas escalas para pagar as inscrições dos atletas - uma
média de 671 sacas por atleta, e quem não vendesse sua cota não seria
inscrito. Mas as vendas foram fracas e, por causa daquela carga, o navio
foi retido na entrada do canal do Panamá, acusado de contrabando. Ficou
duas semanas parado ali, com os atletas proibidos de ir a terra,
enferrujando as juntas e sonhando com o que estavam perdendo em Los
Angeles. A monotonia só era quebrada por Mocotó, que às vezes se vestia
de Carmen e fazia perfeitas imitações da irmã, rebolando e gesticulando
ao cantar - sem gaguejar - "Taí" ou "Bamboleô". As gargalhadas quase
sacudiam o navio.

Mário Cunha era o único que não achava graça na brincadeira. No bolso do
macacão, trazia a última foto que Carmen lhe mandara, com a dedicatória:
"Ao Mário, ofereço esta insignificante recordação da... tua ex. Carmen".
Pela primeira vez, nada de Bitucas, Maricos, Marinhos ou maridinhos.

O impasse quase absurdo criado por Carmen a respeito da viagem não
passara de um gatilho para o rompimento. A crise era mais profunda. O
que a ligava a Mário Cunha era a atração física e, depois de sete anos,
ela podia ter se cansado dele. Não havia, para nenhum dos dois, nenhuma
perspectiva de casamento - ele, por não ser do tipo casadouro; ela, por
não ter a menor intenção de encerrar a carreira (o que precisaria
acontecer se se tornasse a senhora Mário Cunha). O namoro caíra num
chove-não-molha, conveniente para ele, que a tinha com exclusividade, e
incômodo para ela, que se sabia traída a três por dois. Outra humilhação
era a de que os pais de Mário Cunha nunca se interessaram por conhecê-la
e a viam apenas como uma das conquistas do filho.


81

Só que, ao mover-se agora nos mais variados círculos, inclusive
intelectuais, e sendo requisitada, adulada e desejada 24 horas por dia,
Carmen já não precisava se submeter a esse desprezo. E também se
ressentia do tipo de autoridade que Mário Cunha insistia em exercer
sobre ela, como ao impedi-la de dirigir automóvel - como se ela ainda
fosse a guria de dezesseis anos que ele conhecera na loja de gravatas.

Como se tivesse se livrado de um peso morto, Carmen sobreviveu muito bem
ao fim do namoro. Mário Cunha, menos - e a brincadeira de Mocotó no
navio o deixava com gosto de cabo de guarda-chuva na boca.

O Itamaraty resolveu o problema da carga de café e o Brasil seguiu
viagem para Los Angeles, aonde custou, mas chegou. Devido à parada no
canal, a delegação já pegou os Jogos pelo meio. Os atletas estavam
miseravelmente fora de forma. Tinham passado seis semanas a bordo, sem
poder treinar (não havia sequer uma piscina para Maria Lenk dar umas
braçadas) e se limitando a alguma ginástica no convés. Ganhar medalhas,
nem pensar, e a simples possibilidade de fazer bonito era remota. Por
algum motivo, Maria Lenk teve de nadar com um maiô emprestado, mas
chegou à semifinal no nado de peito. No remo, o barco de Amaro foi logo
eliminado, e Mário Cunha, como outros atletas, nem chegou a competir.
Foi a pior participação do Brasil nas Olimpíadas em todo o século xx.

Para não dizer que a viagem foi em vão, a delegação visitou o estúdio da
Fox, ciceroneada por Raul Roulien, o brasileiro que fora para Hollywood
dois anos antes e, ao contrário de Lia Tora e Olympio Guilherme, se dera
surpreendentemente bem. Roulien já fizera vários filmes americanos,
todos exibidos no Brasil. Os atletas ficaram de boca aberta quando, na
Fox, ele passou por Spencer Tracy, disse "Oi, Spence!", e ouviu de volta
"Oi, Raul!". Mas, se Roulien apresentou Jean Harlow ou Myrna Loy a Mário
Cunha, não há notícia de que o ex-namorado de Carmen tenha conseguido
alguma coisa.

Aliás, Roulien também nunca conseguiu.

Meses antes, no dia 1 de março, o governo federal baixara um decreto-lei
permitindo a propaganda no rádio. A partir dali, os programas poderiam
apresentar toda espécie de anúncios pagos - o que equivalia a soltar uma
raposa (ou um papagaio) no galinheiro. Isso permitiu às emissoras
estabelecer uma programação fixa, com cada minuto valorizado, e formar
profissionais que, até então, não precisavam existir. Surgiram os
corretores, que iam buscar os anúncios no comércio, e os redatores que
os criavam, com ou sem música, para ser lidos ou interpretados ao vivo
pelos locutores, radioatores e cantores. O primeiro anúncio cantado foi
composto por Nássara para o Programa Case, na Rádio Philips, com Luiz
Barbosa, o inventor do samba de breque, apregoando as delícias do pão
Bragança, fabricado por uma padaria em Botafogo. Sem querer, havia algo
de simbólico nesse pioneiro jingle sobre um pão - por causa dele, e de
muitos outros comerciais com música, as patroas desses compositores já
podiam acertar as contas na quitanda ou fazer a feira duas vezes por
semana. Os anúncios eram criados na própria rádio, em cima da perna, e
tratavam geralmente do varejo carioca - um dos mais famosos, com música
e letra de Noel Rosa, era o do Dragão, a histórica loja do tipo
tem-tudo, na rua Larga.


82


As rádios começaram a competir pelas maiores atrações e, com isso, os
cachês dos artistas melhoraram. Mas não era o profissionalismo para
valer, porque os cantores não tinham contrato de trabalho, apenas
vínculos ocasionais. Foi ainda sob esse regime que Carmen inaugurou no
dia 8 de abril o seu programa semanal de quinze minutos na Mayrink Veiga
- e também ali havia algo de simbólico, porque a emissora, na rua
Mayrink Veiga, 15, ficava quase em frente à barbearia onde, 23 anos
antes, seu pai começara a vida no Brasil. O cachê de Carmen era de 500
mil-réis para cantar quatro vezes por mês. Razoável para ela, talvez,
mas insignificante para a emissora. As rádios cobravam aos anunciantes o
valor de mil-réis por segundo - donde, com oito minutos e meio de
anúncios no ar, todo o mês de Carmen estava pago.

Como ainda não era o profissionalismo à vera, certos artistas - Sylvio
Caldas era um - não perdiam o hábito de, com o programa já no ar, deixar
a rádio "um instantinho" para ir tomar algo na esquina. E, com
freqüência, esqueciam-se de voltar, obrigando os desesperados
contra-regras a ir catá-los nos botequins da vizinhança e levá-los de
volta quase pela orelha. Carmen não fazia isso, porque não bebia, mas
vivia se atrasando para o seu próprio programa. Em casa, os ouvintes já
achavam graça quando Felicio Mastrangelo, agora na Mayrink, anunciava o
seu nome. A orquestra dava a deixa e nada de Carmen entrar. Duas ou três
deixas depois, Carmen chegava esbaforida ao microfone, depois de subir
correndo os quase trinta degraus entre a calçada e o palco.

Se os compositores anônimos já a cercavam na rua para lhe mostrar seus
sambas, o assédio aumentou por causa do programa. Eles agora sabiam onde
e quando encontrá-la: à saída da Mayrink, terminado o seu horário. Mas
Carmen tinha um guarda-costas tão informal quanto eficiente: o fiel
Josué de Barros. Imponente, cara feia, sobraçando o violão sem capa e
conhecendo todo mundo, ele se punha entre ela e os que se aproximavam -
como se tivessem de passar primeiro por ele. Josué continuava a ser seu
violonista e mentor profissional. Mas sua própria sensibilidade já lhe
dissera que, depois de ter dez músicas gravadas por Carmen - todas em
1929 e 1930, quando ela estava começando -, era melhor que ele agora
dirigisse sua produção para outros cantores. Carmen crescera demais e
havia novos compositores na praça, como Ary Barroso, André Filho,
Lamartine Babo, Ismael Silva e Noel Rosa, muitos compondo para ela - e
com quem ele não podia nem sonhar em competir. A partir de 1931, Josué
só seria gravado por cantores novatos como Floriano Belham, Sônia Veiga
e Sônia Burlamaqui - nenhum deles pegou -, ou por ele mesmo ao violão.

83

Outro mulato alto, também baiano e compositor, só que bonito e muito
jovem - 21 anos -, tentou aproximar-se de Carmen em 1932: Assis Valente.
E, como todos, Assis esbarrou em Josué. A solução que encontrou foi a de
tomar aulas de violão com Josué, na esperança de ter acesso a ela.
Enquanto isso, exercia dupla militância e buscava também uma aproximação
com Aracy Cortes. Com Aracy, foi fácil: Assis fez campana à porta do
Teatro Carlos Gomes; ela chegou de carro e ele lhe mostrou seu samba
"Tem francesa no morro", uma variante francófona de "Canção para inglês
ver", de Lamartine, que ela também lançara no teatro no ano anterior.
Aracy gostou de "Tem francesa no morro" e, em meados do ano, gravou-o na
Columbia. O disco não teve nenhuma repercussão, mas não por culpa da
música. Aracy, a deusa das revistas, é que não dava a menor importância
a discos nem se rebaixava a fazer o circuito das rádios para lançá-los.
Só por isso a carreira de "Tem francesa no morro" nunca esteve à altura
de sua qualidade:

Donê muá si vu plé

Lonér de dance aveque muá

Dance, ioiô

Dance, iaiá

Si vu freqüente macumbê

Entre na virada efini pur samba...

Assis estava no Rio desde os dezessete anos, em 1928, e seu talento
extrapolava a facilidade para fazer música e letra. Era também
desenhista (já publicara alguns desenhos nas revistas Shimmy e Fon-Fon!)
e escultor. Com algum esforço, poderia tentar uma carreira nas artes
plásticas. Mas, para ganhar a vida, preferia esculpir dentaduras. Era
profético de um laboratório na rua da Carioca e, segundo voz geral, dos
bons. Uma piada recorrente dizia que suas dentaduras só faltavam falar.
Sua própria dentadura (autêntica, dele mesmo) merecia ser exposta numa
galeria de arte e, aliás, ele a exibia à menor solicitação: dentes muito
brancos e alinhados, um sorriso cativante, de lábios finos, e, encimando
tudo isso, um provocante bigodinho. Vestia-se na pinta e era fino e
educado - diante de Brancura, um áspero sambista do Estácio, podia se
passar pelo príncipe de Gales. Por um hábito adquirido na Bahia, Assis
cortava o cabelo rente, para aplainar a escadinha, e não se considerava
mulato, mas "bronzeado". No Rio, evidentemente, isso era besteira, e o
que impressionou Carmen, quando Assis finalmente chegou a ela, em julho,
foram as duas músicas que ele lhe mostrou, quase que uma depois da
outra: o samba "Etc..." e a marchinha "Good-bye". Nenhum principiante
lhe oferecera até então um material daquela categoria.



84

No dia 8 de agosto, Francisco Alves, Carmen Miranda, Noel Rosa e
Almirante, acompanhados pelos violões de Josué de Barros, subiram ao
palco do Cine-Teatro Broadway, na rua do Passeio, para uma temporada de
uma semana. O Broadway era o antigo Capitólio, rebatizado como o seu
homônimo de Buenos Aires e adaptado para espetáculos de palco e tela
pelo exibidor Ponce & Irmão (para quem o muito jovem Nelson Rodrigues
escrevia os textos publicitários). Às cinco da tarde, Chico, Carmen,
Noel e Almirante faziam o primeiro show. Seguiam-se duas sessões do
filme Eram treze (Eran trece), com Raul Roulien, e, às nove, eles
voltavam para o segundo show. Logo no primeiro espetáculo, Josué, por
"distração", tocou a introdução de "Good-bye" - que, pouco antes, tinha
sido retirada do programa por Francisco Alves sob a alegação de que
Carmen ainda "não dominara a música". Mas Carmen se fez de boba e cantou
a marchinha de Assis. A platéia delirou e ela convocou o compositor ao
palco. Chico Alves fez cara de tacho e Assis Valente estava consagrado.
Os irmãos Ponce chamaram essa série de Broadway Cocktail. Uma semana
antes, já tinham promovido com sucesso o primeiro "coquetel", estrelado
por Sylvio Caldas, Laura Suarez, Lamartine Babo e a pianista Carolina
Cardoso de Menezes. A idéia era trocar semanalmente o show e o filme.
Mas, no Cocktail, com Chico, Carmen, Noel e Almirante, a semana de 8 a
15 de agosto não bastou. A massa acorreu, intuindo que estava tendo o
privilégio de assistir a algo único - estava mesmo -, e eles tiveram de
dobrar a temporada, até o dia 21 (o filme é que mudou para A vida é uma
dança, ou Ten cents a dance, com Barbara Stanwyck e Ricardo Cortez). E
só não continuaram em cartaz por ainda mais tempo porque, para tristeza
de Ponce & Irmão, os dois principais, Chico e Carmen, tinham outros
compromissos.

Os Ponce não se conformavam: um dos compromissos de Carmen era um show
beneficente no Cine Atlântico, um cineminha de segunda na avenida Nossa
Senhora de Copacabana, com renda destinada à Casa do Pobre. Ela não
poderia pedir desculpas e faltar? Neca, disse Carmen. E nem ao menos era
a única atração - também estariam no palco Sylvio Caldas, Custódio
Mesquita, Patrício Teixeira e Elisinha Coelho. Que diferença faria se
ela fosse ou não? Eu prometi, respondeu Carmen. E se nós lhe pagássemos
um cachê maior que o de Francisco Alves? Nada feito, insistiu Carmen, e
podem ir pentear macacos.

Carmen ignorou o dinheiro e os argumentos de Ponce & Irmão. Fez o show
de graça para a Casa do Pobre num pulgueiro e ainda foi criticada por
seu amigo Theo-Filho, em "Beira-Mar, por ter cantado, de piada, dois
tangos humorísticos. A rainha do samba não podia mais se aventurar por
certos ritmos exóticos, nem de brincadeira.

Mas havia outro motivo importante para Carmen não abrir mão desse show
no Cine Atlântico. Nele, ela apresentou, quase clandestinamente, uma
nova e promissora cantora, que lhe era muito chegada: sua irmã Aurora.
Aurora Miranda.

85

No dia 14 de setembro, Carmen tomou o Cuyabá para Salvador, Bahia. Diz a
lenda que, ao cruzar a barra do Rio, seu navio cruzou com o Itaquicê,
que voltava de Los Angeles com a delegação olímpica. Os dois navios
podem ter buzinado cordialmente um para o outro, mas não é crível que
Carmen e Mário Cunha, cada qual em seu convés, tenham se acenado com
lenços brancos.

A excursão de Carmen compreendia shows em Salvador, Cachoeira, São Félix
e Alagoinhas, todos na Bahia, e dali até o Recife, para mais shows, de
onde voltaria para o Rio. Como Carmen não acreditava em agentes, o
convite lhe foi feito diretamente pelo exibidor baiano José Oliveira,
proprietário do Jandaia, o enorme cineteatro de Salvador, na Baixa dos
Sapateiros, com custos divididos entre as demais praças. Com Carmen
viajaram, como sempre, seu pai - a essa altura, mais chaperon do que
barbeiro - e seus dois acompanhantes musicais, Josué e seu filho
Betinho, já um profissional do violão aos quinze anos.

A viagem tomava quase uma semana, e Carmen chegou a Salvador no dia 20
de setembro, terça-feira, a tempo de descansar um pouco antes de estrear
no sábado, dia 24. Segundo uma história contada por Almirante, e depois
muito repetida, essa estréia teria sido um desastre: o teatro era um
poeira; não havia microfone; a acústica era péssima; e a platéia, muito
grossa, infernizara Carmen durante o espetáculo, aos gritos de "Rebola!
Rebola!". Diante disso - continua Almirante -, ela suspendera a
temporada e mandara um telegrama para ele no Rio, convocando-o a ir
salvá-la e a dividir o show com ela, cantando emboladas e contando
piadas. Almirante teria tomado o primeiro vapor, passado fome na viagem
(embarcara com pouco dinheiro) e chegado a tempo de Carmen reestrear o
show no dia 26, segunda-feira, dando início a uma temporada de sucesso.

É difícil saber como nascem certas lendas - e essa é uma história mal
contada em toda linha. Entre outras coisas, o Jandaia não era um poeira.
Na verdade, era um teatro de luxo, novo em folha, inaugurado um ano
antes. A falta de microfones era normal na época, donde a acústica era
planejada de acordo. É possível que, num teatro daquele tamanho (2260
lugares), a voz de Carmen não chegasse bem a certos setores da platéia
e, justamente desses - as galerias, onde ficavam os estudantes
universitários, de pé e sem pagar -, partissem gritos de "Rebola!
Rebola!". Mas seria essa uma crise com que a tarimbada Carmen não
soubesse lidar? O importante, no entanto, não é isso. É a participação
de Almirante.

Muito antes do início da temporada, o jornal A Tarde já anunciava a
presença de Carmen e de Almirante em Salvador para uma série de shows no
Jandaia. O anúncio, falando de ambos, saiu diversas vezes. Ou seja,
Almirante iria de qualquer maneira. A estréia, marcada para o dia 24 de
setembro, foi transferida para o dia 26 e, segundo todos os jornais, lá
estava Almirante ao lado de Carmen. Em nenhum jornal baiano do período
se lê sobre uma estréia desastrada no dia 24. Mas, supondo que tenha
havido, como seria possível a Almirante, no Rio, receber um telegrama
nesse dia, embarcar correndo e chegar a Salvador menos de dois dias
depois? A resposta, levantada pelo pesquisador baiano Waldir Freitas
Oliveira nos arquivos de A Tarde, é simples: Almirante perdeu o vapor em
que deveria ter embarcado com Carmen no dia 14, e o navio seguinte deve
ter levado dois ou três dias para sair. Donde Carmen chegou a Salvador
no dia 20, e Almirante não conseguiu chegar antes do 24. E só por isso a
estréia passara para o dia 26. Enfim, nenhum mistério, exceto o de que a
memória de Almirante, sempre tão acurada, lhe faltou nesse episódio.


86


Carmen e sua trupe se hospedaram no Palace, o melhor hotel da cidade.
Foram à praia algumas vezes, certamente em Itapuã, por ser mais afastada
e de difícil acesso. Sabe-se que Carmen foi ao Bonfim e fez uma promessa
para o Nosso Senhor do Bonfim, mas não há a menor possibilidade de que
tenha sido levada a terreiros de candomblé - eles ainda não faziam parte
dos roteiros turísticos. Um dos lugares em que almoçou em Salvador foi o
restaurante de Maria de São Pedro no antigo Mercado Modelo, ponto
tradicional das "baianas" vendedoras de quitutes em tabuleiros. E pode
ter visitado uma loja de discos de Salvador, a Casa Trianon, que
imprimiu um postal com sua foto tendo no verso a letra de "Good-bye",
para distribuir aos clientes. Nos cerca de trinta dias que passou na
cidade, Carmen fez dez shows no Jandaia, sem nenhuma atribulação. Num
desses shows, sentado anonimamente na torrinha e hipnotizado por Carmen,
um aspirante a artista: Dorival Caymmi, de dezoito anos. O único
compositor baiano com quem se sabe que Carmen falou em Salvador foi o
jovem Humberto Porto. Ela gostou dele e o estimulou a ir para o Rio.
Anos depois, Humberto seguiu o conselho, para benefício da música
popular.

Carmen entrava em cena por volta das sete e meia, sempre depois de um
filme, que era trocado a cada dois dias. Aos domingos, o espetáculo era
em matinê. Carmen contou depois que seu camarim era visitado após cada
show pelas "melhores famílias baianas" - o que ela achava significativo,
porque logo percebeu o elitismo e o nariz empinado da sociedade de
Salvador. Em todos os shows, Carmen cantava nove ou dez músicas,
revezando com as emboladas e anedotas de Almirante e os números
instrumentais por Josué e Betinho. O final, apoteótico, era "Good-bye" -
que, segundo Carmen, ela teve de bisar doze vezes em determinada noite
no Jandaia. Sua despedida da cidade se deu em duas noites no Guarani,
teatro um pouco mais central, nos dias 17 e 18 de outubro.

De Salvador, agora de trem, foram no dia 20 para Cachoeiro e São Félix,
cidades gêmeas à beira de um rio, a oeste da baía de Todos os Santos e
famosas pela produção de charutos. Em São Félix, o teatro era de fato
tão pobre que Carmen teve de improvisar uma cortina junto ao comércio
local. Dali, rumaram para Alagoinhas, na direção de Sergipe, onde se
apresentaram no Cine Popular. Um orador local deixou-se arrebatar por
Carmen e debruçou-se tão estouvadamente sobre o balcão para saudá-la -
"Beleza doce dos seus luares, veneno que não mata, pimenta que dá
saúde!" - que quase despencou lá do alto. E um fazendeiro jovem, rico e
boa-pinta, Máriozinho do Ouro - o apelido tinha a ver com seu apreço
pelo metal -, caiu-lhe em cima de forma implacável, com promessas de
presentes dourados. Carmen o manteve à distância, mas Máriozinho se
gabaria pelos anos seguintes de lhe ter dado um bracelete de ouro. De
lá, sempre de trem, Carmen, Almirante & Cia. voltaram a Salvador e,
dali, tomaram o navio - o Ruy Barbosa - para o Recife.

87


Na primeira noite de Carmen no Teatro Santa Isabel, no Recife, no dia
29, uma quarta-feira, o poeta pernambucano Ascenso Ferreira subiu ao
palco para apresentá-la e rasgou o verbo:

"Com ela, a tragédia foi morta pelo bom humor e a tristeza nativa
mudouse em festa de batuque e bombos", terminando sua introdução com a
frase: "Deus permita que tu botes diamantes pela boca!".

E, pelo visto, ela botou. Os estudantes, apinhados nas torrinhas
neoclássicas do velho Santa Isabel, jogavam-lhe serpentinas e gritavam:
"Morena do céu!". Ao fim do espetáculo, o interventor de Getúlio Vargas
no estado, Carlos Lima Cavalcanti, foi ao palco entregar-lhe um buquê,
ao mesmo tempo que um segundo buquê, sem cartão, também era entregue a
Carmen. No Recife, como em toda parte, ela teve um admirador que a
seguia sem aproximar-se. Ficava de tocaia à porta do Hotel Central, onde
ela se hospedara, e acompanhava cada movimento seu - o homem fazia isso
à distância, respeitosamente, mas que era esquisito, era. Quem estava
também de passagem pela cidade, vindo do Rio a caminho de Hollywood, era
Will Rogers, então o astro mais bem pago do mundo - 15 mil dólares por
semana, pela Fox - e que morreria poucos meses depois, num desastre
aéreo no Alasca.

Carmen fez mais dois shows no Recife, nos dias 3 e 5 de novembro, e, de
lá, tomou o Zelândia direto para o Rio. Mais cinco dias de viagem e
entrou na baía de Guanabara no dia 11 de novembro, exausta. A longa
viagem só não era insuportável porque, à noite, os passageiros cantavam
e dançavam no convés.

A imprensa foi recebê-la no cais como se ela estivesse chegando do
exterior. E, pensando bem, não era muito diferente. A excursão a
obrigara a passar quase dois meses fora do Rio - tempo em que ficou
longe do centro dos acontecimentos, fora do alcance dos compositores, e
impossibilitada de gravar. Tudo isso para fazer apenas dezesseis shows,
com cachês nem sempre compensadores, em teatros de acústica imprevisível
- foi quando decidiu que, um dia, teria seu próprio equipamento de som,
que passaria a viajar com ela.

Era assim que as coisas se davam no Brasil de 1932. A falta de estradas
e as enormes distâncias levavam os artistas a concentrar suas carreiras
nas regiões Sudeste e Sul, enquanto o resto do país, que os admirava
pelos discos e pelo rádio, tinha de ficar chupando o dedo. Uma excursão
como essa, com tantos sacrifícios, era uma homenagem que o artista
prestava à região que visitava. Carmen prestou a sua à Bahia e a
Pernambuco.


88

Por ter ficado tanto tempo fora do Rio, somente em novembro Carmen
gravou "Etc..." e "Good- bye". Mas, antes da viagem, já os cantara
tantas vezes, até com a presença do autor, que o samba e a marchinha
estavam na boca do povo, e Assis Valente já começara a ser abordado na
rua. Quando isso acontecia, Assis faiscava seu melhor sorriso e tirava
do bolso do paletó um maço de fotos, batidas em estúdio, com ele em
close, de perfil e à distância. Escolhia uma, assinava-a e a presenteava
ao fã. A popularidade assentava bem em Assis, e ele foi o primeiro
compositor brasileiro a sair prevenido de casa, com fotos de reserva e
com uma Parker cheia de tinta para os autógrafos. Ao mesmo tempo, era
grato a Carmen. Numa tarde em que ela foi visitá-lo no laboratório de
prótese, encontrou-o usando as raspas dos moldes preliminares das
dentaduras, feitos de um material flexível chamado godiva, para esculpir
uma cabeça de mulher. Era uma cabeça com o rosto de Carmen.

Carmen cantou "Good-bye" em Voz do Carnaval, o musical que a Cinédia
filmou em dezembro de 1932 e janeiro de 1933. Era o primeiro filme
brasileiro usando o sistema alemão Movietone: o som óptico, gravado
direto na película, usado pela primeira vez por Fritz Lang em O anel dos
nibelungos (Die Nibelungen), em 1926. William Fox comprara-o em 1927
como alternativa ao desajeitado processo Vitaphone adotado pela Warner,
e só agora, quase seis anos depois, o estava liberando para o resto do
mundo. Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro, os diretores de Voz do
Carnaval, puderam finalmente gravar o som das ruas, permitindo ao
carioca se ouvir. "Pela primeira vez no Brasil, o Carnaval gravado em
filme com todos os seus ruídos", disseram os anúncios.

Por um triz não se perdeu tudo: durante uma filmagem na avenida Rio
Branco, em frente ao Jornal do Brasil, um jovem advogado tentou incitar
a multidão a destruir o equipamento porque este era "americano". Por
sorte, a multidão não aderiu. Deixou o advogado falando sozinho, e o
Carnaval e o filme seguiram incólumes.

Voz do Carnaval era um filme-revista carnavalesco, com um fio de trama
escrito pelo dramaturgo Joracy Camargo. Mostrava a chegada do rei Momo
(o autêntico, Moraes Cardoso, o primeiro rei Momo carioca, recém-eleito)
descendo do navio Macangüê na praça Mauá e sendo aclamado pelo povo em
frente ao edifício do jornal A Noite - por sinal, um dos financiadores
da produção. Dali, Momo é levado ao Cassino Beira-Mar, no Passeio, onde
é oficialmente entronizado. Momo acha tudo isso muito, digamos, oficial,
e foge para ver o verdadeiro Carnaval carioca. Desse ponto em diante,
passa a ser interpretado pelo comediante Palitos, mas todas as
seqüências de rua são reais. Momo vai à praça Onze, à gafieira Kananga
do Japão, e aos desfiles dos ranchos (entre os quais o Ameno Resedá, o
Flor de Abacate e o Mimosas Cravinas). Sobe aos morros, assiste à
batucada, e desce à Avenida, onde acompanha o corso e as grandes
sociedades. Visita a Rádio Mayrink Veiga, onde conhece Carmen. Vai aos
bailes dos cassinos e dos clubes, aos bailes infantis e aos banhos de
mar a fantasia. Entre uma e outra aventura, descobre-se no meio dos
clóvis, perde-se entre os préstitos e pinta o sete. Tudo é pretexto para
números musicais, com os cantores e compositores apresentando sua safra
para o Carnaval de 1933.

89


Safra, essa, de uma riqueza quase inacreditável. Foi o ano em que
Lamartine Babo lançou "Linda morena", "Aí, hein?" e "Moleque indigesto";
Noel Rosa apresentou "Fita amarela" e, com Walfrido Silva, "Vai haver
barulho no chatô"; Nássara e J. Rui fizeram "Formosa"; João de Barro,
"Moreninha da praia"; e não esquecer Assis Valente com "Good-bye". Essa
era a trilha do filme, e todas se tornariam clássicos do Carnaval e da
música brasileira. As partes de Carmen foram filmadas em janeiro, no
estúdio da Mayrink, com ela cantando "Good-bye" e, em dupla com
Lamartine, "Moleque indigesto".

O filme estreou em março, no Odeon. Depois correu o Brasil e, como era a
sina dos filmes brasileiros, as cópias foram desaparecendo uma a uma e
finalmente o negativo também sumiu. (Há uma remotíssima chance de
existir uma cópia em Paris. Na época, o embaixador da França no Brasil,
Louis Hermitte, entusiasmou-se com o filme e levou-o para ser exibido no
Eliseu. Por sinal, dizia-se que Mne. Hermitte não era a embaixatriz
francesa no Brasil, mas a embaixadora do Rio em Paris, tamanho o seu
amor pela cidade.) Para todos os fins, no entanto, Voz do Carnaval
também é um filme perdido. E, mais uma vez, ficamos sem um grande
documento da vida do Rio e do Brasil. Entre outros pioneirismos, o
Carnaval de 1933 foi o primeiro em que os foliões já não dançaram apenas
aos pares, enlaçados - mas em grupos, formando cordões, ou cada um por
si, ao ritmo das orquestras e batucadas.

Os artigos da época, única maneira pela qual sabemos hoje como era o
filme, dizem que, em determinada cena, passando pela rua na maior
animação, via-se Mário Cunha. Pelo visto, ele perdera a namorada mas não
perdera o aplomb. Quando Carmen voltou da Bahia e não quis muita
conversa, ficou claro para Mário que o rompimento era definitivo. Então,
ele se aprumou ao espelho, refez suas mortíferas ondas no cabelo e
mandou imprimir novos cartões de visita dizendo:

MARIO CUNHA

EX-PEQUENO DE CARMEN MIRANDA

O que levaria Assis Valente a compor para Carmen, tempos depois, "Tão
grande e tão bobo", com o mote inspirado nele. Mas Mário Cunha não se
ofendeu, e provou que, apesar de grande, não tinha nada de bobo. Sua
condição de "ex" de Carmen o tornou o partido mais disputado do Rio.

Aurora era morena, olhos vivos, belos dentes, cabelo farto e cacheado.
Era também esportiva: fazia ginástica, jogava vôlei, nadava e ia muito à
praia.


90

Mas nada disso a fez crescer muito, porque tinha a mesma altura de
Carmen, 1,52 metro. Todos no meio artístico a conheciam, por causa de
seu nome bonito e sonoro, e por ser, desde cedo, a sombra de Carmen nas
idas à rádio ou à gravadora - não apenas para fazer companhia à irmã,
mas para participar de um coro ou coisa assim. Era evidente que havia
uma carreira musical no seu horizonte.

Hoje é evidente também que, por uma exigência familiar, esperaram que
ela completasse dezoito anos, em abril de 1933, para lançá-la
profissionalmente. Aurora já cantava desde os quatorze, em 1929, quando
Josué de Barros ia à travessa do Comércio para ensaiar Carmen e,
aproveitando, ensinava também uma coisinha ou outra a Cecília e Aurora.
As duas tinham bossa para cantar, mas Cecília casou-se muito cedo, o que
dificultaria que se dedicasse à música. Já Aurora só tinha de esperar a
hora - e, enquanto esta não chegava, Josué às vezes a levava
informalmente às rádios Philips e Mayrink Veiga, para ganhar
experiência. Em agosto de 1932, Carmen a apresentara no palco do Cine
Atlântico. Mas só em maio de 1933, um mês depois de seu aniversário,
decidiu-se que ela estava pronta.

A convite da Odeon, Aurora gravou em dupla com Francisco Alves a
marchinha junina "Cai, cai, balão", de Assis Valente, além de um samba
para o lado B. A curiosidade em torno da irmã de Carmen, a presença de
Chico Alves a seu lado no microfone e o nome de Assis Valente como autor
da música asseguraram o sucesso do disco. Mas por que Aurora o gravou na
Odeon, se Carmen era da Victor?

Por isso mesmo - para eliminar possíveis confusões. Era inevitável que
Aurora cantasse parecido com Carmen: o timbre era semelhante (afinal,
eram irmãs) e nem sempre ela conseguiria evitar algumas bossas típicas
da mais velha, adquiridas pela constante observação (e quem mais do que
Aurora já vira e ouvira Carmen?). No futuro, Aurora evoluiria para um
estilo próprio, mas, no começo, não interessava à Victor ter em seu cast
uma Carmen a minuta, para concorrer com a própria. Já para a Odeon,
interessava, e muito, ter uma voz que competisse com a de Carmen.

E para o generoso, mas esperto, Chico Alves, era uma delícia prestigiar
alguém que poderia dividir o público de sua maior rival em popularidade.
Chico não apenas insistiu em fazer dupla com Aurora no primeiro disco da
garota como a levou para cantar "Cai, cai, balão" com ele, em junho, no
Teatro Recreio, na noite que se tornou a da apresentação oficial de
Aurora ao público. E, menos de um mês depois, convidou-a a gravarem, de
novo em dupla, o foxtrote de Noel e Hélio Rosa, "Você só... mente", que
se tornaria um dos discos mais tocados de 1933. Com apenas dois meses de
carreira, Aurora emplacara dois sucessos. E, naquele ano, ainda haveria
um terceiro e mais retumbante sucesso: a marchinha "Se a lua contasse",
de Custódio Mesquita. Aurora gravou-a em outubro, a Odeon lançou-a em
novembro, e o disco chegou fervendo ao Carnaval de 1934.

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Como todo mundo, Felicio Mastrangelo, diretor artístico da Mayrink
Veiga, estava empolgado com Aurora. Mas, quando ele a chamou de "uma
jóia", no contexto de uma conversa sobre Carmen, Aurora rebateu de
pronto:

"Eu sou uma jóia da Sloper [referindo-se à loja de bijuterias da avenida
Rio Branco]. A jóia verdadeira é Carmen."

Queria deixar claro que, entre elas, não havia rivalidade. E não havia
mesmo. As duas moravam com a família, como se ainda fossem crianças, e
eram muito mais unidas do que costuma acontecer entre irmãs. Carmen
participara das reuniões com Josué de Barros e Assis Valente para o
lançamento de Aurora, inclusive na escolha de "Cai, cai, balão" para o
disco de estréia. Assis, naquele momento, era o compositor quase
exclusivo de Carmen. Mas, se fora para ela que ele fizera "Cai, cai,
balão", Carmen abria mão da marchinha em função de Aurora. E, se não
fosse por isso, havia ainda outro motivo para Carmen ser tão magnânima.
É que Lamartine Babo acabara de lhe oferecer uma marchinha também
junina: "Chegou a hora da fogueira" - que ela cantaria na mesma noite do
lançamento de Aurora no Teatro Recreio e gravaria dias depois, em dupla
com Mário Reis, agora também na Victor. "Chegou a hora da fogueira" não
se limitaria a ser um dos grandes sucessos do meio do ano de 1933. Era
apenas a melhor marchinha junina de todos os tempos.

Sem um namorado para ocupá-la, Carmen passara a sair mais com Aurora. As
duas tornaram-se pares constantes de Castro Barbosa e Jonjoca - não para
namorar ou para algum fim suspeito, mas apenas para farrear, se
divertirem. Os quatro entravam no Plymouth de Jonjoca, com este ao
volante, e varavam a madrugada, de Santa Teresa à avenida Niemeyer,
cantando e contando piadas. Os passeios às vezes se prolongavam até as
oito da manhã. Quando Jonjoca as deixava em casa, com o sol quente, e ia
embora com Castro, dali a pouco o telefone tocava. Era Jonjoca - com
quem Carmen continuava a fofoca interminável, ambos se fingindo de
tatibitates ao telefone.

Ao mesmo tempo que parecia frágil em sua vida amorosa e pessoal, Carmen
estava fazendo uma revolução na música brasileira, tornando-a adulta,
urbana, maliciosa, e estimulando os compositores a explorar esses
caminhos. Ethel Waters vinha fazendo o mesmo na música americana, e
exatamente na mesma época. Com elas, a cantora popular deixava de ser a
soprano olímpica, para quem a letra da música era apenas uma pista de
corrida tendo os agudos como obstáculos, ou a moçoila ingênua e
infantilizada que cantava versos matutos ou piegas. A cantora agora era
uma mulher que tomava liberdades com o ritmo, adiantando-se ou
atrasando-se em relação a ele - ditando o próprio ritmo -, espandindo
sílabas, dando um toque picante às letras. Enfim, tornando-se dona da
canção.



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Pela sua escolha das letras ou pelo jeito de cantar - um jeito positivo,
afirmativo, na batata -, Carmen incorporou também uma nova personagem à
música brasileira: a mulher do bamba, a namorada do malandro, a morena
que sabia se virar e, mesmo apanhando, caía de pé. Fez isso numa série
de sambas que gravou em 1932 e 1933, como "Tenho um novo amor", de
Cartola, "Mulato de qualidade", de André Filho, "Para um samba de
cadência", de Randoval Montenegro, "Quando você morrer", de Donga e Aldo
Taranto, "Por amor a este branco", de Custódio Mesquita, "Não há razão
para haver barulho", de Walfrido Silva, e em várias marchinhas, entre
elas "Elogio da raça", de Assis Valente. Carmen às vezes se dizia
"sambista de favela" e alegava ter aprendido a rebolar com "as mulatas
dos morros". Mas teria um dia subido a algum?

No Carnaval de 1934, sim. Levada por Almirante, Carmen foi ao morro do
Salgueiro, onde assistiu à batucada e à roda de samba das pequenas
escolas que, vinte anos depois, se fundiriam na Acadêmicos do Salgueiro.
Naquela noite, Carmen conheceu os sambistas históricos do pedaço, como
Boruca e o célebre Antenor Santíssimo de Araújo, o Gargalhada, já
candidato a lenda. Gargalhada era o líder da Azul e Branco, uma das
escolas, e, naquele ano, comandaria a comunidade do Salgueiro na
vitoriosa resistência contra o calabrês Emílio Turano, que tentaria
despejar a população para ficar com o morro.

Não se sabe se Carmen subiu a outros morros, e havia um claro exagero na
sua autoclassificação como "sambista de favela". Ela era uma artista que
transitara desde cedo nos mais diversos ambientes, grossos e finos, e
aprendera a se sentir em casa neles todos. A Carmen que, naquele
Carnaval, confraternizou com Antenor Gargalhada, herói do samba e da
guerra no Salgueiro, era a mesma que, dias antes, estava presidindo a
comissão julgadora do banho de mar a fantasia no Flamengo, disputado
pelos blocos Estou com Calor, Donzelas de Copacabana e Entra sem
Machucar. Ou que, sem querer, iria parar o baile de Carnaval do High
Life, na Glória, ao entrar com uma gloriosa fantasia de espanhola (assim
que a viu entrar, o maestro interrompeu a orquestra e atacou de "Taí").
E que, paradoxalmente, ainda podia ser vista pela Cidade, comprando
ilhoses e sinhaninhas no armarinho, comendo torrada Petrópolis na
Colombo e andando de bonde como qualquer mortal. Podia fazer tudo isso
porque, quisesse ou não, já era Carmen Miranda.

Aos olhos e ouvidos do público, era a primeira mulher brasileira a criar
para si uma personalidade pública - e viver dela.



Capítulo 6



1933 - 1934

Pequena Notável



Em 1933, Carmen inaugurou no Brasil o grito dos casaquinhos quase
masculinos, de casimira inglesa, em padrões axadrezados. Usou-os,
primeiro, com saias; depois, com calças compridas mesmo. Carmen não os
mandava fazer na costureira, mas em Victor & Lupovici, reputada
alfaiataria na avenida Rio Branco, entre Buenos Aires e Alfândega.
Victor era o alfaiate da dupla; Lupovici, o administrador, e, com seu
porte de manequim, o melhor garoto-propaganda do talento de seu sócio.
Carmen conhecera Lupovici na Rádio Mayrink Veiga e admirara o corte de
seu terno - daí a idéia de fazer roupa com eles. Tempos depois, Lupovici
saiu da sociedade e se tornou o compositor, cabaretier e ator Ronaldo
Lupo, que teria quatro sambas gravados por Aurora (e, mais tarde, um
namorico com ela).

Os ternos masculinos eram uma idéia que Carmen tirara dos figurinos de
Marlene Dietrich, em filmes como Marrocos (Morocco, 1931) e O expresso
de Xangai (The Shanghai Express, 1932), criados pelo estilista da
Paramount, Travis Banton. (Carmen achava que era Marlene quem inventava
os modelos. Jamais adivinharia que, dali a oito anos, o grande Travis
Banton estaria costurando para ela na Fox.) Mas aquela era uma idéia que
exigia coragem. Uma coisa era ver Dietrich na tela, desfilando de
smoking entre chineses, fumando ópio e soldados da Legião Estrangeira.
Outra era sair pela rua da Alfândega, no Centro do Rio, à luz do dia,
usando um terninho parecido com o dos homens que estavam ali a negócios.
Por causa disso, houve quem confundisse Carmen ou tirasse conclusões
apressadas sobre sua sexualidade - principalmente pela companhia de sua
amiga Sylvia Henriques.

Alguns desses apressados talvez estivessem certos a respeito de Sylvia.
Era uma mulher feia e não muito feminina, que, desde pelo menos 1930, se
dedicava a Carmen com uma devoção que superava a simples condição de fã.
Era amiga, humilde, serviçal, sempre pronta a ajudar e, por causa de
Carmen, essa dedicação se estendia a dona Maria e ao resto da família,
da qual ela se considerava membro. Os de fora viam nessa paixão por
Carmen um lesbianismo mal resolvido e platônico, mas não de todo
desinteressado - porque Sylvia se beneficiava da situação. Por opção
pessoal, não trabalhava, não procurava emprego e não tinha renda. Mas
herdava as roupas de Carmen, tinha contas pagas por ela e usufruía o
conforto da família. E por que Carmen, como sempre, se submetia? Porque,
como toda artista, gostava de saber que contava com um séquito de
adoradores - e Sylvia, sozinha, valia por um séquito. Para Carmen, que
diferença fazia dar-lhe uns vestidos velhos e ajudá-la a saldar seus
compromissos se, com isso, podia tê-la full-time como faz-tudo e dama de
companhia?


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Carmen só se irritava quando Sylvia ficava possessiva, chata e, por se
julgar com direitos, passava do ponto. Sylvia não gostava de Mário
Cunha, e não perdia uma chance de dizer algo contra ele. Nem sempre
Carmen podia rebater esses venenos - porque sabia que era a verdade.
(Uma foto dos três, na rua, em 1930, é bem significativa: mostra Sylvia
de braço dado com Carmen, como que a puxando para si - e a afastando de
Mário Cunha, que está a um metro de distância, aparentemente alheio à
manobra da mulher.) Outras vezes, Sylvia fazia beicinho quando Carmen
dispensava uma atenção a seu ver excessiva a algum novo amigo ou amiga.
Ao perceber isso, Carmen lhe dava um fora:

"Ah, está com ciúme? Pois vá mudando a chapa, batuta. Não agüento ciúme
de macho, vou agüentar de mulher?"

Sylvia vibrou com o fim de caso entre Carmen e Mário Cunha. Mas não
ganhou nada com isso. Com ou sem ele, Carmen tinha períodos em que a
deixava de lado e parava de rebocá-la por toda parte. Nessas ocasiões,
Sylvia engolia seu orgulho e se afastava para esperar - sabia que Carmen
a convocaria de novo. Ou então transferia seu foco de interesse para
Aurora, que sempre a tratava bem e não se importava de se deixar
explorar.

A partir do segundo semestre de 1933, foi a vez também de Aurora começar
a viver o turbilhão do estrelato, com o rádio, os discos, os ensaios e
as viagens. Já não tinha a mesma liberdade de antes - como descobriu a
duras penas no fim daquele ano, na praia do Lido, quando nadou até um
pouco mais longe do que costumava e foi reconhecida por um fã numa
lanchinha. O ocupante da lanchinha embicou na sua direção, gritando
"Aurora! Aurora!", e aproximou-se tanto que, ao passar por ela, não
evitou que a hélice raspasse de leve em sua perna. Aurora sentiu o golpe
e a dor, mas o que aconteceu em seguida é impreciso. Sangrando muito, e
talvez desmaiada, foi tirada do mar por um salva-vidas do Lido, ou mesmo
por seu involuntário agressor, e levada para o posto médico do
balneário. A hélice lhe provocara um corte de cerca de cinco centímetros
na coxa direita. Eles lhe fizeram um curativo de emergência (a cicatriz
ficaria para o resto da vida) e a mandaram para casa. Mas, por causa do
"acidente marítimo", como o chamou, Aurora não pôde se apresentar no
Carnaval do Teatro Glória, na Cinelândia, com Carmen. E, a partir daí,
tornouse mais atenta em sua relação com o mar - e com os fãs.




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Nem todos os admiradores de Aurora eram desastrados a esse ponto. Alguns
eram tão educados que ela nem percebeu que a admiravam - como o jovem
milionário Jorginho Guinle, que, na insegurança dos seus dezessete anos,
cortejava-a de longe e em silêncio. Na mesma época houve outro, a quem
ela correspondeu - e que era, não por acaso, um dos rapazes mais
requisitados da cidade: César Ladeira.

Em julho, agosto e setembro de 1932, quando São Paulo pegou em armas
contra o governo federal, uma voz obrigou boa parte do Brasil a dormir
mais tarde: a do jovem locutor paulista César Ladeira, pela Rádio
Record. Durante aqueles três meses, revezando com seus colegas Renato
Macedo e Nicolau Tuma, ele foi o microfone oficial dos revoltosos. Todas
as noites, das duas às quatro da manhã, com as demais estações já fora
do ar, sua voz - insone, incansável, sincera - exortava os outros
estados a aderir à insurreição. Ao fim de cada locução, César repetia o
esperançoso slogan: "Renuncie o ditador!" - com uma pororoca de erres
dobrados que faziam as válvulas do rádio vibrar como se dançassem uma
rumba.

O ditador em questão era Getúlio Vargas, bete noire dos cafeicultores e
industriais paulistas. Em seu quarto no Palácio Guanabara, no Rio,
tomando um chimarrão para dormir, Getúlio também ouvia as transmissões
de César Ladeira pelo rádio e deixava que elas o embalassem. O país não
se juntou à guerra dos paulistas e, quando eles se renderam, os líderes
do movimento foram presos. César Ladeira, que não era líder, também foi
preso e levado para um presídio no bairro paulistano do Paraíso. Os
vitoriosos consideraram que a beleza de sua voz, a clareza de sua dicção
e a força de seus erres tinham feito a insurreição se prolongar por mais
tempo do que devia. Mas, para mostrar que não guardavam rancor,
libertaram-no em dezesseis dias e ele pôde reassumir seu posto na Rádio
Record, desde que transmitisse coisas mais amenas.

Um ano depois, a convite do empresário Antenor Mayrink Veiga, César
Ladeira veio para o Rio em nome de outra revolução: assumir a direção
artística da Rádio Mayrink Veiga, no lugar do burocrático Felicio
Mastrangelo, e fazer dela a mais ouvida do país.

César chegou à Mayrink Veiga em agosto de 1933. Começou a trabalhar no
mesmo dia e saiu-se muito melhor do que a encomenda. Em tabelinha com o
novo diretor-gerente, Edmar Machado, aproveitou-se do decreto-lei que
liberara a publicidade no rádio e tornou a Mayrink a emissora mais
profissional do Brasil. Foi a primeira a trocar os cachês por contratos
de trabalho, com horários e vencimentos fixos e direito a férias - e os
benefícios abrangiam todo mundo: redatores, locutores, contra-regras,
arranjadores, músicos, cantores. A primeira artista a ser contratada foi
Carmen, que continuou com seu programa semanal às sextas-feiras, às oito
da noite, mas, agora, com o salário de um conto e 400 mil-réis por mês e
a obrigação de chegar na hora. Outros que César contratou nas semanas
seguintes foram Francisco Alves, Sylvio Caldas, Lamartine Babo,
Pixinguinha - os grandes nomes - e a jovem estrela Aurora Miranda.


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A Mayrink Veiga não se tornou apenas a emissora mais profissional. Era
também a mais experimental. Nela criaram-se os primeiros programas
humorísticos (com Barbosa Júnior e Jorge Murad), os primeiros
radioteatros e as primeiras radionovelas. Pela Mayrink, o locutor Gilson
Amado comentou, in loco, durante meses, os debates da Assembléia
Nacional Constituinte (que resultariam na Constituição de 1934) e
promoveu as primeiras mesas-redondas no rádio. Foi também a primeira
emissora brasileira a ficar 24 horas no ar, a levar o microfone para as
ruas, e ainda a primeira a fazer uma transmissão internacional - em
sintonia com a Rádio Belgrano, de Buenos Aires, controlada pelo poderoso
empresário argentino Jaime Yankelevich, com as vozes de Carmen, Aurora,
Patrício Teixeira, Madelou de Assis e o piano de Custódio Mesquita na
transmissão inaugural. A Mayrink era tão competente e inovadora que as
outras estações tiveram de se mexer e, com isso, também melhoraram.

Em quase todas essas medidas havia o dedo de César Ladeira. Apesar da
pouca idade, sua intuição e criatividade para o rádio eram assombrosas.
Em troca, a Mayrink lhe pagava dois contos de réis por mês, pouco mais
do que a Carmen, só que, no seu caso, simbólicos. Seu verdadeiro
faturamento eram os 5% sobre os anúncios que ele, como locutor, lesse no
ar - fazendo com que, aos 23 anos, em 1933, César ganhasse mais dinheiro
do que conseguiria gastar, mesmo que o atirasse pela janela do bondinho
do Pão de Açúcar.

Mal se instalou no Rio, ele passou a ser a sensação da cidade. A
princípio, era apenas uma voz. Mas uma voz incomum, inesquecível, e suas
ouvintes o fantasiavam como possuidor de uma beleza atlética ou
hollywoodiana. Quando ele lia pela Mayrink a crônica diária de Genolino
Amado, "Cidade maravilhosa" - escandindo enfaticamente a palavra
"ma-ra-vi-lho-sa" -, os maridos ouviam suas mulheres suspirando e,
irritados, desligavam o aparelho (mas, assim que eles viravam as costas,
elas o ligavam de novo). Aos poucos, César foi deixando de ser apenas
uma voz e se tornando uma onipresença física, na praia, nos palcos, nos
auditórios e nos grandes salões do Rio. Viu-se então que ele não tinha
nada de Atlas nem de Hollywood. Era baixinho, mais para o roliço, de
pescoço grosso e pernas curtas. Mas as mulheres não quiseram nem saber.
Elas o achavam bem-apanhado, muito bem penteado e se apaixonavam pelo
seu sorriso e pela curva do seu bigode. Além disso, havia sua voz - e
seu poder. Em seus primeiros meses no Rio, César não teve mãos a medir:
todas as mulheres da cidade pareciam querer jogar-se sobre (ou sob) ele.

Numa festa em noite de lua cheia, na casa dos pais de Custódio Mesquita,
nas Laranjeiras, César enfurnou-se pelo jardim com uma garota e sumiu
por algum tempo. Quando reapareceu com ela, passou por Custódio, que fez
o comentário velhaco:

"Se a lua contasse..."

César fez que não ouviu, mas Custódio ficou com o mote na cabeça. Dias
depois, produziu a marchinha com esse título, que ofereceu a Aurora
Miranda.

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Em fins de outubro, Aurora gravou "Se a lua contasse" em dupla com João
Petra de Barros. O disco saiu às ruas, Aurora cantou a marchinha na
Mayrink e o país cantou junto com ela. Foi um estouro para Custódio, que
começava ali sua fabulosa carreira, e para Aurora, que tinha o seu
terceiro sucesso seguido. O fato de, por aqueles dias, a cantora -
Aurora - começar a namorar o inspirador da música - César - foi apenas
uma coincidência.

Até ali, Aurora só tivera um namorado: Plinio, funcionário da Caixa
Econômica e colega de Mário Cunha, então namorado de Carmen. Os dois
rapazes se pareciam. Plinio também era bem-posto, bom partido e um
militante na arte da conquista - ou seja, alguém a não se levar muito a
sério como namorado. Ao acompanhar o rompimento entre Carmen e Mário
Cunha, Aurora pode ter resolvido apressar também o fim de sua história
com Plínio. Um ano depois, na Mayrink, conheceu César, e houve um
instantâneo clique entre eles. Alguns achavam que, por uma liturgia
hierárquica, o normal seria César se interessar por Carmen. Mas isso não
aconteceu: seu alvo era a irmã mais nova da estrela. Não foi difícil
para César fisgar Aurora - porque ela também estava de olho nele.

Entre os talentos de César estava o de inventar bordões para seus
contratados, expressões que os marcassem popularmente. Foi assim que
Carmen, lançada inicialmente pela Victor como "A cantora com "it" na
voz", tornou-se, depois de César, "A ditadora risonha do samba" - numa
referência meio oblíqua a Getúlio, ele próprio um ditador risonho (e o
primeiro governante brasileiro a não ter pêlos no rosto). Só em 1934
César chegaria à forma definitiva para Carmen: "A pequena notável"
(pequena era sinônimo de garota; não tinha necessariamente a ver com a
estatura). Francisco Alves tornou-se "O rei da voz" - também um grande
achado, porque era exatamente o que ele era. Almirante, "A maior patente
do rádio". João Petra de Barros, "A voz de dezoito quilates". E Sylvio
Caldas, "O caboclinho querido" - caboclinho, sim, mas nem tão querido
dos diretores de rádio, principalmente quando desaparecia por semanas e
deixava um buraco na programação. Quanto a Aurora, supunha-se que, por
ser sua namorada, o slogan que César inventasse para ela seria o mais
feliz e criativo. Criativo ele foi, mas muito infeliz e, por isso, não
pegou: "O micróbio do samba" (querendo dizer que ela era contagiosa).
Levaria tempo para ele chegar à formulação óbvia e perfeita para Aurora:
"A outra pequena notável".

Contagioso era César: enxames de mulheres zumbiam ao seu redor, e ele
não fazia nada para afastá-las. Aurora percebeu isso e, com o
pragmatismo que começou a aplicar desde cedo às questões do coração,
decidiu que era melhor ter César como amigo e como colega do que como
namorado. O romance acabou antes do fim do ano. Mas "Se a lua contasse"
chegou com sucesso àquele Carnaval e a muitos Carnavais seguintes.

Ninguém resistia a César Ladeira. Com poucas semanas de Rio, foi chamado
a palácio pelo homem que, menos de um ano antes, ele queria a todo custo
derrubar: Getúlio Vargas - que ainda nem ao menos se tornara presidente
constitucional (o que só aconteceria em 1934) e continuava a ser o mesmo
odioso ditador contra o qual César e seus conterrâneos tinham ido à
guerra e arriscado a vida. O que o infame ditador queria com ele?



98

Getúlio recebeu César cordialmente no Catete. Não tocou no passado.
Elogiou-o pelo trabalho na Mayrink e disse que, sem prejuízo de suas
importantes funções na rádio, tinha uma proposta a lhe fazer:
convidava-o a ser seu locutor pessoal nos eventos oficiais.

E não é que César aceitou? Ninguém resistia a Getúlio.

Carmen não gostava de ver seu nome escrito como "Carmem". Mas, quando
isso acontecia, era um pouco por sua culpa. As amigas iam visitá-la e a
encontravam enchendo cadernos com sua assinatura.

"O que é isso, Carmen?", perguntavam.

"Estou treinando meu autógrafo", ela dizia.

E mostrava as páginas cobertas com uma assinatura tão rococó que a
quantidade de pernas torneadas no M de Miranda daria para escrever
vários emes - um deles ameaçando escapulir e se pregar indevidamente a
Carmen.

Sua enorme popularidade podia ser checada a cada instante: na lotação
dos cinemas e dos clubes em que se apresentava, na quantidade de discos
que vendia, e nos convites para visitar oficialmente todo tipo de
estabelecimento - desde a piscina do Copacabana Palace, "para tomar um
drinque", até a Casa Hermanny, loja de perfumes na rua Gonçalves Dias,
para experimentar um novo aroma. O Rio a tinha como sua namorada. Homens
e mulheres a admiravam por igual e a paravam na rua para lhe dizer isso.
Não seria absurdo supor que ela se elegeria para qualquer cargo político
que quisesse ou que venceria facilmente qualquer concurso de
popularidade, não?

Não. Quando um determinado produto se associava a um jornal e
patrocinava um concurso de popularidade entre cantores, Carmen, assim
como Chico Alves ou Mário Reis, não ganhava nunca. O vencedor ou
vencedora era sempre um cantor menor, que contava com "cabos eleitorais"
dispostos a comprar centenas de jornais diariamente, inclusive os
encalhes dos jornaleiros, recortar os cupons, preenchê-los e levá-los em
sacos às juntas apuradoras. Quase sempre, essa azáfama era financiada
pelo próprio artista ou por uma casa comercial ligada ao tal produto.
Carmen, Chico Alves e Mário Reis não se rebaixavam a isso e, mesmo
assim, recebiam milhares de votos - espontâneos, verdadeiros, mas
insuficientes para vencer.


99

Em agosto de 1933, o analgésico Untisal, indicado para lumbagos e
reumatismos, e o jornal A Nação promoveram um desses concursos. O
objetivo era eleger um cantor, uma cantora e quatro músicos para uma
temporada de um mês, em novembro, numa rádio de Buenos Aires. Ou seja, a
orgulhosa platéia portenha estava delegando ao público carioca o direito
de escolher, através do suspeito sistema de cupons, que artistas
brasileiros iriam se apresentar para ela. Havia algo de estranho nisso,
mas as pessoas fizeram de conta. O Untisal era um remédio multinacional,
e estava na boca do povo como mote da paródia à marchinha de Lamartine
Babo, "Ride, palhaço", que dizia:

Ride, palhaço Lararara-rará Lararara-rará Lararara-rará...

O carioca a completara para:

Ride, palhaço Passa Untisal no braço E se a dor for profunda Passa
Untisal na bunda.

A votação levou os dois meses seguintes e Carmen foi a surpreendente
vencedora, sem comprar votos no atacado e sem nenhuma concorrente à
vista. Já o cantor eleito foi o veterano Roberto Vilmar, especialista em
modinhas e quase inexistente em discos, mas com espantosos 30 mil votos
a mais que Mário Reis e 50 mil a mais que Francisco Alves. O resultado
era estapafúrdio, mas foi o que deu. E, assim, no dia 30 de outubro, a
trupe composta de Carmen, Roberto Vilmar, os violonistas Josué de
Barros, Betinho e Medina, e o pianista Mário Cabral rumou para Buenos
Aires a bordo do Highland Monarch. Assim que o navio levantou ferros,
Carmen chegou à amurada e se despediu do público, bem à brasileira e bem
à sua moda:

"Até a volta, macacada!"

Dessa vez, seu Pinto ficou no Rio e, como acompanhante de Carmen, seguiu
dona Maria - já nem tanto como chaperonne, mas para ajudar Carmen com
seus chapéus. O contrato era para três apresentações por semana, durante
quatro semanas, na Rádio Excelsior, com hospedagem e despesas pagas pelo
Untisal argentino, além dos cachês semanais. Para cumprir essa
programação, Carmen teve de pedir uma licença na Mayrink Veiga. Mas
antes tivesse ficado em casa - porque o Untisal podia entender de
cãibras e bicos-de-papagaio, mas não de patrocinar artistas. O hotel de
Buenos Aires que lhes fora reservado era de terceira, as despesas, muito
reguladas, e os cachês viviam atrasados - o que os obrigava a sacar de
suas reservas para comer um sanduíche na esquina ou para comprar um
bilhete de metrô. Mais um pouco e não teriam o suficiente para se manter
na viagem de volta ao Rio.

100

Carmen e a trupe foram salvas por uma amiga que ela tinha feito em sua
primeira viagem a Buenos Aires, três anos antes, e que acabara de
reencontrar: a fotógrafa alemã Annemarie Heinrich. Em 1930, a família
Heinrich acabara de chegar à Argentina, vinda da Alemanha - o pai de
Annemarie, violinista e mecânico de bicicletas, sentia que seu país ia
se meter em outra guerra e não queria estar por perto quando isso
acontecesse. Annemarie, então com dezoito anos, começara a fotografar
porque, nesse ofício, não havia tanto o obstáculo da língua. Em 1933,
aos 21, ela já dominava tanto o espanhol quanto o métier, e se tornara a
grande fotógrafa dos meios artísticos e sociais de Buenos Aires. Por seu
estúdio, no número 728 da calle Córdoba, passavam atores, cantores,
músicos, dançarinos e todos os elegantes nacionais e estrangeiros.
Muitas fotos lhe eram encomendadas pelas estações de rádio, e foi assim
que Carmen a reencontrou.

O estúdio de Annemarie era acoplado à casa onde ela morava com sua irmã
Ursula, com seus pais Walter e Erna, e com uma empregada, Delia. Todos
trabalhavam para Annemarie. Sem dinheiro para grandes deslocamentos,
Carmen e dona Maria passavam boa parte do tempo ali, e a mãe de
Annemarie as tinha como convidadas quase diárias para almoço e jantar. A
comida era sempre alemã e não se podia reclamar. Mas, certa vez em que
Frau Erna lhes serviu salsichão com chucrute, Carmen pediu uma banana,
amassou-a até se tornar um purê e misturou-a com o chucrute, para horror
da senhora. Carmen era a única a sacudir a rigidez prussiana da velha
alemã, fazendo-a rir com suas marchinhas ou tirando-a para dançar.
Quando não havia ensaio à tarde na rádio, ou sessão de fotos, Carmen se
trancava no quartinho de costura com Frau Erna, para trocarem pontos de
bordado, ou fabricava chapéus para Annemarie. À noite, depois do
programa, iam todos cear numa pizzaria ou numa bodega barata. Nos fins
de semana, Annemarie as levava a andar de bicicleta e, quando havia
dinheiro, a cavalgar nos bosques de Palermo.

Muitas das melhores fotos de Carmen nos anos 30 foram tiradas em Buenos
Aires por Annemarie Heinrich. Mais do que ninguém na Argentina,
Annemarie dominara a técnica dos mestres americanos do still (um deles,
George Hurrell) e a adaptara ao temperamento portenho, tornando- a
dramática, cheia de sombras e volumes. Como Hurrell, ela também fazia
com que suas modelos ostentassem pele de porcelana, lábios úmidos,
sobrancelhas grossas e cabelos brilhantes, e qualquer suspeita de
imperfeição era retocada à mão no negativo. Mas Annemarie tinha idéias
próprias a respeito de iluminação e de dispor a modelo no quadro,
principalmente quanto à postura das mãos - talvez porque, antes de se
tornar fotógrafa, seu sonho fosse o de ser bailarina clássica. Quanto às
roupas que usava nas modelos, Annemarie costumava tomá-las por
empréstimo em casas de moda de Buenos Aires, como a de Marilu Bragance
ou a de Fridl Loos - e ambas tinham o maior prazer em vestir Carmen.

101

Mas, em toda a carreira de Annemarie, Carmen foi das poucas a abrir uma
mala e tirar, de lá de dentro, roupas pessoais perfeitas para as suas
lentes.

Nessa excursão a Buenos Aires, aconteceu a comovente despedida entre
Carmen e o homem a quem ela tanto devia: Josué de Barros. Antes do fim
da temporada, Josué foi convidado a ficar por lá e formar (com Betinho)
um conjunto brasileiro para se apresentar nas rádios e na boate mais
chique de Buenos Aires, a Embassy, na calle Florida. Josué topou e nem
voltou para o Rio. No dia da partida, levou Carmen ao navio e os dois
choraram abraçados, sem saber quando voltariam a se ver. Dez anos antes,
ele também resolvera ficar na Argentina e acabara trabalhando como
faquir. Mas, dessa vez, foi diferente: Josué se deu tão bem que, em dois
meses, mandou buscar a família, inclusive a filha Zuleika, também
cantora, e só voltou para o Brasil em 1939.

Quando Carmen desembarcou de volta no Rio, no dia 4 de dezembro, só teve
coisas boas a dizer sobre sua breve excursão portenha - que, exceto
pelos dissabores com o organizador, fora um sucesso. Os programas de
rádio tiveram ótima imprensa e o público de Buenos Aires ia ao estúdio
para assistir às transmissões. Queriam ver de perto "a canção feito
carne - Carmen Miranda" de que falou, com propriedade, um articulista. E
os que a viram não se decepcionaram - mas, se alimentaram alguma
fantasia, fizeram bem em acordar rapidito. Naquela temporada, Carmen só
deu atenção a um admirador local: Alfredo Bárbara, personagem da crônica
social de Buenos Aires, com quem ela saiu para jantar algumas vezes e
que pode ter ido visitar no apartamento dele. Um homem imponente,
vistoso, de família influente, e, sem que Carmen soubesse, conhecido nas
rodas musicais portenhas como cauda de cometa - sempre pendurado em
alguma estrela.

Carmen desceu do navio pela manhã e, na tarde do mesmo dia 4, já estava
no estúdio da Victor para gravar o samba de Walfrido Silva "Me respeite,
ouviu?", em dupla com Mário Reis. Considerando-se que, antes disso, dera
um pulinho ao Curvelo para deixar dona Maria, depositar as malas e
trocar pelo menos de chapéu, quando teria aprendido o samba e a que
horas o teria ensaiado? Em momento algum. Carmen fez tudo isso no
estúdio, a poucos minutos da gravação. Mas você nunca desconfiaria ao
ouvir o disco - seu entrosamento com Mário Reis era mágico.

"Me respeite, ouviu?" seria o lado A de outro magnífico samba, "Alô...
alô?...", de André Filho, que Carmen e Mário Reis também gravariam dias
depois, e os dois lados da chapa chegariam com toda a força ao Carnaval
de 1934. Aquelas não foram as únicas solicitações urgentes. Assim que
pôs os pés no Rio, Carmen recebeu um samba e uma marchinha de Assis
Valente, duas marchinhas de Joubert de Carvalho e quatro de Lamartine
Babo - e teve de gravar tudo nas últimas semanas do ano. Por que essa
sangria desatada? Por causa do Carnaval. Nenhum daqueles autores podia
se dar ao luxo de não ter alguma coisa na voz de Carmen naquela época do
ano.


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Ou em qualquer época. Já então começava a formar-se à sua volta um
núcleo de compositores que a tinham como primeira opção para sua
produção. Os principais eram André Filho e Assis Valente, não por acaso
os mais íntimos da casa do Curvelo - dos poucos que apareciam sem
avisar, entravam sem bater, e não precisavam de convite para se sentar e
se servir das tripas à moda do Porto preparadas por dona Maria. (Assis
depois sairia contando para todo mundo que já se cansara de ver Carmen
de penhoar.) Outros jovens assíduos ao Curvelo eram Walfrido Silva e
Custódio Mesquita, que compunham principalmente para Aurora. Daí se vê
por que Carmen e Aurora, mesmo que quisessem, não precisavam freqüentar
o Café Nice - primeiro, porque as cantoras não costumavam ir ao Nice;
segundo, porque, no caso de Carmen e Aurora, os compositores iam com
muito prazer a elas.

Pouco antes de Carmen embarcar para Buenos Aires, Assis Valente fora à
sua casa mostrar-lhe material novo e levara com ele um garoto que
conhecera na Mayrink Veiga, Synval Silva, de 22 anos. Carmen não se
empolgou com o que Assis lhe ofereceu, mas se dispôs a ouvir alguma
coisa do tímido Synval. Este lhe mostrou um samba, "Alvorada", em que
Carmen percebeu delicadezas típicas de um músico de verdade - como
Synval, que tocava violão e clarineta. A letra falava em morro, cuíca e
batucada, e Carmen se espantou ao descobrir que ele só sabia dessas
coisas por ouvir falar - mineiro, recém-chegado de Juiz de Fora, morava
com a família na Muda da Tijuca e nunca fora à praça Onze nem subira a
um morro. Carmen insistiu para que Synval mergulhasse no universo do
samba, e ele obedeceu. O resultado, em março de 1934, foi o
surpreendente "Ao voltar do samba", feito especialmente para Carmen -
uma crônica sobre uma sambista entediada e blasée, para quem já não há
diferença entre perder o seu mulato e sua sandália quebrar o salto.
Carmen gravou-o, com "Alvorada" no outro lado - e ali nascia o finíssimo
compositor Synval Silva.

Os jovens compositores ligados a Carmen enfrentavam uma dura competição:
a dos autores experientes e consagrados que, mês sim, mês não, também
iam ao Curvelo levar-lhe um samba ou uma marcha que ela poderia
transformar num sucesso, num clássico ou nas duas coisas ao mesmo tempo.
E, quanto a isso, 1934 foi impressionante - era como se os compositores
se atropelassem para lhe dar o melhor que tinham. Em março, Carmen
gravou o samba-canção de Ary Barroso e Luiz Peixoto, "Na batucada da
vida":

No dia

Em que apareci no mundo

juntou

Uma porção de vagabundo

Da orgia...

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Em maio, em dupla com Mário Reis, Carmen gravou outra grande marchinha
junina de Lamartine Babo, "Isto é lá com Santo Antônio":

Eu pedi numa oração

Ao querido são João

Que me desse um matrimônio...

E, em agosto, gravou a marchinha de João de Barro que se supunha
definitiva sobre a cidade, "Primavera no Rio":

O Rio amanheceu cantando Toda a cidade amanheceu em flor...

Mas "Primavera no Rio" seria apenas a marchinha quase definitiva sobre o
Rio

- porque, com diferença de dias, Aurora gravaria "Cidade maravilhosa",
de e com André Filho, e esta é que seria a última palavra no assunto.

Carmen gravou "Primavera no Rio" na Victor, no dia 20 de agosto; Aurora,
"Cidade maravilhosa" na Odeon, no dia 4 de setembro. E se um dia você se
perguntou por que Carmen teria deixado "Cidade maravilhosa" para a irmã
- quando ela própria, Carmen, poderia tê-la gravado -, não perca seu
tempo. André Filho ofereceu "Cidade maravilhosa" diretamente a Aurora.
Ela já gravara outras músicas dele, os dois eram amigos, e Aurora era
uma cantora em fulminante ascensão. Além disso, ninguém poderia
adivinhar que, no futuro, "Cidade maravilhosa" iria atravessar as
décadas e o século como sinônimo do Carnaval e do próprio Rio - porque,
quando foi lançada, quase ao mesmo tempo que "Primavera no Rio", não
houve uma supremacia inicial de qualquer delas. E, entre Carmen e
Aurora, não havia também um senso rígido de propriedade sobre as
marchinhas: nas apresentações que fariam juntas nos meses seguintes,
Carmen tanto cantaria "Cidade maravilhosa" e Aurora, "Primavera no Rio",
quanto aquela que a posteridade reservara a cada uma.

Não se cogitava, nem por brincadeira, uma competição entre as irmãs,
mas, para alguns compositores, a grande alternativa a Carmen em 1934 já
era Aurora. Depois de "Se a lua contasse", Aurora se tornara também a
cantora favorita de Custódio Mesquita e, nos dois anos seguintes,
gravaria outras dezoito músicas dele, marchas e sambas na maioria. E,
com ou sem Carmen, viajaria com Custódio para apresentações em São
Paulo, Santos, Caxambu, Lambari e Poços de Caldas.

Custódio era um homem esguio, de traços finos e bem-vestido. Seu rigor
quanto a ternos e gravatas incluía os ternos e gravatas dos amigos. Se
discordasse da gravata de um interlocutor, saía com ele do botequim em
que estivessem conversando e, sem se desviar da conversa, levava- o pelo
braço a um magazin defronte, comprava-lhe uma gravata nova, jogava a
velha na cesta e o conduzia de volta ao botequim - tudo isso sem perder
o fio da meada. Além da presença física e da elegância, Custódio tinha
algo de aventuresco e romântico - se fosse ator de Hollywood, faria,
talvez, papéis de espadachim. Sua família tinha fumaças aristocráticas e
era dona de mais de trinta imóveis nas Laranjeiras. Quando ele
demonstrou vontade de ser músico, ninguém discutiu: deram-lhe logo os
melhores professores de piano. Custódio foi um aluno aplicado e cedo
dominou tudo, do "Clair de lune" ao "Corta-jaca". O traquejo, adquiriu-o
tocando em filmes mudos nos cinemas e acompanhando cantores nas estações
de rádio. O talento melódico e harmônico, claro, nasceu com ele.


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Para outros, no entanto, o que Custódio mais tinha, além do talento, era
a vaidade. Grande músico, era fraco como letrista, mas, como não gostava
de dividir o selo do disco com parceiros, pedia letras aos amigos e as
assinava com seu nome (a de "Se a lua contasse", dizia-se que era de
Orestes Barbosa). Às vezes parecia bestíssimo, como quem se julgava
acima do meio - seus sapatos bicolores raramente pisavam os ladrilhos do
Nice ou mesmo do Café Papagaio, na rua Gonçalves Dias, que era o outro
ponto dos sambistas.

De outra feita, ao ser solicitado a mostrar a carteira de identidade
para entrar numa repartição oficial, respondeu na lata:

"Quem usa carteira de identidade é ladrão ou vagabundo. Um cavalheiro
usa cartão de visita."

E, com um floreio de mão, produziu o dito cartão, chegou-o ao nariz do
porteiro, já com a pontinha dobrada, e penetrou direto.

Apesar disso, tinha um ar acabrunhado e não parecia muito saudável.
Estava sempre tomando comprimidos, embora ninguém soubesse por quê.
Custódio era de grande discrição sobre si mesmo: não falava de sua saúde
nem de problemas pessoais, e ninguém o ouvia gabar-se de uma conquista.
Isso o tornava ainda mais atraente para as mulheres, e não foi difícil
que, passando tanto tempo juntos, Aurora se deixasse encantar por ele.
Os dois tiveram um namoro quase secreto entre 1934 e 1935, incluindo
bons momentos nas cidades menores onde se apresentavam e com o
beneplácito bem-humorado de Carmen. Numa dessas temporadas, em Santos, o
humorista caipira Nhô Totíco ouviu Carmen provocar Aurora sobre o namoro
com Custódio. Carmen também admirava Custódio, mas como pianista - na
verdade, fizera dele seu acompanhante favorito.

Custódio foi também o acompanhante de ninguém menos que o astro mexicano
do cinema americano Ramon Novarro, em julho de 1934, quando ele passou
pelo Rio na volta de uma temporada em Buenos Aires, onde se apresentou
como cantor na Rádio Belgrano e no Teatro Monumental. O empresário Jaime
Yankelevich, dono da rádio e do teatro, agendara-lhe também uma série de
apresentações no Cine Palácio e na Rádio Mayrink Veiga, no Rio.


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Oito anos antes, em 1926, Novarro subira a uma biga para interpretar
Ben-Hur, e descera dela como o maior nome da tela muda. Com seu sorriso
radiante, sustentou essa posição em filmes como O príncipe estudante e O
pagão - a tal ponto que, quando Cinearte publicava seu esperado álbum
anual, com closes dos astros de Hollywood, ele era o único que a revista
identificava somente pelo nome, seguido de uma exclamação: "Ramon!". Mas
o cinema falado foi cruel para com os heróis do silencioso - até para os
que, como ele, com sua voz de tenor dramático, sabiam inclusive cantar.
A MGM ainda lhe deu MataHan em 1932, com Greta Garbo, mas ali começou o
seu lento declínio. Lento, mas firme - tanto que, em 1934, Ramon já
podia ser chamado de "ex-grande astro". Abandonado pelo público nos
Estados Unidos e com seus dias contados na MGM, só lhe restavam
excursões como esta, à América do Sul, como cantor.

Mesmo assim, quando Ramon desembarcou na praça Mauá, a cidade foi
recebê-lo com as honras devidas a um membro da realeza. Visto de perto,
e comparado ao bravo Ben-Hur do filme, sentiu- se que ele tinha tudo do
herói, menos a masculinidade. Mas a imprensa o poupou, mantendo o seu
mito intacto para as donzelas que sonhavam se casar com ele. Nos
recitais do Palácio (do qual também faziam parte sua irmã, a dançarina
Carmencita Samaniego, e o Bando da Lua), Novarro cantou árias da Aída e
da Traviata, canções mexicanas, francesas, americanas e, para surpresa
geral, "Se a lua contasse", de Custódio, em português, cuja letra
aprendeu com Carmen e Aurora. E, quando ouviu Carmen cantar em seu
programa na Mayrink Veiga, garantiu-lhe que ela seria um sucesso em
Hollywood.

Em outros tempos, uma recomendação como essa, mesmo vinda de alguém cujo
prestígio já conhecera dias melhores, seria para se soltar foguetes.
Mas, em 1934, ninguém podia garantir nada sobre Hollywood, e muito menos
sobre o destino dos astros de origem latina. Assim como Ramon, todos os
mexicanos que tinham feito seu nome no cinema mudo estavam agora por
baixo: Antônio Moreno, Ricardo Cortez e Gilbert Roland. A busca-pé Lupe
Velez também já passara do ponto e, segundo Novarro, só era lembrada
porque, casada com Johnny Weissmuller, Lupe obrigava os maquiadores da
MGM a perder horas disfarçando os sulcos em carne viva que suas unhas
deixavam no peito depilado de Tarzan. E, quanto a Raul Roulien, o
brasileiro que chegara a sentir um certo bafejo da glória, era melhor
não dizer muito. Ele também acabara de descobrir o que Hollywood lhe
reservava: dor, crueldade e desprezo.

Quatro anos antes, em 1930, o carioca Roulien, de 25 anos, já tinha uma
carreira mais do que mirabolante em sua terra. Era ator, autor e
empresário de teatro, cantor, compositor e chefe de orquestra, ídolo
popular, amigo de gente importante, amante de grandes mulheres, e isso
em doses iguais, tanto no Brasil quanto na Argentina. Estava para se
inventar algo que Roulien não pudesse ou não soubesse fazer no palco.
Assim, em 1931, Roulien decidiu que iria vencer em Hollywood. Para isso,
embarcou com a cara e a coragem e com sua mulher, a ex-girl de teatro de
revista Diva Tosca. E, graças a seu inacreditável desembaraço, Roulien
foi, de fato, logo contratado pela Fox. Mais espantoso ainda: depois de
apenas um filme para o mercado hispânico, apareceu num filme americano
de verdade, Deliciosa (Delicious, 1931), em que cantava a canção-título,
"Delishious", de George e Ira Gershwin, e tinha a duvidosa honra de
"ceder" a heroína (Janet Gaynor) para o galã americano (Charles
Farrell). A Fox fez tanta fé em suas possibilidades que lhe operou as
orelhas de abano, escalou-o em um filme depois do outro, e ainda
arranjou um emprego para Diva na sala de montagem. Em 1932, Roulien
alternou filmes hispânicos e americanos, nenhum deles bom, mas sua
vitória em Hollywood era tão inegável que ele veio ao Brasil para se
deixar homenagear. Em janeiro de 1933, ao descer do navio no Rio,
arrastou uma multidão à avenida Rio Branco e foi simbolicamente beijado
por toda a nação. Naquele momento, ele era o artista brasileiro que mais
alto chegara na cotação internacional.


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Roulien voltou para Hollywood e, em junho, a Fox o emprestou à KKO para
o que seria a grande tacada de sua carreira: o musical Voando para o Rio
(Flying down to Rio) estrelado pela mexicana Dolores Del Rio (no papel
de uma rica herdeira carioca) e pelo galã Gene Raymond. Vivendo um
brasileiro, Roulien era o terceiro nome do elenco, que se completava com
uma corista recém-egressa da Broadway, Ginger Rogers, e, em quinto
lugar, na lanterninha do elenco, um dançarino também importado de Nova
York, e em quem poucos acreditavam: Fred Astaire (o mundo ainda não
sabia que, de "The Carioca", o falso maxixe dançado por eles no filme,
resultaria a dupla Fred & Ginger).

Era o primeiro filme de Hollywood ambientado no Brasil, com
espetaculares cenas aéreas do Rio, usadas nas back projections, e outras
de cenário, como as do Copacabana Palace, que foi reconstituído no
estúdio da RKO. Dois meses depois, terminadas as filmagens, Raul podia
se orgulhar da sua participação: tinha boas falas, cantava o tango
(também falso) "Orchids in the moonlight" e, mais uma vez, "cedia"
gentilmente a mocinha para o galã americano. Mas, enquanto Voando para o
Rio estava sendo montado, sonorizado e recebendo os acabamentos para ser
lançado em dezembro de 1933, o destino caiu como uma clava sobre Raul
Roulien.

Na noite de 27 de setembro, ao atravessar uma rua em Hollywood, Diva
Tosca, 23 anos, foi atropelada e morta por um carro em velocidade. O
motorista, 27 anos, estava embriagado e se chamava John Huston - sim, o
próprio. Nesse tempo, Huston ainda não era diretor, nem sequer
roteirista. Seus créditos se limitavam a alguns "diálogos adicionais"
para filmes da Universal estrelados por seu pai, o astro Walter Huston.
E então foi isso: o filho de um famoso ator americano matou sem querer a
mulher de um semi-obscuro ator latino.


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John e seu pai esperavam que a tragédia se esgotasse por si, sem muita
imprensa além da inevitável. Mas não contavam que Roulien os
processasse, exigindo uma indenização em dinheiro ("E a única linguagem
que eles entendem", dizia Raul). O caso não saía dos jornais. Walter
Huston empenhou-se pessoalmente no caso, mandou seu filho para a Irlanda
(para afastá-lo do cenário) e infernizou a vida de Roulien pelos
intermináveis dois anos em que o processo rolou. Enquanto isso, Roulien
ainda fez alguns filmes na Fox. Em 1935, para surpresa geral, Roulien
ganhou o processo - mas foi uma vitória irreal, porque era óbvio que a
cidade iria fechar-se para ele. Voltou para o Brasil. Seu sonho de um
estrelato americano terminara.

Carmen já estava se habituando a ouvir dos gringos em visita ao Rio que
seu lugar era em Hollywood - a própria equipe que viera filmar as
externas de Voando para o Rio em meados de 1933, e assistira a uma
apresentação sua, lhe dissera isso. Mas, depois das desventuras de
Olympio Guilherme, Lia Tora e Raul Roulien na "fábrica dos sonhos", uma
mulher como ela já não podia sonhar ingenuamente com Hollywood. A era da
inocência acabara.

Carmen se dava bem muito bem com Elisinha Coelho e as duas não se
consideravam concorrentes. Elisinha pouco ligava para gravar discos e
seu único sucesso considerável, embora definitivo, fora "No rancho
fundo", de Ary Barroso e Lamartine Babo, que ela lançara em 1931. Estava
casada com o jornalista e teatrólogo Goulart de Andrade, de quem
esperava um filho, e queria que Carmen fosse a madrinha. Carmen, louca
por crianças, aceitou. O menino nasceu, chamou-se Luiz Filipe, e, nos
anos seguintes, ela seria uma madrinha atuante. Sempre que Elisinha
viajava a trabalho, Carmen sentia o garoto à sua disposição e o
seqüestrava para lanches na Colombo ou para passar a tarde com ela em
Santa Teresa. Na mesma época, Elisinha fez algo que estatelou Carmen:
separou-se de seu marido e se dispôs a criar o filho sozinha. Carmen não
a censurava, apenas achava aquilo incrível. E façanha ainda maior já
tinha sido cometida pela própria mãe de Elisinha, a jornalista Acy
Carvalho, encarregada da seção feminina de O Jornal: ela igualmente se
separara do marido - só que fizera isso nos anos 10, quando tal atitude,
por parte de uma mulher, era de uma impressionante audácia. Carmen se
deslumbrava com a coragem das duas, embora sua formação católica lhe
dissesse que, como ninguém era obrigado a casar, se fizesse isso devia
ser para sempre.

Carmen era também grande amiga da atriz Aída Izquierdo, ex-mulher de
Procópio Ferreira e mãe da pequena Bibi. Quando as duas saíam para
almoçar, Bibi ia junto, de fita no cabelo. Seus lugares preferidos eram
a filial da Confeitaria Americana, na esquina de Paissandu com Marquês
de Abrantes - onde Carmen se segurava para não atacar os queijos quentes
e as bananes royales, que a engordavam -, e o restaurante OK, no Lido,
onde podia dedicar-se a seu prato favorito: frango, principalmente asas,
"rabinho" (ou sobrecu) e salada de palmito. Carmen admirava Aída porque
ela estava conseguindo dar uma boa educação a Bibi, apesar de a menina
ter sido recusada em colégios por ser filha de atores e, pior ainda, de
pais separados. Procópio e Aída se separaram quando Bibi tinha um ano,
mas a corajosa Aída fora em frente e levara Bibi com ela, até mesmo para
o palco. A coragem parecia ser a primeira característica que fazia
Carmen respeitar uma mulher - e talvez sentir uma ponta de inveja, já
que, de certa maneira, sua própria coragem nunca precisara ser testada.
Para ela, Elisinha e Aída transmitiam essa coragem.


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Carmen transmitia outras coisas: eletricidade, excitação, e não apenas
nos discos, no rádio ou no palco - em pessoa também. Seu amigo
Braguinha, autor de "Primavera no Rio", jurava sentir a presença de
Carmen até quando ela passava em silêncio por trás dele, no estúdio da
Victor. Carmen transmitia também autoridade. Nas reuniões com executivos
e empresários, em que se discutiam propostas e se assinavam contratos
para shows ou excursões, era ela quem comparecia para discutir e assinar
- não tinha empresário ou agente, e não delegava essa tarefa a ninguém.
E, no dia-a-dia, Carmen transmitia uma soberana naturalidade. Ao sair à
rua, não tentava se esconder da multidão - as calçadas eram sua
passarela, como se a cidade fosse uma extensão de sua sala. É conhecida
a história do amigo que, ao passar por Carmen na Avenida, lamentou que
sua filhinha tivesse perdido o programa dela na Mayrink Veiga.

"E agora, quando é que ela vai poder ouvir o Taí?", ele perguntou.

"Agora mesmo", respondeu Carmen.

Entrou com o amigo num botequim, pediu ao português para usar o
telefone, e cantou baixinho, ao aparelho, a marchinha para a criança.

Em casa, na presença da mãe, Carmen fazia exatamente o contrário:
saltava um ou dois estágios para trás e regredia quase à infância. Não
somente ela, mas todos os seus irmãos. Em 1934, dona Maria, formidanda
nos seus 48 anos e sem o fardo dos tempos da dureza, governava a casa
como se ainda tangesse benignamente as cabras nas serras da Beira-Alta.
Controlava os horários de Carmen, Aurora, Amaro e Tatá, e queria saber
com quem saíam e para onde iam, alheia ao fato de que suas filhas eram
as maiores estrelas da música popular e que os rapazes eram
independentes e tinham sua vida. (O caçula, Tatá, que acabara de fazer
dezoito anos, caprichava na gomalina e no bigodinho ao estilo fatal do
galã John Boles.) Bem sintomático desse poder foi quando, com os filhos
já crescidos no que tinham de crescer, descobriu-se que dona Maria, com
seu quase 1,65 metro, seria sempre a pessoa mais alta da família - nisso
se incluindo seu Pinto, dois ou três dedos mais baixo.

Só havia uma instância em que dona Maria não conseguia exercer sua
autoridade doméstica: os palavrões. Era a única pessoa da casa que não
os usava. Quando Aurora, normalmente tão suave, soltava um expletivo
mais dramático - algo assim como: "Puta que pariu, caralho! Porra!!!" -,
dona Maria apenas suspirava:

"Ah, minha filha... Por que, em vez disso, você não diz "Ai, Jesus!"?"


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O que Carmen praticava todos os dias era a generosidade. Ao receber uma
homenagem na Hermanny, loja de perfumes na Cidade, compadeceu-se de uma
vendedora ameaçada de ser despedida por ter os dentes muito estragados.
Carmen financiou-lhe um tratamento dentário completo (por intermédio de
Assis Valente) e salvou o emprego da moça. Era generosa também com seus
compositores favoritos, entre os quais Synval Silva.

Carmen ficara tão satisfeita com o sucesso de "Ao voltar do samba" que
prometera a Synval dois contos de réis se ele fizesse outro samba que
lhe rendesse metade do sucesso do primeiro. Synval levou-lhe "Coração",

Coração

Governador da embarcação do amor

Coração

Meu companheiro na alegria e na dor... .

que Carmen gravou em 11 de outubro, junto com outro samba de primeira
para o lado B, "Comigo não!...", de Heitor Catumby e Valentina Biosca:

Eu te conheci nos teus tamancos Pelas ruas dando trancos Numa bruta
cavação...

O disco superou qualquer expectativa, e Carmen cumpriu a promessa com
Synval. Em 1934, dois contos representavam dez vezes o salário mensal
médio de um operário no Rio e em São Paulo. Uma fortuna para o
compositor - e, por aí, pode-se pelo menos calcular o dinheiro que
entrava para Carmen.

O dinheiro do samba não subiu à cabeça de Synval, que continuou a
trabalhar em sua outra especialidade: mecânica de automóveis. Foi ao
ouvi-lo falar de carros que Carmen se empolgou com a idéia de comprar um
- e fazer com que Synval a ensinasse a dirigir. Os dois foram a uma loja
da Cidade, e Synval ajudou-a a escolher o Terraplane, uma barata de duas
portas, da Hudson, modelo do ano, muito popular no Rio.

Fechado o negócio, Synval pegou o carro, deu várias voltas com Carmen, e
pode ter começado as aulas de direção naquele mesmo dia. Sabe-se que,
por precaução, as primeiras foram nos terrenos baldios da nova esplanada
do Castelo e nas proximidades do Aeroporto Santos Dumont. Ao fim de cada
aula, Synval devolvia Carmen e o carro ao Curvelo. Mas houve ocasiões em
que, com autorização de Carmen, Synval usou-o também para transportar
seu próprio pai adoentado de hospital em hospital. Um dia, Carmen
tornou-se efetivamente motorista, mas, em todas as ocasiões em que não
ficava bem para a estrela chegar ao volante de um automóvel, Synval
continuou a ser o seu chofer.

E, eventualmente, ele ainda lhe compunha uma ou outra obra-prima. Por
exemplo, "Adeus, batucada".



Capítulo 7



1934 - 1935

Cantoras do rádio




O Caldas, veterano sapateiro da Lapa, não se conformava: "Mas, dona
Carmen, isso vai parecer sapato de aleijado!" "Não interessa, Caldas.
Faça o que estou dizendo", ordenou Carmen. O sapateiro tinha razão - ou
pensava ter. O que Carmen lhe pedia para executar era o cruzamento de um
sapato ortopédico com um tamanco português. Ou seja, a adaptação do
salto ortopédico a uma plataforma de madeira estilo tamanco - como se
sobre essa plataforma, já três vezes mais grossa que a de um tamanco
normal, começasse outro sapato, semelhante ao usado pelos deficientes.
Caldas fez o que a cliente ordenara e, para sua sorte, viveu para ver o
resultado. Com aquele modelo primitivo, em forma de ferro de engomar e
adornado apenas por algumas tachinhas coloridas imitando confete, Carmen
acabara de inventar a primeira de suas marcas registradas. (Anos depois,
a lenda diria que ela se inspirara num sapato de sola grossa, para
praia, que vira numa revista de moda americana - como se, criada na
colônia portuguesa carioca, Carmen precisasse disso para ser apresentada
ao humílimo tamanco.) Os novos formatos e adereços daqueles sapatos
viriam aos poucos, assim como o exagerado crescimento da plataforma -
que chegaria a quinze centímetros de altura e, quando ela dançasse,
exigiria um prodígio de equilíbrio para seu pezinho 34.

Carmen queria parecer mais alta do que o 1,52 metro que o destino lhe
reservara na vertical - e mais alta do que lhe permitiam os saltos Luís
xv que já usava. Em todos os documentos em que tinha de declarar a sua
altura, tanto os do consulado português como os do Ministério do
Trabalho, não vacilava em conceder-se nove centímetros extras, com o que
passava para 1,61 metro. E, se lhe aplicassem a fita métrica, era o que
ela teria mesmo - desde que plantada sobre os novos sapatos. Princípio
idêntico fizera com que, naquele mesmo ano de 1934, Carmen adotasse o
turbante como peça freqüente (embora não obrigatória) de seu
guarda-roupa nos shows. Se bem que, nesse caso, não estava inventando
nada: os turbantes já eram socialmente aceitos como opção aos chapéus na
indumentária feminina, e sua colega Jesy Barbosa às vezes os usava. Mas
a combinação de turbante e plataforma, aliada à brejeirice radical, deu
a Carmen o toque de absurdo, alegria e extravagância que passou a
caracterizá-la. A partir dali, ficava claro que ninguém mais contasse
com Carmen Miranda para discussões sobre Nietzsche ou Kierkegaard.

111


Os turbantes e as plataformas de Carmen fizeram sua primeira aparição no
Cine-Teatro Broadway, em Buenos Aires, para onde ela partira no dia 26
de outubro, ao lado, também pela primeira vez, de Aurora e de um
conjunto vocal que o argentino Jaime Yankelevich, responsável pela
excursão, descobrira no Rio durante os shows de Ramon Novarro: o Bando
da Lua. Nos anos seguintes, a carreira e a vida dos membros do Bando da
Lua iriam misturar-se às de Carmen a ponto de se confundirem com as
dela. Mas, naquela viagem de navio, a principal colaboração do conjunto
foi a de pregar as tachinhas que caíam das plataformas quando Carmen
ensaiava em sua cabine. (Às vésperas do embarque, ela pedira ao Caldas
que lhe fizesse vários pares, mas só no navio estava podendo testá-los
em ação.)

Carmen conhecia os meninos do Bando da Lua desde o dia 9 de fevereiro de
1930, quando eles foram à sua festa de aniversário na travessa do
Comércio, levados pelo homem que também os descobrira e os orientava em
sua carreira: Josué de Barros - não era mesmo um mundinho pequeno?
Naquela noite, em meio aos prógonos da folia (já se ouviam ao longe os
clarins do "Zé Pereira"), Carmen estava completando 21 anos - e "Taí",
alastrando-se pelas ruas do Rio, era o resultado do que Josué fizera por
ela em pouco mais de um ano. O trabalho de Josué com o Bando da Lua
também já tinha um ano e ainda não rendera frutos, mas os rapazes eram
novos e podiam esperar. O mais velho, o cavaquinista Stenio Ozorio,
regulava em idade com Carmen: 21 anos. Todos os outros eram mais jovens:
o banjista Ivo Astolfi tinha vinte anos; o violonista Armando Ozorio,
dezenove; o pandeirista Oswaldo Eboli, o Vadeco, dezoito; o ritmista
Affonso Ozorio, dezessete; o violonista Hélio Jordão Pereira, dezesseis;
e o violonista e cantor Aloysio de Oliveira ainda estava com quinze - a
maioria não tinha idade nem para freqüentar a praça Tiradentes.

Vadeco, Hélio e Aloysio eram cariocas; Ivo, gaúcho; e os irmãos Ozorio,
cearenses (mas, desde garotos, radicados no Rio). Todos moravam com suas
famílias na vila Martins da Mota, um beco tipicamente classe média que
saía da rua do Catete, 92, entre as ruas Pedro Américo e Andrade
Pertence. Até pouco antes, eles integravam uma organização bem maior: o
Bloco do Bimbo, um grupo que, no Carnaval, saía do Catete com dezenas de
integrantes fantasiados de havaianos, cada qual cantando ou tocando um
instrumento, e ia de bonde para as batalhas de confete em Vila Isabel.
Em 1929, oito ou nove daqueles meninos resolveram trocar a animação do
bloco pela criação de um conjunto vocal que funcionasse o ano inteiro,
inspirado no Bando de Tangarás, grupo formado em Vila Isabel por
Almirante, Braguinha (João de Barro), Noel Rosa e outros. É verdade que
as intenções dos rapazes do Catete, apesar de honradas, não eram só
musicais - o conjunto lhes facilitaria muito a vida quanto a flertes e
namoros. Especialmente depois que, numa noite de footing ao luar na
Praia do Flamengo, um nome, de autoria nunca identificada, caiu do céu
para defini- los: Bando da Lua.


112


Começaram a cantar em festinhas, geralmente em torno de um bolo de
aniversário. Em uma delas, numa casa na Lagoa, foram vistos por Josué de
Barros, que se dispôs a ajudá-los. Aceitaram orgulhosos a oferta, e
Josué, de saída, podou-os de nove para sete elementos. Queria enxugá-los
ainda mais - o ideal para um conjunto vocal eram quatro, no máximo cinco
figuras -, mas isso eles não permitiram. Afinal, eram amigos de infância
(fora Hélio quem ensinara violão a Aloysio), moravam porta com porta,
viam-se todos os dias, e ninguém podia ficar de fora. Josué suspeitou
que, para aqueles rapazes bonitos e pretensiosos, a música era um hobby,
não uma profissão - a maioria estudava, outros já trabalhavam em alguma
coisa. Por isso, relaxou seu cansado corpo quanto ao Bando da Lua e
resolveu concentrar-se em Carmen, em quem sentia uma gana carnívora de
vencer.

Mesmo assim, em fevereiro de 1931, Josué conseguiu que eles gravassem um
disco na combalida Brunswick, quando esta já estava para ir embora do
Brasil. O disco saiu e ninguém tomou conhecimento. Em 1932 Josué foi com
Carmen para Buenos Aires e ficou por lá. O Bando da Lua só voltaria a
gravar (e, de novo, dois discos sem expressão) em 1933, dessa vez na
Odeon. Mas, nesse interregno, já estava começando a se apresentar em
cinemas, teatros e até igrejas, sendo anunciado como "um grupo de
rapazes da nossa melhor sociedade". Era possível ser cantor e continuar
pertencendo à "melhor sociedade" - bastava não ser pago para cantar.

O rádio finalmente os descobriu e, na primeira vez em que foram ao
Programa Casé, na Rádio Sociedade, em 1932, Ivo Astolfi agradeceu e
recusou em nome do conjunto o cachê que Adhemar Casé lhes ofereceu.

"Somos amadores puros", balbuciou Ivo.

Nem tanto - na verdade, não podiam receber cachês por não terem como
justificar aquele dinheiro para suas famílias. Semanas depois, aceitaram
o primeiro - 20 mil-réis para dividir por sete -, e mesmo assim porque
Almirante tomou o envelope da mão de Casé e o enfiou na mão de um deles.
Para torrar o dinheiro antes de voltar para casa, comeram e beberam à
gorda numa leiteria da Galeria Cruzeiro e, com o que sobrou, foram de
táxi para o Catete.

Estava quebrado o lacre. Vivendo no meio do rádio, roçando cotovelos com
artistas como Carmen e Aurora e tendo sido notados por Assis Valente,
que prometeu compor para eles, a profissionalização era inevitável.
Foram obrigados a confessar a seus pais que estavam ganhando dinheiro
para cantar. E, para surpresa deles - talvez suas famílias não os
levassem muito a sério como artistas, ou talvez o mundo estivesse
mudando -, seus pais não se opuseram, desde que eles "não parassem de
estudar". A partir daí, foi aquela água.




113

Com os cachês, mandaram fazer jaquetões num alfaiate do Catete (as
lapelas tinham de se cruzar três dedos abaixo do nó da gravata) e
encomendaram novos instrumentos à Guitarra de Prata, na rua da Carioca
(violões e cavaquinhos escuros com uma lua clara gravada na madeira, e
vice-versa). Compraram um equipamento de som da RCA e alugaram um
apartamento na praça José de Alencar para servir de almoxarife do
conjunto, estúdio para ensaios, escritório e garçonnière. Em setembro de
1933, César Ladeira contratouos para a Mayrink Veiga. Em dezembro, a
Victor também assinou com eles, e a primeira gravação do Bando foi a
marchinha "A hora é boa", de Mazinho e do próprio Aloysio, cuja letra
dizia:

A hora é boa

Pra virar pangaio

No meio desse povaréu...

Ninguém sabia ao certo o que era virar pangaio, mas, dependendo do
povaréu - com todas aquelas moças fantasiadas de pirata ou de odalisca
-, devia valer a pena. A marchinha foi um sucesso do Carnaval de 1934.

Nos meses seguintes, o Bando da Lua foi visto e, às vezes, ouvido em
alguns dos ambientes mais disputados do Rio. Um deles era o salão de
dona Laurinda Santos Lobo, a "marechala da elegância", em Santa Teresa -
já longe de seu apogeu, é verdade, mas ainda uma anfitriã de grande
classe no Rio e, por acaso, vizinha de Carmen no Curvelo. Outra casa
fina a que iam como convidados era a dos escritores Ana Amélia e Marcos
Carneiro de Mendonça, na rua Marquês de Abrantes. E, para espanto de
todos, menos deles, foram mais de uma vez ao Palácio do Catete, sede do
governo, a convite de Alzira Vargas, filha do presidente. Alzirinha, da
mesma idade que Aloysio, estudava na Faculdade de Direito e já os
conhecia de tertúlias no bairro. Certa noite, Getúlio, de pijama de
alamares, passou por um corredor do palácio e ela o convocou: "Papai,
quero te apresentar os rapazes do Bando da Lua." Eles eram vaidosos e
ficavam bem de smoking, principalmente ao assistir à temporada de ópera,
bales e concertos do Municipal. Mas sabiam quando era hora de trocar a
fatiota por calças brancas, camisa de malandro e lenço no pescoço, para
tocar nos intervalos das sessões do recém-inaugurado Cine Alhambra, na
Cinelândia, do qual se tornaram atração freqüente. O Alhambra, em si,
também era uma atração: foi o primeiro prédio do Rio a ostentar uma
fachada Bauhaus e o primeiro cinema a oferecer tapis-roulant (escada
rolante), elevadores para 24 pessoas e ar refrigerado em todos os
ambientes. Um dos filmes com que o Bando da Lua se apresentou foi o
drama A Severa, o primeiro filme falado português, que marcou época
junto à colônia lusa do Rio e deixou por aqui a atriz Maria Sampaio, que
se casaria com o gerente da Mayrink Veiga, Edmar Machado. Outro foi
Escândalos da Broadway (George White"s scandals), com os astros do
momento: Alice Faye, Rudy Vallée e Jimmy Durante - e com quem, graças a
Carmen, o Bando da Lua estaria trabalhando em menos de cinco anos.


114


Em outubro de 1934, ao serem contratados por Yankelevich para
excursionar com Carmen e Aurora a Buenos Aires, os rapazes foram logo
avisando ao argentino que eram um número à parte - ou seja, não
acompanhavam ninguém. Tinham repertório próprio, eram muito bem
ensaiados, e não fazia sentido subordinar seu estilo ao de um cantor ou
cantora, por maior que fosse. Yankelevich apenas ouvia enquanto os
rapazes pavoneavam seus méritos.

O Bando da Lua, diziam eles, era o único conjunto brasileiro a
"harmonizar" as vozes e colorir os arranjos com variações em trio, em
dupla ou solo. Arranjos, por sinal, que eram do conjunto todo - não
havia um arranjador. Assim como não tinham um líder - todos eram
líderes. E cada cantor tocava mais de um instrumento: Hélio se
encarregava do violão, flautim, lápis no dente e pente com celofane; os
irmãos Ozorio alternavam no cavaquinho, percussão, berimbau de boca e
pistom nasal (e Stenio ainda estudava violino); Ivo dublava no banjo e
no violão-tenor; Vadeco, sem contar o pandeiro, era dançarino; e por aí
afora. E, além dos sambas e das marchinhas, cantavam (em inglês) foxes
americanos, ao estilo dos Mills Brothers - "Sweet Sue, just you", "You
are my lucky star", "It don"t mean a thing". Ou, quando se reduziam a
três, ao estilo dos Rhythm Boys, o extinto trio vocal da orquestra de
Paul Whiteman, com Aloysio fazendo uma passável imitação do ex-crooner
dos Rhythm Boys - Bing Crosby.

Enfim, conjunto vocal que se prezasse não acompanhava cantor - essa era
a sólida disposição artística do Bando da Lua. Mas Yankelevich, sempre
concordando com tudo, não teve a menor dificuldade para convencê-los de
que, em se tratando de uma temporada no exterior, ninguém ficaria
sabendo e, quem sabe, não abririam uma exceção?

Assim, em outubro e novembro de 1934, pela primeira vez o Bando da Lua
acompanhou Carmen em vários programas da rádio argentina, sendo
apresentados por um jovem locutor local chamado Fernando Lamas. E Vadeco
dançou com Carmen (e, depois, com Aurora) um esquentado maxixe no palco
do Monumental - onde presenciou, nos bastidores, a perseguição a Carmen
por uma jovem e deslumbrada atriz, fascinada pela estrela brasileira:
Eva Duarte. No futuro, Eva Perón ou, simplesmente, Evita.

No estúdio da calle Córdoba ou em sua chácara em Villa Balester, perto
de Buenos Aires, onde recebia os brasileiros nos dias de folga, a
fotógrafa Annemarie Heinrich percebia como Aloysio de Oliveira, não mais
um adolescente, não desgrudava os olhos de Carmen. E por que
desgrudaria? Para o quase incontrolável Aloysio, ali estava o ser mais
desejável do mundo: a mulher multiplicada pela estrela - e ele tinha o
privilégio de conviver com as duas.

115

Num momento de intimidade, fora do palco, Carmen era a colega acessível
e divertida, enfiada em roupas curtas e justas, com quadris firmes,
pernas carnudas e uma pele que, sempre que ele a tocava "sem querer", o
deixava instantaneamente excitado. Em outro momento, ela era a deusa
que, do seu ponto de vista - o Bando da Lua sempre às suas costas no
palco -, parecia estar engolindo a platéia com os olhos, a boca, os
braços e o corpo inteiro. Para Aloysio, Carmen era apaixonante,
arrebatadora, irresistível. E, pelo que Annemarie intuía, Carmen também
não era de todo indiferente a Aloysio - embora a fotógrafa não visse
nada que sugerisse a existência de um caso.

Não via porque não existia. Carmen, como mulher e artista, estava na
majestade de seus 25 anos. E Aloysio, com todo o porte que adquirira em
altura e compleição, podia ser ótimo para Moreninha, uma menina de
dezessete anos que ele namorava no Catete. Mas ainda era muito verde
para Carmen. Afinal, tinha somente vinte aninhos.

E havia outro motivo, aliás o principal: Carmen deixara no Rio um caso
sério.

Se Carmen namorou alguém no Rio desde o rompimento com Mário Cunha, em
1932, ninguém ficou sabendo. Mas a ninguém escapou o rapaz atraente com
quem ela passou a ser vista a partir de meados de 1934, em chás na
Brasileira e na Colombo, tardes na pelouse do Jockey e no deque do
Yacht, e passeios de carro à praia do Pepino e à Vista Chinesa. Não que
eles quisessem se mostrar. Ao contrário, tentavam ao máximo se esconder.
Mas como passar em branco quando se namora a mulher mais famosa do
Brasil?

Ele se chamava Carlos Alberto da Rocha Faria e, como Carmen, tinha 25
anos, menos alguns meses. Sua descrição coincidia com o gosto de Carmen
para homens: alto, moreno (tez rosada), forte (mas não uma máquina de
músculos), bons ternos, rosto bonito e másculo, cabelo preto,
brilhantina abundante. Num mano a mano com Mário Cunha, Carlos Alberto
levaria vantagem em certos itens: era menos vaidoso, nada galinha, e
mais dedicado a Carmen. E - importante para ela - também tinha berço,
tradições, quem sabe até brasão.

Carlos Alberto era um dos melhores partidos da cidade, desde que essa
noção de bom partido não envolvesse dinheiro em caixa. Sim, ele
pertencia a uma família rica. Seu tio, Carlos da Rocha Faria, era um dos
donos da América Fabril, a poderosa indústria têxtil fundada em 1871
pelos ingleses em Pau Grande, distrito de Magé, no estado do Rio, e que,
esgotada a concessão para que estes continuassem a explorá-la, fora
parar nas mãos de três grupos nacionais: os Bebiano, os Seabra e os
Rocha Faria. Depois de uma série de desaires a seguir ao crack de 1929,
a América Fabril estava forte de novo. Daí, podia supor-se que bastaria
a um jovem se chamar Rocha Faria para ter o futuro assegurado. Só que
não era bem assim. Um dia, Carlos Alberto poderia ser um dos altos
diretores da fábrica, mas dificilmente estaria entre seus herdeiros -
tinha vários primos pela frente. Era apenas um membro remediado de uma
família rica e esnobe, com todas as desvantagens que isso encerrava.

116

Uma delas era a de que, para seus parentes, "não convinha" que ele
namorasse uma profissional do rádio - uma cantora. (O preconceito da
elite estendia-se às profissionais em geral. Para os ricos, uma mulher
poderia até trabalhar, desde que por hobby ou para fins beneficentes -
nunca para viver. As profissionais do rádio eram apenas um pouco mais
malvistas do que, digamos, as jornalistas.) Mas nada era tão simples, e
esta poderia ser apenas uma impressão: até então, ninguém da família se
atrevera a chamá-lo para uma conversa, e nem sequer se podia afirmar que
o assunto Carmen Miranda tivesse sido discutido entre eles - os Rocha
Faria eram muito finos para se imiscuir em tais questões.

Para Carlos Alberto, a aversão de sua família a Carmen não era
declarada, mas palpável. Nunca partiria da casa de seus pais, no
Flamengo, ou de seus tios, no Humaitá, um convite para que Carmen os
visitasse. O pior era quando ele estava com seu tio Carlos no Humaitá, e
Carmen ligava para lá à sua procura. Todos sabiam que era ela - como não
identificar sua voz? O telefone lhe era passado por quem o atendera e
sentia-se o bloco de gelo ao redor do aparelho. Portanto, Carlos Alberto
tomou uma atitude corajosa. Como ninguém lhe dizia nada, fez de conta
que não sabia o que sua família pensava, e continuou saindo e sendo
visto com Carmen.

Mas, em conseqüência de sua própria educação, ele tampouco ficava à
vontade ao passar com ela na rua e se ver apontado por populares. Ao
contrário de Mário Cunha, que gostava disso, Carlos Alberto sentia-se
diminuído ao ser identificado como "o pequeno de Carmen Miranda". Outra
coisa que o ofendia era ouvir, à sua passagem, o nome de Carmen dito por
alguém - como se qualquer pé-rapado se sentisse no direito de referir-se
à intimidade dela e ao fato de ele ser seu namorado. Mas Carlos Alberto
avaliou a situação e decidiu que, se fosse esse o ônus a pagar por
gostar da mulher com quem tantos sonhavam, ele iria em frente - porque,
de tantos que sonhavam, só ele a conquistara.

E era bom que pensasse assim porque, se o tamanho da popularidade de
Carmen já era uma complicação desde o começo do namoro, agora é que
seriam elas. Além do disco, do rádio e do palco, vinha aí mais um
veículo que Carmen transformaria num feudo só para ela - o cinema.




117

Wallace Downey era o típico americano nos trópicos, só que em versão
desenho animado: boa- praça, forte, suarento, avermelhado, uns 35 anos
presumíveis, chapéu de palhinha, terno de linho branco amarrotado, meia
dúzia de palavras em português, sotaque execrável, um uísque na mão - e
um oportunismo para o qual os nativos não estavam preparados.

A Columbia Records o mandara ao Brasil em 1928, para instalar em São
Paulo a filial brasileira da gravadora, se possível com dinheiro local.
Este foi fornecido pelo empresário paulista Alberto Byington Júnior, que
ficou como sócio nacional. Downey deu uma voltinha pelo território,
percebeu a diversidade musical em estado quase virgem e concluiu que
havia muita grana a ganhar com a nossa inspiração - em discos, em filmes
e, especialmente, em edições musicais. E não se sentiu nem um pouco
culpado por isso - os frutos cairiam de podre do mesmo jeito, se não
fossem colhidos dos galhos.

Em 1931, Downey convenceu Byington a produzir em São Paulo um
filme-revista sonoro, pelo sistema Vitaphone, a ser dirigido por ele. O
fato de ser americano não significava que Downey soubesse dirigir cinema
- e, de fato, ele só foi apresentado a uma câmera no primeiro dia de
filmagem. Bem ou mal, conseguiu filmar Stefana de Macedo, Paraguaçu,
Príncipe Maluco, maestro Gaó e outros nomes locais cantando toadas,
serestas, emboladas e foxtrotes. Filmou também um poema declamado por
Guilherme de Almeida, um número de ventriloquia com Batista Júnior, um
monólogo com Procópio Ferreira e uma paródia de "Singin" in the rain",
sucesso do filme Hollywood revue, com um cantor debaixo do chuveiro.
Depois, montou uma seqüência ao lado da outra, sem muito nexo, e mandou
o filme para a tela com o título de Coisas nossas. E - incrível - foi um
sucesso.

Downey viu que o caminho era por aí, mas havia um atalho melhor: o
Carnaval. Mudou-se para o Rio e aproximou-se dos grandes nomes da música
popular, entre eles Alberto Ribeiro e Braguinha, dubles de compositores
e letristas. Fundou uma produtora de cinema, a Waldow S.A., com
escritório no oitavo andar do Cine Odeon - uma sociedade anônima com um
capital de 250 contos, dos quais Downey detinha 243 contos e seus sete
sócios, cinco americanos e dois brasileiros, os sete restantes. E, em
parceria com a Cinédia, de Adhemar Gonzaga, começou a produzir filmes
com um mínimo de enredo e um máximo de música, toda ela voltada para o
Carnaval: os sambas e as marchinhas que estourariam naquele ano,
cantados pelos maiores nomes do rádio, quase todos, por acaso, da
Mayrink Veiga. Os filmes seriam programados para estrear no Rio algumas
semanas antes do Carnaval e, dali, percorrer o país nas fagulhas da
folia.

O primeiro foi Alô, alô, Brasil!, rodado em menos de um mês, entre
dezembro de 1934 e janeiro de 1935, e estreado no Alhambra em começos de
fevereiro, às vésperas do tríduo. E, se você acha que ele rodou o filme
em tempo recorde, saiba que, para os padrões de Downey, essa foi uma
produção demorada. O título era um alô, alô explícito ao rádio, veículo
com que o Brasil estava vivendo um caso de amor.

118

Em 1934, havia 65 emissoras de rádio no país. A Mayrink Veiga, com seu
transmissor de 25 quilowatts, era a rainha das ondas médias. Do Rio, que
era o Distrito Federal, ela tomava todo o estado do Rio, o Espírito
Santo e Minas Gerais, parte do estado de São Paulo, chegava à Bahia e a
Pernambuco e, graças ao canal livre internacional de que dispunha,
avançava bem pelo resto do Nordeste, principalmente à noite. Funcionavam
outras com um alcance parecido. Em São Paulo, a Rádio Record cobria todo
o Sul do país e chegava também ao Rio e ao resto do Sudeste. Os
locutores, comediantes, cantores e até compositores eram os novos xodós
nacionais. Um dos mais populares era Lamartine Babo, não apenas pela voz
inconfundível, quase infantil, mas porque sua figurinha era a mais fácil
das distribuídas aquele ano pelas balas Ruth. E ser "cantora do rádio"
substituíra aquela antiga aspiração das moçoilas nacionais de se
tornarem artistas de cinema. Nenhuma brasileirinha de pituca ou
maria-chiquinha queria mais ser Joan Crawford ou Norma Shearer - o que
ela queria agora era ser Carmen Miranda.



Braguinha e Alberto Ribeiro foram os roteiristas e assistentes de
direção de Alô, alô, Brasil!, embora também nunca tivessem visto uma
câmera. A trama - um fã de rádio apaixonado por uma cantora inexistente
- era o que menos importava. As multidões que se estapearam para
assistir a ele durante três semanas no Alhambra só queriam saber dos
números musicais: um naipe de grandes canções como, entre outras, "Deixa
a lua sossegada", com Almirante; "Menina internacional (Eu vi você no
Posto 3)", com Dircinha Batista; "Rasguei a minha fantasia", com Mário
Reis; "Foi ela", com Francisco Alves; "Cidade maravilhosa", com Aurora;
e "Primavera no Rio", com Carmen.

Se Chico Alves ainda tinha dúvida sobre quem era o maior cartaz do
Brasil, os cartazes propriamente ditos de Alô, alô, Brasil!, enormes, na
fachada do Alhambra, não deixavam dúvida: em todos eles o nome de Carmen
vinha em primeiro lugar - e o dele em segundo. Por ser o primeiro nome
do elenco, era Carmen quem fechava o filme, cantando "Primavera no Rio",
de chapéu e vestido de organdi, fotografada por Aphrodisio de Castro num
jardim da Cinédia. Era também a única em todo o elenco com direito a um
close. Mas, para a platéia, o grande sucesso já explodira alguns rolos
antes: "Cidade maravilhosa", com Aurora.

Wallace Downey, que estava pouco ligando para o filme em si, tinha seus
motivos para caprichar no repertório musical. Para ele, a música usada
no filme podia ter uma próspera sobrevida depois que o filme encerrasse
a carreira. Não se sabe o que aconteceu àqueles sambas e marchinhas,
porque a documentação sobre a Waldow está perdida e, mesmo no
impressionante arquivo da Cinédia, há muito pouco a respeito. Mas não é
absurdo supor que cada compositor, ao ceder a Downey o uso de sua música
para o filme, estivesse também lhe cedendo, sem saber, os direitos para
sua exploração lá fora.


119


uma editora musical de Nova York que - surpresa! - tinha sob seu
controle um sem-número de sambas e marchinhas. Pelo volume de material
em poder da Robbins, tudo indica que essa associação tenha começado logo
nos primeiros anos da década de 30. E, se assim foi, não seria nada de
mais.

As editoras musicais americanas já tinham descoberto o filão "latino"
desde a década de 10, assim que o tango argentino pôs a cabeça de fora
na Europa. No começo, era no Velho Mundo, principalmente em Paris, que
os editores americanos iam às compras dos tangos. Mas logo chegaram à
óbvia conclusão: para que lidar com intermediários? Por que não ir
direto às fontes? E por que se limitar à Argentina?

E, assim, desde aqueles primórdios, vários scouts (batedores) musicais
americanos vieram palmilhar as madrugadas boêmias de Buenos Aires,
Havana e Cidade do México, em busca de material produzido em seus
botecos, biroscas e bodegas - lugares freqüentados por pessoas com
grande facilidade para fazer música e nenhuma para fazer negócios. Uma
rodada da pinga local e, presto!, produzia-se um papel assinado - às
vezes, um simples recibo sobre uma quantia insignificante -, e lá se ia
uma melodia batendo asas rumo a Nova York. Em Tin Pan Alley (o
quarteirão da Rua 28 entre a Quinta e a Sexta Avenida onde se
concentravam as editoras musicais), essa melodia era retrabaIhada,
ganhava um título em inglês, e o autor original - se seu nome ainda
constasse da partitura - era agraciado com um parceiro americano que se
tornava o efetivo dono da canção.

Há algo de sinistro nessa imagem do americano simpático que se fazia de
amigo de homens simples, talentosos e de pele escura, e se juntava a
eles nos botequins para ouvir e cantar sua música - talvez escrevendo-a
por baixo da mesa - e saía dali dando risada, sabendo que tinha bom
material para vender em Nova York, não? Mas essa prática existiu. Foi
assim, com ou sem papel assinado, que tangos como "El choclo", de 1913,
"La cumparsita", de 1916, e "Jalousie", de 1927, a canção mexicana
"Cielito lindo", de 1919, o bolero cubano "Quiereme mucho", de 1924, e
inúmeras outras canções ficaram famosas e renderam muito dinheiro - não
necessariamente para seus verdadeiros autores - fora de seus países de
origem. Mas, o que dizer das que saíram sem que esses autores se dessem
conta e que também renderam dinheiro, e apenas não ficaram famosas? (Às
vezes saíam sob disfarce: boleros se tornavam valsas, tangos se
metamorfoseavam em rumbas; pasos dobles viravam foxtrotes.)

Podia não haver nada de ilegal nisso - tecnicamente, seria apenas uma
operação de compra e venda. Mas que era imoral, era. Eqüivalia ao que,
no Rio, cantores como Francisco Alves e outros faziam com os
compositores do Estácio e do morro, ao comprar-lhes os sambas in natura
(mal saídos do violão ou da caixa de fósforos, antes que um editor os
ouvisse) e, às vezes, até os enxotando da parceria. Foi justamente a
explosão do samba a partir de 1930 (assim como da rumba em Havana) que
tornou o Rio tão atraente para aqueles batedores musicais.




Downey levava uma vantagem em relação àqueles batedores: já estava
instalado aqui e era amigo dos compositores. E tinha uma isca infalível
para seduzi-los - os filmes que produzia.

Em dezembro, ao dar um pulo à Victor para rever os amigos, Carmen foi
convidada a cantar para o presidente regional da gravadora, um americano
sediado em Buenos Aires e de passagem pelo estúdio no Rio. Carmen disse
"com prazer" e pediu ao compositor Hervê Cordovil que a acompanhasse ao
piano. De Hervê, ela gravara meses antes uma marchinha tão maliciosa que
só sua voz a redimia e permitia que fosse tocada numa vitrola de
família: "Inconstitucionalissimamente". A letra brincava com o clima
político nacional, às voltas com a Constituinte, e dava a entender que o
namorado engravidara a moça e dera o fora:

O meu amor

Me deixou para a semente

Inconstitucionalissimamente...

Hervê sentou-se ao piano e Carmen começou.

No meio da primeira música, alguém abriu a porta do estúdio, esticou o
pescoço pondo a cabeça para dentro e disse tibiamente: "Com licença?".
Foram suas últimas palavras. Era o cantor Carlos Galhardo, ainda pouco
conhecido apesar de ter lançado pela Victor, no ano anterior, o que
seria depois a maior canção natalina brasileira de todos os tempos:
"Boas festas", de Assis Valente.

O americano não quis saber se ele era Carlos Galhardo ou o próprio Papai
Noel. Esbanjando grossura, esbravejou e soltou-lhe os cachorros em
espanhol por causa da involuntária interrupção. Galhardo fez gulp,
recolheu o pescoço, e nunca mais foi visto - pelo menos naquele dia.

Carmen, que assistiu à cena estupefata, deu um tapa no piano e ordenou:

"Hervê, fecha o piano. Eu não canto mais para esse filho-da-puta. Não
canto para gringos que tratam mal os meus patrícios."

E, virando-se para o americano:

"Eu sou brasileira, ele é brasileiro, e o senhor tem que nos respeitar."

Deu uma rabanada na saia e, toda pimpona e digna, saiu marchando do
estúdio.

Apesar da arrogância de alguns de seus executivos, a Victor, em 1934,
tornara-se disparado a maior gravadora brasileira, superando pela
primeira vez a Odeon. Com os talentos que ela revelara e soubera manter,
e mais os que tomara da concorrência, quase toda a grande música popular
estava de repente sob a sua bandeira: Carmen, Francisco Alves, Sylvio
Caldas, Mário Reis, Almirante, Luiz Barbosa, Lamartine Babo, Moreira da
Silva, o Bando da Lua, Carlos Galhardo, os Irmãos Tapajós, Gastão
Formenti e Castro Barbosa. E quem sobrara para a Odeon? Aurora Miranda,
João Petra de Barros, a bissexta Aracy Cortes, os jovens Joel e Gaúcho,
e, fazendo o percurso inverso, Sylvio Caldas, que iria da Victor para a
Odeon no fim do ano. Mas, nome a nome, mês a mês, a Victor esteve
absoluta em 1934 - em termos de cast, foi o seu maior ano no Brasil.

121


Com tantos colegas do primeiro time a seu lado na gravadora, Carmen pôde
gravar memoráveis discos em dupla, além dos que já tinha criado com
Mário Reis e Lamartine Babo. Alguns deles, "Pra quem sabe dar valor", de
Assis Valente, com Carlos Galhardo; "Pra que amar", também de Assis, com
Almirante; "Vou espalhando por aí", ainda de Assis, com Castro Barbosa;
"Quando a saudade apertar", de André Filho, com Sylvio Caldas; o
impagável "As cinco estações do ano", de Lamartine, com nada menos que
Mário Reis, Almirante e o próprio Lamartine; e - pena que tenha sido o
único -, "Retiro da saudade", de Noel Rosa e Nássara, com Francisco
Alves. Apenas de ouvi-la em dupla com Chico, é de lamber os beiços a
simples idéia do que Carmen poderia ter gravado com todos aqueles ases
que a Victor tinha agora sob contrato.

Mas isso não aconteceu - porque, em março de 1935, mal passado o
Carnaval, a notícia levantou poeira nos terreiros e salões do Rio.
Carmen saíra da Victor e se mudara justamente para a grande rival, a
Odeon. Era como pisar no pé de Nipper, o cachorrinho do gramofone, se
ele existisse.

Foi a maior transação da década no mercado discográfico brasileiro. Nem
a saída de Chico Alves em sentido contrário, indo da Odeon para a Victor
um ano antes, causara tanto rebuliço. Carmen ouviu dizer que, na opinião
de alguns, ela estava sendo ingrata ao dar uma banana para o estúdio que
a "fizera" e ao qual ela tanto devia. Ouviu e não gostou. Comentou com
amigos que a verdade era bem outra: ela é que fizera a Victor no Brasil.
Durante os primeiros anos, fora quase a única estrela do seu elenco - no
tempo de "Taí", carregara o selo nas costas, com cachorrinho e tudo. Em
cinco anos de Victor, levara à cera 150 músicas, das quais setenta
marchas e 66 sambas - nenhuma outra cantora brasileira gravara tantos
discos até então. E, mesmo nos últimos meses, quando já estava pensando
em mudar de ares, gravara material formidável, como o samba "Minha
embaixada chegou", de Assis Valente (que se tornaria um dos seus
standards); a canção natalina "Recadinho de Papai Noel", outro triunfo
de Assis; e a contagiante marcha "Mulatinho bamba", de Ary Barroso e Kid
Pepe. A Victor não tinha do que se queixar.

Quando a Odeon a sondara para mudar de ares, Carmen pensara bem e só
vira vantagens nessa troca. Primeiro, a Odeon, inconformada por ter
perdido Chico Alves, daria qualquer coisa para tirá-la da Victor. E
teria de dar mesmo: quatrocentos réis por face gravada e um certo valor
em dinheiro, à vista e por fora, cujo montante ninguém precisava saber.
Outra coisa: com a debandada de seu cast para a Victor, o estúdio da
Odeon, na rua Santo Cristo, na Zona Portuária, com o maestro Simon
Bountman na direção artística, poderia dedicar-se muito mais a ela.
Finalmente: ao sair da Victor, Carmen perderia Pixinguinha como regente
de orquestra, mas ganharia Benedito Lacerda, cujo conjunto regional,
estrelado por Russo do Pandeiro, era o melhor do planeta.

122

Mesmo assim, não era fácil abandonar uma empresa onde se dava com todo
mundo, da presidência à faxina - a Victor, afinal, era a sua casa. Mas a
discussão com o gringo no estúdio acabou por influenciá-la. Carmen
ficara importante demais para ouvir desaforos, mesmo que não dirigidos a
ela. Era o seu brasileirismo falando alto - um sentimento que enfatizava
sempre que podia, para compensar o acaso de não ter nascido no Brasil.
Como se não lhe bastasse sentir-se totalmente brasileira - como se
precisasse parecer mais brasileira do que os brasileiros natos.

Carmen se entristecia e se ofendia quando alguém lembrava, mesmo sem
querer, que ela nascera em outro país. Daí sua relação com o letrista e
jornalista Orestes Barbosa ser tão complicada. Orestes, hidrofobamente
antiportuguês, vivia se dedicando por escrito a "denunciar" sua
cidadania lusa. Fez isso em seu livro Samba, de 1933, e voltava à carga
quase diariamente pelo jornal A Hora, em que escrevia.

Para Carmen, aquilo era uma perseguição. Na Argentina, ninguém queria
saber se Carlos Gardel era francês, uruguaio ou argentino. Gardel era
francês, claro - nascido em Toulouse, na França, de pai e mãe franceses,
e criado em Montevidéu -, mas era também o maior cantor argentino de
todos os tempos, o tango encarnado, e ninguém em Buenos Aires se achava
mais portenho que ele. Nos Estados Unidos, a mesma coisa com Al Jolson.
E daí que Jolson tivesse nascido na Rússia (como aconteceu) ou na Lua, e
não no Alabama? Ele era o cantor americano por excelência, o homem que
dominava a Broadway, Hollywood e o coração de milhões de americanos.

"Que diferença faz se esses putos nasceram em outro lugar?", dizia
Carmen. "A culpa é da mãe deles, que estava no país errado ao parir."

Em Samba, Orestes Barbosa dedicou cinco parágrafos a Carmen, todos
venenosos. Começou por acusar a Victor de ter revelado em seu catálogo a
"nacionalidade lusitana" de Carmen para "agradar à colônia portuguesa no
Brasil". Mas, como sabemos, quem se confessou nascida em Portugal foi a
própria Carmen, na famosa entrevista a R. Magalhães Júnior em Vida
Doméstica, quatro anos antes, e a Victor ficara até braba com ela. Para
Orestes, tal revelação teria provocado um "choque de tristeza" em seus
fãs. Por quê?

Numa lógica confusa, ele diz que Carmen era tão sensacional que não
passava pela cabeça de ninguém que ela tivesse nascido em Portugal,
"porque Portugal não nos envia sensações". E continuou: "Tudo quanto nos
vem de lá é chilro, anêmico e caixeiral" - preconceituosa referência aos
portugueses do Rio, inúmeros deles caixeiros no comércio -, para
concluir que Carmen só não ficou chilra, anêmica e caixeiral graças à
"força trituradora do Rio, que refina, como numa usina, os elementos
aportados ao seu torrão". Ora, ora. Se o Rio "refinou Carmen" e a tornou
quem ela era - "uma sambista carioca, tal o seu prodígio de adaptação",
segundo o próprio Orestes mais adiante -, vamos cair nos braços uns dos
outros e sambar até o sol raiar. Para que ficar insistindo no assunto?



123

Além disso, se ter portugueses na família fosse um crime de lesa-samba,
Orestes estava se sentando sobre o próprio rabo. Seu prenome podia ter
ecos de um remoto herói grego, mas os sobrenomes de sua família -
Bragança Dias, por parte de mãe, e Silva Barbosa, por parte de pai - não
tinham nada de helénicos ou heróicos. Eram sobrenomes portugueses, e dos
bons, com perfumes de alheiras e carapaus. E se Carmen não podia ser
sambista por ter nascido em Portugal, o que dizer de outros que,
nascidos no Rio, manifestavam tão pouca disposição para o samba? Pois
Orestes - carioca da gema, do bairro da princesa, e que, ao caminhar,
andava meio de banda, como os malandros - estava nesse caso. Grande
letrista, sua obra quase não tinha sambas. O futuro só se lembraria dele
por suas valsas e canções com Sylvio Caldas ou Chico Alves: "Chão de
estrelas", "Suburbana", "Dona da minha vontade", "Serenata",
"Arranha-céu", "A mulher que ficou na taça" - páginas eternas da lírica
romântica em língua portuguesa. Mas, perdão, Orestes, impróprias para
tamborins.

Nada atingia Carmen, nem as ranhetices de Orestes, nem as fofocas por
sua mudança de gravadora. Em fins de abril de 1935 estreou na Odeon com
um disco da maior competência, composto do samba "Queixas de colombina"
e da marcha "Foi numa noite assim", ambos pela dupla Arlindo Marques Júnior
e Roberto Roberti. E, nos primeiros dias de maio, começou sua
participação em Estudantes, o filme que Wallace Downey, entusiasmado com
o sucesso de Alô, alô, Brasil!, resolveu fazer para o meio do ano.

Estudantes também era um musical, mas sem Carnaval. Dessa vez, a ação se
transferia para um idílico campus universitário, em que dois estudantes
(os comediantes Mesquitinha e Barbosa Júnior, já bem velhuscos para o
papel) cortejavam Mimi, uma cantora de rádio - Carmen, é óbvio. Mas Mimi
só tinha olhos para um terceiro estudante, Mário Reis, também bem
passado para um universitário. Ao redor, os suspeitos de sempre: Aurora,
Almirante, Jorge Murad, César Ladeira e, pela primeira vez, o Bando da
Lua - este enfim reduzido a seis elementos, porque Armando, um dos
irmãos Ozorio, trocara o conjunto e a vida artística pela carreira de
bancário em Porto Alegre. O enredo, ou coisa parecida (como no filme
anterior, a cargo de Braguinha e Alberto Ribeiro), terminava num baile
de formatura. O melhor do filme estava nas nove canções, entre as quais
"Linda Mimi" (só de Braguinha), com Mário Reis, e "Laia" (de Braguinha e
Alberto), com o Bando da Lua. Os números de Carmen eram o samba "E
bateu-se a chapa" (de Assis Valente) e a marchinha junina "Sonho de
papel" (só de Alberto), ambos de primeira linha.


124


Para os cantores, as filmagens eram um martírio. "Don"t move!", berrava
Downey o tempo todo, secundado por um assistente: "Não se mexa!".
Acâmera era fixa, mas, depois de armada a cena - quase sempre no pior
enquadramento possível -, o cantor tinha de atentar para a posição do
microfone (uma geringonça camuflada num vaso de flores ou por trás de um
cenário, gravando o som direto) e ficar firme como um poste, sob
refletores que o fariam confessar o assassinato da própria mãe. Poderia
dançar, se quisesse, desde que não saísse muito do lugar. Apesar desses
cuidados, o som dos filmes continuava horroroso e Downey, com justiça,
era cordialmente chamado pela imprensa de "o pior diretor do mundo". Mas
tinha uma virtude: era rápido - rodou Estudantes em uma semana. E, se
não fosse assim, não daria para Carmen.

Ninguém levava uma vida mais frenética do que ela. Mal terminou sua
parte em Estudantes, Carmen tomou um Clipper da Panair no dia 23 de maio
rumo a Buenos Aires, para uma nova temporada de um mês na Rádio Belgrano
e nos teatros. Era sua primeira viagem de avião e, por via das dúvidas,
agarrou-se a uma pequena imagem de santa Teresa, sua santa de devoção,
durante o longo vôo de quase um dia. E, se a santa fracassasse para
conter as turbulências, seu irmão Mocotó estava na poltrona ao lado.

"Agora é que a Carmen Miranda vai nos olhar de cima", disse numa roda a
cantora Heloisa Helena. A frase podia ser uma constatação ou um
resmungo.

Carmen não precisava tomar um avião para se sentir por cima das cantoras
emergentes que não perdiam uma oportunidade de alfinetá-la - insinuando,
por exemplo, que estava na hora de ela ceder o lugar para os novos
talentos. Apenas os cachês que Jaime Yankelevich lhe pagava para passar
um mês em Buenos Aires, cantando duas ou três vezes por semana na Rádio
Belgrano, deviam ser suficientes. Esses cachês não eram inferiores a 10
mil pesos argentinos. Com o peso cotado na época a 5 mil-réis, cada
viagem representava cinqüenta contos de réis para ela. Nenhum outro
artista brasileiro podia se gabar de tais cifras.

Dessa vez, Carmen seguiu sem músicos, porque seus acompanhantes já
estavam lá: Josué de Barros, seu filho Betinho e o conjunto brasileiro
que eles lideravam. Com os dois violonistas estabelecidos em Buenos
Aires, e sempre prontos para acompanhá-la, ficara mais fácil levar
Carmen - e eles ainda contavam com o eventual reforço ao pandeiro de um
argentino louco pela cultura brasileira: o pintor Hector Júlio Páride
Bernabó, mais tarde famoso na Bahia e no Brasil como... Carybé.



125

As idas agora anuais de Carmen a Buenos Aires justificavam o chamego dos
portenhos por ela. Eles a chamavam de Carmencita e já se sentiam com
certos direitos de propriedade. Mas, dessa vez, por artes de
Yankelevich, a visita de Carmen "coincidiu" com a viagem do presidente
Vargas à Argentina para uma conferência de paz envolvendo o conflito
entre o Paraguai e a Bolívia pela região do Chaco.

Carmen e Getúlio não estiveram ao mesmo tempo na cidade - quando ela
desceu do avião, ele já tomara o navio de volta -, mas era como se a
temporada de Carmen também tivesse um caráter "oficial". A Conferência
do Chaco continuava em andamento e as reuniões eram transmitidas para o
Brasil pelo Programa Nacional, na voz de César Ladeira, que viajara com
Getúlio. Às vezes, interrompia-se a transmissão dos debates para se
ouvir Carmen cantando pela Rádio Belgrano. Certa noite, por sugestão de
César, os delegados brasileiros levaram seus colegas paraguaios e
bolivianos para ir ouvi-la no teatro - e quem sabe não brotou ali, ao
som de "Alô, alô..." e "Primavera no Rio", uma centelha de concórdia
entre os litigantes? Um jornal a chamou de "embaixadora do samba" e, ao
final da temporada, a Rádio Belgrano fez as contas: Carmen recebera 1500
cartas de ouvintes. E nunca o Brasil tivera matérias tão simpáticas na
imprensa local. O final dessa viagem é que não foi feliz. Carmen tinha
acabado de voltar, também de avião, quando os portenhos sofreram um dos
golpes mais duros que o destino poderia lhes reservar: a incrível morte
de Carlos Gardel, aos 45 anos, no dia 24 de junho - seu avião se chocou
com outro e se incendiou na pista do aeroporto de Medellín, na Colômbia.

Carmen passou na volta por Porto Alegre, onde se apresentou na Rádio
Sociedade Gaúcha, e chegou ao Rio a tempo para a estréia de Estudantes,
no dia 8 de julho, no Alhambra. Pela primeira e única vez no cinema
brasileiro, a platéia pôde ver uma nova Carmen - não apenas como
cantora, fazendo números soltos, mas como atriz, integrada à trama,
dizendo as falas de Mimi. Os críticos a elogiaram e temos de nos fiar
neles, porque não é mais possível conferir: tanto Estudantes quanto Alô,
alô, Brasil!, assim como os dois filmes anteriores de Carnaval em que
Carmen aparecia, estão irremediavelmente perdidos.

O Brasil se beneficiava da prosperidade argentina e da garra de Jaime
Yankelevich, incansável para levar atrações estrangeiras à sua Rádio
Belgrano e aos teatros que controlava em Buenos Aires. Na ida ou na
volta, quase sempre em ambas, essas atrações paravam no Rio e, em
agosto, foi a vez de Lupe Velez, o "busca-pé mexicano" de Hollywood. Aos
32 anos e ainda uma tetéia, mas meio que no desvio cinematográfico, Lupe
já deixara longe a falsa ingênua que, aos dezenove, em 1927, estrelara
em O gaúcho (The gaúcho) com Douglas Fairbanks e tivera um caso com ele,
quase matando de desgosto sua mulher, Mary Pickford, que, nesse filme,
interpretava a Virgem Maria. Mesmo assim, a ABI (Associação Brasileira
de Imprensa) enfarpelou-se para recebê-la e ofereceu-lhe um pequeno
espetáculo de música popular em seu auditório. Entre os convidados
estava Carmen. Ela cantou "Cidade maravilhosa" e "Deixa a lua sossegada"
e, ao fim da apresentação, ouviu de Lupe que "deveria tentar Hollywood".
Carmen tomou nota de mais essa sugestão. Lupe seguiu caminho para Buenos
Aires, cumpriu sua temporada por lá e, na volta, em outubro, parou de
novo no Rio - dessa vez para apresentar-se no Cassino Atlântico, onde
cantou, dançou e fez imitações. Ninguém se empolgou. Os críticos foram
ferozes e a definiram como "bananeira que já deu cacho". Carmen defendeu
Lupe junto a esses críticos.


126


A rota Rio-Buenos Aires-Rio não parava. O problema era que, em
contrapartida às rebarbas que pegávamos dos argentinos, às vezes
tínhamos de lhes ceder Carmen por mais tempo que se podia suportar. A
cada viagem de Carmen, os jornais cariocas a cumprimentavam pelo seu
sucesso, mas lamentavam que a cidade fosse se privar dela. Um ou outro
dizia que, à guisa de consolo, pelo menos tínhamos Aurora. Mas, no dia
20 de outubro, Carmen tomou o Clipper para Buenos Aires pela segunda vez
naquele ano, sempre sob contrato com Yankelevich - e, dessa vez, para
dividir o palco com Aurora.

Se Carmen já começava a confundir-se com a paisagem de Buenos Aires, a
imprensa portenha encantou-se com "Las hermanas Miranda". O sucesso da
dupla foi o sintoma de um processo que ninguém julgava possível:
invertendo a argentinite que assolara o Rio com o tango na década de 20,
agora era a música brasileira que apaixonava os argentinos. Carmen e
Aurora não eram as únicas atrações que eles requisitavam - apenas as
mais caras. Por causa delas, os argentinos chamavam também Olga Praguer
Coelho, Silvinha Mello, Jesy Barbosa e, todos os anos, mas pela Rádio El
Mundo, o Bando da Lua.

Nessa viagem, incluindo a ida e volta e a temporada em Buenos Aires,
Carmen e Aurora passaram 46 dias fora. E, para se afastarem do Rio por
tanto tempo, tiveram de correr com o serviço antes de viajar, gravando
quantos discos pudessem, para não deixar o mercado em falta. Como se, no
caso delas, houvesse esse risco.

Em seis meses de 1935, entre maio e outubro, Carmen e Aurora gravaram 36
músicas cada uma - dezoito discos. Ou seja, nesse período, a Odeon pôs
três discos de Carmen e três de Aurora por mês nas lojas! Junte a isso
os programas semanais de rádio, espetáculos em cinemas e teatros,
eventuais excursões (no fim de julho, Carmen voltara a Porto Alegre,
dessa vez com Mário Reis, para inaugurar a Rádio Farroupilha, e, em fins
de agosto, apresentou-se com Aurora em Juiz de Fora e Belo Horizonte),
ensaios para shows e gravações e todo o lado promocional do trabalho -
entrevistas para jornais e revistas, posar para fotografias e visitas a
estações de rádio etc. etc. Tudo isso para se ter uma noção do grau de
profissionalização a que Carmen e Aurora tinham chegado. E, a quem
perguntar de onde elas tiravam tempo para descobrir e aprender novas
músicas para seu repertório, a resposta é simples: a Odeon as ajudava a
escolher o material, entre os incontáveis sambas e marchinhas que os
compositores lhes levavam na gravadora.


127

Não que elas fossem inacessíveis. Amigos como Ary Barroso, Custódio
Mesquita, Assis Valente, André Filho ou Synval Silva iam à casa delas à
hora que quisessem, com ou sem samba para mostrar. No caso de Synval,
geralmente sem, porque sua produção era mínima, apesar de Carmen viver a
provocálo com dinheiro. O último lance de Carmen já estava em três
contos de réis - era o que ela lhe daria de bônus se Synval lhe
produzisse algo que vendesse pelo menos metade de "Coração", seu samba
anterior para ela. Pois, em agosto de 1935, Synval procurou Carmen com
um samba. Chamava-se "Adeus, batucada".

Carmen só precisou ouvi-lo uma vez:

Adeus! Adeus! Meu pandeiro do samba Tamborim de bamba Já é de
madrugada...

Nem discutiu. Isso é que era samba - um samba chorado, mas com graça,
sujeito a verve, perfeito para ela. Foi lá dentro, voltou com um maço de
notas no valor prometido, que enfiou no bolso de Synval, e gravou o
samba no dia 24 de setembro.

Synval era da família e tinha passe livre em sua casa. Mas, na mesma
época, Carmen recebeu também um jovem bancário e pianista mineiro,
chamado Alcyr Pires Vermelho, de quem nunca ouvira falar. O rapaz a
procurara no Curvelo, em meio a uma greve de bondes no Rio. À falta de
transporte, Alcyr subira a pé o morro quase a pique da rua André
Cavalcanti para lhe levar um samba. Chegara lá em cima mais morto do que
vivo e batera-lhe à porta tendo como única recomendação o nome de seu
parceiro Walfrido Silva, amigo de Carmen.

"Esqueça o Walfrido, vamos ao samba", disse Carmen.

Ainda botando alguns bofes para fora, Alcyr abriu uma parte de piano e
começou:

O tique-taque do meu coração

Marca o compasso do meu grande amor

Na-alegria bate muito forte

Na tristeza bate fraco

Porque sente dor...

Era como se, a cada minuto, nascessem flores do asfalto e o samba
esguichasse das nascentes. De qualquer esquina brotava um grande
compositor.



128

Wallace Downey devia ter essa mesma impressão porque, para seu novo
musical, Alô, alô, Carnaval! - o terceiro seguido em um ano -, o difícil
foi selecionar o repertório. Só ele saberia tudo que deixou de fora,
mas, mesmo assim, entre sambas e marchinhas, o filme ficou com 23
números musicais (nove compostos por Braguinha e Alberto Ribeiro). Nem a
Warner punha tanta música naquelas suas superproduções com Dick Powell e
Ruby Keeler, dirigidas por Busby Berkeley.

Pensando bem, por que a modéstia? Alô, alô, Carnaval, para os padrões
brasileiros, também era uma superprodução. O cenário, construído na
Cinédia, reproduzia o grill do Cassino Atlântico, e havia ainda cenas
filmadas no próprio cassino. Os painéis de fundo para vários números
musicais, com as caricaturas de J. Carlos, eram modernistas e combinavam
com o look art déco do filme. Dessa vez, para o bem da sétima arte,
Downey limitou-se a produzir, deixando a direção para Adhemar Gonzaga -
um considerável avanço, embora Gonzaga também estivesse longe de ser
Busby Berkeley. E a superprodução parava por aí, porque cada número de
Alô, alô, Carnaval! foi filmado num só take, com três câmeras. Pena
também que a trama - dois malandros de luxo, Barbosa Júnior e Pinto
Filho, tentam convencer um empresário, Jayme Costa, a montar uma revista
deles no cassino - só servisse para atrasar a entrada dos números
musicais.

Foi o primeiro filme brasileiro a utilizar o playback - o som
previamente gravado, que o cantor apenas dublava ao filmar -, mas isso
só aconteceu em alguns números musicais. E, naqueles em que foi usado,
gravou-se também o som direto, o que acabou produzindo uma maçaroca
sonora. A primazia de uso do playback coube a Heloisa Helena cantando
"Tempo bom", de Braguinha e dela própria. Carmen foi a segunda, com
"Querido Adão", a infecciosa marchinha de Benedito Lacerda e Oswaldo
Santiago que você aprendia de primeira e não conseguia parar de cantar.

Vários clássicos do Carnaval brasileiro apareceram pela primeira vez em
Alô, alô, Carnaval!: as marchinhas "Pierrô apaixonado", de Noel Rosa e
Heitor dos Prazeres, com Joel e Gaúcho; "A.M.E.I", de Nássara e Frazão,
com Francisco Alves; e "Cadê Mimi", de Braguinha e Alberto Ribeiro, com
Mário Reis; o samba-choro "Seu Libório", também de Braguinha e Alberto,
com Luiz Barbosa e seu chapéu de palha; e, no que se tornou a imagem
mais marcante do filme e da época, outra marchinha: "Cantoras do rádio",
de Lamartine Babo, Braguinha e Alberto, com Carmen e Aurora em casacas e
cartolas de lamê dourado, criadas por Carmen:

Nós somos as cantoras do rádio Levamos a vida a cantar De noite
embalamos teu sono De manhã nós vamos te acordar...


129

Uma imagem marcante, sem dúvida, mas não graças a Carmen. Ela detestou a
sequência de "Cantoras do rádio", e com razão. Em quase todos os
ângulos, seu rosto estava escondido por um enorme microfone falso, que
servia para embutir um pequeno microfone de verdade usado no som direto,
embora a seqüência tivesse sido filmada com playback. Carmen só
descobriu o desastre na pré-estréia de gala do filme, no Alhambra, à
meia-noite do dia 15 de janeiro de 1936, com a rua do Passeio toda
iluminada e gente pendurada até nos Arcos.

Pena que um grande samba escalado para o filme não tenha sido nem
filmado, porque a cantora, também com justiça, se rebelou: "Palpite
infeliz", de Noel Rosa, que Aracy de Almeida, 21 anos, de lenço na
cabeça e vestidinho chinfrim, cantaria lavando e esfregando roupa num
tanque. Não um tanque estilizado, cheio de quinas aerodinâmicas, mas o
próprio tanque de cimento do estúdio, usado pelas lavadeiras de São
Cristóvão. A idéia fora do próprio Noel. Ao saber que o filme lhe
reservava (e só a ela) esse cenário tão deprimente, a jovem Aracy, para
irritação de Noel, conferenciou com Francisco Alves sobre a atitude a
tomar. Estimulada por Chico, Aracy mostrou que já era uma mulher sobre a
qual não restava a menor dúvida.

Chamou os presentes à parte e declarou:

"Com todo o respeito, vão todos à merda e à berdamerda, o Noel
inclusive. Eu me escafedo."

E se escafedeu.

Filmes como Alô, alô, Carnaval! nem precisavam ser bons para bater
recordes de bilheteria pelo país. Era a única chance de os brasileiros
dos grotões mais remotos, longe dos cassinos e dos auditórios, verem de
corpo inteiro os ídolos que eles só conheciam pela voz e por fotos em
revistas como A Voz do Rádio. É verdade que, em certos casos, seria
melhor que continuassem a não vê-los - porque, às vezes, até os artistas
mais habituados às platéias tremiam diante da câmera.

As Irmãs Pagãs, espantosamente, estavam encabuladas em Alô, alô,
Carnaval! . E, para ver Rosina e Elvira Pagã encabuladas - dizia-se que
tinham sido criadas a leite de jaguatirica -, é porque a coisa era mesmo
séria. O Bando da Lua parecia rigorosamente engessado, e seu crooner
Aloysio, pior ainda, como se tivesse sido empalado. Outros, sem um
microfone a que se agarrar e sem um diretor que os orientasse, não
sabiam onde pôr as mãos - como Chico Alves, voz insuperável, mas
prejudicada por um ridículo dedo mindinho no bolso em sua interpretação
de "A.M.E.I". E ainda outros, como Joel e Gaúcho, pareciam desconfiados,
com o rabo do olho inquieto, como se uma câmera lateral fosse atacá-los
à traição, fazendo-lhes cócegas nas costelas. Em comparação, era
inacreditável o desembaraço de Dircinha Batista, aos quatorze anos
incompletos, absolutíssima em seus dois números: as marchinhas "Muito
riso e pouco siso" e "Pirata da areia", ambas de Braguinha e Alberto. Ou
de Aurora, também muito à vontade em "Molha o pano", de Getúlio Marinho
e Cândido Vasconcellos. Para não falar em Carmen, um prodígio de
expressão em "Querido Adão", dizendo a letra com os olhos e enchendo a
tela com os braços - como os que a ouviam nos discos e no rádio sempre
imaginaram que fosse. Tudo isso pode ser checado ainda hoje, porque, de
todos os alô-alôs e filmes-folia, só Alô, alô, Carnaval! sobreviveu.


130


O ator Oswaldo Louzada, então com menos de vinte anos, fez uma ponta nos
dois alô-alôs. E, como a maioria dos membros do elenco e da equipe
técnica, desenvolveu uma violenta paixão por Carmen. Eles se encantavam
com o antiestrelismo, a simplicidade, o jeito de Carmen considerar as
coristas, os maquinistas e o pessoal da limpeza. Ao se verem tratados
assim pela estrela máxima do filme, todos se sentiam estrelas
igualmente.

"Quando ela sorria, você tinha vontade de sorrir também", disse Oswaldo.

Para não apunhalar egos ou despertar ciúmes, Downey e Gonzaga mantiveram
em segredo os cachês que pagaram a seus artistas. Mas eles estavam nos
borderôs da Cinédia que chegaram até nós. Por sua participação em Alô,
alô, Carnaval!, Mário Reis recebeu quatro contos de réis; Francisco
Alves, seis; e Carmen e Aurora, juntas, quatorze.

Sim, elas eram as cantoras do rádio. E do palco, do disco e do cinema.



Capítulo 8



1936 - 1937

Cassino da Urca




Carmen gravara "Querido Adão" no dia 26 de setembro (de 1935), mas não
ficara no Rio para trabalhar a música para o Carnaval. Embarcara dias
depois com Aurora para Buenos Aires, de onde só voltaria em dezembro. E
a Odeon resolveu segurar o disco para soltá-lo em janeiro, junto com os
primeiros gritos de Carnaval. Benedito Lacerda e Oswaldo Santiago,
autores da marchinha, não quiseram esperar tanto. Temendo que "Querido
Adão" morresse pagã, resolveram entregá-la a uma bonita cantora
recém-chegada de São Paulo, a loura (oxigene) Alzirinha Camargo, de
vinte anos.

Alzirinha viu ali a sua chance. Durante outubro e novembro, cantou-a com
o maior élan no rádio e em bailes, e, pela animação que provocava nos
salões, sentiu-se a dona da música. Downey e Gonzaga convidaram-na a
participar de Alô, alô, Carnaval!, e, para Alzirinha, só podia ser para
cantar "Querido Adão". Mas Carmen chegou de Buenos Aires no dia previsto
e, com a maior tranqüilidade, entre o café-da-manhã e a merenda,
abiscoitou de volta a marchinha - bastou um telefonema para Benedito
Lacerda - e a cantou em Alô, alô, Carnaval!, rodado no final do ano. O
disco e o filme saíram em janeiro, e "Querido Adão" fez seu merecido
furor no mercado. Alzirinha ficou para morrer ao se ver despojada da
música, mas, no fim, as coisas até que não lhe saíram mal. Downey e
Gonzaga a mantiveram no filme e lhe deram outra boa marchinha,
"Cinqüenta por cento", de Lamartine Babo, que também fez bonito no
Carnaval.

A imprensa tentou criar uma rivalidade entre Carmen e Alzirinha - sem
êxito, pela disparidade de forças. As duas nunca tinham se visto e só
foram se defrontar meses depois, por acaso, no Cassino da Urca, em
meados de 1936. Segundo Alzirinha, Carmen lhe teria dito ao passar por
ela:

"Então é você a loura que lançou o meu "Adão" na minha ausência? Até que
enfim lhe conheci. Mas não tenho medo de você, que é mais coração,
enquanto eu sou mais cérebro."

Cérebro ou coração, Carmen não precisara ter medo de cantora alguma até
então - porque nem havia a quem temer. Em seu sexto ano de carreira
profissional, a proporção de homens para mulheres entre os cantores na
música brasileira se mantivera à base de dez para uma - e a uma era ela.
Nesse período, só surgira uma cantora com relativo potencial para
desafiá-la. Mas esta vivia sob o seu teto, dormia no quarto ao lado, e
as duas iam juntas à praia todos os dias - Aurora. Às vezes, uma cantora
se saía com um disco de grande sucesso e era aclamada - como Elisinha
Coelho em 1931, com "No rancho fundo" -, mas a aclamação não tinha
continuidade. E ninguém levava a sério as Irmãs Pagãs, que faziam muita
espuma mas cantavam pouco. De 1930 a 1935, num meio quase que
exclusivamente masculino, Carmen reinou absoluta, querida pelo público,
admirada pelos colegas, disputada pelo mercado e requisitada por todos
os grandes compositores - com uma única, mas gritante, exceção: Noel
Rosa.


132



No futuro os pesquisadores se perguntariam por que Carmen gravou tão
pouco de Noel - um samba, três marchinhas e olhe lá, sendo que o samba,
o delicado "Tenho um novo amor", em parceria com Cartola, nem deveria
contar (porque somente em 1976 a co-autoria de Noel seria revelada por
Cartola). A distância entre eles estaria numa frase dita por Noel, não
se sabe quando ou em que contexto, a indicar que ele não gostava dela
como sambista: "Isso é samba ou é aquela outra coisa que a Carmen
Miranda canta?". Em seu livro Noel Rosa - Uma vida, João Máximo e Carlos
Didier citam outra referência de Noel a Carmen: "É a rainha da marcha -
longe!", também querendo dizer que, para ele, Carmen não era uma
sambista, mas uma cantora de Carnaval.

Há atenuantes para ambas as frases. A idéia do que significava "ser
sambista" ainda não estava clara em 1930 ou 1931 - aliás, o próprio
samba mal se habituara à idéia de que, não fazia muito tempo, podia ser
chamado de maxixe. Outros sinônimos de sambista eram "folclorista" ou
"cantora regional". E, se Noel via em Carmen mais uma cantora de
marchinhas do que de sambas, isso não era um insulto, mas um fato - na
Victor, Carmen realmente gravava mais marchinhas do que sambas. Outra
hipótese é a de que, para Noel, o estilo de Carmen - vivaz, alegre,
festivo - não seria o veículo ideal para seus sambas reflexivos e cheios
de significados. (Embora o estilo de Carmen servisse para os sambas do
mesmo gênero que lhe eram levados por Ary Barroso e Synval Silva.) Ou,
então, todas essas hipóteses podiam estar erradas - porque, se Noel não
se reconhecia em Carmen, também não se reconhecia em cantora nenhuma.
Quem cantava Noel? Os cantores de paletó e gravata: Francisco Alves,
Mário Reis, Sylvio Caldas, Almirante, João Petra de Barros, o Bando da
Lua, Jonjoca e Castro Barbosa e Joel e Gaúcho, além dele próprio, Noel,
o perfeito intérprete de si mesmo.

Até que, em 1934, Noel revelou Marilia Batista, com quem começou a
cantar em dupla no Programa Casé, na Rádio Philips. Marilia, dezesseis
anos, talentosa, bonita e neta de barões, era uma voz feminina bem-vinda
ao universo de Noel. Mas não provocou grande marola no cenário musical.
Levaria mais tempo, até 1935, para que Noel descobrisse sua maior
cantora: Aracy de Almeida, garota do Encantado, filha de um maquinista
da Central e oriunda de coros de igreja. Foi Aracy que ele passou a
levar para toda parte (inclusive aos bordéis do Mangue!) e a entregar os
sambas com pedigree - "Triste cuíca", "Cansei de pedir", "Palpite
infeliz", "O "X" do problema", "Século do progresso", "O maior castigo
que eu te dou" e "Último desejo". Aracy gravouos todos entre 1935 e
1937.

133


Aracy foi a primeira cantora importante a surgir depois de Carmen. No
começo, como era inevitável, pagava tributo à mais velha: ela era
Carmen, só que com um choro, uma pungência na voz - tanto que, ao
conhecê-la, Noel aconselhou-a a eliminar os traços de Carmen em seu
estilo para valorizar o que tinha de pessoal. A Victor, que acabara de
perder Carmen para a Odeon, contratou Aracy em abril de 1935. E César
Ladeira não demorou a levá-la para a Mayrink Veiga, já com o consagrador
cognome, inventado por ele, de "O samba em pessoa". Noel morreria de
tuberculose, aos 26 anos, em maio de 1937, e Aracy seria sua herdeira
musical. Mas isso, a princípio, só daria prestígio à cantora. Em termos
de penetração popular, ela ainda teria de esperar para produzir um
sucesso que, mesmo de leve, arranhasse a supremacia de Carmen. E isso só
aconteceu em fins de 1937, quando gravou o samba "Tenha pena de mim", de
Cyro de Souza e Babaú, com aqueles versos fatais:

Trabalho, não tenho nada Não saio do miserê Ai, ai, meu Deus Isso é pra
lá de sofrer...

Nada, no entanto, que fizesse Carmen perder o sono. Aracy apenas achara
seu estilo e corria em faixa própria. Seus caminhos não tinham por que
se cruzar, exceto nos corredores da Mayrink, onde trabalhavam.

Outra cantora que surgia nas águas de Carmen, mas da Carmen
carnavalesca, era Dircinha Batista. Nesse caso, com as bênçãos da
original, porque Carmen a adorava - "Ela não é uma gracinha?", dizia a
todo mundo, como se estivesse se referindo a uma miniatura de poodle.
Dircinha era filha do ventríloquo Batista Júnior e começara tão cedo sua
carreira que praticamente trocara a chupeta pelo microfone. Mas estava
custando a firmar-se e também teria de esperar até o Carnaval de 1938
para assustar Carmen com um sucesso: a marchinha "Periquitinho verde",
de Nássara e Sá Roris - não por acaso, gravada na própria Odeon, o
reduto de Carmen.

Quando isso aconteceu, Carmen acusou o susto. Enxergou em Dircinha a
euforia, o dinamismo e a garra que identificava em si própria. Com a
diferença de que sua rival ainda era muito jovem e, se continuasse a
crescer, sabe-se lá a que alturas poderia chegar. Naquele Carnaval de
"Periquitinho verde", por exemplo, Dircinha ainda não completara...
dezesseis anos.


134

O sonho de se tornar cantora e pertencer ao mundo do rádio, que se
espalhara pelo país e tinha em Carmen a prova de que era real, estava
sendo vivido agora quase dentro de sua casa. Cecília, a irmã que nascera
entre Carmen e Aurora, e que se casara aos dezoito anos, em 1931, e fora
morar com o marido no Rio Comprido, resolvera também se aventurar na
carreira artística.

E por que não? Como todas na família (sem esquecer Olinda, antes delas),
Cecília levava jeito para cantar e dançar. Era despachada, falante e não
tinha medo de palco. Assim como Carmen e Aurora, beneficiara-se da longa
convivência com Josué de Barros e de suas aulas de canto na travessa do
Comércio, nem que fosse como ouvinte. Além disso, conhecia todo mundo no
meio - os amigos de suas irmãs eram seus amigos e, de tanto
acompanhá-las em apresentações, ganhara uma invejável cancha de
bastidores. Com tanto a seu favor, pode-se dizer que até custou para que
alguém lhe acenasse com uma oportunidade. Mas, quando aconteceu, esse
alguém não poderia ser melhor: o venerando Roquette-Pinto, que entregara
sua Rádio Sociedade para o governo mas continuava à frente dela, agora
chamada de Rádio Roquette-Pinto. Aquela altura, Roquette já se
conformara com a idéia de que a boa música popular merecia ser tocada no
rádio. Por isso, e por conhecer Cecília, convidou-a a cantar em seus
programas. O marido Abílio e as irmãs a apoiaram, e ela aceitou. Não
tinha filhos, não trabalhava, nada a impedia - quem sabe se, dentro
dela, não havia uma nova Carmen ou Aurora pronta para desabrochar?

De meados de 1934 ao finzinho de 1935, Cecília Miranda viveu o seu sonho
no éter. A notícia de que uma terceira irmã Miranda adentrava a vida
artística na incandescente idade de 21 anos foi recebida com fogos em
revistas como Carioca, O Cruzeiro e Revista da Semana - todas abriram
páginas a respeito. A colunista Creusa Mara, em A Voz do Rádio,
escreveu: "Cecília Miranda é das poucas legítimas estrelas. Apareceu
entre Carmen e Aurora Miranda, mas brilhando com luz própria". Por luz
própria talvez quisesse dizer que Cecília não era uma cantora de bossa e
ritmo como as irmãs. Ao contrário, era romântica, e o repertório que
tentava desenvolver parecia aquele que um velho amigo, Custódio
Mesquita, também estava começando a adotar: valsas, canções e foxes.

Mesmo assim, em outubro de 1934, Cecília participou, ao lado de Murilo
Caldas e Almirante, do coro de um disco de Lamartine Babo na Victor: a
pândega e genial "Rapsódia lamartinesca", uma colcha de retalhos
carnavalescos com trechos de dezenas de sambas e marchinhas, dele e de
outros, em apenas dois minutos e doze segundos, tendo, no lado B, outra
marchinha de Laia, "Senhorita Carnaval". Por suas apresentações na
Roquette-Pinto, Cecília foi chamada pela Rádio Guanabara para o cast
fixo de dois programas, o Programa Suburbano e o Horas Cariocas. E, em
setembro de 1935, foi capa do número 24 da revista A Voz do Rádio. Era a
glória.




135

Enquanto isso, mais um Miranda - o quarto! - também ingressava no rádio:
Tatá, o caçula (dezessete anos em 1935), respeitosamente apresentado ao
microfone como Oscar Miranda. E respeito era bom porque, a exemplo de
Cecília, Tatá - digo, Oscar - era um cantor romântico, mais para o estro
seresteiro de Sylvio Caldas do que para o incêndio de salões,
especialidade de Carmen e Aurora. Um crítico fez de conta que
desconhecia sua pouca idade e chamou-o de "cantor de sensibilidade
apurada na interpretação de músicas sentimentais". Oscar já dispunha até
do arremedo de um repertório exclusivo, em que se destacavam a valsa
"Primeiro amor", de Synval Silva, e o samba "Ausência", de Aristóteles
Manhães. A provar que sua voz tinha futuro, foi convidado para os
programas diurnos da Mayrink Veiga e, à noite, era uma presença
constante do Programa Suburbano, na Rádio Guanabara, onde dividia o
microfone com a irmã Cecília. Quem conseguia segurar esses Miranda?

Só faltava agora Mocotó, o último irmão ainda fora do rádio, jogar os
remos do Vasco para o alto e - vestido com sua camiseta regata, sem
mangas, e touca cruzmaltina - invadir uma estação, chamar o diretor
artístico e dizerlhe que também estava ali para cantar. Salvou-o a
consciência de que não tinha gogó para isso e que, afinal, era um dos
atletas mais respeitados e bem-sucedidos do remo brasileiro, com
prateleiras que vergavam ao peso dos troféus. E, ora, raios - pensou
Mocotó -, já havia quatro Mirandas no ar. Para que um quinto?

Em novembro de 1935, Cecília se viu grávida. Os primeiros enjôos a
fizeram perder ensaios e programas. O avanço da gravidez levou-a a
refletir sobre sua carreira - era aquilo mesmo que queria? E seria
possível conciliar rádio e maternidade? Em julho de 1936, quando nasceu
sua filha Carminha - o nome em homenagem à madrinha Carmen -, Cecília já
se decidira: sua carreira estava encerrada. Mas sua última participação,
em janeiro, foi histórica: no coro de um disco de Carmen, a marchinha
"Alô, alô, Carnaval", em que, sem os nomes no selo, grande parte da
letra era cantada por um trio formado por Carmen, Aurora e Cecília.

E Tatá, que estava conciliando o rádio com o trabalho de balconista na
loja A Melodia, também largou tudo ao ser contratado por uma empresa - a
americana Swift, do ramo de enchidos, presuntos e patês - que lhe fez
uma fascinante proposta: disseram-lhe que ele poderia "progredir como
vendedor". Tatá acreditou na promessa e não se arrependeu - trabalhou na
Swift pelo resto da vida e, assim como Cecília, só voltaria a cantar em
família. O micróbio artístico não os picara com a necessária virulência.
Com a defecção dos dois juniores, os Miranda voltaram a ter apenas as
profissionais a representá-los: Carmen e Aurora.



136

E elas eram mais que suficientes. Em meados de 1935, com a concordância
de todos, Carmen tirara sua família do Curvelo e a levara para o
Flamengo. E, pela primeira vez, não para uma casa, mas para um
apartamento tomando todo o térreo de um simpático prédio residencial de
cinco andares, na rua Silveira Martins, 12. O prédio era uma mistura de
modernismo e tradição: tinha elevador e escada de incêndio, mas o
elevador era aparente, de ferro batido, e a escada, em espiral. Ficava
quase de esquina com a Praia do Flamengo e de frente para a lateral do
Palácio do Catete. Se acordasse muito cedo e chegasse à janela, Carmen
veria Getúlio passeando nos jardins e poderiam acenar-se com dedinhos.

Mas acordar cedo era o que Carmen em breve já não poderia fazer - assim
que acrescentasse um novo e fenomenal campo de trabalho à sua agenda: os
cassinos.

Em 1936, nas noites do Rio, podia-se ouvir a bolinha de marfim
matraqueando nos casulos das roletas, o atrito entre as fichas de
madrepérola, as cartas sendo disparadas pelas caixas de bacará e
campista e, horas depois - talvez em Copacabana, num apartamento em
andar alto e às escuras - um tiro na fronte, disparado por um perdedor
mais afoito. Naquele ano, os três grandes cassinos do Rio já estavam a
todo pano: o do Copacabana Palace, o Atlântico e o da Urca. Antes disso,
não.

O cassino do Copacabana Palace era o mais antigo: nascera junto com o
hotel, em 1923, mas o jogo levara uma vida atribulada na República Velha
e estivera proibido durante quase todo o governo Washington Luiz, de
1926 a 1930. Com Getúlio no poder, o jogo voltou em 1932 e o Copacabana
foi o primeiro a reabrir. Octavio Guinle, proprietário do hotel, nunca o
explorou, preferindo arrendá-lo a terceiros por 30 mil dólares fixos por
mês e o direito de ser seu fornecedor exclusivo de comida e bebida. Só
exigia que o cassino, com entrada pelo teatro, na avenida Nossa Senhora
de Copacabana, estivesse à altura do hotel. E o Copacabana estava.

O jogo se dava em três salões, de terça a domingo, das oito da noite às
duas da manhã. O equipamento e o pessoal - os móveis, máquinas, fichas,
baralhos e pagadores (crupiês) de roleta e de bacará - vinham da França.
Mas o verdadeiro luxo ao estilo Copacabana Palace estava no bar e no
grill, com capacidade para seiscentos lugares, uma orquídea em cada mesa
(do orquidário de Guilherme Guinle, irmão de Octavio), black-tie às
sextas e sábados, pista de dança (de vidro, iluminada por baixo) e o
palco em que se revezavam três orquestras, uma delas a de Simon
Bountman. Às quartas e sextas, o ingresso dava direito a uma garrafa de
champanhe.


137

Diante do Copacabana, o Cassino da Urca, controlado por Joaquim Rolla,
era quase um estábulo de tão pobre. Ficava na rua João Luiz Alves, nas
instalações onde, desde 1925, existira o minúsculo Hotel Balneário, que
Carmen freqüentava quando ia à praia na Urca com Mário Cunha. O mineiro
Rolla comprara o imóvel em 1933 e o convertera em cassino, assunto de
que só entendia por cena de filme com Erich von Stroheim. Aliás, Rolla,
então com 33 anos, podia entender de tudo, menos de cassinos. Filho de
fazendeiros, começara a vida como tropeiro, tendo como maior patrimônio
uma mula. Depois fora vendedor de café, empreiteiro de estrada, dono de
jornal em Belo Horizonte e duas vezes revolucionário: em 1930, para
depor Washington Luiz, e em 1932, para depor Getúlio. Na primeira,
venceu e levou a patente de capitão, por bravura; na segunda, perdeu e
pegou cana. Mas não por muito tempo. Assim que o soltaram, Rolla veio
para o Rio, associou-se a amigos - Caio Brant, Abgar Renault, João
Daher, Nicolas Ladamy - e pediu a Getúlio a concessão de um cassino. E
Getúlio lhe deu.

No começo, o Cassino da Urca era de um impressionante amadorismo. O
grill ficava logo na entrada, aberto a qualquer transeunte que passasse
pela porta do cassino e resolvesse entrar, jantar e ir embora - sem
jogar. O piso era de mármore, a decoração, hospitalar, e a iluminação,
de velório. Não tinha palco, nem mesmo um tablado: os artistas se
apresentavam ao rés-do-chão - se houvesse alguém na frente, parte da
platéia tinha de ficar na ponta dos pés. A orquestra se vestia nas lojas
da rua Larga e as atrações eram recrutadas na Lapa. O diretor artístico
era um militar (amigo de Rolla na campanha de 1930), com mais vocação
para comandar um "ordinário, marche" do que para um coro de corpetes e
tutus. Evidente que, com tudo isso, o Cassino da Urca só atraía os
jogadores de baixo cacife, que iam fazer sua fezinha antes de voltar
para casa. Nenhum deles levava a patroa - não era um programa social.
Daí que, em seus dois primeiros anos, Rolla nem sonhou em competir com o
Copacabana, e já se conformara com isso. Mas, em 1935, surgiu mais um
templo do jogo no Rio, e que veio também para esmagá-lo: o Cassino
Atlântico, do empresário Alberto Bianchi, no Posto 6 de Copacabana.

Este era um belo cassino. Art déco por dentro e por fora, com um
pé-direito de quase dez metros, tanto nas salas de jogo como no grill -
dava a sensação de se estar a céu aberto no deque de um transatlântico.
Era o programa perfeito para um casal levar os amigos em visita ao Rio,
para jantar, dançar, assistir ao show, estrear um carro ou um vestido
novo - e jogar. "Diante dos seus olhos", dizia um volante do Cassino
Atlântico distribuído nos hotéis, ""o senhor" terá o empolgante
espetáculo daféerie noturna da praia de Copacabana, com seu colar de
pérolas em cuja extremidade, como digno e deslumbrante fecho, avulta o
esplendor de luzes e música do nosso cassino, realçando o mais belo
panorama do mundo". Nesse caso, todos os clichês e adjetivos se
justificavam. E concluía: "Faça uma visita ao grill-room do Atlântico, o
centro mais elegante do Rio. Vá aos jantares dançantes, abrilhantados,
em um ambiente incomparável de distinção e suntuosidade, por numerosas
atrações internacionais, e guardará de sua visita ao Rio uma
inesquecível recordação". Numa inteligente estratégia, nenhuma
referência ao jogo.

Foi no Atlântico (sob o codinome Cassino Mosca Azul) que se passou Alô,
alô, Carnaval!, retratando, meio sem querer, o começo de uma nova era da
música popular. No filme, Jayme Costa, diretor artístico do cassino,
tinha de se conformar em usar uma revista nacional, escrita por Barbosa
Júnior e Pinto Filho, porque a companhia francesa de ópera que ele
contratara lhe dera o cano - e, por isso, tome de Carmen e Aurora, Chico
Alves, Mário Reis, Dircinha Batista e tantos outros em cena no cassino.
Na vida real, graças a uma lei de Getúlio Vargas também de 1935, os
cassinos brasileiros ficaram obrigados a usar artistas nacionais em
número equivalente ao de americanos, franceses e argentinos que até
então compunham sua programação.


138


Os donos dos cassinos entraram em pânico. Temiam que ninguém saísse de
casa para ver cantores que se podia ouvir de graça pelo rádio - embora
suas atrações estrangeiras fossem quase todas oriundas do segundo time
do vaudeville americano. (Uma típica atração era Miss Baby, uma acrobata
americana que, equilibrando-se em três cadeiras, tocava ao violino a
"Serenata" de Toselli.) A Lei Vargas foi aplicada com desconfiança e
nunca cumprida à risca, mas, por causa dela, os cassinos começaram a se
abrir para a música brasileira - e ainda havia quem se perguntasse por
que os compositores, músicos e cantores adoravam Getúlio.

Em janeiro de 1936, meio que para cumprir a lei e tentar sentir a reação
da platéia, o Copacabana contratou Carmen para uma pequena temporada.
Foi bom para o cassino - e decisivo para Carmen. Era sua primeira
apresentação num palco que não fosse o de um teatro ou cinema, e para
uma platéia de extração diferente da que a via por alguns tostões. Ali,
a poucos metros das mesas, sob a apreciação de casais que bebericavam
champanhe e tomavam langouste en cocktail às colherinhas, Carmen começou
a sofisticar-se como intérprete de palco.

O Cassino Copacabana foi o primeiro lugar público a tirar de casa os
grãfinos cariocas e a fixá- los no Rio. Até então, eles só dançavam e se
divertiam entre si, nos salões de seus palácios em Botafogo ou
Laranjeiras, e passavam seis meses por ano na Europa. Os cassinos, ao
misturar a alta sociedade com os ministros de Estado, os políticos, o
corpo diplomático, os grandes empresários, as celebridades
internacionais, as prostitutas de alto bordo e os velhos e novos ricos
europeus e argentinos, consolidaram a vocação internacional da cidade.
Para que viajar se estavam todos aqui? Em certo momento de 1936, por
exemplo, o Rio recebia o maestro Stravinski, o automobilista Pintacuda,
o escritor Stefan Zweig, o estadista americano Cordell Hull - cada qual
um expoente em seu ramo -, e todos hospedados no Copa. Pois essa era a
nova platéia de Carmen.

Em seu alquebrado escritório na Urca, cheio de goteiras e infiltrações,
Joaquim Rolla acompanhava alarmado essa movimentação. O Copacabana e o
Atlântico o estavam esmagando. E o que esses cassinos tinham que o dele
não tinha? Classe, charme, savoir-faire. Se quisesse salvar seu cassino,
Rolla teria de agir rápido. Para isso, convocou Luiz (Lulu) de Barros, o
diretor mais prolífico do cinema brasileiro e também cenógrafo de
teatro.

Lulu foi ao cassino, examinou as dependências uma a uma e achou tudo um
horror, mas aceitou o desafio. Antes de cuidar da parte artística, no
entanto, atacou a infra-estrutura. Começou por mudar o grill para um
grande salão interno - quem quisesse jantar ou ver o show teria de
passar antes pelas salas de jogo - e instalou ar-refrigerado em todos os
salões. Dividiu o cassino em duas partes, separadas pela rua. O lado que
dava para a praia seria freqüentado pelos menos endinheirados, com
apostas mais leves. O que dava para o morro teria o grill, onde se
dariam os shows e o jogo pesado. Para não discriminar ninguém, construiu
uma comunicação por cima entre os dois lados: uma passagem dava acesso
às galerias, de onde os menos cacifados poderiam assistir aos shows, de
pé.

139


Acertado o lado funcional do cassino, Lulu dedicou-se à parte de
criação. Primeiro, chutou o militar incompetente e escalou a si próprio
como diretor artístico interino. Contratou três orquestras (uma para
danças, duas para os shows), que se apresentariam em plataformas móveis,
surgindo no palco sobre elevadores, vindas do porão - enquanto uma
orquestra descia, como se estivesse sendo tragada pelo chão, a outra
subia, já tocando. A principal delas, regida por Vicente Paiva, tinha 32
figuras, incluindo oito violinos, duas violas e dois cellos. O palco,
por sua vez, ganhou uma cortina de espelhos. Por baixo dele, saía um
segundo palco, que se projetava em direção à pista, como se fosse uma
gaveta. De onde Lulu tirava essas idéias? Não se sabia, mas o importante
é que elas funcionavam. E ele era detalhista e obstinado: cuidou
pessoalmente da decoração do grill, dos figurinos das coristas, do
uniforme das orquestras. Estabeleceu também que, a qualquer momento que
um artista chegasse ao cassino com uma idéia, de dia ou de noite,
haveria um pianista, um coreógrafo ou um ensaiador para tomar nota e
desenvolver a idéia com ele. Quando Lulu se deu por satisfeito, entregou
o cassino a Rolla, mandou-o contratar um diretor artístico definitivo -
que tal César Ladeira? - e grandes atrações brasileiras, e voltou para o
mundo do cinema, que era o seu.

Mas, então, a intuição de Rolla também começou a trabalhar. Um táxi
tomado em qualquer lugar do Rio, tendo como destino o Cassino da Urca,
seria pago pelo porteiro do cassino. O cidadão pagaria 10 mil-réis
(cerca de trinta centavos de dólar) para entrar, com direito a assistir
aos dois shows, cear e - este era o truque - poderia apostar a entrada
na roleta. A bolinha garantiria o lucro do cassino sobre aquele cidadão.
Rolla profissionalizou tudo: os salários venciam religiosamente nos dias
1 e 15 do mês; dos funcionários aos prestadores de serviço, ninguém
fazia nada, por mais insignificante, que não fosse contabilizado e pago.
Essa correção e pontualidade eram inéditas no meio artístico brasileiro.
O que Rolla demoraria um pouco a entender seria a relação entre o jogo e
as atrações musicais. O jogo era a finalidade do cassino, mas só
atrairia os apostadores profissionais. Para chamar o grande público - e
transformá-lo em apostadores -, todo o cassino teria de ser atraente.

O cassino de Rolla tinha agora classe, charme e savoir-faire, mas,
apesar de reinaugurado com estrondo em 1936, não parecia capaz de
superar o Copacabana e o Atlântico. No fim daquele ano, um amigo
perguntou a Rolla:


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"Você quer encher isto aqui?"

"Quero."

"Então ponha a Carmen Miranda para cantar."

Rolla conhecia Carmen, é lógico. Pouco antes, em fins de novembro, ela
já se apresentara na Urca. Mas era uma noite para convidados, em que o
cassino recebera a visita do presidente dos Estados Unidos, Franklin D.
Roosevelt, de passagem pelo Rio a caminho de Buenos Aires. Roosevelt
ficara hospedado na mansão de Carlos e Gilda (pais de Jorginho) Guinle,
na Praia de Botafogo, e o normal seria que o levassem ao cassino do
Copacabana. A sugestão da ida à Urca viera do Catete, a partir de uma
ponte de cooperação que começava a se estabelecer entre Rolla e a
primeira-dama, dona Darcy Vargas. E também entre Rolla e o "coronel"
Benjamin (Bejo) Vargas, o irmão de Getúlio, que tinha mesa cativa no
grill para seus amigos do poder. Bejo estava fazendo da Urca uma
extensão de sua casa. Só que a sua era a casa-da-mãe-joana. Ia para o
cassino, enchia a cara, jogava, perdia, não pagava, assediava as
coristas, dava tiros para o ar e ameaçava fuzilar a roleta. Mas Rolla
era tão grato a Getúlio que Bejo podia fazer qualquer coisa em seu
cassino, exceto, talvez, urinar em cima do pano verde.

Em dezembro, Rolla chamou Carmen para oferecer-lhe um contrato de um ano
com exclusividade. Carmen pediu trinta contos de réis por mês - cerca de
mil dólares -, e mais o direito de ausentar-se para apresentações fora
do Rio.

"Carmen, isso eu não posso pagar", disse Rolla.

"Pode, sim", ela garantiu. "Dinheiro de jogo é achado na rua. Eu vou
cantar aqui duas vezes por noite e não vou repetir nem um vestido
durante um mês. As mulheres virão me ver, por causa dos vestidos, e
trarão os homens, que virão jogar."

Rolla pagou. E não se arrependeu. Carmen ajudou a consagrar o seu
cassino e, graças a este, a Urca, uma península na entrada da baía de
Guanabara, já famosa mundialmente pelo Pão de Açúcar, tinha agora um
novo marco no cartão-postal.

Seu Pinto e dona Maria mal tiveram tempo para desfrutar o apartamento do
Flamengo. No mesmo ano de 1935, logo depois de se mudarem, Carmen
cumpriu sua velha promessa e mandou-os para uma temporada de meses junto
aos parentes em Portugal. A idéia era irem juntos, a família toda, para
visitar o túmulo de Olinda em Várzea de Ovelha. Mas a vida profissional,
e não apenas de Carmen e Aurora, tornava aquilo impossível.




141

Todos os anos, entre janeiro e fevereiro, as duas tinham compromissos em
São Paulo e adjacências para a pré-temporada de Carnaval. No começo,
Carmen e Aurora iam de trem, promovendo a bordo uma farra musical que
envolvia, além dos passageiros, os graxeiros, foguistas e maquinistas.
Quando chegavam à Estação da Luz, metade do trem já consagrara seus
sambas e marchinhas como sucessos daquele Carnaval. Depois passaram a ir
pelo avião "Cidade do Rio de Janeiro", da Vasp, uma espécie de avô da
ponte aérea. Apresentavam-se todos os dias às 19h30 na Rádio Record -
considerada "o maior auditório do mundo", porque o microfone ficava
próximo das janelas que davam para a praça da República. O público
paulista enfrentava a garoa e lotava a praça - a imprensa a chamava de
"uma enchente humana". Às vezes, quando chovia, a enchente humana
enfrentava uma enchente de verdade para ver Carmen e Aurora, mas ninguém
arredava pé. Na Record, elas eram acompanhadas pelo regional do
violonista Rago, onde conheceram um músico pelo qual se encantaram à
primeira vista, o cavaquinista e violonista José do Patrocínio de
Oliveira, Zezinho, ex-funcionário do Instituto Butantan e que, quando se
empolgava, falava das cobras pelos seus nomes em latim.

Terminado o programa, desciam até a praça e cruzavam a multidão a pé
para suas apresentações no Cine República ou no Teatro Santana. Por via
das dúvidas, eram escoltadas pessoalmente pelo proprietário da rádio, o
empresário Paulo Machado de Carvalho, que não se conformaria se uma das
duas fosse vítima de um sórdido bolina na multidão.

Carmen e Aurora eram convidadas quase diariamente a almoçar ou jantar
com Paulo e sua mulher, Maria Luiza, em seu casarão na alameda Barros.
Um dos presentes à mesa, invariavelmente, era o irmão de Paulo,
Marcelino de Carvalho," ditador das boas maneiras em São Paulo e incapaz
de tolerar a menor gafe de seus semelhantes. Certo dia, para chocar
Marcelino, ou porque estava realmente pouco ligando, Carmen, enquanto
serviam o peixe, virou-se para a dona da casa e disse:

"Maria Luiza, eu gostaria de usar o bidê."

Marcelino quase engasgou com a alcachofra. E, com o sim mudo e atônito
de dona Maria Luiza, Carmen levantou-se e foi lá dentro. Como eles
poderiam saber que Carmen era fanática pela higiene íntima e que a fazia
várias vezes por dia?

O outro compromisso anual ou bianual de Carmen era com a Rádio Belgrano,
de Buenos Aires. Jaime Yankelevich já se julgava com direitos adquiridos
sobre ela quando, em março de 1936, a Rádio El Mundo, sua concorrente,
entrou na parada. Os telegramas da El Mundo para Carmen no Rio eram
taxativos:

"DIGA QUANTO E ESTÁ ACEITO. MAS VENHA!"



142

O assédio foi intenso e Carmen, por lealdade a Yankelevich, precisou
inventar toda espécie de desculpa, como a de que, antes, "tinha de se
apresentar em Portugal". O que era menos verdade, porque Portugal nunca
lhe acenara com uma proposta. (Aliás, somente naquele ano os patrícios
se deram conta de que Carmen era um deles - mais ou menos. "A criança
nasceu em Portugal", escreveu sobre ela o português Fernando Rosa, na
revista Cinéfilo, de Lisboa. "Mas a alma é brasileira e a artista é do
Brasil.")

E, com esse drible de corpo na Rádio El Mundo, Carmen assinou, como
sempre, com a Belgrano, onde, em julho e agosto, se apresentou com
Aurora e um conjunto formado por Custódio Mesquita ao piano, os
violonistas Laurindo de Almeida e Zezinho e o pandeirista Sutinho.

A presença de Carmen na capital argentina já excedia o lado musical. O
jornal El Hogar abriu a manchete, em letras vermelhas: "Carmencita lança
moda em Buenos Aires". A porta dos fundos de seus shows não se limitava
aos admiradores masculinos. As mulheres portenhas também iam esperá-la à
saída da rádio ou do teatro e se aproximavam para tatear suas roupas,
apreciar o tecido, o corte, o acabamento, e perguntar onde poderiam
comprar ou fazer igual. E o que as roupas de Carmen tinham de diferente?

Àquela altura, nem todas eram criadas por ela e executadas por suas
costureiras - Carmen não tinha mais tempo para isso. Mas, mesmo os
vestidos ou tailleurs dernier bateau que comprava prontos - vindos para
ela com exclusividade de Paris pela Casa Canadá - levavam um toque
pessoal seu, uma pequena adaptação, ou eram combinados com uma peça com
que ninguém pensara, como um lenço ou um chapéu. Pelas centenas de fotos
em que aparece nessa época, cada qual com uma roupa diferente, sua
despesa com o guarda-roupa devia ser assustadora.

Com material de divulgação também. Em Buenos Aires, suas fotos eram,
como sempre, de Annemarie Heinrich. A exemplo dos outros artistas que se
deixavam fotografar por Annemarie, Carmen lhe encomendava entre mil e
1500 cópias de cada uma. Nunca uma artista brasileira vivera tão
intensamente aquilo que os americanos chamavam de estrelato - um estágio
em que as portas se abriam automaticamente, os camarins se enchiam de
flores, os copos nunca ficavam vazios, e tudo que se dizia era ouvido e
levado em consideração. Mesmo que para discordar.

Foi o que aconteceu na temporada de 1936 quando, ao sintonizar uma
transmissão da Rádio Belgrano para o Rio, alguns brasileiros quase
desmaiaram ao ouvir:

"Alô, macacada!!! Como vão as coisas por aí?"

Era Aurora, tentando imitar o jeito de Carmen e cometendo a gafe do ano
ao dirigir-se nesses termos ao povo brasileiro por uma rádio argentina.
E logo de onde - da cidade em que viviam nos chamando de macaquitos!
Alguns jornais destilaram azedume sobre Aurora e Carmen, insinuando que
o governo deveria exercer um controle sobre os brasileiros que nos
"representavam" lá fora.



143

Naturalmente, não era tão grave assim. O Globo deu na primeira página,
mas de forma jocosa, comentando: "Essa frase inocente e carinhosa,
saudação íntima de alguém para os amigos, numa terra em que a gíria faz
quase parte do vocabulário mais sério e circunspecto, feriu o
nacionalismo verde-amarelo de meia dúzia de desconhecidos e mexeu com o
civismo impossível de incríveis criaturas".

Na volta pelo Augustus, em meados de setembro, Carmen e Aurora deram
boas risadas ao lembrar a transmissão e ao contar a resposta de Carmen
aos turistas franceses em Buenos Aires, que a abordaram para perguntar
se era verdade que havia cobras soltas nas ruas do Rio.

"É verdade. Tanto que, na avenida Rio Branco, há uma calçada só para
elas e outra para os pedestres."

Havia uma variante da pergunta:

"O que você faz quando cruza com uma cobra em Copacabana?"

E, para esta, uma obra-prima de resposta de Carmen:

"Se for uma cobra conhecida, eu cumprimento."

Assis Chateaubriand, o tubarão dos Diários Associados, precisava de um
nome bombástico para o cast da sua Rádio Tupi, que ele acabara de
inaugurar no Rio, em fins de 1936. Nenhum nome tinha maior poder de fogo
que o de Carmen Miranda. Mas Carmen era da Mayrink Veiga, onde ganhava
um conto e 400 mil-réis mensais - o mesmo salário de 1933. Ao saber
disso, Chateaubriand resolveu encurtar a conversa. Ofereceu-lhe cinco
contos de réis, e luvas que nunca foram reveladas, por quatro programas
semanais de quinze minutos: às quartas e aos sábados, às 20h15 e 21h15,
sob o patrocínio dos Laboratórios Oforeno e do Licor de Cacau Xavier.
Para acompanhá-la, Carmen teria nada menos que o regional de Benedito
Lacerda, seu colega na Odeon. E outra coisa: a Tupi queria também
Aurora, por um conto e oitocentos.

Carmen tinha mais que uma relação profissional com a Mayrink. Era grande
amiga de César Ladeira, que a aconselhava nas decisões profissionais -
fora ele que a estimulara a trocar a Victor pela Odeon. Mas seu
principal aliado na emissora era o diretor-gerente Edmar Machado, o
homem que dera à Mayrink Veiga a estrutura necessária para que César
pudesse inventar à vontade. Edmar, que, de brincadeira, chamava Carmen
de "Galega", servia informalmente como seu consultor financeiro,
orientando-a sobre o que fazer com o dinheiro. Sua última campanha era
para que Carmen comprasse uma casa para a família - o que ela faria. A
mulher de Edmar, a atriz portuguesa Maria Sampaio, também era íntima de
Carmen e das irmãs - fora para ela, em 1932, que Ary Barroso e Luiz
Peixoto tinham composto o samba-canção "Maria":

Maria

O teu nome principia

Na palma da minha mão...


144

Mas a proposta da Tupi era avassaladora. Carmen implorou a Edmar que a
Mayrink cobrisse essa proposta em 500 mil-réis ou mesmo a igualasse,
para que ela não tivesse de sair. Para espanto de Carmen, Edmar não quis
discussão. Para ele, não se tratava de dinheiro, mas de lealdade: a
Mayrink era uma família para ela, e não se troca de família; Carmen e a
Mayrink tinham começado juntas; pertenciam-se uma à outra; e demais
clichês do gênero. Edmar fez-lhe até uma ameaça velada: os ouvintes
nunca a admitiriam sob outro prefixo que não o da Mayrink - a famosa
PRA-9.

Essa era uma visão surpreendentemente amadorista numa emissora que se
apregoava tão profissional. Na verdade, a Mayrink era profissional. O
bondoso Edmar é que não era tanto. Com toda a história dos contratos que
tinham vindo para substituir os cachês, ele continuava disponível para
que seus contratados, sempre na pendura, fossem a todo momento pedir-lhe
um vale - um adiantamento. No fim do mês, em vez de somar os vales e
descontá-los do salário do funcionário, o liberal Edmar os rasgava e
mandava pagar o salário na íntegra. Fazia isso com Sylvio Caldas, Aracy
de Almeida, Aurora e, numa emergência, pode ter feito também com Carmen.

Só então Carmen percebeu que a corte da Tupi a ela já vinha de bem
antes. Em abril, Ayres de Andrade, diretor artístico da rádio, dera uma
conferência na Escola Nacional de Música, intitulada "Aspectos do
lirismo na música popular", e convidara Carmen, o Bando da Lua e os
folcloristas Mara e Waldemar Henrique para ilustrá-la musicalmente. Era
um evento "sério", acadêmico - o Diário da Noite falou do "ritmo
bárbaro, as vozes de angústia e desespero das senzalas" -, e Carmen se
sentiu honrada por ter sido chamada a participar. Ou seja, não seria o
fim do mundo se ela trocasse de estação. Se os ouvintes da Mayrink não a
seguissem na Tupi, ela teria novos ouvintes a conquistar.

E, assim, em dezembro de 1936, Carmen fingiu-se de surda ao coração e,
sob as vistas de Ayres de Andrade e de Carlos Frias, principal locutor
da emissora, assinou por um ano com a Tupi pelos ostensivos cinco contos
mensais e mais uma secreta fortuna por fora e à vista. O que provocou um
editorial moralista da Revista da Semana, de Gratuliano de Brito,
resmungando contra tão alto salário para uma "cantora de sambas",
enquanto os cantores de coisas clássicas, "com vários anos de estudos em
conservatórios", tinham de lutar pela vida. No futuro, esse texto seria
usado como um exemplo do preconceito ainda vigente contra a música
popular. Mas não era o caso. Tratava- se apenas de um artigo bobo e
isolado, para firmar a posição da Revista da Semana contra uma revista
concorrente, O Cruzeiro - que, por também pertencer a Chateaubriand,
como a Rádio Tupi, seria um forte reduto de Carmen, assim como os outros
jornais do homem, como O Jornal, o Diário da Noite e o Diário de São
Paulo.



145

Os contratos com a Tupi e a Urca saíram quase ao mesmo tempo, quase no
mesmo dia. Carmen nunca vira tanto dinheiro junto. E, por causa da Tupi,
Carmen finalmente pôde aceitar as fortunas com que a Rádio El Mundo lhe
acenava para levá-la a Buenos Aires - porque as duas emissoras eram
co-irmãs contra a Mayrink Veiga e a Belgrano. E, nessas novas bases, lá
se foram, não apenas Carmen, mas também Aurora e o Bando da Lua a Buenos
Aires.

Pela primeira vez, a excursão, em junho e julho de 1937, não se limitou
à capital. Cantaram também no Teatro Municipal de Bahia Blanca, no Sul
do país, quase na Patagônia, e quem abria o show para eles? Um pianista
e cantor cubano, de 26 anos, futuramente lendário, chamado Bola de
Nieve. Em julho, a trupe voltou pelo Uruguai e se apresentou na Radio
City de Montevidéu, sob um frio de rachar. A imprensa uruguaia as
recebeu ao coro de "Carmencita", "Aurorita", "hermanitas" y otras
palabras catitas.

Grata por tanto carinho, Carmen armou seu melhor sorriso e dirigiu-se
aos repórteres na primeira entrevista coletiva:

"Aqui estoy, muchachosü Vocês mintendem?"

Silêncio! Façam alas

Ordem, respeito e nem um grito de bamba! Quero os tamborins de grande
gala Que vai passar o imperador do samba!...

No palco da Urca, aos primeiros acordes da orquestra de Vicente Paiva e
com todos os refletores em cima, Carmen já entrava cantando e dançando o
poderoso "Imperador do samba", do quase anônimo Waldemar Silva, ritmista
de tamborim da orquestra. Esse samba e o divertido samba- choro
"Cachorro vira-lata":

Eu gosto muito de cachorro vagabundo Que anda sozinho no mundo Sem
coleira e sem patrão...,

de Alberto Ribeiro, foram os seus cavalos-de-batalha no primeiro
semestre de 1937.

Entre dois números, Carmen jogava beijos para a platéia e, em resposta,
recebia aplausos, flores e mais beijos. Era uma relação sensual e
amorosa com o público do cassino - homens e mulheres, sem distinção.
Seus shows tinham quarenta ou 45 minutos; o primeiro entrava à uma hora
da manhã; o segundo, nunca antes das três. Ao fim de cada um, Carmen não
saía correndo para o camarim - também atulhado de flores, mal sobrando
espaço para a habilleuse trabalhar. Descia e passeava entre as mesas,
dirigindo-se aos conhecidos, rindo muito e deixando-se apresentar às
mulheres dos desconhecidos. Não aceitava convites para sentar ou beber,
mas era de uma calculada simpatia para com todo mundo. E tinha motivos
para se resguardar. Um fazendeiro produtor de cebolas, mas arrotando
champignons - mandara oferecer-lhe vinte contos de réis para que ela
descesse entre as mesas, segurasse seu copo, e cantasse olhando para
ele. Pelo mesmo portador, Carmen mandara dizer que nem por duzentos
contos.


146


Carmen não podia evitar que o público criasse violentas fantasias a seu
respeito. Era rara a semana em que alguém não lhe providenciava um
convite de Hollywood, uma briga com uma colega de rádio, um caso amoroso
com um cantor e até um amante entre as figuras graduadas da República.
Imagine se podia dar essa confiança ao rústico produtor de cebolas. Tudo
para não ter problemas com seu namorado, Carlos Alberto da Rocha Faria.

Contra as estimativas dos espíritos de porco, o namoro sobrevivera, e
mais firme do que nunca. Os Rocha Faria insistiam em ignorar a presença
de Carmen na vida de Carlos Alberto, mas isso já não fazia diferença. Em
contrapartida, ele gozava de livre trânsito na casa da família dela. (E
em todos os sentidos. Certo dia, não se sabe por quê, mas com
autorização de seu Pinto, Carlos Alberto teve de entrar pela janela do
apartamento na rua Silveira Martins, para espanto da vizinhança.) Os
pais e os irmãos de Carmen torciam abertamente por um casamento - talvez
influenciados pelo fato de que os dois já estavam com 28 anos - sem
pensar nas possíveis conseqüências disso na vida de Carmen. Uma delas, o
fim de sua carreira.

O repórter Francisco Galvão entrevistou Carmen e Aurora para A Voz do
Rádio e aplicou-lhes a mesma pergunta:

"Se não fossem artistas de rádio, o que gostariam de ser?"

Aurora foi direto ao ponto:

"Rica e nada mais."

Mas Carmen (referindo-se, sem citá-lo, ao antigo namoro com Mário Cunha)
trabalhou sua resposta, surpreendentemente franca:

"Se eu não fosse artista de rádio, é porque teria me casado aos quinze
anos e já teria uns cinco filhos. Seria uma boa dona de casa, bem
burguesa, dessas que lêem os jornais e as revistas da moda e, quando
saem, vão à manicure. Mas o que você quer saber é o que eu desejaria ser
- e não o que não fui, porque não quis, não é? Pois olhe, se não fosse
artista de rádio, onde ganho bem, aceitaria qualquer outra profissão que
me divertisse."

A imprensa sempre soube de Carmen e Mário Cunha, assim como sabia de
Carmen e Carlos Alberto da Rocha Faria, mas nenhum jornalista brasileiro
de 1937 teria o atrevimento de lhe fazer uma pergunta direta e
publicá-la. O máximo a que chegaria seria esta, do repórter de A Voz do
Rádio: "Você prefere os homens fortes ou inteligentes?". Carmen
respondeu:

"Não concebo um homem sem inteligência. Acho que uma bela estampa
impressiona, mas não convence. Se eu quiser um homem forte, tipo homem
das cavernas, basta ir ao Jockey Club. Você já viu quantos lindos
espécimes cavalares se exibem ali?"

147

Carmen e Carlos Alberto estavam a salvo de especulações e a cavaleiro do
tempo. A respeito de seu futuro, poderiam decidir o que quisessem,
quando quisessem. O único estorvo entre eles parecia ser o ciúme quase
roxo de Carlos Alberto, agravado pela sua humilhação por não ter fortuna
pessoal - e a insistência em manter a pose. Se, por exemplo, Carmen lhe
desse um presente caro, Carlos Alberto, com seu salário de pequeno
diretor da América Fabril, sentia-se na obrigação de retribuir com um
igual ou mais caro. Para isso, pedia emprestado, endividava-se ou vendia
alguma coisa, mas não ficava para trás.

Numa noite daquele ano, um casal de franceses perdeu muito no Cassino da
Urca, e o homem pagou com as jóias da mulher. Joaquim Rolla chamou
Carmen ao seu escritório para mostrar-lhe as jóias. Carmen se interessou
por um solitário de brilhante. Rolla vendeu-o a ela por um preço
camarada e, ainda assim, a ser descontado de seu salário em prestações.
No primeiro show, Carmen já exibiu o solitário no palco e, com sua
gesticulação à luz dos refletores, o brilhante despejou raios de cegar a
platéia. No dia seguinte, Carmen ficou sabendo dos comentários de que a
jóia lhe teria sido dada por um dos homens de que se suspeitava que ela
fosse amante - o presidente Getúlio Vargas ou o empresário Gervásio
Seabra.

Carlos Alberto ia pouco à Urca, mas também soube dos comentários. No fim
daquela tarde, marcou um encontro com Carmen na amurada do morro da
Viúva. Pediu para ver o anel. Carmen tirou-o do dedo e lhe entregou. E
ele, sem nem olhá-lo direito, atirou-o no mar.

"Você não pode ter nada que eu não possa te dar", decretou.

E Carmen, o que fez? Armou uma pequena cena, mas, no fundo, ficara
satisfeita. Aquela era a atitude que se esperava de um homem.

Carlos Alberto sabia muito bem que os boatos a respeito de amantes não
tinham fundamento. Carmen podia ser vizinha de Getúlio no Catete, mas só
o vira uma vez, pouco tempo antes, ao ser convidada a cantar num evento
do fechado clube Gávea Golf, em que Getúlio estivera presente. E, se a
simples hipótese de um caso já não fosse absurda, havia uma
incompatibilidade básica entre ela e Getúlio: os dois tinham quase o
mesmo 1,52 metro - Getúlio, um ou dois centímetros a mais - e só
gostavam de parceiros altos.

No caso de Gervásio Seabra, a história envolvia um fabuloso carro Cord
que pertencia a Carmen. Dizia-se que o Cord lhe fora dado por Gervásio -
e por que ele lhe daria um carro como esse se não tivesse um caso com
ela?

Gervásio era português, dono da indústria têxtil Seabra & Cia., e teria
perto de cinquenta anos em 1937. Viera adolescente para o Rio, em 1905,
para trabalhar com seu tio Adriano Seabra, um dos sócios da América
Fabril e pesado importador de tecidos na rua do Acre. Em pouco tempo
Gervásio já estava à frente do negócio de seu tio, ampliara-o para
exportação e ficara, ele próprio, consideravelmente rico. Casou-se com
Assunta Grimaldi, jovem italiana de São Paulo, mulher alta e corpulenta,
que também enriquecera pelo trabalho, costurando para as mulheres dos
fazendeiros paulistas. Os dois juntos formaram uma parceria de raro tino
comercial. Investiram em fazendas pelo interior do Brasil, em companhias
de seguros e em reprodução de cavalos. O dinheiro só não era suficiente
para esconder o fato de que Gervásio chegara ao Rio num porão de navio e
que, ao contrário do que se pensava, o nome Grimaldi da excostureira
Assunta não tinha nenhum parentesco com os Grimaldi do principado de
Mônaco.


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Os Seabra eram sócios dos Rocha Faria na América Fabril e tinham em
comum o interesse por cavalos. Carmen os conhecera no Jockey Club, a que
era levada por Carlos Alberto. No Jockey, Carmen conheceu também os
filhos do casal Seabra: Roberto, de vinte anos, e Nelson, de dezoito,
que imediatamente se apaixonaram por ela - não uma paixão pela mulher
(pelo menos por parte de Nelson), mas pela estrelíssima, pelo ghtter e
glamour que ela representava. Os jovens irmãos Seabra tornaram-se sua
sombra, seguindo-a por toda parte, e Carmen se sentia grata a eles, por
serem do círculo íntimo de Carlos Alberto e a aceitarem. No aniversário
seguinte de Carmen, Roberto mandou-lhe um enorme arranjo de flores. Ao
depositar as flores num jarro, Carmen percebeu que elas se mexiam. Claro
- Roberto pusera um gatinho entre elas, com os olhos do exato tom de
verde dos de Carmen, justificando a maneira como ele a chamava: "Gata".

Gervásio e Assunta iam também todas as noites ao Cassino da Urca, onde
Carmen trabalhava. Assunta era dependente de jogo - apostava muito forte
e perdia fábulas. Dizia-se que, por baixo do pano, Gervásio combinara
com Joaquim Rolla um limite (já muito alto) de quanto ela poderia perder
por noite; a partir desse limite, ele, Gervásio, não se
responsabilizava. Às vezes, depois do último show, os Seabra - pais e
filhos - levavam Carmen & Cia. para um coquetel em seu apartamento no
excêntrico edifício Seabra (similar ao Dakota, de Nova York), de sua
propriedade, na Praia do Flamengo.

Por tantos motivos, era normal que Carmen e os Seabra se vissem com
freqüência. Assim, quando Carmen apareceu pela cidade a bordo de um Cord
azul-celeste, com frisos e banda branca, modelo 812 Sportsman, de 1935,
conversível, dois lugares, placa P.7-655 e custando a fábula de 3 mil
dólares, espalhou-se que ele teria sido dado por um deles. Como não se
admitia que fedelhos como Roberto e Nelson, mesmo milionários, saíssem
distribuindo presentes nesse valor, deduziu- se que só restava Gervásio
- por ter um caso com ela.


149

Em design, beleza e desempenho (chegava fácil a 165 quilômetros por
hora), o Cord já nascera um clássico da indústria automobilística
americana. Do modelo que Carmen exibia pela cidade, tinham sido
fabricadas apenas 2322 unidades, e quatro delas estavam em Los Angeles,
nas mãos de Groucho, Chico, Harpo e Zeppo, os então Quatro Irmãos Marx.
O de Carmen era o único do Rio, o que o tornava altamente conspícuo e
revelador da presença de sua dona. Se Carmen quisesse ir incógnita a
algum lugar, era melhor que fosse de bonde - o Cord a denunciaria onde
quer que estivesse.

Carlos Alberto viajou nesse carro inúmeras vezes. Com todo o ciúme de
que era capaz, e convivendo no dia-a-dia com os Seabra, nunca discutiu
com Carmen por causa do Cord. É verdade que não podia dar-lhe um igual,
nem jogar o carro no mar, como fizera com o solitário de brilhante. Mas,
se acreditasse, mesmo que de passagem, na possibilidade de um presente
de Gervásio para Carmen, seu dilema não se limitaria a entrar ou não no
carro. Teria de optar entre Carmen, os Seabra, o emprego, e talvez até a
vida. O que ele nunca precisou fazer - porque conhecia bem Gervásio.
Sabia que, além de Assunta, o único interesse do empresário em mulheres
eram certos rendez-vous de luxo na Lapa, a que ia com seu amigo Antônio
Moreira Leite, fabricante das bolas Superball. Depois de cuidar de duas
ou três mulheres ao mesmo tempo, Gervásio voltava orgulhoso para o
saguão do bordel e, ainda abotoando a braguilha, exclamava:

"Eu sou um potro! Eu sou um potro!"

Tudo isso, no entanto, era ocioso, porque Carlos Alberto sabia muito bem
de onde saíra o bendito carro: Carmen o comprara - com o dinheiro dela.

Com seus salários e luvas na Urca e na Tupi, com a venda dos discos e
com os cachês pelas temporadas em Buenos Aires, apenas entre seus
rendimentos regulares, Carmen podia muito bem comprar um carro como o
Cord. E, com a ajuda de Aurora, podia fazer ainda mais: seguindo os
conselhos de Edmar Machado, finalmente comprar uma casa na Zona Sul do
Rio, para ela e para sua família. E não uma casa qualquer, mas um
palacete na Urca.

Carmen gravou "Cachorro vira-lata", de Alberto Ribeiro, com grande
sucesso. Toda semana tinha de cantá-lo na Rádio Tupi. Na saída do
programa, um dos diretores da rádio, Freddy Chateaubriand, deu-lhe uma
carona e passaram na rua por um cachorro faminto e estropiado. Freddy
perguntou:

"Carmen, já que você gosta tanto de cachorro vagabundo que anda sozinho
no mundo, por que não leva este para casa?"

"Vou levar."

Recolheu o cachorro. Na semana seguinte, Freddy perguntou por ele.

"Ah, assim que comeu foi embora", respondeu Carmen. "Era um cachorro de
caráter."



Capítulo 9



1937 - 1938

"Uva de caminhão"



Em meados do século xvi, na Guanabara, só os bravos se aventuravam por
uma picada aberta na Urca, voltada para a baía, bem debaixo do Pão de
Açúcar. Um transeunte distraído poderia se ver, sem aviso, em meio ao
fogo de arcabuzes trocado entre os franceses, que ocupavam a região, e
os portugueses, que tentavam tomá-la. Ou à mercê de uma revoada de
flechas envenenadas na guerra entre os tupinambás, aliados dos
franceses, e os temiminós, que torciam pelos portugueses. Mas é claro
que ali não havia transeuntes distraídos - quem passava pela Urca já
usava as cores de um lado ou do outro. O banzé durou anos e, ao fim e ao
cabo, venceram os portugueses, que, no dia 12 de março de 1565, para
tornar a vitória oficial, desceram pela picada - o caminho de São
Sebastião - até a prainha entre o Pão de Açúcar e o Cara de Cão, e ali
fundaram a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Pela animação com que as coisas tinham começado na Urca, era de esperar
que a cidade se irradiasse a partir dali. Mas o Rio deu-lhe as costas,
foi à luta em outras direções, e, pelos 350 anos seguintes, a península
fechou-se em si mesma, entre o mar e suas balizas de pedra. Somente no
começo do século xx o carioca acordou para a beleza e o sossego da Urca,
e constatou o que estava perdendo. Então providenciou aterros que
multiplicaram sua área, equipou-a com os serviços básicos e urbanizou-a
seguindo as trilhas originais. O caminho de São Sebastião tornou- se a
avenida São Sebastião. Foi nela, entre fins de 1936 e começos de 1937,
que Carmen comprou a casa que simbolizava o seu triunfo.

O endereço era avenida São Sebastião, 131. Carmen adquiriu-a de um senhor
Washington Bessa, que tinha outros imóveis no bairro. Custou-lhe 150
contos de réis - cerca de 5 mil dólares -, com cinqüenta contos de
entrada e o restante a liquidar em quinze anos. Mas, com o dinheiro que
faturaram em 1937 e 1938, Carmen e Aurora quitaram a dívida em menos de
dois anos.

Era uma casa de seis quartos. Os três principais, de Carmen, de Aurora e
dos pais, ficavam no nível da entrada pela avenida São Sebastião; os
outros três, de Mocotó, de Tatá e da empregada Alice, num andar
inferior, virado para a baía. No andar intermediário, também de frente
para o mar, ficavam o belo salão com a varanda, uma saleta (que Carmen
usava como sala de música), o jardim-de-inverno, a copa e a cozinha.
Como de praxe, banheiros de menos: um no andar de cima, outro no de
baixo, e nenhum no do meio, que era o principal. A garagem só dava para
um carro - raras as famílias que tinham dois. Em dezembro daquele ano,
Mocotó, aos 25 anos, casou-se com Olga, de dezoito, mas não saiu de casa
- Olga apenas foi morar com ele em seu quarto. Carmen mobiliou a casa de
cima a baixo, em vários estilos. Seu quarto, por exemplo, era todo art
déco, com móveis claros de pau-marfim e quinas arredondadas. A cama e a
cabeceira faziam uma única peça, típica do estilo, com espaços embutidos
nas laterais para acomodar rádio, relógio, luminária, livros e
porta-retratos. Ao descer da cama, Carmen não pisava direto o chão,
porque ainda havia um degrauzinho.

151


Para ela e sua família, a temporada no apartamento do Flamengo durara um
ano, ou até menos. Uma das razões para sair de lá era que dona Maria
nunca se adaptara a ter vizinhos, mesmo que de pantufas, passeando sobre
sua cabeça. Mas o principal motivo não podia ser mais burguês: a casa
própria. Era preciso ter uma. O irônico é que, depois de levar anos
sendo doutrinada a isso por Edmar Machado na Mayrink Veiga, Carmen só
pôde comprar a casa porque, além do contrato com o cassino, a mudança
para a rádio Tupi lhe oferecera muitas vantagens financeiras. Mas, em um
ano, a pressa em quitar a casa e o irritante fato de a Tupi não ter
conseguido fixar um horário para seus programas (todo dia os horários
mudavam) levaram Carmen a querer reverter o processo. Coincidência ou
não, Edmar Machado voltou à carga nessa época e, dessa vez, com
profissionalismo. Em novembro de 1937, findo o primeiro contrato de
Carmen com a Tupi, a Mayrink a chamou de volta por seis contos de réis
mensais - e luvas que também nunca foram reveladas.

Apenas o salário já era uma bolada. Reafirmava sua condição de a artista
mais bem paga do rádio brasileiro - muito à frente de Francisco Alves,
com quatro contos, e de Sylvio Caldas, com três, ambos na Mayrink.
(Aurora também voltaria, por dois.) Era pegar ou largar, e Carmen nem
hesitou. A alegria com que foi recebida de volta pela maioria dos
colegas e funcionários provoulhe que Edmar tinha razão: seu coração
pertencia mesmo era à Mayrink. (E nem a entrada no ar, em 1937, da nova
e ambiciosa Rádio Nacional, dirigida por Gilberto de Andrade, podia
alterar isso. Carmen jamais teria qualquer ligação com a Nacional.)
César Ladeira não ia perder essa oportunidade e, para o programa de
reestréia de Carmen na Mayrink, no dia 15 de dezembro, convocou Chico,
Sylvio, Aurora, Aracy de Almeida e todos os astringosóis da emissora -
como os astros da rádio eram chamados pelos artistas principiantes.

Carmen se dava com todo mundo na Mayrink Veiga, da copeira De Lourdes ao
presidente, Antenor. Mas era também a estrela da companhia. Não podia
impedir que os artistas mais jovens enrubescessem e baixassem os olhos
ao passar por ela na escada de mármore negro do prédio - novatos como os
cantores Roberto Paiva, Gilberto Alves e um caboclo com cabelinho estilo
venhacá-não-vou-lá-não, que ia à emissora todos os dias para tentar
mostrar seus sambas: Nelson Cavaquinho. O que Carmen ouvia ao passar por
eles eram suspiros reprimidos e sabia que, ao se referir a ela, eles a
chamavam de "Dona Ótima" - d"après "Dona Boa", uma antiga marchinha de
Lamartine Babo. Mas nem todos tinham motivos para essa admiração.
Durante o ano em que Carmen estivera fora, outra cantora se firmara como
o maior nome feminino da Mayrink: Aracy de Almeida. A volta de Carmen
devolvia-a, na melhor das hipóteses, ao segundo lugar, e isso criou um
clima de maus bofes entre as duas. Foi com o fígado ardendo que Aracy
participou do programa da volta de Carmen.

152



Certa noite, o garoto Roberto Paiva (dezessete anos e já contratado, mas
ainda vestindo o uniforme do Colégio Pedro II) ia bater à porta da sala
de Edmar Machado, para consultá-lo sobre alguma coisa, quando ouviu a
voz de Carmen aos gritos lá dentro:

"Edmar, você precisa tomar uma providência com essa Aracy de Almeida.
Ela vive me importunando, se referindo a mim com palavras de baixo calão
e tremendo o beiço por minha causa. Outro dia, me deu um esbarrão de
propósito na escada que me desequilibrei e quebrei a unha!"

Roberto recolheu rapidamente os nós dos dedos antes que eles fizessem
toe, toe, e saiu de fininho, para não ser flagrado. Nunca soube o que
Edmar respondeu ou se providências tomou. Mas, se dependesse de Roberto,
admirador das formas de Carmen, ele nem piscaria. Ao contar a história
para seu amigo Gilberto Alves, comentou:

"A diferença entre a Carmen e a Aracy é a mesma entre o Pão de Açúcar e
o morro dos Cabritos [um morro nos fundos de Copacabana]. Carmen é o Pão
de Açúcar..."

O Pão de Açúcar já prestava um serviço de milênios como sentinela da
baía, mas a Urca em que Carmen foi morar em 1937 recebera o habite-se
havia pouco mais de dez anos. Com toda a exuberância de suas vistas,
ainda era um bairro precário: não tinha comércio, nem lazer, nem
pequenos serviços. Seus primeiros moradores dependiam da vizinha
Botafogo para os fins mais inocentes, como comprar um retrós, ir ao
cinema ou consertar o carro. Em contrapartida, aos olhos da cidade, a
Urca se tornara sinônimo do seu maior centro de diversão, prazer e
excitação: o Cassino da Urca. À noite, o luminoso do cassino - dizendo
apenas URCA - despejava luz sobre a enseada, formando a palavra ao
contrário no espelho d"água. E Carmen tanto poderia falar que morava "na
Urca", referindo-se ao bairro, como que trabalhava "na Urca",
referindo-se ao cassino.


153

O espírito empreendedor de Joaquim Rolla pusera a Urca no nível dos
cassinos Copacabana e Atlântico, e ele agora jogava a rede até onde seus
braços pudessem alcançar - controlava ou tinha participação em
hotéis-cassinos de Niterói, Petrópolis, Poços de Caldas, Belo Horizonte,
Araxá, Santos e Guarujá, e ainda queria mais. Seus contratados se
apresentavam também nessas filiais. O capital em movimento era tal que,
por mais que Rolla reinvestisse os lucros nos próprios cassinos, ou o
aplicasse nas fazendas da família em Minas Gerais, ainda sobrava muito
dinheiro. O jeito era gastar ainda mais nos cassinos ou dar o dinheiro
de presente na rua.

Rolla propôs uma parceria à Rádio Mayrink Veiga. César Ladeira tornouse
também o diretor artístico da Urca e inventou o slogan:
"A-é-i-ó-Urca!ü". Por sua orientação, os grandes nomes internacionais
finalmente começaram a chegar: os mexicanos José Mojica, Pedro Vargas,
Libertad Lamarque e Alfonso Ortiz Tirado, o casal Marta Eggerth e Jan
Kiepura (ela, húngara, ele, polonês, uma espécie de Jeanette MacDonald e
Nelson Eddy internacionais), os americanos Mills Brothers, os franceses
Lucienne Boyer e Jean Sablon, a americana (revelada na França) Josephine
Baker, o espanhol (revelado na Argentina) Gregório Barrios, e muitos
outros. Bing Crosby era a maior figura do show business mundial e não
costumava se apresentar fora dos Estados Unidos. Mas era proprietário de
cavalos em Buenos Aires - ao ir até lá para vê-los, tinha de passar por
aqui. Numa dessas, em que o navio trazendo Crosby estava parado em
Santos, Rolla (com o apoio de dona Darcy Vargas) mandou um táxi buscá-lo
para tê-lo na Urca em prol de alguma obra da primeira-dama. Bing veio,
bebeu, jogou e, de porre, cantou "It"s easy to remember", "Please" e
"Pennies from heaven".

Todas as noites, por volta das dez ou onze horas, antes de começar os
trabalhos na Urca, os artistas saíam do cassino e caminhavam até o
pequeno atracadouro na avenida João Luiz Alves, onde tomavam a lancha
Cynea que os levava para se apresentar no Cassino Icaraí, também de
Rolla, no outro lado da baía. Para os pescadores e as pessoas mais
simples, que não podiam entrar no cassino e assistiam da praia à
procissão engalanada, era um espetáculo e tanto o embarque daqueles
homens de smoking, sobretudo e foulard e das mulheres de vestido longo,
capa e capuz. (Não que fizesse tanto frio no Rio. Era para que o vento
noturno da baía não afetasse suas vozes.) Todos bonitos, felizes,
fumando de piteira, respingando elegância e cacarejando alegremente no
deque, alguns com uma taça de champanhe na mão. Era fácil saber quando
Carmen estava presente - pelo volume das vozes e dos risos. Uma das
orquestras da Urca, a de Gaó ou a de Romeu Ghipsman, seguia junto, e os
músicos às vezes produziam uma simpática cacofonia à medida que a lancha
se afastava para a travessia de vinte minutos. Com os artistas, iam
também seus amigos, e a vida parecia maravilhosa. Uma hora e meia
depois, com o dever cumprido em Niterói, a lancha atracava de volta e
devolvia a caravana à Urca para o verdadeiro começo do espetáculo.

Esse, naturalmente, era um cortejo profano. Uma vez por ano, no dia 29
de junho, dava-se a grande festa religiosa da Urca: a procissão
marítima, em homenagem a são Pedro do Mar, com os pescadores chegando
cedinho à orla em centenas de barcos enfeitados, vindos de toda a baía,
inclusive de Niterói e além. Como não conseguiria acordar para assistir
à chegada, Carmen virava a noite de pé. E, como ela, seus vizinhos de
bairro e colegas de trabalho: o casal Herivelto Martins e Dalva de
Oliveira, o maestro Vicente Paiva, o jovem comediante Grande Othelo e
muitos outros artistas que tinham ido morar ali, e que faziam compras
nos mercadinhos usando fichas de jogo como pagamento.


154


A Urca era um bairro especial, pelo menos à noite. Por abrigar tanta
gente ligada à vida artística, seus códigos eram mais brandos e alguns
moradores davam festas um pouco mais ousadas do que o normal no Rio -
entre eles, o jovem jornalista Roberto Marinho, vizinho de Carmen na
avenida São Sebastião. De dia, no entanto, a Urca era um dos bairros
mais sossegados da cidade. Nos fins de tarde, durante a semana, Carmen
podia ir à praia com Aurora e com a adolescente Bibi Ferreira sem ser
incomodada, e até jogar peteca com Rolla - a areia era quase a
continuação do escritório do empresário.

Já existia uma incipiente indústria de roupas de banho, mas era Carmen
quem desenhava seus próprios maiôs e os de Aurora, tendo em vista um
atributo comum às duas e de que elas não gostavam: os seios grandes.

"O que eu faço com estes mamões?", suspirava Carmen, sopesando os seios.

No dia-a-dia, Carmen usava bustiês e sutiãs especiais que achatavam o
busto, também feitos por ela. Mas não estava satisfeita. Alguém sugeriu
ginástica. Sua amiga Sylvia Henriques, sempre solícita, descobriu uma
academia dentro do estádio do Botafogo, na rua General Severiano. A
primeira a se entusiasmar foi Aurora, que convenceu Ivone, mulher de Ary
Barroso, e Célia, mulher de Francisco Alves, a se juntarem a ela. Aurora
tentou também levar Carmen, mas, na única vez em que ela compareceu,
provocou uma aglomeração que perturbou o funcionamento do Botafogo. Até
os profissionais do futebol - Aymoré, Nariz, Carvalho Leite, Perácio,
Patesko - abandonaram o campo de treino e foram espiar pelas frestas da
academia. Para que Carmen pudesse fazer ginástica, Jane Frick, a jovem
responsável pela academia, ofereceu-se para ir à Urca e dar aulas
particulares a ela. Mas não funcionou - sempre que Jane chegava, Carmen
estava ocupada, discutindo um contrato com Almirante, ensaiando um samba
com Synval Silva, ou acabara de sair com Carlos Alberto.

"Não irei para os Estados Unidos como uma mariposa atraída pela luz,
fiada em contratos aéreos", disse Carmen em sua casa aos jornalistas
Pedro Lima, Accioly Netto e Alceu Penna, todos de O Cruzeiro. "Tem muita
gente querendo a minha presença ao microfone e no palco, aqui e na
Argentina, e isso me chega para viver perfeitamente. Nunca sairei para
Nova York sem um contrato assinado no Rio, preto no branco, e com
dinheiro adiantado para depositar no banco. Assim, se fracassar na
Broadway, nem tudo estará perdido."

155

Carmen acabara de voltar de mais uma temporada em Buenos Aires, em julho
de 1937. E, como sempre, era de lá que vinham os rumores de que ela
estaria na mira do teatro ou do cinema americano. O primeiro boato fora
na excursão de 1935, em que se deu como certo que teria sido convidada a
fazer um teste na Warner, em Hollywood. Nada aconteceu, e suspeitou-se
de que a notícia fora plantada por Wallace Downey, para valorizar a
estrela de seus filmes alô-alôs. O que parece ter havido de concreto foi
um convite para fazer o segundo papel feminino num filme do cinema
argentino - e que ela declinou delicadamente. Em junho de 1936, na volta
de outra temporada em Buenos Aires, Carmen estaria de novo com um pé em
Hollywood - e, para surpresa de muitos, o Bando da Lua também. Mas
nenhuma surpresa para quem sabia que fora o próprio Bando, por
intermédio de Aloysio ou Vadeco, que disseminara o boato.

Em 1937, Carmen, Aurora e o Bando foram duas vezes a Buenos Aires, em
junho-julho e em outubro-novembro. Na volta da primeira viagem, Carmen
escapou aos repórteres no desembarque do Oceania. Mas o Bando da Lua deu
uma "exclusiva" ao Diário da Noite, um jornal "associado" à Rádio Tupi,
onde Carmen e Aurora ainda trabalhavam.

"O Bando da Lua vai a Hollywood?", perguntou o repórter.

"O segredo é a alma do negócio", respondeu alguém do Bando - mais uma
vez, Vadeco ou Aloysio.

"E Carmen, também foi convidada?"

"Sigilo absoluto."

Com esse jogo de perguntas óbvias e respostas marotas, criou-se um
pseudofato, que justificou a ida de três importantes homens de O
Cruzeiro, outra revista "associada", à casa de Carmen, para "confirmar"
os rumores. Foi quando Carmen deu aquela resposta da mariposa e dos
contratos aéreos. E estava sendo sincera - não havia nenhum convite para
valer e, ao misturar a Broadway com Hollywood, ela podia nem saber que
estava sendo usada numa estratégia para vender jornais e revistas dos
Diários Associados.

Mas não se pense que fosse ingênua. Em todos aqueles anos, quando se
tratara de discutir contratos e valores envolvendo rádio, cinema,
cassino, gravadoras, anúncios de publicidade e apresentações no Rio e em
São Paulo, Porto Alegre ou Buenos Aires, era Carmen quem decidia. (E
decidia também sobre a carreira de Aurora.) Amigos como César Ladeira e
Edmar Machado podiam aconselhá-la, mas a palavra final era sempre a
dela, funcionando como sua própria empresária. E Carmen sabia ser
esperta.

Em 1935, por exemplo, falou-se com grande otimismo na possibilidade de,
no futuro próximo, a televisão existir comercialmente. A revista A Voz
do Rádio perguntou-lhe o que ela faria quando a televisão chegasse.
Carmen respondeu de primeira:

"Aumentaria o preço dos meus contratos. Já não basta ouvir? Querem ver
também?"

156


De propósito, Carmen deixava que seus contratos expirassem, e não
permitia que se renovassem automaticamente. Com isso, ficava livre por
alguns dias para considerar novas ofertas e até variar de ares. Na
mudança da Mayrink para a Tupi, e depois o contrário, Carmen pode ter
levado algo entre cinqüenta e setenta contos de luvas em cada transação
- um valor mais que razoável, já que nenhuma emissora teve de pagar
multa por rescisão contratual. E, no Natal de 1937, provisoriamente sem
contrato com a Urca, Carmen apresentou-se (com Aurora e Sylvio Caldas)
no Cassino Atlântico - para alfinetar Joaquim Rolla e barganhar com a
Urca um contrato melhor ainda para 1938. O que ela conseguiu.

Carmen podia fazer tudo sozinha porque estava no seu habitat, negociando
em sua língua, e era assim, com esse saudável compadrio, que o meio
artístico funcionava no Brasil. E tinha todos os motivos para se sentir
senhora de seu universo: os proprietários de cassinos e hotéis subiam à
avenida São Sebastião para implorar por seus serviços; os compositores
se jogavam à sua frente na Urca e na Mayrink para que ela os gravasse;
os contratos ou se assinavam nos seus termos ou não eram assinados. Se
ela própria resolvia tudo, para que empresários, agentes ou mesmo uma
secretária?

Para que não se diga que essa era uma característica da época, saiba que
o maior jogador de futebol do país, Leônidas da Silva, do Flamengo,
tinha um secretário particular: o jornalista José Maria Scassa. Na
verdade, os compromissos de Carmen às vezes eram tantos que ela se
enrolaria sem a ajuda de uma secretária. E essa secretária existia, mas
de maneira bem informal: era Aurora. Um pouco menos ocupada e bem mais
organizada do que Carmen, a caçula mantinha a mais velha a par do que
esta precisava fazer - mesmo porque, em vários casos, eram compromissos
que as envolviam juntas.

Os primeiros meses de 1938, por exemplo, foram frenéticos. Começaram com
a volta de Carmen (e também de Aurora) ao Cassino da Urca, onde os shows
nem sempre se limitavam às duas apresentações na madrugada. Uma vez ou
mais por semana, Rolla abria o cassino no fim de tarde para tômbolas
beneficentes ou eventos de empresas, cujos organizadores não abriam mão
da presença de Carmen. Como àquela hora o cassino não estava bancando o
jogo, era permitido que os convidados levassem seus filhos menores - e,
graças a isso, inúmeros pequenos cariocas puderam assistir a Carmen
Miranda em seu palco favorito. Terminada a apresentação, Carmen descia
para confraternizar com as senhoras dos presentes e as convertia ao seu
espírito e alegria, mesmo que a pesada maquiagem ou os vestidos
ousadamente sem costas ou sem alças as assustassem no começo. Isso
explicava um pouco a natureza de sua correspondência: de cada cinqüenta
cartas de fãs que recebia, quarenta eram de mulheres. "Quando uma mulher
é admirada pelas outras, pode dar-se por feliz", disse Carmen a O
Cruzeiro. "Conseguiu muito na vida. Porque, geralmente, as mulheres não
perdoam as que atraem as atenções masculinas."

157

Em fevereiro, antes do Carnaval, Carmen e Aurora partiram para as
tradicionais temporadas na Rádio Record e no Teatro Coliseu, em São
Paulo e, dessa vez, para o circuito dos cassinos: Franca, Ribeirão
Preto, Campinas, Santos, Poços de Caldas. Com elas estavam Sylvio
Caldas, Almirante, Jorge Murad e a nova revelação do samba, o cantor
paulistano Vassourinha, de quinze anos, que se apresentava vestido como
mensageiro de hotel de luxo. Não precisavam levar músicos. Bastavam os
arranjos, porque cada cassino tinha uma ou duas orquestras capaz de
lê-los de primeira. E, entre esses arranjos, estavam as orquestrações
originais dos enormes sucessos que eles tinham acabado de gravar para o
Carnaval de 1938.

Sylvio era o dono da marcha-rancho "As pastorinhas", adaptada por
Braguinha de uma marcha que o próprio Braguinha tinha feito com Noel
Rosa para o Carnaval anterior e que ninguém cantara. Almirante vinha com
nada menos que "Touradas em Madri", de - quem mais? - Braguinha e
Alberto Ribeiro, os reis do Carnaval. E Carmen tinha um samba que
dispensava comentários, "Camisa listada" (assim mesmo, sem o erre), de
Assis Valente. Quem assistiu aos shows naquelas cidades presenciou
momentos de eternidade, porque as três músicas entraram para a história
do Carnaval.

De volta ao Rio, Carmen fez o Carnaval da Urca e, em março, ela e Aurora
foram se apresentar no Cine Trianon, em Campos, no norte fluminense. E,
também lá, havia músicos de primeira para acompanhá-las - eram esperadas
por uma orquestra de quinze figuras (quatro saxes, dois trompetes, um
trombone, piano, contrabaixo, violão, bateria e três ritmistas),
organizada pelo pianista Lauro Miranda. O fato é que, em compromissos
como esse do Cine Trianon, tudo precisava ser discutido de antemão:
transporte, hospedagem, repertório, arranjos, orquestra, cachês. E eram
Carmen e Aurora que faziam esse trabalho - não por sovinice, mas por
achar que não precisavam de ninguém. E sem esquecer os compromissos com
a Mayrink Veiga, que duravam o ano inteiro, ou todas as semanas que
passavam no Rio.

Elas não paravam. Sabendo que iriam a Buenos Aires, a Odeon obrigouas a
passar o mês de março e parte de abril gravando, para que o mercado não
se visse em falta de Carmens e Auroras no meio do ano. Na segunda semana
de abril, Carmen e Aurora finalmente zarparam (com o Bando da Lua) para
a capital argentina. Mas, poucos dias depois, receberam um telegrama de
Mocotó comunicando que seu pai fora internado na Beneficência
Portuguesa. Carmen conseguiu telefonar para Mocotó e soube por ele que o
caso era grave: seu Pinto tinha sérios problemas renais, podia não
escapar. Com sua autoridade sobre Jaime Yankelevich, Carmen convenceu o
empresário de que, sem precisar rescindir o contrato, ela e sua irmã
dariam um pulo de avião ao Rio para ver o pai e voltariam para o resto
da temporada em Buenos Aires.



158

Assim, Carmen e Aurora tomaram um vôo de carreira e chegaram ao Rio para
acompanhar o sofrimento de seu Pinto. Em vez disso, presenciaram o
resultado da vida dupla que seu pai sempre levara no casamento - em
casa, um homem responsável e austero; na rua, um conquistador sempre
disposto a um rabo-de-saia. Não que a flamejante trajetória galinácea do
ex-barbeiro fosse segredo para a família. Desde cedo, dona Maria
descobrira que seu Pinto vivia metido em aldrabices. Um de seus
primeiros (e longos) casos fora ainda na rua da Candelária e com sua
própria comadre, a madrinha de Cecília. Depois, na Lapa, na travessa do
Comércio e no Curvelo, as aventuras continuaram.

Outra mulher já teria chamado o marido às falas. Mas não dona Maria.
Para ela, essa era uma situação com a qual se tinha de conviver, que
fazia parte da sina das mulheres. No seu código conjugal não existiam
separações, nem desquites, nem bate-bocas - apenas o perdão. Um dia,
embora soubesse de tudo, recebera em sua casa a comadre que tivera um
affaire com seu marido e, num gesto de grandeza, lhe servira café e
biscoitos. E ai do filho ou filha que criticasse o pai na sua presença -
dona Maria não permitia censuras a seu Pinto.

Nos últimos anos, com o que lhe sobrara de atração pessoal e o prestígio
de ser "pai de Carmen Miranda", seu Pinto mantivera um apreciável
estoque de namoradas rotativas. Mais recentemente, enrabichara-se por
uma delas e tomara uma decisão drástica: saíra de casa e fora morar com
a fulana. Depois, por algum motivo, voltara para casa - e dona Maria o
aceitara de volta. Mas a amante continuara vigente e, quando ela estava
de visita a seu Pinto no quarto da Beneficência Portuguesa, dona Maria,
alertada pela enfermeira, tinha de ficar sentadinha no corredor, de pés
juntos e cabeça baixa, à espera de que a outra saísse.

Por causa de dona Maria, que não admitia críticas a seu Pinto, Carmen e
Aurora evitaram subir nas tamancas com a amante em plena Beneficência.
Já que era assim, deram de ombros e aproveitaram para voltar à Odeon e
gravar mais alguns discos, o que aconteceu nos dias 2 e 4 de maio.
Entrementes, seu Pinto recuperou-se, recebeu alta do hospital e ainda
lhes passou um pito por terem abandonado seus compromissos na Argentina.
Sentindo-se liberadas, Carmen e Aurora tomaram o avião para Buenos Aires
no dia 5 de maio. E estavam em plena temporada quando receberam outro
telegrama de Mocotó, no dia 21 de junho: seu Pinto voltara a ser
internado na Beneficência naquele dia e morrera de nefrite aguda e
insuficiência cardíaca. Tinha 52 anos.

Carmen e Aurora avaliaram friamente a situação. Não havia nada a fazer
nem como chegar a tempo para o enterro. Donde apenas se conformaram - e
se apresentaram na rádio e no teatro portenhos na noite da morte de seu
pai.

Imagine uma máquina para produzir música popular, rodando dia e noite,
com tentáculos na Broadway, em Tin Pan Alley e no Harlem, além de
Hollywood, Chicago e New Orleans; empregando centenas de compositores e
letristas, muitos talentosíssimos e alguns, gênios; gerando milhares de
canções e tendo para divulgá-las todos os veículos possíveis:
partituras, pianos, orquestras, agentes, cantores, salões de bailes,
discos, rádio, teatro e cinema. Nos Estados Unidos, produziram-se mais
canções a cada ano da década de 1930 do que em toda a Viena de Strauss,
a França de Offenbach e a Inglaterra de Gilbert & Sullivan somadas e
multiplicadas. E nunca essas canções viajaram tão depressa e para tão
longe, invadindo mercados que já produziam a sua própria música e não
precisavam de importações, mas que, por causa dos discos e dos filmes
americanos, não conseguiam ficar alheios a elas. Na maioria dos países,
a música americana entrou e tomou o lugar. O normal era que tivesse sido
assim também no Brasil - mas não foi. Nesse período, os sambas e as
marchinhas sustentaram formidáveis 50% do mercado.

159


É mais formidável ainda quando se sabe que as três principais gravadoras
então operando no Brasil - Odeon, Victor e Columbia - eram estrangeiras
e duas delas, americanas. Mas, pelo visto, seus executivos entendiam o
país que as hospedava. O Brasil respirava nacionalismo, o momento
pertencia à música brasileira, e o samba era o ritmo nacional por
excelência - produzido por brancos e negros, e encantando homens e
mulheres, ricos e pobres, jovens e velhos. Em 1937, o governo Vargas
(sempre ele) passava um decreto facilitando a abertura de estações de
rádio no país inteiro e estimulando a instalação de serviços de
alto-falantes nas praças de cidades que não tivessem uma emissora. Era a
música brasileira abrindo passagem. E a turma que produzia essa música
não parava de crescer.

Quase todos os compositores e cantores que haviam surgido com Carmen,
sete anos antes, continuavam dando as cartas. Alguns tinham ficado ainda
mais poderosos, como Ary Barroso, Braguinha e Custódio Mesquita, entre
os compositores, e Chico Alves, Sylvio Caldas e Carlos Galhardo, entre
os cantores. Mas, em 1937, uma nova fornada de talentos viera juntar-se
a eles: os compositores e letristas Wilson Batista, Herivelto Martins,
Roberto Martins, Pedro Caetano, Claudionor Cruz, Mário Lago, Bororó,
Haroldo Lobo, Newton Teixeira, Arlindo Marques Júnior, J. Cascata, Leonel
Azevedo, José Maria de Abreu, Francisco Matoso, Roberto Roberti, Antônio
Almeida, Cristóvão de Alencar e, dali a mais um ano, Dorival Caymmi,
Lupicinio Rodrigues e Geraldo Pereira. E os cantores Orlando Silva, Ciro
Monteiro, Gilberto Alves, Roberto Paiva, Nuno Roland, os Anjos do
Inferno, Dalva de Oliveira, Odette Amaral, Linda Batista, Isaurinha
Garcia. Todos também menores de trinta anos. Era outra geração
excepcional e capaz de manter a música brasileira à tona por muito
tempo.

Para esses homens, era fácil fazer música. Difícil era calcular o que
ela valia. No começo de 1937, por exemplo, Assis Valente tinha um
samba-choro que foi parar nas mãos das Irmãs Pagãs, na Victor. Elas o
gravaram; a Victor não gostou; a prova foi inutilizada; o disco nunca
saiu; e o samba foi esquecido - simples assim. Teria se perdido para
sempre se, meses depois, por algum motivo, Assis não se lembrasse dele e
o mostrasse a Carmen.


160

"Assis, esse samba é pra lá de lá!", ela disse, significando que gostara
muito.

Carmen gravou-o na Odeon no dia 20 de setembro. O samba dizia assim:

Vestiu uma camisa listada

E saiu por aí

Em vez de tomar chá com torrada

Ele bebeu parati

Levava um canivete no cinto

E um pandeiro na mão

E sorria quando o povo dizia

"Sossega, leão! Sossega, leão"...

Lançado em novembro, "Camisa listada" foi um dos maiores sucessos do
Carnaval de 1938 e - quem podia suspeitar? - sua permanência estava
garantida na música brasileira. Rosina e Elvira, as Irmãs Pagãs, não se
conformaram. Ficaram tiriricas porque sua gravação do samba fora
rejeitada e destruída, enquanto a de Carmen era um abafa. E então
começaram os rumores.

Fofocas circularam nos corredores da Mayrink a respeito de um namoro
entre Mário Cunha, ex- Carmen, e Rosina Pagã. Falou-se em casamento para
breve, que os noivos já estavam vendo as alianças e contratando a
lua-de-mel em Cambuquira. Se isso se espalhou para irritar Carmen, não
funcionou: ela ria de dar gaitadas ao ouvir a história. Namoro, até
podia ser, mas casamento, só quando as cotias do Campo de Santana
aprendessem a falar - Carmen sabia que Mário Cunha não era de casar.
Sabia ainda que metade do Rio de Janeiro já namorara Rosina, enquanto a
outra metade se encarregara de Elvira - e que elas também não eram
loucas por casamento.

Pior foi a acusação anônima que tentou atingir Assis Valente, insinuando
que ele "tinha comprado "Camisa listada" no morro". O zunzunzum começou
entre as xicrinhas do Café Nice, que Assis freqüentava pouco, e cresceu
antes que ele pudesse reagir. Indignado, Assis foi à redação de O Globo,
na rua Bitencourt da Silva, e, pelo jornal, ofereceu cinco contos de
réis a quem provasse que o samba não era dele. Esperou alguns dias. Como
ninguém se apresentasse, voltou ao Globo, atacou seus caluniadores e,
macho à beça, dobrou a oferta.

Assis não sabia, mas estava correndo grande risco. A preços de 1937, dez
contos de réis era dinheiro mais que suficiente para que um advogado
desonesto se associasse a algum obscuro compositor de morro e o fizesse
passar por autor de "Camisa listada". Mas, novamente, ninguém se
atreveu, e Assis saiu invicto da história, com sua reputação de sambista
intacta.



1937-1938 - "UVA DE CAMINHÃO"

Infelizmente, a reputação de Assis era mais fosca em outro capítulo.
Como faziam quase todos os compositores - inclusive Cole Porter, nos
Estados Unidos, Noêl Coward, na Inglaterra, e Charles Trenet, na França
-, suas letras se referiam ao amor homem-mulher. Mas, na vida real,
embora o Nice não costumasse discutir a vida pessoal dos sambistas - nem
Assis fosse efeminado ou escandaloso -, corria que ele era homossexual.
Não há registro de que isso lhe tenha sido atirado à face ou de que, um
dia, alguém lhe faltasse ao respeito. Podia também ser uma intriga,
alimentada pelo fato de Assis ser vistoso, elegante, bem-sucedido e ter
sua própria turma. E talvez fosse este o problema: a turma. Vivia
cercado de protegidos e afilhados, que entravam e saíam de sua vida e a
quem ele não poupava em generosidade. Mas essa generosidade às vezes
consistia de encaminhá-los nas rodas musicais.

Synval Silva foi o primeiro grande sambista que Assis descobriu e levou
para Carmen. Outro foi Nelson Petersen, um garoto de dezessete anos que
Assis apresentou a Carmen e de quem, no dia 9 de março de 1938, ela
gravou um sambinha apenas mais ou menos, "Foi embora pra Europa" - na
mesma sessão em que, para o lado A, gravara mais uma obra-prima de
Assis: o samba-choro "... E o mundo não se acabou":

Anunciaram e garantiram

Que o mundo ia se acabar

Por causa disso a minha gente lá de casa

Começou a rezar

E até disseram que o sol ia nascer

Antes da madrugada

Por causa disso nessa noite

Lá no morro não se fez batucada...

Ou seja: Assis não somente levou um desconhecido a Carmen, mas fez com
que ele fosse gravado no lado B de um disco de sucesso inevitável. Ele
era assim.

Independentemente de Assis, Carmen gostou de Nelson porque, em dois dias
seguidos de agosto, gravou outros dois sambas do garoto: o valentiano
"Quem condena a batucada" (cuja letra fala em "gente bronzeada", uma
marca de Assis) e o sensacional "Deixa falar":

Todos têm seu valor

Deixa falar

Este samba tem Flamengo

Tem São Paulo e São Cristóvão

Tem pimenta e vatapá

Fluminense e Botafogo

Já têm seu lugar...

162

Com Assis como padrinho, Nelson teve músicas gravadas também por Aurora,
Orlando Silva e pelas Irmãs Pagãs, tudo isso em 1938. E, de repente,
depois desse começo arrasador, encerrou-se abruptamente a carreira
musical de Nelson Petersen - antes que ele completasse dezenove anos.

Seu pai, o professor Fernando Petersen, um baiano enfezado e dono de
colégio na Tijuca (o Instituto Petersen, na rua Conde de Bonfim),
obrigou-o a abandonar a música popular e a afastar- se de Assis. Por
mais que isso lhe doesse, Nelson não discutiu. Obedeceu - e foi ser
professor de inglês, como o pai. Nunca mais compôs um samba.

Em 1937 e 1938, todos queriam ficar perto de Carmen, roçar seus
cotovelos ou quadris e, se possível, gravar com ela. Naqueles dois anos,
Carmen fez dupla em discos com Barbosa Júnior, um deles o delicioso
"Quem é?", de Custódio Mesquita e Joracy Camargo:

Quem é que muda os botõezinhos na camisa? Quem é que diz um adeusinho no
portão? E de manhã não faz barulho quando pisa? E quando pedes qualquer
coisa não diz "não"?;

vários com Sylvio Caldas, seu parceiro favorito para gravações; um com
Dalva de Oliveira e a Dupla Preto e Branco (o samba "Na Bahia", de
Herivelto e do compositor que Carmen conhecera em Salvador, Humberto
Porto); outro com Almirante (o já clássico "Boneca de piche", de Ary
Barroso e Luiz Peixoto); e até com o próprio Ary, cuja voz
involuntariamente cômica em "Como "vais" você?" desatava o riso em
Carmen e a fazia inutilizar a chapa de gravação. Dividir um disco com
Carmen era garantia de um salto na carreira de qualquer cantor e, por
isso, a Odeon pediu- lhe que gravasse com o quase estreante, mas
competente, Nuno Roland. E outro com quem ela gravou em dupla nesse
período foi o também pouco conhecido Fernando Alvarez - mas, aí, graças
a uma cilada que, segundo o pesquisador Abel Cardoso Júnior, o esperto
Alvarez armou para Carmen.

O gaúcho Fernando Alvarez, de 25 anos, cantava na Mayrink Veiga e na
Urca, de olho numa improvável carreira nos Estados Unidos. Gravar com a
maior estrela do Brasil seria um trunfo que ele poderia usar lá fora.
Então convenceu o compositor Cyro de Souza a escrever um samba e
oferecê-lo a Carmen - com Cyro levando dez contos de réis por fora se
Carmen aceitasse gravá- lo em dupla com Alvarez. Era infalível - porque
Alvarez conhecia o coração de Carmen. Sabia que era amiga de Cyro e que,
ao lhe contar do dinheiro em jogo, ela não permitiria que ele, sem
tostão como todo músico, perdesse aquela grana.

"Puxa, Cyro! É tudo isso mesmo, meu nego?", ela perguntou.

163

"É isso mesmo, Carmen", disse Cyro. "Dez "pacotes" na mão. Mas só se
você gravar com o garoto."

Era uma chantagem. Mas o samba, "Onde é que você anda?", era bom, e
Carmen topou fazer o disco. Alvarez também deu conta do recado na
gravação e, como queria, acabou indo mesmo para os Estados Unidos.

Nessa fase da carreira, Carmen parecia incapaz de errar. Tinha total
domínio sobre sua voz em relação ao microfone - sabia até onde ir ou não
ir. Seus truques de interpretação eram inesgotáveis e faziam de cada
disco uma revelação. Podia experimentar com ritmos, sotaques e até com
outras línguas. No samba-tango "O samba e o tango", de Amado Regis,
ajustou contas com o ritmo que fizera furor em sua juventude. Na
marchinha "Paris", de Alcyr Pires Vermelho e Alberto Ribeiro, misturou
Lucienne Boyer com ela mesma ao cantar:

Que lindas mulheres, de olhos azuis

Tu és a Cidade-Lu-u-uz

Paris, Paris, je faime

Mas eu gosto muito mais do Leme...

E rumbas, gravou duas, altamente subversivas: "Dance rumba" e "Sai da
toca, Brasil". A primeira, com letra de Bucy Moreira, propunha que o
Brasil se convertesse ao ritmo do Caribe - detalhe: Bucy era neto de
ninguém menos que Tia Ciata, cuja casa na praça Onze tinha sido o berço
do samba. E a segunda pregava o fim do batuque e da macumba pela dança
de salão - música e letra de quem? Joubert de Carvalho. Pois Carmen
gravou isso e saiu incólume.

Duplos sentidos que, em outras vozes, soariam grosseiros e ofensivos
tornavam-se esquetes de humor com ela. A marchinha "Fon-fon", de João de
Barro e Alberto Ribeiro, que Carmen gravou em dupla com Sylvio Caldas,
descrevia um casal dentro de um carro: "Esta buzina não tem bom som/Eu
gosto mais da que faz assim, fon-fon", dizia Sylvio. "Mas não avances,
olha o sinal/Podes partir o diferencial", respondia Carmen. Em outra
marchinha, "A pensão da Dona Esteia", de Paulo Barbosa e Oswaldo
Santiago, Carmen e Barbosa Júnior injetavam maldade em nomes de pratos e
frutas, fazendo-os parecer a receita de um bordel. E em "Uva de
caminhão", outro grande samba de Assis Valente, Carmen se superava em
malícia:



164

me disseram que você Andou pintando o sete. Andou chupando uva. E até de
caminhão. Agora anda dizendo que Está de apendicite. Vai entrar no
canivete. Vai fazer operação...

- referências nada cifradas a sexo, gravidez e aborto. Uma rádio
anunciou que a censura proibira a música - mas a censura desmentiu a
informação. Com Carmen, tudo se reduzia a uma grande piada.

"Uva de caminhão", como quase toda a produção do baiano Assis Valente,
era um samba enfaticamente carioca. Uma crônica da cidade, um
instantâneo do morro ou do subúrbio, uma enciclopédia da gíria, assim
como "Good-bye", "Minha embaixada chegou", "E bateu-se a chapa", "Camisa
listada" e "... E o mundo não se acabou", para ficar só em alguns dos
que Assis fizera para Carmen. Ele era um legítimo compositor do Rio.
Quem o ouvisse falar, no entanto, jamais adivinharia - porque Assis
nunca perdera a música da fala baiana e às vezes carregava de propósito
nos "Ó, xente!". Mas era só a fala. Em sua cabeça, Assis era tão carioca
quanto os ultracariocas Nássara, Orestes Barbosa ou Bororó. Seu
interesse pelas coisas da Bahia era zero, e, com exceção do já remoto
"Etc.", de 1932, nunca se preocupara em explorá-las musicalmente.

Mesmo porque essa temática baiana parecia já ter dono: Ary Barroso,
nascido em Ubá, Minas Gerais, mas com uma boa quilometragem carioca. O
que poucos sabiam era que Ary tivera também um mínimo de vivência baiana
- graças a uma temporada de três meses que passara em Salvador, aos 26
anos, como pianista da orquestra de Napoleão Tavares, no Carnaval de
1929. Não se sabe exatamente o que Ary ouviu naqueles três meses na
Bahia ou que espécie de contato teve com os ritos e ritmos africanos - a
depender de muitos baianos brancos, que se envergonhavam dos rituais
negros, não teria chegado nem perto. Mas sabe-se que ficou amigo do
diretor da Banda do Corpo de Bombeiros de Salvador, provavelmente mulato
ou negro, e que este o levou a pelo menos uma cerimônia de candomblé
(talvez das mais brandas) e doutrinou-o sobre a religião. Por conta
própria, Ary observou os costumes da rua e participou de memoráveis
almoços "de azeite" - leia-se dendê. Voltou para o Rio e, a partir de
1930, raro foi o ano em que não produziu uma canção "baiana".

Ou uma canção de temática baiana, como ele a concebera: uma enumeração
de ritos, roupas ou pratos típicos, quase sempre em associação com um
moreno ou uma morena que se deixou para trás, e o máximo de rimas com
ioiô e iaiá - expressões que já não se usavam na Bahia desde o tempo do
imperador. (Por causa das enumerações, as canções "baianas" eqüivaliam
às list songs da música americana, inventadas pouco antes por Cole
Porter, como "Lefs do it, lefs fali in love", "You"re the top" e
"Apicture of me without you".) Uma das primeiras canções "baianas" que
se conhecem, "Cristo nasceu na Bahia" (1924), do bailarino Duque em
parceria com Sebastião Girino, já era, à sua maneira, uma list song. Mas
seria Ary a desenvolvê-las nos anos 30 e a transformá-las numa fórmula
musical.

164

As canções "baianas" tinham um indiscutível sotaque turístico - só
alguém de fora veria a Bahia com aqueles olhos. Por trás dessa temática,
o ritmo era sempre o samba, cadenciado pelo jongo ou acelerado pelo
choro. Foi essa fórmula que ganhou força durante a década, tornou-se
quase um subgênero e influenciou inúmeros compositores. O próprio Ary a
explorou de várias maneiras até depurá-la em três obras-primas, todas
lançadas por Carmen. "No tabuleiro da baiana", em dupla com Luiz
Barbosa, em setembro de 1936:

No tabuleiro da baiana tem

Vatapá, oi, caruru, mungunzá, oi

Tem umbu pra ioiô

Se eu pedir você me dá

... Lhe dou

O seu coração, o seu amor de iaiá?...,

"Quando eu penso na Bahia", em dupla com Sylvio Caldas, em setembro de
1937:

Quando eu penso na Bahia Nem sei que dor que me dá Oi, me dá, me, me dá,
ioiô Ai que lhe dá, lhe dá, iaiá...,

e o insuperável "Na Baixa do Sapateiro", que gravou sozinha, em outubro
de 1938:

165

Oi, amor, ai, ai

Amor, bobagem que a gente

Não explica, ai, ai

Prova um bocadinho, oi

Fica envenenado, oi

E pró resto da vida

É um tal de sofrer, olará, olerê...

Nos anos seguintes, já sem Carmen, Ary continuaria explorando o veio e
produziria pelo menos dois outros gigantes: "Os quindins de Iaiá",
lançado por Ciro Monteiro em 1941, e "Faixa de cetim", por Orlando
Silva, em 1942.



166

A temática baiana ficava tão bem em Carmen que outros compositores,
baianos ou não, passaram a abarrotá-la de material do gênero. Mas é
claro que ela só aceitou o que havia de melhor. O carioca Roberto
Martins deu-lhe "Canjiquinha quente", que Carmen gravou em maio de 1937;
três meses depois, em agosto, foi a vez de "Baiana do tabuleiro", do
também carioca André Filho; em março de 1938 surgiu "Nas cadeiras da
baiana", de Portello Juno e Leo Cardoso, que Carmen gravou em dupla com
Nuno Roland; e, dali a dois meses, em maio, veio "Na Bahia", do
fluminense Herivelto Martins e do baiano Humberto Porto. Contando as de
Ary, Carmen gravara sete canções "baianas" em menos de dois anos.

Mas, para todos os efeitos, foi como se sua identidade "baiana" só fosse
se estabelecer quando, em fins de 1938, Carmen se dirigiu ao estúdio da
Sonofilms, a produtora de Wallace Downey, para filmar suas duas
participações no musical Banana da terra. Na primeira, de cara preta à
Al Jolson, Carmen e Almirante cantaram a marchinha "Pirolito", de
Braguinha e Alberto Ribeiro - que nada tinha a ver com a Bahia. Na
segunda, vestida como uma baiana - bata, saia rodada, colares,
pulseiras, balangandãs e um turbante com cesta e frutinhas -, Carmen
lançou o samba do novato Dorival Caymmi, "O que é que a baiana tem?".

loiôs e iaiás nunca mais seriam os mesmos.

10

1938-1939

O que é que a baiana tem

O baiano Dorival Caymmi, fininho, moreno e sestroso, foi levado à casa
de Carmen por Almirante. Era outubro de 1938, domingo, noite de
primavera. Carmen os recebeu de plataformas, short cavadinho nas
virilhas, camisa amarrada na cintura e um lenço colorido na cabeça.
Nenhuma maldade nisso. Era como andava pela casa e recebia todo mundo -
repórteres, fotógrafos, compositores, amigos. Os menos habituados a
pernas de fora e a um naco de barriga deviam desejá-la em sofrido e
intenso silêncio; mas Caymmi tinha 24 anos, era moleque de praia na
Bahia e diria depois que, naquele dia, só enxergara nela "a
estrelíssima". Presentes também, na casa de Carmen, outros dois famosos:
Aloysio de Oliveira, do Bando da Lua (que, Caymmi ouvira dizer, era o
"namoradinho dela"), e Braguinha. Nitidamente não estavam ali para jogar
buraco.

Carmen mandou Caymmi sentar-se e pediu-lhe que cantasse "O que é que a
baiana tem?". Caymmi pegou o violão e começou:

Tem torço de seda, tem Tem brincos de ouro, tem Corrente de ouro, tem
Tem pano-da-costa, tem...

Carmen nem o deixou acabar:

"Batatal, Almirante. É muito melhor do que no disco!" Que disco? "O que
é que a baiana tem?" nunca saíra em disco! Ah, sim. Na véspera, Caymmi
fora convidado pelo cantor e compositor Newton Teixeira, seu colega na
Rádio Transmissora, a ir a um estúdio para, de brincadeira, ouvir "sua
voz gravada". Newton o levara à Sonofilms, um novo estúdio na avenida
Venezuela, junto ao cais do porto. Com Moacyr Fenelon nos controles da
técnica, Caymmi, sem saber que era uma artimanha e sem caprichar muito,
gravara uma canção, "O mar". E, a pedido de Newton, um samba, "O que é
que a baiana tem?". Eram duas músicas que trouxera da Bahia em embrião e
completara ao chegar ao Rio.



168

A Sonofilms ficava num antigo armazém de café, não muito distante do
Armazém 13, em que ele desembarcara em abril, decidido a vencer como
desenhista, que julgava ser a sua principal vocação - mais precisamente,
como ilustrador de revistas. Nos primeiros meses, armado de um estojo de
penas Speed Bali, Caymmi zanzara pelas redações da cidade, inclusive a
de O Cruzeiro, onde conheceu um garoto, Millôr Fernandes, treze anos e
já esperto. Mas não arranjou nada em nenhuma delas e, quando já estava
pensando em voltar para a Bahia, alguém descobriu o violão no seu quarto
de pensão, na rua São José. Levaram-no a uma rádio, depois a outra e,
finalmente, à Transmissora, onde ele cantou "O que é que a baiana tem?"
- e, de passagem, Alberto Ribeiro o ouviu. Ouviu e gostou. Era a música
de que estavam precisando desesperadamente na Sonofilms para o filme que
iam começar a rodar.

O filme, Banana da terra, era um musical carnavalesco na linha dos
alô-alôs de dois anos antes e, como estes, também produzido por Wallace
Downey. O americano dissolvera a Waldow, sua produtora, para fundar a
Sonofilms, um estúdio equipado com material trazido por ele dos Estados
Unidos. Com isso, Downey dispensara também a parceria com a Cinédia e
como, pela primeira vez, o dinheiro da produção estava saindo de seu
bolso, ele não queria correr riscos. Dava palpite nos figurinos,
maquiagem, iluminação e montagem, sempre para economizar tostões, e,
depois de filmada uma cena, só faltava recolher os confetes do chão para
usá-los na cena seguinte (na verdade, fazia isso escondido). Braguinha e
Mário Lago, autores do roteiro, certificaram-se de que Banana da terra
contaria a história mais bisonha possível, para não perturbar a
sequência de números musicais. E ponha bisonho nisso: uma monarquia
fictícia, a ilha da Bananolândia, produz mais bananas do que consegue
comer; o primeiro-ministro (Oscarito) sugere que a rainha (Linda
Batista) venha ao Brasil para vender o excesso; ela chega ao Rio em
pleno Carnaval e...

Downey não queria nem saber. O que importava era o repertório musical.
Em todas as partituras de canções apresentadas nos filmes produzidos por
ele, podia-se ler no rodapé: "Direitos para os países estrangeiros
controlados pela Música Internacional Downey Rio de Janeiro - Buenos
Aires". E, para Banana da terra, ele já garantira a posse de boas
marchinhas e intérpretes, como "Menina do regimento", de Braguinha e
Alberto Ribeiro, com Aurora; "A tirolesa", de Paulo Barbosa e Oswaldo
Santiago, com Dircinha Batista; e uma que prometia ficar para sempre, "A
jardineira", de Benedito Lacerda e Humberto Porto, com Orlando Silva;
além de bons sambas, como "Sei que é covardia", de Ataulpho Alves e
Claudionor Cruz, com Carlos Galhardo, e "Amei demais", de Paulo Barbosa
e Oswaldo Santiago, com Castro Barbosa. Mas os dois principais números,
com caprichos de Hollywood na produção, seriam "Boneca de piche", de Ary
Barroso e Luiz Iglesias, com Carmen e Almirante, e "Na Baixa do
Sapateiro", também de Ary, só com Carmen. Amarrados todos os custos e
com boa parte da produção já encaminhada, Downey calculava que o
diretor, seu amigo J. Rui Costa, poderia acabar de filmar tudo em um
mês.


169

E, de repente, sem um muxoxo prévio e sem nada que fizesse prever tal
atitude, Ary Barroso puxou o tapete sob os pés de Downey. Mandou
dizer-lhe que, para assinar o contrato autorizando o uso de suas duas
canções no filme, queria cinco contos de réis por cada uma.

Foi como se uma granada explodisse no bananal. Diante daqueles valores,
o orçamento de Banana da terra iria à Lua. E o precedente que isso
abriria? De repente, qualquer tocador de caixa de fósforos no morro da
Formiga iria cobrar fortunas para ter seu samba num filme - pensou
Downey. Não adiantaram os telefonemas de Carmen e de Braguinha, a pedido
de Downey, para dissuadir Ary. Ele não arredava pé: se Downey quisesse
usar suas músicas, teria de morrer num total de dez contos de réis. Essa
soma equivalia a perto de quinhentos dólares, muito arame em 1938.
Downey, habituado a conseguir as músicas na bacia das almas, parecia
apoplético: não fora isso que combinara com Ary semanas antes. E não
fora mesmo - mas, então, Ary talvez ainda não tivesse se tocado para o
fato de que, uma vez "cedida" a Downey para uso num filme, a dita canção
se tornava propriedade dele, Downey, e ia fazer a América por conta
própria. Assim, para garantir um mínimo de retorno financeiro no caso de
suas canções baterem asas, Ary resolvera pedir alto de saída. Se Downey
pagasse, ótimo; se não, que fosse para o diabo.

Downey não pagou, Ary não cedeu as músicas, e abriu-se um rombo na
produção de Banana da terra - porque os cenários para os dois números já
estavam prontos e os figurinos e a maquiagem, decididos. Em "Boneca de
piche", Carmen apareceria de nega maluca, com vestido e lenço
quadriculados, e Almirante, de jaquetão branco e chapéu-coco, ambos em
blackface, num cenário tipo "senzala". Em "Na Baixa do Sapateiro", o
cenário era uma rua da Bahia, com lua, casario e coqueiros, e Carmen
estaria usando uma baiana estilizada. Mas, sem as canções de Ary, o que
fazer? Músicas novas o obrigariam a refazer tudo, o que significaria
mais dinheiro e mais tempo. A não ser - decidiu Downey - que Braguinha e
Alberto Ribeiro produzissem canções que se encaixassem nos cenários e
figurinos já prontos.

A primeira foi fácil: no lugar de "Boneca de piche" havia a marchinha
"Pirolito", que eles tinham acabado de compor para o Carnaval. Sem muito
esforço, ficaria bem no cenário da "senzala". Mas, e a do cenário
"baiano"? Nesse caso, foi Alberto quem salvou o dia: acabara de ouvir
pela Rádio Transmissora um samba, "O que é que a baiana tem?", pelo
próprio autor, um sujeito de voz grossa chamado Caymmi. Era tiro e
queda. Braguinha consultou Almirante e este deu seu aval: por intermédio
de um amigo, Paulo Trepadeira, conhecia o samba e o sambista, e ambos
eram bons.

E por que não seriam? "O que é que a baiana tem?" era feito das mesmas
enumerações tipo list song que marcavam as canções "baianas" de Ary
Barroso:


170

Tem bata rendada, tem Pulseira de ouro, tem

Tem saia engomada, tem Sandália enfeitada, tem Tem graça como ninguém
Como ela requebra bem...

A diferença estava na originalidade das enumerações de Caymmi (afinal,
ele era baiano) e na graça com que as construíra. Caymmi logo
encontraria seu estilo e dispensaria esse recurso, mas, por enquanto,
ainda estava sob a influência de Ary, e não se visse nenhum desdouro
nisso.

Uma minioperação de guerra foi montada. O compositor Newton Teixeira,
autor de "Errei... erramos", amigo de Braguinha e Alberto, e já por
dentro da história, perguntou a Caymmi se ele não queria ouvir "sua voz
gravada". Caymmi disse que sim, queria muito. Newton o levou ao estúdio
quase deserto da Sonofilms no sábado e fez-se a gravação, tendo de um
lado "O que é que a baiana tem?". Caymmi pediu, mas inventaram uma
desculpa e não lhe deram o disco. Sem que ele soubesse, a cópia única
foi mandada no mesmo dia para a casa de Carmen - que a ouviu e não
gostou, pelo excesso de langor no andamento escolhido pelo cantor. Mas
aceitou que Almirante levasse o rapaz à sua casa na noite seguinte.

Ao vivo, cantado por Caymmi, o samba caiu-lhe muito melhor. Carmen
achou-o "batatal" e começou a ver as possibilidades de sua
interpretação. Caymmi explicou-lhe o significado de certas referências
da letra. O torço de seda era o turbante; o pano-da-costa, o xale.

Um rosário de ouro Uma bolota assim Quem não tem balangandãs Não vai no
Bonfim...

Os balangandãs eram pencas de figas e amuletos feitos de metais nobres,
lavrados por finos ourives, e de quaisquer objetos de ferro, madeira ou
osso que representassem um pedido ao santo ou o pagamento de uma
promessa. Quem os usava eram as formidáveis negras do partido-alto da
Bahia, ex-escravas que tinham ouro e prata escondidos em casa. E a
própria palavra balangandã, por mais sugestiva, era uma novidade: exceto
os dicionaristas, ninguém a conhecia no Rio. (Muito menos o seu sinônimo
ou variante: berenguendém.)

Quando Caymmi e os outros foram embora, por volta da meia-noite, estava
decidido que "O que é que a baiana tem?" entraria no filme em lugar de
"Na Baixa do Sapateiro", e que Caymmi participaria da gravação do
playback, além de assessorar Carmen na produção da fantasia e dirigir
sua coreografia durante a filmagem do número. Tudo isso pela eloqüente
quantia de cem mil réis - cinco dólares -, a serem pagos à vista ao senhor
Dorival Caymmi na assinatura do contrato. Um valor cinqüenta vezes menor
do que Ary Barroso pedira para autorizar cada música. Mas nada de contar
isso a Caymmi, recomendou Downey: o que ele não soubesse não lhe podia
fazer mal, e o problema de Ary não era da conta dele.

171


Wallace Downey não falhava: um dólar economizado era um dólar ganho, e
ele acreditava firmemente nisso, centavo por centavo.

Dois dias depois, com Caymmi e Almirante no coro, Carmen gravou na
Sonofilms o playback de "O que é que a baiana tem?", usando uma roupa
comum, e Caymmi lhe ensinando as impostações - porque a fantasia que ela
vestiria no filme ainda não existia. Mas estava por pouco.

Carmen imaginava uma baiana tal qual a descrita por Caymmi, inspirada na
roupa que, desde os primórdios, as negras e as mulatas da Bahia usavam
para acompanhar procissões ou vender quitutes nas ruas. Muitas dessas
mulheres tinham ido para o Rio no começo do século xix. Na viagem, a
roupa se simplificara: conservaram-se os turbantes, as batas, as saias e
as anáguas, mas os ornamentos, originalmente de ouro e prata, perderam
em luxo e variedade. Com a vinda da Corte portuguesa, em 1808, a chegada
da Missão Francesa, em 1816, e a invasão da cidade pelas costureiras
francesas, as baianas do Rio incrementaram suas roupas com rendas e
babados, mas ainda longe do esplendor original. Mesmo assim, era bonito
- e uma postura municipal carioca do próprio século xix exigia que elas
só podiam trabalhar nas ruas como quituteiras se mantivessem suas roupas
de baiana absolutamente alvas.

A venda de cocadas e acarajés costumava ser apenas a fachada legal
dessas senhoras gordas e joviais que, na verdade, eram as líderes
religiosas de suas comunidades nos entornes da praça Onze. Essa
religião, naturalmente, era o candomblé. Mas elas eram também as
animadoras dos sambas e choros que se tocavam em suas casas. Quando as
escolas de samba foram fundadas, em fins da década de 1920, as baianas
foram das primeiras a formar uma ala e conquistar o seu lugar nos
desfiles - ala essa oficialmente obrigatória desde 1933. E a baiana como
fantasia - uma bata de algodão, uma saia de renda, alguns colares e
pulseiras de pedraria e um turbante, com ou sem a cestinha de frutas de
cera - já existia havia muito entre as moças da classe média no
Carnaval.

Por ser uma fantasia simples, e que podia ser feita até de chita, a
baiana não era bem recebida nos bailes de gala do Carnaval. Daí que as
atrizes, ao usá-la em seus números "baianos" no teatro de revista e nos
cassinos, tivessem de estilizá-la, para que parecesse mais luxuosa. E
isso não começou com Carmen, mas muito antes. A primeira baiana
estilizada de que se tem notícia no teatro de revista foi a da estrela
Pepa Ruiz - em 1892. E, desde então, as baianas nunca saíram do palco.
As duas maiores atrizes de seu tempo as usaram: Ottilia Amorim, desde
1926, e Aracy Cortes, desde 1928. Em 1933, as baianas pareciam tão
integradas à paisagem teatral carioca que o filme Voando para o Rio
(Astaire e Rogers, lembra- se?) mostrava um coro delas no show do
Copacabana Palace. Elisinha Coelho usou uma no Cassino da Urca, em 1935;
Heloísa Helena vestiu outra, para cantar a marchinha "Tempo bom", dela e
de Braguinha, no filme Alô, alô, Carnaval!, em 1936; e, no mesmo ano, a
mulata Déo Maia exibiu a sua, dizem que lindíssima, ao cantar "No
tabuleiro da baiana" com Grande Othelo na revista Maravilhosa!, de
Jardel Jércolis. Não seria por falta de baianas que o mundo acabaria
naquela época.


172


A baiana de Banana da terra foi a primeira de Carmen e uma criação dela
própria, seguindo o figurino da letra de Caymmi. E o que é que essa
baiana tinha? Tudo que a letra dizia, mas foram os toques pessoais de
Carmen que fizeram a diferença. O turbante ainda era modesto para os
padrões futuros - a cestinha, menor que um tamborim -, mas já levava
apliques de pérolas e pedras. Os brincos, enormes, eram duas argolas de
contas. O xale era de renda, com fios dourados, disparando uma profusão
de brilhos para a câmera. Abata e a saia eram de cetim, em listras
verdes, douradas e vermelho fúcsia - Carmen intuitivamente atenta para
as cores que fotografassem bem em preto-e-branco. Abata, muito sensual,
deixava entrever os ombros e o estômago (mas não o umbigo) e quase
desaparecia sob a gargantilha dourada, com colares de contas graúdas e a
torrente de balangandãs: rosários, correntes e bolotas "de ouro" como
usadas pelas grandes negras baianas - sim, porque essa era uma roupa de
festa, não para vender mungunzá na esquina. A saia, por sua vez,
dispensava as anáguas e tinha um caimento natural até o chão, escondendo
as plataformas e emprestando a Carmen uma silhueta mais esguia.

Todos os penduricalhos, assim como a cestinha de frutas, foram comprados
por Carmen, com assessoria de Caymmi, na já veneranda Casa Turuna,
especializada em fantasias para o teatro e para o Carnaval, na avenida
Passos. Mas o importante é que, pela primeira vez na saga das baianas
estilizadas, surgiam os balangandãs.

Carmen filmou os dois números de Banana da terra em novembro. Por se
ouvir a voz de Caymmi no coro de "O que é que a baiana tem?",
imaginou-se que ele fosse um dos rapazes de camisa listrada e chapéu de
palhinha que assessoram Carmen em cena. Mas não era - aqueles eram
dançarinos profissionais da Urca. O que Caymmi fez foi servir de "ponto"
para Carmen fora da câmera, fazendo os gestos com as mãos ao apontar
para cada parte da roupa e ensinando-lhe outros dengos, como o de
revirar os olhinhos.

Em Banana da terra, Carmen inaugurou uma prática que nunca mais
abandonaria: terminada a filmagem, conservou a baiana para usar em seus
shows. E, pressentindo a força de "O que é que a baiana tem?", dois
meses antes de o filme ser lançado, resolveu incluir uma nova baiana em
seu guarda-roupa.

173

Mas, dessa vez, encomendou-a ao versátil artista J. Luiz, como ele se
assinava - ou Jotinha, para os amigos, como ela.

Jotinha era de sobrenome Borgerth Teixeira, família nobre no Rio, e
morava com os pais numa mansão na rua Sorocaba, em Botafogo - não que
eles aprovassem 100% suas opções profissionais. Foi um pioneiro da
maquiagem no Brasil. Numa época em que pancake e rímel não existiam por
aqui, Jotinha improvisava com pó-de-arroz, maquiava com guache, e
aplicava cilion, uma espécie de brilhantina. Os cílios postiços de suas
clientes eram colados por ele um a um. Mas Jotinha era também pintor de
retratos e figurinista da revista Fon-fon!, e foi nessa última condição
que Carmen, com Caymmi, o procurou em seu ateliê, também em Botafogo.

Quando ela lhe pediu que desenhasse uma baiana, não imaginava que, sem
querer, Jotinha iria abrir o caminho para todas as liberdades tomadas
pelos estilistas que lhe sucederiam trabalhando com Carmen. Se se
tratava de estilizar a baiana, Jotinha exorbitou, e fez bem. A bata e a
saia foram feitas em material e cores diferentes. A saia era agora de
veludo, com retalhos de losangos de várias cores, num eco modernista de
Di Cavalcanti. O turbante começou a crescer, passando a acomodar duas
cestinhas, e as frutas deram lugar a arranjos de folhas ou do que se
quisesse. A palavra mágica eram os balangandãs: se eles existiam, tudo
era permitido. A baiana tornou-se apenas um veículo para o que se
quisesse pôr em cima dela.

Foi com a baiana de J. Luiz e uma maquiagem facial mais escura que
Carmen se apresentou na Urca em fins de novembro, e recebeu de outro
visitante ilustre - o astro do cinema Tyrone Power - a certeza de que,
se tentasse a sorte em Hollywood, teria grandes chances de vencer.
Quando Tyrone, com seus cílios do tamanho daquelas plumas que os núbios
usavam para abanar, se levantou para dizer-lhe isso e lhe dar um beijo
na face, a Urca inteira ouviu e tomou nota. Este, pelo menos, devia
saber o que dizia. Afinal, era o galã número um da 20th Century-Fox e
considerado o rosto mais bonito de Hollywood - incluindo os das
mulheres.

Tyrone acabara de chegar para uma temporada de um mês de férias no Rio,
onde, "por acaso", encontrara sua noiva, a minúscula atriz francesa
Annabella, estrela de René Clair no clássico O milhão (Lê million, de
1931). Incrível, Annabella também estava "casualmente" por aqui. Era uma
farsa, é claro, mas por quê? Porque, pelos códigos vigentes em
Hollywood, tais encontros só podiam ser fruto de coincidência. O público
americano não gostaria de saber que um ator e uma atriz, ambos
solteiros, estavam viajando juntos e, quem sabe, dormindo sob o mesmo
teto. Só que, no caso de Tyrone, a intenção da Fox era exatamente o
contrário: o estúdio queria que o público americano soubesse da aventura
- se possível, com o detalhe de que Tyrone e Annabella eram hóspedes de
um milionário brasileiro (o hoteleiro Octavio Guinle) numa ilha (a
idílica Brocoió, junto a Paquetá) na mágica baía de Guanabara, e sabe-se
lá o que não ficavam fazendo quando se viam a sós. Que esforço da Fox.
Tudo para dissipar os rumores - bem fundados, por sinal - de que seu
maior patrimônio artístico era homo, no máximo bi.




174


Annabella e Tyrone acabariam se casando no ano seguinte - um casamento
conveniente para ambos. Mas a fama de Annabella no Brasil se deveu a um
certo tipo de saltinho e solado inteiriços de sapato que ela popularizou
nos quase quarenta dias que eles passaram aqui, e que a carioca chamou
de "salto Annabella" - até hoje.

Um show com Carmen e Aurora Miranda, Francisco Alves, Sylvio Caldas,
Carlos Galhardo, Almirante, Dircinha Batista, Orlando Silva, João Petra
de Barros, Aracy de Almeida, o Bando da Lua e muitos outros, mais as
orquestras de Donga, Benedito Lacerda e Napoleão Tavares, um coral de
pastoras dirigido por Heitor dos Prazeres e, como mestre-de-cerimônias,
o humorista Barbosa Júnior. (Nessa noite, ou pouco antes, Carmen e Aracy
fizeram-se espetacularmente as pazes e confessaram suas admirações
mútuas.) Ali estariam, juntos, no mesmo palco, quase ao mesmo tempo, os
maiores nomes do samba. Não admira que, segundo todos os relatos, as
borboletas da Feira de Amostras, na esplanada do Castelo, tivessem
registrado 200 mil pessoas - 10% da população do Rio - no dia 4 de
janeiro de 1939, escolhido como o "Dia da Música Popular" na Exposição
Nacional do Estado Novo. Que chance para Carmen apresentar a baiana ao
grande público, não? Mas ela ainda devia considerá-la uma fantasia de
gala, porque preferiu não usá-la nesse dia - ou temeu vê-la destruída na
tentativa de chegar ao palco.

"Os cantores vinham chegando, um a um, depois de tremendos sacrifícios",
escreveu o Correio da Manhã:

Era quase impossível atravessar a massa popular que tomava as entradas.
Carlos Galhardo suava por todos os poros quando entrou no palco por uma
porta dos fundos. Francisco Alves tinha a roupa completamente
amarrotada. Almirante aguardava a chegada de Carmen Miranda, para cantar
com ela "Boneca de piche". Mas a popular cantora não aparecia. O povo
lhe aclamava constantemente o nome. Um cavalheiro foi ao microfone e
pediu que dessem passagem a Carmen Miranda, a qual ainda não chegara
porque não conseguia romper a multidão. Nervoso, Ary Barroso passeava de
um lado para o outro, receoso de que sua canção não pudesse ser
executada. Afinal, apareceu a criadora de "Taí". Veio com sua irmã,
Aurora Miranda. Foram imediatamente cercadas por amigos e admiradores,
aos quais narraram a odisséia daquela marcha penosa através da massa
popular.

Um ano e pouco antes, em novembro de 1937, Getúlio Vargas, até então
presidente constitucional, dera um golpe de Estado, fechando o
Congresso, impondo uma Constituição fascista e mandando a sucessão
presidencial para as calendas. Era de novo a ditadura escarrada, agora
sob o nome de Estado Novo, e seria natural que muitos artistas se
pusessem contra ele. Mas, pelas leis que passara nos últimos anos
beneficiando a música popular, o teatro, o cinema, o rádio e os
cassinos, Getúlio parecia ter crédito ilimitado junto à categoria. Os
artistas o idolatravam.



175


Uma típica declaração de amor foi a do ator Reis e Silva, feita ao
Correio da Noite:

"Para mim, o senhor Getúlio Vargas é o maior homem do mundo. Maior que
Mussolini, maior que Hitler!"

E um evento como o "Dia da Música Popular" era irresistível para os
cantores testarem sua popularidade - em que outra época na história do
Brasil alguém tinha cantado para 200 mil pessoas? A nenhum deles (nem a
Ary Barroso, futuro político) ocorreu que os artistas estavam ali para
prestigiar a megalomania do ditador e as torturas e outros crimes de seu
regime.

Na segunda quinzena de janeiro, Carmen pôs na mala a baiana de Banana da
terra para sua habitual excursão pelo circuito dos cassinos e das águas:
São Paulo, Santos, Campinas, Franca, Ribeirão Preto, Poços de Caldas.
Com ela estavam, mais uma vez, Aurora, Sylvio Caldas, Almirante e
Vassourinha. Carmen não sabia, mas seria a sua última viagem com aquela
turma. E também a última vez que se maquiaria de "morena" ao usar a
baiana - a partir dali, sua morenice natural seria suficiente.

Em São Paulo, a Rádio Clube do Brasil, que pertencia às Organizações
Byington, investiu sobre ela no saguão do hotel para roubá-la da Mayrink
Veiga. Gagliano Netto, diretor da rádio e famoso locutor esportivo,
encurralou-a num canto e, como se fosse apenas questão de dinheiro,
disparou:

"É só abrir a boca e pedir. Quanto, Carmen?"

Carmen abriu a boca, mas para sorrir. Não pediu nada. Disse apenas que
preferia continuar na Mayrink - e soube depois que, por causa disso, as
Organizações Byington estavam boicotando seus discos.

Na escala em Campinas, a poucas horas do espetáculo, Carmen pegou
emprestado o carro de um fã para dar uma volta. Com sua pouca prática ao
volante (no Rio, era Synval Silva quem a transportava para toda parte),
tentou se desviar do bonde e acertou uma árvore na esquina das ruas
Saldanha Marinho e Benjamin Constant. Nada de grave, mas Carmen sofreu
uma luxação no joelho, que doía e a fazia mancar. Mesmo assim, à noite,
entrou no palco e, no calor da performance - principalmente ao voltar de
baiana para o apoteótico final com "Pirolito" e "O que é que a baiana
tem?" em dupla com Almirante -, dançou, cantou e esqueceu a dor. Ao fim
do show, teve de ser levada carregada para o hotel. Os jornais de
Campinas louvaram o seu profissionalismo.


176

Em Poços de Caldas, a última escala da excursão, Carmen e Aurora
conheceram um disputado jovem local: Walther Moreira Salles, 26 anos,
pinta de galã e já pronto a dar o salto, de banqueiro da cidade pequena
para banqueiro da cidade grande. Ele gostou de Aurora e, depois do show,
brincaram juntos no baile de pré-Carnaval do cassino. Nas semanas
seguintes, sempre que Walther foi ao Rio, não deixava de convidar Aurora
para sair. Em duas ocasiões, levoulhe caixas de bombons; numa terceira,
um pequeno relógio de ouro. Sabendo quando seria sua próxima visita,
Aurora convidou-o a jantar em sua casa na Urca e até comprou um aparelho
de porcelana para a ocasião. No coração da bela Aurora, a bacalhoada de
dona Maria seria o prelúdio, quem sabe, para a possibilidade de um
noivado. Infelizmente, no dia marcado, Walther deu-lhe o bolo. Aurora
ficou desapontada. Poderia tê-lo perdoado - até descobrir que ele
estivera no Rio aquela noite e saíra com a cantora Alzirinha Camargo,
rival de Carmen em "Querido Adão". Nessas condições, não havia perdão
possível. E já se arrependia de ter comprado o bendito aparelho.

Por sorte, Aurora acabara de conhecer um rapaz chamado Gabriel Richaid.
O aparelho de jantar acabaria compensando amplamente o investimento
porque, dali a um ano, seria usado na recepção que se seguiria ao
casamento deles.

A vida amorosa de Carmen era muito mais complicada. Em 1938, Carlos
Alberto da Rocha Faria escrevera uma dedicatória no verso de uma foto
que dera a Carmen três anos antes: "Para a minha rainha do samba, da
grã-finagem e de muita coisa ruim, oferece este "cara" que só sente não
ser escritor para fazer um romance intitulado "Ela"! (Dedicatória em
janeiro de 1938, com um bocado de experiência!)".

Por que uma dedicatória com tanto atraso? Seja como for, não eram
palavras de um homem apaixonado. Soavam mais como de um fã de Carmen
Miranda, com acesso privilegiado à estrela e ligeiramente ressentido por
alguma coisa - apesar da tentativa de humor no "de muita coisa ruim".
Deslumbrado, também: admirava-a tanto que gostaria de escrever sobre ela
- mas, ao mesmo tempo, distante o suficiente para querer transformá-la
numa heroína de ficção. (E logo qual: "Ela", de H. Rider Haggard, era
uma sacerdotisa branca e imortal que reinava sobre várias gerações de
africanos.) E o que significaria aquele "com um bocado de experiência"?
Eram indícios de que alguma coisa não ia bem no namoro.

Nos primeiros tempos, Carlos Alberto cogitara seriamente casar-se com
Carmen, mesmo que, para isso, tivesse de cortar as amarras com a família
Rocha Faria. Carmen, mais humilde e realista, via a coisa de outra
maneira:

"Você é um príncipe, Carlos Alberto. Já nasceu com uma colher de prata
na boca. Eu sou a filha do barbeiro."



177

Carmen estava exagerando a distância social entre eles. Na sua condição
de a maior estrela do show business nacional, já não precisava
rebaixar-se para ninguém. Mas sabia que o casamento com Carlos Alberto
exigiria seu imediato afastamento dos microfones. (Óbvio. Que casamento
é esse em que o marido fica em casa dormindo, enquanto sua mulher sai
toda noite às três da manhã para dar um show no cassino?) O problema,
para Carmen, era trocar sua segurança profissional por alguém que, já
perto dos trinta, como Carlos Alberto, mal conseguia sustentar a si
próprio. (Carmen ganhava pelo menos vinte vezes mais do que ele.) E
havia também a questão da sua própria família. Embora todos os irmãos
trabalhassem, Carmen ainda se sentia responsável por eles e por sua mãe.
Para completar, sua carreira não parava de crescer - seria absurda
qualquer idéia de interrompê-la nesse momento.

Isso podia explicar a dedicatória de Carlos Alberto no verso da foto:
"Para a minha rainha do samba" - referindo-se à opção de Carmen pela
carreira, opção que o excluía. Seu problema de inadequação para com ela
continuava igualmente insuperável. Em todos aqueles anos, Carmen e
Carlos Alberto nunca tinham viajado juntos, nem para se encontrar
"casualmente" em, digamos, Buenos Aires. E raras foram as vezes em que
ele assistira a ela no cassino ou na rádio. Era como se, para Carlos
Alberto, fosse insuportável vê-la no ambiente em que era a deusa.

Para o réveillon de 1939, em que tinha show marcado na Urca, Carmen
mandara vir de Paris um vestido pela Casa Canadá e chamou Carlos Alberto
à sua casa para apreciá-lo. Mas algo no vestido o magoou - talvez o
preço -, porque, quando Carmen se distraiu por um minuto, Carlos Alberto
pegou uma tesoura e a aplicou com ferocidade à roupa, destruindo-a. Era
uma atitude doente, inexplicável - e que não combinava com a educação
dele. Mas, como parecia ser um padrão em seus namoros, Carmen aceitou
passivamente esse e outros rompantes de Carlos Alberto.

Seu namorado nunca soube de episódios que mostravam a aparente
desimportância do dinheiro para Carmen - talvez porque ela o ganhasse em
quantidade - e seus repetidos gestos de generosidade. Carmen cedia
roupas às amigas mais pobres (como sua professora de ginástica Jane
Frick) para que elas pudessem ir vê-la no cassino, ou se "esquecia" de
que Sylvia Henriques lhe tomara emprestados tais ou quais vestidos e
nunca os devolvera. Assis Valente, sempre precisando de uns cobres,
pedia a Carmen que escrevesse bilhetes para o editor musical Vitale
informando que estava para gravar este ou aquele samba de Assis. Isso
servia de garantia para Vitale adiantar a Assis o dinheiro sobre uma
música ainda a ser composta. Quando a música não se materializava,
Vitale cobrava de Assis, que pedia socorro a Carmen - e ela comparecia
com o dinheiro. Em fins de 1937, o empresário teatral Antônio Neves (o
mesmo da fatídica peça Vai dar o que falar, de 1930) convidou Carmen a
tentar de novo o teatro de revista. Carmen considerou a proposta, mas
exigiu de Neves um inicial por fora, de seis contos de réis. Não para
ela, mas a ser entregue em segredo à família do cantor Luiz Barbosa, que
estava em casa, no Estácio, lutando contra a tuberculose. A peça nunca
saiu do papel, mas o dinheiro ajudou a atenuar as dificuldades do cantor
até sua morte, em outubro de 1938. (Essa história só seria revelada
décadas depois, pelo memorialista Bricio de Abreu.)


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Carlos Alberto, por sua vês, não era precisamente um santo e, em algum
momento de 1938, escorregou feio aos olhos de Carmen: teve um flerte com
outra mulher. Para piorar, com alguém do ramo: uma cantora. E, como se
não bastasse, ela era - quem mais? - Alzirinha Camargo, que, pelo visto,
nunca superara a perda de "Querido Adão". Carmen descobriu a escapada de
Carlos Alberto e infernizou sua vida por semanas, mas, até para sua
própria surpresa, isso não provocou o fim do namoro. Apenas o esfriou a
quase zero e fez com que Carmen passasse a espiar melhor à sua volta.

E a figura mais próxima na paisagem era Aloysio de Oliveira.

Aos 23 anos, Aloysio parecia ter finalmente adquirido a personalidade
que faltava para combinar com seus ombros largos, peito amplo e pernas
compridas. Sua relação amorosa com Carmen começou ali, premiando uma
campanha que, da parte dele, já vinha desde as primeiras viagens a
Buenos Aires. Mas essa relação ainda não podia ser chamada de integral.
Pela primeira vez, Carmen exerceu uma dupla militância, sustentando o
caso com Aloysio, mas sem dispensar Carlos Alberto e sem deixar que este
percebesse.

Tal segredo era então perfeitamente possível. Não havia a indústria de
fofocas da imprensa, e um jornalista pensava várias vezes antes de
escrever sobre a intimidade de um artista - até decidir que não
escreveria nada. Os mexericos circulavam apenas dentro de cada grupo, e
Carlos Alberto não freqüentava o meio musical. Dorival Caymmi, ao
contrário, soube logo da história porque, mesmo recém-chegado ao Rio, já
entrara no circuito. Tanto que, ao ir pela primeira vez à casa de Carmen
e deparar com Aloysio tão à vontade, achou aquilo muito natural - era "o
namoradinho dela".

Além disso, até onde Carlos Alberto enxergasse, não havia nenhuma
alteração nas relações entre Carmen e Aloysio. Assim como já faziam
antes de começar o caso, eles continuaram indo à praia no Arpoador,
sozinhos ou com outros membros do Bando da Lua e suas namoradas. À
noite, depois do trabalho, quando se apresentavam no mesmo recinto, era
comum um levar o outro em casa. E, com Aloysio, Carmen podia fazer algo
que, com Carlos Alberto, era inconcebível (e nem ele podia saber que
acontecia): ir com os colegas da Mayrink nadar na lagoa de Marapendi, na
deserta Barra da Tijuca, onde - dizia-se - alguns, como Aracy de
Almeida, ficavam seminus e se divertiam como crianças.

Aloysio era "artista", como ela. Seus valores eram coincidentes. Na
hipótese de um casamento entre eles, ela nem precisaria parar de
trabalhar - o mundo do espetáculo estava cheio de casais assim. Talvez
por isso, ao planejar com Caymmi o disco de "O que é que a baiana tem?"
(com outro samba do baiano, "A preta do acarajé", no lado B), Carmen
tenha se aberto para ele:



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"Caymmi, quer saber de uma coisa? Daqui a uns dias, vou completar dez
anos de atividade. Estou querendo mudar de vida. Acho que vou me casar
com o Aloysio."

Carmen podia estar sendo sincera. Mas olhe para a folhinha: fevereiro de
1939. Ninguém sabia, mas algo muito importante estava por acontecer.

Quaisquer que fossem seus planos, e por melhores as intenções de Carmen,
tais planos e intenções seriam virados de pernas para o ar em questão de
dias. Na verdade, antes do fim do mês, toda a vida de Carmen, e a dos
que a cercavam, seria transformada para sempre.

No começo de fevereiro, duas semanas antes do Carnaval, Banana da terra
estreou no novo Metro, na rua do Passeio. A baiana entrava triunfalmente
em circulação. Dias depois, Carmen foi ao estúdio da Odeon para gravar
"O que é que a baiana tem?" e "A preta do acarajé", com Caymmi. Entre as
figuras do coro feminino, ela reconheceu a menina Carmelita, que vira
uma vez, em 1935, como doméstica na casa de Francisco Alves, no Leme.
Naquela noite distante, Carmelita, quinze anos, servira cafezinho a
Carmen. Confessara-se sua fã e perguntara: "Posso cantar para a
senhora?". Carmen disse que sim. A menina cantou "Taí", e Carmen gostou:
"Você promete, garota!". Quatro anos depois, a promessa se cumpria:
Carmelita se revelara nos programas de auditório, mudara seu nome para
Carmen Costa e ali estava, no coro, acompanhando sua heroína em "O que é
que a baiana tem?". Em três meses, iria gravar o primeiro disco em seu
nome pela Odeon. Outro que, graças a Carmen, também logo estrearia na
cera pela Odeon seria Caymmi. E quem fizera o caminho inverso, alguns
meses antes, sucumbindo à tentadora proposta de trezentos réis por face
para trocar a Odeon pela Victor, fora Aurora.

Desde sua estréia, em 1933, com "Cai, cai, balão", Aurora gravara 137
músicas em cinco anos na Odeon. Depois de Carmen, era, de longe, a
cantora brasileira que mais gravara em todos os tempos: uma média de 27
músicas por ano, o que equivalia a mais de um disco por mês, chovesse ou
fizesse sol. Era algo que as gravadoras só concediam a quem apresentasse
venda firme o ano todo, como ela - e seus sucessos não se limitavam aos
campeoníssimos "Se a lua contasse", "Cidade maravilhosa" e "Cantoras do
rádio". O primeiro a abastecê-la de triunfos foi Custódio Mesquita, que,
em 1934, lhe deu o sambacanção "Moreno cor de bronze" e a marcha
"Ladrãozinho". Em 1935, Aurora venceu com a meiga "Fiz castelos de
amores", um dos primeiros samba-choros, de Gadé e Walfrido Silva, os
indisputados inventores do gênero. Também naquele ano foi bem com "Onde
está seu carneirinho?", uma incursão de Custódio pela marcha junina,
território de Assis Valente e Lamartine Babo. Em 1936, Aurora fez aquilo
que as gravadoras detestavam, mas às vezes acontecia: sucesso com os
dois lados do disco - o samba "Bibelô" e a marcha "Canto ao microfone",
ambos de André Filho. E, ainda naquele ano, popularizou outro
samba-choro de Gadé e Walfrido, "Boa noite, passe bem". Era uma carreira
do barulho.


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Aurora tinha à sua disposição todos os grandes compositores e letristas
do mercado. Aparecia
com destaque nos filmes, era disputada pelas estações de rádio, fizera
centenas de shows em
teatros e cassinos, com ou sem Carmen, e já experimentara a sensação de
engarrafar o trânsito,
passar no meio de multidões que a adoravam e despertar paixões como
cantora e como mulher. E
era também uma profissional completa. Apesar disso, nunca escondeu para
os mais íntimos que -
ao contrário de Carmen - trocaria sem piscar sua carreira por um
casamento. A ida para a Victor
seria uma forma de estimular-se a continuar cantando.

Em fins de 1938, um homem ligara para sua casa. Mandara chamá-la e
brincara com ela ao
telefone sem se identificar. Normalmente Aurora teria desligado, mas algo
a fez submeter-se ao
trote. O rapaz finalmente disse o nome: chamava-se Gabriel Richaid, tinha
29 anos, trabalhava no
comércio e queria conhecê-la. Aurora aceitou um convite para jantar.
Gabriel a impressionou bem
- era de uma família de comerciantes de Niterói, freqüentava Icaraí, a
praia, e o Canto do Rio, o
clube, e parecia sempre alegre. Mas nada resultou dali. Em seguida,
Aurora partiu com Carmen
para a excursão que incluía Poços de Caldas - e Walther Moreira Salles.
Na volta ao Rio,
Aurora explicou a situação a Gabriel - o qual, ante o poder do jovem
banqueiro mineiro,
inventou para si próprio um apelido que cativou Aurora: "Pobre-diabo".
Mas, poucas semanas
depois, Walther auto-excluiu-se de cena nas águas de Alzirinha Camargo, e
Gabriel acabou
sabendo. Voltou à carga sobre Aurora e se deu bem.

Na verdade, deu-se melhor do que a encomenda - porque, na terceira vez em
que ele e Aurora
saíram para jantar, ela o pediu em casamento.

O Carnaval de 1939 tinha marchinhas como "A jardineira", com Orlando
Silva; "Florisbela", de
Nássara e Frazão, com Sylvio Caldas; e o "Hino do Carnaval brasileiro",
de Lamartine Babo,
com Almirante; e sambas estupendos como "Meu consolo é você", de Roberto
Martins e Nássara,
e "O homem sem mulher não vale nada", de Arlindo Marques Júnior e Roberto
Roberti, ambos também
com Orlando.

O Rio recebia um enxame de turistas. Dia e noite pela cidade, eles se
misturavam aos foliões,
cantavam nos estribos dos bondes, sentavam-se nos cafés da Avenida,
compravam quadros de
asas de borboleta, beijavam bocas morenas,
tinham a carteira batida e, alta madrugada, com confete até a alma,
voltavam para dormir em
seus navios. Alguns desses navios ficavam à distância, porque o cais não
tinha profundidade
suficiente, e a ligação era feita por serviços de lanchas especiais.



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O maior e mais bonito deles, o transatlântico francês Normandie - no mar
desde 1935 com seus
308 metros de comprimento e 82 800 toneladas -, chegara ao Rio no dia 15
de fevereiro, quarta-
feira anterior ao Carnaval. Ficara ainda mais longe do porto e era
servido pelas lanchas do
empresário Darke de Mattos. Entre seus quase mil passageiros naquela
viagem, estavam o
magnata americano dos teatros, o empresário Lee Shubert, seu libretista
Marc Connelly, e, sem
nenhum vínculo com eles, exceto o das tênues amizades do Olimpo, a
patinadora e estrela da 20th
Century-Fox, a dinamarquesa Sonja (pronuncia-se, naturalmente, Sônia)
Henie.

Naquela noite, os três foram à Urca e viram Carmen.



Capítulo 11



1939

O sim a Shubert



"Se você não quiser, quem vai contratá-la sou eu", disse, entusiasmada,
Sonja Henie para Lee
Shubert, em meio ao número de Carmen no Cassino da Urca - como quem
descobrisse uma
pechincha num bazar ou numa liquidação.

O Normandie tinha feito reservas em peso para a Urca aquela noite e o
grill estava cheio de
americanos. Quase todos esperavam assistir apenas a um show de Carnaval
ou o que isso
significasse. O nome em letras grandes no cartaz - CARMEN MIRANDA -,
encimando um
elenco que incluía o Bando da Lua, Grande Othelo, o dançarino de frevo e
maxixe Jayme
Ferreira, duas bailarinas e doze girls, não lhes dizia nada. Mas, quando
Carmen entrou, tudo
mudou. Seu repertório naquela época consistia de sambas e marchinhas de
levantar a platéia, com
acompanhamento da orquestra de Vicente Paiva, como "Samba rasgado", "E o
mundo não se
acabou", "Paris", "Deixa falar", "Camisa listada", "Uva de caminhão", os
que tinham a ver com a
baiana - "Na Baixa do Sapateiro", "A preta do acarajé", "O que é que a
baiana tem?" - e
sucessos de Carnavais recentes, como "Mamãe, eu quero" e "Touradas em
Madri".

Shubert registrou o impacto. Como não entendia o que Carmen estava
dizendo, foi o geral que o
interessou: a gesticulação da cantora, seus olhos, seu magnetismo, seu
ritmo e aquela roupa
maluca, com o turbante, os colares e os sapatos. Pela excitação provocada
por Carmen, Shubert
concluiu que a ida à Urca para vê-la já tinha se justificado. Mas daí a
contratá-la ia uma certa
distância: o que fazer em Nova York com uma artista sul-americana que
ninguém conhecia e que,
com toda a certeza, não falava inglês?

Se Lee Shubert, 68 anos, não soubesse a resposta, ninguém mais saberia.
Shubert operava teatros
em Nova York desde 1900 com seus irmãos Sam e Jacob. O mais velho, Sam,
morrera cedo, mas
Lee e Jacob construíram o maior império teatral do mundo - um império
construído sobre risos,
música e lágrimas. Florenz Ziegfeld, falecido em 1932, podia ser mais
famoso e seu nome se
tornara sinônimo de um certo tipo de espetáculo, os Ziegfeld Folhes, mas,
Fio, como o chamavam,
nunca fora páreo para os dois irmãos - seus últimos Folhes foram
produzidos pelos Shubert,
porque ele não tinha mais dinheiro.

Os Shubert eram proprietários de cerca de cem teatros nos Estados Unidos

183

- metade da Broadway era deles - e, contando os teatros que controlavam,
ou em que detinham
alguma participação, inclusive em Londres, esse número chegava a centenas
de casas. Não havia
um artista importante de quem já não tivessem sido patrões: Eleonora
Duse, Sarah Bernhardt, Al
Jolson, Fanny Brice, Noèl Coward, Fred e Adele Astaire, Ethel Waters,
Eddie Cantor, os Irmãos
Marx, Gypsy Rose Lee, Mae West, Jimmy Durante, Bob Hope, toda a família
Barrymore e
qualquer animal, de elefante para baixo, que soubesse fazer um quatro.
Produziam também teatro
"sério" e, entre os teatrólogos que lhes davam a primeira leitura de suas
peças, havia gente
importante como Robert E. Sherwood, que se afastaria da ribalta em 1940
para se tornar redator
dos discursos do presidente Roosevelt, e Marc Connelly, que viera com
Shubert no Normandie,
com todas as despesas pagas, apenas para que Shubert tivesse alguém
inteligente com quem
conversar.

Connelly ficara famoso em 1930 como o autor de The green pastures, uma
fantasia religiosa
passada entre os negros do Sul dos Estados Unidos. Antes, fora um dos
membros da "mesa
redonda" do Hotel Algonquin, de Nova York, e duelava de igual para igual
com os reis das
tiradas rápidas, como Dorothy Parker, Robert Benchley e George S.
Kaufman. Sua melhor frase,
no entanto, não fora dita para nenhum deles. Conta-se que um sujeito que
mal o conhecia, mas
tentando demonstrar intimidade, passou por Connelly na mesa do Algonquin
e acariciou sua
careca, dizendo:

"Que interessante, Marc. Parece a bunda da minha mulher!"

Ato contínuo, Connelly acariciou a própria careca e respondeu:

"É mesmo!"

Não havia nada de acaso na presença de Shubert na Urca, nem ele estava
ali somente a passeio.
Nos últimos anos, ouvira falar insistentemente de Carmen pelas cartas que
uma amiga, a ex-atriz
Clairborne Foster, residente no Rio, mandava para Claude P. Greneker, seu
chefe de imprensa em
Nova York. No passado, Clairborne fora um grande nome dos palcos, em The
bluebird, de
Maeterlinck, e outras peças produzidas por Shubert, que sempre a tivera
em alta estima. Em 1932,
Clairborne abandonara o teatro para se casar com Maxwell Jay Rice,
executivo da empresa de
aviação Pan American junto à Panair no Rio, e se apaixonara pela cidade:
"As praias, a baía, os
nightclubs, a comunidade diplomática - a mais chique do mundo", ela
dizia. Para Clairborne, os
Shubert deveriam contratar Carmen imediatamente, antes que outro
americano a levasse, e por
isso bombardeava Greneker com cartas. Sua fé no sucesso de Carmen nos
Estados Unidos era
absoluta, mas, para não dizerem que era parcial, Clairborne às vezes
acrescentava testemunhos de
americanos de passagem por aqui - o último fora o de Tyrone Power. Assim,
ao tomar o
Normandie em Nova York, rumo ao que seria uma viagem de lazer pela
América do Sul, Shubert
pediu a Clairborne e Maxwell que lhe reservassem uma mesa onde Carmen
Miranda estivesse se
apresentando.


184

Sonja Henie, por sua vez, nunca ouvira falar de Carmen. Mas não precisou
de mais que um minuto
para se convencer de que estava diante de algo espetacular - e poucos em
Hollywood tinham
mais noção de espetáculo do que Sonja Henie. Como atleta, ela fora
medalha de ouro em
patinação no gelo nas Olimpíadas de 1928,1932 e 1936 e transformara um
simples esporte num
misto de bale, teatro e beleza. Em 1936, aos 24 anos, Sonja trocou sua
Noruega natal por
Hollywood. Ninguém a convidara, mas ela armou um espetáculo de gelo e
luzes na cidade do
cinema e induziu Darryl F. Zanuck, chefão da Fox, a contratá-la sob suas
- dela - condições:
ou era a estrela dos filmes ou não queria conversa. Zanuck a contratou
como estrela, e os três
primeiros títulos de Sonja foram grandes sucessos: A rainha do patim (One
in a million, 1937), Ela
e o príncipe (Thin ice, 1937, e o príncipe era Tyrone Power) e Feliz
aterrissagem (Happy landing,
1938). Suas pernocas de bailarina, saindo da calcinha sob o saiote
plissado e terminando nos
patins em forma de botinhas, combinadas ao rosto de boneca e ao infalível
sorriso, provocaram
salivações numa massa de tarados potenciais - alguns até passaram a se
interessar por patinação.
A Fox chamou-a de "A Pavlova dos rinques" e construiu-lhe um rinque de 80
mil dólares no meio
do estúdio. Sonja era a melhor coisa a vir da Noruega desde o bacalhau e
o Papai Noel.

Mas quem a via na tela, tão doce e angelical, não imaginava que, fora das
câmeras, Henie
pudesse ser uma águia sobre o território americano. Além dos filmes,
armou uma companhia para
seus espetáculos ao vivo; montou uma linha de produtos (patins, luvas,
bonecas) que lhe rendia
uma fortuna; abriu escolas de patinação com seu nome em vários estados; e
ainda era ela quem
alugava para a Fox o equipamento que mantinha gelado o rinque do estúdio.
Durante seus dois
primeiros anos nos Estados Unidos, foi a atriz que mais faturou em
Hollywood. Infelizmente, seus
filmes só funcionavam quando ela estava em cena e, de preferência,
patinando. Bastou que Minha
boa estrela (My lucky star,
1938), Dúvidas de um coração (Secondfiddle, 1938) e Idílio nos Alpes
(Everything happens aí
night, 1939), um atrás do outro, fossem mal na bilheteria para que
Zanuck, que nunca a suportara,
desligasse a tomada da geladeira. Naquela noite na Urca, Sonja ainda não
sabia, mas seu status
de maior estrela da Fox já começara a derreter e ela só voltaria a filmar
em 1941. Se contratasse
Carmen, seria para seu show itinerante - seria possível imaginar Carmen
com uma baiana de
arminho, um turbante de pele de foca e calçando patins de plataforma,
sambando "O que é que a
baiana tem?" sobre uma camada de gelo?

Mas, se Shubert estava indeciso, foi o impulso de Sonja Henie que o fez
pedir a Clairborne e
Maxwell Rice para conduzi-lo à mesa de Joaquim Rolla, ao fim do primeiro
show, para ele dizer
que gostaria de levar sua artista para os Estados Unidos. Rolla respondeu
que isso só dependeria
de Carmen. Tinham um contrato de um ano, recém-assinado e quase todo por
cumprir, mas ele o
rasgaria a qualquer momento se fosse para o bem dela.

185

Não era a primeira vez que essa situação se apresentava para Rolla.
Outros empresários
estrangeiros, ou que assim se diziam, já lhe tinham feito "propostas" por
Carmen na Urca. Tudo
blefe. Quando Rolla pegou Carmen no meio do salão e a levou, ainda de
baiana, à mesa de
Shubert, Carmen também não fez fé no homenzinho moreno, com cara de
camundongo, fumando
um charuto maior que ele e que nem parecia americano. (Nem podia parecer:
os Shubert diziam-
se americanos natos, mas eram imigrantes da Lituânia.) Foi preciso que
sua amiga Clairborne lhe
desse a ficha do sujeito: Lee Shubert era apenas o homem mais poderoso do
teatro nos Estados
Unidos.

Shubert dirigiu-se em inglês a Carmen, elogiando-a, e certificou-se de
que ela não entendia
abacate (como ele, ao chegar à América). Quanto a Sonja Henie, claro que
Carmen já a conhecia
do cinema. Mas, se houve um alarido de reconhecimento de uma para a
outra, foi de Sonja. Ficou
extasiada ao ver de perto a baiana de Carmen e poder tocá-la - à
distância, na platéia, não
podia imaginar a textura dos tecidos, a riqueza dos adereços, o requinte
dos detalhes, o brilho do
conjunto. A conversa se prolongou no camarim de Carmen, quando se acertou
que Shubert
voltaria à Urca para vê-la na noite seguinte e que, depois do show, ele
lhe ofereceria um jantar
black-tie no Normandie - e uma proposta de trabalho na América.

Shubert efetivamente voltou ao cassino na quinta-feira para ver Carmen e
escoltá-la ao navio. À
mesa de Shubert na Urca, saído de trás de uma pilastra ou cortina,
juntou-se um inesperado
personagem: seu patrício, dublê de produtor cinematográfico e agente
musical, o sempre alerta
Wallace Downey.

Carmen armou o cabelo no seu melhor coque duplo e escolheu um vestido
"distinto" para o jantar.
Mas, ao entrar no Normandie, de braço com Shubert, foi ficando de boca
progressivamente
aberta. Não era apenas o maior navio do mundo. Era o mais bonito, o mais
rico, o mais chique.
Era a França flutuante. Painéis, tapetes, móveis, cortinas, objetos, tudo
que vestia ou recheava os
salões e corredores da primeira classe fora encomendado aos grandes
artistas franceses de cada
especialidade. Na sala de jantar, por exemplo, os jarros, copos, bibelôs,
estatuetas, abajures e
candelabros eram de cristal por Lalique - até as colunas e paredes eram
de cristal iluminado. Foi
nessa sala (do comprimento da Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes,
com três deques de
altura e capacidade para mil pessoas) que Shubert e seus convidados se
sentaram para jantar e
discutir negócios. Carmen já se habituara ao dinheiro, mas era a primeira
vez que se defrontava
com a opulência.

Shubert lhe falou de um espetáculo que estava preparando para a Broadway
e em que poderia
encaixá-la: uma revista musical intitulada Streets of Paris, com canções
de Jimmy McHugh e Al
Dubin. Apesar do título, e de o francês Jean Sablon estar no elenco, o
clima da revista estaria mais
para o infalível trivial nova-iorquino, estrelando o comediante Bobby
Clark (com seus óculos falsos
pintados ao redor dos olhos), a divertida Luella Gear e uma nova dupla de
cômicos, Abbott &
Costello - com espaço para três ou quatro números por uma cantora e
dançarina "latina", que
poderia ser ela. Shubert mencionou algumas canções, como "Touradas em
Madri" e "O que é que
a baiana tem?" (os títulos lhe foram passados por Clairborne), em que via
possibilidades de
aproveitamento no espetáculo.

O empresário explicou que uma produção como essa, a estrear em maio,
ficaria cerca de um ano
em cartaz, incluindo a excursão por outras cidades depois de concluída a
temporada na
Broadway. Shubert oferecia a Carmen quinhentos dólares por semana - 2 mil
dólares por mês -
e acenava com a possibilidade de ela ser convidada para apresentações em
rádios e nightclubs,
caso em que, como seu agente exclusivo, ele lhe pagaria outros 250
dólares por semana, ou seja,
mais mil dólares por mês. O contrato seria por um ano, tendo Shubert a
"opção" para os dois anos
seguintes, durante os quais aqueles valores semanais subiriam para,
respectivamente, setecentos e
350 dólares, no primeiro ano, e mil e 450 dólares, no segundo.

Como sempre, Carmen fora sozinha para o encontro, sem seus segundos -
como se Shubert fosse
Rolla ou qualquer empresário brasileiro que ela chamava de "degas" e em
cujas bochechas dava
beliscões. Ao discutir aquele que poderia ser o contrato de sua vida,
estava falando por si própria.
Ninguém a representava, ninguém lhe soprava palpites ao pé do ouvido. No
máximo, poderia ser
aconselhada por Clairborne e Maxwell Rice, que, de certo modo, estavam
ali a serviço de
Shubert. A outra palavra "desinteressada" partiu de Marc Connelly, que
assegurou a Carmen que
o senhor Shubert era "um homem honesto" e que, no caso de ela ir para Nova
York, a maneira certa de
cumprimentar alguém nos Estados Unidos era dizer, "I love Marc Connelly".

Para surpresa de Shubert, Carmen não saiu dançando entre as mesas ao
ouvir aqueles números.
Na verdade, para ela, estava longe de ser uma proposta das arábias. Dois
mil dólares fixos por
mês eram cerca de cinqüenta contos de réis - que ela já ganhava na Urca,
depois do último
aumento que arrancara de Rolla. Com tudo o mais que tinha aqui - os agora
sete contos por mês
da Mayrink Veiga, a renda dos discos e as temporadas em São Paulo, Santos
e Buenos Aires, além
dos filmes - seu faturamento médio mensal chegava a muito mais de 3 mil
dólares, que eram o
máximo sugerido por Shubert. (Na verdade, em alguns meses, encostava em 5
mil dólares.)

Shubert argumentou que, enquanto Carmen levara anos para ganhar isso no
Brasil, o que ele lhe
estava oferecendo era apenas um rendimento inicial - e bem razoável,
considerando-se que ela
ainda era desconhecida em Nova York e não falava inglês. As
possibilidades eram muitas, insistiu,
e Carmen teria a seu favor o peso do departamento de imprensa de sua
organização. Na verdade,
era impossível prever tudo que lhe poderia vir de bom, ele concluiu.
Havia o rádio,
os nightclubs e o próprio cinema. A única condição era que seu principal
compromisso seria para
com Streets of Paris e que ela só poderia trabalhar para outros com
autorização dele, Shubert, e
isso lhe custaria 50% do que lhe pagariam.

187


Carmen deixou a conversa inconclusa para ganhar tempo, pensar melhor e
fazer algumas
consultas. No dia seguinte, levou Shubert & Co. a almoçar no restaurante
do Corcovado - talvez
na esperança de que, ao olhar para baixo, para a beleza da cidade que se
derramava dos morros
em direção à baía, Shubert fizesse uma idéia do território sob seu
domínio, e que ela estaria
deixando para trás. Para não falar na família, nos amigos e no namorado -
nominalmente, Carlos
Alberto da Rocha Faria.

Ela já sabia o que Carlos Alberto achava da possibilidade de sua ida para
Nova York: era contra.
Em certo momento nos últimos dias, ele lhe teria dito, de brincadeira ou
não, que "preferia vê-la
morta a embarcando para os Estados Unidos" - sem explicar que medidas
tomaria para impedir
o embarque. Na cabeça de Carlos Alberto, a opção de Carmen teria de ser
entre ele e a viagem.
Mas, se Carmen optasse por ele, o que isso mudaria as coisas para ela no
Brasil? Ao mesmo
tempo, surgia no ar uma outra pergunta que, de certa forma, resolveria
também esse problema:
musicalmente, quem seriam seus acompanhantes em Nova York?

Quando Carmen falou sobre isso a Shubert no Corcovado, ele não entendeu.
A idéia de que ela
quisesse viajar com seus próprios músicos nunca passara pelas cogitações
do americano. Para
ele, Carmen iria cantar músicas "latinas", e Nova York estava cheia de
músicos "latinos" prontos a
tocar com ela. Mas Carmen insistia em ser acompanhada por brasileiros,
que dominassem o
idioma do samba. Lembrava-se de que, em 1931, Carlos Gardel contara a ela
e a Chico Alves em
Buenos Aires que preferira encerrar seu contrato com a rádio NBC, de Nova
York, por não poder
ser acompanhado nos tangos por seus três guitarristas. Ao saber que
Carmen já tinha um grupo em
mente para viajar com ela - um conjunto vocal e instrumental, o Bando da
Lua, composto de seis
elementos -, Shubert preferiu contemporizar. Não valia a pena fechar
questão sobre esse ponto
agora - e, com habilidade, conseguiu deixar o problema dos músicos para
depois. Em vez disso,
pôs-se a discutir sobre as possibilidades comerciais nos Estados Unidos
de outro legítimo artigo
brasileiro: o guaraná.

Carmen telefonou a seu amigo Paulo Machado de Carvalho, proprietário da
Rádio Record, de
São Paulo, de quem, no passado, já recebera bons conselhos. Perguntou-lhe
o que ele achava da
idéia de ela ir para os Estados Unidos mesmo que o dinheiro não fosse dos
mais compensadores.
Paulo de Carvalho respondeu-lhe:

"Acho que você deve ir, Carmen. A coisa parece incerta e pouco rendosa,
mas há certas
vantagens que você precisa levar em consideração. Um sucesso nos Estados
Unidos, mesmo
relativo, aumentará a sua fama na América do Sul. Além disso, há os
programas de rádio, os
nightclubs. E Hollywood. Se,
com tudo isso, você fracassar, pode voltar que eu lhe darei um emprego na
Record até o fim dos
seus dias."


188


Isso definiu Carmen. Um ano antes, numa entrevista, ela se referira à sua
vontade de apresentar-se
por algum tempo em Nova York (como se para coroar a carreira), voltar
para o Brasil, aposentar-
se, casar-se e ter cinco filhos. O que teria a perder aceitando a oferta
de Shubert? Na pior das
hipóteses, um ano (ou menos). E sempre haveria um país - o Brasil - à sua
espera.

Sempre através de Rice, Carmen mandou dizer a Shubert no dia 18, sábado
de Carnaval, que
aceitava a proposta. Em resposta, Shubert falou de sua satisfação por tê-
la entre seus contratados
e comunicou que o Normandie seguiria viagem no dia seguinte. Assim que
chegasse a Nova York,
ele providenciaria o contrato. Os papéis chegariam ao Rio no começo de
março, em duas vias,
para que Rice os traduzisse para o português, Carmen os assinasse, e ele
pudesse começar
imediatamente a publicidade. A partir dali, era só marcar a data da
viagem - sabendo-se que
Carmen deveria estar em Nova York até fins de abril para os ensaios.
Shubert pedia também a
Rice que lhe enviasse as partituras de "Mamãe, eu quero", "Touradas em
Madri" e "O que é que a
baiana tem?".

Com o sim a Shubert, Carmen decidira por sua carreira. Não pela sua
continuação, mas pelo
recomeço dela - sozinha, entre estranhos, numa terra que não conhecia, e
numa língua em que
dominava pouco mais que o good bye, boy. Era como voltar aos dias de
"Taí", quando nenhum
sacrifício importava. Podia preparar-se para ficar cansada - só que já
não tinha vinte anos. Tinha
trinta - acabara de completar. E se, além de tudo, o dinheiro ainda era
uma incógnita, por que
aceitara?

Porque, depois de dez anos de carreira - e por mais que idealizasse uma
mudança de vida -,
Carmen não conseguia se ver em outro cenário que não um palco. Era mais
fácil tocar para a
frente do que parar e pensar. Era mais fácil dizer sim a Shubert do que a
um noivo. Com isso, seus
planos para um casamento e cinco filhos ficavam adiados - e talvez isso
fosse um alívio.

No mesmo dia, Carmen despachou pelo estafeta uma caixa de vestido para
Sonja Henie no
Normandie, contendo uma baiana. A rainha dos patins usou-a na noite
seguinte, no baile de
Carnaval que estourou a bordo quando o navio se afastou da barra e o Rio
se distanciou no
horizonte. Lee Shubert ficou impressionado ao ver os passageiros gritando
em coro "Carmen!
Carmen!" - e, por causa dela, dando a Sonja, por aclamação, o primeiro
prêmio no concurso de
fantasias.

"Faz, Pery! Faz xixi na cama da titia!"

Pery tinha um ano e quatro meses e era filho de Dalva de Oliveira e
Herivelto Martins. Carmen
estava aflita porque março já ia pela metade e os papéis de Shubert ainda
não tinham chegado -
como se ele tivesse mudado de idéia
ou melado a negociação. Então fizera uma promessa: botar uma criança para
urinar em sua cama
todos os dias, até que o contrato chegasse. Crianças aptas a fazer xixi
não faltavam em seu círculo
de amigas, mas Dalva e Herivelto eram seus vizinhos na Urca. Dalva a
visitava com freqüência,
levando o garoto, e Pery tinha preferência. Carmen sentava-o na cama, de
camisinha de pagão e
sem fraldas, e o entupia de guaraná na mamadeira. Mas Pery, nada.

189


Shubert chegara a Nova York em 1 de março e, já no dia 3, mandara o
contrato para Rice, como
combinado. O contrato estipulava que Carmen receberia "não menos que oito
semanas de
salário", declarava que ela era sua artista exclusiva "para todas e
quaisquer formas de
entretenimento", e só fazia uma vaga referência aos "rapazes com quem ela
queria se apresentar".
Num bilhete à parte, Shubert pedia a Rice que lhe telegrafasse assim que
Carmen tivesse o
contrato em mãos. Ou seja, estava com pressa de ver tudo resolvido - e
sem a menor dúvida de
que fizera um grande negócio. (No próprio dia de sua chegada, telefonara
para Dorothy Dey,
colunista do Morning Star, de Miami, para lhe falar de sua contratação
sul-americana.)

Mas, três semanas depois, o silêncio do Rio era total, e Shubert achou
que alguma coisa
encrencara por aqui. Só faltou também fazer uma promessa de botar uma
criança para urinar em
sua cama.

Alguma coisa encrencara, mas não no Rio. Fora o próprio secretário de
Shubert que, em vez de
despachar o envelope por via aérea, mandara-o de navio, como era o
normal. Rice só o recebeu
no dia 27 de março e telefonou logo a Carmen para comunicar-lhe. Por
coincidência, poucas
horas antes, Pery produzira uma vasta poça na cama de Carmen - e, quando
isso aconteceu, ela
o cobrira de beijos exclamando:

"Meu mijão! Meu mijãozinho!"

Rice tentou correr contra o tempo. Ignorou seus afazeres de presidente da
Panair com escritório
no Aeroporto Santos Dumont, traduziu a jato os contratos e levou-os a
Carmen na Urca. Carmen
os assinou, mas escreveu uma carta a Shubert (ditada a Rice e também
vertida por ele para o
inglês) para reafirmar um ponto "da maior importância": a ida do Bando da
Lua. Em sua carta,
Carmen explicava que o Bando trabalhava de forma "independente" e que era
"extremamente
conhecido", não apenas no Brasil, mas também na Argentina e no Chile. O
nome Bando da Lua
significava "Band of the Moon". E ela até se atrevia a uma exigência: a
de que, em toda a
publicidade, o crédito fosse para "Carmen Miranda and Bando da Lua". A
ingenuidade desses
argumentos (como se fizesse diferença para Shubert que alguém fosse
conhecido no Chile ou na
Argentina) só não era maior porque Rice, surpreendentemente, concordava
com Carmen. Ele
também achava que o Bando da Lua deveria ir com ela, e escreveu isso num
bilhete para Shubert:
"Pelo menos por um período inicial, porque o ritmo e o canto únicos da
música popular brasileira
são de difícil assimilação pelos nossos músicos".


190

Pelo tipo de argumentação, e pela infantil exigência de crédito à parte
para o Bando da Lua,
qualquer um entenderia o que estava se passando: Carmen e Aloysio estavam
mais firmes do que
nunca.

Sem dúvida, o Bando da Lua era um conjunto independente e com uma
apreciável carreira
própria. De sua estréia em disco, em 1931, até aquele momento, os rapazes
tinham gravado setenta
músicas e podiam se orgulhar de alguns sucessos: a marchinha que os
revelara no Carnaval de
1934, "A hora é boa", do próprio Aloysio; o grande samba "Mangueira", de
Assis Valente e
Zequinha Reis, lançado por eles em maio de 1935:

Não M, nem pode haver Como Mangueira não há O samba vem de lá Alegria,
também Morena faceira Só
Mangueira tem...,

a impagável marchinha "Laia", de Braguinha e Alberto Ribeiro, também em
1935; um Noel menor, em parceria com Hervê Cordovil, "Não resta a menor
dúvida", mas popular
por ter aparecido no filme Alô, alô, Carnaval!, em 1936; outra marchinha,
a explosiva "Maria boa",
também de Assis Valente, sucesso do Carnaval de 1936; e, naquele próprio
Carnaval de 1939, a
marchinha "Pegando fogo", de José Maria de Abreu e Francisco Matoso:

Meu coração amanheceu pegando fogo Fogo! Fogo!

Foi uma morena que passou perto de mim E que me deixou assim.

Era um cartel de responsabilidade.

Naqueles anos, o Bando da Lua tinha dado incontáveis shows e aparecera de
graça em outros
tantos eventos beneficentes. As instituições os disputavam porque eles
eram rapazes "de família",
cantavam bem e faziam um grupo vistoso, sempre na última pinta - ternos
bem passados, os
lenços à mesma altura no bolsinho do paletó, tinta e graxa impecáveis nos
sapatos. E eram
educados, bem informados, sabiam conversar - às vezes, até demais. Seus
colegas, por exemplo,
riam quando Aloysio dizia que tinha se formado em odontologia (quando o
conjunto se
profissionalizou, todos abandonaram os estudos). Mas eles realmente
gozavam de certa
penetração na sociedade e Vadeco, o mais atirado, tinha amigos que iam do
basfond aos altos
escalões do governo. (Tinha amigos também em O Globo, para o qual mandava
matérias de onde
quer que estivesse.)
Sem falar na cancha internacional. A partir de 1934, o Bando da Lua fora
todos os anos a Buenos
Aires, e em alguns anos, mais de uma vez. Na excursão de 1937, quando
Carmen voltou pelo
Uruguai, eles subiram até o Chile, onde cantaram e foram recebidos em
palácio pelo presidente
Arturo Alessandri. Durante a excursão, viram-se em meio a uma tentativa
de golpe de Estado, com
bombas e tiroteios nas ruas de Santiago. Nenhum deles se apertou, e
Vadeco ainda mandou, pelo
telégrafo, relatos sobre a revolução para O Globo.

191


Até então, a ligação do Bando da Lua com Carmen era principalmente de
amizade e pelos shows
que tinham feito juntos na Argentina. No Brasil, às vezes apareciam no
mesmo espetáculo, mas
sempre em números separados. Uma exceção fora a dos dias 23, 24 e 25 de
outubro de 1937, no
Cine-Teatro Broadway, na Cinelândia, quando Carmen, Aurora e o Bando da
Lua entraram no
palco e cantaram, a oito vozes, arranjos especiais de seus sucessos
"Primavera no Rio",
"Ladrãozinho" e "Maria boa", despedindo-se do público para a longa
temporada que iriam fazer
em Buenos Aires.

Carmen e o Bando tinham uma história em comum. Mas, se fosse para tentar
a aventura de Nova
York, o Bando da Lua precisaria resignar-se a ser coadjuvante. A estrela
era Carmen - e não
havia romance com Aloysio que alterasse esse status quo.

No mesmo dia em que recebeu o contrato de Shubert, 27 de março, o
diligente Rice o traduziu,
pegou a assinatura de Carmen nas duas vias, juntou a carta em que ela
falava do Bando da Lua e
acrescentou, de sua autoria, um esboço de "biografia" de Carmen, a ser
trabalhado em Nova York
por Claude Greneker para os futuros releases sobre ela.

Por esse texto de Rice, estabeleceu-se que Carmen "tinha 25 anos", não
trinta. Ou seja, nascera em
1914, não em 1909. Dizia também que ela fora "educada num convento", não
num simples colégio
de freiras. O convento era uma fixação dos americanos a respeito da
"pureza" de suas estrelas
latinas - pelo visto, a única forma de salvá-las de uma adolescência
presumivelmente sórdida em
seus países de origem, envolvendo miséria, abusos sexuais e, quem sabe,
prostituição. A idéia era
que, se crescera internada num convento, a moça passara ao largo de tais
mazelas. E o texto
informava ainda que Carmen era "boa nadadora e grande fã de regatas e de
corridas de
automóveis". Nada a opor quanto a esse item, embora ele se aplicasse
muito mais a Aurora, que
não perdia uma corrida de baratinha no Circuito da Gávea. Boa parte da
publicidade de Carmen
nos Estados Unidos pelas décadas seguintes seria derivada desse texto de
Rice.

Rice juntou-o aos contratos, enfiou tudo num envelope em que escreveu
"Mister Lee Shubert, Select
Operating Corporation, 234 West 44th Street, New York, N.Y.", e mandou-o
por via aérea naquele
mesmo dia. Isso é que se chámava
eficiência. A Select era o guarda-chuva que abrigava as organizações
Shubert, e seu
endereço era o coração do "distrito teatral" de Manhattan - se é que tal
distrito tinha coração.


192


No dia 12 de abril, Shubert escreveu a Rice dizendo que estava tendo
problemas com o Sindicato
dos Músicos Americanos para importar o Bando da Lua - mas que iria tomar
providências para
que "Miranda pudesse trabalhar perfeitamente sozinha". Pedia também que
ela embarcasse no dia
27 de abril pelo Furness ou que fosse de avião - o importante era estar
em Nova York até
10 de maio. Era quase um ultimato. Era também uma maneira de confundir
Carmen e mostrar a ela
como havia coisas mais urgentes a resolver do que essa história do Bando
da Lua. E, de fato, em
meados de abril, a situação dos rapazes era triplamente desesperadora: 1)
Shubert não os queria;
2) Mesmo que os aceitasse, não pagaria suas passagens; 3) E era verdade
que o sindicato
americano estava impedindo que cantores estrangeiros entrassem nos
Estados Unidos com seus
próprios conjuntos ou orquestras - para não agravar uma suposta crise na
categoria, com,
segundo eles, 14 mil músicos desempregados no país.

Mas a manobra de Shubert não parecia estar dando certo. Em 20 de abril,
Rice mandou-lhe um
alarmante telegrama:

MIRANDA IMPOSSIBILITADA SEGUIR ANTES DE 3 DE MAIO POR NÃO PODER
INTERROMPER CONTRATOS LOCAIS VIGENTES. SERIAMENTE PREOCUPADA COM
[A SUA] INCAPACIDADE DE ARRANJAR COM QUE RAPAZES [DO BANDO DA LUA]
A ACOMPANHEM. RELUTA ESTREAR EM NOVA YORK SEM TER ESSENCIAL
BACKGROUND RÍTMICO BRASILEIRO, SEM O QUAL SEU TRABALHO
CERTAMENTE FRACASSARÁ POR NÃO SER FAMILIAR A MÚSICOS AMERICANOS.
QUASE CERTEZA DE COMPLICAÇÕES DE ULTIMA HORA SE ESSE PROBLEMA
NÃO FOR RESOLVIDO. SE FOR POSSÍVEL RESOLVER PROBLEMA COM
SINDICATO, SUGIRO ACERTAR COM RAPAZES TRANSPORTE EM CLASSE
TURÍSTICA COM DESPESAS INTEIRAMENTE POR CONTA DELES OU QUEM SABE
RAPAZES TRABALHAREM EM MEIO EXPEDIENTE NO PAVILHÃO DO BRASIL NA
[PRESTES A SER INAUGURADA] FEIRA MUNDIAL [DE NOVA YORK].

Shubert, de propósito, não acusou recebimento. O Bando da Lua gelou. Mas,
quando se
convenceu de que, a depender do empresário, eles ficariam a ver navios na
praça Mauá, um dos
membros do conjunto resolveu agir: o expedito Vadeco. Era hora de acionar
suas amizades - e
de mobilizar os poderes da República para a idéia de que a ida do Bando
da Lua com Carmen
Miranda para a América era fundamental para a salvaguarda do samba e das
instituições
nacionais. Havia dois problemas imediatos a resolver: encontrar quem
pagasse as passagens do
Bando para Nova York e conseguir permissão para o conjunto trabalhar lá.

Vadeco atacou nas duas frentes quase ao mesmo tempo. Primeiro, procurou
sua influente vizinha no Catete, Alzirinha Vargas, filha do ditador. Ela
se interessou pelo caso
e o encaminhou a Lourival Fontes, diretor do DNP (Departamento Nacional
de Propaganda),
órgão encarregado de censurar a imprensa e promover as glórias do Estado
Novo dentro e fora
do país. Ora, facilitar a ida do Bando da Lua - para garantir que Carmen
Miranda pudesse
cantar em Nova York num contexto brasileiro - se aplicava à perfeição aos
desígnios do DNP.

193


O DNP não estava sujeito ao Ministério da Justiça. Respondia direto à
Presidência da República,
inclusive quanto à manipulação de verbas. Mesmo assim, certos limites
precisavam ser
observados - não ficava bem ao sergipano Lourival Fontes abrir uma gaveta
na sede do órgão,
no Castelo, tirar de lá um maço de cédulas e enfiá-las no bolsinho do
blusão de Vadeco. Um
mínimo de legalidade deveria existir. Assim, no decorrer das semanas
seguintes, acertou-se que,
mesmo sem contrato com Shubert, os rapazes teriam suas passagens de ida e
volta, na classe
turística, pagas pelo DNP, para que, seguindo a sugestão de Rice, se
apresentassem durante seis
meses no Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. Mas isso era
apenas para justificar a
viagem - o importante era que, vendo-os em Nova York, Shubert os
contratasse. Além disso, era
preciso garantir-lhes a subsistência nos primeiros tempos na cidade. Para
tanto, Lourival mandou
Vadeco a Ilka Labarthe, responsável pela Hora do Brasil, o novo programa
oficial do Estado
Novo que, durante uma hora por dia, no horário noturno, ocupava todas as
estações de rádio.
Resolveu-se que o Bando da Lua faria quatro apresentações na Hora do
Brasil, recebendo um
cachê em dinheiro para aqueles fins.

Ao mesmo tempo, Vadeco procurou Vavau Aranha, irmão do ministro das
Relações Exteriores de
Vargas, Oswaldo Aranha. Para Vavau, o urgente era resolver o problema com
o sindicato
americano. Comunicou-se com o radialista Teophilo de Barros, organizador
do Pavilhão do
Brasil, e com o chefe dele, Decio Moura, primeiro-secretário do consulado
brasileiro em Nova
York e homem ligado à vida artística local. Decio já aprovara a
participação do Bando da Lua
entre as atrações musicais do Pavilhão e, depois de consultas aos peritos
em tecnicalidades,
surgira a idéia de o conjunto entrar nos Estados Unidos como um "número à
parte", não como uma
"orquestra acompanhante". Isso era verdade, pelo menos no que se referia
às apresentações na
Feira Mundial, e o tornaria aceitável para o sindicato.

Com as passagens garantidas e a permissão de trabalho em dia, Shubert não
teria mais como
recusar o Bando da Lua - eles pensaram. Vendo-se vencido, Shubert não
recusou o Bando, mas,
quase às vésperas do embarque, contrapropôs que só os contrataria, a 35
dólares por semana
cada, se se reduzissem de seis para quatro elementos - caso contrário,
"Miranda terá de se virar
sozinha". Carmen não admitiu a hipótese e garantiu que pagaria os
salários dos outros dois.


194

No dia 29 de abril, Rice confirmou para Shubert que, ainda com algumas
arestas a aparar, Carmen
e o Bando da Lua embarcariam no Uruguay no dia 4 de maio, chegando a Nova
York no dia 15, e
que a passagem de Carmen, na primeira classe, ele a comprara de seu
bolso. Rice estava
guardando para o embarque a descrição do inacreditável clima que se
apossara do Rio e do
Brasil, provocado pela simples decisão de um empresário americano de
contratar uma artista
brasileira para sua trupe.

Às vésperas da viagem, a ida de Carmen para Nova York começara a tomar,
em todos os jornais e
rádios, dimensões de uma embaixada, de uma representação diplomática,
quase de uma incursão
de guerra. Já não eram apenas Carmen e o Bando da Lua. Era o samba, ou o
próprio Brasil, de
turbante e balangandãs, que ia viajar para se impor "lá fora". A palavra
missão era usada com a
maior naturalidade pela imprensa. O que parecia um exagero de Vadeco -
sensibilizar os
poderes para tornar possível a ida de Carmen e do Bando, juntos, para
Nova York -
materializara-se por uma incrível conjunção de fatores. Um desses, a
situação política pós-
novembro de 1937, com a instauração do Estado Novo. Desde então, sob um
regime que
lembrava um fascismo mirim, o Brasil se tornara nacionalista do papo
amarelo. Por toda parte,
estimulados pelo departamento de propaganda do regime, começavam a
pulular os virundus, os
lábaros estrelados, os auriverdes pendões e toda sorte de patriotadas,
destinadas na verdade a
colorir o projeto pessoal do ditador.

Sendo assim, caíra do céu que a maior estrela da música popular
brasileira tivesse sido convidada
a se apresentar no palco mais importante do mundo. Nem mesmo Lourival
Fontes, com seu ar de
louco de filme B - o olhar dos desvairados, o cabelo que passava meses
sem ver uma tesoura ou
um pente -, ousaria ter tal idéia. Mas, já que acontecera, era importante
capitalizá-la: Carmen
tinha de vencer na Broadway - porque seria uma "vitória do Brasil". E,
para isso, o próprio
Getúlio, talvez por orientação de Alzirinha, decidiu meter-se na
história. Na segunda quinzena de
abril, ele saiu de seus cuidados em Caxambu, Minas Gerais, onde fazia uma
estação de águas,
para receber Carmen e o Bando da Lua - que lhe deram um show no hotel - e
certificarse de
que, em Nova York, por trás do exotismo e da graça da cantora, haveria o
"verdadeiro ritmo
brasileiro", dado pelo conjunto.

Os últimos dias de Carmen no Rio foram umaféerie de homenagens,
despedidas e providências -
às vezes tudo ao mesmo tempo, como ir comprar roupas de viagem nas lojas
da rua Gonçalves
Dias e, sem querer, fazer a rua parar, porque todos os lojistas saíram
para abraçá-la. Carmen
encomendou também cinco baianas ao figurinista e ilustrador de O
Cruzeiro, Gilberto
Trompowski. Entre uma e outra prova a que Trompowski a submetia, Carmen
voltou várias vezes
à avenida Passos em busca de mais material para as fantasias
- foi quando lhe ocorreu que os turbantes, batas e balangandãs podiam ser
combinados de
forma a gerar baianas diferentes. E havia sua vida profissional, ou o que
restaria dela. Carmen não
tinha grandes pendências, mas nomeou Edmar Machado como seu procurador.
Para as questões
domésticas, fez o mesmo com seu irmão Mocotó.

195


Com tudo acertado, começou o festival de adeuses. Na noite de 1 de maio,
despediu-se de seus
ouvintes no rádio direto do auditório da Mayrink Veiga, com César Ladeira
abrindo os trabalhos,
solene e bombástico:

"Carmen vai dar ao samba um cartaz mundial. Vai ver seu nome, para
alegria nossa, ardendo no
incêndio colorido dos anúncios luminosos da ilha de Manhattan."

Carmen cantou sete números, chorou no último - "Adeus, batucada" -, que
não conseguiu
terminar, e emendou com um discurso em que dizia:

"Lembrem-se sempre de mim, que eu jamais os esquecerei."

E, com isso, mais gente chorou no auditório.

Foi comovente, mas não tanto quanto o show de adeus, duas noites depois,
em 3 de maio -
véspera do embarque -, no Cassino da Urca. Começou com o Bando da Lua
cantando
"Mangueira", "Maria boa" e outros de seus sucessos. Em seguida, o cantor
Fernando Alvarez
anunciou Carmen. Quando ela entrou, sob um ponto de luz, o palco se
cobriu de rosas e os
aplausos não paravam. Na platéia, mais do que nunca, muita gente da
chamada sociedade, alguns
na condição de seus amigos pessoais. Carmen começou a cantar "Camisa
listada" - não
agüentou e prorrompeu em choro. Nas outras salas, as quinze roletas
pararam no duplo zero -
ninguém estava interessado em jogar. Os quase trezentos funcionários do
cassino puseram-se
contra as paredes, imóveis, em sinal de respeito - ou de saudade
antecipada da vizinha ilustre
em cuja casa alguns deles subiam para tomar um café com dona Maria antes
do início do batente.
Carmen assoou-se, retomou o controle e o show, cantou tudo que lhe
pediram e, junto com o
Bando da Lua, encerrou com "O que é que a baiana tem?".

Quando todo mundo já estava se esquecendo de que aquela era uma
despedida, Joaquim Rolla
tomou o microfone e disse que Carmen e o Bando da Lua estavam "partindo
para a Broadway,
direto do Cassino da Urca". Isso desatou mais lágrimas, no palco e na
platéia. E com razão:
quando Carmen viajava para Buenos Aires, que era ali na esquina, e se
demorava por algumas
semanas, os jornais falavam que "a ausência da querida estrela já era
sentida nos microfones
cariocas". Imagine a ida para Nova York, sem perspectiva definida de
volta - se é que haveria
volta.

A revista Carioca, daquele mesmo mês de maio, publicou uma colaboração de
um leitor de Belo
Horizonte, Fernando Tavares Sabino, que profetizava:

"Nos Estados Unidos" Carmen Miranda arrebanhará milhares de fãs com sua
voz expressiva de
legítima sambista. É até capaz - e eu protesto dêsde
já - de querer ficar por Hollywood, pois contratos vantajosos não lhe
faltarão. Mesmo
porque, além de sua garganta de ouro, tem ela uma fachada bem jeitosinha
e um corpinho de se
tirar o chapéu.


196


O leitor, bem safadinho, era o futuro cronista Fernando Sabino, ainda
cheio de espinhas aos
quinze anos e meio.

A Odeon também suspeitou de que sua maior cantora não voltasse tão cedo e
resolveu precaver-
se. Nas semanas anteriores, Carmen foi repetidamente convocada ao estúdio
e eles a fizeram
gravar o máximo que puderam, para ir soltando os discos aos poucos,
durante a sua ausência. No
dia 21 de março, Carmen gravou quatro músicas, inclusive "Uva de
caminhão", de Assis Valente;
no dia 5 de abril, mais quatro, entre as quais dois bons sambas de
Laurindo de Almeida, "Mulato
amimetropolitano" e "Você nasceu pra ser grã-fina"; no dia 18, três; no
dia 29, duas; e, nos
próprios dias 2 e 3 de maio, vésperas do embarque, a Odeon não perdoou e
a obrigou a gravar
mais duas com Almirante. Todas essas músicas tiveram de ser aprendidas e
ensaiadas enquanto o
mundo pegava fogo à sua volta, dezenas de pequenas providências
precisavam ser tomadas, e
centenas de pessoas a solicitavam sem parar. O resultado final revelou o
velho profissionalismo:
os discos não refletem o que era o lufa-lufa de sua vida naqueles dias.

Apenas no que se referia aos discos, Carmen estava deixando para trás uma
carreira maravilhosa.
Em dez anos, gravara 281 músicas, recorde absoluto entre as cantoras
brasileiras - sambas e
marchas na imensa maioria, mas também choros, canções e até ritmos
exóticos, como rumbas,
foxes e tangos. Os sucessos eram incontáveis. Fizera dupla com os maiores
cartazes de sua
geração - nenhum maior do que ela -, como Chico Alves, Mário Reis, Sylvio
Caldas, Carlos
Galhardo, Almirante, Aurora. Todos os grandes compositores brasileiros
tinham passado pela sua
voz e ela fora responsável pela consagração de pelo menos três: Assis
Valente, Synval Silva e
Dorival Caymmi. E tivera a acompanhá-la os maiores músicos do país, como
os flautistas
Pixinguinha e Benedito Lacerda, o saxofonista Luiz Americano, os
violonistas Rogério
Guimarães, Jayme Florence (o Meira) e Laurindo de Almeida, o bandolinista
Luperce Miranda, o
pianista Nono e grandes pioneiros do ritmo, como Bidê ao tamborim,
Walfrido Silva à bateria, e
Russo do Pandeiro.

Os shows nos cassinos, os programas de rádio, as apresentações em cinemas
e teatros, tudo isso
passara sem registro e seria privilégio exclusivo da memória de quem
estivera lá para vê-los e
ouvi-los. E os próprios filmes iriam se perder. Só os discos ficariam.
Foi sorte que Carmen tivesse
gravado em tal abundância durante sua carreira brasileira. E, boy, como
nós, um dia, iríamos
precisar desses discos.

197

O Rio foi despedir-se da Pequena Notável, da Embaixadora do Samba, da
Namorada do Brasil.
O Uruguay, da Moore-McCormack, sairia às dez da noite de 4 de maio, uma
quinta-feira. A
multidão tomou a Zona Portuária e dificultou a chegada de Carmen com
Aurora ao Touring Club,
mesmo com os batedores abrindo caminho com as motos. Dona Maria e os
outros filhos tinham ido
na frente, para esperá-la dentro do navio. Mas a massa que cercava a
estrela afastou-os da escada
e espremeu-os contra o outro lado do tombadilho. Carmen, de camisa
listrada (listras largas em
azul e amarelo), casaco (com monograma), saia grená e, à guisa de cinto,
um intrigante puxador
de cortina, subiu muito atrasada ao Uruguay. No seu vácuo, uma multidão
de amigos, jornalistas,
colegas - entre os quais Francisco Alves, César Ladeira, Almirante, Linda
e Dircinha Batista,
Ciro Monteiro, Odette Amaral, Moreira da Silva, Aracy de Almeida - e
gente que ela nunca vira.
Todos queriam entrar no camarote 102 da primeira classe.

Ela comandava:

"Vão entrando! Nada de cerimônias!"

As pessoas se sentavam na cama, na mesa, nos baús de Carmen, e tomavam o
resto do espaço que
não tinha sido ocupado pelas flores. Carmen estava levando vitrola e
discos para a viagem, e a
música já começou ali. "Onde está mamãe?", perguntava. Ninguém sabia. No
meio da confusão,
uma repórter, Sarah Harsah, da Carioca, conseguiu arrancar-lhe bonitas
declarações:

Eu quero que o americano conheça o samba e compreenda que samba não é
rumba. Não pretendo
abafar ninguém, só levar um pouco da nossa música para os Estados Unidos,
como levei para a
Argentina. Não vou esquecer minha terra, nem me americanizar. Serei
sempre a Carmen que adora
o Rio e é amiga de todos. Não voltarei exótica, pedante, cantando foxes
ou blues. Diga que eu
virei sempre para ver os meus amigos. Em todas as folgas dos meus
contratos, tomarei um avião
para o Rio. Cantarei no cassino. Aparecerei no palco. Todos me verão.
Matarei as saudades. Vou
me sentir tão pequenina na América, perdida naquela imensidão.

Grandes esperanças, altas aspirações. Outro repórter perguntou-lhe se ela
pretendia "anexar os
Estados Unidos ao império do samba".

O Bando da Lua também estava ali, completo, apenas esperando a partida
para se dirigir à classe
turística, no deque inferior. Mas por pouco não viajava desfalcado de
dois de seus membros: os
violonistas Hélio Jordão Pereira e Ivo Astolfi. Dias antes do embarque,
eles estavam
demissionários do conjunto. Não porque Shubert ameaçasse pagar apenas o
salário de quatro
deles - mas porque temiam a descaracterização de seu estilo se eles se
reduzissem ao
acompanhamento de Carmen.

Foi a primeira fissura numa amizade musical que já vinha de dez anos.
Hélio e Ivo foram votos
vencidos contra Aloysio, Vadeco e os irmãos Ozorio -
que, para seus lugares, já tinham assegurado a participação de dois
jovens violonistas: Laurindo
de Almeida e Garoto. (Fora com Laurindo e Garoto que eles tinham se
apresentado para Getúlio
em Caxambu, dez dias antes.) Mas, na última hora, Hélio e Ivo voltaram
atrás e se reintegraram.


198


Pouco depois da chegada do Bando, um funcionário da Agência Nacional,
subordinada ao DNP,
conseguiu localizá-los no camarote de Carmen e entregou-lhes uma caixa de
sapatos abarrotada
de dinheiro. Eram os cachês pelas quatro participações na Hora do Brasil.
O pagamento era em
mil-réis, mas Vadeco conseguiu trocá-los por dólares com o pessoal do
navio.

Faltando dez minutos para o Uruguay levantar a escada, Carmen foi levada
ao tombadilho para
responder ao povo que lhe acenava com lenços brancos. Só então conseguiu
encontrar dona
Maria. Mãe e filha se atiraram uma à outra e, por alguns momentos, a cena
foi Várzea de Ovelha
em seu apogeu. O povo desceu e dona Maria teve de descer também, aos
soluços, amparada por
Aurora e Cecília. Ninguém sabia quando voltariam a se ver.

O Uruguay começou a se mover, todo iluminado, levando seus quinhentos
passageiros. Aos
poucos, os colegas de Carmen foram embora do píer. O último a ser visto,
sozinho, chorando lá
embaixo, foi Almirante. Por um instante - como diria no futuro à amiga
Ruth Almeida Prado -,
Carmen pensou ter visto outra pessoa à distância: Carlos Alberto da Rocha
Faria.

Carmen e Carlos Alberto não se falavam havia semanas. Para ela, o
silêncio dele caracterizara um
rompimento, e Carmen se lembrou da ameaça de que ele preferia vê-la morta
a tomando aquele
navio. Naquele momento, a alternativa era clara para ela: "Prefiro que
ele venha me matar a que
não venha". Mas, evidentemente, ninguém foi matá-la, nem ela poderia
jurar que o homem no cais
fosse Carlos Alberto. Carmen entrou chorando em seu camarote.

Não muito longe dali, o Pathezinho ainda estava levando Banana da terra.
A frase de um jornal
daquele dia, sobre Carmen, parecia resumir o sentimento geral:

"Ela merece tudo."

No dia seguinte, 5 de maio, Rice escreveu a Shubert, não sem uma certa
dose de alívio:

Finalmente Miranda embarcou ontem no S.S. Uruguay, num esplendor de
glória misturado com
muita propaganda. Pena que você não leia português, porque se divertiria
ao ver as vastas
referências ao seu nome, em toda a imprensa brasileira, com dezenas de
louvores e encómios por
ter sido o "descobridor" de um grande talento teatral brasileiro e o
primeiro "grande empresário
americano" a vir ao Brasil com um olho para isso etc. etc.

199

Como antecipei em meus últimos telegramas, houve muita confusão de última
hora devido à
relutância de Miranda em embarcar sem seus acompanhantes do Bando da Lua.
Transmiti-lhes
sua oferta de pagar a quatro deles 35 dólares por semana e, até o dia da
partida do navio, não
tinham decidido se iriam. Finalmente, conseguiram que o governo
brasileiro lhes pagasse as
passagens, por intermédio do Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York, e
todos os seis
decidiram ir, mesmo que você só possa usar quatro. Deixei bem claro que
sua oferta só se referia a
quatro deles a 35 dólares por semana, sem outras garantias ou auxílios.

Pelo que fui informado, o Uruguay tem chegada prevista a Nova York no dia
16 de maio.
Assegurei a Miranda que você providenciará para que ela seja recebida por
alguém que fale
português ou espanhol. Aliás, não sei se você sabe, mas ela fala espanhol
fluentemente.

Segue anexo um relatório detalhado de minhas despesas relativas às nossas
várias comunicações
por telegrama e o pagamento da passagem de navio Rio-Nova York para
Miranda. Como o
correio aqui é pouco confiável quando se trata de transmissão de cheques,
ao invés de me enviar
diretamente, você faria a gentileza de endossar seu cheque para depósito
em minha conta na filial
da Rua 42 do National City Bank, em Nova York. Para sua conveniência,
estou anexando a ficha
de depósito que acompanhará o cheque.

Clairborne e eu temos esperança de que, sob sua competente orientação,
Miranda será um enorme
sucesso. Se for possível, para Clairborne e eu, continuarmos a ser de
alguma ajuda para você a
esse respeito, por favor, não hesite em nos contatar.

Sinceramente,

Jay Rice

Nota do corretor do escaneamento

Os termos e palavras em inglês que seguem a diante, não foram mechidos,
por tanto
provavelmente haverá erros. A cantora agora daqui para diante está em
terras norte
americanas.

Fim da nota.



Capítulo 12


1939

"Brazilian bombshell"



Carmen soltou as mechas, que caíram como um manto sobre as costas da
cadeira, e disse à
cabeleireira do navio:

"Não tenha pena de mim, minha filha. Quero o cabelo mais preto que um
urubu."

Ao sair do Rio, seu cabelo, originalmente castanho-claro, estava mais
para um suspeito louro-
carambola. Quando se viu ao largo, e por estar indo para um país de
louras natas, resolveu
escurecê-lo. A moça seguiu suas ordens e carregou tanto na tinta que, ao
se olhar no espelho,
Carmen exclamou:

"Cruz, credo!"

Não gostou. Ficara "latina" demais, e não queria ser confundida com uma
cubana ou mexicana.
Pegou um lenço, improvisou um turbante - um turbante de passeio -, e,
pelo resto da viagem,
raramente foi vista sem um.

Nos treze dias que passaram a bordo, ensaiando nos camarotes, Carmen e o
Bando da Lua
tiveram muito tempo para especular sobre o que os esperava em Nova York.
Uma quase-certeza
era que os americanos não iriam entender nada que ela cantasse. Mas a
esperança era que a bossa
e as roupas de Carmen e o próprio micróbio do samba equilibrassem a
balança. E, se Shubert a
contratara, era porque sabia o que estava fazendo. Na segunda metade da
viagem, à saída do
porto de Trinidad, tiveram a prova. O comandante William Oakley pediu-
lhes um show no salão
principal. Carmen e o Bando cantaram sob aplausos o repertório que vinham
ensaiando, bem
rítmico e dinâmico. Em meio a um samba mais esquentado, Vadeco esqueceu o
pandeiro e tirou-a
para dançar. Todo o navio vibrou, e mais da metade dos passageiros era de
americanos. Ali,
Carmen convenceu-se de que não havia nada a temer. Na seqüência, o
comandante ofereceu-lhes
um banquete à base de peru trufado e molho de frutas vermelhas.

O Uruguay atracou em Nova York na manhã de 17 de maio. Shubert mandara
seu chefe de
imprensa Claude Greneker e mais cinco funcionários, um deles falando
espanhol, para receber
Carmen. Para surpresa de Greneker, o consulado brasileiro também mandara
cinco pessoas, além
do primeiro-secretário, Decio Moura. Para os repórteres e fotógrafos que,
alertados por Greneker,
tinham ido entrevistá-la nas docas, aquele aparato oficial era inusitado.
Por que tanta gente para
uma simples cantora?

201

Carmen desceu do navio, com seus 55 quilos distribuídos pelos 152
centímetros - mais dez ou
doze centímetros acima do skyline com as plataformas -, e apresentou-se a
Nova York com seus
olhos verdes, lábios carnudos e dentes perfeitos. A roupa, talvez por
superstição, era a do
embarque - a mesma camisa listrada, quase de malandro, e a saia grená,
mais um par de luvas e
um manto jogado sobre os ombros. Greneker, Decio e respectivas trupes
atiraram-se sobre ela
para as boas-vindas e trocaram-se alaridos em inglês, português e
espanhol. Quando os fotógrafos
a convocaram para trabalhar, Carmen sentou-se sobre um baú, abriu seu
panorâmico sorriso,
cruzou as pernas douradas e, com um frescor e uma alegria de quem ainda
não saíra do Rio - oh!
-, estava sem meias!

Assim que lhe deram uma oportunidade para falar inglês, mostrou por que
os repórteres de Nova
York seriam sempre loucos por ela. Ao responder sobre que palavras sabia
dizer na língua de seu
novo país, Carmen disparou, com voz de criança em disco infantil:

"I say money [pronunciando mónei], money, money. I say money, money,
money, and I say hot
dog. I say yes, and I say no, and I say money, money, money. And I say
turkey sandwich, and I say
grape juice" - e por aí foi, como uma matraca, acrescentando em outra
resposta: "I say mens,
mens, mens".

O que dera em Carmen? Mesmo para os que não a conheciam muito bem, esse
surto materialista,
glutão e sexual não se parecia com ela. Era como se lhe tivessem rodado a
manivela e uma
geringonça de corda falasse por sua boca. Antes que a imprensa de Nova
York pudesse acusá-la
de crassa vulgaridade, alguém (Aloysio, segundo o próprio) foi em seu
socorro, argumentando
que "money", dinheiro, era a primeira palavra que se aprendia ao se
chegar nos Estados Unidos.
E que fora no navio que ela aprendera sobre "turkey sandwich", sanduíche
de peru, e "grape
juice", suco de uva. Mas Aloysio não precisava ter-se dado o trabalho.

Ninguém percebera ainda que, naquele momento, Carmen acabara de assumir -
talvez sem saber
- um papel que nunca tinha sido seu no Brasil, mas que ela desempenharia
pelo resto da vida nos
Estados Unidos: o de uma pura comediante.

Dois dias depois da chegada, Carmen e o Bando da Lua fizeram um show para
Shubert e seus
homens no Broadhurst Theatre, a fim de definir o material que ela
cantaria em Streets of Paris. Um
resfriado trazido do navio não a impediu de empolgar o diretor Edward
Dureya Dowling, o
coreógrafo Robert Alton, o diretor musical Hugh Martin, a figurinista
Irene Sharaff e,
principalmente, a dupla de comediantes Ole Olsen e Chie Johnson,
parceiros de Shubert na
produção. Entre os vários números apresentados, eles decidiram por "O que
é que a baiana tem?",
"Touradas em Madri", a embolada "Bambu, bambu", que
Carmen aprendera no navio com Aloysio, e uma pseudo-rumba de Jimmy McHugh
e Al Dubin,
"South American way", feita especialmente para o espetáculo e, sabe-se lá
por quê, até então
reservada ao francês Jean Sablon. Surpresa: quem se materializou no
Broadhurst naquele fim de
tarde, serviu cordialmente de intérprete e até deu palpite na escolha dos
números musicais foi um
velho conhecido dos brasileiros - Wallace Downey.


202


O desempenho do Bando da Lua também agradou a Shubert, tanto que ali
mesmo se decidiu que
os seis membros do conjunto fariam jus aos 35 dólares por semana cada um.
Não que Shubert
estivesse sendo magnânimo. Acontece que a orquestra do teatro, a quem
tinham sido repassadas
as partes das músicas brasileiras que Maxwell Jay Rice lhe enviara, não
conseguira reproduzir a
vibração e o calor que Shubert sentira no Cassino da Urca. O jeito era
usar o reforço do Bando da
Lua, mesmo que o sindicato o obrigasse a pagar uma taxa equivalente a
cada músico brasileiro -
o que iria acontecer. E nem assim Shubert quis fazer um contrato direto
com o conjunto. Apenas
lavrou-se um acordo à parte, assinado e anexado ao contrato de Carmen no
dia 26, para que ela
ficasse responsável por receber o dinheiro e pagar os rapazes.

Naquela mesma noite, Shubert levou Carmen e a turma ao 46th Street
Theatre para assistir à
revista Mexicana, outra produção sua. Deve ter achado que eles estavam
com saudades de casa:
o espetáculo era falado em espanhol, com o elenco todo mexicano, e
financiado pelo governo
mexicano (ele apenas o produzira, como uma encomenda). Mas, em seguida,
Shubert redimiu-se
porque esticou com eles ao novo Cotton Club, na esquina da Broadway com a
Rua 48, onde se
deliciaram com Cab Calloway e sua orquestra e com o dançarino Bill
"Bojangles" Robinson. Nas
noites seguintes, foi o diplomata Decio Moura quem se encarregou de
mostrar-lhes a cidade - e
o primeiro lugar a que os levou foi o Café Society Downtown, na Sheridan
Square, em Greenwich
Village, onde as atrações eram a cantora Billie Holiday, o pianista Art
Tatum e a grande
sensação: a dupla de pianistas de boogie-woogie, Albert Ammons e Pete
Johnson.

Decio Moura foi decisivo para conciliar alguns dos membros do Bando da
Lua com Nova York.
Ao descerem do navio, dias antes, Carmen e os rapazes tinham partido em
três limusines para dois
destinos diferentes, reservados por Shubert. Carmen fora para o esnobe
hotel Saint Moritz, na
esquina de Central Park South com Sexta Avenida, de cuja janela os quase
sessenta quarteirões
de verde do parque perdiam-se no horizonte. Já o Bando da Lua fora para
dois apartamentos no
modesto Chesterfield, na Rua 49 Oeste, ambos com vista para as escadas de
incêndio do prédio
ao lado. Seus vizinhos de andar deviam ser Nathan Detroit, Harry the
Horse ou algum outro
personagem pinta-braba de Damon Runyon.

Nos primeiros dias, os mais tímidos do Bando, como os irmãos Ozorio e o
gaúcho Ivo, hesitavam
em se afastar do hotel. Faziam as refeições no apartamento, por vergonha
de ir ao restaurante, e se
assustavam na rua quando um
negro acima de dois metros lhes pedia fogo ou perguntava as horas. Hélio
e Vadeco não tinham
esse problema, muito menos Aloysio, com seu inglês de colégio e dos
discos de Bing Crosby. Um
lugar que eles gostaram de descobrir foi o Jack Dempsey"s, o cocktail
lounge do ex-campeão
mundial de boxe, na Broadway com Rua 49, bem perto do hotel. Mas Aloysio
passava mais tempo
com Carmen no Saint Moritz do que com os colegas no Chesterfield. Foi Decio
Moura quem botou
todo mundo para andar na rua e os convenceu de que, quem estava habituado
à gigantesca
Buenos Aires, não podia se assustar com a minúscula ilha de Manhattan - a
única diferença eram
os prédios altos.

203


Decio, 33 anos em 1939, era um homem elegante, carismático, atencioso com
as mulheres e de
olheiras românticas, à Valentino. Usava monóculo. Era também um homem do
mundo e, com sua
classe internacional, tinha passe livre na sociedade de Nova York. Ao
mesmo tempo, circulava
entre o pessoal da Broadway e era namorado da soprano Kitty Carlisle,
famosa pelo filme Uma
noite na Ópera (A night at the Opera, 1935), com os Irmãos Marx. Mais que
namorado - já
falavam em casamento, e ele em breve levaria Kitty ao Rio para submetê-la
à sua família (o
casamento não aconteceu).

Graças a Decio, o Bando da Lua soltou-se em Nova York e, nos poucos dias
que tiveram antes de
Streets of Paris absorvê-los, eles correram a cidade. Stenio, fã de
swing, perdeu qualquer inibição
e passou a ir com freqüência ao Savoy Ballroom, no Harlem, para ouvir as
grandes orquestras do
pedaço, como as de Fletcher Henderson e Jimmie Lunceford. Às vezes havia
duelos entre as big
bands, e os bailes só terminavam às sete da manhã. Carmen, por sua vez,
preferia ir dançar com
Aloysio no roo do Hotel Astor, em Times Square, ao som de uma orquestra-
society. Poucas
semanas depois, foram todos ao Roseland Ballroom, na Broadway, onde se
apresentava uma
orquestra desconhecida, mas com um líder de grande personalidade: o
trompetista Harry James.
Ao fim da dança, pediram seu autógrafo e ficaram com pena do "boy singer"
- também muito
bom, magérrimo e com um jeito amuado ao lado do líder. Pois pediram o
dele também. Era Frank
Sinatra, muito antes das bobbysoxers, antes de "Ali or nothing at ali",
antes de qualquer
imortalidade.

E foram, evidentemente, dar uma espiada na Feira Mundial, embora o
compromisso do Bando
com o Pavilhão do Brasil só começasse depois da estréia de Streets of
Paris na Broadway. A
Feira - um empreendimento de 150 milhões de dólares, com a participação
de 1300 empresas
americanas e 64 países, entre os quais o Brasil e a União Soviética -
acabara de ser inaugurada
no dia 30 de abril, e previa-se que duraria dois anos. Ficava em Flushing
Meadows, em Queens, e
propunha-se a mostrar como seria lindo o futuro (a primeira transmissão
de televisão, ainda
experimental, já estava acontecendo lá). Mas países importantes como a
Alemanha e o Japão
fizeram forfait, preferindo
se exibir de outra maneira na Europa e na Ásia, e a Feira meio que se
resumiu a uma vitrine da
tecnologia americana. Sua estética podia ser a de Buck





204

Rogers no século XXV, mas o espírito era o de um mafuá tamanho-família,
com roda-gigante,
montanha-russa, bicho-da-seda, anões performáticos, nightclubs com
stripteases futuristas (um
deles, Thefrozen alive girl, criado por Salvador Dali) e o realmente
fabuloso Aquacade, o bale
aquático de Billy Rose, com Johnny (Tarzan) Weissmuller e, aos dezesseis
anos, Esther Williams.
(Em sua autobiografia, Esther iria contar o que fazia debaixo d"água com
Weissmuller, deixando-
o vexadíssimo.)

A Feira ficava aberta das nove às duas da manhã e, logo no primeiro dia,
atraiu 200 mil pessoas. A
partir dali, a média diária não seria muito menor. Ou seja, eram 200 mil
a menos por dia para ir ao
cinema em Nova York, comer pipoca, assistir aos espetáculos da Broadway e
jantar no El
Morocco (que os verdadeiros freqüentadores, não os turistas, só chamavam
de Morocco). Com
isso, não admira que todos os estabelecimentos estivessem sofrendo,
inclusive os pipoqueiros, e o
Morocco quase fechando. O Pavilhão do Brasil era dos mais visitados, por
servir cafezinho e
compota de goiaba de graça, e por ficar colado ao pavilhão mais chique e
prestigiado de todos: o
da França. Trazida de avião do Brasil, quem tocava no restaurante do
pavilhão brasileiro era a
orquestra de Romeu Silva, apresentando o violonista Zezinho, com quem
Carmen trabalhara em
São Paulo e em Buenos Aires, e o pianista Vadico, ex-parceiro de Noel
Rosa em "Conversa de
botequim", "Feitio de oração" e outros sambas. Outra que se apresentou no
pavilhão foi a estrela
dp Metropolitan Opera de Nova York, a brasileira Bidu Sayão, cantando as
Bachianas, de Villa-
Lobos.

Carmen e os rapazes não podiam esbaldar-se na rua até altas horas porque
os ensaios de Streets of
Paris já estavam acontecendo full-time desde o começo de maio no próprio
Broadhurst, o teatro
onde a revista seria levada. No dia 29 a companhia partiria para uma
série de try-outs - uma
pequena temporada prévia numa cidade próxima, no caso Boston, com todos
os cenários, roupas
e orquestra, para os ajustes finais antes da estréia em Nova York. O fato
de ser uma revista (em
dois atos e 28 quadros), e não uma comédia musical, podia tornar Streets
of Paris menos nobre aos
olhos dos críticos, mas não do público. E certamente não a tornava mais
fácil de fazer. Tinha duas
horas e meia de duração, contando com o intervalo, e um dos fatores que
determinariam o seu
triunfo ou fracasso seria a seqüência correta dos números musicais e de
comédia - a alternância
de uns e outros, quem se seguiria a quem, quem fecharia o primeiro ato
etc.

Streets of Paris contava com dez canções novas de Jimmy McHugh e Al
Dubin, trabalhando pela
primeira vez em parceria. No passado, o consagrado McHugh produzira
obras-primas com outros
letristas, como "I can"t give you anything but love", "On the sunny side
of the street", "I"m in the
mood for love", "Exactly like you", "Don"t blame me", "Can"t get out of
this mood", "When my
sugar walks down the street" e "Lefs get lost". O letrista Al Dubin, por
sua vez, conhecera a glória
e a fortuna como parceiro de Harry Warren nos
filmes musicais da Warner a que Carmen assistira no Rio, como Rua 42
(42nd Street, 1933),
Cavadoras de ouro (Gola diggers 0/1933) e Mulheres e música (Dames,
1934). Desses filmes tinham saído enormes sucessos, como "I only have
eyes for you", "Lullaby of
Broadway", "Shadow waltz", "We"re in the money" e "You"re getting to be a
habit with me".
Dubin era um talento e suas letras tinham um fascinante lado marginal,
quase bandido. Na vida
real, ele não era muito diferente disso: com seu 1,90 metro e 150 quilos,
comia seis filés de uma
sentada, bebia uma prateleira sem piscar, fechava um bordel só para ele e
jogava pôquer durante
uma semana sem dormir - perdendo. Era um porrista hilariante, que, em
pouco tempo, deixou de
ter graça para seus chefes: sumia do estúdio deixando Harry Warren na mão
e, semanas depois,
era encontrado num fétido hotel a 1500 quilômetros de Hollywood, sem um
centavo e num estado
deplorável. Era também dependente de morfina. Em 1938, quando ninguém
mais queria saber dele
na Warner, Dubin voltou para Nova York e foi trabalhar para Shubert com
Jimmy McHugh. Mas
os dois, juntos, nunca igualaram o que já tinham feito antes.

205


Nenhuma de suas canções para Streets of Paris era particularmente boa. A
menos ruim, "South
American way", recebeu uma pequena transfusão de samba pelo Bando da Lua
para disfarçar o
rebolado rumbeiro. Decidiu-se também que suas letras em inglês e espanhol
(feitas para... Jean
Sablon) seriam substituídas por uma de Aloysio em português, para poupar
Carmen de, em tão
pouco tempo, ter de decorar foneticamente um texto e correr o risco de se
atrapalhar no palco.

Aloysio aproveitou o mote da letra em espanhol ("At/ ay, ay ay/ Es ei
canto dei pregonero...") e o
adaptou para mais uma list song baiana:

Ai, ai, ai, ai

É o canto do pregoneiro

Que com sua harmonia traz alegria

In South American way

Ai, ai, ai, ai

E o que traz no seu tabuleiro

Vende pra ioiô, vende pra iaiá

In South American way

E vende vatapá, e vende caruru

E vende mungunzá, e vende umbu

Se o tabuleiro tem

De tudo que convém

Mas só lhe falta, ai, ai

Berenguendém...

Uma letra tola e inofensiva - exceto que, com seu então arraigado
platinismo,


206

Aloysio deixara passar "pregoneiro", palavra inexistente em português. O
correto seria pregoeiro,
aquele que canta ou alardeia os pregões.

Da letra em inglês conservou-se apenas o verso-título ao fim das
primeiras estrofes. Verso esse
que Carmen, sem querer, pronunciou "Souse American way" - e provocou uma
explosão de risos
em todos os americanos no recinto. "Souse" queria dizer bêbado. Era uma
piada tão natural que
Carmen foi orientada a manter essa pronúncia durante toda a duração de
Streets of Paris - até
muitos meses depois, quando já poderia, se quisesse, pronunciar "South"
perfeitamente.

E desse inocente "souse" surgiria, mais tarde, a idéia de Carmen falar
errado - o que também iria
definir toda a sua vida profissional nos Estados Unidos.

Duzentos brasileiros residentes em Boston foram receber Carmen na estação
e, quando ela desceu
do trem, fizeram a fuzarca que se espera de duzentos brasileiros carentes
e longe de casa. Muitos
deles nunca tinham visto ou ouvido Carmen, mas sabiam dela por seus
parentes no Brasil, e o que
lhes fora dito justificava aquele Carnaval em maio na severa Boston. Eles
a seguiram em caravana
até o hotel Ritz-Carlton, onde a companhia ficou hospedada e Carmen deu
uma coletiva para a
imprensa. Um dos repórteres, Paul Harrison, teve uma amostra do que
aconteceria no palco em
poucos dias: os olhos, as mãos e o sorriso de Carmen, compensando em
expressividade o seu
liliputiano vocabulário em inglês. À inevitável pergunta sobre se era
casada ou solteira, Carmen
respondeu inventando ali mesmo um "noivo" deixado no Brasil e cujo nome
ela não revelou -
mas que só podia ser Carlos Alberto da Rocha Faria, embora o coitado não
soubesse disso. E
ainda pediu a cumplicidade de seu amigo César Ladeira, que se divertia
assistindo à entrevista:

"É ou não é, César?"

César Ladeira tomara um navio no Rio com antecedência suficiente para
pegar a estréia de
Carmen em Boston. Chegara a tempo, inclusive, de ver a marquise e os
cartazes na porta do
Shubert Theatre anunciando, acima do título, Bobby Clark, Luella Gear e
Abbott & Costello em
Streets of Paris e, logo abaixo, Jean Sablon, sem nenhuma referência à
brasileira. Para quem vinha
em missão oficial - cobrir o inevitável sucesso de Carmen na Broadway,
para a Rádio Mayrink
Veiga e para vários jornais e revistas -, o começo não parecia muito
auspicioso. E foi com o
coração pesado que ele tomou o seu lugar na estréia de Street of Paris em
Boston, na noite de 29
de maio. Sua apreensão durou exatamente uma hora - tempo que levava para
Carmen entrar em
cena.

Aos sessenta minutos cravados do primeiro ato, um cantor mexicano atacou
uma rumba (!),
acompanhado pela orquestra e pelas dezenas de "girls" - César explicaria
depois que, segundo
o diretor Edward Dowling, a rumba era
para "marcar o contraste com o ritmo brasileiro". Ao fundo, um letreiro
começou a piscar
anunciando o nome de um cabaré: Páteo Miranda. Finda a rumba, todo o
elenco no palco gritou,
como se a convocasse:

207


"Miranda! Miranda! Miranda!"

Ouviu-se o ritmo do samba. Um lance de cortina, e os seis rapazes do
Bando da Lua já
apareceram tocando, como um batalhão de choque. Carmen, de baiana, surgiu
entre eles,
esbanjando malícia, sensualidade e graça em "O que é que a baiana tem?".
Os microfones
camuflados no chão permitiam que ela cantasse, dançasse e evoluísse pelo
palco com toda a
liberdade - e Aloysio diria depois que, aquela noite, ali estava uma
Carmen que ele próprio
nunca tinha visto:

"Os olhos não brilhavam: faiscavam. Seus movimentos pareciam ter sido
preparados por uma
Eleonora Duse."

Carmen emendou com a suavidade bem-humorada de "Touradas em Madri", o
quebra-língua de
"Bambu, bambu", e, já com a platéia nas mãos, preparou-se para encerrar
com "South American
way", que continha as únicas palavras em inglês em todo o número. Até
aquele instante, só
pronunciara sons que, para quem não fosse brasileiro, poderiam muito bem
ser confundidos com
neo-aramaico ou sânscrito arcaico. Mas, para os atarantados bostonianos,
não era a música que
importava e, menos ainda, as palavras. Era toda a presença de Carmen, com
as duas cestinhas de
frutas na cabeça, a festa de balangandãs sobre o peito, a flamejante saia
de losangos e as
inacreditáveis plataformas - tudo em movimento, formando cores e padrões
que ninguém ali vira
num palco, ao ritmo infeccioso daqueles violões e tambores.

Durante seis minutos, o espetáculo fora dela. Quando Carmen encerrou e se
curvou, ainda ao som
do Bando da Lua, a platéia de Boston começou a aplaudir e a gritar seu
nome. Não queriam
deixá-la ir embora. Nas coxias, Abbott & Costello estavam prontos para
entrar e fazer o grande
número de encerramento do primeiro ato. Mas, enquanto os espectadores
continuassem com
aquela algazarra, teriam de esperar. O show parará - a glória suprema do
teatro. Carmen e o
Bando precisaram "estender" a duração de "South American way" - para
irritação de Abbott &
Costello -, e depois voltar para mais aplausos. Quando Carmen finalmente
saiu, a dupla
americana entrou quase sob vaias, e o espetáculo caiu a uma temperatura
polar.

Em 1939, Bud Abbott e Lou Costello estavam longe de ser garotos. Abbott,
que fazia o strmght-man
brusco e mal-humorado, já tinha 44 anos. Costello, o cômico gordinho e
genial, era mais
novo, mas nem tanto: 33 anos. Os dois já contavam décadas de estrada no
vaudeville em carreiras
separadas, e só sentiram que tinham um futuro quando se conheceram e
formaram a dupla em
1936. Mesmo assim, Costello era complicado: bebia para valer, perdia
muito dinheiro no jogo e,
de vez em quando, seu coração lhe mandava uma carta de demissão. Streets
of Paris era a
primeira grande chance da dupla num espetáculo destinado à Broadway - a
oportunidade pela
qual tanto esperavam. E,
então, a poucos minutos de se consagrarem, estavam sendo caroneados por
uma cantora sul-
americana que acabara de chegar aos Estados Unidos falando um inglês
atroz e que ninguém
conhecia.


108


Foi isso que os críticos perceberam na noite da estréia e escreveram no
dia seguinte:

"Os brasileiros é que deveriam fechar o ato. E precisam aparecer mais",
disse um deles.

Shubert, que estava no teatro, também percebeu. Impiedoso, mandou Dowling
inverter as
posições de Carmen e Abbott & Costello no fim do primeiro ato. Mas não
estava sendo impiedoso
- era apenas um homem de teatro. Afinal, Carmen tinha parado o show, e
não é todo dia que isso
acontece. A partir da segunda noite, o privilégio de fechar o ato caberia
a ela. Sem ter de sair às
pressas para a entrada dos comediantes, Carmen e o Bando da Lua puderam
esticar o número e ir
ficando enquanto a platéia aplaudisse.

"Carmen está promovendo uma indigestão de samba na turma embasbacada de
Boston", escreveu
César Ladeira no Correio da Noite.

Inúmeros artistas americanos trabalharam por dez anos ou mais para
conquistar a glória de fechar
um ato. A maioria morreu sem conseguir. Carmen só precisou de seis
minutos para isso.

Nada mau para quem chegara aos Estados Unidos havia apenas doze dias.

Numa tarde de turfe, o Hipódromo de Boston batizou um de seus páreos em
homenagem a
Carmen. De luvinhas brancas, ela acenou da tribuna de honra e foi muito
aplaudida; desceu para
cumprimentar o jóquei vencedor e foi aplaudida de novo. Shubert pensava
ficar com Streets of
Paris somente uma semana em Boston, até o dia 4 de junho, para apertar os
últimos parafusos e
estrear na Broadway no dia 12. Mas, quando os jornalistas de Nova York
começaram a chegar à
cidade expressamente para ver Carmen, percebeu que uma semana a mais em
Boston, até o dia
11, aumentaria a expectativa em Nova York, geraria muito espaço grátis na
imprensa e faria a
peça chegar rutilante ao Broadhurst Theatre no dia 19.

Shubert concluiu que estava certo quando o Rainbow Room, um cabaré de
Nova York cobiçado
por muitos artistas, preferiu não esperar pela chegada de Streets of
Paris à Broadway. Seus
emissários foram a Boston oferecer-lhe quinhentos dólares por semana para
Carmen e o Bando da
Lua se apresentarem no seu palco, no septuagésimo andar do edifício da
RCA Victor. Pois
Shubert recusou - achou pouco. Para que negociar Carmen às pressas, se
ele já sabia que tinha
em mãos um bilhete premiado?

Depois de duas semanas parando o show todas as noites, e tendo que bisar
"South American
way", Carmen e a companhia voltaram para Nova York no dia 12, segunda-
feira. Por mais alguns
dias - e pela última vez na vida -
ela ainda pôde passear pela Quinta Avenida como uma terráquea anônima. Já
era uma pequena
celebridade, mas restrita ao meio da imprensa e das pessoas que se
interessavam por teatro. Isso
ainda não era suficiente para que a reconhecessem nas ruas.

209


Os que se viravam para olhá-la o faziam pelo exotismo das roupas e dos
sapatos ou pela beleza
de sua figurinha. Mas, a partir das dez da noite da segunda-feira
seguinte, 19 de junho de 1939,
todos os olhares na sua direção saberiam para quem estavam indo: Carmen
Miranda, Streets of
Paris, Broadhurst Theatre, Nova York, NY.

Dez da noite - cerca de setenta minutos do primeiro ato do espetáculo de
estréia. Foi quando
Carmen tomou de assalto o palco de Streets of Paris no Broadhurst, tal
como fizera em Boston.
Mas, aqui, já com uma palpitante expectativa criada pela imprensa e com a
presença de todos os
críticos de jornais e revistas - de volta às pressas de seus chalés nas
montanhas para assistir a
uma revista de Shubert que, em condições normais, seria caridosamente
ignorada. Era uma estréia
de gala, com toilettes de noite e smokings, e teatro lotado apesar da
chuva daquela noite.

Dois dias antes, César Ladeira já mandara dizer pelo Correio da Noite:
"Não há mais lugares para
a primeira noite. Trezentos críticos [sic] de jornais e revistas
americanos comparecerão à estréia
de Streets of Paris. Segunda-feira será, portanto, a noite que decidirá
definitivamente o sucesso de
Carmen nos Estados Unidos. A nossa "pequena notável" possui todos os
atributos para vencer. E
vencerá - é a minha opinião".

A própria Carmen não estava tão segura. Aloysio de Oliveira também sabia
que a prova de fogo
estava na Broadway, mas tentava tapeá-la:

"Olha, Carmen. Não vá ficar nervosa. Você já passou por Boston. Nova York
é a mesma sopa."

O Broadhurst, na Rua 44 Oeste, entre a Sétima e a Oitava Avenida, era uma
das jóias dos Shubert.
Quatro anos antes, um ator desconhecido se consagrara naquele palco:
Humphrey Bogart, no
papel do assassino Duke Mantee em A floresta petrificada (The petrified
forest), de Robert
Sherwood, com Leslie Howard. E nem tivera tempo de bisar o sucesso em
outra peça - fora
direto para Hollywood, na pele do próprio Mantee.

Carmen entrou com "Bambu, bambu" à máxima velocidade. A platéia recebeu-a
em silêncio -
atônita - e levou trinta segundos para reagir. Foi o tempo que algumas
pessoas precisaram para
começar a se mexer na cadeira, picadas pelo embalo incompreensível, mas
irresistível das
palavras:

Olha o bambo de bambu, bambu Olha o bambo de bambu, bambu-le-lê

E olha o bambo de bambu, bambu-la-lá

Eu quero ver dizer três vezes bambu-lê, bambu-la-lá.

210


Ali, as paredes do Broadhurst esqueceram-se de que já tinham ecoado os
textos de Ibsen, Shaw e
O"Neill, e trataram de se adaptar aos novos tempos. Carmen "cantava" com
as mãos, os olhos, os
quadris, os pés - "O que é que a baiana tem?", "Touradas em Madri" e
"South American way",
pela nova ordem - e todo um repertório de meneios, dengos e chamegos que
dispensavam
tradução. Ninguém entendia uma sílaba do que ela dizia, exceto o verso
"Souse American way",
que arrancou as infalíveis gargalhadas. E nem era preciso. Carmen estava
falando numa língua
que a platéia de Nova York, habituada às grandes estréias, estava farta
de entender: a do talento,
talvez do gênio. A Broadway já operara aquela química muitas vezes -
entre duas cortinas,
transformar uma estreante numa deusa. Quase dez minutos depois, o número
de Carmen e o
primeiro ato de Streets of Paris terminaram em apoteose e consagração.
Entre os drinques,
cigarros e cafés do intervalo, e já vazando para as ruas em volta do
teatro, só um assunto
interessava: Carmen Miranda.

Quando chegou ao camarim, Carmen já o encontrou abarrotado de flores. Os
telegramas vinham
do Rio e de Nova York - um deles, do compositor Jimmy McHugh, dizendo:
"Potatoes! Potatoes!
Potatoes!". César Ladeira perguntou a Carmen o que aquilo significava.

"É que, nos ensaios de "South American way", quando eu gostava de alguma
coisa, dizia ao Jimmy
que estava "na batata". Ele quis saber o que queria dizer e eu expliquei:
"It"s potatoes!". Parece que
ele também gostou!"

Ao fim do espetáculo, ninguém queria sair do teatro - o pessoal de
Shubert, seus pequenos
investidores, os amigos do elenco. E ninguém queria ir para casa. Em meio
ao violento
engarrafamento na Rua 44 provocado pela peça, o elenco espalhou-se pelos
cafés nas imediações
do teatro, para esperar os matutinos que já trariam as primeiras
críticas. As xícaras e os copos iam
sendo tomados sob grande nervosismo, enquanto Aloysio, de quinze em
quinze minutos, ia às
bancas do quarteirão para ver se os jornais tinham chegado. Numa dessas,
voltou carregado. Leu
as críticas para eles.

A maioria arrasou Streets of Paris, classificando-a de medíocre para
baixo, com duas brilhantes
ressalvas: Abbott & Costello, que, apesar de tudo, mereceram elogios - e
a rendição
incondicional a Carmen e ao Bando da Lua.

"Uma nova e grande estrela nasceu na Broadway. Carmen Miranda e o Bando
da Lua são as
únicas coisas que conseguem tirar o teatro do marasmo em que se encontra
devido à Feira
Mundial", escreveu Walter Winchell no Daily Mirror.

Não era qualquer um dizendo isso. Era Winchell - e não só no Daily
Mirror, mas nos 2 mil jornais
que reproduziam sua coluna, e em seu programa diário na cadeia de rádio
ABC, que atingia 55
milhões de ouvintes. De sua mesa
no Stork Club, na Rua 53 Leste, onde os poderosos iam beijar-lhe a mão,
Winchell influía em
Nova York, Washington e Hollywood. Roosevelt gostava dele, mas isso fazia
pouca diferença. O
importante é que ele gostava de Roosevelt. E, como ele gostara de Carmen,
ela estava feita. O
apreço de Winchell por Carmen era ainda mais marcante porque ele e
Shubert eram brigados.
Shubert detestava Winchell e o barrava de todas as suas estréias. Mas
Winchell, quando se
interessava por um espetáculo, ia a um try-out em alguma cidade. Fizera
isso com Streets of Paris
em Boston e se deixara hipnotizar por Carmen.

211


Os outros jornalistas não esperaram por Winchell para dar sua opinião.
Todos já tinham a sua -
que, por coincidência, era a mesma. John Anderson, do New York Journal-
American: "Miranda
parou o show, parou o trânsito na Rua
44 e provavelmente foi registrada no sismógrafo Fordham. Essa máquina,
embora habituada a
terremotos, está tremendo até agora. [...] Miranda é o maior evento em
nossas relações com a
América do Sul desde o canal do Panamá [sic]". Wilella Waldorf, do New
York Post: "Pode-se
ver o branco de seus olhos desde a 25- fila... e o efeito é devastador".
Clifford Adams, de uma
agência de notícias: "Ela é brasileira, e estaremos sempre em dívida para
com o Brasil por nos tê-
la mandado. Não há palavras em inglês ou em qualquer língua para fazer
justiça a essa artista. Ela
é a personificação de tudo". O veterano Brooks Atkinson, do New York
Times: "O calor que ela
irradia vai sobrecarregar as fábricas de ar-condicionado neste verão". E,
mal as luzes do teatro
tinham se apagado, os jornalistas americanos, loucos por aliterações,
começaram a procurar
slogans para defini-la. Surgiram "The siren from South America" (a sereia
da América do Sul),
"The Latin lallapalooza" (a labareda latina), "The pearl of the pampas"
(a pérola dos pampas) e
outras asneiras. Earl Wilson, do Daily News, teve o melhor achado e o que
pegou: "The Brazilian
bombshell" - a granada brasileira.

Dias depois, saíram as revistas, e a adoração por Carmen continuou
ilimitada. Wolcott Gibbs, em
The New Yorker: "Ela é uma "Flammenwerfer" [lança-chamas] brasileira, que
canta em sua língua
natal e ondula as mãos de um jeito que provocou em meus colegas emoções
difíceis de descrever
com discrição". Henry F. Pringle, na Collier. "Carmen poderia ter sido
descoberta há mais tempo,
se não fosse o bárbaro provincianismo dos Estados Unidos". Um articulista
anônimo da Look:
"[Carmen] cantou coisas que ninguém entendeu, mexeu os braços e o corpo,
revirou os olhos e -
zás! - conquistou a Broadway".

Conquistou mesmo - não havia outra definição. Na noite de estréia, antes
de o pano subir, o
nome de Carmen fora promovido ao quarto lugar na marquise do Broadhurst,
atrás de Bobby
Clark, Luella Gear e Abbott & Costello, e assim ficou durante a semana.
Na segunda semana,
pulou para o primeiro lugar. No primeiro mês, a revista Playbill,
preparada com muita
antecedência, ignorou o seu nome ao tratar da peça. No mês seguinte, sua
foto foi para a capa.
Outro indício foram os ingressos: na bilheteria do Broadhurst,
saíam a 4,40 e 6,60 dólares. Mas, poucos dias depois da estréia, certos
lugares só podiam ser
encontrados nas mãos dos cambistas - a cinqüenta dólares por cabeça. E
nem por isso o teatro
deixava de lotar.


212


Look e Colher já tinham tocado no assunto, mas foi a revista Click, com
Carmen na capa, que
sintetizou tudo ao dizer, "Carmen Miranda - A garota que está salvando a
Broadway da Feira
Mundial". Referia-se aos excedentes de Streets of Paris - os que voltavam
da porta do
Broadhurst todos os dias e, para não perder a noite, iam procurar as
outras atrações da
vizinhança. Não que a Broadway estivesse em falta de grandes peças.
Concorrendo com Streets
of Paris, em todas as semanas que a revista ficou em cartaz, podia-se
escolher entre Abe Lincoln
in Illinois, de Robert Sherwood, com Raymond Massey; The littlefoxes, de
Lillian Hellman, com
Tallulah Bankhead; No time for comedy, de S. N. Behrman, com Katharine
Cornell; e The
Philadelphia story, de Philip Barry, com Katharine Hepburn (escrito
especialmente para ela),
Joseph Cotten e Van Heflin. Todas essas peças ficariam como clássicos do
teatro americano -
mas, em junho de 1939, estavam às moscas na Broadway, porque o grosso da
manada preferia ir à
Feira Mundial para apreciar a mulher-gorila ou saltar do pára-quedas a 75
metros de altura. Foi
Streets of Paris que levou o público de volta para elas.

Shubert não gostava que seus artistas recebessem fãs dentro do teatro -
principalmente os que
levavam flores ou champanhe, produzissem uma grande quantidade de lixo e
ameaçassem
incendiar a casa com seus cigarros, apesar dos avisos de proibido fumar.
Mas, quando se tratava
de visitantes brasileiros, Carmen não respeitava a proibição. Ao receber
um cartão em português,
ou ao saber que era alguém do Rio, gritava lá de dentro do camarim:

"Espera eu tirar a beca!" - como se a pessoa pudesse ouvi-la -, e logo se
despencava de roupão
pela escada para falar com a visita.

Shubert era compreensivelmente mais liberal quando o visitante era uma
celebridade da
Broadway ou de Hollywood, como Claudette Colbert, Paulette Goddard, Ethel
Merman, David
Niven, Edward G. Robinson, Claire Trevor, Martha Raye, Joan Fontaine -
todos foram ao
camarim de Carmen para cumprimentá-la.

Poucos meses antes, no Rio, ela pagava ingresso para vê-los na tela do
Palácio ou do Metro, e
suspirava com seus dramas. Agora eram eles que iam render-lhe homenagens
e, se Carmen se
deixasse embriagar pelo sucesso, ninguém poderia censurá-la. Não
esquecer, porém, que ela não
era nenhuma principiante - bem ou mal, já tivera a sua cota de bajulações
e beijos.

Outra celebridade que Carmen recebeu no Broadhurst foi o almirante Gago
Coutinho, herói da
aviação portuguesa que, com Sacadura Cabral, realizara em 1922 a primeira
travessia aérea do
Atlântico Sul, de Lisboa ao Rio. O velho Gago elogiou-a, mas, ao sabê-la
nascida em Portugal,
perguntou-lhe:

213

"Portanto, minha filha, por que é que não canta um fado ou um vira, em
vez de sambas? E, em vez
de "O que é que a baiana tem?", por que é que não canta "O que é que a
menina do Minho tem?""

Shubert tinha suas idiossincrasias, mas sabia ser grato. No dia 21, dois
dias depois da estréia em
Nova York, passou um comovido cabograma para Clairborne Foster no Rio,
falando de como
devia tudo aquilo a ela. Clairborne respondeu: "Querido Lee. Foi gentil
de sua parte nos contar
imediatamente do grande sucesso de Carmen. Desnecessário dizer que Jay e
eu estamos radiantes
com a notícia. Estava rezando para que ela não nos decepcionasse, embora
eu não acreditasse
que isso pudesse acontecer. Obrigada por se lembrar de nós no meio de
toda a excitação.
Clairborne". E, com indisfarçável satisfação, informou: "Josephine Baker
está no Cassino da Urca,
fazendo uma imitação de Carmen - perfeitamente horrível".

Clairborne e a torcida do Flamengo souberam do sucesso de Carmen, mal a
cortina do Broadhurst
acabara de cair. Os vespertinos deram logo no dia seguinte à estréia, com
foto na primeira página
e acurada descrição. Mas ninguém podia superar O Globo, porque seu
correspondente em Nova
York estava numa posição privilegiada: dentro do palco, com um pandeiro
na mão, a dois metros
de Carmen - evidentemente, Oswaldo Eboli, Vadeco. Mas nem sempre era ele.
Em O Globo de
26 de junho, o redator anônimo resumia o sentimento geral: "Indo além de
todas as expectativas, a
criadora de "O que é que a baiana tem?" nos encheu de orgulho e vaidade.
A música popular
brasileira está em festa. E lá, na América, entre as luzes da Broadway,
que riscam em claridades os
nomes famosos dos grandes cartazes, ela pensa no Brasil, principalmente
neste seu mundo
carioca, onde os fãs recebem com o maior contentamento as notícias de
suas vitórias".

No dia 27, por intermédio da rádio americana NBC, César Ladeira fez um
programa com um
show do Bando da Lua na Feira Mundial, direto para o Brasil pela Mayrink
Veiga, em
combinação com O Globo e o Cassino da Urca. Carmen estaria lá - não
poderia cantar, por seu
contrato com Shubert, mas podia ser entrevistada. César falou da imensa
saudade que ela deixara
no Rio e contoulhe que estava todo mundo orgulhoso pela "vitória do
samba" na Broadway.

A "vitória" era sempre da música popular brasileira ou do samba - não
dela. A resposta de
Carmen podia revelar um travo de gozação:

"Sim, foi mesmo um desacato. Um não-sei-que-diga!"

No Rio, Braguinha aceitara o convite para ouvir a irradiação na casa da
família de Vadeco, no
Catete. Quando César anunciou o Bando da Lua como "um conjunto de ritmo e
melodia
autenticamente brasileiros", ele se grudou ao rádio para escutar melhor.
Mas, assim que o Bando
declarou que abriria os trabalhos com a marchinha "Laia", dele e de
Alberto Ribeiro, Braguinha
saiu pela sala, aos berros:

"Não! Essa, não! Qualquer uma, menos essa!"


214

O Bando da Lua não o ouviu e atacou de "Laia" - cuja melodia era
descaradamente a de "On
the trail", um tema encantador da Grana Canyon Suite, composta por Ferde
Grofé em 1931 e um
dos pilares da música erudita americana. Braguinha gelou. Se descobrissem
que ele a plagiara,
meter-lhe-iam um processo e tomariam tudo que ele tinha. Talvez tomassem
até a Fábrica de
Tecidos Confiança, de sua família - aquela do apito de que falava Noel
Rosa em "Três apitos".
Mas nada aconteceu. Na Feira, se algum americano percebeu a semelhança
entre "Laia" e "On the
trail", só deve ter se espantado com o fato de que, no Brasil, alguém
tivera uma idéia parecida
com a do seu compositor. E mais intrigado ficaria se entendesse a
debochada letra que Braguinha
e Alberto acoplaram à melodia de Grofé:

Amei Laia

Mas foi Lelé

Quem me deixou jururu

Lilifoi má

Agora só quero Lulu...

Em Streets of Paris, a única região da anatomia de Carmen à mostra na
baiana foi mapeada pelo
repórter Robert Sullivan como "entre a sétima costela e um ponto na
altura da cintura" - ou seja,
acima do umbigo, este pudicamente coberto. Mesmo assim, Sullivan
classificou aquela região de
"zona tórrida". Outro, ao falar das mãos de Carmen, escreveu que elas
podiam fazer "do mais
inocente gesto decorativo uma positiva violação dos estatutos". Mas, se o
gesto era inocente e
decorativo, essa violação dos estatutos não estaria na cabeça do
repórter? E a frase de Wolcott
Gibbs na New Yorker não era tão inocente assim. Em inglês, as emoções que
ele atribuía a seus
colegas eram "rather hard to get down discretely on paper" - Gibbs, ex-
colega de Marc
Connelly na "mesa redonda" do Algonquin, estaria insinuando que Carmen
provocou ereções em
seus colegas? Ao mesmo tempo, havia quem elogiasse Carmen por não fazer
"gestos sugestivos"
em Streets of Paris e por ter apenas "quatro dedos de pele à mostra"
(entre a bata de renda e a saia
de losangos), numa referência ao que se considerava um festival de nudez
na Feira Mundial.

Durante as primeiras semanas, os jornalistas ficaram na dúvida sobre se
Carmen se enquadrava na
única categoria de "latinas" a que eles estavam habituados: a das vamps e
mulheres fatais que,
desde o estouro de Lupe Velez e Dolores Del Rio, dez anos antes, chegavam
regularmente a
Nova York para ocupar o lugar delas. Mas Carmen não tinha nada de vamp ou
de mulher fatal. Ao
contrário, era engraçada - ou, pelo menos, fazia rir com suas tentativas
iniciais de falar inglês a
partir das duas aulas semanais que tomava na Barbizon School of
Languages.

215

Carmen certamente tropeçou nessas tentativas, mas foi Claude Greneker,
chefe de imprensa de
Shubert, quem inventou o inglês de pé quebrado que a caracterizaria - e a
personalidade meio
aluada que falava daquele jeito.

Um jornal a descreveu, no seu terceiro mês em Nova York, indo a um
nightclub com os rapazes do
Bando da Lua e dando ordens a que não se sentassem com ela:

"You three seet at this table, you three seet at that. I seet alone. How
would eet look for one girl to
seet weeth six mens?"

Com três meses de Nova York, o inglês de Carmen ainda não chegava para
construções
gramaticais complexas como a da última frase. E por que ela falaria
inglês com o Bando da Lua se
eram todos brasileiros? E por que faria questão de se sentar sozinha se
um deles era seu
namorado?

Outro jornal a mostra se queixando de que todo mundo que lhe é
apresentado convida-a a jantar,
obriga-a a beber e, por causa disso, ela está engordando:

"Everee day the mens come and want I most go in de cafés. Always dey want
I most dreenk. But I
will not dreenk - he is bad for de leever. Só I eat and eat and eat and I
get beeg like de horses.
Always I eat in dis contree. De eat is verree, verree good. I must stop
him!"

Era hilariante, mas tudo inventado. Nesse segundo caso, a construção
gramatical era um horror,
tanto quanto a "pronúncia" que lhe atribuíam. A esses imaginativos
jornalistas, jamais ocorreu que
Carmen tinha um ouvido de cantora - um ouvido que conseguia reproduzir
qualquer som e era
craque em imitações. Mas ali já estava em andamento, para Greneker, a
idéia de que, se Carmen
falasse "errado" e com sotaque, o público e a imprensa gostariam ainda
mais dela. E ele se
encarregava de abastecer os repórteres com histórias desse tipo, já
devidamente traduzidas para
o inglês fonético que se atribuía a Carmen.

Não apenas isso, mas do escritório de Greneker saiu também uma nova
versão da vida de
Carmen, em "primeira pessoa", criada por ele, ela própria e Aloysio e,
depois, também vertida
para inglês fonético. Por essa história, que passou a ser a oficial, a
origem da família de Carmen
era agora Lisboa, por ser a capital, não mais a região do Porto. Seu pai
nunca fora barbeiro.
Começara a vida em Portugal como caixeiro-viajante e, no Brasil, tornara-
se um próspero
atacadista e exportador de frutas - tudo a ver com as frutas que ela
usava no turbante, não? Aliás,
sua família chegara ao Rio quando ela tinha três meses - e o ano, já se
sabe, era 1914. Por essa
versão, Carmen se descreve como "uma moça de convento" que "gostava de
cantar" e teve de
enfrentar uma séria oposição de seus pais para se tornar cantora. Conta
ainda que, no Brasil, "as
pessoas de boa família não se misturam socialmente com os artistas" - o
que podia ser verdade,
mas não no seu caso, que tinha livre trânsito entre as melhores famílias
e até namorava rapazes
saídos delas. E era estranho também
que, segundo Carmen, nenhuma moça brasileira pudesse "sair à rua
desacompanhada" - quando
ela própria tivera todas as ruas do Rio à sua disposição desde os
dezesseis anos.
Contraditoriamente, disse também a um repórter que, ao sair da escola aos
quinze anos, seu pai
lhe arranjara um emprego como modelo numa loja de departamentos, onde
ficara três anos. Se o
repórter tivesse lhe perguntado o nome da loja, Carmen ficaria em apuros
para responder.


216


Greneker alimentava os jornalistas com esse material, mas não pndia
controlar Carmen o tempo
todo. Para cada repórter que lhe perguntava a idade, por exemplo, Carmen
dava uma resposta
diferente - sempre entre 25 e 28, nunca chegando aos verdadeiros trinta.
E, tentando ser amável
com os americanos, ela às vezes os idealizava:

"Na América do Sul, uma cantora não é considerada "boa coisa"", disse
Carmen para o repórter
Peter Kihss, do New York World-Telegmm. "Uma cantora de rádio ainda pode
ter vida social.
Mas uma pequena de cabaré, de cassino, de nightclub - pu! Aqui [nos
Estados Unidos] é
diferente. Tenho convites todos os dias. Deixam cartões em meu camarim.
Sabe quem era aquele
rapaz alinhado? Pois nada menos que o governador de Massachusetts. It"s a
maravilha!"

Mais uma vez, Carmen estava sendo injusta para com os grã-finos e rapazes
de boa família que a
cortejaram no Rio, dois dos quais ela namorou e com quem era vista em
toda parte. Se mais não
namorou, foi porque não quis. Além disso, ninguém podia garantir que os
alinhados rapazes
americanos que lhe deixavam cartões no camarim estivessem dispostos a se
casar com ela. E a
julgar pelo número de vezes em que passara a falar no assunto, esta
parecia ser a sua grande
preocupação: trabalhar mais dois ou três anos, casar, ter filhos e se
aposentar.

Uma reportagem na Carioca (não assinada, mas, com toda a certeza, de sua
amiga Sarah Harsah,
que estava em Nova York) fala do número de cartas perguntando à revista
se Carmen tinha
"alguém na América". Docemente constrangida, a revista entregou Aloysio
de Oliveira,
classificando-o como o "novo romance" de Carmen:

Essa é, talvez, a razão pelo qual o Bando da Lua, que sempre foi um
agrupamento independente,
trabalhando por conta própria, sem acompanhar ninguém, aceitou nesta
excursão aos Estados
Unidos um papel secundário, de simples acompanhador, aparecendo
freqüentemente citado como
a "orquestra de Carmen Miranda". O amor produz maravilhas. E os rapazes
do Bando da Lua são
seis d"Artagnans sorridentes e pacíficos, cujo lema é "um por todos e
todos por um". Neste
momento, todos são por Aloysio de Oliveira, que continua, assim, perto de
Carmen Miranda,
prolongando um romance que nasceu quando atuavam, a artista e a
orquestra, no Cassino da
Urca.

217

Pouco afeita a ler sobre seus namoros em letra de fôrma, Carmen negou
isso em um dos números
seguintes de Carioca:

A baiana tem torço de seda, sim, mas romance, não tem não. Os rapazes do
Bando da Lua sempre
constituíram para mim seis irmãos. Bons amigos e boa companhia, por serem
rapazes de boa
família e bem-educados, dignos de ser apresentados em qualquer sociedade.
Se Aloysio aparece
como meu scort por toda parte, é porque é o único, no Bando da Lua, que
fala inglês com
desembaraço, tendo sido contratado pela empresa Shubert para a função de
meu intérprete.

O caso com Aloysio era verdade - mas não era exato que os rapazes do
Bando da Lua fossem
um bando de d"Artagnans torcendo por ele. Seu apelido entre os demais do
Bando era
"macaquinho de madame". Na verdade, Aloysio era o pivô de uma discórdia
que já começara a
rachar o grupo.

No dia 30 de agosto, o violonista Ivo Astolfi fez o show do Bando da Lua
no Pavilhão do Brasil
na Feira Mundial, em Queens, no fim da tarde. Correu para o metrô com os
colegas e chisparam
para Manhattan a tempo de pegar a entrada de Carmen em Streets of Paris.
E, assim que o
espetáculo terminou, perto das onze da noite, Ivo despediu-se de Carmen e
da turma no camarim,
pegou as malas no hotel e tomou o vapor que saía para o Rio à meia-noite.
Pedira demissão. Com
menos de quatro meses em Nova York, Ivo estava fora do Bando da Lua.

A explicação oficial foi que ele estava com saudade da noiva que deixara
em Porto Alegre - e,
de fato, casou-se com ela e nunca mais pertenceu ao Bando da Lua ou a
qualquer bando. Mas
havia outro motivo. Ivo achava que o conjunto deveria continuar a ter
vida própria, como
acontecia no Brasil, e não concordava com as recusas de Aloysio aos
convites que o Bando
recebia para se apresentar sem Carmen. Além disso, não lhe agradava a
crescente liderança de
Aloysio. O Bando nunca tivera um líder - mas, por Aloysio funcionar como
intérprete de
Carmen, Shubert pagava a ele mais dez ou quinze dólares por semana que
aos outros. Por causa
disso, Aloysio não tinha mais tempo para nada, só para Carmen, com quem
estava praticamente
morando. Para Ivo, quebrara-se a união dentro do Bando, a confiança e,
talvez, a amizade. O jeito
era pegar o boné - e o navio - e voltar para o Brasil.

Meses antes, às vésperas da viagem para Nova York, Ivo e Hélio estavam
demissionários e até já
tinham substitutos: Laurindo de Almeida e Garoto. Na última hora, os dois
mudaram de idéia e
embarcaram. Agora, Ivo estava fora, definitivamente. A pedido de Aloysio,
Carmen escreveu para
Garoto no Rio, convidando-o a juntar-se ao Bando - dessa vez, para valer.
Garoto respondeu
que aceitava e prometeu embarcar o mais depressa possível. Cumpriu a
promessa.


218

Na verdade, embarcou tão depressa que só se lembrou de enfiar no bolso
uma escova de dentes, a
carta de Carmen e o passaporte - e nenhum documento americano autorizando
sua entrada nos
Estados Unidos. Por causa disso, ficou retido mais de uma semana na
sinistra Ellis Island, da qual
só foi liberado por interferência pessoal de Shubert. Entre a saída de
Ivo e a chegada definitiva
de Garoto, o Bando da Lua se virou com outro notável interino: Zezinho,
membro da orquestra de
Romeu Silva no Pavilhão do Brasil na Feira Mundial.

Não havia mais volta para Carmen, e ela já se convencera disso. Tanto que
saíra do Saint Moritz e
alugara um flat mobiliado no Century Apartments, um apart-hotel no número
25 de Central Park
West, ao lado de Columbus Circle. Seu telefone era Circle 6-5692. E,
assim que foi instalado,
começou a tocar. Toda Nova York a chamava.


Capítulo 13


1939

Cápsulas mágicas



Bem que Marc Connelly lhe garantira que o senhor Shubert era um "homem
honesto". Streets of Paris
mal entrara em cartaz e as possibilidades com que Shubert acenara para
Carmen começavam a se
concretizar. No dia 29 de junho, meros dez dias depois da estréia em Nova
York, Carmen e o
Bando da Lua foram contratados para aparecer durante três meses no
programa semanal de maior
audiência do rádio americano: The Fleischmann Hour, comandado pelo cantor
Rudy Vallée
(pronuncia-se Valei), na NBC, às quintas-feiras. Era bom dinheiro:
quinhentos dólares por semana
para Carmen e cinqüenta para cada membro do Bando da Lua, começando no
dia 3 de julho.

Só que, como combinado, metade desse valor ia para Shubert, e descontado
na fonte: o
pagamento era feito à Select, que tirava o seu, repassava o restante a
Carmen, e esta pagava ao
Bando. Seja como for, pelos três meses seguintes, eram mil dólares a mais
por mês para Carmen e
cem para cada homem do Bando, por meia hora de participação por semana -
tempo em que ela
cantava duas ou três músicas e "dialogava" em inglês e português com o
comediante Lou Holtz,
especialista em imitações lingüísticas, e com Vallée. Quando Carmen
falava em português, todos
riam e ela também ria - fazendo com que, desde o começo, os americanos
rissem com ela, não
dela. Quando parecia falar em inglês, estava apenas lendo foneticamente
os diálogos escritos
pelos redatores do programa.

Se Carmen achou que era fácil, enganou-se. Para dar conta de sua meia
hora semanal, ela e o
Bando tinham de ir várias vezes à estação para aprender os arranjos e
ensaiar as falas, porque o
programa precisava estar no ponto para parecer "espontâneo" quando fosse
ao ar ao vivo -
nada daquela irresponsável (e deliciosa) improvisação da Mayrink. Era
trabalhoso para Rudy
também. Foi difícil para ele aprender foneticamente as letras de "O que é
que a baiana tem?" e
"No tabuleiro da baiana" para fazer dupla com Carmen em português.

Um dos colegas fixos de Carmen no programa era John Barrymore - por quem
ela tanto
suspirara ao vê-lo em Don Juan (1927) e em muitos outros filmes.
Barrymore tinha sido o maior
ator do teatro americano nos anos 10 e 20 e um tremendo ídolo romântico
do cinema mudo. Seu
apelido era "The great
profile" - o grande perfil -, e os diretores obrigavam-no a passar boa
parte do filme de ladinho
para a câmera. Mas a bebida devastara seu rosto, de frente e de perfil, e
liquidara seu intestino
grosso, fígado e pâncreas. Aos 57 anos, Barrymore vivia a suprema ironia:
sua participação em
cinema, teatro e rádio limitava-se a paródias da sua velha glória - só
lhe davam o papel de um
ator bêbado e decadente. Carmen e o Bando ficavam passados quando ele
tirava do bolso
umaflask preta contendo um vermute aguado, preparado por seu enfermeiro -
porque uma
simples dose já bastava para alterá-lo.


220


Num dos programas, Carmen dividiu o microfone com Bing Crosby e as
Andrews Sisters. Alguns
artistas veriam isso como o ponto alto de suas vidas - não pelas Andrews,
é claro, mas por Bing.
Em 1939, ele já era considerado o melhor, o maior e o mais influente
cantor popular do milênio, e
sua carreira ainda estava longe do apogeu. O antecessor de Crosby na
música americana fora
justamente Rudy Vallée, o primeiro a tentar cantar com a clareza e a
suavidade que o microfone
permitia. Crosby entrou em cena logo em seguida, e não sobrou para
ninguém. Mesmo assim,
Rudy continuou popularíssimo e, tantos anos depois, seu programa ainda
era o mais ouvido do
país. O patrocinador, a família Fleischmann, era a conhecida fabricante
de aveia, fermento e
gelatina, e também proprietária da revista The New Yorker.

As coisas estavam acontecendo muito depressa para Carmen. Já na primeira
semana de julho,
Hollywood bateu à porta. Vários estúdios sondaram Shubert em busca de uma
"opção" pelos
serviços de Carmen, mas o primeiro a apresentar-lhe algo definido foi a
20th Century-Fox. Com
autorização de Shubert, Joseph Pincus, "caçador de talentos" da Fox em
Nova York, foi conversar
com Carmen no camarim do Broadhurst tendo em vista sua participação num
filme musical em
Technicolor. A certeza de um acordo era tão grande que, para adiantar o
serviço, um assistente de
Pincus já começou a tomar as medidas de Carmen e do Bando da Lua ali
mesmo, para o guarda-
roupa, e disse que, em Hollywood, o figurinista Travis Banton estava
esfregando as mãos diante
do que pensava em criar para Carmen. Quanto ao Bando da Lua, a idéia era
vesti-los com um
traje "tipicamente brasileiro": chapéu de palha, camisa quadriculada,
calças de zuarte, chicote e
botas. Ao ouvir isso, os ultra-urbanos Aloysio, Vadeco e demais reagiram
revoltados contra essa
caipirice. Pediram a Pincus que aplicasse seu fino tato aos ternos que
eles estavam usando -
feitos por seu alfaiate do largo do Machado - e lhe informaram que
aqueles eram trajes
"tipicamente brasileiros". Pincus murchou as orelhas e prometeu informar
Banton.

Shubert e a Fox acertaram a realização de um teste em Technicolor e, no
dia 17 de julho, às 10h30
da manhã, Carmen e o Bando foram filmados cantando duas ou três músicas
no velho estúdio
Movietone, da própria Fox, na Rua
10 Leste, em Nova York. O teste foi mandado para Darryl F. Zanuck em
Hollywood. Se Zanuck
gostasse e os contratasse para o filme, Carmen receberia 10
mil dólares e o Bando da Lua, 2400 dólares (quatrocentos para cada
branco) por três semanas de
trabalho, mais 555,55 e 133,33 dólares, respectivamente, por semana
extra. Outros 10 mil dólares
iriam para o bolso de Shubert - e mais quinhentos dólares para Shubert
pela cessão da canção
"South American way", cujos autores, Jimmy McHugh e Al Dubin, também
levariam quinhentos.
Não havia menção no contrato sobre o uso das canções brasileiras no
filme.

221


O teste de Carmen foi considerado um dos melhores em cores já vistos pelo
estúdio. O fotógrafo
Leon Shamroy deu o seu voto:

"A câmera vai dar pulos quando a fotografar. É extraordinária!"

Zanuck ordenou sua contratação imediata para o filme e os papéis foram
assinados por Shubert e
pelo homem de Zanuck na Costa Leste, Joseph Moskowitz. As filmagens com
Carmen estavam
previstas para janeiro de 1940 e normalmente seriam feitas em Hollywood,
mas, nesse caso - e
fazendo uma exceção inédita -, a Fox concordou em rodá-las em Nova York,
porque Carmen
ainda estaria em cartaz com Streets of Paris e não poderia viajar. As
seqüências musicais de
Carmen seriam filmadas antes que o roteiro ficasse pronto. Decidiu-se
então que Carmen só
apareceria no palco e, deste, se cortaria para a platéia, onde a ação
continuaria.

Shubert e a Fox transformaram Carmen em objeto de uma guerra de
exigências. Uma cláusula
exigida por William Klein, advogado de Shubert, rezava que "em hipótese
alguma Miss Miranda
terá de filmar entre dez da noite e oito da manhã" - cláusula mais que
conveniente, porque
permitiria a Shubert acertar compromissos para Carmen em nightclubs
durante a filmagem. Já a
Fox exigia que Carmen não fizesse nenhuma referência a seus filmes
brasileiros nas entrevistas à
imprensa. Ela deveria ser uma "descoberta" de Hollywood. O motivo
principal dessa exigência
era evitar que se repetisse o caso de Êxtase (Ekstase), filme tcheco de
1933 em que a estreante
Hedy Lamarr aparecia nua e tendo um orgasmo explícito - seis anos depois,
a Metro acabara de
contratá-la e estava indo de ceca em meça, à cata de cópias do filme,
para destruí-las. Não havia
a menor chance de os alô-alôs da Cinédia e de Wallace Downey serem como
Êxtase (quem
dera!), mas a Fox não queria correr riscos.

Shubert poderia ter feito um balanço da situação. Nas primeiras três
semanas desde a estréia de
Streets of Paris, sua contratada Carmen Miranda já tivera matérias de
arromba em revistas como
Life, Look, Vogue, Esquire, Pie e Harper"s Bazaar, e fora capa do Sunday
Mirror. Estava no
programa de rádio de Rudy Vallée e acabara de ser contratada para um
filme musical da Fox -
sem falar nas hordas que, diariamente, voltavam da porta do Broadhurst. O
salário de Carmen em
Streets of Paris - quinhentos dólares fixos, mais 250 por um "segundo
compromisso" -já se
tornara nominal. O que ela estava ganhando por fora superava, e muito, o
que ele lhe pagava. E
Carmen também já sabia disso, mas não podia se queixar. Fora por causa de
Streets of Paris que a
Fox se dispunha a lhe dar 10 mil dólares por três semanas de batente. E
10 mil mangos
dos deles eram 220 contos de réis - o que, no Rio, ela levaria mais de
dois meses para
ganhar.


222


Teatro, rádio e cinema - tudo isso já era seu em menos de um mês. O que
faltava? O maior palco
de todos: as ruas de Nova York.

As primeiras a imitar as roupas de Carmen tinham sido as coristas de
Streets of Paris, ainda em
Boston. Pouco depois de a conhecerem, várias delas começaram a aparecer
para os ensaios
usando turbantes de passeio e plataformas. Em troca, fora com elas que
Carmen aprendera a usar
unhas postiças. Sua falta de prática, no entanto, estava sujeita a
acidentes - como no dia em que,
ao tomar banho, perdeu uma unha postiça dentro da vagina e teve de ir a
um ginecologista para
extraí-la.

Com o estouro de Streets of Paris e as muitas fotos de Carmen nas
revistas, um fabricante de
blusas, Mitchell & Weber, de Nova York, consultou Shubert sobre a
possibilidade de explorar o
nome e a imagem de Carmen em troca de uma porcentagem nas vendas - e
desde que ela fizesse
algumas aparições ao vivo nos estandes de seus produtos nas lojas de
departamentos em
Manhattan. Shubert aceitou e acertou-se com ele. Outra indústria, a Blume
Knitware, Inc.,
fabricante de suéteres femininos, conseguiu o mesmo de Shubert, com
Carmen recebendo de 35 a
cinqüenta centavos de dólar por dúzia de suéteres vendidos. Claude
Greneker observou essa
tendência e, com a criatividade de um homem que bebia uísque com leite
(sim, fazia isso),
resolveu tomar a iniciativa. Escreveu a alguns pesos-pesados do setor de
moda, sugerindo-lhes
adotar as inovações de Carmen.

A resposta foi esmagadora. Várias empresas atiraram-se à sua sugestão -
Carmen, àquela altura,
já era irresistível - e nenhuma contestou a exigência de Shubert de que
os anúncios, cartazes e
vitrines ostentassem o mote: "Hy-yi the South American wayl". O magazine
Macy"s foi o primeiro.
Logo em julho, começou a vender batas, saias e plataformas - roupas "ao
estilo de Carmen
Miranda" - e a publicar enormes anúncios de varejo, com o nome e a foto
de Carmen remetendo
ao Broadhurst Theatre. Era o que Shubert queria: a roupa vendendo o
espetáculo, este vendendo
a roupa, e ambos vendendo Carmen. Seguiu-se-lhe a Saks Fifth Avenue, com
a proeminente
presença de Carmen em suas vitrines, inclusive no rosto e nos gestos dos
manequins, e um cartaz
com a ampliação da letra (em português) de "O que é que a baiana tem?"
numa das paredes. E o
mesmo com as bijuterias copiadas de Carmen, fabricadas por Leo Glass &
Co. e vendidas como
sendo "os balangandãs usados por Carmen Miranda em Streets of Paris". Em
troca de
exclusividade como fabricante e fornecedor, a Leo Glass pagava a Schubert
5% da receita bruta
de venda de seu material. Em todos esses casos, Carmen fazia jus a uma
participação.

O mesmo ainda quanto aos turbantes produzidos por Ben Kanrich, "criados"
por Carmen e vendidos a 2,77 dólares, com um texto que dizia: "Tão
encantador quanto o
original usado por Miss Miranda, você achará mais fácil adotar a nossa
versão de seu turbante.
Ele tem o mesmo "sabor" e personalidade de Carmen Miranda: é exótico,
vivaz e diferente". O
texto queria dizer que era um turbante prêt-à-porter, que já vinha
enrolado.

223


Mas quem conseguia suplantar o original? Carmen podia inventar um
turbante por hora, se
quisesse, adornando-o com penas de faisão, rabos de galo e espigas de
milho - em pouco tempo,
tudo isso começaria a aparecer nos seus turbantes de palco. Além disso,
era no turbante que ela
prendia os brincos, não nas orelhas - quem mais teria essa idéia? Um
repórter lhe perguntou:

"Agora que todas as mulheres aderiram aos turbantes, você continuará a
usá-los?"

Carmen nem vacilou:

"Enquanto gostar, vou continuar usando. As outras podem ir lamber sabão."

Eram tantas as ofertas e solicitações que Shubert destacou o advogado
William Klein para cuidar
exclusivamente das negociações envolvendo Carmen. Mas Klein, sozinho, não
estava dando
conta do recado. Em 22 de setembro, Herbert L. Kneeter, seu colega no
departamento jurídico,
alertou-o para o fato de que a apropriação do nome e da imagem de Carmen
estava se tornando
"rapidamente intolerável". Através de recortes de jornais, Kneeter
descobrira que as bijuterias
inspiradas em Carmen, fabricadas pelo joalheiro Leo Glass com
exclusividade para uma
determinada rede de lojas, estavam aparecendo em lojas da concorrência em
três cidades
diferentes. Com isso, as lojas que tinham contratado o material de Glass
estavam devolvendo as
bijuterias, e Glass estava furioso. No mesmo memo, Kneeter se refere a um
advogado de Nova
York, Franklin Simon, que teria publicado um anúncio incluindo Carmen
entre seus clientes. Ou
seja, Carmen mal chegara aos Estados Unidos e já era pirateada, tinha
artigos com a sua imagem
contrabandeados e via o seu nome sendo indevidamente usado por
espertalhões.

A própria Carmen já sentira o alcance dessa rede clandestina à sua volta.
Ao sair para fazer
compras numa grande loja, uma vendedora, que não a reconheceu, tentou
vender-lhe "jóias
legítimas de Carmen Miranda". Tudo isso, contado no Brasil, quem
acreditaria? Mas três amigos
brasileiros, de passagem por Nova York, foram testemunhas da aceitação
fulminante, quase
absurda, de Carmen pelo público americano: o jornalista Accioly Netto,
diretor de O Cruzeiro, e
sua mulher, Alice, e o figurinista Alceu Penna. O casal Accioly logo
voltaria para o Brasil, mas
Alceu ficaria em Nova York por mais de um ano, tentando vender trabalhos
para as revistas
americanas e desenhando baianas para Carmen.

Quase ao mesmo tempo, Carmen começou a aparecer em anúncios de
publicidade, apregoando
produtos com os quais não tinha nenhuma ligação péssoal.
O primeiro foi um carro da Ford, marca que ela nunca usara no Brasil.
Depois, o da pasta
dental Kolynos, embora seu dentifrício favorito fosse Diamond, de que
comprara o exagero de
seis caixas de quatro dúzias assim que chegara a Nova York. Outro anúncio
foi o da cerveja
Rheingold: "My beer is the dry beer - says Carmen Miranda", diziam os
outdoors de costa a
costa - indiferentes ao fato de que Carmen não tomava álcool de espécie
alguma e sua bebida
favorita em Nova York era Coca-Cola, ainda inexistente no Brasil. E o
mais irônico foi o do curso
de línguas Barbizon, certamente uma permuta tramada por Shubert para que
Carmen tivesse aulas
gratuitas de inglês. Se o Barbizon pudesse adivinhar que Carmen se
tornaria o símbolo do inglês
caricato e mal falado, ela seria a última que o curso escolheria como sua
garota-propaganda. Mas
assim era o capitalismo. No Brasil, Carmen passara dez anos no olho e no
coração do público -
e só anunciara o singelo Leite de Rosas.


224


Os homens de Shubert não discriminavam entre os convites para Carmen.
Aceitavam todos. E não
queriam saber se esse ou aquele compromisso obrigaria a que Carmen
achasse uma brecha em sua
agenda já quase impossível. Por exemplo, quase todos os fabricantes de
produtos ligados a ela,
como roupas, turbantes e bijuterias, exigiam sua presença pessoal nas
grandes lojas. Shubert
costumava acatar tais pedidos, "desde que razoáveis", mas isso
significava que, com freqüência,
Carmen tinha de passar algumas horas por dia exposta à visitação pública
numa loja. Se os
manequins das vitrines da Saks reproduziam seu rosto e seus gestos, era
porque ela posara para
um molde de sua cabeça e "dirigira" os manequins para o vitrinista. No
caso dos anúncios, as
agências de publicidade precisavam que ela posasse para os fotógrafos ou
para os ilustradores ao
lado do produto. Some a isso as sete apresentações semanais de Streets of
Paris às 20h30, de
segunda a segunda, e outras duas às 14h30 nas matinês de quartas e
sábados, além do programa
de Rudy Vallée às quintas, do qual ela iria participar por quatorze
semanas seguidas, para avaliar
quanto Carmen estava sendo fisicamente solicitada.

Não apenas os empresários e publicitários queriam Carmen. A imprensa
parecia não se cansar
dela. Ainda em julho, o temido colunista do Herald Tribune Lucius Beebe
quis ver Carmen com
os próprios olhos e levou-a a almoçar no Sardi"s, o restaurante do
pessoal do teatro, na Rua 44
Oeste. Greneker foi com ela, para tornar possível a comunicação e aparar
possíveis foras. Beebe
era uma figura à parte na imprensa de Nova York: rico, bem-nascido, podre
de chique,
homossexual e com enorme prestígio na sociedade. Sua opinião podia
definir quem era
"aceitável" ou não nas altas-rodas. (O personagem de Waldo Lydeker,
interpretado por Clifton
Webb no filme Laura, de Otto Preminger, em
1944, seria parcialmente inspirado nele.) Pois Beebe gostou de Carmen e
se lembrou de que, anos
antes, seu amigo Edward P. Maffitt, da embaixada americana em Buenos
Aires, já lhe falava
maravilhas do samba, do Carnaval carioca e, especialmente, de Carmen
Miranda.

225

Para Beebe, Carmen era a resposta às preces dos costureiros dos Estados
Unidos, presos ao mau
gosto das mulheres americanas ou à cópia dos estilistas franceses. Quem
sabe se, inspirados no
exemplo dela, eles não começavam a ousar? - ele se perguntava. Beebe quis
saber se as
mulheres brasileiras se vestiam como ela. Carmen respondeu que não, que
aquela era uma roupa
quase de Carnaval. Perguntou também se os gestos e as fantasias de seu
estilo eram parte do
samba "autêntico".

A resposta de Carmen o surpreendeu:

"Não. Eles fazem parte da minha interpretação e só servem para dar uma
idéia do que é o samba,
que é a dança nacional do Brasil. Mas não sou dançarina, nunca dancei
profissionalmente, e toda
animação que dou às minhas músicas é puramente acidental."

Habituado às pompas vazias e às poses e respostas pré-fabricadas da
maioria das estrelas, Beebe
se encantou com a sinceridade de Carmen. Ele perguntou ainda se ela já
sabia muitos palavrões
em inglês. Ela disse que não, mas que ele não se iludisse - ela pretendia
aprender todos. Beebe
vibrava. À saída do Sardi"s, os dois tiveram de vencer a multidão que
pedia autógrafos - e
Beebe se divertiu ao constatar que, diante de Carmen, pela primeira vez
ninguém estava
interessado no seu autógrafo.

Carmen caiu também nas graças do brasileiro Victor Viana de Carvalho, um
auxiliar contratado
(ou seja, não da carrière) do consulado de Nova York, com uma
impressionante facilidade para
circular entre matronas, condessas, herdeiras, debutantes e outros
espécimes da aristocracia
americana e européia. Victor (aliás, Victorino), gaúcho, 34 anos e também
homossexual, seria,
anos depois, cronista de O Globo, com o pseudônimo de Marcos André. Ele
conhecera Carmen
no Cassino do Copacabana Palace em 1935, e, agora, se dispunha a
apresentá-la às "grandes
damas de Nova York". Não que, com isso, estivesse fazendo um favor a
Carmen. Na verdade,
fazia um favor a si mesmo, porque algumas dessas grandes damas estavam
loucas para ter Carmen
em seus salões - assim como, na França do século xvi, os papagaios e
araras brasileiros faziam o
maior sucesso nos precintos da corte. Uma das casas a que Victor a levou
foi a de seu amigo, o
excêntrico marquês de Cuevas, patrono da ópera em dois continentes e que,
apesar de às vezes
abusar do batom e do rouge, era casado com Margaret Rockefeller.

A ida de Carmen à mansão Cuevas, na Quinta Avenida, deve ter sido uma
grande noite. Entre
muitos notáveis, ali estavam as sopranos Bidu Sayão, a brasileira recém-
consagrada no
Metropolitan, e Grace Moore; o escritor Erich Maria Remarque, celebérrimo
autor de Nada de
novo no front e grande garanhão; o presidente da CBS, William S. Paley; o
pintor Salvador Dali;
o duque de Verdura (ex-amante de Linda Porter, mulher de Cole); e duas
brasileiras de linhagem
internacional, Aimée de Herrin e Vera Plunkett. Mas, quando Victor entrou
com Carmen, a festa
inteira olhou para a porta - Carmen entrou usando


226

uma capa de veludo preto sobre um vestido de veludo preto, com um
turbante prata - e
passou a noite ao redor dela.

Se Victor realmente entrava em algumas casas da nova aristocracia
americana, Decio Moura, seu
superior no consulado, é quem tinha portas abertas em casas que não se
abriam para quase
ninguém. Uma delas era a de Grace Vanderbilt, também na Quinta Avenida -
onde, segundo
Jorginho Guinle, os Rockefeller não eram recebidos porque ainda "não
faziam parte da
sociedade". Pois Decio teria levado Carmen até lá, a pedido de Grace.

Talvez para atender a esse tipo de compromissos, Carmen compraria cerca
de 2 mil dólares em
jóias até o final de 1939. Mas esse não era o seu consumo favorito. A
loja que ela freqüentava em
suas poucas horas de folga era a Woolworth"s, matriz original da cadeia
que, no Brasil, seria
conhecida como Lojas Americanas. Na WoolworÜYs, Carmen comprava desde
acessórios para
seus turbantes até xampu seco (indispensável para quem, como ela, gostava
de lavar o cabelo em
cada intervalo dos vários compromissos). Foi lá também que Carmen
comprou, para uso pessoal,
um objeto que nunca passaria pela cabeça de outras estrelas da sua
magnitude.

Uma máquina de costura Singer.

Não se sabe a que horas Carmen encontrava tempo para costurar porque, no
dia 13 de setembro,
ela e o Bando da Lua (com Zezinho provisoriamente no lugar de Ivo, já que
Garoto ainda não
chegara) estrearam no grill do WaldorfAstoria Hotel, na Park Avenue, com
dois shows de 45
minutos por noite. O cachê era de 2 mil dólares por semana, dos quais
trezentos dólares eram
distribuídos entre o Bando e os restantes 1700 eram divididos entre
Carmen e Shubert (850 para
cada um), menos a comissão de 5% da agência MCA (Music Corporation of
América), que
intermediara o contrato. O que atraíra Carmen nesse compromisso não fora
tanto o dinheiro - já
irrisório para os seus grampos e berenguendéns, mas a honra de ser a
atração principal do
Waldorf, então o maior hotel do mundo. E dividindo o palco com a
orquestra residente: a do
espanhol (formado em Cuba) Xavier Cugat, com quem o santo de Carmen
combinou
imediatamente. Cugat, 39 anos, violinista, caricaturista e sempre com uma
crooner de fechar o
comércio (com quem ele se casava), era o maior nome da música latina nos
Estados Unidos.

A temporada de Carmen seria de quatro semanas, mas, mal chegara à metade,
a MCA pediu a
Shubert prorrogação por mais três semanas e opção para uma quarta. No
fim, Carmen e o Bando
acabariam ficando doze semanas. Entre os que foram vê-la no Waldorf
estavam Paul Muni,
George Raft, Errol Flynn, James Stewart, Dorothy Lamour, Al Jolson, Ann
Sheridan, Don Ameche,
Alice Faye e seu marido, Tony Martin (que lhe pediu a partitura de "No
tabuleiro da baiana" para
aprendê-la), e, não por último, a mãe e o filho

227

do presidente Roosevelt - não se sabe o que prendeu Franklin D. na Casa
Branca.

De acordo com seu contrato original com Shubert, a temporada no Waldorf
eqüivalia ao
"segundo compromisso" que renderia a Carmen 250 dólares por semana -
significando que, se
ele quisesse embolsar integralmente os 2 mil, ela não poderia protestar.
Mas Shubert, um homem
ladino, ignorou a cláusula que o protegia e pagou a Carmen metade do
cachê do Waldorf, ao
mesmo tempo que honrava os 250 dólares do contrato original. Com isso, a
temporada no Waldorf
passou a render a Carmen 1100 dólares por semana, a que se somavam os
quinhentos dólares de
Streets of Paris, mais os 250 do programa de Rudy Vallée - tudo isso por
semana -, mais os
cachês de publicidade e os royalties pelo uso de seu nome e imagem nos
produtos. Era impossível
para Carmen calcular seus rendimentos porque eles variavam a cada mês, e
sempre para mais.
Mas pode-se dizer que, em outubro de 1939 - seis meses após a chegada -,
eles estariam perto
de 9 mil dólares por mês.

Nelson Seabra, o jovem milionário carioca e amigo de Carmen no Rio,
estava hospedado no
Waldorf (onde a diária mais barata custava escorchantes dez dólares).
Todas as noites ele ia vê-la
no grill. Numa visita ao apartamento de Carmen em Central Park West,
Nelson, sentado
casualmente em sua cama, perguntou-lhe onde ela estava aplicando o
dinheiro.

Carmen riu:

"Você está sentado em cima dele."

Levantou o colchão e tirou uma caixa recheada de dólares em notas altas.
Nelson descobriu,
maravilhado, que Carmen não confiava em bancos, nunca ouvira falar no
imposto de renda e se
sentia muito bem com o dinheiro estocado debaixo do colchão. Era o que
fazia no Brasil, onde
nenhum artista jamais se preocupava em prestar contas do que ganhava.
Ninguém a instruíra que,
nos Estados Unidos, as coisas eram diferentes.

Os rapazes do Bando da Lua, apesar de seu menor valor de mercado, também
não podiam se
queixar. Com menos de dois meses de América, Stenio comprara um Chevrolet
de segunda mão e
todos já estavam mandando dinheiro regularmente para os parentes no
Brasil. Sem falar nos
vários brasileiros em disponibilidade em Nova York, que viviam adejando
ao redor deles. Um
desses prestativos patrícios, de volta ao Rio, ofereceu-se para levar um
envelope de Aloysio para
a família, contendo mil dólares, e outro, de Alceu Penna para O Cruzeiro,
contendo desenhos para
várias edições. Nenhum dos envelopes chegou ao destino.

No dia 15 de outubro, Shubert promoveu uma ceia de gala no Starlight Roof
do Waldorf, "Night
flight to Rio", para convidados especiais, brasileiros e americanos. O
"vôo noturno para o Rio"
começava com música de dança (um programa de rumbas, é lógico) pela
orquestra de Cugat,
enquanto os convidados beliscavam legítimos [sic] "Brazilian hors
d'oeuvres", como tortinhas


228

de camarão e purê de atum com ovas de salmão e tâmaras. Às 22:30 começava
o espetáculo, com
dez atrações de canto e dança, uma delas a cargo da novata - vinte anos -
e já sensacional Ann
Miller. Fechando a noite, Carmen e metade do elenco de Streets of Paris
apresentaram algumas
especialidades do espetáculo. Às Ilh30 veio a ceia, consistindo de caldo
de galinha com lingüiça
e grão-de-bico, filhotes de pombo recheados com arroz e sorvete de coco
na casca da própria
fruta. Depois, café e charutos baianos. Apenas com os convites para
aquela "noite brasileira",
Shubert recuperou o dinheiro dos cachês que, benevolentemente, deixara
que escorregasse para
Carmen. Mas, se houve ali um brasileiro que se deu bem, foi Vadeco -
porque, segundo ele
próprio, namorou Ann Miller naquela noite e depois continuou seu amigo,
embora só se
dedicassem a trocar receitas das culinárias brasileira e americana.

Desde sua chegada a Nova York, os contatos de Carmen com o Brasil estavam
mais nesse tipo de
evento do que numa efetiva comunicação com seu pessoal e com os amigos no
Rio. Sem tempo
para escrever, respondia com telefonemas às cartas que vinham da família.
Mas também eles eram
problemáticos - uma ligação internacional levava às vezes um dia para ser
completada, e a
pessoa que a solicitara precisava ficar plantada ao pé do aparelho.
Apesar da precariedade das
comunicações, Carmen soube que Aurora marcara seu casamento com Gabriel
Richaid para um
dos meses de 1940 em que se esperava que ela estivesse no Rio, ao fim de
seu primeiro ano de
contrato com Shubert - muito justo, já que estava escalada como madrinha.
Outra notícia, essa
muito triste, era a de que, em agosto, seu cunhado Abílio, marido de
Cecília, morrera do coração
- como previra em 1931 o compositor e cardiologista Joubert de Carvalho,
acertando até no
número de anos em que Cecília o teria a seu lado. Nesse caso, Carmen não
telefonou. Escreveu
para Cecília dizendo: "A partir de agora, vocês são minha
responsabilidade", lembrando-lhe que
sua sobrinha e afilhada Carminha, de três anos, era "dela, Carmen,
também". Carmen prometeu (e
cumpriu) cuidar da educação da menina e aventou a possibilidade de, um
dia, Cecília e Carminha
irem morar com ela nos Estados Unidos.

Em fins de outubro, foi a vez de Shubert receber más notícias do Brasil -
via Nova York mesmo.
A Robbins Music Corporation, poderosa editora musical da Sétima Avenida,
notificou Shubert de
que as canções "O que é que a baiana tem?" e "Touradas em Madri" eram de
sua propriedade e
que, instruída por seu "representante sul-americano", o uso delas num
espetáculo custava "pelo
menos" cem dólares por semana. Shubert ficou possesso: como ser
notificado cinco meses depois
- vinte semanas! - de que um material que vinha usando de "boa-fé" já
estava protegido por
copyright? A Robbins escreveu de volta esclarecendo que a dívida de
Shubert para com eles
remontava à data do copyright, e que isso significava quinhentos dólares
pelas duas canções até
o momento. Shubert, mesmo assim, recusou-se a pagar, e informou-os de que
tiraria essas canções
do espetáculo, substituindo-as por outras: "Bambu,

229

bambu" (que já estava no espetáculo) e "Mamãe, eu quero". Poucos dias
depois, a Robbins voltou
à carga, dizendo que "Bambu, bambu" e "Mamãe, eu quero" também lhes
pertenciam. Esta última
já tinha, inclusive, letra (por Al Stillman) e título em inglês: "I want
my mama".

Como se explicava que sambas e marchinhas criados havia tão pouco no Rio
já pudessem estar
nas mãos de uma editora americana? E desde quando essas editoras,
ocupados com Gershwin ou
Irving Berlin, sabiam da existência de Donga ou Jararaca? A resposta
estava no seu
"representante sul-americano": Wallace Downey - quem mais?

Downey não fora a Nova York para ver a velha, mas a serviço da ABCA
(Associação Brasileira
de Compositores e Autores), para "proteger" a música brasileira dos
interesses americanos. Para
tanto, participara (como "amigo" de Carmen) das reuniões de criação de
Streets of Paris. Ficara
sabendo quais músicas brasileiras seriam ou não usadas no espetáculo e
até palpitara nessa
seleção. Saindo dali, fora diretamente à Robbins e, com sua autoridade de
representante de uma
associação brasileira de compositores, publicara todas as canções por
aquela editora. Isso feito,
voltara assobiando para o Rio, sabendo que, se Shubert usasse uma delas,
a Robbins iria morder a
canela do empresário.

Shubert não se deu por vencido. Transferiu a dívida para Carmen, dandolhe
um susto sem
tamanho. Mas Carmen estrilou de volta e Shubert "aceitou", no máximo,
dividir com ela o
prejuízo. Carmen ainda protestou, mas Shubert pagou o débito para com a
Robbins e descontou
os 250 dólares de seu salário. O impasse ameaçava perpetuar-se porque,
graças a Downey, todas
as músicas que ocorria a Carmen usar no espetáculo pareciam estar nas
mãos da Robbins. A
alternativa, que Carmen antevia com horror, era a de Shubert retaliar e
desistir de usar as músicas
brasileiras, obrigando-a a cantar músicas em inglês ou em espanhol.
Carmen escreveu uma carta
desesperada a Almirante, no Rio, pedindo-lhe para intervir junto "ao
idiota do Downey", no
sentido de que este fizesse um preço mais camarada - digamos, cinqüenta
dólares por semana -
pelas músicas.

Almirante consultou Downey e respondeu detalhadamente a Carmen. Para
Downey, que alegava
conhecer o contrato de Carmen com Shubert (!), ela, como intérprete, não
tinha de pagar um
centavo de direitos autorais. Isso competia ao produtor do espetáculo,
que era Shubert. Além
disso, Shubert não poderia vingar-se dela obrigando-a a cantar numa
língua que não fosse a sua.
A argumentação de Downey, e com a qual Almirante concordava
integralmente, era a de que
Shubert queria fugir à sua responsabilidade perante os compositores das
músicas brasileiras que
usava na revista - o que não fazia com Jimmy McHugh e Al Dubin, os
compositores americanos
de "South American way", cujos direitos pagou sem estrebuchar e sem
exigir que Carmen
dividisse o custo. Além disso, os direitos das músicas brasileiras eram
muito mais baratos que os
das americanas. O fato é que, a partir daquele momento, e pelo fato



230

de Downey "ter feito o copyright [das canções]" junto à Robbins, os
direitos dos compositores
brasileiros "na América" estavam protegidos - suspirava, feliz,
Almirante.

Carmen não acreditava nisso. Na própria carta para Almirante, ela já
duvidava de que, do
dinheiro arrecadado nos Estados Unidos e enviado para o Brasil, sobrasse
para os compositores
pouco mais do que "para a cachaça". E, pelo visto, tinha razão: Dorival
Caymmi afirmaria no
futuro que nunca viu um centavo de "O que é que a baiana tem?" no teatro
americano. E olhe que,
somente em fins de 1939, seu samba ("protegido" por Downey) era a atração
de dois espetáculos
de Shubert ao mesmo tempo: Streets of Paris, claro, e The straw hat
revue, no Ambassador
Theatre, em que, apesar de estar em cena vários futuros gigantes do show
business (o
multitalentoso Danny Kaye, o cantor Alfred Drake e o bailarino Jerome
Robbins), a única coisa
que sustentou a revista em cartaz por três meses foi a imitação que
Imogene Coca fazia de Carmen
em "O que é que a baiana tem?"- e para a qual, a pedido de Shubert,
Imogene fora ensaiada pela
própria Carmen!

Numa carta posterior, Aloysio de Oliveira ponderou com Almirante que
Downey fora inábil e
que, graças a ele, a Robbins Music estava indo à forra de antigas
diferenças com Shubert e quem
sairia perdendo seriam Carmen e a música brasileira. Segundo Aloysio,
Carmen estava numa
posição delicada para negociar. O contrato entre ela e Shubert era de
"prestação de serviços
artísticos" - sem especificar se eram musicais, muito menos em que língua
ela deveria cantar. Se
Shubert quisesse obrigá-la a equilibrar uma bola no nariz ou atravessar o
palco numa corda
bamba, estaria amparado legalmente. Além disso, Shubert pagava a Carmen
"mais do que o
contrato o obrigava" - outro motivo para que ela não brigasse com ele. O
próprio Almirante
receberia algum dinheiro por sua adaptação do motivo folclórico "Bambu,
bambu", em parceria
com Valdo Abreu, cantado por Carmen - mas só porque se colocara como
interlocutor de
Downey junto a Carmen. E, mesmo assim, não seria nenhuma fortuna: pouco
mais de cinco contos
- cerca de 230 dólares.

Shubert e a Robbins por fim entraram em acordo, porque Carmen continuou
com seu número
intacto em Streets of Paris até o fim da temporada - e Downey teria
outras fontes de onde
arrancar dinheiro com aquelas músicas. Em poucas semanas, por exemplo,
elas já estariam
gravadas em discos Decca e filmadas pela 20th Century-Fox - por Carmen e
pelo Bando da
Lua.

Meses antes, ao tomar o navio para Nova York, Carmen levara na bagagem
discos recém-
lançados e partituras de música brasileira. Não queria ficar
desatualizada com o que se produzia
no Rio. Mas isso era inevitável, como ela devia saber - bastavam dois
dedos e uma caixa de
fósforos para produzir um inspirado sambista. Carmen escreveu para
Almirante pedindo que lhe mandasse

231

o maior número possível de partituras com as novidades. O impulso
de Almirante foi
obedecer, mas calculou que, se lhe enviasse as músicas no papel, alguém
teria de tocá-las para
Carmen. Como os rapazes do Bando da Lua não liam música, ela teria de
depender de músicos
americanos. E, se isso acontecesse, os sambas corriam o risco de se
transformar em zarzuelas.
Assim, com sua dedicação quase febril à amiga, arrancou sambas e
marchinhas inéditos de bons
compositores, como Antônio Almeida, Roberto Roberti, Oswaldo Santiago e
outros; contratou um
estúdio, gravou-os em discos por sua conta, com Vicente Paiva ao piano e
ele próprio tocando
pandeiro e cantando, e mandou tudo para Carmen. Feito isso, sentou-se
bonitinho e ficou
esperando uma carta de Carmen, em que ela se dissesse maravilhada com o
que recebera. Alguns
dos compositores já se viam sendo gravados por Carmen nos Estados Unidos
e se tornando novos
Cole Porters ou Richard Rodgers. Mas, para desapontamento geral, Carmen
não gostou de nada
- achou tudo fraquíssimo - e esnobou a iniciativa de Almirante.

A resposta de Carmen se espalhou pelo Rio, e os compositores disseramse
desapontados e
passaram a sussurrar contra ela, acusando-a de tê-los abandonado. Mas o
que eles sabiam da
realidade musical americana? E Carmen tinha razão quanto ao material
enviado por Almirante:
era tão fraco que ninguém nunca quis gravá-lo, nem no Brasil. Meses
depois, ao circular na
cidade a notícia de que Carmen assinara com a Decca para gravar três
discos - seis músicas -,
a pergunta que pairava sobre o Café Nice era: o que ela iria cantar?

O contrato com a Decca fora intermediado por Shubert com a MCA, a agência
que acertara a
temporada de Carmen no Waldorf e que também tinha participação na
gravadora. Por esse
contrato, Carmen receberia um royalty de
1,5 centavo de dólar pela venda de cada face gravada, perfazendo três
centavos por 78 rpm. Isso
equivalia a pouco mais de sessenta réis por disco, quando, no Brasil, a
Odeon lhe pagava
oitocentos réis pelas mesmas duas faces.

Mas havia uma diferença a justificar essa discrepância: em seu país,
Carmen era a maior estrela do
disco; nos Estados Unidos, era conhecida somente em Nova York e não tinha
nenhum peso na
indústria fonográfica. Havia ainda outro motivo para esses royalties tão
mixos: Carmen os estava
dividindo com Shubert, que recebia uma porcentagem igual à sua. A Decca
previa também um
pagamento ao artista de 25% da renda líquida pela transmissão pública dos
discos. No caso,
basicamente jukeboxes - e não o rádio, porque, soberbo como ele só, Jack
Kapp, presidente da
companhia, não autorizava a transmissão dos discos de seu selo pelo éter.
E quem era a Decca
para fazer isso? Muita coisa: era a gravadora dos grandes nomes: Bing
Crosby, Louis Armstrong,
Ella Fitzgerald, Cab Calloway, Jimmy Dorsey, Judy Garland, os Mills
Brothers e as Andrews
Sisters. Dos 50 milhões de discos que os americanos comprariam em 1939,18
milhões - 36% do
mercado - seriam Decca. Essa era a plêiade a que Carmen estava se
juntando.


232

Carmen trabalhou em Streets of Paris na véspera e na noite de Natal, como
era comum na
Broadway - fosse no Rio, teria ficado em casa comendo peru, saindo, no
máximo, para ir à missa
do galo, na igreja de N. Senhora do Brasil, na Urca -, e, no dia 26 de
dezembro, sem contemplação,
foi chamada ao estúdio da Decca, na Sétima Avenida, com o Bando da Lua.
Numa simples tarde,
de uma só sentada, sem erros, sem repetições e sem takes rejeitados,
gravou as seis músicas que
comporiam os três discos, e nesta ordem: "Mamãe, eu quero", "Bambu,
bambu", "O que é que a
baiana tem?", "South American way", "Marchinha do grande galo" e
"Touradas em Madri" (na
verdade, sete, porque foram feitas duas matrizes de "South American way",
uma só em inglês).

Com todo o cuidado que lhe dispensaram, Carmen sentiu a diferença. No
estúdio da Odeon, no
Rio, tinha à sua disposição a enorme orquestra da gravadora, dirigida por
Simon Bountman, que
ainda podia ser enriquecida com regionais, solistas, coros e quem mais
ela exigisse. Seus discos
brasileiros tinham um som redondo, eufórico, extasiante. No estúdio da
Decca em Nova York,
Carmen só podia contar com o acompanhamento quase cool do Bando da Lua,
agora já
reforçado por Garoto (com crédito à parte) - e lambesse os beiços. Em
compensação, em
matéria de fidelidade sonora, nunca tinha sido tão bem gravada - podia-se
saborear cada
mínima inflexão vocal. E já fora um milagre que pudesse ter gravado tudo
em português, mesmo
sendo os discos voltados para o mercado americano.

Exceto "South American way" e, de certa forma, "Bambu, bambu", nenhuma
das canções era uma
criação original de Carmen. Mas todas, por coincidência, tinham alguma
coisa a ver com
Almirante. "Mamãe, eu quero", de Jararaca e Vicente Paiva, só existira
porque Almirante
convencera a Odeon de que a marchinha deveria ser gravada para o Carnaval
de 1937, e com
Jararaca como cantor. A Odeon não queria - achava a marchinha ainda mais
primária que a
média das marchinhas, além de muito curta para ocupar uma face de disco.
Almirante defendeu a
graça quase infantil da letra e criou o diálogo da introdução, na qual,
com seu rico barítono,
interpretou a mãe - e o resto era história.

A maliciosa "Marchinha do grande galo":

Co-co-có, co-có, co-ró Co-co-có, co-có, co-ró O galo tem saudade Da
galinha carijó,

de Lamartine Babo e Paulo Barbosa, fora um sucesso de Almirante, para a
Victor, no Carnaval de
1936. (O interessante é que o Bando da Lua já a gravara quatro dias
antes, em 16 de dezembro de
1935, e na própria Victor. Por algum motivo,

233

o disco do Bando fora engavetado e só lançado em novembro de
1937, o que permitira a
Almirante cantar de galo com a grande marchinha.) "Touradas em Madri", de
Braguinha e Alberto
Ribeiro, fora outro enorme sucesso seu e também na Victor, para o
Carnaval de 1938. E "O que é
que a baiana tem?", como se sabe, só fora usado em Banana da terra depois
que ele dera o seu
indispensável aval.

"Bambu, bambu" (ou "Bambo do bambu") era um antigo estribilho de autoria
desconhecida, a que
diversos compositores, em várias regiões do país, acrescentaram versos e
adaptaram para ritmos
diferentes. Era um motivo folclórico, de domínio público - donde ninguém
poderia ser seu dono.
Carmen cantou-o como uma embolada, disparando parte de uma letra que
Almirante e Valdo
Abreu tinham usado em outra canção, e outra parte por Donga e J. Thomaz,
que realmente o
haviam adaptado. Quando o disco saiu, estes últimos apareceram no selo
como autores. Mas,
quando se tratou de distribuir os direitos autorais, Wallace Downey optou
por Almirante e seu
parceiro. Donga esperneou, mas não levou. O próprio Almirante admitiu que
o dinheiro não
justificou o barulho em torno do caso.

Ao serem lançados, em março de 1940, os discos saíram num álbum (álbum
mesmo, como os de
fotografias) com uma gloriosa capa mostrando Carmen sob colares e
pulseiras, a enseada de
Botafogo com o Pão de Açúcar ao fundo, e o título, CARMEN MIRANDA - THE
SOUTH
AMERICAN WAY. Os álbuns com capas ilustradas eram a nova e revolucionária
embalagem
criada na concorrente Columbia pelo artista gráfico Alex Steinweiss, e já
adotadas por todas as
gravadoras. Os créditos identificavam as canções como sendo da produção
musical Streets of
Paris e do filme Down Argentine way (que, no Brasil, se chamaria Serenata
tropical), embora este
ainda nem estivesse pronto.

Disco, teatro, cinema, nightclubs - nunca houve melhor combustível para o
sucesso do que o
próprio sucesso. Por aqueles dias, se você dobrasse qualquer esquina em
Manhattan, defrontava-
se, até sem querer, com a esmagadora presença de Carmen Miranda.

Coloque-se no dia 31 de dezembro de 1939. Nos seis meses e meio que
passara em Nova York -
já que chegara em 17 de maio -, Carmen fizera nove espetáculos de Streets
of Paris por semana
(a partir de 19 de junho), num total de 234 representações; quatorze
aparições de meia hora no
programa de Rudy Vallée; e doze semanas no Waldorf com dois shows por
noite, num total de 168
espetáculos. Total geral: Carmen subira profissionalmente ao palco pelo
menos 416 vezes em
pouco mais de meio ano nos Estados Unidos - uma média de 2,27 shows por
dia, todos os dias.

Não estão aí incluídos os try-outs de Streets of Paris em Boston, a
gravação dos discos na Decca,
as homenagens na Feira Mundial (o dia 31 de outubro foi declarado


234

"Carmen Miranda Day" na Feira), as apresentações beneficentes
ordenadas por
Shubert, ou as vezes em que, como "convidada especial" em festas da
sociedade, acabou tendo
de cantar. Também estão fora da conta os ensaios e as passagens de som,
as entrevistas para a
imprensa, as sessões de fotografias, as poses para publicidade, as
"aparições pessoais" em lojas,
os almoços a trabalho e as aulas de inglês. (O Bando da Lua não era tão
solicitado fora do palco,
mas acompanhou Carmen em todos os shows e ainda cumpriu a rotina de
apresentar-se durante
seis meses, às tardinhas, no Pavilhão do Brasil na Feira Mundial.)

Se você considera isso uma maratona de matar, ela ainda não se compararia
ao que esperava por
Carmen na terceira semana de janeiro de 1940 - e, se duvida, tente
acompanhar.

Com Streets of Paris ainda em cartaz, Carmen e o Bando da Lua começaram a
filmar seus números
musicais em Serenata tropical no dia 15 de janeiro. A princípio, Carmen
filmaria quatro canções,
das quais duas seriam aproveitadas na montagem final - uma na abertura do
filme, e outra mais
para o meio da história. Mas Sidney Lanfied, o diretor que a Fox mandara
a Nova York com a
equipe, adorou Carmen e decidiu filmar as cinco canções para as quais o
estúdio tinha a opção:
"South American way", "Mamãe, eu quero", "Bambu, bambu", "Touradas em
Madri" e "O que é
que a baiana tem?". (No Brasil, Carmen nunca trabalhara com um repertório
tão limitado. Mas os
americanos a estavam obrigando a ordenhar aquelas canções até que a
última gota fosse
espremida.)

O dia começava com a chegada de Carmen ao estúdio da Movietone às sete da
manhã, a fim de
ser maquiada - o que mais levava tempo era a boca, vermelha, bem
desenhada, quase
exagerada, quase cômica: a grande "boca Carmen Miranda" - e estar pronta
para as câmeras a
partir das oito. Cada número musical levava pelo menos uma semana para
ser filmado, incluindo
testes de maquiagem, roupa, luz, cor e som, repetições, ensaios com e sem
a câmera, closes e
mudanças de ângulo - até se rodar o número para valer, num mínimo de 25
takes e outras tantas
paralisações. Às cinco da tarde Carmen e os rapazes eram liberados, mas
tinham de estar no
Broadhurst antes das oito para o primeiro ato de Streets of Paris.

Quatro dias depois, em 19 de janeiro, enquanto prosseguiam as filmagens,
Carmen e o Bando
estrearam no restaurante The Versailles para uma temporada de três
semanas, com dois shows por
noite, às dez horas e à uma da manhã. Até pelo endereço - Rua 50 Leste -,
o Versailles era um
bastião da elegância nova-iorquina. O cachê também era correspondente: 3
mil dólares por
semana, dos quais trezentos (10%) para a agência William Morris, outros
trezentos para o Bando
da Lua, e os restantes 2400 a serem divididos entre Carmen e Shubert. Com
mais esse
compromisso, estabeleceu-se o seguinte pandemônio:

Terminado o primeiro ato de Streets of Paris, Carmen e o Bando corriam
para o Versailles e
faziam o primeiro show às dez. Voavam de volta para o

235

Broadhurst para a apoteose de encerramento da revista, por volta das onze
e meia, e de lá
voltavam para o segundo show do Versailles, que nunca acabava antes das
duas da manhã.
Mesmo que, ao fim de tudo, conseguissem relaxar e ir imediatamente para o
berço, Carmen e o
Bando da Lua precisavam estar de pé às seis da manhã para o expediente da
filmagem. Mas isso
era quase impossível porque, terminado o segundo show no Versailles,
Carmen tinha de se deixar
ficar para os cumprimentos no camarim - e algumas de suas visitas eram
Norma Shearer, Fredric
March, Hildegarde, Judy Garland, Mickey Rooney (que foi vê-la três dias
seguidos e lhe atirava
beijos da platéia) e, de chapelão, mal permitindo que se lhe contemplasse
o rosto, Greta Garbo
(mesmo assim, a mulher mais bonita que ela vira na vida). Como dormir
depois dessas
experiências? Sua média de sono diário não estava passando de duas horas.

Não esquecer que, entre uma apresentação e outra, no teatro e no
restaurante, havia a correria em
direção à porta dos fundos, os táxis à espera, as disparadas noturnas -
da Rua 10 Leste para a
Rua 44 Oeste, e desta para a Rua
50 Oeste, e vice-versa -, as chegadas em cima da hora e, pelo menos para
Carmen, uma
chuveirada, uma troca de roupa e uma nova maquiagem antes de voltar ao
palco para cada um
desses espetáculos. Numa dessas, a poucos minutos da entrada para o
segundo show no
Versailles, Carmen fechou os olhos diante do espelho para uma rápida
pestana e dormiu ali
mesmo, sentada. O pessoal da equipe esmurrou a porta, mas ela não acordou
e perdeu o show. O
esforço acumulado pelo ano inteiro e o desgaste daqueles últimos dias
refletiam-se no seu peso,
muito abaixo do normal, e no rosto de faces escaveiradas. (Há uma maneira
simples de constatar
isso hoje: basta rever seus números em Serenata tropical.)

No dia 24 pela manhã, Carmen desmaiou no palco de filmagem da Fox. Na
véspera, trabalhara o
dia inteiro no filme, fizera o espetáculo no teatro e os dois shows no
Versailles. Dormira menos de
duas horas e chegara ao estúdio às sete da manhã. Pouco depois, desabava
no palco. A filmagem
foi interrompida, Carmen foi atendida e mandada para casa, com a
recomendação de dormir. Mas,
como era quarta-feira, às duas e meia da tarde já estava em cena no
Broadhurst para a matinê de
Streets of Paris. Depois daria normalmente o espetáculo da noite e
completaria com os dois shows
no Versailles. No dia seguinte, chegou inteira ao estúdio da Fox. Como
Carmen conseguia?

Alguém - talvez um colega de Streets of Paris; ou o próprio médico da
companhia; ou o seu
equivalente em Serenata tropical - ofereceu-lhe sua primeira anfetamina:
Benzedrine. Era uma
cápsula mágica, ideal para os artistas. Fazia com que se agüentasse o
rojão. Permitia que se
varasse magnificamente a noite, emendando um show com o outro, e com o
dia e a noite seguintes,
sem sono, sem fome e sem cansaço.

O uso de Benzedrine começava a ficar comum no meio. Em Nova York e
Hollywood, estava
sendo consumido com a naturalidade com que se tomavam


236

um ou dois uísques antes de entrar em cena. Não era visto como droga e
não se tinha idéia de suas
conseqüências. Os médicos o receitavam com refrescante tranqüilidade.
Carmen e o Bando da
Lua (não se sabe se todos; Aloysio, sem dúvida) começaram a tomá-lo
quando a situação se
apresentava.

Para contrabalançar seus efeitos - afinal, às vezes, era preciso dormir -
, havia os barbitúricos.
Com eles, depois de passar dias inteiros no ar, acesa, tinindo, era
possível finalmente apagar as
luzes do proscênio, esquecer as réplicas, dispensar a platéia e dormir
como uma tora: Seconal e
Nembutal.



Capítulo 14


1940

Silêncio na Urca




Ao circular em trajes civis pelo salão do Versailles, antes de entrar em
cena, Carmen ouviu um
"psiu" vindo de uma mesa. Era o poeta carioca Augusto Frederico Schmidt,
desgarrado no
inverno de Nova York e talvez arrependido de um dia ter cantado num poema
os "mármores
gelados, rosas frias, Cristos de gelo". Schmidt não fora ao Versailles
pela comida. Fora para ver
Carmen, para sentir o calor brasileiro. Mas, naquela noite de fevereiro,
ela também estava com
frio na alma.

Abraçaram-se e Carmen desabafou:

"Hoje é sábado de Carnaval no Rio, Schmidt. Como tudo aqui é cacete e
enjoado diante da
lembrança de nossa cidade na folia. Estou sufocada, não sei nem como vou
enfrentar o público."

Carmen não se conformava com que os americanos passassem os três dias de
Carnaval como
passavam os outros 362 - tensos, contidos, reprimidos. Então fez o melhor
possível: cantou tudo
de que se lembrou e promoveu um Carnaval pessoal para ela, para o Bando
da Lua e para
Schmidt no palco do Versailles. E torceu para que o show, irradiado pela
NBC e captado pelos
rádios dos carros, ajudasse a esquentar a temperatura lá fora, de dez ou
doze graus abaixo de
zero.

No Rio, o Carnaval de 1940 também tinha seu motivo de luto: era o
primeiro sem Carmen em dez
anos - o primeiro desde "Taí", de 1930, em que ela não tinha um sucesso
para defender. Mas as
duas cantoras que deixara em seu lugar estavam indo muito bem, e eram
responsáveis pelas
maiores marchinhas do ano: Aracy de Almeida, com "Passarinho do relógio",
de Haroldo Lobo e
Milton de Oliveira, e Dircinha Batista, com "Upa-upa", de Ary Barroso.
Além dessas, o Carnaval
pertencia à batucada "Cai, cai", de Roberto Martins, com Joel e Gaúcho, e
a dois supersambas,
"Ó, seu Oscar", de Ataulpho Alves e Wilson Batista, com Ciro Monteiro, e
"Despedida de
Mangueira", de Benedito Lacerda e Aldo Cabral, com Francisco Alves. E,
para certos momentos
dos bailes, em que baixava uma agridoce lembrança de outros Carnavais,
havia duas marchas-
rancho, tão lindas quanto tristes: "Malmequer", de Newton Teixeira e
Cristovam de Alencar, com
Orlando Silva, e a quase fúnebre "Dama das camélias", de Braguinha e
Alcyr Pires Vermelho,
também com Chico Alves.


238

Naquele mês de fevereiro, enquanto o Rio cantava e brincava, Carmen
estava enfrentando a neve
e o vento em Nova York e posando para fotos de moda de meia-estação, com
as roupas criadas
pelos costureiros americanos inspiradas nas suas fantasias de palco. Os
vestidos e as blusas da
coleção eram vistosos, mas as grandes inovações de Carmen tinham sido os
turbantes, as
plataformas e as bijuterias - antes dela, ninguém os usara socialmente.
Os costureiros os
adaptaram à sobriedade nova-iorquina, mas eles ainda provocavam certo
choque quando
desfilados em horário de almoço na Quinta Avenida. Alceu Penna, que
continuava na cidade,
conseguiu fotos exclusivas de Carmen como modelo, e mandou uma matéria
que O Cruzeiro
publicou em 24 páginas em sua edição com data de 30 de março. A revista
esgotou nas bancas, e
Accioly Netto, diretor de redação, teve uma idéia-mãe: reproduziu a
reportagem na íntegra e
ofereceu-a gratuitamente aos leitores como um suplemento na edição de 13
de abril. Com isso,
esgotou duas edições.

Outro que não descansou em fevereiro foi Shubert. Com três meses e
quebrados de antecedência,
ele comunicou oficialmente a Carmen seu interesse em exercer a opção de
renovação do contrato
por mais um ano, ao salário de setecentos dólares por semana e 350 por um
segundo compromisso.
(Os valores reais entre Carmen e Shubert já eram muito maiores, mas ele
insistia em manter o preto
no branco, para continuar pagando-a por fora e passar por generoso.) Se
Carmen pensasse
melhor, perceberia que já não lhe era conveniente continuar submetida a
Shubert e, muito menos,
sendo drenada em 50% de seus rendimentos. Mas assinou o novo contrato
assim mesmo - como
todas as propostas de fora lhe eram submetidas por intermédio de Shubert,
ela talvez achasse
ingenuamente que ele era o único responsável por elas.

Em alguns casos, esses contratos estavam de fato atrelados a Shubert. Em
fins de fevereiro, ele
mandou todo mundo arrumar as malas e despachou Streets of Paris para
temporadas em Filadélfia,
Washington, Toronto, Pittsburgh, Saint Louis e Chicago - com apresentações
extras de Carmen em
nightclubs em todas essas praças, e pela duração da temporada em cada uma
delas. Daí que,
pelos setenta dias seguintes, até 9 de maio, Carmen atuou diariamente com
o Bando da Lua em
Streets of Paris e, à saída do teatro, ela e o conjunto marchavam, também
sete noites por semana,
para um nightclub local, e faziam dois, às vezes três, shows durante a
madrugada.

Na noite de 5 de março, em Washington, foi diferente. Carmen e o Bando
saíram do National
Theatre com a roupa do espetáculo e foram levados a se apresentar na sede
do Partido
Democrata, num banquete em homenagem aos sete anos de mandato do
presidente Roosevelt.
Depois do jantar, alguns artistas foram convidados para uma recepção na
Casa Branca. Carmen e
o Bando estavam entre eles. Mais uma vez teriam de cantar, e o ponto alto
da noite foi - como
nunca mais deixaria de ser - "Mamãe, eu quero". Roosevelt, sentado em sua
cadeira de rodas
numa mesa de pista, cumprimentou os rapazes e

239

beijou a mão de Carmen. Quando ele lhe tomou a mão para beijá-la, Carmen
estava desprevenida
e pode ter parecido desajeitada ao presidente. Mas ela aprendia depressa.
Dias depois, numa
recepção em sua homenagem na embaixada do Brasil, Carmen esticou
rapidamente os dedinhos
ao ver que os lábios do embaixador inglês, Lord Hallifax, estavam
atravessando a sala e vindo
em sua direção com a indiscutível intenção de beijá-los. O beijo foi um
sucesso. O embaixador do
Brasil era o respeitado Carlos Martins, que formava com sua mulher, a
escultora Maria Martins,
um dos casais mais fulgurantes da comunidade diplomática internacional,
pelo charme de ambos e
pela audácia de terem um casamento aberto. Entediada com a vida
provinciana de Washington,
Maria mantinha um misto de apartamento e ateliê em Nova York, e convidou
Carmen a visitá-la.

De Washington, a companhia já estava a caminho de Toronto, no Canadá,
quando Carmen foi
avisada por Abe Cohen, um dos homens de Shubert junto à trupe, de que o
Century Apartaments,
seu apart-hotel em Nova York, estava lhe cobrando a quinzena do
apartamento que ela deixara
de pagar ao viajar. Carmen não tinha os prepostos de Shubert em alta
conta. Quando eles a
procuravam com problemas desse tipo, ou lhe pediam para assinar alguma
coisa, Carmen
procurava o próprio Shubert para que ele confirmasse se era aquilo mesmo
ou não. "Ela não
confia em nós, os patetas. Só no patrão", queixara-se Cohen a seu colega
Duke Kauffman.

Carmen não se conformou com a dívida. Ditou uma carta a Aloysio, que a
verteu (mais ou menos)
para o inglês, e Cohen enviou-a para Shubert.

"O senhor sabe que não sei ler inglês", escreveu Carmen, "e que sou uma
estranha neste país, sem
conhecimentos das leis locais. Quando assinei o contrato [com o Century
Apartments], um dos
gerentes disse que era só uma formalidade e que, quando eu excursionasse,
poderia acertar as
coisas com a gerência. Agora estou longe e não posso fazer nada, exceto
pedir ao senhor que me
ajude. Best regards from [e só então vinha a gloriosa assinatura cheia de
emes rebordados]
Carmen Miranda."

Com sua espontaneidade, Carmen reduzia a megaempresa de Shubert a uma
quitanda e o
empresário, a alguém atrás do balcão com um lápis na orelha, a quem ela
podia recorrer a
qualquer dia e hora, como se ele tivesse todo o tempo para atendê-la.
Nesse caso, Carmen queria
que Shubert largasse suas centenas de teatros e fosse em pessoa convencer
o gerente a aliviar
uma dívida que ela contraíra porque entendera que bastava ausentar-se do
apartamento para ser
dispensada de pagar o aluguel. Dívida, essa, de pouco mais de trinta
dólares. Shubert não ia fazer
isso, mas destacou Greneker para o trabalho, o que dava quase na mesma.
No fim de março,
Greneker comunicou-lhe que, depois de duas semanas tentando falar com o
tal gerente, este
reapareceu, queimado do sol de uma praia cubana, e disse que não podia
fazer nada porque
haviam gastado muito dinheiro redecorando o apartamento para Miss
Miranda.


240

Iam tentar sublocá-lo pelo restante do tempo que ela ficasse fora,
mas não seria fácil.
Enquanto isso Miss Miranda teria de continuar pagando, e era bom que
liquidasse as duas (agora
eram duas) quinzenas em atraso. Greneker suspirou e aconselhou a Shubert
que ele mesmo
explicasse isso a Carmen - ela se sentiria mais acolhida e protegida.

A escala final da excursão foi Chicago, onde Streets of Paris ficou um
mês em cartaz na Grand
Opera House e Carmen cantou também, pelo mesmo período, no Colony Club.
Neste, o cachê era
de 2 mil dólares por semana. (Poderia ser mais, se ela tivesse concordado
em fazer três shows por
noite - o último às quatro da manhã.) Descontada a parte do Bando da Lua
(trezentos dólares) e
dividido o resto com Shubert, sobravam-lhe 850 dólares. Nada mau, mas até
quando Carmen
conseguiria se manter como uma máquina de cantar? E a que preço?

De volta a Nova York, Shubert concedeu-lhe uma semana de descanso, e no
dia 16 de maio
Carmen voltou à madrugada do Versailles para mais três semanas - enquanto
isso, para os turnos
da tarde e da noitinha, Shubert vendeu-a para quatro shows por dia no
Paramount Theatre, de
vinte minutos cada, nos intervalos de um filme. O Paramount tentou exigir
que Carmen fizesse
cinco shows às quartas, aos sábados e aos domingos, alegando que, como
tinham mais matinês
nesses dias, os shows eram mais curtos e duravam o mesmo que os outros
quatro. Mas, para
Carmen, o fato de durarem menos não fazia diferença, porque, depois de
cada show (enquanto
rolavam na tela um trailer, um desenho animado e o filme), ela tinha de
tirar o vestido ensopado e
arriar a maquiagem.

Somente essa operação já exigia um ritual: primeiro, Carmen removia a
maquiagem com óleo de
loureiro, depois lavava o rosto com sabão e água fria; em seguida,
aplicava-lhe uma massagem
com sabão, usando uma escova especial. Só então Carmen tomava um banho
completo, se vestia
e se maquiava toda de novo para o show seguinte. Multiplique essa
operação pelo número de
shows por dia - sendo que, depois do último show no Paramount, vinham os
shows no Versailles.
Daí Carmen insistir nos quatro shows por dia - sete dias por semana -, e
o Paramount que a
aceitasse ou não. O Paramount aceitou. Dez meses depois, em março de
1941, outro artista subiria
ao palco do Paramount para a mesma moenda de quatro ou cinco shows por
dia entre os filmes, e
sairia de lá uma lenda: Frank Sinatra.

Se a agenda de Carmen no segundo semestre de 1939 parecera desumana, não
ficou nem um
pouco mais descansada no primeiro semestre de 1940. Nesse período, Carmen
fez 56 shows no
Versailles em janeiro e fevereiro; 140 nos nightclubs de Filadélfia,
Washington etc., até Chicago,
em março, abril e primeira semana de maio; e 42 no Versailles em maio e
junho, junto com os
brutais 84 no Paramount. Some a isso os últimos quarenta espetáculos de
Streets of Paris na
Broadway em janeiro e, no mínimo, outros cinqüenta na excursão.

241

Total: Carmen entrou no palco pelo menos 412 vezes nos primeiros seis meses
de
1940 - de novo, 2,2 shows por dia, todos os dias -, sem contar os 25 dias
de filmagem de seus
cinco números em Serenata tropical.

Isso significou pelo menos 412 vezes em que ela vestiu uma baiana,
sentou-se ao espelho para
aplicar a maquiagem, suou a baiana no palco, e, ao fim do show, despiu-a
e se sentou de novo ao
espelho para retirar a maquiagem. (Não esquecer as quatorze sessões, de
meia hora a duas horas
cada uma, em que Carmen posou para Paul Meltsner, pintor de Nova York
famoso por seus
retratos - e, com isso, ingressou numa galeria em que constavam outras
divas da Broadway,
como Lynn Fontanne, Martha Graham e Gertrude Lawrence, também retratadas
por Meltsner.)
Em quantas dessas vezes Carmen não terá se perguntado se o esforço e o
sacrifício valiam a pena
- e se não era mais feliz no Rio, onde tinha menos compromissos? Ou se
era a vaidade de impor-
se na América, mais até do que o dinheiro, que a fazia submeter-se a essa
maratona de palcos e
espelhos? E, em quantas dessas vezes, o principal fator a fazê-la seguir
em frente e enfrentar o
público não terá sido uma cápsula branca e amarga de Benzedrine engolida
no camarim?

Para quem estava de fora e apenas torcia por ela, como seu velho amigo R.
Magalhães Júnior, tanto
trabalho só podia significar sucesso e fortuna.

"Hoje, ela é a dona de Nova York", escreveu Magalhães Júnior, então
correspondente da Carioca nos
Estados Unidos. Dez anos antes, ele fizera a primeira entrevista
importante com Carmen, para a
Vida Doméstica. Agora era também o primeiro a anunciar que, depois de um
ano de incontestável
triunfo em Nova York, Carmen iria ao Brasil de férias em julho. Passaria
três ou quatro meses,
começando por uma estação de repouso em Poços de Caldas para curar a
estafa, e, depois, sabe-
se lá se ficaria no Rio ou para onde iria.

"Mas" - como se, de repente, fosse Nova York que não pudesse mais passar
sem ela -, "em
novembro [Carmen] estará de volta, para trabalhar numa nova revista
musical. Talvez com
Maurice Chevalier, talvez com Eddie Cantor. E a 20th Century-Fox lhe
promete um filme
completo - e não um número ou dois em Technicolor -, logo que seu inglês
esteja mais
desembaraçado."

O projeto do musical não se materializou porque Chevalier, que estava em
Paris quando ela foi
ocupada pelos alemães, no dia 14 de junho, preferiu continuar por lá.
Então Shubert decidiu que,
na volta de Carmen de suas férias no Brasil, seria melhor alugá-la à Fox
antes de trazê-la de volta
à Broadway.

Assim, no dia 28 de junho, Carmen tomou o Argentina para o Rio, sabendo
que, quando voltasse,
Nova York seria apenas uma escala - para Hollywood.

Enquanto Carmen ainda saboreava a idéia de embarcar para o Rio depois de
um ano de ausência
- e alheia a tudo o que acontecia fora dos Estados Unidos,
242

os tanques da Alemanha nazista rolavam sobre a Europa. No dia 9
de abril de 1940, os
alemães invadiram a Dinamarca e a Noruega; no dia 10 de maio, começaram o
cerco à França,
tomando a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo; no mesmo dia, a Itália
declarou guerra à França e à
Inglaterra; no dia 4 de junho, os alemães derrotaram os ingleses em
Dunquerque; no dia 14,
ocuparam Paris; e, no começo de agosto, iniciariam o bombardeio aéreo a
Londres. Com a União
Soviética acuada no seu próprio front, e os Estados Unidos aparentemente
à margem da guerra,
nada parecia impedir a vitória do Terceiro Reich. Tempos difíceis para
pierrôs, arlequins e
colombinas.

No Rio, a ditadura de Getúlio proclamava a "neutralidade" do Brasil
diante do conflito, mas a
face nacionalista do Estado Novo - muito parecida com a dos regimes de
Salazar em Portugal e
de Franco na Espanha - não deixava dúvidas quanto à inclinação do
governo. Em 11 de junho,
Dia da Marinha, num discurso a bordo do encouraçado Minas Gerais, Getúlio
jogou beijos
públicos para a Alemanha ao dizer:

"Marchamos para um futuro diverso de quanto conhecíamos, em matéria de
organização
econômica, social ou política, e sentimos que os velhos sistemas e formas
antiquadas entram em
declínio. Não é, porém, o fim da civilização, mas o início tumultuoso e
fecundo de uma nova era.
Os povos vigorosos, aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas
aspirações, em vez de se
deterem na contemplação do que se desmorona e tomba em ruína. É preciso,
portanto,
compreender nossa época e remover o entulho das idéias mortas e dos
ideais estéreis." E mais
adiante: "Passou a época dos liberalismos imprevidentes".

O discurso de Getúlio foi recebido com vivas nas repartições alemãs no
Brasil e euforicamente
transmitido para Berlim, onde a imprensa o interpretou à risca. O que
"desmoronava e tombava
em ruína" era a velha Europa - a da Inglaterra e da França. A "nova era",
promovida pelos
"povos vigorosos e aptos à vida", era a da Alemanha de Hitler -já wohl.
Da Itália, Mussolini
(num recado para a imensa colônia italiana no Brasil) mandou seu
embaixador no Rio
cumprimentar Getúlio. E, em Washington e Nova York, o governo e a
imprensa americana
interpretaram-no do mesmo jeito, só que com desapontamento e alerta. Por
mais que Oswaldo
Aranha - ministro das Relações Exteriores de Getúlio e um dos poucos a
favor dos Estados
Unidos no governo - tentasse apagar o incêndio junto a seu amigo Sumner
Welles, subsecretário
de Estado americano, o discurso era inequívoco. O relatório de um órgão
do governo brasileiro, a
Delegacia Especial de Segurança Política e Social, assinado pelo
deslumbrado capitão Batista
Teixeira, confirmava isso. Ele classificou a fala presidencial como
"traduzindo uma orientação
diametralmente oposta à seguida pelo presidente dos Estados Unidos" e "um
golpe de
independência contra a orientação imperialista da política norte-
americana".

Os germanófilos do governo brasileiro deram saltos de Gemütlichkeit.
Alguns deles eram os
generais Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, e Góes Monteiro,


243

chefe do Estado-Maior do Exército (que, em 1939, fora a Berlim
para assistir às
manobras do Exército alemão), o major Filinto Müller, chefe de polícia do
Distrito Federal, e
Lourival Fontes, agora diretor do onipotente DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda). Se
eles vibravam com o avanço da Alemanha no plano internacional, a fala de
Getúlio foi o seu
maior motivo para triunfalismo: significava que o Brasil se comprometeria
com a nova ordem.

O DIP era o sucessor do DNP, também criado por Lourival Fontes, mas aí
cessava a comparação
- nunca haveria no Brasil um organismo de controle tão abrangente.
Dedicava-se a controlar a
liberdade de pensamento e de expressão, analisando previamente todo tipo
de veículo (impresso,
filmado, fotografado, gravado), e a promover a propaganda do Estado Novo,
criando produtos e
eventos que exaltassem as virtudes do regime. Isso queria dizer tudo. O
DIP controlava desde a
cota de papel para todos os jornais e revistas do país - o que os
mantinha de rédea curta e
atentos para que não saísse nada que comprometesse a cota de papel do
número seguinte - até a
realização de uma festinha cívica no grêmio escolar de Deus-Me-Livre, no
Guaporé, para
certificar-se de que o mar de bandeirinhas brasileiras requerido para a
ocasião estivesse de
acordo. Controlava também as verbas de publicidade do Banco do Brasil e o
valor do "subsídio"
que cada órgão de imprensa recebia. Lourival era chamado, na intimidade,
de "o nosso
Goebbels", referindo-se ao chefe de propaganda de Hitler. Ele gostava:
numa parede de sua casa,
tinha retratos emoldurados de Hitler e de Mussolini, este último
autografado.

No dia 28 de junho (exatamente quando Carmen estava embarcando para o Rio
em Nova York),
Getúlio voltou à carga com um discurso em que condenava "os preparadores
de guerra, os sem-
pátria, prontos a tudo negociar, muitos deles, indesejáveis noutras
partes, infiltrando-se
clandestinamente no país com prejuízo das atividades honestas dos
nacionais e abusando de
nossa hospitalidade, fazendo-se instrumentos das maquinações e intrigas
do financismo
cosmopolita".

Dessa vez, era uma profissão de fé anti-semita - e tudo isso enquanto
falava em "neutralidade" e
no apego do Brasil à "solidariedade pan-americana". Mas era uma
neutralidade e solidariedade
marota - não muito diferente da que a Argentina dizia praticar, ao mesmo
tempo que flertava
ostensivamente com a Alemanha.

Na correspondência entre Prüfer, embaixador alemão no Rio, e o chanceler
alemão Ribbentrop
(revelada depois da guerra), há várias referências à aversão de Getúlio
pela Inglaterra e à sua
disposição de afastar-se da área de influência americana e aproximar-se
da Alemanha. Prúfer e
seus adidos militares ouviam isso de fontes muito próximas do ditador,
como Filinto, Góes, Dutra,
o ministro da Justiça Francisco Campos e o próprio irmão do ditador, Bejo
Vargas, todos
torcedores abertos do Reich. Não que a diplomacia alemã esperasse


244

uma adesão brasileira à Alemanha - queria apenas que o Brasil não
seguisse os Estados
Unidos no caso de este entrar abertamente na guerra.

"Apesar dos protestos de amizade [aos Estados Unidos], os discursos [de
Vargas] representam
uma rejeição pelo presidente da política norte-americana", escreveu
Prüfer a Ribbentrop. Nessa
época, Getúlio estava recebendo Prüfer em palácio pelas costas de Oswaldo
Aranha e, como se o
Catete fosse cenário de uma comédia de Feydeau, pedindo-lhe que saísse
pelos fundos ao saber
que Aranha estava para chegar. O intermediário desses encontros, quase um
alcoviteiro, era Bejo
Vargas.

Em 1940, a Alemanha já se tornara o maior parceiro comercial do Brasil,
superando os Estados
Unidos. Um ano antes, a metalúrgica alemã Krupp assinara um contrato com
o Ministério da
Guerra para rearmar o Exército brasileiro, especialmente a artilharia.
Agora estava em
negociações com Getúlio para a construção da Companhia Siderúrgica
Nacional. Nove dias
depois do discurso no Minas Gerais, com a tranqüilidade com que lhe
forneceria uma válvula, a
Krupp comunicou a Getúlio que estava pronta a entregar-lhe uma
siderúrgica no valor de 70
milhões de Reichmarks. E havia também as relações pessoais. Noventa por
cento dos industriais,
dirigentes de empresas e técnicos alemães de alto nível residentes no Rio
eram "alemães do
Reich", não simples Volksdeutsche (descendentes), como no Sul do país. A
maioria freqüentava os
salões da elite brasileira. Diante de tantas ligações com a Alemanha, era
normal que uma parte
dessa elite, sempre disposta a seguir os vencedores, não escondesse sua
simpatia pelos nazistas e
aversão pelos ingleses e americanos.

Naquele ano, o Rio estava também infestado de agentes secretos da
Gestapo, camuflados nas
embaixadas, nas filiais brasileiras das empresas alemãs (principalmente
as fabricantes de
eletrodomésticos) e até nas associações recreativas germânicas. A função
desses agentes era
passar informações sobre o movimento de navios ingleses e americanos no
porto - o que
transportavam, para onde iam e por quais rotas - e ficar de olho na
disposição brasileira de
manter a neutralidade na guerra, o que era de todo o interesse dos
alemães. Outras funções desses
espiões incluíam enviar mensagens com tinta secreta, operar transmissões
clandestinas e, se
possível, eliminar (matar) agentes dos países democráticos que dessem
sopa por aqui. A única
atividade proibida por Berlim era a sabotagem, mas só porque poderia
indispor o povo brasileiro
contra a Alemanha. Tudo isso se fazia sob as vistas grossas da polícia
chefiada por Filinto Müller.

Foi no auge desse clima que Carmen Miranda, a brasileirinha que se
projetara nos Estados
Unidos, armada apenas com seus balangandãs e que tais, desembarcou no
Rio.

O DIP se encarregou de organizar a programação para a chegada de


245

Carmen no dia 10 de julho. E tinha razões de Estado para isso. No
vernáculo típico do regime, era
a volta de uma grande patrícia, que pusera nas alturas o nome do Brasil
em pleno território de uma
"potência estrangeira". Seu triunfo na América era uma afirmação da "raça
brasileira" (uma
novidade da biologia, criada por Getúlio). O triunfo era também do
governo, que apoiara a ida de
Carmen e oferecera as passagens para o Bando da Lua, responsável pelo
ritmo que possibilitara à
artista "impor o samba na América".

Quando Carmen estava para chegar, os jornais anunciaram amplamente a
programação do dia: o
navio em que ela viria, a que horas atracaria, os barcos e lanchas que
iriam ao seu encontro para
escoltá-la, a festa na praça Mauá, os discursos no palanque armado no
Theatro Municipal e o
trajeto do desfile em carro aberto. Era como se fosse um soldado que
voltasse do front, trazendo a
espada do inimigo morto. Era a cantora que vencera em toda a linha -
teatro, rádio, nightclub,
cinema - sem ter de fazer concessões. Era a volta da música e da língua
brasileiras, depois de um
vitorioso bordejo por trás das linhas adversárias.

Josué de Barros, de novo no Rio, vindo de sua longa temporada portenha,
estava morando na
Urca. Na hora prevista, fim da tarde, foi para a amurada do bairro ver o
navio passar. O Argentina
surgiu na barra e piscou para o Pão de Açúcar, trazendo a ilustre
passageira. Ninguém mais que
Josué tinha o direito de ser o primeiro a abraçar Carmen, mas, quando o
navio embicou em
direção à ponta do Calabouço e sumiu de vista, ele desistiu de ir recebê-
la no cais. Preferiu voltar
para casa. A glória de Carmen agora era de muitos.

O Argentina atracaria entre quatro e meia e cinco da tarde, mas, desde o
meio-dia, toda a área
entre a praça Mauá e o Armazém l estava tomada pelo povo. A Mayrink
Veiga, com o apoio do
DIP e em cadeia com rádios de outros estados, era a emissora oficial da
chegada - claro, pois
era a emissora do coração de Carmen. Dos alto-falantes, abrindo a
transmissão, saíam as vozes de
César Ladeira e Gagliano Netto, este agora na Record e empoleirado num
guindaste sobre o cais.
Adhemar Gonzaga mandara suas câmeras e a Cinédia iria filmar a chegada
(batendo todos os
recordes, o cinejornal com a reportagem seria exibido no Cineac-Glória já
no dia seguinte). Uma
banda de música tocava os sucessos de Carmen. Era julho e era pelo
Carnaval.

Quando o navio despontou na curva da ilha das Cobras, a multidão já
chegava ao Armazém 2. Os
armazéns tiveram suas portas fechadas para que o povo não os usasse para
ter acesso ao cais -
privilégio reservado aos 3204 pagantes que passaram pelas borboletas do
Touring Club para ver
Carmen de perto. Frotas e frotas de pequenas embarcações, com as
autoridades sanitárias e
alfandegárias, foram ao encontro do Argentina e o acompanharam até o
Armazém 2. Finalmente, o
navio completou a manobra e a escada de bordo foi aberta. Repórteres e
fotógrafos, às centenas,
quase se engalfinhavam para chegar a ela. Carmen surgiu, poderosa, na
passarela do deque
superior, usando


246

um vestido de veludo verde, com aplicações em camurça amarela pespontada,
e uma bolsa com
imensas iniciais, C. M. Ali ela era o Brasil chegando. Um Brasil viajado,
cosmopolita - até o
perfume era diferente.

Os primeiros a conseguir subir e abraçá-la foram seu irmão Mocotó e o
colunista do Correio da
Noite, Caribe da Rocha. Depois, dona Maria, o casal Edmar Machado e Maria
Sampaio e os
diretores do DIP, Júlio Barata e Assis Figueiredo - estes, para lhe dar
as boas-vindas oficiais.
Subiu quem podia, como César Ladeira, já de microfone na mão, e quem não
podia. Dona Maria
levou encontrões, mas conseguiu equilibrar seu chapéu.

"Como está linda a minha querida filhinha!", repetia, chorando.

Quando pôde abraçar e beijar a mãe e os irmãos, Carmen deixou escapar:

"Ah, meus queridos! Que saudade mais... abafativa!"

Engolfada no deque, Carmen mal pôde posar para as fotografias. Os
repórteres a encurralaram. As
perguntas vinham de todos os lados e, quando a deixaram falar, ela se
confundiu:

"Viajamos [com Streets of Paris] pelos Estados Unidos inteiros. Fomos até
o Canadá e estivemos
em Hollywood" - este, um dos poucos lugares em que ela não esteve. Mas o
barulho era tanto
que a frase passou em branco.

Os repórteres queriam provocá-la. Perguntaram-lhe se já havia esquecido o
Rio.

"Como posso esquecer esse sol, esse mar, essa cidade?"

Outro intrigante perguntou-lhe sobre o "mal-entendido" a respeito de sua
nacionalidade. De tanto
ter de explicar aos repórteres de Nova York que não cantava em espanhol,
mas em português (o
próprio Brooks Atkinson, do New York Times, cometera essa gafe),
escreveram que ela se sentia
portuguesa, não brasileira. Isso repercutira mal aqui.

"Eu sou é brasileira, e no duro!", disse Carmen.

Alguém se atreveu a perguntar sobre os "rumores" de que estivesse
voltando porque "fracassara"
nos Estados Unidos.

"Vou voltar em outubro para fazer dois filmes na Fox e, se quiserem, eu
mostro o contrato. Comigo
é na batata."

Finalmente liberada, Carmen começou a descer a prancha. A turba rompeu o
cordão de
isolamento e se colocou entre ela e o carro em que desfilaria. A PM
entrou em ação, com a
delicadeza de sempre. Soldados do Exército e a Guarda Civil tentaram
fazer uma escolta para
que ela passasse, mas a multidão avançava. Então, o tenente Euzébio de
Queiroz tomou Carmen
pela cintura, tirando-a do chão, e, numa ousada galanteria, abriu caminho
e levou-a até o carro,
que estava cheio de corbeilles e buquês, encomendados à casa A Catleya
pela poetisa Adalgisa
Nery, mulher de Lourival Fontes.

Os batedores da Inspetoria do Tráfego ligaram as sirenes e o carro saiu,
seguido pelo cortejo que
engarrafou a avenida Rio Branco. Carmen jogava flores para o público. Em
troca, funcionários
públicos e comerciários, nas janelas da Rio Branco,


247

atiravam flores e serpentinas. O DIP podia ter organizado a
festa para Carmen, mas e
daí? Era o povo brasileiro que a estava recebendo e sufocando de amor. Em
frente ao Theatro
Municipal, parou tudo para que Carmen fosse saudada em discursos pelos
luminares do órgão de
propaganda. Finalmente o cortejo seguiu pela avenida Beira-Mar, sempre
sob palmas e vivas, e,
quando chegou à sua casa na Urca, já eram quase nove da noite. Lá, outra
multidão a esperava. A
polícia teve de cercar a casa para evitar que a malta invadisse. Carmen,
que não se dava bem em
navios e pegara um resfriado, estava quase afônica. E, com toda aquela
azáfama, só dormiria no
dia seguinte.

Meio que deixado para escanteio, o Bando da Lua chegara no mesmo navio,
mas esse fato
provocou raras comoções fora do âmbito familiar. (Aliás, suas passagens
tinham sido pagas por
Carmen, num total de 1800 dólares.) Aos poucos jornalistas que o
procuraram, Aloysio disse que o
Bando da Lua também vencera na América e que Garoto impressionara os
americanos, que o
chamavam de "Mister Marvelous Hands". E que, dali a três meses, quando
Carmen voltasse para os
Estados Unidos, eles voltariam com ela. Mas, naquele momento, com tantas
crises dentro do
conjunto, nem Aloysio tinha certeza de que isso aconteceria.

As intenções de Carmen eram boas: chegar ao Rio e, no dia seguinte,
esconder-se por uma ou
duas semanas numa estação de águas, quem sabe Poços de Caldas, para
recuperar-se do trabalho
quase escravo a que se submetera em um ano de Estados Unidos. Mas não
teve tempo. Os amigos
iam à sua casa na Urca em romaria. Como impedir que Synval, Assis, André,
Caymmi, Joubert e
Braguinha, além de Edmar e Maria, entrassem para declarar que a amavam e
que sentiam sua
falta? Seu encontro com Josué de Barros foi comovente: "Carmen querida!",
disse Josué;
"Barrocas!", ela exclamou. Cada visita, ao despedir-se, levava debaixo do
braço o álbum South
American way, de que Carmen trouxera uma coleção. Almirante foi outro que
a visitou - e, para
ele, Carmen reservara um rádio de pilhas, o primeiro que se viu no
Brasil. As pessoas se
espantavam com aquele rádio enorme que falava "sozinho", sem estar ligado
à parede. Carmen
trouxe também uma caixa de pilhas sobressalentes para Almirante.

Mas a visita fatal foi a do emissário de dona Darcy Vargas, esposa do
presidente Vargas, para
convidá-la a participar de uma noite black-tie beneficente no Cassino da
Urca, dali a 72 horas, no
dia 15, em prol da Cidade das Meninas, uma obra da primeira-dama. Esse
emissário foi
provavelmente seu ex-patrão, Joaquim Rolla.

O primeiro contato já fora feito por carta antes do embarque de Carmen em
Nova York, e ela não
dissera não. Mas, agora, Carmen tinha todos os motivos para recusar.
Acabara de chegar, sentia-
se esgotada, estava muito resfriada,

248

pretendia esconder-se numa estação de águas, e não haveria tempo para
ensaiar. Só que, da
maneira como a coisa lhe deve ter sido colocada, jamais poderia fugir. O
que se queria dela era
uma simples participação num show já montado com outras atrações - Carmen
não precisaria
cantar mais que meia dúzia de músicas. A Cidade das Meninas (um
empreendimento filantrópico a
ser construído na Baixada Fluminense, destinado a dar abrigo e educação a
jovens desvalidas)
era a "menina-dos-olhos", o projeto mais querido da primeira-dama. As
adesões àquela noite
estavam sendo significativas. A Casa Canadá oferecera uma pele no valor
de mil dólares para ser
sorteada durante o espetáculo; um busto de Carmen pela escultora Celita
Vaccari também seria
sorteado - tudo em prol da Cidade das Meninas. E o governo estaria
presente em peso. Como
recusar? Depois disso, o que Rolla queria de Carmen era uma temporada de
verdade na Urca,
mas lá para agosto ou setembro, quando ela achasse melhor.

Com Carmen no programa, a Urca vendeu rapidamente setecentos convites a
cem mil-réis para
aquela noite. Para acumular forças, Carmen passou de cama toda a véspera
do show, tentando
vencer o resfriado que não cedia. Maria Sampaio ficou de plantão,
ajudando a barrar gente que
queria ver Carmen. No dia seguinte, a poucas horas do espetáculo, Carmen
foi ao cassino. O
médico a proibira até de ensaiar, mas ela precisava entender-se com
Carlos Machado, cuja
orquestra a acompanharia. Entender-se com Machado era só uma maneira de
falar, porque ele não
sabia uma nota de música (e se orgulhava disso). Os interlocutores eram o
pianista argentino
Roberto Cesari, que era quem realmente comandava a orquestra, e seu amigo
Russo do Pandeiro.

Mas foi Machado quem sugeriu a Carmen dar um caráter mais "internacional"
à sua apresentação
- abrindo com "South American way" e mostrando à platéia que era agora
uma cidadã do
mundo.

O enxame de bandeiras do Brasil no palco e no grill da Urca,
providenciadas por Adalgisa Nery,
que se encarregara da decoração, podia tê-lo feito suspeitar de que
aquela não era uma boa idéia.

César Ladeira subiu ao palco e, com seu verbo emplumado, narrou com ares
épicos as façanhas
de Carmen em Nova York - muitas, presenciadas por ele. Em resumo, o que
César tinha a dizer
era: a "Pequena Notável" vencera no meio musical mais exigente do mundo,
na maior cidade do
mundo, no país mais poderoso do mundo. E não bastava louvar Carmen. Por
qualquer ângulo que
fosse analisado, o speech de César era uma subliminar louvação aos
Estados Unidos. E nem todos
ali estavam gostando daquilo. Sob sua voz, vindo das mesas de pista,
podia-se ouvir um rumor de
sabres.

Enquanto César falava, Carmen, na coxia, estava nervosa. Natural. Era a
rentrée para o seu povo,
em sua cidade, em seu país. César encerrou chamando Carmen,


249

e as palmas que se ouviram destinavam-se a receber a artista,
não a aplaudir o
locutor. A orquestra de Machado, já a toda, assomou do subsolo pelo
elevador. Um segundo antes
de entrar, Carmen benzeu-se e apertou distraidamente o braço de uma
cantorinha que participara
de um número anterior e que estava ali para espiá-la. Sem saber o que
fazia, Carmen cravou as
longas unhas no braço nu da menina - Emilinha Borba -, que espremeu
baixinho um grito de
"Aaaaiii!...".

Com a mesma baiana que usara na Casa Branca, de brocados dourados,
vermelhos e prateados,
Carmen finalmente entrou sob os aplausos. A cestinha de frutas crescera
para os lados e para o
alto; uma catarata de colares e balangandãs tinha se incorporado à
fantasia; e a gesticulação
também parecia diferente. Para a platéia, aquela era uma nova Carmen - e
mais ainda porque
Serenata tropical ainda não estreara por aqui. (Aliás, não estreara nem
nos Estados Unidos. A
"nova" Carmen ainda era um segredo dos nightclubs de Nova York a
Chicago.)

Carmen dirigiu-se em inglês à platéia:

"Good night, people!" - em vez do tradicional (e muito mais ela) "Oi,
macacada!".

Não houve grande resposta.

Carmen abriu com "South American way". Pelos três minutos seguintes, gelo
na platéia. O samba-
rumba, muito fraco para os padrões brasileiros, teve de arrastar-se
sozinho até a última nota. O
verso "Souse American way", que, nos Estados Unidos, fazia a platéia ter
convulsões de riso,
passou em branco na Urca até pelos que entenderam o trocadilho. Ao fim do
número, não houve
vaia, mas aplausos tíbios e espaçados. E, mais que tudo, silêncio - um
silêncio cheio de sons de
desconforto: resmungos em surdina, bufadas involuntárias, corpos se
ajeitando nas cadeiras.

Em retrospecto, não faltariam motivos para justificar a trágica passagem
de Carmen pelo Cassino
da Urca naquela noite. Alguns deles: fazia um ano que Carmen estava sem
ouvir música brasileira,
exceto a que ela própria cantava. Estava também condicionada à reação das
platéias americanas,
que não entendiam o que ela dizia, obrigando-a a enfatizar seus
movimentos de palco. E havia o
resfriado: sem muita voz ou ritmo, ela parecia sumir, sucumbir, ao peso
da orquestra de Carlos
Machado.

O que Carmen cantou nessa noite, além de "South American way"? Apenas
mais três músicas,
embora não haja consenso sobre quais foram. Uma delas, segundo Carlos
Machado, teria sido
algo cubano (Machado falou em "El cumbanchero", mas esta só seria
composta pelo porto-
riquenho Rafael Hernández em 1943). Outra, segundo Aloysio de Oliveira,
seria uma canção
americana com letra em português por ele próprio - talvez "Diga diga
doo", que o Bando da
Lua cantava no passado e, por acaso, também de Jimmy McHugh (em parceria
com Dorothy
Fields). E, por último e por certo, "O que é que a baiana tem?"


250

- mas, aí, o desastre já se consumara. Em Nova York, quando
se apresentava no
Waldorf ou no Versailles e uma mesa lhe pedia que cantasse algo em
inglês, Carmen respondia: "I
sing the songsfrom Brazil" (Eu canto as coisas do Brasil). E, logo aqui,
vinha dar um fora desse
tamanho! Não sabia para quem estava cantando?

Não. E nem podia saber. Aqui vai a composição de mesas no Cassino da
Urca, pelo menos nas
primeiras filas, naquela noite - Carmen cantou para nada menos que o
estado-maior do Estado
Novo. Presentes, além da primeiradama, dona Darcy Vargas, estavam sua
filha Alzirinha e o
marido desta, Ernani do Amaral Peixoto, interventor do estado do Rio;
general Eurico Gaspar
Dutra, ministro da Guerra; general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior
do Exército; Francisco
Campos, ministro da Justiça; Waldemar Cromwell Falcão, ministro do
Trabalho; Gustavo
Capanema, ministro da Educação; vice-almirante Aristides Guilhem,
ministro da Marinha; coronel
Cordeiro de Faria, interventor do Rio Grande do Sul; capitão Filinto
Müller, chefe de polícia do
Distrito Federal; capitão Batista Teixeira, do Departamento de Segurança
Política e Social;
"coronel" Bejo Vargas, bon-vivant, lobista e primeiro-irmão; Lourival
Fontes, chefe do DIP; Júlio
Barata, diretor da Divisão de Rádio do DIP; Assis Figueiredo, diretor da
Divisão de Turismo do
DIP; e o radialista Felicio Mastrangelo, italiano nato e mais tarde
acusado de quinta-coluna no
Brasil por vários jornalistas - apenas entre os que foi possível
levantar. Cada qual com grande
comitiva.

À volta deles, empresários e industriais brasileiros, muitos com
sobrenomes bem conhecidos, e
que, a exemplo da elite de outros países, estavam fazendo negócios com a
Alemanha do Führer e
se identificando com sua postura anticomunista e antijudaica.

A debutante Stella Rudge, acompanhada de suas amigas, era fã de Carmen e
queria aplaudi-la.
Mas, desde o primeiro número, sentiu a temperatura à sua volta e se
conteve. Suas amigas também
olharam ao redor e recolheram as mãozinhas. Alice Accioly, mulher do
jornalista Accioly Netto,
não entendia a mudez da platéia - o som das poucas palmas no vazio era
terrível. Alice, que
conhecia todo mundo por causa do marido, notou a presença de muita gente
do governo. E Maria
Sampaio se mortificava por não ter impedido Carmen de subir ao palco com
aquele resfriado.

É impossível saber o que se passou na cabeça de Carmen ao atacar cada
música e constatar que
não estava agradando - ou que forças a fizeram chegar ao quarto número.
Ao fim deste, não se
conteve e saiu do palco, revoltada e chorando. Machado continuou o show
e, por alguns minutos,
ninguém entendeu o que estava acontecendo. Carmen voltaria ou não? Quando
correu pelo grill a
informação de que ela não voltaria, Alzirinha, em nome de sua mãe, foi ao
camarim para ver o que
havia e para convidá-la a se sentar a sua mesa. Mas Carmen mandou
agradecer e disse que ia para
casa porque não estava bem.

251

No dia seguinte, comentaria com Caribe da Rocha:

"O público que foi ao cassino não foi o mesmo que me recebeu nas ruas."

Não foi mesmo, até pelo preço do convite: dez vezes o de um ingresso
normal da Urca. Os que
correram atrás de seu carro na avenida Beira-Mar, gritando "Carmen!", não
tinham nem para o
aluguel de um smoking. No futuro, dir-se-ia que a "elite" brasileira a
rejeitara por ser sambista.
Não foi nada disso - pois, afinal, eles não a criticaram por voltar
"pouco autêntica" e
"americanizada"? E é aí que está a chave do silêncio.

Quem estava em todas as principais mesas da Urca, naquela noite, era o
poder, oficial e civil, que,
nos últimos meses, assumira uma nova cor política ao sabor dos
acontecimentos na Europa. A
Alemanha era agora a grande amiga, e os Estados Unidos, de repente, o
potencial vilão. Os
ministros e funcionários do governo se irritaram ao ver que a artista que
emigrara com o apoio
deles, para fazer valer o Brasil e sua música junto ao inimigo, voltara
corrompida por esse
inimigo. As bandeiras no palco e no grill da Urca deviam ter servido de
aviso. Normalmente, elas
poderiam ser interpretadas como o Brasil que recebia Carmen de volta. Mas
o Estado Novo
conspurcara o símbolo da bandeira - naquele contexto, elas significavam
apenas o regime
recebendo Carmen.

O "nacionalismo" da elite brasileira também era de araque. Poucos dias
antes, Caribe protestava
em sua coluna no Correio da Noite contra o enxame de foxes, blues,
boleros e rumbas, em
detrimento do samba, no repertório das orquestras dos cassinos - embora
houvesse uma lei
(passada por Getúlio) obrigando essas orquestras a ter 50% de música
brasileira em seu
repertório. Quem impunha esse repertório estrangeiro? Caribe falava
também da decepção dos
turistas, que vinham aqui para ouvir samba, e não os seus próprios
ritmos, e denunciava que essas
orquestras não tinham entre os seus membros um único tocador de cuíca ou
tamborim. A de Carlos
Machado, que, por sinal, se chamava Brazilian Serenaders, não tinha esse
músico - na verdade,
era uma autêntica big band de swing, temperada com, às vezes, uma
percussão cubana. Ou seja,
não seria por falta de traquejo internacional que a platéia dos cassinos
desaprovaria o repertório
de Carmen. Era só uma questão de momento.

Carmen nunca entendeu isso e ninguém lhe explicou o contexto em que se
dera a agressão. Por
esse motivo, convenceu-se de vez que a "elite" brasileira não gostava
dela. E que tudo que fizera
para deixar de ser a filha do barbeiro e da lavadeira, e ser aceita por
"eles", fora em vão.

No dia seguinte, o mais cedo possível, Carmen convocou uma reunião em sua
casa com o pessoal
da Urca. Ela ainda não se conformara. Aceitara trabalhar resfriada - numa
época pré-penicilina,
em que resfriados podiam evoluir para uma pneumonia -, sem ensaiar e de
graça, no que
imaginava ser uma festa para ela e seus amigos, e fora recebida com
hostilidade. Depois do show,


252

um estafeta fora levar-lhe no camarim uma placa em agradecimento à sua
participação no
espetáculo. Carmen fizera-se de desentendida e não a recebera. E, naquela
manhã, já recebera
telefonemas insultuosos de nacionalistas exaltados. Os fatos da véspera
tinham sido um alerta -
se Carmen fosse fazer uma série de shows no cassino em setembro ou
outubro, precisaria de um
repertório novo e adequado.

À reunião compareceram Joaquim Rolla, o bandleader Carlos Machado, o
compositor e diretor
musical do cassino Vicente Paiva e o teatrólogo, letrista e diretor
artístico Luiz Peixoto. Naquele
mesmo dia, os vespertinos publicaram uma nota oficial do cassino
explicando que Carmen
interrompera o show "por questões de saúde" - o que não deixava de ser
verdade.

"Vicente, sabes que não agradei", disse Carmen para Vicente Paiva. "Não
gostaram de nada que
cantei. Preciso de um pouco dos seus molhos."

Ali se decidiu que Vicente Paiva e Luiz Peixoto se internariam na casa de
um ou de outro e
produziriam material inédito para Carmen - três ou quatro sambas, pelo
menos. Isso não
impediria Carmen de buscar canções novas junto a seus antigos
compositores. Resolveu-se
também que o acompanhamento da orquestra de Machado era inadequado para
Carmen. O
Bando da Lua começaria uma temporada independente na Urca no dia 31 de
julho - por que não
acoplá-los a ela? Grande Othelo, que estava na Bahia, seria chamado para
cantar alguma coisa
em dueto com Carmen. E o palco também receberia um tratamento especial
com luzes. Muitas
idéias, todas boas - aquele seria um show planejado e posto de pé,
detalhe por detalhe.

Carmen pode ter passado alguns dias em Poços de Caldas, como planejara,
antes de começar a
voltar aos poucos ao trabalho. No dia 22 de agosto estreara na Mayrink
Veiga sob patrocínio dos
produtos Coty, acompanhada pelo regional de Luiz Americano, com auditório
lotado e polícia na
porta para conter a multidão. Se uma certa platéia na Urca lhe fora tão
hostil, onde estava a
aversão popular a ela? O único incidente foram os protestos de alguns
ouvintes contra o
fenomenal "Bruxinha de pano", um dos primeiros frutos da parceria de
Vicente Paiva com Luiz
Peixoto para ela - não pela letra, talvez, mas pelo jeito infernal de
Carmen cantá-la:

"Ó xente, tira a mão daí/ Ó xente".

Em Nova York, Shubert sentia seu bolso sangrar a cada dia que Carmen
ficava fora de sua
jurisdição. Os convites não paravam de chegar - todos a queriam, e pelo
preço que ele
decretasse. Naquele mesmo mês, retomou o cerco para a sua volta. Num
cabograma datado de 6
de agosto, perguntou se Carmen poderia voltar no dia 12 de setembro,
porque já tinha dois shows
em perspectiva para ela e o Bando da Lua, um em Nova York, outro em
Chicago.

253

Carmen respondeu que estava doente (era ainda o resfriado...), sem trabalhar
(menos verdade) e sem sair
de casa, e que tinha um contrato com o Cassino da Urca e com a primeira-
dama para shows de
caridade - tudo era válido para tapear Shubert e não ter de pegar
correndo o navio. E
acrescentou que estava até feliz pelo resfriado, porque era "a única
maneira de descansar".

Shubert escreveu de volta no dia 14, desejando a Carmen "rápida
recuperação" e "sucesso em
seus compromissos no Rio". Mas informava que ela já estava contratada
para estrear no
restaurante Chez Paree, em Chicago, no dia 18 de outubro, e que deveria
estar naquela cidade na
véspera. Mandava abraços para ela, para Louis (Aloysio) e para o Bando -
mas, discreta e
ameaçadoramente, terminava o telegrama dizendo: "Gostaríamos de ter
apenas cinco rapazes em
vez de seis quando você voltar".

Shubert nunca soube quão perto esteve de não ter Bando nenhum na volta de
Carmen. Como já
acontecera antes, Hélio e Vadeco estavam insatisfeitos e querendo sair.
Todas as tentativas de
chamar o conjunto de The Moon Gang nos Estados Unidos tinham fracassado,
e eles não
gostavam de se ver reduzidos, mesmo que informalmente, a The Miranda"s
Boys. Aloysio e os
irmãos Ozorio achavam que tinham de continuar juntos, não importava o
nome ou a função do
conjunto. Mas, então, Garoto pediu demissão. O motivo alegado foi que, se
levasse sua mulher,
Dugenir, misto de pianista e dona de casa, passariam aperto na América
por ela ser negra.
Dugenir não poderia freqüentar os lugares em que Garoto estivesse tocando
e, sendo assim, eles
preferiam não ir. Mas a razão principal era outra: Garoto já sabia por
Shubert que, se a 20th
Century-Fox formalizasse a contratação de Carmen e do Bando para os
filmes, ele jamais teria um
crédito à parte do conjunto - como conseguira nas gravações da Decca. E o
próprio Bando se
desse por feliz se ganhasse crédito.

Sem Garoto, os dissidentes Vadeco e Hélio recuaram e decidiram ficar no
grupo. Mas o principal
motivo para isso foi o pouco-caso com que os rapazes do Bando se julgaram
recebidos pelos
colegas. Se achavam que, assim que pisassem na praça Mauá, seriam
asfixiados de convites para
se apresentar, enganaram-se. A Urca os chamara, é certo, mas, das
quatorze emissoras de rádio do
Rio, só a Rádio Nacional os convocara, e mesmo assim para uma temporada
de alguns dias. Fora
isso, silêncio - e não esquecer que havia um novo e sensacional conjunto
na praça: os Anjos do
Inferno, liderados por Leo Villar. (O Bando da Lua acabara de ouvi-los em
Icaraí, e pelo menos
Aloysio ficara impressionado.)

Vadeco e Hélio pensaram melhor e ajudaram Aloysio a contratar o
substituto para Garoto. O
primeiro que convidaram foi Laurindo de Almeida - que, embora fã de
Carmen, recusou por não
querer ser um "Miranda"s boy". O violonista paulista Rago ofereceu-se
para a vaga, mas foi
vetado por Aloysio, que já tinha acertado com o também paulista Nestor
Amaral, violão-tenor,
violino, bandolim e igualmente cantor. Nestor foi para o Rio e, quando o
Bando da Lua fosse
estrear com Carmen no Cassino da Urca, a nova formação já estaria
cristalizada.


254

Por um telegrama de 31 de agosto para Aloysio, Shubert mandou a grande
notícia:

AVISE MIRANDA ACERTEI COMPROMISSO NA 20TH CENTURY-FOX HOLLYWOOD POR UM
PERÍODO DE CINCO
SEMANAS MAIS TRÊS SEMANAS E MEIA DE OPÇÃO A DOIS MIL DÓLARES POR SEMANA
COMEÇANDO DIA 25 DE
NOVEMBRO. ELA PRECISA ESTAR EM HOLLYWOOD NO DIA 18 DE NOVEMBRO PARA
TESTES [DE ROUPA, DE COR
ETC.]. SALÁRIO COMEÇA A VALER NO DIA 25. PODE TAMBÉM TRABALHAR EM
NIGHTCLUBS ATÉ MEIA-NOITE
DURANTE COMPROMISSO. ESPERO FECHAR ACORDO EM SEPARADO PARA O BANDO. FAÇA
[CARMEN] ME
TELEGRAFAR IMEDIATAMENTE DIZENDO "AUTORIZO-O A ASSINAR POR MIM UM
CONTRATO PARA CINEMA NOS
TERMOS

DE SEU TELEGRAMA DE 31 DE AGOSTO E CONTENDO QUAISQUER OUTRAS PROVISÕES
QUE CONSIDERE
ACONSELHÁVEIS". ISTO SIGNIFICA QUE ELA NÃO RECEBERÁ MENOS DE 10 MIL
DÓLARES POR CINCO SEMANAS E 330
DÓLARES/DIA POR CADA

DIA A MAIS. SHUBERT.

O contrato de cinco semanas com a Fox para That night in Rio (que, no
Brasil, se chamaria Uma
noite no Rio) chegou com data de 2 de setembro. Shubert só se esqueceu de
acrescentar que
também ele estava levando 10 mil dólares pelas cinco semanas, e sem ter
de emitir um único ai, ai
nem revirar os olhinhos. Em compensação, por telegrama de 30 de setembro,
Shubert informou
que decidira contratar o Bando da Lua inteiro - nominalmente, os srs.
Aloysio, Vadeco, Hélio,
Affonso, Stenio e Nestor -, pela temporada teatral de 15 de outubro de
1940 a l- de junho de
1941, ao mínimo de cinqüenta dólares por semana para cada um mais as
passagens e com sua
situação junto ao Sindicato dos Músicos Americanos regularizada.

Bonzinho? Nem tanto. Shubert alugou o Bando para a Fox. Recuperou o seu e
ainda ficou com um
troco para seus charutos.

No dia 7 de setembro, enquanto o Estado Novo desfilava seus tanques e
canhões pela cidade,
Carmen chamou vários compositores à sua casa para que eles lhe mostrassem
o que tinham de
novo. Compareceram Braguinha, Alcyr Pires Vermelho, Nássara, Haroldo
Lobo, Mário Lago,
Oswaldo Santiago, os amáveis valentões Germano Augusto e Kid Pepe, e um
jovem chamado
David Nasser, silencioso e de orelhas em riste. Exceto Nasser, todos ali
eram íntimos de Carmen e
podiam se dirigir a ela com toda a liberdade:

"Como vão as coisas, nega?"

"E os dólares, Carmen? Lá é capim, não é?"

Os compositores cantaram suas músicas para Carmen, na esperança de que,
dali, elas criassem
asas para a América. Mas é óbvio que ela não iria aprovar ou desaprovar
nenhuma ali mesmo.
Ouviu todas com prazer e ficou de falar depois com cada um.

255

O que se sabe é que, como nunca mais gravaria um
samba ou marchinha
de nenhum deles, uma das músicas apresentadas na reunião e que Carmen
rejeitou foi o majestoso
samba-exaltação de Braguinha e Alcyr, "Onde o céu azul é mais azul".

Seria correto usar a palavra rejeitar? Não queria dizer que ela não
tivesse gostado deste ou
daquele samba ou marchinha. De um amigo que não compareceu à reunião,
Assis Valente, ela
acabara de recusar nada menos que o samba então conhecido como "Chegou a
hora" - "Chegou
a hora dessa gente bronzeada/ Mostrar seu valor" - e que a posteridade
consagraria como
"Brasil pandeiro".

Por que Carmen recusou "Brasil pandeiro"? Porque, de certa forma, era
também um samba-
exaltação, mas de exaltação à sua pessoa:

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada Está dizendo que o
molho da baiana melhorou seu prato Vai
entrar no cuscuz, acarajé e abará Na Casa Branca já dançou a batucada com
ioiô e iaiá

Todas essas frases eram referências diretas a ela. A modéstia de Carmen
não lhe permitiria ficar se
gabando de seus feitos, e muito menos em música. Mas, a provar que nada
se rompera entre eles,
na mesma sessão Carmen ficara com o samba-choro "Recenseamento", uma das
obras-primas de
Assis:

Em 1940, lá no morro começaram o recenseamento

E o agente recenseador esmiuçou a minha vida que foi um horror

E quando viu a minha mão sem aliança

Encarou para a criança que no chão dormia

E perguntou se meu moreno era decente

E se era do batente ou se era da folia.

"A orquestra [de Carlos Machado] desaparece, desce uma cortina de
espelhos e outra orquestra,
agora com um ritmo de samba, com Vicente Paiva na regência, surge do
subsolo", escreveu O
Globo de 13 de setembro, narrando a estréia da véspera numa Urca
superlotada. E continuou:

O speaker anuncia Carmen Miranda e o Bando da Lua. A "baiana" aparece
debaixo do foco de
luz, que tira cintilações de sua fantasia estilizada. A cestinha sobre o
turbante, milagrosamente
equilibrada, tem frutos de ouro e diamantes. E os próprios olhos da
estrelíssima, à intensidade da
luz reproduzida centenas de vezes pelos espelhos, são de um verde
fulgurante. O sorriso branco é
iluminado de forma surpreendente. O show principia.


256

"Diz que tem" é um samba ritmadíssimo. "Os quindins de iaiá" tem
melodia bonita e a
linguagem ingênua das sertanejas. "Voltei pró morro", muita, muita
malandragem. Depois aparece
Grande Othelo e canta com Carmen "Bruxinha de pano". É o número mais
aplaudido. Quando é
chamada mais uma vez à cena, depois do sucesso absoluto, Miss Miranda
apresenta, com seus
companheiros de excursão, "O que é que a baiana tem?". O público insiste
pelo bis.

Alguns se perguntavam como, menos de dois meses depois da maior
humilhação de sua vida,
Carmen podia estar voltando ao mesmo palco onde aquilo acontecera. E se o
fiasco se repetisse?
Mas, dessa vez, Carmen sabia que não podia dar errado. Nada de black-tie,
de gente do governo
ou de bandeirinhas verde-amarelas. Em vez disso, lá estaria o seu
público, vestido como pudesse.
Como cenário, um painel mostrando uma série de Carmens em efeitos
luminosos. E ela própria
estava com o gogó tinindo. Quanto à reação da platéia, já tivera uma
prova na véspera, à tarde,
durante o último ensaio - assistido por dezenas. Ao entrar no palco na
noite de estréia, sabia-se
amada como sempre.

Mas não se esquecera da agressão, e seu novo repertório continha sambas
que comentavam o seu
status de sambista brasileira desafiado pelos bobocas: "Disseram que
voltei americanizada",

Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno?

Eu posso lá ficar americanizada?

Eu que nasci com o samba e vivo no sereno

Tocando a noite inteira a velha batucada.

Nas rodas de malandro, minhas preferidas

Eu digo é mesmo "Eu te amo", e nunca "i love you"

Enquanto houver Brasil, na hora das comidas

Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu,

e "Voltei pro morro",

Voltando ao berço do samba que em outras terras cantei Pela luz que me
alumia, eu juro Que sem a nossa melodia
e a cadência dos pandeiros Muitas vezes eu chorei e chorei,

ambos de Vicente Paiva e Luiz Peixoto. Vários outros sambas daquela
fornada realçavam o
caráter ultrabrasileiro de Carmen. E o próprio Bando da Lua lançou uma
novidade que entraria
para a história: "O samba da minha terra", de Dorival Caymmi.

257

No dia 19 de setembro, Aurora se casou com Gabriel na igrejinha da Urca.
Usava um vestido em
que a parte de cima era uma jaqueta bordada em dourado, que Carmen lhe
trouxera de Nova
York. Os padrinhos foram Paulo Machado de Carvalho e Carmen. Mas o
verdadeiro presente de
Carmen para eles ficara para o futuro próximo: duas passagens de navio
para que fossem passar a
lua-de-mel com ela em Hollywood, quando já estivesse instalada.

Na certidão de casamento, Gabriel classificou-se como comerciante e
Aurora,
surpreendentemente, como doméstica - não como cantora. Por que tanta
modéstia? Porque,
então, para todos os efeitos, o casamento é que iria realizá-la, não a
carreira. E, sobre o
casamento, parecia ter idéias bem definidas.

Em certo momento, logo depois da cerimônia, Aurora chamou Carmen de lado
e ofereceu-lhe uma
confidência e um conselho:

"Você reparou que Gabriel gosta mais de mim do que eu dele? Faça como eu,
Carmen. Escolha
para casar um homem que te trate bem e de quem você possa gostar - mas
por quem não seja
apaixonada. Assim você sofrerá menos."

De onde Aurora tirava essas idéias? De onde tanto pessimismo e fatalismo?
Bem, ela era uma
voraz leitora de romances. Seus autores favoritos em
1940 eram Machado de Assis e um novo e promissor escritor gaúcho, Erico
Verissimo.

Carmen pensou no conselho de Aurora ao reencontrar Carlos Alberto da
Rocha Faria. Finalmente
tiveram a conversa que não fora possível um ano antes. Mas ambos já
tinham se convencido de
que o destino não lhes reservava nenhuma vida a dois. Cada qual cuidaria
de si - embora, para
Carlos Alberto, o futuro de Carmen já estivesse decidido: de Hollywood,
não haveria volta.

Nos dias 26 e 27 de setembro, Carmen foi ao estúdio da Odeon para gravar
seus últimos discos
brasileiros. Ela não sabia que seriam os últimos. Não sabia também que
ali se encerrava sua
carreira de insuperável intérprete de sambas-caricaturais. Obras-primas da
manemolência, como o
chorinho "Disso é que eu gosto", de Vicente Paiva e Luiz Peixoto, e o
samba "O dengo que a
nêga tem", de Caymmi, ou do duplo sentido, como "Bruxinha de pano" e
"Recenseamento", tudo
isso - que dependia do entendimento da língua e de suas nuances - era
impraticável para o
mercado americano. Este só a aceitaria fazendo aquele gibberish infantil,
que julgava tipicamente
"latino". Ou, um dia, obrigando-a a cantar em inglês, com pavoroso
sotaque mexicano.

A rigor, era o fim da carreira discográfica de Carmen. Os poucos discos
que ela ainda gravaria
nos Estados Unidos não fariam muita diferença para ela ou para ninguém. A
rigor, e por mais duro
que isso possa parecer, era o fim da Carmen cantora - sufocada pela
personalidade colorida que
também cantava e, às vezes, até representava.



Capítulo 15


1940

Estrela da Fox



No dia 2 de outubro, Carmen e o Bando da Lua tomaram de novo o Uruguay
para Nova York.
Dessa vez, as grandes massas escusaram-se de ir ao bota-fora. Mas a
família crescera. Com
Carmen, embarcaram dona Maria, que iria morar com ela nos Estados Unidos;
seu irmão Mocotó,
para passar uns tempos; e a jovem Odila, também indo para ficar, para
ajudar dona Maria na
cozinha e para reencontrar seu noivo, o violonista Zezinho, e se casar
com ele. Entre o pessoal do
Bando, Stenio levou Andréa, violinista do Theatro Municipal, com quem se
casara durante as
férias; eles passariam a lua-de-mel a bordo. Carmen e dona Maria foram de
primeira classe, onde
também estavam o pianista polonês Arthur Rubinstein, vindo de Buenos
Aires, e o casal de
cantores Marta Eggerth e Jan Kiepura, vindos do Rio mesmo.

Marta Eggerth era uma criadora de casos. Rompera contratos em Buenos
Aires e Montevidéu e
quase fez o mesmo no Rio. Adiou várias apresentações na Urca (por se
recusar a cantar com uma
"orquestra de jazz" - a de Carlos Machado) e, quando finalmente subiu ao
palco (também em
benefício da Cidade das Meninas de dona Darcy Vargas), entrou atrasada,
chamou a platéia de
mal-educada (por alguns estarem fumando), cantou somente uma música, deu
as costas e foi
embora. Pobre dona Darcy. O vexame com a soprano aconteceu poucos dias
depois da fatídica
apresentação de Carmen. Não admira que a Cidade das Meninas nunca tenha
dado muito certo.

Mais uma vez, Carmen trabalhara até o último dia no Rio. O compromisso
com a Mayrink Veiga
se estendera à véspera do embarque. A temporada na Urca fora até o dia 24
de setembro. No dia
25, ela dera um coquetel de despedida no Copacabana Palace para a
imprensa, a "sociedade" e
os amigos. E, no dia 28, fizera um show no cassino Icaraí, em Niterói, a
pedido de... Alzirinha
Vargas. Era como se Carmen quisesse provar que não levava mágoas. O
próprio Carlos
Machado, que se julgava responsável pelo que acontecera na Urca e não se
perdoava por isso,
teve uma surpresa: Carmen ofereceu-lhe seu carro Cord, que sabia que ele
admirava, por um
preço simbólico. Na verdade, só faltou dar-lhe o carro.

"Machado, você foi um amor comigo e queria lhe dar um presente", ela
disse. "Mas, se não
pagares nada, vão dizer que andavas me comendo.

259

Você assina dez promissórias de um conto e vai pagando uma por mês a meu irmão
Mocotó. Que tal?"
Machado assinou correndo.

Se a saída do Rio fora morna, a chegada de Carmen a Nova York foi
apoteótica - ou assim
pareceu ao ser filmada pela Fox, já como parte do build-up da estrela. E
o estúdio tinha mais era
de promovê-la - afinal, ela estava com um filme pronto, Serenata
tropical, e era esperada em
Hollywood para rodar outro, Uma noite no Rio. O cinejornal Movietone, com
o registro da
chegada, foi exibido no Cineac, no Rio, poucos dias depois.

Dessa vez, a estada de Carmen em Nova York foi curta. Mas suficiente para
Shubert convencê-la
a rasgarem o contrato em vigência, assinado apenas seis meses antes, e
fazerem um novo - ele
não queria esperar até maio de 1941 para exercer sua opção de continuar
com Carmen. Serenata
tropical acabara de ser lançado em Los Angeles, e Shubert sabia que,
assim que Carmen pisasse
em Hollywood, o pessoal do cinema iria se apaixonar por ela. Era
imprescindível segurá-la desde
já - e a longo prazo.

Num documento do dia 17 de outubro de 1940, Shubert não apenas exerceu a
opção e garantiu
que Carmen seria sua até maio de 1942 como propôs estender uma nova opção
até 31 de maio de
1944, para o que bastaria que ele a notificasse até trinta dias antes de
maio de 1942. Para
compensá-la, sugeriu duas modificações no contrato, ambas aparentemente
favoráveis a Carmen:
seu salário seria agora de 1200 dólares por semana e os rendimentos pelos
serviços prestados a
terceiros passariam a ser divididos à base de 60% para ela e
40% para ele, não mais cinqüenta a cinqüenta.

Pelo dinheiro real que circulava entre os dois, esses números já não
significavam tanto para
Carmen, e a idéia de continuar presa a Shubert pelos três anos e meio
seguintes devia parecer-lhe
esquisita. Mesmo assim - e incrivelmente -, Carmen aceitou.

De Nova York, escoltados por um homem de Shubert, Carmen e seu pessoal
foram primeiro para
Chicago, de trem, pelo ultrafuturista Twentieth Century, a fim de cumprir
as duas semanas no
nightclub Chez Paree. A viagem levava dezesseis horas, mas o Twentieth
Century se dizia o trem
mais luxuoso e confortável dos Estados Unidos. Era composto de dezessete
vagões, incluindo
cabines particulares do tamanho de pequenos apartamentos, e seu vagão-
restaurante era do nível
de um restaurante quatro-estrelas de Manhattan. A alternativa ao
Twentieth Century (e ao Super-
Chief, que fazia a etapa seguinte, de Chicago a Los Angeles) era o avião,
que levava doze horas
para o trajeto completo e só era usado pelos artistas e pelos milionários
que estivessem com muita
pressa.

Era a segunda visita de Carmen a Chicago em menos de um ano. Logo ao
chegar, Carmen disse
ao dono do Chez Paree, Charlie Fischetti, que já estivera antes em
Chicago, mas ainda não
realizara seu sonho de conhecer um gângster.

"Um gângster, senhor Fischetti! Quero conhecer um!"


260

No começo, ele levou a coisa na brincadeira. Não era possível que ela não
soubesse. Até que se
convenceu de que Carmen estava sendo sincera. Finalmente explodiu:

"Minha filha, você já conhece. O gângster sou eu."

Fischetti era primo de Al Capone e herdara algumas de suas operações
quando, em 1932, Capone
fora para sempre ver o sol nascer quadrado em Alcatraz.

Para ganhar tempo e permitir a Carmen começar a trabalhar assim que
chegasse a Hollywood, a
Fox despachara para Chicago um brasileiro radicado em Los Angeles, o
paulista Zaccarias
Yaconelli (na verdade, laconelli - o ípsilon era só um charme), para
ensaiar com ela os diálogos
de Uma noite no Rio. Carmen já estava nos Estados Unidos havia mais de um
ano, mas, por sua
aversão a estudar gramática, seu inglês ainda podia ser considerado
precário. Em se tratando de
um filme, teria de aprender as falas foneticamente e, para fazer as caras
e inflexões certas,
precisaria saber o que significavam. Yaconelli, com sua longa experiência
nos estúdios, era o
homem para ajudá-la.

Em 1922, aos 25 anos, Yaconelli trabalhava numa firma americana em São
Paulo quando ganhou
um prêmio de viagem para Nova York. Foi e não voltou. Passou os primeiros
dois anos em Nova
York e partiu para Hollywood, de onde nunca mais saiu. No começo tentou
ser ator, mas sua
carreira oscilou entre pontas-relâmpago, em que ninguém o via, e
aparições ainda mais
relâmpago, como figurante, em que nem ele se via. Seu filme mais
importante foi O rei dos reis, de
Cecil B. DeMille, em 1927, no papel de um romeiro cristão - ele e outros
2 mil figurantes, todos
barbados e vestidos como ele. Para comer duas vezes por dia, Yaconelli
trabalhou como
intérprete em tribunais de Los Angeles e São Francisco, dublou filmes
americanos para o mercado
italiano, foi locutor de rádio em programas para hispânicos e atuou como
mestre-de-cerimônias
em shows de colônias estrangeiras - qualquer uma em que se falasse
inglês, francês, italiano,
espanhol, hebraico, iídiche, grego ou (menos requisitado) português. Sua
carreira como ator
estava mais encerrada que a de seu contemporâneo Francis X. Bushman, mas,
quando a Fox o
contratou para ser o "diretor de diálogos" de Carmen, é porque sabia de
suas capacidades.

Graças a Yaconelli, Carmen logo aprendeu suas falas e, de quebra, as dos
atores com quem iria
contracenar, especialmente Don Ameche. Com Yaconelli seguiu também um
disco com a
gravação das duas canções que Carmen interpretaria no filme, "Chica chica
boom chie" e "I, yi,
yi, yi, yi (I like you very much)", cantadas por ele, para que ela as
aprendesse. E, entre suas
funções, estava ainda a de acompanhar Carmen às entrevistas, embora, dois
meses depois, em
dezembro, ela já conseguisse se virar muito bem sozinha. Por todo o
serviço, que levaria quatro
meses, a Fox pagaria a Yaconelli trezentos dólares - descontados do
salário de Carmen.

261

Na terceira semana de outubro, com Carmen abafando todas as noites no
Chez Paree, em
Chicago, Serenata tropical estreou em Nova York e, finalmente, as
multidões foram apresentadas
a Carmen Miranda. Ela era o terceiro nome do elenco, atrás de Don Ameche
e Betty Grable,
embora sua participação no filme se limitasse a três specialties, números
isolados, numa boate
("South American way", "Mamãe, eu quero" e "Bambu, bambu"), sem ligação
com a trama e sem
contracenar com ninguém. Não importava. Somente sua entrada em cena, no
começo do filme, já
era uma explosão em cores num mundo que virtualmente ainda se enxergava
em preto-e-branco.

Carmen e Betty Grable foram as duas primeiras estrelas do cinema geradas
pelo Technicolor. Dos
seus primórdios até fins dos anos 30, os estúdios só filmavam em cores em
casos excepcionais. A
MGM, por exemplo, não achava que os Irmãos Marx fossem um caso
excepcional - tanto que,
em 1940, nenhuma criança sabia que a peruca de Harpo era vermelha. A cor
encarecia
brutalmente uma produção, porque tudo tinha de ser fornecido pela
Technicolor Company: o
filme virgem, as câmeras especiais, os técnicos, a revelação e os famosos
consultores, que
palpitavam sobre tudo em cena, da cor da gravata do galã à espessura do
rouge nas faces da
mocinha. Era quase um monopólio. E o pior é que, no começo, o resultado
parecia frustrante: as
cores eram anêmicas, artificiais, incapazes de superar a glória já
estabelecida do preto-e-branco.
Mas, na segunda metade da década, Herbert Kalmus, o cientista fundador da
Technicolor, e sua
mulher, Natalie, desbravaram a tricromia, que era a justaposição das três
cores básicas sobre a
película. E só então surgiram os primeiros filmes com um colorido vivo e
espetacular: As
aventuras de Robin Hood (The adventures of Robin Hood,1938), As quatro
penas brancas
(Thefourfeathers, 1939), ...E o vento levou (Gone with the wind, 1939),
Meu reino por um amor
(The private lives ofElizabeth and Essex, 1939), O ladrão de Bagdá (The
thief of Bagdad, 1940).
Com tais resultados, os estúdios se convenceram de que, em alguns
gêneros, valia a pena investir
na cor. Serenata tropical, filmado no primeiro semestre de
1940, foi um dos primeiros musicais a se beneficiar dessa política.

Logo depois dos créditos, Carmen irrompia na tela cantando "South
American way" - o primeiro
dos números filmados naquele distante janeiro. Sua baiana, desenhada por
Travis Banton (mas
inspirada na de J. Luiz), parecia o lança-chamas de que falara Wolcott
Gibbs: um turbante de
folhas (vermelhas de um lado, douradas no outro) recheado de contas em
forma de pérolas
irregulares; a bata, de renda também dourada com debrum vermelho nas
mangas, revelando os
ombros e o estômago; a saia, de um veludo bordô especial, com a pele
aparente sob os triângulos
vazados na cintura; e as plataformas, também douradas e reluzentes. As
bijuterias eram um
espetáculo à parte - Carmen devia estar com pelo menos quatro quilos de
colares e balangandãs
pendurados


262

no pescoço e nos braços -, assim como os brincos cheios de pingentes,
comicamente aplicados
ao turbante, não às orelhas. Em cada parte da fantasia em que existisse
uma cor dominante, havia
um sutil detalhe de outra cor, a que a fotografia em Technicolor fazia
justiça.

Pena que, ao reaparecer no meio do filme para cantar "Mamãe, eu quero" e
"Bambu, bambu",
Carmen voltasse com a mesma baiana de "South American way". Ou Banton não
teve autonomia
para lhe desenhar mais baianas (a que ela usou no filme custou 1300
dólares, fora o turbante de
trezentos dólares, executado por Lily Daché) - ou, mais provável, a Fox,
por não conhecer
Carmen direito, ainda não sabia muito bem o que a platéia esperava dela.
Até então não lhes
ocorrera que, quanto mais roupas lhe dessem para vestir, melhor para ela,
para o público e para o
filme. A Fox nunca mais cometeria esse erro, mas o impressionante é que,
mesmo sem conhecê-la,
lhe tenha dado tanto cartaz em Serenata tropical.

Com Betty Grable era o contrário. O grande público mal ligava o seu nome
à bela figurinha, mas,
em Hollywood, dentro dos estúdios, ela era tão conhecida quanto o
luminoso
HOLLYWOODLAND, em Beachwood Drive. Afinal, Betty, aos 24 anos, estava na
praça desde
os quatorze, em 1930, quando sua mãe, Lillian, deixara para trás o marido
e uma filha mais velha
em Saint Louis, Missouri, e se mudara com ela para Hollywood. Pagara-lhe
aulas de canto, dança,
piano e saxofone, obrigara-a a ir todos os dias para as filas dos
estúdios a fim de disputar um lugar
com milhares de outras garotas, e, com esforço e persistência, Betty
começou a ganhar pequenos
papéis. Tornou-se uma coadjuvante confiante e confiável.

Durante dez anos, Betty mostrou as pernas em 31 filmes de vários
estúdios. Justamente no melhor
desses filmes, A alegre divorciada (The gay divorcée, 1934), ganhou um
longo número de dança,
"Lefs knock knees", em que dançava com o comediante Edward Everett
Horton, mas quem
mostrava as pernas era ele, não ela. (Esse número, assim como tudo o mais
no filme, foi esquecido
no momento em que Fred Astaire e Ginger Rogers apresentaram ao mundo uma
nova canção:
"Night and day", de Cole Porter.) Foi com Betty que se originou a famosa
cena, depois muito
copiada, da secretária insípida que, ao tirar os óculos e soltar o
cabelo, se torna irresistível para o
chefe - o filme era uma comediota, Thrill ofa hfetime (1937); o chefe era
Leif Erickson. Mas
Betty raramente conseguia esquentar o assento: assinava com um estúdio,
fazia quatro ou cinco
filmes, o contrato expirava e ninguém quebrava lanças para segurá-la. Ela
tinha consciência de
sua situação: era bonitinha, mas não de fechar o comércio; como dançarina
e cantora, apenas
quebrava o galho; e, como atriz, não era uma Bette Davis ou Barbara
Stanwyck. Enfim, era como
muitas. Então, ao fim de cada contrato, a história se repetia: Betty
enxugava uma lágrima e ia
bater em outro estúdio.

Em fins de 1939, Betty estava havia pouco na Fox e já se sentindo
encostada,

263

quando a Broadway lhe acenou com um convite para trabalhar numa
peça. Gostou da idéia,
pediu uma licença no estúdio, e este a concedeu sem nem lhe perguntar por
quê - sua presença
ou ausência não parecia fazer nenhuma diferença. Betty tomou o trem para
Nova York e foi
brilhar no musical Du Barry was a lady, de Cole Porter, na Broadway -
aliás, uma produção de
Shubert. Ela seria o terceiro nome no elenco, logo depois de Ethel Merman
e Bert Lahr, e sua
canção era a divertida "Well, did you evah!", tendo como partner o então
bailarino Charles
Walters. (Dezesseis anos depois, Walters, já na MGM, seria o diretor do
filme Alta sociedade, em
que Frank Sinatra e Bing Crosby cantavam em dueto "Well, did you evah!".)
Du Barry was a lady
foi bem de crítica e de bilheteria, e Betty teve referências simpáticas
nos jornais.

Durante dois meses, em dezembro de 1939 e janeiro de 1940, Carmen e Betty
foram vizinhas de
palco na Broadway: Carmen com Streets of Paris, no Broadhurst, e Betty, a
dois quarteirões, com
Du Barry was a lady, no 46th Street Theatre. Mas as duas não se
conheceram. Em abril, Betty
estava satisfeita da vida com o papelzinho na peça quando Darryl F.
Zanuck, seu patrão na Fox,
mandou que ela tomasse o trem de volta e se apresentasse no estúdio.
Havia um trabalho para ela:
o papel principal num musical em Technicolor com Don Ameche e - como se
chamava mesmo?
- Carmen Miranda. Um papel que, garantiu Zanuck, poderia fazer dela uma
estrela.

A primeira opção de Zanuck tinha sido Alice Faye, sua favorita na Fox.
Mas Alice estava se
separando do marido, Tony Martin; além disso, sua casa em San Fernando
Valley fora destruída
por um incêndio; e, como se não bastasse, estava com estafa, porque
Zanuck a obrigava a fazer
quatro filmes por ano. Com tudo isso, Alice ainda precisou, segundo
alguns, inventar uma cirurgia
de apêndice para não voltar ao trabalho (segundo outros, a cirurgia
existiu, mas teria sido de
hemorróidas). A recusa de Alice levou Zanuck a se arriscar com Betty
Grable. Para isso, teve de
convencer seus sócios, Joe Schenck e William Goetz, de que ela era uma
boa pedida. A
argumentação de Schenck e Goetz era a de que, nos últimos dez anos, Betty
Grable já havia sido
fotografada de tudo quanto era jeito e nada acontecera.

Zanuck só tinha uma resposta:

"Sim, mas nunca em cores."

Deu Zanuck - e as cores de Serenata tropical fizeram por Betty o que dez
anos de filmes em
preto-e-branco nunca tinham conseguido. Em cores, ela passava a ser, por
definição, a maior
estrela da Fox. Tanto que, pelos anos seguintes, todos os seus filmes
coloridos fizeram sucesso, ao
passo que os em preto-e-branco, só excepcionalmente. O mesmo se pode
dizer de Carmen. Era
como se Herbert e Natalie Kalmus já esperassem por ela quando inventaram
o Technicolor, mais
de vinte anos antes - mas queriam se certificar de sua chegada para
aperfeiçoar o processo.

Carmen e Betty pertenciam de corpo e alma ao Technicolor.


264

Precisavam dele até para respirar, assim como Carlitos e Buster Keaton só sabiam
respirar no cinema mudo, e
Groucho Marx e Mae West, no falado.

Em 14 de julho de 1940, quando as últimas cenas de Serenata tropical
estavam sendo rodadas nos
galpões da Fox em Hollywood, um milionário de Nova York, Nelson
Rockefeller, de 32 anos,
estava se mexendo em Washington. Naquele dia, ele entregou ao presidente
Franklin Delano
Roosevelt um documento propondo que os Estados Unidos tomassem medidas
para "promover
uma cooperação econômica" com os países das Américas Central e do Sul. A
idéia era "estimular
a prosperidade daquelas regiões", tendo em vista a própria segurança
norte-americana no novo
quadro internacional. (Leia-se: assegurar, por exemplo, que as matérias-
primas não iriam para
longe do alcance dos Estados Unidos.) Rockefeller não especificava as
tais medidas nem fazia
referência alguma à questão cultural.

Onze dias depois, em 25 de julho, com as filmagens encerradas e Zanuck já
na sala de corte da
Fox para supervisionar em pessoa a montagem de Serenata tropical,
Roosevelt recebeu
Rockefeller na Casa Branca para ouvir propostas mais concretas. A
principal era a criação de
uma agência para "coordenar os negócios interamericanos". Por negócios,
podia-se entender
quase tudo: desde o incremento das relações políticas e diplomáticas
entre os Estados Unidos e
os países do continente até a conquista de um novo mercado para compensar
a perda da Europa,
praticamente fechada pela guerra. No fundo, o que Rockefeller propunha
era um programa de
expansão comercial e política a ser executado com urgência, rumo à
América do Sul,
principalmente depois dos indícios de que os dois países mais importantes
do continente, a
Argentina e o Brasil, estavam flertando com a Alemanha nazista. E, até
aí, nenhuma menção à
troca de bens culturais.

No dia 16 de agosto, quando Serenata tropical estava recebendo os últimos
acabamentos nos
laboratórios da Fox em termos de dublagem, mixagem e ajustes gerais,
Roosevelt aprovou o
plano de Rockefeller e autorizou a criação do órgão a que chamou de
Office of the Coordinator
of Inter-American Affairs - Escritório do Coordenador de Negócios
Interamericanos. Também
apenas Office - Birô -, como o tratavam nas internas, ou CIAA, como
passaria à história (não
confundir com a CIA - Central Intelligence Agency -, que ainda não
existia). No papel de
coordenador, Rockefeller. Apesar de subordinado ao Conselho de Defesa
Nacional, o Birô tinha
sua sede - não por coincidência - no edifício da Câmara de Comércio dos
Estados Unidos, na
esquina da Rua 14 com a Constitution Avenue, em Washington, porque esta
era a sua função:
estimular negócios comerciais. A ampliação de seus interesses para a área
das artes e da cultura
era inevitável porque Rockefeller era um homem ligado às artes - de
preferência plásticas, de
maior rentabilidade -, mas seria uma conseqüência.

265

Em meados de outubro, enquanto Serenata tropical já estava estreando com
estardalhaço no
Chinese Theatre, em Los Angeles, e no Roxy, em Nova York, o Birô começou
a se subdividir em
departamentos para tratar de "intercâmbios culturais" com a América
Latina. O recém-criado
Departamento de Cinema, por exemplo, foi entregue a outro jovem
milionário, só que de família
tradicional, John ("Jock") Hay Whitney, muito popular em Hollywood por
ser generoso, boa-
praça e, desde 1937, sócio de David O. Selznick em seus filmes - no caso
de ...E o vento levou,
fora o principal investidor. Haveria outros departamentos para cuidar de
imprensa, rádio,
publicidade e literatura. E somente a partir daí se poderia dizer que
começava, de algum modo, a
Política da Boa Vizinhança - por ter o Birô como seu braço armado.

Até então, a famosa política era apenas um conceito romântico e eunuco -
muito mais um "estado
de espírito" do que uma política de Estado. Como idéia, a Política da Boa
Vizinhança era tão
antiga que já vinha desde o primeiro Roosevelt (Teddy, presidente de 1901
a 1908), mas, de tão
desnecessária, jamais fora posta em prática. Em 1933, o presidente
Franklin D. Roosevelt a
exumara para fins políticos e, pelo mesmo motivo, ela nunca saíra do
papel ou passara de
iniciativas inócuas. (Os navios da Moore-McCormack, em que Carmen viajava
- o Uruguay, o
Argentina, e havia também o Brasil -, integravam a chamada Frota da Boa
Vizinhança, mas nem
por isso uruguaios, argentinos e brasileiros tinham desconto na
passagem.) Foi preciso o éclat de
uma guerra na Europa, com possibilidade de alastrar-se ao continente
americano, para que os
Estados Unidos se dispusessem a olhar para os vizinhos do andar de baixo.
Mesmo assim, entre a
declaração de guerra à Alemanha pelos aliados Inglaterra e França, em 3
de setembro de 1939, e
a criação do Birô, em 16 de agosto de 1940, passaram-se mais de onze
meses.

Tudo isso é para dizer que, quando Darryl F. Zanuck resolveu rodar
Serenata tropical em meados
de 1939, não havia uma Política da Boa Vizinhança em ação e, muito menos,
comandada por um
Birô. (Na verdade, não havia nem a guerra.) O único interesse de Zanuck
no filme era comercial:
um musical em cores, dirigido à platéia norte-americana, com uma locação
exótica (a América
Latina), e se beneficiando da publicidade grátis em torno da cantora que
estava provocando todo
aquele frenesi na Broadway - Carmen Miranda. Tanto que o primeiro título
que lhe ocorreu,
antes de rodar um único metro de filme, foi Down Rio away, com a história
se passando, lógico,
no Rio. Depois, ao sentir que não haveria tempo para trabalhar Miranda
como ela merecia,
resolveu guardar o título e o Rio para um filme seguinte - já então a
idéia de uma série de
musicais "sul-americanos" começava a ganhar forma. Zanuck mudou a
história para Buenos Aires,
mandou reescrevê-la de acordo e alterou o título para South American way.
Mas esse também foi
descartado, por ser muito generalizante. E, então, Serenata tropical
ganhou seu título definitivo:
Down Argentine way.


266

Mas antes Zanuck tivesse feito a história se passar num país de
mentirinha - porque, se sua
intenção era provocar uma enorme antipatia contra os Estados Unidos,
enfurecer os argentinos e
fazer com que muitos passassem a torcer por Hitler, ele não poderia ter
sido mais bem-sucedido.

O filme era um escândalo de ofensivo. Da primeira à última cena, só
mostrava dois argentinos
"dignos": o personagem de Don Ameche, que fazia o galã, e o de seu pai,
interpretado por Henry
Stephenson - mas, afinal, eles "estudaram em Paris". Todos os outros
argentinos em cena (sempre
interpretados por americanos) eram vigaristas, retardados ou dorminhocos
- alguns, francamente
repugnantes - e falavam um inglês de estraçalhar de rir.

Zanuck mandara uma equipe a Buenos Aires para filmar cenas da cidade, a
fim de intercalá-las
com as de estúdio e tornar estas mais realistas. A equipe, comandada pelo
diretor de segunda
unidade Otto Brewer, se demorara um mês por lá e voltara com 20 mil pés
(três horas e quarenta
minutos) de material colorido. Mas, depois de todo esse esforço, apenas
três imagens chegaram à
montagem final: vistas quase estáticas da Plaza de Mayo, da Casa Rosada e
do hipódromo - um
total de três segundos em 94 minutos de filme. E, a exemplo de quase
todos os filmes de
Hollywood ambientados na América Latina, cidades como Buenos Aires (ou o
Rio) resumiam-se
a um hotel de luxo, o qual era a extensão de uma hacienda onde se criavam
cavalos e por onde
circulavam camponeses vestidos de mexicanos. A cidade desaparecia e
milhões de habitantes se
evaporavam - a vida era um cabaré ou uma pista de hipismo.

Foi o que aconteceu em Serenata tropical: a grande tradição urbana de
Buenos Aires, justo
orgulho dos portenhos, reduziu-se à boate El Tigre e a uma corrida de
cavalos. Isso numa época
em que Buenos Aires tinha mais automóveis que Paris, mais telefones que
Tóquio e mais vitrolas
que Londres. Não só isso, mas era também a cidade que mais se vestia
pelos alfaiates de Saville
Row, só perdendo para a própria Londres. (Mas como os sabichões da Fox
poderiam saber
disso?)

Musicalmente, a ofensa aos argentinos era ainda maior. Não tanto pela
presença de Carmen no
filme - porque ela era apresentada como uma cantora brasileira e, na vida
real, Carmen
realmente cantara ano após ano em Buenos Aires até pouco antes. Mas
porque não havia o menor
eco de um tango na trilha sonora, nem sombra de um bandoneon, nem
vestígio das chiquérrimas
orquestras portenhas. Em vez disso, a trilha do filme era composta de
rumbas, congas, castanholas,
maracas, mariachis e trios de poncho e sombreiro, elementos tão estranhos
à música de Buenos
Aires quanto à de Nova York. Podia não ser caso para um corte de relações
diplomáticas - mas
quase.

No fim do ano, quando a primeira cópia do filme chegasse a Buenos Aires
para ser apreciada pela
censura local, a indignação seria tanta que os protestos sacudiriam os
lustres da embaixada
americana em Palermo e as da sala de Zanuck em Hollywood. A Junta de
Censura da Argentina
proibiria a exibição de

267

Serenata tropical no país e o governo do presidente Ramón Castillo
ensaiaria um protesto oficial.

Pouco antes de Zanuck saber da fúria argentina contra seu filme, o
Departamento de Cinema do
Birô distribuíra um documento alertando Hollywood para a conveniência de
aproximação com o
mercado sul-americano devido ao estrangulamento do mercado europeu, em
todos os setores,
desde o começo da guerra. A Alemanha e os países que ela ocupara (entre
os quais a França) não
aceitavam mais os produtos americanos; e, com as restrições ao tráfico
internacional aéreo e
marítimo, ficaria cada vez mais difícil exportar para os países livres.
Isso incluiria os filmes. Era
preciso abrir novas frentes, como outros setores industriais estavam
fazendo. A solução para
Hollywood seria a realização de filmes com temáticas e cenários
"latinos", tomando o cuidado de
adular os países que servissem de palco para as histórias, enfatizando
seus pontos positivos e
ignorando qualquer aspecto polêmico ou - na opinião dos americanos -
vexaminoso de seus
costumes.

A prova de que Serenata tropical foi feito antes que essa política se
tornasse lei é a de que poucos
filmes, mesmo sem querer, podiam ser tão insultuosos para o país onde se
passa a história.
Nitidamente, Zanuck estava preocupado apenas com seu mercado doméstico e
pouco ligando
para as suscetibilidades dos argentinos, cujo mercado, até então, pesava
pouco na balança. A não
ser que, numa monstruosa demonstração de insensibilidade, ele achasse que
os argentinos não
iriam se ofender. Ao saber dos protestos e da decisão da censura
argentina, o Birô teve de
convencer Zanuck a aderir à "boa vizinhança" e, para isso, precisou
repassar-lhe 40 mil dólares
para alterar tudo que parecesse degradante no filme. Isso implicou
refazer diálogos, cortar
material "desaconselhável", aproveitar cenas filmadas em Buenos Aires e
enxertá-las liberalmente
na história. Com o tempo que se levou nesse trabalho, e mais o que a
censura argentina precisou
para reexaminar o filme, este só foi aprovado e lançado em Buenos Aires
um ano depois, em fins
de 1941.

Mas com uma hilariante característica: as alterações só foram feitas na
versão para a Argentina.
Os outros países continuaram assistindo ao filme original e rindo do
mesmo jeito. (Na cópia
brasileira, a única alteração foi o acréscimo de um letreiro antes do
filme, anunciando que a Fox
sabia que a Argentina era um "grande país" e que as "distorções" a que se
iriam assistir tinham sido
"exigidas pela comédia".)

Nenhum desses equívocos poderia acontecer no filme seguinte de Carmen na
Fox: Uma noite no
Rio - esta, sim, a primeira produção da Política da Boa Vizinhança. E a
primeira a se preocupar
em não cometer os tradicionais erros dos filmes americanos, como pôr
brasileiros para falar
espanhol, chamar Buenos Aires de capital do Rio de Janeiro, ou colocar
índios nus dentro de um
ônibus na avenida Rio Branco. Mas esse último ponto era discutível. O
maestro Leopold
Stokowski acabara de dizer à revista Time que, em sua recente temporada
no Rio,


268

vira exatamente isso - índios nus dentro de um ônibus na
avenida Rio Branco. E
nem era Carnaval.

Em outubro, encerrado o compromisso no Chez Paree, Carmen e sua turma
tomaram o trem para
Hollywood. De Chicago a Los Angeles viajava-se pelo Super-Chief-39 horas
de porta a porta,
mas, no caso das estrelas de cinema, o ponto final ficava um pouco antes,
em Pasadena, a cidade
dos ricos, esnobes e metidos a tradicionais, a trinta quilômetros dos
estúdios. O ritual consistia em
saltar do trem ali, alegrar o dia dos fotógrafos e cinegrafistas, dar
entrevistas e seguir em carro
aberto, ao sol da Califórnia, para a cidade do cinema. Os estúdios não
abriam mão disso. Um dos
motivos era evitar que o astro desembarcasse na estação de Santa Fé, em
Los Angeles, tida como
horrorosa; outro era criar um clima de grande aparato, com a estrela
sendo recebida em Pasadena
pela imprensa e por gente importante; e, depois, o cortejo pela estrada,
como se fosse o circo
chegando à cidade. O que, de certa forma, era.

Como a realidade nem sempre obedece aos scripts, choveu na chegada de
Carmen, aguando um
pouco as festividades. Além disso, ela frustrou os publicistas da Fox,
que esperavam vê-la
desembarcar envolta em peles, fumando de piteira e com um staff de pelo
menos meia dúzia -
valete, secretário, cabeleireira, pedicure, namorado e cachorro poodle -,
como as divas
européias que Hollywood importara ultimamente. Em vez disso, Carmen
chegou com a mãe, o
irmão e uma cozinheira, escoltados por Zaccarias Yaconelli. (O Bando da
Lua era uma cota à
parte.) Esperavam encontrar também uma mulher temperamental, que se
zangava e saía
esbravejando por qualquer coisa (afinal, as "latinas" não eram assim?),
e, em lugar disso,
depararam-se com o que consideraram um quindim, um merengue, um doce-de-
coco humano.

Para recebê-la, lá estavam o cônsul brasileiro em Los Angeles, Manuel
Bento Casado, já prestes a
passar o posto, e sua mulher; a imprensa hollywoodiana; o pessoal do
estúdio; os brasileiros
residentes na região; e dois jornalistas brasileiros que a acompanhariam
pelos anos seguintes:
Gilberto Souto, correspondente de Cmearte, e Dante Orgolini, idem, só que
de A Noite, A Noite
Ilustrada e Carioca. O minúsculo, delicado e leal Gilberto estava em
Hollywood desde 1931, e a
primeira coisa que o encantou em Carmen foram os dentes: "Os mais belos
que já vi na boca de
uma mulher", escreveria depois. ("E sempre deliciosamente perfumada",
acrescentaria.) Seu
colega Orgolini fora para os Estados Unidos na mesma época e começara
trabalhando em
decoração de lojas e hotéis; depois, ganharia muito dinheiro ao
introduzir a peteca em
Hollywood e fundar a Peteca Manufacturing Co. Entre as duas funções, de
decorador de vitrines
e de tubarão das petecas, fora jornalista de cinema. Tanto Gilberto Souto
como Dante Orgolini
sabiam a diferença entre o sucesso de verdade e o sucesso de mentira em
Hollywood.


269

De Pasadena a Los Angeles, a caravana de Carmen rodou por quase uma hora
(de capota
fechada) entre os totens da riqueza local, que se alternavam à beira da
estrada: os poços e mais
poços de petróleo e os milhares de pés de laranja. (Dali a um ano, o novo
cônsul brasileiro, o
poeta Raul Bopp, diria a Carmen que a primeira laranja a aportar na
Califórnia, em 1873, tinha
vindo do mesmo lugar que inspirara sua fantasia: a Bahia. Ela não
acreditou.)

Carmen, dona Maria e Odila foram instaladas na cobertura do La Belle
Tour, um prédio
residencial na esquina de Franklin Avenue com Vista dei Mar - um dos
luxuosos châteaux
construídos nos anos 20 para as estrelas em trânsito. O Bando da Lua
ficou no mesmo prédio, mas
num apartamento menor e menos imponente, em outro andar. Ambos tinham
sido providenciados
por Yaconelli. Para manter um mínimo de legalidade, a gerência proibia
que se fizesse barulho
depois de dez horas da noite. Mas, com o trânsito de apartamento para
apartamento entre Carmen
e os seis rapazes do Bando da Lua, além de Gilberto, Orgolini, Mocotó e
Yaconelli, os
elevadores do La Belle Tour ficaram cheios de gente falando e cantando
alto, e, a partir da
primeira noite, o pandeiro comeu solto nos apartamentos até altas horas.
Quem também mantinha
um apartamento no La Belle Tour, embora raramente aparecesse por lá, era
John Barrymore, ou o
que restava dele fora das garrafas.

Na manhã seguinte, uma limusine contratada pelo estúdio, já com Yaconelli
a bordo, apanhou
Carmen e a levou pela primeira vez ao estúdio da Fox, em Pico Boulevard,
entre Beverly Hills e
Santa Monica - para ser apresentada a Darryl F. Zanuck. Yaconelli contou
a Carmen que, certa
vez, estava numa roda na Fox quando alguém perguntou o que significava o
"F" de Darryl F.
Zanuck. Ninguém soube dizer Francis, que era a resposta certa. Vários
riram, mas só Henry Fonda
respondeu:

""F" de "Fodam-se" [Fuck-it-att]."

Na limusine, a caminho do estúdio, Carmen não queria acreditar que os
contratados da Fox
tivessem Zanuck nessa conta. Na sua fantasia, ele devia ser como Shubert
- uma espécie de pai
de plantão, protetor e compreensivo, sempre à disposição dos
funcionários. Mas não era
absolutamente o caso e, ao chegarem à Fox, bastou a Carmen ser levada à
sala de Zanuck e medi-
la com os olhos para se convencer disso. Era quase do tamanho de um campo
de pólo - cavalos
poderiam disparar por ela. Zanuck jogava pólo no Uplifters Club (diziam
que bem) e não se
separava do taco nem quando em reunião com os banqueiros. Era um dos
instrumentos de sua
autoridade. Seu personal trainer, o italiano Fidel La Barba, ex-campeão
mundial dos pesos-
mosca, era encarregado de lutar boxe, correr e pular corda com ele,
massageá-lo e mantê-lo em
forma. Um dos macetes para isso era atirar-lhe azeitonas durante as
reuniões, para Zanuck rebater
com o taco de pólo. Parece ridículo, mas não se esqueça: isso era
Hollywood.

Zanuck era baixinho - 1,54 metro -, e o gigantismo do recinto o tornava
ainda mais nanico.

270

Aos 38 anos, tinha cabelo e bigode prematuramente
ralos, carinha de
roedor, maus dentes, voz fina e fanhosa. Enfim, só lhe restava o poder -
que ele exercia com uma
convicção e um prazer inigualáveis. Mas Carmen não se intimidou. Depois
de uma entrada que
Yaconelli definiria como "garboesca", ela se viu frente a frente com o
homem. Ao constatar que,
do alto de suas plataformas, seus olhos ficavam quase um palmo acima dos
dele, Carmen deixou
escapar:

"Vocêêê é que é o Zanuck?"

Por sorte, disse-o em português, e Yaconelli, ao traduzir, corrigiu-lhe
no ato a inflexão - para
"Você é o Zanuuuckl" - antes que o chefe percebesse que estava sendo
chamado de tampinha.

Se Zanuck, por sua vez, teve uma surpresa com a pouca altura de Carmen,
não comentou nada. Os
produtores estavam habituados às mulheres que, na tela, pareciam ter três
metros de altura, mas
que, ao vivo, regulavam com a altura de Carmen: Mary Pickford, Gloria
Swanson, Lupe Velez,
Carole Lombard, a falecida Jean Harlow, Judy Garland e até a nova
sensação da cidade, Lana
Turner - todas tinham abaixo de 1,55 metro.

Como já chegara consagrada a Hollywood, Carmen nunca precisou submeter-se
ao "teste do
sofá" - o sexo oral que as moças tinham de praticar em qualquer pessoa
que detivesse um mínimo
de poder nos estúdios, se quisessem ser escaladas para uma simples ponta.
Os chefões, como
Zanuck, exerciam uma espécie de droit de seigneur nesse departamento -
era esperado que, ao
entrar na sala de um deles, a garota não se chocasse quando ele já fosse
desabotoando a
braguilha antes de dizer-lhe boa tarde. (Uma piada vigente em Hollywood
dizia que se
considerava pudica uma moça que usasse a palavra "não" mais de uma vez em
seu primeiro ano
de trabalho no cinema.) Zanuck, famoso também pelo apetite sexual,
gabava-se de que, se
quisesse, conseguia "funcionar dia e noite [sem ejacular]". Corria a
história de que, recusado por
Marlene Dietrich, ele brandira seu enorme pênis na mesa e perguntara:
"Qual é o problema com
isto?". Não se conhece a resposta de Dietrich. Mas sabia-se a receita de
Alice Faye como a
melhor maneira de se livrar dos ataques de Zanuck em sua sala: ficar
girando em volta da mesa e
perguntando sobre a mulher dele, Virginia - universalmente conhecida na
cidade como "Poor
Virgínia" [Pobre Virginia].

No que se referia a negócios, Zanuck se sentia Napoleão e, quando punha
seus pelotões na rua,
sempre voltava com a presa. Quando saíra à caça da raposa - a Fox -, fora
assim. Anos antes,
no apogeu do cinema mudo, o estúdio ainda pertencia a seu fundador,
William Fox, e era o lar de
Theda Bara, Tom Mix e Janet Gaynor. O magnata Fox, um dos verdadeiros
pais do cinema, fora o
primeiro a produzir cinej ornais (o Movietone News), a adotar o sistema
de gravação do som
direto no filme, usado até hoje, e investir num filme em setenta
milímetros (A grande jornada ou
The big trail, de Raoul Walsh, em 1930).

271

Em 1927, quando a Fox produziu Aurora (Sunnse), de F. W. Murnau, seu
patrimônio estava na casa
das centenas de milhões de dólares. Mas os concorrentes lhe moveram uma
série de processos
antitruste e ele perdeu sua gigantesca cadeia de cinemas. Nas longas
batalhas judiciais que se
seguiram, Fox foi perdendo tudo e, quando perdeu também o estúdio, tentou
subornar um juiz e foi
preso. Era o fim.

Zanuck, por sua vez, começara na Warner em 1922, escrevendo roteiros para
os filmes do
cachorro Rin Tin Tin. Dali chegou a vice-presidente de produção e foi
decisivo para que a
Warner produzisse filmes de gângsteres com conteúdo social, como os
tremendos Inimigo público
(The public enemy, 1930, com James Cagney) e Alma do lodo (Little Caesar,
de 1931, com
Edward G. Robinson). Outra façanha, em 1932, fora acoplar o coreógrafo
Busby Berkeley aos
compositores Harry Warren e Al Dubin e criar musicais como Rua 42 e
Cavadoras de ouro,
requintados na forma e cafajestes na temática. Mas Zanuck era ambicioso e
queria ter seu próprio
estúdio. Em 1933, deixou para trás um salário de 5 mil dólares por semana
na Warner e, em
sociedade com Joseph (Joe) M. Schenck (pronuncia-se Skenk), fundou a 20th
Century Films (não
confundir com a empresa ferroviária). Deu-se bem, ganhou dinheiro, e,
dois anos depois, em 1935,
com Schenck e um sócio menor, William Goetz, compraram o controle da Fox.
Schenck levantou
o dinheiro junto ao Chase National Bank, que passou a ser o maior
acionista, e se tornou
presidente. Zanuck continuou a ser o vice-presidente encarregado da
produção, tendo de
responder a Schenck e aos acionistas. Mas ali nasceu a 20th Century-Fox,
com hífen e tudo.
Alguns continuaram a chamar a nova empresa de Twentieth. Mas o nome Fox
acabou vencendo.

Zanuck teve sorte. Logo de saída, descobriu Shirley Temple, aos três anos
e meio. Pouco depois,
Tyrone Power surgiu de graça à sua frente. E, em seguida, Sonja Henie só
faltou cair-lhe no colo.
Ou seja, começou com uma criança e uma patinadora, dois exotismos de alto
valor de mercado, e
com o ator mais bonito do cinema. Mas Zanuck também sabia renovar o time
quando era preciso.
Em 1940, Tyrone continuava grande, mas Shirley Temple triplicara de
tamanho e perdera a graça,
e Sonja Henie estava levando um gelo da platéia. Os grandes nomes do
estúdio eram agora Alice
Faye, Don Ameche, Henry Fonda (com Fonda só então empatando com Ameche em
importância)
e Betty Grable. Carmen chegou e bastaram seus três números em Serenata
tropical para que ela
fizesse parte dessa elite.

Na hierarquia da Hollywood de então, a Fox pegava um quarto lugar firme
atrás da MGM, da
Warner e da Paramount, pela ordem. Ganhava da Columbia e da Universal
(que eram estúdios
"pobres"), da tão charmosa RKO (que era uma mixórdia administrativa) e da
United Artists (que se
reduzira basicamente a uma distribuidora). Na verdade, a grandeza da Fox
de Zanuck ainda
estava por começar - e começaria justamente na era dos musicais em cores


272

com Alice-Carmen-Betty, e com o prestígio dos filmes de John Ford, como A
mocidade de
Lincoln (1939), Vinhas da ira (1940) e Como era verde meu vale (1941).
Zanuck era um dos
poucos não-judeus a produzir filmes em Hollywood - os outros eram Walt
Disney e Howard
Hughes. Comparado a Louis B. Mayer, da MGM, Adolph Zukor, da Paramount, e
Harry Cohn, da
Columbia, podia-se quase dizer que era um intelectual, embora sua cultura
livresca nem sempre
ultrapassasse o livro do mês do Reader"s Digest ou a lista de mais
vendidos do New York Times.
A seu favor, todos achavam que era um empresário corajoso e queria
produzir filmes "sérios" (o
que faria de sobra no decorrer da década). E, ao contrário dos colegas,
que topariam qualquer
negócio para ter Clark Gable em um filme, Zanuck não estava muito
preocupado com quem iria
fazer este ou aquele papel. Para ele, o roteiro estava acima de tudo.
Talvez porque esta tivesse
sido sua primeira função no cinema - escrevê-los, ainda que fosse para
Rin Tin Tin.

Na sua primeira noite para valer em Hollywood, Carmen foi levada à
préestréia do musical A
vida é uma canção (Tin Pan Alley), que a Fox rodara logo depois de
Serenata tropical e estava
lançando quase ao mesmo tempo. O filme reunia pela primeira (e única) vez
Alice Faye e Betty
Grable, e continha a memorável seqüência em que as duas cantavam "The
sheik of Araby"
fantasiadas de odaliscas - com a diferença de que o bustiê de Alice era
tamanho-família, para
acomodar seus enormes seios, e o de Betty, muito menor, para seus
delicados peitinhos. À sua
chegada ao Chinese Theatre, Carmen foi triunfalmente apresentada como
"uma estrela da 20th
Century-Fox". Posou para fotos, deu autógrafos e quase roubou a noite de
Alice e Betty. À saída,
foi seqüestrada por Joe Schenck, que a levou ao Ciro"s, um nightclub
recém-inaugurado no Sunset
Boulevard. Apesar de novo na praça, o Ciro"s já se tornara o lugar
oficial para depois das
premières, e sua maior noite acontecera em seguida à inauguração, quando
Johnny Weissmuller,
devorado pelo ciúme, virara uma mesa cheia de chili con carne no colo de
sua mulher, Lupe
Velez.

A orquestra atacou uma rumba e Schenck tirou Carmen para dançar, crente
de que lhe prestava
uma homenagem. Veio o jantar, mais uma ou duas rumbas, e, somando toda a
agitação daquela
noite - pré-estréia de gala, imprensa, multidão, refletores varrendo os
céus e, depois, jantar-
dançante no Ciro"s -, podia-se imaginar que a alegria se estendesse até
pelo menos umas três da
manhã, não? Não. As coisas se davam de maneira que todo mundo já
estivesse em casa por volta
da meia-noite, para acordar cedo no dia seguinte. Essa era a vida noturna
de Hollywood - não
existia.

Ao passear com Carmen e o Bando de carro pela cidade na noite da véspera,
Aloysio de Oliveira
já tinha observado isso. Hollywood propriamente dita era apenas a zona
central de Los Angeles
e, pela pacatice, lembrava-lhe a praça

273

principal de algum bairro da Zona Norte carioca, algo assim como
Madureira ou o Méier - só
faltavam os homens de pijama na calçada. Como a cidade vivia para o
cinema, e os estúdios
começavam o expediente ao nascer do sol, era natural que a cidade
dormisse com as galinhas. No
dia 15 de novembro, quando as filmagens de Uma noite no Rio começaram de
verdade, Carmen já
conseguira estabelecer a rotina de dormir às oito e meia da noite e se
levantar às seis da manhã,
para estar no estúdio às sete, pronta para a maquiagem. E fazia isso
sozinha, sem precisar de
soníferos.

Carmen chegara à Califórnia no outono: sol ameno durante o dia, com um
pouco de frio e
nevoeiro à noite - cenário ideal para os filmes noir que dali a pouco os
estúdios começariam a
produzir. O sol podia ser ameno, mas Carmen e o Bando da Lua não queriam
desperdiçar nem um
raio dele e, nos primeiros domingos, chegaram a ir às duas principais
praias da região, Malibu e
Santa Monica. Ambas os decepcionaram. Malibu tinha unia faixa de areia
ridiculamente estreita e
pedregosa - além disso, ao se entrar no mar, davam-se dois passos e se
caía numa vala; e Santa
Monica era grande, mas sem graça e despovoada, exceto pela mansão de
Márion Davies. Daí que
o pessoal do cinema passasse o dia em suas piscinas particulares, e os
que não tinham piscina
usassem a do Beverly Hills Hotel - o que Carmen e os rapazes também
passaram a fazer.

Mas sua chegada ao hotel, num Cadillac conversível de 1937 que ela
comprara de segunda mão
por trezentos dólares, devia ser uma bola: uns sobre os outros, ele
acomodava Carmen, Odila,
Zezinho e, interminavelmente, o Bando da Lua completo.

Antes de sair para o primeiro dia de filmagem, com a noite ainda fechada
lá fora, Carmen e dona
Maria acenderam uma vela e rezaram para que tudo desse certo. Dona Maria
não sossegou
enquanto não encontrou uma igreja católica perto de casa, a cuja missa
passou a ir todos os dias.
Como não se dispunha a aprender inglês e, na ausência de Carmen e Odila,
não tivesse com quem
falar português, a litania em latim, que ela acompanhava mecanicamente
pelo missal, sem
entender palavra, era sua única comunicação com o mundo.

A primeira entrada de Carmen no Café de Paris, o restaurante e lanchonete
da Fox, produziu um
zunzunzum. Entre atores, figurantes e técnicos, vários a reconheceram e
foram falar com ela.
Carmen queria conversar com eles, mas, quando não entendia a pergunta,
limitava-se a dizer "Yes,
yes, yes" - como fazia no começo em Nova York quando os homens de
Shubert, por distração, a
deixavam a sós com um jornalista. Ao ver Carmen vestida com a baiana,
inúmeras mulheres do
estúdio, da costureirinha mais anônima à mulher do produtor executivo,
queriam ser fotografadas
a seu lado e depois pediam que ela autografasse a foto (o que Carmen
fazia em português). Outras
levavam caricaturas


274

que saíam na imprensa de Los Angeles e também pediam que Carmen
as assinasse.
Carmen não gostava muito de caricaturas, porque elas realçavam o que
considerava seu ponto
fraco: o nariz. Mas, no Brasil, já fora desenhada por todos os
caricaturistas - J. Carlos, J. Luiz,
Alvarus, Augusto Rodrigues, Mendez, Gilberto Trompowski, Alceu Penna -,
ficara amiga deles e
vários tinham até lhe criado baianas.

Assim como se surpreendiam com o fato de Carmen não fumar nem beber -
onde já se vira isso?
-, suas colegas se espantavam mais ainda com sua capacidade de comer
quantidades absurdas,
sem o menor medo de engordar. Num almoço comum no estúdio, Carmen podia
se servir de uma
salada de camarão, um descomunal bife, cinco acompanhamentos diferentes e
duas sobremesas.
Mandava tudo para dentro com três ou quatro Coca-Colas e, ao fim, ainda
comentava que devia
ter comido mais. As jovens estreletes da Fox, como Arme Baxter, Linda
Darnell e Gene Tierney,
que viviam de dieta, suspiravam de inveja. A imprensa hollywoodiana
dedicou várias colunas ao
suposto apetite de lobo de Carmen, só faltando insinuar que ela viera
esfomeada do Brasil. A
verdade, no entanto, não podia ser mais diferente - e havia uma intenção
por trás daquilo.

Carmen estava insegura ao chegar à Fox. Seu sucesso na Broadway e nos
nightclubs de Nova
York já tinha ficado para trás. O importante era Hollywood, e Hollywood
era diferente - para
todo lado que se virasse, havia um herói de suas antigas matinês. Um
fracasso no cinema a faria
voltar aos tempos em que sonhava com um papel nos filmes da Cinédia ou de
Paulo Benedetti.
Ela precisava ser "aceita". A melhor maneira de ser "aceita" era ser
engraçada. E o exagero é
sempre engraçado. Ninguém sabia que, depois da infantilidade de esvaziar
sete pratos no
restaurante da Fox, Carmen passava o resto do dia a água e cream-cracker.
Somente quando se
certificou de que não havia nada a temer é que Carmen parou com as
maratonas à mesa e voltou a
comer o que era de seu normal: muito pouco - porque, como muita gente de
sua idade, tinha
tendência a engordar.

A pedido de Carmen, a Fox montou uma quitinete em seu camarim e dona
Maria ia para lá com
freqüência, a fim de cozinhar ou fazer café. Com isso, Carmen (ela
própria, não muito fã do
produto) instituiu o cafezinho no estúdio, convidando os colegas a ir
tomá-lo com ela nos
intervalos de filmagem (e rebater com um folhado doce ou um biscoitinho
amanteigado). Os
colegas ficaram fregueses.

Carmen chegara a Hollywood em fins de outubro de 1940. Dali a cerca de
três meses, em
fevereiro de 1941, completaria 32 anos. Com essa idade, antigas beldades
como Norma Shearer,
Myrna Loy e Mary Astor já estavam começando a interpretar papéis de mãe.
A Fox aceitara a
idade falsa que Shubert lhe passara (27 anos), mas só para efeitos
publicitários - em todos os
documentos internos do estúdio, lá estava sua verdadeira data de
nascimento: 1909.

275

Além disso, numa cidade em que não bastava ser bonita - havia milhares de
mulheres
indescritíveis desempregadas -, Carmen não poderia competir em beleza.
Seu estilo seria mais o
de uma Marlene Dietrich, Joan Crawford ou Barbara Stanwyck, que ninguém
sabia dizer se eram
bonitas ou interessantes.

Ao ver os testes de Carmen para Serenata tropical, um ano antes, Zanuck
percebera o que tinha
em mãos. Ali não estava uma beleza trágica, de orquídea, como a de
Dolores Del Rio; nem a de
uma planta carnívora, devoradora de homens, como a de Lupe Velez.

Carmen era dotada de um talento maior e mais raro. Era uma comediante,
uma grande clown,
coisa raríssima entre mulheres atraentes. Capaz de vestir uma fantasia
absurda, à base de bananas
e abacaxis, e fazer rir - e, ao mesmo tempo, fazer com que os homens
quisessem descascá-la e
comê-la.



Capítulo 16


1940

Deusa do cinema



Carmen estava dizendo, entusiasmada, a um jornalista brasileiro: "É
sweetheart pra cá e honey
pra lá e uma porção de darlings o dia todo!" Referia-se ao ambiente de
trabalho no estúdio. A Fox
podia não ser rica em sedas e cristais como a MGM ou a Warner, mas o
clima entre seus 3500
empregados era tido como muito mais saudável. No primeiro dia de filmagem
de Uma noite no
Rio, Carmen fora recebida com flores pelo diretor Irving Cummings. (Isso
não era incomum. O
difícil era que, na semana seguinte, o diretor já não cogitasse esganar a
estrela. Mas Cummings
continuou a adorar Carmen.) E não havia estrelismos ou rivalidades
flagrantes no elenco. Quando
Betty Grable se revelou com Serenata tropical, Alice Faye era a
imperatriz do estúdio e estava
evidente que, cedo ou tarde, Betty tomaria o seu lugar. Mas Alice dera-se
muito bem com Betty, e
as duas estavam se dando ainda melhor com Carmen. O mesmo quanto aos
rapazes: Don Ameche
era amigo de Tyrone Power, embora não tanto quanto César Romero, e todos
foram generosos ao
receber John Payne, o novo contratado que chegava para concorrer ao pódio
dos galãs.

Carmen se identificou com esse espírito solidário. Em Uma noite no Rio,
havia um pequeno papel
com fala para uma das coristas. Só que essa corista ainda não fora
definida. Era uma cena em que
Don Ameche, no papel do barão, encontrava Inez, garota muito bonita, e
não resistia a lhe jogar
uma conversa. Carmen insistiu com Cummings para que testasse a morena
dominicana Maria
África Antonia Gracia Vidal de Santo Silas, de 21 anos, que saíra do coro
para se dizer sua fã e
pedir que Carmen falasse dela para o diretor. Cummings topou testá-la e a
menina ganhou a cena.
Mas a Fox não se preocupou em segurá-la com um contrato. Assim que o
filme foi lançado, a
Universal a viu e levou embora e, em menos de um ano, transformou-a na
rainha das Arábias,
numa série de filmes memoráveis com Sabu, Jon Hall e Turhan Bey - Maria
Montez. Na Fox, o
trânsito era intenso de um galpão para outro porque os atores
aproveitavam as pausas de
filmagem para visitar os filmes dos amigos. Alguns iam ao estúdio até nos
dias de folga - como
Tyrone Power, que, ao saber que iriam rodar a seqüência do cassino em Uma
noite no Rio, foi ao
guarda-roupa da produção, vestiu-se em segredo, e se imiscuiu como um
simples extra na platéia
de Carmen em "Chica chica boom chie". Power fizera isso por Carmen,

277

a quem augurara sucesso em Hollywood quando a conhecera na Urca, no ano
anterior, e Cummings
só descobriu a brincadeira depois de filmada a seqüência. O diretor John
Ford, filmando Caminho
áspero (Tobacco road) no galpão ao lado, foi visitado por seu astro
favorito, Henry Fonda, e os
dois também deram um pulo ao set de Uma noite no Rio; Gilberto Souto os
apresentou a Carmen.
Fonda estivera havia pouco no Rio, de onde trouxera discos dela. E o
inglês George Sanders, já
célebre por interpretar o galante aventureiro Simon Templar - O Santo -
numa série policial da
Fox, foi outro que a procurou, mas com intenções profanas. Em jovem,
Sanders morara quatro
anos na Argentina, donde falava fluente espanhol e entendia português.
Por isso, ao convidar
Carmen para jantar no Mocambo e ouvi-la dizer que aceitava, e que dona
Maria, sua mãe, "iria
adorar", George nem precisou de intérprete. Com uma classe digna do
Santo, apenas pigarreou e
desculpou-se ao se lembrar de que já tinha outro compromisso -
provavelmente com uma órfã.

Carmen tinha de praticar manobras como essa. Afinal, sua relação com
Aloysio de Oliveira
continuava vigente. Talvez não com a volúpia de Nova York - nem isso era
possível em
Hollywood. Em Nova York, eles moravam praticamente juntos e ninguém
tomava conhecimento.
Mas, para o bem da indústria na provinciana Hollywood, não se aceitava
que uma estrela
coabitasse com um homem sem estar casada com ele, nem havia como fazer
isso às escondidas. A
solução era o casamento - e Carmen se casaria com Aloysio, se ele
quisesse e à hora que ele
quisesse. Mas Aloysio, já com um status confuso junto a ela - era seu
músico, conselheiro,
intérprete, faz-tudo e namorado -, não parecia louco para incorporar
também a função de
marido.

A idéia de trazer dona Maria para morar com Carmen era conveniente em
termos de conforto, mas
tinha a ver também com o lado moral. (Carmen não era a primeira da
família Bombshell a fazer
isso - a inesquecível Jean Harlow, The Blonde Bombshell, quase sempre
morara com a mãe em
Hollywood.) Ninguém pecava por ser "família" na cidade do cinema. E, em
fevereiro de 1941, a
família de Carmen aumentaria ainda mais: Aurora e Gabriel viriam passar,
em princípio, dois
meses com ela em Los Angeles ou Nova York, onde quer que estivesse. Era o
presente de
casamento que prometera à irmã: uma lua-demel com o glamour de Hollywood
ou da Broadway,
com direito a conhecer as grandes estrelas e constatar como, por baixo do
rímel e do esmalte, elas
eram pessoas tão simples e normais como qualquer um. Alice Faye, por
exemplo.

Num estúdio tão sem egos ou feudos como a Fox, a entrada diária de Alice
no palco de filmagem
dava uma idéia completamente falsa de sua personalidade. Nariz ao vento,
expressão
imperturbável e olhos que, no futuro, alguém classificaria carinhosamente
de "bovinos", ela
parecia caminhar sem tocar o chão, seguida por sua coorte de camareira,
maquiador e
cabeleireira. Era a antítese de Betty Grable, que cuidava do próprio
guarda-roupa, aplicava ela
mesma sua maquiagem e não ficava esperando pelo calista


278

se necessário, Betty sentava-se sobre um baú, cruzava as pernas e cortava
pessoalmente seus calos de
dançarina. Já Alice não dispensava o séquito. Não porque quisesse, mas
porque Zanuck insistia
em que ela mantivesse uma aura de rainha, condizente com os musicais
passados na Belle Époque
que a obrigava a fazer - e para camuflar a infância e a adolescência
absolutamente miseráveis
que ela tivera. (Comparada à de Alice, a juventude de Carmen na Lapa, que
transcorrera quase ao
mesmo tempo, fora muito melhor.)

Alice nascera num dos piores endereços de Nova York: os arredores da
Décima Avenida com a
Rua 54 Oeste. Em 1912, essa zona era mais conhecida como Hell"s Kitchen,
a "cozinha do inferno"
- uma área superlotada de americanos de primeira ou segunda geração,
descendentes de
alemães, italianos, judeus e irlandeses, que passavam o dia aos tapas,
mimoseando-se com
navalhadas ou se odiando em silêncio. Tráfico de drogas, assaltos à mão
armada e baixa
prostituição abundavam no pedaço. A família de Alice era irlandesa e seu
apartamento ficava num
prédio sem elevador, calefação nem água quente. Estava longe de ser o
ambiente ideal para criar
uma filha e mais dois garotos, mas o pai de Alice não tinha escolha: era
policial, ganhava mal, e
sua grande façanha diária era voltar vivo para casa - porque ninguém
gostava da polícia, nem
mesmo os irlandeses, que forneciam os seus maiores contingentes. A mãe de
Alice trabalhava
numa fábrica, a avó morava com eles, e eram seis para dormir onde mal
cabiam três.

O inevitável então aconteceu: Alice gostava de cantar, tinha boa voz,
dançava um pouco, era
bonita, loura, olhos azuis, belas pernas. Com esses predicados, a pobreza
a empurrou para
procurar trabalho na noite. As datas são imprecisas, mas, entre os
dezesseis e os dezenove anos,
ela se candidatou ao coro da famosa companhia de revistas George White"s
Scandals. Foi aceita
e trabalhou lá até ser descoberta por Rudy Vallée, ele mesmo. Rudy a
ouviu cantar, gostou do seu
tom grave, estilo Libby Holman, e contratou-a para sua orquestra e para
seu programa de rádio,
The Fleischmann Hour. Em 1934, Rudy e seu pessoal foram para Hollywood a
convite da Fox,
que ainda não pertencia a Zanuck. A Fox percebeu que Alice era a melhor
coisa do pacote e a
contratou, na esperança de que, se ela pudesse recitar minimamente um
diálogo, talvez tivessem
uma estrela em embrião.

Nessa época, Alice usava cabelo platinado, sobrancelhas a lápis e várias
camadas de batom nos
lábios, como Jean Harlow. Mas faltava-lhe a chama de Jean Harlow e, com
esse look de gesso,
ela não iria a lugar nenhum. Zanuck assumiu o estúdio em 1935 e viu logo
o que era preciso fazer:
suavizar a imagem de Alice. Suas sobrancelhas voltaram a florir, o cabelo
retomou o louro suave,
e ela passou a economizar batom. Seus filmes também melhoraram e, num
átimo, a voz de
contralto e os olhos quase sempre marejados fizeram dela o maior nome da
Fox para musicais de
luxo, como Avenida dos milhões (On the Avenue,
1937), No velho Chicago (In old Chicago, 1938), A epopéia dojazz
(Alexander's ragtime

279

band, 1938) e O meu amado (Rose of Washington Square, 1939). Entre
um e outro filme, Alice
se casara com o jovem cantor Tony Martin. Mas os dois não tinham muito
tempo para brincar de
marido e mulher, e o casamento naufragou. A polêmica cirurgia, de
apêndice ou de hemorróidas,
impediu que Alice fizesse Serenata tropical, mas, assim que ela voltou ao
estúdio, Zanuck a
escalou com Betty Grable em A vida é uma canção e, em seguida, com Carmen
em Uma noite no
Rio - o primeiro dos quatro filmes em que apareceriam juntas.

Alice deixou-se encantar pela personalidade efervescente de Carmen, mesmo
sabendo que esta se
tornara o centro das atenções e que, num filme em Technicolor, os
turbantes e as baianas da
brasileira lhe roubariam a cena. Na verdade, Alice não perdia o sono nem
com Betty Grable. E aí
é que residia a chave de sua personalidade: não dava nenhuma importância
a sua posição de
mandachuva na Fox. Alice lamentava apenas o fracasso de seu primeiro
casamento. Não porque
fosse terrivelmente apaixonada por Tony Martin, mas porque seu projeto de
vida (acredite ou
não) era tornar-se uma dona de casa, mãe de filhos, e ser sustentada pelo
marido. Se pudesse
escolher, trocaria tudo que tinha na Fox - a adulação, o séquito, o
camarim com a estrela
prateada na porta - pelo avental sujo de ovo e pela rotina de ferver
fraldas e preparar
mamadeiras.

Zanuck fazia bem em obrigar Alice a simular um porte de rainha. Se
soubessem que ela era
exatamente o contrário disso, o que diriam aquelas pessoas que saíam de
madrugada de seus
subúrbios, viajavam horas até Hollywood, e amanheciam, famintas e com
frio, no portão principal
do estúdio - apenas para esperar a chegada da estrela e quase se atirar
sob as rodas dos carros
para conseguir um autógrafo?

O produtor William LeBaron estava impressionado:

"Ela é incrível. Trabalha o dia inteiro, vestida com aquelas roupas
pesadas, coberta de jóias, e
não se cansa. Quando eu digo, "Senhorita. Miranda, não quer dar uma
paradinha?", ela dá um salto
da cadeira: "Não, não, vamos lá!""

Não era exagero de LeBaron. Mais especificamente: certas saias de Carmen
pesavam doze
quilos; turbantes, cinco quilos; e alguns brincos, como o do cacho de
uvas, eram de madeira e
também pesavam. Mas Carmen era a antiestrela, a antidiva. Parecia mais
uma figurante ansiosa ou
uma operária do estúdio. Com sua vontade quase infantil de agradar,
aprendera até a ser pontual:
era a primeira a chegar ao estúdio, à maquiagem e ao palco de filmagem.
Estava sempre pronta
para o que fosse solicitada, não fazia biquinho, não reclamava de nada -
nem mesmo das
quatorze horas de trabalho por dia antes do início das filmagens,
exigidas pelos ensaios de todo
tipo, provas de roupas, incontáveis testes de maquiagem em função do
Technicolor, e gravação
dos números musicais para o playback. (Gravara "I, yi, yi, yi, yi (I like
you very much)" apenas
quatro dias depois de chegar a Los Angeles.) Mas, para Irving Cummings,


280

a principal virtude de Carmen, assim que as câmeras começaram a
rodar, era a de não
precisar repetir cenas - fazia tudo certo e de primeira. Cummings chamou-
a de "One-take girl".

Para que isso acontecesse, Carmen passara todo o tempo livre, em Chicago
e Los Angeles,
ensaiando as falas com Yaconelli. Ele "traduzira" foneticamente os
diálogos num caderno e a
obrigava a repeti-los dia e noite - como este, em que a personagem de
Carmen, furibunda, diz as
últimas a Don Ameche:

"lú ar a lou-dáun nôu-gud mm!"

Yaconelli lhe explicava o significado:

"Você é um cretino de um canastrão de quinta categoria!"

Mas, quando os dois iam ensaiar as inflexões, Carmen não achava que
estivesse fazendo direito.
Então, deu sua própria versão à tradução de Yaconelli:

"Você é um escroto de um filha-da-puta de merda!"

E, tendo essa versão em mente, recitou direitinho a versão fonética de
Yaconelli.

Pelo mesmo processo, Yaconelli ensinava-lhe também as falas de Don
Ameche, para que ela
entendesse o diálogo. Com sua memória de cantora, capaz de guardar
centenas de letras de
música, Carmen decorava tudo e acabou aprendendo os diálogos até de cenas
de que não
participava. Ameche, que a conhecera em Nova York e era um doce de
pessoa, ajudava-a com as
marcações de câmera e também com a pronúncia deliberadamente errada da
personagem. Foi ele
quem notou algo estranho nessa pronúncia.

No filme, Carmen interpretava uma cantora brasileira chamada Carmen.
Donde nada de mais que
falasse inglês com sotaque brasileiro. Mas, pelo que Ameche (na
realidade, Dominic Felix Amici,
americano de origem italiana) conseguia perceber, Carmen estava falando
inglês com um
sotaque... italiano. E logo descobriram por quê. O paulistano Yaconelli,
também filho de italianos,
não conhecia nenhuma cidade brasileira além de São Paulo. A única vez que
ouvira o português
falado em outras regiões do Brasil fora nas breves escalas do navio que o
levara para Nova York,
dezoito anos antes. Daí seu português (e inglês) carregado com o forte
sotaque italiano do Brás.
Quando isso foi detectado, Ameche orientou Carmen, e acertou seu sotaque
para algo mais...
hispânico. E o estúdio mandou um bilhete azul a Yaconelli, agradecendo
pelos seus serviços.
(Mas Carmen o manteve na sua folha de pagamento particular - o que não
fazia diferença, já que
era ela quem o pagava do mesmo jeito.)

A Fox não queria correr riscos. Depois do problema com os argentinos em
Serenata tropical, o
estúdio estava pulando miudinho para não repetir as mesmas grosserias com
os brasileiros em
Uma noite no Rio. Para isso, Zanuck (que descera da sua posição de chefe
do estúdio para cuidar
- com LeBaron, sem crédito - da produção do filme) mandou o argumento de
Uma noite no Rio
para a embaixada do Brasil em Washington, onde ele foi lido (e aprovado)
pelo secretário Arno
Konder.

281

E por que não seria? A história em si não tinha nada de mais. Um ator
americano residente no
Brasil, Larry Martin, é especialista em interpretar o playboy e
aristocrata brasileiro, barão
Manuel Duarte, em seu show num cassino do Rio. O ator é convidado a
representar o barão numa
festa na casa deste, para que os adversários comerciais do nobre não
desconfiem de que ele
viajou para resolver problemas de negócios. Larry aceita, mas se apaixona
pela mulher do barão
e lhe dispensa tantas atenções que ela, sem saber do plano e habituada a
ser esnobada pelo
marido, começa a estranhar. O barão volta de viagem e, quando a situação
se resolve, descobre
que o ator salvou tanto os seus negócios como o seu casamento. Don
Ameche, em papel duplo,
fazia Larry e o barão Duarte. Alice Faye era a mulher do aristocrata, e
Carmen, a partner e
namorada ciumenta do ator. Por aí já se podia ver a estereotipia: Alice
era a americana fina e
superior; Carmen, a "latina" destemperada, chegada a destruir camarins e
a atirar tamancos na
cabeça do namorado - na verdade, a idéia que Hollywood fazia de quase
todas as estrangeiras.

Gilberto Souto e Dante Orgolini foram contratados para assessorar a
produção de Uma noite no
Rio e prevenir eventuais mancadas que deixassem mal o Brasil. Mas não
puderam impedir que a
canção mais bonita do score de Harry Warren e Mack Gordon, "They met in
Rio" (cantada por
Don Ameche em português, com letra - sem crédito - de Yaconelli),
ganhasse um arranjo e uma
orquestração de tango. Ou que, no show do cassino, em que Carmen canta
"Chica chica boom
chie" (também com letra em português de Yaconelli e igualmente sem
crédito), o ciclorama
representando uma cena noturna do Rio mostrasse o Corcovado como ele era
antes de 1931,
ainda sem a estátua iluminada do Cristo Redentor. Ou que, cinqüenta anos
depois da
Proclamação da República, alguém no Brasil ainda usasse um repolhudo
título da monarquia,
como o "barão Duarte".

O filme era divertido, mas, na sua preocupação de não correr riscos com a
Política da Boa
Vizinhança, não parecia dirigido a vizinho nenhum, nem mesmo ao Brasil.
Exceto por Carmen e o
Bando da Lua, Uma noite no Rio não tinha nada com que o público
brasileiro se identificasse. Em
seus noventa minutos de duração, o Rio só está presente no título e no
telão do cassino (com o
Corcovado sem o Cristo). Não havia sequer aquelas tomadas gerais da
cidade para estabelecer o
cenário, como tinham feito com Buenos Aires em Serenata tropical. E os
únicos "brasileiros" em
cena eram os nobres, os milionários e seus afetados serviçais, todos de
fraque e colarinho alto no
dia-a-dia - nenhum esmolambado, nenhum negro, nenhum torcedor do
Flamengo. Para não dizer
que faltou realismo, o palacete do barão Duarte no filme era um compósito
de duas casas então
célebres da burguesia carioca: a de Laurinda Santos Lobo e a de seu
vizinho, o empresário
Raymundo de Castro Maya (os atuais Parque das Ruínas e Chácara do Céu),
em Santa Teresa.
Ambas foram reproduzidas na Fox a partir de fotografias.


282

Para escrever as canções de Uma noite no Rio, Zanuck chamara Harry
Warren, seu velho
companheiro na Warner e agora também na folha de pagamento da Fox. Warren
era um gênio da
canção americana, mas sabia tanto de música brasileira quanto de pilotar
um Spitfire. Para ele, o
que mais devia se assemelhar a ela era a música de Cuba. Talvez por isso,
as duas canções do
score feitas para Carmen fossem "Chica chica boom chie", uma rumba, e "I,
yi, yi, yi, yi (I like you
very much)", uma conga. Para Aloysio de Oliveira, elas obviamente
precisariam de um disfarce
rítmico, sem o qual o filme teria problemas no Brasil. Seria fácil
converter a rumba num samba e,
mais ainda, a conga numa marchinha. Mas Aloysio estava cheio de dedos
para propor essas
interferências ao compositor. Afinal, Harry Warren era um de seus heróis.
Como ousar meter o
bedelho no trabalho de um homem que, em parceria com Al Dubin, escrevera
as canções que o
mundo inteiro, inclusive o Bando da Lua, tinha cantado nos anos 30? "I
only have eyes for you",
"Lullaby of Broadway", "Lulu"s back in town", "September in the rain",
"You"re getting to be a
habit with me", "Shadow waltz", "Boulevard of broken dreams", "With
plenty of money and you" e
muitas mais. E, mais recentemente, em 1938, Warren produzira outro
clássico: "Jeepers creepers",
em parceria com Johnny Mercer. Para Aloysio, Cole Porter podia ser Ary
Barroso, mas Harry
Warren era uma espécie de Assis Valente local - o compositor americano
por excelência.

Warren foi consultado sobre as alterações e, para alívio de Aloysio,
disse que não fazia a menor
objeção. E, para sua absoluta surpresa, Aloysio descobriu que Harry
Warren - "o compositor
americano por excelência" - era muito mais italiano do que americano. Seu
nome verdadeiro era
Salvatore Guaragno, sua família toda viera da Itália e, quando ele ia
visitar os parentes em
Manhattan, as reservas de orégano no estado de Nova York caíam a níveis
preocupantes. Como o
único ideal na vida de Warren se frustrara - o de ser o novo Puccini -,
ele se contentava em ser
o compositor mais bem-sucedido do cinema. Todas aquelas canções tinham
sido feitas para os
musicais da Warner com Dick Powell e eram apenas uma fração de seus
sucessos. Mas Warren
não teria a mesma sorte com Uma noite no Rio - da meia dúzia de canções
que escrevera para o
filme, apenas "Chica chica boom chie" teria alguma posteridade, e, mesmo
assim, graças a
Carmen.

"Chica chica boom chie" era o número de abertura do filme. Carmen cantava
a letra de Yaconelli
em português (mais uma list song falando da Bahia), e Don Ameche, a letra
em inglês de Mack
Gordon. Entre as duas partes vocais, a música incluía uma dança
combinando alguns vagos
elementos de samba com as tradicionais evoluções em hollywoodês. O
coreógrafo era Hermes
Pan,
35 anos e muito respeitado por ter sido o braço (ou o pé) direito de Fred
Astaire em seus nove
filmes com Ginger Rogers na RKO. Mas Fred e Ginger tinham desfeito a
dupla em 1939, e Zanuck
levara Pan para a Fox. Pan vinha de uma família grega e seu nome completo
era Hermes
Panagiotopoulous

283

- fizera bem em abreviá-lo. Pensando que Carmen, além de cantora, fosse
dançarina, ele lhe criara
marcações complicadas para "Chica chica boom chie". E, pela primeira vez,
ela se rebelou no
estúdio da Fox.

Carmen reagiu às marcações de Hermes Pan. Tinha consciência de que não
sabia dançar e
precisava de liberdade para fazer os movimentos do samba. Para complicar-
lhe a vida, disse a
ele, já bastavam a baiana prateada, o turbante de penas e as plataformas
de treze centímetros. Pan
entendeu e deixou-a à vontade, dentro de certos limites. Mas, com
habilidade, convenceu-a a
aprender a rodopiar nos braços de um bailarino, ser jogada para o alto e
cair de pé,
graciosamente, na pontinha da plataforma. O resultado foi um take
perfeito logo de primeira,
incluindo o take de segurança, filmado simultaneamente por outra câmera.

Pan e Carmen ficaram amigos. Um de seus assuntos em comum era a religião.
Pan fora seminarista,
por pouco não se ordenara padre, e Carmen, um dia, também quisera ser
freira. Nenhum dos dois
seguira o impulso religioso, e o mundo é que saíra ganhando - as malhas
de Pan e as baianas de
Carmen pertenciam aos palcos, não aos claustros, nem ficariam bem à
sombra dos oratórios. Além
das piruetas, Carmen ficou devendo outra coisa importante a Hermes Pan.
Foi ele quem a fez
exigir que, na montagem de seus números de canto ou dança, a seqüência
não fosse interrompida
para mostrar outro ator ou atores "reagindo" ao que ela estivesse fazendo
- recurso usado para
disfarçar cortes provocados pela incapacidade de o artista sustentar um
número inteiro de uma
vez. Sem esses cortes é que se via quem tinha mais garrafas vazias para
vender. Sete anos antes,
em 1933, um dançarino fora o primeiro a fazer essa reivindicação: Fred
Astaire, na RKO. Fora
atendido e, com isso, emprestara uma nova dignidade à dança no cinema.
Carmen seguiu a
orientação e, na maioria de seus números em todos os filmes seguintes,
conseguiria que o
espectador pudesse apreciá-la sem a câmera cortar para atores na platéia,
fazendo caras de
aprovação ou não.

A terceira canção de Carmen em Uma noite no Rio dispensava adaptações.
Era a batucada "Cai,
cai", de Roberto Martins, lançada um ano antes no Rio pela dupla Joel e
Gaúcho para o Carnaval
de 1940:

Cai, cai, cai, cai

Eu não vou te levantar

Cai, cai, cai, cai

Quem mandou escorregar.

Para a filmagem desse número, que se passa numa festa na casa do barão, a
Fox convocou um
exército de mulheres estatuescas para atuar como extras. Foram recrutadas
entre as principais
manequins de Los Angeles, vestidas pelas casas de moda e maquiadas e
penteadas no próprio set
por seus profissionais particulares.


284

Mas não adiantou: todas ficaram invisíveis à entrada
de Carmen, com sua baiana
de lamê vermelho-escuro e um turbante de arco-íris.

"Cai, cai" foi um grande achado, mas, musicalmente, ali começava a se
delinear o tipo de música
que Carmen poderia cantar em português: qualquer uma - desde que tivesse
um lado cômico,
rítmico e acelerado. Daí por que a outra canção que Carmen propusera para
o filme tivesse sido
recusada: a delicada marcha-rancho "As pastorinhas" - romântica demais
para a nova Carmen
que a Fox estava começando a construir.

Separada dos fatos por um ou mais oceanos, a imprensa brasileira
fantasiava em letra de fôrma,
com direito a fotos, sobre a vida particular de Carmen em Hollywood. Uma
das especulações era
sobre um possível romance, noivado ou até casamento com Don Ameche, seu
galã em Uma noite
no Rio.

Isso também era Hollywood, e é verdade que muitas dessas histórias eram
armadas pelos próprios
estúdios. A tática consistia em fazer com que o astro X e a estrela Y
fossem vistos aos sorrisos e
sussurros numa seqüência de jantares, pré-estréias e nightclubs, e depois
desmentir que houvesse
alguma coisa entre eles. Na maioria dos casos, não havia mesmo. Mas,
quando se tratava de Don
Ameche, nem o mais delirante publicista da Fox ousaria envolvêlo
romanticamente com uma
colega.

Don era casado com Honoré, sua namorada de infância, e formavam um dos
verdadeiros "casais
perfeitos" de Hollywood. Moravam em Encino, na casa que pertencera a Al
Jolson e Ruby Keeler
- mas qualquer associação com o mundo do espetáculo parava por aí. Os
Ameche eram
católicos praticantes, com padres e freiras nas duas famílias, e ele
costumava ser visitado no
estúdio por religiosos de batina e hábito. Don e Honoré construíram uma
capela em casa, que fora
abençoada pelo arcebispo de Los Angeles e onde se podiam rezar missas.
Orgulhavam-se
também de um retrato autografado do novo papa, Pio xii, na parede da
sala. Seus filhos, Donny,
de sete anos, e Ronny, de quatro, não sabiam qual era a profissão do pai,
porque não iam ao
cinema - só à igreja. Os garotos tinham uma voz estranhíssima para a
idade: muito grave, de
barítono, igual à de Ameche. Naquele ano, Donny fora levado ao cinema
pela primeira vez e era
um filme de seu pai. Quando este apareceu na tela, ouviu-se uma voz
grossa na platéia: "Papai, o
que você está fazendo aí?". Para se ver como a idéia de um caso entre Don
e Carmen era
remotíssima. Mais até do que se fosse entre Carmen e o monsenhor Fulton
Sheen - este, pelo
menos, era solteiro.

Em novembro, bem no início das filmagens de Uma noite no Rio, Don e
Honoré deram um jantar
em sua casa para Carmen - e para dona Maria, Aloysio, Yaconelli e
Gilberto Souto, que foram
com ela. Todos se espantaram ao ser apresentados aos filhos do casal.
Quando os meninos
abriram a boca para dizer "How do you do?", Carmen caiu na gargalhada -
achou que eles estavam de brincadeira.

285

Quando soube que era a voz normal deles, pediu
desculpas, mas comentou
baixinho com Aloysio: "Que coisa!".

Don Ameche tinha 32 anos em Uma noite no Rio. Era um especialista em
comédia ligeira e se
consagrara em Meia-noite (Mldnight, 1939), com Claudette Colbert. Mas seu
grande sucesso
viera em seguida, com A vida de Alexander Graham Bell (Alexander Graham
Bell), em que
inventava o telefone. Zanuck gostava de Ameche porque ele se adaptava a
todo tipo de papel e
ainda sabia cantar. E também porque aceitava, sem chiar, qualquer filme
em que fosse escalado.
Ameche viera ao mundo para ser amável e simpático. Até sua relação com a
imprensa era
especial: para ele, o jornalista podia ser um influente colunista do Neiv
York Times ou
correspondente de um hebdomadário mimeografado do Congo Belga, tanto
fazia. A regra em
todos os estúdios era a de que, no dia de receber a imprensa, o astro se
sentasse num sofá e os
jornalistas fossem se revezando na "entrevista", cerca de dez minutos
cada, com direito a foto dos
dois juntos - o que permitia ao repórter escrever que era "amigo" do
astro. Com Ameche, isso até
podia ser verdade. Se simpatizasse com o jornalista, queria saber mais
dele, de sua mulher e dos
filhos, e, quando o reencontrava, perguntava por todo mundo pelo nome.
Isso é que era amar o
próximo.

Pois Ameche, que não se perturbava com nada, indignou-se ao saber como
Carmen estava
subjugada a Lee Shubert e como este a obrigava a trabalhar em tantos
veículos ao mesmo tempo
- cinema, teatro e shows. Era uma escravidão branca, pior que a dos
estúdios, com a agravante
de que Shubert, como agente, abocanhava 50% do dinheiro de Carmen -
quando a comissão de
praxe era de 10%. Ameche pegou o telefone e pôs Carmen em contato com seu
próprio agente, o
experiente George Frank. Ameche pediu a Frank que examinasse todos os
contratos que Carmen
já assinara nos Estados Unidos. E ordenou a Carmen que nunca mais
assinasse nenhum papel, nem
mesmo o rol de roupa da lavanderia, sem antes mostrá-lo a Frank. (De
passagem, Don e Honoré
lhe perguntaram se já tinha também um médico de confiança em Hollywood.
Se não, eles lhe
recomendavam o seu: doutor Webster Marxer.)

Longe dali, em Nova York, contando os milhões em seu mundo de telões
pintados e sem saber o
que estava se cozinhando em Hollywood, Shubert não demorou a sentir os
efeitos da presença de
George Frank nas decisões de Carmen. Seu preposto Harry Kaufman escrevera
diversas cartas a
ela desde os primeiros dias de dezembro, informando-a de que deveria se
apresentar em Nova
York em janeiro próximo, assim que terminassem as filmagens de Uma noite
no Rio, para começar
os ensaios de Crazy house, a nova revista musical de Shubert. Mas, para
seu desconcerto, Carmen
o ignorara - até então nenhuma resposta. (Era George Frank ganhando
tempo.) "Não
entendemos seu silêncio, senhorita Miranda", escreveu Kaufman no dia 16 de
dezembro. "Já mandamos
várias cartas. Temos assuntos importantes a discutir [...]•"

No dia 18, cansado de esperar, Shubert tomou as rédeas e passou um longo
telegrama,


286

dessa vez para Aloysio de Oliveira, apenas comunicando-lhe
imperialmente o
destino de Carmen nos dois anos seguintes. Durante dez meses por ano, de
fevereiro a novembro,
ela faria teatro e nightclubs em Nova York ou onde ele determinasse; nos
dois meses restantes,
faria cinema em Hollywood. Em função disso, Shubert informava a Aloysio
que "cedera Carmen à
Fox" para mais dois filmes. O primeiro (que seria Week-end in Havana - no
Brasil, Aconteceu
em Havana), a começar no dia 8 de dezembro de 1941; o segundo (que seria
Spnngtime in the
Rockies - no Brasil, Minha secretária brasileira), na mesma data, só que
em 1942.

O valor da participação de Carmen no primeiro filme seria de 45 mil
dólares, divididos
igualmente entre ele (Shubert) e ela, 22 500 dólares para cada um - sendo
que, da parte dele, a
Fox já lhe adiantara 10 mil dólares pela opção. No segundo filme, ela
teria 60%, ou seja, 27 mil
dólares, sobrando 18 mil dólares para ele. Durante as filmagens, Carmen
poderia trabalhar em
nightclubs na área de Los Angeles, desde que o último show não terminasse
depois da meia-noite.
Pelo contrato, prosseguia Shubert, Carmen teria de estar em Hollywood no
dia 1 de dezembro de
cada ano - com o que ficava estabelecido que, na maior parte do ano, ela
continuaria a morar em
Nova York e trabalhando em teatro. De passagem, como quem espanta uma
mosca com um
peteleco, Shubert comunicou a Aloysio que acertara também seu contrato
com o Bando da Lua
nas mesmas bases vigentes - 2400 dólares por semana para os seis rapazes.
Os pagamentos de
terceiros continuariam a ser feitos às organizações Shubert, que os
repassariam a Carmen, e ela
faria o mesmo com o Bando. Sem mais etc.

Se deixado ao julgamento de Carmen e Aloysio, eles talvez vibrassem com
esses acordos.
Significavam trabalho o ano inteiro e, para Carmen, um faturamento
superior a 100 mil dólares por
ano - ou 2400 contos, dinheiro jamais visto por ela no Brasil. Mas agora
havia George Frank.
Ele sabia que, assim que Uma noite no Rio fosse lançado, Carmen se
tornaria uma das
"propriedades" mais disputadas dos Estados Unidos - acima das
possibilidades até de Shubert.
Não que ela já não fosse quente. Naquele momento, fotos, desenhos e
caricaturas de Carmen
saíam com regularidade em jornais e revistas; seus discos tocavam nos
jukeboxes de Nova York;
as jovens infestavam as ruas usando turbantes e plataformas "de Carmen
Miranda"; um esteticista
de Hollywood criara uma nova tonalidade de batom em sua homenagem; e
restaurantes de Los
Angeles ofereciam saladas e sobremesas com seu nome, principalmente se
feitas à base de frutas.
Para Frank, só era preciso ganhar um pouco mais de tempo - para abalar a
arrogância de
Shubert e esperar pelo inevitável lance que Darryl F. Zanuck iria fazer.

No começo das filmagens de Uma noite no Rio, quando Zanuck falou a Carmen
sobre prorrogar
seu contrato com a Fox e iniciar imediatamente outro filme, ela confessou
que ainda se sentia
insegura quanto à sua eficiência na tela.

287

Achava que deveria voltar à Broadway, onde sabia bem o que fazia. Mas
bastou-lhe ver os
primeiros rushes (as cenas filmadas durante o dia e projetadas na mesma
noite para se ter certeza
de que não precisariam ser refilmadas e assim os cenários podiam ser
desmontados). Eram as
cenas em que ela sapateava sobre as roupas de Don Ameche. Carmen e os
colegas não
conseguiam conter o riso. Ela era uma comediante natural e não sabia.

"Representei pensando que era uma cena dramática!", disse Carmen, com a
maior sinceridade -
mas chorando de tanto rir. E, com ela, a pequena platéia: Ameche, Zanuck,
Cummings e os
montadores.

Naquele momento, Carmen espanou as últimas dúvidas quanto ao seu futuro.
Ela pertencia a
Hollywood - aos 80 milhões de espectadores por semana nos Estados Unidos,
que faziam do
cinema uma das três indústrias mais poderosas da América; que mantinham
abertos 18 mil palácios
e poeiras no país; e que davam emprego a 280 mil pessoas, do magnata
Louis B. Mayer ao
lanterninha do Cine Bijou (30 mil apenas em Hollywood, incluindo
quatrocentos repórteres e
1200 fotógrafos). Aliás, Mayer, com seu salário anual de 1 milhão de
dólares, era considerado mais
poderoso que o governador da Califórnia. Em
1940, Hollywood pagaria 100 milhões de dólares em impostos ao governo
americano, e seu
produto interno bruto, dizia-se, era maior que o do Brasil.

Imagine ser um deus ou uma deusa dentro dessa engrenagem, alguém que
fizesse a roda girar e
produzir dinheiro, poder e felicidade. No Brasil, Carmen já fora
figurinha da bala Ruth e estampa
do sabonete Eucalol. Dentro em breve, seria figurinha de bala ou estampa
de sabonete em escala
mundial, em cada país onde tais brindes fossem distribuídos. E imagine
agora perder a divindade
dentro dessa mesma engrenagem. No começo daquele ano, a Associação dos
Exibidores
Independentes da América divulgara uma lista de grandes nomes do cinema
que, nos últimos anos,
tinham se tornado "veneno de bilheteria" - os ex-deuses que ninguém mais
estava comprando
ingressos para ver: Greta Garbo, Marlene Dietrich, Joan Crawford,
Katharine Hepburn, Mae West
e Fred Astaire.

Os exibidores, porta-vozes dos milhões de famintos fãs junto à indústria,
exigiam novos nomes,
rostos e personalidades. E, por sorte, a indústria não deixava de atendê-
los. Apenas entre a prata
feminina da casa, estavam surgindo Ann Sheridan, Verônica Lake, Betty
Grable. E, entre as
importações, a inglesa Vivien Leigh, a sueca Ingrid Bergman, a brasileira
Carmen Miranda.

A conselho de George Frank, Carmen continuou a ignorar os telegramas
desesperados de Shubert
conclamando-a a voltar para Nova York. Como não tivesse resposta, o
aflito Shubert chegou a
pensar que ela estivesse doente ou coisa pior. Em último recurso, passou
a mandar a
correspondência com cópia aos cuidados do consulado brasileiro em Los
Angeles. E, mesmo
assim, nada.


288

O engraçado era que Shubert continuava escrevendo para o endereço do La
Belle Tour, sem
saber que, desde o começo de janeiro, Carmen nem estava mais lá. Por
intermédio de George
Frank, tinham se mudado - ela, dona Maria e Odila (Mocotó já pegara o
navio de volta) - para
uma casa no Montemar Terrace, em Cheviot Hills, tão perto da Fox que ela
podia ir a pé para o
estúdio. O ato de alugar uma casa e instalar-se com a família era a prova
de que Carmen já não
tinha intenção de voltar tão cedo para Nova York.

No dia 16 de janeiro de 1941, Carmen finalmente quebrou o silêncio com
uma carta para Shubert
- ditada por ela a Aloysio e vertida por este para o inglês, mas com a
nítida supervisão de
George Frank. Nela, Carmen fazia-se de vítima para Shubert e, de maneira
vaga, deixava
entender que a situação havia mudado:

Prezado senhor Shubert. Tenho estado confusa porque não entendo direito as
[nossas] negociações e,
pelo que descobri, Louis [Aloysio] também não entende, portanto contratei
o senhor George Frank, de
Hollywood, como meu agente. Estou muito triste com essa coisa toda e
espero que o senhor Frank
seja capaz de entender e me ajudar. Não gostaria de ser injusta com o
senhor, mas preciso que os
outros também sejam justos comigo.

No dia 20, foi a vez de Shubert fingir ignorar essa carta. Em troca,
disparou outro telegrama
dizendo que Crazy house já estava com a produção adiantada; que eles
sofreriam "graves
prejuízos" se Carmen não seguisse imediatamente para Nova York; e que
telegrafasse informando
dia e hora da chegada à Grand Central Station. De novo, em troca, o
silêncio de Carmen. Era uma
guerra de nervos. Em 3 de fevereiro, quando ficou evidente que Carmen não
voltaria para Nova
York a tempo de atender às expectativas da empresa, William Klein, um dos
advogados de
Shubert, admitiu em memorando ao chefe que teriam de adiar Crazy house e
que "era besteira
mandar qualquer coisa para [Miranda] assinar, porque ela não vai assinar
nada". E aconselhou-o
a esperar para ver o que ela iria propor.

A proposta (por intermédio de Frank) finalmente chegou, e era de Zanuck:
uma prorrogação do
contrato de Carmen com a Fox, já sob o novo valor de 45 mil dólares,
descontados os 10 mil que
adiantara a Shubert, e antecipando para julho e agosto a produção de
Aconteceu em Havana.

A princípio, Shubert recebeu mal a idéia. Mas, exceto pelo orgulho ferido
(por ter de curvar-se
aos caprichos de uma subalterna), acabou se deixando convencer por Klein
e Kaufman. Eles o
fizeram ver o lado bom da proposta de Zanuck. Crazy house passaria para o
fim do ano - e, ao
contrário do que diziam nas ameaças que faziam a Carmen, não haveria
"grandes prejuízos" nisso;
entrementes, com Serenata tropical e Uma noite no Rio já exibidos, e
talvez com Aconteceu em
Havana em cartaz, Carmen voltaria maior do que nunca à

289

Broadway e o espetáculo ganharia outra dimensão. No fim das contas, o
atrevimento de Carmen
viria a beneficiá-los.

Assim são os melhores negócios: quando as duas partes ficam satisfeitas e
uma delas não percebe
que a outra vai lhe passar uma rasteira. Shubert parecia não suspeitar
que George Frank, com a
leveza de quem bate uma carteira, estava se preparando para tirar Carmen
de suas garras.

Aurora e Gabriel desembarcaram em Nova York em meados de fevereiro de
1941, vindos pelo
Uruguay. Ou apenas Aurora desembarcou, porque o New York Post e o New
York World-
Telegram, que a receberam com a mesma manchete - "CHEGOU MIRANDA N. 2" -,
não
fizeram nenhuma referência a um marido. Eles a fotografaram radiante e de
pernas cruzadas sobre
as malas e, ao lhe perguntarem se tinha namorado, a resposta foi: "Não.
Primeiro, tenho de cuidar
de minha carreira" - o que, dependendo do ponto de vista, não era uma
mentira.

No futuro, Aurora tentaria passar a impressão de que fora para os Estados
Unidos para gozar dois
meses de lua-de-mel, e que sua carreira por lá tinha sido um produto do
acaso. Mas os
documentos mostram que não foi assim. O nome de Aurora já constava das
cartas enviadas pelo
pessoal de Shubert para Carmen em dezembro de 1940. Na do dia 16, por
exemplo, em que se
queixa de que suas cartas não estavam sendo respondidas, Harry Kaufman,
funcionário de
Shubert, diz a Carmen: "Temos assuntos importantes a discutir com você,
inclusive saber o
endereço de sua irmã, já que temos um papel para ela". (O papel seria num
musical intitulado
Follies, que Shubert não chegou a produzir.) É possível que, ansioso para
falar com Carmen,
Kaufman estivesse usando Aurora como isca. De que importa? Significava
que, talvez em outubro,
Carmen lhes falara de sua irmã, de como ela era um talento, e de como
estava vindo por conta
própria para os Estados Unidos. Outra prova de que Aurora vinha para
ficar é a de que, ao descer
do navio, ficou de estalo seis anos mais nova. Para todos os efeitos,
tinha agora vinte anos -
quando estava a poucos meses de completar 26.

Com ou sem o apoio de Shubert, Aurora e Gabriel passaram alguns dias em
Nova York e partiram
para a viagem de quase cinco dias até Los Angeles, com troca de trem e de
empresas em Chicago.
No dia 24 de fevereiro Carmen foi recebê-los em Pasadena, como a Fox
fizera com ela e como ela
achava que era chique fazer. A própria Carmen conduziu-os em sua furreca
pela estrada dos
poços de petróleo e dos laranjais.

Graças ao prestígio da irmã, Aurora mal chegou e foi logo recebendo uma
proposta: a de um teste
na MGM para uma participação em Lourinha do Panamá (Panamá hattie), filme
a ser rodado com
Red Skelton e Ann Sothern, baseado no musical Panamá hattie, de Cole
Porter, ainda em cartaz na
Broadway.


290

Parecia atraente, mas, ao saber que o salário de Aurora no filme seria de cem
dólares por semana, Carmen
se ofendeu e decretou nada feito. (Lena Horne, já sob contrato com a MGM,
ficaria com o papel,
sem precisar de teste.)

Para Carmen, a proposta "não estava à altura do cartaz de Aurora no Rio e
em Buenos Aires". E
mesmo porque achava que, nos Estados Unidos, sua irmã deveria começar
pelo teatro e pelos
nightclubs em Nova York - como ela -, e era para lá que pretendia levá-la
quando fosse fazer
Crazy house para Shubert. Enquanto isso, Aurora a acompanharia
diariamente até a Fox, quando
Carmen começasse a filmar Aconteceu em Havana, e aprenderia algum inglês
em casa com
Yaconelli.

"No ano que vem, Aurora será disputada em Hollywood", disse Carmen para o
World-Telegram.
"Até lá - cem dólares por semana? Pu!"

Acontece que os estúdios, nenhum deles louco pela "política da boa
vizinhança", mas ansiosos
para ter já a sua própria Carmen Miranda, talvez não quisessem esperar
tanto - como a Warner.
(Podia ser que Aurora também não tivesse muita paciência.) Com o sim de
Carmen a contragosto,
Aurora fez um teste na Warner, vestida de baiana e acompanhada pelo Bando
da Lua, para um
filme que se chamaria Carnival in Rio. Aurora só impôs uma condição, caso
viesse a fazer o filme:
não queria usar o sobrenome Miranda, para não parecer que estava se
prevalecendo da fama da
irmã. Queria ser apenas Aurora e vencer pelos próprios méritos. Mas,
talvez por não estar pronta
para Hollywood - ou ainda não poder dispensar o sobrenome Miranda -, foi
reprovada no
teste. O filme nunca foi feito.

Aurora deixara no Brasil uma carreira quase em ponto morto. Depois de
tantos anos de sucesso na
Odeon, mudara-se para a Victor em fins de 1938, mas, por algum motivo, o
selo do cachorrinho
nunca lhe despertara o mesmo entusiasmo que sua gravadora de origem.
Gravou pouquíssimo na
Victor: quatro músicas nos últimos meses de 1938, doze em todo o ano de
1939, e apenas quatro
em todo o ano de 1940. Não por falta de material. Ao contrário - os
melhores compositores
brasileiros continuavam cumulando-a de canções, e ela gravou algumas
preciosidades nesse
período: a marchinha "Barbeiro de Sevilha", de Alberto Ribeiro; o bonito
samba "Pau que nasce
torto", de Claudionor Cruz; e o dengoso samba-choro "Paulo, Paulo", de
Gadé, cantando em
dupla com Grande Othelo.

A culpa, no entanto, podia não ser da gravadora, e talvez não houvesse
nenhum mistério no fato
de ela ter passado a gravar menos. Aurora se dedicara a trabalhar pouco
ou nada porque
descobrira coisa melhor: o namoro, o noivado, o casamento. Em meados de
1939, assim que
decidiu se casar com Gabriel Richaid, sua produção começou a decrescer -
e não se esperava
que, em
1940, ano de seu casamento, ela fosse se matar de trabalhar. Mas, atados
os laços indissolúveis,
Aurora começou a vibrar com a idéia de uma carreira americana. A partir
daí, ir para os Estados
Unidos tornara-se somente "uma questão de tempo"

291

- como estava em todos os jornais e revistas brasileiros
que falaram a seu respeito
no segundo semestre daquele ano.

Em 1940, com o triunfo de Carmen no eixo Broadway-Hollywood, foi a vez de
os produtores
americanos, invejosos da sorte de Shubert, virem ao Rio para assuntar a
praça e tentar achar
alguém parecido. Um deles foi Adolph Zukor, o veterano chefão da
Paramount. Em três ou quatro
noites, Zukor fez a ronda dos cassinos. A melhor coisa que viu foi a
cantora Heloisa Helena, que,
antes disso, já dizia que iria para Hollywood "à hora que quisesse".
Heloisa apresentou-se para
Zukor no grill do Copacabana. Mas o velhinho fez apenas os elogios de
praxe, despediu-se e
tomou o Uruguay de volta para Nova York.

Quem teve mais sorte foi - surpresa! - Alzirinha Camargo, que partiu para
Nova York com o
dançarino e bandleader peruano Ciro Rimac, a fim de se apresentarem na
boate cubana La
Conga. Alzirinha acabou se casando com Rimac e faria carreira nos shows
da cadeia de cinemas
da MGM, com um repertório parecido com o de Carmen e sem dispensar as
baianas. E, sempre em
1940, a carioca Leonora Amar zarpou para Hollywood. Bateu à porta dos
estúdios e não
conseguiu nada. Mas seguiu viagem até o México, onde encontrou a
felicidade: trabalhou num
filme de Cantinflas, tornou-se uma poderosa produtora de cinema e não
deixou por menos -
casou-se com o presidente mexicano.

Em compensação, inúmeros "empresários" de gomalina no cabelo e bigodinho
frito, vindos de
toda parte, fizeram a festa entre as coristas do teatro de revista
carioca. Contratadas para imitar
Carmen em Nova York, várias dessas moças embarcaram. Mas a maioria nunca
passou dos
cabarés baratos de Havana ou da Cidade do México - e não exatamente para
cantar ou dançar.

Nem todas as cantoras e dançarinas "latinas" se limitavam a buscar
inspiração no sucesso de
Carmen. Algumas iam perturbá-la diretamente - como as rumbeiras de todas
as nacionalidades
que, de posse de seu endereço em Los Angeles, passaram a tocar sua
campainha em Cheviot
Hills, intimando-a a ajudá-las. E outras, simplesmente, não se
conformavam com seu sucesso, e
voltavam-se contra ela. Uma dessas era Lupe Velez, que, antevendo o
próprio declínio, passou a
atacar Carmen, acusando-a de usar turbantes por ser careca - logo Carmen,
que tinha quilos,
metros de cabelo. E logo Lupe, que Carmen tanto defendera quando ela
fracassara no Cassino
Atlântico, no Rio, em 1935.

Se se preocupasse com Lupe, Carmen deveria convidá-la de vez em quando
para assistir à sua
complexa operação de se vestir e aplicar sua coroa de frutas. Para armar
o turbante na cabeça,
Carmen, primeiro, prendia os lados de seu cabelo com grampos. Depois,
dobrava-se para a frente,
deixando que o cabelo, interminável, lhe caísse à altura dos joelhos. Em
seguida, de uma
chicotada, trazia-o todo de volta e o enrolava numa espécie de coque,
também preso por
grampos. Esse coque, firmemente amarrado, ia para um compartimento
secreto" no oco do capuz
ou touca do turbante, ao qual era preso por ainda mais grampos.


292

Na verdade, era o cabelo que segurava o turbante piramidal
- que podia então
crescer à vontade, para cima e para os lados, acolhendo toda espécie de
frutas, folhas, penas,
plumas, o que se quisesse pôr em cima. O turbante perfeito dependia do
cabelo, mas tinha de ser
como uma luva: sem um fio de cabelo à mostra.

Meados de janeiro de 1941, fim das filmagens de Uma noite no Rio. Quando
Leon Shamroy
anunciou que aquela tinha sido a última tomada, Carmen tirou o colar de
turquesas e águas-
marinhas que estava usando e deu uma pedra para cada membro da equipe. Os
primeiros a
recebê-las olharam intrigados para o presente.

"Eu sei que é um presente esquisito para um rapaz", disse Carmen. "Mas
todos vocês têm
namorada, yesl"

A prodigalidade com que Carmen comprava jóias para si própria e as
presenteava, como quem
jogasse milho aos pombos, era só uma amostra de sua incrível ingenuidade
contábil. Sem
desconfiar de que estava vivendo numa realidade diferente, continuava a
levar nos Estados
Unidos a mesma e airosa vida financeira que tinha por aqui. No Brasil,
sua relação com bancos
era quase inexistente: ganhava muito dinheiro com cassino, rádio, discos,
filmes, shows e
excursões, mas nunca quisera saber de poupanças ou de investimentos a
longo prazo. O dinheiro
era para ser gasto em perfumes, jóias, roupas, sapatos, tecidos (quando
voltava de Buenos Aires,
trazia no navio uma fortuna em cortes franceses), móveis, carros e - pelo
menos isso - na
quitação de sua casa na Urca. Ou era para ser distribuído entre a mãe, os
irmãos e os muitos
amigos. Sua generosidade era lendária e, como sói, não faltava quem
abusasse.

Nos Estados Unidos, Carmen continuara a mesma: o dinheiro servia para
encomendar sapatos sob
medida (ela própria admitira ter levado 150 pares de plataformas para
Hollywood), comprar do
estúdio as baianas criadas por Travis Banton para Uma noite no Rio (a uma
média de 2 mil
dólares cada uma), e também para ser mandado, em espécie ou em presentes,
não só para os
parentes no Rio, mas para as mulheres e os filhos dos compositores de
quem ela dependera nos
velhos tempos. (Um dos que já ajudara a distância, numa história de
doença, fora Josué de
Barros.) E havia outro hábito perigoso que ela levara do Brasil - e logo
para a terra onde isso
era considerado imperdoável: não declarar o imposto de renda.

Carmen chegara aos Estados Unidos em maio de 1939. Teria, portanto, sete
meses de rendimentos
a declarar naquele ano - o que ela não fez - e o ano integral de 1940,
apesar dos três meses
passados no Brasil. Quando os advogados de Shubert se deram conta de sua
omissão e a
obrigaram a declarar o imposto, Carmen já não tinha como comprovar muitas
das despesas que
fizera e que podiam resultar em abatimento do imposto a pagar (a fortuna
que aplicara em roupas,

293

entre outras, era uma imposição profissional). Como convencer os
agentes americanos de
que, no Brasil, ela e muita gente boa simplesmente não tinham de se
preocupar com essas
mesquinharias tipo impostos? Em 1940, Carmen teve de pagar 10 500 dólares
de impostos
referentes a seus ganhos em 1939, e ainda precisou desembolsar outros
quinhentos dólares para a
"defesa americana" - embora os Estados Unidos não estivessem na guerra e
a esmagadora
maioria dos americanos não soubesse que havia uma guerra em curso na
Europa.

Nos dois anos seguintes, a complicação seria sua dupla condição de
residente em Nova York e na
Califórnia. (Carmen assinara documentos que a mostravam como residente em
ambos os estados,
obrigando-a a pagar esses impostos locais em dobro, sem precisar.) Os
advogados de Shubert,
depois os da Fox, e o próprio George Frank se desdobrariam para resolver
tais pendengas, muitas
vezes argumentando, e com razão, que Carmen "não sabia o que estava
assinando". As questões
acabariam sendo resolvidas, mas, por muito tempo, sempre sobraria algum
imposto a pagar.

O que Carmen fazia sem se queixar, desde que não a aborrecessem com
detalhes. A vida era um
chica chica boom chie, fosse lá o que isso quisesse dizer.


Capítulo 17


1941

Paixões fugidias



Centenas de pares de olhos convergiram para um turbante de tecido
laminado verde e lilás,
trançado em forma de coroa, e para um bolero de brocado, todo rebordado
de miçangas e paetês.
Era Carmen adentrando o salão do Biltmore Hotel de Los Angeles na noite
de 27 de fevereiro.
Apenas por chegar, já roubou a festa de entrega do Oscar de 1941, e no
cenário mais adequado
para isso.

Fora em um jantar nesse mesmo hotel da South Oliver Street que, quatorze
anos antes, em 1927,
Louis B. Mayer, Jack Warner, o diretor King Vidor, o casal Pickford-
Fairbanks e outros tiveram a
idéia de fundar uma "academia de artes e ciências cinematográficas", para
distribuir prêmios entre
eles. No mesmo instante, Cedric Gibbons, diretor de arte da MGM,
rabiscara num guardanapo a
figura de um homenzinho careca e pelado para servir de modelo à estatueta
que, anos depois,
alguém (Bette Davis, sabia?) chamaria de Oscar. A "academia" nasceu
pretensiosa, mas a
cerimônia de entrega dos prêmios começou sóbria e assim ficaria por muito
tempo. Resumia-se a
um jantar e à chamada dos vencedores ao palco - sem a entrada triunfal
das estrelas, a passarela
de moda ou o desfile de extravagâncias. Em 1941, desafiando os mognos e
veludos do Biltmore,
Carmen foi, sem querer, talvez a primeira a se vestir e a chegar com
espalhafato para o Oscar.

Carmen não era o único brasileiro presente ao Oscar naquela noite.
Chegado a Hollywood
poucas horas antes, Jorginho Guinle fora convidado à cerimônia por seu
amigo Jock Whitney, que
lhe perguntara se podia ser o acompanhante de uma convidada que estava
sem par. Jorginho
disse: "Claro", e, poucas horas depois, entrava de braço com a Melanie
Hamilton de ...E o vento
levou - Olivia de Havilland.

Como todo o pessoal da Fox, Carmen fora torcer por Vinhas da ira (Grapes
of wrath). Era o
grande trunfo do estúdio, disputando três potentes indicações: melhor
filme, melhor ator (Henry
Fonda) e melhor diretor (John Ford). Mas Carmen e os colegas se
frustraram porque os
vencedores foram Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca), de Alfred
Hitchcock, como melhor
filme, e James Stewart, em Núpcias de escândalo (The Philadelphia story),
como melhor ator. O
único consolo foi que Ford venceu Hitchcock no quesito diretor - mas era

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como se não valesse, porque Ford ganhava um Oscar ano sim, ano não, e
reagia a cada vitória com
um "Grnfff!", como se não fizessem mais que a obrigação ao premiá-lo.
Carmen torcera também
para os técnicos de Serenata tropical, Leon Shamroy e Ray Rennahan,
indicados para o Oscar de
fotografia em cores, e Richard Day e Joseph C. Wright, para o de direção
de arte em cores - mas
todos perderam para seus colegas do extraordinário O ladrão de Bagdá, de
Alexander Korda. E,
antes ainda, torcera por "Down Argentine way", a canção-título de
Serenata tropical, por Harry
Warren e Mack Gordon, justamente derrotada por "When you wish upon a
star", de Pinóquio
(Pmocchio), por Leigh Harline e Ned Washington.

Assim como acontecera em Nova York, Carmen estava sendo exibida como
novidade em Los
Angeles. As duas cidades eram muito diferentes. Em Manhattan, as festas
aconteciam em qualquer
dia da semana e não tinham hora para terminar. As conversas iam de ópera
e bale, à guerra na
Europa, e não era raro que um homem e uma mulher sumissem em meio ao
ágape, deixando os
respectivos cônjuges no ora veja. Ninguém estava interessado na vida de
ninguém, e nenhum
pecadilho sobrevivia por mais de quinze minutos como tema de fofoca.

As festas de Hollywood eram sempre aos domingos - o único dia livre -, e
a arte da
conversação, como cultivada em outras partes do globo, não existia. O
único assunto era a
"indústria" (cinematográfica), e muitos convidados nunca tinham ouvido
falar em Winston
Churchill. Todo mundo se conhecia. Quando os homens iam aos charutos, as
mulheres
dedicavam-se à vida sexual de alguma atriz. Flertes aconteciam nessas
reuniões, mas muito
dissimulados. Bebia-se aos potes. Às vezes, alguém cantava "My melancholy
baby" ou fazia um
esquete de humor, ou as duas coisas ao mesmo tempo. No fim, apagavam-se
as luzes, descia uma
tela e se assistia a um filme. Às onze da noite, todos já tinham ido
embora, porque iriam madrugar
no estúdio no dia seguinte. Exatamente por aquela época - dezembro de
1940 -, o homem que
melhor descrevera o vazio de tais festas acabara de morrer de infarto,
ali mesmo, em Hollywood,
solidamente esquecido: F. Scott Fitzgerald.

Como toda província, Hollywood era uma sociedade de castas, em que o povo
não existia. As
festas mais suntuosas eram dadas por Jack Warner, cujos convidados
incluíam os grandes nomes
como Clark Gable, Gary Cooper e Cary Grant, e por Samuel Goldwyn, em cuja
casa se jogava
pôquer a cacifes siderais - o próprio Sam Goldwyn já perdera e já ganhara
150 mil dólares de
uma só tacada, em dias alternados. Era a alta sociedade, a "tradicional",
e, dentro dessa casta,
alguns, como Cecil B. DeMille e Adolph Zukor, eram ainda mais
"tradicionais" por terem sido os
primeiros a chegar a Hollywood, em 1915. Mas o passado, ali, só ia até o
último filme de cada um
- e era bom que esse filme tivesse sido um sucesso. Fazia-se vista grossa
ao nouveau richisme de
astros recém-surgidos, que tomavam champanhe no café-da-manhã, mandavam


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fabricar carros sob medida, ensaboavam-se em banheiras de ouro e comiam
caviar de quinze em
quinze minutos, servidos por mordomos de luvas - quando todos sabiam que,
até bem pouco,
aqueles rapazes estavam dirigindo caminhões para sobreviver, passavam uma
semana sem banho
e comiam em pés-sujos à beira da estrada. Ou que, com todo o seu charme e
elegância, alguns,
como George Raft, mal soubessem ler.

Mais interessantes eram as festas nas casas de Darryl F. Zanuck e de
David O. Selznick. Do
mesmo modo, só se tratava de cinema, mas alguns habitues eram diretores e
roteiristas que
adoravam falar mal de certos produtores pseudoliberais (fingindo
esquecer-se de que Zanuck e
Selznick eram exatamente isso). Outro que freqüentava Zanuck era Howard
Hughes, 37 anos,
surdo de um ouvido, podre de rico e excêntrico - porque insistia em se
vestir como pobre.
Excêntricos eram bem-vindos nessas reuniões. Uma novidade do momento era
Benjamin "Bugsy"
Siegel - 35 anos, moreno, olhos azuis -, que chegara a Los Angeles em
1939, com uma verba
secreta de 500 mil dólares para implantar um braço da máfia judaica na
Costa Oeste. "Bugsy" fora
apresentado ao pessoal do cinema por George Raft, seu amigo de infância
no Brooklyn, em Nova
York, e se tornara presença assídua nos coquetéis de Hollywood. Entre uma
e outra festa,
dedicava-se ao controle das apostas em todos os hipódromos da Califórnia,
à distribuição para os
atacadistas da heroína que entrava pela fronteira mexicana e à venda de
armas para Mussolini.
Mas, para quase todo mundo do cinema, "Bugsy" era só um rapaz bonito e
vagamente ilegal.

A presença de uma pessoa nova, como "Bugsy" - ou Carmen -, ajudava a
sacudir o marasmo
social. Jorginho Guinle, já residente, tinha acesso a todos os círculos.
Ele levou Carmen a um ou
outro cocktail-party das diversas turmas. (O próprio Jorginho era muito
respeitado, pela
inteligência, pelo charme e por pensarem que era o dono do Copacabana
Palace - na verdade,
era apenas sobrinho do dono, mas com carta-branca para convidar quem ele
quisesse para o
hotel.) No começo, Carmen ia muito à casa de Zanuck. Assim que seu inglês
melhorou e ela
acumulou um respeitável vocabulário de nomes feios, juntou-se às campeãs
dos palavrões em
Hollywood, e que também a freqüentavam: Carole Lombard, Ann Sheridan e
Vivien Leigh.

A essas reuniões compareciam agentes, publicistas e repórteres. Quando
uma atriz era recém-
chegada e não se sabiam direito seus dados básicos, o estúdio se
encarregava de distribuir sua
"biografia". A de Carmen informava que, em Hollywood, ela morava com a
mãe. E, para que não
houvesse dúvida, dona Maria era citada, contando (em inglês de pé-
quebrado) como ficara ao
lado de Carmen, no Rio, quando ela quisera cantar nos cassinos "contra a
vontade do pai". No
texto, escrito em inglês fonético, dona Maria dizia:

"When one girlfrom nizefamüy like stage, ees ali right. Before, no. Now
ees different. Theez casinos pay beeg
money for arteests. If Carmen make beeg money, why not?"

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A redação desse texto era de uma grosseira liberdade promocional. O pai
de Carmen nunca se
opusera à sua carreira - ao contrário, assinara o primeiro contrato da
filha como profissional e
vivia viajando com ela. E a querida dona Maria jamais poderia ter dito
aquilo - muito menos,
daquele jeito -, porque, em 1940, falava exclusivamente português, com
generoso sotaque luso,
e nem uma palavra em inglês, de pé-quebrado ou não.

Tanto que, quando ia ao mercadinho de Cheviot Hills para comprar
mantimentos, dona Maria
dizia para o balconista americano:

"A-mêi-joas."

Ou:

"Bel-dro-egas."

Bem devagar, escandindo as sílabas, para que o rapaz a entendesse.

No dia 5 de janeiro, Carmen e o Bando da Lua foram ao estúdio da Decca na
Costa Oeste e
gravaram cinco faixas: o samba-rumba "Chica chica boom chie" e a batucada
"Cai, cai", ambos
da trilha sonora de Uma noite no Rio, o samba "Alô... alô?...", a
embolada "Bambalê" e a
marchinha "Arca de Noé", ausentes da trilha, mas, de alguma forma, dentro
do espírito do filme
(Carmen podia ter cantado qualquer uma delas na seqüência da festa na
casa do barão). "Alô...
alô?..." era uma regravação do seu próprio sucesso de 1933, com o Bando
da Lua no lugar de
Mário Reis - o vocal do conjunto não se comparava à graça de Mário Reis,
mas Carmen está
melhor ainda nessa versão. "Bambalê" era uma peça para violão do
compositor, gramático e
poeta Francisco Eugênio Brant Horta (1876-1959), talvez recolhida do
folclore (e da qual
"Bambu, bambu" já era uma decorrência). E "Arca de Noé", de Nássara e Sá
Roris, também era
uma regravação, mas de um sucesso de Almirante pela Odeon no Carnaval de
1938.

Por que essas regravações e peças do folclore no novo repertório de
Carmen? Porque era o único
jeito de fugir à marcação da Ascap, a sociedade arrecadadora americana,
alertada por suas
afiliadas no Brasil de que havia uma cantora chamada Carmen Miranda
decidida a gravar música
brasileira nos Estados Unidos. Era preciso esfolá-la em valores acima dos
normais se ela insistisse
em levar adiante suas solertes intenções - e não seria surpresa se se
detectasse o dedo de
Wallace Downey nessa súbita atenção da Ascap. Por isso, Carmen passou a
depender das
sugestões de Aloysio, em Los Angeles, e de Almirante, no Rio, para
conseguir material fora do
alcance das sociedades. Não que a Decca não pudesse bancar aquelas
quantias - porque, com
os filmes em cartaz, Carmen tinha uma boa chance de começar a pegar como
cantora e de seus
discos passarem a ser tocados nos jukeboxes em todo o país, não apenas em
Nova York. Mas a
Decca não faria nada por Carmen (ou por cantor nenhum) enquanto seus
discos não tocassem
espontaneamente, dia e noite, nas vitrolas automáticas.


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O pessoal de Shubert em Nova York estava satisfeito com o desempenho de
George Frank em
Hollywood. No dia 3 de março, Frank comunicara a William Klein que
vendera seis
apresentações de Carmen no programa de Charlie McCarthy, na NBC,
patrocinado pelo café
Chase & Sanborn, a 1500 dólares cada uma. Era uma das maiores audiências
do rádio americano
- média de 38 pontos no nobilérrimo horário das oito às nove da noite de
domingo -, e Carmen
já iria ao ar, ao vivo, no dia 16.

Charlie McCarthy era um boneco de madeira manipulado pelo ventríloquo
Edgar Bergen e uma
das maiores celebridades dos Estados Unidos - o boneco, não o
ventríloquo. Aos olhos de hoje,
pode parecer maluco que um número de ventriloquia fosse um sucesso no
rádio, mas, para os
americanos de
1941, aquilo era a coisa mais natural do mundo. A figura de Charlie era
nacionalmente conhecida
em filmes, revistas e brinquedos. (Muitos anos depois, ao se tornar uma
atriz famosa, a filha de
Edgar Bergen, Candice, diria que, na infância, fora criada como a irmã
caçula do boneco - e que
este tinha todos os privilégios por ser o ganha-pão da família.) Um dos
convidados fixos do
programa de Charlie era o comediante W. C. Fields, e os dois trocavam os
maiores insultos pelo
ar: o boneco fazia piadas com o nariz de Fields, monstruosamente inchado
e vermelho de gim
Beefeater, e Fields retaliava ameaçando Charlie com cupim, isqueiros e
pica-paus. As frases de
efeito saíam de um para o outro em alta velocidade, e isso era a prova de
que, no primeiro
semestre de 1941, o inglês de Carmen já era suficiente para que ela
participasse daquele tiroteio
verbal. É verdade que os diálogos eram escritos e ensaiados, mas Fields
era um improvisador
compulsivo, e a todo momento soltava uma frase que não estava no roteiro,
obrigando Bergen (e
Carmen) a se virar.

No mesmo telegrama, Frank informou a Klein que também acertara para
Carmen e o Bando da
Lua várias temporadas em nightclubs da Costa Oeste, ao cachê - recorde
para ela - de 6 mil
dólares por semana, começando pelo Golden Gate Theatre, em São Francisco,
no dia 26. E
aproveitava para comunicar que, antes disso, no dia 24, Carmen imprimiria
seus sapatos, mãos e
assinatura no cimento fresco do Chinese Theatre, o cinema em forma de
pagode chinês construído
por Sid Grauman no Hollywood Boulevard, em Los Angeles. Era uma honra com
que muitos
veteranos de Hollywood nem sequer sonhavam - e Carmen estava
conquistando-a com apenas
dois filmes, sendo que o segundo ainda nem estreara.

Mas, antes que Klein se entusiasmasse demais, Frank juntou à
correspondência outra carta,
também de 3 de março - esta em legalês castiço, assinada pelo escritório
de advocacia Swarts &
Tannembaum. Nela, os advogados propunham (aliás, impunham) a Shubert uma
nova divisão de
valores referente aos compromissos de Carmen, exceto os espetáculos
produzidos por ele. A
contar daquela data, e valendo até 31 de maio de 1942, Carmen passaria a
receber 70% de todos
os pagamentos, cabendo os 30% restantes a Shubert.

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A partir de 1 de junho de 1942, as proporções seriam de 75% para Carmen e 25%
para Shubert. Os
advogados davam a entender que Shubert não tinha apoio legal nos
contratos anteriores e que
seria melhor que aceitasse os novos termos, sob pena de perder Carmen de
vez. Para nenhuma
surpresa deles, Shubert aceitou - talvez também porque, naquela
conjuntura, 30% ou 25% de
Carmen ainda fossem um grande negócio.

Mas, até para os leigos, era o prenúncio de que seria difícil para ele
segurá-la depois de 1942.
Carmen não era mais a brasileirinha inocente e eternamente grata ao senhor
Shubert por tudo que lhe
caíra do céu desde aquele jantar no Normandie, e que recorria a ele até
para ir brigar com o
síndico do seu prédio. Ao lado de Carmen havia agora advogados tão
implacáveis quanto os do
próprio Shubert - e, como estes, capazes de ler contratos, inclusive as
traiçoeiras cláusulas em
letrinha miúda.

Carmen finalmente se punha sob a proteção de profissionais. Com essa
retaguarda, podia se
espalhar pelo território com segurança. Mas somente na noite do dia 24,
quando o pajem filipino
de Sid Grauman a ajudou a imprimir seus pés e suas mãos no quadrado de
cimento do Chinese
Theatre, é que Carmen teve a certeza de estar firmemente plantada na
América.

Uma noite no Rio estreou no Roxy, em Nova York, no dia 8 de março de
1941. Carmen era o terceiro nome do elenco, atrás de Alice Faye e Don
Ameche, os três acima do
título. Meses antes, alguém na Fox levantara a hipótese de se fazer a
estréia mundial do filme no
Rio, com a presença dos três principais (Don se hospedaria no Copacabana
Palace e Alice ficaria
com Carmen na Urca). Mas a idéia pode não ter passado de um ilusório
gesto de "boa vizinhança"
que a Fox nunca considerou a sério - porque jamais, até então, um filme
americano tivera sua
estréia de gala fora dos Estados Unidos.

Enquanto os americanos já estavam assistindo a Uma noite no Rio, o Brasil
- desde então,
sempre com um filme de atraso - ainda teria de esperar até o começo de
maio para a estréia de
Serenata tropical, no Odeon. E, quando isso aconteceu, os críticos
reagiram com a mesma sem-
cerimônia que dispensavam aos alô-alôs de Wallace Downey - inclusive nas
comparações
frutíferas. Serenata tropical foi classificado como um "abacaxi dourado"
e, pelo pecado de ser
colorido, "um autêntico cretinocolor". (Por um preconceito que ainda
duraria muitos anos,
achava-se que nenhum filme em cores podia ser "sério".) No Café Nice,
houve também quem não
aceitasse aquela nova Carmen, muito mais colorida e exuberante do que a
que saíra daqui. No
meio de uma discussão a respeito, alguns dos freqüentadores a tacharam de
"ridícula". Sylvio
Caldas e o ator Oswaldo Louzada saltaram em sua defesa e, derrubando
cadeiras, partiram sobre
os infiéis. Por pouco não saiu briga na assembléia nacional do samba.

Se havia quem pudesse queixar-se de Carmen era Assis Valente,


300

que ela deixara quase órfão no Rio. Por aquela mesma época de 1941, no meio da
tarde de 13 de maio,
Assis tomou um táxi no largo da Carioca e mandou tocar para o Corcovado.
No caminho, parou
numa bomba de gasolina no Silvestre e ligou ele mesmo para um distrito
policial, avisando ter
"ouvido dizer" que o sambista Assis Valente ia atirar-se lá de cima. E,
de fato, às cinco da tarde,
com uma pequena multidão como platéia, além dos bombeiros, da assistência
e da polícia -
todos tentando demovê-lo -, Assis, chorando, jogou-se da amurada do
Corcovado, a setecentos
metros de altura.

Por sorte, jogou-se para o lado da Gávea, muito mais verde e menos
escarpado. Caiu setenta
metros, mas a vegetação e a copa das árvores foram amenizando sua queda.
Mesmo assim,
poderia ter morrido, e a prova disso é que os bombeiros levaram três
horas para resgatá-lo -
quando finalmente o trouxeram, já era noite na mata. Assis quebrara
apenas duas costelas e sofrera
alguns arranhões. Piores, sem dúvida, seriam os arranhões na alma e o
coração partido que o
tinham levado àquele tresloucado gesto - diriam os jornais no dia
seguinte.

Por que Assis fizera isso? Na semana anterior, ele saíra de sua casa na
rua Amaro Cavalcanti, no
Méier, abandonando a mulher, Nadyle, com quem se casara um ano antes, e
sua filhinha, Nara
Nadyle, de apenas dois meses. Mudara-se para uma pensão no Rio Comprido e
falara a muita
gente que estava para fazer "algo drástico". Se seu casamento fora uma
surpresa para todo mundo,
a paternidade parecia um indício de que Assis poderia levar uma vida
estável, menos sujeita às
euforias e depressões que o caracterizavam. Talvez servisse também para
calar os rumores sobre
sua vida sexual. Então, por que saíra de casa? E o que seria "algo
drástico"? Podia ser qualquer
coisa, menos suicídio - porque Assis estava com um big sucesso na praça:
"Brasil pandeiro",
com os Anjos do Inferno.

Os últimos dois anos não tinham sido fáceis para ele. Assis, que já era
um homem assolado por
tormentas pessoais, sentira-se roubado com a partida de Carmen para os
Estados Unidos.
Enquanto Carmen estava aqui, ela era a sua cantora - ouvia seus sambas e
marchinhas em
primeira mão, escolhia os que queria gravar e os sucessos se
multiplicavam, para ela e para ele.
Mas Carmen se fora de vez, e Assis, ao levar seus sambas para outras
cantoras, costumava ouvir
frases como esta, carregadas de despeito e ironia:

"Por que não dá para a "Brazilian bombshell" cantar lá na América?"

Outros que o gravavam com freqüência eram o Bando da Lua e Aurora. Mas o
Bando também
fora embora com Carmen para os Estados Unidos e, em fevereiro último,
tinha sido a vez de
Aurora. Por causa disso, Assis desenvolvera uma intensa sensação de
antiamericanismo - via em
tudo uma conspiração de dólares e Cadillacs com a intenção de isolá-lo e
destruí-lo. Antes que
fosse tarde, aproximara-se dos Anjos do Inferno. Os Anjos eram ainda
melhores que o Bando da
Lua, e ele passaria a abastecê-los com sua produção.

301

O primeiro samba fora "Brasil pandeiro", que Carmen havia rejeitado. O sucesso
do disco (lançado um
mês antes, em abril, pela Columbia) seria importante para Assis, mais do
que pelo dinheiro que lhe
renderia. Seria a prova de que, como compositor, ele podia viver sem
Carmen. Mas os Anjos do
Inferno passaram a ser também abastecidos por outro baiano - Dorival
Caymmi -, e logo
começou a faltar espaço para Assis. Ele se voltou para Aracy de Almeida,
com quem emplacaria
um último samba antológico e definitivo: "Fez bobagem", em março de 1942.
A partir daí, bye,
bye.

Em Los Angeles, Carmen, Aurora e o Bando da Lua levaram três semanas para
saber que seu
amigo Assis Valente tentara se matar. Mas Assis sobrevivera e estava a
salvo, foi o que pensaram.
De longe, não podiam imaginar que, aos trinta anos, o homem bonito,
elegante e talentoso que
conheceram já se dera por vencido nessas três categorias, e nunca mais
seria o mesmo.

Carmen era a primeira a rir das imitações que se faziam dela em toda
parte nos Estados Unidos.
Não que tivesse tanto espírito esportivo. É que sabia que ninguém poderia
superá-la em sua
grande especialidade: a de ser Carmen Miranda - o que lhe permitia
reinventar-se quando
quisesse, deixando apenas os clichês para os imitadores. Em abril, numa
festa dada pela Fox no
Biltmore, o comediante Milton Berle parecia ter parado o show ao fazer
uma rude imitação dela.
Mas os aplausos só duraram até Berle ser rendido no palco por ela
própria. Carmen entrou e
restaurou a majestade de sua figura. Ali o show parou de verdade - porque
a platéia não a
deixava sair do palco.

Os comediantes americanos estavam descobrindo que imitar Carmen era
infalível para agradar. E
que, a exemplo de outras grandes criações originais do período, como
Carlitos ou Groucho, ela
era fácil de imitar. Na verdade, bastavam alguns acessórios em cena (um
turbante, uma saia,
alguns colares, um par de plataformas) para que qualquer pessoa na
platéia "reconhecesse"
Carmen. Muito mais difícil era reproduzir a expressividade de seus olhos,
sorrisos e mãos, sem
falar no misto de molecagem e sagesse que ela trouxera da Lapa - esses
eram territórios
inacessíveis aos imitadores. Daí que, ao filmar o musical Calouros na
Broadway (Babes on
Broadway), na MGM, em 1941, o diretor e coreógrafo Busby Berkeley não
tivesse dúvida sobre
qual dos dois astros, Judy Garland ou Mickey Rooney, deveria fazer uma
paródia de Carmen.

Rooney, claro - de baiana, cantando "Mamãe, eu quero". Carmen e Mickey
tinham se conhecido
dois anos antes, em Nova York, quando ele ia assistir a ela no Versailles
e só faltava dar
cambalhotas de prazer diante do que via. Carmen adorou a idéia da paródia
e insistiu em ir à
MGM para "dirigir" Mickey nos ensaios. Em dois dias de agosto, Carmen
trabalhou com ele no
número, usando como playback o seu disco de "Mamãe, eu quero" na Decca -
que Mickey
reproduz no filme, num português muito pior que o inglês de Carmen.


302

E ela também posou de frente e de perfil, diante do espelho, para que ele
copiasse sua maquiagem
e criasse um nariz parecido com o dela. Carmen diria depois que nunca
rira tanto.

Mickey estava em meio ao trabalho com Carmen quando viu entrar, no palco
de filmagem, uma
mulher cuja beleza parecia quase intolerável para o olho humano. Era uma
jovem que a MGM
acabara de trazer da Carolina do Norte e que estava sendo desfilada pelo
estúdio por algum
executivo. Mickey pediu licença a Carmen e foi até a garota. Nem se
apresentou; convidou-a
direto para um jantar à luz de velas - e ela recusou. Mickey não entendeu
nada. Aos 21 anos, ele
acabara de ultrapassar Clark Gable, Robert Taylor e Tyrone Power e se
tornara a bilheteria
número um de Hollywood. Por causa disso, somente na MGM havia duzentas
aspirantes a atriz
que dariam qualquer coisa por um convite seu para chupar um pirulito na
esquina. Pois essa era a
primeira vez que ele ouvia um "não" de uma delas. Só então Mickey se deu
conta de que estava
fantasiado de "Carmen Mirooney" - batom, brincos, nariz falso, baiana e
balangandãs. A moça
não o reconhecera. Ali mesmo, Mickey tirou a maquiagem, voltou a convidá-
la - e foi recusado
de novo. A garota, habituada a assédios desde que aprendera a andar, não
se impressionava com
os famosos e, nos dias seguintes, todos os convites que ele lhe fez
tiveram a mesma resposta.
Mickey não se abateu: garantiu a Carmen e aos amigos que se casaria com
ela. E quem era ela?
Ava Gardner, dezoito anos.

Calouros na Broadway estreou no dia 31 de dezembro de 1941 em Nova York.
Dez dias depois,
Ava Gardner e Mickey Rooney se casaram em Los Angeles - ela, aparentando
25 anos; ele,
quinze. Foi o primeiro casamento de ambos e durou apenas dezessete meses
(ou menos, segundo
Ava, porque Mickey passou a lua-de-mel jogando golfe). O filme foi muito
mais bem-sucedido:
seria o melhor da dupla Garland e Rooney e ainda hoje pode ser visto com
grande prazer.
Especialmente a seqüência de "Bombshell from Brazil", música e letra de
Roger Edens, em que
Judy e um elenco de promessas da MGM (Richard Quine, Virgínia Weidler,
Ray McDonald) dão
a entender que teremos a legítima Carmen em cena - e, em vez disso, entra
Mickey com "Mamãe,
eu quero".

A marchinha de Jararaca e Vicente Paiva viajara quase clandestinamente
para os Estados Unidos
em 1939, no repertório da orquestra de Romeu Silva para o Pavilhão do
Brasil na Feira Mundial.
Naquele mesmo ano, Carmen deulhe o formato definitivo em Streets of Paris
e em Serenata
tropical, e não havia show no Waldorf ou no Versailles em que não tivesse
de cantá-la. A versão
Rooney, por sua vez, provocaria a gravação de Bing Crosby na Decca,
acompanhado por
Woody Herman e sua orquestra, no dia 18 de janeiro de 1942. Era o que
bastava - estava feita a
mágica. A brasileiríssima "Mamãe, eu quero", disfarçada em "Mama, yo
quiero" ou "I want my
mama", seria incorporada pelos americanos ao seu repertório e renderia
fortunas nos Estados
Unidos (menos, claro, para os filhos e netos de seus autores
brasileiros).

303

Os americanos só não podiam imaginar que o principal homem por trás da
deliciosa malícia de
"Mamãe, eu quero" - o comediante Jararaca, querido no Brasil por homens,
mulheres e crianças
- era adepto do clandestino Partido Comunista brasileiro, devoto de Josef
Stalin e torcedor
convicto da ditadura do proletariado.

"Investigue a visita de Carmen Miranda a um médico e veja se ela não está
muito doente para
começar seu novo filme..."

Com essa nota em sua coluna de 17 de junho de 1941, Jimmie Fidler,
correspondente em
Hollywood do Daily Mirror, de Nova York, estava dizendo, de forma
oblíqua, que Carmen fizera
um aborto.

Louella Parsons e Hedda Hopper levavam a fama, mas o colunista mais
temido do cinema era
Jimmie Fidler - 42 anos, discípulo de Walter Winchell e tão esperto
quanto o mestre. Louella e
Hedda, inimigas entre si, só pensavam em dar furos uma na outra e, para
isso, viviam fazendo
"acordos" com os artistas - se um deles lhe passasse uma nota que a rival
não teria, ganhava
proteção na sua coluna por algum tempo. Isso significava omitir
informações já levantadas, como
a de que, digamos, Errol Flynn fora seduzido (de novo!) por uma menor de
dezoito anos, ou que
Spencer Tracy passara dez dias enxugando garrafas em algum hotel nos
arraiais de Los Angeles
enquanto a MGM revirava a cidade à sua procura. Louella e Hedda eram
fortes por publicar
menos do que sabiam. Mas Jimmie Fidler competia apenas consigo próprio.
Só ele deu a nota a
respeito de Carmen. Em compensação, a fofoca saiu em 360 jornais naquele
dia e atingiu os 40
milhões de ouvintes de seu programa de rádio. Era esse o seu alcance.

O novo filme, Aconteceu em Havana, a ser rodado em julho e agosto, já
estava exigindo todas as
preliminares indispensáveis aos musicais - e a nota dava a entender que
havia um motivo sério
para Carmen não estar trabalhando. Supondo que só alguns de seus leitores
e ouvintes fossem
atilados e maldosos, mesmo assim seriam milhares, talvez milhões, a
decifrar a informação:
Carmen Miranda fizera um aborto. O truque consistia em escrever de tal
forma que desse uma
pista ao leitor sobre do que se tratava, fazendo com que a personagem da
nota percebesse que o
colunista sabia - ao mesmo tempo que deixava uma saída na hipótese de
alguém resolver
processar. Nesse caso, Fidler sempre poderia alegar que, segundo sua
fonte, a ida ao médico fora
para uma extração de amígdalas. Mas, nos anos 40, nenhum artista seria
louco de processar um
jornalista.

O restante da informação, que Fidler também devia ter, continuaria a ser
privilégio dos íntimos. O
pai da criança era Aloysio de Oliveira. As alternativas para Carmen eram
óbvias. Ou se casava
rapidamente com Aloysio e inventava uma (fácil) explicação para quando a
criança nascesse,
menos de nove meses


304

após o casamento - ou assumia sozinha esse filho e encerrava de vez a
carreira, porque
Hollywood nunca aceitaria uma mãe solteira em 1941. Se uma atriz tivesse
um filho fora do
casamento, seria melhor que se volatizasse - não lhe bastaria mudar de
nome, de rosto ou de
país. A carreira de Gloria Swanson, por exemplo, fora liquidada em 1931
por ela ter fugido
grávida para a Europa com um playboy irlandês, abandonando seu marido, o
marquês de La
Falaise. Joe Schenck, então na MGM, cancelou seu contrato, comprou suas
ações na United
Artists e expulsou-a das duas companhias. Depois disso, Swanson só
voltaria a filmar
esporadicamente. Bem, o mesmo Joe Schenck era agora o patrão de Carmen na
Fox.

Além das hipóteses casar ou sumir, só lhe restava o aborto. A clínica
(clandestina, claro) teria sido
indicada a Carmen por uma colega da Fox ou por um médico de sua
confiança. Fidler descobrira
a história porque tinha um contato junto a essa e outras clínicas - que o
informavam sobre os
grandes nomes que passavam por elas.

No futuro, ao admitir que Carmen fizera um aborto dele, Aloysio diria que
nunca soube disso na
época em que aconteceu - e que só ficara sabendo anos depois, por
intermédio de Aurora. Como
outras declarações de Aloysio, essa é para ser recebida com cautela - e
não apenas porque,
numa entrevista gravada, Aurora riu ao ouvir tal declaração. Mas
suponhamos que Aloysio não
soubesse que Carmen estava grávida dele. Isso transferia automaticamente
para Carmen toda a
responsabilidade pelo aborto. Significava que, tendo de escolher entre o
filho e a carreira, ela não
hesitara: preferira a carreira - sem dar a ele, Aloysio, a menor chance
de opinar.

Essa atitude não se parecia com Carmen. Era notória sua paixão pelos
filhos das amigas - no
Rio, era madrinha sabe-se lá de quantas crianças. (Às vezes, pedia uma
delas emprestada à mãe e
só a devolvia horas depois, toda babada de beijos.) Já Aloysio nunca
seria um pai dos mais
extremados (ficaria muitos anos sem ver uma filha que teria com uma
americana). Diante do
histórico de um e de outro, é improvável que Carmen não tivesse pensado
em legitimar a criança
casando-se com Aloysio - e, se ela ainda contemplava a idéia daquele
casamento, não podia
haver ocasião melhor. A última e pior alternativa era o aborto - que
Carmen, católica como era,
via como uma afronta à sua religião.

Mas, por tudo que se sabe, o casamento não estava nos planos de Aloysio.
Ou, pelo menos, o
casamento com Carmen. Aos 26 anos em 1941, ele continuava seis anos mais
novo que ela, e essa
diferença, com o tempo, só tenderia a aumentar. O grande problema para
Aloysio, no entanto, era
a confusão quanto a seu cargo na firma naquele momento: era amante e, ao
mesmo tempo,
empregado de Carmen, com múltiplas atribuições - artísticas,
administrativas e práticas. Era,
inclusive, pago por ela - tinha um salário à parte, além do que recebia
pelo Bando da Lua. Um
casamento oficializaria o nome que já circulava aos cochichos para
defini-lo, e que ele detestava:
Mister Miranda.

305

É verdade que ele já era tudo isso, e mais ainda, em maio de 1939, quando
Carmen e o Bando da
Lua estavam recém-chegados a Nova York. Mas, então, a situação era
diferente. Naquela época,
eles estavam juntos na grande aventura, e Carmen dependia de Aloysio para
tudo. Era ele quem
falava por ela com os americanos, fosse para discutir negócios com
Shubert ou para comprar um
hambúrguer na carrocinha. Era ele, Aloysio, quem analisava suas propostas
de trabalho, lia os
contratos, escrevia suas cartas em inglês e ia conseguir a Benzedrine que
os manteria, a ela e a
ele, em condições de dar mais um show quando era mais intenso o cansaço -
outras vezes, era
uma piscadela de cumplicidade que lhes permitia continuar de pé. Os
americanos o chamavam de
Louis, e ela também adotou o tratamento. Passavam juntos as 24 horas do
dia - de vez em
quando, aplicavam um drible na turma (inclusive no Bando da Lua) e iam
fazer amor onde desse,
como se fosse uma travessura. Aos olhos de Carmen, Aloysio tinha três
metros de altura e
competia com os arranha-céus.

Mas, dois anos depois, em Hollywood, as coisas haviam mudado. Carmen
voltara a ser a mulher
que ele conhecera no Rio: segura, confiante, que falava grosso com
qualquer um. Seus contratos
eram agora discutidos entre empresas, de potência para potência. Em caso
de dúvida, estava
cercada de advogados poderosos, homens pagos para aconselhá-la. E já
falava inglês tão bem
quanto ele. E quanto ele mediria agora aos olhos dela?

Amante era também a palavra correta. Carmen e Aloysio não se podiam
chamar de namorados -
não rolavam na areia e caíam juntos nas águas de Santa Monica nem ficavam
de mãos dadas nos
concertos do Hollywood Bowl. Sua relação era "secreta", como se tivesse
algo de errado - além
de ostensivamente anti-romântica. E, para todos os efeitos, nas
entrevistas à imprensa americana,
Carmen continuava a sustentar a fantasia de um "noivo brasileiro", na
figura do "advogado" alto,
moreno e bonitão, às vezes chamado "Carlos", eternamente à sua espera no
Rio.

Essa descrição era quase um ato falho. Carmen estaria se referindo a
Carlos Alberto da Rocha
Faria? Ele era advogado, alto, moreno, bonitão e, por acaso, se chamava
Carlos. E era também,
segundo Aurora e Cecília, o grande amor de Carmen. Ou fora - até chegar
do Rio a notícia de
que Carlos Alberto se casara com uma francesa chamada Josephine Marie,
recém-chegada ao
Brasil (tinha de ser uma francesa), e que teriam ido morar numa bela casa
em Santa Teresa.

A notícia inundou Carmen de um compreensível chagrin - Carlos Alberto,
casado! No mesmo
instante, esqueceu-se de que fora ela que o largara no Rio ao ir para os
Estados Unidos - e que,
mesmo antes de embarcar, já namorava Aloysio. Em sua interpretação
distorcida e injusta para
consigo mesma, era mais uma vez a filha do barbeiro que não estava "à
altura" de se casar com o
príncipe. E tudo que a vida vinha lhe dando na América - aplausos,
dinheiro, prestígio - não
chegava para apagar aquela nódoa. Carmen não se tocava


306

para o fato de que despertava a paixão de milhares e que, se realmente
quisesse, não lhe faltariam
bons partidos.

Talvez por isso, no confronto com Aloysio sobre o que fazer com aquela
gravidez, ela tenha
passado por cima de seus sonhos e convicções e, como sempre, tomado a
decisão que menos a
beneficiava. Fez o aborto e não se casou com Aloysio.

O rapaz mais bonito de Hollywood? Carmen nem pestanejou:

"John Payne." E, referindo-se à mulher dele, acrescentou, meio tom
abaixo: "Anne Shirley soube
escolher".

Bem, ela também soubera. O problema era que Anne Shirley o escolhera
primeiro. Isso não
impedira um caso vulcânico entre Carmen e John Payne durante as filmagens
de Aconteceu em
Havana, embora tivesse influência no seu desfecho. Quando a resposta de
Carmen saiu na Noite
Ilustrada, em 16 de setembro de 1941, o affaire já estava definido.

Carmen e Payne se conheceram na Fox. Os dois tinham chegado ao estúdio
quase ao mesmo
tempo, no ano anterior, mas o romance só começou quando foram filmar
juntos. Payne tinha 29
anos, 1,92 metro, era atlético, educado e tímido. Os homens podiam achá-
lo tão apático e
sensaborão na vida real quanto ele parecia na tela, mas as mulheres
discordavam - Carmen não
era a única a considerá-lo altamente apetecível. A Fox queria fazer dele
um novo Cary Grant e,
nesse sentido, Payne tinha suas virtudes: poucos em Hollywood vestiam um
terno com tanta
classe e fotografavam tão bem, de pé, com as mãos nos bolsos. Havia nele
algo que denunciava o
rapaz fino - nitidamente, a vida entre patos com trufas e cascatas de
camarão não lhe era
estranha.

Payne era de extração rica e fora criado para, um dia, assumir os
negócios da família. Seu pai era
dono de uma vasta quantidade de terras na Virgínia. Sua mãe tinha sido
cantora do Metropolitan
de Nova York, ainda que em papéis menores. O velho morrera em 1929, mas,
quando abriram o
testamento, descobriram que o filho só poderia suceder-lhe aos 35 anos.
Tudo bem - exceto que,
naquele ano, John ainda estava com dezoito. Ficou tão desiludido que
radicalizou: saiu de casa e
trocou sua boa vida nos Hamptons pela barrapesada de Queens e do Bronx.
Foi ser lutador de
boxe, empregado de borracharia, telefonista de bookmaker, animador de
mafuá e, finalmente, ator
de teatro, contratado por - você adivinhou - Lee Shubert. Sempre em
pequenos papéis, John
apareceu em algumas peças na Broadway. Numa dessas, em 1936, foi
"descoberto" por Samuel
Goldwyn e levado para Hollywood. Depois de vários filmes menores, assinou
com a Fox em
1940. Zanuck fez fé em sua estampa e o escalou com Alice Faye e Betty
Grable em A vida é uma
canção. Um ano depois, Aconteceu em Havana já seria seu sexto filme no
estúdio, o primeiro em
Technicolor e o primeiro com Carmen.

307

A mulher de Payne, Anne Shirley, antiga atriz infantil do cinema mudo,
estava vivendo um drama
típico de Hollywood: a adolescência destruíra sua carreira. Quando se
casara com John, em 1937,
ela tinha dezenove anos e lutava para conseguir bons papéis juvenis. Fez
a filha de Barbara
Stanwyck no lacrimogêneo Stella Dálias e foi indicada para o Oscar. Mas
não ganhou, e sua
carreira parou de novo. Em compensação, Payne, que até então nunca
provocara um suspiro
numa colegial, mudou-se para a Fox e se consagrou como galã. Seu
casamento com Anne Shirley
entrou em crise. Foi quando ele e Carmen se aproximaram - e, durante dois
meses, viveram uma
história que parecia redimi-los de suas tristezas e frustrações recentes.

Carmen estava aborrecida pelo casamento de Carlos Alberto da Rocha Faria,
ainda não digerido,
e pelo episódio da gravidez, conhecida ou não por Aloysio, mas que
redundara em aborto. Mais
uma vez, tudo leva a crer que Aloysio soubesse da gravidez e, mesmo
assim, se negara a casar
com Carmen - e essa certeza tem a ver com o romance entre Carmen e John
Payne.

Carmen não era uma mulher que se atirasse a um homem apenas por seus
braços e tórax salientes
(embora, para ela, isso certamente contasse). Carmen era romântica e
démodée, e sua frase para
Zanuck, repetida nas duas ou três vezes em que ele a encurralou em sua
sala e tentou induzi-la a
fazer sexo oral nele, ficara famosa no estúdio:

"Mas, senhor Zanuck, eu não estou apaixonada pelo senhor!"

Se Carmen chegou a apaixonar-se por John Payne, só se fora assim, de
estalo. Tudo indica que
ela tenha sentido uma forte atração por ele e, nesse caso, achado que
havia boas razões para ir em
frente.

Carmen não escondia de Aloysio que ela e Payne estavam saindo juntos do
estúdio - às vezes,
na garupa da motocicleta do ator, e abraçada à sua cintura, para uma casa
de praia que ele tinha
em Santa Monica. (A Fox, com razão, não gostava dessas viagens de moto.)
Ou que estavam
passando muito tempo trancados no camarim de um ou do outro. Ou que
flertavam sem parar
durante a filmagem. Tudo isso tem um doce aroma de vingança feminina. Se
a intenção foi essa,
Carmen conseguiu - porque Aloysio ficou transtornado (e sem poder para
retaliar). Não era
apenas um chifre público que estava tendo de absorver, mas também o risco
de, na possibilidade
de o caso entre Carmen e Payne evoluir, ele perder seus privilégios.

Carmen só não contava com uma coisa: que John Payne, vencendo a timidez,
se dissesse
apaixonado por ela e começasse a falar em divorciar-se de Anne Shirley.
Isso era exatamente o
que ela não estava pedindo, nem permitiria que acontecesse. Todos sabiam
que Payne estava
com problemas no casamento, mas ela não tinha nada com isso - e não havia
possibilidade de
alguém desfazer um casamento por causa dela.

Em pouco tempo, Carmen se tornara muito popular na comunidade católica de
Los Angeles,
inclusive aos olhos do arcebispo, o cardeal John J. Cantwell.


308

Mandava todas as flores que recebia para as igrejas pobres da cidade, com
instruções para que
fossem colocadas diante da imagem de santa Teresa. Apenas por esse
catolicismo militante,
Carmen já seria contra o divórcio. Além disso, bastara sua observação dos
costumes nos Estados
Unidos para convencer-se de que, com toda a sua prodigiosa capacidade
para inventar coisas
como enceradeiras elétricas ou torradeiras automáticas, o povo americano
era emocionalmente
imaturo. Aquele era o país em que um homem propunha casamento a uma
mulher apenas para ir
para a cama com ela - daí tantos casamentos acabarem em divórcio. Na
visão de Carmen, por
que não ir direto para a cama e economizar o arroz? O que se passava na
cama era de
responsabilidade somente do homem e da mulher. Mas, no altar, havia uma
terceira entidade
envolvida, imaterial, incorpórea, representada pelo padre ou pelo juiz.
Ela jamais provocaria o
divórcio de um casal, assim como, quando se casasse, também seria para
sempre. Payne ouviu
essa explicação de Carmen meio sem entender. Mas teve de aceitar.

A filmagem de Aconteceu em Havana terminou em fins de agosto, e o namoro
entre eles também,
sem brigas ou ressentimentos. Carmen e o Bando da Lua tinham de ir para
Nova York, para
cumprir o contrato com Shubert e fazer Crazy house no teatro. Mas
prometiam estar de volta a
Hollywood dali a um ano.

E, da maneira como se deram as coisas, John Payne e Arme Shirley
continuaram casados por
inércia. Até que, certa noite, em 1943, jantando no Romanoff"s, Anne
anunciou tranqüilamente:

"Hoje saí para procurar uma casa. Estou me separando de você, John."

O garfo que John estava levando à boca, transportando uma batata frita,
nunca chegou ao destino.
Os dois se separaram. Anne começou a sair com Robert Stack, Edmond
O"Brien e outros jovens
atores do momento. John, refeito do choque, foi visto com Jane Russell,
já mamariamente famosa
por O proscrito (The outlaw), embora o filme ainda não tivesse sido
lançado, e acabou se
casando com Gloria De Haven, que era um chuchuzinho e, no futuro, o
chifaria com Dean Martin.

Em Aconteceu em Havana, John Payne fazia par romântico com Alice Faye;
Carmen, com o
cubano César Romero. Curiosamente - ou não -, havia um empate de beijos
em Carmen na
história: dois para cada um. Romero só rodaria mais um filme com Carmen,
Minha secretária
brasileira, mas a idéia de que eles formavam um par ideal fez com que
muitos acreditassem que
isso acontecia também fora da tela.

E, pensando bem, por que não aconteceria? Em 1941 Romero tinha 34 anos,
1,92 metro (como Payne) e fartas ondas no cabelo, amansadas com
Brylcreem. Era muito vaidoso:
por estatísticas contemporâneas, havia em seu guarda-roupa quinhentos
ternos, 190 paletós
esporte e trinta smokings. O rosto bronzeado

309

contrastava com a alvura dos summer jackets, e ele era um consumado pé-
de-valsa. Todas essas
eram qualidades que Carmen admirava em um homem.

Em 1934, quando Romero entrara para o cinema, os estúdios o viram como o
Latin lover que
estavam pedindo a Deus - o esperado sucessor de Valentino, tanto para os
papéis ultra-
românticos como para os de vilões irresistíveis. Além disso, ele era um
"latino de Manhattan":
cubano autêntico, neto (por parte de mãe) do patriota José Marti, mas
nascido em Nova York,
falando perfeito inglês. Em 1935, a Paramount apostou alto: colocou-o ao
lado de Marlene
Dietrich em Mulher satânica (The devil is a womari), baseado na novela de
Pierre Louys,
Lafemme et lê pantin, com direção de Josef von Sternberg - e até lhe
inventou um romance com
Marlene. E sabe o que aconteceu? Nada. Faltava-lhe um certo flair, uma
flama, uma chispa que
convencesse a platéia de que ele podia incendiar uma mulher.

Seis anos depois, no lançamento de Aconteceu em Havana, Carmen teve a
duvidosa honra de ser
a heroína de uma "Tijuana bible" (no Brasil, "catecismo"), um daqueles
gibis pornográficos que
circulavam clandestinamente e em que os personagens costumavam ser os
astros do cinema. Na
historinha, toscamente desenhada, um ladrão esfomeado entra pela janela
de Carmen para se
alimentar com as frutas de seu turbante. Carmen, que se masturbava com
uma banana, aproveita a
oportunidade e faz sexo com o ladrão em todas as posições. No último
quadrinho, o bandido foge
correndo porque ela lhe esfregou pimenta no pênis. Mas o diálogo
revelador é quando Carmen,
no auge das atividades com o ladrão, exclama:

"É muito melhor do que com o César Romero!"

Tinha de ser - porque ele não era do ramo. Romero era homossexual - um
dos mais tranqüilos e
felizes de Hollywood. Na tela, seu homossexualismo só era visível ao olho
treinado, mas os
produtores temiam que, quando descobrissem, as fãs dele se sentissem
traídas. Assim, depois do
fiasco de Mulher satânica, esqueceram a história do Latin lover e o
limitaram a papéis de
bandidos cômicos ou de amigo do mocinho. O público, ironicamente,
continuou a pensar em
Romero como um garanhão: sabia que seu apelido era "Butch" (típico de
machões) e, todo dia, ao
abrir os jornais, via-o de braço com alguma estrela nas festas e estréias
de Hollywood. Nunca
suspeitou de que a razão disso era a de que, justamente por ser gay e
vistoso como companhia,
Romero era muito requisitado para sair com elas. Uma que adorava dançar e
o tinha como par
constante era Joan Crawford. Com isso, Romero pôde evitar aquela saída
adotada por todos os
homossexuais de Hollywood: casar-se com alguma mulher (quase sempre a
secretária) que
topasse interpretar a "esposa".

E quem diria que o apelido de "Butch" lhe fora dado por Tyrone Power, com
quem César
mantinha um caso - este, sim, um casamento - de anos?


310

As últimas cenas de Aconteceu em Havana tinham acabado de ser filmadas e
Carmen já estava no
camarim. Para relaxar, desabotoara a calcinha - uma espécie de cinta-
fralda, presa por
colchetes, que a incomodava - e se dedicava a zerar o QI olhando para o
teto. Foi quando
bateram à porta. Era Frank Powolny, o fotógrafo de stills do estúdio,
convocando-a em regime de
urgência para as últimas poses de dança com César Romero, a fim de
completar o material de
divulgação. Distraída ou despreocupada, Carmen voltou para o palco sem se
recompor. Romero
tomou-a pela cintura e levantou-a com um rodopio. A saia de lamê dourado
criada por Gwen
Wakeling, estilista do filme, enfunou - e a câmera de Powolny registrou
tudo em contre-plongée.
Inclusive o que não devia.

Terminadas as fotos, Carmen suspeitou que algo do gênero pudesse ter
acontecido. Tanto que
perguntou a Gilberto Souto, presente à sessão, se ele percebera alguma
coisa errada. Gilberto
disse que não, e Carmen tranquilizou-se.

O filme foi revelado na própria Fox. Os técnicos do laboratório
perceberam a gafe assim que ela
apareceu no revelador - uma das fotos captara a vagina de Carmen - e
podem ter comentado a
respeito, mas não havia a menor dúvida sobre o que deviam fazer: destruir
o negativo, sem alarde
e sem protela. A medida era uma ordem superior, válida em toda Hollywood,
e se aplicava a
qualquer foto que mostrasse um astro em situação desprimorosa, o que era
comum acontecer - e
não precisava referir-se às partes pudendas.

Mas, no caso de Carmen, a tentação deve ter sido demais para um dos
laboratoristas. Pelo menos
uma cópia foi contrabandeada para fora do estúdio - " e desta nasceram as
outras. Mesmo assim,
isso aconteceu com grande cautela, porque levou quase um ano para que as
primeiras
reproduções começassem a aparecer no mercado clandestino: em postos de
gasolina, oficinas de
carros, bares de estrada e outras galerias de arte mundanas. O FBI,
acionado pela Fox, recolheu
todas as que pôde, além de localizar um laboratório clandestino em Los
Angeles e abortar o
derrame de centenas de cópias. Uma ou outra tentativa de chantagem,
ameaçando espalhar as
fotos pelo país, também foi sufocada pelo FBI. Uma revista de escândalos,
True Pohce Cases, de
julho de 1942, deu a foto na capa, mas com uma tarja cobrindo o
impublicável, e a chamada:
"Quanto valem as estrelas de Hollywood no mercado de fotos imorais!".

Para os padrões de Hollywood e dos Estados Unidos, Carmen correu o risco
de ter sua carreira
trucidada. Tallulah Bankhead era notória por não usar calcinha, mas nunca
fora fotografada com
os pêlos à mostra. E, um ano antes, as colunas de fofocas tinham
insinuado que o diretor Anatole
Litvak fizera sexo oral em Paulette Goddard sentada a uma mesa do Ciro"s
- ele, de gatinhas, por
baixo da toalha -, mas, do mesmo modo, não havia nenhum documento para
provar.

Uma simples suspeita de que Carmen se tivesse deixado fotografar sem

311

calcinha de propósito, por estar habituada a andar assim em casa, seria
suficiente para enterrá-la
profissionalmente. Por sorte, ninguém duvidou de seu caráter. A Fox a
protegeu, as fotos
circularam muito menos do que se pensa, e sua reputação não sofreu nenhum
arranhão. E havia até
gente ilustre, como Hermes Pan, para quem a foto fora forjada num
laboratório e nunca
acontecera a genitália exposta.

Anos depois, Carmen faria um adendo humorístico ao caso, inventando que,
no dia seguinte à
sessão de fotos, uma cópia aparecera pregada no quadro de avisos do
estúdio. Ao deparar com a
pequena multidão fazendo fiu-fiu diante do quadro, ela se aproximara para
espiar e se vira
exposta à visitação pública. Seu único comentário fora:

"Definitivamente, esta foto não faz justiça à minha pessoa."


Capítulo 18


1941 - 1942

Livre de Shubert



Em Aconteceu em Havana, era só Carmen surgir na tela cantando "Rebola,
bola" (e logo em
português!) para que os cubanos mais nacionalistas fizessem justiça pelas
próprias mãos vaiando a
artista, a música e o filme, sacando seus canivetes de mola e estripando
as poltronas do cinema.

Que "política da boa vizinhança" era essa que só fazia inimigos toda vez
que distribuía um filme
supostamente dedicado a angariar simpatias para a causa pan-americana? O
primeiro, Serenata
tropical (feito antes de a "política" ser criada), quase jogara todo o
povo argentino contra os
Estados Unidos, pelo fato de não conter um único tango e tratar os
portenhos como retardados
mentais ou salafrários. O segundo, Uma noite no Rio, já sob a vigência da
"política", até que
continha um belo tango - mas na cidade errada. E só não era ofensivo ao
Brasil porque, exceto
por Carmen e pelo Bando da Lua, o Brasil estava ausente do filme. Agora
era Aconteceu em
Havana que revoltava os cubanos, ao apresentar ritmos estranhos por uma
artista brasileira e
também porque todos os cubanos mostrados no filme eram pequenos
vigaristas (não havia nem
mesmo um grande vigarista em cena). Outra coisa em comum entre Aconteceu
em Havana e os
filmes anteriores é que, assim como já tinham feito com Buenos Aires e o
Rio, a cidade onde se
passava a história não existia. Havana era uma miragem representada por
quatro ou cinco
tomadas para "estabelecer" o cenário. A partir daí, era reduzida a um
hotel-cassino cercado de
canaviais e tinha-se a impressão de que seu principal meio de transporte
era o carro de boi.

Em 1941, a verdadeira Havana era bem diferente. Sua vida noturna era uma
festa de cassinos,
cabarés e teatros, sustentados pela máfia de Miami (com seu menu de jogo,
prostituição e drogas)
e por turistas como a personagem de Alice Faye: americanas sonhadoras que
levavam anos
economizando para passar duas semanas ali, namorando e dançando - e que
não se
arrependiam. A variedade da música de Havana era infernal. Havia
orquestras de todos os
formatos - de combos e sonoras a charangas e big bands -, tocando rumbas,
congas, boleros e
danzons. A cada momento surgiam novas canções, novos ritmos e até novos
instrumentos:
maracas, bongôs, claves, timbales, tumbadoras. Tudo isso estava
acontecendo precisamente na
época em que se

313

passa a história e em que foi rodado o filme, embora, ao vê-lo, ninguém
perceba esse furor
criativo. Mas pode-se garantir que os cubanos não estavam precisando de
brasileiros para
produzir música.

Não que a música brasileira domine Aconteceu em Havana. Ao contrário,
Carmen canta três fox-
rumbas em inglês (a burocrática "A week-end in Havana", a menos ruim
"When I love, I love" e a
nhenhenhém "The nango"), da dupla Harry Warren e Mack Gordon, e apenas
uma música em
português, que é "Rebola, bola". Com isso, o filme conseguiu a dupla
façanha de desagradar aos
brasileiros, por obrigar Carmen a cantar em inglês, e aos cubanos, por
mostrar Carmen cantando
em inglês e também em português - sendo o espanhol a língua oficial de
Cuba. Os cubanos
tinham suas razões para ficar ainda mais irritados: teoricamente, Carmen
interpreta uma cubana
(chamada Rosita Rivas), mas seus figurinos, criados por Gwen Wakeling,
estavam mais para as
baianas estilizadas do que para o guarda-roupa das rumbeiras. E, num dos
números de dança (o
citado "The nango"), há traços de um suspeitíssimo maxixe que Vadeco
ensinara a Hermes Pan.
Alguém estava comendo moscas dentro do Birô de Rockefeller.

"Rebola, bola", segundo Abel Cardoso Júnior, era uma embolada criada por
Aloysio de Oliveira e
Nestor Amaral em cima de um "repinicado" de Luperce Miranda e Brant
Horta, intitulado "Só...
papo" e gravado por Almirante em 1930. (Nenhum deles é creditado no
filme.) Qualquer
semelhança de "Rebola, bola" com "Bambalê" e "Bambu, bambu" não era
coincidência - porque
também eram adaptados de Brant Horta e o estribilho era o mesmo. A
diferença é que, na segunda
parte, a letra de "Rebola, bola" se transformava numa algaravia na língua
do pé, com Carmen
acelerando de tal forma o canto que se tornava incompreensível até para
ouvidos brasileiros -
donde no Brasil ninguém entendia que graça as platéias americanas podiam
achar naquilo.

Pois, para elas, a graça estava justamente nisso. Os americanos recebiam
a metralhadora sonora
de Carmen em português como se fosse o scat singing do jazz, em que as
palavras não precisavam
ter nenhum significado - a exemplo de Louis Armstrong, Cab Calloway e
Ella Fitzgerald quando
faziam suas improvisações vocais. Outro fator era que, naquela época, os
americanos pareciam
achar uma graça louca em gente falando ou cantando depressa, mesmo que
numa língua que não
entendessem - como o "porruguês-locomotiva" de Carmen, na definição do
New York Herald.
Um filme de grande sucesso de 1940, a comédia Jejum de amor (His girl
Friday), de Howard
Hawks, tinha Cary Grant e Rosalind Russell falando à alucinante média de
240 palavras por
minuto - quatro palavras por segundo, o dobro da velocidade de um ser
humano comum -
durante todo o filme. E, naquele ano de 1941, Danny Kaye estava fazendo
história na Broadway
com o musical Lady in the dark, de Kurt Weill e Ira Gershwin, cantando
"Tschaikowsky", em que
disparava os nomes de 49 compositores russos em 39 segundos (e
construiria depois toda uma
carreira em cima desse truque).


314

Portanto, não fazia diferença que Carmen cantasse em
português, birmanês ou
congeles - desde que cantasse depressa. E, com isso, ficávamos
definitivamente de acordo em
que sambas de andamento e letras delicadas, como "Adeus, batucada" ou
"Camisa listada", jamais
teriam sua beleza percebida nos Estados Unidos - porque Carmen não
poderia cantá-los por lá.

Quando Carmen chegou a Nova York, em 1939, com a meritória missão de
"anexar os Estados
Unidos ao império do samba", isso não era um sonho. Estaria melhor na
categoria delírio.
Naquele ano, o swing - o jazz simplificado, dançante e delicioso, tocado
pelas big bands -
chegava ao seu apogeu em popularidade e dominava a música americana.
Havia mais de
quinhentas grandes orquestras em atividade, tocando ao vivo todas as
noites, de costa a costa, em
salões de baile que comportavam de mil a 10 mil dançarinos. Muitos desses
bailes eram
transmitidos ao vivo pelo rádio e reproduzidos por alto-falantes em
quadras ao ar livre para
outros tantos milhares de jovens. Durante o dia, enquanto os músicos
dormiam dentro dos ônibus
que os levavam de uma cidade a outra para tocar em bailes, os jukeboxes
engoliam moedas e
despejavam essa música pelos ouvidos da nação, decretando os sucessos.
Como a maioria dos
americanos nunca ouvira falar de Hitler, o mundo parecia governado por
Artie Shaw, Benny
Goodman e Glenn Miller, e isso representava 99% da música popular nos
Estados Unidos. No 1%
restante, a única alternativa viável ao swing era, por uma circunstância,
a música de Cuba - o
que vedava ainda mais o mercado ao samba que se quisesse implantar.

Seria impossível ao samba ou a qualquer ritmo de fora derrotar a rumba ou
a canção cubana, cuja
forte presença na vida americana - pela proximidade entre Cuba e o
continente e pelo número
de hispânicos nos Estados Unidos - já vinha desde, pelo menos, 1920. Só
em Nova York
existiam centenas de músicos e cantores cubanos e uma quantidade de
orquestras, das quais as de
Xavier Cugat e Desi Amaz eram apenas as mais famosas. Os cubanos dos
Estados Unidos tinham
seus próprios programas de rádio e qualquer americano reconhecia o som de
uma maraca ou de
um bongô. Havia também o repertório: de "El manicero" ("The peanut
vendor"), de Moisés
Simons, a "Aquellos ojos verdes" ("Green eyes"), de Nilo Meléndez,
passando pela produção de
Ernesto Lecuona, de "Para Vigo me voy" ("Say "si si"") a "Siboney", todos
os clássicos da canção
cubana estavam em circulação na América, com letra em inglês e já
incorporados ao repertório. E,
para completar, toda orquestra americana de swing precisava ter pelo
menos uma ou duas rumbas
em seu repertório.

Num caso único no mundo, era a rumba que influenciava a música americana,
e não o contrário.
Não porque os compositores americanos às vezes fizessem coisas de
inspiração cubana, como
Irving Berlin, com "Fll see you in C.U.B.A." (1920), Jimmy McHugh e
Dorothy Fields, com
"Cuban love song"

315

(1931) e George Gershwin, com sua Cuban overture (1932). Mas porque, até
inconscientemente, a
rumba se infiltrara no estilo de vários deles, até daqueles cujo
americanismo estava acima de
qualquer suspeita. Cole Porter, por exemplo - muitas de suas principais
canções tinham um
secreto ondulado cubano e convidavam a um jogo de quadris oleoso,
safadinho e habanero:
"Night and day", "What is this thing called love?", "I concentrate on
you", "Just one of those
things", "Só near and yet só far", "Do I love you?", "Get out of town",
"In the still of the night",
"Love for sale", "Down in the depths", "My heart belongs to daddy", "I"ve
got you under my skin"
- todas parecem cubanas. E Cole só esteve em Havana uma vez, em fins dos
anos 30 - "para
dourar as pernas" -, quando já havia composto a maioria dessas canções.

Enquanto os cubanos estavam fisicamente presentes nos Estados Unidos,
expondo os gringos à
rumba, quais eram os representantes do samba por lá? Carmen Miranda, o
Bando da Lua - e mais
ninguém. Em novembro de 1940, com o fim da Feira Mundial, a orquestra de
Romeu Silva, que
tocava no Pavilhão do Brasil, voltara para casa. E era só, a não ser que
se considerasse a
orquestra-society do americano Emil Coleman, que se dizia um especialista
em samba e tocava,
num dos salões menores do Waldorf-Astoria, em Nova York, um repertório
que também incluía
tangos, rancheiras e mais rumbas. Aliás, quando uma orquestra americana,
por melhor que fosse,
anunciava um samba ou um choro, este logo se transformava em rumba. Foi
precisamente o que
aconteceu em 1940, quando Carmen e o Bando da Lua participaram de um
programa de rádio
com a orquestra de Jimmie Lunceford, tocando "Tico-tico no fubá". Veja
bem, era Jimmie
Lunceford, não um pé-rapado. E nem assim eles se entenderam - enquanto
Carmen e o Bando
requebravam o samba para um lado, Jimmie requebrava sua orquestra para o
outro, rumo à rumba.

Hoje parece quase inacreditável que Carmen - sozinha e contra toda uma
formidanda estrutura
- tenha conseguido impor a presença de pelo menos uma música brasileira,
e em português, em
cada um de seus filmes. Até pela natureza desses filmes, o normal seria
que, desde o começo,
quisessem obrigá-la a cantar em espanhol. Mas, nos seus primeiros onze
filmes de Hollywood, ela
só cantou em português ou inglês.

Carmen se irritava quando a imprensa americana a chamava de
"latinoamericana" - ou até de
"sul-americana". Queria ser chamada de brasileira, porque "não tinha nada
a ver com os
descendentes de espanhóis". Quando se via rotulada de hispânica em alguma
publicação,
irritava-se e culpava os publicistas da Fox. Mas essa era uma acusação
injusta porque, pela
insistente campanha de Carmen dentro do estúdio, todo mundo ali sabia que
ela era brasileira.
Nos memorandos de Darryl F. Zanuck que chegaram até nós, pode-se ler
Zanuck recomendando
aos roteiristas a necessidade de incluir uma "canção típica em português
por Carmen" neste ou
naquele trecho do filme.

O que mudou, quase que de um dia para o outro, foi a estratégia do
estúdio


316

a respeito de ela falar menos ou mais inglês nos filmes. Antes de sua
chegada à Fox para rodar
Uma noite no Rio, em outubro de 1940, a idéia era que Carmen falasse em
inglês apenas o
essencial (que lhe estava sendo "ensinado" por Zaccarias Yaconelli em
Chicago) e que, quando
tivesse de explodir verbalmente contra o personagem de Don Ameche, ela o
fizesse em português
- coroando o destempero com uma ou duas frases em inglês para o
entendimento da platéia
americana. (Essa recomendação também consta dos memos de Zanuck aos
roteiristas.)

Na época, Zanuck não previa o efeito cômico que se poderia extrair de um
inglês estropiado
falado por Carmen - o que ficou claro depois da estréia do filme. Então,
já tendo em vista
Aconteceu em Havana, mudou-se a estratégia. Carmen foi estimulada a
aprender inglês de
verdade, para poder dominar fatias maiores de diálogo - e, em seguida,
falá-lo "errado". Uma
cláusula em seu contrato assegurou-lhe cinqüenta centavos de dólar por
palavra que aprendesse
até o primeiro dia de filmagem de Aconteceu em Havana - sendo que, na
primeira sabatina a que
foi submetida pelo diretor Walter Lang, Carmen teria disparado
quatrocentas palavras novas,
inclusive tijolos que nem os americanos comuns usavam, como
"notwithstanding" (não obstante) e
""quadruplicate" (quadruplicar). O total até o começo das filmagens teria
sido de mil palavras,
embora não se saiba quem contou.

Seja como for, ali a Fox comprou a idéia de Claude Greneker, chefe de
imprensa de Shubert, de
que, também no dia-a-dia, Carmen deveria falar "errado" e com um cabuloso
sotaque. E, assim
como já fizera o pessoal de Shubert, os publicistas da Fox passaram a
atribuir-lhe declarações em
fonético, que distribuíam para a imprensa: "l sink you should appear not
too motch in public. On
stage, your are nizefor people. When youfeenesh, you like take offmake-up
and put easy make-up,
an" they don"t understarí" - coisas assim, quase tatibitates. Anos
depois, quando Carmen já falava
excelente inglês, os produtores da Fox insistiam em que ela continuasse
errando as concordâncias
e pronunciando os erres "latinos", bem roliços. Isso a irritava, por
condená-la aos papéis cômicos
e infantilizados e por impedir que crescesse como intérprete. A mulher
emocionalmente adulta,
bem-falante e equilibrada tinha de ser sempre a americana.

Na verdade, não era privilégio de Carmen ser vítima desse preconceito.
Para Hollywood,
nenhum negro, índio ou estrangeiro jamais conseguiu falar inglês direito.
E, no caso dos
estrangeiros, o preconceito não poupava nem os europeus. Greta Garbo
("Gifme a viski"),
Marlene Dietrich, Hedy Lamarr, Luise Rainer e Simone Simon só
interpretavam mulheres russas,
alemãs, francesas e outras nacionalidades "exóticas" - raramente
americanas. Os franceses
Charles Boyer e Maurice Chevalier nunca podiam mostrar nos filmes o
inglês sem sotaque que
falavam no dia-a-dia. E mesmo um americano como Jimmy Durante, nova-
iorquino da gema,
nascido em Little Italy, passou sua longa carreira falando como um
italiano analfabeto e recém-
chegado aos Estados Unidos.

317

No futuro, Carmen justificaria para uma amiga brasileira sua batalha para
falar direito nos filmes:

"Tentei resistir, mas não consegui." E completou, com meiguice e
tristeza: "Foi uma foda".

Entre a última semana de julho e a primeira de agosto de 1941, o estúdio
da Decca em Los
Angeles ferveu de alegria e música brasileira. Aurora gravou ali três
discos - seis faces -,
acompanhada pelo Bando da Lua e por uma dupla que "perdera" o navio em
Nova York e ficara
para trás quando a orquestra de Romeu Silva voltara para o Brasil: o
violonista Zezinho e o
pianista e arranjador Vadico. Já prevendo que a "irmã de Carmen" poderia
ter uma carreira nos
Estados Unidos, a Decca se apressou a fazer discos com ela, em português
mesmo, para o
mercado americano. No primeiro disco, Aurora gravou "A jardineira" e
"Cidade maravilhosa"; no
segundo, gravou "Aurora" (a fabulosa marchinha de Mário Lago e Roberto
Roberti para o
Carnaval de 1941) e "Pastorinhas"; e, no terceiro, "Meu limão, meu
limoeiro", folclore adaptado
por José Carlos Burle, e "Seu condutor", de Alvarenga, Ranchinho e
Herivelto Martins. A Decca
soltou os dois primeiros discos, mas resolveu segurar o último. (As duas
últimas músicas só seriam
lançadas 35 anos depois, já em LP, e apenas no Brasil).

Por aqueles mesmos dias, o Bando da Lua também gravou três discos na
Decca: "Maria boa" e
"Cansado de sambar", "Na aldeia" (de Silvio Caldas, Caruzinho e De
Chocolat) e "Lig lig lig lê"
(de Paulo Barbosa e Oswaldo Santiago), "É bom parar" (de Rubens Soares) e
"Passarinho do
relógio", com Nestor Amaral como vocalista na maioria das faces. Durante
uma semana, foi como
se eles estivessem de novo na Victor ou na Odeon, no Rio, onde gravavam
cercados de amigos,
na maior animação, e sabendo que cada disco representava um sucesso
certo. Na Decca, em Los
Angeles, por maior que fosse o entusiasmo gerado por eles no estúdio,
nada do que deixassem na
cera nem sequer arranharia a superfície do mercado americano.

Aurora ainda precisava aprender que, nos Estados Unidos, era possível .
fazer sucesso da noite
para o dia, mas, paradoxalmente, o processo que levava a isso durava
anos. (A única exceção fora
Carmen, que só precisara de uma noite - a da estréia de Streets of Paris
em Boston.) E, às vezes,
algo realizado apenas por amizade, sem intenções outras, podia render
frutos no futuro. Como o
show que Carmen, ela e o Bando fizeram para os operários da Lockheed em
Los Angeles naquele
mês de agosto, apenas porque Carmen ficara amiga de Howard Hughes nas
reuniões dominicais
na casa de Zanuck. A Lockheed estava trabalhando em segredo no projeto de
um avião para a
TWA, de Hughes - este, então, proibido pelas leis antitruste de fabricar
seus próprios aparelhos.
Hughes queria equipar sua empresa com algo mais eficaz do que os


318

Stratoliners da Boeing; então criou as linhas gerais de um novo avião,
repassou o projeto para a
Lockheed e, para fazer um agrado ao pessoal desta, pediu a Carmen que
desse um pequeno show
para eles.

Carmen deu um show completo, do qual participou Aurora - com Gabriel na
platéia, na função
de marido. Hughes, que voltara a fazer filmes e acabara de produzir O
proscrito, achou Gabriel
um tipo bom para o cinema. Gostou de seu jeito de árabe, ideal para
papéis "exóticos", e
convidou-o a tentar. Mas Gabriel agradeceu e não se interessou - além
disso, não sabia inglês
suficiente. O que gostaria de fazer era, primeiro, aprender a língua;
depois, trabalhar com
engenharia aeronáutica. Nenhum problema: dali a um ano, Gabriel faria
vários cursos técnicos na
Lockheed e trabalharia na engenharia aeronáutica da TWA.

Quanto ao avião que a Lockheed estava desenvolvendo para Hughes, o mundo
não demoraria a
chamá-lo pelo nome: Constellation.

No dia 25 de agosto, Carmen & Cia. e o Bando da Lua partiram de carro, em
caravana, para
Nova York - sem muita pressa para chegar, sabendo que Shubert só os
esperava no dia 7 de
setembro para o começo dos ensaios na revista musical Crazy house, agora
rebatizada (para
valer) de Sons o" fun. Num dos três carros, seguiam Carmen, dona Maria,
Aurora, Gabriel (ao
volante) e a mulher de Stenio, Andréa, com sua filhinha Joyce, nascida em
Hollywood um mês
antes. Carmen fizera questão de que Andréa e o neném fossem no carro com
ela, para poder
"aproveitar e segurar bastante" o bebê de quatro semanas e "ir treinando
para um dia...". (Antes
disso, Carmen já a presenteara com o enxoval completo da pequena Joyce.)
No outros dois carros
iam o Bando da Lua, com Odila e Zezinho, e mais Zaccarias Yaconelli, além
dos instrumentos do
conjunto e as bagagens de todos eles, sendo que a de Carmen, com os
malões abarrotados de
baianas, tomava todo o espaço de um porta-malas.

A idéia de atravessar de automóvel os 4500 quilômetros do percurso Los
Angeles-Nova York
era a de "conhecer os Estados Unidos". O que eles fizeram num espírito
meio de farra, rindo muito,
parando pelo caminho (às vezes, parando para rir) e levando dez dias para
cobrir um percurso
que teria tomado cinco. Como se, no fundo, achassem que sua estada no
país não era para valer -
ou como se estivessem de passagem e não pudessem perder aquela
oportunidade de conhecê-lo.

Menos Carmen. Ela não disfarçava a má vontade com que, forçada por um
contrato, estava
voltando para Nova York. Passara a preferir Hollywood à Broadway, e,
depois de dez meses
seguidos em Los Angeles, acostumara-se aos dias de sol, que lhe permitiam
manter o bronzeado
que trouxera do Rio, e às noites amenas e azuis da Califórnia - o
suficiente para detestar o gelo e
a aspereza que a esperavam em Nova York pelos próximos meses.


319

Foi ali também que tomou completa consciência de como seu contrato com Shubert a
escravizava - e de
como precisava que a Fox a ajudasse a se livrar dele.

Em Nova York, conseguiu pelo menos recuperar sua antiga cobertura no
252 andar de Central Park West, 25, onde se instalou com dona Maria,
Aurora, Gabriel e Odila, e
onde se exercitava pulando corda no terraço e dançando ao som de seus
próprios discos. Os
homens de Shubert tinham escrito a George Frank garantindo que, até a
estréia de Sons o" fun,
marcada para dezembro, Carmen se limitaria aos ensaios e poderia
descansar um pouco. Mas eles
pareciam incapazes de resistir a uma proposta para ela.

Em 9 de setembro, apenas três dias depois da chegada, Carmen e o Bando já
estavam no estúdio
da Decca em Nova York para gravar três faces: "Rebola, bola" (que ela
cantava em Aconteceu
em Havana), "The man with the lollipop song" (um pseudo-samba em inglês,
de Harry Warren e
Mack Gordon, também cantado no filme, mas por uma voz masculina anônima)
e a deliciosa "Diz
que tem", de Vicente Paiva e Aníbal Cruz, que nada tinha a ver com o
filme e que ela gravara no
Brasil apenas um ano antes, numa de suas últimas sessões na Odeon.
(Então, por que regravá-la?
Porque era uma batucada e lhe permitia cantar acelerado:

Ela diz que tem

Diz que tem, diz que tem

Diz que tem, diz que tem

Diz que tem, diz que tem

Tem cheiro de mato, tem gosto de coco

Tem samba nas veias, tem balangandãs.

Àquela altura, Carmen já contava com dezoito faces de discos gravadas nos
Estados Unidos,
distribuídas em três álbuns com três 78s cada um (South American way,
That night in Rio e Week-
end in Havana). Mas de que lhe adiantavam? O sucesso dependeria de a
Decca trabalhá-la junto
às rádios, como as outras gravadoras faziam com suas contratadas. Os
homens de Shubert viviam
mordendo os calcanhares de Jack Kapp, presidente da Decca, porque,
segundo os contratos, a
cada dólar que coubesse a Carmen, proveniente da venda dos discos,
correspondia um igual para
Shubert - e os discos estavam faturando muito pouco. A Decca explicava
que os lojistas
demoravam para prestar contas e, no nível de vendas de Carmen, ainda
muito baixo, os royalties
eram assim mesmo, quase insignificantes.

Na verdade, o público americano via Carmen muito mais como uma comediante
de cinema (que
eventualmente cantava) do que como uma cantora de discos. Não era a única
a ser vista assim.
Exceto Jeanette MacDonald, nenhuma das atrizes cantoras era grande
vendedora de discos - e
nesse rol se incluíam Mae West, Martha Raye, Ginger Rogers, Deanna Durbin
e a própria Judy
Garland.


320

No final de setembro, dona Maria tomou o navio para o Rio a fim de ficar
um pouco com Cecília,
Mocotó e Tatá, seus outros filhos que também precisavam de cuidados. Quem
a acompanhou
nessa viagem foi Yaconelli, que iria ao Brasil pela primeira vez desde
1922 - com passagem
paga por Carmen em troca de sua escolta de dona Maria. (No Rio, Yaconelli
até que não se daria
mal: cativou Joaquim Rolla de tal forma que se tornou diretor artístico
da Urca e de outros
cassinos do empresário.)

Por ter viajado, dona Maria não assistiu à estréia de Carmen no
WaldorfAstoria e perdeu a
oportunidade de ver o aplomb com que sua filha circulava na alta-roda.
Shubert vendera Carmen
para uma temporada de dois shows por noite no Waldorf durante três meses
antes da estréia de
Sons o"fun - era essa a sua idéia de "descanso" para ela.

Entre os hóspedes do eclético Waldorf naquela temporada estavam o amigo
de Carmen, Nelson
Seabra (muito elegante, de silhueta e bigodinho impecáveis), o duque e a
duquesa de Windsor,
Cole e Linda Porter, e a lendária Virgínia Hill, que se dizia herdeira de
um tubarão do petróleo
em Houston, Texas, mas cuja turma consistia de Joe Fischetti (irmão de
Charlie Fischetti, do Chez
Paree, de Chicago, lembra-se?) e de "Bugsy" Siegel, o gângster favorito
de Hollywood, que seria
morto na casa de Virgínia (vizinha à de Carmen) em Beverly Hills, em
1947. Quanto mais perto do
topo, menor o mundo - e, em certas noites, este parecia estar
integralmente ao redor do palco de
Carmen.

Nelson Seabra era amigo de Ali Khan, o misto de príncipe muçulmano e
playboy internacional,
filho do idem, ibidem Agá Khan. Nelson e Ali circulavam pelo planeta como
se estivessem em
seus quintais. A diferença era que Ali Khan era um homme àfemmes - talvez
inexpressivo
fisicamente, mas com um charme e uma fortuna que o tornavam um grande
partido (seria marido
de, entre outras, Rita Hayworth).

Levado por Nelson, Ali foi conhecer Carmen em seu camarim no Waldorf.
Nelson nunca
comentou o que ele teria achado dela. Mas divertia-se contando o que ela
achou dele:

"Se aquilo é príncipe, meu eu é um pêssego da Califórnia!", disse Carmen.

Outra que prestigiou aquela temporada de Carmen no Waldorf foi Alzira
Vargas, a filha do
ditador brasileiro. Não se sabe se discutiram a malfadada noite de 19 de
julho de 1940, promovida
por dona Darcy na Urca - ou se, pelo menos, comentaram as implicações
políticas. Talvez não
houvesse mais motivo para isso, porque, um ano depois, o governo Vargas
já se entregara de
peito e portos abertos aos Estados Unidos, em troca de uma siderúrgica em
Volta Redonda e
muitas outras vantagens. Alzirinha contou a Carmen que Uma noite no Rio
acabara de estrear nos
cinemas do Rio sob críticas favoráveis, inclusive a do respeitado Mário
Nunes, no Jornal do
Brasil. Carmen não pareceu se impressionar - sua decepção com o filme
fora pessoal.

"Talvez, um dia, Hollywood faça um filme de verdade sobre o Brasil",

321

ela disse. "Quem sabe se depois que eu já tiver feito uns três ou quatro
filmes por aqui, e puder dizer o
que eu quiser... O Brasil tem coisas lindas, que tenho certeza que os
americanos iriam gostar de
conhecer."

Uma delas estava para ser mostrada por aqueles dias, e em Nova York
mesmo.

"Noforget! Tomorrow... Aurora!"

Era esse o anúncio do Copacabana, o mais novo nightclub de Manhattan, que
seria inaugurado no
dia seguinte, 12 de outubro de 1941, no número 10 da Rua 60 Leste. Aurora
seria sua primeira
grande atração. Não "Aurora Miranda" - nada de Miranda N. 2 -, mas apenas
Aurora, embora a
identidade da cantora fosse segredo de polichinelo (todos sabiam que se
tratava da irmã de
Carmen). O erro na primeira frase do anúncio - "Noforget", em vez de
"Don"t forget" - também
fora de propósito e destinava-se a identificar uma cantora "latina"... Na
verdade, poderia também
se referir ao declarado proprietário do Copacabana, o empresário Monte
Proser - ele próprio,
um homem de ternos caros, mas rústico, "espontâneo", com pouca intimidade
com a gramática.

Os luminosos na fachada diziam MONTE PROSER"S COPABACANA e, em todos os
documentos, Proser aparecia como principal acionista e presidente da Chip
Corporation, que
controlava a boate. Mas esse era outro segredo de polichinelo. Por trás
dele estava o discreto
Frank Costello e, por trás deste, o mais discreto ainda "Lucky" Luciano.
Os dois dominavam o
contrabando de pedras preciosas em grande parte dos Estados Unidos e
integravam toda uma
cadeia de capi mafiost, para quem operações como o Copacabana eram quase
nada em termos de
faturamento, mas convenientes, por oferecerem uma fachada legal. Quanto a
trabalhar para eles,
não havia nada de incomum nisso: quase toda a atividade noturna nos
Estados Unidos estava
sujeita a uma família italiana, irlandesa ou judaica. Raríssimos os
músicos ou cantores que,
diretamente ou através de seus agentes, não tivessem de lidar com o crime
organizado.

Proser era fã de Carmen e fora inspirado nela que criara o Copacabana. O
visual tropicalista da
boate era a prova disso. Na sala em que se sentavam quatrocentas pessoas,
a decoração de
palmeiras sugeria o Rio. Havia duas orquestras "latinas" que se revezavam
e as coristas usavam
turbantes. O nome Copacabana fora tirado não apenas da praia carioca, mas
do hotel
Copacabana Palace, cujo "proprietário", Jorginho Guinle, era também amigo
de Proser e de seu
lugar-tenente, Jack Entratter. O natural seria que Carmen inaugurasse o
Copacabana, mas, pelo
visto, não houve acordo com Shubert. Portanto, se não tinham Carmen,
iriam de Aurora (com o
Bando da Lua), o que não deixava também de ser interessante -
especialmente porque Carmen
reservara toda a primeira fila, numa noite de estréia cheia de gente de
sociedade. E, com isso,

322

Aurora estava começando na América pelos nightclubs - três shows por
noite, às oito, à meia-
noite e às duas da manhã -, como Carmen queria que acontecesse.

O difícil era concorrer com a própria Carmen, que, com o sucesso dos
filmes e com seu novo
domínio da língua, arrastava casas lotadas todas as noites ao Waldorf.
Nessa temporada, numa
noite em que o show dera lugar a um jantar beneficente com a participação
de Bob Hope, Eddie
Cantor e Joe E. ("Boca-larga") Brown, Carmen roubou o espetáculo e só
faltou levar o cenário
com ela, para espanto daqueles profissionais. Estava se transformando
numa artista como eles,
sabedora de todos os truques e de mais alguns que eram só dela. Em
outubro, Carmen foi ao
programa de rádio de Fred Allen na rede ABC - um programa de muito texto,
com perguntas e
respostas estalando como chicotadas e sendo Allen um dos maiores wits
americanos. (Era o autor
da frase: "Um cavalheiro é um homem que jamais bate numa mulher sem antes
tirar o chapéu".)
Pois Carmen se saíra também às maravilhas, na opinião de um colunista que
podia ser seu fã, mas
que não costumava perdoar maus desempenhos ao microfone: Walter Winchell.

Tanto nos shows como no rádio, Carmen tentava explicar o que eram o samba
e a música popular
brasileira; que sua roupa era uma fantasia e que as mulheres brasileiras
não se vestiam como ela;
que não falávamos espanhol e não gostávamos de ser confundidos com os
outros sul-americanos.
Mas o que desarmava todo mundo e enternecia quem a escutasse eram sua
candura e o seu jeito
de autodepreciar-se. Quando um repórter lhe pediu que contasse como
conseguia cantar em alta
velocidade, aparentemente sem engolir as sílabas, e se isso se devia a um
treino especial de voz,
Carmen respondeu:

"Não, eu não tenho voz nenhuma. O que eu tenho é bossa."

Na segunda quinzena de novembro, Carmen deixou o Waldorf porque, assim
como acontecera
com Streets of Paris, Sons o"fun teria uma semana de tryouts em Boston
antes de chegar à
Broadway. Naquela primeira vez em Boston, apenas dois anos antes, o nome
de Carmen nem
constava da fachada do teatro. Agora, podia-se ler CARMEN MIRANDA
piscando em luzes
coloridas, letras maiúsculas e acima do título nos dois lados da Tremont
Street: primeiríssima e
absoluta na marquise do Shubert Theatre, com Sons o"fim, e, na do cinema
defronte que exibia
Aconteceu em Havana, abaixo apenas do nome de Alice Faye, mas acima do de
John Payne e
César Romero. E, como a garota deslumbrada que, no fundo, ainda era,
Carmen deixou-se
fotografar entre os dois luminosos e mandou as fotos para dona Maria no
Rio.

No dia 1 de dezembro de 1941, Sons o"fun estreou para 2 mil pessoas no
Winter Garden Theatre,
na Broadway, entre as Ruas 50 e 51. E, para variar, enfrentando uma
concorrência braba: num
espaço de poucos quarteirões da vizinhança,

323

podia-se escolher entre as comédias Arsemc and olá lace, de
Joseph Kesselring, com
Boris Karloff, e Blithe spirit, de Noèl Coward, com Clifton Webb; os
musicais Banp eyes, de
Vernon Duke e Jean Latouche, com Eddie Cantor, e Lefsface U, de Cole
Porter, com Danny
Kaye; e um revival da ópera negra Porgy and Bess, de George e Ira
Gershwin e DuBose
Hayward, com Todd Duncan, o Porgy original de 1934. Um ingresso na
platéia para qualquer
uma dessas atrações saía a menos de cinco dólares.

Para Carmen, Sons o"fun não foi uma explosão como a de Streets of Paris,
embora ela fechasse o
primeiro ato dançando um samba com Vadeco. E nem poderia ser. Primeiro,
porque ela já era
conhecida. Depois, porque essa era uma revista tipicamente Olsen &
Johnson, e os que
sobreviveram a qualquer produção da dupla sabiam o que isso significava.
Eles foram os
precursores do que, décadas depois, se chamaria de "teatro de agressão" -
só que em nome do
humor - e do besteirol. Nos seus espetáculos, os números não tinham
nenhuma coerência, exceto
a loucura, e a ação não se limitava ao palco. De repente, atores e
figurantes saíam correndo uns
atrás dos outros, metiam-se pela platéia, e os espectadores levavam
arroz, tomate e ovos pela
cara. Refeitas do susto, as pessoas voltavam a se sentar e encontravam
aranhas e lagartixas sobre
os assentos (custavam a perceber que eram de borracha). Ou, então, o
teatro ficava às escuras e as
senhoras eram cutucadas por homens fantasiados de orangotango. Enquanto
essa balbúrdia se
dava na platéia, no palco se passava uma farsa tão hilariante quanto
irresponsável, algo entre
Kafka e os Três Patetas, com toques de dadaísmo e circo, e um elenco de
mais de cem atores
cantando, dançando ou plantando bananeiras. (Jerry Lewis testara para um
papel em Sons o"fun e
fora recusado. Talvez por sua idade na época: quinze anos. Mas a idade
mental do espetáculo, e
da platéia, não ia muito além disso.)

O maior sucesso de Olsen & Johnson, como produtores e atores, fora
Hellzapoppin" (leia-se Hell
is popping, ou "o inferno está fervendo"), que ficara de
1938 a 1940 no mesmo Winter Garden e estava sendo levado para o cinema
pela Universal (no
Brasil, o filme se chamaria Pandemônio). Apesar da grossura, a dupla
caprichava na parte musical
de seus espetáculos, e os compositores em Sons o"fun eram os consagrados
Sammy Fain e Jack
Yellen. Fain era um autor de melodias delicadas, como "IT1 be seeing
you", "You brought a new
kind of love to me" e "By a waterfall". O veterano Jack Yellen escrevia
letras picantes para
Sophie Tucker, mas era mais famoso pela ingênua "Ain"t she sweet". As
três músicas da dupla para
Carmen em Sons o"fun não fizeram nada por ela: "Thank you, North
America", "Tête à tête" e
"Manuelo". E o outro destaque do elenco, a cantora escocesa Ella Logan,
logo abaixo de Carmen
na marquise, teria de esperar seis anos para se consagrar no musical
Finian"s rainbow.

Numa das primeiras noites de Sons o"fun, Victorino de Carvalho (Marcos
André), amigo de
Carmen no consulado de Nova York, levou aos camarins um diplomata
brasileiro de passagem
que queria conhecê-la. Carmen estava cercada


324

de dez coristas, todas empenachadas e seminuas. O diplomata se
inclinou e beijou a mão de
cada uma, como se estivesse numa recepção de gala entre os cisnes do
Itamaraty, no Rio, e não
nas duvidosas premissas de Olsen & Johnson. Uma das garotas não se
conteve e exclamou:

"Wow! What a kisser!"

Mas Carmen, sentindo uma soupçon de homossexualismo nos modos do
diplomata, esculachou
logo com a solenidade da cena:

"Hei, kisser! Você é mesmo da beijoca, hein?"

Na manhã de 7 de dezembro, com Sons o"fim em cartaz havia apenas seis
dias, o Japão atacou a
base americana em Pearl Harbor, no Havaí. Ecoando os sentimentos de seus
patrícios ingleses,
que vinham sustentando a batalha sozinhos por dois anos, Noêl Coward
comentou:

"Bem feito. Talvez agora [os americanos] se convençam de que esta guerra
é também deles."

Até então, o conceito popular nos Estados Unidos era que os americanos
não tinham nada com as
eternas querelas européias e deviam ajudar a Inglaterra em tudo, menos
mandando seus rapa/es
para a luta. Pearl Harbor retificou esse equívoco.

Os Estados Unidos declararam guerra ao Japão; a Alemanha e a Itália
declararam guerra aos
Estados Unidos; e a Broadway, com a queda de seus negócios entre 25% e
40%, também
declarou sua guerra particular ao Eixo. Uma das primeiras medidas (e das
mais generosas) foi a
criação, em março de 1942, da Stage Door Canteen, um centro de
convivência entre civis e
militares em Nova York. Era um misto de restaurante e nightclub para toda
espécie de soldados
em uniforme - de todos os postos e armas, homens ou mulheres e, pode
crer, brancos ou negros
- com comida, bebida e diversão grátis fornecidas pelos artistas em
cartaz na cidade. Tanto
assim que, numa noite, podia-se ir à cantina e ouvir Gertrude Lawrence
cantar os sucessos de seu
musical Lady in the dark, como "This is new", "The saga of Jenny" ou "My
ship", depois dançar
com aquela nova lourinha da Broadway, June Allyson, ou ter um rabo-de-
galo servido pelas mãos
de Francês Farmer. Quem se metesse pela cozinha arriscavase a flagrar
Tallulah Bankhead
lavando pratos ou Katharine Hepburn fritando bolinhos - em tese, pelo
menos. A Stage Door
Canteen de Nova York foi a primeira instituição do gênero nos Estados
Unidos e inspirou
dezenas de outras durante a guerra. Ficava no porão do 44th Street
Theatre, gentilmente cedido
por seu proprietário - adivinhe quem: Lee Shubert.

Não há registros sobre Carmen ter atuado na Stage Door Canteen. Mas, como
está registrada sua
participação na Hollywood Canteen, que seria criada dali a meses, e como
se supõe que Shubert
tenha estimulado seus contratados a apoiar a cantina de Nova York, não
pode haver dúvida
quanto à passagem

325

de Carmen por ela - e por todas as bases e agrupamentos a que a
convidariam a partir dali.

A mobilização para a guerra estava agora em toda parte. Poucos dias
depois de Pearl Harbor,
Gilberto Souto ligou de Los Angeles para Carmen em Nova York. Queria
saber se o blecaute
comprometeria o funcionamento dos teatros em Manhattan e quando ela
estaria de volta a
Hollywood. No que Carmen começou a responder, a ligação foi interrompida
por uma telefonista
do Departamento de Defesa, encarregada de "acompanhar" as conversas em
línguas não
facilmente identificáveis. A telefonista queria saber se Gilberto e
Carmen estavam falando em
japonês.

Mas, de algum jeito, a vida prosseguia. Em janeiro de 1942, Shubert
vendeu Carmen (e o Bando
da Lua) para cinco shows diários de vinte minutos no Roxy Theatre nos
intervalos de um filme,
durante duas semanas. Isso, sim, era um massacre - porque a temporada era
simultânea à de Sons
o"fim. O primeiro show no Roxy começava às dez da manhã; o último, às
seis da tarde, terminando
pouco antes da sua entrada em cena em Sons o"fim às oito; e, como sempre,
todo o intervalo entre
um show e outro tinha de ser dedicado à maratona de banho, maquiagem e
novas roupas, mal
sobrando alguns minutos para relaxar. Não é improvável que a rotina da
Benzedrine - que
Carmen parecia ter deixado de lado em Hollywood - tenha sido retomada
nesse período. Mas
havia outra coisa, além dos medicamentos, a estimular Carmen para esse
trabalho, e a fazer com
que ela não o visse como uma exploração. Era o Roxy em si - a sua magia.

O Roxy, construído em 1927 pelo empresário S. L. "Roxy" Rothapfel na
esquina da Rua 50 com a
Sétima Avenida, era uma mistura de cinema e templo gótico, pagão ou
religioso, com Gloria
Swanson como sua grã-sacerdotisa - porque era ali que, no passado, ela
lançava os seus filmes.
Em matéria de números, era espetacular: tinha 5920 lugares, seis
bilheterias, 120 recepcionistas de
black-tie, um foyer com a cúpula à altura de um quinto andar, três
consoles para grandes órgãos,
um jogo com 21 sinos de catedral, um corpo de cinqüenta bailarinos, um
coro de cem vozes e uma
sinfônica com quatro maestros e 110 músicos. O mote de Rothapfel era:
"Não dê ao público o que
ele quer. Dêlhe coisa melhor".

Com Carmen e o Bando da Lua no palco, todos aqueles músicos, cantores e
bailarinos podiam
passar a semana em casa. Mas, apesar do gigantismo do cinema, os camarins
do Roxy eram
pequenos - pelo menos para Carmen, com suas cinco trocas diárias de
roupa, o que a obrigava a
transportar malas enormes. (Alguns de seus turbantes eram tão pesados que
ela não podia se
curvar para agradecer os aplausos - tinha de fazer isso com os olhos e as
mãos.) Aurora, que só
trabalhava à noite no Copacabana, ia às vezes com Carmen para o Roxy, mas
se irritava ao ver
como sua irmã, com um nome daquele tamanho, se submetia à mesquinharia
dos camarins. Outra
coisa incompreensível para Aurora era como, com a quantidade de
maquiadoras à sua disposição,
tanto ali


326

quanto na Fox, Carmen não abria mão de fazer sua própria maquiagem -
desenhando a boca de
modo a formar dois arcos no lábio superior e ampliando o de baixo para
que parecesse mais
grosso do que realmente era. Carmen achava que ninguém fazia sua boca
como ela.

Ao fim de cada apresentação de Carmen, Rothapfel postava dezenas de
discretos seguranças nas
laterais do palco, o que não impedia que muitas espectadoras subissem
para apalpar-lhe a baiana
e descobrir de que materiais era feita. À saída do cinema, esse controle
era mais difícil e Rothapfel
precisava da ajuda da polícia para escoltar Carmen no percurso entre o
Roxy e o Winter Garden
- na mesma esquina, quase de frente um para o outro, o que tornava sem
sentido usar o carro,
embora fosse complicado de transpor a pé. Carmen tinha de sair pelos
fundos do cinema para
chegar ao teatro e ser fortemente protegida, para não ter suas roupas
rasgadas em busca de
souvenirs.

Os shows do Roxy lhe rendiam 4 mil dólares por semana (na verdade, 2 mil,
depois de descontado
o de Shubert). Por sua participação em Sons o"fun, Carmen recebia mil
dólares por semana -
numa defasagem quase imoral entre o que seu patrão lhe pagava e os preços
que se praticavam
fora do seu império. E os valores para o Bando da Lua eram ainda mais
ridículos: Shubert pagava
a cada membro sessenta dólares por semana, exceto a Aloysio de Oliveira,
que levava oitenta. É
óbvio que o faturamento do Bando era bem maior que isso, mas não graças a
Shubert.

As dissensões no Bando, ensaiadas várias vezes no Rio, tomavam agora
contornos definitivos.
Começavam pela insatisfação de vários deles quanto aos créditos que
tinham recebido nos filmes.
Em Serenata tropical, eles saíram como "The Carmen Miranda band", e,
mesmo assim, só nos
letreiros finais. Fora um amargo desapontamento. Em Uma noite no Rio, o
Bando apareceu nos
créditos principais, mas como Banda da Lua e com o adendo, entre
parênteses, de "Carmen
Miranda"s orchestra". E, em Aconteceu em Havana, o nome do Bando não fora
sequer citado,
embora eles surgissem com destaque logo na primeira seqüência - mas
fantasiados de cubanos,
com mangas bufantes e farfalhantes, acompanhando Carmen na rumba-título
em inglês e com
Aloysio tocando um degradante chocalho. Eles bem podiam imaginar a
revolta de seus amigos
cariocas ao vê-los daquele jeito. E havia a história de que o Bando da
Lua era chamado de
Miranda"s Boys. Embora isso só acontecesse na intimidade - nunca apareceu
impresso em
nenhum cartaz -, já era bastante para diminuí-los.

O principal racha partiu de Hélio. O violonista achava que o Bando
deveria conservar sua
ambição musical e lutar por projetos próprios, como no Brasil, onde
cantavam de temas do
folclore brasileiro a sambas de morro e de músicas americanas à última
marchinha do Carnaval.
Além disso, havia a possibilidade de faturar mais se buscassem trabalho
fora de Carmen. Mas
Aloysio achava que precisavam ficar à disposição de Carmen, e tinha com
ele os votos dos
irmãos Ozorio (Nestor Amaral ainda não palpitava). Hélio então preferiu

327

sair. Venceu todos os argumentos dos colegas, pagou uma multa a Shubert e
desligou-se
oficialmente do conjunto. Mas não voltou para o Brasil. Continuou em Nova
York, onde arranjou
emprego na cadeia de rádio NBC como programador musical e teria um
programa de jazz por
muitos anos.

Outro que concordava em tudo com Hélio, e ainda tinha motivos
particulares para se desligar, era
o pandeirista Vadeco. Entre esses motivos incluía-se voltar ao Rio. Não
que não gostasse da vida
em Nova York. Aliás, sentia-se tão em casa na cidade que, ao passar por
uma garota brasileira
conhecida, não tinha o menor pudor de berrar de um lado a outro da rua:
"Querida! Xuxu! Meu
amor!". Foi o que fez com a estudante Barbara Heliodora, filha de Ana
Amélia e Marcos Carneiro
de Mendonça, que, aos dezoito anos, fora estudar em Nova York. E ela
gritou do outro lado: "Oi,
Vadeco! Quê que há?". Os nova-iorquinos, desabituados a essas efusões, se
entreolhavam.

Mas Vadeco recebera cartas do Brasil informando que sua mãe estava muito
doente - e, filho
extremado, não sossegou enquanto não rescindiu o contrato com Shubert e
tomou um navio para o
Rio. Por causa da guerra, os cruzeiros estavam praticamente interrompidos
e Vadeco teve de se
valer de um vapor argentino que zarparia superlotado de New Orleans - no
qual só conseguiu
embarcar porque o comandante o reconheceu de antigas temporadas do Bando
da Lua em
Buenos Aires. Ao chegar ao Rio, Vadeco constatou que sua mãe, felizmente,
melhorara.
(Melhorara tanto, aliás, que viveria mais
41 anos e só morreria aos 99, em 1983.)

Por isso, havia no Bando quem acreditasse - Stenio era um - que Vadeco só
resolvera sair às
pressas dos Estados Unidos porque, com a entrada do país na guerra, ele,
como qualquer
estrangeiro residente, poderia ser convocado. Vadeco sofrera de tifo em
criança e perdera o olho
esquerdo. Se achava que isso seria suficiente para desobrigá-lo de
servir, descobriu o contrário
quando teve de se apresentar no 257- Centro de Alistamento de Los
Angeles. Os homens o
examinaram e disseram que isso até facilitaria sua mira no fuzil. (E o
pior é que era verdade: nos
mafuás do Lido carioca ou de Coney Island, ninguém o derrotava no tiro
aos pratos.) Mas Vadeco
não estava a fim de tocar pandeiro para uma metralhadora alemã. Fugindo
por New Orleans, só
respirou quando se viu a bordo e, quase um mês depois, atracou na praça
Mauá.

No Rio, Vadeco reencontrou sua ex-namorada Haydée, filha do dramaturgo
Joracy Camargo, e
que estava noiva do português Sebastião, dono de uma gráfica na Cidade. O
reencontro de
Vadeco e Haydée foi fulminante. Ela rompeu o noivado, os dois firmaram
compromisso, e Vadeco
mandou imprimir os convites de casamento. Mas, sem saber, contratou
justamente os serviços da
gráfica do português - que só a custo foi convencido de que era uma
coincidência e que Vadeco
não tivera intenção de tripudiar.

Para o lugar de Hélio, Aloysio chamou o violonista Zezinho. Para o de
Vadeco, o pianista e
arranjador Vadico. A formação pública do Bando não


328

comportava um piano e, assim, nas filmagens e nos shows, Vadeko participava
como pandeirista - e
reservava o piano e os arranjos para os ensaios e gravações. Dos seis que
tinham embarcado
originalmente com Carmen, só restavam três: Aloysio - o novo líder
inconteste do Bando - e os
irmãos Stenio e Affonso. E os desfalques não parariam por aí.

Enquanto o Bando da Lua se dividia e se dissolvia aos olhos de Carmen,
outro símbolo inicial de
sua aventura americana encontrava um triste destino: o navio francês
Normandie, onde, apenas
três anos antes, Shubert a recebera para discutir as bases de sua
carreira na Broadway.

O Normandie estava estacionado em Nova York quando Hitler ocupou Paris,
em junho de 1940.
Os americanos, com toda a razão, não viram motivo para lhe mandar o navio
e o apreenderam,
mas conservaram-no intacto, flutuando na baía. Com a entrada dos próprios
Estados Unidos na
guerra, em 7 de dezembro de 1941, tomaram posse oficialmente dele, mas,
já aí, com as piores
intenções. O Normandie foi despido do seu luxo de 60 milhões de dólares
para ser transformado
no Lafayeite, um navio de transporte de tropas, com capacidade para 15
mil soldados. Mas só
houve tempo para a primeira operação. Em 9 de fevereiro de 1942 - no dia
em que Carmen
completava 33 anos -, um operário desastrado, usando uma tocha de
acetileno, pôs fogo sem
querer num depósito de coletes salva-vidas no deque superior. O incêndio
se espalhou e os
bombeiros de Nova York, contrariando os apelos do designer do navio,
Vladimir Yourkewitch,
completaram o desastre: jogaram tanta água dentro do Normandie que ele
começou a adernar
para um dos lados. Em poucas horas, acabou de virar, arriou pesadamente e
se deixou ficar como
um gigantesco animal morto, preso à lama do fundo da baía e com metade do
corpo fora d"água.
Nunca mais flutuou.

Se aquilo valia por uma metáfora, fora no Normandie que Carmen lutara por
ela e pelo Bando da
Lua junto a Shubert. Agora, junto com o Normandie, metade do Bando da Lua
já não existia.
Restava a Carmen lutar por si mesma.

O enorme sucesso de Uma noite no Rio e Aconteceu em Havana fizera a Fox
pensar em antecipar
para julho a filmagem de Minha secretária brasileira. Havia também o fato
de que o estúdio se
arriscava a ficar sem seus galãs, todos sujeitos a embarque para um front
da guerra. A ordem de
Zanuck era pô-los para rodar o máximo de filmes que pudessem enquanto não
fossem mobilizados
- como ele, Zanuck, estava fazendo, ao mesmo tempo que se preparava para
largar seu estúdio e
também embarcar. Mas Carmen continuava presa a Shubert por um contrato
que poderia ser
indefinidamente prorrogado enquanto ele exercesse suas opções. No começo
de maio, com
Carmen ainda em Sons o'fun,


329

começou o assédio. Para Shubert, era óbvio que a Fox queria contratar
Carmen em bases
permanentes, não mais filme a filme. Então a liberou para aquele filme,
na certeza de que,
amarrada como estava a um contrato, ela teria de voltar sempre que ele a
convocasse. Mas
preparou-se para a batalha que precisaria travar para conservar sua
descoberta.

Em 21 de maio, George Frank escreveu a Shubert comunicando-lhe que Carmen
queria comprar
seu contrato, que tinha mais um ano para vencer. Harry Kaufman, um dos
advogados de Shubert,
respondeu propondo que isso seria possível, ao custo de 75% dos próximos
100 mil dólares que
Carmen ganhasse da Fox ou de quaisquer fontes. Antes que Frank
classificasse a proposta de
extorsiva - o que ela era -, Kaufman argumentou por escrito:

"No presente momento, o senhor Shubert detém 25% de todos os rendimentos da
senhorita Miranda. Isso
seria revertido de modo a fazê-lo deter 75% nos primeiros 100 mil dólares
em todos os
rendimentos [da senhorita Miranda] nos próximos dois anos. Quando se
considera que, neste momento,
o senhor Shubert faz jus a 36 mil dólares somente do compromisso da senhorita
Miranda com a 20th
Century-Fox, a proposta parece mais que razoável".

Frank não achou razoável, mas Zanuck, o principal interessado na
liberdade de Carmen, não
queria que a pendenga se arrastasse a perder de vista. A questão foi
resolvida com o pagamento
à vista de 60 mil dólares pela 20th Century-Fox, mais a parte de Shubert
no restante do
compromisso de Carmen com o estúdio na filmagem de Minha secretária
brasileira e a
concordância de Carmen em não se apresentar em Nova York até 12 de
outubro de 1942 e em
Filadélfia, Baltimore, Washington, Detroit, Pittsburgh e Cleveland até
janeiro de
1943, cidades que ainda estariam levando Sons o"fun.

Em 23 de julho, Shubert, tendo lucrado tudo que esperava e podia,
concordou em terminar suas
relações contratuais com Carmen. Os papéis começaram a ser assinados. No
dia 6 de agosto de
1942, Carmen estava livre de Shubert para sempre.

Sua vida, a partir de agora, rolaria a 24 quadros por segundo e seria na
Califórnia. O contrato com
a Fox previa dois filmes por ano, com três meses para cada um, e quatro
semanas para retakes,
num total de sete meses. Outros dois meses, obrigatoriamente dezembro e
janeiro, podendo
estender-se a fevereiro, ficavam reservados para uma temporada no Roxy,
em Nova York, com
shows acompanhando os grandes lançamentos do estúdio para o fim do ano.

Sobravam a Carmen três meses por ano para cuidar da vida - namorar, tomar
sol, contar o
dinheiro, fazer planos ou não fazer nada. Mas a guerra eliminou essa
última possibilidade.



Capítulo 19

1942

Boa vizinhança de araque



Ao chegar a Hollywood em maio, para começar os trabalhos em Minha
secretária brasileira,
Carmen mal reconheceu o território. Com a entrada dos Estados Unidos na
guerra, muita coisa
tinha mudado. Astros que ela nunca julgara capazes de tal bravura estavam
lindíssimos de
uniforme - Tyrone Power, seu colega na Fox, fora dos primeiros a se
alistar - e estrelas como
Lana Turner, que, outro dia mesmo, nem sabiam onde ficava a Europa,
discutiam o cerco de
Stalingrado. Na praia, até as crianças enfiadas em bóias de cavalinho
estavam de olho no
horizonte - para o caso de um submarino japonês botar o periscópio para
fora.

Havia mudanças funcionais, também. A hora de entrar no estúdio fora
antecipada para as seis e
meia da manhã. Trabalhava-se enquanto houvesse luz natural, às vezes até
sete da noite, e
ninguém protestava. As filmagens em locação, que exigiam o deslocamento
de dez ou doze
caminhões, foram canceladas para poupar combustível. Antes, excesso;
agora, escassez: os
estúdios passaram a economizar eletricidade, gasolina, madeira, carvão, e
até pregos - Carmen
precisou poupar os grampos de seus turbantes. Nos dias de folga, os
técnicos produziam filmetes
de propaganda para o governo e os atores iam distrair tropas nas bases
militares. À noite, as
deusas vestiam o avental xadrez ou o vestidinho rendado e serviam
costeletas ou dançavam com
os soldados na Hollywood Canteen. À uma da manhã, tudo já fechara - até
mesmo o Ciro"s, o
Mocambo, o Trocadero e o Cocoanut Grove. Era a guerra. Pela primeira vez
em sua história, a
cidade do cinema estava pensando em alguma coisa que não fosse em si
mesma.

Ou assim parecia. Os jornais especializados, tipo Variety, falavam da
adesão de Hollywood à
Política da Boa Vizinhança com os países das Américas Central e do Sul -
produzindo uma linha
de filmes "latinos" para estimular o pan-americanismo. Tais filmes, ao
mesmo tempo que fariam um
agrado àqueles mercados, compensariam a perda de cerca de milhares de
poltronas nos onze
países da Europa e da Ásia dominados pelo eixo Alemanha-ItáliaJapão e que
já não compravam
filmes americanos. Essa era a idéia, lançada em fins de 1940 pela
Coordenadoria de Negócios
Interamericanos - o Birô, dirigido por Nelson Rockefeller. Mas, se a dita
política estava sendo
adotada em Hollywood, os resultados, até ali, eram pífios.

331

Em meados de 1942, entre os grandes estúdios, somente a Fox parecia se
dedicar a produzir esse
gênero de filmes e, mesmo assim, porque tinha Carmen Miranda. Para os
três maiores - a MGM, a
Warner e a Paramount -, não fazia o menor sentido rodar filmes com
temática "latina" para
conquistar mercados como Cuba, México, Argentina ou Brasil. Esses
mercados já estavam
conquistados havia décadas e suas platéias, mais do que familiarizadas
com as temáticas norte-
americanas - se um garoto argentino ou brasileiro tivesse de citar o nome
de um índio, dez
contra um como citaria o cacique Touro Sentado em vez de um dos seus
próprios tapuias.

Entre os estúdios menores, o único interessado no assunto era a RKO, e
nem podia ser diferente. A
RKO era o ramo cinematográfico da RCA (Radio Corporation of America), a
gigante pioneira da
radiocomunicação, parcialmente controlada pela família Rockefeller e por
seu membro mais
visível - Nelson, o chefe do Birô. Donde, se um estúdio estava obrigado a
dar o exemplo de
adesão à Política da Boa Vizinhança, só podia ser esse.

Assim, Nelson Rockefeller convenceu Walt Disney (cujos filmes eram
distribuídos pela RKO) a
filmar na América Latina, do que resultaram os desenhos Alô, amigos
(Saluáos, amigos, 1943) e
Você já foi à Bahia? (The three caballeros,
1945) e o personagem do papagaio Zé Carioca. E foi também Rockefeller
quem literalmente
intimou Orson Welles (25 anos e na crista da onda pelo recente Cidadão
Kane) a largar o que
estava fazendo na RKO e ir ao Rio para rodar um filme sobre o Carnaval,
chamado íís ali true.
Para Walt, o Brasil foi um grande negócio. Para Orson, foi a sua
desgraça.

No primeiro semestre de 1941, Walt Disney estava encrencado até as
orelhas com o sindicalismo
americano. E todas as crianças do mundo ficariam desapontadas se
soubessem o motivo: Walt era
considerado o pior patrão de Hollywood. Pagava salários de fome aos
desenhistas e animadores,
proibia seus nomes na tela, reduzia seus salários, ameaçava-os com
demissões coletivas e, numa
época em que isso ainda era possível nos Estados Unidos, perseguia
funcionários sindicalizados,
não reconhecia o direito de greve e contratava brutamontes para desmontar
piquetes. Para ele,
qualquer mínima luta por direitos era coisa de comunistas. Em abril
daquele ano, o conflito com os
empregados chegara a ponto de Walt já não poder andar pelas alamedas de
seu próprio estúdio,
na South Buena Vista, em Burbank, sem ser xingado de rato. Com todos os
sindicatos contra si e a
ponto de sofrer boicotes e sanções terríveis, Disney anunciou que
preferia fechar a fábrica e
acabar com tudo, menos ceder aos "comunistas".

Quem o salvou foi Nelson Rockefeller, com uma proposta providencial: Walt
iria à América do
Sul com uma equipe (se ainda conseguisse formar alguma e pagando ele
mesmo as despesas de
viagem), para pesquisar e produzir esboços tendo em vista um filme
passado na região. Filme esse
para o qual o Birô contribuiria com 300 mil dólares. Sem Disney por perto
para atrapalhar, o governo,


332

funcionando como interventor, negociaria com os sindicalistas e
tentaria salvar o estúdio. A
contragosto, Walt teve de topar. Mas o resultado final foi o melhor para
todo mundo.

Na sua ausência, o governo fez todas as concessões que ele jamais faria.
Com isso, a Disney
ingressou no século xx em relação às leis trabalhistas e celebrou suas
pazes com os sindicatos. E o
material que sua equipe de dezoito membros (entre desenhistas,
roteiristas e músicos) recolheu no
México, na Argentina, e principalmente no Brasil, de maio a agosto,
serviu-lhe não para um, mas
para dois filmes, que se pagaram amplamente e lhe renderam muito
dinheiro. Por uma ironia, foram
as imagens desses filmes - Zé Carioca e o Pato Donald em Alô, amigos, e
ambos com Aurora
Miranda em Você já foi à Bahia? - que se tornaram os cartões-postais da
Política da Boa
Vizinhança.

Orson Welles não teve tanta sorte. Em fins de janeiro de 1942, Nelson
Rockefeller e Jock Whitney
o espremeram a um canto na RKO e disseram que ele teria de voar nos
próximos dias para o Rio, a
tempo de firmar o Carnaval carioca. Welles acabara de rodar Soberba (The
magnificent
Ambersons), seu segundo filme e que imaginava ainda maior que Cidadão
Kane - só dependia
da montagem, que ele estava se preparando para começar. Mas não havia
tempo: já se ouviam os
repiniques do Carnaval e precisavam que ele embarcasse.

"E Soberba?", insistiu Orson.

Nelson e Jock propuseram que ele deixasse o filme com seu montador de
confiança, (o futuro
diretor) Robert Wise. Este o editaria segundo suas instruções e o estúdio
mandaria o corte final
para o Rio, apenas para que ele conferisse. Nessas condições, Orson
concordou em viajar.

O filme a ser feito no Brasil se chamaria íí"s ali true, custaria 600 mil
dólares, divididos por igual
entre a RKO e a verba do Birô, e não teria pretensões comerciais. Eles
lhe garantiam toda a
liberdade. Podia filmar o que quisesse - desde que revelasse o Brasil
para os americanos.

Como Welles confessaria depois, a América do Sul era a única parte do
mundo pela qual ele
nunca tivera o menor interesse. Sua idéia do Carnaval carioca era a de
que fosse tão bobo e
racista quanto o Mardi Gras de New Orleans, talvez apenas maior. Sendo
assim, por que se
deixou convencer por Rockefeller e Whitney? Porque eles apelaram à sua
vaidade: It"s ali true
seria uma bandeira do pan-americanismo - e este, na verdade, consistia
muito mais em
apresentar as outras Américas para a América do Norte do que o contrário.
Welles gostou da
idéia. Ao chegar ao Rio na véspera do Carnaval, o jazzista Orson, ex-
namorado de Billie
Holiday, descobriu e se apaixonou pelo samba - estava explicado o
fascínio rítmico, multirracial
e pansexual do Carnaval.

Orson passou os seis meses seguintes no Rio, hospedado no anexo do
Copacabana Palace e
deslumbrando-se com sua popularidade. Comeu todas, nos dois sentidos,
bebeu idem e, certa vez,
ao exceder sua cota de cana,
333

atirou pela janela alguns móveis de seu apartamento no hotel - mas o Copa,
espantosamente, não o pôs
para fora. (Orson teria namorado Emilinha Borba, então com 21 anos, a
quem ele chamava de
"Miloca".) Entrementes, com a colaboração de Grande Othelo, Herivelto
Martins e do pessoal da
Cinédia, seguiu dirigindo It"s ali true, no Rio e no Nordeste. Como não
havia um roteiro escrito,
Orson filmava à medida que as situações se apresentavam, ao mesmo tempo
que tentava descobrir
uma lógica para o que estava rodando.

Enquanto isso, em Hollywood, no que se referia a Soberba, a RKO não
cumpriu a sua parte do
trato. Os chefões do estúdio não gostaram do filme deixado por Orson e,
sem que ele
desconfiasse, obrigaram Robert Wise a retalhá-lo na sala de montagem. Com
isso, tiveram de
refilmar cenas, para que a nova montagem fizesse sentido. Finalmente
tirou-se uma cópia mais ao
gosto dos chefões. Um embargo de vôos internacionais teria impedido que
Wise, com as latas
debaixo do braço, fosse ao Rio para mostrar o filme a Orson. E, para
piorar, uma mudança de
poder nos intestinos da RKO diminuíra a influência de Rockefeller na mesa
de reuniões. Os novos
gestores, alarmados com o custo de íí"s ali true (os 600 mil dólares já
estavam acabando e
calculava-se que o filme custasse outros tantos), temiam que ele
quebrasse o estúdio. Em agosto,
Welles foi chamado de volta. Teria de entregar à RKO o material bruto de
íí"s ali true e, em troca,
receberia um Soberba mutilado e desfigurado. Por causa da "boa
vizinhança", iria perder dois
filmes de uma vez.

Pelos três meses seguintes, quando ainda não estava muito consciente
disso, Orson continuou
prestando serviços à "boa vizinhança". No dia 15 de novembro, por
exemplo, comandou um
esplêndido programa de rádio intitulado "Brazil", da série Hélio,
Americans, para a CBS. Sua
convidada era Carmen - sem sotaque, sem gafes e sem vacilações no inglês.
Levaram uma hora
falando sobre o Brasil, o Rio e o samba, e, com a ajuda do Bando da Lua,
explicando, cuíca por
cuíca, o som de cada instrumento das escolas. Até ali, Orson esperava
recuperar o material
filmado de Ií"s ali true, para editá-lo e completar sua missão de mostrar
o Brasil a seus patrícios. E
só ele poderia fazer isso - porque, afinal, se havia um roteiro para o
filme, ele continuava dentro
da sua cabeça. Ao saber que a RKO consideraria a hipótese de vender o
material, Orson procurou
Rockefeller - que era quem mais deveria interessar-se em ajudá-lo a
comprar o filme. Mas
Rockefeller, inexplicavelmente, não quis saber.

Inexplicável também seria the jinx, a urucubaca, a mandinga que lt"s ali
true jogaria sobre toda a
obra de Welles. Nos 43 anos seguintes, até sua morte, em 1985, ele ainda
dirigiria muitos filmes -
mas nunca mais conseguiria completar nenhum para sua total satisfação.

Se, entre os grandes estúdios, a 20th Century-Fox era o mais voltado para
os filmes da "boa
vizinhança" - e, apesar disso, Zanuck não tinha o menor


334

interesse em subjugar sua produção comercial à dita "política" -, imagine
os outros. A perda dos
mercados europeus no começo da guerra já estava sendo compensada por um
repentino aumento
no número de salas e de espectadores nos Estados Unidos, na América
Latina e até na Europa
durante a própria guerra. Em toda parte, para um mundo faminto de
informações e de escapismo,
duas horas no escuro assistindo a um cinejornal e a um musical podiam ser
tão essenciais quanto
respirar. E, de um jeito ou de outro, os filmes continuavam chegando até
as praças mais difíceis.
Durante a guerra, os londrinos - o povo mais sacrificado até então -
assistiram a todos os filmes
de Carmen. Entre uma e outra Blitzkrieg, eles tinham Miranda.

De 1941 a 1944, somente nos Estados Unidos, 85 milhões de pessoas
passaram a ir semanalmente
ao cinema. E nos anos seguintes, até 1948, esse número chegaria ao
recorde, nunca mais
ultrapassado, de 90 milhões. Era esse o mercado a que Zanuck queria
agradar, oferecendo-lhe
filmes em cores e em cenários exóticos. Assim, depois de Buenos Aires,
Rio e Havana, ele levou
Carmen, Betty Grable, John Payne e César Romero, em Minha secretária
brasileira, para a parte
canadense das Montanhas Rochosas - estas, naturalmente, em lindos telões
pintados no estúdio.
Ou seria um agrado de Zanuck ao Canadá, para que os canadenses -
completamente inexistentes
no filme - passassem a ver com simpatia a causa aliada?

Quatro anos antes, em 1938, Zanuck criara uma linha de produção de
musicais na Fox, que se
estenderia com coerência e estilo próprio até 1945. Nesse período, ele
armou uma verdadeira
unidade: um grupo que começou com Alice Faye, Don Ameche e Tyrone Power;
perdeu
temporariamente Tyrone, mas ganhou John Payne e César Romero, e
completou-se com Betty
Grable e Carmen. Em sete anos, a Fox rodou perto de vinte musicais com
pelo menos dois
daqueles nomes em cada um. Muitos desses filmes eram produzidos pelo
próprio Zanuck ou pelo
veterano William LeBaron e dirigidos por Irving Cummings ou Walter Lang.
Tinham canções de
Harry Warren e Mack Gordon, coreografia de Hermes Pan, e um cast de
coadjuvantes que, hoje
se sabe, era maravilhoso: Edward Everett Horton, Leonid Kinskey,
Charlotte Greenwood, Billy
Gilbert, S. Z. Sakall, Chris Pin Martin e J. Carroll Naish.

Por serem tão identificados com a Política da Boa Vizinhança, tem-se a
impressão de que os
filmes "sul-americanos" com Carmen dominaram a produção da Fox no
período. Mas não foi
assim. Até em quantidade, eles se limitaram aos dois primeiros filmes de
Carmen, sobre a
Argentina e o Brasil; o terceiro já se passou em Cuba e, com alguma boa
vontade, poder-se-ia
citar Minha secretária brasileira, que se passava no Canadá. Mas, se este
valer, teremos de juntar
ao ciclo também aqueles que, sem Carmen e sem ser "sul-americanos",
exploraram as pernas de
Betty Grable contra paisagens de coqueiros ou palmeiras: Sob o luar de
Miami (Moon over
Miami, 1941) e A canção do Havaí (Song ofthe Islands, 1942).

335

Se os musicais "sul-americanos" não eram os mais importantes na linha de
produção da Fox, então
quais seriam? Para Zanuck, eram os musicais ultraamericanos e "de época"
- passados na virada
do século xix para o século xx - e, de preferência com Alice Faye. Entre
outros, No velho
Chicago, A epopéia do jazz, Hollywood em desfile (Hollywood cavalcade,
1939), O meu amado,
A bela Lillian Russell (Lillian Russell, 1940), A vida é uma canção,
Aquilo, sim, era vida (Hélio,
Frisco, hélio, 1943), Rosa, a revoltosa (Sweet Rosie O"Grady, 1943) e As
irmãs Dolly (The Dolly
sisters, 1945) - todos com a história se passando entre 1880 e 1920.
Zanuck era louco por esses
filmes, que obrigavam Alice a usar anquinhas e espartilhos, ensopar
lenços com lágrimas de
glicerina e cantar uma quantidade de sucessos mais que estabelecidos e,
pela idade, já em
domínio público.

Anos depois, Alice diria que, naquela época, nunca ouvira falar na
Política da Boa Vizinhança. E
também nunca percebera que alguns dos filmes tivessem de propósito uma
temática "latino-
americana" - para ela, era só mais uma moda, assim como a dos musicais
passados em 1900. Ou
seja, na intimidade dos estúdios, isso nunca foi uma política de Estado.
Mesmo assim, no futuro,
não faltariam espíritos de porco para acusar Carmen de ser uma invenção
da "boa vizinhança" -
esquecendo-se de que, quando ela desceu do Uruguay em maio de 1939,
contratada por Shubert
para uma ponta em Streets of Paris, a guerra ainda não começara nem na
Europa. E, depois que a
guerra estourara, os Estados Unidos ainda levaram dois anos para entrar
nela com Carmen já
tendo feito três filmes.

Os estúdios acabaram trabalhando para o Birô de Rockefeller, sem dúvida -
mas de maneira
muito mais objetiva quanto à cooperação entre nações. De 1942 a 1945,
eles produziram toda
espécie de material institucional, educativo e de propaganda, em
dezesseis ou 35 milímetros, para
distribuição não só na América Latina, mas também na Europa:
documentários, curtas e
longasmetragens, cinejornais, filmes técnicos, desenhos animados etc. Boa
parte desse material,
coordenado por Jock Whitney na Divisão de Cinema, nunca foi exibida em
uma sala de cinema.
Destinava-se a telas improvisadas em quartéis, navios, fábricas, escolas,
escritórios, hospitais,
clubes, igrejas ou estádios, para platéias capazes de absorver
imediatamente as suas informações.
E de onde saía o dinheiro para pagar os estúdios por esse trabalho? De
empresas particulares
americanas, do governo dos Estados Unidos, e também dos governos latino-
americanos. Na
verdade, nenhum veículo foi mais eficaz do que o cinema na veiculação de
material de guerra.

Da MGM (o mais rico) à Monogram (o mais pobre, quase indigente), os
estúdios produziram
milhares desses filminhos. Nem Carmen nem qualquer ator famoso participou
de nenhum deles.
Em compensação, alguns que largaram o conforto de seus estúdios e, às
vezes, foram ao próprio
front para dirigi-los se chamavam John Ford, Frank Capra, Alfred
Hitchcock, William Wyler,
George Stevens, John Huston e Billy Wilder. Isso é que era ter bons
vizinhos.


336

Em Minha secretária brasileira, filmado entre julho e setembro de 1942,
Carmen ganhou de novo o
segundo lugar nos créditos, atrás apenas de Betty Grable - e com justiça
porque, em 1942, Betty
já estava no coração e na palma da mão de milhões de soldados americanos,
dentro e fora do
país. Esse foi o filme em que LeBaron se convenceu de que, no papel de
Rosita Murphy,
secretária de John Payne, Carmen podia funcionar como uma comediante
explícita, com diálogos
de páginas e páginas - não apenas como uma cantora com falas eventuais.
Dessa vez, foi
Gilberto Souto quem a ajudou a ensaiar as falas e, para justificar o fato
de que, mesmo a seu jeito,
Rosita podia ser tão fluente em inglês, bastava explicar que era filha de
uma brasileira com um
irlandês.

Bem de acordo com sua personagem, esse foi também o primeiro filme em que
Carmen apareceu
de sapatos e chapéus convencionais, em vez de plataformas e turbantes, e
em que usou o próprio
cabelo ou um aplique como elemento decorativo, de modo a parecer um
turbante, executado por
sua cabeleireira, Esperanza Corona. (E, com isso, ainda que de roupa
"social" e sem turbante,
continuaria com o look Carmen Miranda.) Foi também o primeiro filme em
que um de seus
números musicais - "Chattanooga choo-choo" - vinha de certa forma
"integrado" à narrativa, e
não solto no palco.

Harry Warren e Mack Gordon tinham escrito "Chattanooga choo-choo" um ano
antes, para outro
musical da Fox, Quero casar-me contigo (Sun Valley serenade), com Sonja
Henie, John Payne,
Glenn Miller e sua orquestra e os Nicholas Brothers, lançado em agosto de
1941. Glenn gravara-o
para o filme, com vocais de Tex Beneke e The Modernaires e, em poucas
semanas, "Chattanooga
choo-choo" tornara-se uma doença nacional: l milhão de discos vendidos e
a primeira gravação a
ganhar um disco de ouro desde "My blue heaven", com Gene Austin, em 1928.
Para muitos,
"Chattanooga choo-choo" seria o tema-símbolo da Segunda Guerra.

Em meados de 1942, Aloysio de Oliveira fez uma letra em português para
"Chattanooga choo-
choo", no melhor estilo Lamartine Babo - seguindo mais o som das palavras
do que o
significado, sem muito (ou nenhum) respeito pelo original. Quando sugeriu
que Carmen a cantasse
em Minha secretária brasileira, precisaram da autorização de Mack Gordon
- que só a aprovou
porque pensou reconhecer na versão em português o eco de suas palavras em
inglês.

You leave the Pennsylvania Station

"Bout a quarter tofour

Read a magazine and then y ou"ré in Baltimore

Dinner in the diner

Nothing could befiner


337

Than to have your ham"n"eggs In Carolina,

tornou-se

E você pega o trem na Pennsylvania Station às três horas e tal

Pouco a pouco vai saindo da capital

Toma um cafezinho

Tira uma pestana

E come ramenegues

Lá em Carolâina

- e Gordon gostou. (Com razão: a versão em português era ótima - o que
não valeu a Aloysio
nenhum crédito na tela - e Carmen roubou o filme com ela.)

No filme, ao cantar "Chattanooga", Carmen chama o Bando da Lua ao
apartamento de John
Payne no hotel e os apresenta, um a um, como seus irmãos. Os nomes que
ela anuncia são
inventados, mas estão todos lá: Aloysio, Stenio, Affonso, Zezinho, Nestor
e - de óculos e tudo,
fingindo tocar pandeiro, embora seja o seu piano que se ouça ao fundo -
Vadico. A outra chance
de ver Vadico nesse filme está na seqüência da boate, em que, com a mesma
formação do Bando,
Carmen canta "Tic-tac do meu coração", de Alcyr Pires Vermelho e Walfrido
Silva - aliás, uma
letra bem onomatopaica, que ela podia fazer acelerado e com humor, tipo
scat, diferente da sua
gravação brasileira desse mesmo samba em 1935.

Vários corações aceleraram seus tique-taques nas filmagens de Minha
secretária brasileira.
Carmen e Aloysio saíam às vezes com Betty Grable e o homem com quem esta
vinha sustentando
um caso complicado pelos últimos três anos: George Raft. George era louco
por Betty e a
cumulava de casacos de pele, braceletes de ouro, colares de diamantes e
cavalos de corrida.
Betty também gostava de George, mas ele não tomava a única providência
que ela exigia dele:
divorciar-se da mulher para que os dois se casassem. O problema era que
isso não dependia de
George - sua mulher, Grace, era católica de carteirinha e nunca lhe daria
o divórcio. Portanto,
enquanto as coisas não se resolviam, só restava a Betty e George ir
dançar no Palladium, no
Sunset Boulevard, ao som de Harry James e sua orquestra, que também
estavam no elenco de
Minha secretária brasileira.

Harry James, igualmente, era casado. Mas tinha habeas corpus para
galinhar e, na ocasião,
mantinha um caso com sua crooner, Helen Forrest. Em
1942, Helen já era a maior cantora da história das big bands, tanto na
opinião dos críticos como
na de seus patrões anteriores, Artie Shaw e Benny Goodman. Mas seria com
Harry que ela teria
seus maiores sucessos: "Skylark", "I cried for you", "Manhattan
serenade", "Tve heard that song
before" e, lançado em


338

Minha secretária brasileira, "I had the craziest dream". Helen era
apaixonada por Harry e ele a
admirava muito, mas não se divorciaria de sua mulher por causa dela.
Quando fez isso, meses
depois, já em 1943, seria para se casar às escondidas, em Lãs Vegas - mas
com Betty Grable.

George Raft e Helen Forrest caíram das nuvens ao descobrir o que se
passava sob seus narizes.
Afinal, durante as filmagens de Minha secretária brasileira, Harry e
Betty cruzavam-se a todo
instante no estúdio e mal pareciam se enxergar. Pois era o que George e
Helen pensavam. E, no
futuro, ano após ano, iriam se espantar com a longevidade daquela união -
porque, bem ou mal,
Harry James e Betty Grable ficariam casados por 22 anos.

Raul Bopp, cônsul do Brasil em Los Angeles, estava almoçando com Bidu
Sayão no Brown
Derby, o restaurante da Vine Street famoso pela salada criada em 1937 por
seu proprietário Bob
Cobb (verduras frescas e bem picadinhas, abacate, tomate despelado,
frango, bacon torrado,
ovos cozidos e queijo roquefort, tudo coberto por um molho especial).
Bidu, estrela do
Metropolitan, estava em Los Angeles para dar um concerto no Philarmonic
Auditorium. Falaram
de Carmen, e Bopp entendeu que ela e Bidu não se conheciam - não sabia
que as duas se davam
de Nova York e se adoravam. Pediu um telefone e ligou para Carmen, que
mal acabara de
acordar. Bopp disse-lhe onde estavam e passou o telefone para Bidu, que
também trocou algumas
palavras com ela. Meia hora depois, uma empetecada Carmen, pronta como se
para um show,
estacionou seu Buick conversível vermelho à porta do Brown Derby. Mas
levou quinze minutos
para chegar à mesa, porque os fãs não a deixavam avançar. Sem querer,
Carmen fez de
coadjuvante uma das grandes vozes do século - e Bidu se divertiu com o
espetáculo.

Carmen se despachara para lá por causa de Bidu, mas também por Raul Bopp.
Ele e Carmen
sempre se encontravam no Brown Derby, mas para jantar. O gaúcho Bopp, dez
anos mais velho
do que ela, a fascinava. Como escritor, ele fizera parte do Modernismo
brasileiro, na linha da
"antropofagia", comandada por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
Antes disso, passara um
bom tempo na Amazônia e parecia conhecer o Brasil inteiro - não como
turista, mas nas funções
mais impensáveis, como pintor de paredes, caixeiro de livraria e
professor de tupi. Em 1929, com
o fim da "antropofagia", fora por sua conta às então remotíssimas China e
Rússia e, em 1932, ao
entrar para a carreira diplomática, passara quase todo o restante da
década servindo no
ameaçador e convulsionado Japão. Bopp se identificava tanto com os
lugares em que vivia que,
por onde andasse, parecia trocar de pele, como uma cobra. Era um homem
culto e vivido, e
Carmen gostava de escutá-lo.

O mesmo em Nova York, quando ela visitava o ateliê da escultora e
embaixatriz Maria Martins,
na esquina de Park Avenue com Rua 58. Em 1942,

339

a fascinante Maria já era respeitada no círculo plástico de Nova York e
começara um affaire com
seu colega de avant-garde, o dadaísta Mareei Duchamp, que também morava
lá. Ele a chamava
de "Notre Dâme dês désirs" e de "La fiancée impossible" - porque Maria se
recusava a desfazer
seu casamento "aberto" com Carlos Martins, embaixador do Brasil, para ir
viver com ele. A
vontade de Maria prevaleceu, porque seu caso com Duchamp durou mais de
dez anos e foi a ela
que ele dedicou duas de suas obras máximas: Paysagefautif, feita (não me
pergunte como) com
esperma, e a instalação Étant donnês.

Ao contrário de Aurora, leitora constante, não há notícia de que Carmen
tenha aberto um livro em
dias de sua vida. Pelo visto, supria os estudos com sua capacidade de
observação e pelo contato
com pessoas como Raul Bopp e Maria Martins - intelectuais, sem dúvida,
mas que não se
negavam à vida nem se escondiam por trás dos óculos. Eram pessoas assim
que a aconselhavam
em assuntos vitais como, em 1942, quando Zanuck tentou induzi-la a
naturalizar-se norte-
americana. Para Zanuck, estava claro que Carmen tinha toda uma existência
pela frente nos
Estados Unidos. Requerer a naturalização - como Marlene Dietrich e Sonja
Henie tinham feito
- poderia simplificar sua vida profissional. (Marlene chegara ao exagero
de aprender a jogar
beisebol.)

Marlene e Sonja eram suas amigas, mas Carmen nunca cogitou seguir o
exemplo delas. Uma era
alemã; a outra, norueguesa. A Alemanha, que ocupara a Noruega, estava em
guerra contra os
Estados Unidos, donde as duas tinham motivos para renegar sua origem. Mas
o Brasil não estava
nesse caso, e Carmen, muito menos. Ao contrário: depois da entrada do
próprio Brasil na guerra
contra a Alemanha (desde o dia 31 de agosto daquele ano) e das
transmissões internacionais
européias que a tinham como personagem, Carmen não perdia uma
oportunidade de se afirmar
"brasileira". E, para que não restasse a menor dúvida, usou o maior
canhão da América: a coluna
de Walter Winchell.

Quando Winchell tirava férias, sua coluna era ocupada por crônicas
assinadas por celebridades
da Broadway ou de Hollywood. Uma dessas foi "escrita" por Carmen - na
verdade, pela
publicidade da Fox, mas ditada por ela e copidescada por Herman Klurfeld,
o ghost de Winchell.
No texto, ela enfatizava que o Brasil não era apenas o Pão de Açúcar, o
Cristo do Corcovado ou
as lojas parisienses da rua do Ouvidor - assim como os americanos sabiam
que os Estados
Unidos não eram exatamente Hollywood ou Nova York. "No Brasil", escreveu
Carmen,

eu costumava pensar que os Estados Unidos eram um país onde tudo era
cromado, metálico e
brilhante, com automóveis trafegando em alta velocidade e arranha-céus
por toda parte, como
nos filmes e revistas. Talvez o mesmo se dê aqui quando se fala do
Brasil. "Café!", exclamam logo.
"E gente que dança samba. E que usa chapéus com frutas e flores
exageradas."


340

São idéias equivocadas, umas e outras. O importante é saber que o
povo dos Estados
Unidos, assim como o do Brasil, trabalha, cultiva o campo, extrai as
riquezas da terra e tem os
mesmos motivos para rir e para chorar. No fundo, é o mesmo povo e a mesma
gente. [...] O que faz
a boa vizinhança é sabermos que a gente que mora numa esquina do planeta
é igual à que mora na
outra esquina.

No fim do artigo, que R. Magalhães Júnior traduziu em parte para A Noite,
Carmen enfatizava:

Quando você, meu amigo Winchell, me vir com um exótico turbante
comicamente enfeitado,
dançando e cantando um samba no filme Minha secretária brasileira, isso
não significa que esteja
diante de uma verdadeira imagem da vida e dos costumes brasileiros. Sob
esse aspecto,
represento a verdade tanto quanto Gypsy Rose Lee representa o real
espírito americano, ou
Greta Garbo, o real espírito sueco. Sou apenas uma mulher brasileira que
canta alguma coisa a
respeito das cores e da beleza de sua terra. O que há de teatral nessa
apresentação exprime muito
pouco de meu país.

Em quarenta linhas, Carmen refere-se várias vezes ao Brasil e aos
brasileiros como "seu país",
"sua terra" e "seu povo", como era de seu hábito - mas, dessa vez,
segundo Magalhães Júnior, para
desfazer as intrigas das rádios alemãs que, ao transmitir para Portugal,
acusavam os brasileiros de
obrigar a "portuguesa" Carmen Miranda a se dizer brasileira, numa
tentativa de jogar os
portugueses contra o Brasil. Na guerra, valia tudo.

Tudo bem, mas, pelo visto, os alemães não estavam conseguindo nada. No
lançamento de Uma
noite no Rio em Portugal, o jornal República, de Lisboa, soltou um quase-
editorial em que
lembrava, como que se lamentando, que Carmen "nascera entre eles
[portugueses], mas adotara a
nacionalidade brasileira". Só que, para o jornal, o lamento era um
elogio, e o prejuízo era deles,
não dela: "É uma pena que Carmen - cujo encanto a tornaria incomparável
no fado - só cante
sambas brasileiros. É o caso de imaginarmos o que seria o fado por ela
interpretado, se Carmen
não soubesse cantar o samba".

Se não tinha dúvidas entre o samba e o fado, Carmen, talvez estimulada
pela mãe, exercia sua
dupla nacionalidade quando se tratava de caridade. Ao mesmo tempo que
mandava auxílio para
hospitais e casas de saúde no Brasil, socorria vítimas de enchentes em
Portugal e mandava
aparelhos de rádio para presidiários nos dois países. Exceto pelos
rádios, que iam em espécie,
Carmen fazia todas as doações em dinheiro, por telegrama. A entrada dos
Estados Unidos na
guerra complicou um pouco essa última atividade. Por aqueles tempos, ao
mandar uma certa
quantia para a igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho, no Rio, seu
telegrama foi interceptado
no correio de Los Angeles.

341

As autoridades queriam saber quem era Mister Tadeu.

Aurora terminara seu compromisso com Monte Proser no Copacabana em março
de 1942 e fora
contratada por Earl Carroll, um mini-Ziegfeld que, desde 1922, montava
anualmente uma revista
musical de sucesso: as Earl CarrolVs Vamties. Carroll começara com um
teatro em Nova York,
depois abrira uma filial de luxo no Sunset Boulevard, em Los Angeles, e
agora criara uma
companhia itinerante que cruzava o país. Aurora foi contratada para esta
e passou os cinco meses
seguintes, até agosto, atravessando os Estados Unidos - Nova York, Ohio,
Illinois, Kansas,
Califórnia, várias cidades em cada estado -, e sempre fechando o
espetáculo com um quadro de
música brasileira em que "Mamãe, eu quero" era o carro-chefe.

Em seu começo de carreira, o expedito e lascivo Carroll fazia qualquer
coisa para aparecer. Às
vésperas de uma estréia, cobria as paredes de seu escritório com fotos de
garotas nuas e instruía
um funcionário para denunciá-lo à polícia. Carroll ia preso, passava a
noite na cadeia, seu
advogado pagava a fiança e ele se beneficiava da publicidade. Deu certo,
até que a polícia
descobriu o truque e parou de prendê-lo. Carroll não se abateu: em 1927,
apresentou uma corista
que saía nua de uma taça gigante de champanhe. A polícia teve de invadir
o teatro e prendê-lo -
não pela nudez da moça, mas pelo champanhe, já que estávamos na Lei Seca.
Carroll explorava
esse marketing barato, mas seu espetáculo era de primeira e ele era um
homem musicalmente
alerta - entre os jovens que se gabava de ter "descoberto" estavam os
compositores Harold
Arlen e Burton Lane e os letristas Yip Harburg e Ted Koehler (a clássica
"I gotta right to sing the
blues", de Arlen e Koehler, fora feita para o show de Carroll em 1934).

Ao seguir os conselhos de Carmen (que achava que ela devia começar por um
nightclub - o
Copacabana -, depois fazer teatro - o Earl CarrolFs - e só então entrar
para o cinema), Aurora
ganhou mais do que pensava. Graças a Carroll, viveu a experiência de
excursionar com uma
importante companhia americana e, ao mesmo tempo, gozar sua protelada
lua-de-mel - porque
Gabriel viajou com ela e, de hotel em hotel dos Estados Unidos, os dois
passavam o tempo inteiro
juntos, com tudo pago. E o final foi perfeito: em Los Angeles, nas
últimas semanas do show no
Earl Carroll, Aurora foi vista por alguém que pensava nela para um filme
passado no Brasil. O
homem era Walt Disney e o filme - em que se previa um quadro com a
revolucionária
concepção de combinar desenho animado com ação humana - seria Alô,
amigos.

Na verdade, a Miranda que Disney queria era Carmen. Sua idéia era juntar,
num esquete
intitulado "Blame it on the samba", Carmen e a organista Ethel Smith, com
duas figuras animadas:
o Pato Donald e um novo personagem criado a partir de sua experiência
brasileira, o papagaio
Joe Carioca - no Brasil, Zé Carioca. Mas, para ter Carmen, Disney teria
de passar pela Fox,


342

e Zanuck - ainda convalescendo do cheque de 60 mil dólares que assinara
para tomar Carmen de
Shubert - nunca cederia sua nova estrela para um concorrente. Sem Carmen,
o esquete perdeu o
sentido e teria de ser abandonado, suspirou Disney. Mas Carmen sugeriu
Aurora e garantiu a
Disney que arrancaria de Zanuck a permissão para fornecer-lhe uma
"consultoria técnica", sem
crédito e sem remuneração, para as cenas de sua irmã. Disney prometeu ir
assistir a Aurora no
teatro. Cumpriu a promessa e gostou do que viu.

Quanto ao personagem de Zé Carioca, já nascera pronto. Durante sua estada
no Rio, em seu QG
no Copacabana Palace, Disney fora vastamente informado sobre a
importância do papagaio na
psique do homem brasileiro. Alguns povos faziam uma idéia tão arrogante e
exaltada de si
mesmos que se identificavam com certo tipo de aves: águias, condores,
falcões. O brasileiro se
identificava com o papagaio. Através das centenas de anedotas que lhe
contaram - o pianista
Gadé foi levado ao Copa especialmente para uma sessão de piadas -, Disney
ficou sabendo
como o brasileiro, digo, o papagaio, podia ser pobre, folgado,
preguiçoso, vagabundo e sem
caráter, mas era esperto, feliz, sabia se virar e aprendia tudo com
facilidade, inclusive a enrolar os
gringos. Para a criação física do personagem, usaram vários elementos -
alguns sugeridos por
desenhistas brasileiros que Disney conheceu, como J. Carlos e Luiz Sá. O
fraque, o chapéu de
palhinha, o colarinho duro, a gravatinha-borboleta e o guarda-chuva do
papagaio foram
inspirados na indumentária do folclórico doutor Jacarandá, um popular rábula
carioca. Os olhos, o
nariz e a boca (ou bico) lembravam as feições do compositor Herivelto
Martins. E os movimentos
do corpo foram copiados, em Hollywood, da particularíssima ginga do
violonista Zezinho, que,
apesar de paulista, acabou fazendo também a voz de Zé Carioca. (E não
apenas em português.
Zezinho começou por dublá-lo em espanhol e, depois da guerra, fez o mesmo
em francês, sueco,
italiano, alemão e japonês, assim como Clarence Nash fazia a "voz" de
Donald em todas as
línguas, entre as quais o português.) Alô, amigos era uma coletânea de
desenhos curtos, tendo em
comum apenas o cenário: um passeio por várias regiões da América do Sul
(o lago Titicaca, no
Peru; o pico do Aconcágua, no Chile; os pampas argentinos e uruguaios; e,
única grande cidade
em cena, o Rio), tudo muito bem embrulhado em 42 minutos de projeção.
Pela primeira vez, um
filme patrocinado pelo Birô de Rockefeller não irritou ninguém - ao
contrário, todos os povos
retratados gostaram de se ver nos olhos de Disney. Para o Brasil, valeu
especialmente pelo
esquete "Aquarela do Brasil", onde se deram a estréia de Zé Carioca -
fazendo Donald de
escada - e a primeira audição em escala internacional do samba de Ary
Barroso, cantado por
Aloysio de Oliveira, pelo qual o mundo iria se apaixonar: "Aquarela do
Brasil".

A seqüência que reuniria Aurora e Ethel Smith a Donald e Zé Carioca não
chegou a ser filmada,
porque os engenheiros de Disney ainda não tinham aperfeiçoado o aparato
técnico para
combinar animação e gente de carne e osso na mesma cena.
343

Mas as sugestões de Carmen para a roupa, os diálogos e
os movimentos de
Aurora - dadas nos dois dias que Zanuck lhe concedeu para trabalhar para
Disney - foram
transformadas em storyboards e não se perderam. Disney viu as
possibilidades de mais um filme
no gênero e decidiu que Alô, amigos seria apenas um aquecimento para The
three caballeros (no
Brasil, Você já foi à Bahia?), e este, com Aurora, é que seria o filme
para valer.

Meses antes, Carmen, Aurora e Gabriel tinham combinado que passariam o
verão brasileiro de
1942-1943 no Rio. Mas não contavam que a vida profissional interferisse
nos seus planos. Em
setembro, com Shubert já evaporado de sua vida, Carmen podia finalmente
sentir-se "da Fox" -
um passo de sete léguas desde aquele remoto concurso de fotogenia a que
se submetera em
1927. No dia 28 de outubro de 1942, Aurora fez teste para o quadro
brasileiro de Você já foi à
Bahia?, usando um bustiê verde-amarelo e cantando "Os quindins de iaiá",
também de Ary
Barroso. Foi contratada ali mesmo e ficaria presa a Disney pelos dezoito
meses seguintes,
precisando ir diariamente ao estúdio. E o próprio Gabriel, agora, também
trabalhava para
Howard Hugues - os dois, de macacão e levando chaves inglesas e de boca,
metiam-se pela
barriga de um avião e só saíam dali horas depois, sujos de graxa, mas
tendo desventrado os
segredos do bicho.

"Ei, o que é isso? O que você está fazendo?", berrou um homem com sotaque
sulista e pescoço
vermelho, nas primeiras filas do Roxy, em Nova York, numa matinê.

Carmen estava dançando abraçada aos elegantíssimos Nicholas Brothers, um
de cada lado.
Virou-se para o lado de onde vinha o som:

"Qual é o problema?", ela disse, sorrindo. "Está com ciúme, yes?"

Na década de 40, não era normal que uma artista branca (mesmo "latina")
tocasse ou fosse tocada
fisicamente por um negro num palco de Nova York. E menos ainda por dois
negros. Ou, ainda
pior, além de tocar e ser tocada, se enroscasse com eles ao dançar.
Levaria décadas para que,
mesmo em Nova York, tais práticas passassem despercebidas no teatro.

Na última semana de 1942 e nas três primeiras de 1943, quando Carmen e os
Nicholas Brothers
fizeram uma temporada de inverno no palco do Roxy em sete shows diários,
o número em que
dançavam juntos sempre representou algum risco para eles. Toda vez que
Fayard e Harold
Nicholas a enlaçavam, não se podia garantir que, na platéia, um sulista
desgarrado, em vez de
esbravejar, não fosse sacar uma arma. Diálogos entre Carmen e um
espectador revoltado
aconteceram mais de uma vez nas quatro semanas da temporada e, não fosse
sua frase ("Está com
ciúme, yes?") inevitavelmente provocar uma gargalhada, não se sabe qual
seria o desfecho.

Nos dias anteriores, Carmen já superara outras experiências de
intolerância em Nova York.


344

O Roxy lhe reservara um apartamento no Sherry-
Netherland, na Quinta
Avenida, um hotel classudo, discreto, ideal para hóspedes que gostavam de
falar aos sussurros e
olhando para os lados. Em toda a sua história, o único dia em que o
sossego se alterara no
Netherland foi quando, sem aviso prévio, um hóspede tão querido - Spencer
Tracy, numa de
suas fugas de Hollywood - desceu do apartamento e apareceu no lobby,
pelado e na maior
água, procurando bebida.

Carmen também teve um problema no lobby do Netherland, mas de outra
natureza. O hotel não
quis hospedar a acompanhante que o Roxy lhe providenciara - Ruby, uma
mulata jamaicana que
falava bem inglês e já trabalhara para Bette Davis. O argumento era o de
sempre: "Não temos
acomodações para empregados". Então Carmen foi ao gerente e, em voz
baixa, olhando para os
lados, como era norma no hotel, pediu uma cama extra no apartamento; caso
contrário, iria
embora. Grandes tempos, em que ninguém se atrevia a contrariar uma
estrela do cinema - num
segundo, o gerente providenciou a cama. Na mesma noite, Carmen convidou
Gilberto Souto e o
pessoal do consulado ao show de Sophie Tucker no Copacabana. Como todos
os nightclubs de
Nova York, o Copacabana podia apresentar artistas brancos, como Sophie
Tucker, e negros,
como Lena Horne, mas a platéia era sempre branca. Pois, ignorando os
leões-de-chácara, Carmen
entrou pelo Copacabana com seus convidados, entre os quais a mulata Ruby,
vestida com suas
roupas e jóias e coberta por um casaco de pele. Carmen fez de propósito -
para ver como seu
amigo Monte Proser se sairia. Proser entendeu o recado e Ruby passou
direto. Ao praticar esses
pequenos atos de bravura, Carmen não calculava que, naquelas semanas em
Nova York, teria de
ficar de olho aberto sete vezes por dia, no palco do Roxy, ao dançar
abraçada com os Nicholas
Brothers.

Os Nicholas eram os irmãos Fayard, 28 anos, e Harold, 21. Formavam talvez
a maior dupla de
dançarinos acrobáticos do mundo. Seu estilo era, ao mesmo tempo, circense
e heróico: um misto
de sapateado selvagem com aflitivos granas écarts, com os dois se jogando
de alturas cada vez
maiores, caindo de pernas abertas e já dançando ao se levantarem. Eram um
produto típico do
Cotton Club e do Apollo Theatre, no Harlem, onde dançavam ao som de
orquestras como as de
Duke Ellington e Cab Calloway. Estavam no cinema desde 1932, mas tinham
muito menos filmes a
seu crédito do que mereciam. Mesmo na Fox, sob o liberal Zanuck, seus
números eram editados
tendo em vista a exibição do filme nas praças racistas - era só fazer com
que, na tela, eles não
tivessem nenhuma comunicação por palavras ou olhares com o elenco
principal; assim, suas
seqüências podiam ser facilmente cortadas, até pelo dono do cinema, sem
prejuízo para a trama.

Na época da temporada com Carmen no Roxy - a primeira e única vez em que
dançaram com
ela -, os Nicholas não sabiam, mas sua carreira no cinema já estava perto
do fim. Só apareceriam
em mais dois ou três filmes antes

345

de Hollywood decretar que o público se "cansara" deles. E um dos motivos
alegados era que
estavam condenados a dançar um com o outro - porque, além do problema
racial, quem seria
capaz de dançar com eles?

Ora, Carmen, por exemplo. No Roxy, eles criaram para ela o "Carmen
Miranda step" ou "samba
boogie tap", misto de soft shoe (uma espécie de sapateado em tempo médio,
em que os pés mal se
descolam do chão) com o também suave jogo de quadris de Carmen. (Foi uma
importante
homenagem, porque os Nicholas faziam - com justiça - uma grande idéia de
si mesmos.) Eram
passos ideais para ser dançados ao ritmo dos samba-choros, quando o
acompanhamento era feito
pelo Bando da Lua, ou dos boogie-woogies menos enfezados, quando entrava
a orquestra do
Roxy. Pois Carmen, que estava longe de ser dançarina, dançou com os
Nicholas Brothers. Ao fim
das quatro semanas, o Roxy deu a ela uma pulseira com a inscrição:
"Obrigado pelo melhor Natal
e Ano-Novo da história do Roxy".

Carmen e os Nicholas Brothers eram contratados da Fox. Esta fizera do
Roxy o seu principal
cinema lançador em Nova York, e o filme com que eles se revezavam no
palco, do meio-dia à
meia-noite, era o último sucesso do estúdio, O cisne negro (The black
swan) com Tyrone Power,
rodado pouco antes de o galã partir para o Pacífico. Ou seja, tudo em
casa. Mas quem contratava
Carmen era o Roxy - por 12 mil dólares por mês.

Por que esses valores absurdos? Porque, com sua marquise prometendo
Carmen Miranda ao vivo
no palco, o Roxy sabia que teria casa cheia, quase 6 mil pessoas, em cada
uma das sete sessões do
dia. Isso significava cerca de 40 mil pessoas passando diariamente pela
bilheteria. A cinqüenta
centavos o ingresso, o Roxy precisava de apenas meio dia para pagar o
salário semanal de
Carmen.

A própria Carmen não podia se queixar. Livre de Shubert, não tinha mais
de dividir o dinheiro
com ninguém. Isso, mais seu salário na Fox - 5 mil dólares por semana -,
fariam com que ela
finalmente soubesse o que era ganhar dinheiro.

No Brasil, onde os mil-réis tinham dado lugar ao cruzeiro, só o seu
salário na Fox representava
meio milhão de cruzeiros por mês. Os poucos brasileiros que, um dia,
chegavam ao milhão
podiam ser chamados de milionários. Carmen era uma milionária seis vezes
por ano.

Como ganhava muito dinheiro, era preciso gastá-lo. Assim, nos últimos
meses de 1942, investiu
parte dele numa casa para ela e sua família, num endereço que, por sua
causa, ficaria famoso:
North Bedford Drive, 616, em Beverly Hills. Carmen só fez isso depois que
a Fox comprou seu
contrato a Shubert, e ela se certificou de que sua vida já não estava
centrada em Nova York e que
iria viver em Los Angeles pelos próximos anos.


346

A escritora nova-iorquina Edna Ferber, autora de Show boat e também
veterana da "mesa
redonda" do Algonquin, observara que as rosas da Califórnia não tinham
perfume. E daí? Carmen
não estava ali por causa das rosas. Também não devia conhecer a frase de
Fred Allen, de que a
Califórnia era um lugar ideal para morar - se você fosse uma laranja. E,
em 1943, Raymond
Chandler ainda não dissera que Los Angeles era uma cidade "com a
personalidade de um
copinho de papel". Mas nada disso alteraria a disposição de Carmen em
viver ali.

A casa lhe custou o mesmo que sua liberdade em relação a Shubert: 60 mil
dólares. Para os
padrões de Beverly Hills, estava longe de ser uma mansão como as dos
senhores feudais de
Hollywood. O modelo habitual de casas na região seguia o formato persa-
barroco-normando-
espanhol-vitoriano, numa grotesca sarabanda de estilos, todos falsos e ao
mesmo tempo. A
mansão do antigo comediante Harold Lloyd era um misto de Terra do Nunca e
castelo de
Cinderela, com regatos internos, uma lagoa circundante e uma piscina em
que até galeões
poderiam atracar. A de Gary Cooper era uma África de fancaria: paredes
adornadas com uma
extensa fauna de cabeças empalhadas, de zebras a elefantes, nenhum deles
abatido pelo astro.
Havia também casas no estilo Roma antiga e outras que pareciam ter sido
transplantadas de
Boulton Gardens, em Londres, ou de Waverley Place, em Nova York. Ao se
passar diante delas,
não se sabia se eram casas de verdade ou fachadas cenográficas e, por
dentro, igualmente
pareciam cenários. Claro: seus arquitetos e decoradores eram os
cenógrafos dos estúdios.

A de Carmen era uma boa casa, com sete salas no primeiro andar, mas nada
de comparativamente
especial. Até sua arquitetura, em falso colonial espanhol, era discreta.
Tinha dois andares, quatro
quartos (todos suítes, com banheiros individuais), salão com piano e bar,
escritório, um jardim na
frente e outro atrás, este junto à piscina, e garagem para dois carros.
North Bedford Drive era uma
rua cheia de palmeiras - uma destas, exatamente à porta de sua casa. Era
também quase deserta,
sem ônibus nem táxis, mas o bonde San Fernando Valley-Hollywood passava
em frente.

Dos quatro quartos da casa, um era o de Carmen, outro, o de dona Maria, e
um terceiro, o de
Aurora e Gabriel. O último foi transformado num quarto de costura, com a
máquina, uma mesa
grande (para se abrir o pano exigido pelas saias das baianas), cortes de
tecidos, manequins,
moldes, revistas e apetrechos. Carmen era a senhora do aposento, mas
Aurora a secundava no
gosto pela costura - adoravam fazer blusas de jérsei, usando tecidos de
duas cores.

O quarto de Carmen, em estilo provençal, cinza e dourado, era o maior da
casa e maior que
muitos apartamentos que ela conhecera. Todos os móveis - as camas gêmeas,
a cômoda, os
abajures, os espelhos - eram franceses, e tinham sido deixados pelos
antigos proprietários
(Carmen gostou deles e os deixou ficar). Outro móvel, com gavetinhas,
tinha pequenas divisões
forradas de veludo, para as jóias e bijuterias: brincos, colares,
pulseiras e braceletes, todos

347

em conjuntos, com as peças individuais combinando. Uma passagem para o
banheiro foi
transformada num aposento só para os perfumes - centenas de frascos,
sendo Femme o favorito.
O guarda-roupa era um vasto closet, com armários para as plataformas
(dezenas de pares), os
vestidos sociais e as fantasias. Os turbantes ficavam armados em cabeças
de manequins, e havia
os que as costureiras de Hollywood lhe mandavam buscando sua aprovação.
Em breve haveria
um armário apenas para os casacos de pele. Aurora às vezes pegava um
casaco emprestado e se
esquecia de colocá-lo de volta. Carmen dava por sua falta, mas logo se
lembrava:

"Ah, já sei. A Aurora pegou. Essa Aurora..." - e piscava o olho.

Durante boa parte do ano, a vida social da casa se dava ao redor da
piscina. A própria Carmen
passava todo o tempo que podia à sua borda. Quando só havia mulheres
presentes, aproveitava
para se queimar por inteiro, usando apenas a parte de baixo do duas-peças
e, à guisa de sutiã, uma
boa camada de bronzeador Gaby. (Para sua mãe, o simples fato de Carmen
expor-se perante as
mulheres da família já tinha alguma coisa de pecado. Além disso, dona
Maria preferia que Carmen
ficasse "clarinha".)

Bem perto, no número 505, ficava a igreja do Bom Pastor, bonita, com duas
torres, famosa por ter
sido palco do espetacular velório de Rodolfo Valentino em 1926. Era a
igreja preferida por vários
católicos de Hollywood: Fred Astaire, Alfred Hitchcock, Charles Boyer,
Jimmy Durante,
Rosalind Russell, Rita Hayworth, Gary Cooper, a garota Elizabeth Taylor,
Bing Crosby, Frank
Sinatra. Se quisesse, Carmen podia ir a pé para a missa. Sua mãe, pelo
menos, ia - todos os dias.
Carmen preferia as missas menos concorridas, a que ia de lenço na cabeça
e óculos escuros e
assistia da sacristia. Mais perto ainda, no número 512, morara Clara Bow,
no auge da "Tf girl" -
só Deus sabia o que acontecera entre aquelas paredes. E, na rua de cima,
a North Rodeo Drive,
ficava um dos restaurantes mais concorridos da cidade, o Romanoff"s, do
"príncipe" Mike
Romanoff, pseudomembro da família imperial russa massacrada em
1917. Segundo Jorginho Guinle, o Romanoff"s era onde todas as pessoas que
contavam em
Hollywood se reuniam para um drinque depois do trabalho. Mas Carmen (que,
no Rio, também
não freqüentava o Café Nice, lembra-se?) não se interessava em ir lá, nem
escoltada por ele.

Um quase-vizinho de porta de Carmen em North Bedford Drive era Herman
Hover, dono do
Ciro"s. Este ficava na Sunset Strip e era o ponto de encontro da elite do
cinema nos domingos à
noite. Ia-se ao Ciro"s para jantar, dançar, assistir a um show e para a
clássica cafonice de "ver e
ser visto". Era um dos poucos lugares de Hollywood onde, com todas as
restrições provocadas
pela guerra, ainda se bebia uísque escocês autêntico. Nem podia ser
diferente: seu fornecedor era
Joseph (pai de John e Robert) Kennedy, "representante" do Haig & Haig
desde a Lei Seca...

A pedido de Hover, Carmen deu um show beneficente de uma noite no


348

Ciro's com o Bando da Lua. No palco, pela primeira vez ao alcance das
piadas e brincadeiras de
seus novos concidadãos angelinos, aquele seria um batismo de fogo para
Carmen. Mas ela nem se
alterou. Dominou as figuras carimbadas de Hollywood e girou-os ao redor
de seu dedo mindinho.
Ao apresentar o Bando da Lua, por exemplo, disse simplesmente, com voz
bem sacana:

"Vocês precisam conhecer os meus rapazes... Meus rapazes... Todos os
seis... Seis solteiros..."

O que nem era verdade, porque pelo menos Zezinho e Stenio estavam
casados. Para não falar de
Aloysio, que era quase casado - com ela.

Aloysio de Oliveira também se mudou para North Bedford Drive, 616 - mas
não para o quarto
de Carmen. Oficialmente, era um hóspede, a quem fora reservado um dos
dois quartos no andar de
baixo, ao lado do vestiário que servia como depósito de calções e maios
para as visitas usarem na
piscina. Ou seja, como se fosse um hóspede de passagem. Essa encenação
tinha mais de uma
razão de ser. Primeiro, por dona Maria. Não era segredo para ela que sua
filha e Aloysio eram
"amantes". Mas o respeito era tanto que, quando Carmen queria ficar a sós
com Aloysio, esperava
que sua mãe fosse dormir e só então descia e batia à porta dele. O
contrário não acontecia - não
há registro de que ele jamais tenha dormido no quarto de Carmen em North
Bedford Drive.

Segundo, havia as convenções de Hollywood. Por elas, era inaceitável que
uma estrela
coabitasse com um homem - qualquer homem - sem ser casada com ele. É
verdade que, com
um pequeno arranjo, tudo se tornava possível. Márion Davies era
sabidamente a mulher do
(também casado) magnata da imprensa William Randolph Hearst. Mas, para
salvar a face,
mantinham quartos "separados" no rancho dele em San Simeon (o modelo do
castelo Xanadu de
Cidadão Kane) e na casa dela em Santa Monica, com o que se tornavam
apenas "amigos".
Spencer Tracy e Katharine Hepburn também tinham um "acordo" que ninguém
desconhecia, mas
não coabitavam - porque o católico Tracy nunca se divorciara de sua
mulher, a influente
filantropa Louise Treadwell Tracy. Os únicos que, em certa época,
desafiaram essa convenção e
moraram juntos foram Charles Chaplin e Paulette Goddard, mas sempre
declarando (falsamente)
que tinham se casado a bordo de um navio na China.

A depender de Carmen, ela e Aloysio já teriam se casado. Aos 33 anos em
fins de 1942, Carmen
sentia o tempo voar em relação ao que verdadeiramente lhe interessava na
vida: ser mãe. Mais
alguns anos, e teria de desistir desse sonho. Aloysio, por sua vez,
sentia uma pressão permanente,
indireta, da parte de dona Maria e de Aurora e Gabriel, por saber que
eles o aprovavam - e
talvez o aprovassem até demais. Sem falar na silenciosa pressão social, a
qual insinuava o tempo
todo que não ficava bem ele continuar morando ali sem ser casado com
Carmen.

349

Mas havia também uma pressão contrária, vinda de sua família no Rio.
Aloysio era quase um filho
único. Sua mãe, dona Nair, e sua irmã, Yvonne, o tinham criado de forma
rígida, repressiva. Por
elas, ele teria se formado em odontologia e se dedicado às brocas e aos
boticões, e nunca se
aproximado de um microfone. As duas eram contra seu casamento com Carmen,
por ela ser
cantora e, pior ainda, bem mais velha do que ele. Aloysio anotava tudo,
mas era capaz de ignorar
os sentimentos das duas famílias e decidir por conta própria. Na verdade,
já decidira.

Primeiro, precisava libertar-se profissionalmente de Carmen. A única
maneira de conseguir isso
era arranjando um emprego fora do Bando da Lua. Como a alternativa - nem
pensar - era a
volta para o Brasil, começara a assuntar a praça em Hollywood. A melhor
possibilidade
chamava-se Walt Disney - e, desde que Disney voltara do Rio, ele se
aproximara do produtor,
por intermédio de Gilberto Souto. Walt iria rodar Alô, amigos, e havia
muito em que um homem
como Aloysio lhe poderia ser útil. Walt se deixou convencer. Aloysio
ainda participou de Minha
secretária brasileira, mas ali se encerrou o seu primeiro ciclo com
Carmen e com o Bando da Lua.
Disney já o contratara como assessor especial.

Com a saída de Aloysio, o Bando da Lua original (que, nos últimos três
anos, perdera Ivo, Hélio e
Vadeco) resumiu-se aos irmãos Stenio e Affonso Ozorio, e eles não abriam
mão de continuar com
Carmen. Aloysio não se opunha a isso - desde que o nome Bando da Lua
deixasse de existir.
Stenio e Affonso tiveram de concordar. E assim, formado por Zezinho,
Nestor, Stenio, Affonso,
Vadico e o trompetista Ivan Lopes, músico brasileiro que também fora
tentar a sorte em Los
Angeles, nasceram informalmente os Carioca Serenaders.

Já se desligar de Carmen não foi tão fácil. Aloysio precisou de
habilidade para contornar seu
rompimento com ela. Primeiro, limitou-o a uma separação profissional e
explicou: com ela agora
sob contrato permanente com a Fox, suas apresentações com o Bando da Lua
diminuiriam. Ele,
sem ter o que fazer, seria, mais do que nunca, Mister Miranda - a que ele
não queria. Seu
afastamento do conjunto era importante até para que pudesse crescer
artisticamente. Mas que ela
não se preocupasse porque, mesmo trabalhando com Disney, ele estaria
sempre por perto.
Carmen entendeu. Quanto a continuar morando com ela, Carmen sabia, melhor
do que ninguém,
que não estava direito. E ele ainda não se sentia seguro para falar em
casamento. Além disso,
havia o ciúme brabo de Carmen - sempre acusando-o de não se fazer de
rogado diante das
coadjuvantes, coristas, secretárias e datilógrafas dos estúdios -, e que
só tendia a agravarse,
porque era verdade. O melhor, para ambos, era se afastarem por uns
tempos.

Chorando, Carmen concordou com tudo e logo começou a acreditar que, de
fato, esse curto
afastamento de Aloysio fizesse bem aos dois. Não podia adivinhar que, tão
rapidamente, Aloysio
fosse conhecer, apaixonar-se e se casar com uma secretária de Disney e
até ter uma filha com ela.



Capítulo 20

1943

Entre a vida e a morte



No Rio, os críticos de cinema deixavam crescer as unhas para escrever
sobre Carmen:

"Não se concebe uma pior artista do que Carmen Miranda. Muito gorda, com
roupas
espalhafatosas (incluindo uma fantasia com as cores portuguesas) e
desprovida da menor parcela
de graça ou simpatia. Começa a imitar o estilo Lupe Velez: grita muito,
fala muito, berra muito.
Alice Faye é meiga, sincera e bonita. [Carmen] é espalhafatosa, nada
sincera e muito feia."
(Crítico anônimo, em A Cena Muda.)

"Verdadeira caricatura - e caricatura grotesca - daqueles tipos
"temperamentais" que Lupe
Velez fazia. Nunca a vimos se apresentar tão mal e de maneira tão
exagerada e vestir-se tão mal.
Suas baianas são de um mau gosto incrível, e positivamente grotescas em
Technicolor." (Crítico
anônimo, no Diário da Noite.)

"[Carmen está] melhor que nos trabalhos anteriores, mas ainda assim
revelando-se péssima artista.
Também quem inventou que ela podia trabalhar no cinema?" (Pedro Lima, em
O Jornal.)

Essas críticas lubrificadas a bile se referem a Aconteceu em Havana,
estreado no Rio em
novembro de 1942. Um dos críticos anônimos, o da Cena Muda, seria o mesmo
Pedro Lima, que
não podia ver um traço de verde ou vermelho numa baiana de Carmen sem ter
um espasmo
antilusitano. O outro, o do Diário da Noite, talvez fosse Celestino
Silveira. Ou os dois primeiros
textos poderiam ser de Celestino, pela indignação quase apoplética em
ambos, pela fixação em
Lupe Velez e por não saber se criticava o filme ou os figurinos (estes,
talvez a sua verdadeira
vocação como crítico). O primeiro artigo não perdoa Carmen, por "gritar
muito", e preferia que
ela fosse "meiga e sincera", como Alice Faye. Ou seja, quando o crítico
de uma revista de cinema
confunde a personagem com a intérprete, entende-se por que, nos anos 40,
ainda havia na platéia
quem acreditasse que os atores iam inventando os diálogos à medida que o
filme rolava na tela.

Estava quebrada a trégua entre Carmen e os críticos brasileiros. No
primeiro filme, Serenata
tropical, não havia muito o que criticar - Carmen aparecia cantando seus
números musicais e só.
Em Uma noite no Rio, deram-lhe alguns diálogos, mas seu papel continuou
musical e decorativo
- os críticos a pouparam, pelo visto por benevolência. Mas, a partir de
Aconteceu em Havana,

351

Carmen entrou na linha-de-tiro. A maioria dos críticos brasileiros tomou
assinatura contra ela -
por suas baianas fugirem da estilização original ou por fazer os
americanos pensarem que as
brasileiras se vestiam daquele jeito; por tentar ser engraçada ou por
estar sempre irritada; por
trocar o samba pela rumba ou por reduzir a música brasileira aos sambas
"negróides". Isso, no
caso das críticas minimamente articuladas - porque, de modo geral, Carmen
era atacada por ter
se tornado americana demais, brasileira demais, latino-americana demais,
ou todas as opções
anteriores, mesmo que uma contradissesse as outras.

O mais implacável era, por acaso, Pedro Lima. Suas críticas - quase
sempre a mesma, com
pequenas alterações - saíam em todos os veículos da cadeia Associada, o
que significava que
Carmen tinha contra ela uma rede de jornais e revistas. Apenas três anos
antes, ele e Celestino
Silveira eram recebidos como velhos amigos na casa da Urca por dona
Maria. Se Carmen ainda
estivesse por chegar, ela os cumulava de ovos moles ou pastéis de Santa
Clara enquanto eles
esperavam. Agora arrotavam diatribes contra a estrela.

Em Beverly Hills, com um ou dois meses de atraso, Carmen lia tudo que se
publicava no Brasil a
seu respeito, enviado por Almirante. Não gostou do que leu sobre
Aconteceu em Havana e
mandou dizer que não adiantava os críticos estrilarem, porque a realidade
do cinema era aquela e
era "perda de tempo criticar, de tão longe, o que se passava na
Califórnia".

Celestino soube disso e subiu nas tamancas, ferido no seu direito de
opinar. A provar que se
ofendera, mandou-lhe pela Cena Muda uma resposta professoral e
provinciana, acusando seus
"falsos amigos" (Almirante seria um deles?) de a estarem intrigando
contra os que aqui "lhe
queriam tanto bem". (Mas, entre estes, não podia estar se referindo a si
próprio e a Pedro Lima,
que achavam ridículo tudo o que ela fazia.) Em outro trecho, parecia
censurá-la por estar gozando
"dos gases da fama, da popularidade e dos dólares" - como se houvesse
nisso algo de
reprovável e como se a nobreza estivesse em submeterse aos cachês de
Wallace Downey nos
alô-alôs. Depois aconselhava os "falsos amigos" a auscultar o ambiente e
"tomar o pulso da
opinião pública" (brasileira) em relação a ela.

Para que não se perdesse uma boa idéia, Celestino antecipou-se e fez
exatamente isso em sua
revista: promoveu uma enquete sobre Carmen. Entre as dezenas de leitores
que escreveram para
atacá-la, era notável a incidência de cartas que concordavam tintim por
tintim com as críticas,
dele e de Pedro Lima, na argumentação e no estilo... Houve cartas a
favor, também, isentando
Carmen e lembrando que, por força de seu contrato, ela era obrigada a
fazer o que lhe mandavam,
inclusive vestir-se "daquele jeito". Outras atribuíam os ataques a Carmen
àquela secular víbora,
tradicional inimiga dos brasileiros que faziam sucesso lá fora: a inveja.

Bem mais simples era responder à pergunta de Pedro Lima: "Também quem
inventou que ela
podia trabalhar no cinema?".


352

Pois fora ele próprio - Pedro Lima. Você se lembra. Em 1926, trabalhando
com o produtor Paulo
Benedetti, Lima publicou a primeira foto de Carmen numa revista
(Selecta), chamando-a de "uma
extra da nossa filmagem" e já lhe antevendo - com grande faro - um futuro
de estrela.

E estrela ela se tornara, mas, ao se olhar ao espelho, Carmen nunca
chegara a um acordo com seu
nariz. Em Hollywood, muito menos, porque ali circulavam os narizes mais
perfeitos do mundo.
Carmen era excessivamente severa consigo mesma - irritava-a que, vista de
lado, a ponta de seu
nariz se prolongasse numa batata ou em outro ramo da família dos
tubérculos, formando uma
ligeira ensellure ou sela. Obrigava-a também a ficar atenta para que os
cinegrafistas e fotógrafos,
que a perseguiam dia e noite, só a pegassem de meio perfil e, de
preferência, com o rosto voltado
para a esquerda (90% de suas fotos são assim). Aliás, para Carmen, o
único senão da seqüência de
"Chica chica boom chie", em Uma noite no Rio - um momento em que ela está
iluminada,
esbanjando felicidade -, era seu nariz virado para a direita, formando um
ângulo reto em relação
à testa e projetando-se como uma flecha contra o impecável uniforme
branco de Don Ameche. E
era verdade que se divertira muito com Mickey Rooney quando o ajudara a
caracterizar-se como
ela nas filmagens de Calouros na Broadway - exceto quando tivera de pôr-
se em posição para
que ele copiasse seu nariz.

A vontade de operá-lo vinha de longe. Cerca de dez anos antes, no Rio,
Carmen já falara sobre
isso com o médico que cuidara de sua pele, o doutor Hernani de Irajá:

"Não se pode dar um jeito nele, doutor? Tirar esta cinturinha?"

"Poder, pode, Carmen. Mas eu aconselho a você deixar como está. Isso em
nada a afeta, e até lhe
aumenta a graciosidade."

O doutor Hernani argumentou que o leve arrebitamento provocado pela
ensellure dava-lhe um ar de
petulância que a remoçava - e poderia ser até uma garantia contra o
envelhecimento. Mas
Carmen nunca se convenceu. Por fim, tantos anos depois, descobriu um
cirurgião em Los Angeles,
doutor Holden, que fizera um "ótimo trabalho" no nariz de sua amiga Ann
Miller. Em 1943, era difícil
encontrar médicos que executassem plásticas para fins apenas estéticos.

Ao decidir recorrer a ele para operá-la, Carmen contrariou várias
opiniões, entre as quais a de seu
clínico, doutor Marxer, que a advertiu para a prática de charlatanismo no
terreno da cirurgia plástica
em Los Angeles - e que a cidade americana a se recorrer para essa
especialidade era Saint Louis,
no Missouri. Carmen contrariou também a intuição de sua mãe, para quem
algo ia dar errado. E
ela própria, com um mínimo de esforço intelectual, devia saber que não
era aconselhável entregar
seu único nariz a um cirurgião que, segundo diziam, operava até em
domicílio. Era muito risco
para uma atriz. Mas Carmen já tinha


353

tudo acertado em sua agenda: operar o nariz no primeiro trimestre de
1943, filmar de abril a julho
e, no dia seguinte ao último take ou sessão de dublagem, superar todas as
dificuldades de
navegação aérea provocadas pela guerra e tomar um avião para o Rio, onde
pretendia ficar pelo
menos dois meses. E, assim, em fins de fevereiro ou nos primeiros dias de
março de 1943, Carmen
armou-se literalmente da cara e da coragem e submeteu-se à cirurgia -
sobre a qual há duas
versões.

A primeira, muito improvável, reza que, num dia em que Aurora e dona
Maria estariam fora, ela
recebeu o homem em sua casa e ele fez o trabalho ali mesmo. Outra, mais
plausível, é a de que,
sempre às escondidas de dona Maria e Aurora, ela tivesse sido levada à
clínica por Aloysio. O
certo é que Holden lhe cobrou quinhentos dólares adiantados e exigiu que
Carmen assinasse um
documento (prática comum na medicina americana da época) isentando-o de
responsabilidade
pelo resultado. Em seguida, fez o serviço: com algumas incisões e a
retirada de cartilagem,
eliminou a curvatura e remodelou-lhe o nariz. Ou, pelo menos, foi o que
prometeu - porque,
quando as ataduras foram removidas, algumas semanas depois, o resultado
pareceu desastroso
para Carmen. Seu nariz ficara parecido com o de um lutador de boxe.

Daí em diante, ninguém mais teve sossego. Nos primeiros dias, Carmen se
desesperou. Sua
carreira estava destruída - nunca mais poderia aparecer em público,
porque seus fãs não a
aceitariam daquele jeito. Descobrira, um pouco tarde, que uma plástica no
nariz não era uma
tintura no cabelo ou um novo esmalte que se pudesse aplicar e remover,
caso não se gostasse -
era muito mais complicado. Mas também não era irreversível. Só começou a
se tranquilizar
quando o doutor Marxer lhe garantiu que, com uma nova cirurgia corretiva, de
preferência em Saint
Louis, ganharia pelo menos seu antigo nariz de volta. Teria apenas de
esperar alguns meses.

Acontece que Carmen não podia esperar tanto - estava às vésperas de
começar um novo filme.
O estúdio a aguardava para rodar The gang"s ali here (no Brasil, Entre a
loura e a morena), com
direção de Busby Berkeley. Carmen seria o segundo nome do elenco, atrás
apenas de Alice Faye,
com três grandes números musicais a seu cargo e uma intensa presença na
trama. A produção já se
iniciara em fevereiro, e tudo indica que Carmen tenha gravado o playback
de seus números antes
da cirurgia. Gravação, aliás, que ela teria marcado para aquele mês na
esperança de que, até o
dia acertado para o início das filmagens,
19 de abril, o pós-operatório tivesse se completado e ela pudesse exibir
o novo narizinho. Mas,
quando as filmagens começaram, Carmen ainda estava sob o impacto do nariz
deformado.

Não há registros fotográficos desse nariz e, quem examinar o rosto de
Carmen em Entre a loura e a
morena em busca de pistas, ficará intrigado - porque, no filme, ela está
com um nariz perfeito,
com um ligeiro e delicioso arrebitamento. Mas é um nariz de massa de
maquiagem, obra do
visagista Guy Pearce,


354

responsável pelo make-up geral do elenco. E esse, sim, foi um trabalho de
mestre - porque
permitiu a Carmen atirar-se com toda a alma a seus números no filme, como
se adivinhasse que
eles seriam o ponto máximo de sua carreira em Hollywood.

Entre a loura e a morena é considerado, quase por unanimidade, o melhor
filme de Carmen. Para
muitos, é também o melhor de Busby Berkeley, "Buzz", para os amigos - que
não eram muitos. O
filme marcou o reencontro de Berkeley com Darryl F. Zanuck. Em 1933,
quando ambos estavam
na Warner - Zanuck, como um ambicioso chefe de produção; Berkeley, como
um coreógrafo
cheio de idéias -, eles revolucionaram o gênero musical com Rua 42. Logo
depois, Zanuck
deixou a Warner para tomar-se um dos magnatas da Fox e de Hollywood; mas
Berkeley
continuou lá, como coreógrafo ou diretor, e criou uma série antológica de
números para os
musicais do estúdio. Na Warner, todos achavam fácil admirá-lo. Difícil
era aturar o seu
temperamento ríspido e autoritário, os ocasionais porres e a permanente
fixação pela mãe, que ele
só faltava levar com ele quando se encarapitava na grua, a dez metros de
altura. Em
1939, Berkeley mudou-se para a MGM, onde se dedicou a dirigir e torturar
Judy Garland e
Mickey Rooney numa série de musicais adolescentes, entre os quais
Calouros na Broadway. A
tortura consistia em obrigá-los a repetir trinta vezes a mesma cena e a
chamá-lo de "tio Buzz". Só
não o avisaram de que, já então, ninguém podia torturar Judy e Mickey
impunemente - não por
muito tempo.

Desgastado na MGM, Berkeley foi chamado para a Fox em 1942 por Zanuck,
mas este, frenético
defensor da entrada dos Estados Unidos na guerra, não ficou para esperá-
lo - aos quarenta anos,
alistou-se e zarpou para a Europa. Não fez diferença: com a carta-branca
que Zanuck lhe deixou,
Berkeley rodou Entre a loura e a morena exatamente como tinha planejado.
E, de passagem,
quase enlouqueceu o chefe interino do estúdio, William Goetz, e o
produtor William LeBaron.
Não admira que tenha sido seu único filme na Fox.

Berkeley não era bem um coreógrafo, no sentido de um diretor de dança,
como Hermes Pan ou
Robert Alton. Entre outros motivos, porque não sabia dançar. (Nos seus
musicais, ninguém
precisava saber dançar.) Era mais um diretor de cena e de câmera, mas,
nesse caso, beirando a
genialidade. Sua idéia de uma seqüência musical era dispor o máximo
possível de coristas em
cena - um coro com nunca menos de sessenta mulheres bonitas, às vezes
mais de cem - e
ensinar-lhes movimentos simples, mas que, em conjunto e vistos do alto,
formassem padrões
surpreendentes. Depois filmava tudo de uma grua, pilotada pessoalmente
por ele, como um
centauro, a quase dez metros de altura, e sujeitando a câmera a trinta e
tantas piruetas e posições
diferentes, à medida que a multidão se movia lá embaixo. Com isso,
somente nos musicais da
Warner, criara algumas das imagens mais extraordinárias do cinema,
355

como os violinos iluminados a néon em Cavadoras de ouro (1933), os caleidoscópios
humanos em Belezas em
revista (Footlight parade, 1933), os olhos e rostos de Ruby Keeler em
Mulheres e música (1934),
os cinqüenta pianos brancos em Mordedoras de 1935 (Gold diggers 0/2935) e
tantas outras.
Ninguém sabia combinar tão bem o material humano com os acessórios e
adereços numa cena -
mas, quase sempre, Berkeley dava um jeito de, com um golpe de luz,
eliminar o material humano
do campo de visão e ficar só com os acessórios e adereços. Para ele, o
coro às vezes só servia
para segurar alguma coisa com as mãos - e o dançarino individual, na sua
concepção, não
existia.

Berkeley desafiou o estilo Fox de fazer musicais, no qual os números de
canto e dança
costumavam ser muito simples e se davam num palco de teatro ou nightclub
- com o espectador
sempre sabendo que o artista estava se "apresentando". Fez isso sem cair
no extremo oposto, o da
MGM, em que os números musicais eram integrados à narrativa, e as pessoas
cantavam e
dançavam "na vida real", em casa, na rua ou onde estivessem. Berkeley
combinou os dois estilos
- e, com o aval prévio de Zanuck, pôde fazer isso numa escala sem
precedentes para os padrões
da Fox. Houve ainda outro fator para que ele exorbitasse: esse seria seu
primeiro filme em
Technicolor. Enfim, eram muitas tentações para Busby - e ele as
aproveitou todas. Numa época
de cintos apertados na indústria e na economia, esbanjou em cenários,
figurinos, objetos de cena,
ângulos de câmera, cores e - seu esporte favorito - idéias quase
impossíveis de executar.

A seqüência inicial de Entre a loura e a morena, com cinco minutos de
duração e "reconstituindo"
a chegada de Carmen a Nova York quatro anos antes, já era um
impressionante cartão de visitas
- aliás, ainda é. Consiste aparentemente de um único take sem cortes
durante os primeiros três
minutos e meio. A câmera parte do rosto de Nestor Amaral (e não de
Aloysio de Oliveira, como
sempre se acreditou), cantando "Aquarela do Brasil" em português, e passa
para a lateral de um
navio, o Brazil, acabado de chegar ao porto de Nova York. Enquanto os
estivadores se
encarregam de nossas sobremesas de exportação - café, açúcar e frutas -,
uma carga de
bananas, abacaxis, peras etc. desce pelo gancho e se confunde com as
frutas do chapéu de
Carmen, já cantando a segunda parte de "Aquarela do Brasil". A câmera
recua para a chegada de
uma charanga tocando o tradicional "There"11 be a hot time in the old
town tonight" e o porto se
revela, com Nova York ao fundo. Entra o radialista Phil Baker para
entregar a Carmen a chave da
Broadway, em nome do prefeito Fiorello La Guardiã. Na seqüência, a ação
se transfere sem
cortes para a própria Broadway, onde Carmen canta "You discover you"re in
New York" e, antes
que você se dê conta, o cenário já se transformou em um ambiente de
nightclub. Mas ainda não
terminou. Só então o espectador do filme descobre que tudo aquilo, do
rosto de Nestor ao
nightclub, passando pelo navio e pelo porto, estava sendo feito num
palco, para uma platéia de
teatro.


356

Evidente que jamais um palco de verdade seria capaz de comportar tamanho
cenário (a própria
filmagem já fora uma proeza). Tem-se também a impressão de que Berkeley
filmou tudo sem
cortes. Pois foi quase isso mesmo. Havia cortes, mas poucos e quase
invisíveis. A maioria foi
substituída pelos movimentos da câmera na grua, que percorreu 62 metros
de cenário para mostrar
o equivalente a 32 tomadas diferentes, a 7,5 metros do chão no seu ponto
mais alto. Só isso já fora
uma complicação. Mas as grandes dores de cabeça para a Fox em Entre a
loura e a morena foram
as bananas.

Nenhum outro filme de Hollywood, incluindo a oeuvre completa de Tarzan
com Johnny
Weissmuller, previu o uso de tantas bananas em cena. Seriam, talvez,
milhares. Elas estariam, de
saída, no chapéu de Carmen e no carregamento de frutas. Depois, seriam o
leitmotiv da
decoração de um enorme nightclub. Seria também a matéria-prima da
confecção de um xilofone e,
finalmente, povoariam toda uma ilha, distribuídas em dezenas de
bananeiras. Busby queria usar
bananas de verdade em todo o filme. Mas, devido à guerra, a banana estava
racionada nos
Estados Unidos. Virando as quitandas de Los Angeles pelo avesso durante
semanas, a produção
finalmente conseguiu achar dois cachos - talvez os últimos que a cidade
veria pelos anos
seguintes. O departamento de arte do estúdio transformou as bananas em
moldes e as reproduziu,
aos cachos ou isoladamente, na quantidade necessária. Foram feitas de
borracha, nos mais
diversos tamanhos, o que não se sabe como não comprometeu a produção de
pneus americanos
naquele trimestre. Mas a prova da pouca intimidade da Fox com bananeiras
é que todos os
cachos em cena no filme foram pendurados de cabeça para baixo.

Bananas para dar e vender, ainda que artificiais e pendentes pelo pitoco
errado, foram o que
Berkeley exigiu para o número mais famoso do filme, "The lady with the
tutti-frutti hat", também
criado para Carmen. O número começa no nightclub decorado com as
bananeiras. Vários micos,
escalando-as, fazem a passagem desse ambiente para o de um paraíso
tropical: uma praia,
igualmente rica em bananeiras, com sessenta coristas descalças e de
saiotes de babados saudando
a chegada de Carmen - esta, pela primeira vez, também descalça na tela.
Carmen canta e toca
sua música no xilofone de teclas de bananas. Voltam as coristas, cada
qual segurando agora uma
banana de um metro e meio. Suas evoluções com as bananas gigantes, quase
do tamanho de
canoas, evocam dezenas de pênis em ereção. Em seguida, as moças se
deslocam para um arranjo
de morangos também gigantes - e, vista de cima, há uma forte sugestão de
coito naqueles
bananas fálicas que convergem ritmicamente para o centro do arranjo de
morangos, enquanto
estes se abrem e se fecham como uma vagina.

Não, você não está lendo errado. Este é um filme americano de 1943, uma
comédia musical em
Technicolor, produzida por um grande estúdio e exibida em toda parte,
talvez até com censura
livre - num período em que o código de autocensura de Hollywood exigia
que, na tela, marido e
mulher dormissem

357

em camas separadas e nenhum beijo na boca durasse mais que cinco
segundos. Então, como se
explica que se tenham liberado tais cenas em Entre a loura e a morena7.

Não se explica. A impressão é que, na época, aquelas implicações eróticas
eram tão impensáveis
que, simplesmente, ninguém pensou nelas - bananas eram bananas, morangos
eram morangos, e
não havia nada de mais nisso. E talvez não houvesse mesmo - o futuro é
que se encarregaria de
inocular Freud onde, quem sabe, havia apenas Busby Berkeley.

Acontece que a seqüência das bananas, já inacreditável até ali, ainda não
terminou. Os micos e as
bananeiras devolvem a ação para o ambiente do nightclub, e a câmera
dispara veloz em direção a
Carmen. Fecha-se num close de seu rosto e só então, ao se afastar, abre o
campo de visão para
revelar sua cabeça envolta pelo maior turbante de bananas de todos os
tempos: um prodígio de
seis metros de altura, com milhares de bananas ocupando metade da tela -
na verdade, um painel
monumental de bananas pintadas (também de cabeça para baixo), tomando o
cenário inteiro, e
que ela parece equilibrar na cabeça.

A produção de "The lady with the tutti-frutti hat" teve vários atropelos.
As dezenas de bananas
gigantes eram armações de arame a serem cobertas com seda - mas a seda
também estava
racionada, por seu uso na fabricação de pára-quedas. A produção precisou
achar um tecido que a
substituísse e absorvesse bem as manchinhas pintadas à mão, para fazê-las
parecer maduras. Já as
coristas estavam descalças, não porque o cenário representasse uma praia,
mas porque gastaram
nos ensaios o único par de sapatilhas que a Fox dera a cada uma - e
sapatilhas eram outro item
racionado, embora nunca fosse revelado qual seria o seu uso militar. E,
na cena final do número,
em que a câmera avançava em direção ao rosto de Carmen, Berkeley, montado
na grua, tinha de
mergulhar de verdade, como num caça Stuka, parando a poucos centímetros
do alvo - porque a
zoom ainda não existia. No terceiro take, houve um erro de cálculo e a
câmera se aproximou tanto
que a lente acertou o turbante de Carmen, derrubando-o - mais alguns
centímetros para baixo e a
teria atingido no rosto, com conseqüências trágicas.

O terceiro número de Carmen em Entre a loura e a morena era o menos
ambicioso "Paducah", mas
o mais difícil para ela - não por ter Benny Goodman e sua orquestra para
acompanhá-la, mas por
Carmen ter de dançá-lo com o elétrico ítalo-americano Tony de Marco, um
dos mais respeitados
dançarinos de salão dos Estados Unidos. De Marco (que, em igualdade de
condições - ambos
descalços ou com saltos da mesma altura -, era ainda menor do que
Carmen!) estava habituado a
partners capazes de dançar qualquer coisa e que ele jogava de um lado
para o outro, como
bonecas de pano. Ao criar os passos para ele e para Carmen, esqueceu-se
de que ela não era
dançarina e que nunca tinha dançado com ninguém no cinema. Ou, então,
contou com o neurótico
profissionalismo de Carmen e não se desapontou: ela não esmoreceu
enquanto não aprendeu


358

a segui-lo em todas as velocidades e variações - samba, rumba, swing
- exigidas por seu
arranjo. Pela alegria, energia e euforia que passa na tela, "Paducah"
acabou sendo um dos
melhores números da carreira de Carmen.

Todas as canções do filme eram de Harry Warren, agora em parceria com
outro grande letrista,
Leo Robin, co-autor (com vários parceiros) de clássicos como "One hour
with you", "Please" e
"Thanks for the memory". Pena que, entre tantas canções, não sobrasse
nenhuma memorável para
Carmen - as duas melhores do filme, "No love, no nothing" e "A journey to
a star", foram
reservadas a Alice Faye. E era assim que se dava a divisão de trabalho: à
loura Alice,
reservavam-se os beijos apaixonados do galã, as cenas que deviam provocar
suspiros e as
canções que poderiam ser indicadas para o Oscar; à morena Carmen, cabiam
os beijos ridículos
no comediante (como quando Carmen emplastra de batom o rosto de Edward
Everett Horton), as
cenas para provocar risos e as canções rítmicas ou humorísticas - com a
ressalva de que a
morena a que se refere o título brasileiro também não era Carmen, mas a
coadjuvante Sheila Ryan.

Em compensação, nada superava o guarda-roupa produzido para Carmen nesse
filme. Em Entre a
loura e a morena, ela usava nada menos que dez vestidos e uma igual
quantidade de turbantes e
chapéus. A criadora desses figurinos, Yvonne Wood, tinha 29 anos e era,
até então, simples
assistente do setor na Fox, pouco mais que uma costureira. Carmen
acreditou em seu potencial e
insistiu com LeBaron para que a promovesse. LeBaron topou e a carreira de
Yvonne começou
ali. Carmen voltaria a usá-la nos seus quatro filmes seguintes na Fox.

Trabalhar com uma figurinista sobre quem tivesse alguma ascendência devia
ser importante para
Carmen, que, no fundo, também era uma costureira. Da colaboração entre
elas, nasceram roupas
memoráveis nesse filme, como o vestido de pompons em "You discover you"re
in New York", o
turbante com o cachinho de bananas em "The lady with the tutti-frutti
hat" e os dois mais
pândegos apetrechos de cabeça do filme: o de orelhas de Mickey e o de
borboletas. Mas, pelo
visto, Yvonne tinha idéias próprias sobre o que Carmen deveria passar a
usar. A maioria dos
vestidos e chapéus que criou para Carmen em Entre a loura e a morena
estava tão distante da
concepção original das baianas que só os arqueólogos enxergariam uma
conexão - a partir dali,
as batas e balangandãs, por exemplo, se foram para sempre.

Era uma aposta perigosa para alguém, como Carmen, que, em detrimento de
seus outros talentos,
atribuía à indumentária um peso excessivo em sua receita:

"Devo meu sucesso em 30% à minha voz, 30% à minha disposição e 50% às
minhas fantasias", ela
disse a um repórter.

Este lhe informou que a soma passara de cem. Carmen não se deu por
achada:

"Ih, é! Mas eu sou assim - exagerada."

359

Dois anos antes, no segundo semestre de 1941, Alice Faye se casara com o
baterista e bandleader
Phil Harris. Era o segundo casamento de Alice e bem diferente do
primeiro, com o cantor e ator
Tony Martin. Ao contrário de Martin, em quem as mulheres viam um tipão,
Harris era, por todos os
padrões, muito feio - seu nariz, pelo tamanho, merecia que se cobrassem
ingressos para apreciá-
lo. Tony era jovem, com uma carreira em ascensão. Phil, já quarentão,
vinha do tempo das
orquestras mais suaves, à base de sax-alto e violino, que pareciam
enterradas pelo swing - a
dele era uma das últimas remanescentes. Enfim, numa cidade regulada pela
beleza, pela juventude
e pelo sucesso, Alice escolhera um homem que parecia representar o
contrário disso tudo. Mas,
para ela, Phil Harris era sinônimo de segurança, estabilidade e conforto.

Em meio às filmagens de Aconteceu em Havana, Alice descobrira-se grávida.
Ficou exultante e
anunciou que, terminado o filme, passaria um ano sem trabalhar, para
cuidar do bebê. A decisão
pegou Zanuck de surpresa e ele se sentiu traído, porque já a escalara em
outro ambicioso musical
de virada-do-século: Minha namorada favorita (My gal Sal). Zanuck ficou
fulo, mas não podia
fazer nada - a gravidez de uma estrela casada era um dos poucos limites
para o poder dos
estúdios. Chutando baldes e quem encontrava pela frente, Zanuck testou
Betty Grable para o
papel e não gostou. Tomou então Rita Hayworth por empréstimo à Columbia,
tendo de pagar
caro por ela. Zanuck calculou que a gravidez de Alice causou à Fox um
prejuízo de 3 milhões de
dólares no ano fiscal de 1941-1942.

A filha de Alice chegou em maio de 1942, mas, como se Zanuck lhe tivesse
rogado uma praga, a
criança nasceu com o cordão umbilical em volta do pescoço. Na época, isso
representava risco
de vida para mãe e filha, às vezes obrigando à cesariana. A pequena Alice
sobreviveu e, com isso,
sua mãe pôde ficar legalmente fora do estúdio por um ano e meio. Quando
se reapresentou para
trabalhar, em novembro de 1942, Zanuck tinha partido para a guerra e
estava no Norte da África,
ajudando a perseguir o marechal alemão Rommel, a "raposa do deserto". Em
1943, Alice fez
Aquilo, sim, era vida, com John Payne - grande sucesso em que cantava
"YouTl never know", de
Harry Warren e Leo Robin -, e, no segundo semestre, Entre a loura e a
morena. E, em meio aos
quatro meses de filmagem deste último, Alice se viu grávida de novo.

Parecia uma epidemia na Fox. Na mesma época, Betty Grable, recém-casada
com Harry James,
também estava de licença-maternidade. A novata Sheila Ryan só ganhara o
papel da morena de
Entre a loura e a morena porque a outra grande esperança do estúdio,
Linda Darnell - que
Zanuck vinha preparando havia anos para o estrelato -, fugira para se
casar com um soldado. E,
agora, essa gravidez de Alice. Mas, dessa vez, Alice tomou uma decisão
fulminante. Esperou o fim
das filmagens e só então anunciou seu estado - e comunicou ao


360

estúdio que, naquele momento, aos 29 anos e com seu contrato expirado,
estava deixando o
cinema. Iria ser mãe em tempo integral.

Brincando de guerra no deserto, a milhares de quilômetros dali, Zanuck
ainda pensava que seu
inimigo era Rommel. Nem imaginava que, ao voltar para a Fox, teria de
enfrentar uma estranha
insurreição: as mulheres mais glamourosas, sensuais e desejadas do mundo
estavam dispostas a
trocar tudo isso por um casamento apressado, o desconforto de uma
gravidez ou a mediocridade
da vida doméstica.

De seu privilegiado ponto de vista no estúdio, Carmen observava com
inveja essa azáfama de
casamentos, gravidezes e partos entre suas colegas. Todas eram mais novas
do que ela. Aos 34
anos, sua vida não tinha nenhuma perspectiva nesse front. Ela também
trocaria o cinema, a
carreira e o sucesso por um casamento e filhos - se tivesse tal escolha.

Em julho, ao terminar sua participação em Entre a loura e a morena,
Carmen, com Aurora como
acompanhante, deu entrada no hospital Barnes, de Saint Louis, para uma nova
cirurgia que refizesse
seu nariz. Elas se registraram como Maria e Aurora Richaid. Dona Maria e
Aloysio, que foram
com elas, ficaram num hotel na cidade. Segundo vários relatos, o
cirurgião que atendeu Carmen
- um profissional de grande dignidade, com cerca de setenta anos -
examinou as fotos do nariz
original e se irritou com Carmen por ela ter tentado alterá-lo. A
cirurgia plástica era uma ciência
séria, indicada para lesões graves e deformadoras, ele sentenciou - não
para caprichos ou
vaidades fúteis, típicas de Hollywood. O resultado estava ali, na
barbaridade cometida por seu
suposto colega da Califórnia. Carmen ouvia aquilo e chorava muito. Mas o
médico a tranqüilizou:
concordava em operá-la porque ela era uma artista que vivia do rosto, da
aparência. E, afinal,
aquela não deixava de ser uma cirurgia reparadora. Acertaram em que ele
daria a Carmen o nariz
de Aurora - o mais parecido possível com seu nariz original.

A cirurgia durou cinco horas, constando de um enxerto de tecido da
própria Carmen (não da
nádega, como ela diria depois, mas do braço). Carmen foi levada de volta
para seu quarto no
hospital e tudo fazia crer que seria liberada em uma semana. Mas, quatro
dias depois, dona Maria
e Aloysio foram acordados às seis da manhã no hotel e chamados às pressas
ao hospital. Carmen,
esverdeada, em choque e cheia de tubos, estava sendo conduzida para uma
cirurgia abdominal
exploratória. A incisão, na altura do umbigo, deu de cara com uma grave
infecção concentrada no
fígado, que estava envolto por uma camada de pus. Essa infecção resultara
do procedimento no
nariz e ameaçava deflagrar um processo de septicemia, quase sempre
mortal. Descoberta a causa,
os médicos começaram um tratamento constando de várias transfusões de
sangue e aplicação
maciça de um antibiótico descoberto no começo do século, mas só então
posto em circulação:
361

a sulfanilamida. Mas tudo poderia acontecer. A família foi
desenganada - não tivesse muitas
ilusões.

Dona Maria implorou que chamassem um padre - sua filhinha precisaria da
extrema-unção para
entrar no céu. Por se tratar de quem era, o consulado brasileiro foi
alertado. Os médicos
aconselharam a que seu agente ou responsável em Hollywood também fosse
avisado. Aurora
telefonou para George Frank, o qual percebeu que teria de acionar um
poder maior: a Fox. Frank
falou com alguém no primeiro escalão do estúdio, talvez William Goetz ou
o próprio Zanuck, já
de volta da África. Este se comunicou com Ben B. Reingold,
superintendente da Fox em Saint Louis,
e o pôs à testa do processo.

Na impossibilidade de esconder a gravidade da situação de Carmen, era
preciso encobrir o
motivo que a provocara. Um telegrama de Reingold para o Vanety,
despachado de Saint Louis e
publicado a 7 de julho, "informou" que, em meio a uma turnê de shows por
bases militares, Carmen
se sentira mal no trem e fora levada para um hospital daquela cidade,
onde sofrerá uma cirurgia
estomacal de emergência. (Por que isso? Porque, se ela se recuperasse e
se se descobrisse a
verdade, o grande público não a perdoaria por ter posto a vida em risco
por uma condenável
cirurgia plástica.) Tudo no telegrama fazia sentido: Carmen vivia se
apresentando para os
soldados, tais excursões eram mesmo extenuantes, e ela estava de fato
internada em Saint Louis. Mas
ninguém precisava saber por quê, ou que ela recebera a extrema-unção.
(Mas, três meses depois,
a extrema-unção vazaria e sairia em vários jornais, entre os quais, no
Brasil, A Noite.)

Segundo Aloysio, ele e Aurora se revezaram à cabeceira de Carmen no
hospital, durante as
semanas em que ela esteve morre-não-morre, mantendo-a sob os cobertores,
enxugando-lhe a
testa e lhe dando sopinha na boca. Carmen emagreceu quase dez quilos -
mas a sulfa venceu a
febre. A cirurgia deixaria uma cicatriz na barriga, que a obrigaria a
usar uma cinta sob a baiana.

Finalmente em casa, curada da infecção e já se recuperando da cirurgia
abdominal, restava a
Carmen recobrar seu nariz. Segundo uma lenda familiar, dona Maria, Aurora
e Gabriel
conseguiram mantê-la longe de um espelho enquanto foi possível, para que
ela não se visse.
(Como se mantém uma pessoa longe de um espelho?) Até que não foi mais
possível - e Carmen
contemplou seu rosto ainda muito inchado pelas cirurgias. Em desespero,
teria ameaçado:

"Mamãe, se eu não voltar ao normal, eu juro que me mato! Eu não vou
conseguir viver como um
monstro!"

Carmen não viveu como um monstro, nem precisou se matar. O resultado da
recuperação, ainda
que precário, está documentado na sua única seqüência em Four Jills in a
jeep (no Brasil, Quatro
moças num jeep), filmada em outubro de 1943, apenas três meses depois de
equilibrar-se entre a
vida e a morte.

Quatro moças num jeep era um filme B, baseado numa aventura real das
atrizes Kay Francis,
Carole Landis, Martha Raye e a obscura Mitzi Mayfair.


362

De outubro de 1942 a março daquele ano, as quatro viajaram pela Inglaterra e
pelo Norte da África
apresentando-se oficialmente para as tropas americanas e correndo de
verdade os perigos que
agora reconstituíam no filme. (Mitzi, que não consta de nenhuma
enciclopédia de cinema, era o
pseudônimo de Emelyn Pique e amiga de infância de Betty Grable em Saint
Louis. Esse foi seu
único filme.) Carmen, Alice Faye e Betty Grable só aparecem uma vez, em
participações curtas,
cada qual cantando um de seus antigos sucessos numa estação de rádio,
como se estivessem
sendo transmitidos para os soldados.

O número de Carmen foi "I, yi, yi, yi, yi (I like you very much)". Estava
ainda muito magra e
abatida, o que nem a fotografia em preto-e-branco conseguia disfarçar. E
seu nariz ainda
precisaria de um pequeno ajuste, o que ela faria em janeiro de 1944, na
Mayo Clinic, também em
Saint Louis. Pelo menos em termos de nariz, aquele seria o definitivo.

Com os Estados Unidos finalmente na guerra, um decreto do presidente
Roosevelt em 1942
sujeitou os estrangeiros residentes a servir nas Forças Armadas
americanas e, se preciso, ir para o
front - ou deixar o país. Vadeco resolvera que tinha mais o que fazer no
Brasil, inclusive se
casar, e já se mandara. Aloysio, Stenio, Affonso, Zezinho, Nestor e
Vadico passaram um ano tendo
pesadelos com o carteiro - qualquer envelope com o desenhinho de uma
águia podia significar a
mobilização -, mas escaparam ao chamado. E graças a Carmen, porque ela
telefonara para o
embaixador Carlos Martins e pedira: "Meu embaixadorzinho querido, pelo
amor de Deus, livre os
meus rapazes". O prestígio de Martins era tanto que, por mais de um ano,
eles ficaram a salvo. Em
1943, no entanto, quando já se julgavam fora de perigo, a surpresa:
Stenio foi convocado. E no
pior momento: sua mulher, Andréa, estava grávida de novo, e de oito
meses. Mas ele teve de se
apresentar assim mesmo, e o destacaram para lugar incerto e não sabido.

Stenio beijou Andréa e foi enfiado num trem com outras centenas de
rapazes. Embarcou chorando,
porque não sabia para onde. Aliás, não sabia nada sobre a guerra, exceto
que os Estados Unidos
faziam parte dela. Foi mandado como soldado para uma base do Exército no
Missouri para fazer
instrução militar. Em Los Angeles, Andréa passou a ter assistência médica
gratuita e uma pensão
mensal de oitenta dólares (Stenio faturava cinco vezes isso com o Bando
da Lua). Ganhou
também um enxoval para o bebê. No prazo previsto, deu à luz um menino,
Ronald, com todos os
carinhos do Estado.

Stenio, ao contrário, não levava boa vida no quartel. Todos os dias, às
seis da manhã, era
acordado por um corneteiro desafinado e pelos sargentos que batiam nas
armações de metal das
camas do alojamento com uma barra de ferro. Ele e os colegas iam para o
pátio e ficavam de pé
durante horas, em posição de sentido ou marchando, sob o pior inverno em
décadas.

363

Febres de 38 graus eram comuns na tropa e só se ia para a enfermaria com mais de 39.
Stenio pegou uma
pneumonia e foi mandado para o hospital da base. Ligaram para sua mulher.
Ela deixou o bebê e
a filha mais velha com Carmen e Aurora e tocou para o Missouri. Semanas
depois, Stenio foi
desmobilizado. Sua carreira militar durou menos de cinco meses e ele não
deu nem um tiro.
Andréa tivera sorte: mais um pouco naquele ano, e Carmen e Aurora
começariam o entra-e-sai de
hospitais por causa de Carmen, e não teriam podido ajudá-la.

Nos últimos meses de 1943, enquanto Carmen se recuperava em casa das
cirurgias em Saint Louis,
foi a vez de Aurora passar a sair todos os dias para a grande aventura de
sua vida: a filmagem do
número "Os quindins de iaiá" em Você já foi à Bahia?, no estúdio de Walt
Disney. Assim como o
filme anterior, Alô, amigos, esse também seria uma coletânea de desenhos
curtos com a América
Latina por tema - e Disney estava descobrindo, surpreso, que as
coletâneas eram mais rentáveis
que os longas com uma história completa como Pinóquio (1940) ou Dumbo
(1941). Ainda mais
porque podiam ser estreladas por alguns de seus heróis populares, como
Donald ou Pateta e,
nesse caso, o sensacional Zé Carioca, já conhecido do público por Alô,
amigos. (Os dois
personagens criados de encomenda para Você já foi à Bahia?, o menino
argentino Gauchito e o
galo mexicano Panchito, não tinham o mesmo appeal e sua carreira se
limitaria a esse filme.)

O episódio de "Os quindins de iaiá" toma dezoito dos 71 minutos de Você
já foi à Bahia?. A partir
do momento em que Zé Carioca pula do embrulho para presente e faz essa
fatal pergunta sobre a
Bahia a Donald, a tela se enche de cor, ritmo, beleza, humor, violência e
até de um artigo raro no
cardápio dos desenhos animados: sensualidade. Um dos grandes momentos é o
passeio da câmera
por Salvador, com Nestor Amaral, em estilo seresteiro, cantando "Na Baixa
do Sapateiro". Aliás,
toda a parte musical, executada pelos remanescentes do Bando da Lua,
acompanhados de grande
orquestra, é excelente. E há também a paixão de Donald por Aurora,
seguindo-a pelas ruas da
Bahia, dando-lhe flores e sendo recompensado com um beijo que o faz ouvir
pandeiros,
tamborins, reco-recos e enxergar galos de briga na silhueta dos capoeiras
- tudo isso ao som de
um empolgante "Os quindins de iaiá" cantado por Aurora. (Quer saber quem
eram os dois
capoeiras em luta? Aloysio de Oliveira e o dançarino americano Billy
Daniels.) Mas nada supera
no filme a combinação de ação ao vivo e animação: Aurora e o elenco
contracenando com
Donald e Zé Carioca - uma grande novidade para a época.

Durante anos especulou-se como teria sido feito o truque de misturar
gente e desenhos no mesmo
quadro. A versão oficial do estúdio era a da back projection: Aurora e o
grupo de rapazes e
moças teriam sido filmados em frente a uma tela de cinema, de quatro
metros de altura por seis de
largura, onde se passavam as estripulias do pato e do papagaio,
previamente desenhadas. Havia
o risco de os desenhos, ao serem filmados pela segunda vez,


364

saírem borrados ou fora de foco, mas - dizia o estúdio - a presença de Ub Iwerks na
equipe eliminara tal
possibilidade.

Muito bem. Mas, hoje, basta ver o filme para se constatar que não foi tão
simples assim. Várias
cenas foram realmente filmadas com back projection, mas Iwerks, que era
mesmo um mago da
animação, usou também o recurso contrário (e que a Disney tentou manter
em segredo da MGM e
da Warner, ambas investindo pesado em desenho animado): o de os
personagens serem
desenhados e impressos no fotograma já contendo a ação ao vivo, filmada
antes. Isso explica que,
em certos momentos, Donald e Zé Carioca estejam à frente ou atrás de
Aurora ou misturados com
os humanos em cena. Em outros, usou-se também a combinação de um cenário
de back projection
com o mesmo cenário na vida real, permitindo que os desenhos e os atores
passassem de um ao
outro - tudo ao mesmo tempo. Enfim, Aurora teve de contracenar tanto com
um Donald que ela
estava vendo na tela quanto com outro que ela tinha de fingir que estava
abraçando e beijando.
Um senhor desempenho, principalmente para uma garota cuja única
experiência com as câmeras
tinha sido a dos alô-alôs.

Mas o grande vitorioso de Você já foi à Bahia? foi José do Patrocínio de
Oliveira, Zezinho, o
músico que emprestou sua personalidade e voz a Zé Carioca e acabou para
sempre identificado
com o personagem. Não que, antes, Zezinho fosse um anônimo. Quando Carmen
o reencontrou em
Los Angeles, no segundo semestre de 1940, e ele começou a participar
esporadicamente do
Bando da Lua, ela o levou à Fox e o apresentou a Zanuck. Este repassou-o
ao maestro Alfred
Newman, responsável pelo departamento musical do estúdio. Bastou a
Zezinho dedilhar um
pouco de violão, cavaquinho, bandolim, banjo e outros instrumentos de
corda - tocava todos -
para que Newman o contratasse no ato. Ali estava um multiinstrumentista
de rara categoria e um
homem de grande utilidade num estúdio, por dominar ritmos que os músicos
americanos tinham
dificuldade para pegar.

Dali em diante, até pelo menos 1946, não houve um filme da Fox com alguma
passagem musical
"latina", "hispânica" ou "exótica" que dispensasse a participação de
Zezinho na trilha sonora e,
em alguns casos, na própria tela. Começou com as guitarras espanholas de
Sangue e areia (Blood
and sand), com Tyrone Power, naquele mesmo ano, e seguiu-se em todos os
faroestes, filmes de
aventuras e musicais da Fox no período, inclusive os de Carmen. No caso
destes, podia acontecer
de o Bando da Lua estar em cena com a sua formação oficial, sem Zezinho -
mas, de qualquer
maneira, ele participara do áudio, como em Uma noite no Rio e Aconteceu
em Havana. A partir
de Minha secretária brasileira, Zezinho estaria no áudio e em cena
(sempre na primeira fila, ao
lado ou logo atrás dela) nos sete filmes seguintes de Carmen.

O que Carmen fizera por Zezinho, este fez depois por Nestor Amaral. Os
dois logo formaram uma
dobradinha cujo empréstimo seria disputado à Fox pelos outros estúdios.
São eles que estão ao
lado de Hoagy Carmichael quando ele canta


365

"Am I blue" para Lauren Bacall em Uma aventura na Martinica
(To have and have
not, 1944), na Warner, e são eles também que estão com Fred Astaire, Rita
Hayworth, Gene Kelly,
Judy Garland e todos os que precisavam ser acompanhados por "hispânicos"
na Columbia, na
MGM e em todos os estúdios. Suas participações em cinema foram às
dezenas, sempre sem
crédito. Para Disney em Você já foi à Bahia?, Nestor cantou "Na Baixa do
Sapateiro" e, para os
mercados americano e mexicano, a versão em inglês, "Bahia", com a
medíocre letra de Ray
Gilbert. Quanto a Zezinho, não só inspirou e deu voz a Zé Carioca, como
fez também a voz do
pássaro Aracuã e apareceu com destaque em "Os quindins de iaiá", em
pessoa, tocando lápis no
dente.

Em 1943 e 1944, antes que a casa de Carmen começasse a se tornar o
consulado paralelo para os
brasileiros de passagem, era a de Zezinho, em Laurel Canyon, que
centralizava a pequena
colônia brasuca em Los Angeles. As libações começavam às seis da tarde,
depois que ele voltava
do estúdio, e iam até de manhã, não necessariamente com a sua presença,
mas sem que faltasse
comida e bebida. O próprio Zezinho bebia pouco, e se ocupava mais do
cavaquinho e do violão
- a música nessas reuniões era ao vivo e non stop. Um dos habitues, cada
vez mais cidadão de
Hollywood que de Nova York, era Xavier Cugat, sempre com um cachorro
chihuahua no bolso
da capa. Raul Roulien, que encerrara sua carreira em Hollywood, mas
mantinha uma casa lá e ia
todo ano, era outro que não faltava. E havia, nessa época, um brasileiro
tão assíduo quanto
calado: o escritor gaúcho Erico Veríssimo. Outra que, atraída pelo
sucesso de Carmen, foi tentar a
odisséia americana, mas andava batendo cabeça por Los Angeles sem
conseguir nada, era Rosina
Pagã. Quando finalmente conseguiu um show para fazer, descobriu que não
tinha o que vestir - e
Carmen, por intermédio de Odila, mulher de Zezinho, lhe emprestou uma
baiana para que ela
pudesse trabalhar. (As velhas mágoas, se existiram, tinham ficado para
trás.)

As reuniões na casa de Zezinho eram tão animadas que, uma vez instaladas,
as pessoas achavam
besteira sair dali para outro lugar - mesmo porque os botequins de Los
Angeles suspendiam a
venda de bebida à meia-noite. Mas Zezinho tinha toda a região na ponta
dos dedos. Um dos
poucos lugares a que valia a pena esticar era o Zambuanga, chamado "a
casa do macaco sem
rabo", onde, por baixo da mesa, dizia-se, serviam absinto. E sua cultura
não se limitava a LA Certa
noite, levou todos - inclusive Carmen - a um nightclub de São Francisco
apropriadamente
chamado Finocchio"s, onde dois travestis interpretavam Carmen e Alice
Faye (imagine a surpresa
do transformista ao se deparar com a própria e deliciada Carmen).

Durante o dia, quando tinha a agenda livre (sem filmagem, programas de
rádio, participação em
discos ou apresentações ao vivo), Zezinho se valia do fato de conhecer
todo mundo na "indústria"
para ciceronear amigos brasileiros pelos estúdios. Isso significava
conhecer do porteiro ao vice-
presidente de


366

cada estúdio, para poder entrar e fazer um brilhareco apresentando os
turistas a atrizes com quem
tinha mais intimidade: Paulette Goddard, Linda Darnell, Betty Grable.
Conhecia gente de fora da
"indústria" também: numa época em que, por causa da guerra, os Estados
Unidos passavam por
racionamento de carne, manteiga, açúcar, café, cigarros, gasolina,
sapatos, meias de náilon e bobs
para cabelo, ele sempre sabia de "alguém" capaz de fornecê-los.

Zezinho era querido por todos. Tão querido, na verdade, que as pessoas às
vezes davam de
barato o grande músico que ele era - um violonista do nível de Garoto,
Nestor ou Laurindo de
Almeida. Mas, quando Disney terminasse o trabalho de pós-produção em Você
já foi à Bahia?
(que levaria quase um ano) e lançasse o filme, Zezinho não chegaria para
tantos compromissos.
Só que, aí, com o nome de guerra do qual nunca mais poderia fugir: Joe
Carioca.

O turbante era de pirulitos (daqueles americanos, listrados, em forma de
bengala); a saia, rodada,
cheia de babados, estilo rumbeira, assim como as mangas do bustiê; e a
música, uma antiga
canção de Eubie Blake e Noble Sissle, "Fm just wild about Harry", em
ritmo de New Orleans.
Mas, quando Carmen entrava com os breques em português - sem crédito na
tela, mas da autoria
de Aloysio -, New Orleans saía da frente e abria passagem ao samba
rasgado:

I"m just wild about

Samba, batucada, Carnaval e café

Macumba, viramundo e uma figa de Guiné

And Harry"s wild about me

Eu quero uma baiana com sandália no pé

E mandar um vatapá com um pouco de acarajé

The heav"nly blisses

Ofhis kisses

Fill me with ecstasy

Se gosta de baiana é pra mim de colher

He"s sweet just like peppermint candy

And just like honeyfrom lhe bee

Bebi a cachaça a granel

Por mim ele apanhava papel

Oh, l"m just wild about Harry

Pois ele é um ioiô que gosta dessa iaiá

E é louquinho por um samba lá na praça Mauá

He"s just wild!

Anda louquinho por mim

He's nuts!

367

Sujeito louco como ele eu nunca vi

About mel

Carmen fazia isso - cantar em português - como uma espécie de mensagem
secreta para o
Brasil. Para os americanos, não importava o que Carmem falasse em seu
patoá ininteligível -
fazia parte de sua comicidade.

Aquele era o primeiro número de Carmen, bem no começo de Greenwich
Village (no Brasil,
Serenata boêmia), o filme que ela rodou na passagem de 1943 para 1944,
menos de seis meses
depois de ter quase morrido. Talvez por isso, e por ter se recuperado
completamente, estivesse
tão esfuziante nesse e em seus dois outros números musicais no filme: "I
like to be loved by you",
de Harry Warren e Mack Gordon (uma canção que ficara de fora de Entre a
loura e a morena), e
"Give me a band and a bandana", de Nacio Herb Brown e Leo Robin (em que
ela interpolava "O
que é que a baiana tem?", de Caymmi, e "Quando eu penso na Bahia", de Ary
Barroso). O irônico
era que Carmen enfim conseguira incluir "O que é que a baiana tem?" num
filme americano, mas
justamente quando já não tinha no corpo nem uma peça da baiana original -
nem torço de seda,
corrente de ouro e pano-da-costa, nem bata rendada ou saia engomada, nem
mesmo bolotas ou
balangandãs. Em lugar disso, o que ela tinha era o corte vertical da saia
para mostrar as pernas -
belas pernas, firmes, bem torneadas, resultado talvez dos muitos anos
sobre as plataformas e
melhores ainda que as da jovem Carmen -, mas sempre uma coisa típica de
rumbeira. Era
Carmen se rendendo à figurinista que ela mesma descobrira, a jovem Yvonne
Wood.

Em Serenata boêmia, Carmen encabeçava o elenco pela primeira vez num
filme da Fox, acima de
Don Ameche e William Bendix. Não queria dizer que seu papel fosse o
principal - e não era.
Carmen fazia uma mulher de nacionalidade incerta, chamada Princesa
Querida, que se
apresentava no speakeasy Danny"s Den, no Village - a história se passava
em 1922, pouco
depois de instituída a Lei Seca -, e parecia ter um caso com o patrão
(Bendix). O galã era Don
Ameche, tendo como seu par romântico a novata Vivian Elaine - que só
ganhou o papel porque
a candidata natural de William LeBaron, Alice Faye, continuava firme na
sua disposição de
continuar longe do cinema, e Betty Grable estava grávida de novo. Vivian
ainda não tinha força
para liderar um elenco, mas já estava sendo preparada pela Fox para
herdar os papéis de Alice, se
esta mantivesse sua decisão de abandonar a tela.

O Danny"s Den, decorado como o interior de um navio pirata, fora copiado
de um autêntico
speakeasy do Village nos anos 20, o Pirate"s Den, na Sheridan Square, e
um dos mais populares
durante a Lei Seca. Foi o maior investimento da Fox nesse simpático, mas
modesto musicalzinho,
indicando uma tendência do estúdio de produzir musicais mais econômicos,
já que não estava
podendo contar com quatro de seus grandes nomes - John Payne e César
Romero, na guerra,

368

e Alice Faye e Betty Grable, fazendo pirraça ou filhos. Um
pequeno grupo teatral de
Nova York, em quem a Fox parecia acreditar, ainda estava em embrião: The
Revuers, formado,
entre outros, por Adolph Green, Betty Comden e Judy Holliday. Eles
estavam em Serenata
boêmia, mas a maioria de suas seqüências ficou no chão da sala de
montagem. Sobrou uma
simples cena em que Carmen passa por Adolph Green no Pirate"s Den e lhe
desfaz o cabelo.

Mas os brasileiros teriam de esperar para ver Serenata boêmia com o
costumeiro atraso. Naquele
momento, dezembro de 1943, o Brasil ainda estava assistindo a Minha
secretária brasileira, que
fora produzido entre julho e setembro de 1942. Nesse quase ano e meio de
intervalo, Carmen já
rodara dois outros filmes (Entre a loura e a morena e Serenata boêmia),
fizera uma participação
num terceiro (Quatro moças num jeep) e se submetera a duas cirurgias no
nariz e a uma outra, de
grande espectro, para salvá-la da morte - e ali estava a cicatriz para
provar. Perdera também o
namorado com quem estava havia cinco anos e com o qual esperava se casar.
Tudo isso
provocara grandes alterações em sua vida. Em compensação, já agora
enxergando o futuro com
mais clareza, comprara uma casa em Beverly Hills.

Os críticos de seu país estavam contra ela? Pois Hollywood a acolhera
como se ela fosse um dos
seus. O que, efetivamente, ela era - porque, numa cidade abarrotada de
beleza e talento, Carmen
tinha aquele "algo mais", só reservado aos eleitos.

Afinal, de que se queixavam tanto os críticos brasileiros? Eles não a
perdoavam por estar se
deixando "estereotipar" por Hollywood. Filme após filme, era a mesma e
monótona ladainha.
Alguns desses críticos, como Pedro Lima, só tinham olhos e elogios para
Betty Grable.

A mesma Betty Grable que, como todas as estrelas do cinema - de Clark
Gable a Boris Karloff e
de Greta Garbo a Lassie -, também estava se deixando "estereotipar" por
Hollywood. E dando
graças por isso estar finalmente acontecendo.


Capítulo 21


1944

Dependente



Alguém disse ao alcance dos ouvidos de Ary Barroso que, com Carmen
Miranda, o samba estava
"vencendo na América". Ary nem se virou para responder:

"Quem está vencendo na América não é o samba. É a Carmen Miranda."

Ary estava sendo injusto com o samba. Pelo menos, com um samba: "Aquarela
do Brasil" - dele
próprio. Em fins de 1943, com letra em inglês de Bob Russell, "Brazil" -
a identidade americana
de "Aquarela do Brasil" - saltara das telas de Alô, amigos e Entre a
loura e a morena para os
salões, palcos, rádios, jukeboxes e corações dos Estados Unidos, nas asas
de influentes orquestras
do país. Primeiro, pela orquestra-society de Eddy Duchin; depois, a
latina de Xavier Cugat; e, em
seguida, a de swing de Jimmy Dorsey, esta com os vocais de Helen
O"Connell e Bob Eberly, que
o levaram ao hit parade. Com um currículo desses, quem segura uma canção?
"Brazil" teve logo
uma infinidade de outras gravações, entre as quais a de Bing Crosby e
começou a disputar com
"Chattanooga choo-choo" o título de canção-tema da Segunda Guerra. E, nos
meios musicais
americanos, todos sabiam o nome de seu autor: o brasileiro Ary Barroso.
Só não conseguiam
pronunciá-lo direito - o melhor a que chegavam era Éri Bar-rou-ssa.

No fim do ano, um estúdio convidou Ary a ir a Hollywood para escrever as
canções de um filme
musical "sul-americano", intitulado, não por acaso, Brazil. Dito assim,
parecia a glória, a
apoteose. Mas, examinada de perto, a proposta deixava a desejar. Era
muito pobre em dinheiro -
cerca de 3500 dólares no total por seis meses de trabalho - e o estúdio
era a Republic Pictures,
que alguns chamavam de Repulsive Pictures e, comparada à MGM, parecia
estar a um passo da
mendicância. Na verdade, não estava: era apenas um estúdio de pequeno
porte, especialista em
filmes de baixo orçamento dirigidos aos garotos das grotas e dos
subúrbios. Seu forte eram os
seriados, como Os tambores de Fu Manchu (Drums ofFu Manchu, 1940) ou Os
perigos de Nyoka
(Perus ofNyoka,
1942), e os faroestes classe Z, estrelados por Gene Autry, Roy Rogers e,
preso à Republic por um
contrato que o obrigava a rodar pelo menos um daqueles filminhos por ano,
John Wayne. A idéia
de um musical "sul-americano" na Republic parecia tão inesperada que só
se podia atribuí-la à
Política da Boa Vizinhança


370

- era o Birô de Rockefeller tentando mostrar serviço e,
certamente, entrando com algum
para que o filme se fizesse.

Inocente de tudo isso, Ary aceitou e tomou o avião em janeiro de 1944.
Queria conhecer o gigante
por dentro - os Estados Unidos. Até então, ele fora um acre inimigo da
penetração da música
americana no Brasil. Uma de suas revoltas era a de que, no Rio, não o
deixavam armar uma
orquestra tipicamente brasileira para tocar sambas nos cassinos, a não
ser que, numa contradição
em termos, ela tocasse também foxtrotes. Ary considerava sua ida a
Hollywood uma espécie de
forra - já que nos invadiam, ele ia invadi-los também, nem que fosse como
uma orquestra de um
só homem. E Carmen e Aurora estariam por lá para ajudá-lo.

Só que, à chegada de Ary em Los Angeles, via Miami, em fevereiro, as duas
não estavam na
cidade. Tinham se escondido em Palm Springs, para que Carmen se
recuperasse de uma cirurgia
em Saint Louis, dessa vez na Mayo Clinic, no começo do ano. Cirurgia essa,
para todos os efeitos,
com o objetivo de "eliminar uma obstrução nasal", conforme nota assinada
por Ben Reingold, o
matreiro superintendente local da Fox, que acrescentava: "Como a operação
foi interna, não
afetará externamente o nariz de Carmen". Mas, com todo o trabalho de
encobrimento, omissão e
contra-informação relativo ao drama vivido por Carmen no ano anterior,
ali mesmo em Saint Louis,
pode-se desconfiar de que essa tenha sido mais uma plástica - a terceira
em menos de um ano.
Seja como for, foi algo simples, bem-sucedido e de poucos dias, o retoque
final que dirimiu para
sempre os conflitos de Carmen com seu nariz.

Enquanto Carmen e Aurora não voltavam para Hollywood, Ary caiu nos braços
dos amigos
brasileiros (Aloysio, Vadico, Gilberto Souto) e de seus anfitriões da
Republic, que circularam com
ele pela cidade e adjacências. O resultado foi que, desde as primeiras
cartas que Ary mandou
para Yvonne, sua mulher, todo o seu mau humor diante da influência da
música americana se
dissipara. Em Miami, já ficara deslumbrado com a largura das avenidas, a
limpeza das ruas, os
trens, os táxis, os hotéis, as máquinas de cigarros - quem o lia
imaginava que ele saíra de uma
taba, não do Rio. Em Los Angeles, Ary reagiu também como um turista de
primeira viagem (o que
ele era), soltando exclamações ao lhe mostrarem (a distância) as casas de
Harold Lloyd, de
Robert Taylor e até de Carmen. Um tour pela Republic deixara-o besta - e
olhe que a grande
atração do estúdio, no San Fernando Valley, eram os tumbleweeds, aquelas
bolas de capim seco,
rolando ao vento nas ruas de cenário do Velho Oeste.

Na Republic, Ary ganhou uma sala e um piano para escrever o score de Bmzü
(no Brasil, Brasil).
Das sete canções que produziu, com letras do experiente Ned Washington, a
única a fazer espuma
foi o bonito samba "Rio de Janeiro", que, no ano seguinte, concorreria ao
Oscar de melhor canção
(perderia para "You'll never know", de Harry Warren e Mack Gordon).

371

Para a Republic, uma simples indicação ao Oscar já era uma vitória - porque a
Academia nunca tomara
conhecimento de nada que viesse do estúdio. Brasil, o filme, se passava
no Rio e era estrelado
(pode-se dizer assim?) por Virginia Bruce, Robert Livingstone e o cantor
mexicano (falando
português) Tito Guizar. Para dar uma cor local, Aurora tinha uma pequena
participação como
dançarina e, de repente, Roy Rogers, o rei dos cowboys, surgia galunfante
em cena, como se
tivesse entrado sem saber no filme errado. Assim era a Republic.

Em meados de fevereiro, Carmen voltou para Beverly Hills e foi
imediatamente apanhar Ary no
Franklin Hotel para jantar, conversar fiado e matar a saudade. Ary, que
talvez nunca tivesse
andado de carro com Carmen no Rio, ficou encantado com a familiaridade
com que ela conduzia
o Buick pelas pirambeiras arborizadas de Los Angeles (ainda não existiam
os grandes anéis).
Carmen levou-o ao Clover Club, no Sunset Boulevard, e passou um bilhete
ao cantor, o tenor
colombiano Carlos Ramirez, dizendo-lhe que Ary Barroso estava no recinto.
Ramirez, que
acabara de se lançar em Hollywood cantando "Granada" para Esther Williams
em Escola de
sereias (Bathing beauty), chamou Ary ao palco, submeteu-o a várias
rodadas de aplausos e o fez
acompanhá-lo ao piano enquanto cantava "Brazil". Mais aplausos. Ary
começou a se imaginar
vivendo essas situações em regime permanente - e agora entendia nem que
fosse uma fração do
sucesso de Carmen.

Na verdade, o que lhe enchia as medidas era o seu reconhecimento entre os
americanos. Onde
quer que fosse apresentado como o compositor de "Brazil", era festejado,
afagado,
cumprimentado e, se houvesse um piano a menos de quinhentos metros, eles
o obrigavam a sentar-
se e tocá-lo.

"Meu samba é mais popular aqui do que no Brasil", escreveu para Yvonne.

E, para todo lado que se virasse, parecia vir uma proposta de trabalho.
Além do contrato com a
Republic, que ele já estava cumprindo, havia para o ano um musical em
perspectiva na Fox,
Three little girls in blue, a ser feito com Carmen, June Haver e Jeanne
Crain. De Nova York, Lee
Shubert mandara dizer que queria suas canções para uma revista musical da
Broadway, intitulada
One night in Brazil. Na Disney, Ary assistiu ao copião de Você já foi à
Bahia?. Aprovou o que se
fez de "Na Baixa do Sapateiro", "Você já foi à Bahia?" e "Os quindins de
iaiá" e, pela simples
cessão de uso desses sambas, embolsou quase mil dólares - mais de
trezentos por música. Por
sugestão de Aloysio, Walt convidou-o a narrar o episódio de Paulinho, o
pingüim friorento, para a
versão brasileira do filme - o que valeu a Ary mais alguns cobres. E,
pelo que Aloysio lhe
soprou, Walt tinha planos para ele - algo assim como um contrato fixo,
para que Ary se
integrasse aos compositores da casa e passasse o ano fazendo música para
Donald, Pateta e Pluto.

"Se quiserem que eu fique trabalhando aqui durante um ano ou dois,
voltarei ao Rio para buscar-te e, possivelmente, os meninos", continuou na carta para Ivone. "Uma
coisa eu garanto: ficarás
deslumbrada com isto aqui.


372

Vivemos aí uma vida provinciana. Aqui há civilização e progresso." E tome de
kisses, só longs e good
byes na carta para a mulher.

Atenção, que estamos falando do autor de "Dá nela", "Faceira", "No rancho
fundo", "Maria", "Foi
ela", "No tabuleiro da baiana", "Boneca de piche", "Na Baixa do
Sapateiro", "Camisa amarela",
"Morena boca de ouro", "É luxo só" e tantas outras - mais brasileiro, só
o bife a cavalo. Um
homem feito, pai de filhos, com anel de doutor no dedo e que, menos de
cinco anos antes, com
"Aquarela do Brasil", nos fizera descobrir o Brasil brasileiro, o mulato
inzoneiro e a merencória
luz da lua. A conversão de Ary à civilização norte-americana foi
galopante. Claro que, com o
tempo, ele voltaria a seus sentidos normais. Mas, nos primeiros meses,
sua entrega às coisas dos
Estados Unidos parecia absoluta - via em Los Angeles um marinheiro
sapateando na rua, ou uma
crioula dirigindo um ônibus, e achava aquilo um colosso, uma coisa do
outro mundo.

Sua única restrição ao país era que, habituado a ser o centro das
atenções, Ary às vezes se
aborrecia por ser o único da roda a não falar inglês e ter de ficar mudo
- ou de rir por
procuração quando todos estouravam numa gargalhada. Por isso, sempre que
podia, escapava
para a casa de Carmen, onde se falava português fluentemente. Foi lá que
Ary deixou de lado a
cerveja e habituou-se ao uísque, bebida que nunca mais abandonou. E foram
os amigos da roda
de Carmen que o convenceram a trocar seus últimos dentes por um par de
cintilantes dentaduras.
Ary vacilou nessa decisão, temendo que elas o fizessem ciciar e
comprometessem a dicção a que
seus ouvintes já tinham se habituado na Rádio Tupi - além de compositor,
era o mais famoso
narrador de futebol do Brasil. Tinha medo também de que, ao dar uma
gargalhada, as dentaduras
lhe saíssem voando pela boca - e Ary, com toda a ranzinzice, gostava de
rir, principalmente
quando Carmen imitava sua voz. Acabou se decidindo pelas dentaduras e, a
partir daí, foi um
bravo: encarou o suplício das extrações e tapou as gengivas com a mão por
muitos dias, até
estrear seu novo equipamento em grande estilo - o qual, para sua sorte,
não lhe provocou cicio.

Com toda essa atmosfera de camaradagem e humor na casa de Carmen,
envolvendo coisas tão
sem glamour como cicios, gengivas e dentaduras, correu no Rio a notícia
de que Carmen e Ary
estariam de caso e planejando se casar em Los Angeles. É de imaginar o
susto nos cafés,
gravadoras, rádios, cassinos e outros ambientes dos quais eles eram os
totens.

Mas o susto maior foi de Yvonne. Como seu marido poderia casar-se com
Carmen se já era
casado com ela? - ela se perguntava. O pior é que os jornais brasileiros
tratavam o assunto como
um caso consumado. A notícia se espalhara sem que os protagonistas da
história fossem cheirados
ou ouvidos - e, como não se sabia de nenhuma declaração deles, é porque
devia ser verdade.

Mas não era. A distância, a guerra e a precariedade das comunicações
tinham feito com que,
iniciado o boato, ele tivesse tempo de sobra para se estabelecer no Rio.

373

Ao mesmo tempo, em Los Angeles, Carmen e Ary não estavam
sabendo do que
circulava por aqui - e, quando souberam, não lhe deram importância. Pelo
menos, não se
preocuparam em fazer um desmentido rápido e categórico. Além disso, a
provável fonte da
história não imaginava que ela pudesse ganhar tais dimensões - o próprio
Ary Barroso.

Surpreso? Sérgio Cabral, biógrafo do compositor, anotou as várias
ocasiões em que, nessa
viagem, Ary escreveu a Yvonne contando como vivia cercado de americanas
em Los Angeles,
relatando flertes e insinuando conquistas. Não passavam de fantasias, mas
chegaram a tal ponto
que, segundo Cabral, o pai de Yvonne escreveu a Ary para protestar contra
esse exibicionismo.
Quando Yvonne também lhe escreveu perguntando que história era aquela de
casamento com
Carmen, Ary foi misterioso: "Explicarei tudo na volta". Mas não havia o
que explicar - era pura
bazófia. Se Ary dava a entender à própria mulher que não se furtava a
certos apelos femininos, o
que o impediria de se jactar, em cartas para o Brasil ou para algum
brasileiro de passagem por
Los Angeles, que estava tendo um caso com Carmen? E por que se importaria
se esse relato
vazasse e fosse ampliado às dimensões de um noivado ou de um casamento?

É possível também que, se Carmen tomou conhecimento das dimensões do
boato, preferiu deixá-
lo morrer sozinho - pela sua própria impossibilidade. Não que ela não
gostasse de Ary. Ele fora
o compositor que ela mais gravara em sua carreira brasileira: trinta
sambas e marchas, entre os
quais alguns de seus maiores sucessos. O resto não era com ela, nem lhe
interessava. Ary era
casado e ela se dava muito bem com Yvonne, mulher dele. Além disso, nos
quinze anos em que se
conheciam, Ary não se aperfeiçoara em nenhuma das qualidades que Carmen
mais apreciava em
um homem: a juventude, a beleza, a altura, a pele morena, a quadratura
dos ombros, os nós dos
braços, a metragem das pernas, a firmeza das carnes - e, se possível, uma
certa fraqueza de
personalidade, algo que, de alguma maneira, o subjugasse a ela. Todas
essas características eram
comuns a Mário Cunha, Carlos Alberto da Rocha Faria, Aloysio de Oliveira
e também a John
Payne, entre os homens de quem se podia afirmar que tinham partilhado os
seus lençóis.

E várias delas poderiam ser também identificadas em outros homens que ela
namoraria em
Hollywood naquele ano e no ano seguinte: o mexicano Arturo de Córdova, os
americanos Dana
Andrews, Harold Young e John Wayne, e o brasileiro Carrinhos Niemeyer.

Quando Arturo de Córdova chegou a Hollywood um ano antes, em 1943, para
contracenar com
Gary Cooper e Ingrid Bergman em Por quem os sinos dobram (For whom the
bells toll), houve
uma corrida feminina à Paramount. Aos 35 anos, De Córdova era descrito na
bula como um Errol
Flynn mexicano, ou Gable, Tracy e Power em um só. E não estavam se
referindo às suas
qualidades como ator.


374

Um dos fatores que o tornavam irresistível era sua aparente
naturalidade - ninguém
fingia tão bem não ter consciência da própria beleza.

Poucos também tinham uma biografia tão variada. Nascido em 1908, no
México, filho de um
exportador de chicletes, Arturo passara parte de sua infância e
adolescência em Nova York e
Buenos Aires. Nesta última, viu-se que levava jeito para o futebol e,
quando seus pais o mandaram
estudar na Suíça, foi descoberto pelo Olympique de Marselha, no qual
chegou a atuar com o seu
verdadeiro nome, Arturo Garcia. De novo em Buenos Aires, tornou-se
repórter esportivo da
agência United Press, até voltar para o México, onde se consagrou no
rádio como locutor de
futebol e, a partir de 1935, como ator. Arturo já tinha uma carreira no
cinema de seu país quando a
Paramount o convocou.

Em Por quem os sinos dobram, ele era o quarto nome do elenco, atrás ainda
de Akim Tamiroff.
Mas, nos filmes imediatamente seguintes, foi o galã de Luise Rainer, Joan
Fontaine e Betty
Hutton, e, por mais que esses filmes se submetessem ao Código Hays nas
cenas de amor, havia um
quê em Arturo de Córdova que parecia mais lascivo e sensual do que o
permitido. Para ele, isso
era um vestígio de seus trinta filmes no cinema mexicano:

"No México, fazemos filmes para adultos", explicava. "Podemos beijar o
pescoço da mocinha."

Não eram somente as mulheres que achavam difícil se manter a distância -
no futuro, na era da
permissividade, César Romero contaria que, quando viu Arturo pela
primeira vez, quase saltou
sobre ele.

Arturo era daltônico e não podia comprar uma gravata sozinho, mas dizia-
se capaz de distinguir
as cores dos olhos das mulheres. Era um adorador por igual das de olhos
pretos, castanhos ou
azuis - só não confiava nas de olhos verdes e jamais namoraria uma delas,
segundo afirmou em
entrevistas. Como Carmen era notória pelos olhos verdes, ou ela o fez
mudar de idéia ou ele não
era tão convicto assim nessa área.

Carmen e De Córdova foram um item freqüente nas colunas de fofocas da
cidade durante algumas
semanas de 1944. Anos depois, ela ainda ficaria com a boca cheia d"água
ao contar às amigas
sobre o caso. E este só não foi mais adiante pelo motivo de sempre:
Arturo, que se comportava
publicamente como um rapaz solteiro e nunca era visto desacompanhado,
tinha mulher e quatro
filhos na Cidade do México. Sua esposa, ao que constava, não se opunha a
que ele desfilasse por
Hollywood com suas namoradas - apenas não lhe dava a separação. Para
Arturo, esse elástico
estado civil devia ser confortável. Mas não resolvia o problema de
Carmen, que queria um
casamento à antiga, em que pudesse ter os seus próprios filhos. Então,
afastou-se dele antes que a
inflamação se alastrasse.

Na época, entre maio e julho de 1944, Carmen filmou Somethingfor the boys
(no Brasil, Alegria,
rapazes!), o primeiro de seus filmes sem LeBaron ou o próprio Zanuck como
produtor. No lugar
destes, o responsável era Irving Starr,

375

encarregado dos filmes de segunda linha da Fox, o que significava
trabalhar com atores
simpáticos mas sem muito cartaz, ainda em experiência ou quase estreantes
(uma delas, numa
pontinha bem nas primeiras seqüências, Judy Holliday). Pela segunda vez,
Carmen encabeçava o
elenco - mas qual era a vantagem de se estar acima de Michael O"Shea ou
Vivian Blaine?

Significava também trabalhar com pouco dinheiro, como se podia ver pelo
aspecto de segunda
mão dos cenários, roupas e objetos. A origem do filme era um musical da
Broadway,
Somethingfor the boys, contando uma história boba de soldados que tentam
montar um show.
Mas, com música e letra de Cole Porter e estrelado por Ethel Merman, o
espetáculo cumprira a
respeitável marca de 422 representações na Broadway em 1943. A Fox
comprou os direitos do
musical, incluindo as canções de Cole, e, seguindo uma velha tradição de
Hollywood, jogou-as
fora, menos a canção-título, e ficou com a história. Novas canções foram
encomendadas a Jimmy
McHugh e Harold Adamson, que, já ricos e cansados, não iriam queimar as
pestanas para compor
nada palpitante. Principalmente porque as canções se destinavam a Vivien
Blaine, ainda bem
apagadinha, e ao estreante Perry Como, que, já então, parecia cantar com
as pálpebras.

Dos dois números de Carmen, "Batuca, nego" e "Samboogie", somente o
segundo era de Adamson
e McHugh. A idéia de uma/uszon entre o samba e o boogie-woogie era boa,
mas Adamson e
McHugh pareciam entender muito pouco de boogie-woogie e nada de samba - e
"Samboogie"
conseguiu a façanha de zerar o balanço dos dois ritmos. Essafusion seria
vibrantemente realizada
no ano seguinte, no Brasil, por compositores como Janet de Almeida e
Haroldo Barbosa, em "Eu
quero um samba", e Denis Brean, em "Boogie-woogie na favela" - antes,
portanto, que Alegria,
rapazes! fosse lançado no Rio, o que só aconteceria em 1946. Pena que os
amigos de Carmen, nas
rádios e nas gravadoras cariocas, que poderiam mantê-la informada do que
estava se fazendo de
novo na música brasileira, não aprovassem essas misturas - um deles,
Almirante - daí Carmen
nunca ter gravado certas coisas que pareciam perfeitas para seu estilo.
Seu outro número no filme,
o samba "Batuca, nego", era de safra recente e acabara de ser lançado no
Brasil pelos Quatro
Azes e um Coringa. Mas Carmen só o conheceu porque ele lhe foi entregue
em mãos pelo próprio
autor: Ary Barroso.

Comparado ao luxo dos seus primeiros musicais, Alegria, rapazes! não
disfarçava um jeito de
filme de carregação. Dessa vez, o personagem de Carmen se chamava
Chiquita Hart, filha de uma
brasileira com um - acertou! - irlandês. Os irlandeses deviam ser mesmo
loucos pelas mulheres
brasileiras. Ou, então, era a falta de imaginação dos roteiristas, que
não conseguiam inventar outra
justificativa para Carmen falar no filme um inglês tão desembaraçado,
ainda que caricatural.

Tal indigência poderia ser um indício para Carmen do que o estúdio lhe
reservava nos tempos
próximos. Estariam a fim de encostá-la ou mesmo demiti-la?


376

Não, não havia nada de pessoal contra ela. A Fox é que ainda não
soubera reagir a algumas
conseqüências da guerra, uma delas as mudanças no gosto do público - já
não era possível
continuar fazendo os mesmos filmes, ano após ano, e com os mesmos atores,
todos escravizados
ao próprio tipo. Outros efeitos do conflito eram as dificuldades para
filmar cenas externas (muitos
aviões passando sobre Los Angeles) e o desmanche até espontâneo de seu
elenco - Don
Ameche, por exemplo, não se interessara em renovar seu contrato e
preferira ser freelance. Da
constelação de canto e dança de 1941, de que o estúdio tanto se
orgulhava, só restavam Carmen e
Betty Grable.

Alice Faye continuava em casa, desfrutando do casamento, das filhas e de
sua precoce
aposentadoria. Um dos motivos pelos quais abandonara o cinema, segundo
declarara, era porque
"a mulher não deve ganhar mais que o marido". Outro motivo - e só então
ela se traiu - era
porque não tinha interesse em continuar estrelando musicais fin-de-
siècle, em que os espartilhos e
os enchimentos a faziam parecer uma ampulheta.

Foi por aí que o esperto Zanuck a pegou. Ele lhe ofereceu um papel
dramático em Anjo ou
demônio? (Fallen angel), com direção de Otto Preminger. Alice vacilou,
mas mordeu a isca e
aceitou voltar a trabalhar, apenas por causa do papel. Mas, ou por Alice
não ter se revelado a
atriz que ele esperava, ou por uma vingança mesquinha contra a
independência que ela
conquistara, Zanuck, ao montar o filme, amputou seu personagem cortando a
maioria de suas
cenas, ao mesmo tempo que fez crescer o de Linda Darnell. Alice assistiu
à montagem final na
cabine do estúdio, sozinha, com o projecionista, e ficou revoltada.
Escreveu uma carta malcriada
a Zanuck e a entregou ao porteiro, junto com as chaves do camarim. Em
seguida, assobiou para
seu motorista (nunca aprendera a dirigir) e foi-se embora da Fox, sem se
despedir de ninguém.

Zanuck não se conformou e tentou atraí-la de novo, dessa vez mandandolhe
um carro de presente.
Alice devolveu o carro e deu entrevistas dizendo que cometera um erro ao
voltar a trabalhar, mas
que, agora, isso não se repetiria. Estava casada com um homem "capaz de
sustentá-la e protegê-
la" - e muito satisfeita. E só então Zanuck desistiu. (Apenas para o
registro, Alice ficaria casada
com Phil Harris por 54 anos, até a morte dele, em 1995.)

Desde que Zanuck voltara da guerra, um clima diferente imperava no
estúdio. Era como se, de
repente, sem prejuízo do fator entretenimento, só valessem os filmes
"sérios" ou "socialmente
significantes". O difícil era encontrar o equilíbrio - e convencer a
platéia de que um filme sobre a
angústia não precisaria ser, digamos, angustiante. Para isso, dizia
Zanuck, o equilíbrio talvez
estivesse na escolha do elenco. Foi o que aconteceu quando ele decidiu
filmar O fio da navalha, o
romance de Somerset Maugham que, mal chegado às livrarias, poucos meses
antes, já fora tomado
como um clássico. Para o papel de Larry, o atormentado piloto de volta da
Primeira Guerra,
Zanuck nunca teve outro em mente senão Tyrone Power. Mas, para o papel de
sua noiva Isabel,
personagem

377

sujeita a complexas flutuações de temperamento, Zanuck, para espanto de
seus pares, pensou em
Betty Grable, a quem ofereceu o papel. Ninguém entendeu a escolha - era
tão sem sentido
quanto filmar a vida de Gypsy Rose Lee interpretada por Monty Woolley.
Refeita do choque,
Betty foi sábia o suficiente para recusar, e Isabel acabaria nas mãos,
bem mais capazes, de Gene
Tierney.

Tudo isso corria pela Fox e era motivo de meditação para Carmen. Pelo que
ela podia observar,
Zanuck enxergava potencial em Alice e Betty para papéis melhores que os
dos musicais. Era
óbvio que ele não fazia a mesma idéia a respeito dela. Donde estava
condenada aos mesmos
papéis cômicos que exploravam seu sotaque, suas roupas e seus turbantes,
e nunca passaria disso.

Como se só isso importasse, Carmen preocupava-se com o que o público
brasileiro pensava de
seus filmes. Ouvia dizer que as pessoas iam vê-los e riam e se divertiam,
mas, ao sair do cinema,
sentiam-se na obrigação de falar mal. Ela própria não tinha ilusões
quanto à qualidade deles,
principalmente dos últimos:

"Antes de o pessoal no Brasil desgostar dos meus filmes, eu já me
aborreço com eles", suspirou
para Gilberto Souto.

As críticas também não a ajudavam, porque se confundiam com ataques
pessoais. Não entendia
por que Pedro Lima, a quem sempre considerara um amigo, se voltara contra
ela. Ao escrever
sobre Entre a loura e a morena, que estreou no Rio em setembro de 1944,
ele lhe reservou um
insulto diferente em cada um dos veículos que dominava: "Quando surge
Carmen com a boca
escancarada, a gargalhada é geral. Gargalhada de ridículo, justamente o
ridículo que é o triunfo
máximo da estrela nacional. Por que criticamos Carmen Miranda por isto?
Cada um triunfa com
suas armas" (no Diário da Noite). "Envelhecida e enfaixada" (em O
Jornal). "Fatigada, flácida, ex-
garota notável" (em O Cruzeiro). E, na estréia de Serenata boêmia, alguns
meses depois, Lima
pareceria saborear o "envelhecimento" e a "perda de voz" de Carmen, ao
mesmo tempo que
comparava sua gesticulação a "uma taquigrafia de surdos e mudos".

Quando lia em alguma revista brasileira que Hollywood a "estereotipara",
Carmen não via como
poderia ser diferente. Todo mundo em Hollywood era estereotipado. Fred
Astaire era um
dançarino, e nunca o obrigariam a usar calças justas para interpretar
Shakespeare; já Laurence
Olivier jamais poderia fazer um cowboy. E, assim como Betty Grable tinha
consciência de suas
limitações, Carmen também não aspirava a se tornar uma Ethel Barrymore ou
uma Joan Crawford
tropical. O que ela achava era que ainda havia coisas boas a fazer em
comédias ou mesmo em
musicais - melhores do que vinha fazendo.

Talvez não naquele momento. Ou, pelo menos, não na Fox.

Em 1944, o estúdio parecia dedicado a um projeto tão caro e ambicioso
quanto "significante":
uma produção do próprio Zanuck intitulada Wilson,


378

a monumental cinebiografia em Technicolor do presidente americano Woodrow
Wilson (1913-
1921), dirigida por Henry King. Zanuck via na história de Wilson, que
lutara romanticamente pela
paz depois da Primeira Guerra Mundial, um exemplo para os próximos
tempos, pós-Segunda
Guerra, que os esperavam. Poucos na Fox achavam que esse assunto pudesse
justificar um filme,
mas Zanuck se responsabilizou:

"Se não der certo, juro que nunca mais farei um filme sem Betty Grable",
afirmou.

Wilson tinha duas horas e 34 minutos de duração, tomara cinco meses de
filmagem em 126
cenários diferentes (entre os quais a reconstituição dos interiores do
Palácio de Versalhes e da
Casa Branca), e seu custo final beirou os 5 milhões de dólares. Era o
filme mais caro já produzido
em Hollywood. E também o mais corajoso porque, para o papel de Wilson,
Zanuck descartou
todos os grandes nomes (por causa dos rostos muito conhecidos) e escolheu
o correto, mas quase
anônimo, Alexander Rnox.

Da dinheirama gasta no filme, l milhão de dólares foram para a maciça
campanha de lançamento,
que constou de anúncios em página dupla nas principais revistas, milhares
de comerciais de rádio,
outros tantos de outdoors pelo país e uma série de pré-estréias em
cidades estratégicas. Exceto
Nova York e Los Angeles, Zanuck conseguiu feriado municipal, palanque com
o prefeito e desfile
de estudantes em todas as cidades em que promoveu pré-estréias:
Filadélfia, Atlanta, Washington,
Cleveland, Omaha e as demais. Em troca, Zanuck levou a cada cidade um
trem lotado com a
comitiva de Wilson, composta do elenco completo e de grandes nomes do
estúdio, mesmo que
não tivessem nada a ver com o filme. Entre estes, Carmen. E, entre
outros, o ator Dana (pronuncia-
se Deina) Andrews.

No ano anterior, Carmen já se emocionara com Dana Andrews ao vê-lo ser
injustamente
enforcado como ladrão de cavalos no brutal faroeste de William Wellman,
Consciências mortas
(The Ox-Bow incident). Nesse filme, ao sentir o laço em volta do pescoço,
Dana exercitara pela
primeira vez aquela que seria a sua marca na tela: as narinas arfantes -
tão expressivas que
podiam dispensar um excesso de mobilidade no restante do rosto. Dana era
da Fox, mas, num
arranjo raro em Hollywood, metade de seu contrato pertencia a Samuel
Goldwyn - razão pela
qual passava, às vezes, meses longe do estúdio, com o que Carmen mal o
conhecia. Mas, poucas
semanas antes, Dana concluíra na Fox o filme que o projetaria para a
eternidade: Laura, em que
fazia o detetive Mark McPherson, cool até a exasperação - exceto pelas
narinas, mais
expressivas do que nunca. Ninguém mais podia deixar de notá-lo.

Durante boa parte de setembro de 1944, Dana e Carmen foram a melhor
companhia um do outro,
tanto na maratona do trem quanto nas cidades em que Wilson era festejado.
Os dois eram da
mesma idade - Dana, um mês mais velho - e, de todos os homens com quem
ela se envolvera, o
mais baixo:

379

1,78 metro. Mas ele compensava isso com uma ficha bem movimentada: filho
de um pastor
evangélico, largara os estudos, tornara-se motorista de ônibus, ajudara a
cavar uma represa,
trabalhara numa fazenda colhendo laranjas, fora frentista de um posto de
gasolina, estudara canto
lírico e fizera dezenas de peças como ator, tudo antes de começar no
cinema. De Laura, ele
saltaria em
1946 para Os melhores anos de nossas vidas (The best years ofour lives),
de William Wyler - e,
dali em diante, para muitos filmes "de prestígio", sob a direção de,
entre outros, Fritz Lang ou Elia
Kazan, mas nenhum que o mantivesse no estrelato. Aliás, o filme de Wyler
marcaria o começo de,
pelo menos comercialmente, os piores anos de sua carreira.

Um dos motivos para isso seria o alcoolismo. Na década de 50, os
produtores já achariam Dana
problemático e, na de 60, poucos se arriscariam a contratá-lo - até que
ninguém mais iria querer
saber dele. Mas Andrews venceria a bebida. Já sóbrio, em 1972, ele seria
o primeiro ator de
Hollywood a reconhecer publicamente sua condição de alcoólatra. E nos
anos seguintes, até sua
morte, em 1992, participaria de inúmeras campanhas nacionais de
esclarecimento sobre a doença.
Em 1944, no entanto, Dana estava na ativa, nos diversos sentidos. Às
vésperas da consagração
com Laura, todos os bares estavam abertos para ele, as mulheres, também,
e tudo era motivo para
um brinde à vida e ao futuro.

Carmen, por sua vez, já tinha alguns motivos para se cuidar. Um mês antes
de zarpar com a
comitiva de Wilson, ela fora levada a um exame médico em Hollywood. O
resultado chegou
estranhamente à coluna de Dorothy Kilgallen no New York Journal-American
do dia 10 de
agosto:

"Carmen Miranda tem se preocupado com um problema no coração - e não do
tipo causado por
fatores românticos. Seus médicos lhe recomendaram evitar excitações."

O que esse exame acusou foi uma arritmia. Carmen teve uma extra-sístole,
uma taquicardia
paroxística ou um defeito de condução do impulso elétrico. Qualquer uma
dessas leves mudanças
do ritmo cardíaco poderia ser provocada por excesso de café ou de
cigarros. Mas Carmen não
tomava café e só então estava começando a fumar. A causa da alteração
detectada no
eletrocardiograma - não que os médicos soubessem disso - era o seu uso de
soníferos e
estimulantes.

Apesar da regularidade dos horários do estúdio - um trabalho com hora
certa para começar e
para terminar, seis dias por semana, e sem compromissos por fora que a
obrigassem a ficar de pé
até altas horas -, Carmen não conseguira quebrar a cadeia de uso dos
uppers e downers a partir
de sua temporada, no Roxy, em Nova York, em 1942. Desde 1940 ela fora
usuária de anfetaminas
e barbitúricos - uma usuária intermitente nos dois primeiros anos, e
constante nos dois seguintes.
Nesses últimos, já eram os remédios que lhe ditavam a freqüência diária
de seu uso - e não urna
hipotética necessidade, de sua parte,


380

de ter de dormir ou de continuar acordada em função de compromissos.
Ou seja, já se tornara
uma dependente. Talvez não ainda numa escala que interferisse na sua
capacidade de trabalho -
pelo menos, não há registros na Fox de que faltasse ao estúdio, chegasse
atrasada ou fosse um
problema para a produção dos filmes. Mas, mesmo que não estivesse sendo
obrigada a um
aumento considerável de dose, para Carmen não se tratava mais de um uso
lúdico ou controlado
dos medicamentos.

Quem lhe passava as receitas que lhe permitiam comprar os remédios? Os
empregados podiam
comprá-los na própria farmácia do estúdio, desde que sob receita médica.
Na MGM, por
exemplo, havia um médico que os receitava por atacado. Mas havia também
os médicos "de fora",
ligados ao paciente. Em Hollywood, Carmen tinha o doutor Marxer - e a
farmácia de Beverly Hills
lhe fazia as entregas em casa.

Assim como 90% dos médicos de seu tempo, Marxer não entendia o mecanismo
da dependência.
Quando um deles suspeitava de abuso e se negava a renovar as receitas, o
dependente ameaçava
mudar de médico. Este então se submetia, para não perder o cliente.
Marxer ficaria com ela até o
fim, mas Carmen - como Judy Garland e demais dependentes de remédios
controlados - armou
uma rede de profissionais dispostos a fornecer-lhe as receitas. Em último
caso, pedia-se a um
amigo que conseguisse as cápsulas através de receita aviada por seu
próprio médico. Ninguém
em Hollywood negava nada a uma estrela e, além disso, não havia uma
condenação aberta aos
medicamentos. Se produtores, diretores e roteiristas responsáveis, como
David O. Selznick,
Preston Sturges e Joseph L. Mankiewicz, eram seus altos usuários, é
porque não devia haver nada
de errado com eles.

Carmen podia não saber, mas seu organismo era receptivo, ou seja,
predisposto às drogas. A
prova disso é que, depois de passar a vida cercada de fumantes - numa
época em que só os
recém-nascidos não fumavam -, e sem nunca ter se deixado seduzir por
cigarros, Carmen tornou-
se fumante aos 35 anos, em 1944. Por que isso, nessa idade tão tardia?
Não é preciso ter havido
nenhuma razão especial. Carmen apenas resolveu experimentar seu primeiro
cigarro - que lhe
foi oferecido em Palm Springs pela mulher do doutor Marxer. E, no que
experimentou, gostou - a
ponto de, no dia seguinte, ou no mesmo dia, ter repetido a experiência, e
assim por diante. Em
poucas semanas, já não sairia de casa sem um maço de Viceroy na bolsa.

É possível também que Carmen tenha consolidado o hábito de fumar na
viagem com a trupe de
Wilson. Não se conhecem fotos ou referências anteriores que a mostrem com
um cigarro na mão.
Ao mesmo tempo, existem fotos de Carmen fumando com Dana Andrews em
cidades onde se
deram as pré-estréias. Não significa que Dana tivesse algo a ver com
isso. Significa apenas que,
se Carmen precisava de algum estímulo para continuar fumando, encontrou
em Dana o parceiro
certo - porque poucos atores, pelo menos nos filmes,
381

fumavam com tanta categoria e convicção - inclusive pelas narinas. Mas,
também, quem tinha as
narinas de Dana Andrews?

Influenciada por Carmen, até dona Maria passou a fumar. Ou a, pelo menos,
tentar fumar. As fotos
em que ela aparece no Ciro"s, com um cigarro entre os dedos, ao lado de
Carmen e de algum
príncipe da tela, contam uma história fascinante sobre essa mulher
nascida no Norte de Portugal
em fins do século xix, que saíra de Várzea de Ovelha para Hollywood e,
sem falar ou entender a
língua, se sentia tão feliz e à vontade na meca do cinema. E talvez fosse
feliz por isso mesmo -
por entender tão pouco do que se passava à sua volta. Para quem vivia
repreendendo Carmen por
sair do chuveiro enrolada numa toalha e, às vezes, deixar um naco de
bunda de fora, o que dona
Maria diria se soubesse uma trisca da vida sexual de algumas moças que
freqüentavam sua casa,
como Linda Darnell ou Ann Sheridan? Era significante também que, numa
cidade em que a beleza
e a juventude eram buscadas a todo custo, dona Maria não aparentasse seus
58 anos nem mesmo
ser mãe de Carmen - que, por um hábito antigo, mas injusto, só a chamava
de "Velha".

Dona Maria não fazia feio no Ciro"s. O cigarro é que não se dava bem com
ela - e dona Maria,
quando se cansou de soprar em vez de tragar, e de tragar em vez de
soprar, abandonou-o.

O mundo que, contra a vontade de Carmen, parecia transbordar de homens
casados (Dana
Andrews era outro, razão pela qual o romance acabou ao fim da maratona),
vinha de ganhar mais
um: seu ex-namorado Aloysio de Oliveira.

Aos trinta anos, naquele ano de 1944, Aloysio se casou com a americana
Nora, secretária do
estúdio Disney. E uma secretária conforme o riscado: óculos de grau,
coque no cabelo, pele muito
branca, rosto sem pintura, blusa até o pescoço - menos Carmen,
impossível. O namoro começou
nas esticadas ao Lamp Post, um botequim nas imediações do estúdio, e
terminou na pretoria. Nora
era texana, mas, segundo Aloysio, uma mulher politicamente liberal, fã de
jazz e anti-racista
militante (certa vez, denunciou um restaurante de Los Angeles à polícia
porque o gerente barrou
seu amigo Nat "King" Cole, com quem ela e Aloysio iriam jantar). Com
todas essas qualidades,
não era difícil que ela caísse pelas virtudes de Aloysio - talentoso,
sensual, meio malandro.

O liberalismo de Nora seria duramente posto à prova quando, terminado o
trabalho de pós-
produção em Você já foi à Bahia?, ele a trouxe ao Brasil em lua-de-mel. O
avião da Panair fazia a
rota do Pacífico, com escalas em lugares como Panamá, Guatemala, Bolívia
e Peru, que ela só
conhecia dos desenhos de Alô, amigos, o filme de Disney. A realidade era
bem diferente: atraso,
pobreza, imundície. Aloysio depois insinuaria que Nora tampouco gostara
do Brasil, e tivera nojo
de uma feijoada que lhe fora oferecida por Herivelto Martins e Dalva de
Oliveira,


382

não mais na Urca, mas em Niterói. Na volta a Los Angeles,
com Nora grávida,
foram morar em North Hollywood. A filha deles, Louise, nasceria ali, em
1946.

Como Carmen reagiu ao casamento de Aloysio e à notícia de que ele ia ser
pai? Não com a
ferocidade esperada das divas "latinas" de Hollywood. Por tudo que se
sabe, ela não o chamou às
falas, não quebrou os móveis nem alterou sua velocidade ao falar. Apenas
ficou triste. Estava
claro que Aloysio não tinha nada contra o casamento ou a paternidade -
desde que não fosse
com ela. Estava claro também que todo o seu processo de afastamento,
inclusive com sua saída de
casa e do Bando da Lua, fora premeditado - talvez até já estivesse com
Nora. Portanto, se não
tinha mais Aloysio, o que restava a Carmen? Um naipe de astros de
Hollywood a escolher - daí,
talvez, os namoricos com Arturo de Córdova, Dana Andrews e também com
Harold Young, um
dos diretores de ação ao vivo de Você já foi à Bahia?.

Young, 46 anos, louro, alto e bonitão, era admirado por um único filme:
Pimpinela Escarlate (The
Scarlet Pimpernel), com Leslie Howard, que dirigira para Alexander Korda
em 1934. No mais, era
apenas um profícuo diretor de filmes B e fora o responsável por algumas
seqüências de Aurora no
desenho de Disney. Ele e Carmen se conheceram na filmagem e, de
brincadeira, reservaram-se
mutuamente para um dia de chuva. Pois aquela era a hora. Carmen e Harold
tiveram o seu
momento, mas também não deu em nada. Ele tinha uma namorada firme na
Warner e, se Carmen
queria provocar ciúme em Aloysio, podia desistir - Aloysio já nem estava
no estúdio para
perceber.

Quando Você já foi à Bahia? estreou em Los Angeles, em fevereiro de 1945,
Aloysio havia muito
não trabalhava para Disney. Ao contrário do que sempre daria a entender,
seu contrato com o
estúdio limitou-se à produção, filmagem e pós-produção de Alô, amigos e
Você já foi à Bahia? -
e sua ligação posterior com Disney, como narrador em português de seus
desenhos e
documentários, se daria filme a filme. Ou seja, em 1945 Aloysio estava
desempregado - sem
Disney, sem Carmen e sem o Bando da Lua.

Para sua sorte, aquele seria um ano em que vários estúdios de Hollywood
rodariam filmes cuja
ação se passava "no Rio" e em que eles teriam uso para seus serviços. Em
poucos meses, Aloysio
prestou algum tipo de consultoria, quase sempre musical, em Romance no
Rio (The thrill of
Brazil), de S. Sylvan Simon, na Columbia, com Evelyn Keyes, Ann Miller e
(de novo) Tito Guizar;
A caminho do Rio (Road to Rio), de Norman Z. McLeod, na Paramount, com
Bing Crosby, Bob
Hope (que faz uma imitação de Carmen) e Dorothy Lamour; e Interlúdio
(Notorious), de
Hitchcock, para Selznick, com Cary Grant, Ingrid Bergman e Claude Rains.
Antes desses, no ano
anterior, Aloysio (sem crédito) já cantara "Maringá", de Joubert de
Carvalho, em Conspiradores
(The conspirators), um thriller político da Warner em que Aurora,
igualmente sem crédito,
aparecia cantando - quem diria? - um fado.

383

Antes até que o de Aloysio, o contrato de Aurora com Disney expirara com
o término das
filmagens das cenas "reais" de Você já foi à Bahia?, em meados de
1944. Enquanto o filme era finalizado, com a inclusão dos desenhos,
Aurora aceitou fazer
pequenas participações em filmes de outros estúdios, e o primeiro foi uma
ponta em
Conspiradores - uma espécie de Casablanca sem Humphrey Bogart e com Hedy
Lamarr no
lugar de Ingrid Bergman, mas, no resto, muito parecido: mesmo estúdio
(Warner), mesma história
(líder da Resistência foge para Lisboa e cria um caso internacional),
mesmos atores (Paul
Henreid, Sydney Greenstreet, Peter Lorre, Mareei Dalio), mesmo fotógrafo
(Arthur Edeson), e
mesmo diretor musical (Max Steiner). Só não resultou na mesma magia.
Depois, Aurora filmou sua
aparição em Brasil, o musicalzinho da Republic para o qual Ary Barroso
escrevera as canções.
Dessa vez, Aurora ganhara crédito, embora seu nome aparecesse em décimo
lugar no elenco.

E, finalmente, Aurora rodou sua parte em A dama fantasma (Phantom lady),
um filme noir da
Universal, dirigido por Robert Siodmak e baseado num romance de Cornell
Woolrich, aliás
William Irish. A história era simples, mas engenhosa: um homem é acusado
de um crime e seu
único álibi é uma mulher misteriosa - a "dama fantasma" - que ele
conheceu num bar. Só que,
para chegar a ela, tem de passar por diversas pessoas que os viram
juntos, e ninguém parece se
lembrar. Só então se descobre que há alguém comprando o silêncio dessas
pessoas.

Aurora, quarto nome no elenco e creditada apenas como Aurora - sem o
Miranda -, é uma
dessas pessoas. Ela faz uma cantora "latina": a "temperamental" Stella
Monteiro, que canta música
de tique-taque, passa o tempo todo irritada e tem três ou quatro falas no
filme, todas em alta
velocidade e duas das quais em português: "Ora, bolas!" e "Que coisa
horrorosa!". Apesar desse
clichê, o filme se revelaria um clássico do noir, com a dose adequada de
luz e sombra na
fotografia, os inevitáveis personagens dúbios e várias reviravoltas na
trama. Mas não faria nada
por Aurora - nem pelos experientes Franchot Tone, Ella Raines e Kent
Scott, seus companheiros
de elenco.

Os três filmes - Conspiradores, Brasil e A dama fantasma - foram lançados
no próprio ano de
1944, antes de Você já foi à Bahia?. Nenhum deles fez a agulha do
sismógrafo se mover. E Você já
foi à Bahia?, por maior que tenha sido o sucesso, também se revelaria
incapaz de avançar a
carreira de Aurora no cinema, mesmo que por um centímetro. Era como se
achassem que ela não
seria capaz de desempenhar mais que uma specialty, um número musical
solto num filme, e, no
máximo, disparar uma ou outra rajada verbal em português.

Na manhã de 14 de dezembro de 1944, a estrela mexicana Lupe Velez foi
encontrada morta em
sua casa estilo hacienda na North Rodeo Drive - rua vizinha à de Carmen -
, em Beverly Hills.
Tinha 36 anos. Causa da morte: suicídio.


384

Motivo: falência profissional, econômica e sentimental. Mais
particularmente, um filho no
ventre - que sua religião não lhe permitia abortar, nem ela podia ter
fora do casamento, e que o
pai da criança, o ator austríaco Harald Maresch (às vezes, Harald
Ramond), de 28 anos, não
aceitava assumir. Lupe concluiu que a forma de retificar esses equívocos
seria se matando. Não
por um ato comum - por que todos os suicídios eram iguais? -, mas com um
ritual que valesse
por um testemunho, uma denúncia.

Na tarde de sua morte, Lupe, por telefone, comprou gardênias e tuberosas
suficientes para um
alentado velório e decorou sua suíte com os arranjos e buquês. Acendeu
velas pelo quarto, às
dezenas, criando efeitos nas paredes espelhadas. O restaurante mexicano
que habitualmente a
servia trouxe seu jantar - sempre pratos de seu país, de fortes cores,
condimentos e sabores.
Penteada e maquiada de forma impecável, e vestindo sua camisola mais
bonita, Lupe jantou
sozinha, mas entre muitas Lupes - sua imagem multiplicada pelo bruxuleio
dos espelhos -, e,
com calma, escreveu um bilhete de despedida para Harald. Por fim,
regando-as com doses de
conhaque, engoliu 75 cápsulas vermelhas em forma de balas (de revólver) -
Seconal - e deitou-
se na cama sob o cortinado em degrade, nas cores preto, ouro e prata. Era
só fechar os olhos e
esperar que a morte a viesse buscar.

Ela tinha tudo planejado. Quando a encontrassem pela manhã, dar-se-iam
conta de sua mensagem.
O quarto, como um cenário, representaria a mentira, a fantasia, a
falsificação - seria Hollywood,
em toda a sua crueldade. (As próprias flores, a comida e a bebida tinham
sido compradas fiado, e
ela não teria como pagá-las; mas sua morte cancelaria esses e muitos
outros débitos.) Ali, naquele
cenário, somente ela, mesmo morta, seria real. Então, fechou os olhos
para esperar - e dormiu.

Lupe fora a primeira "latina" oficial de Hollywood. A também mexicana
Dolores Del Rio podia
ter chegado um ou dois anos antes, em 1925, mas, com sua pele clara e o
jeito aristocrático, os
produtores a faziam "passar-se" por russa, francesa, espanhola e, num
raro caso, até por
americana. Com Lupe, não havia essa possibilidade. Ela era o artigo
legítimo: a vamp morena,
pequenina, de um metro e meio - ainda menor que Carmen -, mas com
cabelinho nas ventas. Ao
desembarcar em Hollywood, aos dezenove anos, em 1927, já chegara cuspindo
fogo - com uma
das mãos firmemente plantada ao quadril, tamborilando de impaciência com
um pé só, e pronta a
deflorar os machos da tela que lhe passassem pela frente. Para que
ninguém duvidasse, começou
pelo maior de todos, Douglas Fairbanks, que a escolhera para trabalhar em
O gaúcho - e
apressou o fim do casamento de Fairbanks com a virginal Mary Pickford. Os
outros fizeram fila
aos pés de sua cama e foram sendo abatidos um a um: Charles Chaplin, Tom
Mix, John Gilbert,
Jack Dempsey, Jimmy Durante, Clark Gable e o cantor Russ Columbo, até
chegar a Gary Cooper.
Com Cooper, Lupe ficou três anos, e o romance só terminou porque ela
tentou matá-lo a tiros,
385

a bordo do Twentieth Century (errou os disparos). Em 1934, seguiu-se
seu casamento com
Johnny Weissmuller - e quando ela o dispensou, em 1939, depois de cinco
anos de selva
conjugal, metade de Weissmuller ficara sob suas unhas. Como se vê, todos
os preconceitos,
clichês e aflições que atingiram Carmen, Aurora e demais "latinas" do
cinema americano
começaram com Lupe Velez.

Lupe foi também a primeira a ter sua biografia "corrigida" para não
chocar os padrões morais de
Hollywood. Sua mãe, ao que parece, trabalhava como prostituta na Cidade
do México, e Lupe,
ainda adolescente, era "vendida" por ela para programas noturnos. Os
publicistas dos estúdios
gostavam que suas estrelas tivessem uma vida aventuresca, mas não tão
crua. Assim, na versão
distribuída pela United Artists quando Lupe chegou a Hollywood, ela
passou sua juventude num
convento e sua mãe foi promovida a cantora de ópera. Pais ou mães com uma
profissão
"interessante" logo se tornaram regra e, para as meninas, a formação num
convento ficou quase
obrigatória nessas falsas biografias.

Lupe foi ainda a primeira latina "temperamental" - como os americanos
chamavam essa espécie
de mau gênio que era só dela, mas que eles passaram a atribuir a todas as
latinas que importavam.
No futuro, quando Bette Davis, Olivia de Havilland e Joan Crawford
infernizassem a vida de seus
estúdios, estariam "lutando por seus direitos". Quando uma "latina" fazia
igual, chamava-se
"temperamento" ou mau gênio.

Carmen não suportava essa acusação:

"Isso é coisa de gente de cabelo louro na alma", dizia.

Também emocionalmente, tornou-se uma tradição de Hollywood mostrar as
latinas como
mulheres instáveis e infantis, sempre com um ombro de fora, sujeitas a
arroubos e difíceis de lidar.
(O comportamento adulto, maduro e racional seria privilégio das mulheres
americanas.) De tanto
apresentá-las como tempestuosas e incendiárias, falando alto e muito
rápido, Hollywood passou a
acreditar que todas as latinas eram assim. E, de tanto serem apresentadas
como tais, muitas
começaram a achar que eram mesmo daquele jeito.

E finalmente Lupe, que chegara a Hollywood ao mesmo tempo que o cinema
falado, foi quem,
sem querer, tornou obrigatório o sotaque latino caricatural. No começo,
quando sua
especialidade eram os dramas em que fazia papéis de vamp, esse sotaque
era uma arma em sua
boca. Mas, a partir da instituição do Código Hays, em 1934, que veio para
"sanear" o cinema,
Lupe teve de ser convertida para papéis cômicos, e o sotaque tornou-se
marca de inferioridade.
Que papéis podiam caber a quem falasse daquele jeito? O de uma mulher
como a geniosa, irritada
e irritante Carmelita Lindsay. De 1939 a 1942, ela interpretou Carmelita
em oito filmes da série
Buscapé mexicano (Mexican spitfire). Quando esses filmes começaram a
ratear na bilheteria, a
RKO cancelou a série e deu-lhe as costas. Dois anos depois, sem reservas
de dinheiro, sem
perspectivas,


386

endividada, grávida e sozinha, Lupe preferiu a morte - com uma
produção de luxo,
dirigida e estrelada por ela própria.

Nunca se entendeu direito a extensão dos problemas de Lupe e sua radical
decisão de acabar
com a vida. De qualquer maneira, foi-lhe negado até o seu último desejo:
o de sair de cena em
grande estilo. A realidade estragou tudo - e o rastro de vômito entre sua
cama e o vaso sanitário
permitiu à polícia reconstituir a história.

Os 75 comprimidos de Seconal a puseram para dormir, sem dúvida. Mas,
pouco depois, ela
acordara passando mal - como se o jantar, o conhaque e os barbitúricos
quisessem explodir para
fora de seu corpo. Lupe levantara-se e cambaleara vomitando pelo quarto,
rumo ao banheiro. Já
ali, escorregara no ladrilho, talvez no próprio vômito, e mergulhara de
cabeça em direção ao
vaso. Ao bater com a cabeça, o choque a fizera perder os sentidos - e ela
morreu afogada na
água da privada.

No passado, Lupe, assustada com a ascensão de Carmen, fizera intrigas a
seu respeito, acusando-
a de ser careca. Carmen nunca lhe respondera. Naquele dia, ao ouvir no
rádio que Lupe Velez
havia morrido - e como -, Carmen fez diversas vezes o sinal-da-cruz. Por
Lupe e por ela.
Descobria-se que Hollywood matava.

E, como a se garantir contra as agruras e maldades a que viviam sujeitas
as morenas românticas e
sonhadoras que saíam dos países quentes para Hollywood, acrescentou:

"Xô, urucubaca, pé-de-pato, mangalô, três vezes!"



Capítulo 22


1945

Rolinha Spring



Segundo algumas correntes, Carmen e John Wayne se conheceram em
1945, numa festa no Beverly Hills Hotel, no fim da guerra. Era uma festa
grande o suficiente para
que os dois, se quisessem, escapassem por uma porta lateral e passassem
uma ou duas horas num
apartamento do próprio hotel, e depois voltassem sem chamar a atenção -
exceto, talvez, pelos
cabelos molhados e o mesmo cheirinho de sabonete. Outra corrente garante
que eles teriam se
conhecido no ano anterior, quando Carmen foi à Republic visitar Aurora,
que filmava sua
participação no musical Brasil, e, no galpão ao lado, Wayne fazia seu
primeiro drama de guerra,
Romance dos sete mares (Thefighting seabees), com Susan Hayward. As
versões não se excluem:
Carmen e Wayne podem ter se conhecido na Republic, apresentados por
Leonid Kinskey, ex-
colega de Carmen na Fox, e, um ano depois, se reencontrado no Beverly
Hills Hotel, onde
acrescentaram o sentido bíblico ao seu conhecimento. O fato é que, ao se
verem pela primeira
vez, eles teriam se medido de alto a baixo - Wayne, 38 anos, com seus
1,93 metro, sem as botas,
era 41 centímetros mais alto do que ela - e gostado do que viram.

Duke Wayne (como era chamado por amigos e inimigos) tinha um fraco por
latinas. Pelo menos,
só se casava com elas. Sua mulher, a californiana de língua e sangue
espanhóis Josephine Saenz,
pertencia à aristocracia católica da velha Los Angeles, vinda da Espanha
no começo do século
XIX, cinquenta anos antes de um americano pôr os pés no território - uma
elite que desprezava
os americanos. Wayne estava se separando de Josephine, mãe de seus quatro
filhos, para se casar
com a mexicana Esperanza Baur, mais conhecida como Chata. (A terceira e
definitiva mulher de
Wayne, com quem ele se casaria nos anos 50 e teria mais uma filha, seria
a peruana Pilar Pallete.)

Em 1942, entre Josephine e Chata, Duke fizera uma concessão às arianas e
tivera um caso com
Marlene Dietrich, durante dois filmes que rodaram juntos. Contando assim,
pode parecer que ele
fosse um garanhão, mas não era o caso. Só tinha tamanho. Segundo todos os
seus biógrafos, Duke
era tímido e retraído com as mulheres, não muito diferente do Ringo Kid
que interpretara em No
tempo das diligências (Stagecoach), cinco anos antes. As mulheres
percebiam isso e se sentiam na
obrigação de tomar a iniciativa com ele. Mas só eram bem


388

sucedidas as que o abordavam com habilidade, como certamente o fizeram
Marlene e Carmen.

As horas podem ter passado depressa no Beverly Hills Hotel, mas a
história durou o suficiente
para convencer Carmen a se associar a Duke, junto com Rosalind Russell e
Clark Gable, na
compra de ações de uma empresa exploradora de petróleo. Os quatro abriram
a sociedade e o
investimento deu direito a oito poços para cada um, no Texas. Esse foi um
dos inúmeros negócios
de Wayne agenciados por seu gerente comercial Bo Roos e que, como ele só
descobriria tarde
demais, o fizeram perder dinheiro. Foi o que aconteceu inclusive dessa
vez, com prejuízo também
para Russell e Gable, porque os poços estavam secos. Mas, nesse caso,
pode ter sido falta de
sorte, porque, pelo menos durante algum tempo, os de Carmen não estavam.
Quanto ao romance
entre eles, também secou, mas por iniciativa dela. Ao vê-lo se separando
de sua mulher, mas já
com outra na agulha, Carmen preferiu reduzir Duke à condição de seu
parceiro comercial.
Principalmente ao saber que Chata Baur, dona de um respeitável passado
nos cabarés mexicanos,
disparava o olhar de faquinhas sobre qualquer mulher que chegasse perto
de Wayne.

Aqueles eram os últimos dias da Segunda Guerra. A Alemanha se rendera em
8 de maio; ainda
faltava o Japão, mas já havia um clima de euforia e romance no ar. Um
capitão dos fuzileiros
americanos, estacionado no meio do oceano e antegozando a embriaguez da
vitória, escreveu
para Carmen pedindo-a em casamento. Cartas desse tipo chegavam-lhe aos
maços na Fox, mas
esta trazia em anexo uma foto do candidato e um anel de noivado. Carmen
conservou a foto e
devolveu delicadamente o anel.

A colunista Louella Parsons pegou a história de orelhada e, sem ouvir
Carmen, anunciou o
casamento. Carmen ligou para Louella a fim de desmentir e fez seu velho
número: era "noiva de
um brasileiro chamado Carlos". E, tolamente, acrescentou: "Estamos apenas
esperando que a
guerra termine no Pacífico". A colunista pediu o sobrenome do felizardo e
a aérea Carmen deu o
primeiro que lhe veio à cabeça: Martins. Não lhe ocorreu que Carlos
Martins era o nome do
embaixador do Brasil em Washington, marido de sua amiga Maria Martins, e
que, sendo ele um
diplomata influente, também amigo pessoal de Roosevelt, que acabara de
morrer, fazia todo o
sentido esperar o fim da guerra. Louella deu essa nota em sua coluna no
dia 28 de maio e criou um
imediato rebuliço no circuito Elizabeth Arden. Pois Carmen teve de ligar
mais uma vez para
Louella e se explicar.

Nos dias 6 e 9 de agosto, os americanos despejaram as bombas sobre
Hiroshima e Nagasaki, e, no
dia 15, o Japão se rendeu. Era o fim, o massacre, a vitória. Na tarde
desse dia, Carmen passava
com seu conversível pelo prédio da Capitol, na esquina de Hollywood
Boulevard com Vine
Street, quando viu um

389

grupo de soldados celebrando ao som de uma orquestra. Parou o carro,
subiu no banco, e
começou a dançar com eles. Foi logo reconhecida. A orquestra mudou para
os seus sucessos,
outros transeuntes aderiram e, por alguns minutos, a esquina mais famosa
de Hollywood se tornou
o Rio, num mini-Carnaval da vitória. Carmen se esbaldou. Não era um
procedimento comum -
uma estrela do seu porte misturar-se a populares, de improviso, sem
ninguém do estúdio por perto
para "protegê-la" e certificar-se de que os fotógrafos estivessem a
caminho. Mas Carmen não
precisava de proteção, nem trocara sua pele curtida de sol por uma camada
de porcelana, como
faziam algumas de suas colegas quando ascendiam ao estrelato.

Com o fim dos tiroteios no Atlântico e no Pacífico, liberaram-se os
cruzeiros marítimos e as linhas
aéreas. Já se podia de novo viajar e, com a Europa arrasada, os Estados
Unidos, pela primeira
vez, estavam na moda. A presença de Carmen atraiu para Hollywood uma
chusma de brasileiros
com aspirações profissionais, como radialistas, maquiadores, bailarinos,
atores e técnicos de
cinema. Além de turistas, entre os quais vários milionários de fortuna
recente - gente que
enriquecera com a guerra -, alguns interessados em propor casamento a uma
estrela. (Um deles,
de São Paulo, perguntou a Carmen se Ingrid Bergman estava "vaga".) Os
novos correspondentes
dos jornais e revistas brasileiros também começaram a chegar. O primeiro
foi Alex Viany, de O
Cruzeiro - veículo que, pela coluna de Pedro Lima, se dedicara a
perseguir Carmen nos últimos
anos. Apesar (ou por causa) disso, Alex foi quase que adotado por ela:

"Esta casa é sua, moreno. Entre e saia à vontade. Olha, a piscina está
ali, não peça licença a
ninguém, caia nela quando quiser."

Carmen disse isso a Alex e, com outras palavras, era o que dizia a muitos
que chegavam. Elsa,
mulher do correspondente, também caiu de imediato nas suas graças e se
tornou uma espécie de
irmã. Em poucos dias Alex concluiu que, na intimidade, Carmem "continuava
pertencendo muito
mais ao Rio do que a Hollywood".

Ela era absolutamente acessível. Não havia brasileiro que descesse em Los
Angeles, mesmo que
de pára-quedas, sem o seu número de telefone: CR (de Crestview) 5-2354 -
ainda mais porque
esse número vivia saindo nas reportagens das revistas brasileiras (e
Carmen nunca se preocupara
em trocá-lo). Era uma romaria. Estando Carmen em casa ou não, havia gente
quase diariamente na
piscina, no jardim, no bar, nas dependências e, às vezes, até nos quartos
de baixo. Carmen
franqueava tudo - sendo brasileiros, eram amigos e bemvindos. E, como num
paraíso de desenho
animado, a quem estivesse sentado numa espreguiçadeira ao redor da
piscina bastava esticar o
braço para colher uma laranja dos vários pés que a cercavam.

Isso não parecia interferir na sua privacidade. Se não estivesse a fim de
ser vista, o que era raro,
Carmen apenas se trancava no andar de cima e não aparecia. O único acesso
restrito era a seu
quarto, onde mantinha uma fortuna em jóias,


390

perfumes e roupas. (Tinha também placas de platina e brilhantes,
um investimento em moda
na época.) E como, durante parte do primeiro semestre, passara os dias na
Fox filmando Dollface
(no Brasil, Sonhos de estrela), o entrae-sai desse período nunca a
incomodou. Ao voltar para casa
no fim da tarde, Carmen ainda encontrava as últimas visitas na piscina, e
só então se juntava a
elas. Em 1945, o afluxo de brasileiros em Los Angeles era novidade e,
fora do Brasil havia cinco
anos, Carmen estava faminta das coisas do país.

Alguns que chegavam lhe levavam café, feijão-preto, farinha, carne-seca,
goiabada e pinga.
Outros levavam discos. E, ainda outros, as últimas gírias e piadas, com o
que Carmen se mantinha
a par do pulso e da temperatura das ruas do Rio, especialmente as
novidades do jargão. Aliás,
Carmen precisava às vezes se segurar para não se exceder nos palavrões e
gírias em presença de
quem não conhecesse bem, principalmente se fosse alguém do consulado.
Como o vice-cônsul
Otávio Dias Carneiro, impenitente leitor dos filósofos alemães sob as
palmeiras de Los Angeles, e
o funcionário Alfredo de Sá, casado com Dorita Barrett (anos depois, no
Brasil, os dois fundiriam
os sobrenomes e seriam os criadores da Enciclopédia Bar sã).

"Tenho de prestar atenção ao abrir a boca", ela disse a eles. "Senão, sai
merda."

Muitos eram visitantes fixos, expoentes da pequena colônia brasileira
local e seus amigos: os
músicos que a acompanhavam, com suas mulheres; o cônsul Raul Bopp, que
estava para ser
substituído; os correspondentes brasileiros, que gostavam de levar seus
colegas hispânicos para
conhecer Carmen; e um ou outro jornalista americano. Outros eram os
colegas do cinema,
americanos ou não. Em tardes de muito movimento, dona Maria e Aurora
serviam sanduíches.
Mas, nas grandes ocasiões, que estimulavam dona Maria a vestir o avental
e cozinhar a valer dois
pontos, a atração era o seu cabrito assado com batatas coradas ou a
melhor feijoada ao norte do
Oiapoque.

Para Carmen, eram horas de abandono e alegria. Da piscina, à tarde, as
festas se prolongavam em
noitadas de samba na sala, sob o seu enorme retrato, pintado pelo artista
mexicano Manuel
Gonzalez Serrano. Carmen era friorenta e gostava mesmo era de calor - no
ameno inverno da
Califórnia, ligava a calefação no máximo e fazia todo mundo suar.
Cantava-se e dançava-se até
os vizinhos dizerem chega. (Cantavam-se inclusive pontos de macumba.) Aos
que chegavam do
Rio levando-lhe discos ou revistas, Carmen perguntava por todo mundo da
música popular e só
fazia comentários generosos:

"Dircinha tem uma carinha que é uma beleza, não?"

Ou:

"Que bossa que tem a Linda!"

Ou:

"Aracy [de Almeida] é um diabo de mulher para cantar samba. E com um
jeito que ninguém mais
tem!"

391

Às vezes, davam-lhe uma notícia triste, geralmente a morte de alguém -
como a de Custódio
Mesquita, ocorrida no dia 13 de março, provocada por uma crise hepática,
cruel para um homem
que não bebia. Para Aurora era ainda mais triste, porque Custódio fora
seu namorado e ela
gravara 21 de suas canções. Mas o maior prejuízo era para a música
popular: nos últimos anos, ele
se tornara um grande melodista, autor de valsas, canções e foxes como
"Nada além", "Naná",
"Volta", "Mulher", "Velho realejo", "Enquanto houver saudade" e "Como os
rios que correm pró
mar", em parceria com Mário Lago ou Sady Cabral. E o que doía era o
desperdício: Custódio
ainda não fizera 35 anos. Outro tópico discutido por suas visitas naquele
ano seria a queda do
ditador Getúlio Vargas, no dia 31 de outubro, depois de quinze anos no
poder. Como nunca se
soube de uma palavra sua a esse respeito, é de se supor que Carmen não
tenha se abalado pelo
destino do homem que, um dia, e sem o menor fundamento, suspeitaram de
ter sido seu amante.

Os amigos do cinema, mais escolados nos horários de Hollywood, só
apareciam aos domingos e,
mesmo assim, depois das três ou quatro da tarde, que era quando Carmen
acordava nos fins de
semana. Alguns deles eram Howard Hughes, César Romero, Loretta Young,
Xavier Cugat, Linda
Darnell, Ramon Novarro e a velha e maliciosa cantora Sophie Tucker, sua
grande fã. Outra
presença constante era a de Ann Sheridan, que Hollywood carimbara com a
expressão "The
oomph girl" - ninguém jamais soube o que era "oomph", exceto que viera
para substituir "it". Ann
era uma grande menina: bebia bem, competia com Carmen em palavras
cabeludas e achava
ridícula aquela história de "oomph girl". Vivia contando que, como tinha
seios pequenos, a
Warner a obrigava a usar um sutiã com enchimentos para filmar - mas,
assim que rodava a cena e
voltava para o camarim, arrancava aquela trapizonga, jogava-a no chão e a
chutava para o lado,
como se fosse um rato morto. E completava:

"Se não fosse tão grande, despejava pela privada!"

Uma colega que precisou se armar de coragem para visitar Carmen pela
primeira vez foi Esther
Williams, já consagrada como a rainha das piscinas da MGM. Esther só
conhecia Carmen pelos
filmes e imaginava que, ao vivo, ela fosse uma mulher quase de fábula -
enorme, muito
maquiada, equilibrando três abacaxis na copa do chapéu. Mas quem a
recebeu à beira da piscina
foi uma mulher pequenininha, descalça, de maiô, cara lavada, queimada de
sol e com rabo-de-
cavalo, pela qual se encantou de saída. E só ao observar-lhe a boca, os
olhos e a gesticulação
Esther compreendeu por que Carmen crescia tanto na tela. Tempos depois,
sentiu-se à vontade
para pedir a Carmen que fosse à MGM ensinar-lhe "Boneca de piche", de Ary
Barroso e Luiz
Iglesias, que ela e Van Johnson cantariam no filme Quem manda é o amor
(Easy to wed). Carmen,
generosamente, orientou-os sobre os macetes da letra e lhes passou, de
graça, alguns passos de
dança.

Carmen divertia os brasileiros em trânsito com suas paródias de luminares


392

do cinema - sabia imitar todos eles, de Al Jolson a Katharine Hepburn e
Mickey Rooney. E, se a
pressionassem, era capaz de fazer "revelações" sobre a intimidade de
alguns. Por exemplo,
habituada à camaradagem no meio musical do Rio, não entendia certas
querelas insolúveis de
Hollywood: Joan Fontaine e Olivia De Havilland eram irmãs que se odiavam;
Edward G.
Robinson e George Raft nunca se deram; e Joan Crawford e Bette Davis
também eram inimigas.
Carmen gostava de citar os grandes garanhões da cidade - Gary Cooper, Ray
Milland, Henry
Fonda, James Stewart e Errol Flynn - e seus equivalentes femininos: Joan
Crawford, Lana
Turner, Hedy Lamarr, Verônica Lake e Marlene Dietrich - sendo que Flynn e
Dietrich não eram
muito exigentes em questão de gênero. Quem bebia para valer? Robert Young
(futuro Papai sabe
tudo), Dana Andrews, Broderick Crawford, sua amiga Tallulah Bankhead e o
garoto Robert
Walker. E os galãs cujos topetes, de tão perfeitos, você nunca diria que
eram by Max Factor?
Humphrey Bogart, Bing Crosby, Ray Milland, Gary Cooper e Fred Astaire -
sim, todos usavam
peruca.

O que Carmen não fazia era rebaixar-se a maldades rasteiras, mesmo que
verdadeiras, como as
que diziam que Bette Davis tinha seios caídos; Ginger Rogers, muita, mas
muita penugem no
rosto; e que a latina Rita Hayworth fora toda refabricada, inclusive com
eletrólise na testa, para se
passar por americana. A pior (ou melhor) fofoca referia-se à colunista
Lonella Parsons. Todos
sabiam que ela sofria de incontinência urinária e, nas festas, ficavam
esperando que se levantasse
do sofá - para conferir o diâmetro da marca de xixi. Mas ninguém era
louco de fazer uma piada a
respeito. Na verdade, Carmen não contava nada que não se soubesse em
Hollywood ou que não
saísse nas colunas. Nem ela estava ali para xeretar a vida dos colegas.
Afinal, fazia parte do show
business, tanto quanto eles.

Talvez até mais. Desde que chegara a Hollywood, já estivera ligada
comercialmente a toda
espécie de produtos: peles, cosméticos, rádio, café, maiôs, vestidos,
chapéus, joguinhos para
colorir etc. Assim como os pés de Astaire, a voz de Crosby, as pernas de
Grable e o nariz de
Durante, suas mãos estavam no seguro. E nada era deixado ao acaso. A
simples informação de
que comprava sutiãs na Magic Wire Brassiere ou de que seus chapéus,
desenhados por ela, eram
confeccionados por Randy, tinha grande valor de mercado - para Randy e
para a Magic Wire. A
tudo se atribuía um valor - até às coisas que ela fazia apenas porque lhe
davam prazer, como
costurar. As pessoas se espantavam com a facilidade com que pegava um
corte de tecido, uma
tesoura e, em poucos minutos, criava uma saia ou uma blusa.

Os costureiros da Fox lhe diziam que ela deveria trabalhar com moda -
tinha tudo para ser uma
grande estilista e faria fortunas criando roupas, sapatos, chapéus e
maquiagem.

Carmen ria:

"Mais tarde... Mais tarde..."

393

No fim da guerra, com o mundo tentando levantar-se dos escombros, os
estúdios acharam de bom-
tom desglamourizar um pouco suas deusas. Por isso mudaram o conceito de
suas fotos de
divulgação, passando a mostrar as estrelas em roupas do dia-a-dia e
fazendo coisas "como todo
mundo" - cortando a grama do jardim, lavando pratos ou espremendo
espinhas. Quando lhe
propuseram uma sessão de fotos desse tipo, Carmen deu um salto:

" Ê - ê! Comigo, não! E eu estou aqui para me avacalhar?"

E nunca se deixou apanhar desprevenida com um fotógrafo por perto. Mas
não quer dizer que se
produzisse o tempo todo. Ao contrário - de vez em quando Carmen gostava
de testar a
capacidade de alerta das grandes massas. Ia à cidade fazer compras, sem
muita maquiagem, de
óculos escuros e cabelos soltos, e, ao passar anônima entre as pessoas,
prestava atenção aos
comentários. Quase sempre ficava satisfeita.

"Olhe ali, parece a Carmen Miranda", dizia uma.

"Não. É muito jovem para ser Miranda", rebatia a outra.

Ou, quando ainda namorava Aloysio, na noite em que, de lenço na cabeça e
óculos escuros, foi
com ele a um cinema. No estacionamento, viram o velho Cadillac que lhe
pertencera e que ela
vendera pouco antes, através de uma agência. Estavam admirando o carro
quando um homem se
aproximou:

"Algum problema?"

"Não, nenhum", respondeu Aloysio. "É que ele se parece muito com um carro
que foi nosso."

"Esse aí, não, meu chapa", rebateu o homem, com ar de triunfo. "Esse
pertenceu a Carmen
Miranda!"

Ninguém precisava dizer a um astro que seu prestígio no estúdio já não
era o dos velhos tempos.
O próprio estúdio lhe piscava sinais amarelos, nem sempre muito sutis, e
a Fox não era nada
delicada nesse ponto. Quando um ator ou diretor começava a cair em
desgraça, a primeira coisa
que lhe acontecia era perder sua vaga no estacionamento privativo onde,
até então, seu carro
ficava parado sobre uma estrela pintada no chão. Tinha agora de
estacioná-lo no outro lado, no
love dos atores e técnicos menores e das visitas, sem estrelas.
Acontecera isso com George
O"Brien, o antigo astro de Aurora e que já fora o maior nome do estúdio,
no tempo em que este
pertencia a William Fox.

Não fizeram isso com Carmen, mas os sintomas eram preocupantes. Com o
fracasso de Wilson na
bilheteria (um prejuízo de mais de 2 milhões de dólares no primeiro ano),
Zanuck teve de voltar
aos musicais e, de preferência, com Betty Grable, a única estrela à prova
de erro para fazer caixa,
com as 10 mil cartas que, dizia-se, recebia por semana. Como já se
convencera de que não teria
mais Alice Faye, Zanuck tentou fabricar Vivian Elaine. Era bonitinha e
tinha bom corpo, mas, com
ela, os filmes não iam muito longe - cantava apenas o trivial,


394

não sabia dançar e, principalmente, faltava-lhe a centelha, a chispa das
verdadeiras estrelas. A
Fox nunca faria por ela o que fizera por Faye e Grable: dar-lhe grandes
canções e roupas caras
em caprichados musicais em cores. Quanto a Carmen, precisava de material
altamente
especializado para render tudo que podia.

Dos quatro musicais em produção na Fox em 1945, dois eram grandes
produções em Technicolor
e ambos com Betty Grable: Mulheres e diamantes (Diamond horseshoe),
lançando a canção "The
more I see you", de Harry Warren e Mack Gordon, com o jovem Dick Haymes,
e o filme "de
época" As irmãs Dolly (The Dolly sisters), com um exagero de pompons e
frufrus; o terceiro era
Corações enamorados (State fair), com Jeanne Crain e Dana Andrews, também
em cores e "de
época", com canções de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein, os
compositores mais disputados
da Broadway naquele momento. Dois anos antes, em 1943, Rodgers e
Hammerstein tinham
revolucionado o conceito do teatro musical com Oklahoma! e, agora, tinham
acabado de estrear o
extraordinário Carousel. Grande idéia de Zanuck, a de contratá-los para
escrever um score
original - o que eles fizeram sem se esfalfar muito e, mesmo assim, de
Corações enamorados
sairia a canção vencedora do Oscar de 1945, "It might as well be spring",
cantada também por
Dick Haymes. Diante de tais créditos, o quarto musical da Fox naquele
ano, Sonhos de estrela,
era tão chinfrim, tão ostensivamente feito para ser o filme B de um
programa duplo, que jamais
mereceria uma citação em outro livro. Só entra aqui por conter Carmen - e
Carmen só entrou
nele porque não havia um papel para ela nos outros três filmes e não
podiam deixá-la um ano
inteiro parada.

Mesmo assim, seu nome era o quarto num elenco composto por Vivian Blaine,
Dennis O"Keefe e
Perry Como. Se Carmen já estava desiludida com a Fox, esse filme parecia
o começo da sua
despedida. Na verdade, Carmen teve de aceitar rodá-lo porque seu contrato
previa que ela ainda
devia dois filmes ao estúdio - e atores sob contrato não discutiam se
queriam ou não fazer o filme
que lhes destinavam. Se se recusassem, eram suspensos pelo estúdio e
ficavam sem receber o
salário pelo tempo que o filme levava para ser feito. Sonhos de estrela
era baseado numa peça
que já fora um fiasco na Broadway, The naked genius, de Louise Hovick, e
contava a história de
uma stripper em busca de respeitabilidade intelectual. Três anos depois,
com Nascida ontem
(Born yesterday), Garson Kanin triunfaria com uma idéia parecida. Mas
Louise Hovick não era
Garson Kanin. E quem era Louise? Nada menos que a divertida Gypsy Rose
Lee em trajes civis,
pioneira em combinar striptease com literatura, para prejuízo de ambas as
especialidades.

Em Sonhos de estrela, Carmen faz uma porto-riquenha falando português, é
de novo a amiga da
mocinha (Vivian Blaine) e não tem um interesse amoroso. Pensando bem, não
tem nada a fazer no
filme - qualquer outra atriz, inclusive Hattie McDaniel, a mãe preta de
...E o vento levou,
poderia estar em seu lugar. Dos dois números musicais que filmou, somente
um chegou à versão final:

395

"Chico Chico (de Puerto Rico)", um fox-samba-rumba de Jimmy meHugh
e Harold
Adamson. A rigor, nem fox, nem samba, nem rumba, mas "música de
Hollywood" - como
Hollywood fazia com as valsas, balalaicas, tarantelas ou qualquer ritmo
que lhe fosse estranho.
(Fazia isso até com os ritmos que não lhe deviam ser estranhos, como o
jazz e o blues.) Com a
coreografia era a mesma coisa - ela podia empregar elementos de rumba,
samba ou fox, mas
todas as danças de filmes acabavam caindo num padrão tipo "coreografia de
Hollywood".

Carmen dança "Chico Chico" com o peruano Ciro Rimac, que vinha a ser -
mundo pequeno,
não? - o marido de Alzirinha Camargo, a cantora que tentara rivalizar com
ela dez anos antes, no
Rio, disputando-lhe a marchinha "Querido Adão" e um ou outro namorado. Um
ano depois da ida
de Carmen, Alzirinha também fora para Nova York, a bordo da orquestra de
Rimac, que a
descobrira no Cassino da Urca (dali a tempos os dois se casariam).
Alzirinha fizera carreira com
Rimac nos Estados Unidos, apresentando-se no palco da cadeia de cinemas
Loew, que pertencia
à MGM, usando baianas como Carmen e cantando um repertório parecido. Só
não progrediu mais
porque não aceitava trabalhar sem Rimac. O irônico é que, em Sonhos de
estrela, Rimac aceitou
trabalhar sem Alzirinha - e logo com Carmen. E, mais uma vez (a primeira
fora em "The lady with
the tutti-frutti hat", de Entre a loura e a morena), Carmen dançou
descalça porque, assim como
Tony de Marco naquele filme, também Rimac era tão baixo quanto ela. Na
verdade, era ainda
mais baixo - porque, embora Carmen apareça descalça, e ele de
plataformas, ela continua maior
do que ele.

Carmen filmou um segundo número, o foxtrote "True to the Navy", em que
sua fantasia (de novo
com uma perna de fora, uma fixação de Yvonne Wood) era completada por um
chapéu em forma
de farol. Ao fim do número, o farol acendia, graças a uma potente bateria
embutida, que o fazia
pesar sete quilos sobre a cabeça de Carmen. O Código Hays, como sempre
enxergando apenas o
pior lado da humanidade, viu no farol um volumoso símbolo fálico,
principalmente quando aceso
- e, pensando bem, essa pode ter sido a intenção de Carmen e Yvonne. O
número foi cortado,
reduzindo ainda mais a parte de Carmen no filme. (Por sorte, a Fox não
incinerou o negativo.
Conservou-o em seus arquivos e, no futuro, ele poderia ser apreciado no
DVD Hidden Hollywood.

Carmen não precisava de um farol para enxergar o que a esperava na Fox:
mais filmes
vagabundos, desapontamentos e frustrações. Antes que suas relações com o
estúdio acabassem de
azedar, propôs a Zanuck rasgarem o contrato. Ela faria como autônoma o
filme que estava lhe
devendo e, a partir dali, teria liberdade para filmar o que quisesse,
inclusive na Fox. A Fox relutou
e depois achou que era bom negócio - havia um movimento semelhante em
outros estúdios, com
astros que, ao voltar da guerra, estavam ficando independentes.


396

Pouco antes, Carmen comprara uma casa em Palm Springs, um oásis de
palmeiras e fontes de água
quente em meio ao deserto de Mojave, a cerca de cem quilômetros de Los
Angeles. Desde 1930,
Palm Springs se tornara uma extensão de Hollywood, com seus 5 mil
habitantes vivendo em
função das estrelas que mantinham casas por lá e as usavam principalmente
no inverno, pelo clima
temperado da região. Carmen já começou a usar a sua no verão - sua
piscina dava para uma
paisagem de cactos, cardos e carrapichos e, mais adiante, as areias onde,
em 1924, tinham filmado
O filho do sheik (The son ofthe sheik), com Valentino. A casa, em estilo
bangalô, ficava no número
1285 da East Verbena Drive, entre El Alameda e Tamarisk Road, e lhe
custara 15 mil dólares -
pouco mais do que ela faturava por uma semana de batente no Roxy. Tinha
dois quartos e dois
banheiros, fora construída em 1943, e, entre seus vizinhos, estavam
Shirley Temple, Clark Gable,
Hedy Lamarr e a trinca da série Road to, Bing Crosby, Bob Hope e Dorothy
Lamour - que a
convidaram a fazer uma ponta simbólica em A caminho do Rio e a Fox,
tacanhamente, não
permitira.

Um deles lhe contou que Palm Springs era sujeita a pequenos terremotos.
Nada de assustar e, na
maioria das vezes, as pessoas nem percebiam. Mas, quando aconteciam, a
campainha da casa de
Carmen (uma campainha mesmo, com guizo) tocava sozinha. Ela ia atender e,
ao ver que não era
ninguém, sabia que tinha sido um leve tremor de terra. Comentou isso
rindo com alguém do
consulado e só então foi informada de que toda a Califórnia, assentada
sobre uma falha
geológica, ameaçava ser engolida para dentro da Terra. A partir dali,
sempre que sua campainha
tocava sozinha em Palm Springs, Carmen se ajoelhava e rezava, esperando
ser tragada naquele
instante.

Em setembro, vinte tenentes-aviadores brasileiros comandados pelo coronel
Doydt Fontenelle,
baseados em São Francisco para cursos de aperfeiçoamento, foram visitar
Carmen em Beverly
Hills. Entre eles, saído de um estágio de oito meses em Waco, no Texas, o
carioca Carlos Novo
de Niemeyer, Carrinhos, 25 anos, 1,78 metro de altura, campeão brasileiro
da alegria e recordista
mundial do sorriso de orelha a orelha.

Já estava se tornando uma tradição: o pessoal das Forças Armadas, de
qualquer arma, visitá-la
quando de passagem por Los Angeles, como se sua casa fosse um posto
avançado do Brasil. E
era mesmo: até as paredes da sala eram verdes, com cortinas amarelas. No
fundo de um nicho para
livros, viamse dois painéis em cores, com cenas do Rio. E, ao serem
destampadas as panelas na
mesa do almoço, era o Brasil que vinha por inteiro na nuvem de fumaça.
Mas, por mais que
Carmen tentasse dar um ar festivo a essas reuniões, elas sempre foram
marcadas por uma certa
formalidade.

Dessa vez, foi diferente - nem a própria Carmen estava preparada para um
homem como
Niemeyer. Habituada à frieza algo calculista de Aloysio e à

397

timidez dos americanos, ela se deixou assomar pelo dinamismo de
Carlinhos, cuja receita de vida
incluía o Carnaval, o Flamengo, a praia, praticar esportes, dar festas,
namorar e exibir saúde e
disposição para, segundo ele, "rir até de gol contra". Para Carlinhos,
Carmen podia ser um troféu
a ser conquistado. Para ela, ele era irresistível.

Não se sabe se Carlinhos já ficou por lá nessa primeira visita ou se
reapareceu sozinho no dia
seguinte, e como fez para permanecer em Los Angeles quando seus colegas
voltaram para São
Francisco. Sabe-se que foi fulminante. Eles ficaram um mês juntos, do
qual Carlinhos passou dez
dias e noites com Carmen na casa de Beverly Hills e dois na de Palm
Springs. Aurora e Gabriel
interferiam o mínimo possível e dona Maria não estava em Los Angeles -
tinha ido passar algum
tempo no Rio, levada por um brasileiro chamado Bob, que se oferecera para
escoltá-la no navio.
Essa convivência, mesmo tão breve, entre Carmen e Carlinhos bastou para
que ele se tornasse o
que ela via (ou fantasiava) em seus namorados: o "maridinho" - alguém
para quem pudesse fazer
ovos quentes no café-da-manhã (Carlinhos preferia os de três minutos e
meio) e simular outras
situações conjugais.

Carmen e Carlinhos saíam à noite com freqüência e não se incomodavam de
ser vistos juntos -
em restaurantes, no Ciro"s ou nas pré-estréias de filmes da Fox, para as
quais ela era sempre
convidada. Uma foto dos dois chegando de braço dado à première de A casa
da rua 92 (The
house on 92nd Street), no Chinese Theatre, foi publicada no Herald
Express, de Los Angeles, no
dia 19 de outubro - Carmen, borbulhante, Carlinhos, fardado e com o quepe
debaixo do braço, e
os dois formando um casal com centenas de dentes à mostra.

Ao fim dos trinta dias ele teve de ir embora, não para o Rio, mas para a
Bahia, onde concluiria o
curso na Base Aérea de Salvador. Estranhamente, embarcou levando uma
pilha de fotos
autografadas de Carmen, como se não fosse vê-la nunca mais. Em troca,
deixou para trás uma
Carmen com o coração em tiras - sem citar o nome, ela admitiria numa
carta que, desde Carlos
Alberto da Rocha Faria, nenhum homem a balançara daquele jeito. Ali
começaria uma troca de
cartas e telegramas, com Carlinhos em Salvador e Carmen em Saint Louis
(aonde voltara para uma
nova cirurgia, dessa vez não do nariz, mas " da vesícula), e, depois, em
Hollywood. No remetente,
Carmen usava pseudônimos engraçados, como Shirley Nemrac (Carmen ao
contrário) ou o
apelido pelo qual Carlinhos a chamava: Rolinha. Às vezes Carmen lhe pedia
que escrevesse para
o endereço de sua cabeleireira Esperanza, em Ellendale Place, em Los
Angeles.

Pelas cartas depreende-se que eles não perderam um minuto do tempo que
passaram juntos. Com
Carlinhos no vigor quase inesgotável dos seus 25 anos, era inevitável
que, ao cabo de um mês e
de um turbilhão de prazeres, Carmen, aos 36, se julgasse apaixonada.
(Algumas cartas, em que ela
relembra certas noites, são altamente descritivas.) Entre uma e outra
performance mais acrobática,


398

no entanto, até Carlinhos precisava descansar - e era nesses
intervalos que Carmen
se abria sobre sua vida profissional.

Ela se queixava das críticas que sofria no Brasil por, às vezes, fazer
papéis de "estrangeira".

"Não posso passar o resto da vida fazendo só papel de brasileira. Por que
no Brasil não entendem
isso?" E argumentou: "Ingrid Bergman faz papel de tudo, menos de sueca.
Hollywood é assim.
Qual é o problema?".

Mas, como se sua cabeça batesse num compasso e o coração em outro, Carmen
sempre insistia
com a Fox para ser brasileira nos filmes. Mesmo quando lhe davam um nome
espanholado -
Chita, Chiquita, Dorita ou Rosita -, não abria mão de que a personagem
falasse português. Aliás,
nos seus filmes e discos americanos até então, nunca falara ou cantara em
outra língua que não
fosse inglês ou português. E se orgulhava de, mesmo assim, ter deixado
para trás a multidão de
mexicanas, cubanas, argentinas e porto-riquenhas de Hollywood que falavam
espanhol.

Não a incomodava também o fato de ter sido usada como "arma política"
pelos profissionais da
Política da Boa Vizinhança, ela disse. Sabia o que estava fazendo, achava
a causa justa, e só
gostaria que os filmes fossem melhores. A tal política já acabara e, se
não tivesse talento, ela não
teria sobrevivido. E sobreviver era a maior façanha que se podia praticar
em Hollywood. Aquela
era a cidade do medo: todos - produtores, roteiristas, atores,
publicistas - se agarrando a seus
empregos, lutando por um crédito e matando por uma fala ou um close-up.
As pessoas se
chamavam de "querido", mas os homens só se cumprimentavam com a mão
esquerda - como se
reservassem a direita para aparar algum golpe. Todo mundo bebia demais. E
ninguém dormia sem
as cápsulas vermelhas ou amarelas, inclusive ela.

Carlinhos a ouvia fascinado, e se, no começo, ele viu Carmen como um
troféu, há relatos de que
também saiu abalado daqueles trinta dias com ela. Isso não o impediu de,
mesmo durante o
namoro em Los Angeles, ter-se deixado gostosamente abordar por uma ou
outra mais assanhada
no Ciro"s. Nas duas vezes, Carmen percebeu e lhe passou a devida
descompostura - teria ficado
ainda mais atenta se soubesse que, no Rio, ele era chamado por seus
amigos de Ipanema de
Carlos, o Belo, pela reputação de não deixar impune nenhuma mulher
disponível. Mas, pelo visto,
Carmen estava com a visão nublada pela paixão. Com Carlinhos, ela voltou
ao espírito das
dedicatórias derramadas (como no verso das antigas fotos para Mário
Cunha), ao uso e abuso dos
diminutivos e à necessidade exasperante de voltar a ser uma garotinha.

As cartas de Carlinhos para Carmen estão perdidas. Por sorte, sobreviveu
um maço de cartas de
Carmen para ele, que, por si, contam a história do namoro. Geralmente,
Carmen se refere a eles na
terceira pessoa; às vezes, de tão confessional, esquece-se desse
tratamento e volta à primeira
pessoa. Foi assim desde a primeira carta:

399

Saint Louis, 18 de novembro de 1945.

[...] Querido, fazem já uns bons sete anos que não pego numa pena para
escrever uma cartinha de
amor. Talvez porque tenha andado muito ocupada com minha vida, ou talvez
o "tal" que
merecesse a carta não tivesse aparecido.

Mas você chegou com essa carinha muito safadinha, me pegou distraída
descansando, precisando
de amor e, já sabe, abusou da situação e instalou-se confortavelmente
dentro delinha e pronto...
Cá está ela bancando a garota de colégio de quinze anos, boba e
enrabichada.

Faço questão, querido, que ele saiba que o mês que ela passou com ele foi
o mais gostoso, o "mais
feliz" durante os seis anos que ela está na América. Como você encheu a
vidinha dela, querido,
completamente. Não faltou nadinha, ficou estourando de cheinha, meu amor.

Tudo é tão gostoso com ele, querido, ela se sente uma completa garota,
louquinha, sabe? Uma
garota muito safadinha que topa todas as loucurinhas que ele quê. "Xi,
que vergonha!", mas é tudo
tão gostoso com ele, tão diferente, queridinho meu.

Ela adora ele, quê ele todinhozinho para ela se diverti, meu amor. E como
ela se divertiria com
ele, querido, nem queira sabe.

Mas também brigaria com ele "pra caralho". Bem, só de vez em quando.

Sabe por quê, querido? Porque ela tem muito "ciuminho" dele! Porque ele é
muito safadinho e ela
"tacaria o braço" nele muitas vezes, quando ele fizesse alguma
sacanagenzinha com ela, sabe?

E ovinhos quentes pela manhã. Três minutos e meio, "picas".

Meu amor, o tempo todo que ela passou com ele continua bem vivinho na
minha mente, não passo
um só dia em que não me lembre, querido, como é gostoso viver com ele.
[...] E os dez dias na
minha casinha, que dias, meu amor, como maridinho e mulherzinha; o nosso
cafezinho de manhã; o
jantarzinho juntinhos e as noitinhas quando ele ficava esperando elazinha
no quartinho de
camisinha preta e levantava as cobertinhas, ela entrava dentro dos
lençoezinhos e ele beijava ela
muito, com muito amor, e às vezes deitava a cabecinha nos peitinhos dela
bem gordinhos, lembra?
Queridinho, que amorzinhos gostosinhos que fazíamos, querido, e que
perfeição (e os até amanhãs
que não terminavam nunca!).

[...] Que coisa doidinha, meu amozinzinzinzim, eu te quero muito muito
muito, sabe?

[...] Que saudades, meu amor, quando será que vamos repetir tudo isso,
querido, outra vez?

Meu maridinhozinho, estou escrevendo pá ele olhando o retratinho dele,
que ela trouxe com ela,
que ela adora, com aquela carinha safadinha que ela acha um amor, e
aquela boquinha que ela
daria neste momento não sei o quê para beijar ela muito muito muito.


400

Querido, poderia seguir escrevendo a ele toda noite, pois adoro conversar
com ele. Mas ela
precisa mirai.

E por falar em "mimizinho", como vai a sua lingüinha que ela adora? E que
é uma coisinha
louquinha? Bem, vou lhe fazer uma "proposta": cem dólares cada mimizinha.
Com uma por noite o
senhor fazia a sua féria e ganhava mais do que o Van Johnson. Que tal?

Tem sentido saudadinhas do corpinho moreninho dela, querido? [..,]

[...] Meu amorzinzinzinho queridinho dela gostosinho, escreve, querido,
escreve muito. Convence
a elinha que ele ainda quer muito bem a ela.

Meu corpinho todo cheirosinho, minha bundinha bem gordinha, meus
peitinhos bem fofinhos para
ele deita a cabecinha dele e minha boquinha toda cheia de beijinhos.

Da sua Rolinha.

Essa cartinha, querido, quem escreveu foi a sua garotinha que você deixou
na América, querido,
em Hollywood, a sua garotinha safadinha.

Qualquer dia o senhor receberá uma da sua mulherzinha, da sua
amantezinha, mas eu tenho as
minhas desconfianças que ele topa mais a garotinha.

A própria Carmen rebateu, no dia 20, com um telegrama:

IMPOSSÍVEL ESQUECER MEU MARIDINHO QUERIDO FAÇO QUALQUER MISÉRIA PARA TER
ELE OUTRA VEZ
JUNTINHO DELA ESCREVE SEMPRE [...] BOQUINHA DELA CHEINHA DE BEIJOS E
SAUDADES PARA MEU
AMOJINJINJIM ROLINA CORONA.

Em Saint Louis, o repórter de uma agência, William Farady, viu à cabeceira
de Carmen no hospital
o retrato do jovem e sorridente aviador. Perguntou quem era - e ela
deixou "escapar" nome,
patente, estado civil, endereço e tudo o mais sobre o rapaz. Até insinuou
que se casaria com ele na
sua próxima ida ao Rio, no "início do ano vindouro" (1946). A notícia
chegou ao Rio e a foto do
Herald Express foi capa da Carioca de 15 de dezembro, mostrando os dois
juntos e a chamada: "A
noiva e o noivo". O texto: "Graças à eficiência da nossa reportagem,
Carioca pode assegurar aos
seus leitores ser verdadeira a novidade do noivado de Carmen Miranda com
o tenente-aviador
Carlos Niemeyer, em serviço na base aérea da Bahia".

O próprio Carlos mandou o recorte para Carmen, com um arrebatado bilhete:

"No Rzo isso fez um furor que você pode imaginar." (Só não esclareceu em
quem se produziu o
furor.)

O clima de amor não se alterou em dezembro. Carrinhos escreveu pelo menos
três cartas - que
estão desaparecidas - e Carmen telefonou várias vezes para a Base Aérea e
despachou no
mínimo mais dois telegramas.
401

Duas alternativas se apresentavam para que se reencontrassem: ou Carrinhos voltaria a
Los Angeles no
começo do ano, ou Carmen iria encontrá-lo na Bahia ou no Rio, na mesma
época.

Em telegrama de 6 de janeiro de 1946, Carmen dá uma indicação:

QUERIDINHO MEU RECEBI SUAS TRÊS CARTAS CONTINUO ADORANDO CADA VEZ MAIS
MEU AMOJINJINJIM A
SAUDADE ESTÁ CADA VEZ MAIOR NO ANDAR QUE ELA VAI ESTOU VENDO QUE SOU
OBRIGADA A IR À BAHIA CASO
ELE NÃO POSSA VIR AQUI FAREMOS ENTÃO O ESCÂNDALO COMPLETO SEGUE CARTA
QUERIDO SAUDADES CA
RINHOS Y BEIJOS ROLINHA SPRING.

A hipótese de casamento foi publicamente cogitada por Carmen - e ainda
bem que não tivesse
passado do terreno das cogitações porque, menos de duas semanas depois,
ela já começava a
desconfiar de que seu romance estava fazendo água. Carlinhos fora ao Rio
duas vezes nesse
ínterim, e tais datas coincidiam com seus silêncios. Era bom não esquecer
que Carmen tinha, no
Rio, dois irmãos que circulavam pela cidade...

Uma carta de Carmen, de 16 de janeiro, trazendo como remetente seu
cunhado Gabriel, já era
muito mais contida:

Hollywood, 16/1/946

Moreno querido,

Recebi tua cartinha datada de 28 [de dezembro de 1945]. Quer dizer,
querido, que a Rolinha está
com a faca e o queijo na mão, não é?

Pois bem, para dizer-te com franqueza, "vontadinha" que ele venha para
juntinho dela não falta,
porém ela tem um medo "louco" não só de cortar os "dedinhos", mas as duas
"mãozinhas"...

Primeiramente eu tenho a impressão que se ele passar mais uns tempos
longe "delazinha"... ele
varrerá ela completamente da cabecinha dele. Tenho quase certeza disso.

Como te disse em minha última carta, tenho conversado muitíssimo com
Gabriel a teu respeito e
pensado qual o melhor jeito que poderíamos arranjar para que viesses dar
com os "costados"
aqui...

Ele e Aurora, naturalmente, como me querem muito bem, lógico que começam
a descubrir uma
série de defeitos.

Primeiramente acham que seria muito difícil que tu te habituasses à minha
vida e ao meu "gênio"!...

Dizem sempre que não tiveste tempo suficiente de conhecer-me bem. E uma
porção de
pequeninas "coisas"...

Enfim, querido, no final de tudo, é uma luta tremenda... entre a "Carmen"
e a "Rolinha".

Outra coisa, querido!


402

Por que será que ele só sente saudadinhas dela quando está na Bahia?
Quando ele vai ao Rio,
nem se lembra que ela "vive"... Recebi carta de casa dizendo que haviam
visto você em diversos
lugares que não me interessa mencionar na carta... e que você "estava bem
acompanhado". Estava
"felicíssimo"...

Como vês, querido, talvez fosse melhor que você pedisse transferência
para o Rio, em lugar de vir
para aqui, não achas?

Afinal de contas, você no Rio deve ter uma vida de "príncipe"... e
principalmente depois de sair a
notícia nossa nos jornais, o mulherio deve andar um bocado assanhado!...

Sei que deves andar muito ocupado porque só recebi uma carta tua do Rio
(da primeira vez que
estivestes lá, não da segunda) e sei que estivestes lá "uns bons dias".
Porém o tempo havia de ser
pouco para acertar tuas "escritas" e cair na tua "gandaiazinha"...

Enfim, moreno, goza a tua vida...

Resolvi partir para N. York somente dia l2 de fevereiro. Começarei no
Roxy somente dia 6 de
fevereiro. Vai ser um batente tremendo, cinco shows por dia, e sete
sábado e domingo, devo ficar
lá todo mês de fev.

Se é que você já chegou à Bahia...!! e se a "saudade apertar"... escreve
se quiseres para o "Roxy
Teatro"... ou para casa de Esperança, que as cartas me serão entregues
como foram em S. Luiz.

Perdoa se esta cartinha hoje vai um pouco sem "bossa", mas é como ela se
sente hoje a respeito dele...

Aliás! Como ele mesmo sabe, ela nunca teve muita confiança nele...

Pois [se] ele aqui com ela, fez-lhe "duas"... e muito boas, agora imagina
depois de estar há tanto
tempo separado dela...

Enfim, querido, há males que vêm para bem.

Com tudo isso, é uma pena, querido, que ele faça ela sentir-se assim!...

Estou muito triste com ele hoje, e não tenho nem coragem de dizer a ele
coisas gostosas que ela
sempre disse... [...]

No lugar da garotinha, emergia a mulher madura e calejada, capaz de
sobreviver no meio artístico
mais difícil do mundo, mas, emocionalmente, tão inábil e imatura quanto
as estreletes que
tomavam Hollywood de assalto. Nesse sentido, os 36 anos de Carmen podiam
ser contados pela
metade. Quanto a Carlinhos, os sentimentos de Carmen sobre ele,
traduzidos na avalanche de
diminutivos nas primeiras cartas, ameaçavam sufocá-lo. Não podia absorver
o que ela se
propunha a lhe dar - e muito menos devolver-lhe em igual medida.

Segue-se um lapso na correspondência, equivalente, talvez, a Carmen
tentando se afastar de
Carlinhos e coincidindo com sua temporada no Roxy


403

em Nova York. Mas, pela maneira que ela escolheu para quebrar o silêncio,
pode-se imaginar seu
desconsolo no apartamento do Hotel Marguery, na Park Avenue com Rua 47,
onde ficou
hospedada.

Foi num envelope com o timbre desse hotel que, no dia 12 de maio, ela
enfiou um cartão-postal do
Roxy em cujo verso transcrevera, a lápis, a letra de "Na batucada da
vida", de Ary Barroso e Luiz
Peixoto - a seco, sem um "prezado" ou "querido Carlos". Acrescentou
apenas uma frase no fim.
Com uma lambida fechou o envelope, colou-lhe um selo de vinte centavos, e
o despachou para
Carlinhos em Salvador:

Na batucada da vida...

No dia em que apareci no mundo/ Juntou uma porção de vagabundo/ Da orgia/
De noite teve
choro e batucada/ Que acabou de madrugada/ Em grossa pancadaria/ Depois
do meu batismo de
fumaça/ Mamei um litro e meio de cachaça/ Bem puxada/ E fui adormecer
como um despacho/
Sentadinha no capacho/ Na porta dos enjeitados./ Cresci olhando a vida
sem malícia/ Foi quando
um cabo de polícia/ Despertou meu coração/ Mas como eu fui pra ele muito
boa/ Me soltou na rua
à toa/ A passar de mão em mão/ Agora que eu sou mesmo da virada/ E que
topo qualquer parada/
Por um prato de comida/ Irei cada vez mais me esmolambando/ Seguirei
sempre cantando/ Na
batucada da vida.

Quê que há, meu branco!!! Salve ele!

A frase final contrastava com o exercício de autocomiseração, que era a
transcrição da letra. Mas
era a maneira ambígua de Carmen demonstrar seus sentimentos: primeiro,
fazia Carlinhos ver
como ela se sentia; depois, ao dirigir-se a ele, tentava dar a entender
que estava no domínio de
seus sentimentos.

O próprio Carlinhos tinha os seus problemas. Meses antes, quando a novela
ainda se desenrolava,
uma menina no Rio caíra das nuvens: Vera - que ele deixara para trás ao
partir para o Texas e
com quem vinha falando em casamento. Ou seja, Carlinhos tinha um
compromisso no Brasil -
apenas se esquecera de comunicá-lo a Carmen. Vera também lera na Carioca
que seu noivo (ou
quase isso) estava noivo de Carmen Miranda e, numa das idas de Carlinhos
ao Rio, abotoou-o na
parede para pedir explicações. Ele se explicou e o noivado ganhou alguma
sobrevida, embora,
ao mencioná-lo em carta para Carmen, Carlinhos pareça tê-lo apresentado
como algo que
acabara de acontecer.

Em carta de 19 de maio, uma semana depois do cartão com "Na batucada da
vida", o tom de
Carmen ao escrever revela o que de fato se passava com ela: o "maridinho"
tornava-se, em
definitivo, "Carlos", e sua mágoa, tão bem camuflada nas primeiras
linhas, acabava pondo a
cabeça de fora.


404

Hollywood, 19/5/946

Alô, Carlos.

Depois de uma ótima temporada em N. York de dois meses e meio, aqui estou
novamente de volta
a esta maravilhosa Califórnia. Tenho tanta coisa para contar-te, o motivo
por que deixei de
escrever-te é "seríssimo", prefiro nem comentar por carta, algum dia se
tiver a sorte de encontrar-
te pessoalmente "abrirei o bico"...

Espero que estejas bem "happy" com teu novo "amor"...

Pense de vez em quando na "Rolinha" que você conheceu em Hollywood, não
na que comentam
no Brasil, porque essa só existe na publicidade.

Porque ela de vez em quando se recorda dele com um carinho muito muito
grande [palavra
ilegível], que proporcionou a ela momentos tão tãc "deliciosos"...

Por favor, destrói as cartinhas dela, e não vá vestir minha "camisinha"
pretinha em nenhuma
pequena, porque só o corpinho moreninho dela é que fica bem naquela
"camisinha".

Neste domingo toquei todos os "nossos discos"... mesmo sabendo que ele
não se lembra mais
dela... Ela sentiu uma saudade tremenda dele, aposto que ele já está
cansado de tocar os discos,
ou então "faz amor"... com alguma mulher ouvindo as mesmas músicas. A
minha vingança é que
deve ser tão tão "diferente"...

E, para finalizar, peço-te um grande favor. Se algum dia encontrares
aquele cretinaço que levou
mamãe para o Rio, lembras-te?, um tal Bob, não lhe perguntes nada nada,
parte-lhe a cara bem
partida, se não eu pagarei a alguém muito bem para que o façam... [Carmen
não explica o que o
tal Bob fez contra sua mãe.]

Agora somente resolvi dizer-te tudo isso porque queria mais ou menos que
tivesses [duas linhas
ilegíveis - a carta está se desfazendo nesse ponto] e bem forte, para não
mais mandar-me nem um
cartãozinho dizendo alô!... Em todo caso, algum dia nos veremos. Deus
queira que antes de
"casar-me" (se me casar...).

Saudades - Rolinha.

Carlinhos não se casaria com Vera, mas com Luizinha, algum tempo depois.
E nunca se abriria em
detalhes sobre o que acontecera entre ele e Carmen, nem para os amigos
mais chegados. Dois
desses, Hélio Cox, seu colega de aviação, e George Grande, pescador de
Ipanema, o
imprensavam até de madrugada no bar Progresso, um botequim da rua Joana
Angélica com
Visconde de Pirajá, para que ele contasse. O sol raiava e eles pulavam
uma cerca para roubar pão
e leite de uma padaria ao lado, e prosseguiam com o interrogatório. Mas
Carlinhos continuava
mudo. Poucos anos depois, numa momentânea

405

dificuldade financeira, ele escreveu a Carmen, recorrendo à sua ajuda, e
ela o atendeu. E, por
muito tempo, os amigos o chamaram de "Carmen Miranda". É possível que, de
sua parte,
Carlinhos não quisesse repartir (e, com isso, dissipar) a Carmen que
passara por sua vida.

E é certo que, da parte de Carmen, a frustração pelo fim desse romance
teria mais conseqüências
do que ela própria poderia imaginar. Todos os homens por quem se
interessara nos últimos anos
tinham algum compromisso: ou eram casados, ou estavam se separando de uma
mulher para se
casar com outra, ou eram solteiros, mas já com alguém em vista. (Fosse no
Rio, um alarme soaria e
ela não permitiria que nenhum deles lhe chegasse perto. Em Hollywood,
esse alarme às vezes
demorava para tocar.) O destino parecia erguer uma barreira entre ela e
seu sonho: o de ter um
marido e um filho.

Poucos meses antes, Carmen fizera aniversário - 32 anos, para as luzes de
Hollywood; 37, para
os cantos escuros de seu coração.



Capítulo 23


1946

Dinheiro a rodo



Nos Estados Unidos, perto do fim da guerra, ia-se longe com 201458
dólares por ano. Com esse
dinheiro compravam-se 58 boas casas ou 206 carros zero. Significava 87
vezes o rendimento
médio do cidadão americano, que <
2378 dólares por ano, e esse cidadão não estava se queixando - porque um
litro de leite custava
quinze centavos de dólar e um litro de gasolina, cinco centavos. Com
trinta centavos, assistia-se a
um filme, às vezes dois; outros dez centavos compravam um cachorro-quente
e uma Coca-Cola,
com mostarda e ketchup grátis. O ingresso mais caro para Carousel, a nova
paixão da Broadway,
saía por seis dólares. Por cinco dólares jantava-se lagosta com champanhe
Mum no Morocco. Por
menos de três, tomava-se um uísque e se ouvia Mabel Mercer no Tony"s, na
Rua 52 Oeste.

Em junho de 1946, o Tesouro americano divulgou suas arrecadações do ano
fiscal de 1945,
referentes aos ganhos dos contribuintes em 1944. Com os
201458 dólares que lhe tinham sido pagos pela Fox "em salários, bônus e
outras compensações",
Carmen Miranda fora a mulher que mais ganhara dinheiro nos Estados Unidos
- talvez no mundo
- aquele ano. Na média, eram perto de 4200 dólares por semana.

Apenas 36 pessoas nos Estados Unidos (e nenhuma outra mulher) tinham
faturado mais do que
Carmen em 1944. Isso considerando-se toda espécie de atividade: petróleo,
armas, automóveis,
bancos, seguros, show business, e o fato de que havia uma guerra mundial
em curso, com enormes
recursos sendo movimentados. Não por coincidência, o caixa-alta absoluto
e número um da lista
era também um homem de cinema: o diretor Leo McCarey, com 1113 035
dólares, pagos em
salários pela Paramount e pela participação na bilheteria de seus filmes
O bom pastor (Going my
way) e Os sinos de Santa Maria (The bells of Saint Mary"s), ambos com
Bing Crosby. Para se ter
uma idéia da força do cinema, o presidente da General Motors, Charles F.
Wilson, pegou apenas
um quinto lugar entre os dez mais, com 362954 dólares - imediatamente
atrás de outro astro: Fred
McMurray, este o ator mais rico de 1944, com 391217 dólares. Darryl F.
Zanuck, patrão de
Carmen na Fox, era o décimo da lista, com 260 217 dólares. O 372 lugar de
Carmen a deixava à
frente do próprio Bing Crosby (192944 dólares), Paulette Goddard (187333
dólares), Bob Hope
(185416 dólares),
407

Cary Grant (172916 dólares), Humphrey Bogart (132916 dólares) e
Joan Crawford (100 mil
dólares).

Mas não se pense que, por causa desses números, Carmen nadasse em
dinheiro. Dos 201 mil
dólares e quebrados que ela declarara em 1944, o imposto de renda
americano ficara com 136680
dólares. (E o mais de 1 milhão de Leo McCarey tinham sido reduzidos a 200
mil.) Em 1946,
Carmen já estava cansada de saber disso. No ano anterior, dissera a seu
contador que precisava
de certa quantia para mandar dona Maria ao Brasil. O contador lhe
informara:

"Não há dinheiro, Carmen. Os impostos levaram quase tudo. O resto você já
gastou." (Mas, como
se sabe, dona Maria foi assim mesmo.)

O resto a que ele se referia eram os 64 mil dólares que o fisco lhe
poupara. Carmen aplicara-os em
seus alfinetes, e o que sobrara, em imóveis no Rio: um pequeno prédio de
apartamentos na rua
Corrêa Dutra, no Catete, um terreno em Jacarepaguá e dez salas comerciais
no 142 andar do
Edifício Belga, na nova avenida Presidente Vargas, números 417-417-A,
sendo cinco das salas de
frente para a avenida. Bom dinheiro foi economizado quando ela perdeu um
cavalo num leilão em
Hollywood para um marajá indiano - leilão este de que participara por
influência de Betty
Grable, viciada em eqüinos. Mas que ninguém se compadecesse de Carmen. Os
201458 dólares
de 1944 eram apenas o seu rendimento declarado - e, pelo visto, ela só
declarara os rendimentos
da Fox. Que fim levaram os que lhe tinham sido pagos pelo Roxy e os de
suas participações no
programa de Charlie McCarthy, além de ganhos eventuais, como um show de
uma noite no Ciro"s,
as aparições pessoais, as campanhas de publicidade e outras formas de
rendimentos?

Como todo mundo no show business, Carmen sempre ganhou mais do que
admitia para o IR.
Quando os nightclubs lhe ofereciam um cachê de 6 ou 7 mil dólares por
semana, isso não incluía
"presentes" por fora, como uma jóia ou uma quantia em espécie. Uma
participação em programa
de rádio, com duas canções e uma cena dialogada, costumava render-lhe
2500 dólares. Mas,
quando Carmen fez o programa de Frank Sinatra na CBS em 1946, o cachê foi
um carro Mercury
saído da fábrica e uma geladeira último tipo - artigos fora da tributação
ou legalmente
declaráveis por valores inferiores aos reais. (O Mercury ela mandou para
seu irmão Tatá, e a
geladeira não coube na sua cozinha.)

No dia 1 de janeiro de 1946, Carmen trocou a segurança de seu contrato
com a Fox (que lhe
garantia 52 semanas de salário por ano, trabalhasse ou não) pela vida de
freelance. Numa
entrevista por telefone ao amigo César Ladeira para a revista Diretrizes,
Carmen explicou por
que rompera com a Fox: porque as histórias que estava filmando não lhe
agradavam (e tendiam a
piorar); não podia decidir sobre as músicas e roupas que lhe cabiam nos
filmes (permitiamlhe, no
máximo, palpitar); e o contrato a ocupava quase o ano inteiro,
impossibilitando-a de aceitar
propostas de estúdios mexicanos e argentinos para filmes falados em
espanhol, com cachês entre
50 mil e 75 mil dólares.


408

A Fox a impedia até de gravar discos. Em 1942, pouco depois de Carmen
assinar com o estúdio,
Zanuck comprara seu contrato na Decca com o fito de encerrar sua carreira
de cantora comercial.
Zanuck acreditava nas queixas dos exibidores, segundo os quais ninguém
pagava para assistir a
filmes de um artista cujos discos se podiam ouvir a toda hora e de graça
no rádio. Foi por isso que
Alice Faye nunca fez uma gravação comercial de "You"ll never know", de
Harry Warren e Mack
Gordon, Oscar de melhor canção de 1943 e lançada por ela em Aquilo, sim,
era vida - nem de
"This year"s kisses", "A journey to a star" e "No love, no nothing",
também suas criações. Zanuck
não deixava. (As gravações existentes desses clássicos por Alice são as
dos playbacks dos
filmes.) Era uma maldade, mas Zanuck fez o mesmo com Carmen, com Betty
Grable e, nos anos
50, voltaria a fazê-lo com Marilyn Monroe - nenhuma de suas estrelas
podia ter uma carreira
discográfica. (Mas bastavam duas palavras para derrubar a tese dos
exibidores: Bing Crosby. Era
o maior vendedor de discos no mundo e todos os seus filmes na Paramount
levavam multidões à
bilheteria.)

A Fox não queria perder Carmen, tanto que lhe propôs renovar com a
promessa de três filmes por
ano, dois em preto-e-branco e um em Technicolor. Mas isso iria ocupá-la
ainda mais. Carmen foi
inflexível e Zanuck se conformou. No clima de liberdade que marcou o
imediato pós-guerra, os
grandes nomes estavam se livrando do jugo de seus estúdios de origem. Já
não se pensava
automaticamente na Warner quando se falava em Humphrey Bogart; ou na
Paramount, quando o
filme era com Gary Cooper; ou na MGM, quando o assunto era Joan Crawford;
e, a partir de
agora, na Fox, quando se tratasse de Carmen Miranda. (Zanuck sabia que,
se conseguisse reter
Betty Grable, estaria com sorte.)

Era o fim dos contratos de cinco ou sete anos, que podiam ser renovados
para sempre desde que o
estúdio exercesse a "opção". As estrelas estavam se tornando
independentes, assinando por um
filme de cada vez em troca de participação na bilheteria, ou fazendo um
pacote de dois ou três
filmes com o estúdio tal por uma grande quantia x em dinheiro. Quem as
orientava nesse sentido
eram as agências que as representavam, como a gigante William Morris (que
cuidava de Carmen)
ou a ainda emergente MCA. Mas, para o ator ou atriz independente se dar
bem, precisava também
de um manager particular, com boas idéias e gana para brigar por seus
direitos. O de Carmen era
o velho George Frank, que gostava dela e trabalhava bem.

Se eu fosse feliz, o último filme de Carmen para a Fox, já foi feito no
novo regime de freelance -
depois desse, ela estaria livre para se aventurar por qualquer estúdio.
Assim como no filme
anterior, Carmen ocupava de novo um vexaminoso quarto lugar no elenco,
atrás de Vivian Blaine,
Perry Como e do trompetista Harry James. Mas, talvez com remorso pelas
indignidades a que a
submetera em Sonhos de estrela, o produtor Bryan Foy cuidou para que,
dessa vez, sua
personagem - a de uma harpista brasileira chamada Michelle OToole,


409

mais um cruzamento entre uma brasileira sem eira e um irlandês
irresponsável - tivesse muitas
falas, inclusive em português. E reservou-lhe pelo menos um bom número
musical, além de
participação em vários outros.

As canções do filme foram entregues a Josef Myrow e Eddie DeLange. Myrow
acabara de fazer
(com Mack Gordon) sua maior canção, "You make me feel só young", para
outro filme da Fox
naquele ano, Procuram-se maridos (Three HHle girls in blue), um musical
que era para ter sido de
Carmen (com música de Ary Barroso) e não foi. E o competente DeLange fora
parceiro de Jimmy
Van Heusen em "Shake down the stars" e "Darn that dream", e de Duke
Ellington em "Solitude".
Não era possível que, juntos, não fizessem coisa boa - e fizeram: a
canção-título "If Fm lucky",
que os soporíferos Perry Como e Vivian Blaine puseram para dormir no
filme, um de cada vez. Se
eu fosse feliz só acordava musicalmente com um número rítmico, "Batucada"
- como sempre, um
blend, agora entre uma batucada brasileira e outros ritmos latinos, mas
permitindo um vibrante
dueto entre Carmen, voz, e Harry James, trompete. E que prazer rever
Zezinho e Nestor numa
tomada, e os irmãos Ozorio em outra, sempre ao lado de Carmen.

Um nome depois lendário das artes plásticas americanas sairia desse
filme: Sascha Brastoff,
responsável pelas roupas de Carmen nos números musicais, entre as quais o
conjunto de turbante,
top e saia que ela usava em "Batucada" - todo de plástico (ou, como então
se dizia, matéria
plástica). Se isso pode ser considerado uma glória, foi a primeira vez
que se usou no cinema uma
roupa feita com tal material. O plástico ainda era tão duro e brutal que
teve de ser picado para se
tornar maleável e obedecer a um desenho. E, a partir dali, as fantasias
de Carmen teriam de ser
desenhadas de modo a disfarçar a cicatriz de cerca de quinze centímetros
nas proximidades da
última costela à direita, deixada pela cirurgia na vesícula em novembro.
As opções eram
camuflála com uma malha cor-de-carne entre o bustiê e a saia, ou com o
pano-da-costa jogado
"casualmente" sobre a marca. Ou com o próprio bustiê que, de um dos
lados, se prolongava sobre
as costelas.

Brastoff não era bem um figurinista, mas um artista com muitas vocações.
Carmen o conhecera
numa base militar em Nova York, em 1942, quando ele, aos 24 anos - ex-
bailarino, ex-vitrinista
da Macy"s, promissor ceramista e severo sargento da Aeronáutica -,
divertia seus colegas de
tropa com um número de travesti em que interpretava a "Gl [pracinha]
Carmen Miranda". Carmen
o adorou e quase o adotou. Quando Brastoff voltou à vida civil, ela o fez
mudar-se para
Hollywood, onde, na Fox, Zanuck o escalou para repetir seu travesti de
Carmen no filme
Encontro nos céus (Winged victory), de George Cukor. Em 1945, Zanuck
pediu-lhe os figurinos
de Mulheres e diamantes e gostou tanto que o contratou por sete anos. Mas
o único trabalho de
Brastoff sob esse contrato seriam as roupas de Carmen em Se eu fosse
feliz. Logo depois,
convenceu Zanuck a liberá-lo e abriu um estúdio e uma fábrica de objetos
de decoração


410

em Los Angeles, de onde começaram a sair esculturas e acessórios em todo
tipo de material,
forma e função. Tornou-se uma figura cult do design popular
internacional, e suas criações
podiam ser encontradas tanto nas galerias de arte e nos museus como nas
mais prosaicas copas e
cozinhas dos Estados Unidos. (Quando morreu, em 1993, Sascha ainda era
associado a Carmen.)

Com o fim da guerra e do ciclo de Carmen na Fox, os pósteros consideraram
oficialmente
encerrada a Política da Boa Vizinhança e a adulação dos Estados Unidos
aos países latino-
americanos. O marco seria a canção "South America, take it away", música
e letra de Harold
Rome, para a revista musical Call me mister, e cantada e dançada por
Betty Garrett. A letra
exortava a América do Sul a levar de volta os sambas, rumbas e congas que
tinham descadeirado
os americanos durante a guerra.

Take back your samba

Ay, your rumba

Ay, your conga

Ay, yayay, yay!

I canl keep shaking, ay

My rumble, ay

Any longer

Ay, yayay, yay

[...}

Thafs enough, thafs enough, take it back!

My spine"s out ofwhack!

Theres a bigcrack in the back

Ofmy sacro-iliac!

Take back your conga

Your samba, ay, yay, yay

My hips are creaking, ay

And shrieking, ay

Caramba, ay, yay, yay!

l"vê got a wriggle and a diddle and a jiggle

Like afiddle in my carcass

Holay!

South America, take it away!

O recado era grosseiro e inequívoco, mas certas coisas a América do Sul
não podia levar de
volta, porque não lhe pertenciam - a rumba e a conga, por exemplo, que
eram originárias de
Cuba. Além disso, era menos verdade que os americanos quisessem devolver
tudo. Um dos
sucessos de 1946 foi a canção "The coffee song (They"ve got an awful lot
of coffee in Brazil)", de
Bob Hilliard e Dick Miles, lançado na Copacabana revue, no nightclub de
Monte Proser,
411

e depois popularizada por Frank Sinatra. Também naquele ano, uma lasciva
canção de Arthur
Schwartz e Leo Robin, "A rainy night in Rio", emergiu de um filminho da
Warner intitulado Um
sonho e uma canção (The time, the place and the girl) para uma bonita
carreira-solo. Ainda em
1946, um antigo choro brasileiro, "Tico-tico no fubá", de Zequinha de
Abreu, já apresentado (com
letra de Aloysio de Oliveira) nos filmes Alô, amigos! e Escola de
sereias, entraria de vez para o
repertório americano ao ser cantado por Carmen a duzentos por hora no
filme Copacabana, que
ela rodaria no segundo semestre - e "Tico-tico", sim, era tão de
descadeirar que seria gravado
até por Charlie Parker. E 1946 seria também o ano em que um novo ritmo
cubano, já tendo
dominado Havana e se imiscuído pelos barrios de Nova York, começou a
aparecer na pista de
dança do Morocco e a tomar o poder no mercado americano: o mambo.

Para responder à provocação de "South America, take it away", Carmen
incluiu em seus shows
uma demonstração ensinando a dançar o samba à brasileira, não à americana
- provando que,
por dançá-lo errado, é que os americanos tinham dores no sacroilíaco.
Mas, quando o mambo
passou a dar as cartas, não houve mais espaço nos Estados Unidos nem para
a rumba, nem para a
conga, quanto mais para o samba. Xavier Cugat e Desi Arnaz, que nunca
tinham precisado da
"boa vizinhança" para se impor com a rumba, fizeram apenas uma adaptação
e continuaram no
poder com o mambo. A única diferença é que, agora, teriam que dividir o
trono com outro cubano:
Perez Prado, um dos inventores do novo ritmo.

"Eu sou é do Rio, e lá estarei na primeira oportunidade, assim que me
livrar das obrigações", disse
Carmen para O Globo de 23 de fevereiro de 1946. E completou: "Minha
saudade é maior que o
Pão de Açúcar".

Carmen estava fora do Brasil havia quase seis anos. Nesse interregno, o
país em que ela morava,
os Estados Unidos, se envolvera numa guerra mundial, mandara 15 milhões
de soldados para lutar
em três continentes e as viagens a passeio para o exterior tinham ficado
difíceis. É verdade que,
nesse período, ela mandara sua mãe duas vezes em férias para o Brasil, em
1941 e 1945 - mas
dona Maria não estava sob contrato com a 20th Century-Fox e podia passar
o tempo que quisesse
fora de Hollywood. Mesmo assim, Carmen já planejara pelo menos duas
viagens ao Rio que
tinham sido abortadas por compromissos profissionais ou problemas de
saúde. A partir de agora,
sem contratos que a mantivessem em cadeias, ela esperava organizar-se e
ir com freqüência ao
Brasil. E, para adiantar o expediente, já pedira ao povo, por intermédio
de César Ladeira em
Diretrizes, que fosse "indulgente com ela quando aparecia em filmes que
[também] não lhe
agradavam".

O povo podia ser indulgente, mas, com os críticos, não havia cessar-fogo.
Somente naquele
momento, junho de 1946, o Rio estava assistindo a Alegria,


412

rapazes, e as metralhadoras não paravam de cuspir. Pedro Lima, em O Jornal,
comparou os olhos de
Carmen aos olhos de banjo de Eddie Cantor. O muito jovem António Moniz
Vianna, no Correio
da Manhã, comparou sua boca à de Joe E. Brown, o Boca-Larga. Ambas as
comparações eram
altamente ofensivas. Moniz ainda acrescentou, com a crueldade de seus 22
anos: "Carmen
Miranda exibe as mesmas caretas, a mesma falta de graça, a mesma
inabilidade artística de seus
primeiros filmes. Com ligeiras diferenças: está mais velha e mais feia,
enrugada e se vestindo com
o mau gosto que já se lhe tornou peculiar. Muito nos surpreende o fato de
ainda haver quem a
aprecie". Fred Lee, no Globo, também não estava entre estes: "De filme
para filme, Carmen
Miranda fica pior". Nem Hugo Barcellos, no Diário de Notícias: "Gorda,
flácida, cansada". Nem
Jonald, em A Noite: "Lastimável". Todos esses críticos tinham uma coisa
em comum: não viam
defeitos nos atores americanos que contracenavam com Carmen.

Enquanto os críticos brasileiros despejavam sua aversão a Carmen, os
argentinos roíam os
cotovelos de inveja por, desde a morte de Carlos Gardel, não terem uma
artista como ela no
exterior. Um deles, na revista Cantando, de Buenos Aires, amargou o
"crescimento acelerado do
renome brasileiro graças a Carmen Miranda". E, referindo-se à permanente
propaganda que
Carmen fazia do Brasil, queixou-se de que os artistas argentinos "nunca
pensaram em fazer nada
igual ao conseguido pela inquietante cantora brasileira".

Cinco vezes por dia (sete nos fins de semana), no palco do Roxy, em Nova
York, Carmen tinha
uma amostra da reação que provocava nas pessoas, ao receber declarações
de amor, aos gritos,
em português, espanhol e mesmo em inglês, vindas das primeiras filas ou
dos camarotes mais
próximos. Mas talvez ela trocasse todas essas declarações por uma simples
palavra amiga.
Carmen ficou no Roxy do começo de fevereiro a meados de abril de 1946, e
só depois de
encerrada a temporada descobriu que, na mesma época, seu ex-namorado
Mário Cunha passara
um bom tempo em Nova York, hospedado num hotel quase junto ao teatro. E
que tinha sido de
propósito que decidira não ir ao show.

Carmen explodiu para Aurora:

"Aquele cachorro! Esteve em Nova York e não foi me ver nem uma vez!"

Anos depois, ao se reencontrarem, Mário Cunha diria a Carmen que não a
procurara porque não
quisera incomodá-la, ou algo tão esfarrapado quanto. Mas a verdade é que,
se revelasse a
Carmen sua presença em Manhattan, temia que ela o monopolizasse,
impedindo-o de partir para
as grandes conquistas que ele inevitavelmente faria na cidade. Assim,
sempre que precisava
passar pela porta do Roxy, abaixava o chapéu sobre o rosto, levantava a
gola do sobretudo e se
esgueirava, aderente às paredes, para a eventualidade de Carmen ter dado
um pulinho à calçada
para espairecer entre um show e outro - como se ela pudesse fazer isso.
E, se arranjou alguma
coisa em Nova York, só ele podia dizer. No Rio, depois que se separara de
Carmen, Mário Cunha
continuara um

413

solteiro cotado, mas meio sobre o óbvio em matéria de mulheres: namorara
Elvira Pagã, a vedete
Luz Del Fuego, a dançarina Eros Volusia. Por acaso, a namoradinha que
deixara para trás na
época da ida a Nova York era bem mais refrescante: a atriz Fada Santoro,
de vinte anos.

Durante a temporada no Roxy, Carmen convidou Aurora a se apresentarem
juntas, "de farra", por
alguns dias. Aurora relutou, mas Carmen insistiu: "Vem, Aurora!". A
direção do cinema também
gostou da idéia. Aurora acabou aceitando e Carmen construiu o show à base
das diferenças entre
elas:

"Ela é morena, eu sou mais clara", Carmen anunciava para a platéia. "Ela
é casada, eu sou
solteira." E, depois de uma pausa, com as sobrancelhas arqueadas: "Ela é
muito jovem para ser
Carmen Miranda!"

Aurora entrava e cantava o bolero "You belong to my heart" ("Solamente
una vez"), que Bing
Crosby acabara de gravar, e "Os quindins de iaiá", dois sucessos de Você
já foi à Bahia?. Carmen
voltava, era ululantemente recebida, e as duas cantavam, juntas, "Cidade
maravilhosa". Exceto
pela marchinha, aquele dueto remetia a Alô, alô, Carnaval!, na Cinédia,
nove anos antes, ou às
muitas temporadas de "Lãs hermanas Miranda" em Buenos Aires. Só que,
agora, elas estavam no
palco do Roxy - o teto do mundo no gênero. O que mais se podia querer?

Sem dúvida, Aurora era mais jovem do que Carmen. Mas, em termos
absolutos, já não era tão
jovem assim. Estava com 31 anos, e o imenso sucesso de Você já foi à
Bahia? não se convertera
num impulso igual para sua carreira. Ao contrário, depois de lançado o
filme, os convites foram
poucos e não muito diferentes dos que ela costumava ter. Voltara a viajar
com o Earl CarrolVs
Vanities, dessa vez pelo México, mas agora o grande nome nos cartazes e
luminosos era o de "Joe
Carioca" - como Zezinho passara a se apresentar, assumindo a voz e a
persona do papagaio.
Aurora era apenas a segunda atração, tendo como coadjuvantes Aloysio de
Oliveira (sem Disney,
de volta ao convívio dos amigos) e Affonso Ozorio. Para variar, Earl
Carroll teve um problema
com o sindicato dos artistas mexicanos e a companhia só conseguiu sair do
país com a ajuda do
comediante Cantinflas. Aurora fizera também uma ponta em Conta tudo às
estrelas (Tell it to a
star), um musical menoríssimo da Republic (67 minutos), de Frank
McDonald, com Robert
Livingstone e Ruth Terry. Enfim, nada que valesse sair correndo para
contar à mãe. E, depois
disso, o telefone silenciara.

Aurora fora com Carmen para Nova York, onde se dedicava a costurar para a
irmã, responder às
cartas dos fãs (enviadas aos cuidados do cinema) e autografar fotos de
Carmen, imitando sua
assinatura. Nos intervalos, freqüentava leilões e galerias de arte -
gostava de quadros, de design
e de objetos antigos, e queria se aprimorar. Foi quando Carmen lhe fez o
convite para o Roxy.
Acabou topando, mas seus planos para os próximos tempos já tinham se
definido. Agora que
Gabriel estava bem situado profissionalmente, com um escritório de
exportação de autopeças no
Sunset Boulevard, ela já não precisava trabalhar.


414

E poderia começar a se preparar para ser mãe. O palco, as
luzes e os aplausos, com a
excitação e a eletricidade que eles provocavam, podiam ficar para depois
- ou para nunca mais.
Aurora já não fazia questão.

Em junho de 1946, as Miranda ganharam a companhia de duas pessoas
queridas que chegavam a
Hollywood para ficar: sua irmã Cecília e a filha desta, Carminha, de dez
anos. Quando Cecília
enviuvara, em 1939, Carmen lhe escrevera garantindo que nada lhe faltaria
e que ela, Carmen, se
responsabilizaria pela educação da menina. Cecília se mudara com Carminha
para a Urca e
assistira à partida de dona Maria em 1940 e, depois, à de Aurora, já
casada, em
1941, ambas para viver com Carmen. Como prometera, Carmen nunca faltou
com a contribuição
mensal ao seu sustento, mas, assim que se radicou em Hollywood, passou a
chamá-las para ir
também. Para Carmen, não fazia sentido que Cecília continuasse no Rio,
com a mãe e as irmãs
fora. Mas Cecília preferira esperar. Agora que Carminha terminara o
primeiro grau, e com a
insistência de dona Maria, decidira embarcar.

Em Los Angeles, Carminha foi matriculada no colégio e passou a ter também
aulas de piano. Com
tantas mulheres de repente sob o mesmo teto, um problema crónico da casa
de Carmen ficava
resolvido: a falta de uma boa empregada ao estilo brasileiro. Todas,
menos Carmen, dividiam o
serviço e, às vezes, um homem das vizinhanças era pago para aparar a
grama e lavar a piscina.
Carmen ainda não usava motorista - mordomo, nem pensar. E não era por
pão-durismo ou falta
de dinheiro. Ela apenas não tinha as atitudes de uma estrela.

Um diplomata presenteou Carmen com um cachorro cocker, de cor creme, a
que ela deu o nome
de Samba. Carmen achou que ele faria companhia a Carminha e à gata da
casa. Mas os dois
bichos não se entenderam. Na primeira noite, ao ser deixado para dormir
fora, junto à piscina,
Samba latiu e rosnou violentamente durante horas. Depois, acalmou-se. No
dia seguinte,
encontraram as almofadas das espreguiçadeiras destruídas a dentadas e
todo o recheio de
algodão boiando na piscina. Foi a maneira que Samba encontrara para se
acalmar. Carmen
chamou Zezinho e ele levou o cachorro para sambar em outra freguesia.

Em julho, um brasileiro ilustre chegou a Los Angeles: o poeta e diplomata
Vinícius de Moraes, 34
anos, para trabalhar no consulado brasileiro sob as ordens do novo
cônsul, Afonso Portugal.
Assim como Raul Bopp já era "o poeta de Cobra Norato" ao servir em Los
Angeles, Vinícius
também chegara à cidade montado no prestígio de Cinco elegias e do
recentíssimo Poemas,
sonetos e baladas. Era o seu primeiro posto no exterior, e já tipicamente
enrolado. Meses antes,
ele desembarcara em Nova York com a mulher com quem se "casara" no Rio, a
arquivista do
Itamaraty Regina Pederneiras. Mas a relação desandara. Vinícius deixara
Regina para trás em
Nova York e agora insistia para que sua

415

verdadeira mulher (de quem nunca se separara formalmente), Tati, que
ficara no Rio, fosse juntar-
se a ele em Los Angeles, levando seus filhos Susana e Pedro. Tati
concordou, mas só planejava
viajar em fevereiro de 1947. Até lá, a "família" de Vinícius em Los
Angeles seria, de certa forma, a
casa de Carmen.

Vinícius e Carmen se gostaram de saída. Ela o chamava de "Vesúvio",
apelido que "o derretia", e
ele via nela uma mulher "corajosa, toda sensibilidade e torturada por ter
de sorrir à boçalidade de
Hollywood". (Não, nunca houve nada entre os dois, nem nunca se cogitou
disso - não faziam o
género um do outro.) Vinícius ia à casa de Carmen quase todos os dias ou
às de seus satélites
Zezinho e Nestor Amaral, a quem chamava de "figuras ciclópicas". Com
Zezinho, Vinícius ia ao
Billy Berg"s, um bar de jazz onde, às vezes, ao olhar em volta, se sentia
incomodado - era o
único 100% branco na plateia.

Para convencer Tati a embarcar logo com as crianças, Vinícius cumulava-a
de cartas,
descrevendo-lhe as maravilhas locais. Numa dessas, prometeu para sua
filha Susana, de seis anos:
"Você vai conhecer a Carmen Miranda e o Zé Carioca e uma porção de
artistas de cinema. Tem
cada desenho animado formidável para te levar" - como se Carmen e Zezinho
fossem
personagens de um desenho animado ao vivo, no qual se pudesse entrar, a
exemplo do episódio
de Aurora em Você já foi à Bahia?.

Ao contrário de Ary Barroso, que nunca deixou de se espantar com a beleza
das mulheres de
Hollywood, Vinícius não demorou a ficar blasé diante da oferta feminina:
"É tanta mulher bonita
que até enjoa", escreveu para sua mãe. De propósito, convidou Cecília a
ir com ele a uma boate
em Los Angeles, para que ela visse "as mulheres mais bonitas do mundo".
Cecília aceitou apenas
para não desapontar Vinícius, mas voltou para casa impressionada:
"Realmente, que mulheres!".
Só então ele lhe revelou, para gargalhada geral, que aquelas mulheres do
outro planeta eram
homens - ou, pelo menos, "criaturas do sexo masculino".

Dias depois, como uma doce vingança do destino, Vinícius defrontou-se com
a beleza a um grau
que nunca acreditou existir, exceto, talvez, quando descrita por poetas
como Robert Browning ou
Dante Gabriel Rossetti. Numa festa na casa de Herman Hover, dono do
Ciro"s, em que estava com
Carmen, viu surgir uma moça cuja beleza era demais até para Hollywood. De
copo na mão e
passo incerto, ela se aproximou de Carmen para render-lhe as devidas
homenagens:

"Sou sua fã. Você é o máximo." A entonação, meio borrada, sugeria um
pileque atómico.

Vinícius não conseguia tirar o olho dela. A moça percebeu e se debruçou
sobre ele:

"Quem é você?", perguntou a Vinícius, com uma voz de nove ou dez uísques.

Vinícius disse quem era. Ela não pareceu muito impressionada.


416

"Você me acha bonita, não é?", continuou, com uma voz, agora,
definitivamente de dez uísques.

Vinícius concordou entusiástico, fazendo que sim rapidinho com a cabeça e
arregalando os
olhinhos azuis. Ao que ela acrescentou:

"É, sou mesmo. Mas, moralmente, eu sou um lixo."

Disse isso sem exclamação, sem remorso e sem perdão.

Vinícius dançou com ela, que era bem mais alta do que ele. Depois ela
sumiu. Saber ou não o seu
nome não fazia diferença. Embora já tivesse sido casada com Mickey Rooney
e Artie Shaw, e
aparecido em 21 filmes, ninguém a conhecia, porque sempre em papéis
insignificantes. Mas a festa
na casa de Hover, a que fora levada por Howard Hughes, deve ter sido uma
das suas últimas
aparições como anônima. Meses depois, ao assistir a Os assassinos (The
killers), com Burt
Lancaster, baseado no conto de Ernest Hemingway, Vinícius saberia que a
moça se chamava Ava
Gardner.

Quando despachou o Mercury para Tatá no Rio, Carmen já estava rodando seu
novo filme,
Copacabana, com Groucho Marx. A generosidade da colega assustou Groucho -
onde já se vira
distribuir carros novos para irmãos? Numa folga do elenco, ele foi à casa
de Carmen, onde
conheceu dona Maria, Aurora, Gabriel, Cecília e Carminha, e os rapazes do
antigo Bando da Lua
e suas famílias. Nunca tinha visto tantos brasileiros juntos, e se
surpreendeu ao saber que só parte
da família de Carmen estava ali - ainda havia mais gente no Brasil e em
Portugal. Pela amostra,
Groucho podia fazer uma idéia do fluxo de dinheiro e de presentes saindo
de Hollywood para os
ermos do globo onde houvesse um Miranda, tudo patrocinado por Carmen.

"São centenas de parentes, todos sustentados por ela!", dizia Groucho,
estupefato, a amigos.

Não era verdade, mas quase. Carmen mandava presentes para muita gente no
Rio: para seus
irmãos, para os parentes de seus músicos (antigos ou atuais), e para os
amigos em geral. E eles
eram muitos. Quando sabia que um de seus velhos compositores ou letristas
estava doente,
despachava contribuições em dinheiro. Não podia saber que a mulher de um
amigo tivera filho
sem providenciar um enxoval - tinha mais afilhados do que poderia
humanamente se lembrar
(mas, pelo visto, não se esquecia de nenhum). Uma vez por ano, pegava as
roupas velhas da
família, incluindo as de Gabriel, e mandava-as para suas tias portuguesas
Cecília e Florisbela, em
Várzea de Ovelha, para reparti-las entre os primos e primas - sem
prejuízo do dinheiro que
também enviava. E não deixava de contribuir com os três santos de sua
devoção: santo Antônio,
são Judas Tadeu e santa Teresa. Para a igreja de Santo Antônio, no largo
da Carioca, mandava
dinheiro anualmente para ser distribuído entre os pobres. Para a
igrejinha de São Judas Tadeu, no
Cosme Velho, enviou uma imagem
417

do santo em tamanho natural (causando o maior embaraço para o pároco,
que não queria
recebê-la). Para diversas instituições que levavam o nome de santa
Teresa, fazia contribuições em
espécie ou em dinheiro. E não se esquecia das representações desses
mesmos santos em Los
Angeles.

No dia 30 de abril de 1946, milhares de seus colegas brasileiros perderam
o emprego com uma
canetada - bastou o novo presidente, Eurico Gaspar Dutra, eleito para
suceder a Getúlio, assinar
um hipócrita decreto-lei proibindo o jogo no Brasil. Da noite para o dia,
a roleta deixou de girar
nos mais de setenta cassinos oficiais, no Rio, em Niterói, Petrópolis e
nas estâncias hidrominerais
de Minas Gerais e São Paulo. Carmen cantara e fizera amigos em todos eles
(só não pegara o
Quitandinha, o mais deslumbrante de todos e recém-inaugurado por Joaquim
Rolla em
Petrópolis). Deu-se o pânico. Muitos profissionais se desesperaram -
alguns se mataram - e
houve manifestações em frente ao Palácio Laranjeiras para suplicar a
Dutra que voltasse atrás. De
nada adiantou. Alguns tentaram não se apertar: Vicente Paiva - até a
véspera o poderoso diretor
musical do Cassino da Urca, co-autor de "Mamãe, eu quero" e com poderes
quase absolutos
sobre a música popular - pendurou sua casaca prateada, vestiu um paletó
modesto, trocou seu
rabo-de-peixe por um carrinho comum e foi ser motorista de táxi, à espera
de dias melhores (que
chegaram). Mas muitos escreveram para Carmen, relatando a situação e
pedindo ajuda. Ela os
atendeu.

A maioria dos que conheciam Carmen se comovia com sua generosidade, mas
Groucho ficava
horrorizado - era um dos maiores sovinas de Hollywood e não abria a
algibeira nem para seus
filhos. O que ele não diria se soubesse que Carmen era assim,
ridiculamente mão-aberta, até com
gente que acabara de conhecer - como alguns brasileiros que iam visitá-la
e que ela nunca vira
antes (nem veria depois). Alguns desses brasileiros pediam-lhe dinheiro
para a passagem de volta;
outros queriam sua interferência para conseguir um visto de permanência.
Um deles teve o
desplante de pedir-lhe um carro. Às vezes roubavam-lhe garrafas de
uísque. Carmen nunca
permitiu que deslizes isolados turvassem o seu prazer de receber
patrícios em sua piscina. Esse
laissez-faire, Mssez-passer se estendia também à casa de Palm Springs,
onde Carmen certa vez
marcou encontro com alguns hóspedes - e, ao chegar, descobriu que eram
tantos que a casa
ficara lotada, e o jeito foi ir para um hotel.

Carmen não ligava para dinheiro. Só queria saber quanto ganharia em cada
contrato. O som de
valores como 12 mil ou 15 mil dólares por semana era música para seus
ouvidos - ser a artista
estrangeira mais bem paga dos Estados Unidos ou a mulher que mais
faturava na América dava-
lhe uma satisfação interior, falava à sua vaidade. Mas era um gozo
gasoso, quase volátil. O
dinheiro, a moeda em si, não lhe fazia diferença. Mantinha em casa uma
fortuna em cédulas,
guardadas em gavetas, às vezes deixadas sobre móveis. Não ligava para
bancos e menos ainda
para aplicações - não era, absolutamente, uma mulher de negócios.


418

O mal parecia de família porque, no Rio, Mocotó continuava como seu
procurador, mas não
ligava para negócios - só queria saber de remar. Os imóveis no Catete e
na avenida Presidente
Vargas e o terreno em Jacarepaguá só tinham sido comprados por seu
intermédio porque as
situações haviam se atirado à sua frente, não que ele as tivesse
procurado.

"Vou parar de mandar dinheiro para lá", disse Carmen. "O Mocotó não quer
nada."

Carmen poderia ter comprado muita coisa no Brasil. Dinheiro havia. Mas
não quem fizesse isso
por ela no Rio.

Carmen Miranda e Groucho Marx juntos, num filme em Technicolor, era uma
idéia boa demais
para ser verdade. Foi o que aconteceu com Copacabana: não funcionou.

O Copacabana a que se referia o título tornara-se o maior nightclub de
Nova York, desde que
Aurora o inaugurara, cinco anos antes, e não se contentava com isso. Em
breve haveria um
Copacabana também em Hollywood: Monte Proser arrendara o antigo Café
Trocadero, no
Sunset Boulevard, por quinze anos, para transformá-lo na filial de seu
nightclub na cidade do
cinema. Pagara 60 mil dólares de luvas e ainda teria de morrer em 1600
dólares por mês pelo
aluguel. A idéia era passar quase um ano em obras, ao custo de 45 mil
dólares, e inaugurar o novo
Copacabana em maio de 1947. Dentro dele, haveria o Miranda"s Room,
decorado com paisagens
do Rio, no qual Carmen teria uma participação muito bem remunerada - mil
dólares por semana
pelo uso de seu nome e imagem, o ano inteiro - e em que se apresentaria
durante doze semanas
por ano, a 8 mil dólares por semana. Proser já contratara até as atrações
da semana de estréia do
nightclub: Tony Martin e os dançarinos de Jack Cole no salão principal;
Joe Mooney e seu
quarteto no bar; e Carmen no Miranda"s Room, com Zé Carioca e seus
Carioca Boys. O
Copacabana teria de caprichar para esmagar a saudade que Hollywood já
sentia do Trocadero,
talvez o nightclub mais querido da turma do cinema. (Fora nele que, em
1939, David O. Selznick e
Jock Whitney deram a festa de lançamento de ...E o vento levou. Em certa
época, abrigou um
cassino clandestino no porão. E quem costumava ser o pianista "da casa"?
Nat "King" Cole.)

Um filme passado no Copacabana (o de Nova York), a estrear no mesmo dia
em que se
inaugurava o de Hollywood, pegaria o nightclub na crista da onda nas
costas Leste e Oeste.
Abriu-se uma empresa, Beacon Productions, para cuidar da produção do
filme. Proser entrou com
dinheiro; Carmen também pôs algum - afinal, era seu primeiro filme como
"independente"; e
Groucho, nem um tostão, mas aceitou trabalhar por um salário menor em
troca de uma fatia da
bilheteria. O restante do dinheiro foi levantado junto a particulares. O
responsável pela
administração das cotas era Sam Coslow, eventual produtor

419

de filmes e, principalmente, compositor - autor de grandes canções como
"Cocktails for two",
"My old flame" e "Sing you sinners", mas que havia anos não tinha um
sucesso. O principal corista
fisgado por Coslow foi um fabricante de malas chamado Maurice Sebastian.
O filme seria rodado
no estúdio de Samuel Goldwyn e distribuído pela United Artists. Para
dirigir, Coslow chamou
Alfred E. Green, que vinha do sucesso de O trovador inolvidável (The
Jolson story). Ninguém
levou em conta que O trovador inolvidável era um filme medíocre, exceto
pelos números musicais
em que Larry Parks fazia Al Jolson - os quais tinham sido dirigidos por
Joseph H. Lewis, muito
mais competente.

Tudo conspirou para que Copacabana fracassasse: a insegurança de alguns,
a má-fé de outros e a
mediocridade de muitos. Groucho fazia um empresário esperto que "vendia"
Carmen duplamente
para o Copacabana: como uma cantora brasileira, a morena Carmen Navarro,
e como a chanteuse
francesa, de peruca loura, Mademoiselle Fifi. O sabonetão Steve Cochran
interpretava Monte
Proser e Gloria Jean era sua secretária. O hispano-americano Andy Russell
cantava três números e
exibia a competência de seu dentista. Entrechos mais modestos já renderam
bons musicais, mas,
da forma como as coisas correram, Copacabana nascera condenado. A pobreza
da produção era
constrangedora, os números musicais, lúgubres, e as canções de Sam
Coslow, música e letra de
sua autoria, mostravam por que ele nunca mais emplacaria um sucesso. Mas
o pior era como
Carmen, livre dos supostos grilhões de um estúdio, parecia abrir mão de
muito do que conquistara
na Fox. Deixou-se passar para trás de todo jeito.

Groucho, em seu primeiro filme-solo, sem os irmãos, percebeu que o
roteiro original dividia as
frases engraçadas entre ele e Carmen. E não estava habituado a isso - nos
filmes dos Irmãos
Marx, Chico era seu straight man e as gags de Harpo eram visuais. Ciente
de que, com seu estilo
expansivo, Carmen roubaria as cenas que fizessem juntos, Groucho fez com
que a produção
demitisse três roteiristas até que o roteiro final reduzisse Carmen a
simples escada e deixasse todo
o humor por sua conta. ("Por que você vive correndo atrás das mulheres?",
ela pergunta. "Quando
conseguir pegar uma, eu te conto", responde ele.) Em matéria de luxo, a
Fox também a tratava
muito melhor. Não importava que seus filmes tivessem Betty Grable ou
Alice Faye, sempre
haveria um ou dois grandes números para Carmen. Em Copacabana, um filme
marca barbante,
Carmen aparece em cinco números musicais, mas nenhum é tão produzido
quanto os números
individuais de Andy Russell, Gloria Jean e mesmo Groucho - e estes já são
de uma
constrangedora modéstia.

Outra diferença: nos filmes de Carmen na Fox, o montador era proibido de
cortar para intercalar
tomadas dos atores "reagindo" quando ela estivesse cantando ou dançando.
Em Copacabana,
isso foi ignorado e não há um número de Carmen sem as ditas intromissões.
E, para completar,
embora ela faça uma cantora brasileira, o tom geral dos números musicais,
devido à presença de
Andy Russell,


420

é monotonamente mexicano - sobram ponchos e sombreiros pelos
cenários. "Meu
coração dançou/Ao som de um bolero/No Rio de Janeiro", canta Russell em
certo momento. Se
fosse só para isso, seu coração não precisaria ter deixado a Cidade do
México. Ou seja, a Fox
cuidava mais dos interesses de Carmen do que esta podia fazer por si
mesma em sua nova
condição de "independente".

Copacabana era para ter sido em cores. Em função disso, planejaram-se as
roupas de Carmen, a
cargo do figurinista Barjansky, cheias de amarelos e dourados. Mas
Natalie Kalmus, da
Technicolor, pediu meses para entregar as cópias, o que prejudicaria a
idéia de lançar o filme
junto com o Copacabana de Hollywood. Kalmus foi dispensada e rodaram o
filme em preto-e-
branco mesmo, sem adaptar as roupas ou acentuar os contrastes - pode-se
avaliar o prejuízo
comparando as cenas do filme com o material publicitário em cores. E,
finalmente, Carmen
ensaiou seus números em casa, com a ajuda de Zezinho, Nestor e Russo do
Pandeiro. Mas, pela
primeira vez em toda a sua filmografia, nenhum dos amigos brasileiros é
agraciado com uma
sorridente tomada em plano médio a seu lado. Num dos números, distingue-
se ao longe Nestor, de
pé, tocando violino, Zezinho ao violão, e mais nada (os irmãos Ozorio já
não estão à vista). Em
compensação, três jornalistas de Nova York - os colunistas Earl Wilson,
do New York Post,
Louis Sobel, do Daily News, e Walter Abel, do Variety - fazem uma ponta
como eles mesmos.
Para filmar a cena em que aparecem, e que dura um minuto na tela,
exigiram três stand-ins, dois
dias de filmagem e um camarim portátil para cada um. Fizeram isso de
brincadeira, não esperavam
ser atendidos - mas foram, e, desde então, suspeitaram de que ninguém ali
tinha muita noção de
custos.

Aos 56 anos, Groucho estava com uma mulher nova - Kay, 24 anos e melhor
amiga de sua filha
Miriam - e fora pai pela terceira vez. Melinda, sua filha com ela,
acabara de nascer. Kay entrou
logo em forma e Groucho conseguiulhe uma ponta de cigarette girl em
Copacabana, para reforçar
os rendimentos do casal. Tudo em matéria de dinheiro o aterrorizava. O
fato de ter duas novas
bocas para sustentar o deixava em pânico; o último filme dos Irmãos Marx,
Uma noite em
Casablanca, também do ano anterior, fora um fiasco; e seu irmão Chico
ameaçava processá-lo,
acusando-o de reter dinheiro que lhe pertencia - o que era verdade, mas
Groucho e Harpo
estavam usando esse dinheiro para pagar as dívidas de jogo de Chico e
evitar que ele fosse
morto. Groucho temia que Chico ganhasse o processo e o arruinasse. Por
isso, para se precaver,
estava fazendo toda espécie de anúncio que lhe ofereciam - de charutos,
cigarros, caneta,
cerveja, lâminas de barbear - e cuidou para que as falas engraçadas de
Carmen em Copacabana
fossem apagadas. Mesmo assim, queixou-se de que ela o reduzira "a uma
banana de segunda
classe" no filme.

Não era engraçado ser um Irmão Marx.

421

Fora da tela, Dave Sebastian só vira Carmen ao vivo num programa de
auditório, na rádio CBS,
em 1945. Ao fim do programa, não fora falar com ela, nem se aproximara.
Sabia o seu lugar: era
apenas mais um na platéia, separado da estrela por várias filas de
cadeiras e por um abismo. Um
ano se passou e, de repente, graças ao acaso, seu nome seguia-se ao dela
entre os letreiros de um
filme.

Num dos créditos de Copacabana, lia-se: "Produtor associado - Walter
Batchelor. Assistente do
produtor - Dave Sebastian". Uma velha piada em Hollywood rezava que não
havia nada mais
baixo na face da Terra do que um produtor associado - por ser um sujeito
capaz de associar-se a
um produtor. Imagine então o assistente desse produtor. Na verdade,
"assistente do produtor" foi
um cargo simbólico criado para Sebastian como representante de seu irmão
Maurice, um dos
investidores em Copacabana. Este temia que o "estrelismo" de Groucho ou
que o "mau gênio" de
Carmen - "temperamental como toda latina", segundo Sebastian - atrasasse
o filme e lhe
causasse prejuízo.

Carmen só saberia disso depois, mas Sebastian ficou de preposto,
encarregado de zelar pelo bom
andamento dos trabalhos. Uma das maneiras de garantir a tranqüilidade era
prover Groucho de
charutos e certificar-se de que Carmen tivesse flores frescas diariamente
no camarim - com um
agrado tão baratinho, liquefazia-se um possível gênio de cão. Mas, antes
disso, como ele mesmo
admitiu, fez uma "sindicância" a respeito de Carmen, aprendendo sobre
seus hábitos, horários e
amigos. (Imagine sua surpresa ao descobrir que ela não falava como nos
filmes.) E, pelo visto,
ficou satisfeito. Tanto que, terminada a filmagem, pediu-a em casamento.

Os Sebastian eram judeus romenos, baseados na Califórnia. Dave, 38 anos,
era o mais novo de
oito irmãos, dos quais cinco eram mulheres. Como ele próprio contava, sua
família, antes de
acumular "alguns meios" fabricando malas, vivia numa zona violenta de Los
Angeles e ele
precisava "brigar todos os dias". Inimigos não faltavam: irlandeses,
italianos, hispânicos. Seu pai e
um dos irmãos teriam sido produtores de cinema. Outro irmão teria sido
noivo de Clara Bow, a
""it" girl". E ele, Dave, também teria passagens pelo cinema, em funções
que as enciclopédias não
costumam registrar: câmera, técnico de laboratório, editor de som,
diretor assistente e,
ultimamente, assistente de montador (na Columbia). Na verdade, era um
biscateiro, sem profissão
definida.

Como "assistente do produtor" em Copacabana, uma de suas primeiras
atribuições foi buscar
Carmen em casa para uma reunião no estúdio. Carmen confundiu-o com o
motorista que estava
esperando. A princípio ela não o associava às flores que recebia no
camarim (achava que eram
uma gentileza da produção). Só passou a prestar-lhe atenção quando ele
cuidava de distrair dona
Maria ou comprava balas para Carminha, que às vezes iam com ela para o
trabalho. A partir dali,
com freqüência, Sebastian ia visitá-la no camarim, para perguntar se
precisava de alguma coisa
ou como poderia ajudá-la.


422

"Ele não sabe o que fazer para me agradar", comentou Carmen com Aurora.

As filmagens de Copacabana, todas em estúdio, tomaram de fins de outubro
a meados de
dezembro de 1946. Findos os trabalhos, Carmen telefonou a Sebastian para
comprar as fantasias
que ela usara no filme. Sebastian disse que eram um presente da produção
e se ofereceu para
levá-las a North Bedford Drive. Fez isso - e convidou-a para jantar. E só
então Carmen
percebeu que havia ali, por parte dele, um interesse além do chamado
dever de ofício.

O Trocadero estava em obras, mas ele podia tê-la levado a algum dos
nightclubs oficiais. Em vez
disso, propôs um restaurante chamado Lucey"s, ponto de atores e técnicos
do segundo time, em
frente à Paramount. (Carmen gostou.) Foi a única vez que Sebastian a
levou a um lugar de gente
mais ou menos conhecida. Nas vezes seguintes, só jantaram em restaurantes
fora do circuito do
cinema - o que dava prazer a Carmen, porque mostrava que ele não queria
exibi-la.

Certa vez, numa entrevista, Carmen fizera uma restrição aos homens
americanos:

"Eles convidam uma mulher a sair, pagam-lhe um belo jantar, e passam o
resto da noite tentando
espremê-lo [o jantar] para fora da mulher."

Não era o caso de Sebastian, sempre reservado e respeitoso. Enquanto
isso, as flores continuavam
a chegar a North Bedford Drive. Na segunda vez em que saíram juntos,
Sebastian a pediu em
casamento. Carmen riu, agradeceu e com delicadeza recusou. Não seria por
isso, é claro (ou não
seria só por isso), mas Sebastian passava longe dos atlas e dos apoios
que ela tinha em seu
currículo amoroso. Era feio, baixo (pouco maior que ela), magro, cabelo
espetado e
prematuramente branco, nariz de boxeador, alguns dentes a menos - mas com
caninos bem
pronunciados, quase draculescos -, puxando conspicuamente de uma perna
(tentava disfarçar
com um sapato de palmilha grossa) e com um notável mau gosto para
gravatas-borboleta.

Apesar de um certo charme juvenil no sorriso, realçado pelo contraste com
o cabelo prateado,
Sebastian, em condições normais, não teria chance de ver sua proposta nem
sequer considerada
por Carmen. Mas várias coisas aconteceram ao redor de Carmen nas semanas
seguintes. Coisas
que a feriram, lhe abriram os olhos ou lhe deram coragem - daí a súbita
transformação que virou
o jogo a favor dele.

Tanto que, quando aconteceu, foi de supetão. No começo de março de
1947, ela continuava alheia a Sebastian e com a cabeça ainda povoada por
outros homens. Menos
de duas semanas depois, no dia 17 de março, em Hollywood, Carmen se
tornava a senhora David
Alfred Sebastian.



Capítulo 24


1947

Sebastian



Menos de um ano antes, Carmen fora peremptória:

"Casamento? Neca. Não acredito em casamento misturado com a vida
artística." Era ainda a sua
entrevista a César Ladeira para Diretrizes. "Conheço poucos casamentos
felizes em Hollywood:
Ingrid Bergman, Irene Dunne, Claudette Colbert - todas casadas com
médicos. Aí, sim, artistas
casadas com homens de outras profissões. Mas, [sendo ambos] do mesmo
métier, não acredito. E
só tenho tido propostas de homens de cinema."

Verdade? E como ela reagia quando um deles descia do conversível branco
e, caindo sobre um
joelho, lhe pedia a mão?

Carmen passara a noite de seus 38 anos, 9 de fevereiro de 1947, de mãos e
corações dados com
seu novo namorado, o ator Donald Buka, no Slapsy Maxie"s, um nightclub no
Wilshire Boulevard.
No dia seguinte, a foto nos jornais mostrou um casal feliz em repartir
aqueles momentos com a
câmera. A diferença de idade - ele, 25 anos, treze a menos que ela - não
parecia importar. O
atraente Buka, nascido em Cleveland, Ohio, tinha um pé firmemente
plantado no rádio, em Nova
York. O outro, ele às vezes usava para sentir a temperatura da Broadway
ou de Hollywood, mas
nunca molhando mais que a ponta dos dedos. Em 1943, Donald fora à Costa
Oeste pela primeira
vez, para filmar Horas de tormenta (Watch on the Rhine), com Bette Davis,
na Warner, baseado na
peça de Lillian Hellman. Ignorara os convites para ficar, voltara para
Nova York, e só retornara
agora, para interpretar um gélido assassino em Rua sem nome (The street
with no name), com
Richard Widmark. Foi onde Carmen o conheceu e se encantou com seu jeito -
era como se
carreira e sucesso fossem seus interesses mais remotos.

Por causa de Donald, Carmen estava a fim de passar uns tempos em Nova
York, produzindo e
estrelando uma revista ou, quem sabe, uma comédia musical - algo de
prestígio que, depois, ela
poderia levar para o cinema. Por sua vez, Carmen também inspirara uma
idéia a Donald, só que
mais imediata: os jornais publicaram que ele pintara seu carro de
vermelho, em homenagem a ela.

"Por que vermelho?", Carmen lhe perguntou.

"Porque Carmen quer dizer carmim, você sabe", ele explicou.


424

Não, ela não sabia - e por essas e outras é que estava, mais uma vez, tão
apaixonada.

Naquela noite, ao vê-la com Buka, ninguém poderia suspeitar que uma
cadeia de fatores estivesse
se formando, como uma nebulosa no espaço, para arrastar Carmen ao
casamento com o mais
improvável dos pretendentes. Mas depois ficou claro que os sinais já
vinham desde meados do
ano anterior. Alguns de seus últimos namorados - homens de quem ela
gostara e em quem ainda
depositava uma secreta esperança - estavam tratando da vida ou fazendo
planos que não a
incluíam. Com isso, seus sonhos de casar-se, ser mãe e aposentar-se -
descer das luzes no auge
- pareciam mais distantes a cada dia e hora. Em compensação, seus
aniversários ficavam cada
vez mais próximos uns dos outros. E, para onde se virasse, Carmen recebia
uma informação que a
atingia em seu íntimo. Como esta, sobre Aloysio de Oliveira.

Aloysio divorciara-se da mulher, Nora. Sua filhinha, Louise, ainda não
completara dois anos.
Nora pedira demissão da Disney e voltara para a casa de sua família, no
Texas, levando a menina
com ela. Aloysio não se opusera. E, como se nunca mais pudesse viver
solteiro, não demoraria a
se casar de novo, dessa vez com Nikky, showgirl do Earl Carroll"s
Vanities: uma americana para
quatrocentos talheres, espaventosamente ruiva, curvilínea, com seios
estilo balcão do Radio City
Music Hall (enormes, debruçados sobre a platéia), e dada a rir e a falar
alto até em igrejas e
velórios - a descrição, com outras palavras, é do próprio Aloysio.

Em Beverly Hills, Carmen ficaria sabendo desse casamento quase ao mesmo
tempo em que ele se
realizava. A notícia não contribuiria para levantar o seu moral. Era mais
uma prova de que
Aloysio se casaria com o primeiro par de peitos que lhe passasse pela
frente, menos com ela. O
fato de que também esse casamento duraria pouco mais de um ano, e que
Nikky tomaria de
Aloysio (e enfiaria no decote) o pouco que ele conseguira economizar até
então, não resultaria
em nenhum conforto para Carmen - mesmo porque, quando Aloysio se
separasse, Carmen era
quem estaria casada.

Do Rio, chegou-lhe a notícia de que seu ex-namorado Carlinhos Niemeyer
também desfizera o
noivado com Vera, a namorada que ele tinha no Brasil enquanto permitia
que ela, Carmen, se
apaixonasse por ele em Beverly Hills. Mas o fato de ter terminado com
Vera não queria dizer
nada, porque Carlinhos já estava de namoro firme com Maria Luiza,
Luizinha - que ele
conhecera na praia, jogando peteca no Posto 5, em frente ao cinema Rian,
em Copacabana (e com
quem se casaria para o resto da vida).

Só lhe faltava agora uma decepção com Donald Buka, o namorado que ela
deixara em
Hollywood em meados de fevereiro, ao partir para uma temporada de duas
semanas no Colonial
Inn, em Miami (acompanhada pelo conjunto de Frank Marti, paulista
radicado nos Estados
Unidos), e para uma série de eventos na Flórida. Carmen roubou o show e
os refletores do
Lincoln Theatre

425

na estréia de gala de Trapalhadas do Haroldo (The sin ofHarold
Diddkdock), que marcava a
volta de Harold Lloyd ao cinema, dirigido por Preston Sturges. Horas
depois, ela seria o centro
das atenções numa mesa em torno do rei do açúcar cubano, Jorge Sanchez, e
formada por alguns
dos maiores causeurs americanos: Mickey Rooney, Sophie Tucker, o
fulgurante Sturges e o
embaixador Joseph Kennedy. Mas, pelas suas costas, o destino urdia das
suas. Ser capaz desse
brilho não era suficiente para prender um homem que resolvera dedicar
se a novos amores.

Em poucos dias, Buka sumira de Hollywood, escapara ao alcance dos
telefonemas de Carmen e
desaparecera do noticiário - até um colunista publicar, sem mais
detalhes, que Carmen Miranda
estava "apaixonada por um americano que preferiu se casar com outra". A
história se repetia com
uma regularidade que beirava a falta de imaginação. Mais uma vez, Carmen
era dolorosamente
passada para trás por um homem ou caroneada por outra mulher.

Foi em meio a mais essa humilhação que ela resolveu escutar o que Dave
Sebastian tinha a dizer,
nos sôfregos e diários interurbanos que ele lhe fazia.

" > Interurbanos, aliás, disparados do próprio aparelho de Carmen, em
North Bedford Drive,
enquanto doses de bourbon em copo alto amenizavam a longa espera para que
a telefonista
completasse a ligação. (Por algum motivo, Sebastian ia para a casa de
Carmen quando queria lhe
telefonar para Miami - Aurora o recebia porque achava que sua irmã o
havia autorizado.)

Nessas conversas, Sebastian tentava convencer Carmen de que, como grande
estrela que era, ela
deveria aproveitar ao máximo o sucesso. Uma das maneiras de fazer isso
era tornar-se produtora
de seus filmes - "como Chaplin" -, para poder escolher o diretor, as
histórias, o elenco, as
canções e os figurinos. Carmen Miranda deveria ser uma corporação, dizia
Sebastian, dona do
seu próprio espetáculo e até dos espetáculos dos outros - ao descobrir um
artista de talento,
deveria contratá-lo. Mas Carmen não queria ser dona de ninguém, exceto de
si mesma. De certo
modo, no entanto, estava de acordo: agora que tinha sua independência,
precisava de projetos
que a libertassem da imagem em que a Fox a aprisionara.

Sebastian a alertou de que, para isso, ela precisaria de financiamentos.
Era nesse sentido que ele
se dispunha a ajudá-la, com sua experiência e suas relações - afinal,
"conhecia todo mundo".
Carmen não se lembrou de perguntarlhe - já que ele conhecia tanta gente -
por que continuava
pobre e seu último emprego fora na sala de montagem de um estúdio então
de segunda classe,
como a Columbia. Talvez porque ela soubesse que, mesmo com um estúdio por
trás, era difícil
vencer naquele meio. E sua própria situação (dela, Carmen), agora que não
tinha mais o guarda-
chuva da Fox, também não era das mais tranqüilas.


426

Para começar, Carmen não se considerava uma atriz, por nunca "ter
aprendido a representar".
Considerava-se "uma entertainer", e se perguntava até quando as pessoas
continuariam gostando
de ser entertained por ela. Carmen calculava que sua carreira teria de
passar por uma
reformulação em pouco tempo, porque seu estilo de dançar, ágil, dinâmico
e malicioso, começava
a ficar impróprio para uma mulher já perto dos quarenta. O que era
propositadamente uma
caricatura perigava reduzir-se a uma caricatura da caricatura. E, no
Brasil, onde ela tanto gostaria
de ser aceita, já havia quem achasse isso.

Se eu fosse feliz acabara de estrear no Rio, e os críticos não perderam a
oportunidade. Moniz
Vianna, no Correio da Manhã, depois de espancar o filme de alto a baixo,
citou "uma Carmen
Miranda acafajestada, que já não sabe cantar, falar ou andar". O Globo
deplorou suas
"macaquices". Outros continuaram insistindo na sua alegada
desnacionalização. Hugo Barcellos
escreveu no Diário de Notícias: "Carmen Miranda é a única pessoa no
Brasil que não sabe
interpretar sambas". E Walter George Durst, numa revista semanal, armou-
se de rancor para
classificá-la de "uma portuguesa que consegue ser um pouco mais
brasileira do que a estátua da
Liberdade". Essas exigências nacionalistas estavam sendo feitas num país,
o Brasil, em que o
grande sucesso musical do ano era uma rumba - "Escandalosa", de Moacir
Silva e Djalma
Esteves -, na voz de Emilinha Borba, e gravada também por uma antiga
campeã do samba:
Aracy de Almeida.

Carmen imaginou que talvez fosse o momento de assumir-se de vez como uma
estrela
internacional, não mais como uma brasileira que trabalhava nos Estados
Unidos. E, para isso, ela
teria, em 1947, propostas fascinantes. O diretor Ernst Lubitsch lhe
acenara com a possibilidade de
um filme na Paramount, e tudo que ele fazia tinha um sofisticado sotaque
europeu. Mas Lubitsch
morreria dali a meses, antes de se sentarem para conversar. Do México, o
diretor Emílio
Fernandez a convidava para filmar La vida de Argentinita, com o admirado
Cantinflas. Depois,
seria Maurice Chevalier, que se disse encantado com a sua interpretação
de Mademoiselle Fifi em
Copacabana - viva as freirinhas com quem aprendera francês no colégio da
Lapa! - e mandara
sondá-la para um musical a ser rodado em Paris. Infelizmente, nenhum
desses filmes se
concretizou, pela gerência inepta que sua carreira tomaria muito em
breve.

Mas, mesmo que tivessem se realizado, nada daquilo resolvia seu principal
problema, e que não
tinha nada a ver com sua vida profissional. Era a sua vontade louca de
ser mãe - e o tempo que
corria contra ela. Numa época em que não eram raras as menopausas aos
quarenta anos, uma
gravidez aos 38 ou
39 (e, pior ainda, uma primeira gravidez levada a termo) era considerada
de alto risco. Se se
descobrisse grávida, Carmen teria de passar quase os nove meses de cama,
para não correr riscos.
Evidente que essa hipótese exigia, em primeiro lugar, a existência de um
marido.

No fim do ano anterior, Aurora ficara grávida como planejara. A criança

427

era esperada para agosto de 1947 e, se fosse um menino, se chamaria
Gabriel, como o pai. Carmen
vibrou ao receber a confirmação da notícia e apoiou a decisão da irmã de
deixar a carreira de
lado. Depois de uma vida à luz dos holofotes, Aurora, aos 32 anos, se
realizaria como mãe e
mulher - e, para Carmen, essa era a sua idéia de plenitude. Alice Faye
também trocara o estrelato
por marido e filhos, e não queria outra vida. Já Betty Grable estava
tentando provar que era
possível conciliar tudo: o casamento com o bandleader mais famoso da
América, mais os filhos, os
cavalos e os filmes. Até então, estava conseguindo - mas, até quando? O
mundo ao redor de
Carmen parecia girar à volta de pais e filhos. (Para cúmulo da
humilhação, até Groucho Marx, que
já tinha idade para ser avô, fora pai no ano anterior.)

Nos primeiros dias de março de 1947, ainda que pelo telefone, as
circunstâncias começaram a
atirar Carmen para o casamento com Sebastian. Depois de tantos desgostos
com namorados, ela
se lembrou do conselho que Aurora lhe dera naquele longínquo 1940, no
Rio: não confunda
paixão com casamento - para se casar, escolha um homem de quem não goste
tanto, mas que seja
bom para você. Aurora fizera isso e era muito feliz com Gabriel. Para
Carmen, Dave parecia
enquadrar-se sob medida na receita. Ela gostava dele, mas não estava nem
um pouco apaixonada.
Ele é que, insinuante e com grande lábia, parecia louco por ela.

E Carmen conseguia enxergar seus méritos. Dave - poucos meses mais velho
- era um homem,
não um garoto. Sendo americano, iria protegê-la dos outros americanos.
Não tinha dinheiro (só
usava um paletó, um espinha-depeixe que às vezes parecia cheirar como o
próprio peixe), mas o
que ela ganhava dava de sobra para os dois e para quem mais viesse. E,
contrariando o que ela já
dissera, Dave trabalhava em cinema, conhecia os atalhos e as armadilhas
do show business e,
como prometera, produziria os seus filmes. Faria isso e já dissera que
não se sentiria ofendido por
se tornar "Mister Miranda". Mas o mais importante é que, com ele, ela
seria mãe quantas vezes
quisesse e enquanto pudesse - passaria o ano dando o peito, trocando
cueiros, costurando
camisinhas de pagão. Se calhasse, seria eleita a "Mãe do Ano". Além
disso, Dave tinha outra
qualidade: ele a pedira em casamento. E não vamos nos enganar: fora o
único a fazer isso.

Acabara de pedi-la pela segunda vez, num telefonema para Miami, e
propunha que se casassem
assim que Carmen voltasse. Disse que um anel de brilhantes estaria
esperando por ela em Beverly
Hills. Mesmo assim, Carmen queria tempo para pensar. Mas, depois de tudo
considerado, e até
porfaute de mieux, não via mais por que recusar. Ao telefonar para casa e
discutir o assunto com a
família, há o registro de que empregou uma expressão então corrente no
Rio e que o compositor
Pedro Caetano usaria em seu grande samba para o Carnaval do ano seguinte:

"Querem saber de uma coisa? É com esse que eu vou."


428

Carmen voltou de Miami e marcou o casamento para o dia 17 daquele mesmo
mês - a menos de
duas semanas. Aurora, Cecília e dona Maria não entenderam a razão do
açodamento e pediram a
Carmen que esperasse um pouco, para refletir melhor. Para que seguir um
impulso e fazer uma
coisa tão às pressas, decidida quase de véspera?

Carmen só tinha um argumento para justificar-se:

"Preciso de um homem ao meu lado."

Levando esse motivo ao pé da letra, sua primeira providência foi reformar
seu quarto de dormir,
de móveis franceses, em cinza e dourado. Juntou as camas gêmeas, mandou
fazer um estrado
duplo e, com um reposteiro novo, converteu-as numa cama de casal. (A
lareira no quarto, que o
clima da Califórnia já dispensava, agora é que ficaria mesmo sem uso.)
Até aí, tudo bem - dividir
a cama fazia parte do casamento. Mas Carmen tinha mais o que dividir,
provocando uma explosão
de Cecília:

"Não faça uma coisa dessas, Carmen! Como é que você, sendo quem é, vai se
casar com
comunhão de bens?"

A Califórnia era um dos nove estados americanos regulados por leis de
community property -
uma lei em que todos os rendimentos e propriedades adquiridos depois do
casamento pertenciam
a ambos, independentemente de os dois ganharem igual ou um ganhar muito e
o outro pouco ou
nada. Naquele dia, Cecília estava se fiando em que todas as propriedades
adquiridas antes do
casamento continuariam pertencendo apenas a Carmen.

Sebastian, por outros motivos, precisava andar na ponta dos pés. Enquanto
pôde, omitira de
Carmen e da família o fato de ser judeu - uma precaução que julgou
necessária diante de
pessoas tão católicas. Dizia-se adepto da Ciência Cristã, e sua intenção
era a de que, por isso,
Carmen abrisse mão da cerimônia religiosa. Quando descobriu que não
escaparia a um casamento
na igreja, teve de revelar-se para Carmen. Declarou-se disposto a uma
conversão, e concordou
em ir ao padre da igreja do Bom Pastor para tomar as "instruções" -
noções elementares de
cristianismo. O padre prometeu dar-lhe as instruções, mas uma instância
mais alta da diocese
negou permissão a Carmen para o casamento. Sebastian ficou irritado.
Carmen procurou seu
velho amigo, o arcebispo de Los Angeles, e este os encaminhou aos padres
irlandeses que
controlavam as tecnicalidades católicas nos Estados Unidos.

Sebastian, segundo suas próprias palavras, teria conversado com um desses
padres e aberto o
jogo:

"O senhor não tem escolha, monsenhor. Escolha nenhuma. Ou o senhor nos dá
o direito de casar
na Igreja católica, para o que estou perfeitamente disposto a tomar as
instruções e deixar todo
mundo feliz, ou vamos nos casar no civil,

429

por uma autoridade civil, de fora da Igreja - e, com isso, o
senhor perde Carmen e perde a
mim. Fica a seu critério tomar a decisão."

Vencido pela dureza do interlocutor, o padre lhe disse:

"Está bem, David. Tome as instruções e case-se com Carmen na Igreja."

Acertados data, local e padrinhos, só restava sacramentar certos
detalhes. Seria uma cerimônia
simples, quase indigente, para os padrões de uma cidade que, dez anos
antes, em 1937, abrigara o
casamento de Jeanette MacDonald e Gene Raymond - o mais bonito e suntuoso
da história de
Hollywood. (O único deslize tinham sido os sapatos novos do cantor Allan
Jones rangendo
impiedosamente quando, sob solene silêncio, ele atravessou a nave com os
outros pajens em
direção ao altar.) O casamento de Carmen nem sequer chegaria aos pés de
outro, ainda mais
antigo, de 1927, na própria igreja do Bom Pastor: o de Vilma Banky e Rod
La Rocque - ela,
húngara de nascimento e estrela de O filho do sheik, sem falar uma
palavra de inglês; ele,
descoberto num circo e astro do primeiro Os dez mandamentos (The ten
commandments, 1923), de
Cecil B. De Mille. A cerimônia fora uma festa colossal em Hollywood, com
Harold Lloyd,
Constance Talmadge, Ronald Colman e Bebe Daniels entre os pajens e damas
de honra, o
cowboy Tom Mix chegando numa carruagem puxada por quatro cavalos, e por
aí afora. A união é
que duraria pouco, porque os noivos não eram adeptos do sexo oposto. E a
carreira de ambos
seria liquidada naquele mesmo ano pelo cinema falado.

O casamento de Carmen seria, sobretudo, sincero. Na véspera, ela chamou
Cecília ao seu quarto:

"Cecília, vamos rasgar estas cartas do Carlos Alberto."

Despejou na cama uma caixa com maços de cartas - as que Carlos Alberto da
Rocha Faria lhe
escrevera quando ela viajava para as temporadas em Buenos Aires e no
primeiro ano que passara
em Nova York. Ali, sobre a cama de Carmen, algumas foram abertas e lidas
pela última vez, entre
muitas exclamações:

"São lindas, Carmen", dizia Cecília. "Olha esta aqui! [E lia um trecho.]
Pelo amor de Deus, não
rasgue!"

"Rasgo, sim", insistia Carmen. "Vou me casar. Não posso ficar guardando
essas cartas."

Havia algo de simbólico nessa decisão: era Carmen se despedindo do homem
de quem mais
gostara e que, de certa forma, definira sua vida - se ele tivesse se
casado com ela no Rio, não
haveria a Broadway, nem Hollywood, e Carmen Miranda havia muito teria
deixado de existir.
Mas a vida quisera diferente. E assim, meticulosamente, Carmen fez seu
passado em pedaços e,
depois, picou-o como confete.

No dia seguinte, numa cerimônia para poucos, na igreja do Bom Pastor,
Carmen e Dave trocaram
grossas e pesadas alianças (para "durar para sempre", segundo ela) diante
do monsenhor Patrick
J. Concannon. Ao ser perguntada


430

se aceitava David como seu legítimo esposo, Carmen, em vez de
responder "Sim", disse
"Vou". Mas padre Patrick entendeu o espírito da coisa e os casou assim
mesmo. Aurora e o irmão
de Dave, Maurice, assinaram como testemunhas. Carmen usava cabelo laranja
sob um véu de
flores e lantejoulas, um conjunto de lã branco e plataformas em azul e
rosa com tachinhas
brilhantes. Dave, um jaquetão risca de giz azul, uma pavorosa gravata-
borboleta de listras azuis e
vermelhas e meias brancas - sob a camisa, junto à estrela-dedavi
pendurada em seu pescoço, a
medalhinha de santo Antônio que Carmen lhe dera.

Pouco depois, na recepção igualmente simples em torno da piscina em North
Bedford Drive,
Stenio Ozorio fez uma cara significativa ao observar o jeito de Sebastian
arrastar uma perna ao
andar. Carmen adivinhou o que estava se passando pela cabeça de Stenio e,
sempre
incorretíssima, sussurrou, rindo:

"Pois é. Namorei tantos homens bonitos e fui me casar com um manquinho!"

Nas duas semanas que haviam transcorrido entre a saída de Carmen de Miami
e o dia do
casamento, seu cunhado Gabriel estava em Cuba, a negócios, e não pôde
voltar para a cerimônia.
Não há registro da presença de Aloysio - se foi convidado, não se sabe se
compareceu. O
cônsul Raul Bopp, homem experiente e amigo de Carmen, já deixara Los
Angeles por seu novo
posto, em Lisboa; seu substituto, Afonso Portugal, acabara de chegar e
não era íntimo de Carmen
para lhe dar conselhos. (Além disso, fora convidado a ser o padrinho.) E
seu vice-cônsul Vinícius
tinha essa intimidade, mas, quando deu palpite sobre o casamento, foi a
posteriori - disse que
não via sentido... no noivo. (A mulher de Vinícius, Tati, que acabara de
chegar do Brasil, também
não seria uma admiradora de Sebastian.)

Tampouco há registro da presença de amigos antigos como Gilberto Souto e
Dante Orgolini no
casamento. E Elsa e Alex Viany, de forma inexplicável, não foram
convidados - para eles foi
dito que a cerimônia seria em São Francisco. O único jornalista
autorizado a comparecer teria
sido o caricaturista Luiz Fernandes, correspondente do Jornal das Moças
em Hollywood, e que
escreveu deslumbrado sobre a festa. (Especialmente porque, com o atraso
do cônsul e de sua
esposa, ele teria assinado como padrinho, junto com Aurora.) De propósito
ou não, Carmen se
privou da visão de pessoas que a conheciam bem e lhe queriam ainda
melhor, a respeito do passo
que estava dando. Não que essas pessoas tivessem força para alterar sua
decisão.

Dois dos antigos companheiros poderiam ter dito a Carmen o que pensavam
daquilo. Um era o
violonista Laurindo de Almeida, que finalmente emigrara para os Estados
Unidos e acompanhara
Carmen na minitemporada em Miami. Laurindo julgou radiografar Sebastian
assim que lhe foi
apresentado - e o que ele viu foi o caça-dotes, o vivaldino, interessado
em subir usando o
dinheiro e a posição de Carmen. Mas Laurindo só diria isso a ela quando
já não adiantava mais.

431

Outro, Stenio, o mais antigo amigo de Carmen na
cerimônia, teria comentado, não
para ela, mas para Andréa, sua mulher:

"Este é o começo do fim de Carmen Miranda."

A foto mais conhecida da festa mostra, sentados num sofá, o cônsul
Portugal e sua mulher,
Glorinha (também chamada de Dó), dona Maria, Carmen, Sebastian, Cecília
e, à frente de
Carmen, sua sobrinha Carminha. Foi batida quando já se encerrava a
recepção - todos
sorridentes, suas expressões confiantes em que aquela felicidade se
eternizaria. Mas ela pode ter
registrado o último momento de felicidade a dois para Carmen e Sebastian.
Pelo que se
depreende dos relatos, a guerra conjugal começava ali, tendo como
combustíveis a decepção, a
revolta e várias formas de crueldade, da parte de um ou de outro.

Esses relatos, partidos da família de Carmen, falam de uma noite difusa e
frustrada em São
Francisco, para onde os noivos teriam ido logo depois do casamento, e
onde os "parentes ricos"
de Sebastian os esperariam com um grande jantar no restaurante Ernie"s,
na Montgomery Street.
Mas, ao chegar a São Francisco, não haveria parentes nem jantar, numa
reviravolta que nunca se
explicou. Apenas uma noite no hotel (possivelmente o Saint Francis), com o
jantar pedido ao room
service e comido em silêncio no quarto; depois, Carmen, sem conseguir
dormir, os dois faróis
verdes virados para a parede, começando a suspeitar de que cometera um
grave erro; e, no dia
seguinte, a volta, também muda, para Beverly Hills.

Aurora, por sua vez, já não suspeitava de nada. Tinha certeza. E mais
ainda quando começaram a
pipocar em North Bedford Drive as contas do florista e da joalheria,
cobrando as flores que
Sebastian mandara para Carmen durante semanas e até o anel de brilhantes
que ele lhe dera. As
contas vinham em nome de Carmen Miranda. Isso explicava também os longos
e custosos
interurbanos para Miami dados a partir do telefone de Carmen. E a
preferência de Sebastian por
restaurantes baratos, quando ele a levava a jantar - porque eram os
únicos que podia pagar.

Para Aurora, Carmen caíra numa armadilha. E, por mais que sua irmã fosse
uma mulher frágil e
carente, Aurora tinha de reconhecer que Sebastian fora brilhante: do fim
das filmagens de
Copacabana, em meados de dezembro, ao casamento, em março, ele só
dispusera de três meses
para jogar a rede. Mas trouxera o peixe.

Para Carmen, não havia nada a fazer. Casara-se porque quisera - e o
casamento era sagrado.
Agora, agüentasse.

Quando Sebastian se mudou para North Bedford Drive, era como se estivesse
se mudando para o
Brasil. Mas ele já devia saber que seria assim. Com sua mulher, moravam a
mãe dela (dona
Maria), duas irmãs (Aurora, grávida, e Cecília), um cunhado (Gabriel,
marido de Aurora) e uma
sobrinha (Carminha,


432

filha de Cecília). Outras presenças permanentes eram as de Zezinho e
Odila, com o filho de
ambos, também Zezinho, de dois anos e afilhado de Carmen; Stenio e
Andréa, com as duas
crianças, Joyce e Ronald; e os outros músicos, com suas mulheres ou
namoradas. Entre os amigos,
os mais regulares eram Elsa e Alex, agora somados a Tati e Vinícius,
sendo que Elsa e Tati, esta
com seus filhos Susana e Pedro, formavam um grupo de amigos de Carmen que
entrava pelos
fundos e ia direto para a piscina sem avisar. Alguns brasileiros também
freqüentes nessa época
eram o cantor Dick Farney, indeciso entre sua promissora carreira
americana e a volta incerta
para o Rio; o violonista Laurindo de Almeida, pouco antes de juntar-se à
orquestra de Stan
Kenton; e Rosina Pagã, nos intervalos de seus namoros com os atores John
Garfield e Brian
Aherne, com o diretor John Huston e com meio mundo (Rosina deu muito em
Hollywood, mas de
nada lhe adiantou.) Um ou outro, como Vinícius ou Dick, falava inglês com
Sebastian. Mas a
língua oficial da casa era o português, uma algaravia que Sebastian nunca
ouvira antes e não fazia
questão de aprender, por saber que não teria nenhum uso para ela fora
dali. Das poucas palavras
que aprendeu, uma foi "chato" - que usava para definir algum brasileiro
que chegasse.

E havia os turistas brasileiros, para quem não apenas Carmen, mas também
Aurora e Cecília,
abriam as portas e os braços, mandavam ir entrando e faziam com que se
sentissem em casa. (Eram
comuns as visitas de militares, vinte ou trinta de cada vez, comandados
por um oficial. O recorde
absoluto foram os guardas-marinhas do navio-escola Almirante Saldanha -
mais de trezentos, a
ponto de terem de se revezar em grupos de trinta para entrar na casa.)

Se estivesse trabalhando, Carmen achava normal voltar para casa no fim da
tarde e encontrar
tanta gente na piscina ou no jardim - só pedia um tempo para refrescar-se
e vestir um short ou
maiô, antes de juntar-se à turba. Para ela, conversar com eles, saber das
últimas e rir muito era
como receber no rosto uma lufada de Brasil. Para Sebastian, que passava o
dia inteiro em casa,
aquele entra-e-sai de brasileiros cacarejantes era uma invasão
estrangeira. As músicas que
cantavam em coro até de madrugada - velhos sucessos de Carmen ou do
Carnaval - não lhe
diziam nada.

Mas, como era inevitável, nem sempre os de fora traziam boas notícias.
Foi por eles que Carmen e
Aurora souberam da morte, em janeiro daquele ano, do querido cantor João
Petra de Barros, que
participara do disco de Aurora, "Se a lua contasse". Dois anos antes, ele
tivera uma perna
amputada num acidente. Sofrerá muito e morrera agora em conseqüência
dessa amputação. João
Petra fora o criador de clássicos como "Até amanhã", de Noel Rosa, e
"Feitiço da Vila", de Noel e
Vadico. Estava com 32 anos. Por ironia, seus principais amigos - Noel,
Luiz Barbosa e Custódio
Mesquita - também tinham morrido muito jovens.

Todos os dias havia brasileiros para o almoço ou o ajantarado e a comida

433

era sempre brasileira - feijoada, arroz-de-forno, rabada. Vários foram os
hábitos alimentares que
Sebastian teve de mudar de um dia para o outro - arroz em vez de batata,
porco em vez de
carneiro, farinha em vez de ketchup -, mas para tudo havia um limite. A
vida ao redor da piscina
tampouco lhe era rósea: por causa de sua perna (uma mais curta e mais
fina do que a outra),
evitava aparecer de calção na frente de estranhos, os quais, para ele,
eram quase todos. Atribuía
sua deficiência alternadamente a um acidente de trabalho ou a uma doença.
(Stenio e Affonso
diziam que devia ter sido um tiro e só se dirigiam a ele como "Deixa que
eu chuto", em português,
sabendo que ele não entendia.)

Sebastian tentou regular o uso da piscina, sem sucesso - para todo lado
que se virava havia um
brasileiro.

"Quero ficar a sós com minha mulher!", dizia, desesperado.

Mas os hábitos da casa eram anteriores a ele e estavam muito arraigados
para permitir uma
mudança súbita. Sebastian se irritava porque Carmen, por temperamento e
falta de tempo, era a
que menos opinava nos negócios domésticos. Se estivesse trabalhando,
Carmen voltava para
casa de madrugada e passava boa parte do dia dormindo - geralmente, só
reaparecia no fim da
tarde. Se tivesse acabado de cumprir uma temporada, dormia direto durante
três dias, para se
recuperar. Enquanto isso, as donas da casa eram dona Maria e Aurora, e a
voz masculina que se
ouvia era a de Gabriel. Carmen parecia uma hóspede - e, com isso, ele,
Sebastian, ficava sem
autoridade.

Ao disputar com Gabriel o posto de primeiro-marido da família, Sebastian
sentiu de saída a
hostilidade de Aurora. Sem querer favorecer o marido ou o cunhado, Carmen
ficava paralisada -
o que, sem que ela quisesse, favorecia Gabriel. Para sobreviver nesse
terreno, Sebastian tentou
várias ententes. A princípio, encheu Carminha de presentes (com o
dinheiro de Carmen) para
angariar a simpatia de Cecília. Quando percebeu que, com esta, não
conseguiria nada, dirigiu sua
campanha contra ela. Chegou a tentar expulsá-la, mas Cecília não se
intimidou:

"A casa é da minha irmã e só vou se ela mandar."

Mas Carmen também se omitia, o que reforçava a posição de Cecília.
Sabendo que, com Aurora,
jamais teria alguma chance, Sebastian voltou-se para uma terceira Miranda
- dona Maria.
Protegido pelo fato de não falar português e por ela nunca ter aprendido
inglês, Sebastian
passava o dia fazendo-lhe pequenos agrados e se dirigindo à sogra como
mamãe:

"Coffee, mamma?"

Acabou arrancando de dona Maria um tratamento mais tolerante, embora isso
não lhe valesse de
muito naqueles primeiros tempos.

Sebastian resolveu tomar outras medidas para ganhar espaço. Começou por
cortar visitas que
apareciam todo dia para almoçar, como os músicos do ex-Bando da Lua.
Sempre que o telefone
tocava, corria para atendê-lo, em inglês, a fim de constranger possíveis
visitantes brasileiros.
Esbravejava contra o


434

uso dos banheiros por aquela legião de visitas e contra o abuso de papel
higiênico, ainda um
artigo difícil de encontrar no imediato pós-guerra. (E era mesmo. Tanto
que, quando Tati chegara
a Los Angeles em fevereiro, Rosina Pagã fora visitá-la e, de presente,
lhe levara dois rolos, como
quem "presenteasse orquídeas".) Carmen disse a Sebastian que sossegasse o
periquito - quem
comprava o papel higiênico era ela, e seus amigos podiam usar até um rolo
inteiro de cada vez, se
precisassem.

Não que Sebastian fosse dos mais comedidos. Na primeira semana do
casamento, foi a um alfaiate
e mandou fazer nove ternos, na conta de Carmen. Seu guarda-roupa aumentou
tanto que Carmen
teve de reservar-lhe dois armários do closet. As brigas também começaram
cedo, embora não se
saiba se, já no primeiro mês, Carmen inaugurou a prática de, no meio de
um bate-boca, tirar a
aliança do dedo, jogá-la na privada e dar a descarga. (Faria isso pelo
menos três vezes durante o
casamento. Sebastian sempre lhe comprava uma aliança nova - com o
dinheiro dela.) Ou se, já
então, ela o mandou dormir no quarto de costura, como faria depois
repetidamente. O fato é que,
em meados de abril, apenas um mês depois do casamento - quando deviam
estar no meio de uma
apimentada lua-de-mel -, Carmen deixou Sebastian para trás, em Beverly
Hills, e foi fazer uma
temporada de dois meses no Copacabana, em Nova York.

Com isso, um dos projetos docemente acalentados por ela durante o noivado
ficava também
adiado: a viagem ao Rio, para apresentar Dave aos irmãos e desfilá-lo
pela cidade. Antes do
casamento, imaginara-se passeando com ele pela avenida Atlântica,
almoçando nas Paineiras ou
levando-o à Vista Chinesa. Em vez disso, Carmen estava no Copacabana, mas
o de Monte Proser,
a 7500 dólares por semana, fazendo três shows de meia hora por noite
(dez, meia-noite e duas da
manhã), acompanhada por um conjunto dirigido pelo brasileiro Fernando
Alvarez - o mesmo
que ela ajudara anos antes, no Rio, ao aceitar gravar um disco em dueto
com ele. A ausência dos
irmãos Ozorio nesse grupo representou a primeira vitória de Sebastian -
Stenio, pelo menos,
nunca mais tocaria com Carmen.

Era a primeira vez que Carmen se apresentava na boate que Proser criara
em sua homenagem
havia seis anos. Essa temporada fazia parte do contrato que previa o uso
de seu nome na futura
filial da Califórnia e o lançamento de seu filme com Groucho.

Aqueles foram também os primeiros shows de Carmen para valer num
nightclub de Nova York. Os
que fizera no passado, no Waldorf e no Versailles, não contavam porque
ela acabara de chegar
aos Estados Unidos e não dominava a língua - limitava-se a cantar e
rezava para que ninguém
da platéia lhe perguntasse nada muito difícil. Agora, anos depois, ela
mesma se dirigia à platéia,
conversava com qualquer um, contava histórias, zombava de si mesma.

"Olhei para um candelabro em minha casa e tive uma idéia para um
turbante", ela dizia.

435

A platéia se sacudia de rir. Podia também falar a sério, como na noite de
11 de maio, quando anunciou que estava casada, que queria um filho e era
"para já".

Foi ali, no Copacabana, que, sem citar a infeliz Lupe Velez, Carmen
inaugurou a prática de soltar
as melenas no palco, para mostrar que estava longe de ser careca e que,
ao contrário, tinha
abundante cabelo. Se sentisse que a platéia não estava acreditando, pedia
a alguém da orquestra
que o puxasse com força e gritava "Ai!". Aos que se espantavam de vê-la
loura, apressava-se em
informar: "É tingido!" - como se ninguém soubesse. A idéia de mudar a cor
de seu cabelo viera
da peruca loura que usara em Copacabana e que ela achara que lhe caíra
bem. Só que a peruca
tinha de ser penteada, era cheia de triquetriques e levava meia hora para
ser aplicada - donde
era mais fácil tingir. Aquela tonalidade, que seria a sua definitiva,
estava mais próxima da cor
natural de seu cabelo do que a asa de graúna que usava ao chegar aos
Estados Unidos.

Carmen sabia que, se explorasse suas imperfeições, atrairia mais simpatia
da platéia. Era um velho
truque do show business, e os comediantes sempre souberam os limites
dessa autodepreciação.
Mas Carmen fez algo inacreditável: na terra da peruca, da maquiagem e das
fotos com retoque,
em que rugas e pés-de-galinha eram inadmissíveis numa estrela, mostrou
sua cicatriz provocada
pela cirurgia na vesícula. Em vez de escondê-la, deixou-a à mostra na
fantasia e ainda chamou a
atenção da platéia:

"Olhem só. É minha cicatriz favorita. E justamente onde aparece mais! Nos
filmes, aplico uma
borboleta ou uma flor em cima, para disfarçar. Mas, no show, faço questão
de mostrar para todo
mundo. Gosto que saibam que estive doente, para que fiquem com pena de
mim."

Mas, o que a platéia diria se soubesse que Carmen estava doente e
trabalhando com sacrifício no
Copacabana? Ao fim de cada show, em que não se percebia nenhum senão,
arrastava-se até o
camarim, tirava a fantasia (entre as quais uma muito engraçada, de cestas
de flores presas aos
ombros), e se atirava exausta sobre um sofá. Estava com alguma coisa que
não sabia explicar. A
cada intervalo, a idéia de voltar para o show seguinte era intolerável.

Um brasileiro que conversou com ela num desses intervalos, seu velho
amigo Paschoal Carlos
Magno, ouviu sua confissão:

"Estou um trapo, Paschoal. Não sei o que há comigo."

Pouco mais de uma hora depois, no entanto, Carmen voltava ao palco para o
show seguinte e,
com seu profissionalismo, exibia uma alegria e uma vitalidade que a
tornavam "colossal, uma
sensação", como disse um crítico sobre o espetáculo. Em meados de maio, o
organismo
apresentou-lhe a conta: Carmen desabou no palco do Copacabana durante um
dos shows. Corre-
corre nos bastidores e seu médico em Nova York, o doutor Udall Salmon, foi
chamado. Ele
diagnosticou uma infecção intestinal causada por um vírus. Carmen foi
levada para o LeRoy
Sanitarium, e a temporada, interrompida.


436

Sebastian voou para Nova York para buscá-la. No dia 20 de maio, Carmen
saiu do hospital
diretamente para o aeroporto. Sebastian cancelou as semanas finais no
Copacabana e a levou de
volta para Los Angeles, argumentando que, além de tudo, o Copacabana lhe
dava prejuízo:-para
cumprir aquela temporada, Carmen tivera que recusar fazer oito semanas no
Roxy a 15 mil dólares
por semana - o que era verdade. Noticiou-se que a empresa que controlava
o Copacabana, a
Chip Corporation, iria processá-la em 200 mil dólares por quebra de
contrato. Carmen processou
de volta a Chip em 260 mil dólares, por quebra de contrato no uso de seu
nome no Miranda"s
Room do Copacabana da Costa Oeste - o qual nunca chegaria a existir. O
Trocadero cancelara
o arrendamento (alegando um trambique da Chip), retomara o imóvel e, com
isso, Carmen ficou
sem os mil dólares por semana a que teria direito por cinco anos -
exatamente 260 mil. Os dois
processos cancelaram-se mutuamente e ninguém se machucou, mas o
Copacabana de Nova York
ficaria de mal com sua musa enquanto Monte Proser estivesse à frente
dele.

Na ida de Carmen para Nova York, Sebastian não perdera tempo em armar o
novo esquema sob o
qual ela passaria a trabalhar e do qual ele seria o gestor, gerente e
agente. Começou por demitir
George Frank, a quem Carmen devia sua libertação de Shubert e o contrato
com a Fox. As
funções de Frank seriam agora cumpridas por ele, Sebastian, sob a
alegação de que, assim, o
dinheiro da comissão "ficaria em casa". Para garantir que mais dinheiro
"ficaria em casa", resolveu
cobrar não os 10% de praxe, mas 15%. Sebastian anunciou também que todas
as sondagens para
filmes que Carmen vinha recebendo (de Lubitsch, de Cantinflas, de
Chevalier) tinham sido
desconsideradas, porque ele e Carmen formariam sua própria produtora. A
idéia era rodar um
filme por ano, a ser distribuído pela United Artists. O filme de estréia
sob esse novo regime seria
Exchange student, um musical sobre uma garota brasileira mandada aos
Estados Unidos para
estudar.

Em junho anunciou-se que Carmen teria um programa de rádio, produzido e
apresentado por ela,
dedicado exclusivamente à música "latina". Em agosto, a idéia evoluíra
para a criação de uma
editora musical também voltada para a música "latina". Com a dissolução
do grupo de músicos
brasileiros que havia anos acompanhava Carmen - dissolução proposta por
Sebastian -, foi
oferecida a ela a possibilidade de organizar e dirigir uma orquestra
feminina, como a de Ina Ray
Hutton. Mas nada disso se materializou: produtora, filme, programa de
rádio, editora, nem mesmo
a orquestra feminina.

O que houve foram negociações confusas, em que Carmen se viu preterindo
boas propostas por
outras de menor interesse. Em agosto, por exemplo, recusou de novo quatro
semanas no Roxy,
num total de 60 mil dólares, dessa vez por "detestar o verão em Nova
York". Em vez disso, foi
cantar no Arrowhead Inn, em Saratoga Springs, não muito longe de Nova
York, a 8500 dólares
por semana. (Na noite de estréia, Carmen teve de voltar seis vezes ao
palco e seu

437

doce amigo Don Ameche, casualmente presente, deu um soco no nariz de um
espectador que
fizera um comentário desairoso sobre ela. Outro amigo presente naquela
noite no Arrowhead era
Haroldo Barbosa, que viera do Rio para uma longa temporada de estudos
pelas rádios
americanas.) Em setembro, Carmen recusou quatro semanas no Flamingo, o
primeiro cassino de
Las Vegas, a 12 mil dólares por semana. Mas aceitou voltar ao seu
conhecido Chez Paree, em
Chicago, também por 8500 dólares e, dessa vez, acompanhada por Jack
Rodriguez and His
Rhumba Band. Infelizmente, essa temporada no Chez Paree coincidiu com o
"calor" do FBI sobre
os nightclubs de Chicago para desbaratar suas ligações com as malhas de
prostituição e drogas.
Com freqüência, os G-Men (agentes federais) davam batidas no local e os
inocentes artistas,
Carmen entre eles, eram levados (por proteção) para uma sala dos fundos,
enquanto os clientes de
pior catadura eram desarmados e presos.

Quando se diz que Carmen recusou isto ou aquilo, leia-se, de preferência,
Sebastian - porque o
recente desinteresse de Carmen por contratos e sua nova tendência a
deixar que decidissem por
ela se ajustavam como uma luva às pretensões gerenciais de seu marido. É
possível que, em
alguns casos, como o do Flamingo, ela nem soubesse que estava sendo
convidada. Ou então ficou
sabendo, mas não quis confrontar uma decisão de Sebastian.

Foi também por esse motivo - para poupar Carmen de um choque com o homem
com quem ela
acabara de se casar - que, em julho daquele ano, sua irmã Cecília decidiu
voltar para o Rio com
Carminha. A situação entre ela e Sebastian azedara de vez, e os dois mal
se cumprimentavam.
Cecília deixouse influenciar por Dó, mulher do cônsul Portugal, que não
via a hora de voltar para
o Brasil, e foi embora. Carmen apenas se resignou. Sebastian fez uma
marca na coronha. Podia
concentrar-se agora na batalha contra sua maior inimiga: Aurora.

E, quando menos se esperava, um velho amigo da família reincorporouse ao
círculo: Aloysio de
Oliveira.

Em seu livro de memórias, De banda pra lua, e em inúmeras entrevistas,
Aloysio sempre deu a
entender que, a partir do casamento de Carmen com Sebastian, em 1947, ele
se afastou ou foi
afastado do trabalho e do convívio com ela. Mas a realidade demonstra o
contrário. Quem tomou
a decisão de se afastar, em 1943, foi Aloysio, para fugir de Carmen -
principalmente da idéia de
se casar com ela. Foi trabalhar com Disney nos filmes "brasileiros" e,
depois, ocupou o tempo
casando-se com americanas e fazendo bicos em vários estúdios de cinema.
Nos quatro anos que
passou longe de Carmen, inclusive morando em Nova York, nada de
importante aconteceu em sua
carreira. Não se tornou "Mister Miranda", que era o que temia, mas também
não fez o suficiente
para ser reconhecido por seu próprio nome. Assim, no fim de 1947, ambos


438

casados - e Carmen, com isso, impedida de continuar alimentando fantasias
a seu respeito -,
Aloysio simplesmente se ofereceu para ser reintegrado à

turma.

Levou com ele um colega dos tempos de Disney: o letrista e, às vezes,
compositor Ray Gilbert, 35
anos, com algum traquejo no trato com artistas "latinos" e em cometer
versões em inglês para
sucessos do Brasil ("Baia") ou do México ("You belong to my heart").
Carmen precisava de
material especial para seus shows. Aloysio e Gilbert ofereceram-se para
lhe fornecer canções que
"satirizassem sua personalidade". Começaram com "I like to be tall", "Fm
cooking with glass" e "I
make my money with bananas", canções medíocres e ritmicamente híbridas,
mas que davam
ensejo a falas engraçadas de Carmen à guisa de introdução. A última, "I
make my money with
bananas", era um caso à parte. Carmen já quase não trabalhava com bananas
(seus turbantes
tinham superado os motivos frutíferos), mas os americanos continuavam a
identificá-la com elas -
raro o dia em que não se publicava a surrada piada de que, se a situação
financeira apertasse,
bastaria a Carmen "comer seu turbante". E um colunista escreveu que ela
"ganhava mais dinheiro
com bananas do que a United Fruit". Não era verdade, mas, se fosse, seria
com meios e para fins
bem mais benévolos do que os utilizados pela United Fruit, acusada de
financiar golpes de
Estado nas "banana republics" das Américas.

Por sugestão de Aloysio, Gilbert converteu a marchinha "Touradas em
Madri", de Braguinha e
Alberto Ribeiro - um prodígio de concentração, com apenas quinze versos -
, num paso doble
intitulado "The matador", com nada menos de cinqüenta versos e quase um
roteiro de desenho
animado. Foram também Gilbert e Aloysio que levaram a Carmen o
inacreditável (de ruim) "The
wedding samba", anteriormente conhecido como "The wedding rhumba", de uma
parceria
(Abraham Ellstein, Allan Small e Joseph Liebowitz) de quem, por sorte,
não se conhece nenhuma
outra canção. A contribuição mais bem-sucedida de Gilbert para Carmen foi
a versão em inglês
de "Cuanto lê gusta", do mexicano Gabriel Ruiz, outra rumba, mas esta até
divertida, e com uma
letra quase dadaísta.

Em novembro de 1947, Carmen marcou sua volta à Decca gravando "Cuanto lê
gusta", com as
Andrews Sisters e a orquestra de Vic Schoen. O disco saiu (com "The
matador" no lado B) e sua
distribuição no Brasil fez a alegria dos que afirmavam que Carmen já não
tinha nada a ver com o
país. E, a julgar por esse disco, não tinha mesmo: tudo nele - canções,
arranjo, temáticas, até o
sotaque de Carmen - tinha a ver com Cuba ou com o México, sem faltar
trilos e pipilos. O
estranho era que tal desnacionalização musical se desse justamente quando
ela voltara a ter
Aloysio como seu orientador.

Sebastian, pelo menos a princípio, não teve problema em assimilar Aloysio
- e vice-versa. Com
os outros brasileiros do antigo Bando da Lua fora do caminho, ele podia
pôr em prática seu plano
de "profissionalizar" o show de Carmen,

439

usando músicos mais impessoais, simples contratados, e um pequeno
grupo de
dançarinos americanos para enriquecer o número. Aloysio, pelo visto,
gostou da idéia. Em
fevereiro de 1948, Carmen foi convidada para uma temporada de três
semanas em Miami. Não
havia tempo para formar um novo conjunto, donde Aloysio foi na frente
para armar um grupo
"semibrasileiro", com músicos locais. Quando Carmen e Sebastian chegaram,
esses músicos já
estavam prontos e ensaiados. Mas não deu certo - sem os arranjos de
Vadico ou de Zezinho e
sem o balanço dos músicos brasileiros às suas costas, Carmen já não era
tão Carmen. Os
jornalistas de Miami perguntavam: "Onde estão os Miranda"s Boys?".

Tinham se dispersado. A última vez em que Zezinho, Nestor e os irmãos
Ozorio haviam tocado
juntos fora em novembro do ano anterior, na Capitol - não com Carmen, mas
com Peggy Lee, na
gravação do que seria o maior sucesso de sua carreira: "Manana", dela
mesma e de seu marido, o
guitarrista Dave Barbour. (A idéia de Peggy usá-los como acompanhantes
tinha sido de Carmen
e, no selo do disco, que venderia 2 milhões de cópias em 1948, eles foram
chamados de The
Brazilians.) Ao fim da sessão, os rapazes saíram por Vine Street tocando
e cantando "Manana",
sem se darem conta de que toda a letra (incluindo o refrão, "Manana/Is
soon enoughfor me") era
dolorosamente ofensiva, não apenas aos mexicanos de que parecia tratar,
chamando-os de
preguiçosos, mas também aos brasileiros e outros "latinos" que viviam
sendo confundidos com
eles.

Paradoxalmente, apenas três meses antes, numa das estréias de Copacabana,
Carmen deixara
escapar uma de suas poucas queixas públicas contra os Estados Unidos. Ao
enfatizar que queria
evitar certos clichês nos filmes que pretendia produzir, ela dissera ao
colunista Lowell E.
Redelings, do Hollywood Citizen-News, de 25-7-1947:

O que me incomoda nos quase dez anos em que estou neste país é a maneira
como a América do
Sul é mostrada nos filmes. Somos apresentados como um povo desligado,
meio selvagem, que
deixa tudo para manana [amanhã] e que canta músicas sensuais em cenários
de luxo. Não somos
absolutamente desse jeito. Damos duro em tudo que fazemos. Se dormimos a
siesta, é porque o
clima obriga. Mas começamos a trabalhar todos os dias muito cedo e
trabalhamos até mais tarde
do que as pessoas aqui. Os estúdios deveriam pesquisar melhor a América
do Sul para tentar
mostrála como realmente é. As pessoas na América do Sul não gostam do
jeito que aparecem na
tela. Não as culpo.

Mas a própria Carmen, sem querer, contribuía para a eternização de certos
estereótipos. Uma das
novas músicas de Ray Gilbert para ela era "Don"t talk expensive, talk
cheap", supostamente
baseada numa frase que Carmen
440

teria dito a Sebastian, significando "Não fale difícil, fale fácil". Mas,
depois de oito anos nos
Estados Unidos, Carmen teria dificuldade para entender o vocabulário de
Sebastian? (Como se
ele fosse H. L. Mencken ou Alfred North Whitehead.) Mais uma vez, essa
letra refletia apenas o
velho preconceito sobre o latino que, não importava quanto anos morasse
lá, jamais dominaria a
língua.

O próprio Sebastian não parecia ter vindo ao mundo para executar tarefas
de alta complexidade.
Apesar de se autonomear chefe da companhia, sua função nas excursões de
Carmen consistia em
chamar o rapaz da farmácia para aplicar injeções, na eventualidade de
alguém ficar resfriado, ou
mandar buscar cachorros-quentes na lanchonete, no caso de um ensaio
avançar pelas horas
extras. Além, claro, de cuidar do dinheiro: receber os cachês, pagar os
músicos, e separar o dele e
o de Carmen. Não era pouco.

Mas talvez sua atribuição mais importante fosse cuidar da frasqueira
preta em que Carmen
transportava sua farmácia particular: toda espécie de analgésicos,
aspirinas e
antidescongestionantes. O que mais havia na frasqueira, no entanto, era o
assustador estoque de
soníferos e estimulantes de venda controlada: red devils, como os íntimos
se referiam ao Seconal;
bennies, abreviatura carinhosa da Benzedrine - centenas de cápsulas de
cada, em vidrinhos
dentro de caixas. Para Carmen, esse estoque se explicava: numa cidade
estranha, sem conhecer
médicos que lhe pudessem passar uma receita para um suprimento de
urgência, era melhor não
correr riscos.

Na bolsa de Carmen, ficava o lindo objeto que Sebastian lhe dera (mas
pago por ela) para,
segundo ele, "transportar suas vitaminas": uma caixinha de ouro maciço,
com a tampa adornada
por cinco safiras, quatro rubis, seis pequenas esmeraldas e seis
topázios. Dentro dela, as mesmas
cápsulas vermelhas, verdes e amarelas que a punham para dormir ou a
faziam acordar - numa
quantidade que, para pessoas normais, duraria semanas. Para Carmen,
aquela era apenas a dose
do dia-a-dia.



Capítulo 25


1948

Sonho abortado



Carmen estava contando para Tati no bar do hotel em Miami, já quase de
manhã:

"Tyrone Power me tirava para dançar no Ciro"s. Diziam que era fresco
[gay], mas bem que
gostava de mulher. E estou de prova porque eu era uma uva e via como ele
ficava [risos] ao
dançar comigo..."

Carmen e Tyrone seriam apenas amigos em Hollywood, mas histórias como
essa eram boas de
lembrar, tantos anos depois, ao raiar do dia numa cidade estranha. Carmen
levara Tati para lhe
fazer companhia em Miami. As duas tinham firmado uma sólida camaradagem,
apesar (ou por
causa) de suas diferenças: Tati, paulistana, esnobe e intelectualizada;
Carmen, carioca,
escrachada e intuitiva. Ao chegar a Los Angeles um ano antes, e ao
escrever para suas irmãs em
São Paulo contando que ia visitar Carmen pela primeira vez, Tati só a
chamava, com desprezo, de
"Bombshell". Pelo que via dela nos filmes, achava que não teriam nada em
comum. (Sua opinião a
respeito de Hollywood também era arrasadora: "Um horror. Parece a avenida
São João nos
lugares onde tem bomba de gasolina".) Mas bastou a Tati conhecer Carmen
para, na carta
seguinte, já defini-la com mais simpatia: "Estouradona, mascarada de
grande vedete, mas
engraçada e com umas saídas boas". Seguir-se-iam muitas visitas a North
Bedford Drive, durante
as quais, segundo ela, conversavam até as seis da manhã, trocavam
confidências, riam muito e
Tati enriquecia seu vocabulário com os palavrões que aprendia com Carmen.

Carmen também aprendera a gostar dela. Primeiro, por Tati ter superado a
crise provocada pela
ligação de Vinícius com Regina Pederneiras e salvado seu casamento;
depois, pela garra com que
conduzia sua família em Los Angeles. Sem dinheiro (Vinícius ganhava
caraminguás como vice-
cônsul), sem empregada e com dois filhos pequenos, Tati dava duro no
tanque, no fogão e na
máquina de costura, que comprara a crédito. Fazia até pijamas para o
marido. Em compensação,
punha Vinícius para passar roupa a ferro, varrer o chão e apalpar tomates
na feira - e olhe que
Vinícius já era o poeta do "Soneto da separação":

De repente, do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma


442

E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o
espanto.

A ida de Tati a Miami com Carmen, como "secretária" e faz-tudo, era
conveniente para ambas:
Carmen tinha alguém para cuidar de sua roupa, e Tati, embora o Itamaraty
não pudesse saber, era
paga para acompanhá-la. E Carmen sabia ser generosa. Com o dinheiro que
recebeu pelas três
semanas em Miami, Tati acabou de pagar as prestações da máquina de
costura, comprou à vista
uma máquina de lavar Thor e se deu de presente uma gravura assinada de
Picasso.

Vinícius e Tati perceberam pequenas e grandes transformações em Carmen
desde o casamento
com Sebastian. A primeira era que, agora, Vinícius tinha mais um
companheiro de copo em North
Bedford Drive - e não era Sebastian. Este era um bebedor firme, com uma
adesão diária e
matinal ao bourbon Four Roses, tomado puro. Sebastian começava cedo,
seguia bebericando
pelo resto do dia, suava muito, e, exibindo uma resistência típica do
alcoolismo, custava a ficar de
pileque. Mas o novo companheiro de copo era Carmen. Vinícius - que a
conhecera
completamente abstêmia em 1946, tomando suco de frutas - deu-lhe as boas-
vindas ao clube. E,
desde o começo, percebeu que, às vezes, sem sentir, ela o acompanhava
gole a gole, o que era
não pequena façanha. Foi uma evolução muito rápida para uma mulher que,
até tão pouco tempo,
provocava estranheza em Hollywood por não beber.

A primeira bebida regular de Carmen, ensinada a ela por Sebastian, fora o
Alexander"s, um
drinque "feminino", enjoativo e altamente calórico, à base de conhaque
Napoleon, licor de cacau,
creme de leite, gelo, nozes e chocolate picados. Carmen gostou e ficou
craque em prepará-lo.
Mas, em poucos meses, ao sentir que o Alexander"s a engordava, trocou-o
pelo uísque e descobriu
a magia do travo seco e severo, de madeira velha, do destilado escocês.
Carmen começou
tomando-o com gelo e soda; depois, apenas gelo; e por fim, à cowboy,
acompanhado de água
(um gole no Ballantine"s ou no White Horse, outro no copinho d"água).
Nesse processo,
descobriu-se tão resistente quanto Sebastian.

Ninguém levou Carmen a beber. Se for preciso estabelecer uma causa que
favoreceu nela a
formação desse hábito, pode-se arriscar o fato de que, durante grande
parte de 1947, sem contrato
com um estúdio - sem uma rotina de trabalho, um lugar a que tivesse de ir
diariamente - nem
uma agenda de shows definida, Carmen se viu, pela primeira vez, com muito
tempo livre. Se
quisesse, podia trocar todas as noites pelo dia ou passar uma semana sem
dormir. Essas horas
precisavam ser preenchidas com alguma coisa: jogar tênis, resolver
palavras cruzadas, sair para
dançar, tricotar suéteres, beber, conversar fiado - as opções eram
infinitas, e Carmen poderia ter
escolhido qualquer uma. Aconteceu que, ao ceder a um eventual
oferecimento (ou à própria
curiosidade), e finalmente interessar-se por beber, Carmen se sentiu bem
- sem se embriagar e
sem acusar os efeitos desagradáveis que a bebida provoca em quem


443

não dispõe de um organismo apto para recebê-la. Carmen, pelo visto, tinha
esse organismo. E,
como tinha também muito tempo, era natural que o aproveitasse para isso.
O fato de Sebastian ser
alcoólatra era apenas circunstancial - se Carmen não se desse bem com o
produto, ela jamais
beberia. (Vinícius também era alcoólatra, e Tati não bebia.)

Em 1947, no entanto, a bebida ainda estava longe de ser um problema para
Carmen. Os
barbitúricos e as anfetaminas, sim - desregulando seu sono, envelhecendo-
a antes da hora e
interferindo silenciosamente em sua saúde. E era natural que, com sua
visão invertida de
dependente, Carmen visse esses medicamentos como uma solução. Era um
conforto saber que,
por mais dias e noites que passasse acordada, podia descontar o sono
perdido e se pôr para
dormir com as cápsulas mágicas. Não importava que fosse um sono
quimicamente induzido - um
sono sem sonhos, sem movimentos dos olhos, sem prazeres ou medos (como o
sono dos mortos).
Era sono do mesmo jeito e, quando ela tinha de cumprir uma temporada de
shows em alguma
cidade, não podia dar-se ao luxo de não dormir.

Para Carmen, as temporadas nos nightclubs eram as melhores, porque os
horários estavam mais de
acordo com seu relógio interno. O primeiro show começava por volta das
dez da noite e, supondo
que o último fosse à uma da manhã, havia tempo de sobra para tudo: antes
das duas, Carmen
estaria recebendo os fãs no camarim; perto das três, estaria removendo a
maquiagem e lavando o
cabelo com a ajuda de uma camareira que viajava com ela (ultimamente,
quase sempre Odila);
essa operação tomava uma hora, significando que, às quatro da manhã,
Carmen podia sentar-se
para jantar (em excursões, um bife com nove centímetros de altura) e só
então se juntava aos
amigos no bar. Dificilmente ia para a cama antes das sete. Era trabalho,
mas era também diversão.
E não importava que a jornada só acabasse ao nascer do sol, porque ela
ainda teria as dez ou
doze horas seguintes para dormir - mesmo que, agora, precisasse combinar
as várias cápsulas de
Seconal com um Nembutal para prolongar o efeito.

Já os shows em cinemas, como os do Roxy, pagavam o dobro ou o triplo, mas
eram um suplício
para alguém com seus hábitos de sono. Nos dias normais, o primeiro show
começava ao meio-dia.
Nos dias de matinê, às dez da manhã. E, nos fins de semana, o último era
à meia-noite. Isso a
impedia de cumprir sua exigência diária de sono, e o que a punha de pé
para enfrentar a maratona
dos sete shows por dia eram as cápsulas de Benzedrine que tinha de tomar
ao acordar e entre um
show e outro. Por sua vez, os estimulantes ao longo do dia interferiam na
sua capacidade de pegar
no sono quando chegasse a hora, e o jeito era reforçar a dose de
barbitúricos ao dormir - mas
não de modo a impedir que acordasse no dia seguinte. Era um círculo
vicioso, em que a
alternativa era dormir muito ou não dormir nada. Não admira que, qualquer
que fosse a cidade em
que se apresentasse, Carmen só saísse da cama do hotel direto para o
palco, e vice-versa.


444

Tati sentiu na pele o problema de Carmen na temporada em Miami, quando se
deu conta de que
teria de seguir os horários da titular para justificar sua ida com ela.
Carmen desaparecia entre os
lençóis durante o dia para poder funcionar à noite, e Tati precisou fazer
o mesmo, só que sem os
remédios. Nas longas conversas que tinham depois dos shows, Carmen se
queixava de seu
casamento com Sebastian.

Com quase um ano de casados, nada do que ele prometera se cumprira.
Sebastian não conhecia
ninguém importante na área musical. Recusava as propostas que vinham da
William Morris e só
lhe arranjava contratos em botequins de segunda categoria, e que ela
tinha a maior dificuldade
para cancelar. Ao arrecadar o cachê dos shows, aplicava-o como se fosse
seu e não lhe prestava
contas. E, não contente em fracassar como agente e empresário, insistira
em que ela lhe
financiasse uma loja de eletrodomésticos em Los Angeles, para aproveitar
a onda consumista do
pós-guerra. Carmen relutara, mas lhe dera o dinheiro. Sebastian abrira o
estabelecimento e, como
não tinha jeito para negócios e deixava tudo na mão de empregados, a loja
quebrara. Ficaram as
dívidas e o prejuízo para Carmen liquidar.

Sebastian revelava-se um blefe de ponta a ponta. Seus celebrados contatos
com os figurões do
cinema não saíam do zero, e ele não conseguia convencer nem seu próprio
irmão a investir num
filme. O projeto de fundar uma produtora independente também já fora
engavetado, mas, por
causa dele, ninguém a chamava para filmar - achavam que já estava cheia
de propostas. Até que
ela própria resolvera se mexer e encontrara Joe Pasternak, ex-produtor de
Deanna Durbin na
Universal e agora com o maior prestígio na linha de musicais da MGM. Ele
a convidara a fazer
dois musicais "jovens" em Technicolor (com opção para um terceiro) na
marca do leão, e Carmen
aceitara correndo. O primeiro, A date with Judy (no Brasil, O príncipe
encantado), teria Jane
Powell, Wallace Beery e Elizabeth Taylor, com Carmen como o quarto nome
do elenco.

As filmagens tomariam março e abril de 1948, e Carmen deveria apresentar-
se ao estúdio assim
que voltasse de Miami. A seu lado, estaria Xavier Cugat, realizando um
antigo sonho de ambos, o
de firmar juntos. Ele a acompanharia com sua orquestra nos dois números
musicais que lhe
estavam reservados: "Fm cooking with glass" e "Cuanto lê gusta". A idéia
era mostrar uma nova
Carmen, versão MGM: sem os turbantes, mas penteada por Sydney Guilaroff e
maquiada por Jack
Dawn, duas figuras legendárias de Hollywood; em vez das fantasias de
baiana ou rumbeira, ela
usaria os vestidos e chapéus criados por Helen Rose.

Carmen voltou de Miami, rodou O príncipe encantado, e esse filme pode ter
funcionado para todo
mundo - mas não para ela. Só entrava em cena aos quarenta minutos
cravados do filme e seu
papel (de uma cantora "latina", de origem indefinida, chamada Rosita) se
limitava a duas ou três
falas inócuas e a alguns passos de rumba com Wallace Beery. Seus números
musicais eram opacos

445

- a química com Cugat não aconteceu, e a coreografia do jovem
Stanley Donen não
podia ser mais apática. Mas o pior é que a tela denunciava uma Carmen
ausente, triste e
desgastada.

Um dos motivos podia ser o contraste com o frescor indecentemente juvenil
das protagonistas:
Jane Powell, dezenove anos e ainda vivendo a ingénue adolescente, e
Elizabeth Taylor,
dezesseis, mas de uma beleza quase adulta e já se despedindo de seus
papéis de menina-moça.
Carmen, no filme, fazia par com o esférico e rotundo Cugat e, pior ainda,
era suspeita na trama de
manter um romance ilícito com Beery - o qual, na vida real, estava com 63
anos, idade então
considerada próxima da morte. Era altamente depreciativo para Carmen,
como estrela e como
mulher. Só Vinícius achou bem feito - quem a mandara filmar com Jane
Powell, que, para ele,
tinha "cara de ladrilho"? (Dali a três anos, a birra de Vinícius com Jane
Powell renderia um poema
em que ele dizia: "Você me lembra alimento enlatado, abobrinha verde,
André Kostelanetz/ E eu
lhe garanto que você não é a mulher que foi tirada do meu costelanetz"".)

Em suas poucas seqüências no filme, Carmen parecia inchada, os olhos
duros e sem brilho, a boca
crispada. A maquiagem, mesmo realçada pelo Technicolor, não conseguia
esconder a pele sem
vida. Os vestidos e os sapatos podiam ser chiques, mas inadequados para
seus movimentos - ou
talvez fosse Carmen que parecesse trôpega ou cansada. Ninguém lhe daria
os 39 anos que
acabara de completar. Daria mais - o que era terrível, considerando-se
que, devido à poda de
cinco anos em sua idade quando saíra do Brasil, Carmen tinha oficialmente
34. E o pior era a
sensação de tristeza que ela passava, e que nada tinha a ver com a
personagem. Mas não era
tristeza. Era o começo de uma depressão crônica em conseqüência da
intoxicação provocada
pelos medicamentos - o organismo começando a exigir um suprimento
ininterrupto para
continuar funcionando.

Carmen arrependeu-se de não ter solicitado à MGM um prazo de alguns dias
antes de se
apresentar para a filmagem. Sua tática, já aplicada com sucesso em outras
ocasiões às vésperas de
um compromisso importante, consistia em ir para Palm Springs com Aurora
ou Odila e tentar
derrotar a excitação e a insónia pelo cansaço. Isso significava diminuir
a dose dos medicamentos,
sofrer os rigores da abstinência - ansiedade, inquietude, taquicardia e,
embora ela nem
desconfiasse, a possibilidade de delírios e convulsões - e ficar acordada
até que o organismo
cedesse e ela conseguisse dormir. Só assim podia estabelecer um mínimo de
regularidade em seu
sono (permitindo-lhe acordar cedo para filmar) e recuperar um aspecto
saudável. Mas não tivera
tempo para isso. O resultado estaria à vista de todo mundo quando O
príncipe encantado
estreasse em junho.

Terminadas as filmagens, Carmen mal teve tempo de retocar o batom. Depois
de anos de
sofrimento pela guerra, a Europa - aliás, a Inglaterra - voltava a se
abrir para o mundo, e
chamava a visitá-la os artistas que,


446

durante o conflito, tinham lhe ensinado, por filmes e discos, que valia a pena
lutar pela vida. Um desses
artistas era Carmen. Embarcou para Londres no dia 15 de abril, para uma
temporada de quatro
semanas no Palladium, do tentacular empresário Vic Parnell, a versão
inglesa de Shubert. Com
ela, no America, seguiram Sebastian, Aurora e um grupo organizado por
Aloysio, com Zezinho,
Affonso, Vadico (de volta ao conjunto, especialmente para essa excursão),
Gringo do Pandeiro
(ritmista brasileiro que trabalhava com Cugat) e o baterista mexicano
Chico Guerrero, fã de
samba. A princípio, Carmen iria somente com Tati e os músicos - e Tati já
começara a gastar por
conta as diárias que lhe seriam pagas por Carmen. Mas, no último
instante, Aurora resolveu ir e ela
teve de lhe ceder o lugar.

"Sem sacrifício", disse Tati numa carta, "porque o marido da Carmen
resolveu aderir e, como se
trata de um grande chato, a coisa piorou muito."

Carmen decidiu aproveitar a travessia para regularizar o sono cortando os
remédios. Mas isso
parecia impossível. Dias depois, ainda não conseguia dormir, e a ausência
dos medicamentos já
se manifestava nos suores frios, tremedeiras e dores no corpo. Desistiu
da estratégia e voltou aos
remédios, mas a vigília continuou. O sono não vinha, nem com a ajuda de
quantas cápsulas de
Seconal e Nembutal seu organismo conseguisse suportar sem vômitos ou
diarréia. Nada parecia
fazer o efeito desejado. A insónia prolongada provoca alucinações, e
somente Carmen podia
saber os monstros que desfilaram diante de seus olhos na treva da cabine.

Sabe-se que, em Londres, um médico teria sido chamado a seu hotel para
aplicar-lhe "uma
injeção" que a fizera dormir. A injeção seria de Demerol, um narcótico
analgésico à base de
morfina e que, combinado com os barbitúricos, tinha o efeito sedativo de
uma anestesia. Mas o
provável é que o primeiro alívio lhe tenha sido fornecido, ainda no
navio, por um dos médicos de
bordo - porque Carmen parece ter chegado bem a Londres, pronta para
estrear no dia 26 (e isso
não exclui uma posterior aplicação pelo médico londrino). O fato é que,
agora, ela detinha um
segredo perigoso: os sedativos injetáveis.

Carmen escutava da coxia do Palladium enquanto o ingênuo mestre-
decerimônias a apresentava:

"Esperamos que a platéia não estranhe a nossa estrela e entenda o seu
gênero musical,
absolutamente inédito para os ingleses", disse ele.

Carmen era a primeira artista "latina" a se apresentar no histórico
teatro da Argyll Street. Por isso
o mestre-de-cerimônias se achara na obrigação de "explicá-la" e ao seu
tipo de música. Mas não
carecia. Quando Carmen surgiu no palco, as 2500 pessoas que o Palladium
comportava ficaram
de pé. As palmas começaram, e pareciam não querer parar. Falou-se em
vários minutos de ovação
- e, para os músicos atrás de Carmen, elas tiveram mesmo a duração de uma
eternidade.

447

O show demorou ainda mais para começar porque, na seqüência
das palmas, Carmen
balbuciou alguma coisa tentando agradecer, começou a chorar, e recebeu
mais aplausos. Essa
troca de amor se repetiria, de forma abreviada, para as platéias que
lotariam o Palladium duas
vezes por dia (às seis e às nove da noite) durante toda a sua temporada -
não mais de quatro, mas
de seis semanas, porque os londrinos não queriam deixá-la ir embora.

Eles eram gratos a Carmen pelos momentos de alegria que ela lhes
proporcionara na guerra:
"Mamãe, eu quero", "Chica chica boom chie", "I, yi, yi, yi, yi (I like
you very much)", "Cai, cai",
"Chattanooga choo-choo". Sabiam tudo isso de cor porque Londres fora das
poucas capitais da
Europa a que os filmes americanos continuaram chegando durante o conflito
- pelo menos os
principais, entre eles os de Carmen. Seu festival de olhos, boca,
sapatos, turbantes e canções em
Serenata tropical, Uma noite no Rio, Aconteceu em Havana e Minha
secretária brasileira injetara
vida no cotidiano lúgubre dos londrinos em meio aos bombardeios. Por
isso, ao visitar Londres
pela primeira vez, Carmen tinha de falar e cantar no dialeto daqueles
filmes, para gáudio dos
repórteres que se esbaldavam reproduzindo-o nos jornais. (Para que
quebrar o encanto e mostrar-
lhes que tal jeito de falar era apenas o de suas personagens?) Exceto por
isso, os jornalistas
ingleses tinham perfeita noção de quem ela era e do que significava.

"Carmen Miranda é uma filial do departamento de propaganda [brasileiro]
que não custa nada ao
Brasil - nem mesmo um agradecimento", escreveu Ed Gregorian no London
Morning. "Carmen
vive num país [os Estados Unidos] em que as pessoas só entendem inglês,
comem em inglês,
dormem em inglês, se divertem em inglês e não têm a menor intenção de
estudar português para
entender a letra de "Tico-tico no fubá". Por isso [em seus shows], Carmen
fala e canta em inglês,
mas canta também em português e comete a proeza de ser entendida por
todos." Outro jornal, o
Daily Mail, descreveu-a: "É o cruzamento entre um bolo de casamento, uma
árvore de Natal e
uma exposição de flores. A platéia recebeu-a com tanto entusiasmo que ela
teve de fazer um
discurso de agradecimento antes de cantar a primeira nota. E, ao
contrário da maioria dos astros
do cinema a se apresentar nos palcos, Carmen não se poupa em nada.
Oferece uma performance
completa".

Menos aos domingos. Nestes, os shows, proibidos pela religião anglicana,
tinham de ser
"concertos". Carmen podia cantar, mas estava proibida de falar com os
colegas no palco, usar
turbantes e expor a barriga. (A censura inglesa implicara com o seu meio
palmo de barriga de
fora. Ela o cobrira com um lenço.) Eram formalismos que Carmen
respeitava, assim como se
encantava ao ver os ingleses disciplinadamente formando filas, ao fim do
espetáculo, para lhe
pedir autógrafos - bem diferente da balbúrdia dos shows em Nova York, em
que as pessoas
abriam caminho a cotoveladas e se atiravam umas sobre as outras com o
caderninho na mão.
A própria Carmen fizera uma concessão


448

importante para estar ali: aceitara receber 2 mil libras por semana - pouco
mais de 5 mil dólares,
muito menos do que ganharia nos Estados Unidos. Mas era uma nova frente
que se abria, e no
continente em que, por acaso, nascera.

A temporada de Carmen coincidiu com a passagem por Londres de seu amigo
Roberto Seabra,
que nunca se recobrara por inteiro da paixão por ela, e da atriz
portuguesa Beatriz Costa, sua
colega dos tempos da Urca. Roberto e Beatriz, juntos ou separados,
chamaram-na diversas vezes
a sair com eles para ver Londres à luz do dia. Mas Carmen nunca acedeu a
seus convites. Não que
não quisesse - apenas não tinha forças para voltar à vida enquanto a
combinação de remédios
para dormir não cumprisse o seu ciclo, o que só acontecia a poucas horas
de ela voltar a ser
Carmen Miranda e encher o palco do Palladium com sua presença. Aurora e
os rapazes saíam
para os passeios em seu lugar.

A Londres em que Carmen passaria quase dois meses ainda ostentava as
cicatrizes de guerra -
enormes terrenos baldios no lugar dos quarteirões destruídos pelas
blitzen alemãs, famílias
desfalcadas de pais e filhos mortos em combate, e um racionamento de
produtos então
considerados básicos (sabão, gasolina, chocolate, penicilina, cigarros)
que não se sabia quando
iria terminar. Pois era essa a cidade que a recebia como se, do palco,
ela lhe soprasse alegria e
vitalidade. Nenhum londrino desconfiaria de que, terminado o espetáculo e
depois de fazer um
social com seus admiradores no camarim do Palladium, Carmen voltava para
o seu hotel em South
Kensington, encerrava-se em seu quarto, com todas as luzes apagadas e
cortinas fechadas - num
escuro tão denso e profundo quanto os sedativos permitiam -, e cancelava
mais um dia em sua
vida até que, dali a quase vinte horas, as luzes do palco voltassem a se
acender.

No dia 7 de junho, quando eles deixaram Londres pelo Queen Mary, quase
todos tinham o que
fazer no destino. Zezinho, Vadico e Gringo do Pandeiro ficaram em Nova
York, para se
apresentar no nightclub Ruban Bleu. Depois, Zezinho voltaria para Los
Angeles, onde, com
Nestor Amaral, Laurindo de Almeida e Russo do Pandeiro, reassumiria sua
cátedra ao cavaquinho
no restaurante Marquis. Aloysio, sem nenhum trabalho em perspectiva,
seguiu direto para o Rio.
Carmen e Sebastian, além de Aurora, passaram alguns dias em Nova York,
onde assistiram ao
inacreditável sucesso de O príncipe encantado em sua estréia no dia 21 de
junho no Radio City
Music Hall, e finalmente tomaram o caminho de casa.

Em 1948, Carmen calculava ter faturado, desde a sua chegada aos Estados
Unidos, cerca de 2
milhões de dólares. (Em moeda brasileira, soava ainda melhor: 60 milhões
de cruzeiros - mas
onde ela ganharia tanto dinheiro no Brasil?) Isso significava mais de 200
mil dólares por ano em
média - perfeitamente possível,
449

considerando-se que seu último salário na Fox, em 1945, fora
de
6250 dólares por semana. Já não era a mulher mais bem paga dos Estados
Unidos, embora ainda
fosse uma das mais bem pagas.

E o que Carmen tinha a mostrar por esse dinheiro? Uma casa em Beverly
Hills e outra em Palm
Springs; um Lincoln conversível creme (duas portas); uma fortuna em
jóias, mas difícil de
calcular; outra, altamente volátil, em perfumes (era só esquecer os
frascos meio abertos); e uma
quantidade incerta de dinheiro vivo, espalhado pela casa ou depositado em
bancos, sobre os
quais não parecia ter muito controle ou interesse. Ações, seguros,
aplicações? Zero. É verdade,
havia os poços de petróleo, mas o que eles lhe rendiam talvez não lhe
pagasse a gasolina.

Tão difícil quanto saber seu ativo real era contabilizar suas despesas.
Para uma temporada de
quatro semanas no Roxy, por exemplo, Carmen investia 9 mil dólares em
turbantes, bijuterias,
vestidos, sapatos (alguns, com lâmpadas coloridas que se acendiam) e 48
pares de meias com uma
orquídea logo acima do joelho. Gastava uma nota em gorjetas para os
carregadores - levava em
cada viagem dois contêineres para os turbantes, três para as fantasias e
dois para as roupas de
passeio (que mal chegava a usar). E sua verba anual para maquiagem era
absurda - somente o
que consumia em batom daria para sustentar dezenas de bocas americanas
comendo galinha
assada todos os dias. Era também ela quem pagava de seu bolso os músicos,
os arranjos, o diretor
musical, os direitos autorais, a comissão da William Morris, o agente e o
publicista. E, do que
sobrasse, o imposto de renda lhe levaria 65%.

O sucesso lhe vedava certos prazeres comuns aos mortais. Carmen era bom
garfo, mas, com sua
facilidade para engordar, tinha de se controlar. Às vésperas de começar
um filme ou uma
temporada, fazia uma dieta violenta. Na volta, se não tivesse um
compromisso pendente, entrava
para valer nos cozidos e feijoadas de sua mãe - mas sempre havia um
compromisso pendente.
Seu café-da-manhã, durante anos, consistira de um grapefruit, um ovo
quente, uma maçã, presunto
e café com leite. Mas, ultimamente, já não tinha muito apetite para
sólidos ao acordar.

Nos últimos tempos, Carmen saía cada vez menos à noite. Um dos motivos
era que Los Angeles se
tornara uma das cidades mais violentas do mundo. O incandescente Sunset
Boulevard, onde
ficavam os grandes nightclubs, era também um cenário de gangsterismo.
Mickey Cohen e Jack
Dragna, os maiorais, tinham escritório ali. Os dois disputavam o controle
das redes de apostas,
prostituição, seqüestro, aborto, chantagem e tráfico de heroína, além do
suborno de policiais e da
compra de políticos e juizes. Às vezes estourava um quiproquó entre eles
e começavam as
perseguições motorizadas, as emboscadas nas esquinas e as explosões de
carros - só faltava
Franz Waxman ou Miklòs Ròzsa na trilha sonora. Cohen tinha livre acesso
às festas de Hollywood
e seu braço-direito, Johnny Stompanato, vivia se insinuando para as
estrelas de cinema.


450

Uma atriz que, mesmo sem saber, fosse fotografada com Stompanato
passava a ser malvista
junto ao pessoal de Dragna. E o que Carmen mais temia eram os sequestros
por vingança.

Esse temor, certa vez, deixou-a quase histérica. Sua irmã Cecília e a
sobrinha Carminha ainda
moravam com ela em Beverly Hills. Carminha tinha uma bicicleta vermelha,
mas não podia se
afastar da frente da casa. Certa tarde, distraiu-se com uma amiguinha e
pedalaram para o outro
lado do quarteirão. Carmen deu pela sua falta e ficou maluca. Carminha
reapareceu meia hora
depois e só então Carmen respirou. Mas passou-lhe o maior pito:

"Não faça mais isso! Se souberem que é sobrinha de Carmen Miranda, levam
você!"

Carmen podia não saber por quê, mas tinha razão de abrir o olho: em Los
Angeles, o crime e o
glamour iam sem remorso para a cama. Escritores hardboiled como James M.
Cain, Horace
McCoy e Raymond Chandler passariam à posteridade como ficcionistas, mas,
na prática, eram os
cronistas da cidade. Em
1947, o glamour dera lugar ao grana guignol com o assassinato de "Black
Dahlia" - Elizabeth
Short, uma "atriz" de 22 anos cujo corpo nu e dividido em dois (na altura
da cintura) fora
encontrado por uma criança num terreno baldio, não muito longe de Beverly
Hills. Pelos 56 anos
seguintes, o caso seria um enigma para a polícia angelina e somente em
2003 se descobriria que o
assassino conciliava Hollywood com as antecâmaras do crime. Tratava-se do
doutor George Hodel,
médico muito popular entre o pessoal do cinema - por ser ligado a uma
rede de abortos - e
cujo conjunto de obra teria incluído a morte de outras mulheres, em
parceria com o escultor Fred
Sexton, autor da estatueta do Falcão maltês no filme homônimo de seu
amigo John Huston, de
1941. (Em 1958, Sexton seria também o assassino da mãe do futuro escritor
James Ellroy.) Hodel,
apesar de suspeito no caso de "Black Dahlia", morreria em
1999, aos 91 anos, sem ter sido incriminado - seus contatos com policiais
e juizes garantiram que
nunca fosse sequer incomodado. Os mesmos contatos, talvez, que permitiram
a Huston safar-se de
um castigo mais severo em 1933 ao dirigir embriagado, atropelar e matar
Diva Tosca, mulher do
ator brasileiro Raul Roulien.

E, sendo Hollywood como era, a exploração do glamour ilícito chegava
perto da perfeição em
alguns de seus subterrâneos. Numa cidade em que os estúdios faziam tudo
para proteger a imagem
das estrelas, a rede de prostituição cuidava para que nenhum homem
morresse à míngua de
fantasias. Em certos bordéis de luxo, moças já muito bonitas submetiam-se
a requintes de
maquiagem e produção e, em alguns casos, até a plásticas, para se
tornarem sósias perfeitas das
favoritas do público masculino. Era assim que, por cem ou duzentos
dólares, podia-se ir para a
cama com "Ava Gardner", "Betty Grable", "Lana Turner" - ou, se
preferisse, com "Carmen
Miranda". Não se sabe se alguém contou isso a Carmen algum dia. Em caso
positivo, não é difícil
451

adivinhar sua reação - perguntaria rindo como estava sua cotação em relação às
outras.

A verdadeira Carmen não podia ir a um inocente cinema, loja ou
restaurante sem aglomerar gente
à sua volta (o declínio da qualidade de seus filmes não diminuíra sua
popularidade). Exceto para
trabalhar, praticamente só saía de casa para ir à igreja, a horas mortas.
Era também por isso que
valorizava tanto as visitas de brasileiros - como a que recebeu, naquele
ano, do jovem jornalista
Millôr Fernandes (que ela conhecia de lê-lo em O Cruzeiro) e do futuro
cientista César Lattes,
ambos levados por Vinícius. Nesse dia, Ramon Novarro também estava lá.
Vinícius e Lattes
disputaram provas de natação na piscina; depois, um torneio de crapô-jogo
de cartas, uma
espécie de paciência a dois, então na moda; e Millôr ficou desapontado
por Ben-Hur (o querido
Ramon) ser tão baixinho que devia ter precisado de uma escadinha para
subir na biga.

Zanzando pela casa como um estranho, via-se também o marido de Carmen,
sempre mal-
humorado e sem paciência com os brasileiros. Mas quem estava perdendo a
paciência com esse
marido era Carmen, porque ele não lhe dava o que ela queria: um filho.

E, então, em fins de agosto, Carmen descobriu-se grávida.

"Ontem foi o dia mais feliz da minha vida. Quando o médico me deu a
notícia, quase não pude
acreditar", disse Carmen a Alex Viany em O Cruzeiro. "Ter um filho sempre
foi o meu maior
sonho."

Se fosse homem, se chamaria Roberto; se mulher, Maria Carmen. Mas Carmen
batia na barriga e
dizia para Luiz Fernandes, do Jornal das Moças:

"Nada de mulher. Vai ser um hominho." E piscava o olho: "Prefiro os
menininhos - e os
meninões...".

Menino ou menina, seria o produto de um desejo tão antigo que se poderia
dizer de décadas. E
Carmen via ali, quem sabe, sua última chance de ser mãe. Esse fora o
principal motivo para o
casamento com Sebastian, e ela já estava aflita pelo fato de, um ano e
meio depois, não haver nem
suspeita de cegonha no horizonte. Mas finalmente acontecera e Carmen não
deixaria que nada
interferisse na maternidade. Se precisasse interromper a carreira para se
dedicar a seu filho, faria
isso. Não seria absurdo nem se a encerrasse, como chegou a dizer. Quanto
à idéia de criar o
garoto nos Estados Unidos ou no Brasil, não via diferença: ele poderia
chamá-la de mamãe "em
qualquer língua".

Como se esperava que a criança nascesse em abril ou maio de 1949, Carmen
teria de adiar mais
uma projetada ida ao Brasil, dessa vez para receber uma medalha de ouro e
um diploma que a
Câmara dos Vereadores do Rio pensava em lhe oferecer - propostos por Ary
Barroso, que se
elegera vereador pela UDN (União Democrática Nacional), um dos novos
partidos criados
depois da redemocratização. Por causa da gravidez, Carmen iria se afastar
também


452

dos estúdios, provocando o adiamento de um filme que rodaria em alguns
meses na MGM,
Ambassador from Brazil, com Wallace Beery (e que nunca chegaria a ser
feito porque Beery
morreria no começo de 1949). A pedido de Carmen, Abe Lastfogel, da
William Morris, cancelou-
lhe ainda vários contratos para apresentações, inclusive uma temporada no
Texas - Carmen não
queria correr o risco de um tombo no palco ao dançar com as plataformas.

Lastfogel convenceu Carmen a manter um compromisso mais imediato e que,
caso ela continuasse
a trabalhar, poderia ser decisivo para o futuro: sua primeira aparição na
televisão, como
convidada do comediante Milton Berle em seu programa Texaco Show Theatre,
estreado em
junho na NBC e já o mais popular do país. A televisão (já com 1 milhão de
aparelhos domésticos
nos Estados Unidos em 1948, metade deles em Nova York) era um novo
veículo a ser conquistado
pelos que estavam vivendo um momento vacilante no cinema - e Lastfogel
temia ser esse o caso
de Carmen. O programa seria filmado (em película, como se usava) no dia
27 de setembro e Berle
se vestiria de baiana, continuando uma prática que repetia sempre que se
apresentava com ela.

A caminho de Nova York para o programa, estava previsto que Carmen faria
uma parada na Base
Aérea de Mitchel, NY, para ser homenageada pelos veteranos da Força Aérea
como um dos
artistas que mais contribuíram com shows para o esforço de guerra. Não
seria um vôo de carreira.
O governo fretara especialmente um avião da American Airlines e, com ela,
a bordo estariam Bob
Hope, Marlene Dietrich, Bing Crosby, Dinah Shore, Martha Raye e outros
homenageados. Assim,
no dia 18 ou 19 de setembro, Carmen deu uma festa em sua casa para
comunicar aos amigos que
um filho estava a caminho e, possivelmente no dia 24, tomou com os
colegas o avião para a Base
Aérea.

Supondo que Carmen tivesse se certificado de sua gravidez na última
semana de agosto, ou na
primeira de setembro, o destino lhe concedeu pouco mais de vinte dias
para deliciar-se com a
idéia de ser mãe, fazer planos para o bebê e fantasiar toda uma nova vida
para si própria -
porque, no fim daquele mês, um aborto espontâneo em Nova York liquidou
com o seu sonho.

Em várias fontes impressas sobre Carmen, afirma-se que o vôo para Nova
York foi o responsável
pela perda do filho. Há um exagero nisso - ou uma confusão entre a viagem
e o vôo
propriamente dito. É verdade que o vôo de quase doze horas, no Douglas da
American Airlines,
foi um horror. Até pouco antes, essa viagem era feita nos oc-4, que ainda
não eram pressurizados e
tinham de voar abaixo de 2400 metros, o que os tornava tão sujeitos a
vento e turbulência quanto
uma gaivota de papel, e com o barulho infernal das hélices sacudindo a
cabine de passageiros.
Carmen passou por isso muitas vezes na rota Los Angeles-Nova York e
sofria tanto que, apesar
de centenária de vôo, só viajava agarrada a um livrinho sobre são Judas
Tadeu, que "impedia" o
avião de cair. Em 1948, no entanto, os aviões já eram os DC-6, maiores e
mais pesados, capazes
de voar mais alto e de oferecer uma viagem mais confortável.


453

Mesmo assim, Carmen passou mal durante todo o vôo, por causa dos enjôos,
vomitando muito e
preocupando sua amiga Marlene Dietrich.

Bem ou mal, Carmen desembarcou em Mitchel e foi, como sempre,
profissional o bastante para
participar das celebrações na Base Aérea. Entre as fotos do evento há
uma, com data de 25 de
setembro, em que ela aparece abatida, mas sorridente, a bordo de um jipe
dirigido por Bob Hope,
na companhia de outros atores, como Adolphe Menjou, Patrícia Morison,
Jerry Colonna e Charlie
Ruggles. As festividades previam um show de cada artista, com fins
filantrópicos, donde se pode
garantir que Carmen cantou e dançou por no mínimo meia hora para os
soldados. Saiu dali no dia
26 e foi para Nova York. À noite, foi a um nightclub (o Embassy) e, no
dia 27, filmou sua
participação no programa de Milton Berle, com quase uma hora de duração.

Uma hora de filmagem para a televisão em 1948 exigia quase um dia inteiro
de ensaios para que,
quando a câmera começasse a rodar, só se interrompesse a cena para trocar
o rolo na máquina.
Trabalhava-se com filme de cinema, e por isso não era permitido errar. E
submeter-se ao ritmo de
Milton Berle era extenuante. Com seus mais de 1,80 metro e cem quilos,
ele não deixava ninguém
imóvel em cena e exigia tudo de si e dos outros. Era capaz de qualquer
coisa por uma gargalhada,
como andar com os pés para fora e para dentro ao mesmo tempo, usar
vestidos grotescos (entre os
quais, sua horripilante baiana) e ser grosseiro com o diretor, os
técnicos e até com os convidados.
Mas, como desde cedo foi chamado de "Mister Television" - o primeiro
grande nome do veículo
-, as pessoas se submetiam a tudo para aparecer em seu programa. Carmen
filmou os números
com Berle, voltou para o seu apartamento alugado na Hampshire House (o
principesco apart-
hotel no n-150 de Central Park South, onde passara a se hospedar em Nova
York), e, no mesmo
dia ou no dia seguinte, sentiu-se mal. Foi levada para um hospital,
talvez o LeRoy Sanitarium. E
perdeu seu bebê.

Aloysio de Oliveira soube da notícia no Rio - todos os jornais a
publicaram alguns dias depois.
Em carta para Aloysio, sem mencionar a origem (Beverly Hills) e datada de
12 de outubro, Dave
Sebastian deu seu relato:

Como você já deve estar sabendo, Carmen perdeu o bebê em Nova York. Assim
é a vida. Fomos
até lá para o show de caridade da Força Aérea. Antes de deixar a
Califórnia, tivemos uma
consulta com os médicos, e eles nos asseguraram que não haveria perigo.
Não pensamos em
nenhum problema ou [tivemos] medo em relação ao estado de Carmen. O que
se deu, entretanto,
foi o contrário. Carmen passou muito mal no vôo - isso e mais a tensão
nervosa ao fazer o show
[de televisão] bastaram para que ela reagisse violentamente e perdesse o
bebê.


454

Mas Sebastian também errou na sua simplificação. Na verdade, um conjunto
de circunstâncias
colaborou para a tragédia. Entre elas, a idade de Carmen: 39 anos e meio,
considerável para uma
primípara. Depois, o fato de que seu organismo estava sendo bombardeado
havia anos por uma
dose excessiva de soníferos e estimulantes - e, ultimamente,
potencializados pelo álcool. Isso
pode ter comprometido a nidação, o processo de fixação do óvulo no útero.
Mesmo que Carmen
tivesse interrompido o consumo dos medicamentos, o que ela não via motivo
para fazer, o feto
teria passado as primeiras semanas recebendo toxinas no lugar dos
nutrientes. Esse mesmo
problema poderia ter contribuído para a dificuldade de Carmen engravidar
em seu primeiro ano e
meio de casamento - os medicamentos interferindo na sua produção
hormonal. (Havia ainda a
possibilidade de Carmen apresentar um defeito congênito, como um útero
invertido, e o fato de
que, seis anos antes, ela fizera um aborto em Los Angeles, sabe-se lá em
que circunstâncias.) Enfim,
sem toda essa combinação de fatores, apenas o esforço despendido na
viagem e nos shows em
Nova York não teria sido suficiente para a perda do filho. E, ao ser
informada pelos médicos de
que, depois desse malogro, talvez não conseguisse engravidar de novo,
Carmen parece ter
tomado isso, aos poucos, como uma certeza de que nunca mais seria mãe.

"Graças a "Deus", pelo menos, por uma coisa", continuava a carta de
Sebastian, com Deus entre
aspas. "Ela está com boa saúde e se sentindo bem. Como consegue, não sei
- depois de cinco
dias no hospital e outros quatro no hotel. Mas Carmen é assim."

O alívio de Sebastian não lhe foi de muito proveito. Nove dias depois do
aborto, e com Carmen já
recuperada, eles tomaram o avião de volta para Los Angeles. Durante o
vôo, ela fez seus
cálculos. Assim como jamais saberia se o bebê seria menino ou menina,
Carmen raciocinou que, se
o único motivo para prosseguir com aquele casamento - ter um filho - se
perdera, não havia por
que continuar casada.

E assim, já em casa, depois de certificar-se de que esta era a medida a
tomar, comunicou a
Sebastian que ele estava expulso de sua cama e de seu quarto.

Sérgio Corrêa da Costa, novo cônsul do Brasil em Los Angeles, tornara-se
uma presença
freqüente na casa de Carmen e ganhara de saída a sua confiança. Ele
estava lá, com sua mulher,
Luiza, quando Carmen obrigou Sebastian a dormir no andar de baixo, num
quarto que chamava
de "Blue room". Os mais íntimos sabiam o que significava quando Carmen,
irritada por algo que
Sebastian tivesse feito ou falado, dizia ao marido:

"E por isso que você continua no "Blue room"."

Não admira que Sebastian vivesse de cara amarrada. Nas poucas vezes em
que o humor dele
parecia melhorar, Sérgio (ou Vinícius, irremovível de seu posto de vice-
cônsul) perguntava a
Carmen:

455

"Ué, você o deixou subir ontem?"

Todos riam e Sebastian sabia que riam dele. Tornara-se motivo de chacota
entre as visitas.
Susana, filha de Vinícius e Tati, tinha oito anos, mas nunca se esqueceu
de ter ouvido Carmen
resmungando entre dentes ao passar por ele:

"Babaca!" - acreditando que ele não sabia o que ela dissera.

Era aí que Carmen se enganava. Das poucas palavras que Sebastian entendia
em português, 90%
eram os insultos e os palavrões. Captava-os pela entonação, decorava seu
som, e depois,
reservadamente, perguntava a algum brasileiro o que significavam.

O que não fazia diferença porque, de outras vezes, Carmen dava-lhe bomdia
em inglês com todas
as letras:

"Good morning, stupid."

Carmen também sabia ser cruel. Em noites de festa em casa, insistia em
tirá-lo para dançar -
sabia que isso o constrangia, por causa da perna mais curta. Na verdade,
Carmen o estava
punindo talvez pela única coisa de que não se podia acusá-lo: a perda do
bebê. E, de qualquer
maneira, essas pequenas vinganças de Carmen não surtiam efeito, porque
Sebastian não se
ofendia.

Sérgio Corrêa da Costa, bem jovem, mas já um homem do mundo, sempre
pensou ler nos olhos de
Sebastian o sentido de sua função naquela casa: era um business man. E os
business men não se
ofendem. Quando Carmen lhe pediu o divórcio, Sebastian simplesmente o
negou.

Carmen não queria continuar casada com aquele homem e, nos Estados
Unidos, o nome que se
dava a esse tipo de separação era divórcio. Para divorciar-se de
Sebastian, Carmen teria de
vencer três obstáculos, menos ou mais difíceis.

O primeiro, talvez mais flexível, era o próprio Sebastian. A princípio,
não o concederia, mas não
estaria fechado a um acordo que lhe fosse pesadamente favorável. O
segundo era dona Maria,
para quem a simples palavra divórcio saía direto da boca do demônio. Ela
já sofria o suficiente
com as trapalhadas no Rio de seus filhos Mocotó e Tatá. Mocotó, apesar de
casado com Olga,
continuava um mulherengo rematado e chegara até a ficar noivo de outra
moça - mais um passo
e acabaria bígamo. Tatá se separara de Anéris, sua primeira mulher, e já
estava com a segunda,
Eugenia. E ambos tinham se tornado estéreis por tantas doenças venéreas
que pegaram na
juventude. Dona Maria simpatizava com Sebastian e não queria ver o
casamento de Carmen
destruído - mas, se esta lhe apresentasse um fato consumado, acabaria se
conformando. E o
terceiro obstáculo eram os padres da igreja do Bom Pastor. Ao consultar
um deles sobre o
divórcio, Carmen ouviu exatamente o que não queria:

"Você é católica, Carmen. Não há o divórcio para os católicos."

Aconteceu que um quarto obstáculo, ainda mais forte que os outros, se
levantou. A própria
Carmen, roída por suas culpas religiosas, decidiu-se pelo


456

pior dos dois mundos: ela e Sebastian estariam efetivamente separados mas
sem que ele
precisasse sair de casa.

Os Anjos do Inferno tinham se tornado o conjunto vocal mais querido do
Brasil. Assumiram o
microfone deixado vago em 1939 pelo Bando da Lua e lançaram mais sambas
de sucesso do que
qualquer outro. Algumas de suas grandes criações desde 1940 tinham sido
"Rosa morena", "Você
já foi à Bahia?", "Requebre que eu dou um doce", "Vestido de bolero" e
"Acontece que eu sou
baiano", todas de Dorival Caymmi; "Brasil pandeiro", de Assis Valente;
"Cordão dos puxa-
sacos", de Rubens Soares e David Nasser; "Bolinha de papel", de Geraldo
Pereira; "Sem
compromisso", de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro; "Nós, os carecas",
de Roberto Roberti e
Arlindo Marques Júnior; e "Helena, Helena", de Antônio Almeida e Constantino
Silva. Os Anjos eram
o crooner carioca Leo Villar, o pistom nasal alagoano Harry (pronuncia-se
Arri) Vasco de
Almeida e o violão-tenor cearense Aluisio ("Lulu") Ferreira. Esses eram
os donos do conjunto e
vinham com ele desde suas primeiras formações, em meados da década de 30.
Os outros - os
violonistas Walter Pinheiro e Roberto Paciência e o jovem pandeirista
Russinho (na carteira, José
Ferreira Soares - não confundilo com o veterano Russo do Pandeiro), todos
cariocas - eram
contratados. Em abril de 1946, eles sentiram o chão fugir quando o
presidente Dutra proibiu o
jogo no Brasil, fechando os cassinos e estancando o mais importante
mercado de trabalho dos
músicos brasileiros. Exilados em seu próprio país, os Anjos do Inferno
enfiaram violas e pandeiros
nos respectivos sacos e foram à luta lá fora.

Começaram por Buenos Aires, exploraram toda a América do Sul, tocaram
para o México e, de lá,
desviaram para Cuba. Em Havana, em 1947, uma discussão boba num elevador
entre Leo Villar e
seus dois sócios resultou num rompimento. Leo voltou para o México com
Paciência; Harry, Lulu,
Walter e Russinho ficaram em Havana e mandaram chamar do Brasil um novo
crooner: o mineiro
Lúcio Alves, com quem Russinho trabalhara no moderníssimo, mas também
extinto, Namorados da
Lua. Com Lúcio, os Anjos do Inferno se agüentaram durante um ano em Cuba.
De lá foram para
Nova York, contratados pela CocaCola, e se apresentaram em vários
nightclubs. Uma noite, em
junho de 1948, Carmen, de volta de Londres, foi vê-los no Blue Angel, na
Rua 55 Leste, por
indicação do locutor brasileiro Luiz Jatobá, residente na cidade. Ela
gostou deles - riu muito da
imitação que Russinho, de smoking, fizera dela, usando apenas um turbante
de frutas e cantando
"Mamãe, eu quero" - e, como estava sem conjunto fixo, deixou-os de
sobreaviso: quem sabe não
iriam trabalhar juntos?

Em setembro, os Anjos estavam se apresentando no Embassy, em frente ao
Morocco, mas, quando
terminasse o contrato, sem o cartão do sindicato local dos músicos e com
o visto de permanência
expirando, só lhes restava ir embora do país. Foi quando Carmen surgiu de
novo, em pessoa - na
véspera do fatídico
457

programa com Milton Berle -, e lhes fez a proposta: se
conseguissem o cartão do
sindicato, ela tentaria acertar o problema deles junto à Imigração. Se
tudo corresse bem, estariam
contratados para tocar com ela.

A pedido deles, Joe Glaser, empresário de Louis Armstrong e Ella
Fitzgerald e com boas relações
na Máfia, providenciou-lhes o cartão do sindicato. E, algumas semanas
depois, receberam a carta
da Imigração a respeito do seu pedido de licença de permanência no país.
O pedido fora negado.
Mas, de absoluta boa-fé, entenderam a resposta ao contrário - acharam que
a licença fora
concedida -, e, em novembro, foram se juntar a Carmen na Califórnia.

Lúcio Alves seguiu com o conjunto para Los Angeles e, durante mais de um
mês, ensaiou com
Carmen e o conjunto. De repente, para surpresa geral, Lúcio decidiu que
queria voltar para o
Brasil. Primeiro, alegou saudades da mãe. Depois admitiu que pretendia
fazer carreira-solo -
ficara sabendo que seu disco "Aquelas palavras", no lado A, com "Seja
feliz... adeus", no lado B,
que ele gravara na Continental antes de embarcar para Cuba, estava
começando a pegar no
Brasil. Era a hora de voltar. Lúcio prometeu esperar pela chegada de um
novo crooner, que ele
também ajudaria a preparar. O escolhido, a quem escreveram uma carta, foi
Aloysio de Oliveira.

Aloysio continuava no Rio, morando com a família no Catete, jogando
sinuca no Lamas e
assuntando as rádios em busca de algum bico. Nada de muito emocionante
estava acontecendo
em sua vida. Quando recebeu a carta com o convite, aceitou imediatamente
e tomou o avião para
Los Angeles - passagem paga por Carmen. Lúcio e Russinho o ensaiaram (os
arranjos tiveram
de ser refeitos para adaptar o barítono de Lúcio ao tenor de Aloysio) e
só então Lúcio foi embora,
com a passagem de avião também paga por Carmen. Com Harry e Lulu no
conjunto, não havia
razão para o grupo não continuar se chamando Anjos do Inferno - afinal,
continha dois dos três
membros natos, proprietários originais da marca - e foi assim que, em
fins de 1948, Carmen
Miranda e os Anjos do Inferno partiram para a sua primeira excursão.

E com um show inteiramente novo, porque Nick Castle, coreógrafo da MGM,
criara uma série de
movimentos para ela e os rapazes. O maestro Bill Heathcock, por sua vez,
escrevera arranjos para
grande orquestra, a serem executados por músicos locais e, com isso,
"engordar" o som dos Anjos
do Inferno. Nunca eles tinham se apresentado de forma tão profissional.

De dezembro de 1948 a fevereiro de 1949, negociando diretamente com a
William Morris e sem
interferência de Sebastian, Carmen e os Anjos fizeram cinco cidades
americanas, com várias
semanas em cada uma. Começaram pelo El Rancho Vegas, em Lãs Vegas, onde a
imprensa
saudou o show como "a grande volta de Carmen" - a provar que um conjunto
brasileiro às suas
costas fazia toda a diferença. Romperam o ano no Beverly Country Club, em
New Orleans, e, em
janeiro, esticaram no Latin Cassino, em Filadélfia. Em fevereiro, Carmen
reassumiu seu microfone
(a essa altura, quase cativo)


458

no Chez Paree, em Chicago (e foi homenageada pelos fotógrafos da cidade no
Morrison Hotel), e
encerraram a excursão no Town Cassino, em Buffalo, N.Y.

Em Buffalo, a poucas horas de estréia, Carmen e os Anjos receberam uma
notícia que lhes caiu
como uma bomba: a Imigração dava 24 horas aos rapazes do conjunto para
sair do país. Seu
pedido de permanência nos Estados Unidos fora negado, e eles haviam
ignorado essa decisão. A
ordem era de que, sem mais delongas, dessem o fora ou seriam presos.

Carmen não esperou nem um minuto. Ligou para o embaixador Carlos Martins
em Washington e
expôs a situação. Mas Martins, literalmente cansado de guerra, tirou o
corpo fora. Carmen então
procurou um advogado de Buffalo, que sabia ser seu fã. Este contatou um
senador chamado
Minnelli e, com a anuência dela, convidou-o a assistir ao show de Carmen
Miranda e os Anjos do
Inferno no cassino e depois jantar com os artistas no hotel. O senador
aceitou e vibrou com o
espetáculo. Durante o jantar, Carmen falou "casualmente" do problema; o
senador mandou vir um
telefone, ligou para Washington e passou os nomes dos rapazes para um
assessor; desligou e
ficaram conversando até as oito da manhã. A essa hora, alguém de
Washington ligou de volta,
informando que eles tinham seis meses de permanência até resolverem de
vez o problema. À
tarde, Carmen, agradecida, mandou um par de abotoaduras de brilhantes
para o senador. O
político, para surpresa dos brasileiros, agradeceu, mas devolveu as
abotoaduras - disse que não
teria como explicá-las aos colegas.

Poucas semanas antes, no dia 9 de fevereiro, os Anjos do Inferno haviam
interrompido o seu
número no Chez Paree em Chicago e atacado de "Parabéns pra você". Era o
aniversário de
Carmen. Mas só Aloysio sabia (e foi ele quem comandou o "Parabéns") que
não era um
aniversário qualquer. Carmen estava completando quarenta anos -
oficialmente, 35. A platéia se
juntou à melodia. Carmen se emocionou. Uma corbeille do tamanho de uma
geladeira foi levada
ao palco. Um por um, os rapazes do conjunto a beijaram. O pandeirista
Russinho, 22 anos, a
chamou de "mamãe", e Carmen respondeu, rindo:

"E eu lá quero ser mãe de malandros como vocês?"

Carmen chegava aos quarenta como se ainda fosse a cantora de "Taí", vinte
anos antes, sendo
que, agora, tinha de se vestir com fantasias cada vez mais extravagantes
- coisa que não fazia
quando jovem. Podia parecer ridículo, mas Hollywood era assim. Em discos,
Frank Sinatra, aos
34 anos, casado, pai de dois filhos e garanhão impiedoso, era o consumado
cantor de "Soliloquy",
"The song is you" e "The house I live in". Mas, no cinema, continuava
interpretando adolescentes
retardados vestidos com roupa de marinheiro. Fizera isto em Marujos do
amor (Anchors aweigh),
em 1945, e estava fazendo de novo em Um dia em Nova York (On the towri),
que ela vira sendo
rodado na MGM (Gene Kelly era o marinheiro "adulto"). Até quando?

459

Carmen sentia que não poderia continuar a interpretar Carmen Miranda por
muito tempo -
chegaria a hora em que não agüentaria dançar com aqueles chapéus e roupas
tão pesados. E
agora sabia que podia fazer coisas diferentes.

Meses antes, em meio às filmagens de O príncipe encantado, e num dia em
que ela estava
particularmente bem, Ted Allan, principal fotógrafo de testes da MGM,
oferecera-se para rodar
alguns metros de filme com ela, usando um pequeno estoque em dezesseis
milímetros que ainda
possuía. A idéia era mostrála de um modo diferente: queria ver como
Carmen fotografava em
roupas normais, mas elegantes, sobre um fundo neutro.

Obedecendo à sua direção, Carmen recostou-se no braço de uma chaise
longue e fez todo tipo de
expressões do repertório das atrizes dramáticas. Eram portraits animados,
em que ela parecia tão
interessante quanto Greer Garson ou tão sedutora quanto Hedy Lamarr.
Allan, um veterano de
filmes com Jean Harlow, Joan Crawford e Carole Lombard, já esperava por
aquilo, mas não com
tanta presença e intensidade. Dali podia surgir algo mais duradouro que
uma estrela - o que ela
já era. Podia surgir uma atriz.

Infelizmente, Allan nunca conseguiu que Dore Schary, o novo encarregado
de produção do
estúdio, ou algum executivo da MGM se interessasse em ver o teste (a que
Carmen se submetera
como se fosse uma principiante). Por trás da desculpa oca - diziam-lhe
que não tinham
equipamento para projetar dezesseis milímetros -, o que havia era apenas
o triste e eterno
preconceito.



Capítulo 26


1948 - 1950

A câmera nada gentil



"Como descrever um par de mãos que esvoaçam como pardais dopados com
Benzedrine?",
escreveu a colunista Beulah Schacht no Globe-Democrat, de Saint Louis,
Missouri, de 9 de maio de
1949. (A referência à Benzedrine era só uma imagem literária.) E
continuou, sem rir: "Como
soletrar sobrancelhas que sobem e descem como se não quisessem ser vistas
duas vezes no mesmo
lugar? Como entender uma língua muito mais olhos do que inglês? Quando
tiver as respostas para
essas perguntas, talvez - talvez - eu possa escrever sobre Carmen
Miranda".

David Nasser, o principal repórter de O Cruzeiro, não tinha desses
pruridos barrocos para
escrever sobre Carmen ou sobre ninguém. Para ele, bastavam algumas
informações. Sua
capacidade de imaginação e o estilo incomparável faziam o resto. A falta
de escrúpulos também
ajudava.

Em fins de 1948, o ilustrador e figurinista Alceu Penna iria aos Estados
Unidos a serviço de O
Cruzeiro. Accioly Netto, diretor da revista, pediu-lhe que conseguisse
com Carmen material
fotográfico exclusivo para uma série de artigos que planejavam escrever
sobre ela. Em Los
Angeles, Carmen presenteou Alceu com um belo jogo de fotos mostrando-a em
sua casa, com a
família e os amigos. Alceu despachou tudo para Accioly no Rio, que pôs o
material nas mãos de
David Nasser. E só então a série começou. De 18 de dezembro de 1948 a 23
de julho de 1949,
Nasser publicou em O Cruzeiro "A vida trepidante de Carmen Miranda", uma
suposta biografia
em capítulos semanais, estilo folhetim.

Nos 32 artigos da série, ele inventou uma infância portuguesa completa
para Carmen, com direito
a "recordações" profundas - sabendo muito bem que seriam usadas contra
ela; penetrou na
cabeça de personagens para ler seus pensamentos; reproduziu diálogos que
ninguém ouviu; e
descreveu situações com detalhes imperceptíveis até para quem estivesse
lá. Em compensação, a
cronologia era uma bagunça. Os artigos exageravam a participação de
amigos de Nasser (como
Francisco Alves) na vida de Carmen e atacavam pessoas a quem ela queria
bem, mas que eram
desafetos do repórter. Além disso, este conferiu uma falsa autoridade a
seu relato simulando
alguma intimidade com Carmen - quando, na verdade, só tivera uma rápida
conversa com ela,
na volta de Carmen ao Rio em 1940. Não por acaso, as fotos exclusivas,

461

conseguidas por Alceu Penna, davam a entender que a artista colaborara no
trabalho. Tudo isso era
bem David Nasser, no apogeu de sua canalhice - e se vingando de Carmen
por ela ter gravado
apenas uma letra sua, "Candeeiro", dele e de Kid Pepe. (No mesmo ano de
1949, Nasser quase
mataria Dalva de Oliveira com uma série de artigos no Diário da Noite, em
que contava a
separação entre a cantora e o compositor Herivelto Martins - do ponto de
vista de Herivelto -,
sem se importar com as conseqüências sobre os filhos do casal.)

Durante aquelas 32 semanas, O Cruzeiro certamente aumentou a sua
circulação, e os papalvos,
mais uma vez, tiveram seus motivos para admirar David Nasser. Mas, em
Beverly Hills, sempre
que um número da revista lhe caía às mãos, Carmen lia o capítulo e ficava
furiosa. No embalo,
sobravam impropérios para Alceu Penna, por ela o considerar cúmplice do
repórter. Mas o
inocente Alceu fora apenas usado por Nasser, via Accioly, e nunca se
conformaria por ser alijado
do círculo da mulher que ele idolatrava. O maior merecedor da ira de
Carmen deveria ter sido seu
irmão Mocotó, que municiou o repórter com inúmeras informações - essas,
sim, preciosas - a
respeito dos primeiros anos de seus pais no Rio e forneceu fotos tiradas
dos álbuns de família. Mas
Carmen pode não ter lido esses capítulos, porque nunca brigou com Mocotó.

Outro que se indignou com os artigos foi Alex Viany, que, no começo de
1949, encerrara sua carreira de correspondente em Hollywood e voltara com
Elsa para o Rio.
Alex propôs à revista Noite Ilustrada a sua própria série, "Carmen
Miranda descobre a América",
apenas sobre a trajetória americana da cantora. A revista topou. Alex
escreveu os artigos todos de
uma vêz e de um ponto de vista bem pessoal, de quem conhecia o território
e presenciara parte
dos fatos. Mandou-os para Carmen antes da publicação, esperando humilhar
David Nasser com a
informação de que a biografada lera e aprovara o que ele havia escrito.
Mas Carmen demorou
tanto a responder que, quando a série de Alex começou a sair, no dia 5 de
abril de 1949, Nasser já
estava quase encerrando a dele. A resposta de Carmen para Alex demorou,
mas valeu:

"Gostei muito dos seus artigos", ela escreveu.

"Ninguém melhor que você, que é meu amigo e conviveu tanto conosco aqui
em Hollywood,
pode escrever a meu respeito. Aliás, estou com um projeto encasquetado,
que só não o faço agora
porque, infelizmente, perdi o bebê e, até vir outro, não considerarei
minha vida completa.
Pretendo um dia escrever a história da minha vida, que pode não ser a de
nenhuma Isadora
Duncan, mas afinal é minha e tem suas passagens bem gozadas."

Mais adiante, ao se justificar por ter segurado os originais de Alex por
tanto tempo, Carmen se
traía em relação a outro assunto mais sério:

"Você me desculpe não ter podido me comunicar com você antes,


462

mas a afobação era muita, e você sabe como eu fico quando estou trabalhando.
[...] Até hoje tenho
tremedeira em dia de estréia e, depois, o velho calmante come solto,
senão não há nada que faça a
pestana de cima juntar com a de baixo."

O gesto simpático de Alex, oferecendo-lhe a primeira leitura dos artigos,
não anulava a suspeita
de Carmen de que a imprensa brasileira vivia em campanha contra ela. Não
era bem assim -
embora Carmen tivesse razão quanto aos críticos de cinema. Pedro Lima e
Celestino Silveira
tinham voltado a vê-la com olhos um pouco mais amigos, mas isso agora de
pouco adiantava,
porque Moniz Vianna, do Correio da Manhã e já o principal crítico
brasileiro, continuava a
desancá-la. Na estréia de Copacabana no Rio, em julho de 1948, Moniz
lamentou que Groucho
sozinho, sem seus irmãos, não era "a mesma coisa" - ninguém poderia
discordar -, mas só
faltava culpar Carmen por ela não ser Harpo, Chico e Zeppo ao mesmo
tempo. E acrescentava:
"No papel mais importante de sua carreira, [Carmen] não faz outra coisa
além de repetir velhos
cacoetes e exibir interessantíssimas rugas". Em junho de 1949, na estréia
carioca de O príncipe
encantado, o crítico fez pior: massacrou o filme, ressalvou a "delícia"
que era Elizabeth Taylor e
ignorou a presença de Carmen. Para alguns, essa omissão tinha algo de
cruel. Para Moniz, era
apenas um ato piedoso.

E, por fim, houve a proposta de entrega a Carmen de uma medalha de ouro e
de um diploma com
o título simbólico de "Embaixadora artística do Brasil" pela Câmara dos
Vereadores do Rio, no
segundo semestre de 1948 - um episódio nebuloso que, ao resultar em nada,
deu mais um motivo
para que Carmen sofresse com o que considerava uma atitude hostil a ela.

A novela da medalha começara ao mesmo tempo que a gravidez. No dia
9 de setembro, Ary Barroso, então vereador, soltara a proposta entre seus
colegas de vereança
com a melhor das intenções. O Brasil devia muito a Carmen, dizia Ary, e
somente ele, que
convivera com ela em Hollywood, podia avaliar a luta da artista pelas
nossas coisas. Era uma
militância permanente, fanática e apaixonada, em prol do Brasil. Uma
medalha e um diploma
(falou-se também num título de Cidadã Carioca) eram o mínimo que o povo
brasileiro, por
intermédio de seus representantes no Rio, poderia oferecer-lhe. Ora, uma
moção como esta, de
grande simplicidade, não deveria encontrar nenhum obstáculo para sua
aprovação, certo?

Errado. Muitos vereadores deviam achar a moção justíssima e a aprovariam
de olhos fechados. E
havia outros que também a achavam justa, mas, por ela ter vindo do
encrenqueiro Ary Barroso,
não poderiam aprová-la - talvez se tivesse partido de outro vereador,
menos criador de casos...
E havia os que votariam contra, por não gostar da Carmen que viam nos
filmes e por uma
profunda divergência futebolística com Ary (muito ligado ao Flamengo para
conseguir apoio
entre os vereadores vascaínos, por exemplo). Tudo,

463

no entanto, era uma questão de discussão e votação - nada para ser decidido em
cima da perna.

Um dos irmãos, Mocotó ou Tatá, ficou sabendo da proposta de Ary no mesmo
dia ou no dia
seguinte à sua apresentação, e telefonou para Beverly Hills, onde a
notícia foi recebida com
fogos. Fogos prematuros. A moção ainda teria de entrar na pauta e só
depois começaria a
carambolar pelos desvãos da Câmara, sujeita a pareceres e apreciações. Na
melhor das hipóteses,
levaria meses para ser aprovada - mas Carmen já fazia planos de ir ao Rio
para recebê-la.

"Não sei quando poderei viajar, mas irei de qualquer maneira se a medalha
for aprovada", disse
Carmen a Alex Viany, que, então, ainda estava em Hollywood. "Eu a
receberei em nome do
samba e da marchinha, em nome dos rapazes [do Bando da Lua] que também
ajudaram com seu
ritmo e - não me esquecerei - em nome de todos os compositores populares
do Brasil." E,
baixando os olhos: "Por outro lado, não ficarei decepcionada nem sentida
se a medalha não for
aprovada. Afinal de contas, há muitas pessoas que, mais do que eu,
merecem tal condecoração.
Bidu Sayão, por exemplo. Ou Guiomar Novaes, uma das maiores pianistas do
mundo".

Não era verdade. Ficaria sentida e decepcionada, sim. Bidu e Guiomar,
praticantes da grande
arte, viviam sendo homenageadas por reis, presidentes e primeiros-
ministros. Carmen, a antiga
rainha dos sambas e das marchinhas, já tinha a aclamação popular. Mas
sonhava com que o Brasil
oficial, o das casacas e dos brasões, também a reconhecesse.

E não queria pressionar ninguém, mas precisava de uma posição - qualquer
uma - sobre a
proposta, para poder programar sua vida profissional. Se fosse para ir
já, ela tomaria o primeiro
avião - e o Diário da Noite garantia que ela teria uma recepção
consagradora. Mas, se ficasse
para o primeiro semestre de 1949, precisaria dispensar as várias
perspectivas que tinha para
aquela época. Havia o convite para uma temporada em janeiro, em Paris
(que não se realizaria);
um novo filme em fevereiro, na MGM (Ambassador from Brazil, idem); e, em
meados do ano, seu
próprio programa de televisão.

"Por isso é que até hoje não tive um programa de rádio", ela disse a
Alex. "Eu estava esperando
pela televisão."

De qualquer maneira, Carmen tentaria conciliar sua agenda com a homenagem
que tanto queria
receber.

Mas, na Câmara, a banda já trocara a marcha por um dobrado. Os debates
entre os vereadores
tinham migrado para outros temas mais momentosos, e a medalha saíra da
ordem de prioridades.
Então Carmen soube da gravidez, sofreu o aborto, ficou hospitalizada e
sua vida se complicou.
Os jornais falaram no cancelamento da viagem, mesmo que esta nunca
tivesse sido marcada.
Houve resmungos por escrito em jornais: "De novo, diz que vem, mas não
vem". E alguns
colunistas já estavam se cansando de anunciar a vinda de Carmen,


464

apenas para ter de desmenti-la pouco depois. Dali a algum tempo, haveria
quem levantasse a
suspeita de que sua gravidez não teria existido - que seria uma invenção
de Carmen para
justificar sua desistência de vir ao Brasil pela possibilidade de a
medalha não ter se materializado
(e, como uma gravidez não podia ficar em suspenso, ela teria optado por
um aborto também
fictício).

Essa versão, naturalmente, só podia ser creditada ao mal que se esconde
nos corações humanos.
Tanto que, poucos dias depois do aborto, a idéia da viagem já estava
sendo retomada, pelo
menos por Sebastian.

Em sua carta de 12 de outubro, de Beverly Hills, para Aloysio de Oliveira
no Rio, ele queria
saber em que pé estava a situação:

Falando nisso, Louie, Carmen e eu estávamos planejando ir ao Brasil assim
que possível. Mas,
desde que começou a agitação em torno da medalha, achamos que seria meio
ridículo chegar aí
antes da hora. Agora que estamos prontos [de novo], não podemos ir ao Rio
sem ter certeza de
que isso não será interpretado como um desejo, da parte de Carmen, de
apressar a homenagem -
quando a verdade é justamente o contrário. [...] Ficaríamos muito gratos
se você continuasse
acompanhando a situação e nos aconselhasse sobre a época mais apropriada
para viajar.

Hoje se sabe que, nessa história da medalha, o único pecado de Carmen foi
desconhecer a
natureza do funcionamento da Câmara dos Vereadores carioca, na praça
Floriano. Somente em
1947, depois de quase dez anos de interrupção provocada pela ditadura
getulista, é que o Rio
voltara a eleger os seus representantes. E, dos cinqüenta vereadores
eleitos, apenas três possuíam
alguma prática parlamentar. Os outros 47 ainda estavam aprendendo em
plenário as
complexidades do regimento, como a de se chamarem de quadrúpedes ou
ladrões enquanto se
tratavam por Vossa Excelência. Ary era um dos novos vereadores, os quais
incluíam o temível
jornalista e campeão de votos da UDN, Carlos Lacerda; o também udenista
Jorge de Lima,
famoso como poeta por "Essa nega Fulô" e como médico, por não cobrar dos
pobres e dos
amigos em seu consultório na Cinelândia; e o humorista Aparicio Torelly,
o Barão de Itararé,
eleito pelo Partido Comunista. (Por pouco a Câmara não teria a presença
do também comunista
Jararaca, co-autor de "Mamãe, eu quero" e que não se elegeu.) Em 1947 e
1948, aquela primeira
leva de vereadores bateu cabeça com cabeça, discutiu as propostas mais
folclóricas e fez da
Câmara um democrático forrobodó - até aprender.

O próprio Ary alternou propostas sólidas e nem tanto. Numa delas, pregou
a criação de um selo
municipal - um imposto - a ser pago pelas gravadoras multinacionais, para
conter o avanço da
música estrangeira no Brasil. Em outra, defendeu uma campanha de
esclarecimento da juventude
carioca sobre "o pernicioso vício de beber". Numa terceira, liderou a
batalha pela construção


465

de um grande estádio de futebol que permitisse ao Brasil sediar a Copa do
Mundo de 1950. Das
três propostas, como se sabe, só a do estádio vingou e, mesmo assim,
depois de Ary duelar com
Lacerda pela escolha do lugar - Ary queria o estádio no bairro do
Maracanã, como ficou sendo;
Lacerda preferia a Baixada de Jacarepaguá, "para onde a cidade iria" (e
foi mesmo). A proposta
do selo sobre a música não colou, porque era matéria federal, e a da
campanha antialcoólica
também não, porque o próprio Ary era um bebedor federal. Além disso, nos
primeiros tempos, os
vereadores tiveram de limitar-se a discursar sobre as propostas porque,
enquanto o Congresso
Nacional não regulamentasse a sua atividade, não podiam votar projetos de
lei. Com isso, a
proposta da medalha para Carmen caiu num buraco negro, como muitas
outras.

Carmen amargou essa rejeição pelo resto de 1948. Mais uma vez, o mundo
oficial negava
reconhecimento à filha do barbeiro e da lavadeira. Mas, em janeiro de
1949, numa das escalas de
sua excursão por várias cidades com os Anjos do Inferno, Carmen teve uma
surpresa. Das mãos de
Vera Sauer, consulesa do Brasil na Filadélfia, recebeu no palco uma placa
do Itamaraty por seus
"relevantes serviços prestados à divulgação da cultura brasileira e ao
estabelecimento de
relações artísticas entre o Brasil e os Estados Unidos". Aparentemente,
já que o Legislativo não
tomava providências, o Executivo, na pessoa de seus representantes no
país em que ela morava,
encarregara-se de lhe fazer justiça.

O naipe de problemas de Carmen em 1949, no entanto, seria de tal ordem
que uma placa ou uma
medalha a mais ou a menos já não faria muita diferença. Ou uma capa de
revista, mesmo que fosse
a da Newsweek, como a de 16 de maio daquele ano, estampando a foto de
Milton Berle (de
baiana, claro) num programa em que Carmen fora a principal atração - e
daí se Newsweek (ou
Time) nunca lhe desse uma capa? Já um filho a mais ou a menos faria
diferença - porque, para
quem um dia sonhara ter cinco filhos, ela estava exatamente cinco filhos
atrasada.

E, menos de três meses depois de Carmen perder seu bebê, Aurora viu-se de
novo grávida.

Mesmo que ele e Carmen estivessem "separados" depois do aborto, Dave
Sebastian contabilizara
sua permanência na casa como uma vitória. A volta para a cama de Carmen
era uma questão de
tempo. Mas Sebastian, sucessivamente expulso e perdoado por Carmen,
levaria os meses
seguintes alternando entre o "Blue room" e a cama do casal. Às vezes, sua
promoção ao quarto
principal se dava porque alguma visita, geralmente Vinícius, não tinha
condições de ir dirigindo
para casa e ficava por lá, para dormir até passar o porre (e ficava para
o fim de semana inteiro).
Nesse caso, Vinícius ia para o "Blue room", e Sebastian reassumia seu
travesseiro ao lado de
Carmen. Outro que, às vezes,


466

também ficava para o fim de semana era o novo funcionário do consulado,
Raul de Smandek.

Carmen adorou Smandek assim que o conheceu. Certa vez, de molecagem,
agarrou-o pelas
lapelas e exclamou, rosto com rosto: "Gostoso!"

Espremeu-o contra a parede e surpreendeu-o com um beijo em que forçou
toda a sua língua,
quilometricamente, para dentro da boca do diplomata. Quando se
desprendeu, Smandek estava
sôfrego e atônito - fora o seu primeiro (e talvez último) beijo numa
mulher. Carmen fingiu olhar
sério para ele e disse: "Não vá contar pra ninguém, hein?"

Vinícius, Smandek e o pessoal do consulado não irritavam Sebastian - por
falarem inglês, eram
dos poucos amigos de Carmen com quem podia conversar. Os grandes
obstáculos entre ele e o
poder em North Bedside Drive eram Aurora e Gabriel. Em janeiro de 1949,
quando eles
anunciaram que a cegonha ia passar de novo, Sebastian vislumbrou a
oportunidade para se livrar
de seus cunhados.

Uma de suas armas era a intriga que, sem muito tato, vivia tentando criar
entre as irmãs. Para
Carmen, Sebastian transmitia supostas queixas de Aurora, de que Carmen
era a culpada por ela
"não ser um sucesso nos Estados Unidos", e que ela, Aurora, era quem
"poderia estar no lugar de
Carmen". Para Aurora, Sebastian dava a entender que Carmen a considerava
"uma ingrata", e que,
se estava insatisfeita, "por que não voltava para o Brasil?". Agora, com
a gravidez de Aurora,
Sebastian ganhara novos elementos para semear a cizânia. Para Aurora, ele
insinuava que Carmen
"não se conformava com aquela injustiça" - por que Aurora seria "mãe duas
vezes e ela,
nenhuma?". Para Carmen, Sebastian dava a entender que Aurora se sentia
vitoriosa sobre ela.
Carmen e Aurora não acreditavam nessas futricas grosseiras, mas Sebastian
sempre teria a ganhar
se, no íntimo de cada uma, ficasse um resíduo de dúvida.

As relações entre ele e Gabriel eram piores ainda. Só se falavam o
necessário, e o fato
(plenamente percebido por ambos) de um deles ser de ascendência judaica e
o outro, árabe, não
contribuía para que acertassem suas diferenças. Até havia pouco, Gabriel
presidia a casa com
naturalidade e, na ausência de Carmen, fazia as honras da piscina junto
às visitas. Agora Sebastian
desautorizava ordens de Gabriel, expulsava os brasileiros que apareciam
sem avisar, proibia que
as visitas falassem português na sua presença e, com isso, criava
impasses que só a dona da casa
poderia resolver.

"Ele está querendo forçar uma situação, Carmen", alertou Gabriel. Tinha
razão, porque logo
Sebastian deu um ultimato a Carmen: "Ou Gabriel e Aurora vão embora,
honey, ou eu vou" -
sublinhando o honey, para Carmen não se esquecer do que ele representava.
"Um de nós terá de
sair."

Era uma cartada perigosa, porque Carmen podia pagar para ver
467

- e então ele teria de fazer as malas. Mas Sebastian sabia que não havia esse
risco: Carmen não queria
ser obrigada a tomar partido porque, se realmente se decidisse contra
ele, teria de formalizar o
pedido de divórcio. (Segundo Laurindo de Almeida, que ia muito lá,
Sebastian ameaçava usar os
meandros das leis americanas para tomar tudo de Carmen se ela levasse o
divórcio adiante.)

A MGM, com quem Carmen estava sob contrato para mais um musical "família"
com Jane Powell,
não via com simpatia aquela situação. Era conveniente que aqueles rumores
de divórcio não
chegassem à imprensa, pelo menos por enquanto. Em função disso,
providenciou-se a produção
de material fotográfico para as revistas de cinema sobre a felicidade no
lar dos Sebastian. Carmen
e Dave se submeteram - fazia parte do jogo. As fotos mostravam o casal na
piscina de North
Bedford Drive (com Dave dentro d"água, para não revelar o defeito na
perna), Carmen dando de
comer ao marido na boquinha, ou os dois de rosto colado e fazendo caretas
um para o outro. As
fotos eram muito boas, mas nem todos se deixavam enganar.

Rumores de que as coisas iam mal naquele casamento chegaram à sempre bem
informada Dorothy
Kilgallen, do New YorkJournal-American. Dorothy deu o divórcio como às
portas. Carmen
telefonou-lhe para desmentir - mas, por algum motivo, um desmentido nunca
é tão lido quanto a
nota que deu origem a ele. Assim, sempre que um repórter os visitava,
Carmen armava um
teatrinho, uma ficção, em que fazia a esposa realizada, e em que
Sebastian era simpático com todo
mundo.

Nesse teatrinho, Sebastian era apresentado como um bem-sucedido "produtor
de filmes", embora
seu único crédito na tela fosse o de "assistente do produtor" em
Copacabana e, mesmo assim, por
causa do irmão. Nos filmes que Carmen estava fazendo na MGM, ele mal
tinha permissão para
entrar no estúdio. Era difícil encontrar uma ocupação fixa para defini-
lo. Em certo momento, foi
referido como "chefe de vendas" numa companhia de exportação de tratores.
Depois se disse que
estava metido no negócio de transcriptions - transcrições radiofônicas -,
que eram a gravação
em estúdio, com todos os recursos de qualidade, de programas com cantores
para difusão pelo
rádio. (Muitos cantores, como Bing Crosby e Peggy Lee, estavam gravando
transcriptions em
série.) Não se sabe o que resultou dessa atividade de Sebastian - e, se
resultou, onde estariam as
preciosas transcriptions de Carmen? Em 1950, Sebastian teria aberto uma
firma de conversão de
aparelhos de TV, de dez ou de doze polegadas, para dezesseis polegadas ou
mais - um jornal
chamou-o de "uma autoridade no ramo de conversões". Por causa disso, em
outubro daquele ano
Carmen teria comprado uma empresa especializada, a Sterling Television
Company - de cujo
destino não se teve mais notícia.

Embora Carmen invariavelmente comparecesse com o dinheiro para as
empreitadas de Sebastian,
nada parecia ser levado adiante. A última de que se soube teria sido uma
produtora de programas
de TV em sociedade com


468

Edward Eliscu, parceiro do falecido compositor Vincent Youmans em "The
Carioca" e "Flying down
to Rio". Não se sabe se algum programa resultou dessa produtora - ou se
ela própria chegou a
existir.

A verdadeira avaliação de Carmen das aptidões de seu marido pode ser
medida pelo que
aconteceu na escala de Chicago da sua primeira excursão com os Anjos do
Inferno e na qual
Sebastian a acompanhou. Carmen levara todo o plano de luz preparado pelo
coreógrafo Nick
Castle, para ser apenas seguido pelo encarregado da iluminação de cada
lugar em que se
apresentasse. Em Chicago, no Chez Paree, Sebastian resolveu substituir
esse encarregado. Na
noite de estréia, o primeiro show já ia pelo meio e Sebastian não
conseguia se acertar com as
luzes - disparava o canhão vermelho quando devia soltar o azul, ou
deixava o palco às escuras e
outros erros bisonhos. Isso fazia com que Carmen e os músicos também
errassem o tempo todo.
Em certo momento, Carmen parou o show, cobriu com a mão os refletores que
a cegavam e falou
em direção ao jirau onde estavam Sebastian e o rapaz que deveria estar
cuidando da luz.

"Ei, garoto!", gritou Carmen. "Meu marido está aí? Diga a ele para vir
tomar um uísque e deixar
você trabalhar. Quando ele der o fora daí, você sabe o que fazer: é só
seguir o papel! [E, virando-
se para a platéia:] Estão vendo para que servem os maridos?"

A platéia riu, e continuou rindo enquanto Sebastian, as faces em fogo,
descia do jirau e ia em
direção ao bar. A partir dali, e por um bom tempo, deixou de viajar com
Carmen.

Com freqüência, Sebastian era também apresentado à imprensa como um
marido ciumento. Uma
prova disso é que relutava em ir ao Brasil enquanto não aprendesse
português suficiente para
entender "o que diriam à sua mulher no Rio". Mas a realidade era outra -
porque Sebastian não
tinha o ciúme entre seus pecados capitais. Nos teatros em que se
apresentavam, Carmen e seus
músicos costumavam dar os últimos retoques no show dentro dos camarins,
muitas vezes enquanto
acabavam de se trocar. E, assim como acontecia no passado com o Bando da
Lua, Carmen não
era mistério para os rapazes dos Anjos do Inferno - eles a viam seminua
com frequência.
Russinho, o mais novo deles e recém-egresso da Tijuca, ficava
impressionado - Carmen, em
forma, ainda era de provocar alteração -, mas todos se mantinham a uma
respeitável distância.
(Afinal, era a patroa.) A exceção foi Walter, que não teve melhor idéia
do que se apaixonar por
Carmen.

A situação pareceu se complicar quando se teve certeza de que Sebastian
percebera e, a qualquer
momento, poderia tomar satisfações com ele. E, inevitavelmente, isso
aconteceu.

"Walter, acho que você está apaixonado por minha mulher. É verdade?",
perguntou Sebastian.

Walter, suando frio, mas já sentindo o bilhete azul sobrevoando-o,
resolveu jogar tudo:


469

"Apaixonado só, não, Dave. Eu sou louco por ela."

Sebastian deu a única resposta que ninguém esperava - e a prova de que o
ciúme passava longe
de suas preocupações:

"Ora, fico contente com isso. Alguém que gosta tanto da minha mulher
quanto eu, ou quase. É sinal
de bom gosto."

E Walter não foi demitido - pelo menos, não naquele momento, nem por
aquele motivo. O cantor
não demoraria a sair do conjunto, mas por sugestão dos colegas e pelo
fato de que estava
bebendo demais e atrapalhando o trabalho. Harry, Lulu e Russinho o
chamaram de lado e o
aconselharam a voltar por algum tempo para o Brasil. Quando se sentisse
melhor, eles o
receberiam de novo - tanto que nem o substituiriam. Walter concordou.
Carmen pagou-lhe a
passagem e ele foi embora, mas nunca mais voltou.

Apesar da aparente concórdia entre Sebastian e os músicos, o que havia
era uma silenciosa e
mútua aversão. Até que essa aversão deixou de ser silenciosa. Certa noite
em que Carmen
precisara sair, e os Anjos do Inferno estavam ensaiando em sua casa,
Sebastian gritou de lá de
dentro:

"Russinho, venha cá agora!"

Russinho, ocupado com seu pandeiro num número com os colegas, ignorou-o.
Dali a pouco, outro
grito impertinente:

"Russinho, venha cá, já disse!"

Harry, Lulu e Walter, que, como Russinho, não gostavam de Sebastian (o
único que o tolerava era
Aloysio), trocaram olhares e riram. Mais alguns minutos, e o próprio
Sebastian irrompeu na sala,
aos desaforos:

"Não está me escutando chamá-lo, seu filho-da-puta?"

Russinho não estava habituado a ser chamado assim - na praça Saenz Pena
todos o tratavam
com educação. Ouviu essa imprecação de Sebastian e nem conversou.
Acertou-lhe um murro no
nariz que fez com que Sebastian saísse catando cavaco para trás e, no
caminho, levasse outro
soco, esse de raspão, no supercílio, até cair de costas e de pernas
abertas, sem saber o que o
abatera.

Russinho saltou sobre ele para continuar o castigo, mas foi contido por
Gabriel - uma decisão
que este, no futuro, deve ter se arrependido de ter tomado. Salvo do
massacre, Sebastian deixou-
se ficar grogue no chão, enquanto o sangue lhe escorria do supercílio ou
do nariz, ou de ambos, e
empapava sua camisa amarela. Em segundos, Sebastian estava todo em
Technicolor.

Russinho apenas vestiu o paletó, recolheu seu pandeiro e disse tchau. Foi
embora, sozinho, para a
casa que alugava com os colegas. Não havia sentido em continuar no ensaio
- afinal, acabara de
agredir o marido da patroa. Sua demissão do conjunto eram favas contadas.
Só esperava que o
nariz de Sebastian estivesse doendo tanto quanto os nós de seus dedos.

Mal abriu a porta de casa, o telefone tocou. Era Carmen.

"Russinho, você tem uma direita que eu vou te contar, hein?", ela disse,
vibrando.


470

Ele não entendeu. Então não estava demitido, e nem ela furiosa?

"Isso que aconteceu foi uma coisa entre homens", disse Carmen. "Gabriel e
os outros me contaram.
Amanhã você virá ensaiar normalmente e ele [Sebastian] te pedirá
desculpas."

No dia seguinte Russinho voltou com os colegas à casa de Carmen. Dona
Maria chamou-os para
almoçar e lhes serviu bifes à milanesa. Sebastian, com um band-aid sobre
o olho e com o nariz em
forma de couve-flor, não se sentou à mesa. Mas, ordenado por Carmen, foi
até lá e estendeu a
mão:

"Desculpe, Russinho."

Aurora e Gabriel presenciaram com reserva esse gesto de humildade. Sabiam
que era falso e que
Sebastian estava sendo apenas político. Reinava na casa uma atmosfera
opressiva. Aurora movia-
se pesadamente pelas salas, transportando com dificuldade sua barriga de
seis ou sete meses. Ao
passar lentamente por Sebastian num corredor, sentia o olhar de ódio às
suas costas. A criança era
esperada para setembro, mas, se incidentes como o de Russinho se
repetissem (com Gabriel, por
exemplo), Aurora temia um desenlace antes do tempo - bastaria sofrer
algum aborrecimento
grave. (Dizia-se que, numa mala fechada debaixo da cama, Sebastian
guardava um revólver.)
Não era a melhor maneira de viver uma gravidez.

Para poupar Aurora e a própria Carmen, Gabriel decidiu que sairiam dali.
Sebastian, afinal, tinha
seus direitos - era o marido de Carmen. E já era tempo de Aurora ter um
pouco de autonomia em
relação à irmã. Limpando suas economias, em junho ou julho de 1949,
Aurora e Gabriel
compraram à vista, por 25 mil dólares, uma casa na então pacata Westwood
Village, perto de
Beverly Hills, entre Brentwood e West LA, e um dos poucos lugares em Los
Angeles onde se
podia passear a pé. No dia em que Aurora, Gabriel e Gabrielzinho
marcharam para fora de North
Bedford Drive, Sebastian sentiu que havia vencido. Finalmente tinha
Carmen só para si.

Em termos, porque, responsabilizando-o pela saída de sua irmã e de seu
cunhado, Carmen o
enxotou de novo. Primeiro, de sua cama - e Sebastian foi dormir no antigo
quarto de Aurora e
Gabriel. Mas havia nisso algo de simbólico, que desagradava a Carmen.
Então, pela primeira vez,
ela o expulsou de casa. Sebastian achou mais conveniente, por enquanto,
fazer o jogo. Não
bronqueou, não ameaçou. Voltaria para seu antigo apartamento. Mas, antes,
deu a Carmen uma
chave (de ouro) e disse:

"Esta é a chave de meu apartamento, Carmen. Quando você quiser, vá me
visitar. Abra a porta a
qualquer hora. Então ficaremos juntos de novo."

A separação chegou aos ouvidos dos colunistas de Hollywood, comprometendo
a estratégia da
MGM de manter as comédias de Jane Powell a salvo de divórcios. Dali
espalhou-se pela
imprensa brasileira e foi registrada de forma

471

pitoresca pelo repórter e compositor Fernando Lobo na revista Radar, em
novembro de 1949.
Sem saber direito do que estava falando, Lobo (sucesso naquele ano com o
samba "Chuvas de
verão", na voz de Francisco Alves) resolveu narrar velhos namoros de
Carmen - com "o moço
rico que teve lutas sangrentas com rivais" (Mário Cunha ou Carlos Alberto
da Rocha Faria?); com
"um jovem artista que largou a arte e depois sofreu quando compreendeu
que ela deveria seguir,
seguir para o alto, mas que, nessa caminhada, deveria caminhar sozinha,
para que o público não
virasse os olhos, decepcionado" (Aloysio, talvez?); e com "alguém que
Hollywood não deixou,
porque aquela estrela não permitiu" (Gregory Peck? Joseph Cotten? Victor
Mature?) -, como se,
por onde passasse, Carmen largasse um rastro de homens destruídos.

Não era o caso e, como sabemos, bem o contrário. Era sempre ela quem, no
mano a mano com os
homens, perdia e se submetia. No dia 14, também de novembro, Louella
Parsons noticiou a
reconciliação de Carmen e Sebastian, "depois de uma separação de dois
meses". O próprio
Sebastian, nada galante, contou como tinha sido: por aqueles dias, por
volta das onze da noite,
Carmen parara o Lincoln na porta do prédio dele e subira. Horas depois,
saíram juntos, rumo a
North Bedford Drive.

Vitorioso e de volta à casa de Carmen, livre de Gabriel e de Aurora,
Sebastian poderia exigir
também a partida de dona Maria. Mas isso seria de um atrevimento quase
suicida. E desnecessário
porque, pelo menos no primeiro ano, a "Velha" passaria mais tempo em
Westwood com Aurora
(ajudando a cuidar de Maria Paula, que nascera no dia 19 de setembro) do
que com Carmen. Para
Sebastian, era como se só agora seu casamento fosse começar - sem os
parentes que davam
ordens a sua mulher e, indiretamente, a ele. E, com Carmen no estúdio,
filmando o dia inteiro na
MGM, poderia manter os chatos brasileiros a distância.

Durante o ano de 1950, Carmen ainda teria forças para mandar Sebastian
embora outras duas
vezes - como contaria ao colunista Earl Wilson, que, onze anos antes, a
batizara de "Brazilian
bombshell". Sebastian obedecia, passava alguns dias fora - intervalos
cada vez mais curtos - e
reaparecia dizendo: "Honey, I love you". Carmen o recebia de volta.

Até que Sebastian já não precisou ir - porque ela nunca mais o mandou
embora.

Os dois meses em que Carmen esteve separada de Sebastian - setembro e
outubro de 1949 -
estão registrados em seus dois números musicais em Nancy goes to Rio (no
Brasil, Romance
carioca), filmados naqueles dias. Os números eram a rancheira (pode crer)
"Yipsee-i-o" e o misto
de rumba e baião, "Caroom" pá pá". Ambos eram assinados apenas por Ray
Gilbert, embora o
primeiro tivesse um trecho de letra em português (por Aloysio) e o
segundo fosse


472

nada menos que o então recente e celebérrimo "Baião", de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira:

Eu vou mostrar pra você Como se dança o baião E quem quiser aprender É só
prestar atenção.

Na versão de Ray Gilbert, tornou-se:

When you are out in the street Out in the tropical heat You"llfall in
love with a song With a wonderful beat Ca-ca,
caroom" pá pá Ti-ca, ti-ca, ti-ca Ti-ca, ti-ca, ti-ca, tá.

Aloysio, em sua temporada no Rio em 1948, percebera o potencial
internacional desse baião. Dos
alto-falantes de Xique-Xique, no alto sertão baiano, à orquestra da boate
Vogue, à beira-mar de
Copacabana, era só o que se escutava, e isso cobria um leque de gostos. O
próprio ritmo do
baião, estilizado pelo pernambucano Luiz Gonzaga e cheio de swing, era
uma grande novidade,
e havia boas chances de sua aceitação na América. Aloysio levara o disco
de Gonzaga para Los
Angeles, tocara-o para Ray Gilbert, e este fizera uma letra em inglês.

Em termos de direitos autorais, o simples acréscimo do refrão nimbado,
"Ca-ca, caroom" pá pá"
etc., permitira a Gilbert assenhorar-se da canção inteira. Era assim que,
na partitura impressa da
versão americana (editada pela indefectível Robbins Music Corporation),
lia-se em inglês:
""Caroom" pá pá" - Música e letra por Ray Gilbert", com um condescendente
acréscimo em letras
miudinhas: "Baseado na melodia de "Baião", por Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira" - como se
estes fossem dois folcloristas primitivos que vivessem de cócoras à beira
de uma estrada,
mascando um talo de capim. Na última página da partitura, a sombria
ameaça: "O uso da letra ou
música desta canção, no todo ou em parte, estará sujeito a processo
criminal pelas leis de
copyright dos Estados Unidos". Mais um pouco, Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira, ao tocar sua
própria música numa boate do Rio, estariam sujeitos a um processo movido
por Ray Gilbert.

Mas essas não eram as únicas músicas brasileiras creditadas somente a
Gilbert em Romance
carioca. Havia também a batucada "Cai, cai", de Roberto Martins, e,
incrivelmente, o número que
fechava o filme, "Carinhoso",

473

de Pixinguinha e João de Barro, transformado em "Love is like this", ambos
cantados por Jane
Powell. Os nomes de seus verdadeiros autores também não apareciam na
tela. Mas, enfim, aquele
era apenas o começo da longa e lucrativa relação entre Ray Gilbert e os
compositores brasileiros
- estes, fornecendo a melodia, a harmonia, o ritmo e a letra original de
dezenas de canções, e
Gilbert, encarregando-se de adaptar uma letrinha em inglês e embolsar a
parte do leão nos
royalties.

Se os compositores eram omitidos dos créditos de Romance carioca, pelo
menos os músicos que
acompanhavam Carmen tiveram o seu nome com destaque na tela: o Bando da
Lua - como o
conjunto passara a chamar-se.

Durante boa parte de 1949, Harry, Lulu, Walter, Russinho e Aloysio ainda
se apresentaram como
os Anjos do Inferno. Mas o ex-crooner do conjunto, Leo Villar, de algum
microfone em Havana ou
na Cidade do México, exigiu o título de volta. Alegou que estava
reorganizando o grupo (de fato,
estava) e que o nome era seu. Não era - mas Harry e Lulu, em atenção à
antiga amizade, abriram
mão dele. Precisavam agora de um novo nome para si próprios. O primeiro
que lhes ocorreu foi
The Boys from Brazil, e parecia que iria pegar. Mas Aloysio convenceu-os
de que o melhor nome
- e mais tradicionalmente ligado a Carmen - estava inativo, disponível e
lhe pertencia: o
Bando da Lua.

(Na verdade, também não pertencia. Embora não houvesse nenhum papel
assinado, o nome
Bando da Lua pertencia por igual a Aloysio e aos demais fundadores:
Vadeco, Hélio, Ivo e os
irmãos Stenio e Affonso. É claro que estes não proibiriam Aloysio de usá-
lo para designar o
conjunto que acompanharia Carmen - se ele apenas os comunicasse disso.
Mas Aloysio os
ignorou e, pior ainda, em 1950, tentaria registrá-lo no Rio, através de
uma procuração passada ao
advogado Ernesto Dorea. Quase conseguiu - mas Stenio, ao voltar
definitivamente para o Brasil
naquele ano, não descansou enquanto não derrubou o registro. Mais tarde,
todos os veteranos do
grupo original romperiam com Aloysio ao ouvi-lo declarar que o conjunto
formado pelo pessoal
dos Anjos do Inferno era "o melhor Bando da Lua que já existira".)

Em agosto e setembro de 1949, para o novo Bando da Lua - agora
oficialmente liderado por
Aloysio -, o trabalho em Romance carioca consistia em gravar com Carmen,
no estúdio de som
da MGM, o playback de "Yipsee-i-o" e "Caroom" pá pá" e, depois, sempre
com Carmen, fazer a
mímica dessas gravações no palco de filmagem. (Em "Caroom" pá pá", eles
estariam fantasiados
de palhaços.) Foram contratados por duas semanas, mas só precisaram de
três dias para dar conta
do trabalho: um para a gravação do playback e dois para as filmagens, com
duas semanas quase
inteiras de inatividade pelo meio. Mas não tinham do que reclamar: quando
não estavam
assistindo a Fred Astaire, Judy Garland ou Gene Kelly ensaiando no galpão
ao lado, jogavam
futebol


474

com os funcionários hispânicos nos fundos do estúdio. E eram
integralmente pagos para fazer isso.

O trabalho de Carmen nesses dois números se deu entre agosto e setembro.
O restante de sua
participação (várias seqüências de diálogo com Jane Powell, Ann Sothern e
Barry Sullivan) foi
filmado quase dois meses depois, em fins de novembro. Quando o filme
ficou pronto, a diferença
física em Carmen nessas cenas era visível e impressionante - como se
fossem duas atrizes
fazendo o mesmo papel.

A primeira Carmen (a que cantava e dançava "Yipsee-i-o" e "Caroom" pá pá"
com o Bando da
Lua) estava enxuta, tentadora, deliciosa - os olhos, dois jatos verdes; a
pele, no tom certo de
moreno; o sorriso, franco e desarmado. Seu vigor físico era notável. Era
uma Carmen que
lembrava a dos primeiros filmes na Fox, que fizera uma jornalista
descrevê-la como tendo "olhos
vocais", e um colunista, famoso e casado, insinuar que ela o perturbava
eroticamente. Era a
mesma Carmen, muito bonita, que fotografara também para o anúncio do
sabonete Lux, inspirado
no filme, e que circularia em centenas de revistas pelo mundo.

A outra (a que contracenava com Jane Powell, Ann Sothern e Louis Calhem
nas seqüências não
musicais) parecia inchada, matronal, pesadona - os olhos estavam
ríspidos; a pele, afogueada; o
sorriso era uma máscara (e, mais uma vez, percebia-se a sensação de
tristeza que aquela Carmen
parecia carregar). Como os números musicais estavam entremeados com as
seqüências de
diálogos, o espectador devia achar incompreensível ver uma Carmen
fulgurante que, de repente,
se transformava numa mulher acabada para, logo depois, no outro número,
voltar exuberante à
cena e, em seguida, decair de novo.

Coincidência ou não, a Carmen dos números musicais estava a sós com dona
Maria em North
Bedford Drive - sem Sebastian - quando eles foram filmados. A outra era a
que fora buscar seu
marido e o levara de volta para casa. Nessas poucas semanas, tudo pode
ter acontecido.

Por exemplo: Sebastian, embriagado, ter cuspido no rosto de Carmen,
porque ela serviu a uma
repórter os bolos que dona Maria havia feito. "Você sabe que eu gosto
desses bolos!", gritou
Sebastian. Carmen, passiva e sem reação, teria apenas enxugado a
disparada com o braço, sem
dizer nada. Dona Maria não contou isso a Aurora - e Carmen também não, ao
visitar sua
sobrinha e afilhada Maria Paula. Temiam que Gabriel, ao tomar satisfações
com Sebastian, fizesse
algo mais incisivo, como enchê-lo de bolos na cara ou quebrar-lhe os
dentes a socos. E nem é
bom pensar no que Russinho ou Lulu fariam com Sebastian se tivessem
sabido. Mas dona Maria só
confidenciaria essa história a Andréa Ozorio e, mesmo assim, anos depois,
no Rio, quando já não
fazia a menor diferença.

Por que Carmen passaria por uma transformação física tão drástica e em
tão pouco tempo? No
caso de Romance carioca, havia o fato de Carmen ter ficado
475

inativa por várias semanas. Tanto quanto o excesso de trabalho, a
ausência dele também lhe
fazia mal: facilitava a que ficasse sem dormir e, quando não pudesse mais
adiar o sono, apelasse
para medicamentos mais poderosos. Harry se lembra de uma semana que o
conjunto passou com
ela em Palm Springs. Foram cinco dias e noites sem dormir para todo
mundo, com Carmen falando
sem parar e reformando vestidos, um atrás do outro, varando as madrugadas
(os soníferos normais
já não pareciam fazer efeito).

E se, numa emergência, ela precisasse de quem lhe aplicasse uma injeção,
agora tinha alguém
permanentemente à mão: Lulu - ou, na vida civil, o doutor Aluisio Ferreira,
como ele era conhecido
no Ceará antes de ir para o Rio com o seu violão. Lulu, que deixara a
medicina pouco depois de
formar-se, atuava como clínico geral da trupe, embora sua especialidade
fosse o pulmão. (Foi ele,
aliás, quem identificou a causa de uma bronquite crônica que vinha
atazanando Carmen: uma base
de maquiagem feita de raiz de lírio. Eliminado esse componente no creme,
a bronquite
desapareceu.)

Lulu podia ser competente na sua especialidade, mas não devia conhecer
muito (ou nada) de
dependência química. Nem isso lhe era exigido - porque quase ninguém
conhecia. Somente nos
primeiros anos do pós-guerra começou-se a perceber as conseqüências do
uso regular daqueles
medicamentos sintéticos. Até então, as anfetaminas eram consideradas um
aditivo benéfico para
os soldados (tanto os Aliados como os do Eixo, a ponto de ser
distribuídas na ração junto com os
chicletes e as barras de chocolate), para os operários da indústria de
guerra (a fim de aumentar a
produção) e para os artistas. Para rebatê-las, havia os barbitúricos.
Milhões de pessoas foram
cobaias desses produtos nos anos 40 - e Carmen, uma delas. Quase dez anos
depois, o
organismo dessas pessoas estava apresentando a conta.

Romance carioca estreou em Nova York em março de 1950 e, para quem
abstraiu a aparência de
Carmen no restante do filme, seus números musicais faziam crer que o
cinema ainda a teria por
muitos anos. Principalmente por "Caroom" pá pá", com a eufórica
coreografia de Nick Castle.
Carmen dançavaa descalça, e seus rodopios com a baiana de babados e com o
turbante de 24
sombrinhas eram de encher as medidas. Era também uma das maiores façanhas
da história da
Technicolor: um show de cores em movimento, num efeito poucas vezes
conseguido num musical.
Era ainda, sem dúvida, um dos grandes números de Carmen no cinema - e que
ela nunca mais
superaria.

Naquele mesmo mês, Vinícius, que estava distante de Carmen havia algum
tempo, reencontrou-a,
e não gostou do que viu. Em carta (de 23/3/1950) a Rubem Braga no Rio,
foi duro: "Ainda ontem
estive com Carmen, em casa de Aloysio. Ela, coitada, começando a
decompor. Quando cheguei
[a Los Angeles, em 1946], estava tão fresquinha e viva".


476

Mas, se a câmera já não queria ser gentil com Carmen (e ela, às vezes,
assusta-sse ao ser observada
mais de perto, como acontecera com Vinícius), seu desempenho no palco, ao
vivo, com o Bando
da Lua, continuava a ser arrasador. Foi assim no megaespetáculo promovido
pela MGM para a
estréia de Romance carioca em Los Angeles: quase 20 mil pessoas no
Hollywood Bowl viram-na
roubar o show de Jane Powell, Ann Sothern, Jeanette MacDonald, Mickey
Rooney, Lena Horne e
dos outros astros convidados pelo estúdio.

Em janeiro, já tinham levantado a platéia ao se apresentarem no enorme
Copa City, em Miami.
"Quando Carmen entra no palco, é como se todos os neons se acendessem ao
mesmo tempo",
escreveu no Morning Mau a colunista Dorothy Dey - a primeira jornalista
americana a saber da
existência de Carmen, em 1939, quando Shubert, de volta do Rio, lhe
telefonara para contar que
acabara de contratar uma sensacional cantora brasileira. E, como Dorothy
podia constatar, dez
anos depois Carmen parecia não ter perdido nem um pouco do seu poder de
eletrizar. Na boate
defronte ao Copa City apresentavase a grande sensação da temporada: a
nova dupla Dean
Martin e Jerry Lewis - só que para poltronas às moscas, porque Carmen
lhes roubara a platéia.
Como não tinham nada a perder, Martin e Lewis atravessaram a rua e foram
visitar Carmen, que,
como eles esperavam, os chamou ao palco - e Jerry, ali mesmo, apoderando-
se de um turbante,
"homenageou-a" com uma constrangedora imitação.

Nos meses seguintes, Carmen continuou atraindo multidões em todos os
lugares por onde
passava. Os números eram impressionantes: 50 mil pessoas numa semana em
Buffalo (onde seu
show era aberto pelo Will Mastin Trio, do qual fazia parte um garoto
prodígio, Sammy Davis, Júnior);
80 mil em oito shows em Detroit; outros 50 mil em uma semana em
Minneapolis; e por aí afora. Em
certas cidades, Carmen tinha de se apresentar em estádios e ginásios.
Para esses shows, seu cachê
variava em torno de 15 mil dólares por semana.

Em Chicago, no Chicago Theatre, Carmen e o Bando da Lua bateram outro
tipo de recorde: o de
shows por dia - nada menos de dez, das oito da manhã à meia-noite, de
vinte minutos cada, entre
as sessões de E o mulo falou (Francis, the talking mule), o primeiro
filme da série com Donald
CKConnor e o mulo Francis. A maneira de sobreviver a essa maratona era,
encerrado cada show,
correr para o camarim (eram proibidos de sair do teatro e cada um tinha o
seu camarim individual)
e se esticar por uma hora - menos Carmen, que, como se sabe, tinha de se
trocar de alto a baixo
para o show seguinte.

Por essa temporada de uma semana, Carmen recebeu 20 mil dólares. Para se
ter uma idéia desses
valores, basta saber que, nos Estados Unidos em começos dos anos 50, uma
boa casa, com sala,
copa e cozinha no andar de baixo e três quartos no de cima, típica
daquela época, numa cidade
de tamanho médio, saía por menos de 10 mil dólares.

Carmen pagava ao Bando da Lua trezentos dólares fixos por semana,
477

trabalhassem ou não, mais as despesas de hospedagem quando viajavam. Mas,
diante de um
compromisso tão puxado como o do Chicago Theatre, ela não esperava que
eles fizessem alguma
reivindicação. Já se antecipava e lhes oferecia algo muito melhor: mil
dólares por semana para
cada um. Não admira que eles a adorassem - não tanto pelo dinheiro, mas
pelo seu desapego aos
próprios rendimentos e pelo reconhecimento do esforço alheio.

Nem Carmen estava precisando de todo esse dinheiro. Ao contrário: quanto
mais ganhava, mais o
imposto de renda lhe abocanhava. E não que estivesse carente do aplauso
das multidões. Mas
algo a fazia correr - algo fora dela. Era uma correria extenuante, um
esforço de matar, sem um
objetivo definido, sem nada que a razão justificasse. Infelizmente, a
razão já não tinha um papel
preponderante em suas decisões.

Afinal, o que fazia Carmen correr? A Benzedrine, o Dexedrine, o Dexamil.



Capítulo 27


1950 - 1951

Mulher-maratona



Com ou sem as ranhetices de Sebastian como anfitrião, o verdadeiro
consulado do Brasil em Los
Angeles continuava a ser North Bedford Drive (até para os cônsules, que
não saíam de lá).
Carmen não abria mão de receber os brasileiros de passagem, e bem a seu
estilo - como fez
quando Waldemar Torres, diretor de publicidade da MGM no Brasil, foi
visitá-la, levado por
Gilberto Souto.

Carmen agarrou Waldemar, arrastou-o para um canto do sofá e atirou-se
sobre ele, quase
asfixiando-o:

"Vem pra cá! Você ainda deve estar com um cheirinho gostoso do Rio!"
Waldemar depois
comentou sobre Carmen com Gilberto: "Que vocação para gostar dos outros,
gostar de todos!"
Nessa época, a história que Carmen mais gostava de contar às visitas era
a de sua futura ida ao
Rio - da maneira como ela fantasiava que aconteceria. Tomaria um avião em
Los Angeles e,
perfeitamente incógnita, pousaria no Santos Dumont em pleno sábado de
Carnaval, para cair na
folia. Passaria os quatro dias e quatro noites no sereno, "de camisa de
malandro e tocando cuíca",
confundindo-se com o povo, sem ninguém reconhecê-la, pegando no ar as
últimas marchinhas,
exaurindo-se de sambar e abraçando-se às pessoas suadas, ela também
derramando o generoso
suor brasileiro. Na Quarta-Feira de Cinzas, acabada, mas feliz, tomaria o
avião de volta e só
então, quando se visse de novo em casa, é que o Rio saberia que ela
estivera lá. Não que não
quisesse rever os amigos e falar com todo mundo. É que precisava,
primeiro, de um reencontro a
sós com a cidade - apenas ela e os 2 milhões e meio de habitantes.

É possível que, de volta ao Brasil, tanta gente contasse essa história
sobre Carmen que ela
acabaria caindo em altos ouvidos. Em meados de 1950, o governo brasileiro
(ainda sob Dutra)
deu sinais de que gostaria de convidá-la oficialmente. Mandaria um avião
buscá-la em Miami (por
que em Miami?), decretaria feriado no dia de sua chegada, e lhe pagaria o
que pedisse - foi o
que ela ouviu. Era para Carmen ter se sentido homenageada (afinal, era um
reconhecimento
institucional). Mas aquele último item não lhe caíra bem - o simples fato
de imaginarem que ela
exigiria dinheiro para visitar seu país ofendeua de tal forma que nem
quis mais pensar no assunto.
A gafe seria em parte

479

remediada com a concessão de um passaporte honorário, que, graças ao
esforço de Raul de
Smandek, lhe foi expedido naquele ano pelo consulado em Los Angeles -
honorário mesmo, já
que, como Carmen nunca se naturalizara brasileira, não havia como lhe
conceder um passaporte
de verdade.

O flerte constante de Carmen com o Brasil nem sempre era correspondido na
mesma medida. Em
1950, sua antiga gravadora brasileira, a Odeon, só tinha em catálogo os
três discos de 78 rpm que
ela gravara em 1940 - contendo "Recenseamento", "Voltei pró morro",
"Disseram que voltei
americanizada" etc. -, num total de seis músicas. Era pouco, quase nada,
mas ainda melhor que
sua outra gravadora, a ingrata Victor (já então, RCA Victor), que não
tinha nenhum disco de
Carmen em catálogo. Na visão caolha dessas gravadoras, era como se ela
tivesse deixado de
existir - embora a cantora mais popular do país, Emilinha Borba, fosse
sua discípula direta e
cujos sucessos como "Chiquita bacana", de Braguinha e Alberto Ribeiro, no
Carnaval de 1949, e
"Tomara que chova", de Romeu Gentil e Paquito, que estouraria no Carnaval
de 1951, fossem
marchinhas visceralmente mirandianas.

Mas, como sempre, as piores agressões contra Carmen vinham dos críticos
de cinema. Romance
carioca, que estreara no Brasil em setembro de 1950, mereceu dois artigos
de Walter George
Durst em uma revista. Em ambos, Durst esqueceu-se de que estava
escrevendo sobre um
despretensioso musical infanto-juvenil da MGM, e não sobre o último filme
de Vittorio de Sica ou
Roberto Rosselini, e fuzilou: "Uma das mais xaroposas e torpes fitas que
o cinema já produziu";
"O filme é uma real ignomínia, da mais penosa digestão ocular"; e, fosse
lá o que isso quisesse
dizer, acusou-o de contar "uma penicilenta história". O veterano Louis
Calhem, amável
comediante de tantos filmes inócuos e que faz na fita o avô de Jane
Powell, foi chamado por ele
de "espantoso, teratológico e odioso". Quanto a Carmen, Durst repetiu uma
opinião antiga, "Essa
portuguesa que já é pouco mais brasileira que a estátua da Liberdade", e
acrescentou uma nova:
"fantasiada de roupas futebolisticamente ridículas". Não contente, Durst
dedicou vários
parágrafos do primeiro artigo a destruir o diretor Norman Z. McLeod,
tachando-o de
incompetente e de o pior diretor de todos os tempos. Mas McLeod era
inocente, não tinha nada a
ver com Romance carioca. Durst confundira-o com o verdadeiro diretor,
Robert Z. Leonard. Daí
o segundo artigo, em que voltou a arrasar o filme e estendeu o arraso a
Leonard, sem admitir o
erro nem pedir desculpas aos leitores pela mancada no artigo anterior.

De um jeito ou de outro, Carmen sempre ficava sabendo o que escreviam a
seu respeito. Seu
acesso à imprensa brasileira era mínimo, mas os patrícios que a visitavam
a mantinham informada.
Muitos, na tentativa de parecer solidários com ela, exageravam em seus
relatos sobre o que este
ou aquele jornal tinha publicado. Esqueciam-se de dizer-lhe que, com
freqüência, ela era capa da
Carioca, do Jornal das Moças, da Vida Doméstica e de outras revistas, com
matérias simpáticas
para justificá-las.


480

Em meio ao entra-e-sai de estranhos na casa e à discussão de assuntos que
não lhe diziam
respeito, Sebastian tinha alguma razão em reclamar que os brasileiros de
visita o ignoravam - a
maioria não dava o devido reconhecimento à sua condição de marido. Muitos
o tratavam como se
ele fosse um biombo ou uma cômoda, e nem lhe dirigiam a palavra. Mas
esses visitantes
argumentavam que era difícil estabelecer pontos comuns de interesse com
ele. Sebastian não se
interessava por nada referente ao Brasil, como a política, a música
popular ou mesmo o futebol -
o único esporte a que dava atenção era o boxe e, mesmo assim, o boxe
amador (não perdia uma
luta do Golden Gloves, que era uma espécie de campeonato juvenil
americano). Ao mesmo
tempo, Sebastian percebia quando algum dos "amigos" brasileiros fazia uma
falseta contra
Carmen. Como quando ela aproveitava a partida de alguém para o Brasil (de
preferência, gente
da Aeronáutica, voando em aviões cargueiros) e lhe pedia que levasse uma
mala de roupas ou de
presentes para os parentes no Rio.

Em uma ou duas ocasiões, essas malas não chegaram ao destino - o que
Carmen só descobriu
quando, pelo telefone internacional, perguntou casualmente:

"E aí, Cecília, recebeu a mala que te mandei pelo brigadeiro Fulano?"
Pela entonação indignada
de Carmen, Sebastian percebia que algo dera errado e perguntava o que
era. Carmen se traía e
lhe contava - Cecília nunca recebera a dita mala -, e ele tinha, de
graça, um argumento contra
todos os brasileiros que aparecessem pelos dias seguintes para fazer de
sua piscina uma extensão
de Copacabana.

Desde 1940, Carmen rodara pelo menos um firme por ano, num total de
treze. Agora, pela primeira
vez desde que chegara à América, iria passar dois anos seguidos, 1950 e
1951, sem trabalhar em
nenhum. Depois de O príncipe encantado e Romance carioca, a MGM tinha
opção para um
terceiro filme com ela, mas Joe Pasternak não estava lhe acenando com uma
proposta. Nem
Pasternak nem qualquer produtor de outro estúdio.

Hollywood enfrentava uma crise que não conhecera nem nos piores anos da
Depressão. Em 1950,
a freqüência ao cinema nos Estados Unidos desabara para 60 milhões de
ingressos por semana -
30 milhões a menos que em 1948! - e continuaria a cair. A indústria
estava sob três fogos
mortíferos: o crescimento da televisão (4 milhões de pessoas já tinham
aparelho em casa), a
suspeita de abrigar comunistas (começara uma sinistra caça às bruxas), e
a pior ameaça para os
estúdios: a lei antitruste, que iria proibi-los de ser, ao mesmo tempo,
produtores e exibidores.

Tombada essa pedra do dominó, as outras se seguiriam: os estúdios seriam
obrigados a vender
suas enormes cadeias de cinemas; sem a exibição garantida, a produção
cairia; e, com isso, muita
gente seria demitida.

481

Elencos e equipes que eles tinham levado décadas para formar seriam dispensados e
gêneros inteiros, como
os musicais e os westerns, que dependiam de estúdios funcionando à plena,
tendiam a
desaparecer. Era o fim de Hollywood - ou, pelo menos, de Hollywood como o
mundo a
conhecia. Carmen escolhera uma época ingrata para ficar independente. Se
isso lhe servisse de
consolo, ela não seria a única ao relento. Mas, agora, era cada um por
si.

Soltos na cidade, sem a proteção de um estúdio - sem nem mesmo um
contrato temporário que os
obrigasse a ir para o trabalho, e temendo acabar como os gafanhotos, que
todos os dias saíam ao
sol para morrer -, muitos atores tomaram providências. Alguns voltaram
para o teatro, em Nova
York; outros se venderam ao inimigo - a televisão - e se deram bem; e
ainda outros voltaram
para seus estados ou países de origem. Carmen poderia ter optado por
qualquer uma dessas
saídas. Mas algo a embotava e a paralisava em Beverly Hills, e nem se
podia dizer que a causa
disso fossem seus amigos americanos - porque nem eram tantos e, por mais
que a estimassem,
havia uma distância saxônica entre ela e eles. Os melhores amigos de
Carmen estavam em sua
família e em alguns de fora - todos brasileiros. E, de repente, eles é
que começaram a ir embora,
num movimento de volta em massa para o Rio.

Elsa e Alex Viany já tinham se mandado em 1949; Gilberto Souto faria o
mesmo em 1952, depois
de vinte anos em Hollywood. Mas a temporada das defecções seria 1950-
1951. Os primeiros a
partir, em meados de 1950, foram Andréa e Stenio Ozorio, levando seus
filhos. Em setembro seria
a vez de Vinícius e Tati, com Susana e Pedro. Em dezembro, o casal Sérgio
Corrêa da Costa
igualmente faria as malas - seu sucessor no Consulado, Antônio Corrêa do
Lago, com sua
mulher, Dedei, seria uma presença regular na casa de Carmen, mas não
teria com ela a mesma
cumplicidade de Sérgio. E, em abril de
1951, o pior golpe: Aurora e Gabriel também tomariam o navio de volta com
as crianças e,
provisoriamente, levariam dona Maria, para ajudá-los a se reinstalarem na
Urca. Como nunca em
sua vida, pelo menos nos meses seguintes, Carmen estaria entregue a si
própria.

Desde que tivera o primeiro filho e encerrara sua carreira americana,
Aurora pensava em voltar
para o Brasil. A princípio, era só uma vaga intenção. Mas, depois que se
vira obrigada a deixar a
casa de Carmen, continuar morando nos Estados Unidos perdera o sentido.
Gabriel, por sua vez,
não queria voltar. Sentia-se instalado em Los Angeles, trabalhando agora
numa empresa que
vendia peças para a Aeronáutica brasileira, e não tinha a menor
perspectiva profissional no Rio.
Estavam fora do Brasil havia dez anos, para onde nunca mais tinham ido,
nem a passeio. Mas
Aurora parecia inflexível e garantiu a Gabriel que, se passassem
dificuldades no início, ela
voltaria a cantar e a se apresentar - as rádios e as gravadoras do Rio
deviam estar à sua espera.

Carmen não entendia o porquê dessa decisão, mas foi voto vencido. A
partida de Aurora não a
privava apenas de sua irmã e melhor amiga,


482

mas da pessoa que sempre se encarregara de uma função essencial para ela: cuidar
das compras da casa,
sob a orientação de dona Maria. Mesmo depois que se mudara de North
Bedford Drive - e não
importava se grávida em último grau ou se amamentando Maria Paula -,
Aurora continuara a
fazer o supermercado para Carmen. Se isso parece irrelevante, é só
imaginar o volume de
compras quinzenais ou mensais tendo em vista um mínimo de doze ou quinze
pessoas diariamente
para almoçar, com ou sem a presença da dona da casa. O próprio transporte
dessas compras nos
carrinhos pelos corredores do supermercado parecia uma operação de guerra
e, muitas vezes,
Aurora tinha de ser ajudada pelos rapazes do Bando da Lua. Sem sua irmã
para cuidar disso,
Carmen dependeria agora de Odila, mulher de Zezinho, ou de Isa, mulher de
Harry. Ela, Carmen,
é que não poderia ir ao supermercado para pegar o sapólio e a creolina
nas prateleiras ou
disputar pechinchas nas gôndolas de picles e enlatados - por mais que se
disfarçasse, acabaria
sendo reconhecida.

Assim, pela primeira vez em onze anos, Carmen passou uma noite de Natal
em casa, a de 1950,
sem trabalhar. Recusou convites para os programas de TV de Bob Hope e
Jimmy Durante, e deu
uma festa de despedida em North Bedford Drive para Aurora e Gabriel, que
iriam embora assim
que ela, Carmen, voltasse de uma temporada no Havaí, no começo do ano - e
na qual Aurora só
não iria como sua acompanhante porque precisava preparar a mudança.

Carmen foi e custou a voltar do Havaí, e a ida de Aurora com sua família
acabou sendo adiada
para abril, mas isso não alterou em nada o desgosto de Carmen com a
deserção da irmã. Ao se
aproximar o dia (agora definitivo) da viagem, ela se lembrou de que
Aurora, ao se mudar para
Westwood, um ano antes, deixara uma série de pertences em North Bedside
Drive e nunca fora
buscar.

"Levem tudo", ordenou Carmen. "Não deixem nada aqui, para que eu não
fique me lembrando de
vocês."

Aurora deu uma geral na casa e recolheu tudo que lhe pertencia e que
encontrou, incluindo giletes
usadas de Gabriel e alfinetes de fralda de Maria Paula. Mas, assim que
ela zarpou, Carmen, ao
entrar no antigo quarto da irmã, naturalmente achou uma boneca que ficara
para trás. O que a fez
chorar muito - porque só então percebeu quanto estava sozinha.

Dias antes da partida, as duas tinham vivido um de seus raros momentos de
atrito. Aurora queria
trazer dois carros com ela, um em nome do casal e outro no de dona Maria.
Mas Carmen insistia
em mandar um Nash Chevrolet verde, que também ganhara num programa, de
presente para Tatá,
e isso limitou a cota de Aurora. Esta não gostou e criou-se um clima -
superado em função do
fato maior de que, depois de dez anos juntas, iriam se separar. Além
disso, a mudança de Aurora
não era nada desprezível - estava levando material suficiente para
rechear duas casas. Era tanta
coisa que, ao chegar ao Rio, Aurora resolveu, a princípio, deixar os
contêineres num guarda-
volumes na Zona Portuária.

483

Nem tudo caberia na casa da Urca, onde iriam fazer
companhia a Cecília e
Carminha, que moravam lá desde que elas próprias tinham voltado, em 1947.

Gabriel sentiu que não lhe seria fácil firmar-se profissionalmente, mas
esperava que fosse só uma
questão de tempo. Aurora, numa reviravolta inexplicável, é que logo se
arrependeu da decisão de
ter vindo. O calor úmido, o trânsito infernal, até o espetáculo das
postas de carne penduradas nos
ganchos dos açougues, tudo no Rio a perturbava. Só pensava agora em
voltar para Los Angeles.
Tanto que manteve a mudança encaixotada no guarda-volumes - móveis,
quadros, objetos, todo
o enorme acervo que trouxera, incluindo dezenas de peças que arrematara
em leilões de Beverly
Hills e que tinham pertencido a gente famosa. E só meses depois, quando
se convenceu de que a
volta para os Estados Unidos ficara impraticável, é que Aurora se
conformou e começou a se
adaptar. Então abriu os caixotes, vendeu tudo o que trouxera e, quase no
fim do ano, retomou sua
vida profissional.

Primeiro, na Rádio Mayrink Veiga; depois, no tipo de estabelecimento que,
no Brasil, sucedera os
cassinos: os nightclubs, aqui chamados boates - foi trabalhar na boate
Night and Day, na
Cinelândia, dirigida por Carlos Machado. E, como nos velhos tempos, um
grande compositor
reservou-lhe uma canção inédita - Ary Barroso chamou-a à Fiorentina, no
Leme, e lhe deu
"Risque", que ela gravou na Continental, em março de 1952. Mas, a provar
que os tempos haviam
mudado, "Risque" - um samba enfarruscado, implacável, cruel - teria de
esperar um ano para
ser sucesso. Só que com Linda Batista, na RCA Victor.

Aurora ainda voltaria a gravar, mas somente novas versões de seus velhos
sucessos. Sua carreira
ficara no passado - ao passo que a música popular tinha agora novos
valores pelos quais se
apaixonar, como Marlene, Zezé Gonzaga e Elizeth Cardoso. O futuro seria
ainda mais injusto
para com ela, reduzindo-a à condição de irmã de Carmen e se esquecendo de
que, com "Cidade
maravilhosa", de André Filho, Aurora sempre teria um nicho só para ela na
história. Mas ela
própria contribuiria para esse esquecimento, nas centenas de vezes em que
silenciaria sobre si
mesma para falar sobre a irmã.

Inegavelmente, havia uma diferença entre Carmen e Aurora. Certa vez,
pouco depois de sua
chegada aos Estados Unidos, Aurora passou por Greta Garbo, esta de pernas
de fora e capuz,
numa calçada em Beverly Hills. Com uma humildade de fã - como tantos já
tinham feito com ela
no Brasil -, cumprimentou a deusa e, tímida, pediu-lhe um autógrafo.

Garbo, imperial, com o mesmo tom de contralto que tirava do porão para
dar ordens a seus galãs
Conrad Nagel, John Gilbert ou Melvyn Douglas, apenas respondeu:


484

"Obrigada, mas não concedo autógrafos."

E passou direto.

A cena muda para Nova York - Central Park South, Hampshire House, alguns
anos depois.
Garbo saiu do prédio, onde também morava em Manhattan, e passou por
Carmen, que entrava
distraída, cercada pelos meninos do

novo Bando da Lua.

"Carmen, querida!", exclamou Greta, a voz um ou dois tons acima de seu

chapéu.

"Miss Garbo!" - era como todos em Hollywood a chamavam.

Seguiram-se os quequequés e quiquiquis de rigueur entre mulheres
igualmente divas, tranqüilas e
recíprocas no reconhecimento de suas majestades. Que Carmen visse isso em
Garbo, era natural
- afinal, ainda era uma menina de nariz escorrendo na travessa do
Comércio, e Garbo já levava
os homens a duelos ou suicídios na tela do antigo Odeon. Mas Garbo via o
mesmo em Carmen -
para nenhum espanto desta.

E esta era a diferença: Carmen já nascera uma estrela. Aurora era,
talvez, a mais privilegiada das
mortais.

O episódio à porta da Hampshire House foi apenas um entre muitos,
envolvendo Carmen e
alguém famoso, que deixou seus novos músicos atarantados. Estes tinham
acabado de se juntar a
ela e ainda se chamavam Anjos do Inferno quando Carmen lhes comunicou, em
Beverly Hills:

"Esta noite, vamos jantar na casa de Ann Sheridan. Se, na hora de ir
embora, ela resolver que um
de vocês vai ficar, não é para discutir. É para ficar."

O retraído Lúcio Alves, que ainda estava com eles, por algum motivo não
quis ir. Com Carmen
foram Harry, Walter, Russinho e Lulu. O jantar foi magnífico. Ao fim da
noite, Ann levou Carmen e
os rapazes até a porta. Ao se despedir, fez "oomph", tomou Lulu pelo
braço e disse:

"Você fica."

E Lulu ficou.

Outras vezes, era Carmen quem provocava as situações, mas apenas para se
divertir com a reação
de algum deles. Como no dia em que a campainha tocou em North Bedford
Drive enquanto eles
ensaiavam com ela. Carmen pediu a Russinho que fosse atender à porta -
não a dos fundos, que
era a que mais se usava, mas a da frente, reservada às ocasiões de gala.

Russinho abriu a porta distraidamente e viu-se diante de - quem? - Lana
Turner, legitimamente
loura, olhos de água-marinha, pestanas também louras e um shortinho
branco como o que usara
para seduzir John Garfield em O destino bate à sua porta (The postman
always nngs twice). Os
joelhos de Russinho bambearam - se não se segurasse ao pórtico, cairia. A
custo fez sinal para a
estrela entrar e, escorando-se às paredes, foi chamar Carmen. Que já
chegou às gargalhadas,

485

porque fizera de propósito. Sabendo da paixão de Russinho
por Lana, convidara-a a
ir visitá-la para assistir a um ensaio e o mandara abrir a porta. A
percussão do Bando da Lua
atravessou várias vezes naquela tarde, porque o pandeirista estava
tocando ao ritmo de um
coração aos pulos.

E, com os outros, era a mesma coisa. Não que o convívio com as estrelas
lhes fosse totalmente
estranho. Em Nova York, Lúcio Alves namorara a linda porto-riquenha Rita
Moreno (é verdade
que a futura Anita de West Side story ainda não era uma estrela). Mas, em
Hollywood, o vivido
Aloysio beliscara, entre outras, Linda Darnell, e o próprio Russinho
passara horas infernais com a
comediante e cantora Martha Raye, dona de uma carantonha assustadora e de
um corpo de fechar
o comércio. Mas era difícil ignorar a mística de Hollywood - o que era
beijar (ou simplesmente
dizer boa-noite) a uma mulher que, na tela, era tão maior do que a vida?

A cumplicidade entre Carmen e seus músicos agora era total. No dia 11 de
janeiro de 1951,
Carmen, com dona Maria de acompanhante (sem Sebastian), e o Bando da Lua,
reforçado pelo
arranjador e maestro Bill Heathcock, pousaram em Honolulu, no Havaí.
Durante oito horas e
meia, o Stratocruiser da United Air Lines passara por toda espécie de
desconforto no céu -
talvez o pior vôo na vida dos 39 passageiros e quatro tripulantes. Mas,
graças ao livrinho sobre
são Judas Tadeu a que Carmen se agarrou durante a viagem, eles
conseguiram chegar.

Carmen foi recebida por 5 mil pessoas de sarongue - as quais, assim que
ela despontou na
escadinha do avião, pareceram pendurar-lhe outros tantos colares de
flores no pescoço. Carmen
ganhou também um chapéu de três andares, cada andar ornado com orquídeas,
antúrios e
hibiscos. Num palanque decorado de alto a baixo com jasmins, recebeu as
chaves da cidade e foi
agraciada com novas flores pelos representantes das colônias do
arquipélago: "caucasianos",
havaianos, filipinos, chineses, japoneses e até portugueses em trajes
típicos. (Seu encontro com a
colônia lusa a fez chorar.) Ao chegar ao hotel Royal Hawaiian, mais
flores a esperavam na
recepção e, no apartamento, corbeilles descomunais - e só então, quando
se viu sozinha, é que
Carmen se permitiu ter um dos maiores ataques de espirros na história do
Pacífico Sul.
Descobrira-se repentinamente alérgica a pólen e, não sabia como,
conseguira segurar-se, para não
magoar os havaianos. Mas teve de trocar de quarto com sua mãe.

Outro momento crítico da chegada foi quando o locutor do palanque
anunciou o Bando da Lua
pelo nome. Os 5 mil locais explodiram numa gargalhada em uníssono -
porque "lua", na língua
nativa do arquipélago, significava privada, latrina. Benny Holzman, alto
executivo da agência
William Morris que se juntara à viagem por amizade a Carmen, sugeriu que,
pelo menos ali, eles
fossem chamados de "Bando de La Luna".


486

Carmen fora contratada para três shows de sexta a domingo em Honolulu, em
dois fins de semana,
a 17 mil dólares cada um. Mas a procura foi tão intensa que os promotores
havaianos acertaram
com Holzman outros dois fins de semana, com shows também em Maui, Kauai e
Hilo. No show em
Kauai, um setor das arquibancadas do ginásio de basquete, onde ela se
apresentou, desabou ao
peso de setecentos jovens. Dezenas se machucaram, mas ninguém morreu e o
espetáculo
continuou. A convite do comando da Base Aérea de Pearl Harbor, Carmen fez
também um
programa de rádio e um pequeno filme cantando para os soldados americanos
na Coréia.

Estava em grande forma naquelas semanas. Os shows terminavam cedo e,
apesar dos luaus quase
diários, com as festas até de madrugada nas praias iluminadas por tochas,
Carmen conseguia ir
dormir em horários regulamentares. Ou, pelo menos, que lhe permitiam
estar de pé por volta do
meio-dia do dia seguinte e ir à praia com dona Maria e os rapazes.
Divertiu-se como havia anos
não fazia, bebendo de forma moderada, esparramando-se na areia e caindo
na água azul-safira da
ilha de Oahu, onde fica Honolulu. Aloysio arranjara uma namorada, Joyce,
uma atraente eurasiana
que trabalhava como recepcionista de um serviço local de turismo. Houve
um momento em que,
aos olhos do Bando, os dois pareceram estar vivendo uma paixão de filme.
A prova de que
Carmen já não nutria o menor interesse amoroso por Aloysio está no fato
de que se deu bem com
Joyce e andava com eles e o Bando para todo lado. O Havaí fez bem a
Carmen, e foi pena que
esse estado de coisas não se prolongasse - porque bastou voltar a Beverly
Hills para que, em
pouco tempo, conseguisse chocar um antigo amigo que passaria uma
temporada com ela: Synval
Silva, o autor de "Adeus, batucada".

Synval fora a Los Angeles a convite de Carmen. Ela lhe mandou a passagem
e foi buscá-lo no
aeroporto. Indicou o seu quarto, explicou-lhe onde guardava as toalhas,
pôs-lhe um carro na mão
e disse que ficasse pelo tempo que quisesse. E, se quisesse que suas
filhas fossem estudar nos
Estados Unidos, era só falar que ela cuidaria de tudo - típico da
impressionante generosidade de

Carmen.

Na primeira vez em que saiu a passear de carro por Los Angeles com
Synval, insistiu em que ele
dirigisse - como no passado, quando ele fora seu motorista. Carmen
esqueceu-se de que, nos
Estados Unidos, em 1951, uma mulher branca não se sentava ao lado de um
homem negro ao
volante. Sentava-se no banco de trás. Outro motorista, por sinal também
negro, passou por eles na
estrada, reconheceu-a e emparelhou seu carro com o dela:

"Algum problema, Carmen? Está sendo seqüestrada?"

Carmen riu e identificou Synval:

"Não! Este é meu compositor brasileiro."

O homem os convidou para um drinque num botequim da rodovia logo depois
da primeira curva.


487

Synval ficou quatro meses com Carmen em North Bedford Drive. (Quando ela
viajava a trabalho,
ele continuava por lá com Sebastian; os dois se deram surpreendentemente
bem.) Nesse espaço
de tempo, Synval conviveu com uma Carmen em grande forma, como a que
acabara de voltar do
Havaí, e outras vezes, nem tanto. Quando ele a vira pela última vez, no
Rio, em 1940, ela
continuava abstêmia como sempre - mal tomava guaraná; chope ou cerveja,
muito raro. Agora,
para surpresa de Synval, Carmen esvaziava doses duplas de uísque quase
que de um gole, e com
uma velocidade que ele não via nem em Ary Barroso. E não parecia se
alterar, o que era
espantoso pela quantidade que ingeria.

Carmen pedia a Synval que contasse as últimas anedotas que circulavam no
Rio e ria de se
dobrar, com a mão na cintura. Numa dessas, Carmen sentouse ao chão para
rir e, quando ela se
levantou, Synval viu o que não queria: uma pequena poça de urina. Carmen
não se contivera.

Ela percebeu o sem-jeito da situação e, ainda rindo, disse: "Que coisa!
Mas a culpa foi sua, me
fazendo rir desse jeito!" Um ocasional descontrole desse tipo é normal,
mas Synval se preocupou
porque estava habituado a ver aquilo entre os bebuns das biroscas de sua
escola de samba, o
Império da Tijuca. Alguns deles já não se seguravam nem se preocupavam em
se segurar.

Eram agora várias Carmens. No dia 25 de março, absolutamente dona de si,
uma Carmen firme,
articulada e piadista estava ao lado de Bette Davis e Judy Holliday ao
microfone de T/ze big
show, um programa de rádio da NBC. As duas eram candidatas ao Oscar de
melhor atriz de 1950:
Bette, por sua interpretação de Margo Channing em A malvada (Ali about
Eve), e Judy, como a
loura burra de Nascida ontem. Na bolsa das apostas de Hollywood, Bette
era barbada e, se
alguém pudesse tomar-lhe o Oscar, seria Gloria Swanson, pelo papel de
Norma Desmond em
Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard). Judy corria por fora e não se
esquecia de que, apenas
sete anos antes, estava fazendo uma ponta quase invisível num filme de
Carmen, Alegria, rapazes!.
Mas, dali a quatro noites, na cerimônia de entrega do prêmio no Pantages
Theatre, no Hollywood
Boulevard, Judy Holliday atropelou na reta final e ganhou o Oscar, nas
barbas de Bette Davis e
Gloria Swanson.

A possibilidade de Carmen ser um dia indicada para o Oscar era tão remota
quanto a de viajar
num disco voador, mas o cinema e a televisão estavam fazendo planos
importantes para ela.
Howard Hughes assumira o controle da RKO e lhe falara de sua intenção de
recuperar as
seqüências de Carnaval filmadas por Orson Welles no Rio em 1942 e editá-
las num novo filme,
tendo Carmen como hostess. Esse, sim, era um projeto de prestígio - as
imagens perdidas de It"s
ali true já faziam parte da mitologia do cinema. Se se pudesse finalmente
vê-las, todos os
envolvidos no projeto teriam a ganhar. Imagine, então, ser a hostess
desse filme. Mas Hughes
venderia sua participação na RKO em setembro de 1952 sem que o projeto se
firmasse - aliás, ali
seria o fim da RKO.


488

Ainda em 1951, o diretor brasileiro Alberto Cavalcanti, muito respeitado
na Europa, convidou
Carmen a fazer com ele e voltar a filmar no Brasil. Prometeu-lhe um papel
sério num filme da Vera
Cruz, Terra é sempre terra. Carmen pensou com carinho na proposta, mas
Cavalcanti logo
deixaria a Vera Cruz, e se esqueceriam de Carmen. O filme foi feito, com
Marisa Prado no papel.
E a CBS tinha em mente uma série de programas de televisão, The Carmen
Miranda Show, um
misto de musical e comédia, e queria sentar-se para conversar com ela.
Mas Sebastian interferiu e
recomendou a Carmen esperar pela TV em cores - que estava sendo
"desenvolvida" -, para
fazer justiça à sua coleção de roupas. Ou seja, sempre que alguma boa
idéia se apresentava, o
acaso ou um palpite errado contribuía para que essa idéia morresse no
ovo.

Assim, de todas as propostas diferentes que lhe surgiram no primeiro
semestre de 1951, a única
que se materializou foi a de um livreto de bonecas de papel, com os
moldes de suas fantasias para
serem "vestidos" nas bonecas. E, caso Carmen se sentisse deprimida,
sempre poderia animar-se
com uma pesquisa do Variety, segundo a qual ela era a pessoa "mais
imitada dos Estados
Unidos", por profissionais e amadores.

A verdadeira Carmen não tinha por que se sentir deprimida. Se quisesse,
poderia apresentar-se
todas as noites do ano - onde, quando e por quanto quisesse -, como lhe
disse Benny Holzman,
da William Morris. Era só não recusar os convites. Carmen fez isso em
março e abril, emendando
temporadas no Latin Cassino, na Filadélfia, no Town Cassino, em Buffalo,
e no Latin Quarter, em
Boston - alternando entre as cápsulas vermelhas, para deitar-se e
relaxar, e laranja, para
levantar-se e dar os shows. Em algumas situações, dormia mais do que
devia, o que, numa dessas
cidades, criou um problema inédito: o cheque com o pagamento da semana
(algo como 17 500
dólares) precisava ser endossado por Carmen para poder ser levado ao
banco e descontado, de
modo que os rapazes do Bando da Lua recebessem a sua parte. Mas Carmen
estava dormindo e
não havia perspectiva de acordar antes das seis da tarde, quando o banco
já estaria fechado. O
próprio Benny Holzman deu a sugestão de que Russinho, perito em
falsificar a assinatura de
Carmen, depois dos milhares de fotos que já autografara por ela, fizesse
o mesmo no verso do
cheque. O músico se negou - uma coisa era assinar para um fã, outra era
falsificar o endosso de
um cheque. Mas Holzman garantiu-lhe que se responsabilizaria e, com o
estímulo dos colegas do
Bando da Lua, Russinho pegou a caneta e desenhou o nome de Carmen, com
todos aqueles emes
floridos e rebordados. Ele próprio não gostou do resultado - disse que
estava nervoso -, mas o
banco nem discutiu: aceitou sua assinatura e pagou. Carmen, ao acordar e
saber da história,
apenas achou graça. Às vezes era difícil saber qual das Carmens estava em
ação. A que
anunciava, com infalível regularidade, mais uma ida ao Brasil (dessa vez
para lançar

489

uma moda sem sentido, a "turbandana", misto de turbante e lenço) - ou
a que deixava que a
William Morris lhe marcasse compromissos exatamente para a época da
propalada viagem? A
que se queixava de que Sebastian a maltratava (como contara em Nova York
a Lourdes Lessa,
secretária da Casa Civil do recém-eleito presidente Getúlio Vargas) - ou
a que, "com seu
marido, Dave Sebastian", estava tentando "adotar uma criança do sexo
masculino"? (Uma
colunista, Edith Gwynn, falou sobre essa tentativa de adoção no Mirror,
de Los Angeles, em abril
de 1951. Em maio, outro colunista informou que a agência a que tinham se
dirigido ainda não lhes
oferecera nenhuma criança. Depois dessa, o assunto simplesmente
desapareceu do noticiário.) A
que resistia aos avanços do ator Robert Cummings, astro de Em cada
coração um pecado (King"s
Row, 1941), por não admitir o adultério (embora se desconfiasse de que já
não tinha vida sexual
com Sebastian) - ou a que se insinuava discretamente para Dean Martin
todas as vezes que seus
caminhos se cruzavam (e Dean fingia não perceber)?

A suprema contradição fora observada por uma repórter de Nova York, ao
ver Carmen
aplaudindo e pedindo bis a Edith Piaf na consagradora estréia desta no
Versailles, em fins de 1950
- e, depois, ao flagrar as duas chorando e se confortando no camarim da
francesa.

"O que essas moças de 5 mil dólares por semana têm para chorar?",
perguntou a repórter.

A jornalista estava mal informada, porque Carmen já deixara havia muito o
patamar dos 5 mil
dólares - seu valor era três ou quatro vezes acima disso.

Ela não era a única a viver no fio da navalha. Profissionalmente, o Bando
da Lua também se
debatia numa velha contradição: o conjunto ficar à disposição de Carmen,
como queriam Aloysio
e Lulu, e ganhar bom dinheiro - ou estar aberto também a projetos
próprios, sem ela, como
preferiam Harry e Russinho, e ganhar mais (ou, às vezes, menos). Mas,
mesmo quando se
dispunham a fazer algo sozinhos, era Carmen que não conseguia ficar longe
deles.

Em maio de 1951, quando o Bando estreou seu primeiro show-solo, no Café
Gala, em Los
Angeles, Carmen reservou metade da boate para ela e seus convidados. Às
folhas tantas,
inevitavelmente, foi intimada a subir no palco e dar uma canja - com o
que aquele também se
tornou um show de Carmen Miranda e o Bando da Lua.

A ambição de Harry e Russinho era justificada. Em 1950, o Bando gravara
quatro faces na Decca
com Bing Crosby - "Quizàs, quizàs, quizàs" e "Maria Bonita" em um 78 rpm,
e "Copacabana" (de
Braguinha, Alberto Ribeiro e, adivinhe, Ray Gilbert) e "Granada" em
outro. Exceto por
"Copacabana", havia um inevitável ar de canastrice naqueles discos, mas
gravar com Bing
(ainda, sem discussão, o maior cantor popular do mundo) era algo a se
contar para os netos.


490

E não se tratava de backing vocais anônimos - o nome do conjunto
estava no selo do
disco, e seus vocais em "Copacabana" eram em português. Por causa de
"Quizàs, quizàs, quizàs",
Peggy Lee quis trabalhar com eles (Carmen não deixou) e Desi Arnaz também
(eles recusaram,
por achar Desi insuportável). Outro 78 na Decca, este apenas do Bando da
Lua, contendo
"Bibbidi-bobbidi-boo" e "Rag mop", duas canções americanas em ritmo de
samba e com letras de
Aloysio em português, foi considerado o "melhor disco do mês" (de julho
de 1950) pela revista
Record Reviews, por gente respeitada como Barry Ulanov, George T. Simon e
Barbara
Hodgkins - é verdade que empatado com o (depois clássico) "Blues in
riff", de Stan Kenton. Mas
era um orgulho ser o "melhor do mês" - significava ser o melhor entre,
pelo menos, mil
lançamentos no mesmo período.

A Decca, que gostava de formar duplas entre seus contratados, queria
acoplar o Bando da Lua
com Louis Armstrong em "Besame mucho", e Carmen com Danny Kaye, em algo
que permitisse
aos dois apostar uma corrida vocal. Mas nada aconteceu porque Carmen e
Danny não pareciam
ter datas compatíveis (o impasse se arrastou e a idéia foi abandonada) e
o Bando da Lua
começou a se desentender com Aloysio, por ele insistir em assinar os
contratos em nome do
conjunto e em ganhar mais do que os outros.

Os colegas de Aloysio tinham razão em suas queixas, mas não podiam
impedi-lo de ser mais
expedito e ambicioso do que eles. Era Aloysio quem fazia divertidas
versões em português para
sucessos americanos (como a de "In the mood", de Joe Garland e Andy
Razaf, que se tornou
"Edmundo"), mantinha abertos os canais com Walt Disney ("Bibbidi-bobbidi-
boo" era uma
canção de Cinderela) e, para o bem ou para o mal, trabalhava em parceria
com o esperto (esperto
demais) Ray Gilbert. E não fazia sentido qualificar Aloysio de "intruso"
no conjunto, porque eles é
que o tinham convidado a juntar-se ao grupo, como crooner, como o homem
de frente.

Em breve, no entanto, todas aquelas brigas ficariam irrelevantes -
porque, embora eles ainda
não soubessem, Carmen e o Bando da Lua nunca mais gravariam um disco,
juntos ou separados,
nos Estados Unidos e em lugar nenhum.

Era o fim de duas grandes carreiras discográficas, começadas sob os
auspícios de um mesmo
homem - Josué de Barros - e em um ano tão longínquo, 1929, que parecia
pertencer a uma outra
era geológica.

Carmen, se quisesse, falaria inglês quase tão bem quanto Deborah Kerr,
mas tinha de se cuidar na
presença de jornalistas. Espiou por cima do ombro do repórter americano e
notou que ele estava
enchendo um bloco atribuindo-lhe frases em inglês corrente, escorreito -
sem as batatadas tipo
"Souse American" que, pelos últimos doze anos, o público se habituara a
esperar dela.


491

"Escute aqui, você quer me arruinar? Ninguém pode citar Carmen Miranda
sem sotaque!"

Pelo visto, nunca se livraria desse estereótipo, nem queria mais se
livrar. Faria parte de sua
caracterização até o último dia, junto com os turbantes e as plataformas.
No começo do ano,
Herman Hover, proprietário do Ciro"s, de Los Angeles, propôs produzir
para ela um musical na
Broadway (uma comédia musical de verdade, não uma revista), e a idéia era
explorar seu inglês
estropiado. O incrível é que era uma boa idéia. Chamar-se-ia How you say
it?, e seria uma
espécie de Nascida ontem ao contrário - com Judy Holliday (que, na
comédia de Garson Kanin,
praticamente reaprendia a falar) ensinando inglês a Carmen. Também no
elenco estariam o galã
Richard Carlson e a cantora Francês Faye. Os planos foram rapidamente
postos sobre rodas,
inclusive quanto à participação de Judy Holliday, que gostava de Carmen e
a admirava. Mas, em
março, Judy ganhou o Oscar de melhor atriz, e a Broadway já não poderia
competir com os
salários que a esperavam em Hollywood. O desapontado Hover substituiu
Judy por Marie "The
Body" McDonald, uma atriz e ex-modelo com uma ligeira voga na época. Mas
isso liquidou o
projeto - não havia como substituir Judy Holliday por Marie "The Body"
McDonald e esperar o
mesmo resultado. Hover, então, engavetou How you say it?, pegou seu
capital e o levou de volta
para Los Angeles, onde teve de afastar as paredes móveis de seu nightclub
a fim de abrir espaço
para mais mesas - porque, por duas semanas de julho, Carmen cantaria duas
vezes por noite para
um Ciro"s lotado.

Em sua estréia, numa noite de sexta-feira, 13, Carmen subiu ao palco do
Ciro"s "com a energia de
um avião a jato", escreveu uma colunista. E, com ou sem ironia,
acrescentou: "Deve estar numa
dieta de vitamina B-12 há meses".

Havia agora uma perfeita divisão de trabalho entre Carmen e o Bando da
Lua, com
responsabilidades proporcionais para cada um - inclusive coreográficas,
com o Bando
executando os movimentos que lhe tinham sido ensinados por Nick Castle.
Entre eles e Carmen, já
não era só o habitual desfile de "Brazil", "Tico-tico", "The old piano
roll blues" ou "Cuanto lê
gusta". Era também uma seqüência de falas e sketches entremeados às
canções, tudo bem
ensaiado por Bill Heathcock.

Em tempos idos, Carmen fizera um ou outro show avulso no próprio Ciro"s,
mas essa era a
primeira vez que começava uma temporada regular num nightclub de Los
Angeles. A maioria da
platéia não conhecia seus truques, como o de tirar o turbante e soltar as
torrentes de cabelo.
Carmen garantia a autenticidade do cabelo, sacudindo-o e mandando que
alguém do Bando o
puxasse, ou apontando para a cor das mechas (na época, ruivas) e dizendo,
triunfante: "É tingido!"
- de propósito porque, em Hollywood, ninguém admitia usar nada
falsificado. Não contente,
chutou para longe as plataformas douradas e cantou, de Ray Gilbert, "I
like to be tall". Finalmente,
desceu do palco e distribuiu bananas com um laço de fita para as mulheres
nas mesas de pista.


492

Terminado o show, Hedda Hopper também parecia impressionada:
"Carmen estraçalhou a
Sunset Strip".

A "dieta de vitamina B-12" poderia ser interpretada como as três ou
quatro semanas, durante maio
e junho, que Carmen passara em Palm Springs preparando-se para o Ciro"s e
para a maratona do
segundo semestre - tentando diminuir a dose de medicamentos, queimando na
piscina a birita
acumulada e tomando sol nua para se bronzear por igual, sem as marcas do
biquíni. Mas, na última
semana de maio, um acidente chegou aos jornais: durante sua estada, a
casa de Palm Springs
sofrerá um pequeno incêndio. Segundo Louella Parsons em sua coluna, o
fogo "irrompera na
cozinha, atingira cortinas e queimara gravemente três fantasias novas que
Carmen pretendia usar
no Ciro"s". Embora nem Louella nem ninguém parecesse ter estranhado, o
percurso do fogo é que
era curioso: da cozinha aos vestidos através de algumas cortinas - como
se não houvesse uma
casa inteira entre o fogão, digamos, e o armário. (A não ser que os
cabides com os vestidos
estivessem pendurados em cima das trempes.)

A possibilidade de Carmen ter provocado acidentalmente o incêndio, por
estar alterada e sem
ninguém para protegê-la, não foi mencionada. Mas quem podia saber que,
dessa vez, ela fora para
Palm Springs sem Aurora e sem dona Maria (ambas no Brasil) e sem o Bando
da Lua (ocupado
com seu show no Café Gala)? Carmen, agora, fazia parte do grupo de
pessoas estatisticamente
mais sujeitas a sofrer ou provocar acidentes domésticos de qualquer tipo
- desde ter quedas
acidentais até pôr fogo na casa. Naquela ocasião, Carmen podia estar com
Sebastian, mas,
segundo relatos de um membro do Bando da Lua, sua presença não
significaria nenhuma
proteção extra - porque ele, sim, estava passando a maior parte do tempo
alcoolizado.

Carmen recuperou-se para adentrar o Ciro"s com a "energia de um avião a
jato" e, de lá, duas
semanas depois, emendar com outra temporada de duas semanas no hotel Mark
Hopkins, em São
Francisco. Tudo isso, no entanto, não passaria de um leve aquecimento
para o que a esperava de
agosto a outubro: a Caravana do Xarope Hadacol - uma maratona para acabar
com todas as
maratonas.

Quando se analisa a brutalidade dessa excursão, e o que ela deve ter
custado a Carmen em termos
de desgaste, a única pergunta a fazer é: Por quê?

No verão americano de 1951, Carmen aceitou 99 mil dólares (recusou os
100 mil, a fim de ficar num patamar abaixo no cálculo do imposto de
renda) para participar da
monumental Caravana Hadacol, promovida pelo senador Dudley J. LeBlanc,
que se apresentou
em 43 cidades do Sul e do Meio-Oeste dos Estados Unidos, noite após
noite, para estádios
lotados. Dito assim, parece a glória. Mas pode ter sido o ponto mais
discutível da carreira de
Carmen - e de todos os grandes nomes do show business que participaram
com ela.

493

LeBlanc era um político folclórico e carismático, parecido com o lendário
Huey Long (seu
contemporâneo e rival na política regional sulista), que inspirara o
personagem vivido por
Broderick Crawford no filme A grande ilusão (Ali the kmg"s men, de 1949).
O Hadacol era um
"remédio" de sua invenção: uma beberagem de quintal, composta de ácido
clorídrico diluído,
vitamina B, ferro, cálcio, fósforo, mel e, segundo a bula, respondendo
por "12% da fórmula",
álcool etílico - na verdade, mais que isso. LeBlanc manipulava suas
campanhas de forma tão
criativa que não podia ser acusado nem de falsa publicidade. Em
1950 inundou jornais, revistas e estações de rádio em todo o país com
"testemunhos" de pessoas
(identificadas por nome, sobrenome e endereço) afirmando que o Hadacol as
curara de asma,
reumatismo, pressão baixa, pedras nos rins, úlcera, epilepsia, lumbago,
tuberculose, câncer e
impotência. Mas como nada disso estava prometido na embalagem do remédio,
a FDA (Federal
Drug Administration, o Ministério da Saúde americano) não podia acusá-lo
de charlatanice.

Em pouco tempo, LeBlanc fez de sua droga uma mania nacional nos Estados
Unidos. Nasce um
otário por minuto, já dizia o filósofo circense P. T. Barnum, e LeBlanc
venderia naquele ano 20
milhões de garrafas de Hadacol, de Brejo Seco à Park Avenue. Mas o ponto
alto de suaféerie
promocional eram as caravanas que organizava pelo interior do país, ao
estilo dos antigos
medicine men que viajavam em carroças, tocando banjo e vendendo óleo de
cobra. Só que as
caravanas de LeBlanc eram em grande escala. A de 1951, de que Carmen
participou, era
composta de 130 veículos, incluindo um trem com dezessete vagões e uma
barcaça do
Mississippi. Os artistas viajavam, dormiam e comiam no trem, com tudo de
graça, e só saíam dele
para os shows nos estádios de rugby. Para o público, o ingresso era uma
tampa da caixa da
embalagem do Hadacol. Ao fim da excursão, LeBlanc anunciou ter vendido 3
milhões de
garrafas. Se for verdade, terá sido aproximadamente esse o público que
foi ver seus artistas.

A trupe, comandada por ele próprio como mestre-de-cerimônias, consistia
de palhaços,
trapezistas, trinta coristas (usando qualquer pretexto para mostrar as
pernas),/re"fo (de homens-
tronco e anões sortidos a um gigante de
2,70 metros), duas orquestras e astros da categoria de Bob Hope, Mickey
Rooney, Jimmy
Durante, Chico Marx, Milton Berle, Jack Benny, César Romero, Jack
Dempsey, os cantores Dick
Haymes, Connie Boswell e Hank Williams - e, sempre fechando a primeira
parte do espetáculo,
Carmen Miranda. Para agradar a platéias tão rústicas e maciças, Carmen
nunca dependeu tanto da
extravagância de suas fantasias ou de cantar em tão alta velocidade. Às
vezes, nem o Bando da
Lua a entendia, mas, a cada noite, as arquibancadas rugiam de satisfação.

A programação constou de 43 shows em 43 cidades durante 43 noites
seguidas, cobrindo milhares
de quilômetros, em dezesseis estados.


494

Começou no dia 22 de agosto, na Geórgia, atravessou os estados de, pela ordem,
Carolina do Sul, Carolina do
Norte, Virgínia, West Virginia, Kentucky, Ohio, Indiana, Missouri,
Illinois, lowa, Nebraska,
Kansas, Oklahoma, Texas e terminou na Louisiana, no dia 3 de outubro. (O
show de encerramento
foi com Frank Sinatra em New Orleans.) A caravana viajava de madrugada e
os artistas
acordavam a cada dia numa cidade diferente. À tarde, uma equipe fazia a
montagem do
megashow e a passagem de som no estádio local; à noite, dava-se o show
propriamente dito -
um misto de cabaré, programa radiofônico de humor, comício eleitoral,
vaudeville e circo;
terminado este, os cenários eram desmontados e levados de volta para o
trem; cada artista
recolhia seu equipamento e fazia o mesmo; e o trem zarpava para a etapa
seguinte - tudo em
menos de 24 horas.

Para Hope ou Durante, que só devem ter levado uma troca de roupa e uma
escova de dentes,
pode ter sido apenas cansativo. Para Carmen, o simples manejo de seu
guarda-roupa devia
parecer quase indescritível. Embarcou com doze contêineres de fantasias e
quase tantas caixas de
chapéu para os turbantes, contendo inclusive aquele que se tornara seu
favorito, o de 24 guarda-
chuvinhas de Romance carioca, que ela comprara da MGM. O seguro de seu
material foi de 100
mil dólares. A caravana se deu no verão, a temperaturas médias de 35
graus nas cidades do Sul -
as fantasias saíam ensopadas de suor ao fim de cada show e precisavam ser
levadas quase
imediatamente para o vagão-lavanderia. Carmen tinha com ela Odila, mulher
de Zezinho, e era
esta quem se encarregava de lavar e passar o material de Carmen, manter o
controle dos
turbantes, certificar-se de que os brincos, colares e pulseiras tinham
voltado para os respectivos
recipientes, checar cada par de plataformas para prevenir tiras soltas e
tombos espetaculares,
cuidar da sua roupa de baixo - enfim, pobre Odila.

Para Carmen, a caravana resumia-se a dois cenários: sua cabine no trem,
onde passava o dia
dormindo, e o palco em que se apresentava à noite. A cidade onde se
apresentava não tinha a
menor importância. Para sustentar esse ritmo e certificar-se de que
surgiria no palco, noite após
noite, com sua vitalidade quase proibitiva, Carmen desistiu de tentar
regular seu organismo por
conta própria. Cumprindo ordens, Odila apenas a punha para dormir ou a
acordava com uma ou
mais cápsulas, e Carmen entrava ou saía de cena, do berço para o palco e
vice-versa, como uma
espoleta ou uma pedra - como as bulas das anfetaminas e dos barbitúricos
garantiam que
aconteceria.

César Ladeira voltou aos Estados Unidos em outubro de 1951, numa viagem
de lua-de-mel.
Custara para se casar, mas, quando fizera isso, escolhera a atriz Renata
Fronzi, nacionalmente
admirada no Brasil por sua plástica. Foram visitar Carmen em Beverly
Hills e, em deferência a
César, Carmen conduziu Renata por uma excursão a seu guarda-roupa. Esse
era um privilégio que
ela reservava a poucos - tinha medo de que os modelos que ainda não
estreara fossem copiados.

495

Durante algumas horas, Renata passeou deslumbrada pelo
universo de Carmen
Miranda.

Começaram pela seção de turbantes. Um armário imenso, cheio de
prateleiras, com cabeças de
madeira sustentando verdadeiros lustres ou fontes luminosas - os
turbantes, às dezenas, talvez
mais de cem, em fileiras como soldados à espera de desfilar para o rei.
Carmen os criava e os
mandava executar por Bruce Roberts, a um valor médio de trezentos dólares
cada um. Passaram
ao corredor formado pelos armários. Ali ficavam os manequins vestidos com
as fantasias - alguns
com cabeças completas, outros, rostos sem feições, e ainda outros, sem
cabeça. Mas todos
pareciam Carmens esperando para ganhar vida e sair dançando por um
cenário de palmeiras e
coqueiros. Ali se viam desde as baianas que trouxera do Brasil e as
usadas nos primeiros filmes,
compradas à Fox, até as que apresentara nos filmes mais recentes, e que
ela sabia que estavam
mais para fantasias de criação livre do que para o conceito original das
baianas.

"O público também sabe, e prefere assim", disse Carmen, com resignação na
voz. "Quanto mais
fantasia, mais ele gosta."

Nenhum daqueles vestidos custara menos de mil dólares. O visual podia ser
extravagante, até
cômico, mas o material com que tinham sido feitos era de luxo - os
tecidos vinham da França; os
aviamentos eram super-reforçados; o acabamento, de primeira. Em outra
divisão dos armários, os
sapatos - centenas deles (Carmen já não os contava), que lhe custavam,
para produzir, uma
média de 75 dólares o par (e ela, sua legítima criadora, nunca se
preocupara em patentear). Por
causa deles, Carmen saía nas páginas de negócios dos jornais americanos,
citada por capitães da
indústria como Lawrence A. Schoen, presidente da Wise Shoes Co., uma das
mais antigas cadeias
de sapatos femininos dos Estados Unidos, como a responsável pelo
lançamento de uma moda que
já durava dez anos - e continuava a crescer.

Havia também a seção de luvas, longas e curtas, em crepe, com botões de
madrepérola; os lenços
de seda, em sua maioria italianos, com bordados brancos nos acabamentos;
os toucados em rede
de croché, que lhe davam um ar tão português, salpicados de pequenas
pérolas douradas; os
coletes, as golas e as estolas de pele (além dos casacos, de todos os
comprimentos); e mais as
bolsas, carteiras e frasqueiras. E as fabulosas malas. E os estojos de
maquiagem. Renata podia
passar o resto da vida ali.

Em outro setor do quarto, ficava o móvel com as gavetinhas de cinco
centímetros de altura
divididas em pequenas repartições - cada qual com um conjunto de brincos,
broches, anéis,
colares e pulseiras.

"São bijuterias, mas trabalhadas por artistas habituados a fazer jóias de
verdade", disse Carmen.
"As verdadeiras ficam no banco. Todo o pessoal do cinema, mesmo tendo
jóias preciosas, só usa
as de fantasia."

O passeio era fascinante, mas podia levar a uma angustiante reflexão.


496

Era como se, naquele acervo, vivesse também a Carmen de fantasia - e não se
soubesse onde estava
a verdadeira. A Carmen que guiava as visitas pelo guarda-roupa parecia às
vezes cansada,
ausente, sonolenta; em outras, insone, acesa, excitada; mas, nos dois
casos, era uma sensação
artificial, como se nenhuma das duas fosse a Carmen que o próprio César
conhecera nos áureos
tempos. Suas sobrancelhas, que raspara muito jovem, nunca mais haviam
crescido. Durante os
anos 30, isso não tinha importância, porque a moda era fazê-las a lápis,
fininhas. Mas, nos anos 40,
algumas de suas colegas como Ingrid Bergman, Ava Gardner e mesmo Joan
Crawford haviam
revertido essa tendência, com seus espessos tufos de pêlos sobre os
olhos. Com isso, Carmen
precisava agora carregar no lápis, como Marlene Dietrich e Lana Turner
também tinham de fazer.
No palco ou na tela, as sobrancelhas desenhadas para parecer grossas
ficavam bem, mas, na vida
real, provocavam uma incômoda sensação de envelhecimento - como se fossem
mulheres que
tivessem saído de uma outra época (e, de certa forma, tinham mesmo).

Meses antes, Waldemar Torres comovera-se ao ser tão amorosamente abraçado
por Carmen (para
repassar-lhe o "cheirinho gostoso do Rio"), mas entristeceu-se por achá-
la "tão cedo
envelhecida". Sobre eles, na parede adjacente ao sofá, ficava o quadro de
Carmen pintado por J.
Luiz, Jotinha, que ela trouxera do Brasil. O contraste era gritante,
embora o espaço de tempo
entre a Carmen do retrato e a que ele via agora em close fosse de apenas
onze anos. Carmen
parecia gorda (ou inchada). E sua cintura desaparecera - ela certamente
não entraria com
facilidade nas primeiras baianas.

Outra amiga, que só agora estava conhecendo Carmen, mas que a achava
castigada para seus
apenas 42 anos, era Dedei, mulher do cônsul Antônio Corrêa do Lago.
Sempre que ia visitá-la,
Dedei percebia que Sebastian, "num excesso de solicitude", não deixava o
copo de Carmen
vazio. Estava sempre reabastecendo-a ou indo preparar-lhe um novo
drinque. E, para Renata
Fronzi, Carmen comentou que estava pensando em não ter mais bebida em
casa, "por causa de
Dave". Preocupava-se que ele estivesse bebendo demais. Seria melhor não
ter nada em estoque,
disse Carmen, e, quando soubesse que teriam visita, "mandar vir uísque e
cerveja do
supermercado".

Era uma boa medida, concordou Renata. Mas inócua, porque tinham visita
todos os dias.



Capítulo 28


1952 - 1954

Choques elétricos



Carmen não parava porque não era possível parar - porque havia um
contrato a cumprir e um
avião a tomar, e uma platéia pronta a ouvir "Mamãe, eu quero" e a rir com
a história do cabelo, e
talvez porque fosse melhor estar na estrada do que em casa. Se não fossem
os shows, a vida entre
um Nembutal e um Dexedrine consistiria de quinze horas seguidas de sono
ou de uma seqüência
de palpitações, pequenos tremores e boca seca. Ao voltar da Caravana
Hadacol em outubro,
Carmen passou duas semanas, se tanto, em Beverly Hills e partiu de novo.
Entre novembro e
dezembro de 1951 esteve no Copacabana, em Nova York (a convite de Jack
Entratter, o novo
proprietário), no Chez Paree, em Chicago, e no Rancho Vegas, em Lãs Vegas
- um mínimo de
duas semanas em cada lugar, sem descanso no Dia de Ação de Graças, no
Natal e no Ano-Novo.
O ano virou e Carmen virou com ele, sem interrupção: novamente no Chez
Paree em janeiro de
1952, com direito a show no Hospital dos Feridos da Coréia, também em
Chicago; mais uma vez o
Rancho Vegas, em fevereiro, e, de Vegas, seguindo para o Hotel Shamrock,
em Houston, no
Texas, e, em março, para o Baker Hotel, em Dálias, também no Texas - onde
cantou com um
vestido e chapéu de cowgirl, sacou de dois revólveres e deu tiros de
festim para o ar, ao som de
"The old piano roll blues" pelo Bando da Lua.

A foto deste último número foi parar na mesa de David Nasser na redação
de O Cruzeiro, na rua
do Livramento, no Rio. Ferido em brios ao ver Carmen adotar (mesmo que
por uma vez) um traje
típico americano, Nasser tirou sua velha mágoa da gaveta e disparou mais
um longo artigo contra
ela em O Cruzeiro: "Carmen, volte para os bugres" (12/4/1952).

Escreveu-o na forma de pastiche de uma lamentação bíblica, beduína, mas
com uma crueldade de
tuaregue. O mote, mais ou menos com estas palavras, era:

"Que mal o Brasil lhe fez, Carmen, para merecer o seu descaso e
ingratidão? Para que você
esquecesse os seus irmãos e se recusasse a cantar para nós, os bugres,
que sempre a adoramos
como quem adora a deusa branca? Talvez não lhe possamos pagar os milhões
de dólares dos
americanos, mas faça-nos um show de caridade, para que os nativos possam


498

descobrir, na Carmen americanizada de hoje, a menina que um dia se dourou
ao sol da Urca."

O raciocínio desviado e perverso de David Nasser só se igualava à sua
maestria com as palavras.
Dava de barato que Carmen desprezava o Brasil, que via os brasileiros
como selvagens, e que
sua volta ao país era uma questão de dinheiro. Mas, ao perguntar a Carmen
que mal o Brasil lhe
fizera, o próprio David Nasser poderia ter respondido: a feroz campanha
de certa imprensa contra
ela, inclusive a de um veículo tão poderoso como o que ele representava -
O Cruzeiro, com seus
700 mil exemplares por semana. E era inútil que, numa tentativa hipócrita
de assoprar, depois de
feri-la a dentadas, ele dissesse que o governo brasileiro devia a ela uma
ordem como a do
Cruzeiro do Sul (concedida aos estrangeiros com serviços relevantes à
nação). Nesse sentido,
estava quatro anos atrasado: Ary Barroso já fizera essa mesma sugestão ao
governo Dutra, por
intermédio do chanceler Raul Fernandes, em 1948, e em troca recebera
apenas o silêncio.

Carmen teve essa revista em mãos. Leu e releu muitas vezes o artigo de
David Nasser. Na mesma
época, recebeu em sua casa um grupo de comissários da polícia paulista,
de visita a Los Angeles.
Se o Brasil tinha contra ela esse ressentimento de que falava O Cruzeiro,
por que não havia um
dia em que não fosse procurada por brasileiros de passagem pela cidade? E
acabara de receber
também a nova correspondente dos Diários Associados em Hollywood, a
paulistana Dulce
Damasceno de Brito. A jovem Dulce trazia uma carta de recomendação de
Bibi Ferreira. Mas
Carmen já a conhecia de outros artigos a seu respeito, sempre simpáticos,
em A Scena Muda. Se
isso significasse uma mudança de atitude dos Associados (a que O Cruzeiro
pertencia) em relação
a ela, tanto melhor.

A prova de que não se podia confiar na imprensa, nem quando ela estava a
favor, se deu em
Vancouver, no Canadá, em maio, quando Carmen foi fazer uma temporada de
doze shows no New
Palomar Supper Club. Num artigo de capa no News Herald no dia seguinte à
sua chegada,
ilustrado com uma foto antiga de Carmen, de alto a baixo na página, o
repórter Bruce Levitt
perguntou: "O homem de Vancouver está preparado para Carmen Miranda?" E
ele mesmo
respondeu:

Não. Na entrevista coletiva [de ontem], três garrafas de Borgonha
chocaram à presença de
Carmen - de inveja. Seu corpo de 1,52 metro tem mais curvas que uma
estrada de Burma, e elas
se movem todas ao mesmo tempo - o tempo todo. Pode-se acender um cigarro
nas fagulhas
desprendidas pelo movimento de seus braços longos e sinuosos. Seus...
ahn... membros se agitam e
oscilam até que um homem não saiba mais o que fazer. Seu sotaque
brasileiro borbulha como uma
canoa numa noite de luar no Amazonas.

499

Francamente, senhor Vancouver - o Homem-de-Terno-Azul por
excelência -, o
senhor está preparado para isso?

Bem, vejamos. Ou o repórter era um legítimo homem de Vancouver, de terno
azul e tudo, ou
entrara por engano numa coletiva da retumbante rumbeira cubana Maria
Antonieta Pons. Não
havia motivo, nem provas materiais, para tanta excitação. Esse estilo
lúbrico e vampiresco nunca
fora o de Carmen, nem em 1939 e menos ainda em 1952, quando ela acabara
de fazer 43 anos,
oficialmente 38. Qualquer que fosse a idade, já era uma senhora, e não
lhe ficava bem desprender
fagulhas que acendessem cigarros ou usar um sotaque borbuIhante como uma
canoa. Quanto às
curvas, infelizmente já não as tinha, nem em Burma, nem na China, e a
cada dia ficava mais difícil
expor a inocente região que ajudara a consagrá-la, "entre a sétima
costela e o umbigo" - umbigo
esse que Carmen nunca exporia num palco ou num filme.

É possível calcular como ela estava em Vancouver, porque nos dois meses
seguintes, em junho e
julho, uma Carmen com excesso de peso, um ou dois queixos além do
necessário e sem muito
fôlego apresentou-se ao produtor Hal Wallis no estúdio da Paramount. Ia
rodar sua participação
no filme Scared stiff (no Brasil, Morrendo de medo), uma comédia com Dean
Martin e Jerry
Lewis. Dessa vez, essa participação seria apenas decorativa, sem nenhuma
função na trama -
parte da ação se passava num navio, e Carmen (Carmelita Castina,
nacionalidade indefinida,
apesar de algumas frases em português) e o Bando da Lua (reduzido a três
elementos, porque
Russinho baixara hospital para uma cirurgia de apêndice) eram apenas uma
atração musical a
bordo. Carmen ganhou
25 mil dólares por seis ou sete dias de trabalho, não consecutivos.

Assim como acontecera em Romance carioca, deve ter havido um hiato entre
a filmagem de seus
dois números de canto e dança, "The bongo bingo" e "The enchilada man", e
a de sua única
seqüência não musical, com diálogos, em que se atracava a Jerry Lewis num
corredor do navio.
Os números musicais foram rodados talvez em junho, porque eram sempre
filmados primeiro - e,
nesse caso, a seqüência dialogada terá sido rodada em julho. Também nesse
caso, "The enchilada
man" deve ter sido rodada antes de "The bongo bingo" (embora entrem em
ordem inversa no
filme), com dias ou talvez semanas de intervalo de um para o outro. É só
observar: Carmen está
com uma aparência mais saudável em "The enchilada man" do que em "The
bongo bingo" e, em
ambas, seu aspecto parece melhor do que na seqüência com Jerry Lewis. Nos
dois números,
Carmen dá a impressão de estar lançando mão de suas últimas reservas
físicas e mentais para
obedecer às marcações do coreógrafo - e sobreviver à intolerável
hiperatividade de Jerry
Lewis à frente dela e de Dean Martin. Nitidamente, é uma mulher em
aflição. Ao fim de cada
número, o simples fato de ter conseguido completá-lo já lhe parece uma
vitória, e isso está escrito
na tela - no rosto de Carmen.
500

Segundo Carmen, ela filmou mais um número, que teria sido cortado porque,
com esse, seriam três
as suas participações musicais em Morrendo de medo e, já então, Jerry
Lewis não admitia dar
espaço a ninguém em um filme. (Mesmo Dean Martin tinha de lutar pelo
seu.) Mas, se Lewis
entendeu assim, era só uma desculpa, porque os dois números "de Carmen"
não podiam ser
considerados apenas dela. Lewis se intromete à sua maneira em "The bongo
bingo" e "The
enchilada man" (e faz sozinho sua primária paródia de "Mamãe, eu quero",
só permitindo a
Carmen uma aparição mais que relâmpago nos bastidores). Se a necessidade
de dominar
compulsivamente a cena não fosse uma marca de sua carreira, seria
possível arriscar que Jerry
Lewis estava se vingando daquele longínquo dia de 1941, quando, aos
quinze anos, fora recusado
no elenco de uma revista musical de Carmen, Sons o"fun. Podia fazer isso
agora porque, aos 26,
estava por cima: dava ordens ao próprio Hal Wallis, tiranizava a vida dos
diretores, ofendia todo
mundo e não dividia a tela com ninguém - os críticos franceses logo o
considerariam um génio.
Mas uma das provas de que o moral de Carmen estava a zero é que ela se
submeteu às grosserias
de Jerry Lewis sem protestar.

Se foi mesmo filmado e ninguém o destruiu, o terceiro número talvez um
dia seja encontrado nos
arquivos da Paramount. Mas, a julgar pelos outros dois, seu interesse
será indumentário, não
musical. Tanto "The bongo bingo" como "The enchilada man", da dupla Mack
David e Jerry
Livingston (autores de "Bibbidi-bobbidi-boo"), refletiam o habitual
insulto hollywoodiano às
coisas do México, e a única graça estava no turbante de Carmen no segundo
número - uma
espetacular instalação usando artigos de cozinha como várias colheres,
escumadeira, batedor de
ovos, pegador de macarrão, espremedor de batata e até um ventilador, tudo
camuflado entre
legumes e hortaliças. Uma grande criação de Carmen (com ou sem a
participação de Edith Head,
responsável pelos figurinos do resto do filme), mas quase indistinguível
na fotografia em preto-e-
branco e pouco explorada pelo provecto diretor George Marshall - ou pode
ter sido Jerry
Lewis que eliminou os closes do turbante.

Morrendo de medo, terminado em agosto de 1952, só seria lançado em Nova
York em 27 de abril
de 1953. Até lá, Carmen ficaria presa à Paramount, às vezes comparecendo
a um evento do
estúdio, como a estreia em Los Angeles de Os brutos também amam (Shane).
Mas sua ligação final
com a Paramount seria nos meses de março a junho de 1953, quando ela
sairia para uma excursão
por seis países da Europa - Itália, Bélgica, Noruega, Dinamarca, Suécia e
Finlândia - para
lançar Morrendo de medo. Com isso, a Paramount pegava uma carona na nova
e imensa
popularidade de Carmen em boa parte da Europa, onde só então seus
primeiros filmes na Fox
estavam sendo lançados. A guerra fizera com que italianos, finlandeses,
suecos etc. se atrasassem
no seu culto a ela. Mas eles estavam tirando a diferença - e ainda tinham
uma batelada de
Carmens para conferir.

501

A excursão seria um tratamento de gala para Morrendo de medo. Pena que
este fosse o pior filme
da carreira de Carmen. E, por um motivo muito simples, embora definitivo,
também o último.

A idéia de excursões fora do país vinha a calhar para Carmen, porque era
uma maneira de impedir
que o imposto de renda continuasse lhe tomando quase tudo que ganhava.
Devido a uma brecha
na lei dos Estados Unidos, os rendimentos dos americanos no exterior
tinham deixado de ser
tributáveis, o que explicava por que uma quantidade de astros de
Hollywood (Cary Grant, Gene
Kelly, Kirk Douglas, Ava Gardner, David Niven) estivesse indo morar na
Europa. Enquanto a
viagem não saísse, Carmen decidira passar o segundo semestre de 1952
trabalhando dois meses
seguidos e descansando no terceiro. Com a volta de dona Maria (que
passara quase um ano
inteiro no Rio, ajudando na readaptação de Aurora), Carmen tinha de novo
alguém a seu lado,
acompanhando-a nas fugas para Palm Springs ou fazendo com que as visitas
se sentissem mais
bem recebidas em North Bedford Drive.

Uma dessas, com quem Carmen fez amizade à primeira vista, foi Maria Luiza
Frick, funcionária de
uma agência do Bank of America em Los Angeles e irmã de Jane Frick,
antiga professora de
ginástica de Aurora no Rio e que continuara amiga de ambas. Maria Luiza
logo se tornou
confidente de Carmen e, nos fins de semana, tinham conversas que se
estendiam até às cinco ou
seis da manhã. Sebastian via com maus olhos a sua presença na casa. Numa
ausência de Carmen,
em que Maria Luiza fora visitar dona Maria, ele tentou expulsá-la. Mas
Maria Luiza o encarou:

"Esta casa é de Carmen. Você não pode fazer nada."

Dona Maria também se interpôs e ela ficou.

Para Maria Luiza, Carmen pode ter se aberto sobre o fim prático de seu
casamento com
Sebastian-já não dividiam a cama desde pelo menos 1950 - e sobre sua
relativa indiferença ao
fato de que ele mantinha um caso quase público com uma xará sua, a morena
ítalo-americana
Carmen Cardillo, de cerca de trinta anos e bela mulher do agente de
viagens Ray Cardillo, que
cuidava das passagens de avião e das reservas de hotel nos deslocamentos
de Carmen.

Parecia um arranjo confortável para os envolvidos, embora chocante para
os de fora - e mais
ainda para os amigos de Carmen. Mas, se um desses se atrevesse a tocar no
assunto, ela rebatia de
bate-pronto:

"Não adianta falar, porque eu não vou me separar do Dave."

Se alguém perguntasse a Carmen o porquê dessa cega fidelidade ao
casamento, talvez ela não
soubesse responder. Suas noções sobre o divórcio como "pecado" eram
fluidas e baseadas em
vagos conceitos religiosos. Mas nem por isso menos firmes. Bastava-lhe a
fé, que, para ser
exercida com rigor, exigia um fervor quase infantil - o mesmo que a
impedia de passar debaixo
de uma escada


502

e de pronunciar aquela palavra (preferia dizer "má sorte"), e a
fazia isolar na madeira por
qualquer motivo. A católica Carmen, aos 44 anos, era a mesma que,
adolescente e já namorada de
Mário Cunha, ia à missa na velha igreja da Lapa dos Mercadores, na rua do
Ouvidor, que não
passava por um padre sem lhe beijar o anel e que, anos depois, saía de
manhãzinha do Cassino da
Urca para emendar com a missa das seis na igrejinha da Urca. E, não
importava a cidade dos
Estados Unidos em que estivessem se apresentando, pelo menos uma vez por
semana obrigava os
rapazes do Bando da Lua a acompanhá-la na primeira missa do dia numa
igreja local, e só então
os liberava para dormir. Os católicos não se divorciavam - era o que a fé
dizia -, e ponto final.

Por ironia, o grau de comprometimento químico a que seu organismo estava
submetido servia
também como um reforço para essa fé - não por virtude, mas por uma forma
de impotência.
Tanto as anfetaminas quanto os barbitúricos e o álcool eram um fator de
apatia da libido, daí
Carmen não estar muito interessada em sexo, nem com Sebastian, nem com
ninguém. Os remédios
e o uísque seriam também causadores de uma depressão que, quando se
manifestasse, estenderia
essa apatia a todo o comportamento de Carmen. E, infelizmente, ela já
estava a caminho.

O segundo semestre de 1952 foi o último período em que a piscina de North
Bedf ord Drive viveu
dias de relativa agitação, pelo menos com a presença ainda ativa de
Carmen à sua beira. Entre as
novas figuras na casa havia o Tarzan em exercício, Lex Barker, e os galãs
latinos recém-
chegados a Hollywood: o mexicano Ricardo Montalban, que se tornou grande
amigo do Bando
da Lua, e o argentino Fernando Lamas, que Carmen e Aloysio tinham
conhecido como radialista
em Buenos Aires e, agora, mais mascarado do que nunca, namorava a estrela
Arlene Dahl e se
julgava a maior sensação da cidade. Outro mexicano de primeira era Pedro
Armendariz, um dos
favoritos do diretor John Ford. E havia o melífluo César Romero, para
quem pelo menos um dos
moços do Bando da Lua olhava com desconfiança, pela suspeita de que ele
não gostava de
Carmen. (Essa suspeita se confirmaria no futuro, com as declarações
sempre dúbias de Romero a
respeito de Carmen como artista e como mulher - censurava-a por nunca ter
mudado seu estilo e
insinuava que fosse lésbica.)

A idéia de descansar por um mês a cada dois ou três de trabalho, como
tinha decidido fazer, podia
ser conveniente para Carmen e para dois dos membros do Bando da Lua -
Aloysio e Lulu -,
mas não agradava aos outros dois, Harry e Russinho. Não por acaso, eram
os dois do conjunto
casados para valer: Harry, com Isa, que ele deixara no Brasil quando
viajara com os Anjos do
Inferno e que fora se juntar a ele no México; e Russinho, com a mexicana
Janita, co-m quem ele se
casara recentemente. Os dois tinham despesas,
503

compromissos, e queriam trabalhar - não se conformavam em ficar parados. Já
Aloysio, havia muito
separado de Nikky, e Lulu, que mandara sua mulher de volta para o Brasil,
achavam que o Bando
devia ficar às ordens de Carmen.

Apesar das discordâncias, o grupo mantinha um relacionamento de irmãos. E
sempre acontecia
alguma coisa nas viagens que estimulava a solidariedade entre eles. Como
no dia em que, no
hotel, Aloysio estava aplicando Gumex e se penteando, nu, diante de um
espelho sobre a cômoda,
e resolveu, ao mesmo tempo, fechar a gaveta com a barriga, de um só
golpe. Não percebeu que
seu pênis estava dentro da gaveta e fechou-a com ele junto. O grito de
dor de Aloysio, algo entre
o som de uma trombeta e de uma cacatua, fez com que os colegas corressem
para socorrê-lo. A
dor parecia intolerável, mas Aloysio, por sorte, não perdeu nada com o
incidente. E ainda ganhou
um apelido: Doutor Gaveta.

Em fins de 1952, no entanto, dois episódios provocaram um racha no
conjunto - o último na
história do Bando da Lua. Peggy Lee, ainda saboreando o colossal sucesso
de "Manana", que
gravara em 1947 com outros músicos de Carmen, queria ser acompanhada pelo
Bando em sua
nova temporada em Nova York, no Copacabana. Falou a respeito com Carmen,
e esta, sem
consultar os interessados, negou-lhe o conjunto. Russinho ficou
aborrecido ao saber disso -
Carmen estava parada e Peggy Lee, grande cantora, era uma estrela, pagava
bem. Na seqüência,
Russinho soube também que Aloysio, pressionado por sua ex-mulher Nikky a
dar-lhe certo
dinheiro para que ela aceitasse se divorciar dele, fora pedir essa
quantia a Carmen. Não era
pouco: 10 mil dólares. Carmen deu-lhe o dinheiro com a condição de que o
Bando da Lua não
fizesse nada por fora, ou seja, continuasse exclusivo dela. E, mais uma
vez, isso foi resolvido entre
Carmen e Aloysio, pelas costas dos outros três.

Lulu não se importou e Harry se submeteu, mas Russinho se sentiu
desautorizado. Em dezembro
daquele ano, ao fim de uma temporada em Chicago, comunicou a Carmen que
estava pedindo as
contas. Tinha adoração por ela, mas precisava ganhar a vida. Carmen
tentou segurá-lo a todo
custo, mas não houve jeito. (Muito depois, em seu livro de memórias,
Aloysio, para se proteger,
inventou que Russinho deixara o conjunto e se mudara para o México por
medo de ter de lutar na
Coréia. Russinho, casado com Janita, efetivamente foi trabalhar com o
sogro e viver no México,
mas a Coréia passava longe de suas preocupações. Caso ele fosse
convocado, Carmen, com seu
prestígio entre os militares americanos, poderia livrá-lo com
facilidade.)

Sem Russinho, o Bando da Lua perdia não apenas um pandeirista, mas seu
principal harmonizador
de vozes - função que ele dividira com Lúcio Alves nos Namorados da Lua e
com Walter nos
Anjos do Inferno. Zezinho, efetivo do restaurante Marquis e que atuava
também com a orquestra
de Desi Arnaz na série de TV I lave Lucy, cobriria sua vaga por algum
tempo. Além dele, a partir
de outubro de 1953, participariam do conjunto um brasileiro que


504
volta e meia abandonava o Trio Surdina e ia tentar a sorte na América, o
violinista Fafá Lemos, e
um percussionista, Gringo do Pandeiro, que entrava e saía da orquestra de
Xavier Cugat. E, por
último, houve a contratação definitiva de Orlando Figueiredo, pandeirista
e cantor.

Todos eles grandes músicos, mas nenhum era arranjador vocal. A partir
dali, o Bando da Lua
deixaria efetivamente de existir, exceto pelo nome e pela presença de
Aloysio - o único a estar
presente no nascimento e nas diversas mortes do conjunto.

O espetáculo começava com a exibição de Morrendo de medo na tela do
cinema. Aos 55 minutos
de projeção, terminado "The bongo bingo", que era o primeiro número de
Carmen no filme, a tela
se apagava e subia, ou uma cortina de gaze se fechava - e o palco se
acendia para recebê-la ao
vivo, com os mesmos fantasia e turbante, só que de todas as cores. O
efeito era devastador,
porque era como se o filme, em preto-e-branco, ganhasse vida de repente,
na frente de todo
mundo. Carmen surgia em pessoa com seus músicos, atravessando o palco em
largas passadas,
cantando "Bambu, bambu" ou algo em tempo rápido, aplicando à ainda fria
primavera européia
um bafo de calor tropical. Assim se iniciavam os shows de Carmen em sua
temporada na Europa.

Uma temporada que começara em Nova York, no dia 20 de março de
1953, quando Carmen (com Sebastian), Aloysio, Lulu, Harry e Zezinho
embarcaram para Roma
no aeroporto de Idlewild, sabendo que só estariam de volta em meados de
junho. O show, todo
escrito e ensaiado, era uma grande novidade para as platéias européias.
Carmen mantinha-as na
ponta dos pés por quase uma hora com seu repertório mais internacional -
"Brazil", "Mamãe, eu
quero" e uma sucessão de canções onomatopaicas, falando de tique-taques,
tico-ticos, cai-cais,
upa-upas, choo-choos e chica-chica-booms, sob os violões e percussões do
Bando da Lua. Todas
as canções eram dos filmes. Em certo momento, já quase no final e sem a
quebra do ritmo,
bradava: "Ah, dizem que sou baixinha, não? Pois sou mesmo!" - atirava
longe as plataformas e
dançava um samba, descalça. "Mas também dizem que sou careca!" - tirava o
turbante, agitava
os cabelos (agora louros), ia à beira do palco e pedia a um espectador
para puxar. Delírio e
suspiros de "Mamma mia!" nos camarotes e poltronas. E só então Carmen
voltava a cantar. Os
jornais italianos a chamavam de "indiavolata" (endiabrada). Os grandes
astros locais, como
Alberto Sordi e Renato Rascel, iam render-lhe homenagens.

Quem visse Carmen em cena não podia calcular as dificuldades operacionais
da excursão.
Apenas na primeira etapa, a da Itália, a trupe cobriu quatorze cidades em
pouco mais de um mês,
entre as quais Roma, Nápoles, Messina, Bolonha, Verona, Veneza, Florença
e Milão. Mas essas
eram as cidades grandes, com palcos nobres como o Teatro Nuovo, em Milão,
e o Verdi, em
Florença,

505

e em que lhe davam proteção policial ao sair do teatro. Nas cidades
menores, Carmen ficava
exposta às pessoas que a cercavam, abraçavam, beijavam e esmagavam. Na
Sicília, teve várias
vezes a roupa rasgada. Mais uma vez, o transporte e a lavagem das
fantasias era uma confusão, e,
para tudo, Carmen dependia de Isa, mulher de Harry, que fora como sua
camareira. Em outras
cidades, como Estocolmo, na Suécia, eram dois shows na mesma noite: o
primeiro, no teatro (o
Royal, às 20h30), a preços populares; o segundo, num nightclub (o
Champagne, às 22 horas), para
os mais abonados - com Carmen tendo de se trocar praticamente dentro do
carro entre um
espetáculo e outro.

Em cada cidade a que chegava, o ritual se repetia: o prefeito com a chave
simbólica e a imprensa
com as mesmas perguntas ("Onde nasceu?", "Como começou sua carreira?").
Não era possível
fugir do prefeito nem dos fotógrafos, mas os repórteres podiam ser
driblados com a distribuição
de um press book - um livreto de cerca de quarenta páginas, preparado
pela William Morris,
contendo sua "biografia", com dados altamente manicurados. A melhor
história era a de que seu
pai, um "rico empresário português sediado no Rio", não permitia que ela
se tornasse cantora.
Então, "Maria do Carmo (seu nome verdadeiro) tivera de fazer sua carreira
em segredo", e, para
isso, adotara um apelido de infância (Carmen) e o sobrenome da mãe
(Miranda). De tanto ouvi-la
em discos e pelo rádio, seu pai se tornara fã da "cantora Carmen
Miranda", sem ter a menor idéia
de que se tratava de sua filha. E só veio a descobrir quando "começaram a
chover propostas dos
Estados Unidos" e ela teve de se revelar a ele. Ou seja, segundo o
livreto, Carmen conseguira
tapear seu pai durante dez anos!

A história era ridícula de tão inconsistente. Quer dizer que seu pai
nunca vira uma foto da famosa
cantora? Não reconhecia nela a voz da filha? E, supondo que esta
continuasse a morar com a
família, os repórteres brasileiros não a procuravam em casa para
entrevistas? Ou toda a
vizinhança conspirava para manter a sua identidade secreta, como a do
Zorro ou a do Super-
Homem? Era tudo tão absurdo que não se sabe como Carmen tinha coragem de
circular o press
book. Pois nenhum jornal europeu jamais contestou a lógica dessas
informações e elas eram
publicadas todos os dias em algum veículo da Europa, quase sem
alterações. Para que não se
pense que tal ingenuidade era privilégio dos jornalistas europeus, é bom
saber que essas mesmas
informações cansaram de sair nas revistas americanas.

O press book continha sugestões de chamadas e catch-phmses - coisas como
"THERE"S A
HEAT WAVE COMING YOUR WAY!" ("Há uma onda de calor a caminho!"), ou "THE
SPICE
OF LIFE, HERSELF - CARMEN MIRANDA!" ("O tempero da vida, em pessoa -
Carmen
Miranda!"), ou "THE "BRAZILIAN BOMBSHELL" EXPLODES IN OUR STAGE!" ("A
"Brazilian Bombshell" explode em nosso palco!"). Nos primeiros países e
nas primeiras semanas da
excursão, Carmen conseguia estar à altura desse entusiasmo. Em Roma, por
exemplo, recebeu no
camarim a visita


506

de um amigo saído do passado profundo: Lourenço, irmão de seu ex-
namorado Mário Cunha.
Estava com a mulher, Elena, e o filho de dezoito anos, Fernando. Não se
viam desde 1932, ano do
rompimento entre Carmen e Mário Cunha. Almoçaram todos juntos no dia
seguinte e, embora
fosse o começo da tarde, Carmen parecia inteira. Os Cunha estavam
viajando pela Europa e só
voltariam ao Rio em outubro, via Nova York. Carmen disse que estaria em
Nova York nessa
época e deu-lhes o telefone da Hampshire House, para que a

procurassem.

Mas, à medida que os deslocamentos, os shows e as cidades se sucediam,
Carmen acusou as
primeiras descompensações. Primeiro, porque já não tinha tanto tempo para
dormir. Havia as
esperas nas estações, as viagens de trem - nem muito curtas nem muito
longas, tornando difícil
dormir a bordo -, as chegadas, as recepções, as homenagens e as
entrevistas. Cada hora de sono
passou a ser sagrada, daí o seu refúgio no apartamento do hotel, com um
breu à sua volta, ordens
para não ser perturbada e um aumento na dose do Seconal. Por causa disso,
assim como
acontecera em Londres quatro anos antes, Carmen não conseguia sentir-se a
passeio na Europa
- conhecer os museus, andar de gôndola ou dançar o funiculi pelas ruas,
nem pensar. Da mesma
forma, não tinha disposição para visitas diurnas a catedrais, ruínas ou
monumentos - mais tarde,
essa atitude lhe seria cruelmente cobrada, como se ela não tivesse nenhum
interesse cultural pelas
cidades por que passava. Na verdade, derrubada pela intoxicação, Carmen
não tinha disposição
física para nada, contrastando com a euforia turística de Aloysio. (A
qual também não dispensava
um estímulo extra: "Foi preciso o auxílio de muito Dexedrine para ficar
acordado e não perder um
só minuto", escreveu ele em seu livro, referindo-se a Florença.)

Em conseqüência, para poder entrar no palco e desempenhar com a energia e
o entusiasmo que
exigia de si mesma, Carmen precisava recorrer em dobro às anfetaminas. É
talvez impossível
avaliar hoje a dose de que já estava precisando para voltar ao "normal",
mas, naquele estágio de
seu processo, a quantidade deveria ser inacreditável para os não-
iniciados. E, com isso, o álcool
que ingeria nas recepções oficiais também passou a agir mais depressa.
Uma história conhecida é
a do almoço oferecido pela embaixada brasileira em Helsinque, na
Finlândia, narrada por
Aloysio e outros biógrafos. Por causa do vatapá e da pinga, Carmen,
"comovida", "tomou um
pileque [em] que mal podia parar de pé". Aloysio e Sebastian tentaram
mantê-la sentada, "para
disfarçar", mas, na hora da despedida, Carmen foi abraçar a embaixatriz
e, ao cair ao chão, levou
a distinta com ela.

A dificuldade de muitas pessoas para lidar com o alcoolismo fez com que,
ao contar esse
episódio, tanto Aloysio como outros que escreveram sobre Carmen se
sentissem na obrigação de
justificá-lo "psicologicamente": Carmen ficou de pilequinho porque "se
comoveu" com o vatapá
- e não porque sua resistência orgânica, minada pelo bombardeio de todos
os lados, já estivesse diminuindo.

507

Tal atitude superprotetora mascarou a gravidade de seu estado
e impediu que ela
começasse a ser tratada como devia.

A etapa da Finlândia foi a última da viagem. Se a temporada tivesse se
esticado até Paris, como
era a idéia inicial, a possibilidade de um desastre, devido ao estado de
saúde de Carmen, era
enorme. Mas não houve acordo entre Paris e os empresários e, de
Helsinque, eles tomaram o
caminho de casa.

O ano de 1953 já ia pelo meio, e é duvidoso que Carmen conseguisse
vislumbrar o futuro com
clareza. Ou que houvesse um futuro a ser vislumbrado.

Em maio, um precoce carioca, Otto Stupakoff, chegara a Los Angeles para
estudar fotografia.
Tinha dezesseis anos e, por um desses atalhos de que o Brasil é pródigo,
trazia um cartão de
imprensa, como "correspondente", que conseguira através de amigos na nova
revista Manchete.
Em julho, por intermédio de outros brasileiros na cidade, descobriu o
telefone de Carmen. Ligou
para ela e apresentou-se.

Ao saber que ele tinha dezesseis anos e falava pouco inglês, Carmen
espantou-se:

"O que você está fazendo sozinho nesta cidade, menino? Venha já pra cá!"
Otto perguntou-lhe
que ônibus deveria tomar. Mas Carmen foi direta: "Diga onde está, que eu
mando meu motorista
buscá-lo." Otto chegou. Carmen emprestou-lhe um calção e foram para a
piscina. Cada qual em
sua espreguiçadeira, tomaram sol e conversaram. Depois, Otto comeu feijão
no almoço.

Pelo ano e meio seguinte, Otto visitou Carmen pelo menos outras cinco ou
seis vezes, com largos
intervalos e sempre a convite dela. Ela o convocava por telefone e
mandava o motorista buscá-lo.
O ritual incluía piscina (às vezes), almoço (com feijão) e longas
conversas (sempre). Carmen não
escondia sua vulnerabilidade. Falava do marido, de como não se davam bem
e que não havia
nada a fazer. Mas não gostava de falar de si mesma. Preferia saber da
paixão febril do próprio
Otto por Betsy, uma menina americana de quatorze anos que ele acabara de
conhecer e que se
arrastaria, com idas e vindas, pelo tempo em que ele teve Carmen como
confidente. Era um
namoro complicado, pela diferença de origens, de cultura e de língua.
Para piorar, Betsy,
sobrinha emprestada da estrela francesa da MGM Leslie Caron, era uma
daquelas "crianças de
Hollywood" que, se quisessem, teriam Frank Sinatra cantando em sua festa
de aniversário. Por
causa dela, Otto sofria como sofrem os verdadeiros apaixonados. Carmen
ouvia-o com o maior
interesse e lhe dava conselhos, estimulando-o a lutar por Betsy.

Otto só percebeu em retrospecto, mas Carmen se comportava como a mãe que
ela gostaria de ter
sido. Na verdade, se Carmen tivesse sido mãe aos 28 anos, em 1937, seu
filho teria exatamente a
idade dele.


508

Como se ainda restasse dúvida, ela dissera a Otto mais de uma vez: "Ah,
quisera eu ter alguém
como você!"

E, por qualquer motivo, abraçava-o e beijava-o com um calor de mãe. Às
vezes, ao fazer isso,
comovia-se e seus olhos transbordavam, borrando a pintura. Em todas as
visitas de Otto, a casa
parecia deserta, exceto por Esteia, a empregada colombiana. O próprio
marido só apareceu uma
vez e, estranhamente, Otto não se lembra de ter visto dona Maria. Em
nenhum momento se falou
no assunto, mas Otto sentia que havia alguma coisa errada com a saúde de
Carmen. Era nítido que
ela não estava bem - à medida que bebericava seu uísque, emocionava-se
com facilidade e tinha
vontade de chorar. Ele percebia vestígios da passagem recente de médicos
ou enfermeiros. Mas
era como se Carmen se preparasse para as visitas de Otto - reservando um
dia em que não
haveria ninguém de fora e ela se sentisse melhor. Queria parecer sempre
bem para o filho que
nunca tivera.

Em fins de 1954, os telefonemas pararam. Otto ouviu dizer que Carmen
tinha ido ao Brasil.
Tentou, mas não conseguiu descobrir quando voltaria. Não a veria mais. No
futuro, ao se tornar
um dos fotógrafos mais respeitados do mundo, deu-se conta de que nunca
fotografara Carmen.

Também no segundo semestre de 1953, outro estudante brasileiro de
passagem por Los Angeles,
chamado José Rubem, resolveu visitá-la. Procurou seu nome no catálogo
telefônico, anotou o
endereço e tomou um táxi. O motorista estranhou o destino da corrida, mas
levou-o assim mesmo.
José Rubem chegou à morada de Carmen Miranda - uma senhora mexicana, já
entrada em anos,
habitante de uma casa pobre num bairro distante e mais pobre ainda, e que
vivia sendo
confundida com a estrela. O rapaz pediu desculpas pelo engano e voltou
para o táxi. Ao falar o
nome da artista para o motorista, este o mandou segurar seu chapéu e o
levou a North Bedford
Drive - todos os motoristas sabiam onde morava a verdadeira Carmen
Miranda.

Carmen o recebeu muito bem, como fazia com todo mundo. Ele passou uma
tarde com ela e outros
convidados à beira da piscina. Estranhou que o marido, Dave Sebastian,
completamente
ostracizado, não parecesse incomodado por ficar à parte. José Rubem achou
Carmen uma mulher
muito interessante. Nos meses seguintes, com ele já de volta ao Brasil,
trocaram cartas e ela lhe
mandou fotos. Carmen nunca soube que seu correspondente se tornaria o
romancista Rubem
Fonseca.

"Este é para o tio Mário. E este também é para o tio Mário. E mais este!
E mais este! E mais este!"

Carmen se jogara ao pescoço do garoto Fernando, sobrinho de Mário Cunha,
e não parava de
beijá-lo no rosto, oferecendo os beijos a seu antigo namorado, a 10 mil
quilômetros de distância.


509

A cena era em Nova York, no apartamento da Hampshire House, onde Carmen
estava sendo
visitada por Fernando e seus pais, Lourenço e Elena, finalmente rumo ao
Brasil depois de quase
um ano na Europa. Como prometera a Lourenço, Carmen estava em Nova York
em outubro, para
mais uma temporada no Copacabana. A visita tinha sido marcada em Roma,
seis meses antes, e a
diferença em Carmen era marcante: a pele de seu rosto agora brilhava,
esticada pela retenção de
líquidos; os olhos pareciam menores, apertados dentro das pálpebras; e
havia algo de falso e
exagerado na sua euforia. Carmen estava alterada pela bebida, arrastada e
repetitiva,
perguntando a todo momento por Mário Cunha.

Os beijos e abraços em Fernando aconteceram na saída, quando ela foi
levá-los à porta.
Sebastian, irritado, tentava desvencilhá-la do jovem, mas Carmen lhe dava
tapas nas mãos e se
abraçava ainda mais ao rapaz:

"E mais este! E mais este! E mais este!"

Os Cunha foram embora e Lourenço ficou passado com o que vira. Não era a
Carmen que ele
encontrara em Roma e muito menos a deusa que conhecera no Rio e da qual
tinha orgulho de ser
uma espécie de cunhado. Teria ficado ainda mais triste se soubesse que,
pouco antes, em Los
Angeles, numa condição parecida, Carmen descera do carro em frente ao
Mocambo, usando uma
pele de raposa branca, pisara em falso e caíra em cheio numa poça d"água.
Pessoas à porta do
nightclub assistiram à cena e a acudiram, levantando-a pelos braços.

O episódio não fora um caso isolado, apenas o mais grave - por duas
outras vezes Carmen
torcera o pé ao dar os poucos passos entre a saída do carro e a porta da
boate a que estava indo
em Los Angeles. De outra feita, no Ciro"s, em companhia do vice-cônsul
Smandek, teve um surto
de tremores à mesa. (Ficou com medo, porque isso só costumava lhe
acontecer ao acordar, não no
meio da noite.) Na mesma época, decidiu sair menos à noite, ou parar de
sair, porque começava a
entreouvir, nos nightclubs, comentários do tipo "Como Carmen está velha!"
ou "É Carmen? Mal
posso acreditar!".

Em contrapartida, era extraordinário como, ao entrar no palco, voltava a
ser Carmen Miranda. E
uma Carmen Miranda invencível, como ela precisava ser. Debaixo daquelas
luzes, nada mais
importava, a não ser sua relação de amor, concubinato, conluio, com cada
homem ou mulher da
platéia. A mágica se dera de novo no Hotel Shamrock, em Houston, onde
cumprira nova
temporada em setembro. De lá viera para o Copacabana, onde triunfara como
sempre - e a
Carmen do palco não tinha nada a ver com a que, dias antes, cobrira o
menino Fernando de
beijos. Dali iria para o Eastman Theatre, em Rochester, quase na
fronteira com o Canadá, onde
ficaria parte de outubro, e só então voltaria para Manhattan. Mas, quando
isso aconteceu, não foi
uma volta tranqüila.

Carmen desembarcou com tremores pelo corpo e sem conseguir segurar


510

nada com as mãos. Podia estar sofrendo as conseqüências de uma
superintoxicação provocada
pelos barbitúricos e anfetaminas ou pelo álcool. Ou, ao contrário,
poderia estar sendo vítima de
uma violenta síndrome de abstinência, causada pela interrupção, por algum
motivo, do
fornecimento a seu organismo de uma ou mais daquelas substâncias. E quase
certo que, para
Carmen, já então, o espaço de tempo tolerável entre uma medicação e outra
estava diminuindo -
ou seja, seu organismo precisava de remédios ou de álcool a intervalos
cada vez mais curtos.
Uma falha nessa cadeia gerava um desequilíbrio físico-químico, uma
revolta das terminações
nervosas. Carmen não saberia explicar, mas, quando aquilo se dava de
forma tênue, como já se
tornara comum, as manifestações eram insegurança, instabilidade,
ansiedade, hipersensibilidade,
choro fácil, boca seca, falta de fôlego, irritabilidade e sentimento de
culpa. Em caso agudo, como
parecia estar acontecendo, as conseqüências eram tremores violentos,
dores no corpo, paranóia,
ranger de dentes e a possibilidade de convulsões.

Carmen foi internada por Sebastian no Hospital Mount Sinai, onde, por
ordem médica, ficou uma
semana sem visitas. Sedada para "melhorar", foi mandada de avião para
casa, em Los Angeles,
aonde chegou sob profunda depressão. O doutor Marxer achou conveniente que
ela fosse para Palm
Springs, onde ficaria mais preservada e poderia repousar melhor. Mas os
tremores e demais
sintomas começaram a voltar. Marxer, então, consultou Sebastian e dona
Maria e, com a
aprovação deles, receitou um tratamento à base de eletrochoques ali
mesmo, em Palm Springs, no
Hospital Saint Jones.

A técnica, chamada de eletroconvulsoterapia, fora desenvolvida em fins
dos anos 30 por dois
médicos italianos, Ugo Cerletti e Lúcio Bini, ambos de Roma. Consistia na
passagem de uma
corrente elétrica pelo encéfalo. A idéia inicial era a de que os
eletrochoques serviam para o
tratamento de esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva; depois,
concluiu-se que eram
indicados também para os casos agudos de depressão, que já não respondiam
nem a sedativos
como o Demerol - o que era, em tese, o caso de Carmen.

Em 1953, a aplicação dos eletrochoques ainda era feita em moldes
primitivos. O paciente não era
anestesiado. Não lhe davam um relaxante muscular e ele não recebia
oxigenação artificial, como
se passaria a fazer muito depois. Nem se sonhava com monitores cardíacos,
cerebrais e de pressão
arterial. E, pior ainda, não se fazia uma desintoxicação prévia, com a
eliminação gradual dos
medicamentos que, afinal, tinham levado àquela condição. Na época, a
máquina de eletrochoque,
fabricada pelos Laboratórios Lester, de Nova York, fornecia uma carga de
110 volts, muito mais
do que, no futuro, se consideraria "aconselhável". Eram precisos três
enfermeiros para manobrá-
la: um, para girar um botão e aplicar o choque; os outros dois, para
conter o paciente e impedi-lo
de se machucar e de, literalmente, levantar vôo.

Carmen foi amarrada à mesa, acordada, com uma cunha de borracha na boca,

511

para impedi-la de decepar a língua com os dentes. Em sua fronte, já
umedecida para
facilitar a passagem da corrente elétrica, ajustaram-lhe dois eletrodos
em forma de chapinhas de
metal. Um enfermeiro segurou-lhe o queixo, outro a prendeu à mesa,
segurando-a pelos braços, os
dois usando força total. O terceiro girou o botão e contou até cinco,
espaçadamente. Enquanto
ele contava, a descarga provocou um choque que fez Carmen saltar da mesa
diversas vezes,
perder imediatamente a consciência e ter uma convulsão: revirou os olhos,
babou, passou por uma
tremenda contração muscular e sofreu uma parada respiratória, como num
ataque epiléptico. O
enfermeiro encerrou a contagem, trouxe o botão à posição original, e só
então Carmen,
inconsciente, relaxou. Não era um espetáculo bonito de se ver. Mais
exatamente, era horrível.

O paciente dormia até o fim da tarde e acordava calmo, mas abestado e
ausente, sem memória
sobre o que se passara durante a aplicação. Dizia-se que essa amnésia era
temporária e que,
dependendo da potência do choque, podia durar no máximo seis meses. Mas,
em alguns
pacientes, a amnésia revelava-se permanente e atingia áreas do passado -
Carmen, por exemplo,
esqueceu letras inteiras de músicas. O paciente podia sofrer uma anoxia
cerebral (diminuição da
quantidade de oxigênio no cérebro), capaz de causar lesões como
microhemorragias. Outro efeito
colateral era a possibilidade de fraturas em pessoas com certo grau de
enfraquecimento nos ossos
e quebra de dentes, devido à fortíssima contração muscular.

Carmen passou por cinco dessas sessões, num espaço de tempo de pouco mais
de um mês. Seu
marido e sua mãe, que as autorizaram, certamente não assistiram a elas.
Se o tratamento era tão
horroroso, por que Carmen continuou a se submeter a elas. Porque, ao sair
de cada sessão e ir
para casa, sentia um pouco de dor de cabeça e mal-estar pelas horas
seguintes, mas não sabia o
que acontecera. E, de fato, "melhorava" por alguns dias. Mas a depressão
logo voltava, porque,
assim que se via em casa, Carmen também voltava a tomar suas cápsulas.
Ninguém em seu círculo
tinha a consciência de que a medicação era a causa do problema, e não a
cura.

O próprio doutor Marxer só então começava a suspeitar de alguma relação
entre uma coisa e outra -
tanto que, sem Carmen perceber, passou a fornecer-lhe cápsulas cujo
conteúdo retirava e
substituía por açúcar. Mas a medida era desastrada: os placebos só
provocavam uma síndrome de
abstinência em Carmen, já que seu organismo não estava sendo suprido, e a
levavam a um estado
de desespero por achar que aquela dose não era mais suficiente. A maneira
certa de fazer o
tratamento seria diminuir aos poucos o suprimento, com o conhecimento e a
participação de
Carmen. Mas ninguém pensava nisso - inclusive porque algumas pessoas mais
próximas estavam
muito ocupadas tentando descobrir a "causa" do seu problema.

Aloysio, com sua autoridade de ex-estudante de odontologia, afirmaria


512

inúmeras vezes, até por escrito, que uma das "principais razões do
colapso nervoso" de Carmen
era um "conflito interior" cuja causa ela nunca revelara - mas que ele
suspeitava (dizia isso a
sério) ser "a incompatibilidade entre dona Maria, Aurora, Gabriel e o
Bando da Lua com o marido
Dave Sebastian". Em sua condição de, ele próprio, usuário de álcool em
apreciável quantidade e,
ocasionalmente, de anfetaminas, Aloysio não via como isso poderia ser um
problema para
Carmen.

Outros (não se sabe quem) tinham suas receitas particulares para ajudar
Carmen a recuperar a
saúde: passar a tomar somente café descafeinado; substituir seu cigarro
Viceroy comum, sem
filtro, pela nova versão com filtro, e fumar de piteira; e interessar-se
por hobbies saudáveis, como
a quiromancia. Docemente, Carmen se submetia. Às vezes, pegava um amigo
de jeito em North
Bedford Drive e insistia em "ler" suas linhas das mãos. Nunca mais fumou
Viceroy sem filtro. E,
num raro momento de humor nessa época, comprou uma dúzia de piteiras
Dunhill e mandou
gravar nelas uma inscrição - "Stolen from Carmen Miranda", roubada de
Carmen Miranda -
para dar de presente às visitas.

Em março de 1954, Carmen entrou em cena no palco do Desert Inn, em Lãs
Vegas, logo depois
que Russ Tamblyn, Tommy Rall, Marc Platt, Jacques d"Amboise e outros
dançarinos de Sete
noivas para sete irmãos (Seven brides for seven brothers) executaram as
atléticas coreografias
criadas por Michael Kidd para o filme. O elenco do novo musical da MGM,
ainda a ser lançado,
abriu o show para ela. Em condições normais, seria difícil para qualquer
artista se apresentar em
seguida a um número de dança tão acrobático e exuberante - os próprios
Nicholas Brothers
precisariam rebolar para superá-lo. Mas Carmen atravessou quatro semanas
no Desert Inn
sucedendo aos rapazes do filme e arrancando aplausos todas as noites.
Bastava-lhe entrar em
cena para ter a platéia a seu favor - seu crédito com o público parecia
inesgotável, e o mínimo
que lhe desse ou fizesse seria visto como um bônus. De lá, Carmen foi
bater o ponto por duas
semanas no Shamrock, em Houston, do qual se tornara quase uma atração
fixa, revezando-se com
outro grande cartaz, o cantor

Mel Tormé.

Esses compromissos referiam-se a contratos que assinara no ano anterior,
antes das agruras que
experimentaria em fins de 1953. Em vista do que passara, Carmen poderia
tê-los cancelado. Mas
não fizera isso e estava ali para cumprilos. Como conseguia? Não seria
apenas pelo dinheiro,
embora esse fosse considerável. Seu cachê nas duas casas era de 15 mil
dólares por semana ou o
equivalente - o Desert Inn lhe pagava oficialmente 8500 dólares e o
restante em jóias (uma
pulseira de platina e diamantes) e em fichas de jogo (que ela trocava no
caixa). Ao cabo de seis
semanas de trabalho, voltou para Beverly Hills com cerca de

513

90 mil dólares na bolsa - dinheiro de que, aparentemente, não se
beneficiou, que não lhe
comprou nada bonito nem lhe trouxe nenhuma alegria. O que a movia era o
princípio da inércia
- o resultado de, quase todas as noites, pelos últimos 24 anos, ter se
maquiado, vestido a beca e
feito do palco uma extensão, não de sua casa, mas de seu próprio corpo.
Algumas vezes isso se
dera por uma sucessão de gestos mecânicos e, à meia-luz da coxia, Carmen
se perguntara o que
estava fazendo ali. Bastava-lhe, no entanto, sair para as luzes e ouvir
os aplausos para que a
dúvida se dissipasse e a vida voltasse a ter sentido.

Mas Carmen agora estava temendo pelo pior. Poucos perceberam que, por
momentos, em meio a
um número, em Vegas ou em Houston, ela hesitara - porque esquecera a
letra. Fora socorrida
pelo Bando da Lua, que lhe soprara o verso ou cantara "com ela" (na
verdade, por ela). Depois
do show, no camarim, Carmen revoltou-se e atribuiu os lapsos ao cansaço e
ao tratamento com os
eletrochoques. Precisava dar uma parada.

O argumento para recusar as propostas que lhe seriam feitas pelo resto de
1954 seria o de que, depois daqueles compromissos, estava "de férias".
Não só ela. Fafá Lemos
deixou o conjunto e voltou para o Rio, onde deu declarações queixando-se
de ter sido boicotado
pelos músicos brasileiros de Los Angeles. Zezinho, por sua vez, foi
trabalhar na seqüência de
"Born in a trunk" em Nasce uma estrela (A star is born), com Judy
Garland, na Warner, e de "Heat
wave" em O mundo da fantasia (There"s no business like show business),
com Marilyn Monroe, na
Fox - por acaso, duas estrelas cujos lapsos, atrasos e faltas durante
aquelas filmagens eram
provocados pela mesma família de problemas com que Carmen se debatia.

Em casa, Carmen entregou-se a um tal estado de prostração que Sebastian e
o doutor Marxer estavam
sem saber o que seria melhor para ela -- mantê-la trabalhando, para que
continuasse de pé, ou
esperar que se recuperasse e arriscarse a que, ao contrário, ela se
rendesse à depressão. Há um
relato de que, num show em Cincinnati, no começo do ano, Harry teria ido
ao camarim de Carmen
pouco antes da entrada em cena e a encontrado sentada na cama, chorando.

"Não vou conseguir, Harry. Os braços não levantam, não posso trabalhar",
ela disse, entre
lágrimas.

Harry teria telefonado para Sebastian em Los Angeles e passado o aparelho
para Carmen. Ela
continuou chorando, mas Sebastian deve ter lhe dito alguma coisa decisiva
ao telefone - porque
Carmen enxugou as lágrimas, voltou para o espelho, aprontou-se e deu o
show. Como um
autômato que se pudesse controlar a distância, deixara-se facilmente
subjugar. As lágrimas
pareciam ser o único lubrificante natural. A cada dia Carmen via ser
dragada a sua grande força
interior: a alegria. A boca seca, provocada pelos remédios, não
prejudicava apenas a sua emissão
ao cantar - simbolizava também um ressecamento geral de seu ser. Mas
Carmen era profissional
até o osso - mesmo que isso agora lhe custasse um imenso esforço extra
para seguir em frente.


514

Era Sebastian quem fazia seus contatos com a William Morris e lhe levava
os contratos prontos,
com a escala das excursões, o número de shows, o valor dos cachês, o
horário dos vôos ou dos
trens, o status dos hotéis. Carmen só tinha de assinar. Quando ficava na
dúvida e insinuava que
queria ler melhor sobre o que a esperava, ele insistia:

"Assine primeiro, depois discutimos."

Mas, depois de assinado, não havia o que discutir. Num telefonema, Carmen
dissera a Aurora:

"É "sign here" pra cá, "sign here" pra lá. Não faço outra coisa senão
assinar!" Aurora suspeitaria
depois que nem todos os papéis que Sebastian a fizera assinar se
referissem a contratos.
Aproveitando-se da turbulência mental de Carmen, ele poderia tê-la
induzido a também assinar
papéis que tivessem a ver com suas propriedades. E, por relatos de quem
conviveu com o casal
naquela época, Carmen passara a ter medo de Sebastian.

O pequeno Zezinho, filho do músico, ouviu Odila, sua mãe, comentar

com o marido:

"Dave não trata bem Carmen."

E até dona Maria parecia estar se convencendo de que havia algo errado
ali - a ponto de ter
dito a Carmen:

"Minha filha, por que não te separas?" Mas Carmen respondia: "Mamãe, nem
diga uma coisa
dessas!"

A casa era agora dirigida por Sebastian e pelos enfermeiros americanos,
com dona Maria e a
colombiana Esteia de coadjuvantes. Reguladas por ele, as visitas a North
Bedford Drive
escassearam e, quando havia alguém, Carmen deixava-se ficar numa varanda
do segundo andar,
vendo-as na piscina, sem participar. Alice Faye e Don Ameche souberam que
ela "não estava
bem" e foram visitá-la em dias diferentes, mas Carmen quase não falou com
eles. Suas crises de
ausência eram cada vez mais freqüentes, ou então ela se tornava
repetitiva e inconseqüente. Às
vezes parecia alheia a tudo e não respondia quando lhe falavam. Em julho,
o repórter João
Martins, de O Cruzeiro (famoso pelos discos voadores que "vira" na Barra
da Tijuca, no Rio,
algum tempo antes), tentou entrevistá-la. Carmen o recebeu, mas não
conseguiu conversar -
pediu licença e retirou-se. A empregada Esteia contou ao repórter que "a
senhora" passava os
dias deitada, abatida e sem querer ver ninguém.

Naquele mês, a beldade baiana Martha Rocha conquistara o segundo lugar na
eleição de Miss
Universo, em Long Beach, na Califórnia. Dias depois, ela e outras
quatorze misses foram para Los
Angeles, a fim de participar de um documentário sobre o evento. Carmen,
aparentemente
recuperada, telefonou a João Martins pedindo que levasse Martha à sua
casa, "para um chá". O
encontro foi marcado. Mas, no dia seguinte, alguém deixou um recado no
hotel de João Martins
cancelando a reunião, alegando que Carmen "não estava se sentindo bem".
515

Pouco mais de um mês depois, no próprio dia do fato, 24 de
agosto, Carmen ficou
sabendo do suicídio de Getúlio Vargas no Brasil (as televisões americanas
interromperam a
programação para dar a notícia). Pelo resto do dia, repórteres da
Califórnia ligaram para sua casa
pedindo declarações. Mas Carmen não estava disponível para entrevistas.
Além disso, não tinha
nada a dizer - a morte de Getúlio não lhe significava nada. A de
Francisco Alves, num acidente
de carro na estrada dois anos antes, em 1952, é que a entristecera.

Em princípios de novembro, dona Maria escreveu a Aurora falando
preocupada sobre o estado
de Carmen. Aurora telefonou para Los Angeles e percebeu que Carmen estava
péssima. Ali
mesmo, ao telefone com ela, decidiu:

"Estou com vontade de dar um pulo aí, Carmen. Ando com muita saudade. O
Gabriel está me
prometendo uma viagem e acho que vou aproveitar."

Carmen, com a voz neutra, quase sumida, respondeu:

"Ah, está ótimo, Aurora. Então venha..."

Uma semana depois, Aurora se punha num vôo a caminho de Los Angeles. Por
aqueles mesmos
dias, Carmen precisaria reunir forças para posar, sorrindo, para uma foto
comemorativa da
passagem do ano - abraçada a um menino de fraldas, cartola e uma faixa de
1955, representando
o Ano-Novo.

No Brasil, dali a um mês e meio, essa foto seria a capa da edição de
dezembro de A Cena (não
mais Scena) Muda. Nas páginas internas, essa revista já traria a
reportagem sobre o dramático
embarque de Carmen em Los Angeles e sua chegada ao Brasil - quatorze anos
e dois meses
depois que vira seu país pela última vez.



Capítulo 29


1954 - 1955

Noites cariocas



O Alvis dirigido por Sebastian, conduzindo Carmen, Aurora, dona Maria e o
doutor Marxer, parou na
pista do Aeroporto Internacional de Los Angeles, quase que sob a asa do
dc-6 da Braniff. Todos
desceram, menos Carmen, que foi tomada no colo por Marxer. Ele a carregou
pela escada do
avião, depositou-a em sua poltrona e afivelou seu cinto de segurança.
Isso foi feito antes que os
outros passageiros entrassem. Segundo Aurora, era como transportar "um
embrulho, uma trouxa,
uma coisa". Carmen não falava nem se debatia. Apenas chorava baixinho e
parecia ainda menor
do que era, quase uma criança. O sentimento de fragilidade e impotência
em seu rosto refletia o
que se passava na cabeça de todos ali: como chegar ao Brasil naquele
estado? Como
desembarcar no Galeão e encarar os amigos, a imprensa e todos que iriam
recebê-la - talvez até
mesmo o povo -, em tais condições?

O espantoso é que não tenham desistido e voltado para casa, ainda mais
sabendo que, durante a
longa viagem, o estado de Carmen tendia a piorar. Mas Marxer instruiu
Aurora e dona Maria
sobre a medicação e deixou Carmen aos cuidados das duas. Depois, ele e
Sebastian foram
embora de volta para Beverly Hills. O avião decolou para o vôo de trinta
horas sobre a costa do
Pacífico.

Aurora chegara a Los Angeles quinze dias antes, para ver Carmen. Esta
fora recebê-la no
aeroporto, sem nenhuma pintura no rosto, o cabelo preso por duas
trancinhas e com uma capa
sobre os ombros. Não se viam fazia três anos e meio. Carmen estava
abatida, trêmula e
amedrontada, dirigindo muito mal. Atravessaram a primeira noite em North
Bedford Drive
conversando até o sol raiar e, já ali, Aurora começou a campanha para
levá-la a passar algum
tempo no Rio. Carmen não queria - não sabia como seria recebida depois de
quatorze anos de
ausência. Aurora argumentou que, nesse período, Carmen privara com
centenas, talvez milhares
de brasileiros, em Los Angeles e Nova York, e eram todos seus adoradores
- por que os do
Brasil seriam diferentes? E os amigos estavam loucos para revê-la.

Carmen alegou o problema da saúde: como uma pessoa acometida de uma
"doença nervosa",
como a sua, poderia viajar? Aurora respondeu que

517

uma mudança de ares lhe faria bem - e, ao dizer isso, conscientemente ou
não, estava
prescrevendo a receita certa: a "mudança de ares" representaria uma
interrupção na rotina de
Carmen, uma quebra de hábitos. Um desses hábitos, embora Aurora não
soubesse, era o de que a
quantidade de Seconal que Carmen tomava antes de se deitar não tinha mais
a ver com dormir.
Por ordens de seu organismo, o mínimo de três ou quatro cápsulas era
simplesmente para ser
tomado, mesmo que ela já estivesse com sono - e ai do organismo se não
fossem tomadas. Uma
viagem que fizesse Carmen "espairecer" poderia ajudar a interromper o
processo. Aurora queria
também um diagnóstico de outro médico, mais neutro, menos comprometido
com Carmen. Mas,
para isso, precisaria convencer o doutor Marxer de que o Rio faria bem a
Carmen, e que lá também
havia bons médicos. Depois teria de dobrar Sebastian, que já declarara
que não consentiria em
ficar "longe de sua esposa". E, por fim, havia a resistência assustada da
própria Carmen. As
chances de Aurora conseguir seu intento eram de quase zero. Mesmo assim,
disse a um dos
músicos de sua irmã:

"Eu vou levar a Carmen, e não tem conversa."

Passaram-se alguns dias, mas foi mais fácil do que ela pensava. Aurora
convenceu Marxer, este
convenceu Sebastian, e os dois convenceram Carmen - principalmente porque
seria por "poucos
dias". Marcou-se a viagem para o dia 2 de dezembro, com chegada no dia 3,
uma sexta-feira. Isso
resolvido, várias providências começaram a ser tomadas. No Rio, Cecília
entrou em contato com
seu amigo, o doutor Aloysio Salles da Fonseca, 38 anos, diretor de
hematologia do Hospital dos
Servidores do Estado, modelo em toda a América Latina. Embora "doenças
nervosas" não fossem
a sua especialidade, ele teria prazer em atender Carmen pessoalmente,
começando pelo Galeão,
onde estaria para recebê-la. Por recomendação do doutor Aloysio, Gabriel
pediu a Herbert Moses,
presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), que tentasse
manter os repórteres a
distância no aeroporto. Por questões de saúde, Carmen não poderia atender
os rapazes um a um,
na noite de sua chegada. Em troca, prometia uma entrevista coletiva para
a tarde seguinte, no
Copacabana Palace. Uma carta de Los Angeles, com data de 27 de novembro e
assinada por
Carmen, formalizava esse entendimento com Moses.

Mas Carmen não participou de nenhum desses preparativos (a carta a Moses
foi escrita e
"assinada" por Aurora). Uma semana antes do embarque - e diante da
própria perspectiva da
viagem -, deixara-se cair num tal estado de abatimento que quase fizera
Marxer mudar de idéia.
Não queria comer, não ouvia rádio ou discos, ignorava a televisão e mal
respondia quando lhe
falavam. Finalmente caiu num mutismo quase total. Limitava-se a chorar
fraquinho e a tartamudear
que não queria viajar. Na manhã do embarque, era como se não tivesse
forças nem para andar.
Essa foi a Carmen que, ao meio-dia do dia 2 de dezembro, o doutor Marxer
carregou no colo e levou
para bordo.

O DC-6 era um avião-leito, para cerca de oitenta passageiros, e
razoávelmente confortável.


518

Tinha de ser, para amenizar o cansaço do vôo Los
Angeles-Rio, com o
enervante pinga-pinga das escalas pela rota do Pacífico: Cidade do
México, Bogotá, Lima e São
Paulo.

Segundo a reportagem na revista A Cena Muda (a edição com Carmen na capa
ao lado do
menino fantasiado de Ano-Novo), Carmen embarcou feliz e passou a viagem
fazendo todo mundo
se divertir à sua volta. O texto, depois usado com freqüência por
pesquisadores, era assinado por
Laura Brito, que teria embarcado incógnita em Los Angeles apenas para
acompanhar Carmen no
vôo de volta a seu país. Num toque de realismo, a repórter informa que,
já dentro do avião, teria
sido identificada por Aurora, que lhe pedira que tomasse cuidado com o
que fosse escrever. Laura
teria tranqüilizado Aurora, dizendo que Carmen era, para ela, uma deusa,
e que nunca escreveria
nada que a deixasse mal. Era verdade. Só que a história com Aurora não
aconteceu; a repórter
Laura Brito não estava naquele avião; não escreveu reportagem alguma, e
nem sequer existia
como repórter. Era um pseudônimo de Dulce Damasceno de Brito, que também
não estava no
vôo (e, por ser contratada dos Associados, usara como pseudônimo o nome
de sua irmã). Dulce
estava em São Paulo, aonde fora para se casar, mas, a pedido de A Cena
Muda, não vira problema
em descrever a viagem de Carmen a partir de Los Angeles, e como se
tivesse sido uma festa.
Como, aliás, deveria ter sido.

Infelizmente, a viagem não foi uma festa. Aurora deu a Carmen um Seconal
para dormir quando o
vôo começou, e tentou mantê-la assim pelas muitas horas seguintes. Mas
Aurora não fazia idéia de
quantas cápsulas sua irmã precisava em 24 horas, e temia continuar
fornecendo-as. De horas em
horas, Carmen acordava tremendo e chorando, com frios e calores intensos,
quase sucessivos.
Para comer, tinha de ser alimentada na boca, às colherinhas e quase à
força. Ir ao toalete era um
sacrifício - a aeromoça ajudava, mas Aurora tinha de acompanhá-la, porque
Carmen estava com
um equilíbrio instável, incapaz de passos firmes. E já começara a chamar
a atenção dos
passageiros vizinhos, que ficavam de orelhas em pé, espiando e fazendo
comentários. Só dormia
de novo quando Aurora a agraciava com outro Seconal. Por sorte, em boa
parte do tempo,
Carmen não tinha noção de que estava a bordo de um avião ou indo para o
Brasil. No fim da
tarde do dia seguinte, uma aeromoça informou que o avião se aproximava do
aeroporto de
Congonhas, em São Paulo, e haveria uma espera em solo, fora do aparelho.
Só então, seguindo as
instruções que doutor Marxer lhe passara, Aurora ressuscitou Carmen com um
Dexedrine.

Pela primeira vez, Carmen foi sozinha ao toalete. Refrescou-se, aplicou a
maquiagem e se
aprontou. Vestiu um tailleur cereja, prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo
com um laço de fita
vermelha, aplicou pulseiras e anéis e calçou sapatos pretos de salto
alto. O avião pousou e, aos
acenos de um grupo de fãs, mantidos bem longe, Carmen, Aurora e dona
Maria foram levadas
519

a um aposento especial do aeroporto, onde amigos a esperavam: Aracy de Almeida e
Almirante, ambos na
época trabalhando no rádio paulista, o empresário Paulo Machado de
Carvalho e, entre os
repórteres, Dulce Damasceno de Brito. O milagre se dera: Carmen estava
inteira, como se tivesse
feito toda a viagem assim.

Para eles, sôfrega e incontida, Carmen combinava frases verdadeiras com
outras de sua invenção:

"Não paro de trabalhar há quatorze anos. Minha vida tem sido uma correria
dos diabos. Desde
que voltei aos Estados Unidos, depois de uma viagem à Europa, não pude
parar, trabalhei
demais. Fiquei doente por isso. Precisava de umas férias. Lembrei-me
então de voltar ao Brasil."

Entremeava as respostas com surtos de choro, partilhado pelos amigos que
se comoviam.
Recompunha-se, jogava beijos para uma câmera de televisão e não conseguia
esconder a
emoção:

"Estou feliz como nunca. Muito obrigada a todos por ainda se lembrarem de
mim. Eu juro, jamais
esquecerei este país, a minha terra. Sempre fui e continuo a mesma Carmen
Miranda. Olhem os
meus olhinhos verdes. São os mesmos, são os mesmos..."

Ao falar para os microfones brasileiros, Carmen sepultava a maldosa
crença, cuja origem alguns
atribuíam a David Nasser, de que já não sabia falar português. Meia hora
depois, os passageiros
em trânsito para o Rio foram chamados a embarcar. É possível que,
preparando-se para a - já
agora previsível - apoteose de sua chegada ao Rio, Carmen tenha pedido um
reforço de
Dexedrine a Aurora. E que esta, vendo o bom resultado que o remédio
provocara em Carmen na
chegada a São Paulo, concordasse em aceder a seu pedido...

Uma hora depois, o avião da Braniff pousou no Galeão. A porta foi aberta.
Ouviu-se um bruaá lá
fora. No topo da escada surgiu Carmen Miranda - estrelíssima, fazendo da
multidão um coro e,
da pista, o maior palco que ela já pisara na vida.

Os telefonemas de Herbert Moses para todas as redações, pedindo que
"poupassem" Carmen por
questões de saúde, atiçaram pulgas atrás de orelhas. Circularam rumores
de que Carmen teria uma
doença grave e estaria voltando ao Rio para morrer. À informação de que
seu médico brasileiro
era o doutor Aloysio Salles, conhecido hematologista, sua hipotética doença
passou a ter nome:
leucemia. (Mas doutor Aloysio era também médico do novo presidente, Café
Filho, que completava o
mandato de Getúlio, e nem por isso Café tinha leucemia.) Para aumentar as
suspeitas, falou-se que
Herbert Moses mandaria encostar seu carro junto ao avião na pista -
obviamente, para dificultar
o acesso a Carmen.

Assim que a escada foi afixada ao avião e a porta se abriu, alguns nem


520

esperaram que Carmen aparecesse - subiram para ir buscá-la lá dentro. O
primeiro foi Gabriel, que
entrou no avião e sentiu a emoção geral. Moses foi atrás, mas nem
conseguiu chegar ao alto da
escada. Apesar de suas recomendações (ou por isso mesmo), os repórteres e
fotógrafos, com
acesso à pista, atiraram-se contra o bloqueio armado pela Polícia da
Infantaria da Aeronáutica,
comandada pelo capitão Penalva, e cercaram a escada. Um dos fotógrafos,
Gervásio Batista, da
Manchete, fez os concorrentes lhe abrirem passagem com uma simples frase
em

voz alta:

"Quem deixou esse balde de tinta branca aqui?"

Os outros fotógrafos se afastaram, temendo sujar seus ternos, e Gervásio
subiu correndo. Quando
Carmen apareceu na porta, ele estava diante dela, com a Rolleiflex pronta
para disparar.

A própria Carmen, sem querer, encarregou-se de desfazer a maioria das
suspeitas sobre sua saúde.
Já chegou à porta do avião acenando eufórica (sem dúvida, tomara um
Dexedrine na saída de São
Paulo). Em meio ao tumulto geral ao redor da escada, parecia eufórica.
"Carmen sorria para os
amigos, com seus famosos olhos verdes refletindo o clarão dos flashes, e
lágrimas sinceras de
emoção escorriam, aos pares, pelo seu rosto sem rugas", escreveria depois
O Globo.
Considerando-se o estado em que embarcara na véspera, em Los Angeles,
aquela era a maior
interpretação de sua carreira. Mas não conseguiu convencer a todos. O
repórter Arlindo Silva, de
O Cruzeiro, vendo-a de muito perto, escreveu: "Carmen apresentava reações
emocionais
desordenadas, rindo e chorando quase a um só tempo".

Moses recebeu-a no meio da escada (Gabriel amparava-a pelos cotovelos),
desceu com ela e
levou-a para o saguão. Lá a esperavam seus irmãos, um monte de penetras
e, entre os artistas,
vários de seu tempo (o humorista Barbosa Júnior, o compositor Romeu
Silva, a ex-cantora
Elisinha Coelho) e outros que ela só conhecia de nome (o cantor Jorge
Veiga, o compositor
Fernando Lobo, o radialista Manuel Barcelos). Carmen depois confessaria a
Gabriel que não se
lembrava mais quem abraçara ou com quem falara no aeroporto. Esquecera-se,
portanto, de sua
surpreendente explicação para Elisinha, quando esta constatou um certo
inchaço e abatimento em
seu rosto: "Foi o meu marido, que andou me batendo."

Carmen entrou finalmente no carro da ABI e partiram todos em caravana
para o Copacabana
Palace, atravessando avenidas, túneis e viadutos que ela não reconhecia.
No hotel, mais
perguntas, mais sorrisos e mais fotos, agora com os irmãos. Nas últimas
horas, tinha sido mais
Carmen Miranda do que nunca, mas o esforço que fizera para se manter
íntegra e feliz, entre o
avião e o hotel, parecia demais para suas verdadeiras condições. Estava à
beira de um colapso
por exaustão. Quando conseguiu subir para o sétimo andar e se viu em sua
suíte, teve uma crise de
choro. Doutor Aloysio acalmou-a, fez-lhe um primeiro exame, chamou a
enfermeira e pendurou um
aviso à porta:

521

PROIBIDO VISITAS - SEM EXCEÇÕES

Nos dias seguintes, doutor Aloysio aplicou-lhe uma seqüência de exames com
equipamento levado
do hospital. Carmen estava altamente intoxicada pelos depressivos e
estimulantes, intoxicação
agravada pelo abuso do álcool - esse foi o seu diagnóstico. O tratamento
consistia em decrescer
a medicação alternadamente, para evitar síndromes de abstinência muito
violentas, e tentar
controlar o hábito alcoólico. Carmen foi informada tanto do diagnóstico
quanto do tratamento,
assim como da necessidade de colaborar com o médico. Sem a sua
cooperação, nada seria
possível. E o isolamento era indispensável.

Carmen não iria para a casa de sua família na Urca, como seria o normal,
nem para um hospital,
como costuma acontecer nos tratamentos de saúde. Por recomendação de doutor
Aloysio, acatada
por Aurora e dona Maria, Carmen ficaria internada no Copacabana Palace.
Era melhor do que
interná-la no seu próprio hospital, o dos Servidores do Estado, na rua
Sacadura Cabral, em plena
Zona Portuária - a balbúrdia provocada por sua presença perturbaria o
funcionamento do
hospital e chamaria muita atenção. No Copa, por estranho que pareça,
haveria mais sossego.
Oscar Ornstein, relações-públicas do hotel, ofereceu-lhe gratuitamente as
suítes 71 e 73 do Anexo
- uma para ela, outra para a família, mas esta, por ordens de doutor
Aloysio, com permissão para
apenas ficar por perto, sem interferir e sem nem mesmo vê-la. Doutor Aloysio
interditara Carmen
completamente: não só ela não iria à rua como as visitas estariam
proibidas por três semanas. O
único parente com permissão para visitá-la seria Aurora e, mesmo assim,
somente uma vez por dia
e por alguns minutos. Carmen estaria em regime de vigilância hospitalar,
com enfermeiras se
revezando pelas 24 horas. Ele iria vê-la duas vezes por dia.

Carmen dormia o dia inteiro e acordava às sete da noite, para o desjejum.
Era o ritmo a que estava
habituada. O importante, para doutor Aloysio, era que fizesse isso sem
remédios. Sua comida era uma
dieta especial à base de sopas, cremes e legumes, mas um repasto de
gourmets, preparado pelo
chef do hotel, o francês Lucien Hittis. A comida saía dos fogões do Bife
de Ouro (o principal
restaurante do Copa e um dos mais disputados do Rio) e era transportada
pelo peão de cozinha
Mário, que a entregava ao senhor Rossini, maitre do Anexo. Era maitre
Rossini quem levava as
bandejas ao apartamento. Levava também os potinhos de sorvete e picolés
de Chicabon e Jajá de
coco que o jovem Bob Falkenburg, proprietário do Bob"s e genro de Edmar
Machado e Maria
Sampaio, lhe mandava diariamente.

Havia sempre uma enfermeira com Carmen. Por sugestão de Octavio Guinle,
proprietário do
Copa, Carmen, numa emergência, seria também assistida pelo doutor Elysio
Pinheiro Guimarães,
médico a quem o hotel recorria quando havia algum problema com um
hóspede. Exceto este,
ninguém ali sabia direito o que ela tinha, e ninguém perguntava. Os
repórteres, acampados no
hotel,


522

rondavam pela piscina e pelos corredores tentando sondar ou subornar os
empregados, mas eles não
estavam em condições de responder. Quando a entrevista coletiva marcada
para o dia seguinte
foi cancelada, as especulações sobre a saúde de Carmen dividiram-se entre
os jornalistas. Para
alguns, ela estava mesmo com uma doença maligna, talvez leucemia; para
outros, que a tinham
visto vibrante e vendendo saúde no aeroporto, era luxo só - queria
esnobar a imprensa e não
seria surpresa se, a qualquer momento, desfilasse de maiô pela pérgula,
tomando um daiquiri pelo
canudinho.

Para encerrar o assunto, doutor Aloysio desceu, chamou os repórteres ao
Golden Room e, na
condição de médico de Carmen, deu as informações. Não havia nenhuma
doença fatal; Carmen
sofria de esgotamento físico e nervoso, mas já estava melhor; e a
coletiva seria marcada para
breve. Pediu que acreditassem nele, e os rapazes da imprensa ficaram
satisfeitos. Mas nem por
isso arredaram pé do hotel. Daí a surpresa quando, dali a dois ou três
dias, a edição de O Cruzeiro
sobre a chegada de Carmen ao Rio saiu com uma reportagem de Arlindo Silva
contando que
penetrara sozinho no apartamento da estrela no Copa, poucas horas depois
do desembarque.

Segundo ele, Carmen estava irreconhecível, sentada num sofá, vestida com
um roupão felpudo e
sempre a ponto de chorar. Não queria falar com O Cruzeiro. Continuava
magoada com a revista
por causa dos artigos de David Nasser, e não era só por isso.

"Você me desculpe, mas não estou em condições de dar entrevistas. Estou
meio aérea por causa
dos medicamentos", ela teria dito. Mostrou a mão que tremia. Um músculo
contraiu-se em seu
rosto. "Peço a você que espere mais alguns dias até eu melhorar."

O repórter contou que agradeceu e saiu. Toda a conversa durara quatro

minutos.

No texto, Arlindo não explicou como conseguira penetrar no apartamento e
juntar tanto material
em quatro minutos. Nem poderia - porque esse encontro também não
acontecera. Ninguém
entrara no apartamento de Carmen. O público não precisava saber, mas era
um procedimento
comum entre alguns repórteres de O Cruzeiro - quando não tinham a
informação, inventavam-na.

Mas, cerca de dez dias depois, o mesmo Arlindo, agora ao lado do
fotógrafo Flavio Damm,
realmente furou o bloqueio e entrevistou Carmen no apartamento. Para
isso, usou de suas boas
relações com um amigo que tinha em comum com Gabriel: o coronel-aviador
José Vicente de
Faria Lima. Este intercedeu por Arlindo junto a Gabriel. A fim de se
passar por influente para uma
figura graduada da Aeronáutica, Gabriel contrariou as recomendações de
doutor Aloysio e pediu a
Carmen que recebesse o repórter, usando o argumento de que O Cruzeiro
iria "dar-lhe a palavra".
Para não contrariar o cunhado, Carmen aceitou. Tomou banho, vestiu-se,
maquiou-se e recebeu o
repórter (para não criar problemas com o médico, a enfermeira foi
discretamente removida).

523

Nas duas horas que passou ali, Arlindo constatou que os boatos de que
Carmen estaria à morte
não tinham fundamento. Ela posou satisfeita para as câmeras de Flavio
Damm, vestindo calças
justas que terminavam à altura do joelho e sentando-se com as pernas em
cima da mesa. ("Belas
pernas", observou Damm.) Não bebeu nem comeu nada. Estava lúcida, rápida
e alegre. Mas,
Damm notou que os olhos de Carmen estavam injetados e o rosto, inchado.
Seu aspecto não era
nada saudável. E não melhorou quando Arlindo, reabrindo velhas
cicatrizes, começou a
perguntar-lhe sobre a "vaia na Urca" em 1940, por que não fazia mais
"papéis de brasileira" nos
filmes, e por que "gesticulava tanto" com as mãos. Carmen deu as mesmas
respostas que já dera
dezenas de vezes: que nunca entendera o que acontecera na Urca, que o
estúdio lhe impunha os
papéis e que, sem a gesticulação, o público americano não conseguiria
aceitá-la. Poderia ter
acrescentado que, apesar disso, nunca o Brasil tivera uma brasileira como
ela no exterior - tão
fanática por ser brasileira.

Já que fora aberta uma exceção para O Cruzeiro, sua concorrente Manchete
também quis uma
entrevista. E, assim, dias depois, Carmen (com uma blusa listrada, em que
se via uma estampa do
coelho Pernalonga) recebeu o repórter Darwin Brandão. Nessa reportagem,
Aurora, Cecília e
dona Maria já posavam, felizes, ao lado da irmã. Carmen continuava sem
poder sair, mas, na
impossibilidade de manter as três semanas de isolamento, doutor Aloysio
liberou-a para receber
visitas, desde que curtas e que, à meia-noite, todos fossem embora. Mas
pode ser que, na prática,
essa liberação já tivesse começado. Synval Silva tentara visitá-la e fora
barrado pela proibição
de visitas. Conformou-se e já ia embora quando, do próprio saguão,
resolveu telefonar para o
apartamento e comunicar a Carmen que estivera lá. Esta, ao saber de quem
se tratava, foi ao
telefone e o mandou subir.

"Mas está proibido, Carmen!"

"A proibição é para os outros. Não vale para você. Vamos, suba."

Com o sinal verde dado por doutor Aloysio, começou a peregrinação pela suíte
71, e um dos
primeiros a ir vê-la foi Grande Othelo. Quando ele entrou, Carmen atirou-
se aos seus braços:

"Othelo, meu querido!" Agarrou sua mão e não a soltou mais.

Othelo lhe levou de presente a parte original de piano de "Taí", ensebada
e em frangalhos, uma
verdadeira peça de colecionador. Levou-lhe também Pery, filho de Dalva e
Herivelto, que, aos
dezessete anos, estava prestes a se tornar o cantor Pery Ribeiro. Carmen
não podia reconhecê-lo
- na última vez em que o vira, ele tinha menos de dois anos e estava
fazendo xixi em sua cama -
e riu muito quando Pery lhe lembrou a história. Riu tanto que ficou
ofegante e cansada, mas isso
não a deteve. Ao saber que Aracy de Almeida também estava no Rio, vinda
de São Paulo, Carmen
mandou chamá-la, para que Aracy fosse atualizá-la com as últimas piadas e
pornografias
inventadas pelo povo. E, quando alguém estranhou uma saia godê bem
juvenil que estava usando,


524

Carmen, em vez de explicar que fora algo que Aurora lhe comprara às
pressas, porque ela
trouxera pouca roupa para o Brasil, disparou: "Estou vestida de cabaço!"

Outra visita que recebeu foi a de Carlinhos Niemeyer. Apenas nove anos
antes eles tinham sido
namorados, e o desejo de um pelo outro fora vertiginoso, impróprio para
menores. De repente, o
contraste ficara notável: aos 34 anos, Carlinhos estava no auge - alegre,
vital, viril, uma estátua
de bronze, na cor e na estrutura muscular -, ao passo que Carmen parecia
ter mirrado e
encolhido. E esta era uma constante: mesmo de boa-fé, muitos que a
visitaram no Copa diriam
depois que a acharam passada e envelhecida. Ninguém se dava conta de que
Carmen, mais do
que todos, sabia de seu estado. E, se aceitava expor-se para recebê-los,
ainda que doente, era por
saudade e por amor a eles.

Às vezes, ao aceitar uma visita para tal dia e hora, Carmen não podia
prever como estaria se
sentindo. Como na noite em que um velho companheiro, Caribe da Rocha,
produtor do show
Fantasia e fantasias, em cartaz no próprio hotel, propôs levar-lhe a
estrela do espetáculo, a
cantora Marlene. Carmen vibrou com a idéia - era fã de Marlene, tinha
seus discos em Beverly
Hills e gostaria de conhecê-la. Na noite seguinte Caribe subiu ao
apartamento com Marlene e o
marido desta, o ator Luiz Delfino. Carmen estava sentada num sommier.
Marlene foi abraçá-la,
mas Carmen não se levantou para recebê-la. Era como se estivesse em outra
dimensão.

Durante todo o tempo, Carmen não disse uma palavra - limitou-se a espiar
Marlene com o rabo
do olho, como que a medindo, assustada. Nesse período, enquanto
conversava com a visita, dona
Maria serviu por duas vezes uma xícara de leite em pó a Carmen, que o
tomou obedientemente.
Uma hora depois, como Carmen não tivesse rompido o silêncio, Marlene fez
menção de ir
embora. Carmen, então, pôs a mão em seu ombro e começou a falar baixinho
e com voz grossa.
Disse que conhecia e adorava seus sucessos - citou "Lata d"água", "Esposa
modelo", "E tome
polca" - e que, se Marlene quisesse tentar os Estados Unidos, ela faria
tudo para ajudá-la.

Marlene já ia saindo, feliz e realizada, quando Carmen a chamou num
canto, com ar de
confidência:

"Minha família não quer me ver na minha própria casa, na Urca. Por isso
estou hospedada aqui."

Parecia uma conspiração de romance de Daphne du Maurier. Marlene não
soube o que dizer,
apenas escutou. A injustiça era tão flagrante - todos sabiam que Carmen
estava no Copa por
ordens médicas - que só podia ser fruto de um delírio. Diante do silêncio
da outra, Carmen pode
ter desistido dessa queixa, porque não parece tê-la repetido a mais
ninguém.

Nessa mesma época, seu velho camarada de fuzarcas e patuscadas pelas
madrugadas, Jonjoca,
então ilustre vereador carioca, também foi vê-la no Copa. Carmen não o
reconheceu. Jonjoca
achou normal: todos mudamos com o tempo,

525

não? - e, afinal, lá se iam mais de vinte anos. Mas, quando ele se
identificou - "Carmen,
é Jonjoca!" -, ela apenas olhou para ele com ar ausente, como se o nome
lhe soasse tão remoto
quanto a música das esferas:

"Jonjoca... Jonjoca..."

Jonjoca saiu dali arrasado. O que as pessoas - ou a própria Carmen -
tinham feito da mulher
que ele conhecera e fora sua paixão?

A ausência continuava. De sua janela no Anexo, na noite de 31 de
dezembro, Carmen
acompanhou as cerimônias de candomblé na praia em frente ao Copacabana
Palace. Viu as velas
acesas pelo pequeno grupo de fiéis e ouviu seus cânticos e tambores, mas
não se animou a descer
para assistir, como fizeram alguns hóspedes - nem tinha forças para isso.
Pela manhã, as ondas
levavam e traziam as flores deixadas para lemanjá. Uma Carmen insone viu
despertar o ano de
1955 - sem saber que teria uma eternidade para dormir nos réveillons
seguintes.

525

Em meados de janeiro, como Carmen começasse a reagir de forma positiva à
ausência de álcool e
à quase completa retirada dos medicamentos, doutor Aloysio cumpriu a
promessa e levou-a à
prometida entrevista coletiva, que preferiu marcar na ABI. Foi um
encontro de compadres:
Carmen comportou-se bem, com graça, e os repórteres, mesmo percebendo sua
instabilidade,
foram carinhosos. Finalmente, depois de 48 dias internada no Copacabana
Palace, doutor Aloysio
deu-lhe permissão para sair e começou a promover o seu reingresso na vida
social carioca,
escoltada pelos seus amigos mais fiéis: os irmãos Roberto e Nelson
Seabra.

A princípio, sem ir para muito longe. O primeiro percurso consistia em
fazê-la deslocar-se até o
apartamento do próprio médico, no edifício Solano, na avenida Nossa Senhora de
Copacabana, em frente
à praça do Lido, a dois quarteirões do hotel. Embora doutor Aloysio morasse
tão perto, Roberto e
Nelson não permitiam que Carmen fizesse o pequeno trecho a pé -
revezavam-se levando-a de
carro. Carmen chegava por volta das dez da noite e ficava até quatro ou
cinco da manhã com os
amigos que doutor Aloysio convidava a seu pedido: Pixinguinha, Orlando
Silva, Linda e Dircinha
Batista, Elizeth Cardoso, Sylvio Caldas. A todos, Carmen pedia que
cantassem. Estava fascinada
por Elizeth, que só então conhecera (e que, com sua gesticulação contida,
era a anti-Carmen), e
continuava fã das irmãs Batista. Mas seu favorito era Sylvio. Obrigava-o
a cantar "Chão de
estrelas" nove, dez vezes por noite, e se atirava ao seu pescoço:

"Está melhor hoje do que quando cantávamos juntos." E exclamava: "É o
maior!".

Para ela, a música popular brasileira parecia outra em relação ao seu
tempo. Pelo que ouvira, o
samba estava abolerado e faziam-se menos marchinhas. Mas, também, onde
estavam os grandes
criadores? O próprio Sylvio passava


526

mais tempo pescando e cozinhando para os amigos do que cantando. Ary
Barroso dedicava-se a
promover calouros e a combater o caititu, esquecendo-se de compor.
Almirante não cantava mais,
era produtor de rádio. César Ladeira, por sua vez, deixara o rádio para
ser produtor teatral. Mário
Reis tornara-se alto funcionário da prefeitura. Gastão Formenti também
não queria mais cantar, só
pintar. Carlos Machado trocara sua falsa batuta de maestro, com a qual
fingia reger a orquestra,
pelo título de "rei da noite", produzindo grandes shows. Assis Valente
quase não compunha, era só
protético. André Filho, coitado, enlouquecera - diziam que, quando ficava
eufórico, enfiava a
cabeça no vaso e puxava a descarga. E Lamartine Babo, imagine, engordara
e também compunha
muito menos. O grande sucesso da temporada era o fox "Neurastênico":

Brrrmmm!

Mas que nervoso estou!

Brrrmmm! Sou neurastênico!

Brrrmmm! Preciso me tratar

Senão...euvouprajacarepaguá!,

de Betinho - salve ele, o filho de Josué de Barros! - e Nazareno de
Brito. (A exemplo de
Carmen, todos tinham mudado, embora, para os críticos, só a ela isso não
fosse permitido.)

No apartamento de doutor Aloysio, falar dos velhos tempos fazia com que
Carmen e seus amigos
tivessem de novo vinte anos e, em alguns casos, vinte quilos a menos. Se
pudesse, o médico
ficaria acordado a noite toda, escutandoos. Mas, a uma certa hora,
precisava recolher-se, porque
tinha trabalho cedo no Servidores do Estado. Que ninguém fosse embora, no
entanto - sua
mulher, Dalila, continuaria fazendo sala a Carmen e às visitas.

Nas noites em que não ia para o apartamento do doutor Aloysio, e também não
conseguia pegar no
sono, Carmen metia um casaco de vison por cima da camisola e caminhava
meio quarteirão pela
avenida Atlântica até o tríplex de Carlos Machado defronte à lateral do
Copa, na esquina da rua
Rodolfo Dantas. Aquela hora, Machado estava trabalhando, mas Carmen
ficara grande amiga de
Gisela, mulher dele, e passavam a madrugada conversando. Para Gisela,
habituada a só dormir de
manhã, depois que seu marido chegava, a vigília era normal - Carmem até
lhe fazia companhia.
Durante as conversas, Carmen lhe falava de Dave Sebastian e de como era
grata a ele "por ter se
casado com ela" - e que, por isso, "jamais se separaria".

Gisela achava aquilo uma loucura. Suas amigas viviam se casando,
divorciando e se casando de
novo (no Uruguai, onde existia o divórcio), e eram felizes. Devia haver
outros motivos, além da
gratidão, para uma mulher continuar casada, achava Gisela -
principalmente ela, que "era
Carmen Miranda!". Mas, quando tentava argumentar com Carmen, esta mudava
de assunto.

527

Foi pelas mãos de Gisela e Carlos Machado, e na companhia de Aurora,
Gabriel e dos irmãos
Seabra, que Carmen fez sua primeira aparição pública: no Sacha"s, a boate
de Machado e do
pianista Sacha Rubin, o mais novo endereço da noite carioca, no Leme.
Enquanto lá fora, de dia
ou de noite, o Rio se derretia molemente ao verão, o Sacha"s se orgulhava
de sua temperatura de
dezessete graus em todos os ambientes, inclusive na barbearia, que, como
a boate, ficava aberta
das sete da noite às sete da manhã. A música era de primeira, com o
próprio Sacha ao piano, Cipó
ao sax-tenor, Szigetti ao contrabaixo e Dom-Um à bateria, tendo como
crooner Murilinho de
Almeida. Eram especialistas em Cole Porter, mas, às vezes, se aventuravam
num samba. Naquela
noite, ao jantar, Machado reservou para Carmen seu menu especial: caviar
Astrakan, langouste
flambée e dindoneau au marron glacé - quando, quem sabe, se tivesse sido
consultada, ela
preferisse um camarão ensopadinho com chuchu. E Carmen tomou champanhe
Dom Pérignon,
rompendo uma abstinência de semanas, se é que isso já não teria
acontecido antes, nas longas
madrugadas com Gisela.

Dias depois, eles a levaram à boate Casablanca, outro domínio de Machado,
na Praia Vermelha.
Ali ele apresentava seu show Este Rio moleque, com Grande Othelo, Nancy
Wanderley e grande
elenco. Em meio ao espetáculo, Carmen foi anunciada no recinto. O elenco
todo, acompanhado
pela platéia, começou a cantar "Taí". Carmen teve de subir ao palco
(amparada por Machado) e
chorou de ensopar um lenço que Othelo lhe passou.

A todo espetáculo que comparecia, elenco e platéia se levantavam para
aplaudi-la e obrigá-la a
subir ao palco. Aconteceu de novo no próprio Copa, ao assistir a Fantasia
e fantasias no Golden
Room. Marlene já não era a estrela do espetáculo, substituída por Doris
Monteiro. Mas Carmen
subiu ao palco sob tremenda ovação e disse para Doris - não se sabe por
quê, em inglês:

"Yow are wonderfull" (Você é maravilhosa!)

No Teatro Serrador, na Cinelândia, foi assistir à peça Adorei milhões,
uma comédia de César
Ladeira e Haroldo Barbosa, estrelada por Renata Fronzi. Ao fim do
espetáculo, César e Renata
lhe ofereceram um jantar em seu apartamento na avenida Nossa Senhora de
Copacabana. Para uma
platéia de amigos, todos sentados, Carmen era a única de pé, no meio da
sala, contando piadas,
fazendo imitações, divertindo os convidados e se divertindo ainda mais.
Estava de novo em seu
ambiente - em seu país, sua cidade, sua língua - e se esbaldando. A certa
altura, cansou-se de
representar. Tirou as plataformas, atirou-se a um sofá com as pernas
sobre o colo de um rapaz, e
pediu que ele lhe massageasse os pés. O jovem, maravilhado pela
deferência, lhe foi apresentado
como Carlos Manga, um diretor de filmes musicais na Atlântida.

"Quem sabe você ainda não vai dirigir um filme sobre a minha vida?",
arriscou Carmen.

A quem lhe perguntava como estava sendo sua temporada no Rio, ela
respondia:


528

"Menino, tem sido aquela água!" E estava sendo mesmo, em mais de um
sentido.

A convite de Bibi Ferreira, Carmen foi ao Teatro Dulcina, na Cinelândia,
para ver a direção de
Bibi de A raposa e as uvas, de Guilherme Figueiredo, com Sérgio Cardoso.
No intervalo, Bibi foi
à frisa de Carmen para lhe mostrar sua filha Thereza Cristina, de apenas
cinco meses. Ao saber
que Carmen estava disponível, as companhias teatrais passaram a convidá-
la a seus espetáculos
e, caso ela aceitasse, a proclamar sua presença no dia xis, hora tal.

Os anúncios nos jornais diziam: "Carmen Miranda estará sexta-feira, às 22
horas, no Teatro
Recreio para assistir [à revista] Eu quero é me badalar". Ou: "Carmen
Miranda assistirá amanhã,
dia 10, à grandiosa revista carnavalesca Momo no frevo, na elegante boite
[boate] Night and
Day, onde será homenageada por todo o elenco". Era o que bastava para
lotar uma sessão. Nos
Estados Unidos, esse tipo de apoio podia custar uma fortuna, mas, nos
dois casos, Carmen estava
sendo apenas gentil com amigos: o Recreio era arrendado pelo produtor
Walter Pinto, cujo pai,
Manuel Pinto, se dera com Carmen no passado, e o Night and Day também
apresentava shows de
Carlos Machado. Aproveitando-se disso, houve quem anunciasse sua presença
em espetáculos de
que ela nunca ouvira falar e a que não tinha a menor intenção de
comparecer.

A grande noite de Carmen, no entanto, seria no Vogue, a principal boate
da cidade, em fins de
janeiro. Era uma visita esperada por lê tout Rio - o Rio "que contava".
Embora ela já tivesse ido
a vários lugares e até mesmo ao Sacha"s, seu maior concorrente, era como
se a estada de Carmen
no Rio só começasse para valer depois de sua passagem pelo Vogue - como
se fosse uma
crisma, um début. O proprietário do Vogue, o barão austríaco Max von
Stuckart, armou todo um
esquema para recebê-la. Pouco antes da uma da manhã, Carmen, usando um
tomara-que-caia
branco, foi apanhada no Copa por Aurora e Gabriel, Roberto Seabra e a
socialite Sarita Coelho.
Entrou no carro e rumaram para o Leme. Era a realeza chegando - o
trânsito de Copacabana
parecendo se abrir sozinho para a passagem da comitiva. Sob o toldo do
Vogue, na avenida
Princesa Isabel, Carmen foi recebida por Ary Barroso, o casal Glorinha e
Waldemar Schiller, o
barão Von Stuckart e uma chusma de repórteres, fotógrafos e
cinegrafistas.

Dentro da boate, sentiu-se que havia uma agitação lá fora. O porteiro
Adolfo abriu a porta e
Carmen entrou, de braço com Ary. Todo o Vogue se levantou para aplaudi-
la. A orquestra atacou
"Taí". Carmen acenou, jogou beijos e começou o percurso em direção à sua
mesa. A distância não
era grande, mas o Vogue estava lotado, com gente até no chão. A cada
metro, era quase sufocada
de amor: as pessoas queriam tocá-la, beijar-lhe as mãos ou, simplesmente,
que ela retribuísse um
olhar ou sorriso com outro sorriso ou olhar. No caminho, Ary apresentou-
lhe o compositor e
cronista das madrugadas António Maria. Os dois nunca se tinham visto, mas
Carmen sabia quem
ele era e que a venerava.

529

Jogaram-se um para o outro e o abraço dos dois - Maria,
gargantuesco; ela, mínima -
resultou numa foto famosa.

Carmen finalmente chegou à mesa, onde a esperavam garrafinhas de guaraná
Caçula e um litro de
Ballantine"s. Os amigos se revezavam nas cadeiras ao lado da sua. No
palco, Sylvio Caldas e
Angela Maria, titulares da casa naquela temporada (substituindo atrações
internacionais como
Maurice Chevalier e Patachou), cantaram para Carmen. Aurora foi chamada e
mandou "Cidade
maravilhosa", acompanhada por toda a boate. Sylvio subiu de novo, começou
a cantar "Taí" e
chamou Carmen, no que foi secundado por mais de duzentas bocas. Carmen,
titubeante, foi levada
por Ary ao microfone. Ficou em silêncio por alguns instantes, como que
tentando se lembrar - a
orquestra, em silêncio, estática, parada no compasso em que Sylvio a
deixara -, e finalmente
retomou a música. A orquestra a seguiu e Carmen cantou a letra inteira,
com dengo e vigor, como
nos grandes tempos. Na primeira vez em que hipnotizara uma plateia com
"Taí", tinha acabado de
fazer vinte aninhos. Por aqueles dias, iria completar 46.

Nas horas seguintes, enquanto a noite se tornava uma grande balzaca, como
então se dizia, os
homens mais elegantes e poderosos do Brasil vieram tirá-la para dançar.
Ali, ela era Carmen
Miranda - não a filha do barbeiro e da lavadeira -, e cada enlace era uma
redenção. Horas
depois, quando abriram a porta, já era de manhã e um raio de sol entrou
pelo Vogue, reduzindo a
pó os últimos vampiros. Mas Carmen já tinha partido en beauté, levada por
Roberto Seabra. No
dia seguinte, António Maria diria em sua coluna, na Ultima Hora, que
aquela fora a maior noite do
Rio em vinte anos de boémia.

Exceto por seu aniversário, que passara na casa da Urca cercada pelos
familiares, Carmen já se
entregara francamente à vida da cidade. Foi a convidada de honra de todos
os grandes bailes
pré-carnavalescos: o do Rei Momo, no Teatro João Caetano; o da coroação
da Rainha do Rádio,
que foi a cantora Vera Lúcia, no próprio Hotel Vogue; e o dos Artistas,
no Hotel Glória, em que
Assis Valente lhe ofereceu uma dúzia de rosas. Estava alerta, elétrica e
articulada. Compareceu
até ao Carnaval da Associação dos Funcionários da Caixa Económica. Os
convites partiam de
todos os lados e ela não chegava para as encomendas.

Um convite que aceitou correndo foi para visitar Dalva de Oliveira em sua
casa em Jacarepaguá.
As duas tinham sido vizinhas na Urca. Carmen era oito anos mais velha do
que Dalva, mas tinha-
lhe grande respeito, não apenas como cantora, mas por Dalva ter sido
sempre casada. Isto é - até
separar-se de Herivelto Martins e sofrer a campanha mais infame que uma
mulher já suportou. Não
se sabe o que conversaram, mas, se Carmen foi visitar Dalva, e não
Herivelto, de quem também
era amiga, pode-se imaginar para quem torcia.


530

E o exemplo de Dalva talvez lhe fosse inspirador. Não apenas ela não se
deixara destruir, mas
estava mais por cima do que nunca, com dois sucessos que lhe tinham sido
dados por Vicente
Paiva, ex-compositor de Carmen: os sambascanções "Olhos verdes" e "Ave
Maria".

Na sua tentativa de espantar os maus fluidos, Carmen não desprezou nenhum
tipo de ajuda. Por
intermédio de uma amiga da família, por acaso sua xará, foi visitada
diversas vezes no Copa por
uma médium kardecista, dona Chiquita Fraenkel, do centro espírita Casa do
Coração, na rua
Nascimento Silva, em Ipanema. Apesar de tão católica, Carmen viu ali algo
que a interessou
porque, seguindo outra indicação, teria ido também a uma sessão do Grupo
Amor e Caridade, na
rua do Bispo, no Rio Comprido, onde recebeu passes, preces e veementes
conselhos para
trabalhar menos. Ao voltar para Los Angeles, escreveu a dona Filó,
responsável pelo centro,
agradecendo por tudo e prometendo voltar ao Rio assim que seus
compromissos "permitissem"
(ou seja, já desacatando os conselhos dos espíritos e trabalhando mais do
que devia).

Na noite de 12 de fevereiro, um sábado, Carmen foi com Gabriel e Cecília
(Aurora não pôde ir) a
um coquetel na casa de Eurico Serzedelo Machado, amigo de Gabriel, no
Jardim Botânico. O
outro casal presente era Hilma e Fernando Sá. Em meio à reunião, um deles
se lembrou de que,
dali a pouco, no Maracanã, jogavam Flamengo e Vasco, numa partida que
poderia decidir o
campeonato carioca (de 1954, que, como era comum na época, atravessara o
ano) - uma vitória
do Vasco impediria a conquista do título pelo Flamengo com uma rodada de
antecedência. De
improviso, rumaram para o estádio, no carro de Fernando Sá, e foram
direto para a Tribuna de
Honra. Quando chegaram, o jogo já ia pelos vinte minutos do primeiro
tempo e o Vasco vencia
por 1 a 0, gol de Ademir. Na tribuna, Gabriel, Cecília, Eurico, Hilma e
Fernando, todos vascaínos,
pularam de contentamento.

Carmen, maravilhada com o Maracanã - que não conhecia -, concordou: "É, o
futebol mexe
mesmo com a gente."

Mas, aos 39 minutos, índio empatou para o Flamengo e foi a vez de Carmen
dar um pulo na
cadeira. Gabriel, aborrecido, a repreendeu:

"Carmen, isso é uma descortesia. Nossos anfitriões são Vasco, todos aqui
somos Vasco. Você não
tem esse direito."

"Ah, meu filho", respondeu Carmen, "Flamengo, futebol, samba, Carnaval, é
tudo a mesma coisa."

Aos 22 minutos do segundo tempo, Paulinho fez 2 a 1 para o Flamengo. Ao
sentir a direção do
vento - a Charanga rubro-negra, comandada por Jaime de Carvalho,
inflamava as
arquibancadas com seus sambas e marchinhas, e Carmen só faltava juntar-se
a ela -, Gabriel
comandou a retirada. Carmen acompanhou-os a contragosto, mas, de volta à
Zona Sul, ouviu pelo
rádio do carro o fim do jogo com a vitória do Flamengo por aquele placar,
representando a
conquista do bicampeonato carioca.

531

A entrega das faixas seria no domingo seguinte, 20 de fevereiro, em pleno
Carnaval, num jogo
contra o vice-campeão, o Bangu, no Maracanã. Como madrinhas, no centro do
gramado, o
Flamengo teria duas estrelas de Hollywood vindas do Festival de Cinema de
Punta del Este e
recém-chegadas ao Rio: Ginger Rogers e Elaine Stewart. Vestidas de
baianas estilizadas, elas
enfaixaram o caboclo índio, o paraguaio Benitez, o negro Rubens, os
brancos Evaristo e Zagallo
e outros heróis daquela conquista. A rubro-negra Carmen Miranda, também
de Hollywood e
pioneira das baianas, igualmente poderia estar ali. Mas não estava nem no
Rio.

Estava em Petrópolis, no Hotel Quitandinha - não hospedada, mas
internada. Doutor Aloysio se
assustara com o furor de suas atividades na noite carioca e achara melhor
tirá-la de cena no
Carnaval.

Na noite em que foi ver Momo no frevo, Carmen jantou no Night and Day com
Bibi Ferreira, o
produtor teatral Walter Pinto e a milionária Beki Klabin. Ao contrário da
outra noite no Dulcina,
em que Carmen estava sóbria e linda, Bibi se decepcionou ao vê-la de
pilequinho, brandindo um
anel de brilhantes que lhe teria sido dado por Dave Sebastian e
repetindo, exultante:

"Foi ele que me deu! Ele! Ele que me deu!" - como se fosse incomum um
marido presentear a
mulher com um anel com o seu próprio dinheiro (supunha-se), não com o
dela.

Diante dos amigos, Carmen não conseguia chegar a um acordo sobre
Sebastian. Ora se
vangloriava em voz alta de ser sua mulher, ora se abraçava a alguém e
chorava as mágoas por ser
casada com ele. Depois de tantos relatos desencontrados, o colunista
social Ibrahim Sued, em O
Globo, perguntoulhe no Vogue se estava divorciada.

Carmen deu um pulo:

"Não!" E prosseguiu: "Meu marido é um amor. Alto, louro, 43 anos, uma
pintura!".

Sebastian podia ser um amor, mas não era alto, nem louro, nem tinha 43
anos. Era baixo, grisalho e
tinha 46. O mesmo esforço que às vezes fazia para retratá-lo como um
homem atraente (quem sabe
um misto de Kirk Douglas com Burt Lancaster), Carmen tinha de fazer para
impedir que seus
amigos brasileiros vissem nele um kept man, teúdo e mantéudo por ela -
daí a história do anel de
brilhantes.

Dias depois, durante uma feijoada que lhe foi oferecida por dona Neném,
mãe de Linda e
Dircinha, em sua casa na rua Barata Ribeiro, Carmen, sentada no chão,
enrodilhou-se à perna do
cantor e radialista Paulo Tapajós e, entre incontáveis caipirinhas,
passou a tarde e a noite
acusando Sebastian de "massacrá-la".

Por algum motivo, sempre que seu marido estava em pauta, Carmen


532

parecia um pouco ou muito embriagada. E então, sempre por causa dele,
decidia estender sua
aversão a outros americanos. Quando Caribe da Rocha lhe disse que levaria
os artistas vindos de
Punta del Este - Ginger Rogers, Elaine Stewart, Van Heflin, Walter
Pidgeon, a superitaliana
Silvana Pampanini e outros, todos hospedados no Copa - para assistir a
Fantasia e fantasias,
Carmen, com a voz arrastada, comentou:

"Isso mesmo, Caribe. É para mostrar a esses gringos filhos-da-puta que
aqui também se fazem
shows muito bons!"

Doutor Aloysio soube de vários deslizes de Carmen e ficou preocupado com o
resultado do
tratamento. Precisava tirá-la do Rio por uns tempos e, de preferência,
durante o Carnaval, época
propícia a tentações. Por coincidência, e por intermédio de Oscar
Ornstein, Joaquim Rolla
ofereceu-lhes dois apartamentos no Quitandinha, seu fabuloso hotel em
Petrópolis: um para
Carmen (a suíte presidencial), outro para ele e sua mulher, Dalila. Não
houve nem discussão: doutor
Aloysio aceitou imediatamente. Providenciou as enfermeiras, pegaram
Carmen, que não teve
direito a opinar, e subiram a serra.

Nos anos 40, Joaquim Rolla cansara-se de ser dono apenas do Cassino da
Urca, do Cassino Icaraí
e de outros em cidades menores. Queria construir um complexo turístico de
causar inveja a Monte
Carlo e deixar no chinelo as shangaíces de Las Vegas. De 1942 a 1944, ele
fez subir o hotel-
cassino Quitandinha, com quinhentos apartamentos de luxo e um cassino
maior que a Basílica de
São Pedro. A obra envolveu 52 arquitetos diferentes e uma decoradora com
poderes ditatoriais: a
americana Dorothy Draper, que se apaixonou pelo barroco tropical
brasileiro e pelas ondas das
calçadas de Copacabana, e vestiu todos os aposentos de acordo. O
Quitandinha, inaugurado em
1944, custara a Rolla 10 milhões de dólares (dólares de 1944!), mas
ficara como ele sonhara. Pois
esse sonho apenas começava a se pagar com os lucros do cassino quando, em
1946, o governo
Dutra proibiu o jogo no Brasil. Isso despojou Rolla de todos os seus
cassinos e o deixou com um
hotel impossível de se sustentar.

Outro empresário talvez tivesse se matado. Mas Rolla foi em frente com o
que lhe sobrara - suas
enormes fazendas de gado - e manteve o Quitandinha como hotel. Tanto que
podia convidar
Carmen a passar uns dias na sua (sempre vazia) suíte presidencial.

Os garçons do Quitandinha estavam proibidos de servir bebidas alcoólicas
a Carmen. Mas, por
ter retomado o consumo nas últimas semanas, a cabeça de Carmen já não era
suficiente para
suportar a interdição - seu organismo é que exigia permanente reposição.
Carmen viu uma saída
ao encontrar Marlene, a cantora, no Salão Azul do Quitandinha. Marlene
tinha casa em Petrópolis
e gostava de passear pelo hotel.

Carmen a reconheceu e foi abraçá-la.

"Marlene, estou louca por um uísque", disse. "Mas o meu médico está aqui
e fica me controlando.
Me faz um favor? Vá ao bar e peça um uísque pra você."

533

"Mas, Carmen, eu não bebo!", defendeu-se Marlene.

"Não interessa. Você pede o uísque, eu vou para o toalete e você me
encontra lá com o copo."

E, antes que Marlene dissesse qualquer coisa, Carmen rumou para o
toalete.

Marlene ia pedir o uísque quando um homem se aproximou e disse:

"Marlene, eu sou o médico da Carmen. Eu sei o que ela te pediu. Carmen
está em tratamento e não
pode beber. Por favor, não lhe dê uísque."

"Mas o que eu vou fazer?"

"Não faça nada", disse doutor Aloysio. "Ela sabe que não pode beber."

Desconcertada, e sem coragem para encarar Carmen quando ela voltasse,
Marlene preferiu ir
embora.

Carmen deixou-se deprimir pela ausência continuada de bebida e isolouse
na suíte. Nas poucas
vezes em que saiu, foi reconhecida, mas sempre longe de suas melhores
condições. Isso foi
constatado no Quitandinha por dois jovens (respectivamente, os futuros
radialista e teatrólogo),
Nelson Tolipan e Aurimar Rocha, seus grandes fãs. Eles a encontraram no
saguão e puxaram
conversa com ela. Mas Carmen estava perdida, distante - não parecia ouvir
ou entender o que
diziam.

Na Quarta-Feira de Cinzas, doutor Aloysio teve de descer para o Rio, a fim
de cuidar de sua clínica, e
deixou Carmen a cargo de Dalila. Sob sua vigilância, a dieta alcoólica
continuou sendo cumprida
pelos quinze dias seguintes, inclusive nas idas de Carmen à casa de
Dircinha Batista em
Petrópolis. Mas, numa rara ocasião em que Dalila se distraiu, Carmen
escapou para um jantar em
sua homenagem oferecido por uma amiga de velhos tempos do Rio, Malvina
Dolabela, também
com casa em Petrópolis. A esse jantar estavam presentes três rapazes da
sociedade local,
Vicentinho Saboya, Miguel Couto Filho e Julinho Rego, todos com dezoito
anos. Carmen sentou-
se no chão para ouvir Vicentinho cantar serestas de Sylvio Caldas e
Orestes Barbosa e tomou
doses e mais doses de White Horse - uma atrás da outra, para estupor do
quase abstêmio Julinho.
A Carmen que, horas depois, eles transportaram no Cadillac branco de
Miguel e depositaram no
Quitandinha estava quase inconsciente.

Outro que, sem saber, contribuiu para Carmen burlar a vigilância de
Dalila foi seu ex-namorado
Mário Cunha, por coincidência também hospedado no Quitandinha. A última
vez que tinham se
visto fora em 1940, quando Carmen, em sua primeira chegada triunfal ao
Rio, vindo de carro
aberto pela avenida Beira-Mar, emparelhara casualmente com o carro dele,
também um
conversível. Saudaram-se animadamente aos gritos, mas não se falaram
mais. Anos depois, Mário
Cunha fora a Nova York e, sabendo que Carmen estava na cidade, evitara-a
de propósito. Ele
nunca se casara e, a rigor, sua vida não mudara: continuava consistindo
de mulheres, carros e
motos. Já passado dos cinqüenta, ainda era um homem bem-apanhado - pena
que não


534

535

pudesse dizer o mesmo de Carmen. Encontraram-se algumas vezes no bar do
hotel e, em todas, ela
bebeu e ele, não.

Dalila levou Carmen de volta ao Rio. Doutor Aloysio estava convencido de que
Carmen deveria
continuar recolhida por mais tempo, longe de atividades sociais. Os
irmãos Seabra a convidaram
para seu Haras Guanabara, perto de Bananal, em São Paulo: um paraíso de
milhões de dólares
para os cavalos do lendário Stud Seabra, em que até o fardamento dos
jóqueis era mandado fazer
no Hermes, em Paris - os de Roberto, em branco, cruz de Santo André e
boné vermelhos; os de
Nelson, em preto, cruz de Santo André e boné também vermelhos. Ali,
dormindo e acordando
cedo, cercada de puros-sangues e do cheiro de estrume e de grama pisada,
Carmen só poderia
melhorar.

Pouco antes de partirem, Aurora descobriu tranqüilizantes na bolsa de
Carmen. Tirou-os e jogou-
os fora, mas isso significava que, na volta do Quitandinha, ou talvez lá
mesmo, em Petrópolis, sua
irmã conseguira comprá-los e os vinha tomando em segredo.

Carmen só deu pela falta dos remédios ao chegar a Bananal. Protestou
desesperada para outra
hóspede de Roberto, Ruth Almeida Prado:

"Eles sabem que os artistas não gostam de dormir cedo e que tomam remédio
para dormir. Por que
querem me fazer parar de tomar?"

Carmen sabia muito bem a resposta. Era só uma tentativa de manipular
Ruth, mas esta não se
deixou tapear. Ao contrário, fazia companhia a Carmen dia e noite, mesmo
quando ela ficava três
noites sem dormir - e Ruth, desabituada a isso, quase dormia em pé. Por
acaso, Carmen
descobriu que Ruth era grande amiga de Carlos Alberto da Rocha Faria e
não lhe deu mais
sossego - quando voltassem ao Rio, queria vê-lo de qualquer maneira,
mesmo sabendo que
continuava casado com a francesa.

Uma semana depois, no Rio, Ruth promoveu o encontro em seu apartamento em
Copacabana.
Assim como com Mário Cunha, Carmen e Carlos Alberto não se viam desde
1940. Previamente
instruído por Ruth, ele foi impecável. Beijou Carmen no rosto e lhe disse
como ela estava bonita
- como se nem um dia se tivesse passado desde a última vez.

mãos. É possível que Roberto nunca tivesse deixado de alimentar algumas
esperanças a mais. É
certo também que, se Carmen tivesse retribuído essas esperanças, a
história teria sido muito
diferente. Com direito, quem sabe, até a um final feliz.

No dia da volta para os Estados Unidos, l2 de abril, foi Roberto, fiel e
presente até o fim, quem
levou Carmen e dona Maria em seu carro para o Galeão. Mas elas não
chegaram a embarcar. Por
um problema no avião, o vôo foi cancelado, sem previsão de data.

"Oba! Mais um dia no Rio!", gritou Carmen, que já estava partindo com
relutância.

Voltaram para a Zona Sul e, finalmente, Carmen foi hospedar-se na casa da
Urca. O vôo foi
remarcado para o dia 4. Até lá, durante três dias, cercada por sua mãe e
irmãs e com a baía de
Guanabara a seus pés, pôde dedicar-se a ser de novo criança.

Ibrahim Sued notou que, em sua temporada carioca, Carmen podia ser vista
por toda parte
dançando de rosto colado com Roberto Seabra, e fez uma insinuação com
reticências em O
Globo. Não era o primeiro a ligar os dois romanticamente. E Ibrahim
saberia que, no último
aniversário de Carmen, Roberto a presenteara com uma pulseira de ouro que
lhe dera voltas ao
braço e ainda ficara pendurada? E que Carmen fora visitar as fábricas de
tecidos dos Seabra, a
Nova América e a Guanabara, e posara para fotos que poderiam ser usadas
em anúncios? Talvez.
Mas, de concreto, não havia nada ali - apenas a amizade de décadas que a
ligava a Roberto e a
Nelson. Carmen os via como irmãos.


Capítulo 30


1955

Última batucada



Carmen estava com amigos no bar do cassino New Frontier, em Lãs Vegas,
depois de terminar
seu último show. Acabara de ganhar flores do proprietário do cassino
quando um clarão sem
tamanho iluminou o deserto à sua volta e entrou por um janelão. Por
longos e dolorosos segundos,
a noite lá fora ficou dia. Ao longe, viu-se um buquê de fumaça. E, ao
mesmo tempo, ribombou um
trovão como que produzido pelo próprio Júpiter, sem intermediários.

Não era o dia que amanhecia com fanfarras - no caso, o dia 5 de maio de
1955, às três horas da manhã -, mas uma bomba atômica que explodia: a
Apple n, de 29
quilotons, uma das dezenas de experiências nucleares que os Estados
Unidos vinham fazendo no
Nevada Test Site, no meio do deserto, a apenas cem quilômetros de Lãs
Vegas. Os nativos, assim
como os iguanas, já nem se abalavam. Mas, para quem nunca tinha visto e
não estava esperando
por aquilo, era formidável e assustador. (E pouco ainda se sabia sobre os
efeitos da radiação.)

Entre os amigos ao lado de Carmen no momento da explosão estava o
diplomata Victorino Viana
de Carvalho - ou Marcos André, como estava se assinando como cronista em
O Globo -,
recém-chegado ao consulado de São Francisco, vindo de anos em Hong Kong.
Carmen estava
lhe contando de como acabara de voltar do Rio, onde passara 122 dias; de
como adorara Elizeth
Cardoso e Angela Maria, grandes cantoras, e admirara a elegância de Leda
Galliez, Tereza Sou/a
Campos e Carmen Terezinha Solbiati (futura Carmen Mayrink Veiga); e de
como, se soubesse que
seria aquela maravilha, não teria ficado tanto tempo sem ir lá. Tratara-
se com um médico, doutor
Aloysio Salles da Fonseca, que se dedicara a ela por quatro meses
seguidos e, ao se despedir,
quando ela lhe perguntara quanto lhe devia, ele respondera:

"Nada, Carmen. Sua amizade é meu pagamento."

Victorino ouviu aquilo vivamente impressionado. Carmen apenas se esqueceu
de contar que, para
lhe dar alta e permitir que voltasse para os Estados Unidos, doutor Aloysio
tivera uma longa conversa
com ela, em que lhe ordenara ficar longe dos soníferos e dos
estimulantes, evitar beber álcool e,
definitivamente, não retomar o trabalho antes de três meses. Autorizou-a
também a lhe telefonar
todos os dias, se precisasse.


537

Mas, assim que pôs os pés em Beverly Hills, Carmen desobedeceu, uma a
uma, às ordens de doutor
Aloysio. Voltou aos poucos ao uísque e aos remédios, só telefonou para o
médico uma vez, e não
esperou os três meses para retomar a rotina de shows, viagens e noitadas.
Não esperou nem três
semanas. Em fins de abril, já estava ali em Las Vegas, para uma temporada
de quatro semanas
inaugurando o New Frontier, o novo cassino de Herman Hover, seu ex-
vizinho em North Bedford
Drive e ex-proprietário do Ciro"s.

O artista originalmente contratado para a inauguração fora o tenor da
MGM, Mário Lanza,
famoso pelo filme O grande Caruso (The great Caruso, 1951) e famoso
também por encher a cara,
engordar 25 quilos de uma sentada, não tomar banho e faltar a
compromissos com contratos
assinados. Fez isso no New Frontier - não apareceu para trabalhar - e o
cassino teve de adiar a
inauguração. E então Hover chamou Carmen, a profissional perfeita, que
jamais deixaria um
empresário na mão, mesmo que, para isso, tivesse de morrer no palco e ser
ressuscitada no
camarim.

Foi mais ou menos o que aconteceu numa das últimas semanas no New
Frontier, quando, no
primeiro show da noite, começando por volta das nove e meia, Carmen caiu
de joelhos no palco
ao dançar. Segundo Aloysio de Oliveira, ao seu lado naquele momento, não
fora um escorregão
provocado pelas plataformas, mas uma "queda em vertical", como uma
implosão. Aloysio, Harry,
Lulu e Orlando ficaram paralisados por um segundo. Ela pediu ajuda e eles
a levantaram sorrindo,
como se aquilo acontecesse todo dia e fizesse parte do show. Carmen
retomou o pique, dançou e
cantou até o final. Depois, disse a eles que sentira "fraqueza e falta de
ar". Mas, então, corrigiu-se
e alegou que apenas perdera o equilíbrio. Repousou no camarim e, à uma da
manhã, estava firme
para o segundo show - como sempre.

Nada fazia prever um incidente como aquele porque, aparentemente, Carmen
voltara bem-
disposta do Brasil. O álbum de recortes, com as reportagens sobre sua
estada no Rio, mostrava-a
esbanjando felicidade, ao lado de pessoas que não via fazia muito tempo
ou que acabara de
conhecer. E, mais do que nunca, Carmen trouxera o Brasil com ela. Dias
depois, na mesma semana
da chegada, era Sábado de Aleluia e, com os rapazes do Bando reforçados
por Zezinho, Nestor e
Gringo, promovera uma batucada em sua casa até as quatro da manhã. Um dos
presentes fora o
novo cônsul em Los Angeles, Roberto Campos. Na semana seguinte, Cauby
Peixoto, um jovem
cantor brasileiro tentando carreira nos Estados Unidos, também iria
visitá-la. E, com dona Maria,
ela fora ao Mocambo para ouvir de novo uma cantora portuguesa que
conhecera no Rio: Amalia
Rodrigues. Convidou-a a esticar em North Bedford Drive depois do show e
podem ter cantado
juntas.

Carmen só voltara para os Estados Unidos porque Sebastian não parava de
telefonar-lhe para o
Copacabana Palace. Estavam habituados a ficar separados - Carmen quase
sempre viajava a
trabalho sem ele -, mas não por tanto tempo.


538

Em janeiro, ele lhe dissera que iria encontrá-la no Rio e
voltariam juntos. Mas, ou
porque Carmen o tivesse proibido ou porque a idéia talvez não passasse de
ameaça, ele não
chegou a ir. Carmen foi ficando - fevereiro e março se passaram - e os
telefonemas
continuaram: "Você precisa voltar, honey!"

Sebastian dizia que os empresários não queriam mais esperar por ela.
Vários compromissos tinham
sido perdidos ou cancelados durante sua ausência e outros esperavam uma
definição. Dois desses
convites eram para filmes da MGM, ambos em Cinemascope. O primeiro era um
musical a ser
dirigido por Busby Berkeley - e Berkeley efetivamente escrevera para
Carmen no Rio. (Ela
respondera dizendo que conversaria com ele em Hollywood; mas, ao chegar,
descobriu que
Busby estava queimado na MGM; portanto, esse convite não valia.) O outro
filme, a ser
produzido por Joe Pasternak, seria uma aparição em Viva Las Vegas (Meei
me in Las Vegas),
com Dan Dailey e Cyd Charisse, a ser rodado em fins de 1955 - que Carmen
não teria tempo de
cumprir e, em seu lugar, Pasternak usaria Liliane Montevecchi.

Havia também uma proposta da televisão a ser estudada com carinho: uma
série de programas
semanais de meia hora, estilo I love Lucy, estrelando Carmen e Dennis
O"Keefe (com quem ela
fizera em 1945 o lamentável Sonhos de estrela). Carmen seria uma cantora
"latina" que abandonou
a carreira para cuidar do marido, um marinheiro de volta da Guerra da
Coréia. Dito assim, não
parecia grande coisa, mas uma série envolvendo uma dona de casa americana
e um cubano
tocador de bongô também não cheirava à oitava maravilha - e ninguém
perdia um programa de
Lucille Ball e Desi Arnaz. Dependia dos roteiristas, do elenco e, claro,
do dinheiro para a
produção. E dinheiro para a televisão é que não faltava.

Enquanto Hollywood raspava o tacho com suas magras bilheterias e com o
dinheiro tomado a
juros em Nova York, a televisão tinha de segurar os patrocinadores -
General Motors, General
Electric, Texaco, Philco, American Tobacco - que quase arrombavam suas
portas oferecendo-
lhe milhões de dólares. Com isso, o impossível acontecera: a freqüência
ao cinema nos Estados
Unidos caíra para 46 milhões de espectadores por semana e já havia mais
gente assistindo à
televisão do que indo ao cinema. Era fácil ver para onde apontava a
carreira de Carmen.
Entrementes, em agosto, ela participaria mais uma vez de The Jimmy
Durante Show, na NBC.

E havia as propostas para shows. Além do compromisso no New Frontier,
Sebastian fechara outro
contrato na sua ausência: duas semanas na boate Tropicana, em Havana, na
segunda quinzena de
julho. A William Morris também acenava com unia longa temporada em Hong
Kong e no Japão. O
mundo era seu palco, e ela podia se apresentar onde quisesse - ditando o
cachê. Mas era tarde.
Carmen já não se sentia com ânimo para continuar viajando e entrando no
palco duas ou três
vezes por noite, noite após noite, e, em todas elas,

539

cantando "Mamãe, eu quero". (Aloysio de Oliveira calculara que, até
então, em seus mais de
quinze anos nos Estados Unidos, Carmen cantara "Mamãe, eu quero" cerca de
4 mil vezes - um
número razoável se se considerar que, exceto de 1941 a 1945, quando os
filmes ocuparam o seu
tempo, Carmen mantivera uma média de trezentos shows por ano. E, em
todos, tivera de cantar
"Mamãe, eu quero".) E não era só o cansaço de viajar. A ida ao Brasil
deixara uma dúvida em seu
espírito - sobre se devia continuar trabalhando nos Estados Unidos ou
voltar para seu país, ir
morar em Petrópolis, desacelerar o ritmo, viver melhor. Ela sabia que não
era uma decisão fácil.
Envolvia, entre outras coisas, seu casamento - aquele que ela nunca
deixaria ser destruído.

O doutor Marxer a submetera a um eletrocardiograma, não se sabe se logo na
volta do Rio ou se
depois da queda no New Frontier, e achara tudo normal. Carmen tinha um
coração "próprio de
sua idade", diria ele. Mas Marxer tratava a artista, não a paciente. Ao
voltar de Lãs Vegas, em fim
de maio, Carmen escorregou numa escada em sua casa, foi ao chão e quebrou
o polegar direito.
Mais uma vez, acidentes acontecem - embora tendam a acontecer mais com
quem vive com a
consciência alterada. A queda rendeu-lhe apenas um dedo engessado -
ninguém se preocupou
em averiguar se não havia algo mais sério por trás. (E se não tivesse
sido apenas um escorregão?)

A colombiana Esteia Girolami, empregada de Carmen desde 1951, e que
passara a acompanhá-la
como camareira nos shows e nas viagens, notara que as coisas em torno da
patroa tinham se
alterado. Carmen estava sempre rindo e fazendo rir na presença dos
outros. Mas ficava triste e
muda assim que as visitas iam embora. Durante parte de maio e todo o mês
de junho, em que não
trabalhara, mal saíra de seu quarto. Passava o dia dormindo, e a noite,
acordada, lendo revistas na
cama. Quase nunca via televisão. Várias vezes Esteia a flagrou chorando
porque, em Las Vegas,
esquecera letras que nunca poderia ter esquecido - e o que seria de sua
carreira se não
conseguisse se lembrar das letras?

Esteia percebia também que, na frente de terceiros - e principalmente na
de dona Maria -,
Sebastian fazia o marido amoroso e servil. Mas, quando estavam a sós, ele
era duro com Carmen e
se irritava à toa. Segundo Esteia, a bebida o tornava grosseiro e
malcriado. Às vezes, Carmen o
enfrentava e se irritava também. Mas, quase sempre, ela não se defendia,
apenas chorava. As
brigas tinham a ver com dinheiro, contratos e a presença de brasileiros
na casa. Numa dessas,
Carmen gritou que iria se separar dele - mas, no mesmo dia, Esteia
escutou dona Maria
aconselhá-la:

"Dê-lhe outra chance, minha filha."

Talvez fosse o que Carmen quisesse escutar.

Maconha e cocaína rolavam abertamente em Havana nos anos 50: a maconha
era vendida em
tabacarias, com os cigarros enrolados manualmente


540

e acondicionados em lindos maços coloridos, e era mais fácil comprar cocaína do
que rapé. Nenhuma
das duas era novidade para Carmen - a maconha era endêmica entre os
músicos de Nova York,
e a cocaína, mais comum entre os atores de Hollywood. Carmen convivera
com usuários de
ambas e, apesar de afirmações em contrário (uma delas, altamente
fantasiosa, de que transportava
sua cocaína no salto oco das plataformas), não há o menor sinal de que
tivesse interesse por
qualquer das duas. Uma prova disso é que, com sua tendência à adição,
teria se tornado uma séria
dependente delas se tivesse resolvido usálas, mesmo que para fins
recreativos. Carmen nunca
teve problemas com as drogas chamadas ilegais - as legais já lhe criavam
problemas suficientes.

Carmen (com Esteia) e o Bando da Lua foram para Havana no começo de julho
para a estréia dia
13 no Tropicana. Esse, sim, era um nightclub para humilhar todos os
nightclubs - não era uma
caixa de trevas, como as minúsculas boates de Nova York, Rio ou Paris.
Tinha dois palcos: um
interno, enorme e refrigerado; outro, ao ar livre, chamado de "paraíso
sob as estrelas", em que a
platéia se espalhava por centenas de mesas num jardim tropical, e mesmo
quem não podia pagar
assistia ao espetáculo trepado em alguma palmeira. Seu fundador, em 1939,
fora um ítalo-
brasileiro, Victor Corrêa, e um dos shows de inauguração ficara a cargo
dos três grandes cartazes
cubanos da época: a cantora Rita Montaner, o pianista Bola de Nieve e o
percussionista Chano
Pozo. Para pagar dívidas de jogo, Corrêa teve de vender o Tropicana em
começo dos anos 50. A
compradora foi a Máfia de Las Vegas, por seus representantes locais. E
ali começou de verdade a
fama mundial do Tropicana.

Não era apenas o berço do mambo e do chachachá. Uma das atrações se dava
no fim da tarde das
sextas-feiras, quando um quadrimotor Super G Constellation, da Cubana de
Aviación, lotava de
americanos um vôo Miami- Havana. O avião, decorado com os motivos e cores
do Tropicana, e
equipado com dançarinas e uma pequena orquestra, oferecia a bordo um
curso relâmpago de
dança, servia os primeiros daiquiris aos passageiros, e as aeromoças eram
uma amostra das
inenarráveis mulatas que eles iriam conhecer. Desembarcavam já com um par
de maracas na mão
e iam direto para o Tropicana. Lá, distraíam-se no cassino por algumas
horas e só então
começava o baita show - estrelado por Josephine Baker, Cab Calloway,
Xavier Cugat, Woody
Herman, Libertad Lamarque ou, como dessa vez, Carmen Miranda -,
entremeado com números
de dança pelas diosas de carne, as maiores mulatas do Caribe. De
madrugada, os americanos
eram levados para o Hotel Nacional, a fim de "dormir". E, de manhã,
reembarcados para a
Flórida, entupidos de rum, esfolados na roleta, e fisicamente no bagaço,
mas felizes. Era uma
platéia inquieta, grosseira e barulhenta - difícil para o artista
conservar a sua atenção. Era
preciso dar tudo ao microfone e apostar a alma no palco.

Durante quinze dias, Carmen iria fazer três espetáculos diários nos dois
palcos do Tropicana. A
poucos dias da estréia, teve uma suspeita de pneumonia,
541

mas foi em frente assim mesmo e estreou no dia marcado. A infecção
foi tratada por um
médico local, mas custou a ceder devido à sucessão de shows: o primeiro,
na temperatura gelada
do palco interno; outro, duas horas depois, sob a umidade abafada da
floresta tropical; e, dali a
mais duas horas, um terceiro, de novo no ambiente refrigerado. Em todos,
Carmen se derretia em
suor. Entre um show e outro, as trocas de roupa e um banho - ao todo,
quatro banhos por noite:
um antes de cada apresentação e outro no final. Por mais cansada e sem
fôlego que saísse de um
show, era preciso se superar e voltar para o show seguinte (lembre-se,
ela era a profissional
perfeita). Num dos dias, o Tropicana recebeu a visita do odiado ditador
Fulgencio Batista,
temporariamente alheio aos rebeldes que começavam a criar grupos de
guerrilha na Sierra
Maestra. E, odiado ou não, sua presença exigia que se desempenhasse como
nunca.

A poucos dias do fim da temporada, Carmen e os rapazes foram convidados à
casa de Martin Fox,
um dos proprietários do Tropicana. Segundo Aloysio, sabendo que teriam de
cantar, levaram os
instrumentos mais brasileiros, tipo cuícas e tamborins, para apresentar
um repertório diferente do
que faziam no show: "Uva de caminhão", "Camisa listada", "Adeus,
batucada" e o novo sucesso
internacional, a toada "Mulher rendeira", tema de domínio público do
filme O cangaceiro. Mas
nem chegaram à toada. No meio dos sambas, que eram tão parte de Carmen
quanto a sua própria
pele, ela teve dificuldade com as letras. Quando se lembrava de um verso,
esquecia outro, ou
perdia a estrofe inteira. Desatou a chorar - segundo Aloysio, um choro
convulsivo e violento.
Entre soluços, gritava que a perda de memória era resultado dos
eletrochoques. Isso podia ser
verdade - mas o que dizer dos anos de agressão ao seu sistema
neurológico?

Eram quase quinze anos de um processo longo e inexorável. Começara no dia
em que uma
cápsula para dormir exigira outra para acordar. Tempos depois, a cápsula
para dormir exigira
outras cápsulas para dormir; e a cápsula para acordar, outras cápsulas
para acordar. Um drinque
cancelara uma cápsula e exigira outra cápsula. Essa cápsula cancelara o
drinque e exigira outros
drinques. Em meio à ciranda, as cápsulas e os drinques haviam cancelado
uma quantidade de
neurônios e, apesar dos recentes esforços de seu médico no Rio, Carmen já
não sabia onde ficava
a entrada ou a saída do infernal labirinto em que sua vida se convertera.

Eles a tiraram da festa, obrigaram-na a ir para o hotel, e temeram pelo
restante da temporada. Mas,
como sempre, no dia seguinte Carmen já estava pronta a levar o
compromisso no Tropicana até o
fim.

Até o verdadeiro fim.

Carmen e o Bando da Lua voltaram para Beverly Hills no dia 29 de julho, a
uma semana de sua
participação no programa de televisão de Jimmy Durante.


542

Carmen ainda não se recuperara totalmente do problema de saúde que
tivera em Havana.
Quanto ao esquecimento das letras, preferia agora atribuílo a um
princípio de estafa. Nada que
perturbasse seu trabalho com Durante

- e Carmen, que já estivera no programa em outras ocasiões, era amiga de
Jimmy desde que
chegara a Hollywood.

Aos 62 anos em 1955, Jimmy Durante era o comediante mais amado pelos
americanos. Sua
carreira, quase tão velha quanto o século, atravessara circo, vaudeville,
rádio, cinema, nightclub e
televisão, e fora toda feita sobre seu descomunal nariz (além da voz
rouca, do inglês quebrado e
de seu jeito único de andar e dançar). Como Carmen, ele era um
prisioneiro dos próprios
estereótipos, mas ninguém o crucificava por não interpretar Édipo rei ou
Ricardo III

- os americanos eram assim, tolerantes. Do ponto de vista da comédia, sua
dupla com Carmen
fazia grande liga, e havia tratativas para que ela participasse com mais
freqüência do programa.
The Jimmy Durante Show, patrocinado pelo cigarro Old Gold, durava perto
de trinta minutos em
dois blocos. Era filmado (em película) no estúdio da Desilu, de Lucille
Ball e Desi Arnaz, na
Gower Street, e editado para exibição quase dois meses depois.

O papel de Carmen no programa seria, como sempre, o de si própria. A
diferença é que, dessa
vez, ela e o Bando da Lua estariam hospedados no "apartamento de Jimmy" e
dali se
desenvolveriam as peripécias e os números musicais. Um desses seria
"Delicado", o choro de
Waldir Azevedo que, pouco antes, chegara ao primeiro lugar nas paradas
americanas em versão
instrumental, com a orquestra de Percy Faith, e depois fora gravado por
Dinah Shore, com letra
em inglês por Jack Lawrence. No Brasil, não se usava pôr letra em choros,
mas se até Jack
Lawrence (autor de "Ali or nothing at ali", primeiro sucesso de Sinatra)
metera o bedelho em
"Delicado", por que Aloysio não podia fazer o mesmo? E, assim, Aloysio
escreveu uma letra em
português para "Delicado", que Carmen cantaria no programa de Durante:

E quando ouço o Delicado Dá uma dor aqui no lado Aqui no meu coração

Outro número seria o inevitável "Cuanto lê gusta". O roteiro previa
também algumas falas em
espanhol-metralhadora para Carmen, a fim de agradar à população hispânica
da Califórnia. Mas
Carmen comunicou ao produtor que, com ela, não tinha essa história de
falar espanhol, e que só
falaria em português. O produtor não aceitou. (Carmen fingiu concordar,
mas, na filmagem, falou
em português mesmo, e o homem não percebeu.) Os ensaios durariam uma
semana e teriam de
deixar o elenco e a equipe na ponta dos cascos para a filmagem, porque
esta, que começaria às
sete da noite do dia 4, quinta-feira, e levaria cerca de três horas,
teria de sair "de primeira". Não
haveria tempo para repeti-la,

543

porque uma greve dos atores de televisão estava prevista
para começar à zero hora
de sexta.

Com todo o carinho que tinha por Jimmy, Carmen estava indo para o
sacrifício ao aceitar
participar do programa naquela data. Na verdade, não tivera escolha. O
contrato fora assinado
antes de sua viagem a Cuba - e já então Carmen sabia que estava com
dificuldade para decorar
textos. Sebastian convenceu-a a assinar e disse que a ajudaria na
memorização das falas. The
Jimmy Durante Show não era exatamente uma alta comédia de Noèl Coward - a
maioria das
piadas, inclusive a do turbante comestível, já estava com barbas brancas
-, mas Carmen não
podia adivinhar que o problema da memória pioraria em Havana, onde, além
disso, trabalhara
estressada e doente. Voltara para Los Angeles, tivera apenas um dia para
descansar, e já entrara
na semana de ensaios para o programa de Durante.

No ensaio da segunda-feira, três dias antes da filmagem, Carmen se
queixara a Jimmy de que não
estava bem. Fizera a mesma queixa para Harry e Isa, acrescentando que
estava com "dor nos
braços". E não era a única da trupe a se sentir mal. O próprio Harry
voltara de Cuba com uma
virose e não participaria do programa. (Preferiram não pôr ninguém em seu
lugar, deixando o
conjunto resumido a Aloysio, Lulu e Orlando.) Carmen estava
excepcionalmente inchada e com
os olhinhos quase invisíveis, enterrados nas pálpebras polpudas. Tanto
que até o doutor Marxer,
afinal, vinha aconselhando-a a dar uma parada - e Carmen estava disposta
a obedecê-lo. Mas
quem sabe até onde se pode esticar a corda?

A idéia era a de que, no dia seguinte à filmagem, Carmen teria dois
compromissos sociais e depois
sairia de férias. À tarde, iria ao estúdio Disney para ouvir o playback
da versão brasileira de A
dama e o vagabundo (The lady and the tramp), do qual Aloysio e os rapazes
tinham participado
fazendo as vozes dos cachorros. Algumas horas depois, à noite, seria a
convidada de honra na
inauguração da Casa do Brasil, o primeiro restaurante brasileiro da
Califórnia, a cargo da carioca
Mercedes Foster. Vinda de Nova York, Mercedes chegara a Los Angeles cerca
de um ano antes e
fora apresentada a Carmen por Zezinho. Honrados esses convites, Carmen
planejava esconder-se
em Palm Springs pelo resto do verão e passar pelo menos um mês tomando
sol e retemperando as
energias. E o compromisso seguinte, já no comecinho de setembro, não
teria nada de profissional.
Aliás, prometia ser delicioso: assessorada por Victorino de Carvalho,
Carmen iria promover em
sua casa um concurso de gastronomia, em que competiria com a feijoada de
dona Maria, e, entre
outros, Marlon Brando apresentaria sua receita especial de hambúrguer.

Pouco antes das sete da noite do dia 4, o entourage de Carmen estava a
postos na platéia ao vivo
que assistiria à filmagem de The Jimmy Durante Show. Consistia de dona
Maria, Sebastian e
Esteia, entre os de casa, e o industrial brasileiro (residente em Nova
York) Jackson Flores, sua
mulher, Irene, e


544

sua filha, Sheila, e duas amigas de Carmen, a jornalista Dulce Damasceno
de Brito e a adida do
consulado, Rosa Maria Monteiro. Nos últimos anos, Carmen tentara
convencer Dulce e Rosa
Maria das maravilhas dos soníferos e estimulantes. Às vezes, para mantê-
las acordadas nas
reuniões que se estendiam pela madrugada em sua casa, fornecia-lhes
cápsulas de Dexedrine que
tirava de sua boíte à polules - Dulce e Rosa Maria fingiam tomá-las, mas
as jogavam fora, e,
depois, diziam que não tinham funcionado. Estavam todos convidados a ir
até North Bedford
Drive depois da filmagem para um nightcap - para tomar a penúltima.

Um atrás do outro, ouviram-se os gritos de "Silêncio!", "Câmera!" e
"Ação!" pelo diretor Sid Smith,
e Jimmy entrou em cena. Aos nove minutos de programa, foi a vez de Carmen
surgir, vestida com
um tailleur vermelho, severo, que não a favorecia e só a engordava.
Seguiram-se oito minutos de
anarquia cômica com Durante e, aos dezessete, cantou "Delicado". Fim do
primeiro bloco e
intervalo para trocar de roupa. Meia hora depois, Carmen voltou, já com a
fantasia para a
seqüência num nightclub em que, durante cinco minutos ininterruptos,
dançaria com Jimmy e coro
misto um frenético medley de ritmos de fox, samba, tango e mambo. Um
número que exigiria tudo
dos dois. As câmeras já estavam rodando e, em dado momento, quando Jimmy
se virou para
contracenar com o coadjuvante Eddie Jackson, os joelhos de Carmen se
dobraram e ela perdeu as
pernas.

Claudicou, quase caiu - e só não caiu porque segurou a mão de Jimmy.
Recobrou-se num
instante e disse, fora do roteiro, mas ao perfeito alcance dos
microfones:

"Fiquei sem fôlego!"

Carmen sorriu, como se imensamente grata pelo fôlego lhe ter voltado -
como se isso não
estivesse entre os seus direitos de ser vivo. Na seqüência, cantou o
rapidíssimo "Cuanto lê gusta"
sem perder um segundo de velocidade. Imagens estáticas depois retiradas
do filme e muito
ampliadas mostraram que, quando Carmen dobrou os joelhos, seus olhos se
reviraram por um
segundo. A boca adquiriu um desenho que nunca tivera. Seus olhos e sua
boca, e toda a sua
expressão naquele segundo, já eram os da morte. Especulou-se que Carmen
tivera ali um colapso.
Mas ela não levou a mão ao peito nem se queixou de dores - disse apenas
que tivera "falta de
ar". Tudo indica que tenha tido um forte descompasso cardíaco, uma
arritmia, como a de dez anos
antes. Ou como a que tivera em Las Vegas no outro dia, como a da queda em
sua casa, e como
outras que podem ter acontecido e de que ela não deixou que se tivesse
conhecimento -
pequenos avisos de que havia um grande vulcão preparando-se para a
erupção fatal. A cada
descompasso, seu coração perdia uma ou mais batidas - que viriam a lhe
fazer falta muito em
breve.

Mais um corte, mais uma pausa, e o cenário do programa voltou para o
apartamento de Jimmy.
Era o encerramento. Carmen, cansada, mas contente,

545

aparece saindo de costas por uma porta, dançando com o Bando da Lua,
jogando beijos e
despedindo-se de Jimmy, do público e da vida.

Quem mais teria esse privilégio, de despedir-se com uma imagem em que
joga beijos?

Jackson Flores vivia nos Estados Unidos havia oito anos e estava de
férias em Los Angeles com
sua família. Naquela noite, na casa de Carmen, ele teria dito, por
qualquer motivo:

"Adoro os Estados Unidos, mas quero ser enterrado no Brasil."

Ao que Carmen respondeu:

"Eu também!"

Passava um pouco das dez quando ela e seus convidados, incluindo o Bando
da Lua, chegaram a
North Bedford Drive depois do programa. Esteia fez café fresco e serviu
sanduíches. Nos copos,
o tropel dos cavalos brancos entre as pedras de gelo. O espetáculo iria
continuar. Carmen nem
tirou a roupa e a maquiagem. Cantou, a pedidos ou por conta própria,
várias canções - os relatos
não coincidem, mas entre as citadas estão o "Fado da Severa":

Na rua do Capelão Juncada de rosmaninhos Na rua do Capelão Juncada de
rosmaninhos Se o
meu amor vier cedinho Eu beijo as pedras do chão Que ele pisar no
caminho...

e "Uma casa portuguesa", solicitadas por sua mãe; "Taí", "Feitiço da
Vila", "Primavera no Rio" e
outras. Não esqueceu nenhuma letra. Dançou, fez imitações, contou
histórias - enfim, deu um
show completo, de mais de uma hora, melhor do que muitos pelos quais lhe
pagavam fortunas.
Entre uma piada e um samba, borrifava sua energia com White Horse. Quando
parou, pôs discos
para tocar. Sebastian não esperou a noite acabar. Como toda a alegria
daquela noite se dava em
português, língua com a qual ainda não se entendera depois de oito anos
de convivência diária,
preferiu ir dormir. Subiu para seu quarto (o antigo quarto de Aurora e
Gabriel) por volta da meia-
noite. Dali a pouco, dona Maria também se recolheu. Outros convidados
foram saindo, e nesse
caso os relatos também variam - porque todos afirmam ter saído cedo;
ninguém admite ter sido o
último a ir embora. Mas três irmãs de Sebastian, uma vinda de São
Francisco e as duas que
moravam em Los Angeles, telefonaram para Carmen avisando que estavam indo
para lá. Carmen
alegou que se sentia cansada, mas elas não se fizeram de rogadas:


546

"Não, queremos saber tudo que aconteceu em Cuba e no show com Durante."

Carmen resignou-se:

"Está bem, então venham."

As cunhadas chegaram. Carmen ofereceu-lhes um drinque, distribuiu o que
restava de sua euforia
e também anunciou que iria subir. E, de fato, teria se retirado por volta
das duas e meia, deixando
a casa para elas e os amigos - que tanto podiam ser Aloysio, Lulu e
Orlando, ou Jackson e
esposa, ou Dulce e Rosa Maria. Antes de subir, atendeu ao pedido de
Sheila, de doze anos, filha
de Jackson: assinou-lhe um autógrafo. Beijou-a, dirigiu-se à escada
jogando beijos gerais e
desapareceu.

Carmen entrou em seu quarto, tirou o tailleur e vestiu um robe. Acendeu
um cigarro, deu uma
tragada, deixou-o no cinzeiro. Foi ao banheiro para retirar a maquiagem,
usando cola cream e um
lenço de papel. Na volta, no pequeno hall entre o banheiro e o quarto,
onde ficava sua coleção de
perfumes, o ar lhe fugiu de novo, as pernas lhe faltaram, e Carmen caiu
pela última vez - ali
mesmo, com um espelho na mão. Uma oclusão das coronárias fizera explodir
uma vasta área de
seu coração - um infarto maciço.

Se Carmen gritou por causa da dor intraduzível, e se a queda de seu corpo
produziu um baque ao
cair ao chão, ninguém a ouviu. A casa era grande e toda atapetada. Além
disso, havia música na
vitrola lá embaixo. Seus amigos, os que ficaram até depois das três,
divertiam-se inocentemente
enquanto ela morria sozinha em seu quarto - e continuaram assim, talvez
rindo e cantando, por
no mínimo outra meia hora. Os últimos a ir embora desligaram o aparelho,
apagaram as luzes e
bateram a porta ao sair. Nenhum suspeitaria que Carmen já estava em
processo de rigor mortis.
Fora perfeito. Era assim que ela teria preferido se pudesse escolher -
que nem mesmo sua morte
interferisse no direito de seus semelhantes à alegria.

De todos os seus contratos de trabalho devia constar secretamente essa
cláusula, garantindo que
ela viera ao mundo para espalhar tal alegria. Carmen a cumpriu até o
derradeiro show. E esperou
cair a cortina para poupar a platéia, por menor que fosse, de uma cena
tão pouco Carmen, tão fora
de seu estilo.




EPÍLOGO




Durante anos Carmen acalentara o sonho de voltar ao Rio no Carnaval - "de
camisa de
malandro e tocando cuíca" - e passar os quatro dias nas ruas, incógnita,
cantando e brincando
entre os populares. Nunca pudera realizá-lo. Quando não era uma Guerra
Mundial que a impedia,
era um filme com Don Ameche na Fox ou uma temporada no Roxy em Nova York,
ou duas
semanas num cassino assim e outras num nightclub assado. No Carnaval
daquele ano,
1955, ela estivera no Rio, mas não valera: viera em tratamento de saúde e
seu médico preferira
exilá-la em Petrópolis durante a folia.

Agora, seis meses depois, Carmen descia de novo no Galeão - a bordo de um
DC-4 da Real
Aerovias, dentro de um caixão revestido de alumínio por fora e de bronze
por dentro, envolto
pela bandeira brasileira. O caixão foi levado para um carro do Corpo de
Bombeiros, que tinha as
partes metálicas cobertas de preto. Passara-se uma semana desde a morte
de Carmen em Beverly
Hills na madrugada de 5 de agosto, e ela estava de volta para que se
cumprisse outro desejo seu:
o de ser enterrada no Brasil.

Os últimos dias em North Bedford Drive tinham sido terríveis. Perto das
onze horas da manhã
seguinte ao programa com Jimmy Durante, Sebastian fora ver Carmen em seu
quarto e a
encontrara caída no chão do hall, com o espelho na mão. Achou que ela
tivesse adormecido ali e
agachou-se para acordála. Carmen estava fria e arroxeada.

"Carmen, acorde", disse Sebastian. "Acorde, Carmen. ACORDE!"

Os gritos de Sebastian foram ficando mais dramáticos à medida que ele se
dava conta da situação.
Dona Maria os ouvira e fora ver o que era. Seus gritos se juntaram aos
dele e assustaram Esteia.
Quando a empregada acudiu e se aproximou da escada, cruzou com Sebastian,
que corria em
direção à rua, seguido por uma desesperada dona Maria, que o acusava:

"Você matou minha filha! Você matou minha filha!"

Era apenas uma imagem, uma metáfora do desespero. Não queria dizer que
fosse verdade.
Sebastian era um cretino e o casamento não fizera nenhum bem a Carmen,
mas muitos fatores
haviam contribuído para aquele desfecho. O principal era a dependência de
um poderoso e
mortal aditivo, quase sempre potencializado pelo álcool. A mesma tragédia
que atingira vários
outros


548

grandes nomes de Hollywood como Mabel Normand, John Gilbert, Lupe Velez,
Robert Walker,
Maria Montez, e, depois de Carmen, mataria também Diana Barrymore,
Marilyn Monroe e Judy
Garland - todos ricos, bonitos, famosos e com menos de cinqüenta anos.

Doutor Marxer foi chamado a North Bedford Drive, mas não podia fazer nada -
Carmen estava
morta havia oito horas. E o que podia ser feito, não se fez - a autópsia.
Nenhum motivo suspeito:
apenas Sebastian, obedecendo automaticamente a suas tradições judaicas,
não a autorizou.

O próprio doutor Marxer telefonou para o Rio. Devido à diferença de fuso
horário, já eram mais de
quatro da tarde quando a notícia chegou a Aurora, na Urca. Pouco depois,
pelo Repórter Esso,
com Heron Domingues, em edição extraordinária, a Rádio Nacional a
transmitiu para todo o país.
Informou-se também que Carmen seria enterrada no cemitério de São João
Batista, no Rio. Foi
uma espécie de senha para um Carnaval em agosto. Imediatamente, todas as
rádios brasileiras
tiraram de suas discotecas os 78s empoeirados de Carmen, que nunca mais
tinham se lembrado de
tocar. De "Taí" a "Disseram que voltei americanizada", seus sambas e
marchinhas ocuparam a
programação pelos dias seguintes.

Do Galeão, o carro dos bombeiros deu a saída para o cortejo de horas pela
avenida Brasil, entre
milhares de lenços brancos acenando à sua passagem. A primeira escala foi
defronte ao edifício
de A Noite, sede da Rádio Nacional, na praça Mauá. Em nome de tantos
artistas que agora
trabalhavam nela, Almirante tentou falar, mas sua voz, tão possante, não
foi muito longe - mal
conseguiu completar uma frase. Dali Carmen partiu para sua verdadeira
rádio, a Mayrink Veiga,
em cuja sacada César Ladeira a esperava. César também falou emocionado. O
carro retomou o
percurso e desceu a avenida Rio Branco para chegar à Câmara dos
Vereadores, na Cinelândia,
onde outras dezenas de milhares de pessoas o esperavam. Apesar de tanta
gente nas ruas, doze
missas por Carmen seriam rezadas naquele dia.

No saguão da Câmara, o caixão foi aberto e filas se formaram para vê-la,
dando voltas à praça
Floriano. O vereador Jonjoca, ex-camarada de Carmen, cuidou para que a
vigília fosse feita em
paz. Alguns se chocaram com o fato de Carmen estar vestida de vermelho,
penteada e maquiada;
outros se encantaram com isso - em Hollywood, até a morte era em
Technicolor! Por toda a
noite de 12 para 13 de agosto, o Rio desfilou em silêncio diante de
Carmen. E gente de outras
cidades, usando todos os transportes disponíveis, veio se despedir dela.
Nem o frio da madrugada
afugentou seus adoradores.

No começo da tarde do dia seguinte, o caixão foi fechado e, à sua saída
pela porta da Câmara, os
membros da Velha Guarda - Pixinguinha, Donga, João da Baiana e seus
companheiros -,
postados nas escadarias, tentaram tocar "Taí" para saudá-la pela última
vez. Em 1930, quando
eles a acompanhavam, regulavam o andamento da marchinha de Joubert de
Carvalho pelo
requebrado
549

das cadeiras de Carmen. Agora só podiam contar com eles mesmos. Mas
não conseguiram. As
gargantas se fechavam, o saxofone e a flauta não produziam som, a emoção
era muita. Foram
salvos pelo carrilhão da Mesbla, a cem metros dali, na rua do Passeio -
os sinos atacaram a
marchinha e foram encorpados por um coro baixinho de mais de 50 mil
vozes.

O caixão foi levado de volta ao topo do carro dos bombeiros e o cortejo
rumou lentamente para
Botafogo. Como nos antigos corsos, as pessoas e os automóveis se
misturavam. Synval Silva
pretendia acompanhá-lo de carro. Mas, ao passar pela praça Paris, ouviu
quando o carrilhão
mudou para "Adeus, batucada". Era o samba que, um dia, ele levara a
Carmen na casa do Curvelo.
Synval começou a chorar e sentiu que não conseguiria prosseguir. Assim
que pôde, embicou pela
praia do Russell e tomou o rumo da Glória, para fugir à romaria. Aurora
também tomaria o rumo de
casa, levando dona Maria. O enterro propriamente dito seria demais para
sua mãe. E quem
poderia adivinhar que dona Maria sobreviveria a Carmen por dezesseis
anos?

Num dos carros do cortejo, estava o marido, Dave Sebastian. Finalmente
ele viera ao Brasil com
Carmen. Para Sebastian, valera a pena suportar todas as humilhações.
Carmen se recusara a
deixar testamento e, com a morte dela, ele ficaria com as casas de
Beverly Hills e Palm Springs,
os poços de petróleo (tudo isso adquirido por Carmen antes do casamento -
fora, portanto, da
comunhão de bens), as ações, os depósitos bancários e o dinheiro vivo. À
família e "ao Brasil",
Sebastian doou os vestidos, fantasias, turbantes, plataformas,
balangandãs, adereços de palco,
fotos, partituras, objetos pessoais e farta bijuteria de Carmen - tomando
o cuidado de conservar
as jóias verdadeiras, que estavam a salvo nos bancos. Enfim, conservou os
valores e livrou-se do
bricabraque. A família de Carmen nunca contestou tal divisão e ainda se
deu por feliz por
Sebastian não ter cumprido a ameaça de tentar apossar-se das propriedades
no Rio: a casa na
Urca, o terreno em Jacarepaguá e as salas na avenida Presidente Vargas (o
prédio de
apartamentos no Catete já não existia mais).

Mas o que para Sebastian era bricabraque, para os adoradores de Carmen
era um tesouro. Tão
generosa quanto Carmen, a família levaria as décadas seguintes
presenteando os fãs da estrela
com seus objetos pessoais. Com o que se conservou da artista foi feito o
Museu Carmen Miranda,
no Rio.

O carrilhão tocava agora "Boneca de piche", mas o cortejo já atingira o
Russell. Ao passar pelo
Hotel Glória, o motorista do carro dos bombeiros pisou mais fundo. O povo
correu para alcançá-
lo e muitos se empoleiraram nos estribos pedindo que não corresse. Os
bombeiros reduziram a
velocidade e uma parte do cortejo postou-se à frente do carro, para que
ele não voltasse a
acelerar. Um caminhão de som começou a tocar os discos de Carmen -
"Camisa listada", "Cai,
cai", "Querido Adão", "Primavera no Rio", "Na Baixa do Sapateiro",
"Moleque indigesto", "Uva
de caminhão", "Tic-Tac do meu coração",


550

"Minha embaixada chegou". "Na batucada da vida", "Good-bye", "... E
o mundo não se
acabou", "Recenseamento", "Mamãe, eu quero".

Cantou-se por todo o percurso: Praia do Flamengo, avenida Oswaldo Cruz,
Praia de Botafogo -
das janelas dos prédios altos caíam pétalas de rosa -," Mourisco, rua da
Passagem. Finalmente,
na rua General Polidora, viu-se ao longe o São João Batista. Entre a
massa que já aguardava no
cemitério, uma senhora grávida sentiu-se mal e foi levada para uma
ambulância - ali mesmo deu
à luz uma menina que tinha de se chamar, e se chamou, Carmen.

Como afluentes humanos que desaguavam pelas transversais de Botafogo,
gente de todas as
idades, cores e categorias sociais continuava engrossando o cortejo - ao
todo, seriam centenas
de milhares -, cantando os sambas e marchinhas. Nos braços do povo,
Carmen Miranda vivia o
seu maior Carnaval.

fim
Este livro foi scaneado e corrigido por Airton Simille Marques.
Para tal se utilizou do bloco de notas do windows e do leitor de telas Jaws.
Devem haver erros de diagramação, acentuação, e pontuação.
Para impressão em braille deve ser corrigido novamente.

Oferto este trabalho aos deficiêntes visuais na forma da lei brasileira dos direitos autoraiss de número 9610 artigo 46.

Espero que gostem!



Ayla : a filha das cavernas
/ Jean M. Auel

OBRAS DA AUTORA

AYLA - A FILHA DAS CAVERNAS
OS CAÇADORES DE MAMUTES
PLANÍCIE DE PASSAGEM
O VALE DOS CAVALOS
JeanM. Auei

Tradução de
MARIA THEREZA DE REZENDE COSTA
EDIÇÃO
1
REC ORO
EDITOR. RECORD
Título original norte-americano
THE CLAN OF THE CAVE BEAR
Copyright (c) 1980 by Jean M. Auel

30 371 513
BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

Direitos de publicação exclusivos em língua portuguesa no Brasil
adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 - 20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 585-2000
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 85-0l-02497-X
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Auel, Jean M.
A927a Ayla : a filha das cavernas / Jean M. Auel C cd. tradução de Maria Thereza de
Rezende Costa. - 4 cd. - Rio de Janeiro : Record, 1993.
Tradução de: The clan of the cave bear
ISBN 85-Ol-02497-X
1. Romance norte-americano. 1. Costa, Maria Thereza de Rezende. II. Título.
CDD - 813
93-1290 CDU - 820(73)-3

Para RAY
Meu pior crítico e melhor amigo
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

MILHAS
O KM 400

OS FILHOS DA TERRA
A EUROPA PRÉ-HISTÓRICA
DURANTE A ERA GLACIAL
Uma onda de calor faz retroceder as geleiras durante época plistocena. De 35 mil a 25 mil
anos antes de nossa era.

AGRADECIMENTOS
Nenhum livro editado é obra exclusiva do autor. A ajuda brota diferentemente de
várias fontes e algumas contribuições a este meu trabalho me foram fornecidas por pessoas
que jamais vi e é provável que nunca verei. NÃO obstante, sou grata aos habitantes da
cidade de Portland e do Condado de Multnomah, Oregon, que, com o dinheiro de seus
impostos, mantêm a Multnomah County Ubrary, a qual proporcionou o material de
referência para esta obra. Sem isto, o livro não teria sido escrito. Sou também grata a
arqueólogos, antropólogos e muitos outros especialistas no ramo que escreveram livros
onde colhi grande parte das informações para compor o cenário e o ambiente deste
romance.
Há, entretanto, aqueles que contribuíram com ajuda direta. Dentre estes, quero
especialmente agradecer a:
Ginão DeCamp, o primeiro a ouvir a idéia de minha história, o amigo nas horas de
necessidade, aquele que teve a paciência de ler um grosso original com entusiasmo e olhos
atentos às falhas. Foi quem idealizou o símbolo para esta série. John DeCamp, o amigo e
colega de letras que, conhecedor das agonias e êxtases do ofício, tinha o dom de me ligar
exatamente quando eu precisava falar com alguém por dentro também de tais agruras.
Karen Auei, que encorajou sua mãe de modo como jamais poderá imaginar, rindo e chorando quando era esperado que o fizesse, embora o livro estivesse apenas esboçado.
Cathy Humbie, a quem pedi o maior favor que se pode pedir a uma amiga: uma crítica
honesta, pois que muito valorizei o seu senso de medida das palavras. Ela fez o impossível,
uma crítica arguta e, ao mesmo tempo, simpática. Deanna Sterett, por se ter interessado
pela história e ser suficientemente entendida em caças para apontar alguns de meus
deslizes. Lana El mer que, com uma atençãob desmedida, passou horas a fio ouvindo minhas
dissertações e ainda assim conseguindo gostar da história. Mina Bacus, do na de um
discernimento inigualável, de quem recebi uma ajuda Inventiva nas dúvidas de transliteração
Nem todas as minhas pesquisas foram realizadas em bibliotecas. Eu e meu marido fizemos
diversas viagens para conhecer diretamente, no próprio terreno, como são certos aspectos da vida em contato íntimo com a natureza. Neste sentido,
os meus especiais agradecimentos a Frark Heyl, espe cialista em sobrevivência no Ártico,
junto ao Oregon Museun of Science and Industry, que me mostrou como fazer uma
cama em caverna de neve, esperando, em seguida, que eu dormisse nela! Sobrevivi àquela
fria noite de janeiro nas encostas do Monte Hood, aprendendo muitas coisas com o Sr.
Heyl, que é a pessoa que mais quero perto de mim durante a próxima Era Glacial.
Estou também em dívida com Andy Van't Hul por ter comigo compar tilhado de seus
excepcionais conhecimentos sobre a vida junto à natureza. Foi quem me mostrou como
produzir fogo sem fósforos, machados feitos de pedra, torceduras de cordas, cestos tecidos
com fibras e couro cru e a polir uma lasca de pedra até que ela chegasse a atravessar o
couro como se este fosse manteiga.
Meus agradecimentos ilimitados a Jean Naggar, uma agente literária tão competente que
conseguiu transformar a fantasia mais delirante em realidade e até ultrapassá-la. Também a
Carole Baron, editora arguta, fina e sensível, que, ao acreditar neste livro, incorporou todo
o meu trabalho, realizando-o ainda melhor.
Finalmente, as duas pessoas que não tinham a menor idéia de estar ajudando, mas cuja
assistência me foi de grande valor. Um deles, conheci pessoalmente, mas a primeira vez
que ouvi o escritor e professor Don James falar sobre literatura de ficção ele ainda não
sabia que se estava dirigindo especialmente a mim. Acreditava, então, falar para todo um
auditório. As palavras que pronunciou foram exatamente as que eu tinha necessidade de ouvir. Don James não poderia saber disso na ocasião, mas talvez eu jamais tivesse
terminado este livro se não fosse ele.
A outra pessoa, conheço-a só através de seu livro. Ralph S. Solecki, autor de Shanidar
(Alfred A. Knopf, Nova York). A história da escavação da Caverna de Shanidar e a
descoberta de vários esqueletos de Neandertal deixaram-me profundamente comovida. Foi
quem abriu para mim uma perspectiva do homem pré-históricos do homem da caverna, sem
o que eu não teria tido a boa compreensão do significado da humanidade. E, mais do que
simples agradecimentos, devo pedir desculpas ao Professor Solecki por ter, em nome de
minha ficção, tomado liberdades poéticas com os fatos levantados por ele. Na verdade, em
termos históricos, quem pela primeira vez botou flores num túmulo foi um neandertalense.

Capítulo 1

Já inteiramente despida, a menina correu para fora de uma cabana coberta com peles de
animal em direção à praia pedregosa na curvatura de um pequeno rio. Nem pensou em
olhar para trás. Nada em sua experiência anterior lhe dava motivos para duvidar de que a
cabana e as pessoas dentro dela não estariam naquele ponto quando voltasse.
A menina atirou-se na água e sentiu as pedras e a areia escorregadiça sob os pés, depois que
a margem terminou abruptamente. Mergulhou na água fria e voltou à tona com o rosto
esbaforido, para, em seguida, com braçadas firmes, alcançar a borda escarpada do lado
oposto. Aprendera a nadar antes que soubesse andar e, nos seus cinco anos, já se sentia
perfeitamente à vontade na água. A nado, era praticamente o único meio de se atravessar
um rio.
Por algum tempo, ficou de brincadeira, nadando de um lado para outro, até que se deixou ir
pela correnteza, flutuando rio abaixo. No lugar onde o rio se alargava, espumando sobre
rochas, levantou-se e foi em direção à margem. Andou, então, de volta à praia e se pôs a
catar seixos. Acabara de pôr uma pedra sobre uma pilha, feita só das mais bonitas, quando a
terra começou a tremer.
Surpresa, viu a pedra rolando sozinha e, espantada, parou olhando a pequena pirâmide de
seixos balançando e vindo depois abaixo. Só então percebeu que também ela estava
balançando; sentia-se, no entanto, mais confusa do que apreensiva. Olhou à volta, tentando
entender por que o universo com portava-se de forma tão inexplicável. Não se esperava que
a terra se mexesse.
O rio, antes fluindo mansamente, revolvia-se agora em ondas picadas que iam bater nas
barrancas, enquanto o leito rochoso, ao sabor das correntezas desencontradas, dragava a
lama do fundo para cima. O matagal rente aos barrancos, a jusante, tremia, animado por
movimentos invisíveis em suas raízes e as enormes pedras, a montante, balançavam-se
numa instabilidade inteiramente inusitada. Mais além, na floresta, as majestosas coníferas,
alagadas pelas torrentes, vergavam grotescamente. Um gigantesco pinheiro próximo à
margem, com as raízes expostas e o centro de apoio enfraquecido pelas cachoeiras,
dobrava-se na direção do outro lado do rio, até que com estrondo cedeu, para esborrachar-
se no solo e formar uma ponte vacilante sobre o rio turvo, num mundo onde nada era
seguro.
A menina tomou um susto com o som da árvore caindo. Seu estômago estreitou-se com um
nó apertado, e o medo começou a invadir-lhe o pensamento. Tentou erguer-se, mas voltou a
cair, desequilibrada com aquele tremor estonteante. Novamente tentou e deu um jeito para
pôr-se de pé, mas sem firmeza e temerosa de dar uma passada.
Enquanto se dirigia para a cabana coberta de peles, num sítio atrás do rio, sentiu um surdo
ribombar que cresceu num estrondo aterrorizador. Saía da fenda aberta no chão um fedor
azedo de coisa úmida e podre, como se a terra estivesse dando um imenso bocejo pela
manhã e soltasse fumos por sua respiração. A menina olhava sem compreender a lama, as
pedras e árvores, tudo caindo por aquela garganta escancarada, enquanto a carcaça do
planeta derretido se rachava em convulsões.
A cabana, pendurada na extrema beirada do abismo, oscilava enquanto a terra que ainda
restava sob ela ia sendo arrastada. Sua frágil cumeeira balançava relutante; por fim, tudo
ruiu e a cabana desapareceu no enorme buraco, carregando consigo a cobertura de couro e
tudo o mais que abrigava. Com horror, a menina tremia de olhos arregalados, vendo aquele
enorme bucho escancarar-se com seu mau hálito para engolir todas as coisas que tinham
dado sentido e segurança aos cinco curtos anos de sua vida.
- Mam Mamãeee! - gritou, quando pôde ter algum entendimento. Não sabia se o grito
ecoando nos seus ouvidos era dela mesmo, em meio ao rugir trovejante de rochedos se
esfacelando. Ajudando com as mãos foi subindo em direção à enorme garganta, mas a terra
se levantava e a atirava ao chão. Agarrou-se, então, ao terreno, tentando encontrar, naquele
mundo trê mulo e arfante, algo seguro em que pudesse apoiar-se.
Nisso, a garganta fechou-se, o rugir cessou e a terra aquietou-se, mas não a menina.
Deitada, com o rosto colado ao chão úmido e solto, revolvido pelo cataclismo que
convulsionara a Terra, ela estremeceu de medo. Tinha razão para isso.
Encontrava-se só na imensidão de estepes verdejantes e florestas dispersas. As geleiras ao
norte haviam feito uma ponte sobre o continente, levando seu frio para lá. Um número
indizível de animais, alguns inofensivos, outros, carnívoros e ferozes, rondavam as vastas
pradarias. Gente mesmo era muito pouca. Ela Não tinha aonde ir e ninguém viria para
cuidar dela. Estava só.
O solo tremeu de novo, assentando-se, e a menina ouviu um rumor saí do das profundezas
da terra, como se esta estivesse digerindo o alimento tragado de uma só bocada. Ela, em
pânico, deu um salto aterrorizada, achando que o chão fosse rachar novamente. Olhou,
então, para o lugar onde a cabana estivera. Terra bruta e arbustos com raízes levantadas era
o que restava ali. Aos prantos, voltou para o rio, lá ficando perto da água barrenta,
encolhida num soluçar sem fim.
Mas os barrancos tímidos do rio não ofereciam segurança contra a turbulência daquele
planeta. Veio outro abalo mais sério que o anterior, fazendo a terra outra vez tremer. Uma
pancada de água fria sobre seu corpo nu fê-la estremecer, O pânico voltou e ela deu um
pulo sobre os pés. Tinha de fugir daquele lugar monstruoso, de uma terra oscilante e
famélica, mas aonde ir?
Na praia pedregosa do rio não cresciam plantas, era completamente desprovida de verde,
mas os barrancos rio acima estavam cheios de arbustos com folhinhas recém-nascidas.
Qualquer coisa dentro dela lhe dizia para ficar perto da água, só que aquele mato
emaranhado mostrava-se impenetrável. Com os olhos úmidos e a visão turva, olhou para a
floresta de pinheiros.
Ténues raios de luz filtravam-se pelas ramagens entrelaçadas que formavam um bosque de
pinheiros próximo ao rio. A sombria floresta estava praticamente nua de plantas rasteiras e
com muitas árvores tombadas. Umas caídas por terra e outras, curvando-se em ângulos
desajeitados, escoravam- se nas vizinhas que continuaram firmemente plantadas. Além da
massa de pinheiros, a floresta boreal mostrava-se escura e tão pouco convidativa quanto as
galhadas dos barrancos a jusante. A menina não sabia que rumo tomar, ficando a olhar para
um e outro lado, sem poder decidir-se.
Um tremor sob os pés enquanto olhava na direção rio abaixo fez com que se arrancasse do
lugar. Depois de um último olhar saudoso, na vã esperança de que qualquer coisa da cabana
ainda estivesse por lá, a menina correu para dentro da mata.
Premida pelos roncos da terra que ainda continuava assentando-se, a menina seguiu o curso
dágua, parando apenas para beber, em sua pressa de se ver bem longe dali. Os pinheiros
que haviam sucumbido no terremoto jaziam no chão e a garota tinha de ladear as crateras
deixadas pelo emaranhado das raízes, ainda com terra úmida e pedras coladas em suas
partes internas.
Ao entardecer, começou a ver menos sinais de turbulência. As árvores com raízes
levantadas já não eram tantas, começavam a rarear os deslocamentos de pedras e a água
clareava. Parou quando já não dava mais para ver o caminho que havia percorrido,
deixando-se cair exausta no chão da floresta. Enquanto estivera movimentando-se, o
exercício a manteve aquecida, mas agora, enterrada dentro de um grosso tapete de folhas de
pinheiro, enroscada como uma bolinha e atirando punhados de folhas sobre o corpo, tremia
com o ar gelado da noite.
Mesmo cansada como estava, o sono não chegou fácil. Enquanto esteve ocupada nas
imediações do rio, saltando os obstáculos pelo caminho, havia conseguido afastar o medo
do pensamento. Mas o pavor agora tomara conta. ela. Ficou deitada, inteiramente imóvel, de
olhos bem abertos, vigiando a escuridão aumentar, até que tudo ficou escuro em derredor.
Até então, nunca havia ficado sozinha de noite e, ainda assim, sempre com um fogo por
perto, mantendo a distância as trevas do desconhecido. Por fim, não conseguiu conter-se
mais. Com um soluçar convulso, chorava sua angústia, botando-a para fora. Todo seu corpo
se sacudia com o choro e os soluços, mas ela foi ficando mais aliviada e acabou caindo no
sono. Um pequeno animal noturno veio cheirá-la, mas só por simples curiosidade.
Ela acordou gritando!
O planeta continuava ainda desassossegado e um rumor distante, saído das profundezas,
trouxe de volta todo o horror na forma de pavoroso pesadelo. A menina deu um salto,
querendo correr, mas os olhos abertos não enxergavam melhor do que com as pálpebras
fechadas. A princípio, não conseguia lembrar-se do lugar onde se achava, O coração batia
com toda força. Por que não podia ver? Onde estavam os braços amorosos que sempre
estiveram perto dela consolando-a, quando acordava de noite? Aos poucos, sua consciência
foi voltando e, tremendo de frio e medo, tornou a enroscar-se, enterrando-se debaixo do
tapete de folhas. Os primeiros raios do amanhecer ainda a encontraram dormindo.
Vagarosamente, a luz do dia foi penetrando no interior da floresta. Quando acordou, a
manhã já ia alta, mas, naquele denso sombreado, era difícil dizer. No dia anterior, quando
começara a escurecer, ela se afastara do rio e agora, ao ver apenas árvores a seu redor, o
pânico ameaçou voltar.
A sede fez com que prestasse atenção a um rumor de água nas proximidades. Passou então
a seguir o barulho e com grande alívio deu de novo com o pequeno rio. Estava tão perdida
ali como na floresta, mas o riozinho fazia com que se sentisse melhor, era qualquer coisa
que lhe dava um sentido de direção e sempre poderia matar a sede, se permanecesse junto
dele. Só que, na véspera, ele pôde dar-lhe alguma alegria, mas agora pouca coisa podia
fazer por sua fome.
Não ignorava que se comiam folhas e raízes, mas não tinha noção de quais eram
comestíveis. A primeira folha que provou era de gosto amargo e lhe deixou a boca ardendo.
Cuspiu e lavou a boca, ficando hesitante em fazer novas experiências. Depois de beber mais
água para sentir-se temporariamente cheia, retomou a caminhada descendo o rio. A escura
floresta agora a amedrontava e ela tratou de ficar sempre perto do riacho, onde o sol era
brlhante. Quando a noite caiu, cavou um lugar fora do terreno do pinheiral e ali se enroscou
como na véspera.
Sua segunda noite sozinha não foi melhor do que a primeira. Tinha fome e sentia na boca
do estômago um medo paralisante. Jamais tivera tanto pavor, tanta fome e se sentido tão só.
O sentimento de perda era tão doloroso que bloqueou na memória tudo que se referia ao
terremoto e à sua vida anterior. Quanto ao futuro, o seu pensamento lhe dava pânico e ela
se esforçava para não pensar nele. Não queria pensar no que lhe poderia acontecer ou quem
iria tomar conta dela.
Vivia exclusivamente o momento, tratando apenas de vencer o obstáculo seguinte, de
cruzar algum afluente do rio ou escalar um lenho atravessado no caminho. Seguir o
riozinho tornou-se um fim em si mesmo, não por que isso a fosse levar a alguma parte, mas
porque era a única coisa que lhe dava uma direção, um propósito, uma linha de conduta.
Era melhor do que não fazer nada.
Depois de algum tempo, o vazio no estômago tornou-se uma espécie de dor anestesiada que
lhe amortecia o pensamento. De vez em quando chorava, enquanto prosseguia,
penosamente, o caminho com as lágrimas escorrendo e fazendo riscas brancas no rosto
encardido. Seu corpinho nu estava em pastado de lama e os cabelos, outrora quase brancos,
lindos, macios como seda, achavam-se emplastrados na cabeça, formando um emaranhado
de folhas de pinho e barro.
A caminhada ficou mais difícil quando a floresta verdejante foi-se transformando numa
vegetação menos densa, desaparecendo do chão as folhas caídas dos pinheiros e sua
passagem obstruída por matos e gramúleas altas, o característico revestimento de terrenos
com árvores de folhas pequenas e efêmeras. Quando chovia, ela se enroscava em algum
tronco caído, ou debaixo de alguma pedra grande ou aforamento de rocha, ou então,
simplesmente, continuava caminhando pela lama, deixando a chuva cair sobre ela. À noite,
amontoava folhas velhas e secas, sobras de outras estações, e se metia dentro desse monte
para dormir.
O enorme suprimento de água impediu a desidratação que provoca a hipotermia, isto é, o
abaixamento da temperatura do corpo que pode levar à morte devido à longa exposição ao
frio. Mas a menina estava cada vez mais fraca. Havia ultrapassado a sensação da fome,
apenas acompanhava-a uma dor enjoada e constante e, de vez em quando, o sentimento de
vertigem. Tentava não pensar nisso ou em qualquer outra coisa, a não ser no rio,
simplesmente seguir o rio, nada mais do que isso.
Com o sol penetrando em seu ninho de folhas secas, acordou. Levantou-se do aconchego de
seu buraco e, ainda com folhas úmidas coladas ao corpo, foi ao riacho tomar seu gole
matinal. O céu azul e a luz do sol foram acolhidos com prazer após o dia chuvoso da
véspera. Pouco depois, ela se botou a caminho. A margem de seu lado gradualmente
tormou-se mais alta. Foi, então, que resolveu parar para tomar outro gole. Uma descida
íngreme separava-a da água. Começou a descer com cuidado, mas perdeu o equilíbrio e
rolou pela ribanceira, até atingir o pé do barranco.
Ali, ficou deitada, ferida, cheia de arranhões, enroscada no lamaçal perto do riacho,
cansada, fraca, desgraçada demais para poder mover-se. Grossas lágrimas brotavam dos
olhos, escorrendo-lhe pela face, enquanto sentidos lamentos cortavam o ar. Ninguém ouvia,
O choro foi-se tornando uma lamúria, pedindo alguém para socorrê-la. Ninguém veio. Os
ombros arquejavam com os soluços de seu pranto desesperado. Não tinha vontade de
levantar-se, nem de prosseguir, mas que outra coisa poderia fazer? Ficar simplesmente
chorando ali, no meio da lama?
Quando parou de chorar, foi deitar-se na beirada da água. Deu-se, então, conta de que tinha
a boca com gosto de lama e que uma raíz a espetava, incomodando-a. Isso a fez sentar-se.
Exausta, levantou-se e foi até o riacho beber água. Outra vez, retomou a caminhada,
obstinadamente, afastando os galhos do caminho, passando por cima dos troncos musgosos,
ora entrando ora saindo da margem enlameada do rio.
As águas, que já estavam altas com as primeiras enchentes da primavera, haviam dobrado o
volume dos afluentes. Bem antes de avistar a cachoeira que despencava na confluência de
um outro rio, duas vezes mais volumoso, a menina já tinha ouvido seu rumorejar. Passando
a cachoeira, as correntes dos rios se combinavam num curso de água que, depois de
espuma' sobre algumas rochas, seguia por estepes e planícies verdejantes.
As águas estrondorosas da cachoeira se precipitavam por cima dos bor dos da ribanceira,
formando um largo lençol de águas brancas que caíam num lago espumoso, cavado no chão
rochoso, criando uma nuvem de vapores e de redemoinhos feitos pelas contracorrentes no
lugar da junção dos rios. Em algum tempo, num passado distante, o rio escavara mais
profunda mente o rochedo por trás da catarata. A plataforma saliente, por onde a água se
despencava, avançava do paredão, atrás da cachoeira, formando ali uma passagem.
A menina circundou a entrada e, depois de olhar com atenção para dentro do túnel
enevoado, pôs-se a caminhar por detrás daquela cortina movediça de água. Agarrava-se nas
rochas úmidas, para poder firmar-se, mas o jorrar ininterrupto e constante das águas a
deixava tonta. O barulho era ensurdecedor, ecoando no paredão rochoso por trás do tumulto
da torrente. Olhou para o alto, cheia de medo, percebendo, aflita, que o rio estava sobre as
rochas gotejantes por cima de sua cabeça, e começou a avançar vagarosamente de rastros.
Estava quase do outro lado, quando a passagem foi gradualmente se estreitando até tornar-
se de novo o alto pared O corte sob a rocha tinha um fim e ela foi obrigada a fazer a volta e
retornar a seu caminho. Ao alcançar o ponto de partida, olhando para a torrente estrepitosa,
abanou a cabeça. Não, não tinha jeito.
Ao entrar no rio, a água estava fria e as correntezas muito fortes. Nadou até o meio e deixou
que as correntes a arrastassem ao redor da cachoeira,
quando fez uma virada na direção da margem do rio, que se alargava mais à frente. O
exercício de natação deixou-a cansada, mas estava agora mais limpa, embora com os
cabelos ainda formando uma moita embaraçada. Retomou a caminhada, sentindo-se
refrescada, mas não por muito tempo.
Devido a primavera tardia, fazia um calor inusitado para aquela época do ano. O sol estava
bom e agradável, e as árvores e arbustos começavam a espaçar-se, substituidos por campos
abertos. À medida, no entanto, que a bola de fogo alteava no céu, seus raios iam
consumindo as parcas reservas da criança. Por volta da tarde, ela cambaleava numa estreita
faixa de areia entre o rio e um penhasco escarpado. A água cintilava, refletindo nela o
brilho do sol, enquanto os arenitos quase brancos esparziam luz e calor, contribuindo para a
intensa luminosidade.
Do outro lado do rio e à frente, pequeninas flores - brancas, vermelhas e amarelas -
misturadas ao verde-claro de uma vegetação baixa, recém-brotada estendiam-se até o
horizonte. - A menina, porém, não tinha olhos para a beleza efêmera da primavera nas
estepes. Fraca e faminta, ela delirava, começando a ter alucinações.
- Eu disse que vou ter cuidado, mamãe. Vou nadar só por perto, mas para onde você vai?
- murmurou. - Mãe, quando vamos comer? Estou com fome e calor. Por que você não
veio quando chamei? Chamei, chamei e você não apareceu. Onde tem andado, mãe? Mama
Não vai embora outra vez! Fique aqui! Mãe, me espere. Não me deixe!
Ela corria na direção da miragem, enquanto a visão desaparecia, seguindo pela base do
penhasco que num certo ponto começava a afastar-se da margem, tomando direção
diferente a do rio. Abandonava, assim, sua fonte abastecedora. Correndo às cegas, bateu
com o dedão do pé numa pedra e caiu em cheio no chão. Isso veio sacudi-la e botá-la na
realidade ou, pelo menos, quase. Sentou-se extenuada, esfregando o dedo, tentando
desesperadamente ordenar os pensamentos.
O penhasco era naquela parte um paredão irregular, riscado de fendas e gretas, com
cavidades escuras formando cavernas. A expansão e a contração de temperaturas extremas -
desde um calor causticante a um frio intenso, abaixo de zero - fragmentaram a rocha
pouco consistente. A menina olhou para dentro de uma pequena cavidade à altura quase do
chão mas a minúscula caverna não lhe fez grande impressão
Bem mais impressionante era a manada de auroques pastando pacificamente na relva
fresca e viçosa entre o rochedo e o rio. Em sua correria cega atrás da miragem deixara de
ver os enormes e ferozes animais de cor marrom-avermelhada, com dois metros de altura e
chifres arqueados. Quando os enxergou, o susto botou um pouco de luz na confusão de seu
cérebro. A menina recuou para mais perto do paredão de rocha, com os olhos fixos no corpanzil de um daqueles enormes touros que havia parado de pastar para ficar vigiando-a. Ela
deu a volta e começou a correr.
Ao olhar para trás, por cima do ombro, suspendeu a respiração ao perceber de relance e
confusamente uma cena que a fez parar em sua corrida. Uma imensa leoa, duas vezes maior
do que qualquer felino dos que em épocas muito posteriores iriam habitar as savanas mais
ao sul, estava à espreita da manada. A menina sufocou um grito, quando o monstruoso
animal deu um salto sobre uma daquelas gigantescas vacas.
Numa confusão de garras, presas e rosnados selvagens, a leoa levou a massa do auroque ao
chão e, com uma dentada poderosíssima, rasgando-lhe a garganta, deixou interrompido no
ar o berro lancinante do animal O sangue esguichado manchava o focinho da leoa,
respingando de vermelho sua pele fulva. As pernas do auroque continuaram pulando
espasmodicamente, mesmo depois que a leoa lhe rompeu o estômago e tirou um naco
quente de carne vermelha e quente.
A menina se viu tomada de total terror e correu em pânico, vigiada de perto por outro
daqueles felinos. Havia cometido o pecado de entrar no ter-ritório dos leões da caverna.
Normalmente, esses animais teriam desdenhado uma presa tão pequena, do porte de uma
criança de cinco anos, preferindo robustos auroques, enormes bisões ou veados de tamanho
avantajado. Mas ela em sua fuga se aproximara demasiadamente de uma caverna onde viviam dois leõezinhos recém-nascidos.
Deixado na guarda da prole enquanto a leoa caçava, o macho com sua formidável juba
rugiu avisando. A menina, ao virar a cabeça para cima, horrorizada, deu com o gigantesco
gato agachado sobre a saliência de uma pedra, pronto para saltar. Ela deu um grito e
escorregou, ferindo a perna no cascalho solto, junto ao rochedo. Levantou-se, e instigada
por um medo ainda maior, correu de volta pelo mesmo caminho que a levara até ali.
O leão saltou, indolente, confiante no seu poder de agarrar o pequenino intruso que ousara
violar o sacrossanto reduto de seus filhotes. Não tinha pressa. A menina ia devagar em
comparação com suas lentas passadas. O leão parecia brincar de gato e rato.
No pânico, somente o instinto levou-a de volta à pequena cavidade que ficava à altura do
chão, vista pouco antes. Com os quadris doendo, arquejante, sem poder respirar, deslizou
pela abertura que mal deu para passar. Era uma gruta minúscula, rasa, pouco mais do que
uma fenda na rocha. Naquele pequenino espaço, foi retorcendo-se até conseguir ficar de
joelhos com as costas voltadas para a parede, querendo fundir-se com as pedras atrás dela.
O leão rugiu toda sua frustração ao chegar à frente do buraco e ver sua caça perdida. A
menina tremia ao som dos bramidos, hipnotizada de
terror com as patas, de garras curvas e afiadas, querendo esticar-se para dentro do
buraco. Sem poder mexer-se, ela soltou um berro de dor quando viu a garra pegar-lhe a
coxa, fazendo quatro profundos talhos paralelos.
Contorcendo-se para ficar fora do alcance do leão, encontrou uma pequena depressã'o no
lado esquerdo da parede. Ali, botou as pernas, compri mindo-se tanto quanto podia e
prendendo a respiração. A pata vagarosamente tornou a passar pela abertura, quase tapando
toda a luz que chegava ao pequeno nicho, mas desta vez nada encontrou, O leão ficou
rugindo, andando de lá para cá, na frente do buraco.
A menina permaneceu no abrigo o resto daquele dia, toda a noite e ainda a maior parte do
dia seguinte. A perna inchou com uma ferida Supurada. A dor era constante e o exíguo
espaço de paredes ásperas impossibilitava que ela se virasse ou se espichasse. Passou a
maior parte do tempo num medo atroz, delirando de fome e dor, e com pesadelos povoados
de terremotos e garras afiadas. NÃO foi a ferida ou a fome e nem mesmo a dolorida
queimadura de sol que a fez sair de seu refúgio, mas sim a sede.
Cheia de medo, olhou para fora da fenda. Grupos espaçados de salgueiros e pinheiros
projetavam enormes sombras de princípio de entardecer. A menina ficou por muito tempo
olhando para a extensão de terra coberta de relva e para a água cintilando mais além, antes
de conseguir coragem suficiente para sair. Lambia os lábios gretados com a língua
ressequida, enquanto examinava o terreno. Apenas a relva batida pelo vento se movia. O
leão tinha ido embora. A leoa, preocupada com seus filhotes e inquieta com o cheiro de
uma criatura estranha tão perto de sua toca, resolveu procurar outro abrigo.
De gatinhas, a menina foi saindo do buraco e depois se levantou. Sua cabeça latejava e
manchas ficavam dançando confusamente diante dos olhos. Cada passo era acompanhado
de dores terríveis, e das feridas escorria um repugnante líquido verde-amarelado.
NÃO tinha certeza se conseguiria chegar até a água, mas a sede era irresistível. Caiu sobre
os joelhos e percorreu de rastos a distância que faltava. Deitada de bruços, com o estômago
colado à terra, bebeu sofregamente goles e goles de água fria. Quando, por fim, a sede
ficou saciada, tentou botar-se de pé outra vez, mas havia chegado ao limite de sua
resistência. Com manchas passando diante dos olhos, a cabeça rodando e tudo ficando
escuro à volta, ela tombou por terra.
Voando devagar ao redor, um corvo espiava aquela forma imóvel. Baixou o vôo, querendo
sentir mais de perto a presa.

capítulo 2

O grupo de viajantes cruzou o rio, pouco mais adiante da cachoeira, no ponto onde as águas
alargavam e espumavam sobre rochas despontando do leito pouco profundo. Eram em
número de 20, contando com jovens e velhos. Antes de o terremoto lhes haver destruído a
caverna, o clã fora composto de 26 pessoas. Dois homens iam à frente guiando o caminho,
não muito distante das mulheres e crianças, flanqueadas por alguns homens mais idosos.
Os jovens seguiam atrás.
Vinham seguindo pela margem do rio de maior largura, desde o ponto onde o curso
começava a entrelaçar-se com outros afluentes e a serpentear pelas terras planas das
estepes. Eles estavam sempre com os olhos nas aves de rapina. Animais necrófagos voando
normalmente significavam que ainda havia vida naquilo que lhes despertava atenção. Um
bicho já ferido era presa fácil para caçadores, contanto que predadores de quatro patas
também Não tivessem a mesma idéia.
Uma mulher, a meio caminho de sua gravidez, caminhava à frente do seu grupo. Viu
quando os dois homens da dianteira olharam para o chão e continuaram em frente. Deve
ser algum comedor de carne, pensou. O clã dificilmente comia animais carnívoros.
Tinha menos de metro e meio de altura, era troncuda, de constituição óssea avantajada,
pernas arqueadas e musculosas, mas caminhava ereta sobre os pés chatos e descalços. Os
braços pareciam compridos em proporção ao corpo e, tal como as pernas, eram arqueados.
Tinha largo nariz adunco e mandíbulas prognatas que se projetavam no rosto como um
focinho. O queixo não existia. A testa baixa escorria para trás, formando uma cabeça longa
e larga, assentada sobre o pescoço curto e grosso. Na parte de trás da cabeça havia uma
protuberância óssea como um coque occipital que lhe acentuava a largura.
As pernas e ombros eram cobertos por um manto macio de pêlos castanhos e curtos que
descia ao longo da espinha na parte alta das costas. O mesmo pêio engrossava na cabeça,
formando quase uma mata de cabelos longos e pesados. Sua palidez de inverno já havia
quase desaparecido. Os olhos marrons-escuros - grandes, redondos, inteligentes -
estavam profundamente assentados sob as saliências das sobrancelhas escorridas e, naquele instante, cheios de
curiosidade, quando ela apressou o passo para ver o que os homens tinham visto sem se
deter em sua marcha.
Já era velha para ter o primeiro filho. Estava com quase 20 anos e até que a vida despertada
dentro dela não começasse a aparecer, o clã havia pensado que fosse estéril. No entanto, o
peso que carregava não tinha sido aliviado pelo fato de estar grávida. Levava um grande
cesto preso às costas, onde havia trouxas amarradas: atrás, debaixo e empilhadas. Diversos
sacos atados com correias penduravam-se de uma pele, embrulhando o couro maleável que
vestia, de maneira a produzir dobras e bolsas para carregar coisas. Uma das sacolas era
particularmente distinta, por ser feita com o couro inteiro de uma lontra, inclusive com o
rabo, pés e a cabeça do animal deixados intatos.
Em vez de a pele do bicho ter sido rasgada na barriga, apenas sua garganta fora cortada de
modo a fazer uma abertura para que fossem retirados os ossos, entranhas e carnes, deixando
o couro parecendo com uma bolsa. A cabeça, atada por uma tira no lombo do animal,
servia como tampa, e uma fibra tingida de vermelho, enfiada através de buracos perfurados
ao redor da aber tura do pescoço e puxada firmemente, prendia a sacola à cintura da
mulher.
Quando ela botou os olhos pela primeira vez na menina, os homens haviam ficado atrás.
Estava espantadíssima com aquilo, que lhe pareceu ser um bicho sem pêlos. Ao aproximar-
se mais, porém, prendeu a respiração, e em seguida se afastou, agarrando o saquinho de
couro pendurado no pescoço. Um gesto instintivo para defender-se dos maus espíritos. Suas
unhas cravaram-se no couro, fincando os pequenos objetos dentro do amuleto, enquanto
invocava proteção. Curvou-se, então, para olhar mais de perto, hesitando avançar, sem poder
acreditar muito no que pensava estar vendo.
Seus olhos não a haviam enganado. Não era nenhum bicho que estava atraindo a atenção
dos pássaros, mas uma criança. Uma criança descamada e estranhíssima.
A mulher olhou ao redor, imaginando que outros enigmas ainda poderiam existir por ali.
Enquanto andava à roda da menina desmaiada, ouviu um gemido. Então, esquecendo-se de
seus medos, parou, ajoelhou-se e sacudiu com brandura a criança. Ao virar o corpo para
cima, a curandeira viu a inchação na perna e as marcas de garras, fazendo uma ferida
purulenta. Imediatamente, desatou o cordão que prendia a sacola de lontra à sua cinta.
Um dos homens que ia no comando olhou para trás e viu a mulher de joelhos junto da
criança. Ele voltou.
- Iza! Vamos! - ordenou. - Rastros de leões. Ande, vá em frente!
- É uma criança, Brun. Está só ferida. Ainda não morreu.
Brun olhou para a menina. Esta tinha um rosto esquisitamente achatado, de fronte alta e
nariz pequeno.
- Não é dos clãs - disse por meio de gestos rápidos, logo se virando para retomar o
caminho.
- Brun, é uma criança. Está ferida. Vai morrer, se ficar aqui - falou Iza com olhos
suplicantes, enquanto fazia sinais com as mãos.
O chefe do reduzido bando olhou para a mulher que implorava. Ele era maior do que ela,
bastante musculoso, forte, com largo tórax cilíndrico e per nas grossas arqueadas. Seus
traços eram semelhantes aos da mulher, embora mais pronunciados; as saliéncias supra-
orbitais mais marcadas e o nariz mais alargado. As pernas, estômago, peito e a parte
superior das costas cobriam-se de um pêlo duro, marrom, Não chegando a ser propriamente
a pele de um animal felpudo, mas Não estava muito longe disso. Uma barba cerrada
escondia- lhe as mandíbulas protuberantes e a falta de queixo. A vestimenta também era
parecida com a da mulher, apenas mais simplificada. Estava cortada mais curta e amarrada
de modo diferente, tendo somente algumas dobras e bolsas para guardar coisas.
Brun Não carregava nenhum peso, apenas suas armas e uma manta de pele jogada nas
costas, presa por uma tira larga de couro que passava em volta de sua testa ovalada. Em
sua coxa direita havia uma cicatriz escura como uma tatuagem, desenhada grosseiramente
na forma de um U com as pontas abertas para os lados. Era a marca de seu totem, o bisão.
Mas ele próprio Não precisava de marcas ou símbolos para mostrar sua condição de chefe.
Seu comportamento e a deferência com que era tratado já deixavam patentes sua posição
dentro do clã
Tirou do ombro sua maça, feita do osso da perna dianteira de um cavalo e a colocou no
chão, com o cabo apoiado na coxa. Iza sabia que seu pedido estava sendo seriamente
considerado. Esperava quieta, escondendo a ansiedade, para dar-lhe tempo de pensar. Em
seguida, ele pousou a pesada lança de madeira, inclinando-a no ombro com a ponta afiada
virada para cima e ajeitou as boleadeiras que trazia penduradas no pescoço junto com o
amuleto, de modo a equilibrar as três bolas da arma. Por fim, tirou do couro da cintura a funda, uma tira flexível feita de pele de veado, com um bojo no meio para segurar as
pedras e estreitada nas pontas. Ficou alisando o couro, sentindo-lhe a maciez e pensando.
Brun Não gostava de tomar decisões apressadas sobre qualquer coisa fora do usual que
pudesse afetar a vida do clã, sobretudo agora, quando estavam sem moradia. Mas resistia
ao impulso de simplesmente dizer Não. Eu de via saber que Iza iria querer ajudar a menina.
Até com animais ela costuma usar suas mágicas de curar, principalmente se são bichinhos
novos. Vai ficar contrariada se eu Não deixar que ajude a menina. Seja dos clãs ou dos
outros, pouco importa. Tudo que ela está vendo é uma criança ferida. Bem, pode ser isto
que faz dela uma boa curandeira.
Mas curandeira ou Não, ela é só uma mulher. Que importância tem se ficar zangada? Isso,
ela melhor do que ninguém sabe mostrar. Mas nós já temos muitos problemas sem um
estranho ferido. Só que o totem da menina vai saber, bem como todos os espíritos. Será
que, se Iza ficar contrariada, eles ainda vão mostrar-se com mais raiva? Se encontrarmos
uma caverna. . . Não, quando acharmos uma caverna Iza vai ter de fazer a bebida para a
cerimônia. E se ela estiver zangada, é bem possível que cometa um erro, Não é verdade? Os
espíritos com raiva podem fazer com que tudo saia errado e, com raiva, eles já estão
bastante. Nada deve sair errado na cerimônia da nova caverna.
Bom, que ela leve a criança, continuou dizendo para si. Logo estará cansada de carregar
um peso a mais; além disso, a menina está tão mal que nem mesmo a mágica do meu
germano tem força para curá-la. Brun enfiou outra vez a funda em seu cinto, pegou as
armas e encolheu os ombros. O negócio era com ela, podia ou não levar a criança se o
desejasse. Ele deu as costas e começou a caminhar.
De dentro da cesta, Iza tirou uma capa de couro com a qual embrulhou a criança
desacordada. Depois, suspendeu-a, prendendo a garota a seu quadril com ajuda de uma correia flexível, surpresa do pouco peso da menina em relação à altura. Ao ser suspensa,
ela soltou um gemido e Iza fez-lhe uma festinha, tranqüilizando-a. Em seguida, foi colocarse atrás dos dois homens.
As outras mulheres haviam parado, mantendo distância da conversa entre Iza e Brun.
Quando viram a curandeira pegar qualquer coisa do chão para levar, suas mãos se puseram
a gesticular com movimentos rápidos, intercalados de sons guturais. Elas discutiam
agitadas, cheias de curiosidade. Fora a sacola de pele de lontra, estavam vestidas da mesma
forma que Iza e, igualmente, carregando enormes pesos. Levavam tudo quanto o clã
possuía neste mundo, aquilo que pôde ser salvo dos destroços ocasionados pelo terremoto.
Duas das sete mulheres levavam seus bebês junto do corpo, numa dobra da vestimenta que
lhes permitia comodamente amamentá-los. Enquanto estavam à espera de Iza e Brun, uma
delas sentiu cair-lhe um pingo quente. Ime diatamente, sacou o bebê de dentro da dobra da
roupa e ficou segurando-o à sua frente, até que ele acabasse de urinar. Quando Não estavam
viajando, os bebês quase sempre eram envolvidos em macios cueiros de pele. Para absorver
urina e fezes, havia diversos tipos de material como a la de carneiros selvagens que ficava
agarrada nos espinhos das plantas à época da muda, a plumagem dos ninhos de pássaros, a
felpa de plantas fibrosas, e muitas outras coisas. Mas, em viagem, era mais fácil e simples
levar os bebês nus e deixar que fizessem suas necessidades no chão.
Quando começaram a caminhar outra vez, uma terceira mulher apanhou um garoto e o
apoiou em seu quadril, metendo-o dentro de uma sacola de couro. Alguns momentos
depois, ele estava esperneando, querendo descer e
correr por sua própria conta. Ela deixou-o sair, sabendo que voltaria quando estivesse
cansado. Logo depois da mulher que seguia iza, ia uma menina mais velha, ainda não adulta,
o que não impedia, no entanto, de estar levando uma carga tão pesada quanto as outras. De
vez em quando, a garota atirava um olhar para trás na direção de um rapaz, já quase homem
feito, caminhando logo depois do grupo das mulheres. Ele tentava manter distância de
modo a parecer que fosse um dos três caçadores guardando a retaguarda e não como se
fizesse parte do grupo de crianças. Sua vontade era a de estar levando caças, tal como um
dos velhos que flanqueava as mulheres e que carregava uma enor me lebre sobre o ombro,
morta por uma pedra de sua funda.
Mas nem só de caça vivia o clã. As mulheres quase sempre eram quem contribuíam com a
maior parte e a fonte de abastecimento delas era bem mais confiável. Mesmo com toda a
carga que levavam, ainda tinham tempo durante a viagem de apanhar alimentos, e com
tanta eficiência que, dificilmente, atrasavam a marcha. Uma área de hemerocales
rapidamente ficava nua de seus botões e flores. Raízes tenras e suculentas eram retiradas
da terra com alguns poucos golpes de seus pauzinhos de escavar, enquanto aquelas como as
de tábua eram mais fáceis ainda de ser apanhadas por estar soltas nas superfícies dos
terrenos alagadiços ou pantanosos.
Se não estivessem em viagem, as mulheres teriam a obrigação de guardar na lembrança o
local onde se achavam certas plantas taludas, para voltar mais tarde no decorrer da estação
e colher suas pontas macias, e que eram consumidas como legumes. Numa fase posterior, a
mistura de pólenão amarelo com a farinha feita das fibras de velhas raízes serviria para o
preparo de bolinhos fofos e sem fermento. Ao secarem os talos, colhiam-se as fibras e
muitas das cestas eram feitas de resistentes talos e folhas de plantas. No momento, elas
colhiam só o que encontravam, mas pouca coisa lhes passava despercebida.
Folhas frescas e tenras de trevo, brotos de alfafa e de dente-leão cardos ainda com suas
folhas espinhosas, alguns frutos prematuros e amoras silvestres, nada escapava das mãos
ágeis e destras das mulheres. Seus pauzinhos de escavar não paravam. Já conheciam o uso
da alavanca e estavam sempre revirando troncos de madeira à procura da salamandras e
rechonchudos lagartos. Também moluscos eram pescados dos rios e postos na praia para
ficar ao alcance delas, e toda uma variedade de bulbos tubérculos e raízes eram apanhados
do chão.
Tudo encontrava lugar certo nas dobras das vestimentas ou em algum canto vazio dos
cestos. As folhas grandes serviam para fazer embrulhos, e algumas, como as de bardana,
eram cozidas como legumes. Madeira seca, galhos, certos tipos de gramíneas e esterco de
animais no pasto também eram recolhidos. Embora mais tarde, durante o verão, a colheita
fosse mais variada, a comida era farta, sabendo-se onde procurá-la.
Depois de se porem novamente a caminho, Iza levantou os olhos ao pressentir que um dos
velhos, um homem já passado dos 30, vinha em sua direção Ele não trazia consigo nem
carga nem armas. Apenas o bord que o ajudava a caminhar. Sua perna direita era aleijada e
menor do que a outra, embora desse jeito de locomover-se com incrível rapidez.
Como o ombro e a parte superior do braço direito houvessem nascido atrofiados,
amputaram-lhe o braço deficiente, logo abaixo do cotovelo. Tendo apenas um lado
plenamente desenvolvido, sua aparência era de extrema as simetria, e a cabeça, por sua vez,
era maior do que a dos outros membros do clã Trazia tais defeitos desde o nascimento e que
o aleijaram para a vida.
Era germano de Iza e Brun e nascido primeiro que os outros. Teria sido o chefe, se Não
fossem as deficiências físicas. Usava uma vestimenta cortada ao estilo masculino e levava
nas costas, tal como os outros, uma manta para ser usada externamente e que lhe servia
também de pele de dormir. No entanto, diferentemente, ele tinha diversas sacolas
penduradas à cinta e uma capa, parecida com o modelo usado pelas mulheres, só que com
um bolso nas costas onde levava um objeto grande e abaulado.
O lado esquerdo do rosto era marcado por uma horrenda cicatriz e pela falta de olho
também neste lado. Mas seu olho direito era perfeito, brilhava com inteligência e alguma
coisa mais não definida. Apesar de todo este aleijão ele se movia com uma graça que lhe
advinha de sua enorme sabedoria e a segurança de sua posição dentro do clâ Ele era o Mog-
ur, o feiticeiro mais poderoso, mais temido e o homem mais venerado e reverenciado de
todos os clã Estava convencido de que seu corpo disforme lhe fora dado para que servisse
de intermediário com o mundo dos espíritos e não para ser o chefe do clã. Sob muitos
aspectos, tinha mais poder do que qualquer chefe, e disso ele sabia. Somente os parentes
próximos lembravam de seu nome de batismo e o chamavam por este.
- Creb - disse Iza cumprimentando-o, cheia de reconhecimento pela presença dele e
fazendo um movimento que expressava o prazer de tê-lo em sua Companhia.
- Iza? - perguntou ele, gesticulando na direção da criança que ela carregava.
A mulher abriu sua capa e ele olhou de perto o rostinho rosado lá dentro. Os olhos se
dirigiram para a perna inchada e supurando. Depois, voltaram-se novamente para os da
curandeira, lendo neles o que ela queria dizer. Nisso, a criança soltou um gemido, e a
expressão do rosto dele se amaciou. Creb meneou a cabeça em sinal de aprovação
- Ótimo - disse ele, numa voz áspera e gutural. Em seguida, fez um sinal significando:
bastante gente morreu.
Creb ficou ao lado de Iza. Ele não tinha de obedecer às regras subentendidas que definiam a posição e o status de cada um. Podia caminhar junto de quem
quisesse, inclusive do chefe, se assim o entendesse de fazer. O Mog-ur estava acima e fora
da hierarquia rígida que governava o clã.
Quando Brun parou para estudar a paisagem, ele já havia posto sua gente bem longe
do faro dos leões da caverna. Do outro lado do rio, tanto quanto dava para ver, a pradaria
estendia-se por um terreno suavemente ondulado com uma planície verdejante ao longe.
Nada obstruía a visão da paisagem. As poucas árvores existentes eram atarracadas,
transfiguradas pelas ventanias constantes em caricaturas daquilo que poderiam ter sido. Só
serviam para pôr em perspectiva o campo aberto e acentuar o espaço vazio.
Próximo à linha do horizonte, nuvens de poeira se levantavam do chão com os cascos
pesados de uma manada em movimento, e Brun lamentou Não poder, naquele instante,
fazer sinal a seus caçadores e conduzi-los à caça dos animais. Atrás dele, apenas os topos
de altos pinheiros podiam ser vistos surgindo para além da folhagem amarelecida de
árvores menores, formando uma floresta eclipsada pela vastidão das estepes.
Do seu lado do rio, a pradaria terminava abruptamente, cortada a alguma distância por um
penhasco que fazia uma virada afastando-se do rio. A face rochosa do íngreme paredão
fundia-se com os contrafortes de majestosas montanhas encimadas de neve, avultando perto
dali. Os picos gelados com refulgências rosa, magenta, violeta e vermelha refletiam o pôr-
do-sol como gigantescas jóias faiscantes que coroavam os cumes soberanos. Até mesmo o
chefe, homem essencialnente prático, estava comovido com o deslumbrante espetáculo.
Desviou-se do rio e conduziu o clã na direção do penhasco, onde haveria mais
probabilidades da existência de cavernas. Precisavam de abrigo, porém, mais importante
ainda, os espíritos protetores de seus totens também o necessitavam, se é que eles já não
os haviam abandonado. Os espíritos mostravam- se zangados, o terremoto estava aí para
prová-lo, ou pelo menos estavam com bastante raiva para provocar a morte de seis pessoas
do clã e destruir o lar de toda sua gente. Se um lugar permanente para os espíritos dos totem
não fosse encontrado, eles deixariam o clã à mercê dos outros, dos malignos, que causavam doenças e espantavam as caças. Ninguém sabia por que os espíritos estavam
zangados, nem mesmo o Mog-ur, apesar de que ele conduzisse os rituais noturnos para
apaziguar-lhes a cólera e tentasse diminuir as aflições do clã. Estavam todos preocupados,
mas ninguém tanto quanto Brun.
O clã achava-se sob sua responsabilidade e isto o deixava enormemente tenso. Espíritos,
essas forças invisíveis de desejos insondáveis, eram algo que o desconcertava. Sentia-se
mais à vontade no mundo fisico, com suas caçadas e chefiando sua gente. Nenhuma das
cavernas que até então havia examinado servira. A todas faltava alguma coisa que lhes era
essencial e o chefe já começava a desesperar-se. Aqueles eram dias preciosos, fazendo tempo quente, quando deveriam
estar armazenando comida para o próximo Inverno e eles os perdiam nessa busca de casa.
Logo se veria forçado a abrigar o clã em alguma caverna pouco satisfatória e a deixar a
procura para o ano seguinte. Coisa bastante incômoda, física e emocionaunente, mas
Brun esperava com toda sua força que isto não acontecesse.
Caminhavam ao longo da encosta do rochedo, enquanto as sombras do dia iam se
aprofundando. Quando atingiram o ponto onde se achava uma estreita cachoeira
cascateando pelas vertentes do enorme paredão, com seus vapores formando nos raios de
sol um belo e tremeluzente arco-íris, Brun ordenou uma parada. Cansadas, as mulheres
puseram no chão seus fardos e foram catar lenha, espalhando-se ao redor do lago e do
pequeno escoadouro das águas.
Iza estendeu sua capa de pele e deitou a menina nela; depois, correu para ajudar as outras
mulheres. Estava preocupada com a garota. A respiração se fazia com dificuldade e Não
havia ainda despertado. Até os gemidos eram cada vez menos freqüentes. Iza vinha
pensando em como poderia ajudá-la e refletindo sobre as ervas secas que trazia em sua
sacola de pele de lontra. Enquanto catava pedaços de madeira, examinava as plantas das
redondezas. Para ela, conhecidas ou Não, tudo na natureza tinha algum valor nutritivo ou
medicinal e pouca coisa ela Não podia identificar.
Ao dar com os olhos nos pés de íris, já quase em flores, que cresciam na orla alagadiça da
saída das águas, foi imediatamente cavando as raízes dessa planta. Elas resolveriam uma
parte do problema. As folhas dentadas de lú pulo que se enrolavam em uma das árvores
deram-lhe outra idéia, mas achou melhor usar o pó de lúpulo seco que trouxera consigo,
pois o frutos ali ainda Não estavam amadurecidos. Retirou a casca mole e acinzentada de
um amieiro que crescia perto do lago, sentindo-lhe o perfume forte. Em seguida, meteu-a
numa das dobras da roupa, fazendo um sinal de aprovação com a cabeça. Mas antes de
voltar, ainda colheu um punhado de folhas novas de trevo.
Depois de terem arrumado madeira e a fogueira estar armada, Grod, o homem que
caminhava na frente ao lado de Brun, tirou de dentro de um chumaço de musgo um pedaço
de carvão aceso, trazido no fundo do chifre de um auroque. Eles sabiam produzir fogo,
mas, viajando por terras desconhecidas, era mais fácil pegar a brasa viva e acender a
fogueira com esta, do que todas as noites ter de fazer fogo, muitas vezes com materiais
desapropriados.
Durante a viagem, a tarefa de manter aquela brasa sempre acesa constituíra-se na grande
preocupação de Grod. O carvão incandescente que acendeu a fogueira da noite anterior
fora aceso pelo carvão da noite precedente àquela que, por sua vez, teve sua primeira
origem na fogueira armada com destroços do terremoto na entrada da velha caverna. Para
que uma nova caverna
fosse aceita como residência, os rituais exigiam que se acendesse uma fogueira com o carvão
que remontasse em sua história ao último lugar onde haviam morado.
O encargo da manutenção do fogo era atribuição exclusiva de um homem ocupando alta
posição social. Caso a brasa se apagasse, isto era sinal certo de que os espíritos protetores
os haviam abandonado, e Grod, de seu posto de segundo em comando, seria rebaixado para
o posto mais inferior na hierarquia masculina. Uma humilhação por que não desejava
passar. Sua tarefa, por tanto, não só era uma grande honra, mas também uma pesada
responsabilidade.
Enquanto Grod, com toda atenção e cuidado, colocava o pedaço de carvão incandescente
dentro de um ninho de acendalhas e soprava as chamas, as mulheres se voltaram para
outros afazeres. Com uma técnica de muitas gerações, rapidamente tiraram as peles das
caças que, momentos depois, estavam atravessadas por varetas verdes e pontiagudas,
apoiadas sobre forquilhas e as sando num fogo de labaredas. O calor alto tostava a carne,
estancando seu suco, de modo que, quando o fogo se apagasse, pouca coisa de valor
nutritivo tinha sido perdido nas chamas.
Com as mesmas facas afiadas de pedra que usavam para tirar a pele e cortar a carne, elas
raspavam e partiam as raízes e os tubérculos. Cestas de tecidos apertadíssimos, à prova
d'água, e bacias de madeira eram enchidas de água e pedras aquecidas nas fogueiras. As
pedras iam esfriando e sendo levadas de volta ao fogo de onde saíam outras, até que a água
fervesse e cozinhasse os legumes. Insetos carnudos iam sendo torrados num ponto crocante,
e pequenos lagartos postos por inteiro para assar, com suas carapaças aos poucos ficando
enegrecidas e quebradiças, deixavam entrever saborosos nacos de carne bem
churrasqueados.
Ao mesmo tempo em que ajudava a fazer a comida, Iza trabalhava seus preparados. Numa
bacia de madeira - que ela mesma, tempos atrás, talhara de uma tora - botou água para
ferver. Lavou as raízes de íris, socou-as até ficarem como pasta e as jogou dentro da água
fervendo. Numa outra bacia - uma cuia feita da imensa mandíbula de um veado -
triturou as folhas de trevo, socou na palma da mão uma quantidade de pó de lúpulo, rasgou
em tiras as cascas de amieiro e despejou sobre tudo isto água fervendo. Em seguida, esmigalhou entre duas pedras uma quantidade de carne-seca, guardada para alguma
emergência, e misturou numa terceira bacia essa porção de proteína concentrada com a
água do cozimento dos legumes.
A mulher que durante a viagem viera atrás de Iza de vez em quando lançava um olhar para
seu lado, na esperança de Iza fazer algum comentário. Todos, inclusive os homens, estavam
morrendo de curiosidade, embora fizessem por não demonstrá-lo. Haviam visto quando Iza
pegara a criança e, agora,depois de terem acampado, estavam sempre inventando alguma razão para ficar por perto
dela. Dando tratos à bola, punham-se a especular sobre como pôde acontecer de aquela
criança estar ali. O que teria sido feito do resto da gente dela? E o mais estranho: o que teria
dado em Brun para permitir a Iza trazer uma menina que visivelmente pertencia aos
Outros.
Ebra, melhor do que ninguém, sabia das dificuldades de Brun. Era ela quem vinha
massagear-lhe o pescoço e os ombros para aliviar sua tensão e era ela quem agüentava suas
explosões de mau humor, aliás raras, naquele homem que era o seu companheiro. Brun
chegava a ser estóico em seu autocontrole, e ela sabia que depois dessas explosões viria o
arrependimento, embora jamais fosse admiti-lo. Mas até mesmo Ebra gostaria de saber por
que teria ele permi tido que a criança viesse, sobretudo num momento em que qualquer
desvio do comportamento normal poderia provocar maior ira dos espíritos.
Por mais curiosa que estivesse, Ebra não fez perguntas a Iza e as outras mulheres não tinham
status para tanto. Além disso, uma curandeira não podia ser perturbada num momento em
que visivelmente trabalhava no preparo de suas mágicas, acrescendo o fato de que Iza
parecia não estar muito para tagarelices. Todo o seu pensamento concentrava-se na criança
por quem Creb tam bém se mostrava interessado. Mas ele era diferente, sua presença era
bem recebida por Iza.
Ela, em muda gratidão observava o feiticeiro mudar a posição da meni na ainda desacordada.
Por um instante, pôs-se a olhar pensativo para a criança e, em seguida, apoiou seu cajado
contra uma pedra e fez uma série de gestos ondulantes sobre ela. Invocava os bons espíritos
para que a ajudassem em sua recupemça Doenças e acidentes eram manifestações
misteriosas da guerra dos espíritos que faziam do corpo das pessoas seu campo de batalha.
A mágica de Iza vinha dos espíritos protetores que agiam por seu intermédio, mas nenhuma cura seria completa sem a intervenção do homem santo. A curandeira era
meramente uma agente dos espíritos, já o feiticeiro entrava em relação direta com eles.
Iza ignorava por que sentia tanta preocupação por uma criança que, afinal, era
completamente diferente da gente dos clã mas o fato é que desejava que a menina vivesse.
Depois de o Mog-ur ter terminado os seus passes, Iza tomou a menina nos braços e a levou
até o lago ao pé da cachoeira. Aí, mergulhou-a, deixando só a cabeça de fora, retirando a
sujeira e a lama empastada em seu corpinho franzino. A água fria trouxe-a de volta, mas
ainda delirante. Ela se mexia, contorcendo-se, gritando e murmurando sons que nunca Iza
ouvira antes. Enquanto voltavam para o acampamento, segurou-a apertada contra o corpo e
foi sussurrando-lhe palavras doces, mais parecidas com carinhosos rosnados.
Delicadamente, mas com o traquejo de sua longa experiência, iza lavouas feridas com um pedaço de rabo de coelho que ia mergulhando no líquido, feito à base
das raízes de íris. Em seguida, retirou a polpa dessas raízes e as colocou diretamente sobre
o machucado, que cobriu com pele de coelho. Por fim, enrolou a perna com tiras macias de
pele de veado para que o curativo ficasse firme sobre a ferida. Feito isto, retirou da bacia
de osso, com um garfo de pau, as folhas de trevo esmigalhadas, as tiras de amieiro e as
pedras quentes, pondo o líquido para esfriar ao lado da bacia de caldo quente.
Creb fez um gesto interrogativo na direção das bacias. Não estava Inquirindo
propriamente, nem mesmo o Mog-ur faria perguntas diretas a uma curandeira sobre suas
mágicas. O gesto era apenas de interesse e, como se tratava do seu germano, Iza Não se
importava. Ele, mais do que ninguém, admirava- lhe os conhecimentos médicos. Algumas
ervas que ela usava também eram em pregadas por ele, só que para fins diferentes. Afora as
reuniões dos clã quando encontrava outras curandeiras, essas conversas com Creb era
tudo que ela mantinha em matéria de troca de idéias com um colega.
- Isso destrói os espíritos ruins que provocam as infecções - gesticulou Iza, apontando
para a solução anti-séptica de íris. - O cataplasma feito com as raízes expulsa o veneno e
ajuda a ferida a sarar mais depressa. - Pegou a bacia de osso e mergulhou o dedo dentro
para testar a temperatura. - O trevo estimula e fortalece o coração na luta contra os maus
espíritos.
As poucas palavras que ela usava em sua fala eram mais para enfatizar o que as mãos
diziam. A gente dos clãs Não conseguia articular os sons suficientemente para formar
uma linguagem verbal plenamente desenvolvida. Comunicavam-se mais através de gestos
e movimentos, mas a linguagem por meio de sinais era perfeitamente compreensiva e rica
em nuanças.
- Mas trevo é comida normal. Foi o que comemos ontem - gesticulou Creb.
- Sim - disse Iza com a cabeça. - E vamos comer essa noite outra vez. A mágica está
no modo de preparar. Um bom punhado de trevo fervido com pouca água extrai tudo que é
preciso da planta, jogando-se as folhas depois fora.
Creb acenou com a cabeça em sinal de que estava compreendendo, e ela prosseguiu:
- A casca do amieiro serve para purificar e limpar o sangue. Enxotam os espíritos que
envenenam o corpo.
- Você usou uma coisa tirada da sacola de remédios.
- Pó de lúpulo. Feito com pinhas bem maduras e cheias de fibras. Serve para acalmar e
fazer a menina dormir em paz. Enquanto os espíritos estiverem lutando, ela precisa
descansar.
Creb tornou a acenar com a cabeça, dizendo que compreendia. Estava familiarizado com as
propriedades soporíferas do lúpulo que, usado diferentemente, podia provocar agradáveis estados de euforia. Embora estivesse sempre interessado
nos tratamentos de Iza, raramente lhe prestava informações sobre seus próprios métodos de
preparar poções. Tal conhecimento era restrito aos mog-urs e acólitos, não era para
mulheres, ainda que se tratassem de curandeiras. Iza entendia mais de plantas do que Creb,
e ele tinha medo de que ela aca basse por deduzir certas coisas. Seria bastante
Inconveniente, se começasse a fazer conjeturas sobre suas mágicas.
- E essa outra bacia? - perguntou ele.
- Isso é apenas um caldo. A pobrezinha está morrendo de fome. O que você acha que
aconteceu com ela? De onde será que veio? E sua gente onde estará? Há dias que ela deve
estar rodando por aí sozinha.
- Isso só os espíritos podem saber - falou o Mog-ur. - Você tem certeza de que sua
mágica vai funcionar nela? Olhe que a menina é diferente de nossa gente.
- Deve funcionar. Os Outros são humanos também. Você se lembra da mãe contar a
história daquele homem que quebrou um braço e que a mãe dela ajudou a tratar? A mágica
do clã foi boa para ele. Só que os remédios para dormir fizeram com que ele levasse muito
mais tempo para acordar do que se esperava.
- Foi pena você Não ter conhecido a mãe de nossa mãe. Era uma curandeira de
primeira. As pessoas dos outros clãs vinham só para vê-la. Uma tristeza que tenha tão cedo
deixado o mundo dos vivos, logo depois de você ter nascido. Foi ela mesma quem me falou
desse homem e também o Mog-ur antes de mim. Ele ainda ficou por uns tempos com a
gente, depois que sarou. Chegou até a caçar com o clã. Devia ser bom caçador, pois
deixaram que participasse de uma cerimônia de caça. É fato que são humanos, mas são
muito diferentes de nós. - Interrompeu o que dizia de repente. Iza era extremamente
astuta, e ele Não podia permitir-se falar muito; do contrário, ela poderia começar a tirar
conclusões por conta própria a respeito dos rituais secretos dos homens.
Iza testou outra vez a temperatura dos líquidos nas bacias. Aninhou, então, a cabeça da
menina no colo e pôs-se a dar-lhe pequeninos goles do conteúdo da cunja de osso. Foi
mais fácil de dar o caldo. Enquanto murmurava coisas incoerentes, a menina tentava cuspir
o remédio de gosto amargo. Mas mesmo no delírio, seu corpo faminto implorava por
comida. Iza continuou a segurá-la até que a menina caiu num sono tranqüilo e, em seguida,
verificou-lhe as batidas do coração e o ritmo da respiração. Fizera o que podia. Se a menina
Não tivesse ido muito longe, teria alguma chance. Daqui por diante, tudo dependia dos
espíritos e das forças internas que atuavam nela.
Iza viu quando Brun se encaminhava em sua direção, olhando-a com azedume. Ela se
levantou rapidamente e correu para ajudar a servir a comida.
Depois daquelas primeiras considerações, ele se esquecera da garota, mas agora voltara a
pensar nela. Embora o usual fosse desviar os olhos para Não ver quando as outras pessoas
conversavam, ele Não pôde impedir-se de observar o que todo mundo no clã comentava. As
especulações sobre os motivos que o levaram a permitir a Iza trazer a criança acabaram por
fazer com que também ele começasse a pensar. Passou a temer que a ira dos espíritos fosse
aumentar ainda mais pelo fato de haver um estranho no meio deles. Estava-se dirigindo
para interceptar Iza no seu caminho, mas Creb oviu e barrou-lhe o intento.
- O que há de errado, Brun? Você parece preocupado.
- iza tem de abandonar esta criança aqui, Mog-ur. Ela não faz parte do clã. Os espíritos
não vão gostar se ela ficar com a gente, enquanto estamos procurando por uma caverna.
Nunca deveria ter permitido a Iza fazer isso.
- Não, Brun - contrapôs o Mog-ur. - Os espíritos protetores Não ficarão zangados
com a bondade. Você conhece Iza, ela não consegue ver nada sofrendo sem tentar ajudar.
Acha que os espíritos Não conhecem também a garota? Se Não quisessem que Iza ajudasse,
a menina Não seria posta no caminho dela. Deve haver uma razão para isso. De qualquer
forma, Brun, a menina talvez morra. Se Ursus quiser chamar a menina para o mundo dos
espíritos, deixe que ele mesmo resolva. Não se intrometa agora. Com toda a certeza, ela
teria morrido se não fosse trazida conosco.
Brun Não estava gostando da coisa. Havia algo na menina que o incomodava. Mas, em
deferência ao maior conhecimento do Mog-ur em assuntos do outro mundo, ele
condescendeu.
Depois da refeição, Creb se sentou em silêncio contemplativo, esperando que todos
acabassem de comer para que ele começasse a cerimônia noturna. Enquanto isso, Iza
arranjava-lhe o lugar de dormir e fazia os preparativos para a manhã do dia seguinte.
Enquanto Não achassem a nova caverna, o Mog-ur proibira os casais que dormiam juntos
de terem relações sexuais, de modo que os homens pudessem concentrar suas energias nos
rituais e que cada um sentisse estar dando sua contribuição pessoal para levá-los rápido à
nova moradia.
Isso não tinha importância para Iza. Seu companheiro foi um dos que haviam morrido no
desabamento da antiga caverna. No enterro, ela o pranteara devidamente e mostrara seu
pesar, e seria de mau agouro comportar-se diferentemente. Mas ela Não se sentia infeliz
por ter ele partido. Não era segredo para ninguém que seu companheiro tinha sido um
homem cruel e despótico. Nunca existira afeição entre os dois. Não tinha idéia do que
Brun iria decidir sobre ela, agora que estava sozinha. Alguém teria de mantê-la, Não só
ela mas também a criança que carregava no ventre. A única coisa que esperava é que
pudesse continuar cozinhando para Creb.
Desde os tempos dela com o seu companheiro ainda vivo que o Mog-ur compartilhava com
eles da mesma fogueira. Iza percebia que ele apreciava tanto seu companheiro quanto
ela própria, embora Creb jamais houvesse se metido com seus problemas íntimos. Sentia-
se honrada em cozinhar para o Mog-ur e, aos poucos, foi-se afeiçoando a ele tal como
algumas mulheres vão criando laços de amizade com seus companheiros.
De vez em quando, tinha pena de Creb. Se ele quisesse poderia ter arrumado uma
companheira. Ela sabia, porém, que mesmo com toda sua magia e sua elevada posição
social, nenhuma mulher olharia sem repugnância para seu corpo disforme e sua cara
marcada por hedionda cicatriz. E ela não tinha dúvida de que ele também sabia disso.
Jamais assumiu uma companheira, mantendo-se nesse assunto sempre reservado. O que só
fazia engrandecê-lo. Todos, inclusive os homens, exceto talvez Brun, temiam o Mog-ur e o
olhavam com reverência. Todos, menos Iza, que desde que nascera conhecia a de licadeza
de seus sentimentos. Um lado da natureza do Mog-ur que ele rara mente deixava
transparecer.
E era justamente esse lado que naquele instante ocupava a mente do Mog-ur. Ao invés de
estar meditando na cerimônia, tinha o pensamento voltado para a menina. Sempre sentira
curiosidade sobre a gente dela, mas as pessoas do clã evitavam tanto quanto podiam os
Outros. Esta era a primeira vez que ele via uma criança de sua espécie. Supunha que o
terremoto tivesse qualquer coisa a ver com o fato de ela estar sozinha, embora fosse
surpresa para ele que houvesse gente dela tão perto. Normalmente, viviam bem mais ao norte.
Creb percebeu que alguns homens já estavam começando a sair e se apoiou no seu cajado
para levantar-se e ir supervisionar os preparativos. O ritual, além de ser um dever, era uma
prerrogativa masculina. Só muito rara mente se permitiam às mulheres participarem da vida
religiosa do clã e, da cerimônia daquela noite, estavam inteiramente excluídas. Não poderia
haver maior desastre do que uma mulher assistir aos secretos ritos dos homens. Al go que
não só traria um incomensurável azar, como também espantaria os espíritos protetores. O
clã inteiro morreria, se tal acontecesse.
Mas o perigo disso era praticamente nenhum. Jamais passaria pela cabeça de qualquer
mulher aventurar-se a chegar por perto de um ritual daquela natureza. Na verdade, aqueles
eram momentos por que ansiavam, quando, enfim, iam poder relaxar, estar longe das
constantes exigências dos homens e não precisar comportar-se com o devido decoro e
respeito. Era duro para as mulheres terem os homens rondando à sua volta o tempo todo,
especialmente se estavam nervosos e descarregando seu mau humor sobre as companheiras.
Em geral, eles passavam boa parte do tempo fora, caçando. As mulheres, por tanto, viam-se
igualmente ansiosas para encontrar de uma vez a nova moradia,
mas não havia muito o que pudessem fazer. Brun era quem escolhia o rumo a tomar. Ele
não lhes pedia conselhos e nem elas estavam autorizadas a da-los.
As mulheres confiavam nos homens para guiá-las, assumir responsabili dades por elas e
tomar todas as decisões importantes. O clã mudara tão pouco em quase cem mil anos que,
agora, estava incapaz de absorver qualquer coisa nova e os avanços feitos em outras eras
por exigências da adaptação haviam sido incorporados à estrutura genética. Tanto o homem
como a mulher aceitavam seus papéis sem questionar, irremediavelmente impossibilitados
de as sumir qualquer outro. Para eles, querer mudar o tipo de relações que os regia era o
mesmo que tentar fazer crescer um braço ou modificar a forma da cabeça.
Depois de os homens terem saído, as mulheres se reuniram em torno de
Ebra e esperaram que Iza fosse juntar-se a elas para, frnalmente, satisfazer-lhes
a curiosidade. Mas Iza estava exausta e não queria afastar-se da menina. Logo
que Creb saiu, ela foi deitar-se ao lado da criança, embrulhando as duas com
a mesma pele. Por um instante, pôs-se a observar a garota dormindo à luz
meio indistinta do fogo já quase apagado.
Que coisinha curiosa, pensou. De certo modo, bem feia. Seu rosto fica tão chato com esta
testa para fora e esse toquinho de nariz. E que osso esquisito debaixo da boca, parece mais
um caroço. Quantos anos terá? É mais criança do que eu havia imaginado. Ela é bastante
alta, fica tudo muito enganador. Tão magrinha que posso sentir todos os ossos dela. Pobre
menina. Gostaria de saber há quanto tempo está sem comida e andando sozinha por aí. Iza
passou o braço em torno da garota, querendo protegê-la. A mulher que, em caso de
necessidade até de animais cuidava, não poderia agir diferente com aquele ser tão
miserável, que era só pele e osso. Todo o seu generoso coração estava entregue àquela
pobre criança indefesa.
Enquanto os homens chegavam, o Mog-ur conservou-se afastado, esperando que todos se
acomodassem, para então ir postar-se em seu lugar, atrás de uma pedra arrumada dentro de
um círculo, por sua vez rodeado por um círculo maior de tochas acesas. Estavam em pleno
terreno das estepes, longe do acampamento. O feiticeiro esperou que todos estivessem
sentados e foi para dentro do círculo carregando um pequeno archote de madeira aromática.
Colocou a tocha no chão num espaço vazio, próximo de onde se achava seu cajado.
Ficou ereto sobre sua perna sadia, no meio do círculo e olhou, por cima das cabeças dos
homens sentados, a distância, na escuridão, com um olhar vago e sonhador, como se visse
com seu olho único um mundo para o qual os outros eram cegos. Envolto pela pesada capa
de pele de urso que não cobria as saliências desirmanadas de seu vulto assimétrico, era
uma figura
imponente, se bem que fazendo uma presença estranhamente irreal. Um homem, apesar da
forma desvirtuada, não propriamente um homem ou qualquer coisa semelhante, mas algo
de diferente. A própria deformidade fincambuía o de uma qualidade sobrenatural que
nunca se mostrava tão Intimidadora como quando ele estava à frente dos rituais religiosos.
Subitamente, num passe de mágica, mostrou uma caveira. Segurou-a com seu musculoso
braço esquerdo por cima da cabeça e, vagarosamente, fez a volta ao círculo para que todos
vissem aquela inconfundível forma arredondada. Os homens olhavam fixamente para a
caveira, brilhando sua brancura à luz trêmula das tochas. Em seguida, Creb colocou-a no
chão, em frente a seu archote e se sentou atrás deste, fechando o espaço vazio do círculo.
Um rapaz, sentado a seu lado, levantou-se e apanhou uma bacia de madeira. Tinha pouco
mais de 11 anos e seu ritual de passagem havia ocorrido algum tempo antes de acontecer o
terremoto. Goov fora escolhido para acólito, ainda bem menino, e freqüentemente
auxiliava o Mog-ur nos preparativos. Entretanto, só se permitiam aos acólitos assistirem a
uma cerimônia de verdade depois de já homens feitos. A primeira vez que Goov passou a
exercer sua função foi quando começaram a buscar moradia e ele ainda se sentia nervoso
executando suas tarefas.
Para Goov, a descoberta de uma nova caverna representava algo de muito especial. Era sua
oportunidade de aprender do próprio Mog-ur os detalhes de uma cerimônia raramente
executada e de difícil descrição: os ritos que faziam de uma caverna aceitável para
moradia. Em criança, sentia medo do fei ticeiro, apesar de entender a honra de ser escolhido
para acólito. Mas aos pou cos começara a compreender que aquele homem aleijado não só
era o mais competente feiticeiro de todos os clãs, mas que também tinha um coração generoso, sob aquela máscara de austeridade. Goov respeitava seu mentor.
O acólito iniciara a preparação da beberagem que se achava na bacia, tão logo Brun dera
a ordem de fazer alto. A primeira coisa que fez foi apanhar duas pedras para triturar pés de
datura, que esmigalhou com as folhas, talos e flores. A parte mais difícil era a de dosar a
quantidade certa de cada uma dessas coisas. Depois, despejou água fervendo, deixando que
as plantas ficassem em infusão até a hora da cerimônia.
Alguns instantes antes de o Mog-ur entrar no círculo, Goov despejou o chá de datura numa
bacia - de uso exclusivo das cerimônias religiosas - que apertava entre as mãos,
aguardando, ansioso, o sinal de aprovação do todo-poderoso feiticeiro. O Mog.ur tomou um
gole, acenando em aprovação, e depois bebeu mais, para alívio de Goov, que soltou um
silencioso suspiro. Em seguida, o rapaz passou a bacia diante de cada um, obedecendo à
hierarquia do clã. O primeiro foi Brun. Ele segurava a bacia e controlava a quantidade que
iam bebendo até que chegou sua vez, o último a tomar.
O Mog-ur esperou que seu acólito se sentasse para fazer um sinal. Imediatamente, todos
passaram a bater ritmicamente no chão com a parte grossa das lanças. As pancadas surdas e
monótonas foram crescendo em intensidade até que nenhum outro som era mais ouvido.
Inteiramente tomados pelas batidas sempre iguais, levantaram-se e se puseram a
movimentar o corpo dentro do ritmo. O Mog-ur tinha os olhos presos na caveira, e a força
desse olhar acabou atraindo a atenção dos homens para a sagrada relíquia como se por
vontade dele. O senso de oportunidade era importante e, nisso, ele era um mestre.
Mantinha exatamente o tempo necessário para conservar a expectativa do ponto
culminante. Um pouquinho mais e o clima de tensão estaria perdido. Olhou, então, para seu
germano o homem que tinha a responsabilidade de conduzir o clã. Brum veio agachar-se
diante da caveira.
- O Espírito do Bisão, Totem de Brun - começou o Mog-ur.
De fato, pronunciou apenas Brun, o resto foi dito por meio de gestos, sem verbalizar
qualquer outra palavra. Tudo que se seguiu foi uma série de movimentos convencionais de
uma antiga linguagem Não articulada, reservada à comunicação com os espíritos e com os
outros clãs, cujos poucos sons guturais e gesticulações nem sempre conferiam com a
maneira de expressar deles. Era uma prece silenciosa em que o Mog-ur implorava ao
Espírito do Bisão para que os perdoasse de qualquer falta cometida que o tivesse ofendido e
pediu por fim, que os ajudasse.
"Este homem sempre honrou os espíritos, Grande Bisão. Sempre zelou pelas tradições do
clã. Este homem é um chefe forte, sábio, generoso, bom caçador e o sustento de sua
família. Um homem controlado, digno do poderoso Bisão. Não o abandone. Conduza-o à
nova casa, um lugar onde possa estar feliz. O clã pede pela ajuda do totem deste homem -
disse, como conclusão. Em seguida, após a retirada de Brun, lançou um olhar na direção do
segundo em comando, e Grod veio agachar-se diante da caveira do urso da caverna.
A nenhuma mulher era permitido assistir à cerimônia, porque ficariam elas sabendo que
aqueles homens que se portavam sempre com uma força verdadeiramente estóica pediam e
imploravam a forças invisíveis, tal como elas o faziam junto a eles.
- O Espírito do Urso Marrom, Totem de Grod - recomeçou o Mog-ur, prosseguindo com
uma prece em termos semelhantes, mas endereçada ao totem de Grod. E assim foi feito
com todos os outros. Depois de terminar, voltou seus olhos novamente para a caveira,
enquanto as batidas surdas se faziam ouvir, numa outra expectativa de clímax.
Todos já sabiam o que estava para vir. A cerimônia jamais mudava, era
a mesma, noite após noite. Contudo, a expectativa nunca deixava de renovar-
se. Esperavam pela invocação do Espírito do Ursus, o Grande Urso da Caverna
e totem do próprio Mog-ur, o mais venerado de todos os espíritos.
Urss não era somente o totem do Mog-ur. Ele pertencia a todos e era mais do que um
totem. Havia sido Ursus quem fizera deles uma raça, a raça dos clãs. Ele era o espírito
supremo e supremo protetor. A reverência ao Urso da Caverna era o fator comum que os
unia, a força que fazia de todos os clã vivendo separadamente e com autonomia, um único
povo. O povo dos Clãs do Urso da Caverna.
Quando o feiticeiro achou que já era tempo, deu o sinal. Os homens pararam de bater e
foram sentar-se, mas o cadenciado das batidas estava nas suas correntes sangüíneas e
continuava soando em suas cabeças.
O Mog-ur pegou, então, numa pequena sacola e tirou de dentro uma pitada de um pó
(esporos secos de licopódio). Mantendo a mão por cima do pequeno archote, ele se
inclinou para a frente e soprou a chama ao nesmo tempo em que despejava o pó sobre o
fogo. Os esporos se incendiaram produzindo dramaticamente em tormo da caveira uma
cascata de fagulhas de magnésio, num violento contraste com a escuridão da noite.
A caveira brilhava como se animada de vida e, na verdade, estava, pelo menos para aqueles
que tinham a percepção alterada pelos efeitos da bebida. Numa árvore perto, uma coruja
soltou seu grito - como se por encomenda - elevando o esplendor fantasmagórico com o
som de sua voz agourenta.
- Grande Ursus, Protetor dos Clãs! - falou o feiticeiro por meio dos gestos
convencionais. - Mostre a este clã uma nova casa, tal como outrora o Urso da Caverna
mostrou aos clãs como viver em cavernas e a se vestir com peles. Proteja seu clã contra a
Montanha de Gelo e contra o Espírito da Neve Granular que o gerou e também contra o
Espírito das Nevascas, o seu companheiro. Este clã pede ao Grande Urso da Caverna para
não deixai que nenhum mal lhe suceda, enquanto estiver sem lar. Reverendíssimo espírito
de todos os espíritos, os clãs aquele que é o seu povo implora ao espírito do todo-poderoso
Ursus para se juntar a ele, enquanto faz a viagem de volta ao princípio.
Neste ponto, o Mog-ur passava a usar a força de seu formidável cérebro.
Todos aqueles povos primitivos sem lóbulos frontais e de fala limitada devido ao
atrofiamento dos ôrgãos vocais tinham cérebros avantajados, maior do que de qualquer
outra raça da mesma época ou de futuras gerações ainda por nascer. Representavam o
ponto culminante de um ramo da espécie humana cujo cérebro desenvolveu-se na parte
traseira da cabeça, nas regiões occipital e parietal, aquelas que controlam o órgao da visão
e que respondem também pela sensação do corpo e pela memória.
E era justamente a memória que fazia deles seres extraordinários. Neles, o conhecimento
Inconsciente do comportamento ancestral, dito instinto, era extremamente desenvolvido.
Armazenada na zona anterior de seus imensos
cérebros, não estava apenas a memória particular do Indivíduo, ali se achava também as
memórias pertencentes a seus antepassados e, em certas circunstâncias, eles podiam ainda
dar um passo mais além. Podiam recordar-se de sua memória racial e de sua própria
evolução E quando voltavam muito atrás em suas recordações podiam fundir esta memória,
a mesma em todos eles, juntando suas mentes telepaticamente.
Mas só no tremendo cérebro da monstruosa figura do aleijado esta faculdade se achava
plenamente desenvolvida. Creb, o bondoso e tímido Creb, cuja enorme cabeça fora a causa
de seu aleijão, tinha, como Mog-ur, aprendi do a usar o poder desse cérebro para fundir as
entidades separadas, que estavam sentadas ao redor dele, numa única mente e dirigi-la.
Podia levá-las a qualquer ponto de sua herança racial e transformá-las em mentes
pertencentes a seus antepassados. Ele era O Mog-ur. Seu poder era real, Não se
restringia a meros truques de luzes e ingestão de alucinógenos. Isso servia apenas para criar
o clima e fazê-los aceitar sua direção.
Naquela noite escura e sossegada, somente iluminada por velhas estrelas, alguns homens
reviveram cenas impossíveis de ser descritas. Eles não viram apenas. Eram parte delas.
Viram com os olhos, sentiram na pele, lembrando-se dos insondáveis primórdios da
existência. Nas profundezas de suas mentes, eles encontraram os cérebros ainda não
desenvolvidos de criaturas marinhas, flutuando em quentes ambientes calmos.
Sobreviveram à dor do primeiro ar respirado e se tornaram em anfíbios, partilhando dos
dois elementos.
Porque adoravam o urso da caverna, o Mog-ur evocou neles a lembrança do mamífero
primordial - o ancestral que deu origem a duas espécies e a uma legião de outras - e
fundiu a unidade de suas mentes com a origem do urso. E assim, através das idades, foram
sucessivamente vivenciando todos os seus antepassados e sentindo aqueles que divergiram
para tomar outras formas. Isso os tornava conscientes de sua relação com toda espécie de
vida na terra e o respeito que nutriam até pelos animais que matavam e comiam formava a
base do parentesco espiritual com seus totem.
Suas mentes se processavam como uma só, apenas quando se aproximaram do presente se
separaram nas de seus pais e, por fim, na de cada um deles. Pareceu ter durado uma
eternidade e, num sentido, durou, mas de fato foi pouco o tempo transcorrido. Quando
voltavam a si, levantavam-se e saíam para ir dormir um sono profundo e sem sonhos, pois
sonhar mais já não era possível.
O Mog-ur foi o último. Em sua solidão, pôs-se a meditar sobre a experiência. Após certo
tempo, começou a sentir uma estranha Inquietude. Eles podiam conhecer o passado com a
profundidade e a grandeza que elevava a alma, mas só Creb sentia um tipo de limitação
que jamais seria percebida pelos outros. Eles Não tinham a capacidade de projeção, nem
mesmo pensar um pouco adiante podiam. Apenas Creb fazia uma pálida idéia dessa
possibilidade.
A raça dos clãs não conseguia conceber um futuro diferente do passado, nem alternativas
inovadoras para o amanhã. Todo o conhecimento e tudo o que fazia era repetição de alguma
coisa já feita anteriormente. Até mesmo o armazenamento de comida necessário às
mudanças de estações era resultado de experiências passadas.
Houve época, muito distante, quando a inovação se processava com facilidade. Foi no
tempo em que uma pedra lascada com um bordo afiado sugeriu a alguém quebrar outra de
propósito e fazer-lhe um gume cortante, ou quando a extremidade quente de um pau que
alguém girava deu-lhe a idéia de girá lo por mais tempo e com mais força para saber até
que ponto o calor obtido podia chegar. Mas, à medida que o número de memórias foi-se
acumulando, enchendo e alargando a capacidade de armazenamento dos cérebros deles, as
mudanças foram ficando mais difíceis. Não havia mais espaço para novas idéias em seus
bancos de memória, as cabeças já estavam extremamente grandes. Às mulheres
passaram a ter problemas de parto, e eles não podiam mais dar-se ao luxo de adquirir novos
conhecimentos, aumentando-lhes ainda mais o tamanho da cabeça.
Os clã viviam de acordo com tradições inexoráveis. Todas as facetas de suas vidas, desde
que nasciam até que eram chamados ao mundo dos espíritos, estavam circunscritas ao
passado. Era uma tentativa de sobrevivência, inconsciente, não planejada, a não ser pela
natureza, num derradeiro esforço para salvar a raça da extinção e destinada à falência. Só
que Não podiam parar de mudar, resistir a isso significava auto-anular-se, era o próprio
conceito da anti- sobrevivência.
Eram extremamente lentos na adaptação. Invenções se faziam ao acaso e quase sempre não as
punham em prática. Se qualquer coisa de novo lhes acontecesse, a nova informação seria
estocada num compartimento de reservas e a mudança se faria com grande esforço; mas,
uma vez Imposta, eles se mostravam inflexíveis e seguiam à risca o novo curso. Alterá-lo
novamente seria demasiadamente penoso. Mas uma raça sem espaço para aprender, para
desenvolver-se, deixou de estar equipada para um meio ambiente passando por
transformações fundamentais. Eles haviam perdido o momento de desenvolver-se
diferentemente. Isso ficaria a cargo de uma forma mais nova de vida, de algum experimento
diferente da natureza.
Enquanto se sentava sozinho, em pleno campo aberto, vendo a última das tochas crepitando
e extinguindo-se lentamente, Creb lembrou-se da estranha menina que Iza encontrara e sua
Inquietude aumentou ainda mais, chegando a ser quase um desconforto físico. Já haviam
encontrado a espécie dela antes, mas, por seus cálculos, só recentemente, e os poucos
encontros casuais não haviam sido muito agradáveis. De onde teriam vindo eles era um
mistério. A gente dela estava recém-chegada à terra deles, mas, desde que haviam surgido, começaram a haver mudanças. Eram pessoas que pareciam trazer a mudança consigo.
Creb, ignorando seu mal-estar, enrolou com cuidado a caveira do urso
na capa, pegou o cajado e, em seu passo coxo, foi para a cama.

Capítulo 3

A menina se virou, começando a debater-se, agitada.
- Mamãe - murmurava, batendo com os braços e chamando cada vez mais alto. -
Mamãe! Mani
Iza segurou-a, sussurrando-lhe baixinho. Era como um ronco surdo e suave, O calor de seu
corpo e seus ruídos acalentadores penetravam no cére bro febril da menina, aquietando-a.
Ela passara a noite num sono intranqüilo, acordando freqüentemente a mulher com suas
sacudidelas, seus murmúrios e palavras delirantes. Eram sons estranhos, diferentes daqueles
expressados pela gente dos clãs. Saíam com facilidade, fluindo livremente, cada som
imiscuído em outro. Impossível a Iza querer reproduzir muitos deles. Seus ouvidos não
estavam condicionados àquelas sutis variações sonoras. Como, no entanto, um certo
número de sons era repetido constantemente, Iza concluiu que deveria ser o nome de
alguém chegado à criança e, ao notar que sua presença a acalmava, percebeu quem era esse
alguém.
Ela não deve ser muito velha, não soube nem como achar comida para matar a fome,
pensava Iza consigo. O que eu gostaria de saber é há quanto tempo está sozinha. O que
poderia ter acontecido com o povo dela? Teria si do apanhado pelo terremoto? Será que
está rodando sozinha desde essa ocasião? E como teria escapado de um leão só com alguns
arranhões Iza já havia tratado de bastantes ferimentos para saber que aqueles só poderiam ter
si do feitos por algum gato gigantesco. Espíritos poderosos devem protegê-la, concluiu a
mulher consigo mesma.
Quando, por fim, a febre começou a ceder, com a menina banhada de Suor, a madrugada já
se aproximava, embora ainda estivesse escuro. Iza aninhou-a perto de seu corpo,
aumentando-lhe o calor e se certificando de que estava bem coberta. A menina acordou
pouco tempo depois, querendo saber onde se encontrava, mas estava muito escuro para ver.
Sentiu a proteção daquele corpo junto ao seu e tormou a fechar os olhos, embalada já por
um sono mais tranqüilo.
Ao clarear o céu, fazendo aparecer as silhuetas das árvores sob os pálidos raios de luz, Iza
arrastou-se em silêncio para fora da coberta. Atiçou o
fogo, acrescentou mais lenha, indo em seguida ao pequeno córrego para encher sua bacia e apanhar mais cascas no tronco de salgueiro. Por um instante, deu uma
parada e, agarrando o amuleto, agradeceu aos bons espíritos pela presença ali do salgueiro.
Sempre agradecia aos espíritos, não só pela onipresença dessa árvore, como também por
suas propriedades analgésicas. Já nem se lembrava de quantas vezes teve de fazer chá de
cascas de salgueiro para aliviar dores e sofrimentos. Conhecia outros remédios mais fortes
contra dores, só que esses tiravam a dor, mas embotavam os sentidos. O salgueiro não,
atacava apenas a dor e diminuía a febre.
Algumas pessoas haviam começado seus afazeres, quando Iza agachou se junto do fogo,
apanhando pedras para pôr na bacia cheia de água com cascas de salgueiro. Depois de
pronto, ela foi para o lugar onde se achava sua pele e colocou com cuidado a bacia numa
depressão escavada no terreno. Em seguida, silenciosamente, meteu-se sob a pele, ao lado da
menina. Ficou observando-a dormir, reparando que tinha a respiração normal. Iza estava
intrigada com seu rosto. A queimadura de sol começara a tomar uma cor bronzeada, exceto
o pequenino nariz que ainda descascava no cavalete.
A curandeira já havia visto pessoas da raça dela, mas só uma vez e a distância. As
mulheres dos clã sempre corriam e se escondiam, quando as encontravam. Incidentes
desagradáveis ocorridos nos poucos encontros casuais de gente dos clã com os Outros eram
comentados em suas reuniões periódicas, por isso os evitavam. Às mulheres,
especialmente, Não era permitido muito contato. Mas a experiência particular de seu clã não
fora má. Iza lembrou-se da conversa com Creb sobre o homem que, há muito tempo,
entrara cambaleando na caverna, tonto de dor, com seu braço quebrado.
Ele chegou a aprender um pouco da língua, mas seus modos eram muito estranhos.
Gostava de conversar tanto com as mulheres como com os homens e tratava a curandeira
com toda a deferência, quase que com veneração Isso na o havia impedido de ganhar o
respeito dos homens. Deitada de olhos abertos, com o dia já clareando, examinava a
criança, deixando-se levar por suas divagações, pensando nos Outros.
Enquanto a olhava, um raio de sol que se insinuava no horizonte bateu-lhe no rosto. As
pálpebras tremelicaram e a menina abriu os olhos, dando com outros enormes, castanhos,
profundamente encravados debaixo das sobrancelhas, num rosto que se projetava de certo
modo como um focinho.
A menina soltou um grito e apertou os olhos novamente. Iza puxou-a para perto, sentindo
seu corpo magricelo tremendo de medo e se pôs a murmurar alguns sons suaves. Os ruídos
que fazia tinham qualquer coisa de familiar para a criança, mais familiar, entretanto, era o
calor do corpo que a aconchegava. Aos poucos, a menina foi parando de tremer. Abriu
uma pontinha dos olhos e olhou de novo para Iza. Desta vez, já não gritou. Por fim, abriu-os
por inteiro e fixou a cara assustadora, inteiramente desconhecida para ela.
Iza também, espantada, fixou seus olhos na menina. Nunca havia visto até então olhos cor
do céu. Por um instante, pensou se a criança não seria cega. Os olhos das pessoas idosas
dos clã às vezes, criavam uma película por cima e, à medida que essa película ia fazendo
uma sombra cada vez mais clara, nublando os olhos, a visão ia empanando-se. Mas as
pupilas da menina dilatavam-se normalmente, não havendo dúvida de que tinha visto sua
figura. Essa cor de azul claro acinzentado deve ser normal nela, pensou Iza.
A menina permaneceu deitada, de olhos bem abertos, mas completa mente imóvel, com
medo de mexer um só músculo. Quando por fim se sentou com a ajuda de Iza, encolheu-se
com a dor sentida e as lembranças dos últimos dias passaram-lhe pela cabeça aos
borbotões. Com um estremecimento, lembrou-se da garra afiada do monstruoso leão
riscando com sangue sua perna. Lembrou-se dos momentos em que se debateu na
correnteza do rio, desde de que havia vencido seu medo e da dor na perna. Mas do que
acontecera antes disso não se lembrou. Bloqueara na memória todo seu pavoroso
sofrimento, Não se recordou de suas andanças solitárias, da sede e da fome sofrida, do
monstruoso terremoto e das pessoas queridas que havia perdido.
Iza levou a cuia com o chá até os lábios da menina. Ela estava com sede e tomou um gole,
fazendo uma careta ao sentir o gosto amargo. Mas quando novamente Iza tornou a botar a
conja em sua boca, voltou a beber; estava amedrontada demais para tentar qualquer
resistência. Iza balançou a cabeça em si nal de aprovação e saiu para ajudar as outras
mulheres no preparo da refeição matinal. Os olhos da garota acompanharam Iza,
arregalando-se ao dar com aquele acampamento repleto de gente parecida com aquela
mulher.
O cheiro da comida cozinhando fez com que seu estômago desse pulos e, quando a mulher
voltou com uma pequena conja cheia de caldo de carne engrossado com farinha de fibras
trituradas, a menina, esfaimada, engoliu tudo sofregamente. A curandeira achava que ainda
Não estava na hora de dar-lhe comida sólida. NÃO era necessário muita coisa para encher-
lhe o estômago desacostumado de comida e Iza guardou a sobra numa sacola impermeável,
para que a garota tomasse durante a viagem. Depois que terminou de comer, Iza deitou-a e
retirou o curativo da perna. As feridas purgavam, mas a inchação diininuíra.
- Muito bem - disse Iza, em voz alta.
A criança deu um pulo ao ouvir pela primeira vez os sons ásperos e guturais emitidos pela
mulher. Aquilo Não tinha nada a ver com palavras. Para seus ouvidos desacostumados,
pareciam mais grunhidos ou roncos de animal. Mas o comportamento de Iza estava longe
de ser animal, era humano e bem humano. A curandeira já tinha pronto outro cataplasma de
pasta de raízes e, enquanto fazia a aplicação, um homem desengonçado, disforme, veio
coxeando na direção delas.
Era a figura mais repulsiva e medonha que a menina já vira em sua vida. Num dos lados do
rosto havia uma horrenda cicatriz e o lugar onde deveria existir um dos olhos achava-se
coberto por um retalho de couro. Para ela, entretanto, aquela era uma gente tão estranha e
tão feia que o físico desfigurado e intiniidador de Creb era apenas uma questão de grau.
Ela não ti nha noção de quem eram aquelas pessoas e como fora parar em seu meio, mas
sabia que estava sendo tratada. Havia sido alimentada, o curativo refrescava e diminuía a
dor em sua perna e, inconscientemente, sentia-se mais tranqüila, sem o estado de tensão que
lhe provocava um medo doloroso. Por mais estranhas que fossem tais pessoas, com elas,
pelo menos, Não estaria sozinha.
O aleijado diminuiu o passo para examinar a menina melhor. Ela devolveu-lhe o olhar com
franca curiosidade, o que o deixou surpreso. As crianças do clã estavam sempre com receio
dele. Bem depressa, aprendiam que até os mais velhos sentiam por ele um temor respeitoso.
Além disso, as maneiras arredias do velho feiticeiro não encorajavam maiores
familiaridades e o abismo aumentava mais, quando os filhos chegavam numa certa idade e
as mães pas savam a ameaçá-los com a figura do Mog-ur, se eles não se comportassem
bem. Na época em que se aproximavam da idade adulta realmente sentiam medo dele,
sobretudo as meninas. Só mais tarde, na idade madura, é que conseguiam contrabalançar o
medo com o respeito. O olho bom de Creb, no lado direito do rosto, acendeu-se de
interesse. Não esperava aquele destemido olhar.
- A criança está melhor, Iza? - perguntou ele, indicando a menina. Sua voz era num tom
mais baixo do que a da mulher, mas, para a garota, continuava igualmente parecendo
grunhidos. Ela não reparou na gesticulação da mão dele. Era uma linguagem inteiramente
estranha, percebia apenas que o homem comunicava alguma coisa à mulher.
- Ela ainda está fraca por causa da falta de comida - respondeu Iza. - Mas o ferimento
já está melhor. As unhadas pegaram fundo na carne, mas não deram para afetar a perna e a
infecção ainda purga. Foi um leão da caverna que fez isso, Creb. Você já viu algum leão se
contentar só com uns arranhões depois de ter atacado? Estou espantada que ela ainda esteja
viva. Seus espíritos protetores devem ser muito fortes. Mas. . . o que estou dizendo? Nada
sei sobre espíritos.
Realmente falar sobre espíritos não era assunto próprio para uma mulher ter com o Mog-
ur, mesmo que essa fosse sua germana. Iza fez um gesto de humildade, pedindo-lhe
desculpas por sua presunção Ele não tomou conhecimento e nem ela esperava que o
fizesse, mas, em compensação Creb olhou para a criança ainda com maior interesse.
Também tinha pensado quase a mesma coisa, embora jamais fosse admiti-lo, a opinião de
sua irmã pesava muito para ele e, no caso, veio confirmar seus pensamentos.
Rapidamente, eles levantaram o acampamento. Iza se armou com sua cesta e trouxas, içou a
menina para seu quadril e foi meter-se atrás de Brun e Grod. Durante a viagem, montada
na anca da mulher, a garotinha ia olhando, cheia de curiosidade à sua volta, observando
tudo que Iza e os outros faziam. Ficava principalmente interessada na comida que catavam.
Iza estava sempre lhe dando para morder alguma plantinha fresca ou algum pedaço macio
de raíz e isso lhe trouxe uma vaga lembrança de outra mulher que também fazia assim com
ela. Mas agora punha toda sua atenção nas plantas, observando as características
particulares de cada uma. Seus dias de fome fizeram nascer nela um vivo desejo de
aprender como encontrar comida. A menina apontou uma planta para Iza e ficou alegre de
ver que a mulher parou e foi cavar-lhe a raíz. Iza também ficou contente. A menina é viva,
pensou, ela não devia conhecer isto, senão teria comido.
Já perto do meio-dia, pararam para descansar, enquanto Brun examinava nos arredores
as possibilidades de uma caverna. Depois de dar o resto do caldo, trazido na sacola de
couro impermeável, Iza ofereceu à menina uma tira de carne-seca para mastigar. A caverna
não satisfez às exigências. Já chegando mais para a tarde, a perna da menina passou a
latejar, quando começou a diminuir o efeito analgésico das cascas de salgueiro. Ela se
remexia irrequieta. Iza fez-lhe uma festinha, ajeitando-a numa posição mais confortável. A
me nina deixou-se inteiramente entregue aos cuidados da mulher. Com total confiança e
abandono, passou os braços magros em tormo do pescoço de Iza, descansando a cabeça
sobre seus ombros largos. A curandeira que, por tantos anos, havia vivido sem filhos, sentiu
brotar-lhe uma onda de ternura pela pequena órfã. Ela ainda estava fraca e cansada, mas,
embalada pelas passadas ritmadas de Iza, acabou adormecendo.
Com o pôr-do-sol já se aproximando, Iza sentia o esforço que fazia para agüentar o peso
extra que levava e deu graças quando Brun ordenou alto e ela pôde enfim botar a menina
no chão. A garota tinha febre, os olhos brilhavam, e as bochechas estavam coradas e
quentes. Assim, quando foi catar lenha para fazer fogo, Iza procurou também plantas para
renovar os curativos. Ela não sabia o que provocava infecções, mas sabia como tratá-las,
bem como uma série de outras enfermidades.
Embora a arte de curar fosse expressada em termos de bruxaria e magia, nem por isso a
medicina de Iza deixava de ter sua eficácia. Os velhos clãs sempre viveram da caça e da
colheita de plantas. O uso empírico da flora no estado bruto feito por sucessivas gerações
acabou por reunir grande número de informações sobre o assunto. E os animais, depois de
mortos, tinham suas peles removidas, eram esquartejados e os órgaos observados e
comparados. Então quanto preparavam as refeições, as mulheres dissecavam os bichos,
prestando atenção à sua anatomia, para depois aplicar esse conhecimento às pessoas.
A mãe de Iza, como parte do treinarnento da filha, lhe havia mostrado os diferentes
componentes internos do animal, explicando-lhe as funções. No entanto, fazia assim apenas
para lembrar Iza de coisas que ela já sabia. Iza vinha de uma linhagem de curandeiras
altamente respeitadas e, por meios mais misteriosos do que a simples aprendizagem, o
conhecimento médico ia passando de mãe para filha. Uma curandeira, novata ainda no
ofício, mas com antecedentes ilustres, era mais considerada do que outra contando
apenas com sua prática e seu saber, e havia boas razões para isso.
O conhecimento adquirido por seus ancestrais, uma longa linha de curandeiras da qual Iza
descendia diretamente, achava-se armazenado em seu cérebro desde que nascera. Podia
lembrar-se do que suas avós outrora souberam, e isso não era muito diferente do que
lembrar-se de suas próprias experiências. Uma vez estimulado, o processo se fazia
automaticamente. Conhecia a origem de suas próprias memórias, porque se lembrava de
circunstâncias associadas a estas. Nunca se esquecia de nada, e podia recordar o
conhecimento estocado em seu banco de memórias, mas não como ele fora aprendido por
suas antepassadas. Apesar de serem filhos dos mesmos pais, nem Creb nem Brun
possuíam o saber médico de Iza.
As memórias nos indivíduos dos clã se faziam diferentemente nos dois sexos. As mulheres
tinham tanta necessidade de saber sobre caça, quanto os homens não precisavam do mais
rudimentar conhecimento de plantas. A diferença entre o cérebro masculino e o feminino
era imposta pela própria natureza, e a cultura a sedimentava. Essa era outra tentativa da
natureza para limitar o tamanho da cabeça, em seu esforço de prolongar a vida daquela
raça. Qual quer criança que trouxesse de seu nascimento um tipo de conhecimento característico do sexo oposto ao dela iria perdê-lo pela falta de estímulo, quando atingisse o status adulto.
Entretanto, a tentativa da natureza de salvar a raça da extinção trazia em seu próprio bojo os elementos da destruição Se os dois sexos eram essenciais à procriação, igualmente um
precisava do outro no dia-a-dia; separados, não sobreviveriam por muito tempo. E estavam
impossibilitados de adquirir o conhecimento, pois não tinham a memória deste.
Outra particularidade da raça dos clã era a de que os seus indivíduos
- homens e mulheres - haviam sido dotados de uma visão extremamente fina e
perceptiva, embora usada de diferentes modos. O terreno, enquanto viajavam, fora
gradualmente mudando e, no seu subconsciente, Iza havia guardado cada detalhe dos
lugares por onde passaram, especialmente no que se referia à vegetação. Podia discernir à
grande distância as menores variações da forma de uma folha ou na altura de algum talo.
Embora houvesse certas plantas, alguma árvore ou um arbusto ou flor que nunca vira
antes, todos, de certa maneira, lhe eram familiares. Num recanto lá no fundo, atrás de seu
enorme cérebro, ela ia buscar o conhecimento da planta, na memória que havia nascido com ela.
No entanto, com todo esse imenso reservatório de informações a seu dispor, assim mesmo,
começara a ver, desde algum tempo, certos vegetais completamente desconhecidos, tão
estranhos quanto a própria região por onde passavam. Teria gostado de examiná-los mais
de perto. Todas as mulheres estavam também curiosas sobre a flora do lugar. Apesar de
isso representar aquisição de conhecimento, esse era essencial à sua sobrevivência.
Também fazia parte da hereditariedade feminina saber como testar uma planta
desconhecida. Da mesma forma que as outras mulheres, Iza se pôs a experimentar os
vegetais que lhes eram estranhos. As plantas novas semelhantes àquelas já conhecidas
eram postas em categorias correlatas, mas Iza sabia dos riscos que havia em tomar
características semelhantes por propriedades idênticas. O procedimento num teste era
simples. Primeiro, ela dava uma pequena mordida. Se o gosto fosse desagradável, cuspia
imediatamente. Ao contrário, se agradável, retinha na boca uma mínima porção da
planta, prestando o máximo de atenção às mudanças do paladar, se picava, queimava etc.
Se nada acontecesse, ela engolia e esperava para ver se era possível detectar alguns efeitos.
No dia seguinte, dava uma mordida maior, procedendo da mesma forma anterior. Caso
nenhum efeito nocivo fosse observado, depois do terceiro dia de teste, a planta passava a
ser considerada comestível, inicialmente em pequenas quantidades.
Contudo, Iza quase sempre ficava mais interessada quando havia efeitos perceptíveis, pois
significavam a possibilidade de a planta ter algum uso medicinal. E as outras mulheres,
depois de aplicar o mesmo teste, traziam para ela qualquer coisa que lhes parecesse
estranha, bem como todas as plantas com características parecidas com aquelas que sabiam
ser venenosas ou tóxicas. Procedendo com cautela, Iza fazia também testes com estas, mas
aplicando métodos exclusivamente seus. Como os testes levavam tempo, ela preferia, enquanto viajavam, continuar só com as plantas já conhecidas.
Perto do acampamento, encontrou uma quantidade de pés de malva, altos, de caules finos
como varetas e de flores grandes de tonalidades fortes. Tais como as raízes de íris, também
as dessa planta com flores multicolori das davam cataplasmas que serviam para reduzir
inchações, processos inflamatórios, apressando a cura. O chá de malva não só era bom para
anestesiar dores, como também servia para fazer dormir. Assim, junto com a lenha, as malvas foram colhidas.
Depois da refeição da noite, a garota, sentada contra uma enorme pedra, ficou observando
as atividades das pessoas a seu redor. A comida e um curativo novo a haviam revigorado, e
ela, agora, falava animada com Iza, apesar de não ter muita certeza de estar sendo
entendida. As pessoas olhavam em sua direção com ar de reprovação, mas ela não
compreendia o significado latente naqueles olhares. O atrofiamento dos órgãos vocais impedia a raça dos clã de ter uma
articulação precisa. Os poucos sons que usavam com caráter de exclamações tinham
evoluído de gritos de advertência ou de uma necessidade de chamar atenção, e a
importância que atribuíam às verbalizações fazia parte de suas tradições. Os meios
primitivos de comunicação - sinais de mios, gestos, posturas, os costumes estabelecidos, a
intuição nascida do contato ínão timo entre as pessoas e o fino discernimento de
expressões, tanto do rosto como do corpo - eram bastante expressivos, mas limitados.
Era, por exemplo, com a maior dificuldade que tentavam descrever algum objeto novo que
ainda não conhecessem, e mais difícil ainda era a expressão do pensamento abstrato. A
fluência da garota, portanto, deixava-os perplexos e desconfiados.
Eles tinham grande apego às crianças, que cercavam de terna e amorosa afeição. Só quando
elas ficavam mais velhas é que a disciplina passava a ser mais rígida. Os bebês eram
mimados tanto pelas mulheres como pelos homens, e a maneira que tinham para castigar
uma criança era a de simplesmente não tomar conhecimento de sua pessoa. À medida que
iam crescendo, começavam a tomar consciência do status das mais velhas e dos adultos,
passando a imitar-lhes as atitudes e já Não querendo ser mais mimadas, coisa de bebês.
Aprendiam desde cedo a se comportar dentro das estritas regras do clã, e uma delas é a de
que não se devia emitir sons supérfluos, algo bastante fora de propósito. Devido à sua
altura, a menina parecia-lhes mais velha do que realmente era, e todos a estavam
considerando indisciplinada e mal-educada.
Iza, pelo maior contato com ela, imaginava que deveria ser mais criança do que aparentava
e começava a chegar perto de sua verdadeira idade, compre endendo com indulgência seu
estado de carência. Percebeu também, por seus murmúrios durante o delírio, que a gente
dela devia falar com muito mais freqüência e fluência do que eles. Sentia-se atraída por
aquela menina que tão confiantemente a rodeara com seus bracinhos descarnados e que
tinha sua vida dependendo dela. Há muito tempo para que aprenda boas maneiras, disse
consigo. Iza já começava a pensar na menina como dela.
Creb, que rondava por perto enquanto Iza preparava o chá de malva, veio sentar-se próximo
à garota. Estava intrigado com ela. Os preparativos para a cerimônia noturna ainda não
tinham ficado prontos e ele aproveitava aqueles minutos para saber como ela ia passando.
Os dois se olharam, a garotinha e o velho feiticeiro aleijado com sua assustadora
fisionomia, um examinando o outro com a mesma curiosidade. Ele nunca estivera tão perto
de alguém dos Outros e muito menos já vira uma criança daquela raça. A menina, por sua
vez, até que acordou no meio deles, jamais soubera da existência dos clã Contudo, mais do
que simplesmente características raciais, ela estava curiosa com aquela pele enrugada no
rosto de Creb. Em todos os seus pouquíssimos anos de vida, jamais vira uma cicatriz tão
horrenda e, num impulso,
com toda a desinibição de uma criança, tocou-lhe a face, querendo sentir o que era aquilo.
Creb, surpreso, viu-se inteiramente desconcertado com o suave toque da menina. Nunca
outra criança já havia estendido a mão para ele daquela maneira. Tampouco os adultos.
Evitavam seu contato como se sua deformidade pegasse. Apenas Iza, que cuidava de seus
achaques reumáticos, a cada inverno mais dolorosos, parecia não ter escrúpulos. O aleijão
de seu corpo e a feia cicatriz do rosto Não lhe causavam repugnância, como também o
poder que emanava de sua elevada posição social não lhe infundia maiores temores. Assim, aquele doce roçar da mão de uma criança tocou em alguma corda recôndita do velho
coração solitário. Quis, então, comunicar-se com ela e, por instantes, ficou pensando em
como abordá-la.
- Creb - disse ele, apontando para si mesmo.
Iza observava em silêncio, esperando que as flores ficassem bem encharcadas. Sentia-se
contente por ver Creb se interessando pela menina e não deixou de perceber que ele tinha
usado seu nome de nascença.
- Creb - repetiu ele, batendo no peito.
A menina levantou a cabeça, tentando entender. Ele queria que ela fizesse alguma coisa.
Creb disse seu nome pela terceira vez. Súbito, ela se iluminou, sentou-se direita e sorriu.
- Grub? - perguntou, enrolando o R para imitar o som.
O velho fez que sim com a cabeça. A pronúncia estava parecida. Em se guida, apontou para
ela. A garota franziu a cara, sem muita certeza do que ele estava agora querendo. Creb,
então, tornou a bater no peito, repetindo seu nome e batendo no dela logo em seguida. Sim,
ela havia entendido, mas o largo sorriso que deu era, aos olhos dele, como uma careta, e a
palavra polissilábica que lhe saiu dos lábios era não só impronunciável, mas quase
incompre ensível. No entanto, ele procurou fazer os mesmos movimentos de boca. Cur vou-
se para mais perto, tentando ouvir melhor. Ela repetiu seu nome.
- Àay-rr - disse ele, hesitando. Abanou a cabeça e tentou novamente.
- Aay-lla, Ayla? - foi a coisa mais aproximada que conseguiu dizer. E bem poucos eram
aqueles no clã que poderiam chegar tão perto da pronúncia dele.
A menina deu uma risada radiante, balançando afirmativamente a cabeça. NÃO era
exatamente o que tinha dito, mas aceitava, percebendo, apesar de muito criança, que ele não
poderia pronunciar melhor seu nome.
- Ayla - repetiu ele o nome, querendo acostumar-se com o som.
- Creb? - disse a garota, puxando-lhe o braço para chamar-lhe a atenção. Depois,
apontou para a mulher.
- Iza - respondeu Creb. - Iza.
- liiz-sa - repetiu ela. Estava encantada com aquele jogo de palavras.
- Iza, Jza - ficou repetindo e olhando para a mulher.Iza, solenemente cumprimentou-a com a cabeça. Os sons dos nomes eram muito
importantes. Ela se inclinou e bateu no peito da menina, do mesmo jeito como fizera Creb,
esperando que a menina dissesse o seu nome outra vez, O nome foi repetido por inteiro.
Mas Iza simplesmente abanou a cabeça. Não compreendia. Era-lhe impossível fazer aquela
combinação de sons que saía com a maior facilidade dos lábios da menina. A garota estava
desani mada. Então olhando para Creb, pronunciou o seu nome à maneira dele.
- Aii.gaa? - tentou Iza.
A menina tomou a repetir o nome.
- Àii-ga? - tentava iza mais uma vez.
- Aiii não Iza. Aay-lla - falou Creb muito vagarosamente para Iza poder escutar aquela
estranha combinação de sons.
- Aaay-lla - disse Iza com cuidado, esforçando-se para pronunciar a palavra do modo
como Creb a emitira.
A menina sorria. Não tinha importância que seu nome Não estivesse certo. Iza se esforçava
tanto para dizer o nome que Creb lhe dera que ela o aceitava como se fosse o seu. Para eles,
seria Ayla. Com toda a naturalidade estendeu os braços para Iza, querendo abraçá-la.
iza a estreitou com brandura, afastando-se pouco depois. Teria ainda de ensiná-la que
demonstrações de afeto em público era algo de impróprio. Mas ficara contente assim
mesmo.
Ayla não se continha de alegria. Havia se sentido perdida e isolada entre aquela gente que
lhe parecia tão estranha. Esforçara-se tanto para comunicar-se com a mulher que cuidava
dela e saíra tão frustrada de suas tentativas que esse começo já significava muito para ela.
Pelo menos tinha agora um nome para chamar a mulher e outro para ser chamada. Virou-se
para o homem que dera partida ao processo de sua comunicação Ele já não lhe parecia tão
feio. Estava transbordante de alegria, cheia de ternura por ele e, tal como muitas vezes
havia feito com um homem de quem vagamente se lembrava, rodeou os braços em torno do
pescoço de Creb e lhe puxou a cabeça para baixo para poder colar sua bochecha na dele.
O gesto de afeto deixou-o perturbado. Resistia ao impulso de corresponder ao abraço. Seria
extremamente impróprio que o vissem abraçando aquela criaturinha estranha, fora dos
limites do núcleo familiar, mas assim mesmo deixou que Ayla comprimisse sua bochecha
firme e macia contra seu rosto barbudo, antes de delicadamente tirar-lhe os braços de seu
pescoço.
Creb pegou o cajado e, com sua ajuda, levantou-Se. Enquanto ía andando, pensava na
garota. Tenho de ensiná-la a falar. Ela precisa aprender a comunicar-se direito, disse
consigo. Afinal, não posso confiar toda sua educação a uma mulher, mas ele sabia que o
que realmente estava querendo era passar mais tempo com a menina. Sem se dar conta, já pensava nela como fazendo
parte para sempre do clã.
Brun não tinha avaliado bem as implicações do fato de haver permiti do Iza pegar uma
menina desconhecida no meio do caminho. Isso não era culpa dele como chefe, mas sim
dele como produto de sua raça. Naturalmente, não poderia prever esse encontro e
igualmente suas conseqüências lógicas. Ela tinha sido salva, sua vida estava fora de perigo;
agora, se não a quisesse no clã a única coisa que lhe restava era mandá-la embora e deixá-la
novamente entregue à própria sorte. Mas sozinha não sobreviveria. Não se tratava aqui de
raciocinar sobre o futuro, era simplesmente a constatação de um fato. Salvá-la, para expô-la
por uma segunda vez à morte significaria comprar uma briga com Iza que, se não tinha
poder pessoal, dispunha de uma legião de espíritos do seu lado. E, agora, havia também
Creb, o Mog-ur, que, por sua vez, possuía poder para invocar qualquer ou todos os espíritos
que bem entendesse. Espíritos, uma força poderosíssima, com a qual Brun não tinha a
menor vontade de se ver às voltas. A bem da verdade, esta era justamente a possibilidade
que o levava a desgostar da menina. Ele não sabia expressar isto para si mesmo, mas sentia
qualquer coisa pairando no ar. Não havia percebido ainda que seu clã estava aumentado para
21 membros.
Ao examinar a perna de Ayla no dia seguinte, Iza notou que melhorara. Sob seus sábios
cuidados, a infecção praticamente desaparecera, e os arra nhões, na forma de quatro riscas
paralelas, estavam fechados e já curados, em bora a garota fosse ficar para sempre com
aquela cicatriz. Iza achou que os cataplasmas já não eram mais necessários, mas ainda fazia
os chás de casca de salgueiro. Nesse dia, ao sair da pele de dormir, Ayla tentou ficar de pé
com a ajuda de Iza, que a escorava, enquanto a menina ia aos poucos assentando o peso do
corpo sobre a perna. Doía, mas, depois de alguns passos cautelosos, começou a sentir-se
melhor.
De pé, sobre as duas pernas, a menina ainda era mais alta do que imaginara Iza. Eram
pernas esguias, longas, de joelhos pontudos e retos. Iza chegou a pensar se a garota não
seria aleijada. As pernas das pessoas dos clãs eram arqueadas, formando uma curva para
fora. Não. A menina não tinha qualquer problema para andar, apenas estava ainda um pouco
fraca. Pernas retas devem ser também normal nela, concluiu. . . do mesmo modo que olhos
azuis.
A curandeira enrolou-se em sua capa e suspendeu Ayla para montá-la mais uma vez sobre
sua anca. A perna ainda Não estava bastante boa para caminhadas maiores. Vez por outra
naquele dia, Iza colocou-a no chão para que fizesse um pouco de exercício. A garota comia
com gulodice, descontando todo o seu tempo de fome, e Iza já a achava mais gorda.
Ficava contente de se ver livre por algum tempo daquele fardo extra, sobretudo porque a
viagem mostrava-se cada vez mais difícil.
O clã havia deixado para trás o vasto terreno das estepes e os dias seguintes foram passados
atravessando uma região acidentada, com os morros ficando cada vez mais íngremes.
Estavam nos contrafortes de belas montanhas, cujos picos gelados e brilhantes mostravam-
se a cada dia mais próximos. As coli nas eram revestidas por densas florestas, não com a
vegetação perene da floresta boreal, mas com folhagens de tons magníficos de verde e com
velhas ár vores de folhas largas e grossos troncos nodosos. Brun achava-se espantado. A
temperatura esquentara, avançando rapidamente sobre a estação. Os homens haviam
trocado suas capas por uma peça de couro mais curta que lhes deixava à mostra o torso nu.
As mulheres não alteraram as vestimentas. Era mais fácil carregar suas tralhas usando o
traje completo que diminuía o atrito da carga sobre o corpo.
O terreno não tinha mais qualquer semelhança com a pradaria fria do antigo cenário da
outra caverna. Iza se via cada vez mais dependente do conhecimento de seu banco de
memórias, à medida que iam passando por sombrios desfiladeiros ou caminhando por
elevações verdejantes em pleno ambiente da floresta temperada. Os troncos escuros de
cascas grossas - carvalhos, faias, nogueiras, macieiras, aceráceas - misturavam-se com
outros de cascas lisas e flexíveis - salgueiros, bétulas, cárpeas, álamos - tudo em meio a
frondosos amieiros e aveleiras. O ar estava impregnado de um aroma forte e penetrante que
parecia elevar-se da brisa suave e quente vinda do sul. Um cheiro que Iza não conseguiu de
pronto identificar. Arnentilhos ainda se colavam às folhas dos pés de bétulas e delicadas
pétalas voavam ao sabor do vento, enquanto nas árvores as flores desabrochadas
prometiam um outono farto em frutas.
Lutando contra um cerrado matagal e o emaranhado de plantas trepadeiras da floresta
fechada, eles subiam pelas encostas mais à mostra dos rochedos. Enquanto galgavam os
aforamentos, ao redor os flancos das colinas resplandeciam com folhagens de todos os
matizes. O verde-escuro dos pinheiros tornou a reaparecer ao lado de abetos prateados e,
um pouco mais acima, surgiam aqui e ali as manchas dos espruces azuis. As cores se
entremeavam, dos tons sombrios das coníferas ao verde forte e vivo das frondes de folhas
largas, até as tonalidades esmaecidas das tílias e das árvores de delicada folhagem. O
musgo e a relva contribuíam com suas nuanças para o mosaico formado por luxuriante
vegetação e pequenos arbustos. Lá se achavam desde as oxalis - os trevos e azedinhas -
até pequeninas suculentas que se agarravam às paredes nuas das rochas. E espalhando-se
por toda a mata, miríades de flores silvestres: lírios brancos, violetas amarelas, espinheiros
rosa, enquanto nos altiplanos dominavam os junquilhos dourados e as gencianas azuis e
amarelas. Por fim, saindo de algumas sombras, os últimos açafrões da temporada ainda
corajosamente exibiam suas flores amarelas, brancas e vermelhas.
O clã fez uma parada para descansar, quando atingiu o topo de um alto aclive. Embaixo, o
panorama das florestas, cobrindo os flancos montanhosos, terminava abruptamente nas
estepes que se estendiam até o horizonte. De onde eles se achavam, viam diversos rebanhos
pastando a distância na relva alta e amarelecida pelo sol de verão. Se os caçadores
estivessem livres e desembaraçados das mulheres carregando seus pesados fardos,
poderiam dar-se ao luxo de escolher que caça preferiam dentre uma enorme variedade de rebanhos e manadas. Facilmente, estariam em pouco tempo nos terrenos das estepes. O céu a
leste, para o lado da pradaria, estava claro, mas rajadas de vento traziam pesadas nuvens
negras, armando-se ao sul. Se continuassem a avançar, a alta cordilheira de montanhas, ao
norte, era uma barreira para as nuvens que iriam descarregar toda a sua massa de chuvas
sobre eles.
Brun e os homens estavam tendo uma reunião fora das fileiras das mulheres e das
crianças, mas, por suas carrancas e gestos, podia-se bem imaginar do que tratavam: se
deveriam ou não prosseguir no caminho. Aquele era um terreno desconhecido, e o pior,
estavam-se afastando muito das planícies. Em bora tivessem avistado alguns animais no pé
da cordilheira, nada se comparava com os rebanhos nutridos com as gordas pastagens das
campinas. Em campo aberto, os animais eram presas mais fáceis. Não tinham a floresta
para encobri-los e estavam longe dos predadores que lhes disputavam a carne com o
homem. Além disso, os animais nas planícies quase sempre eram gregários, andando aos
bandos, diferentes dos da floresta, vivendo solitariamente ou em pequenos grupos.
Iza achava que voltariam, que todo o esforço para subir as íngremes encostas fora em vão.
A massa pesada de nuvens e a chuva ameaçadora se constituíam num melancólico manto
negro sobre suas desalentadas cabeças. Enquanto esperavam, Iza pôs Ayla no chão,
aliviando-se de seu peso. A garota, gozando da liberdade de movimento que sua perna
curada lhe permitia, e depois de tanto tempo presa ao quadril de Iza, imediatamente foi
passear. Iza viu quando ela sumiu de vista por trás da ponta de um monte, pouco mais
adiante. Não queria que ela se afastasse muito. A reunião poderia terminar a qualquer
instante e Brun não iria olhar com bons olhos, se a menina atrasasse a partida. Foi
procurá-la e, ao contornar a ponta, deparou-se com Ayla. Mas, o que viu para além do lugar
onde se achava a menina fez seu coração disparar descompassadamente.
Correu de volta, ao mesmo tempo que olhava para trás por cima do ombro. Não ousou
interromper Brun, esperando cheia de impaciência que os homens terminassem a reunião.
Brun a havia visto. Percebeu logo, mesmo sem demonstrá-lo, que alguma coisa a
incomodava. Quando a reunião por fim se desfez, Iza correu em sua direção, sentando-se na
frente dele, com os olhos postos no chão, numa atitude que indicava estar querendo falar-
lhe. Brun poderia ou não conceder-lhe audiência, a decisão era exclusivamente dele. Se a ignorasse, ela
Não teria licença para dirigir-se a ele.
Brun pôs-se, então a imaginar o que poderia Iza estar querendo. Ele vira quando a
menina saíra a passear, pouca coisa em seu clã lhe escapava. Mas naquele momento tinha
problemas mais urgentes para tratar. Deve ser alguma coisa sobre a menina, pensou,
franzindo a testa e sentindo vontade de dispensar Iza. Pouco importava o que o Mog-ur
houvesse dito, ele não gostava da garota viajando com o clã. Ao levantar os olhos, deu com
o feiticeiro observando-o a distância, mas era um rosto impassível, onde ele não pôde ler
qualquer pensamento.
Voltou então os olhos para a mulher sentada a seus pés. A postura dela traía a intensa
agitação que lhe ia por dentro. Iza está realmente perturbada, disse consigo. Brun não era
homem sem sentimentos e tinha a germana em alta conta. Apesar de todos os problemas
que teve com seu companheiro, sempre foi uma mulher que soube conduzir-se com
correção Era um exemplo para as outras. Raramente vinha aborrecê-lo com ninharias.
Talvez devesse deixá-la falar. Ele não era obrigado a atendê-la. Estendeu a mão e lhe bateu
de leve no ombro.
Ao sentir o toque, Iza soltou a respiração sem sabê-lo a tinha mantido suspensa o tempo
todo. Ele havia deixado que falasse! Custara tanto a decidir-se que já estava certa de que
seria ignorada. Pôs-se de pé e apontou na direção do monte, dizendo apenas uma palavra:
caverna!

Capítulo 4

Brun rodou nos calcanhares e caminhou na direção indicada por Iza. Ao contornar o
lugar onde o morro fazia uma ponta, parou, inteiramente tomado pela vista que tinha à
frente. Uma onda de emoção perpassou por todo o seu corpo. Uma caverna! E que caverna!
No primeiro momento em que botou os olhos nela, o chefe soube que era exatamente o que
procurava. Mas esforçava-se por se conter, não querendo deixar-se levar pela esperança.
Pondo toda sua atenção procurava reparar nos detalhes e na situação da caverna. TÃO
concentrado estava que quase não se dava conta da menina rondando por perto.
Mesmo de onde ele se achava, a umas centenas de metros, a boca triangular da caverna,
cavada na rocha marrom-acinzentada, prometia um espaço interior mais do que suficiente
para acomodar o clã. A abertura que a caverna tinha do lado sul era batida pelo sol durante
quase todo o dia. Como se para confirmar, um raio de sol, encontrando uma brecha nas
nuvens, veio iluminar o chão avermelhado do largo terraço na parte da frente. Brun
vasculhava a área, fazendo uma inspeção rápida. Um enorme penhasco ao norte e outro
igual a sudeste ofereciam proteção contra os ventos. A água também estava próxima,
pensou ele, somando mais um dado a favor, ao ver um riacho correndo a oeste do pé da
colina. De longe, era a melhor coisa que já tinha visto. Fez sinal para Grod e Creb,
reprimindo o entusiasmo enquanto os esperava. Juntos, iriam examinar a caverna de perto.
Os dois correram em sua direção seguidos por Iza, que foi buscar Ayla. A mulher também
deu mais uma olhada de inspeção aprovando satisfeita, com a cabeça, antes de voltar para o
grupo de pessoas gesticulando excitadas. A emoção reprimida de Brun falava por si.
Sabiam que uma caverna fora encontrada e sabiam também que Brun via grandes
possibilidades nela. Luminosos raios de sol vararam a sombria e tristonha atmosfera,
parecendo encher de esperança o ar que se punha de acordo com os ânimos de toda aquela
gente em ansiosa expectativa.
Ao se aproximar da entrada, Brun e Grod seguraram firmes em suas lanças. NÃO
viram qualquer sinal de presença humana, mas isso não significava que a caverna estivesse
desabitada. Passarinhos se lançavam pipilando e cantando numa revoada circular. Pássaros é bom sinal, pensou o Mog-ur. À me dida que se
acercavam, foram caminhando com mais cautela, contornando a boca de entrada, enquanto
Brun e Grod procuravam por pegadas frescas e vestígios de excrementos. O que existia
de mais recente era de alguns dias atrás. Os rastros e as marcas de enormes dentadas nos
ossos da perna de um animal, partidos por poderosas mandíbulas, contavam sua própria
história. Um bando de hienas havia usado temporariamente a caverna. Depois de atacarem
um velho e grande gamo, arrastaram sua carcaça para o interior da caverna e lá terminaram à vontade e em relativa segurança seu festim.
Próximo à extremidade oeste da entrada, aninhado num emaranhado de arbustos e
trepadeiras, havia um lago alimentado por uma cascata. Sua saída era um regato que
escorria pela encosta até encontrar o primeiro riacho. Dei xando os outros dois à espera,
Brun foi em direção à nascente, brotando da rocha, um pouco mais acima na encosta
acidentada que encobria a lateral da caverna. A água, cintilando, logo ali na boca da
entrada, era fresca e pura, fazendo com que Brun acrescentasse mais esse dado a
favor. O lugar era bom, mas seria a própria caverna que decidiria. Os dois caçadores e o
feiticeiro se prepararam para passar pela enorme e escura abertura.
Retornando para a outra extremidade do lado leste, penetraram no buraco cavado na
montanha com os olhos voltados para cima e reparando na altura colossal da entrada de
forma triangular. Todos os sentidos alerta, iam caminhando cautelosamente com os corpos
junto às paredes. Com os olhos já acostumados à escuridão, olhavam, admirados, em
derredor. Um teto em abóboda fazia arcos sobre um enorme espaço, suficientemente grande
para abrigar um número bem maior do que aquele de que se compunha o clã. Passo a passo,
rente à parede, iam andando e vendo se não haveria outras aber turas dando para novos
recintos. Já quase ao fundo, uma segunda fonte de água escorria da parede, formando uma
poça que desaparecia pouco mais adiante no chão seco e arenoso. Neste ponto, a parede
fazia uma curva inesperada, levando de volta à entrada. Seguindo a parede do lado oposto,
a partir da boca da caverna, a luminosidade era um pouco mais forte permitindo que eles
vissem uma fenda escura delineada na parede cinza. Ao sinal de Brun, Creb parou em seus
passos desajeitados e vacilantes, enquanto Grod e ele foram olhar no interior do buraco na
parede. Só viram a escuridão
- Grod! - chamou Brun por meio de um gesto, significando que estava precisando de
sua ajuda.
O segundo em comando correu para fora da caverna, enquanto Brun e Creb, nervosos,
aguardavam sua volta. Grod vasculhou a vegetação por perto e, em seguida, dirigiu-se a um
grupo de pés de abeto prateado. Bolos de uma secreção resinosa minavam através das
cascas, pondo manchas luzidias sobre os troncos. Ele deu uma olhada sob as cascas soltas.
A seiva gotejava, pegajosa, das cicatrizes deixadas nos troncos. Separou, então, alguns galhos secos e mortos que
continuavam ainda presos às ramagens vivas. Com uma machadinha que tirou de dentro da
roupa, cortou um galho verde, rapidamente desfolhando-o. Numa das extremidades deste,
enrolou capim junto com a resina e os pequenos galhos secos. Por fim, com todo o cuidado,
retirou o carvão aceso do chifre de auroque que trazia pendurado na cintura e encostou a brasa
junto da resina, pondo-se a soprá-la. Pouco depois, estava correndo para a caverna, levando
na mão uma tocha acesa.
Com Grod segurando a luz bem no alto, e Brun, à frente, empunhando sua maça, pronto
para o que desse e viesse, os dois passaram pela fenda. Em silêncio, avançaram com
dificuldade por uma estreita passagem que, após alguns passos, fazia um cotovelo para
dobrar na direção dos fundos, mas, antes, dando para uma segunda caverna, logo depois da
virada. O espaço nesta, bem menor, era quase circular. Empilhado contra a parede do
fundo, um monte de ossos brilhava sua brancura à luz trêmula da tocha. Brun chegou-se
para mais perto, querendo ver melhor e, subitamente, seus olhos saltaram. Esforçava-se
para poder controlar-se. Fez um sinal para Grod, e os dois rapida mente bateram em
retirada.
O Mog-ur esperava ansioso, apoiando todo seu peso sobre o cajado. Ao ver Brun e Grod
saírem para fora da escuridão Creb ficou surpreso. Não era normal em Brun aquela agitação.
A um gesto deste, o Mog-ur seguiu os dois homens que de novo retornavam à passagem no
interior da caverna. Chegando ao pequeno recinto, Grod suspendeu a tocha bem no alto.
À vista da pilha de ossos, o Mog-ur estreitou os olhos. Deu uns passos à frente e caiu sobre
os joelhos, enquanto seu cajado se esboroava no chão Arrastando-se em meio aos ossos, viu
uma enorme forma oblonga e, pondo de lado os outros ossos, pegou uma caveira.
NÃO havia a menor dúvida. O alto arco frontal abobadado ia de par com aquele que
carregava em sua capa. Ele se sentou, suspendendo o crânio à altura dos olhos, pondo-se a
mirar, entre incrédulo e reverente, os dois buracos escuros das órbitas. Ursus usara aquela
caverna e, pela quantidade de ossos, os ursos de outrora deveriam ter hibernado naquele
lugar por muitos e muitos invernos. Agora, Creb compreendia a perturbação de Brun. A
caverna já fora moradia do Grande Urso da Caverna. A essência da poderosa criatura,
reverenciada e honrada acima de todas as outras, achava-se impregnada na própria rocha das paredes. Sorte e fortuna para o clã que fosse viver ali. Pela idade dos Ossos, era
evidente que a caverna havia ficado desabitada por longos anos, como se estivesse
esperando por eles.
Era a caverna perfeita, bem situada, espaçosa, com outra anexa que poderia ser usada no
inverno e no verão para os rituais secretos, um recinto, por sinal, alentado pelo mistério que se constituía na vida espiritual dos clã. OMog-ur já visualizava suas cerimônias. Naquela pequena caverna estaria o seu domínio. A
busca terminara, o clã encontrou um lar. . . só faltava a primeira caçada ser bem-sucedida.
Quando os três homens saíram da caverna, o sol brilhava, as nuvens iam em debandada,
levadas por um vento cortante vindo do este. Brun viu nisso um sinal de bom presságio.
Mas daria no mesmo, se as nuvens estivessem sendo estilhaçadas por raios e trovões e se
despencando sobre a terra na forma do mais completo dilúvio. Veria igualmente um sinal
de bom agouro. Nada podia empanar sua alegria ou dissipar seu sentimento de satisfação.
Ele ficou de pé, no terraço, à porta da caverna, olhando a vista dali. À frente, atra vés da
fenda formada por duas colinas, viu tremeluzindo a distância uma vasta extensão de água
que se perdia na distância. Não pensava que estavam tão perto, disse subitamente
compreendendo. Agora estava resolvido o problema daquela vegetação inusitada e daquela
rápida mudança de temperatura.
A caverna localizava-se no sopé de uma cadeia de montanhas na ponta sul de uma
península que se projetava num mar interno, situado entre terras continentais. O lugar era
ligado ao continente em dois pontos. A conexão principal se fazia por um largo istmo ao
norte; as terras montanhosas do leste ligavam-se por uma marnota que servia também
como escoadouro para um outro mar interno, de menores proporções, na parte nordeste da
península.
As montanhas ao fundo protegiam a faixa litorânea do gelado frio de inverno e dos ventos
tenebrosos originados nas geleiras continentais ao norte. Os ventos da orla marítima,
abrandados pelas águas tépidas do mar, criavam um estreito cinturão de clima temperado na
protegida ponta sul da península, além de prover com bastante umidade e calor a floresta
formada de velhas e frondosas árvores de madeira de lei, características das regiões de
clima tem perado.
A caverna encontrava-se numa localização ideal. O clã usufruía do me lhor dos dois
mundos. A temperatura era mais quente do que qualquer outra que predominava nas áreas
por perto e havia abundância de madeira para supri-los com lenha e aquecê-los durante os
gelados meses de inverno. Um enor me mar estava bem ali à mão, repleto de peixes e frutos
marítimos e, ao longo da praia, os penhascos abrigavam os ninhos das aves marinhas com
seus ovos. A floresta era um paraíso para aquele povo que ainda vivia da coleta de frutas,
nozes, sementes, legumes e verduras. Além disso, o clã tinha fácil acesso à água potável,
provinda das fontes no terreno e do rio, O mais importante, porém, é que se podia
facilmente chegar às planícies, cujas extensas áreas cobertas de relva sustentavam
compactas manadas de animais de pastagens que Não só lhes forneceriam carne, como
também roupa e muitos outros implementos. O pequeno clã de caçadores-coletores vivia
da natureza e esta era abundante.
Enquanto caminhava de volta, em direção ao clã sempre à espera, Brun quase Não via o
chão em que pisava. Nem em pensamento havia vislumbrado caverna mais perfeita. Os
espíritos haviam voltado outra vez. Talvez nunca ti vessem ido embora, é provável que
quisessem apenas que mudássemos para esta caverna, muito melhor e mais espaçosa do que
a antiga. Claro! Deve ser isso! Estavam cansados da outra e desejavam uma nova moradia,
por isso provocaram o terremoto para que saíssemos de lá. Talvez as pessoas que morreram estivessem fazendo falta no mundo dos espíritos e agora, eles, para nos compensar,
deram essa caverna. Deviam estar nos botando à prova, querendo testar minha capacidade
de chefe. Foi por isso que eu Não conseguia resolver se devíamos ou Não voltar. Brun
sentia-se feliz por ver que Não falhara em sua liderança. Se Não fosse inteiramente
impróprio, teria saído correndo para contar aos outros.
Quando os três homens surgiram, Não havia necessidade de contar a ninguém que a
viagem chegara ao fim. Todos sabiam. Mas só Iza e Ayla já tinham visto a caverna, e
somente Iza pôde apreciá-la. Tinha certeza de que Brun iria reivindicá-la. Agora, ele Não
pode mandar Ayla embora, pensou consigo mesma. Se Não fosse a menina, ele teria
voltado antes de encontrar a caverna. O totem de Ayla deve ter muita força e ela, uma boa
estrela. Ayla traz sorte para nós. Olhou para a garotinha sentada a seu lado, inteiramente
alheia ao rebuliço que causara. Mas, se ela tem tanta sorte, por que então perdeu sua gente? Iza meneou a cabeça. Nunca vou entender os caminhos usados pelos espíritos.
Brun também estava olhando para a menina. Logo que pôs os olhos em cima de Iza e de
Ayla, lembrou-se de que tinha sido Iza que lhe falara sobre a caverna e ela nunca a teria
achado se Não tivesse ido atrás da garota. Havia ficado até aborrecido quando viu a
menina passeando sozinha, pois dissera a todos que esperassem. Mas se Não fosse por ela
ser tão indisciplinada, ele teria perdido a caverna. Por que teriam os espíritos primeiro
conduzido a menina? O Mog-ur estava certo. Aliás, ele está sempre certo. Os espíritos Não
ficaram zangados pelo fato de Iza ter tido dó da garota e nem estavam descontentes por
Ayla estar com eles. O mais provável é que a protegessem.
Brun olhou a figura deformada do homem que deveria ter sido o chefe em seu lugar.
Sorte a nossa de que meu irmão seja o nosso Mog-ur. Estranho, continuou dizendo consigo,
há muitos anos que Não pensava nele como meu irmão. . . desde o tempo em que éramos
crianças. Isso havia sido na época em que ele, ainda muito jovem, lutava consigo mesmo
para adquirir o autodomí nio necessário a todo homem, sobretudo para alguém destinado a
se tornar chefe. Seu irmão mais velho também tinha travado sua luta pessoal: contra o
sofrimento e o ridículo de Não poder caçar, e ele parecia ter o dom de adivinhar quando
Brun se achava infeliz. O olhar suave de Creb o acalmava e, mesmo até hoje, Brun sentia-se melhor quando seu irmão vinha sentar-se perto dele,
oferecendo-lhe o consolo de sua compreensão silenciosa.
Todas as crianças que nasciam da mesma mãe eram germanas, mas só as crianças do mesmo
sexo referiam-se umas às outras, como irmão ou irmã, esses eram termos mais íntimos e,
assim mesmo, usados quando já estavam maiores e nos raros momentos em que queriam
demonstrar sentimentos afetivos. Os homens Não tinham irmãos bem como as mulheres não
tinham irmãs Creb era germano e irmão de Brun; Iza era apenas germana, e ela não tinha irmãs
Houve tempo em que Brun sentia pena de Creb, mas há muito se esquecera das
atribulações do outro, em vista de sua sabedoria e poder. Prati camente, havia deixado de
vê-lo como homem. Para Brun, Creb era o grande feiticeiro, cujos sábios conselhos estava
sempre procurando. Achava que o irmão não lamentava o fato de não ter sido o chefe, mas,
às vezes, punha-se a imaginar se Creb não gostaria de ter tido uma companheira e crianças
junto a sua fogueira. As mulheres, em certas ocasiões, podiam ser bem cansativas, mas
quase sempre traziam um pouco de alegria e ternura. Creb não teve com panheira, nunca
aprendeu a caçar, jamais conheceu os prazeres ou as responsabilidades normais próprias da
natureza masculina, mas ele era mog-ur, o grande Mog-ur.
Brun nada sabia sobre feitiçarias e muito pouco sobre espíritos, mas era o chefe e sua
companheira havia tido um magnífico filho. Ele se enchia de orgulho e prazer sempre que
pensava em Broud, o menino que estava educando para um dia assumir seu lugar. Vou
levá-lo na próxima caçada, resolveu subitamente, a caçada para a festa da nova caverna.
Essa poderá ser também a caçada de sua passagem. Se ele conseguir matar algum animal,
poderemos fazer a iniciação dele conjuntamente com a cerimônia da caverna, isso vai
deixar Ebra orgulhosa. Broud já está suficientemente crescido, é forte e corajoso. Às vezes,
um pouco cabeça-dura, mas já estava aprendendo a controlar seu temperamento. Brun
estava necessitando de mais um caçador. Agora que já tinham uma caverna, precisavam
trabalhar, prevendo o próximo inverno. O me nino achava-se com quase 12 anos, já
bastante grande para entrar na idade adulta. Na nova caverna, Broud poderia, pela primeira
vez, participar das memórias, pensou o pai. Elas vão ser especialmente boas. Iza fará a
bebida.
Iza! O que vou fazer com ela? E com a menina? Iza já está muito ligada à garota. . . por
mais estranha que seja. Deve ser porque passou tantos anos sem ter filhos. Mas daqui a
pouco tempo vai ter o filho dela e Não tem nenhum companheiro para sustentá-la. Com a
menina, serão duas crianças com quem vai ter de preocupar-se. Iza já Não é moça, mas está
grávida e tem status e suas mágicas. Iza é uma honra para qualquer homem que quiser
assumi-la. Se Não fosse pela garota, um dos caçadores poderia tomá-la como segunda
mulher. Mas a garota, os espíritos a protegem, e eles vão ficar com muita raiva se agora eu a
mandar embora. Podem fazer com que a terra trema outra vez. Brun teve um arrepio.
Sei que Iza quer ficar com a menina e foi ela quem me falou da caverna. Merece ser
distinguida por isso, mas a coisa Não é simples. Se eu deixar que a garota fique, isso mostra
que está sendo honrada, mas a menina não é da raça dos clã Será que nossos espíritos vão
querê-la? Ela nem totem possui. Como vamos permitir que fique conosco, se Não tem
totem? Ah, espíritos! Nunca vou entender deles.
- Creb! - chamou Brun.
O feiticeiro voltou-se ao ouvir o som da voz, surpreso pelo fato de Brun o estar
chamando por seu nome de nascença. Quando seu irmão lhe fez sinal, dizendo que a conversa
seria em particular, ele foi capengando na direção do outro.
- Essa menina.. . a que Iza trouxe. . . Bem, você sabe, Mog-ur. Ela não é da raça dos clãs -
começou Brun a falar, um tanto inseguro, sem saber como principiar a conversa. Creb
esperou. Foi você quem disse para que eu deixasse Ursus decidir se ele queria ou não que a
menina continuasse vivendo. Parece que ele resolveu deixar que ela viva e, agora, o que
vamos fazer com a garota? Ela não é da nossa raça. Não tem totem. Nossos totens não vão
permi tir nem mesmo pessoas de Outro clã na cerimônia que vai preparar a caverna para
eles. Só aqueles que têm espíritos vivendo aqui é que vão poder participar. A menina é
muito criança, nunca irá sobreviver sozinha e você sabe que Iza quer ficar com ela.. . mas, e
a cerimônia da caverna, como fica?
Creb já esperava por essa conversa e estava preparado.
- A menina tem totem, Brun. E um poderoso totem. Apenas não sabemos qual. Foi
atacada por um leão da caverna e saiu apenas com alguns arranhões.
- Um leão da caverna? Poucos caçadores iriam conseguir escapar com tão pouca coisa.
- lião mesmo. E pense que ela ficou caminhando sozinha por longo tempo, quase
morrendo de fome e não morreu. Foi posta em nosso caminho para que Iza a achasse. E não
se esqueça também, Brun, de que você não impediu isso. Ela é muito criança para agüentar
tanto sofrimento - prosseguiu falando o Mog-ur. - Mas minha impressão é que a menina
está sendo testada pelo totem dela para ver se é digna. Seu totem não é apenas poderoso, ele
tem também uma boa estrela. Nós poderíamos participar da sorte dela. Talvez até já
estejamos.
- Você está se referindo à caverna?
- Foi para ela que a caverna foi mostrada primeiro. Nós já estávamos prontos a voltar.
Você nos conduziu tão perto, Brum e...
- Os espíritos me conduziram, Mog-ur. Eles queriam uma nova casa.
- Claro, eles o conduziram, mas foi para a menina que mostraram em primeiro lugar.
Estive pensando, Brun. Há dois bebês que ainda não têm totens conhecidos. Ainda não tive
tempo. Encontrar uma caverna era mais importante. Acho que, quando a caverna for
santificada, podemos fazer ao mesmo tempo uma cerimônia de totens. Isso traria sorte aos
bebês e agradaria às mães.
- E o que isso tem a ver com a menina?
- Quando eu for meditar sobre os totens dos dois bebês, pedirei um para ela também. Se o
totem da menina se revelar a mim, ela poderá participar da cerimônia. Isso não exige muito
dela, e nós, nesta mesma ocasião poderemos aceitá-la no clã. Assim, Não existirá mais
qualquer problema no fato de a garota ficar conosco.
- Aceitar a menina no clã. Mas ela não é da nossa raça. Ela é gente dos Outros. Quem
falou em aceitá-la no clã? Isso não seria permitido. Ursus não gostaria. Nunca se viu uma
coisa desta antes! - objetou Brun. - Eu não estava imaginando em fazê-la um de nós.
Pensava apenas em que os espíritos talvez pudessem deixá-la continuar vivendo aqui, até
que ficasse um pouco mais velha.
- Iza salvou-lhe a vida, Brun. Agora, Iza carrega uma parte do espírito da menina. Isso
torna a garota parte de nossa gente. Ela andou perto de ir para o outro mundo, mas continua
viva. É a mesma coisa que ter nascido outra vez, que ter nascido para nossa gente. - Pelas
mandíbulas contraídas de Brun, Creb viu que ele estava contra sua idéia e foi logo
apressando-se em falar, antes que o outro dissesse qualquer coisa. - As pessoas de um
clã se juntam com as de outro clã Brun. NÃO existe nada de estranho nisso. Houve época
em que jovens de diversos clã se juntavam para formar novos clãs. Lembra-se da última
reunião de clã Dois pequenos clã não resolveram juntar-se e fazer um só? Os dois ficaram
morando juntos, mas não nasceram muitas crianças, e das que nasceram foram poucas as
que conseguiram passar do primeiro ano de vida. Aceitar alguém de fora não é coisa
nova.
- É verdade, algumas vezes, pessoas de um clã se unem com outras de fora, mas a menina
não é da nossa raça. Você nem sabe se o espírito do totem dela vai falar com você, Mog-ur.
E se falar, como saberá que está entendendo o que ele diz? Se nem a menina eu consigo
entender, quanto mais seu totem. Você realmente acha que pode fazer isso? Descobrir qual
é o totem dela?
- Vou tentar. Pedirei a Ursus para me ajudar. Os espíritos têm a língua deles, Brun. Se a
intenção for de que ela se junte a nós, o espírito protetor dela dará um jeito para se fazer
entender.
Brun por um momento ficou pensativo.
- Mas mesmo que você descubra o totem dela, qual o caçador que vai querê-la? Iza e o
bebê já vão ser um fardo bastante pesado e nós não temos muitos homens para caçar. NÃO
foi só o companheiro de Iza que perdemos no terremoto. O filho da companheira da Grod
morreu e ele era jovem e bom caçador. O companheiro de Aga também se foi e ela ficou
com dois filhos e a mãe que está dividindo a fogueira com ela. - Uma pontinha de dor se
insinuou nos olhos de Brun, à lembrança de todas essas mortes havidas no clã
"E Oga - continuou Brun - primeiro o companheiro da mãe Morto com uma chifrada e
logo depois a mãe morrendo no desmoronamento. Eu disse, então, a Ebra que a menina iria
ficar conosco. Oga já está quase moça. Quando chegar o tempo, acho que vou dá-la a
Broud. Isso vai deixá-lo contente. - Por um instante, Brun ficou distraído, pensando
em suas responsabilidades. - Já existe muito trabalho para os homens que ficaram, sem
contar com essa menina, Mog-ur. Se eu a aceitar no clã, para quem vou poder dar Iza?
- E para quem você iria dar Iza, durante esse meio tempo, até que a menina tenha idade
para ir embora, Brun? - perguntou Creb. Brun parecia confuso, o irmão prosseguiu,
antes que o chefe pudesse responder. - NÃO há necessidade de encarregar nenhum
caçador do sustento de Iza e da criança, Brun. Eu sustentarei as duas.
-Você?
- Por que não? Elas são mulheres. NÃO há meninos para educar, pelo menos por enquanto.
Eu, como Mog-ur, tenho direito a uma parcela de cada caça, não é verdade? Nunca precisei
e nunca reclamei. Mas se eu quiser, eu posso. Não seria mais fácil, se todos os caçadores
dessem para mim o qui é devido ao Mog-ur? Assim, poderei sustentar Iza e a menina,
ao Invés de um único caçador ficar encarregado delas. Eu estava mesmo pretendendo ter
uma conversa com você sobre isso. Queria dizer-lhe que logo que encontrássemos uma
caverna, eu gostaria de ter a minha própria fogueira e que me encarregaria de Iza, a não ser
que outro homem queira ficar com ela. Há mui tos anos venho dividindo minha fogueira
com ela. Para mim, seria difícil mudar de hábito, depois de tanto tempo. Além disso, Iza me
ajuda com meu reumatismo. Se a criança que nascer for menina, eu tomo conta dela
também. Se for menino, bem. . . não adianta nos preocuparmos com isso por enquanto.
Brun ruminava a idéia. Sim. Por que Não? Facilitava para todo mundo. Mas o que levava
Creb a querer fazer isso? Iza iria do mesmo jeito continuar sempre cuidando do reumatismo
dele, seja lá em que fogueira ela estivesse. Por que será que um homem na idade de Creb,
de repente, resolve querer chatear-se com crianças pequenas? E por que desejava tomar a
responsabilidade de educar e disciplinar uma menina tão estranha? É, ele deve sentir-
se responsável. Brun não gostava da idéia de receber a criança no clã; preferia que o
problema nunca tivesse sido posto; e muito menos gostava da idéia de receber alguém de
fora, alguém que escapava a seu controle. Talvez fosse mesmo melhor aceitá-la e educá-la
direito, tal como uma mulher deve ser, prosseguia ele remoendo seu pensamento. Pode ser
também que desta maneira fique mais fácil para o clã conviver com a menina. E se Creb
estava querendo encarregar-se dela, não havia motivos para que ele pusesse obstáculos.
Por fim, fez um gesto concordando.
- Está bem. Se você conseguir descobrir o totem dela, nós receberemos a menina no clã,
Mog-ur; e ela pode ficar vivendo em sua fogueira, pelo menos enquanto o bebê de Iza não
nascer.
Pela primeira vez em toda a sua vida, Brun se viu desejando o nascimento de uma
menina e não de um garoto.
Uma vez a decisão tomada, ele se sentiu aliviado. O problema do que fazer com Iza vinha
aborrecendo-o, mas era uma coisa que ia sempre adiando. Tinha problemas mais
importantes a tratar. A sugestão de Creb não só veio solucionar uma questão intrincada que
cabia a ele, como chefe, resolver, como também veio dar solução a um problema de ordem
pessoal. Por mais que tentasse, desde que Iza perdera seu companheiro, ele não achava
outra saída a não ser a de recebê-la com o futuro filho em sua fogueira e, talvez, também
Creb. Ele já era responsável por Broud e Ebra e, atualmente, por Oga. Mais gente criaria
atritos no único lugar onde ele relaxava sua guarda e estava à vontade. E sua companheira
não ficaria também muito feliz com o arranjo.
Ebra se dava bastante bem com a germana de seu companheiro, mas vivendo na mesma
fogueira seria a mesma coisa? Embora nada fosse dito aberta mente, Brun sabia que ela
tinha ciúmes do status de Iza. Na maioria dos clãs, Ebra, na qualidade de companheira do
chefe, seria a mulher com a posição mais elevada. No entanto, Iza vinha em linha direta de
uma longa dinastia de curandeiras que foram sempre as mais respeitadas e prestigiosas não
só de seu clã, como de todos os outros. Ela possuía status por direito seu e não devido ao
companheiro. Quando Iza salvou Ayla, Brun chegou a pensar que teria de receber a
menina também. Nunca poderia pensar que o Mog-ur fosse assumir a responsabilidade dele
próprio e ainda a de Iza e mais duas crianças. Creb não podia caçar, mas o Mog-ur tinha
suas fontes.
Uma vez o problema resolvido, Brun correu em direção a seu clã, ansiosamente
aguardando pela palavra do chefe que viria confirmar o que todos já sabiam. E seus gestos,
então, disseram:
- A viagem terminou, a caverna foi encontrada.
- Iza - disse Creb, enquanto ela preparava chá de casca de salgueiro para Ayla. - Esta
noite, não vou comer.
A curandeira curvou a cabeça em sinal de que havia compreendido. Sabia que suas
meditações sempre eram precedidas por algumas horas de jejum.
O clã estava acampado perto do rio, no sopé da pequena colina que levava à caverna.
Enquanto a moradia não fosse consagrada segundo os rituais próprios à ocasião, as pessoas
não poderiam mudar-se. Embora fosse inconvemiente demonstrar ansiedade, todo mundo
estava sempre arranjando pretexto para chegar perto da caverna e dar uma olhada para o
interior. As mulheres sempre davam jeito de colher perto da boca da entrada e os homens as
se guiam, ostensivamente no propósito de vigiá-las. O clã estava nervoso, mas de ânimo
elevado. A angústia sentida desde o terremoto desaparecera. Gostavam da aparência da
enorme caverna. Apesar de ser difícil ver dentro da escuridão, assim mesmo dava para
perceber que ela era espaçosa, com muito mais recantos e redutos do que a antiga. As
mulheres, encantadas, apontavam para o manso lago de água nascente, bem junto da
boca de entrada. Não precisavam nem mesmo chegar até o riacho para apanhar água.
Esperavam com impaciência pela sagração da caverna, uma das poucas cerimônias
religiosas de que elas podiam participar e não havia pessoa que não estivesse ansiosa para
mudar-se.
O Mog-ur afastou-se do acampamento, naquele momento em grande atividade. Queria
encontrar um lugar sossegado, onde pudesse pensar sem ser perturbado. Enquanto
caminhava ao longo do riacho correndo ligeiro ao encontro do mar, uma brisa quente,
soprada novamente do sul, descabelava-lhe a barba. Apenas umas poucas nuvens a
distância perturbavam a claridade cristalina daquele fim de tarde. No chão crescia um mato
espesso e exuberante, e ele tinha de avançar com cuidado, contornando obstáculos, mas
pouco se dando conta disso, tão concentrado estava em seus pensamentos. Um ruído vindo
de um matagal perto fez com que parasse de repente. Era um terreno desconhecido e sua
defesa resumia-se no cajado que o ajudava a firmar-se sobre as pernas, no entanto em sua
mão útil, dotada de força descomunal, ele tinha uma bela arma. Pronto para o que
acontecesse, segurou firme o cajado, pondo-se a escutar os grunhidos e bufidos saídos do
denso matagal e os sons de galhos partindo-se, na direção do mato que se mexia.
Subitamente, através daquela grossa cortina de vegetação, surgiu um bicho, com um
corpanzil atarracado e apoiado sobre quatro pernas curtas e troncudas. Os caninos
inferiores, pontiagudos e perigosos, projetavam-se do focinho como duas presas. O nome
do animal veio-lhe à cabeça, embora jamais tivesse visto um deles em toda a sua vida.
Javali, O imenso porco selvagem olhava-o inamistosamente, confuso e indeciso. Depois,
ignorou-o e, enter rando o focinho na terra fofa, tormou a meter-se pelo matagal. Creb deu
um suspiro de alívio, continuando sua caminhada, seguindo rio abaixo. Numa estreita faixa
de areia, deteve-se. Ali, estendeu sua capa, botou a caveira do urso da caverna em cima e
sentou-se de frente para ela. Depois de uma gesticulação
de sentido religioso, pedindo a assistência de Ursus, limpou a mente de todos os
pensamentos, concentrando-se exclusivamente nos bebês que precisavam conhecer seus
totens.
As crianças sempre haviam intrigado Creb. Muitas vezes, quando se deixava ficar sentado
em meio às pessoas, aparentemente perdido em seus pensamentos, observava a meninada,
sem que ninguém se desse conta disso. Uma das crianças era um robusto menino, bem
constituído, de uns seis meses de idade que na hora do nascimento berrara com todas as
forças e assim continuava a fazê-lo, principalmente quando queria mamar. Desde o
princípio, Borg estava sempre fussando a mãe, enterrando-se nos seus seios fofos e só parando depois de encontrar o mamilo, quando, com grunhidos de prazer, punha-se a mamar.
Isso o fazia lembrar, pensou Creb bem-humorado, do javali que acabara de ver, grunhindo e
enterrando também o focinho na terra macia. O javali era um animal digno de respeito.
Inteligente, podendo fazer com seus agressivos caninos sérios estragos quando provocado,
e correndo com incrível velocidade, se decidisse atacar. Nenhum caçador desdenharia tal
totem que estava muito de acordo com o lugar e o seu espírito ficaria perfeitamente bem na
nova caverna. É o javali, decidiu, convencido de que o próprio totem lhe havia aparecido
para que ele se lembrasse de sua existência.
O Mog-ur sentia-se satisfeito com a escolha e voltou, então, sua atenção para o outro bebê.
Ona, cuja mãe tinha perdido o companheiro no terremo to e que nascera pouco tempo antes
da catástrofe. A menina possuía um germano, Vom, que era agora o único varão da fogueira
daquela pequena família. Aga vai precisar logo de outro companheiro, disse consigo o
Mog-ur, alguém que fique com ela e também com sua velha maaba. Mas isso é problema
de Brun. Preciso pensar é em Ona e não na mãe.
As meninas careciam de totens mais delicados; os delas não podiam ser mais fortes do que
os dos homens, do contrário seus totens destruiriam a essência que engravida e a mulher
não teria filhos. Creb pensou em Iza. Por mui tos anos, o totem do companheiro dela não
conseguiu sobrepujar o antílope saiga de Iza. . . ou será que. ..? O Mog-ur freqüentemente
voltava a pensar nesse assunto. Iza conhecia mais mágicas do que se supunha, e ela não era
feliz com o homem a quem fora dada. Sob muitos aspectos, Creb Não a culpava. Ela
sempre soube conduzir-se com dignidade, mas o estado de tensão entre os dois era visível.
Bem, o homem já se foi, pensou consigo. O Mog-ur é que irá sustentá-la agora, isto é, se não
aparecer algum novo companheiro.
Sendo sua germana, Creb Não podia tomar Iza para companheira, seria contra todas as
tradições. Por outro lado, há muito ele já havia perdido o desejo de ter uma mulher. Iza era
apenas uma boa companhia, fazia tempo que vinha cozinhando para ele e cuidando de sua
pessoa, e a fogueira deles iria daqui por diante ficar bem mais agradável, sem aquela
constante atmosfera
de animosidade. Além disso, havia Ayla para preencher mais o vazio. Creb sentiu
percorrer-lhe um fluxo de suave ternura à lembrança dos bracinhos estendidos o
abraçando. Mais tarde, disse para si, primeiro vamos a Ona.
Ela era um bebê sossegado, satisfeita, que costumava olhar séria para ele com seus enormes
olhos redondos. Observava tudo em silêncio, com interesse, sem que nada lhe escapasse,
pelo menos era o que lhe parecia. A figura de uma coruja rapidamente passou pelo
pensamento do feiticeiro. Mas não seria um totem forte demais? A coruja é bicho caçador,
pôs-se a conjeturar, mas só pega animais pequenos. Se uma mulher tiver um totem forte, o
do companheiro terá de ser mais forte ainda. Nenhum homem com uma proteção fraca pode
ter uma mulher que tenha como totem a coruja. Por outro lado, ela poderá vir a precisar de
um homem com totem forte. Então é a coruja, resolveu. Todas as mulheres têm
necessidade de companheiros com proteções poderosas. Seria por isso que eu nunca tornei
uma companheira? Que proteção pode ria dar um pobre cabrito montês? O totem que Iza
recebeu ao nascer era bem mais forte do que o meu. Há muitos anos que Creb não pensava
no tímido e delicado cabrito, seu totem de nascença. Mas os cabritos, lembrou-se, habitavam essas densas florestas, tal como o javali. O feiticeiro era dos poucos que possuíam dois
totens: o cabrito, o totem de Creb, e Ursus, o do Mog-ur.
O Ursus Spelaeus, os antigos ursos da caverna, enormes animais vegetarianos que tinham
quase o dobro da altura de seus primos onívoros e pesavam três vezes mais do que estes, foi
o maior urso que já se conheceu e um animal normalmente pacato, difícil de zangar-se. No
entanto, uma ursa da espécie atacou um garoto indefeso e aleijado que, perdido em seu
pensamento, aproximou-se, sem sabê-lo, perto demais do seu filhote. Foi a mãe do garoto
que o encontrou - estraçalhado e coberto de sangue, com um olho e a metade do rosto
saltados para fora - e quem cuidou dele, devolvendo-lhe à vida. Ela amputou, abaixo do
cotovelo, o braço que já era paralítico, esmigalhado pela força brutal do gigantesco animal.
Pouco tempo depois, a criança deformada e levando no rosto uma hedionda cicatriz foi
escolhida para acólito pelo mog-ur que o precedeu. Ursus, disse-lhe então o mog-ur, o
escolhera, o havia posto à prova e o achara digno. Seu olho ficara com Ursus como símbolo
da proteção dele e suas cicatrizes eram para ser ostentadas com orgulho, elas eram a marca
de seu novo totem.
Ursus nunca permitiu que uma mulher lhe absorvesse o espírito para que ele pudesse ter
gerado um filho. O urso da caverna dava proteção somente àqueles que passavam por
sua prova. Foram poucos os escolhidos. Seu olho foi um preço muito alto, mas ele Não se
lamentava. Era o Mog-ur. Nunca outro feiticeiro tivera tamanho poder, e esse poder, Creb
não duvidava, lhe fora dado por Ursus. E agora, naquele instante, estava o Mog-ur pedindo
pela aju da de seu poderoso totem.
Agarrado ao amuleto, implorava ao espírito do grande urso para que lhe revelasse o espírito
do totem da criança nascida da raça dos Outros. Uma verdadeira prova à sua competência,
e ele Não estava absolutamente seguro de obter resposta para sua mensagem. Concentrava-
se na menina e no pouco que sabia a seu respeito. Ela é destemida, pensou. Dera-se a ele de
coração aberto, sem qualquer medo dele ou da censura do clã. Raro, numa menina. Em
geral, elas se escondiam atrás das mães quando ele estava por perto. Ela era uma criança
curiosa e aprendia com facilidade. Um quadro começou a se esboçar, mas ele o afastou.
Não. Não está direito. Ela é mulher, isso Não é totem de mulher. limpou a mente para
empreender nova tentativa, mas o quadro voltava sempre. Resolveu, então, deixar que a
cena tomasse corpo, talvez levasse a qualquer coisa diferente.
Visualizava um bando de leões esquentando-se preguiçosamente ao sol quente das pradarias.
Havia dois filhotes. Um desses brincava saltitante na relva crescida e alta, rosnando de
brincadeira e enfiando o nariz curioso nos buracos de bichinhos roedores. Era uma
leoazinha que, um dia, se tornaria na principal caçadora de seu bando; seria ela quem iria
levar o alimento para seu macho. Ela pulava por cima de um leão com uma enorme juba,
tentando atraí-lo para sua brincadeira. Num momento, sem medo nenhum, bateu com a pata
no focinho do parrudo leão. Foi um leve toque, quase uma carícia. O leão jogou-a no chão e
ficou segurando-a sob a enorme pata, pondo-se a lam bê-la com sua língua comprida e
áspera. Os leões da caverna também criam seus filhotes com amor e disciplina, pensou o
Mog-ur, querendo saber por que a cena de felicidade doméstica felina Não lhe saía da
cabeça.
Novamente, tentou limpar a mente, procurando concentrar-se na menina, mas a cena Não
arredava.
- Ursus - disse ele, por meio de gestos - mas um leão da caverna? Não pode ser! Uma
mulher Não pode ter totem tão forte. Quem poderia ela ter por companheiro?
Nenhum homem em seu clã tinha o totem do leão da caverna e bem poucos nos outros clãs
o possuíam. A figura da menina veio-lhe à mente. Alta, esquálida, braços e pernas retos,
rosto chato com testa larga e saltada, pele pálida e esbranquiçada, até mesmo os olhos eram
pálidos. Iria ser uma mulher feia, pensou ele com objetividade. Qual a possibilidade de um
homem querêla? A visão de sua própria figura, também repulsiva, atravessou-lhe o
espírito, lembrando-se do modo como as mulheres o evitavam, principalmente quando era
jovem. Talvez ela nunca tenha companheiro e se tiver de manter-se sozinha, sem um
homem para protegê-la, irá precisar de um totem forte. Mas tão forte assim? Tentou
lembrar-se se já existira alguma mulher nos clãs com tal totem.
Mas ela Não é de fato gente dos clãs, disse assegurando-se, e Não há dúvida de que sua proteção seja poderosa, do contrário Não estaria viva. Poderia ter sido
morta por um leão. O pensamento começava a tomar forma. Um leão da caverna! Atacou e
Não matou. . . será que atacou mesmo? Estaria testando a menina? Então um outro
pensamento lhe ocorreu, sentindo um frio passando pela espinha. Toda a dúvida havia
desaparecido. Ele estava certo. Nem Brun poderia duvidar disso, pensou. O leão tinha
marcado a menina com quatro sulcos paralelos na coxa esquerda, uma cicatriz que ela
levaria pela vida afora. Na cerimônia de passagem, aquela em que o mog-ur grava no corpo
do jovem a marca de seu totem, o símbolo justamente do leão da caverna era quatro linhas
paralelas gravadas na coxa!
No caso do homem a marca era a mesma, só que feita na coxa direita, mas ela era mulher.
Claro! Por que não pensara nisto antes? O leão sabia que seria difícil para nós aceitar o fato,
por isso ele mesmo tinha feito a marca e de forma tão clara, tão inconfundível para que
ninguém pudesse pôr em dúvida. Ele gravou com a marca usada por nós. O leão queria que
os clãs soubessem. Desejava que ela vivesse conosco. Ele levou o povo da menina para que
ela pudesse viver aqui. Por quê? Veio-lhe, então, uma sensação de desconforto, a mesma
que sentira após a cerimônia no dia em que Ayla tinha sido encontrada. Se ele tivesse
um conceito para expressar o que sentia, lhe daria o nome de presságio, se bem que
repassado por um confuso sentimento de esperança.
O Mog-ur procurou espantar do espírito aquela estranha sensação. Nunca um totem se
revelara a ele com tanta força. Devia ser isto que o desconcertava, pensou consigo. O leão
da caverna éo totem dela. Escolheu-a, tal como Ursus fez comigo. Olhou para dentro das
órbitas vazias da caveira à sua frente. Inteiramente rendido, maravilhava-se com os
caminhos usados pelos espíritos, era só uma questão de compreendê-los. Tudo estava
muito claro agora. Achava-se aliviado e ao mesmo tempo muito abatido. Por que essa
menininha precisa de um poder tão forte para protegê-la?
Ondulando à brisa do entardecer, as folhagens negras nas árvores balançavam-se como
silhuetas dançantes contra o céu escuro. O acampamento encontrava-se silencioso, já
acomodado para dormir. À luz fraca dos pedaços de carvão aceso, Iza examinava o
conteúdo de diversas pequenas sacolas, postas em fileiras sobre sua capa e, de vez em
quando, olhava na direção de onde Creb saira. Estava preocupada com ele, sozinho, sem armas para defender-se, no meio de uma mata desconhecida. A menina já estava dormindo e,
à medida que a luz se extinguia, Iza ia ficando mais preocupada.
Durante a tarde, ela fora examinar a vegetação que crescia perto da caverna. Precisava
reabastecer-se e também aumentar sua farmacopéia. Sempre carregava na sacola de pele de
lontra certas coisas, mas para ela; os saquinhos com plantas secas - folhas, flores, raízes,
sementes e cascas - eram apenas medicamentos para primeiros socorros. Na nova caverna,
teria espaço para armazenar maior quantidade e também para ter uma maior variedade.
Entre tanto, nunca se afastava muito sem levar sua sacola de remédios, que fazia par te dela
como a própria roupa que vestia. Até mais. Sem remédios, sentia-se nua e sem roupa.
Por fim, Iza viu o velho feiticeiro caminhando de volta. Ela deu um pulo, indo botar para
aquecer a comida que havia guardado para ele. Depois, pôs água para ferver, iria preparar o
chá com sua erva preferida. Ele ficou circulando por perto; e em seguida veio ajeitar-se a
seu lado, enquanto Iza metia as sacolinhas dentro da sacola grande, a de pele de lontra.
- Como está a menina essa noite? - indagou Creb.
- Mais repousada. A dor praticamente desapaieceu. Ela perguntou por você.
Creb grunhiu qualquer coisa, sentindo-se alegre por dentro.
- Amanhã de manhã, faça um amuleto para ela.
Iza abaixou a cabeça, dizendo que tinha compreendido e, em seguida, levantou-se
apressada para ver se a comida e a água estavam no ponto. Ela precisava se mexer. Estava
tão feliz que não agüentava permanecer parada. Ayla ia ficar. Creb deve ter falado com o
totem dela, pensou, emocionada, com o
coração batendo forte. As mães dos bebês haviam feito os amuletos naquele dia. Elas não
foram nada discretas e todo mundo acabou sabendo que os filhos iriam conhecer seus
totens na cerimônia da caverna. Isso era bom agouro para os bebês, e as mães, orgulhosas,
puseram-se a pavonear-se. Seria essa a razão por ter Creb passado tanto tempo fora? Deve ter
sido difícil para ele. Iza tinha curiosidade de saber qual seria o totem de Ayla, mas conteve-
se. De qualquer modo, ele não lhe contaria mesmo, e ela, dentro de pouco tempo, iria ficar
sabendo.
Trouxe a comida para o seu germano e fez chá para ambos. Ficaram, então, sentados em
silêncio, envolvidos por um clima de cálida e tranqüila afei ção. Quando Creb terminou,
eram os únicos ainda acordados.
- Os caçadores vão sair de manhã cedo - disse ele. - Se fizerem boa caçada, a cerimônia
poderá ser no dia seguinte. Você está preparada?
- Já verifiquei na minha sacola e há bastantes raízes. Estarei com tudo pronto - disse Iza,
erguendo, na direção dele, um pequeno saco. Este era diferente dos Outros. Tinha o couro
tingido num carregado tom vermelho-castanho, uma tinta obtida da mistura de ocre
vermelho, muito refinado, com banha de urso, a mesma usada para curtir a pele de que a
sacola era feita. Nenhuma outra mulher possuía qualquer objeto na sagrada cor vermelha,
em bora todos no clã carregassem um pedaço de ocre vermelho em seus amuletos. Aquela
era a coisa mais preciosa que Iza possuía. - Amanhã de manhã eu vou me purificar.
Creb grunhiu outra vez. Esta era uma forma rotineira de os homens responderem às
mulheres, dando-lhes a entender apenas que foram ouvidas, sem prestar muito interesse no
que diziam. Permaneceram ainda algum tempo sem falar, até que Creb pôs no chão sua
pequena caia de chá e olhou para a irmã
- O Mog-ur irá manter não só vocês, mas também a menina e a criança que irá nascer, se
esta for mulher. Na nova caverna você ficará na minha fogueira, Iza - disse ele. Então
pegou o cajado para ajudá-lo a levantar-se e foi coxeando na direção de seu lugar de
dormir.
Iza ia erguer-se, mas voltou a sentar-se inteiramente estupefata. Era a última coisa que
esperava. Com o companheiro morto, sabia que algum outro homem iria ter de sustentá-la.
Vinha procurando afastar do pensamento o problema relacionado com seu destino.
Também, se ela se sentisse dessa ou da quela maneira, Não iria fazer a menor diferença.
Brun não iria consultá-la mesmo. . . contudo, não conseguia impedir-se de algumas
vezes ficar pensando. Dentre as possíveis opções, algumas a atraíam e, outras, achava
pouco prováveis de acontecer.
Havia Droog, já que a mãe de Goov tinha morrido no terremoto e ele agora se achava
sozinho. Iza respeitava Droog. Era o melhor fazedor de ferramentas do clã. Qualquer um dos outros podia tirar lascas de um bloco de pedra e fabricar
machadinhas ou raspadores, mas ninguém com o talento de Droog para isso. Ele preparava
a pedra de tal modo que as lascas que cortava já saíam do tamanho e da forma desejados.
Suas facas, raspadeiras e qualquer ferramenta eram objetos da maior admiração Se fosse
dado a ela escolher, dentre todos os homens do clã, escolheria Droog. Ele fora bom para a
mãe do acólito, e a relação de ambos foi marcada por sincera afeição
No entanto, Iza sabia que o mais provável seria que Aga fosse dada a ele. Era mais jovem e mãe de dois filhos. Vorn, o seu filho, logo estaria precisando de um caçador para se
responsabilizar por sua educação e o bebê, Ona, também tinha necessidade de um homem
que a sustentasse até que crescesse e fosse dada a alguém. Era possível que o fazedor de
ferramentas estivesse disposto ainda a receber Aba. A velha, tanto quanto a filha, precisava
também de um lugar. Assumir todas essas responsabilidades iria provocar grandes
mudanças na vida do pacato e ordeiro Droog. Aga, às vezes, podia ser bem difícil. Ela não
era a mesma pessoa compreensiva que fora a mãe de Goov, mas o rapaz logo também
estaria tendo sua fogueira. Droog, portanto, estava precisando de uma mulher.
O próprio Goov para companheiro dela era algo inteiramente fora de cogitação Muito
jovem, quase ainda uma criança, nem mesmo já havia dormido com uma mulher. Brun
jamais iria dar-lhe uma mulher velha, e Iza se sentia mais como mãe de Goov do que uma
possível companheira para o rapaz.
Pensou que, talvez, pudesse ir viver com Grod e Ika, numa fogueira onde já vivia
também Zoug, que fora o companheiro da mãe de Grod. Quanto a Grod, era um homem
rígido, lacônico, mas não cruel, e de uma lealdade para com Brun à toda prova. Iza não
se importaria de viver com Grod, apesar de que, na sua fogueira, fosse ser segunda mulher.
No entanto, Ika era irma de Ebra e nunca perdoara inteiramente Iza o fato de esta ter uma
posição social que deveria pertencer à sua germana. Além disso, desde a morte do filho -
que nem chegara a constituir sua fogueira - Ika mostrava-se desgostosa e arredia. Até
mesmo Ovra, sua filha, não conseguia fazê-la esquecer de sua dor. Há muita tristeza naquela
fogueira, pensou Iza.
Dificilmente poderia cogitar na fogueira de Crug. Ika, sua companheira e mãe de Borg, era
uma mulher jovem, afetuosa e sincera nos seus sentimentos. Justamente este era o
problema, os dois eram bastante jovens, além do que, ela, Iza, nunca se dera muito bem
com Dorv, o velho que já fora companheiro da mãe de Ika e que estava dividindo a fogueira
com os outros.
Com isto, sobrava Brun, mas, na sua fogueira, nem mesmo segunda mulher seria, já que
era germana dele. NÃO que isso tivesse Importância, ela tinha o seu próprio status. Pelomenos Não sou aquela pobre velha que, por fim, durante o terremoto, acabou achando seu caminho para o mundo dos espíritos. Iza pensava
numa mulher que viera de outro clã; seu companheiro já tinha morrido há muito tempo e
ela nunca teve filhos. A Infeliz ficara de fogueira em fogueira, sempre um fardo para os
outros, uma mulher, enfim, sem status e importância.
A possibilidade, no entanto, de compartilhar da fogueira de Creb e de ser sustentada por ele
nunca lhe passara pela cabeça. Não havia ninguém no clã - homem ou mulher - a quem
fosse mais afeiçoada. E Creb tinha a vantagem de gostar de Ayla. . . tenho certeza de que
ele gosta, dizia ela para si. Será um arranjo perfeito, a não ser que eu tenha um filho. Todo
menino precisa viver na fogueira de um homem que possa ensiná-lo a caçar, coisa que
Creb não pode.
Poderia tomar remédio para perder a criança, pensou por um momento. Só assim poderia
ter certeza de que não viria um menino. Apalpou a barriga e abanou a cabeça. Não, já era
tarde demais. Isso poderá trazer problemas. Havia chegado à conclusão de que queria o
bebê e, a despeito de sua idade, a gravidez ia progredindo bem, sem nenhuma dificuldade.
Eram boas as chances de nascer um bebê normal e sadio. Criança é um bem muito precioso,
não se pode renunciar a ele tão levianamente. Vou pedir a meu totem outra vez para que o
bebê seja menina. Ele sabe que sempre desejei que fosse mulher. Prometi que cuidaria de
mim para que o bebê que ele permitiu formar nascesse sadio, só falta agora ele conseguir
uma menina.
Iza sabia que mulheres de sua idade podiam ter problemas com a gravidez, e por isso
tomava remédios e comia alimentos apropriados a seu estado. Apesar de nunca ter sido
mãe, a curandeira sabia mais sobre gestação, parto e cuidados com recém-nascidos do que a
maioria das mulheres. tinha ajudado no parto de todas as mocinhas do clã e seus
conhecimentos e os remédios que preparava estavam sempre à disposição das mulheres.
Contudo, havia uma poção tão secreta, cuja fórmula era passada de mãe para filha, que ela
preferia uma boa morte a ter de revelar seu segredo, sobretudo se fosse para um homem
que jamais deixaria uma mulher usá-la, se ele soubesse para que era.
O segredo vinha sendo mantido, porque ninguém - fosse homem ou mulher - indagava a
curandeira sobre suas mágicas. O costume de não se fazer perguntas diretas já vinha de
longa data e essa tradição tornara-se praticamente uma lei. Se alguém se mostrasse
interessado, ela podia expor seus conhecimentos, mas nunca falava de sua poção
especial, pois, se algum homem pensasse em fazer perguntas, ela estaria na obrigação de
responder-lhe. A mulher jamais poderia deixar de dar resposta ao homem e era impossível às
pessoas dos clãs mentirem. A forma de comunicação, dependendo de nuanças sutis na
mudança quase imperceptível na expressão do rosto, na postura e na gesticulação
tornava qualquer tentativa nesse sentido imediatamente detectável. Nem mesmo um conceito para a mentira eles tinham. O que mais se aproximava dessa idéia é
quando eles simplesmente deixavam de falar, e isso, quase sempre, era percebido, mas em
geral aceito.
Iza jamais falava desta poção, mas ela própria já a havia usado. Era uma mágica que
impedia a concepção Não permitindo que o espírito do totem do homem penetrasse nela
para formar a criança. Nunca passou pela cabeça da quele que foi seu companheiro indagar
o porquê de ela Não ter filhos. Simplesmente admitia como verdade que Iza tinha um
totem forte demais para mulher. Muitas vezes, ele lhe disse isso, e costumava lamentar-se
com os outros homens pelo fato de a essência de seu totem Não ser capaz de sobrepujar a
da companheira. Iza tomava a poção porque Não queria ter filhos, era essa a maneira que
tinha escolhido para envergonhar o companheiro. Queria que ele e todo o clã pensassem que
o elemento gerador de vida do totem do seu homem fosse fraco demais para romper as
defesas dela, apesar de por isso apanhar muito.
Mas surras supostamente eram dadas
para submeter o totem dela ao dele, mas Iza
percebia que ele lhe batia por prazer. No início, ainda teve esperanças de que, se não
tivesse filhos, seria passada para outro homem. Mesmo antes de ter sido dada a ele, já
odiava suas maneiras cheias de bazófia e empertigadas e, quando soube que seria ele o seu
companheiro, Não lhe restou outra coisa sem voltar-se em desespero para a mãe Esta
apenas consolo tinha para oferecer, pois podia opinar tanto sobre o assunto quanto a filha.
Ele, no entanto, Não quis dispor dela. Iza era uma curandeira, a mulher ocupando a posição
social mais alta na hierarquia dos clã e ter o seu controle fazia-o sentir-se másculo.
Quando a força de seu totem e essa sua virilidade começaram a ser postas em dúvida pelo
fato de a companheira não produzir rebentos, ele, para compensar, passou a exercer sua
superioridade física.
Apesar de as surras serem admitidas, na esperança de que delas resultasse um filho, Iza
percebia que Brun estava em desacordo com tal procedimento. Tinha certeza de que,
se ele tivesse sido o chefe na ocasião, Brun nunca a teria dado a um tipo daquele. Na
opnião de Brun, um homem Não prova sua masculinidade subjugando mulheres. A essas, não
resta seNão a submissão. Era indigno para um homem bater-se com adversário mais fraco e
se deixar levar pela raiva por ser provocado por uma mulher. Era dever de um homem ter
autoridade sobre ela, manter a disciplina, caçar e sustentar, saber contro lar-se e não
mostrar sentimentos quando sofresse. A mulher podia levar alguns tabefes, se fosse
preguiçosa ou faltasse com o respeito, mas não nos momentos de raiva e tampouco por
prazer, apenas para disciplinar. Embora alguns batessem mais do que outros, poucos faziam
disso um hábito. Somente o marido de Iza tornou essa uma prática habitual.
Depois de Creb ter-se juntado à fogueira deles, o companheiro de Iza se
mostrou ainda mais relutante em dá-la a outro. Ela já Não era somente a curandeira, mas a
mulher que cozinhava para o Mog-ur. Se Iza o deixasse, o Mog-ur a acompanharia. Ele
queria que o resto do clã pensasse que o grande feiticeiro lhe estava passando seus segredos.
Na verdade, durante todo o tempo em que compartilharam da mesma fogueira, Creb jamais
foi além de uma polidez formal, e muitas vezes mal tomava conhecimento da presença
dele, principalmente quando - e Iza bem o sentia - o feiticeiro notava alguma equimose de tom suspeito na irmã.
Mesmo com todas as surras, Iza Não parou de usar suas mágicas preparadas com ervas. No
entanto, quando viu que estava grávida, resignou-se a seu destino. Algum espírito
conseguira, por fim, vencer o seu totem e suas poções. Talvez tenha sido o dele, mas então
pensava Iza, se o princípio vital do totem dele tinha conseguido finalmente vencer, por que
esse espírito o havia abandonado no desabamento da caverna? Ela ainda guardava uma
última esperança. Queria que fosse uma menina para diminuir um pouco o recém-adquirido prestígio dele; além disso, uma menina poderia dar continuidade à sua linhagem de
curandeiras, embora já estivesse disposta a acabar com essa linha em sua pessoa. Isso era
preferível do que ter um filho, enquanto vivesse na companhia de seu companheiro. Se a
criança fosse homem, ele estaria justificado em suas pancadarias; mas, uma menina,
sempre ficaria ainda faltando algo. Agora, mais do que nunca, desejava que nascesse
mulher. NÃO para denegrir postumamente a imagem do companheiro, mas porque isso iria
permiti-la viver com Creb.
Iza guardou a sacola e se enfiou dentro da pele, ao lado da menina que dormia
tranqüilamente. Ayla deve trazer sorte, pensou ela. Temos uma nova caverna, ela foi
autorizada a permanecer e vamos ficar na fogueira de Creb. Talvez ele me dê sorte e eu
tenha uma filha. Passou o braço em volta de Ayla, aconchegando-se bem junto do corpinho
quente da garota.
No dia seguinte, após a primeira refeição Iza acenou para Ayla e foram caminhar, subindo a
margem do riacho. Enquanto iam andando, a curandeira procurava por determinadas
plantas. Depois de alguns minutos, viu uma clareira e se dirigiu para lá. Havia ali algumas
plantas de uns 30 centímetros de altura, presas a caules muito finos de cujas pontas saíam
flores em cachos parecidos com espigas. Eram marantas, e Iza colheu alguns pés. Depois,
encaminhou-se para uma área alagada, perto de um remanso do riacho, onde apanhou
cavalinhas e, seguindo um pouco mais adiante, encontrou alguns pés de saboeiro que
também colheu. Ayla acompanhava-a, observando com interesse e morrendo de Vontade de
conversar. Sua cabeça estava cheia de perguntas que gostaria de fazer e não podia.
Voltaram ao acampamento, e Ayla viu-a despejar água num balaio, tecido com as tramas muito apertadas, e jogar dentro deste as cavalinhas e pedras quentes
saídas do fogo. A menina sentou-se ao lado de Iza, enquanto a observava cortando, com
uma afiada faca de pedra, um pedaço redondo do couro que a curandeira tínha usado para
carregá-la. Era uma pele macia e flexível, curtida com banha, mas ao mesmo tempo grossa.
A faca passava através dela com a maior facilidade. Com uma outra ferramenta de pedra,
aguçada na ponta, Iza fez vários furos a volta do pedaço de couro redondo. Em seguida,
pegou algumas fibras duras, extraídas da casca de um pequeno arbusto, e torceu-as num
cordão que enfiou nos buracos e puxou apertado, de modo a formar uma sacola. Usando uma
faca feita por Droog, uma das que mais gostava, cortou um pedaço da correia que lhe
prendia a roupa, mas, antes, tendo o cui dado de medi-la no pescoço de Ayla. Tudo isto não
levou mais do que poucos minutos.
Depois que a água ferveu no balaio impermeável, Iza pegou-o e, junto com as outras
plantas que havia colhido há pouco, voltou novamente ao riacho com Ayla. Caminharam
pela margem até chegar a um lugar onde havia um declive que levava suavemente até a
água. Com uma pedra redonda, triturou as raízes de saboeiro junto com água numa enorme
pedra achatada que tinha uma cavidade parecida a um pires. As raízes soltaram uma
espuma cheia de saponáceo. Depois de tirar das dobras da roupa ferramentas de pedra e outros pequenos utensílios, Iza desatou a correia de sua vestimenta e se despiu. Por fim, tirou
por cima da cabeça o amuleto e, com cuidado, colocou-o sobre a pedra.
Ayla ficou encantada quando viu Iza pegá-la pela mão e conduzi-la ao riacho. Ela adorava
água. Mas, depois de molhada por inteiro, a mulher levantou-a e a botou sentada sobre a
pedra, começando a ensaboá-la dos pés à cabeça, inclusive os cabelos duros e emaranhados.
Após fazê-la mergulhar na água novamente, Iza fechou os olhos bem apertados. Ayla não
entendeu, mas imitou o gesto, Iza fez que sim com a cabeça e ela compreendeu que era para
fazer o mesmo. Sentiu, então, que sua cabeça estava sendo abaixada para a frente e que um
líquido quente caía sobre ela. A cabeça da menina andava coçando e Iza notara minúsculos
bichinhos passeando pelos cabelos, por isso agora os massageava com a infusão de
cavalinhas que servia para matar piolhos. Em seguida, mais uma nova lavada nas águas do
rio e outra vez Iza se pôs a esmigalhar raízes de saboeiro, desta vez com as folhas, para uma
última ensaboada nos cabelos e um mergulho final no riacho. Iza passou, então, a repetir a
mesma operação nela mesma, enquanto Ayla brincava na água.
Durante o tempo em que estiveram sentadas na beirada do riacho, esperando o sol secá-las,
Iza esgarçou com os dentes um pequeno galho e o usou para tirar os nós dos cabelos das
duas, ainda molhados. Estava espantada com a maciez e a beleza dos cabelos quase brancos
de Ayla. Uma coisa fora do comum, mas bem bonita, pensou consigo, na verdade, o que ela tem de melhor. Olhava para
a menina sem deixar transparecer seu pensamento. Apesar de queimada de sol, Ayla ainda
era mais branca do que ela, parecendo-lhe inteiramente desprovida de atrativos com
aquela pele desbotada e olhos claros. É uma gente esquisita, disse consigo, mas não há
dúvida de que são humanos também, só que muito feios. Pobrezinha. Como irá fazer para
encontrar um companheiro?
E se não arrumar um homem, como vai adquirir algum status? Ela poderá ficar como a
velha que morreu no terremoto. Se fosse minha filha de verdade, teria seu próprio status.
Será que não daria para ensinar algumas de minhas mágicas benéficas para ela? Isso lhe
iria dar uma certa importância. Se eu tiver uma filha, posso ensinar às duas ao mesmo
tempo, mas, se for menino, não haverá nenhuma mulher para continuar minha linhagem. O
clã algum dia irá precisar de uma nova curandeira. Se Ayla aprender a fazer mágicas, eles
talvez a aceitem. . . pode ser até que um homem vá querê-la para companheira. Se ela vai
ser acolhida no clã, por que não poderia ser minha filha? Iza já pensava na menina como
dela. Por enquanto, eram apenas divagações, mas os germes da idéia tinham sido
plantados.
A mulher olhou para cima, o sol já estava bem mais alto, concluindo que já estava ficando
tarde. Preciso acabar o amuleto dela para depois começar a fazer a bebida de raízes, pensou,
subitamente lembrando-se de suas responsabilidades.
- Ayla - chamou a menina que passeava próximo ao riacho. Ayla veio correndo.
Olhando para a perna dela, Iza reparou que a água tinha amolecido a crosta da ferida que,
no entanto, ia sarando depressa. Iza meteu-se rapidamente em sua roupa e foi com a
menina para um pequeno monte perto da caverna, mas antes dando uma parada no
acampamento para buscar o saquinho que tinha feito e seu pau de cavar. Reparara numa
vala de terra vermelha, no outro lado, perto do lugar onde haviam parado quando Ayla lhes
mostrou a caverna. Ao chegar ali, Iza se pôs a cavucar o chão até se soltarem torrões de ocre
vermelho. Então pegou alguns pedaços e os estendeu na direção de Ayla. A memina olhava
sem entender o que se esperava dela. Hesitando, tocou num deles. Iza pegou-o, meteu-o
dentro do saquinho, fechando-o bem, e guar dou numa dobra de sua roupa. Antes de voltar,
olhou em torno, vendo pequeninas figuras se movendo lá embaixo na planície. Os homens
haviam partido, cedo naquela manhã para caçar.
Em épocas bem remotas, homens ainda mais primitivos do que Brun e seus cinco
caçadores aprenderam a disputar a caça com os animais carnívoros, observando-os e
copiando seus métodos. Viam, por exemplo, como lobos, ata cando aos bandos, podiam
jogar ao chão uma presa muito maior e mais forte do que eles. Com o tempo, ao invés de garras e dentes, já usando armas e outros
instrumentos, os homens perceberam que, se também fossem aos bandos, poderiam apanhar
os imensos animais que dividiam com eles a natureza. E, assim, mais um passo estava dado
em sua caminhada evolucionária.
Enquanto estavam à espreita de caças, para não espantá-las, eram obrigados a se manter
em completo silêncio. Daí, passaram a desenvolver toda uma gesticulação que evoluiu em
gestos e sinais mais complexos, já usados com outros objetivos. Os gritos de aviso
começaram a ter variações de altura e tom, trazendo maior conteúdo de informações. No
entanto, o ramo que deu na espécie dos clãs não desenvolveu suficientemente os
mecanismos vocais para criar uma linguagem verbal plena, mas nem por isso seus homens
deixaram de ser bons caçadores.
Os seis caçadores do clã puseram-se em campo aos primeiros clarões do dia. De onde eles
se achavam observavam o sol enviando seus raios, como se ainda explorando o terreno,
timidamente se insinuando no horizonte, para de pois assumir o pleno comando do dia. Do
lado nordeste, uma imensa nuvem de poeira fina de loesse deixava entrever uma massa
ondulante de pélos marrons, onde se destacavam as curvas negras de cornos bem
marcados. Uma larga trilha de terra pisada, inteiramente desprovida de vegetação, ia
ficando para trás, enquanto os bisões lentamente se locomoviam, desfigurando a planície
verde-dourada. Agora, desembaraçados das mulheres e crianças, em pouco tempo os
caçadores cobriram a distáncia que os separava do terreno das estepes.
Deixando o sopé das colinas, diminuíram o passo e foram se aproximando mansamente,
sempre a favor do vento. Quando estavam perto, agacharam se em meio à relva e ficaram
observando as figuras dos gigantescos animais. Enormes dorsos em corcova, afunilando-se
em estreitos traseiros, suportavam massudas cabeças lanosas com imensos chifres que, nos
adultos, chegavam a ter quase um metro de comprimento. O cheiro de suor de gado
amontoado batia-lhes nas narinas, enquanto a terra vibrava com o movimento de milhares
de cascos.
Brun, botando a mão na testa para sombrear os olhos, examinava cada um que passava,
esperando pelo animal certo e o momento exato. Quem o visse naquele instante não diria
que ele tinha sob controle o peso de uma tensão insuportável. Apenas o pulsar das
têmporas sobre as mandíbulas cerradas traía-lhe o coração disparado e os nervos a flor da
pele. Esta era a caçada mais importante de sua vida. Nem mesmo o seu primeiro animal
abatido que o ele vara à condição de adulto equiparava-se à caçada de cujo resultado eles
dependiam para morar na nova caverna. Uma caçada bem-sucedida não só iria fornecer
a carne para a festa da cerimônia como também lhes daria a certeza de que seus totens
haviam de fato aprovado a moradia. Se voltassem de mãos
abanando, o clã estaria na obrigação de procurar outra caverna, mais aceitável para seus
espíritos protetores. Era a maneira de os totem os avisarem de que a caverna não traria
sorte. Quando Brun viu a imensa manada de bisões, ficou animadíssimo. Nela, achava-se
seu próprio totem incorporado.
Brun deu uma olhada na direção dos homens, ansiosamente esperando por seu sinal.
Esperar tem sempre a parte mais difícil, mas qualquer movimento prematuro poderia ter
conseqüências desastrosas e isso era possível de acontecer. Portanto, teria que se esforçar
ao máximo para que nada saísse errado. Olhando a expressão preocupada no rosto de
Broud, por um momento, quase se arrependeu de tê-lo trazido. Mas logo se lembrou do
brilho nos olhos do garoto, cheio de orgulho, quando lhe dissera para preparar-se para a
caçada da passagem. É normal que esteja nervoso, pensou Brun. Não é só sua primeira
caçada, a sorte do clã está dependendo da força do seu braço.
Broud deu com o olhar de Brun e tratou imediatamente de controlar a expressão
reveladora de sua agitação interior. Não fazia idéia do tamanho do bicho quando vivo que,
de pé sobre as patas, ficava a uns 30 centímetros acima de sua e nem supunha que a visão
de uma manada inteira pudesse ser tão assustadora. Pelo menos o primeiro ferimento de
verdade teria de ser feito por ele para que a caça lhe fosse atribuída. E se eu errar? E se não
acertar e o bicho escapar? A cabeça de Broud achava-se num turbilhão.
Lá se foram os seus sentimentos de superioridade, suas gabolices diante de Oga: ele
treinando estocadas certeiras e ela o olhando em adoração. Ele fingia não perceber. Oga
era só uma criança. É, no final das contas, só uma menina. Mas, dentro em pouco, seria
mulher. Não estaria mal como companheira quando ela crescesse, dizia consigo. Vai
precisar de um homem forte para protegê-la, agora que sua mãe e o companheiro dela
morreram. Broud gostava dos cuidados especiais que Oga lhe dispensava, sempre correndo
e pronta para obedecer a todos os seus desejos, apesar de que nem homem ainda era. Mas o
que vai ela pensar de mim, se eu não conseguir acertar no animal? E se eu não puder ficar
homem na cerimônia da caverna? O que Brun vai dizer? E o clã? O que irá pensar? E se
tivermos de abandonar essa linda caverna já abençoada por Ursus? Broud agarrou firme sua
lança e pegou no amuleto, suplicando ao grande rinoceronte peludo para lhe dar coragem e
força no braço.
Não haveria muita chance de o animal escapar, se Brun ajudasse. Ele deixou que o rapaz
pensasse que o destino da nova caverna estava em suas mãos. Se Broud iria algum dia ser
chefe, tinha desde já de ir aprendendo a conhecer o peso da responsabilidade e do posto.
Brun daria uma chance ao garoto, mas estaria por perto para, se necessário, ele próprio
abater o bicho. Para o bem de Broud, esperava não precisar fazer isso. O rapaz era
orgulhoso, e seria grande sua humilhação; no entanto, o chefe não tinha intenção de
sacrificar a caverna em nome desse orgulho.
Brun se virou para observar a manada. Um instante depois, viu um macho, ainda jovem,
extraviado do resto. Era um animal quase adulto, mas ainda imaturo e inexperiente. Brun
esperava que ele se perdesse mais dos outros, aguardando por um momento em que
estivesse sozinho, fora do cordão de proteção do rebanho. O sinal, então foi dado.
Os homens partiram como flechas, dispersando-se para os lados, com Broud à frente. Brun,
ansioso, sempre com os olhos presos no bisão desgarrado, via ao mesmo tempo os
caçadores espalhando-se, guardando, entre eles, uma distância regular. A outro sinal seu, os
homens pularam na direção da manada, aos gritos e berros, agitando os braços. Os
assustados animais que iam pela beirada correram para juntar-se à massa da manada,
fechando as brechas e empurrando os de fora para o centro. Brun se colocou entre eles e
o jovem bisão obrigando-o a mudar de direção.
Enquanto os animais na periferia procuravam abrir caminho para o meio do tumulto,
Brun correu atrás daquele que havia marcado. Botou cada grama de sua energia na
perseguição fazendo o bicho correr tanto quanto agüentavam suas grossas e musculosas
pernas. Naquele furioso redemoinho, a terra seca das estepes ia enchendo o ar de uma
poeira fina, limosa, revolvida por centenas de pesados cascos. Brun franziu os olhos,
tossindo, parcialnente cego pelo pó que lhe entupia as narinas e o sufocava. Ofegante,
quase Não se agüentando mais, notou que Grod vinha correndo para substituí-lo na perseguição
Com a nova investida de Grod, o animal mudou outra vez de direção. Os homens atacavam,
cercando-o, de modo a trazê-lo de volta para Brun que, ainda arquejando, ia
aproximando-se com passos lentos do círculo. Deu-se, então, o estouro da enorme manada
que saiu em louca correria pelas estepes. O barulho que os animais ouviam de seu próprio
tropel multiplicava um medo que não tinha razão de existir. Só o bisão novo havia ficado
para trás, correndo em pânico de criaturas com uma fração de sua força, mas com inteligência e determinação bastante para compensar a diferença. Grod, cobrindo- o de pancadas,
recusava-se a largar a luta, apesar de o coração estar prestes a estourar. O suor criava
córregos pela camada de poeira que lhe cobria o corpo, dando um sombreado pardacento à
sua barba. Por fim, ele baqueou no momento mesmo em que Droog veio tomar-lhe o lugar.
A resistência daqueles caçadores era grande, mas o jovem e forte bisão com uma energia
inquebrantável, não se entregava. Droog era o mais alto do clã, tendo as pernas um
pouquinho mais compridas do que as dos outros. Instigando o animal, sempre pela frente,
num dado momento teve de partir a toda velocidade para cima do bicho, desviando-o de
sua tentativa de pegar a trilha da manada em fuga. Quando Crug tomou a frente de Droog,
exausto a mais não poder, o animal já estava visivelmente sem fôlego. Crug estava descansado e levantou os ímpetos do bicho, trazendo-lhe, com uma estocada em sua ilharga,
um novo brotar de energias.
Quando Goov veio para o revezamento, o imenso animal peludo já estava mais vagaroso.
Corria às cegas, obstinadamente, sempre seguido de perto por Goov que lhe dava estocadas,
esvaindo os últimos laivos de energia. Broud viu quando Brun se aproximou e soltou um
rugido, assumindo sua vez de correr atrás do bisão. As corridas, no entanto, foram poucas
e curtas. O animal já tinha tido sua dose. Ele foi indo, indo, até que parou de vez,
recusando-se a mexer. O couro estava escumoso, a cabeça pendente e a boca espumava. Já
com sua lança preparada, o garoto aproximou-se do bisão que estava inteira mente fora de
combate.
Com um julgamento fruto da experiência, Brun fez uma rápida avaliação. Não estaria o
garoto nervoso demais para matar seu primeiro animal? Ou muito afoito? Será que o bicho
já estava realmente esgotado? Alguns velhos bisões matreiros, às vezes paravam de repente,
parecendo completamente exauridos e, no último instante, atacavam, matando ou ferido o
caçador, sobretudo se este fosse inexperiente. Deveria Broud usar suas boleadeiras para
primeiro tontear o animal e depois derrubá-lo? A cabeçorra do bruto estava quase
arrastando no chão e as ilhargas tombadas não enganavam: o bisão estava de fato acabado.
Mas, se Broud usasse as boleadeiras, seu feito já não teria tanto mérito. Brun resolveu
deixar que Broud tivesse todas as honras.
Rapidamente, antes que o bisão recuperasse o fôlego, Broud se encaminhou na direção
daquela enorme massa peluda, empunhando a lança para cima. Com o último pensamento a
seu totem, fez a arremetida final. A com prida e pesada lança cravou fundo na ilharga do
animal, numa estocada rápi da e mortal, a ponta endurecida a fogo trespassou o grosso
couro, quebrando uma costela. O bisão uivou de dor e, mesmo com as pernas vergadas,
ainda se virou tentando chifrar seu atacante. Brun percebeu a manobra, deu um salto
para se postar ao lado de Broud e, usando de toda a força, partiu sua maça na cabeça do
animal. O golpe veio apressar a queda. O bisão caiu junto dele, com as patas apontando os
cascos para cima, já nos seus últimos estertores. Depois, ficou imóvel.
Broud, de início, mostrou-se espantado e um tanto abatido, mas logo o ar foi varado por um
grito agudo exprimindo todo o seu triunfo. Ele tinha conseguido. Havia matado seu
primeiro animal! Agora, era um homem!
Estava exultante. Veio, então, buscar sua lança espetada na ilharga do bisão. Ao arrancá-la,
sentiu no rosto o jorrar quente do sangue, provando- lhe o sabor salgado. Com orgulho nos
olhos, Brun aproximou-se e bateu no ombro do rapaz.
- Muito bem - disse, num gesto de muda eloqüência. O chefe estava feliz por poder
acrescentar às suas fileiras mais um caçador, um rapaz forte,orgulho e alegria de sua vida. O filho de sua companheira, o filho de seu coração.
A caverna era deles. Os ritos da cerimônia viriam sacramentá-la, mas a caça de Broud
assegurou-a definitivamente. Os totens se achavam contentes. Broud segurava a lança com
a ponta manchada de sangue voltada para cima, quando os outros vieram correndo juntar-se
a eles, cheios de alegria, à vista do animal abatido. Brun já tinha a faca na mão, pronto
para cortar a barriga e estripar o bisão antes de carregá-lo para a caverna. Retirou o fígado,
cortou-o em fatias, dando um pedaço a cada caçador. Era a parte nobre, reservada só aos
homens. O fígado dava força aos músculos e boa visão para caçar. Em se guida, tirou o
coração para fora e enterrou-o no chão perto do animal. Era uma promessa que pagava a
seu totem.
Broud, com o coração estourando de alegria, sentia o sabor de sua virilidade. Tornar-se-ia
homem na cerimônia que santificaria a caverna e a ele caberia a honra de conduzir a dança
dos caçadores. Tinha, doravante, o direito de participar dos rituais secretos que eram
realizados no interior da pequena caverna, e o rapaz daria de bom grado a vida pelo olhar
de orgulho que viu no rosto de Brun. Era o supremo momento de sua vida. Já se antevia como centro de atenções na cerimônia da caverna, depois de concluído seu ritual de
passagem. Teria toda a admiração e todo o respeito do clã. Só se falaria nele e em sua
bravura na caçada. Seria sua noite, e os olhos de Oga estariam brilhando cheios de muda
devoção e reverente encantamento.
Os homens amarraram, acima das juntas, as quatro pernas do bisão. Grod e Droog juntaram
suas lanças e Crug e Goov fizeram o mesmo, de modo a formar com elas um par de
reforçadas estacas. Uma foi passada entre as pernas dianteiras e a outra, entre as traseiras,
no sentido horizontal, atravessando o bicho. Brun e Broud iam lado a lado, cada um
segurando num chifre e levando na outra mão a lança. Grod e Droog pegaram cada um
numa das extremidades da estaca dianteira, enquanto Crug se postou do lado esquer do e
Goov do direito das pernas traseiras. A um sinal do chefe, puseram-se a caminho,
carregando o animal pela relva, meio suspenso e meio arrastado. A volta foi muito mais
demorada do que a ida. Apesar da força que tinham, esfalfaram-se sob aquele enorme peso,
arrastando-o pela planície e, depois, subindo a colina.
Oga estava vigiando e viu quando despontaram ao longe, lá embaixo na planície. Quando
estavam mais perto, o clã que já os esperava, saiu inteiro para fazer, junto deles, a última
etapa do trajeto, aplaudindo-os silenciosamente. A posição de Broud, à frente dos
caçadores vitoriosos, indicava seu feito. Até mesmo Ayla, que Não estava entendendo o
que se passava, foi tomada por toda aquela excitação, quase palpável, pairando na
atmosfera.
- O
filho de sua companheira fez bonito, Brun. Um animal e tanto - dis se Zoug, enquanto os
homens punham o bisão em frente à caverna.
- Você já tem mais um caçador e pode orgulhar-se dele.
- Ele mostrou coragem e muita força no braço - disse Brun, gesticulando com uma das
mãos e a outra apoiada no ombro do rapaz. Seus olhos brilhavam de orgulho. O elogio
direto deixou Broud ainda mais cheio de si.
Zoug e Dorv examinavam o jovem bisão, tomados de admiração. mas um tanto saudosos
das emoções de suas antigas caçadas e das vibrações senti das nos momentos de glória,
esquecidos dos perigos e desapontamentos, par te também da difícil aventura que é a caça
de um animal de grande porte. Já Não podendo caçar mais com os jovens, mas também Não
querendo ficar do lado de fora, os dois haviam passado a manhã explorando as matas nas
encostas da colina, buscando presas menores.
- Vejo que você e Dorv puseram suas fundas para funcionar. Desde a metade da subida do
morro que já vinha sentindo o cheiro de carne assando
- prosseguiu Brun. - Depois que estivermos instalados na caverna, vamos achar um
lugar para treinar. O clã só tem a ganhar, se todos souberem usar a funda como você, Zoug.
E Não vai custar muito a chegar o tempo para Vorn começar a treinar.
Brun tinha perfeita consciência do que representava a contribuição dos velhos e desejava
que eles também o soubessem. Nem sempre suas caçadas eram bem-sucedidas. Muitas
vezes, existia carne, graças aos esforços deles e, durante as pesadas nevascas de inverno, a
carne fresca quase sempre era obtida na caça com funda. Representava nessa época do ano
uma agradável mudança na alimentação do clã, constituída quase só de carne-seca, e
principalmente no final da estação, quando começavam a faltar as caças abatidas no último
outono.
- Sim, mas nada como um jovem bisão como este aí. Conseguimos pegar alguns coelhos
e um castor gorducho. A comida já está pronta. Estávamos só esperando por vocês - falou
Zoug. - Vi uma clareira num terreno plano, mais ou menos perto daqui. Lá, vai dar um
bom lugar para treinar.
Zoug, que vivia com Grod desde que sua companheira morreu, vinha exercitando sua pontaria com a funda, depois que se retirou das fileiras dos caçadores de
Brun. O bom domínio das boleadeiras e da funda era o que havia de mais difícil para os
homens dos clãs conseguirem. Apesar de seus braços, ligeiramente arqueados e musculosos,
serem dotados de tremenda força, eles podiam executar trabalhos que exigiam grande
precisão e delicadeza, como o de lascar pedras. O desenvolvimento das juntas dos braços,
particularmente a maneira como seus músculos e tendões se ligavam aos ossos, dava-lhes
uma perfeita destreza manual em combinação com uma formidável força. Mas isso tinha
também seus inconvenientes. Esse mesmo tipo de desenvolvimento de junta restringia-lhes
os movimentos. Não conseguiam, por exemplo, fazer uma arcada completa com o braço, o
que lhes tornava bastante difícil o gesto de arremessar objetos. O que perdiam em troca da
força era, não o controle de precisão, mas a energia em seus arremessos.
Suas lanças não eram como dardos que se atiram a distância, mas um tipo de estocada feita
de perto e com grande força. O exercício com lanças e paus era pouca coisa mais do que
desenvolver uma boa musculatura, mas o uso da funda ou das boleadeiras levava anos de
prática e concentração. A funda, uma tira de couro flexível que o atirador, segurando por
suas duas extremidades fazia girar por cima da cabeça para dar impulso a uma pedra posta
no centro da correia, era arma que exigia grande treinamento. Zoug era vaidoso de seus
tiros certeiros e agora estava também orgulhoso pelo fato de Brun tê-lo escolhido para
treinar os garotos do clã.
Enquanto Zoug e Dorv vasculhavam as encostas com suas fundas, as mulheres apanhavam
plantas no mesmo terreno, e um aroma apetitoso de comida no fogo enchia o ar, aguçando-
lhes o apetite. Isso veio lembrá-los de que o móvel da caçada era a fome. Não tiveram de
esperar muito.
Depois da comida, relaxados e inteiramente satisfeitos, rememoraram os incidentes e as
emoções da caçada para prazer deles e também para o de Zoug e Dorv. Broud, radiante com
seu novo status, recebendo calorosas felicitações de seus novos pares, via Vom olhando-o,
estático, cheio de admiração. Até aquela manhã, os dois haviam estado em mesmo pé de
igual dade, e Vom, depois de Goov ter passado para o grupo dos homens, fora seu único
companheiro.
Broud se lembrou de como também ele ficava rondando os homens, de pois das caçadas, tal
como agora Vom fazia. Nunca mais estaria relegado às sombras, inteiramente ignorado e
bebendo avidamente as histórias que os outros contavam. Nunca mais estaria às ordens da
mãe e das mulheres, chamando-o para ajudar nos serviços domésticos. Era agora um
caçador. Um homem. Para que assumisse os plenos direitos do status adulto, faltava apenas
um último ritual que seria celebrado conjuntamente com a cerimônia da caverna, um
acontecimento que seria particularmemte memorável e auspicioso.
Quando acontecesse, estaria ocupando a posição mais baixa na hierarquia masculina, mas
isso não tinha muita importância. Daqui a uns tempos mudaria; o seu lugar no clã estava
preestabelecido. Era filho da companheira do chefe, algum dia seria ele o cabeça. Vorn, às
vezes, tinha sido uma praga, mas ele, Broud, podia permitir-se ser magnãnimo.
Encaminhou-se para o me nino, percebendo os olhos de Vorn acenderem de prazer com
sua aproximação.
- Vom, acho que você já está bastante crescido - disse Broud com gestos pomposos,
tentando assumir uma postura de homem. - Vou fazer uma lança para você. Já é tempo de
começar a treinar para caçador.
- Sim - respondeu o menino, com um movimento de cabeça. - Já estou crescido sim,
Broud - prosseguiu, timidamente. Fez, então, um gesto indicando a ponta manchada de
sangue da pesada lança. - Posso tocar?
Broud colocou a ponta de sua lança no chão, e Vorn, hesitante, encostou o dedo no
sangue seco do bisão, jazendo agora em frente à entrada da caverna.
- Você teve medo, Broud?
- Brun diz que todos os caçadores ficam nervosos na primeira caçada
- respondeu Broud, sem admitir seus temores.
- Vorn! Até que enfim encontrei-o! Bem que eu devia ter imaginado. Seu lugar era
ajudando Oga a catar lenha - disse Aga, vendo o filho que conseguira escapulir das
mulheres e das crianças.
Vom seguiu a mãe, olhando por cima do ombro seu novo ídolo. Brun observava,
satisfeito, o filho de sua companheira. O rapaz tem boa índole. Não se esqueceu do amigo
só porque ele é ainda criança, disse consigo. Um dia Vom será caçador e Broud, chefe, e
ele, então, se lembrará dessa gentileza que recebeu quando ainda criança.
Broud ficou olhando Vom ir arrastando-se atrás da mãe. E pensar que, até ontem, também
sua mãe vinha buscá-lo para fazer serviços domésticos. O rapaz deu uma olhada nas
mulheres que, no momento, cavavam um buraco. Seu impulso foi o de escapar de
mansinho, sem que a mãe o visse, mas, então, percebeu Oga olhando em sua direção.
Minha mãe não pode mais dizer o que tenho ou não de fazer. Não sou criança, sou homem.
Agora, ela tem de me obedecer, pensava Broud, estufando um pouco o peito. Ela tem de... e
Oga está olhando...
- Ebra! Traga água! - ordenou, imperioso e olhando arrogante para as mulheres. Estava
quase esperando que sua mãe lhe mandasse catar lenha. A rigor, não seria homem enquanto
não se consumassem os ritos de passagem.
Ebra suspendeu os olhos, cheia de orgulho. Ali estava o seu rapazinho que tão bem se saíra
de sua missão, o seu filho que chegara ao belo status de homem. Ela deu um salto e foi até
o lago perto da caverna, voltando rapidamente com a água e olhando desdenhosa para as outras, como se dissesse:
estão vendo o meu filho? Olhem só que caçador corajoso e que beleza de homem!
Percebendo todo aquele entusiasmo e orgulho por ele, Broud saiu um pouco da defensiva e
se dispôs a agraciar a mãe com um breve grunhido. A pronta obediência de Ebra agradou-o
quase tanto como a saudação de cabeça seguida pelo olhar de adoração que ele viu em Oga,
quando se virava para sair.
Oga tinha ficado profundamente abatida e triste com a morte de sua mãe, ocorrida pouco
tempo depois do falecimento do companheiro dela. Como filha única, fora muito querida
pelo casal. A companheira de Brun mostrava-se delicada com ela, depois que foi morar
com a família do chefe. Podia sentar-se junto deles para comer e, durante a viagem,
caminhara logo atrás de Ebra. Mas Brun a intimidava. Parecia ser muito mais severo do
que o companheiro de sua mãe. Suas responsabilidades eram grandes e pesavam de mais
sobre os seus ombros. A principal preocupação de Ebra era Brun e, via jando, ninguém
teve muito tempo para pensar na pobre menina órfã. Certa noite, Broud a viu sentada, num
desalento só, com os olhos fixos na fogueira. Oga se viu numa gratidão sem limites,
quando o orgulhoso garoto, quase um homem, que raramente prestava atençãob nela, veio
sentar-se a seu lado e passou o braço em torno de seus ombros, ouvindo-a silenciosamente
chorar suas mágoas. A partir daquele momento, só teve um desejo: o de ser a com panheira
de Broud, quando se tornasse mulher.
Fazia um sol quente de fim de tarde, numa atmosfera inteiramente parada. Nem uma
pontinha de brisa agitava a menor das folhas. O silêncio de expectativa era apenas rompido
pelo zunir das moscas rodeando os restos de comida e pelo barulho dos pauzinhos das
mulheres cavando um buraco na terra. Iza, com Ayla a seu lado, procurava, dentro da
sacola de pele de lontra, a outra menor de cor vermelha. A menina andara atrás dela o dia
inteiro, mas agora havia certos rituais que Iza tinha de levar a cabo com o Mog-ur, certos
preparativos relacionados com o importante papel que desempenharia na cerimônia da
caverna, pois já não havia a menor dúvida de sua realização Ela pegou a menina de cabelos
louros e a levou até o grupo de mulheres cavando o buraco, próximo à entrada da caverna.
Faziam um buraco que iriam forrar de pedras, no qual o fogo arderia a noite toda. Pela
manhã, o bisão sem a pele e esquartejado, seria posto envolvido por folhas dentro do buraco
e, depois, coberto com mais folhas e uma camada final de terra. Nesse forno de pedras, o
animal assaria até o entardecer.
Que serviço lento e tedioso, a escavação! Os pauzinhos pontudos eram usados para soltar a
terra para cima que ia sendo jogada com as mãos num lençol de couro, o qual era arrastado para outro ponto e aí esvaziado. Mas uma vez o buraco
pronto, ele serviria para muitas vezes mais, bastando que, ocasio nalmente, fosse limpo das
cinzas depositadas. Enquanto as mulheres escavavam, Oga e Vorn, sob os olhares
vigilantes de Ovra, a filha de Ika, catavam lenha e traziam pedras do fundo do riacho.
Com a aproximação de Iza trazendo a menina pela mão, as mulheres pararam.
- Eu preciso ir ver o Mog-ur - disse Iza falando por gestos. Em seguida, empurrou Ayla
na direção delas. A menina ainda fez menção de segui-la, mas Iza abanou a cabeça,
dizendo não e tornando a empurrá-la na direção das mulheres. Logo depois foi embora.
Exceto Iza e Creb, Ayla ainda não tinha tido contato com qualquer outra pessoa do clã.
Sentiu-se perdida e tímida longe da presença encorajadora de Iza. Ficou presa no chão, sem
jeito, olhando para os pés, de vez em quando levantando os olhos para dar uma olhada
apreensiva. Contra todas as regras do decoro, todo mundo se pôs a encarar a garota
magricela de pernas compridas, rosto chato e testa saliente. Todos estavam curiosos a seu
respeito e aquela era a primeira oportunidade que tinham para vê-la de perto.
Por fim, Ebra quebrou o silêncio.
- Ela pode ir catar lenha - disse por gestos, dirigindo-se a Ovra e voltando
imediatamente ao que estava fazendo.
Ovra ia na direção de um trecho com muitas árvores e troncos caídos. Oga e Vom pareciam
grudados no chão Ovra fez um aceno impaciente e, em seguida, outro para Ayla. A menina
achou ter entendido o gesto, mas não estava muito certa do que se esperava dela. Ovra,
outra vez, acenou e se encaminhou para o lugar das árvores. As duas crianças mais
próximas em idade de Ayla foram com certa relutãncia atrás de Ovra. A menina ficou, por
um instante, vendo Oga e Vorn pegarem galhos secos, enquanto Ovra, com o seu machado de pedra, rachava uma tora de bom tamanho, caída no chão. De volta, depois de ter
depositado um tronco perto do buraco, Oga começou a arrastar na direção da pilha de
troncos uma tora que Ovra tinha rachado. Ayla viu a luta da menina e veio ajudá-la.
Curvou-se e segurou o outra ponta. Quando as duas ficaram de pé, Ayla olhou bem dentro
dos olhos negros de Oga. Por um momento, ficaram paradas, uma encarando a outra.
TÃO diferentes e ao mesmo tempo tão contraditoriamente parecidas. Provinham de um
mesmo tronco, mas a descendência do ancestral comum às duas havia tomado rumos
divergentes, ambos dando origem a inteligências extremamente desenvolvidas, se bem que
distintas. Todos os dois sapiens e, igualmente, dominantes em determinado período da
história, quando entro o abismo que os separava não era muito grande. Entretanto, sutis
diferenças levaram a destinos totalmente diversos. Ayla e Oga, cada qual segurando numa ponta de tora, foram carregando-a até a pilha de
lenha. Ao voltarem, lado alado, as mulheres pararam outra vez de trabalhar para ficar
observando-as. As duas eram quase da mesma altura, embora a mais alta tivesse quase o
dobro de idade. Uma, esguia, membros retos, cabelos louros. A outra atarracada, pernas
tortas e mais morenas. As mulheres faziam suas comparações, mas as garotas, como toda e
qualquer criança, logo esqueceram suas diferenças. A divisão de trabalho veio facilitar as
coisas e, antes que o dia tivesse terminado, já haviam arranjado um jeito de comunicar-se e
de dar um pouco de graça ao serviço que faziam.
Ao entardecer, enquanto os outros comiam, elas se buscaram e sentaram-se juntas,
comprazendo-se com uma camaradagem que vinha do fato de terem quase a mesma altura.
Iza ficou feliz de ver Oga aceitando Ayla e esperou que anoitecesse para buscá-la. Ao se
separarem, uma olhou muito para a outra e, então, Oga deu as costas e se dirigiu para sua
pele de dormir, ao la do de Ebra. Homens e mulheres ainda dormiam separados. A
proibição do Mog-ur só seria suspensa depois de haverem mudado para a caverna.
Os olhos de Iza se abriram com os primeiros raios da luz do dia. Ficou ainda deitada,
escutando as dissonâncias melodiosas dos pássaros, saudando o amanhecer com seus
chilreios, pipilos, trinados e gorjeios. Dentro de bem pouco, pensou, quando abrir os olhos,
será para uma parede de pedra. Enquanto o tempo estivesse agradável, não se importava
de dormir ao relento, mas estava ansiosa por ver-se protegida dentro da caverna. O
pensamento lembrou-lhe de tudo quanto tinha de fazer naquele dia e rapidamente se levantou, alvoroçada, com a lembrança da cerimônia.
Creb já estava acordado. Pareceu-lhe que ele não tinha dormido nem um pouco. Estava no
mesmo lugar onde o tinha deixado na noite anterior, com os olhos parados no fogo, em
silenciosa contemplação. Iza começou a pôr a água para ferver e, quando lhe trouxe o chá
feito de hortelã, alfafa e urtiga, Ayla achava-se já sentada a seu lado. Para a menina,
arrumou uma refeição com as sobras da comida da véspera. Os homens e as mulheres do
clã iriam ficar sem comer até a hora da festa.
Mais para o meio da tarde, deliciosos aromas, saídos das diversas fogueiras em que se
preparavam as comidas, enchiam o ar perto da caverna. Os utensilios e toda uma
parafemália de cozinha, salvos do terremoto, foram trazidos e, agora, desempacotados.
Cestas impermeáveis - magnificamente trabalhadas, com texturas diferentes e sutis
desenhos feitos na própria trama - eram usadas para tirar água do lago ou como vasilhame
de cozinha, ou ainda como recipiente para guardar mantimentos. As bacias e cunjas de
madeira tinham finalidades semelhantes. Os ossos de costelas serviam para mexer a
comida e os ossos rasos da pelve e as toras delgadas e côncavas eram usados como pratos etravessas. Os ossos da cabeça e mandíbulas faziam o papel de conchas, xícaras e tigelas.
Finalmente, as cascas de bétula coladas com uma goma de bálsamo, às vezes também com
uma amarração feita de tendões e nervos para reforçar, recebiam formas diferentes para
aplicações diversas.
Num couro de animal, suspenso em cima do fogo por uma armação de correlas, borbulhava
uma saborosa sopa. A vigilância tinha de ser constante para que o líquido não secasse
muito. Enquanto o nível da sopa fervendo se mantivesse acima do nível das chamas, o calor
no couro não daria para queimá-lo. Ayla observava Ika revolvendo os ossos e nacos da carne do pescoço do bisão, que cozinhavam com cebola do mato, tussilagens e outras ervas.
Depois, a mulher provou e acrescentou para engrossar o caldo talos de cardo, cogumelos,
raízes, brotos de lírio, agrião, folhas de serralha, inhames novos, arandos trazidos da outra
caverna e hemerocales colhidas na véspera.
Raízes de taboa haviam sido esmigalhadas e limpas de suas fibras mais duras. Ao amido
resultante, assentado no fundo das cestas com água fria, foram adicionados mirtilos secos e
sementes moídas e torradas também trazidos com eles e, agora, pães, numa massa escura
não fermentada, assavam nos formos de pedra, junto das fogueiras. Folhas de caperiçoba,
anserina, trevos novos e dentes-de-leão, tudo temperado com tussilagem, cozinhavam em
outra panela e um molho feito de maçãs ácidas com pétalas de rosa silvestre e mel
(afortunadamente encontrado no local) apurava em outra fogueira.
Iza havia ficado agradavelmente surpresa ao ver Zoug voltando de uma ida na planície com
um punhado de ptármigas. Esses pesados pássaros de vôo rasteiro eram facilmente abatidos
com as pedras das fundas, sendo os preferidos de Creb. Recheados com ervas e folhas
comestíveis que envolviam, inteiros, os seus próprios ovos, essas saborosas aves assavam
em fornos menores. Lebres e gigantescos hamsters sem as peles eram postos em espetos
sobre as brasas e montanhas de minúsculos morangos silvestres cintilavam, à luz do sol,
sua forte cor vermelha.
Uma festa digna do acontecimento.
Ayla não tinha certeza se poderia esperar. Ficara o dia inteiro rondando sem destino por
perto da área de preparo das comidas. Tanto Iza como Creb passaram a maior parte do
temppo em algum outro lugar, e quando Iza aparecia estava sempre ocupada. Oga também
trabalhava com as mulheres preparando a festa e ninguém tinha tempo e nem vontade de
incomodar-se com a menina. Depois de algumas palavras mal-humoradas e umas cotoveladas não muito delicadas, Ayla tratou de estar fora do caminho das mulheres.
Logo que as sombras do fim de tarde começaram a se estender sobre o chão de terra
vermelha em frente da caverna, um silêncio de expectativa baixou sobre o clã. Todos
foram reunir-se em torno do grande buraco onde assavam os quartos do bisão Ebra e Ika começaram por retirar a camada de terra quente e,
depois de afastarem as folhas moles e chamuscadas, surgiu o bicho numa nuvem de vapores
de dar água na boca. A carne era retirada cui dadosamente, tão tenra que se desprendia fácil
dos ossos. A Ebra, como com panheira do chefe, coube a honra de partir e servir. Seu
orgulho era visível, quando deu o primeiro pedaço ao filho.
Broud Não se fez de rogado, sem nenhuma falsa modéstia, avançou para receber sua
porção. Depois dos homens servidos, seguiram-se as mulheres e, por fim, as crianças. Ayla
foi a última, mas dava para todos e ainda sobrava. Um novo silêncio tornou a baixar, mas
desta vez de fome, o clã faminto devorava avidamente seu banquete.
Era uma festa sem pressa, com as pessoas voltando para se servir de um pouco mais de
bisão ou repetindo seus pratos favoritos. As mulheres tinham dado duro, mas sua
recompensa Não estava apenas na visão do clã plenamente satisfeito: nos próximos dias
não teriam que cozinhar. Em seguida, todos se puseram a descansar, preparando-se para a
longa noite que tinham pela frente.
Quando as sombras começaram a alongar-se, fundindo-se com a luz acizentada da noite
próxima, a atmosfera de preguiça da tarde foi gradualmente cedendo a uma outra, carregada
de expectativa. A um olhar de Brun, as mulheres rapidamente limparam os restos da festa e
foram tomar seus lugares em volta de uma fogueira ainda não acesa, armada à entrada da
caverna. Parecia um qua dro formado ao acaso, desmentindo o rígido formalismo que regia
o clã. As mulheres se postaram uma junto da outra, de acordo com seus status. Os homens
se reuniram do lado contrário, numa configuração obedecendo suas posições hierárquicas.
O Mog-ur não se achava presente.
Brun, o que estava mais perto da entrada, fez um sinal a Grod. Este, com passos lentos e
dignos, aproximou-se e retirou do chifre do auroque o carvão em brasa,o mais importante de
todos os carvões, numa longa seqüência que tinha começado com aquele aceso nos
escombros da antiga caverna. Dar continuidade a este fogo era dar continuação à vida do
clã, e reacendê-lo à entrada da caverna significava proclamá-la como deles, estabelecê-la
como lugar de sua residência.
O controle do fogo foi uma invenção do homem, essencial à vida em terras de climas frios.
Só o cheiro de fumaça já bastava para trazer a sensação de segurança e evocar nos espíritos
a lembrança de um lar. A fumaça da fogueira, filtrando-se para dentro da caverna, subia aos
altos tetos abobadados e saía para o exterior pelas fendas e rachaduras. Levaria consigo
todas as forças invisíveis que poderiam ser hostis e purificaria a moradia, permeando-a com
sua essência, a essência do humano.
A fogueira acesa, em si mesma, já se constituía num ritual de purificação e de tomada de
posse, mas outros tantas vezes foram realizados conjuntamente com os ritos da cerimônia
da caverna que o clã quase já os considerava como fazendo parte do mesmo cerimonial. Um
desses, era o de familiarizar os espíritos dos totens protetores com a nova moradia, feito
normalmente em particular pelo Mog-ur e na presença só dos homens. Às mulheres tinham
suas próprias celebrações, por isso Iza fizera uma bebida especial para os homens.
O sucesso da caçada já dera provas de que os totens se achavam de acor do com a caverna e
a festa confirmava a intenção deles de fazer dela um lugar permanente de morada, o que
não impedia de, em certas ocasiões, o clã passar longas temporadas fora. Os espíritos
totêmicos também viajavam, contanto que as pessoas trouxessem consigo seus amuletos
para que os totens pudessem levá-las e trazê-las, quando necessário.
Já que os espíritos de qualquer maneira estariam presentes à cerimônia da caverna,
freqüentemente aproveitava-se para a inclusão de outras. A parte preponderante de qualquer
cerimônia estava associada ao estabelecimento de uma nova moradia e ao subseqüente
vínculo do clã com a terra. Apesar de que cada tipo de cerimônia possuísse sua forma
ritualística que era sempre a mesma, os acontecimentos celebrados divergiam de caráter,
dependendo da forma de serem conduzidos os ritos.
Era o Mog-ur que, em geral de acordo com Brun, decidia como fazer a junção das diversas
partes, de modo a englobar todas numa só cerimônia, mas essa era uma questão orgânica
que dependia de como eles se sentissem. A cerimônia daquele dia constaria dos ritos de
passagem de Broud e daqueles que dariam a conhecer os totens das crianças, já que isso
tinha de ser feito e também porque eles desejavam agradar os espíritos. O tempo não era o
que contava. A cerimônia poderia durar o que durasse. Estivessem eles em perigo, ou sem
espírito para festejos, o simples ato de acender a fogueira já bastava para fazer a caverna
deles.
Com postura grave, apropriada à magnitude da tarefa, Grod ajoelhou- se, encostou a brasa
no madeirame seco e pôs-se a soprar. As pessoas, ansiosas, inclinando-se para a frente,
soltaram todas ao mesmo tempo um suspiro de alívio ao ver os galhos secos começando a
arder em chamas. O fogo pegou e, de repente, surgida, não se sabe de onde, uma figura
assustadora, de pé junto à fogueira, como se saída do meio das labaredas crepitantes.
Tinha o rosto pintado de vermelho vivo e se achava encimada por uma lúgubre caveira
branca que parecia ter saído incólume das chamas, suspensa por gavinhas de trêmula
energia.
Ayla, a princípio, não viu aquela assombração chamejante, mas logo começou a respirar
ofegando, tremendo de medo. Sentiu que Iza apertava-lhe a mão tranqüilizando-a. Pouco
depois, fizeram-se ouvir as vibrações das monótonas batidas no chão feitas pelas pontas de lanças. A menina deu um salto para trás,
virando a cabeça contra um tronco, quando um caçador mais à frente deu um pulo na
direção das chamas no momento mesmo em que Dorv começou a fazer uma batida de som
mais alto e em contraponto rítmico, num enorme instrumento de madeira abaulado.
Broud agachou-se e olhava a distância, com as mãos abrigando os olhos de um sol
inexistente. Os outros caçadores pularam de seus lugares e foram juntar-se e ele na
reconstituição da caçada ao bisão De tal ordem era o poder evocativo da pantominia - afinal
uma expressão que vinha sento burilada por incontáveis gerações - que conseguiram
recriar toda a intensidade das emoções vividas na caçada. Até mesmo a menininha de fora,
com os seus cinco anos, recebia o impacto daquela representação As mulheres do clã íntimas das finas nuanças de sua linguagem, viram-se transportadas ao calor da planície
poeirenta. Sentiram o trovejar da terra vibrando sob os cascos; provaram o gosto da poeira
sufocante e exultaram com a caça abatida. Era um raro privilégio que lhes permitia partilhar
da sacrossanta vida dos caçadores, mesmo que se tratasse de um pálido vislumbre.
Desde o início, Broud assumiu o comando da dança. Havia sido o autor da proeza e a noite
era sua. O rapaz recebia as emoções vividas ali por empatia, o tremor de medo das
mulheres, e reagia fazendo uma interpretação ainda mais viva e apaixonada. Era um
consumado ator e nunca estava tão em seu elemento como quando se via no centro das
atenções. Brincava com as emoções de sua platéia e sua representação da cena da estocada
final teve um quê de erótico que levou as mulheres a estremecerem extasiadas. O Mog ur,
por detrás da fogueira, observava não menos impressionado: estava sempre ouvindo
conversas sobre caçadas, mas somente nessas esporádicas cerimônias tinha oportunidade
de sentir de perto toda a gama das emoções vividas pelos caçadores. O rapaz é bom, pensou
ele, passando para a frente da fogueira. Faz jus à marca do totem que leva. Talvez tenha o
direito de se exibir um pouco.
A última cena botou Broud face a face com o poderoso mago, ao mesmo tempo em que as
batidas silenciaram - uma, monótona sempre igual, e outra, fazendo um vivo contraponto
staccato - depois de um floreado rítmico. O velho feiticeiro e o jovem caçador ficaram
encarando-se. Também o Mog-ur sabia representar seu papel. O mestre do timing esperava,
deixando que se evanescessem as emoções da dança e criando aos poucos o clima de
expectativa. A enorme e desproporcionada figura, envolvida numa pesada capa de pele de
urso, projetava sua sombra contra as labaredas. O rosto, pintado de ocre vermelho,
estava sugerido por sua própria configuração que fazia de seus traços um borr indefinido,
com o funesto olho assimétrico de um demônio.
A quietude da noite era apenas perturbada pelo crepitar da fogueira ao lado de uma suave
brisa sussurrando nas árvores e o grito de uma hiena caca rejando a distância. Broud, com
os olhos brilhando, ofegava. Um tanto pelo exercício da dança, um tanto pela excitação e
vaidade, mas sobretudo por um medo cada vez mais premente.
Sabia o que estava por vir. Quanto mais pensava nisso, mais lutava contra o calafrio,
prestes a transformar-se numa grande tremedeira. Estava na hora de o Mog-ur esculpir-lhe
na carne a marca de seu totem. Havia procurado não pensar no fato, mas, agora que chegara
o momento, viu-se com mais medo do que propriamente dor. O feiticeiro projetava uma
aura que ainda enchia mais o rapaz de pavor.
Ele trilhava as fronteiras do mundo dos espíritos, um lugar que encerrava seres muito mais
aterrorizantes do que o gigantesco bisão Este, com todo o seu tamanho e força, era pelo
menos sólido, algo palpável do mundo físico, com o qual o homem podia engalfinhar-se. Já
essas forças invisíveis, infinitamente mais poderosas, capazes de fazer com que a própria
terra tremesse, era coisa bem diferente. Mas Broud não estav sozinho. Ele não era o único
ali a reprimir um calafrio, quando as angústias vividas durante o ter remoto de repente
batia-lhes na lembrança. Apenas os homens santos, os fei ticeiros, ousavam enfrentar esse
plano insubstancial, e o supersticioso rapaz só desejava naquele instante que o Mog-ur
terminasse o mais rapidamente possível com o que tinha a fazer.
Como se tivesse escutado o desejo de Broud, o feiticeiro levantou o braço e dirigiu os olhos
à lua crescente. Em seguida, com gestos ondulantes, passou a fazer uma súplica em tons
ardorosos. Sua platéia, entretanto, não estava ali no da inteiramente hipnotizado. Sua
eloquência se dirigia ao etéreo, mas Não menos real mundo dos espíritos, numa
gesticulação de grandes efeitos cênicos. Valia-se de truques bastante sutis de posturas e
finas nuanças de gestos, superando as desvantagens que levava em sua própria língua.
Conseguia ser mais expressivo com um braço só do que a maioria dos homens com dois.
Quando estava chegando ao fim, ninguém duvidava de estar cercado pela essência de seu
totem protetor e por uma legião de espíritos não conhecidos. O calafrio de Broud se
transformara numa total tremedeira.
Com um lance inesperado que levou alguns a prenderem a respiração, o Mog-ur, num abrir
de olhos, puxou da dobra da roupa uma afiada faca que segurou por cima da cabeça. Em
seguida, num segundo gesto, também inteiramente de surpresa, baixou a faca e enfiou sua
ponta no peito de Broud. Um pouquinho mais, o golpe seria fatal, mas o feiticeiro tinha o
perfeito domínio dos movimentos. Depois, com a mão firme gravou na carne de Broud duas
linhas que saíam de um mesmo ponto e faziam uma curva na mesma direção, tal como o
formato dos chifres de rinocerontes.
Broud tinha os olhos fechados, mas não fez menção de esquivar-se no momento em que a
faca furou-lhe a pele. O sangue veio à superfície, fazendo regatos vermelhos escorrerem
pelo peito. Goov surgiu ao lado do Mog-ur, segurando uma tigela com ungüento feito de
gordura de bisão e cinzas vegetais. O Mog-ur untou a ferida com essa pasta, estancando o
sangue. Em seguida, olhou para ver se a cicatrização estava se processando bem. A marca
na pele proclamava Broud como homem, um homem para sempre sob a proteção do
poderoso e imprevisível espírito do rinoceronte.
O rapaz voltou a seu lugar plenamente consciente de estar sendo o centro das atenções e
vivendo toda sua glória, agora que o pior já havia passado. A coragem, a competência na
caçada, o belo desempenho de sua dança evocativa, a firmeza com que enfrentara a
gravação da marca do totem, tudo isto, tinha certeza, seria assunto para animadas conversas
tanto entre os homens como entre as mulheres. Pensou que talvez seus feitos fossem
transformar-se numa lenda, numa história a ser repetida nas reuniões dos clãs e a ser
contada e recontada durante os longos e frios invernos que confinavam o clã à caverna. Se
não fosse eu, a caverna não seria nossa, dizia consigo. Se não tivesse matado o bisão não
estaríamos tendo agora uma cerimônia, ainda estaríamos procurando uma morada. Broud
começava a pensar na caverna e em todos os outros acontecimentos como se fossem
devidos exclusivamente a ele.
Ayla, fascinada e ao mesmo tempo com medo, observava o ritual, Não conseguindo evitar
um estremecimento ao ver o enorme e assustador vulto esfaqueando Broud e tirando-lhe
sangue. Quando Iza tomou-lhe a mão para conduzi-la à presença da lúgubre figura do
feiticeiro enrolado numa pele de urso, ela retraiu o corpo, imaginando o que ele iria fazer
com ela. Ága, com Ona nos braços, e Ika, com Borg, também iam ao encontro do Mog-ur e
foi com alegria que Ayla viu as duas se alinharem na frente dela e de Iza.
Goov agora segurava uma cesta vermelha que de tanto carregar ocre amassado com banha
animal acabou ficando com a mesma cor. O Mog-ur olhou por cima das mulheres à sua
frente para o fiapo de lua no céu. Fez alguns gestos ritualísticos conclamando os espíritos a
se reunirem para guar dar as crianças cujos totens iam ser revelados. Em seguida, meteu um
dedo na pasta vermelha e fez um desenho no quadril do menino, numa forma espiralada
lembrando o rabo de um porco. Um murmúrio baixo subiu do clã enquanto as pessoas, por
meio de gestos, comentavam o acerto daquele totem.
- Ó Grande Espírito do Javali, o menino Borg está entregue à sua proteção - dizia as
mãos do feiticeiro, enquanto ele fazia passar pela cabeça da criança um saquinho amarrado
por um cordão de couro.
Iza inclinou a cabeça num gesto que expressava tanto submissão como o seu agrado pela
escolha. Era um espírito forte e respeitável e a escolha estava muito de acordo. Em
seguida, pôs-se de lado, afastando-se um pouco.
Novamente o feiticeiro tornou a invocar os espíritos e a meter o dedo na cesta que Goov
segurava. Desta vez, ele desenhou com a pasta um círculo no braço de Ona.
- Ó Grande Espírito da Coruja - falavam os seus gestos - entrego a menina Ona à sua
proteção - Pôs, então o amuleto no pescoço da criança.
Grunhidos dissimulados e mãos agitando-se no ar, mais uma vez, comentaram o totem forte
que a menina tinha para protegê-la. Aga estava feliz. Sua filha estaria bem protegida, e isso
significava que o homem dela no futuro não poderia possuir totem fraco. Só esperava que
o totem não tornasse as coisas muito difíceis e deixasse sua filha engravidar.
As pessoas, cheias de curiosidade, espicharam-se para a frente, quando Aga se afastou e Iza
se inclinou para pegar Ayla nos braços. A menina já não estava mais com medo. Chegara à
conclusão depois de ver de perto, que aquela majestosa figura de cara pintada de vermelho
não era outra senso Creb. Havia um brilho de ternura nos olhos do feiticeiro, quando ele
olhou para a garota.
Para surpresa do clã os gestos de invocação dos espíritos eram diferentes. Era a
gesticulação usada para dar nome às crianças no sétimo dia após o nascimento. A menina
não ia apenas ter o seu totem revelado, iria ser adotada pelo clã! Depois de meter o dedo na
pasta, o Mog-ur fez uma linha do meio da testa nas pessoas da raça dos clãs, no ponto onde
se juntam as saliências ósseas, acima dos olhos) até a ponta do seu pequenino nariz.
- O nome da menina é Ayla - disse ele, pronunciando devagar e com cuidado para que
tanto o clã como os espíritos entendessem.
Iza virou a cabeça, querendo ver a reação das pessoas. A adoção era tanto surpresa para ela
quanto para os outros, e Ayla sentiu-lhe o coração batendo mais forte. Isso deve significar
que ela é minha filha. A minha primeira filha, disse Iza consigo. Só a mãe carrega a
criança no dia em que ela recebe o nome e é reconhecida como membro do clã. Será que
estão fazendo sete dias que encontrei Ayla? Não me lembro. Tenho de perguntar a Creb,
mas acho que sim. Ela agora é minha filha, quem mais poderia ser mãe dela depois disso?
Cada pessoa ia passando por Iza com Ayla nos braços como se esta fosse um bebê e
repetindo o nome da menina, com maior ou menor correção de pronúncia. Iza então se
virou, ficando outra vez de frente para o feiticeiro. Este olhou de novo para cima,
conclamando os espíritos a reunirem-se. O clã aguardava ansioso, e o Mog-ur tinha plena
consciência da expectativa que suscitava, usando-a a seu favor. Com movimentos
propositadamente lentos, espichando o tempo para manter o suspense, ele retirou um pouco
da pasta vermelha e pintou uma linha em cima da cicatriz deixada pela garra do leão na
perna de Ayla.
O que quer isto dizer? Que totem é este? O clã estava perplexo. O fei ticeiro, de novo,
tornou a pegar mais um pouco de pasta e pintou uma segunda linha. Ayla sentiu que Iza
tremia. Ninguém se movia, nem uma só respiração era ouvida. Na terceira linha, Brun
com o rosto franzido de raiva, procurava o olhar do Mog-ur que, por sua vez, desviava o
seu. Na quarta linha, o clã já sabia, mas recusava-se a acreditar. Afinal, a marca fora posta
na perna errada. Quando fez os gestos de encerramento, o Mog-ur virou a cabeça e olhou
francamente para Brun.
- Ó Poderoso Espírito do Leão da Caverna, a menina Ayla está entregue à sua proteção.
A gesticulação dissipou a última sombra de dúvida. Enquanto era pendurado o amuleto
no pescoço de Ayla, as mãos dos membros do clã se agitavam, escandalizadas com a
surpresa. Seria verdade? Poderia uma menina ter o mais forte de todos os totens
masculinos? O leão da caverna?
Creb lançou a Brun, que estava furioso, um olhar firme e inflexível. Por um instante, os
dois ficaram olhando-se em silêncio, como se numa guerra de nervos. Mas, para o Mog-ur,
o totem de Ayla estava estruturado segundo uma lógica implacável, por mais absurdo que
parecesse a proteção de um espírito tão poderoso para uma mulher. Ele apenas tinha posto à
mostra aquilo que o próprio leão da caverna fizera. Brun jamais questionou as revelações
anteriores do Mog-ur, mas, por alguma razão, sentia-se desta vez ludibriado pelo feiticeiro. Podia não gostar; no entanto, era obrigado a admitir que nunca vira um totem se dar a
conhecer de forma tão concreta. Foi ele quem desviou primeiro o olhar, sentindo-se
bastante mal com tudo aquilo.
Só a idéia de aceitar a criança no clã já fora bem difícil e agora mais essa do totem. Era
demais. Algo irregular, fora do comum. Ele não gostava de ver anomalias no seu clã,
sempre muito bem ordenado. Daqui por diante, nem mais um desvio, pensou, com ar
decidido. Se a menina tiver de fazer parte do clã, que trate de se amoldar. . . com ou sem
leão da caverna.
Iza estava atordoada, ainda com Ayla nos braços, baixou a cabeça em sinal de aceitação. Se
o Mog-ur decretou é porque deve ser assim. Imaginava que Ayla devesse ter um totem
forte, mas tanto assim? O pensamento botou-a apreensiva. Uma mulher com o totem do
mais poderoso de todos os felinos? Agora, tinha certeza de que Ayla jamais arrumaria
companheiro. Isso veio reforçar sua decisão de fazer da menina uma curandeira para que
Ayla tivesse seu próprio status. Enquanto Creb a reconhecia, dava-lhe um nome e revelava
seu totem, ela ficou carregando a garota; se isto não a tornava sua filha, ela então já não
sabia de mais nada. Subitamente, Iza se lembrou de que, se tudo continuasse dando certo,
dentro de pouco tempo estaria outra vez diante do Mog-ur com um bebê nos braços. Ela,
que tanto tempo passara sem filhos, em breve estaria com dois.
O clã estava alvoroçado, e o assombro manifestava-se por gestos e gru nhidos.
Constrangida, Iza voltou a seu lugar em meio ao espanto geral. As pessoas tentavam não
olhar para ela e a menina - seria uma descortesia - mas uma pessoa fazia mais do que
olhar, encarava diretamente.
A expressão de ódio no olhar de Broud para Ayla assustou Iza. Tentou botar-se entre os
dois, escudando a garota contra aquele mau-olhado. Broud, de repente, havia percebido que
já não era mais o centro das atenções. Ninguém mais estava falando dele. Tudo
esquecido: o seu corajoso feito que lhes assegurara a caverna, sua estupenda dança e seu
sangue-frio na hora da gravação da marca do totem em seu peito. O ungüento anti-séptico
e adstringente tinha doído mais do que o próprio corte e ainda ardia, mas havia ali alguém
reparando em sua coragem? Na sua força de vontade para enfrentar a dor?
Ninguém lhe prestava a mínima atenção. Os ritos de passagem para os meninos aconteciam
com certa freqüência, mesmo para aqueles predestinados a chefes. Nem de leve podiam
comparar-se com a fantástica e inesperada revelação do Mog-ur, sem precedentes na
história deles. Broud reparou que comentavam o fato de a menina ter sido a primeira pessoa
a ser conduzida à caverna. Aquela garota horrenda ter encontrado a casa deles, quem diria!
Mas, e daí? Também com um leão da caverna por totem, pensava ele carregado de mau
humor. Por acaso foi ela quem matou o bisão? Aquela era para ter sido a sua noite, deveria
ser ele o centro das atrações, ele é que era para ser o objeto de admiração e ter o respeito
do clã, mas a desgraçada da menina lhe passara uma rasteira.
Enquanto lançava olhares furiosos para Ayla, viu que Iza correu na direção do terreno ao
lado do riacho e a atenção do rapaz voltou outra vez para
o Mog-ur. Logo, muito em breve, ele estaria sendo admitido nos rituais secretos dos
homens. Não sabia ainda o que o aguardava. Tudo que lhe fora dito
era que, pela primeira vez, iria ficar sabendo do que se tratavam as memórias.
O último passo que ainda faltava para se tornar um homem.
Ao lado da fogueira, perto do riacho, Iza se despiu às pressas e pegou uma bacia de madeira
e a sacola vermelha com raízes secas que havia tirado para fora. Depois de encher a bacia
com água, voltou para junto da fogueira principal, onde as chamas subiam alto com nova
lenha posta por Grod.
A roupa que Iza tinha usado havia encoberto, em parte, o motivo de suas prolongadas
ausências durante aquele dia. Quando ela reapareceu de novo na frente do Mog-ur, estava
completamente nua, tendo apenas o seu amuleto pendurado no pescoço e umas riscas
vermelhas pintadas no corpo. Um grande círculo ressaltava-lhe a barriga prenhe. Os dois
seios também estavam rodeados por círculos com uma risca que, saída de cima de cada um,
passava pelos ombros e se ia juntar, formando um V na altura dos rins. Às duas nádegas
igualmente achavam-se circundadas por círculos vermelhos. Os
enigmáticos símbolos, de sentido conhecido apenas para o Mog-ur, visava à proteção dela
e a dos homens. Uma mulher envolvida nos ritos religiosos era algo de perigoso, mas, para
este, ela se fazia necessária.
Iza estava de pé, perto do Mog-ur, suficientemente perto para perceber gotas de suor em
seu rosto que lhe vinham do calor do fogo e de sua pesada vestimenta. A um sinal
imperceptível dele, Iza suspendeu a bacia para o alto e se virou de frente para o clã Era uma
antiga bacia que vinha sendo conservada através de gerações e usada exclusivamente em
cerimônias daquela natureza. Alguma ancestral de Iza, em tempos muito remotos, a havia
cuidadosa mente talhado num pedaço de madeira e depois tinha aplainado sua super fície
com pedra e areia. A essência abrasiva de talos de caperiçoba fez o acabamento final,
dando-lhe um sedoso polimento. O tempo e o uso terminaram por lhe dar do lado de dentro
uma pátina esbranquiçada.
Iza encheu a boca de raízes secas e mastigou-as vagarosamente, com todo o cuidado, de
modo a não engolir nenhuma saliva, enquanto seus enor mes dentes trituravam as fibras
duras. Por fim, cuspiu a polpa mastigada dentro da bacia com água e mexeu a mistura
até que ficasse uma água leitosa. Somente as curandeiras da linhagem de Iza conheciam o
poder daquelas raízes. Era uma planta relativamente rara, mas não desconhecida. Quando
fresca, não se notavam suas propriedades narcóticas. As raízes, depois de secas, eram
postas para envelhecer durante pelo menos dois anos. Diferente mente da maioria das
outras plantas, estas se penduravam para secar com as raízes voltadas para baixo e não para
cima. Embora apenas mulheres curandeiras tivessem perniissão para preparar a bebida,
por tradição de longa data só os homens a tomavam.
Segundo uma velha lenda, passada de mãe para filha, ao lado das instruções esotéricas
sobre como promover a concentração do componente forte da planta na raiz, a poderosa
beberagem em algum tempo no passado fora usada só por mulheres. No entanto, os homens
lhes roubaram as cerimônias com os ritos associados à bebida, além de proibirem as
mulheres de tomá-la. Só Não conseguiram roubar o segredo do seu preparo. As curandeiras,
donas do segredo, evitavam de tal forma revelá-lo - exceção feita às filhas - que
ninguém mais sabia desta fórmula, a não ser uma mulher que pudesse reivindicar uma
ascendência direta de curandeiras, cuja linhagem se perdia nas profundidades do passado.
E, mesmo agora, a bebida jamais era dada, se alguma coisa de valor e qualidade
correspondentes não viesse em troca.
Quando a bebida ficou pronta, Iza fez um sinal de cabeça e Goov se aproximou com a bacia
de chá de figueira, preparado à maneira como ele usualmente fazia para os homens, só que
desta vez seria tomado pelas mulheres. Numa postura solene, as bacias foram trocadas. O
Mog-ur, então, pôs-se à frente, e os homens se retiraram para a caverna menor.
Depois de eles saírem, Iza levou a bacia com chá de figueira a cada uma das mulheres. Ela
própria, muitas vezes, já havia usado a beberagem, mas com outras finalidades, como
remédio para dormir ou tirar dor. Como sedativo, ela já tinha ali uma quantidade pronta
para dar ás crianças, só que preparada de forma especial. As mulheres não ficavam
descansadas, enquanto não soubessem que os filhos estavam bem e que não viriam
procurá-las. Nas pouquís simas ocasiões em que se permitiam o luxo de uma cerimônia, Iza
tratava de fazer com que a criançada estivesse dormindo um sono seguro e tranqüilo.
Em poucos instantes, as mulheres puseram os filhos entorpecidos para dornir e voltaram
para a fogueira. Iza, depois de meter Ayla dentro da pele, dirigiu-se para o instrumento que
Dorv havia tocado durante a dança da caçada e começou a batê-lo num ritmo vagaroso e
firme, alterando o som, ora batendo com o pauzinho na borda, ora mais no centro da caixa
de ressonância.
No início, as mulheres permaneceram imóveis. Estavam demasiadamente acostumadas a
refrear seus movimentos na frente dos homens. Mas, aos poucos, a beberagem foi surtindo
efeito e, na certeza de que eles estariam fora de vista, passaram a se mexer dentro da
cadência rítmica. Ebra foi a primeira a dar um pulo sobre os pés. Dançava com passos
intrincados, rodeando Iza e, à medida que as batidas aceleravam, as outras, estimuladas
pelo ritmo, se juntavam. Em pouco tempo, todas dançavam ao lado de Ebra.
Num ritmo sempre mais acelerado e cada vez mais complexo, elas, que em sua vida diária
eram de extrema docilidade, passaram a uma dança lasciva, movimentando-se
desinibidamente, enquanto arrancavam do corpo as vestes. Nem repararam quando Iza
parou e veio também juntar-se a elas. Dançavam inteiramente presas ao ritmo interno de
seus próprios corpos. As emoções contidas e tão reprimidas no dia-a-dia se extravasavam
em seus movimentos livres de todo constrangimento. Eram tensões convertidas em cartase
de liberdade, uma forma de catarse que as ajudava a aceitar as limitações de sua existência.
Com corropios, saltos e passadas frenéticas, dançaram até quase o raiar do dia, quando,
exaustas, tombaram no chão e dormiram no lugar mesmo em que haviam caído.
Às primeiras luzes do dia, os homens começaram a sair da caverna. Saltando por cima
dos corpos caídos, procuraram os seus lugares de dormir e, em instantes, viram-se
embalados por um sono sem sonhos. Neles, a catarse se fazia pela tensão da caça, o que
dava a seus ritos diferente dimensão: eram mais contidos, voltados para dentro e estavam
mais arraigados ao costume, mas nem por isso menos excitantes.
Quando o sol despontou no oriente, por cima da colina, Creb veio para fora da caverna e
olhou a cena a seus pés, formada por uma quantidade
de corpos estendidos no chão. Em certa ocasião, observou por curiosidade celebrações das
mulheres. Com muita agudeza de espírito, compreendeu a necessidade de liberação. Sabia
que os homens tinham curiosidade de saber o que elas faziam que as deixava em tamanho
estado de exaustão mas jamais lhes falou sobre isto. Ficariam chocados com aquela soltura
de cor tamerito, tanto quanto elas se vissem as fervorosas súplicas que seus estão
companheiros dirigiam aos espíritos que participavam de suas existências.
De vez em quando, o Mog-ur pensava se seria ele capaz de conduzir mentes femininas às
suas origens. Nelas, a memória era diferente, mas de mesma capacidade para reviver os
acontecimentos do passado distante. É possível realizar uma cerimônia em conjunto com
homens e mulheres? tinha curiosidade de saber, mas não seria ele que iria descobrir isto e
afrontar a ira dos espíritos. O clã seria destruído, se alguma mulher participasse dos sagrados ritos.
Creb se dirigiu ao acampamento e acomodou-se em sua pele de dormir. Uma massa de
cabelos dourados na pele de Iza levou-o a reviver toda uma série de acontecimentos
ocorridos a partir do instante em que ele saíra da antiga caverna, pouco antes do
desabamento. Por que artes teria aquela estranha menina entrado tão depressa em seu
coração? Incomodava-o a má vontade latente de Brun para com Ayla e também não lhe
passara despercebido os olhares rancorosos que Broud lançara à menina. As desavenças
naquele cerrado clã tinham prejudicado a cerimônia e isto o punha intranqüilo.
Broud não ficará só aí, pensou Creb. O rinoceronte é um totem muito apropriado para nosso
futuro chefe. Broud pode ser corajoso, mas é também um cabeça-dura e muito orgulhoso.
Num momento é calmo, racional, chegando até a ser um rapaz bom e gentil; em outro, por
uma bobagem qualquer, é capaz de ficar furioso, cego de raiva. Só espero que não se vire
contra a garota.
NÃO seja idiota, disse consigo mesmo, censurando-se, o filho da companheira de Brun
não vai deixar-se abalar por causa de uma simples menina, Broud agora é um homem, irá
saber controlar-se.
Por fim, deitou-se, percebendo o quanto estava cansado. Desde o terremoto que a tensão
nunca mais o havia largado, e agora podia finalmente relaxar. A caverna lhes pertencia.
Os totens estavam lá firmemente estabelecidos e o clã poderia mudar logo que acordasse.
Deu, então um bocejo, espreguiçou-se e fechou os olhos.
Ao entrar pela primeira vez em seus domínios, um silêncio reverente
abateu-se sobre o clã, intimidado pela imensidão daquela catedral
esculpida pela natureza. Mas logo foi-se acostumando à nova moradia. A lembrança da
velha caverna e a ansiosa busca rapidamente passaram a ser coisas do passado e, quanto
mais eles conheciam seus novos domínios, mais contentes ficavam com o achado.
Passaram, então a viver a rotina de todos os verões, quentes se não muito prolongados;
caça, coleta e armazenamento da comida que os manteria por todo um longo e frio inverno,
que já conheciam de experiências anteriores. Eles tinham uma bela variedade à sua
disposição.
Trutas prateadas reluzindo nas espumas brancas das saltitantes águas do rio eram apanhadas
à mão com infinita paciência, quando, desavisadamente, os peixes ficavam sob as raízes
pendentes das margens ou debaixo das pedras. Ísto i gigantescos salmões, muitas vezes
com um prêmio extra de caviar ou de ovas cor-de-rosa, saracoteavam nas embocaduras do
rio, enquanto enormes bagres e bacalhaus moviam-se majestosamente no fundo das águas.
Redes de arrastão, feitas de crina animal retorcida, colhiam em seus nós os grandes pei xes,
quando estes tentavam escapar ao bloqueio de seus perseguidores. Eles estavam sempre
fazendo o fácil percurso de cerca de 10 quilômetros até o mar e lá se abastecendo de peixes
de água salgada que punham para curtir na fumaça das fogueiras e depois eram guardados
para o inverno. Os moluscos e crustáceos eram apanhados tanto por suas carapaças, que
lhes serviam de colheres, cuias, conchas e xícaras, como também por suas apetitosas
carnes. Nos promontórios alcantilados iam buscar ovos nos ninhos dos mais variados
pássaros marítimos, e vez por outra, uma pedra bem atirada vinha aumentar-lhes a festa
com alguma gaivota, maçarico ou mergulhão
Raízes, talos e folhas suculentas, abóboras, legumes, amoras, frutas, nozes, sementes, cada
coisa era colhida a seu tempo, à medida que o verão avançava. Muitas folhas, flores e
ervas eram postas a secar e usadas depois para chá ou como condimentos, e os torrões de
sal, formados na época em que as geleiras do nordeste chupavam a umidade do ar, fazendo
recuar o mar, eles os transportavam à caverna, de modo a ter sua comida temperada no
inverno.
Os caçadores estavam freqüentemente saindo. As planícies próximas, ricas em relvas e
ervas, com apenas uns poucos e isolados grupos de árvores atar racadas, abundavam em
animais de pastagem e rebanhos dos mais diversos. Gigantescos veados percorriam as
estepes com seus fantásticos chifres palmados que chegavam, nos adultos, a ter uma
abertura de três metros, ao lado de enormes bisões com os seus chifres de igual dimensão.
Os cavalos das estepes raramente iam tão ao sul, mas burros selvagens e onagros um
intermediário de asno e cavalo) estavam sempre cruzando as planícies da península,
enquanto seu alentado primo, o cavalo da floresta, vivia à parte, ou em pequenos grupos
nos terrenos perto da caverna. Pelas estepes também passavam ocasionalmente pequenos
bandos de antiopes saigas, os parentes que alguns caprinos montanheses tinham nas
planícies.
Nos terrenos entre a pradaria e as encostas, habitavam os auroques, de cor marrom-escura
ou negra, os ancestrais do nosso gado doméstico, de proporções mais delicadas. Os
rinocerontes da floresta, parecidos com as espécies herbívoras surgidas posteriormente em
terras tropicais, mas adaptados às florestas de clima frio, avançavam um pouco sobre o
território de outra varie dade de rinoceronte que preferia as pastagens próximas às encostas.
Ambos, com seus chifres menores, pontiagudos e eretos, e uma cabeça alinhada
horizontalmente, diferiam do rinoceronte lanoso que, junto com os mamu tes de pêlo alto,
eram visitantes só ocasionais. Esses tinham um comprido chifre inclinado para a frente e
uma cabeça voltada para baixo, muito prática para espanar a neve das pastagens durante os
invernos. Suas grossas camadas subcutãneas de gordura e um manto formado por uma
cabeleira fulva, crescida por cima de uma penugem macia, eram adaptações que os
obrigavam a estar confinados às geladas e secas estepes do norte ou às planícies de loesse.
Somente na presença de geleiras formava-se o loesse nas estepes. Uma baixa e constante
pressão atmosférica nos vastos lençóis de gelo sugava a umidade do ar, não deixando cair
grande quantidade de neve nas regiões periféricas das geleiras e gerando constantes
correntezas de vento. A fina poeira calcária, dita loesse, provinha das rochas causticadas na
orla das geleiras e era depositada por centenas de quilômetros ao redor. Uma curta
primavera derretia a escassa neve e a camada superior do permafrost, o bas tante para
rápidos enraizamentos e o brotar das ervas. As plantas cresciam e secavam depressa,
produzindo milhares e milhares de hectares de feno para alimentar milhões de animais que
se haviam adaptado ao gelado frio do continente.
As estepes da península só recebiam os animais de pêlo alto no final do outono. Os verões
eram demasiadamente quentes e, no inverno, a neve densa demais para ser posta de lado.
Muitos outros, chegando o frio, tomavam
umo norte até as fronteiras das estepes de loesse, mais frias, porém mais secas. A maioria
deles, com a volta do verão, estava lá outra vez. Os animais com capacidade para
sobreviver de galhos, cascas de árvores ou líquens de plantas permaneciam nas encostas
com florestas que lhes ofereciam proteção, mas excluíam aqueles andando em grandes
manadas.
Além dos cavalos e rinocerontes das florestas, porcos selvagens e grandes variedades de
veados encontravam abrigo nas paisagens florestais: o veado vermelho, vivendo em
pequenas manadas; sozinhos ou então em pequenos grupos, os arredios cervos com seus
chifres de três pontas; os gamos, um pouco maiores e malhados de marrom e branco; e os
alces, conhecidos mais tar de na América do Norte como moose.
Mais para cima na montanha, os carneiros selvagens de grandes chifres, agarrados aos
penhascos e aos floramentos nas rochas, viviam do pastoreio alpestre. Mais para o alto
ainda, o ib o cabrito-montês, e a camurça cabriolavam de precipício em precipício.
Pássaros de vôos dardejantes punham música e cor na floresta e muitas vezes também
comida. No entanto, tinham presença mais constante nos menus as carnudas ptárgmigas e
os galináceos das estepes que podiam ser abatidos com pedradas, ou também os gansos e
patos apanhados em redes, quando vinham pousar nos lagos pantanosos das montanhas.
Aves de rapina flutuavam vagarosamente ao sabor dos ventos, vasculhando embaixo as
planícies e florestas fartas e dadivosas.
Uma infmidade de animais de tamanho menor - caçados ou caçadores - pululava nas
montanhas ou na planície perto da caverna, abastecendo o homem com carne e pele. Dentre
os caçadores, contavam-se: visão, lontra, carcaju, arminho, marta, raposa, zibelina, texugos
e os felinos de pequeno porte que deram origem à nossa imensa legião de gatos domésticos.
E como animais caçados: esquilo, porco-espinho, lebre, coelho, toupeira, rato almiscarado,
nútria, castor, zorrilho, rato, arganaz, lemingue, hamsters gigantes e uma multidão de
outros que jamais receberam nomes e, atualmente, extintos.
Os carnívoros de dimensões mais avantajadas eram essenciais para enfraquecer as
fileiras dos pequenos predadores. Dentre os caninos: os lobos e seus parentes chamados
dholes que conseguiam ainda ser mais ferozes do que eles; e dentre os felinos: lince, lobo
tigrado, tigres, leopardo e, com o dobro do tamanho de qualquer um desses, o leão da
caverna. Os ursos onívoros, de pêlo marrom, também caçavam nas redondezas, mas seus
gigantescos primos vegetarianos, os ursos da caverna, já não se encontravam mais lá. E
para com pletar esse quadro da vida selvagem, a onipresente hiena da caverna.
A terra era de riqueza incrível, e o homem, ali, uma insignificante fração das múltiplas
formas de vida que habitaram e morreram naquele éden perdido no tempo. Faltando-lhe
as experiências inatas, sem nenhum predicado natural superior, exceto o seu bem desenvolvido cérebro, ele era o mais fraco dos
caçadores. Embora com toda sua manifesta vulnerabilidade, desprovido de garras e presas,
perdendo em velocidade e na força dos saltos, o caçador de duas pernas havia granjeado o
respeito de seus competidores de quatro patas. Bastava seu cheiro para que um animal de
muitíssimo mais força se desviasse do caminho, onde quer que os dois vivessem muito
tempo em estreita proximidade. Os caçadores do clã, experientes e capazes, eram tão bons
na defesa como no ataque e, quando a segurança ou a vida do grupo se achava ameaçada,
ou quando desejavam um bom e quente agasalho, punham-se à espreita de seus incautos
espreitadores.
Era um dia luminoso, quente, em pleno despontar do verão. As folhas brotadas nas árvores
projetavam suas sombras, mas ainda sem a intensidade com que o fariam mais para diante
da estação. Insetos zuniam, indolentes, em volta dos ossos sobrados de outras refeições.
Uma brisa fresca vinda do mar trazia consigo um vestígio de vida, e a folhagem em
movimento desenhava sombras na ensolarada encosta, frente à caverna.
Terminada a luta pela moradia, as obrigações do Mog-ur se tornaram muito poucas. Tudo
que se exigia dele era que, vez por outra, celebrasse uma cerimônia de caça e alguns ritos
para espantar os maus espíritos e, em caso de doenças ou acidentes, sua interferência
espiritual para ajudar a medicina de Iza. Os caçadores haviam partido e, com eles, algumas
mulheres. Por muitos dias estariam fora. As mulheres eram levadas para que preparassem
as conservas das carnes dos animais abatidos. As caças, depois de já secas, ficavam mais
fáceis de ser trazidas e estocadas para o inverno. O sol quente e o constante vento na
planície rapidamente curtiam as carnes cortadas em tiras. A fumaça nas fogueiras de capim
e esterco tinha mais o objetivo de afugentar as moscas varejeiras, que deixavam seus ovos
na carne fresca, apodrecendo-a. E as mulheres, na volta, carregariam o grosso da carga.
Quase diariamente, depois que se instalaram na caverna, Creb passava um bom tempo com
Ayla, tentando ensiná-la a língua deles. Às palavras bastante elementares que usavam -
normalmente a parte mais difícil para as cri anças dos clã aprenderem - ela pegou com
facilidade, mas o intrincado sistema de gestos e sinais estava além de sua compreensão O
feiticeiro tentava fazê-la entender o significado do gesto, mas Não havia uma base comum
no método de comunicação dos dois, além de Não existir ninguém ali para explicar ou
interpretar. O pobre homem dava tratos à bola, mas não conseguia encontrar um jeito de
fazer-se entender. Ayla, igualmente, sentia-se frustrada.
Ela sabia que alguma coisa lhe estava escapando, e desejava com todas as suas forças poder
expressar mais do que as suas poucas palavras lhe permitiam. Era evidente para ela que as
pessoas no clã se faziam entender através de
alguma coisa, diferente das meras palavras que usavam. Só que ela não entendia como
era isso. O problema estava no fato de não ver os sinais feitos com as mãos. Parecia-lhe que
eram movimentos ao acaso, não intencionais. Simplesmente não fora capaz de penetrar no
conceito de uma linguagem gestual, e tal possibilidade jamais lhe poderia ocorrer; estava
totalmente fora do âmbito de suas experiências anteriores.
Creb começava a formar uma vaga noção do problema, embora achasse difícil acreditar no
que imaginava. Deve ser porque ela não sabe que os movimentos têm significado, dizia
consigo.
- Ayla - chamou-a, com um aceno.
O problema deve estar aí, pensou, enquanto iam por um caminho próximo ao riacho. Ou é
isto, ou então ela não é suficientemente inteligente para compreender uma linguagem. Mas,
pelo que até então ele tinha podido observar, não era falta de inteligência, por mais
diferente que Ayla pudesse parecer. No entanto, a menina entendia gestos simples e, com
isto, Creb compreendeu que toda a questão se resumia em ampliar-lhe a gesticulação.
De tanto os membros do clã saírem para caçadas, pescarias e coletas de plantas, a relva e os
arbustos foram ficando batidos, formando-se uma trilha ao longo da mata. Os dois foram
dar num lugar por que Creb tinha especial predileção. Era um espaço aberto, perto de um
carvalho com as raízes levantadas, formando um banco sombreado e alto, mais cômodo
para Creb sentar-se do que o chão. Para começar a lição, ele apontou na direção de uma
árvore com seu cajado.
- Carvalho - respondeu, prontamente, Ayla.
Creb aprovou com a cabeça e mostrou, em seguida, o riacho.
- Água - disse a menina.
Ele tornou a fazer que sim com a cabeça e logo depois fez um gesto ao mesmo tempo em
que repetia a palavra dita por Ayla. Significava água correndo, ou seja, rio.
- Água? - disse Ayla, hesitante; espantada por ele ter indicado que sua palavra estava
correta e tornado a fazer a pergunta anterior. Ela começava a sentir um frio no estômago. Já
havia sido a mesma coisa antes, e percebia que havia qualquer coisa que ele desejava, mas
Não o entendia.
Creb fez não com a cabeça. Muitas e muitas vezes, já havia feito o mesmo tipo de
exercício. Tentou novamente, agora apontando para os pés.
-Pés -falou Ayla.
- Sim - disse ele, acenando com a cabeça. Tenho de arrumar um jeito que ela também
veja e Não só ouça, pensou consigo. Levantou-se, pegou a mão de Ayla e deu com ela
alguns passos, deixando seu cajado para trás. Ele fez um gesto e disse a palavra pé. Pés
mexendo significa caminhar, era o que tentava transmitir-lhe.
Ela se esforçava para ouvir bem, achando que poderia haver qualquer coisa no som que não
estivesse pegando direito.
- Pés - falou Ayla, trêmula, certa de que não era essa a resposta pretendida.
- Não! Não e não! Pés mexendo, igual a caminhar! - repetia, olhando diretamente para
ela e exagerando nos gestos. Andava com Ayla, apontando para os pés, desesperançado de
que algum dia ela viesse a aprender.
Ayla sentia que as lágrimas lhe brotavam nos olhos. Pés! Pés! Sabia que estava falando a
palavra correta. Por que continuava ele abanando a cabeça, sempre dizendo não? Por que
não pára de mexer com a mão na frente de meu rosto? O que estou fazendo de errado?
Creb tornou a caminhar com ela; apontava-lhe os pés, mexia com a mão
e dizia a palavra. Ela parou e ficou observando-o. Ele fez o gesto novamente,
exagerando-o tanto que quase já significava outra coisa e repetiu mais uma vez
a palavra. Tinha se curvado para a frente, olhando-a em cheio no rosto e fazendo os gestos
bem em frente aos olhos dela.
O que ele quer? O que espera que eu faça? Ayla queria entendê-lo. Sabia que ele estava
tentando dizer-lhe qualquer coisa. Por que não pára de mexer a mão?, perguntou-se.
Então, um raiozinho de luz passou-lhe pela cabeça. A mão dele! Ele não pára com a mão.
Hesitante, levantou a sua.
- Sim! Sim! Isso mesmo! - disse ele, com um sim entusiasmado, quase gritado. - Faça
o gesto! Mexa o pé - repetiu.
A compreensão começava a fazer-se e ela observava o movimento dele, tentando copiá-lo.
Creb está dizendo sim! É isto que ele quer! O gesto, ele quer que eu faça o mesmo
movimento.
A menina tornou a fazer o gesto, repetindo a palavra sem entender o significado, mas pelo
menos compreendendo que aquele era o gesto que ele queria que fizesse enquanto
pronunciava a palavra. Depois, Creb virou-lhe o corpo e a conduziu de volta ao carvalho,
mancando mais do que nunca. Apontando para os pés de Ayla, enquanto andavam, ia
fazendo a combinação de gesto com palavra.
De repente, o estalo, e ela fez a conexão. Mexer o pé, igual a caminhar. É isto o que ele
quer dizer. Não era só pés. O movimento da mão com a palavra pés significa caminhar.
Sua mente havia disparado. Lembrava-se agora dever sempre as pessoas fazendo sinais
com as mãos. Via na mente Iza e Creb, os dois de pé, olhando um para o outro, mexendo
com as mãos e dizendo poucas palavras. Então eles estavam conversando? É assim que se
falam? É por isso que dizem tão pouca coisa? Então eles conversam com as mãos?
Creb se sentou. Ayla de pé, pôs-se na frente dele, tentando acalmar-se.
- Pés - disse ela, apontado para seus próprios pés.
- Sim - fez ele, curioso, com a cabeça.
Ela se virou, caminhou e quando voltou a aproximar-se, fez o gesto e disse a palavra pés.
- Sim, sim! Isso mesmo! A idéia é essa - disse ele. Conseguiu pegar. Acho que
entendeu!
Por um instante, Ayla parou quieta no lugar, depois virou-se e saiu correndo. Deu uma
corrida pela clareira e voltou, ficando, ofegante, parada na frente dele, esperando.
- Correr - falou ele por gesto, enquanto ela o observava com atenção. Sua gesticulação
era parecida com a anterior, mas não totalmente igual.
- Correr - disse ela imitando, hesitante, o gesto.
Ela tinha compreendido!
Creb vibrava. Por enquanto, os movimentos dela eram grosseiros, não chegando nem a ter a
sutileza daqueles feitos pelas crianças do clã, a idéia da linguagem, porém, tinha sido
entendida. Ele fez um sim entusiasmado e quase foi derrubado do assento, quando Ayla
atirou-se sobre ele, abraçando-o em sua alegria por poder comunicar-se.
O velho feiticeiro passou os olhos ao redor, quase instintivamente. Os gestos de afeição não
deviam ultrapassar os limites das fogueiras de cada um. Mas estavam sozinhos e ele lhe
correspondeu com um afetuoso abraço, pela primeira vez sentindo o que era o prazer de
uma terna afeição.
Todo um mundo novo de compreensão abriu-se para Ayla. A menina tinha um natural
pendor para representar e um talento especial para imitações que punha inteiro nos
arremedos que fazia dos movimentos de Creb. No entanto, Creb tinha gestos de maneta,
adaptado às suas condições físicas. Foi Iza quem teve de ensinar os detalhes mais
elaborados da linguagem. Ayla aprendia como um bebê que começa primeiro expressando
as coisas de que tem necessidade, só que seu aprendizado se fazia muito mais rápido. Tanto
tempo se sentira frustrada em suas tentativas para comunicar-se que estava resolvida a
recuperar o mais depressa possível o tempo perdido.
Quando começou a compreender melhor, a vida do clã surgiu diante de seus olhos com
outras cores. Extasiada, observava, atenta, as pesssoas à sua volta comunicando-se,
tentando pegar o que umas diziam às outras. No início, o clã se mostrou complacente com
aquela intrusão visual e tratava-a com a um bebê. Mas, com o tempo, os olhares de
desaprovação lançados em sua direção deixavam bem claro que comportamento tão mal-
educado não mais seria tolerado dali por diante. Ficar olhando era tão descortês quanto o
ato de escutar às escondidas. A boa educação mandava que se desviassem os olhos, quando
pessoas conversavam em particular. O problema estourou numa certa tarde, quando o verão
já ia pela metade.
O clã se achava no interior da caverna, com as famílias reunidas em volta de suas
fogueiras, depois da última refeição do dia. O sol havia mergulhado por trás do horizonte e
a pálida luz de seus últimos raios delineava os contor nos das copas de folhagens escuras,
farfalhando com a suave brisa da noite. A fogueira à entrada da caverna, acesa para
espantar os maus espíritos e animais rapaces, esquentava a atmosfera, enviando ao ar
volutas de fumaça e ondas de calor que faziam as sombras escuras das árvores e arbustos
ondularem ao ritimo silencioso das chamas bruxuleantes. Luzes e sombras dançavam nas
paredes rochosas da caverna.
Ayla, sentada dentro do setor pertencente a Creb, circundado por pedras, não tirava os
olhos da fogueira de Brun. Broud, chateado, descontava em sua mãe e Oga, fazendo valer
suas prerrogativas de homem adulto. O dia tinha começado mal para ele e terminado pior.
As longas horas que passara na trilha à espreita de uma raposa foram desperdiçadas quando
perdeu o tiro e o animal, cuja pele já havia solenemente prometido a Oga, fundira-se com a
mata, prevenido com o zunir da funda. O olhar de compreensão de Oga só fez ferir mais
seu orgulho já ferido. Ele é quem deveria perdoar as faltas dela e nãoo contrário.
Ebra, exasperada com as constantes interrupções, fez um leve sinal para Brun. Estavam
todas cansadas de um dia trabalhoso e querendo logo terminar com os afazeres. O chefe via
o que se passava, perfeitamente consciente da quelas exigências desmedidas. Era um direito
de Broud, mas Brun sentia que ele poderia mostrar-se mais sensível. Não havia
necessidade de botar as mulheres correndo pelas menores coisas, quando elas já estavam
tão ocupadas e cansadas.
- Broud, deixe as mulheres em paz. Elas já têm muito o que fazer - gesticulou Brun,
ralhando em silêncio.
A censura foi a gota d'água, sobretudo vinda de Brun e na frente de Oga. O rapaz saiu
pisando duro e foi curtir sua raiva na outra extremidade da área pertencente a Brun, perto
das pedras que faziam limite com a fogueira de Creb. Foi então que deu com Ayla
encarando-o diretamente. O que impor tava não era o fato de Ayla - ainda que não tenha
percebido direito - ter presenciado aquela sutil briga doméstica, passada na fogueira do
vizinho, mas sim porque o vira sendo censurado, como se faz com uma criança. Foi um golpe mortal no seu já frágil ego. Puxa, não tem nem a delicadeza de desviar os olhos, pensou
Broud. Bem, ela não é a única aqui que pode ignorar simples atos de boas maneiras. Todas
as frustrações do dia explodiram e, ostensiva- mente, afrontando as convenções, dirigiu um
olhar carregado de ódio na direção da garota que detestava.
Creb tinha consciência das disputas sem importância que ocorriam na fogueira de Brun,
bem como de tudo que acontecia no clã. Quase sempre, como um barulho de fundo, as coisas iam filtrando-se a seu conhecimento, mas, quando se
tratava de Ayla, ele era todo atenção. Sabia que para Broud ter conseguido vencer o
condicionamento de toda uma vida e chegar a olhar para o interior da fogueira de outro
homem, isso só poderia ser um ato deliberado de sua parte e carregado de uma intenção
extremamente maldosa. A animosidade de Broud em relação a Ayla é muito grande,
pensou o feiticeiro. Para o próprio bem da menina, já é tempo de ensiná-la algumas regras
de bom com portamento.
- Ayla! - chamou, seco. A garota se sobressaltou com o tom da voz. - Não olhe para as
outras pessoas - gesticulou.
Ayla estava espantada.
- Por quê?
- Não olhe. NÃO encare. As pessoas não gostam - tentou explicar, certo de que Broud
os observava com o canto dos olhos, não se dando mesmo o trabalho de esconder o prazer
que sentia por estar presenciando Ayla levar um carão. Afinal, ela é muito mimada pelo
Mog-ur, pensou Broud. Se vivesse conosco, eu logo iria ensiná-la como uma mulher tem
de se comportar.
- Estou olhando para aprender a falar - disse Ayla por meio de gestos, ainda surpresa e
um tanto magoada.
Creb sabia muito bem por que Ayla estava espiando, mas ela precisava aprender. Talvez
isso diminuísse o ódio de Broud, vendo que estava sendo repreendida por causa dele.
- Ayla, não encare - disse Creb, com expressão severa. - Responder aos homens é mau.
Olhar a fogueira dos outros é também mau. Mau! Entendeu?
Ele tinha sido ríspido. Queria falar o que tinha a dizer. Percebeu quando Brun chamou
Broud e este se levantou, visivelmente em melhor estado de espírito.
Ayla sentia-se arrasada. Jamais Creb havia sido ríspido com ela. Achava justamente o
contrário, que ele estava contente por vê-la querendo aprender a língua deles, e o velho
agora vinha dizer-lhe que ela era má porque estava espiando as pessoas e com vontade de
aprender mais. Confusa, magoada, as lágrimas encheram seus olhos, escorrendo-lhe pelas
faces.
- Iza! - chamou Creb, preocupado. - Venha cá! Há alguma coisa errada com os olhos
de Ayla.
As pessoas da raça dos clãs não choravam, só se lhes caísse algo dentro dos olhos, ou
quando estavam resfriadas ou sofrendo de alguma doença no órgão da visão. Creb nunca
vira lágrimas de tristeza. Iza veio correndo.
- Olhe isto! Os olhos dela estão cheios de água. É capaz de ter caído alguma faísca neles.
É melhor dar uma olhada - insistiu ele.
Iza também estava preocupada. Levantando as pálpebras de Ayla, olhou de perto dentro dos
olhos.
- Estão doendo? - perguntou. Ela não conseguia ver qualquer sinal de inflamação. Não
parecia haver nada de errado com os olhos da menina, fora o fato de estarem vertendo água.
- Não. Não estão doendo - disse Ayla, choramingando. Não estava entendendo a
preocupação com seus olhos, mas isso serviu para perceber que, mesmo Creb dizendo achá-la má, ambos gostavam dela. - Por que Creb está furioso, Iza? - perguntou, soluçando.
- Você precisa aprender - explicou Iza, séria, olhando para a menina - que não é
educado ficar encarando. Não é educado olhar para a fogueira de outro homem e ver o que
as pessoas estão dizendo. Ayla precisa aprender que, quando um homem fala, a mulher
abaixa os olhos. Assim. - Ela mostrou como. - Quando um homem fala, a mulher não
pergunta. Só as criancinhas fi cam olhando. Os bebês. Ayla é grande e as pessoas ficam
zangadas com ela.
- Creb está zangado? Não gosta de mim? - perguntou, derretendo-se outra vez em
lágrimas.
Iza se via ainda desorientada com aquele derramar de água dos olhos de Ayla, mas
percebeu a confusão em que a garota se achava.
- Creb gosta de Ayla e Iza também. Creb ensina Ayla. Ele quer que Ay la aprenda. Ayla
não tem de aprender só a falar. Ela precisa também aprender as maneiras do clã - disse a
mulher, tomando Ayla nos braços e segurando-a com brandura, enquanto a menina chorava
suas mágoas. Depois, enxugou-lhe os olhos inchados com uma pele macia e olhou dentro
deles outra vez para se certificar e se tranqüilizar.
- O que há com os olhos dela? - perguntou Creb. - Ela está doente?
- Ela está achando que você não gosta dela e que você está furioso. Deve ter ficado
doente por isso. Talvez olhos claros como os dela sejam fracos. Não vi nada de errado com
eles e ela diz que não estão doendo. Acho que a tristeza faz os seus olhos se encherem de
água, Creb.
- Tristeza? Ficou tão triste assim porque pensou que eu não gostasse dela? Por causa disso
ficou doente? Foi o que botou seus olhos cheios de água?
Creb estava estarrecido. Mal podia acreditar e se via atravessado por toda uma série de
pensamentos desencontrados. Então Ayla estava adoentada? Mas parecia com saúde, e
pessoa alguma já havia ficado doente por achar que ele não gostasse dela. Nunca ninguém,
fora Iza, havia gostado dele daquela maneira. Ao contrário, todo mundo tinha medo dele.
Temor e respeito foi o que sempre havia despertado e jamais uma pessoa tinha desejado
que ele gostasse tanto dela, a ponto de ficar com água nos olhos. Talvez Iza tenha razão.
Talvez os olhos dela sejam fracos, mas a visão é ótima, disso ele tinha certeza. De qualquer
jeito, tenho de fazer com que ela entenda que é para seu próprio bem que tem de aprender a
comportar-se direito. Se ela não aprender as maneiras do clã, Brun irá expulsá-la. É uma coisa que ele ainda tem direito. Mas isso não
significa que eu não goste dela. Pelo contrário, admitiu consigo. Por mais estranha que seja,
gosto muito dela.
Ayla, nervosa, veio caminhando na direção dele, olhando, sem jeito, para os pés. Ficou
parada na sua frente, depois levantou os olhos, tristes, ainda úmidos.
- Nunca mais vou encarar as pessoas - disse ela, gesticulando. - Creb não está
zangado?
- Não. Não estou zangado, Ayla. Mas agora você faz parte do clã, você pertence a mim.
Você tem de aprender a língua, mas também precisa aprender as maneiras da gente.
Entende?
- Eu pertenço a Creb? Creb gosta de mim?
- Sim, eu gosto de Ayla.
A menina deu um largo sorriso e abraçou-o; depois, meteu-se no colo dele, aconchegando-
se a seu corpo disforme.
Creb sempre se interessou por crianças. Na função de mog-ur, raramente revelava o totem
de algum garoto que a mãe logo não o achasse muito apropriado ao filho. O clã atribuía
este dom a seus poderes mágicos, mas, na ver dade, isto provinha de seu poder de
observação e de sua grande perspicácia. Ele tomava conhecimento da criança desde o seu
nascimento e estava sempre vendo tanto homens como mulheres igualmente ninando e
consolando seus bebês, mas ele próprio jamais conheceu a alegria de embalar uma criança
nos braços.
A menininha cansada de tantas emoções caiu no sono. Sentia-se segura com o terrível
feiticeiro. Ele veio substituir no seu coração a figura de um homem de quem já não se
lembrava mais, exceto em algum canto recôndito do inconsciente. Ao olhar a fisionomia
tranqüila e confiante daquela estranha menina em seu colo, Creb sentiu por ela um
profundo amor brotando-lhe na alma. Não poderia amá-la mais se ela fosse dele de verdade.
- Iza - chamou, muito suavemente.
A mulher veio tomá-la do colo de Creb, não antes de ele tornar a abraçá-la.
- A doença fez com que ficasse cansada - disse ele, depois de Iza ter deitado Ayla. -
Faça com que ela descanse amanhã e é melhor que você torne a examinar-lhe os olhos pela
manhã.
- Sim - falou Iza, com a cabeça. Adorava aquele seu germano aleijado. Conhecia
melhor do que ninguém a alma delicada que existia por trás daquele semblante sombrio.
Sentia-se feliz por ver que ele tinha encontrado alguém para amar, alguém que também
gostava dele, o que só fazia aumentar seu afeto por Ayla.
Desde os tempos de criança que iza não se lembrava de ter sido tão feliz. A única coisa a empanar a alegria era o medo de que a criança que carregava na barriga
nascesse menino. Se fosse homem, teria de ser criado por um caçador. Era germana de
Brun, a mãe deles fora companheira do chefe anterior. Se algo acontecesse a Broud ou se a
companheira dele Não tivesse filho, a liderança do clã passaria para o filho dela, Iza, se este
nascesse homem. Brun se veria forçado a dar tanto ela como o bebê para um dos
caçadores, ou do contrário ele próprio teria de assumi-la. Todos os dias pedia a seu totem
para que nascesse uma menina. Contudo, Não conseguia deixar de preocupar-se.
À medida que o verão avançava, graças à serena paciência de Creb e à grande força de
vontade de Ayla, esta começou a entender Não só a língua, mas também os costumes da
gente que a adotara. Aprender a desviar os olhos - o único jeito possível de as pessoas
desfrutarem de alguma privacidade - foi apenas a primeira de muitas outras difíceis lições
que teve de reter na cabeça. Mas dificil foi reprimir a curiosidade natural e seus ímpetos
cheios de vida para se pôr de acordo com o comportamento sempre dócil das mulheres.
Creb e Iza também estavam aprendendo. Os dois descobriram que, quando Ayla fazia uma
certa careta, arreganhando os lábios e mostrando os dentes, em geral seguida de um
peculiar som aspirado, isso significava que ela estava feliz e alegre. Mas eles nunca
conseguiram dominar seu nervosismo diante daquela estranha doença que fazia os olhos
dela se encherem de água, nos momentos de tristeza. Iza acabou concluindo que se tratava
de uma deficiência própria de olhos claros e tinha curiosidade de saber se esse era um traço normal nos Outros, ou se só os olhos de Ayla aguavam. Por precaução, la vava-lhe os
olhos com um líquido claro, extraído de uma planta branco-azulada que crescia nos lugares
sombrios da mata. No pé, a planta parecia morta; alimentava-se de madeiras podres e de
outras matérias orgânicas, já que lhe faltava clorofila, e sua superfície cerosa ficava logo
preta quando tocada. Mas Iza Não conhecia melhor remédio para doenças e inflamação nos
olhos do que o líquido frio que escorria dos talos quebrados desta planta e o estava sempre
aplicando em Ayla, todas as vezes que ela chorava.
Ayla, entretanto, Não chorava muito. Já que as lágrimas imediatamente despertavam a
atenção dos outros, a menina fazia a maior força para controlar-se. Não só porque era uma
coisa que perturbava duas pessoas de quem gostava muito, como também porque isso a
diferenciava e ela desejava estar bem ajustada e ver-se aceita pelo clã. As pessoas, por sua
vez, estavam aprendendo a aceitá-la, mas ainda continuavam olhando desconfiadas aquelas
suas peculiaridades.
Cada vez mais, Ayla ia conhecendo o clã e aprendendo a tomá-lo tal como ele era. Embora
os homens tivessem curiosidade a seu respeito, a dignidade não lhes permitia demonstrar muito interesse por uma menina, por mais fora do comum
que ela fosse. Dessa forma, Ayla os ignorava tanto quanto eles fimgiam Não percebê-la.
Brun era quem demonstrava mais interesse, mas o chefe a amedrontava. Um homem
sério demais e Não permitia maiores familiaridades. Muito diferente de Creb. Ela não
imaginava que, para o resto do clã, o Mog-ur parecesse uma figura muito mais distante e
intocável do que Brun e, por seu lado, todos se achavam espantados com a intimidade
que se criara entre a estranhíssima menina e o terrível feiticeiro. De quem ela
particularmente desgostava era do rapaz que vivia na fogueira de Brun. Broud sempre lhe
parecia mesquinho, quando a olhava.
Foi com as mulheres que se familiarizou primeiro. Passava agora mais tempo na companhia
delas. Exceto quando estava na fogueira de Creb ou quando ia com Iza colher plantas
medicinais, as duas em geral ficavam quase todo o tempo junto da ala feminina do clã. A
princípio, Ayla se limitava a ficar rondando por perto de Iza, apenas observando os
trabalhos: pelar animais, botar couros para curtir, tecer cestas e redes, esticar as tiras que
cortavam em espiral numa peça única de couro, esculpir vasilhames de madeira, colher alimentos, preparar comidas, fazer conservas com carnes e vegetais para o inverno e ainda
atender os desejos de qualquer homem que ordenasse um serviço. Mas depois que notaram
sua vontade de aprender, Não só a ajudaram na língua, como também começaram a
ensinar-lhe suas habilidades.
Ayla Não era tão forte como as mulheres e as crianças do clã - sua com pleição mais
delicada Não comportava o musculoso arcabouço ósseo da raça clãnica - em
compensação, era muito jeitosa e flexível. Trabalhos pesados lhe eram difíceis, mas, para
sua idade, tecia muito bem cestas e cortava com mão firme as tiras de couro. Em pouco
tempo, fez boa amizade com Ika que, com seu temperamento afetuoso, facilmente se fazia
gostar. Ika, ao ver o interesse de Ayla por seu bebê, deixava que a menina carregasse Borg
e desse passeios com ele por perto. Já Ovra mostrava-se reservada, mas tanto ela como Yka
eram especialmente gentis com Ayla. A dor dessas duas - uma de mãe e outra de germana
- pela perda do rapaz morto no desabamento da caverna levou-as a simpatizar com a sorte
da criança que perdera toda sua família. Mas, com panheiros do sexo masculino, Ayla Não
os tinha.
Aquele primeiro despontar de amizade surgido entre ela e Oga havia arrefecido depois da
cerimônia da caverna. Oga viu-se dividida entre Ayla e Broud. A menina recém-chegada,
apesar de mais moça, poderia ter sido uma boa companhia para Oga, além de que as duas
tinham a uni-las um destino parecido, mas os sentimentos de Broud em relação a Ayla Não
deixavam margem a dúvidas. Assim, Oga, relutante, preferiu evitar Ayla em deferência ao
homem do qual esperava tornar-se companheira. Fora os momentos em que trabalhavam
juntas, raramente uma procurava a outra e, depois de Ayla ver repilidas todas as suas tentativas de aproximação, preferiu afastar-se sem fazer outros esforços
neste sentido.
Ayla não gostava de brincar com Vom. Mesmo sendo um ano mais moço do que ela, a
idéia de Vorn de brincadeira envolvia sempre uma quantidade de ordens para lhe dar,
imitando o comportamento dos homens que Ayla ainda achava difícil de aceitar. Se
tentasse rebelar-se, ela se via alvo da raiva tanto dos homens como das mulheres e,
especialmente, da de Aga, mãe de Vorn. A mãe achava-se orgulhosa de ver o filho
aprendendo a comportar-se como um homem e, tanto ela como o resto do clã, Não
ignoravam a animosidade que Broud sentia por Ayla. Algum dia, Broud seria o chefe, e
Vorn, se continuasse sempre nas boas graças dele, poderia ser escolhido para o posto de
segundo em comando. Àga Não perdia oportunidade para fazer seu filho crescer em importância, a ponto de implicar com a menina, quando visse Broud por perto. Também se
visse ayla e Vom juntos, com Broud nas proximidades, imediatamente chamava o filho.
A capacidade de Ayla comunicar-se foi rapidamente melhorando, sobretudo depois da
ajuda das mulheres. No entanto, foi por observação própria que aprendeu a exprimir
determinada idéia. Sem dar tanto na vista, ela ainda continuava observando as pessoas. Era
algo que Não conseguia evitar.
Certa tarde, vendo Ika brincando com Borg, percebeu a mãe fazendo um gesto para o filho,
repetidas vezes. Quando os movimentos das mãos do bebê casualmente pareceram imitá-la,
ela chamou a atenção das mulheres e se pôs a gabar o filho. Algum tempo depois, Ayla viu
Vom correr na direção de Aga e cumprimentá-la com o mesmo gesto. E também Obra fazia
o movimento ao começar uma conversa com Ika.
Naquela noite, Ayla timidamente se aproximou de Iza e lhe fez o gesto, quando esta olhou
em sua direção. Os olhos de Iza arregalaram-se.
- Creb - disse ela. - Quando você ensinou Ayla a me chamar de mãe?
- Não fui eu quem ensinou, Iza - respondeu o feiticeiro. - Ela deve ter aprendido
sozinha.
Iza virou-se para a menina.
- Você aprendeu isto por você mesma?
- Sim, mãe - respondeu Ayla, repetindo o gesto. Ela Não tinha muita certeza do
significado daquele movimento de mão, mas fazia uma vaga idéia. Sabia que as crianças
gesticulavam daquela maneira para as mulheres que gostavam delas. Apesar de a mente ter
bloqueado a memória de sua mãe, seu coração Não havia esquecido. Iza veio substituir a
mulher que já havia amado, mas que perdera.
E Iza, que passara tantos anos sem filhos, ficou emocionada.
- Minha filha - disse ela, abraçando Ayla, num de seus raros momentos de
espontaneidade afetiva. - Minha filhinha. Sabia que ela era minha filha desde o primeiro momento, Creb. Eu Não disse? Ela foi dada a mim. Os espíritos
destinaram ayla para ser minha, tenho toda certeza disso.
Creb Não discutiu, talvez ela estivesse certa.
Depois daquela noite, os pesadelos de Ayla diminuíram, embora, vez por outra, ainda fosse
acometida por algum. Dois sonhos estavam sempre voltando. Um era com ela escondida
numa gruta muito pequena, tentando pôr-se a salvo de uma enorme e afiada garra. O outro,
mais vago e perturbador, era a sensação da terra tremendo e um fantástico estrondo seguido
de dolorosíssimo sentimento de perda. Ela acordava, gritando na sua estranha língua -
cada vez menos usada - e se agarrando a Iza. Logo que chegou, sem perceber, deixava-se
levar por sua língua, mas, à medida que foi aprendendo a se expressar à maneira do clã, só
em sonhos lhe acontecia isto. Depois de algum tempo, nem mesmo nos sonhos, mas nunca
acordava de seus pesadelos sem um profundo sentimento de desolação.
O curto e quente verão passou e agora as ligeiras geadas das manhãs de outono faziam o ar
frio e picante, com o verdume da floresta já salpicado por manchas escarlates e cor de
âmbar. Algumas neves prematuras, carregadas depois por fortes pancadas de chuva que
desnudavam os galhos de seus mantos coloridos, prenunciavam o intenso frio que estava
por chegar. Mais tarde no dia, com apenas algumas folhas mais tenazes ainda coladas aos
ramos nus das árvore se arbustos, um breve interlúdio de sol brilhante trazia a última
lembrança do calor de verão, antes que as ventanias impiedosas e o frio causticante viessem encerrar as atividades ao ar livre.
O clã estava inteiro do lado de fora, gozando o sol. No largo terraço em frente da caverna,
as mulheres limpavam cereais trazidos da planície. Um vento fresco jogava para cima
quantidade de folhas secas, dando uma imagem de vida ao que ficara do auge do verão.
Tirando vantagem da atmosfera ventosa, elas atiravam com uma peneira os grãos para o
alto, deixando que o vento carregasse as palhas, antes de tornar a apanhá-los de volta na
peneira.
Iza, postada por trás de ayla, segurava as mãos da menina na peneira, mostrando-lhe como
atirar os grãos para cima, sem jogá-los fora junto com as cascas e fiapos de palhas.
ayla percebia em suas costas o volume duro e grande da barriga de Iza e lhe sentiu a forte
contração que a obrigou de repente a parar. Pouco depois, Iza afastou-se e entrou na
caverna, seguida por Ebra e Ika. A menina, apreensiva, lançou um olhar ao grupo de
homens que havia cessado de conversar para acompanhar com os olhos as mulheres saindo
e esperou que eles fossem ralhar com as três por largar o serviço, quando ainda havia muito
o que fazer. Mas, inexplicavelmente, os homens se mostraram tolerantes. Ayla resolveu
arriscar e foi atrás das outras.
Na caverna, Iza estava descansando na sua pele de dormir, ladeada por Ebra e Ika. Por que
está Iza deitada no meio do dia?, perguntava-se Ayla. Será que está doente? Iza viu sua
expressão preocupada e lhe fez um sinal, tranqüilizando-a, mas que não serviu para
diminuir muito a preocupação da menina. E mais preocupada ainda ficou, quando viu o
rosto tenso de Iza na contra ção seguinte.
Ebra e Ika conversavam com Iza sobre coisas banais: a comida que já ti nham armazenado,
a mudança de tempo, enfim, o assunto de todos os dias.
Mas Ayla já sabia bastante da língua para ler em suas expressões e posturas a
ansiedade que lhes ia por dentro. Alguma coisa estava errada, ela tinha toda a
certeza disso. Resolveu que nada a faria sair dali, enquanto não descobrisse o
que se passava e se sentou aos pés de Iza, esperando.
Ao entardecer, chegou Ika com Borg, carregado em sua cintura, e Aga com a filha Ona. As
duas mulheres sentaram-se fazendo uma visita e trazendo sua solidariedade, enquanto
davam de mamar aos filhos. Ovra e Oga, quando vieram juntar-se ao grupo em torno de
Iza, estavam preocupadas, mas cheias de curiosidade. Embora a filha de Ika ainda não
tivesse companheiro, ela já era moça e sabia que estava apta para botar uma criança no
mundo. Oga dentro em breve também seria mulher e estavam as duas interessadíssimas
no desenrolar dos acontecimentos.
Quando Vorn viu Aba ir sentar-se junto da filha, quis saber o que levava todas as
mulheres a se juntarem na fogueira do Mog-ur. Ficou rondando por perto, até que veio
aboletar-se no colo de Aga, ao lado de sua germana, para ver o que estava acontecendo.
Mas Ona ainda mamava, e Aba pegou-o e o botou no colo. Ele nada viu ali de grande
interesse, apenas uma curandeira descansando, por isso levantou-se e foi embora outra vez.
Algum tempo depois, as mulheres também saíram para começar a preparar a refeição da
noite. Ika permaneceu com Iza, enquanto Ebra e Oga foram cozinhar, mas não deixando
de lançar, de vez em quando, um olhar discreto na direção delas. Ebra, primeiro, serviu
Creb e Brun; depois, trouxe comida para Ika, Iza e Ayla. Ovra cozinhou para o
companheiro de sua mãe, mas ela e Oga logo saíram, quando Grod veio juntar-se a Creb e
Brun na fogueira deste. Elas Não queriam perder nada e se puseram sentadas ao lado de
Ayla, que não arredara de seu lugar.
Iza apenas tomou um pouco de chá e Ayla também estava sem fome. Só beliscou a comida.
Com o nó que sentia na boca do estômago, Não tinha a menor vontade de comer. O que
está acontecendo com Iza? Por que não se levantou para fazer a comida de Creb? Por que o
feiticeiro não está pedindo aos espíritos para que ela fique boa? Por que ele está com todos
os homens na fogueira de Brun?
As contrações de Iza estavam cada vez mais dolorosas. De momento em
momento, ela parava para tomar fôlego, com a respiração curta, fazendo força para expelir,
enquanto apertava as mãos das duas mulheres a seu lado. A noite avançava, com o clã
inteiro de vigília. Os homens amontoavam-se ao redor da fogueira de Brun, aparentemente
envolvidos em alguma conversa. Entretanto, vez por outra, um olhar disfarçado traía-lhes o
verdadeiro interesse. As mulheres estavam sempre indo ver Iza, averiguando como ela ia
progredindo. Às vezes,lá permaneciam por uns momentos e depois saíam. Todos
esperavam, uni dos em solidariedade e em ansiosa expectativa, enquanto a curandeira elaborava seu trabalho de parto.
De repente, já muito depois de ter escurecido, começou um rebuliço, dando partida a uma
série de intensas atividades. Ebra estendeu um pano de couro, enquanto Ika ajudava Iza a
se pôr agachada. Ela, ofegante, comprimia com força o corpo para baixo e gritava de dor.
Ayla tremia, sentada entre Ovra e Oga, que, por solidariedade a Iza, também grunhia e fazia
os mesmos movimentos. Iza respirou fundo e, com um prolongado esforço, acompanhado
de ranger de dentes e fortes contrações musculares, veio para fora a coroa da cabeça, num
jorrar de água. Num outro tremendo esforço, desprendeu-se a cabeça do bebê. O resto foi
mais simples para Iza, que pariu com facilidade um corpinho contorcido e úmido de uma
minúscula criança.
Com um último esforço, expeliu um bloco de tecido sangrento. Iza, então, voltou a
deitar-se inteiramente exausta, enquanto Ebra pegava o bebê e lhe extraía com o dedo uma
secreção mucosa da boca. Depois, botou-o sobre o estômago de Iza e bateu com força na
sola de seus pés, quando se ouviu um berro alto anunciando o primeiro sopro de vida do
bebê de Iza. Ebra amarrou uma tira no cordão umbilical e Cortou com os dentes a parte que
ainda estava ligada à placenta. Em seguida, suspendeu o bebê para que Iza o visse. Acabado
o serviço, ela se levantou e se dirigiu à sua fogueira para dar a notícia ao com panheiro e
contar-lhe o sexo da criança. Sentou-se à frente de Brun com a cabeça abaixada, e
depois, olhou para cima ao sentir uma pancadinha no seu ombro.
- Lamento informar - disse Ebra, fazendo o habitual gesto de pesar -
- que Iza teve uma menina.
A notícia, no entanto, não foi recebida com tristeza. Brun sentia-se aliviado, embora
jamais fosse confessá-lo. O arranjo de Creb, sustentando a germana, especialmente depois
da inclusão de Ayla no clã vinha funcionando às maravilhas, e ele, como chefe, não se
mostrava propício a fazer qualquer alteração. O trabalho de educar a garota que o Mog-ur
vinha realizando era dos mais louváveis, muito melhor do que ele havia esperado. Ayla
estava aprendendo a comunicar-Se na língua dos clãs e também a se comportar de
acordo com os costumes deles. Quanto a Creb, ele não só se sentia aliviado, como extremamente feliz. Na sua idade avançada, pela primeira vez em toda a vida, estava
conhecendo os prazeres de possuir uma família terna e amorosa. E, agora, a filha de Iza
vinha garantir a possibilidade de eles permanecerem todos juntos.
Pela primeira vez também, desde que se mudaram para a nova caverna, Iza podia dar um
longo suspiro de alívio. Estava feliz por ter tido um parto tão bom, sendo uma mulher de
certa idade. Já atendera muitas mulheres que tiveram muitíssimo mais dificuldade do que
ela. Houve diversas que quase morreram, algumas de fato morreram, e uns tantos bebês
também. Parecia- lhe que as cabeças das crianças eram muito grandes em comparação com
as estreitas passagens que tinham que vencer por ocasião do nascimento. Sua preocupação
com o parto havia sido quase tão grande como a que tinha com o sexo da criança. Para a
gente dos clãs, uma tal insegurança em relação ao futuro era uma sensação insuportável.
Iza reclinou-se na sua pele de dormir, relaxando. Ika enrolou a criança num macio cueiro
de pele de coelho e a colocou nos braços da mãe. Ayla até aquele instante não se havia
arredado do lugar. Ansiosa e cheia de curiosidade, olhava para Iza que, ao percebê-la, fez-
lhe um aceno.
- Venha cá, Ayla. Você quer ver o bebê?
Ayla se aproximou acanhada.
- Sim - disse com a cabeça.
Iza afastou a coberta para que ela pudesse ver.
A minúscula réplica de Iza tinha a cabeça coberta por uma penugem marrom e a
protuberância óssea atrás ficava mais visível sem a mata densa de cabelos que iria ainda
formar-se. De certa maneira, sua cabeça era mais redonda do que a dos adultos, mas,
mesmo assim, ainda bastante comprida, e a testa, como os ossos sobre as sobrancelhas,
também não se achavam plenamente desenvolvidos, parecendo escorregar direto para trás.
Ayla tocou nas suas bochechas fofas, e o bebê instintivamente se virou na direção do dedo
dela, fazendo ruídos como se estivesse mamando.
- Ela é linda - gesticulou Ayla, maravilhada com o milagre que acabara de presenciar.
- Ela está tentando falar, Iza? - perguntou, quando o bebê agitou no ar suas mãozinhas
fechadas.
- Ainda não. Mas logo vai querer falar e você tem de ajudar a ensinar - respondeu iza.
- Ah, vou sim. Quero ensiná-la a falar do mesmo jeito que você e Creb me ensinaram.
- Sei que vai querer, Ayla - disse Iza, tornando a cobrir o bebê.
Ayla ficou ali vigiando, enquanto Iza descansava. Ebra tinha embrulhado a placenta no
pano de couro que estendera embaixo de Iza, na hora do parto, e o havia escondido num
canto difícil de ser achado. Ficaria lá até que Iza pudesse ir enterrá-lo em algum lugar onde
só ela saberia. Caso a criança ti vesse nascido morta, seria enterrada ao mesmo tempo e
ninguém poderia mencionar o fato e tampouco a mãe dar grandes mostras de pesar;
apenas alguns gestos discretos de simpatia e gentileza seriam externados.
Se tivesse nascido com vida, mas defeituosa, ou se o chefe do clã por qualquer razão,
achasse que a criança era inaceitável, a tarefa da mãe era ainda mais pesada. Estaria na
obrigação de levar o filho para algum lugar e ali enter rá-lo, ou então deixá-lo à sorte da
natureza, o que muito provavelmente significava ser devorado por animais. Era muito
difícil que uma criança defeituosa fosse deixada viver. Se mulher, quase nunca. Homem,
especialmente se fosse primogênito, e se o companheiro da mãe desejasse a criança, esta
poderia, se gundo o julgamento do chefe, permanecer com a mãe durante os primeiros sete
dias de vida, para provar sua capacidade de sobreviver. Qualquer criança que vivesse
depois do sétimo dia do nascimento, pela tradição (na prática funcionando como lei),
tinha o direito de receber um nome e de ser aceita no clã.
A vida de Creb havia ficado pendente desses seus sete primeiros dias de existência. Sua
mãe quase não lhe sobreviveu ao nascimento. O companheiro dela era também o chefe, e a
decisão de deixar ou não viver o menino era inteiramente dele. A decisão, no entanto, foi
tomada mais em benefício da mulher do que por respeito à vida do bebê, cuja cabeça
deformada e membros paralíticos logo evidenciaram as lesões sofridas durante um parto
extrema mente difícil. A mãe estava muito fraca, perdera grande quantidade de sangue, ficando entre a vida e a morte. O companheiro Não podia exigir que ela se livrasse da
criança, Não tinha forças para fazer isso. Em casos assim, ou no da morte da mãe, a tarefa
passava à curandera só que a mãe de Creb era a curandeira do clã. Assim, não houve como
seNão deixá-lo na sua companhia, mas ninguém esperava que ele sobrevivesse.
A mãe tinha pouco leite e custava a sair. Quando, a despeito de tudo, o menino se agarrou à
vida, uma mulher que amamentava se apiedou do bebê e deu-lhe o primeiro alimento que o
susteve para a vida. E foi nestas precárias circunstâncias que começou a vida do Mog-ur, o
mais venerado dentre todos os homens venerados e o mais poderoso e hábil feiticeiro de
todos os clãs.
E agora ali estava ele, junto do irmão, indo os dois ao encontro de Iza. A um sinal
imperioso de Brun, Ayla imediatamente se levantou, afastando-se, mas ficou observando a
distância com o rabo dos olhos. Iza se sentou, desenrolou o bebê e o suspendeu na
direção de Brun, tendo o cuidado de Não olhar para nenhum deles. Ambos examinaram a
criança que, ao sair do calor da mãe e ser exposta ao frio da caverna, pôs-se aos berros. Tanto
um como o outro tiveram o mesmo cuidado de não olhar para Iza.
- A criança é normal - anunciou Brun, com um gesto solene. - Ela pode ficar com a
mãe Se viver até o dia de receber o nome, será aceita.
Na verdade, Iza Não tinha o menor receio de que Brun fosse rejeitar sua filha, mas
mesmo assim não deixou de sentir alívio ao ouvir a declaração for mal do chefe. Restava-
lhe apenas uma última pontinha de preocupação Só esperava que a filha Não ficasse infeliz
pelo fato de a mãe não ter companheiro. Afinal, conjeturava Iza, ele ainda vivia, quando a
feiticeira teve certeza de que estava esperando. . . mas Creb era como um companheiro,
pelo menos garantia o sustento delas. Com isto, Iza afastou o pensamento da cabeça.
Nos próximos sete dias, Iza ficaria isolada, não podendo ultrapassar os limites da fogueira
de Creb, a Não ser para fazer suas necessidades. Oficialmente, a existência do bebê de Iza
não seria reconhecida enquanto ela estivesse em isolamento, exceção feita para aqueles que
compartilhavam com ela da fogueira. Mas as mulheres do clã traziam-lhes comida, para que
Iza pudesse repousar. Visitinhas rápidas e olhadelas descompromissadas ao bebê, isso
podia. Depois dos sete dias, enquanto ainda estivesse sangrando, não poderia levar uma vida
normal. Seus contatos estavam restritos às mulheres, tal como se dava durante os dias de
menstruação
Iza passava o tempo dando de mamar ou cuidando do bebê. Depois que se sentiu mais
descansada, começou a pôr em ordem a fogueira, arrumando as diferentes áreas ali. A área
de guardar comida, de cozinhar, de dormir e o lugar reservado a seus medicamentos, tudo
dentro do espaço circundado por pedras que definiam a fogueira de Creb, os domínios dele
dentro da caverna, agora divididos com três mulheres.
Devido à posição única do Mog-ur na hierarquia do clã, sua fogueira se achava num local
privilegiado: era suficientemente perto da entrada da caver na para se beneficiar com a luz
do dia e o sol do verão e, ao mesmo tempo, não tão perto para que ficasse sujeita aos
inconvenientes das correntezas no inverno. A fogueira ainda tinha mais uma característica
que Iza muito prezava em nome do bem-estar do Mog-ur. Havia um aforamento da rocha,
prolongando-se do paredão lateral, que lhes dava uma proteção extra contra as ventanias. Mas, mesmo com esta barreira e com um fogo sempre aceso à entrada da caverna, as
correntezas geladas chegavam a queimar a pele nos lugares mais expostos. A artrite e o
reumatismo do pobre homem sempre pioravam no inverno, agravados pela circunstância
de uma caverna fria e úmida. Iza cuidava para que houvesse uma boa camada de palha e
capim sob as peles de dormir de Creb, acondicionada numa espécie de trincheira rasa que
ficava num canto mais resguardado.
Dos poucos serviços que se tinha pedido aos homens para fazer além de caçar, um foi o de
colocar, à entrada da caverna, uma cortina feita de couro, sustentada por estacas fincadas no
chão; e outro, o de calçar a área diante da entrada com pedras trazidas do riacho, de modo
que as chuvas e a neve derretida não fizessem um lamaçal ali. O chão das fogueiras
particulares era de terra, com algumas esteiras espalhadas, onde as pessoas se sentavam, ou
se ser via comida.
Duas outras pequenas trincheiras forradas de palha e cobertas de pele achavam-se perto da
de Creb. A pele que ficava por cima de cada uma delas era a mesma usada como capa pela
pessoa que estava dormindo ali. Além do manto de urso de Creb, havia o de antilope saiga
de Iza e uma pele branca e nova de leopardo da neve. O animal estava escondido perto da
caverna, num ponto muito mais abaixo das áreas normalmente freqüentadas por ele, lá nos
altos das montanhas. Coube a Goov o mérito de sua caça e ele deu a pele para Creb.
Muitas pessoas no clã usavam as peles ou guardavam um pedaço de cliãre ou algum dente
do animal simbolizando seu totem protetor. Creb achou que a pele do leopardo da neve
seria apropriada para Ayla. Não era a de seu totem, mas guardava alguma semelhança, e ele
sabia que seria muito pouco provável que algum dia os caçadores se pusessem à caça de um
leão da caverna. Raramente, esses gigantescos felinos extraviavam-se dos terrenos das estepes e não representavam grande ameaça para o clã instalado numa caverna si tuada em
encostas muito arborizadas. Eles não estavam dispostos a enfrentar uma fera daquelas, a
não ser que tivessem um bom motivo para isto. Ainda durante sua gravidez, Iza havia
curtido a pele e feito também um novo calçado para Ayla. A menina achava-se encantada e
estava sempre procurando alguma desculpa para sair e poder usar a pele.
Iza fazia para si mesma um chá de erva-de-santa-maria que era bom para ajudar o leite a
sair e aliviá-la das dores do útero que se contraía, voltando à forma normal. No princípio
do ano, já se precavendo em relação ao nascimento do bebê, Iza havia colhido e posto para
secar as folhas compridas e florezinhas esverdeadas dessa planta. Olhou na direção da
entrada procurando por Ayla. Tinha acabado de trocar a faixa absorvente de pelica, o
material que usava durante as menstruações e, agora, enquanto estivesse sangrando. Queria
sair para enterrar o absorvente sujo em algum ponto lá fora, e precisava de Ayla para dar
uma olhada no bebê, por alguns minutos.
Ayla, entretanto, não se encontrava em nenhum lugar perto da caverna. Caminhava ao
longo do riacho procurando por pedrinhas pequenas e redondas. Iza havia comentado que
queria pegar mais pedras de cozinhar, antes que as águas do riacho se congelassem, e Ayla
achou que lhe agradaria se levasse algumas. Ajoelhada na praia pedregosa, procurava,
perto da beirada da água, pedias que fossem de bom tamanho. Ao levantar os olhos, viu
uma bolinha de pélos brancos debaixo de um arbusto. Afastando os galhos para os lados,
deu com um coelho de porte médio deitado de banda. A perna estava quebrada e com
crostas de sangue seco.
O animalzinho ferido, ofegando de sede, não podia mexer-se. Olhou apreensivo para a
garota, quando ela o tocou, sentindo seu pêlo macio e quente. Foi um filhote de lobo,
começando a exercer seus dotes de caçador, que o agarrara, mas o coelho dera um jeito de
escapar. Antes que o jovem aprendiz de caçador tivesse tempo de fazer sua segunda
investida, a mãe loba lançou seus uivos ao ar, chamando-o. O pequeno lobo, que não estava
com muita fome, fez meia-volta e, sem muita pressa, foi atender o chamado urgente. O coelho mergulhara na mata, morto de medo, esperando não ser visto. Quando se sentiu seguro
bastante, quis saltar para fora, mas não conseguiu e teve de ficar caído, a um pulo do
riacho, morrendo de sede. Sua vida estava quase indo em bora.
Ayla pegou o bichinho felpudo e ficou ninando-o em seus braços. Ela havia segurado o
bebê de Iza enrolado numa pele de coelho e, agora, aquele ali lhe dava uma sensação
parecida com a do bebê. Sentou-se no chão, embalando-o, quando reparou no sangue e na
perna dobrada num estranho ângulo. Pobrezinho, está com a perna machucada, disse
consigo mesma. Talvez Iza possa ajeitá-la. Certa vez, ela curou a minha. Esquecida da
intenção de pegar pedras de cozinhar, levantou-se e foi com o coelho para a caverna.
Quando ayla chegou, Iza cochilava, mas acordou com o barulho dos passos. A menina,
então, estendeu o coelho em sua direção, mostrando-lhe os ferimentos. Iza também ficava
às vezes com pena de animaizinhos e tratava deles, mas nunca havia trazido nenhum para
dentro da caverna.
- Ayla, bichos não ficam na caverna - falou ela com as mãos.
Todas as esperanças de Ayla desmoronaram. Aconchegou o coelho contra o corpo e,
muito triste, inclinou a cabeça, preparando-se para sair com os olhos já meio cheios de
lágrimas.
Iza percebeu-lhe o desapontamento.
- Bom, já que você trouxe, posso bem dar uma olhada nele.
Ayla se iluminou, entregando-lhe o bichinho ferido.
- Esse animal está com sede. Arrume um pouco d'água - gesticulou Iza.
Ayla imediatamente foi buscar água num enorme cantil e trouxe uma cuia cheia até a borda.
Iza lascou um pedaço de madeira, fazendo uma tala, e no chão já se achavam tiras de couro
para firmar a tala na perna do coelho.
- Vá encher de novo o cantil, pois já estamos quase sem água. Depois, vamos precisar de
água quente, vou ter de limpar a ferida - disse, atiçando o fogo e botando algumas pedras
para esquentar.
Ayla agarrou o cantil e correu até o lago. A água reanimou o coelhinho e, quando a menina
voltou, ele estava mordiscando grãos e sementes que Iza lhe dera.
Creb, ao chegar mais tarde, ficou inteiramente pasmo vendo Ayla ninar um coelho no colo,
enquanto Iza dava de mamar à filha. O feiticeiro percebeu a tala na perna do bicho e olhou
para Iza que o observava, parecendo dizer: o que eu podia fazer? Enquanto Ayla, absorta,
ocupava-se com seu boneco de verdade, os dois se puseram a conversar por meio de sinais
silenciosos.
- O que deu em Ayla para trazer um coelho para dentro da caverna? - perguntou Creb.
- O bichinho estava machucado e ela trouxe para que eu tratasse dele. Ayla não sabia que
nós não botamos animais na caverna. Mas os sentimentos dela não estão errados, Creb.
Acho que ela tem jeito para curandeira. - Iza fez uma pausa. - Queria mesmo falar com
você sobre isso. Bem, você sabe que ela Não tem muitos atrativos físicos.
Creb olhou na direção de Ayla.
- É uma menina simpática, mas você tem razão. Bonita não é - admitiu ele. - Mas o
que tem isso a ver com o coelho?
- Quais as chances que Ayla tem de arrumar um companheiro? Qual quer homem que
possua um totem bastante forte para o dela não vai querê-la. Ele poderá escolher a mulher
que quiser. Eo que vai acontecer então, quando ficar moça? Se não tiver companheiro, não
vai ter posição.
- Eu tenho pensado nisso, mas o que se há de fazer?
- Se Ayla fosse curandeira, ela teria seu próprio status - sugeriu Iza.
- E, afinal, ela é como uma filha para mim.
- Mas ela Não pertence à sua linha, Iza. Ayla não nasceu de você. Sua filha é que vai
prosseguir com sua linhagem.
- Eu sei disso. Sei que tenho agora uma filha, mas por que não posso ensinar Ayla
também? Ela não estava nos meus braços, quando você lhe deu um nome? E você Não
revelou o totem dela na mesma ocasião Isso faz com que ela seja minha filha, ou não é. Ela foi
aceita e agora é como se fosse dos clã não é verdade? - Iza se expressava com veemência,
falando apressada, com medo de ouvir uma resposta desfavorável de Creb. - Acho que
Ayla tem dom inato para isso. A menina mostra interesse, sempre está fazendo perguntas, quando estou preparando minhas poção curativas.
- Ela faz mais perguntas do que qualquer outra pessoa que já conheci
- interpôs Creb. - Pergunta sobre tudo. Precisa aprender que não é de boa educação fazer
tantas perguntas.
- Mas repare bem nela, Creb. Encontra um animal ferido e logo deseja tratar dele. Ou isso
é um indício de quem tem inclinação para curandeira, ou então já não sei de mais nada.
Creb ficou em silêncio, pensativo. Depois, disse:
- Ser aceita no clã não vai mudar a natureza dela, Iza. Ayla nasceu de uma mulher dos
Outros, como vai poder aprender tudo o que você sabe? Não se esqueça de que ela não tem
as memórias de nossa raça.
- Mas Ayla aprende depressa. Você mesmo viu isto. Veja como aprendeu rápido a
falar. Ficaria surpreso se soubesse de tudo que ela já aprendeu. Depois, ela possui umas
mãos muito jeitosas para curandeira.. . um modo delicado de pegar nas coisas. Foi ela quem
segurou o coelho, enquanto eu punha a tala. O bichinho parecia confiar nela. - Iza
inclinou o corpo para a frente. - Já não estamos mais jovens, Creb. O que vai acontecer
com ela, depois que nós dois passarmos para o mundo dos espíritos? Quer que ela fique de
fogueira em fogueira, sempre um fardo para todo mundo, sempre uma mulher ocupando a
posição mais baixa do clã.
Também Creb estava preocupado com isso, mas como não via nenhuma solução para o
problema, ele ia afastando-o do pensamento.
- Você realmente acredita que pode ensiná-la, Iza? - perguntou, ainda duvidando.
- Posso começar com o coelho. Deixo que ela tome conta dele e lhe vou mostrando como.
Tenho certeza de que Ayla consegue aprender, Creb, mesmo sem as nossas memórias.
NÃO existem tantos tipos diferentes de doenças e ferimentos. Ela ainda é bastante
jovem, tem tempo para aprender. NÃO precisa ter uma memória para isso.
- Tenho que pensar no assunto, Iza - disse Creb.
Durante todo esse tempo, Ayla ficara embalando e cantarolando baixi nho para o coelho.
Percebeu que Iza e Creb conversavam e lembrou-se de tê lo muitas vezes visto fazendo
gestos chamando os espíritos para ajudar nas mágicas de curar de Iza. A menina trouxe o
bichinho felpudo para o feiticeiro.
- Creb, você quer pedir aos espíritos para curar o coelho? - disse gesticulando e botando
o animal aos pés dele.
O Mog-ur olhou para o rostinho ansioso dela. Nunca havia invocado espíritos para ajudar
na cura de um animal e se sentia meio tolo fazendo-o, mas não teve forças para recusar.
Passou os olhos à sua volta e depois fez uns gestos rápidos.
- Agora, tenho certeza de que ele vai ficar bom - gesticulou a menina. Em seguida,
vendo que Iza terminara de amamentar, perguntou: - Posso segurar o bebê? O
coelhinho era um substituto amoroso e aconchegante do bebê, mas só quando ela não
podia segurar na coisa verdadeira.
- Pode - disse Iza - mas cuidado com ela. Segure como eu lhe mostrei. Ayla, então,
pôs-se a ninar e a cantarolar, como havia feito com o coelho.
- Qual o nome que você vai dar para ela, Creb? - indagou a menina.
Iza também estava curiosa, mas nunca perguntaria isso ao germano. Elas viviam na
fogueira de Creb, eram sustentadas por ele e era seu o direito de dar nomes às crianças que
nasciam em seu domínio.
- Ainda não resolvi. E você tem de aprender a não fazer tantas perguntas, Ayla - falou
Creb repreendendo, mas se sentia contente por ela confiar em suas mágicas, ainda que fosse
para um coelho. Virou-se, então, para Iza e acrescentou: - Acho que não faz mal se o
coelho ficar aqui até que sua perna esteja curada. Ele é um bichinho inofensivo.
Iza fez um gesto de aquiescência, sentindo por dentro um calor de satisfação Tinha certeza
de que Creb não se oporia a que ela preparasse Ayla para curandeira, mesmo sem ter seu
consentimento explícito. Tudo o que ela realmente precisava saber era que ele não a
interromperia em seu trabalho.
- Gostaria de saber como é que ela faz para tirar este som da garganta
- falou Iza, ouvindo o cantarolar de Ayla e querendo mudar de assunto. - Não é
desagradável, mas é esquisito.
- Esta é outra diferença entre a gente dos clã e a dos Outros - gesticulou Creb, com o ar
de um professor transmitindo um fato de extrema sabedoria a um aluno embasbacado. -
Do mesmo modo que a falta de memórias na raça dela. Esses sons estranhos são próprios dos
Outros. Mas desde que vem aprendendo a falar direito já deixou de usá-los bastante.
Ovra chegou à fogueira de Creb trazendo a refeição da noite. Seu espanto não foi menor do
que o de Creb, quando deu com o coelho lá. E mais espantada ainda ficou quando Iza lhe
deu seu bebê para segurar e Ayla pegou no coelho, ninando-o como se este também fosse
criança. Ovra lançou um rabo de olho para ver a reação de Creb, mas parecia que ele Não
percebia nada. Mal agüentava esperar para contar à mãe. Imagine só, ninar um animal. A
garota não deve estar boa da cabeça. Será que ela acha que bicho é gente?
NÃO muito depois, Brun veio caminhando e fez um sinal para Creb, significando que
queria falar-lhe. Creb já esperava por isso. Os dois seguiram juntos na direção da
fogueira da entrada, afastada da fogueira de cada um.
- Mog-ur - começou o chefe hesitando.
-Sim.
- Estive pensando, Mog-ur. . que já é tempo de prepararmos uma cerimônia para unir
alguns casais aqui. Resolvi dar Ovra a Goov, e Droog concordou em assumir Aga com os
filhos e permitiu também que Aga fosse viver com eles - disse Brun, sem saber muito
como levantar o assunto do coelho na fogueira de Creb.
- Eu estava mesmo imaginando quando você iria decidir fazer essas uniões - respondeu
Creb, sem qualquer comentário sobre o assunto que ele sabia Brun estar querendo
discutir.
- Eu quis esperar. A caça estava muito boa. Não me podia dar o luxo de ficar com dois
caçadores a menos. Quando você acha que será a melhor ocasião - Brun fazia o possível
para não olhar na direção dos domínios de Creb, que se divertia um pouco com a falta de
jeito do outro.
- Em breve vou dar o nome da filha de Iza. Podemos realizar a cerimônia na mesma
ocasião.
- Vou falar com eles - disse Brun. Ele ficava, ora sobre um pé, ora sobre outro, olhando
para o teto, para o chão para o fundo da caverna, para a entrada, só não olhava para o lugar
onde se achava Ayla com o coelho no colo. A educação mandava que não se olhasse para
dentro das fogueiras dos outros, mas se ele sabia da existência do coelho, era porque o
tinha visto. Tentava pensar numa maneira aceitável de introduzir o assunto. Creb esperava.
- Por que há um coelho em sua fogueira? - disse Brun, através de uma gesticulação
rápida. Estava em desvantagem e tinha consciência disso. Creb se virou e olhou de
propósito para as pessoas em sua fogueira. Iza sabia perfeitamente bem o que se estava
passando. Ela se ocupava com o bebê, só esperando não ter de ir participar da conversa.
Ayla, a causa de todo o rebuliço, achava-se inteiramente alheia à situação.
- É um animal inofensivo, Brun - disse Creb, com evasivas.
- Mas por que um animal dentro da caverna? - insistia Brun.
- Foi Ayla quem trouxe. O animal estava com a perna quebrada e ela queria que Iza
fizesse um curativo - respondeu Creb, como se fosse o fato mais normal deste mundo.
- Nunca ninguém antes trouxe um animal para dentro da caverna - argumentou Brun,
desapontado por Não conseguir encontrar uma objeção mais contundente.
- Mas que mal há? O bicho não vai ficar aqui por muito tempo, só até a perna ficar boa -
retrucou Creb, com bom senso e falando calmamente.
Brun não conseguia achar uma boa razão para continuar a insistir com Creb para que ele
expulsasse o animal, já que esta era sua vontade. Afinal, o bicho estava dentro dos
domínios dele. NÃO havia nenhum costume proibindo animais em cavernas, era apenas
uma coisa que nunca fora feita antes. Mas a verdadeira razão de seu incômodo Não era essa.
Havia chegado à conclusão de que o problema real estava em Ayla. Desde que Iza a trouxera
com eles, começou a haver uma série de incidentes associados com a menina e todos fora
do comum. Tudo que lhe dizia respeito era sem precedentes, e isso, agora, quando ela era
ainda criança, mais tarde então como seria? O que não teria ele de enfrentar? Brun Não
tinha nenhuma experiência daquele tipo de compor tamento, nenhuma regra preestabelecida
que o pudesse orientar no trato com a garota. E tampouco estava sabendo como externar
suas dúvidas a Creb. Este, sentindo a inquietação do irmão tentou dar mais uma razão para que
o coelho permanecesse em sua fogueira.
- Brun, a caverna designada para anfitriã de nossas reuniões tem sempre um filhote de
urso - lembrou o feiticeiro.
- Mas aqui a coisa é diferente. Trata-se de Ursus. O animal está lá para o festival do urso.
Antes de as pessoas habitarem cavernas, os ursos já viviam nelas, mas coelhos nunca
moraram em cavernas.
- Só que o filhote é trazido. Ele não estava morando lá.
Brun não tinha nenhuma resposta para dar e o raciocínio de Creb parecia seguir um
encadeamento lógico. Mas por que a menina tinha de ser a primeira a meter um bicho
numa caverna? Se não fosse por ela, o problema nunca teria existido. Brun sentia que
toda a base sólida de sua argumentação lhe escapulia, como se pisasse em terras pouco
firmes. Resolveu, então, deixar o assunto morrer.
O dia que antecedeu à cerimônia foi frio mas ensolarado. Tinha havido algumas rajadas
fortes de vento e os ossos de Creb, ultimamente, andavam doendo muito. Ele estava
certo de que uma tempestade deveria estar a caminho. Antes que a neve começasse a cair
para valer, queria gozar dos últimos dias claros daquele inverno e passeava pelo caminho
perto do riacho. Ayla estava com ele, estreando os sapatos novos. iza os havia feito,
cortando pedaços circulares de couro de auroque que curtiu com a pelúcia debaixo e com
uma camada extra de gordura para que ficassem impermeáveis. Fizera furos ao redor das
beiradas, tal como para uma sacola e os uniu em torno dos tornozelos de Ayla, com a parte
de pêlo voltada para dentro, de modo a esquentar melhor.
A menina estava feliz com eles e, toda vaidosa, ia jogando os pés para cima, ao lado de
Creb. Sobre a roupa, levava a pele de leopardo e uma pele de coelho, macia e peluda, saía-
lhe da cabeça, cobrindo as orelhas e amarrando debaixo do queixo com a pele que formara
as patas do animal. De vez em
quando, disparava à frente e depois voltava para caminhar ao lado de Creb, refreando suas
passadas exuberantes para igualar com o andar arrastado dele. Por um momento, fez.se um
silêncio agradável entre os dois, cada qual envolvido com seu próprio pensamento.
Gostaria de saber que nome poderia dar à filha de Iza, pensava Creb. Ele adorava sua
germana e queria escolher um nome que fosse do agrado dela. Nenhum que possa lembrar
qualquer coisa de seu companheiro. O pensamento desse homem fazia-lhe arrepiar a pele.
Os maus-tratos que infligira a Iza deixava-no ainda furioso, mas sua raiva vinha de mais longe.
Lembrava-se de como, em criança, o outro escarnecia dele, chamando-o de maricas pelo
fato de não poder caçar. Creb imaginava que o ridículo só parou por medo ao seu poder como Mog-ur. Fico alegre por Iza ter tido menina, pensou. Um menino seria muita
homenagem para seu companheiro.
Sem aquele espinho encravado na garganta, Creb desfrutava dos prazeres da vida em
família, muito mais do que imaginara possível. Ser o patriarca de sua pequena família, o
responsável e o provedor dela, tudo isso lhe dava uma sensação de virilidade que jamais
conhecera. Percebeu que estava sendo respeitado de maneira diferente pelos homens e se
viu, para surpresa sua, interessado nas caçadas, já que tinha direito a um quinhão delas.
Antes, sua preocupação centrava-se mais nas cerimônias de caças, mas, agora, tinha outras
bocas a alimentar.
Tenho certeza de que Iza também está mais feliz, disse consigo, pensando nas atenções e
no afeto que ela lhe dedicava: fazendo sua comida, cuidando dele e prevendo todas as
suas necessidades. Em todos os sentidos, menos um, era como se ela fosse sua
companheira, aquilo que mais se aproximava da idéia que Creb tinha disso. Ayla, por seu
turno, era uma constante alegria. Encontrava grande interesse nas diferenças naturais que ia
descobrindo nela. Educá-la era um desafio, tal como aquele que um professor de verdade
sente diante de um aluno inteligente e voluntarioso, mas com suas peculiaridades. E o bebê
de Iza também o deixava intrigado. Depois dos primeiros tempos, quando Iza passou a
deixar a menina no seu colo e ele pôde dominar o nervosismo, ficava embevecido,
observando os movimentos desordenados de suas munhecas e seus olhos perdidos, sem
focalizar nada em especial. Como uma coisinha tão minúscula e pouco desenvolvida,
pensou ele, poderia dar numa mulher adulta?
Ela vai assegurar a linhagem de Iza. E é uma linha digna da posição que ocupa dentro dos
clãs. A mãe deles fora uma das mais renomadas curandeiras de sua época. As pessoas
vinham dos outros clãs para tratar-se com ela ou buscar seus remédios. Iza era de igual
valor e sua filha tinha tudo para alcançar o mesmo sucesso. Merecia um nome à altura de
sua antiga e ilustre estirpe.
Pensando na linhagem de Iza, Creb lembrou-se da mulher que fora mãe
da mãe deles. Sempre havia sido boa e gentil com ele. Depois que Brun nascera, ela
cuidara mais dele do que sua própria mãe. Suas qualidades como curandeira também
eram famosas, chegou até a curar o homem nascido da gente dos Outros, tal como Iza agora
fizera com Ayla. Pena que Iza não chegou a conhecê-la. De repente, Creb interrompeu-se
em suas divagações.
Pronto, aí está! Vou dar ao bebê o nome dela, disse consigo, cheio de alegria com a feliz
inspiração.
Uma vez decidido o nome da criança, Creb voltou o pensamento para a cerimônia de
acasalamento. Pensava em Goov, o seu devotado acólito. Uma pessoa sossegada e séria,
Creb o estimava. O totem do auroque do rapaz era bastante forte para o de Ovra, que
possuía o do castor. Ovra trabalhava com vontade, raramente precisando ser repreendida.
Será uma boa companheira para ele. Não há razão para que não lhe dê filhos. Goov, por sua
vez, é bom caçador e vai poder sustentá-la bem. Quando se tornar o mog-ur e suas obrigações o impedirem de caçar, será recompensado com o quinhão que lhe é de vido.
Iria ser um mog-ur poderoso?, perguntou-se Creb. Ele fez não com a cabeça. Por mais que
gostasse do acólito, chegara à conclusão de que Goov nunca teria as qualidades que
sabia ele próprio possuir. Se, por um lado, suas deficiências físicas o impediam para atos
normais da vida, como caçar, ter compa nheira; por outro, proporcionaram-lhe tempo para
pôr toda sua capacidade mental no desenvolvimento da força por que se tornara famoso.
Daí ser ele o Mog-ur. A ele cabia dirigir a mente de todos os mog-urs nas reuniões dos clãs,
na mais sagrada de todas as cerimônias religiosas. No entanto, se podia realizar a simbiose
das mentes dos homens de seu clã, isso já lhe era mais difícil com as mentes treinadas dos
outros feiticeiros, que não se comportavam com a mesma fusão de almas. Creb pensou na
próxima reunião dos clãs, mas ainda faltava muito para ela. As reuniões se realizavam a
cada sete anos, e a última tinha si do no verão que antecedeu ao desmoronamento da
caverna. Se viver até lá, pensou subitamente, essa será a minha última.
Creb voltou sua atenção novamente para a cerimônia de acasalamento; agora, a queiria
unir Droog a Aga. Droog era um caçador experiente que há muito dera provas de sua
capacidade. Sua competência como ferramenteiro ainda era até maior. Um homem
tranqüilo e sério, tal como Goov, o filho de sua falecida companheira. Os dois tinham o
mesmo totem. Sob certos aspectos, inclusive, pareciam-se muito, e Creb não tinha dúvidas
de que fora o espírito do totem de Droog que havia criado Goov. Pena a companheira de
Droog ter sido chamada para o outro mundo, pensou. Entre o casal existiu uma grande
afeição, e isto possivelmente não se dará com Aga. Mas ambos estão precisando de
companheiros, e Aga deu provas de ser mais fértil do que a mãe de Goov. É uma união
natural esta.
Creb e Ayla foram arrancados de seus pensamentos por um coelho que cruzou o caminho
deles. Isso fez a menina lembrar-se do outro, o que estava na caverna, e a trouxe de volta ao
que vinha pensando durante todo aquele tempo: o bebé de Iza.
- Creb, como é que o bebê entrou dentro de Iza?
- A mulher engole o espírito do totem de um homem - disse Creb distraído, ainda
perdido em seus pensamentos. - Depois, o espírito dele luta contra o espírito do totem
dela. Se o do homem vencer, uma parte do seu espirito fica na mulher para criar uma nova
vida.
Ayla olhou à sua volta, maravilhada com a onipresença dos espíritos. NÃO via nenhum,
mas, se Creb dissesse que eles estavam ali, ela acreditava.
- O espírito de qualquer homem pode entrar numa mulher? - perguntou, em seguida.
- Pode. Mas ele tem de ser um espírito mais forte para poder vencer o dela. Muitas vezes
o totem do homem pede ajuda a outro espirito. Esse outro tem, então licença para deixar
sua essência. Mas, em geral, é o espírito do companheiro da mulher aquele que luta mais.
Ele é mais concentrado, mas mesmo assim, freqüentemente, precisa de auxílio. Se um
menino tiver o mesmo totem que o companheiro da mãe isso significa que terá sorte -
explicou Creb, cuidadosamente.
- Só as mulheres têm bebés? - perguntou Ayla, excitada com o assunto.
-Sim.
- A mulher só pode ter filho depois que tem companheiro?
- Não. Às vezes, ela engole um espírito antes de ter o companheiro. Mas, se ela não
arrumar um até o bebê nascer, seu filho vai ser infeliz.
- Eu posso ter um bebê? - perguntou, esperançosa.
Creb pensou no fortíssimo totem dela. Um princípio vital forte demais. Mesmo com a ajuda
de outro espírito, Não era provável que fosse vencido. Mas isto ela vai descobrir daqui a
algum tempo, pensou ele.
- Você ainda não tem idade bastante - disse Creb, de modo evasivo.
- Quando vou ter bastante idade?
- Quando você for mulher.
- E quando vou ser mulher?
Creb já começava a achar que aquele interrogatório jamais terminaria.
- Quando o espírito do seu totem entrar em luta pela primeira vez contra outro espírito,
você irá sangrar. Isso é um sinal de que ele foi ferido. Al guma coisa da essência do espírito
que lutou contra ele foi deixada em você para preparar seu corpo. Seus seios vão crescer e
também algumas mudanças vão acontecer. Depois disso, o espírito de seu totem passa
regularmente a lutar contra outros espíritos. Se numa ocasião que o sangue deve correr isso
não acontecer, significa que o espírito que você engoliu derrotou o seu, e uma nova vida
estará começando.
- Mas quando é que vou ser mulher?
- Talvez quando você tiver passado por todos os ciclos das estações umas oito ou nove
vezes - respondeu Creb.
- Mas daqui a quanto tempo vai ser isso? - insistiu Ayla.
O velho feiticeiro, pacientemente, soltou um suspiro.
- Venha cá. Vou ver se consigo explicar - disse ele, pegando uma vareta e tirando uma
faca de pedra de sua sacola. Duvidava que ela pudesse entender, mas isso poria fim às
perguntas.
Calcular representava uma forma de abstração muito difícil para a gente dos clã A
maioria não conseguia ir além de três: você, eu e o outro. NÃO era uma questão de
inteligência. Por exemplo, Brun sabia perfeitamente se um dos 22 membros de seu clã
estivesse faltando. Ele teria apenas de pensar em cada um deles individualmente e o fazia
rápido, de maneira inconsciente. Mas passar do indivíduo concreto para o conceito 'um',
isso significava uma dificuldade que só poucos conseguiam sobrepujar. Como pode essa
pessoa ser um e aquela outra também ao mesmo tempo ser um. NÃO s essas pessoas
diferentes? Essa era a primeira questão que normalmente eles se punham.
A incapacidade das pessoas de sintetizar e abstrair estendia-se a outras áreas da vida. Eles
tinham um nome para cada coisa. Conheciam salgueiro, carvalho, pinheiro, mas não
possuíam o conceito genérico para isso, ou seja, não tinham no vocabulário a palavra
árvore. Cada tipo de terra, rocha e até mesmo as modalidades de neve eram nomeadas
diferentemente. Eles dependiam de sua bela memória e de sua capacidade de aumentá-
la. Praticamente, não se esqueciam de nada. Era uma língua repleta de cor e descrição mas
desprovida quase na íntegra do pensamento abstrato. A idéia era algo de estranho à
natureza, aos costumes e à forma como se desenvolveram. Dependiam do Mog-ur para
situá-los em determinadas coisas que envolvessem algum tipo de cálculo: o tempo
decorrido entre uma e outra reunião dos clã as idades das pessoas do clã, o tempo de
isolamento após a cerimônia de acasalamento, e os primeiros sete dias da vida de uma
criança. O fato de o feiticeiro poder realizar essas operações era encarado como uma de
suas maiores mágicas.
Depois de sentado, Creb cravou firme a vareta entre seu pé e uma pedra.
- Iza acha que você é um pouco mais velha do que Vorn - começou ele. - Vom viveu
o ano do seu nascimento, viveu o ano em que andou, depois outro ano mamando e o ano em
que deixou de mamar - explicou Creb, fazendo um talho na vareta para cada ano que
mencionava. - Vou fazer uma marca a mais para você. Esta é a idade que você tem
atualmente. Se eu pegar os meus dedos e puser cada um em cada marca, vou cobrir todas
elas com uma das mãos entende?
Ayla olhava compenetrada para as ranhuras na vareta, segurando os dedos da mão. Então
se iluminou.
- Já sei, tenho tantos anos quanto isso! - disse, mostrando a mão com todos os dedos
estendidos. - Mas quanto tempo vai levar para eu ter um bebê?
- perguntou, mais interessada no problema da reprodução do que no de cálculos.
Creb estava estupefato. Como pôde a menina pegar a idéia da coisa tão rápido? Ela não
chegou nem a perguntar quais marcas tinha de cobrir com os dedos ou o que fazer com os
anos ali marcados. Isso com Goov teve de ser repetido inúmeras vezes, até que ele
conseguisse entender- Creb fez mais três talhos e tapou-os com três dedos. Para ele, que
usava só uma das mãos, isso havia sido particularmente difícil na ocasião em que aprendeu.
Ayla olhou para sua outra mão e imediatamente suspendeu três dedos, dobrando o polegar
e o mindinho.
- Quando eu tiver isso? - perguntou, estendendo oito dedos.
Creb fez um gesto afirmativo. O próximo passo de Ayla pegou-o inteiramente de surpresa.
Era um conceito que até ele tinha levado anos para do minar. Ela baixou uma das mãos e
suspendeu só três dedos da outra.
- Eu vou ter idade para ter um bebê quando passar esse "muito" de anos - gesticulou,
segura, inteiramente confiante em sua dedução.
O espanto do velho feiticeiro não tinha limites. Era impensável que uma criança, ainda por
cima menina, pudesse chegar àquela conclusão tão facilmente. Ele se via atordoado
demais, mal se lembrando de fazer reparos no prognóstico dela.
- Esta quantidade provavelmente é para a primeira vez. Mas poderá ser este tanto aqui ou,
ainda, mais este outro tanto - disse ele, fazendo duas outras riscas na vareta. - Ou talvez
até mais. Não há como se saber ao certo.
Ayla franziu um pouco o rosto, suspendeu o indicador e depois o polegar.
- Como posso saber de mais quantidade de anos? - perguntou.
Creb a olhava desconfiado. Estavam penetrando num terreno onde até ele tinha dificuldade.
Já começava a lamentar ter deixado o assunto ir tão longe. Brun não ia gostar se soubesse
que a menina podia fazer aquelas poderosas mágicas, mágicas reservadas apenas aos mog-
urs. Mas sua curiosidade tinha sido aguçada. Seria ela capaz de compreender
conhecimentos tão avançados?
- Cubra com suas mãos todas as marcas - disse Creb. Após ela, muito compenetrada, ter
botado cada dedo em cada ranhura, Creb fez outro talho e o tapou com o seu dedo mínimo.
- A marca seguinte está coberta pelo meu dedo mínimo. Depois da primeira série, você
tem de pensar no primeiro dedo da mão de outra pessoa, e depois no dedo seguinte da mão
dessa pessoa. Entende? - perguntou, observando-a com atenção.
Ayla nem pestanejava. Olhou para as suas mãos, depois para a dele, e então fez a careta que
Creb já conhecia como sendo uma expressão de sua felicidade. Ela meneou, cheia de
entusiasmo, a cabeça, dizendo que entendia. Só que daí ela deu um salto quantitativo que se
achava praticamente além da capacidade de compreensão de Creb.
- E depois disso, as mãos de uma outra pessoa, e depois ainda as de uma outra pessoa, não
é assim? - perguntou ela.
O impacto foi forte demais. A cabeça dele dava voltas. Com dificuldade conseguia contar
até 20. Além dessa quantidade, os números se confundiam numa imensidão indistinta
chamada muito. Em poucas oportunidades, depois de profunda meditação, pôde captar uma
vaga idéia do conceito que Ayla entendia com a maior facilidade. O Mog-ur custou a fazer
um gesto afir mativo. Subitamente, havia percebido o enorme abismo entre a mente da menina e a dele. Bastante abalado, esforçava-se para recuperar a calma.
- Diga-me, qual o nome disso? - perguntou ele, querendo mudar de as sunto e
suspendendo o galho que tinha usado para fazer as marcas. Ayla ficou olhando por um
instante, lembrando-se.
- Salgueiro. . . acho que é - disse ela.
- Está certo - respondeu Creb. Colocou a mão sobre o ombro dela e a olhou diretamente
nos olhos. - Ayla, seria melhor que você não mencionasse essas coisas para ninguém -
disse, mostrando os talhos feitos no galho.
- Está bem, Creb - respondeu, percebendo o quanto isso era importante para ele. A
menina aprendera a conhecer seus movimentos e expressões melhor do que qualquer um, à
exceção de Iza.
- Já é tempo de voltarmos. - Ele desejava ficar sozinho para pensar.
- Temos mesmo de ir embora? - perguntou Ayla, com voz suplicante.
- Está tão bom aqui fora.
- Sim, nós temos - respondeu Creb, botando-se de pé com a ajuda do seu bordão. - E
não é direito, Ayla, questionar um homem depois que ele tomou uma decisão - ralhou,
com brandura.
- Está bem, Creb - falou a menina, inclinando a cabeça em sinal de submissão tal como
lhe haviam ensinado. Havia começado a caminhar silenciosa ao lado dele, mas logo sua
exuberáncia tomou conta, e Ayla passou a correr na frente. De vez em quando voltava
trazendo galhos e pedras, dizendo os seus nomes para Creb e perguntando sobre aqueles
que esquecera. Ele lhe respondia, vago, com dificuldade de prestar atenção, tamanho era o
tumulto em sua mente.
As primeiras luzes do alvorecer dissipavam a escuridão envolvendo a caverna e o ar picante
e frio cheirava a neve que estava a caminho. Iza, deitada na pele, observava os contornos do
teto irem gradualmente defimindo-se e tomando
forma à medida que a luz aumentava. Naquele dia, sua filha iria receber um nome e ser
aceita integralmente como membro do clã, o dia em que ela seria reconhecida como um ser
vivo e capaz de viver. Iza esperava, ansiosa, ver relaxado o seu período obrigatório de
confinamento, apesar de que, enquanto sangrasse, o convívio com as pessoas do clã estaria
restrito às mulheres.
Logo que aparecesse a primeira menstruação, exigia-se das meninas que elas passassem o
período inteiro das regras longe do clã. Se fosse durante o inverno, a garota era posta numa
área separada, no fundo da caverna, mas, na primavera, estaria obrigada a passar o primeiro
período menstrual sozinha. E viver sozinha, era algo de assustador e muito perigoso,
tratando-se de uma me nina, sem armas e acostumada a ter sempre a companhia dos outros
e a proteção de todo o clã. Essa era a prova que marcava a entrada da menina na vida da
mulher, tal como para o rapaz, era o seu primeiro animal abatido. Só que, no caso da
mulher, Não havia cerimônia celebrando-lhe a volta a casa. Não eram tão fora do comum
os casos de moças Não voltarem, mesmo dispondo elas de uma fogueira acesa para
espantar os animais ferozes. Seus restos eram, em geral, encontrados por algum caçador ou
algum grupo de mulheres colhendo plantas. A mãe tinha licença para visitar a filha uma
vez por dia. Ela lhe levava comida e consolo. Se a moça, no entanto, desaparecesse ou
morresse, a mãe estava impedida de mencionar o fato, enquanto Não houvesse decorrido
um certo número de dias.
As batalhas travadas pelos espíritos no interior do corpo da mulher na luta natural pela
produção da vida eram vistas pelos homens como profundos mistérios. Enquanto a mulher
sangrasse, a essência do totem dela estava forte, estava em luta e derrotando algum
elemento primordial masculino, expulsando-lhe a essência fecundadora. Se uma mulher
olhasse, nesse período, para um homem, o espírito dele estaria sendo atraído para uma
batalha perdida. Daí, os totem das mulheres precisarem ser menos poderosos do que os dos
homens, pois mesmo um totem fraco recebia energias da força da vida que habitava as
mulheres. Elas atraíam para si a força da vida, elas eram quem produziam novas vidas.
No mundo físico, o homem podia ser maior, mais forte e poderoso do que a mulher, mas,
no temível mundo das forças invisíveis, as mulheres estavam potencialmente dotadas de
maior força. Os homens acreditavam que a forma física - menor e mais frágil - da
mulher, que lhes permitia dominá-la, era o que equilibrava a balança, mas as mulheres
jamais poderiam conhecer todo o seu potencial, seNão a balança iria pender mais para um
lado. Por isso mesmo estavam impedidas de ter uma participação plena na vida espiritual
do clã, para se conservar ignorantes da energia que lhes dava a força da vida.
Os rapazes, já na sua cerimônia de passagem, eram avisados das funestas conseqüências
que poderiam advir se alguma mulher presenciasse, ainda que
por instantes, os seus ritos esotéricos, e muitas lendas existiam falando do tempo em que as
mulheres detinham o controle da magia que possibilitava o contato com o mundo dos
espíritos. Muitos rapazes, após tomar conhecimento desses fatos, passavam a olhar as
mulheres sob outro prisma. Eles assumiam suas responsabilidades de homem com grande
seriedade. A mulher tinha de ser protegida, sustentada e inteiramente dominada. Do
contrário, a sensível balança que equilibrava as forças físicas e espirituais seria
desestabilizada, ocasionando a destruição dos clãs.
Pelo fato de as forças espirituais estarem muito mais revigoradas durante a menstruação
é que a mulher tinha de ser mantida isolada. Seu contato só podia ser com outras mulheres,
Não lhe era permitido tocar em alimentos que fossem consumidos por homens e ela passava
o tempo fazendo tarefas sem importância, como catar lenha ou curtir couros que seriam
usados exclusivamente por elas. homens Não reconheciam sua existência, ignoravam-na
completamente, nem mesmo repreendê-la chegavam. Se, por acaso, seus olhos dessem
distraidamente com ela, olhavam como se através de sua pessoa, como se fosse invisível.
Parecia um castigo cruel. O banimento da mulher assemelhava-se com a maldição de
morte, a punição máxima que era dada aos membros dos clãs, quando cometiam algum
crime grave. Ao chefe, exclusivamente, cabia dar ordens ao mog-ur para que este fizesse
baixar os espíritos do clã! e deitasse a maldição de morte. O mog-ur Não podia recusar-se,
mesmo que isso fosse perigoso para ele, como feiticeiro e para o clã. Uma vez
amaldiçoado, o criminoso passava a Não ser visto por ninguém e nenhuma pessoa lhe
dirigia a palavra. Era ignorado, caía em ostracismo, deixava de existir, exatamente como se
estivesse morto. O companheiro ou a companheira bem como toda a família choravam sua
morte. Nenhuma comida era compartilhada com ele. Alguns abandonavam o clã e nunca
mais eram vistos. A maioria, simplesmente, deixava de comer, beber, consumando a
maldição na qual também o criminoso acreditava.
Em certos casos, a maldição de morte podia ser imposta por prazo limitado; ainda assim,
ela resultava quase sempre na morte do criminoso que abdicava de viver durante o tempo
estabelecido para o pagamento de sua pena. Se permanecesse vivo, seria admitido de volta
ao clã com todas as suas prerrogativas anteriores, inclusive com o status que possuía antes.
Sua dívida para com o clã fora paga, o seu crime, portanto, estava esquecido. Mas os crimes
eram raros e esta forma de punição dificilmente era aplicada. Apesar de que o banimento
renegasse a mulher parcial e temporariamente da sociedade, quase todas elas bendiziam
essa pausa em suas vidas, quando estariam livres das constantes exigências dos homens e
fora da linha de seus olhos eternamente vigilantes.
Iza, no entanto, estava ansiando por um maior contato com a vida, o que teria após a
cerimônia do nome da filha. Já estava cansada de ficar dentro dos limites da fogueira de
Creb e via, saudosa, os raios de sol que escoavam através da entrada da caverna, naqueles
últimos dias claros, antes de a neve chegar. Esperava com impaciência o sinal de Creb,
anunciando que ele estava pronto e o clã já todo reunido. Normalmente, esta era uma
cerimônia que se realizava antes da primeira refeição, logo depois de o sol aparecer, quando
os totens ainda se achavam por perto, após terem guardado o clã durante a noite. Ao aceno
de Creb, Iza se apressou em ir para junto dos outros, postando-se na frente do Mog-ur e,
com os olhos abaixados, despiu a filha. Segurava-a no alto, enquanto o feiticeiro olhava por
cima de sua cabeça e fazia os gestos de praxe invocando os espíritos para assistir aquela
cerimônia.
Em seguida, Creb mergulhou a mão na bacia segurada por Goov e desenhou, com pasta de
ocre vermelho, uma listra que saía do ponto onde se juntavam as saliéncias ósseas por cima
das sobrancelhas e vinha até a ponta do nariz.
- Uba, o nome da menina é Uba - falou o Mog-ur. Do ensolarado pór tico frontal,
açoitava um vento gelado que fez a menina nua, morta de frio, soltar um saudável berro,
abafando os murmúrios de aprovação do clã.
- Uba - repetiu Iza, ninando seu corpinho tremendo em seus braços. É um nome perfeito,
pensou, lamentando Não ter conhecido a Uba de quem sua filha o herdara. Os membros do
clã foram passando em fila por ela, cada um repetindo o nome, de modo que eles e seus
totens se fossem familiarizando com a última aquisição do clã. Iza tinha o cuidado de
manter a cabeça abaixada, a fim de Não olhar sem querer os homens que vinham chegando
para reconhecer sua filha. Em seguida, envolveu a criança em peles de coelhos e a meteu
por dentro da sua roupa, em contato com a pele do corpo. Os berros pararam
imediatamente depois que o bebê começou a mamar. Iza voltou, então, a seu lugar, junto
das mulheres, deixando o espaço para a celebração dos ritos de acasalamento.
Nesta cerimônia, apenas nesta, usava-se ocre amarelo na fabricação do ungüento. Goov
entregou a bacia com a pasta amarela ao Mog-ur que a apoiou firme entre seu cotoco de
braço e a cintura. Goov Não podia servir de acólito numa cerimônia em que era o principal
protagonista. Foi tomar posição em frente ao Mog-ur e esperou Grod vir com a filha de sua
companheira. Ika era um misto de emoções: orgulhosa por sua filha estar fazendo um bom
casamento e triste por vê-la sair da fogueira de seu companheiro. Ovra vestia uma roupa
nova, olhava para os pés, enquanto seguia de perto Grod, mas deixando transparecer no
rosto, pudicamente abaixado, uma luminosa alegria. Visivelmente, sentia-se feliz com a
escolha que fizeram por ela. Sentou-se no chão de pernas cruzadas, de frente para Goov,
conservando sempre os olhos abaixados.
Com os gestos ritualísticos e em silêncio, o Mog-ur se dirigiu novamente aos espíritos.
Em seguida, mergulhou o dedo médio na pasta amarelada e desenhou o sinal do totem de
Ovra sobre a cicatriz do totem de Goov, simbolizando a união dos dois espíritos. Depois,
tormou a meter o dedo na pasta, pintou a marca de Goov em cima da de Ovra, seguindo o
contorno da cicatriz, mas borrando a marca dela, como sinal da supremacia masculina.
- Espírito do Aruroque, Totem de Goov, o seu sinal venceu o Espíri to do Castor, Totem
de Ovra - dizia por gestos o Mog-ur. - Possa o Espírito de Ursus permitir que assim seja
para sempre. Goov, você aceita esta mulher?
O rapaz respondeu batendo de leve no ombro de Ovra e fazendo-lhe sinal para que o
seguisse a uma área recentemente delimitada por pedras, onde teriam sua fogueira. Ovra
pulou sobre seus pés e seguiu atrás do companheiro que lhe fora dado. Ela Não tinha
escolha, nem mesmo lhe fora perguntado se o aceitava. O casal permaneceria isolado por
14 dias, confinado à área da fogueira e dormindo separados. No fim deste período, os
homens realizariam uma cerimônia na caverna menor, para sedimentar a união.
Nos clãs, a união de duas pessoas era um fato exclusivamente de ordem espiritual,
começado com uma declaração diante de todo o clã e consumado por rituais secretos
destinados só aos homens. Naquela sociedade primitiva, sexo era tão natural e irrestrito
quanto o ato de dormir ou de comer. As crianças aprendiam a fazer sexo, tal como ficavam
sabendo dos costumes e a executar suas tarefas, ou seja, observando os adultos. Brincavam
de fazer amor do mesmo jeito que imitavam qualquer outra atividade dos mais velhos. Não
era raro um menino chegar à puberdade, ainda sem ter abatido o seu primeiro animal e
vivendo uma situação de meio adulto meio criança, e penetrar uma menina, antes dela ter
passado pela primeira menstruação. Os hímens eram perfurados cedo, apesar de que os
rapazes ficassem um pouco amedrontados, se vissem algum derramamento de sangue.
Se tal acontecesse, rapidamente largavam a garota.
Todo homem, no momento em que bem entendesse, podia pegar uma mulher para
satisfazer os seus desejos, à exceção - e isto fazia parte de velha tradição - da germana.
Em geral, depois de o casal estar constituído, guar dava-se uma certa fidelidade, apenas por
mera cortesia com a propriedade de outro homem. Era muito mais malvisto se um homem
deixasse de satisfazer-se do que se pegasse a mulher que estivesse mais à mão. Por seu
lado, a mulher Não se via impedida de fazer sutis gestos recatados, incentivando o homem
e lhe dando a entender que ele a atraía. Para eles, a formação de uma nova vida se fazia
graças à onipresença das essências dos totens e tanto as relações sexuais como o
nascimento de crianças Não estavam associados à idéia da concepção.
A segunda cerimônia foi para unir Droog a Aga. O novo casal também ficaria em
isolamento, mas aqueles que atualmente viviam na fogueira de Droog tinham liberdade
para lá entrar e sair, quando assim o quisessem. Após a entrada na caverna do segundo
casal, as mulheres vieram rodear Iza e o bebê.
- Iza, sua filha é simplesmente um encanto - grunhiu Ebra. - Devo confessar que fiquei
um pouquinho preocupada, quando soube que você de pois de tanto tempo havia ficado
grávida.
- Os espíritos me protegeram - gesticulou Iza. - Um totem forte quando é vencido
ajuda a fazer crianças sadias.
- Tive medo de que o totem da menina pudesse trazer efeitos negativos. Ela tem um jeito
tão diferente e seu totem é tão poderoso que podia até fazer a criança nascer com defeito -
comentou Aba.
- Ayla traz sorte. Ela me trouxe sorte - contradisse, imediatamente, Iza, olhando para ver
se a menina tinha percebido. Ayla observava Oga segurando o bebê, andando de lá para cá,
resplandecente de orgulho como se Uba fosse filha dela. Ayla não percebera o comentário
de Aba, mas Iza não gostava de ver pensamentos desse tipo ventilados abertamente. - Na
verdade, ela trouxe sorte para todos nós, não é?
- Mas afinal você não teve tanta sorte assim, pois Não nasceu um menino - insistiu Aba,
querendo impor sua opinião.
- Mas eu queria ter menina - respondeu Iza.
- Iza! Como pode dizer uma coisa dessas!
As mulheres estavam surpresas, raramente admitiam preferir filhas.
- Ela tem razão - pulou Ika em defesa de Iza. A gente tem um filho, cuida dele,
amamenta, cria e depois, mal ele acabou de crescer, desaparece. Se não morrer caçando,
morre de uma outra coisa qualquer. A metade deles morre ainda rapaz. Pelo menos Ovra
ainda pode viver alguns anos mais.
Todas se sentiram penalizadas com a mãe que perdera o filho no desabamento da caverna.
Sabiam o quanto Ika sofrera. Ebra, diplomaticamente, mudou de assunto.
- Gostaria de saber quantos invernos nós iremos passar nesta caverna.
- As caçadas têm sido boas e nós já guardamos tanta coisa que temos um mundo de
comida armazenada. Os homens vão sair hoje para caçar, provavelmente pela última vez. Só
espero que haja bastante lugar no depósito, as sim vamos poder congelar as coisas - disse
Ika. - Parece que os homens estão ficando impacientes. Acho melhor a gente ir fazer
qualquer coisa para comer.
As mulheres, relutantes, deixaram Iza e o bebê, e foram preparar a refeição da manhã. Ayla
sentou-se ao lado de Iza, e a mulher pôs um braço em redor dos ombros da menina,
segurando o bebê com o outro. Iza se sentia bem. Achava-se feliz por estar do lado de fora da caverna naquele dia de início de
inverno, ensolarado, frio e animado; feliz porque seu bebê nasceu com saúde e menina, e
feliz ainda pela estranha garota loura a seu lado. Olhou para Uba e depois para Ayla.
Minhas filhas, disse consigo, as duas são minhas filhas. Todo mundo sabe que Uba será
curandeira, mas Ayla também vai ser. Vou providenciar para que isso aconteça. Quem sabe
se algum dia não será uma grande curandeira...
O Espírito da Neve Seca tomou para companheiro o Espírito da Neve Granular, e depois
de algum tempo nasceu a Montanha de Gelo, lá longe, no norte. O Espírito do Sol odiava
aquela criança que crescia espalhando-se pela terra. Por isso, o Espírito do Sol guardava seu
calor para que nenhuma relva desse lá. Ele estava resolvido a destruir a Montanha de Gelo,
mas o Espírito da Nuvem de Tempestade, germana da Neve Granular, descobriu que o Sol
queria matar a criança. No verão, quando o Sol é mais poderoso, o Espírito da Nuvem de
Tempestade entrava em luta com o Sol para salvar a vida da Montanha de Gelo.
Ayla, sentada com Uba no colo, observava Dorv contar essa velha e muito conhecida lenda
de todos eles. Ficava fascinada, apesar de já sabê-la de cor. Era a sua predileta, nunca se
cansava de vê-la contada mais uma vez. Mas a irrequieta menininha em seu colo, com um
ano e meio e já começando a andar, estava muito mais interessada nos seus longos cabelos
louros que agarrava aos punhados. Ayla imediatamente desembaraçava-os da munheca de
Uba, sem tirar os olhos do velho que, de pé junto da fogueira, recontava a lenda numa
pantomima de grande teatralidade, enquanto todo o clã em suspenso, observava-o.
- Em alguns dias, o Sol vencia a batalha, castigando o gelo duro, transformava-o em água
e sugava a vida da Montanha de Gelo. Mas, em outros, a Nuvem de Tempestade vencia,
cobrindo a face do Sol, Não deixando seu calor derreter muito a Montanha de Gelo. No
verão, a Montanha de Gelo passava fome e ficava toda encolhida, mas, no inverno, sua mãe
comendo o alimento trazido por seu companheiro, nutria o filho, devolvendo-lhe a saúde.
Todos os verões o Sol lutava para destruir a Montanha de Gelo, mas a Nuvem de
Tempestade não deixava que ele derretesse os alimentos que a mãe tinha dado ao filho no
inverno passado. A cada vez que começava um novo inverno, a Montanha de Gelo aparecia
maior, mais espalhada e cobrindo todos os anos uma quantidade mais vasta de terra.
"Um frio muito grande sempre chegava antes dela, que surgia cada vez mais desenvolvida.
Os ventos uivavam e a neve amontoava-se mais e mais à sua volta. Ia espalhando-se,
chegando cada vez mais perto dos lugares onde estavam os clã As pessoas tremiam de frio e amontoavam-se junto das fogueiras, enquanto a
neve caía sobre suas cabeças.
O vento, assoviando através das árvores desfolhadas, contribuía com efeitos de sonoplastia
para o clima da história, fazendo correr pela espinha de Ayla um tremor de emoções
solidárias.
- Os clã não sabiam o que fazer - continuou Dorv. - Por que os espíritos de nossos
totens já não nos protegem mais? O que será que fizemos para que ficassem tão zangados
conosco? O mog-ur decidiu, então, ele próprio, partir e ir ao encontro dos espíritos para ter
uma conversa com eles. Mas o mog-ur custava a voltar. As pessoas, inquietas, esperavam
sua volta, principalmente os mais jovens.
"Durc era quem estava mais impaciente. 'O mog-ur nunca irá voltar', dizia ele. 'Nossos
totens não gostam de frio, já devem ter ido embora e nós também deveríamos fazer o
mesmo.
"'Não podemos abandonar nossa casa, dizia o chefe, 'Este é o lugar onde a gente dos
clãs sempre viveu. É a morada de nossos antepassados. O lar dos espíritos de nossos totens.
Eles não devem ter ido embora. Eles estão infelizes ao nosso lado, mas ainda estariam
muito mais, se estivessem fora da casa que sempre conheceram. Não podemos partir e
removê-los daqui. Depois, para onde a gente iria?'
'Nossos totens já foram embora', insistia Durc. 'Se encontrarmos uma casa melhor, eles
voltarão. Podemos ir para o sul, seguindo os pássaros quando fogem do frio no outono, ou,
então, em direção ao oriente, para a terra do Sol.'
'NÃO Temos de esperar pelo mog-ur. Quando ele voltar, dirá o que temos de fazer',
ordenou o chefe. Mas Durc não escutou o sábio conselho. Dis cutia, argumentava, e
algumas pessoas começaram a vacilar. Por fim, decidiram partir com ele.
"'Fiquem', pediam-lhes os outros. 'Esperem até o mog-ur voltar.'
"Mas Durc não lhes prestava atenção 'O mog-ur nunca irá encontrar os espíritos. Ele jamais
voltará. Vamos embora agora. Venham conosco encontrar um lugar onde a Montanha de
Gelo não possa viver.'
"'Não respondiam. 'Vamos esperar.'
"Mães e seus companheiros choravam muito pelos homens e mulheres que partiam, todos
certos de que estariam condenados. Esperavam pelo mog ur, mas os dias iam passando e
nada de ele voltar. Já começavam a achar que teria sido melhor se também tivessem partido
com Durc.
"Foi então que, certo dia, viram um estranho animal aproximando-se, sem nenhum medo do
fogo. As pessoas, apavoradas, olhavam cheias de admiração Nunca haviam visto aquele
animal antes. Mas quando ele chegou mais perto, qual não foi a surpresa ao perceberem que
aquilo não era nenhum bicho e sim o mog-ur! Ele estava coberto com a pele de um urso aa avema. Finalmente, havia
voltado. Contou, então, o que tinha aprendido com Ursus, o espírito do Grande Urso da
Caverna.
"Foi com Ursus que as pessoas aprenderam a viver em cavernas, a vestir peles de animais, a
caçar e coletar plantas no verão e a guardar comida para o inverno. As gentes dos clã nunca
se esqueceram do que Ursus lhes ensinou, e mesmo a Montanha de Gelo tentando, Não
conseguiu mais tirá-las de suas casas. Pouco importava o quanto de frio e neve a Montanha
de Gelo mandasse, os clãs não se mudariam, não mais deixariam o caminho livre para ela.
"Por fim, a Montanha de Gelo desistiu. Já enfadada, parou de lutar contra o Sol. A
Nuvem de Tempestade, furiosa porque ela não queria lutar, dei xou de ajudá-la. A
Montanha de Gelo saiu da terra dos clãs e voltou para o seu lugar no norte, levando consigo
todo o seu frio. O Sol, exultante com a vitória, foi perseguindo-a durante todo o caminho,
até ela instalar-se no norte. Não havia lugar onde a Montanha de Gelo pudesse esconder-se
do grande calor do Sol que a acabou derrotando. Por muitos e muitos anos não houve inverno, só longos dias de verão.
"Mas a Neve Granular morria de tristeza pela perda da filha, e este grande pesar a foi
enfraquecendo. A Neve Seca quis que ela tivesse outro filho e pediu auxílio ao Espirito da
Nuvem de Tempestade. Esta ficou com pena de sua germana e ajudou a Neve Seca a trazer
alimento para fortalecê-la. Nova mente passou a cobrir a face do Sol, enquanto a Neve Seca
espargia seu espírito para a Neve Granular absorver. Ela deu à luz a uma nova Montanha
de Gelo, mas as pessoas se lembravam ainda dos ensinamentos de Ursus. A Montanha de
Gelo jamais iria arrancar os clãs de suas casas.
"E o que aconteceu com Durc e todos os outros que o seguiram? Alguns dizem que eles
foram devorados por lobos e leões; outros, que se afogaram nas vastidões das águas, e
ainda há outros que falam que alcançaram a terra do Sol, mas que este teria ficado tão
zangado por ver Durc e sua gente querendo sua terra, que mandou do céu uma bola de
fogo para devorar todos. Eles desapareceram e ninguém mais tornou a vê-los.
- Você viu, Vorn? - Era Aga falando com seu filho, como sempre acontecia depois de
terminada a história de Durc. - Por isso é que você deve sempre atender a sua mãe,
Droog, Brun e o Mog-ur. Você nunca deve desobedecer e deixar o clã, você pode
desaparecer também.
- Creb - disse Ayla, dirigindo-se a ele, sentado a seu lado - você acha que Durc e seu
povo não poderiam ter encontrado um novo lugar para viver? Ele desapareceu, mas
ninguém viu mesmo se ele morreu, Não é? Será que ele não conseguiu viver?
- Ninguém viu quando desapareceu, mas caçar é muito difícil, quando se tem só dois ou
três homens. Talvez nover pudessem matar alguns bichos pequenos, mas os animais grandes de que iriam precisar para que pudessem ter carne
no inverno, esses eram muito mais difíceis e perigosos. E muitos invernos iriam passar até
que chegassem à terra do Sol. Os totens gostam de ter um lugar para viver. Provavelmente,
eles abandonam aqueles que ficam rondando por aí, sem ter onde morar. Você não gostaria
de ser abandonada por seu totem, não é?
Instintivamente, Ayla pegou no seu amuleto.
- Mas meu totem não me abandonou, mesmo eu estando sozinha e sem casa.
- Isso era porque você estava sendo posta à prova por ele, Ayla. Ele achou um lar para
você, Não é verdade? O Leão da Caverna é um totem forte, Ayla. Ele a escolheu. Talvez
por isso ele tenha resolvido que você ficasse sempre sob sua proteção , mas todos os totens
ficam mais felizes, quando possuem uma moradia. Se você cuidar dele, terá sua ajuda. Ele
lhe dirá o que é melhor para você.
- E como vou saber, Creb? Nunca vi um Espírito de Leão da Caverna. Como a pessoa
sabe quando um totem está lhe contando alguma coisa?
- Você não pode ver o espírito de seu totem, porque ele é parte de você, está dentro de
você. Mas mesmo assim, ele fala com você. Apenas você tem de aprender a entendê-lo. Se
tiver de tomar uma decisão ele a ajudará. Ele lhe dará um sinal, quando sua escolha for
acertada.
- Que tipo de sinal?
- É difícil dizer. Em geral, é alguma coisa muito particular ou fora do comum. Pode ser
uma pedra que você nunca tenha visto antes, ou alguma raíz de forma especial que faça
sentido para você, coisas assim. É preciso aprender a entendê-lo com o coração e a mente,
Não com os olhos e os ou vidos. Só assim você ficará sabendo. E só você pode entender seu
próprio totem, ninguém vai ensiná-la como. Mas quando chegar o momento e você
encontrar o sinal que seu totem lhe está dando, guarde a coisa em seu amuleto. Isso vai lhe
trazer sorte.
- Você tem guardado no seu amuleto sinais mandados por seu totem, Creb? - perguntou
a menina olhando para o recheado saquinho de couro que Creb levava pendurado no
pescoço. E soltou Uba, que se retorcia em seu colo, querendo sair para caminhar até Iza.
- Tenho - respondeu ele, meneando a cabeça. - Um deles é um dente de urso da
caverna que me foi dado, quando fui escolhido para acólito. Ele não estava cravado em
nenhuma arcada dentária, mas a meus pés, por cima de umas pedras. Quando ia sentando
num certo lugar, não vi que o dente estava bem ali. Está perfeito, não está nem um
pouquinho gasto ou estragado. Foi o sinal usado por Ursus para indicar que minha decisão
estava Correta.
- Meu totem também vai me mandar sinais?
- Ninguém sabe. Talvez, quando você tiver importantes decisões a tomar. Só vai ficar
sabendo quando chegar o momento. Enquanto conservar o amuleto pendurado no pescoço,
seu totem sabe onde encontrá-la. Tome cui dado para nunca perdê-lo, Ayla. Foi dado a você
quando seu totem se revelou. Dentro, está parte do seu espírito, que é a coisa que ele
identifica. Sem isto, ele não pode encontrar o caminho quando estiver viajando. Ele se
perderá e vai procurar sua casa no mundo dos espíritos. Também se você perder seu
amuleto e não o achar depressa, você morrerá.
Ayla tremeu, sentindo o saquinho pendurado por um firme cordão de couro em seu pescoço
e pensou quando iria ter também um sinal de seu totem.
- Você acha que o totem de Durc lhe deu algum sinal, quando ele resolveu ir procurar a
terra do Sol?
- Não se sabe. Isso não faz parte da história.
Acho que Durc foi muito corajoso, querendo buscar uma nova casa para eles.
- Ele pode ter sido corajoso, mas foi tolo - respondeu Creb. - Abandonou seu clã e a
casa dos antepassados dele, correndo um grande risco. E para quê? Para achar alguma coisa
diferente. Não estava satisfeito onde estava. Há muitos rapazes que acham ter sido Durc
corajoso, mas, quando vão ficando mais velhos e sabidos, aprendem que não é bem
assim.
- Acho que gosto de Durc porque ele era diferente - disse Ayla. - Esta é a minha
história preferida.
Ayla viu as mulheres levantando-se para começar a fazer a comida da noite e,
imediatamente, ergueu-se, indo acompanhá-las. Depois que a menina saiu, Creb abanou a
cabeça. Todas as vezes em que começava a acreditar que Ayla já estava aprendendo e
aceitando as maneiras de ser das pessoas dos clã ela vinha ou saía com alguma coisa que o
deixava pensando. Não que fizesse nada de mal ou de errado, simplesmente não era o jeito
deles. Supunha-se que a lenda fosse para mostrar o erro que existe em querer mudar velhos
costumes, mas o que Ayla admirava nela era o estouvamento do rapaz à procura de
novidades. Será que algum dia ainda conseguiria pensar como todo mundo?, perguntava-se
Creb. No entanto, ela aprende rápido, admitiu consigo mesmo.
À idade de sete ou oito anos, esperava-se que as meninas dos clãs já estivessem bem
versadas nas tarefas de uma mulher adulta. Muitas ficavam menstruadas por essa época e,
em breve, já teriam companheiros. Quase dois anos depois de terem encontrado Ayla -
sozinha, morta de fome, sem saber procurar comida para alimentar-se - ela já havia
aprendido não só como encontrar alimentos, mas também como os preparar e conservá-
los. Além disso, podia executar muitos outros importantes serviços, senão de forma
competente, como as mulheres mais velhas e experientes, pelo menos tão bem quanto as mais jovens.
Ela podia pelar um animal e preparar o couro para fazer roupas, capas e bolsas a serem
usadas de várias maneiras. Podia cortar, de uma peça de couro, tiras em espiral de igual
largura. As suas cordas, feitas de crina animal, tendões ou fibras vegetais, eram fortes e
grossas ou finas e delicadas, dependendo do uso que se lhes quisesse dar. As cestas, esteiras
e redes que tecia com gramíneas ou com fibras de raízes ou ainda com cascas de árvores
eram de excepcional qualidade. Podia esculpir uma machadinha do nódulo de uma pedra
ou fazer uma peça de gume tão afiado que até Droog ficava impressionado. Em toras de
madeira talhava bacias que aplanava, num acabamento bem burlado. Sabia produzir fogo,
fazendo girar nas palmas das mãos a ponta de um pau contra uma tábua até que, por
combustão, o carvão aquecido desprendesse fagulhas de fogo, uma tarefa tediosa que
ficava bem mais fácil quando executada por duas pessoas se revezando, de modo a
manter uma pressão firme e constante no trabalho de girar o pau. O mais surpreendente, no
entanto, é que estava absorvendo os conhecimentos médicos de Iza, para o que parecia
ter inclinação natural Iza tinha razão, pensou Creb, ela aprende mesmo sem dispor das
memórias.
Ayla cortava inhames em fatias para pôr numa panela de couro que fervia por cima de uma
fogueira. Depois de separar os pedaços podres, não sobrara muita coisa de cada legume. O
fundo da caverna, onde armazenavam os alimentos, era frio e seco, de modo que, quando ia
chegando no final da estação, os vegetais já começavam a ficar podres e sem consistência.
A sonhada primavera começou a dar suas primeiras mostras alguns dias antes, quando
Ayla viu um fiapo de água por cima do bloco de gelo formado no riacho. Era uma das primeiras indicações de que em breve a água estaria ali escoando livremente. A menina mal
agüentava esperar pelos verdes, pelos novos rebentos e pelo mel escorrendo das trincas
feitas nos troncos de bordo. O caldo era colhido e fervido por muito tempo em enormes
recipientes de pele até que se tornasse num xarope denso e viscoso ou em açúcar
cristalizado. Depois, seria guardado em vasilhames feitos de madeira de vidoeiro. Do
vidoeiro também escorria uma seiva doce, mas não tanto quanto a do bordo.
Ela não era a única dentro da caverna impaciente e aborrecida com o longo inverno. Cedo,
naquele dia, o vento havia soprado por algum tempo na direção sul, trazendo o ar quente do
mar. A água derretia e pingava das esta lactites suspensas no alto da entrada triangular da
caverna. A temperatura caindo tornaria a congelar, engrossando os faiscantes pingentes
pontudos que, a cada inverno, iam aumentando de volume, quando o vento virava, trazendo de novo do leste as rajadas frias. Mas aquele ar quente respirado pela
manhã fez com que todos realmente voltassem seu pensamento para o fim do inverno.
As mulheres tagarelavam e trabalhavam. Enquanto preparavam a comida, as mãos iam
conversando com gestos rápidos. No final do inverno, quando os suprimentos começavam
a rarear, elas combinavam seus estoques e cozinhavam em conjunto, embora continuassem
a comer separadamente, exceto em ocasiões especiais. Esta era uma temporada de muitas
festas, e isso ajudava a quebrar a monotonia, apesar de que, chegando o final da estação a
comi- lança já não podia ser tanta. Contudo, tinham bastante comida. A carne fresca de
pequenas caças ou de algum velho veado que os caçadores davam um jeito de, entre uma
nevasca e outra, botar dentro da caverna era sempre bem-vinda, apesar de não essencial.
Mas contavam ainda com um estoque razoável de alimentos em conserva. As mulheres,
ainda envolvidas pelo clima de lendas e histórias, ouviam interessadas uma que Aba
contava:
mas a criança nasceu deformada. A mãe saiu com ela para a floresta, como o chefe havia
ordenado, só que ela não teve coragem de deixar o filho morrer. Subiu, então com o bebê
numa árvore muito grande e amarrou a criança nos galhos mais altos de todos, de modo que
nenhum animal pudesse pegá-la. Quando foi embora, o bebé se pôs a chorar e, de noite,
tinha tanta fome que uivava como um lobo. Ninguém conseguia dormir. Mas, enquanto o
menino estivesse chorando e soltando uivos, sua mãe sabia que continuava vivo.
"No dia da cerimônia de dar nome, a mãe, bem cedo de manhã subiu outra vez na árvore. E
lá estava o filho, Não só vivo, como também sem nenhum dos defeitos de nascença. Ela
um menmo normal e cheio de saúde. O chefe Não desejava o garoto no clã, mas, já que
estava vivo, o menino teria de ser aceito e teria de ter um nome. Mais tarde, depois de já
crescido, o menino tornou-se o chefe do clã e nunca deixou de agradecer à mãe por lhe ter
salvo a vida. Mesmo depois que ele teve companheira, jamais deixava de trazer para a mãe
parte de suas caças. Também nem sequer uma vez bateu ou zangou com ela. Sempre tratou
a mãe com veneração e respeito - terminou de contar Aba.
- Que criança agüentaria passar sete dias sem alimento? - perguntou Oga, olhando para
Brac, seu filho, uma criança saudável que estava ali por perto dormindo. - E como o filho
dela poderia tornar-se o chefe, se sua mãe não era companheira do chefe e nem pertencia a
alguém que poderia chegar a esse posto?
Oga sentia-se orgulhosa de seu filho, e Broud ainda mais por ter ela dado à luz, pouco
tempo depois da cerimônia deles de acasalamento. Até mesmo Brun relaxava sua
postura estóica, quando o bebê estava por perto e, com os olhos eternecidos, segurava a
criança que daria continuidade à sua estirpe, formada por uma longa linhagem de chefes de
clã.
- Quem seria o próximo chefe, se você não tivesse Brac, Oga? - perguntou Ovra. - O
que aconteceria se você Não tivesse filhos, mas só filhas? Talvez o companheiro da mãe
fosse o segundo em comando, porque alguma coisa aconteceu com o chefe. - Ela estava
um pouco invejosa da outra. Ainda não tivera filho, apesar de ter ficado moça e se unido a
Goov antes que Broud houvesse tomado Oga.
- Mas, de qualquer modo, como um bebê que nasceu deformado de repente fica normal e
cheio de saúde? - rebateu Oga.
- Imagino que essa história foi inventada por uma mulher que desejava ter tanto um filho
normal que esse acabou nascendo defeituoso - disse Iza.
- Mas essa é uma velha lenda, Iza, que há muitas e muitas gerações vem sendo contada.
Talvez, em tempos muito distantes, as coisas aconteciam de uma maneira que já não é mais
possível. Como a gente pode saber? - falou Aba, defendendo sua história.
- Certas coisas podem ter sido diferentes em outros tempos, Aba, mas penso que Oga está
certa. Um bebê que nasce deformado não pode, de repente, aparecer normal e também é
muito pouco provável que ele conseguisse viver sem qualquer alimento até o dia de
receber seu nome. Bom, mas essa é uma história antiga, quem sabe, talvez haja alguma
coisa de verdade nela - condescendeu Iza.
Quando a comida ficou pronta, Iza levou-a para a fogueira de Creb, enquanto Ayla ia
atrás fazendo perguntas à contadora de lorotas. Iza estava mais magra, Não tão forte quanto
antes e era Ayla quem, na maioria das vezes, carregava Uba. As duas estavam muito
ligadas. Uba seguia Ayla por toda parte e esta, por seu lado, jamais parecia aborrecer-se
com a garota.
Depois da comida, Uba procurou a mãe para mamar, mas logo começou a ficar agitada. Iza
tossia, incomodando a criança. Por fim, entregou Uba, irrequieta e chorosa para Ayla.
- Pegue a menina. Veja se Oga ou Aga pode dar de mamar a ela - disse Iza, irritada,
dando uma série de tossidas secas.
- Você está bem, Iza? - perguntou Ayla, com olhar preocupado.
- NÃO passo de uma mulher velha. Velha demais para ter tido um bebê. Meu leite está
secando. É só isso. Da última vez foi Aga quem deu de mamar a Uba, mas acho que agora
já deu o peito para Ona e Não deve ter sobrado muito leite. Oga diz que tem leite de sobra.
Esta noite leve Uba para ela. - Iza percebeu que Creb a observava com atenção e olhou na
direção em que Ayla ia com Uba.
Ayla, ao aproximar-se da fogueira de Broud, passou a caminhar com cuidado, mantendo a
cabeça abaixada, em atitude apropriada. À menor infra ção Broud faria despejar toda sua
cólera em cima dela. Tinha certeza de que ele estava sempre procurando motivos para
repreendê-la e ela não queria que
ele lhe ordenasse levar Uba de volta por qualquer coisa que pudesse fazer. Oga se sentia
feliz por dar de mamar à filha de Iza, mas, com Broud observando, não dava para
conversar. Quando Uba ficou satisfeita, Ayla levou-a de volta e sentou-se com ela,
ninando-a de lá para cá, cantarolando baixinho. Isso sempre parecia acalmar o bebê,
enquanto ele não caísse no sono. Há muito Ayla tinha esquecido a língua que falava quando
chegou ao clã mas ainda cantava para ninar Uba.
- Eu sou apenas uma mulher velha e ranzinza, Ayla - disse Iza, depois que a menina
deitou Uba. - Já estava muito velha para ter tido essa criança. Meu leite está começando a
secar e Uba ainda não está no tempo de ser desmamada. Ainda não passou nem pelo seu
ano de aprender a caminhar. Mas pode-se dar um jeito nisso. Amanhã vou mostrar para você
como se fazem comidas para bebê. Se eu puder evitar, não darei a minha filha para uma
outra mulher.
- Dar Uba para outra mulher? Como você pode dar Uba para outra pessoa, ela pertence à
gente!
- Ayla, também não quero dar Uba, mas ela precisa comer e não tenho o que dar.
Simplesmente não podemos ficar levando a menina de uma mulher para outra, porque não
tenho leite bastante. O filho de Oga ainda é bebê, por isso é que ela tem tanto leite. Mas
quando Brac ficar maior, ela vai ter só para as necessidades dele. Do mesmo jeito que
acontece com Aga agora. O leite de la não vai sobrar, a não ser que tenha sempre um bebê
mamando nela - explicou Iza.
- Gostaria de poder dar de mamar a Uba.
- Ayla, você pode ser quase tão alta quanto as outras, mas ainda não é mulher. E nem está
mostrando sinais de que tão cedo será. Só depois que se fica mulher é que se pode ser mãe e
só depois de ser mãe é que se tem leite. Vamos começar a dar comida normal para Uba e ver
como ela reage, mas queria que você soubesse o que terá de fazer. Comidas de bebês têm
de ser preparadas de maneira especial. Tudo deve ser bastante macio. Os dentes de leite
ainda não conseguem mastigar muito bem. As sementes têm de ser moídas muito finas,
antes de ser cozinhadas, a carne-seca tem de ser esmigalhada até virar farinha e cozida com
um pouco de água para fazer uma pasta, a carne fresca não pode ser fibrosa, e os legumes
têm de ser amassados. Ainda sobraram algumas bolotas de carvalho?
- Até a última vez que olhei, havia uma pilha, mas os ratos e os esquilos roubaram uma
porção e muitas estão estragadas - respondeu Ayla.
- Arrume o que você conseguir. Primeiro a gente tira o amargor delas e depois mói para
misturar com a carne. Inhame também é bom para ela. Você sabe onde andam aqueles
mexilhões pequeninos? São tão pequenos que se ajustam com o tamanho da boca de Uba.
Ela precisa aprender a comê-los na
própria concha. Estou contente por o inverno estar acabando, na primavera existe mais
variedade de tudo.
Iza percebeu o rosto de Ayla, preocupado e ansioso. Mais de uma vez, principalmente neste
último inverno, ela dera graças por poder contar com a ajuda sempre prestimosa da menina.
Às vezes, imaginava se Ayla não lhe teria sido dada, quando ela estava ainda grávida, para
que fosse a segunda mãe da criança que havia chegado tão tarde em sua vida. Mas Não era
apenas a idade avançada que estava exaurindo as forças de Iza. Mesmo não admitindo que
se falasse de sua saúde e nunca mencionasse a dor no peito e o sangue que ocasionalmente
cuspia após acessos de tosse mais fortes, tinha certeza de que Creb estava percebendo seu
verdadeiro estado de saúde. Ele também está ficando velho, pensou. Este inverno foi duro
também para ele. Ficou muito tempo sentado na pequena caverna, só com uma tocha para
esquentá-lo.
A cabeleira hirsuta do velho feiticeiro estava cheia de raias prateadas. A artrite, associada
ao aleijão da perna, fazia do ato de andar verdadeiro martírio. Seus dentes, usados anos
seguidos para segurar coisas em substituição à mão que faltava, estavam enfraquecidos e
doíam. Mas Creb há muito havia aprendido a conviver com a dor e o sofrimento. Sua mente
continuava tão poderosa e perceptiva como sempre o fora, e ele se preocupava com Iza. Viu
quando a mulher conversava sobre comida de criança com Ayla e também reparara como o
físico dela, antes forte e robusto, achava-se agora diminuído. Iza tinha o corpo descarnado e
os olhos muito encovados, o que ressaltava ainda mais as saliéncias ósseas sobre os
supercílios. Os braços estavam finos e os cabelos começavam a ficar grisalhos, mas o que o
incomodava mais era a tosse persistente. Vou ficar feliz quando este inverno acabar de uma
vez, disse consigo. Ela está precisando de calor e sol.
O inverno, por fim, soltou a terra de suas garras geladas, mas os dias quentes da primavera
chegaram com chuvas torrenciais. Muito tempo depois de o gelo e a neve terem
desaparecido das encostas, massas de gelo ainda continuavam despencando dos altos da
montanha sobre o riacho transbordante. Lá derretiam, e o acúmulo de água fazia do terreno
saturado em frente da caver na um charco escorregadio de lama sempre renovada. Somente
as pedras forrando o chão da entrada mantinham a caverna relativamente seca, enquanto a
água brotava de dentro da terra.
Mas não seria esse sorvedouro de lama que iria prender o clã à caverna. Depois do longo
confinamento, as pessoas saíam em debandada ao encontro dos primeiros raios quentes de
sol e das suaves brisas marinhas. Antes que as neves tivessem derretido completamente,
elas já estavam descalças, patinhando pela lama ou caminhando pesadamente com botas
empapadas. O couro dos calçados era esfregado com camadas extras de gordura, mas nem
assim se
mantinha seco. Naqueles dias, Iza esteve mais ocupada, tratando de gripes e resfriados, do
que durante todo o inverno.
À medida que a estação avançava e o sol chupava a umidade, a paz foi voltando a reinar na
vida do clã. O vagaroso e sossegado inverno, passado emtão contando-se histórias,
fabricando-se utensílios, armas e outras ocupações sedentárias, mais para matar o tempo,
foi substituído por uma primavera buliçosa, cheia de afazeres e atividades febris. As
mulheres saíam para colher os primeiros brotos e rebentos, e os homens se exercitavam,
preparando-se para a primeira grande caçada da temporada.
Uba resplandecia com a nova alimentação mamando agora mais por hábito, ou apenas para
gozar ainda um pouco do calor materno. Iza tossia menos, embora estivesse fraca e sem
forças para grandes incursões pelo campo. Creb, com seus passos rastejantes, retomou as
caminhadas ao longo do riacho com Ayla. Ela adorava a primavera mais do que qualquer
outra estação.
Já que Iza quase nunca podia afastar-se da caverna, Ayla criou o hábito de vagar pelas
colinas procurando plantas para reabastecer a farmácia de Iza. Isso deixava Iza preocupada,
pois as outras mulheres estavam catando plantas alimentícias que nem sempre davam no
mesmo lugar que as medicinais. De vez em quando, Iza saía com Ayla, principalmente para
introduzi-la no conhecimento de novas plantas ou para que aprendesse a identificar as já
conhe cidas no seu estágio de formação e pudesse, mais tarde, saber onde procurá las.
Apesar de Ayla carregar Uba, as poucas saídas de Iza lhe eram muito cansativas e,
relutante, viu-se obrigada a permitir que Ayla cada vez mais saísse sozinha.
Ayla descobriu que adorava suas explorações solitárias. Estar fora da constante vigilância
do clã dava-lhe uma sensação de imensa liberdade. Isso Não queria dizer que Não saísse com
as mulheres, mas, sempre que dava um jeito, corria com seu serviço, de modo a lhe sobrar
tempo para fazer suas incursões sozinha pela mata. Trazia Não só plantas já conhecidas,
mas outras que desconhecia para que Iza as identificasse.
Brun Não se opunha de forma declarada. Compreendia a necessidade de alguém buscar
as plantas para Iza preparar suas mágicas curativas. Também a ele Não passou despercebida
a doença dela. Mas a pressa de Ayla em ver-se sozinha o desconcertava. Nenhuma mulher
do clã sentia prazer em estar só. Iza, por exemplo, todas as vezes que saía para procurar
alguma coisa mais especial, ela o fazia com certas precauções e um tanto medrosa, sempre
voltando o mais rapidamente possível, se estivesse sozinha. Ayla, no entanto, jamais fugia
às suas responsabilidades, sempre se comportando de forma adequada, de modo a Não
haver nada que Brun pudesse apontar como errado. Era mais um sentimento - algo na
atitude, na maneira de encarar as coisas, no modo de pensar, Não que fosse propriamente
errado, mas diferente - que fazia Brun
ficar tenso em relação a ela. Todas as vezes em que saía, voltava sempre com as dobras da
roupa e as cestas cheias de plantas e, uma vez que essas coletas eram necessárias, o chefe
Não podia reclamar.
Vez por outra, ayla trazia mais do que simples plantas. Aquela sua excentricidade inicial,
que tanto tinha surpreendido o clã, tornara-se num hábito. Apesar de que já se estivessem
acostumando, as pessoas ainda se espantavam quando ela chegava com algum animal
ferido ou doente para ser tratado na caverna, O coelho que encontrara pouco depois do
nascimento de Uba foi apenas o primeiro de uma série de animais. A garota tinha um jeito
especial para lidar com bichos. Parecia que eles sabiam que ela queria ajudá-los. E,já que
estava estabelecido o precedente, Brun não se mostrava mais inclinado a modificar tal
comportamento. Só uma vez não deixaram. Foi quando ela chegou com um filhote de lobo.
Animais carnívoros, isso já era demais, pois eles competiam com os caçadores. Já ocorrera
diversas ocasiões, quando estavam no rastro de algum animal, às vezes já ferido e pronto
para ser apanhado, no último instante, surgir um carnívoro esperto arrebatando-lhes a presa.
Brun não poderia permitir que Ayla tratasse de um animal que, talvez algum dia, fosse
roubar caças de seu clã.
Certa vez, quando Ayla, de joelhos, escavava uma raíz, um coelho, com uma das patas
traseiras ligeiramente torta, saltou do mato e veio farejar-lhe os pés. Primeiro, ela ficou
muito quieta, em seguida, sem qualquer movimento brusco, estendeu a mão para acariciá-lo.
Você é o coelhinho que eu ninei? E agora virou este coelhão grande e forte? Será que ainda
Não aprendeu a tomar cuidado com as pessoas? Olhe que escapou por um triz. Um dia
pode acabar em cima de uma fogueira, dizia, enquanto lhe alisava os pêlos macios. Alguma coisa fez assustar o coelho e ele pulou, voando numa determinada direção depois,
mudando de opinião saltou para o lado de onde viera.
Você anda tão rápido, não entendo como as pessoas conseguem pegá-lo. Como consegue
dar essas viradas tão depressa?, disse Ayla, rindo, depois de o coelho haver ido embora. De
repente, deu-se conta de que era a primeira vez, depois de muito tempo, que ria em voz alta.
Raramente o fazia, quando se achava em meio ao clã, isso sempre atraía olhares de
reprovação. Naquele dia, muitas outras coisas engraçadas ela ainda ia encontrar.
- Ayla, esta casca de cerejeira está velha. Já não presta mais - gesticulou Iza, certa
manhã ainda bem cedo. - Quando você sair hoje, veja se arruma algu mas que estejam
novas. Há uma quantidade de cerejeiras perto da clareira.
atravessando o riacho. Sabe onde é? Pegue as cascas de dentro. Esta é a melhor época do
ano para isso.
- Sim, mãe. Sei onde ficam - respondeu a menina.
Era uma bela manhã de primavera. O vermelho e o branco dos últimos
açafrões aninhavam-se ao lado dos pés altos e graciosos dos primeiros junqui lhos amarelos
claros. Um tapete ralo de relva, apenas começando a brotar, era uma leve camada
esverdeada de minúsculas folhinhas sobre a terra escura e úmida das clareiras e montes.
Pontinhos verdes salpicavam os galhos nus dos arbustos, e as árvores, com os primeiros
rebentos, retomavam sua luta pela vida, enquanto outras, de pontas brancas, eram os
salgueiros botando para fora sua falsa pelúcia. Um sol suave encorajava a mais outro
renascer.
Logo que se via fora da vista do clã, o andar rígido e a postura séria de Ayla se relaxavam e
ela passava a caminhar com o balanço normal de seu corpo. Enquanto deslizava por uma
pequena encosta e subia por outro lado, levava nos lábios um sorriso inconsciente,
refletindo-lhe a liberdade dos movimentos espontâneos. Vasculhava a vegetação enquanto
ia passando com aparente indiferença, mas na verdade com a cabeça trabalhando
ativamente na classificação e memorização das plantas, para futuras referências.
Lá estão as ervas-do-cancro crescendo, disse consigo, enquanto passava por um vale
pantanoso, onde colhera as frutinhas vermelhas desta planta no último outono. Na volta,
pego suas raízes. Iza diz que são boas para o reumatismo de Creb. Tomara que as cascas de
cerejeira façam bem para a tosse dela. Acho que Iza já está melhorando, mas ainda está
muito magra. Uba está ficando grande e pesada, Iza não deve mais carregá-la. Se puder,
talvez eu traga Uba na próxima vez. Estou muito contente porque não tivemos de dar Uba
para Oga. Ela realmente está começando a falar agora. Vai ser divertido quando crescer
um pouco mais e nós duas pudermos sair juntas. Olhe aqueles salgueiros! Engraçado como
as folhas novas parecem com uma penugem de ver dade, mas depois ficam verdes, O céu
está tão azul hoje! Posso sentir o cheiro do mar no vento. Gostaria de saber quando a gente
irá pescar. Dentro de pouco tempo, a água já vai estar bastante quente para isso. Por que
será que ninguém mais gosta de nadar? O mar tem gosto salgado, é diferente do riacho e
nas águas do mar eu me sinto tão leve.. . estou doida para ir pescar. Acho que gosto mais
dos peixes de água salgada, mas também gosto muito dos ovos. E adoro subir nos
penhascos para pegá-los. O vento é tão gostoso lá no alto. Olhe um esquilo! Como sobe
rápido numa árvore. Queria subir igual a ele.
Durante toda a metade da manhã, Ayla ficou rondando os bosques das encostas. De
repente, dando.se conta de que estava ficando tarde, tomou a direção da clareira para
buscar as cascas de cerejeiras pedidas por Iza. Ao aproximar-se, ouviu barulho de
movimentos e, vez por outra, o som de alguma voz. Eram os homens que se encontravam
na clareira e ela deu uma rápida olhada neles. Começava a voltar, mas se lembrou das
cascas de cerejeiras, ficando por um momento indecisa. Os homens não vão gostar de me
ver por aqui, pensou consigo. Brun pode ficar zangado e nunca mais me deixar sair
sozinha. Mas Iza precisa das cascas de cerejeira. Talvez, eles vão logo embora. Mas o
que será que estão fazendo? Pisando muito de leve, ela se aproximou mais e se escondeu
atrás de uma grande árvore, pondo-se a espiar por entre o emaranhado da galhada sem
folhas.
Os homens achavam-se ali praticando com as armas, preparando-se para uma caçada.
Lembrou-se de tê-los visto fazendo suas novas lanças. Eles cortavam árvores novas, de
troncos delgados, flexíveis e retos. Retiravam-lhes os galhos, faziam pontas numa das
extremidades, queimando-as no fogo e, de pois, com um resistente raspador de pedra,
davam o acabamento final. O calor endurecia a madeira, impedindo as pontas de partirem
ou lascarem facilmente. Ela ainda se encolhia toda à lembrança da confusão que
arrumara por ter tocado numa daquelas lanças.
Mulheres não tocam em armas, disseram-lhe então. Nem mesmo nos instrumentos usados
para fabricar as armas. Se bem que ela não via a menor diferença na faca que cortava tiras
num pedaço de couro para fazer fundas e a que cortava uma capa. A lança em que ela
encostara a mão foi queimada, sob os olhares irritadíssimos do caçador que a tinha feito.
Creb e Iza submeteram- na a uma longa preleção gesticulada, de modo que ficasse bem
gravado em sua mente o ato abominável que praticara. As mulheres ficaram horrorizadas de
ela ter pensado em fazer tal coisa e o brilho no olhar de Brun não deixava dúvida sobre o
que estava pensando a respeito. Mais do que tudo, porém, odiou o prazer que viu
estampado no rosto de Broud, enquanto as recriminações iam chovendo sobre ela. O rapaz
simplesmente exultava.
Meio assustada, de trás da cortina de galhos, ficou observando-os no campo de treinamento.
Além das lanças, havia outros tipos de armas. Num ponto mais afastado, Dorv, Grod e Crug
discutiam os méritos das lanças ver- sus as maças. Os outros estavam quase todos treinando
com fundas e bolea deiras. Vorn achava-se com eles. Brun resolveu que já era tempo
de lhe ensi nar os primeiros manejos da funda e Zoug explicava ao garoto.
Desde os cinco anos que os homens, vez ou outra, começaram a trazer Vorn com eles
para o campo de treinamento. O garoto passava a maior parte do tempo se exercitando com
uma miniatura de lança que fincava na terra fofa ou em algum toco podre de madeira, só
para ir começando a pegar o jeito da arma. Aquela era a primeira vez que iam ensinar-lhe a
difícil arte da funda. Um poste fora cravado no chão e, não muito longe, achava-se uma pilha de pedras arredondadas, apanhadas ao longo das margens do riacho.
Zoug mostrava a Vom como segurar juntas as duas pontas da tira de couro e como colocar
a pedra na pequena bolsa no centro da correia. Era uma funda já bastante gasta que Zoug ia
botar fora, quando Brun lhe pediu para começar a treinar o garoto. O velho achou que ela
ainda podia servir, se ele a encurtasse um pouco para adaptá-la ao tamanho de Vom.
Ayla observava e se viu interessada na lição. Estava tão concentrada
nas explicações e demonstrações de Zoug quanto o menino. Em sua primeira tentativa,
Vom emaranhou a funda e a pedra lhe caiu aos pés. Era difícil para ele pegar o jeito de
fazer girar a arma até que esta desenvolvesse a força centrífuga necessária para arremessar
a pedra. O menino sempre deixava cair a pedra antes de ter conseguido imprimir velocidade
suficiente para mantê-la segura no bojo da correia.
Broud achava-se perto, observando. Vorn era o seu protegido, e Broud, por sua vez, era
objeto de admiração do menino. Fora o jovem quem fizera a pequena lança que Vom
carregava por toda parte, até mesmo para a cama, e fora também o rapaz quem lhe mostrara
como segurar a arma, discutindo com ele o equilíbrio e as estocadas, como se Vorn fosse
um igual. E agora o menino dirigia toda sua admiração para o velho caçador, fazendo
Broud sentir- se afastado de suas atenções. Queria ser ele sozinho a ensinar tudo a Vorn
e ficara furioso quando Brun pedira a Zoug para instruir o menino no uso da funda.
Depois de diversas tentativas malsucedidas de Vom, Broud interrompeu a lição.
- Olhe, deixe eu mostrar como se faz isso - gesticulou Broud, pondo o velho caçador de
lado.
Zoug deu um passo para trás, lançando um olhar penetrante ao rapaz. Todo mundo parou
para ver. Brun fuzilava com os olhos. Não gostava nem um pouco do tratamento
arrogante que Broud estava dando ao melhor atira dor do clã. Havia pedido a Zoug, não a
Broud, para treinar o menino. Uma coisa é mostrar interesse por Vom e, outra, é levar o
assunto tão longe assim. O menino devia aprender com o melhor, e Broud sabia
perfeitamente que esta não era sua arma por excelência. Precisava entender que um bom
chefe tem de saber reconhecer a competência de cada um. E nisso, Zoug é o que tem mais
capacidade, além do que terá tempo de ensinar ao menino, enquanto estivermos caçando.
Broud está ficando muito dominador, orgulhoso demais. Como vou poder promovê-lo de
posto, se não pode mostrar bom senso? Tem de aprender que não é tão importante só
porque chegará a ser chefe, e não o será, se for só por isso.
Broud pegou a funda de Vom e apanhou uma pedra. Inseriu-a no bojo da tira e a atirou na
direção do marco. A pedra caiu a uma pequena distância do poste. Este era o problema mais
comum que os homens do clã tinham com a funda. Precisavam aprender a compensar suas
limitações físicas que lhes impediam de fazer um arco completo com os braços. Broud
estava furioso por ter perdido o tiro e se sentia um pouco tolo. Pegou outra pedra, lançando-a apressadamente, querendo provar que poderia fazer a coisa. Sabia que estava sendo
observado por todos. A funda era mais curta do que as outras com que estava acostumado e
a pedra saiu, desviando-se à esquerda, ainda sem atingir o poste.
- Você está querendo ensinar Vom ou está pretendendo ter algumas aulas, Broud? -
gesticulou Zoug, com ar de troça. - Se quiser, ponho o poste mais perto.
Broud se esforçava por dominar seu gênio. Não gostava de se ver objeto das zombarias de
Zoug e estava furioso de perder os tiros, depois de toda a discussão que armara. Atirou
outra pedra e, desta vez, para compensar a pequena distância das outras anteriores, botou
força demais, lançando-a para além do marco.
- Se esperar até terminar a aula do garoto, tenho, o maior prazer em lhe dar uma lição,
Broud - gesticulou Zoug, numa postura que expressava um sarcasmo dos mais ferimos. -
Parece que está precisando. - O orgulhoso velho se sentia vingado.
- Como Vorn pode aprender com uma funda velha e estragada como essa? -
esbravejou Broud, defendendo-se e atirando com desprezo ao chão a tira de couro. -
Ninguém conseguiria atirar uma pedra com esse trapo velho. Vorn, vou fazer uma funda
nova para você. Não pense que vai aprender atirando com este lixo velho. Ele já nem mais
caçar pode.
Desta vez, Zoug zangou-se de verdade. Sair das fileiras dos caçadores na ativa era como
uma punhalada no orgulho de todo homem, e Zoug, para guar dar uma certa medida dos
feitos passados, dera duro, aperfeiçoando-se no tiro com funda. Ele já fora o segundo em
comando, tal como o filho de sua com panheira, e seu orgulho era particularmente
melindroso.
- É melhor ser um homem velho do que um garoto que se julga homem
- replicou Zoug, pegando a funda nos pés de Broud.
A alusão pondo em dúvida sua virilidade era demais para o rapaz. Foi a gota d'água. Ele
não se agüentou mais e deu um soco no velho. Zoug, surpre endido em sua guarda,
desequilibrou-se e caiu pesadamente no chão. Ficou sentado no mesmo lugar em que caiu,
com as pernas estendidas, olhando, espantado, para cima. Era a última coisa que esperava.
Os caçadores dos clãs nunca agrediam fisicamente uns aos outros. Este era um castigo
reservado às mulheres que não tinham inteligência para com preender reprimendas mais
sutis. As energias dos jovens eram canalizadas para lutas corporais arbitradas, competições
de corridas com estocadas de lanças ou disputas de caçadores com fundas e boleadeiras, o
que lhes servia também para aperfeiçoar o manejo das armas de caça. A competência na
caçada e a au todisciplina eram a medida de virilidade dos clãs, que dependiam da cooperação para sua sobrevivência. Broud se viu quase tão surpreso quanto Zoug com a
impulsividade do gesto e, logo que compreendeu o que fizera, seu rosto ficou rubro de
vergonha.
- Broud! - A palavra havia saído da boca do chefe, num som parecido a um ronco tirado
do fundo do peito. Broud olhou para cima e se encolheu.
Nunca tinha visto Brun tão furioso. O chefe se aproximou, pisando duro, com gestos
rlgorosamente controlados e se expressando de forma abreviada.
- Esta demonstração infantil de falta de controle é indesculpável Se seu posto como
caçador já não fosse o mais baixo de todos, era para onde você iria agora. Em primeiro
lugar, quem lhe disse para interferir na aula do garoto? Por acaso, eu ou Zoug lhe dissemos
para treinar Vorn? - Os olhos de Brun flamejavam de cólera. - Você se diz caçador?
Nem homem pode dizer que é! Vorn sabe controlar-se melhor do que você. Até uma
mulher tem mais autodisciplina. Você é um futuro chefe, é assim que irá conduzir os
homens? Espera controlar um clã, quando nem se controlar pode? Não esteja tão seguro de
seu futuro, Broud. Zoug tem razão. Você é uma criança que pensa que é homem.
Broud estava mortificado. Nunca fora humilhado de modo tão arrasa dor e, ainda por cima,
à vista dos caçadores e de Vom. Sua vontade era correr e sumir. Jamais iria recuperar-se
dessa humilhação. Antes enfrentar um leão da caverna do que a fúria de Brun. Sobretudo
de Brun, que dificilmente, deixava transparecer sua raiva e poucas vezes tinha necessidade
de fazê-lo. Um só olhar penetrante do chefe, o digno e capaz comandante, aquele que era
senhor de uma autodisciplina inquebrantável, bastava para que todos - homens e
mulheres - imediatamente se pusessem às suas ordens. Broud, submisso, curvou a
cabeça.
Brun olhou na direção do sol e fez o sinal para partir. Os caçadores, que se sentiam
pouco à vontade testemunhando aquele sermão duríssimo, deram graças por poder ir
embora. Puseram-se atrás do chefe que, com passadas largas, voltou à caverna. Broud foi
para a retaguarda com o rosto ainda pegando fogo.
Ayla agachou-se, completamente imóvel, presa ao chão, quase sem respirar. O medo de
ser vista paralisava-a. Sabia ter presenciado uma cena a que nenhuma mulher poderia
assistir. Broud jamais teria sido castigado daquela maneira na frente de uma mulher. Os
homens, seja lá por que motivo fosse, mantinham sua confraria e estavam sempre solidários
quando elas se achavam por perto. O episódio, no entanto, mostrou a Ayla um lado que
nunca imaginou existir. Os homens, afinal, não eram os agentes supremos e livres que
reinavam impunemente sobre tudo, como ela pensara. Também eles tinham de seguir
regras e podiam ser repreendidos. Somente Brun parecia ser uma figura onipotente,
pairando acima de todas as coisas. Ela não entendeu que Brun, mais do que qualquer outro,
achava-se submetido a uma série de obrigações: às tradições e aos costumes, a seu senso de
responsabilidade e aos insondáveis vaticínios dos espíritos que controlavam as forças da
natureza.
Por muito tempo depois de os homens terem partido, Ayla ainda permaneceu em seu
esconderijo, com medo de que eles voltassem. E foi apreensiva, quando, por fim, ousou sair de detrás da árvore. Apesar de não ter entendido
perfeitamente aquela nova faceta que surpreendera nos homens do clã, uma coisa pelo
menos compreendeu: vira Broud tão submisso quanto qualquer mulher e isso a enchia de
prazer. Havia aprendido a odiar aquele arrogante rapaz que, impiedosamente, a agredia,
ralhando por pequenos nadas, pudesse ela ter razão ou não, e que a fazia com freqüência
ostentar no corpo as marcas de seu gênio explosivo. Por mais que tentasse, jamais
conseguia satisfazê-lo.
Pensando no incidente, Ayla se pôs a caminhar pela clareira, quando viu próximo ao marco
de tiro a funda que Broud no seu rompante de fúria atirara ao chão. Ninguém se lembrara
de levá-la. Olhou-a com receio de tocá-la. Era uma arma, e o medo de Brun fê-la tremer
diante do pensamento de praticar qualquer coisa que o pusesse tão furioso com ela quanto
ficara com Broud. Sua mente ia repassando a série de incidentes que acabara de presenciar
e a visão da tira de couro trazia-lhe à lembrança as instruções de Zoug a Vorn e da
dificuldade do garoto para pegar o manejo da arma. Seria tão difícil assim? Será que, se
Zoug me ensinasse, eu Conseguiria?
Só em pensar nisso ficou apavorada e olhou em derredor para se certificar de que estava
realmente sozinha e de que não havia ninguém ali vendo-a e lendo seus pensamentos. Nem
Broud tinha conseguido, recordava-se. À lembrança de Broud tentando atingir o poste e
dos gestos depreciativos de Zoug, a menina deu um leve sorriso.
Ele não ficaria furioso se eu fizesse uma coisa que ele não consegue? Agradava-lhe o
pensamento de poder superar Broud em algo. Passou mais uma vista de olhos à sua volta,
olhou receosa para a funda, depois agachou-se e a pegou. Sentiu nas mãos a maciez do
couro muito manuseado e, de repente, pensou no castigo que receberia, se alguém a visse
com uma funda na mão. Quase a largou outra vez, quando deu uma rápida olhada pela
clareira, na direção em que os homens haviam saído. Seus olhos deram com a pilha de
pedras.
Será que consigo? Brun ficaria enlouquecido se me visse. Nem sei o que faria. E Creb
diria que sou muito má. Só por tocar nesta funda eu já sou má. Mas que mal pode haver em
tocar num pedaço de couro? Só porque é usada para atirar pedras? Será que Brun me
bateria? Broud, tenho certeza que sim. Ficaria feliz em me ver pegar nessa coisa, teria
assim uma desculpa para me bater. Mas também ficaria louco da vida, se soubesse que eu
vi o que aconteceu aqui. Todos eles ficariam furiosos. Será que poderiam ficar com mais
raiva ainda, se eu tentasse atirar? O mal é um só, não é? Será que eu conseguiria atingir o
poste com uma pedra?
Ela se dividia entre a vontade de experimentar sua pontaria e a certeza de que estava
fazendo algo proibido. Ela estava errada, disso sabia. A vontade, porém, era grande. Mais
uma ou menos uma Coisa má, que diferença faz?
Ninguém vai ficar sabendo, aqui não existe outra pessoa só eu. Outra vez, com os olhos
culposos, deu uma olhada à sua volta. Em seguida, dirigiu-se para o monte de pedras.
Pegou uma, tentando lembrar-se das instruções de Zoug. Com cuidado, juntou as duas
extremidades da correia, segurando-as firmemente. O couro fazia uma alça bamba,
pendurada. Sentia-se desajeitada e sem muita certeza de como colocar a pedra no meio da
velha tira de couro. Por diversas vezes, a pedra caiu no momento em que a menina
começava a rodar a funda. Concentrava-se, procurando visualizar as demonstrações de
Zoug. Tentou novamente, quase conseguindo dar partida, mas a funda tornou a ficar
pendurada e a pedra voltou a cair.
Na vez seguinte, Ayla conseguiu dar algum impulso e a pedra foi lançada a uma certa
distância. Animada, pegou outra. Depois de mais algumas partidas erradas, conseguiu
lançar uma segunda pedra. As três tentativas seguintes fracassaram, mas então uma voou,
caindo afastada, e já não tão longe do poste. Começava a pegar o jeito.
Quando a pilha de pedras terminou, ela tornou a juntá-las e, depois, por mais uma terceira
vez. Na quarta pilha, já era capaz de atirar a maioria das pedras, deixando cair muito
poucas. Olhou para o chão, havia três pedras. Pegou uma, colocou-a na funda, girou a arma
sobre a cabeça e a pedra partiu como uma bala. Ouviu, então, um tilintar no poste, a pedra
sendo ricocheteada, e um salto no ar extravasou as emoção da vitória.
Consegui! Acertei no poste! Foi por pura sorte, um feliz acaso, mas isso não diminuía sua
alegria. A pedra seguinte voou longe, passando muito além do marco e a última caiu pouco
adIante dela. Mas não importava, havia conseguido uma vez, e tinha certeza de que poderia
repetir o feito.
Estava catando as pedras para empilhar novamente, quando reparou no sol já perto do
horizonte. De repente, lembrou-se de que deveria estar pegando cascas de cerejeira para
iza. Como pôde o tempo passar tão depressa? Será que fiquei a tarde inteira aqui? Iza e
Creb devem estar preocupados. Rapida mente, meteu a funda numa dobra da roupa e correu
para os pés de cerejeira. Com a faca, retirou as cascas de cima dos troncos e raspou as
camadas mais internas, até conseguir soltar umas lascas finas e compridas. Voltou para a
caverna o mais depressa que pôde, só diminuindo o passo perto do riacho, quando
reassumiu a postura circunspecta, própria das mulheres. Tinha medo de que fossem arrumar
confusão com ela por ter passado tanto tempo fora. Não desejava dar motivos para que as
pessoas se pusessem ainda mais raivosas.
- Ayla, onde você andou? Estava morrendo de preocupação. Pensei até que você tivesse
sido atacada por um bicho. Já ia pedir a Creb para mandar Brun procurá-la - era Iza
ralhando com ela, logo que a viu chegando.
- Estava dando uma olhada por aí, para ver se havia alguma coisa nova, lá perto da
clareira - respondeu Ayla, sentindo-se culpada. - Não percebi que já estava tão tarde. -
Isso era verdade, mas só pela metade. - Aqui estão as cascas de cerejeira. . . as ervas-do-
cancro estão nascendo no lugar onde deram no ano passado. Você não me disse que as
raízes dessa planta são boas também para o reumatismo de Creb?
- Disse. Mas você tem de pôr a raiz de molho e fazer compressas para aliviar a dor. Com
as frutas se faz chá, e o suco que se espreme delas é bom para tumores e inchações -
estava Iza respondendo automaticamente, quando de repente interrompeu. - Ayla, você
está querendo me distrair com essas perguntas sobre remédios? Sabe perfeitamente que não
deve ficar fora tanto tempo e me deixar preocupada dessa maneira. - Sua raiva, depois de
ter visto a menina, tinha passado, mas queria ter certeza de que ela não iria mais ficar tanto
tempo fora sozinha. Nunca deixava de ficar preocupada quando Ayla saía.
- Não vou tornar a fazer isso outra vez, sem avisar antes, Iza. É que ficou tarde e eu não
percebi.
Ao entrarem na caverna, Uba, que passara o dia procurando por Ayla, estava lá vigiando a
entrada. Com suas perninhas rechonchudas e curvas, foi correndo na direção dela, mas
tropeçou no momento em que ia alcançá-la. Ayla conseguiu ainda pegá-la antes que caísse,
suspendendo-a e rodando com a menininha no ar.
- Será que um dia desses vou poder levar Uba comigo, Iza? Eu não ficaria muito tempo
fora. Já posso ir começando a mostrar algumas coisas para ela.
- Uba é ainda muito pequena para entender. Só agora é que está começando a falar -
disse Iza. Mas, vendo como as duas ficavam felizes juntas, acrescentou: - Se você não for
longe, acho que de vez em quando pode levar Uba com você.
- Ah, que bom! - falou Ayla, dando um abraço em Iza, com a menina ainda no colo.
Suspendeu a garotinha, rindo em voz alta. Uba olhava-a com olhos brilhantes, cheios de
adoração. - Não vai ser divertido, Uba? - disse, depois de botá-la no chão. - Mamãe
deixou que você viesse comigo.
O que deu nessa menina?, pensou Iza. Há muito tempo que não a vejo tão excitada. Hoje,
parece que o ar está cheio de estranhos espíritos. Primeiro, os homens voltam cedo e não
fazem a roda de conversa como de costume. Cada um vai para sua fogueira e nem presta
atenção nas mulheres. Não vi nenhuma recebendo pito, hoje. Até Broud chegou quase a ser
delicado comigo. Agora é Ayla. Passa o dia inteiro fora e volta, excitada, abraçando todo
mundo. Positivamente, não estou entendendo.
Ah, você? O que deseja? - gesticulou Zoug, com impaciência. Fazia
- um calor fora do comum, pois o verão apenas estava começando.
Zoug tinha sede, sentia-se desconfortável, suava debaixo do sol quente, e o raspador com que trabalhava um enorme couro de veado estava cego. Cheio de
azedume, não queria ser interrompido, sobretudo por aquela garota feia de cara achatada
que se sentava de cabeça baixa, ali perto, à espera de que ele tomasse conhecimento de sua
presença.
- Zoug gostaria de beber um pouco d'água? - gesticulou Ayla, depois de
respeitosamente reparar na pancadinha dada em seu ombro. - Esta me nina estava junto da
fonte e viu o caçador trabalhando debaixo do sol. Esta menina achou que o caçador talvez
estivesse com sede. Ela não desejava inter romper - continuou Ayla, usando o tratamento
cerimonioso devido a um caçador. Estendeu-lhe uma caia feita de vidoeiro, enquanto
segurava um odre gotejando água fresca, o qual era feito do estômago de um cabrito-
montês.
Zoug grunhiu afirmativamente, escondendo sua surpresa diante de tanta solicitude,
enquanto Ayla despejava água na cuia para lhe dar. Ele não havia conseguido captar o
olhar de nenhuma mulher e não estava querendo largar o serviço no ponto em que este se
encontrava. O couro achava-se quase seco. Para que o material ficasse flexível e macio,
como ele desejava, era mportante que Não interrompesse o trabalho naquele instante. Seu
olhar se guiu a menina, enquanto ela foi botar o cantil com água sob uma sombra e, em
seguida, voltando com um feixe de palhas e algumas raízes embebidas em água para tecer
um cesto.
Apesar de que Ika sempre se mostrasse respeitosa e respondesse a seus chamados
prontamente, desde que ele havia mudado para a fogueira do filho de sua companheira,
poucas vezes ela procurava adivinhar-lhe os desejos como o fazia sua companheira quando
ainda vivia. A primeira atenção de Ika era sempre para Grod, e Zoug sentia falta dos
pequenos cuidados que só uma devotada companheira sabe dar. Vez por outra, Zoug
lançava um olhar à garota sentada perto dele. Estava silenciosa, concentrada no trabalho. O
Mog ur educou-a bem, pensou ele. NÃO reparava que ela o vigiava com o canto dos olhos,
enquanto ele ia puxando, esticando e raspando o couro umedecido.
Mais tarde naquele dia, Zoug foi sentar-se sozinho em frente da caverna, com os olhos
parados, perdidos na distancia. Os caçadores haviam saído. Ika e mais duas outras
mulheres tinham ido com eles. Zoug comera na fogueira de Goov e Ovra. Vendo Ovra,
mulher feita e com companheiro, quando há bem pouco tempo não passava de uma
garotinha nos braços de Ika, ele ficou pensando na passagem dos anos que havia levado
suas forças, impedindo-o de acompanhar os caçadores. Saíra quase imediatamente depois
de ter comido e estava lá em meio às suas divagações, quando reparou na menina
encaminhando-se para ele, trazendo na mão uma cesta de vime.
- Esta menina apanhou mais framboesas do que podemos comer - falou, depois de ele
ter indicado que a estava vendo. - Gostaria o caçador de comê-las para que não sejam
desperdiçadas?
Zoug aceitou a cesta oferecida com um prazer que mal conseguia disfar çar. Ayla foi
sentar-se em silêncio, a uma distância respeitosa, esperando Zoug saborear as doces e
suculentas framboesas. Depois que terminou, ele lhe devolveu a cesta, e Ayla rapidamente
se retirou. Não sei por que Broud diz que ela é insolente, pensou, observando-a ir embora.
Não vejo nada de errado nela, fora o fato de ser extraordinariamente feia.
No dia seguinte, ela trouxe novamente água fresca da fonte, enquanto
Zoug trabalhava e arrumou perto dele o material da cesta que estava fazendo.
Mais tarde, quando Zoug estava acabando de esfregar gordura no couro, o
Mog-ur veio caminhando em sua direção.
- É um serviço duro esse de curtir couro no sol - gesticulou o Mog-ur.
- Estou fazendo novas fundas para os homens e prometi dar uma nova para Vorn. O couro
para fabricar fundas tem de ficar flexível, por isso não se pode parar com o trabalho
enquanto ele está secando, e a gordura também precisa ser completamente absorvida. É
melhor fazer isso no sol.
- Tenho certeza de que os caçadores vão ficar satisfeitos em ter novas fundas - observou o
Mog-ur. - Todos sabem que em matéria de funda você é um grande especialista. Tenho
observado Vorn e você juntos. Ele tem sorte de poder contar com um professor como
você. é uma técnica difícil de dominar e deve ser também uma arte fazer fundas.
Zoug curvou a cabeça, agradecendo os elogios do feiticeiro.
- Amanhã, vou cortá-las, O tamanho dos homens, eu sei qual é, agora o de Vom tem de
ser ajustado para ele. Para se obter melhor pontaria e mais força no tiro, a funda precisa ser
feita de acordo com o tamanho do braço.
- Iza e Ayla estão preparando a codorna que você nos trouxe outro dia, como a parte
devida ao Mog-ur. Iza está ensinando a menina a fazer do jeito que eu gosto. Gostaria de
comer esta noite na fogueira do Mog-ur? Ayla me pediu para convidá-lo e eu teria grande
prazer com sua companhia. Às vezes, um homem gosta de falar com outro, e na minha
fogueira só há mulheres.
- Zoug comerá com o Mog-ur - respondeu o velho, visivelmente feliz.
Embora festas em comum fossem frequentes e muitas vezes duas famílias se reunissem
para comer juntas, principalmente no caso de parentes, era difícil o Mog-ur convidar
alguém para sua fogueira. Ainda era um tanto novidade para ele ter um lugar que de fato
lhe pertencia e, por outro lado, sentia prazer em poder ficar à vontade na companhia das
mulheres de sua fogueira. Mas ele conhecia Zoug desde os tempos de menino e sempre o
havia respeitado e gostado dele. O prazer que vira no seu rosto fê-lo pensar que já deveria
ter feito isso há mais tempo. Estava contente por Ayla haver lembrado. E afinal de contas,
foi Zoug quem tinha dado a codorna.
Iza não estava acostumada a companhias. Ficava preocupada, aflita, ir ritando-se por nada.
Seus conhecimentos de ervas eram aplicados tanto a remédios como a temperos. Sabia
como combiná-las apropriadamente e como dar um toque sutil de modo a realçar o sabor
dos alimentos. A refeição ficou deliciosa e Ayla mostrava-se especialmente atenciosa, mas
de forma discreta, e o Mog-ur se sentia satisfeito com as duas. Depois de os dois homens
estarem bem fartos, Ayla serviu-lhes um suave chá de camomila e menta, que Iza disse ser
bom para ajudar a digestão Com duas mulheres sempre prontas para adivinhar-lhes os
desejos e um bebê rechonchudo e alegre que se arrastava para os seus colos, puxando-lhes
as barbas, os dois se sentiram jovens outra vez, muito à vontade, conversando sobre os
velhos tempos. Zoug estava reconhecido pelo convite e também um pouco invejoso daquele
lar feliz do velho feiticeiro, e este, por sua vez, sentia que sua vida Não poderia ser mais
agradável.
No dia seguinte, Ayla observou como Zoug mediu uma tira de couro para Vorn, prestando
muita atenção enquanto ele explicava por que as extremidades tinham de ser mais estreitas
e por que uma funda não podia ser nem muito curta nem muito comprida. Em seguida, viu-
o meter, na correia dobrada pelo meio, uma pedra molhada, fazendo o couro esticar,
formando uma espécie de bolsa no centro. Depois de ter cortado diversas outras fundas, ele
estava ajuntando os retalhos, quando a menina chegou trazendo-lhe água para beber.
- Teria Zoug outros usos para estes pedaços que sobraram? O couro parece tão macio! -
gesticulou Ayla.
Zoug viu-se expansivo com aquela sua admiradora tão prestativa.
- Não me vão servir para nada. Você gostaria de ficar com eles?
- Esta menina muito agradeceria. Acho que alguns pedaços estão bastante largos e podem
ser aproveitados - falou, mantendo a cabeça sempre abaixada.
No outro dia, Zoug quase sentiu falta de Ayla trabalhando a seu lado e lhe trazendo água.
Mas sua tarefa já se achava terminada, as armas estavam prontas. Ele a viu dirigir para os
bosques, com a nova cesta de colher
presa às costas e o pau de cavar na mão Deve ter ido pegar plantas para Iza, pensou. NÃO
entendo Broud. Ele não gostava muito do rapaz, e ainda não se esquecera da agressão
sofrida no princípio do verão. Por que está sempre ralhando com ela? É uma garota que
trabalha bem, respeitadora, e que é uma honra para o Mog-ur. Ele é um homem feliz por ter
Iza e Ayla. Lembrava-se da agradável noite passada com o grande feiticeiro e, embora sem
mencionar, não se esquecera de que tinha sido Ayla quem havia pedido para convidá-lo a
comer com eles. Ficou observando a garota, alta, de pernas retas, ir se afastando. Pena que
seja tão feia, poderia dar algum dia uma boa companheira para qualquer homem.
Depois de ter feito uma funda com os retalhos de Zoug, para substituir a velha que por fim
acabara de vez, Ayla resolveu procurar um lugar longe da caverna, onde pudesse praticar à
vontade. Estava sempre com medo de alguém surpreendê-la. Pôs-se a acompanhar o curso
do riacho que corria perto da caverna e depois começou a subir a montanha, seguindo um
afluente do riacho, forçando a passagem através de um denso matagal.
Foi interrompida no caminho por uma íngreme parede de rocha onde as águas do riacho
tributário despencavam numa nuvem de cascatas. Os rochedos salientes - cujos contornos
extremamente acidentados eram suavizados por grosso e viçoso colch de musgo -
dividiam as águas da cachoeira, saltando de rocha em rocha e criando diversos córregos,
longos e estreitos que esparrinhavam para o alto véus de neblina. A água era coletada num
lago espumoso, formado na depressão rochosa existente no pé do paredão antes de prosseguir
seu caminho para encontrar o curso maior. O paredão se mostrava como uma barreira que
seguia paralelamente ao riacho, mas, à medida que Ayla avançava, acompanhando-lhe a
base, o rochedo, quase a prumo, inclinava-se, fazendo uma subida que, embora íngreme,
era possível de ser escalada. No topo, o terreno se nivelava e ela foi dar com o curso das
águas do riacho tributário, passando a segui-lo novamente rio acima.
O líquenão orvalhado punha um tom verde-acinzentado nos pinheiros e abetos que
dominavam a área. Esquilos subiam velozes as altas árvores, e o musgo variegado,
revestindo a camada de turfa, atapetava terra, pedras e troncos caídos, como uma coberta
contínua que ia desde o amarelo ao verde-escuro. Mais adiante, a garota pôde ver os raios
de sol filtrando-se através das árvores perenes. Enquanto acompanhava o curso d'água, foi
vendo as árvores rareando-se, entremeadas de algumas outras, velhas, reduzidas ao
tamanho de arbustos, quando, então o terreno abria-se numa clareira. Era um pequeno
campo, cujo fundo chocava-se contra a rocha cinza-escura da montanha, adornada nas
partes mais elevadas por algumas plantas trepadeiras.
O riacho que serpenteava num lado da clareira tinha sua nascente numa
grande fonte jorrando do paredão de rocha perto de um grupo de grandes avelaneiras. A
cadeia de montanhas era perfurada em suas camadas internas com muitas fendas e
escoadouros filtrando as águas das geleiras que brotavam como nascentes claras e
espumosas.
Ayla atravessou a clareira e foi tomar um grande gole de água fresca. Em seguida, passou a
examinar os cachos de avelãs que davam aos pares ou em trincas. Encerradas dentro das
carapaças verdes e espinhosas, ainda estavam por amadurecer. Ela pegou um dos cachos,
tirou a parte externa e partiu com os dentes a casca dura de dentro, fazendo aparecer a
frutinha branca, apenas meio desenvolvida. Sempre gostou de avelãs verdes, mais do que
quando estavam maduras, caídas no chão. O gosto atiçou-lhe o apetite e ela se pôs a
colher os cachos e jogá-los dentro da cesta. Nisso, atrás da folhagem espessa, percebeu um
buraco escuro.
Com cuidado, afastou os galhos e deu com uma pequena caverna disfarçada pela folhagem
das avelaneiras. Forçou os ramos para o lado, olhando com atenção para dentro. Depois
entrou, deixando a ramagem voltar ao lugar. O sol fazia um desenho de luzes e sombras na
parede, iluminando fracamente o interior. Era uma gruta com uns três metros de
comprimento e a metade disso de largura. Com os braços esticados, dava quase para que ela
alcançasse o teto da entrada que depois ficava numa altura correspondente mais ou menos
à metade do comprimento, quando se inclinava abruptamente para encontrar o chão de
terra seca no fundo.
Era apenas um pequeno buraco no paredão da montanha, mas bastante grande para que ela
se locomovesse com facilidade dentro dele. Lá, achava-se escondido um punhado de avelãs
estragadas e, na entrada, viu algumas titicas de esquilos, concluindo que o lugar jamais fora
usado por qualquer coisa maior do que esses bichinhos. Ayla, encantada, bailava dando
voltas, feliz com seu achado. A gruta parecia feita sob medida para ela.
Saiu da gruta e deu uma olhada pela clareira. Dirigiu-se, então a um pequeno caminho que
subia pela rocha nua e se pôs a avançar por uma estreita passagem, serpenteando pelo
aforamento na montanha. Ao longe, avistou entre a fenda formada por duas colinas as
águas cintilantes do mar interno. Em baixo, pôde distinguir nitidamente uma minúscula
silhueta perto da estreita faixa prateada de um riacho. Achava-se praticamente em cima da
caverna do clã Descendo de volta, ela contornou o perímetro da clareira.
É perfeita, disse consigo. Dá para treinar, existe água perto para beber e, se chover, entro na
gruta. E posso esconder nela minha funda. NÃO preciso ficar mais com medo de Iza e Creb
achá-la. Até avelãs há; mais tarde posso, inclusive, colher algumas para o inverno. Os
homens nunca caçam em lugares tão altos assim. Isso aqui será só meu. Correu, então, até o
riacho e começou a procurar por pedras lisas e arredondadas para experimentar sua nova
funda.
Sempre que podia, Ayla subia a seu esconderijo. Depois, encontrou um caminho mais
íngreme, porém mais curto. Quase sempre surpreendia carneiros e cabritos monteses, ou
alguma corça arredia pastando por lá. Mas logo os bichos se acostumaram com sua
presença e, quando ela aparecia, dignavam-se apenas a afastar-se para os cantos da clareira.
Quando atingir o poste com uma pedra deixou de ser desafio e passou a dominar melhor a
funda, a garota foi estabelecendo metas mais difíceis de ser alcançadas. Observava Zoug
ensinando Vorn e aplicava depois os seus conselhos e técnicas, quando ia treinar
sozinha. Era como um jogo, alguma coisa divertida e, para aumentar o interesse, começou a
comparar seus progressos com os de Vorn. A funda não era a arma predileta do garoto.
Cheirava a alguma invenção só para uso de gente velha. Estava mais interessado em
lanças, a primitiva arma dos caçadores, e já conseguira matar alguns bichos pequenos:
cobras e porcos-espinhos. Na verdade, ele não punha tanto empenho como Ayla, além de
que sua dificuldade fosse muito maior do que a dela. Ao verificar que estava melhor do que
Vom, ela ficou orgulhosa de si, com uma sensação de superioridade que provocou uma
ligeira mudança em sua atitude, mudança que não passou despercebida por Broud.
Das mulheres, esperava-se que fossem dóceis, subservientes, desprentensiosas e
humildes. O fato de ela não demonstrar medo quando ele se achava por perto foi tomado
como afronta pessoal. Era uma ameaça à sua masculinidade. Ele a observava, tentando
descobrir o que havia nela de diferente, e prontamente acertava-lhe socos só para
surpreender-lhe alguma expressão de medo, ou fazê-la encolher-se.
Ayla procurava servi-lo com correção , executando tudo que ele ordenasse o mais
rapidamente possível. Ela não sabia que seu andar exalava liberdade, uma desenvoltura
que, inconscientemente, trazia de suas andanças pelos campos e florestas; e o orgulho,
advindo do fato de ter aprendido algo difícil e poder fazê-lo melhor do que ninguém, que
estava no seu porte e a autoconfiança cada vez mais transparecendo no rosto. Ignorava os
motivos que o levavam a implicar mais com ela do que com as outras. Ele próprio não sabia
por que Ayla o incomodava tanto. Era alguma coisa de indefinível, e a garota tinha tanta
possibilidade de alterar a situação quanto a de modificar a cor de seus olhos.
Uma das razões era certamente porque ainda se lembrava de Ayla haver usurpado os seus
momentos de glória nos rituais de passagem, mas a causa verdadeira estava no fato de ela
não ser da raça dos clã. Em Ayla, Não havia a subserviência criada através de incontáveis
gerações. Ela vinha dos Outros. Uma raça mais jovem, original, onde tudo se fazia de
forma mais dinâmica, vital e não controlada por rígidas tradições de cérebros praticamente
constituí dos só de memórias. O dela seguia rumos diferentes. Sua testa alta, bem desenvolvida, abrigando lóbulos frontais com capacidade de projeção dava-lhe uma
compreensão inteiramente diversa. Podia aceitar o novo, modelá-lo à sua vontade, forjá-lo em
idéias nem de leve suspeitadas pelos clã e pelos desígnios da natureza, a sua espécie estava
destinada a suplantar a velha e agonizante raça.
Ao nível do inconsciente, Broud sentia os destinos opostos dos dois. Ayla não ameaçava só
sua masculinidade. Ela representava uma ameaça à própria existência dele. O ódio por ela
era o ódio que o velho tem pelo novo, que a tradição devota ao inovador, e o que está
agonizando nutre pelo que está nascendo. A raça de Broud era demasiado estática, de uma
imutabilidade sem esperança. Já havia alcançado o auge do desenvolvimento, não tinha
mais como expandir-se. Ayla não, ela fazia parte de um novo experimento da natureza.
Apesar de tentar moldar-se às mulheres do clã isso era apenas uma tintura, uma atitude
astuta assumida em nome de sua sobrevivência. Ela já começava a encontrar saídas em
resposta a uma profunda necessidade que buscava um meio de expressão Mesmo procurando
agradar Broud em sua tirania, fazendo tudo o que podia, ela internamente começava a
rebelar-se.
Em certa manhã particularmente penosa, Ayla se dirigiu ao lago para beber. Os homens
achavam-se reunidos do lado oposto da entrada da caverna, fazendo planos para a próxima
caçada. Ela se sentia feliz, isso significava que Broud estaria fora por algum tempo. Sentou-
se junto da água com a cunja na mão, perdida em seus pensamentos. Por que será que ele é
tão mesquinho comigo? Por que está sempre me criticando? Trabalho tanto quanto qualquer
outra. Faço tudo o que ele quer. De que adianta pelejar tanto? Nenhum dos outros homens
implica assim comigo. A única coisa que queria é que ele me deixasse em paz.
- Aiii! - gritou ela, sem querer, com o pesado soco que Broud lhe deu de surpresa.
Todos pararam e olharam na direção dela, para imediatamente depois desviar os olhos. não
era próprio de uma menina já quase moça gritar em voz alta só porque levou o soco de um
homem. Ela se virou para seu torturador com o rosto vermelho de vergonha.
- Você fica aí olhando para o ar, sentada à toa sem fazer nada, garota preguiçosa! -
gesticulou Broud. - Eu lhe disse para trazer chá e você nã fez caso. Será que sempre
preciso falar com você duas vezes?
Uma onda de raiva fez o rosto dela ficar ainda mais vermelho. Sentia-se humilhada com o
grito em voz alta, com muita vergonha do clã, todo presente ali, e furiosa com Broud, o
causador de tudo. Levantou-se para obedecer-lhe, mas sem a devida pressa. Devagar, com
insolência, pôs-se de pé e lançou a Broud um olhar de frio desprezo, antes de ir buscar o
chá. As pessoas observando pararam de respirar. Que ousadia. Como pode ser tão atrevida!
Broud explodiu. Lançou-se sobre ela, girando-lhe o corpo e dando um soco em sua cara
com a mão fechada. Ela caiu no chão a seus pés e ele prosseguiu com outro soco violento.
Ayla se encolhia, tentando proteger-se com os braços, enquanto ele continuava a lhe bater
sem parar. Ela lutava para Não gri tar, embora não se esperasse silêncio diante de tamanha
agressão. A raiva de Broud crescia junto com sua violência. Queria ouvi-la gritar e, na fúria
incontrolada, ia despejando um murro atrás do Outro. Ela apertava os dentes, resis tindo
à dor, firme na recusa de não lhe dar tal satisfação Depois de certo tempo, já não estava em
condições de gritar.
Difusamente, vendo tudo através de uma neblina vermelha, sentiu que os socos tinham
parado. Percebeu que Iza a levantava e, com o corpo apoiado nela, foi cambaleando para a
caverna, quase inconsciente. No seu meio torpor, sentia pontadas terríveis de dores. Tinha
apenas a vaga consciência dos curativos frios que estavam sendo postos sobre sua pele, e
de Iza apoiando-lhe a cabeça para que pudesse tomar um chá de gosto amargo. Depois
disso, mergulhou no sono à custa da droga.
Ao acordar, os primeiros raios do amanhecer, ajudados pela luz melancólica das últimas
brasas na fogueira, deixavam entrever o contorno dos objetos familiares da caverna. Ela
tentou levantar-se. Todos os ossos e músculos do corpo recusavam-se a obedecê-la. Um
gemido escapou-lhe dos lábios, e logo depois Iza estava a seu lado. Os olhos da mulher
falavam por ela, cheios de preocupação e pena. Nunca havia visto ninguém apanhar tão
brutalmente. Nem mesmo seu companheiro nos piores momentos lhe havia batido de modo
tão duro. Tinha certeza de que Broud a teria matado, se não tivesse sido obrigado a parar.
Uma cena que pensou jamais presenciar e esperava nunca tornar a ver.
Quando pôde recordar-se do acontecido, Ayla foi tomada de ódio e medo ao mesmo
tempo. Sabia que não deveria ter sido tão insolente, mas não podia esperar uma reação tão
violenta. O que será que tinha para arrastá-lo a ataques de tamanha fúria?
Brun estava furioso. Era uma raiva fria e contida que fazia com que todo o clã caminhasse
nas pontas dos pés, evitando-o tanto quanto possível. Ele desaprovava o atrevimento de
Ayla, mas a reação de Broud o havia chocado. É certo que a menina poderia ser castigada, só
que Broud não poderia exceder-se daquela maneira. Nem mesmo quando Brun ordenara
que parasse, Broud obedeceu. Foi preciso que ele, o chefe, o arrastasse para o lado. E o
pior, perder o controle por causa de uma mulher. Broud se deixara levar pela provocação de
uma menina, descontrolando-se e dando um espetáculo de histeria verdadeiramente
feminina.
Depois do acesso de raiva que Broud teve no campo de treinamento, Brun estava certo de
que o rapaz nunca mais iria deixar-se levar por seu gênio.
No entanto, ele agora tinha sido dominado por outro acesso de cólera, pior até do que o de
uma criança. Sim, porque Broud já tinha a força e o corpo de um homem adulto. Pela
primeira vez, Brun começou a ter sérias dúvidas sobre a prudência de fazer de Broud o
chefe do clã, e isso o feria mais do que gostaria de admitir. Broud era mais do que o filho
de sua companheira e o filho de seu coração. Brun não duvidava de que tinha sido seu
espírito que o criara e amava Broud mais do que a própria vida. O fracasso do rapaz era
como uma punhalada nele. O erro deveria ser seu. Em alguma coisa falhara, provavelmente não o tinha educado direito, nem ensinado devidamente. Havia sido condescendente
demais.
Brun esperou vários dias antes de falar com Broud. Queria dar-se tempo para pensar com
mais clareza. Broud, ansioso, sempre sobressaltado, pouco saía de sua fogueira e foi quase
com alívio que, por fim, viu Brun acenar-lhe, apesar de o coração bater forte, enquanto
seguia atrás do chefe. Não havia na da no mundo que temesse tanto quanto a raiva de Brun,
mas foi justamente a ausência de raiva que tocou sua razão.
Com gestos simples e postura comedida, Brun falou exatamente o que Broud vinha
pensando. Brun se culpou pelos erros de Broud, fazendo-o sentir- se mais envergonhado
do que nunca. O rapaz pôde compreender todo o amor de Brun e sua angústia, de uma
maneira como nunca supusera. Ali, não se achava o orgulhoso chefe a quem sempre
temera, mas um homem que o amava e que se via muito desapontado por sua causa. Broud
era só remorsos.
Percebeu, então, uma expressão dura e resoluta no olhar de Brun. Era algo que devia partir-
lhe o coração, mas os interesses do clã vinham em primeiro lugar.
- Mais um desses rompantes, Broud, só mais um, por menor que seja, e você já não será
mais o filho de minha companheira. É direito seu me substi tuir como chefe, mas antes de
confiar a direção do clã a um homem que não tem autodomínio, prefiro renegá-lo e lançar
sobre ele a maldição de morte. - Brun falava mantendo o rosto impassível. - Enquanto
não vir um sinal que me faça crer que de fato você se tornou um homem, sua capacidade
para chefiar o clã está sendo posta em dúvida. Eu o estarei observando, Broud. Mas estarei
observando também os outros caçadores. E não são apenas demonstrações públicas de
descontrole que estarei vendo; tenho de ter certeza de que você é realmente um homem em
todos os sentidos. Se tiver de escolher algum outro para chefe, você pode ficar sabendo que
seu status será para sempre o mais baixo de todos na hierarquia do clã. Será que me fiz
entender?
Broud não conseguia acreditar. Renegado? Amaldiçoado à morte? Um outro escolhido para
chefe? Para sempre ocupando a posição mais baixa entre os homens? Não. Brun não
podia estar falando sério. Mas as mandíbulas fortemente cerradas do chefe não deixavam
margens a dúvidas.
- Sim, Brun - falou Broud com a cabeça. Ele estava da cor de um cadáver.
- Os outros não precisam ficar sabendo de nada disso. Uma mudança dessas será difícil
para eles aceitarem e não quero causar nenhuma preo cupação desnecessária. Mas não
tenha a menor dúvida de que farei o que estou dizendo. Um chefe tem de pôr os interesses
do clã sempre diante dos dele. Esta é a primeira coisa que você tem de aprender. Por isso,
ter o auto- controle das ações é tão essencial a um chefe. A sobrevivência do clã é da responsabilidade dele. Um chefe tem menos liberdade do que uma mulher, Broud. Às vezes,
ele é obrigado a fazer muitas coisas que não quer. Se necessário, até mesmo renegar o filho
de sua companheira. Entendeu?
- Sim, Brun - respondeu Broud, não muito certo de que realmente tinha
compreendido. Como um chefe tem menos liberdade do que uma mulher? Era a única
pessoa que podia fazer tudo que quisesse. Que mandava em todo mundo, tanto nos homens
como nas mulheres.
- Agora vá, Broud. Quero ficar sozinho.
Muitos dias se passaram antes de Ayla poder levantar-se, e muitos outros mais, até que as
marcas arroxeadas em seu corpo passassem para um tom amarelado e por fim sumissem.
No princípio, estava tão apreensiva e com tanto medo de Broud que, cada vez que o via,
dava um pulo, assustada. Mas depois que sarou por completo, começou a perceber a
mudança na atitude dele. Broud tinha deixado de implicar com ela e censurá-la por tudo e,
sem dúvida alguma, a evitava. Depois que ela se esqueceu da dor, chegou quase a acreditar
que a surra tinha valido a pena. Desde então, Broud resolvera deixá-la em paz e isso claramente ela percebia.
Livre das hostilidades constantes do rapaz, a vida ficou bem mais fácil para Ayla. Só então
é que percebeu o estado de tensão em que vinha vivendo. Comparativamente, sentia
como se dispusesse de enorme liberdade, embora sua vida continuasse tão limitada quanto
a de qualquer outra mulher do clã. Caminhava cheia de entusiasmo, às vezes disparando em
correrias e saltos alegres. A cabeça ia erguida e os braços balançavam livremente. Até risadas em voz alta ela dava. Seu sentimento de liberdade traduzia-se em movimentos. Iza
sabia que ela estava feliz, mas era um comportamento incomum e despertava olhares
reprovadores. Exuberância demais era algo impróprio.
Também para o clã ficou evidente que Broud a evitava, o que dava muito assunto para
especulações e conjeturas. Ayla, juntando alguns gestos e pedaços surpreendidos de
conversas, chegou à conclusão de que Brun ameaçara Broud de conseqüências terríveis,
caso ele tomasse a bater nela, e disso ficou convencida depois que viu o rapaz ignorá-la,
mesmo quando provocado. A princípio, mostrou-se apenas um tanto descuidada, dando
largas a seu temperamento naturalmente expansivo, mas depois passou a fazer uma campanha sistemática,
baseada em sutis gestos de insolência. NÃO o desrespeito atrevido que motivara a surra,
mas coisinhas insignificantes, pequenas artimanhas expressamente calculadas para
aborrecê-lo. Ela o odiava, queria vingar-se dele e se sentia protegida por Brun.
Era um clã pequeno, e por mais que o rapaz tentasse evitá-la, na vida diária, sempre surgiam
ocasiões em que ele se via forçado a dirigir-se a ela. Mas Ayla tomou como norma de
conduta nunca atendê-lo prontamente. Se sou besse que ninguém estava vendo, levantava
os olhos e, com um tipo de careta de que só ela era capaz, encarava-o, deliciando-se com o
esforço que o via fazer para controlar-Se. Se houvesse gente por perto, principalmente
Brun, ela tratava de ser mais cuidadosa. Não tinha nenhum desejo de provocar a cólera do
chefe, mas passou a desdenhar a raiva de Broud e, à medida que o verão avançava, foi cada
vez se opondo a ele mais abertamente.
Somente quando ela surpreendia o olhar dele carregado de ódio e peçonha é que se punha a
duvidar se realmente estaria agindo com prudência. Os olhares estavam de tal maneira
impregnados de maldade que valiam quase como uma bofetada física. Broud a culpava
inteiramente por aquela sua posição insustentável. Se Ayla não tivesse sido tão insolente,
pensava consigo, ele não se teria posto com tanta raiva. E agora, por causa dela, tinha até
uma maldição de morte pesando sobre sua vida. Mesmo se controlando, a felicidade
exuberante de Ayla o irritava. Era mais do que evidente que a garota tinha um
comportamento escandalosamente indecoroso. Por que os outros homens não enxergavam
isso? Por que deixavam que ela passasse impune? Seu ódio era ainda maior do que antes,
mas tinha cuidado para não demonstrá-lo, se Brun estivesse por perto.
A batalha entre eles se fazia nos bastidores, e cada vez disputada com mais ardor, só que a
menina não era tão sutil quanto o imaginava. O clã inteiro não compreendia por que Brun
permitia a coisa ir avante. Mas, seguindo o exemplo do chefe, eles também não interferiam
e até permitiam à garota um certo tipo de liberdade que normalmente não admitiriam. No
entanto, isso os deixava constrangidos, homens e mulheres.
Brun tampouco aprovava o comportamento de Ayla. Nenhum daqueles estratagemas que
ela considerava como altamente sutis lhe passava despercebido e muito menos estava
gostando de ver Broud deixando a garota passar sem castigo. Insolência e insubordinação
eram duas coisas inadmissíveis, sobretudo tratando-se de mulheres. Ficava chocado de ver
uma menina opondo sua vontade à de um homem. Nenhuma mulher do clã chegaria a
cogitar de tal coisa. Estavam todas satisfeitas em seus lugares, pois a maneira de pensar delas não era uma tintura cultural, fazia parte de sua própria condição de mulher. Por instinto,
sabiam da importância que tinham para a existência dosclãs. Nem os homens estariam habilitados a fazer seus serviços como também elas Não
tinham a menor possibilidade de aprender a caçar. Suas memórias Não lhes permitiam isso.
Por que iria uma mulher esforçar-se e lutar para mudar uma condição que era nela natural?
Seria o mesmo que tentar lutar para Não comer ou respirar. Se Brun Não estivesse
absolutamente certo de Ayla ser mulher, pensaria, pelo modo de ela agir, que era homem.
Não obstante, Ayla aprendera os afazeres femininos, chegando, inclusive, a mostrar vocação para curandeira.
Por mais que isso o perturbasse, Brun se impedia de interferir, pois que estava vendo o
esforço que Broud vinha fazendo para aprender a controlar- se. A atitude desafiadora de
Ayla ajudava Broud a dominar seu gênio, coisa essencial num futuro chefe. Apesar disso,
tinha pensado seriamente em procurar um outro sucessor para ele; por outro lado, porém,
Brun se mostrava indulgente no que tocava ao filho de sua companheira. Broud era um
caçador destemido e o chefe sentia orgulho de sua coragem. Se conseguir vencer essa sua
falha, a única que se nota, dará um bom chefe, dizia consigo.
Ayla Não tinha muita consciência da atmosfera de tensão em torno dela. NÃO se lembrava
de época mais feliz em sua vida do que aquele verão. Aproveitava de sua maior liberdade
para dar seus passeios solitários, colher ervas e treinar com a funda. Não se furtava de fazer
nenhuma das tarefas que lhe eram exigidas - disso Não podia eximir-se - e uma dessas
era trazer plantas para Iza, o que lhe dava boa desculpa para ausentar-se. Iza nunca mais
havia recuperado a saúde integralmente, embora, com o calor do verão, sua tosse houvesse
diminuído. Tanto ela quanto Creb estavam preocupados com Ayla. Iza principalmente tinha
certeza de que as coisas Não podiam continuar como estavam e resolveu, numa das saídas
para coleta de plantas, ir com Ayla e aproveitar a oportunidade para ter uma conversa com
a garota.
- Uba, venha, a mãe já está pronta - disse Ayla, pegando na garotinha e firmando-a
sobre seu quadril com a capa.
Elas desceram a encosta, atravessaram o riacho e foram pela mata por uma trilha de animais
que se alargara um pouco depois que as pessoas passaram a usá-la como caminho. Ao
baterem numa clareira, Iza olhou a seu redor e se dirigiu para um grupo de árvores altas, de
flores amarelas, lembrando ásteres.
- Isso aqui são ênulas, Ayla - disse ela. - Normalmente só dão nos campos e em lugares
abertos. As folhas são grandes, ovais e pontudas na extremidade. Por cima, têm a cor
verde-escura e, embaixo, são peludas. Está vendo? - Iza estava ajoelhada, segurando uma
folha enquanto explicava. - Os veios no meio são grossos e carnudos. - E partiu uma
para mostrar.
- Estou vendo, mãe.
- Mas o que se usa desta planta são as raízes. Elas brotam uma vez por
ano, mas é melhor colher no segundo ano, quando a raíz está firme e macia. Corte em
pedaços e ferva um punhado numa pequena cuja de osso, uma quantidade que dê para
encher um pouco mais da metade da cuia. Espera-se esfriar e tomam duas cuias por dia.
Serve para acalmar e é muito bom para doenças do pulmão que fazem cuspir sangue.
Também ajuda a suar e urinar. - Iza estava sentada no chão escavando a raiz com um pau,
as mãos movendo-se rápidas, enquanto ia falando. - Pode-se também botar as raízes para
secar e depois esmigalhá-las fazendo um pó. - Retirou da terra uma certa quantidade das
plantas, metendo-as dentro de sua cesta.
Foram, então andando por um pequeno elevado no terreno, quando Iza tomou a parar. Uba
adormecera, sentindo-se confortavelmente segura junto do corpo de Ayla.
- Está vendo aquela plantinha de flores amarelas com o centro vermelho, parecendo um
funil? - disse Iza, apontando numa direção.
- Esta? - perguntou Ayla, tocando a pétala da flor.
- Sim. isso se chama mamendro negro. É uma planta muito boa, mas só as curandeiras
podem usar. NÃO serve como alimento. Possui um veneno muito perigoso.
- Qual a parte que se usa? A raíz?
- Quase tudo. Raíz, folhas e sementes. As folhas são maiores do que as flores. Nascem
alternadas no caule. Preste bem atenção Ayla. As folhas são verdes-claras e dentadas nas
beiradas. Você está vendo estes pélos que passam pelo meio? - Iza encostou o dedo na
penugem fina e Ayla veio olhar de perto. Ela pegou, então, uma folha e deu para a menina
cheirar. - Cheire.
Era um odor extremamente narcotizante.
- Esse cheiro se conserva mesmo depois das folhas secas - continuou a explicar Iza. -
Daqui a algum tempo vão estar dando uma porção de sementinhas marrons. - Cavou a
terra e botou para fora uma raiz de cor castanha, grossa e enrugada, parecendo inhame. No
ponto em que foi partida, surgiu seu interior branco. - Cada parte da planta tem um uso
diferente. Mas todas servem para fazer remédios contra dor. Podem ser usadas para fazer
chá. Mas é muito forte, não se deve abusar. Podem ser usadas também como loção para
aplicar diretamente sobre a pele. Acaba com espasmos musculares, acainia, relaxa e faz
dormir.
Iza colheu uma boa quantidade e se encaminhou para um lugar perto, onde cresciam
malvas. Apanhou um monte de flores brotando de caules lisos. Eram rosa, vermelhas,
brancas e amarelas.
- As malvas servem para aliviar irritações de pele, machucados, feri das e inflamações de
garganta. As flores tiram dores, mas fazem dormir. As raízes são boas para pôr em feridas. Na
sua perna, eu usei raíz de malva, Ayla.
A menina passou a mão pela coxa, sentindo a cicatriz, pensando de repente no que teria sido
dela, se não fosse Iza. Ficaram, então andando por algum tempo em silêncio, gozando o
calor do sol e o prazer da companhia. Mas os olhos de Iza não paravam de vasculhar o
terreno. A pastagem, batendo à altura do peito, estava dourada e cheia de espigas. Iza
olhou para o campo com as plantas vergando-se ao peso das espigas maduras e ondulando
suavemente com a brisa quente. Vendo algo que lhe interessava, foi caminhando direto,
entre os caules, até chegar a uma área de centeio, cujas espigas estavam numa cor roxa,
quase preta.
- Ay - disse, apontando para um dos pés - normalmente o centeio não é assim. As
espigas estão doentes, mas tivemos sorte de achá-las. Quando estão dessa maneira, a gente
diz que estão com cravagem. Cheire para sentir.
Que cheiro horrível, parece peixe podre.
- Mas nessas espigas doentes existe uma mágica especial para mulher grávida. Quando o
parto está custando muito, o remédio feito delas faz o bebê nascer mais depressa. Provoca
contrações e serve para dar início ao trabalho de parto. Além disso, têm poder para fazer
abortar. O que é muito importante, no caso de mulheres que já tiveram problemas com
gravidez ou que ainda estão amamentando. A mulher Não deve ter um filho atrás do outro.
É muito duro para ela. Principalmente, se acabar o leite, quem vai dar de mamar ao filho
dela? Uma quantidade de crianças morre ao nascer ou no primeiro ano de vida. A mãe tem
de cuidar mais daqueles que já estão vivos e com maior chance de ser criados. Existem
plantas que fazem a mãe perder o bebê, se ela precisar. A cravagem ou o azevém espigado é
apenas uma delas. Serve também para depois do parto. Ajuda a expulsar o sangue velho e a
voltar os órgãos para o lugar. Tem gosto ruim mas não tão ruim quanto o cheiro e pode ser
muito útil, quando usado com prudência. Em quantidade, pode provocar dores de barriga
muito fortes, vômitos e até a morte.
- É como o meimendro. Tanto pode fazer mal como bem - comentou Ayla.
- Isso quase sempre é verdade. Às vezes, as plantas mais venenosas são as que produzem
os remédios mais fortes e melhores, se você souber usá-las.
No caminho de volta ao riacho, Ayla parou e apontou para uma plantinha de flores num
tom vermelho-azulado, mais ou menos de 30 centímetros de altura.
- Ali estão alguns hissopos. O chá deles é bom para tosse quando se está gripado, não é?
- Sim. E serve também para dar um sabor muito perfumado a outros chás. . . Por que não
pega um pouco?
Ayla pegou um punhado, arrancando pelas raízes, e foi retirando as folhas miúdas
enquanto caminhava.
- Ayla - falou Iza - essas plantas tornam a brotar todos os anos. Se você tirar com as
raízes, no próximo verão não haverá mais delas nesse lugar. Quando não se precisa das
raízes, o melhor é apanhar só as folhas.
- Não tinha pensado nisso disse Ayla, arrependida. - Daqui por diante não vou fazer
mais.
- Mesmo quando se precisa das raízes, não se deve apanhar todas num único lugar.
Sempre devem sobrar algumas para brotar novamente.
Elas seguiram por um outro caminho que levava também ao riacho, mas, ao chegarem
numa área pantanosa, Iza apontou para mais uma variedade de plantas.
- Aquelas lá são juncos doces. Parecem um pouco com íris, mas não têm nada a ver. A
loção feita com suas raízes serve para aliviar dor de queimaduras, e mastigá-las, às vezes,
também ajuda na dor de dente. Mas você tem de ter muito cuidado quando for dar para uma
mulher grávida. Sei de casos de mulheres que perderam filhos porque engoliram o caldo
dessa planta. Se bem que uma vez eu dei de propósito e não adiantou nada. Podem também
ajudar em problemas intestinais, principalmente de prisão de ventre. É fácil você ver a
diferença entre uma e outra. Veja a batata que ela tem, parecendo um bulbo - disse Iza,
apontando. - O cheiro dela também é muito mais for te do que o da íris.
As duas pararam e descansaram à sombra de um bordo. Ayla pegou uma das enormes
folhas da árvore, enrolou-a no feitio de uma cornucópia, em brulhando a parte de baixo no
polegar e tomando nela um gole de água fresca do riacho. Antes de botar fora o seu
arremedo de copo, trouxe um gole para Iza.
- Ayla - começou Iza a falar, depois que acabou de beber. - Bem, você sabe, Broud é
homem. Ele tem direito de mandar em você e você devia fazer tudo o que ele ordenar.
- Mas eu faço tudo que ele manda - respondeu, defendendo-se.
Iza fez que não com a cabeça.
- Mas você não faz do jeito que deveria. Você provoca, desafia. Chegará o tempo em que
vai arrepender-se, Ayla. Um dia, ele será o chefe do clã Você é obrigada a fazer o que os
homens mandam. Todos eles. Você é mulher, não tem escolha.
- Por que os homens têm direito de mandar nas mulheres? O que eles têm de melhor?
Nem bebês podem ter! - gesticulou ela, com amargura e espírito de rebeldia.
- Porque é assim que é. Sempre foi assim nos clã e você agora faz par te de um, Ayla. Você
é minha filha. Deve comportar-se como uma menina do clã.
Ayla baixou a cabeça, sentindo-se culpada. Iza tinha razão. Ela provocava Broud. O que teria acontecido, se Iza não a tivesse encontrado? Se Brun não tivesse
permitido que ela ficasse? Se Creb não fizesse dela um membro do clã. Olhava para Iza, a
única mãe de quem se lembrava. A mulher tinha envelhecido. Estava magra e cansada. A
carne de seus braços, outrora musculosos, pendia dos ossos, e os cabelos, antes castanhos,
estavam praticamente brancos. Creb que, no princípio, parecia tão mais velho do que ela, na
verdade, pouco mudara. Era Iza quem parecia velha, mais ainda do que Creb. Ayla se
preocupava com ela. Mas sempre que falava qualquer coisa neste sentido, Iza desconversava.
- Você tem razão. NÃO tenho tratado Broud como devia. Vou fazer tu do para agradá-lo.
Nesse instante, Uba, que se achava no colo de Ayla, começou a contorcer-se.
- Uba tem fome - falou com gestos, metendo a munheca rechonchuda na boca.
Iza olhou para o céu.
- Está ficando tarde e Uba precisa comer. É melhor começarmos a voltar.
Seria bom se Iza estivesse bem de saúde para sair comigo mais vezes, pensou Ayla,
enquanto caminhavam, apressadas, de volta à caverna. Só assim poderíamos passar mais
tempo uma com a outra, e quando ela vem eu aprendo muito mais.
Embora Ayla tivesse vontade de manter seu propósito de agradar Broud, isso se mostrou
difícil de ser cumprido. Ela já se habituara a não lhe prestar atenção, sabendo que, se não
corresse prontamente para servi-lo, ele mesmo faria o que queria ou então procuraria por
outra mulher. Seus olhares rancorosos não lhe metiam medo, sentia-se a salvo de sua
cólera. Já não o provocava mais de propósito, mas a impertinência tornara-se nela um hábito. Há muito que o olhava diretamente, ao invés de baixar a cabeça; que o ignorava, ao
invés de correr para comprir suas ordens. O comportamento já fora automatizado. Seu
desdém por ele o irritava mais do que as investidas provocativas. O rapaz percebia que ela
não o respeitava mais. No entanto, não era o respeito que Ayla havia perdido, mas sim o
medo.
A época em que os ventos frios e as pesadas nevascas forçavam o clã a ficar dentro da
caverna estava de novo por chegar. Ayla detestava ver as folhas começando a mudar de cor,
mas o brilhante espetáculo do Outono sempre a deixava fascinada, com suas belas colheitas
de frutas e de nozes que mantinham as mulheres constantemente ocupadas. Na correria para
armazenar as colheitas do final do outono, ela não teve muito tempo para subir a seu
esconderijo. O tempo passara tão rapidamente que só foi perceber quando já estava
próximo do fim da estação.
Por fim, a tranquilidade foi voltando, a garota, certo dia, atou sua cesta às costas, passou a
mão no pau de cavar e subiu novamente até sua clareira secreta, pensando em colher
aveias. Logo que chegou, encolheu os ombros, dei xando a cesta escorregar, e foi buscar a
funda guardada na gruta. Havia aparelhado sua casa de brinquedo com alguns instrumentos
que fabricara e lá botou também uma velha pele de dormir. Pegou uma cuia de vidoeiro que
estava sobre uma tábua tosca apoiada sobre duas grandes pedras, onde também havia
algumas conchas servindo de pratos, uma faca de pedra e umas pedras menores que usava
para quebrar nozes. Em seguida, retirou a funda de uma cesta de vime tampada. Depois de
tomar um gole de água na nascente, foi caminhando ao longo do riacho, à procura de
pedras arredondadas.
Fez alguns arremessos treinando a pontaria. Vorn não acerta tanto no alvo quanto eu,
pensou, satisfeita, ao ver as pedras atingirem os lugares mirados. Depois de certo tempo,
cansou-se do esporte, botou a funda e as pedras para o lado e se pôs a catar as avelãs
espalhadas pelo chão, sob os espessos arbustos, velhos e nododos. Pensava no quanto a
vida podia ser maravilhosa. Uba crescia, forte e saudável. Iza parecia bem melhor. O
sofrimento e as dores de Creb diminuíram bastante, e ela adorava os seus passeios com ele,
capengando a seu lado, ao longo do riacho. A funda era outra coisa que adorava e se tinha
tornado uma exímia atiradora. Acertar o poste, ou as pedras e galhos que mirava como alvo,
ficara quase fácil demais; no entanto, o fato de a arma ser proibida ainda continuava
fazendo dela um esporte excitante. E o melhor de tudo, Broud nunca mais voltara a
incomodá-la. Enquanto enchia a cesta de aveias, achava que nada no mundo poderia vir
estragar sua felicidade.
As folhas secas e marrons, apanhadas pelos ventos, se soltavam das árvores e volteavam no
ar com seus parceiros invisíveis para depois cair suavemente no chão. Cobriam as nozes
ainda espalhadas sob as árvores de onde haviam despencado maduras. As frutas que Não
eram apanhadas para ir encher os estoques de inverno pendiam pesadas e polpudas nos
galhos nus. As estepes a leste eram um mar dourado de espigas ondulando ao vento numa
imitação das ondas espumosas das águas cinzentas ao sul. E as últimas ameixas e uvas,
regurgitando de caldo, pediam para ser colhidas.
Os homens se achavam numa de suas reuniões usuais, planejando uma das últimas caçadas
da estação. Discutiam os tipos de jornadas possíveis desde manhã cedo, e Broud, em certo
momento, foi mandado para dar ordem a alguma mulher de lhes trazer água. Ele viu Ayla
sentada perto da entrada da caverna, com paus e pedaços de couro espalhados a seu redor.
Ela construía engradados para pendurar cachos de uva que ficariam secando até se
transformarem em passas.
- Ayla! Traga água - ordenou Broud, por meio de sinais e pronto para voltar.
Ela estava num momento crítico da amarração, apoiando o engradado no colo. Se se
mexesse naquele instante, o trabalho desmontaria e seria obrigada a começar tudo de novo.
Ela hesitou, olhando para ver se havia alguma outra mulher por perto. Em seguida, com um
suspiro, relutante, levantou-se devagar e foi procurar um odre.
O rapaz lutava contra a raiva que logo se apossara dele, vendo-a visivelmente relutante em
obedecê-lo. Tentava dominar a fúria, enquanto olhava à procura de alguma outra mulher
que lhe atendesse o pedido com a presteza exigida. De repente, mudou de idéia. Estreitando
os olhos, encarou Ayla que acabava de sair. Quem lhe deu o direito de ser insolente? Será
que Não sou um homem? Não é dever dela obedecer-me? Brun nunca me disse que eu tinha de agüentar falta de respeito. Ele Não me pode lançar a maldição de morte, só por
obrigar esta menina a fazer o que se espera dela. Que espéce de chefe é esse que deixa uma
mulher desafiá-lo? Alguma coisa estalava dentro dele. Ela fora longe demais no seu
descaramento! Dessa vez, Não vai passar impune- mente. Terá de obedecer de qualquer
jeito!
Todos esses pensamentos passaram em sua cabeça na fração de segundo que ele levou para
alcançá-la. No momento em que ela se ergueu, a sua pesada munheca pegou-a de surpresa,
batendo-lhe em cheio. O olhar dela, atônito, imediatamente encheu-se de ódio. Ela olhou ao
redor, viu que Brun observava, mas algo em seu rosto impassível lhe dizia para Não
contar com qualquer assistência da parte dele. A cólera nos olhos de Broud transformara a
raiva dela em medo, mas ele também lhe havia surpreendido aquele instante de raiva que
fez ressurgir seu ódio desmedido por ela. Como ousava desafiá-lo!
Rapidamente, Ayla arrastou-se para o lado, fugindo do próximo soco e correndo à caverna
para buscar o odre. Broud, com as maos fechadas, seguiu-a com os olhos, lutando para
manter a fúria dentro de limites controláveis. Olhou na direção dos homens, vendo Brun
impassível. Nele, Não havia encorajamento, mas também Não se percebia reprovação.
Ayla correu ao lago, encheu a sacola de água e a suspendeu às costas, enquanto Broud a
observava, sem deixar de notar-lhe a presteza e a expressão medrosa, temendo receber novo
soco. Com isso, pôde controlar melhor a raiva. Tenho sido muito mole com ela, pensou o
rapaz.
Ao passar por ele, curvada com o peso da sacola, recebeu outro murro que por pouco Não a
derrubou novamente. O rosto dela ficou rubro de raiva. Ela endireitou o corpo, lançou-lhe
um rápido olhar carregado de ódio e diminuiu o passo. Ele foi atrás dela. Um murro no
ombro obrigou-a a encolher o corpo. O clã agora observava. Ayla olhou na direção dos
homens. A expressão dura de Brun preocupava-a mais do que os punhos cerrados de
Broud.
- Mas faço tudo o que ele quer. Nunca deixo de cumprir as ordens
Ela correu, cobrindo o pequeno espaço que a separava deles. Ajoelhou-se e começou a
despejar água numa cuja, conservando sempre a cabeça abaixada. Broud vinha atrás, sem
pressa, receoso da reação de Brun.
- Crug dizia que viu uma manada indo para o norte, Broud - mencionou Brun com ar
negligente, depois de o rapaz se ter juntado ao grupo.
Tudo certo, Brun não estava zangado com ele! Claro, por que iria estar? Tinha feito o que
devia. Não tinha por que falar, era apenas o caso de um homem disciplinando uma mulher
que estava precisando de uma lição. Seu suspiro de alívio quase chegou a ser ouvido.
Depois de os homens terem acabado de beber, Ayla voltou à caverna. A maioria das
pessoas havia voltado para o que estavam fazendo, menos Creb que, de pé na entrada,
observava-a.
- Creb! Broud quase me surrou outra vez - gesticulou ela, correndo em sua direção Mas
o sorriso que tinha no rosto desapareceu ao levantar os olhos e vê-lo com uma expressão
que nunca vira antes.
- Você recebeu apenas o que merecia - disse ele, com a cara sombria e franzida. O olhar
era duríssimo. Depois, deu-lhe as costas e se encaminhou para sua fogueira.
Por que Creb está furioso comigo?, perguntou-se Ayla.
Mais tarde naquele dia, timidamente Ayla aproximou-se do velho feiti ceiro com os braços
estendidos, prontos para abraçá-lo. Um gesto que até então nunca deixara de tocá-lo no
coração Só que desta vez Não houve a me nor correspondência. Nem mesmo um encolher
de ombros ele se deu o trabalho de fazer. Apenas ficou olhando a distância, frio,
inteiramente arredio. Ela, então, retraiu-se.
- NÃO me aborreça. Vá procurar alguma coisa para fazer, menina. O Mog-ur está
meditando. Ele não tem tempo para perder com mulheres insolentes - disse ele, com
gestos ríspidos e impacientes.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Ela estava magoada e, de repente, sentiu medo
do feiticeiro. Aquele Não era o velho Creb que conhecia e amava. Ali estava o Mog-ur.
Pela primeira vez, desde que fora viver com o clã, entendeu por que todos se mantinham a
distância, num medo reverente ao grande Mog-ur. Ele se afastou dela. Bastou um só
olhar e uns tantos gestos para lhe dar a entender o quanto a reprovava, fazendo-a sentir rejeitada de uma maneira como nunca pudera imaginar. Ele Não gostava mais dela e tudo o que
queria era abraçá-lo e lhe dizer que o amava, mas tinha medo. Foi então arrastando-se na
direção de Iza.
- Por que Creb está tão zangado comigo?
- Você foi avisada, Ayla, eu lhe disse que fizesse tudo o que Broud mandasse. Ele é
homem. Tem direito de mandar em você - respondeu Iza, com brandura.
dele.
- Mas você reage. Você o desafia. Bem sabe que está sendo insolente com ele. Não se
comporta com uma menina bem-educada. E isto reflete sobre mim e Creb. Ele se sente
como se não a tivesse educado direito, achando que por ter dado a você muita liberdade e
deixá-la agir com ele de uma determinada maneira, você acabou pensando que tinha o
direito de fazer o mesmo com as outras pessoas. Brun também não está nada satisfeito
com você, e Creb sabe disso. Você corre o tempo todo. Só crianças é que correm, não meninas do tamanho de uma mulher. Você faz esses barulhos na garganta. Você não se mexe
rápido quando lhe mandam fazer uma coisa. Todo mundo está reprovando seu
comportamento, Ayla. Você envergonhou Creb.
- Eu não sabia que era tão má assim, Iza - gesticulou Ayla. - Não estava querendo ser
má, simplesmente não tinha pensado nessas coisas.
- Mas deveria. Está muito grande para se portar como criança.
- É que Broud se mostra sempre tão mesquinho comigo e ele me bateu com muita força
daquela vez.
- Pouco importa se ele é ou não mesquinho. Ele pode ser mesquinho o quanto quiser. Está
no seu direito. É homem. Pode bater em você quando quiser e do jeito que bem entender.
Algum dia será o chefe do clã, e você deve obedecê-lo, tem de fazer exatamente o que ele
diz e no momento em que ele mandar. Não há outro jeito, você não tem escolha - explicou
Iza. A garota olhou para Ayla que tinha o rosto arrasado. Por que será tão difícil para ela?,
perguntava-se. Sentia pena e ao mesmo tempo simpatia pela menina, com toda aquela
dificuldade para aceitar simples fatos da vida. - Já está ficando tarde, ayla. Vá para a
cama.
A menina foi para o seu lugar de dormir, mas levou muito tempo até conseguir pegar no
sono. Mexia-se e se virava de um lado para outro, dormindo mal, até que por fim acabou
vencida por um sono profundo. Acordou cedo, pegou a cesta e o pau de cavar, saindo antes
da primeira refeição. Queria ficar sozinha para pensar. Subiu ao esconderijo na clareira e
pegou a funda, mas não estava com muito espírito para treinar.
Tudo é culpa de Broud, pensou. Por que tem ele de ficar sempre implicando comigo? O
que foi que lhe fiz? Nunca gostou de mim. E daí em ser homem, que importância há? Por
que os homens são melhores? Pouco estou ligando se vai ser ou não chefe do clã. Nem tão
superior ele é. NÃO chega nem a ser tão bom na funda quanto Zoug. Posso ser tão boa
quanto ele. Já sou até melhor do que Vorn que perde muito mais tiros do que eu, e Broud,
prova velmente, também deve perder de mim. Errou todos os arremessos quando foi exibir-
se para Vorn.
Furiosa, pôs-se a atirar pedras com a funda. Uma foi bater numa moita, obrigando um sonolento porco-espinho a sair de seu buraco. Esse pequeno animal noturno
raramente era apanhado. Todo mundo havia feito o maior espalhafato quando Vorn
matou um, lembrou-se Ayla. Se eu quisesse também poderia fazer a mesma coisa. O animal
subia por uma colina arenosa perto do riacho com os seus espinhos todos eriçados. Ayla
ajustou uma pedra na funda, fez a pontaria e atirou. O porco-espinho no seu passo vagaroso
era um alvo fácil e tombou no chão.
Ela, satisfeita consigo, correu em sua direção. Entretanto, ao tocá-lo, viu que o animal Não
estava morto, apenas tonto. Sentiu-lhe o coração ainda batendo e o sangue escorrendo do
ferimento na cabeça. Seu primeiro impulso foi o de levá-lo para a caverna, como fizera
com tantos outros bichos. Já Não estava sentindo nenhuma satisfação, ao contrário, sentia-
se horrível. Por que fui feri-lo? Eu Não queria fazer isso. Não posso levá-lo para a caverna,
Iza iria logo perceber que foi alvejado com uma pedra. Já cansou de ver animais mortos por
pedras atiradas com fundas.
Ficou com os olhos parados no animal. Nunca vou poder caçar, concluiu. Mesmo que
matasse um animal, jamais vou poder levá-lo para casa. De que adiantou treinar tanto? Se
Creb já está furioso comigo, quanto mais então se soubesse disso. E Brun, o que faria? Se
Não posso nem tocar numa arma, pior ainda seria usá-la. Será que Brun me expulsará?
Ayla se via inteiramente vencida pela culpa e o medo. Para onde eu iria? Nunca vou
conseguir deixar Iza, Creb e Uba. E quem tomaria conta de mim? Não quero ir embora,
pensou, rompendo em lágrimas.
Tenho sido uma menina má. Muito má mesmo, e Creb está com muita raiva de mim. Mas
eu gosto dele, Não quero que fique me odiando. Oh, por que está tão furioso assim?
Lágrimas rolavam por seu rostinho infeliz. Deitou-se no chão chorando todas as suas
mágoas. Depois de chorar tudo que tinha para lamentar, sentou-se, enxugou o nariz com as
costas da mão, enquanto os ombros se sacudiam com os soluços que de vez em quando
voltavam. Nunca mais vou ser má. Quero ser boa. Vou fazer tudo que Broud quiser, seja lá
o que for. E nunca mais vou tocar numa funda. Para reforçar o propósito, atirou a arma para
o meio de uns arbustos e correu a pegar a cesta, descendo de volta à caverna. Iza que,
andava procurando por ela, imediatamente viu sua chegada.
- Onde você esteve? Passou a manhã inteira fora e volta com a cesta vazia?
- Estive pensando, mãe - respondeu, olhando para Iza, séria, com ar convicto. - Você
tem razão. Tenho sido uma menina muito má, mas daqui por diante Não serei mais. Vou
fazer tudo que Broud quiser. E também vou comportar-me direito. Não correr mais e
aquelas outras coisas que você falou. Acha que Creb vai voltar a gostar de mim, se eu ficar
muito, muito boa mesmo?
- Tenho certeza de que vai - respondeu Iza, fazendo um carinho nela. Pobrezinha, todas
as vezes que acha que Creb não gosta mais dela, fica com aquela doença que faz os olhos
aguarem, pensava Iza, olhando para Ayla, ainda com o rosto riscado de lágrimas e os
olhos vermelhos e inchados. Seu coração sofria pela menina. Deve ser muito difícil para
Ayla, sua espécie é diferente; mas, talvez daqui para a frente, ela vá melhorar.
Inacreditável a mudança processada em Ayla. Era outra pessoa. Estava arrependida, dócil
e pronta no atendimento das ordens de Broud. Os homens estavam convencidos de que a
transformação se devia a uma boa disciplina. Com ar de quem sabia o que diziam, punham-
se a acenar com as cabeças afirmativamente. Ali se achava a prova viva do que sempre
afirmaram: tolerancia demais só serve para fazer as mulheres preguiçosas e insolentes. A
mulher precisa de um pulso forte para guiá-la com firmeza. São seres fracos, voluntariosos,
sem o autodomínio dos homens. Por isso, necessitavam deles para comandá-las e mantê-
las sob controle, de modo a ser membros produtivos do clã e contribuir para sua
sobrevivência.
Pouco importava o fato de Ayla Não passar de uma menina e nem ser genuinamente do clã.
Já tinha praticamente idade para ser mulher, era mais alta do que qualquer um, e ainda por
cima fêmea. Quando os homens levavam muito a sério suas idéias, eram as mulheres que
sofriam as conseqüências. Os homens do clã Não desejavam ser culpados de negligência.
Broud, entretanto, por vingança, adotou em cheio a filosofia masculina. Embora o controle
exercido sobre Oga fosse extremamente rígido, esse Não era nada em comparação com as
agressões sofridas por Ayla. Se já era duro antes, agora tornara-se duas vezes mais duro.
Sempre a estava castigando, perseguindo, importunando-a com todo tipo de serviços
insignificantes que a obrigavam a largar imediatamente o que estivesse fazendo para
atender suas exigências. O menor - ou nenhum - deslize era punido com murros, e ele
sentia prazer nisso. A garota havia ameaçado a virilidade dele e agora pagava por seu
delito. Foram tantas as vezes que ela lhe resistira, desafiara-o, e tantas as que ele se viu
obrigado a conter-se para Não lhe bater. Agora chegara sua vez. Ele conseguira dobrá-la à
sua vontade e iria mantê-la sempre assim.
Ayla fazia o possível para agradá-lo. Tentava até mesmo adivinhar-lhe os desejos, mas o
tiro saía pela culatra, e era castigada por querer supor coisas que ele desejava. No momento
em que a menina punha os pés para fora das fronteiras de Creb, ele já estava esperando e
ela Não podia, sem uma boa razão, permanecer encerrada nos domínios privados do
feiticeiro. Estavam na última arrancada dos preparativos para o inverno. Havia muita coisa
ainda a
ser feita para pôr o clã a salvo do frio que rapidamente vinha se aproximando. O estoque
medicinal de Iza estava basicamente formado, de modo que Não havia muita desculpa para
Ayla afastar-se dos arredores da caverna. Broud cansava-a o dia inteiro e ela, de noite, caía
exausta na cama.
Iza estava certa de que a mudança tinha muito menos a ver com Broud do que esse
imaginava. Na verdade, achava-se ligada ao amor que Ayla devotava a Creb e Não ao
medo que sentia por Broud. Iza contara a seu germano que Ayla voltara a sofrer daquela
sua particularíssima doença que lhe vinha quando imaginava que ele Não gostava mais
dela.
- Bom, Iza, você sabe, ela foi longe demais. Era preciso fazer com que sentisse isso. Se
Broud Não tivesse voltado a lhe impor disciplina, Brun o teria feito. E poderia ser muito
pior. A única coisa que Broud pode fazer é tornar a vida dela infeliz, já Brun pode
expulsá-la - respondeu Creb. Mas a conversa fez com que ele se pusesse a especular sobre
a força do amor, um poder mais forte do que o medo, e esse foi tema de suas meditações
por vários dias. Quase imediatamente, abrandou sua atitude em relação à garota. Era tudo o
que podia fazer para preservar um pouco daquele comportamento distante e indiferente que
vinha mantendo até então.
As primeiras neves a cair eram desfeitas por aguaceiros que, nas frias temperaturas do
entardecer, transformavam-se em chuvas geladas, às vezes misturadas com um pouco de
neve. A luz da manhã encontrava as poças de água espelhadas com estilhaços de gelo -
prenunciando um frio ainda mais intenso
- que só iriam derreter, se os caprichos do vento o levassem a soprar do sul e o sol
decidisse impor sua autoridade. Durante todo esse indeciso período de transição, dos
últimos dias de Outono aos primeiros do inverno, Ayla nunca faltou com a devida
obediência feminina. Condescendia em fazer qualquer dos absurdos que desse na veneta de
Broud, corria a seu primeiro chamado, baixava a cabeça submissamente, Não ria, nem
mesmo chegava a sorrir, mostrando-se de uma passividade total, mas isso Não lhe era fácil.
Apesar de resistir, tentava convencer-se de que estava errada e forçava-se, inclusive, a ser
mais dócil, só que começou a desabar sob o peso de tamanha submissão.
Emagreceu, perdeu o apetite, sempre silenciosa e submissa até mesmo quando se achava
na fogueira de Creb. Nem Uba conseguia alegrá-la, em bora quase nunca deixasse de pegar
a garotinha nos braços, quando à noite voltava a casa, ficando com ela, até que as duas
caíssem no sono. Iza estava preocupada e, numa manhã de sol brilhante, após uma véspera
chuvosa e fria, ela resolveu que já era tempo de proporcionar a Ayla uma folga antes que o
inverno fechasse totalmente seu cerco.
- Ayla - disse Iza em voz alta, logo que puseram os pés do lado de fora da caverna,
antes de Broud ter oportunidade de aparecer com algumas de suas exigências - estava
fazendo uma vistoria nos meus medicamentos e vi
que Não existe nenhum galho de amora branca que é muito bom para dor de barriga. Não
vai ser difícil de você reconhecer a planta. Ela é do tipo arbusto e os galhos estão sem
folhas e cobertos por amoras brancas.
O que Iza Não disse é que tinha muitos outros remédios armazenados que também serviam
para dor de barriga. Broud franziu a cara ao ver Ayla entrar na caverna e pegar sua cesta
de colher. Mas ele nada podia fazer, apanhar plantas para iza era bem mais importante do
que botar Ayla trazendo-lhe água, chá, pedaços de carne, as pemeiras de pele que
propositadamente esquecla de enrolar nas pernas, o capuz para a cabeça, alguma fruta e até
pedras do riacho para quebrar nozes, pois Não simpatizava com as que estavam à mão.
Enfim, qualquer bobagem inconseqüente que lhe ocorresse mandá-la fazer. O rapaz se
afastou num passo muito empertigado ao ver Ayla saindo da caverna com a cesta e o pau
de cavar.
Ayla imediatamente foi para a floresta, agradecendo a Iza aquela chance de poder ficar
sozinha. la mirando ao redor, enquanto caminhava, com a cabeça longe das amoras brancas.
Não prestava a mínima atenção no caminho e nem percebeu que seus passos a levavam ao
longo do pequeno riacho, subindo para os altiplanos musgosos, onde as águas
despencavam em meio a um véu de neblina. Sem se dar conta, subia a encosta íngreme até
que se encontrou na clareira no alto da montanha, por cima da caverna. Nunca voltara lá,
desde que ferira o porco-espinho.
Perdida em pensamento, sentou-se na margem do riacho, atirando pedrinhas na água. Fazia
frio. Nos lugares mais elevados, a chuva do dia anterior veio na forma de neve. Um espesso
tapete branco cobria o terreno da clareira e das passagens entre as árvores, manchadas de
neve. A atmosfera parada resplandecia na claridade que conjugava o brilho da neve com
milhares de minúsculos cristais refletindo o sol luminoso num céu tão azul que quase
parecia vermelho. Mas Ayla Não tinha olhos para a serena beleza da paisagem invernal nos
seus primeiros esplendores. Essa só fazia lembrá-la de que, em breve, o clã estaria
confinado à caverna e de que, até a primavera, ela não teria jeito de escapar de Broud. À
medida que o sol subia no céu, blocos de neve iam des pencando inesperada e ruidosamente
no chao sob as árvores.
O longo e frio inverno assomava lugubremente à frente, com Broud caçando-a dia após
dia. Simplesmente nunca vou satisfazê-lo, pensou. Pouco importa o que eu fizer ou quanto
eu tentar, nada vai adiantar. O que posso fazer mais do que já faço? Seus olhos casualmente
bateram num caminho limpo de neve, lá estava uma couraça meio esfarrapada e alguns
espinhos espalhados, era tudo o que restara do porco-espinho. Uma hiena deve tê-lo
encontrado, disse consigo- Ou então um carcaju. Com uma pontada de remorso, lembrou-
se do dia em que o acertara. Nunca devia ter aprendido a atirar com funda. Foi errado. Creb
ficaria furioso e Broud. . . bem, Broud Não ficaria furioso e sim
alegre se soubesse. Esta seria uma boa desculpa para me bater. Iria adorar se soubesse. Só
que Não sabe e nunca irá descobrir. O pensamento lhe deu algum prazer. Era algo que ela
fizera escondido de Broud e que lhe daria bons motivos para castigá-la. Sentiu vontade de
fazer alguma coisa, como atirar com a funda, algo que concretizasse seu frustrado sonho de
rebeldia.
Lembrou-se de ter jogado a funda debaixo de uma moita de plantas e foi procurá-la.
Encontrou-a sob uns arbustos. Estava úmida, mas mesmo exposta ao tempo Não ficou
estragada. Acariciava-a, gostando da sensação do couro macio e liso. Pensou na primeira
vez em que havia segurado numa, sorrindo à lembrança de Broud todo encolhido diante da
raiva de Brun por ele ter metido a mão em Zoug. Ela Não era a única a provocar a fúria
de Broud.
Mas só comigo pode fazer o que quer, pensou, com amargura. Simplesmente porque sou
mulher. Brun ficou com raiva quando ele acertou Zoug, mas em mim Broud pode bater
quando e como quiser que ele pouco está ligando. Não, isso Não é de todo verdade,
admitiu. Iza disse que foi Brun quem arrastou Broud para o lado para que ele parasse de
me espancar. E quando Brun está por perto, ele Não me bate muito. Se ele só batesse,
mas me deixasse em paz de vez em quando, eu nem me importava.
Ela continuava atirando pedrinhas à água e viu, sem perceber, que tinha posto uma na
funda. Sorriu, olhando para uma folha murcha e sozinha, pendurando-se na ponta de um
pequeno galho. Fez a pontaria e atirou. Satisfeita e orgulhosa, viu que a pedra arrancara a
folha da árvore. Apanhou, então, mais pedras, levantou-se e se dirigiu para o meio da
clareira e deu alguns tiros. Ainda posso acertar no que quero, mas e daí? Nunca cheguei
nem a atirar em alguma coisa movendo-se. O porco-espinho Não conta. Estava quase
parado. Não sei nem se conseguiria e nem se sou capaz de aprender a caçar. . . caçar de
verdade. Mas de que adiantaria? Não poderia mesmo levar nada para a caverna. Tudo o
que faço é facilitar o serviço para hienas, lobos e carcajus, logo para esses que roubam
tanta comida nossa.
A caça e qualquer bicho que matavam eram tão importantes para o clã que as pessoas
estavam sempre em guarda contra os animais predadores. Não apenas contra os grandes
felinos, mas também contra manadas de lobos e de hienas que, às vezes, arrebatavam
repentinamente o animal das mãos dos caça dores. Além disso, existiam tipos de hienas
sorrateiras ou traiçoeiros carcajus que estavam sempre rondando por perto das carnes postas
para secar, ou tentando penetrar nos depósitos de comida. Ayla Não podia aceitar a idéia
de contribuir para a sobrevivência de seus competidores.
Nem mesmo ferido, Brun deixou que eu levasse para a caverna um filhote de lobo e os
caçadores estão sempre matando os comedores de carne, mesmo que a gente Não tenha
necessidade de suas peles. Esses bichos estão sempre nos dando trabalho. O pensamento
ficou gravado nela, enquanto outra
idéia começava a ganhar forma. Com exceção daqueles que são muito grandes, todos os
comedores de carne podem ser mortos com funda. Lembro de que Zoug disse a Vorn que
era melhor usar a funda em certas ocasiões do que chegar perto do animal.
Ayla se lembrava bem do dia em que viu Zoug exaltando as virtudes da arma, na qual era
exímio atirador. É verdade que com uma funda, o caçador não precisa chegar perto de
garras e presas afiadas, só que Zoug se esqueceu de dizer que, quando o caçador perde o
tiro, ele, às vezes, está frente a frente com um lobo ou com um lince, sem nenhuma outra
arma para apoiá-lo. Mas Zoug também deixou bem claro que seria uma imprudência
aventurar- se com animais grandes.
E se eu caçasse só comedores de carne? Nunca comemos esses animais, assim não seria
desperdício, mesmo que depois a carniça ficasse para os abutres. Os caçadores estão
cansados de fazer isso.
Mas o que estou pensando? Ela balançou a cabeça, como para espantar um pensamento
vergonhoso. Sou mulher, não me é permitido caçar. Se nem mesmo encostar amão numa
arma eu posso, quanto mais isso! Mas já usei uma funda, apesar de não ser permitido,
pensou, cheia de ousadia. Se matasse um carcaju, uma raposa ou qualquer outra coisa para
que nunca mais venha nos roubar, estaria fazendo um benefício ao clã. Essas hienas
horrorosas. . . é bem possível que eu mate uma delas qualquer dia desses. Imagine só o que
iria acontecer. Ayla já se via caçando todos aqueles predadores cheios de ardis e manhas.
Havia treinado o tiro com funda durante todo o verão. Apesar de que fosse, então, só um
esporte para ela, compreendia e respeitava qualquer arma para saber que seu verdadeiro
propósito estava não em exercícios de tiro ao alvo, mas na caça em si mesma. Sentia que, se
não houvesse maiores desafios, bem depressa deixaria de existir graça em atingir postes,
galhos ou pedras. Ademais, o sentido da competição pela competição só apareceu no
mundo depois que a Terra já estava dominada por civilizações que há muito não
precisavam mais da caça como meio de subsistência. A competição no pensamento dos clãs
tinha o propósito exclusivo de aprimorar um tipo de destreza ligado à sobrevivência.
Embora sem se dar conta, parte de sua amargura era devida ao fato de ser obrigada a
abandonar uma coisa que conseguira com o próprio esforço e que estava no ponto de
desenvolver-se muito mais. Havia sentido prazer em aperfeiçoar sua técnica, em exercitar a
coordenação dos olhos com as mãos e estava orgulhosa de ter aprendido tudo sozinha.
Agora, pedia por maiores de safios, o desafio da caçada, mas precisava justificar-se.
Desde o começo, quando tudo era apenas brincadeira, imaginava-se caçando e depois
entrando na caverna carregada de caça, sob os olhares admirados e contentes das pessoas. O porco-espinho trouxe-lhe a razão. Um sonho impossível
de realizar-se. Era mulher e, como tal, proibida de caçar. A idéia de exterminar os animais
que competiam com o clã deu-lhe o vago sentimento de que, se suas caças não fossem
apreciadas, pelo menos lhe ficariam reconhecidos. Era uma boa justificativa para caçar.
Quanto mais pensava, mais se via convencida de que caçar carnívoros, ainda que às
escondidas, seria sua solução, embora não conseguisse sobrepujar inteiramente o
sentimento de culpa.
Lutava contra sua consciência. Creb e Iza lhe haviam falado muito de que era errado
mulheres botarem a mão em armas, mas já fui muito mais longe do que simplesmente
tocar numa arma, dizia consigo. Seria ainda pior se caçasse com uma? A menina olhou para
a funda na mão e, de repente, decidiu-se, esforçando-se para vencer seu sentimento de estar
fazendo uma coisa errada.
Está decidido! Aprenderei a caçar! Mas só vou matar comedores de carne, dizia consigo,
fazendo gestos enfatizando sua determinação. Cheia de entusiasmo, correu ao riacho para
buscar mais pedras.
Enquanto procurava por pedras de bom tamanho, seus olhos bateram num objeto de forma
bastante particular. Parecia uma pedra, mas parecia também a concha de algum molusco,
possível de ser encontrada à beira-mar. Ela pegou e examinou com atenção. Era uma pedra,
mas uma pedra com for mato de concha.
Que pedra estranha, falou. Nunca vi uma assim antes. Lembrou-se, então, de algo que
Creb lhe dissera e, súbito, deu o estalo em sua cabeça. A idéia era tão perturbadora que
sentiu o sangue correndo e um frio perpassar-lhe pela espinha. Os joelhos se dobravam e
ela tremia tanto que teve de se sentar. Empalmando a pedra que era apenas o fóssil de um
gastrópode, ficou com os olhos fixos nela, inteiramente absorta.
Creb tinha dito, lembrava-se ela, que, quando uma decisão importante está para ser tomada, o
totem da pessoa a ajuda. Se a decisão estiver certa, o totem manda um aviso qualquer. Ele
disse também que sempre é uma coisa muito fora do comum e que ninguém sabe dizer se
aquilo é de fato ou não um aviso. Só a pessoa, com sua mente e seu coração, entende o que
o totem, dentro dela, está-lhe dizendo.
Ó Poderoso Leão da Caverna, isso é um aviso mandado por você? Ela se expressava em
silêncio, na forma da linguagem ritualística usada para se diri gir aos totens. Está você me
revelando que tomei a decisão certa? Que mesmo que eu seja uma menina, não é errado
caçar?
Sentou-se quieta, com os olhos sempre presos na pedra, tentando as sumir a postura
meditativa que via em Creb. Não ignorava que ela própria era considerada fora do comum
por ter como totem o leão da caverna, mas nunca dera muita importância ao fato. Enfiou a mão por baixo da roupa, sentindo na coxa os
quatro riscos paralelos de sua cicatriz. Mas, por que fui escolhida pelo leão da Caverna? É um
totem forte demais, um totem de homem. Por que teria escolhido uma menina? Deve haver
um motivo por trás disso tudo Pensou, então, na funda e como aprendera a usá-la. que será que
fui apanhar a velha funda que Broud tinha jogado fora? Nenhuma mulher tocaria naquilo. O
que foi que me fez fazer isso? Será que fui guiada por meu totem? Que ele estava querendo
que eu aprendesse a caçar? Só os homens caçam e meu totem é de homem. Claro! Deve ser
isso! Tenho um totem masculino, por isso ele quer que eu cace.
Ó Poderoso leão da Caverna. os caminhos usados pelos espíritos são desconhecidos para
mim. Não sei por que você quer que eu cace, mas estou feliz por me ter enviado este aviso.
Ayla revirava a pedra na mão, até que pegou o amuleto do pescoço, desatou o nó que
fechava o saquinho e pôs o fóssil dentro, junto do torrão de ocre vermelho. Amarrou
novamente bem apertado e tornou a passá-lo pela cabeça, sentindo agora a diferença do
peso pendurado em seu pescoço. Era como se seu totem desse sua aprovação, emprestando
peso à sua decisão.
Todo o sentimento de culpa desapareceu. Estava subentendido que ela deveria caçar, o seu
totem assim o desejava. Não importava o fato de ser mulher. Sou como Durc, pensou, ele
abandonou seu clã, apesar de todos dizerem que estava errado. Acho que ele encontrou um
bom lugar, onde a Montanha de Gelo nunca chegou e que ele formou um novo clã. Durc
também deve ter tido um totem poderoso. Creb diz que a vida é muito difícil para aqueles
que têm totens fortes e que estes testam antes a pessoa para saber se ela é digna de receber
o que eles vão dar. Foi por isso, disse ele também, que quase morri, antes de Iza me achar.
Gostaria de saber se Durc foi posto à prova por seu totem. Será que meu leão da Caverna
ainda vai me testar outra vez?
Mas, às vezes, um teste pode ser muito difícil. E se eu não for digna? Como vou ficar
sabendo se estou sendo testada? Qual será a coisa difícil que meu totem vai querer que eu
faça? Pensou, então, naquilo que era mais difícil em sua vida, e a resposta foi quase
instantânea.
Broud! Broud é o meu teste, disse, gesticulando. Que coisa poderia ser mais difícil do que
ter Broud pela frente um inverno inteiro? Mas se eu for digna, vou conseguir, e meu totem
me deixará caçar.
Ao entrar na caverna, havia qualquer coisa diferente no andar de Ayla que logo foi
observado por Iza, embora a curandeira não soubesse definir exatamente o que fosse. Nada
de impróprio apenas Ayla parecia mais à vontade, menos tensa e com um ar de aceitação
que viu no seu rosto, quando Broud se aproximou. Não era de resignação, ela parecia,
antes, cordata. Foi Creb, no entanto, que reparou no maior volume do amuleto da garota.
Quando o inverno chegou de fato, ele e Iza ficaram felizes por vê-la voltar ao normal, a
despeito de todas as exigências de Broud. Ayla estava quase sempre cansada, mas brincava
com Uba, e os sorrisos e até mesmo os risos haviam voltado. Creb imaginava que ela
tivesse tomado alguma decisão e que encontrara um aviso do seu totem. Foi com alívio que
ele a viu aceitando melhor sua vida no clã. Estava a par da luta que Ayla travava dentro de
si, mas achava necessário Broud dobrá-la à vontade dele. Era preciso que a garota deixasse
de resistir. Também ela tinha de aprender a controlar-se.
Durante o inverno que marcou seu oitavo aniversário, Ayla se transformou em mulher. Não
fisicamente. Seu corpo ainda continuava reto, com as formas próprias de uma menina e
ainda sem aparentar nenhum vestígio das mudanças que estavam por vir. Mas foi durante
essa ocasião que Ayla abandonou definitivamente sua fase infantil.
Algumas vezes, a vida lhe parecia tão insuportável que pensava se não seria melhor
interrompê-la. Certas manhãs, quando abria os olhos, dando com os contornos familiares da
rocha nua sobre sua cabeça, desejava voltar a dormir e nunca mais acordar. Quando,
porém, achava que não iria agüentar mais, apertava o amuleto e a sensação do volume da
pedra dava-lhe, de certo modo, paciência para enfrentar mais outro dia. E cada dia vivido
trazia-a para mais perto do tempo em que as neves altas no chão e as rajadas geladas seriam
trocadas por relvados verdes e brisas marinhas, quando ela, novamente em liberdade,
poderia vagar pelos campos e florestas.
Tal como o rinoceronte lanoso, cujo espírito era o seu totem, Broud podia ser tão teimoso
quanto de uma maldade imprevisível. A teimosia, por sinal, era um traço da raça; uma vez
estabelecido determinado curso de ação, persistia-se neste da forma mais obstinada possível
e Broud estava inteiramente dedicado a manter Ayla na linha. A provação diária dela -
cascudos, imprecações, socos e constantes hostilidades - era claramente sentida por todos
no clã. Muitos eram de opinião de que ela realmente estava precisando ser disciplinada e
merecendo levar alguns castigos, mas poucos estavam de acordo com os extremos a que o
rapaz chegara.
Brun continuava ainda preocupado com o fato de Broud ter permitido Ayla provocá-lo
demasiadamente, mas já que o rapaz vinha conseguindo controlar seus ataques de fúria,
considerava isso como já sendo um bom indicio de progresso. Esperava só que ele
moderasse mais a maneira de tratar do as sunto e, nesse meio tempo, achou que o melhor
seria dar livre curso à situação. À medida que o inverno avançava, mesmo contra a vontade,
viu-se respeitando cada vez mais a estranha menina; era o mesmo tipo de respeito que
sentia por sua germana, ao tempo que Iza se sujeitava com resignação às surras que o
companheiro lhe dava.
Tal como Iza, Ayla estava dando um belo exemplo de comportamento feminino. Agüentava
tudo sem queixas, como uma mulher devia sempre fazer. Quando, às vezes, ela parava por
instantes para segurar em seu amuleto, Brun e os outros viam nisso um gesto reverente às
forças espirituais, tão importantes às suas vidas. Isso só fazia engrandecê-la como
mulher.
O amuleto deu-lhe alguma coisa em que acreditar. Ela reverenciava as forças espirituais à
maneira como as entendia. Seu totem a estava testando. Se provasse ser digna, poderia
caçar. Quanto mais Broud a atormentava, maior era sua determinação de aprender a caçar
quando chegasse a primavera. Seria melhor do que Broud, melhor ainda do que Zoug. O
melhor caçador com funda de todo o clã, mesmo que ninguém ficasse sabendo a não ser
ela. Este era o pensamento a que se agarrava e que se petrificara em sua mente, tal como as
imensas agulhas de gelo que se formavam ao alto da entrada da caverna, onde o ar quente
das fogueiras subia para encontrar as temperaturas geladas do exterior, e ali permanecendo
como uma pesada cortina transideida durante todo o inverno.
Sem o saber, já estava se exercitando. Apesar de que isso a pusesse em maior contato com
Broud, seu interesse por caçadas a arrastava para junto dos homens, quando os via sentados
passando longas horas revivendo antigas caçadas ou fazendo planos para futuras. Sempre
dava um jeito de ficar por perto trabalhando, principalmente quando percebia ser Dorv ou
Zoug que estavam contando histórias de seus feitos com fundas. Ressuscitou seu antigo
interesse por Zoug e procurava satisfazer seus desejos, acabando por criar uma sincera
afeição pelo velho caçador. De certo modo, ele lhe lembrava Creb: orgulhoso, sério,
sentindo-se feliz com aquela atenção e carinho, ainda que viesse da par te de uma estranha
e feia menina.
Zoug não deixava de perceber o interesse dela por suas passadas glórias, ao tempo em que
era o segundo em comando, tal como Grod agora. Tinha nela uma ouvinte atenta,
silenciosa, sempre mantendo uma atitude de respeito, e discreta. Muitas vezes, Zoug catava
Vorn para explicar-lhe alguma técnica de pegar os rastros de animais ou expor seus
conhecimentos de caça, sabendo que, podendo, a menina viria sentar-se por perto, mas ele
fingia não percebê-la. Se Ayla tinha prazer com suas histórias, que mal poderia haver
nisso?
Se fosse mais jovem, pensava Zoug, e ainda pudesse sustentar alguém, eu tomaria a menina
como companheira, quando ela ficasse mulher. Algum dia vai precisar de um homem e,
feia como é, vai ter certa dificuldade para arranjar alguém. Mas é jovem, forte e
respeitadora. Tenho parentes em outros clãs e, se ainda tiver forças para comparecer à
próxima reunião, vou falar por ela. Não deve querer ficar aqui, quando Broud for o chefe,
Não que tenha importância o fato de ela querer ou Não, mas nisso eu lhe dou razão. Só
espero
já ter ido para o outro mundo, quando tal suceder. Ele nunca se esquecera da agressão de
Broud e Não gostava nada do filho da companheira de Brun. Achava que o rapaz era
estúpido com a menina por quem criara bastante amizade. É certo que ela precisava ser
disciplinada, mas tudo tem limites, e Broud fora muito além destes. Com Zoug, a garota
jamais faltara com o respeito e era obrigação de um homem, mais velho e experimentado,
saber como lidar com mulheres. Sim, vou falar por ela. Se na puder ir, envio uma
mensagem. Mas, se ao menos ela Não fosse tão feia.
Por mais difícil que fosse para Ayla, nem tudo se mostrava tão ruim. A lida diária
transcorria com mais calma, sem muitos serviços domésticos. Até mesmo Broud, depois de
tudo arrumado, Não encontrava muita coisa para poder dar suas ordens. Com o tempo, ele
foi se cansando, já Não havia o menor desafio nela, de modo que suas hostilidades
diminuíram um pouco. Uma outra coisa também veio contribuir para que a vida de Ayla,
naquele inverno, não fosse tão insuportável.
No princípio, tentando achar razões válidas para conservar Ayla dentro dos limites da
fogueira de Creb, Iza resolveu treiná-la no preparo e uso das ervas e plantas que tinham
sido colhidas. Ayla estava fascinada com a arte de curar. Com tanto interesse demonstrado,
Iza passou a dar-lhe aulas regularmente, inclusive achando - depois que percebeu o
quanto era diferente a maneira da cabeça de sua filha adotiva funcionar - que deveria ter
começado há mais tempo as lições.
Se Ayla fosse sua filha de verdade, iza teria apenas de fazê-la recordar daquilo que estava
armazenado em seu cérebro, de modo a acostumá-la a fazer uso de um conhecimento que
já possuía. Como Não era, Ayla tinha de esforçar-se para memorizar coisas que, em Uba,
eram inatas. Iza precisava exer citar Ayla, repassar muitas vezes a mesma matéria e estar
constantemente pondo-a à prova para ver se havia realmente aprendido direito. Iza extraía
informações tanto da memória com que nascera, como de sua experiência, e ela própria
se via surpreendida com o volume de conhecimentos que possuía. Nunca pensara sobre isso
antes, simplesmente o conhecimento estava ali, pronto para quando ela precisasse. Havia
momentos em que Iza se desesperava, achando que jamais iria conseguir ensinar Ayla o
que sabia ou fazer dela uma boa curandeira. A garota, no entanto, nunca esmorecia, e Iza
estava firme no seu intento de assegurar uma posição no clã para sua filha adotiva. As lições prosseguiam diariamente.
- O que é bom para queimaduras, Ayla?
- Deixe-me pensar. Flores de hissopos misturadas com flores de virga áureas e pinhas.
Põe-se para secar e se mistura o pó em partes iguais. Faz-se então um curativo com o pó
umedecido. Quando estiver seco, torna-se a jogar água fria por cima do cataplasma -
respondeu sem pestanejar. Em seguida, fez uma pausa, pensando. - Também é bom, folhas e flores de hortelã-da água.
Molham-se as duas e se pôe diariamente sobre a queimadura. A loção feita de capim também
serve para queimaduras.
- Muito bem, tem mais alguma coisa para dizer?
Ayla procurava lembrar-se.
- Hissopos gigantes também. Esmigalham-Se as folhas e os talos frescos para fazer
cataplasmas ou então as folhas secas umedecidas. E. . . ah sim, as flores amarelas do cardo.
Elas são fervidas, deixa-se esfriar e se usa como loção.
- Isso é bom também para feridas na pele, Ayla. E não se esqueça de que cinzas de
cavalinha misturadas com gordura da um bom ungüento para queimaduras.
Também sob a direção de Iza, Ayla começou a aprender a cozinhar. Logo assumiu o
encargo do preparo de quase todos os alimentos de Creb. A garota tinha o maior trabalho
em moer bem fino tudo que fosse semente antes de botar para cozinhar para que ele, com
seus dentes estragados, Não tivesse muita dificuldade de engolir. Até as nozes lhe eram
servidas esmigalhadas. Iza ensinou-lhe também como preparar seus remédios de tirar dor e
os cataplasmas para aliviar o reumatismo. Ayla tornou-se especialista nos medicamentos
desse mal que atacava as pessoas mais velhas do clã, cujo sofrimento sempre aumentava
muito quando eles se viam confinados entre as frias paredes de pedra da caverna. Naquele
inverno, a garota se tornou a assistente da curandeira e seu primeiro paciente foi Creb.
O inverno ia pela metade. A neve subia alguns metros de altura à entrada da caverna,
fazendo uma barreira isolante que ajudava a manter o calor provindo das fogueiras no
interior, mas as ventanias continuavam assoviando através do espaço deixado entre o teto e
o monte de neve. Creb estava de uma rabugice fora do comum, ora silencioso, ora
resmungando mal-humorado, de pois arrependido novamente, pedindo desculpas e pondo-
se de novo em silêncio. Seu humor desconcertava Ayla, mas Iza imaginava saber a causa.
Era uma dor de dente particularmente dolorosa.
- Creb, você Não quer que eu dê só uma olhada em seu dente? - perguntava Iza.
- Não é nada. Apenas uma dor de dente incomodando um pouco. Você acha que Não
consigo agüentar uma dorzinha? Pensa que nunca senti dor antes, mulher? - respondeu
ele, com impertinência.
- Sim, Creb - falou Iza, de cabeça baixa.
Imediatamente, ele se mostrou arrependido.
- Iza, sei que você está só querendo ajudar.
- Se você me deixasse dar uma olhada, talvez eu lhe pudesse dar alguma coisa. Como
posso saber o que receitar, se você Não me deixa olhar?
- O que há aí para olhar? - gesticulou ele. - Um dente doente é igual a todos os outros.
A única coisa que quero é que me faça um chá de casca de salgueiro - rosnou o feiticeiro,
indo em seguida sentar-se em sua pele de dormir, ficando a olhar para o vazio.
Iza abanou a cabeça e foi preparar o chá.
- Mulher! - gritou Creb, poucos instantes depois. - Onde está esse chá? Por que está
demorando tanto? Como posso meditar? Não consigo me concentrar - falou, com
impaciência.
Iza apressava-se com uma cuia de osso, fazendo sinal a Ayla para que a acompanhasse.
- Já estou indo, Creb, mas Não acredito que chá de salgueiro vá adiantar muito. Deixe
pelo menos que eu dê uma olhada.
- Está bom, está bom, Iza. Dê essa olhada de uma vez. - Abriu a boca, apontando para o
dente que doía.
- Você vê, Ayla, como esse buraco preto no dente vai lá no fundo? A gengiva está
inchada, o dente está completamente estragado. Acho que vai ter de ser arrancado, Creb.
- Arrancado! Você me disse que queria só dar uma olhada para poder receitar alguma
coisa. Você Não tinha falado de tirar dente. Bom, me dá qualquer coisa para melhorar isso,
mulher!
- Sim, Creb, aqui está seu chá de salgueiro.
Ayla observava, surpresa, a mudança.
Pensei que você disse que chá de salgueiro Não ia adiantar muito.
- Nada vai adiantar muito. Posso dar um pedaço de raíz de capim-limão para ele mastigar,
talvez melhore um pouco, mas duvido.
- Ah, curandeiras, que nem curar uma dor de dente sabem! - resmungou Creb.
- Posso tentar extrair a dor - falou Iza, com toda a naturalidade.
- Vou mastigar as raízes - disse Creb, retraindo o corpo.
No dia seguinte, aquela cara com uma horrível cicatriz e um olho vazado amanheceu
inchada, conseguindo ter um aspecto ainda mais pavoroso. Ele não dormira e o olho estava
vermelho.
- Iza - gemeu - faça algo para parar essa dor.
- Se você tivesse deixado eu extrair o dente ontem, hoje já estaria sem dor - respondeu
ela, voltando logo a mexer as sementes que torrava numa panela, observando o espoucar
fazendo os característicos ruídos de poc, poc.
- Mulher! Será que você não tem coração? Não dormi a noite inteira!
- Eu sei, Creb, você me deixou acordada o tempo todo.
- Bem, faça alguma coisa! - explodiu.
Vou fazer, Creb. Mas agora só vou poder extrair depois que desaparecer a inchação.
- Será que só sabe pensar nisso? Extrair dente?
- Posso experimentar outra coisa, mas Não acredito que vá salvar o dente - gesticulou
ela, com ar compreensivo. - Ayla, traga aquele pacote com as lascas chamuscadas da
árvore que foi apanhada por um raio no verão passado. Vamos ter de furar a gengiva para
diminuir a inchação antes de arrancar o dente. E vamos ver também se acabamos com essa
dor de uma vez.
Creb tremia ouvindo as instruções dadas a Ayla. Depois, encolheu os ombros, afinal não
podia ser muito pior do que a dor que estava sentindo, pensou ele.
Iza separou as lascas e escolheu duas.
- Ayla, quero que você esquente a ponta dessa aqui, até que fique como carvão mas não
muito. Tem de ficar dura o suficiente para não partir. Pegue uma brasa na fogueira e segure
a lasca junto do fogo até a madeira começar a soltar fumaça. Mas antes quero que você
veja como se fura a gengiva. Se gure para mim os lábios dele para trás.
Ayla fazia como Iza lhe mandava, olhando dentro da boca escancarada de Creb as duas
fileiras de dentão podres.
- Com a ponta bem fina de uma lasca, nós furamos a gengiva embaixo do dente, até
começar a sangrar - disse, antes de demonstrar praticamente.
Creb tinha sua mão fechada com força, mas Não emitia nenhum som.
- Agora, enquanto o sangue fica saindo, pegue a outra lasca quente.
Ayla correu à fogueira, voltando imediatamente com uma brasa viva encostada na ponta
carbonizada da lasca. Iza pegou, examinando-a com atenção Fez que sim com a cabeça e
gesticulou dando ordens a Ayla para que tornasse a segurar os lábios dele para trás. Inseriu,
então a ponta quente na cavidade do dente. Ayla sentiu Creb dar uma sacudidela, ouvindo
um leve chiado, ao mesmo tempo em que saía um filete de fumaça do enorme buraco no
dente.
- Pronto. Agora vamos esperar para ver se a dor vai passar. Se não, o dente vai ter de ser
arrancado - disse Iza, depois de esfregar na gengiva de Creb uma mistura de pó de gerânio
com pó de nardo. - Pena que eu não tenha nenhum daqueles cogumelos tão bons para dor
de dente. O nervo fica adormecido e quase sempre é posto para fora. Nesse caso, eu não iria
precisar arrancar o dente. Frescos são melhores, mas seco também funcionam. Devem ser
colhidos no fim do verão. Se encontrar algum no ano que vem, vou mostrar para você,
Ayla.
No dia seguinte, iza perguntou:
- Seu dente ainda está doendo, Creb?
- Está melhor, Iza - respondeu ele, esperançoso.
- Mas ainda dói? Se a dor não passou completamente vai inchar outra vez - insistiu Iza.
- Bem. . . sim, ainda dói - admitiu. - Mas não muito. Realmente não é muito mesmo.
Por que não esperar mais um ou dois dias? Estou usando uma fórmula mágica
poderosíssima. Tenho pedido a Ursus para destruir o mau espírito que está provocando a
dor.
- Mas você já não pediu muitas vezes a Ursus para livrá-lo dessa dor? Acho que Ursus
quer que você sacrifique seu dente, para depois ele fazer parar a dor, Mog-ur - falou Iza.
- O que você entende do Grande Ursus, mulher? - disse Creb, irritado.
- Esta mulher foi presunçosa. Esta mulher nada sabe dos caminhos usados pelos espíritos
- respondeu Iza, com a cabeça baixa. Depois, olhando para o germano, falou: - Mas
uma curandeira entende a dor de dente. A dor não vai sumir enquanto o dente não for
extraído disse com firmeza, gesticulando.
Creb deu as costas e saiu capengando. Sentou-se na pele de dormir com os olhos cerrados.
- Iza? - chamou ele, depois de alguns minutos.
- O que é, Creb?
- Você tem razão Ursus quer que eu me livre do dente. Vá em frente, acabe logo com isso.
- Pegue isso, Creb. Beba - disse Iza, encaminhando-se para ele. - Faz com que não doa
tanto. Ayla, há um pequeno pino perto do pacote de lascas e um rolo comprido de barbante.
Traga aqui.
- Como é que você sabia que já devia ter a bebida preparada? - perguntou Creb.
- Eu sei, Mog-ur, que é muito difícil sacrificar um dente, mas se Ursus assim o deseja, sei
que o Mog-ur o atenderá. Esse não é o sacrifício mais difícil que o Mog-ur já fez em
intenção de Ursus. Sei que é muito duro viver com um totem poderoso, mas Ursus Não o
teria escolhido, se você não fosse digno dele.
Creb fez que sim com a cabeça e tomou a bebida. É feito da mesma planta que uso para
incentivar as memórias nos homens, pensou. Mas acho que vi Iza botando água para ferver,
ela cozinha as plantas ao invés de fazer uma infusão. Fica mais forte, quando são apenas
maceradas. A datura tem muitos usos, deve ser uma planta dada por Ursus. Já começava a
sentir os efeitos do narcótico.
Iza disse a Ayla para manter a boca do feiticeiro aberta, enquanto, cui dadosamente, com o
pino abalava os alicerces do dente dolorido. Creb teve um sobressalto, mas não doeu tanto
quanto havia imaginado. Em seguida, Iza amarrou em volta do dente amolecido o barbante
e mandou que Ayla atasse a outra ponta num pau fincado no chão o qual pertencia ao
engradado onde se penduravam plantas para secar.
- Ayla, ponha a cabeça dele para trás, até que o cordão fique bem esticado. - Com um
só movimento rápido e brusco, ela puxou o barbante. - Aqui está - disse, retirando o
cordão com um enorme molar pendurado. Borrifou, então, o buraco sangrando com raiz de
gerânio, passando depois um bálsamo, preparado com cascas de eucalipto e outras
variedades de folhas secas. Por fim, enrolou o rosto dele com uma faixa de couro úmida.
- Tome o seu dente, Mog-ur - falou Iza, botando o molar cariado na mão de Creb. Este
ainda estava inteiramente aturdido. - Terminou.
Ele pegou o dente, mas, ao se deitar, deixou-o cair.
- É para ser dado a Ursus - murmurou, embriagado.
O clã depois de Ayla ter ajudado a curandeira na cirurgia dentária de Creb, pôs-se de vigia
para saber como ele ia passando. Quando viram que melhorava, sem qualquer
complicação, passaram a convencer-se de que a menina não afugentava os bons espíritos.
Isso veio predispô-los a favor de Ayla, quando esta aparecia com Iza para ajudá-los em
suas doenças. À medida que o inverno progredia, Ayla foi aprendendo a tratar de
queimaduras, machucados, feridas, gripes, infecções de garganta, problemas de estômago,
dores de ouvido e diversos outros tipos de moléstias e machucados sem gravidade, que surgiam no curso normal da vida.
Com o tempo, para pequenos problemas de saúde, passaram a recorrer a Ayla com a mesma
facilidade que buscavam Iza. Sabiam que a menina coletava plantas e viam Iza ensinando-
a. Afinal, Iza estava envelhecendo, não se achava bem de saúde e Uba ainda era muito
criança. O clã começava a acostumar-se com a presença daquela estranha menina em seu
meio e a aceitar a idéia de que alguém dos Outros pudesse algum dia tornar-se a curandeira
do clã.
Foi durante a época mais fria do ano, depois do solstício de inverno e antes das primeiras
chuvas da primavera que Ovra entrou em trabalho de parto.
- Ainda está muito cedo - falou Iza para Ayla. - O bebê só deveria nascer na
primavera. De uns tempos para cá, ela não sente nenhum movimento na barriga. Estou com
medo de que o parto não corra bem e de que o bebê tenha morrido.
- Ovra queria tanto esse filho, Iza. Ficou tão feliz quando soube que estava grávida. Será
que você Não pode fazer nada? - perguntou Ayla.
- Bem, a gente vai fazer o que puder, mas há coisas que estão fora do nosso alcance.
O clã inteiro estava preocupado com o trabalho de parto prematuro da companheira de
Goov. As mulheres tentavam levar seu apoio moral, enquanto os homens, nervosos,
esperavam rondando por perto. O clã havia perdido muitos de seus membros durante o terremoto, de modo que todo nascimento era
aguardado com ansiedade. Crianças significavam mais bocas para os caçadores de Brun e
mais trabalho para as mulheres; por outro lado, depois de crescidas, seriam elas quem os
sustentariam em suas velhices. A continuação e sobrevivência do clã estava na dependência
da sobrevivência individual. Eles precisavam uns dos outros e estavam realmente tristes
com o fato de que o bebê de Ovra pudesse nascer morto.
Goov estava mais preocupado com sua companheira do que com a criança e desejava poder
fazer alguma coisa. NÃO gostava de vê-la sofrendo, especialmente quando eram poucas as
chances de um desenlace feliz. Ovra desejava muito aquele bebê, sentia-se inferiorizada
em ser a única mulher no clã sem filhos. Até mesmo a curandeira, com toda a sua idade, dera
à luz. Ovra ficara exultante quando soube estar grávida e Goov gostaria de poder pensar
em alguma coisa que a consolasse de sua possível perda.
Droog parecia compreender o rapaz melhor do que ninguém. Ele também já se sentira de
forma parecida em relação à mãe de Goov, se bem que essa teve a felicidade de ter tido um
filho. No entanto, era obrigado a admitir que, depois que se acostumou, estava tendo grande
prazer com a sua nova familia. Esperava, inclusive, que Vorn passasse a se interessar
por ferramentas, e quanto a Ona, era a alegria de sua vida, sobretudo agora que deixara de
mamar e começava, ao jeito das crianças, a imitar os adultos. Droog nunca tivera uma
menina em sua fogueira e Ona era tão bebê, quando ele tomou Aga para companheira, que
a garotinha era como se tivesse nascido em sua casa.
Ebra e Ika, solidárias, achavam-se sentadas ao lado de Ovra, enquanto iza preparava os
medicamentos. Ika também queria muito aquele bebê e se gurava, ansiosa, a mão da filha,
sofrendo com as contrações. Oga saíra para preparar a refeição da noite que iria servir a
Brun, Grod e Broud. Goov foi convidado; e lka se ofereceu para ajudar, mas, como Goov
não aceitou, Oga disse não haver necessidade. Faria tudo sozinha. Goov estava sem fome e
foi fazer uma visita à fogueira de Droog, onde Aba o convenceu a engolir algo.
Oga estava distraída, preocupada com Ovra, e lamentando não ter acei to o oferecimento de
Ika. Ela não soube como aconteceu, só viu que tropeçara enquanto servia sopa quente aos
homens e que deixara o caldo fervendo cair no ombro e no braço de Brun.
- Aiii! - gritou Brun ao sentir o líquido escaldando escorrer sobre ele. Pôs-se a dar
saltos ao redor, cerrando firme a boca para não gritar de dor. Com a respiração suspensa,
todas as cabeças se viraram em sua direção O si lêncio foi quebrado por Broud.
- Oga! Sua estúpida desajeitada! - disse gesticulando muito, tentando disfarçar seu
embaraço por ter sido sua companheira a responsável pelo acidente.
- Ayla, vá atender. NÃO posso sair agora - disse Iza, por meio de sinais.
Broud avançou para Oga com os punhos cerrados, prontos para bater.
- NÃO Broud - falou Brun estendendo o braço, impedindo-o. Agordu ra da sopa
ainda se colava em sua pele e ele se esforçava para Não demonstrar dor. - Foi sem querer.
Bater não vai adiantar nada.
Oga encolhia-se enroscada aos pés de Broud, tremendo de medo e vergonha.
Ayla estava apreensiva. Nunca tratara do chefe do clã e tinha um medo dele fora do comum.
Correu à fogueira de Creb para pegar uma bacia de madeira. De lá, dirigiu-se à entrada da
caverna, onde apanhou uma porção de neve, indo depois para a fogueira de Brun e se
pondo de joelhos na frente dele.
- Iza me mandou. Ela não pode largar Ovra agora. Permitiria o chefe que esta menina
cuidasse dele? - perguntou, depois de Brun ter tomado conhecimento de sua presença.
Brun acedeu com a cabeça. Ayla, como curandeira do clã, era algo que ele ainda não
acreditava muito, mas, dadas as circunstâncias, não lhe restava senso aceitar. Nervosa, ela
pôs a neve sobre o local queimado. Estava vermelho e inflamado. A neve aliviou a dor e
ela sentiu que os nervos tensos de Brun começaram a relaxar um pouco. Voltou à
fogueira de Creb onde despejou água fervendo sobre folhas secas de hortelã-d'água.
Depois de bem embebidas, jogou na vasilha um pouco de neve para esfriar rápido e
retornou a seu paciente. Com a mão aplicou-lhe a loção calmante, enquanto percebia a tensão ir deixando aquele musculoso corpo, que parecia talhado em pedra. Brun já respirava
com mais facilidade. A queimadura ainda doía, mas já estava mais suportável. Ele fez um
sinal aprovando e a menina se pôs um pouco mais à vontade.
Parece que está aprendendo as mágicas de Iza, pensou Brun. E também está aprendendo a
se comportar como uma mulher deve fazê-lo. Talvez o que lhe estivesse faltando era só um
pouco de maturidade. Se acontecesse qualquer coisa a Iza antes de Uba crescer, nós
estaríamos sem curandeira. Acho que Iza acertou em querer treinar a garota.
NÃO muito depois, Ebra chegou para anunciar a seu companheiro que o filho de Ovra
havia nascido morto. Brun olhou na sua direção dando a entender que compreendera e
depois abanou, pesaroso, a cabeça. Logo um menino, pensou. Ela deve estar com o coração
partido, todos sabem o quanto desejava este filho. Tomara que não tenha muita dificuldade
para engravidar outra vez. Quem diria que um totem de castor fosse lutar tanto? Apesar de
estar com muita pena de Ovra, Brun nada comentou, pois ninguém deveria mencionar a
tragédia. Ovra, porém, entendeu o motivo que levou Brun à fogueira de Goov, alguns
dias depois, para dizer-lhe que tirasse o tempo que quisesse para se recuperar de sua "doença". Embora Brun fosse muito visitado em sua fogueira pelos
homens, ele quase nunca aparecia na dos outros e, se fosse, dificilmente se dirigia às
mulheres. Ovra ficou-lhe agradecida pela demonstração de apreço, mas não havia nada que
pudesse aliviar sua dor.
Iza insistiu para que Ayla continuasse a tratar de Brun e, depois que a queimadura sarou,
o clã passou a aceitar Ayla ainda mais. Ela, por sua vez, começou a sentir-se mais à vontade
na presença do chefe. Afinal, ele era um homem como qualquer outro.

Capítulo 12

Quando o longo inverno terminou, o ritmo de vida do clã se acelerou, de modo a se pôr de
acordo com a velocidade do despertar da vida naquele mundo de terra generosa. O tempo
frio não só forçava uma verdadeira hibernação como também alterava o regime metabólico
das pessoas devido à redução de atividades. No inverno, ficavam mais preguiçosas,
dormiam e comiam mais, criando uma camada protetora de gordura subcutânea para que
pudessem resistir melhor ao frio. Com a subida da temperatura a tendência se invertia: o clã se
mostrava irrequieto, ansioso para estar ao ar livre, em grande atividade.
A mudança nos hábitos exigia os cuidados médicos de Iza que ministrava a todos - desde
as crianças aos velhos - seu tônico de primavera um composto de folhas secas de
aspérula, pó de labaça (uma raíz rica em ferro) e outra raíz que colhia logo no início da
primavera, parecida com a do centeio. Com o vigor renovado. o clã irrompia para fora da
caverna, pronto para dar partida a um novo ciclo de estações.
O terceiro inverno na caverna não chegou a ser muito penoso. A única morte ocorrida foi a
do filho de Ovra e, assim mesmo, esta não contava, pois a criança não chegou a receber
nome e nem foi reconhecida oficialmente. Iza, então livre da obrigação de amamentar um
bebê guloso, igualmente resistiu bem ao inverno. Creb não passou pior do que o costume.
Tanto Aga como Uka estavam novamente grávidas e, pelo fato de as duas terem sido bem-
sucedidas em seus partos anteriores, o clã via esperançoso esse aumento no número de seus
membros. Os primeiros legumes, rebentos e brotos estavam sendo colhidos, e se projetava
a primeira grande caçada da estação, aquela que os abasteceria de carne fresca para a festa
da primavera em honra aos espíritos que despertavam a vida na natureza e também para
dar graças a seus totens protetores por tê-los amparado em mais um inverno.
Ayla se sentia como se tivesse motivos especiais para agradecer a seu totem, O inverno
fora penoso, mas emocionante. Seu ódio por Broud era ainda até maior, mas havia
aprendido a lidar com o rapaz. Ainda que ele fizesse o pior, ela suportava tudo com calma e
resignação. Havia um limite que nem mesmo Broud conseguia transpor. Para isso,
contribuiu também o interesse
da menina pela medicina de lia. A garota adorava suas lições. Quanto mais aprendia, maior
era sua vontade de saber. Estava ansiosa para sair em busca de plantas medicinais, agora
que tinha uma melhor compreensão de seus usos e também porque esse era um meio de
poder escapar e estar sozinha. Enquanto sopravam os ventos cortantes e caíam as pesadas
nevascas, Ayla esperou pacientemente, mas, aos primeiros indícios de mudança, ela
começou a se sentir inquieta, em estado de expectativa. Aguardava aquela primavera como
nunca até então esperara por uma outra. Estava na ocasião de aprender a caçar.
Tão logo o tempo permitiu, a garota começou a escapar para os campos e florestas. Já não
mantinha mais a funda escondida na pequena gruta, perto do seu campo de treinamento.
Trazia-a com ela, metida numa dobra de roupa, ou em sua cesta de colher, debaixo das
camadas de folhas. Aprender a caçar por si, sem ninguém para orientá-la, não foi tarefa
fácil. Os animais eram esquivos e velozes e os alvos em movimento muito mais difíceis de
ser atingidos. Quando colhiam, as mulheres sempre faziam barulho para espantar bichos
que poderiam estar à espreita e esse era um hábito difícil de romper. Muitas vezes, Ayla, ao
dar com uma corrida rápida que se ia camuflar numa moita, via-se furiosa consigo, pois
alertara o animal de sua presença. Mas estava no firme propósito de aprender, e a prática
iria ensiná-la.
Através de tentativas e erros foi começando a aprender a pegar o rastro de animais e
também a entender e aplicar técnicas de caçar que conseguira filtrar dos bocados das
conversas ouvidas dos homens. Seus olhos já estavam treinados em plantas, aguçados na
percepção de pequenos detalhes que diferenciavam um vegetal do outro. Agora, era só uma
questão de estender esse conhecimento aos animais, de saber como interpretar o
excremento denunciador de um bicho, uma leve marca deixada no terreno, alguma haste
tombada mais para um lado ou um pequeno galho partido. Ayla aprendeu a diferenciar os
diversos rastros de animais, tornando-se uma boa conhecedora de seus hábitos e habitats.
Apesar de não desprezar as espécies herbívoras, seu interesse estava principalmente
concentrado nos carnívoros, e estes se constituíam na sua caça por excelência.
Observava sempre que direção os homens tomavam quando saíam para caçar. No entanto,
não era Brun com os seus caçadores que a preocupava. Quase sempre estes escolhiam as
estepes como o terreno de suas caçadas e ela nem de longe pensava em querer caçar nas
planícies, onde estaria a descoberto. Era dos dois velhos do clã que tinha mais medo. Já
havia acontecido algumas vezes de dar com Zoug e Dorv, durante as suas coletas de
plantas para Iza, e seriam eles os que mais probabilidade a garota tinha de encontrar caçando em seu terreno. Precisava estar alerta para poder evitá-los. Mesmo tomando direção oposta
à deles não significava estar a salvo, haveria sempre a possibilidade de os dois mudarem de
rumo e surpreendê-la com a funda na mão.
Depois que pôde locomover-Se silenciosamente, ela algumas vezes os se guia para observar
e aprender. Nessas ocasiões, usava de extrema cautela. Era mais perigoso ir no rastro deles
do que seguir a trilha dos bichos que caçavam. Mas era um bom treino e, nessas
perseguições - fosse perseguindo o rastro de homem, fosse o de animal - ela acabou
aprendendo a mover-se sem fazer ruí do e a fundir-Se com a sombra, quando acontecia de
os dois olharem em sua direção.
Quando se tornou perita em pegar rastros. aprendeu a mover-se fortuita mente e a ter os
olhos educados, capazes de distinguir uma forma dentro de um bem camuflado esconderijo;
houve muitas ocasiões em que tinha certeza de que poderia atingir um pequeno animal.
Sentia-se tentada, mas como não era carnívoro, deixava passar. Sua decisão de caçar
referia-Se apenas aos predadores e somente para estes tinha permissão de seu totem. Os
botões se transformaram em flores, as folhagens brotaram, as flores caíram e vieram os
frutos, pendurando-se verdes, ainda pequenos nas árvores, mas Ayla ainda não havia
matado seu primeiro animal.
- Sai Xõ, xõ! Passa!
Ayla veio para fora da caverna, querendo saber o porquê do rebuliço. Um bando de
mulheres agitava os braços tocando para fora um animal pelu do, baixote e atarracado. O
carcaju ia dirigir-se para a caverna, mas, ao dar com Ayla, soltou um rosnado, mudando de
direção. Esquivando por entre as pernas das mulheres, o animal conseguiu escapar com um
pedaço de carne entre os dentes.
- Miserável de bicho esganado! Eu tinha acabado de botar a carne para secar -
gesticulou Oga desolada e furiosa. - Mal tinha virado as costas e lá estava ele. Este bicho
tem rondado por aqui desde o princípio do verão e cada dia que passa está mais bravo. Só
queria que Zoug acertasse nele! Foi bom que você tivesse aparecido, Ayla, ele estava em
tempo de entrar na caverna. Pense só no fedor que ia deixar, se tivesse conseguido meter-se
em algum canto lá dentro!
- Acho que ele é ela, Oga, e os filhotes não devem andar muito longe daqui. A esta altura
já devem ser uns bichinhoS famintos e bem grandes.
- Só faltava esta! Um bando deles. - Oga falava intercalando os gestos com expressões
de raiva. - Zoug e Dorv pegaram Vorn para sair com eles bem cedo esta manhã.
Preferia que, ao invés de trazerem codorna e hamsters para casa, eles pegassem esse
carcaju. Esses esganados não servem para nada.
- Para uma coisa servem, Oga. As peles não deixam que seu bafo congele no inverno.
Elas dão bons capuzes e gorros para a cabeça.
- Era melhor que esse danado já fosse uma pele.
Ayla tornou a entrar. Não havia nada que pudesse fazer e Iza tinha dito
que começavam a faltar algumas coisas em seu estoque de remédios. A garota estava
decidida a procurar a toca do carcaju. Sorriu consigo, apressou o passo e pouco depois já
estava saindo da caverna com sua cesta e se encaminhando para a floresta, na direção em
que o animal desaparecera.
Vasculhando o chão, percebeu a marca de uma pata com garras compridas e afiladas e, um
pouco mais adiante, uma planta com o caule vergado. Estava no rastro do animal. Passados
alguns segundos, ouviu o som de algo cor rendo apressado. Era surpreendentemente perto
da caverna. Foi avançando, maciamente, quase sem tirar uma folha do lugar e surpreendeu
o carcaju e quatro filhotes, já meio crescidos, disputando com muitos rosnados o pedaço da
carne roubada. Com cuidado, tirou a funda de dentro da roupa e ajustou uma pedra na
saliência da correia.
Esperou, aguardando o momento certo para o tiro. Uma mudança na direção do vento levou
seu cheiro até o animal que levantou a cabeça farejando o ar, já alertado para possíveis
perigos. Era o momento por que Ayla esperava. Rápida, antes que o bicho tivesse tempo de
fazer qualquer movimento, ela arremessou a pedra. O carcaju tombou no chão, enquanto os
filhotes pulavam, assustados pelo ricochete da pedra.
Ela saiu de trás do arbusto que a encobria e foi examinar o animal de perto. Parecia um
urso. Tinha mais ou menos um metro de comprimento, contando do focinho à ponta de sua
cauda cabeluda e era coberto por um pêlo duro, longo, de tom marrom escuro. Os carcajus
eram animais necrófagos, ousados e agressivos, bastante ferozes para afugentar outros
predadores maiores do que eles, suficientemente audaciosos para roubar as carnes-secas ou
qualquer coisa que desse para carregar com os dentes e tão matreiros que eram capazes de
se meter nos depósitos de comida do clã. Possuíam glândulas almiscaradas que deixavam
atrás de si um odor parecido com o das fuinhas, e para o clã representavam uma praga
ainda pior do que as hienas que, embora necrófagas e predadoras, não dependiam das caças
dos outros.
A pedra da funda de Ayla pegou justo acima do olho, no ponto e onde mirara. Aí está um
carcaju que nunca mais nos vai roubar, disse ela consigo, cheia de satisfação, quase
exultando. Era o primeiro animal que podia considerar como sua primeira caça. Acho que
vou dar a pele para Oga, pensou, já pegando a faca para retirar a pele do bicho. Ela vai
ficar feliz por saber que este nunca mais vai incomodar. De repente, parou.
Mas o que estou fazendo? Impossível dar a pele para Oga. Não posso dá-la para ninguém, e
nem mesmo guardá-la comigo. Não sou permitida de caçar. Se alguém descobrir que matei
este carcaju, não sei o que poderão fazer. Ayla sentou-se ao lado do animal, com os dedos
enfiados por dentro da juba espessa e alta. A alegria desaparecera.
Havia conseguido sua primeira caça, que podia não ser um bisão morto
pela ponta de uma pesada lança, mas era bem mais do que o porco-espinho de Vorn. Mas
não haveria nenhuma solenidade para ela, comemoratido sua entrada nas fileiras dos
caçadores, nenhuma festa em sua honra, nem mesmo os olhares elogiosos e as
congratulações que Vorn recebeu, quando orgulhosamente exibiu sua insignificante
caça. Se fosse para a caverna levando o carca ju, tudo o que poderia esperar seriam olhares
escandalizados e um bom castigo. Pouco importava o fato de ela querer ajudar o clã, de ela
ter dado provas de ser capaz e de que ali estivesse uma promissora caçadora. Mulheres
Não caçavam. Não matavam animais. Só os homens o faziam.
Eu sabia, sempre soube durante todo esse tempo, pensou, soltando um suspiro. Já sabia
antes de começar a caçar, antes até de ter pegado uma funda. Estava farta de saber que não
tinha perniissão para fazer tal coisa. Nisso, o mais valente dos filhotes da carcaju morta saiu
de seu esconderijo e veio, curioso, farejar o cadáver. Todos esses aí vão nos dar tanto
trabalho quanto a mãe disse consigo. Já estão bem crescidos, pelo menos uns dois vão sobreviver. É melhor que eu dê um fim a esta carcaça. Se arrastá-la para longe, talvez os filhos
sigam o faro. Ayla se levantou e começou a puxar pelo rabo o corpo para dentro da mata.
Isso feito, pôs-se a procurar plantas para colher.
O carcaju foi apenas o primeiro de uma longa série de predadores e necrófagos a tombar
com as pedras de sua funda. Martas, furões, minks, lontras, doninhas, arminhos, texugos,
raposas e os pequenos felinos de pele malhada com riscas pretas e cinzentas tornaram-se
belos alvos de suas fulminantes pedradas. A decisão de apanhar apenas predadores teve,
sem que ela o soubesse, conseqüências da maior importância, pois, com isso, ela apressou
seu processo de aprendizagem e pôde muito mais aprimorar sua técnica do que se ti vesse
caçando animais herbívoros, sempre bem mais dóceis e fáceis de ser apanhados. Os
carnívoros, ao contrário, eram dotados de maior inteligência, astúcia, velocidade, além de
ser ainda muito mais perigosos.
Rapidamente superou Vorn na funda, a arma que escolhera para ser a sua. NÃO se
tratava apenas do fato de o rapaz encarar a funda como coisa própria de velho e de não se
empenhar muito para chegar a ter um bom domínio da arma; é que a dificuldade de Vorn
era muito maior. Faltava-lhe a constituição física de Ayla, cujos braços com maior
liberdade de movimentos eram mais adaptados a arremessos. A energia de seus impulsos e
o aprimoramento da coordenação motora com a visão acabaram por lhe dar velocidade, força
e precisão. Há muito, já deixara de comparar-se a Vorn. Em seu pensamento, agora era
Zoug que desafiava e, rapidamente, aproximava-Se da mestria do velho caçador, aliás,
rapidamente, estava ficando extremamente confiante.
O verão ia chegando ao fim com toda a sua carga de calor e uma super abundância de
colheitas castigadas pelas tempestades. Era um dia de extremo calor, insuportavelmente
quente. Nem uma leve brisa ventilava a atmosferaparada. A tempestade da noite anterior, com uma fantástica exibição de raios caindo sobre
as cristas das montanhas e granizos que eram verdadeiras pedras, havia feito o clã correr
para dentro da caverna. A floresta, normalmente fria e enevoada, estava úmida e abafada.
Moscas e mosquitos zuniam sem parar junto ao lamaçal viscoso dos regatos bloqueados
pelo abaixamento do nível das águas e transformados em poças estagnadas e charcos
cobertos de algas.
Ayla seguia a pista de uma raposa vermelha. Caminhava silenciosa pela mata, próxima a
uma pequena clareira. Tinha calor e suava. NÃO se mostrava particularmente interessada
na raposa e já pensava em desistir e voltar para tomar um banho no riacho perto da caverna.
Depois de cruzar um córrego com seu leito pedregoso à mostra, a garota parou para tomar
um gole num lugar onde as águas ainda corriam livres entre duas enormes rochas que
obrigavam o curso a se desviar para uma poça com água à altura do tornozelo.
Ao erguer-se e olhar para a frente, sua respiração ficou em suspenso. Acocorado sobre a
pedra, bem perto dela, estava um lince. Ela, apreensiva, olhava para aquela cabeça de forma
única, com suas inconfundíveis orelhas projetando-se com dois tufos de pêlos. O animal,
por sua vez, olhava-a desconfiado, batendo o cotoco de rabo de lá para cá.
Menor do que a maioria dos felinos, o Lynce pardinus, de corpo com prido e pernas curtas,
tal como os seus primos que surgiram posteriormente em latitudes mais ao norte, eram
capazes de saltar distâncias superiores a quatro metros. Alimentava-se principalmente de
lebres, coelhos, esquilos de porte grande e outras espécies de roedores. Se quisesse, porém,
podia abater pequenos veados, e uma menina de oito anos estava perfeitamente dentro de
seu alcance. Contudo, aquele era um dia quente e os humanos não faziam muito o seu
gosto. Provavelmente, teria deixado a menina passar, sem opor qualquer resistência.
Enquanto encarava o bicho imóvel, também olhando fixo para ela, a pontada inicial de
medo foi-se transformando em alegria e excitação Zoug não dissera a Vorn que se podia
matar um lince com funda? O caçador disse que não se devia pensar em animais grandes,
mas falou que uma pedra atirada com funda podia perfeitamente matar hienas, lobos e
linces. Lembro-me bem que ele falou em lince, dizia consigo. Até então ela ainda não tinha
caçado nenhum predador de porte médio, mas sua pretensão era a de ser a melhor caçadora
com funda do clã Se Zoug podia matar um lince, ela também podia repetir a mesma
façanha, e ali, bem à sua frente, havia um se constituindo num perfeito alvo. Num impulso,
resolveu que já era tempo de pegar caças maiores.
Devagar, sem tirar os olhos do animal, meteu a mão dentro da dobra de seu traje de verão,
procurando pela maior pedra. As palmas das mãos estavam molhadas de suor. Ayla pegou
nas duas extremidades da correia, juntou--
as bem apertadas, ao mesmo tempo que punha a pedra na bolsa. Então rápido, antes que
perdesse a calma, mirou entre os olhos e atirou. Mas, ao levantar o braço, o lince
percebeu-lhe o movimento e mexeu a cabeça no momento preciso em que ela fazia o
arremesso. A pedra pegou raspando a cabeça do animal num dos lados, provocando apenas
uma pontada de dor no alvo pretendido.
Antes que tivesse tempo de pegar outra pedra, viu que os músculos do animal se retesavam.
Foi por puro reflexo que se atirou para o lado, no mo mento em que o lince, irritado, saltou
para dar o bote. Ela foi aterrar na lama perto do córrego, dando com a mão num pesado galho
encharcado de água, que de tão batido pelas enxurradas ficara limpo das folhas e ramos.
Agarrou o pau e o ajeitou na mão no instante mesmo em que o lince, com as presas à
mostra, saltava novamente. Brandindo o pau às cegas, com toda a força que o medo lhe
dava, acertou o golpe em cheio, pondo o animal meio grogue. Es tonteado, o lince deu
umas voltas, agachou-se por um momento e sacudiu a cabeça. Em seguida, sem fazer ruído,
dirigiu-se para a floresta. Já tinha tido uma boa dose de pancadas na cabeça naquele dia.
Ayla, ofegante, sentou-se tremendo. Quando se levantou para ir buscar a funda era como se
seus joelhos fossem de água e ela teve de sentar-se outra vez. Zoug nunca havia imaginado
que alguém fosse querer caçar um perigoso animal com uma simples funda, sem nenhum
outro caçador ou arma para garantir. Mas a muito que Ayla praticamente acertava todos os
seus tiros, e ficara confiante demais, não se dando ao trabalho de pensar no que poderia
acontecer, no caso de errar. Estava em tal estado de choque que, enquanto caminhava de
volta à caverna, quase se esqueceu de apanhar a cesta de colher no lugar em que a
escondera, antes de começar a seguir o rastro da raposa.
- Ayla! O que aconteceu com você? Está toda enlameada! - falou Iza, logo que a viu
chegar, notando a palidez mortal do rosto da garota. Alguma coisa deve ter assustado essa
menina, pensou a mulher.
Ayla não respondeu. Simplesmente abanou a cabeça e entrou na caverna. Iza sentiu que
havia algo que a garota Não lhe queria dizer. Pensou em pressioná-la mas depois mudou de
idéia, esperando que Ayla voluntariamente viesse contar. Ela, por seu lado, não estava bem
certa se gostaria de saber.
Incomodava-lhe o fato de Ayla sair sozinha, mas alguém tinha de colher suas plantas. Isso
era absolutamente necessário. Ela não podia ir. Uba ainda estava muito pequena e nenhuma
das outras mulheres sabia o que procurar e nem tinha vontade de aprender. Ela se via
forçada a deixar Ayla ir, mas, se a menina viesse contar-lhe algum incidente ruim, iria
ainda ficar mais preocupada.
Naquela noite, Ayla mostrou-se submíssa e foi para cama cedo, mas não conseguiu dormir.
Ficou deitada de olhos abertos, pensando no incidente com
o lince e, na imaginação a cena lhe parecia ainda mais assustadora. Só quando já estava
para amanhecer é que pôde pegar no sono.
Acordou aos gritos.
- Ayla, Ayla - ouviu Iza chamando e sacudindo seu corpo com brandura para trazê-la
de volta à realidade. - O que está acontecendo?
- Sonhei que estava dentro de uma pequena caverna e que um enorme leão queria me
pegar. Mas já está tudo bem, Iza.
- Há muito tempo que você não tinha desses sonhos ruins. Por que iriam voltar agora?
Alguma coisa hoje botou medo em você?
Ayla respondeu que sim, baixando a cabeça, sem dar outras explicações. A escuridão da
caverna iluminada apenas pelo pálido brilho das brasas não deixava ver sua expressão de
culpa. Desde que encontrara o aviso enviado por seu totem que nunca mais se sentira
culpada por caçar. E agora estava pensando se realmente aquilo havia sido um aviso.
Talvez ela pensasse que fosse e não era. Talvez não devesse, de forma alguma, caçar.
Sobretudo, animais perigosos. O que deu nela para achar que uma menina poderia caçar
linces?
- Nunca gostei da idéia de você sair sozinha, Ayla. Você sempre fica muito tempo fora.
Sei que gosta às vezes de sair sozinha, mas isso me preocupa. NÃO é natural que meninas
queiram tanto ficar sozinhas. A floresta pode ser um lugar muito perigoso.
- Você tem razão iza. A floresta pode ser perigosa -. gesticulou Ayla.
- Talvez da próxima vez eu leve Uba comigo ou então é capaz de Ika gostar de ir.
Iza ficou aliviada, vendo que Ayla parecia levar seus conselhos a sério. Agora, estava
sempre por perto da caverna e, quando saía para buscar plantas medicinais, algum tempo
depois já estava de volta. E se não arrumasse alguém para acompanhá-la, ficava nervosa.
Ayla estava sempre na expectativa de dar com algum animal escondido, pronto para saltar.
Começou a compreender por que as mulheres não gostavam de sair sozinhas para colher
alimentos e por que a sua ânsia de sair desacompanhada causava tanto espanto. Quando era
menor, não tinha consciência dos perigos. A maioria das mulheres, pelo menos uma vez, já
se tinha sentido ameaçada, e apenas um ataque foi o sufi ciente para fazer a garota olhar o
meio ambiente que a cercava com mais respeito. Mesmo os animais não predadores podiam
ser perigosos. Javalis de afiados caninos, cavalos de cascos duros, veados de galhadas
colossais, bodes e carneiros selvagens com suas chifradas mortais, todos, se provocados,
eram capazes de fazer sérios estragos. Ayla não sabia como ousara pensar em querer caçar.
Estava com medo de fazê-lo novamente.
Não havia ninguém com quem pudesse conversar, ninguém para lhe dizer que um pouco de
medo faz aguçar os sentidos, sobretudo quando se está
à espreita de caças perigosas, e ninguém para encorajá-la a sair outra vez, antes que o medo
acabasse por inibi-la. Os homens compreendiam o medo. não falavam disso, mas todos,
diversas vezes em suas vidas, já o haviam conhecido de perto, a começar com a primeira
grande caçada que os elevara à condição de homens. Animais pequenos eram apenas para
exercícios, para ganhar destreza com as armas, mas o status de adulto só lhes vinha depois
de ter conhecido e superado o medo.
Para a mulher, o tempo que passava sozinha, sem contar com a proteção do clã, não
deixava igualmente de ser uma prova de coragem, embora mais sutil. Sob certos aspectos,
exigia-se até mais coragem para enfrentar aqueles dias e noites, quando ela se via sozinha,
sabendo que, acontecesse o que acontecesse, só contava consigo. Desde que nascia, a
menina sempre estava rodeada de pessoas protegendo-a. E ela não tinha nem armas para se
defender e nem machos bem armados para salvá-la durante seus ritos de passagem. Tanto
meminos como meninas não se transformavam em adultos enquanto não houvessem
enfrentado e vencido o medo.
Durante os primeiros dias, Ayla não tinha a menor vontade de afastar-se das redondezas da
caverna, mas, depois de algum tempo, começou a ficar irrequieta. No inverno, não havia
outra alternativa, era obrigada, como todos os outros, a aceitar o confinamento, mas,
fazendo tempo bom, sentia falta de suas caminhadas em liberdade. A ambivalência a
atormentava. Se estivesse sozinha na floresta, longe da segurança do clã, ficava inquieta,
apreensiva, e se perto, sentia saudade da solidão e do sentimento de liberdade que a floresta
lhe dava.
Certa vez em que se achava sozinha, sua coleta de plantas levou-a na direção de seu retiro
secreto e ela resolveu subir até a clareira no alto da montanha. O lugar tinha o poder de
acalmá-la. Era o seu mundo particular, com sua caverna e seu prado, e até o pequeno
rebanho de cabritos monteses que freqüentemente pastava por lá, sentia-o como seu. Os
bichos haviam ficado tão dóceis que ela quase chegava a tocar neles, antes que, aos pinotes,
eles se pusessem fora do alcance. Aquele espaço aberto lhe dava a sensação de segurança
que, agora, faltava à floresta, com os animais perigosamente emboscados. Havia passado o
verão inteiro sem voltar lá e as lembranças tomaram conta de seu pensamento. Fora
naquele lugar que aprendera por ela mesma a usar a funda, onde havia alvejado o porco-
espinho e onde encontrara o aviso de seu totem.
A funda estava com ela, não ousava deixá-la na caverna, onde Iza poderia encontrá-la.
Depois de algum tempo, catou algumas pedras e deu uns tan tos tiros para exercitar-se.
Mas isso havia ficado demasiadamente insípido para prender sua atenção por mais tempo.
Seu pensamento voltou para o incidente com o lince.
Se, naquele momento, eu tivesse uma outra pedra, dizia consigo, eu poderia ter acertado
nele, logo depois que errei o primeiro tiro. Poderia tê-lo apanhado antes que ele tivesse
chance de saltar. Olhou para as duas pedras que tinha na mão. Se houvesse um jeito de
atirar uma depois da outra. - . Mas Zoug não falou qualquer coisa assim para Vorn? Ela
remexia nas lembranças. Bem, se falou, deve ter sido quando eu não estava perto. Ficou a
considerar a idéia. Se eu não parasse depois do primeiro tiro, talvez pudesse meter uma
outra pedra na bolsa durante o movimento de descida e, logo em seguida, voltaria a pegar o
impulso para dar o segundo tiro. Será que daria certo?
Pôs-se a fazer algumas tentativas, sentindo-se tão desajeitada como no tempo de seus
primeiros arremessos. Depois, começou a desenvolver o ritmo:
atirava a primeira pedra, fazendo subir rapidamente a funda quando essa abai xava, já com
a outra pedra pronta, metida na bolsa com a arma ainda em movimento e dava o segundo
tiro. As pedras estavam sempre caindo e mesmo de pois que conseguiu lançá-las perdera
um pouco da pontaria, tanto no primeiro como no segundo tiro. Mas sentiu-se satisfeita,
vendo que a coisa era possível. Depois disso, passou a treinar diariamente. Ainda se sentia
apreensiva com o fato de caçar, mas a nova técnica representava outro desafio que veio
renovar seu interesse pela arma.
Na virada da estação, quando as encostas das montanhas pareciam pegar fogo, sua pontaria
era tão boa com duas pedras como antes o havia sido com uma. De pé, no meio do campo,
atirando pedras num outro poste que fincara no chão sentia a grata sensação detarefa
cumprida, sempre que ouvia o duplo tilintar das duas pedras atingindo o maro. Jamais
ninguém lhe dissera que era impossível o metralhar de duas pedras com funda,
simplesmente porque nunca a coisa fora feita antes, e já que ninguém lhe tinha contado,
ela não podia sabê-lo, por isso o fez.
Num belo dia de final de outono, quase um ano depois de haver tomado sua decisão de
caçar, Ayla resolveu subir à clareira para colher as avelãs maduras que se espalhavam pelo
chão. Enquanto se aproximava do topo, ouvia o cacarejar e os berros fanhosos de uma
hiena. Chegando ao terreno da clareira, deu com o hediondo animal, meio enterrado nas
entranhas sangrando de um velho veado.
A cena deixou-a louca de raiva. Como ousava aquele bicho infecto em porcalhar sua
clareira, atacar seu veado? Ia começar a correr na direção do animal para espantá-lo, mas
pensou melhor. Também as hienas eram animais predadores, possuíam mandíbulas tão
fortes que eram capazes de partir com os dentes os ossos duros da perna de muitos animais
de cascos. Além disso, não largavam muito facilmente suas presas. Ela, rápido, retirou a
cesta das costas, pegando a funda ali escondida. Enquanto ia na direção de um afloramento
perto da pared de pedra, procurava no chão por pedras. O velho veado já estava meio devorado e o movimento dela despertou a atenção do bicho com os seus
pélos desgrenhados e sujos de sangue. Era quase do tamanho do lince. O animal levantou a
cabeça, farejando o ar, e se virou na direção da garota.
Ayla estava pronta. Depressa, saiu de detrás da rocha e arremessou a pedra, seguida logo
de outra. Ela não sabia que a segunda era desnecessária, bastava uma para fazer o serviço.
Em todo caso, era sempre bom estar prevenida. Aprendera bem a lição. Já tinha uma
terceira pedra ajustada na funda e uma quarta na mão, preparada para outra série de tiros, se
fosse necessário. A enor me hiena caiu no lugar mesmo em que se achava, sem fazer
qualquer outro movimento. Ayla olhou em derredor, certificando-se de que não havia
nenhuma mais por ali. Com cuidado, sempre com a funda na mão, encaminhou-se para o
animal. No caminho, pegou a tíbia de uma perna dianteira, ainda com farrapos de carne
sangrando colados ao osso. Segurou-a firme e deu uma pancada para arrebentar o crânio
da hiena. Aquela ali nunca mais iria levantar.
Olhou o animal morto a seus pés e deixou cair no chão o porrete. A consciência do que
havia feito foi chegando aos poucos. Matei uma hiena, disse consigo, ainda sob o impacto
do acontecido. Matei uma hiena com a minha funda, não um animalzinho qualquer, mas
uma hiena, um animal que me poderia ter matado. Isso não significa que já sou uma
caçadora? Uma caçadora de verdade? Não era alegria o que sentia, nem as emoções de uma
primeira caçada ou a satisfação por ter vencido um animal ferocíssimo, dotado de grande
força. Era qualquer coisa de mais profundo e humilde. Era a consciência de que havia
triunfado sobre si mesma. Chegou-lhe como uma revelação espiri tual, como uma
compreensão mística do seu eu mais profundo e, muito comovida, com toda a reverência
devida, dirigiu-se ao espírito de seu totem, expressando-se na velha linguagem formal do
clã.
Sou apenas uma menina, Ó Grande Leão da Caverna, e os caminhos dos espíritos são
estranhos para mim. Mas acho que agora já compreendo um pouco mais. O lince foi um
teste para mim, até mais difícil do que o de Broud. Creb sempre diz que é difícil viver com
totens fortes, mas nunca disse que as melhores dádivas que estes nos proporcionam, nós as
achamos dentro de nós. Jamais me falou daquilo que sentimos quando finalmente
conseguimos com preender. Sou agradecida por me ter escolhido, Grande Leão da Caverna.
Espero continuar sempre digna de você.
Foi somente quando a luminosa policromia outonal perdeu seu fulgor, já com as folhas
murchas caindo dos galhos à mostra, é que Ayla voltou à floresta Ela pegava a trilha dos
animais que escolhia para caçar, estudando-lhes os hábitos, mas, agora, tratando-os com
mais respeito, como seres vivos e também como temíveis adversários. Muitas vezes,
avançando de rastos, chegando perto
de sua presa e já pronta para atirar, ela se refreava, limitando-se apenas a observar. Passara
a ter profundo amor pela vida, percebendo a inutilidade da morte de um animal que não
representava ameaça ao clã e cuja pele não poderia usar. Mantinha-se, entretanto, em sua
firme decisão de tornar-se no melhor caçador do clã Ela não sabia que já o era. A única
maneira de aperfeiçoar sua técnica seria caçando. E ela o fazia.
Os resultados começaram a se fazer notados, deixando os homens bastante inquietos.
- Encontrei outro carcaju, ou melhor, o que sobrou deste. não muito longe do campo de
treinamento - falou Crug.
- E havia uns pedaços de pele que pareciam ser as de um lobo. Estavam a meio caminho,
depois que se começa a subida da colina - informou Goov, por sua vez.
- São sempre comedores de carne e animais ferozes. Nunca totem de mulheres - disse
Broud. - Grod acha que devemos falar com o Mog-ur.
- E sempre também de tamanho pequeno ou médio, não gatos grandes. Veados, cavalos,
carneiros, cabras, até mesmo javalis costumam ser apanhados pelas hienas, lobos e onças,
mas que coisa é essa que está matando esses come- dores de carne? Nunca vi tantos deles
mortos - observou Crug.
- Isso é o que eu gostaria de saber. Por que será que estão morrendo? não que eu me
importe de ter menos alguns lobos e hienas rondando por aqui, mas é que se não somos
nós. . . Grod, vai falar com o Mog-ur, não é? Vocês acham que pode ser algum espírito? -
falou Broud, reprimindo um tremor no corpo.
- E se for um espírito, será um bom espírito que está querendo ajudar- nos ou algum
espírito furioso com nossos totens? - perguntou Goov.
- Isso é com você, Goov. Você é quem levantou a questão. Como acólito do Mog-ur, o
que você acha? - respondeu Crug, com outra pergunta.
- Acho que a pergunta só pode ser respondida depois de muita meditação e depois de
haver uma consulta aos espíritos.
- Você até parece o Mog-ur falando, Goov. Nunca dá uma resposta direta - disse Broud,
ironizando.
- Bem, Broud, qual seria a sua resposta? - contrapôs Goov. - Será que consegue dar
uma mãu direta? O que está matando os animais?
- não sou o Mog-ur e nem estou sendo educado para tal função. Por isso não me
pergunte.
Ayla, que se achava trabalhando nas proximidades, reprimiu um sorriso. Com que então
agora virei um espírito, só que não conseguem chegar a uma Conclusão se sou um bom ou
mau espírito.
O Mog-ur aproximou-se sem que eles o percebessem. Ele havia acompanhado a discussão.
- Ainda não tenho a resposta, Broud - disse o feiticeiro. - Isso precisa ser meditado. O
que posso dizer é que este não é um caminho normal usado pelos espíritos, quando eles
desejam comunicar-se.
Espíritos, pôs-se a pensar o Mog-ur, podem tornar o tempo muito quen te ou muito frio,
mandar nevar ou chover em grande quantidade espantar os rebanhos, enviar doenças e
ordenar raios, trovões ou terremotos, mas normalmente não são responsáveis pela morte de
determinados animais. Nesse mistério, deve haver algum dedo humano. Nesse momento,
Ayla se levantou e foi para a caverna. O feiticeiro, pensativo, ficou observando-a. Há
qualquer coisa diferente nela, está mudada. Reparou que Broud também a acompanhou com
os olhos- Era um olhar frustrado, carregado de rancor. Broud também percebe a diferença,
pensou Creb. Talvez seja porque Ayla não é genuinamente dos clã e este andar seja pelo
fato
de estar crescendo. Alguma coisa, entretanto, o incomodava por dentro, fazendo-o sentir
que aquela não era bem a resposta.
Ayla havia mudado. Quanto mais se aprimorava como caçadora, mais emanava de sua
pessoa um ar de confiança e uma graça imponente, inexistente nas mulheres do clã A
garota tinha o andar silencioso de um experiente caçador, o rígido controle dos músculos
de seu jovem corpo, a plena confiança em seus reflexos e uma expressão sagaz nos olhos
que iniperceptiVelmente se toldavam sempre que Broud vinha importuná-la. Era como se
não o estivesse vendo. Obedecia-o prontamente mas não havia medo nela, ainda que o rapaz a cobrisse de pancadas.
Sua serenidade, essa confiança em si mesma eram muito mais intangíveis do que a
declarada rebelião de outros tempos, mas, nem por isso, menos percebida por Broud. Era
como se ela condescendesse em obedecê-lo, como se soubesse de algo que ele ignorava.
Broud a observava, tentando captar algum desvio sutil, alguma coisa por que pudesse
castigá-la, mas aquilo lhe escapava.
Ele não podia entender como ela o conseguia, mas o fato era que todas as vezes em que
tentava fazer valer sua superioridade, Ayla o fazia sentir-se por baixo e inferior a ela. Isso o
dejxava frustrado, furioso, e quanto mais ele a perseguia, maior era sua sensação de não
poder dominá-la. Odiava-a por isso. Mas, com o tempo, foi aos poucos deixando de
importuná-la, inclusive procurando certo distanciamento dela, e fazendo-se lembrar só
ocasionalmente para impor suas prerrogativas. Quando o outono terminou, seu ódio por ela
fora redobrado. Algum dia iria demoli-la. Faria com que pagasse por todo o mal que
causara a seu orgulho de homem. Ah sim, algum dia ela ainda iria arrepender-se.

Capítulo 13

O inverno chegou e com ele o decréscimo de atividades que ligavam o clã a todas as coisas
vivas que acompanhavam o ciclo das estações. A vida ainda pulsava, mas em ritmo
vagaroso. Pela primeira vez, Ay la se viu esperando com impaciência a entrada do inverno.
A atividade intensa e a correria com os trabalhos próprios das outras estações deixavam
pouco tempo para que Iza prosseguisse com suas aulas. À chegada das primeiras neves, as
lições foram retomadas. O padrão de vida no interior da caverna se repetia com o mínimo de
variações e, aos poucos, o inverno foi-se extinguindo novamente.
A primavera chegou atrasada e chuvosa, O degelo nas montanhas, secundado por chuvas
torrenciais, encheu o riacho que, em ondas turbulentas, extravasava pelas margens e
arrastava, no seu percurso para o mar, árvores e arbustos inteiros. As correntezas
bloqueadas desviaram a rota normal das águas e engoliram parte do caminho feito pelo clã
ao longo do riacho. Ao final da primavera, uma breve pausa de calor, suficiente apenas para
um tímido desabrochar de flores nas árvores frutíferas, foi abortada pelas chuvas de
granizo que saquearam os delicados botões das árvores, pondo fim ás esperanças de uma
boa colheita. Então, como se a natureza, arrependida, quisesse reparar pela perda dos frutos
negados, as primeiras safras do verão foram fartas e generosas em verduras, raízes,
abóboras e legumes.
O clã achava-se saudoso de suas idas na primavera à orla marítima, e foi com grande
alegria que viram Brun anunciar que estavam de saída para a pesca do esturjão e do
bacalhau. Apesar de eles estarem freqüentemente fazendo o percurso de 16 quilômetros até
o mar para pegar moluscos e ovos da infinidade de pássaros que se aninhava nos
penhascos, a pescaria dos peixes grandes era das poucas atividades que exigia o esforço
conjunto de homens e mulheres.
Droog tinha razões especiais para querer ir. As pesadas enxurradas da primavera haviam
arrastado os nódulos de pedras dos depósitos de greda nas ele vações do terreno, levando-os
para as partes planas alagadas, onde ficaram encalhados. Ele já havia feito uma inspeção
antes e vira diversos depósitos de aluvino. A pescaria lhe daria boa oportunidade para se
reabastecer de novas ferramentas, feitas com pedra de altíssima qualidade. Era mais fácil
britar a
rocha no local do que transportar os pesados blocos para a caverna. Já fazia algum tempo
que Droog não abastecia o clã, e as pessoas tinham de se arranjar com instrumentos
grosseiros pois os bons de que gostavam eram feitos com pedras frágeis que se partiam
facilmente. Todos eram capazes de fabricar ferramentas, mas poucas destas podiam ser
comparadas com as feitas por Droog.
Havia um alegre clima de feriado, enquanto se faziam os preparativos. Não era sempre que
o clã inteiro largava de uma só vez a caverna, e a novidade de poder acampar na praia era
algo de extremamente excitante, sobretudo para as crianças. Brun havia estabelecido que
um ou dois homens diariamente viriam à caverna certificar-se de que nada na ausência
deles saíra do lugar. Até Creb esperava ansioso pela mudança de cenário. Raramente os
seus passeios o levavam para longe da caverna.
As mulheres trabalhavam na rede, reforçando os fios que estavam enfraquecidos e fazendo
uma parte nova onde utilizavam cordas feitas de fibras de trepadeiras e de cascas de
árvores, gramíneas resistentes e compridas crinas de animal para dar elasticidade ao tecido.
Embora fosse material firme e resistente, nervos e tendões aqui não eram usados. Tal
como o couro, depois de molhados, ficavam duros e tesos, além de que também não
absorviam a gordura usada para amaciar a trama.
O esturjão, um maciço peixe, atingindo muitas vezes três metros e meio de comprimento e
pesando cerca de uma tonelada, emigrava do mar, onde passava a maior parte do ano, para
as águas frescas dos rios e canais, quando desovava no princípio do verão. Os tentáculos
carnosos, sob as laterais de sua boca desdentada, davam a esse velho peixe, parecido ao
tubarão, uma aparência assustadora, embora sua alimentação consistisse de
invertebrados e pequenos peixes, apanhados nas profundidades dos oceanos. O bacalhau,
um peixe de menor tamanho, em geral nunca pesando mais de 12 quilos, mas, em casos
extremos, chegando a mais de 90, fazia sua migração sazonal no verão para águas de menor
profundidade. Normalmente, ia buscar seus alimentos no fun do dos mares. Contudo,
costumava, às vezes, nadar perto da superfície e nos canais de águas limpas, quando
emigravam ou estavam à busca de comida.
Durante os 14 dias de verão em que os esturjões faziam sua desova, as desembocaduras dos
rios e canais estavam sempre cheias. Apesar de que os peixes que escolhessem os cursos
d'água menores nunca chegassem a ter ota manho dos esturjões gigantes que subiam pelos
grandes rios, aqueles que iam cair nas malhas da rede do clã já eram bastante pesados na
hora de trazê-los para a praia. Quando começava a se aproximar o tempo de migrações,
Brun enviava todos os dias alguém até a costa. O primeiro dos esturjões brancos havia
justa mente acabado de aflorar nas águas do rio, quando ele anunciou a próxima excursão.
Partiram na manhã seguinte.
Ayla acordou excitada. Já antes de fazer a primeira refeição tinha sua
pele de dormir enrolada, a comida e os utensílios de cozinha embalados dentro de sua
cesta de colher e, por cima de tudo, um grande pano de couro que seria usado para armar
uma espécie de barraca. Iza nunca saía da caverna sem sua sacola de medicamentos e ainda
a arrumava, quando Ayla foi para fora, querendo ver se já estavam todos prontos para
partir.
- Depressa - disse Ayla correndo de volta, incentivando Iza a andar rápido.
- Calma, menina. O mar não vai desaparecer -respondeu Iza, depois de puxar o cordão e
amarrar, apertada, a sacola.
Ayla botou sua cesta às costas e pegou Uba. Iza seguiu atrás, mas, antes de sair, ainda se
virou para dar uma última olhada, tentando lembrar-se se não se esquecera de nada. Todas
as vezes que ia a algum lugar, sentia como se ti vesse esquecido de alguma coisa. Bom, se
for importante, Ayla pode vir apa nhar, pensou. O clã já estava quase todo do lado de fora e
pouco depois que Iza tomou seu lugar, Brun deu o sinal de partida. Mal se tinham posto
em caminho, Uba começou a contorcer-se querendo descer.
- Uba não é bebê! Quer andar também - gesticulou, tocada nos seus brios de criança.
Com três anos e meio, Uba começava a imitar os adultos e as crianças mais velhas, já
rejeitando os mimos dispensados aos bebês. Estava crescendo. Dentro de quatro anos,
provavelmente, seria mulher, tinha, por tanto, muito o que aprender num curtíssimo
período, e, através de um processo interno de sua maturação já começava a preparar-se
para outras responsabilidades com que muito brevemente teria de arcar.
- Está bem, Uba - disse Ayla, pondo-a no chão. - Mas, fique perto de mim.
Seguiam pelo lado da montanha que margeava o riacho - desviado de seu rumo - ao
longo do novo caminho que já se formara, próximo ao ponto onde as águas foram
bloqueadas em seu curso. Era uma caminhada fácil e, antes do entardecer, já tinham
chegado a um trecho da praia. A volta iria exigir-lhes maiores esforços. Usando pedaços de
madeira e paus lançados à praia pelas ondas, armaram as cabanas, provisoriamente, num
sítio fora do alcance da maré cheia. As fogueiras começaram a ser acesas e a rede mais uma
vez foi vistoriada. Começariam a pescaria na manhã seguinte. Depois de estarem
acampados, Ayla se dirigiu ao mar.
- Vou até a água, mãe - disse ela.
- Por que essa sua mania de ir para água, Ayla? É perigoso e você sempre vai muito lá
para fora.
- É delicioso, Iza. Vou ter cuidado.
Isso acontecia sempre. Todas as vezes que Ayla ia nadar, Iza se preocupava. Ayla era a
única no clã que gostava de nadar e também a única que podia fazê-lo. Para as pessoas dos
clãs, com seu pesado arcabouço ósseo, nadar era
difícil. não boiavam com facilidade e tinham pavor de entrar em lugares onde não dava pé.
Iam na água para apanhar peixes, mas não gostavam de passar além do nível da altura do
peito. Sentiam-se intranquilos. O gosto de Ayla pela água era visto como mais uma de
suas peculiaridades. Havia outras.
Aos nove anos, Ayla estava mais alta do que qualquer mulher e já do tamanho de alguns
dos homens, contudo não mostrava ainda qualquer sinal de estar-se aproximando da fase
adulta. Iza, às vezes, perguntava-Se se ela algum dia iria parar de crescer. Sua altura e o
atraso na menstruaçãO eram motivos de especulação em certos meios, já se aventando,
inclusive, a possibilidade de que o forte totem dela não iria deixá-la sangrar. Muitos
achavam que talvez ela fosse passar pela vida como um tipo neutro, nem homem nem totalmente mulher.
Creb aproximou-Se de Iza,enquanto ela observava Ayla caminhando na direção do mar. O
corpo rijo e magro, uma musculatura flexível, sem relevos na pele e as pernas longas e
lépidas faziam dela uma figura desajeitada e deselegante, mas seus movimentos ágeis
desmentiam a aparente falta de graça e jeito. Embora tentasse imitar a postura subserviente
das mulheres do clã, faltava- lhe as pernas curtas e tortas. Por mais que tentasse andar com
passos miúdos, suas pernas compridas a levavam longe, em passadas quase masculinas.
Mas não eram apenas as pernas longas que a tornavam diferente. Ayla irradiava uma
confiança em si que jamais alguma mulher dos clãs possuiu. É que era uma caçadora.
Nenhum homem podia comparar-se a ela em sua arma, e agora ela já sabia disso. não podia
fingir submissão a uma maior superiori dade masculina que não sentia. Carecia do
compromisso de uma fé cega que se constituía num dos atrativos das mulheres dos clãs.
Aos olhos dos homens
- com seu corpo alto e liso, desprovido de todo atributo feminino e uma atitude
inconsciente de segurança, diminuindo ainda mais sua já duvidosa beleza - Ayla, além de
feia, não era feminina.
- Creb - gesticulou Iza.
- Aba e Aga dizem que ela nunca vai ficar mulher. Acham que
o totem de Ayla é forte demais.
- Claro que ela vai ficar mulher, Iza. Por acaso você acha que os Outros não têm filhos?
Só por ter sido aceita no clã, isso não muda sua natureza. Provavelmente, é normal nas
mulheres da raça dela amadurecerem mais tarde. Até mesmo algumas meninas dos clãs só
se tornam mulheres depois dos 10 anos. Você não acha que as pessoas deveriam dar pelo
menos esse prazo a ela antes de começar a imaginar anormalidades dessa ordem? Isso é
ridículo! - falou ele, bufando e aborrecido.
Iza ficou mais tranqüila, mas mesmo assim preferia que sua filha adotiva já estivesse dando
os primeiros sinais de feminilidade. Ela via Ayla caminhan do com a água pela cintura e
depois começando a bater os pés, dirigindo-Se com braçadas seguras para fora.
Ayla adorava boiar na água salgada e adorava também a sensação de liberdade que o mar
lhe dava. não se lembrava de como aprendera a nadar, parecia que era uma coisa que
sempre soube fazer. O banco de areia sob a água, após uns tantos metros, caía de repente,
mas a cor mais escura e a temperatura mais fria da água lhe davam a indicação desse
ponto. Virou-se de costas e pôs-se a boiar preguiçosamente, embalada pelo movimento das
ondas. Depois, cuspindo um bocado de água que lhe bateu no rosto, virou o corpo, voltando
para a praia. A maré estava baixando e ela fora arrastada para a desembocadura do riacho.
A força das diferentes correntes a obrigava a nadar com mais energia. Com esforço,
alcançou o lugar em que dava pé e caminhou de volta à praia. Antes, lavou-se na água doce
do rio, sentindo a correnteza puxá-la pelas pernas e a areia do fundo escorregando-lhe sob
os pés. Cansada mas refrescada, deixou-se cair perto da fogueira do lado de fora da
barraca.
Depois de todos alimentados, ayla, numa expressão sonhadora, olhava a distância,
pensando no que poderia haver para além das águas. Acima da arrebentação, os pássaros,
grasnando e gritando, revoavam em roda, ou fazendo vertiginosos mergulhos. As
carcaças descoloridas daquilo que uma vez se constituiu em viçosas árvores quebravam,
com os seus contornos retorcidos, a uniformidade da praia, enquanto a vastidão azul-
acinzentada cintilava sob os raios do entardecer. A cena lhe deixava um sentimento vago e
irreal de algo de outro mundo. Aos poucos, o madeirame contorcido foi-se transformando em grotescas silhuetas, para por fim desaparecer na escuridão da noite sem lua.
Iza levou Uba para dentro da barraca e depois veio sentar-se perto de Ayla e Creb, junto da
fogueira botando volutas de fumaça no céu estrelado.
- O que elas são, Creb? - perguntou Ayla, com voz calma, apontan do para o alto.
- Fogueiras no céu. Cada uma é a casa do espírito de alguém no outro mundo.
- Existe tanta gente assim?
- São as fogueiras de todos aqueles que foram para o mundo dos espíritos e de todos os
que ainda não nasceram. São as fogueiras também dos espíritos, mas a maioria dos totens
possui mais de uma. Vê aquelas ali? - disse Creb, apontando. - É a casa do Grande
Ursus. E aquelas lá? - Apon tou em outra direção. - É a casa de seu totem, Ayla. O
Leão da Caverna.
- Gostaria de dormir do lado de fora para ficar olhando as fogueiras no céu - disse Ayla.
- Mas não é uma boa coisa, quando está ventando e a neve caindo - interpôs Iza.
- Uba gosta também das fogueiras pequeninas - gesticulava a menina, aparecendo junto
deles, no círculo de luz feito pela fogueira.
- Pensei que estivesse dormindo, Uba - falou Creb.
- não Uba quer também ficar olhando para as pequeninas fogueiras. Igual Creb e Ayla.
- Chegou o momento de todos irem dormir - gesticulou Iza. - Amanhã vai ser um dia
cheio.
Bem cedo no dia seguinte, o clã estendeu a rede através do canal. Bexigas nadatórias
guardadas de outras pescarias de esturjão, cuidadosamente lavadas e secas até se tornarem
resistentes balões de gelatina, serviam de bóias para a rede, e pedras amarradas no centro
funcionavam como pesos. Brun e Droog pegaram uma das extremidades e foram para a
margem oposta. Em seguida, ao sinal do chefe, adultos e crianças começaram a entrar na
água. Uba os seguiu.
- não Uba - gesticulou Iza. - Você fica. Ainda não tem idade para isso.
- Mas Ona está ajudando disse, implorando.
- Só que Ona é mais velha. Depois, você ajuda quando tivermos trazido os peixes. Por
enquanto é muito perigoso para você. Até Creb ficou na praia. Fique aqui.
- Sim, mãe - respondeu a menina, visivelmente desapontada.
Vagarosamente, de modo a agitar o menos possível a água, eles foram andando, abrindo-se
em leque, até formar um semicírculo. Depois pararam, esperando que a areia levantada com
os movimentos voltasse a assentar. Ayla tinha os pés separados, firmando o corpo contra a
forte correnteza que ondeava ao redor de suas pernas e, com os olhos presos em Brun,
aguardava o sinal. Estava no meio do canal, eqüidistante das duas margens e no ponto mais
próximo do mar. 'Viu quando uma mancha escura passou deslizando a uma pequena
distância dela. Os esturjões vinham a caminho. Brun levantou o braço. As respirações
estavam todas suspensas. Súbito, ele o abaixou e o clã se pôs a gritar e a bater na água
fazendo salpicá-la espumosamente. O que parecia ser um caos desordenado de barulhos e
levantar de espumas logo se mostrou com propósito definido. O clã ia fechando o círculo e,
simultaneamente, arreba nhando os peixes para a rede. Da outra margem, saíram Brun e
Droog seguran do uma das pontas da rede, enquanto a barafunda armada na água impedia
os peixes de voltarem ao mar. A rede ia fechando e se juntando cada vez num menor
espaço, com uma massa prateada de peixes lutando desesperadamente. Alguns tentavam
fazer pressão sobre as malhas, ameaçando passar pelos buracos, mas um número de mãos
cada vez maior de pessoas ia segurando na rede empurrando-a para a margem, onde
estavam também outras puxando, todas empenhadas na luta para encalhar na praia dezenas
de peixes contorcendo-se convulsivamente.
Ayla levantou os olhos e viu Uba enterrada até os joelhos em meio aos peixes saltitantes,
tentando alcançá-la do outro lado da rede.
- Uba! Afaste-se! - disse a garota por sinais.
- Ayla, Ayla! - gritou a menina, apontando para o mar. - Veja! Ona!
Ayla se virou e pôde ainda ver de relance uma cabeça negra sendo levantada pelas águas
e depois desaparecer. A menina, um ano e pouco mais velha do que Uba, havia perdido o
pé e estava sendo arrastada para o mar. Na confusão de puxar a rede, ela fora esquecida.
Apenas Uba, da praia, cheia de admiração por sua companheira de brincadeiras, percebeu a
situação de apuro em que Ona se achava e tentava desesperadamente chamar a atenção dos
outros.
Ayla mergulhou de volta nas águas turvas e revolvidas do riacho. Nunca nadara tão
depressa na vida. A correnteza puxando para o mar ajudava-a, mas ao mesmo tempo
arrastava com a mesma força a menina na direção do lugar onde o banco de areia
desaparecia repentinamente. Ayla viu-lhe mais uma vez a cabeça despontando na superfície
e redobrou o esforço. Estava-se aproximando, mas tinha medo de que não desse tempo. Se
Ona chegasse no ponto onde havia o desnivelamento do fundo das águas, antes que ela
pudesse alcançá-la, a ressaca ali a enviaria para o alto-mar.
A água já começava a ficar salgada. Ayla podia sentir seu gosto. A cabecinha preta mais
uma vez levantou-se a uns poucos metros e depois tornou a sumir de vista. Numa
arremetida desesperada, Ayla mergulhou para agarrar a cabeça desaparecendo, sentindo que
a temperatura da água esfriara. Percebeu então os cabelos flutuando da menina e os apertou
firmemente na mão.
Ayla tinha a impressão de que seus pulmões iam estourar - não tivera tempo de pegar
fôlego para dar o mergulho - e quando conseguiu chegar à superfície, trazendo sua
preciosa carga, estava meio tonta. A menina achava-se inconsciente, mas ela deu um jeito
para que a cabeça de Ona ficasse por cima da água. Ayla nunca experimentara nadar
carregando outra pessoa, mas tinha de levar Ona à praia o quanto antes, mantendo sempre
sua cabeça na super fície. Com um dos braços, Ayla apertou a menina contra o corpo,
enquanto com o outro acertou a batida para nadar.
Quando chegou num ponto em que dava pé, viu que o clã inteiro se me tera na água para
esperá-la. Ela suspendeu o corpo de Ona, desfalecida, e o entregou a Droog, só então
percebendo o quanto estava exausta. Creb achava- se a seu lado e com surpresa viu que do
outro se encontrava Brun, ajudando-a a chegar à praia. Droog ia à frente e quando ela, por
fim, caiu na areia, Iza já havia espichado sobre a areia o corpinho de Ona e bombeava a
água de seus pulmões.
Não era a primeira vez que alguém do clã esteve em tempo de morrer afogado. Iza sabia,
portanto, o que fazer. E houve também aqueles que ficaram para sempre perdidos nas
geladas profundezas das águas, só que, desta vez, o mar saíra logrado, ficando sem sua
vítima. Ona começou a tossir e a balbuciar, enquanto a água lhe fluía da boca. As pálpebras
tremeram.
- Minha filinha! Minha filhinha! - gritou Aga, atirando-Se ao chão. Inteiramente
desvairada, segurou-a. - Pensei que estivesse morta. Estava certa de que tivesse ido
embora. Oh, meu bebê, minha única filhinha!
Droog tirou Ona do colo da mãe e a segurou bem junto a seu corpo, levando-a para o
acampamento. Contrariando OS costumes, Aga seguia a seu lado, acariciando a filha que
pensava ter perdido.
Quando Ayla se levantou e caminhou, as pessoas a olhavam, admiradas, apontando em sua
direção. Jamais alguém arrastado pelas águas havia sido, até então, salvo. Era um milagre
Ona estar viva. E nunca mais também um membro do clã de Brun olharia para Ayla
zombeteiramente, quando ela se deixasse levar por alguma de suas idiossincrasias. É a
sorte dela., diziam. Ela sempre nos trouxe sorte. não foi ela quem encontrou a caverna?
Os peixes continuavam ainda contorcendo-se espasmodiCamente na margem. Alguns
deram jeito de voltar às águas do canal, quando o clã, percebendo o que estava
acontecendo, largou tudo para ir ao encontro de Ayla e Ona semimorta. A maioria,
entretanto, continuava emaranhada na rede. O clã voltou ao serviço de puxá-los para a praia
e, em seguida, matá-los com pauladas para que as mulheres pudessem começar a limpá-
los.
- Uma fêmea! - gritou Ebra, depois de abrir a barriga de um belo espécine de
esturjão. Todos correram para o enorme peixe.
- Veja só isto! - gesticulou Vorn estendendo a mão, querendo pegar um punhado das
ovinhas negras. Caviar fresco era sempre uma festa. Quando aparecia a primeira fêmea,
cada um corria para agarrar uma boa porção das ovas e depois ir saboreá-las sozinho. As
outras encontradas seriam salgadas e postas em conserva para usos futuros, mas nunca eram
tão gostosas quando na hora, saindo frescas do mar. Ebra barrou o garoto e fez sinal para
Ayla.
Esta olhou em derredor, embaraçada por se ver como centro das atenções.
- Sim, Ayla, você pega primeiro - gesticulou Ebra.
Ayla levantou os olhos para Brun. Ele fez que sim com a cabeça. Timi damente, ela deu uns
passos à frente e pegou um punhado do caviar reluzin do em seu negrume. Depois,
endireitou o corpo e deu uma provada. Ebra fez, então, um gesto e cada um foi buscar sua
porção, ficando, ali, felizes, ao redor do peixe. Haviam sido poupados de uma tragédia e o
alívio que sentiam dava um clima de festa à ocasião.
Devagar, Ayla se encaminhou para sua cabana. Sabia que fora homena geada e, com
pequenas mordidas, ia saboreando o rico caviar e a boa sensação de se ver aceita. Um
sentimento de que ela para sempre iria lembrar-se.
Depois de ter trazido à terra e matado os peixes, os homens se puseram de la do para mais
uma de suas inevitáveis reuniões de bate-papo, deixando a limpeza e o trabalho de conserva para as mulheres. Além das afiadas facas de pedra para abrir os
peixes e cortar em filé a carne dos maiores, elas dispunham de um instrumento especial
para o serviço de escamação. Era uma faca cega para poder ser empunhada com mais
facilidade e com um entalhe na ponta, onde se colocava o indicador, de modo a controlar a
pressão e permitir raspar as escamas sem danificar a pele do peixe.
Além de esturjões, a rede do clã colheu bacalhaus, carpas, algumas belas trutas e mesmo
uma certa quantidade de crustáceos vinha como parte do arrastão. Os pássaros, atraídos
pelo cheiro dos peixes, rondavam por perto, esperando regalar-se com as entranhas e, se
possível, roubar alguns filés. Depois de os pescados serem postos para secar ao ar livre ou
sobre a fumaça das fogueiras, a rede era esticada por cima destas. Com isso, não só ela
secava, como punha à mostra os pontos onde precisava de consertos. Além, ainda, de
impedir os pássaros de roubarem aquilo que havia sido duramente ganho.
Antes de o tempo da pescaria terminar, já estariam fartos do gosto e do cheiro de peixe,
mas a primeira noite era sempre um acontecimento bem- vindo que festejavam juntos. Os
peixes reservados à comemoração - sobre tudo bacalhaus de cuja carne branca e delicada
particularmente gostavam de comer ainda fresca - eram arrumados em ninhos de ervas e
depois de enrolados em grandes folhas verdes, eram postos sobre as brasas. Embora nada
fosse explicitamente dito, Ayla sabia que a festa daquela noite era em sua honra. Via-se
como destinatária dos melhores pedaços e partes das carnes que as mulheres lhe ofereciam
insistentes, e um filé inteiro lhe tinha sido preparado com especiais cuidados por Aga.
O sol já desaparecera e as pessoas se dispersaram, cada qual buscando sua barraca. Iza e
Aba conversavam perto da grande fogueira com as brasas extinguindo-se sob as cinzas,
enquanto Ayla e Aga, sentadas em silêncio, observavam Ona e Uba brincarem. Groob, o
filho de um ano de Aga, dormia em paz nos seus braços, satisfeito com o leite generoso da
mãe.
- Ayla - começou Aga a dizer, hesitando. - Queria que você soubesse uma coisa. Nem
sempre tenho sido boa com você.
- Aga, que bobagem, você sempre se mostrou atenciosa comigo - interrompeu Ayla.
- Isso não é a mesma coisa que boa - disse Aga. - Já falei com Droog você sabe, ele
passou a gostar muito de minha filha, apesar de ela ter nas cido quando eu estava com o
meu primeiro companheiro. Droog nunca tinha tido na fogueira dele uma menina. Ele diz
que agora você irá carregar para sempre uma parte do espírito de Ona. não entendo a
maneira de os espíritos agirem, mas Droog diz que, quando um caçador salva a vida de
outro, ele fica com um pedaço do espírito do homem que salvou. Os dois ficam algo assim
como germanos, como se fossem irmãos. Fico feliz por você compartilhar do espírito de Ona, Ayla. Estou contente de ela estar aqui e dividir uma parte do seu
espírito com você. Se eu tiver bastante sorte para ter outro filho e se nascer menina, Droog
prometeu que daria a ela o seu nome.
Ayla estava espantada. Não sabia o que responder.
- Aga, isso é uma grande honra. Mas Ayla não é nome de pessoas dos clãs
- Daqui por diante, ficará sendo. - Ela se levantou, fez sinal para Ona e já ia sair, quando
se voltou para dizer: - Já estou indo embora.
Os gestos expressando a frase eram os que mais se aproximavam do sentido de "até
logo". Quase nunca eram usados. As pessoas simplesmente saíam sem nada dizer. A língua
igualmente não possuía nenhum termo para expressar "obrigado". Entendiam o que fosse a
gratidão, mas com diferente cono tação geralmente no sentido do dever que alguém de
status inferior tinha para com um outro de posição social mais elevada. Ajudavam-se uns
aos outros, porque este era o modo de viver, uma obrigação de todos, necessária à sobrevivência e nenhum agradecimento era esperado ou devido. Favores especiais e recompensas
comportavam o õnus da obrigação de retribuir algo de igual valor. Isso estava implícito e
nenhum agradecimento se fazia necessário. Enquanto Ona vivesse, ela ou a mãe - até que
a filha se tornasse maior - estaria em dívida com Ayla, a não ser que surgisse alguma
ocasião, quando uma ou outra pudesse retribuir com um favor igual, de modo a guardar, por
sua vez, uma parte do espírito de Ayla. O oferecimento de Aga não tinha, pois, o sentido de
retribuição significava ainda mais do que isso e era a sua maneira de dizer obrigado.
Aba se levantou para sair pouco depois de a filha ter ido.
- Iza sempre diz que você traz sorte - gesticulou a velha ao passar por Ayla. - Agora,
eu acredito.
Ayla veio sentar-se junto de Iza, depois de Aba ter ido embora.
- Iza,Aga me disse que vou carregar para sempre comigo uma parte do espírito de Ona,
mas a única coisa que fiz foi trazê-la para a praia. E se ela respirou outra vez foi por sua
causa. Você salvou a vida dela tanto quanto eu. Você também não carrega uma parte do
espírito de Ona? Você deve carregar um pouco dos espíritos de todas as pessoas que já
salvou, não é as sim?
- Por que você acha que uma curandeira tem um status que ninguém mais tem? É
justamente porque ela carrega uma parte dos espíritos de todas as pessoas de seu clã. Dos
homens e das mulheres. E através do clã dela, de todos os outros clã É a curandeira quem
ajuda a botar as pessoas no mundo e quem cuida delas pela vida afora. Quando uma mulher
se torna curandeira, recebe uma parte do espírito de cada um, mesmo daqueles cuja vida
ainda não salvou, porque nunca se sabe quando isto vai acontecer.
"Quando uma pessoa morre - prosseguiu Iza - passando para o mundo dos espíritos, a
curandeira perde uma parte de seu espírito. Há gente que acre dita que isto obriga a
curandeira a botar mais empenho no seu trabalho, mas, seja como for, a maioria de nós
procura sempre fazer o melhor que pode. Nem toda mulher pode ser curandeira e nem toda
filha de curandeira também pode. Precisa haver uma coisa dentro da pessoa que faz com
que ela queira ajudar os outros. Você tem isso, Ayla. Foi por essa razão que eu quis treiná-la.
Percebi quando você quis ajudar o coelho. . . foi pouco depois de Uba nascer. E agora
quando você foi atrás de Ona, a única coisa em que pensou foi em salvar a vida dela, sem
se importar com o perigo que você mesma estava correndo. As curandeiras de minha linha são
as que possuem status mais alto. Quando for curandeira, Ayla, você será da minha linha.
- Mas não sou sua filha de verdade, Iza. Você é apenas a única mãe que me lembro de ter
tído. Mas não nasci de você. Como vou poder ser de sua linha? não tenho as suas
memórias. Nem sei direito o que quer dizer essa coisa de memórias.
- As curandeiras de minha linha possuem o mais alto status, porque sempre foram as
melhores. Minha mãe, a mãe de minha mãe e todas as outras de quem me posso lembrar
sempre
foram as melhores. Cada uma foi passando para a outra o que já sabiam e o que iam
aprendendo. Você pertence aos clãs, Ayla. É a minha filha treinada por mim. Você saberá
tudo o que eu conseguir ensiná-la. Talvez, não tudo que eu saiba, mas nem mesmo eu sei
o quanto de conhecimentos tenho em minha cabeça. Mas essa quantidade que você tiver
já basta, porque existe uma coisa a mais. É o dom que você tem, Ayla. Acho que você
também deve vir de uma linha de curandeiras. Algum dia você também será muito boa.
"Você não tem as memórias, mas possui uma maneira de pensar e de compreender o que
está fazendo os outros sofrerem. Quando se sabe o que está machucando uma pessoa, é
possível ajudá-la, e sempre se encontra um meio de saber como ajudar. Nunca lhe ensinei
botar neve no braço de Brun quando Oga o queimou. Talvez eu tivesse feito a mesma
coisa, mas não fui eu quem lhe disse isso. É o dom que você tem, o seu talento, o que talvez
valha tanto quanto as memórias. . . talvez, até mais. É isso que é importante. Você
pertencerá à minha linha, porque será uma boa curandeira. Será digna do status que terá.
Será uma das melhores.
O clã entrou numa rotina regular. Pescavam só uma vez por dia, mas já era o bastante para
manter as mulheres ocupadas até o entardecer. Nada pior tornou a acontecer. Ona, no
entanto, não voltou mais a ajudar no trabalho de atrair os peixes para a rede. Droog achou
que ela ainda estava muito pequena, que podia esperar pelo ano seguinte. Mais para o fim
do período das desovas,
a quantidade de peixes diminuiu, deixando algum tempo livre para as mulheres no fim da
tarde. Já havia mais do que o suficiente. Ainda ia levar algum tempo para que as carnes dos
peixes secassem e, cada dia que passava, as fileiras de engradados na praia ficavam
maiores.
Droog havia esquadrinhado as terras inundadas pelo riacho, buscando os nódulos de pedras
arrastados das montanhas e conseguira arranjar uma certa quantidade que levou para o
acampamento na praia. Durante muitas tardes, ele podia ser visto britando pedras. Certa
vez, antes de estar programada a volta, Ayla viu quando Droog carregava uma trouxa da
barraca para um tronco nas imediações, que ele usava como mesa de trabalho. A garota
gostava de observá-lo e seguiu-o. Sentou-se de cabeça baixa na sua frente, esperando.
- Esta menina gostaria de ficar observando, se o ferramenteiro não se importar -
gesticulou, depois de Droog tomar conhecimento de sua presença.
Ele grunhiu qualquer coisa, enquanto assentia com a cabeça.
A garota arrumou um lugar no tronco para acomodar-se e ficou ali em silêncio, apenas
vendo.
A menina já o havia observado antes. Droog sabia que Ayla tinha realmente interesse por
seu trabalho e que não atrapalhava sua concentração. Quem dera que Vom mostrasse o
mesmo interesse, pensou consigo. Nenhum do jovens do clã tinha realmente talento para
aquele tipo de artesanato, e Droog, como todo bom profissional gostava de participar com
alguém de seus conhecimentos e passá-los adiante.
Talvez Groob venha interessar-se, pensou ele. Estava feliz por sua com panheira ter tido um
filho logo após Ona ter sido desmamada. Nunca havia ti do uma fogueira tão cheia, mas
não se arrependia de ter assumido Aga e as duas crianças. Inclusive a velha. não era de
todo mal ter Aba por perto. Ela sempre o atendia, quando Aga estava ocupada com o bebê.
Aga não tinha a mesma compreensão que a mãe de Goov e, no começo, ele teve algum
trabalho para botá-la em seu lugar. Mas Aga era jovem, tinha saúde e produzira um filho,
um garoto no qual Droog depositava grandes esperanças, pensando torná-lo ainda um bom
ferramenteiro. Droog aprendera a cortar pedra com o companheiro de sua mãe e
compreendia, agora, o prazer que deve ter dado ao velho, quando, ainda menino,
mostrouvontade de aperfeiçoar-Se naquela arte.
Ayla, desde que viera para o clã, freqüentemente ficava observando-o e ele já vira algumas
ferramentas feitas por ela. Possuía mãos jeitosas e boa técnica. As mulheres tinham direito
de fazer instrumentos, desde que não fossem usados como armas ou para fabricá-las. não
valia muito a pena ensinar uma menina, ela nunca seria perita, no verdadeiro sentido da
palavra. Mas, em todo caso, Ayla levava certo jeito, fazia algumas ferramentas úteis e era
melhor ter uma aprendiz mulher do que nenhum. Droog já lhe dera antes algumas
explicações sobre a técnica.
O artesão abriu a trouxa, estendendo o lençol de couro que embrulhava os seus
instrumentos de trabalho. Olhou para Ayla, resolvendo que ela poderia ter naquele dia
algum conhecimento sobre pedras. Pegou uma peça que pusera fora na véspera. Através de
longos anos de tentativas e erros, os antepassados de Droog o haviam ensinado que uma
pedra dá bons instrumentos quando ela possui uma combinação certa de determinadas
propriedades.
Ayla o observava com viva atenção, enquanto ele ia explicando. Em primeiro lugar, a
pedra precisava ser suficientemente dura, de modo a servir para cortar, raspar e rasgar,
tanto matéria vegetal como animal. Muitos dos silícios da família dos quartzos possuíam a
dureza necessária, mas o sílex tinha uma qualidade que a maioria dos outros - e também
uma quantidade de pedras compostas de minérios mais moles - não tinha. O sílex era
frágil e se quebrava com a pressão ou se se chocasse contra alguma coisa. Ayla deu um
salto para trás assustada, quando Droog, para demonstrar, bateu a pedra jaçada contra uma
outra, quebrando-a em dois pedaços e pondo à mostra o interior de diferente natureza, num
tom cinza-escuro.
Droog não sabia direito como explicar a terceira propriedade. Era um conhecimento que
estava profundamente entranhado nele e que fora adquiri do ao longo de anos de trabalho.
A propriedade que tornava possível seu tipo de artesanato estava na maneira de a pedra
partir, cuja diferença era dada pela homogeneidade do sílex.
A maioria dos minerais se partia ao longo das superfícies planas, em linha paralela às
estruturas dos cristais, o que significava que fraturavam sempre em determinadas direções.
O sílex, por essa razão, não podia ser modelado para casos específicos. Ao se descobrir
isso, o melhor era usar a obsidiana, uma lava vulcânica preta, de aspecto vítreo, embora
menos resistente do que outros minerais. Por não ter uma estrutura cristalina bem definida,
a obsidiana podia ser quebrada facilmente, de forma homogênea na direção pretendida...
A estrutura cristalina do sílex, apesar de bem definida, era tão ínfima que praticamente se
podia considerá-la também como homogênea. Tudo dependia da habilidade daquele que a
modelava e para isso não faltava talento a Droog. não obstante, os instrumentos de sílex
tinham dureza suficiente para cortar grossos panos de couro, plantas extremamente fibrosas
e, por ou tro lado, eram bastante moles para se fazer neles um fio tão afiado quanto o de um
caco de vidro. Para demonstrar, Droog apanhou um pedaço de pedra com defeito e lhe fez
um fio. Ayla não precisou tocar para saber que estava afiadíssimo. Muitas vezes, ela
própria já usara facas tão amoladas quanto aquela.
Ele atirou fora a peça quebrada e estendeu sobre o colo o lençol de couro. Naquele
instante, pensava nos anos de prática que tinha levado para aprimorar os conhecimentos recebidos de seus ancestrais. A ciência de um bom cortador de
pedras deve começar pela seleção. Era preciso prática para distinguir as mínimas
variações de cor na parte exterior da greda, aquilo que indicava o teor de qualidade e de
cristalização do sílex. Levava-Se tempo para aprender que os nódulos das pedras de um
determinado lugar podiam ser melhores, mais novos e menos sujeitos a ter no seu interior
corpos estranhos do que a mesma pedra, tirada de uma localidade diferente. Talvez ele
algum dia ainda tivesse um aprendiz de verdade que possuísse gosto para apreciar esses
detalhes de maior sutileza.
Ayla achava que Droog houvesse esquecido dela, enquanto arranjava seus instrumentos e
examinava com atenção as pedras. Depois, sentou-se em si lêncio, de olhos fechados,
segurando o amuleto. Ela chegou a surpreender-se, quando ele voltou a falar por meio de
gestos mudos.
- Os instrumentos que vou fabricar são muito importantes. Brun resolveu que faremos
uma caçada de mamute. No outono, depois que as folhas ti verem caído, faremos uma
viagem longa, em direção ao norte para encontrar as manadas de mamute. Vamos precisar
de muita sorte nesta caçada. Os espíritos precisam estar do nosso lado. Vou fazer facas que
serão usadas como ar mas e também ferramentas para serem utilizadas só na fabricação das
armas da caçada. O Mog-ur usará uma poderosa mágica para dar sorte à caçada, mas primeiro as armas têm de ser feitas. Se elas ficarem boas, já é bom sinal.
Ayla não tinha certeza se Droog falava com ela ou se estava apenas expondo certos fatos,
de modo a ter tudo bem claro em sua mente antes de começar o trabalho. Isso lembrou-a de
que deveria ficar muito quieta, sem fazer nada que pudesse perturbar Droog, enquanto
trabalhasse. Já estava quase achando que ele a mandaria embora, agora que ela sabia da
importância dos instrumentos que seriam fabricados.
O que Ayla ignorava era que, desde a ocasião em que ela mostrara a Brun a caverna,
Droog acreditava que a garota dava sorte e o fato de salvar Ona veio reforçar mais ainda tal
convicção. Ele via a estranha menina como um tipo de pedra rara ou como um daqueles
dentes que as pessoas recebem de seus totens e põem dentro dos amuletos para trazer sorte.
Ele não tinha muita certeza se ela própria seria alguém de sorte, sabia apenas que Ayla
dava sorte. E agora, o pedido para observá-lo justamente nesta ocasião, ele considerava
como algo de extremamente promissor. Droog viu com o canto dos olhos que ela também
pegara no seu amuleto, no momento em que ele apanhou o primeiro nódulo. Apesar de não
saber precisar direito o seu pensamento sentia que a menina estava chamando a sorte de
seu poderoso totem para assisti-lo em seu trabalho e a agradecia por isso.
Droog achava-se sentado no chão, com um pano de couro estendido sobre o colo e
segurando um nódulo de sílex com a mão esquerda. Ele pegou
uma pedra de forma ovalada e a remexeu na mão até encontrar o jeito certo de segurá-la.
Por muito tempo, havia procurado por um martelo de pedra que tivesse exatamente o toque
e a resistência daquele e fazia anos que já o pussuía. Suas inúmeras ranhuras atestavam o
muito que já fora usado. Com o martelo, Droog foi quebrando a parte exterior cinza da
greda, deixando exposta a camada mais escura do sílex. Parou para examinar a qualidade
do nódulo. A cristalização e a cor eram boas, também não havia jaças. Começou, então, a
delinear a forma básica de uma machadinha. As lascas grossas que iam saindo tinham
gumes afiados e muitas seriam aproveitadas como instrumentos de corte, do jeito mesmo
como saíam. A extremidade de cada lasca fazia, no ponto onde o martelo acercava o
nódulo, uma forma abaulada que se estreitava com um corte transversal na outra
extremidade e marcando a parte interna do sflex com uma cicatriz áspera e funda.
Droog botou de lado o martelo de pedra e pegou um instrumento de osso. Mirando com
cuidado, ele batia no centro do sílex, bem junto da beirada aguçada e áspera. O martelo de
osso, bastante delicado e maleável, tirava lascas mais finas, não tão abauladas e com as
beiradas mais retas, além ainda de não encrespar tanto a pedra nos gumes finos e afiados.
Em poucos minutos, Droog estava com o novo instrumento pronto. Tinha uns 12
centímetros, com uma extremidade pontuda, gumes retos e cortantes, e era trabalhado em
corte transversal, relativamente fino e com faces lisas, só um pouco marchetadas nos pontos
de onde haviam saído as lascas. Um instrumento para ser empunhado e usado no corte de
madeiras, tal como um machado ou como uma enxó para escavar gamelas em troncos,
podendo ainda ser utilizado para cortar marfim de mamutes, partir ossos e tudo quanto
fosse uso que se pudesse dar a um instrumento afiado e bom para martelar.
Era uma antiqüíssima ferramenta. Machadinhas semelhantes àquela vinham sendo
produzidas já há séculos pelos ancestrais de Droog. Uma forma das mais simples, das
primeiras a ser imaginadas, e que continuava sempre útil. Ele revirava a pilha de lascas,
separando aquelas com gumes largos e retos. Poderiam ser usadas como cutelos para
destrinchar animais e cortar peças de couro duro. A machadinha fora apenas um exercício
inicial de aquecimento. A atenção de Droog dirigia-se agora para outro nódulo de sílex, um
que fora selecionado por sua cristalização particularmente boa. Este merecia uma técnica
mais elaborada e difícil.
O ferramenteiro estava mais à vontade, não tão nervoso e pronto a enfrentar o próximo
trabalho. Ele pôs entre as pernas um osso de pé de ele fante para usar como bigorna. Sobre
a parte plana deste, ele assentou o nó dulo de pedra, segurando-o firmemente. Em seguida,
pegou o martelo de pedra. Desta vez, enquanto lascava a parte externa da greda, ele, com
muita aten ção, ia modelando a pedra de modo a dar ao núcleo remanescente do sílex
uma forma toscamente ovalada e chata. Depois, virando uma das bandas e trocando para o
martelo de osso, desbastou o topo, trabalhando na direção da beirada para o centro, fazendo
toda a volta. Quando terminou, a pedra tinha um segundo oval esculpido sobre a base do
primeiro.
Droog, então, parou por um instante. Envolveu o amuleto na mão, ficando de olhos
fechados. Sorte e destreza eram necessárias aos decisivos passos seguintes. Espichou os
braços, flexionou os dedos e pegou o martelo de osso. Ayla tinha a respiração suspensa.
Ele queria remover uma pequena lâmina de uma das extremidades do topo ovalado e chato,
de modo a deixar um dente com superfície perpendicular à lasca que ele queria remover.
Uma plataforma de talhamento era necessária para isso, a fim de que a lasca saísse sem
falhas e com os gumes afiados. Observou as duas extremidades da superfície oval, escolheu a que usaria, mirou bem e vibrou um golpe certeiro, respirando aliviado ao ver
desprender-se a pequena lâmina. Droog segurou firme o núcleo em forma de disco sobre a
bigorna e, avaliando com precis a distância e o ponto de impacto, usou o martelo de osso
para golpear o pequeno dente ali feito. Saiu do núcleo uma lasca perfeita. Tinha uma longa
forma oval, bordos afiados, com uma das faces um tanto achatada e a outra, lisa, bulbóide;
era ligeiramente mais grossa na extremidade martelada, afinando-se em direção à
extremidade oposta.
Droog tornou a olhar o núcleo, girou-o e dele extraiu mais uma pequena lâmina para formar
uma plataforma, voltada para a extremidade da plataforma de talhamento anterior, e em
seguida removeu uma segunda lasca pré- formada. Em poucos minutos, Droog havia
talhado seis lascas e jogara fora
o que sobrara do núcleo do silex. Todas tinham uma forma oval alongada com tendência a
estreitar-se na extremidade mais fina até tornar-se uma ponta. Examinou as lascas
cuidadosamente e as dispôs em fila, prontas para receber o acabamento final que faria
delas as ferramentas pretendidas. De uma pedra, quase do mesmo tamanho que aquela
usada para fazer uma única machadinha, ele conseguira com a nova técnica, seis
instrumentos de corte, podendo variar seu formato para atender às finalidades mais
diversas.
Com um pequeno instrumento de pedra redondo, ligeiramente achatado, Droog cortou,
num dos lados, o gume afiado da primeira lasca, não só para definir as pontas, mas
sobretudo para tirar-lhe o fio, de modo a - um cabo que não cortasse a pessoa que fosse
segurá-la. Era um acabamento, não para afiar o já fino e bem amolado gume; ao contrário,
visava cegar a lasca, para que a peça pudesse ser manuseada com segurança. Ele fez uma avaliação crítica do trabalho, aparou algumas lasquínhas mais e, satisfeito, botou a faca de lado
para pegar outra das lascas. Pelo mesmo processo, - uma segunda faca.
A lasca seguinte escolhida por Droog era a maior e aquela provinda da
parte mais próxima ao núcleo de forma ovalada. Um dos gumes era quase reto. Firmando a
lasca contra a bigorna e fazendo pressão com um pequeno osso, Droog foi extraindo diversos
pedacinhos da borda da lâmina, deixando nela uma série de incisões na forma de V. Cegou
o lado oposto ao dentado, deu uma olhada final ao seu minisserrote, meneou a cabeça em
sinal de aprovação e o botou também de lado.
Usando a mesma peça de osso, Droog retocou todo o lado cego de uma lasca menor e mais
arredondada, a que deu uma forma acentuadamente convexa. Era um instrumento forte,
quase cego para não quebrar facilmente com a pressão feita na raspagem de madeiras ou
cantos, além de não danificar também as peles. Em outra lasca, ele fez uma profunda incisão
em forma de V, no lado do fio. Esta seria especialmente útil para moldar pontas de lanças
de madeira. Por fim, na última lasca - que apresentava uma ponta aguda na extremidade
fina, mas com os bordos um tanto cegos e ondulados - apenas tirou-lhe todo o corte e lhe
deixou a ponta. O instrumento poderia ser utilizado como sovela para furar couros ou
como verruma; nesse caso, para fazer furos em madeira ou osso. Todos os instrumentos de
Droog eram fabricados de modo a ser empunhados com segurança.
O artesão deu mais uma olhada na direção das ferramentas que acabara de fazer e, depois, fez
um sinal a Ayla, que observava atentamente, mal ousando respirar. Ele lhe deu o raspador
e uma das largas lascas afiadas que sobraram da fabricação da machadinha.
- Você pode ficar com essas. Elas podem ter alguma utilidade, se você vier conosco na
caçada do mamute - gesticulou Droog.
Os olhos de Ayla brilharam. Ela pegou as ferramentas, como se fossem os presentes mais
preciosos desse mundo. E eram. Será que vou ser escolhida para ir com os caçadores nessa
caçada?, perguntou-se, sonhando. Ayla ainda não era mulher e, em geral, somente mulheres
e crianças ainda mamando acompanhavam os caçadores. Mas Ayla tinha o tamanho de uma
mulher feita e já fora em algumas pequenas caçadas no verão passado. Talvez eles me
escolham, tomara que isso aconteça, disse consigo.
- Esta menina vai guardar as ferramentas até a caçada do mamute. Se ela for escolhida
para acompanhar os caçadores, irá então usá-las pela primeira vez no mamute que matarão
- falou Ayla.
Droog fez um grunhido e, depois, sacudiu os pedacinhos e escamas de pedra que ficaram
agarrados no couro que lhe cobria o colo. Sobre este, dispôs o martelo de pedra e o de
osso, a bigorna de pé de elefante, o osso e todas as ferramentas de pedra que usava para
burilar. Enrolou o couro e o amarrou apertado com uma corda. Finalmente, reuniu os
novos instrumentos e encaminhou-se para a cabana que dividia com as pessoas que
habitavam sua fogueira. Por aquele dia chegava, embora a tarde ainda estivesse pelo meio.
Em
pouco tempo, produzira ferramentas de excelente qualidade e seria melhor não tentar muito
a sorte.
- Iza, iza! Olhe o que Droog me deu. E ele até me deixou ficar observando, enquanto
trabalhava - disse Ayla correndo na direção da curandeira, carregando numa das mãos as
ferramentas e com a outra fazendo os gestos que Creb empregava para poder exprimir-se
com um braço só. - Ele disse que os caçadores vão caçar um mamute no outono, por isso
está fabricando as ferramentas que servem para fazer as armas especiais que vão ser usadas
nessa caçada. Você acha que vou ser escolhida para ir com eles?
- Talvez, Ayla. Mas não sei por que você está tão excitada. Isso só significa muito
trabalho. É uma quantidade de gordura que se tem de botar para derreter e quase toda a
carne é aproveitada e posta para secar. E você não faz idéia do quanto de gordura e carne
existe num mamute. Você vai ter de andar uma distância enorne e na volta carregar todas
essas coisas.
- Oh, não me importo com o trabalho. Nunca vi um mamute, a não ser de longe, uma vez
que estava no alto do morro. Eu tenho vontade de ir. Oh, Iza, tomara que eu vá.
- Os mamutes nunca andam muito para o sul. Eles gostam de frio. O verão aqui é quente
demais e, no inverno, não podem pastar porque há muita neve. Mas há muito tempo que
não como uma boa e suculenta carne de mamute. não existe nada melhor. Além disso, a
gordura serve para ser usada em muitas coisas.
- Você acha que vão me levar, mãe? - gesticulou Ayla, animada.
- Brun não me falou de seus planos. Eu nem sabia que eles estavam indo. Você sabe
mais do que eu, Ayla - disse Iza. - Mas se Droog falou é porque deve existir alguma
possibilidade. Acho que ele está agradecido por você não ter deixado Ona morrer afogada,
e a notícia e as ferramentas que lhe deu são uma maneira de dizer isso. Droog é ótima
pessoa. Você tem sorte, Ayla. Ele acha que você merece seus presentes.
- Vou guardar as ferramentas até a caçada. Eu disse a ele que só iria usá-las nessa ocasião.
- Boa idéia, e você disse a coisa que devia.

Capítulo 14

A caçada do mamute planejada para o princípio do outono, quando os colossais animais de
pele lanosa emigravam para o sul, mantinha o clã inteiro excitado. Todo mundo que fosse
forte e robusto seria incluí do na expedição ao norte, no extremo da península, próximo ao
ponto em que esta se ligava ao continente. Durante o tempo em que estivessem fora, estariam excluídas todas as atividades correlacionadas com caças que não fossem o trabalho
de esquartejar o animal e lhe preparar a carne e a gordura para serem trazidas à caverna.
Não havia a menor segurança de que, chegando ao local, fossem encontrar mamutes e, no
caso de achar, de que eles fossem ser bem-sucedidos. Apenas o fato de que, se tivessem
sucesso, contariam com um gigantesco animal que lhes daria uma quantidade de carne
suficiente para sustentá-los por meses e uma bela provisão de gordura, tão essencial à
existência, fazia com que considerassem vantajosa a idéia.
No princípio do verão, os caçadores conseguiram uma provisão de caças muito maior do
que a usual, de modo que havia carne suficiente para alimentar o clã por todo o inverno,
isto é, se fossem parcimoniosos. não poderiam dar-se o luxo de uma caçada de mamute, se
não estivessem bem abastecidos para a próxima estação de frio. No entanto, a reunião de
clãs se realizaria dentro de dois anos e, naquele verão, praticamente não se caçava.
Estariam viajando durante toda a estação. Primeiro, para a caverna do clã hospedeiro, onde
se daria o importante acontecimento, lá permanecendo por algum tempo, participando do
grande festival e, depois, a viagem de volta. A longa história desses encontros lembrou
Brun de que ele devia botar por antecipação o clã armazenando os alimentos e fazendo os
suprimentos que os manteriam no inverno seguinte à reunião. Foi essa a razão que o levou a
decidir favoravelmente sobre a caçada do mamute. Um bom estoque para o próximo inverno, somado a uma bem-sucedida caçada os poriam na dianteira. Carne- seca, legumes,
frutas e cereais, quando estocados de forma correta, poderiam facilmente agüentar dois
anos.
O clima de excitação não era apenas pela caçada, havia também pairan do no ar o
sentimento latente, quase palpável, do medo ao sobrenatural. O sucesso da caçada dependia
muito do fator sorte, e sinais de bom ou mau
agouro eram vistos nas ocorrências mais banais. Todos se mostravam extrema mente
cuidadosos em seus atos e, sobretudo, sérios em relação a tudo que dizia respeito, ainda
que muito remotamente, aos espíritos. Ninguém queria ser responsável pelo azar provocado
por algum espírito zangado. As mulheres chegavam ainda a ser mais cuidadosas do que os
homens. Se uma comida quei masse, isso era certamente sinal de mau agouro.
Cada fase do planejamento era acompanhada por cerimônias religiosas, com os homens em
ardorosas súplicas para conquistar as boas graças das forças invisíveis que os rodeavam, e
o Mog-ur andava ocupadíssimo, decifrando a sorte e fazendo poderosos feitiços. Tudo que
saísse bem era tomado como bom sinal, e qualquer obstáculo com que se deparassem era
motivo para preocupação. O clã inteiro estava com os nervos à flor da pele, e Brun, desde
a sua decisão, podia-se dizer que nunca mais tivera uma boa noite de sono, chegando
algumas vezes quase a desejar jamais ter pensado nessa caçada.
Brun convocou uma reunião dos homens para discutir quem iria e quem ficaria. A proteção
da caverna era outra importante questão a resolver.
- Estive pensando na idéia de deixar aqui um dos caçadores - começou o chefe a dizer.
- Ficaremos fora pelo menos durante todo um ciclo da lua, talvez até dois. Isso é muito
tempo para deixar a caverna desprotegida.
Os caçadores evitavam olhar para ele. Ninguém queria ser excluído da caçada. Todos
tinham receio de dar de encontro com o olhar do chefe e, com isso, ser a pessoa escolhida
para ficar.
- Brun, você vai precisar de todos os seus caçadores - gesticulou Zoug. Minhas pernas
podem já não ser bastante rápidas para caçar um mamute, mas meus braços ainda têm força
para empunhar uma lança. A funda não é a única arma que posso usar. A visão de Dorv está
falhando, mas seus múscu los não estão fracos e ele ainda não está cego. Só para proteger a
caverna, a maça e a lança dele ainda servem. Enquanto nossa fogueira estiver ardendo,
nenhum animal vai chegar muito perto. Você não precisa preocupar-se com a caverna. Nós
podemos guardá-la perfeitamente. Você já tem muito em que pensar só com a caçada do
mamute. A decisão é claro, não pode ser minha, mas acho que você deveria levar todos os
caçadores.
- Concordo, Brun - acrescentou Dorv, inclinando-se para a frente e apertando um
pouco os olhos. - Zoug e eu podemos proteger a caverna, enquanto vocês estiverem
fora.
Brun olhou primeiro para Zoug e depois para Dorv e, em seguida, para Zoug novamente.
Ele não queria deixar nenhum dos caçadores. não gostaria que nada pusesse em risco o
sucesso da caçada.
- Você tem razão Zoug - gesticulou Brun, por fim. - O fato de você e Dorv não poderem
caçar mamutes não significa que não tenham força bastante para proteger a caverna. O clã
tem sorte de que os dois sejam ainda homens muito capazes e eu também tenho sorte, Zoug, que o segundo em comando do chefe
que me antecedeu ainda esteja conosco para que eu aprovei te de seus bons conselhos. -
Não fazia mal que de vez em quando o velho sentisse que ainda era útil e apreciado.
A tensão foi relaxada. Ninguém seria deixado de fora. Sentiam pena de Zoug e Dorv que
não poderiam compartilhar com eles da grande honra, mas, ao mesmo tempo, agradecidos
aos dois velhos por ficarem guardando a caverna. Estava subentendido que o Mog-ur
também não iria na excursão. Ele não era caçador, mas Brun certa vez já vira o velho
aleijado brandindo com força seu pesado bordão para defender-se e, mentalmente,
acrescentou o feiticeiro na lista dos guardiães da caverna. Sem dúvida, os três podiam fazer
tão bem o serviço quanto um único caçador.
- Bem, agora sobre as mulheres. - Quais levaremos conosco? - perguntou Brun. -
Ebra irá - acrescentou logo em seguida.
- Ika também - falou Grod. - Ela é forte, tem prática e não há crianças pequenas
para cuidar.
- É, Ika é uma boa escolha - aprovou Brun. - E quanto a Obra - perguntou, olhando
para Goov.
O acólito concordou com a cabeça.
- Que tal Oga? - indagou, por sua vez, Broud. - Brac já anda e, daqui a pouco tempo,
estará desmamado. Ele não vai tomar muito o tempo dela.
Brun pensou por um momento.
- não vejo por que Não. As outras mulheres podem olhar o garoto, e Oga é boa de
serviço. Nós podemos usá-la.
Broud mostrava-se feliz. Ele gostava de saber que o chefe tinha sua com panheira em boa
conta. Isso era um elogio à educação que ele dava à mulher.
- Algumas mulheres têm de ficar para cuidar das crianças - gesticulou Brun. - Que tal
Aga e Ika? Groob e gra ainda são muito pequenos para fazer uma viagem tão longe.
- Aba e Iza podem ficar cuidando deles - opinou Crug. - Igra não dá muito trabalho
para Uka.
A maioria dos homens queria ter as companheiras por perto, nas caçadas que se
prolongavam por muito tempo; assim, não precisavam depender da companheira dos outros para
serví-los.
- Sobre Ika, eu não sei dizer - comentou Droog. - Mas quanto a Aga, acho que ela
gostaria de ficar desta vez. Ela tem três crianças e mesmo que leve Groob, eu sei que Ona
vai sentir sua falta. Mas Vorn gostaria de vir conosco.
- Acho que Ága e Ika devem ficar - resolveu Brun. - E Vom também. Ele não vai ter
nada para fazer. Ainda não tem idade para caçar e, por outro lado, não vai querer ajudar as
mulheres, principalmente sem a mãe por perto para ralhar com ele. Ainda haverá outras
caçadas de mamute para Vorn.
O Mog-ur, que até então se tinha conservado calado, achou que chegara sua vez de falar.
- Iza está muito fraca para ir. Além disso, precisa ficar para cuidar de Uba, mas não há
razão para Ayla não ir.
- Ela nem mulher ainda é - interpôs Broud. - E depois os espíritos podem não gostar
de uma estranha nos acompanhando.
- Ela é forte e maior do que qualquer mulher - contrapôs Droog. - E também é boa
para trabalhar, jeitosa com as mãos e os espíritos estão do lado dela. E a caverna? E Ona?
Acho que ela traz sorte para nós.
- Droog tem razão Ayla é rápida no serviço e tem tanta força quanto qualquer mulher. Ela
Não tem criança para se preocupar e já possui uma certa prática como curandeira. Isso pode
nos ser útil. Se bem que, se Iza estivesse mais forte, eu iria preferi-la. Mas Ayla vem
conosco - gesticulou Brun, dando a questão por encerrada.
Quando soube que também iria, Ayla ficou tão excitada que não conseguia parar quieta.
Enchia Iza de perguntas sobre o que deveria ou não levar, e nos últimos dias antes de
marcarem a data da partida, por diversas vezes fez e refez sua cesta.
- Você não precisa levar muita coisa, Ayla. Se a caçada sair bem, você vai ter muito mais
peso para carregar na volta. Mas tenho aqui uma coisa para você que eu acho que vai
gostar de levar. Acabei de fazer.
Lágrimas de alegria subiram aos olhos de Ayla, quando viu Iza estendendo a mão para lhe
entregar uma sacola. Era feita com a pele inteira de uma lontra curtida com os seus pélos
e na qual haviam sido deixados intatos os pés, o rabo e a cabeça. Iza tinha pedido a Zoug
para arranjar-lhe uma e ela a havia mantido escondida na fogueira de Droog, inclusive na
ignorância de Aga e Aba.
- Iza, uma sacola de medicamentos só para mim! - exclamou Ayla, abraçando-a.
Imediatamente, sentou-se para arrumar em fila todos os pequenos saquinhos e embrulhos,
tal como vira Iza fazer muitas vezes. Ela abria cada um, cheirava seu conteúdo e voltava a
amarrá-lo com o mesmo tipo de nó que tinha antes.
Era difícil diferenciar as muitas qualidades de ervas e raízes secas só pelo cheiro, por isso
aquelas particularmente perigosas vinham, em geral, misturadas com uma erva inócua, mas
de cheiro bem forte, a fim de evitar acidentes por distração. O verdadeiro sistema de
classificação se fazia através do tipo de cordão ou tira de couro que amarrava os pequenos
sacos, e por uma intrincada combinação de nós. Certas classes de medicamentos eram
amarradas com cordas feitas de crina de cavalo, outras com as de bisão, ou então cordões
tecidos com pêlos de diferentes cores e texturas. Havia também os que
eram amarrados com nervos, cordas vegetais e tiras de couro. Fazia parte da memorização
dos usos de uma determinada planta saber reconhecer o tipo de cordão e o sistema de nós
empregado na amarração do saco ou embrulho que a guardava.
Ayla meteu os saquinhos na sacola grande e a amarrou na sua cintura, pondo-se a admirá-
la. Depois, tirou-a e a botou ao lado de sua cesta de colher, junto com as sacas que seriam
usadas para trazer a carne do mamute. Estava tudo pronto. O único problema preocupando
era o que fazer com a funda. Ela não tinha por que levá-la e, por outro lado, deixando-a,
estaria correndo o risco de Iza ou Creb encontrá-la. Pensou em esconder na floresta, mas,
ficando exposta ao tempo, poderia estragar-se ou ser apanhada por algum animal. Por fim,
resolveu levá-la, bem escondida numa dobra da roupa.
Na data da partida, o clã se levantou com o dia ainda escuro e se pôs em marcha quando o
céu começava a clarear, mostrando as cores das folhas nas árvores. Mas já passando o
morro a leste da caverna, os clarôes do sol nascendo tingiam de vermelho o horizonte,
pondo um forte brilho dourado no feno crescido da extensa planície embaixo, O grupo
alcançou as estepes ainda com o sol baixo no céu. Brun ia a passos largos, quase tão
rapidamente como quando saía só com homens. As cargas das mulheres estavam leves, mas
ainda desacostumadas com os rigores da jornada, elas tinham de apressar seus passos para
poder acompanhar o ritmo da marcha.
Caminhavam do nascer ao pôr-do-sol, cobrindo uma distância muito maior do que aquela
que faziam quando todo o clã estava à procura da caverna. não cozinhavam, afora ferver
água para chá e, com isso, não se exigia muito das mulheres. Nenhum animal foi abatido
durante o caminho. Ingeriam uma comida preparada para a viagem, a mesma que os
homens costumavam levar em suas caçadas: um pequeno bolo feito de carne-seca (moída
como uma farinha grossa) misturada com gordura derretida e frutas secas. Era uma comida
altamente concentrada, mais do que suficiente para suprir suas necessidades alimentícias.
Fazia frio nos campos abertos e desprotegidos dos ventos, e mais frio foi ficando, à medida
que caminhavam rumo ao norte. Contudo, pouco de pois de terem saído pela manhã,
começavam a tirar algumas camadas de suas vestimentas. A marcha logo os esquentava, e
só quando paravam, para pequenos descansos, sentiam a temperatura fria. Os músculos
doloridos dos primeiros dias, sobretudo os das mulheres, deixaram de incomodar após elas
acertarem o passo e educarem as pernas, segundo o ritmo da viagem.
O terreno da parte norte da península era bastante acidentado. Vastos platôs subitamente
desapareciam em íngremes despenhadeiros ou iam limitar-se com penhascos quase
perpendiculares, formados pelos retumbantes cataclismos na violenta terra dos primeiros
tempos, sacudindo sua amarração
calcária. Estreitas gargantas eram paredôes rochosos de superfícies dentadas:
alguns, morrendo no ponto de convergência dos penhascos e outros, dando em áreas cheias
de pedregulhOS saídos dos pontudos blocos de pedra no chão, que se haviam partido das
muralhas nos arredores. De vez em quando, surgia um curso dágua, variando desde os
riachos pequeninos e sazonais até os rios de águas caudalosas. Somente perto destes,
quebrando a monotonia das estepes, cresciam alguns pinheiros retorcidos pelos ventos e
uns tantos lanços e abetos, sufocados pelos salgueiros e vidoeiros que mais pareciam
arbustos. Nos raros exemplos de gargantas que iam dar em vales férteis de águas, abrigados das constantes ventanias e supridos com bastante umidade, é que as coníferas e as
velhas árvores de pequenas folhagens se aproximavam de suas verdadeiras dimensões.
A jornada transcorria rotineiramente calma. Por 10 dias haviam continuado com passo
rápido e firme, quando então Brun começou a despachar seus homens para explorar as
redondezas, e o grupo, por alguns dias, passou a progredir mais lentamente em sua marcha.
Eles estavam próximos do istmo da península. Se tivessem de encontrar mamutes, dentro
de pouco tempo já deveriam começar a vê-los.
Pararam junto a um pequeno rio. Brun tinha enviado Broud e Goov no princípio da tarde,
e o chefe, um pouco afastado dos outros, olhava na direção em que os dois haviam partido.
Teria de decidir se acampariam ali, ao la do do rio, ou se seguiriam avante, só parando
quando fosse hora de dormir. As sombras da tarde já começavam a estender-se e, se os dois
rapazes não voltassem logo, a decisão seria tomada por ele. Com os olhos estreitados, encarava diretamente O vento cortante que açoitava sua longa capa de couro, enro lando-a entre
suas pernas e achatando no rosto a barba forte e cerrada.
Pensou ver muito a distância um movimento e, enquanto esperava, as figuras dos dois
homens correndo foram aparecendo mais distintamente. Sentiu uma pontada de emoção
Talvez fosse só intuição ou talvez o sentimento de estar bem afinado com a maneira de as
pessoas de seu clã se locomoverem. Eles também viram sua figura solitária e se apressaram
ainda mais na corrida, agitando os braços. Brun já sabia o que lhe diziam.
- Mamute, mamute! - gritavam enquanto corriam nadireção do grupo.
Todos se amontoaram em torno dos dois rapazes exultantes de alegria.
- Uma imensa manada, seguindo para leste - gesticulou Broud, excitado.
- A que distância? - perguntou Brun.
Goov apontou o braço reto para cima e depois fez com ele um meio ar co. A umas poucas
horas era o que o gesto queria dizer.
- Mostrem o caminho - gesticulou Brun, fazendo depois sinal para que os outros o
seguissem.
Ainda havia algumas horas de dia claro e eles poderiam aproveitá-las para aproximar-se
mais.
O sol já descia no horizonte, quando viram a distância uma mancha indistinta em
movimento. É uma manada das grandes, pensou Brun, ordenando, então alto. Tinham de
arranjar-se com a água que trouxeram da última parada; estava muito escuro para procurar
por algum córrego ou riacho. No dia seguinte, arrumariam um lugar melhor para acampar.
O mais importante é que os mamutes foram encontrados. Agora a coisa era com os
caçadores.
Depois que o grupo se mudou para o novo acampamento junto de um riacho delimitado por
uma dupla fileira de arbustos de tamanhos diversos ao longo das duas margens, Brun
pegou os caçadores e foram examinar de perto as possibilidades. Um mamute não era
nenhum bisao ou animal que caísse com pedras de boleadeiras. Para sua caça, tinha-se de
imaginar outras táticas. Brun e seus homens foram fazer uma inspeção nas gargantas e
desfiladeiros existentes na área. O chefe procurava por um certo tipo especial de formação
uma garganta com uma só saída, tendo o outro extremo obstruído por rochas do mesmo
tipo das que formavam as paredes laterais e não muito distan te da manada que se
locomovia vagarosamente.
Cedo, na manhã do dia seguinte, Oga, nervosa, sentou-se de cabeça baixa na frente de Brun,
enquanto Ovra e Ayla esperavam, ansiosas, atrás dela.
- O que você quer, Oga? - perguntou Brun, dando-lhe um tapinha no
ombro.
- Esta mulher quer fazer um pedido - começou ela, hesitando.
- E qual?
- Esta mulher nunca viu um mamute. Nem Ovra, nem Ayla também. Nosso chefe
permitiria que nos aproximássemos um pouco para ver melhor os bichos?
- E Ebra e Ika também querem ver os mamutes?
- Antes que viéssemos aqui pedir, elas falaram que já viram muitos mamutes em suas
vidas e que não tinham vontade de ir - respondeu Oga.
- Elas são mulheres de juízo. Mas, enfim, as duas já viram muitos mamutes antes. Bom,
como estamos a favor do vento, se vocês não perturbarem os animais e não chegarem muito
perto e não andarem em volta deles...
- Nós na vamos chegar muito perto - prometeu Oga.
- É, acho que não vão mesmo. Depois que botarem os olhos neles não vão querer chegar
muito perto. Bem, podem ir - decidiu Brun.
Não fazia mal que as mulheres dessem um passeio, pensou ele. Por en quanto não há
muito o que fazer e vão estar muito ocupadas dentro em pouco.. . se os espíritos nos
ajudarem.
As três ficaram excitadas com a perspectiva da aventura. Foi Ayla quem
tinha conseguido convencer Oga a pedir, embora todas tivessem conversado lon gamente
sobre o assunto. A viagem fez com que ficassem mais íntimas, dan do-lhes oportunidade
para se conhecerem melhor. Ovra que, por natureza, era uma moça tranqüila e reservada,
havia sempre considerado Ayla como fazendo parte do grupo das crianças e não
procurava sua companhia. Oga, por sua vez, não encorajava maiores aproximações,
sabendo como Broud se sentia em relação a Ayla e, para concluir, nem Oga nem Ovra
achavam que tinham muita coisa em comum com a estranha garota. Elas eram mulheres,
vivendo com seus companheiros, adultas e donas das fogueiras de seus homens. Ayla não
passava de uma criança e não tinha as mesmas responsabilidades delas.
Foi somente naquele verão, quando Ayla assumiu a condição de quase- adulta e que
começou a ser levada nas excursões de caça, é que as mulheres passaram a considerá-la
como alguma coisa mais do que criança e, sobretudo, na caçada agora do mamute. Ayla era
mais alta do que qualquer mulher, o que lhe dava uma aparência adulta e, sob muitos
aspectos, era tratada como mulher pelos caçadores. Principalmente Droog e Crug estavam
sempre utilizando os seus serviços. Suas companheiras haviam ficado na caverna e Ayla era
sozinha, desse modo os seus pedidos eram dirigidos diretamente a ela, sem precisar da
permissão de um outro homem, o que, embora informalmente, costumava-se fazer. Com o
interesse comum da caçada, uma relação de maior camaradagem começou a formar-se
entre as três. Até então foram Iza, Creb e Uba as pessoas com quem Ayla sempre havia
mantido contato mais íntimo, e agora estava tendo grande prazer com suas novas amizades.
Pouco depois de os homens haverem saído pela manhã, Oga deixou Brac com Ebra e Ika,
e as três saíram para o passeio. Era uma caminhada agradável. Logo estavam conversando
animadamente, fazendo rápidos movimentos com as mãos misturados com sons para
enfatizar os gestos. Quando começaram a se aproximar dos mamutes, a conversa foi
decaindo, até que ficaram completamente mudas. Pararam olhando de boca aberta os

animais, cada um deles com um corpanzil colossal.
O mamute, com sua pele coberta de lã estava bem adaptado ao duro clima periglacial de
seu meio ambiente. Tinha um couro grosso revestido por uma camada de pêlos densos e
macios, à qual se sobrepunha uma cabeleira la nuda, num tom marrom-avermelhado, de
mais de 50 centímetros de comprimento. Para maior proteção, possuía ainda uma camada
subcutânea de gordura com cerca de oito centímetros de espessura. O frio havia provocado
também modificações em sua estrutura física. Era um animal compacto em relação aos
outros de sua espécie e media em média três metros de altura, a contar da cemelha.
Possuía volumosa cabeça, proporcionalnente grande em relação à altura global -
chegando a ter mais da metade do comprimento da
tromba - e que se erguia dos ombros numa curvatura extremamente pronunciada. Tinha orelhas pequenas, rabo curto e uma tromba relativamente também pequena,
com dois dedos na extremidade, um deles pouco mais acima do que o outro. De perfil,
mostrava uma profunda reentrância na nuca de forma abaulada e a corcova de gordura
sobre a cemelha. As costas formavam uma descida forte até a pelve e as pernas traseiras,
mais curtas do que as dianteiras. Mas o que tinha de realmente impressionante eram as
presas longas e recurvas.
- Olhe aquele ali! - disse Oga, apontando para um velho macho. As presas de marfim,
nascendo uma junto da outra, desciam abrindo-se numa grande curva para subir outra vez,
cruzando-se na frente dele, medindo em total uns Cinco metros.
O mamute ceifava com sua tromba um montão de ervas e capim, uma forragem dura e seca
que metia de uma só vez na boca e quebrava como se ele possuísse uma possante grosa
para triturar. Um outro, mais jovem, cujas presas não eram tão longas, por isso ainda úteis,
arrancou um pé de lanço e se pôs a desmantelar os pequenos galhos e a casca.
- São muito grandes - gesticulou Ovra, tendo um estremecimento - Nunca pensei que um
animal pudesse ser desse tamanho. Como vão conseguir matar um deles? não podem nem
mesmo atingi-los com uma lança.
- não sei - respondeu Oga, igualmente apreensiva.
- Chego quase a desejar que a gente não tivesse vindo - falou Ovra. - Vai ser uma
caçada perigosa. Alguém pode sair ferido. O que vou fazer, se alguma coisa acontecer a
Goov?
- Brun deve ter algum plano - disse Ayla. - Imagino que ele nunca iria tentar uma
coisa dessas, se não achasse que os homens pudessem fazer. Gostaria de poder ficar vendo
- acrescentou ela, com ar pensativo.
- Eu não - falou Oga. - Nem perto quero estar. Simplesmente vou ficar feliz quando
tudo isso acabar. - Lembrou-se de que o companheiro de sua mãe morrera num acidente de
caça, pouco antes de o terremoto levar- lhe a mãe. Por melhor que fossem os
planejamentos, ela estava bem consciente dos perigos.
- Acho que deveríamos voltar - disse Ovra. - Brun não queria que agente chegasse
tão perto. Estamos bem mais perto do que eu pretendia.
As três se viraram para ir embora. Ayla ainda deu algumas olhadas por Cima do ombro
enquanto se afastavam. No caminho de volta, estavam mais si lenciosas, cada uma perdida
em seu pensamento, sem muito ânimo para conversas.
Quando os homens voltaram, Brun deu ordem às mulheres que levantassem o
acampamento e se mudassem após os caçadores haverem saído na manhã do dia seguinte.
Elas teriam de ir para algum ponto, fora do campo de ação deles. Na véspera, ele vira o
desfiladeiro que procurava. Era o lugar ideal,
embora longe dos mamutes. A manada, no entanto, caminhava vagarosamente na
direção sudoeste e ele viu nisso um sinal de bom presságio, pois, ao fim do segundo dia, os
animais estariam suficientemente perto do lugar, tornando-o exeqüível para o que tinha
em vista.
Uma neve fina e seca açoitada pelas rajadas de ventos do leste saudou o ban do de
caçadores quando eles, saídos de suas aconchegantes peles, meteram os narizes do lado de
fora das pequeninas tendas. O céu cinza e melancólico não conseguiu arrefecer os ânimos
excitados pela expectativa. Naquele dia, iriam à caça do mamute. As mulheres se
apressavam em fazer o chá. Como todo bom atleta se preparando para o embate final, eles
também não comeriam nada. Exercitavam-se caminhando em círculo com passadas firmes
e fortes, e davam estocadas no ar com suas lanças, para esticar e relaxar os músculos. A
tensão que exalavam era sentida na atmosfera.
Grod pegou uma brasa acesa da fogueira e meteu-a dentro do chifre do auroque atado à sua
cintura. Goov pegou outra. As peles estavam enroladas bem seguras em seus corpos. não
as pesadas mantas costumeiras, mas uma vestimenta mais leve que não lhes restringisse os
movimentos. Ninguém sentia frio. Estavam superexcitados. Brun, pela última vez, passou
rapidamente em revista o plano.
Cada um fechava os olhos, segurava no amuleto, pegava uma tocha apagada, preparada na
véspera, e depois saía. Ayla observava com vontade de ter coragem bastante para segui-los.
Depois, foi juntar-se às outras mulheres que, antes de levantar o acampamento, foram catar
capim seco, esterco e madeira para as fogueiras.
Os homens logo alcançaram a manada. Os mamutes, após o descanso da noite, já haviam
começado sua lenta marcha. Os caçadores se puseram agachados em meio à relva crescida,
enquanto Brun fazia uma estimativa dos animais passando. Ele reparou no velho macho
com suas imensas presas recurvas. Este seria um belo animal, disse consigo, mas depois
abandonou a idéia. Eles tinham um longo caminho de volta e os marfins iriam pesar desnecessariamente. Um que fosse mais jovem, além de ter a carne mais tenra, possuía
também presas mais fáceis de ser transportadas. Isso era mais impor tante do que a glória
de ostentar presas colossais.
No entanto, os jovens machos eram mais perigosos. Suas presas não só serviam para
escavar árvores, como também se constituíam em poderosas armas. Brun esperava
pacientemente. não havia feito todos aqueles preparativos e uma longa viagem para, no
último momento, precipitar-se idiotamente. Sabia exatamente o que procurava, e antes
voltar no dia seguinte do que pôr em risco suas chances de sucesso. Os outros caçadores
também esperavam, nem todos com a mesma paciência.

O sol surgiu, espalhando as nuvens e pondo um pouco de vida no céu, antes sombrio e
melancólico. A neve havia parado, deixando ver a luz brilhan te nos espaços abertos.
- Quando Brun vai dar o sinal? - gesticulou Broud para Goov. - Veja como o sol já
vai alto. De que adiantou sair tão cedo para ficar aqui parado? O que ele está esperando?
Grod viu os gestos de Broud.
- Brum está esperando pelo momento certo. O que você prefere, voltar de mãos vazias ou
esperar um pouco mais? Seja mais paciente e aprenda, Broud. Algum dia será sua vez de
decidir sobre o momento de dar o sinal. Brun é bom chefe e bom caçador. Você tem sorte
de ter um homem como ele para ensiná-lo. Coragem só não basta para ser chefe.
Broud não gostou muito do sermão de Grod. Este, quando eu for o chefe, pensou o rapaz,
nunca irá ser o meu segundo em comando. Além do mais, está ficando muito velho. Broud
mudou de posição teve um arrepio sentindo o vento frio e se ajeitou para esperar.
O sol já estava alto no céu, quando Brun finalmente fez o sinal: Preparem-se! Todos os
caçadores sentiram uma pontada por dentro. Uma fêmea, pesada e com uma cria na barriga,
estava na periferia da manada e se afastando do bolo. Era bastante nova, mas pelo
comprimento das presas aquela não deveria ser sua primeira gravidez. Já estava muito
adiantada nos meses e por isso muito pesada. Iria faltar-lhe agilidade e rapidez, além de que
a carne do feto seria também um belo prêmio extra.
A fêmea buscava uma grande moita de capim que os outros animais ainda não tinham visto.
Por um instante, ficou sozinha, longe da proteção da manada. Era um momento por que
Brun esperava. Deu o sinal.
Grod já estava com a brasa do lado de fora e a tocha a postos. No momento em que viu o
sinal de Brun, segurou a tocha junto da brasa e se pôs a soprar até formar as labaredas.
Droog acendeu nesta primeira duas outras, dando uma a Brun. Os três caçadores mais
jovens, no instante do sinal, haviam corrido na direção do desfiladeiro. Seriam postos em
jogo mais tarde. Logo que as tochas se acenderam, Brun e Grod correram atrás da fêmea
e tocaram fogo no capim seco.
Os mamutes, depois de adultos - fora o homem - não tinham inimigos naturais. Só os
muito pequenos e muito velhos podiam cair nas garras de algum predador. Mas tinham
medo do fogo. Os incêndios nos campos, devi dos a causas naturais, às vezes alastravam-se
de forma incontrolável, fazendo durante dias estragos incomensuráveis. E aqueles
provocados pelo homem não eram menos desvastadores. No instante que percebeu o
perigo, a manada instntivamente se juntou. O fogo teria de alastrar-se rápido para que a
fêmea não pudesse juntar-se aos demais. Brun e Grod achavam-se entre ela e a manada.
Poderiam correr numa ou noutra direção, ou ser apanhados por um monstruoso estouro.
O cheiro da fumaça transformou aqueles animais sempre mansos e por excelência
herbívoros numa massa infernal de barrito enlouquecidos. A fêmea se virou na direção da
manada, mas era tarde demais. Tinha uma parede de fogo a separá-la. Ela clamava por
socorro, mas o vento do leste havia aberto um leque de chamas convergindo sobre os
pobres animais. Já iam em debandada, rumo a oeste, tentando deixar para trás as chamas
que rapidamente tomavam conta do terreno. Os incêndios nas pradarias eram
incontrolável mas isso, para os homens, não se constituía motivo de grandes
preocupações. Os ventos se encarregariam de levar as chamas para bem longe do lugar que
pretendiam ir.
A elefanta, berrando de medo, ia aos trambolhões na direção leste. Droog esperou que as
chamas se espalhassem para então agir. Quando percebeu que o animal se dispunha a
investir, ele correu em sua direção, aos gri tos e agitando a tocha, fazendo-o virar-se para
sudoeste.
Crug, Broud e Goov, mais jovens e rápidos, iam em disparada na fren te. Tinham medo
de que, mesmo com a dianteira que levavam, a elefanta, em sua fúria, pudesse ultrapassá-
los. Brun, Grod e Droog corriam atrás, tentando manter a distância que os separava e
esperando que ela não mudasse de rumo. Mas, uma vez dada a partida, o animal correu
sempre em frente, inteiramente às cegas.
Os rapazes chegaram à garganta que iria servir de alçapão. Crug entrou nela. Broud e
Groov pararam junto ao paredão sul. Nervosos e sem fôlego, Goov pegou o chifre de
amoque, fazendo uma prece muda para que o carvão estivesse aceso. Estava. Mas nenhum
dos dois tinha bastante fôlego para soprar a brasa na tocha. O vento ajudou. Acenderam
duas tochas e cada um pegou uma, dirigindo-se em seguida para o paredão, tentando
antecipar-Se ao mamute. não tiveram de esperar muito. Rezando a seus totens, partiram,
agi tando as tochas, para cercar pela frente o gigantesco animal que, berrando aterrorizado,
vinha para cima deles. Era uma tarefa difícil e perigosa a de diri gi-lo para o interior da
garganta.
A elefanta, que em pânico já vinha fugindo do fogo numa corrida alucinada, ao sentir o
cheiro de fumaça na sua frente, desviou-se, avançando pesadamente na direção da
garganta, com Broud e Goov em seu encalço. Soltando barritos de medo, ela foi
atravessando o terreno-que se estreitava adiante dela, até que teve seu caminho barrado.
Sem poder avançar ou girar o enorme corpanzil no reduzido espaço, ela urrou toda a sua
frustração.
Broud e Good corriam a todo fôlego. Na mão, Broud levava uma faca, daquelas
cuidadosamente esculpidas por Droog e enfeitiçada pelo Mog-Ur e, com presteza e
coragem, apanhou a pata esquerda traseira, cortando-lhe os
tendões. Um estridente grito de dor varou o ar. O animal não podia ir para a frente, não
podia fazer a volta e, agora, também não podia mais andar para trás. Goov seguiu Broud,
aleijando a outra pata. O enorme mamute caiu sobre os joelhos.
Crug saltou, então, de trás de um bloco de pedra e enfiou diretamente sua comprida lança
pela boca do animal que urrava de dor com o corpo oscilando. Vomitando sangue sobre
Crug, agora desarmado, instintivamente, a ele fanta ainda tentou esboçar um ataque. Mas
Crug não ficou por muito tempo desprotegido. Outras lanças haviam sido escondidas atrás
das rochas e, quando Crug pegou uma delas, Brun, Grod e Droog já haviam alcançado a
garganta em sua extremidade bloqueada. Pulando sobre as pedras, os três foram ladeando o
animal ferido e lançando quase simultaneamente suas lanças sobre ele. A de Brun
penetrou num dos olhos, provocando um esguicho de sangue rubro e quente. O animal
cambaleava. Num último assomo de vida, soltou um berro desafiador e depois tombou
definitivamente.
A compreensão se fez aos poucos. De repente, abateu-se um silêncio. Os homens, exaustos,
limitavam-se a olhar uns para os outros. Os corações batiam apressados, mas agora por
outras emoções. Uma força indistinta, primitiva, saída das profundezas de seus seres, foi
em crescendo até explodir na forma do grito de vitória. Eles o haviam conseguido! Tinham
matado o todo-poderoso mamute!
Seis homens, comparativamente fracos e insignificantes, valendo-se de destreza,
inteligência, coragem e espírito de cooperação haviam matado um gigantesco animal, fora
do alcance de qualquer outro predador. Pouco importava o quanto fossem mais velozes,
fortes ou manhosos, nenhum caçador de quatro patas jamais conseguiria igualar-se a eles.
Broud pulou para cima da pedra onde se achava Brun, saltando em seguida sobre o animal.
Num instante, Brun veio ficar a seu lado, dando-lhe calorosas palmadas sobre o ombro.
Depois, arrancou sua lança do olho do mamute, segurando-a bem para o alto. Os outros
quatro vieram, rápidos, juntar-se a eles e, ao ritmo das batidas de seus corações pulavam de
alegria, dançando em cima do dorso colossal do mamute vencido.
Brun, por fim, saltou e andou em roda do animal, que praticamente ocupava todo o espaço.
Nenhum homem ferido. Nem sequer um arranhão. Uma caçada realmente de sorte. Os
totens deveriam estar contentes com eles.
- Devemos deixar que os espíritos saibam que estamos agradecidos - falou. - Quando
voltarmos, o Mog-ur vai celebrar uma cerimônia especial. Bem, agora vamos tirar o fígado
e cada homem terá o seu pedaço e levaremos também um pedaço para Zoug, Dorv e o
Mog-ur. O resto será dado ao espírito do mamute. Foi o que o Mog-ur me disse para fazer.
Vamos enterrar aqui, no lugar onde ela caiu, e também o fígado do filho que está em sua
barriga. O
Mog-ur disse para não tocarmos no cérebro, que deve ser deixado onde se encontra a fim
de que seu espírito possa guardálo. Quem acertou o primeiro golpe, Broud ou Goov?
- Broud - respondeu Goov.
- Então cabe a ele o primeiro pedaço do fígado. Mas a caça é mérito de todos.
Broud e Goov foram enviados para buscar as mulheres. Dando uma virada final, os
homens terminaram sua tarefa. Daqui por diante, seria com as mulheres. A elas, caberia o
tedioso serviço de esquartejar o animal e trabalhar as carnes para serem conservadas.
Enquanto esperavam, eles retiraram as vísceras e o feto, quase totalmente formado. Quando
as mulheres chegaram, eles ainda as ajudaram a remover a pele. O animal era grande
demais, exigindo o esforço de todos. As partes principais e preferidas seriam guardadas nos
esconderijos sob as pedras para aí congelarem. O resto das carnes seria colocado ao redor
das fogueiras, não só para impedir que se congelasse, como também para afastar os
animais que poderiam vir atraídos pelo cheiro do sangue e da carne crua.
Cansados, mas felizes, foram dormir aquela noite sobre suas aconchegantes peles,
satisfeitos de comer carne fresca pela primeira vez, desde que haviam saído da caverna.
Pela manhã, enquanto as mulheres trabalhavam, os homens se reuniram para reviver as
emoções da caçada e admirar cada um a coragem do outro. Havia um riacho perto, mas a
uma certa distância da garganta, o que dificultava o trabalho. Entretanto, uma vez que os
quartos do animal estivessem separados, eles se mudariam, deixando somente alguns ossos
com uns poucos pedaços de carne agarrados para os predadores que rondavam tanto no
céu como nas áreas próximas.
O clã aproveitava quase todas as partes do animal. Do couro, poderiam fazer-se calçados,
muito mais resistentes e duradouros do que aqueles feitos da pele de outros animais; cortina
para quebrar o vento na entrada da caverna, vasilhames de cozinha, tiras fortes para
amarrar e barracas. A macia camada lanosa podia ser transformada numa espécie de feltro,
usado para enchimento de travesseiros, colchões e até mesmo como absorventes, forrando
os cueiros dos bebés. Da crina comprida, dos tendões e dos músculos faziam-se resistentes cordas. A bexiga, o estômago e os intestinos poderiam ser usados como recipientes de
água, vasilhas para sopa, sacos para armazenar comida e até mesmo como um
impermeável para ser usado nos dias de chuva. Pouca coisa se perdia.
Mas além da carne e das outras partes, a gordura era particularmente fundamental à vida
deles. A gordura reconstituía o equilíbrio das calorias necessárias para alimentar suas
exigências energéticas, tanto para mantêlos
aquecidos no inverno, como para sustentar suas intensas atividades do verão Além disso, era
usada na curtição de couros, já que vários animais que caçavam - cavalos, veados,
coelhos, pássaros e auroques ou bisões, todos animais herbívoros - eram essencialmente
magros; servia de combustível para lamparinas de pedra que iluminavam e aqueciam os
ambientes; tinha emprego nas impermeabilizações; funcionava como veículo para pomadas,
ungüentos e emolientes; ajudava a lenha molhada a pegar fogo e a manter as tochas acesas,
servindo como combustível na ausência de outros materiais incandescentes. Os usos da
gordura eram, portanto, diversos.
Todos os dias, enquanto as mulheres trabalhavam, os homens ficavam observando o céu. Se
o tempo se mantivesse claro, a carne dentro de uns sete dias estaria seca, para o que
concorriam também os ventos soprando ininterruptamente. não havia necessidade da
fumaça das fogueiras, fazia frio e as varejeiras não viriam estragar a carne. Como estava, ia
tudo muito bem. O com bustível lá era muito mais difícil do que nas encostas, cobertas de
mata ou mesmo nas planícies ao sul, mais quentes e com maior quantidade de árvores. Se o
céu estivesse sombrio, com nuvens intermitentes e chuvas, as finas tiras de carne levariam
três vezes mais tempo para secar. Uma ligeira neve pulvurenta batida pelas rajadas de
vento não se constituía em grande problema. O ruim seria tempo úmido com um calor
extemporâneo; então sim, o trabalho praticamente parava. Precisavam de tempo seco, claro
e frio. A única maneira de transportar a montanha de carne que possuíam era com ela seca.
A pesada e cabeluda pele era limpa de sua grossa camada de gordura e dos vasos
sanguíneos, nervos e folículos. Grossas placas de gordura endurecida eram postas sobre as
fogueiras em grandes vasilhames de couro e aí se derretiam para ser despejadas dentro das
tripas já limpas, que depois de amarradas ficavam como gordas salchichas. O couro ainda
com o pêlo era dividido em pedaços com os quais se faziam rolos portáteis, deixados ao
tempo para endurecer. Mais tarde, durante o inverno, depois de retirados os pêlos, seria
posto para curtir. As presas foram partidas e orgulhosamente exibidas pelo acampamento.
Também seriam levadas com eles.
Durante o dia, enquanto as mulheres trabalhavam, os homens, ou saíam para trazer
pequenas caças, ou se deixavam ficar por ali, observando vagamente. A mudança para a
vizinhança do rio se, por um lado, lhes foi conveniente, por outro, trouxe um problema
mais difícil de ser remediado. Os animais, atraídos pela carne fresca, os haviam seguido até
o novo local. As tiras de carnes penduradas nas cordas e correias de couro precisavam de
vigilância constante, principalmente contra uma enorme hiena sarapintada que era de uma
persistência fora do comum. Diversas vezes fora escorraçada, mas teimava em ficar
rondando pela periferia do acampamento e escapando das tentativas para matá-la, levadas
sem grande empenho. Era astuto bastante para conseguir abocanhar muitas vezes por dia bons nacos de carne. Representava um constante prejuízo.
Ebra e Oga, atarefadas, cortavam em tiras os últimos pedaços de carne que iriam ser postos
a secar. Ika e Ovra despejavam gordura dentro das tripas e Ayla estava no riacho lavando
outras tantas. Uma crosta de gelo já se havia formado nas margens, mas a água continuava
correndo. Os homens, num grupo, discutiam se iriam ou não sair com suas fundas para
caçar alguns pequenos roedores.
Brac achava-se sentado perto da mãe e de Ebra, brincando com algumas pedrinhas; depois,
cansado, levantou-Se procurando algo mais interessante para fazer. As mulheres,
inteiramente concentradas no trabalho, não viram quando ele se afastou, mas outros olhos o
estavam vigiando.
De repente, todas az cabeças se voltaram na direção do grito agudo e aterrorizado do
menino.
- Meu filho! - gritou Oga. - A hiena pegou o meu filho!
Aquela repulsiva criatura, sempre pronta a atacar jovens incautos e velhos indefesos, havia
apanhado Brac pelo braço e rapidamente batia em retirada arrastando consigo a pequenina
criança.
- Brac! Brac! - gritou Broud correndo atrás, seguido dos outros homens. Estava longe
demais para usar a lança. O rapaz pegou sua funda e se agachou procurando às pressas uma
pedra, antes que o animal saísse do alcance.
- Oh, não não - gritou desesperado, quando viu a pedra cair a uma pequena distância do
alvo pretendido e a hiena ir-se afastando. - Brac! Braaac!
Subitamente, partido de outra direção o barulho de duas pedras atiradas uma atrás da
outra. Os projéteis pegaram em cheio a cabeça do animal que tombou no chão.
Broud, que estava estupefato, de boca aberta, mais ainda ficou ao ver Ayla sair correndo na
direção de Brac, que gemia de dor. A garota tinha a funda na mão e mais duas pedras
prontas para ser atiradas. A hiena era, por excelência, a sua presa. Ela havia estudado esses
animais, conhecia-lhes os hábitos e seus pontos fracos, e tanto se esmerara na sua caça que
esta se convertera numa segunda natureza para ela. Quando ouviu o grito de Brac, não
mediu as conseqüências, muito naturalmente pegou na funda e em duas pedras para atirar.
A úmica coisa que pensou foi em impedir a hiena de arrastar Brac para longe.
Só depois que retirou a criança das garras do animal morto e que virou o rosto, vendo os
olhares de assombro, é que ela sentiu o impacto do gesto. O segredo fora revelado. Ela
mesma se entregara. Agora, sabiam que a garota podia caçar. Uma onda de medo correu-
lhe pelo corpo. O que será que vão fazer comigo?, perguntou-se.
Ayla pôs o menino no colo e, evitando os olhares que pareciam não acreditar no que viam,
dirigiu-se ao acampamento. Oga foi a primeira a se recuperar do choque. Saiu correndo
com os braços estendidos e, agradecida, pegou o filho do colo da garota que o salvara.
Logo que chegaram ao acampamento, Ayla pôs-se a examinar a criança, não só para não ter
de enfrentar os olhares das pessoas, como também para ver a extensão do ferimento. O
ombro e a parte superior de um dos braços ficaram muito machucados, mas parecia ser uma
fratura simples.
Ela nunca havia posto um braço no lugar, mas já vira Iza fazê-lo, e esta lhe tinha explicado
como agir em casos de emergência. Iza, entro, pensava estar-se referindo aos caçadores,
jamais poderia ocorrer-lhe que alguma coisa pudesse acontecer com o menino. Ayla atiçou
o fogo, começou a botar água para ferver e foi buscar sua sacola de medicamentos.
Os homens continuavam em silêncio, ainda atônitos, sem poder ou querer aceitar o que
haviam presenciado. Pela primeira vez na vida, Broud sentiu- se grato a Ayla. Seu
pensamento, entretanto, não ia além da sensação de alívio pelo fato de o filho de sua
companheira ter sido salvo de uma morte certa e pavorosa. Mas o de Brun enxergava
mais longe.
Ele cedo percebeu as implicações do ato de Ayla, vendo-se de repente diante de uma decisão
impossível. Pela tradição - que na prática tinha o valor de lei - o castigo para qualquer
mulher que usasse armas seria nada menos do que sua condenação à morte. Isso estava bem
explícito. não havia qualquer atenuante para atender circunstâncias extraordinárias. Um
costume tão antigo e tão aceito que, pelo que se podia lembrar, há muitas gerações não era
aplicado. Às lendas a que se referiam essa tradição estavam associadas àquelas do tempo
em que as mulheres detinham o controle de acesso ao mundo dos espíritos, antes de os
homens assumirem o poder.
O costume era uma das forças que marcava bem a diferença entre os homens e as mulheres
dos clã já que uma mulher com gosto pela caça, coisa essencialmente masculina, não
poderia viver. Há séculos que somente as mulheres com atitudes e comportamento
nitidamente femininos é que tinham direito a viver. Em conseqüência, a faculdade de
adaptação - aquilo de que verdadeiramente dependia a sobrevivência - se viu diminuída.
Mas tal era o costume ou lei vigorando nos clã apesar de que nunca mais tivesse existido
um
comportamento feminino desviante. Só que Ayla não era genuinamente filha dos clã
Brun adorava o filho da companheira de Broud. Apenas junto de Brac, abria um pouco
sua rígida guarda. O bebê podia fazer o que quisesse; puxava- lhe a barba, metia os dedos
curiosos em seus olhos, às vezes até chegava a vomitar sobre ele. Nada tinha importância.
Jamais Brun se mostrava tão complacente como quando o garotinho adormecia em paz,
confiante na segurança dos braços do orgulhoso chefe. Ele não tinha dúvida de que Brac não estaria vivo, se
Não fosse por Ayla. Como poderia condenar à morte a menina que tinha salvo a vida de
Brac? Eo salvou com a arma que agora era a causa de sua condenação à morte.
Como teria ela conseguido? perguntava-se, curioso. O animal estava fora do alcance e ela
ainda se achava mais distante do bicho do que os homens. Ele foi até onde a hiena jazia
morta e tocou no sangue que corria dos ferimentos. Mas, o que é isso? Dois ferimentos?
Então os seus olhos não o haviam en ganado? Ele realmente no momento achara ter visto
duas pedras sendo disparadas. Como teria ela conseguido aprender a manejar a funda com
aquela mestria? Nem Zoug ou ninguém de quem soubesse era capaz de atirar duas pedras
com tanta rapidez e com tanta pontaria e força. Uma força capaz de matar uma hiena
daquela distância!
Além disso, ninguém jamais usara funda para matar hienas. Logo que viu a tentativa de
Broud, sabia que seria um gesto inútil. Zoug sempre afirmara que aquilo poderia ser feito,
mas Brun particularmente tinha suas dúvidas. Ele nunca contradizia Zoug que continuava
sendo um bem muito precioso para o clã e nem por sombra seria o caso de desacreditá-lo.
Bem, Zoug provou agora que estava certo. E será que uma funda podia também matar um
lobo ou um lince como Zoug atestava com tanta convicção Brun fazia suas conjeturas. De
repente, arregalou os olhos e os estreitou em seguida. Um lo bo? Um lince? Ou um carcaju,
um texugo, um furão, uma onça ou uma hiena? A cabeça de Brun trabalhava depressa.
Ou todos aqueles predadores que ultimamente eram encontrados mortos?
Claro! Ele fazia gestos enfatizando o pensamento. Foi ela quem fez aquilo tudo! Ayla já
vem caçando há muito tempo. Se não como teria arrumado uma pontaria destas? No
entanto, ela aprendeu todos os serviços que uma mulher faz com muita facilidade, como
então conseguiu aprender a caçar? E por que predadores? E por que logo os perigosos? E
por que tudo isso?
Se ela fosse homem, seria a inveja de todo caçador. Só que não é homem. É mulher, usou
uma arma e por isso deve morrer; do contrário, os espíritos ficarão furiosos. Mas se ela
está caçando há tanto tempo, por que ainda não ficaram furiosos? Justamente o que eles não
têm no momento é raiva. Acabamos de matar um mamute numa caçada tão perfeita que
nem um só homem saiu ferido. Os espiritos estão contentes conosco e não furiosos.
Brun, confuso, balançou a cabeça sem compreender. Espíritos! Nunca vou entendê-los. Só
desejava que o Mog-ur estivesse aqui. Droog diz que ela nos traz sorte. Quase chego a
acreditar que ele tem razão As coisas nunca andaram tão bem para nós como desde que a
menina foi encontrada. Mas, se eles estão de seu lado, será que não ficariam desgostosos,
se ela fosse condenada à morte? Ele se desesperava. Por que tinha ela de ser achada logo
pelo meu clã? Ayla pode significar sorte, mas já me deu mais dores de cabeça do que todo
mundo junto. não posso tomar qualquer decisão antes de falar com o Mog-ur. Não tenho
nada a fazer, sem esperar até a volta à caverna.
Brun retornou ao acampamento. ayla dera ao garoto um remédio contra a dor que o fez
dormir. Em seguida, limpou os machucados, botou o braço no lugar e fez uma tala com
cascas úmidas de vidoeiro. Quando secassem, ficariam duras e tesas, firmando os ossos no
lugar. Mas teria de ficar sob observação para o caso de o braço inchar demais. Viu quando
Brun voltou, depois de examinar a hiena, e tremeu de medo. Mas o chefe passou por ela
sem fazer o menor sinal, ignorando-a completamente. A garota percebeu que não ficaria
sabendo de seu destino, enquanto não voltassem à caverna.

Capítulo 15

Enquanto o bando de caçadores caminhava para o sul, parecia que as estações do ano
estavam andando de trás para a frente. Nuvens ameaçadoras e o cheiro de neve haviam
apressado a partida. Eles não tinham o menor desejo de ser apanhados pela primeira
nevasca de inverno no norte da península. O tempo mais quente na extremidade sul dava a
falsa sensação de primavera se aproximando, trazendo uma certa distorção mental. Só
que ao invés de rebentos e flores silvestres desabrochando, as planícies revolviam-se em
ondas douradas, e as árvores da floresta temperada ao lado das coníferas faziam um
mosaico vermelho, âmbar e verde. No entanto, a vista a distância era enganadora. A
maioria das velhas árvores já havia perdido suas folhas, e o inverno, em toda a sua fúria,
estava às costas.
Levou muito mais tempo na volta do que na ida até atingirem o local da caçada. As
passadas largas que rapidamente devoravam distâncias eram agora impossíveis com o
volume da carga trazida. Mas Ayla não se curvava apenas ao peso da carga que
transportava. Culpa, ansiedade e depressão eram fardos ainda mais pesados. Ninguém
falava do incidente, mas ele não fora esquecido. Diversas vezes seu olhar cruzava com o de
outra pessoa que, surpreendida, ra pidamente desviava os olhos. Ninguém falava com ela a
não ser o necessário. Sentia-se isolada, desamparada e com medo. Pelo pouco das
conversas que lhe chegaram, ficou sabendo qual era a pena para seu crime.
Na caverna, as pessoas vigiavam o retorno dos caçadores. Desde que chegou a ocasião
prevista para a volta, alguém ficava de vigia, junto do pequeno morro, de onde se tinha
uma boa visão da planície. Quase sempre era uma das crianças.
Quando Vorn assumia o posto pela manhã ele começava sempre pondo atenção no
panorama a distância, mas depois se aborrecia. não gostava de ficar sozinho ali, onde
nem mesmo a companhia de Borg tinha para brincar. Punha-se, então a fantasiar caçadas, e
tantas foram as estocadas dadas no chão com a sua pequena lança que a ponta, apesar de
endurecida no fogo, desgastara-se. Foi por puro acaso que ele viu o bando de caçadores
aparecendo ao longe.
- Presas! Presas! - gritava correndo em direção à caverna.
- Presas? - perguntou Aga. - O que você quer dizer com isso?
- Eles estão de volta - gesticulou Vorn, excitado. - Brun e Droog e to do o resto. Eles
estão trazendo as presas!
Todos desceram até a planície para saudar os caçadores. Ao encontrá-los, porém, era visível
que alguma coisa saíra errada. A caçada havia sido um sucesso, não havia por que não
estarem felicíssimos. Ao contrário, caminhavam pesadamente, de uma maneira contida.
Brun estava soturno, e Iza, com um único olhar para Ayla, percebeu que alguma coisa de
terrível relacionado com sua filha deveria ter ocorrido.
Enquanto os componentes da caçada passavam um pouco da carga para aqueles que haviam
ficado, a razão do sombrio silêncio foi aparecendo. Ayla, abatida, subia de cabeça baixa a
colina, inteiramente distraída dos olhares que lhe eram lançados. Iza estava estarrecida. Se
sempre se preocupara com as atitudes pouco ortodoxas de sua filha adotiva, isso não era
nada era comparação com o medo paralisante que agora sentia por ela.
Ao chegarem à caverna, Oga e Ebra trouxeram a criança ferida para Iza. Ela retirou a tala e
examinou a lesão.
- O braço vai ficar do jeito que era antes. Ficará com uma cicatriz, mas os ferimentos já
estão sarando e o braço está bem encanado. Mas é melhor continuar com a tala. Vou botar
uma nova.
Oga e Ebra respiraram aliviadas. Sabiam que Ayla não possuía prática, mas não tiveram
outro remédio sem deixá-la tratar de Brac. Estavam as duas muito preocupadas. Um
caçador precisava ter dois bons braços fortes. Se Brac perdesse um deles, jamais poderia
almejar a se tornar o chefe do clã, para o que estava predestinado. E sem poder caçar, nem
mesmo homem ele se tornaria, levaria a vida naquela espécie de limbo em que viviam os
meninos já crescidos, mas que ainda não passaram pela primeira caçada consagradora do status adulto.
Brun e Broud também se sentiram aliviados. No entanto, no caso de Brun, a notícia foi
recebida com um misto de emoção. Sua decisão ficara ainda mais difícil. Ayla não tinha
apenas salvo a vida de Brac, ela lhe assegurara uma existência útil e normal. O assunto já
estava sendo protelado demais. O chefe chamou o Mog-ur, e os dois se puseram a caminhar
juntos.
A história, como Brun a explicou, deixou Creb profundamente perturbado. A
responsabilidade de educar e ensinar Ayla era sua e, sem dúvida, ele falhara. Havia, no
entanto, uma coisa ainda que o deixava mais inquieto. Quando soube dos animais achados
mortos, sentiu na ocasião que aquilo não tinha nada a ver com espíritos. Chegou até a
imaginar se Zoug ou um dos outros não estaria fazendo algum tipo de brincadeira com o
clã. Isso parecia improvável, mas sua intuição lhe dizia que naquelas mortes deveria haver o
dedo de alguém, e bem humano. Além disso, não lhe passaram despercebidas as mudanças em Ayla, que ele, agora, pensando melhor, podia perfeita mente identificar. As
mulheres nunca caminham com aquele andar silencioso e furtivo dos caçadores. Estão
sempre fazendo barulho, e com boa razão para isso. Mais de uma vez, Ayla o havia
surpreendido. Aproximava tão silenciosamente que Creb nem percebeu sua chegada. Havia
também outras coisas, certos pequeninos detalhes que poderiam ter levantado suas
suspeitas.
Mas, estava cego por seu amor por ela. Nem de leve podia imaginar que Ayla estivesse
caçando, as conseqüências disso eram conhecidas demais. O velho feiticeiro se
questionava sobre sua própria integridades sobre sua capacidade de exercer sua função Ele
pusera os seus sentimentos pela menina na frente da guarda espiritual do clã. Será que ainda
merecia a confiança dos outros? Poderia, com justiça, continuar como mog-ur?
Creb assumiu toda a culpa das ações de Ayla. Ele deveria ter indagado dela; não podia tê-la
deixado rondar pelas matas com tanta liberdade; sua disciplina também não fora
suficientemente severa. Mas, toda a angústia que sentia pelo que deveria ter feito e não
fez não alterava em nada o que ainda teria de fazer. A decisão era de Brun, mas cabia ao
Mog-ur pô-la em execução:o dever de matar a menina que ele adorava.
- Por enquanto é só uma conjeturas mas parece que foi ela quem andou matando os
animais - disse Brun. - Nós precisamos interrogá-la. Agora, o fato é que a menina tinha
uma funda na mão, com a qual matou uma hiena. E para fazer isso, deve ter treinado antes
em alguma coisa, do contrário não se explicaria a técnica incrível que possui. Ela chega a
ser melhor do que Zoug, Mog-ur, e é mulher! Como teria aprendido? Já pensei até que
talvez exista uma parte masculina nela, e não sou o único a imaginar tal coisa. Ela é alta como um homem, e nem mulher ainda é. Você acha que pode haver alguma verdade no que
andam dizendo.. . que ela nunca será mulher?
- Ayla é uma menina, Brun, e algum dia ficará mulher, igual a qualquer outra garota.. . ou
ficaria. Trata-Se apenas de uma mulher com uma arma na mão. - Havia em Creb um ar de
determinação, não iria deixar-se levar por falsas ilusões.
- Bem, eu ainda gostaria de saber há quanto tempo ela vem caçando. Mas isso pode
esperar até amanhã. Hoje, estamos todos muito cansados, a viagem foi muito comprida.
Diga a Ayla que amanhã vamos interrogá-la.
Creb voltou à caverna e parou na sua fogueira só para dizer a Iza que avisasse a Ayla de
que ela seria interrogada no dia seguinte. Depois, foi para sua pequena gruta e lá passou
toda a noite.
As mulheres, em silêncio, seguiram com os olhos os homens se dirigindo para
a mata e Ayla caminhando atrás. Estavam todos perplexos e os sentimentos
eram os mais variados. A própria ayla sentia-se confusa. Ela podia desconhecer a gravidade de seu crime, mas sempre soube que caçar era errado. Será que faria alguma
diferença se eu soubesse? perguntou-se naquele instante. Não. Eu queria caçar e teria
caçado do mesmo jeito. Mas não queria que os maus espíritos me perseguissem até o outro
mundo. O pensamento fê-la estremecer.
Tinha tanto medo das invisíveis forças malignas quanto acreditava no poder dos totens
protetores. Agora, nem mesmo o Espírito do Leão da Caver na poderia protegê-la contra
eles, ou será que podia? Devo ter me equivocado, pensou. Meu totem não iria mandar uni
aviso para que eu caçasse, sabendo que isso me levaria à morte. Talvez ele me tenha
abandonado, quando peguei na funda pela primeira vez. A menina não gostava de pensar
sobre isso.
Os homens foram para uma clareira e lá se ajeitaram sobre troncos e pedras, ladeando Brun.
Ayla deixou-se cair aos pés do chefe. Este bateu-lhe no ombro, permitindo que ela o
olhasse e imediatamente abordou o assunto sem qualquer preâmbulo.
- Foi você, Ayla, quem matou os comedores de carne que os caçadores encontraram?
- Foi - respondeu com a cabeça. não era o caso de esconder mais nada. Seu segredo
estava descoberto e eles perceberiam, se procurasse desviar-se das perguntas. Tal como
todas as pessoas do clã, ela também não podia mentir.
- Como aprendeu a usar uma funda?
- Aprendi com Zoug.
- Com Zoug? - repetiu Brun. Todas as cabeças se viraram, indignadas, para o velho.
- Nunca ensinei a menina a atirar com funda - gesticulou Zoug, defendendo-se.
- Zoug não sabia que eu estava aprendendo com ele - falou a menina, correndo depressa
em defesa do velho caçador. - Eu apenas ficava observan do quando ele ensinava Vom.
- Há quanto tempo você caça - foi a próxima pergunta de Brun.
- Agora, faz dois verdes. Mas, no primeiro verão, eu não cacei, só treinei.
- É o tempo que Vom vem treinando - comentou Zoug.
- Eu sei - disse Ayla. - Foi no mesmo dia em que ele começou.
- Como você sabe exatamente quando Vorn começou, Ayla? - perguntou Brun,
curioso com o fato de ela estar tão certa.
- Eu estava lá observando.
- O que você quer dizer com lá? La é onde?
No campo de treinamento. Iza havia me mandado buscar algumas cascas de cerejeira, mas,
quando cheguei, vocês já estavam na clareira - explicou ela. - Iza precisava das cascas e
eu não sabia quanto tempo iriam demorar. Então fui ficando. Zoug dava a Vorn sua
primeira lição.
- Você assistiu a Zoug dando a primeira lição a Vorn? - interpôs Broud. - Tem certeza
de que era a primeira? - Broud se recordava muito bem daquele dia. Era uma lembrança
que ainda o fazia corar de vergonha.
- Tenho, Broud. Estou muito certa disso.
- E o que mais você viu? - Seus olhos se estreitaram e o rapaz se expri mia
atrapalhando-Se nos gestos.
Brun também de repente se lembrou do que acontecera no campo de treinamento no dia
em que Zoug deu início às aulas de Vorn e não se sentia nem um pouco satisfeito com o
fato de uma mulher haver testemunhado o incidente.
Ayla hesitou.
- Vi também outros homens treinando - respondeu, tentando desviar- se da questão. O
rosto de Brun, nesse ponto, assumiu uma expressão dura. - E vi também Broud jogando
Zong ao chão, e você furioso com ele, Brun.
- Você viu isso! Você viu tudo? perguntou Broud. Estava lívido de raiva e era um
constrangimento só. Dentre todo mundo, dentre todas as pessoas do clã, tinha de ser
exatamente ela a presenciar a cena! Quanto mais pensava na coisa, mais acabrunhado se
sentia e ao mesmo tempo com mais raiva. Aquele fora o cargo mais duro que já recebera de
Brun e ela o havia presenciado. Recordou-se, inclusive, de como errara feio os seus tiros
e, subitamente lembrou-se também de que errara o tiro na hiena. A hiena que ela matou. Uma
mulher, e justamente aquela mulher é que tinha de expor sua vergonha.
Qualquer pensamento mais favorável a ela ou algum laivo de gratidão que já tivera
desapareceram naquele instante. Vou ficar feliz quando ela morrer, disse o rapaz consigo.
Ela merece a morte. não podia suportar a idéia de Ayla viver, tendo presenciado o
supremo momento de vergonha de sua vida.
Brun o observava e, pelas expressões do seu rosto, quase podia ler-lhe o pensamento.
Pena, pensou, justamente agora que havia uma chance de terminar a animosidade entre
ambos. Bem, mas isto não tem mais importância. E prosseguiu com o interrogatório.
- Você disse que começou a treinar no mesmo dia que Vorn. Fale mais sobre isso.
- Depois que vocês foram embora, atravessei o campo e vi a funda que Broud tinha
atirado no chão. Todo mundo se esqueceu dela, quando você ficou furioso com Broud. não
sei por que, mas tive curiosidade de saber se conseguiria atirar. Comecei a lembrar da
lição de Zoug e passei a tentar. não era fácil, mas fiquei treinando toda a tarde. Cheguei até
a me esquecer de que o tempo estava passando. Acertei no poste uma vez, acho que por
puro acaso, mas isso me fez pensar que eu poderia conseguir, se me esforçasse. e, as sim,
guardei a funda.
- Imagino que aprendeu também com Zoug a fazer a arma.
- Sim, foi com ele.
- E você treinou naquele verão?
-Sim.
- E, desse modo, resolveu caçar. Mas por que comedores de carne? São os mais difíceis e
perigosos. Já encontramos lobos mortos e até linces. Zoug sempre afirmou que esses bichos
poderiam ser mortos com funda e você provou que ele tinha razão, mas por que justamente
estes?
- Bem, eu sabia que não podia trazer nada para o clã, sabia que não tinha o direito de
tocar numa arma, mas queria caçar, ou pelo menos tentar. Os comedores de carne estão
sempre roubando nossa comida. Achei que, se atirasse neles, estaria ajudando. E também
não seria um desperdício, já que não comemos esses animais. Foi por isso que resolvi caçá-
los.
Isso satisfez a curiosidade de Brun no que dizia respeito às mortes dos predadores, mas
ele ainda continuava sem compreender o porquê de ela querer caçar. Era uma mulher e
jamais alguma havia tido vontade de caçar.
- Você sabe que é muito perigoso tentar matar uma hiena de grande distância, e se você
tivesse acertado em Brac? - falou Brun, querendo testá-la. Ele mesmo esteve a ponto de
usar as boleadeiras, apesar de que a chance de matar o garoto com uma pedrada fosse muito
grande. Mas uma morte instantânea causada por uma fratura de crânio era preferível à
que aguardava o menino e, assim pelo menos, eles teriam o corpo para enterrar, dando a
Brac a oportunidade de trilhar seu caminho para o mundo dos espíritos, com todos os
rituais devidos. Com sorte, teriam encontrado alguns ossinhos dispersos, se a hiena tivesse
levado a melhor.
- Mas eu nunca acertaria em Brac - respondeu Ayla, com simplicidade.
Como podia ter tanta certeza? A hiena estava fora do alcance.
Não do meu. Já havia acertado em animais daquela distância. Quase
nunca erro.
- Achei ter visto a marca de duas pedras - gesticulou Brun.
- Atirei duas pedras - confirmou Ayla. - Aprendi a fazer isso depois que fui atacada
por um lince.
- Você? Atacada por um lince? - pressionou Brun.
- Fui - confirmou Ayla, com a cabeça. Em seguida, contou o aperto de que se livrara.
- De que distância você consegue acertar? - perguntou Brun. não me precisa dizer.
Mostre. Sua funda está com você?
Ayla balançou a cabeça afirmativamente e se levantou. Todos se encaminharam para o
ponto extremo da clareira, onde havia um pequeno riacho correndo sobre um leito
pedregoso. A garota escolheu algumas pedras de for mato e tamanho convenientes. As
redondas eram as que davam melhor pontaria, maior distanciamento, mas pedras dentadas
e pontiagudas também serviam.
- Vou acertar naquela pequena pedra branca, junto da grandona, lá do outro lado - falou
ela.
Brun fez que sim com a cabeça. Era bem mais de uma distância e meia que qualquer um
deles poderia atirar. Ayla mirou cuidadosamente, meteu uma pedra na funda e, no instante
seguinte, uma outra já estava na funda e varan do o ar. Zoug saiu correndo para
confirmar a pontaria.
- Duas lascas foram arrancadas da pedra branca. Ela acertou no alvo duas vezes seguidas
- anunciou ele, voltando um tanto assombrado e com uma pontinha de orgulho.
Ela era mulher, nunca deveria ter encostado a mão numa funda. A tradição a respeito era
muito clara, mas. . . a menina era boa. Com ou sem o seu conhecimento, cabia a ele o
mérito de tê-la ensinado, ela mesma o dissera. E essa técnica de duas pedradas, pensou, era
um truque que ele gostaria de aprender. O orgulho de Zoug era aquele de um bom professor
pelo aluno que depois o ultrapassa; um bom aluno atento que aprendeu bem as lições e superou o mestre. E a menina provou que ele estava certo no que dizia.
O olho de Brun percebeu algo se movendo na clareira.
- Ayla! - gritou. - Um coelho, pegue!
Ela olhou na direção em que ele apontava, viu o animalzinho atravessando o campo aos
saltos e o derrubou. Não foi preciso averiguar a pontaria. Brun olhava-a com admiração
Ela é rápida, disse consigo. A idéia de uma mulher caçando ofendia-lhe o sentido de
propriedade. Para ele, em primeiro lugar vinha sempre o clã ou seja, a segurança e
prosperidade deste acima de tudo. No entanto, lá no fundo, sentia que grande vantagem
seria para o clã, se pudesse contar com Ayla. não Isso é impossível, falou consigo. contra
toda a tradição Algo que foge completamente a nossos costumes.
Creb já não via os talentos de Ayla com a mesma admiração Se ainda subsistia alguma
dúvida em seu espírito, a demonstração dela acabou por convencê-lo. Ayla realmente
vinha caçando.
- Antes de mais nada, por que você teve de pegar na funda? - gesticulou o Mog-ur, com
expressão fria e soturna.
- Não sei - disse ela, baixando a cabeça e olhando para o chão Mais do que tudo, odiava
causar desgostos a Creb.
- Você fez mais do que simplesmente tocar numa arma. Você caçou e matou com ela,
quando sabia que esta era uma coisa proibida.
- Recebi um aviso de meu totem, Creb. Pelo menos achei que era um aviso. - Desatou o
laço de seu amuleto. - Resolvi caçar depois que encontrei isso - falou, estendendo o
fóssil na direção do Mog-ur.
Um aviso? Seu totem lhe mandou um aviso? Agora, eles se sentiam consternados por ela. A
revelação deu uma reviravolta na situação Mas por que resolveu ela caçar? Este era o ponto.
O feiticeiro examinou o fóssil com atenção. Era uma pedra de fato fora do comum. Tinha a
forma de um bicho do mar mas, sem dúvida alguma, era pedra. Podia ser um sinal ou aviso,
mas não provava nada. Os sinais eram uma coisa que existia só entre a pessoa e seu totem.
Ninguém podia entender o aviso dado a um outro. O Mog-ur devolveu-o à menina.
- Creb - implorou ela. - Achei que meu totem estava me botando à prova. Achei que a
maneira como Broud me tratava era um teste e que, se eu aprendesse a aceitar isso, meu
totem me permitiria caçar. - Os olhares cheios de ironia convergiram na direção de Broud
para ver a reação dele. Será que ela pensava mesmo que Broud estava sendo usado pelo
totem para pô-la à prova? O rapaz parecia embaraçado. - Achei também que, quando o
lince me atacou, isso era outro teste. Então, quase que deixei de caçar, estava com medo.
Foi aí que tive a idéia de experimentar com duas pedras. Cheguei mesmo a pensar que foi o
totem que me deu tal idéia.
- Estou entendendo - disse o feiticeiro. - Gostaria de ter algum tempo para meditar
sobre isso tudo, Brun.
- Talvez todos nós precisemos de tempo para pensar sobre isso. Vamos nos reunir amanhã
de manhã - anunciou ele. - Sem a menina.
- O que há mais para pensar? - objetou Broud. - Todos sabemos qual o castigo que ela
merece.
- Seu castigo poderá ser perigoso para o clã inteiro, Broud. Antes de condenar, tenho de
ter absoluta certeza de que nada foi deixado de lado. Voltaremos a nos reunir amanhã.
Enquanto voltavam à caverna, iam conversando entre eles.
- Nunca soube de uma mulher que quisesse caçar - dizia Droog. - Será que isso tem
alguma coisa a ver com o totem dela? Afinal, é totem de homem.
- Jamais quis botar em dúvida o juízo do Mog-ur na ocasião - falou Zoug. - Mas sempre
fiquei intrigado, com esse seu Leão da Caverna, mesmo com a marca na perna dela. Agora,
não há mais dúvida. Ele estava certo, aliás, sempre está.
- Ela é meio homem? - perguntou Crug. - Comenta-se isso por aí.
- E explicaria esse seu jeito pouco feminino - acrescentou Dorv.
- não ela é mulher mesmo, não resta a menor dúvida e por isso deve morrer. Todo mundo
sabe disso - cortou Broud.
- Talvez você esteja certo, Broud - disse Crug.
- Mesmo que ela seja meio homem, não gosto da idéia de uma mulher caçando -
comentou Dorv, com dureza. - não gosto nem mesmo da idéia de ela fazer parte do
nosso clã. Ela é diferente demais da gente.
- Você sabe que esta sempre foi a minha opinião Dorv - concordou Broud. - não sei por
que Brun insiste ainda em falar sobre o assunto. Se eu fosse o chefe, a coisa já estaria
feita e acabada.
- Não é uma decisão que se possa tomar correndo, Broud - falou Grod.
- Por que tanta pressa? Um dia a mais não faz a menor diferença.
Broud apressou o passo sem se dar o trabalho de responder. Este velho tem sempre de vir
com seus discursos defendendo Brun, pensou. Por que Brun não pode tomar a decisão de
uma vez? Já tomei a minha. Para que tanta falação Talvez ele já esteja ficando velho,
velho demais para continuar sen do chefe.
Ayla, confusa, seguiu atrás dos homens. Foi direto para a fogueira de Creb na caverna, lá
ficando sentada sobre sua pele de dormir, com os olhos perdidos no ar. Iza tentou fazê-la
comer, mas a garota simplesmente abanou a cabeça recusando. Uba não entendia direito o
que se passava, mas via que algo não ia bem com a garota alta e maravilhosa, a sua muito
especial amiga por quem tinha verdadeira adoração Dirigiu-se a Ayla, aconchegando-se em
seu colo. A jovem, em silêncio, pôs-se a embalá-la. De certa maneira, Uba sentia ser um
consolo para ela. não se contorceu nem uma vez pedindo para descer, deixando-se
ficar quieta e ser ninada. Por fim, adormeceu. Iza veio pegar a filha e a levou para a cama.
Depois, a curandeira também foi para a dela, mas não dormiu. Seu coração estava
demasiadamente amargurado pela estranha garota a que chamava de filha, ali sentada,
olhando fixamente para as brasas já quase extintas da fogueira.
O dia amanheceu claro e frio. O gelo formava-se nas beiradas do riacho e uma película fina
de água cristalizava-se no lago, alimentado pelo córrego junto da entrada da caverna. Mais
tarde, quando o sol estivesse alto no céu, normalmente se derretia. Dentro de muito pouco
tempo, o clã estaria confinado à caverna para mais outro de seus invernos.
Iza não sabia se Ayla havia dormido. Quando acordou, a menina ainda se achava sentada
sobre a pele, silenciosa, perdida em seu mundo, mal se dando conta do que ia por sua
cabeça. Ela simplesmente esperava. Creb, pela segunda noite, não fora para sua fogueira.
Iza o vira, arrastando os pés na direção da fenda escura que levava a seu santuário. Só saiu
de lá pela manhã Depois de os homens haverem partido, Iza levou um pouco de chá para
Ayla, fazendo-lhe algumas perguntas solícitas, mas nenhuma resposta obteve da menina.
Quando voltou mais tarde, o chá ainda estava no mesmo lugar, intocado e frio. como se já
estivesse morta, pensou Iza. Sua respiração ficou presa na garganta, sentindo como se
garras de ferro lhe comprimissem o coração Era mais do que podia agüentar.
Brun levou os homens para um lugar que ficava sob uma enorme rocha, protegido contra
as frias rajadas de vento. Ali, mandou que se acendesse uma fogueira, antes de dar início à
sessão. O desconforto de estarem sentados ao ar livre poderia levá-los a tomar decisões
precipitadas e ele queria avaliar o
assunto em toda sua dimensão, sabendo dos sentimentos e opiniões de seus comandados.
Quando começou, foi por meio dos símbolos silenciosos empregados para dirigir-se aos
espíritos, dizendo, então que não se tratava de uma reunião ordinária, mas de uma sessão oficial.
- A menina Ayla, membro de nosso clã usou uma funda para matar a hiena que atacou
Brac. Há três anos já vem usando essa arma. Ayla é mulher e, pela tradição que rege os clã a
mulher que fizer uso de armas deve morrer. Alguém tem alguma coisa a dizer?
- Droog gostaria de falar, Brun.
- Que fale, Droog.
- Quando a curandeira encontrou a garota, nós estávamos procurando uma caverna. Os
espíritos haviam ficado zangados conosco e enviado um ter remoto para destruir nossa
moradia. Talvez até não estivessem tão zangados e quisessem apenas um lugar melhor para
viver. Ou talvez, quem sabe, que nós encontrássemos a menina. Ela é estranha, fora do
comum, como se fosse um sinal enviado por algum totem. Desde que foi encontrada, nós só
tivemos sorte. Acho que ela traz sorte e que esta vem de seu totem.
"Já faz parte de sua estranheza o fato de ser escolhida pelo grande Leão da Caverna.
Achávamos que ela era diferente por gostar de entrar na água do mar, mas, se não fosse por
essa sua particularidade, Ona estaria agora caminhando no mundo dos espíritos. Ona é
apenas uma menina e nem mesmo nasceu na minha fogueira, mas passei a amá-la. Teria
sentido muito se tivesse desaparecido, sou grato por não ter morrido afogada.
"Para nós, ela é estranha, mas sabemos muito pouco sobre os Outros. Agora, ela faz parte do
clã, mas não nasceu de nossa gente. não entendo por que quis caçar; nas mulheres do clã
isso é errado. Só que talvez, nas mulheres da raça dela, não seja assim. Bom, pouco importa,
continua sendo errado do mesmo jeito. Entretanto, se ela não tivesse aprendido a atirar com
funda, Brac estaria morto também. E não é nada agradável pensar na morte que teria. Um
caçador morto por um comedor de carne é uma coisa, mas Brac é um bebê.
"A morte dele seria uma perda para todo o clã, Brun. Não só para você e Broud. Se ele
tivesse morrido, nós não estaríamos aqui sentados nesse momento, tentando decidir o que
fazer com a garota que salvou sua vida. Estaríamos de luto pelo menino que algum dia será
o chefe desse clã. Acho que a menina tem de ser castigada, mas como condená-la à morte?
Bom, eu tenho dito.
- Zoug gostaria de falar, Brun.
-Que fale, Zoug.
- O que Droog diz é verdade. Como pode você condenar a menina que salvou a vida de
Brac? Ela é diferente, não nasceu de gente de nossa raça e talvez não pense como deveria uma mulher, mas fora essa questão da funda, ela se comporta
como uma boa mulher do clã. Tem sido um modelo de mulher. Obediente, respeitosa.
- Isso não é verdade. Ela é rebelde e insolente - interpôs Broud.
- Sou eu quem estou falando agora, Broud - retrucou Zoug, com raiva.
Brun lançou a Broud um olhar reprovador, e o rapaz teve de conter-se.
- É verdade - prosseguiu Zoug - que, quando a menina era menor, foi insolente com
você, Broud. Mas a culpa foi sua que se deixou levar. não seria de estranhar que você,
agindo como criança, não fosse tratado como homem, não é verdade? Comigo, ela sempre
se mostrou obediente e respeitosa. E também com os outros homens nunca foi insolente.
Broud fuzilou o velho caçador com os olhos, mas refreou-se.
- Ainda que fosse verdade - continuou Zoug - nunca vi ninguém atirar tão bem quanto
ela. A menina diz que aprendeu comigo. Nunca soube disso, mas digo francamente a
vocês: teria o maior prazer em ter um aluno tão bem-dotado assim, e confesso que hoje só
tenho a aprender com ela. A memina quis caçar para ajudar o clã e, como não pôde,
procurou um outro modo de nos ajudar. Ela pode ter nascido dos Outros, mas o seu coração
está no clã. Sempre pôs os nossos interesses acima dos seus. Ela não pensou no risco que
corria, quando foi atrás de Ona. É verdade que consegue movimentar-se dentro d'água,
mas eu vi como estava cansada, quando chegou com Ona na margem. O mar poderia tê-la
levado também. Ela sabia que era errado caçar e guardou este segredo durante três anos,
mas não hesitou um instante quando a vida de Brac estava em perigo.
"Ela tem um bom manejo da arma. É melhor do que qualquer atirador que já conheci em
minha vida. Seria uma pena não aproveitarmos esse seu dom. Eu diria que ela se constitui
num bem para o clã, que se deveria deixá-la caçar e...
- Não! Não! Não! - exclamou Broud, furioso. - Ela é mulher e não se permite que
mulheres cacem.
- Broud - disse o velho e orgulhoso caçador. - Ainda não terminei. Você poderá falar,
quando eu tiver acabado.
Deixe que Zoug termine, Broud - advertiu Brun. - Se você não sou ber se comportar
numa sessão de caráter oficial, que se retire!
Broud sentou-se, fazendo força para controlar-se.
- A funda não é uma arma importante. Só comecei a desenvolver minha técnica depois
que fiquei velho demais para caçar com lança. As verdadeiras armas do homem são outras.
E digo que lhe seja permitido caçar, mas que use somente a funda. Que a funda seja daqui
por diante a arma dos velhos e das mulheres, ou que pelo menos seja a desta menina.
Pronto, eu tenho dito.
- Zoug, você sabe tanto quanto eu que é mais difícil usar uma funda
do que uma lança e que, muitas vezes, é você quem nos abastece de carne, quando uma
caçada fracassa. não se subestime para favorecer a menina. Para caçar com lanças, basta ter
força nos braços - falou Brun.
- E força nas pernas e no coração. Bons pulnões e um bocado de coragem - replicou Zoug.
- O que me pergunto é o quanto de coragem se precisa para enfrentar um lince depois de
já ter sofrido o ataque de uma fera dessas. . . e sozinha, só com uma funda - comentou
Droog. - não tenho nada a objetar à sugestão de Zoug, se ela continuar sempre caçando
só com funda. Os espíritos também parecem não ter nada contra isso. Ayla continua a nos
trazer sorte como sempre trouxe. E a caçada do mamute, vocês estão esquecidos?
- não tenho muita certeza se é esta a decisão que devemos tomar - disse Brun. - Se já
não consigo ver nenhuma saída para deixá-la continuar vivendo, caçar então muito menos.
Você conhece nossas tradições Zoug. É uma coisa que nunca se fez antes. Será que
realmente os espíritos estão de acordo? Afinal, como uma coisa dessas pode passar por sua
cabeça? As mulheres dos clã não caçam.
- É verdade. As mulheres dos clãs não caçam, mas essa mulher sim. Isso nunca teria
passado por minha cabeça, se eu não tivesse visto que ela consegue caçar. Tudo o que digo
é que deixem a garota fazer o que já vinha fazendo.
- O que você diz, Mog-ur? - perguntou Brun.
- O que você espera que ele diga? Ela vive na fogueira dele! - aparteou Broud, cheio de
amargor.
- Broud! - explodiu Brun. - Você está acusando o Mog-ur de botar seus sentimentos e
interesses acima dos do clã? não é ele Mog-ur? O Mog-ur? Você por acaso acha que ele
não sabe o que é direito e o que é certo?
- Não, Brun. Broud disse algo sensato. Todo mundo conhece bem os meus sentimentos
em relação a Ayla. não é fácil esquecer que gosto muito dela. Acho que vocês deviam
saber que, apesar disso, tenho procurado botar meus sentimentos de lado. não sei se vou
conseguir. Desde que vocês voltaram que venho meditando e estou de jejum. Na noite
passada, encontrei um caminho nas memórias que ainda não havia explorado. Talvez
porque nunca tivesse procurado por ele.
"Há muito tempo atrás, muito antes de vivermos em clãs, as mulheres ajudavam os homens
a caçar. - As expressões se mostravam incrédulas. - É verdade. Nós faremos uma
cerimônia, e vou conduzi-los até lá. Quando estávamos aprendendo a fazer armas e
ferramentas e que ainda nascíamos com um tipo de conhecimento não propriamente como
as memórias, tanto os homens como as mulheres matavam animais para comer. Nem
sempre, nessa época, eram os homens que sustentavam as mulheres. Tal como a mãe ursa, a
mulher caçava para ela e os filhos.
"Foi muito mais tarde que o homem começou a caçar para a companheira e os filhos dela.
E só muito depois que as mulheres com os filhos eram deixados em casa. Quando os
homens começaram a cuidar das crianças e a sustentá-las, foi no início da formação dos clã
e
isto os ajudou a desenvolver-se. Se a mãe morresse durante uma caçada, seu filho também
morreria. Mas somente quando as pessoas pararam de lutar entre si, quando aprenderam a
cooperar umas com as outras e que os homens passaram a caçar em bando é que os clã
realmente se formaram. Até nessa ocasião algumas mulheres caçavam, no tempo em que eram
elas as que detinham o privilégio de comunicar-se com os espíritos.
"Brun, você disse que isso nunca tinha sido feito antes mas, como vê, estava enganado. As
mulheres dos clã já caçaram. Os espíritos, então não tinham nada contra, mas aqueles eram
velhos espíritos, diferentes dos de hoje, não os dos nossos totens. Espíritos poderosos que
há muito tempo estão descansando desse mundo. não tenho muita certeza se eles poderiam
legitimamente ser considerados como espíritos dos clã. Não porque não fossem honrados e
venerados. Eram mais do que isso, temidos principalmente. Contudo, não eram espíritos
maus, diria antes, poderosos.
Estavam todos abismados. O Mog-ur falava de épocas tão remotas, tão pouco lembradas
que lhes chegavam a parecer quase como uma novidade. Mas a simples menção desses
tempos já foi bastante para lhes evocar o medo na lembrança e alguns então deixaram de
estremecer naquele instante.
- Duvido que as mulheres dos clã atualmente mostrem desejo de caçar
- prosseguiu o Mog-ur. - Nem sei se conseguiriam. Isso foi há muitíssimo tempo, e tanto
as mulheres como os homens mudaram muito desde então Mas Ayla é diferente e os Outros
também. Muito mais diferentes do que supomos. Não acredito que o fato de deixá-la caçar vá
afetar nossas mulheres. A caçada dela e o seu desejo de caçar foram uma surpresa tão
grande para elas quanto para nós. Bem, era só o que tinha a dizer.
- Alguém mais tem o que falar? - perguntou Brun. Se bem que não sabia se teria fôlego
para muito mais. Sentia-se confuso, era novidade demais para um dia só.
- Goov gostaria de falar, Brun.
- Que fale, Goov.
- Eu sou apenas um acólito e não sei tanto quanto o Mog-ur, mas acho que ele deixou
passar um fato importante. Talvez por querer tanto que os seus sentimentos por Ayla não
interferissem em seu julgamento, talvez por medo de que o seu amor por ela falasse mais
alto do que sua razão, ele se esqueceu do totem dela.
"Alguém aqui já pensou por que razão iria um poderoso totem masculino escolher uma
menina? - Ele mesmo respondeu à sua pergunta de efeito
apenas retórico. - Tirando Ursus, o Leão da Caverna é o mais poderoso dos totens. Mais
poderoso ainda do que o do mamute. Ele caça o mamute. Mesmo que sejam só os filhotes
ou os velhos, ele caça. O Leão da Caverna já não caça mamutes.
- Você não está fazendo sentido, Goov. Primeiro, diz que o Leão da Caverna caça mamute
e depois diz que não caça, como é isso? - gesticulou Brun.
- Ele Não, mas ela caça. Nós nos esquecemos disso quando examinamos a questão dos
totens protetores; inclusive, o leão da caverna, o macho é o protetor. Mas quem caça? O
mais forte dos carnívoros, o mais forte dos caçadores é a leoa! A fêmea! Não é verdade que é
ela quem leva a caça para seu companheiro? Ele pode matar, mas sua função propriamente
é a de proteger, enquanto ela estiver caçando.
"Não é estranho que um Leão da Caverna tenha escolhido uma menina? Alguém aqui já
pensou que talvez o seu totem não seja o leãoo, mas a leoa? A fêmea? A caçadora? não
poderia isso explicar a razão de a menina querer caçar? Por que foi dado a ela um sinal?
Talvez tivesse sido a leoa quem lhe enviou o aviso. Talvez por isso sua marca esteja na
perna esquerda. Para ela, caçar seria mais extraordinário do que possuir um totem deste?
Não sei se o que estou dizendo é verdade, mas temos de admitir que existe uma lógica
muito grande nisso. Que seja o seu totem o leão ou a leoa da caverna, o fato é que não
podemos negar que estava predestinada a caçar. Ou será que podemos negar seu poderoso
totem? E seria possível que nos atrevêssemos a condená-la por fazer o que o seu totem
deseja? Bom, eu tenho dito.
A cabeça de Brun dava voltas. As idéias lhe chegavam aos supetões. Precisava de tempo
para pensar, para ordenar tudo o que fora dito. Claro que é a leoa quem caça, mas quando já
se ouviu falar de um totem feminino? Os espíritos, as suas essências protetoras, foram
sempre masculinos, ou não Somente aqueles que passam dias em elucubrações a respeito
dos desígnios dos espíritos poderiam chegar à conclusão de que o totem da menina era o
caçador da espécie incorporado no seu totem. Brun, entretanto, preferia que Goov não
tivesse levantado a idéia de que eles estariam deixando de atender os desejos de um totem
tão poderoso.
Todo o conceito de uma mulher caçadora era tão ímpar, tão perturbador em sua
concepção, que muitos ali se sentiram abalados, a ponto de dar um pequeno passo
alargando as fronteiras de seu mundo seguro, confortável e bem definido. Cada homem
falara de seu ponto de vista daquilo que lhe dizia respeito ou segundo sua área de interesse,
e cada um alargara apenas sua fronteira, aquela de seu pequenino e restrito campo de
conhecimento. Brun, porém, teria de abarcar todos os domínios e isso era demais, quase
impossível. Sentia-se obrigado a examinar cada um dos aspectos, antes de emitir o
seu juízo, e gostaria de dispor de tempo para poder mastigar bem as questões. Mas a
decisão já não podia ser postergada por muito mais tempo.
- Alguém ainda deseja expressar sua opmião?
- Broud gostaria de falar.
- Que fale Broud.
- Todas essas idéias são interessantes e podem nos fornecer assunto para discutirmos
durante os dias frios de inverno, mas as tradições a respeito são muito claras. Nascida ou não
dos Outros, a menina pertence aos clã e as nossas mulheres não caçam. não se lhes
permite nem tocar em armas e nem também nas ferramentas usadas para fabricá-las. Todos
sabemos qual é o castigo. A menina deve morrer. Pouco importa se em épocas passadas
mulheres caçavam. O fato de uma ursa ou uma leoa caçar não significa que uma mulher
possa fazer o mesmo. não somos nem ursos nem leões. não faz a menor diferença
também, se ela tem ou não um totem poderoso ou se ela traz ou não sorte para nós.
Igualmente não faz diferença que ela seja uma exímia atiradora e que tenha salvado a vida
do filho de minha companheira. Claro que lhe sou grato por isso. . . todos viram que, no
caminho de volta, tive ocasião de me externar muitas vezes neste sentido, mas continuo
dizendo que tudo isso não faz a menor diferença. As tradições dos clã não permitem
concessões. Uma mulher que usa arma deve morrer. Não podemos alterar o fato. Assim
rezam os nossos costumes. Toda essa reunião é uma perda de tempo. Não existe qualquer
outra decisão a tomar, Brun. E tenho dito.
- Broud tem razão - disse Dorv. - não compete a nós mudar as tradições dos clã Uma
exceção leva a outra. Em breve, não teremos mais nada em que nos apoiar. O castigo é a
morte, logo a menina deve morrer.
Algumas cabeças acenaram em assentimento. Brun não respondeu imediatamente. Broud
está certo, pensou. Qual outra decisão posso tomar? Ela salvou a vida de Brac, mas, para
fazer isso, usou uma arma. Brun estava tão capaz de tomar uma decisão agora como no
dia em que Ayla passou a mão numa funda e matou a hiena.
- Antes de tomar minha decisão, levarei em consideração a opinião de todos aqui. Mas quero
que cada um neste instante expresse sua resposta de forma objetiva - disse, por fim, o
chefe.
Os homens sentavam-se em círculo ao redor da fogueira. Todos mantinham os punhos
cerrados em frente do peito. Um movimento para cima e para baixo significava resposta
afirmativa e, para o lado, valia como não.
- Grod - falou Brun, iniciando com o segundo em comando - você acha que a menina
Ayla deve morrer?
Grod hesitava, estava solidário com seu chefe, vivendo o mesmo dilema. Há anos era o
segundo em comando de Brun e quase podia ler os pensamentos de seu chefe e, com o
passar dos anos, foi aprendendo a respeitá-lo cada vez mais. Ele não via qualquer outra saída. Levantou a mão fechada para cima e
depois para baixo.
- Que outra coisa poderia fazer, Brun - acrescentou.
- Grod diz sim. E você, Droog? - indagou Brun, virando-se na direção do ferramenteiro.
Droog não hesitou, seu punho cerrado fez um movimento atravessan do o peito.
- Droog diz não. Crug, e você?
Crug olhou para Brun, depois para o Mog-ur e finalmente para Broud. Ele foi com a mão
para cima.
- Crug diz sim. Que a menina deve morrer - confirmou Brun. - Goov?
O jovem acólito respondeu imediatamente cruzando o peito com sua mão cerrada.
- Goov é da opinião que não deve. Broud?
Broud, antes mesmo de Brun dizer o seu nome, já tinha o punho suspenso para cima.
Brun passou logo adiante, era uma resposta mais do que sabida.
- Sim, Zoug?
O velho mestre atirador, cheio de altivez, endireitou o corpo e riscou o peito com seu punho
nos dois sentidos, enfaticamente, de modo a não deixar a mais leve sombra de dúvida.
- Zoug é da opinião de que a menina não deve morrer. E você, Dorv, o que acha?
O velho suspendeu sua mão fechada e, antes mesmo que a tivesse abaixado, todos já se
haviam voltado na direção do Mog-ur.
- Dorv diz que sim. Mog-ur, qual é a sua opinião? - Perguntou Brun. A respeito dos
outros, ele sabia por antecipação o que diriam, mas com relação ao velho feiticeiro não
estava muito certo.
Creb se via na maior agonia. Sabia o que rezava a tradição. Culpava-se pelo crime de Ayla,
por lhe ter dado demasiada liberdade. Sentia-se também culpado por gostar tanto dela,
temendo que isso obscurecesse seu raciocínio, que pudesse pensar primeiro nela, botando
seus deveres para com o clã em segundo plano. Pela lógica, decidira que ela devia morrer.
Mas antes que se pusesse a fazer o movimento, sua mão foi empurrada para o lado, como se
alguém a tivesse agarrado e a movesse por ele. Era-lhe impossível condená-la, se bem que,
uma vez a decisão tomada, faria aquilo que era de sua competência. Ele não tinha
escolha, isso agora era exclusivamente com Brun e com mais ninguém.
- As opiniões estão igualmente divididas - anunciou o chefe. - De qualquer o modo, a
decisão seria mesmo minha. Eu apenas quis saber o que
pensavam. Vou precisar de algum tempo para ver com mais clareza o que foi dito aqui hoje.
O Mog-ur anunciou uma cerimônia para esta noite. Isso é bom. Estou precisando da ajuda
dos espiritos, e todos nós temos necessidade da proteção deles. Vocês saberão da minha
decisão amanhã pela manhã. Ayla também saberá. Agora, vocês podem ir e se preparem
para a cerimônia.
Brun, sozinho, permaneceu junto da fogueira. As nuvens, trazidas pelos ventos gelados,
corriam pelo céu fazendo cair pesados e intermitentes aguaceiros. Brun, entretando, estava
alheio à chuva, do mesmo jeito que também não percebia as últimas brasas faiscando na
fogueira. Já era quase noite, quando a custo se levantou e foi-se arrastando para a caverna.
Viu Ayla ainda sentada no mesmo lugar em que a deixara ao sair pela manhã. Ela espera o
pior, dis se consigo. Mas que outra coisa poderia esperar?

Capítulo 16

O clã, cedo, reuniu-se do lado de fora da caverna. Do leste vinha um vento frio,
prenunciando rajadas mais geladas ainda, mas o céu estava claro com o sol da manhã
brilhando por cima do morro, contrastando com os ânimos sombrios das pessoas. Elas
evitavam olhar umas para as outras. Na falta de conversa, vinham com os braços caídos
arrastando-se até os seus lugares. Naquela manhã, saberiam do destino da estranha menina
que haviam adotado em seu meio.
Uba sentia sua mãe tremendo e lhe apertando a mão com tanta força que chegava a doer. A
menina percebia que o tremor não era pelo vento frio. Havia algo mais. Creb estava de pé,
parado à entrada da caverna. Nunca sua figura esteve tão intimidadora, com seu rosto
disforme parecendo esculpido em granito e o único olho mostrando-se impenetrável como
uma pedra opaca. A um sinal de Brun, foi coxeando para o interior da caverna, lenta e
cansadamente, sucumbido pelo peso de um fardo monstruoso. Ele se dirigiu à sua fogueira
e olhou para a menina sentada sobre a pele de dormir. Fazendo um supremo esforço sobre
si, obrigou-se a ir para junto dela.
- Ayla, Ayla - disse, com brandura. A menina levantou os olhos. - Chegou o momento.
Você deve vir agora. - Ayla tinha o olhar mortiço, parecendo não compreender. - Você
precisa vir, Ayla. Brun espera - repetiu Creb.
Ayla acenou com a cabeça, dizendo que compreendera e se levantou com esforço de seu
lugar. As pernas estavam duras de tanto tempo ficar sentada, mas ela mal notou. Em
silêncio, seguiu Creb, olhando para a terra no chão, marcada por aqueles que haviam
passado ali antes: marcas de calcanhar, impressões de dedos, contornos imprecisos de pés
envolvidos por couro, a ponta redonda do cajado de Creb e os sulcos deixados por suas
passadas trôpegas. Parou, ao dar com uns calçados cobertos de poeira. Eram os de Brun.
Ela se deixou, então, cair por terra. A uma pequena pancadinha em seu ombro, procurou
forças dentro de si para poder levantar os olhos e olhar a face do chefe do clã.
O impacto lhe devolveu a consciência, despertando um medo indefmido. Era a figura de
sempre - fronte baixa, deslizando para trás, sobrancelhas
cerradas, nariz adunco e a barba grisalha - mas o olhar orgulhoso, duro e severo
desaparecera, substituído por uma franca expressão de pesar e compaichão.
- Ayla - disse alto, para depois prosseguir por meio de gestos formais, usados só em
ocasiões solenes - menina dos clã são antigas as nossas tradições. Vivemos conforme
estas, praticamente desde que os clãs existem. Você não nasceu de nossa gente, mas é uma
de nós e deve viver ou morrer segun do os nossos costumes. Quando estávamos no norte,
caçando o mamute, você foi vista usando uma arma e, antes disso, também já a havia
usado. Nossas mulheres não podem usar armas, essa é uma de nossas tradições. O castigo
também faz parte das tradições. Tais são os nossos costumes e estes não devem ser alterados.
Brun se inclinou para a frente e olhou para Ayla, dentro de seus olhos azuis
amedrontados, e então prosseguiu:
- Eu sei por que você usou a funda, Ayla, se bem que até agora não entendo os motivos
que a levaram a querer usar uma arma. Brac não estaria vivo, se não fosse você. - Ele
endireitou a postura e, com gestos extremamente medidos para que todos pudessem ver,
acrescentou: - O chefe deste clã agradece a esta menina por ter salvo a vida do filho da
companheira do filho da minha companheira.
Algumas pessoas se entreolharam. Raramente se fazia um reconhecimento como aquele
publicamente e mais raro ainda era um chefe admitir sua gratidão uma simples menina.
- Entretanto, as nossas tradições não admitem exceções. - Nesse ponto, ele fez um
sinal para o Mog-ur que se dirigiu para a caverna. - E eu não posso agir de outra maneira,
Ayla. O Mog-ur neste instante está armando os ossos e dizendo em voz alta os nomes
daqueles que não se podem pronunciar, nomes que apenas os mog-urs conhecem. Depois
que ele terminar, você morrerá. Ayla, menina dos clã você está amaldiçoada com a
maldição de morte.
Ayla sentiu que o sangue lhe fugia do rosto. Iza soltou um grito, prolongado num som
agudo e lamentoso, pranteando a morte de sua filha. Ela foi interrompida por Brun, que
tinha a sua mão suspensa.
- Ainda não terminei - gesticulou o chefe.
Fez-se súbito silêncio. Os olhares se entrecruzaram rapidamente, todos, curiosos,
aguardando o que estava por acontecer. O que mais teria Brun a dizer?
- As tradições dos clã são claras e, como chefe, sou obrigado a seguir nossos costumes.
Uma mulher que usa arma deve ter pesando sobre ela a maldição de morte. Entretanto,
nenhum costume estabelece por quanto tempo deve durar o castigo. Ayla, sua maldição de
morte deve ser por todo o perío do de uma lua. Se os espíritos concederem a você a graça
de voltar do outro
mundo, após a lua haver feito todo o seu ciclo, quando novamente estiver na fase em que se
encontra agora, você poderá tornar a viver conosco.
Houve um rebuliço geral. Era totalmente inesperado.
- É verdade - gesticulou Zoug. - não existe nada dizendo que a maldição tenha de
ser para sempre.
- Mas que diferença faz? Como alguém que ficou morto por tanto tem po pode voltar a
viver? Alguns dias ainda vai, mas durante toda uma fase de lua? - perguntou Droog.
- Se a maldição fosse só por alguns dias, não sei se satisfaria as condições do castigo -
disse Goov. - Alguns mog-urs acreditam que o espírito não atinge o outro mundo, se a
maldição for por prazo curto. Ele fica simplesmente pairando por aí, esperando o tempo
passar para regressar, caso consiga fazê-lo. Se o espírito ficar por perto, os malignos
também ficarão. Essa é uma maldição de morte limitada, mas é tão prolongada que chega
quase a valer como uma definitiva. Ela satisfaz perfeitamente as exigências de nossos
costumes.
- Então, por que simplesmente ele não lançou a maldição e deu a coisa por encerrada -
gesticulou Broud, com raiva. - Nada em nossas tradições fala de maldição de morte
temporária para esse tipo de crime. Ela de veria morrer, e a maldição de morte era para ser o
seu fim.
- E você acha que não será, Broud? Acredita realmente que ela possa voltar? - perguntou
Goov.
- não acho nada. Só queria saber por que Brun não lançou simples mente a maldição
Será que já não consegue mais tomar uma simples decizão. Broud se sentiu confuso com o
sentido subentendido na pergunta de
Goov. Ela punha a descoberto aquilo que todos no seu íntimo estavam pensando. Teria
Brun imposto uma maldição de morte temporária, se não sou besse que haveria alguma
chance, ainda que muito remotamente, de a menina voltar da morte?
Brun passara a noite toda lutando com seu dilema. Ayla salvara a vida do bebê. não era
justo que ela morresse por isso. Ele amava a criança e se sentia profundamente grato à
moça, mas a questão ultrapassava seus sentimentos pessoais. As tradições exigiam que a
menina morresse. Por outro lado, havia outros costumes: o costume da obrigação aquele
que rezava que uma vida se paga com outra vida. Ayla trazia consigo uma parte do espírito
de Brac. Ela merecia e lhe era devida uma coisa de igual valor. A ela, estava-se devendo
a vida.
Somente quando começou a clarear o dia, conseguira encontrar uma solução. Algumas almas
mais fortes haviam voltado depois de uma maldição de morte temporária. Era uma chance
longínqua, praticamente nenhuma, apenas
uma levíssima esperança. Em troca da vida do bebê, ele lhe dava a única coisa que estava
dentro de seu alcance oferecer: uma ínfima possibilidade de viver. Não era o suficiente;
mais, entretanto, não lhe era possível, e isso era melhor do que nada.
Subitamente, abateu-se um silêncio mortal. O Mog-ur, de pé nà entrada da caverna, era a
própria personificação da morte: velho e encarquilhado. não foi preciso que ele anunciasse
que estava tudo acabado. O Mog-ur havia cumprido o seu dever. Ayla estava morta.
Os lamentos de Iza vaiavam o ar. Em seguida, vieram os de Oga e Ebra. Depois, todas as
mulheres juntaram suas vozes à de Iza, em pranto solidário. Ao ver a mulher que amava
sucumbida pela dor, Ayla correu para consolá-la- Mas no momento em que ia envolvê-la
nos braços, Iza, a única mãe de quem se lembrava, afastou-se, evitando o abraço. Era como
se
Iza não a visse. A meni na se achou confusa. Olhou para Ebra inquirindo, mas Ebra olhava
como se através dela. Foi para Aga, depois para Ovra, ninguém a via. Quando ela se
aproximava, ou se viravam, ou se punham de lado. Não propositadamente para lhe dar
caminho, mas como se todos houvessem planejado sair antes que ela pudesse chegar. Ayla
correu na direção de Oga.
- Sou eu! Ayla! Estou aqui na sua frente. Você não me vê?
Os olhos de Oga estavam vidrados. Ela deu as costas, afastando-se sem responder, sem
fazer qualquer sinal de reconhecê-la; era como se Ayla fosse invisível.
Ayla viu Creb caminhando na direção de Iza. Ela correu para ele.
- Creb! Sou Ayla! Estou aqui - gesticulou, inteiramente fora de si. O velho feiticeiro
seguiu seu caminho, afastando-se apenas o suficiente para evitar Ayla, jogada a seus pés,
como se ela fosse uma pedra em seu caminho. - Creb - dissera, gemendo. - Por que
você não me pode ver? - Levantou-se e correu outra vez para Iza.
- Mãe! mãe Olhe para mim! OLHE PARA MIM! - gesticulou com as mãos na frente dos olhos
de Iza, que novamente começou no seu agudo lamento.
- Minha filha, minha filhinha. A minha Ayla está morta. Ela foi embora. Minha
pobrezinha. Pobre Ayla. Ela não está mais viva.
Ayla viu Uba, cheia de medo e confusa, abraçada na perna da mãe. Ajoelhou-se na frente da
garotinha.
- Você me vê, não é, Uba? Eu estou bem aqui. - Ayla percebeu nos olhos da menina um
sinal de reconhecimento, mas, no mesmo momento, Ebra chegou e carregou-a dali.
- Eu quero Ayla - gesticulou Uba, contorcendo-se para descer do colo.
- Ayla está morta, Uba. Ela foi embora. Essa não é Ayla. É só o espírito dela querendo
encontrar seu caminho para o outro mundo. Se você tentar
falar com ele, se você enxergá-lo, o espírito vai tentar levá-la junto. Não olhe para ele. Dá
azar enxergar o espírito. Você não quer ter azar, não é, Uba?
Ayla se deixou abater no chão Ela não sabia o que significava a maldição de morte e
imaginara todas as espécies de horrores, mas a realidade era muito pior.
Para o clã, ela deixara de existir. O que faziam não era uma farsa ou encenação para
assustá-la. Ayla simplesmente passou a não mais existir. Ela era um espírito que, por
alguma razão qualquer, estava visível, continuando a dar uma aparência de vida a seu corpo,
mas ela mesma estava morta. Segundo a crença do clã a morte era uma mudança de estado,
uma jornada para um outro plano da existência. A força vital se fazia através de um espírito
invisível, isso era evidente. Alguém poderia num momento estar vivo e, no outro, morto,
sem qualquer mudança visível, fora o fato de que o movimento, a respiração e o que
causava a vida tinham desaparecido. A essência da verdadeira Ayla já não fazia mais
parte do mundo deles; ela se vira obri gada a passar ao outro. O fato de a parte física que
ficara neste mundo estar fria e sem movimento, ou ao contrário, quente e animada, não
tinha a menor importância.
Este era apenas um passo a ser dado na expulsão da essência da vida. Se o corpo de Ayla
ainda não sabia, muito brevemente compreenderia. Ninguém, na verdade, acreditava que
ela voltasse, nem mesmo Brun. Seu corpo, uma concha vazia, jamais poderia ser
novamente viável, a não ser que seu espírito fosse autorizado a voltar. Sem o espírito vital,
o corpo, não podendo comer nem beber, logo estaria deteriorado. Uma vez acreditando
firmemente nesta teoria e os entes queridos não reconhecendo a existência, não havia mais
existência e, portanto, nenhuma razão para comer, beber ou viver.
No entanto, enquanto permanecesse o espírito perto da caverna, animando o corpo do qual
já não fazia mais parte, as forças que o haviam expul sado continuavam também pairando
nas vizinhanças. Essas podiam fazer mal aos vivos e tentar levar consigo alguma vida.
Sabia-se de pessoas que receberam a maldição de morte que tiveram companheiros ou
familiares mortos pouco tempo depois de haverem sido amaldiçoadas. Ao clã não
importava se o espírito levasse consigo o corpo ou se a concha vazia permanecesse no
mun do, o que desejavam é que o espírito desaparecesse o mais rapidamente possível.
Ayla observava à sua volta todas aquelas pessoas que lhe eram tão familiares. Elas se
afastavam para retomar seus afazeres diários, embora a atmosfera estivesse tensa. Creb e
Iza entraram na caverna. Ayla se levantou e os seguiu. Ninguém tentou impedi-la, apenas
Uba foi mantida afastada. Acreditava-se que as crianças tivessem proteção especial, mas
era melhor não tentar demasiadamente a sorte. Iza reuniu todos os pertences de Ayla, inclusive as peles e as palhas secas que haviam forrado seu lugar de dormir, e levou tudo para
fora da caverna. Creb foi com ela e pegou uma brasa da fogueira na entrada da caverna.
Depois de depositar as coisas ao lado de uma fogueira apa gada que Ayla ainda não havia
percebido, Iza voltou para dentro, enquanto Creb tocava fogo na lenha. Em seguida,
silenciosamente, ele fez por cima dos objetos e da fogueira uma série de gestos que eram
desconhecidos de Ayla.
Com horror cada vez maior, ela via Creb lançando às chamas cada uma de suas coisas. Para
Ayla, não haveria cerimônia fúnebre, isto também fazia parte do castigo e da maldição.
Mas todo vestígio de sua pessoa tinha de ser destruído, nada que pudesse prendê-la ali
deveria restar. A garota viu o seu pau de cavar pegando fogo, depois a cesta de colher, o
acolchoado de palhas secas, as roupas, tudo ia sendo atirado ao fogo. Percebeu que as mãos
de Creb tremeram, quando pegou sua capa de pele. Por um instante, ele a apertou contra
o peito, depois a atirou também ao fogo. Os olhos dela transbordavam de lágrimas.
- Oh, Creb eu gosto tanto de você - disse, gesticulando.
Mas os olhos dele pareciam não ver. Com profundo terror, viu-o pegar sua sacola de
remédios, a que Iza fizera pouco antes da malfadada caçada de mamute, e atirá-la também
ao fogo.
- não Creb, não Minha sacola de remédios, não - implorou. Tarde demais, já começara
a pegar fogo.
A garota não pôde suportar mais. Chorando sua angústia e solidão pôs- se a correr às tontas,
descendo a colina e entrando na mata. não via por onde ia e nem se importava. Os galhos
lhe atravessavam o caminho, mas passava por eles sem ver os arranhões que iam ficando nos
braços e nas pernas e, patinan do pela água gelada, não se dava conta dos pés empapados
e já dormentes. Por fim, tropeçou num tronco, esborrachando-se no chão. Deixou-se ficar
estendida sobre a terra fria e molhada, desejando que a morte chegasse depressa, livrando-a daquele sofrimento atroz. não tinha nada: família, clã, motivo para viver. Estava
morta. Eles mesmos o haviam dito.
Seu desejo não estava muito longe de tornar-se realidade. Desde o regresso da caçada, há
dois dias que, perdida no seu mundo de mágoas e medos, não comia nem bebia. Seus trajes
eram leves e os pés doíam com o frio. Fraca e desidratada, era candidata certa a morrer de
frio. Havia, entretanto, dentro dela algo que era mais forte do que o desejo da morte, a
mesma coisa que já a havia sustentado antes, quando um terremoto devastador deixou uma
meni na de cinco anos sem amor, família e proteção. Uma inquebrantável vontade de viver,
um obstinado instinto de sobrevivência não a deixavam entregar-se, enquanto respirasse e
houvesse vida pela frente.
A parada deixou-a mais calma e ela se sentou, tremendo de frio, com os ferimentos
sangrando. Quando caíra batera com o rosto contra algumas folhas
molhadas e agora lambia os lábios, procurando umedecê-los. Estava sedenta. não se
lembrava de ter tido tanta sede na vida. O barulho de uma água próxima colocou-a sobre os
pés. Depois de um longo e prolongado gole, já saciada, pôs-se a caminho. O tremor era
tanto que ouvia o barulho dos dentes batendo, e os pés gelados e doídos faziam do seu
caminhar um penoso sacrifício. Sentia-se enjoada e tonta. O movimento a aqueceu um
pouco, mas a baixa temperatura do corpo estava produzindo seus efeitos.
Não sabia direito onde se encontrava, não tinha nenhum destino em mente, mas os pés
seguiam um trajeto que de tantas vezes feito e repetido lhe ficara gravado no cérebro. O
tempo perdera o significado, ignorava desde quando estava caminhando. Subia
margeando a base de um íngreme paredão que ia para além de uma nebulosa cachoeira. Foi
então que lhe veio o sentimento de um terreno já conhecido. Saindo de um pequeno bosque
de coníferas entremeadas por alguns pés atarracados de vidoeiros e salgueiros, viu-se em
sua solitária clareira no alto da montanha.
Há quanto tempo, perguntava-se ela, não aparecia por ali. Depois que começara a caçar, a
não ser na época em que treinava a técnica dos dois arremessos, raramente fora lá. Sempre
havia sido um lugar para treinar, nunca para caçar. Será que durante o verão não cheguei a
vir nem uma vez? não se lembrava. Pondo para o lado o denso emaranhado de galhos que,
mesmo sem folhas, ocultava a entrada, Ayla entrou na pequena caverna.
Pareceu-lhe menor do que imaginava. Lá está a velha pele de dormir, disse consigo,
lembrando-se da época em que a trouxera. Havia sido há muito tempo. Alguns esquilos
tinham feito ninhos dela, mas quando ela a trouxe para fora e a sacudiu, reparou que não
estava muito estragada. Ficara só um pouco dura com o tempo. O interior seco da caverna
ajudara a conservá-la. Ayla se enrolou na pele, dando graças por tê-la e tornou a entrar
no pequeno abrigo.
Havia uma peça de couro, uma velha capa que trouxera para botar por cima de palhas e
fazer um acolchoado. Gostaria de saber se ainda existe aquela faca, pensou consigo. A
prateleira improvisada caiu, mas ela deve estar por perto. . . ah, aqui está, disse retirando do
meio da terra uma faca que, de pois de limpa, usou para cortar a velha capa de couro. Tirou
então dos pés os calçados molhados e enfiou uma tira pelos buracos que fez em cada um
dos dois círculos cortados do couro. Envolveu os pés no novo calçado, forrando-o antes
com palhas secas achadas sob a peça de couro. Estendeu os outros calçados para secar e,
em seguida, pôs-se a fazer o inventário da caverna.
Preciso de uma fogueira. A palha seca servirá para ajudar o fogo a pegar. Empurrou-a,
fazendo um monte junto da parede. A prateleira está seca, posso também tirar umas lascas
nela para fazer fogo e vai servir como base para girar o pau. Agora, preciso encontrar um. .
ah, ali está a minha cuja devidoeiro, também poderia queimá-la. Não vou precisar dela para guardar água. Esta cesta
está toda roída. O que é isso dentro? A minha velha funda. não sabia que tinha ficado
aqui. Devo ter feito uma outra. Ela a suspendeu examinando. É muito pequena e os ratos
deram nela. Vou precisar de uma nova. Ela parou olhando para a tira de couro que tinha na
mão.
Fui amaldiçoada por causa disso. Agora, estou morta. Mas como posso estar aqui pensando
em fogueiras e fundas? Eu estou morta. Só que não me sinto morta.. . O que estou sentindo
é muito frio e fome. Pode uma pessoa morta ter fome e frio? O que um morto sente? Será
que sou o meu espírito no outro mundo? Mas nem sei o que é o meu espírito. Nunca vi um
em toda a minha vida. Creb diz que não se pode ver espíritos, mas ele conversa com eles.
Por que não me pôde ver? E por que ninguém mais pôde? Devo estar morta. Então por que
penso em fogueiras e fundas? Ora, por que tenho fome!
Será que posso usar uma funda para arranjar comida? Por que não? Já estou amaldiçoada
mesmo, eles não podem me fazer mais nada. Mas essa aqui não está boa. O que eu poderia
usar para fazer uma outra? A capa? não O couro está muito duro, ficou muito tempo aqui
dentro. Preciso achar um couro macio. Ela passou os olhos pela caverna. Sem uma funda
para matar um animal, não posso fabricar outra. Onde será que posso encontrar um couro
macio? Ela dava voltas na cabeça, procurando por uma solução e acabou sentando-se no chão
desesperada.
Ali ficou olhando para as mãos caídas sobre o colo. De repente, viu on de elas estavam
apoiadas. Claro, a minha roupa! Posso tirar um pedaço dela. Criou então alma nova, pondo-
se outra vez a olhar a caverna, cheia de entusiasmo. Ah, aqui está o meu velho pau de
cavar. não me lembrava de o ter deixado aqui. E também alguns pratos. Isso sim, me
lembro de quando trouxe essas conchas para cá. Estou morta de fome. Queria que existisse
alguma coisa para comer por aqui. Mas espere! Há sim. Este ano, não catei as avelãs, elas
devem estar espalhadas pelo chão lá fora.
Ayla ainda não se dera conta, mas começara a viver outra vez. Colheu as avelãs trouxe-as
para dentro da caverna e comeu tantas quanto permitiu o seu estômago encolhido pela falta
de comida. Em seguida, retirou a roupa e cortou dela um pedaço para fazer a funda. A
correia não tinha a bolsa para ajustar as pedras, mas achava que dava para funcionar.
Até então, nunca havia caçado animais para comer, e o coelho era rápido, mas não o
bastante para ela. Lembrou-se de haver passado pela casa de um castor na beira da água.
Conseguiu pegar o bicho no momento exato em que ele ia esconder-se sob as águas. No
caminho de volta, viu uma pequena pedra cinza perto do riacho. Isso é sílex. Tenho certeza
de que é. Pegou o nódulo e levou consigo. Meteu o castor e o coelho dentro da caverna e
voltou para catar madeira e uma pedra para martelar.
Preciso de um pau para fazer fogo. Ele tem que estar perfeito e seco. Essa madeira está
muito molhada. Reparou no pau de cavar. Isso deve servir. Era difícil fazer fogo sem a
ajuda de outra pessoa. Estava acostumada a revezar com outra mulher no trabalho de girar
o pau sem parar, comprimindo-o contra uma superfície. Depois de muito esforço e
concentração uma faísca saiu da combustão da superfície, passando para o monte de
acendalhas. Com muito cuidado, foi soprando até que por fim se viu recompensada com pequenas línguas de fogo. Começou, então, a jogar, uma por uma, as lascas de madeira seca
para depois botar pedaços maiores tirados da prateleira. Quan do o fogo pegou de vez,
botou por cima a madeira que havia apanhado do lado de fora e uma alegre fogueira se fez
dentro da pequenina caverna.
Vou ter de arrumar uma panela para cozinhar, pensou, enquanto fazia um espeto com o
coelho já sem a pele e punha por cima o rabo do castor para enriquecer com sua gordura a
carne magra do coelho. Vou precisar também de um novo pau de cavar e de outra cesta.
Creb queimou a minha. Quei mou tudo, até mesmo a minha sacola de remédios. Por que ele
teve de fazer isso? Os olhos se encheram de lágrimas que rolavam pelo rosto. Iza disse que
estou morta. Por que ela não conseguia ver que eu estava ali? Ali, bem na frente dela. Por
alguns momentos, ficou chorando, depois se sentou endireitando o corpo e enxugou as
lágrimas. Se vou ter de fazer um outro pau de cavar, precisarei de uma machadinha, disse,
cheia de resoluções.
Enquanto o coelho assava, fabricou o machado à maneira como viu Droog fazendo e com
ele cortou um galho verde para servir de pau de cavar. Em seguida, foi apanhar mais lenha
que empilhou dentro da caverna. Mal agüentava esperar a carne ficar pronta. O cheiro lhe
enchia a boca de água e seu estômago vazio não parava de roncar. A primeira mordida lhe
deu a sensação de nunca ter comido nada tão gostoso na vida.
Quando terminou, já estava escuro e ela se sentia feliz com sua fogueira. Botou, então mais
lenha por cima, abafando um pouco o fogo para ter certeza de que não apagaria até o dia
seguinte e, enrolando-se na velha pele, deitou-se, mas o sono não veio. Olhava as chamas
enquanto lhe iam desfilando pela cabeça, numa monstruosa seqüência, os horríveis
acontecimentos do dia. Nem notava as lágrimas escorrendo pelo rosto. Tinha medo e,
ain da por cima, via-se só. Nunca mais passara uma noite sozinha, desde que Iza a
encontrara. Por fim, exausta, os olhos se fecharam, mas foi um sono perturbado por
pesadelos. Gritava chamando Iza e chamando também, numa língua inteiramente
esquecida, por uma outra mulher. Mas ninguém se achava lá para consolar a menina
perdida em sua dolorosa solidão.
Os dias de Ayla transcorriam ativos, com ela ocupada nas coisas que lhe garantiriam a
sobrevivência. Há muito deixara de ser a garotinha de cinco anos,
inexperiente e ignorante. Os anos passados na companhia do clã foram de trabalho duro,
mas tinha aprendido bastante durante esse tempo. Teceu cestas impermeáveis, uma outra
para colher plantas, curtiu o couro dos animais que caçava, fez forros de pele de coelho
para botar dentro dos calçados, arrumou perneiras que amarrava com cordas e luvas que
cortava num feitio semelhante aos calçados: pedaços redondos de pele que atava ao redor
do pulso, tal como uma bolsa, só que nesta fazia uma fenda para deixar o polegar passar.
Fabricou ainda ferramentas de sílex e catou capim para tornar mais macio o seu lugar de
dormir.
A clareira também lhe supria com alimentos. O pasto lá estava alto, carregado de sementes
e cereais. E num terreno próximo havia nozes, arandos, uvas-de-urso, maçãzinhas
verdes, tubérculos e samambaias comestíveis. Ficou feliz por encontrar astrágalos, em sua
variedade não venenosa, cujas vagens verdes encerravam fileiras de pequenas sementes
arredondadas que muito apreciava. Chegou, inclusive, a moer as duras sementes dos
quenopódios secos para juntar com os cereais que cozinhava fazendo uma espécie de
mingau. Os terrenos na vizinhança davam, portanto, para satisfazer perfeitamente suas
necessidades.
Pouco tempo depois de estar lá, resolveu que precisava de uma nova vestimenta de pele. O
inverno ainda não havia mostrado sua verdadeira face, mas já estava bem frio e ela sabia
que a neve não tardaria a chegar. O primeiro pen samento foi para uma pele de lince, um
animal que tinha especial significado para ela. Mas a carne era incomível, pelo menos para
seu gosto. A comida tinha a mesma importância que a pele. Enquanto pudesse caçar, não
lhe custava muito satisfazer suas necessidades imediatas, mas precisava armazenar para o
futuro, quando a neve iria confiná-la na caverna. A comida, naquele momento, era uma razão
para caçar.
Odiava a idéia de ter de matar um daqueles animais tão mansos que por tanto tempo havia
dividido com ela o refúgio nas montanhas; além disso, não tinha muita certeza se
conseguiria abater um veado com a funda. Ficou surpresa de ver um pequeno bando ainda
usando os pastos lá em cima e resolveu que seria melhor aproveitar logo a oportunidade,
antes que os animais fossem para terrenos mais baixos. Uma pedra lançada com força a
pequena distância pegou numa corça e uma forte paulada na cabeça fez o serviço final.
A pele era grossa e macia - a natureza preparara bem o animal para os rigores do inverno
- e o assado, em fogo lento, constituiu-se numa bela ceia. Um carcaju de maus bofes,
atraído pelo cheiro de carne crua aproximou-se, mas foi recebido por uma pedrada certeira
que a fez lembrar-se do primeiro animal que abatera na vida, o outro carcaju que rondava a
caverna do clã para roubar-lhe a comida. Os carcajus para alguma coisa servem disse ela
então a Oga. Os bafos frios de nossa respiração não congelam nas peles do carcaju
e são essas as que dão melhores capuzes. Desta vez vou fazer um para mim, disse consigo,
arrastando o corpo do animal para a caverna.
Armou fogueiras em volta das cordas em que pendurou as carnes para secar, com isso
mantendo os carnívoros a distância e apressando o processo de secagem e, além disso, a
carne defumada tinha um sabor de que particularmente gostava. No fundo da caverna
cavou um buraco raso - era pequena a camada de terra naquele ponto onde se formara a
fenda na montanha - forrou-o com pedras trazidas do riacho e armazenou ali os alimentos
que cobriu com pedras maiores.
Sua nova pele curtida junto com a carne tinha cheiro de fumo, mas ela a esquentava e a
velha serviu para tornar seu lugar de dormir mais aconchegante. Da corça, ainda
aproveitou o estômago que, depois de bem lavado, usou como cantil de água, os tendões,
que foram usados como cordas, e da corcova sobre o rabo, onde o animal armazenava suas
reservas para o inverno, Ayla retirou gordura. Sua preocupação de todos os dias, enquanto
a carne secava, era com a neve, e ela dormia do lado de fora, dentro do círculo de fogueiras
para poder mantê-las acesas durante a noite. Por fim, ao ver tudo guardado e em segurança,
pôde sentir-se mais aliviada e tranqüila.
Quando o céu se cobriu com pesadas nuvens escondendo a lua, sua preocupação passou a ser
com a contagem do tempo. Lembrava-se exatamente do que Brun dissera: "Se os
espíritos concederem a você a graça de voltar do outro mundo, após a lua haver feito todo o
seu ciclo, quando novamente estiver na fase em que se encontra agora, você poderá tornar a
viver conosco." Ela não sabia se estava ou não no "outro mundo", só sabia que mais do
que tudo desejava voltar. Também não tinha muita certeza se poderia, ou se voltasse, as
pessoas iriam enxergá-la. Brun, no entanto, dissera que ela podia e eram a estas palavras
que se apegava. Mas, como saber quando voltar, se as nuvens cobrissem a lua?
Recordou-se que, há muitos anos, Creb lhe mostrara um processo de fazer marcas sobre
um pau. Supunha que uma porção de varas com ranhuras que ele guardava num canto da
fogueira deles na caverna fosse para contar a quantidade de tempo entre um e outro
acontecimento significativo. Certa vez, por curiosidade, ela resolveu também informar-se
sobre determinada coisa à maneira como ele fazia, e já que a lua passava sempre por ciclos
repetitivos, interessou-se em ver quantas marcas seriam necessárias para se ter um ciclo
completo da lua. Creb descobriu e lhe passou um bom cargo. A repreensão serviu para que
Ayla guardasse bem na memória que aquela era uma coisa que jamais deveria voltar a
fazer, mas, por isso mesmo, nunca se esqueceu da ocasião. Passou um dia inteiro
preocupada, sem saber como calcular a época em que deveria estar de volta, até que se
lembrou desse fato de tempos atrás e teve a idéia de fazer, todas as noites, uma marca
sobre um pau.
Por mais que se esforçasse, as lágrimas lhe vinham sempre aos olhos ao final do dia,
quando mais uma marca era acrescentada.
As lágrimas estavam constantemente subindo a seus olhos. Pequeni nas coisas traziam-lhe à
lembrança detalhes envolvendo momentos de amor e ternura. Um coelho assustado
atravessando o caminho fazia-a recordar de suas longas caminhadas com Creb. Adorava
seu velho rosto, rude, com um só olho e cheio de cicatrizes. A lembrança dele inundava os
seus olhos de lágrimas. Alguma planta medicinal que via punha a garota chorando, cheia
de lembranças de Iza, explicando-lhe como usá-la, e a visão de Creb queimando a sacola de
remédios provocava outro derramamento de lágrimas. De noite, ainda era pior.
Acostumara-se a ficar sozinha durante o dia em suas andanças pelas matas, colhendo
plantas ou caçando, mas, à noite, sempre teve pessoas por perto. Sentada na solidão de sua
pequena caverna, com os olhos parados nas chamas refletindo suas sombras dançantes na
parede, chorava com saudade daqueles que amava. Sob certos aspectos, era Uba que mais
lhe fazia falta. Muitas vezes, abraçada com as peles, punha-se a niná-las e cantar baixinho,
tal como fazia com a menina. A natureza satisfazia as exigências de seu corpo, mas não as
da alma.
A primeira nevada chegou silenciosamente durante a noite. Ao sair da caverna pela manhã,
Ayla exclamou cheia de alegria. Uma brancura ancestral suavizava os contornos da
paisagem familiar, criando formas fantásticas e plantas míticas numa terra de sonhos e
magia. Os arbustos viam-se enchapelados pela neve macia, as coníferas engalanavam-se
com novos trajes brancos e os galhos desfolhados cobriam-se com roupagens brilhantes que
desenhavam cada um dos seus ramos contra o azul forte do céu. A garota olhou para as
marcas deixadas por seus pés quebrando a uniformidade daquele macio manto
luminosamente branco e se pôs a correr cruzando as suas passadas umas sobre as outras,
querendo formar um desenho complicado, cujo plano original se perdeu na execução.
Começou, então, a seguir a trilha deixada por um pequeno animal, mas de repente mudou
de idéia e subiu pelo estreito afloramento na rocha, onde o vento havia varrido a neve.
Por trás dela, a cadeia de montanhas subia formando uma série de majestosos picos
cobertos por um branco anilado que faiscava ao sol tal como gigantesca jóia brilhante. A
vista, estendendo-se à frente, mostrava até onde alcançara a nevada. O mar verde puxando
para o azul, visto por entre as fendas das colinas brancas, revolvia-se em ondas espumosas,
mas o terreno na planície do lado leste continuava ainda limpo de neve. Ayla viu diminutas
figuras movendo-se pela vastidão branca a seus pés. Havia também nevado na caverna do
clã. Uma das silhuetas, lá embaixo, pareceu-lhe arrastar-se num passo coxo e lento.
Subitamente, o clima de magia se desvaneceu e ela tornou a descer.
A segunda nevada chegou sem qualquer encantamento. A temperatura
baixou bruscamente. Sempre que saía da caverna, os ventos cortantes penetravam-lhe na
pele do rosto como afiadas farpas. A tempestade durou quatro dias, amontoando tal
quantidade de neve junto à parede da caverna que a entrada praticamente ficou
bloqueada. Ela, com as mãos e, às vezes, com o osso do quadril da corça, cavou um túnel e
passou todo um dia catando lenha. A secagem da carne consumira inteiramente a madeira
que existia caída nos arredores e o andar pesado na neve alta deixou-a exausta. Quanto à
comida, não tinha dúvida de que possuía o bastante para mantê-la, mas já não fora tão
precavida no que se referia à madeira. não tinha certeza se haveria o sufi ciente e, se a neve
continuasse por muito mais tempo, sua caverna seria soter rada, tornando-lhe impossível a
saída.
Pela primeira vez, desde que se encontrava ali, a jovem temeu pela vida. A clareira estava
num ponto muito elevado da montanha. Se ficasse prisioneira, não conseguiria sobreviver
ao inverno. não tivera tempo de preparar- se para a estação inteira. Voltou aquela tarde à
caverna, prometendo-se que pegaria mais madeira no dia seguinte.
A manhã surgiu com outra tempestade que uivava toda sua força, dei xando a entrada
completamente bloqueada. Sentia-se enclausurada, como se presa numa armadilha e com
muito medo. Ficava a imaginar debaixo de quanta neve estaria enterrada. Conseguindo
uma vara comprida, meteu-a através dos galhos dos pés de avelã esboroando a neve para
dentro da caverna. Sen tiu uma certa aragem e olhou, pelo buraco, a neve que caía
horizontalmente, açoitada pela força do vento. Deixou a vara mantendo o buraco e veio
para junto da fogueira.
Foi uma sorte ter tido a idéia de medir a altura da neve. O furo mantido aberto pela vara
permitia o ar entrar no seu diminuto espaço, pois tanto ela como o fogo precisavam de
oxigênio. Sem tal providência, poderia ter adormecido e caído num sono do qual nunca
mais teria acordado. O perigo era muito maior do que poderia imaginar.
A garota descobriu que não precisava de uma fogueira muito grande para manter a caverna
aquecida. A neve, encerrando diminutas partículas de ar entre os seus cristais gelados, era
bom isolante. O calor de seu próprio corpo já era quase suficiente para esquentar o
ambiente. Mas precisava de água, e o fogo passou a ser mais importante para derreter gelo
do que para aquecer.
Sozinha na caverna, iluminada por uma pequena fogueira, diferençava o dia da noite apenas
pela fraca luz filtrada através do buraco de ar, e todas as tardes, quando a luz começava a
diminuir, tinha o cuidado de fazer a ranhura no pau.
Sem ter o que fazer, a não ser pensar, passava o tempo contemplando o fogo. Ele era
quente, tinha movimento e, fechado naquele mundo mais parecido a um túmulo, foi
ganhando vida própria. Via-o devorando cada pedaço
de lenha até que restasse apenas o resíduo das cinzas. Será que o fogo também tinha
espírito?, perguntava-se. Para onde irá o seu espírito depois da morte? Creb diz que quando
uma pessoa morre, seu espírito vai para o outro mundo. E eu já não estaria no outro
mundo? Não sinto nada diferente. Só me sinto sozinha e nada mais. Seria possível meu
espírito estar em outro lugar? Mas como saber? não me dá a impressão que esteja. Bem,
pode ser. Acho que meu espírito está com Creb, Iza e Uba. Mas se estou amaldiçoada, devo
estar morta.
Por que teria o meu totem me enviado um aviso, sabendo que eu seria amaldiçoada? Por
que imaginei que ele me mandou o aviso, se não foi isto o que aconteceu? Achei que ele
estava me testando. Talvez este seja outro teste. Ou será que ele me abandonou? Mas,
então, por que fui escolhida para depois ser abandonada? Pode ser que não tenha me
abandonado. Talvez ele tenha ido para o mundo dos espíritos no meu lugar. Pode até ser
que esteja lutando contra os maus espíritos. Ele faria isto melhor do que eu. Talvez me
tenha enviado para cá, só para esperar. Será que ele ainda está me protegendo? Mas, se
não estou morta, como estou? Sozinha, é como estou, e queria não estar me sentindo tão
sozinha.
O fogo está com fome outra vez, está querendo comer mais. Acho que também vou comer
alguma coisa. Pegou um pedaço de lenha de sua minguada reserva e alimentou a fogueira.
Em seguida, foi checar a passagem de ar. Já está escurecendo, é melhor botar outra marca
no pau. Será que essa tempestade vai durar todo o inverno? Pegou o pau, botou a marca e,
em seguida cobriu as ranhuras com os dedos. Primeiro, com uma das mãos, depois com os
dedos da outra, novamente com os dedos da primeira mão e assim foi fazendo até cobrir
todas as marcas. Ontem, seria o último dia. Agora, já posso voltar. Mas como, com essa
tempestade? Foi outra vez verificar a passagem de ar. Dava apenas para ver, na escuridão
cada vez maior, a neve caindo ainda horizontalmente. Abanou a cabeça e voltou para junto
do fogo.
Ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que fez foi ir checar o buraco de ar. A
ventania continuava soprando com toda a fúria. Será que nunca vai parar? não pode
continuar assim a vida toda. Quero voltar. E se Brun tornar a minha maldição para
sempre? E se eu não puder voltar, mesmo que a tempestade pare? Se ainda não estou morta,
certamente vou morrer. não houve tempo, só pude abastecer-me para durar uma lua. Jamais
iria agüentar o inverno inteiro. não sei por que Brun deu uma maldição de morte
limitada. Eu não esperava isso. Será que, ao invés do meu totem, tivesse sido eu quem
fosse para o mundo dos espíritos, teria eu voltado? Como posso saber que meu espírito não
foi? Talvez meu totem esteja aqui protegendo meu corpo, enquanto meu espírito está em
outro lugar. não sei. Simplesmente não tenho noção. A única coisa que sei é que, se
Brun não tivesse feito uma maldição temporária, eu nunca teria uma chance.
Uma chance? Será que Brun pensou em me dar uma chance? De repente, tudo se
encaixava numa nova e profunda compreensão que revelava sua maior maturidade. Acho
que realmente Brun quis dizer isto, quando falou estar agradecido por eu ter salvo a vida
de Brac. Ele era, ainda que não quisesse, obrigado a me amaldiçoar por ser esse o costume
dos clã Sim, ele quis me dar uma chance. não sei se estou morta. Será que as pessoas
mortas comem, dormem e respiram? Ela estremeceu, mas não de frio. Acho que a maioria
das pessoas simplesmente não deseja morrer e agora eu sei por quê.
O que me fez, então, escolher viver? Teria sido tão fácil morrer. Bastava ter ficado no lugar
onde caí, depois que deixei a caverna. Se Brun não me ti vesse dito que eu poderia voltar,
será que me teria levantado? Se não soubesse que havia alguma chance, teria feito tanto
esforço? Brun disse que: "Se os espíritos concederem a você a graça. . ." Mas que
espíritos? Alguma coisa me fez querer continuar vivendo. Talvez fosse o meu totem
protegendo-me ou, quem sabe, talvez porque eu soubesse que tinha uma chance. . . ou as
duas coisas. Acho que as duas coisas.
Levou algum tempo até que Ayla compreendesse que estava acordada e mesmo assim teve
que tocar nos olhos para perceber que estavam abertos. Ela abafou um grito sufocante na
escuridão da caverna. Estou morta! Brun me amaldiçoou e eu agora estou morta! Jamais
sairei daqui. Nunca voltarei à caverna, é tarde demais. Os maus espíritos me tapearam.
Eles me fizeram pensar que estava viva e salva, quando estou morta. Ficaram com raiva
por não ter seguido com eles e agora estão me castigando. Eles me levaram a acreditar que
estava viva e, na realidade, tenho estado morta durante todo esse tempo. Ela tremia
apavorada, encolhida sob a pele, com medo até de mexer-se.
Dormira mal. Acordando a cada instante com sonhos monstruosos, povoados de horrendos
espíritos malignos, em meio a terremotos, linces que a atacavam e se transformavam em
leões da caverna, e uma neve que caía infindavelmente. A caverna tinha um peculiar
cheiro de umidade, mas esse odor foi a primeira coisa que a fez compreender que seus
sentidos, além da visão, estavam funcionando. A segunda foi quando, em pânico, deu um
salto e bateu com a cabeça contra a parede de pedra.
Onde está o pau?, perguntava, por gestos, na escuridão. Já está de noite e tenho de botar a
marca. Ela ia de gatinhas pelo escuro procurando pelo pau como se este fosse a coisa mais
importante do mundo. Deveria marcá-lo todas as noites, mas como vou poder fazer isso, se
não posso encontrá-lo? Será que eu já pus a marca? Sem o pau, como vou saber quando ir
para casa? Não. não é bem isso. Ela abanou a cabeça, querendo clarear as idéias. Eu já
posso voltar, o tempo está esgotado. Só que estou morta e a neve não quer parar. Vai continuar sempre nevando, nevando e nevando. Ah, outro pau, onde está o outro pau? Preciso
ver a neve. Como vou ver a neve na escuridão?
Arrastando-se às cegas pela caverna, trombando com as coisas, chegou até à entrada e viu
um brilho, fraco, emaciado no alto. O pau tem de estar ali em cima. Ela subiu pelos galhos
que entravam um pouco para o interior da caverna, sentiu a extremidade de um mais
comprido e o puxou. Quando conseguiu arrancá-lo, a neve caiu por cima dela, abrindo a
passagem de ar. Ela foi saudada por um bafo de ar fresco e um pedaço de céu azul forte.
Finalmente, a tempestade tinha cedido e o vento parara de soprar, mas as últimas neves haviam tampado o buraco.
O ar fresco serviu para clarear suas idéias. Acabou! Parou de nevar! Até que enfim! Agora
posso voltar para casa. Mas como vou sair daqui? Com o galho, ela passou a remexer a
neve dando cutucadas, querendo alargar a passagem. Um grande torrão da abertura se
desprendeu e despencou dentro da caverna, cobrindo-a de neve. Preciso ter cuidado, do
contrário acabo enter rada. Tenho de pensar direito como fazer a coisa. Tornou a subir nos
galhos e sorriu na direção da luz escoando pelo buraco já mais largo. Estava excitada, louca
para sair, mas se forçou a ficar calma e a pensar com mais calma.
Que bom seria se o fogo não se tivesse apagado, gostaria de tomar um pouco de chá. Mas
ainda tenho água na sacola. Isso é bom, disse consigo, enquanto tomava um bom gole.
Não vou poder cozinhar nada para comer, mas não é por uma refeição a menos que vou
morrer. De qualquer maneira, sempre posso comer um pedaço de carne-seca. Isso não
precisa ser cozinhado. Deu uma corrida outra vez até a entrada da caverna para se certificar
de que o céu continuava azul. Bem, agora o que devo levar comigo? Com comida, não
tenho que me preocupar, há uma boa quantidade estocada, principalmente depois da caçada
do mamute.
De repente, todos os acontecimentos passaram num átimo por sua cabeça: a caçada de
mamute, a hiena, a maldição de morte. Será que eles vão mesmo me aceitar de volta? E se
não quiserem? Para onde eu vou? Mas Brun disse que eu poderia voltar. Ele falou isso.
Ayla aferrava-se a essa idéia.
Bem, a funda, é claro que não vou levar. E a minha cesta de colher? Creb queimou a outra.
Não Só vou precisar dela quando chegar o verão e até lá posso fazer uma. As minhas
roupas, vou carregar todas. Vou ter que usá-las e talvez leve também algumas ferramentas.
Reuniu tudo quanto tinha que levar e começou a vestir-se. Pôs os dois calçados forrados de
pele de coelho, vestindo um sobre o outro, botou as perneiras de couro, meteu as
ferramentas nas dobras da roupa que amarrou bem segura, enfiou na cabeça o capuz de
carcaju, calçou as luvas forradas de pele e se dirigiu para o buraco. Voltou-se para dar uma
última olhada no lugar que fora sua casa por todo um ciclo da lua, mas, então retirou as
luvas e voltou.
Não sabia por que, mas era importante para ela deixar a caverna em ordem, isso lhe dava
um sentimento de conclusão como se fossem coisas que se guardam depois de usadas. Ayla,
por ela mesma, já tinha um sentido muito grande de ordem que Iza veio fortalecer ainda
mais com as arrumações sistemáticas de seus depósitos de medicamentos. Rapidamente,
pôs tudo em ordem, calçou de novo as luvas e se dirigiu com ar resoluto para a entrada bloqueada. Ia sair, ainda não sabia como, mas estava de volta à caverna do clã.
É melhor tentar passar por cima, nunca vou conseguir abrir um túnel, pensou consigo.
Subiu no pé de avelã usando o galho que servira para manter aberta a passagem de ar.
Pondo-se nos galhos mais altos que, devido à neve, pouco vergavam com o peso de seu
corpo, ela meteu a cabeça para fora do buraco, levando um susto com o que viu. Sua
clareira na montanha estava irreconhecível. Do lugar onde se achava via a neve descendo
numa suave rampa que se perdia a distância. não conseguia identificar nenhum ponto de
referência. Tudo era neve. Como vou poder atravessar isto? Está muito alta. Estava quase
se dando por vencida.
Olhando em derredor, começou a determinar sua posição Aqueles vidoeiros perto do
pinheiro alto não são muito maiores do que eu. Por ali, a camada não deve ser muito
profunda, mas como chegar até lá? Procurou passar de gatinhas pelo buraco, enquanto ia
socando a neve para formar uma base mais firme. Ao subir numa saliência, caiu de bruços
sobre uma superfície maior, mas o peso se distribuiu por igual, impedindo-a de afundar.
Com muito cuidado, pôs-se primeiro de joelhos e depois de pé, percebendo que o nível
da neve nos arredores não era muito profundo. Deu algumas passadas curtas, calcando
sempre bem os pés. Seus calçados eram circunferências de couro franzido não muito
apertado ao redor dos tornozelos e o segundo que levava por cima fazia o efeito de uma
bola de ar, dando-lhe um andar extremamente desajeitado. Embora não fossem exatamente
o que conhecemos como sapatos próprios para neve, eles distribuíam o peso sobre uma
área maior, impedindo que ela chafurdasse muito na neve fofa.
A marcha, entretanto, era difícil. Sempre socando a neve com os pés, dando passadas
pequenas, de vez em quando se afundando até a altura dos quadris, ela foi na direção do
lugar onde existira o riacho. A neve que cobria a água gelada não era muito profunda. O
vento havia acumulado uma grande quantidade contra a parede da caverna, mas a varrera
de outras áreas que pra ticamente estavam limpas. Deteve-se ali, tentando resolver se
seguiria o riacho até seu encontro com o outro de que era afluente e, daí, fazendo um longo percurso para chegar à caverna, ou se pegaria o caminho mais difícil, porém mais curto.
Estava aflita, mal agüentando esperar pela volta. Decidiu-se pelo mais curto. Só que não
imaginava o quanto este era mais perigoso.
Com muita cautela, pôs-se a andar, mas o caminho da descida era difícil. O sol já ia alto no céu e ela praticamente ainda se achava na metade do trecho, coisa que
no verão fazia no tempo transcorrido entre as primeiras sombras do crepúsculo e a noite.
Estava frio, mas o sol de meio-dia aquecia a neve e a garota começava a ficar cansada e um
pouco descuidada.
Estava indo pela crista de um morro inteiramente desguarnecido que dava para uma
encosta íngreme e coberta de neve, quando escorregou num determinado trecho. O
cascalho solto desprendeu umas pedras maiores que se balançaram em seus lugares,
fazendo vibrar, enquanto Ayla achava-se caída, a base instável de um monte de neve. Num
segundo, ela se viu rolando pela encosta, despencando-se em meio a uma cascata de
neve e ouvindo o rugir trovejante da avalanche.
Creb estava deitado de olho aberto quando Iza, silenciosanente, chegou trazendo-lhe uma
conja de chá quente.
- Sabia que estava acordado, Creb. Achei que gostaria de tomar alguma coisa quente,
antes de se levantar. A tempestade parou durante essa noite.
- Eu sei, daqui posso ver um pedaço do céu azul.
Os dois se sentaram para tomar chá. Ultimamente ficavam muitas vezes sentados juntos,
sem nada dizer. A fogueira parecia vazia sem Ayla. Era difícil de acreditar que uma
menina pudesse deixar um vazio tão grande. Creb e Iza tentavam preenchê-lo, procurando a
companhia um do outro, querendo consolar-se mutuamente, mas o consolo era pequeno.
Uba estava tristonha e rabugenta. Ninguém conseguia convencê-la de que Ayla estava
morta. Continuava sempre perguntando por ela. Remexia a comida que desperdiçava quase toda, atirando ou cuspindo no chão. Depois, emburrada, pedia por outra, levando Iza à
loucura, até que acabava perdendo a paciência e ralhava, para no momento seguinte estar
arrependida. A tosse de Iza havia voltado, mantendo-a acordada boa parte da noite.
Parecia impossível que Creb tivesse envelhecido tanto em tão pouco tempo. Ele nunca mais
voltara à sua pequenina caverna, desde que lá arrumara os ossos do urso da caverna em
duas fileiras paralelas, com a da esquerda penetrando pela base da caveira e saindo pela
cavidade do olho esquerdo. Nessa ocasião, balbuciou alto com sua voz áspera as sílabas
dos nomes dos espíritos maus, naqueles instantes reconhecidos e recebendo plenos
poderes. Ele não teve coragem de voltar lá para olhar aqueles ossos e nem tinha vontade de
comungar com os bons espíritos, através de seus belos e fluidos gestos. Havia pensado
seriamente em renunciar e passar suas funções a Goov. Brun, ao tomar conhecimento,
tentou convencê-lo a reconsiderar sua decisão.
- O que você irá fazer, Mog-ur?
- E o que faz um homem depois que se aposenta? Estou ficando muito velho para ficar
sentado naquela caverna fria. Meu reumatismo está pior.
- não se precipite, Creb - gesticulara Brun, pedindo calma. - Pense mais um pouco.
Creb pensara e já estava quase decidido a dar a notícia naquele mesmo dia.
- Acho que vou deixar Goov ser o mog-ur, Iza - gesticulou ele para Iza, sentada a seu
lado.
- Esta é uma decisão que só pode ser sua, Creb. - Ela não pensava em dissuadi-lo. Sabia
que Creb, desde que amaldiçoara Ayla, perdera o gosto para a função apesar de que isso
representasse toda a sua vida. - Já passou do prazo, não é, Creb?
- Sim, já passou, Iza.
- E como ela vai saber que já está esgotado? Com aquela tempestade, ninguém podia ver a
lua.
Creb se lembrou de quando mostrou para uma garotinha a maneira como ela poderia saber
quantos anos levariam ainda para que ela pudesse ter um bebê e também de quando, já mais
velha, por ela mesma, contava a duração do ciclo da lua.
- Se estiver viva saberá, Iza.
- Mas a tempestade estava muito forte, Creb. Ninguém iria conseguir sair com um tempo
daqueles.
- Não pense mais nisso, Iza. Ayla está morta.
- Eu sei, Creb - falou Iza, com gestos desesperançados.
Creb olhou para sua germana pensando na dor dela, desejando poder fazer alguma coisa,
pelo menos um gesto de consolo.
- Não devia dizer isso, Iza, mas tanto o espírito dela, como os dos outros, que são maus, já
foram embora deste mundo. O perigo deixou de existir. O espírito dela falou comigo antes
de partir. Ele disse que me amava. Era tão real que eu quase me deixei levar naquele
instante. O espírito mais perigoso é o do amaldiçoado. Ele procura enganar a pessoa,
fazendo com que ela acredi te na sua existência para levá-la consigo. Chego quase a desejar
ter ido com ela.
- Eu sei, Creb. Quando o espírito dela me chamou di mãe, eu.. . eu... Iza levantou as mãos
não conseguindo continuar.
- O espírito dela implorou para que eu não queimasse a sacola de remédios, Iza. Seus
olhos se encheram de água, igual como acontecia com ela viva. Foi o pior momento. Acho
que, se já não tivesse atirado a sacola no fogo, eu a teria entregue a ela. Esse foi o último
truque; depois disso, o espírito desapareceu.
Creb se levantou, enrolou-se em sua capa e pegou o cajado. Iza o observava. Raramente
ele saía da fogueira. O Mog-ur caminhou para a entrada da caverna e lá ficou de pé,
olhando, durante muito tempo, o brilho branco da
neve. Voltou quando Iza mandou Uba avisá-lo para vir comer. Em seguida, foi para seu
posto habitual. Mais tarde, Iza foi juntar-se a ele.
- Está frio aqui, Creb. Você não deve ficar tão exposto assim ao vento
- gesticulou ela.
- É a primeira vez depois de muitos dias que faz céu claro. É um alívio ver uma coisa
diferente da tempestade, com seus eternos uivos.
- Pode ser, mas de vez em quando vá para junto do fogo se esquentar um pouco.
Creb ficou indo e vindo da fogueira para a entrada, onde ficava longo tempo contemplando
a paisagem de inverno. Mas, à medida que o dia foi avançando, passou a sair cada vez
menos da fogueira. Enquanto jantavam, com o dia já quase escuro, ele gesticulou na direção
de Iza, dizendo:
- Depois de comermos, darei uma passada na fogueira de Brun. Vou lhe dizer que Goov
daqui por diante será o mog-ur.
- Sim, Creb - falou Iza, com a cabeça baixa. Já não havia mais esperança. Agora ela
tinha certeza disso.
Creb se levantou, enquanto Iza retirava a comida. De repente, um grito aterrorizado saiu da
fogueira de Brun. Iza levantou os olhos. Na entrada da caverna estava uma estranha
aparição inteiramente coberta de neve e batendo com os pés no chão para esquentá-los.
- Creb - gritou Iza. - O que é aquilo?
Creb ficou por um instante olhando, já se pondo em guarda contra al gum espírito
desconhecido dele. Mas, então, seu olho se arregalou.
- É Ayla - gritou, correndo na direção dela, esquecendo cajado, dignidade e o bom-tom
proibindo demonstrações públicas de sentimentos, para envolvê-la nos braços e apertá-la
contra o peito.
- Ayla? É realmente Ayla, Creb? não é o seu espírito? - perguntou Iza,
- enquanto o velho conduzia a garota à fogueira. A mulher tinha medo
de acreditar, medo de que aquele corpo tão real pudesse transformar-
se em miragem.
- Ayla - gesticulou Creb. - O prazo terminou. Ela venceu os maus espíritos e voltou
para nós.
- Ayla! - exclamou Iza, correndo de braços abertos e envolvendo-a com neve e tudo o
mais num forte abraço cheio de amor. Estava molhada, mas não só de neve. Ayla derramava
abundantes lágrimas de alegria por todos. Enquanto isso, Uba dava puxões nas vestes de
Ayla.
- Ayla, Ayla voltou! Uba sabia que ela não tinha morrido - afirmou a garotinha, com a
convicção de quem sabe que, desde o princípio, estava com a razão.
Ayla pegou-a, segurando-a tão apertada que a menina se contorceu, querendo soltar-se
para poder respirar.
- Você está molhada! - gesticulou Uba, quando pôde ter os braços livres.
- Ayla, tire essas roupas molhadas! - falou Iza, apressando-se em botar mais lenha na
fogueira e achando alguma coisa para a menina vestir. Com isso, dissimulando suas
emoções, ao mesmo tempo em que expressava seus cuidados maternais. - Vai acabar
morrendo de frio.
Iza, embaraçada, olhou para ela. Subitamente, dera-se conta do que tinha dito. A menina
deu um sorriso.
- Tem razão, mãe. Vou acabar pegando uma gripe. - Retirou o capuz e a roupa. Em
seguida, sentou-se, lutando para desatar os cordões empapados dos calçados. - Estou
morta de fome. Há alguma coisa para comer? não comi o dia inteiro - disse a garota,
depois de se ter metido nas velhas roupas de Iza. Estavam muito curtas e um pouco
apertadas. - Era para ter chegado mais cedo, mas fui apanhada por uma avalanche
enquanto descia a montanha. Tive sorte de não ficar enterrada debaixo de um montão de
neve, mas gastei um bocado de tempo até conseguir cavar uma saída.
O espanto de Iza durou só um minuto. Se Ayla dissesse que havia caminhando por entre labaredas, teria acreditado do mesmo jeito. A volta em si já era prova
bastante de sua invencibilidade. O que significava uma simples avalanche para ela? Iza
começou a estender as mãos para pegar as roupas de Ayla e pendurá-las para secar, mas, de
repente, suspendeu o gesto no ar, olhando para o couro de veado que não conhecia.
- Onde você conseguiu essa roupa, Ayla?
- Fui eu quem fiz.
- Ela é. . . é desse mundo? - indagou, apreensiva.
Ayla tornou a sorrir.
- É. Ela é bem desse mundo. Você se esqueceu? Eu sei caçar.
- não diga isso, Ayla! - exclamou Iza, nervosa. Virou-se de costas para que o clã, que
ela sabia estar observando, não a visse, passando então a gesticular muito discretamente.
- Você não tem nenhuma funda, não é?
- não Ela não veio comigo. Mas isso não faz qualquer diferença agora. Todo mundo já
sabe, Iza. Eu precisava fazer qualquer coisa depois que Creb queimou tudo que era meu. O
único jeito de conseguir uma roupa seria caçando. Peles não crescem em salgueiros ou
em cima de pinheiros.
Creb observava em silêncio, sem querer acreditar que ela estava realmente de volta. Havia
casos de pessoas que voltavam depois de uma maldição de morte, mas até então ele não
achava que fosse possível. Há alguma coisa diferente nela. Está mudada. Parece mais
adulta, mais confiante. Não é de admirar, depois de tudo o que passou. E ela se lembra
também do que aconteceu. Sabe que queimei as suas coisas. Tinha curiosidade de saber do
que mais ela se recorda. Como será no mundo dos espíritos?
- Espíritos! - gesticulou ele, subitamente, lembrando-se de que os ossos ainda estavam
armados. Tenho de desmanchar a maldição.
Correu, então, para desfazer a figura feita com os ossos de urso, ainda colocados na posição
da maldição de morte. Pegou a tocha que ardia do lado de fora da abertura na parede e entrou
pela estreita passagem. Chegando ao pequenino recinto, mal pôde respirar, tamanho o seu
assombro. A caveira do urso se havia mexido, tirando do lugar o osso comprido que antes
saía pela cavidade ocular. A figura estava desmanchada.
Uma quantidade de pequenos roedores, atraídos pelo calor e a comida, dividiam a caverna
com o clã. Um desses, possivelmente, havia passado por ali, tirando a caveira de sua
posição original. Creb sentiu um calafrio e, fazendo um sinal para se proteger contra os
maus espíritos, levou os ossos para uma pilha junto da parede do fundo. Quando saiu, deu
com Brun, esperando por ele.
- Brun - gesticulou o Mog-ur - não posso acreditar. Você sabe que nunca mais
estive aqui desde que pronunciei a maldição E ninguém mais também esteve. Eu ia
desmanchar a maldição mas, quando cheguei, ela já estava desfeita. - Sua expressão era
tanto de assombro como de terror.
- O que você acha que aconteceu?
- Deve ter sido o totem dela. Como acabou o prazo, talvez ele tenha desfeito a maldição
para que ela pudesse voltar - respondeu o Mog-ur.
- Você deve ter razão. - Brun ia fazer um gesto para prosseguir, mas hesitava.
- Estava querendo falar comigo, Brun?
- Queria falar com você em particular. - O chefe continuava hesitante.
- Desculpe minha intrusão mas não pude deixar de olhar para sua fogueira. A volta da
menina foi uma surpresa.
Não era só ele. Todos haviam desrespeitado o costume de não se olhar para a fogueira do
vizinho. Era impossível não fazê-lo. Nunca tinham visto ninguém que houvesse voltado do
mundo dos mortos.
- Em tais circunstâncias, isso é muito compreensível. não se preocupe
- respondeu o Mog-ur, já pronto para ir embora.
- não foi por isso que vim procurá-lo - disse Brun, detendo Creb. - Queria perguntar
a você algumas coisas sobre cerimônias. - O feiticeiro esperava, olhando para Brun,
enquanto este procurava pelas palavras. - É sobre uma cerimônia. . . agora que ela está de
volta.
- Nenhuma cerimônia será necessária. O perigo não existe mais. Os maus espíritos foram
embora. Não há necessidade de pedir por proteção.
- não estou me referindo a este tipo de cerimônia.
De que tipo então?
Brun continuava hesitando. Resolveu então abordar o assunto por outro lado.
- Observei a menina enquanto ela conversava com você e Iza. Você no tou alguma
diferença nela, Mog-ur?
- O que você quer dizer com alguma diferença? - gesticulou o Mog-ur, cauteloso, sem
atinar com o que Brun estava pretendendo.
- Ela tem um forte totem. Droog sempre diz que a menina traz sorte e que seu totem
também traz sorte para nós. Pode ser que ele tenha razão. Ela nunca teria voltado, se não
tivesse sorte e também uma forte proteção. Acho que agora ela sabe disso. É nesse sentido
que estou falando de diferença.
- Acho que também notei esse tipo de diferença. Mas ainda estou sem entender o que isso
tem a ver com cerimônias.
- Lembra-se da reunião que tivemos depois da caçada do mamute?
- Quando você lhe fez as perguntas?
- Na da outra. Quando ela não estava presente. Desde aquela época que venho pensando
nessa reunião. Acreditava que a menina não fosse voltar, mas que, isso acontecendo, seria por
causa da força de seu totem, uma força muito mais poderosa do que a que imaginamos.
Pensei muito no que deveríamos fazer, caso ela voltasse.
- Mas por quê? não temos necessidade de fazer nada. Os maus espíritos foram embora,
Brun. Ela está de volta, igual ao que sempre foi. É a mesma menina, nada mudou nela.
- E se eu quiser promover alguma mudança? Há alguma cerimônia para isso?
O Mog-ur estava inteiramente aturdido.
- Uma cerimônia para quê? Você não precisa de cerimônias para modificar sua maneira
de agir em relação a ela. Mas, de que mudança está falando? não posso discutir sobre
cerimônias com você, se não sei com que intenção elas vão ser realizadas.
- O totem dela é também um totem do clã não é? não é nossa obrigação fazer com que
todos os totens estejam felizes? Eu queria que você celebrasse uma cerimônia, Mog-ur.
Mas queria saber antes se essa cerimônia seria possível.
- Brun, você não está fazendo sentido.
Brun atirou as mãos para cima, desistindo de fazer-se entender. Enquanto ayla estava
fora, Brun tivera tempo para ruminar muitas das idéias que foram expostas pelos homens
durante a reumião, daí resultando uma série de preocupações que agora ficava remoendo em
sua cabeça.
- Se a coisa toda não faz sentido, como vou poder explicar? Afinal, quem esperava que
ela fosse voltar? não entendo e nunca entendi de espíritos. não sei o que eles querem e é
para isso que você está aqui. Só que não está ajudando muito! Bem, de qualquer modo, era
uma idéia ridícula. É melhor eu pensar um pouco mais na coisa.
Girou sobre os calcanhares, deixando Creb parado no lugar, inteiramente sem saber o
que pensar. Mas, depois de dar alguns passos, o chefe voltou.
- Diga à garota que quero vê-la. - E dizendo isso, Brun se dirigiu para sua fogueira.
Creb, muito confuso, voltou meneando a cabeça.
- Brun quer ver Ayla - falou, ao chegar na sua fogueira.
- Ele disse que quer vê-la imediatamente? - perguntou Iza, botando mais comida na
frente de Ayla. - Ou ela, primeiro, pode acabar de comer?
Já acabei, mãe. não agüento mais nada. Eu vou agora.
Ayla foi para a fogueira vizinha e se sentou de cabeça baixa aos pés do chefe do clã. Ele
estava com os calçados que ela já conhecia, empoeirados e gastos nos mesmos lugares. A
última vez que vira aqueles pés, a garota estava aterrorizada. Há muito deixara de sentir-se
assim. Para sua surpresa, não se via nem um pouco com medo de Brun, mas seu respeito
por ele crescera. Ela aguardava. A espera para seu reconhecimento parecia interminável.
Por fim, ela sentiu a batidinha no ombro e levantou os olhos.
- Vejo que está de volta, Ayla - começou ele, claudicante.
- Sim, Brun.
- Estou surpreso de vê-la. Não esperava.
- Esta menina também não esperava estar de volta.
Brun se via inteiramente perdido. Queria conversar com ela, mas não sabia o que dizer e
nem como terminar com aquela entrevista que ele próprio solicitara. Ayla esperava.
Finalmente, fez um gesto pedindo a palavra.
- Esta menina queria falar, Brun.
- Pode falar.
Também ela hesitava, tentando encontrar palavras que exprimissem exatamente o que
gostaria de dizer.
- Esta menina se sente feliz por estar de volta. Mais de uma vez, ela teve medo e mais de
uma vez chegou a estar certa de que nunca voltaria.
Brun grunhiu qualquer coisa. Disso, eu não duvido, pensou ele.
- Foi difícil, mas acho que meu totem me protegeu. No princípio, havia muito trabalho e
eu não tinha muito tempo para pensar. Mas depois fiquei presa sem ter o que fazer.
Hem? Trabalho? Presa? Que espécie de mundo de espíritos é esse? Ele ia perguntar, mas
depois mudou de idéia. Na verdade, ele não estava querendo saber.
- Acho que então comecei a entender uma coisa.
Ela se interrompeu, buscando ainda pelas palavras certas. Queria transmitir-lhe uma
espécie de sentimento próximo ao da gratidão, mas não aquele normalmente sentido, o da
gratidão ligada a uma obrigação ou aquele que toda mulher deve ao homem. Ela queria
apenas dizer muito obrigada. Obrigada por me dar uma chance, só que não sabia como.
- Brun. . . esta menina se sente agradecida. Você já disse isso para mim. Disse que estava
agradecido pela vida de Brac e estou agradecida a você pela minha.
Brun inclinou-se para trás, estudando a menina. Alta, cara chata, olhos azuis. A última
coisa que esperava dela era gratidão. Ele a havia amaldiçoado. Mas ela não disse que
estava agradecida por isso, e sim por sua vida. Será que compreendera que ele não tinha
outra alternativa? Que entendera que aquela oportunidade para viver era a única coisa que
estava a seu alcance oferecer? Teria esta estranha menina entendido isto melhor do que os
seus caçadores? Melhor até do que o Mog-ur? Sim, concluiu consigo, ela entendera. Sentiu
por Ayla algo que nenhuma mulher já havia despertado nele. Por um momento, desejou que
ela fosse homem. não tinha mais necessidade de pensar no que queria perguntar ao Mog-ur. Jáo sabia.

Capítulo 18

- não sei o que eles estão tramando e nem sei se o resto dos caçadores sabe
- falou Ebra. - Tudo que posso dizer é que nunca vi Brun tão nervoso.
As mulheres estavam todas sentadas juntas, preparando a comida para uma festa.
Ignoravam o que iriam comemorar. Brun apenas lhes dissera para preparar um banquete
para aquela noite, e elas agora crivavam Iza e Ebra de perguntas, querendo descobrir
alguma pista.
- O Mog-ur passou o dia inteiro e a metade da noite na gruta dos espíritos. Deve ser
alguma cerimônia. Enquanto Ayla esteve fora, ele nem perto passava daquele lugar e agora
não sai de lá - comentou Iza. - Quando está metido com essas coisas, fica tão distraído
que não se lembra nem de comer. Às vezes, durante as refeições, se esquece até de botar a
comida na boca.
- Mas se eles vão fazer uma cerimônia, por que Brun passou a metade do dia limpando
o fundo da caverna? - falou Ebra. - Quando me ofereci para fazer o serviço, ele me
expulsou. Se existe um lugar deles para cerimônias, por que iria Brun fazer trabalho de
limpeza igual a uma mulher?
- Mas que outra coisa poderia ser? - perguntou Iza. - Quando olho para Brun e o
Mog-ur, parece que os dois têm a cabeça na mesma coisa. E se me percebem por perto,
param de falar e ficam com ar de culpa. O que será que poderiam estar planejando? E por
que a festa desta noite? O Mog-ur passa o tempo todo indo no lugar que Brun está
limpando e às vezes entra na gruta dos espíritos para sair logo depois. Acho que ele está
carregando alguma coisa, mas é tão escuro lá no fundo que não dá para ver.
Ayla se limitava simplesmente a gozar a companhia das outras. Já passara cinco dias,
desde que voltara, e ainda quase não acreditava que estivesse novamente na caverna do clã,
sentada junto das mulheres e preparando comida, como se nunca tivesse saído de lá. Mas
alguma coisa mudara. As mulheres não se sentiam muito à vontade perto dela. Achavam
que estivera morta. Seu retorno à vida era visto como um milagre. Elas não sabiam o que
conversar com alguém que fora e voltara do mundo dos espíritos. Ayla não se importava,
tudo que sabia é que se sentia feliz em estar de volta e isso lhe bastava. Naquele momento,
observava Brac querendo subir na mãe para mamar.
- Como está o braço de Brac? - perguntou Ayla a Oga, sentada junto dela.
- Veja por você mesma, Ayla. - E abriu a roupa de Brac, mostrando- lhe o braço e o
ombro. - Iza retirou a tala um dia antes de você chegar. O braço está muito bem, a não ser
um pouco mais fino do que o outro. Segundo Iza, à medida que o menino for fazendo mais
movimentos, o braço vai se fortalecendo.
Ayla examinou as feridas já curadas e apalpou delicadamente o osso, enquanto o menino,
com seus olhos muito grandes e uma expressão séria, a olhava. As mulheres tinham o
cuidado de evitar qualquer assunto relacionado, ainda que remotamente, com a maldição
dela. Muitas vezes, alguma começava uma conversa e depois baixava as mãos no meio da
frase, percebendo
para onde o assunto se estava encaminhando. Isso retirava a espontaneidade que marcava a
prosa delas, quando reunidas para trabalhar.
- As cicatrizes ainda estão vermelhas, mas com o tempo vão esbranquiçando - disse
Ayla. - Você é um garoto forte, Brac? - perguntou, olhando para o menino.
Ele fez que sim com a cabeça.
- Mostre o quanto. Será que consegue abaixar meu braço? - disse ela, esticando o braço
para a frente. - não com essa mão. Com a outra - corrigiu, ao ver que o menino ia usar o
braço bom. Brac trocou de mão e puxou o braço de Ayla para baixo. Ela resistiu só o
necessário para sentir qual era a força dele; depois, deixou o braço cair. - Você é um
garoto muito forte, Brac. Algum dia vai ser um caçador tão corajoso quanto Broud.
Ela estendeu as mãos na direção dele, querendo ver se o menino viria em seu colo. A
primeira reação foi a de afastar-se, mas depois ele mudou de idéia e deixou que Ayla o
segurasse. A garota suspendeu-o no ar, colocando-o em seguida no colo.
- Brac é um menino muito grande. . . é forte e pesado.
Ele ficou quieto por uns momentos, mas, ao descobrir que ela não tinha nada para dar-lhe,
contorceu-se, pedindo para voltar ao colo da mãe, onde buscou o seio e se pôs a mamar
com os olhos arregalados para Ayla.
- Você tem muita sorte, Oga. Ele é um lindo bebê.
- não teria essa sorte, se não fosse você, Ayla. - Oga finalmente tocara no assunto que
as outras faziam o possível para evitar. - Eu nunca disse o quanto lhe sou agradecida. No
princípio, eu estava tão preocupada com ele que nem sabia o que dizer. Você também
parecia não querer falar muito e.
então você já não estava mais aqui. Ainda não sei o que dizer. Nunca esperei que fosse vê-
la novamente. É difícil acreditar que esteja de volta. Você fez mal em usar uma arma e nem
entendo por que desejou caçar, mas estou feliz por ter feito isso. não tenho palavras para
dizer o quanto. Eu me senti tão mal quando. . . quando você teve de partir, mas estou
contente por estar de volta.
- Eu também - acrescentou Ebra.
E todas as outras mulheres balançaram a cabeça confirmando.
Ayla, extremamente comovida por se ver integralmente aceita, esforçava-se por conter as
lágrimas que gostavam de correr com a maior facilidade. Tinha receio de que as mulheres
ficassem constrangidas, se seus olhos aguassem.
- Estou feliz por estar de volta - gesticulou, com as lágrimas escapando a seu controle.
Iza, por esse tempo, já sabia que os olhos dela aguavam sempre que alguma coisa lhe
tocava muito profundamente e não por se achar doente. As outras mulheres também já
estavam acostumadas com essa particularidade
e conheciam o significado de suas lágrimas; por isso, simplesmente menearam a cabeça em
sinal de compreensão.
- Como foi, Ayla? - perguntou Oga, com expressão embaraçada e ao mesmo tempo
sentindo pena.
Ayla pensou por um instante.
- Triste. Uma grande solidão. Tinha saudades de todos. - Os olhos das mulheres estavam
cheios de piedade e ela sentiu que precisava dizer algo para levantar o ânimo delas. -
Cheguei até a sentir saudade de Broud - acrescentou.
- Huumm - fez Aga. - Devia ser muito triste mesmo. - Olhou, então um pouco
embaraçada para Oga.
- Eu sei que ele às vezes é bem difícil - admitiu Oga. - Mas Broud é meu companheiro.
Para mim, ele não é muito mau.
- Oga, não precisa desculpá-lo - falou Ayla, delicadamente. - Todos sabemos que
Broud gosta de você. Deve ter orgulho de ser sua companheira. Um dia, ele será o chefe.
Broud é um caçador corajoso e foi, inclusive, quem feriu o mamute em primeiro lugar.
Você não tem culpa se ele não gosta de mim. Em parte, sou um pouco culpada disso. Nem
sempre me comportei com Broud como devia. não sei como tudo começou e nem sei
como vai ter minar. Se eu pudesse, faria alguma coisa, mas você não tem de se preocupar,
Oga.
- Ele sempre teve um gênio ruim - comentou Ebra. - não se parece com Brun. Sabia
que o Mog-ur estava certo ao anunciar que o totem de Broud era o rinoceronte lanoso.
Acho que, de certo modo, Ayla, você ensinou Broud a controlar um pouco mais seu gênio.
Isso o ajudará a ser um bom chefe.
- não sei - falou Ayla, abanando a cabeça. - Acho que quando não estou por perto,
ele se controla melhor. Sou eu que faço aparecer seu lado ruim.
Seguiu-se, então, um silêncio constrangedor. Em geral, as mulheres não expunham tão
abertamente os defeitos de seus homens, mas a conversa servira para aliviar a atmosfera de
tensão que cercava Ayla. Iza, muito sabiamente, viu que era o momento para mudar de
assunto.
- Será que alguém sabe onde estão os inhames?
- Acho que estavam no lugar que Brun limpou - respondeu Ebra. - Enquanto o verão
não chegar, não vamos conseguir encontrar nenhum inhame.
Broud vira Ayla sentada junto das mulheres e franzira o cenho quando ela pôs Brac no
colo. Isso o lembrou de que Ayla salvara a vida do menino, mas também o fez recordar de
que ela havia presenciado seu grande momento de humilhação Como todo mundo, ele
também estava abismado com o retorno, O primeiro dia, olhava-a com pavor e certa
apreensão. A mudança que Creb interpretou como maior maturidade e que Brun viu como
uma tomada de consciência da sorte que possuía, Broud, nisso, só enxergou ostensiva insolência. Durante seu período de provação na neve, Ayla não só passara a ter confiança em
sua
capacidade de sobrevivência, como também aprendera a aceitar com serenidade os fatos
desagradáveis da vida. Vencido esse período, quando sua luta foi de vida ou morte, nada
tão insignificante como reprimendas, que de tão usadas acabaram por não surtir mais
efeito, seria capaz de arranhar sua plácida quietude.
Ayla sentira falta de Broud. Naquele seu completo isolamento, até mesmo a Implicância
dele era preferível ao perfeito vazio que se formou com a total ausência das pessoas que
amava. Nos dois primeiros dias, ela inegavelmente se comprazia com sua vigilância
cerrada, inclusive ostensiva. Ele não se contentava apenas em olhá-la, via cada um dos
movimentos que Ayla fazia.
No terceiro dia depois da volta, os velhos padrões de comportamento se restabeleceram por
si mesmos, mas com uma diferença. Ayla já não precisava lutar consigo para curvar-se à
vontade dele, em suas respostas, já não havia nem mesmo aquele sentido latente de
condescendência com que outrora o tratava. Ela realmente não se abalava. Nada que ele
pudesse fazer a atingia. Podia bater, praguejar e se deixar levar até o ponto de explodir toda
sua violência. Nada surtia efeito. Com paciência, ela condescendia em satisfazer as suas
mais absurdas exigências. Embora não intencionalmente e guardando as devidas
proporções, relegava Broud ao ostracismo que lhe haviam imposto. O rapaz não conseguia
provocar-lhe qualquer reação A mais violenta de suas fúrias, controladas a custo de enorme
desgaste, causava menos impacto do que uma picada de mosquito, essa pelo menos ainda
coçava. Isso era o pior que ela podia fazer-lhe, deixando-o fora de si.
Ver-se centro de atenções era tudo que Broud almejava, isso o revigorava, sendo uma
verdadeira necessidade nele. Nada o frustrava mais do que sentir indiferença no outro.
Pouco lhe importava se a reação das pessoas fosse boa ou má, contanto que houvesse.
Estava certo de que a falta de respeito por sua autoridade e a indiferença de Ayla se deviam
ao fato de ela o ter visto num momento de vergonha e fracasso. Em parte, ele tinha razão. Ela
conhecia os limites do controle que ele podia ter sobre sua pessoa, e também havia posto à
prova o valor e a força de seu espírito. Achara as duas coisas insuficientes para merecer-lhe
o respeito. Entretanto, não era só o fato de ela não o respei tar ou lhe ser indiferente; Ayla
roubava a atenção que ele gostaria de ter.
Já pela própria aparência, ela chamava atenção e tudo nela atraía atenção tinha um
poderoso totem, vivia na fogueira do maior dos feiticeiros, que lhe dedicava enorme afeição,
estava sendo educada para curandeira, havia salvo a vida de Ona, era exímia na funda,
fora ela quem matara a hiena, salvando a vida de Brac e, agora, esse seu retorno do mundo
dos espíritos. Sempre que ele dava mostras de sua grande coragem e que se via justo
merecedor da admiração, respeito e atenção do clã ela surgia, relegando-o a segundo plano.
Broud, a distância, fuzilava Ayla com os olhos. Por que teve de voltar? Todo mundo só fala
dela, não param um instante de comentar. Quando matei minha primeira caça e me fiz
homem, todos falavam desse totem idiota que ela tem. Foi por acaso ela quem enfrentou o
ataque do mamute? Quem cor tou os tendões do gigantesco animal? Quem quase morreu
esmagado debaixo de uma pata? não Tudo que fez foi atirar duas pedrinhas com uma
funda e só por isso não param de pensar nela. Brun com essas suas reuniões, tudo por sua
causa. E nem direito ele soube fazer a coisa. Agora, está ela aí de volta e todo mundo outra
vez só falando nela. Por que será que Ayla tem sempre de estragar tudo?
- Creb, por que você está tão agitado assim? Nunca o vi tão nervoso. Parece um rapazola
indo ao encontro da primeira companheira. Quer que eu faça um chá para acalmar seus
nervos? - indagou Iza, depois de vê-lo pela terceira vez correndo para sair e mudando de
idéia para voltar a sentar-se novamente.
- Por que você acha que estou nervoso? Apenas estou tentando lembrar-me das coisas e
meditando um pouco - respondeu ele, encabulado.
- O que você está precisando lembrar? Há anos que você é Mog-ur, Creb. Pode celebrar
de olhos fechados qualquer cerimônia e nunca vi ninguém que meditasse sentando e
levantando sem parar. Por que não me deixa fazer um chá?
- Não estou precisando de nenhum chá. Onde está Ayla?
- Está lá adiante, depois da última fogueira, vendo se encontra alguns inhames. Por quê?
- Só queria saber - respondeu Creb, recostando-se no assento.
Pouco depois, apareceu Brun fazendo-lhe sinal. O Mog-ur se levantou e foram os dois se
encaminhando para o fundo da caverna. O que será que está acontecendo com eles?,
perguntou-se Iza, espantada e balançando a cabeça sem compreender.
- Já está quase chegando o momento, não é? - indagou Brun, quando chegaram ao lugar
que ele havia limpado. - Está tudo arranjado?
- Os preparativos estão prontos, mas acho que o sol tem de estar mais baixo no céu.
- Você acha! Será que não sabe? Pensei ter visto alguém dizer que sabia
fazer tudo. Você não disse que havia meditado e encontrado a cerimônia? É
necessário que tudo saia absolutamente certo. Como pode falar que acha? - disse Brun,
num tom brusco.
- Mas eu meditei - replicou o Mog-ur, defendendo-se. - Só que tudo se passou num
lugar diferente e há muito tempo. Não havia nem sinal de neve. Acho que nem mesmo no
inverno nevava. É difícil de determinar exatamente qual o momento certo. Só sei dizer que
o sol já estava baixo.
- Você não me disse isto! Como é que vai ter certeza de que é o momento certo? Talvez
seja melhor esquecermos isso tudo. De qualquer forma, a idéia parece ridícula.
- Já falei com os espíritos. As pedras já estão assentadas. Eles estão nos esperando.
- não gosto também dessa idéia de mexer nas pedras. Talvez fosse melhor que a
cerimônia se realizasse na caverna dos espíritos. Tem certeza de que eles não estão
aborrecidos por terem sido tirados de seu lugar, Mog-ur?
- Nós já conversamos sobre isso, Brun. Ficou resolvido que seria me lhor mudar as pedras
do que levar os velhos espíritos à caverna dos totens. Os mais velhos depois de verem o
lugar poderiam não querer mais sair de lá.
- Se eles estão acordados, como você vai saber que foram embora outra vez. É muito
perigoso, Mog-ur. Talvez seja melhor cancelarmos.
- Eles podem ficar por algum tempo - reconheceu o feiticeiro. - Mas, depois que tudo
estiver arranjado, como era antes, vão ver que não há lugar para eles e ir embora. Mas você
é quem resolve; se quiser mudar de idéia, posso tentar apaziguá-los. Pelo fato de que estão
esperando a cerimônia, isso não quer dizer que somos obrigados a realizá-la.
- Não Você está certo. É melhor levarmos a coisa adiante, eles já estão esperando. Mas
talvez sejam os homens que não vão gostar muito dessa história.
- Quem é o chefe, Brun? Uma vez que entendam, vai dar tudo certo, irão acostumando-se
com o fato.
- Você acha, Mog-ur? Será mesmo? Foi há tanto tempo. não estou me referindo agora
aos homens. Será que nossos totens aceitariam? Temos tido tanta sorte que chega quase a
ser sorte demais. Não consigo deixar de pensar que alguma coisa terrível está por acontecer.
Não quero fazer nada que possa deixá-los aborrecidos. Quero fazer só o que desejam.
Minha intenção é conservá-los sempre felizes.
- Isso é o que estamos fazendo, Brun - disse o Mog-ur, calmamente. - Tentar fazer o
que eles desejam. Satisfazer o desejo de todos eles.
- Mas você acha que os outros vão entender Se alguns foram agradados, os outros não
poderio sentir-se menosprezados?
- Não Brun. Tenho certeza de que entenderão. - O feiticeiro sentia a aflição e o estado
de tensão por que o chefe estava passando. Sabia como de via ser difícil para ele. - Bom,
certeza absoluta, ninguém pode ter. Somos apenas humanos. Mesmo o Mog-ur não passa de
um simples homem. O que podemos fazer é tentar. Mas foi você mesmo quem disse que
temos tido sorte. Isso deve significar que os espíritos de todos os totens estão felizes. Se estivessem lutando uns contra os outros, você acha que estaríamos tendo toda essa sorte?
Quantas caçadas de mamute já aconteceram, sem que ninguém
saísse ferido? Alguma coisa poderia ter dado errado. Como, por exemplo, ter feito essa
longa viagem para nada e estaria perdida uma das melhores épocas
para caçar. Você arriscou e ganhou, Brun.
O chefe olhou o rosto grave do feiticeiro. Então se pôs de pé com o corpo ereto, e um ar
resoluto substituiu a expressão indecisa de antes.
- Vou reunir os homens - gesticulou Brun.
As mulheres haviam recebido ordem para se manter afastadas do fundo da caverna e nem
mesmo olhar para lá. Iza reparou que Brun convocou os homens, mas ela ignorava o
motivo. Seja lá o que estivessem fazendo, isso era com eles. Alguma coisa, entretanto, fé-la
levantar os olhos no momento em que dois deles, com as caras pintadas de ocre vermelho,
passavam apressados na direção de Ayla. Iza tremeu. O que poderiam estar querendo com
ela?
Ayla não havia nem mesmo percebido que os homens se achavam todos com Brun. Ela
procurava inhame, revistando um monte de cestas e recipientes de couro cru empilhados
desordenadamente atrás da fogueira que ficava mais ao fundo da caverna. Ao ver a cara
pintada de vermelho do chefe aparecer subitamente na sua frente, o susto foi tanto que
perdeu a respiração.
- não reaja. não faça qualquer barulho - gesticulou Brun.
No princípio, ela não teve medo; só depois, quando lhe puseram uma venda nos olhos e que
se sentiu arrastada, meio suspensa no ar.
Quando viram Brun e Goov chegando com Ayla, os homens ficaram apreensivos.
Sabiam tanto quanto as mulheres sobre a cerimônia que Brun e o Mog-ur andavam
planejando, só que, no caso deles, a curiosidade no fim acabava sendo satisfeita. O Mog-ur
apenas os advertira, depois de já sentados em círculo atrás das pedras trazidas da pequena
caverna, para que não fizessem qualquer gesto ou som. Mas a advertência passou a ter
especial significação quando o feiticeiro deu a cada um deles para segurar, na forma de X,
dois ossos saídos do esqueleto do urso da caverna. Se eles precisavam de proteção tão
extrema, era porque o perigo deveria ser grande. E, ao verem Ayla, passaram a ter uma
vaga idéia de qual poderia ser o perigo.
Brun forçou a menina a sentar-se no meio do círculo, de frente para o Mog-ur, e depois
foi sentar-se atrás dela. A um sinal do feiticeiro, o chefe retirou a venda. Ayla piscou,
querendo clarear a visão. À luz das tochas, viu o Mog-ur sentado atrás de uma caveira de
urso, enquanto cada um dos homens tinha nas mãos dois ossos cruzados. Ela se encolheu de
medo, com vontade de afundar-se no chão.
O que será que eu fiz? não usei nenhuma funda, pensou, tentando lembrar se cometera
algum crime que justificasse sua presença ali. não conseguiu recordar de nenhuma coisa
errada nos últimos tempos.
- Não fáção qualquer movimento ou som - tornou a avisar o Mog-ur.
Mesmo que quisesse, ela não conseguiria fazê-lo. Com os olhos arregalados, viu o Mog-ur
se levantar, deixando o cajado no chão, e começar certos movimentos ritualísticos
suplicando a Ursus e aos espíritos totêmicos para assistí-los. Muitos dos gestos eram
desconhecidos para Ayla, o que não impediu que ela observasse extasiada tudo aquilo, não
tanto pelo significado da simbologia contida nos gestos, mas principalmente pela figura do
velho feiticeiro.
Ela conhecia Creb demasiadamente bem. Um velho aleijado que coxeava, desajeitado,
apoiando-se pesadamente sobre um cajado. Era a caricatura assimétrica de um homem: um
dos lados ananicados, com atrofia dos múscu los por falta de uso; o outro,
superdesenvolvido, para compensar a paralisia que o obrigava a uma dependência extrema
de sua metade boa. Ayla já havia reparado, em outras cerimônias públicas, na graça dos
seus movimentos, quando usados na linguagem ritualística, abreviada devido à falta do
braço, mas plena de sutilezas e complexidades, e carregada de significados. Contudo, os
movi mentos do homem ali de pé, postado atrás da caveira, revelavam uma face do
feiticeiro que ela nunca soube que existisse.
Nem de leve percebiam-se aquelas maneiras desengonçadas, tão absorvidos estavam numa
gesticulação de comovedor ritmo hipnótico que fluía com facilidade e obrigava todos os
olhares a se concentrarem na pessoa dele. Apesar de que pudessem ser tomados como tais,
os movimentos de mão e os sutis efeitos de posturas nada tinham que lembrasse alguma
dança
de caráter gracioso. O Mog-ur era antes de tudo um orador dotado de uma força persuasiva que Ayla ainda não conhecia, e ele nunca se mostrava tão expressivo como quando se
dirigia a seu auditório invisível, às vezes mais real do que os homens sentados à frente
dele. E mais de si ainda deu, quando começou a dirigir sua atenção para os venerabilissimos
espíritos que desejava convocar para aquela cerimônia, única na vida do clã.
Ó espíritos mais velhos dentre os mais velhos, 6 espíritos não invocados desde os nossos
nebulosos primórdios, venham neste momento assistir-nos. Nós os conclamamos.
Queremos render-lhes nossas homenagens e pedir ajuda e proteção Ó grandes espíritos
cujos
nomes tão venerados são uma sombra em nossas memórias, acordem de seu sono profundo e
permitam que os honremos. Temos para vocês uma oferenda, um sacrifício para
abrandar seus velhos corações Precisamos que nos dêem sua sanção. Ouçam os seus nomes
aqui pronunciados.
- Espíritos dos Ventos, Oooha!
Ayla sentiu um frio na espinha ao ouvir o nome dito em voz alta.
- Espírito das Chuvas, Zheena! Espírito das Neblinas, Eeesha! Atendam os nossos
chamados. Vejam-nos com benevolência. Alguém de vocês está conosco. Alguém que
caminhou entre as suas sombras e voltou. Voltou pela vontade do Grande Leão da Caverna!
Ele está falando de mim, pensou Ayla, subitamente compreendendo. Isso é uma cerimônia.
E o que estou fazendo no meio de uma cerimônia? Quem são esses espíritos? Nunca ouvi seus
nomes sendo mencionados antes. E todos nomes de mulheres. Pensei que os espíritos
protetores fossem Sempre masculinos. Ela tremia de medo, mas estava curiosa. Os outros
que se achavam lá, todos sentados duros como pedras, também ouviam os nomes pela primeira vez, se bem que a eles não parecessem de todo desconhecidos. Ao escutá-los,
qualquer coisa acendeu-se lá no fundo de suas mentes, onde armazenavam uma memória
tão antiga como aqueles nomes.
- Veneráveis dentre os mais veneráveis! Os caminhos dos espíritos são mistérios para nós.
Somos simples mortais, ignoramos o motivo que fez essa mulher ser escolhida por espírito
tão poderoso, como também não sabemos a razão por que ele a fez trilhar por caminhos tão
antigos, mas não podemos ir contra sua vontade. Por ela, ele lutou no mundo das trevas,
derrotando os espíritos do mal e enviando-a de volta para que seus desejos fossem
conhecidos e para que soubéssemos que não nos podemos opor a ele. O Poderosos Espíritos do Passado, suas vias já foram as mesmas que as dos clã hoje não o são mais. No entanto,
devem tornar a sê-lo em nome desta que aqui se acha sentada conosco. Rogamo-lhes,
antigos espíritos, que a façam digna dos seus caninhos. Aceitem-na. Protejam-na e dêem
também sua proteção ao clã a que ela pertence. - O Mog-ur se virou na direção de Ayla -
Traga a mulher à frente
- ordenou.
Ayla se sentiu suspensa do chão pelos braços fortes de Brun e sendo posta de pé na frente
do Mog-ur. Com a respiração suspensa, viu que Brun pegava um punhado de seus
longos cabelos louros, ao mesmo tempo que lhe em purrava a cabeça para trás. Olhando
debaixo para cima, enxergou o Mog-ur tirar uma faca afiada de sua sacola e levantá-la bem
ao alto, por cima da cabeçadele. Aterrorizada, olhou para o rosto que se avultava para
perto do seu e para a faca empunhada para cima, quando ele, com um súbito movimento,
trouxe a faca para junto de sua garganta descoberta.
A garota sentiu uma dor aguda, mas o medo era tanto que não a deixou
gritar. O Mog-ur fizera apenas um leve talho na parte inferior da garganta dela.
O fio de sangue que escorreu foi rapidamente chupado por um chumaço de
pele de coelho. O feiticeiro esperou primeiro que se empapasse completamente
o chumaço, para depois pegar, de uma bacia segurada por Goov, um líquido
que ela sentiu arder, mas que enxugou o corte. Brun, então soltou-a.
Fascinada, Ayla viu o Mog-ur botar o chumaço sujo de sangue numa vasilha rasa de pedra,
parcialmente cheia de óleo. O acólito entregou uma pequena tocha ao feiticeiro que a usou
para tocar fogo no óleo. Ficou, em seguida, em silêncio, observando a pele de coelho
queimar, até virar um torrão escuro e quebradiço, cheirando fortemente a azedo. Depois que
o fogo se extinguiu, Brun afastou para o lado a roupa dela, deixando-lhe descoberta a coxa esquerda. O
Mog-ur mergulhou o dedo no resíduo que ficara na vasilha de pedra e riscou de preto as
quatro linhas de sua cicatriz. Ela olhava espantada. Era como a marca de um totem feita
durante os ritos de passagem de um rapaz. Sentiu que a levavam para trás. O Mog-ur agora
voltara a se dirigir aos espíritos e ela ficou observando-o.
- Aceitem este sacrifício de sangue, Venerabliíssinios Espíritos. Saibam que foi o seu
totem, o Espírito do Leão da Caverna quem a escolheu para trilhar os seus antigos caminhos.
Saibam que desejamos honrá-los e lhes render homenagens. Concedam-nos sua graça e
voltem ao profundo sono do qual foram acordados, certos de que seus caminhos não foram
esquecidos.
Terminou, disse Ayla consigo, soltando um suspiro de alívio ao ver o Mog-ur se sentando
novamente. Ainda ignorava por que a fizeram participar de uma cerimônia fora dos padrões
usuais. Mas eles ainda não haviam terminado com ela. Brun foi para frente e lhe fez
sinal para que se levantasse. Rápido, ela se pôs de pé. Ele meteu a mão dentro de uma
dobra da roupa e retirou um pequeno objeto ovalado, tingido de vermelho. Era um pedaço
de marfim serrado pouco acima da ponta da presa de um mamute.
- Ayla, por esta única vez, enquanto nos achamos sob a proteção de antiqüíssimos
espíritos, você está em pé de igualdade com os homens. - Ela não estava muito certa se
entendera direito. - Mas tão logo sair deste lugar, nunca mais deverá pensar em você
como uma igual a nós. Você é e sempre será uma mulher.
Ayla acenou com a cabeça concordando. Claro que sabia que era mulher, achava-se
espantadíssima com tudo.
- Este marfim saiu da presa do mamute que matamos. Foi uma caçada muito feliz.
Conseguimos derrubar aquele imenso animal sem que nenhum homem ficasse ferido. Este
pedaço aqui está santificado por Ursus e tingido pelo Mog-ur na sagrada cor vermelha. É o
poderoso talismã de um caçador. Todos os homens do clã carregam um idêntico dentro de
seu amuleto e todo caçador deve trazê-lo consigo.
"Ayla, nenhum menino fica adulto enquanto não mata seu primeiro animal, mas uma vez
que tenha matado, já não pode mais voltar à condição de criança. Em épocas muito
distantes, nos tempos dos espíritos que hoje nos atenderam, as mulheres dos clã caçavam.
Não sabemos por que seu totem a conduziu por caminhos tão distantes no tempo, mas não
podemos deixar de reconhecer a vontade do Espírito do Leão da Caverna. Temos, portanto,
que permiti-lo. Ayla, você já matou seu primeiro animal, por isso agora deve as sumir as
responsabilidades de um adulto. Entretanto, você é mulher e não homem e, em todos os
sentidos, menos um, continuará como tal. A única arma que poderá usar é a funda, Ayla,
mas, doravante, será a Mulher Caçadora.
Ayla sentiu uma onda de sangue subindo-lhe pelo rosto. Seria verdade? Teria realmente
entendido as palavras de Brun? Justamente por usar uma funda fora obrigada a passar
por uma prova da qual não esperava sair com vida e, agora, permitiam-lhe usar essa arma?
Poderia mesmo caçar? E tudo aberta mente? Mal conseguia acreditar.
- Este talismã é para você. Ponha-o dentro de seu amuleto.
A garota retirou do pescoço o saquinho e, atabalhoadamente, procurou desatar os nós. Em
seguida, pegou da mão de Brun o objeto ovalado de cor vermelha, meteu-o junto do
torrão de ocre e do fóssil e tornou a fechar a bolsinha de couro, pendurando-a novamente
no pescoço.
- Por enquanto não diga nada a ninguém. Darei a notícia antes da festa de hoje à noite.
Esta será em sua honra, Ayla. Em honra do primeiro animal que você matou - falou Brun.
- Espero que o próximo seja mais saboroso do que uma hiena - acrescentou, com uma
piscadela bem-humorada. - Agora, vire-se de costas.
Ela fez o que ele lhe mandava e sentiu os olhos novamente sendo vendados. Dois homens
a conduziram de volta e, depois, retiraram-lhe a venda. Viu que Brun e Goov retornavam
ao círculo dos homens. Será que estou sonhando? Passou a mão na garganta sentindo
arder a ferida feita pelo Mog-ur. Depois, pegou o amuleto tateando os três objetos lá
dentro. Afastou a roupa para o lado e olhou as linhas de sua cicatriz besuntadas de graxa
preta. Uma caçadora! Sou então uma caçadora! Uma caçadora para o clã. Disseram que foi
meu totem quem assim desejou e que não podiam negar a vontade dele. Apertou o amuleto
entre os dedos, passando a fazer os gestos próprios da linguagem ritualística.
- Ó Grande Leão da Caverna, por que fui duvidar de você? A maldição de morte foi uma
dura prova, a pior de todas até agora, mas, para tão grande graça, assim teria de ser. Sou
imensamente agradecida por me achar digna. Sei que Creb está certo. Minha vida nunca
será fácil, tendo o Grande Leão da Caverna como totem, mas sempre será digna de ser
vivida.
A cerimônia fora suficientemente impressionante para convencer os homens de que se
deveria deixar Ayla caçar, isto é, impressionante para todos menos um. Broud estava
furioso. Se não houvesse ficado tão assustado com a advertência do Mog-ur, teria se
levantado e ido embora. não desejava participar de qualquer coisa que concedesse favores
especiais àquela mulher. Olhava sombriamente para o Mog-ur, mas sua maior raiva era
dirigida a Brun, um ódio que não conseguia passar-lhe pela garganta.
É ele o culpado, pensou Broud consigo. Está sempre protegendo a garota, sempre lhe
concedendo privilégios. Imagine que me ameaçou com a maldição de morte, porque eu a
castiguei por sua insolência. Logo eu, o filho de sua companheira, e ela merecia o castigo.
O que ele deveria ter feito era puni-la
corretamente com uma maldição para sempre. E agora essa: deixá-la caçar. Caçar como se
fosse um homem. Como pôde ele fazer uma coisa dessas? Brun está ficando velho. não
irá ser chefe para sempre. Algum dia desses, quem vai ser chefe sou eu, e então veremos.
Nessa altura, ela não vai ter ninguém para protegê-la. Vamos ver como vai conseguir seus
privilégios. Que trate então de engolir suas insolências.

Capítulo 18

No inverno que marcou seu décimo aniversário, a Mulher Caçadora entrou em plena
posse de seu título. Iza sentia-se intimamente satisfeita e aliviada por ver Ayla passando
pelas transformações que prenunciavam sua próxima menstruação O alargamento das
cadeiras e o maior volume dos seios, mudando os contornos do corpo reto e infantil de
Ayla, deram a Iza a certeza de que, afinal, aquela sua muito particular filha não estava
destinada a viver eternamente na infância. Aos mamilos inchados e uma ligeira penugem
na região púbica e sob os braços, seguiu o fluxo menstrual de Ayla. Era, então, a primeira
luta que seu totem travava com o espírito de um outro.
Ayla, a estas alturas, já compreendera que seria muito pouco provável que algum dia
tivesse filho. Seu totem era forte demais. Ela desejava ter um bebê. Desde o nascimento de
Uba que tinha vontade de ter um filho para amar e cuidar, mas aceitava as penas e
restrições impostas pelo poderoso Leão da Caverna. Sempre gostara de cuidar das crianças
do clã, quando as mães estavam ocupadas, e ficava sentida ao vê-las saírem de seu colo para
mamar em uma outra. Mas pelo menos agora, ela deixara de ser aquela enorme criança,
mais alta do que qualquer mulher do clã.
Ela, por empatia, identificava-se com Ovra que, depois do primeiro aborto, tivera diversos
outros, embora estes ocorridos no princípio da gravidez e sem maiores complicações O
totem de Ovra, o Castor, era, por sua vez, um pouco feroz demais. Parecia que ela estava
fadada a uma existência sem filhos. Desde a caçada do mamute e, sobretudo, agora que
Ayla ficara adulta, as duas freqüentemente eram vistas juntas. Ovra era uma mulher
tranqüila que não falava muito, naturalmente reservada e o oposto de Ika, de
temperamento franco e expansivo. Entretanto, entre Ayla e Ovra foi-se fazendo aos poucos
um bom entendimento, que se transformou numa amizade íntima que passou também a
incluir Goov. A afeição que ligava o acólito à sua companheira era um fato sabido de todos,
e isso fazia com que Ovra fosse objeto de piedade ainda maior. Sabiam que, por ter um
companheiro generoso e compreensivo com a incapacidade dela de produzir filhos, Ovra
por isso mesmo ainda desejava mais sua maternidade.
Oga estava novamente esperando, para o grande prazer de Broud. Ficara grávida logo
depois de Brac ter sido desmamado aos três anos. Tudo levava a crer que ela seria tão fértil
quanto Aga e fica. Droog, depois que viu certo dia o filho de dois anos de Aga martelando
uma pedra, estava seguro de que a criança seria o ferramenteiro por que ele tanto esperara.
Arrumou um pequeno martelo de pedra de acordo com as mãos rechonchudas de Groob e o
deixava por perto enquanto trabalhava, e o menino brincava com uns pedaços de sílex,
imitando-lhe os gestos. Igra, a filha de dois anos de Ika, era uma garotinha gorducha, muito
dada e alegre, que fazia o encanto de todos no clã e prometia ter o mesmo bom gênio da mãe.
O clã de Brun estava crescendo.
No princípio da primavera, Ayla recebeu a maldição devida à sua condição de mulher e
passou alguns dias afastada do clã em seu refúgio no alto da montanha. Depois da maldição
de morte, de longe muito mais traumatizante, esta agora parecia quase umas férias.
Aproveitou o tempo para botar as idéias em ordem e para aperfeiçoar seus lançamentos
com a funda, depois de haver passado um longo inverno sem atirar, embora a todo instante
ainda precisasse lembrar-se de que já não era mais necessário fazer isto em segredo. Seria
facílimo para ela arrumar comida. Contudo, aguardava, ansiosa, as visitas diárias de Iza
num lugar previamente combinado, perto da caverna do clã. Iza lhe levava mais comida do
que ela agüentava comer, mas sua companhia é que era o principal. Ainda era difícil para
Ayla passar as noites sozinha, mas o fato de saber que aquele seria um isolamento limitado,
apenas de poucos dias, tornava a coisa mais suportável.
Quase sempre as duas ficavam juntas até anoitecer e Ayla precisava valer-se de uma tocha
para iluminar o caminho de volta. Iza nunca venceu sua desconfiança quanto à pele de
veado que Ayla curtira para usar enquanto estava "morta", de modo que resolveu guardá-la
na pequena caverna. Como toda moça, Ayla também aprendeu com sua mãe tudo aquilo que
era necessário uma mulher saber. Iza lhe deu faixas absorventes para seiem presas numa
correia amarrada na cintura e lhe explicou os símbolos apropriados que deveriam ser feitos
quando fosse enterrar na terra os absorventes sujos de sangue. Falou- lhe das posições
adequadas que deveria assumir caso algum homem desejasse aliviar suas necessidades
nela, dos movimentos que deveriam ser feitos e como depois fazer sua higiene. Ayla era
agora uma mulher. Poderia ser solicitada para desempenhar qualquer função exigida de
toda mulher adulta do clã. As duas conversaram sobre muitas coisas de interesse feminino,
embora algumas, devi do à educação para curandeira, já fossem do conhecimento de Ayla.
Trocaram idéias sobre gravidez, amamentação e remédios para cólicas. Iza deu-lhe instruções sobre as posições e movimentos que eram considerados como sedutores e a
maneira como uma mulher poderia encorajar o homem e excitá-lo para que ele tivesse
vontade de aliviar suas necessidades. Falaram ainda das responsabilidades que competiam a uma companheira. Iza lhe disse tudo quanto sua mãe lhe
contara, mas, no íntimo, perguntava-se se Ayla, tão pouco atraente como era, iria precisar
de todas essas informações.
Apenas um assunto Iza deixou de abordar. A maioria das meninas, quando estavam
próximas de se tornar mulheres, em geral, mostrava interesse por algum rapaz em
particular. Apesar de que nem mãe nem filha pudessem opinar sobre a matéria, a mãe se
tivesse
bom relacionamento com o compa nheiro, poderia transmitir-lhe as preferências da filha. O
companheiro, por sua vez, querendo, poderia fazer chegar o desejo da garota ao chefe que
tinha a decisão final. não havendo nenhuma outra consideração e, sobretudo, se o rapaz em
questão mostrasse também interesse pela menina, o chefe poderia fazer prevalecer a
vontade da mulher.
Nem sempre tal acontecia e certamente esse não foi o caso de Iza. De qualquer forma, o
assunto não surgiu nas conversas entre as duas, embora fosse, na maioria das vezes, aquele
que suscitava maior interesse. No momento, todos os rapazes no clã tinham companheiras,
e
Iza estava certa de que, mesmo que existissem homens disponíveis, haveria tanta
possibilidade de quererem Ayla como a de alguém mostrar-se interessado nela, Iza, para
segunda mulher. Ayla, por seu turno, não estava interessada em nenhum deles, inclusive se
Iza não tivesse abordado o assunto sobre as responsabifidades da mulher, a jovem nem teria
pensado nisso. Mas depois pensou.
Numa manhã ensolarada de primavera, algum tempo depois de haver voltado, Ayla foi
encher o cantil no lago alimentado pelo riacho, perto da caverna. Ninguém ainda havia
saído. Ela se ajoelhou, curvou o corpo, pronta para mergulhar o cantil dentro, quando
subitamente parou. Os raios do sol batiam inclinados sobre a água parada fazendo da
superfície um espelho. Ayla ficou com os olhos parados no estranho rosto que a olhava de
dentro do lago. Nunca até então vira sua imagem refletida. Quase toda a água existente
perto da caverna era a de rios e canais sempre em movimento e, em geral, ela só olhava
para dentro do lago depois de já ter mergulhado o recipiente que queria encher, quando a
superfície já estava remexida.
Estudou seu rosto. Era algo quadrado, com mandíbulas bem definidas, mas suavizadas por
bochechas de adolescente, pômulos altos e pescoço fino e comprido. O queixo se mostrava
ligeiramente partido, lábios carnudos e nariz reto, perfeitamente esculpido. Olhos claros,
azuis-acinzentados e contornados por pestanas mais escuras do que os cabelos dourados
que caíam bem para baixo dos ombros em ondas fartas e suaves, brilhando com os reflexos
do sol. Sobrancelhas no mesmo tom que os cílios, arqueadas por cima dos olhos e
assentadas sobre uma fronte acetinada, alta e reta, sem qualquer saliência na altura dos
supercílios. Ayla se ergueu e foi correndo para a caverna.
- Ayla, o que aconteceu? - gesticulou Iza. Era visível que havia algo perturbando a
moça.
- Mãe, acabei de me ver no lago. Eu sou feia! Oh, mãe, por que sou tão feia? -
perguntou, exaltada, caindo aos prantos nos braços de Iza. Tanto quanto podia lembrar-se,
somente conhecia pessoas da raça dos clã não tinha qualquer termo de comparação O clã
se acostumara com ela, mas ela mesma na Via-se diferente de todos, anormalmente
diferente.
- Ayla, Ayla - falou Iza abraçando-a, acalmando-a no seu choro.
- Eu não sabia que era tão feia, mãe. Eu não sabia. Que homem vai me querer? Nunca
vou ter um companheiro. Nunca vou ter um bebê. Nunca vou ter ninguém. Por que eu tinha
de ser tão feia?
- não sei se você é realmente feia, Ayla. Você é diferente.
- não Eu sou feia. Feia! - falou, abanando a cabeça e recusando qualquer consolo. -
Olhe para mim! Sou grande demais. Sou mais alta do que Broud ou Goov. Sou quase tão
alta quanto Brun! E sou feia. Sou grande, feia e nunca vou ter um companheiro -
gesticulou, começando outra vez a chorar.
- Ayla! Pare com isso! - ordenou Iza, sacudindo-a pelos ombros. - Você não tem culpa
por parecer como é. Você não nasceu de gente dos clã e sim de gente dos Outros. Seu
aspecto
é o deles. É uma coisa que você não pode mudar. Tem de se conformar. É verdade que
talvez nunca venha a ter com panheiro e, quanto a isso, não podemos fazer nada. Você tem
de aprender a aceitar o fato. Mas não é certo, nada é sem esperança. Em breve você será
uma curandeira. Uma curandeira da minha linhagem. Mesmo que não tenha com panheiro,
nunca será uma mulher sem status ou insignificante.
"No próximo verão, haverá a reunião de clã. Muitos clã estarA lá. O nosso não é o único
que existe. Você poderá encontrar um companheiro que venha de outro clã Talvez não seja
um rapazinho ou alguém de status elevado, mas de qualquer forma será um companheiro.
Zoug a tem em alta conta. Pode-se considerar feliz por ele ter tão boa opinião sobre você.
Ele já deu a Creb uma mensagem para levar à reunião. Zoug tem parentes em outro clã.
Disse a Creb para falar lá da estima que ele tem por você. Acha que você dará uma boa
companheira e deseja que eles pensem em seu caso. Inclusive chegou a dizer que ele a
tomaria como companheira, se fosse mais jovem. Lembre-se disso. Este não é o único clã
e os homens daqui não são os únicos sobre a ter.
- Zoug disse isso? Mesmo eu sendo feia desse jeito? - gesticulou Ayla, com um brilho
de esperança no olhar.
- Disse. Foi exatamente o que Zoug falou. Com a recomendação dele e o meu status,
tenho certeza de que algum homem irá querer tomá-la, mesmo com esse seu jeito diferente.
O sorriso que Ayla timidamente esboçava desapareceu.
- Mas isso quer dizer que vou ter de ir embora, não é? De ii para algum outro lugar, não
é assim? não quero deixar Creb, você e Uba.
- Ayla, estou velha e Creb também já não é nenhum rapazinho. Dentro de poucos anos,
Uba será mulher e vai ter o seu companheiro. E o que você fará então - gesticulou Iza. -
Qualquer dia desses Brun vai passar o coman do do clã para Broud, e acho que você
não deveria viver mais aqui depois que ele for o chefe. Em minha opinião o melhor seria se
você se mudasse e a reunião dos clã poderá ser boa oportunidade para isso.
- Sim, você deve ter razão. Acho que não vou querer viver aqui quando Broud for o
chefe, mas é horrível ter de deixá-la - disse, com o rosto franzido. Depois, animou-se. -
Mas até o verão que vem, ainda há um ano inteiro pela frente. Até lá não preciso
preocupar-me.
Um ano inteiro, disse Iza consigo, ah, minha filha, minha filha, você vai precisar ficar mais
velha para saber como passa rápido um ano. Você não me quer deixar? não sabe quanta
falta vou sentir de você. Se ao menos houvesse um homem neste clã para tomar conta de
você. E se ao menos não fosse Broud o futuro chefe.
Seus pensamentos, entretanto, não chegavam nem de leve a transparecer enquanto Ayla
enxugava os olhos e voltava para buscar água. Desta vez, evitando olhar para dentro do
lago parado.
Durante a tarde naquele dia, Ayla, saindo da mata, ficou por algum tempo olhando através
das folhagens para a caverna do clã. Diversas pessoas estavam do lado de fora trabalhando
ou apenas conversando. Ajeitou os dois coelhos que pendurara no ombro, olhou para sua
funda enfiada na correia da cintura e a camuflou numa dobra da roupa. Depois, mudou de
idéia e voltou a enfiar a funda na correia, deixando-a à mostra. Tornou a olhar para a caverna e foi caminhando, nervosa, para lá.
Brun disse que eu podia, falava consigo. Fizeram uma cerimônia para isso. Sou uma
caçadora.. . a Mulher Caçadora. Botou, então, o queixo para cima e saiu de detrás da cortina
de folhagens que a escondia.
Houve um enorme silêncio gelado, com todos parados, olhando para a garota que vinha na
direção deles, trazendo dois coelhos pendurados no om bro. Logo que se recuperaram do
choque e que perceberam estar em atitudes inconvenientes, desviaram os olhos para outro
lado. Ayla tinha o rosto quei mando, mas caminhava em frente, com ar decidido, ignorando
os olhares com o rabo dos olhos para ela. Sentiu-se aliviada ao entrar na caverna, depois de
passar pelo meio de uma fila dupla de olhares escandalizados, dando graças por a caverna
ter seu interior fresco e escuro. Lá dentro, era mais fácil ignorar os olhares das pessoas.
Os olhos de Iza também se arregalaram quando Ayla chegou à fogueira
de Creb, mas ela rapidamente se refez do choque e olhou em outra direção sem fazer
qualquer menção aos coelhos. Ela não sabia o que dizer. Creb, sentado em sua pele de
urso, aparentemente meditava, parecendo nada perceber. Ele vira quando Ayla entrara na
caverna e tratou de disfarçar a expressão do rosto no momento em que ela chegou.
Ninguém disse uma palavra, quando Ayla botou os bichos perto do lugar onde estava acesa
a fogueira. Instantes depois, entrou Uba correndo e dizendo:
- Você caçou mesmo esses dois coelhos, Ayla?
- Sim - fez Ayla com a cabeça.
- Estão muito bonitos e gordos. É o que vamos comer hoje à noite,
- Bem. . . acho que sim - respondeu Iza, ainda embaraçada e incerta.
- Vou tirar a pele deles - falou depressa Ayla, pegando sua faca. Por um momento, Iza
ficou observando, depois veio e retirou a faca da mão dela.
- Não, Ayla. Você caçou e eu preparo.
Ayla afastou-se para dar lugar a Iza que, rapidamente, tirou as peles dos coelhos e os
atravessou com espeto, botando-os para assar sobre o fogo. Ayla se via tão encabulada
quanto Iza.
- A comida estava muito boa, Iza - disse mais tarde Creb, ainda evitan do qualquer
comentário direto sobre os dois coelhos. Uba, entretanto, não teve os mesmos escrúpulos.
- Os coelhos estavam bons, Ayla. Mas da próxima vez por que não vê se pega umas
perdizes? - Ela, como Creb, tinha a mesma predileção por essas aves de patas cobertas de
penas.
Na vez seguinte em que Ayla trouxe caça para a caverna, já não houve tanto escândalo e,
dentro de pouco tempo, suas caçadas passaram a ser encaradas com a maior naturalidade.
Agora, com um caçador na sua fogueira, Creb pôde reduzir a quota que apanhava com os
outros caçadores, a não ser quando fossem animais grandes, caçados só por homens.
Ayla esteve ocupadíssima naquela primavera. O fato de caçar não diminuiu seu trabalho
junto das mulheres, além de que havia a coleta de plantas para Iza. Mas adorava tudo.
Estava cheia de energia, mais feliz do que nunca. Feliz por poder caçar abertamente, feliz
por estar vivendo outra vez com o clã, feliz por ter finalmente ficado mulher e também
porque agora estava mantendo uma relação de amizade muito mais estreita com as outras
mulheres.
Ebra e Ika, as duas mais velhas do grupo, embora não esquecendo de todo as
peculiaridades de Ayla, a aceitavam. Ika sempre se mostrara amiga, e Aga, sua mãe, havia
mudado completamente de atitude, desde que Ayla salvara Ona de morrer afogada. Ovra se
tornara uma confidente, e Oga se afeiçoara a ela apesar de Broud. Sua paixão adolescente por
Broud acabou transformando-se ao longo dos anos em hábito e indiferença, esfriada pelas imprevisíveis explosões de
temperamento do companheiro. Em compensação o ódio vigativo de Broud por Ayla
tornou-se ainda maior depois de ela ter sido aceita como caçadora. Continuava sempre
procurando meios para infernizá-la e fazê-la reagir às suas provocações. No entanto, as
implicáncias dele passaram a fazer parte de um cotidiano com o qual ela aprendera a
conviver e nada a tirava de sua tranqüilidade.
A primavera ia em plena floração quando Ayla resolveu caçar algumas perdi zes para que
fosse preparado o prato favorito de Creb. Pensou que, enquanto andasse pelos campos,
poderia ao mesmo tempo ir dando uma olhada nas plantas crescendo para começar a refazer
a farmácia de Iza. Passou a manhã explorando os terrenos próximos e depois se dirigiu para
uma extensa campi na já nas proximidades das estepes. Ali, fez dois pássaros alçarem vôo
para abatê-los no ar com suas pedradas. Em seguida, saiu à procura dos ninhos em meio à
relva crescida, na esperança de encontrar os ovos. Creb adorava comer as aves com
recheios feitos de seus próprios ovos misturados com ervas e legumes. Soltando uma
exclamação de alegria, a moça conseguiu achar o ninho e, com muito cuidado, enrolou os
ovos numa camada macia de musgo, metendo- os dentro de uma dobra profunda da roupa.
Estava feliz consigo mesma. Por pura alegria, disparou a correr pelo campo, só parando
quando chegou, já sem fôlego, no topo de um morro coberto de relva recém-brotada.
Deixou-se cair no chão, deu uma olhada nos ovos para ver se estavam inteiros e depois
pegou um pedaço de carne-seca para almoçar. Pôs-se a observar uma cotovia que lançava
gloriosamente seu canto do alto de um galho, para depois bater as asas e ir com seu canto
pelos ares. Dois pardais de cucurutos dourados, revoando por entre os galhos das amoreiras
na fronteira da planíce e, gorjeavam uma canção sombria de notas descendentes. Outro casal
de passarinhos com penachos pretos e mantos cinzas, reconhecidos pelo seu piado
característico (tic-a-di-di), entrava e saía como flechas dos buracos de seus ninhos num
pinheiro perto do riacho, que serpenteava pela densa vegetação no pé do morro. Pequeninas
e vivazes cambaxirras marrons espantavam os outros pássaros, enquanto carregavam ramos
e musgos secos para um ninho feito na cavidade do tronco retorcido de uma velha macieira
que ainda provava sua fecundidade com flocos de flores rosadas.
Ayla adorava esses momentos de solidão. Aquecendo-se ao sol, feliz e relaxada, não
pensava nada em particular, exceto na beleza do dia e de quanto feliz se achava.
Encontrava-se inteiramente inconsciente de que alguém pudesse estar por perto, até que
viu uma sombra cruzando o chão à sua frente. Assustada, levantou os olhos, dando com a
cara amarrada de Broud.
Como nenhuma caçada fora programada para aquele dia, ele resolvera
caçar sozinho. Mas não estava muito empenhado na coisa, fora mais um pretexto para
poder
dar um passeio num dia quente de primavera do que propriamente visando buscar uma
carne de que realmente não estava precisando. Vira Ayla descansando no alto do morro e
não iria deixar passar aquela oportuni dade de ralhar com ela por causa de sua preguiça,
surpreendida ali, absoluta mente à toa, sem fazer nada.
Ayla logo que o enxergou pulou sobre os pés, mas isso o aborreceu. Ela era mais alta e ele
não gostava de suspender a cabeça para olhar para uma mulher. Fez sinal para que ela se
sentasse novamente, já preparado para passar uma boa descompustura. Submissa, com uma
expressão de indiferença vidrando-lhe os olhos, ela se abaixou e isso o deixou ainda
mais irritado. Ele queria pensar em alguma coisa que arrancasse uma reação dela. Se
estivesse na caverna, poderia mandá-la fazer qualquer coisa e a veria saltando, apressada,
para atender sua ordem.
Broud olhou ao redor e depois para a mulher sentada a seus pés, esperando imperturbável
que ele passasse logo o cargo que tinha de passar e seguis se seu caminho. Depois de ter
ficado mulher, está pior do que nunca, pensou ele. Bali, Mulher Caçadora. . . como Brun
pôde fazer uma coisa dessas? Viu as perdizes e lembrou que suas mãos estavam vazias. Até o
olhar nessa sua cara feia é insolente. Está tripudiando de mim, porque conseguiu pegar
alguma coisa e eu Não. O que poderia fazer com ela? não existe nada por aqui que eu
possa mandá-la buscar? Espere. . - agora ela é mulher, não é? Há uma coisa que posso
mandar que ela faça.
Broud fez-lhe um sinal e os olhos de Ayla se arregalaram. Aquilo era inesperado. Iza lhe
dissera que os homens só queriam essa coisa com mulheres que consideravam atraentes.
Sabia que Broud a achava feia. Ele percebeu que ela ficara surpresa e escandalizada. A
reação o animou. Fez novamente o mesmo sinal, categonicamente, para que ela assumisse a
postura própria às relações sexuais e ele pudesse aliviar suas necessidades.
ayla sabia o que se esperava dela. não só porque Iza lhe explicara, como também por já
ter visto muitas vezes os membros adultos do clã entregues a essa atividade, inclusive todas
as crianças também viam. não existia qualquer restrição ou artificialismo na prática do
sexo. As crianças aprendiam o comportamento adulto copiando os pais, e o sexo era apenas
uma dentre as muitas atividades que imitavam. Isso sempre intrigara Ayla e ela se
perguntava qual seria a razão daquela prática, mas não se perturbava quando via algum garoto se remexendo inocentemente por cima de uma menina, numa imitação consciente dos
adultos.
Às vezes, não era só imitação Muitas meninas eram defloradas por garotos que, enquanto
aguardavam sua primeira caçada, ficavam arrastando suas existências naquela fase de
"quase-homem" e não raro também algum homem
se deixava levar pela coqueteria de uma "quase-mulher". A maioria dos rapazes, porém,
considerava indigno fazer sexo com suas antigas companheiras de folguedos.
À exceção de Vom, Ayla não tinha companheiros que fossem mais ou menos de sua idade.
Além disso, nunca houve maior aproximação entre eles, desde os tempos em que Aga
desencorajava a amizade dos dois. Por seu lado, Ayla não tinha qualquer estima particular
por Vorn, que imitava Broud na maneira de tratá-la. Mesmo depois do incidente ocorrido
no campo de treinamento, o garoto prosseguiu com sua idolatria por Broud. E Vorn, por
sua vez, não tinha a menor vontade de brincar de companheiro com Ayla. Como não
restasse mais ninguém, ela nunca se empenhou naquele comportamento imitativo. Assim,
dentro de uma sociedade que encarava o sexo com a mesma naturalidade que o ato de
respirar, Ayla havia conseguido sobreviver virgem até aquela data.
Sentia-se desajeitada, sabendo que era obrigada a consentir, e Broud se comprazia com sua
perturbação Estava feliz por haver lembrado da coisa. Finalmente, conseguira romper-lhe
as defesas. A confusão e o embaraço dela excitavam os seus desejos. Aproximou-se ao vê-la
levantar-se. Depois, ela se pôs de joelhos. Ayla não estava acostumada a ter homens tão
perto dela. A respiração pesada de Broud a assustava. Ela hesitava.
Ele ficou impaciente, empurrou-a ao chão e pôs para o lado a roupa, deixando seu órg
grosso, latejante, à mostra. O que ela está esperando? É tão feia! Deveria sentir-se honrada,
nenhum outro homem iria querê-la, pensou com raiva, agarrando-lhe a vestimenta e
removendo-a, sentindo-se cada vez mais excitado.
Mas quando ele estava pronto para desfechar o ataque, alguma coisa se passou nela. não
podia fazer aquilo! Simplesmente era impossível. Não enxergava mais nada. Pouco
importava se tinha ou não de obedecê-lo. Conseguiu pôr-se de pé e começou a correr.
Broud era mais rápido do que ela. Ele a agarrou, derrubou-a, dando um soco com a mão
fechada que lhe partiu os lábios. Estava começando a ter prazer com a coisa. Quantas vezes
ele havia ti do vontade de bater nela e fora obrigado a conter-se e, agora, não existia ninguém ali para impedi-lo. Além disso, havia uma boa razão para fazê-lo. Ela o estava
desobedecendo, e de uma forma concreta.
Ayla estava enlouquecida. Tentou levantar-se e ele tornou a bater nela. Conseguira uma
reação da parte dela que nunca esperara, e isso lhe acendia ainda mais o desejo. Iria dobrar
aquela fêmea insolente. Foi dando-lhe socos um atrás do outro, feliz ao ver que a cada vez
que suspendia a mão ela encolhia o corpo.
Ayla sentia a cabeça zumbindo, com o sangue escorrendo pelo nariz e de um canto da boca.
Tentava levantar-se, mas ele a mantinha presa no
chão. Ela lutava, dando-lhe murros no peito que pareciam não produzir nenhum efeito
sobre seu corpo musculoso. A resistência dela, no entanto, levava-o ao auge da excitação
Nunca se sentira tão estimulado. A violência aumentava sua paixão e o desejo punha força
nos seus socos. Comprazendo-se com aquela resistência, prosseguia sem parar com os
murros.
Ela estava quase inconsciente, quando ele a soltou. Sofregamente, arrancou-lhe a roupa e
abriu as pernas dela. Numa investida brutal penetrou-a profundamente. O grito de dor que
ouviu aumentou seu prazer e ele fez nova arremetida, arrancando-lhe outro doloroso grito, e
depois, mais outro, e mais outro e outro. . . O grau de excitação o instigava, levando-o
rapidamente ao ponto de saturação . Na última estocada que arrancou o derradeiro grito de
agonia, ele expulsou todo o calor que acumulara.
Por um momento, ficou estendido sobre ela, desprovido de toda ener gia. Em seguida, ainda
ofegante, afastou-se. Ayla soluçava incoerentemente. O sal das lágrimas ardia nas feridas
abertas em seu rosto lambuzado de sangue. Um dos olhos estava inchado e já ficando preto.
As coxas estavam manchadas de sangue e ela se sentia toda machucada por dentro. Broud
se levantou e a olhou do alto. Sentia-se ótimo. Nunca gostara tanto de nenetrar uma mulher.
Pegou suas armas e se dirigiu à caverna.
Depois de ter parado de soluçar, Ayla permaneceu ainda muito tempo deitada com a cara
voltada para a terra. Por fim, levantou-se. Tocou na boca sentindo-lhe a inchação e olhou
para o sangue nos dedos. Todo o corpo doía. Por dentro e por fora. V o sangue entre as
coxas e algumas manchas na relva. Será que meu totem está novamente lutando?,
perguntou-se. Acho que não Ainda não está na época. Broud deve ter me ferido. não sabia
que ele me podia bater também por dentro. Mas, as outras mulheres não ficam machucadas, por que o órgão de Broud me deixou tão ferida? Será que há alguma coisa errada
comigo?
Vagarosamente, levantou-se e foi até o riacho, sofrendo com cada passo que dava. Lavou-
se, mas não adiantou muito, a dor era fortíssima e a cabeça se achava num turbilhão Por que
Broud quis que eu fizesse isso? Iza me falou que os homens só querem aliviar suas
necessidades com as mulheres que acham atraentes. Eu sou feia. Por que um homem iria
ferir uma mulher de quem ele gosta? Mas as mulheres também gostam de fazer isso, sen
por que iriam fazer gestos para excitar os homens? Como podem gostar disso? Oga não se
importa quando Broud faz com ela e ele faz todos os dias. Às vezes, até mais.
De repente, ela ficou em pânico. Oh, Não! E se Broud me quiser para uma segunda vez? Eu
Não vou voltar para o clã. não posso voltar. Mas para onde iria? Minha pequena
caverna? não Lá é muito perto e não posso passar um inverno inteiro presa nela. Vou ter
de voltar de qualquer maneira. Não
posso viver sozinha. Para que outro lugar poderia ir? E além disso, não posso deixar Iza,
Creb e Uba. O que vou fazer? Se Broud quiser, eu não vou poder recusar. As outras
mulheres não ousariam nem tentar. O que há de errado co migo? Ele nunca quis isto
quando eu era menina. Por que tive de ficar mulher? Estava tão feliz por causa disso e
agora não me importaria se ficasse menina para o resto da vida. De qualquer jeito, nunca
vou ter um bebê. Para que serve ser mulher, se ela não terá um bebê? Principalmente se um
homem pode obrigar a gente a fazer coisas desse tipo. De que adianta? Para quê?
O sol já estava baixo no céu, quando Ayla foi a custo descendo pelo morro para procurar
por suas perdizes. Os ovos acondicionados tão cuidadosamente haviam quebrado e sujado
sua roupa na frente. Olhou na direção do riacho lembrando-se de como se sentia feliz
quando observava os passarinhos cantando. Parecia ter sido há séculos. Um outro tempo,
um outro lugar. Foi- se arrastando de volta à caverna, com medo de cada passo que dava.
Quando Iza viu o sol desaparecer atrás das árvores do lado oeste, sua ansiedade aumentou.
Ela foi por tudo quanto era caminho que existia nas matas por perto e subiu no morro para
vasculhar o lado da encosta que descia até a planície. Uma mulher não deve ficar sozinha.
Não gosto de ver Ayla saindo para caçar, pensava consigo. E se ela foi atacada por algum
ani mal? Será que está ferida? Creb também estava preocupado, embora tentasse não o
demonstrar. Até mesmo Brun passou a ficar incomodado, quando começou a escurecer.
Foi Iza quem do alto do morro, viu primeiro Ayla. Já estava pronta para começar a ralhar
com a moça, mas parou no seu gesto.
- Ayla! Você está ferida! O que aconteceu?
- Broud me bateu - respondeu com a cara sombria.
- Mas por quê?
- Porque eu o desobedeci - gesticulou, enquanto caminhava para a caverna seguindo
direto para a fogueira de Creb.
O que será que aconteceu?, perguntou-se Iza. Há anos que Ayla não desobedece Broud. Por
que iria rebelar-se contra ele agora? E por que ele não me disse que a tinha visto? Ele sabia
que eu estava preocupada. Ao meio-dia, ele já estava aqui e por que Ayla só chegou agora?
Iza lançou um rápido olhar na direção da fogueira do rapaz e viu que ele estava olhando
para Ayla por cima do cercado de pedras. Havia nele uma expressão de superioridade e
prazer.
Nada passara despercebido a Creb: o rosto ferido e inchado de Ayla, sua extrema
desolação, e Broud, com expressão arrogante e escamecedora, obser vando-a desde o
momento em que ela entrara. Ele sabia que o ódio de Broud crescera com o passar dos anos
e que a obediência passiva de Ayla o atingia mais do que a rebelião dos tempos de criança. mas alguma coisa havia acontecido que estava dando a Broud uma sensação de poder
sobre ela. Por mais perceptivo que Creb fosse, ele não atinou com a causa.
No dia seguinte, Ayla estava com medo de ultrapassar os limites da fogueira e prolongou
tanto quanto podia a refeição da manhã. Broud estava esperando por ela. Só em pensar na
sua excitação da véspera deixou-o estimulado e ele já estava pronto. Quando ele lhe fez o
sinal, por pouco ela não saiu correndo, mas se forçou a fazer a posição. Tentava reprimir
os gritos, mas a dor sen tida arrancava-os de seus lábios, provocando olhares curiosos
daqueles que estavam por perto. não podiam entender aqueles gritos de dor nem as razões
do súbito interesse de Broud por ela.
Broud comprazia-se ao máximo com a nova maneira que descobriu para do miná-la e usava
Ayla freqüentemente, embora as pessoas se perguntassem o que o fazia preferir uma mulher
feia, de quem tinha ódio, a Oga, sua graciosa com panheira. Passado algum tempo, já não
doía mais. Ayla, no entanto, continuava detestando o ato. E era justamente seu ódio que
dava prazer a Broud. Ele a havia posto no seu lugar, granjeara a tão almejada superioridade
sobre ela e acabou por fim fazendo com que Ayla lhe reagisse. Pouco importava se aquela
era uma reação negativa, preferia até que o fosse. Queria vê-la acovardada, sentindo medo e
obrigando-se a esta submissão que lhe era odiosa. Só o pensamento disto já era bastante
para excitá-lo. Seus impulsos sexuais sempre foram fortes e, agora, estava mais
sexualmente ativo do que nunca. Todas as manhãs em que não saía para caçar, ficava
esperando por ela. Geralmente, for çava-a outra vez na parte da tarde e às vezes também no
meio do dia. Até mesmo de noite, surpreendia-se tendo uma ereção e, neste caso, usava a
compa nheira para aliviar-se. Ele era jovem e saudável, no auge das proezas sexuais, e
quanto mais intenso era o ódio de Ayla, mais prazer ele obtinha.
Ayla perdeu o brilho. Estava desanimada, mal-humorada, nada parecia afetá-la. A única
coisa que sentia era um ódio mortal por Broud e aquele estupro diário. Tal como uma
geleira que se apodera de toda a umidade da terra ao redor, o ódio e a frustração de Ayla
anulavam os outros sentimentos.
Ela sempre se conservara limpa, tomando banho e lavando os cabelos no riacho, de modo a
evitar piolhos, chegando até a trazer imensas bacias cheias de neve que punha para derreter
ao lado da fogueira para poder ter água durante o inverno. Agora, seus cabelos caíam sem
vida, cheios de nós gordurentos e dia após dia estava com a mesma roupa, sem se
incomodar de lavar os lugares sujos ou botá-la para arejar. Estava relaxada nos serviços domésticos a ponto de que homens que nunca antes haviam ralhado com ela passassem agora
a lhe chamar a atenção. Perdera o interesse pela medicina de Iza, nunca falava, a não ser
para responder alguma coisa que lhe perguntassem diretamente, quase nunca saía para
caçar, e quando o fazia voltava quase sem perguntas e de mãos vazias. Seu desalento contaminava
todos que compartilhavam com ela da fogueira de Creb.
A preocupação de Iza deixava-a inteiramente fora de si. Não conseguia entender aquela
drástica mudança de Ayla. Sabia que tinha a ver com o inexplicável interesse de Broud por
ela, mas por que, realmente, não conseguia compreender. Ela estava sempre rondando
Ayla, observando-a e, quando a moça começou a ter enjôos pela manhã, ficou com medo de
que o espírito maligno que havia entrado na menina já estivesse firmemente estabelecido
dentro dela.
Iza, no entanto, era uma curandeira experiente. Foi a primeira a notar que Ayla não
guardava o isolamento esigido às mulheres nos dias em que seus totens entravam em luta
e, a partir daí, passou a vigiá-la ainda mais de perto. Era-lhe difícil acreditar no que
pensava. Mas quando viu que mais uma lua havia passado e que o verão estava expandindo
todo o seu calor, já não teve mais dúvida. Certa tarde em que Creb não se encontrava na
fogueira, ela acenou para Ayla.
- Quero falar com você.
- Sim, Iza - respondeu Ayla, levantando-se com esforço de sua pele e se deixando cair
no chão perto de Iza.
- Qual foi a última vez que seu totem lutou, Ayla?
- não sei.
- Ayla, quero que você pense direito sobre isso. Os espíritos lutaram dentro de você,
depois de ter havido a primeira batalha?
Ayla procurava lembrar-se.
- não tenho muita certeza. Talvez uma vez.
- Foi o que pensei. Você está tendo enjôos todas as manhãs, não é?
- Estou - respondeu Ayla, com a cabeça. Achava que a causa de seus enjôos fosse Broud
que, quando não saía para caçar, estava firme esperando-a, e ela, por odiar tanto a coisa,
vomitava a primeira refeição e algumas vezes também a da noite.
- Seus seios estão doloridos?
- Um pouco.
- E também estão aumentando de tamanho, não é?
- Acho que sim. Por que está querendo saber? Para que todas essas perguntas? Iza, séria, olhou
para ela.
- Ayla, não sei como aconteceu. Quase não consigo acreditar, mas tenho certeza de que
só pode ser uma coisa.
- Que coisa?
- O seu totem foi derrotado. Você vai ter um bebê.
Um bebê? Eu? Meu totem é forte demais, não pode ser - protestou
- Eu sei. Por isso não entendo, mas você vai ter um bebê - repetiu iza.
Nos olhos indiferentes de Ayla apareceu uma expressão de surpresa.
- Será possível? Será que pode ser verdade? Verdade mesmo? Eu, ter um bebê? Oh, mãe,
que maravilha!
- Ayla, você não tem companheiro. não creio que haja um só homem neste clã para tomá-la,
nem mesmo como segunda mulher. Você na pode ter um filho sem companheiro, isso
poderia trazer infelicidade - gesticulou Iza, aflita. - Seria melhor se você tomasse
alguma coisa para perder a criança. Acho que um bom remédio seria chá de visco. Você
conhece, é aquela planta com frutinhas brancas que cresce no alto dos pés de carvalho. É
um remédio que sempre dá resultado, e se for preparado direito não é muito perigoso. Vou
fazer para você um chá com as folhas, usando só umas poucas frutinhas. Vai ajudar seu
totem a expulsar essa vida nova que se está for mando dentro de você. O remédio dá um
pouco de enjôo, mas...
- não não! - balançou Ayla a cabeça com firmeza. - Iza, Não! não quero tomar chá
de visco. não quero tomar nenhum remédio que faça perder o bebê. Eu quero o meu filho,
mãe. Desde que Uba nasceu, sempre quis ter um bebê. Nunca pensei que isso um dia
pudesse acontecer.
- Mas, Ayla, e se o bebê for infeliz? Pode até nascer deformado.
- Ele não vai ser infeliz. não vou deixar. Prometo que vou cuidar de mim para que ele
seja sadio. não foi você mesma quem disse que os totens fortes ajudam a fazer bebês
sadios, depois que são vencidos? E vou também cuidar muito do bebê, quando tiver nascido.
Não quero que nada aconteça, Iza. Preciso ter esse filho, você não compreende? Talvez
meu totem nunca mais venha a ser derrotado. Pode ser que essa seja minha única chance.
Iza olhava os olhos suplicantes de Ayla. Era a primeira vez que via um brilho de vida nela,
desde o dia em que Broud lhe batera quando estavam fora, caçando. Sabia que devia
insistir com Ayla para que tomasse o remédio. Não seria bom deixar uma mulher sem
companheiro ter filho, quando se podia fazer algo a respeito. Mas Ayla queria a criança
desesperadamente, e seu estado de depressão poderia agravar-se ainda mais, se fosse induzida
a desistir do bebê. Sim, talvez Ayla tivesse razão talvez essa fosse sua única chance.
- Está bem, Ayla - concordou Iza. - Se você quer tanto assim. Mas seria melhor por
enquanto que não se falasse disso para ninguém. Daqui a pouco, todo mundo ficará
sabendo.
- Que bom, Iza - disse Ayla, abraçando-a. À medida que ia conscientizando o milagre
daquela impossível gravidez, um leve sorriso começou a esboçar em seu rosto. A moça deu
um salto, cheia de energia. não agüentava ficar sentada ali parada, tinha de fazer qualquer
coisa.
- Mãe, o que você vai cozinhar para hoje à noite? Deixe que eu ajude.
- Ensopado de auroque - respondeu Iza, espantada com aquela súbita transformação. -
Se quiser, pode ir cortando a carne.
Enquanto trabalhavam, Iza ia pensando na alegria que era Ayla, e ela quase já havia
esquecido de como poderia ser sua filha. As mãos circulavam pelo ar, conversando e
trabalhando ao mesmo tempo. O interesse de Ayla pela medicina voltara.
- Eu não sabia dessa qualidade do visco, mãe - observou Ayla. - Conhecia os esporões
de centeio e o capim-cheiroso, mas o visco, eu não sabia que era uma planta que servia
para abortar.
- Sempre haverá coisas que eu ainda não falei, Ayla, mas você vai acabar sabendo o
suficiente. Além disso, você sabe como fazer o teste, poderá ir aprendendo por sua própria
conta. O tanaceto também serve para isso, mas é mais perigoso do que o visco. No caso
dessa planta, usa-se tudo. Põe- se para ferver as flores, folhas e raízes. Se você encher de
água até aqui - Iza apontou para uma marca feita numa de suas cuias de remédio - e deixar ferver até que fique na quantidade desta outra cuja - ela pegou numa vasilha de osso e
mostrou - estará mais ou menos na dose certa. Quase sempre uma cuia é o suficiente.
Algumas vezes, as flores de crisântemos também dão resultado. Não são tão perigosas quanto o
visco e o tanaceto, mas nem sempre funcionam.
- Eu sei. Elas seriam melhor para mulheres que têm tendência para perder os bebês com
facilidade. Quando dão certo, sempre se devem usar coisas mais suaves e menos perigosas.
- Isso mesmo. Ayla. . . há uma outra coisa que eu também queria que você soubesse. -
Iza deu uma olhada à sua volta para ver se Creb estava por perto. - Veja bem, nenhum
homem pode saber disso. Este é um segredo conhecido só pelas curandeiras e, mesmo
assim, nem por todas. não se deve contar nem mesmo para uma outra mulher, porque,
se o companheiro perguntar, ela está na obrigação de lhe responder. Para a curandeira,
ninguém faz perguntas. Se um homem descobrir, ele proíbe. Entende o que estou dizendo?
- Sim, mãe - respondeu Ayla balançando a cabeça, surpresa e curiosa com o segredo de
Iza.
- Acho que não irá precisar saber disso para você mesma, mas como curandeira não pode
ignorar. Às vezes, nos casos de mulheres que têm partos muito difíceis, é melhor que elas
nunca mais voltem a esperar filhos. A curandeira pode dar um remédio para uma
mulher, sem que ela saiba para que serve. E há outros motivos que fazem com que uma
mulher possa não querer um fi lho. Algumas plantas têm poderes especiais, Ayla. Elas
fortalecem o totem da mulher. Fortalecem tanto que impedem até de a vida começar.
- Você conhece alguma mágica para impedir a gravidez, Iza? Será que o totem fraco de
uma mulher pode tornar-se forte? Qualquer totem? Mesmo que o Mog-ur faça um feitiço
para fortalecer o totem do homem?
- Conheço. Mas um homem jamais deve saber disso. Quando eu tinha
companheiro, usei a mágica em mim. Queria que ele me desse para um outro homem.
Achava que, se eu não tivesse filho, ele não iria querer me conservar
- confessou Iza.
- Mas você teve. E Uba?
- Acho que depois de muito tempo de uso, a mágica foi perdendo a força. Talvez meu
totem não quisesse mais lutar, ou talvez ele quisesse que eu tivesse um bebê. Não sei. Nada
funciona por toda a vida. Existem forças que são mais fortes do que as mágicas, mas, comigo,
funcionou por muitos anos. Ninguém entende os espíritos completamente, nem mesmo o
Mog-ur. Quem iria achar que seu totem fosse ser vencido, Ayla? - A curandeira passou
rapidamente os olhos em derredor. - Escute aqui, antes que Creb volte. Você conhece
aquela trepadeira de folhinhas minúsculas e flores amarelas, não é?
- Está falando do cipó-chumbo?
- Isso mesmo. Às vezes, é conhecido também como Cipó-estrangulador porque essa
planta mata a outra onde ela cresce. Você, primeiro, põe a planta para secar, depois
esmigalha uma certa quantidade na palma da mão e leva então para ferver com uma cuia de
osso de água até que o cozimento fique numa cor de palha. Tome dois goles nos dias em
que seu totem não está lutando.
- Essa planta também serve para pôr nos curativos usados em mordidas e picadas de
bichos, não é?
- Também. Isso lhe dá um bom motivo para ter a planta por perto. Só que os curativos,
você põe sobre a pele, do lado de fora do corpo, e no outro caso, para o fortalecimento do
totem, você bebe. Há outra coisa que você deve também tomar nos dias em que seu totem
está lutando. É raíz de absinto. Pode ser usada seca ou fresca. Ferva e tome uma cuja nos
dias em que você estiver em isolamento.
- não é aquela planta de folhas dentadas que serve para a artrite de Creb?
- Essa mesma. Conheço ainda outra, mas eu mesma nunca fiz uso dela. É mágica de outra
curandeira. Ela me deu quando estávamos trocando algumas idéias. Existe um certo tipo de
inhame que não dá por aqui. Mas vou lhe mostrar as diferenças dele em relação aos outros.
Corte em pedaços, ferva e esmigalhe para fazer uma pasta. Em seguida, deixe secar e soque
até virar pó. É preciso uma boa quantidade, uma meia cuia de pó misturado com água para
fazer novamente uma pasta, nos dias em que você não estiver isolada, quando os espíritos
não estejam em luta.
Creb entrou na caverna e viu as duas envolvidas numa longa conversa. Imediatamente
percebeu a diferença em Ayla. Estava animada, prestando atenção e sorridente. Parece que a
garota conseguiu reagir, pensou ele, enquanto se dirigia para sua fogueira.
- Iza! - disse em voz alta para chamar a atenção das duas. - Será que um homem
precisa passar fome na sua própria casa?
Iza deu um salto, com ar meio culposo, mas Creb não percebeu. Estava tão contente de ver
Ayla trabalhando com entusiasmo e novamente conversando que nem olhou para Iza.
- Agora mesmo fica pronto, Creb - gesticulou Ayla, sorrindo e correndo para abraçá-lo. Ele sentiu uma alegria que há muito tempo não tinha. Depois que estava sentado em sua
esteira, Uba entrou correndo na caverna.
- Estou com fome - gesticulou a garotinha.
- Você está sempre com fome, Uba - falou Ayla rindo, ao mesmo tempo em que a
suspendia para dar um volteio com ela pelo ar. Uba estava encantada. Naquele verão, era
a primeira vez que Ayla se achava com espírito para brincadeiras.
Mais tarde, depois da comida, Uba foi aboletar-se no colo de Creb, enquanto Ayla,
cantarolando, ajudava Iza na limpeza. Creb suspirou feliz. Sentia-se verdadeiramente em
casa. Os meninos são importantes, pensou consigo, mas as meninas são melhores. Elas não
precisam ser fortes e corajosas o tempo todo e não têm preconceitos de ser ninadas no colo.
Quase chego a desejar que Ayla não tivesse crescido.
No dia seguinte, Ayla acordou envolvida por um clima de radiosa expectativa. Vou ter um
bebê, disse consigo. Ela se abraçou, deitada entre as cobertas de sua pele de dormir. De
repente, ficou com vontade de se levantar rápido. Acho que vou descer até o riacho esta
manhã. Meus cabelos estão precisando de uma boa lavada. Pulou para fora das cobertas,
mas foi atingida por uma onda de náusea. Talvez seja melhor que eu coma alguma coisa
sólida, para ver se a comida fica no meu estômago. Se eu quiser um bebê sadio, tenho de
comer. A comida, porém, voltou. Depois de algum tempo, tornou a comer e então já se
sentiu melhor. Ainda pensando no milagre de sua gravidez, veio para fora da caverna,
dirigindo-se para os lados do riacho.
- Ayla! - Era Broud que, com ar escarnecedor, vinha caminhando com toda a arrogância.
Ele lhe fez o sinal.
A moça se assustou. Havia se esquecido completamente de Broud. Tinha coisas mais
importantes para pensar como no aconchego dos bebês amamentando, no bebé que daqui a
uns meses estaria aninhado junto a seu seio. Ele bem que podia acabar logo com isso,
pensou já fazendo a posição para que Broud aliviasse suas necessidades. Tomara que faça
depressa, tenho de ir ao riacho lavar meus cabelos.
Broud ficou murcho. Estava faltando alguma coisa. não havia qualquer reação nela. A
excitação estava em forçá-la contra sua vontade e ele sentia a falta disso. O ódio
transbordante e a amarga frustração que ela nunca conseguira dissimular haviam
desaparecido. Já não lutava mais. Agia como se ele
não estivesse lá, como se nada sentisse. E realmente ela não sentia. Sua cabeça estava em
outras esferas. Percebia tanto aquela penetração como as suas reprimendas ou a violência
de seus socos. Aquilo era apenas uma coisa que a jovem tinha de aceitar e se resignar. A
calma e o autodomínio haviam voltado.
O prazer de Broud estava em dominá-la e não propriamente no ato sexual. Percebeu que já
não havia mais estímulo nela. Estava sendo difícil para ele manter a ereção. Depois de
algum tempo sem atingir nenhum clímax, ele se retraiu e por fim desistiu completamente.
Era humilhante demais. Entre ela e uma pedra dá tudo no mesmo, pensou ele. Também é
tão feia que tanto faz, já gastei muito tempo com ela. não soube nem perceber que honra
era ter o interesse do futuro chefe do clã.
Oga, prazerosa, recebeu-o de volta. Sentia-se aliviada, parecia que a inexplicável atração
por Ayla fora superada. Ela não ficara com ciúmes, não havia motivos para isso. Broud era
o seu companheiro, e ele não dera a menor indicação de que estava disposto a abandoná-la.
Qualquer homem podia aliviar-se com a mulher que bem entendesse, não havia nada de
extraordinário no fato. Só não podia entender por que ele dava tanta atenção a Ayla, quando, por alguma estranha razão, a jovem visivelmente não tinha o menor prazer na coisa.
Por mais que quisesse convencer-se do contrário, Broud estava morto de raiva com a súbita
indiferença de Ayla. Havia acreditado que por fim encontrara o jeito de romper de uma
vez por todas as defesas dela e descobrira que tinha grande prazer nisso. Agora, mais do
que nunca, estava na firme determinação de achar novamente outra maneira de atingi-la.

Capítulo 19

A gravidez de Ayla deixou o clã inteiro boquiaberto. Parecia impossível que uma mulher
com um totem tão poderoso como o dela pudesse conceber vida. Havia conjeturas de toda
ordem sobre a qual dos homens pertenceria o espírito do totem que lograra vencer o todo-
poderoso Leão da Caverna, e todos eles gostariam de reivindicar a glória para si. Era algo
que reforçava o prestígio. Alguns pensavam que deveria ser uma combinação das diversas
essências totêmicas, talvez de toda a população masculina, mas a maioria das opiniões
estava dividida em dois campos que se formaram de acordo com a idade das pessoas.
A convivência de perto com a mulher era o fator predominante, aquele que levava
praticamente todos os homens a acreditarem que os filhos de suas companheiras
resultassem do espírito de seus totens. Inevitavelmente, o homem com quem a mulher
passava mais tempo era o dono da fogueira onde ela vivia. A oportunidade de engolir o
espírito deste, portanto, era muito maior. Apesar de que o totem de um homem pudesse
pedir ajuda ao de outro duran te a batalha que se travaria ou mesmo receber auxílio de
algum espírito que casualmente estivesse por perto na ocasião, a força vital do primeiro
totem era a que tinha a primazia na reivindicação. Ao espírito auxiliar poderia caber a honra
de iniciar a nova vida, mas essa se fizera por vontade do totem que pedira ajuda. Os dois
homens que tiveram maior contato com Ayla desde que ela ficara mulher foram o Mog-ur e
Broud.
- Eu digo que é o do Mog-ur - afirmou Zoug. - Ele é o único com um totem mais forte
do que o Leão da Caverna. E afinal de quem é a fogueira on de ela vive?
- Ursus nunca iria permitir que uma mulher engolisse a essência dele - contrapôs Crug.
O Urso da Caverna escolhe aqueles que protege, tal como fez com o Mog-ur. Você acha
que um Cabrito poderia derrotar um Leao da Caverna?
- Com a ajuda de Ursus, sim. não se esquêção de que o Mog-ur tem dois totens. O Cabrito
não precisaria ir muito longe para buscar ajuda. Ninguém está dizendo que o Urso deixou
nela o espírito dele. Estou apenas dizendo que ele ajudou - respondeu Zoug, acalorado.
- Então por que ela não engravidou no último inverno? Ela já vivia nessa época na
fogueira dele. Foi só quando Broud passou a ter esse capricho por ela e não me pergunte o
que ele viu na garota. Reparem bem que a vida nova começou depois que ele passou a ficar
muito perto dela. O Rinoceronte Lanoso também é um poderoso totem. Com a ajuda de um
Outro, poderia vencer o Leão da Caverna - argumentava Crug.
- Acho que é o totem de todos - interpôs Dorv. - Mas a questão prin cipal é que quer
tomá-la para companheira. Todo mundo quer ter a glória, mas quem quer a mulher? Brun
já perguntou se alguém vai querê-la? Se ela não tiver companheiro, seu filho será infeliz.
Estou velho demais, embora, neste caso, não lamente muito minha velhice.
- Bem, eu ficaria com ela, se ainda tivesse uma fogueira só minha - gesticulou Zoug. -
Ela é feia, mas é boa de serviço e muito respeitadora. Sabe como cuidar de um homem.
Isso, no final das contas, é mais importante do que carinha bonita.
- Para mim não - disse Crug, abanando a cabeça. - Na minha fogueira, não quero
uma Mulher Caçadora. Isso está bom para o Mog-ur que não caça e também não se
importa. Mas imagine voltar de uma caçada de mãos abanando e comer carne trazida pela
companheira. Além disso, na minha fogueira já existe gente demais. Já basta Ika, Borg e
Igra, o novo bebê. Já me dou por feliz só com Dorv que ainda pode contribuir. E quem
sabe? Ika ainda é muito jovem, é bem capaz de ainda ter mais filhos.
- Já pensei sobre isso - falou Droog. - Só que a minha fogueira está muito cheia. Já
estão vivendo lá Aga e Aba, Vorn, Ona e Groob. O que eu iria fazer com mais uma mulher
e outra criança? E você, Grod, o que diz?
- Não. A não ser que Brun ordene - respondeu Grod, laconicamente. O segundo em
comando nunca conseguiu vencer um certo mal-estar quando se achava perto de ayla, uma
mulher nascida fora do clã. não tinha nada contra, apenas ela o deixava pouco à vontade.
- E quanto ao próprio Brun? - indagou Crug. - Foi ele o primeiro a aceitá-la no clã.
- Algumas vezes a prudência manda que se leve em consideração a primeira mulher, antes
que se tome uma segunda - comentou Goov. - Vocês sabem como Ebra se sente em
relação ao status da curandeira. Iza vem treinando Ayla e se ela se transformar numa
curandeira de sua linha, vocês acham que Ebra gostaria de dividir a fogueira com uma
mulher mais moça, uma segunda companheira que tem mais status do que ela? Eu por mim
tomaria ayla. Quando for o mog-ur, não vou poder caçar muito. não me importo se ela
chegar em casa trazendo alguns coelhos ou uns hamsters, afinal são bichinhos pequenos. E
também Ovra não se importaria de ter uma se gunda mulher na fogueira com mais status
do que ela. As duas se dão muito
bem. O único problema é que Ovra quer um filho e deve ser difícil para ela estar dividindo
a casa com uma mulher e um bebê recém-nascido. Sobretudo, porque ninguém esperava
que Ayla fosse ser mãe. Acho que foi o espírito de Broud que começou a vida. É pena ele
Não gostar dela, seria a pessoa indicada para tomá-la.
- Não tenho tanta certeza se foi o de Broud - disse Droog. - E o Mog-ur? não poderia
tomá-la para companheira?
O velho feiticeiro observava em silêncio a discussão, como freqüente mente o fazia.
- Eu venho pensando no assunto. Não creio que haja sido Ursus ou o Cabrito que tenham
começado o bebê de Ayla. E nem tenho muita certeza se foi o totem de Broud também. O
totem dela sempre foi um enigma. Ninguém pode dizer ao certo o que ocorreu. Mas ela
precisa de um companheiro. Não só porque o bebê poderá ser infeliz, mas porque alguém
tem de responsabilizar-se por Ayla e mantê-la. Já estou muito velho e se nascer um menino
Não vou poder ensiná-lo a caçar. E nem Ayla, ela só caça com funda. Além do mais, não
posso ser o seu companheiro. Seria como se Grod tomasse Ovra para companheira, com
Ika na qualidade de primeira mulher na fogueira. Para mim, Ayla é como a filha da
companheira de alguém, uma criança de outra fogueira, não uma mulher que eu possa
ter como minha.
- Mas isso já tem acontecido - disse Dorv. - A única mulher que um homem não pode
tomar é a germana dele.
- não é proibido, mas não é uma coisa bem vista. Além do que, a maioria dos homens
não gosta. E depois, nunca tive companheira, já estou muito velho para começar agora. Iza
cuida de mim e isso é mais do que suficiente. Eu me sinto confortável com ela. Espera-se
que, de vez em quando, os homens aliviem suas necessidades com suas companheiras e há
muitos anos que não tenho mais esse tipo de necessidade. Faz tempo que aprendi a controlá-la. não daria um bom companheiro para uma mulher jovem. Mas talvez Ayla não vá
precisar de ninguém. Iza disse que ela pode ter uma gravidez difícil, inclusive já está tendo
problemas e talvez não chegue ao término da gestação. Sei que Ayla quer o bebê, mas seria
melhor para todo mundo, se ela perdesse a criança.
Tal como foi relatado aos homens pelo Mog-ur, a gravidez de Ayla não ía bem. Iza tinha
medo de que as coisas estivessem correndo erradas com o bebê. Muitos abortos se deviam a
fetos malformados e, na opinião da curandeira, era melhor perder a criança do que
deixá-la nascer e depois a mãe ser obrigada a dispor do filho. O enjôo matinal de Ayla
ultrapassou o primeiro trimestre e até mesmo no final do outono, quando já tinha o ventre
abaulado, cóntinuáva tendo problemas para reter os alimentos. Ela, então começou a
sangrar, expelindo coágulos, e Iza teve de pedir permissão a Brun para dispensá-la das atividades normais, de modo que pudesse ficar repousando na cama. Os
problemas de gravidez de Ayla foram cada vez se tornando mais difíceis e com mais medo
Iza foi ficando. Estava convencida de que Ayla deveria desistir da criança e não tinha
dúvida
de que a expulsãb seria fácil, apesar de que o tamanho da barriga demonstrasse que o bebê
continuava se desenvolvendo. Ela temia mais por Ayla. O bebê estava exigindo demasiado
dela. Os braços e as pernas afinaram, contrastando com o volume do corpo. Não tinha apetite
e era com esforço que engolia os alimentos que Iza lhe preparava especialmente. Dois
círculos pretos formaram-se ao redor dos olhos e sua abun dante e lustrosa cabeleira
perdeu todo o viço. Tinha sempre frio, estava sem reservas para manter o calor do corpo e
passava grande parte do tempo encolhida, junto da fogueira, enrolada em peles. Quando,
entretanto, Iza sugeriu-lhe tomar um remédio para pôr fim à gravidez, ela recusou.
- Iza, quero o meu filho. Ajude-me - implorou. - Eu sei que você pode ajudar, sei que
pode. Farei qualquer coisa que você disser, mas me ajude a ter o bebê.
Iza não pôde recusar. Já há algum tempo ela dependia de Ayla para trazer-lhe as plantas de
que precisava, raramente ela mesmo saindo para colhêlas. Exercícios mais puxados lhe
provocavam acessos violentos de tosse e vinha se mantendo à base de uma
medicamentação forte que escondia sua tu berculose, agravada a cada inverno. Mas, por
ayla, faria qualquer coisa, e sairia para procurar por determinada raíz preventiva contra
aborto.
Certa manhã, deixou a caverna bem cedo e foi procurar pela raíz nas matas no alto da
montanha onde havia charnecas escuras e úmidas. Quando saiu, o sol brilhava num céu
claro. Iza pensava que seria um daqueles dias quentes que costumava fazer no final do
outono, achando que não seria necessário munir-se de uma quantidade extra de roupas.
Além disso, contava estar de volta antes do meio-dia. Pegou, primeiro, o caminho que
levava à floresta e depois seguiu por um atalho margeando um córrego, pondo-se, então a
subir pela encosta íngreme. Estava mais fraca do que supunha. Com a respiração curta,
precisava a todo instante parar para descansar ou esperar que passasse um acesso de tosse
que a fazia sacudir-se violentamente. Quando a manhã ia pela metade, o tempo mudou. Do
lado este, trazidas por ventos gelados, foram aparecendo pesadas nuvens que, ao atingir o
sopé da colina, despencaram na forma de forte aguaceiro misturado com neve. Em poucos
momentos, Iza ficou empapada.
A chuva diminuíra, quando conseguiu encontrar a variedade de pinheiro e as plantas por
que procurava. Tremendo de frio, sob a chuvazinha fina, cavou o chão para desenterrar as
raízes da terra molhada. A tosse durante a volta piorara, sacudindo-lhe o corpo a todo
instante e trazendo um sangue espumoso aos lábios. O terreno por onde passava lhe era
desconhecido, diferente daquele da antiga caverna que habitavam. Viu-se desorientada, seguindo o córrego
errado e sendo obrigada a retornar no caminho para buscar o outro. Já estava perto de
escurecer quando, inteiramente molhada e morta de frio, conseguiu achar a trilha que
levava à caverna.
- Mãe onde você esteve? - perguntou Ayla. - Está empapada e tremendo de frio .Venha
para perto do fogo. Deixe que eu pegue umas roupas secas para você.
- Achei algumas raízes de prenanto, Ayla. Lave e mastigue. . . - Iza foi obrigada a
interromper para tossir, tinha os olhos febris e o rosto vermelho.
- Mastigue as raízes cruas. Isso ajuda a conservar o bebê na barriga.
- Você não saiu debaixo desta chuva só para pegar raízes para mim, não é? Será que não
sabe que prefiro perder o bebê do que você? Iza, você sabe que está doente, não pode sair
com um tempo deste.
Ayla não ignorava que já há alguns anos Iza não vinha muito bem de saúde, mas até aquela
data não havia percebido o quanto realmente a mulher estava doente. A partir daí, Ayla
deixou de pensar em sua gravidez, já nem ligava se estava ou na sangrando; esquecia-se de
comer, recusando-se a sair da cabeceira de Iza e dormindo numa pele ao lado dela. Uba
também mantinha vigilância constante.
Era bastante traumatizante para a menininha esse primeiro contato com uma moléstia grave
e justamente numa pessoa que ela amava. Observava tudo que Ayla fazia, ajudava, e com
isso foi surgindo a compreensão de seu desti no e do conhecimento que herdara. Uba não
era a única a observar Ayla. Todo o clã estava preocupado com a nova curandeira e um
pouco desconfiado com sua competência. Ayla, no entanto, mantinha-se alheia a essa
apreensão. Toda a sua atenção estava dirigida para a mulher a quem chamava de mãe.
Ela rebuscava em sua cabeça tudo quanto fosse remédio de que Iza lhe falara, indagava de
Uba, procurando informar-se com ela sobre os conhecimentos que a menina tinha
armazenados em sua memória infantil e aplicava um certo raciocínio lógico que lhe era
peculiar. O especial talento que Iza notara nela, a capacidade para descobrir e tratar o
problema real da doença era o ponto forte de Ayla. Era boa para diagnosticar. Partindo de
pequenos sintomas, era capaz de reconstituir o quadro, tal como um quebra-cabeça, onde
preenchia as lacunas com o seu poder de dedução e uma grande intuição. Era uma
capacidade à qual somente o seu cérebro estava adequado. A crise de Iza serviu para
estimular e aprimorar esse talento que lhe era Inato.
Aplicava todos os remédios que Iza lhe ensinara empregando técnicas novas sugeridas por
outros casos, às vezes completamente diferentes. Seja lá como for, se pela força de sua
dedicação, se pelos medicamentos, ou se pela vontade de viver de Iza - ou talvez tudo isso
junto - o fato é que, quando
os ventos gelados de inverno empilharam a neve contra as barreiras à entrada da caverna,
Iza já estava suficientemente forte para ocupar-se outra vez com a gravidez de Ayla.
O esforço despendido na recuperação de Iza teve suas conseqüências. Durante o resto do
inverno, Ayla passou perdendo sangue constantemente e com uma dor nas costas que não
alargava. No meio da noite, acordava sentindo dor nas pernas e continuava vomitando com
freqüência. Iza esperava que a qualquer momento ela perdesse a criança. Não compreendia
como Ayla ainda conseguia retê-la, e como o bebé, apesar de toda a fraqueza da mãe, podia
prosseguir em seu desenvolvimento. A barriga crescia em proporções nunca vistas, e o
bebê, dentro, dava tantos pontapés e tão fortes que Ayla mal conseguia dormir. Iza jamais
vira uma mulher sofrer tanto com a gravidez.
Ayla nunca se queixava. Tinha medo de que Iza pudesse pensar que ela se achasse disposta
a renunciar ao bebê, embora a gravidez já estivesse adiantada demais para que a
curandeira considerasse tal possibilidade. E nem ela também a considerava. Seu sofrimento
só lhe aumentava a convicção de que, se perdesse esse filho, jamais teria outro.
De sua cama, Ayla via as chuvas de primavera varrerem a neve e a primeira flor de açafrão
lhe foi trazida por Uba. Iza não a deixava sair da caverna. Os salgueiros brancos haviam já
perdido suas penugens e começando a ter os primeiros brotos, anunciando o verde das
folhagens, num dia triste e úmido de princípio de primavera, quando Ayla, aos 11 anos de
idade, entrou em trabalho de parto.
As contrações iniciais foram fáceis. Ayla tomava chá de casca de salgueiro, enquanto
conversava com Iza e Uba, cheia de animação e feliz por ter finalmente chegado o
momento. Tinha certeza de que, no dia seguinte, estaria com o bebê nos braços. iza tinha as
suas dúvidas, mas procurava não as deixar transparecer. A conversa entre Iza e as filhas,
como freqüentemente vinha acontecendo nos últimos tempos, descambou para assuntos
ligados a remédios.
- Mãe, que raíz era aquela que você me trouxe no dia em que saiu e ficou doente? -
gesticulou Ayla.
- Chama-se prenanto. não é muito usada porque deve ser mastigada crua e só é
encontrada no final do outono. É muito boa para impedir abortos. Mas quantas mulheres
correm o perigo de abortar somente nesta época? E seca já perde muito de seu valor.
- Como ela é? - perguntou Uba. A doença de Iza despertara nela o interesse pelas
plantas medicinais que algum dia teria de usar com seus pacientes, e tanto Iza como
Ayla lhe estavam ensinando. Mas treinar Uba não era a mesma coisa que ensinar Ayla. Para
conseguir o pleno rendimento de seu cérebro, Uba tinha apenas de ser lembrada daquilo
que já sabia e ver como esses seus conhecimentos poderiam ser postos em prática.
- Na verdade, são duas plantas, uma é macho e a outra fêmia. Elas têm um caule comprido que
sai de uma penca de folhas dando perto do chão e pequeninas flores na parte de cima que
descem até a metade do caule. As flores 'lo macho são brancas. As raízes provêm da planta
fêmea que tem flores menores e verdes.
- Você disse que dão nas florestas de pinheiros? - gesticulou Ayla.
- Só naquelas com bastante umidade. É uma planta que gosta de lugares frios. Nos
pântanos, em clareiras úmidas e quase sempre em terrenos altos.
- Você nunca deveria ter saído naquele dia, Iza. Fiquei tão preocupada. . . Ei, espere. Está
começando outra contração!
A curandeira estudava Ayla. Tentava avaliar a duração das dores. Falta ainda muito, pensou
consigo.
- Mas não estava chovendo quando saí - falou Iza. - Achava que seria um dia quente.
Errei. O tempo no outono é sempre imprevisível. Eu estava mesmo para perguntar uma
coisa, Ayla. Fiquei delirando durante um bom tempo, mas tive a impressão de que você fez
um cataplasma para botar no meu peito com as plantas que uso no reumatismo de Creb.
-E fiz.
- Eu não lhe ensinei isso.
- Eu sei. Você tossia tanto e cuspia também tanto sangue que achei que seria bom lhe dar
alguma coisa para acalmar os espasmos e que ao mesmo tem po servisse para ajudá-la a
botar o catarro para fora, sem ter que fazer muita força. Esse remédio de Creb para
reumatismo faz com que o calor penetre profundamente e estimula o sangue. Assim, achei
que ele poderia servir também para soltar o catarro, diminuindo seu esforço para expelir,
mas, enquanto isso, eu continuava lhe dando os cozimentos para acalmar os espasmos.
Parece que deu certo.
- É. Parece que sim.
Quando Ayla acabou de dar suas explicações, estas pareciam ter um encaminhamento
lógico, mas Iza ficou imaginando se lhe teria ocorrido tal procedimento. Eu tinha razão,
disse consigo. Ayla é boa curandeira e ainda vai poder melhorar muito mais. Merece o
status das curandeiras de minha linha. Preciso falar isso com Creb. Pode ser que eu não
fique muito mais tempo neste mundo. Agora Ayla é mulher, poderia já ser uma curandeira.
. . se é que vai sobreviver a este parto.
Depois da refeição da manhã, Oga chegou com Grev, o seu segundo fi lho e ficou sentada
junto de Ayla, dando de mamar à criança. Ovra, pouco de pois, veio juntar-se a elas. As
três, entre uma contração e outra, tagarelavam animadas, embora não se falasse do parto
iminente. Por toda a manhã, enquanto Ayla estava no primeiro estágio do trabalho, as
mulheres vinham visitá-la na fogueira de Creb. Algumas ficavam por instantes, só para dar
algum
apoio moral com suas presenças e outras se sentavam, demorando-se mais. Havia sempre
alguma mulher ao redor de Ayla, mas Creb não se achava lá. Ele ficava entrando e saindo
da caverna, parando de vez em quando para trocar alguns gestos com os homens, reunidos
na fogueira de Brun, incapaz de permanecer num só lugar por mais tempo. A caçada
planejada para aquele dia fora transferida. Brun dera desculpa de que ainda estava muito
úmido para sair, mas todos sabiam qual era a verdadeira razão.
Pelo final da tarde, as dores de Ayla ficaram bem mais fortes. Iza deu- lhe um tipo de
inhame cozido que era bom para aliviar as dores de parto. À medida que escurecia, as
contrações foram ficando mais fortes e mais próximas uma da outra. Ayla conservava-se
deitada na cama, empapada de suor e agarrada na mão de Iza. Tentava sufocar os gritos de
dor, mas quando o sol baixou atrás do horizonte, a jovem contorcia-se de dor e gritava a
cada contração que lhe sacudia todo o corpo. As mulheres já então não agüentaram ficar
mais por perto e, exceto Ebra, todas voltaram para suas respectivas fogueiras. Acharam
algum serviço para fazer, levantando os olhos na direção de Ayla, sempre que ouviam seus
gritos agoniados. A conversa também parou na fogueira de Brun. Os homens, com
expressão negligente, sentavam-se olhando para o chão. Qualquer tentativa de conversa era
logo cortada pelos gritos de Ayla.
- As cadeiras dela são muito estreitas - gesticulou Iza. - Impedem a dilatação do canal
que não chega a ter uma abertura suficiente.
- Será que, se a bolsa dágua furasse, não adiantaria um pouco o trabalho? Às vezes ajuda
- sugeriu Ebra.
- Já tinha pensado nisso, mas não quero fazer logo. Seria difícil para ela agüentar um
parto seco. Esperava que a bolsa se rompesse sozinha. Talvez seja melhor fazer isso agora.
Você quer me passar aquele pauzinho de olmo. Ela está começando uma contração, depois
eu furo quando terminar.
Ayla arqueou as costas e agarrou a mão das duas mulheres, enquanto de seus lábios saiu um
grito em crescendo.
- Ayla, vou tentar ajudá-la - gesticulou Iza, depois que a contração passou. - Você está
me ouvindo?
A parturiente silenciosamente confirmou.
- Vou romper a bolsa e depois quero que você fique agachada. Isso aju dará a puxar o
bebé para baixo. Será que vai conseguir ficar assim?
- Vou tentar - gesticulou Ayla sem forças.
Iza inseriu a vareta fazendo verter a água da bolsa e provocando nova Contração.
- Agora levante, Ayla - gesticulou a curandeira. Ela e Ebra levantaram Ayla, ajudando-a
a ficar agachada sobre um pedaço de couro, preparado para ser colocado embaixo da
mulher durante o parto.
- Agora, Ayla. Faça força para baixo.
A moça comprimia os músculos, fazendo força na contração seguinte.
- Ela está muito fraca - observou Ebra. - não consegue fazer bastan te força.
- Ayla, você tem de empurrar com mais força - ordenou Iza.
- Não posso - gesticulou Ayla.
- Pode. Tem de poder ou seu bebê vai morrer - falou Iza, sem dizer que também ela
poderia morrer. Iza via os músculos se juntando para a próxima contração:o.
- Agora, Ayla! Agora! Empurre! Empurre com toda a força que puder
- dizia, instigando.
Não posso deixar meu bebê morrer. Não posso. Nunca vou ter outro se este morrer, pensou
Ayla, querendo arrebanhar suas últimas forças em alguma reserva desconhecida de seu
corpo. À medida que a dor aumentava, respirava fundo, agarrada à mão de Iza para apoiar-
se.
A força para expelir a criança punha-lhe gotas de suor na testa. Sentia-se tonta, com a
cabeça girando. Os ossos pareciam estar partindo, como se estivesse expulsando todas as
suas entranhas.
- Ótimo, Ayla! Ótimo! - encorajou Iza. - Acabeçajá está começando a aparecer. Mais
um empurrão igual a este!
Ayla inspirou outra golfada de ar e tornou a fazer força. Sentia a pele e os músculos sendo
dilacerados, mas continuou fazendo força para a expulsão. Em meio a um jato de sangue
encorpado, a cabeça do bebê forçou sua passagem pelo estreito canal de nascimento. Iza
segurou-a, retirando-a para fora. O pior havia passado.
- Só um pouquinho mais, Ayla. Só um pouquinho para a placenta.
Ayla fez novamente força, sentindo sua cabeça girar e tudo ficar preto à sua volta, quando
perdeu, então, a consciência e desmaiou.
Iza amarrou um pedaço de fibra em volta do cordão umbilical e cortou o resto com os dentes.
Em seguida, pôs-se a dar tapas na sola dos pés da criança até que o choro parecido a um
miado se tornasse um berro forte. O bebê está vivo, pensou ela com alívio. Começou, então
a limpá-lo. Nisso, seu coração parou. Depois de tanto sofrimento, depois de tudo quanto
ela agüentou, por que isso? Ela queria tanto esse bebê. Iza envolveu a criança numa
macia pele de coelho e, em seguida, fixou com uma tira de couro uma compressa de raízes
trituradas em Ayla, fazendo-a abrir os olhos e soltar um gemido.
- O meu bebê, Iza, é menino ou menina? - perguntou.
- Menino - falou Iza. Depois, foi logo dizendo, querendo cortar de uma vez as
esperanças de Ayla. - Mas é deformado.
O sorriso que começara a esboçar-se no rosto de Ayla transformou-se numa expressão de
horror.
- Não, não pode ser! Deixe-me vê-lo.
Iza trouxe-lhe a criança.
- Tinha medo de que isso acontecesse. Freqüentemente ocorre quando a mulher tem
uma gravidez difícil. Desculpe, Ayla.
Ayla abriu a coberta, olhando para seu minúsculo filho. Os braços e pernas eram mais finos
do que os de Uba quando nasceu e também mais com pridos, mas possuía o número correto
de dedos e situados nos lugares devidos. O seu pequeno pênis e testículos definiam-lhe o
sexo. A cabeça, entretanto, era, sem sombra de dúvida, anormal. De um tamanho fora do
comum, justamente o que motivara a dificuldade do parto e se achava um tanto defor mada
devido à sua angustiante entrada nesse mundo. Isso por si só, porém, não era razão para
alarme. Iza sabia que era decorrência da pressão sofrida no momento do nascimento e que
rapidamente se corrigiria. Era a forma, na sua configuração básica - algo inalterável - que
nascera anormal e também o pescoço fino, descarnado, sem possibilidade de agüentar com
o volume da cabeça.
O bebê de Ayla tinha, como as pessoas da raça dos clã os supercílios muito acentuados,
mas
a cabeça, ao invés de escorregar diretamente para trás, elevava-se alta e reta em cima das
sobrancelhas, abaulando-se, tal como Iza a via, até chegar ao alto, para depois escorrer para
trás num formato alongado e cheio. A parte posterior, entretanto, não era tão comprida
quanto deveria ser. Parecia que o crânio fora empurrado para a frente, a fim de formar a
testa abaulada e o alto da cabeça, tornando mais curto e arredondado o lado de trás. A
protuberância occipital, aí, existia apenas simbolicamente e as feições da criança
mostravam-se alteradas de forma inusual. Tinha olhos grandes e arredondados, mas o nariz
era menor do que o normal. Boca grande, mandíbu las não tão acentuadas quanto as das
pessoas dos clã e, na parte inferior, uma protuberância óssea desfigurando o rosto, vale
dizer,
um queixo bem desenvolvido, coisa inexistente na raça dos clã Quando Iza segurou-o
pela primeira vez, a cabeça foi para trás e ela automaticamente apoiou.a com a mão. Ela
abanou a própria cabeça, que era assentada sobre um pescoço curto e grosso. Duvidava de
que algum dia aquela criança fosse firmar a dela e conseguir mantê-la erguida.
Enquanto Ayla tinha o bebê nos braços, ele procurou seu corpo, buscando-lhe o calor, já
parecendo querer mamar, como se não fora bem alimentado antes de nascer. A mãe
ajudou-o a encontrar o seio.
- Você não devia, Ayla - disse Iza, com brandura. Você não deve aumentar sua vida,
quando logo vão tirá-la. Isso só vai tornar as coisas mais difíceis para você, no momento
em que tiver de livrar-se dele.
- livrar-me dele? - Ayla olhou aflita. - Como me livrar dele? Êo meu bebê, o meu
filho.
- Você não tem outra coisa a fazer, Ayla. É esse o regulamento. A mãe está na obrigação
de se desfazer do filho deformado que ela botou no mundo. É melhor você fazer isso
imediatamente, antes que Brun ordene.
- Mas Creb é deformado e permitiram que ele vivesse - protestou Ayla.
- A mãe dele era a companheira do chefe do clã que foi quem permitiu isso. Você não tem
companheiro, nenhum homem vai interceder por seu filho. Desde o começo que eu avisei
que seu filho poderia não ter sorte, se nascesse antes de você ter companheiro. E esse
defeito de nascençaveio comprovar o que eu já tinha dito, não é? É melhor terminar de
uma vez agora - explicou Iza.
Com lágrimas escorrendo, relutante, Ayla afastou o filho do seio.
- Oh, Iza, eu queria tanto um bebê. Um bebê que fosse só meu, como as outras mulheres
têm. Nunca pensei que fosse ter um. Eu me sentia tão feliz, nem me importava se estava
doente, tudo o que eu queria era o meu bebê. Foi muito difícil, achava que ele nunca iria
nascer, mas quando você disse que o bebê poderia morrer, eu dei tudo de mim. E se ele iria
ter de morrer de qualquer jeito, por que, então, teve de ser tudo tão difícil? Mãe, quero o
meu filho, não obrigue a me desfazer dele.
- Eu sei que não é fácil, Ayla, mas isso terá de ser feito. - Iza morria de pena dela. O
bebê procurava o seio que bruscamente lhe tinha sido arrancado, buscando proteger-se e
satisfazer sua necessidade de sugar. Ela ainda não tinha leite para lhe dar, isso ainda levaria
um ou dois dias, por enquanto só havia o fluido leitoso e grosso que passa ao bebê as
imunidades maternas, protegendo-o contra doenças nos seus primeiros meses de vida. O
recém-nascido começou a choramingar e logo aprontou um berreiro, agi tando os braços e
dando pontapés na coberta. O choro encheu a caverna com a insistente exigência de um
bebê vermelho de raiva. Ayla não agüen tou. Ela lhe deu o peito novamente.
- não posso fazer isso - gesticulou - e nem vou fazer! Meu filho está vivo e respirando.
Ele pode ser deformado, mas é forte. Escutou seu choro? Já ouviu um bebê chorar assim?
Viu os pontapés que ele dá? Veja como mama! Quero meu filho, Iza. Não vou livrar-me
dele. Antes de matá-lo, eu vou embora. Eu posso caçar, posso achar comida. Eu mesma cuidarei dele.
Iza empalideceu.
- Ayla, você não pode dizer isso. Onde você iria? Está muito fraca, perdeu uma grande
quantidade de sangue.
- não sei, mãe! Para algum lugar, em qualquer parte. Mas não vou abandonar o bebê. -
Falava obstinada, cheia de determinação. Iza não tinha dúvida de que Ayla faria o que
dizia. Mas estava muito fraca para ir a qualquer parte. Nãorreria, se tentasse salvar o bebê. Iza via-se assombrada com o desdém de
Ayla pelos regulamentos dos clãs e estava certa de que ela cumpriria o que ameaçava fazer.
- Ayla, não fale assim - implorava. - Entregue o bebê para mim. Se você não puder, eu
faço por você. Digo a Brun que está muito fraca. Só esse motivo já basta. - Estendeu os
braços para pegar a criança. - Deixe-me levá-lo. Depois que ele for embora, fica mais fácil
esquecê-lo.
- não é não, Iza! - falou Ayla, abanando a cabeça cheia de convicção e apertando a
pequenina trouxa que tinha nos braços. Inclinava-se para a fren te, protegendo a criança
com o corpo e falando apenas com uma das mãos na linguagem abreviada de Creb. - Vou
ficar com ele. De alguma maneira e seja lá como for. Se para ficar com o bebê for preciso ir
embora, eu vou.
Uba achava-se ali, ignorada, observando as duas. Havia visto toda a dificuldade do parto
de Ayla e também já vira outras mulheres tendo filhos. Nenhum segredo da vida ou da
morte era escondido das crianças. Estas participavam tanto quanto os mais velhos do
destino do clã. Uba adorava a menina de cabelos dourados que para ela era uma
companheira de brinquedos, amiga, mãe e irmã. O parto doloroso e difícil a havia
assustado, mas a conversa sobre ir embora deixava a menina ainda com mais medo. Isso a
fez lembrar-se da outra vez que Ayla tinha partido, quando todos diziam que nunca mais
voltaria. Uba agora tinha certeza de que Ayla iria embora para nunca mais voltar e ela
nunca mais tornaria a vê-la.
- não vá, Ayla - disse, com gestos ansiosos e pondo-se de pé. - Mãe, você não pode
deixar Ayla ir embora. não fáção isso outra vez, Ayla.
- não quero ir, Uba. Mas não posso deixar o bebê morrer - falou Ayla.
- Você não pode botá-lo em cima de uma árvore como fez a mãe da história de Aba? Se
ele viver sete dias, Brun terá de deixar que você fique com ele - falou Uba.
- A história de Aba não passa de uma lenda - explicou Iza. - Nenhum bebê consegue
viver do lado de fora, no frio e sem ter o que comer.
Ayla não prestava atenção ao que Iza dizia. A sugestão de Uba lhe dera uma idéia.
- Mãe, uma parte da lenda é verdadeira.
- O que você quer dizer?
- Se meu filho estiver vivo daqui a sete dias, Brun será obrigado a acei tá-lo, não é? -
perguntou Ayla, ansiosa.
- O que você está pensando fazer, Ayla? Você não pode botá-lo do lado de fora da
caverna e esperar encontrar o bebê com vida daqui a sete dias. Você sabe que isso é
impossível.
- não deixar o bebê sozinho do lado de fora, mas ir com ele. Sei de um lugar onde posso
me esconder, Iza. Posso ir com meu filho para lá e voltar no
dia em que ele irá receber seu nome. Brun seria, então obrigado a deixar que eu ficasse
com ele. Existe uma pequena caverna...
- Não, Ayla! não diga essas coisas. Isso é errado. Seria uma desobediência. não
posso dar minha aprovação Uma coisa inteiramente contrária aos regulamentos dos clã
Brun ficaria furioso. Ele iria procurar, e você seria achada e trazida de volta. Isso não é
correto, Ayla - advertiu Iza. Levantou-Se e ia encaminhar-Se na direção da fogueira mas
voltou depois de dar alguns passos.
- E se você for, ele irá me perguntar para onde foi.
Nunca em sua vida, Iza fizera qualquer coisa contra os costumes dos clãs ou contra os
desejos de Brun. A idéia em si era estarrecedora. Até mesmo o segredo de seus
contraceptivos tinha a sanção das gerações passadas de curandeiras e era uma parte de sua
herança cultural. Manter este segredo não se constituía numa desobediência. Nenhuma
tradição ou costume proibia seu uso. Ela apenas evitava mencioná-lo. Já o plano de Ayla
era simplesmente um ato de rebelião, uma desobediência que nem em sonhos imaginava
fazer. não poderia dar sua aprovação.
Por outro lado, sabia o quanto Ayla queria o filho. Doía-lhe o coração pensar no sofrimento
de Ayla durante sua longa e penosa gravidez e, agora, só o medo de perder o bebê havia
bastado para que ela fosse buscar forças que lhe salvaram a própria vida. Ayla está certa,
pensou Iza, olhando para o recém-nascido. Ele é deformado, mas é uma criança forte e
sadia. Creb nasceu também deformado e hoje é o Nãog-ur. Além disso, o filho dela é o
primogênito, se tivesse companheiro, talvez fosse deixado viver. Não. não iriam dei xar,
disse consigo, mudando de idéia. Ela não conseguia mentir nem para si nem para os outros.
Mas, podia calar.
Pensou em ir falar com Creb ou com Brun, e sabia que era esse o seu dever, mas não
conseguiu resolver-se. não podia aprovar o plano de Ayla, mas podia guardá-lo em
segredo. Conscíentemente, foi a pior coisa que já fizera em toda a vida.
Ela pôs algumas pedras quentes numa bacia com água para fazer um chá de esporões de
centeio. Quando chegou trazendo o remédio, Ayla dormia com o bebé nos braços. Iza
sacudiu-a com brandura.
- Tome isto, Ayla. Já embrulhei a placenta. . . está ali naquele canto. Esta noite, você pode
descansar, mas a placenta tem de ser enterrada amanhã. Brun já sabe. Ebra lhe contou e ele
preferia não ter de examinar o bebê e dar a ordem oficialmente. Brun espera que você
mesma se encarregue de tudo, quando for esconder os vestígios desse nascimento. - Com
isso, Iza avisava Ayla de quanto tempo ela dispunha para levar adiante seu plano.
Depois de Iza sair, Ayla ficou deitada de olhos abertos, pensando no que deveria levar
consigo. Vou precisar de minha pele de dormir, peles de coelho para o bebê, plumas de
pássaros, umas das mantas extras para trocar. Tiras
absorventes para mim, minha funda e algumas facas. Ah, sim, comida também. É melhor
levar alguma e também um cantil para água. Se sair depois que o sol estiver alto no céu,
dará tempo para que eu esteja com tudo arrumado.
Na manhã seguinte, Iza cozinhou uma quantidade de comida muito maior do que a
necessária para uma refeição matinal de quatro pessoas. Creb voltara tarde para a fogueira
quando foi dormir. Queria evitar qualquer possibilidade de conversa com Ayla. Não
sabia o que lhe dizer. O totem dela é forte demais, nunca será completamente vencido,
pensou consigo. Foi por isso que sangrou tanto durante a gravidez e também porque o bebê
nasceu deformado. Que tristeza, ela queria tanto esse filho.
- Iza, aqui tem comida para alimentar todo o clã - observou Creb. - Como você acha
que vamos dar conta disso tudo?
- É para Ayla - disse, rápido, baixando a cabeça.
Iza devia ter tido um batalhão de filhos, pensou ele. Ela fica muito boba só com essas duas.
Mas Ayla precisa recuperar suas forças. Vai levar ainda muito tempo até que consiga
superar tudo isso. O que me pergunto é se ela algum dia irá ter um filho normal.
Quando se levantou, Ayla sentiu sua cabeça rodando e uma quantidade de sangue quente
escorrendo. Doía quando caminhava, mesmo dando só alguns passos e para se curvar era
um verdadeiro sacrifício. Estava mais fraca do que imaginara e quase entrando em pânico.
Como vou subir até a caverna? Mas tenho de conseguir. Se não fizer isso, Iza pega meu
filho e dá fim nele. O que farei se perder meu bebê?
Não vou perdê-lo, disse consigo, cheia de determinação fazendo força para acalmar-se.
Subirei lá de qualquer jeito, nem que tenha de ir me arras tando por todo o caminho.
Chuviscava, quando ela saiu da caverna. No fundo da cesta de colher, meteu umas tantas
coisas que cobriu com um embrulho malcheiroso, contendo a placenta, e o resto escondeu
sob a capa de pele que usava por cima da roupa. O bebê ia seguramente preso contra seu
peito por uma manta própria para carregar criança. Logo que se pôs a andar pelo interior da
mata, a tonteira passou, mas a náusea ainda persistia. Afastou-se do caminho e penetrou na
floresta, onde fez uma parada. Era difícil fazer um buraco com seu pau de cavar. Ela estava
muito fraca, mas assim mesmo enterrou o embrulho bem profundamente, tal como Iza lhe
recomendara e, em seguida, fez a gesticulação adequada à ocasião. Olhou, então para o
filho que dormia um sono profundo, na segurança de seu aconchego. Ninguém vai botá-lo
num buraco desses, falou consigo. Depois, começou a subir a íngreme encosta, alheia de
que alguém pudesse estar observando-a.
Pouco depois de Ayla ter saído da caverna, Uba saiu de mansinho atrás dela. O inverno que
passou aprendendo com a doença da mãe deu-lhe consciência do perigo que Ayla corria. Sabia o quanto ela se achava enfraquecida e tinha medo
de que a moça pudesse desmaiar e se tornar uma presa fácil para algum carnívoro atraído
pelo cheiro de seu sangue. Uba quase correu de volta para avisar Iza, mas não queria deixar
Ayla sozinha, e assim continuou sempre a segui-la. Quando Ayla deixou o caminho, Uba
perdeu-a de vista, mas depois voltou a vê-la escalando um lado onde a encosta era
desmatada.
Ayla ia subindo, com o corpo pesadamente apoiado sobre seu pau de cavar que lhe servia
de cajado. Volta e meia parava para aspirar uma golfada de ar e reprimir a náusea, lutando
para não se deixar levar pela tonteira que ameaçava fazê-la perder os sentidos. Sentia o
sangue escorrendo pelas pernas, mas não parou para trocar a tira absorvente. Lembrou-se
do tempo em que subia por aquela encosta sem parar uma única vez para tomar fôlego.
Agora, mal podia acreditar como ainda estava longe da clareira no alto da montanha. As
distâncias separando os pontos de referência eram imensas. Fazia o corpo render o
máximo e, quando estava no ponto de desmaiar, esforçava-se para manter-se consciente
para, então, descansar e prosseguir novamente.
No final da tarde, o bebê começou a chorar e ela o via indistintamente através de uma
neblina em seus olhos. Não parou por causa dele, apenas lutava para continuar sempre
subindo. Em sua mente, havia só um pensamento:
preciso alcançar a clareira, tenho de chegar à caverna. Nem sabia mais exatamente o por
quê disso.
Uba a seguia de longe, não querendo que ela a visse. Não sabia que Ay la quase não
conseguia enxergar além do próximo passo. Por fim, quando viu surgir a clareira no alto da
montanha, a jovem tinha a cabeça girando, com a vista toldada por uma névoa vermelha.
Um pouco mais, disse consigo, só um pouquinho mais. Foi-se arrastando pelo campo, mal
conseguindo forças para pôr de lado os galhos e entrou cambaleando para dentro da caverna
que, por tantas vezes, já lhe servira de refúgio. Caiu sobre a pele de veado, sem se importar com a roupa molhada no corpo ou se lembrar de dar o peito para o bebê que
chorava, sucumbindo finalmente ao peso da exaustão.
Foi uma sorte Uba ter chegado à clareira no momento em que Ayla desaparecia na
caverna. Do contrário, pensaria que ela tinha evaporado no ar. A pesada moita de
avelaneiras com sua profusão de galhos camuflava completamente o buraco na montanha,
mesmo quando estava sem a folhagem do verão. Uba correu de volta. Fora mais longe do
que esperava. Ayla demorara muito mais para chegar à pequena caverna do que a menina
havia suposto. Tinha medo de que Iza estivesse preocupada e fosse ralhar. Iza, entretanto,
não fez caso de seu atraso. Vira quando a filha saiu às escondidas atrás de Ayla,
percebendo-lhe a intenção mas preferiu guardar sua dúvida.
- Ela já não devia estar de volta, Iza? - perguntou Creb. O feiticeiro passara toda a tarde
entrando e saindo da caverna.
Iza, nervosa, disse que sim com a cabeça, sem tirar os olhos de um quarto de veado que
cortava depois de já cozido e frio.
- Ai! - gritou de repente, quando a faca fez um talho no seu dedo. Creb levantou os
olhos, não só surpreso com o corte como também com a espontaneidade do grito. Iza
usava as facas de pedra com tanta perícia que ele não se lembrava de já tê-la visto
cortando-se. Pobre Iza, ando tão preocupado comigo mesmo que me esqueço de como ela
também deve estar-se sentindo, pensou, ralhando consigo. Não é de estranhar que esteja
nervosa, ela também está preocupada.
- Falei há pouco com Brun, Iza - gesticulou Creb. - Ele ainda acha cedo para ir
procurá-la. Ninguém deve saber onde uma mulher se desfaz.
bem, onde ela se acha neste momento. Você sabe quanta desgraça poderia advir para um
homem, se ele pusesse os olhos em cima dela. Mas Ayla está tão fraca, ela talvez esteja por
aí na chuva, caída no chão Você poderia ir procurá-la, Iza. Você é uma curandeira. Ela não
deve ter ido longe. não se preo cupe em cozinhar para mim. Eu posso esperar. Por que
não sai logo? Daqui a pouco vai ficar escuro.
- não posso - gesticulou Iza, botando o dedo ferido na boca.
- O que você quer dizer com não pode? - Creb estava espantado.
- Nã posso encontrá-la.
- Como sabe que não pode encontrá-la, se ainda não procurou? - O velho feiticeiro se
via completamente atordoado. Por que Iza não quer procurar por Ayla? Aliás, pensando
nisso, por que ela já não teria saído há muito tempo para procurar? A essa altura, Iza
deveria estar vasculhando as matas, revirando as pedras para achar Ayla. E ao invés disso,
deixa-se ficar aí nervosíssima. Deve estar acontecendo algo errado.
- Iza, por que você não quer procurar Ayla? - perguntou ele.
- não iria adiantar. não poderia encontrá-la.
- Por quê? - pressionou Creb.
Os olhos de Iza estavam cheios de ansiedade e medo.
- Ela está se escondendo - confessou.
- Escondendo! De que ela está se escondendo?
- De todo mundo. De mim, de Brun, de você, de todo o clã.
Creb não sabia o que pensar, e as respostas enigmáticas de Iza só pioravam as coisas
- Iza, será que você pode explicar-se melhor? Por que Ayla está se escondendo do clã, de
mim ou de você? Principalmente de você, de quem neste momento ela deve estar
precisando muitíssimo.
- Ela quer ficar com o filho, Creb - gesticulou Iza, passando a explicar rapidamente, com
os olhos suplicantes, pedindo que ele compreendesse. - Eu disse a ela que toda mãe tem
obrigação de se desfazer de um filho que nasce deformado, mas ela se recusou a fazer isso.
Você sabe o quanto Ayla queria esse bebé. Falou que iria levá-lo e ficar escondida com ele
até chegar o dia de lhe dar nome, desse modo Brun será obrigado a aceitar a criança.
Creb olhava para Iza com uma expressão dura. Num relance, percebeu todas as
conseqüências que poderiam advir da teimosia de Ayla.
- É verdade, Iza Brun se verá forçado a aceitar o filho dela, mas depois irá amaldiçoá-la
por um ato deliberado de desobediência, e dessa vez será para sempre. Você não sabe que,
quando uma mulher força um homem contra sua vontade, ele está se rebaixando? Brun
Não pode permitir isso. Os homens perderiam para sempre o respeito por ele. Mesmo que
amaldiçoasse Ayla, ele ficaria desprestigiado e a reunião dos clã é já neste próximo verão.
Acha que Brun depois disso poderia enfrentar os outros clãs? Todo o nosso clã também
será desprestigiado por causa de Ayla - gesticulou Creb, com raiva. - O que deu nela
para pensar em fazer uma coisa dessas?
- Foi uma das histórias de Aba sobre a mãe que pôs o filho deformado no alto de uma
árvore - respondeu Iza, profundamente perturbada, sem saber o que dizer. Por que não
pensara mais sobre tudo isso?
- Ora, histórias de velhotas que não têm o que fazer! - falou Creb, com ar de nojo. -
Aba faria melhor se não ficasse enchendo a cabeça de uma moça com essas bobagens.
- Mas não foi só Aba, Creb. Você também.
- Eu? Quando contei histórias desse tipo?
- Você não precisou contar nenhuma história para ela. Você nasceu deformado e lhe foi
permitido viver. Hoje é o
Mog-ur.
As palavras de Iza atingiram Creb em cheio. Ele conhecia toda a série de acontecimentos
fortuitos que haviam possibilitado sua aceitação. Só a sorte tinha preservado a vida do mais
sagrado de todos os homens dentre todos os clãs. A mãe de sua mãe certa vez lhe dissera
que sua existência simplesmente se devia a um milagre. Será que Ayla está querendo
provocar um milagre para seu filho por causa dele? Mas isto nunca dará certo. Jamais
conseguirá forçar
Brun a aceitar seu filho. Isso teria de partir dele, tinha de ser uma decisão sua,
exclusivamente sua e de mais ninguém.
- E você, Iza? Será que não disse a ela que era uma coisa errada?
- Pedi a Ayla que não fosse. Disse que eu me encarregaria de dar fim no bebê, se ela não
pudesse fazê-lo. Mas, depois disso, Ayla não me deixou mais chegar perto da criança. Ah,
Creb, ela sofreu tanto para ter esse filho.
- E por isso você deixou que ela fosse embora, esperando que o plano desse certo. Por que
Não contou nada para mim ou Brun?
Iza simplesmente meneou a cabeça. Creb tinha razão eu deveria ter contado a ele. Agora não
só o bebê vai morrer, mas Ayla também, pensou consigo.
- Para onde ela foi, Iza? - Creb tinha um olhar de pedra.
- não sei. Falou qualquer coisa sobre uma pequena caverna - respondeu Iza, com o
coração apertado.
O feiticeiro deu as costas abruptamente e se dirigiu para a fogueira de Brun.

Capítulo 20

O choro do bebê acabou por fim acordando Ayla de seu sono exausto. Já havia escurecido e
a caverna pequenina, sem a fogueira, estava úmiida e fria. Ela foi até o fundo para aliviar-
se. O líquido quente e amoniacado ardia em sua carne dilacerada, fazendo-a estremecer de
dor. Na escuridão tateou dentro da cesta de colher procurando um absorvente limpo e uma
manta seca para enrolar o bebê molhado e sujo. Depois que bebeu um pouco d'água, enrolou-se junto com a criança em sua pele e se recostou para dar de mamar. Quando tornou a
acordar, a parede da caverna estava banhada pela luz do sol que se filtrava pelo emaranhado
dos galhos das avelaneiras escondendo a entrada. Enquanto o bebê mamava, foi
comendo um pouco de comida fria.
O repouso e a comida a reanimaram e ela se sentou com o bebê no colo, pondo-se a pensar
meio distraída. Vou precisar arrumar alguma lenha e a comida que tenho não vai durar
muito. Tenho de conseguir um pouco mais. A alfafa deve estar brotando, e ela vai ajudar a
fortalecer meu sangue. Os trevos novos e os rebentos nos pés de afarroba com certeza
também estão no ponto. A seiva deve estar começando a vir à tona nas cascas das árvores,
principalmente na do bordo. não O bordo não cresce nessas alturas, mas há vidoeiros e
abetos. Vejamos, por aqui deve dar bardana, tussilagem, folhas novas de dente-de-leão e
samambaias comestíveis, mas a maioria dessas ainda deve estar fechada. Ah, eu tenho
também a minha funda. . . há uma quantidade de esquilos, castores e coelhos.
Ayla sonhava, vendo à sua frente as delícias que o verão lhe iria propor cionar, mas, quando
tentou levantar-se, sentiu um jato de sangue escorrendo, acompanhado de uma vertigem. As
pernas estavam empastadas de sangue seco que lhe manchava também os sapatos e a roupa; isso a sacudiu, fazendo-a tomar maior
consciência de sua situação desesperadora.
Passada a tonteira, resolveu ir limpar-se e arranjar um pouco de lenha, mas não sabia o que
fazer com o bebê. Estava entre levá-lo ou deixá-lo conti nuar dormindo onde estava. As
mulheres do clã nunca deixavam bebês sozinhos, eles sempre ficavam sob as vistas de
alguém, e Ayla não gostava da idéia de largar o seu ali, inteiramente abandonado. Mas
tinha de limpar-se e arrumar mais água. Sem o bebê, poderia também carregar maior
quantidade de lenha.
Antes de sair, espiou por entre os galhos desfolhados, querendo ter certeza de que não
havia ninguém por lá. Botou, então os galhos de lado e veio para fora da caverna, O chão
estava encharcado. Nas proximidades do riacho, o terreno era um pântano de lama
escorregadia. Nesgas de neve ainda persistiam nos trechos mais sombrios. Tiritando de frio
com o vento que soprava do leste, trazendo mais nuvens de chuva, ela se despiu e entrou na
água gelada. Depois, esfregou os lugares nas roupas onde havia manchas de sangue. O couro molhado e pegajoso não ajudava muito a esquentá-la, quando tornou a vesti-lo.
Dirigiu-se ao bosque que cercava a clareira e deu alguns puxões nos galhos secos da parte
de baixo de um abeto. Nisso, sentiu que a vertigem apoderava-se dela, os joelhos se
dobraram e ela viu-se obrigada a amparar-se numa árvore. A cabeça martelava por dentro,
e a moça procurava respirar fundo para não vomitar, enquanto a fraqueza tomava conta de
todo o seu corpo. Todas as idéias de caçar e colher plantas desapareceram. Uma gravidez
depalperante, um parto devastador e aquela subida extenuante fizeram consideráveis
estragos em seu organismo e pouca força lhe havia sobrado.
O bebê chorava quando a jovem mãe entrou de volta na caverna. Lá estava frio e úmido e
ele sentia falta da proximidade do calor da mãe. Ayla segurou-o e se lembrou de que
deixara o cantil junto do riacho. Precisava de água. Pôs a criança no chão e saiu novamente.
Estava começando a chover. Quando voltou, exausta, deixou-se cair e puxou a pele úmida e
pesada, cobrindo-se junto com o filho. O sono venceu-a, estava cansada demais para darse conta de que o medo procurava acertá-la com suas farpas.
- Eu não disse que ela era insolente e teimosa? - gesticulou Broud, cheio de si. -
Alguém então acreditou em mim? Não. Todos tomaram o seu partido, arrumaram desculpas,
deixaram que ela fizesse o que bem entendesse, até mesmo caçar. Pouco estou me
importando com o totem forte dela, o que sei é que mulheres não podem caçar. não foi o
Leão da Caverna que a levou a fazer isso, trata-se simplesmente de um ato de
desobediência. Agora estão vendo o que acontece, quando se dá muita liberdade a uma
mulher, não é? Ela está achando que pode forçar o clã a aceitar seu filho deformado. Desta
vez, ninguém pode arrumar desculpas. Ela, deliberadamente, foi contra os nossos costumes. Isso é
indesculpável.
Finalmente, Broud encontrara uma boa justificativa para os seus atos e não perdia a
oportunidade de vangloriar-se com um "eu não disse?". A insistência era feita com
tamanho sentimento de vingança que o chefe acabou franzindo a cara, contrariado. Brun
não gostava de se ver desprestigiado e o filho de sua companheira não lhe estava facilitando
as coisas.
- Broud, você já disse o que tinha a dizer - falou Brun. - Não há necessidade de ficar
repisando sempre a mesma coisa. Quando Ayla voltar, cuidarei dela. Nunca uma mulher
irá me forçar a fazer o que não quero e depois sair impunemente. E nenhuma vai começar
com isso agora. Amanhã, quando formos procurá-la outra vez - prosseguiu Brun,
explicando os motivos por que convocara aquela reunião. - acho que devemos revistar os
lugares onde não vamos muito. Iza disse que Ayla sabe da existência de uma pequena caverna. Alguém já viu alguma aqui por perto? não deve ficar muito longe, ela estava fraca
demais para andar grandes distâncias. Vamos esquecer a planície ou a floresta e procurar
cavernas nos lugares mais prováveis. Com essa chuva, o rastro dela deve ter desaparecido,
mas pode ser que haja algumas marcas de pé. Custe o que custar, quero achá-la.
Iza esperava ansiosa pelo fim da reunião. Havia precisado de ganhar coragem para falar
com Brun e resolvera que aquela seria a ocasião. Quando viu que os homens tinham saído,
dirigiu-se de cabeça baixa para a fogueira dele, sentando-se a seus pés.
- O que você quer, Iza? - perguntou Brun, depois de lhe dar o tapinha no ombro.
- Esta mulher indigna deseja falar com o chefe - começou Iza.
- Pode falar.
- Esta mulher errou ao deixar de procurar o chefe, quando soube dos planos da jovem
mulher. - À medida que as emoções tomavam conta dela, Iza foi deixando de usar a
linguagem protocolar. - Mas, Brun, ela queria tan to um bebê. Ninguém acreditava que
Ayla fosse conceber e muito menos ela própria. Como pensar que o espírito do Leão da
Caverna poderia ser vencido? Ela estava muito feliz com isso. Mesmo que sofresse, não se
queixava. Quase morreu durante o parto, Brun. Apenas o pensamento de não deixar o bebê
morrer é que lhe deu forças para chegar até o final. Ela não pôde suportar a idéia de se
desfazer do bebê, mesmo ele sendo deformado. Tinha certeza de que este seria o único filho
que teria na vida, O choque e a dor fizeram com que perdesse a cabeça, ela não estava
raciocinando bem. Brun, sei que não tenho direito de pedir, mas eu suplico, deixe Ayla
viver.
- Por que você não me procurou antes, Iza? Se pensou que agora eu poderia atender seu
pedido para poupar a vida dela, por que então não veiologo a mim? Tenho sido, por acaso, tão mau para ela? Eu estava vendo o seu sofrimento.
Pode-se desviar os olhos para não se olhar dentro da fogueira dos outros, mas não se pode
fechar os ouvidos. Não há ninguém neste clã que ignore o sofrimento de Ayla, quando
estava
tendo o filho. Você me acha tão insensível assim, Iza? Se tivesse me procurado, tivesse
dito como ela estava se sentindo e o que planejava fazer, você acha que eu não levaria em
consideração a vida do bebê? Poderia ter encarado essa ameaça dela de fugir e esconder-se
como coisa de uma mulher fora de seu juízo. Eu teria examinado a criança. Mesmo sem um
companheiro, se a deformidade não fosse muito flagrante, talvez eu tivesse deixado o bebê
viver. Mas você não me deu a menor oportuni dade, já imaginando por antecipação o que
eu faria. Isso não é de seu feitio, Iza.
"Nunca a vi faltar com os seus deveres - continuou Brun. - Sempre foi um exemplo para
as outras mulheres. Só posso atribuir este seu procedimento à sua doença. Sei que está
doente, apesar de você tentar esconder. Em respeito a seus desejos, jamais toquei no
assunto, mas, no outono passado, não tinha a menor dúvida de que você estava a ponto de
passar para o mundo dos espíritos. Também tinha perfeita consciência de que Ayla
imaginava ser essa a sua única chance de ter um filho. Imagino que ela tenha razão Apesar
disso, vi como Ayla se esqueceu inteiramente dela para tratar só de você, Iza. não sei como
conseguiu isso. Talvez até tenha sido o Mog-ur que tenha aplacado os espíritos que queriam
levá-la para junto deles, conseguindo convencê-los a deixá-la ficar. Mas isso não foi obra
somente do Moog-ur.
"Eu já estava pronto a atender o seu pedido de deixar Ayla como curandeira. Passei a ter
tanto respeito por ela quanto já tive por você, Iza. Ayla, apesar do filho de minha
companheira, tem sido uma mulher admirável, um modelo de obediência e de submissão. Isso
mesmo, Iza, estou perfeitamente sabendo o modo cruel de Broud tratá-la. Inclusive, sei que
aquela sua falta no princípio do verão passado foi de certo modo provocada por ele, embora
não entenda muito os motivos dessa coisa. É uma indignidade essa competição de Broud
com ela. Afinal, ele é um caçador corajoso e forte e não há nenhuma razão para sentir que
sua virilidade esteja sendo ameaçada por uma mulher. Mas talvez ele tenha percebido
alguma coisa que desprezei. Talvez ele esteja certo, e eu, durante esse tempo todo, tenha
estado cego. Se você tivesse realmente vindo a mim antes, iza, eu poderia levar em
consideração seu pedido. . . poderia ter deixado que o filho de Ayla vivesse. Agora, é tarde
demais. Quando ela voltar, no dia de seu filho receber o nome, todos os dois irão morrer, Ayla
e o filho.
No dia seguinte, Ayla tentou fazer uma fogueira. Havia ainda alguns paus secos que
sobraram de sua última estada. Ajovem pegou um deles e começou a
girá-lo entre as palmas da mão sobre um pedaço de madeira, mas não teve forças
suficientes
para fazê-lo pegar fogo, o que foi uma sorte. Enquanto ela e o
bebê dormiam, Droog e Crug encontraram o seu caminho para a clareira na montanha.
Certamente os dois iriam sentir o cheiro da fogueira ou o que sobrara de alguma e a teriam
achado. Eles chegaram tão perto da caverna que, na situação em que estavam, se o bebê
tivesse choramingado em seu sono, teriam ouvido. Mas a entrada do pequeno buraco na
rocha estava bem escondida pela pesada moita de avelaneira que eles passaram por ali sem
perceber.
A sorte veio sorrir-lhe ainda mais uma vez. As chuvas de primavera, cain do tristemente
de um céu cor de chumbo, transformando a margem do pequeno riacho num charco de
lama e o chão da clareira num verdadeiro pantanal, podiam deixá-la deprimida, mas, por
outro lado, apagaram todos os vestígios de sua presença ali. Os caçadores eram tão hábeis
em pegar rastros que podiam identificar as marcas dos pés de cada uma das pessoas do clã
e tinham os olhos tão aguçados que facilmente veriam, caso ela estivesse colhendo
alimentos, os lugares onde tinha sido partido algum broto ou os pontos onde a terra fora
remexida para desenterrar alguma raíz ou bulbo. Graças à sua fraqueza, ela não foi
descoberta.
Ao sair mais tarde e ver as pisadas dos homens na lama perto da nas cente do riacho, onde
haviam parado para tomar um gole d'água, Ayla teve um choque. A partir daí, ficou com
medo de deixar a caverna. Levava susto cada vez que o vento sacudia as ramagens em
frente da entrada e estava sempre apurando os ouvidos esperando escutar os sons que
imaginava estar ou vindo.
A comida que trouxera já havia quase terminado. Deu uma busca nas cestas que fizera para
armazenar comida durante sua longa e solitária estada na maldição de morte. Tudo que
achou foi algumas nozes estragadas e alguns excrementos de pequenos roedores,
denunciando que seu estoque fora descoberto e há muito já não existia. Encontrou também
os restos secos e também estragados da comida que Iza lhe trazia durante a sua maldição de
mulher, e estavam inservíveis.
Lembrou-se, então, do esconderijo no fundo da caverna, o buraco de pedra onde pusera a
carne-seca do veado que tinha matado para fazer com a pele uma roupa quente. Achou o
pequeno monte de pedras e as removeu. A carne em conserva estava intata, mas sua alegria
durou pouco. Os galhos no buraco da entrada se moveram fazendo seu coração disparar.
- Uba! - gesticulou, surpresa, quando a garota entrou na caverna. - Como você me
encontrou?
- Eu a segui de longe no dia em que veio para cá. Tinha medo de que alguma coisa lhe
pudesse acontecer. Eu trouxe alguma comida e um pouco de chá para fazer seu leite correr.
Foi a mãe quem preparou.
- Iza sabe onde estou?
- Não. Mas ela sabe que eu sei. Acho que a mãe não quer saber porque sen vai ter de
contar a Brun. Ayla, Brun está furioso com você. Os homens todos os dias saem à sua
procura.
- Eu vi as pegadas deles perto da nascente, mas eles não conseguiram achar a caverna.
- Broud agora está contando vantagem dizendo que ele sempre soube quem era você.
Desde que você saiu, quase nunca vejo Creb. Ele passa o dia inteiro na gruta dos espíritos e
a mãe está muito aflita. Ela quis que eu dissesse a você para não voltar - falou Uba com
os olhos arregalados, cheios de medo por Ayla.
- Se iza não falou de mim com você, como é que ela está mandando recado? -
perguntou Ayla.
- Ontem de noite e hoje de manhã, ela fez mais comida do que era preciso. não muita. . . acho que ficou com medo de Creb adivinhar que era para você. E também não comeu a
parte dela. Mais tarde, fez o chá e começou a gemer, como se falasse sozinha soltando
lamentos por sua causa. Ela está sempre se lamentando desde que você foi embora, mas
desta vez olhava direta mente para mim, dizendo: se alguém pudesse dizer a Ayla para não
voltar. Minha pobre menina, pobrezinha da minha filha, está tão fraca e sem comida. Ela
precisa ter leite para dar ao bebê. E ficou ainda dizendo outras coisas desse tipo. Depois,
saiu da fogueira e eu vi que este saco de água estava bem junto do chá e a comida toda
embrulhada.
"Ela deve ter visto quando fui atrás de você - prosseguiu Uba. - Imaginei isto porque
mamãe não ralhou comigo por eu ter ficado tanto tempo fora. Brun e Creb estão furiosos
com ela por não lhes ter contado que você ia esconder-se. Se souberem que ela tem alguma
idéia de onde você está e não conta, nem sei o que farão com a mãe. A mim, ninguém
vai perguntar. Ninguém presta muita atenção em crianças, principalmente em meninas.
Ayla, sei que devia contar a Creb onde você está, mas não quero que você seja amaldiçoada
outra vez por Brun. não quero que você morra, Ayla.
Ayla escutava as batidas de seu coração. O que foi que eu fui fazer? Quando ela ameaçou
deixar o clã, não podia imaginar o quanto se achava enfraquecida e como seria difícil
sobreviver sozinha com um recém-nascido. Havia contado em poder voltar no dia do seu
filho receber o nome. E, agora, o que vou fazer? Tomou o bebê nos braços, segurando-o
muito apertado contra o corpo. Mas eu não podia deixar que você morresse, não é?
Uba olhou com pena para Ayla que parecia ter esquecido de sua presença.
- Ayla - disse, hesitando - posso ver o bebê? Ainda não tinha tido oportunidade de dar
uma espiada nele.
- Mas claro, Uba - gesticulou Ayla, envergonhada por haver ignorado a garota tanto
tempo, principalmente depois de ela haver feito aquela enorme caminhada para lhe trazer o
recado de Iza. Se descobrissem que Uba sabia on de ela se encontrava e não contava, seu
castigo sería terrível, poderia até ter a vida arruinada.
- Você quer segurá-lo?
- Posso?
Ayla pôs o bebê no colo dela. Uba ia começar a desenrolar a coberta, mas levantou antes os
olhos pedindo permissão. Ayla fez que sim com a cabeça.
- A aparência dele não é tão ruim assim, Ayla. É menos aleijado do que Creb. Ele está
meio descamado. A cabeça é que parece um pouco diferente. Mas não muito diferente da
sua. Você não se parece com ninguém do clã.
- Isso é porque eu não nasci de gente dos clãs. Iza me encontrou, quando eu ainda era
pequena. Ela diz que nasci dos Outros. Mas agora eu sou dos clãs - disse com orgulho;
logo, entretanto, sobreveio uma expressão de abatimento. - Mas não por muito tempo.
- Você sente falta de sua mãe? Quero dizer, de sua mãe verdadeira, não de Iza? -
perguntou Uba.
- Não me lembro de outra mãe que não fosse Iza. não me lembro de nada do que
aconteceu antes de vir morar no clã. - De repente, ela ficou pálida. - Uba, para onde
irei, se não puder voltar? Com quem vou viver? Nunca voltarei novamente a ver Iza ou
Creb. Esta é a última vez que irei vê-la. Mas eu não sabia que outra coisa poderia fazer, não
podia deixar meu bebê morrer.
- não sei, Ayla. Mamãe diz que Brun se rebaixaria, se aceitasse seu filho. Por isso é
que ele está tão zangado. Ela diz que quando uma mulher obriga um homem a fazer o que
ele não quer, o homem nunca mais volta a ter o respeito dos outros. Mesmo que ele venha a
amaldiçoá-la, Brun se veria desprestigiado porque foi obrigado a fazer uma coisa contra
sua vontade. não quero que você vá embora, Ayla, mas se voltar, morrerá.
Ayla olhou para o rosto angustiado de Uba sem saber que o seu, com as lágrimas
escorrendo, tinha a mesma expressão. Às duas caíram ao mesmo tempo uma nos braços da
outra.
- É melhor você ir agora, Uba, antes que as coisas piorem.
A garota devolveu o bebê para a mãe e se levantou.
- Uba - chamou Ayla, quando a menina estava na entrada, pondo os galhos de lado -
estou contente por ter vindo me ver, pelo menos ainda pude falar com você mais uma vez.
Diga a Iza. . . diga a minha mãe que eu a amo. - As lágrimas escorriam outra vez. - Diga
isso também a Creb.
- Eu vou dizer, Ayla. - Uba se deteve por um instante. - Bom,já vou
- falou, saindo rapidamente da caverna.
Depois de Uba ter ido embora, Ayla desempacotou a comida. não havia muita, mas,
somada à carne-seca do veado, duraria alguns dias. Mas, e depois? Estava incapaz de
pensar, sua cabeça era um torvelinho de confusões que a levava para um buraco escuro,
sem qualquer esperança. Todo seu plano tinha dado para trás. não só a vida do filho, mas
também a sua estava em risco. Comeu sem sentir o gosto, tomou um pouco do chá e tornou
a se deitar com o filho, passando a dormir um sono que lhe apagou tudo da mente. Seu
corpo tinha exigências e pedia por descanso.
Era noite, quando voltou a acordar. Tomou mais um pouco do chá e resolveu buscar água.
Na escuridão havia menos chance de ser vista pelos homens que estavam à sua caça. Tateava
procurando pelo cantil e, em meio ao completo negrume da caverna, perdeu o sentido de
direção entrando por instantes em pânico. As ramagens camuflando a entrada, fazendo
uma lúgubre silhueta contra um fundo menos escuro, tornou a orientá-la e imediatamente
veio engatinhando para fora.
A lua crescente, brincando de esconde-esconde com as nuvens, esparramava pouca luz,
mas o suficiente para que seus olhos muito dilatados pela forte escuridão do interior da
caverna percebessem os contornos fantasmagóricos das árvores. O murmúrio das águas na
nascente, batendo sobre as pedras, fazia uma cachoeira em miniatura, refletindo os salpicos
brilhantes na pálida iridescência. Ayla ainda se achava fraca, mas já não ficava mais tonta
quando se punha de pé e caminhava também com mais facilidade.
Nenhum homem do clã viu quando ela, protegida pela noite, abaixou- se perto da nascente,
mas outros olhos mais afeitos à luz do luar a espreitavam. Alguns predadores noturnos e os
bichos que eram as suas presas tomavam água da mesma fonte que ela. Ayla, desde a ocasião
em que uma garotinha nua, de cinco anos de idade, ficou perambulando sozinha, nunca
estivera tão vulnerável como agora. não tanto devido à fraqueza, mas porque já não
estava pensando em termos de sobrevivência. Deixara de estar em guarda con tra o
exterior, passando a ter os pensamentos voltados para dentro de si. Se ria fácil presa para
qualquer animal que, atraído pelos seus odores, lhe ficasse à espreita. Ela, no entanto,
havia imposto sua presença naquele ambiente. Suas pedradas rápidas, nem sempre mortais,
mas dolorosas, tinham deixado marcas. Os carnívoros, cujo território incluía a caverna,
preferiam manter uma certa distância. Isso lhe dava uma vantagem, constituindo-se num
fator de segurança, numa espécie de fundo de reserva do qual ela passara agora a valer-se
seguidamente.
- Deve haver algum sinal dela - gesticulou Brun, furioso. - Mesmo que tivesse levado
comida, essa não pode durar para sempre. Logo vai ter de sair do esconderijo onde se
meteu. Quero que tornem a revistar todos os lugares que já
procuraram antes. Se estiver morta, quero saber. Algum animal a encontraria, deixando
uma prova disso. Quero que ela seja achada antes do dia de seu filho receber nome. Só irei
à reunião dos clã se ela for encontrada.
- Agora, ela nos vai impedir de ir à reunião de clãs - disse Broud, escarnecendo. - Mas
por que, antes de mais nada, ela foi aceita neste clã? Nem mesmo pertence à nossa gente. Se
eu fosse o chefe, nunca a teria aceito. Jamais teria deixado Iza ficar com ela esse tempo
todo. Nem mesmo apanhá-la no meio do caminho, eu teria permitido. Por que ninguém
conseguiu ver o que ela realmente era? Vocês sabem, esta não é a primeira vez que ela
desobedece. Sempre desprezou nossos costumes e sempre saiu impune. Será que al guém
pensou em impedi-la de trazer animais para dentro da caverna? Será que alguém se
preocupou com o fato de ela andar por aí sozinha, como nenhuma mulher do clã sequer
pensaria em fazer? não é de estranhar que nos espionasse, enquanto estávamos treinando.
E o que aconteceu quando foi apanhada usando uma funda? Apenas uma maldição de morte
temporária. E quando voltou? Imagine, recebeu licença para caçar! Sabem o que os outros
clãs iriam pensar disso? não me surpreende se não pudermos ir à reunião. É de admirar
então que ela tenha pensado que nos poderia forçar a aceitar seu filho?
- Broud, já ouvimos isso antes - gesticulou Brun, farto. - Sua desobediência não
passará sem castigo desta vez. Prometo.
A insistência de Broud, sempre batendo na mesma tecla, não estava apenas cansando os
nervos de Brun, estava também surtindo efeito. O chefe começara a questionar o seu
julgamento, um julgamento que se baseava no apego às tradições e aos costumes de longa
data e os quais deixavam pouca mar gem para desvios. No entanto, tal como Broud estava
lembrando constante mente, Ayla vinha praticando, sempre impunemente, uma série de
transgressões cada vez mais graves, que agora culminava com este deliberado e indesculpável ato de desafio. Tinha sido demasiadamente tolerante com aquela estranha, nascida
sem o sentido de retidão inerente à raça clânica. . . complacente demais. Aproveitara-se
dele. Broud tinha razão, ele devia ter sido mais rígido, deveria tê-la obrigado a se submeter
às regras, talvez nunca devesse ter permitido a Iza trazê-la com eles. Mas, por que tinha o
filho de sua companheira de ficar sempre repisando a mesma coisa?
Os constantes sermões de Broud acabaram também por surtir efeito sobre os outros
homens. Quase todos começaram a convencer-se de que haviam, de certo modo, visto Ayla
através de uma cortina de fumaça e que só Broud a enxergava tal como era. Quando Brun
não estava por perto, Broud punha-se a denegri-lo, insinuando que ele já estava muito
velho para chefiá-los. O desprestígio de Brun foi um duro golpe à confiança que ele
tinha em si mesmo. Sentia como, aos poucos, os homens lhe iam perdendo respeito e não
podia suportar a idéia de enfrentar uma reunião de clã em tais circunstâncias.
Ayla permanecia dentro da caverna, vivendo só de água. Enrolada em peles, conseguia
manter-se aquecida mesmo sem uma fogueira. A comida trazida por Uba, ajudada pela
velha carne do veado - que, embora tesa como couro e dura de mastigar, tinha alto valor
nutritivo - e mais o tempero de sua fome permitiram que ela pudesse sobreviver sem caçar
ou colher alimentos. Isso lhe proporcionou o tempo de que estava precisando para
descansar. não tendo mas que se exaurir para satisfazer as exigências de um feto quase
anormal, seu corpo, jovem e saudável, fortalecido por anos de duros exercícios, começou a
recuperar-se. Ela não precisava dormir tanto, mas, de certo modo, o sono ajudava. A
confusão de seus pensamentos era um tormento constante. Pelo menos, dormindo, estava
livre da ansiedade.
Sentada perto da entrada da caverna, observava o filho dormindo em seus braços. Um
fluido branco e aguado escorrendo do canto da boca do bebê e pingando do outro seio,
estimulado pela amamentação indicava que o leite havia começado a correr. O sol da
tarde, de vez em quando escondido pelas nuvens passando velozes no céu, aquecia a terra,
botando manchas de luz na entrada. Ayla olhava a respiração regular de seu filho, às vezes
interrompida por um crispar de pálpebras e pequenos sobressaltos que o levavam a fazer
movimentos de sugar, para depois voltar a acalmar-se novamente. Ela o observou mais de
perto, virando sua cabeça para ver o perfil.
Uba disse que você não tem uma aparência muito ruim, disse consigo. Também acho. É só
um pouco diferente, foi o que Uba falou. Você parece diferente, mas não tanto quanto eu.
Subitamente, ela se lembrou de seu rosto refletido no lago de águas tranqüilas. Ele não é tão
diferente quanto eu!
A moça examinava o rosto do bebê, tentando lembrar-se de seu reflexo. Minha testa é igual
à sua, pensou, levando a mão ao rosto. E esse osso debaixo da boca, eu também tenho um.
Mas ele tem supercílios salientes e eu não. As pessoas dos clã é que têm assim. Se sou
diferente, por que meu bebê também não seria? Ele deveria parecer-se comigo, não é? E
parece um pouco, mas também se assemelha aos bebês do clã. Ele parece dos dois jeitos.
Não nasci num clã, mas meu filho sim. É como se fosse uma mistura deles comigo.
Acho que você não é nem um pouco deformado, meu filho. Se você nasceu de mim e da
gente dos clãs, tinha de parecer dos dois modos. Se os espíritos se misturaram, você não
teria de parecer com essa mistura? E é assim que você é e como deveria parecer. Mas qual
totem teria começado sua vida? Seja lá qual for esse totem, ele deve ter tido alguma ajuda.
Nenhum homem tem um totem mais forte do que o meu, exceto Creb. Será que foi o Urso
da Caverna que começou sua vida, meu filhinho Eu moro na fogueira de Creb. Não! não
pode ser. Creb diz que Ursus jamais deixaria que seu espírito fosse engolido por uma
mulher. Ursus sempre escolhe. Bom, se não foi o de Creb, de quem mais eu me aproximei?
De repente, surgiu a imagem de Broud esvoaçando diante dos olhos dela. não Abanava a
cabeça, sem querer aceitar a idéia. Broud não Não foi ele quem começou meu bebê. A
lembrança do futuro chefe fê-la estremecer de nojo, recordando-se de como ele a forçava a
submeter-se a seus desejos. Tenho ódio dele.Odiei todas as vezes que ele chegou perto de
mim. Estou feliz por ele não poder mais me incomodar. Espero que ele nunca, nunca mais vá
querer outra vez aliviar suas necessidades em mim. Como é que Oga pode suportar isso? E
as outras mulheres, como agüentam? Por que será que os homens têm necessidades desse
tipo? Por que gostam de botar seus órgão no lugar por onde saem os bebês? Este lugar devia
ser só para os bebês nascerem e não para que os órgãos dos homens fizessem aquele
melado lá dentro. Os órgaos dos homens nada têm a ver com os bebês, pensou, cheia de
indignação.
A incongruência daquele ato que lhe parecia sem sentido lhe ficou no pensamento. Em
seguida, outra estranha idéia foi.se infiltrando. Ou será que têm? Seria possível o órgão de um
homem ter alguma relação com os bebês? Só mulheres podem ter crianças, mas elas têm
filhos e filhas, conjeturava con sigo. Fico pensando se, quando um homem mete o órgão
no lugar por onde saem os bebês, ele não estaria nesse momento começando a vida de um.
E se não for o espírito do totem de um homem e sim o órgão quem começa o bebê? Isso
significaria que o bebê pertenceria a ele também? Talvez seja por este motivo que os
homens têm essa necessidade, porque desejam começar a vida de um bebê. Talvez seja por
isso também que as mulheres gostam. Nunca vi uma mulher engolindo um espírito, mas já
vi muitas vezes os homens metendo seus órgãos nas mulheres. Ninguém imaginou que eu
fosse ter um filho por causa desse meu totem extremamente forte, mas eu tive, e o bebê
começou mais ou menos na ocasião em que Broud estava aliviando suas necessidades em
mim.
Não Não é verdade! Isso significaria que meu bebê pertenceria também a Broud, pensou ela
com horror. Creb está certo. Ele sempre está. Engoli um espírito que lutou e derrotou meu
totem. Talvez eu tenha engolido mais de um, talvez até de todos eles. Abraçou o filho
muito apertado, como se quisesse que ele fosse só dela. Você é meu bebê e não de Broud.
E nem é também do espírito do totem de Broud. O bebê se assustou com o movimento
inesperado e começou a chorar. Ela se pôs a niná-lo ternamente até que, por fim, ele voltou
a ficar quieto.
Talvez meu totem soubesse o quanto eu queria um bebê e por isso se deixou derrotar. Mas
por que meu totem me deixou ter um bebê sabendo que ele teria de morrer? Um bebê que
tem uma parte minha e outra da gente dos clãs irá sempre parecer diferente. Eles vão
sempre dizer que meus filhos são deformados. Mesmo se eu tivesse companheiro, meus bebês
não iriam ter uma aparência direita. Nunca vou poder ficar com filho algum. Todos terão de
morrer. Mas que diferença faz? De qualquer jeito, eu vou morrer. Nós dois vamos morrer,
meu filinho.
Ayla ficou embalando o bebê, apertado no seu colo, enquanto cantarolava baixinho e as
lágrimas, sem que percebesse, escorriam-lhe pelas faces. O que vou fazer, meu filhinho? O
que vou fazer? Se voltar no dia de você receber nome, Brun vai me amaldiçoar. Iza disse
que eu não voltasse, mas para on de poderei ir? Ainda não estou bastante forte para caçar
e, mesmo que estivesse, o que eu faria com você? Eu não poderia levá-lo comigo. Como
iria caçar com um bebê do lado? Se você chorasse, espantaria os bichos; e ficar sozinho,
também não poderia. Talvez eu pudesse ficar sem caçar e a comida eu encontraria. Mas
vamos precisar de outras coisas. . . roupas, peles, capas e calçados.
E onde vamos encontrar uma caverna para morar? Nessa, não podemos. Há muita neve aqui
no inverno e ela fica muito perto do clã. Acabariam nos encontrando. Poderia ir embora,
mas talvez não achasse uma caverna, além de que os homens poderiam seguir minha pista e
me trariam de volta. Mesmo que conseguisse encontrar uma caverna, conseguisse guardar
bastante comida para o inverno e pudesse caçar um pouco, nós iríamos ficar muito
sozinhos. Você tem de ter outras companhias além de mim. Com quem você iria brincar?
Quem o ensinaria a caçar? E se acontecesse alguma coisa a mim? Quem tomaria conta de
você? Estaria sozinho, como eu, antes de Iza me encontrar.
Não quero que você fique sozinho e nem eu também quero estar sozinha. Quero voltar para
casa, soluçava, enterrando a cabeça na manta que enrolava o bebê. Quero voltar e ver Uba
e Creb. Quero a minha mãe. Mas não posso voltar. Brun está furioso comigo. Fiz com
que ele se desprestigiasse e por isso tem agora de me amaldiçoar. Eu não sabia que ele iria
perder o respeito dos outros por causa disso, apenas desejei que você não morresse. Brun
não é má pessoa. Ele me deixou caçar. E se eu não o tivesse forçado? Se tivesse simplesmente lhe pedido que deixasse meu filho viver, como seria? Se eu voltasse agora, ele
não ficaria desprestigiado. Ainda há tempo. Está faltando ainda dois dedos para chegar o
dia de você receber nome. Talvez assim ele não ficasse tão zangado.
E se ficar? E se disser não? E se o tirar de mim? Se eles me separarem de você agora, não
quero continuar vivendo. Se você tiver de morrer, eu quero morrer junto. Se eu voltar e
Brun disser que você tem de morrer, peço para que ele me amaldiçoe. Nãorrerei também.
Não quero que você volte para o mundo dos espíritos sozinho, meu bebê. Vou retornar
nesse instante e pedir a Brun para me deixar ficar com você. Que outra coisa posso fazer?
Ayla começou a atirar suas coisas para dentro da cesta de colher, enrolou o bebê na manta
de carregar, cobriu ambos com a capa usada por fora e empurrou para o lado os ramos que
escondiam a pequena caverna. Quando estava saindo, seus olhos bateram numa coisa
brilhando ao sol. Uma pedra cimzenta cintilava a seus pés. Ela apanhou. não era uma simples pedra, mas três nódulos de
pinta de ferro, colados juntos. Ela a revirou na mão observando o "ouro dos trouxas".
Durante vários anos, inumeras vezes entrara e saíra por aquela abertura e nunca vira uma
pedra tão fora do comum naquele lugar.
Ayla fechou-a na mão e cerrou os olhos. Será que isso é um sinal? Um sinal de meu totem?
- Ó Grande Leão da Caverna - gesticulou. - Será que tomei a decisão certa? Você está
me dizendo que devo voltar agora? Ó Leão da Caverna, permita que isso seja um sinal seu.
Permita que seja esta pedra um aviso expressando que você me achou digna e que esta foi
mais uma prova por que tive de passar. Que seja este um sinal de que meu bebê irá viver.
Os dedos tremiam enquanto desamarravam os nós do saquinho de couro que usava
pendurado no pescoço. E a pedra brilhante, de estranho formato, foi juntar-se ao ovo de
marfim tingido de vermelho, ao fóssil de gastrópode e ao torrão de ocre. Cheia de medo,
com o coração batendo forte e uma louca esperança, começou a descer para a caverna do
clã.
Uba entrou na caverna, gesticulando tumultuadamente.
- Mãe, mãe! Ayla está de volta! Iza ficou lívida.
- Não! não pode ser. O bebê está com ela? Uba, você foi vê-la? Você disse a ela?
- Fui mãe. Eu vi Ayla. Contei como Brun estava zangado e disse para que não voltasse
- gesticulou a menina.
Iza correu para a entrada da caverna e viu Ayla caminhando vagarosamente na direção de
Brun. A moça agachou-se a seus pés, com o corpo se curvando sobre o filho para protegê-lo.
- Está adiantada. Deve ter calculado mal o tempo - gesticulou Brun para o feiticeiro,
que vinha capengando a toda pressa para fora da caverna.
- Ela não calculou mal, Brun. Ela sabe que está adiantada. Veio por que quis - falou o
Mog-ur.
Brun olhou para o velho, sem compreender como ele poderia ter tanta certeza. Em
seguida, baixou os olhos na direção de Ayla e voltou a olhar um tanto apreensivo para o
Mog-ur.
- Tem certeza de que o feitiço que fez para nos proteger vai funcionar? Ela devia estar
isolada. O tempo de sua maldição de mulher ainda não acabou. Sempre custa muito mais
depois do parto.
- Os feitiços foram fortes, Brun. Feitos com os ossos de Ursus. Você está protegido. Pode
olhar para ela - respondeu o mog-ur.
Brun se virou, olhando para a jovem, que, tremendo de medo, curvava-se sobre o filho.
Devia amaldiçoá-la nesse instante, pensou ele com raiva. Mas ainda não é o dia de a criança
receber nome. Se o Mog-ur tiver razão, por que teria ela voltado mais cedo? E com o bebê?
Ele ainda deve estar vivo, do contrário não estaria com ela. Essa desobediência é indesculpável, mas por que teria voltado antes? A curiosidade era grande e ele não agüentou. Deu-lhe o tapinha no ombro.
- Esta indigna mulher tem sido desobediente - gesticulou Ayla, usando a linguagem
protocolar silenciosa- Ela sabia que não deveria estar falando com um homem, que deveria
estar isolada, mas ele lhe dera licençacom a pancadinha no ombro. - Esta mulher gostaria de falar com o chefe, se lhe for
permitido.
- Você não merece falar, mulher. Mas o Mog-ur invocou proteção para o seu caso. Se eu
quiser que você fale, os espíritos permitirão. Você tem razão. Tem sido muito
desobediente, o que tem a dizer em seu favor?
- Esta mulher está agradecida. Esta mulher conhece os costumes que regem os clã Ela
deveria desfazer-se da criança, tal como a curandeira falou, mas, ao invés disso, fugiu. Esta
mulher ia voltar no dia de seu filho receber no me para que o chefe tivesse de aceitá-lo no
clã.
- Você voltou cedo demais - gesticulou Brun, triunfante. - Ainda não chegou o dia de
ele receber nome. Posso ordenar à curandeira tirá-lo de você nesse instante. - Enquanto
falava, percebeu que a tensão que vinha sentindo nas costas desde que Ayla partira havia
relaxado, ao mesmo tempo que fazia o apanhado da situação: pelos costumes dos clãs, só se
a criança vivesse sete dias é que ele estaria na obrigação de aceitá-la. O prazo ainda não se extinguira, ele não precisava aceitá-la, não perdera ainda o prestígio, estava outra vez em
pleno comando.
Ayla, involuntariamente, apertou mais o bebê contra o peito, amarrado a seu corpo por
uma cinta e, então, prosseguiu:
- Esta mulher sabe que ainda não chegou o dia de seu filho receber nome. Esta mulher
compreendeu que era errado tentar fazer o chefe aceitar a criança. não compete à mulher
decidir se seu filho deve morrer ou viver. Só o chefe pode ter essa decisão. Foi por isso que
esta mulher voltou.
Brun olhou para o rosto ansioso de Ayla. Pelo menos tomou juízo ain da em tempo,
pensou consigo.
- Se você conhecia os nossos costumes, por que voltou então com essa criança
deformada? Iza disse que você não seria capaz de cumprir com o seu dever de mãe. Será
que já está preparada para desistir do filho? Você quer que a curandeira faça isso por você?
Ayla hesitou, imóvel, curvada sobre o filho.
- Esta mulher desistirá de seu filho se o chefe ordenar. - Ela gesticulava devagar,
dolorosamente, fazendo enorme esforço sobre si, como se uma faca estivesse sendo cravada
em seu coração. - Mas esta mulher prometeu a seu filho que não o deixaria ir sozinho para
o mundo dos espíritos. Se o chefe decidir que o bebê não poderá viver, ela pede para ser
amaldiçoada - dizendo isso, abandonou a linguagem protocolar. - Eu imploro, Brun,
deixe meu filho viver. Se ele tiver de morrer, eu não quero mais viver.
A súplica ardorosa de Ayla surpreendeu Brun. Ele sabia de casos de algumas mulheres
que, apesar de os filhos haverem nascido deformados e com defeitos físicos graves,
queriam conservá-los, a maioria, entretanto, sentia- se aliviada em se desfazer das crianças
o quanto antes e o mais discretamente possível. Um filho deformado estigmatizava a mãe Apregoava sua incompetência e a
incapacidade para produzir crianças perfeitas. Um fato desses tornava a mulher menos
desejável. Ainda que a deformidade fosse pequena e não se constituísse num problema de
maior gravidade, havia considerações de ordem de status e de futuros companheiros. Além
disso, poderia ser difícil para as mães, se seus filhos ou os companheiros de suas filhas não
fossem capazes de mantê-las na velhice. Embora nunca fossem morrer de fome, a vida
delas poderia ser bem desgraçada. O pedido de Ayla não tinha precedentes. Amor de mãe é
forte, mas tanto assim, a ponto de querer seguir junto com o filho para o outro mundo?
- Você quer morrer junto com seu filho deformado? Por quê? - perguntou Brun.
- Meu filho não é deformado - respondeu ayla, sem qualquer tom de desafio. - Ele é
apenas diferente. Eu sou diferente. Eu não pareço com as pessoas da raça dos clãs E meu
filho também. Todo bebê que eu tiver vai parecer com este, caso meu totem seja novamente
derrotado. Nunca permitirão um filho meu viver. Se todos os meus filhos terão de morrer,
eu não quero viver.
Brun olhou na direção do Mog-ur.
- Se uma mulher engolir o espírito do totem de um homem, o bebê não deveria se parecer
com ele?
- Deveria, mas não se esqueça de que ela também tem um totem de homem. Talvez seja
esse o motivo por que ele tenha lutado tanto. O Leão da Caverna pode ter desejado
participar da nova vida. Pode ser que exista qualquer coisa assim como ela diz. Eu teria de
meditar sobre isso.
- Mas a criança seria ainda considerada deformada?
- Isso muitas vezes acontece, quando o totem de uma mulher nega a submeter-se
completamente. A gravidez dela torna-se difícil e deforma o bebê respondeu o Mog-ur. -
Nesse caso, o que mais me surpreende é o fato de a criança ter nascido homem. Quando o
totem de uma mulher trava uma batalha muito violenta, normalmente nasce uma criança do
sexo feminino. Mas nós ainda não vimos o bebê, Brun. Talvez devêssemos examiná-lo.
Deveria me incomodar com isso?, perguntou-se Brun. Por que não amaldiçoá-la de uma
vez, e nos desfazermos logo da criança? A volta antes do tempo e a humildade de Ayla,
cheia de arrependimento, fizeram bem ao orgulho ferido do chefe, mas ele ainda estava
longe de amolecer. Estivera a ponto de perder sua autoridade por causa dela, e esse não era
o primeiro problema que Ayla lhe trazia. Havia voltado, mas o que iria aprontar da próxima
vez? Além disso, havia a reunião dos clãs, como Broud não se cansava de avisá-lo.
Uma coisa era deixar Iza pegar uma estranha criança e levá-la para o seu
clã, e outra bem diferente era a impressão que causaria nos demais clãs, ele chegando à
reunião com uma mulher nascida dos Outros. Agora, olhando retrospectivamente,
perguntava-se como tinha podido tomar tantas decisões tão pouco ortodoxas. Cada uma
delas, a seu tempo, não parecia tão despropositada. Mesmo deixar uma mulher caçar teve
sua lógica na época. Mas, todas somadas e encaradas do ponto de vista de alguém de fora,
o efeito era de uma total derrocada dos costumes. Ayla fora desobediente, merecia ser
punida, e amaldiçoá-la significava acabar com todos os seus problemas.
Mas uma maldição de morte representava séria ameaça ao clã e ele, já uma vez por causa
dela, os havia deixado expostos aos maus espíritos. A volta voluntária impedira que ele
caísse em desgraça. . . Iza provavelmente tinha razão. Ayla, abalada com o parto e a dor, devia
ter perdido a cabeça. Ele dissera a Iza que teria levado em consideração um pedido para
deixar o bebê viver, caso isso tivesse sido feito. Bom, agora ela estava pedindo. Tinha voltado perfeitamente consciente da falta que cometera, consciente e querendo arcar com a
culpa, pedindo pela vida do filho. Brun podia, pelo menos, examinar a criança. Ele não
gostava de tomar decisões apressadas. De repente, fez um gesto para Ayla, indicando a
fogueira de Creb, e se afastou.
Ayla correu para os braços de Iza que a esperava. Se nada mais fosse possível, teria,
quando muito, visto pela última vez a mulher que era a única mãe que conhecera na vida.
- Vocês todos tiveram oportunidade de examinar a criança - disse Brun. - Em
circunstâncias normais, não iria incomodá-los. Esta seria uma decisão simples. Mas desejo
conhecer a opinião de vocês. A maldição de morte é uma possibilidade a ser seriamente
encarada e eu não quero tornar a deixar o clã exposto aos maus espíritos. Se acharem que a
criança é aceitável, dificilmente poderei amaldiçoar a mãe. Ela não estando aqui, uma
outra mulher teria de tomar o menino que irá viver com qualquer um de vocês que tenha no
momento a companheira amamentando. No caso de se permitir ao bebê viver, a punição de
Ayla seria menos severa. Amanhã será o dia em que a criança deveria receber o nome.
Preciso tomar rapidamente uma decisão e o Mog-ur precisa de algum tempo para preparar a
maldição se este for o castigo. Tudo isto tem de ser feito antes do despontar do sol amanhã.
- não é só a cabeça, Brun - começou Crug a falar. Ika ainda estava amamentando o
filho mais novo e Crug não tinha o menor desejo de ter o bebê de Ayla em sua fogueira.
Coisa improvável, mas sempre uma possibilidade. - Ela é bastante defeituosa e ele não
consegue mantê-la erguida, porque também está faltando um suporte para agüentá-la. O que
será dele quando for homem? Como vai caçar? Nunca conseguirá se sustentar, será um
fardo para todo o clã.
- Você acha que existe alguma chance de o pescoço se fortalecer? - perguntou Droog. -
Se Ayla morrer, ela levará consigo uma parte do espírito de Ona. Aga deve isto a Ayla. . .
embora eu não creia que realmente ela deseje ter um bebê deformado. Mas se Aga estiver
disposta, acho que eu acei taria, naturalmente se ele não for um fardo para todo o clã.
- O pescoço é tão comprido e magro e a cabeça tão grande que me dá a impressão de que
nunca se fortalecerá o suficiente - comentou Crug.
- Na minha fogueira, eu não quero esse menino por nada. Nem vou dar-me ao trabalho de
perguntar a Oga o que ela acha disso. Ele não serve para ser germano dos filhos dela. Isso
faria do menino irmão de Brac e Grev, coisa que eu jamais permitiria. Brac irá sobreviver
ainda que ela carregue um pedacinho de seu espírito. Nem sei por que você está perdendo
tempo em discutir este assunto, Brun. Você já estava pronto para amaldiçoá-la. Só porque
ela chegou um pouquinho mais cedo, já está disposto a recebê-la de volta e falando em
assumir seu filho deformado - gesticulou Broud, cheio de fel.
"Ela o desafiou quando fugiu, o fato de voltar não diminui sua falta. O que há aqui para ser
discutido? O bebê é deformado e ela tem de ser amaldiçoada, fora disso não há o que falar.
Por que você está sempre nos fazendo perder tempo com essas reuniões discutindo
problemas dela? Se eu fosse chefe, essa mulher já estaria amaldiçoada há muito tempo. É
desobediente, insolente e má influência para as outras. Como explicar essa atitude agora de
Iza?
- A raiva de Broud ia aumentando e seus gestos cada vez ficavam mais exaltados. - Ela
merece ser amaldiçoada, Brun. Como consegue pensar em outra coisa, fora desta
possibilidade? Como não pode ver esse fato? Você está cego? Ela nunca prestou. Se eu
fosse chefe, antes de mais nada, ela não teria sido aceita neste clã. Se eu fosse chefe.
- Mas você ainda não é, Broud - retrucou Brun, com frieza. - E tal vez nunca seja, se
não conseguir controlar-se melhor. Ela é apenas uma mulher, Broud, por que você se sente
tão ameaçado por Ayla? O que ela lhe poderia fazer? É obrigada a obedecê-lo. não tem
outra alternativa sengo esta. Se você fosse chefe, se você fosse chefe, é tudo quanto sabe
dizer? Que chefe é esse que é capaz de pôr em risco todo um clã só porque está com pressa
de matar uma mulher? - Brun, por sua vez,estava a ponto de perder o controle. Já
agüentara tudo o que podia do filho de sua companheira.
Os homens se sentiam incomodados e ao mesmo tempo escandalizados. Aquela guerra
declarada entre o presente e o futuro chefe era um fato lastimável. Broud, certamente,
havia passado dos limites, mas eles já estavam acostumados com os seus rompantes. A
aflição era por causa de Brun, nunca haviam visto o chefe naquele estado, a ponto de
perder o seu controle. E jamais também Brun tinha questionado publicamente as
qualificações para chefe do filho de sua companheira.
Durante um momento de tensão os dois ficaram se olhando numa guerra de nervos. Broud
baixou os olhos primeiro. Já não tendo mais sua autoridade ameaçada, Brun estava
novamente firme no comando. Ele era o chefe e ainda não estava preparado para aposentar-se. Isso botou Broud de sobreaviso, suas bases não estavam tão firmes quanto imaginava.
Tratou de dominar o sentimento de impotência e de amarga frustração que se avolumava
em seu peito. Ele continua favorecendo-a, pensou Broud. Como é que pode? Eu sou o filho
da companheira dele e ela não passa de uma mulher feia. O rapaz lutava para manter a
calma e engolir o ressentimento que lhe envenenava a alma.
- Este homem lamenta ter dado motivos para que o chefe interpretasse mal suas palavras
- falou Broud, por meio de gestos protocolares. - A preocupação deste homem é em
relação aos caçadores que um dia ele irá conduzir, se o chefe atual julgar que este
homem tem capacidade para tanto. Mas como alguém que tem uma cabeça que não
consegue equilibrar sobre o pescoço poderá caçar?
Brun, furioso, encarava Broud com olhar duro. Os gestos da linguagem formal tinham um
sentido de inconsistência que Broud inconscientemente deixava transparecer nas suas
expressões e posturas. O sarcasmo contido nas respostas extremamente polidas irritava
mais o chefe do que se houvesse, entre os dois, uma disputa franca e aberta. Broud
tentava esconder seus sentimentos, e Brun o percebia. Mas o chefe estava envergonhado
consigo por ter perdido a calma. Tinha consciência de que Broud com suas observações
cada vez mais depreciativas fazia com que se pusesse em dúvida o seu julgamento. Seu
orgulho fora tocado num ponto sensível, mas isso não era suficiente desculpa para fazê-lo
perder o controle, a ponto de desacreditar na frente de todos o filho de sua companheira.
- Você já disse o que tinha a dizer, Broud - gesticulou Brun, secamente. - Posso
imaginar que o menino ao crescer se constituirá num fardo para o chefe que me sucederá e
para o outro que virá depois desse, mas a decisão ainda continua sendo minha. Farei o que
achar melhor. Eu não disse que o bebê será aceito, Broud, ou que a mulher não será
amaldiçoada. Minha preocupação é com o clã não com ela ou com a criança. Uma
maldição de morte pode pôr todos nós em perigo. Há espíritos malignos que custam a ir
embora, depois de soltos, e isto pode nos trazer azar. Acho que a criança é muito deformada para viver, mas Ayla está inteiramente cega. Ela não consegue ver a deformidade do
filho. Talvez o enorme desejo de ter um bebê haja afetado sua cabeça. Quando voltou,
pediu-me para amaldiçoá-la, se o filho não fosse aceito. Pedi a opinião de vocês, porque
queria saber se alguém mais viu qualquer coisa na criança que eu não percebi. Uma
maldição de morte, seja para punir ou atender seu desejo, continua sendo uma decisão que
não se pode tomar levianamente.
Broud já não se sentia tão frustrado. Afinal, Brun talvez não a estivesse favorecendo,
pensou ele.
- Você está certo, Brun - disse o rapaz, com ar arrependido. - Um chefe precisa
sempre pensar nos riscos que podem advir para o clã. Este homem está agradecido por
poder contar com um chefe sábio para instruí-lo.
Brun sentiu sua tensão diluir. Nunca pensou seriamente em substituir Broud. Ele
continuava sendo o filho de sua companheira, o filho de seu coração. Ter o autodomínio
nem sempre é coisa fácil, disse Brun consigo, lembrando-se de sua própria irritação de
minutos antes. Broud tem apenas um pouco mais de dificuldade que os outros, mas ele está
melhorando.
- Alegra-me ver que compreendeu, Broud. Quando você for o chefe, será responsável pela
segurança e o bem-estar do clã. - O comentário de Brun serviu para Broud saber que
ainda continuava como herdeiro e também para aliviar a tensão dos caçadores. Dava-lhes
segurança saber que os tradicionais critérios que presidiam a hierarquia do clã estavam
sendo mantidos. Nada os perturbava mais do que a incerteza em relação ao futuro.
- É no bem-estar do clã que estou pensando, Brun - gesticulou Broud. - não desejo
um homem em meu clã que não possa caçar. Para que vai servir o filho de Ayla? A
desobediência dela merece um severo castigo e se ela deseja ser amaldiçoada, estamos
satisfazendo seu desejo. Estaremos bem melhor sem esses dois aqui. Ayla deliberadamente
desafiou nossas tradições portanto, não merece viver, e seu filho é tão deformado que
também não merece.
Todos se entreolharam concordando com a cabeça. Brun notou um quê de insinceridade
na argumentação extremamente racionalizada de Broud, mas deixou a coisa passar. A
animosidade entre os dois desaparecera e ele não queria provocar novamente mais atritos.
Travar uma luta aberta contra o filho de sua companheira perturbava tanto Brun como os
outros.
Brun sentiu que devia juntar-se aos outros na concordância, mas alguma coisa o fazia
hesitar. É o que se tem a fazer, pensou. Desde o princípio ela se constituiu num problema
para todos nós. Naturalmente Iza vai ficar aborrecida, mas não prometi poupar nenhum dos
dois. Só disse que ia pensar no as sunto. Nem mesmo cheguei a dizer que olharia o bebê, se
ela voltasse. E quem, afinal, esperava que fosse voltar? Justamente aí é que reside o
problema com ela, nunca se pode prever o que acontecerá. Se a tristeza de Iza deixá-la
muito abatida, bom, ainda temos Uba. Afinal de contas, é Uba que realmente pertence à
linhagem, e a menina poderá aprender um pouco mais com as outras curandeiras durante a
próxima reunião de clãs.
Se uma parte do espírito de Brac morrer com Ayla, será que ele está perdendo um pedaço
muito grande do espírito? Mas se Broud não está se importando com isso, por que eu me
deveria preocupar? Ele tem razão, ela merece o maior dos castigos. E esse amor tão grande por um bebê não é normal. O que provam
essas histórias de mulheres velhas? Ela não consegue nem enxergar que o filho é
deformado. . . deve estar mesmo fora de seu juízo. Será que dói tanto para ter um filho? Os
homens passam por piores coisas. Muitos de nós somos obrigados a caminhar feridos,
morrendo de dor depois de uma caçada. Claro, ela não passa de uma mulher, não se pode
esperar que agüente muita dor. Gostaria de saber até onde ela foi. A caverna de que
falou não pode estar muito longe daqui, ou pode? Ela quase morreu para ter a criança,
estava fraca demais para andar uma distância muito grande, mas por que será que não
encontramos o lugar?
E depois, se eu deixar que ela viva, vou ter que levá-la à reunião de clã O que irão pensar os
outros? Pior ainda seria se eu deixasse o filho viver. O certo é fazer isso, todos são dessa
opinião e, talvez, já não houvesse tantos problemas com Broud. Pode ser que ela não
estando mais aqui, ele aprenda a controlar-se melhor. Broud é um caçador corajoso e dará
um bom chefe. Era só ter um pouquínho mais de senso de responsabilidade e um
pouquinho mais de controle sobre si. Para o bem de Broud, talvez eu faça isso. Em
benefício do filho de minha companheira, seria melhor que ela fosse embora. Sim. isto
que é o certo, realmente é. É o que se tem a fazer, não é?
- Cheguei à decisão que tinha de tomar - gesticulou Brun. - Amanhã é o dia de a criança
receber nome. Às primeiras luzes, antes do sol romper...
- Brun! - interrompeu o Mog-ur.
Ele se tinha mantido fora da discussão e desde o nascimento do filho de Ayla que as
pessoas pouco o viam. Passava a maior parte do tempo na pequena caverna, procurando na
sua alma uma explicação para o comportamento de Ayla. Sabia como havia sido dura para
Ayla sua luta para aceitar os costumes dos clãs e achara que ela havia conseguido superar
suas dificuldades. Estava convencido de que existia alguma coisa mais, alguma coisa que
ele não percebeu e que a levou a ato tão extremo.
- Antes que você se comprometa, o Mog-ur pede a palavra.
Brun olhou para o feiticeiro. A expressão era enigmática como sempre. O chefe nunca
fora capaz de ler no rosto do Mog-ur. O que terá ele a dizer que eu ainda não saiba? Já
estou resolvido a amaldiçoá-la e ele sabia disso.
- Que fale o Mog-ur.
- Ayla não tem companheiro, mas ela sempre foi sustentada por mim. Sou o seu
responsável. Se você permitir, falarei na qualidade de companheiro dela.
- Fale, se assim o desejar, Mog-ur. Mas que outra coisa tem a acres centar? Já pensei no
grande amor que Ayla tem pela criança e na dor e sofrimento por que teve de passar para
ter o filho. Compreendo como deve ser difícil para Iza. Sei também que isso vai abatê-la
muitíssimo. Já pensei em todas as razões possíveis para desculpar as ações de Ayla, mas os fatos permanecem. Ela
desafiou os costumes dos clã Seu bebê é inaceitável segundo os homens. Broud já deixou
bem claro, nenhum dos dois merece viver.
O Mog-ur se pôs de pé, jogando o cajado para o lado. Envolvido pela pesada capa de pele
de urso era uma figura imponente. Só os mais velhos e Brun o conheciam como algo que
não era o Mog-ur. Ali estava o mais sagrado de todos os homens dentre aqueles que tinham
acesso ao mundo dos espíritos, o mais poderoso feiticeiro de todos os clã Quando se
deixava
levar pela eloqüência durante uma cerimônia, era um guardião carismático que inspirava
antes de tudo temor. Alguém que afrontava forças invisíveis, muitíssimo mais assustadoras
do que qualquer ataque de animal e capazes de transformar o mais corajoso dos caçadores
num miserável covarde tremendo de medo. Todos ali sentiam-se seguros por tê-lo como o
feiticeiro do clã e não havia nenhum que não tivesse, em algum momento da vida, sentido
medo de seu poder e de seus feitiços. Apenas um, Goov, ousava pensar em ocupar seu lugar.
Somente o Mog-ur se punha entre o humano e o terrível desconhecido do qual tornara-se
parte por sua aliança com este. Isso o imbuía de uma aura sutil que o acompanhava na vida
secular. Mesmo quando dentro dos limites de sua fogueira e cercado por suas mulheres,
Não se pensava nele como um homem. Era alguma coisa mais, algo diferente. Ele era o
Mog-ur.
Enquanto seu olho sinistro percorria um por um dos que se achavam lá, todos, inclusive
Broud, estremeceram no fundo de seus seres, ao se darem conta de repente de que a mulher
que estavam condenando à morte vivia em sua fogueira. Raramente, ele fazia valer o peso
de sua presençafora de suas funções, mas desta vez usava-a a seu favor, O último que
encarou foi Brun.
- O companheiro de uma mulher tem o direito de interceder pela vida de uma criança
deformada. Estou-lhes pedindo para poupar a vida do filho de Ayla e, em benefício dele, a
vida dela também.
Todas as razões que Brun poucos minutos antes se dera para poupar a vida de Ayla
pareceram agora ganhar peso e consistência, e os argumentos contrários mostravam-se
insignificantes. Ele quase concordou, baseando-se exclusivamente na força do pedido do
Mog-ur, mas para poder provar também a força de seu próprio caráter não o fez. não
podia capitular tão facilmente na frente de seus homens; assim, a despeito do enorme
desejo de entregar-se à magia daquela poderosa figura, manteve-se firme.
Ao perceber que passara aquele instante de indecisão de Brun e que seu rosto voltara a
assumir um ar de firme decisão o Mog-ur se transfigurou diante dos olhos do chefe. Seu
caráter sobrenatural desapareceu. Transformou-se na figura de um pobre velho aleijado que
vestia uma capa de pele de urso e tentava firmar-se o melhor que podia sobre a perna, sem a
ajuda do cajado.
Quando falou, foi por meio de gestos normais, pontuados por algumas palavras grunhidas
da fala cotidiana. No rosto, um ar resoluto, mas curiosamente Vulnerável.
- Brun, desde que ayla foi encontrada que ela vem vivendo na minha fogueira. Creio que
todos concordarão comigo que as mulheres e as crianças vêem no homem da casa a figura-padrão do homem do clã. Ele é o modelo, o exemplo daquilo que o homem deveria ser. Eu
sou
o exemplo de Ayla e passo aos olhos dela como o padrão de homem.
"Eu sou deformado, Brun. Você acha tão estranho assim que uma mulher que cresceu
tendo como modelo a figura de um homem deformado tivesse tanta dificuldade em
perceber a deformidade de seu filho? A mim, falta-me um olho e um braço e a metade do
meu corpo é ressequida e imprestável. Sou um homem pela metade, apesar de que Ayla,
desde o início, tenha me visto como alguém perfeito. O físico de seu filho se mostra inteiro.
Ele tem dois olhos, dois braços e duas pernas. Como esperar que ela encontrasse alguma
deformidade nele?
"Coube a mim a responsabilidade de educá-la. Devo assumir a culpa por suas falhas. Passei
por cima de seus pequenos desvios em relação aos nossos costumes. Cheguei inclusive a
convencê-lo, Brun, de aceitá-los. Eu sou o Mog-ur. Você confia em mim para interpretar os
desejos dos espíritos e passou também a confiar no meu julgamento para outros aspectos
da vida. Acho que não erramos tanto assim. Algumas vezes foi muito difícil para Ayla, mas
eu achava que ela se tinha tornado uma boa mulher conforme os padrões do clã. Imagino
agora que fui muito indulgente. não lhe fiz ver claramente suas responsabilidades. Poucas
vezes ralhei com ela e jamais lhe bati. Quase sempre deixava que seguisse seus impulsos.
Agora, ela deve pagar por minhas faltas. Mas, Brun, nunca pude ser mais severo com Ayla.
"Jamais tomei uma companheira. Poderia ter escolhido uma mulher e ela teria de viver
comigo, mas não o fiz. Sabe por quê? Seria você, Brun, capaz de imaginar como as
mulheres olham para mim? O modo como me evitam? Quando jovem, como qualquer
Outro homem, também tive a mesma necessidade de aliviar-me, mas aprendi a controlar
isso depois que percebi que as mulheres viravam de costas, de modo a não ver os meus
sinais. Eu não iria impor, forçar meu corpo disforme e aleijado a uma mulher que fugia de
mim, que se virava com nojo de olhar para mim.
"Mas Ayla nunca me deu as costas. Desde o primeiro momento, estendeu a mão querendo
tocar-me. não tinha medo, nem repugnância de meu aleijão. Espontaneamente deu-me sua
afeição e me abraçou. Como poderia, Brun, eu me zangar com ela?
"Desde que nasci, vivo neste clã, mas nunca aprendi a caçar. Como pode um aleijado, com
um único braço caçar? Fui um fardo, objeto de troças e
já me chamaram de maricas. Agora, sou o Mog-ur e ninguém me ridiculariza, mas
nenhuma cerimônia de passagem foi realizada em minha honra, Brun. Nem homem pela
metade eu posso dizer que sou. Não sou homem nenhum. Só Ayla me respeitou e amou,
como homem e como um ser integral. E eu a amo como se ela fosse a filha da companheira
que não tive.
Creb encolheu o corpo, deixando escorregar a capa que usava para tapar seu físico
assimétrico, com um dos lados mal formado e imprestável, e esticou o coto de braço que
sempre mantinha escondido.
- Brun, este é o homem que Ayla vê como um todo perfeito. Aquele que estabeleceu para
ela um padrão de homem. Este é o homem que ela ama e compara com seu filho. Olhe para
mim, meu irmão! Mereço eu viver? O filho de Ayla merece menos a vida do que eu?
O clã começou a reunir-se do lado de fora da caverna à meia penumbra, an tes do
alvorecer. Uma chuva fina e brumosa, que punha nas pedras e árvores uma luz cintilante,
amontoava-se em diminutas gotículas nas barbas e cabelos das pessoas. Tênues nesgas da
neblina que maciçamente cobriam a montanha desciam, coleantes, acumulando-se nas
reentrâncias por onde passavam, enquanto massas mais densas de ruço tudo obscureciam,
deixando visível só os objetos mais próximos. De forma indistinta, na meia escuridão erguia-
se do mar de neblina o morro do lado este, ondulando nos limites da visibilidade.
Na sombra da caverna, Ayla, deitada sobre suas peles, observava Iza e Uba se movendo
silenciosamente, alimentando o fogo e fervendo água para preparar o chá matinal. O bebê, a
seu lado, fazia em sonhos ruídos de estar mamando. Ela não dormira a noite toda. A
primeira alegria de rever Iza rapidamente degenerou num clima de ansiedade e tristeza. As
tentativas iniciais de conversa logo esmoreceram, e as três mulheres passaram aquele
longo dia, depois da chegada de Ayla, confinadas dentro da fogueira de Creb,
compartilhando seus desesperos através de olhares angustiados.
Creb não havia posto os pés em seus domínios, mas Ayla surpreendeu uma vez seu
olhar, quando ele saía da gruta para se juntar aos homens na reunião convocada por Brun.
Rapidamente, ele desviou os olhos de seu rosto suplicante, mas não antes de ela ver seu
olhar líquido e doce cheio de amor e piedade. Quando, outra vez, ele entrou apressado na
gruta, depois da conversa com Brun realizada num ponto retirado da caverna e os dois
falando com gestos comedidos, ela e Iza trocaram olhares assustados e comoventes. Brun
havia tomado sua decisão e Creb estava indo preparar a parte que lhe competia para sua
efetivação. não voltaram, depois disso, a ver o fei ticeiro.
Iza trouxe o chá na velha cuja que por muitos anos pertencera a Ayla e
se sentou em silêncio a seu lado, enquanto a jovem bebia. Uba veio juntar-se às outras, mas
apenas tinha sua presençapara oferecer como consolo.
- Quase todos já saíram. É melhor irmos também - gesticulou Iza, pegando a cuia da mão
de Ayla.
A moça fez que sim com a cabeça, levantou e enrolou o filho na manta de carregar. Depois,
apanhou a pele da cama e atirou sobre os ombros. Com os olhos brilhando e as lágrimas já
prontas para correr, olhou primeiro para Iza, e depois para Uba. Soltando um grito de dor,
atirou-se nos braços das duas. Por um instante, as três ficaram abraçadas. Em seguida, num
passo arrastado e com o coração pesado, Ayla saiu da caverna.
Olhando para o chão, vendo de vez em quando as marcas de um pé ou de dedos, ou os
contornos indistintos de algum calçado, Ayla teve a estranha sensação de estar vivendo há
dois anos, quando seguia Creb para enfrentar seu outro julgamento. Brun, naquela ocasião,
devia me ter amaldiçoado para sempre, pensou consigo. Devo ter nascido para ser
amaldiçoada. Por que teria de passar por tudo isso novamente? Desta vez, vou para o
mundo dos espíritos. Conheço uma planta que vai fazer eu e meu filho dormir e nunca
mais acordar, não neste mundo. Faremos rápido a travessia e entraremos juntos no outro
mundo.
Ela foi para onde Brun se encontrava e deixou-se cair no chão, ficando a olhar aqueles
pés já conhecidos, envolvidos por calçados sujos de lama. Já está ficando claro, o sol daqui
a pouco vai aparecer. Brun precisa apressar- se, dizia consigo, quando sentiu a
pancadinha no ombro. Vagarosamente, suspendeu os olhos para o rosto barbudo de Brun.
Este entrou direto no assunto.
- Mulher, você deliberadamente desafiou os costumes dos clã e deve por isso ser punida -
disse, com gestos severos.
Ayla fez sim com a cabeça.
- Ayla, mulher do clã, você está amaldiçoada. Ninguém irá vê-la ou ouvi-la. Você ficará
em total isolamento, segundo reza a maldição feminina. não poderá ultrapassar os limites
da fronteira daquele que é o seu provedor, até que a próxima lua esteja na fase em que se
acha agora.
Ayla, espantada, sem acreditar, olhou para o chefe com uma expressão severa no rosto. A
maldição feminina! não a de morte! Nada de ostracismo total e completo, um isolamento
apenas nominal, trancafiada na fogueira de Creb! Que importância havia, se ninguém no
clã
reconhecesse sua existência, ela tinha Iza,Creb e Uba. E passado este tempo poderia juntar-
se ao clã como qualquer outra mulher. Mas Brun ainda não tinha terminado.
- Como extensão do castigo, você está proibida de caçar e até mesmo de falar em caçar,
enquanto não tivermos voltado da reunião dos clãs. Até que as folhas hajam caído das
árvores, não tem permissão para ir a nenhuma parte, a não ser que isto seja essencial.
Quando for procurar plantas para
preparar as mágicas de curar, você terá de me dizer aonde está indo e terá de voltar
prontamente, logo que o serviço esteja terminado. Jamais poderá deixar o terreno da
caverna sem me pedir licença. Outra coisa. Você me mostrará o local onde se escondeu.
- Claro, claro. Qualquer coisa - disse Ayla, concordando, eufórica, como se pisasse
sobre nuvens. As palavras seguintes, entretanto, atingiram-na como uma cutilada de gelo,
afogando sua alegria num mar de desespero.
- Resta ainda o problema de seu filho deformado, a causa de sua desobediência. Nunca
mais deverá tentar forçar um homem a ir contra sua vontade, sobretudo um chefe. Nenhuma
mulher deve tentar forçar um homem a fazer o que ele não quer - falou Brun, fazendo em
seguida um aceno.
Ela apertava o filho olhando na mesma direção que Brun. não podia deixar que o levassem.
Isso não. O Mog-ur saía da caverna. Ela, incrédula e com o rosto rubro de felicidade, viu o
Mog-ur atirar a capa de urso para o lado, deixando à mostra a cesta de vime vermelho que
trazia presa entre o cotoco do braço e a cintura. Hesitante, ela se voltou na direção de
Brun, sem ter muita certeza se o que estava pensando seria verdade.
- Mas a mulher pode pedir. O Mog-ur está esperando, Ayla. Se seu filho irá ser membro
de nosso clã, ele precisa ter um nome - terminou Brun de dizer.
Ayla se pôs de pé e correu para o feiticeiro. Caiu a seus pés, retirando o menino de dentro
de sua capa e o levantou na direção dele. O berro agudo da criança, saída do calor do corpo
materno para o exterior, frio e molhado, foi saudado pelos primeiros raios de sol que
despontavam por cima do morro, escoando através do denso nevoeiro.
Um nome! Ela nem chegara a pensar num nome, nem imaginava que nome poderia Creb
ter escolhido para seu filho. Com gestos ritualísticos, o Mog ur invocou os espíritos dos
totens do clã para que assistissem aquela cerimônia. Em seguida, estendeu a mão para a
cesta,
retirando um pouco de pasta vermelha.
- Durc - disse o Mog-ur em voz alta, sobrepondo-se ao berreiro forte
do zangado bebê, que gritava por causa do frio. - O nome do menino é Durc.
- Desenhou, então, uma risca que partia do ponto médio entre os dois olhos
e ia até a ponta do pequeno nariz.
- Durc - repetiu Ayla, segurando o filho apertado para aquecê-lo. Durc, como o Durc da
lenda, disse consigo. Creb sabe que sempre foi a minha história preferida. Este não era um
nome comum entre eles, e muitos se mostraram surpresos ao ouvi-lo. Mas talvez o nome,
buscado lá nas profundezas da história e carregado de conotação dúbias, fosse apropriado
para um menino cujo início de vida ficara pendente do fiel de uma balança tão oscilante.
- Durc - disse Brun. Ele era o primeiro da fila. Ayla pensou ter visto um brilho de
ternura nas feições severas e orgulhosas do chefe, quando ela, agradecida, olhou para ele. A
maioria dos rostos era vista como uma mancha através dos olhos embaçados pelas lágrimas.
Por mais que tentasse, não conse guia contê-las, e manteve a cabeça abaixada, fazendo
esforço para esconder os olhos molhados. não consigo acreditar, não consigo, pensou. Será
mesmo ver dade? Você tem um nome, meu filhinho? Brun aceitou o meu bebê? não estou sonhando? Lembrou-se, então dos nódulos brilhantes de pinta que tinha em seu amuleto.
Era um sinal. Este foi um sinal de verdade, Grande Leão da Caverna. De todos os objetos
guardados no amuleto, era o que mais prezava.
- Durc ouviu Iza dizendo. Ayla levantou os olhos. A alegria no rosto da mulher, apesar de
seus olhos enxutos, não era menor do que a que havia na face da jovem mãe.
- Durc - disse Uba, e acrescentou com um gesto rápido: - Estou muito feliz.
- Durc - ouviu Ayla o nome sendo dito em tom de escárnio. Levantou os olhos a tempo
de ainda ver Broud dando as costas. Subitamente, lembrou- se daquela extravagante idéia
que lhe ocorreu quando se achava escondida na pequena caverna, a respeito da
possibilidade de a vida dos bebês ser iniciada pelos homens. O pensamento de que Broud,
de certa forma, pudesse ser responsável pela concepção de seu filho fê-la estremecer. Ela
estivera muito ocupada consigo mesma e não tinha percebido a batalha muda travada entre
Broud e Brun. O rapaz ia recusar-se a reconhecer o mais novo membro do clã e só o fez
quando recebeu ordem expressa do chefe. Ayla observou-o afastando-se do grupo, com
os punhos cerrados e as espáduas contraídas.
Como pôde fazer isso? dizia Broud consigo, enfiando-se pela mata para poder estar longe
da cena odiosa. Como pôde? Numa vã tentativa de desafogar a frustração ele deu um
pontapé num pedaço de madeira, fazendo-o rolar pela encosta. Como pôde? Apanhou, então
um galho grosso, pondo-se a bater com ele numa árvore. Como pôde? Como pôde fazer
isso? A frase ficava martelando-lhe a cabeça, enquanto dava golpes e mais golpes contra
uma pequena subida, esmigalhando o seu revestimento de musgo. Como pôde permitir que
ela vivesse e ainda por cima aceitar seu filho? Como pôde fazer isso?
I za, Iza! Venha depressa! Venha ver Durc! - disse Ayla, agarrando o
- braço da curandeira e arrastando-a da entrada para dentro da caverna.
- O que aconteceu? - gesticulou Iza, apressando o passo para acompanhar Ayla. - Está
sufocando outra vez? Machucou?
- Não. Não está machucado. Olhe! - falou Ayla, orgulhosa; quando chegaram à fogueira
de Creb. - Ele está com a cabeça levantada!
O menino estava deitado de barriga para baixo, olhando para as duas com seus olhos
grandes e compenetrados, que começavam a perder a cor escura e imprecisa dos recém-nascidos para ter o tom de marrom quase preto dos olhos das pessoas da raça dos clãs. A
cabeça oscilou com o esforço e depois voltou a cair sobre a manta de pele. Enfiou, então a
munheca na boca, pondo-se a sugá-la ruidosamente, alheio ao rebuliço que seus esforços
estavam provocando.
- Se ele consegue fazer isso ainda tão pequeno, vai agüentar firmar a cabeça quando
crescer, não acha? - argumentou Ayla.
- não se deixe levar muito pela esperança - respondeu Iza. - Mas já é um bom sinal.
Creb entrou na caverna com uma expressão vaga, distante, parecendo nada ver. O olhar
característico que tinha quando se achava perdido em seus pensamentos.
- Creb! - chamou Ayla, correndo em sua direção. Sacudido de seu mundo, o feiticeiro
ergueu os olhos voltando à realidade. - Durc levantou a cabeça, não é verdade, Iza?
Iza confirmou.
- Hummn! - grunhiu ele. - Se está ficando tão forte assim, então acho que já é tempo.
- Tempo para quê?
- Andei pensando e acho que deveria celebrar sua cerimônia de totem. Ele ainda é
muito pequeno, mas algumas impressões muito fortes têm chegado a meu espírito. O totem
dele se tem manifestado a mim. Não há razão para esperar. Daqui a pouco todos vão estar
muito ocupados, aprontando-se para a viagem, e a cerimônia deve ser realizada antes da reunião dos clã; não seria
bom para o menino viajar com o seu totem ainda sem ter um lar. - Ao olhar para Iza, ele
se lembrou de qualquer coisa. - Iza, você tem quantidade que chegue de raízes para a
cerimônia? não sei quantos clã vam estar lá. Da última vez, um dos clã que se mudou para uma
caverna mais para leste estava pensando em ir à reunião dos clã ao sul das montanhas. A
distância é um pouco maior para eles, mas a viagem mais fácil. O velho Mog-ur estava
contra, mas seu acólito queria ir. Trate de arrumar uma boa quantidade.
- não vou à reunião dos clãs Creb. - O desapontamento dela era visível. - não posso
fazer uma viagem tão longa assim. Vou ter que ficar aqui.
Claro, que bobagem a minha, pensou ele, olhando a figura magra de Iza, com os cabelos
quase todos brancos. Iza não vai poder ir. Por que não pensei nisso antes? Ela está muito
doente. Achei até que fosse nos deixar no último outono. Não sei como Ayla conseguiu botá-la de pé. Mas, e a cerimônia? Somente as curandeiras de sua linhagem conhecem o segredo
da bebida especial. Uba é muito pequena. Tem de ser uma mulher. . . Ayla! Sim, que tal
Ayla? Iza poderia ensiná-la antes de partirmos. De qualquer modo já é tempo de ela se
transformar em curandeira.
Creb observava Ayla, enquanto a moça se debruçava para pegar o bebê, vendo-a de repente
sob um ângulo crítico como há muitos anos não o fazia. Mas será que vão aceitá-la? Tentava
enxergá-la tal como os outros clã iriam vê-la. Os cabelos dourados caíam soltos ao redor de
seu rosto chato, enfiados atrás das orelhas e partidos mais ou menos ao meio, deixando à
mostra sua testa abaulada. O corpo era sem dúvida o de uma mulher, porém mais delgado,
fora a barriga um pouco flácida. As pernas eram longas e retas e, de pé, muito mais alta do
que ele.
Não se parece com uma mulher dos clã pensou. Vai atrair atenção de mais e tenho medo de
que isso não lhe seja muito favorável. Parece que o melhor a fazer é esquecer esta
cerimônia. Os outros mog-urs podem não aceitar a bebida preparada por Ayla. Bem, mas
não custa tentar. Se ao menos Uba fosse um pouquinho mais velha. Talvez Iza possa
ensinar as duas, se bem que não acredito que eles aceitem tanto uma menina como uma
mulher nascida dos Outros. Acho que vou ter uma conversa com Brun. Em todo o caso, se
vou ter de invocar os espíritos para a cerimônia de Durc, podemos aproveitar a ocasião para
fazer de Ayla uma curandeira.
- Preciso ver Brun - gesticulou de repente Creb, indo para a fogueira do chefe, mas
antes ainda se virou para Iza, dizendo: - Acho que você deveria ensinar as duas a fazer a
bebida. ayla e Uba, só que não sei se vai adiantar muito.

Capítulo 22

- Iza, não consigo encontrar a bacia que você me deu para dar à curandeira do clã
hospedeiro - gesticulou Ayla, afobada depois de ter revistado pilhas de
comidas, peles e uma série de utensílios amontoados no chão, perto do seu lugar de dormir.
- Já olhei por tudo quanto é canto.
- Você já embrulhou, Ayla. Calma, menina, ainda há tempo. Brun só vai sair depois que
acabar de comer. O melhor é você se sentar e também comer. Seu mingau está esfriando.
Uba, você também. Nunca vi tanta confusão. Passamos todas as coisas em revista ontem de
noite. Está tudo pronto.
Creb estava sentado sobre a esteira com Durc no colo, observando, divertido, o nervosismo
dos últimos momentos.
- Elas não são diferentes de você, Iza. Por que você também não se senta e come?
Iza.
- Vou ter tempo de sobra depois de vocês terem partido - respondeu
Creb apoiou Durc contra o ombro que, naquela posição vantajosa, pôs- se a observar o
ambiente a seu redor.
- Veja como o pescoço do bebê está forte - observou Iza. - Ele já não tem a mínima
dificuldade em ficar com a cabeça levantada. É incrível, desde a sua cerimônia de totem,
dia a dia, vai ficando mais forte. Deixe-me segurálo. não vou poder pegar nele durante
todo esse verão.
- Talvez seja por isso que o Lobo Prateado me apressou para celebrar a cerimônia dele -
gesticulou Creb. - Ele estava querendo ajudar o menino.
Creb se recostou, pondo-se a observar sua pequena prole. Ele estava ali como o patriarca.
Embora nunca houvesse falado, sempre almejou ter uma família como a dos outros
homens. Agora, na idade avançada, tinha duas mulheres adoráveis que faziam tudo o que
podiam por seu conforto, uma menina que ia no mesmo caminho das outras e um garotinho
para ninar, tal como já tinha feito com as duas meninas. Ele havia conversado com Brun
a respeito da educação de Durc. O chefe não podia permitir que um membro varão do seu
clã crescesse sem as qualificações necessárias a um caçador. Quando aceitou Durc, sabia
que a criança iria viver na fogueira de Creb e se sentia responsável por ela. Ayla ficara
muito agradecida a Brun, quando este, durante a cerimônia do totem de Durc, anunciou
que ele, pessoalmente, se encarregaria do treinamento do menino, no caso de ele se tornar
suficientemente forte para caçar. E ela não podia pensar em ninguém melhor para educar
seu filho.
O Lobo Prateado é um bom totem para menino, disse Creb consigo, mas isso me faz
pensar. Alguns lobos andam em bandos e outros são solitários. Qual deles seria o totem de
Durc?
Depois de tudo embrulhado e posto em trouxas bem amarradas nas costas de Ayla e Uba,
eles vieram todos juntos para fora da caverna. Iza deu um último abraço em Durc, com o
nariz colado no seu pescoço. Ajudou Ayla a enrolá-lo na manta de carregar bebês e tirou
alguma coisa de dentro da dobra de sua roupa.
- Isso é para você levar, Ayla. Você é agora a curandeira do clã - falou ela, dando-lhe o
saco vermelho que guardava as raízes especiais. - Vocês se lembram de cada uma das
coisas que têm de fazer? Nada pode ser esquecido. Eu queria mostrar como se faz, mas essa
mágica não pode ser preparada fora das ocasiões especiais. Ela é sagrada demais e não pode
ser jogada fora ou usada em qualquer cerimônia. Só naquelas que são muito importantes. E
não se esqueçam disso, não são apenas as raízes que fazem a mágica. Vocês devem se
arrumar com o mesmo cuidado com que preparam a bebida.
Uba e Ayla balançavam a cabeça dizendo ter entendido, enquanto Iza apanhava a preciosa
relíquia e a metia dentro da sacola de remédios. No dia em que Ayla se havia tornado
curandeira, Iza lhe dera sua bolsa de pele de lontra que a fazia lembrar-se da outra que
Creb queimara. Ayla pegou no seu amuleto apalpando o quinto objeto que passou a
carregar dentro dele: um pedaço preto de dióxido de manganês, que se foi juntar aos três
nódulos de pirita de ferro ao ovo vermelho de marfim, ao fóssil de um gastrópode e ao torrão
de ocre.
O corpo de Ayla, no dia em que ela se tornou repositório de uma parte dos espíritos de cada
membro do clã e, através de Ursus, de todos os clãs espalhados pelo mundo, fora ungido
com um ungüento feito do pó de uma pedra negra misturado com gordura. Somente para
os ritos mais sagrados e importantes o corpo da curandeira era estampado com desenhos
pretos e somente as curandeiras carregavam uma pedra negra em seus amuletos.
Ayla desejava que Iza pudesse ir com eles e estava preocupada em dei xá-la.
Freqüentemente, acessos de tosse estavam fazendo sacudir o corpo frágil da mulher.
- Iza, tem certeza de que vai ficar bem? - gesticulou Ayla, depois de lhe dar um abraço
rápido. - Sua tosse está pior.
- Sempre piora no inverno, mas depois melhora no verão. Além disso, você e Uba
pegaram tantas raízes de ênula que imagino não ter sobrado mais nenhum pé por aqui.
Provavelmente não vai haver também nesta estação framboesas pretas, com todas aquelas
raízes que vocês duas trouxeram para misturar com as flores de meu chá. Vou ficar muito
bem. não se preocupem comigo - assegurou Iza.
Ayla, porém, sabia que o alívio dado pelos remédios, na melhor das ipóteses, era
temporário. Há anos que Iza vinha se medicando com suas plantas. A tuberculose estava
avançada demais para que sua medicina pudesse produzir algum efeito.
- não deixe de sair quando fizer sol e trate de descansar bastante - insistiu Ayla. - não
vai haver muito o que fazer por aqui e há muita comida
e lenha. Zoug e Dorv podem manter a fogueira acesa para espantar os bichos
e os maus espíritos. A cozinha, você deixa por conta de Aba.
- Está bem, está bem - concordou Iza. - Vá depressa agora. Brun está pronto para
partir.
Ayla tomou o seu lugar de sempre na retaguarda, enquanto todos olhavam para ela
esperando.
- Ayla - gesticulou Iza - ninguém vai andar enquanto você não for para o seu lugar
certo.
Envergonhada, Ayla se dirigiu para a frente do grupo das mulheres. Ela se tinha esquecido
de seu novo status. Com o rosto vermelho de embaraço, postou-se no primeiro lugar da fila,
à frente de Ebra. Sentia-se sem jeito, não lhe parecendo justo ocupar a primeira posição
Acenou, então para a companheira do chefe pedindo desculpas, mas Ebra já estava
acostumada com o seu segundo lugar. No entanto, estranhava ter Ayla na frente e não Iza.
Será que ainda terei mais uma reunião de clã depois desta? perguntou-se.
Iza e os outros três que já estavam velhos demais para a viagem acompanharam o clã até o
morro e de lá só saíram quando avistavam apenas um pequeno ponlinho na planície
embaixo. Voltaram, então para a caverna vazia. Aba e Dorv haviam perdido a última reunião
de clã e estavam quase surpresos por estar perdendo uma outra, mas, para Zoug e Iza,
aquela era a primeira vez. Apesar de que Zoug, ocasionalmente, ainda saísse com sua
funda, cada vez mais estava voltando de mãos vazias, e quanto a Dorv, ele enxergava muito
pouco para poder sair.
Os quatro, embora estivesse quente o dia, se encolheram ao redor da fogueira na entrada e
ali permaneceram sem fazer qualquer tentativa para iniciar alguma conversa. Subitamente,
Iza foi acometida por um acesso forte de tosse que desprendeu uma massa de catarro
sangrento. Foi para sua fogueira descansar e, pouco depois, os outros estavam entrando na
caverna, cada qual indo para a respectiva fogueira, onde ficaram sentados sem fazer
nada. Eles não se viram envolvidos pelo clima de excitação de uma longa viagem ou da
expectativa dos reencontros com parentes e amigos de outros clã. Sabiam que teriam um
verão triste, insuportavelmente solitário.
A temperatura fresca de princípio de verão na região temperada em que se si tuava a
caverna se modificava na planície aberta das estepes continentais do lado este. O verde
exuberante das folhagens que revestia os arbustos e as velhas árvores desaparecia,
revelando-se apenas no nascer sazonal dos pinheiros com seus vértices em tons mais claros.
Em compensação raízes, brotos novos e pastagem batendo à altura do peito, cujo verdor
juvenil perdera-se numa cor indefinida entre o verde e o amarelo, estendiam-se até o
horizonte. A vegetação densa e emaranhada da estação passada amortecia os passos,
enquanto o clã ia seguindo seu caminho através da pradaria sem fim, deixando atrás de si
uma onda denunciadora de sua passagem. Raramente, alguma nuvem manchava o céu a perder de vista, por causa de umas poucas tempestades e, assim mesmo, vistas
quase sempre ao longe. A água na superfície era escassa. Paravam em todos os rios que
encontravam para encher os cantis, nunca sabendo se achariam algúmà no lugar em que
acampariam para dormir.
Brun marcou o ritmo de seu passo, levando em consideração os mem bros mais lentos do
grupo, mas sem deixar de pressioná-los a ir sempre em frente. Teriam que percorrer um
longo caminho até chegar à caverna do clã hospedeiro, no alto das montanhas do território
continental a leste. Era uma dura jornada, principalmente para Creb, mas a expectativa da
grande reunião e das cerimônias que iria presidir levantava seu ânimo, dando-lhe forças.
Apesar de ter o corpo aleijado e atrofiado e, ainda por cima, devastado pela artrite, isso em
nada diminuía o poder mental do grande feiticeiro. O sol quente e as plantas analgésicas de
Ayla ajudavam a aliviar as dores em suas juntas e, após algum tempo, o exercício
fortaleceu-lhe os músculos, mesmo os da perna de que ele pouco se servia.
Os viajantes entraram numa rotina monótona, um dia fundindo-se no outro com enfadonha
regularidade. O avanço na estação se fazia tão gradual mente que mal perceberam quando o
sol se converteu numa bola de fogo abrasadora que torrava a planície, fazendo dela uma
paisagem monocrômica de terra amarelada, relva pardacenta e rochedos beges contra um
céu empoeirado num tom opaco, quase amarelo. Por três dias tiveram os seus olhos ardendo com a fumaça e cinzas que as correntezas de vento traziam de um incéndio que
varrera a planície. À medida que iam caminhando, passavam por dezenas de milhares de
animais alimentados pelas pastagens da planície:
imensas manadas de bisões, cavalos, asnos, onagros e, mais raramente, bandos de antilopes
saigas, com os seus cornos crescendo retos na parte superior da cabeça e ligeiramente
curvos na ponta.
Bem antes de aproximar-se do istmo pantanoso que tanto servia como ponto de união da
península com o continente, como de escoadouro para o mar, a noroeste, de águas salgadas
e pouco profundas, avultou-se diante deles o maciço de montanhas cuja altura era superada
apenas por outra no mundo. Mesmo os picos mais baixos revestiam-se de neves eternas
que chegavam até a metade das encostas, glacialmente impassíveis diante do calor
caustican te na planície. Quando o nível da pradaria começou a fundir-se com o das colinas pequenas e arredondadas, entremeando capim-do-prado e estipe com o vermelho do
minério de ferro - o ocre na cor sagrada que fazia dali um terreno santo - Brun
compreendeu que a parte pantanosa e salgada já não devia estar muito distante. Esta era
uma ligação secundária e mais estreita, pois a conexão principal da península com as terras
continentais era a que ficava mais ao norte, formando parte do limite ocidental do mar
interno menor.
Por dois dias, lutaram na travessia do pântano pútrido, infestado de mosquitos, de águas
estagnadas, cortado por uns poucos canais, antes de alcançarem o território continental.
Cárpeas e carvalhos raquíticos foram logo sucedidos pelas sombras frescas e bem-vindas
de um bosque de belos carvalhos. Passaram por um outro bosque quase exclusivamente
composto de faias e umas poucas nogueiras e entraram numa floresta de espécies variadas,
onde, além dos carvalhos em predominância com os seus troncos ornados de heras e
clematites, viam-se buxos e teixos. Os cipós foram rareando, mas ainda subiam por uma ou
outra árvore, quando eles atingiram uma zona com abetos e pinheiros misturados com as
faias, bordos e cárpeas. A parte ocidental da cadeia de montanhas era a mais úmida,
densamente coberta por florestas e on de a linha de neve se encontrava mais baixa.
Ali, surpreenderam bisões da floresta, veados, cabritos monteses e alces. Viram javalis,
raposas, texugos, lobos, linces, leopardos, onças e muitos outros animais de pequeno porte,
mas nenhum esquilo. Ayla sentia estar faltando qualquer coisa na fauna daquelas
montanhas, até que deu pela ausência da quele pequenino bichinho familiar, a qual, no
entanto, foi amplamente com pensada pela primeira visão do urso da caverna.
Brun ergueu a mão para cima em sinal de parada, depois apontou para a frente na direção
de uma monstruosa massa de pêlos que esfregava as costas contra uma árvore. Até mesmo
as crianças perceberam o temor com que os adultos encaravam o enorme vegetariano. Sua
presença física era impressionante. Os ursos marrons, existentes tanto nas suas montanhas
como naquelas, pesavam em média 150 quilos, enquanto o peso do urso macho da caverna,
durante o verã quando estava relativamente magro, chegava perto de 500 quilos. No final
do outono, depois de ter acumulado gordura para enfrentar o inverno, possuía volume bem
mais avantajado. Era três vezes mais alto do que os homens do clã e, com sua imensa
cabeça e seu manto de pêlo alto, parecia ter um volume ainda maior. Ali, preguiçosamente
coçando as costas num velho tronco de árvore, mostrava-se alheio às pessoas, à pequena
distância dele, inteiramente paralisadas em suas pernas. Ele não tinha muito por que ter
medo, simplesmente ignorava presenças estranhas. Sabia-se que os ursos marrons que
habitavam os terrenos perto de sua caverna eram capazes de, com um único murro dado
com a pata dianteira, quebrar o pescoço de um possan te veado. O que, então não faria
aquele ali? Somente um outro macho, durante a época do cio, ou a fêmea da espécie
querendo proteger seus filhotes
- ousava enfrentá-lo. A fêmea, por sinal, invariavelmente levava a melhor.
Entretanto, não era apenas a fantástica estatura do animal que deixavam o clã inteiramente
petrificado. Ali, achava-se Ursus, a figura que personificava os clã. Era um parente deles, e
até mais ainda, incorporava-lhes a própria essência. Seus ossos eram tão sagrados que
tinham força para desviar o mal. O
parentesco que sentiam era um elo espiritual, muito mais significativo do que o de sangue.
Através do espírito de Ursus, todos os clãs se uniam num só, e a reunião a que iam agora
assistir, depois de uma longa viagem, devia a ele sua significação. Era a sua essência que os
tornava a raça dos clãs, os Clãs do Urso da Caverna.
O urso cansou de coçar-se - ou talvez as comichões tivessem acabado - ergueu-se em
posição ereta, deu alguns passos usando só as patas traseiras e, depois, apoiando-se sobre as
quatro, com o focinho perto do chão, afastou-se num galope desajeitado e pesadão. Apesar
de seu enorme volume, o urso da caverna era basicamente um animal pacífico e raramente
atacava, a não ser quando provocado.
- Era Ursus? - perguntou Uba, maravilhada e em alvoroço.
- Sim, era Ursus - confirmou Creb. - E você verá um outro urso da caverna, quando
chegarmos ao clã hospedeiro.
- É verdade que o clã que nos vai hospedar tem um urso da caverna vivo preso numa
jaula? - perguntou Ayla. - Este é muito grande. - Ela sabia que era costume do clã que
sediava a reunião criar enjaulado um filhote de urso da caverna.
- Provavelmente, ele está nesse momento numa jaula do lado de fora da caverna, mas,
quando era pequeno, vivia dentro de casa com as pessoas e era criado como uma criança,
com todo mundo lhe dando comida na boca. Quase todos os clãs afirmam que seus ursos da
caverna chegam até a falar alguma coisa. não posso dizer se é verdade. não me lembro
muito disso. Depois de o urso já meio crescido, ele é aprisionado para que não possa ferir
ninguém, mas as pessoas continuam lhe dando muitos petiscos para comer e fazendo
festinhas nele para que saiba que é amado. Na nossa reunião, ele será festejado na
cerimônia do urso e levará nossas mensagens para o mundo dos espíritos - explicou Creb.
Elas já haviam ouvido falar sobre isso, mas a visão de um urso da caver na vivo dava novo
significado à história, principalmente para aqueles que eram muito jovens para se lembrar
ou que ainda não tinham comparecido a uma reunião dos clãs.
- Quando teremos uma reunião de clãs em nossa caverna, para termos também um urso da
caverna morando Conosco? - perguntou Uba.
- Quando chegar a nossa vez, a não ser que na época do clã designado, este não possa
sediar a reunião. Mas quase nunca os clãs deixam passar a opor tunidade de hospedar os
outros, mesmo que os caçadores tenham de fazer longas viagens para encontrai um filhote
de urso da caverna e que seja muito grande o perigo que representa a mãe do ursinho
capturado. O clã que agora está hospedando tem sorte. Ainda existem ursos da caverna
vivendo perto deles. Os caçadores daqui já ajudaram outros clãs a pegarem ursos, mas
agora
chegou a sua vez. Onde moramos não sobrou nenhum, mas eles devem ter existido naquela
zona, pois, quando encontramos a nossa caverna, os ossos de Ursus estavam lá dentro -
respondeu Creb.
- E se alguma coisa acontecer ao clã que vai ser hospedeiro da reunião? O nosso clã, por
exemplo, mudou de caverna - indagou Ayla. - Se fosse a nossa vez, como iriam saber
onde estamos vivendo?
- Enviaríamos mensageiros aos clãs mais próximos para espalhar a notícia, ou, então, para
comunicar que cederíamos nossa vez para um outro clã.
Brum acenou e todos se puseram novamente a caminho. Passando pela árvore usada pelo
urso para coçar-se, Creb a examinou muito detidamente e encontrou alguns tufos de pêlo
ainda agarrados na casca do tronco. Ajudando com os dentes, ele os embrulhou numa folha
e depois guardou numa dobra da roupa. O pêlo de um urso da caverna vivo era capaz de
poderosos feitiços.
As gigantescas coníferas nos sopés das colinas logo foram sendo substituídas por uma
variedade mais robusta e atarracada, enquanto eles ascendiam no terreno, descortinando a
magnífica vista de luminosos cimos montanhosos que viram de longe durante a travessia da
planície. Surgiram, então, pequenos bosques de vidoeiros ao lado de zimbros arrastando-Se
pelo chão e azaléias cor-de-rosa abrindo-se em flores e espalhando suas cores brilhantes
pelo verde forte das matas. E mais uma enorme multiplicidade de flores silvestres que
acrescentavam outros tons à palheta de cores vibrantes: lírios tigrinos pintados de laranja,
aquilégias malvas e rosas, alfarrobas azuis e vermelhas, íris azuladas, gencianas azuis,
violetas amarelas, prímulas rosas e o branco em todas as formas e intensidades. A cadeia de
montanhas ao sul, tal como a outra na parte baixa da ponta da península, as duas formadas
segundo a mesma orogenia, constituía-se num refúgio para a fauna e a flora nesse
continente da idade glacial.
Por vezes, surgiam-lhes pela frente alguma camurça ou carneiros de grossos e pesados
cornos. Já estavam quase chegando àtaiga montanhosa com suas coníferas ananicadas e
raquíticas que margeavam os altiplanos cobertos de capim e relva baixa, quando pegaram
uma trilha feita pelas pisadas de muitos pés que estavam sempre atravessando o íngreme
aclive. Os homens do clã hospedeiro eram obrigados a andar muito para poder chegar à
planície aberta que ficava ao norte das montanhas, mas, por outro lado, a proximidade dos
ursos da caverna fazia daquela uma região tão afortunada que, de bom grado, aceitavam a
inconveniência. Isso os levava também a ser mais propensos à caça dos esquivos animais
que habitavam as florestas.
Ao ver Brun e Grod aparecerem numa curva da trilha, as pessoas correram para saudar a
chegada do novo clã, mas pararam de repente ao avistar ayla. Mesmo com a educação de
uma vida inteira não conseguiram impedir-se de
lançar olhares escandalizados. A posição dela, à frente do grupo de mulheres, enquanto o
clã, cansado da viagem, desfilava pela área em frente da caverna, provocava rebuliço e
especulação de toda ordem. Creb já a havia avisado, mas ayla não esperava que fosse
causar uma comoção tão grande e tampouco estava preparada para enfrentar aquela multidão.
Mais de 200 pessoas, com as fisiononiias espantadas, amontoavam-se ao redor, querendo
ver a estranha mulher. A jovem nunca vira tanta gente reunida num só lugar.
Brun e seu clã pararam em frente de uma enorme jaula feita com grossas estacas
profundamente cravadas no chão e firmemente amarradas uma à outra. Dentro, achava-se
um exemplar do urso que tinham encontrado no caminho, este até maior. Alimentado por
três anos a fio com constância e fartura, o gigantesco urso da caverna se tornara um plácido
e dócil animal que se recostava indolente e preguiçosamente em sua jaula, quase gordo
demais para se levantar. Manter o imenso animal por tanto tempo havia representado para o
pequeno clã um trabalho de grande dedicação e amor reverente, não chegando a compensar
o esforço e os muitos presentes - comidas, utensílios e peles - trazidos pelos clã
visitantes. No entanto, não havia uma só pessoa que não invejasse o clã anfitrião, e
cada clã aguardava ansioso sua vez de realizar a mesma tarefa, colhendo os benefícios
espirituais e as honrarias do prestigioso evento.
O urso da caverna se remexia dentro da jaula querendo ver o que estava causando tanta
agitação, e Uba veio para mais perto de Ayla, tão abismada com o urso como com as
pessoas se acotovelando em volta. O chefe e o feiticeiro do clã hospedeiro se aproximaram,
fazendo gestos de saudação, logo seguidos por uma pergunta pouco amistosa.
- Por que você trouxe alguém dos Outros para a nossa reumião, Brun?
- gesticulou o chefe do clã anfitrião.
- Ela faz parte de nosso clã, Norg. É uma curandeira da linhagem de Iza - respondeu
Brun, aparentando mais calma do que realmente sentia. Ou viram-se murmúrios ao redor,
enquanto as mãos, excitadas, agitavam-se no ar.
- Isso é impossível! - gesticulou o mog-ur anfitrião - Como pode ser ela uma mulher dos
clã. Ela nasceu dos Outros.
- Ela pertence aos clãs - falou o Mog-ur, tão inflexível quanto Brum. E encarou o chefe
do clã hospedeiro com o seu olho lúgubre. - Está duvidando de mim, Norg?
O chefe, embaraçado, olhou para o seu mog-ur, mas a expressão confusa neste não o
ajudava em nada.
- Norg, fizemos uma longa viagem e estamos cansados - disse Brun. - Este não é o
momento apropriado para discutir o assunto. Você nos nega sua hospitalidade?
Era um momento de tensão. Se Norg os recusasse, a única alternativa
seria fazer o longo percurso de volta à caverna deles. A descortesia era grande, mas
permitir a entrada de Ayla importava em aceitá-la como uma mulher dos clã e isto, no
mínimo, já estava dando uma vantagem a Brun. Norg olhou outra vez para o seu mog-ur e,
em seguida, para o Mog-ur, o poderoso feiticeiro caolho e por fim novamente para o
homem que era o chefe do clã visitante, ocupando a primeira posição na hierarquia dos clã
Se o Mog-ur assim o afir mava, que mais lhe restava fazer?
Norg acenou para sua companheira, dizendo que mostrasse ao clã de Brun o lugar
reservado a eles, e se pôs a caminhar entre Brun e o Mog-ur. Logo que estivessem
acomodados, iria descobrir como pôde uma mulher visivelmente dos Outros ter-se
transformado em alguém dos clã
A boca de entrada da caverna do clã anfitrião era menor do que a entrada da deles, e a
caverna em si, ao entrar, parecia menor. Mas, ao invés de um enorme recinto com uma
pequena gruta anexa para cerimônias religiosas, a caverna se constituía de uma série de
ambientes e túneis que penetravam no interior da montanha, a maioria ainda
inexplorados. Havia espaço mais do que suficiente para alojar os clã em visita, embora não
fossem gozar das vantagens da luz vinda da entrada. O clã de Brun foi conduzido ao
segundo ambiente, a partir da entrada, e ocupou ali todo um lado. Era um lugar
privilegiado, correspondente à sua elevada posição na hierarquia dos clã Embora já houvesse vários clã instalados mais para o fundo da caverna, aquele local lhes estaria reservado,
enquanto não tivessem chegado para o Festival do Urso. Somente depois, quando se tivesse
certeza de que não viriam para a reunião, é que o lugar seria dado a outro clã, conforme a
ordem de importância.
Os clã como um todo não tinham um chefe supremo, mas havia uma hierarquia que os
regulava, tal como a que regia os membros dentro de um clã em particular, e o chefe do clã
de
posição mais elevada se convertia, de fato, no chefe dos clãs, simplesmente por ser o
membro mais importante de todos. No entanto, não havia nenhuma posição de absoluta
autoridade. Os clã tinham autonomia suficiente para que isto não acontecesse. Todos eram
chefiados por homens independentes e ditatoriais que estavam acostumados a ser, eles
próprios, a lei, e que se encontravam a cada sete anos. Eles não se rendiam facilmente a
uma autoridade superior, exceto àquela que dizia respeito à tradição e ao mundo dos
espíritos. O lugar que competia a cada clã dentro da hierarquia e, conseqüentemente, ao
homem que se reconhecia como chefe de todos os clãs, era decidido nessas reuniões.
Muitos elementos contribuíam para dar status a um clã. As cerimônias não eram a única
atividade do festival, as competições tinham igual, se não até maior importância. A
necessidade de cooperação dentro de cada clã para a sobrevivência, que impunha uma série
de restrições visando à autodisciplina, encontrava sua válvula de escape nas competições
endiredas. Estas, de maneira diferente, eram também necessárias à sobrevivência. As disputas controladas evitavam
que lutassem entre si e, quando se encontravam, quase tudo se tornava em objeto de
competição. As modalidades competitivas dos homens incluíam: luta-livre, arremessos com
funda e boleadeiras, força no uso da maça, corrida, corrida conjugada com estocadas de
lança, fabricação de ferramentas, dança, narração de histórias, e a combinação desses
dois últimos itens na dramatização de cenas de caçadas.
Embora suas competições não tivessem o mesmo peso que as dos homens, as mulheres
também davam sua contribuição. O grande banquete era excelente oportunidade para
demonstrações de dotes culinários. Os presentes trazidos para o clã hospedeiro eram
primeiramente expostos à vista de todos, quando, então, passavam por um julgamento
crítico cujo resultado saía do consenso de opiniões. Os artesanatos compreendiam: couros
macios e flexíveis; peles luxuosas; cestas impermeáveis; recipientes de couro ou cortiça;
cordas trançadas com tendões, ou então feitas de fibras vegetais ou de crina ani mal;
correias compridas e resistentes; bacias de madeiras bem polidas; pratos de osso ou de
madeira tirada das seções finas das toras; cujas, sopeiras, conchas e, mais ainda,
capuchos, chapéus, calçados, luvas, sacolas e até mesmo os bebês eram comparados. Entre
as mulheres, a premiação não se fazia de forma concreta. Havia um procedimento mais
sutil, traduzido nas expressões, gestos ou posturas que discriminavam com finura - mas
nem por isso numa distinção perceptiva menos correta do trabalho medíocre de um outro
de boa quali dade - e os aplausos se faziam para aqueles que eram realmente bons.
As posições referentes às curandeiras e aos mog-urs de cada clã eram também um fator na
determinação do status deste. O prestígio de Iza e Creb muito contribuiu para que o clã de
Brun ocupasse a primeira posição. Razões de tradição também influíram: o fato de já
encontrar-se nessa posição desde muitas gerações antes dele. Entretanto, ao assumir a
liderança, isso represen tou apenas uma ligeira vantagem para Brun. Por mais
importantes que fossem todos esses fatores, aquele que realmente decidia era a capacidade
de liderança do chefe. E se a competição entre as mulheres se fazia de modo sutil, muito
mais sutil ainda era o julgamento para se saber qual dos chefes seria o mais capaz e
valoroso.
Uma parte do julgamento dependia do desempenho dos homens nas competições, sendo
essa uma maneira para avaliar a competência do chefe em adestrá-los e motivá-los. Outra
dependia do quanto as mulheres se empenhassem em seus trabalhos e de como se
comportavam, também um modo de demonstrar a mão firme daquele que detinha o poder.
Outra ainda baseava-se na devoção do clã às tradições, mas a posição do chefe e
conseqüentemente a de seu clã dependia, sobretudo, da força de seu caráter. Brun sabia
que estava se arriscando demais, e o fato de ter trazido Ayla já o fazia perder terreno.
As reuniões de clã eram também uma oportunidade para o restabelecimento de velhas
amizades, rever parentes e contar histórias e fofocas que iriam animar as noites frias dos
próximos anos. Além disso, davam ensejo aos jovens, impossibilitados de achar parceiras
no seu próprio clã, de rivalizarem- se nos galanteios, apesar de que as uniões só se fariam
se a mulher fosse aceita pelo chefe do clã do rapaz. Era uma honra para a moça ver-se
escolhida, especialmente se o rapaz pertencesse a um clã com mais status do que o dela,
embora a mudança representasse uma violência e ela tivesse de separar-se das pessoas que
lhe eram queridas. Mesmo com a recomendação de Zoug e possuindo o status da linhagem
de Iza, era duvidoso, na opinião desta, de que Ayla fosse encontrar um companheiro. O fato
de possuir um filho poderia facilitar, mas, deformado, frustrava todas as esperanças.
Os pensamentos de Ayla andavam longe de tudo isso. Arrumar coragem para enfrentar
aquela multidão de curiosos, olhando desconfiadamente, já era um problema bastante grande.
Ela e Uba haviam desfeito os embrulhos e organizado a área da fogueira que seria o lar
delas, enquanto durasse a visita. A companheira de Norg providenciara pilhas de pedras
que deixou à mão para que se fizesse a demarcação das respectivas fogueiras, e os cantis
estavam cheios de água, também à disposição de quem quisesse. Ayla tomara todo o
cuidado na arrumação dos presentes que trouxera para o clã, fazendo tal como Iza lhe
recomendara, e a qualidade de seus trabalhos já começava a atrair atenção. Ela lavou-se
para tirar a sujeira da viagem, trocou a roupa por outra limpa, e depois foi amamentar o
filho, enquanto Uba esperava impaciente. A menina estava ansiosa para explorar a área
próxima da caverna e ver as pessoas, mas relutava em enfrentá-las sozinha.
- Ayla - gesticulou - todo mundo já está lá fora. não pode dar de mamar depois?
Prefiro muito mais estar sentada ao sol do que ficar dentro dessa caverna escura. Você não?
- não quero que Durc logo de saída comece a chorar. Você bem sabe como ele berra
alto. As pessoas podem pensar que não sou boa mãe - falou Ayla. - não quero que
pensem pior de mim do que já estão pensando. Creb disse que iriam ficar surpresos quando
me vissem, mas achei que eles não chegassem a ponto de pensar em não nos deixar ficar. E
tampouco imaginava que fossem ficar me encarando desse jeito.
- Mas deixaram, e depois que Creb e Brun acabarem de falar com eles, todos vão ficar
sabendo que você é uma mulher dos clã. Ande, Ayla. Você não pode ficar presa nessa
caverna para sempre. Mais cedo ou mais tarde vai ter de enfrentar toda essa gente. Depois
de algum tempo, vão acostumar-se com você do mesmo modo que nós. Afinal, não vejo
tanta diferença assim. Eu realmente preciso pensar nisso para ver.
- É que eu já estava no clã quando você nasceu, Uba. E essas pessoas
aqui nunca me viram antes. Bem, está certo. É melhor acabar com isso de uma vez. Vamos.
Não se esqueça de trazer alguma coisa para o urso da caver na comer.
Ayla se levantou, apoiou Durc contra o ombro e saiu dando-lhe tapinhas nas costas.
Passando pela fogueira de Norg, ela, respeitosamente, cumprimentou a companheira dele.
A mulher respondeu o gesto de saudação e logo voltou ao que fazia, de repente se
conscientizando de que havia estado encarando alguém. Ao aproximar-se da entrada, Ayla
ergueu um pouco a cabeça e respirou fundo. Estava resolvida a ignorar a curiosidade em
torno dela. Era uma mulher dos clã e pertencia a estes tanto como qualquer um ali.
Sua resolução foi posta a toda prova, quando veio para fora da caverna, à plena luz do sol.
Todo mundo havia encontrado alguma razão para ficar por perto da caverna, esperando a
saída da estranha mulher. Muitos tentavam ser discretos, mas a maioria esqueceu ou
ignorou as mais comezinhas regras de boas maneiras e se pôs a encará-la, pasma,
inteiramente boquiaberta. Ayla podia sentir o rubor no rosto. Mudou a posição de Durc no
colo e passou a olhar para ele, não precisando enfrentar toda aquela multidão de rostos virados em sua direção.
Foi uma sorte ela olhar para o filho. A atenção passou a focalizar-se nele que, até então
passara meio despercebido, diante do impacto causado por sua apariçção. Gestos e certas
expressões, alguns não muito discretos, deixavam bem claro o que pensavam de seu filho.
Ele não precisava ser igual a um bebé dos clãs, inclusive teria sido melhor aceito se fosse
apenas parecido com ela. A despeito de tudo quanto Brun e o Mog-ur pudessem ter dito,
Ayla era da raça dos Outros e o seu bebê se ajustava ao mesmo molde. Só que Durc tinha
muitas características próprias da raça clânica que faziam suas peculiaridades parecerem
anomalias. Ele era um bebê visivelmente marcado por defeitos de nascença e que não
deveria estar vivendo. Isso então só vinha diminuir o prestígio de Ayla como também
fazia Brun perder ainda mais terreno.
Ayla deu as costas para todos aqueles rostos de bocas abertas e olhares desconfiados e foi
com Uba para a jaula do urso da caverna. O animal ao vê- las se aproximarem atravessou a
jaula, vindo sentar-se com o braço estendido através das barras, esperando que lhe dessem
alguma coisa gostosa para comer. As duas recuaram diante da monstruosa pata de garras
grossas e curtas, mais apropriadas para escavar as raízes e tubérculos de dentro da terra -
o que constituía uma boa parte de sua alimentação - do que para levar sua massa enorme
para cima das árvores. Ao contrário dos ursos marrons, só os filhotes de sua raça eram ágeis
e suficientemente pequenos para conseguir subir em árvores. Ayla e Uba puseram suas
maças no chão da jaula, passando um pouco para dentro das grossas estacas, feitas com
troncos de árvore de porte razoável.
O animal, criado como uma criança muito querida que jamais passara fome em toda a vida,
estava inteiramente domesticado e muito à vontade diante das pessoas. Inteligente, já havia
aprendido que certas ações invariavelmente lhe traziam alguns bons petiscos extras. Ele se
sentou e pediu mais. Ayla teria rido de seus trejeitos desajeitados, mas se conteve a tempo.
- Agora entendo por que os clãs dizem que os ursos da caverna falam - gesticulou para
Uba. - Ele está querendo mais. Você tem outra maçã?
Uba lhe deu uma fruta pequena e arredondada e Ayla desta vez foi até a jaula e lhe entregou
na mão. O urso meteu a mação inteira na boca e veio de pois para perto das barras esfregar
sua enorme cabeça coberta de pélos contra uma saliência num dos troncos.
- Acho que está querendo que alguém coce por você, não é, seu comedor de mel? -
gesticulou Ayla. Ela fora avisada para nunca mencionar em sua presença os nomes urso,
urso da caverna ou Ursus, pois, se ele fosse chamado por seus verdadeiros nomes, poderia
lembrar-se de sua identidade e saber que não era um membro do clã que o havia criado.
Com isso, tornar-se-ia nova mente selvagem, podendo botar para perder a Cerimônia do
Urso e acabando com a razão de ser daquele festival. Ela lhe coçou atrás da orelha.
- Você gosta disso, não é, dorminhoco? - gesticulou Ayla, estendendo a mão para coçar
atrás da outra orelha que ele virou em sua direção. - Se quisesse, você mesmo podia
coçar suas orelhas. Você só é preguiçoso? Ou será que está querendo festinhas? Hem, seu
manhoso?
Ayla acariciava-o, coçando-lhe a imensa cabeça, quando Durc estendeu a mão querendo
agarrar um punhado de pêlos e ela deu um passo para trás. Já havia feito aquele mesmo tipo
de carinho nos bichos que levava feridos para dentro da caverna deles e ela compreendeu
que o urso era um animal como outro qualquer, só que maior e mais manso. Protegida pela
forte jaula, imediatamente perdeu o medo, mas, quando se tratava de seu filho, a questão
era outra. No instante em que o bebê levou sua mãozinha para pegar um punhado da
cabeleira do urso, a imensa boca e as enormes garras se mostraram perigosas.
- Como consegue chegar tão perto dele, Ayla? - perguntou Uba, apa vorada. - Eu teria
medo de fazer isso.
- Ele não passa de um bebê grandão, mas me esqueci de Durc. O urso poderia machucá-lo, mesmo que fosse para fazer uma carícia amigável. Ele parece com um bebê só quando
está pedindo comida ou querendo chamar atenção, mas não quero nem pensar no que é
capaz de fazer, se ficar com raiva - dizia Ayla, enquanto se afastavam da jaula.
Uba não era a única admirada com a coragem de Ayla, todos os clçalia- viam ficado
observando-a. A maioria dos visitantes, principalmente no princípio quando chegavam,
evitava passar por perto. Tornou-se, inclusive, um jogo
entre a rapaziada ver quem punha a mão na jaula ou tocava no urso, como prova de
coragem, e quanto aos homens, estes eram orgulhosos demais para, sentindo ou Não, deixar
transparecer algum medo. E no que dizia respeito às mulheres, fora as do clã anfitrião,
poucas eram as que passavam por perto e nenhuma seria capaz, logo de saída, de meter a
mão por entre as grades para acariciar o bicho. Era algo de inteiramente inesperado. Isso,
no entanto, não os fez mudar de opinião sobre Ayla, mas os deixou curiosos.
Depois de se haverem fartado bastante de olhar para Ayla, as pessoas foram se afastando,
mas ela ainda se sentia olhada sub-repticiamente. Os olhares francos da criançada não
chegavam a incomodá-la. Nelas, era a curiosidade natural que toda criança tem por tudo
quanto é fora do comum, sem a carga de reprovação ou desconfiança.
Ayla e Uba se dirigiram para a sombra formada por uma rocha que ficava à margem do
grande terreno em aclive e desmatado defronte da caverna. Dali, podiam observar
discretamente as pessoas, sem transgredir as regras do bom-tom.
Sempre houve uma intimidade de natureza muito especial entre as duas. Ayla havia sido
irmã, mãe e companheira de brinquedo da menina. Mas desde que a educação de Uba
começou a ser levada a sério e, sobretudo, depois que ela seguiu ayla até a pequena
caverna, a amizade delas se transformou mais numa relação de igual para igual. Eram
amigas íntimas. Uba já estava com quase seis anos, chegando à idade em que as meninas
começam a demonstrar interesse pelo sexo oposto.
Sentaram-se na sombra fresca, enquanto Durc, entre as duas, deitava-se de barriga para
baixo sobre a manta de carregar, agitando as pernas e os braços, com a cabeça erguida para
olhar em derredor. Durante a viagem, ele havia começado a balbuciar, fazendo um tipo de
ruído na garganta que jamais algum bebê do clã fizera. Isso preocupava Ayla, mas, um
tanto inexplicavelmente, também lhe agradava. Uba fazia comentários sobre os garotos
mais velhos e os rapazes, enquanto Ayla caçoava com simpatia. Como se houvesse um
acordo tácito, o assunto de um possível companheiro para Ayla não era tocado, se bem
que esta se achasse mais em idade para isso do que Uba. As duas se sentiam felizes por ter
terminado a longa viagem e teciam conjeturas a respeito da Cerimônia do Urso, já que nem
uma nem outra haviam estado antes numa reunião de clãs. Enquanto conversavam, uma
moça aproximou-se e, na linguagem formal conhecida por todos, perguntou se podia
juntar-se a elas.
Ayla e Uba a cumprimentaram. Era o primeiro gesto amistoso que recebiam. Um bebê
estava dormindo, seguro pela manta de carregar, e a moça não fez qualquer menção de
acordá-lo.
- Esta mulher se chama Oda - gesticulou ela, depois de ter se sentado e indicando, então,
que gostaria também de saber o nome delas.
- Uba. Esta menina se chama Uba e a mulher é Ayla.
- Aai.. . Aaigla? Um nome muito diferente. - Oda falava num dialeto que era expressado
por gestos um pouco diferentes, mas a essência de sua conversa era perfeitamente
compreensível.
- Este não é um nome dos clãs - respondeu Ayla. Ela compreendia a dificuldade que
tinham para pronunciar-lhe o nome e, mesmo no seu clã, havia alguns que não conseguiam
dizê-lo corretamente.
Oda fez que sim com a cabeça e levantou as mãos como se fosse falar qualquer coisa, mas
depois pareceu mudar de idéia. mostrava-se nervosa, pouco à vontade. Por fim, fez um
gesto na direção de Durc.
- Esta mulher está vendo que você tem um filho - falou, hesitante. - É menino ou
menina?
- Menino. Seu nome é Durc, como o garoto da lenda. A mulher conhe ce essa história?
Os olhos de Oda tinham uma curiosa expressão de alívio.
- Sim. Conheço. Não é um nome muito comum no clã desta mulher.
- Nem também no nosso. Mas esta não é uma criança comum. Dure é diferente. Seu nome
é muito apropriado - gesticulou Ayla, com um leve ar de desafio e orgulho.
- Esta mulher tem uma criança. É menina. Seu nome é Ura - disse Oda. Ela ainda
parecia nervosa e hesitante. Seguiu-se, então, um silêncio parecendo forçado.
- A menina está dormindo? Esta mulher gostaria de ver Ura, se a mãe permitir -
perguntou por fim Ayla, sem saber o que dizer à mulher, cuja cordialidade se fazia tão
reticente.
Por um instante, Oda pareceu ficar pensando no pedido. Em seguida, como se tivesse
tomado uma súbita decisão, retirou o bebê da manta e o botou nos braços de Ayla, que
arregalou os olhos, estupefata. Ura era um bebezinho que no máximo deveria ter nascido há
uma lua. Entretanto, não era o que espantava Ayla. Ura parecia com Dure! Parecia tanto
com Dure que poderia ser tomada como germana deste. O bebê de Oda poderia, inclusive,
ser sua filha!
A cabeça de Ayla dava voltas. O impacto fora grande demais. Como uma mulher da raça
dos clãs poderia ter tido um bebê que se parecia com ela? Achava que Durc fosse diferente
porque ele tinha uma parte que era da raça dos clãs e outra da dela, mas, neste caso, Brun
e Creb é que deveriam estar com a razão durante todo esse tempo. Dure não era diferente
como ela pensava, mas deformado, tal como o bebê de Oda. Ela se via inteiramente
confusa. Estava tão infeliz que não conseguia pensar em nada para dizer. Uba, por fim,
quebrou o longo silêncio.
- Seu bebê parece com Durc, Oda. - Uba se esqueceu de usar a linguagem cerimoniosa,
mas Oda compreendeu.
A moça confirmou com a cabeça.
- Esta mulher ficou surpresa, quando viu o bebê de Àaigla. Foi por isso que eu. . . que esta
mulher quis conversar. Eu não sabia se o bebê dela era me nino ou menina, mas estava
querendo que fosse menino.
- Por quê? - perguntou Ayla.
- Minha filha é deformada - gesticulou Oda, sem olhar para Ayla. - Tenho medo de
que ela não vá conseguir companheiro quando crescer. Que homem iria aceitar uma mulher
tão deformada? - Então, olhou para Ayla, com uma expressão suplicante. - Quando eu. .
- quando esta mulher viu seu filho, desejou que ele fosse homem porque. . . você sabe, não
vai ser fácil também para ele encontrar uma companheira.
Ayla ainda não havia pensado nesse assunto. Oda tinha razão, ele poderá ter problema para
achar uma companheira. Entendia agora o motivo por que Oda se aproximara delas.
- Sua filha é um bebê saudável? - perguntou. - Ela é forte?
Oda olhou para as suas mãos antes de responder.
- É uma criança magrinha, mas tem boa saúde. O pescoço é que é muito fraco -
gesticulou. - Mas já está ficando forte - acrescentou, pondo ênfase nos gestos.
Ayla olhou com mais atenção o bebê de Oda e depois pediu permissão para remover a
manta. Ura era mais troncuda do que Durc, com uma constituição semelhante à dos bebês
da raça dos clãs, mas sua ossatura era mais delicada. Tinha a mesma testa alta e a mesma
forma geral da cabeça, só que os supercílios se mostravam muito menos Salientes. O nariz
era quase pequeno e já se podia perceber claramente que iria ter as mandíbulas muito
desenvolvidas e não possuiria queixo. O pescoço era mais curto do que o de Dure, mas sem
dúvida alguma bem mais comprido do que o de qualquer bebê dos clãs. Ayla suspendeu a
menina, segurando automaticamente a cabeça, e reparou nos seus esforços iniciais - que
ela vira em Dure - para poder agüentar sua cabeça sobre o pescoço.
- O pescoço dela vai fortalecer, Oda. O de Durc era até mais fraco, quando ele nasceu, e
olhe agora.
- Você acha? - respondeu Oda, animada. - Esta mulher pede à curandeira do
primeiro clã para considerar esta menina como futura companheira de seu filho - falou,
muito formalmente.
- Acho que Ura dará uma boa companheira para Dure, Oda.
- Então seria possível você pedir a seu companheiro para que ele desse o seu
consentimento?
- não tenho companheiro - respondeu Ayla.
- Oh, mas então seu filho é infeliz - gesticulou Oda, desapontada. - Quem vai educá-lo,
se você não tem companheiro?
- Durc não é infeliz - insistiu Ayla. - Nem todos os bebês nascidos de mulheres sem
companheiros são infelizes. Eu vivo na fogueira do Mog-ur. Ele mesmo não caça, mas
Brun prometeu que iria educar meu filho. Durc será um bom caçador e irá poder manter
sua fogueira. Além disso, o Mog-ur falou que o totem dele é o Lobo Prateado e este é um
bom totem caçador.
- não tem importância. É melhor um companheiro infeliz do que nenhum -. falou Oda,
resignada. - Espero que você tenha razão Nosso mog-ur ainda não revelou o totem de Ura,
mas o Lobo Prateado tem bastante força para enfrentar qualquer totem de mulher.
- Menos o de Ayla - interpôs Uba. - O totem dela é o Leão da Caverna. Ela foi
escolhida.
- Como você pôde ter um bebê? - perguntou Oda, espantada. - O meu é o Hamster, só
que desta vez ele lutou demais. Com a minha primeira filha eu não tive tanto problema.
- Também tive muitos problemas com a gravidez. Mas você tem outra filha? Ela é
normal?
- Era. Agora, ela está caminhando no outro mundo - gesticulou Oda, com tristeza.
- Foi por isso que deixaram Ura viver? Estou surpresa por terem permitido que você
ficasse com ela - observou ayla.
- Eu não queria ficar com Ura, mas meu companheiro me obrigou. Este é o meu castigo
- confessou Oda.
- O seu castigo?
- Sim - confirmou Oda, com a cabeça. - Eu desejava ter uma menina e meu
companheiro um menino. Isso porque eu adorava a minha primeira filhinha. Quando ela
morreu, eu quis ter uma outra igual a ela. Meu companheiro disse que Ura nasceu
deformada, porque tive maus pensamentos durante a gravidez. Ele acha que, se eu tivesse
desejado um menino, meu bebê seria normal. Obrigou-me, então, a ficar com ela para que
todos soubessem que não sou uma boa mulher. Mas ele não me passou adiante. Talvez
porque ninguém mais quisesse ficar comigo.
- não acho que você seja uma mulher tão má assim - falou Ayla, com um olhar de dó.
- Iza desejou uma menina, quando estava esperando Uba. Ela me disse que todos os dias
pedia isso a seu totem. Como foi que sua filha morreu
- Ela foi morta por um homem - disse Oda, ficando vermelha e se sentindo
constrangida. - Ele se parecia com você, Aaigla. Era um homem dos Outros.
Um homem dos Outros?, disse consigo Ayla. Um homem que se parece comigo? A jovem
sentiu um frio perpassando por sua espinha e os cabelos arrepiando; e percebeu, então, a
confusão em que se achava Oda.
- Iza disse que eu nasci dos Outros, Oda, mas eu mesma não tenho qualquer lembrança
deles. Agora pertenço aos clãs - falou, para animá-la. - Como foi que aconteceu?
- Nós estávamos numa viagem de caçada. Além de mim, havia mais duas mulheres e os
homens. Nosso clã vive ao norte daqui, mas naquela vez caminhamos muito mais para o
norte. Nunca havíamos ido tão longe. Os homens saíram cedo do acampamento e nós
ficamos catando lenha e capim seco. Havia uma quantidade de varejeiras e nós tínhamos
de conservar a fogueira sempre acesa para secar a carne. Inteiramente de surpresa, esses
homens entraram em nosso acampamento. Eles queriam aliviar suas necessidades conosco,
mas não fizeram nenhum sinal. Se tivessem feito, nós nos poríamos em posição, mas não
nos deram a menor chance. Simplesmente nos agarraram e nos jogaram no chão. Foram muito
grosseiros. não deram nem tempo para que eu deitasse meu bebê na terra. O que me
agarrou, rasgou minha roupa e a manta, deixando o bebê cair, mas ele não percebeu.
- Quando terminou - continuou Oda - um outro homem já vinha me pegar. Foi então que
um deles viu o bebê. Ele pegou minha filha do chão e me deu, mas ela já estava morta.
Havia batido com a cabeça numa pedra, quando caiu. Depois, o homem que tinha visto
minha filha disse uma porção de palavras em voz alta e todos foram embora. Quando os
caçadores voltaram, nós contamos o que tinha acontecido e eles imediatamente nos levaram
de volta para a caverna. Meu companheiro foi muito bom para mim, depois que tudo isso
aconteceu. Ele também ficou triste por causa da minha filha. Fiquei tão feliz quando
descobri que, logo depois de ter perdido minha filhinha, meu totem tinha sido outra vez
derrotado. não deu nemtempo para que eu recebesse a maldição de mulher. Achei que meu
totem tivesse ficado com pena por eu ter perdido o bebê e por isso havia resolvido me
deixar ter um outro para compensar o que eu perdi. Foi por esse motivo que pensei que
deveria ter outra menina, só que nunca deveria ter desejado uma coisa dessas.
- Lamento muito - disse Ayla. - Nem sei o que faria, se perdesse Durc. E uma vez
quase que isso aconteceu. Vou falar com o Mog-ur sobre Ura. Tenho certeza de que ele vai
conversar com Brun sobre o assunto e acho que nosso chefe concordará também. Um
arranjo desses seria muito mais fácil do que tentar achar dentro do nosso clã alguém para
ser companheira de um homem deformado.
- Esta mulher ficaria agradecida à curandeira e promete educar bem sua filha. Ela será
uma boa mulher, não como a mãe. O clã de Brun é o mais importante de todos, acho
que meu companheiro vai concordar. Se souber que há um lugar para Ura no clã de Brun,
talvez já não fique tão zangado comigo. Ele está sempre me dizendo que minha filha será
para o resto da vida um far do e que nunca conseguirá qualquer status. E quando Ura ficar
mais velha,
vou lhe dizer que ela não tem de se preocupar por causa de um companheiro. A vida pode
ser muito difícil para uma mulher, se nenhum homem quiser aceitá-la.
- Eu sei - disse Ayla. - Logo que eu possa, falo com o Mog-ur.
Depois que Oda foi embora, Ayla ficou pensativa e preocupada. Uba percebeu que ela
queria ficar em silêncio e a deixou em paz. Pobre Oda, era feliz, tinha um bom
companheiro e uma filha normal. Então tiveram de aparecer esses homens e estragar tudo.
Por que, antes de mais nada, eles não fizeram o sinal? Será que não podiam ver que Oda
carregava um bebê? Esses homens dos Outros são tão ruins quanto Broud. Piores até. Pelo
menos Broud daria tempo para que ela pusesse seu bebê no chão. Bah, os homens e suas
necessidades! Homens dos Outros, homens dos clãs, tudo a mesma coisa.
Perdida em conjeturas, seu pensamento foi-se encaminhando para os Outros. Homens dos
Outros, homens que se parecem comigo. Quem são esses Outros? Iza disse que nasci deles,
por que eu não me lembro de nada? Nem sei que jeito eles têm. Onde será que vivem?
Tinha curiosidade de saber que aspecto tem um homem dos Outros. Lembrou-se de seu
rosto refletido na água e tentou imaginar um homem com sua cara. Mas quando queria
pensar num homem, a imagem que lhe vinha à mente era a de Broud e, de repente, como se
iluminado por um clarão, todo um turbilhão de idéias confusas que giravam em sua cabeça
foi-se encaixando, fazendo sentido.
Homens dos Outros! Claro! Oda disse que um deles aliviou suas necessidades nela e que,
depois disso, não foi amaldiçoada nem uma vez. Foi então que ela teve Ura, tal como eu
tive Durc, após Broud aliviar suas necessidades em mim. Aquele homem era dos Outros e
eu também nasci dessa gente, mas Oda e Broud são ambos da raça dos clãs. Nem Ura nem
Durc são deformados. Durc tem uma parte que é minha e outra que é do clã, e a mesma
coisa se dá com Ura. Ou seja: uma parte dela é de Oda e a outra pertence ao homem que
matou seu bebê. Isso quer dizer que Broud começou Durc... com o seu órgão, não com o
espírito de seu totem.
As outras mulheres que estavam com Oda não tiveram bebês deformados, mas se um bebê
fosse iniciado todas as vezes que os homens e mulheres fizessem isso, só haveria bebês
nesse mundo- Contudo, talvez Creb tenha razão também. O totem da mulher precisa ser
derrotado, só que ela não engole a essência do totem, esta é posta por um homem com seu
órgão, para depois misturar-se com a essência do totem da mulher. não é somente a
essência dos homens que produzem bebês, a das mulheres também.
Por que teve de ser Broud? Eu queria um bebé, o meu Leão da Caverna sabia o quanto eu
estava desejando um filho, mas Broud me odeia. E odeia Durc também. Mas podia ser
alguém mais? Nenhum outro homem está interessado em mim, eu sou muito feia. Broud só
fez isto porque sabia que eu
odiava a coisa. Será que meu Leão da Caverna sabia que Broud iria vencer? A essência dele
deve ser muito forte. Oga já tem dois filhos. Brac e Grev também devem ter sido
começados pelo órgão de Broud, como Durc.
Mas isso significaria que eles são germanos? Irmãos? Como Brun e Creb? Brun
também deve ter começado Broud botando sua essência dentro de Ebra. A não ser que isso
tivesse sido feito por outro homem. Pode ser qualquer um. Mas, não é provável. Em geral,
os homens não fazem sinal para a acompanheira do chefe, seria uma descortesia. Broud não
gosta de dividir Oga com os outros. Na caçada do mamute, Crug estava sempre usando
Ovra. Todo mundo via quando ele aliviava suas necessidades nela, e Goov se mostrava
muito obsequioso. Até Droog fez uma ou duas vezes a mesma coisa.
Se foi Brun quem começou Broud e se foi Broud quem começou Durc, isso não
significaria que Durc tem também uma parte de Brun? E ainda de Brac e Grev? Brun e
Creb são germanos, nasceram da mesma mãe e provavelmente foram começados pelo
mesmo homem. Esse também foi chefe. Então, isto faz com que Durc também tenha uma
parte de Creb. E de Iza? Ela é germana. Ayla abanou a cabeça. Tudo muito confuso, disse
consigo.
No entanto, fõi Broud quem começou Durc. Será que meu totem induziu Broud a fazer o
sinal para mim? Foi horrível, mas isso pode ter sido um teste e. talvez, não houvesse outro
jeito. Meu totem devia estar sabendo e planejou tudo. Ele viu o quanto eu queria um bebê e
me mandou aquele aviso para que eu soubesse que Durc iria viver. Se Broud soubesse
dessas coisas, certamente ficaria furioso. Ele, que me odeia tanto, acabou me dando a coisa
que eu mais queria no mundo.
- Ayla - falou Uba, interrompendo a linha de pensamentos da outra. - Acabei de ver
Creb e Brun entrando na caverna. Está ficando tarde e temos que começar a preparar
alguma coisa para comer. Creb deve estar morrendo de fome.
Durc caíra no sono. Acordou quando Ayla foi pegá-lo, mas logo voltou a dormir, enrolado
na manta, sentindo-se bem aconchegado junto do corpo da mãe. Tenho certeza de que
Brun vai deixar Ura vir para ser a companheira de Durc, pensou Ayla, enquanto
voltavam para a caverna do clã anfitrião. Os dois são muito mais feitos um para o outro do
que Oda imagina. Mas e eu? Será que ainda vou encontrar um companheiro que seja
também feito para mim?
Quando os dois últimos clã chegaram, Ayla foi obrigada, embora em menor escala, a
passar por uma segunda provação, igual àquela que teve a saudá-la na sua entrada. A
mulher alta e loura era uma aberração entre as quase 250 pessoas dos 10 clãs lá reunidos.
Por onde passava, chamava atenção, e cada um de seus atos era investigado
minuciosamente. Entretanto, por mais anormal que parecesse, não se conseguia detectar
nenhum desvio em seu comportamento e ela, por sua vez, tomava o máximo de cuidado
para que tal não acontecesse.
Não deixava transparecer nenhuma daquelas características que lhe eram tão peculiares e
que ainda escapavam, quando se via no ambiente mais relaxado de sua caverna. Não ria e
nem mesmo chegava a sorrir. Nenhuma lágrima molhava-lhe os olhos. Nada de passadas
desenvoltas ou movimentos livres de braços, balançando, traindo suas tendências pouco
femininas. Era o paradigma das virtudes clánicas, um exemplo da jovem matrona. . . e isso
ninguém reparava. Jamais alguém, fora as pessoas de seu clã, tinha visto uma mulher que
não agisse desse modo. Mas sua presença estava sendo aceita e, tal como Uba previra,
começavam a acostumar-se com ela. Além do que, numa reunião de clãs, havia tanta coisa
a fazer que uma mulher sozinha de fora não era novidade suficiente que conseguisse
prender a atenção por muito tempo.
Não era fácil manter, por um período muito prolongado, uma quantidade tão grande de
gente dentro dos limites fechados da caverna. Eram necessárias cooperação, coordenação
e uma boa dose de cortesia. Os chefes dos 10 clãs estavam muitíssimo mais ocupados do
que quando tinham apenas os membros de seus respectivos clãs para se preocupar. O
número de pessoas reunidas multiplicava os problemas.
Alimentar aquela multidão significava organizar expedição de caça. Se a hierarquia e as
normas estabelecidas dentro de um só clã facilitavam a ordenação dos caçadores, já dois
ou mais clã reunidos geravam problemas. A posição hierárquica do clã determinava qual
seria o chefe na combinação do grupo, mas qual dos homens ocupando o terceiro posto
seria o mais competente? No princípio, tentaram diversos esquemas, sempre com o cuidado
na troca de posições, de modo que ninguém saísse ofendido. Depois de as competições
haverem começado, já se tornava mais fácil; entretanto, nenhum grupo de caça saía sem
antes decidir as posições referentes aos homens.
As expedições das mulheres para colher plantas também levantavam problemas. No caso
delas, era o fato de que havia muitas mulheres e todas querendo apanhar os melhores
vegetais. Uma área podia rapidamente ser devastada, sem que nenhuma voltasse com tudo
que lhe era necessário. A comida em conserva que haviam trazido consigo ajudava na
alimentação de cada clã em particular, mas os alimentos frescos eram sempre mais
apreciados. O clã hospedeiro, já prevendo o período de reunião, costumava por
antecipação fazer suas coletas em terrenos afastados da caverna, mas, mesmo levando em
consideração essa cortesia, nunca havia o bastante para satisfazer todas as necessidades.
Se, por um lado, as pessoas desse clã podiam armazenar comida para o inverno durante o
tempo em que os Outros perdiam com a viagem,por outro, tinham de ter em estoque uma
quantidade extra. Ao término da reunião, os terrenos dos arredores do clã hospedeiro
estavam completamente desprovidos de plantas comestíveis.
A água, procedente de um rio perto alimentado por uma geleira, era farta, mas o mesmo já
não se podia dizer da lenha. A cozinha, a não ser que chovesse, era feita do lado de fora
da caverna e de preferência em conjunto por clã ao invés de cada fogueira ter a sua em
separado. Contudo, o consumo de lenha era muito grande, e uma boa parte da madeira seca
espalhada pelo chão e árvores que levariam várias estações para serem repostas foram
consumidas. O meio ambiente, nas imediações da caverna do clã hospedeiro, após uma reunião de clãs, jamais voltaria a ser o mesmo.
O suprimento não era o único problema a ser solucionado, o lixo era outro de igual
importância. Era preciso que se desse fim às sobras e aos detritos. Fora esse havia ainda o
problema de espaço. Era necessário que se providenciasse não só espaço no sentido de
abrigo dentro da caverna, mas também espaço para cozinhar, reunir, realizar as
competições, dançar, dar festas e, en fim, espaço também para se locomover. Organizar
todas essas atividades não era tarefa fácil. Cada uma delas implicava discussões e acordos
intermináveis, numa atmosfera carregada de espíritos altamente competitivos. Os costumes e as tradições nesse momento representavam importante papel no amortecimento
dos choques existentes, e era então que a mente administrativa de Brun mais se
salientava.
Não era apenas Creb o único a apreciar as reuniões de clãs que lhe proporcionavam
oportunidades para entrar em contato com os seus pares. Também Brun sentia grande
prazer no desafio de se bater contra homens com igual poder ao seu. Essa era a sua
competição: rivalizar-se com os outros chefes no exercício da autoridade. A interpretação
das velhas normas requeria comumente um espírito cheio de filigranas, além de habilidade
nas tomadas de
decisões e de força de caráter para mantê-las ou saber ceder quando necessário. Não era sem
razão que Brun se tornara o primeiro chefe em importância. Ele sabia quando devia ser
enérgico ou conciliador, ou quando precisava entrar em acordos ou permanecer isolado
em sua posição. Sempre que os clãss se reuniam, em geral surgia a figura de um homem
forte capaz de fazer daqueles chefes, impregnados de autoritarismo, seres racionais e
maleáveis, pelo menos enquanto durasse a reunião. E Brun era essa figura, um papel que
ele representava desde que se convertera no chefe de seu clã.
Tivesse ele perdido seu prestígio, só o fato de duvidar de si mesmo jáo levaria a perder
vantagem sobre os outros. Sem uma base de segurança funda mentada no julgamento de
sua própria pessoa, a falta de confiança tornaria duvidosas as suas decisões. Em tais
circunstâncias, seria impossível enfrentar a reunião e os outros chefes. Foi, entretanto,
justamente essa prática do uso da força conjugada com a transigência - sempre dentro das
rígidas estruturas da tradição clânica - que lhe permitiu fazer as concessões no caso de
Ayla. E, uma vez passada a ameaça, ele começou a vê-la sob um novo ângulo.
Ayla havia tentado forçar uma decisão mas não fez uma coisa que estivesse fora dos
costumes dos clã tal como ela os interpretava e, além disso, sua causa não era de todo
indigna. Certo, ela era mulher e tinha de entender qual o seu lugar, mas conseguira
recuperar o juízo a tempo e reconhecer os erros que cometera. Quando Ayla lhe mostrou o
lugar da pequena caverna, ele ficou espantado de que, nas condições de fraqueza em que se
achava, a jovem tivesse conseguido chegar até o local. Ele se perguntava se um homem
teria conseguido tal êxito, nas mesmas cirtunstâncias, e a masculinidade se media em
função da capacidade de suportar a dor e a adversidade. Brun admirava a tenacidade, a
coragem e a capacidade de resistência, três virtudes que demonstravam força de caráter.
Apesar de Ayla ser mulher, ele lhe admirava a firmeza de espírito.
- Se Zoug estivesse aqui, teríamos ganho no tiro com funda - falou Crug.
- Ninguém iria conseguir batê-lo.
- A não ser Ayla - comentou Goov, com gestos reservados. - Pena que ela não pudesse
competir.
- Não precisamos de mulher para vencer - gesticulou Broud. - E de pois, o tiro com
funda não conta tanto assim. Brun vai vencer o lançamento com boleadeiras. Ele nunca
perdeu nessa modalidade. E temos ainda também a corrida com lança para ser disputada.
- Mas Voord já ganhou a corrida simples, ele leva muita chance de ganhar esta também.
E Com, por sua vez, se saiu muito bem com a maça - comentou Droog.
- Espere até chegar o momento de mostrarmos nossa caçada de mamute. Nosso clã não
pode deixar de vencer - contrapôs Broud.
As reencenações de caçadas faziam também parte de muitas cerimônias e, às vezes, eram
levadas sem qualquer preparação após alguma caçada particularmente emocionante. Broud
tinha o maior prazer com essas representações. O rapaz sabia que possuía talento para
evocar os momentos de dramaticidade e os estados de euforia vividos durante as caçadas.
Além do mais, adorava ver-se como centro das atenções.
As reencenações de caçadas, entretanto, tinham um propósito bem mais importante do que
a função única de espetáculo. Eram sobretudo instrutivas. Com uma expressiva pantomima
e uns poucos acessórios, eles expunham técnicas e táticas de caça aos mais jovens e aos
outros clã. Era um modo de desenvolver e também de compartilhar experiências. Se lhes
perguntassem, responderiam que o grande prêmio recebido pelo clã vencedor neste
intrincado sistema de competições era status, vale dizer, o prestígio entre os seus pares.
Mas havia ainda outra recompensa, embora não reconhecida. As competições
aprimoravam os requisitos necessários à sobrevivência.
- Se você comandar a dança, Broud, nós venceremos - disse Vorn, que era agora um
garoto de 10 anos, quase chegando à idade viril e continuando com a mesma admiração
pelo futuro chefe.
- Pena que sua corrida não conte pontos, Vom. Fiquei observando, você ia lá na frente
enquanto os outros vinham muito atrás. Bem, serve de treino para a próxima vez - falou
Broud. O elogio deixou Vorn vermelho de felicidade.
- Nós ainda levamos uma boa chance, apesar de que possa dar tudo errado - falou
Droog. - Com é forte e, na luta-livre, ele se saiu muito bem contra você, Broud. não
tinha muita certeza se você conseguiria vencê-lo, O segundo de Norg deve estar orgulhoso
do filho de sua companheira. Ele cresceu muito desde a última reunião. Tenho impressão de
que é o homem de maior físico por aqui.
- É verdade que ele tem força - falou Goov. - Mostrou isso quando venceu a
competição de maça, mas Broud é mais ligeiro e quase tão forte quanto ele. Com foi um
segundo lugar quase primeiro.
- E Nouz é bom com a funda. Ele observou Zoug na vez passada e deve vir treinando
desde aquela época. não estava querendo ser outra vez derrotado por um velho -
acrescentou Crug. - Se treinou do mesmo jeito com as boleadeiras, pode dar trabalho a
Brun. Voord corre rápido, mas acho que dá para você pegá-lo, Broud. Este também foi um
segundo lugar muito perto do primeiro. Você estava só um passo atrás dele.
- Droog faz as melhores ferramentas - gesticulou Grod, que poucas vezes fazia algum
comentário espontaneamente,
- Uma coisa, Grod, é fazer uma boa coleção de peças e trazer para cá, e outra é fabricar
com todo mundo olhando. Vou precisar de sorte. Esse rapaz do clã de Norg tem muito
talento - respondeu Droog.
- Essa é a única competição que o mais velho leva vantagem sobre o mais jovem, Doog.
Ele vai estar nervoso e você já tem experiência de outras competições Consegue concentrar-
se melhor - falou Goov, encorajando.
- Mas sempre se precisa de sorte.
- Todos vão precisar - disse Crug. - Continuo achando que o velho Dorv sabe contar uma
história melhor do que ninguém.
- É porque você está acostumado com ele - gesticulou Goov. - Essa é uma competição
muito difícil de julgar. Mesmo algumas das mulheres sabem contar uma boa história.
- Mas nunca conseguem ser tão emocionantes como nossas danças sobre caçadas. Acho
que vi o clã de Norg conversando sobre uma caçada de rinoceronte que eles fizeram, mas,
quando me viram por perto, pararam de falar - gesticulou Crug. - É possível que a
exibição deles seja sobre essa caçada.
Oga se aproximou timidamente e fez sinais dizendo que a comida estava pronta. Eles
acenaram, mandando-a retirar-se. Ela esperava que não demorassem muito para vir comer.
Quanto mais eles se retardassem, mais elas demorariam a ir juntar-se às outras mulheres
contando histórias, e Oga não queria perder nenhuma. Em geral, eram as velhas que faziam
o relato das histórias e lendas dos clã por meio de pantomimas e representações teatrais.
Quase sempre eram histórias de teor educativo, mas que também entretinham algumas tristes, dilacerantes; outras, alegres, trazendo encantamento e motivação, e ainda as
humorísticas que ajudavam a tornar menos ridículos seus próprios momentos embaraçosos.
Oga voltou à fogueira perto da caverna.
- Tenho a impressão de que ainda não estão com fome.
- Mas acho que acabaram resolvendo vir - falou Ovra. - Só espero que não fiquem
demorando muito para comer.
- Brun também está vindo. A reunião dos chefes deve ter acabado, mas não sei onde está
o Mog-ur - acrescentou Ebra.
- Ele entrou cedo na caverna com os outros mog-urs. Devem estar na gruta dos espíritos.
Ninguém pode saber quando vão sair lá de dentro. Devemos esperar por ele? - perguntou
Ika.
- Eu separo alguma coisa para ele comer depois - falou Ayla. - Ele sempre se esquece
de comer, quando está se preparando para alguma cerimônia. Está tão acostumado a comer
comida fria que chego a pensar que até gosta mais assim. Acho que não vai se importar de
não esperarmos por ele.
- Veja, já estão começando. Vamos perder as primeiras histórias - gesticulou Ona,
decepcionada.
- não posso fazer nada, Ona - disse Aga. - não podemos ir enquanto os homens não
terminarem.
- Mas não vamos perder muitas, Ona - falou Uka, a título de consolo.
- Essas histórias vão continuar pela noite inteira. E amanhã os homens vão representar as
melhores caçadas que fizeram e eles nos deixar ver. Não vai ser ótimo?
- Gosto mais das histórias contadas pelas mulheres - falou Ona.
- Broud disse que nosso clã vai levar a caçada do mamute. Ele tem quase certeza de que
vamos vencer. Brun deixou que ele conduzisse a dança - gesticulou Oga, com
expressão orgulhosa.
- Isso vai ser formidável, Ona. Eu me lembro de que Broud, quando ficou homem,
conduziu a dança de sua caçada. Eu ainda não sabia falar e nem entendia nada, mas mesmo
assim fiquei emocionada - comentou Ayla.
Depois da comida servida, as mulheres esperaram impacientes, lançando olhares ansiosos
para o grupo de mulheres reunidas num ponto afastado da clareira.
- Ebra, vá ouvir as suas histórias que nós temos certas coisas a tratar
- gesticulou Brun.
As mulheres pegaram os bebês, arrebanharam as crianças e se dirigiram ao grupo sentado
em volta de uma velha que estava no momento principiando uma nova história.
-. . . e a mãe da Grande moontanha de Gelo...
- Depressa - gesticulava Ayla. - Ela está contando a história de Durc. Não quero
perder nem um pedacinho. É a de que eu mais gosto.
- Todo mundo já conhece essa, Ayla - falou Ebra.
As mulhers do clã de Brun arrumaram lugares para sentar-se e, instantes depois, já
estavam presas à narrativa da velha.
- Ela conta um pouco diferente - gesticulou Ayla, passado algum tempo.
- Cada clã tem a sua versão e cada pessoa tem o seu jeito de contar, mas a história é a
mesma. É que você está acostumada só com o modo de Dorv contar. Ele é homem e por
isso sabe melhor como os homens pensam. Quando é uma mulher contando, ela fala mais
sobre as partes que se referem às mães. Não apenas da mãe da Grande moontanha de Gelo,
mas de como a mãe e de Durc e de todos os outros ficaram tristes quando eles deixaram o
clã - respondeu Ika.
Ayla se lembrou de que o filho de Ika morrera durante o terremoto. Ela também conhecia
a dor da mãe que perde seu filho. A nova versão trouxe também para Ayla uma nova vista
da
história. Por um momento, ficou com a testa franzida, preocupada. O nome de meu filho é
Durc, espero que isso não signifique que algum dia eu vá perdê-lo. Abraçou-se com o bebê, Não, não vai
acontecer. Uma vez quase perdi meu filho, mas o perigo agora já passou? não é?
Enquanto Brun calculava com muita atenção a distância a separá-lo de um toco de
árvore, perto da borda do terreno desmatado em frente da caverna, uma brisa isolada
levantou alguns fios soltos de seu cabelo, refrescando por momentos sua testa suada. O que
sobrara da árvore, os galhos podados, foi usado para construir uma parte da jaula do urso da
caverna. A aragem apenas acariciava, sem trazer qualquer alívio ao sol da tarde sufocante,
incindin do sobre o pátio empoeirado. No entanto, a leve brisa chegava a ter mais
movimento do que a multidão que observava, tensa, alinhada na periferia.
Brun, de pé com as pernas afastadas, o braço direito pendente e segurando na mão a
empunhadura das bolas, achava-se tão imóvel quanto os outros. As três pedras
arredondadas, ajustadas dentro de um envoltório apertado de couro e ligadas por cordas de
diferentes tamanhos, estavam caídas sobre o chão. Brun queria vencer essa competição,
Não só pelo fato de estar competindo - isso também era importante - mas porque
precisava provar aos outros chefes que continuava mantendo a vantagem de sempre.
Trazer Ayla à reunião lhe custara um alto preço. Compreendia agora que ele e seu clã
estavam muito acostumados com ela. Ayla era algo extremamente anômalo para que as
pessoas a aceitassem em tão pouco tempo. Até mesmo o Mog-ur estava tendo trabalho para
manter-se em sua posição e ainda não conseguira convencer os outros mog-urs de que ela
era uma curandeira da linha de Iza. Eles preferiam até passar sem a bebida especial de
raízes do que dar sua permissão para Ayla fabricá-la. A perda do status de Iza representou a
retirada de mais um dos alicerces que sustentavam a mais certa posição de Brun.
Nas competições se não chegassem simplesmente em primeiro lugar, ele tinha certeza de
que não teriam mais o status de primeiro clã. Embora ainda estivessem concorrendo, o
resultado estava longe de poder ser dado como certo. E ainda que vencesse as competições,
nada assegurava que o clã continuaria na primeira posição, isso apenas o poria em
igualdade com os demais. Havia ainda uma quantidade de outras variáveis a considerar. O
clã hospedeiro sempre levava uma dianteira e, no caso, era o de Norg, aquele justamente
que mais estava empenhado na luta. Se este pegasse um segundo lugar, Norg, com isso, já
contava com bastante respaldo para ascender à primeira posição. Norg o sabia e era o seu
oponente mais implacável. Graças unicamente à sua grande força de vontade, Brun vinha
mantendo-se no seu posto.
Brun semicerrou as pálpebras mirando o toco. Esse movimento mínimo bastou para que
metade dos observadores prendessem a respiração. No momento seguinte, a figura inteiramente parada converteu-se num movimento alucinante e as
três bolas, girando em torno de seu centro, voaram na direção do toco. No instante mesmo
que as boleadeiras saíram de sua mão, Brun sabia que perdera o tiro. As pedras bateram
no alvo e depois saltaram mais adiante sem que as cordas houvessem enroscado nele.
Brun foi buscar sua arma, enquanto Nouz veio ocupar seu lugar. Se Nouz não atingisse
o alvo de forma alguma, Brun venceria. Se batesse no toco, os dois teriam uma segunda
chance, mas caso Nouz conseguisse enrolar as boleadeiras no toco, a partida era sua.
Brun se pôs de lado com o rosto impassível, resistindo à vontade de levar a mão ao
amuleto, limitando-se apenas a dirigir uma súplica muda a seu totem. Nouz não teve os
mesmos escrúpulos. Segurou no saquinho de couro pendurado no pescoço, fechou os olhos
e, em seguida, olhou para o toco. Subitamente, explodiu em movimento vertiginoso,
fazendo as boleadeiras voarem. Apenas os longos anos de educação impediram Brun de
deixar transparecer o desapontamento quando as boleadeiras se enrolaram, prendendo-se
no toco. Nouz vencera, e Brun sentiu sua posição lhe escapando mais ainda.
Permaneceu no seu lugar, enquanto três panos de couro eram trazidos para o pátio. Um foi
amarrado no pedaço do tronco já apodrecido de uma enorme árvore cujo topo escalavrado
era pouco mais alto do que os homens. Outro, foi posto por cima de uma tora e preso no
chão com pedras. Era um tronco de tamanho regular, coberto de musgo, que se achava
caído no chão, próximo à orla da mata; e o terceiro pano foi estendido sobre o chão e também preso com pedras. Os três couros formavam um triângulo mais ou menos de lados
iguais. Cada clã escolheu um homem para essa prova, os quais foram alinhar-se de acordo
com a hierarquia clânica, perto do couro estendido no chão. Outros homens, carregando
lanças - quase todas feitas de madeira de teixo, vidoeiro, faia ou salgueiro, que para isso
também servia - dirigiram-se para os outros alvos.
Dois rapazes provenientes de clãs menos categorizados formaram a primeira parelha.
Esperavam lado a lado, tensos, com os olhos presos em Norg e cada um carregando uma
lança. Ao sinal do chefe, eles se lançaram na direção do tronco em pé, no qual enfiaram as
lanças através do couro, mirando o ponto onde deveria estar o coração, quando a pele
cobria o animal ainda vivo. Em seguida, apanharam uma outra lança com os seus
companheiros de clã que aguardavam do lado do alvo. Correram para a tora caída,
enterrando nesta a segunda lança. Quando chegou a vez de pegar a terceira, um deles estava
nitidamente na dianteira. Esse correu em direção ao ponto de partida, onde se encontrava o
couro estendido no chão e aí fincou fundo a lança, procurando acertar bem no meio da
pele, quando, então, vitoriosamente, ergueu os braços.
Depois de primeira fase eliminatória, sobraram cinco homens. Três deles vieram postar-se
para a segunda corrida, já agora de clãs de maior categoria. Àquele que chegasse por
último, dava-se uma outra chance contra os dois restantes. E os dois que chegassem em
segundo disputariam entre si, de modo a restar no campo três homens para disputarem a
final: os dois primeiros colocados dessas duas últimas disputas, e o vencedor da primeira
corrida. Os finalistas foram Broud, Voord e um homem do clã de Norg, chamado Gorn.
Dos três, apenas Gorn havia vencido quatro corridas para ter o seu lugar nas finais,
enquanto os outros dois tinham disputado só duas e se achavam razoavelmente
descansados. Gorn vencera o primeiro par nas eliminatórias, mas chegou em terceiro na
corrida com os três clãs de status mais elevados. Ele tornou a correr com os dois últimos
homens e chegou em segundo. Disputou, então, com o homem que foi o segundo colocado
na corrida em que ele chegara em terceiro lugar, desta vez vencendo-o. Foi só por pura
perseverança e força de vontade que Gorn alcançara as finais, ganhando a admiração de
todos que se achavam lá.
Quando os três homens se alinharam para a corrida final, Brun foi para dentro de campo.
- Norg - falou ele - penso que a corrida final teria resultado mais justo, se fosse
atrasada para que Com pudesse descansar um pouco. Acho que o filho da companheira de
seu segundo em comando merece isso.
As cabeças balançaram em sinal de aprovação e a cotação de Brun subiu um pouco,
embora isso fizesse Broud amarrar a cara. A sugestão punha seu clã numa posição mais
difícil, fazendo desaparecer a possível vantagem que Broud levava correndo com um
homem já cansado, mas mostrava o senso de justiça de Brum, e Norg não tinha por que se
opor. Brun rapidamente havia pesado as duas alternativas possíveis: Broud não
vencendo, o clã estaria arriscado a perder sua posição; e ganhando, o seu manifesto espírito
de justiça lhe restituiria o prestígio, ao mesmo tempo que ele dava uma impressão de confiança que estava longe de sentir. Seria, além disso, uma vitória limpa e já não haveria a
desculpa de que Broud vencera pelo fato de Corri estar cansado. E, enfim, era o mais justo.
Já estava entardecendo quando todos voltaram a se reunir em volta do campo. A tensão
relaxada durante o intervalo voltou a pesar, inclusive com mais força. Os três rapazes,
agora bem descansados, exibiam-Se dando voltas, aquecendo os músculos e suspendendo
as lanças para sentir seu ponto de equilíbrio. Goov, com mais dois homens de outros clãs, se
dirigiu para o toco de árvore, e Crug, também na companhia de outros dois, encaminhou-
se para a tora no chão. Broud, Com e Voord alinharam-se um ao lado do outro com os
olhos fixos em Norg. O chefe do clã anfitrião levantou o braço e o abaixou de uma só vez,
dando a partida.Voord saltou à frente com Broud em seus calcanhares, enquanto Gorn vinha atrás, dando
o máximo que podia. Voord já estava pegando a segunda lança, quando Broud enfiava a sua
no tronco de madeira podre. Gomn aumentou sua velocidade, pressionando ilroud na
corrida em direção à tora no chão, mas Voord mantinha a dianteira. Ele ia cravar sua lança
na tora coberta de couro, no momento exato em que Broud levantava a sua. Voord, no
entanto, bateu num nó da madeira e a lança se esborrachou no chão. Quando tornou a pegá-
la para enfiá-la novamente, tanto Broud como Gorn já tinham passado à frente. Voord
agarrou a terceira lança e os segurou, mas para ele a corrida já estava perdida.
Broud e Gom, com as pernas bambeando e os corações batendo forte, partiram para o
último obstáculo. Gorn começou à frente de Broud e passava a ganhar terreno, mas ao
ver a figura daquele gigante espadaúdo, fazendo-o comer a poeira de seus pés, Broud
encheu-se de raiva. Tinha a impressão de que os pulmões iam estourar, enquanto se
lançava adiante, forçando cada músculo e nervo do corpo. Gom alcançou o couro estendido
um instante antes de Broud e estava levantando o braço quando Broud se precipitou por
baixo, fazendo a lança atravessar o couro e cravar-se no chão, ao mesmo tempo em que ele
passava por cima da pele. A lança de Gom foi espetada na batida seguinte do coração, mas
tarde demais.
Quando Broud parou, os caçadores do clã de Brum amontoaram-se a seu redor. Brun, com
os olhos brilhando de orgulho, observava. Seu coração batia quase tão forte quanto o de
Broud. Ele sofrera junto com o filho de sua com panheira cada instante da corrida. Durante
alguns momentos de grande tensão, estava certo de que ele perderia, mas Broud dera
tudo de si e ganhara. Fora uma corrida decisiva, mas, com essa vitória, suas chances
melhoraram bastante. Devo estar ficando velho, pensou consigo, perdi o lançamento com
as boleadeiras, mas Broud Não. Ele ganhou. Talvez tenha chegado o momento de passar o
controle do clã para ele. Poderia convertê-lo no chefe, e dar a no tícia aqui mesmo. Lutarei
pela primeira posição do clã e deixo Broud voltar para casa com todas as honras. Depois
dessa corrida, ele merece isso. E é o que vou fazer. Falarei com ele neste instante!
Brun esperou até que os homens acabassem de dar parabéns a Broud para então
aproximar-se, já antevendo a alegria do rapaz, quando soubesse da grande homenagem que
seria prestada a ele. Era uma justa recompensa por aquela magnífica corrida. O maior
prêmio que poderia dar ao filho de sua companheira.
- Brun! - Broud havia visto o chefe e falou primeiro. - Por que você teve de atrasar a
corrida? Eu quase perdi. Poderia ter vencido facilmente, se você não tivesse dado tempo a
Gorn para descansar. Você não se importa com a posição do nosso clã? - gesticulou o
rapaz, cheio de petulância. - Ou será
porque você já está velho demais para ser o chefe na próxima reunião? Se vou ser eu o
chefe, o mínimo que você poderia fazer era deixar o clã ocupando a primeira posição, do
modo como você o recebeu.
Brun recuou, surpreso diante de tamanha virulência. Fazia força para controlar suas
emoções contraditórias. Será que não entende, será que algum dia irá entender?,
perguntava-se Brun. Este clã é o primeiro e dependendo de mim continuará sempre sendo.
Mas o que irá acontecer quando você for o chefe, Broud? Por quanto tempo este clã
continuará ocupando o primeiro posto? Já não existia mais orgulho nos seus olhos e sim
uma grande mágoa que procurava não deixar transparecer. Talvez Broud ainda esteja jovem
de mais, esteja precisando de um pouco mais de tempo, argumentava consigo
- deve estar precisando ainda de um pouco mais de experiência. Será que realmente
expliquei direito as coisas a ele? Brun não queria lembrar-se de que, para ele, ninguém
havia explicado nada.
- Broud, se Gom estivesse cansado, sua vitória teria sido a mesma? E se os outros clãs
achassem que você só venceu porque o outro estava cansado? Desse modo, todos têm
certeza de que você de fato ganhou e isso se aplica também a você. Mas você se portou
muito bem, filho de minha com panheira - gesticulou Brun, com gentileza. - Fez uma
bela corrida.
Apesar da amargura, Broud continuava respeitando Brun mais do que qualquer outro
homem que já conhecera na vida e não pôde deixar de reagir com um pouco mais de
simpatia. Naquele momento, tal como na caçada de sua passagem, Broud sentiu que daria
qualquer coisa para ter um elogio de Brun.
- não tinha pensado nisso, Brun. Desse modo, ninguém pode duvidar de que eu não tenha
vencido. Agora sabem que sou melhor do que Gom.
- Com essa corrida e Droog vencendo na fabricação de ferramentas e mais a vitória essa
noite com a nossa representação da caçada do mamute, tenho certeza de que chegaremos
em primeiro - falou Crug, entusiasmado.
- E você será um dos escolhidos para a Cerimônia do Urso, Broud.
Enquanto caminhava para a caverna, outros homens foram se aproximando para lhe dar os
parabéns. Brun ficou observando Broud e depois viu Gorn seguindo atrás, cercado pelo
clã de Norg. Um velho dava palmadas no ombro do rapaz, num gesto de encorajamento.
O segundo de Norg tem motivos para estar orgulhoso do filho de sua companheira, pensou
Brun. Broud pode ter vencido a corrida, mas tenho certeza de que Gorn, como homem, é
melhor. Ele tinha conseguido apenas controlar sua mágoa, mas não vencê-la. Embora se
esforçasse por sufocar a tristeza, a dor persistia. Broud continuava sendo o filho de sua
companheira, o filho de seu coração.
- Os homens do clã de Norg são caçadores de coragem - admitiu Droog. - Foi um bom
plano, esse de cavar um buraco no caminho que o rinoceronte usava para beber água e
depois cobri-lo de folhas. Talvez a gente possa tentar a mesma coisa algum dia. Foi
preciso muita coragem para arrastá-lo de volta, quando ele tentou fugir. Os rinocerontes
são, às vezes, mais bravos do que os mamutes e muito mais imprevisíveis. E os caçadores
de Norg representaram muito bem a caçada.
- Mas não chegou a ser tão boa quanto a nossa caçada do mamute. Todo mundo
concordou - falou Crug. - Apesar de que Gom merecesse também ser escolhido. A luta
quase toda foi entre Broud e Gom. Por um instante, tive medo de que não fôssemos vencer
a competição deste ano. O clã de Norg vem num segundo lugar muito perto de primeiro. O
que você acha do terceiro homem escolhido, Grod?
- Voord se portou bem, mas eu teria escolhido Nouz - respondeu Grod. - E acho que
Brun teria também preferido.
- Foi uma escolha difícil, mas acho que Voord mereceu - comentou Droog.
- Daqui por diante, enquanto o festival não terminar, não vamos ver muito Goov por aqui
- disse Crug. - Agora que as competições acabaram, os acólitos vão ficar o tempo todo
com os mog-urs. Só espero que as mulheres não pensem que pelo fato de Brun e Goov
não virem comer essa noite conosco, não tenham que fazer bastante comida. Vou tratar de
comer bem hoje, até a festa amanhã não vai haver, nada.
- Acho que se estivesse no lugar de Broud, eu não iria ter vontade de comer nada - falou
Droog. - É uma grande honra essa de ser escolhido para a Cerimônia do Urso, mas, se
alguma vez Broud vai precisar ter coragem na vida, será amanhã. E vai precisar de muita.
Os primeiros clarões da manhã já encontraram a caverna vazia. As mulheres estavam de pé,
trabalhando à luz vinda das fogueiras, e o resto das pessoas não conseguiu dormir. Os
preparativos preliminares para a festa haviam consumido dias, mas isso não era nada em
comparação com o trabalho que tinham pela frente. O dia ficara claro bem antes que o sol
surgisse por cima dos cumes das montanhas, já alto no céu, quando banhava com o calor de
seus raios os terrenos da caverna.
A agitação era palpável, e a tensão insuportável. Uma vez terminadas as competições, os
homens se achavam irrequietos, sem nada a fazer até que chegasse a hora das cerimônias,
O estado de nervosismo e inquietação se transmitia aos meninos maiores que, por sua vez,
deixavam os menores desassossegados, fazendo as mulheres se distraírem do trabalho, com
um mundo de homens e crianças esbaforidas atravancando seus caminhos.
A agitação diminuiu por algum tempo, quando elas distribuíram bolinhos de fubá com
água, assados sobre pedras quentes. A refeição matinal foi feita numa atmosfera de grande
circunspecção. Esses bolinhos eram servidos só neste dia, a cada sete anos e, afora as
crianças de peito, seria a única coisa que iriam comer até o momento da festa. Era um
alimento quase meramente simbólico, servindo apenas para aguçar o apetite. Quando a
manhã já ia pela metade, a fome, estimulada pelos deliciosos aromas vindos das muitas
fogueiras, fazia aumentar a agitação levando, à medida que se aproximava a Cerimônia do
Urso, o clima de ansiosa expectativa a um estado de extrema tensão.
Creb não se aproximara de Ayla ou de Uba com qualquer instrução no sentido de elas se
prepararem para o ritual a ser celebrado pouco depois naquele dia, e elas estavam certas de
que os mog-urs não haviam achado nem uma nem outra aceitável. Elas não eram as únicas
a
lamentar a doença de Iza que a impediu de fazer a viagem. Creb havia usado todo o seu
poder de persuasão para convencer os outros feiticeiros a deixarem uma das duas preparar a
bebida, mas, apesar de que teriam gostado de ter o ritual com as sensações proporcionadas
pela bebida de raízes - uma rara oportunidade para eles - consideraram que Ayla era
demasiadamente estranha, e Uba jovem demais para a prática do cerimonial. Os mog-urs
recusavam-se a aceitar Ayla como uma mulher dos clã e menos ainda como uma curandeira proveniente da linha de Iza. A celebração de Ursus afetava muitíssimo os clã presentes.
As conseqüências - boas ou más - de qualquer ritual lá celebrado recairiam sobre todos
eles. Os mog-urs não iriam arriscar-se a invocar forças maléficas que poderiam trazer
desgraças para toda a população clânica. Era um risco grande demais.
Eliminar essa tradicional parte do cerimonial contribuiu muito para o rebaixamento de
Brun e seu clã. Por mais que seus homens se tivessem esforçado nas competições, a
aceitação de Ayla por Brun representava mais ameaça a posição do clã do que qualquer
coisa que porventura houvesse acontecido. Era algo inteiramente fora dos padrões. Somente
a resistência férrea de Brun diante da oposição crescente mantinha ainda a questão pendente, e ele não se via nem um pouco seguro de que no final fosse sair vitorioso. Não muito depois que os bolinhos foram servidos, os chefes vieram postar-se perto da
entrada da caverna. Ali esperaram calmamente que os clãs, reunidos em assembléia, lhes
prestassem atenção À medida que se tomava conhecimento da presença deles, o silêncio
foi-se propagando tal como as ondas feitas por uma pedra caindo numa superfície de água
parada. Os homens rapidamente se arrumaram de acordo com a hierarquia dos clã e a
posição social relativa de cada um dentro deste. As mulheres pararam o trabalho, fizeram
sinais para que as crianças se comportassem e, em silêncio, elas lhes seguiram o exemplo. A
Cerimônia do Urso estava para começar
A primeira batida num tambor de madeira, parecido a uma gamela que se batia com um pau
liso e resistende, ressoou como um trovão em meio ao silêncio de expectativa. O ritmo lento e
solene foi seguido pelas pancadas de lanças no chão, fazendo um fundo em surdina, ao
mesmo tempo em que as batidas dadas num instrumento de madeira na forma de um tubo
comprido e oco construíam em contraponto com as batidas fortes e solenes um tema rítmico aparentemente independente do primeiro. Apesar de os ritmos em staccato serem
tocados em tempos diferentes, estes tinham uma batida forte que coincidia - como se por
acaso - com as quintas batidas do ritmo básico. Os sons se combinavam, gerando uma
sensação cada vez maior de expectativa, quase de ansiedade, até que, num dado momento,
todas as batidas passaram a ser ouvidas em uníssono. Cada instante de relaxamento dava
partida a novo estado de tensão. num clima de hipnotismo criado por sucessivas ondas de
sonoridades e sensações.
Subitamente, numa atmosfera já saturada, todos os sons pararam com um rufar final. Como
se houvessem se materializado do ar, os mog-urs, envoltos em suas capas de pele de urso,
surgiram, numa fileira de nove, diante da jaula do urso da caverna com o Mog-ur à frente
deles. A sensação rítmica ainda repercutia na cabeça das pessoas num ambiente de silêncio
opressor. O Mog-ur levava na mão uma placa oval de madeira com uma corda atada numa
de
suas extremidades. Quando ele começou a girá-la no ar, ouviu-se um zunir fraco que
gradativamente foi aumentando com a força cada vez maior de rotação até tornar-se um
rugir alto tomando o clima de silêncio. A ressonância obsedante e grave daquele mugir
provocava arrepios nas pessoas, tanto por seu significado como pelo timbre sonoro. Era a
voz do Espírito do Urso da Caverna avisando os outros espíritos que se afastassem daquela
cerimônia dedicada exclusivamente a ele. Nenhum espírito de totem estaria ali para lhes dar
assistência, achavam-se todos sob a proteção do Grande Espírito dos Clã.
Um som agudo e chilreado penetrava o outro, baixo e gutural. O uivado alto em tom
lamentoso fazia com que até os mais corajosos sentissem seus cabelos arrepiando, enquanto
o mugir grave aos poucos emudecia. O uivo fantasmagórico, sobrenatural, bem próprio
de algum espírito desencarnado varava a luminosa atmosfera da manhã. Ayla, na fileira
da frente, viu que o som saía de qualquer coisa presa na boca de um dos mog-urs.
A flauta feita do osso oco tirado da pata de um pássaro não tinha buracos para os dedos.
Controlavam-se os sons tapando e destapando a extremidade aberta. Nas mãos de um bom
tocador, esse instrumento extremamente rudimentar podia tocar uma escala pentatônica
completa. Para Ayla, bem como para todos ali, a música desconhecida era fruto de magia,
soando como alguma coisa jamais ouvida nesse mundo. Vinha, por ordem dos feiticeiros, a mando dos
espíritos, exclusivamente para esta cerimônia. Tal como o som parecido com um mugido
simbolizava o rugir concreto do urso da caverna, a flauta era a voz espiritual de Ursus.
O próprio feiticeiro que tocava o instrumento sentia, como sagrado, o som saído daquela
flauta primitiva, apesar de que fosse ele quem o produzia. Fabricar e tocar a flauta mágica
era um segredo esotérico dos feiticeiros de seu clã, segredo que sempre lhes garantiu um
alto status na hierarquia dos clãs. Somente o talento inigualável de Creb teria podido
desbancar o mog-ur tocador de flauta para o segundo posto, mas um segundo lugar
altamente prestigioso. E era justamente esse feiticeiro que mais se opunha à aceitação de
Ayla.
O imenço urso da caverna andava de lá para cá dentro da jaula. não lhe tinham dado de
comer e ele não estava acostumado a ficar sem comida. Nunca passara um só dia de fome
em toda a sua vida. Até mesmo a água lhe havia sido retirada e ele estava morto de sede. A
multidão, o cheiro de excitação, a atmosfera tensa, os sons nunca ouvidos de tambores,
mugido e flauta, tudo se combinava para deixá-lo nervoso.
Quando viu o Mog-ur se encaminhando para a jaula, firmou seu imenso corpanzil sobre as
patas traseiras e rugiu queixoso. Creb automaticamente estremeceu, mas logo se recobrou
do susto, conseguindo disfarçar com um trejeito aparentemente normal. Seu rosto, bem
como o dos outros mog-urs, estava enegrecido com uma pasta de dióxido de manganês e
sua apreensão não transpareceu no momento em que inclinou a cabeça para trás de modo a
poder olhar melhor para o pobre animal. Creb carregava um recipiente com água, cuja
forma e cor num tom cinza-amarelado não deixavam dúvida de que a cuia era a caveira
tirada de um esqueleto humano. Ele pôs o macabro recipiente dentro da jaula e deu alguns
passos para trás, enquanto o urso se abaixava para beber.
Nisso, apareceram 21 caçadores jovens que cercaram a jaula, cada um trazendo na mão
uma lança recentemente feita. Os chefes dos sete clã que não tiveram a felicidade de ter um
dos seus homens escolhido para as honrarias especiais haviam selecionado três dos
melhores caçadores de suas fileiras para essa cerimônia. Em seguida, Broud, Gorn e
Voord vieram correndo para fora da caverna e se alinharam do lado da porta bem amarrada
da jaula. Vestiam apenas uma pequena tanga e tinham os corpos pintados de vermelho e
preto.
A pouca quantidade de água não deu para matar a sede do animal, mas ele esperava que os
homens próximos da jaula lhe dessem mais e se sentou pedindo, fazendo gestos que nunca
haviam ficado antes sem resposta. Ao perceber que seus esforços eram em vão,
encaniinhou para o homem que se achava mais perto, metendo na sua direção o focinho através das grossas barras da jaula.
A música da flauta parou numa nota desagradavelmente inconclusiva que elevava a
expectativa naquele clima de silêncio e ansiedade. Creb retirou a caveira transformada em
cuja e veio para o seu lugar em frente dos feiticeiros enfileirados na entrada da caverna. A
um gesto invisível, os mog-urs começaram todos ao mesmo tempo a fazer os movimentos
usados na linguagem ritualística.
Aceite essa água como testemunho de nossa gratidão, ó Nosso Todo- Poderoso Protetor. Os
clãs não esqueceram as lições que você ensinou. A caverna é o nosso lar, protegendo-nos
contra a neve e o frio do inverno. Nela, também descansamos em paz, aquecidos por peles e
alimentados com a comida colhida no verão. Você tem sido um de nós, vivido conosco e
sabe que guardamos os seus preceitos.
Com os rostos pintados de preto e vestidos todos iguais com capas de pele de urso, os
feiticeiros lembravam um conjunto bem ensaiado de dança nosmovendo-se num todo,
enquanto falavam com gestos ondulantes e solenes. A eloqüência do Mog-ur, com seu
único braço, casava-se com a dos outros. Embora um pouco diferente, ele a pontuava com
movimentos elegantes que lhe davam um maior realce.
- Nós o adoramos, você que é o primeiro dentre todos os espíritos. Pedimos que interceda
por nós no mundo dos espíritos, que fale da coragem de nossos homens, da obediência de
nossas mulheres e que prepare o nosso lugar para quando retornarmos ao outro mundo.
Imploramos sua proteção contra os espíritos malignos. Nós somos o seu povo, ó Grande
Ursus, formamos os clãs do Urso da Caverna. Honra lhe seja feita, ó Espírito de Todos os
Espíritos.
Enquanto os mog-urs diziam pela primeira vez na presença do animal dos nomes por que
era ele conhecido, os 21 caçadores passaram as suas lanças através dos grossos postes de
madeira, ferindo a venerada criatura. Nem todos conseguiram lhe arrancar sangue, a jaula
era bastante grande para que todas as lanças pudessem penetrar fundo no corpanzil do
animal, mas a dor o enfureceu, fazendo com que soltasse um rugido de raiva que quebrou a
atmosfera de silêncio. As pessoas, incontinentemente, deram um pulo para trás.
Broud, Gorn e Voord se puseram, então, a escalar a paliçada para remover as cordas que
amarravam a porta da jaula. Broud foi o primeiro a chegar em cima, mas Gorn
conseguira agarrar uma tora grossa e curta que havia sido posta lá anteriormente. O urso
enlouquecido de dor ergueu-se nas patas traseiras e, rugindo sua raiva, foi na direção dos
três. Sua colossal cabeça chegava quase à altura dos troncos mais altos da jaula. Ele, então,
alcançou aabertura e puxou a porteira espatifando-a no chão. A jaula estava aberta e o monstro, louco
de ódio, solto!
Os caçadores com as suas lanças correram para formar uma falange protetora entre a besta
exasperada e a platéia tomada de pavor. As mulheres, lutando contra a vontade de fugir,
apertavam os bebês nos colos, enquanto as crianças mais velhas se colavam a elas, com os
olhos arregalados de terror. Os homens haviam pegado as lanças, prontos para saltar em
defesa. Mas ninguém se arredou do lugar.
Quando o animal ferido passou pelo buraco na jaula de madeira, Broud, Gorn e Voord,
que se equilibravam na cumeeira da jaula, pularam de surpresa sobre ele. Broud caiu por
cima dos ombros e segurou o animal pelos pêlos da cara, pondo-se a dar puxões que lhe
suspendiam a cabeça. Nesse meio tempo, Voord, que aterrara nas costas, agarrou a
cabeleira e a puxava para baixo, usando todo o peso do corpo, fazendo esticar a pele frouxa
ao redor do pescoço do urso. A combinação dessas duas forças obrigava o animal -
sempre se debatendo - a ficar com a goela à mostra, e Gom, que estava montado num dos
ombros, rápido, lhe enfiou pela boca o lado grosso da tora. O urso parou em seus passos e
Broud soltou as mãos para dar safanões no pedaço de madeira, calcando-o bem entre as
mandíbulas, impedindo-o de respirar. Uma das armas do urso fora invalidada.
Mas a tática não o desarmou inteiramente. Furioso, meteu a pata numa das criaturas que se
agarravam nele. As afiadas garras se cravaram na coxa do homem sobre seu ombro trazendo-o para
os seus braços colossais. O grito de agonia de Gor foi subitamente interrompido por um
abraço poderosíssimo do urso que lhe partiu a espinha. Quando o corpo do rapaz caiu sem
vida, um longo e doloroso gemido partiu da direção de uma das mulheres na assistência.
O urso, cambaleando, avançou para o grupo de homens que tinham as lanças empunhadas
ao alto, fazendo seu cerco. Com um violento murro dado com a parte lateral da pata
dianteira, o animal abriu um claro, derrubando três e acertando uma violenta cutilada num
quarto que teve os músculos da perna rasgados até os ossos. O homem dobrava-se de dor,
abalado demais para poder gritar. Os outros passavam por cima ou em volta dele,
aglutinando-se perto da fera, de modo a poder alcançá-la com as lanças.
Ayla, horrorizada, abraçava Durc, morta de pavor de o urso chegar até onde estavam. Mas,
ao ver o homem caído, com o sangue esparramando pelo chão, não pensou duas vezes.
Meteu o bebê no colo de Uba e se atirou no meio da confusão da luta. Forçando a passagem
através do bolo compacto de homens, meio arrastando, meio carregando, conseguiu botar o
ferido fora do alcance das pisadas. Com uma das mãos ela apertou o ponto de compressão da
artéria na virilha do homem e, com a outra, pegou a extremidade da correia de sua roupa,
que botou entre os dentes, partindo um pedaço.
Já havia posto o torniquete e limpava o sangue com a manta de seu bebê, quando chegaram
duas outras curandeiras, seguindo-lhe o exemplo. Elas, apavoradas, procurando passar ao
largo do tumulto, tinham vindo ajudar. As três carregaram o ferido para a caverna e, nos
seus desesperados esforços para salvar-lhe a vida, nem repararam que o urso, por fim, havia
sucumbido sob as lanças dos caçadores.
No momento em que o animal foi abatido, a companheira de Gorn soltou-se dos braços
das pessoas que procuravam consolá-la e correu para o corpo esparramado no chão. Ela se
atirou sobre o rapaz, enterrando o rosto no seu peito cabeludo, depois, de joelhos, em gestos
desesperados, implorou para que o companheiro se levantasse. Sua mãe e a companheira de
Norg tentavam afastá-la, quando se aproximaram os mog-urs. O grande feiticeiro abaixou-
se e delicadamente lhe levantou a cabeça para olhá-la.
- Não fique triste por ele - falou o Mog-ur, com expressão terna e compassiva. - Gorn
foi agraciado com a maior de todas as honras. Ele foi escolhido por Ursus para
acompanhá-lo ao mundo dos espíritos. Seu companheiro ajudará o Grande Espírito a
interceder por nós. O Grande Urso da Caverna só escolhe os melhores e os mais corajosos
para fazerem a viagem com ele. A festa de Ursus será também a festa de Gorn. Sua
coragem e seu espírito de luta se transformarão numa lenda a ser contada em todas as
reuniões de clã Tal como Ursus retorna a nós, o espírito de Gorn também voltará. Ele
estará esperando por você para que os dois possam regressar juntos, quando então irá tomá-
la novamente por companheira. Mas você tem de ser tão corajosa quanto ele. Afaste sua
tristeza e participe da alegria de seu companheiro na viagem ao outro mundo. Nesta noite,
os mog-urs lhe prestarão uma homenagem especial para que todos possam compartilhar de
sua coragem e para que sua valentia seja transmitida a todos os clãs.
A moça visivelmente lutava para controlar a angústia que ia nela e poder mostrar-se tão
corajosa como lhe dizia o grande feiticeiro. A figura aleijada do Mog-ur, com seu medonho
rosto caolho e temido de todos, afinal não parecia tão assustadora. Com um olhar de
agradecimento, a moça se levantou e se encaminhou com o corpo ereto de volta a seu lugar.
Ela precisava ser corajosa. O Mog-ur não lhe dissera que Gorn estaria esperando por
ela? Que os dois algum dia voltariam a ser companheiros novamente? Agarrava-se a este
pensamento, procurando esquecer o triste vazio que seria daqui por diante sua vida sem ele.
Quando a companheira de Gorn chegou a seu lugar, as mulheres dos chefes e dos
segundos em comando começaram o trabalho de retirar a pele do urso. O sangue foi
recolhido em bacias e, após os Mog-urs haverem feito sobre estas alguns gestos de sentido
religioso, os acólitos foram passando diante dos membros de seus respectivos clã e levando
à
boca de cada um deles um vaso
contendo uma porção do sangue. Todos - homens, mulheres e crianças - provaram do
sangue ainda quente, do fluido da vida de Ursus. Até os bebês ti veram suas bocas abertas
pelas mãe que, com o dedo, lhes molharam a língua com o sangue fresco. Ayla e as duas
curandeiras foram trazidas da caverna para receber as suas porções, e o homem ferido que
perdera tanto do dele ganhou um bom gole para restaurar-lhe as forças. Todos participaram
da comun com o Grande Ursus que os unia num só povo.
As mulheres trabalhavam rapidamente, enquanto os clã ficavam observando. A grossa
camada subcutãnea de gordura, propositadamente criada no animal, foi com muito cuidado
raspada da pele. Era uma parte que continha propriedades mágicas, por isso seria derretida
e distribuída entre os mog-urs. A cabeça foi deixada presa no couro e levaram a carne para
dentro de covas, já preparadas com uma forração de pedras, onde ficaria assando durante
todo o dia. Os acólitos penduraram a imensa pele em postes na frente da caverna, num lugar
de onde os olhos do animal poderiam observar as festividades. O urso da caverna seria o
hóspede de honra numa festa cujo banquete era ele próprio. Depois da pele armada, os
mog-urs apanharam o corpo de Gorn e, muito dignos e solenes, o carregaram para os
recônditos da caverna. Feito isso, a multidão, a um aceno de Brun, dispersou. O Espírito
de Ursus fora posto a caminho, com os dignos rituais.
Mas, como pôde ela fazer isso? Nenhuma outra teve coragem de chegar perto e ela não mostrou o menor medo - dizia o mog-ur do clã
a que pertencia o homem ferido. - Era quase como se soubesse que
Ursus não iria atacá-la. Exatamente como aconteceu no primeiro dia. Acho que o Mog-ur
tem razão ela foi aceita por Ursus. É uma mulher dos clã Nossa curandeira disse que foi ela
quem salvou a vida dele. Além de ter sido bem treinada, ela tem um dom natural, como se
tivesse nascido para isso. Acredito que ela seja realmente da estirpe de Iza.
Os mog-urs estavam numa gruta situada bem no interior da montanha. Lâmpadas de pedra
e pratos rasos com gordura de urso empapando pavios feito de musgo traçavam um círculo
de luzes que quebravam um pouco a absoluta escuridão ao redor deles. As pequeninas
chamas iluminavam as facetas escondidas dos cristais de rocha e se refletiam na cintilação
das estalactites gotejantes que pendiam do teto, formando pingentes nunca concluídos e
ansiosos pelos encontros com as suas contrapartidas crescendo no chão. Os pingos de
calcário, filtrados pela pedra secular, concretizavam-se em majestosas colunas,
adelgaçadas no centro, que iam do chão ao teto abobadado. Para que uma das estalactites
encontrasse sua companheira no beijo substancial estava faltando apenas a espessura de um
fio de cabelo, uma ponte, no entanto, que levaria séculos a ser construída.
- Já no primeiro dia, ela surpreendeu a todos quando não demonstrou qualquer medo de
Ursus - disse outro feiticeiro. - Mas, se eu concordar, ain da dá tempo para que ela se
prepare?
- Se nos apressarmos, sim - respondeu o Mog-ur.
- Ela nasceu dos Outros, como pode ser uma mulher nossa? - questionou o mog-ur
tocador de flauta. - Os Outros não são clãs e nunca serão. Você disse que ela já veio com a
marca de um totem dos clãs, mas essa não é marca de um totem de mulher. Como pode ter
certeza de que é um sinal nosso? O Leão da Caverna nunca foi totem de nossas mulheres.
- Jamais disse que ela nasceu com a marca - falou o Mog-ur, ponderando. - Você
está insinuando que um Leão da Caverna não pode escolher uma mulher? O Leão da
Caverna escolhe quem ele bem entender. Ela, quando foi
encontrada, estava praticamente morta. Iza trouxe-a de volta à vida. Por acaso você imagina
que uma garotinha pode escapar de um leão, se não estiver sob a proteção de seu espírito?
Ele botou sua marca na menina para que não houvesse a menor dúvida de sua intenção. A
marca na perna dela é a de um totem nosso e isso ninguém pode negar. Por que iria receber
uma marca de totem dos clãs, se não estivesse destinada a se tornar uma de nossas
mulheres? não sei por que e nem pretendo entender a razão por que os espíritos agem
dessa ou daquela maneira. Com a ajuda de Ursus, às vezes, posso interpretar o que eles
fazem. Será que algum de vocês pode fazer mais do que isso? Apenas digo que ela conhece
o ritual. Iza lhe passou o segredo das raízes que estão dentro da sacola vermelha e Iza não
lhe revelaria isso, se ela não fosse sua filha. não há necessidade de desistirmos dessa
parte do ritual. Bem, já lhes dei todos os argumentos que eu tinha; agora, decidam. Mas
que sejam rápidos.
- Você disse que seu clã acredita que ela seja alguém de sorte - gesticulou o mog-ur de
Norg.
- não somente alguém de sorte, mas também que traz sorte. Nós temos sido muito
felizes, desde que ela foi encontrada. Droog pensa nela como uma espécie de sinal daqueles
que os totens costumam enviar, como alguma coisa rara e fora do comum. Talvez, à sua
maneira, ela tenha também sorte.
- Bem, não resta dúvida de que fora do comum ela é. Já basta ser dos Outros e, ao mesmo
tempo, ser também uma mulher dos clã - comentou um dos mog-urs.
- Hoje, ela trouxe sorte para nós. O nosso caçador irá viver - falou o
mog-ur pertencente ao clã do homem atacado pelo urso. - Estou inclinado a
consentir. Seria uma pena nos privarmos da bebida de Iza, quando isso não é
necessário.
Muitos acenaram com as cabeças concordando.
- E quanto a você? - perguntou o Mog-ur, dirigindo-se ao feiticeiro logo abaixo dele na
hierarquia. - Ainda julga que Ursus ficará descontente, se Ayla fizer a bebida para o
ritual?
Todas as cabeças se viraram para olhá-lo. Se o poderoso feiticeiro persistisse na recusa, ele
tinha bastante influência para fazer com que outros feiticeiros também impedissem a
preparação da bebida. Mesmo que ele ficasse sozinho em sua decisão e o resto concordasse,
isso já era o suficiente. Tinha de haver unanimidade, não havia lugar para cisma em suas
fileiras. Ele tinha os olhos abaixados, refletindo sobre o problema; depois, olhou o rosto de
cada um.
- não se trata de agradar ou não Ursus. É que eu ainda não estou convencido. Existe
alguma coisa nela que me incomoda. Mas é evidente que ninguém deseja eliminar essa
parte do ritual e parece que ela é a única pessoa disponível. Chego quase a preferir lançar
mão da filha verdadeira de Iza,apesar de sua pouca idade. Mas enfim, se todos estiverem de acordo, retiro minha objeção.
Não gosto, mas não vou impedir.
O Mog-ur olhou para cada um, recebendo de todos o consentimento. Disfarçando um
suspiro de alívio com os esforços que fazia para se pôr de pé, Creb logo em seguida saiu.
Guiado pelas lamparinas foi atravessando diversas passagens abrindo-se em pequenos
recintos que novamente tornavam a se estreitar em corredores, até que o caminho, já
chegando perto do alojamento dos clã passou a ser iluminado por tochas espaçadas em
intervalos regulares.
Ayla estava sentada junto do homem ferido na caverna da frente. Ela tinha Durc no colo e
Uba se sentava do outro lado dela. A companheira do homem também se achava ali e, cheia
de gratidão, de vez em quando, lançava um olhar para Ayla.
- Ayla, rápido, você tem de se preparar! não há muito tempo - gesticulou o Mog-ur. -
Você tem de andar depressa, mas não se esqueça de nenhuma das coisas que tem de fazer.
Quando estiver pronta, procure-me. Uba, leve Durc para Oga lhe dar de mamar. Ayla não
vai ter tempo para fazer isso.
As duas, surpresas, olharam para o feiticeiro, espantadas com a súbita mudança nos planos.
Durante um instante, ficaram sem compreender, mas então Ayla acenou com a cabeça
afirmativamente e correu à fogueira deles na segunda caverna para pegar uma roupa limpa.
O Mog-ur virou-se, em se guida, para a mulher que observava o sono do companheiro.
- O Mog-ur gostaria de saber como vai passando o rapaz.
- Aiiga diz que ele vai viver e caminhar outra vez. Mas sua perna nunca mais será a
mesma. - A mulher falava em outro dialeto e a gesticulação de sua linguagem coloquial era
tão diferente que Ayla e Uba tinham dificuldade de entendê-la, comunicando-se com ela
apenas na linguagem protocolar. O feiti ceiro, entretanto, estava mais acostumado com os
dialetos falados nos outros clã embora preferisse a linguagem protocolar para se fazer
melhor enten dido.
- O Mog-ur gostaria de saber qual o totem deste homem.
- O Cabrito montês - respondeu a mulher.
- As pernas de seu companheiro eram tão boas como as do cabrito montês? -
perguntou o feiticeiro.
- Assim diziam - começou ela a falar. - Mas este homem, hoje, não foi muito esperto e
agora não sei como ele vai fazer. E se ele nunca mais voltar a andar? Como vai caçar e me
sustentar? O que faz um homem que não caça? - Com os nervos muito abalados, quase
histérica, ela passou a usar a linguagem coloquial.
- O rapaz vai viver e isso não é o mais importante? - falou o Mog-ur, querendo acalmá-
la.
- Mas ele é orgulhoso. Se não puder caçar, talvez até tivesse preferido morrer. Era um
bom caçador, poderia, inclusive, chegar um dia a ser o se gundo em comando. Agora,
nunca vai subir de posto. Pelo contrário, será rebaixado.
- Mulher! - gesticulou o Mog-ur, pondo um ar severo no rosto. - Nenhum homem
escolhido por Ursus é rebaixado. Seu companheiro deu provas de grande coragem. Quase
foi escolhido para acompanhar Ursus em sua viagem ao outro mundo. O Espírito de Ursus
não escolhe impunemente. O Grande Urso da Caverna resolveu que ele aqui
permanecesse, mas carregando consigo sua marca. A esse homem foi dada a honra de
poder agora reivindicar Ursus como seu totem. Suas cicatrizes serão as marcas de seu novo
totem. Ele deve ostentá-las com orgulho e nunca lhe faltar meios para mantê-la. O Mog-ur
falará com seu chefe. Seu companheiro tem o direito de exigir uma fração de cada caça.
Ele pode voltar a caminhar, inclusive poderá até vir a caçar. Talvez, não tenha mais a
agilidade do cabrito montês e fique com o caminhar parecido com o dos ursos, mas isso
não significa que não volte a caçar. Você pode estar orgulhosa dele, mulher. Tenha orgulho
de seu companheiro, um homem eleito por Ursus.
- Ele foi eleito por Ursus? - falou a mulher, com olhar maravilhado. - O Urso da
Caverna é agora o seu totem?
- E também o Cabrito montês. Ele tem direito a ter os dois - falou o Mog-ur, que só
então notou um pequeno volume sob a roupa da mulher. não é de admirar que esteja tão
afoita, pensou consigo. - Essa mulher já tem fi lhos?
- não Mas a vida já foi iniciada. Estou esperando um filho.
- Você é uma boa mulher e uma boa companheira. Fique perto dele. Quando acordar,
conte-lhe tudo quanto o Mog-ur disse.
Ela fez que sim com a cabeça e levantou os olhos, quando Ayla passava por ali a toda
pressa.
O pequeno rio próximo à caverna do clã hospedeiro era na primavera uma torrente de
águas
violentas, arrancando pelas raízes gigantescas árvores e desprendendo pedras colossais
do paredão rochoso, fazendo-as rolar pela montanha abaixo. Mesmo em seus momentos de
calma, as fortíssimas correntezas - espumando no meio da planície inundada e semeada
de pedras, muito mais ampla do que o próprio leito - tinham a coloração esverdeada e a
nebulosidade dos desaguadouros glaciais. Ayla e Uba haviam explorado a região perto da
caverna, pouco depois de terem chegado, procurando pelas plantas saponáceas necessárias
à purificação do corpo, para o caso de que fossem convocadas a participar da cerimônia.
Muito nervosa, Ayla foi colher às pressas as raízes de saboeiro, as cava-linhas e os quenopódios de raíz vermelha. Seu estômago dava voltas enquanto aguardava
que a água fervesse numa fogueira para poder desinfetar as cavalinhas. A notícia de que a
haviam deixado realizar o ritual rapidamente se espalhou pelos clãs. O fato fez com que
todos
reformulassem a opinião que tinham sobre a mulher dos clã nascida dos Outros e seu
prestígio só fez então aumentar. Isso vinha confirmar que Ayla era de fato filha de iza,
fazendo dela a mais bem categorizada de todas as curandeiras. O chefe do clã onde Zoug
tinha alguns parentes, que havia de início se recusado peremptoriamente a aceitá-la,
resolveu reconsiderar a decisão. Afinal, a recomendação de Zoug podia não ser de todo tão
má. Talvez, algum dos homens pudesse assumila, senão como companheira, pelo menos
como segunda mulher. Ela seria uma boa aquisição.
Mas Ayla estava preocupada demais para reparar nos disse-que-disse à sua volta. Aliás,
estava mais do que preocupada. Sentia-se aterrorizada. não vou conseguir fazer isso,
dizia-se, apavorada, enquanto corria na direção do rio. não vai dar temrpo para me arrumar.
E se eu esquecer de alguma coisa? E se cometer algum engano? Vou desgraçar Creb e
Brun. Vou botar o clã inteiro a perder.
O rio estava gelado, mas a água fria serviu para acalmar-lhe os nervos que estavam a ponto
de estourar. Sentiu-se mais relaxada, quando foi sentar-se sobre uma pedra para
desembaraçar e secar na suave brisa os seus longos cabelos louros, enquanto observava os
cimos rosados das montanhas que, aos poucos, iam enegrecendo com tonalidades
vermelho-azuladas sob a luz do sol poente. Os cabelos ainda estavam úmidos, quando
tornou a enfiar o amuleto pelo pescoço e vestiu a roupa limpa. Meteu suas ferramentas nas
dobras, apanhou a vestimenta que tinha usado e correu à caverna. Passando por Uba com
Durc no colo, acenou com a cabeça, confirmando que tudo saíra direito.
As mulheres, num trabalho frenético, não tinham a menor colaboração das crianças,
inteiramente descontroladas. O sanguinolento ritual do urso da caverna as deixara
excitadíssimas. Isso e mais a fome a que não estavam acostumadas e o apetite estimulado
pelo cheiro da comida cozinhando as faziam extremamente irritadiças. Com as mães muito
ocupadas, aproveitavam a rara oportunidade de se comportar mal, coisa que pouquíssimas
vezes se admitia. Alguns garotos tinham apanhado as correias que foram cortadas da jaula
do urso e fizeram braçadeiras que usavam como distintivo de honra. Os outros, que haviam
sido menos rápidos, tratavam de arrancá-las e todos corriam por entre as fogueiras. Quando
se cansavam da brincadeira, iam provocar as meninas, cuja obrigação era a de estar
cuidando dos irmãos menores que, por sua vez, também se achavam aos berros. Eles tanto
importunavam que elas se punham a correr atrás ou, então, iam para junto das mães fazer
queixas. Era uma confusão, uma casa de loucos. Mesmo quando, vez por outra, aparecia ocompanheiro de alguma mulher tentando assumir uma atitude mais severa, sua voz de
comando de pouco servia para conter a criançada numa rebeldia inteiramente inusitada.
As crianças não eram as únicas com fome. A comida, preparada em enormes quantidades
fazia com que todos estivessem com água na boca e a expectativa do grande banquete e da
cerimônia noturna que se seguiria só aumentava a excitação. Montões de mandiocas,
inhames e psorálias cozinhavam lentamente nas panelas de couro sobre as fogueiras.
Aspargos selvagens, raí zes de lírio, cebolas, legumes, abobrinhas e cogumelos vinham em
muitas combinações e com diferentes temperos. Uma montanha de alface silvestre,
bardanas, e folhas de dente-de-leão já estava lavada e pronta para ser servida com molho
feito de gordura de urso e temperos diversos; o sal se punha na hora de servir.
A especialidade de um dos clãs era uma combinação de cebolas com cogumelos e ervilhas
verdes temperada com um molho à base de certas ervas - mantidas em segredo - e
engrossada com pó de líquen. Um outro clã trouxe uma variedade especial de pinhões que
davam exclusivamente na área de sua caverna e que, quando assados, soltavam um tipo de
noz gosda e saborosa.
O clã de Norg assava as castanhas colhidas aos pés das encostas e as punha para cozinhar
em fogo lento, fazendo um caldo grosso ao qual se juntavam frutos de faia esmigalhados,
diversos cereais triturados e pedacinhos de maçãazeda. Os terrenos até uma certa distância
da caverna estavam desprovidos de seus mirtilos e, nas partes um pouco mais elevadas,
também já não se encontravam nem amoras pretas nem framboesas.
As mulheres do clã de Brun passaram dias quebrando e triturando as bolotas de carvalho
que trouxeram consigo. A farinha obtida era posta em covas rasas na areia perto do no e ali
se despejava água que, por lixiviação, ia retirando o sabor amargo. Com a pasta resultante,
faziam-se bolinhos de forma achatada que, depois de assados, eram postos em calda de
bordo até ficarem bastante empapados, quando então iam ao sol para secar. O clã
hospedeiro, que também extraía a seiva do bordo no princípio da primavera e a punha para
ferver durante diversos dias, logo se mostrou interessado na receita, quando viu o açcar
de bordo nos costumeiros recipientes de casca de salgueiro. Os bolinhos melosos feitos de
bolotas eram uma guloseima que as mulheres do clã de Norg pretendiam fazer mais tarde.
Uba, que ao mesmo tempo vigiava Dure e ajudava as mulheres, olhava para aquela enorme
variedade de comida parecendo não ter fim, imaginando como poderiam dar cabo daquilo
tudo.
A fumaça subia desaparecendo na escuridão de uma noite calma tão apinhada de estrelas
que era como se o céu estivesse revestido por uma teia luminosa. A lua era nova e sua presença nem de leve se insinuava; tinha dado as costas ao planeta
em torno do qual girava e foi refletir suas luzes nas frias profundezas do espaço. As
chamas das fogueiras iluminavam a área perto da caverna, contrastando com o negrume dos
bosques ao redor. A comida já fora tirada de cima do fogo, mas deixada perto das fogueiras
para que se conservasse quente. Quase todas as mulheres se haviam retirado para a caverna.
Foram trocar de roupa e descansar um pouco antes que a festa começasse.
Mesmo cansadas como estavam, a excitaçção era grande demais para que pudessem
deixar-se ficar por muito tempo dentro da caverna. O terreno em frente começava a
fervilhar com uma multidão aguardando, ansiosa, pelo banquete e pelo início da
cerimônia que se seguiria. De repente, fez-se silêncio. Os 10 mog-urs com os 10 acólitos
saíram em fila da caverna, mas logo em seguida começou o rebuliço com a procura dos
lugares. Parecia que os mog-urs se haviam defrontado com uma reunião feita ao acaso. O
posicionamento das pessoas não era definido nem pela localizaçção nem pelo
relacionamento de uns com os outros. Filas bem ordenadas não eram importantes, apenas
que cada um estivesse na frente, atrás ou do lado da pessoa certa. E sempre havia a
movimentação de último instante, com aqueles tentando encontrar um lugar melhor dentro
de seus círculos de relações.
Com muita solenidade e circunspecção foi acesa a grande fogueira na frente da caverna.
Em seguida, removeram-se as pedras cobrindo os fogões cavados na terra. Às
companheiras dos chefes de clãs mais categorizados e a do chefe do clã anfitrião tiveram a
insigne honra de retirar do fogo os tenros quartos do animal e, nesse instante, o peito de
Brun se estufõu cheio de orgulho ao ver Ebra dando um passo à frente.
A aceitação de Ayla pelos mog-urs havia finalmente decidido a questão. Brun e seu clã
continuavam ocupando a primeira posição e estavam mais fortes do que nunca.
Contrariamente ao que parecera no início, a mulher alta e loura era uma mulher dos clãs e
uma curandeira da prestigiosa linha de Iza. Assim ficou provado, graças à obstinada
insistência de Brun e à vontade de Ursus. Tivesse ele vacilado um instante, seu prestígio
não seria tão grande e sua vitória, menos doce.
Nuvens de vapores suculentos tiravam rosnados dos estômagos vazios, quando a carne do
urso foi retirada com forquilhas de madeira. Esse era o si nal para que as outras mulheres
começassem a trazer as travessas de osso e madeira e fossem enchendo grandes cuias com
a comida que tanto lhes custara preparar. Broud e Voord, carregando cada qual uma
bandeja, foram para a frente e pararam diante do Mog-ur.
- Este banquete em homenagem a Ursus é também em honra de Gorn, escolhido pelo
Grande Urso da Caverna para acompanhá-lo. Durante o tempo em que ele viveu com o clã
de Norg, Ursus ficou sabendo que seu povo sempre guardou os seus preceitos. Ele aprendeu a conhecer Gorn e o achou digno para
acompanhá-lo em sua viagem. Broud e Voord, vocês, pela coragem, força e tenacidade,
foram escolhidos para mostrar ao Grande Espírito a bravura dos homens de seus clã Ursus,
com sua grande força, os pôs à prova e está satisfeito com os dois. Vocês se portaram bem e
foram agraciados com o privilégio de levar-lhe a última refeição que ele vai compartilhar
com os seus clã até que torne a regressar do mundo dos espíritos. Que o Espírito de Ur sus
esteja sempre conosco.
Os dois rapazes passaram diante das mulheres postadas ao lado das travessas carregadas de
comida e escolheram as melhores partes e guloseimas de cada uma. Só não pegaram carne.
O urso em cativeiro jamais provava carne, embora, nas florestas, vez por outra, ele se
permitisse, no caso de encontrá-la à mão. As bandejas foram colocadas na frente do couro
suspenso nos postes.
- Vocês beberam do seu sangue, agora comam de sua carne e participem do Espírito de
Ursus - falou o Mog-ur.
A bénção marcava o início do banquete. Broud e Voord receberam as primeiras porções da
carne do urso, e depois, eles próprios, foram enchendo seus pratos, seguidos pelos outros.
Dando grunhidos e suspiros de prazer, todos se acomodaram para saborear as finas
iguanas. A carne do urso vegetariano que teve as suas rações cuidadosamente controladas
estava tenra e gorda na medida certa. Os legumes, frutas e cereais preparados com
meticulosa atenção eram recebidos prazerosamente. A festa estava digna da longa espera.
- Ayla, você não está comendo. Você sabe que toda a carne tem de ser comida esta noite.
- Eu sei, Ebra, mas não estou com fome.
- Ayla está nervosa - gesticulou Uba, enquanto comia. - Estou alegre por não ter sido
escolhida. A comida está deliciosa e eu não iria conseguir comer, se também estivesse
nervosa.
- Mas mesmo assim, Ayla, veja se consegue comer um pouco de carne. Você precisa fazer
isso. Já deu o caldo para Dure? Ele devia tomar um pouco, isso fará com que fique sempre
unido aos clã.
- Já dei, mas ele não quis tomar muito. Oga acabou de dar-lhe o peito. Oga, Grev ainda
está com fome? Meus seios estão tão cheios que chegam a doer.
- Eu devia ter esperado, mas os dois estavam com tanta fome que já dei de mamar, Ayla.
Amanhã você dá.
- Vou ter leite para eles e ainda para mais dois se precisar. Esta noite não vão querer mais
nada, estarão dormindo. O chá de datura já está pronto. Quando eles tiverem fome, fação
com que tomem isso primeiro para poderem dormir. Uba dirá que quantidade você tem de
dar. Logo depois da comida, eu tenho de ver Creb e só estarei de volta depois da cerimônia.
- não demore muito, nossa dança vai começar logo depois que os homens entrarem na
caverna. Algumas curandeiras que estão aqui são ótimas para bater o ritmo. A dança das
mulheres nas reuniões de clã sempre é mais especial - falou Ebra.
- não sei tocar muito bem. Iza me ensinou um pouco e a curandeira do clã de Norg
também me mostrou, mas ainda está me faltando adquirir a necessária prática.
- É porque você tem pouco tempo de curandeira. Iza insistiu para que você aprendesse
principalmente as mágicas de curar, mas os ritmos também são mágicos - gesticulou Ovra.
- As curandeiras são obrigadas a saber tanta coisa...
- Queria muito que Iza estivesse aqui - falou Ebra. - Estou contente por você ter
sido afinal aceita, Ayla, mas tenho saudades de Iza. Fica tão estranho ela não estar conosco.
- Também queria que estivesse - disse Ayla. - É horrível ela não ter podido vir. Iza
está muito mais doente do que deixa transparecer. Espero que esteja descansando bastante e
tomando muito sol.
- Quando chegar sua vez de ir para o outro mundo, ela irá. Se os espíritos chamarem,
ninguém conseguirá impedi-la de não ir com eles - falou Ebra.
Ayla sentiu um arrepio, embora a noite estivesse quente e, de repente, sentiu algo como
um presságio, uma sensação vaga, incômoda, parecida aos ventos frios que prenunciam o
fim do verão. O Mog-ur acenou-lhe. A moça rapidamente se levantou, mas o sentimento a
acompanhou enquanto caminhava na direção da caverna.
A bacia de Iza com a pátina esbranquiçada do uso de muitas gerações estava sobre sua pele
de dormir. Ayla retirou o saco vermelho de dentro da sacola de remédios e o esvaziou. À
luz das tochas, pôs-se a examinar as raízes. Apesar de Iza lhe haver explicado muitas vezes
como dosar a quantidade exata, ela se sentia insegura do quanto necessitaria para dar a 10
mog urs. A dose não dependia apenas do número de raízes, mas também do tamanho
dessas e do seu tempo de envelhecimento.
A moça nunca vira a bebida sendo feita. Iza, por diversas vezes, lhe dissera que era algo
sagrado e importante demais para que se pudesse preparar só em caráter experimental. As
mulheres dos clã em geral, aprendiam o que sabiam da observação e das explicações que
suas mães lhes davam, mas o conhecimento se fazia sobretudo através da memória com
que haviam nascido. Ayla, entretanto, não tinha nascido de uma mulher dos clã. Escolheu
diversas raízes e depois acrescentou mais uma por segurança, para ter certeza de que a
mágica funcionaria. Em seguida, dirigiu-se para um ponto perto da entrada, onde havia um
suprimento de água fresca, o lugar em que Creb lhe mandara
esperar. Dali, ficou observando a cerimônia que estava apenas começando. Os sons dos
tambores de niadeira foram seguidos pelas batidas com os
cabos de lanças para depois se fazerem ouvir os staccatos dados nos tambores altos e ocos
em forma de tubos. Os acólitos passavam entre os homens carregando vasos com chá de
datura e, pouco depois, já estavam todos mexendo seus corpos ao ritmo das batidas. As
mulheres se achavam ao fundo, a vez delas chegaria depois. Ayla, ansiosa, com a roupa
amarrada frouxamente no corpo, aguardava. A dança dos homens cada vez se tornava mais
frenética e ela só se perguntava quanto tempo teria ainda de ficar esperando.
Ao sentir um tapinha no ombro, sobressaltou-se. não percebera os mog-urs vindo do fundo
da caverna, mas ao reconhecer Creb, tranquilizou se um pouco. Os feiticeiros, em silêncio,
saíram e se postaram ao redor da pele do urso. O Mog-ur estava de frente e, do lugar onde
ela se encontrava, sua impressão era a de que o bicho - posto muito aprumado e com a boca
escancarada - estava a ponto de saltar sobre o velho feiticeiro aleijado. Mas era apenas a
ilusão de força e ferocidade dada pela figura parecendo flutuar solta no ar, pairando sobre o
Mog-ur.
Ela viu quando o feiticeiro-mor acenou aos acólitos que tocavam os tambores. Eles
interromperam a cadência rítmica num tempo forte e os homens suspenderam os olhos,
surpresos de ver os mog-urs onde um instante antes - ou assim lhes parecia - não havia
ninguém. A súbita aparição dos feiticeiros era outra ilusão e agora Ayla sabia como a coisa se
processava.
O Mog-ur esperou, criando uma atmosfera de suspense, até ter certeza de que todos
estavam com a atenção voltada para a gigantesca figura do urso da caverna, iluminada
pelas chamas da fogueira principal e ladeada pelas sagradas figuras dos clã. Seu aceno fora
imperceptível, e ele, intencionalmente, ao fazê-lo, olhava em outra direção. Era o sinal
por que Ayla esperava. A moça deixou a roupa cair do corpo, encheu a bacia de água,
apertou as raízes na mão e, respirando fundo, foi na direção do feiticeiro caolho.
As respirações ficaram todas em suspenso quando Ayla veio para dentro do círculo de
luzes. Enrolada na roupa, que era amarrada por uma compri da correia e que lhe escondia as
formas em meio a dobras e bolsos, e compor tando-se como qualquer mulher, ela começara
a não se distinguir muito das outras. No entanto, sem o disfarce de todos aqueles bolos na
vestimenta, sua verdadeira forma fazia vivo contraste com a das mulheres dos clã. Ayla era
esguia, com uma estrutura diferente daquela arredondada, quase um barril, dos homens e
mulheres dos clã. Vista de perfil, mostrava-se, à exceção dos selos intumescidos de leite,
extremamente descarnada. A cintura afundava-se para depois formar as cadeiras roliças, e
as pernas e braços eram longos e retos. Nem mesmo os círculos vermelhos e pretos e as
outras linhas pintadas sobre seu corpo conseguiam disfarçar-lhe as formas.
Seu rosto, sem as mandíbulas salientes, com o pequenino nariz e a testa alta, lhes parecia
agora mais chato do que nunca. Os cabelos louros espessos, emoldurando-lhe as faces com
ondas largas e chegando à metade das costas, eram batidos pelos reflexos das chamas e
brilhavam como ouro. Uma coroa extravagantemente bela para uma mulher tão feia e sem
dúvida alguma alie nígena ao meio deles.
Contudo, o mais surpreendente era a altura. Quando eles a viam, ou era andando em passos
apressados, ou num caminhar curvado e arrastado, ou semi sentada a seus pés e, de certo
modo, não se tinham dado conta desse detalhe. Mas ali, de pé, frente aos mog-urs, ficava
visível demais. Num momento em que ela se inclinou, sua visão foi o alto da cabeça do
Mog-ur. Ay la era de longe mais alta do que qualquer homem dos clã
O Mog-ur fez uma série de gestos invocando a proteção do Grande Espírito que ainda
pairava sobre eles. Em seguida, Ayla enfiou na boca as raí zes secas e duras. Era-lhe difícil
mastigá-las. não possuía os mesmos dentes enormes e fortes e as possantes mandíbulas da
raça clanica. Por mais que Iza a tivesse avisado para não engolir nada do suco que se
formava na boca, Ayla não conseguiu evitá-lo. não sabia ao certo quando as raízes
estariam realmente no ponto, mas tinha impressão de que deveria ficar mastigando,
mastigan do sem parar. Ao cuspir o último bagaço, sentia-se tonta. Começou, então, a
remexer o liquido dentro da bacia sagrada, até que ele se tornou uma água leitosa que
entregou a Goov.
Os acólitos, cada um carregando um vaso com chá de datura, tinham ficado à espera de
que Ayla terminasse com seu serviço. Goov entregou ao Mog-ur a bacia com a água
esbranquiçada que Ayla lhe dera e apanhou um vaso contendo datura para entregar a ela, ao
mesmo tempo em que os outros aprendizes de feiticeiros entregavam também os deles às
curandeiras de seus respectivos clã. Uma troca de igual valor e espécie. O Mog-ur tomou
um
gole.
- Está forte - disse a Goov, por meio de gestos discretos. - não dê muito.
Goov fez que sim com a cabeça e pegou a bacia para levar ao segundo mog-ur na
hierarquia clanica.
Ayla e as outras curandeiras carregaram os vasos com datura para as mulheres que
esperam e deram a elas e às meninas mais velhas uma quantidade que iam controlando. Por
fim, Ayla bebeu as últimas gotas de seu vaso, mas ela já começava a ter uma estranha
sensação de distanciamento, como se uma parte sua houvesse desprendido e a observasse de
outro ponto. As curandeiras mais velhas apanharam os tambores de madeira e começaram
a bater os ritmos de dança das mulheres. Ayla observava, fascinada, o movimento das
baquetas. Cada batida produzia um som claro e preciso. A curandeira do clã 'de Norg
ofereceu-lhe um tambor parecido a uma bacia. Primeiro, ela escutou
o ritmo, só batendo de leve, depois, surpreendeu-Se tocando junto com as outras.
O tempo perdera todo o significado. Quando suspendeu os olhos, os homens já haviam ido
embora e as mulheres rodopiavam freneticamente, numa movimentação selvagem e erótica.
Teve, então, vontade de juntar-se a elas. Mas quando foi botar o tambor no chão, o
instrumento caiu de mau jeito e ficou por um instante rodando como um pião. Ela ficou
observando até que otambor cessasse o movimento. Sua atenção se concentrava na forma
do instrumento. Lembrava-lhe a bacia de iza, a preciosa e antiga relíquia que fora confiada
à sua guarda. Viu-se, então, olhando para o líquido branco e aguado que ficara revolvendo
com os dedos durante um tempo que havia parecido sem fim. Onde está a bacia de Iza?
Perguntava-Se. O que aconteceu com ela? A idéia da bacia não lhe saía, ficava remoendo-a,
até que se tornou uma obsessão.
A imagem de Iza lhe veio à mente e seus olhos se encheram de lágrima. A bacia de Iza.
Perdi a bacia de Iza. A linda bacia antiga que veio de sua Da mãe de sua mãe e da mãe da
mãe de sua mãe. No pensamento via Iza e uma outra Iza atrás desta e ainda uma outra e outra.
Era uma curandeira após outra, todas atrás de Iza e todas segurando uma sagrada bacia
de cor esbranquiçada, numa longa fileira penetrando no passado distante e nebuloso. As
mulheres desapareceram, e diante de seus olhos surgiu a imagem de uma bacia colossal.
Subitamente, esta se partiu, quebrando-se ao meio em dois pedaços que aos poucos foram
sumindo. não não gritou em pensamento. Ela estava completamente desvairada. A
bacia de Iza. Tenho de achar a bacia de Iza.
Às tontas, largou as mulheres e foi na direção da caverna cambalean do em seus passos.
Pareceu levar uma eternidade. De gatinhas, ia passando por entre travessas de osso e bacias
de madeira com restos de comida endurecida, sempre procurando pela preciosa vasilha de
lia. A entrada da caverna, com os seus contornos fracamente delineados pelas tochas do
lado de dentro, a atraía e, aos tropeção encaminhou-Se para lá. De repente, viu-se bloqueada no caminho. Caíra numa armadilha, apanhada nas malhas de alguma coisa cabeluda e
asquerosa. Olhou para cima e prendeu a respiração. Um rosto monstruoso, com uma imensa
boca escancarada a encarava do alto. Ela deu uns passos para trás e correu para dentro da
caverna que parecia estar acenando-lhe.
Ao passar pela entrada, seus olhos deram com qualquer coisa branca, perto do lugar onde
ficara aguardando o sinal do Mog-ur. Ajoelhou-se e se gurou com cuidado a bacia de lia,
aninhando-a nos braços. No fundo havia ainda um pouco da água leitosa banhando os
bagaços de raízes. não beberam tudo, disse consigo. Fiz demais Devo ter feito muita
quantidade. E agora, o
que vou fazer com o resto? Iza disse que não se pode jogar fora. Foi por isso que ela não
pôde me mostrar como se preparava e acabei fazendo demais. Preparei a quantidade
errada. E se alguém descobrir? Vão pensar que não sou uma curandeira de verdade. E nem
uma mulher dos clã. Podem nos obrigar a ir embora. O que vou fazer? O que vou fazer?
Beber! Sim, é o que vou fazer. Se eu beber, ninguém vai ficar sabendo. Ela levou a bacia
aos lábios e a esvaziou. Se já no princípio, a bebida estava forte, agora então muito mais
com as raízes empapando a pequena quantidade de líquido que tinha restado. Ela começou
a caminhar para a segunda caverna, com a vaga idéia de deixar a bacia em algum lugar
seguro, mas até que pudesse chegar à sua fogueira, os efeitos já se faziam sentir.
Estava tão desorientada que nem reparou quando a bacia caiu no chão logo depois da
demarcação de pedras da fogueira. Em sua boca, sentia o gosto das velhas florestas em seus
primórdios, gosto de terra rica e úmida, de folhas molhadas pela chuva, de gigantescos
cogumelos carnudos. . . As paredes da caverna se dilatavam, recuando-se cada vez para
mais longe. Sentia-se um inseto rastejante. Detalhes mínimos eram percebidos com uma
clarividência agudíssima: contornos de pisadas, pequeninas pedras, cada grão de póêira. Com
o canto dos olhos percebeu algo se mexendo e ficou a observar uma aranha subindo por
um fio brilhando à luz da tocha.
A chama era hipnotizadora. Parou os olhos na luz bruxuleante e se pôs a olhar os caracóis
de fumaça não subindo ao teto. Ela se aproximou da tocha e viu, então uma segunda
atraindo-a. Mas, ao alcançá-la, uma outra adiante já lhe estava acenando. E depois, uma
outra e mais outra e outra, sempre arrastando-a cada vez mais para o interior da caverna.
Não reparou quando as tochas começaram a ficar mais espaçadas e tampouco notou quando
passou por um grande recinto cheio de homens caídos em profundo transe ou por um outro
menor, onde se achavam meninos adolescentes dirigidos pelos acólitos numa cerimônia
que lhes fazia sentir um pouco o gosto das experiéncias vividas pelo homem adulto.
Com um só propósito em mente ia em busca da pequenina chama para, entrão, ser atraída
pela seguinte. As luzes a conduziam por estreitas passagens que se abriam em ambientes
maiores, para voltar a se estreitar novamente. Em certo momento, tropeçou num desnível
do chão pondo-se a tatear a parede de pedra molhada que girava a seu redor. Foi, em
seguida, dar num corredor que tinha em sua outra extremidade uma forte luz rosada. Era
incrivelmente comprido. Parecia não acabar nunca. De vez em quando, era como se
estivesse se enxergando de uma grande distância, cambaleando ao longo do túnel, iluminado pelas fracas luzes de lamparinas. Sentia a mente arrastada para longe, para um
vazio negro e se encolhia diante da imensidão do nada, lutando para fugir-lhe.
Por fim, alcançou a luz na extremidade do mel e viu diversas figuras sentadas em círculo.
Graças a alguma reserva de prudência que ficara enter rada num ponto qualquer de sua
mente, ela se deteve antes de chegar à última das chamas e se escondeu atrás de um pilar
de pedra. Em sua cânira secreta, os dez mog-urs estavam inteiramente entregues à
celebração de um ritual. Eles apenas tinham dado partida à cerimônia que incluía os
homens dos clãs, deixando sua conclusão com os acólitos, e se retiraram para seu
sacrossanto recinto. Lá, iriam conduzir rituais secretíssimos, até mesmo para os seus
aprendizes.
Envolvidos pelas peles de urso, achavam-se sentados cada um com uma caveira de urso em
sua frente. Outras caveiras ainda adornavam os nichos nas paredes. No centro do círculo,
havia um objeto cabeludo que Ayla não identificou de pronto, mas, ao perceber do que se
tratava, só não gritou porque era grande seu estado de embotamento. Estava ali a cabeça
decepada de Gom.
Entre horrorizada e fascinada, viu o mog-ur do clã de Norg pegar a cabeça, virá-la e com
uma pedra alargar o buraco occipital (a abertura maior na coluna da espinha). A massa
cinza e gelatinosa do cérebro de Gorn ficara exposta. O feiticeiro fez alguns gestos sobre
a cabeça e, em seguida, enfiou a mão na abertura retirando uma porção do tecido. Ele
segurava a massa que lhe tremulava na mão, enquanto um segundo mog-ur pegava a
cabeça. Mesmo debaixo de seu estupor, Ayla se sentiu profundamente enojada. Contudo,
via-se enfeitiçada, olhando os mog-urs, um após outro, ir enfiando a mão dentro da cabeça
e arrancar um pedaço do cérebro do homem morto pelo urso.
Com tudo girando em sua volta, uma vertigem a botou à beira do vazio incomensurável.
Engolia o vômito prestes a sair. Desesperada, agarrava-se à borda do enorme vácuo, mas ao
ver as grandes e santas figuras dos clãs levarem o cérebro de Gorn às bocas, não se
conteve mais. O ato de canibalismo arrastou-a para dentro do abismo negro.
Gritava em silêncio, sem poder escutar-se. não via, não sentia, estava desprovida de
qualquer sensação, mas tinha entendimento. Sua mente não era um branco. O vazio era de
outra espécie: aterrorizador, essa a qualidade do vazio. E medo. Um medo avassalador que
se apoderou dela. Lutava, querendo voltar, gritava mudamente clamando por ajuda, mas
cada vez se via mais arrastada para as profundezas. Sentia movimento e isso não deveria
estar sentindo. Era cada vez mais veloz, aumentando à medida que ela mergulhava na
negritu de do infinito, no vácuo frio da eternidade.
Subitamente, a ilusão do movimento foi diminuindo. Sentia como se houvesse qualquer
coisa formigando em seu cérebro, dentro da mente, como uma força contrária que, devagar,
puxava-a de volta para fora daquela infinitude abismal. Suas emoções lhe eram estranhas,
não eram as dela. A mais for te era a do amor, mas o sentimento vinha misturado com uma
profunda raiva e
também um grande medo. Mas, então, sentiu uma pontinha de curiosidade.
Com grande surpresa percebeu que o mog ur estava dentro de sua cabeça Em
sua mente, sentia os pensamentos e os sentimentos dele com as emoções dela
Fisicamente, era algo diferente como uma sensação de atravancamento, mas
sem desconforto, alguma coisa como um contato mais íntimo do que a proximidade física.
As raízes psicotrópicas contidas na sacola vermelha de Iza serviam para
acentuar uma tendência natural nas pessoas clanicas. O instinto nelas havia
evoluido em memoria Noentanto, essa memoria, quando remontava muito
no tempo, tornava-se idêntica em todas, transformada em memória racial. As
memorias raciais dos clãs eram as mesmas e, no caso de as percepções estarem
tão extremamente aguçadas, todos podiam compartilhar de idênticas memorias
Os mog-urs haviam desenvolvido essa natural tendência, através da educação e
do esforço consciente. Eles, de certa forma, eram capazes de controlar as memorias que compartilhavam entre si, mas só o Mog ur nascera com um dom
que nenhum dos outros possuía.
Não só podia ele compartilhar das memórias e controlá-las, como também tinha a possibilidade de manter a integridade do elo, enquanto os seus
pensamentos viajavam através do tempo, do passado ao presente. Os homens
de seu clã mais do que quaisquer dos outros, desfrutavam nas cerimônias de
uma interrelação muito mais rica e plena. Entretanto, com as mentes bem- educadas dos
mog-urs, ele podia, desde o início, estabelecer ligação telepática. Através dele, todos os
mog-urs participavam de uma união mais íntima e satisfatória do que qualquer comunicação
física, pois o contato era de espíritos. O líquido leitoso da bacia de Iza que lhes aguçava a
percepção e abria suas mentes para o Mog-ur havia igualmente permitido a ele, com sua
capacidade inigualável, criar uma simbiose com a mente de Ayla.
O parto traumático que lhe prejudicara o cérebro tinha danificado apenas uma parte de sua
capacidade física, não o superdesenvolvimento de sua sensibilidade psíquica, onde
residia seu grande poder. Mas o velho aleijado era o derradeiro produto de sua espécie. Só
nele, a natureza levara ao extremo o curso que estipulara para a raça clânica. No entanto,
nessa, já não podia haver mais desenvolvimentos, se não passasse por mudanças essenciais e
as suas características tinham perdido a capacidade de adaptação Tal como o gigantesco animal que veneravam e muitos outros daquele meio ambiente, também eles se achavam
impossibilitados de sobreviver às mudanças radicais que então se processavam.
Aquela raça de homens que possuía uma consciência social bastante desenvolvida para
cuidar e tratar de seus semelhantes quando se achavam doentes ou feridos, que já tinha
também um sentido de espiritualidade suficientemente desenvolvido para enterrar os
seus mortos e venerar o seu grande totem,
aquela raça de homens de enormes cérebros, mas sem lobos frontais, que não fizera
qualquer avanço significativo, que praticamente nenhum progresso mostrara em quase cem
mil anos de existência, estava marcada para seguir o caminho do mamute lanoso e do
grande urso da caverna. Eles não o sabiam, mas tinham os dias contados, estavam todos
condenados à extinção. Em Creb, encontrava-se o ponto final da linha.
A sensação de Ayla era como se houvesse uma segunda corrente sanguínea sobrepondo-se
à dela. A poderosa mente do grande feiticeiro explorava- lhe as convoluções de natureza
diferente da dele, tentando encontrar uma maneira de infiltrar-se. O ajuste era imperfeito,
mas ele achava correntes similares e, quando essas não existissem, buscava alternativas,
fazendo conexões on de só havia predisposições. Com surpreendente clareza, ela
subitamente com preendeu que fora ele quem a tirara do vácuo e, mais ainda, que era ele
quem impedia os outros mog-urs de também entrarem em conexão com ela, de tomar
conhecimento de sua presença lá. Ayla apenas percebia levemente a ligação dele com os
outros feiticeiros, com os quais ela própria não estava conectada. Eles, por sua vez, sabiam
que o Mog-ur estabelecera uma ligação com alguém - ou uma coisa qualquer - mas
estavam longe de pensar em Ayla.
E logo que ela compreendeu que fora o Mog-ur quem a salvara e que ele continuava ainda
protegendo-a, percebeu também, com profundo sentimento de reverência, o ato de
canibalismo a que os feiticeiros se haviam entregue e que tanto a enojara. não chegou a
apreender seu sentido em toda a extensão e nem tinha como saber que aquilo que
presenciara era o ato da comunhão. O motivo das reuniões de clãs era uni-los, fazer deles
um só povo. No entanto, existiam mais clãs do que somente os 10 que se achavam lá
presentes. Eles sabiam da existência de outros que por viver em zonas muito afastadas não
podiam fazer o percurso até o local das reuniões. Iam apenas àquelas que ficavam mais
próximas de suas cavernas. Todos os povos clânicos compartilhavam da herança comum
armazenada em seus cérebros e quaisquer das cerimônias celebradas nas reuniões tinham o
mesmo significado para todos. Os feiticeiros acreditavam que era em benefício dos clãs
que absorviam a coragem do rapaz que partira com o Espírito de Ursus, pois já que eram
eles que guardavam em seus cérebros poderes especiais, teria de ser através de seu
intermédio que a coragem se difundiria a toda população.
Por tradição de longa data, somente os homens podiam participar de cerimônias religiosas.
Tal era a razão da raiva e do medo do Mog-ur. A presença de uma mulher numa
cerimônia, mesmo que fosse algum ofício religioso realizado rotineiramente por um clã,
significava a condenação deste. E aquela não era uma cerimônia comum, mas um ritual de
grande significação para todos os clãs. Ayla era uma mulher, a sua presença lá só podia
significar desgraça e calamidade para todos, um fato irredinivel e irreversível.
E nem aos clãs ela pertencia. O Mog-ur agora via isto com uma clareza que não lhe era
mais possível negar. No instante em que tomara consciência da presença de Ayla,
compreendeu que ela não era uma mulher dos clã. Imediatamente, viu as conseqüências
que disso resultariam, mas era tarde demais. Seriam implacáveis, ele o sabia. Mas o crime
era de tal ordem que ele não tinha idéia do que fazer com ela. Nem mesmo uma maldição
de morte era suficiente. Antes de tomar qualquer decisão, quis saber mais a seu respeito
e, através dela, sobre os Outros.
Ele fora surpreendido ao sentir seu grito pedindo por socorro. Os Outros eram diferentes,
mas era possível que possuíssem algumas semelhanças com a raça clânica. Sentia que para
o bem de seu povo ele precisava saber, além do fato de que se sentisse curioso, um tipo de
curiosidade que em geral as outras pessoas não tinham. Ela sempre o intrigara. Queria saber
o que a tornava diferente - Decidiu tentar a experiência.
Procurando penetrar nos recessos mais recônditos do pensamento, o poderoso feiticeiro -
controlando ao mesmo tempo os nove cérebros condizentes com o seu, que
voluntariamente se submetiam a ele e, em separado, um outro, similar, mas guardando
diferenças - conduziu todos de volta às origens.
Novamente, Ayla experimentou o sabor das florestas primordiais e sentiu quando esta se
transformou no gosto das águas quentes. As suas recordações não eram tão nítidas quanto a
dos outros. Para ela, era novo o sentimento de se ver lembrando o alvorecer da vida e a
memória disto era vaga, fazendo-se ao nível do inconsciente. No entanto, as camadas
mais profundas relativas aos primeiros tempos casavam com as dele. Os primórdios foram
iguais, pensou o Mog-ur. Ela se viu em células individualizadas e sentiu quando estas se
dividiram e se diferençaram no ambiente das águas quentes que lhe forneceram nutrientes.
Percebeu as suas células crescendo, dividindo, divergindo e se movendo com um propósito
definido. Outra vez uma divergência e as tênues pulsações da vida fortaleceram, ganhando
figura e forma.
Mais uma divergência e sentiu a dor da primeira explosão do ar respirado pelas criaturas
num novo elemento. Uma outra divergência e a terra era rica e argilosa com a vegetação
verde e florescente, onde ela cavava tocas para escapar de seres monstruosos, ameaçando
esmagá-la. E mais outra divergência, viu-se salva ao estender um de seus membros por
cima de uma fenda aberta na crosta da terra. Mas de repente, só calor e aridez e a sede
conduzindo-a de volta à orla do mar. E ainda outra divergência, e sobre ela atuaram os
vestígios de um elo perdido, deixado no mar, que lhe aumentaram a forma, a desnudaram
de pêlos e lhe modificaram os contornos. Um último desvio fez com que seus primos
revertessem a uma forma mais primitiva, alongada, que, noentanto, continuou a absorver ar
e a alimentar com leite os seus rebentos.
E agora, achava-se ela ali, caminhando ereta, sobre duas pernas, deixan do os membros
dianteiros livres para manipular, possuindo dois olhos que enxergavam longe e um
cérebro anterior em princípio de formação. Estava-se desviando do Mog-ur, tomando um
caminho diferente, mas não tão distancia do que não desse para ele seguir-lhe a trilha que ia
quase paralela. Ele rompeu o contato com os outros feiticeiros, mas esses já estavam longe
demais e poderiam continuar sozinhos. E de qualquer modo já estava mesmo chegando o
momento de fazer isso.
Ficaram apenas os dois ligados, o velho feiticeiro dos clã e a mocinha dos Outros. Ele já
não estava mais no comando. Continuava prosseguindo na trilha de Ayla, mas ela, por sua
vez, seguia-lhe também os passos. Ela viu a terra passando de quente para fria, revestindo-
se de gelo, num frio muitissimo mais intenso do que o que conheciam. Era uma terra
distante no espaço e no tempo, bem longe, para o lado do ocidente e ela sabia que não
ficava muito afastada de um mar muito maior do que aquele que cercava a península.
Ela viu uma caverna, o lar de algum ancestral do grande feiticeiro, de alguém que se
parecia muito com ele. Era um quadro nebuloso, visto através da fenda que separava as
suas raças. A caverna se localizava sob um íngreme paredão, de frente a um rio e a uma
larga planície. No topo do penhasco, uma enorme pedra saía nitidamente do alinhamento.
Era algo com uma coluna ou um bloco de pedra comprido e achatado, inclinando-se na
beirada, como se tivesse sido ali congelado no momento em que ia despencar. A pedra
vinha de outro lugar, um bloco errático, de material diferente, trazido pelo caudal das águas
e tremores de terra, até se localizar na beira do penhasco que abrigava a caverna. A cena era
difusa, mas estava guardada em sua lembrança.
Por um momento, foi tomada por imensa tristeza. Depois, viu-se sozinha. O Mog-ur já não
podia mais segui-la. Encontrou por si mesma o caminho de volta, mas se havia adiantado
um pouco no tempo. Mais uma vez, passou- lhe a visão rápida da caverna seguida por um
confuso caleidoscópio de paisagens arranjadas não ao acaso na natureza, mas segundo um
planejamento regular. Estruturas em forma de caixas erguendo-se da terra, compridas
faixas de pedra estendendo-se em diversas direções e por onde passavam um mundo de
estranhos animais em grande velocidade; enormes pássaros voando sem bater asas. E
outras cenas mais, tão estranhas que não pôde compreendê-las. Em sua pressa de alcançar o
presente, houve uma ligeira ultrapassagem, um pequenino avanço no tempo, exatamente
até o ponto onde novamente ela deveria divergir. E, então, sua mente se tornou clara,
encontrando-se atrás de um pilar e olhando para os 10 mog-urs sentados em círculo.
O Mog-ur a olhava e ela viu em seus olhos escuros a tristeza que sentira há instantes. Ele
forjara no cérebro dela novos e indeléveis caminhos que lhe permitiram ter uma visão
futura, mas, consigo mesmo, não podia fazer a mesma coisa. Enquanto a jovem estava tendo uma visão do porvir, ele conseguira um pequeno
vislumbre, não do futuro, mas de um sentido do futuro. Um futuro que era dela, não dele.
Ele não percebia o conceito perfeitamente, mas compreendia o sentido potencial, e isso o
deixava aterrado.
Creb, praticamente, não tinha o menor poder de abstração Com esforço, conseguia contar
até pouco mais de 20. Era-lhe impossível fazer saltos quantitativos ou, por intuição ter
algum golpe de gênio. Sua mente - e disso ele sabia - era de longe mais poderosa do que
a dela, talvez mais inteligente até. Mas sua capacidade intelectual era de natureza diferente.
Podia identificar-se com as suas origens e as dela. Suas lembranças eram em maior
quantidade e muito mais nítidas do que a de qualquer outro homem de sua raça. Podia,
inclusive, induzir Ayla a ter lembranças. Entretanto, nela, sentia ajuventude, a vitalidade
de uma forma mais nova. Ela havia novamente divergido e ele não.
-Saia!
Ayla pulou, ao escutar a ordem dada em tom ríspido, surpresa de ele ter falado tão alto.
Mas em seguida, percebeu que ele não falara. Ela havia sentido, não escutado.
- Saia da caverna! Rápido. Saia, imediatamente.
Ela pulou do seu esconderijo e saiu correndo pela passagem. Algumas lamparinas já
estavam apagadas, outras crepitando já quase no fim. A luz, no entanto, era suficiente para
guiá-la no caminho. Nenhum som saía dos recintos onde os homens e os meninos,
naquele instante, dormiam o sono sem sonhos. Ela encontrou as tochas, algumas também
já apagadas, e finalmente correu para fora da caverna.
Ainda estava escuro, mas já se viam os indícios de um novo dia. Ayla tinha o pensamento
claro, sem nenhum vestígio mais de droga no organismo, mas sentia-se exausta. Viu as
mulheres esparramadas no chão, purgadas e exauridas. Foi deitar-se ao lado de Uba. Tal
como as outras, estava também nua e também sem notar o frio da madrugada.
O Mog-ur, com passos mais lentos, saíra logo depois dela e, quando chegou à entrada da
caverna, Ayla já estava entregue a um sono profundo e, como o dos outros, igualmente
desprovido de sonhos. Veio até onde a moça estava e olhou para a cabeleira loura e
esparramada, tão diferente da das outras mulheres quanto ela própria o era. O Mog-ur
sentiu um grande peso abatendo- se sobre sua alma. não devia tê-la deixado sair. Deveria
imediatamente tê-la levado aos homens para que pagasse por seu crime, ali mesmo e
naquele instante. Mas de que adiantaria? Isso não iria desfazer a catástrofe ocasionada por
sua presença na cerimônia e nem impediria os clã de sofrerem a calamidade que estaria por
chegar. De que adiantaria matá-la? Ayla era apenas uma em sua espécie e, além do mais,
ele a amava.

Capítulo 25

Goov saiu da caverna, espreguiçando-Se e esfregando os olhos, cego com o sol da manhã .
Viu o Mog-ur curvado sobre uma tora, olhando fixamente para o chão. Há tantas lamparinas
e tochas apagadas que alguém pode virar errado num daqueles corredores e se perder,
pensou consigo. Vou perguntar ao Mog-ur se devo reencher as lamparinas e trazer outras
tochas. O acólito ia na direção do feiticeiro, mas parou ao reparar no seu rosto contraído e
seus ombros caindo desalentados. Talvez seja melhor não o incomodar. É melhor fazer
de uma vez sem perguntar.
O Mog-ur está ficando velho, continuou Goov falando consigo, enquanto voltava à
caverna levando sacolas cheias de gordura, novos pavios e algumas tochas. Nunca me
lembro de que ele já está velho. A viagem até aqui foi dura e as cerimônias exigiram muito
dele. E ainda há a volta. Engraçado, ia o acólito conjeturando nunca havia pensado antes
nele como velho.
Alguns outros homens saíram da caverna também esfregando os olhos sonolentos. Ficaram
olhando as mulheres estendidas pelo chão e, como sempre, se perguntando o que faziam
elas que as deixava em tamanho estado de exaustão. As primeiras mulheres a acordar
correram atrás de suas roupas e voltaram para despertar as outras, antes que mais homens
aparecessem do lado de fora da caverna.
- Ayla - chamou Uba, sacudindo-a acorde. Acorde, Ayla.
- Huumm - murmurou Ayla, rolando para o outro lado.
- Ayla, Ayla! - chamou Uba outra vez, sacudindo-a com mais força. - Ebra, não
consigo fazer Ayla levantar.
- Ayla! - disse a mulher com voz mais alta, sacudindo-a fortemente.
A jovem abriu os olhos e tentou gesticular uma resposta; depois, tornou a fechá-los e
enroscou o corpo.
- Ayla! Ayla! - chamou Ebra novamente.
A moça abriu os olhos mais uma vez.
- Vá para a caverna e durma até passar o efeito, Ayla. Você não pode ficar aqui, os
homens estão se levantando - ordenou Ebra.
Ayla foi cambaleando para a caverna. Momentos depois, veio para fora, já inteiramente
acordada. Ela estava branca como cera.
- O que aconteceu? - gesticulou Uba. - Você está pálida. Parece que viu um espírito.
- Uba. . . Uba, a bacia - falou Ayla, deixando-se cair no chão e enterrando o rosto nas
mãos.
- A bacia? Que bacia? não estou entendendo.
- Está quebrada - conseguiu por fim responder Ayla.
- Quebrada? - disse Ebra. - E por que uma bacia quebrada vai botá-la nesse estado?
Você pode fazer outra.
- não Não posso. não como essa. É a bacia de Iza, aquela que veio da mãe dela.
- A bacia da mãe? A bacia de cerimônias? - perguntou Uba, com o rosto aflito.
Depois do uso de muitas gerações, a madeira da antiga relíquia perdera a resistência,
tornando-se seca e quebradiça. Sob a pátina branca, formara-se uma linha fina que passara
despercebida e, agora, com o choque no chão de pedra, quando caiu da mão de Ayla, a
madeira não resistiu e partiu em dois pedaços.
Ayla não percebeu que Creb havia olhado para cima no momento em que ela saía da
caverna. A sagrada bacia quebrada veio dar uma lúgubre nota final aos pensamentos do
feiticeiro. Tudo se casava. Nunca mais a mágica produzida com aquelas raízes voltará a ser
feita. Nunca mais realizarei uma cerimônia com essa bebida e não vou ensinar a Goov o
modo de usá-la. Os clã vão esquecê-la. O velho aleijado apoiou-se pesadamente sobre o
cajado
e se levantou, sentindo pontadas de dor nas juntas tomadas pela artrite. Já fiquei muito
tempo sentado dentro de cavernas úmidas, chegou o tempo de Goov assumir. Ele ainda está
moço para isso, mas eu estou muito velho. Se puxar por ele, pode ser que esteja preparado
daqui a um ou dois anos. Bom, tem de estar. Quem sabe quanto tempo ainda vou viver?
Brun reparou na mudança por que havia passado o velho feiticeiro. Imaginava que a
depressão fosse causada pela queda natural que se segue a períodos de atividades intensas;
principalmente sendo aquela sua última reunião de clã. Contudo, Brun preocupava-se.
Não sabia como Creb iria resistir à volta. Certamente, ele iria atrasar-lhes a marcha. Antes
de ir embora, Brun resolveu pegar seus caçadores e fazer uma última incursão pelos terrenos próximos à caverna, para depois trocar carne fresca por determinados tipos de
provisões que o clã anfitrião tinha estocado, de modo a aumentar o suprimento deles para a
viagem de volta.
Depois de uma caçada bem-sucedida, Brun ficou com pressa de partir logo. Alguns clã já
haviam ido embora. Uma vez terminadas as festividades, seu pensamento se voltou para
sua caverna e as pessoas que lá ficaram, mas ele estava de moral elevado. Nunca fora tão
grande a disputa por sua posição
o que tornava a vitória ainda mais saborosa. Achava-se contente consigo mesmo, contente
com seu clã e contente com Ayla. Ela era uma boa curandeira. Ele já tivera prova disso
antes. Quando a vida de alguém se achava ameaçada, ela se esquecia de tudo, tal como Iza.
Ele sabia que o Mog-ur contribuíra, procurando convencer os outros feiticeiros, mas fora
Ayla por ela mesma quem demonstrara seu valor ao salvar a vida do jovem caçador. Este e
sua companheira iriam permanecer com o clã anfitrião até que ele estivesse suficientemente bem para poder viajar, talvez tivessem de passar o inverno todo
lá.
O Mog-ur, afora uma única vez, jamais falou da presença de Ayla na câmara dos
feiticeiros. Ela estava fazendo os embrulhos, preparando para a partida na manhã do dia
seguinte, quando Creb entrou na segunda caverna. Ele a estava evitando, e isso a deixava
muito sentida. Ao vê-la, Creb parou brus camente e se virou para ir embora, mas Ayla lhe
cortou a frente, jogando-se sentada a seus pés. Ele olhou para sua cabeça abaixada e,
soltando um suspiro, bateu-lhe no ombro.
- O que você quer, Ayla? - gesticulou ele.
- Mog-ur, eu. . . eu - começou ela desajeitada e prosseguindo apressada. - Oh, Creb,
Não agüento vê-lo sofrendo desse jeito. O que posso fazer? Se você quiser, vou procurar
Brun. Faço tudo o que você pedir. Apenas me diga o que tenho de fazer.
O que você pode fazer, Ayla? pensou ele. Pode mudar sua natureza? pode reparar o mal
que causou? Os clãs vão morrer e só restará você e sua gente. Somos um povo antigo,
guardamos as nossas tradições, honramos os espíritos e veneramos o Grande Ursus, mas
para nós terminou, está tudo acabado. Talvez tivesse de ser assim. Talvez não fosse você,
mas sua espécie. Será que foi por isso que você foi enviada a nós? Para me dizer? A terra
em que vivemos é bela e rica. Por muitas e muitas gerações, ela nos deu de tudo o que
precisávamos. E agora chegou a vez de vocês e veremos como irão dei xá-la. O que pode
fazer, ayla?
- Há uma coisa que você pode fazer, Ayla - gesticulou o Mog-ur de vagar, dando ênfase
a cada movimento. Seu olho tinha uma expressão fria. - Você pode nunca mais voltar a
tocar nesse assunto.
Ele se pôs ereto, tanto quanto lhe possibilitava sua perna sadia, tentando não inclinar
muito o corpo sobre o cajado. Em seguida, enfeixando nele todo o orgulho de seu povo, deu
as costas e, com o corpo teso, cheio de dignidade, caminhou para fora da caverna.
- Broud!
O rapaz, num passo empertigado, dirigiu-Se ao homem que o cumprimentava. As mulheres
do clã de Brun preparavam, apressadas, a refeição da
manhã. Haviam programado partir logo depois que tivessem comido e os homens
aproveitavam ainda aqueles últimos momentos para conversar. Durante sete anos ficariam
sem se ver. Alongavam-se nas conversas, tevivendo alguns detalhes emocionantes da
reunião, de modo a fazê-la durar mais um pouco.
- Você se saiu muito bem desta vez, Broud, e já na próxima reunião de verá vir como
chefe.
- Na próxima, você também vai se sair muito bem - gesticulou Broud, inflado de
orgulho. - Tivemos sorte.
- Você é um homem de sorte. Seu clã é o primeiro, o mog-ur de vocês também é o
primeiro e até a curandeira é a primeira. Sabe, Broud, vocês têm sorte de ter Ayla.
Nenhuma curandeira iria enfrentar um urso da caverna para salvar a vida de um caçador.
Broud franziu ligeiramente o cenho. Viu, então, Voord e se dirigiu a ele.
- Voord! - acenou, cumprimentando. - Fiquei contente por ter sido você o escolhido e
não Nouz. Ele esteve bem, mas sem dúvida você foi melhor.
- E você mereceu a primeira escolha, Broud. Você também fez uma bela corrida. Aliás,
seu clã todo merece o primeiro lugar. Até sua curandeira é a melhor, apesar de que, no
princípio, eu tivesse minhas dúvidas. Quando você for o chefe, ela será uma boa curandeira
para se ter por perto. Só espero que não cresça muito mais. Aqui entre nós, eu me sentiria
meio sem graça tendo que levantar os olhos para fitar uma mulher.
- É verdade, ela é muito alta - falou Broud, contrafeito.
- Mas isso não tem importância. O que interessa é que ela seja boa curandeira, certo?
Broud mal assentiu com a cabeça, desconversou e logo depois se afastou. Ayla, Ayla! Já
estou começando a ficar farto de Ayla, disse consigo, encaminhando-se para um lugar
mais vazio.
- Broud, eu queria conversar com você, antes de partirem - disse um homem, vindo a
seu encontro. - Você sabe que tenho no meu clã uma mulher com uma filha deformada
parecida com o filho de sua curandeira. Falei com Brun e ele concordou em aceitá-la,
mas Brun quis que eu falasse com você também. Quando chegar a ocasião, muito
provavelmente você será o chefe. A mãe prometeu educar a filha para ser uma boa mulher,
digna do primeiro clã e do filho da primeira curandeira. Você não tem nada a opor, não é?
Seria essa uma união perfeitamente lógica.
- não - respondeu Broud secamente, rodando nos calcanhares. Se não estivesse com
tanta raiva, poderia ter objetado, mas não queria entrar em nenhuma discussão sobre Ayla
naquele momento.
- A propósito, foi uma boa corrida, Broud.
Ele não viu o comentário, já estava de costas. Enquanto caminhava para a caverna, viu
duas mulheres entregues a uma animada conversa. Sabia que devia desviar os olhos para não ver o que diziam, mas foi em frente, fingindo não reparar.
-. . . simplesmente não acreditava que fosse possível ela ser uma mulher dos clã e quando
vi seu filho então . . mas o modo como ela foi caminhando direto para Ursus, parecia até
que fosse alguém do clã anfitrião, sem mostrar nenhum medo dele ou de qualquer coisa. Eu
não conseguiria fazer isso.
- Conversei um pouco com ela. É uma pessoa muito agradável e se comporta como todo
mundo. Mas não consigo deixar de ficar pensando. . . será que ela vai conseguir encontrar
um companheiro? É muito alta. Qual o homem que quer uma mulher mais alta do que ele?
Mesmo que seja a primeira curandeira.
- Alguém me disse que um dos clã está estudando esse assunto, mas não houve tempo para
que se acertassem os detalhes. Em todo caso, querem conversar sobre isso. Disseram que
enviariam um mensageiro, se resolvessem aceitá-la.
- Disseram-me também que estão morando numa nova caverna. Parece que foi ela quem
encontrou e dizem que é uma caverna muito grande e que trouxe muita sorte para eles.
- Deve ficar perto do mar e os caminhos que levam até lá estão muito visíveis. Imagino
que um mensageiro esperto possa achá-los com facilidade.
Broud passou por elas, contendo-se para não dar uns cascudos nas duas tagarelas
preguiçosas. Mas nem uma nem outra eram de seu clã. Apesar de ser um direito seu
disciplinar qualquer mulher, não era de boa política bater em alguém sem ter a permissão do
companheiro ou do chefe, a não ser que a Infração fosse extremamente grave. Aquilo
podia ser grave para ele e para outro já não ser.
- Nossa curandeira disse que ela é muito jeitosa - dizia Norg a Brun, enquanto Broud
entrava na caverna.
- Bom, você sabe, ela é filha de Iza - falou Brun. - E Iza soube prepará-la muito bem.
- Pena Iza não ter vindo. Soube que está doente.
- É verdade, e essa é uma das razões que me fazem querer chegar lá de pressa. Temos um
longo caminho pela frente. Sua hospitalidade foi maravilhosa, Norg, mas a caverna da
gente é que é a nossa casa. Esta foi uma das melhores reuniões de clãs a que já assisti. Por
muito tempo será lembrada - disse Brun.
Broud virou de costas com os punhos cerrados, antes de ver o cumpri mento que Norg lhe
estava dirigindo. Ayla, Ayla, sempre Ayla. Todo mundo só fala dela. Chega a parecer que
ninguém fez nada nesta reunião a não ser ela. Foi por acaso ela quem teve a honra de ser
escolhida em primeiro lugar? Quem
estava montado na cabeça do urso, enquanto ela se achava bem protegida no chão? E daí
que tivesse salvo a vida daquele caçador? Provavelmente ele nunca voltará mais a andar.
Ela é feia, é alta demais e tem um filho deformado. Essa gente devia saber como sabe ser
insolente quando está em casa.
Precisamente nesse instante, Ayla passou, apressada, carregando diversas trouxas. Havia
tanto ódio no olhar que Broud lhe dirigiu que ela chegou a encolher o corpo. O que será que
fiz agora? perguntou-se ela. Mal pus os olhos em Broud durante todo esse tempo que
passamos aqui.
Broud era agora um homem feito, mais parrudo do que qualquer outro, e a ameaça que ele
representava era muito maior do que simplesmente os estragos que podia fazer com sua
enorme força física. Era o filho da companheira do chefe e destinado a ocupar essa posição
algum dia. Ele pensava intensamente nisso enquanto observava Ayla botar as trouxas no
chão do lado de fora da caverna.
Depois de todos terem acabado de comer, as mulheres rapidamente ensacaram os poucos
utensílios usados na refeição. Brun estava impaciente para partir e também elas. Ayla
despediu-se de algumas curandeiras, da companheira de Norg e de mais algumas outras
mulheres. Enfiou o filho na manta de carregar e foi tomar o lugar que lhe era destinado
durante a marcha. Brun deu o sinal e começou a atravessar a área em frente da caverna.
Antes de fazer a curva no caminho, ele parou e todos se viraram para olhar uma última vez.
Norg e todo seu clã estavam de pé na entrada.
- Que Ursus os acompanhe - gesticulou Norg.
Brun fez que sim com a cabeça e se pôs outra vez em marcha. Teriam ainda que
transcorrer sete anos para tornarem a ver Norg, ou quem sabe, talvez nunca mais. Só
o Espírito do Grande Urso da Caverna saberia dizê-lo.
Tal como Brun imaginara, a viagem estava sendo difícil para Creb. Já sem o sentimento
de expectativa para animá-lo e muito deprimido com o segredo que ele guardava e que não
parava de remoer em pensamento, volta e meia seu corpo o traía. A preocupação de Brun
aumentava, ele nunca vira o grande feiticeiro tão desalentado. Estava sempre ficando para
trás. Brun freqüentemente tinha que enviar um caçador atrás dele, enquanto ficavam à
sua espera. O chefe diminuiu o passo, esperando com isso facilitar a marcha, mas Creb
parecia não se importar. As poucas cerimônias noturnas, realizadas por insistência de Brun,
careciam de força. O Mog-ur mostrava-se hesitante, com os gestos contrafeitos, como se
o coração não estivesse ali. Brun notou também que Creb e Ayla mantinham distância
um do outro e que, embora ela não tivesse dificuldade em acompanhar o ritmo da marcha,
faltava-lhe vivacidade nos passos. Há alguma coisa errada com esses dois, pensou.
Haviam levado quase toda a manhã passando por entre um capim alto e
já meio murcho. Brun olhou para trás e Creb não estava à vista. Ele ia fazer sinal a um
dos homens, depois mudou de idéia e caminhou até Ayla.
- Volte e encontre o Mog-ur - gesticulou.
Ela pareceu surpresa, depois assentiu com a cabeça. Entregou Durc a Uba e correu de volta
passando pela trilha feita no capim com as pisadas deles. Achou Creb muito atrás,
caminhando devagar e se apoiando pesadamente sobre o cajado. Parecia estar sentindo dor.
Quando ela o havia procurado, cheia de remorso e afeto, ficara tão espantada com a
resposta que ele dera, que depois disso não soube mais o que lhe falar. Tinha certeza de
que ele agora estava padecendo com seu doloroso reumatismo nas juntas. Havia recusado
tu do quanto lhe oferecera para aliviar as dores, e ela, depois de se ver repelida umas tantas
vezes, deixara de insistir, embora morresse de pena dele. Ao vêla, ele parou.
- O que você está fazendo aqui?
- Brun me mandou procurá-lo.
Creb rosnou qualquer coisa e começou a andar. Ayla ia atrás dele. Obser vava suas
passadas lentas e dolorosas, até que não agüentou mais. Passou-lhe, então à frente,
arrojando-se a seus pés, obrigando-o a parar. Creb ficou olhan do-a por muito tempo, até
que por fim lhe bateu no ombro.
- Esta mulher gostaria de saber por que o Mog-ur está zangado.
- não estou zangado, Ayla.
- Então por que você não me deixa ajudá-lo? - perguntou a jovem, suplicando. - Antes,
o Mog-ur nunca recusou. - Esforçava-se por manter a calma. - Esta mulher é uma
curandeira, ela está preparada para ajudar aqueles que sofrem. É esse o seu dever e o seu
ofício. Dói a esta mulher ver o Mog-ur sofrendo e não poder ajudar - ao dizer isso já não
conseguiu mais manter a postura formal. - Oh, Creb, deixe-me ajudá-lo. Você não sabe
que eu gosto de você? Que para mim você é como o companheiro de minha mãe? Você tem
me sustentado, falado por mim, eu lhe devo a minha vida. não sei por que você deixou de
gostar de mim, mas não deixei de gostar de você. - As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto,
num desespero sem fim.
Por que será que sempre surge água nos seus olhos, quando acha que não gosto dela? E
por que será que essa fraqueza de olhos sempre me leva a fazer alguma coisa por ela. Será
que todos os Outros também têm o mesmo problema? Ela tem razão. Nunca me importei
que ela me ajudasse antes, por que iria agora me incomodar? Ela não é uma mulher dos clã.
Que pensem o que quiserem, mas não é. Nasceu dos Outros e sempre será deles. Ela mesma
não sabe disso. Pensa que é uma mulher dos clã pensa até que é curandeira. Curandeira é.
Pode não ser da linha de Iza, mas é curandeira e tem tentado ser como uma de nossas
mulheres, por mais difícil que isso às vezes possa ser para ela. Gostaria de saber até que
ponto isso lhe custa. Esta não é a primeira
vez que aparece água em seus olhos, mas quantas vezes não terá lutado para evitar que isso
acontecesse? Sempre surge, quando acha que não gosto dela. Será que é uma coisa que
pode magoá-la tanto assim? Até que ponto eu me sentiria também magoado, se achasse que
ela não gostava de mim? Creb tentava vê-la como uma estranha, como uma mulher do
Outros, mas ela continuava sempre sendo Ayla, a filha da companheira que não teve.
- É melhor nos apressarmos, ayla. Brun está esperando. Enxugue seus olhos e, quando
fizermos uma parada, você pode preparar-me um chá de salgueiro, ouviu, curandeira?
Um sorriso surgiu em meio às lágrimas. Ela levantou e se pôs outra vez atrás dele. Depois
de alguns passos, foi ficar do seu lado. Ele parou por um momento, meneou a cabeça e se
apoiou nela.
De imediato, Brun reparou na mudança ocorrida e retomou o passo da marcha, mas sem
a presteza que gostaria. Havia um ar de melancolia em Creb. contudo parecia que ele se
empenhava mais. Eu sabia que devia estar havendo qualquer coisa com esses dois, disse
Brun consigo. Mas parece que deram um jeito de resolvê-la entre eles. Sentia-se
satisfeito por ter tido a idéia de mandar Ayla atrás do velho feiticeiro.
Creb deixava que Ayla o ajudasse, mas continuava havendo um distanciamento entre os
dois. Fora uma ruptura grande demais para que ele pudesse facilmente dar a volta por cima.
Não conseguia esquecer a diferença de seus destinos, e isso esfriava a relação calorosa de
outros tempos.
Enquanto avançavam em seu caminho de volta à caverna, fazia calor durante o dia, mas as
noites começavam a ficar frias. A primeira visão das montanhas enciniadas de neve, vista
longinquamente a oeste, trouxe novo alento ao clã mas sentiam as distâncias sendo
diminuídas devagar e, com o passar dos dias, a cadeia de montanhas no sul da península
acabou se tornando uma parte do cenário. Estavam fazendo progressos, ainda que de modo
imperceptível. Os dias iam se sucedendo enfadonhamente, enquanto prosseguiam rumo
oeste, com as geleiras já então bem caracterizadas por suas profundas rachaduras azuis e os
picos avermelhados assumindo as formas das serras e afloramentos.
Eles haviam forçado a marcha até começar a escurecer, quando acamparam pela última vez
na planície e já estavam todos acordados com as primeiras luzes do dia seguinte. Os
terrenos das estepes fundiam-se com um par que de árvores altas, e a vista de um
rinoceronte comedor de pastagens das regiões temperadas, que, sem se dignar a tomar
conhecimento da presença deles, prosseguiu no seu caminho, trouxe-lhes a sensação de
estar
em casa. Ao chegar a uma trilha serpenteando o sopé das colinas, apertaram o passo. Por
fim, contornaram o conhecido morro de todos os dias e, com os corações batendo alto,
viram a caverna. Estavam em casa.
Aba e Zoug correram ao encontro deles. Aba, cheia de alegria, cumprimentou a filha e
Droog, abraçando, em seguida, as crianças mais velhas e depois botou Groob no colo. Zoug
fez um cumprimento de cabeça na direção de Ayla e correu para Grod e Ika, e logo depois
para Ovra e Goov.
- Onde está Dorv? - gesticulou Ika.
- Está agora caminhando no mundo dos espíritos - respondeu Zoug. - Sua visão ficou tão
ruim que já não podia ver o que as pessoas estavam lhe dizendo. Acho que ele se deu por
vencido e não quis esperar pela volta de vocês. Quando os espíritos vieram chamá-lo, foi
junto com eles. Enterramos Dorv e marcamos o lugar para que o Mog-ur realizasse mais
tarde as cerimônias fúnebres.
Ayla, de repente aflita, olhou em derredor.
- Onde está Iza?
- Ela está muito doente, Ayla - respondeu Aba. - Desde a última lua nova que não
sai da cama.
- Iza! não Iza! não Não - gritou Ayla, correndo para o interior da caverna. Ao
chegar à fogueira de Creb, atirou ao chão as trouxas e correu para junto de Iza, deitada sobre
suas peles.
- Iza, Iza! - chamou, em voz alta.
A velha curandeira abriu os olhos.
- Ayla - falou Iza, com sua voz áspera que mal se ouvia. - Os espíritos atenderam os
meus desejos - gesticulou, debilmente. - Vocês estão de volta. - Estendeu os braços e
Ayla a abraçou, sentindo-lhe o corpo magro e fraco, quase só pele e osso. Os cabelos
estavam como a neve, e o rosto enco vado, com os olhos afundados, era um pergaminho
seco distendido sobre os ossos. Parecia infinitamente mais velha e tinha pouco mais de 26
anos.
Ayla mal podia enxergar com as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces.
- O que eu tive de ir fazer nesta reunião de clãs. Devia ter ficado aqui e tomado conta de
você. Sabia que você estava doente, por que tive de ir em bora, sabendo que você iria ficar
sozinha aqui?
- Não, não, Ayla - gesticulou Iza. - não se culpe. Você não pode mudar aquilo que
tem de acontecer. Eu sabia que estava morrendo quando vocês partiram. Você não ia poder
ajudar e ninguém iria também poder. A única coisa que desejava era ainda ver vocês todos
mais uma vez, antes de istar-nie aos espíritos.
- Você não pode morrer! não vou deixar que morra, Iza. Cuidarei de você. Vou fazer
com que fique boa - gesticulou Ayla, em desespero.
Ayla, Ayla. Há coisas que nem a melhor das curandeiras é capaz de fazer.
O esforço para falar trouxe-lhe um acesso de tosse. Ayla apoiou o corpo de Iza até que a
tosse se acalmasse e depois enfiou sua capa de pele por
baixo da doente para levantar-lhe o corpo e facilitar a respiração Em seguida, passou a dar
uma busca nos remédios que se achavam por perto da cama
- não estou vendo nenhuma ênula por aqui. Onde está?
- Acho que acabou - respondeu, fracamente, Iza. O acesso a deixara exausta. - Tive de
usar o que tinha e não pude sair para pegar mais. Aba tentou encontrar, mas acabou
trazendo girassóis.
- Eu não devia ter ido - falou Ayla. Em seguida, saiu correndo para fora da caverna,
encontrando na entrada Uba com Durc no colo e Creb.
- Iza está muito doente - gesticulou Ayla, completamente transtornada. - E nem
remédio tem para tomar. Vou buscar alguns pés de ênula. Ela também está sem fogo, Uba.
Por que fui para essa reunião de clã Devia ter ficado aqui com ela. Por que tive de sair daqui?
- Seu rosto, com uma expressão sombria e sujo da viagem, estava riscado de lágrimas, mas
ela não havia reparado e tampouco se importava. Desceu às carreiras pela encosta,
enquanto Creb e Uba entraram apressados na caverna.
Ayla atravessou o riacho, correu à clareira onde davam as ênulas e com a mão mesmo
cavou a terra, arrancando as plantas pelas raízes. De volta, parou no riacho, apenas o tempo
suficiente para lavá-las.
Uba já acendera a fogueira, mas a água que pôs para ferver estava apenas morna. Creb, de
pé, fazia gestos ritualísticos sobre Iza, fervorosamente, empenhando-se de uma maneira
como há muitos dias não o fazia. Invocava cada um dos espíritos que conhecia,
implorando-lhes que fortalecessem a essência da vida de Iza e que não a levassem ainda.
Uba havia posto Durc sobre a esteira. O bebê começava a engatinhar, firmando-se sobre as
mãos e joelhos e escapulira para o lado da mãe, ocupada cortando as raízes em pedaços, mas
ela o afastou quando viu que o garoto queria mamar. não tinha tempo para o filho. Ele se
pôs a berrar, enquanto ela despejava as raízes dentro da água, impaciente, pondo mais
pedras para que fervesse logo.
- Deixe-me ver Durc - gesticulou Iza. - Ele cresceu tanto!
Uba levou-o até a mãe, botando o bebê no colo dela. Mas o menino não tinha vontade de ser
ninado por uma velha de quem não se lembrava e esperneou pedindo para descer.
- Está forte e sadio - disse Iza. - Parece que já não tem nenhum problema para firmar a
cabeça sobre o pescoço.
- Já tem até uma companheira - contou Uba. - Um bebezinho que lhe foi prometido.
- Uma companheira? Que clã é esse que prometeu uma companheira para ele? tão
pequenino e ainda por cima com este defeito.
- Havia uma mulher na reunião que teve uma filha deformada. Ela veio conversar conosco
no primeiro dia - explicou Uba. - O bebê até parece com Durc, pelo menos a cabeça é
parecida. As feições não tanto. A mãe perguntou
se eles no futuro não poderiam ser companheiros. Oda estava preocupada, com medo de
que a filha nunca fosse encontrar um homem em sua vida. Brun e o chefe do clã dela se
puseram de acordo. Acho que ela vem para cá, depois da próxima reunião de clãs,
mesmo que ainda não tenha ficado mulher. Ebra disse que a menina podia viver com eles,
até que os dois tivessem idade para ter uma fogueira. Oda ficou muito feliz, principalmente
depois que Ayla fez a bebida para a cerimônia.
Quer dizer que aceitaram Ayla como uma curandeira de minha linha. Tinha minhas duvidas
de que isso pudesse acontecer - gesticulou Iza, cansada; mas só de ver as pessoas
queridas à sua volta já a animava, pelo menos o espírito. Fez uma pausa e depois
perguntou: - Qual o nome da menina?
- Ura - respondeu Uba.
- Gosto do nome. Soa bem. - Tornou a fazer outra pausa e, em seguida, indagou: - E
Ayla? não encontrou um companheiro na reunião?
- O clã onde Zoug tem parentes está pensando no caso dela. No princípio, eles
recusaram, mas, depois que ela foi aceita como curandeira, disseram que iam pensar no
assunto. não houve tempo para que as coisas ficassem acertadas. Eles podem aceitar Ayla,
mas não acredito que vão querer Durc.
Iza respondeu só com um sinal afirmativo de cabeça e depois fechou os olhos.
Ayla triturava carne para fazer um caldo para Iza, ao mesmo tempo em que vigiava a água
fervendo com as raízes, de modo que a infusão ficasse com a cor e o sabor corretos,
impaciente para que ficasse logo pronto. Dure, lamuriando-se, engatinhou para junto dela e
novamente ela tornou a repeli-lo.
- Deixe que eu fico com ele, Uba - falou Creb.
Por um instante, Dure ficou quieto sentado no colo do velho, intrigado com sua barba. Mas
logo se cansou e começou a esfregar os olhos, lutando para se desvencilhar. De novo no
chão, foi direto para a mãe. Estava com sono e fome. Ayla, de pé junto da fogueira, parecia
não reparar no bebê choramin gando, querendo subir-lhe pelas pernas. Creb se levantou,
deixou cair o cajado e fez sinal a Uba para que pusesse o menino no seu braço. Mancando
muito, sem ter onde se apoiar, dirigiu-se para a fogueira de Broud e botou Durc no colo de
Oga.
- Durc está com fome e Ayla está ocupada preparando remédios para Iza. Será que você
pode dar leite para ele, Oga?
A moça disse sim. Pegou Durc e foi logo dando o peito para o bebê. Broud franziu a cara,
mas bastou um olhar duro do Mog-ur para que imediatamente engolisse em seco sua raiva.
Seu ódio por Ayla não se estendia ao homem que a protegia e sustentava. Broud temia
demais o Mog-ur para que pudesse ter-lhe ódio. Bem cedo em sua vida, havia descoberto
que a sagrada figura do feiticeiro raramente interferia na vida secular do clã. Suas atividades restringiam-se ao mundo dos espíritos. Nunca o Mog-ur impedira
Broud de exercer seu poder sobre a jovem que compartilhava de sua fogueira,
mas assim mesmo o rapaz não desejava entrar em conflito aberto com o feiticeiro.
Creb, de volta à sua fogueira, começou a revirar as trouxas caídas pelo
chão, procurando pela bolsa contendo a gordura do urso da caverna, a parte
que lhe tocara na cerimônia do animal. Uba percebeu e se apressou em ajudá-lo. Ele pegou a bolsa contendo a gordura derretida e foi para a gruta dos
espíritos. Embora sabendo que não havia qualquer esperança, iria valer-se de
toda a mágica a seu alcance para ajudar Ayla a manter Iza viva.
Às raízes por fim ferveram pelo tempo necessário, e Ayla encheu uma
cuia com o líquido, agora impaciente, esperando que esfriasse depressa. Iza
de certa forma havia se reavivado um pouco com o caldo quente que ela lhe
dera antes, em pequenos goles e amparando-lhe a cabeça, com os mesmos
cuidados que ela própria recebera quando tinha cinco anos e estava à beira da
morte. Iza, antes de ficar de cama, estava comendo muito pouco e, depois, praticamente não se alimentou mais. A comida levada para ela ficava intacta. Aquele fora um verão triste e solitário. Sem ninguém por perto para vigiá-la e secertificar de que tinha comido, ela quase sempre se esquecia ou simplesmente
não se dava ao incômodo. Os outros três, quando perceberam que ela estava
muito caída, tentaram ajudar, mas não sabiam como.
Quando o fim de Dorv estava próximo, Iza se levantou, mas o membro
: mais velho do clã teve uma morte rápida e pouca coisa ela pôde fazer por ele,
afora tentar trazer-lhe um pouco de conforto. Essa morte deixou-os profundamente abatidos. Depois que Dorv se foi, a caverna parecia mais vazia ainda, fazendo lembrá-los do quanto também estavam perto de passar para o outro mundo. Aquela foi a primeira morte, desde o terremoto.
Ayla achava-se sentada perto de Iza, soprando o chá na cuia de osso e,
de vez em quando, provando para ver se já estava suficientemente frio. Estava tão concentrada que não percebeu quando Creb saiu com Durc ou quando
o feiticeiro se retirou para a pequena gruta dos espíritos, tampouco via que
Brun se achava lá observando-a. A jovem ouvia o barulho da respiração de Iza
e sabia que o fim estava próximo, mas se recusava a acreditar. Procurava lembrar-se de tudo quanto fosse formas de tratamentos.
Um cataplasma de casca de bálsamo, pensou. Sim, isso é bom e também chá de milefólio. Aspirar o vapor também ajuda a melhorar bastante. Amoras e avencas. Não, isso é para gripes sem gravidade. Raízes de bardana? Talvez. Farinha de inhame? Claro, e as raízes são melhores justamente no outono. Estava decidida a encher Iza de chás, cobri-la de cataplasmas e, se necessário, afogá-la em vapores. Tudo e qualquer coisa que prolongasse a vida de
sua mãe, a única mãe que conhecera. não suportava a idéia de Iza morrer.
Apesar de Uba estar inteiramente consciente da gravidade da moléstia de sua mãe ela notara
a presença de Brun. Não era comum homens visitarem fogueiras de um outro, na ausência
do dono, e isso a deixava nervosa. A meni na se apressou a catar as trouxas espalhadas pela
fogueira, olhando, ora para Brun, ora para sua mãe e para Ayla. Sem ninguém para orientá-
la
e lhe dizer o que fazer, não sabia como conduzir a visita de Brun. Ninguém tomou conhecimento da presença dele e nem o cumprimentou. O que se esperava que ela fizesse?
Brun observava o trio de mulheres. A velha curandeira; a jovem de cará ter forte e
primeira curandeira dos clã apesar de ser inteiramente diferente deles, e Uba, destinada
também ao mesmo ofício. Ele sempre fora muito apegado à sua germana. Iza tinha sido a
menina mimada, querida de todos e também muito bem-vinda, uma vez que havia nascido
um garoto forte e saudável para dar continuidade à linhagem de chefes de clã. Ele sempre se
sentiu também como protetor de Iza. Jamais teria escolhido o homem que lhe foi destinado para companheiro. Nunca gostara dele, um fanfarrão que ridicularizava o seu irmão
aleijado. Iza não tinha outra alternativa, mas soube manobrar bem a situação. Contudo,
havia conseguido ser um pouco mais feliz depois que o companheiro morreu. Ela era uma
boa mulher e uma boa curandeira. O clã irá sentir sua falta.
A filha de Iza está crescendo, pensou, observando-a. Logo Uba estará uma mulher. Devo ir
começando a pensar num companheiro para ela. Terá de ser um bom homem, alguém com
quem combine. O caçador será melhor, se sua companheira lhe for devotada. Mas, à
exceção de Vorn, quem mais poderá ser? Tenho também de pensar em Ona, que não pode
ser companheira de Vorn, já que os dois são germanos. Ela terá de esperar até Borg tornar-
se homem. Se Ona ficar mulher cedo, pode ser que tenha filho antes de Borg estar pronto
para assumir companheira. Talvez eu tenha de puxar um pouco por ele. Borg é mais velho
do que Ona. Logo que ele começar a aliviar suas necessidades, terá idade bastante para
assumir o status de homem. Será que Vorn dará um bom companheiro para Uba? Droog
tem sido boa influência para ele. Talvez haja uma atração entre os dois. Vorn gosta de se
pavonear diante dela. Brun tomou nota em sua cabeça de todos esses pensamentos para
futuras referências.
O chá de raiz de ênula esfriou e Ayla carinhosamente acordou Iza, apoiando-lhe a cabeça
enquanto lhe dava o remédio. não creio que desta vez você consiga botá-la de pé, Ayla,
disse Brun consigo, reparando na magreza de Iza. Como ela envelheceu tão depressa
assim? Era a mais moça de nós três e agora parece mais velha do que Creb! Eu me lembro
da ocasião em que ela encanou meu braço, não devia ser muito mais velha do que Ayla
quando tratou do de Brac. Só que nesse tempo Iza já era mulher e tinha companheiro.
Ela também fez um bom trabalho. Nunca me trouxe problemas, a não ser al gumas
pontadas ultimamente. Também estou ficando velho. Meus dias de caçador logo irão
acabar e vou ter de passar o comando para Broud.
Será que ele está preparado para isto? Na reunião de clãs, portou-se tão bem que quase
cheguei a renunciar. Broud é corajoso. Todo mundo me disse que sou um homem de sorte.
E realmente sou, tinha medo de que ele fosse escolhido para acompanhar Ursus. Seria uma
honra, mas prefiro passar sem ela. Gorn era um bom homem. Foi duro para o clã de Norg.
Sempre é terrível quando Ursus escolhe. Às vezes, é uma sorte não ser agraciado com tal
honraria; o filho de minha companheira ainda está caminhando neste mundo. E Broud é
destemido, talvez até demais. Um pouco de ousadia e imprudência ficam bem em
rapazolas, mas um chefe de clã tem de ser prudente. Precisa pensar em seus homens. Precisa
planejar e avaliar tudo de modo que as caçadas sejam bem-sucedidas, sem que os homens
se arrisquem desnecessariamente. Talvez eu devesse deixar Broud dirigir algumas caçadas,
para que ele fosse adquirindo experiência. Precisa aprender que um chefe, mais do que ter
coragem, tem de saber conduzir. É necessário responsabilidade e autocontrole.
E o que dizer de Ayla que faz vir à tona tudo que existe de ruim nele? Ele se rebaixa
competindo com ela. Ayla pode ser um pouco diferente, mas não deixa de ser mulher. E
ela é uma mulher de valor, com muita determina ção. Será que o parente de Zoug vai
assumi-la? Agora que estamos acostumados com sua presença, isso aqui vai ficar estranho
sem ela. É uma boa curandeira também. O clã que contar com ela só tem a ganhar. Farei
tudo o que puder para que eles saibam dar-lhe o devido valor. Veja agora, nem o filho, o
filho que ela estava pronta para acompanhar ao outro mundo, consegue desviar sua atenção
de Iza. Muito pouca gente enfrentaria um urso da caverna para salvar a vida de um homem.
Ela também é corajosa, mas aprendeu a controlar-se. Comportou-se muito bem na
reunião. Em todos os sentidos, portou- se como uma verdadeira mulher, diferente de
quando era mais criança. Todo mundo só teve elogios para ela, quando chegou no final.
- Brun - chamou Iza, com voz fraca. - Uba, traga chá para o chefe - gesticulou,
tentando sentar-se ereta. Ainda era a perfeita dona-de-casa. -ayla, arrume uma pele para
Brun se sentar. Esta mulher lamenta não poder ela mesma servir o chefe.
- Iza, não se incomode. não vim para tomar chá. Estou aqui para vê-la
- gesticulou Brun, sentando-se ao lado da cama dela.
- Há quanto tempo você está de pé aí? - perguntou Iza.
- Cheguei há pouco. Ayla estava ocupada. Preferi não incomodar e esperar que ela
terminasse o que estava fazendo. Sentiram sua falta na reunião, Iza.
- Tudo correu bem?
- Este clã continua sendo o primeiro. Os caçadores se portaram bem. Broud teve a honra de
ter sido o primeiro escolhido para a Cerimônia de Ur sus, e Ayla também se portou muito
bem. Recebeu vários elogios.
- Elogios! Quem precisa de elogios? Quando são demais, os espíritos ficam com ciúme. Se
ela se portou direito e honrou o nome do clã, é o quanto basta.
- Ela se comportou como uma perfeita mulher e também foi aceita pelos mog-urs. Ayla é
sua filha, Iza, como esperar menos?
- Sim, ela é minha filha, tanto quanto Uba. Tive sorte de os espíritos me concederem duas
filhas e ambas ser boas curandeiras. Ayla poderá terminar a educação de Uba.
- não - interrompeu Ayla. - Você é quem vai terminar de educar Uba. Você vai ficar
boa. Nós estamos de volta e vamos cuidar de você. Vai sarar, espere e verá - gesticulou
aflita, em desespero. - Você tem de ficar boa, mãe.
- Ayla, minha filha, os espíritos estão prontos para me receber. Logo vou ter de
acompanhá-los. Eles já atenderam meu último desejo que era o de ver as pessoas que amo.
Agora, não posso deixar que eles fiquem esperando por muito mais tempo.
O caldo e o remédio tinham estimulado suas últimas reservas. A febre subia com o heróico
esforço de seu corpo lutando contra a doença que exaurira suas energias. O brilho febril
dos olhos e a cor das faces lhe emprestavam um falso aspecto de saúde. Mas havia um
fulgor translúcido em seu rosto, como se iluminado por uma luz vinda de dentro, que não
era brilho de vida. Mostrava-se como qualquer coisa de lúgubre, uma espécie de
incandescência espiritual que Brun já vira antes. Era o despertar da força vital
preparando para partir.
Oga permaneceu com Durc na fogueira de Broud até tarde, só o trazendo de volta já
dormindo, depois de o sol ter desaparecido. Uba estendeu as peles de Ayla e deitou o
garoto em cima delas. A menina se via confusa e com medo. não tinha ninguém para
apelar. Estava com receio de interromper Ayla nos seus esforços para salvar Iza e também
com medo de perturbar a mãe. Creb custou muito a chegar. Ele pintou uns símbolos no
corpo de Iza com uma pasta feita de ocre vermelho e gordura de urso, ao mesmo tempo em
que fazia alguns gestos sobre ela. Imediatamente depois, voltou para sua pequena caverna e
de lá não saiu mais.
Uba desfez os embrulhos e trouxas, pôs a fogueira em ordem, cozinhou uma comida que
ninguém tocou e limpou tudo outra vez. Em seguida, silenciosa, foi sentar-se junto do
bebê dormindo, querendo pensar em alguma coisa que a mantivesse ocupada. Isso não ia
acabar com o terror que sentia no coração mas pelo menos ela estaria fazendo algo. Era
melhor do que ficar sentada, vendo a mãe morrer. Por fim, deitou-se na cama de Ayla, enroscando-se bem junto de
Durc, numa triste tentativa de buscar alguém que lhe desse um pouco de segurança e calor.
Enquanto isso, Ayla atacava a moléstia de Iza por todos os lados, tentando tudo quanto
fosse remédio e tratamento que conseguia lembrar. Ficava debruçada sobre ela, temendo
sair de perto e ela escapulir durante sua ausência. Ayla não foi a única a guardar
vigília naquela noite. Só as crianças pequenas dormiam. Em todas as fogueiras, as pessoas
estavam com os olhos parados nas brasas ou deitadas sobre as peles sem dormir.
O céu do lado de fora estava pesado, com as estrelas encobertas e, dentro, a escuridão se
fazia cada vez mais forte perto da larga entrada, ocultando todo sinal de vida para mais
além da fogueira da caverna. No silêncio da madrugada, com a noite ainda mergulhada
inteiramente nas profundezas de suas sombras, Ayla, assustada, levantou a cabeça,
acordando de um ligeiro cochilo.
- Ayla - disse Iza, numa voz sussurrada e rouca.
- O quê?
Os olhos de Iza refletiam a luz fraca das brasas na fogueira.
- Quero dizer uma coisa antes de partir - começou a gesticular, mas deixou as mãos caírem.
Era um esforço conseguir movê-las.
- não tente falar, mãe. Descanse. Amanhã, você já vai estar mais forte.
- não filha, tenho de falar agora. Não vou durar até amanhã.
- Vai sim. Você tem de viver, não pode partir.
- Não, Ayla. Estou morrendo. Você tem de aceitar esse fato. Deixe que eu termine, não me
resta muito tempo.
Iza fez uma pausa, enquanto Ayla aguardava muda e desesperançada.
- Ayla, sempre gostei mais de você. Não sei por que, mas é a verdade. Quis que você
ficasse comigo. . . quis que você permanecesse no clã Mas breve não estarei mais aqui.
Creb também não vai demorar muito a encontrar seu caminho para o mundo dos espíritos e
Brun está ficando velho. Broud então será o chefe. Ayla, você não pode permanecer aqui
quando chegar essa ocasião. Broud irá encontrar uma maneira de fazer mal a você.
Tornou a fazer outra pausa, fechou os olhos, lutando para respirar e arrumar forças para
poder continuar.
- Ayla, minha filha, a minha menina tão estranha e voluntariosa que tanto tem lutado. Eu
quis educá-la para curandeira para que você, mesmo sem companheiro, tivesse algum status
e pudesse permanecer no clã. Mas você é uma mulher e precisa de um homem que seja seu.
Não pertence à nossa gente, Ayla. Nasceu dos Outros e é a eles que pertence. Você tem de ir
embora, criança, encontrar seu povo.
- Ir embora? - gesticulou, confusa. - Para onde eu iria, Iza? Não conheço ninguém dos
Outros. Nem sei em que lugar iria procurá-los.
- Há muitos deles ao norte daqui. No continente, passando a península. Minha mãe me disse
que o homem que a mâe dela tratou veio do norte. - Iza tornou a parar, depois forçou-se a
prosseguir. - Você não pode ficar aqui, Ayla. Vá embora e encontre os Outros, menina.
Encontre sua gente e um companheiro para você.
As mãos de Iza tombaram de repente e seus olhos fecharam. Respirava apenas
superficialmente, mas com esforço tornou a pegar uma golfada de ar e abrir os olhos
novamente.
- Diga a Uba que eu a amo, Ayla. Mas você sempre esteve em primeiro lugar. Você é a
filha de meu coração Sempre amei. - . mais. . . você. - . - A respiração de Iza foi
interrompida por um suspiro entrecortado e não tornou a voltar mais.
- Iza! Iza! - gritou Ayla. - Mãe, não vá embora, não me deixe! Oh, mãe, não vá
embora.
Uba acordou com o lamento de Ayla e correu para junto dela.
- mãe Oh, não Minha mãe foi embora! Minha mãe partiu.
As duas ficaram paradas olhando uma para a outra.
- Iza me pediu para dizer a você que ela a amava muito, Uba - falou Ayla. Os olhos
estavam secos, o choque ainda não fora inteiramente registrado em seu cérebro. Creb veio
na direção delas. Quando Ayla gritou, ele já se achava fora de sua pequena caverna. Com
um soluço vindo do fundo do peito, Ayla se dirigiu aos dois e eles se encontraram num
abraço doloroso, compartilhando o mesmo desespero. As lágrimas de Ayla molhavam
todos. Uba e Creb não choravam, mas a dor deles não era menor.

Capítulo 26

Oga, você poderia alimentar Durc outra vez?
- A gesticulação de Creb usando apenas uma das mãos era perfeitamente clara para Oga, apesar de ele ter no colo um bebê esperneando.
Ayla devia dar de mamar ao menino, pensou Oga. não é bom para ela passar muito tempo
sem dar o peito. No rosto do Mog-ur, achavam-se estampadas tanto sua dor pela morte de
Iza como sua perplexidade com a reação de Ayla. Ela não podia recusar-lhe o pedido.
- Claro que sim - falou Oga, tomando Durc nos braços.
Creb voltou para sua fogueira, vendo que Ayla ainda não se movera do lugar, apesar de
Ebra e Ika já terem levado o corpo de Iza que ia ser preparado para o enterro. Os cabelos
de Ayla estavam em desalinho e o rosto borrado ainda com a sujeira da viagem e das
lágrimas. Usava a mesma roupa suja e manchada com que fizera a longa caminhada de
volta da reunião. Creb pusera Durc em seu colo quando ele começou a gritar, mas ela se
mostrava cega e surda às necessidades da criança. Uma mulher teria entendido que, apesar
de a dor ser imensa, o choro do bebê acabaria por surtir efeito. Creb, entretanto, tinha pouca
experiência de mãe e bebês. Sabia que freqüentemente, as mulheres estavam dando de
mamar aos filhos de outras e ele não podia deixar uma criança passando fome, quando havia
mulheres lá que poderiam alimentá-la. Ele, primeiro, tinha levado Durc para Aga e Uka,
mas os filhos destas estavam praticamente sendo desmamados e as duas já não tinham
muito leite. Já Grev estava só com pouco mais de um ano e Oga parecia ter leite em abudância, por isso Creb passou a recorrer a ela. Ayla não sentia doer os seus seios duros e
empedrados, a dor no coração era maior.
O Mog-ur apanhou o cajado e se dirigiu para o fundo da caverna. Tinha sido levada para lá,
para um canto que não era usado, uma pilha de pedras e, no chão de terra, fora aberta uma
cova rasa. Iza fora uma curandeira de elevada posição social. Tanto a hierarquia clânica
como a intimidade que ela manteve em vida com os espíritos exigiam um lugar dentro
da caverna. Era uma forma de garantir que os espíritos protetores que velavam por ela
ficassem junto de seu clã e ela própria, do seu lar no outro mundo, zelaria por eles. Além de
que, isso evitaria que animais dispersassem os seus ossos.
O feiticeiro espalhou pó de ocre vermelho no fundo da cova, fez alguns gestos e, depois de
estar bento o lugar em que Iza seria enterrada, ele se dirigiu para um vulto coberto por um
pano de couro. Afastou a coberta, revelan do o corpo cinzento e nu da curandeira. Às
pernas e os braços haviam sido do brados na posição fetal e amarrados com cordas
vermelhas feitas de tendões. O Mog-ur fez um gesto, benzendo-se contra os maus espíritos
e, em seguida, abaixou-se para passar no corpo já frio o unguento de ocre vermelho com
gordura de urso. Curvada na posição fetal e pintada de vermelho como se fossem as
manchas de sangue de um bebê ao nascer, Iza seria enviada ao outro mun do da mesma
maneira como chegara neste.
Nunca fora tão difícil para Creb executar seu dever. Iza tinha sido mais do que uma simples
germana para ele. Ela o conhecia melhor do que ninguém. Sabia da dor que ele suportava
sem se queixar e da humição iação que sofrera por causa de seus problemas físicos. Ela
entendia sua delicadeza de alma, sua sensibilidade, e sentia prazer com a importância, o
poder e o desejo dele de triunfar. Iza havia cozinhado para ele, cuidado de sua pessoa e
aliviado seu sofrimento. Com ela, ele conhecera as alegrias de uma vida em família, quase
como se fosse um homem normal. Apesar de nunca lhe haver tocado tão intimamente
como agora o fazia, ungindo seu corpo, ela fora mais "companheira" para ele do que
muitas mulheres tinham sido para os seus homens.
Quando Creb voltou à sua fogueira, tinha o rosto tão cinza quanto o do cadáver antes de ser
pintado. Ayla ainda se encontrava junto da cama de Iza, com o olhar vago, perdido no
espaço, mas despertou ao perceber Creb remexendo nas coisas de Iza.
- O que está fazendo? - gesticulou, querendo proteger tudo quanto havia pertencido a
Iza.
- Estou procurando as bacias e as coisas que foram de Iza. Os instrumentos que ela usou
nesta vida devem ser enterrados para que ela tenha os espíritos dessas coisas no outro
mundo - explicou Creb.
- Vou apanhá-las - disse Ayla, pondo Creb de lado. A moça reuniu as bacias de madeira,
as cuias de osso que Iza usava para preparar e medir as dosagens de seus remédios, pegou
uma pedra redonda e outra com a base achatada, usadas para triturar e moer, os pratos
pessoais de comer, alguns utensílios e a sacola de remédios. Depois de botar tudo em cima
da cama de Iza, Ayla olhou para a pequena pilha de objetos que representavam toda a vida
e o trabalho de Iza neste mundo.
- Essas coisas não são os instrumentos de Iza - gesticulou Ayla com raiva. Ela deu um
salto e foi correndo para fora da caverna. Creb, sem entender, ficou abanando a cabeça,
olhando-a sair. Depois, veio juntar as côisaas de
Iza.
Ayla cruzou o riacho e correu a uma clareira onde já estivera com Iza.
Lá, deteve-se numa moita constituída de flores de talos finos e graciosos e colheu uma
braçada de malvas de diversas cores. Em seguida, pegou uma quantidade de milefólios,
uma planta analgésica utilizada em cataplasmas e parecida com a margarida. Corria pelos
campos e bosques colhendo as plantas que Iza usava para preparar suas magias curativas:
eram os cardos com suas folhas brancas e flores num tom amarelo-claro, as alfazemas
amarelas, os tanacetos grandes e dourados e muscaris tão azuis que chegavam quase a
ser pretos.
Cada uma das plantas que colhia tivera, em alguma ocasião, um uso na farmacopéia de Iza,
mas escolheu apenas as bonitas, com flores coloridas e perfumadas. Com os braços cheios
de flores, a jovem fez uma parada na borda da clareira, chorando novamente com a
lembrança dos tempos em que saía ao lado de Iza para apanhar plantas. Sem a cesta de
colher, seus braços estavam tão carregados que tinha dificuldade para transportar. Algumas
flores caíram, ela se agachou para pegá-las de volta. Viu, então, os galhos entrelaçados com
cavalinhas com as suas flores miúdas e uma idéia lhe ocorreu, chegan do quase a ter um
sorriso nos lábios.
Retirou da dobra da roupa uma faca e cortou um galho da planta. Sob
o sol cálido de princípio de outono, ela se sentou e pôs-se a tecer, por entre
o emaranhado do galho, os talos das belas flores. Quando terminou o ramo
inteiro era uma esplêndida orgia de cores.
O clã se espantou ao ver Ayla entrar na caverna com seu trançado de flores. A jovem
seguiu
direto para o fundo e o depositou junto do corpo da curandeira, que estava deitado de lado
com pedras formando um desenho oval ao redor dele.
- Esses foram os instrumentos de Iza - gesticulou Ayla, afrontando, pronta para
enfrentar qualquer desafio que se opusesse à sua vontade.
O velho feiticeiro concordou com a cabeça. Ela tem razão, pensou, foram esses os
instrumentos de Iza. Aquilo com que ela trabalhou durante toda a vida e que tão bem
conhecia. Iza deve ficar feliz de tê-los no mundo dos espíritos. Será que lá existem plantas
com flores?
As ferramentas, os utensílios e as flores foram postas na sepultura junto com Iza, e o clã,
em seguida, começou a empilhar pedras cobrindo o corpo, enquanto o Mog-ur fazia
gestos pedindo ao Espírito do Grande Ursus e o do Antílope Saiga que conduzissem em
segurança o espírito de Iza ao outro mundo.
- Esperem! - interrompeu, subitamente, Ayla. - Esqueci de uma coisa importante.
Correu à fogueira de Creb e retirou de dentro de sua sacola de remédios as duas metades da
velha bacia de cerimônias. Voltou e as depositou na sepultura ao lado do corpo de Iza.
- Achei que, talvez, ela gostasse de ter isso também, agora que nunca mais será usada.
O Mog-ur acenou com a cabeça em sinal de aprovação e prosseguiu com os gestos
ritualísticos. Após a última pedra ter sido colocada, as mulheres começaram a juntar
madeira ao redor e em cima da pilha de pedras. Uma brasa da fogueira da caverna foi
usada para acender o fogo que iria cozinhar o banquete fúnebre em memória de Iza. A
comida seria feita em cima da sepultura e o fogo ficaria ardendo por sete dias. O calor da
fogueira tinha não só a finalidade de desidratar o corpo, mumificando-o, como também a
de impedir o mau cheiro.
Quando as chamas se desprenderam, o Mog-ur começou um derradeiro e muito sentido
lamento, feito com gestos que tocaram profundamente a alma de todos os membros do clã.
Ele se dirigia ao mundo dos espíritos, falando do amor que tinham pela curandeira que
havia cuidado e tratado deles e os ajudado em suas doenças e enfermidades, tão misteriosas
para eles quanto a própria morte. Eram gestos ritualísticos, em essência, os mesmos usados
em toda cerimônia fúnebre. Alguns, eram reservados principalmente aos rituais masculinos e, por isso, desconhecidos pelas mulheres, mas o significado era perfeita mente
compreendido. Embora a forma exteriorizada fosse convencional, o fervor, a convicção e a
dor indizível do feiticeiro davam-lhe aos gestos um significado muito mais profundo do que
aqueles contidos meramente na forma.
Com os olhos secos, Ayla olhava por cima do fogo crepitando os movimentos elegantes e
fluídicos do velho aleijado, sentindo-lhe a intensidade das emoções como se estas fossem
suas. O Mog-ur expressava a dor dela, fazendo-a identificar-se com sua pessoa, como se
ele estivesse dentro de seu corpo, falando com seu cérebro e sentindo com seu coração Ela
então era a única a sentir a dor dele como sua. Ebra também começou a gritar sua dor, e
foi logo depois seguida pelas outras mulheres. Uba, que se achava com Durc nos braços,
sentiu brotar-lhe na garganta um berro não articulado, agudo, que veio juntar-se aos
lamentos que extravasavam a mesma dor que era a sua. Ayla, com uma expressão vazia,
olhava em frente, mergulhada num sofrimento grande demais para ser expressado. Nem
mesmo o alívio das lágrimas pôde encontrar.
Não soube quanto tempo ficou olhando sem ver as chamas que pareciam hipnotizá-la.
Ebra teve de sacudi-la, até que a jovem a olhasse com uma expressão totalmente inexpressiva.
- Ayla, coma alguma coisa. Esta é a última festa que vamos compartilhar com Iza.
Ela, automaticamente, pegou no prato com comida e botou um pedaço de carne na boca,
mas quase vomitou quando tentou engolir. De repente, deu um salto e foi correndo para
fora da caverna. Às cegas, ia passando aos tropeções por entre as pedras e o mato no seu
caminho. No princípio, seus pés a levaram pela conhecida trilha que ia dar na clareira da
montanha, onde havia
a pequena caverna que, em outras ocasiões, já lhe havia oferecido abrigo e se gurança. Ela,
entretanto, desviou se Desde que mostrara o lugar a Brun, aqui lo já não parecia mais
pertencer-lhe e sua última estada ali havia deixado dolorosas recordações. Subiu, então, ao
alto da rocha escarpada que protegia a caverna deles contra os ventos do norte uivando pela
montanha abaixo no inverno e que desviava as fortes ventanias de outono.
Açoitada pelas rajadas de vento, deixou-se cair de joelhos e, sozinha com sua dor,
entregou-se ao sofrimento num canto monótono e queixoso, enquanto se embalava ao
ritmo de seu dolorido coração. Creb veio atrás dela e viu sua figura delineada contra os
matizes crepusculares das nuvens, escutando-lhe os gemidos fracos e distantes. Por maior
que fosse a dor dele, Creb não pôde compreender por que ela, na aflição rejeitava o consolo
da companhia e o motivo dessa retirada para dentro de si mesma. A habitual percepção do
Mog ur achava-se obscurecida pelo sofrimento. Ele não percebeu que a dor de Ayla
ultrapassava o sentimento de perda.
A culpa torturava-lhe a alma. Ela se culpava pela morte de Iza. Havia deixado em
desamparo uma mulher doente para ir a uma reunião de clã. Ayla era uma curandeira que
abandonara alguém num momento de necessidade e, o pior, alguém que amava. Culpava-se
por haver feito Iza escalar a montanha para procurar a planta que impediria o aborto do
bebê que desesperadamente desejava ter, daí resultando a moléstia fatal que lhe
enfraquecera o organismo. Sentia-se também culpada pelo sofrimento que causara a Creb,
quando, inadvertidamente, pôs-se a acompanhar as luzes que levavam à pequena gruta
encravada no fundo de uma montanha nas longínquas paragens do leste. No entanto,
mais do que culpa e dor, ela se achava fraca e com febre. Estava sem alimentos e o leite
empedrado lhe deixava os seios doloridos e inchados. Sobretudo, Ayla estava deprimida,
passando por um estado de desânimo que Iza poderia ter ajudado, se estivesse lá. Pois,
como curandeira, Ayla tinha por missao salvar vidas e aliviar sofrimentos e ela perdera o
seu primeiro paciente.
Contudo, o que Ayla mais estava precisando era do seu filho. Tinha de alimentá-lo e
ocupar-se dele para voltar à realidade e poder compreender que a vida continuava. Ao
regressar, entretanto, à caverna, Durc já estava dormin do ao lado de Uba. Creb o havia
levado novamente para Oga lhe dar de mamar. Ayla se deitou e ficou se remexendo na
cama sem conseguir dormir, sem se dar conta de que eram a febre e a dor que a mantinham
acordada. Sua men te estava totalmente voltada para dentro, ocupada apenas com o
profundo pesar e a culpa.
Quando Creb acordou, ela já havia saído. Ficara, primeiro, rodando um pouco do lado de
fora da caverna e depois tornou a subir para o alto da rocha. Creb, ansioso, observava-a de
longe, mas não dava para que ele visse seu estado de fraqueza ou soubesse que estava com
febre.
- Devo ir atrás dela? - perguntou Brun, tão desconcertado com a reação de Ayla quanto
Creb.
- Ela parece que quer ficar sozinha. Talvez seja melhor deixá-la - respondeu Creb.
Quando não pôde mais enxergá-la, ficou preocupado. Já era noite e Ayla ainda não havia
voltado. Pediu, então, a Brun para procurá-la, lamentando não ter feito isso antes, ao
ver Ayla chegar, carregada no colo de Brun. Depois do mal causado pelo sofrimento e a
depressão, a fraqueza e a febre chegaram para completar o serviço. Uba e Ebra trataram da
curandeira do clã. Ayla delirava, às vezes tremendo de frio, às vezes ardendo em febre. O
menor toque em seus seios fazia-a gritar de dor.
Ela vai perder o leite - falou Ebra para a menina. - É tarde demais para que Dure possa
fazer alguma coisa. O leite empedrou, o menino não vai conseguir puxá-lo para fora.
- Mas Dure é muito pequeno para ser desmamado. O que vai acontecer com ele? E com
ela?
Não seria tarde demais se Iza estivesse viva ou se Ayla pudesse raciocinar. A própria Uba
sabia de certos cataplasmas e de remédios que poderiam ajudar, mas a garota era muito
jovem e insegura; por outro lado, Ebra se mostrava tão taxativa que não dava para discutir.
Quando a febre cedeu, o leite de Ayla secara. Já não poderia mais amamentar o filho.
- Não quero esse monstrengo em minha fogueira, Oga! Não quero que ele seja irmão de
seus filhos! - Broud estava furioso, brandindo os punhos e Oga se encolhia de medo a
seus pés.
- Mas, Broud, ele é apenas um bebê. Precisa de leite. Aga e Ika já não têm mais em
quantidade, não adiantaria nada se elas dessem o peito para ele. E tenho de sobra, sempre
tive muito leite. Se ele não se alimentar, mor rerá, Broud.
- Pouco estou ligando se ele morrer. Antes de mais nada, este garoto não tinha de viver.
Aqui nesta casa é que ele não entra.
Oga deixou de tremer e encarou o homem que era o seu companheiro. Ela não acreditava
que Broud fosse realmente impedi-la de alimentar o filho de Ayla. Achava que ele fosse
gritar e esbravejar, mas que no fim acabaria cedendo. Ele não podia ser tão cruel assim,
Não podia deixar que um bebê morresse de fome, por mais que odiasse a mãe.
- Broud, Ayla salvou a vida de Brac, como você pode deixar o filho dela morrer?
- Ela já foi bem paga por ter salvo a vida dele, não Está aí vivendo e autorizada até a
caçar. Eu não lhe devo nada.
- não é bem assim. Está vivendo, mas recebeu uma maldição de morte
e voltou do mundo dos espíritos porque seu totem quis que ela voltasse. Ele protegeu Ayla
- protestou Oga.
- Se tivesse sido amaldiçoada como devia, não teria voltado e jamais teria tido esse
pirralho. Se seu totem é tão forte, por que, então ela perdeu o leite? Todo mundo disse que
o filho dela seria um desgraçado. E que maior desgraça existe do que perder o leite da mãe E
agora você quer trazer esse azar para dentro de nossa fogueira. não isso não vou permitir,
Oga; assunto encerrado.
Oga se sentou e olhou para Broud, friamente, com toda a calma.
- Não, Broud - gesticulou ela. - O assunto não está encerrado. - Oga já não estava
mais com medo, e Broud se via estupefato. - Você pode impedir de Dure viver em sua
fogueira, esse é um direito que tem e nada posso fazer contra isso. Mas você não me pode
impedir de amamentá-lo. Este é um direito que a mulher tem. Toda mulher pode alimentar
o bebê que ela quiser e nenhum homem pode opor-se a isso. Ayla salvou a vida de meu
filho e não vou deixar que o dela morra. Dure será irmão de meus filhos, queira você ou não.
Broud estava cheio de espanto. Sua companheira recusar-se a se submeter à vontade dele
era algo inteiramente inesperado. Oga jamais fora insolente, faltara-lhe com o respeito, ou
deixara transparecer o mais leve sinal de desobediência. Não dava para acreditar. A
surpresa transformou-se em fúria.
- Como ousa desafiar seu companheiro, mulher? Você será posta para fora dessa fogueira!
- Nesse caso, pego os meus filhos e saio, Broud. Pedirei a um homem que fique comigo.
Talvez o Mog-ur me deixe viver com ele, se ninguém me quiser. Mas vou dar de mamar ao
filho de Ayla.
A única resposta do rapaz foi um soco de mão fechada que derrubou a companheira direto
no
chão. Ele estava dominado demais pela raiva para responder de outra forma e já se
preparava para bater novamente, quando de repente deu as costas e saiu pisando duro na
direção da fogueira de Brun. Vou tratar dessa clamorosa falta de respeito, disse consigo.
- Primeiro, ela contagiou Iza e agora essa sua impertinência passou também a atingir a
minha companheira! - gesticulou Broud, logo que botou os pés dentro da fogueira de
Brun. - Falei a Oga que não queria o filho de Ayla em minha fogueira, que não queria
aquela criança deformada para irmão dos filhos dela. E sabe o que respondeu? Que iria dar
leite para ele de qualquer maneira! Disse que eu não poderia impedi-la. Que o garoto seria
irmão dos filhos dela, quisesse eu ou Não! É possível acreditar? Logo Oga? A minha
companheira?
- Ela está certa, Broud - falou Brun, calculadamente calmo. - O homem não tem nada a
ver com o bebê que sua companheira alimenta. Isso Não
é problema dele. O homem tem coisas bem mais importantes com que se preocupar.
Brun não estava nada satisfeito com a violenta recusa de Broud. Era vergonhoso o rapaz
envolver-se emocionalmente em assuntos que eram da exclusiva competência da mulher. E
depois quem mais, além de Oga, poderia fazer isso? Durc pertencia ao clã, sobretudo
depois do festival do urso. E os clãs sempre protegeram os seus membros. Mesmo a mulher
que viera de um outro clã e que jamais produzira um só filho nunca foi deixada à míngua
depois que o companheiro morreu. Ela podia não ter posição social, ser um fardo para todo
mundo, mas, enquanto o clã tivesse comida, ela teria o bastante para sobreviver.
Broud podia recusar Durc em sua fogueira. Isso impunha a responsabilidade de sustentá-lo
e educá-lo junto com os filhos de Oga. Brun estava infeliz com o problema, mas não era
inesperado. Todo mundo sabia como Broud se sentia em relação a Ayla e a seu filho. Mas
por que não deixar sua companheira alimentar o menino? não faziam todos eles parte do
mesmo clã?
- Você está me dizendo que Oga pode ser desobediente o quanto quiser e ainda por cima
impor sua vontade? - perguntou Brod, furioso.
- E o que tem isso a ver com você, Broud? Por acaso quer que a criança morra? -
falou Brun. Broud ficou vermelho, havia um sentido subenten dido na pergunta. - Durc
pertence a este clã, Broud. Por mais que sua cabeça seja deformada, ele não parece
retardado. Vai crescer e será um caçador. Este é o seu clã. Inclusive uma companheira já
está prometida para ele e você concordou. Por que se preocupa tanto com o fato de sua
companheira amamen tar o bebê de outra mulher? Será ainda que é por causa de Ayla?
Você é um homem, Broud. Tudo que ordenar, ela é obrigada a fazer. E ela o obedece. Por
que compete com uma mulher? Você se rebaixa com isso. Ou será que estou errado? Você
é homem, Broud? Bastante para dirigir este clã?
- Simplesmente não quero que uma criança deformada seja irmão dos filhos de minha
companheira - gesticulou Broud, de modo pouco convincente. - Era uma desculpa
esfarrapada e não lhe passou despercebida a ameaçacontida nas palavras de Brun.
- Broud, qual o caçador que nunca salvou a vida de um outro? o homem que não carrega
consigo uma parte do espírito de um outro? Existe alguém que não seja irmão de todos os
outros? Tem importância o fato de Durc ser irmão dos filhos de sua companheira agora, ou
mais tarde, quando ele crescer? Por que está contra isso?
Broud não tinha resposta, pelo menos nenhuma que fosse aceitável pelo chefe. Ele não
podia admitir seu ódio de morte por Ayla. Seria o mesmo que admitir que não era capaz de
controlar suas emoções e que não era bastante homem para ser chefe de um clã. Estava
arrependido de ter procurado Brun.
Devia me lembrar de que ele sempre tomou o partido dela, pensou. Brun estava
orgulhoso de mim na reunião e agora, por culpa dela, já está outra vez duvidando de mim.
- Bem, não me incomodo se Oga der de mamar a ele - gesticulou Broud. - Mas não
quero essa criança em minha fogueira. - Nesse particular, sabia que estava dentro de seus
direitos e não iria ceder. - Você pode pensar que o menino não seja retardado, mas tenho
minhas dúvidas. não quero me responsabilizar por sua educação. Ainda não acredito que
ele possa vir a caçar.
- Como quiser, Broud. Já assumi a responsabilidade de seu treinamento. Tomei essa
decisão antes até de ter aceitado o menino e eu o aceitei. Durc é agora um membro deste clã
e será um caçador. Eu me encarrego disso.
Broud ia regressar à sua fogueira, mas viu Creb trazendo Durc para Oga e achou melhor
sair da caverna. Seria melhor não explodir sua fúria enquanto estivesse na mira de Brun.
Tudo por culpa desse velho aleijado, disse consigo. Mas tratou logo de desviar o
pensamento, com medo de que o feiticeiro, por alguma arte qualquer, pudesse adivinhar o
que ia na sua cabeça.
Broud temia os espíritos, talvez mais do que qualquer outro homem no clã e seu medo se
estendia àquele que vivia na maior intimidade com essas forças. Afinal, o que podia fazer
um caçador sozinho contra uma legião de seres incorpóreos, capazes de trazer desgraça,
doenças e mortes? E que podia ele contra o homem que possuía o poder de invocar toda
essa horda no momento em que bem entendesse? Fazia pouco tempo que Broud tinha
voltado da reunião de clãs e, lá, ele passou muitas noites com a rapaziada dos outros clãs
assustan do-se uns aos outros com histórias falando de desgraças causadas pela ira dos
mog-urs. Eram lanças que se desviavam no instante preciso em que iam atingir o animal,
horríveis enfermidades trazendo dores e sofrimento, chifradas, ferimentos e toda uma série
de calamidades por culpa exclusiva de feiticeiros irados. No seu clã mesmo, as histórias de
horror não eram muito contadas, mas sempre era bom se precaver, já que o Mog-ur deles
era o mais poderoso de todos os feiticeiros.
Apesar de que em certa época Broud o achasse mais digno de troça do que de respeito, o
corpo aleijado do Mog-ur com seu rosto terrivelmente mutilado e caolho aumentava-lhe o
carisma. Para aqueles que não o conheciam, ele parecia inumano, talvez meio demoníaco.
Broud tinha tirado partido desse medo e, diante das caras incrédulas e admiradas dos
outros rapazes, contara vantagem dizendo não temer o Grande Mog-ur. Mas, apesar de
toda a sua fanfarronada, ele ficara impressionado com as histórias contadas. O respeito dos
clãs pela figura trôpega do velho feiticeiro havia tornado Broud mais consciente de seu
poder.
Nos sonhos em que se via como chefe, era Goov que aparecia como o
seu mog-ur. Quase de sua idade e companheiro de caçada, Goov, no papel de futuro mog-
ur, não podia ser visto como uma figura distante e temerosa. Broud tinha certeza de que
conseguiria levá-lo na lábia e coagi-lo nos momentos de decisões, coisa que com o Mog-
ur não ousava pensar nem mesmo em sonhos.
Enquanto caminhava pelas matas perto da caverna, Broud tomou uma firme decisão. Jamais
tornaria a dar ao chefe motivos para duvidar dele e jamais poria novamente em risco seu
futuro, agora tão próximo de ser alcançado. Mas quando for chefe, pensou consigo, serei
eu a decidir. Ayla botou Brun contra mim e conseguiu que até mesmo Oga, a minha
própria companheira, ficasse contra mim, mas, quando eu for o chefe, isso vai acabar.
Pouco importa se Brun ficar de seu lado, ele já não terá mais como protegê-la. E ele se
lembrou, enttão, de todas as injustiças que sofrera por causa de Ayla, de todas as vezes
que ela lhe roubara os momentos de glória e de cada uma das pretensas ofensas infligidas a
seu ego. Ficava insistindo nos mesmos fatos, repisando-os e se comprazendo no
pensamento de fazê-la pagar por tudo. Ele podia esperar. Algum dia, disse consigo, muito
em breve, Ayla vai lamentar ter vindo parar neste clã.
Broud não era o úmico a pôr a culpa no velho aleijado, o próprio Creb se sentia culpado
por Ayla ter perdido o leite. De qualquer forma, ainda que fosse dele a responsabilidade do
desastre, agora pouca diferença fazia. Creb, simplesmente, não entendia o modo de o
organismo feminino se comportar. Sua experiência com mulheres era muito pequena. Só
depois de velho é que passou a conviver com uma situação de mãe com filho. Não
imaginara
que, quan do uma mulher amamentava a criança de uma outra, o favor que estava
fazendo era para seu próprio bem e não com o intuito de aliviar a amiga de uma obrigação
Nunca ninguém lhe explicara isso e nem tinha por que, e quando ele foi saber já era tarde
demais.
Ele se perguntava por que calamidade tão terrível tinha de suceder a Ayla. Seria
simplesmente porque seu filho era um desgraçado para a vida? Creb buscava razões e, na
sua introspecção culposa, começou a duvidar de seus próprios motivos. Estaria ele
realmente preocupado, ou só querendo feri la, do mesmo jeito que ela, sem querer, havia
feito com ele? Seria ele digno de seu grande totem? Teria ele um caráter tão baixo, a ponto
de desejar vingança tão mesquinha? Se dentre aqueles tidos como os mais santos, era ele a
figura exemplar, então talvez o seu povo merecesse morrer. A convicção de que sua raça
estava destinada a desaparecer, a morte de Iza e o sentimento de culpa pela desgraça
acontecida a Ayla o deixavam abatido e profundamente melancólico. O teste mais difícil
do Mog-ur havia chegado quando ele já estava quase no final de sua vida.
ayla não punha a culpa em Creb, mas sim nela mesma. Ver uma outra mulher
amamentando seu filho era para ela algo de insuportável. Oga, Aga e Uka, todas elas vieram
oferecer-se para amamentar Durc, mas quase sempre era Uba quem levava o menino para
elas, permanecendo em suas fogueiras até que o bebê tivesse terminado. Com o
desaparecimento do leite, Ayla perdeu uma importante parte da vida de seu filho. Ainda
chorava e se culpava pela morte de Iza, e Creb, por sua vez, estava tão voltado para dentro
de si mesmo que ela não conseguia aproximar-se dele, achando-se, inclusive, até com medo
de fazê-lo. Mas todas as noites, quando levava Durc para dormir em sua cama, ela se sentia
grata a Broud. A recusa dele em aceitá-lo fez com que não perdesse de todo o seu filho.
No final do outono, Ayla voltou a caçar com sua funda, como pretexto para poder ficar
sozinha. Caçara tão pouco no último ano que sua técnica parecia enferrujada, mas, com a
prática, readquiriu a pontaria e a velocidade. Quase todos os dias, saía cedo e voltava tarde,
deixando Durc aos cuidados de Uba. Só lamentava que o inverno estivesse rapidamente se
aproximando. O exercício era bom para ela, mas agora precisava vencer uma nova
dificuldade que surgira. Pouco havia caçado depois de se ter transformado em mulher e os
seios balançando, a cada passo, incomodavam-na quando corria ou saltava. Reparando que
os homens usavam uma tanga para proteger as partes sensíveis do corpo, modelou, na
forma do seio, uma faixa que amarrava nas costas. Isso a deixava confortável e pouco
estava ligando para os olhares curiosos que lhe eram lançados com o dos olhos.
Embora o exercício da caça fortalecesse o corpo e mantivesse, enquanto estava fora, sua
mente ocupada, ela continuava carregando sua tristeza e dor. Parecia a Uba que a alegria se
fora para sempre da fogueira de Creb. Sentia falta da mãe e tanto Creb como Ayla achavam-
se envolvidos por uma aura de perpétua tristeza. Apenas Durc, na sua inocência, trazia uma
sombra de felicidade com que a garota estava acostumada. O garoto, inclusive, conseguia
de vez em quando que Creb saísse de sua letargia.
Ayla saíra cedo e Uba se achava no fundo da caverna procurando por qualquer coisa. Oga
acabara de trazer Durc, deixando-o aos cuidados de Creb. O bebê estava cheio e satisfeito,
mas ainda sem sono. Ele veio engatinhando e, apoiando-se em Creb, conseguiu firmar-se
sobre as pernas trêmulas e inseguras.
- Com que então rapazinho, você já está começando a caminhar - gesticulou Creb. - Já
vai estar correndo por toda a caverna, antes até desse inverno acabar, hem? - Creb falava
e lhe cutucava a barriga cheia, de modo a enfatizar os gestos.
Durc abriu a boca emitindo um som que Creb só ouvira numa pessoa.
Durc ria. Creb o cutucou outra vez e ele se dobrou numa risadinha que o fez perder o
equilíbrio e cair sentado sobre seu traseiro pequenino e duro. Creb o ajudou a levantar-se e
olhou para o menino como se o estivesse vendo pela primeira vez.
As pernas de Durc eram arqueadas, mas não tanto quanto as dos outros bebês do clã e,
apesar de gorduchas, Creb pôde perceber que os ossos eram mais compridos e finos. Acho
que as pernas de Durc, depois de crescer, serão retas, iguais às de Ayla e também será alto
como ela. E o pescoço fino e descarnado que não agüentava com sua cabeça quando nasceu,
também se parece com o dela. Mas a cabeça é diferente. Ou será que não Essa testa alta é
de Ayla. Ele virou a cabeça de Durc para olhá-lo de perfil. Atesta sem dúvida é, mas as
sobrancelhas e os olhos são semelhantes aos da raça dos clãs e a parte de trás da cabeça
também é mais parecida com a da nossa gente.
Ayla tinha razão. Durc não é deformado, ele é uma mistura da raça dela com a dos clã O que
me pergunto é se seria sempre assim que as coisas se passam. Será que os espíritos se
misturariam? Talvez seja isso que fáção nascer mulheres e não totens masculinos fracos.
Será que a vida começaria com a mistura dos espíritos dos totens masculinos com os
femininos? Creb abanou a cabeça sem saber responder. Mas isso botou a mente do velho
feiticeiro para trabalhar e, naquele frio e solitário inverno, freqüentemente se encontrava
pensando em Durc. Sentia que Durc era importante, mas por quê? A resposta lhe escapava.

Capítulo 27

Mas, Ayla, eu não sou como você. Eu não caço. Quando ficar escuro, para onde eu vou?
- dizia Uba, em tom de súplica. - Eu tenho medo, Ayla.
A expressão amedrontada de Uba fazia com que Ayla sentisse vontade de acompanhá-la.
Uba ainda não tinha oito anos e o pensamento de passar dias sozinha, sem contar com a
proteção da caverna deixava-a apavorada. Mas o espírito do totem da garota havia, pela
primeira vez, travado uma batalha, de modo que ela era obrigada a cumprir a exigência, não
tendo nada a fazer sen só aceitar.
- Você se lembra daquela caverna onde me escondi quando Durc nas ceu? Você vai para
lá, Uba, pelo menos ali é mais seguro do que ficar ao relento. Todas as tardes eu subirei
para vê-la e levar comida para você. É só por uns dias. não se esqueça de levar uma pele
para dormir e um carvão aceso para fazer a fogueira. Existe água perto. Vai ser triste,
principalmente de noite, mas lá você não corre perigo. E pense que você agora é uma
mulher. Daqui a pouco tempo, já vai estar com um companheiro e também com um bebê
só seu - disse Ayla para consolá-la.
- Quem você acha que Brun vai escolher para mim?
- E quem você quer que ele escolha, Uba?
- Vorn é o único que não tem companheira, mas Borg daqui a uns tempos também já
vai ter uma. É claro que Brun se quiser pode me dar como segunda mulher para qualquer
homem. Acho que gostaria que fosse Borg. Nós dois costumávamos brincar de
companheiros, até que um dia ele quis aliviar de verdade suas necessidades em mim. Não
deu certo e ele ficou com vergonha. Agora já está quase homem e não gosta mais de
brincar com meninas. Mas Ona também já está mulher e Vorn não pode ser seu
companheiro; assim, só resta Borg para ela, a não ser que Brun resolva dar Ona para um
homem que já tenha companheira. Dessa forma, tudo indica que Vorn será o meu
companheiro.
- Já faz algum tempo que Vorn é homem, provavelmente ele deve estar louco para ter
uma companheira - disse Ayla. Ela também havia chegado à mesma conclusão de Uba. -
Você gostaria de Vorn para companheiro?
- Ele tenta fingir que não liga para mim, mas, às vezes, fica me olhando. Pode ser que
ele não seja tão mau assim.
- Broud gosta dele. Com certeza, algum dia Vorn será o segundo em comando. Você
não precisa se preocupar com questões de status, mas isso será bom para os seus filhos. Eu
não gostava muito de Vorn quando era pequena, mas acho que você está certa, o rapaz
não parece tão mau agora. Inclusive, quando Broud não está por perto, ele se mostra
simpático com Durc.
- Fora Broud, todo mundo se mostra simpático com Durc, Ayla. não há quem não goste
dele.
- Bom, sem dúvida, Durc está à vontade em todas as fogueiras. Ficou tão acostumado a
ser levado cada dia num lugar para mamar que passou a chamar todas as mulheres de
mãe
- gesticulou Ayla, franzindo ligeiramente o rosto, mas logo um sorriso apagou a expressão
de tristeza. - Você se lembra daquela vez que Durc entrou na fogueira de Grod, como se
lá fosse a casa dele?
- Lembro. Tentei não olhar, mas não consegui - falou Uba. - Ele passou por Ika,
cumprimentou, chamando-a de mãe e foi direto se meter no colo de Grod.
- Foi mesmo. Nunca vi Grod com uma cara de surpresa tão grande - falou Ayla. -
Depois, Durc desceu e foi mexer nas lanças de Grod. Achei que este fosse ficar furioso,
mas ele não resistiu vendo o danadinho do garoto querendo arrastar a lança maior de todas
para fora. Quando Grod foi tirar a arma de sua mão, ele disse: Durc caça igual Grod.
- Acho que se Grod tivesse deixado, Durc teria arrastado mesmo aquela lança para fora da
caverna.
- Ele leva todas as noites para a cama a lança de brinquedo que Grod lhe deu - disse
Ayla, sorrindo. - Você sabe, Grod não é de falar muito, por isso fiquei admirada quando
ele apareceu outro dia em nossa fogueira. Ele mal me cumprimentou, foi direto onde estava
Durc e pôs a lança na mão dele, chegan do até a mostrar como devia segurá-la. Ao sair,
tudo que disse foi: se o menino quer tanto caçar, ele deve ter a sua lança.
- É uma pena Ovra nunca ter tido filhos. Acho que Grod iria adorar se a filha de sua
companheira tivesse um bebê - falou Uba. - Talvez Grod goste de Durc porque na
verdade ele não é apegado a nenhum homem em particular. Brun também gosta dele,
disso eu tenho certeza. E até Zoug já começou a mostrar para ele como se deve usar uma
funda. Acho que Durc não vai ter nenhum problema para aprender a caçar, apesar de na
nossa fogueira não existir ninguém para ensiná-lo. Pelo jeito de os homens tratarem Durc,
chega-se até a pensar que são todos eles companheiros de sua mãe. Exceto, é claro, Broud.
- Uba se interrompeu por um instante. - E talvez sejam, Ayla. Dorv sempre dizia que os
totens de todos os homens se aliaram para derrotar o seu Leão da Caverna.
- Acho melhor você ir agora, Uba - falou Ayla, mudando de assunto.
- Andarei com você uma parte do caminho. Parou de chover e acho que os morangos já
estão maduros. Há na subida uma área que está carregada. Mais tarde, vou até lá para dar
uma olhada em você.
Goov pintou com pasta de ocre amarelo o símbolo do totem de Vorn sobre o de Uba e
borrou o dela, como sinal do domínio do homem sobre a mulher.
- Você aceita esta mulher como sua companheira? - gesticulou Creb.
Vorn bateu de leve no ombro de Uba e ela o acompanhou para dentro da caverna. Em
seguida, o mesmo ritual foi feito para Borg e Ona, e eles, por sua vez, se dirigiram para a
nova fogueira onde iriam começar o período de isolamento. As árvores em suas roupagens
de verão ainda em tons flão tão for'tes como aqueles que teriam no final da estação
balançavam-se com uma suave brisa, enquanto o clã se dispersava. Ayla pegou Durc nos
braços para carregá-lo, mas ele esperneou, querendo descer.
- Está bem, Durc - gesticulou ela. - Você pode andar, mas venha antes tomar sua sopa
e um pouco de mingau.
Enquanto ela preparava a comida, Durc saiu e começou a se encaminhar para a nova
fogueira ocupada por Vorn e Uba. Ayla correu, trazendo-o de volta.
- Durc quer ver Uba.
- Você não pode, Durk. Por enquanto, ela não pode receber visitas de ninguém. Mas se
você ficar bonzinho e tomar o seu mingau, irá caçar comigo.
- Durc vai ficar bonzinho. Por que não pode ver Uba? - perguntou, já mais sossegado
com a promessa de acompanhar a mãe. - Por que ela não vem comer com a gente?
- Uba não vive mais aqui, Durc. Agora é companheira de Vorn - explicou Ayla.
Durc não era o único a notar a ausência de Uba. Todos sentiam sua falta, e a fogueira
parecia vazia, tornando mais visível o constrangimento de Ayla e Creb. Os dois nunca
tinham conseguido superar seus remorsos por se haverem reciprocamente ferido. Muitas
vezes, vendo o velho feiticeiro prostrado em profunda melancolia, Ayla tinha vontade de
se aproximar, colocar os braços em volta de sua cabeleira branca e abraçá-lo, tal como fazia
quando era pequena. Mas a moça se continha, hesitando, não querendo forçar sua presença.
Creb sentia falta de afeto, não imaginando que sua carência deixava-o ainda mais
deprimido. Por seu lado, muitas vezes também tinha vontade de aproximar-se dela, quando
a via sofrendo, olhando uma outra mulher alimentando seu filho. Se Iza estivesse viva,
teria encontrado uma maneira de reuni- los novamente, mas sem sua presença catalisadora,
cada um ia para o seu lado,
os dois desejosos de mostrar seu amor e não sabendo como romper a barreira que os
separava. Na primeira refeição sem Uba, ambos se sentiam pouco à vontade.
- Você quer mais, Creb? - perguntou Ayla.
- não não Por favor não se incomode. Já comi bastante.
Ele a observava fazendo a limpeza, enquanto Durc se servia pela segunda vez, segurando
uma concha com as duas mãos Embora estivesse com pouco mais de dois anos, Durc
praticamente já tinha sido desmamado. Continuava ainda procurando Oga ou Jka - esta
novamente com outro bebê - mais pelo aconchego e o carinho e também porque elas
consentiam. Em geral, quando nascia um novo bebê, cortava-se o leite dos outros maiores
que ainda mamavam. Ika, no entanto, abriu uma exceção para Durc. Ele parecia
compreender e não abusava de seu privilégio. Nunca tomava demais, privando a criança pequena de seu leite. Ficava apenas alguns momentos aninhado junto ao seio, como se para
fazer valer os seus direitos.
Oga também se mostrava condescendente com ele. Grev, a rigor, já ha via passado da época
de mamar, mas se aproveitava da indulgência da mãe. Os dois podiam ser vistos no seu
colo,
cada um mamando num seio, até que o interesse pela figura um do outro acabava por
prevalecer sobre o desejo de ser mimado e se deixavam levar por alguma briga. Dure era
tão alto quanto Grev, embora menos corpulento. Nas lutas de brincadeira, quase sempre
Grev ganhava; em compensação Dure o vencia facilmente nas corridas. Eram inseparáveis, e toda oportunidade que tinham, lá estavam os dois juntos.
- Você vai levar o menino com você? - perguntou Creb, depois de silêncio embaraçoso.
- Vou - disse Ayla, limpando as mãos e o rosto de Durk. - Prometi levá-lo para caçar
comigo. Duvido que consiga caçar alguma coisa com ele, mas preciso apanhar também
algumas ervas, e o dia está lindo.
Creb grunhiu qualquer coisa.
- Você também devia sair, Creb - acrescentou ela. - O sol lhe faria bem.
- Sim. Mais tarde eu saio.
Por um momento, Ayla pensou se não deveria insistir e convidá-lo para um passeio junto
ao riacho como costumavam fazer antes. Mas ele parecia já novamente mergulhado em
seus pensamentos. Deixou-o sentado onde ele se achava, pegou Dure e se apressou a sair.
Creb só levantou os olhos quando teve certeza de que ela já tinha ido embora. Pegou o
cajado, mas achou que se levantar seria um trabalho grande demais e voltou a botá-lo no
chão.
Ayla, ao sair com Dure montado em seu quadril e a cesta de colher amarrada às costas,
pensava nele, preocupada. Sentia que as faculdades mentais dele estavam diminuindo.
Creb parecia mais desatento do que nunca e repetindo perguntas que ela já havia respondido. Dificilmente, ele se mexia para sair da
caverna, mesmo que o dia estivesse quente e ensolarado. Ficava constantemente sentado
durante um tempo enorme, perdido no que ele chamava meditação e quase sempre acabava
dormindo nessa posição.
Logo que a caverna deixou de estar à vista, Ayla alargou suas passadas. A liberdade de
poder movimentar-se e o belo dia de verão relegaram suas preocupações para alguma parte
mais remota da mente. Ao chegar a uma clareira, botou Dure no chão e fez uma parada
para pegar determinadas plantas. O menino ficou observando-a e depois arrancou pelas
raízes um punhado de alfafas de flores vermelhas misturadas com capim que apertava em
sua munheca, enquanto trazia para a mãe.
- Que boa ajuda você está dando, Dure - disse Ayla, pegando as plantas e atirando-as
dentro da cesta a seu lado.
- Dure pega mais - gesticulou, afastando-se.
Ela se sentou sobre os calcanhares e ficou olhando o filho arrancar um punhado ainda
maior que, ao se desprender de repente da terra, fez com que o menino caísse sentado.
Franziu o rostinho para chorar, mais pelo inesperado do que pela dor. Ayla correu para
apanhá-lo e o jogou no ar, pegando-o de volta no colo. Dure riu deliciado. Botou-o no chão
e
fingiu que ia pegá-lo.
- Vou pegar Dure - gesticulou ela.
O garoto corria nas suas perminhas ainda de bebê, dando risadinhas. Ay la deixou que ele
tomasse dianteira e depois foi atrás de gatinhas, agarrando-o para botá-lo na garupa. Todos
os dois riam com a brincadeira e ela lhe fazia cócegas só para vê-lo rir de novo.
Ela só ria com seu filho quando estavam sozinhos, e bem cedo Dure aprendeu que ninguém
mais precisava ou aprovava os seus sorrisos e risadas. Embora ele tratasse todas as
mulheres do clã de mãe, no seu coração sabia que Ayla era especial. Sempre sentia-se mais
feliz com ela do que com as outras e adorava sair sozinho em sua companhia, sem ter mais
mulheres por perto. Adorava também as brincadeiras que só ele e sua mãe sabiam fazer.
- Ba-ba-na-na-ne-ne - falou Dure.
- Ba-ba-na-na-ne-ne - repetiu Ayla, imitando-lhe as sílabas sem sentido.
- No-na-ni-ga-gu-la - disse Dure, criando outra série de sons.
Ayla tornou a imitá-lo e lhe fez cócegas. Ficava encantada quando ele ria, e a brincadeira
sempre punha um sorriso nos lábios da mãe. Ayla formou a série de sons que mais gostava
de
ouvi-lo dizer. Ela não sabia por que, apenas sabia que aquilo a enchia de ternura, levando-a
quase às lágrimas.
- Ma-ma-ma-ma - disse ela.
- Ma-ma-ma-ma - repetiu Dure. Ayla o envolveu num abraço apertado, e Dure repetiu
outra vez: - Ma-ma.
Ele se retorceu querendo libertar-se. Só gostava de abraços demorados, quando se aninhava
junto dela para dormir. Ayla enxugou uma lágrima no canto dos olhos. Esta era uma
particularidade que ele não possuía. Os grandes olhos castanhos de Dure, assentados sob
supercílios salientes, eram iguais aos das pessoas dos clã.
- Ma-ma - falou Durc. Quando estavam sozinhos, quase sempre a chamava assim,
principalmente depois de lembrado. - Você vai caçar agora? - indagou por gestos.
As últimas vezes que havia saído com Durc, ela lhe mostrara como usar a funda. Ia fazer
uma para ele, mas Zoug lhe passou à frente. O velho já não saía mais. Ayla, no entanto,
sentia-se feliz por ver que ele tinha prazer em ensinar Durc. Apesar de muito pequeno,
Ayla percebia que o filho saíra com seu jeito para manejar a arma, e Durc tinha tanto
orgulho de sua minifunda quanto da pequena lança dada por Grod.
Ele gostava da atenção que atraía, quando, muito empertigado, passava com sua lança na
mão e a funda pendurada num cordão amarrado em volta da cintura. Além do amuleto, era
toda a sua vestimenta de verão. Foi necessário fazer armas tamanho miniatura também
para Grev. Aparelha despertava olhares divertidos e comentários sobre as belas figuras de
homenzinhos que faziam. O futuro papel dos dois já começava a definir-se. Ao descobrir
que era bem visto ter voz de comando sobre as meninas, e que até mesmo sobre as
mulheres grandes era uma coisa olhada com indulgência, Durc nunca hesitava em fazer
valer a sua, dentro dos limites permitidos, a única exceção era para a sua mãe.
Ele sabia que Ayla era diferente. Apenas ela ria com ele, apenas ela sabia fazer a
brincadeira de sons e apenas ela possuía os sedosos cabelos dourados que gostava de
acariciar. não se lembrava de ter mamado nela, mas não aceitava dormir com mais
ninguém. Sabia que ela era mulher, porque as suas atividades eram as mesmas que as das
outras, mas via que era muito mais alta do que qualquer homem e que também caçava. O
menino não sabia exata mente o que fosse caçar, percebia que era uma coisa que só os
homens e sua mãe faziam. Ela não se ajustava a nenhuma categoria. Era única. O nome
pelo
qual ele começara a chamá-la, o nome construído com sons, era o que parecia combinar
melhor com ela. Era Ma-ma, a deusa de cabelos louros que ele adorava e que não gostava
de vê-lo mandando nela.
Ayla segurava a mão dele na funda, tentando mostrar como se atirava. Zoug já fizera o
mesmo, e Dure começava a pegar a idéia de como funcionava a coisa. Ela, então, retirou
sua funda da cintura e pegou umas pedras que atirou em alvos próximos. Depois, arrumou
uma fileira de pedrinhas sobre algumas rochas grandes e se pôs a derrubá-las. Durc achou
divertido e foi arrumar mais pedras para vê-la fazendo novamente a coisa. Depois de certo
tempo,
perdeu o interesse, e ela voltou a colher plantas, enquanto o filho a seguia. Encontraram
algumas framboesas e pararam para comer.
- Você está imundo, meu sujão - falou Ayla, rindo de sua figura com o rosto, mãos e
barriga manchados de vermelho. Ela o pegou, mantendo-o de baixo do braço e foi com ele
até um riacho para lavá-lo. Em seguida, apanhou uma folha grande e fez um cone que
encheu de água para os dois beberem. Durc bocejava, esfregando os olhos. Ela estendeu a
capa à sombra de um enor me carvalho e se deitou a seu lado, esperando que ele dormisse.
Na quietude da tarde de verão, Ayla foi sentar-se contra um tronco e, ouvindo o canto dos
pássaros numa sinfonia de gorjeios, ficou a observar o movimento perpétuo dos insetos
zumbindo à sua volta e as borboletas voando e fazendo o seu pouso de asas fechadas. Seu
pensamento estava voltado para os acontecimentos da manhã daquele dia. Espero que Uba
seja feliz com Voru. Tomara que seja bom para ela. Mesmo que Uba continue perto da
gente, a nossa fogueira ficou muito vazia com sua saída. Já não é a mesma coisa. Agora,
ela vai cozinhar para o companheiro e dormir com ele, quando acabar o tempo de
isolamento. Gostaria que tivesse logo um bebê. Ela ficaria muito feliz com isso.
- Mas, e eu? Ninguém veio daquele clã querendo saber de mim. Talvez seja porque não
tenham conseguido encontrar a caverna. Mas talvez seja por que não estavam realmente
interessados. Fico contente com isso. não quero para companheiro um homem que não
conheço. . . e nem quero também um que eu conheça. Tanto faz, porque nenhum deles
também me quer. Sou muito alta. Até Droog, o mais alto de todos, mal consegue chegar ao
meu queixo. Iza ficava imaginando se algum dia eu iria parar de crescer. E começo a
imaginar a mesma coisa. Broud odeia minha altura. Não agüenta ver uma mulher mais alta
do que ele. Depois que voltamos da reunião de clã ele nunca mais me incomodou. Por que
será que tremo todas as vezes que ele olha para mim?
Brun está ficando velho. Ebra ultimamente vem lhe dando remédios para dores
musculares. Dentro de pouco tempo, ele irá botar Broud como chefe. Não há a menor
dúvida sobre isso. E Goov será o mog-ur. Cada vez mais as cerimônias estão ficando por
sua conta. não creio que Creb queira continuar como mog-ur, sabendo que vi o ritual
deles. Por que será que tive de ir parar naquela noite na caverna deles? não me lembro de
como cheguei lá. Queria nunca ter ido a essa reunião de clãs. Se tivesse ficado, talvez eu
conseguisse manter Iza viva por mais alguns anos. Sinto muita saudade dela. não encontrei companheiro, mas Dure sim.
Estranho terem deixado Ura viver, chega quase a parecer que isto só aconteceu para que ela
fosse companheira de Dure. Homens dos Outros, foi o que Oda disse. Quem são eles? Iza
disse que nasci dos Outros. Por que será que não me lembro? O que terá acontecido com a
minha mãe verdadeira? E
a seu companheiro? Será que eu tinha germanos? Ayla sentia o estômago en joado, não
propriamente náusea, mas um certo mal-estar. Subitamente, seus cabelos arrepiaram ao
lembrar-se do que Iza lhe dissera na noite em que morreu. A jovem tinha afastado o
pensamento da cabeça, pois era muito penoso pensar na morte de Iza.
Iza me falou para ir embora! Disse que eu não pertencia aos clãs e que tinha nascido dos
Outros. Mandou que procurasse a minha gente e que encontrasse um companheiro como
eu. Se eu ficar, disse ela, Broud acabaria achan do um jeito de me maltratar. No norte, foi
onde ela falou que eles vivem, para lá da península, no continente.
Mas como vou poder ir embora? Aqui é minha casa. não posso abandonar Creb, e Durc
precisa de mim. E se eu não encontrar os Outros? E ainda que ache, talvez não me queiram.
Ninguém deseja uma mulher feia. Como vou ter certeza de arrumar um companheiro,
mesmo que encontre os Outros?
Creb está ficando velho. O que vai acontecer comigo, quando ele se for? Quem irá me
sustentar? não posso viver só com Durc, algum homem vai ter de ficar comigo. Mas qual?
Broud? Ele vai ser o chefe e, se ninguém me quiser, a obrigação será sua. O que acontecerá
se eu for obrigada a viver com Broud? Ele também não me quer, mas sabe que eu odiaria
essa solução e é o que fará porque sabe que abomino a idéia. Eu não iria suportar viver com
Broud, prefiro até que um homem de outro clã me leve para viver com ele. Mas eles
também não me querem.
Talvez eu devesse ir embora. Pegaria Durc e iríamos os dois. Mas, e se eu não encontrar
ninguém dos Outros? E se alguma coisa me acontecer? Quem tomaria conta dele? Ficaria
sozinho, do mesmo jeito que eu fiquei. Tive muita sorte de Iza me encontrar. Talvez Durc
já não tenha a mesma felicidade. não posso levá-lo, ele nasceu aqui. Ele é dos clãs, apesar
de uma par te sua ser minha. Ele já tem até uma companheira prometida. Eo que seria de
Ura, se eu levasse Durc embora? Oda está educando a filha para ser companheira dele. Já
deve estar lhe dizendo que mesmo que ela seja feia e deformada, há um homem para ser o
seu companheiro. Durc também vai precisar de Ura, terá necessidade de uma companheira
depois que crescer, e Ura é perfeita para ele.
Mas não posso partir deixando Durc. Prefiro viver com Broud, a ser obrigada a abandonar
Durc. Vou ter de ficar, não há outro jeito. Ficarei e, se tiver de ser, viverei com Broud.
Olhou para o menino adormecido e tentou recompor as idéias: iria ser uma boa mulher
pelos padrões dos clãs e aceitaria seu destino. Uma mosca pousou no nariz de Durc.
Dormindo, ele se mexeu, esfregou o nariz, e depois voltou a ficar quieto.
De qualquer jeito, não saberia mesmo para onde ir. Para que lado fica o norte? O que isto
significa para mim? Tudo está ao norte daqui, menos o mar
que fica ao sul. Podia ficar o resto da minha vida perambulando por aí e nunca achar
ninguém. E os Outros podem ser tão maus quanto Broud. Oda disse que eles a forçaram,
que não deram tempo sequer que ela botasse seu bebê no chão. Será melhor ficar aqui com
um Broud que eu conheço do que com algum homem que pode ainda ser até pior.
Está ficando tarde, é melhor ir embora agora. Acordou o filho e, enquanto ia a caminho
da caverna, tentou afastar os Outros do pensamento, mas, uma vez despertada a
curiosidade, já não pôde mais esquecer-se dos Outros, a interrogação fora posta e, volta e
meia, insinuava-se em seu espírito.

capítulo 27

- Você está ocupada, Ayla? - perguntou Uba, a expressão da garota ao mesmo tempo
alegre e acanhada. Ayla imaginava saber por que, mas resolveu dei xar que Uba mesma
contasse.
- Não, não estou muito ocupada. Estava acabando de fazer uma mistura de hortelã com
alfafa e queria saber com que gosto ficaria. Vou ferver um pouco de água para tomarmos
um chá.
- Onde está Dure? - perguntou Uba, enquanto Ayla atiçava o fogo botando mais lenha e
algumas pedras para esquentar.
- Ele está lá fora com Grev. Oga está vigiando. Esses dois não se largam
- gesticulou Ayla.
- Talvez seja porque mamaram juntos. Eles são mais chegados um ao outro do que
qualquer irmão. É quase como se fossem gêmeos.
- Mas os gêmeos quase sempre se parecem, e entre esses dois não há nenhuma
semelhança. Você se lembra daquela mulher na reunião dos clãs que teve gêmeos? Eu não
conseguia saber qual era um e qual era o outro.
- Às vezes, é muito ruim ter dois filhos juntos e, se nascerem três, é certo que não vão
deixá-los viver. Afinal, como uma mulher vai poder alimentar três ao mesmo tempo, se ela
só tem dois seios, não é? - falou Uba.
- Ajudada por muitas outras. Para a felicidade de Dure, dou graças por Oga ter tido
sempre muito leite.
- Espero poder ter muito leite, Ayla - gesticulou Uba. - Vou ter um bebê.
- Eu já imaginava. Desde que foi viver com o seu companheiro, você nunca mais recebeu
a maldição de mulher, não é?
- Sim. Acho que o totem de Vorn estava esperando há muito tempo. Ele deve ser muito
forte.
- Você já contou para ele?
- Estava esperando até ter certeza, mas acho que Vorn adivinhou. Ele deve ter notado
que eu não fiquei isolada. Ficou muito contente - falou Uba, orgulhosa.
- Vom é um bom companheiro, Uba? Você está feliz?
- Ah, estou. Vom é um bom companheiro. Quando descobriu que eu ia ter um bebé, ele
me contou que já estava esperando por mim há muito tempo e que se sentia feliz por eu
não ter demorado a conceber. Disse que já me havia pedido, antes mesmo de eu me haver
tornado mulher.
- Isso é ótimo, Uba - falou Ayla.
Deixou de acrescentar que, no clã, não havia ninguém mais para companheira de Vorn, a
não ser ela própria. Mas, por que Vorn iria querer uma mulher como eu? Por que iria
preferir uma mulher grande e feia, quando podia ter alguém atraente como Uba e que
realmente pertencia à linha de Iza? E que importância tem isso para mim? Nunca quis
Vorn para companheiro. Na ver dade, o que me preocupa é o que vai acontecer depois de
Creb não estar mais aqui. Vou precisar de cuidar muito dele para que viva bastante tempo.
Parece que o Mog-ur não tem mais vontade de viver. Já quase não põe os pés fora da
caverna e, se não fizer exercícios, aí mesmo é que ficará para sempre aqui dentro.
- Em que está pensando, Ayla? Você anda tão silenciosa nos últimos tempos.
- Estava pensando em Creb. Estou preocupada com ele.
- Creb está ficando velho. A mãe era mais moça do que ele e já se foi. Ainda sinto falta
dela, Ayla. Vai ser horrível quando Creb também passar para o outro mundo. Não quero
nem pensar nisso.
- Nem eu, Uba - gesticulou Ayla, com um mau pressentimento.
Ayla não parava um momento. Se não estivesse caçando, estava trabalhando cheia de
energia, e incansável. não suportava ficar parada. Passava em revista seu estoque de
remédios, punha tudo em ordem, ia esquadrinhar os campos para se reabastecer ou
substituir as plantas velhas por novas, voltava e reorganizava a fogueira toda novamente.
Teceu novas cestas e esteiras, talhou travessas e bacias de madeira, fabricou recipientes de
couro e de cortiça, fez capas, roupas, pemeiras, chapéus, protetores para as mãos e os pés, já
se preparando para o próximo inverno.Impermeabilizou bexigas e estômagos de animais
para servirem como odres, construiu uma nova armação para apoiar as panelas de couro
sobre a fogueira, modelou pedras de forma achatada para serem usadas como lamparinas de
gordura, fez chumaços com musgo seco, talhou um novo conjunto de facas, raspadores,
serrotes, furadeiras e machadinhas, e ainda ia à praia para procurar por conchas que
serviriam como cuias, pratos ou colheres. Além disso, quando chegava sua vez, saía com os
caçadores para fazer o trabalho de curtir carnes e ainda encontrava tempo também para ir
com as mulheres para colher frutas, cereais, sementes e legumes. Em casa, limpava e
torrava as sementes e cereais, triturando tudo depois muito fino, de modo a ficar mais fácil
para Creb e Durc mastigarem.
Creb se tornou sua grande preocupação. Ela o mimava e cuidava dele como jamais o tinha
feito. Preparava-lhe comidas especiais para estimular o apetite, punha-lhe cataplasmas,
fazia-o tomar um mundo de beberagens, levava-o para repousar ao sol e o persuadia a dar
longas caminhadas para fazer exercício. Ele parecia gostar das atenções e da companhia
dela, e, de certa forma, recuperou um pouco da antiga força e entusiasmo. Mas faltava alguma coisa. Aquela intimidade única que existira entre os dois, o afeto caloroso e as longas
conversas descontraídas haviam desaparecido. Quase sempre caminhavam em silêncio. A
conversa se fazia forçada e sem as demonstrações espontâneas de carinho.
Não era apenas Creb que envelhecia. O dia em que Brun, do alto do morro, foi ver os seus
caçadores saírem e lá ficou olhando para eles até que fossem pequeninos pontos na planície
embaixo, Ayla subitamente se conscientizou do quanto também o chefe envelhecera.
Sua barba já não estava só com algumas pintas brancas, mas completamente grisalha, tal
como o cabelo. Rugas fundas marcavam-lhe o rosto com sulcos fortemente cavados na
pele junto aos olhos. Seu corpo rígido e musculoso perdera o tono, a pele estava mais
flácida, embora ainda continuasse uma figura vigorosa. Com passos vagarosos, ele se
encaminhou para a caverna e passou o resto do dia dentro dos limites de sua fogueira. Na
vez seguinte, ele acompanhou os caçadores, mas, já na próxima, nem ele nem Grod, o seu
leal segundo em comando, foram.
Certo dia, no final de um verão, Durc entrou correndo na caverna.
- Mama! Mama! Um homem. . . um homem está vindo para cá.
ayla e todos os outros correram para a entrada da caverna, querendo ver o estranho que
vinha subindo pelo caminho da costa.
- Ayla, será que ele veio buscá-la? - gesticulou Uba, agitada.
- Não posso saber. Sei tanto quanto você, Uba.
Ayla, com os nervos tensos, era um misto de emoções. Tinha esperanças de que o visitante
pertencesse ao clã do parente de Zoug e, ao mesmo tempo, tinha medo de que ele fosse tal
pessoa. O homem parou para falar com Brun e seguiu depois para a fogueira do chefe.
Passado algum tempo, ayla viu Ebra encaminhando-se diretamente em sua direção.
- Brun quer falar com você - disse Ebra.
O coração batia disparado, os joelhos pareciam de água, e a moça achava que não fosse
agüentar-se sobre as pernas, enquanto caminhava para a fogueira de Brun. Deu graças aos
espíritos, quando se deixou cair aos pés de Brun. Ele lhe bateu no ombro.
- Este é Vond, Ayla - falou o chefe, apontando para o visitante. Ele veio de longe só
para vê-la. Caminhou da caverna de Norg até aqui. Sua mãe está doente e a curandeira
deles
não tem conseguido melhorar sua saúde. Ela achou que talvez você conhecesse alguma
mágica que pudesse ajudar.
Ayla, na reunião dos clã fizera reputação de curandeira dotada de grande saber e perícia. O
homem tinha vindo procurar por sua mágica e não por ela. O alívio sentido foi maior do
que a tristeza. Vond ficaria por alguns dias. Ele trazia novidades de seu clã. O rapaz que
fora ferido pelo urso da caverna havia passado o inverno com eles e partido no princípio da
primavera se guinte, caminhando sobre suas pernas e mal se notando que mancava. A mulher dele deu à luz um bebê forte e sadio que recebeu o nome de Creb. Ayla fez algumas
perguntas a Vond e lhe preparou um embrulho para que ele levasse ao lado de instruções
para serem transmitidas à curandeira deles. Ela não sabia se seu remédio iria ou não
adiantar, mas o homem viera de tão longe que não custava pelo menos tentar.
Quando Vond foi embora, Brun se pôs a pensar em Ayla. Ele vinha protelando toda
decisão a seu respeito, na esperança de que algum outro clã pudesse julgá-la aceitável. Mas
se um mensageiro podia encontrar a caverna deles, outros, se o quisessem, também
poderiam. Após tanto tempo, não era mais possível alimentar esperanças. Algum arranjo
teria de ser feito para ela dentro de seu clã.
Entretanto, Broud brevemente seria o chefe e a ele caberia assumi-la. Seria melhor que a
decisão partisse do próprio Broud e, enquanto vivesse o Mog-ur, não havia necessidade de
precipitar os acontecimentos. Brun resolveu passar o problema para o filho de sua
companheira. Broud parece ter finalmente conseguido superar seu ódio desmedido por ela,
pensou o chefe. Nunca mais voltou a importuná-la. Talvez já esteja preparado. . . até que
enfim parece estar pronto. Mas, lá no íntimo, ainda lhe restava uma pontinha de dúvida.
As cores do verão chegaram ao fim, e o clã se entregou ao ritmo mais vagaroso da estação
fria. A gestação de Uba progrediu normalmente até o se gundo trimestre, quando, então, foram
interrompidos os movimentos de vida. Ela tentava ignorar a dor cada vez mais forte nas
costas e o mal-estar provocado por cólicas, mas, ao começar a perder sangue, correu para
Ayla.
- Desde quando você deixou de sentir o bebê se mexendo, Uba? - perguntou Ayla, com
o rosto visivelmente preocupado.
- Já faz alguns dias. O que vou fazer? Vorn ficou tão feliz comigo, por que fiquei
esperando bebê logo depois dele me ter tomado para companheira. não quero perder meu
filho. O que teria acontecido de errado? Já está tão perto a primavera agora mesmo está aí.
- não sei, Uba. Você não se lembra se levou algum tombo? Será que não fez esforço para
levantar alguma coisa muito pesada?
- Acho que não.
- Vá para sua fogueira, Uba, e se deite. Vou pôr algumas cascas de vidoerro para ferver e
levo o chá para você. Queria que estivéssemos no outono, poderia arrumar aquelas raízes de
prenanto que Iza encontrou para me dar.
Mas a neve está muito alta, já não se pode ir muito longe daqui. Vou tentar pensar em
alguma coisa. E também procure pensar, Uba. Você conhece quase tudo que Iza sabia.
- Tenho pensado, Ayla. Mas não consigo lembrar de nada que faça um bebê mexer depois
de ele ter parado os seus movimentos.
Ayla não respondeu. No fundo, sabia tanto quanto Uba que não havia esperança, e estava
sentindo a mesma angústia que a jovem.
Nos dias seguintes, Uba permaneceu deitada, na vã esperança de que acontecesse alguma
coisa que viesse em sua ajuda, mas sabendo que não havia nada a esperar. A dor nas costas
tornou-se quase insuportável, e os únicos remédios que a aliviavam eram aqueles que
faziam a moça dormir um sono drogado e intranqüilo. As cólicas, entretanto, não se
desenvolvendo em contra ções, o trabalho de parto não podia iniciar-se.
Ovra praticamente vivia na fogueira de Vorn para dar seu apôio moral. Ela tantas vezes
passara pela mesma provação que mais do que ninguém podia entender a dor e a tristeza de
Uba. A companheira de Goov nunca conseguira levar uma gravidez até o fim e, à medida
que os anos passavam e ela sempre sem filhos, foi cada vez ficando mais silenciosa e
fechada. Ayla sentia-se feliz por saber que Goov era carinhoso com ela. Muitos homens a
teriam dispensado ou tomado uma segunda mulher. Mas Goov era extremamente ligado à
sua companheira. Ele não iria aumentar-lhe ainda mais a tristeza, tomando outra mulher
para ter filhos para ele. Ayla passou, então, a dar a Ovra o remédio se creto que Iza lhe
ensinara para impedir o totem da mulher ser derrotado. Era muito duro para uma mulher ter
uma gravidez atrás da outra e não resultar em filhos para ela. Ayla não lhe contou para que
o remédio servia, mas, de pois de certo tempo, Ovra parou de engravidar e ela imaginou por
quê. Era melhor assim.
Numa fria e triste manhã, já no final do inverno, Ayla examinou Uba e tomou uma decisão.
- Uba - chamou com brandura. A garota tinha os olhos rodeados por círculos escuros
que os faziam parecer ainda mais mergulhados sob as saliências das sobrancelhas. -
Temos de fazer essas contrações começarem. não há nada que possa salvar seu bebê. Se ele
não sair, você também pode morrer. Você é muito moça, poderá ter outros filhos - disse
Ayla por gestos.
Uba olhou para ela, depois para Ovra e, em seguida, para Ayla outra vez.
Está bem - assentiu com a cabeça. - Você tem razão, não há mais esperanças. Meu bebê
está morto.
O trabalho de expulsão de Uba foi difícil. Às contrações custaram a aparecer, e Ayla
hesitava em lhe dar alguma coisa mais forte contra dores, com medo de que o trabalho de
parto fosse interrompido. As outras mulheres vinham para algumas visitas curtas, querendo encorajar e trazendo sua solidariedade, mas
nenhuma tinha vontade de se demorar. Todas sabiam que o esforço e a dor seriam em vão.
Apenas Ovra permaneceu para ajudar Ayla.
Quando o feto saiu, Ayla rapidamente o enrolou junto com a placenta numa manta de
couro.
- Era um menino - disse ela a Uba.
- Posso ver?
- Acho melhor que não veja, Uba. Isso só vai fazer com que se sinta pior.
Agora, trate de descansar. Você está muito fraca, eu me desfaço dele por
você.
Ayla disse a Brun que Uba se encontrava sem forças e que ela mesma se encarregaria de
desfazer-se da criança, abstendo-se de dizer qualquer outra coisa. não tinha sido só um
feto que Uba expulsou, e sim dois que não chegaram durante a gravidez a se separar
devidamente. Apenas Ovra viu a pobre coisa repugnante que dificilmente se poderia
reconhecer como um ser humano, com vários braços e pernas e um rosto desfigurado numa
enorme cabeça. Ovra teve de fazer força para não vomitar e Ayla mal também conseguiu
conter-se.
Aquelas não eram as modificações surgidas em Dure, resultantes das transformações das
características raciais dela e da dos clãs, e sim um caso de anomalia. Ayla deu graças por
aquela coisa grotescamente malformada não ter vivido o suficiente para Uba pari-la com
vida. Sabia que Ovra jamais comentaria o fato com alguém. Para o bem de Uba, seria
melhor deixar o clã na crença de que ela tivera uma criança prematura normal.
Ayla se meteu dentro de agasalhos pesados e saiu abrindo com dificuldade caminho pela
neve alta, só parando quando já estava bem afastada da caverna. Desembrulhou a manta de
couro, deixando o conteúdo exposto ao tempo. É melhor não deixar qualquer vestígio dessa
coisa, pensou consigo. Já no momento mesmo em que se virava para voltar, percebeu com
o rabo dos olhos algo que sorrateiramente se movia, O cheiro do sangue já estava surtindo o
efeito desejado.

Capítulo 28

Você quer dormir com Uba essa noite, Dure? - perguntou Ayla.
- não disse o menino, balançando veementemente a cabeça. - Durc dorme com Mama.
- Tudo bem, Ayla. Achava mesmo que ele não ia querer, já passou o dia inteiro comigo -
falou Uba. - Que nome é esse que ele arrumou para dar a você?
É um nome qualquer que ele inventou para me chamar - respondeo Ayla, virando a
cabeça para o lado. A censura ao uso de palavras e sons desnecessários, que sofreu nos
primeiros tempos quando chegou, tinha ficado de tal forma entranhada nela que se sentia
culpada da brincadeira que fazia com o filho. Uba não insistiu, mas percebeu que Ayla se
mostrava reticente.
- Às vezes, quando eu e Dure saímos sozinhos, nós ficamos brincando de fazer sons com
a boca - admitiu ela. - E o menino arrumou estes para me chamar. Durc pode tirar uma
quantidade grande de sons da garganta.
- E você também, Ayla. Mamãe me disse que você, quando era pequena, principalmente
antes de aprender a falar, costumava dizer palavras e fazer tudo quanto era tipo de sons.
Ainda me lembro do som que você fazia para me ninar. Eu adorava escutar.
- Tenho impressão de que fazia, mas não me lembro direito - gesticulou Ayla. - Isso não
passa de uma brincadeira entre Dure e eu.
- Acho que não há nada de mal, e depois Dure não é como alguém que faz esses sons
porque não aprendeu a falar - disse Uba. - Queria que essas raízes não estivessem tão
estragadas - acrescentou, ao jogar fora uma planta que tinha na mao. - A festa amanhã
não será grande coisa só com carne seca, peixe e uns legumes já meio passados. Se Brun
esperasse mais um pouco, pelo menos a gente poderia ter umas verduras e os brotos de
algumas plantas.
- não é só Brun - falou Ayla. - Creb diz que a melhor época é na primeira lua
cheia da primavera.
- Não entendo como ele sabe que já chegou a primavera. Um dia de chuva é sempre igual a
outro - observou Uba.
- Acho que tem qualquer coisa a ver com o desaparecimento do sol no céu. Há dias que
ele vem observando o pôr-do-sol. Mesmo quando chove, é
possível ver o ponto em que o sol se esconde para dormir. Além disso, tem havido muitas
noites claras de lua. Creb é quem sabe.
- não queria que Creb já fosse passar o lugar dele para Goov - falou Uba.
- Nem eu. Nesses últimos tempos, ele tem ficado aparentemente sem fazer nada. O que
será dele, quando não tiver nem mesmo as cerimônias para celebrar? Sabia que isso teria
de acontecer algum dia, mas essa é uma festa que não me deixa nem um pouco alegre.
- Vai ser estranho. Estou tão acostumada a ver Brun como chefe e Creb como Mog-ur,
mas Vom acha que já é tempo de os mais moços conduzirem o clã. Ele diz que Broudjá
esperou demais.
- É possível que ele tenha razão. Vorn sempre admirou Broud - gesticulou Ayla.
- Ele é bom para mim, Ayla. não ficou zangado na ocasião em que perdi meu filho. A
única coisa que disse foi que iria pedir ao Mog-ur um feitiço para que seu totem ficasse
com muita força e eu pudesse conceber novamente. Ele deve gostar de você também,
Ayla. Chegou até a falar comigo para lhe pedir se você não deixaria Durc ficar dormindo
com a gente. Acho que ele imagina que eu gosto muito de ter Durc por perto -
confidenciou Uba. - Até mesmo Broud não tem sido muito mau para você ultimamente,
não é ver dade?
- É. De uns tempos para cá, ele não me tem incomodado muito - reconheceu Ayla.
Não sabia explicar por que sentia medo cada vez que Broud olhava em sua direção
Mesmo que não o estivesse vendo, sua nuca se arrepiava, se ele a estivesse observando.
Naquela noite, Creb ficou com Goov até tarde na gruta dos espíritos. Ayla preparou uma
refeição ligeira para ela e Durc, e separou qualquer coisa para Creb quando chegasse
depois, se bem que duvidasse de que ele fosse dar-se o trabalho de comer. Ela acordara de
manhã sentindo-se ansiosa, e tal sensação só fez aumentar com o transcorrer do dia. A
caverna parecia querer engo li-la, e sua boca estava seca como se empoeirada. Conseguiu
meter alguma coisa dentro do estômago e, de repente, correu na direção da entrada. O céu
estava cor de chumbo, pesado, e a chuva ininterrupta abria pequenas crateras na terra
encharcada. Quando voltou para a fogueira, Durc se havia metido na sua cama e dormia.
Logo que sentiu a mãe junto dele, aconchegou-se a ela e, meio inconsciente, fez uns gestos
que terminavam com a palavra "Mama."
Ayla passou o braço à sua volta, ficando abraçada com ele e sentindo- lhe a batida do
coração mas o sono custava a chegar. Deitada, ficou olhando os contornos das pedras
sombreadas pela luz fraca da fogueira já quase apagada. Estava acordada quando Creb por
fim voltou, mas permaneceu quieta
escutando-lhe os passos, até que acabou dormindo depois que ele se enfiou na cama.
A moça acordou aos gritos.
- Ayla, Ayla! - era Creb que a sacudia, chamando-a pelo nome para trazê-la à realidade.
- O que aconteceu, menina? - perguntou, preocupado.
- Oh, Creb - disse ela, abraçando-o. - Tive aquele sonho. Há anos que não sonhava
desse jeito.
Creb a rodeou com o braço, sentindo-a tremer.
- O que aconteceu com Mama? - perguntou Durc, sentando-se com os olhos muito
abertos e cheios de medo. Ele nunca tinha ouvido antes a mãe gritar. Ayla tomou-o nos
braços.
- Qual sonho, Ayla? Aquele com o leão da caverna? - perguntou Creb.
- não o outro. Aquele que nunca consigo lembrar direito - falou ela, voltando a tremer.
- Creb, por que será que estou tendo esse sonho agora? Pensava que meus pesadelos
tivessem terminado.
Creb tornou a botar o braço ao redor dela, querendo acalmá-la. Ayla o abraçou novamente.
Há muito tempo que isso não acontecia, pensaram subitamente os dois, e ficaram
abraçados com Durc entre eles.
- Oh, Creb, quantas vezes eu tive vontade de abraçá-lo e não pude. Achava que você não
iria querer. Tinha medo de que me fosse repelir como fazia no tempo em que eu era uma
menina malcriada. Há uma coisa que eu queria dizer-lhe, Creb: eu o amo muito.
- Ayla, naquela ocasião eu era obrigado a fazer isso. Precisava fazer al guma coisa, pois
sen quem faria era Brun. Nunca pude ter raiva de você, Ayla. Eu a amava demais e ainda
amo até hoje. Achei que você estava contrariada por ter perdido seu leite por minha causa.
- Mas não foi por sua causa, Creb. A culpa foi minha. Nunca o culpei por isso.
- Mas eu me culpava. Devia ter sabido que um bebê precisava mamar para que o leite da
mãe não secasse e você parecia querer ficar sozinha com sua dor.
Como você podia saber? Nenhum homem entende muito de bebês. Só gostam do guri para
segurar, brincar, e quando ele está bem cheio e alegre. Mas, ao primeiro resmungo, correm
logo para devolvê-lo à mãe. Além do que, isso não fez mal nenhum a Durc. Ele está
entrando no ano em que deveria ser desmamado, mas há muito tempo que já deixou de
mamar, e veja como está agora, um menino forte e sadio.
- Mas você sofreu muito por causa disso, Ayla.
- Mama está sofrendo? - interrompeu Durc, ainda preocupado com o grito dela.
- Não, Durc. Mama não está mais sofrendo.
- Onde Durc arranjou esse nome que ele dá a você?
- Às vezes, eu e Durc brincamos de fazer sons com a boca e ele resolveu me chamar
assim - disse ela, corando um pouco.
Creb acenou com a cabeça, compreendendo. Depois, disse:
- Como ele chama todas as mulheres de mãe acho que precisou arrumar um nome para dar
a você. Isso para ele quer dizer mãe.
- Para mim também.
- Quando você chegou, Ayla, também fazia uma porção de sons e falava com a boca.
Talvez seu povo se comunique por meio de sons.
- Meu povo é a gente dos clã Eu sou uma mulher dos clã.
- não Ayla - gesticulou Creb, pausadamente. - Você não é de nossa raça e sim uma
mulher dos Outros.
- Iza me disse a mesma coisa na noite em que morreu. Ela falou que eu era uma mulher
dos Outros.
Creb pareceu surpreso.
- Achava que ela não soubesse. Iza era uma mulher muito sábia, Ayla. Só desconfiei
disso na noite em que você nos seguiu até aquela caverna.
- Eu não pretendia entrar naquele lugar, Creb. Nem sei como fui parar lá. não sei o que o
deixou tão acabrunhado, Creb, mas pensei que você deixou de gostar de mim por eu ter
invadido aquela caverna.
- Não Ayla. Jamais deixei de gostar de você. O meu amor por você é muito grande.
- Durc está com fome - interrompeu o menino, ainda confuso com o grito da mãe e,
agora, cansado com aquela longa conversa entre ela e Creb.
- Durc está com fome? Vou ver se encontro alguma coisa para você comer.
Ayla se levantou e foi até o fogo, enquanto Creb a observava. Tinha curiosidade de saber
por que ela foi mandada para viver conosco. Nasceu dos Outros e sempre foi protegida pelo
Leão da Caverna. Por que teria ele enviado Ayla para nós? Por que não a conduziu de volta
para os Outros? E por que ele se deixou derrotar, permitindo que tivesse um bebê para
depois perder seu leite? As pessoas acham que isto aconteceu porque Durc não pode ser
um me nino feliz. Mas, veja como ele está agora. Forte, alegre e todo mundo gosta dele.
Talvez Dorv tivesse razão ao dizer que os espíritos dos totens de todos os homens se
misturaram com o Leão da Caverna de Ayla. Ela estava certa, Durc não é deformado, ele é
uma mistura. Consegue até emitir os mesmos sons que a mãe sabe fazer. Uma parte dele é
de
Ayla, e outra, de nossa raça.
De repente, Creb sentiu a pele arrepiando e o sangue sumir de seu rosto. Uma parte de
Ayla e uma parte de nossa raça! Foi para isso que ela nos foi enviada? Por causa de Durc?
Para gerar um filho? Os clã estão condenados,
irão desaparecer, e somente a raça dela sobreviverá.. Eu sei e sinto isso. Mas e Durc? Uma
parte sua é dos Outros, por isso ele continuará neste mundo; mas, por outro lado, ele
pertence também a nós. E Ura? Ela se parece com Durc. Nasceu pouco depois daquele
incidente com os homens dos Outros. Será que os seus totens são tão fortes a ponto de
vencer o totem de uma mulher em tão pouco tempo? É possível. Se suas mulheres podem
ter o Leão da Caverna como totem, os deles têm de ser fortíssimos. E Ura, será também
uma mistura? E se existem Durc e Ura, deve haver mais outros como eles. Crianças
provin das da mistura de espíritos, crianças que prosseguirão com a vida, que darão
continuidade aos clãs. Talvez não muitas, mas o suficiente.
É possível que os clã já estivessem condenados muito antes de Ayla presenciar a cerimônia
sagrada e que ela tenha sido conduzida lá apenas para me fazer compreender isso. Já não
estaremos mais aqui, mas, enquanto hou ver Durcs e Uras, não morreremos. Tinha
curiosidade de saber se Durc possui as memórias. Se ele fosse mais velho, o suficiente pelo
menos para assistir a uma cerimônia. . . Bem, não tem importância. Durc tem mais do que
memórias, ele carrega nele a vida dos clã. Ayla, a minha boa menina, a filha de meu coração
você leva a felicidade consigo e a trouxe para nós. Agora sei por que veio, não para nos
trazer a morte, e sim para nos dar a nossa única opor tunidade de viver. Nunca será o
mesmo, mas já é alguma coisa.
Ayla trouxe para o filho um pedaço de carne fria. Creb parecia perdido em pensamentos,
mas, quando ela se sentou, o feiticeiro olhou em sua direção.
- Sabe, Creb - disse ela, pensativa. - Às vezes, imagino que Durc não é filho só meu.
Desde que perdi meu leite, ele ficou tão acostumado a ir de fogueira em fogueira para
mamar, que hoje ele come em todas e todo mundo lhe dá comida. Ele me faz lembrar um
filhote de urso da caverna, é como se Durc fosse filho do clã inteiro.
No olho de Creb, Ayla percebeu a enorme tristeza que lhe ia na alma.
- Durc, Ayla, é o filho do cla. Ele é o único filho dos clã
As primeiras luzes do dia começaram a tomar o espaço triangular da entrada e a brilhar no
interior da caverna. Ayla, deitada de olhos abertos, observava o filho dormindo a seu lado,
enquanto a claridade gradativamente se formava. Ela podia ver Creb em sua cama, sob as
peles e, pela respiração regular, sabia que ele também estava dormindo. Fico contente por
eu e Creb termos voltado a conversar, pensou ela, sentindo como se um enorme peso
tivesse sido tirado de cima de seus ombros, mas o mal-estar que a acompanhara todo o dia
anterior e a noite havia piorado. Sentia um nó na garganta e, se permanecesse um instante
mais dentro da caverna, achava que ficaria sufocada. Em silêncio, deslizou para fora da
coberta, meteu-se rapidamente dentro de uma roupa, cal çou-se e se encaminhou sem ruído
para a entrada.
Logo que chegou ao exterior, respirou fundo. O alívio sentido foi tão grande que pouco se
importava que a chuva gelada empapasse sua vestimenta de couro. Atravessou o grosso
lamaçal em frente da caverna e foi para o riacho, começando subitamente a tremer com o
frio. Blocos de neve, enegrecidos pela fuligem das fogueiras, impulsionavam os córregos
pelas encostas abaixo, transformando-os em imensos aguaceiros que engrossavam o riacho
coberto pelo gelo.
As solas de couro de seu calçado deslizavam no barro vermelho e ela escorregou caindo na
ribanceira do riacho. Os cabelos lisos empastados na cabeça se penduravam como cordas
grossas fazendo regos que terminavam no barro colado em sua roupa, antes que a chuva
pudesse lavá-la. Por longo tempo, ficou parada na margem do riacho, olhando suas águas
escuras lutando para se libertar das amarras do gelo e redemoinhando em torno dos blocos
que por fim se desprendiam e eram levados de quina para paragens desconhecidas.
Na volta, seus dentes batiam, enquanto a custo subia a encosta escorregadia, observando o
céu escuro clareando imperceptivelmente para além do morro próximo da caverna. Ayla
teve de esforçar-se para passar pela boca da entrada que parecia bloqueada por uma barreira
invisível. No momento em que pisou no interior, voltou-lhe a mesma sensação de mal-estar.
- Ayla, você está ensopada. Por que saiu com um tempo deste? - gesticulou Creb. Ele
apanhou um pedaço de lenha e botou na fogueira. - Tire essa roupa molhada e venha para
perto do fogo. Vai pegar uma gripe.
Ela trocou de roupa e veio sentar-se perto de Creb junto da fogueira, dando graças por não
haver mais o silêncio constrangedor entre ambos.
- Creb, estou tão contente por termos conversado ontem à noite. Fui até o riacho, o gelo
está começando a se desprender. O verão vai chegar e vamos poder dar nossos longos
passeios outra vez.
- Sim, Ayla, o verão já está chegando. Se você quiser, poderemos dar os nossos passeios
novamente.. . no verão.
Ela se arrepiou com a horrível sensação de que jamais voltariam os dois a passear juntos
novamente e teve a impressão de que ele sentia o mesmo. Veio, então, para perto dele e se
abraçaram como se fosse pela última vez.
Pelo meio da manhã, a chuva melhorou, transformando-se num chuvisco aborrecido e, à
tarde, parou completamente. Um sol frouxo, descorado, atravessou a sólida camada de
nuvens, mas não servia muito para aquecer ou secar a terra empapada. Apesar do tempo
feio e da pouca comida, o clã se via excitado com a festa, um acontecimento memorável. A
mudança de chefe já era algo raro, mas ter ao mesmo tempo a troca de mog-ur fazia
daquela uma ocasião excepcional. Oga e Ebra iriam ter um papel especial na cerimônia,
bem como Brac, agora com sete anos e o novo herdeiro.
Oga estava um feixe de nervos, correndo a cada momento a tudo quanto fosse fogueira
que tivesse comida cozinhando. Ebra procurava acalmá-la, mas ela própria não se via muito
tranquila, e Brac, querendo se dar ares de adulto, expedia ordens às crianças menores e às
mulheres, todas atarefadíssimas. Por fim, apareceu Brun e o afastou, levando-o para
ensaiar mais uma vez seu papel. Uba, para poder tirar as outras crianças do caminho,
carregou-as para a fogueira de Vorn e, depois, quando tudo já estava preparado, Ayla
veio juntar-se a ela. Além da ajuda na cozinha, seu único papel na cerimônia seria o de
preparar a infusão de datura para os homens, já que Creb lhe dissera para não fazer a bebida
de raízes.
À noitinha, sobraram apenas algumas nesgas de nuvens que, vez por outra, atravessavam
diante da lua cheia iluminando a paisagem erma e inerte. No interior da caverna, ardia uma
enorme fogueira na área demarcada por um cír culo de tochas, atrás da última fogueira.
Ayla foi sentar-se sozinha sobre sua pele de dormir com os olhos para dos nas chamas do
fogo que estalava perto dela. não conseguira ainda ver-se livre do seu mal-estar. Resolveu
ir até a entrada da caverna e lá ficar admirando a lua, enquanto não começasse a festa, mas,
no momento em que se levantava, deu com Brun fazendo o sinal e ela se encaminhou na
direção oposta. Depois de todos haverem tomado os seus lugares, o Mog-ur, seguido por
Goov, saiu da gruta dos espíritos, todos os dois vestindo uma capa de pele de urso.
O grande feiticeiro, pela última vez invocou os espíritos, e era como se os anos não
houvessem passado para ele. Seus conhecidos gestos de bela eloqüência tinham uma força
e graça como há muito o clã não via. Foi uma atuação magistral. Jogava com sua platéia
com a mestria de um virtuose, levando-a, sempre dentro de um senso de oportunidade
perfeito, a reagir ao crescendo das emoções evocativas até atingir o climax que lhe sugou
toda a ener gia, deixando-o em estado de completa exaustão. Ao lado dele, Goov mostrava-
se uma pobre cópia do original. O jovem era um mog-ur correto, bom mesmo, mas longe
de poder comparar-se ao Mog-ur. O mais poderoso dos feiticeiros que os clãs conheceram.
havia celebrado a última e a mais bela de suas cerimônias. Quando ele passou o controle
para Goov, Ayla não era a única a chorar. O clã tinha os olhos secos, mas chorava com o
coração.
Enquanto Goov prosseguia na gesticulação que aposentava Brun e ele vava Broud à
posição de chefe, Ayla se achava distraída em seu pensamento. Observando Creb, lembrou-
se da primeira vez que o viu, quando ela estendeu a mão para tocar no seu rosto desfigurado
pela falta de um olho e marcado por cicatrizes. Lembrou-se da sua paciência, tentando
ensiná-la a falar e de como, de repente, se fizera o entendimento. Levou a mão ao amuleto,
sentindo a minúscula cicatriz e se lembrou do momento em que ele, com um gesto de
grande perícia, lhe abrira na garganta um talho para que seu sangue fosse sa
crificado em honra dos velhos espíritos que lhe concederam licenção para ca çar. Recordou-se, estremecendo, de sua visita clandestina à pequenina caverna escondida nas profundezas
de uma montanha e, por fim, lembrou-se dele na noite anterior, com um olhar cheio de
amor e tristeza, fazendo-lhe aquela declaração de sentido estranho e enigmático.
Na festa celebrando a transferência do poder à nova geração ela apenas tocou na comida.
Os homens entraram no seu sacrossanto recinto a fim de completar em segredo sua
cerimônia, e Ayla distribuiu entre as mulheres a da tura recebida de Goov, já então mog-ur.
A moça, no entanto, não estava com espírito para dançar, os seus ritmos careciam de
entusiasmo e tinha tomado tão pouco da bebida cerimonial que os efeitos logo passaram.
Depois de ter dado um tempo conveniente para deixar a festa, foi para sua fogueira e, antes
que Creb tivesse voltado, já estava dormindo, mas seu sono não foi tranqüilo. Ao chegar, Creb ficou algum tempo observando-a dormir junto do filho e só depois é
que foi para a cama.
- Mama, você vai caçar? Durc também quer ir - falou o menino, pulando para fora da
cama e se encaminhando na direção da entrada. Poucas pessoas encontravam-se de pé,
mas Durc já estava perfeitamente acordado.
- Se tiver de ir, Durc, será depois de comer. Venha cá - falou Ayla, enquanto se
levantava para ir pegá-lo. - Talvez hoje não. A primavera chegou, mas o calor ainda não
Depois de comer, Durc ficou vigiando Grev, e quando correu para a fogueira de Broud já
não se lembrava mais de caçar. Ayla, sorrindo com ternura, ficou observando-o afastar-se.
O sorriso, no entanto, logo desapareceu ao ver o olhar que Broud lançou ao menino. Seu
cabelo chegou a arrepiar na cabeça. Durc e Grev correram juntos para fora. De repente, ela
se viu tomada por uma sensação tão forte de claustrofobia que pensou que vomitaria, se não
saísse da caverna. Foi, então para a entrada com o coração batendo apressado e ali sor veu
profundos goles de ar.
- Ayla!
Ela pulou ao ouvir seu nome proferido por Broud e deu meia-volta, abaixando a cabeça
para olhar o novo chefe.
- Esta mulher saúda o chefe - disse, através de gestos formais.
Raramente, Broud ficava frente a frente com ela. Ayla era muito mais alta do que qualquer
homem do clã e Broud não se achava entre os mais altos. Mal lhe alcançava o ombro. A
moça sabia que ele não gostava de olhá-la de baixo para cima.
- Hoje, não vá sair daqui correndo para ir a nenhum lugar. Dentro de alguns minutos, vou
fazer uma reunião.
Ayla balançou a cabeça com ar submisso.
Aos poucos, o clã foi-se reunindo. O sol brilhava e eles estavam satisfeitos por Broud ter
resolvido realizar a reunião do lado de fora, apesar do chão enlameado. Esperaram por algum
tempo, até que Broud surgiu, empertigado, consciente de seu status, e foi tomar o lugar
antes ocupado por Brun.
- Como sabem, sou o novo chefe - começou ele. Era a primeira vez que falava ao clã em
sua nova posição e traiu seu nervosismo com uma declaração de sentido tão manifestamente
óbvio.
"Já que o clã tem novo chefe e novo mog-ur, esta é uma boa ocasião para fazer algumas
mudanças por aqui - continuou ele. - Quero que saibam que Vorn de hoje em diante
será o meu segundo em comando.
As cabeças acenaram, em sinal de aprovação. Já era esperado. Brun achou que Broud
poderia ter aguardado até que Vorn ficasse um pouco mais velho e não passá-lo à frente
de caçadores mais experimentados. Em todo caso, todo mundo já sabia que isso iria
acontecer. Talvez seja melhor mesmo fazer isso de uma vez, disse o antigo chefe consigo.
- Há ainda outras mudanças - prosseguiu Broud. - Uma mulher neste clã não tem
companheiro. - Ayla sentiu que o sangue lhe subia ao rosto. - Alguém precisa sustentá-
la e não quero sobrecarregar meus caçadores com mais este fardo. Agora sou o chefe e
devo responsabilizar-me por ela. Tomarei Ayla como segunda mulher na minha fogueira.
Ayla já o esperava, mas o fato de saber que estava certa não a deixou nem um pouco feliz.
Ela pode não gostar, mas Broud está fazendo o que é de vido, pensou Brun, olhando,
orgulhoso, para o filho de sua companheira. Broud está preparado para o cargo.
- Ela tem um filho deformado - continuou Broud. - Quero que todos saibam que
nenhuma criança deformada será de hoje em diante mais aceita neste clã. Faço questão de
deixar bem claro que isso nada tem a ver com os meus sentimentos pessoais, quando a
próxima for recusada. Se ela tiver uma criança normal, esta será aceita.
Creb, de pé na entrada, meneava tristemente a cabeça ao ver Ayla em palidecendo e
curvando-se ainda mais para esconder o rosto. Bem, Broud, você pode ter certeza de que
outros filhos eu não vou ter, pelo menos enquanto a mágica de Iza funcionar em mim,
pensou ela. não me interessa saber se são os órgãos dos homens ou os seus totens que fazem
filhos, só sei que você nunca mais vai fazer um em mim. não vou botar filhos no
mundo para você mandar matar, porque acha na sua cabeça que são deformados.
- Já deixei isso bem explícito antes - continuou falando Broud. - De modo que não
deve ser surpresa para ninguém. não quero nenhuma criança deformada vivendo em minha
fogueira.
Ayla levantou a cabeça. O que significa isso? Se eu mudar para a fogueira dele, meu filho
tem de me acompanhar.
- Vom concordou em levar Durc para sua fogueira. Sua companheira gosta do menino,
mesmo sendo ele anormal. A criança lá será bem tratada.
Ouviu-se um murmúrio de inquietação enquanto as mãos se agitavam nervosas e
apressadas. Toda criança até se tornar adulta vive com sua mãe. Por que Broud assumia Ayla
e recusava seu filho? Ayla largou o seu lugar e veio atirar-se aos pés de Broud. Ele lhe
bateu no ombro.
- Ainda não terminei, mulher. É falta de respeito interromper a fala do chefe, mas por
essa vez passa. Bem, fale.
- Broud, você não pode tirar Durc de mim. Ele é meu filho. Para onde vai a mulher, o
filho também vai - gesticulou ela, esquecendo-se em sua ânsia, de introduzir-se
cerimoniosamente e falar em tom suplicante. Brun estava furioso, o orgulho que sentira
há pouco tinha desaparecido.
- Por acaso, mulher, você está querendo dizer ao chefe o que ele deve fazer? - gesticulou
Broud, cheio de sarcasmo. Tinha chegado seu grande momento, há anos o vinha
planejando e ela estava se comportando tal como ele esperava. - Você não é mae. Oga é
mais mãe de Durc do que você. Quem lhe deu de mamar? Não foi você, pelo que me consta.
O garoto nem sabe quem é a mãe dele. Qualquer mulher deste clã pode ser sua mãe. Que
diferença faz onde ele vive? É evidente que Durc pouco está ligando, ele come na
fogueira de todo mundo - falou Broud.
- Eu sei que não pude alimentar meu filho, mas você sabe que ele me pertence, Broud. Ele
dorme comigo todas as noites.
- Bem, pois comigo é que não vai dormir todas as noites. Você pode negar que a
companheira de Vorn não seja "mãe" para ele? Já falei com Goov
quer dizer com o mog-ur. Ele irá celebrar a cerimônia de acasalamento após essa reunião.
Não há mais por que esperar. Esta noite você mudará para a minha fogueira e Durc para a
de Vorn. Agora, volte a seu lugar - ordenou. Em seguida, passou os olhos pelo clã e
reparou em Creb apoiado sobre seu cajado perto da caverna. O velho tinha uma expressão
furiosa.
Mas não tanto quanto a de Brun que estourava de raiva, enquanto observava Ayla
voltando a seu lugar. Lutava para poder controlar-se e não interferir. No seu rosto havia
mais do que raiva, nele transparecia também a tristeza que lhe ia na alma. O filho de minha
companheira, pensou, que eu criei, eduquei e acabo de fazer chefe deste clã usando sua
posição para tirar uma vingança pessoal? Vingar-se de uma mulher por motivos que só ele
conhece? Por que não vi isso antes? Por que não percebi os seus defeitos? Agora, entendo
por que subiu Vorn tão rapidamente de posto. Broud tramou toda a coisa com ele. Vinha
planejando fazer isso com Ayla há muito tempo. Broud, Broud, é este o primeiro ato de um
novo chefe? Arriscar a vida de seus caçadores com um segundo em comando inexperiente,
só para poder vingar-se de uma mulher? Que prazer você pode ter em separar um filho de
sua mãe, sabendo que ela é uma mulher que tanto já sofreu? Será que não tem sentimentos, filho deminha companheira? Tudo que essa mulher tem é o filho com quem de noite divide sua
cama.
- Ainda não acabei. Há algo mais a dizer - gesticulou Broud, tentando prender a atenção
do clã escandalizado e se sentindo muito pouco à vontade. Por fim, as pessoas se
aquietaram.
- não sou eu o único aqui que ascendeu a uma nova posição. Nós temos também um
novo mog-ur. Há certos privilégios que correspondem ao status do indivíduo. Resolvi que
Goov. . . digo o mog-ur se mudará para a fogueira que, por direito, pertence ao feiticeiro do
clã. Creb será transferido para o fundo da caverna.
Brun lançou um olhar a Goov. Estaria ele metido também na trama? Goov, com uma
expressão de espanto, sacudiu a cabeça recusando.
- não quero mudar para a fogueira do Mog-ur - disse ele. - O lugar lhe pertence,
sempre foi a sua casa, desde que viemos para esta caverna.
O clã já não se sentia só pouco à vontade, começava a ficar bastante intranqüilo com seu
chefe.
- Eu ordeno que mude! - gesticulou Broud imperiosamente, furioso com a recusa de
Goov. No momento em que ele olhara na direção de Creb, compreendeu, subitamente, que
o velho aleijado apoiando-se sobre um cajado e o encarando cheio de raiva já não era mais
o grande Mog-ur. Que tinha ele a temer de um pobre velho decrépito? Num impulso de
momento, tinha feito o oferecimento, esperando que Goov fosse avançar sobre o
privilegiado lugar dentro da caverna, tal como acontecera com Vorn, quando ele lhe acenou com a possibilidade de subir de posto. Achou que, com isso, estaria for talecendo a lealdade do novo mog-ur para com ele e fazendo com que o rapaz fosse sentir-se obrigado.
Só que não contara com a fidelidade e o amor de Goov a seu mentor. Brun não conseguiu
mais conter-se e já ia interferir, quando Ayla lhe passou à frente.
- Broud! -gritou ela de seu lugar.
Ele levantou, rápido, a cabeça.
- Você não pode fazer isso! não pode obrigar Creb a mudar-se de sua fogueira! - disse
justamente indignada e avançando com passos firmes em sua direção - Ele precisa de um
lugar que seja abrigado contra o tempo. Há muita corrente de ar no fundo da caverna e você
sabe como ele passa mal nos invernos. - Ayla se esquecera de suas maneiras clãmicas, ali
se achava apenas a curandeira tentando proteger o paciente. - Você está fazendo isso só
para me agredir. Querendo vingar-se de Creb, porque ele tomou conta de mim. Pouco estou
ligando para o que você fizer comigo, Broud, mas deixe Creb em paz!
- Encontrava-se de pé na frente dele, dominando-o, gesticulando com as mãos
furiosamente diante de seu rosto.
- Quem lhe deu permissão para falar, mulher! - disse Broud colérico, levantando o punho
cerrado em sua direção mas ela percebeu a tempo e se desviou do murro. Ele, surpreso, viu-
se acertando o ar. A raiva logo substituiu a expressão de espanto e já ia partir para cima dela.
- Broud! - O berro de Brun deixou-o imóvel. Ele estava habituado de mais a obedecer
àquela voz, principalmente se erguida em tom de raiva.
- Aquele lugar pertence ao Mog-ur, Broud. E até que ele morra, lá será sempre a sua
fogueira. Isso irá acontecer dentro de pouco tempo e não há necessidade de você apressar sua
mudança. Por muitos anos ele vem servindo este clã da melhor forma possível. Ele merece
viver ali. Que espécie de chefe é você? Que espécie de homem é você, Broud? Um homem
que usa sua posição para se vingar de uma mulher? Uma mulher que nunca lhe fez nada e
que ainda que quisesse não poderia. Broud, você deixou de ser o chefe!
- não Brun, eu sou o chefe, você é que não é mais. - Passado o primeiro impulso de
obedecer, Broud havia recuperado a consciência da posição dele e da de Brun. - Agora,
sou eu o chefe! Quem toma daqui por diante as decisões sou eu! Você sempre se pôs
contra mim para ficar do lado dela. Sempre a protegeu. Bem, já não vai mais poder protegê-
la! - Broud começava a perder o autodomínio, gesticulando furiosamente com a cara
vermelha de raiva. - Ela fará o que eu disser, ou do contrário será amaldiçoada! E desta
vez não será por tempo limitado. Você acabou de ver a insolência dela e mesmo assim
ain da continua tomando sua defesa. não irei tolerar isso! Nunca mais. Ela merece ser
amaldiçoada pelo que acaba de fazer. E é o que farei. O que você acha disso, Brun? Goov!
Amaldiçoe esta mulher. Agora! Neste instante! Quero que ela seja imediatamente
amaldiçoada. Ninguém vai dizer a este chefe o que ele tem a fazer e muito menos esta
mulher horrenda. Você me entendeu, Goov? Vamos, faça logo a maldição!
Creb, desde o momento que viu Ayla se precipitando na direção de Broud, procurava atrair-
lhe a atenção, querendo avisá-la. Pouco lhe importava se estivesse vivendo no fundo ou na
frente da caverna, dava tudo no mesmo. A suspeita tinha começado a surgir no seu espírito,
quando Broud disse que tomaria Ayla como segunda mulher. Era uma mudança cheia de
implicações, e não seria tomada por Broud, se não houvesse alguma razão por de trás de tudo.
Mas as suas suspeitas não chegaram ao ponto de prepará-lo para a feia cena que se seguiu.
Ao ver Broud dando ordens a Goov para amaldiçoá-la, o pouco ainda que lhe restava de
espírito de luta desapareceu. não quis ver mais nada, fez meia-volta e vagarosamente se
encaminhou para o interior da caverna. Ayla levantou os olhos no momento em que ele
sumia no buraco da entrada.
Creb não era o único a se sentir mal com aquele confronto aberto. O clã inteiro via-se em
rebuliço, gesticulando, gritando e andando alvoroçado.
Alguns não agüentavam ver e outros olhavam incrédulos e extasiados o espetá culo que
jamais imaginaram presenciar em suas vidas. Sempre haviam vivido de modo muito
ordenado, muito protegidos e escudados em suas tradições, costumes e hábitos.
Tinham ficado surpresos com a notícia absurda e inusitada da separação de um filho de sua
mãe; em seguida, escandalizados tanto com a atitude de Ayla entrando em confronto direto
com o novo chefe quanto com a decisão deste de tirar Creb de sua fogueira e, por fim,
estupefatos com a investida colérica de Brun contra o homem que ele acabara de fazer
chefe e com o acesso de Broud exigindo a maldição de Ayla. Mas outras surpresas ainda os
aguardavam.
Ayla tremia tanto que só percebeu o tremor sob seus pés ao ver as pessoas caindo de
bruços, sem conseguir manter-se equilibradas sobre as pernas. Seu rosto espelhava a mesma
expressão que se via no dos outros:
primeiro de assombro, depois de medo e por fim de pavor. Foi, então que escutou o rumor
grave e aterrorizante vindo das entranhas da terra.
- Duuurc! - gritou, ao mesmo tempo em que via Uba agarrando-o e caindo sobre ele,
como se tentasse proteger o corpinho do menino com o dela. Ayla ia correr para onde se
achavam quando, de repente, lembrou-se de uma coisa que a encheu de pavor.
- Creb! Ele está dentro da caverna!
De gatinhas, Ayla subiu o aclive do terreno oscilante, tentando alcançar a boca triangular
da caverna. Uma enorme pedra rolou do íngreme paredão que sustentava a entrada e caiu a
seu lado, desviada por uma árvore que ficou espatifada. A moça não reparou. Estava
entorpecida, em estado de choque. As lembranças revividas em seus velhos pesadelos
vieram à tona, mas de forma embrulhada e confusa pelo pânico total. Em meio ao rugido do
terremoto, não chegou nem mesmo a escutar a palavra saída de seus lábios numa língua já
há muito esquecida.
- Mam
Sob seus pés, o chão sumia abaixando-se muitos centímetros, para de pois tornar a elevarse. Ela caía e lutava para se manter de pé, quando viu o teto em abóbada da caverna
desmoronando. Blocos de pedras se desprendiam do alto e se esborrachavam no chão com
o
impacto. E outros mais iam caindo. A seu redor, as pedras ricocheteavam, despencadas
da face rochosa da montanha para rolar pelo aclive e ir esboroar-se no riacho congelado. O
morro do lado leste partiu-se, e a metade ruiu, também se despencando pela encosta.
Dentro da caverna, era uma chuva de pedras, cascalhos e pó que vinha com o trovejar
intermitente de grandes seções da parede e do teto em arcadas. Do lado de fora, os altos
pinheiros dançavam como se fossem gigantes desengonçados e as velhas árvores desfolhadas balançavam seus galhos desajeitada- mente, ao
ritmo de um réquiem trovejante. Uma rocha na parede, próxima à parte leste da entrada, do
lado oposto ao lago, se alargou com estrondo fazendo jorrar as rochas e pedregulios
soltos. Sob o chão, abriu-se um outro canal de água que, antes de fazer sua viagem
inaugural para o riacho, depositou uma massa de detritos no pórtico da entrada. O rugir da
terra e dos rochedos se despedaçando abafavam os gritos aterrorizados do clã. O som era
ensurdecedor.
Finalmente, o tremor cedeu. Umas últimas pedras ainda se despencavam da montanha,
ricocheteando e rolando até parar em algum ponto. Às tontas, cheias de medo, as pessoas
começaram a se pôr de pé e a caminhar a esmo com expressão aparvalhada procurando
recobrar a razão. Pouco a pouco, foram se juntando ao redor de Brun. Ele sempre significou
garantia e estabilidade para as suas vidas e, agora, gravitavam em torno da segurança que
sua figura representava.
Mas Brun nada fez. Estava certo de que em todos os anos dele como chefe, o seu pior
erro fora passar o comando do clã a Broud. Naquele imstante, compreendeu o quanto se
mostrara cego às falhas de caráter do filho de sua companheira. Até mesmo as virtudes de
Broud, a coragem imprudente e os grandes atos de bravata, pareciam-lhe agora como
manifestações de um ego inconseqüente e de um temperamento impulsivo. Mas não era
essa a razão por que Brun se recusava a agir. Broud era agora o chefe, fosse para o bem
ou para o mal. Era tarde demais para ele voltar atrás e preparar outro homem para o cargo,
embora soubesse que o clã o acompanharia na decisão. A única esperança, tanto para que
Broud se tornasse de fato um chefe como para o clã, seria fazê-lo governar. Broud,
desafiadoramente, sem o menor domínio de si, disse ser o chefe. Bem, Broud, pois então
seja, dê as ordens. Vamos, faça alguma coisa. Doravante, quaisquer que fossem as suas
decisões - ou antidecisões - Brun já não mais iria interferir.
Ao se convencer de que Brun não tomaria de novo as rédeas do poder, o clã se voltou para
Broud. Eles estavam habituados demais a seguir as tradições com o seu enquadramento
hierárquico e Brun fora um chefe extremamente bom, forte e capaz. Achavam-se
acostumados com sua voz de comando nos tempos de crise e a depender de seu julgamento
cahno e sensato. não sabiam como agir por conta própria e nem tomar decisões por si
mesmos na ausência de um chefe. Até Broud esperava que Brun reassumisse, também ele
necessitava de apoiar-se em alguém. Quando, por fim, percebeu que o peso da responsabilidade havia recaído sobre si, tentou assumi-lo. E realmente tentou.
- Quem está faltando? Quem está ferido? - perguntou Broud.
Todos deram um ligeiro suspiro de alívio. Finalmente, alguém fazia alguma coisa. Os
grupos de família começaram a reunir-se e, à medida que o
clã ia se juntando, foram vendo com surpresa as pessoas que temiam ter desaparecido.
Miraculosamente, parecia que ninguém faltava. Apesar de todo o tremor da terra e de toda a
quantidade de rochas despencadas, ninguém se achava seriamente ferido. Machucados,
cortes, arranhões, mas nenhuma fratura de osso. Isso não era inteiramente verdade.
- Onde está Ayla? - gritou Uba, meio em pânico.
- Aqui - respondeu Ayla, descendo pela encosta, esquecida, por um momento, do
motivo por que se encontrava naquele lugar.
- Mama! - gritou Durc, soltando-se das garras protetoras de Uba e correndo. Ayla se
precipitou para ele. Suspendeu-o no colo, abraçando-o apertado e vindo com ele de volta.
- Uba, você está bem?
- Sim, nada de sério.
- Onde está Creb? - perguntou Ayla, lembrando-se. Ela meteu Durc no colo de Uba e
correu de volta na direção da encosta da montanha.
- Ayla, onde você vai? não entre na caverna! Pode haver mais tremores.
Ela não viu o aviso, mas de qualquer maneira não lhe teria prestado atenção. Entrou na
caverna correndo direto para a fogueira de Creb. De vez em quando ainda caíam pedras e
cascalhos formando pequenos montes no chão. Exceto algumas pedras e uma camada de
poeira, o lugar da fogueira deles permanecera intacto. Creb, entretanto, não se achava lá.
Ayla procurou em uma por uma das fogueiras. Algumas estavam completamente
destruídas, mas a maioria ficou com muitas coisas que ainda davam para ser salvas. Creb
não se encontrava em nenhuma das fogueiras. Ayla hesitava em passar pela estreita
abertura que levava à gruta dos espíritos; depois, decidiu entrar, mas estava muito escuro.
Precisava de uma tocha. Resolveu, então fazer primeiro uma vistoria no restante da
caverna.
Uma chuva de pedregulhos caiu sobre ela, fazendo-a dar um pulo para o lado, e um grande
bloco dentado passou rente por seu braço antes de espatifar-se na terra. Examinava as
paredes, ia e vinha pelo recinto, penetrava nas sombras por trás dos recipientes de
armazenar comida na total escuridão da caverna. Já estava pronta para ir buscar uma tocha,
quando decidiu procurar num último lugar.
Encontrou Creb ao lado da sepultura de Iza. Deitara-se sobre o lado deformado de seu
corpo, com as pernas encolhidas, quase como se tivessem sido amarradas na posição fetal.
O magnífico crânio que guardara seu poderoso cérebro já não o protegia mais. A grande
pedra que o havia partido achava-se a alguns centímetros dele. A morte devia ter sido
instantânea. Ayla se ajoelhou ao lado de seu corpo e as lágrimas começaram a correr.
- Creb, ó Creb, por que você foi entrar na caverna? - gesticulou se balançando sobre os joelhos e gritando seu nome. Em seguida, por alguma razão
inexplicável, pôs-se de pé e passou a gesticular com os movimentos que tinha visto Creb
fazer sobre Iza durante o funeral desta. Sozinha na caverna juncada de pedras, a mulher
alta e loura, com lágrimas toldando-lhe a visão, si lenciosamente deixou que os
movimentos de antiqüíssima simbologia fluíssem com uma graça e sutileza tão perfeitas
quanto as do próprio homem santo. Muitos daqueles movimentos eram de significado
desconhecido para ela. E jamais iria entendê-los. Era a última homenagem que prestava ao
único pai que conhecera.
- Está morto - gesticulou Ayla, ao sair da caverna, para os rostos que estavam virados
em sua direção.
Broud, como todos os outros, tinha os olhos fixos nela. Subitamente, ele se viu tomado por
enorme medo. Era ela quem encontrara a caverna, e a ela que os espíritos favoreciam. Logo
depois de ele a ter amaldiçoado, as forças invisíveis sacudiram a terra destruindo a caverna
que ela achara. Estariam os espíritos zangados com ele por querer sua maldição? Teriam
destruído a caverna que ela havia encontrado por se acharem com raiva dele? E se o clã
pensasse que fora ele a causa da calamidade que os atingia agora? Nos recônditos de sua
alma supersticiosa, tremia com a idéia do mau presságio, apavorado por haver
desencadeado a raiva dos espíritos, da qual estava certo ser o responsável. De repente,
atravessou-lhe na mente um raciocínio artificioso. Se pusesse a culpa nela antes que os
outros o achassem culpado, ninguém poderia dizer que fora ele o causador da desgraça e os
espíritos se voltariam contra Ayla.
- Foi ela quem causou isso! A culpa é dela! - gesticulou Broud, subitamente. - Foi ela
quem fez os espíritos ficarem com raiva. Ela é a única aqui a desdenhar nossas tradições.
Vocês todos viram. Esta mulher foi insolente e desrespeitosa com o chefe. Tem de ser
amaldiçoada para que os espíritos vol tem a ficar felizes. Então, eles verão como saberemos
honrá-los e nos conduzirão a uma outra caverna. Melhor ainda que esta e até mais
afortunada. Eles irão nos guiar, tenho certeza de que vão. Goov, amaldiçoe esta mulher!
Ande, neste instante. Faça isso imediatamente. Amaldiçoe, vamos! Amaldiçoe esta mulher!
Todas as cabeças se viraram na direção de Brun. Ele olhava em frente, com as mandíbulas
comprimidas, os punhos cerrados, os músculos das costas latejando com a tensão. Recusava
a se mover, a interferir, embora estivesse apelando para todas as suas reservas de força de
vontade. As pessoas, inquietas, entreolhavam-se. Depois, olharam seguidamente para
Goov e Broud. O acólito, em total perplexidade, encarava Broud. Como pôde ele culpar
Ayla? Se algum culpado há aqui é ele próprio. Goov, por fim, caiu em si.
- Goov, eu sou o chefe e você é o mog-ur. Ordeno a maldição desta mulher. A maldição
de morte!
Goov deu as costas abruptamente, apanhando um galho de pinho que se queimava na fogueira
armada enquanto Ayla estava dentro da caverna e se dirigiu para a encosta, desaparecendo
na escuridão da boca triangular. Caminhava com cuidado, evitando os escombros no chão,
com a atenção voltada para as pedras e pedregulhos que de vez em quando ainda
despencavam, sabendo que um outro terremoto poderia despejar toneladas sobre sua cabeça
e desejando que tal acontecesse, antes que consumasse o que lhe havia sido ordenado. Entrou na gruta dos espíritos e arranjou os sagrados ossos do urso da caverna em filas
paralelas, fazendo antes um gesto com cada um deles. O último, ele enfiou pela base do
crânio, de modo que a outra extremidade saísse pela cavidade ocular. Em seguida,
pronunciou em voz alta os terríveis nomes dos espíritos malignos, só conhecidos pelos
mog-urs. Com isso, estava reconhecendo a existência deles e lhes dando poder.
Ayla ainda se encontrava de pé em frente à caverna, quando ele passou por ela sem vê-la.
- Eu sou o mog-ur e você o chefe. Você ordenou a maldição de morte de Ayla e o serviço
foi executado - gesticulou Goov, dando em seguida as costas ao chefe do clã.
No princípio, ninguém conseguia acreditar. Tinha sido demasiadamente rápido. não era
assim que se deveria fazer. Brun, teria primeiro discutido o assunto, argumentado,
preparado o clã para o fato. Mas, antes de tudo, ele não teria amaldiçoado Ayla. Afinal, o
que a moça tinha feito? Havia sido malcriada com o chefe e essa era uma coisa errada, mas
seria motivo para uma maldição de morte? Ela simplesmente estava defendendo Creb. E
Broud, o que tinha feito? Tirado seu filho, expulsado o velho feiticeiro de sua fogueira, com
o intuito exclusivo de vingar-se dela. Agora, ninguém tinha fogueira. Por que Broud foi
fazer isso? Por que foi amaldiçoá-la? Os espíritos sempre estiveram do lado de Ayla. Ela
sempre lhes trouxera sorte até o momento de Broud ordenar sua maldição. Fora Broud que
lhes tinha trazido desgraça. Agora, o que seria do clã? Broud havia enraivecido os espíritos
protetores e deixado os malignos à solta. E o velho feiticeiro estava morto. O Mog-ur já não
poderia mais ajudá-los.
Ayla achava-se tão perdida em sua dor que nem notou a rapidez com que se processaram os
acontecimentos ao redor dela. Vira quando Broud ordenou sua maldição e vira quando
Goov disse que o serviço estava feito, mas, com o pensamento todo voltado para seu
sofrimento, não captou o que se estava passando. Aos poucos, a compreensão foi se
infiltrando em sua consciência. Quando pôde, por fim, absorver todas as implicações do
acontecido, o choque foi arrasador.
Amaldiçoada? Maldição de morte? Por quê? O que foi que eu fiz de tão grave? Como foi
isso acontecer tão depressa assim? O clã se mostrava tão lento para entender quanto ela.
Eles
ainda não se haviam recuperado inteiramente do impacto do terremoto. Ela, curiosamente,
sentia-se alheia, obser vando as pessoas, uma a uma, irem ficando com os olhos vidrados,
parecendo cegas. Lá está Crug, quem será o próximo? Ika. Agora é a vez de Droog. Aga
ainda não. Ah, agora sim, ela deve ter visto que eu olhava em sua direção.
Ayla somente caiu em si quando os olhos de Uba se tornaram opacos e ela começou com a
sua nênia, lamentando a morte da mãe da criança que segurava nos braços. Durc! O meu
bebê, o meu filhinho! ´
É eu estou amaldiçoada! O que será dele? Só existe Uba. Ela tomará
conta dele, mas o que pode Uba fazer contra Broud? Ele tem ódio de Durc por ser meu
filho. Ayla olhava desesperada à sua volta e viu, então, Brun. Brun! Ele pode proteger
Durc. Só Brun poderá olhar por ele.
Correu para Brun, o homem forte, sensível e controlado que até a véspera havia chefiado o
clã. Ela se deixou cair a seus pés com a cabeça abai xada, levando alguns momentos para
compreender que ele jamais lhe iria dar o tapinha no ombro. Quando ergueu os olhos, ele
olhava por cima de sua cabeça para a fogueira atrás dela. Se ele quisesse os seus olhos
poderiam enxergá-la. Ele pode me ver, disse Ayla consigo. Ele pode me ver, sei que pode.
Creb se lembrava de tudo quanto eu disse, e Iza também.
- Brun, eu sei que você pensa que estou morta. não afaste seus olhos. Eu imploro, não
fique olhando para longe. Tudo aconteceu rápido demais! Eu vou embora, prometo que
vou. Mas tenho medo por Durc. Broud tem ódio dele, você sabe disso. O que será de meu
filho, com Broud como chefe? Durc pertence ao clã, Brun. Você o aceitou. Eu lhe peço,
Brun, proteja Durc. Só você pode fazer isso. Não deixe Broud fazer mal a ele.
Brun, sem pressa, virou as costas para ela, pondo-se a olhar em outra direção como se
tivesse mudado de posição e não como se tentasse desviar os olhos dela. ayla, entretanto,
lhe percebeu nos olhos um brilho ínfimo, sugestivo de que ele tomara conhecimento de sua
presença ali. Era uma leve indicação de aquiescência, mas já bastava. Ele iria proteger
Durc, assim havia prometido ao espírito de sua mãe. Era fato que tudo se tinha passado
depressa demais e ela não tivera tempo de fazer o pedido antes. Sua decisão de não
interferir com Broud não chegava a tal ponto. Não permitiria que o filho de sua companheira
fizesse mal ao filho de ayla.
A moça se levantou e se encaminhou propositadamente para a caverna. Até falar com
Brun ainda não tinha resolvido ir embora, mas depois sim. A dor pela morte de Creb foi
relegada a um canto de sua mente para ser sentida mais tarde, quando sua sobrevivência
Não estivesse em jogo. Talvez fosse para o mundo dos espíritos, talvez Não, mas não iria
de mãos abanando.
Da primeira vez que entrou na caverna não tomara consciência das avarias ocorridas lá e
agora olhava como se aquele fosse um lugar desconhecido, dando graças por não haver
ninguém dentro no momento do terremoto. Ela respirou fundo e, sem tomar conhecimento
das condições de perigo, correu para a fogueira de Creb. Se não pegasse o necessário para
sua subsistência, cer tamente morreria.
Retirou uma pedra de sua cama, sacudiu a capa de pele e por cima desta começou a
empilhar uma série de coisas: a sacola de remédios, a funda, dois pares de calçados,
perneiras, luvas, uma manta forrada de pele, um capuz. E mais:
sua cuia, uma bacia, recipientes para água e ferramentas. Em seguida, dirigiu- se para o
fundo da caverna e encontrou lá os bolos preparados para viagem feitos de carne-seca,
cereais e gordura que tinham alto teor alimentício. Revistando por entre as pedras, achou
os potes de madeira contendo açúcar de bor do e ainda frutas secas, diversos tipos de nozes,
farinha de cereais, tiras de carne-seca e peixe, e alguns vegetais. A estação já estava no fim
e a variedade por isso não era grande, mas, em todo caso, servia. Limpou sua cesta de
colher, retirando as pedras e a poeira de dentro e se pôs a enchê-la.
Com lágrimas nos olhos, pegou a manta de carregar Durc e a encostou no rosto. Não ia
precisar dela. Durc iria ficar, mas guardou-a. Pelo menos, teria uma coisa que pertencera a
seu filho e que tinha estado muito junto dele. Vestiu-se com roupas quentes, iria fazer frio
na planície no princípio da estação Talvez ainda fosse inverno no norte. Por enquanto, não
tinha tomado nenhuma decisão sobre que direção seguir. Sabia que estava indo para o
continente que ficava ao norte da península.
No último momento, resolveu apanhar o couro da barraca que levava quando saía com os
homens nas expedições de caça. A rigor, não lhe pertencia. Ela teria direito de levar
tudo quanto fosse dela, e o que deixasse seria queimado. Achava que por justiça uma parte
dos alimentos lhe pertencia, mas o pano de couro era para uso das pessoas vivendo na
fogueira de Creb. Afinal, Creb não estava mais lá e em vida nunca o havia usado. Ela
imaginava que ele não fosse se importar.
Botou-o por cima de tudo na cesta, suspendeu às costas aquele pesado volume e amarrou as
correias que o firmavam no lugar. De pé, no meio da fogueira de Creb, as lágrimas
ameaçavam voltar, olhando para aquilo que fora seu lar, para onde tinha sido levada poucos
dias depois de Iza a ter encontrado. Nunca tornaria a vê-lo. Por seus olhos desfilou um
turbilhão de lembranças a se atropelarem em sua mente - algumas, mais significativas,
detendo-se por um tempo maior. O último pensamento foi para Creb. Gostaria de saber o
que causara a ele tanto sofrimento. Talvez um dia eu compreenda, mas fico feliz por termos
conversado antes de você partir para o mundo dos espíritos, Creb. Nunca me esquecerei de
você, de Iza e do clã. E veio para fora da caverna.
Ninguém olhava, mas todos sabiam que Ayla tinha aparecido. Ao parar Junto do lago para
encher os cantis, uma outra lembrança lhe atravessou o espírito. Antes de agitar a
superfície mergulhando o recipiente na água, ela se inclinou, querendo ver seu rosto.
Examinou-o com atenção. Desta vez não lhe pareceu tão feio. No entanto, não era nela que
estava interessada. Desejava ver um rosto dos Outros.
Quando se levantou, Durc lutava para se desprender dos braços de Uba. Alguma coisa que
tinha a ver com sua mãe estava acontecendo. não tinha certeza do que fosse, mas sabia que
não gostava. Com um safanão, conseguiu soltar-se e correu para Ayla.
- Você está indo embora - falou, acusando. Começava a entender e estava indignado por
não lhe terem dito. - Você está vestida e vai embora.
Por uma fração de segundo, Ayla hesitou. Depois, estendeu os braços e Durc voou a seu
encontro. Lutando contra as lágrimas, ela o apanhou, abraçando-o apertado. Em seguida,
agachou-se para ficar de sua altura e olhou diretamente dentro de seus grandes olhos
castanhos.
- É verdade, Durc, eu vou embora. Tenho de ir.
- Mama, me leve com você. Mama, me leve! não me deixe!
- não posso, Durc. Você tem de ficar com Uba Ela vai cuidar de você, e Brun também.
- não quero ficar aqui! - gesticulou Durc, debatendo-se. - Quero ir com você. não vá
embora, deixando-me aqui!
Uba aproximou-se. Era preciso. Tinha de tirar Durc das mãos do espírito. Ayla abraçou
seu filho novamente.
- Eu o amo, Durc. Nunca se esqueça disso, nunca se esqueça de que sua mãe o ama
muito. - Ela pegou o filho e o botou nos braços de Uba. - Tome conta dele para mim,
Uba - gesticulou, olhando-a nos olhos cheios de tristeza. Uba devolveu o olhar, tinha visto
Ayla. - Cuide dele. . . minha irmã.
Broud, cada vez mais furioso, observava a cena. Aquela mulher está morta. Ela é um
espírito. Por que não está agindo como tal? E por que há pessoas que não a estão tratando
como um espírito?
- Ela é um espírito - gesticulou, possesso. - Ela está morta. Será que não sabem que já
morreu?
Ayla, com passos firmes, encaminhou-se para Broud e se pôs de pé, a toda altura, na sua
frente. Ele estava tendo dificuldade para não enxergá-la. Tentava ignorá-la, mas ela o
olhava de cima para baixo, e não sentada a seus pés como uma mulher deveria estar.
- não estou morta, Broud - gesticulou, desafiadoramente. - E nem vou morrer. Você
não me pode matar. Pode me forçar a ir embora e pode tirar meu filho de mim, mas não me
pode obrigar a morrer!
A raiva e o medo se misturaram, quando ele, tomado por um ímpeto,
e o punho fechado para esmurrá-la, mas se conteve, temendo tocar nela. Ela é um truque,
disse consigo. não passa de um estratagema do espírito. Ela tá morta, foi amaldiçoada.
- Vamos, Broud, bata em mim. Vamos, reconheça esse espírito que está aqui. Bata e verá
que não estou morta.
Broud virou-se para Brun, querendo desviar os olhos do espírito. Depois, abaixou o braço,
embaraçado com a posição que podia parecer pouco na tural. não chegara a encostar nela,
mas tinha medo de que só o fato de levantar a mão fechada já fosse suficiente para
reconhecer-lhe a presença e tentou passar para Brun a responsabilidade do ato que
atraía desgraça.
- não pense que não vi, Brun, quando você respondeu ao espírito antes de ele entrar na
caverna. Ela é um espírito, Brun, e você vai atrair desgraça - ameaçou ele.
- Só eu, Broud? E que outra desgraça mais poderia acontecer-me? Mas quando você viu
Ayla conversando comigo? Quando a viu entrando na caverna? Por que você ameaçou
bater num espírito? Parece que você ainda não entendeu, não é? Você reconheceu sua
existência, Broud. E ela o venceu. Você fez tudo que pôde contra ela, até mesmo a
amaldiçoá-la chegou e, ainda assim, ela o venceu. Ayla era uma mulher e tinha mais
coragem do que você, Broud. Muito mais força de vontade e caráter. Era mais homem do
que você. Ayla é que deveria ter sido o filho de minha companheira.
Ayla se viu surpresa com o inesperado elogio de Brun. Durc, novamente, contorcia-se
chamando-a. Ela não conseguiu agüentar mais e correu, afastando-se. Ao passar por Brun,
abaixou a cabeça e fez um gesto expressando sua gratidão. Chegando ao morro, virou-se
para uma última olhada. Viu Brun levantar a mão como se fosse coçar o nariz, mas era
como se ele fizesse um certo gesto, o mesmo feito por Norg, quando eles se despediram da
reunião de clãs. Pareceu-lhe ver Brun dizendo:
- Que Ursus a acompanhe.
A última coisa que Ayla ouviu, ao desaparecer por trás do morro fendido, foi o grito
choroso de Durc:
- Maama! Maaania! Maamaaa!

fim

Este livro continua em outro volume com o nome de O vale dos cavalos

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