Fernando Henrique Cardoso
A arte da política: a história que vivi
SUMARIO
Agradecimentos 9
Introdução 11
1. Fortuna e alguma vírtú 31
2. Aprendendo na política 75
3. O Plano Real: da descrença ao apoio popular 137
4. No Planalto: desvendando a esfinge do poder 223
5. Pedras no caminho: as incertezas na economia 339
6. Dos obstáculos à herança bendita 389
7. A luta contínua para reordenar o Estado 445
8. A sociedade como protagonista 499
9. Estado e crescimento econômico 559
10. Política externa: o papel e as viagens do Presidente 601
Palavras finais 673
AGRADECIMENTOS
Este livro,deu muito trabalho a muita gente. Não fosse a competência, a paciência e
a amizade de Danielle Ardaillon, Eduardo Graeff, Sérgio Fausto, Tarcísio Costa e
José Estanislau do Amaral, ele jamais chegaria à publicação. Antigos colaboradores,
esmeraram-se em me ajudar a precisar informações, revisar documentos, entrevistar
pessoas, rever textos, complementá-los com sugestões, enfim, a fazer o que só
com dedicação e trabalho se consegue. Sou imensamente grato a eles.
Além desses, outros amigos tiveram a pachorra de ler e fazer comentários sobre
alguns capítulos, especialmente Celso Lafer, Clóvis Carvalho e Eduardo Jorge, eles
mesmos partes de algumas das estórias que conto no texto. Outros, que também
participaram dos esforços para mudar o Brasil, se dispuseram a dar entrevistas ou a
responder a consultas feitas por Sérgio Fausto ou por mim, especialmente Pedro
Malan, José Gregori, Armínio Fraga, Gustavo Franco, Pérsio Árida, Gustavo Loyola,
Amaury Bier, Murilo Portugal e José Paulo Silveira. Sou-lhes enormemente grato.
Na obsessão de reler e revisar os capítulos (mormente porque escritos
em momentos distintos), pedi opiniões não só aos meus colaboradores diretos, já
mencionados, mas à Ruth e a meus filhos Paulo Henrique e Beatriz. Por fim, com
franqueza, não fosse a dedicada, competente e minuciosa cooperação de Ricardo A.
Setti, que revisou tudo, adicionou comentários, reviu nomes, datas, fatos e estilo,
certamente o livro seria de mais difícil leitura e correria maiores riscos de imprecisão.
Especialmente a Setti, a Danielle, a Eduardo Graeff e a Sérgio Fausto, devo imensa
gratidão.
Desnecessário dizer, como de praxe (por isso redundo), que nenhum dos citados
acima tem a mais remota responsabilidade pelas opiniões e interpretações do livro,
mas todos têm muito a ver com o que de bom possa haver nele.
Por fim, a compreensão, o estímulo e a paciência de meus editores, Sérgio Machado
e Luciana Villas-Boas, foram fundamentais para diminuir a angústia de quem sabia
que tinha todos os prazos esgotados e ainda muitas obrigações a cumprir. Sem essa
atitude este livro não teria chegado ao final. Sou-lhes gratíssimo.
F.H.C.
1
Introdução
O tempo não perdoa
Hesitei em escrever um livro a respeito do Brasil que incluísse minha experiência
como Presidente. Primeiro, porque talvez se espere de um exPresidente um livro de
memórias ou, se ele tiver experiência acadêmica, uma análise aprofundada das
questões nacionais. Sempre tive implicância com a idéia de escrever rememorações
pessoais, autobiografias e coisas assemelhadas. Parece pretensioso e corre o
risco da subjetividade, conduzida para fazer o autor sair-se bem na pose histórica.
Além disso, não falta quem diga que sou vaidoso. Imagine-se o que diriam se me
dedicasse a escrever autobiografia. Pelo menos neste caso valha a boutade, que já
me deu tanto trabalho, de dizer que sou mais inteligente do que vaidoso, e afaste-se
de mim este cálice.
Bem que tive vontade de ser um pouco mais memorialista do que sociólogo.
Gravei impressões quase todos os dias em que exerci a Presidência.
Quando o cansaço impedia esse exercício diário, registrava dois ou três dias depois
minhas observações e sensações. Devo a Celina Vargas do Amaral Peixoto a
sugestão de fazê-lo. No início do governo ela me deu um caderno de anotações,
junto com uma página fotocopiada do diário, até então inédito, de seu avô, Getúlio
Vargas. Logo percebi a maior praticidade de ditar a um gravador as impressões em
vez de escrevê-las com minha letra de médico, difícil de decifrar.
Não tenho, por outro lado, disponibilidade de tempo para elaborar uma análise
acadêmica e bem documentada do processo político e das transformações pelas
quais o Brasil tem passado nestes últimos vinte anos. Refiro-me tanto ao tempo real
(as pressões do dia-a-dia do mundo contemporâneo e as específicas de um ex-
Presidente) quanto ao imaginário: aquele que a distância infinita da morte faz de
seu desperdício um gozo. Comecei a escrever este livro aos 72 anos e agora, aos
74, termino esta Introdução. Não posso mais dar-me ao luxo de imaginar,
parafraseando obliquamente Vinicius de Moraes, que a vida seja infinita enquanto
dure.
Essa sensação de infinitude é um consolo para as rupturas. A mais trágica de todas
é a da própria existência. Constrangedora, cruel, inevitável. Só os loucos, no
entanto, não a tomam em conta.
Ulysses Guimarães repetia que o tempo não perdoa quem não sabe trabalhar com
ele. Por essa razão, tomei algumas decisões práticas. Primeiro, deixarei as
gravações para serem analisadas posteriormente, por quem possa interessar-se em
ver como as sensações percebidas por quem está exercendo o governo são (ou
podem ser) distintas daquilo que de fato acontece. E também como os motivos e os
objetivos de quem toma decisões podem ser muito diferentes do que pensam ou
dizem a imprensa, as outras pessoas e mesmo os políticos.
Isso não quer dizer que deixarei de consultar esses registros. Mas não os usarei
sistematicamente.
Sonhei que, deixando a Presidência, teria de vagar para voltar aos arquivos do
Congresso, às atas de reuniões de governo, enfim, à documentação necessária para
imitar, guardadas as proporções e sem a pretensão de comparar, o que Joaquim
Nabuco fez com o pai, o senador José Thomaz Nabuco de Araújo (1813-1878),
governador de província, senador e ministro, em Um estadista do Império.1 Para
isso seria preciso ter havido de verdade um estadista na República.
Um Estado a ser reconstruído
Quando se acorda do sonho, a realidade é bem outra. Bastou reler os jornais e
revistas do período de preparação do Plano Real e mergulhar em algumas
entrevistas com meus colaboradores da época para perceber que não seria possível
existir estadista em um Estado próximo da ruína. Se algo realizamos nos dez anos
em que fui ministro ou Presidente - não apenas eu, mas dezenas de pessoas,
anônimas umas, notórias outras, e algumas notáveis -, foi reconstruir a máquina
administrativa, dar maior consistência às políticas públicas, enfim refazer o Estado,
sempre no contexto de uma sociedade que se democratiza e quer respeitar os
valores republicanos.
Por ironia, o cantochão contra mim e contra o governo quase sempre repisava que
éramos "neoliberais", queríamos privatizar tudo, minimizar o Estado e servir ao
capital.
Espero que este livro proporcione ao leitor uma visão mais objetiva do esforço
desenvolvido e mostre a complexidade, a rugosidade do real, não só da moeda e de
seu plano de estabilização, mas da realidade brasileira. Sobretudo espero que o
leitor possa perceber que governar um país, elaborar projetos, conceber programas,
implantar políticas é um processo coletivo. Insisto no conceito: processo. Lendo os
jornais e revistas, assistindo à TV, conversando nos botequins e pontos de
ônibus, nas ante-salas de ministérios, nos corredores do Congresso e mesmo
no governo, espera-se, implora-se às vezes, por um ato, um gesto heróico, enfim,
qualquer coisa que solucione logo as aflições do povo, ou os interesses de algum
grupo. Estes últimos talvez possam ser atendidos num rompante. Os interesses de
todo um povo, não. Dependem de ação continuada que mude práticas,
mentalidades, estruturas.
Não por acaso as reformas são tão difíceis. Nem por outra razão quem deseja
mudar de verdade as coisas, para propiciar ao país um horizonte de maior bem-estar
e progresso, às vezes se sente só.
Em família: o Brasil e a História
Os capítulos em que discuto os percalços para empreender algumas reformas e nos
quais mostro parte dos resultados alcançados são antecedidos por dois outros
relativos a período distinto de minha vida.
No primeiro deles, intitulado "Fortuna e alguma virtú", faço umas poucas referências
biográficas. Nelas incluo breves anotações sobre minha família, principalmente a
paterna, estabelecida no Rio de Janeiro desde a juventude de meu avô (a materna
vivia em Manaus), com a qual tive convívio intenso e aprendi muitas lições sobre o
Brasil e a História.
Jovem oficial do Exército, meu avô, Joaquim Ignacio Batista Cardoso, participou da
conspiração para a Proclamação da República. A profunda imersão dele e do irmão,
Augusto Ignacio do Espírito Santo Cardoso, igualmente militar, em lutas e
conspirações para mudar o país acabaram contaminando primos, filhos e sobrinhos,
criando o caldo de cultura cívica em que vivi desde criança. Faço ainda referências à
minha formação intelectual e política.
Em duas passagens deste capítulo - "Uma digressão teórica" e "A busca contínua
da legitimação"-, me deixei levar por considerações um pouco mais académicas.
Espero que o leitor perdoe o tom e o deixe à conta de quem tem a boca torta pelo
uso do cachimbo. Sua leitura permitirá esclarecer os fundamentos de algumas de
minhas convicções. Se, porém, for cansativa, saltá-la não prejudica a compreensão
dos capítulos que seguem.
No Capítulo 2, "Aprendendo na política", rememoro meus passos iniciais fora da
Academia e dou um depoimento de como vi certas questões fundamentais da
redemocratização. A grande causa de minha geração não foi a da estabilização da
economia. Nem tampouco a do desenvolvimento econômico. Foi a da democracia.
Elas não são excludentes. Há que lhes atribuir a cada momento, no entanto, seu
peso relativo. E, como mostrarei nos capítulos subseqüentes, as mudanças havidas
no Brasil tiveram como base a redemocratização. É óbvio que sem ela
também poderiam ter ocorrido mudanças, eventualmente até com maiores êxitos
no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O país, contudo, seria outro, com
outro dinamismo, mais baseado no Estado e nas empresas do que na vitalidade da
sociedade.
Por isso, para mim, a História contemporânea da política brasileira começa nos anos
1970, com as lutas pela volta à democracia, sonhada por muitos como se fosse a
inauguração de uma sociedade - dando nome às coisas - socialista. Dos
guerrilheiros de todo tipo aos democratas liberais, da luta pela anistia ao
renascimento da sociedade civil com suas persistentes organizações não-
governamentais (ONGs), dos fóruns do Teatro Casa Grande, no Rio, à Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), à Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou à Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), das greves de Osasco (SP) e do ABC paulista à
campanha pelas Diretas Já, de tudo isso junto surgiu um horizonte democrático.
O cerco ao regime autoritário, sua transformação interna com a abertura "lenta,
gradual e segura" e com o surgimento de figuras de relevo vindas do movimento de
1964 que passaram a apoiar a redemocratização, como o então senador Teotônio
Vilela, o ex-ministro Severo Gomes ou o general Euler Bentes Monteiro, constituíram
a antecâmara de um novo Brasil. A oposição institucional deixou de ser expressão
da "oposição consentida", como diziam do Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
para ser a oposição de verdade.
O resultado desse borbulhar da sociedade acabaria sendo a convocação
da Assembléia Nacional Constituinte, finalmente eleita em 1986. As greves de São
Bernardo do Campo (SP) e a campanha das Diretas Já pavimentaram o caminho.
Sobre São Bernardo há muitos depoimentos e muitas estórias contadas. Registrarei,
no Capítulo 2, como vi na ocasião - e vi de perto - o que estava acontecendo, como
conheci Lula e o que com ele cheguei a compartilhar.
A campanha das Diretas Já em 1983-1984 deve muito à visão e à persistência de
um homem, André Franco Montoro, governador de São Paulo pelo Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), somadas ao magnetismo de um ícone
democrático, o deputado Ulysses Guimarães, presidente do partido. Antes dessa
época, já agiam os movimentos profundos da sociedade, que, mesmo sem saber ou
querer, prepararam o terreno para a volta da democracia. As lutas contra a ditadura,
o sofrimento nas câmaras de tortura, a resistência na imprensa nanica e depois na
grande mídia, os estudantes, os intelectuais, os religiosos inconformados, os
operários e seus líderes nas greves, a ânsia de todo o povo por liberdade
resultaram na Constituinte. Não sem antes passar pela tragédia nacional da agonia
e morte do Presidente eleito Tancredo Neves. Foi esse processo que permitiu o
surgimento na cena pública nacional das novas lideranças, que ainda estão na liça,
e deu a algumas lideranças da geração anterior a possibilidade de se renovar.
Permitiu, sobretudo, o enraizamento de instituições democráticas no Brasil, abrindo
espaço para um país melhor.
Abracei a causa da democracia com entusiasmo: ela motivou a revisão de minhas
análises teóricas e por causa dela passei a participar ativamente da política
partidária. Em 1978 tive minha primeira experiência eleitoral, candidatando-me ao
Senado em São Paulo com apoio de sindicalistas, artistas e intelectuais, alguns dos
quais se voltariam contra mim como Presidente. Mais tarde, em 1985, já senador,
amarguei a derrota ao disputar a Prefeitura da capital contra o ex-Presidente
Jânio Quadros. Doída no momento, serviu-me, porém, como valioso aprendizado.
O Plano Real, a candidatura e a chegada ao Planalto
Foi no quadro de absoluto respeito à Constituição (inclusive para alterá-la), que
abracei a outra grande causa da época, a da estabilização da moeda, como analiso
no Capítulo 3, "O Plano Real: da descrença ao apoio popular". Hoje se fala da
inflação como "galinha morta", embora nessa matéria seja imprudente considerar
vitórias como sendo definitivas. Em 1993-1994, período em que fui ministro da
Fazenda, o clima era totalmente distinto: a inflação corria acima de 20% ao mês.
Quer dizer, mais de 1.000% ao ano! Só mesmo fazendo apelo à exclamação em
desuso para descrever tanto horror perante os céus.
Descrevo a surpresa, que me atingiu como um terremoto, do conviteconvocação do
Presidente Itamar Franco para que eu trocasse o Itamaraty pelo Ministério da
Fazenda, quando me encontrava em Nova York, voltando de missão oficial ao
Japão. No clima de incerteza daqueles tempos (na verdade, a indexação salvava os
ricos), a dúvida maior era saber se valia a pena e se existiam condições para
a estabilizar a moeda. Mais do que um plano, os esforços, batizados na mídia de
Planos FHC-1 e FHC-2 (denominação preferida pelos que apostavam contra e
diziam ser nome de agrotóxico), constituíram-se em uma aventura levada adiante
por um pequeno grupo de crentes. Havia os que acreditavam na razão económica e
tinham sido escaldados por planos anteriores com os quais colaboraram. Havia os
que acreditavam nos milagres da democracia, para aumentar a consciência da
população sobre os males que a afligem. Naturalmente, não se tratava de
seitas excludentes. Era possível pertencer a ambas.
Houve momentos, como se verá adiante, nos quais o que veio a chamar-se (às
vezes depreciativamente) de "a equipe econômica", com o ministro à frente, estava
quase completamente isolada. Quando assumi o Ministério da Fazenda, era já o
quarto ministro em sete meses e o governo do Presidente Itamar Franco (1992-
1995) enfrentava sérias dificuldades. A primeira reação foi de alívio, não só porque
afirmei no discurso de posse que o Brasil tinha que enfrentar três grandes
problemas, a saber, a inflação, a inflação e a inflação, como porque eu gozava,
sabidamente, da confiança do Presidente da República.
Com o passar dos meses, como me recusasse a fazer a mágica, tantas
vezes tentada anteriormente, de acabar com a inflação "de um só golpe", aplicando
um novo ucasse sobre a política económica (prisão de sonegadores, "mais vontade
política", as opções variando ao sabor dos proponentes), um certo desânimo se
abateu nas cúpulas dirigentes. Até hoje não sei onde encontramos ânimo para
resistir a tantas pressões.
Resistimos, fomos adiante, o Plano Real deu certo e, sem que essa fosse minha
expectativa, me tornei candidato à Presidência. Todo o final do Capítulo 3 é
dedicado às articulações que acabaram me levando a palanques, comícios e
carreatas pelo Brasil afora e, finalmente, ao Palácio do Planalto. Ali narro da mesma
forma as complexas relações, em geral amistosas e construtivas, que mantive
durante aquele período com o Presidente Itamar, do qual fui candidato - acredite o
leitor - sem que uma única vez trocássemos uma palavra direta a este respeito.
A riquíssima experiência da campanha eleitoral me permitiu enxergar melhor o país
e seus problemas. Refiro-me nessa parte também às emoções, quase sempre
contidas por meu temperamento, do dia da posse, quando, ainda no Rolls-Royce
presidencial, a caminho da cerimónia no Congresso, enquanto acenava para a
multidão reunida na Esplanada dos Ministérios, sentia sobre meus ombros o
aterrador peso da História.
Vitórias e derrotas, perdas e ganhos
No Capítulo 4, "No Planalto: desvendando a esfinge do poder", entro de chofre em
minha experiência como Presidente. Não deixo de observar, aqui e ali, algumas
características que marcam (e muitas vezes para o mal)
nosso sistema político. Mas a descrição e a análise se concentram em mostrar as
condições nas quais um Presidente faz a escolha dos aliados, nomeia seus
ministros - o episódio da conversa em que Pelé aceitou ser ministro de Esporte
talvez rendesse uma peça de ficção -, tenta levar adiante suas políticas e entra no
grande jogo de poder que se dá entre o Executivo, o Legislativo e a sociedade,
muitas vezes mediado pela Justiça. Nesse capítulo procuro evitar tomar legendas
por partidos, cair no simplismo de ignorar o choque de interesses económicos ou
de poder e enxergar em tudo diversidade de posições ideológicas. Ao
mesmo tempo, evito pensar que todo jogo político é mera mistificação e, portanto,
ninguém está nele com propósitos autênticos, visando melhorar as coisas
(naturalmente, segundo perspectivas diversas). Na dinâmica entre o Executivo e o
Legislativo, toda a arte para um governo levar adiante seu programa - desde que o
tenha - consiste em manter a agenda do Congresso sob controle e a sociedade
informada de seus propósitos. É nesse contexto que aparecem os altos e baixos de
minhas relações com alguns dos protagonistas da política como o ex-Presidente
José Sarney ou o senador António Carlos Magalhães. Descrevo bem francamente
alguns momentos difíceis pelos quais passei, incluindo-se a infâmia da "compra de
votos" para aprovar a emenda da reeleição. Falo com franqueza de
políticos próximos que romperam comigo, alguns momentaneamente, como o ex-
Presidente Itamar, outros definitivamente, caso do ex-governador Ciro Gomes.
Abordo episódios pouco conhecidos, como o jantar com os ministros militares em
que lhes informei minha decisão de fazer reparações nos casos dos mortos e
desaparecidos políticos da ditadura.
Conto, com detalhes até agora não expostos publicamente, o duplo golpe que sofri
ao perder, num intervalo de dois dias, dois amigos queridos e dois esteios políticos
de meu governo, o ministro das Comunicações, Sérgio Motta, e o líder do governo
na Câmara, deputado Luís Eduardo Magalhães. Mostro como encarei a tese da
reeleição, em que momento e com quais motivos, ou justificações, a endossei. E
saliento, o tempo todo, que as reformas e a visão de um outro Brasil foram os
objetivos de minhas ações e das alianças que fiz. Nos Capítulos 5 e
6, respectivamente "Pedras no caminho: as incertezas da economia" e
"Dos obstáculos à herança bendita", descrevo com os pormenores necessários
a presença inquietante do periurgo contemporâneo: o mercado financeiro. É por
intermédio dele que entram em cena novos atores no palco do poder: as finanças
internacionais, as grandes agências, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a
presença do Tesouro (no caso o que realmente conta, o americano), nações
estrangeiras, a pressão dos interesses económicos internos e assim por diante.
O enredo dessa história, que é a continuação da política de estabilização, se
desenvolve em uma pugna entre a taxa de juros e a taxa de câmbio, envoltas ambas
na atmosfera rarefeita da política de contenção de gastos públicos, ou seja, na crise
fiscal. Nesta, o personagem central é o crescente déficit da Previdência, que tem
um "amigo oculto", o corporativismo que resiste ao abandono de
privilégios, encontrando brechas na lei e amparo no Judiciário. Tal enredo,
no entanto, não vem à cena de maneira direta e simples: ele aparece sob as vestes
de especulações financeiras, crises internacionais, vírus que afetam por contágio a
moeda local. De fato, esses são vírus oportunistas que se instalam na economia
pela fraqueza das finanças públicas. Estas, corroídas pelos déficits (pois, além da
Previdência, os gastos correntes, sobretudo com a folha de pessoal, também
pressionam o Tesouro), sustentam-se com o governo tomando empréstimos em
espiral, o que limita a possibilidade de baixar as taxas de juro. Quando
as tempestades vêm do exterior encontram, portanto, uma economia desabrigada,
incapaz de ajustar-se, sem muitas reformas, aos ares do mundo.
Os dois capítulos descrevem os esforços, os erros e os êxitos de oito anos de
readaptação das condições econômico-financeiras do Brasil para o país conseguir
vir à tona, como veio, na economia globalizada (hoje se fala dos BRICs, Brasil,
Rússia, índia e China, como as novas economias emergentes). Conto, com os
pormenores cabíveis, as crises que levaram ao fim os bancos Económico,
Bamerindus e Nacional, as dificuldades para implementar programas de salvaguarda
da solidez do sistema financeiro, os supostos "escândalos" que permearam tudo
isso, até chegar ao governo do Presidente Lula que, de certa maneira, ao manter
incólumes os pilares macroeconômicos que lançamos, forneceu a prova de que
nas circunstâncias o caminho percorrido foi o melhor possível. Relato os contatos
que mantive no exterior, o tempo todo, para salvaguardar os interesses da
economia brasileira - e o respaldo que obtive de dirigentes que se tornaram amigos,
como o Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. E conto como estava
determinado a mudar a política cambial e que obstáculos enfrentei para efetivar esta
mudança durante o primeiro mandato. Eles variaram das incertezas e temores - na
época justificados - quanto à volta da inflação se houvesse uma política mais ativa
de desvalorização da moeda sem aperto fiscal, até acidentes de percurso, como a
perda de colaboradores preciosos graças ao "escândalo"
dos grampos telefónicos. E tampouco havia certezas quanto à melhor política a
adotar, nem capacidade efetiva da União para impor maior disciplina fiscal,
sobretudo aos estados. Também estão descritos no livro os episódios que levaram à
desvalorização do real e à redefinição das políticas macroeconômicas.
O Capítulo 7, "A luta contínua para reordenar o Estado", descreve o calvário da
apresentação, debate, descaracterização, reconstituição e aprovação (nem sempre
em termos satisfatórios) de um conjunto de medidas necessárias para reformar a
máquina governamental, minorar a crise fiscal e liberar a economia das travas do
passado. Ao analisar as dificuldades para avançar as reformas, contudo, mostro que
o Congresso, com suas peculiaridades e morosidades, representa os interesses e
as visões existentes na sociedade. Cabe ao governo (e principalmente
ao Presidente) entender os termos do jogo democrático. Presidente que não toma o
Congresso em consideração está invariavelmente fadado ao fracasso, quando não
ao impeachment. O Presidente precisa ter equilíbrio para perceber que as
obstruções, emendas e negaças do Legislativo muitas vezes propiciam
entendimentos que melhoram os resultados. Nem sempre, é verdade. Neste caso,
cabe ao Presidente bater o pé, dentro das regras do jogo. E se não obtiver
resultado, ir novamente à sociedade e insistir na defesa de suas teses. É por isso
que nas democracias a luta é contínua e as melhorias são incrementais. De quando
em vez abre-se uma clareira na cerração dos avanços lentos. Isso se deu no início
de meu primeiro mandato, quando aceleramos a aprovação das emendas
constitucionais que quebraram ou flexibilizaram monopólios exercidos pelo Estado
sobre certas atividades econômicas. Não foi fácil: precisei enfrentar com energia
uma greve de petroleiros que, sob pretexto de demandar melhores condições de
trabalho, no fundo, queria barrar a quebra dos monopólios, essencial para o
progresso e a modernização do Brasil. Até mesmo do ponto de vista subjetivo me
custou assumir as posições que adotei, pois meu pai, o general Leônidas Cardoso,
foi um dos baluartes da campanha "O Petróleo é Nosso", e eu próprio respondi a
inquérito policial-militar e fui processado por haver participado do mesmo movimento
como tesoureiro do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo, em São Paulo. Em
1996 e 1997 conseguimos caminhar de novo com velocidade. O Congresso
aprovou várias leis complementares, como as relativas à telefonia ou à criação das
agências reguladoras.
Também nos períodos de crises financeiras o Congresso em geral teve atitude
responsável, levando adiante matérias delicadas, como a criação ou o aumento de
impostos.
A sociedade, a economia e uma preocupação do Papa
Começo o Capítulo 8, "A sociedade como protagonista" fazendo um
apanhado sumário do modo como evoluíram as relações entre o Estado e a
sociedade para fundamentar as mudanças nas políticas sociais. Em seguida
menciono as principais políticas que pusemos em marcha. Começo pelas que,
tendo como objetivo generalizar o acesso à educação e à saúde, são fundamentais
para eliminar a exclusão social. Descrevo o que foi feito, sobretudo para a inclusão
na escola básica. Quanto à saúde, mostro como tornamos realidade o que antes era
aspiração e mesmo obrigação constitucional, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Em seguida, discuto o significado da reforma agrária para nossa sociedade, tema
carregado de paixão a ponto de merecer o interesse pessoal do Papa João Paulo II
- que, como vou narrar neste livro, manifestou a mim reservas sobre a postura de
setores da Igreja no Brasil diante da questão da terra. Paradoxalmente, me vi
defendendo diante do Papa aqueles que, dentro do Brasil, me criticavam
duramente. Apesar dos entraves legais, das pressões contra e a favor da reforma,
conseguimos acelerá-la modificando as leis que definem os ritos de desapropriação.
Graças a um programa que instituímos, pela primeira vez na História o crédito
agrícola oficial chegou às mãos dos pequenos produtores rurais.
Por outra parte, pusemos em funcionamento o Banco da Terra, que substitui a
desapropriação pela compra, quando escasseiam latifúndios improdutivos nas áreas
de assentamento.
Nas partes finais do capítulo, cuido das políticas para reduzir os bolsões de pobreza.
Descrevo, sem muitas minúcias, no que consistiam esses programas, como foram
financiados e os resultados expressivos - embora pouco divulgados - que
alcançamos, melhorando a vida e a renda das pessoas. E trato também do que
denominei projetos para uma nova agenda da cidadania: os direitos humanos, as
questões da igualdade de género e de raça, e as importantíssimas questões do meio
ambiente. O leitor verá o desdobramento na agenda nacional desses temas
da democracia contemporânea.
Deixei para o penúltimo capítulo, o 9, "Estado e crescimento económico", a
discussão mais sistemática sobre as relações entre o Estado e a economia em
época de globalização. Mostro que, a despeito de taxas modestas de crescimento
económico, houve uma mudança de patamar na estrutura produtiva brasileira.
Ressalto o significado que o processo de privatização teve para as mudanças na
organização do aparelho estatal, discuto a questão do investimento estrangeiro e
destaco o papel que o planejamento estratégico desempenhou em meu governo.
Muito do obtido se deveu à redução de custos, à fixação de prioridades e
metas sustentadas em uma concepção de planejamento indutivo, e a parcerias entre
os setores público e privado.
Para reanimar a economia, abalada pela abertura dos mercados e os controles
impostos pela estabilização, inclusive os juros altos, não hesitamos em sustentar
com o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) políticas
de industrialização voltadas para áreas específicas. Só assim se tornou possível
renovar amplos setores industriais e expandir a produção a ponto de, no governo
que se seguiu ao nosso, se atingir números impressionantes na pauta de
exportações.
Diga-se também que incentivamos com convicção as políticas exportadoras a partir
da criação de uma câmara específica e do financiamento da atividade exportadora
pelo BNDES, sem falar no corte dos impostos que recaíam sobre ela e nos acordos
comerciais negociados pelo Itamaraty.
Na área agrícola, resolvemos a dívida agrária, criamos novos instrumentos de
financiamento, induzimos a compra de equipamentos pelo crédito facilitado e, por
fim, após a desvalorização do real, pudemos assegurar melhor competitividade a
nossos produtos. Acrescento que, se não fosse a criação de um setor de produção
de bens de informática e de telecomunicações e não fora a privatização bem-
sucedida nessa área, o país não teria as condições de que passou a dispor para dar
um salto na economia da era da informação.
Clinton, Menem, Blair: diplomacia presidencial e busca de nossos interesses
No último capítulo, o 10, "Política externa: o papel e as viagens do Presidente", trato
da política externa, incluindo o relacionamento pessoal que estabeleci, em nome
dos interesses do Brasil, com chefes de Estado e governo mundo afora - de Clinton
ao Presidente russo Vladimir Putin, do Primeiro-Ministro britânico Tony Blair ao
Presidente chileno Ricardo Lagos, dos reis da Espanha ao grande líder africano
Nelson Mandela. Consoante com a visão sustentada em todo o livro, narro
como substituímos a concepção de política externa baseada na idéia de "autonomia
pela distância" pela busca da "autonomia pela participação".
O mundo globalizado requer dos governos maior empenho na defesa
dos interesses nacionais.
Altera-se a relação entre o interno e o externo, mas não o compromisso com os
interesses fundamentais do país, O desafio da política externa é transformar essa
difícil relação em vantagem estratégica a nosso favor,
Daí a importância da ampliação de nossas relações com a União Européia e a
necessidade de uma redefinição das relações com os EUA. Sempre buscando
preservar nossa autonomia e nossos interesses, sem diminuir a importância para
nossos produtos dos mercados das regiões desenvolvidas.
Foi a partir dessa perspectiva que encaminhamos as negociações da Área de Livre
Comércio das Américas (Alca), Entretanto, a valorização do Mercado Comum do Sul
(Mercosul) e do papel tanto político como económico da América Latina e em
especial da América do Sul continuam a ser os pilares de nossa política externa, O
leitor encontrará, ao longo das páginas desse capítulo, episódios como uma
dramática reunião Brasil-Argentina num hotel de São Paulo em que, a certa altura,
tivemos que intervir - o Presidente Carlos Menem e eu - para desfazer um difícil nó.
Conversamos à parte da mesa de reuniões, nos entendemos e eu próprio redigi, à
mão, o texto do acordo que enfim acertamos. Destaco inclusive como e por que
convoquei a primeira reunião de presidentes da América do Sul, realizada em
Brasília em 2001.
As relações entre os países não se limitam à economia. Muitas vezes as boas
relações econômicas é que são conseqüências de relações políticas.
Prestei também muita atenção a essas últimas. Mostro o papel ativo desempenhado
pelo Brasil na solução do conflito armado entre o Equador e o Peru e na defesa da
democracia em nossa região, e o faço com detalhes. Aliás, essa é a parte do livro
em que há mais referências a situações específicas e a diálogos. Isso não só porque
crescentemente a diplomacia presidencial ganhou fôlego, como porque há
grande incompreensão sobre as viagens presidenciais ao exterior. Penso
que, mostrando diretamente o tipo de relação pessoal que se estabelece entre os
chefes de Estado e governo (e isto é assim no mundo todo), o leitor ganha uma
visão mais humana e ao mesmo tempo concreta de como se constituem as redes
de comunicação e entendimento entre os governantes.
Nos capítulos económicos exponho a importância desse modo pessoal e direto de
relacionamento para obter o melhor para o Brasil. Dentro de limites, naturalmente,
pois nada substitui a boa diplomacia tradicional e, sobretudo, a coesão nacional
para o país ter presença externa forte.
Assim como, se os contatos pessoais ajudam a abrir mercados e a solver
problemas, não são eles que explicam os fluxos de comércio.
Os capítulos do livro não obedecem propriamente a uma ordem cronológica, embora
eu analise processos que vão se desdobrando no tempo. Sempre que possível, situo
historicamente os episódios para que o leitor não se perca em seu emaranhado. Não
sigo, contudo, passo a passo o que foi ocorrendo durante meus dois mandatos. A
exposição antes segue a lógica dos problemas discutidos do que o fio da História. O
encadeamento entre os capítulos é mais suposto que explícito. Escrevi-os deixando
certa autonomia entre eles, de modo que podem ser lidos na ordem que o
leitor preferir. Para facilitar a leitura há repetições, que ajudam a memória e a
contextualização.
Democracia, mercado, paixão e perspectiva
Por fim, antecipando interpretações que farei com maior detalhe ao longo deste livro,
adianto umas poucas considerações de ordem metodológica e valorativa sobre os
acontecimentos históricos.
Depois de aprovada a emenda da reeleição no Brasil, Mário Soares, o grande líder
do Portugal moderno, realizou uma série de entrevistas comigo, que foram
posteriormente publicadas no livro O mundo em português: um diálogo.2 Perguntou-
me, a certa altura, se me consideraria realizado acaso fosse reeleito. Respondi-lhe
que não: só estaria satisfeito se, ao terminar o segundo mandato, pudesse dizer,
sem hesitação, que "o Brasil mudou". Não posso avaliar objetivamente se de fato
houve mudanças e em que medida o país se transformou, nem se as mudanças
alcançaram o ponto de não-retorno. Talvez seja esta a sensação agônica a pagar
por quem se lança na vida pública: o juízo que conta é o da História, e a ele os
personagens não assistem. Quando a grande mestra dos homens sentencia, o
veredicto recai nos mortos.
O recurso disponível para minorar o sentimento de indeterminação que isso causa é
a busca de referências em autores que lidaram com percursos históricos distintos.
Por essa razão, e sem ânimo de comparar senão que de aprender, tratei de me
beneficiar com a leitura de mestres na interpretação dos processos de mudança na
História. Claude Lévi-Strauss, talvez o maior antropólogo contemporâneo, escreveu
que ao começar um trabalho de sociologia ou de etnologia relia o O 18 Brumário, de
Marx.3 Lévi-Strauss tem uma interpretação bastante pessoal do O 18 Brumário. Vê
em Marx o cientista que constrói um modelo, cujas propriedades e diferentes formas
de reação estuda, como em um laboratório; e depois aplica essas observações para
interpretar o que ocorre empiricamente. Concordo que quem quiser escrever sobre
História e política deve ler o livro recomendado. Não sou, porém, tão estruturalista
quanto o mestre francês. Tenho mais pendor para ver como as estruturas se formam
pela ação das pessoas. Por isso acrescentaria à recomendação da leitura de Marx
que se lesse também algum texto de Alexis de Tocqueville.
Os livros mais conhecidos e famosos de Tocqueville, A democracia na América4 e O
antigo regime e a Revolução? são boas fontes de inspiração.
Como contraponto à análise do O 18 Brumário, entretanto, a leitura das Lembranças
de 18486 é a mais indicada. Ambos foram escritos ao calor da hora, sem a
perspectiva do tempo, mas a agudeza de percepção dos autores é extraordinária.
Tudo o que é explicado pelo grande movimento das estruturas da sociedade na
tradição marxista vem esmiuçado na narrativa do dia-a-dia de Tocqueville. Nela, as
ações, pensamentos e omissões dos distintos atores são analisados antes de serem
"acontecimentos históricos". A trama da situação revolucionária na França da
época descrita por Tocqueville abrange os grandes atores que se moviam
nas cúpulas, mas inclui também os sans-culottes encontrados casualmente
nas barricadas de Paris. Embora não acompanhe Tocqueville na visão líberal-
conservadora, admiro-lhe a capacidade de entender o desenrolar dos fatos de 1848.
O quadro de inspiração para entender os acontecimentos históricos ficará completo
se for possível acrescentar a leitura da famosa conferência de Max Weber sobre A
política como vocação,7 na qual o maior sociólogo do século passado analisa os
êxitos e fracassos dos políticos no afã de modificar o curso das coisas. As dez
últimas páginas da conferência expressam à perfeição as angústias dos políticos
conscientes de seu papel. O tema da ética de responsabilidade e da ética de
convicções é exposto magistralmente pelo mestre alemão: "Se fizermos
qualquer concessão ao princípio de que os fins justificam os meios, não
será possível aproximar uma ética dos fins últimos (de convicções) e uma ética da
responsabilidade, ou decretar eticamente que fim deve justificar que meios."
A situação agônica do político, não obstante, permanece. Em contraposição à ética
cristã, por exemplo, ou à ética do amor, de oferecer o outro lado a quem já alvejou
uma face do rosto, o político tem comportamento distinto. À norma de não resistir ao
mal pela força, o político responde que "a proposição inversa é que tem valor: 'o
mal deve ser resistido pela força' ou seremos responsáveis pela sua vitória"
(p. 143).
Daí Weber afirmar, sem contradição com o comportamento ético (mas de uma ética
que mede as conseqüências dos atos), que a violência é instrumento decisivo na
política. Essa característica obriga o político a lidar com as "forças demoníacas",
como ele chama: "Também os primeiros cristãos sabiam muito bem que o mundo é
governado pelos demônios e quem se dedica à política, ou seja, ao poder e força
como um meio, faz um contrato com as potências diabólicas, e pela sua ação se
sabe que não é certo que o bem só pode vir do bem e o mal só pode vir do mal,
mas que, com freqüência ocorre o inverso. Quem deixar de perceber isso é,
na realidade, um ingénuo em política" (p. 147).
Antes de Weber, Maquiavel, como mostrarei no Capítulo 1, propusera uma ética
não-cristã que, mesmo sem substituir esta última, guiaria os passos dos políticos.
Weber ressoava Goethe, cujo Fausto, quase um século antes, trabalhando com o
mal, descobriu que a destruição pode ser criativa. Tomando de empréstimo as
capacidades destrutivas de Mefistófeles, sentiu que existia algo de divino no poder
demoníaco. Se Weber aceita que a violência e o poder participam das artes do
capeta e que o bem (Deus) também criou a capacidade cósmica de destruição, não
chega tão longe quanto o demo, que aconselhava Fausto a afastar qualquer dúvida
moral, lançando nos outros a culpa e eliminando a pergunta inibidora da liberdade
de ação: "deveria fazê-lo?" A questão válida seria outra: "comofazê-lo?"
Weber tinha desprezo pelo político que dá de ombros para as conseqüências de
seus atos, jogando a "culpa" na mesquinhez dos outros ou do mundo, resguardando-
se em sua moral íntima, com as mãos limpas.
Ao contrário, respeitava o homem maduro (não importa se jovem ou velho)
que, em determinada circunstância, decide: "não posso fazer de outro modo" e
assume a respectiva responsabilidade. "Isso", diz nosso autor, "é algo genuinamente
humano e comovente" (p. 151). "Na medida em que isso é válido, uma ética de fins
últimos e uma ética de responsabilidade não são contrastes absolutos, mas antes
suplementos, que só em uníssono constituem um homem genuíno - um homem que
pode ter a 'vocação para a política'" (p. 151).
Foi por vislumbrar em Weber a possibilidade de conciliar realismo (se quiserem,
pragmatismo, sem porém a conotação filosófica) com valores e limites éticos que
transcendem o imediato da circunstância, que em meu discurso inaugural no
Senado, em 1983, incluí a citação que ora reproduzo: "A política é como a
perfuração lenta de tábuas duras. Exige tanto paixão como perspectiva.
Certamente, toda a experiência histórica confirma a verdade, que o homem não teria
alcançado o possível se repetidas vezes não tivesse tentado o impossível. Para
isso, o homem deve ser um líder, e não somente um líder, mas também um herói,
no sentido muito sóbrio da palavra. E mesmo os que não são líderes nem heróis
devem armar-se com a fortaleza de coração que pode enfrentar até mesmo o
desmoronar de todas as esperanças." O verdadeiro político, mesmo que não
alcance aquilo a que se propôs, e que todos se voltem contra ele, encontrará forças
para dizer que "apesar de tudo" fez o que pôde. Só aquele capaz disso, dirá Weber,
tem a verdadeira vocação para a política.
Reli tudo o que estou aconselhando ao leitor. Ainda assim, tenho dificuldades para
compor um painel do Brasil de hoje e compará-lo com o de ontem. Não é tarefa
simples mostrar que existe um Brasil radicalmente diferente do passado e,
conseqüentemente, avaliar minha própria ação.
Não fosse o legado intelectual dos autores referidos anteriormente e de muitos
outros, estaria em condição ainda mais adversa. Consolo-me de minha insuficiência
intelectual para a tarefa proposta, dizendo que talvez não consiga esboçar um painel
convincente das grandes mudanças porque não houve no Brasil uma época de
grandes transformações. Ao dizer isto, porém, lanço uma condenação sumária a
meu próprio esforço e ao de muitos contemporâneos: se eu duvidar da magnitude
das mudanças, que dirão os outros?
Melhor, com menos modéstia, apostar em que algo de fato
mudou significativamente. Algumas transformações importantes se iniciaram antes
de meu governo, outras foram consolidadas por políticas que praticamos. Muitas,
ainda, permaneceram a meio caminho, sem falar daquelas, que não são poucas,
que precisariam ser realizadas para estarmos à altura dos desafios do mundo e que
não pudemos conduzir.
Repito a ressalva: o juízo dos contemporâneos é sempre precário, sobretudo o dos
atores principais. São ténues os limites entre o balanço do realizado e a
racionalização para justificar o que deixou de ser, do quanto se pôde caminhar, do
que se logrou, apesar das dificuldades. Portanto, neste livro não me arriscarei
propriamente a apresentar um balanço de resultados, que seria pretensioso e levaria
à tentação de argumentar em causa própria. Darei mais opiniões do que extrairei
conclusões. Navegarei mais no subjetivismo dos projetos e da vontade intencionada
do que em dados comprobatórios.
Durante os anos em que exerci a Presidência, disse várias vezes, de
modo angustiado, que não sabia se meu governo marcava um início ou se seria um
interregno. Que as mudanças no mundo e as nossas próprias estavam a clamar por
um reajuste de muita coisa, eu não tenho dúvidas. Será, entretanto, que as
modificações introduzidas na condução das políticas e na estrutura do Estado estão
- ou tornaram-se - enraizadas na sociedade com força suficiente para impedir
retrocessos? Até hoje me é difícil avaliar.
É quase impossível separar as modificações conseqüentes de iniciativas do governo
e o que se impôs de fora, fruto das novas formas de atuação das empresas e dos
agentes económicos em tempos de globalização e da economia da informação. Se
para destrinchar essa realidade tão intricada eu pudesse refazer, ainda que
palidamente, o itinerário de Marx, repetiria o que tentei fazer com o sociólogo e
historiador chileno Enzo Faletto, nos anos 1960, para explicar as "situações de
dependência" na América Latina.8 Partiria das regras de funcionamento da
economia globalizada - das determinações gerais, abstratas, no linguajar marxista -,
e reconstituiria como elas foram sentidas, adaptadas ou transformadas em cada
grupo relativamente homogéneo de países. Analisaria as relações dinâmicas entre
as forças sociais locais e as internacionais. Examinaria como se foram introduzindo
adaptações e inovações na forma de vinculação de cada grupo homogéneo de
países à economia global, como se construíram percursos históricos específicos,
embora sujeitos aos condicionantes gerais.
Ou seja, a moldura das transformações é dada pela globalização e pela economia
da informação. Entretanto, há várias maneiras para cada país se inserir nela ou dela
se defender. As "respostas" podem ser criativas, umas mais vantajosas do que
outras. E cada resposta depende tanto de circunstâncias dadas (como a localização
do país, sua população e dotação de recursos naturais) quanto de decisões
políticas em cada sociedade. Estas possuem graus diversos de desenvolvimento
econômico e cultural, que propiciam melhores ou piores alternativas de adaptação
às novas circunstâncias. Ou seja, não há "receitas" prontas para o desenvolvimento
de um país. Há percursos históricos que não se limitam a reproduzir
mecanicamente o "modelo" estrutural global.
Notas de roda pé deste trecho Para pular este trecho busque por
1 Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, apresentação e cronologia
de Raymundo Faoro, posfácio de Evaldo Cabral de Mello, textos de Machado
de Assis e José Veríssimo Baptista Pereira, 5a ed., Rio de Janeiro, Topbooks,
1997,2 v.
2 Mário Soares e Fernando Henrique Cardoso, O mundo em português: um diálogo,
São Paulo, Paz e Terra, 1998.
3 Karl Marx, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, apresentação de Octavio lanni,
2a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974 (Rumos da Cultura Moderna, 19).
4 Edição recente desta obra em dois volumes, o primeiro de 1836, o segundo de
1840, é Alexis de Tocqueville, A democracia na América, São Paulo, Martins Fontes,
2005 (volume I) e 2000 (volume II).
5 Edição recente desta obra de 1856 é Alexis de Tocqueville, LAncien regime et Ia
révolution, Paris, GF, 1988.
6 Edição recente desta obra de 1851 é Alexis de Tocqueville, Lembranças de 1848:
as jornadas revolucionárias em Paris. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
7 Max Weber, Ensaios de sociologia, Rio de Janeiro, Zahar, 1963, tradução de
Waltensir Dutra, cap- 4, "A política como vocação".
8 Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso, Dependência e desenvolvimento na
América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970. O trabalho mereceu várias edições e
reimpressões em diferentes idiomas e países. Até a publicação deste livro, a mais
recente edição, revisada, com novo prefácio e o post-scríptum "Estado e processo
político na América Latina", era da editora Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2004.
Fim das notas
CAPÍTULO 1
Fortuna e alguma virtú
O deus avulso do imprevisto
Primeiro, vamos às surpresas da vida política, começando por mim mesmo.
Cansei de ler que "desde pequenininho" queria ser Presidente, se não pudesse ser
Papa... A verdade é que passei boa parte da vida na universidade. Aos 37 anos era
professor catedrático de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), tendo
feito antes, na própria USP, as teses de mestrado, doutorado e livre-docência em
Sociologia. Também havia sido diretor-adjunto do Instituto Latino-Americano e do
Caribe de Planificação Econômica e Social (Ilpes), organismo vinculado à
Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), com sede em Santiago do
Chile, por sua vez ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), e professor de
Sociologia na Universidade de Paris, em Nanterre. Não teria tido tempo para cogitar
qualquer atividade profissional fora da vida acadêmica.
A insensatez do regime autoritário me levou a sair do Brasil em 1964.
Depois de haver obtido um habeas corpus no Superior Tribunal Militar (STM) para
cancelar uma ordem de prisão expedida sob o pretexto de que eu incitara à
"subversão" e de ganhar, em 1968, um concurso de cátedra, foi de novo o regime
autoritário que me aposentou pelo Ato Institucional número 5 (AI-5) e,
paradoxalmente, me trouxe à vida política. Em 1969, junto com outros professores
perseguidos, ajudei a fundar em São Paulo o Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (Cebrap).1 Nos anos 1970, intercalando com cursos que dei na
França, na Grã-Bretanha e nos EUA, preguei continuamente em favor da
democracia.
Escrevi em todo jornal ou publicação de oposição que pude (Opinião, Movimento,
Argumento) e, quando o clima desanuviou, na Folha de São
Paulo, Participei de inúmeros atos públicos, principalmente da SBPC.
Com colegas do Cebrap, ajudei o MDB a elaborar seu programa para a campanha
eleitoral de 1974, e dom Paulo Evaristo Arns a difundir sua crítica social (basta ver o
livro São Paulo 1975: crescimento e pobreza).2 Disso decorreu que, em 1977, fui
lançado candidato ao Senado pelo MDB de São Paulo, para as eleições do ano
seguinte, por um grupo de intelectuais de esquerda.
Na ocasião, nem eu nem os demais companheiros sabíamos sequer onde
se localizava a sede do partido. Eu mantinha escassas relações com o
MDB paulista. Tinha contatos com o deputado estadual Alberto Goldman e
os federais Ulysses Guimarães e João Pacheco e Chaves. Relacionava-me
mais com o MDB gaúcho, do deputado estadual Pedro Simon, e com os líderes que
ocasionalmente davam guarida às vozes da oposição intelectual. Eu dividiria a
legenda do MDB com o senador Franco Montoro, candidato favorito à reeleição.
Tratava-se de fazer uma pregação oposicionista e denunciar novamente o arbítrio,
mesmo porque eu havia sido aposentado compulsoriamente e portanto, de acordo
com o AI-5, era inelegível, o que levaria à cassação do registro da candidatura.
Como se previa, houve as impugnações. Para surpresa de todos, porém, duas
semanas antes do dia das eleições - realizadas a 15 de novembro de 1978 -, o
Supremo Tribunal Federal (STF) anulou as decisões anteriores da Justiça Eleitoral
contrárias ao registro de meu nome, e desta forma me tornei candidato efetivo.
Arnaldo Malheiros, meu advogado, mostrou o disparate da perda de direitos
políticos sem prazo definido, pois os cassados o foram por dez anos e os
aposentados pelo AI-5, como eu, para sempre. Mais surpreendente ainda, o relator
que acolheu no STF a argumentação foi ninguém menos que o professor João
Leitão de Abreu, figura importante do governo do general Emílio Garrastazu
Medici (1969 - 1974) e que, depois de aposentado como ministro do tribunal, voltaria
a exercer papel semelhante no governo do general João Baptista Figueiredo (1979-
1985).
Também como previsto, fiquei em segundo lugar na legenda do MDB, com
o senador Montoro sendo reeleito. Mas, na sublegenda - recurso de que se valeu a
legislação eleitoral do regime militar para abrigar, nos dois partidos permitidos,
diferentes correntes internas - obtive número superior de votos aos do candidato do
partido adversário, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Pelas regras de então, o
suplente de Montoro seria eu, e não quem se inscrevera na sublegenda dele,
o saudoso José Roberto Magalhães Teixeira, na ocasião vice-prefeito e, no futuro,
prefeito de Campinas (SP). O curioso é que, quando saí candidato, não sabia disso.
Daí por diante, ganhei um lugar ao sol na política. Passaram a me intitular "senador
suplente" e galguei posições no MDB paulista. Cheguei a ser presidente do partido
em São Paulo quando ele se reorganizou, por força de lei autoritária, mudando o
nome para PMDB. O resto é história razoavelmente conhecida. Montoro se elegeu
governador em 1982, e em 1983 assumi sua cadeira no Senado. Antes da
campanha de 1982, eu estava lecionando nos EUA, no Departamento de Sociologia
da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Quase ao final do período letivo, o
diretor do Departamento, professor Robert Bellah, especialista em Sociologia
das Religiões, me convidou para tomar chá. Para minha surpresa, ofereceu-me um
posto permanente em Berkeley para substituir ninguém menos do que o grande
filósofo Jiirgen Habermas, que voltava para a Alemanha.
Encabulado pela desproporção intelectual entre quem partia e quem era convidado a
permanecer, respondi brincando:
- Só se o senhor me oferecer também uma cadeira no Senado americano, porque
sou suplente de um senador que deverá ganhar as eleições para o governo de São
Paulo.
Conto o episódio pelo pitoresco e para reiterar o papel do acaso, da sorte, da
fortuna, palavra latina que tem o mesmo sentido em italiano e em português: tornei-
me senador sem jamais haver tido este propósito seriamente.
Anos depois, em 1985, com a volta das eleições diretas para prefeitos nas cidades
consideradas "área de segurança nacional", inclusive as capitais, concorri à
Prefeitura de São Paulo. O candidato natural, Mário Covas, prefeito em exercício
nomeado por Montoro, conforme as regras de então, fora impedido de disputar por
uma manobra política no Congresso, que vedou aos titulares das prefeituras o
direito de se candidatar. Favorecia-se assim a candidatura do ex-Presidente
Jânio Quadros pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em coligação com o Partido
da Frente Liberal (PFL), com a eliminação do competidor mais forte da oposição,
Mário Covas. Resultado: o governador Montoro, nosso líder político,
levou-me à disputa.
Perdi por poucos votos (cerca de 2%) num universo de 4,8 milhões de eleitores. Há
várias especulações sobre as razões da derrota e uma só verdade: não fui capaz de
convencer o povo de que seria bom prefeito...
Não é certo que eu tenha proclamado na TV minha suposta condição de ateu, o que
me teria levado a perder. O editor-chefe da Folha de São
Paulo, Boris Casoy, me dirigiu uma pergunta que lhe pareceu oportuna sobre minhas
convicções religiosas. Respondi que se tratava de questão de foro íntimo, sem
utilidade para avaliar o desempenho de um prefeito, tal como registrado pela própria
Folha, Inútil: no dia seguinte, a cidade se enchia de panfletos contra o "ateu".
Pior, os adversários utilizaram uma entrevista que eu havia concedido à jornalista
Miriam Leitão para a revista Playboy3 meses antes, e, deturpando o sentido de uma
resposta, qualificaram-me como usuário de maconha. Minha inocência política era
tamanha que não percebi o potencial devastador do boato. Parecia-me tão
descabido alguém acreditar na versão que não imaginei que a história "pegasse".
Pois pegou. E seu efeito demolidor superou o do suposto ateísmo. Um dia, na
periferia de São Paulo, na Cidade Tiradentes, em uma quasefavela, uma senhora
me perguntou:
- É verdade que o senhor vai distribuir maconha no lanche das escolas?
Política, principalmente eleitoral, é assim mesmo. Há momentos em que vale tudo e
nos quais se acredita em qualquer coisa.
A outra "explicação" da derrota tem a ver com uma foto publicada no dia das
eleições, 15 de novembro de 1985, uma sexta-feira, na qual apareço sentado na
cadeira de prefeito, antes da hora. É evidente que, por numerosos que tivessem
sido os leitores da reportagem, não haveria tempo de influir no voto. Mas a foto
prova que eu merecia perder... por ingenuidade. Estabeleci um acordo com
repórteres da revista Veja São Paulo para ser fotografado nessa situação para o
caso de vitória, pois as eleições estavam extremamente apertadas e, além de tudo,
se a revista quisesse, como pretendia, trazer o novo prefeito na capa, não
haveria como fotografá-lo a tempo no gabinete oficial. (Veja São Paulo fechava sua
edição na sexta-feira da eleição.) Num final de manhã, a revista aproveitou minha
presença numa solenidade na então sede da Prefeitura, no Parque do Ibirapuera, e
executou o trabalho. Outros fotógrafos também clicaram a cena, assumindo o
mesmo compromisso da revista. A Folha de São Paulo, porém, rompeu-o e publicou a
foto em primeira página.
Pior teria sido se outro fotógrafo, com o qual fiz outro acordo, não me tivesse
devolvido os negativos de uma foto, feita na sala de meu apartamento, na qual eu
aparecia quebrando uma vassoura, símbolo do populismo janista, que se dizia
varredor de todo o lixo da corrupção.
Não fosse a integridade do fotógrafo - cujo nome prefiro não divulgar - e essa foto
talvez me tivesse causado um prejuízo político ainda maior.
Nunca ninguém soube dela até a publicação deste livro, Grave: despreparo para a
aspereza da luta política. Pedágio pago por um professor catapultado à arena cheia
de feras. Perdi, é o que conta. E a derrota me ajudou na futura trajetória política.
Os primeiros dias após a derrota, porém, foram amargos. Janistas iam até a porta do
prédio onde eu e minha família morávamos, à rua Maranhão, no bairro de
Higienópolis, para buzinar. Viajamos, mais tarde, para nossa casa de campo em
Ibiúna, a 70 quilómetros de São Paulo, para curtir a derrota. Lá, vi Jânio Quadros na
TV, caricatural, desinfetando a cadeira de prefeito na qual me sentara. Jânio,
raposa talentosíssima, talvez tenha percebido o que nem eu sabia: melhor
esconjurar-me a tempo para não dar trabalho, em outras eleições, como dei a
muitos adversários,
A derrota ensina. O ex-governador Leonel Brizola um belo dia apareceu em minha
casa. Dele ouvi o consolo: também perdera uma eleição para prefeito de Porto
Alegre, me disse, e foi a adversidade que lhe deu força para, perdendo a arrogância
- o juízo é dele -, ser mais realista e buscar energia para novas caminhadas. Será
verdadeira a tese? É possível. O fato é que desde então, em todas as partidas
políticas em que me meto, e não só nas eleitorais, entro sempre supondo
a possibilidade da derrota. Quando ganho, naturalmente me sinto gratificado, mas
nunca o suficiente para esquecer o quanto custou a vitória; quando perco, durmo
com a esperança do amanhã.
35
Eu estava por baixo. Hélio Jaguaribe, fiel amigo e intelectual generoso, procurou-me
no ano seguinte, 1986, pedindo que não me afastasse da política nem concorresse
novamente ao Senado, pelas poucas chances de vitória, mas à Câmara dos
Deputados. Concordei com ele, até que apareceram as primeiras pesquisas de
intenção de voto para as eleições.
Mário Covas e eu, referendados candidatos pela convenção do PMDB estadual,
éramos imbatíveis na disputa das duas vagas de senador por São Paulo. Obtive 1
milhão de votos a mais do que o candidato vitorioso para o governo do estado.
Assim é o eleitorado, que pratica uma espécie de "justiça compensatória": quem
perde hoje, se não se desmoralizar, tem boa chance de ganhar amanhã. Não é sem
razão que os políticos profissionais são sempre candidatos a alguma coisa. Ganhar
é melhor, mas perder não chega a ser uma tragédia. E a derrota deve ser assumida
plenamente pelo candidato derrotado. Foi o que procurei fazer quando perdi a
Prefeitura de São Paulo. Ofereci um coquetel em meu apartamento e, depois, reuni
na sede do PMDB os líderes do partido, inclusive os que apoiaram o adversário - já
na época o PMDB abrigava diferentes correntes em praticamente todos os estados,
e em São Paulo certos setores trabalharam abertamente para a candidatura Jânio.
Agradeci a todos os esforços feitos e assumi a derrota. De nada adianta buscar
culpados nem guardar ressentimentos, e menos ainda discutir lealdades. O
melhor cimento das lealdades é a vitória. Escrevi mais do que imaginava a respeito
de fatos que se passaram comigo há tanto tempo. Mas, uma vez que o assunto até
agora é a imprevisibilidade da vida política, vale a pena adicionar algumas
observações sobre meu relacionamento com o Presidente Itamar Franco.
Minhas relações com Itamar são um capítulo à parte. Conhecemo-nos no Senado,
em 1983. O senador Itamar (PMDB-MG), como eu, integrava a oposição ao governo
do Presidente João Figueiredo. Nacionalista extremado e contendor permanente na
política mineira, ele às vezes obstruía uma sessão por várias horas. Ou então
infernizava os ministros da área económica cobrando expressões inglesas não
traduzidas em relatórios e discursos.
Recordo-me uma vez, sendo eu líder do PMDB, a feroz obstrução que ele moveu à
aprovação de um aumento de 1% no Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS), A medida beneficiaria, entre
vários, o governador mineiro Tancredo Neves e, embora fossem ambos do mesmo
partido, não convinha ao jogo político do senador. A sessão durou até as três da
madrugada para vencer a obstrução de Itamar. Enquanto proferíamos nossos
discursos divergentes, quem de nós estivesse à espera de réplica aproximava-se do
outro e, em voz baixa, fazia comentários bem-humorados.
Foram assim nossas relações como senadores, De respeito e bom humor.
Até então, contudo, não tínhamos amizade pessoal. Jamais saíramos para almoçar
ou jantar juntos ou para conversar sobre política.
Itamar surpreendeu todo mundo quando, no início de 1989, surgiu como candidato a
Vice-Presidente na chapa de Fernando Collor de Mello.
Recordo que Covas e eu fomos de Brasília a Belo Horizonte e nos encontramos
com Itamar no avião. Nós dois acreditávamos que ele apoiaria Covas, candidato do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) à Presidência. Mas tinha ido a
Minas firmar sua candidatura no partido criado por Collor, o Partido da Renovação
Nacional (PRN).
Três anos e pouco depois, em 1992, dias antes da abertura na Câmara do processo
de impeachment de Collor - que ocorreria no dia 28 de setembro - , procurou-me o
senador Jutahy Magalhães (PMDB-BA), este sim amigo de Itamar. O Vice-
Presidente queria falar comigo. Fui ter com ele no anexo do Palácio do Planalto,
gabinete da Vice-Presidência. A seu modo matreiro, perguntou-me o que acreditava
que ia acontecer.
Eu tivera uma reunião a dois com o ex-Presidente e senador José Sarney (PMDB-
AP), na sala dos arquivos do Senado, para que não fôssemos vistos.
Sarney sempre mencionava o "Sacro Colégio dos Cardeais" ou seja, um grupo de
políticos de vários partidos que, por sua experiência e responsabilidade, têm uma
visão institucional. Na hora das crises, considerava, é a esses que se deve apelar.
Nas nossas avaliações, nada mais sustentava o governo Collor, dados
os escândalos. Não estive na primeira linha do impeachment até ler a explosiva
entrevista do irmão caçula do Presidente, Pedro Collor, à revista Veja? denunciando
com todas as letras um esquema de corrupção que chegava ao Palácio do Planalto.
Temia as conseqüências institucionais da deposição de um Presidente. Utilizei
mesmo uma frase de efeito, que no entanto se demonstrou incorreta:
"Impeachment é como bomba atómica, serve para dissuadir, mas não deve ser
usada." Àquela altura, diante dos fatos, não restavam condições morais para
sustentar outro caminho que não o afastamento de Collor. Sarney era da mesma
opinião e até mais veemente. E tinha informações sobre a reação - neutra -
das Forças Armadas. Elas seguiriam a Constituição. Relatei tudo a Itamar, que me
perguntou:
- E seus amigos em São Paulo?
Nem sei bem a quem ele se referia, mas o fato é que São Paulo parecia ser para
Itamar uma espécie de buraco negro. Disse-lhe que havia desconfianças quanto à
linha que ele adotaria caso assumisse o Planalto, que o tinham em geral como
ultranacionalista e "atrasado".
De rompante, perguntou-me:
- Você acha que eu sou ingénuo?
- Claro que não - respondi. - Mas teimoso você é, e muito.
Assegurou-me que teria um comportamento responsável e autorizoume, depois que
sugeri, a dar uma entrevista dizendo isso. Foi o que fiz no Jornal da Tarde de 19 de
setembro de 1992.
A partir desse dia, até o final do governo, Itamar Franco manteve as
melhores relações comigo. Tornamo-nos amigos. Certo dia, logo depois
desse diálogo e de minha entrevista ao Jornal da Tarde, conversávamos
sobre o futuro Ministério, na cozinha do meu apartamento, no prédio funcional do
Senado, na Superquadra Sul 309 (SQS 309, como se diz,
numa espécie de código de filmes de espionagem que é utilizado para localizar os
edifícios em Brasília). A determinada altura, tomando café,
Itamar me perguntou se aceitaria ser ministro das Relações Exteriores.
Disse-lhe, como de praxe, que o convite não era necessário, mas que, se ele assim
desejasse, aceitaria. E, para dizer a verdade, fiquei bem satisfeito com o cargo.
Tivemos muitas conversas sobre o Ministério. Na busca de um ministro da Fazenda,
por exemplo, tomei a iniciativa de trazer para conversar com Itamar em meu
apartamento, separadamente, o deputado José Serra (PSDB-SP), economista de
nomeada com experiência na vida pública e meu amigo desde os tempos do exílio
de ambos no Chile, e um empresário muito versado em economia e preocupado
com questões nacionais, Paulo Cunha, dirigente do Grupo Ultra, gigante da área de
química e petroquímica. Volta e meia eu perguntava ao Presidente sobre
o Ministério da Educação (MEC), o que levou Itamar à convicção de que
eu ambicionava comandá-lo. Expliquei-lhe que não, que fora a vida toda mais
pesquisador do que propriamente professor e não tinha sequer uma visão
aprofundada dos problemas educacionais. Apenas desejava saber quem seria o
ministro por considerar indispensável que não fosse um político clientelista. Itamar
disse que já tinha o nome, não o revelou, mas cumpriu o prometido. Nomeou o
professor Murílio Hingel, que havia trabalhado com ele durante sua gestão como
prefeito de Juiz de Fora (MG), entre 1967 e 1971.
As conversas decisivas sobre a formação do Ministério - que deveria ser de "união
nacional", só não sendo assim ao pé da letra porque o Partido dos Trabalhadores
(PT) não aceitou participar - se deram na casa de Maurício Corrêa, senador do
Partido Democrático Trabalhista (PDT) pelo Distrito Federal. A última ocorreu no
gabinete da Vice-Presidência, às vésperas do afastamento de Collor por resolução
da Câmara, que se daria a 29 de setembro daquele 1992 - afastamento ainda
provisório, até que o Senado julgasse o impeachment, o que só ocorreu a 29 de
dezembro.
A reunião foi dramática. Faltava escolher o ministro da Fazenda. Eu havia perdido a
indicação de José Serra, que Itamar e os senadores nordestinos não aceitavam -
Serra, durante a Constituinte, tinha sido acusado por políticos do Nordeste de
defender interesses específicos de São Paulo no capítulo tributário. O PMDB
paulista, com o ex-governador Orestes Quércia à frente, proporia um nome, mas o
dia passava e nada de chegar a indicação. O senador Humberto Lucena (PMDB-PB)
achava que deveria ser eu. Horrorizado com a hipótese, que me afastava
do Itamaraty para mares nunca dantes navegados, lembrei o nome do embaixador
Rubens Ricupero, versado em economia e veterano de negociações internacionais
nessa área. Itamar me autorizou a consultá-lo pelo telefone, mas a resposta foi
negativa.
Nesse dia notei qualquer coisa de estranho no semblante dos ministros
da Aeronáutica, brigadeiro Sócrates Monteiro, e da Marinha, almirante Mário César
Flores, com os quais cruzara nos corredores da Vice-Presidência.
No final da tarde, sem acordo quanto à pasta da Fazenda, o futuro Presidente pediu
que ficássemos com ele, se não me falha a memória, Pedro Simon (PMDB-RS), que
viria a ser líder do governo no Senado, os
senadores Maurício Corrêa, Alexandre Costa (PFL-MA), Jutahy Magalhães e eu, e
possivelmente Henrique Hargreaves, amigo de infância de Itamar, experiente
funcionário de carreira da Câmara dos Deputados e ex-subchefe da Casa Civil do
governo Sarney (1985-1990). Todos nós, com exceção de Jutahy, seríamos
nomeados ministros.
Passou-me uma nota que recebera do gabinete de Collor e me pediu que a lesse
para todos. Tratava-se de uma requisição de um contingente de segurança para o
Presidente Collor durante o período de afastamento.
Diante do que Itamar nos comunicou que demitiria todos os ministros militares e
nomearia outros, diretamente de sua confiança. Acreditava que o pedido de Collor
revelava uma disposição de resistir a um eventual impeachment.
O gesto do Presidente explicou o comportamento dos militares com os quais havia
cruzado, até porque com um deles, o almirante Flores, eu conversara sobre sua
possível permanência no Ministério da Marinha, não só pela admiração que lhe
tinha (e tenho), mas porque o futuro Presidente compartilhava meus sentimentos. Os
ministros militares, porém, tinham sido informados, instantes antes daquele
encontro fortuito num corredor, de que deixariam o governo.
Ocorreu forte constrangimento, principalmente por parte do senador Simon, que
manifestou desagrado pela decisão surpreendente e não discutida de antemão
conosco. Não houvera uma combinação explícita de que nosso grupo deveria
opinar sobre os principais passos do futuro Presidente, mas isso parecia-nos um
pressuposto, já que quase todos seriam ministros, eram ex-colegas de Itamar no
Senado e vinham sendo consultados por ele para a formação do futuro governo. O
Presidente, porém,
atalhou, taxativo:
- É assim que eu atuo e ponto final.
E é isso mesmo. Quem imaginar que o doutor Itamar Franco é ingénuo ou não dispõe
de "vontade política", engana-se. Se nem sempre o rumo que persegue é claro para
os demais e parece ziguezagueante, é porque esta é sua prática política. E é
inegável que tem "faro", não obstante a lógica do comportamento esteja longe de ser
cartesiana. No caso da dispensa dos ministros militares, não havia motivo para
preocupações. As Forças Armadas tiveram uma conduta irrepreensível durante o
processo de impeachment. Itamar queria somente mostrar autoridade.
À noite informou-nos o nome do ministro da Fazenda, alguém que
ninguém esperava: o deputado do PFL Gustavo Krause, ex-prefeito do Recife e ex-
governador de Pernambuco.
Foi em circunstâncias semelhantes (por isso essa longa digressão) que Itamar fez
de mim ministro da Fazenda em maio de 1993. Como ministro das Relações
Exteriores, eu estava em campanha pela recuperação do prestígio internacional do
Brasil. Tarefa árdua. Com a inflação nas nuvens, por mais que dissesse (e fosse
verdade) que os números da economia no setor privado eram bons, quem
acreditaria? Recordo-me, entre cenas que me vêm à memória, do rosto de espanto e
descrença de empresários chilenos (e olhe que eles ainda não tinham tanta
confiança na própria economia como passariam a ter anos depois) diante
dessa afirmação, num encontro de que participei em Santiago quando chanceler.
Visitei vários países nessa pregação. Nesse maio de 1993 viajei ao Japão para
tentar refazer laços abalados pela administração de Fernando Collor de Mello (1990-
1992) e sua ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello. Na ida estive em
Washington, com o secretário de Estado americano, Warren Christopher, que me
alertou sobre "compra de material russo para fabricação de mísseis pelo Brasil" -
assunto do qual nem eu nem o Presidente Itamar sabíamos.5 Respondi,
ironicamente, que só se fosse com financiamento deles, americanos, dada a
quebradeira dos dois países. Christopher ficou um tanto desconcertado e não soube
o que responder. Segui então para o Japão, onde consegui um aumento de 1 bilhão
de dólares no valor do seguro às exportações.
Voltei contente, não mais via Washington, mas via Nova York. Na noite de 19 de
maio fui jantar na casa do embaixador brasileiro junto à ONU, Ronaldo Sardenberg,
quando, na hora do brinde (feito à moda japonesa, no início da refeição), a esposa
do ministro, embaixatriz Célia, me pediu para atender ao telefone.
Era o capitão-de-corveta António Carlos Passos de Carvalho, ajudante-de-ordens,
que me passou o Presidente Itamar. Este me perguntou, brincando, se eu estava
sentado ou em pé e colocou a questão:
-Você aceita ser ministro da Fazenda?
Respondi que jamais pretendera a posição, que não era economista, e, sobretudo,
reiterei que, com tanta troca de ministro da Fazenda, não dispunha mais de
argumentos para convencer no exterior de que tudo ia bem
no Brasil.
De fato, seria, como já disse, a quarta troca em apenas sete meses de governo.
Itamar relatou-me problemas com o ministro Eliseu Rezende, com quem ele se
avistaria naquela mesma noite. Havia uma acusação de que a empreiteira Norberto
Odebrecht tinha pago a hospedagem de Eliseu em Washington durante uma viagem
feita antes de ele assumir a Fazenda.
Insisti com o Presidente em que Eliseu vinha fazendo um esforço enorme para, pelo
menos, saber a quantas andavam as contas públicas, e que o melhor seria mantê-
lo. Meu nome surgira como possível alternativa porque, mesmo do Itamaraty, eu
influenciava algumas decisões económicas, participando, por exemplo, da
discussão sobre a fixação dos preços mínimos nos leilões de privatização, sem
contar que havia tido a oportunidade de intervir numa reunião no Palácio da
Alvorada, a residência oficial do Presidente da República, em que se discutira
o próprio programa do ministro da Fazenda. Acrescentei:
- Não estou aí no Brasil. Sei pelo noticiário, que acompanhei com apreensão no
Japão, que sua situação é difícil. Não gostaria de faltar com minha solidariedade,
mas, por favor, insista para que Eliseu permaneça no Ministério.
Voltei à mesa preocupado. Todos se deram conta. Ao final do jantar, novamente a
embaixatriz me avisou que o ajudante-de-ordens telefonara para dizer que o
Presidente não precisava mais falar comigo. Fui dormir aliviado. Na manhã
seguinte, desde familiares até o secretário-geral do Itamaraty, o embaixador Luiz
Felipe Lampreia, me chamaram do Brasil para dizer que eu fora nomeado ministro
da Fazenda. A primeira pessoa que me ligou foi minha mulher, Ruth. Não queria
acreditar quando lhe disse que havia um engano, pois eu ainda não dera resposta
ao Presidente. Ela,
42
como meus filhos Paulo Henrique, Luciana e Beatriz e também meus
amigos, achava que seria uma insensatez aceitar o Ministério da Fazenda.
Somaram-se, portanto, as características pessoais do Presidente Itamar (sua
aparente impulsividade, que na verdade sempre tem um cálculo por trás), sua
confiança em mim e eventuais qualidades minhas para enfrentar adversidades (à
minha maneira, dando impressão de suavidade)
para, ainda uma vez, sem cálculo e sem astúcia ex-ante, ir cumprindo minha
vontade "desde pequenininho" de chegar a ser Presidente...
Só que, na época, a maioria dos políticos, jornalistas e empresários tomou a
nomeação como sendo de alto risco. Eu também. O jurista e cientista político Celso
Lafer, que ocuparia dois diferentes ministérios em meu governo - Indústria e
Comércio e Relações Exteriores - me recordou um trecho precioso de Machado de
Assis, em Esaú e Jacó, capítulo 65, onde se lê: "Conte com as circunstâncias que
também são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma espécie de
deus avulso ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo
na assembléia dos acontecimentos." Eu estava mais próximo da fogueira (e não das
vaidades) do que do outeiro da Glória.
Uma digressão teórica
Estendi-me na narração desses episódios porque, além do eventual valor histórico,
sustentam a idéia de que a fortuna, ou a sorte, às vezes, precede a vírtà,6 e que o
empenho em objetivos pessoais é menos importante do que o "abraçar uma causa".
Seria enganoso, entretanto, imaginar que as carreiras políticas, os êxitos eventuais,
as mudanças que se consegue obter, decorrem de "mero acaso". Não existe,
tampouco na política, como na
visão terra-a-terra sobre os mercados, a mão oculta que conduz a ação em favor do
bem comum. E nem têm tanto peso as razões que a própria razão desconhece, à
maneira de Pascal.
Na realidade, fui treinado para exercer papéis de liderança política, mesmo sem ter
muita consciência disso. São muitos os caminhos para obter sucesso na vida
política. É só ver a trajetória de Lula, tão diferente da minha, mas que acabou
levando-o à Presidência em 2002 com enorme votação. Há também quem assuma o
comando de um país sem que a história pessoal explique muita coisa. E outros há
que jogam fora a própria história. Não é o caso de dar nome aos bois. Cada leitor
escolha o personagem que lhe pareça caber no figurino. Quem sabe cada um de
nós que exerce liderança possa se encaixar melhor em um ou outro
percurso, dependendo do momento de nossas vidas. Certamente, contudo,
existe parte de virtü em cada caso, e não mero acaso.
A discussão sobre as qualidades necessárias para o exercício da liderança é
grande, variável e antiga.7 Ela envolve aspectos complexos da ética e da moral e
não cabe aprofundá-las neste livro. Faço umas poucas considerações sobre esses
temas para tornar mais claro o que quis dizer quando me referi à noção de virtú. Em
Maquiavel ela quer dizer menos "virtude", no sentido moderno da palavra, do que a
capacitação para o exercício do governo. E é sabido também que o
arquicitado florentino prezava antes a disposição do governante para fazer
o necessário a sua manutenção no poder do que sua fé no Pater Noster.
Embora a frase a ele atribuída de que "os fins justificam os meios" não seja de sua
lavra nestes exatos termos, os conselhos que dá ao Príncipe no célebre capítulo
XVIII de sua
Nota: 7 Na antiguidade clássica, tanto Aristóteles como Platão discutiram as qualidades
requeridas para alguém ser líder. Platão, na República, fala do guardião do Estado
como alguém que, além de sua disposição natural - são palavras dele -, se prepara,
pela educação, para mandar. Aristóteles sublinha mais ainda os atributos naturais e
aceita a idéia, hoje inaceitável, de que desde o nascimento uns são fadados a
obedecer, outros, a mandar. Um dos autores contemporâneos mais citados na
matéria, o cientista político alemão Robert Michels, mantém a noção de que algumas
pessoas têm qualidades ou atributos de liderança que as capacita até mesmo a
"frearem as massas". Hoje em dia ninguém em sã consciência mencionaria esses
atributos sem ressaltar o contexto social específico em que eles se desenvolvem e
os recursos disponíveis - amplo senso - para sua efetivação. Fim da
nota.
44
obra mais conhecida não deixam margens para dúvidas quanto a seu realismo,
digamos, "amoral".
O italiano Norberto Bobbio, como sempre o mais lúcido e claro dos pensadores
contemporâneos da política,8 assinala que a licença moral que Maquiavel dava aos
poderosos era para os que realizassem "grandes feitos" ou, mais literalmente,
"grandes coisas".9 Os governantes capazes dos grandes feitos não se obrigariam
sequer a cumprir os pactos e a palavra empenhada. Pela "saúde da pátria" nos
momentos das grandes decisões, seria necessário ter força e astúcia
(simbolicamente, agir como o leão e como a raposa), e dissimular. Os resultados é
que contariam, não os princípios. Embora aceitando que o Príncipe deve se manter
o quanto possível no caminho do bem, agindo em conformidade com a caridade, a
fé, a clemência e a religião, Maquiavel reitera que ele deverá enveredar pelo mal
quando for preciso. E justifica sua visão descarnada do poder e dos meios para sua
manutenção, asseverando que os governantes agem dessa maneira porque os
homens não são bons. Se todos fossem bons, os príncipes não precisariam ser
dissimulados e dissimuladores. Não sendo assim, "na ação de todos os homens -
e principalmente nas do Príncipe, contra o qual não existe tribunal a que se possa
recorrer - o que importa é o resultado."10
Os problemas colocados por esse tipo de interpretação são imensos. No fundo volta-
se à relação entre moral e política. Maquiavel, de certo modo, não renega a moral
cristã, apenas mostra que a política obriga,
Nota: 8 Para uma síntese de sua obra, ver Norberto Bobbio, Teoria geral da política (A
filosofia política e as lições dos clássicos), Rio de Janeiro, Campus, 2000. Tradução
de Daniela Beccaccia, edição organizada por Michelangelo Bovero.
9 Ver Nicolau Maquiavel, O Príncipe, tradução de Lívio Xavier, Rio de Janeiro,
Ediouro, 2002 (Introdução "A originalidade de Machiavelli", por Isaiah Berlin).
10 Maquiavel, op. "t, p. 216. Estou usando esta tradução, embora os comentários
adiante façam referência a outra mais completa, porque o trecho acima está mais
acorde com traduções para outros idiomas. Por exemplo, na tradução de O Príncipe
para o inglês, feita por W. K.
Marriott, publicada na série Great Books, Enyclopedia Britannica, com o aval da
Universidade de Chicago, Nova York, 1952, p. 25, lê-se: "And in the action ofall men,
and specially ofprinces, which is notprudent to challenge, onejudges by the result."
Em italiano, "nelle azioni di tutti gli uomini, e massime di principi, dove non è indizio a
chi reclamare, si guarda ai fine". Jl Príncipe, cap. 18, in Francçsco Flora e Cario
Cordé, Tutte lê opere di Machiavelli, Verona, Mondadori, 1949, v. l, p. 57.
Fim da nota.
45
em circunstâncias dadas, a agir guiado por outros valores. Lança, assim, as sementes
de idéias - depois intuídas por Viço na Scienza Nwova11 - que muito depois vieram
a ser exploradas por Isaiah Berlin, como a incomensurabilidade e mesmo a
incompatibilidade de valores que convivem na mesma cultura e entre os quais não
existem padrões racionais de escolha. Mais modernamente este constituiu o cerne
da análise de Max Weber ao distinguir entre a ética da responsabilidade e a
das convicções. Ao leitor menos atento pode parecer que Weber, ao mostrar
a diferença entre as duas éticas, acaba por dar sustentação ao
amoralismo maquiavélico. Entretanto não é bem assim. Se é certo que o
político, para Weber, deve ser julgado pelas conseqüências de seus atos,12 isto não
significa que a ação do político dispense convicções. E Weber, que foi deputado na
Alemanha e era apaixonadamente nacionalista, as teve, e muitas.
Weber não separa de modo absoluto as duas éticas. Apenas as distingue:
uma, a das convicções, ajuíza as ações antes de sua vigência; a outra, a da
responsabilidade, julga as conseqüências do ato praticado. Na ação do grande
político elas não podem ser separadas; se assim ocorrer, no primeiro caso levará ao
fanatismo e, no segundo, ao cinismo.
Essa temática que aparece nas análises teóricas é vivida cotidianamente pelos
homens públicos, ou pelo menos pelos políticos conscientes de seu papel e de suas
responsabilidades e que ambicionam ser algo além do que "um a mais". Por isso,
quando escrevi na Introdução deste livro sobre a importância que representou para
mim "abraçar causas", começando pela da democracia, estava me afastando do
maquiavelismo e do weberianismo vulgar (pobre Weber!), correndo o risco de ser
percebido como um "idealista ingénuo". Ou, o que é pior, como se estivesse
tentando disfarçar o maquiavelismo, tal como nosso florentino aconselhava que
aos príncipes cabe fazer...
Nota: 11 Giambattista Viço, Princípios de (uma) ciência nova (acerca da natureza comum
daí nações), 3a ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984.
" Mais contemporaneamente Merleau-Ponty argumentou de forma semelhante para
tentar explicar a aceitação de "culpa objetiva" por parte dos líderes comunistas que,
nos tribunais stalinistas, confessaram faltas cometidas por terceiros, que, porém,
teriam agido em conseqüência das pregações Ou decisões dos acusados. Ver
Maurice Merleau-Ponty, Humanisme et terreur, P4rís> Gallimard, 1947; coleção
Idées, 1980. Fimda nota.
46
Por força de minha trajetória intelectual, não poderia desconhecer as posições
citadas. Se o leitor tiver conhecimento do que já escrevi a respeito, saberá que
poderia invocar Hegel, para quem a moral (pelo menos a Moral com M maiúsculo)
se objetivava no Estado e não nos indivíduos - aquele sim, ético. Ou, melhor ainda,
invocar Marx e mostrar que também este, embora sempre de olho nos modos de
produção e nas forças objetivas da História, juntava essa análise
ao comprometimento com uma "visão" com uma causa redentora. Isso sem que
o fundamento moral da ação toldasse a compreensão da lógica da História, e sem,
em nome da causa, transformar em válidos os meios utilizados para alcançar os
objetivos.
Para justificar o julgamento moral da ação política não é preciso, portanto, assumir a
posição dos jusnaturalistas, os quais imaginam um "contrato social" básico ou
algum outro "ente de razão" a partir do qual deduzem as obrigações morais, sem se
referir às situações históricas. Aliás, para o próprio fundador dessa corrente de
opinião, o holandês Grócio, a idéia de contrato e a suposição da razão como
base para o juízo moral não dispensavam uma análise da evolução histórica.13
O mestre das formas de governo, o francês Montesquieu, quando escreveu seu
monumental livro, O espírito das leis, publicado em 1748, tão criticado na época,
estabeleceu a clássica distinção entre o regime tirânico, o monárquico e o
republicano.14 Deixando de lado a distinção
Nota: 13 O "pai" do jusnaturalismo moderno, Hugo Grócio, em sua obra sobre a paz e a
guerra, De iure belli acpacis, de 1625, se afastou da tradição medieval (e mesmo
clássica antiga) de buscar o fundamento das leis nos ditames divinos. Em oposição
às explicações baseadas no "sobrenatural", afirmava o direito natural, o
jusnaturalismo, sustentado exclusivamente pela razão humana. Hobbes também,
como é sabido, pensava o Estado como uma situação que se contrapunha em
termos de um conceito racional ao estado de natureza, no qual o homem seria o
lobo do homem. No fim do século XVII, Locke, em Dois tratados sobre o governo,
formulou, independentemente de Grócio, teoria semelhante, mas com fundamento
na vontade dos indivíduos, e não na natureza da razão.
14 Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, barão de Ia Brède et de Montesquieu),
LEsprit dês lois, Amsterdã, Arstée et Merxus, 1785, baseada na edição de 1758,
revista pelo autor antes de sua morte (em 1755). Tanto nesta edição como na das
Obras completas editadas por L. de Bure (Paris, 1827), publica-se o elogio a
Montesquieu feito por d'Alembert para o tomo 5° da famosa Enciclopédia,
Fim da nota.
47
aristotélica entre governo de um, de poucos e de muitos, Montesquieu explica o modo de
funcionar das três formas a partir dos "princípios" que os regem: o medo, a honra e
a virtude. Essas seriam as paixões humanas que moveriam cada uma das
modalidades básicas de governo. Em cada formação histórica haveria princípios ou
paixões distintos que dariam sustentação às regras da política.
Entre os autores contemporâneos, o filósofo britânico Isaiah Berlin foi quem melhor
seguiu a tradição de envolver as análises no contexto histórico sem cair no
relativismo cultural que termina por não permitir a distinção entre o que é correto e o
que é errado na comparação entre momentos históricos e entre diferentes
sociedades.15 Berlin reconhece, tal qual Maquiavel, a coexistência de valores que
podem não ser conciliáveis mas são igualmente aceitos. Defende a tese da
pluralidade objetiva de valores, os quais podem não ser compatíveis nem
guardar entre si um elo lógico que permita hierarquizá-los. Como conciliar,
por exemplo, o "não matarás" cristão, com as decisões de matar na guerra
e mesmo na política, no caso dos guerrilheiros que lutam pela libertação nacional?
Distante da pregação dos que crêem na moral kantiana e no monismo ético dos
jusnaturalistas, Berlin sugere que em certas situações há que se proceder a
escolhas radicais, sem o amparo de um catecismo que nos ajude a discernir o bem
do mal. Por tal razão é tão importante o juízo, a percepção qualitativa que nos guia
na hora de fazer uma escolha. E como esses dilemas são freqüentemente trágicos,
o filósofo e cientista político britânico John Gray busca inspiração nos dramaturgos
gregos para batizar o liberalismo de Berlin como agônico, do grego ágon,
que significa embate. Em situações muitas vezes dramáticas as escolhas individuais
e coletivas têm esse caráter. É no momento das grandes decisões que o líder, em
seu isolamento existencial, ainda que cercado fisicamente de muitas pessoas,
aparece em toda a sua estatura, enfrentando todas as dificuldades.
Nota: 15 Ver especialmente o admirável ensaio "The pursuit of the ideal", in Isaiah Berlin,
The Crook Timber of Humanity, Nova York, Vintage Books, 1992. E ainda, John
Gray, Isaiah Berlin, Princeton (EUA), Princeton University Press, 1996,
especialmente o capítulo 2. Celso Lafer produziu uma instigante comparação entre
Berlin e Hannah Arendt, no livro que leva o nome desta última, publicado em
segunda edição, ampliada, pela Paz e Terra em 2003, cap. 8. Fim da nota.
48
Ou ele tem o senso da História, intui, julga e decide, ou ninguém o fará por ele, que
pagará o preço da não-decisão ou, se for o caso, do erro pela decisão assumida.
Aprendendo em casa o enredo da política
Quantas vezes o cidadão comum, para não falar do político, enfrenta esses dilemas?
Quando os chamados órgãos de segurança me prenderam, em 1975, me puseram
um capuz, me ameaçaram com tortura, me interrogaram por horas a fio, sem que eu
atinasse a razão nem conhecesse os fatos e situações questionadas. Sem apelar
para Berlin, Maquiavel ou Weber, eu me indagava: "E se confessar o que não sei?"
Como julgar moralmente a mentira de alguém diante do algoz ou da ameaça de
morte?, pergunto hoje.
Eu não tinha o que delatar e mais me indignei do que me amedrontei. A experiência
daqueles dias sombrios me levou a julgar de modo diferente as "delações" em
circunstâncias semelhantes. O certo é que também por esses caminhos
inesperados acabei, pouco a pouco, penetrando nos meandros e nas rudezas da
ação política. Constatei que a palavra e a letra têm um custo maior do que eu
poderia imaginar: estava diante dos temidos homens do DOI-Codi16 somente por
haver escrito e falado sobre o Brasil e contra o autoritarismo militar, sem ação
política direta.
Sem a mesma tragicidade, quantas vezes no exercício da Presidência tive que
escolher entre o ruim e o menos ruim? Ou entre objetivos moralmente justificáveis,
mas incompatíveis: por exemplo, aumentar o superávit primário - ou seja, o governo
gastar menos do que arrecada para,
Nota: 16 Os Centros de Operações de Defesa Interna (Codi), criados em 1970, eram
organismos colegiados integrados por representantes das três Armas e de governos
estaduais, tendo sempre à frente o comandante local do Exército. Os
Destacamentos de Operações de Informações (DÓI) constituíam o braço
operacional dos Codi, comandados por oficiais do Exército e com quadros
compostos por militares das Forças Armadas e membros das polícias militares
estaduais. Em São Paulo, o DOI-Codi sucedeu a Operação Bandeirantes (Oban),
formada em 1969, que reunia militares e agentes civis e era em parte financiada por
empresários. A Oban e os DOI-Codi foram os principais instrumentos de repressão
do governo militar e conseguiram desarticular grupos oposicionistas
clandestinos, armados ou não, por meio de prisões, torturas e assassinatos.
Fim da nota.
49
com o excedente, poder pagar juros da dívida pública - ou elevar o gasto social no
Orçamento? Nessas horas o peso das discussões teóricas, como as anteriormente
mencionadas, recai abruptamente na cabeça do líder, não como teoria, mas como
experiência sofrida. Quem não dispõe do amparo do conhecimento talvez sofra mais
diante do desafio de fazer uma opção radical que descontente a muitos, mas parece
necessária Co radical choice de Isaiah Berlin). Quem tem conhecimento dá maior
valor às distinções de Weber e, sem abonar o dualismo maquiavélico, sente a
força dele.
Quando afirmei que aprendi em meu percurso a exercer funções de liderança e que
há modos diferentes de exercê-la, convém ressaltar que tanto em meu caso como
no do Presidente que me sucedeu esse aprendizado se deu no decorrer de um
longo processo de amadurecimento democrático do país. Quanto a mim,
especificamente, cabe mesmo invocar que aprendi em família o enredo da
democracia.
No Rio de Janeiro, onde nasci, nos intermináveis serões à mesa de jantar em casa
de minha avó paterna, Leonídia Fernandes Cardoso, a "Vovó Linda", ou na de meu
pai, general Leônidas Cardoso, voltava-se amiúde a discutir os detalhes da
"conspiração republicana" contra a Monarquia, na qual meu avô, Joaquim Ignacio
Batista Cardoso, e um tio-avô, seu irmão Augusto Ignacio do Espírito Santo
Cardoso, tomaram parte ativa. Meu avô morreu em 1923 com a patente de marechal
e Augusto, general, foi ministro da Guerra do governo provisório de Getúlio Vargas,
entre 1930 e 1932. Esse mesmo cargo seu filho Ciro, primo de meu pai e
igualmente general, exerceria entre 1952 e 1954, ainda sob Getúlio, só que
desta feita Presidente eleito por voto direto em 1950. Também as lutas "tenentistas"
dos anos 1920 e 1930, ou as campanhas nacionalistas dos anos 1950 nas quais
meu pai, eu e vários tios e primos estivemos envolvidos, eram vistas e revistas a
cada encontro familiar numeroso.
Mais tarde, a participação direta na oposição ao autoritarismo militar também me
serviu de escola na política, como veremos adiante.
Desde jovem professor-assistente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
USP, mantive a preocupação política ao lado da académica, no caso com o
fortalecimento e a democratização da carreira universitária (estive entre os
fundadores do que é hoje a Associação dos Docentes da USP, a Adusp). Fui eleito
representante dos ex-alunos junto ao Conselho
50
Universitário, em abril de 1957, em uma campanha de grandes proporções, quando
setores tradicionais da universidade se jogaram contra mim e contra a aliança que
jovens professores das faculdades de Medicina, Economia e Filosofia
estabelecemos para modernizar a instituição. Nesse empenho, o futuro ministro e
depois deputado António Delfim Netto, representando setores políticos diferentes do
meu, mas com os quais tínhamos aliança, foi meu suplente numa chapa apoiada por
toda a esquerda académica. Lutamos para que os então chamados
"professores catedráticos" (fui um dos últimos a ter essa condição na USP)
tivessem que respeitar os direitos dos assistentes. Esses direitos deveriam
ser assegurados com as teses de mestrado, doutorado e livre-docência.
Cumpridos esses requisitos, os catedráticos seriam impedidos de usar os poderes
que até então detinham de demitir seus auxiliares, sem qualquer limitação de
vontade, ad nutum, No processo de modernização da USP, quando conseguimos
eleger um reitor de mente aberta, o professor António Barros de Ulhôa Cintra, da
Faculdade de Medicina, em 1962, criamos a Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp), hoje um modelo de instituição pública no género.
Desde essa ocasião se reafirmou em mim o que percebera nas
discussões familiares: as pessoas mudam e, para atingir os objetivos desejados,
as alianças são freqüentemente necessárias. O background pessoal e familiar
condiciona os percursos políticos, embora só até certo ponto.
As pessoas assumem posições diversas diante de novos desafios e de novas
circunstâncias. Meu avô e o irmão dele tomaram parte na proclamação da República
e nas jornadas antioligárquicas do final do século XIX e dos primeiros trinta anos do
século XX, apesar de o pai deles, no tempo do Império, meu bisavô Felicíssimo do
Espírito Santo Cardoso, ter chefiado o Partido Conservador em sua Goiás natal,
havendo assumido a Presidência da província por duas vezes,
Como modo de ascensão social comum na época. Felicíssimo estudou
num seminário, tornou-se professor de latim e acabou incursionando pela carreira
política - deputado, senador provincial, responsável por um arremedo de política
indígena então existente na província -, tendo recebido do Imperador Dom Pedro II o
título, honorífico e não militar, de brigadeiro. Casou-se duas vezes, e os dois filhos
mais velhos do primeiro
51
casamento, meu avô Joaquim Ignacio e seu irmão Augusto, transferiram-se para o
Rio para seguir a carreira militar.
Republicano ardente, Joaquim Ignacio, ainda jovem alferes de Cavalaria, respondeu
a Benjamin Constant que, se houvesse resistências à República, o Imperador
deveria ser fuzilado. Pouco depois, atuaria como assistente-secretário e homem de
confiança do marechal Floriano Peixoto, Vice-Presidente e futuro Presidente da
República (1891-1894), tanto é que, durante o mandato de Floriano, morou no
palácio presidencial de então, o do Itamaraty, no Rio. Décadas depois, seria um dos
dois únicos generais a apoiar o movimento tenentista, tendo pago o
arroubo antioligárquico com a prisão, que compartilhou com o marechal Hermes
da Fonseca, ex-Presidente da República.
Embora por origem e formação tivesse impulsos típicos do autoritarismo militar muito
ao gosto dos positivistas (manteve correspondência, por exemplo, com o caudilho
gaúcho Júlio de Castilhos, bem como combateu com armas na mão, sob o comando
do pai de Getúlio, o general dos "provisórios" Manuel do Nascimento Vargas, a
rebelião anti-republicana de 1893 no Rio Grande do Sul), meu avô tornou-se um
democrata convicto.
Quando comandante militar em Recife, fundou uma Liga Pernambucana contra o
Analfabetismo e criou várias escolas. Homem de princípios rígidos, recusou
sistematicamente honrarias - só aceitou e usava uma única medalha, a de bons
serviços prestados ao Exército e à Pátria - e eliminou o "Espírito Santo" do próprio
nome e dos filhos, tornando o mais simples "Cardoso" o sobrenome de sua
descendência. Enquanto esteve preso num navio no porto do Rio, após o levante de
1922, para exercitar-se precisava deixar o barco e caminhar no cais, sob o olhar
de um sentinela. Joaquim Ignacio, porém, recusou-se sistematicamente a fazê-lo, a
menos que acompanhado por oficial de patente igual ou superior -- que não havia a
bordo -, o que agravou um problema circulatório nas pernas, causando-lhe a morte
após sua libertação.
Democrata desde a raiz dos cabelos também foi meu pai, Leônidas Cardoso.
Militar de carreira, não cabia no estereótipo: era liberal, afável e elegante, gostava
de poesia, falava francês e espanhol, tocava um pouco de piano. Tinha múltiplos
interesses, a ponto de ter cursado Medicina sem concluir os estudos e,
posteriormente, se formado em Direito, o que parece
52
ter-lhe acentuado o apreço pela legalidade que o faria, por exemplo, já idoso,
opor-se ao golpe de 1964. Com a vida nómade que levam os militares, ele nasceu
em Curitiba, cursou a escola militar em Porto Alegre e acabou sendo transferido para
o Rio. Jovem oficial de Cavalaria, como o pai, participou da revolta de 1922 e foi
preso.
Cumpriu depois uma espécie de exílio interno numa unidade do Exército em Óbidos,
às margens do rio Amazonas, no interior do Pará. As reviravoltas da História do
Brasil fariam com que, vitoriosa a Revolução de 1930, com os tenentes no poder, ele
passasse a integrar o gabinete de seu tio Augusto, ministro da Guerra. Com a
Revolução Constitucionalista de 1932, houve um racha entre os Espírito Santo
Cardoso, pois meu pai, contrariando parte dos militares da família que estavam com
Getúlio, apoiou o movimento deflagrado em São Paulo.
Com vicissitudes, meu pai prosseguiu na carreira. Em 1940, major do Exército, se
mudaria para São Paulo com a família - minha mãe, Naíde, meus irmãos António
Geraldo e Gilda, e eu, o mais velho -, cumprindo missão estritamente política do
ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra: vigiar de perto os movimentos do
interventor Adhemar de Barros. Retornou anos depois ao Rio como coronel mas, já
com problemas de saúde que o levariam à reserva, pediu a Dutra para aposentar-se
em São Paulo, onde montou escritório de advocacia. (Essa nova mudança
da família fez com que eu terminasse me fixando na cidade e me tornasse
um paulista de coração.)
Nacionalista ferrenho, militante da causa "O Petróleo é Nosso", acostumado desde
jovem a imiscuir-se na política e nos grandes assuntos nacionais, como faziam
desde tempos remotos no Brasil os militares, especialmente os de sua família, meu
pai acabou se elegendo deputado federal pelo velho PTB, com apoio dos
comunistas. Receberia a segunda maior votação da bancada. A eleição levou-o de
volta ao Rio, sede da Câmara dos Deputados. Findo o mandato, continuou residindo
no Rio.
Faleceu em 1965, quando me encontrava exilado no Chile. Consegui vir ao enterro,
no Cemitério de São João Batista, e para aguardar a missa de sétimo dia considerei
conveniente refugiar-me em São Paulo na casa de um amigo, o sociólogo Pedro
Paulo Poppovic. Durante a missa, um militar avisou meu irmão de que, se eu não
deixasse novamente o Brasil, seria preso.
53
De uma determinada maneira, a política permearia minha vida até nesse
momento de dor pessoal.17
É certo, porém, que a origem de classe ou a posição política ancestral, por si sós,
são de pouca valia para explicar o comportamento político efetivo. Os valores
assumidos, a evolução da cultura política, a configuração do jogo de poder, a
posição dos atores polares desempenham papel de maior relevância na definição
dos rumos pessoais. Em qualquer hipótese, entretanto, a "abertura mental", o
comportamento tolerante, a aceitação do outro e da diversidade político-cultural são
condições propícias para o exercício da liderança democrática.18
Nota: 17 Muitos dados sobre minha família podem ser encontrados no
Dicionário históricobiográfico brasileiro elaborado pelo Centro de Pesquisa
e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de Janeiro,
Editora FGV, 2001. Ali há verbetes sobre meu bisavô, Felicíssimo do Espírito Santo
Cardoso, os tios Augusto Ignacio do Espírito Santo Cardoso e Carlos Cardoso, os
primos Dulcídio e Ciro do Espírito Santo Cardoso e meu pai, Leônidas Cardoso. Não
há verbete específico sobre meu avô, Joaquim Ignacio Batista Cardoso, embora
o referente a meu pai contenha informações a seu respeito. Um resumo de sua vida
está em Elmar Bonés da Costa, A república dos radicais, Florianópolis, Expressão,
2000.
18 Erasmo de Roterdã ou Tomás Moro tinham uma visão menos descarnada
do poder do que Maquiavel. Desde Platão a "sabedoria" foi incluída entre as virtudes
necessárias para o bom governo. Erasmo, na "Educação de um príncipe cristão", diz:
"Se queres mostrar que és um príncipe excelente, certifica-te que ninguém te
exceda nas necessárias qualidades de sabedoria, magnanimidade, reserva e
integridade."
Tomás Moro, que antes de Maquiavel já recomendava a separação entre política e
moral e, como o contemporâneo Erasmo (os dois foram amigos e Erasmo
supervisionou a publicação da Utopia), justificava a busca da paz e da justiça em
termos racionais, não descuidou do statesmanship. O governo seria o produto
natural de seres humanos genuinamente livres e responsáveis e a autoridade
derivaria do consentimento. Mais adepto de formas representativas de governo do
que das monarquias com seus reis, Moro, seguindo Aristóteles, tinha maior
confiança nas leis do que nas paixões dos homens para alcançar o bom governo.
Moro acreditava que a lei e a educação constituíam os fundamentos do governo. A
prudência e a tradição cultuadas pelos líderes formariam os suportes do
arcabouço institucional. Acreditava na separação dos poderes, nas regras da lei, na
separação entre Estado e religião, em representantes eleitos e em formas protegidas
de deliberação, que deveriam ser livres e públicas.
Ver a respeito do pensamento de Moro o excelente livro de Gerard B.
Wegemer, Thomas More on Satesmanship, Washington, The Catholic University of
America Press, 1996. Fim da nota.
54
A democracia e o contexto social
Como veremos nos próximos capítulos, a valorização da democracia e a escolha de
métodos de ação consentâneos com ela formam parte do "espírito" ou dos
"princípios", para falar à maneira de Montesquieu, com que procurei guiar minha
ação política todo o tempo. Entretanto, até que ponto a situação em que operei
permitia eficácia das ações orientadas pelo espírito democrático? Essa questão não
é de fácil resposta, pois ela diz respeito à natureza da sociedade e do
sistema político brasileiros.
A discussão clássica dessa temática pode ser resumida apelando para
a contribuição de dois autores que conferem ênfase distinta à questão
do patrimonialismo vigente e ao papel do Estado e da sociedade. Exagerando na
simplificação, uma corrente, que encontra apoio em Oliveira Vianna, por exemplo,
mas que tem a formulação mais lúcida, porque crítica, em Raymundo Faoro, mostra
que o Brasil se formou sob o guante, mas também com a inspiração e a motivação
dos "donos do poder", que não se compunham propriamente de representantes de
classes, mas de burocratas a elas vinculados.19 A outra corrente tem como
paradigma Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil.20 Sem desconhecer o
peso da tradição patriarcal e seus desdobramentos no patrimonialismo da
política brasileira, acentua os valores da democracia e aposta nos fatores dinâmicos
que podem fortalecê-la.
No primeiro caso, o Estado e a burocracia constituiriam, historicamente, os pilares
da organização nacional. Ancorado na tradição ibérica,
Nota: 19 Ver Raymundo Faoro, Os donos do poder, 3a ed. revista, São Paulo, Globo,
2001. Caracterizando a dominação política no Império, diz o autor: "Não se trata de
uma classe, grupo ou camada que se apropria do Estado, do seu mecanismo
burocrático, para o exercício do governo. Uma camada social, fechada sobre si
mesma, manipula lealdades com o cargo público, ela própria, sem outros meios,
assentada sobre posições políticas. Entre a carreira política e a dos empregos há
uma conexão íntima e necessária, servindo o Estado como despenseiro dos
recursos, para o jogo interno da troca de vantagens" (p. 447). A burocracia, coluna
dorsal do poder, manterá influência decisiva durante a República Velha e ao menos
até o Estado Novo, períodos abrangidos pela análise de Faoro.
20 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 3a ed., Rio de Janeiro, José
Olympio, 1956. Fim da nota.
55
o patrimonialismo transposto para as terras americanas confunde família e ordem
pública, interesse privado e Estado, A despeito do papel unificador da presença da
burocracia imperial, portuguesa e logo depois brasileira, com seus exércitos, corpos
jurídicos e meandros burocráticos, as distorções patrimonialistas estiolam a ação do
povo, da "sociedade civil", na busca da democracia. A sociedade civil, na segunda
tradição, sem negar os fatores limitativos apontados pela anterior, é o crisol do
futuro. O terreno, para ser fértil e permitir que cresça a planta tenra da ordem
democrática, requer, além da liberdade, a construção de instituições nas quais o
"império da lei"
homogeneíze os seres humanos. Por isso mesmo, Sérgio Buarque critica a tradição
do "homem cordial", cujas paixões particularistas levam ao arbítrio e impedem a
igualdade perante a lei.
Quem tiver lido o que escrevi para combater o militarismo e a ditadura nos anos
1960 e 1970 verá que me empenhei em caracterizar o regime menos como ditadura
totalitária e mais como autoritarismo burocrático. E nessa caracterização me opus à
idéia e à prática de uma emergente "burguesia estatal", gabada na época, como
hoje, por setores ditos de esquerda que viam nela os germes do socialismo de
Estado que tanto prezam. Apostei na dinâmica das ONGs, dos sindicatos, das
igrejas, da imprensa livre, criando espaços democráticos. Vem daí minha
aproximação com o mundo sindical, na sustentação das greves de São Bernardo
nos anos 1970 e 1980 e na proximidade que mantive com os líderes que
se esforçavam para a formação de centrais sindicais.
Essa familiaridade com setores não dominantes da sociedade brasileira começou,
na verdade, bem antes: nos anos 1950, logo no início da década, participei
ativamente com os eminentes sociólogos e professores da USP Fernando Azevedo
e Florestan Fernandes, entre muitos outros intelectuais, políticos e sindicalistas, da
Campanha pela Escola Pública e fiz nos sindicatos inúmeras palestras sobre
educação popular.
Na mesma década tomei parte de atividades lideradas pelo então clandestino
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outras organizações de esquerda nas
campanhas pela paz e "O Petróleo é Nosso". Integrei o conselho diretor da Revista
Brasiliense com o historiador e editor Caio Prado Júnior e o jornalista Elias Chaves
Neto, bem como colaborei com a revista Fundamentos, próxima ao PCB. Mas, em
1956, assinei manifestos contra a invasão da Hungria pela União Soviética e estava
entre os que se horrorizaram
56
com os abusos e distorções do stalinismo, tornados públicos pelo Relatório
Kruschev, apresentado em 1954 ao PC soviético pelo secretário-geral Nikita
Kruschev.21 Não sacrifiquei minhas convicções democráticas no altar do
igualitarismo autoritário. Mais igualdade, sim, mas não ao preço de mais Estado
autoritário-burocrático e menos liberdade individual e coletiva.
Mantendo as preocupações com a democracia e com a luta por maior igualdade -
sempre sob a liderança intelectual de Florestan Fernandes -, escrevi teses de
mestrado e doutorado sobre a sociedade escravocrata no Sul do Brasil. Nas
pesquisas sobre as relações entre negros e brancos em Porto Alegre e Pelotas (RS),
Florianópolis (SC) e Curitiba (PR) - e, também, ajudando as pesquisas de Florestan
e do grande mestre francês da sociologia Roger Bastide nos cortiços de São Paulo -,
conheci de perto favelas, bairros pobres, clubes de negros. Senti sua revolta com
a discriminação e o preconceito. Vi a cara sofrida do Brasil que quase não aparecia
nas posições dos políticos e mesmo nas análises de muitos intelectuais. Por isso,
sempre achei engraçado quando nas campanhas eleitorais os adversários
procuraram me caracterizar como alguém de punhos-de-renda, com dificuldades em
falar com o povo e por ele ser entendido e que desconhecia o lado da pobreza e da
miséria que se abatem sobre milhões de brasileiros. Não apenas passei boa parte
da vida académica lidando com esses problemas, como sociólogo "de campo",
como tentei, como Presidente, entendê-los em maior profundidade para
adotar políticas que, sem demagogia, pudessem enfrentá-los.22
Nota: 21 Recordo-me de visita que fizemos naquela época, o jornalista Fernando Pedreira,
o advogado Agenor Barreto Parente e outros mais, a Paulo Emílio Salles Gomes,
conhecido intelectual, militante político e, sobretudo, crítico de cinema, recém-
chegado da França. Relatamos nossa perplexidade diante do stalinismo, e ele,
irônico e quase cético, redarguiu: "Mas, só agora?..." Paulo Emílio, muitos anos
antes, se opusera aos mesmos horrores. Parece, disse ele, que cada geração
repete o ciclo da "ilusao-desilusão". Esse ciclo, penso eu, agora acabou,
pelo menos no que diz respeito aos supostos êxitos do mundo soviético.
22 Ainda seguindo essa linha de preocupação: a primeira pesquisa
sobre desemprego na cidade de São Paulo, realizada em 1954 pela Secretaria
do Trabalho do governo do estado, foi coordenada por um pequeno grupo, do qual
participava a antropóloga Ruth Corrêa Leite Cardoso. (Eu a conhecera no vestibular
para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1948, no qual ela
foi aprovada em primeiro lugar. Casamo-nos em 1952.)
Na pesquisa sobre desemprego, coordenei o levantamento de campo.
Meu primeiro trabalho profissional como pesquisador, ainda quando aluno,
foi para o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, que preparou para o
Serviço Nacional da Indústria (Senai) um levantamento sobre evasão
escolar na cidade de São Paulo.
Coube-me fazer as entrevistas nas casas dos alunos, nos bairros
operários de então, como Moóca, Vila Prudente e Ipiranga.
Antes disso, realizei uma pesquisa para a cátedra de Roger bastide, em
Araraquara e em São Paulo, também com Ruth, sobre os primórdios da
umbanda. Fim da nota.
Em minha primeira campanha presidencial, dois episódios se encaixam nesse cliché
do suposto punhos-de-renda lidando canhestramente com realidades "populares"
que lhe são alheias: o do jegue em Alagoas e o da buchada de bode em
Pernambuco.
O caso do jegue - na realidade, um cavalo - ocorreu em Delmiro Gouveia (AL). Eu
seguia de carro com o senador Teotônio Vilela Filho (PSDB-AL) e outros
companheiros alagoanos para um encontro político nas cercanias dessa cidade
quando veio ao nosso encontro, para nos saudar, um grupo a cavalo. Aprendi a
andar a cavalo ainda pequeno, com meu pai, e, mesmo sendo mau cavaleiro, é algo
que sempre fiz. Pedi a um dos homens que me deixasse montar, a despeito da
preocupação de Teotônio, temeroso de que eu caísse. Segui em frente e juntei-me
à cavalhada. Alguém me emprestou um chapéu de couro, típico do sertanejo
nordestino, e, ao chegar ao local da reunião, havia fotógrafos e jornalistas.
Brincaram comigo, brinquei de volta, dizendo que, diferentemente do imperador
romano Calígula, que transformou seu cavalo Incitatus em senador, jamais entraria
no Senado a cavalo, mas que cavalgar no sertão era muito agradável. De algum
modo, porém, no imaginário da campanha o cavalo virou jegue - algo que interpretei
como eco do preconceito existente no Sul-Sudeste contra o Nordeste. Acabei sendo
objeto de gozação e criticado, claro. O fato é que a cena, estampada na mídia,
repercutiu positivamente no Nordeste.
O caso da buchada de bode aconteceu perto de Petrolina (PE). Petrolina é reduto da
família Coelho - a mesma do falecido ex-governador e ex-presidente do Senado Nilo
Coelho -, que me recebeu no curso da campanha.
58
Após um último compromisso, à noite, em que, sob uma iluminação
precária, discursei de cima de um caminhão para um pequeno grupo de pessoas,
fomos levados para jantar na casa - casa modesta do interior do Brasil, mas
acolhedora e de boa comida - de um aparentado e correligionário dos Coelho. E aí
serviram uma buchada. Lembro-me de que o jornalista Tales Faria, da Folha de S.
Paulo, um dos repórteres que acompanharam aquela viagem, me perguntou:
- O senhor vai comer isso aí? O senhor gosta disso? Respondi:
- Ué, você não vai comer? Isso, na França, se chama tripés à Ia mode de Caen.
Todo mundo lá vai a restaurante de caminhoneiro para comer, e se delicia. Por que
você não gosta de buchada?
Naquela noite, em Pernambuco, não se tratou de demagogia, como
alegaram adversários e alguns críticos na imprensa. O fato é que, episódio à parte,
gosto de buchada. Cheguei a servir buchada certa vez, num almoço no Alvorada.
Mas havia o estereótipo: uma pessoa como eu não pode andar a cavalo e jamais
comer um prato como aquele. Da mesma forma como, em minha primeira
campanha ao Senado, achavam que iria passar mal depois das obrigatórias
incursões por botequins e padarias - logo eu, que sou louco por um sonho de
padaria.
Daquela época muito anterior à minha campanha presidencial, em que vislumbrei o
rosto sofrido do Brasil durante minha pesquisa sobre relações entre brancos e
negros no Sul, para hoje, há um abismo nas condições da vida política, e não só em
nosso país. De alguma maneira a caracterização da sociedade, dos regimes
políticos e das qualidades requeridas para o exercício da liderança, tais como
mencionadas anteriormente por alguns autores clássicos, sofreram
modificações profundas com o advento das sociedades de massa e com a atuação
dos modernos meios de comunicação. Os trabalhos de filosofia política clássica a
que aludi antes, embora tenham colocado as questões centrais sobre poder e
moral, se referem a um contexto histórico que não prevalece. Mesmo as
observações de Marx e sua análise da dominação de classe, com os
desdobramentos posteriores, de Lênin, de Gramsci e de tantos outros, sobre a moral
revolucionária e sobre o partido-Príncipe, foram perdendo vigência no decorrer do
século XX.
59
A busca contínua da legitimação
As formas de organização da sociedade, a evolução da produção capitalista, a
emergência dos partidos classistas, a bifurcação entre a revolução e a social-
democracia e, mais recentemente, o ressurgimento do que se chamou de
neoliberalismo, com a supremacia dos mercados e a redução dos poderes estatais,
modificaram as condições para o exercício da política e da liderança. A partir da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), porém mais especificamente ainda, depois
dos anos 1970 e 1980 - e não apenas por causa da queda do Muro de Berlim, em
1989, e do fim da bipolaridade mundial -, houve uma ruptura com as condições
que prevaleciam até então. A revolução dos transportes, facilitando os contatos
comerciais, políticos e culturais e, sobretudo, a revolução nos meios de comunicação
e o advento da Internet redesenharam as condições organizacionais e culturais do
mundo.
O fenómeno da globalização, um capitalismo das corporações multinacionais,
baseado na dispersão da produção, na homogeneização dos gostos que leva à
padronização dos produtos (e vice-versa) e no encadeamento de inovações
tecnológicas em perpétua mutação, redesenhou as perspectivas de
desenvolvimento dos países. A concentração dos recursos de capital nas regiões já
desenvolvidas e o deslocamento rápido dos fluxos financeiros aumentaram as
incertezas. A incapacidade desse novo mundo (horroroso ou não) para diminuir as
assimetrias entre os Estados nacionais e entre os povos, quando não dentro de
cada país, redesenhou as perspectivas da vida de todos e colocou novas dúvidas
e novos desafios.
Os antigos Estados-nação do século XIX, embora não desapareçam e mantenham o
controle sobre o território, perdem preeminência como pólos aglutinadores de
esperanças. As instituições políticas que deram base à democracia (os partidos, os
parlamentos e a ideologia liberal) e mesmo as instituições clássicas da sociedade
civil (como os sindicatos e as igrejas) tornaram-se insuficientes para encaminhar as
demandas e dar legitimidade à ação dos políticos. A difusão da Internet e a
formação do que o sociólogo espanhol Manuel Castells, professor nos EUA,
qualificou como as "sociedades em rede" criam novas formas de sociabilidade,
que saltam as muralhas dos territórios nacionais e as barreiras de lealdade dos
grupos
60
de interação primária, nos quais as relações se dão face a face, como a família, os
grupos de trabalho ou os partidos e igrejas.23
As expectativas da sociedade e o papel dos políticos e das instituições estão,
portanto, se redefinindo. Os processos que serviram de base para a revolução
democrática em marcha desde o fim do século XIX ganharam novos contornos. As
diferenças de valores e estilos de comportamento entre as diversas camadas sociais
diminuíram, ainda que as posições de classe e a concentração da riqueza não
tenham sido afetadas do mesmo modo. Entre a Segunda Guerra Mundial e o
advento da globalização, consolidouse o que os sociólogos chamam de "sociedades
de massa". A produção industrial em grande escala e a difusão dos meios
de comunicação tornaram possível, em vários países, que se aspirasse a ascender
à cidadania.
Atualmente, com a Internet e com sinais da formação de uma "sociedade civil
planetária",24 talvez seja insuficiente e impreciso falar em "cidadania" ou mesmo em
uma cultura "cívica". Por cívica sempre se entendeu, etimológica e conceitualmente,
uma cultura que liga o cidadão à cidade ou, estendendo o conceito, à República. A
generalização da cidadania levou à busca de algum tipo de comportamento
institucional, expandindo e redefinindo o âmbito das relações entre Estado e
sociedade.
Nos dias de hoje a dinâmica da vida política é conferida (não exclusivamente, está
claro) por movimentos sociais, por ONGs e por movimentos de opinião
aparentemente sem base institucional maior. Na verdade, as instituições tradicionais
estão sendo complementadas pelo que se chama de "protocolos" que permitem e
regulam as comunicações em rede, O próprio ato da comunicação em rede cria o
liame entre pessoas e mesmo entre grupos e instituições, tanto no espaço nacional
como no internacional. Ocorrem, intermitentemente, novas formas
de relacionamento entre os povos e os países, criando um espaço democrático onde
se vislumbra a formação de uma opinião pública global mais atuante.
Nota: 23 Manuel Castells, A era da informação: economia, sociedade e cultura, volume l, A
sociedade em rede, e volume 2, O poder da identidade, São Paulo, Paz e Terra,
1999, Ver ainda La galáxia Internet, Barcelona, Aretè, 2001, e o segundo volume da
nova edição de seu livro básico, The Power ofldentity, Londres, Blackwell, 2003.
24 Sobre esse ponto, além da já citada obra de Castells, ver Bruce Rodney Hall e
Thomas Bersteker, The Emergence of Private Authority in Global Governance,
Cambridge (Inglaterra), Cambridge University Press, 2002. Fim da nota.
61
Obviamente, como mostrou Castells, esses novos tipos de relacionamento não
tornam evanescentes o Estado e as velhas instituições nacional-democráticas (como
os partidos) nem as da sociedade civil (sindicatos, associações, igrejas). Mas, em
certas circunstâncias - e a expressão é minha -, "desenraízam" as pessoas, inclusive
de posições hierárquicas, dando margem a conflitos de novo tipo. O "quem manda,
quem obedece e em nome do quê" (temática tradicional da filosofia e da ciência
política)25 tende a se redefinir. As condições técnicas da comunicação impõem sua
lógica às formas de sociabilidade e aos processos de lealdade e de legitimação.
Esses, obviamente, continuam a ser fundamentais, sofrendo, entretanto, uma
mutação muito mais profunda do que simplesmente
formal.
Reitero: não se trata de pensar a política democrática sem os partidos, ou a
organização da sociedade civil dispensando a ação do Estado, e muito menos
contar com um mercado onipotente como regulador da sociedade. O mercado, aliás,
sofre pressões antes desconhecidas, por parte das ONGs, dos movimentos de
consumidores, dos ambientalistas etc.
e por parte do próprio Estado. Este procura se modificar para ampliar sua
capacidade de regulação sobre um conjunto de novos temas (como meio ambiente,
direitos do consumidor ou minorias) e processos complexos, como os fluxos
financeiros ou os protocolos de comunicação.
A nova política, e por conseqüência os políticos, tem de se haver com "bichos
novos", atores interagindo em novas situações. Tudo isso altera o exercício
democrático do mando. Tão logo eleitos, os representantes do povo, sobretudo
quando no Executivo, sentem como é insuficiente o apelo à base racional-legal para
legitimar o exercício do poder (a Constituição, a eleição, os fundamentos jurídicos da
decisão tomada).
Nota: 25 Max Weber, a partir da indagação sobre o porquê do subordinado, do súdito
obedecer ao superior, ao senhor, fez distinções entre os tipos de poder: o
tradicional, o racional-legal e o carismático. Enquanto Montesquieu se preocupou
com o funcionamento dos regimes, Weber quis explicar como o poder se "legitima",
ou seja, é aceito como válido por quem obedece. A santidade da tradição, a
adequação a normas pactuadas e objetivas ou a força não rotineira de um líder que
inaugura uma ordem nova servem de fundamento, em cada caso, segundo Weber,
para aceitar a autoridade legítima de quem manda. Fim da nota.
62
É preciso explicar e convencer a opinião pública sobre a justeza de cada decisão, em uma
busca incessante de consentimento genérico, de legitimidade difusa, em um
processo contínuo de interação entre os poderosos e a população. Deixou de ser
suficiente ter obtido dezenas de milhões de votos em uma eleição. No dia seguinte,
o eleito recomeça quase do zero.
E o instrumento para obter a aprovação democrática é a palavra, sempre ao lado da
imagem.
Para dizer de outra maneira: nos dias de hoje a democracia é um processo do qual
os cidadãos querem participar não somente no ato de votar ou mesmo de aprovar
(como, por exemplo, em um plebiscito), mas de deliberar. Foi o economista e
cientista social norte-americano nascido na Alemanha Albert Hirschman quem
melhor salientou esse aspecto da formação da opinião democrática. Contrapondo-se
à tradição que valoriza o ter uma opinião vigorosa e rígida, ele salienta a importância
das opiniões não se formarem antes, mas durante o processo de discussão
e deliberação. Portanto, as mentes abertas, os espíritos psicologicamente mais
dispostos à convergência e à transigência, que favorecem o diálogo, seriam mais
condizentes com a condução e a durabilidade do jogo democrático. Em vez de
opiniões peremptórias, diz Hirschman, é melhor para a democracia contar com
líderes e seguidores de índole "persuadível", abusando de um neologismo extraído
da obra poética da escritora inglesa Jane Austen.26
Essa reviravolta do mundo contemporâneo tornou Cícero, no elogio da retórica como
fundamento da educação do Príncipe, outra vez referência.27 Para Cícero o modo
de vida mais nobre era a devoção virtuosa ao serviço público. A amizade entre os
homens, a boa vontade, permite que o bom governo se baseie na cooperação livre
dos cidadãos.
Para que esses valores sustentem a República é necessário que existam leis e que
as pessoas estejam convencidas de sua validade, o que requer que os homens
públicos sejam capazes de usar a razão e a emoção. O jogo entre essas duas
qualidades se desenvolve por meio do que se chamava de "retórica"
Nota: 26 Ver Albert Hirschman, "Opiniões peremptórias e democracia", especialmente p.
94 - 95, in Autosubversão, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
27 Sobre Cícero, ver o já citado livro de G, Wegemer, cap. 6. Fim da
nota.
63
base para o convencimento. A obediência não será obtida pelo medo e pela coerção, e
sim pela razão e pelo amor, construídos por uma espécie de diálogo socrático, que
seria o apanágio da liderança. Também Hobbes, que escreveu muito tempo depois
de Cícero, é uma referência atual em seu insuperável elogio da fala e do uso das
palavras.28
A palavra, nos dias de hoje, é a "mensagem" e o meio de sua difusão é eletrônico e
não mais o púlpito ou a tribuna. Os efeitos do rádio (e, posteriormente, da TV) já se
faziam sentir na "política de massas", que caracterizou as mobilizações fascistas e
autoritárias de modo geral e que serviu de argamassa ao populismo terceiro-
mundista. Agora é a própria política democrática que apela a esses meios e à
Internet. Tudo ocorre em tempo real, a despeito da distância física, mas com
uma diferença: a Internet é essencialmente interativa e pouco a pouco o rádio, a TV
e mesmo o jornal e a revista vão criando espaços democráticos para "o outro lado"
para a
reação das pessoas.
As colocações de Habermas29 sobre a criação de um "espaço democrático"
ajudam a entender esse processo, requerendo, porém, uma
interpretação cuidadosa. Não se pode pensar em uma agora contemporânea
formada por instituições ao velho estilo dos círculos de opinião, com
novas roupagens, como se as ONGs ou outras instituições da sociedade
civil constituíssem a "boa sociedade". Elas existem, atuam e são indispensáveis
porque expressam as diferenças de interesse dos grupos, a diversidade de pontos
de vista e os conflitos entre eles.
Nota: 28 Ver Thomas Hobbes, Leviathan, tradução para o inglês do original em latim (de
1651), publicado pela Encydopaedia Britannica, Chicago (EUA), 1952, cap. 4, "Of
Speech", que se lê até hoje com deleite.
29 A obra de Jürgen Habermas é extensa e complexa. Em De 1'éthique de
Ia discussion, traduzido do alemão para o francês por Mark Hunyadi, Paris, Lês
Editions du Cerf, 1992 (a edição em alemão data de 1991), ele se propõe a substituir
o imperativo categórico kantiano por um procedimento de argumentação moral, de
tal modo que as normas só podem pretender à validade se seguirem o chamado
princípio deontológico, segundo o qual as pessoas devem chegar a um acordo por
meio de uma discussão substantiva.
Para ele, a justiça normativa, os juízos morais devem pretender uma validade
análoga à da verdade. Para os propósitos mais modestos da discussão deste livro, a
obra fundamental de Habermas é The Structural Transformation ofthe Public Sphere,
Cambridge (Inglaterra), Cambridge University Press, 1989. Fim da nota.
64
Por reconhecer essa diversidade e seu caráter conflituoso Castells foi quem melhor
compreendeu a dinâmica das sociedades em rede no quadro da globalização. Com
as redes globais de riqueza, poder e informação,30 o Estado-nação moderno vem
perdendo boa parte de sua soberania, sustenta o autor. Da mesma maneira, o
movimento trabalhista perde força quando o Estado abre mão da seguridade social
como função legitimadora. As ideologias políticas, desde o liberalismo democrático
baseado no Estado-nação ao socialismo fundado no trabalho, esvaziam-se
de significado. Sendo assim, esmaecidas essas instâncias legitimadoras, tem-se a
impressão de que sobram as "expectativas racionais" dos mercados para justificar o
poder em sociedades cuja economia se baseia em informações sobre fluxos
financeiros intercomunicados em tempo real.
Seria uma espécie de "barbárie contemporânea".
Como contrapeso à ameaça dessa barbárie pela via pseudo-racíonal do mercado
internacionalizado, formam-se mensagens políticas reativas de três tipos: a volta ao
nacionalismo, fechando as fronteiras económicas, fortalecendo o Estado e as
burocracias e reforçando as tradições culturais para resistir à pressão avassaladora
do cosmopolitismo; a busca de "identidades de resistência", retraídas em "paraísos
comunais"
formados por pessoas que se opõem à exclusão económica, cultural e política, e
constituídas em oposição aos "cidadãos do mundo", indivíduos sem identidade
específica que participam das elites globais dominantes;
e, por fim, dado que esses elementos contraditórios não convivem pacificamente na
sociedade,
Nota: 30 Castells diz que o poder "não mais se concentra nas instituições (o Estado),
organizações (empresas capitalistas) ou mecanismos simbólicos de controle (mídia
corporativa, igrejas). Ao contrário, está difundido em redes globais de riqueza, poder,
informações e imagens, que circulam e passam por transformações em um sistema
de geometria variável e geografia desmaterializada", mas o poder não desaparece
(ver O poder da identidade, p. 423). Esta definição esclarece o porquê de
outras observações de Castells incluídas no texto do livro. Obviamente, como
o próprio autor nos adverte em outras passagens de suas obras, essas
novas formas de exercício do poder não extinguem as anteriores; mas a dinâmica do
sistema e seu futuro dependem da evolução delas. Em suma, traduzindo:
"O novo poder se baseia nos códigos de informação e nas imagens
de representação ao redor dos quais as sociedades organizam suas instituições e o
povo constrói sua vida e decide seu comportamento. Este poder se localiza na
mente das pessoas" (p. 425). Fim da nota.
65
surgem as "identidades de projeto" constituídas pelos que, também
atuando em rede, desejam refazer a sociedade civil global e local e as
formas de controle público.
Essas identidades de projeto, acrescento eu, lutam para criar um novo Estado, uma
nova ordem democrática mundial. Tal projeto será construído, segundo Castells, a
partir das identidades de resistência e não das identidades da sociedade civil,
próprias da era industrial. Das energias geradas pelos movimentos ambientalistas,
feministas e outros do género encontraremos nosso caminho de Damasco.31 Essa
"identidade de projeto"
tem algo a ver com uma releitura do Gramsci de Carias do cárcere?2 como faz
Castells na reedição revista de seu livro fundamental, em uma espécie de
renascimento da idéia de hegemonia, não mais baseada no partido-Príncipe, mas na
mobilização difusa e participativa, mais espontânea e, portanto, menos previsível,
dos que acreditam em um mundo melhor.33
Meus caminhos para a política
Voltando ao plano pessoal: houve muito de casualidade, mas fui treinado, sem que
esse fosse o propósito, para atuar em um mundo político em transformação.
Construí paulatinamente as qualidades que a sorte transformou em atributos para o
mando numa democracia.34
Nota: 31 A obra pioneira na percepção da importância desses movimentos na sociedade
contemporânea deve-se a Alain Touraine, começando por La Société post-
industrielle; naissance d'une société, Paris, Denoèl, 1969 (Bibliothèque Médiations,
61) e culminando com Lê Retour de 1'acteur;
essai de sociologie, Paris, Fayard, 1984 (Mouve-
ments, 3).
32 António Gramsci, Cartas do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005,2
v.
33 Ver Manuel Castells, The Power ofldentity, op. cit., especialmente o item "The
Crisis of the Nation-state, the Network-state and the Theory of the State", no qual,
discutindo com David Held, Castells reelabora sua teoria, mostra como as redes de
poder se conectam com os níveis regionais e locais e retoma a idéia gramsciana de
"bloco de poder" para reafirmar que cada "territorial levei ofthe state expresses the
alliance ofspeáfic social interests and values that, together, constitute what Gramsci
called the power bloc, underlying the actual power instítutionalized in the state" (p.
359).
34 Recordo-me do espanto de Albert Hirschman, grande intelectual que abriu
perspectivas para várias gerações, quando assistiu a uma intervenção minha em
reunião da SBPC, realizada em Brasília, em 1976. No auge do
autoritarismo, eu criticava com veemência e mesmo com contundência os
desmandos do regime.
Ao viajarmos juntos para o interior de Goiás, - fomos visitar a antiga
cidade de Goiás de meus ancestrais -, Hirschman me disse, um tanto
ironicamente: "Hoje ouvi o tribuno, coisa que não sabia que você era..."
Fim da nota.
66
Passei boa parte da vida como professor. Comecei, aos 20 anos, no Colégio
Estadual Fernão Dias, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde lecionei História
do Brasil. Aos 21 anos, ainda aluno da Faculdade de Filosofia, mas já trabalhando
como pesquisador no Instituto de Administração da Faculdade de Economia da USP,
fui indicado pelo titular da cátedra que dirigia o Instituto, professor Mário Wagner
Vieira da Cunha, para ocupar a posição de primeiro assistente de
História Económica Geral e do Brasil, cuja titular era a professora Alice Canabrava.
Necessitei de uma autorização especial do reitor, professor Ernesto Leme, para
lecionar, pois não havia terminado a licenciatura.
Posteriormente, por vontade própria ou razões políticas, passei vários anos
ensinando no Chile, na França, nos EUA e na Grã-Bretanha, além de ter ministrado
breves cursos em outros países da América Latina. Não dominando plenamente o
espanhol e o inglês, não podia desperdiçar tempo me enredando em floreios e
adjetivações em minhas exposições. Ia direto ao ponto, não por virtude, e sim por
falta de maiores recursos verbais.
Na Faculdade de Filosofia, professores franceses nos haviam ensinado a redigir com
a clareza possível. Recordo as aulas de ciência política de Charles Morazé, que nos
fazia ler jornalistas de bom texto da época - um deles, cujos artigos recomendava
insistentemente, era Assis Chateaubriand - para aprendermos a ser sucintos e
claros. Havendo passado pelos liceus da França, nossos professores não
esqueciam que um bom trabalho escolar começa com uma introdução, na qual se
enunciam o tema e as questões principais, desdobrando-se em seguida as
questões para tratá-las uma a uma (separando-as, devidamente, com A,
maiúsculo, seguindo-se a análise do tema em partes marcadas a, b, c, d etc.,
para, na próxima questão, repetir o procedimento com B, e assim por diante) e, nas
conclusões, voltando-se ao enunciado na introdução, dessa feita esclarecido,
enriquecido e sintetizado. Não tenho a pretensão de ter aprendido bem o que me
ensinaram, embora a preocupação com a lógica expositiva tenha
ficado subconscientemente em mim e o esforço para melhorá-la também.
Um professor que se preze é avesso à demagogia, pelo menos à mais fácil.
Tendo pertencido à escola de Florestan Fernandes, aprendi que tampouco
é admissível a confusão entre ensinar e pregar ideologias ou mesmo convicções
políticas em aula. Com essa formação, meus primeiros passos na política eleitoral
seriam penosos. Não sabia como me comportar nos palanques e tinha alguma
dificuldade com os abraços intermináveis, motivo de ironia de muitos de meus
críticos. Custei a compreender que a política requer uma troca física de energias: ela
simboliza o companheirismo, o estar junto, necessários para desenvolver relações
de solidariedade. Nem em tudo, entretanto, meu treinamento como professor seria
desvantajoso na passagem para a política. Com o predomínio crescente da TV e do
rádio, ele ajudou no desempenho. Candidato em 1978 a senador por São Paulo,
participei com Cláudio Lembo, o candidato da Arena, de um dos primeiros debates
eleitorais na TV ocorridos no período autoritário. A reação de meus companheiros de
partido com maior experiência política, como Almino Affonso e Plínio de Arruda
Sampaio, ambos ex-deputados cassados, recém-vindos do exílio, foi de decepção:
faltara-me o ânimo mais acalorado, um desempenho mais espetacular.
Estavam enganados. O defeito que freqüentemente me atribuíram no decorrer da
vida, o de ser "professoral", quando temperado pelo hábito de falar com recursos
verbais destinados a públicos distintos, pode preencher algumas das expectativas
contemporâneas. A TV, um "meio frio", como é injustamente acoimada, e mesmo o
rádio, em que os locutores são explicadores da vida cotidiana, requerem mais a
argumentação não floreada do que os arroubos dos comícios. Falei em muitíssimos
comícios.
Alguns juntando centenas de milhares de pessoas, como os da campanha pelas
eleições diretas. Confesso que não ficava à vontade nessas ocasiões. Para minha
sorte, porém, a política contemporânea se pratica crescentemente pela TV e pelo
rádio, ou então em pequenos círculos e em conferências, em que me sinto como em
uma sala de aula.
O que conta efetivamente para o êxito dos que desempenham os papéis principais
na política atual é a capacidade de transmitir uma mensagem.
A política lida com conteúdos simbólicos e os líderes buscam exercer
68
a forma moderna do que Gramsci chamava, com outra conotação, de hegemonia
cultural. Isso requer qualidades de "ator", que não se dissociam da experiência
prévia de cada um. Há os que, como Lula - e Teotônio Vilela também era assim -,
conversam com o público, mesmo nos comícios; "arengam", como se diria
antigamente. Há os que ainda mantêm a postura literalmente espetacular de um
Jânio Quadros e, com a imagética rica, a gesticulação e a linguagem corporal,
"dizem algo" aos espectadores. Há várias maneiras de atuar, mas para exercer a
liderança é indispensável ter mensagens e ser capaz de transmiti-las.
Quando o sentido da comunicação é substituído pela demagogia escancarada,
surge, de imediato, o vazio da mensagem. É o que se passa freqüentemente com
políticos tradicionais. Por esmerados que sejam na sintaxe e na prosódia,
dificilmente convencem e são logo descartados da cena principal, se não usam
artifícios adicionais.
Boa parte da construção dos "marqueteiros", dos publicitários que trabalham para
partidos e políticos, consiste em criar uma atmosfera, com imagens e slogans, para
substituir o ator principal, quando este é mau no desempenho, ou para reforçar as
mensagens daqueles que as têm e sabem como transmiti-las. Em qualquer caso, os
políticos contemporâneos, pelo menos os mais significativos, tornaram-se mais
"atores" do que nunca. Devem simbolizar uma mensagem e, ao mesmo tempo,
precisam despertar confiança e, chegando ao poder, realizar algo que atenda
às expectativas despertadas.
Nesse jogo entre simbolismo e realizações práticas, o político precisa ser capaz,
pela intuição ou pelo conhecimento, de elaborar e transmitir uma "visão" dos
problemas que enfrenta, uma visão da sociedade e do país. Quando se trata de
políticos de expressão nacional, dados os condicionantes da globalização, devem
possuir algum tipo de "sentimento do mundo".
Aqui cabe novamente a ressalva: os caminhos são muitos. No meu caso, como
"sociólogo de campo" e como alguém que, por circunstâncias, participa de uma
cultura cosmopolita, sempre que pude, "dei aulas" no exercício da Presidência e
liguei o particular, o fato do dia, a questão em pauta, ao mais geral, ao
condicionamento do mundo globalizado.
Insisti em repensar os temas, sobretudo os referentes à definição das políticas
69
para atender ao interesse nacional em um mundo novo. Por isso também, sendo
chefe de partido (e freqüentemente de partidos), nunca deixei que o jogo político
partidário, necessário e cansativo, esgotasse o âmbito da política. Por "indigesto"
que fosse o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo,
procurei tratá-lo como um dos novos movimentos da sociedade. Tentei dialogar com
seus dirigentes, nos limites da lei, mesmo quando, por exemplo, militantes invadiram
a fazenda que pertencia à minha família em Buritis, no noroeste de Minas Gerais.
Confesso, entretanto, que por mais que os recebesse e me esforçasse para apoiar o
programa de reforma agrária, o diálogo revelou-se impossível. Lembro-me de que,
na primeira reunião que tive com dirigentes do MST no Planalto, eles deixaram logo
claro que pretendiam antes provocar um fato na mídia do que dialogar. Era
um pequeno grupo, e logo no início do encontro um deles, que portava a bandeira
verde, branca e vermelha do movimento, perguntou:
- Podemos abrir a bandeira? Respondi:
- Não! Bandeira, aqui, só a do Brasil. Não pode, não.
De outra feita, o grupo, em atitude típica, entrou em minha sala sem tirar os bonés
com o logotipo do movimento, atitude distante da que se espera de quem tem uma
audiência no gabinete presidencial, seja quem for o Presidente. Estavam os
principais dirigentes, entre os quais João Pedro Stédile e José Rainha Júnior. Logo
no começo, um integrante do grupo dirigiu-se a mim de maneira desrespeitosa,
chamando-me de "Fernando" Olhei para ele e disse, cortando o tom inadequado:
- O senhor está falando com quem?
Como revelarei em outro capítulo, porém, tive contatos semi-sigilosos com o
movimento. O MST pertence a um nicho de resistência à modernidade e é portador
de uma utopia regressiva, como qualifico sua ideologia, que olha pelo retrovisor.
Entretanto, a despeito de sua vontade e propósitos, é sinalizador de um problema
real: os sem-terra existem e a pobreza rural é um fato. Por essa razão, a despeito
das críticas dos que consideram um desperdício aplicar recursos nos assentamentos
rurais, bem como dos que afirmam que nada se realizou em meu governo
pela reforma agrária, desapropriei cerca de 20 milhões de hectares de terra, mais do
dobro do
70
realizado até então. Recebi os líderes do MST no Planalto em mais de uma ocasião
e, com mais freqüência, os dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura (Contag).
O simbolismo de quem exerce o poder está contido em cada gesto, em cada modo
de comportamento. Republicanos e democráticos como são meus valores - e nisso
fui estimulado e acompanhado por minha família -, procurei não transformar o
cotidiano da Presidência (afora as solenidades protocolares) em algo distinto da vida
de um professor universitário.
Procurei ouvir os que tiveram acesso a mim, o que com freqüência era entendido
como se eu estivesse sempre de acordo com o interlocutor, quando apenas não o
queria inibir com a "autoridade formal" do Presidente.35 Jamais permiti que o tom da
voz ou a rispidez no trato tolhessem as opiniões do interlocutor. E sempre achei
graça dos que, saudosos do autoritarismo, vez por outra cobravam do Presidente um
murro na mesa... Se caísse nessa tentação, emitiria sinais contrários aos de minha
pregação de tolerância democrática.
De forma menos pessoal e mais ligada à institucionalização das
práticas democráticas modernas, favoreci não só a relação
necessariamente distante e sempre arriscando a manipulação, de explicar em
discursos e entrevistas as razões das políticas, como também a de criar espaços
mais efetivos para dar ouvidos à sociedade. Tornaram-se rotineiras as audiências
públicas para elaboração de projetos de lei e respectivas regulamentações, muito
freqüentemente lançando-se mão da Internet para auscultar a reação das pessoas
e entidades e para criar um espaço de interação no processo deliberativo. Nunca
antes, como nos dois mandatos que exerci, houve tanto empenho em fazer avançar
o chamado e-govemment, quer dizer, o colocar serviços governamentais e propostas
de leis e regulamentos, antes de formalizá-los, ao alcance do público pela Internet.
Nota: 35 O Presidente francês Charles de Gaulle pronunciou frase, dirigindo-se aos
compatriotas na Argélia, que ficou famosa: "Je vous ai compra", que não implicava
concordância, O grande Presidente americano Franklin Delano Roosevelt era
conhecido por evitar a confrontação com os interlocutores. Sorria, dando a
impressão de haver concordado, para desilusão dos que assim o interpretavam. Ver
Roy Jenkins, Roosevelt, Rio de Janeiro, Record, 2005, cap. 4, "As sugestivas
ambigüidades do primeiro mandato". Fim da nota.
71
Em outros termos, agi com a preocupação de valorizar o que o cientista político
norte-americano Joseph Nye, pensando no Estado e não em lideranças individuais,
chama de soft power?6 que é outra maneira de colocar a questão da legitimidade
do mando democrático. O líder democrático, em um mundo de mensagens
intercomunicadas e de participação crescente, embora consciente dos conflitos e
das diferenças de classe, deve propor valores que possam ser compartilhados
pela parcela majoritária da sociedade. Caso contrário, perde força. Como
sua relação com os liderados não é estática, ele tentará convencê-los o tempo todo,
arriscando-se, ora a ganhar, ora a perder. Ao ganhar, buscará atrair um número
cada vez maior de pessoas, grupos, movimentos e instituições para seu lado. Ao
perder terá de ver no que se equivocou e, dentro de suas convicções, refazer,
humildemente, o circuito do convencimento que pode levar à vitória. Não sendo um
líder moral, ao ganhar, o "chefe", quando não é líder e quer mudar algo, apenas
exerce a força. Nesta hipótese, parafraseando Rousseau,37 não estabelece
uma relação propriamente política com os liderados. Ou, para parafrasear
a referência de Marx aos camponeses no 18 Brumário, governará jogando
uns contra os outros como batatas num saco. Acaba por ser a expressão das forças
sociais que se impõem por seu intermédio, e não exerce liderança genuína.
Assim como Marx escreveu que os homens fazem a História em condições dadas,
ou como Montesquieu se referiu à variação das leis conforme
Nota: 36 Joseph S. Nye, Jr., Soft Power, the Means to Success in World Politics, Nova
York, Public Affairs, 2004. Embora o autor discuta o poder no plano internacional,
suas idéias se aplicam a qualquer situação. Sem desconhecer, nas palavras dele,
que o poder inteligente combina soft com hard power (neste caso, o uso da força),
ele ressalta que no mundo contemporâneo o convencimento requer
simbolismo, atratividade (cultural e pessoal), valores, instituições e políticas
que sejam vistos como legítimos ou que tenham autoridade moral: "Se o
líder representa valores que as outras pessoas desejam seguir, custa
menos comandar" (p. 6). Para Nye, soft power não equivale a influência, pois esta
pode ser obtida pelo dinheiro ou por ameaças de uso do hard power, enquanto o soft
power implica a habilidade de atrair, e a atração leva freqüentemente à
aquiescência, como a índole do poder democrático requer. 37 "Convenhamos, pois,
que força não faz direito, e que não se é obrigado a obedecer senão às autoridades
legítimas." Jean-Jacques Rousseau, Du contraí social, edição original de 1762, em
fac-símile, comentada por Voltaire, Paris, Lê Serpent à Plumes, 1998, p. 12.
Fim da nota.
72
a natureza dos regimes políticos, não custa repetir que o "projeto", o "programa"
ou o "caminho", o rumo, ou que nome se dê aos propósitos e aos valores
sustentados pelos que governam, estão limitados pelo condicionamento material e
institucional da sociedade, por suas bases produtivas. Os condutores de mudanças
não devem imaginar que sua vontade (ou a de seu partido, grupo ou movimento)
opera no vazio da História. Tentarão exercer influência para mudar o curso das
coisas, mas pagarão alto preço se não forem capazes de identificar os limites
que, com sua liderança, estão procurando alargar.38
A liderança genuinamente democrática está índissociavelmente ligada à capacidade
de simbolizar e transmitir mensagens e, portanto, o que no fundo é a mesma coisa,
à virtude de enxergar e propor à sociedade um caminho que seja aceito pelos
liderados, ainda que de forma momentânea.
Em uma sociedade interativa, esse "projeto" não pode ser concebido como um ato
de razão ou de vontade, mas como uma construção coletiva em que uns - os líderes
- expressam melhor e simbolizam em dado momento o movimento da sociedade, o
qual necessariamente está condicionado por valores, por modelos culturais, com os
quais e sobre os quais se age. Ou o líder (digo metaforicamente, como Gramsci
falava do Príncipe, e não à moda de Maquiavel) aponta e abre caminhos ou perde
poder.
É em nome da validade intrínseca dos valores propostos e do caminho arquitetado
que o poder renova no dia-a-dia sua legitimidade, mesmo quando esta, em uma
democracia, tenha no voto e na Constituição sua base fundamental.
38 Já o grande Tocqueville mostrara os condicionantes gerais da ação dos homens
em seus painéis sobre A democracia na América e em O antigo regime e a
Revolução. Mas jamais se esqueceu de que se bem "o acaso só produz o que
estava preparado anteriormente (".)", pois "os fatos precedentes, a natureza das
instituições, o feitio dos espíritos, o estado dos costumes, são os materiais com os
quais ele produz essas viradas que nos surpreendem e nos atemorizam", nada disso
se dá sem a interferência da vontade humana. E nas suas memórias disse detestar
os sistemas intelectuais que fazem tudo depender das grandes causas primeiras,
suprimindo os homens da história do género humano, como mostra com síntese e
clareza Evaldo Cabral de Mello em Um imenso Portugal, São Paulo, Editora
34,2000, de onde tirei as citações acima.
73
CAPITULO 2
Aprendendo na política
Nossos partidos e um equívoco: as referências européias
Os atuais partidos políticos brasileiros nasceram da desagregação do regime
autoritário formado a partir do golpe de 1964. Não é necessário descrever passo a
passo a História recente, que permanece fresca na memória. Mencionarei somente
algumas características da formação partidária atual, que ajudam a compreender o
jogo político e seu significado na vida nacional.
Com as exceções de praxe, o papel que os partidos e o Congresso
Nacional desempenham tem sido avaliado de modo superficial pela
literatura especializada e pela imprensa. Isso para não falar das pesquisas
de opinião, que invariavelmente situam ambas as instituições entre as de menor
prestígio, quando não de menor serventia.
Nada mais equivocado, entretanto, do que subestimar o papel político do Congresso
e dos partidos. Os chavões sobre estes oscilam. Ora os consideram incoerentes,
sem ideologias, meras máquinas eleitorais. Ora confundem legendas com partidos e
vêem nas votações do Congresso coerência partidária, quando na maior parte das
vezes trata-se apenas de apoio ao governo ou oposição a ele. Pior ainda, muitas
vezes, nos dois casos, os parlamentares agem por motivos que nada têm a ver com
as ideologias proclamadas nos programas partidários.
Na verdade há um pouco de tudo isso em cada um dos partidos - coerência, apoio
em troca de vantagens de todo o tipo, visões ideológicas -, dependendo das regiões
e da força dos chefes políticos, bem como do momento, da formação dos dirigentes
partidários e de suas trajetórias de vida.
Mesmo alguns acadêmicos têm contribuído para uma leitura incompleta sobre os
partidos e sobre o Congresso.1 Nota: 1 À exceção dos
trabalhos de Bolívar Lamounier, de Maria do Carmo Campello de Souza e de poucos
autores mais. Ver notadamente, de Lamounier, Da Independência a Lula: dois
séculos de política brasileira, São Paulo, Augurium, 2005, e de Campello de Souza,
Estado e partidos políticos no Brasil, São Paulo, Alfa-Omega, 1976. Ver também
Simon Swartzman, Bases do autoritarismo brasileiro, Rio de Janeiro, Campus, 1982.
Fim da nota.
Talvez porque partam da referência à História política européia. Na Europa, os partidos, na acepção
moderna, nasceram como expressão da luta de classes, em sociedades rigidamente
hierarquizadas, quando o Terceiro Estado, no caso da França, ou os burgueses da
Revolução Gloriosa, no caso da Inglaterra, se opuseram à dominação estamental da
aristocracia. À medida que o capitalismo industrial se desenvolveu, as diferenciações
internas da societas civilis foram se tornando mais significativas, ao mesmo
tempo em que "os de baixo" passaram a tomar consciência da diversidade de
seus interesses e buscaram formas próprias de organização política.
Na França, os partidos socialistas, da classe operária, foram as primeiras
organizações que, de modo estrito, poderiam ser chamadas de "partidos de massa".
Nestes, as máquinas partidárias se tornaram mais complexas e burocratizadas, para
dar conta da participação ampliada de afiliados. As definições doutrinárias, por sua
vez, continham crescentemente uma visão global da sociedade e do lugar que
os trabalhadores deveriam ocupar nela. Estas definições passaram a ser critério
para a adesão ao partido. De forma menos nítida, ocorreu algo semelhante também
na Inglaterra, com o Labour Party. De fins do século XIX em diante, ser trabalhista
ou conservador tinha simultaneamente um significado social e um significado
político, um relacionado ao outro.
Ou seja, os partidos polarizavam interesses e visões "de classe". Os antigos clubes
das classes dominantes viram-se desafiados pela presença de organizações
políticas com grande número de aderentes. Elas, ademais, se estruturavam, criavam
uma burocracia partidária e sustentavam uma visão alternativa sobre o que seria a
"boa sociedade". Moviam-se ancoradas em valores que incitavam à reorganização
da produção, do consumo e da distribuição dos bens para se tornarem mais acordes
com os interesses de classe de seus afiliados e votantes. Esse modelo, por assim
dizer "clássico" de organização partidária, embora haja influenciado decisivamente a
noção corrente de partido, está longe de ter sido a única forma de organização
política no mundo contemporâneo e nem sequer a mais difundida. Houve múltiplos
modelos de vida partidária que não se orientaram por ideologias de classe. Os
partidos de tipo nazista, fascista, franquista ou salazarista aspiraram a ser a
expressão do sentimento de "todo o povo" e deram ênfase à vontade nacional,
antes do que à das classes. Essa tendência não se limitou aos desdobramentos
autoritários europeus. Os partidos "de libertação nacional", tão presentes nas lutas
anticolonialistas do Terceiro Mundo, após a independência tornaram-se muitas
vezes partidos únicos, mantendo o apelo poderoso à "união nacional" contra o
estrangeiro, contra os ricos ou contra o que fosse, diluindo e amalgamando na
mesma organização política diversos setores de classe, clãs e etnias.
Mesmo partidos originariamente classistas e nascidos em sistemas políticos mais
pluralistas, como os comunistas da Europa Oriental, se transformaram em partidos
únicos quando chegaram ao poder, embora continuassem a se proclamar "da classe
operária" e até permitissem em certos casos, só para constar, a existência de outras
pequenas agremiações.
Isso sem mencionar os partidos "religiosos", de grande influência em algumas
regiões, como na Irlanda do Norte ou, se sairmos do mundo ocidental, em alguns
países da África, do Oriente Médio e da Ásia, onde sobretudo o islamismo mas
também o hinduísmo pesam decisivamente na aglutinação política.
No extremo oposto da tradição clássica européia, os partidos fundadores da
democracia americana, embora defendendo valores e interesses distintos, nunca se
autoproclamaram classistas, nem o recrutamento de seus quadros ou de seu corpo
de votantes se deu, exclusiva ou mesmo majoritariamente, pelo critério de
pertencimento ou de afinidade com os valores de uma classe social predominante. A
clivagem inicial teve muito mais a ver com o espírito autonomista das províncias
(depois estados)
originárias das antigas colónias britânicas, em contraposição à visão federalista, que
separou os jeffersonianos dos seguidores de Madison, por exemplo.
Portanto, não há razões maiores para desqualificar os partidos brasileiros em função
de um modelo abstrato que restringe a capacidade de ação partidária coerente a
organizações políticas cuja marca seja uma ideologia definida em função dos
interesses das classes sociais. Até porque, com a fragmentação da sociedade
contemporânea, mesmo nos países europeus onde prevalecem as anteriores formas partidárias o que se vê é a
dissolução crescente do modelo classe/partido/ideologia.
Primeiro, o óbvio: o que abalou o regime militar de 1964 foi o crescimento da
sociedade urbana e de massas, acelerado pelo "milagre econômico" dos anos 1970,
e a forma desigual como ele se deu. Na época, quando se dizia que o Brasil não
estava estagnado e que havia a ampliação do proletariado urbano (ainda se
chamava assim..,) e de uma classe média, não-burocrática, ligada à expansão da
economia industrial e dos serviços, surgia logo a suspeita de que esse tipo de
análise, no fundo, justificava o
regime autoritário.
Parte da oposição "de esquerda" via por todo lado retrocesso não só político, mas
econômico, e só uma saída: a revolucionária; se não com apelo às armas, pelo
menos com força suficiente para lançar as bases do socialismo. Com este, teríamos
de novo democracia e, quem sabe, bemestar social. Coroando a antecipação do
paraíso, teríamos um crescimento econômico autônomo a ser incentivado pelo
Estado, mas não o Estado servidor das multinacionais e, sim, servidor do povo.
Não foi esse, entretanto, o rumo principal da política brasileira. Houve quem
acreditasse - como eu - que a desagregação do autoritarismo poderia dar-se por um
movimento de pinças que juntaria os participantes do poder que se tornaram seus
críticos (por vários motivos, desde interesses econômicos contrariados até a vontade
de ter mais "voz") à oposição generalizada dos outsiders. Estes últimos eram os
opositores contumazes tanto do autoritarismo quanto dos malefícios causados
pela concentração de riquezas e de privilégios: movimentos populares formados ao
redor de vários tipos de reivindicação, grupos religiosos orientados por ideologias
popular-progressistas, tipo Teologia da Libertação, intelectuais críticos, o chamado
sindicalismo "autêntico", classe média descontente etc.
Novos atores nas greves de São Bernardo
Por outro lado, começavam a ganhar força reações que mesclavam a reivindicação
operária à luta por liberdade. Essas insatisfações foram aumentando desde a greve
dos metalúrgicos de Osasco e Contagem (MG), no final dos anos 1960, ainda
permeadas pela ação de grupos ditos "subversivos", que proclamavam abertamente
o objetivo de derrubar o regime.
Nas greves de 1978, 1979 e 1980 em São Bernardo, os metalúrgicos inovaram pela
forma não-violenta que suas lutas assumiram e pela amplitude da mobilização
alcançada, abrangendo setores não ligados aos partidos então clandestinos da
esquerda tradicional. E não me refiro como forças tradicionais de esquerda apenas
ao PCB, mas também aos vários grupos e movimentos de inspiração trotskista,
maoísta ou fidelista. Pouco a pouco, consolidava-se a presença política
dos trabalhadores urbanos, independentemente de sua ligação com esse tipo de
movimento organizado. E as manifestações de apoio de setores das classes médias,
intelectuais, padres e jornalistas, sem contar estudantes, mostraram que os
sindicalistas não estavam isolados.
Já se notava a presença desses "atores sociais" na segunda metade dos anos 1970,
quando se começou a falar no papel da "sociedade civil" na política, utilizando-se
uma linguagem não usual na época. A linguagem tradicional se referia unicamente a
classes e setores de classe. O que deu força à crítica e à ação dos novos grupos foi
a perda de vigor econômico do "milagre", precipitada pelos choques do petróleo dos
anos 1970 e dramatizada pela crise da dívida externa, a partir da
moratória mexicana de 1982. Mesmo antes disso, era clara a mudança no
jogo político nacional. A repressão brutal dos governos anteriores ao do general
Ernesto Geisel e a leniência inicial deste com a continuidade da repressão,
alcançando agrupamentos políticos não ligados à luta armada - que teve como
conseqüência o assassinato em dependências do DOI-Codi, em São Paulo, do
jornalista Vladimir Herzog no final de 1975 e do operário Manuel Fiel Filho no início
de 1976 -, haviam provocado forte reação entre os setores que se opunham em
maior ou menor grau ao regime, e nas próprias elites governantes. Talvez a
primeira manifestação de massa contra o regime opressor tenha sido o
ato ecumênico realizado na Catedral paulistana da Sé, no dia 31 de outubro de
1975, em protesto contra o assassinato de Herzog.
Tudo isso só se tornou possível porque o regime, debilitado, começava a ser
impotente para manter a dura censura aos meios de comunicação. O que explodiu
como um foguete imantado na época dos grandes comícios em favor das eleições
diretas, em 1984, contudo, já se prenunciava nas greves de São Bernardo: não há
forma de ação política no mundo contemporâneo que dispense a mídia ou deixe de
se apoiar nela.
Foi a junção desses fatores que deu os contornos da "nova política".
Ela, ao contrário do que muitos desejavam, correu no mesmo leito da antiga política.
É só ver as figuras que apoiaram, por exemplo, as greves de São Bernardo: desde
partidários do regime que passaram a repudiá-lo por seus desmandos, como
Teotônio Vilela (AL) e Severo Gomes (SP), até políticos da oposição dita
"consentida", do velho MDB, como Ulysses Guimarães, André Franco Montoro e, no
caso específico, o prefeito de São Bernardo, Tito Costa. Seria de estranhar menos
a presença constante dos jovens deputados Eduardo Suplicy, Fernando Morais e
Aírton Soares e mesmo a minha, e de outros intelectuais engajados, cujo ativismo
na vida política já era conseqüência dos novos tempos.
Depois dessas manifestações de protesto, o grande movimento que marcou
a redefinição dos partidos foi a luta por eleições diretas, e, previamente, a fundação
do PT. Contarei com certo detalhe alguns episódios, não tanto por amor à minúcia
histórica, mas porque eles ajudam a explicar o atual sistema partidário.
A rede oposicionista: do MDB a Lula
No período anterior à formação do PT, quero registrar o que me recordo do estado
de espírito dos principais líderes do "novo sindicalismo"
sobre a política. Em meados dos anos 1970, mais precisamente em 1974, ainda
havia muita resistência, mesmo nos setores não vinculados às organizações
políticas revolucionárias, a aceitar o jogo eleitoral contido nos limites do
bipartidarismo imposto; Arena, apoiando o governo autoritário, e MDB, na oposição
congressual. A oposição que se pretendia "consequente" vivia distante da vida
institucional, não acreditava ser possível mudar algo por meio das eleições sob as
regras do regime e, de alguma maneira, considerava os políticos institucionais
"farinha do mesmo saco".
A política mais "pura" dava-se no âmbito da sociedade civil, com seus movimentos
reivindicatórios: a SBPC, as pastorais religiosas, as comunidades eclesiais de base,
os sindicatos, a OAB, a ABI, as Comissões de Justiça e Paz e o que restava das
organizações estudantis.
A esses setores juntou-se a "imprensa nanica", ou seja, pequenos periódicos de
oposição, como Pasquim, Opinião e Movimento. Formava-se dessa maneira uma
rede, mais do que um partido de oposição. Essa rede foi ganhando
alguma capacidade de mobilização e de influência na nascente "nova
opinião pública", uma espécie de espaço democrático num país
controlado autoritariamente.
Talvez o primeiro encontro entre essa rede e a política institucional se tenha dado
nas eleições de 1974, quando Ulysses Guimarães lançou sua anticandidatura à
Presidência da República em um pleito previamente definido pela vitória da Arena.
O candidato desta, general Geisel, teria automaticamente a maioria dos votos do
Colégio Eleitoral - instância que em tempos de eleição indireta sacramentava o
nome previamente escolhido pelos comandos militares - composto pelos membros
do Congresso Nacional somados a delegados indicados pelas assembléias
legislativas.
Ulysses, acompanhado por seu braço direito, o deputado João Pacheco e Chaves,
de tradicional liderança política paulista (ambos haviam pertencido ao velho Partido
Social Democrático, o PSD, com raízes no varguismo e sustentáculo do
conservadorismo do regime democrático pós-varguista), procurou o Cebrap. Haviam
lido artigos que alguns de nós publicávamos no semanário Opinião, notadamente
um texto que escrevi sobre o papel da oposição, no qual defendia a possibilidade de
um alargamento democrático com a utilização dos canais institucionais disponíveis.
Nossa surpresa foi grande. A de Ulysses também. Nós éramos cientistas sociais,
não ativistas políticos, e receávamos a contaminação no contato com os "políticos".
Ulysses pedia que colaborássemos na preparação do programa eleitoral do MDB, já
que em 1974, além da escolha biônica do Presidente, também haveria eleições para
o Senado, a Câmara dos Deputados e as assembléias legislativas. A colaboração
consistia na preparação de um documento definindo as propostas partidárias a
serem apresentadas ao eleitorado e, eventualmente, no treinamento dos candidatos
majoritários para os debates pela TV, pois só os candidatos ao Senado podiam
aparecer nesse tipo de programa do horário eleitoral.
O Cebrap funcionava em uma velha e cómoda casa na rua Bahia, em Higienópolis.
As paredes do casarão testemunharam os acirrados debates no que nós
chamávamos de "mesão", mesa ao redor da qual se sentou durante anos a fio boa
parte dos intelectuais críticos, que muito tempo depois, em 2005, estavam
espalhados entre o PSDB, o PT, o PMDB e os
sem partido. Colaborar ou não com setores do "regime", mesmo de oposição, no
caso o MDB, era a questão. Alguns toparam: Paul Singer, Francisco de Oliveira,
Francisco Weffort, Bolívar Lamounier, Carlos Estevam Martins, Maria Hermínia
Tavares de Almeida, eu próprio, e talvez alguns outros cujos nomes me escapam à
memória. Fomos os primeiros. Daí por diante, a cada eleição aumentava o número
dos aderentes a uma postura mais participativa, visando mudar as instituições, por
assim dizer, por dentro. O programa para a campanha do MDB de 1974 se tornaria
a matriz dos programas futuros, e não só do MDB. Nele, falávamos de sindicatos, de
salário e distribuição de renda, do direito de greve, das questões das mulheres, dos
negros, dos índios, enfim, desenhávamos uma política "social-democrática" nas
condições de então e do Brasil.
Num Brasil que já foi governado pelo PSDB e sucedido pelo PT, tudo isso perdeu
sentido. Naquela época, não. Havia tensão entre os defensores de uma política
"pura", longe do solo lamacento do Estado, fincada no sacrossanto terreno da
sociedade civil, e os que aceitavam participar das lutas políticas em partidos que
atuavam no marco da ordem vigente.
No máximo se aceitava militar de alguma maneira no PCB, como se fosse o único
depositário das esperanças redentoras da humanidade, o velho Partidão, como era
conhecido - ou em alguns de seus desdobramentos mais combativos. A herança da
esquerda revolucionária, mais na versão do Leste Europeu, da China e de Cuba do
que dos socialistas e comunistas dos tempos primevos, pairava como um fantasma
nas mentes e corações de muitas pessoas de boa vontade, como até hoje continua
pairando em alguns círculos.
Como desdobramento dessa mudança de postura por parte de setores anti-regime,
em 1977, quando nos aproximávamos das eleições de 1978, novamente alguns
dirigentes do MDB buscaram contato com os grupos da sociedade civil que se
haviam mostrado mais propensos a uma ação conjunta. Dentro do MDB, atuavam,
com significativa presença política, setores do PCB e de outras organizações de
esquerda de menor porte.
Recordo-me bem de uma reunião na casa de José Gregori, mais tarde presidente da
Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, quando se começou a
falar na possibilidade de lançamento de uma candidatura ao Senado para agrupar
as oposições à esquerda. A situação política,
mesmo antes da Lei da Anistia, de 1979,2 havia permitido a volta de líderes que
estiveram no exílio, notadamente, entre os de São Paulo, Almino Affonso, Plínio de
Arruda Sampaio e José Serra. Pois bem, de todo o numeroso grupo reunido naquela
casa um único sabia onde se localizava a sede paulistana do MDB, Flávio
Bierrenbach, advogado como Gregori, que se elegera vereador. Bierrenbach
precisou me indicar o local: no subsolo da sede da Câmara Municipal, no Viaduto
Maria Paula, no centro de São Paulo. Para lá me dirigi, depois de resolvido
que seria eu o candidato, para inscrever-me no partido.
Por que eu? Basicamente porque os candidatos naturais, os que, por assim dizer,
tinham currículo e experiência eleitoral, ainda jaziam sob o tacão do AI-5 que lhes
suspendera os direitos políticos. Eu, além de conhecido nos meios acadêmicos e
nos círculos de oposição no âmbito da sociedade civil, havia sido alcançado pelo AI-
5, que me aposentara compulsoriamente da cátedra de Ciência Política da USP em
1969, mas não fora objeto de proibição expressa de me candidatar, pois nunca
exercera mandato popular. A interpretação sobre o alcance da punição que
me impuseram permitia recursos jurídicos, e de recurso em recurso,
acabei registrado como candidato ao Senado por uma sublegenda do MDB.
Diversos artistas, intelectuais, estudantes, líderes operários e uns poucos setores do
MDB sustentaram a candidatura. Entre os artistas, Chico Buarque, que uma manhã
me telefonou cantarolando um refrão para o que seria o jingle de campanha. Ele
escrevera uma letra que cabia, compasso a compasso, nos primeiros versos da
conhecida canção Acorda Maria Bonita, de António dos Santos: "Acorda Maria
Bonita/Acorda, vem fazer café/ Que o dia já está raiando/ E a polícia já está de pé."
A letra de Chico dizia: "A gente não quer mais cacique/ A gente não quer mais feitor/
A gente agora está no pique/ Fernando Henrique pra senador"
Intelectuais de prestígio como Sérgio Buarque de Holanda, Mário Pedrosa, Florestan
Fernandes e António Cândido, entre outros, aderiram à campanha. E a ela deram
brilho artistas como Elis Regina, Lima Duarte, Regina Duarte, Ruth Escobar,
Gianfrancesco Guarnieri, Bruna Lombardi, Carlos Alberto Riccelli e Fúlvio Stefanini,
para citar só alguns nomes.
Um dia recebi um recado do principal dirigente metalúrgico de São
Nota: Lei n" 6.683, de 28/8/1979.
Bernardo, por intermédio de Francisco de Oliveira, manifestando o desejo de apoiar
a candidatura. Eu conhecera Luiz Inácio Lula da Silva no Cebrap, em 1973, trazido
pelo presidente do sindicato, Paulo Vidal, quando Francisco Weffort e Régis de
Andrade, cientistas políticos, realizavam entrevistas sobre o movimento sindical.
Não o vira desde essa ocasião e as grandes greves ainda não haviam ocorrido.
Fui até São Bernardo e me espantei com o porte, a movimentação e a máquina do
sindicato. Os militares haviam escorraçado as antigas lideranças, geralmente ligadas
ao PCB e ao velho PTB extinto pelo regime militar, que eram influentes nos setores
vinculados ao Estado:
ferrovias, portos, usinas siderúrgicas e funcionalismo público. Durante os anos do
"milagre", a onda industrializadora permitira o crescimento do operariado urbano e
dera margem à presença de lideranças não ligadas às antigas forças políticas. Os
governos autoritários não extinguiram as fontes de renda dos sindicatos. Apenas
contavam com sua despolitização e, portanto acreditavam que sequer "pelegos"
seriam os líderes, mas somente, como se diria hoje, "sindicalistas de resultados".
Ledo engano. Alguns sindicatos começaram a nuclear dirigentes combativos,
apoiados por eficientes advogados trabalhistas, e a mover ações judiciais em defesa
dos direitos dos trabalhadores. Além disso, o sindicato oferecia assistência médica,
dentária e jurídica e outros benefícios, e era um ponto de convivência. Os dirigentes
dos partidos institucionais simplesmente desconheciam essa realidade. Encontrei
Lula em uma pequena sala, cercado por companheiros, muitos dos quais,
como Djalma Bom e José Cicote, viriam a se destacar, anos depois,
como vereadores, deputados ou dirigentes partidários. Tivemos conversa direta. Lula
disse que se dispunha a me apoiar, que poderia fazer pouca coisa, mas que eu iria
contar com a ajuda do advogado do sindicato, Almir Pazzianotto, deputado estadual
pelo MDB, que votaria em mim na convenção do partido (para ser candidato por
uma sublegenda eu precisaria obter 20% dos votos dos delegados à convenção, e
os candidatos tradicionais se opunham a me dar
uma vaga).
A reunião foi simpática, mas um tanto chocante. Estávamos amontoados na salinha
de Lula, fumavam muito, e as palavras, por exemplo, para pedir um copo de água ou
para passar um cinzeiro eram quase ríspidas,
na percepção de um professor universitário educado dentro de formalidades
tradicionais. Perguntei a Lula por que resolvera me apoiar.
A resposta foi elucidativa:
- Porque você não faz como os outros que vivem dando lições aos trabalhadores,
dizendo o que eles devem fazer, nem se diz senador dos trabalhadores.
Tratava-se de indireta pouco sutil. Montoro, com intensa atividade parlamentar em
favor dos trabalhadores - propôs e viu aprovado, entre muitas medidas, o salário-
família - e iniciativas como a distribuição de cartilhas em defesa dos direitos
trabalhistas, era a quem Lula se referia. O jovem sindicalista já aspirava, talvez sem
ter plena consciência, a uma posição "autónoma" e ao direito de ser o líder
dos trabalhadores.
Não que Lula tivesse uma visão politizada. Diferentes episódios reforçam minha
interpretação de como "o novo" nascia, sem o saber, muito misturado com práticas e
visões tradicionais. Menciono apenas duas passagens para esclarecer esse ponto. A
primeira se deu em 1979, quando Almino Affonso, Plínio de Arruda Sampaio, José
Serra e eu, entre outros, estávamos organizando com Lula o Encontro de São
Bernardo, destinado ajuntar setores "autênticos"-mais aguerridos - do
MDB, militantes de esquerda de várias organizações, sindicalistas, setores da Igreja
e intelectuais para decidir passos conjuntos, fosse no sentido de fortalecer o MDB
fosse, eventualmente, no de tentar fundar um novo partido.
Almino Affonso e eu fomos uma manhã à casa de Lula, modesta casa de
vila suburbana. Lá o encontramos com o sindicalista Enilson Simões, o "Alemão"
uma espécie de seu secretário - pertencia ao Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8), agrupamento político àquela altura tido como ligado a Cuba, o que
Lula parecia ignorar. Queríamos convencer nossa principal contraparte sindicalista
da conveniência de levar para o encontro, que antecipava a reformulação
partidária, dirigentes da "oposição sindical", alguns muito próximos à Igreja Católica,
como António Flores, outros independentes, ativistas de organizações esquerdistas.
Lula se opunha, pois achava que esses "politiqueiros", como dizia, nada tinham a
ver com os verdadeiros sindicalistas, ou seja, com os que atuavam dentro dos
sindicatos oficiais existentes. Finalmente, acabaram todos convidados.
Segundo episódio, este útil para mostrar que a evolução política alcançou muita
gente. Tempos depois, houve um encontro de Lula com Ulysses
Guimarães no apartamento onde eu então residia, à alameda Joaquim Eugênio
de Lima, em São Paulo. Airton Soares convencera Lula a comparecer. Tanto o
deputado como eu imaginávamos possível levá-lo para o MDB. No dia aprazado eu
deixei minha chácara, em Ibiúna, e voltei a São Paulo de carro. Chovia muito, um
pneu furou e, dada minha pouca habilidade manual, não consegui trocá-lo. Pedi
carona e cheguei quando os convidados já se encontravam em minha casa. Lula
ouviu, falou bastante, manifestou-se simpático às nossas teses gerais.
Não mencionamos nada de concreto. Depois de sua partida discutimos a hipótese
de formar um departamento sindical no MDB. Ulysses Guimarães, àquela altura
líder indiscutível do partido e mesmo das oposições, não se sensibilizou com a
possibilidade. Estávamos ainda em uma época em que, para Ulysses, partido era
uma coisa, sindicato outra muito diferente e não deveria haver mistura de estações...
Apenas para ressaltar a visão "despolitizada", quer dizer, distante não somente dos
partidos, mas de práticas institucionais, relato outro episódio. No desenrolar da
greve de 1979 em São Bernardo houve um momento no qual coube recurso ao
Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo para julgar os direitos
reclamados pelos trabalhadores e a legitimidade da greve. Almir Pazzíanotto,
advogando a causa do sindicato, me convidou para assistir com ele ao julgamento,
pois acreditava que haveria uma decisão histórica, com a vitória dos trabalhadores,
pela primeira vez no regime militar. Fornos ao julgamento e houve a vitória: o TRT
acolheu algumas reivindicações sem declarar a greve, em princípio, ilegal. Do TRT,
que ficava nos arredores da avenida Ipiranga, no centro de São Paulo, seguimos
para São Bernardo no carro de Almir para comunicar o sucesso. Chegamos ao
estádio de futebol de Vila Euclides, onde os trabalhadores se reuniam em
assembléia. Entrando pelos fundos, atravessamos a massa de operários até chegar
ao pequeno palanque onde estava Lula. Comunicamos o resultado e Lula se dirigiu
aos companheiros para encaminhar o fim da greve. A massa protestou,
pois continuava altamente mobilizada e desejava alcançar ainda mais resultados do
que os acordados pelo TRT, sem perceber que o simples fato de uma decisão
considerar a greve legal era histórica. Lula, habilmente, para não perder a confiança
dos liderados, propôs a continuação da greve, logo aprovada entusiasticamente.
Terminada a assembléia, tomamos o mesmo carro de volta com Lula e
outro dirigente sindical. Lula, que acabara de propor a continuação do movimento,
nos disse:
- Precisamos terminar essa greve. Ao que Almir perguntou:
- Mas, como? Vocês agora saíram da lei.
Com efeito, a partir daquele momento a continuidade da greve representava um
desafio à decisão do TRT. Na noite seguinte, eu jantava com Lula e com o jornalista
e deputado estadual Fernando Morais em um boteco próximo ao sindicato quando o
rádio informou que Lula tivera os direitos sindicais suspensos pelo ministro do
Trabalho. Levei-o em meu carro ao sindicato, e ele me disse:
- Pois é, não dá mesmo para fazer no Brasil um sindicalismo como eles têm lá na
Argentina.
Conto esses episódios para mostrar, primeiro, que o distanciamento "dos políticos"
caracterizava quase toda a oposição ao regime, com exceção dos que militavam no
MDB e no PCB. Buscava-se uma ação política "fora da política", longe do modo
como esta se dava nos partidos e no Parlamento. Segundo, que nenhum de nós
tinha muita clareza sobre a melhor forma partidária ou sobre qual seria a relação
correta entre política e sociedade. Lula, em discursos publicados, disse que ele só
se deu conta da necessidade de ultrapassar os muros das fábricas e dos sindicatos
após as grandes greves, a mais marcante das quais foi possivelmente a de 1979.
Um testemunho sobre os primórdios do PT
A formação do PT, posterior aos fatos que narrei, deu-se quando havia competição
pela liderança do movimento sindical entre Lula e Benedito Marcílio, presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André (SP)
que se elegeu deputado federal. Marcílio mantinha relações com a Convergência
Socialista, uma facção ligada ao movimento trotskista internacional. Aproveitou um
congresso dos metalúrgicos realizado em Lins, a 430 quilómetros de São Paulo, em
janeiro de 1979, para lançar a idéia de um partido dos trabalhadores. Lula só
encampou a proposta posteriormente, embora alguns sindicalistas de São Bernardo
tenham colaborado com os autores do manifesto em prol de tal partido.
Anteriormente a isso,
Lula comparecera, e eu também, a um encontro de dirigentes sindicais, sobretudo
petroleiros, em Camaçari, na Bahia, em 1978, com, entre outros, Jacó Bittar, da
região de Campinas, Henos Amorina, de Osasco, Paulo Skromov, do Sindicato dos
Coureiros de São Paulo, Hugo Peres, dos eletricitários de São Paulo, José Cicote,
dos metalúrgicos de São Bernardo, e Arnaldo Gonçalves, dos metalúrgicos da
Baixada Santista (SP), ligado ao PCB. Na reunião mencionou-se a possibilidade da
formação de um partido de trabalhadores.3
A idéia de um novo partido estava, portanto, no ar, alimentada pela expectativa do
fim do bipartidarismo. Entretanto, transcorreria um ano, com muita discussão e
muitos episódios, até que viesse a alteração efetiva na legislação para permitir a
formação de partidos, em dezembro de 1979, antes de o PT ser lançado
formalmente, o que ocorreu em reunião no dia 10 de fevereiro de 1980 no
tradicional Colégio Sion, na avenida Higienópolis, em São Paulo. A partir daí, o tom
do partido passou a ser dado pela presença não só de sindicalistas "puros" como
de dirigentes sindicais vindos de outros setores que não o metalúrgico,
e principalmente de militantes católicos, oriundos das experiências
das comunidades eclesiais de base, além de intelectuais independentes e quadros
de várias organizações de esquerda, alguns ligados a grupos que no passado
apoiaram a luta armada. E o tom do PT, nos tempos iniciais, era de distanciamento
da política institucional.
O debate que marcou a separação de muitos de nós, participantes das discussões
prévias sobre o novo partido, da formação do PT teve relação direta com esse
distanciamento. Eu não acreditava no caminho de um partido que imitasse a
tradição da esquerda europeia. Preferia, como escrevi na época, um partido dos
assalariados em vez de um partido dos trabalhadores, com a conotação de partido
proletário. Tampouco acreditava em política sem alianças. Defendia, portanto,
o pluripartidarismo e o policlassismo. No movimento sindical houve discrepância
semelhante: os sindicatos sob influência do PCB e do MDB formaram a "unidade
sindical", de inspiração partidária, e os demais se agruparam no "sindicalismo
autêntico"
Nota: 1 E Margareth Keck, PT: a lógica da diferença, o Partido dos Trabalhadores na
construção da democracia brasileira, São Paulo, Ática, 1991, e Rachel Meneguelo,
PT: a formação de um partido, 1979 - 1982, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989.
Fim da nota.
que se pretendia desligado dos partidos. Posteriormente ocorreram novas cisões
na organização das centrais, dando lugar à Central Única dos Trabalhadores (CUT),
à Central Geral dos Trabalhadores (CGT), à Força Sindical e outras menores.
Embora não houvesse relação direta entre os sindicatos e os partidos, o espírito dos
debates e as dúvidas reinantes guardavam relação com a discussão sobre a
natureza dos partidos, a relação entre as classes, uma visão de revolução à antiga
ou não, e a autonomia do movimento sindical diante das agremiações partidárias.
Minha iniciação na política partidária
Como eu decidira permanecer no MDB, a partir de 1979 transformado em PMDB,
dediquei-me, com Mário Covas, Almino Affonso e Alberto Goldman, a reorganizar o
partido no estado de São Paulo. Não só cumprimos essa tarefa como fomos
adaptando o programa partidário na direção das idéias apresentadas pelo grupo do
Cebrap em 1974. Tornei-me, após as eleições de 1978, vice-presidente do PMDB.
Quando Covas se afastou da direção em 1982 para se candidatar a deputado
federal, na campanha que levou Montoro ao governo de São Paulo, assumi a
presidência da seção paulista, a principal do partido no país. Nessa posição,
participei da mobilização pelas eleições diretas.
A militância no MDB e no PMDB me ensinou muito a respeito do funcionamento e do
jogo político dos partidos. Substituindo Montoro, entrei no Senado em 1983, ainda
na vigência do regime autoritário, mas em seus momentos de agonia. Ainda assim, o
Congresso espelhava impotência: corredores vazios, o monopólio absoluto da pauta
exercido pela maioria, e esta submetida ao controle estrito do Planalto. Mesmo
as relações pessoais entre governistas e oposicionistas eram escassas
e submetidas ao "patrulhamento" Recordo-me de que o senador Virgílio Távora
(CE), vicelíder do governo e seu porta-voz para questões económicas, um dia me
convidou para almoçar. Nossas famílias tinham relações históricas desde as
revoluções dos tenentes de 1922 e 1924, das quais participaram tanto membros da
família Távora como meu avô, meu pai e vários outros parentes. Conversei com
Ulysses sobre o convite.
Ulysses me aconselhou cautela. Decidi aceitá-lo, mas, para evitar intrigas, marquei o
almoço em
lugar visível e terreno costumeiro da oposição em Brasília: o restaurante Tarantella
(depois Piantella).
Na mesma época, recebi convite para um jantar no Itamaraty em homenagem ao
Presidente do México, Miguel de Ia Madrid, que visitava o Brasil. Era normal, mesmo
durante o regime militar, que poucos representantes da oposição estivessem
presentes a esse tipo de encontros formais. Quando ia tomar lugar à mesa, um
ajudante-de-ordens do Presidente Figueiredo se aproximou dizendo que ele queria
me conhecer. Em solenidades como aquela, antes de entrar no salão principal do
magnífico edifício do Itamaraty, os presidentes permanecem em um amplo hall, o
Salão Portinari, como se chama, devido aos grandes painéis do pintor que exibe.
Para lá me dirigi e, em pé, troquei frases protocolares com o Presidente.
Conversamos durante dez minutos, no máximo. Figueiredo foi simpático e gentil. Ele
perguntou sobre meu pai, àquela altura já falecido, e comentamos a relação que o
uniu a seu pai, Euclydes Figueiredo, ambos militares e envolvidos nas revoluções
das décadas de 1920 e 1930, ambos tendo vivido situações de exílio - meu
pai, confinado na Amazônia; o general Euclydes, asilado na Argentina -, em épocas
diferentes. Contei ao Presidente que tinha morado em uma rua do bairro paulistano
do Morumbi que levava o nome de seu pai. Como a Prefeitura não havia colocado a
placa indicativa, eu próprio mandara fazer uma e a afixara. Aproveitei para,
sutilmente, cutucá-lo sobre as eleições diretas para a Presidência - o país fervia com
a questão, e não havia declaração pública do Presidente contra ou a favor.
Figueiredo procurou não ser taxativo, mas me deixou a impressão de que não
se oporia a uma eventual decisão do Congresso nessa direção. No final, abraçou-
me cortesmente. Foi a única vez em que falei pessoalmente com o general
Figueiredo. Nos dias seguintes, notinhas nos jornais e até uma crónica na revista
Manchete sobre tão inusitado encontro. Que classe de conchavos teríamos feito?...
Depois de derrotado nas eleições de 1974, o regime se prevenira para não perder o
controle do processo político. O "pacote de abril" de 1977 modificou a Constituição
para criar os senadores biônicos (um em cada três senadores nos estados não era
eleito, mas escolhido pelas assembléias legislativas), aumentar
desproporcionalmente aos demais a representação dos pequenos estados na
Câmara e adiar, de 1978 para 1982, as eleições diretas para governador. No
intervalo de tempo entre esses fatos e minha
ida para o Senado, entretanto, muita coisa mudara, principalmente, tinha havido um
afrouxamento da censura aos meios de comunicação. A Emenda Constitucional n°
11, de 13/10/1978, pôs fim ao AI-5 e ao bipartidarismo. A Lei de Anistia, em 1979,
reabilitou para a política lideranças cassadas. A nova legislação partidária, no
mesmo ano, permitiu a formação dos novos partidos; além do Partido
Democrático Social (PDS), partido que apoiava o governo e substituíra a Arena, do
PT e do PMDB, criou-se o Partido Popular (o PP, liderado por Tancredo Neves, que
acabaria se fundindo ao PMDB em 1982), e Leonel Brizola organizou o PDT após
perder a legenda do velho PTB de Getúlio para a deputada Ivete Vargas, de São
Paulo, por ingerência do chefe da Casa Civil de Figueiredo e principal estrategista
do governo, o general Golbery do Couto e Silva.
Tudo isso propiciou um novo clima político. Talvez a primeira rachadura a abalar o
bloco governista no Congresso haja sido a rejeição de uma lei salarial, na verdade
um decreto-lei de 1983 - parte integrante do acordo com o FMI -, que a oposição
considerava arrocho salarial. Acabou sendo derrubado no dia 6 de junho.
Derrotados, os parlamentares governistas levantaram uma série de dúvidas sobre o
processo de votação e tentaram impugná-lo. O presidente do Congresso, senador
Nilo Coelho (PDS-PE), tinha que tomar uma decisão sobre se a votação fora válida
ou não. O governo pressionava intensamente, porque a lei salarial seria um dos
pilares da política económica de então. Houve uma tensão imensa madrugada
adentro, com a oposição insistindo na validação - principalmente o senador
Saturnino Braga (PMDB-RJ) e eu, que tínhamos respeito e estima pelo senador Nilo.
Com coragem, Nilo validou a votação, proclamou o resultado, e vencemos. Mesmo
assim, as pressões e críticas do governo contra Nilo continuaram, só cessando com
a promulgação da decisão, publicada no Diário do Congresso Nacional a 13 de
agosto. O episódio, a meu ver, deixou marcas no senador, submetido a um brutal
estresse. Em novembro, Nilo Coelho sofreu um enfarte e faleceu.
A convergência da oposição institucional com a opinião de pessoas ligadas ao
governo, mas que se opunham às medidas mais arbitrárias, somada ao vento forte
das ruas e ao barulho da mídia - na época ainda um sussurro -, precipitavam a crise
do regime. O quadro internacional igualmente mudara. Além da crise da dívida
externa, a onda democratizadora desencadeada na Europa, especialmente na
Península Ibérica, com
91
o fim das ditaduras de corte fascista em Portugal, em 1974, e na Espanha, em 1975,
alcançava a América Latina. A derrota contra o Reino Unido na Guerra das Malvinas,
em 1982, acelerou a desagregação do autoritarismo na Argentina. No Brasil seria
uma questão de tempo.
Restava saber como se daria o desenlace. A partir de 1982, com a vitória do PMDB
nas eleições diretas para governador em dez estados, notadamente em São Paulo,
com Montoro, e em Minas Gerais, com Tancredo Neves, sem esquecer de Leonel
Brizola (PDT) no Rio de Janeiro, dava a impressão de que um sopro seria capaz de
fazer o regime desabar. Este sopro viria a ser a campanha pelas eleições diretas
para a Presidência, as "Diretas Já".
A derrota das Diretas Já e a opção por Tancredo
A arrancada da campanha das Diretas Já foi fruto do descortino e da persistência de
um homem, André Franco Montoro. Às vésperas do memorável comício da Praça da
Sé, em 25 de janeiro de 1984, todos nós, da Executiva do PMDB paulista,
achávamos que o governador Montoro arriscara muito convocando o povo às ruas
em pleno regime autoritário para clamar por eleições. Informei o governador das
resistências no partido. Ele procurou os outros partidos. O mesmo desânimo, apesar
de já ter havido um comício em Curitiba com razoável apoio popular.
O PT, como sempre, queria marchar só. Compareci ao comício em favor
das eleições diretas convocado pelos petistas em frente ao Estádio do Pacaembu,
em São Paulo, em novembro de 1983. Nenhum outro líder não-petista apareceu;
temiam as vaias dos "companheiros". Só não me vaiaram porque coube a mim o
dever de transmitir a triste notícia da morte do senador Teotônio Vilela (PMDB-AL),
que àquela altura, pregando em favor da anistia e das liberdades públicas por todo o
Brasil, a despeito do câncer incurável que o consumia, tornara-se uma espécie
de unanimidade nacional.
Novamente, a clivagem que se manifestara nas discussões sobre a formação dos
novos partidos marcou o início da campanha das Diretas. O PT tentou levar adiante
sozinho a mobilização popular. Passaram-se vinte anos para que o partido
aprendesse a construir alianças para alcançar os objetivos desejados, embora nem
sempre faça as melhores composições, como se pôde verificar no governo Lula. Na
época das Diretas Já, somente
quando a força da massa mostrou nas ruas que a questão não era a de saber
"quem" convocava as manifestações, mas em nome do que (da democracia) e
contra quem (o regime autoritário), tornou-se possível a junção das forças
democráticas.
Também me recordo de uma reunião, naquele mesmo janeiro de 1984, na chácara
de Ibiúna, com vários dirigentes do PMDB, inclusive Ulysses Guimarães. Lá, à noite,
vimos pela TV o general Figueiredo dizendo que Diretas Já era "subversão". Nossas
dúvidas cresceram; diante das ameaças será que o povo irá mesmo às ruas?
Pois bem, foi Montoro quem desafiou os poderosos. Ele tinha o sentimento das ruas.
Soube antes o que nós vimos depois: não éramos nós àquela altura que estávamos
sozinhos, mas sim o governo, o regime. A tal ponto que as TVs, apesar da pressão
que sofriam do governo e da virtual autocensura que praticavam, passaram a
registrar a sagrada ira pela democracia, porque era impossível não fazê-lo. Mesmo
a Rede Globo, que procurou diminuir a importância do fenómeno que tomava conta
do país, acabou tendo que se render à opinião pública.
Nunca me esquecerei do dia do grande comício da Praça da Sé, no coração de São
Paulo. Participava, com Montoro, de solenidade comemorativa do aniversário da
USP quando José Gregori me chamou ao telefone com urgência. Gregori, deputado
estadual pelo PMDB, estava na Sé nos esperando e, para surpresa de todos, era de
tal porte a multidão que o som dos alto-falantes não chegava aos mais distantes do
palanque. Nem mesmo o entusiasmo de Osmar Santos, o locutor das Diretas Já,
acalmaria a massa, que esperava as palavras de ordem dos líderes políticos.
Empenhamo-nos a fundo na campanha. No final, embora tivéssemos obtido
a maioria dos votos da Câmara na madrugada de 26 de abril de 1984 - 298, contra
65 e 113 ausências -, não conseguimos atingir 320 votos, a maioria qualificada
necessária na época para alterar a Constituição.
Como líder no Senado, pronunciei o discurso a favor da emenda pelas Diretas,
apresentada pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT). A defesa do ponto de
vista contrário, dificílima, coube ao líder do governo, deputado Nelson Marchesan
(PDS-RS), em um discurso corajoso, vibrante.
Mas, claro, não foi por isso que perdemos: nessas horas ninguém vota em função
de belas palavras. Os parlamentares entravam no plenário com
a "cabeça feita". Derrubada, a emenda Dante de Oliveira na Câmara terminou sendo
arquivada, sem ser apreciada pelos senadores presentes à reunião do Congresso.
Não faltou quem maldosamente dissesse que alguns, como Tancredo Neves e eu
próprio, preferíamos perder. Políticos do PT - a começar pelo próprio Lula-anteviam
a possibilidade de a oposição vencer no Colégio Eleitoral e achavam que um grupo,
com Tancredo à frente, vinha arquitetando a própria vitória desde a campanha das
Diretas Já. Não se julgavam fatos, e sim supostas intenções. Era a "política da
infâmia", de acusarnos de "traições", sendo eles os "puros". Da minha parte
asseguro: é falso. O que eu não quis, após a derrota, foi transformá-la em
cataclismo ainda maior, com a vitória no Colégio Eleitoral do ex-governador biônico
de São Paulo, Paulo Maluf, ou do coronel Mário Andreazza, ministro
dos Transportes e candidato do Presidente Figueiredo, que disputavam a indicação
do PDS, vencida por Maluf. Este já àquela altura simbolizava tudo o que não
desejávamos, desde a conivência, e mesmo o protagonismo, com práticas
inaceitáveis que mesclavam o público com o privado, até a arrogância cúmplice com
o regime autoritário.
Nos dias seguintes à decisão, derrotados que fomos no Congresso, outra vez as
águas oposicionistas se separaram. Propus em discurso no Senado o lema
"Mudança já", em vez de "Diretas Já", defendendo que participássemos do Colégio
Eleitoral, para aproveitar o clima de insatisfação crescente e derrotar o candidato do
governo. Ganhamos paulatinamente o apoio da maioria do partido, principalmente
depois que Montoro, abrindo mão de qualquer pretensão de ser candidato
à Presidência (títulos para isso possuía), subscreveu algo que vinha sendo
articulado em Brasília, São Paulo e Minas - a candidatura de Tancredo Neves.
Ulysses Guimarães resistia a essa manobra (para não falar no PT, que
a "denunciara"), apoiado dentro do PMDB por um grupo purista, integrado entre
outros por Flávio Bierrenbach, a essa altura deputado federal, e pelo também
deputado federal Pimenta da Veiga (MG). Durante um jantar em Brasília, na
Churrascaria do Lago, presentes Ulysses, Pacheco e Chaves, Pedro Simon e eu
(talvez outros mais), defendi nossa ida ao Colégio Eleitoral apoiando um candidato
de oposição. Disse Ulysses: - A responsabilidade é de quem for. Eu não irei.
Retruquei que dos ali presentes eu pagara o preço mais alto pela ditadura: vivi no
exílio, perdi a cátedra, tinha ido parar no DOI-Codi.
Também por isso, queria logo mudar as condições políticas, com eleições diretas ou
indiretas.
A articulação pró-Tancredo, enquanto isso, seguia firme, tendo como principais
protagonistas o deputado Fernando Lyra (PMDB-PE), o senador Affonso Camargo
(PMDB-PR), oriundo do ex-PP de Tancredo e muito próximo ao governador mineiro,
vários políticos de Minas e o pessoal de São Paulo ligado a Montoro. O governador
de Minas, porém, mantinha-se discreto, quieto. Lembro-me de um jantar com ele e
Affonso Camargo no apartamento de Fernando Lyra em Brasília. À mesa, discutiu-se
a conveniência de sua candidatura, pela óbvia circunstância de ser o nome mais
capaz de atrair apoios no Colégio Eleitoral. Matreiro, Tancredo relutou, dizendo:
- Eu, de jeito nenhum. Não posso deixar de servir a Minas. À saída, me pegou pelo
braço e disse:
- Vá se preparando, é a sua vez.
Percebi de imediato que seria ele o homem, pois, dentre tantos nomes de peso no
PMDB, eu, senador verde de primeiro mandato, e ainda mais tendo chegado à
cadeira na condição de suplente, não poderia de forma alguma ser candidato.
Apesar de sua relutância em ir ao Colégio Eleitoral, e, já depois de ter concordado
com a idéia, Ulysses não somente foi, como comandou a vitória de Tancredo a
despeito da legítima ambição que ele próprio alimentava de ser o candidato das
oposições à Presidência pelo voto direto. Jatobá frondoso, Ulysses sabia resistir aos
ventos. Mas sabia, também, que alguns galhos se perdem. Comportou-se de modo
admirável. Roberto Gusmão, chefe da Casa Civil do governo Montoro, dera uma
entrevista à revista Veja um mês após a derrota da emenda das Diretas4 dizendo
que "São Paulo" (isto é, Montoro) apoiava a candidatura de Tancredo.
Ulysses, como fazia habitualmente, foi me ver na sede do PMDB paulista, na
rua Pio XII, no bairro da Bela Vista. Reproduzo de memória a conversa que tivemos,
de pé, olhando os jardins pela janela, na sala de minha secretária, Lola Berlinck:
"Páginas amarelas", edição de 24/5/1984.
- Que história é essa do Gusmão? É o Montóro? - perguntou-me com seu jeito de
carregar a paroxítona no nome do governador.
Respondi:
- Sim, Doutor Ulysses [era como todos o chamavam].
E ele:
- E você, o que pensa?
Dei uma das respostas mais sofridas da minha vida:
- O senhor sabe como eu o estimo, Doutor Ulysses. Mas, para ganhar no Colégio
Eleitoral, só o Tancredo, de quem não sou tão próximo. Ele conta com mais apoio.
Ele perguntou:
- No meu lugar, o que você faria?
- Iria a Minas, para apoiar Tancredo, e chefiaria a campanha dele.
Ulysses me olhou com a mirada de jacaré que sabia ter, gélido, polido
e firme:
- É, mas quero ouvir isso do Montóro.
E assim se fez. Jantamos no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, o
governador Montóro, Ulysses, Gusmão e eu. Conversa de "cerca-lourenço", até que
Ulysses nos intimou:
- Quero saber a opinião de cada um de vocês sobre o Colégio Eleitoral.
Demos, novamente constrangidos, nossas opiniões. Grande Ulysses. Voou para
Belo Horizonte, selando seu apoio ao governador de Minas num jantar no Palácio
das Mangabeiras, a 20 de junho de 1984, chefiou a campanha, ajudou a definir o
Ministério de Tancredo. E coube ao VicePresidente José Sarney, efetivado no cargo,
haver-se com ele depois da trágica morte de Tancredo, a 21 de abril de 1985.
O PT julgou um erro disputar no Colégio Eleitoral, pois teríamos poucas chances de
vitória. Considerou, sobretudo, que era uma manobra para coonestar o regime. Não
faltaram acusações, como disse, de que durante a campanha das Diretas o que
alguns de nós queríamos mesmo eram eleições pelo Colégio Eleitoral... Sem o apoio
do PT - exceto pelos deputados Airton Soares (SP), Bete Mendes (SP) e José
Eudes (RJ), que em decorrência foram expulsos do partido -, Tancredo Neves
ganhou por 480 votos a 180 na histórica eleição de 15 de janeiro de 1985 e, depois
de sua morte, José Sarney se tornou Presidente da República.
O pacto com os demónios beatificados
Outra vez, a circunstância incrível de termos elegido como Vice-Presidente um
político "do regime", que fora presidente do partido sucessor da Arena, o PDS, e que
se tornou depois Presidente da República, mostra a ambigüidade do jogo político e
abre pistas para entender como ele se dá no Brasil. Aliás, não só aqui: a Espanha
é outro exemplo de transição para a democracia na qual os "puros" ou influíram
menos do que gostariam ou tiveram que pactuar com os anjos decaídos, ou melhor,
com os demónios beatificados.
Na verdade, além das razões políticas que levaram Tancredo a preferilo, Sarney se
tornou Vice-Presidente graças a uma tecnicalidade. Aqui, cabe recordar que a
eleição de Tancredo só foi possível diante da inconformidade de importantes
setores do PDS com o crescimento - graças a práticas de aliciamento que
condenavam - da candidatura Maluf dentro do partido. Esse grupo, tendo à frente os
senadores Marco Maciel (PDSPE)
e Jorge Bornhausen (PDS-SC) e o Vice-Presidente de Figueiredo, Aureliano Chaves
(PDS-MG), afastou-se do partido oficial, agrupou-se na Frente Liberal (que não
tardaria a se tornar o PFL) e, em coligação com o PMDB, formou a Aliança
Democrática que derrotaria Maluf. Aureliano chegara a aspirar à Presidência, mas
desistira de disputar. Sarney, que se integraria aos dissidentes, havia sido eleito
senador pelo Maranhão pela legenda da Arena sete anos antes, em 1978. Outro
candidato, que talvez gozasse da preferência do PMDB, Marco Maciel, se elegera
senador por Pernambuco já pelo PDS, uma reformatação da Arena. Segundo as
leis partidárias de então, parlamentares eleitos pelos vários partidos criados após a
Emenda Constitucional n° 11 perderiam o mandato se concorressem à Presidência
trocando de legenda. Essa regra, descobriu-se logo, não alcançava Sarney, que
poderia filiar-se sem problemas ao PMDB e disputar pelo partido.
Fosse Sarney ou fosse Marco Maciel, ambos vinham do "antigo regime" e teriam de
ser absorvidos pelos oposicionistas "históricos" e por outros nem tanto, mas que no
decorrer do processo político se juntaram no PMDB. A verdade é que tanto Sarney
como Maciel, bem como Aureliano ou Bornhausen, foram fundamentais para ampliar
a cisão dentro do sistema autoritário. Aos poucos, constituíram uma oposição interna
no PDS
e se opuseram ao continuísmo do regime, que seria obtido com decisão palaciana
predefinindo o futuro Presidente, graças ao controle do PDS, com Maluf ou
Andreazza. Assim como ocorrera, bem antes, com Severo Gomes e Teotônio Vilela,
voltaram-se contra o regime autoritário e ajudaram a encerrar seu ciclo.
Não tive papel relevante nas articulações entre o PMDB e a dissidência do PDS. Do
lado do PMDB, elas estiveram a cargo de Ulysses, Tancredo, Affonso Camargo e
Pedro Simon, entre outros. Marco Maciel e Bornhausen, aos quais se juntaria
depois Aureliano, falavam pela dissidência. Pude participar de alguns episódios das
tratativas, como conversas na casa de Bornhausen, com Simon, facilitadas pela
circunstância de que os três, além de Maciel, morávamos no mesmo edifício da SQS
309 de Brasília.
Meu principal papel acabaria sendo involuntário e casual, e teve a ver com a
divulgação precoce do rompimento de Sarney com o PDS. O estreito contato que,
juntamente com Simon, mantinha com nossos vizinhos de apartamento Maciel e
Bornhausen na época em que ambos se preparavam, junto com outros
companheiros, para romper com Figueiredo me permitiu saber que Sarney estava
se aproximando do grupo, que àquela altura já incluía Aureliano. Sem me dar conta
da inconfidência, a bordo de um avião entre Brasília e Rio, a caminho de Paris,
onde iria proferir na Sorbonne a conferência "Marc Bloch", a convite da École dês
Hautes Études en Sciences Sociales, me encontrei com o jornalista Ricardo Noblat,
do Jornal do Brasil, e adiantei a ele os rumores. No dia seguinte tudo saiu
estampado no jornal, precipitando os acontecimentos.
Foram dias tensos, aqueles, que não haja dúvida a respeito. Temia-se, por exemplo,
uma reação militar a um candidato oposicionista com chances. Pode-se medir a
temperatura da preocupação com as Forças Armadas pelo fato de que chegou a
haver conversas sobre para onde iria Tancredo na eventualidade de um
pronunciamento militar. Instigado por Roberto Gusmão, um discreto articulador
desse delicado assunto foi o banqueiro e ex-prefeito de São Paulo Olavo Setúbal,
ex-companheiro de Tancredo no extinto PP. Decidiu-se que o destino de Tancredo
seria alguma cidade do Sul. O general Leônidas Pires Gonçalves, comandante
do então denominado III Exército, com quartel-general em Porto Alegre e jurisdição
sobre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, era muito próximo ao
governador paranaense, José Richa (PMDB), de quem se tornou amigo após
exercer, anos antes, um comando em Curitiba. Leônidas se opunha a qualquer
ruptura da normalidade e seria posteriormente escolhido por Tancredo para ser
ministro do Exército, cargo que exerceu durante toda a Presidência de Sarney.
A propósito de preocupações militares, vale narrar um episódio. Depois de eleito, um
dia Tancredo, demonstrando alguma inquietação, visitou-me em meu apartamento
em Brasília. A essa altura, eu, que não pertencia originalmente a seu círculo íntimo,
tornara-me muito próximo do Presidente eleito. Após sentar-se no sofá, perguntou:
- O que você andou fazendo para os militares acharem que você e o Brizola são os
maiores problemas? Precisamos dar um jeito nisso. Eles acham que vocês dois são
um perigo.
De minha parte, o problema todo era que, na mesma entrevista à Playboy em 1984
na qual surgira a questão da maconha, mencionada anteriormente, eu abordara a
necessidade de se debater novos caminhos para as funções constitucionais das
Forças Armadas. Eu não tinha em mente uma plataforma específica, ou algo assim.
Os militares, porém, sempre se mostraram muito sensíveis em relação a essa
questão, tanto que, mais tarde, na Constituinte, o debate a respeito seria tenso e
difícil. Acredito, e disse a Tancredo naquele dia, que as Forças Armadas pudessem
ver em mina alguma intenção de vingança ou revanchismo, o que não era próprio de
meu espírito. Quem ajudou a desfazer o mal-estar foi Sarney, bem relacionado
entre os militares. Ele teceu a boa intriga de que eu não preparava armadilha
alguma contra as Forças Armadas.
O jogo político não se desenvolve contando aritmeticamente os "contra", como se o
fossem para sempre, e os "a favor", sendo estes os bons e maus os outros. Pelo
contrário: dialeticamente, trata-se de transformar "maus" em "bons". A política
implica um processo de convencimento, por motivos e com objetivos variáveis, que,
olhados de forma individual, podem ser moralmente aceitáveis ou discutíveis, mas
cujo significado histórico será julgado por suas conseqüências. Este não é um
tema banal. É em função dele que se desdobra, como vimos, a discussão weberiana
sobre a ética da responsabilidade. Conforme ele seja compreendido, também
Maquiavel se transforma no símbolo do horror na política ou na virtude da
governabilidade. O fato é que, sem a Frente Liberal, o caminho para o término do
autoritarismo teria sido provavelmente muito mais difícil.
Por que Figueiredo não passou a faixa a Sarney
Empossado provisoriamente José Sarney, com Tancredo hospitalizado, o país viveu
semanas de enorme angústia. E os políticos, dias decisivos.
Três dias antes da crise que levou Tancredo ao hospital estive com ele, na Granja
do Riacho Fundo, residência oficial onde morava desde a eleição pelo Colégio
Eleitoral. O PMDB já estava se acalmando do susto com a indicação de Sarney
como Vice-Presidente, na convenção do partido, ocorrida em agosto de 1984. Os
gritos do MR-8, agrupamento àquela altura ligado a políticos do partido, de "Ei, ei, ei,
Sarney é nosso rei", haviam abafado na convenção os votos dos setores do PMDB
que não se conformavam com a escolha.
Eu perdera a disputa para exercer a liderança do PMDB no Senado, pretensão
estimulada por Tancredo em reunião que tivemos na sede da representação da
Fundação Getulio Vargas (FGV) em Brasília. Com o característico estilo suave,
malicioso e simpático, escusando-se, ele me disse que apoiaria minha indicação
para líder, uma vez que não seria possível designar mais ministros paulistas, tantos
haviam sido convidados... Eu não ambicionava posição no Ministério porque
era impossível: meu suplente no Senado, Magalhães Teixeira, se elegera prefeito
de Campinas em 1982; se assumisse a cadeira, com meu eventual afastamento, ele
perderia o mandato. Se eu rne afastasse sem o substituto legal assumir haveria
novas eleições para o Senado, algo politicamente inaceitável.
Acontece que o senador Humberto Lucena (PMDB-PB), a quem eu sucederia como
líder, fora derrotado na eleição para presidente do Senado, e por isso, a pedido de
Tancredo, abri mão da indicação, propiciando que Lucena continuasse a exercer a
liderança. Montoro, entretanto, me queria numa posição de destaque na nova
situação. Depois da recondução de Lucena à liderança, ele sugeriu a Tancredo me
designar para uma função nova (e difícil), a de líder do governo no Congresso. Uma
manhã, nas antevésperas da posse, Ulysses me telefonou e perguntou:
- Que história é essa de líder no Congresso?
Tancredo, ao anunciar o Ministério, tinha informado que a mim caberia a função.
Respondi a Ulysses que iria imediatamente ver do que se tratava, e ele contestou
que não adiantava mais, pois o Presidente já se dera
conta de minha escolha. Essa a razão da visita a Tancredo no Riacho Fundo: saber
das minhas novas funções.
No Riacho Fundo, esperei longo tempo que o Presidente eleito terminasse um
encontro com o ex-governador e deputado Miguel Arraes (PMDB-PE).
Havia rumores de que Tancredo estava com alguma leve enfermidade, talvez
problemas de garganta. Não notei nada. Conversamos por não muito tempo em um
alpendre largo. Perguntei-lhe sobre o que esperava de mim.
Respondeu que gostaria que fosse a pessoa de sua confiança no Congresso -
Câmara e Senado em conjunto, que em várias situações apreciam como uma só
casa determinadas questões -, e que não me preocupasse com mais nada. Ele iria
chamar o recém-eleito presidente do Senado, José Fragelli (PMDB-MS), que
vencera a disputa com Lucena, e daria instruções para que fossem demolidas
paredes e adaptassem uma sala imensa para mim.
Assim, disse-me, logo vão ver quem tem poder...
Fiquei para o almoço, juntamente com Arraes e com o casal Yvone e Henry Gigliotti,
ele embaixador da Ordem de Malta no Brasil. À mesa, sentado ao lado de Tancredo,
ouvi do outro lado a esposa, dona Risoleta, pedir que não se oferecesse vinho ao
Presidente. Como seu copo estivesse servido, troquei-o com o meu. Boa parte da
conversa, amena, girou, ironicamente, sobre a boa saúde de Tancredo. Ele,
gracejando, disse que todos viam-no como adepto de tomar sais de magnésio,
hábito em moda entre os senadores, o que, corrigiu, não era correto. E brincou
dizendo que nem ginástica fazia, mesmo porque os leões, que se saiba, não
a praticam e, afinal de contas, são os reis dos animais. Ao final do almoço,
acompanhou-nos, a Arraes e a mim, até o carro, abriu a porta para nós e ainda
brinquei, tentando impedir o gesto, dizendo que me sentia honrado em ser ajudado
pelo Presidente da República, mas que o protocolo não lhe permitia mais tais
gentilezas.
Foi a última vez que vi Tancredo com vida. Na antevéspera da posse, quando
jantava no Tarantella, recebi uma chamada de Fernando Lyra, recém-designado
ministro da Justiça, para comentar rumores sobre uma crise de apendicite do
Presidente eleito. No outro dia, jantávamos na embaixada de Portugal, com o
Presidente Mário Soares, Ulysses Guimarães, penso que o deputado Pimenta da
Veiga (PMDB-MG) e outros políticos, quando chegou a má notícia: Tancredo tivera
que ser internado em caráter
de urgência no Hospital de Base de Brasília. Para lá rumamos todos.
Entrei até a antecâmara do quarto onde ele se encontrava. Falei rapidamente com
seu sobrinho, o ex-secretário da Receita Federal e ministro da Fazenda designado
Francisco Dornelles, que acabara de estar com o tio. Minutos depois passava
Tancredo em uma maca rumo ao elevador que o conduziria ao centro cirúrgico.
Dirigi-me a outro andar onde se concentravam vários políticos. Em uma roda,
conversavam, entre outros, Sarney, Ulysses, Fragelli e o general Leônidas. Sarney
dizia que não pretendia assumir, que tinha dúvidas sobre quem deveria suceder
Tancredo durante o impedimento, que todos imaginavam temporário. Àquela altura,
Afonso Arinos, constitucionalista de peso, havia declarado pelos meios de
comunicação seu entendimento de que correspondia ao Vice-Presidente, e não ao
presidente da Câmara, isto é, a Ulysses, assumir a interinidade.
Em certo momento, creio que foi Ulysses quem disse:
-Vamos conversar com o professor Leitão de Abreu para tomar uma
decisão.
Leitão de Abreu era ministro-chefe da Casa Civil da Presidência e figura-chave do
governo Figueiredo, além de, como vimos no Capítulo 1, ministro aposentado do
STF. Saímos sorrateiramente, Ulysses, o general Leônidas e o senador Fragelli e,
no automóvel do general, nos dirigimos a toda velocidade para a Granja do Ipê,
residência oficial do ministro.
Somente um jornalista se apercebeu da manobra, Jorge Bastos Moreno, de
O Globo, que nos viu entrar nos portões do Ipê.
Passava da meia-noite, e aparentemente o doutor Leitão de Abreu se recolhera.
Esperamos bom tempo até que viesse ter conosco, mas ele surgiu na sala trajando
paletó, gravata e colete. Colocada a questão, continuavam as dúvidas. Recordei-me
do livro de Afonso Arinos, Rodrigues Alves: apogeu e declínio do parlamentarismo?
no qual há referências a situação semelhante, quando o Presidente Rodrigues
Alves, que governara de 1902 a 1906, não pôde tomar posse do segundo mandato,
em 1918, abatido pela gripe espanhola. O vice Delfim Moreira assumiu e
tornou-se
Presidente efetivo dois meses depois, com a morte de Rodrigues Alves.
Nota: Edição recente é Afonso Arinos de Melo Franco, Rodrigues Alves: apogeu e
declínio do parlamentarismo, Brasília, Senado Federal, 2001. Fim da
nota.
A biblioteca do professor Leitão, porém, já estava encaixotada, não poderíamos consultar o livro.
Havia disponível apenas um exemplar da Constituição.
Foi lido com cuidado por todos nós. O general Leônidas disse que não era jurista e
acataria qualquer decisão. Leitão de Abreu parecia pender para a interpretação que
favorecia o presidente da Câmara como sucessor constitucional, posto que ainda
não ocorrera a posse do vice. Ulysses Guimarães, no entanto, secundado pelo
presidente do Senado, alinhou-se com a tese de Arinos e convenceu o professor
Leitão da validade de sua exegese. O ministro do Exército e eu ficamos a ouvi-los,
sem credenciais para discutir o mérito. A certa altura alguém perguntou:
- E a faixa, o Presidente Figueiredo vai transmiti-la? O chefe da Casa Civil redarguiu
com firmeza:
- Presidente só transmite faixa a outro Presidente. Assunto encerrado.
Está aí a verdadeira razão que levou o Presidente Figueiredo a não transmitir o
cargo - e a faixa - a Sarney. Diferentemente do que diz a lenda, segundo a qual
Figueiredo "saiu pelos fundos do palácio" para não passar a faixa porque não
suportava Sarney, houve uma discussão prévia a respeito do assunto com o chefe
da Casa Civil e renomado jurista Leitão de Abreu, em que se levantou uma questão
constitucional que incluía outra, de protocolo. Figueiredo podia, efetivamente,
não tolerar Sarney, a quem não perdoava a deserção do PDS, mas a realidade dos
fatos é a que agora descrevo.
A morte de Tancredo, o vazio e o butim do Estado
Boa parte do PMDB ficou inconformada com a decisão. Na volta da Granja do Ipê,
Ulysses, Fragelli e eu rumamos para o Congresso. Havia firme expectativa entre as
bancadas, tendo à frente o líder do partido na Câmara, Freitas Nobre (SP), de que
Ulysses seria o ocupante provisório do cargo e com ele, portanto, o PMDB (Sarney,
pela filiação recente e por razões óbvias, não era considerado, para este efeito,
PMDB).
Ulysses, comandante indiscutível, cortou, incisivo: questão resolvida, não se falava
mais no assunto. E assim foi. É possível conjeturar o porquê de tanto empenho em
passar o cargo para Sarney. Seria temor a uma reação militar, uma vez que Ulysses
e todos nós do MDB histórico éramos críticos ferozes do regime?
Para quem assistiu às deliberações e viu a reação do general Leônidas, é pouco
provável. Os maldosos insinuaram, mais tarde, que Ulysses teria querido se poupar
para uma eventual nova eleição no Colégio Eleitoral em caso de falecimento de
Tancredo, já que, assumindo interinamente, se tornaria inelegível. Maldade e
bobagem. A verdade é que nenhum de nós imaginava que Tancredo viesse a
morrer. Tratava-se, pensávamos, de mera interinidade e não convinha perturbar um
processo tão penosamente levado adiante para afastar os militares e seus
partidários do poder.
Ademais, a Constituição abonava a decisão tomada. A verdade é que Ulysses, além
de tudo, revelou-se altruísta no episódio.
As conseqüências políticas de tudo isso, após a morte de Tancredo, foram enormes.
Havia um sentimento de estar pouco à vontade que alcançava, penso eu, o próprio
Presidente Sarney. Com Tancredo ainda no hospital, mas se tornando óbvio que
não se recuperaria, Fernando Lyra, Affonso Camargo - que Tancredo designara
ministro dos Transportes - e eu fomos ter com Sarney, no Palácio do Jaburu, a
residência oficial dos vice-presidentes da República, onde se instalara. Encontramos
o Presidente em exercício conversando com o jornalista Carlos Castello Branco, o
Castelinho, respeitado colunista do Jornal do Brasil.
Insistimos com ele para assumir plenamente as funções presidenciais.
Sarney, por prudência ou natural constrangimento, relutava. Ele já era Presidente de
direito, durante o impedimento de Tancredo, mas não decidia as nomeações
necessárias ao pleno funcionamento da máquina pública nem dava rumos ao
governo. Nós integrávamos o grupo próximo a Tancredo, desde quando o ajudamos
no Colégio Eleitoral, e tínhamos a legitimidade de sermos, Lyra e eu, emedebistas
antigos. Apelamos a Sarney para que exercesse plenamente o mando, pois
Tancredo, embora ainda vivo, lamentavelmente não sobreviveria e a situação
política se deteriorava gradativamente. Lembrome de um de nós dizendo:
- Viemos aqui pedir a você que comece a governar, porque tudo indica
que infelizmente o Tancredo não vai sair dessa.
Eu estava em Brasília quando terminou o martírio de Tancredo no Instituto do
Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Com muitos companheiros, fomos
esperar a chegada do corpo no aeroporto e nos perdemos no caminho para o
Palácio do Planalto, onde seria velado, tal a
104
multidão que tentava acompanhar o cortejo. Depois, o enterro do Presidente em São
João Del Rey (MG) me comoveu muito. O ambiente todo me trouxe de alguma forma
à memória as pequenas cidades milenares da Itália, cada uma com arraigada
cultura própria. Minas tem isso, à sua maneira. Naquele dia, o Presidente morto, a
bela igreja barroca de São Francisco de Assis, a música mineira, também barroca,
compunham um quadro impressionante. O enterro se deu ao anoitecer. Ulysses fez
um discurso admirável à beira do túmulo. Tive a sensação de uma
tragédia shakespeariana, como de fato era. É muito grande a força de Minas e
de seus símbolos, e aquilo tudo como que explodiu ali, naquele momento,
no coração de todos nós, que estávamos na verdade enterrando muitas esperanças.
A Nova República, que Tancredo lançara, seria tocada adiante por Sarney, com as
limitações que sua condição de Presidente por acaso acarretavam, sem que nunca
seja possível saber como teria sido com seu idealizador.
O vazio provocado pela morte de Tancredo seria gigantesco, como não podia deixar
de ser. E Sarney, mesmo depois de efetivado como Presidente, tinha pouca margem
de manobra. O Ministério fora montado por Tancredo em consonância com Ulysses.
Lembro-me de que, certo dia, Ulysses convidou para jantar em sua casa todos os
ministros do PMDB, e não incluiu o ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, que
não pertencia ao partido. Por circunstâncias familiares, eu tinha uma ligação pessoal
com Dornelles - seu pai, Mozart Dornelles, tinha sido o maior amigo de Ciro do
Espírito Santo Cardoso, o primo-irmão de meu pai que ocupara o Ministério da
Guerra sob Getúlio, no começo dos anos 1950. Tomei a iniciativa de ir à casa do
ministro para explicar que o jantar não era voltado contra ninguém. Na prática,
porém, Ulysses presidiu um jantar do Ministério, e com a ausência não apenas
de Dornelles, mas do próprio Presidente da República. A bem da verdade, diga-se
que Sarney precisou munir-se de grande tolerância para atravessar aquele período.
O PMDB, enquanto isso, estava exercendo plenamente o butim do Estado, como
passou a fazer o PT após a vitória eleitoral de Lula em 2002, trocando funcionários e
técnicos por partidários e clientes, pretextando a necessidade de expurgar a
máquina administrativa dos que haviam servido ao regime passado: houve até, nas
bancadas parlamentares, sorteio para
105
ver quais cargos em que órgãos públicos seriam preenchidos por indicações de
quais deputados e senadores. A anuência ao procedimento era quase geral,
havendo discrepância maior de um pequeno grupo de que faziam parte, entre
outros, o líder do partido na Câmara, Pimenta da Veiga, e eu próprio.
A Constituinte me fez lembrar maio de 1968
Foi nesse contexto que ganhou força a idéia de se convocar uma Assembléia
Nacional Constituinte, movimento antigo e forte na sociedade civil. Uma comissão
designada ainda por Tancredo, e mantida por Sarney, se formara para preparar, sob
a direção de Afonso Arinos, um anteprojeto de Constituição. O divisor de águas,
nesse caso, era: Constituinte exclusiva ou Congresso com poderes constituintes.
Ou seja, os partidos existentes e as lideranças que emergiriam das eleições
parlamentares teriam maior peso, ou um grupo de notáveis ou de representantes
mais "puros", com menos vínculos partidários, se encarregaria, depois de eleito, de
aprovar uma nova Constituição, dissolvendo-se ao final?
Havia uma influente corrente de formadores de opinião favorável a que
se convocassem os eleitores para duas tarefas simultâneas: a eleição de deputados
e senadores para os trabalhos regulares do Congresso - na qual teriam papel
preponderante os partidos existentes, lideranças consolidadas e políticos de carreira
em ascensão - e a eleição de um coletivo de "constituintes puros", a que poderiam
concorrer candidatos sem filiação partidária e "notáveis" de todo tipo, cuja única
e exclusiva função seria elaborar uma nova Carta para o Brasil redemocratizado,
após o que essa Constituinte seria dissolvida.
O pragmatismo e a compreensível pressão dos políticos em atividade levaram a que
predominasse a alternativa de um Congresso com poderes constituintes, que se
chamaria Assembléia Nacional Constituinte.
O Presidente Sarney não custou a convocá-la. Ulysses Guimarães, como
seu presidente, foi o gigante da Constituinte. Pimenta da Veiga era o mais insistente
na necessidade e urgência da convocação. O Plano Cruzado de fevereiro de 1986,
que abrira tantas esperanças, contendo momentaneamente a inflação e
conseqüentemente aumentando o poder de
compra das classes populares, se dissolvera na incontinência fiscal e, novamente,
lançara o desânimo na população e o desprestígio nos políticos. A Constituinte
eleita a 15 de novembro daquele ano funcionaria como um ersatz dos belos dias de
esperança.
Aquela Assembléia algo caótica era a expressão do Brasil popular gerado nas
décadas anteriores pelo regime autoritário e contra ele. Pelo regime, por causa do
"milagre econômico", com maior urbanização, mais migração interna, mais
diferenciação de classes. Contra o regime, porque as novas classes e grupos nos
anos 1980, e desde o fim dos 1970, começaram a se mobilizar e não encontravam
mais posições no mercado, sofrendo com a inflação em alta e com a perda de
dinamismo econômico. As forças mais organizadas que marcavam presença na
vida nacional, fora o empresariado, eram as corporações produtivas estatais, as
igrejas, os sindicatos e as associações, tanto de trabalhadores como
de funcionários. Todas elas reapareceram, como veremos adiante, nos
debates constitucionais, tratando de defender seus valores e interesses.
O Doutor Ulysses me designou para ser o relator do Regimento Interno da Constituinte,
ou seja, o documento que regulamentaria o funcionamento da Assembléia. Pedi
ajuda ao deputado Nelson Jobim (PMDB-RS), portavoz da OAB em matéria
constitucional. Os constituintes recusavam partir de um texto elaborado fora da
Assembléia. Os parlamentares desdenhavam do anteprojeto da Comissão Arinos
que, segundo Tancredo imaginara inicialmente, poderia organizar o debate, com
Afonso Arinos - de volta à vida pública como senador eleito pelo PFL do Rio de
Janeiro - presidindo-a e tendo a mim como relator. Também não chegou a
ser examinada uma iniciativa de um famoso jurista de oposição, Fábio
Konder Comparato, que, para pasmo de muitos, elaborou um projeto
fortemente corporativo, com laivos ingenuamente autoritários, propondo
um planejamento central.
O Regimento que apresentamos, e que acabou prevalecendo, tentava apenas pôr
ordem nos procedimentos. Cada constituinte tinha o direito de apresentar as
sugestões que quisesse, e estas seriam encaminhadas às respectivas comissões
temáticas, que preparariam um texto para ser consolidado em uma Comissão de
Sistematização. Incluiu cláusula inovadora que abria espaço para emendas
populares, portanto oriundas de não-
constituintes. O Regimento predefiniu a divisão de capítulos da Constituição, tal
como acabaria se mantendo na Carta. Foi recebido, entretanto, como se fosse uma
"rolha". Cada parlamentar sentia-se no direito e no dever de participar de tudo e tudo
fazer. Recordei-me muito, naqueles dias, do meu tempo de Nanterre, da Revolução
de Maio de 1968 na França, quando era "proibido proibir".
Ocorreram pressões enormes, da direita e da esquerda, para se alterar
o Regimento. Lembro-me de uma conversa com Lula, eleito deputado constituinte
por São Paulo com a maior votação do país, em que a certa
altura ele me disse:
- Entendo sua posição, mas tenho de lutar para modificar o Regimento.
Ao que alertei:
- Cuidado, a emenda pode resultar pior que o soneto.
Dito e feito. Ulysses determinou uma revisão no Regimento e o resultado só não foi
uma redução de avanços democratizadores porque eu consegui manter o essencial
da proposta: as emendas populares e as cláusulas de autonomia da Constituinte.
Sarney, por seu lado, temia o que pudesse estar sendo engendrado contra sua
autoridade presidencial, A posição dele não era fácil:
VicePresidente transformado em Presidente da República, ex-presidente do PDS,
sustentado sem firmeza por seu novo partido, o PMDB, com um Ministério que não
escolhera e à sombra do prestígio de Ulysses. Um dia, o líder do governo na
Câmara, deputado Carlos SanfAnna (PMDB-BA), e eu fomos até ele. Havia
preocupação com um dispositivo do Regimento Interno que permitia à Constituinte
barrar decisões do Executivo que de alguma forma ferissem a vontade soberana da
Assembléia. Isso poderia parecer um golpe branco e na verdade foi interpretado
como uma tentativa de o Doutor Ulysses "tutelar" o Presidente. Não era essa
minha intenção, ao incluir o dispositivo no Regimento. Queria somente reafirmar o
óbvio: a Constituinte era soberana. Não visava, contudo, permitir casuísmos. O
dispositivo lá permaneceu, e nunca ninguém o usou para manobras menores.
Com esse clima de incertezas; com um governo que, em razão das circunstâncias
de seu nascimento, pouco podia influenciar as decisões no dia-a-dia da Constituinte;
com um líder, o recém-eleito senador Mário
Covas, experiente, mas afastado por longo período do convívio dos políticos por
força do AI-5 e sem ter ocupado até então a cadeira de deputado obtida em 1982
porque exercera a Prefeitura de São Paulo; com o predomínio de Ulysses, mas com
a irrupção do chamado "Centrão";6 com um sem-número de "poréns", com tudo isso,
a Constituinte foi um grande momento da vida política nacional.
É certo que a Constituição votada nasceu a destempo: era estatizante e corporativa,
e isso às vésperas da queda do Muro de Berlim e da virada anticorporativista de
boa parte das próprias esquerdas mundiais. É certo, como diziam o Presidente
Sarney e o último de seus ministros da Fazenda, Mailson da Nóbrega, que o regime
fiscal criado sufocaria o governo federal. Isso só não ocorreu porque a União passou
a usar o aumento das "contribuições sociais" como válvula de escape, vindo,
isto sim, a sufocar a sociedade com o peso dos tributos.
Sobre tudo isso, contudo, Ulysses tinha razão: é uma "Constituição Cidadã".
A ampla liberdade partidária (que começou antes da Constituinte, com a Emenda
Constitucional n° 25, de maio de 1985, à antiga Constituição de 1967), a
independência do Ministério Público (por mais dor de cabeça que causem os
abusos de alguns procuradores da República), o novo papel do STF no controle da
constitucionalidade, a extensão a novos atores políticos do direito de arguir a
inconstitucionalidade das leis, as liberdades civis, a aspiração à maior igualdade de
género, de classe, de raça, o acesso mais fácil ao sistema de saúde constituem
alguns dos marcos bem fincados pela Constituição na prática de nossa sociedade.
E dizer que a oposição da época, principalmente o PT (que não aprovou o texto
final), considerava-a uma Carta "burguesa"!
Nota: 6 Grupo de constituintes integrantes de diferentes partidos, com orientação liberal na
economia e clientelista na política, O Centrão conseguiu derrubar um item do
Regimento Interno que conferia preferência nas votações em plenário a emendas
provenientes da Comissão de Sistematização, espécie de coração da Constituinte,
controlada por Ulysses. Passaram a ter preferência emendas assinadas por metade
mais um dos constituintes. Como novo dispositivo, o Centrão conseguiu retirar parte
considerável do poder da Comissão em matéria de decidir o andamento da pauta da
Assembléia. Mais à frente, no texto deste livro, vou abordar o comportamento
político e a importância do Centrão. Fim da nota.
Os debates e um caleidoscópio nos partidos
Os debates da Constituinte se iniciaram, como já disse, em torno de dois eixos: o
primeiro, a discussão sobre a Constituinte exclusiva ou não. O segundo girava ao
redor da aceitação ou não de um projeto preliminar de Constituição para orientar os
debates. Tal proposta teria sido elaborada por "sábios", como maldosamente
insinuavam os que só aceitavam discutir propostas vindas diretamente dos
constituintes.
Embora possa parecer que essas questões são de interesse menor, na verdade elas
anteciparam um debate que durou o tempo todo e que prenunciou as diferenças
partidárias. Por trás estava a questão da "soberania" da Constituinte e, portanto, um
eventual choque com o governo Sarney e com o modo pelo qual seria tratado o
"entulho autoritário" - a herança institucional e legislativa do regime militar.
Os que desejavam uma Constituinte dita soberana propunham mudar imediatamente
alguns itens da Constituição em vigor, que consideravam ilegítima. Essas mesmas
forças temiam manobras para restringir o alcance democratizador da ação dos
constituintes. O Planalto sentia tais temores de maneira oposta: havia constituintes
com vontade de desestabilizar o governo e de diminuir o mandato do Presidente
eleito.
Não é o caso de entrar em detalhes. A reação à proposta do Regimento Interno que
dava à Constituinte capacidade para eventualmente barrar atos do Executivo
contrários à sua vontade soberana resume a questão.
Na verdade o texto aprovado, depois de negociações lideradas pelo deputado
Antônio Britto (PMDB-RS), foi uma emenda do deputado Maurílio Ferreira Lima
(PMDB-PE) que amortecia os temores de que a Assembléia extrapolasse seu
legítimo direito de afirmação e defesa. E coube ao deputado Flávio Bierrenbach
apresentar a proposta da Constituinte exclusiva,
que não vingou.
Essas discussões tinham como pano de fundo uma questão política que embaçou a
análise de quase tudo: a duração do mandato do Presidente Sarney. Antes mesmo
da eleição de Mário Covas como líder do PMDB na Constituinte, no início de março
de 1987, surgiu um "grupo de centro"
liderado pelo senador José Richa (PMDB-PR) - sem relação alguma com o futuro
Centrão, a que vou me referir mais detidamente em seguida - que se propunha a
garantir que não seriam tomadas medidas
casuísticas de reforma da Constituição vigente e que o mandato do Presidente seria
definido no prazo de seis meses.
Mesmo depois de aprovado o Regimento Interno e de compostas as
comissões temáticas, que foram oito, nas quais os constituintes se distribuíram, os
trabalhos andavam morosamente. Cada constituinte não poderia participar de mais
de uma comissão temática e havia 49 parlamentares que integravam a Comissão de
Sistematização, que deveria conciliar os pontos de vista eventualmente divergentes
e dar forma, gradativamente, ao novo projeto de Constituição, antes de ele passar
às mãos do relator, deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM). Este, junto com três ou
quatro relatores-adjuntos, deveria redigir cada texto a ser submetido ao Plenário. Fui
relator-adjunto por um tempo. Logo após, como a Comissão de Sistematização, sob
a Presidência do senador Afonso Arinos, a essa altura no PSDB, requeria intenso
trabalho político, houve a decisão de me incorporar nela junto com o senador
Jarbas Passarinho (PDS-PA), como vicepresidentes, para, com o deputado Brandão
Monteiro (PDT-RJ), que já era vice, assumirmos na prática a liderança do processo
decisório.
Paulatinamente, apesar dos vários choques de opinião, fomos conseguindo avançar
a discussão dos temas constitucionais.
Já se prenunciavam choques do que veio a ser posteriormente o
Centrão, agrupamento de centro-direita formado por parlamentares conservadores
e por congressistas tradicionalmente ligados ao Planalto, sem
serem necessariamente conservadores, que se organizou como contrapeso
às lideranças do PMDB e às esquerdas. As divergências giraram, inicialmente, ao
redor do quorum para deliberações. O PFL queria que se dessem por maioria
absoluta, ou seja, por metade mais um de todos os integrantes da Constituinte; os
líderes do PMDB (embora não todos os peemedebistas), por maioria simples, quer
dizer, a maioria dos parlamentares que estivessem participando de cada votação.
As razões da disputa eram óbvias: propostas mais controvertidas teriam
maior dificuldade de aprovação por maioria absoluta.
Os constituintes não se dividiam apenas quanto a questões conjunturais ou de
tramitação. Suas opiniões discrepavam nas questões económicas, nas questões
sociais em geral e no alcance da ação do Estado. E os alinhamentos se davam em
cada questão específica, não necessariamente a partir de uma visão do mundo, de
uma ideologia. Um determinado
constituinte poderia defender um mandato para o Presidente Sarney de quatro, cinco
ou seis anos, sendo ou não parlamentarista, poderia ser mais propenso à iniciativa
privada ou mais intervencionista, aceitar a redução da jornada de trabalho ou não, e
assim por diante. Ou seja, podia alinhar-se segundo questões específicas, sem que
elas se concatenassem. Mais complexo ainda: em um mesmo partido,
os parlamentares se dividiam como em um caleidoscópio quanto a esses diversos
temas.
Uma visão apressada sobre as incoerências partidárias e as inconseqüências
político-ideológicas pode, portanto, condenar facilmente o sistema partidário que se
estava montando como incapaz de espelhar as diferenças da sociedade e de
dificultar o funcionamento de uma democracia "verdadeira". E até certo ponto é
assim mesmo. Porém o processo é mais complexo. Vejamos pouco a pouco como
se pode argumentar de outra maneira. Comecemos, a seguir, pelos temas
económicos mais gerais.
Os temas económicos e o nacionalismo estatizante
Nesses temas, predominaram as questões relacionadas à dívida externa e às taxas
de juros. A média dos constituintes manifestava viva repulsa às elevadas taxas de
juros e críticas ao FMI e ao pagamento da dívida externa. Note-se que o debate
ocorria depois da moratória da dívida do governo Sarney, quando, por exaustão das
reservas, mas sob fundamentos retóricos de "soberania", o país deixara, em
fevereiro de 1987, de cumprir seus compromissos sem buscar uma renegociação.
Logo no início dos trabalhos da Constituinte, havia um novo ministro da Fazenda,
o peemedebista Luiz Carlos Bresser-Pereira. Ele substituíra Dilson
Funaro, empresário nacionalista, homem determinado, cercado por
alguns assessores de primeira ordem, em cuja gestão fora decretado o cruzado
e que, durante o auge do sucesso do plano, obtivera um êxito político até então
medito na História do país, tornando-se um ministro da Fazenda popularíssimo e
carismático. Lembro-me de uma viagem em que acompanhei a Campinas o
Presidente Sarney e o próprio Funaro - amigo com quem, quando mais moço,
costumava jogar baralho numa mesa que incluía Roberto Gusmão, o empresário e
editor Fernando Gasparian e o jornalista Fernando Pedreira. O ônibus da comitiva,
como ocorria com freqüência com o ministro, tinha que ir parando ao longo do
caminho para que as pessoas
viessem saudar e aplaudir Funaro. Nas ruas, queriam pegar nele, tocá-lo, como se
ele fosse um profeta, um santo.
Mas, por motivos que não cabe aqui aprofundar, veio o naufrágio do cruzado e
durante a gestão de Funaro o governo decretou a moratória.
Quando Bresser assumiu, o governo começava a entabular conversações com os
credores e precisava explicar ao público interno que a renegociação seria "altiva", na
expressão do ministro. Bresser, velho amigo e vizinho em Ibiúna, economista e
professor respeitado, tinha boa experiência na vida pública, adquirida sobretudo nas
diversas posições de relevo que ocupara durante o governo Montoro em São
Paulo (1983-1987). Mas sua tarefa não se revelaria fácil
Constituintes de diversos partidos opinavam constantemente sobre a questão da
dívida, quase sempre pedindo cautela nas negociações, quando não expressando
repúdio ao FMI e ao próprio pagamento do que o país devia. A cada instante se
exigia uma auditoria no Banco Central (BC), para verificar a legalidade dos contratos
de empréstimos. Lula, um pouco antes, cuidadoso com as multinacionais, dissera
ser de bom senso não se posicionar contra elas, embora devessem existir critérios
para controlar sua ação. Mesmo assim, manifestou-se pela suspensão
do pagamento da dívida externa.7 O deputado Luiz Henrique da Silveira (SC), líder
do PMDB na Câmara, apoiava a suspensão do pagamento dos juros e, indo mais
longe, sugeriu à Constituinte, logo em seu discurso inaugural, uma reforma para
regulamentar os "lucros exagerados dos bancos" e impedir que o Banco do Brasil
(BB) fosse supostamente esmagado pelos bancos privados.8 Vários outros
pronunciamentos tiveram teor semelhante.
Nota: 7 No dia 27 de janeiro de 1987, Lula, deputado constituinte eleito e presidente do
PT, e o deputado Eduardo Suplicy reuniram-se em São Paulo com o embaixador dos
EUA, Harry Schlaudeman. Um resumo do noticiário a respeito publicado por Jornal
do Brasil, Folha de São Paulo, Gazeta Mercantil e O Estado de São Paulo indica que
foram discutidas propostas do partido para a Constituinte, dívida externa, pacto
social e a presença de multinacionais no Brasil, Lula, entre outras afirmações, disse
que se não fosse elaborada uma nova ordem político-econômica ocorreria uma
"crise institucional". O PT, assinalou ele, apoiava a suspensão do pagamento da
dívida externa e uma reforma agrária justa e sem violência.
* Folha de São Paulo, 21/2/1987; Gazeta Mercantil, mesma data; O Estado de
São
Paulo, mesma data. Fim da nota.
Não era de estranhar, portanto, que logo surgissem propostas para utilizar a
Constituição como freio à política econômica. Nesse sentido, o deputado Fernando
Gasparian (PMDB-SP) sobrepujou com seu zelo até mesmo os partidos de
esquerda: propôs incluir na Constituição a limitação da taxa de juros a 12% ao ano,
o cancelamento da captação de depósitos por bancos estrangeiros e também a
substituição do Conselho Monetário Nacional por uma comissão de parlamentares
que poderia emitir títulos públicos para ajudar empresas nacionais em dificuldades.
Não contente com isso, o deputado Luiz Gushiken (PT-SP) queria a estatização dos
bancos. O deputado José Genoino (PT-SP) disse ter votado a favor dos 12% por
convicção e por se tratar de uma emenda "histórica" da esquerda. Mas também o
deputado Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP), fazendeiro e empresário rural, que
viria a ser um dos líderes do Centrão, apoiou o tabelamento dos juros. Em
contraposição, para citar alguns exemplos, os deputados José Serra (PMDB-SP),
Francisco Dornelles (PFLRJ) e César Maia (PDT-RJ), não por acaso economistas
respeitados, votaram contra, como eu também. O absurdo de colocar limite às taxas
de juros na Constituição - manietando de forma suicida a capacidade de o governo,
qualquer governo, executar uma política monetária - era tamanho que mesmo Celso
Furtado, economista de reputação internacional e figura reverenciada por diferentes
correntes de opinião, principalmente à esquerda, considerou que se tratava de uma
resposta exagerada às agruras das empresas.
O ministro Bresser penou para levar adiante a negociação "altiva" com os bancos
estrangeiros e o FMI. Este foi alvo preferencial de críticas de todos os lados do
espectro político. Finalmente o PMDB concordou que o ministro procedesse à
negociação da dívida, desde que o país não se submetesse "a um monitoramento e
a ajustes recessivos na economia".
Note-se que essa autorização cautelosa veio a público por meio do porta-voz da
Presidência, em nome de Ulysses Guimarães e do próprio Presidente Sarney,9
depois que ambos se reuniram no Planalto. A esta declaração seguiu-se um encontro
entre as principais lideranças do PMDB que apoiavam as negociações com os
bancos, desde que excluíssem um acordo com o FMI. Considerava-se a instituição
"nociva" ao país. Covas afirmou que se o ministro
Nota: 9 Folha de São Paulo, 29/7/1987.
114
conseguisse tratar com os bancos sem o Fundo, isso representaria uma
"revolução" na estrutura interna do sistema capitalista internacional.
Apesar da bravura de suas posições, Bresser não conseguiu a negociação naquele
momento. O Tesouro norte-americano rejeitou as propostas brasileiras de
alongamento dos títulos da dívida e o país continuou sufocado, sem créditos
externos. Anos mais tarde, as teses de Bresser acabariam incorporadas ao plano
que leva o nome do secretário do Tesouro dos EUA entre 1988 e 1993 (governos
Ronald Reagan e George H.
Bush), Nicholas F. Brady.
Essas reações, que, repito, expressavam o sentimento da maioria e empolgavam as
minorias "à esquerda" do próprio PMDB, tinham a aceitação de líderes como
Pimenta da Veiga, para não falar de Fernando Gasparian.
Joguei água na fervura, declarando que eram exagerados os pruridos em torno do
pagamento de parte dos juros devidos, embutido na proposta Bresser. Também
Mário Covas achou politicamente aceitável a proposta Bresser, nos termos
apresentados.
Esse ziguezague durou todo o tempo. Bem mais tarde, em janeiro de 1988, com o
novo ministro da Fazenda, Mailson da Nóbrega, até então secretário-geral do
Ministério e funcionário de carreira do BB, que substituíra Bresser no posto,
continuavam as dificuldades para que se aceitasse uma negociação com o FMI.
Pronunciei então um discurso no Senado sobre "A crise e as opções nacionais",
criticando as hesitações do governo na matéria, propondo a integração "soberana"
de nossa economia no plano mundial, a partir do fortalecimento entre nós do
que chamei de "espírito de empresa", que dispensaria o protecionismo, aceitaria
regras de concorrência e assimilaria a revolução tecnológica.
Via nisso o caminho para melhorar a eficiência da burocracia pública e ampliar a
democracia social. Mais ainda, criticava a indiferença criminosa das elites diante da
miséria do povo. Segundo os jornais da época, eu assumia uma posição
equidistante entre o "arcaísmo" do Centrão e o "corporativismo" de setores que se
diziam progressistas. O discurso começava por reconhecer a crucial importância
política da volta das eleições diretas: "No Império - e Joaquim Nabuco imortalizou
o tema - toda a discussão girava ao redor da questão da escravidão.
Mesmo quando nela não se tocava, era ela quem comandava. Pois bem, a
grande questão política é uma só: a das eleições diretas." Além desse ponto central
à redemocratização plena do
115
país, eu defendia uma revisão completa de nossa agenda, incluindo temas como
maior abertura da economia, desenvolvimento tecnológico e menos corporativismo.
Criticava os que confundiam progresso com monopólio estatal e também os que
viam a indispensável ação do Estado como uma ameaça à iniciativa privada,
dizendo que a antinomia estatização versus privatização constituía um falso
problema, pois a aplicação de uma ou outra medida depende de circunstâncias e de
saber em quais setores.
Afirmava que os "progressistas" defendiam o populismo e os conservadores, o
atraso. Seria um discurso antecipatório de muito do que realizei ou tentei realizar na
Presidência.
A verdade é que, a despeito do ziguezague mencionado anteriormente, um dos
eixos ideológicos principais durante os debates ocorridos na Constituinte foi o
nacionalismo estatizante. Sua forma mais exaltada apareceu nas propostas de
estatização do sistema bancário, na definição do conceito de empresas brasileiras e
estrangeiras e na defesa dos monopólios estatais, especialmente para a exploração
das jazidas minerais. E o principal problema trazido por essas posições era
seu sabor antiquado, que dificultava a correta definição dos verdadeiros interesses
nacionais em um mundo cuja economia se globalizava e cuja bipolaridade
terminava. Não foi muito diferente o que ocorreu com as questões sociais, que
tratarei em seguida, começando por uma apreciação geral e depois me detendo
especificamente nas questões trabalhistas e no tema da reforma agrária.
As questões sociais e o corporativismo
O debate ideológico não se esgotava na questão do nacionalismo exaltado a que
acabei de me referir. Nas questões sociais, como a da reforma agrária, a definição
da duração da jornada de trabalho e, principalmente, a proposta de estabilidade no
emprego, as divisões eram profundas. Isso sem mencionar polémicas de menor
polarização, como a que separou os favoráveis à unicidade sindical - ou seja,
aqueles alinhados com a tese de que cada categoria de trabalhadores só deveria ser
representada por um único sindicato em cada base territorial - dos defensores da
tese oposta, a pluralidade, ou quanto ao papel das Forças Armadas, se limitado à
defesa diante de ameaças externas ou abrangendo também, em circunstâncias
dadas, a defesa da lei e da ordem.
116
As principais clivagens durante a Constituinte ocorreram em torno desses temas.
Além, obviamente, das questões políticas, relativas ao regime de governo e à
extensão do mandato presidencial. Os debates sobre a duração da jornada de
trabalho e a estabilidade no emprego mobilizaram fortemente os empresários e os
sindicatos. A questão da reforma agrária igualmente levou a uma disputa acirrada.
Importava mais obter uma vitória política do que inscrever na Constituição uma
posição racional.
Por trás de tais embates havia o temor, em setores da sociedade, de
um estrangulamento da iniciativa privada e do fortalecimento das
tendências favoráveis ao intervencionismo estatal e ao aumento do poder
das burocracias. Não obstante, as lideranças da Constituinte acabaram sempre por
fazer uma espécie de mediação, tendo como resultado o "não tanto ao mar, nem
tanto à terra". Isso se deu, por exemplo, no terreno das questões trabalhistas.
A verdade é que as lideranças empresariais se mantinham atentas e mobilizadas.
Além das entidades da indústria, do comércio, da agricultura e do sistema financeiro,
novas associações, como o Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE),
a União Brasileira de Empresários (UBE) e a União Democrática Ruralista (UDR)
atuaram fortemente. Houve uma frente unida do empresariado para barrar o
que eles consideravam excessos, como a exagerada proteção ao trabalho - com o
conseqüente efeito sobre o custo da produção e a competitividade internacional do
país -, as restrições nacionalistas à ação das empresas e o sempre ameaçador
estatismo.
O empresariado se mobilizou intensamente, escolhendo alguns pontos nevrálgicos
para concentrar fogo. Em geral as lideranças e os setores do PMDB que, em aliança
com os partidos da esquerda, comandaram o processo constituinte até o advento do
Centrão começavam o debate incentivando as propostas mais radicais. Por
exemplo: reduzir a jornada de trabalho semanal de 48 horas para 40 horas. E
terminavam, sob protesto da esquerda, aceitando uma negociação com os setores
empresariais e seus representantes no Congresso, por exemplo, ao redor das 44
horas, como ocorreu nesse caso, aprovando proposta do deputado Gastone
Righi (PTB-SP), Por delegação do líder em exercício do PMDB, deputado Euclides
Scalco (PR), pois Covas estava enfermo, José Serra defendeu em plenário a
proposição vitoriosa. Ato contínuo, também os empresários
117
representativos dos setores "duros" protestavam. As batalhas se sucediam. Não
bastou definir o número de horas da jornada de trabalho, pois logo surgiu a questão
dos turnos contínuos, que, segundo proposta majoritária, não deveriam ultrapassar
as seis horas. Novamente, o coro empresarial proclamou que, sendo assim, haveria
que contratar mais mão-de-obra e, em conseqüência, a produtividade cairia.
Nenhum tópico trabalhista mobilizou mais energias do que o da estabilidade no
emprego. Os líderes peemedebistas usaram a mesma tática:
abriram a discussão com a reivindicação sindical e das esquerdas de colocar na
Constituição o princípio da estabilidade no emprego. O projeto que sintetizou as
negociações teve como palco a Comissão de Sistematização. No dia 8 de outubro
de 1987, aprovou-se a estabilidade.
Os empresários, nas vésperas, procuraram o Presidente Sarney para mostrar seu
alarme.10 Simultaneamente, mas sem que houvesse plano preconcebido para levar
adiante o que qualifiquei de "mediação" exercida pelas lideranças maiores, tanto o
Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo como o ministro do Trabalho, Almir
Pazzianotto, começaram a falar de "garantia de emprego", implicando restrições e
multas para as "demissões imotivadas". Esta noção substituiria a desejada
estabilidade no emprego, princípio que feria a mobilidade dos fatores de
produção.11
Nota: 10 O texto aprovado pela Comissão de Sistematização elencava no artigo 7°, entre
os direitos dos trabalhadores: "I - garantia de emprego protegido contra despedida
imotivada, assim entendida a que não se fundar em: a) contrato a termo nas
condições e prazos da lei; b) falta grave, assim conceituada em lei; c) justa causa,
baseada em fato económico intransponível, fato tecnológico ou infortúnio da
empresa, de acordo com critérios estabelecidos na legislação do trabalho." Ou
seja, mesmo que lei posterior regulamentasse o dispositivo, ele
estreitava consideravelmente a faixa de possibilidades para empregadores
demitirem funcionários. Vale notar que o texto não exigia "n" anos de trabalho
ou outra condição para a estabilidade.
11 O texto negociado com os empresários e o Centrão, que passou a figurar na
Constituição, previu, para o mesmo inciso I do artigo 7°, "relação de emprego
protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei
complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos". Até
a publicação deste livro não se tinha aprovado essa lei complementar, A situação
passou a ser regulada "provisoriamente" pelo art. 10°, I, das
Disposições Transitórias da Carta: a demissão imotivada implica, além dos
direitos previstos na legislação trabalhista, multa de 40% sobre o saldo
do trabalhador no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Fim da
nota.
118
Após a aprovação da estabilidade no emprego pela Comissão de Sistematização,
sem confiar muito nas mediações das lideranças do PMDB, um grupo de
parlamentares de diferentes partidos formou um "Centro Democrático" logo
alcunhado Centrão, que apoiou um documento inspirado pelo Palácio do Planalto
chamado "Democracia e Desenvolvimento". Com essa manobra iniciava-se a
fragmentação do PMDB. O novo agrupamento, com teses mais liberais nas questões
económicas, daria suporte ao sistema presidencialista de governo e à duração de
cinco anos para o mandato do Presidente Sarney - questão esta que tomou conta da
Constituinte e mobilizou a opinião pública por bom tempo. Pelas regras da
Constituição herdada do regime autoritário, que prevaleciam no momento da eleição
de Tancredo, o Presidente teria direito a cumprir seis anos de mandato.
Tancredo, porém, se comprometera formalmente, inclusive no documento
de constituição da Aliança Democrática que o levara à Presidência, a promover a
redução para quatro anos. No final, a Constituinte, sob intensa pressão do Planalto,
fixou o mandato em cinco anos.
Com a entrada em cena do Centrão, criou-se um núcleo de pensamento econômico
a buscar sustentação política no governo Sarney, o que levou Ulysses a dizer-se
preocupado com a "direita" no país. A adesão do PFL a esse tipo de ação levou o
PMDB a denunciar a ruptura da Aliança Democrática e a lançar nas costas do PFL a
responsabilidade por tal ato (esquecendo-se, naturalmente, das dezenas de
peemedebistas que engrossavam o coro do Centrão).
A Comissão de Sistematização aprovou uma série de vantagens para
os assalariados, como, por exemplo, a ampliação da licença às
trabalhadoras gestantes, o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço para
a dispensa de empregados, o pagamento integral do 13° salário aos aposentados e
de um adicional para os trabalhadores em férias, o financiamento do seguro-
desemprego, o salário mínimo nacional unificado, a participação dos trabalhadores
nos lucros das empresas. Muitas dessas vantagens, mesmo depois das
modificações no Regimento Interno patrocinadas pelo Centrão para dificultar a
aprovação de propostas controvertidas, terminaram inscritas na Constituição e
absorvidas pela sociedade. Outras vantagens, na verdade benesses clientelistas,
acabaram também apoiadas pelos partidos tradicionalmente conservadores, como
a estabilidade para quem estivesse no serviço público há cinco anos,
algo extremamente oneroso
119
para o país. Esses empregados públicos deixaram de ser regidos pela Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) e se transformaram em funcionários "estatutários", ou
seja, servidores sob as regras do Estatuto dos Funcionários Civis da União -
passando, portanto, a ter benefícios como estabilidade no emprego e aposentadoria
integral - sem serem concursados. Tudo isso serviu de combustível para
movimentos de fragmentação no PMDB e a formação de novas agremiações
partidárias. Os setores "à esquerda" concentraram preocupação e votos na defesa
de interesses corporativos, esmiuçando-os no texto da Carta.
O número de artigos da Constituição que definem regras de acesso e promoção no
Judiciário, por exemplo, não deve ter paralelo em outras Constituições democráticas
no planeta. De igual modo, houve a "constitucionalização" de numerosas profissões
e uma blindagem na estrutura das organizações sindicais, tanto patronais quanto
de trabalhadores. Os grupos de pressão compostos por funcionários, especialmente
os do Judiciário, por representantes das polícias, civil e militar, e das empresas
estatais se movimentaram com muita liberdade e perseverança para inscrever na
Constituição o que consideravam seus direitos, beirando às vezes a privilégios. Os
representantes do empresariado, do mesmo modo, defenderam com unhas e dentes
seus interesses, tal como ocorreu com os do setor rural quando se discutiu o tema
que vou expor agora.
As paixões despertadas pela reforma agrária
O tema que mais despertou paixões foi o da reforma agrária, tendo como cavalo de
batalha a desapropriação de terras produtivas. Houve um semnúmero de outras
questões ao redor da reforma agrária, mas a briga ideológica se travou, no fundo,
em torno do direito de propriedade:
seria ele sacrossanto ou estaria submetido a um valor maior, o da função social da
propriedade? Neste caso, defendia-se, uma área, mesmo sendo produtiva, poderia
ser desapropriada para fins de reforma agrária se não cumprisse a "função social".
As escaramuças entre progressistas e conservadores começaram cedo
na Comissão de Sistematização, depois de os blocos haverem duelado na comissão
especial que cuidava do tema. Já em junho de 1987 a Contag mobilizava seus
aderentes, aos gritos de "UDR assassina" para a batalha
120
contra os partidários dessa organização de fazendeiros. Em agosto, o Centrão,
ainda embrionário, contando com o apoio do líder do governo na Câmara, somado
aos combatentes da UDR, com o futuro candidato à Presidência e depois deputado
federal Ronaldo Caiado como seu presidente, rebelaram-se contra o texto aprovado
pela comissão que tratava do tema agrário. Este autorizara a "imissão de posse
imediata"
pelo governo nas terras desapropriadas. Os conservadores alegavam que
o dispositivo dês* truía o direito de propriedade do setor rural.
O relatório do deputado Bernardo Cabral, que seria votado no fim de agosto de 1987
na Comissão de Sistematização, era uma síntese de várias propostas e incluiu a
vistoria prévia da terra como requisito para as desapropriações. Com esse
procedimento, haveria a avaliação do cumprimento da função social da propriedade
antes de qualquer ato de desapropriação. Além de tudo, o relatório abria recurso à
Justiça, caso o proprietário não concordasse com a decisão administrativa,
e estabelecia que a eventual indenização pelas benfeitorias existentes deveria ser
paga em dinheiro. Mesmo assim, o impasse se desdobrou durante meses a fio,
embaralhando reivindicações justas, posições ideológicas e questões políticas. Em
maio de 1988 a discussão esquentou.
Os líderes de todos os lados foram limando diferenças, mas o braço de ferro
continuou no ponto central já abordado: a função social como pré-requisito para
validar o direito de propriedade. A 4 de maio de 1988, no auge do impasse, a
proposta do Centrão proibindo a desapropriação de terras produtivas foi a voto e se
viu derrotada por 248 votos a favor, 242 contra e 37 abstenções. Não alcançou os
280 votos necessários para a aprovação. O Centrão, no entanto, mostrou força.
Daí por diante, recomeçou o trabalho de costura do "nem tanto ao mar, nem tanto à
terra". As lideranças do PMDB, do PT e do PDT procuravam novo acordo, a partir
de uma posição que garantisse alguns avanços, segundo sua ótica. Na barricada, o
presidente do PDS, senador Jarbas Passarinho, em geral mais conciliador, reagiu:
"Atacar a propriedade produtiva é arrasar a feição produtiva do país." Os dois lados
terçaram armas e ambos perderam: a emenda do Centrão proibindo a
desapropriação de terras produtivas (neste caso, cumprissem ou não a função
social)
caiu por 237 votos contra 225; em seguida, colocou-se em votação a emenda da
Comissão de Sistematização, que dava ensejo à desapropriação das
121
terras que não cumprissem a função social, fossem ou não produtivas. A emenda
também sucumbiu com apenas 129 votos a favor e 365 contra (nas duas votações
houve três abstenções). Resultado: configurou-se o que se chamava na época de
"buraco negro", ou seja, a Constituição acabaria ficando sem o capítulo sobre
Reforma Agrária, posto que nenhum dos dois lados obtinha maioria suficiente para
aprovar suas teses. Ulysses encerrou a sessão marcando o prazo de 48 horas para
o relator apresentar um texto de conciliação, que poderia receber emendas de
qualquer agrupamento, como rezava o Regimento.
O resultado da obstinação de certos líderes progressistas em não abrir negociações
com o Centrão no tocante à reforma agrária fez com que tivéssemos que nos
consolar com uma manobra para evitar o pior. Depois de infindáveis idas e vindas
com acordos de curta duração e recusas estrepitosas da UDR, a Constituinte
aprovou a proposta conciliadora que tornou insuscetíveis de desapropriação as
terras produtivas e as pequenas e médias propriedades e fixou normas para definir o
cumprimento da função social da propriedade. Para obter o acordo, o líder
Mário Covas, já refeito do problema de saúde que o acometera, aceitou que
se votasse a proposta dos partidos progressistas que voltava ao tema
da possibilidade de desapropriação de terras produtivas, mas sob uma forma que,
pelas regras da Constituinte e do atual Congresso, se denomina "destaque para
votação em separado", que tem exigências especiais para ser aprovada.12 No caso
concreto, a emenda dos progressistas precisaria de inalcançáveis 280 votos. Não
passou. Assim, fixou-se o princípio, que pareceria óbvio, de que terras produtivas
(em um país cheio de terras não utilizadas!) não poderiam ser desapropriadas para
fins de reforma agrária. Ou seja, a desapropriação teria de ser feita no quadro legal
do regime capitalista,
Nota: 12 Esse mecanismo até hoje dificulta a aprovação de reformas no Congresso. Os
"destaques para votação em separado" (DVSs) invertem a mão natural das
votações. Quando determinado projeto é aprovado em bloco por uma maioria
parlamentar, os destaques solicitados pela minoria para votar em separado artigos
ou parágrafos desse projeto conferem a ela o poder de derrubá-los caso a maioria
não consiga, na nova votação, reunir outra vez número suficiente de votos para
reassegurá-los um a um. O natural seria que os interessados nos destaques é que
tivessem de obter maioria de votos para derrubar esses dispositivos previamente
aprovados. Fim da nota.
122
que tem como pressuposto a garantia da propriedade privada. Daí a regra, fixada na Carta,
de que a desapropriação, quando ocorre, se dá mediante prévia indenização em
dinheiro.
No segundo turno das votações houve tentativa de novamente tornar ao tema para
excluir qualquer limitação às desapropriações para fins de reforma agrária. A
proposta, contudo, sofreu outra derrota, o que levou um jornal a dizer que "o
resultado da votação sobre o tema foi a única vitória significativa dos 'conservadores'
no segundo turno".13
O mandato de Sarney: uma disputa pelo poder
Vista com a perspectiva do tempo, parece claro que a questão "doutrinária", a de
saber se o melhor sistema de governo para o país seria o parlamentarismo ou o
presidencialismo, pesou menos do que a luta pelo poder na Constituinte. Esta se
travou em torno da definição da data das eleições e, conseqüentemente, da duração
do mandato do Presidente Sarney, a serem ambas fixadas nas Disposições
Transitórias da Constituição. Estabelecer a data das eleições para 1988, como
queria parte do Congresso, atenta ao compromisso de Tancredo, ou para
1989, como pretendiam partidários do Presidente e o Palácio do Planalto -
significava encurtar para quatro ou para cinco anos o mandato original de seis anos
que a Carta ainda em vigor atribuía a Sarney e, portanto, implicaria a possibilidade
de mudar o grupo de comando da República. A disputa em torno da extensão do
mandato espelhava também um esforço para acomodar ambições pessoais, grupais
e partidárias na corrida eleitoral.
O debate sobre o parlamentarismo era natural. Tratava-se de um dos poucos temas
de caráter realmente "constituinte". Nada mais compreensível que, após tanta crítica
ao presidencialismo brasileiro, chamado por alguns de "imperial", com as tendências
centralizadoras do Executivo aguçadas pelos governos do período autoritário-
militar, houvesse uma reação dos constituintes na direção da desconcentração
do poder. Basta ver o que ocorreu na área tributária, com o fortalecimento do poder
local. À força do Executivo se atribuía com freqüência a debilidade dos partidos
políticos. Estes eram tidos e havidos por ajuntamentos de pessoas ao redor de
Nota: Folha de São Paulo, 29/8/1988.
123
interesses (como se isso não fosse da natureza de qualquer partido) sem propósitos
ideológicos definidos, relacionando-se com o poder central por intermédio de
nomeações, trocas de favores e não raro concessões de facilidades moralmente
condenáveis.
À objeção de que com partidos fracos e pouco representativos seria difícil um regime
parlamentarista obter êxito, respondia-se que com o presidencialismo imperial
jamais teríamos partidos verdadeiros.
Esse debate, contudo, por importante que fosse, e era, entusiasmou apenas umas
poucas lideranças. Em um primeiro momento de entusiasmo, contando com a força
simbólica de Afonso Arinos como um dos defensores do parlamentarismo, a tese
venceu na Comissão de Sistematização. Seus opositores, mais realistas, reagiram à
derrota, buscando o apoio do Planalto e firmando posição em torno da proposta de
presidencialismo com cinco anos de mandato. A sustentação do parlamentarismo se
esboroou com maior rapidez do que o esperado. Em votação acalorada, a
emenda presidencialista do senador Humberto Lucena venceu, em março de 1988.
A emenda final, que resultou da fusão de várias proposições, somente substituía na
Constituição a parte relativa ao Poder Executivo, criando um sistema complexo que,
embora tendo sido escoimado posteriormente de alguns artigos de inspiração
nitidamente parlamentarista, ampliou consideravelmente o poder fiscalizador do
Congresso.
No entretempo, houve escaramuças. Entre elas, uma tentativa de instituir o
parlamentarismo ainda durante a Presidência Sarney, mantendo-se o mandato de
cinco anos, tal como o governador de Goiás, Henrique Santillo (PMDB), propôs em
julho de 1987 em convenção do PMDB. Recordo que a certa altura o próprio
Presidente Sarney se inclinou nessa direção. A verdade, contudo, é que as
tentativas de conciliar os cinco anos com o parlamentarismo não encontraram eco
nos líderes peemedebistas. Ulysses Guimarães era presidencialista convicto e não
se aferrava tanto ao mandato de quatro anos, pretendido por muitos de
seus partidários. Mário Covas, por seu turno, alinhava-se com o parlamentarismo,
mas ainda mais fortemente com os que desejavam eleições presidenciais em 1988
(o que significava posicionar-se por um mandato de quatro anos já para Sarney). E
não estava isolado na posição: a maioria do PMDB "autêntico" o acompanhava,
entre os quais, ardoroso, Pimenta da Veiga.
124
Covas, desde que Santillo sugeriu o acordo na convenção do PMDB em
1987, declarou-se a favor de qualquer negociação, à condição de que as eleições
fossem marcadas para o ano seguinte. Sarney, depois que o relator Bernardo Cabral
apresentou sua proposta de "parlamentarismo imediatamente", tentou convencê-lo
de outra tese. Testemunhei uma reunião entre o Presidente, o chefe da Casa Civil,
Ronaldo Costa Couto, e o consultorgeral da República, Saulo Ramos, no final de
agosto de 1987, da qual saí com a impressão de que o relator se havia
comprometido com outra proposta e decepcionara o Presidente, apoiando
subitamente a mudança de sistema de governo. O Planalto reagiu, como era de
prever.
Richa, Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), José Fogaça (PMDB-RS), o líder na Câmara,
Luiz Henrique, eu próprio e tantos outros nos esforçávamos para encontrar fórmulas
que pudessem ampliar a aceitação da tese parlamentarista.
Em outubro de 1987 a Comissão de Sistematização aprovou cinco anos
como período de duração do mandato do futuro Presidente, mas deixou a
decisão específica sobre o mandato de Sarney para votação posterior, quando
se aprovariam as Disposições Transitórias. A partir de janeiro de 1988 a discussão
esquentou muito. Criou-se um Comité Pró-Diretas, suprapartidário, para insistir em
eleições no final daquele mesmo ano, atribuindo em conseqüência um mandato de
quatro anos a Sarney. O governo, mesclando-se às forças do Centrão, somava seus
votos. A oposição denunciava o uso de práticas fisiológicas para obter apoio
às teses presidencialistas e cincoanistas, como, por exemplo, as concessões de
canais de rádio e de retransmissoras de TV que, na época,
dependiam exclusivamente do Presidente da República (práticas, a
propósito, extintas em meu governo, quando ocorreu uma mudança radical
nesse terreno, com a introdução de licitação pública para as
concessões, submetidas a regras rígidas e a exigências não apenas em relação
ao maior preço oferecido como também a condições técnicas e outras).
Em fevereiro, o próprio Presidente, em seu programa semanal de rádio, se insurgiu
contra outros aspectos das resoluções dos constituintes (na verdade questões
relativas a exigências criadas para que fosse possível a prisão de pessoas em
flagrante delito), dizendo que provocariam "o caos, o império do crime e da
impunidade" e atribuiu as denúncias de corrupção no governo que circulavam ao
propósito de desestabilizá-lo.
Falou em ambições descontroladas (aludindo aos
125
que seriam pretendentes à Presidência e, por isso, queriam antecipar as eleições) e
chegou a dizer que estavam querendo "tocar fogo no Brasil".
Ulysses reagiu, considerando as críticas um "ataque à Constituinte"
desferido pelo Presidente. O mesmo Ulysses, indo indiretamente ao ponto, ou seja,
às manifestações de alguns ministros militares favoráveis às teses do Presidente,
criticou duramente a Junta Militar de 1969 - a cujos integrantes, aliás, costumava
referir-se como "os três patetas"
-, deixando implícito que ocorria algo semelhante. O ministro das Comunicações,
António Carlos Magalhães, entrou na liça, criticou o presidente da Constituinte e
defendeu as Forças Armadas. A Constituinte em peso (isto é, os presentes ao
plenário no dia) aplaudiu em pé Ulysses Guimarães, que fez discurso memorável
em defesa da autonomia da Assembléia. Os círculos mais oposicionistas - inclusive
a liderança do PMDB - passaram a falar em "ensaio golpista" por parte dos
governistas.
Tudo isso mostra que a luta pelo poder ofuscava os debates
propriamente constitucionais. As tratativas de encontrar uma solução para o
impasse sobre a data das eleições diretas e sobre um acordo que
permitisse parlamentarismo com a permanência de Sarney cumprindo mandato de
cinco anos continuaram o tempo todo. O governo, à frente seu líder,
deputado Carlos Sant'Anna, e com apoio de grande parte do Centrão, apostava
nos cinco anos e na vigência do sistema presidencialista. As tentativas
de entendimento de última hora com o Planalto não progrediam. O Presidente se
queixava da falta de um interlocutor do PMDB. O ministro da Saúde, Luiz Carlos
Borges da Silveira, chegou a se demitir depois de declarar apoio à tese do
parlamentarismo com Sarney. O grupo de José Richa e Sandra Cavalcanti
procurava conciliar. Ulysses se manteve fiel, como de resto Marco Maciel, às
convicções presidencialistas. Mário Covas jogou água na fervura. Desmascarava a
real natureza das diversas posições e, quanto ao possível acordo entre
parlamentarismo e cinco anos, fulminou, peremptório: "Não apoio, não voto e
trabalho contra."14
No dia 21 de março de 1988 a Constituinte, aprovando como já vimos a emenda
Lucena, resolve: presidencialismo com mandato de cinco anos, 344 votos a favor
contra 212 e 3 abstenções. Em junho, na votação das
Nota: 14 O Estado de São Paulo, 19/3/1988.
126
Disposições Transitórias, o mandato do Presidente Sarney é convalidado para a
duração de cinco anos, com votação favorável de 328 parlamentares contra 222 e 3
abstenções.
Minha posição nessa matéria se expressa pela reprodução de duas declarações
publicadas pela imprensa: considerava que o fundamental seria aprovar o
parlamentarismo, "pois um ano a menos ou a mais para Sarney não tem muita
importância"15 reafirmando o que dissera dias antes, ao deixar o gabinete do
presidente da Constituinte, após encontro das lideranças do PMDB com o relator
Bernardo Cabral:
"Importante é alterar o sistema."16
Não foi essa, contudo, a preferência dos constituintes, nem o ânimo dos debates se
centrou na pergunta "qual o melhor sistema de governo para o país?" mas sim, de
forma muito mais conjuntural, "quais as melhores chances que eu ou meu
agrupamento temos para ascender ao poder ou para mantermo-nos nele com um ou
outro sistema?" Faço injustiça a muitas pessoas; não estou, porém, julgando
intenções. Quero apenas mostrar a linha de força da História.
Curiosamente, a adoção do instituto das medidas provisórias com força de lei (MPs)
suscitou pouco debate na Constituinte, embora tenha sido um dos pontos que mais
polémica vem causando desde a entrada em vigor da nova Carta. Que me lembre, a
sugestão para a inclusão desse instrumento partiu de Ulysses Guimarães,
preocupado em substituir os inaceitáveis decretos-leis do regime militar - que tinham
prazo fatal para votação pelo Congresso, sob pena de se tornarem leis, e não
podiam sofrer qualquer emenda - por algum mecanismo, sob controle do Congresso,
que assegurasse a governabilidade. Coube ao deputado Nelson Jobim redigir
o texto, inspirado pela Constituição italiana, que utiliza recurso semelhante no
sistema parlamentarista.
Ainda quanto aos aspectos políticos da Constituinte, vale a pena mencionar o
impasse que ocorreu na definição das funções constitucionais das Forças Armadas.
Participei de uma reunião no edifício-sede do Serviço de Processamento de Dados
do Senado (Prodasen), que era um dos locais reservados à relatoria da Constituinte,
na qual o deputado Bernardo Cabral
Nota: 15 O Estado de São Paulo, 19/3/1988.
16 Folha de São Paulo, 17/3/1988.
127
se comprometeu com as lideranças dos partidos de esquerda a colocar no relatório a
ser submetido à Comissão de Sistematização o texto sobre o papel das Forças
Armadas tal como definido pela Comissão Arinos. Eu o havia subscrito na comissão
especial da Constituinte que tratava da questão dos militares. O texto não previa
qualquer possibilidade de convocar as Forças Armadas para garantir a ordem
interna, pois elas se restringiriam à defesa nacional. O texto pretendido pela
esquerda contrariava acordos feitos com o governo pelo próprio relator. Embora eu
tivesse recordado o fato, Bernardo Cabral reafirmou que iria mudar a proposta
aceitando a sugestão dos líderes dos partidos de esquerda.
Temiam que houvesse novas intervenções políticas dos militares.
Essa decisão produziu forte crise. Durante reunião do Ministério presidida por
Sarney a que estive presente como líder, o ministro do Exército, general Leônidas
Pires Gonçalves, pediu a palavra e lançou uma catilinária contra a Constituinte.
Leônidas não mencionou diretamente a questão das funções das Forças Armadas:
alertou, em termos duros, para os gastos enormes que várias medidas aprovadas
pela Constituinte acarretariam. O que ele queria, porém, era rever - como se reviu -
o texto sobre o papel dos militares. Coube ao senador José Richa e a mim resolver
o impasse, redigindo novo texto depois de conversas na residência oficial do
general Leônidas, no Setor Militar Urbano de Brasília, abrindo a possibilidade de os
chefes dos três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) convocarem as
Forças Armadas em circunstâncias críticas, sempre respeitada a hierarquia que dá o
comando supremo ao Presidente da República. A matéria gerou críticas acerbas a
mim, pois me coube defendê-la no plenário, sob o fogo da ironia do deputado José
Genoino, a relembrar que, na comissão especial sobre o assunto, eu tinha sido
favorável à fórmula da Comissão Arinos. Hoje, depois que a realidade do país
mostrou a necessidade da presença de tropas federais para afastar dúvidas sobre a
licitude eleitoral em certas regiões e da indispensável intervenção das
Forças Armadas em rebeliões da Polícia Militar ocorridas em diferentes estados,
sem esquecer de ações emergenciais que elas protagonizaram para controlar o
tráfico de drogas e de armas, a discussão sobre manter Exército, Marinha e
Aeronáutica voltados apenas para a defesa externa do país mostrou o quanto era
vã.
128
Novos partidos e o surgimento dos tucanos
A leitura deste capítulo, sobretudo da última parte, pode reforçar no leitor a
impressão de que nosso sistema partidário é frágil. E é mesmo.
Trata-se, entretanto, de uma leitura incompleta. Em outros capítulos voltarei ao
tema. Não obstante, convém mostrar desde agora que a realidade política tem
complexidade maior, não se restringindo apenas às limitações e imperfeições da
legislação partidária.
Em primeiro lugar, é natural (os autores clássicos diriam que é da "natureza" dos
partidos, ou da sua "essência" ou que lhes é próprio)
lutar pelo poder.17 Nada, portanto, a objetar que as disputas sobre a duração do
mandato presidencial ou mesmo a forma de governo encobrissem na Constituinte a
busca de poder, pessoal ou grupal. Claro está que se a política se resumisse à
ambição pessoal, teríamos, uma vez alcançado o poder, a tirania ou o clientelismo
reles de algum(ns) "mandonista(s)".
Mas, como vimos, estavam presentes vários outros cortes na Constituinte:
nacionalismo estatizante versus maior atenção às forças de mercado e às realidades
de uma sociedade que começava a se adaptar à globalização; estatismo
contraposto à maior crença nas forças da sociedade civil; visão de uma sociedade
socialista que valoriza mais o coletivo versus respeito às regras que asseguram
primazia da propriedade privada; visão social-democrata, que busca garantias
para que os direitos sociais sejam efetivamente exercidos dentro de uma economia
de mercado contra individualismo liberal, e assim por diante.
A complicação em nosso caso é o que chamei de caráter caleidoscópico
dos arranjos partidários: a presença, no mesmo partido, de pessoas e até correntes
com visões diversas. Mais sério ainda, o fato de que a mesma pessoa pode se
orientar politicamente por dimensões valorativas pertencentes a campos
ideológicos, senão opostos, ao menos distintos.
Isso porque o sistema eleitoral e as diferenças regionais que compõem nosso
esdrúxulo federalismo levam a acomodações partidárias que não espelham
Nota: 17 Desde Aristóteles, passando por Maquiavel e Montesquieu, chegando a Weber e
Michels para aterrissar no mestre francês da ciência política Maurice Duverger ou
em Joseph Nye, essa obviedade - os partidos lutam pelo poder e é essa sua função
principal - encontra apoio. Fim da nota.
129
necessariamente as escolhas ideológicas dos afiliados e porque estas têm
pouca consistência em sociedades de grande mobilidade social, forte desigualdade
e enorme concentração de poder. Esses fatores, sem serem os únicos, dificultam a
homogeneização das visões e das perspectivas valorativas.
Mesmo assim, e com toda a incoerência que essas características implicam, os
germes de uma decantação partidária se esboçaram na Constituinte. O PT vinha
aos poucos consolidando posições e, com o tempo, foi modificando-as. Após a
aprovação da Emenda Constitucional n° 25, logo no primeiro ano do governo
Sarney, houve ampliação da liberdade partidária. Além do PFL, cuja ruptura com o
PDS ocorrera anteriormente, e do PT, os partidos comunistas se reconstituíram e
os trabalhistas também. Estes últimos duplicaram-se, formando o PTB e o PDT.
Com o tempo outras organizações se foram compondo para acomodar interesses
regionais e eleitorais, como o Partido Liberal (PL) ou o que veio a ser o Partido
Progressista Brasileiro - PPB, uma continuidade do PDS depois renomeado Partido
Progressista (PP) e que nada tem a ver com o Partido Popular fundado por
Tancredo Neves e outros em 1979, que em 1982 se fundiria ao PMDB.
O sistema partidário brasileiro se foi, portanto, reformulando, mantendo-se o que
restou do PMDB como núcleo central (eleitoralmente vigoroso), com o PSDB e o PT
à "esquerda" e o PFL e o PDS - na versão Partido Progressista Reformador (PPR),
depois PPB e, mais tarde, PP - à "direita". Funcionam ainda, subsidiariamente à
esquerda, mas galvanizados pelo PT, os partidos comunistas e seus
desdobramentos. O Partido Popular Socialista (PPS) oscila no espectro
esquerda/direita entre o PT e o PSDB. O PTB e o PL se situam entre o PMDB e o
PP, ficando o PDT como um "radical livre" à esquerda do centro. Dito isto, que
consistência tem o espectro esboçado?
Muito pouca, porque os eixos ideológicos atravessam quase todos os partidos. E o
Executivo, apesar das limitações introduzidas pela Constituinte, continua com poder
de agregação suprapartidário, que torna o binómio governo-oposição outro eixo
ordenador dos debates e dos votos congressuais. No relacionamento com o
Executivo, os parlamentares se organizam em "frentes parlamentares" englobando
várias legendas, saltando inclusive o eixo governo-oposição. Analisarei essas
questões em outro
130
capítulo, restando, para os fins deste, fornecer alguns detalhes sobre a construção
do PSDB.
Tal como o PT foi a formação partidária que correspondeu a um momento
de mobilização de massas urbanas, com apoio das organizações sindicais e das
comunidades eclesiais de base, com seus desdobramentos, apoios ideológico-
organizacionais e braços universitários, o PSDB nasceu como conseqüência da
presença de uma classe média urbana, profissional e universitária, mais incorporada
às forças modernizadoras da sociedade e da economia. Essas forças se sentiram
desamparadas pela fragmentação do MDB, antigo partido da resistência
democrática, e pela incapacidade de suas lideranças para imprimir uma linha política
afim com os valores republicanos e com a "modernidade". Assim, entre os
problemas e os valores que motivaram a formação do PSDB incluíam-se o das
novas funções do Estado e sua abrangência, bem como os da eficiência da gestão
pública. Estava em jogo também a valorização da democracia e a necessidade de
um aggiornamento dos grandes temas do desenvolvimento econômico. A questão
da democracia era, até então, secundária no PT, dado o horizonte revolucionário e,
portanto, "antidemocracia burguesa"
aceito por parte dos militantes e de sua liderança. Coube ao PSDB recolher a
herança democratizadora do antigo MDB e renová-la. O contexto atual exige o
revigoramento do republicanismo e profunda revisão na organização e no modo de
atuação do Estado, para torná-lo capaz de se haver com os desafios dos mercados
globalizados e, sobretudo, da sociedade contemporânea.
Não está nos objetivos deste livro relatar a história do PSDB. Apenas dou umas
pinceladas, como fiz no caso do PT, para mostrar que, a despeito das aparências
de vivermos um quadro político-partidário amorfo e incoerente (e, repito, aspectos
disso realmente existem), pouco a pouco se estão criando configurações políticas
que expressam correntes de opinião com impacto transformador. Se me referi
unicamente a esses dois partidos é porque eles ocuparam a partir de meados
da década de 1990 as posições polares do eixo governo- oposição. Não
sendo partidos majoritários no Congresso, não podem governar sem os demais.
E tampouco podem governar se não forem capazes de oferecer uma visão e
um caminho para a sociedade. Este jogo complexo e profundamente interessante
constitui o nervo da política nacional contemporânea.
131
Desde os seminários de fundação do PSDB, havia a idéia de rever o papel que a
sociedade, o Estado e o mercado desempenham num mundo em frenética
transformação.18 As conseqüências da economia globalizada em um mundo livre
das amarras da guerra fria, e, sobretudo, marcado por novos canais de participação
e de comunicação político-social conferem à opinião pública um novo dinamismo.
Essas preocupações, embora sem muita clareza, já estavam presentes no ânimo
dos fundadores do PSDB. E havia, evidentemente, toda uma série de questões
políticas concretas por trás do propósito da formação de um novo partido. De um
lado, o PMDB constituía o que denominei de um partido omnibus, em latim, ou seja,
de todos, uma frente ampla. (O termo acabou se transformando, na mídia e no
Congresso, em "partido-ônibus") Em face da grande salada que era o PMDB, nosso
grupo considerava necessário marcar uma diferença ideológica, como expliquei
acima. Mas de outro lado havia a importante questão ética, especialmente em
estados importantes como São Paulo e Minas, governados pelo PMDB, nos quais
pululavam acusações de corrupção governamental. Acredito que tenha sido eu o
primeiro a levar à imprensa as articulações em curso, em entrevistas que, por sinal,
me causaram grande dor de cabeça. Entre os dirigentes partidários do PMDB,
também o deputado Pimenta da Veiga se expôs. De toda forma, evidenciara-se
Nota: 18 Especialmente, no caso, um seminário realizado no Hotel Nacional, em Brasília,
em 1988, e outro no Hotel Jeu de Paume, em Paris, no ano seguinte, que definiram
os rumos político-ideológicos do partido. Do encontro em Brasília participaram, entre
outros, Montoro, Covas, Scalco, Pimenta da Veiga, Richa, os deputados Saulo
Queiroz (MS), Jaime Santana (MA), Nelton Friedrich (RS), Cristina Tavares (PE),
Célio de Castro (MG), Artur da Távola (RJ), Sigmaringa Seixas (DF) e eu, além
de intelectuais como Hélio Jaguaribe, André Lara Resende, Edmar Bacha, Winston
Fritsch, Luiz Carlos Bresser-Pereira e vários outros. O segundo encontro foi
organizado por Sérgio Motta, engenheiro e empresário, ex-militante de esquerda e
grande amigo, que seria meu ministro das Comunicações. Realizou-se em Paris
como forma de atrair para uma discussão sobre "Políticas Econômicas e Sociais do
Desenvolvimento"
dezenove especialistas de dez diferentes países, entre os quais o indiano Amartya
Sen, que viria a ser Prémio Nobel de Economia de 1998.
Pelo Brasil, participaram Montoro, Scalco, Friedrich, Pimenta, Serra, o então
executivo e futuro ministro Clóvis Carvalho, os economistas José Roberto
Mendonça de Barros, Sérgio de Freitas e Winston Fritsch, o sociólogo Vilmar Faria,
o filósofo José Arthur Giannotti, o cientista político Bolívar Lamounier, Sérgio Motta
e eu. Fim da nota.
132
para a mídia a insatisfação de um grupo de esquerda do PMDB - que alguns, brincando,
chamavam de "os barbudinhos" - corn as características e os rumos do partido.
Curiosamente, vários dos interessados no novo partido, por diferentes razões,
acabaram não marchando para o PSDB, como João Herrmann (SP), Miro Teixeira
(RJ), António Britto (RS), Márcio Santilli (SP) e Dante de Oliveira (MT) - embora os
dois últimos, mais tarde, terminassem entre os tucanos.
Ao longo da Constituinte alguns dos parlamentares que fundaram o PSDB
já manifestavam inconformismo com a polaridade entre o
conservadorismo tradicional misturado com certa visão liberal em economia
(que caracterizou o Centrão) e o nacional-estatismo da visão desenvolvimentista dos
setores democráticos, fortemente inclinados ao intervencionismo econômico e ao
corporativismo. Esses constituintes sentiam-se emparedados e desconfortáveis com
tais posições, por não terem modo de expressar uma visão que fosse ao mesmo
tempo progressista e não-estatizante. Não desejavam ser confundidos com o
Centrão, nem tinham espaço na esquerda tradicional ou na esquerda petista. Esse
era notadamente o caso de José Serra e o meu, e mesmo o de Franco
Montoro, Euclides Scalco e José Richa.
Partindo dessas inquietações, o PSDB abriu novos caminhos para a política de
esquerda e vem agregando a seu redor segmentos significativos da sociedade.
Basta olhar a concentração de votos urbanos atribuídos ao PSDB no Sudeste e no
Sul e ver a distribuição deles, principalmente nos bairros de classe média, para
perceber quais são os setores sociais mais afins com o partido.
Como em qualquer sociedade de massas, a votação partidária "engorda" na época
das eleições majoritárias. Os candidatos têm de englobar segmentos das massas
despossuídas, sem os quais não há vitória eleitoral possível. Nessas oportunidades
o desempenho pessoal do candidato - do líder - conta mais do que a agregação de
interesses, de esperanças e de votos que o partido é capaz de conseguir, pois o
líder pode alcançar um espectro social mais amplo.
Também é perceptível que nas atuais circunstâncias os partidos expressam mais um
"estilo" de comportamento político do que uma "ideologia" no sentido tradicional. No
caso do PSDB, a frugalidade no uso da máquina
133
pública e o repúdio ao esbanjamento de recursos e à ostentação de poder,
somados à presunção de competência técnico-gerencial, constituem sua marca.
Seus quadros são, em geral, universitários com boa formação profissional. Esta
marca, ou este estilo, contrasta com o "estilo PT", mais obreiro-sindicalista, com
uma ostensiva retórica moralista, nem sempre apoiada pela prática dos dirigentes. O
PT se caracteriza também por uma conduta administrativa marcada por um
"assembleísmo" de inspiração católico-popular ou esquerdista-revolucionário, que
torna infinita a distância entre as decisões dos "coletivos" e sua implementação. E,
não menos importante, por uma tendência ao aparelhamento do Estado por
militantes, dando freqüentemente primazia à militância partidária em prejuízo da
competência técnico-profissional.
No nível propriamente político-ideológico, no PSDB as aspirações de maior
autonomia na sociedade civil convivem com a valorização da solidariedade social.
Por isso, o partido vê na ação do governo um instrumento fundamental para a
modernização da sociedade (acesso universal à saúde, à educação e ao bem-estar
social), mas sempre que possível ela deve se articular com as organizações da
sociedade civil.
Os oligopólios e as grandes organizações económicas, por sua vez,
devem respeitar o interesse público. A democratização, em sentido amplo,
é, portanto, peça central da ideologia do partido. Ele não separa os avanços da
democracia substantiva (que inclui acesso amplo da população aos bens sociais e
culturais, bem como melhoria dos padrões de vida) do respeito às regras da lei, sem
as quais não há sistemas verdadeiramente democráticos. Resumindo, o PSDB
busca um ponto de encontro entre os valores de liberdade, inclusive individual, e a
eficácia na ação pública para combater os males da sociedade.
Essa tendência é geral no mundo ocidental. Basta referir os esforços da chamada
Terceira Via, do Primeiro-Ministro britânico Tony Blair e do exPresidente americano
Bill Clinton, ou a revisão das práticas dos partidos socialistas na Europa. Há uma
adaptação da social- democracia às condições atuais de funcionamento das
sociedades afetadas pela globalização económica. Ocorre uma convergência entre
o liberalismo social, não-economicista, que respeita os direitos da pessoa humana
mas não se esquece dos direitos sociais, e a tradição esquerdista de crítica ao
mercado, sem o desejo de substituí-lo pela ação das burocracias estatais.
134
No caso das economias emergentes, contudo, demanda-se maior ação do Estado.
Seria enganoso pensar na transposição pura e simples das práticas renovadas da
social-democracia européia ou da democracia social americana para o âmbito local.
Como já dizia o poeta, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. No caso
específico do PSDB, uma ave - que na vida real não gorjeia -•, o tucano, acabou
sendo escolhida como símbolo do partido, por ser um pássaro tipicamente brasileiro
e uma referência ecológica, expressando a preocupação com os chamados "novos
temas" da agenda política.
Contudo, no capítulo seguinte tratarei de um tema "velho": a necessidade de domar
a inflação e como fazê-lo.
135
CAPÍTULO 3
O Plano Real: da descrença ao apoio popular
Um exército Brancaleone contra o dragão da inflação
Para falar do Plano Real, é preciso voltar àquele 19 de maio de 1993, decisivo para
minha trajetória política. Informado pelo secretário-geral do Itamaraty, embaixador
Luiz Felipe Lampreia, de que havia de fato sido nomeado ministro da Fazenda,
telefonei para o Presidente Itamar Franco, que respondeu à minha perplexidade
dizendo:
- Sua nomeação foi bem recebida...
E me deu carta branca para mudar na área económica quem eu desejasse.
Nunca acreditei na política de terra arrasada como bom ponto de partida.
Durante meu período no Ministério das Relações Exteriores mantive quase todo o
gabinete de meu predecessor, Celso Lafer. Prefiro conquistar o respeito e a
confiança das pessoas a mudá-las sem lhes dar uma oportunidade. Procedi da
mesma forma no Ministério da Fazenda. Em vez de substituir dirigentes e
funcionários, mantive em muitas funções importantes os anteriormente nomeados,
inclusive em órgãos como o BB, o BC, a Caixa Económica, a Secretaria da Receífa
Federal e o Tesouro Nacional. Minha obsessão naquele momento era buscar
cérebros, pessoas que me ajudassem a pensar.
Ainda em Nova York, pedi que os economistas Pedro Malan e Armínio Fraga fossem
ver- me no gabinete do embaixador Ronaldo Sardenberg, na sede da missão do
Brasil na ONU, no 9° andar de um edifício da Terceira Avenida, em Manhattan.
Malan eu conhecia desde o final da década de 1960. Na época ele estava casado
com uma sobrinha do sociólogo da USP Juarez Brandão Lopes, um dos fundadores
do Cebrap, meu amigo e vizinho em Ibiúna, e veio com a mulher visitá-lo. Em 1971,
sendo eu professor-visitante na Universidade Stanford, na Califórnia, e ele aluno do
economista Albert Fishlow no doutoramento em Berkeley, estivemos, de novo,
juntos em diferentes ocasiões. Posteriormente, em São Paulo, ele se
137
sentaria à mesa em alguns seminários no Cebrap. O próprio Malan me apresentaria
a Armínio, com quem tive alguns contatos quando de sua passagem por uma das
diretorias do BC, durante o governo Sarney.
Malan representava o Brasil no Banco Mundial e tinha a função de negociador da
dívida externa. Nesta condição, estive com ele algumas vezes, pois eu participava
no Senado da comissão que fazia o acompanhamento da questão da dívida. Muito
competente, sempre foi mais de ouvir do que de falar. Discreto e reservado, com
jeitão de chinês em um balcão, paciente e educado. No entanto, sabe perfeitamente
bem o que faz e é tão persistente em seus objetivos quanto discreto em anunciá-
los. Armínio, que eu viria a conhecer melhor mais tarde, após ele ter assumido o
BC, em 1999, já àquela época tinha consistência técnica profunda. Sempre
demonstrou acuidade e raciocínio rápido, somado à capacidade de ação. Com seu
jeitão adolescente - depois de minha saída da Presidência, várias vezes apareceu
na minha casa em São Paulo de mochila às costas -, sua simplicidade pessoal e a
maneira agradável, direta e clara de expressar o que pensa e faz cativam logo.
Além disso, é de um otimismo fundamental.
Convidei Malan para trabalhar comigo no Brasil. Malan, tão surpreso quanto eu
ficara com o convite do Presidente Itamar, talvez perplexo - porque, como
negociador da dívida, sabia até mais do que eu o tamanho do problema que a nova
equipe económica deveria enfrentar - acedeu em me ajudar esporadicamente:
- Vou trabalhar em Brasília com vocês uma semana por mês. Num
primeiro momento, manteria sua posição como negociador da dívida externa
e representante do Brasil no Banco Mundial. Armínio, entretanto, desculpou-se e
declinou qualquer função, pois recém- ingressara no mercado financeiro em Nova
York.
No avião, de volta a Brasília, acompanhado pelo embaixador Sinésio Sampaio Góes,
meu chefe de gabinete, preparei mentalmente o discurso de posse. Como chanceler
eu viajara mundo afora tentando convencer que havia crescimento em nossa
economia. Mas a inflação toldava o cenário.
O motor de nossa desorganização, do empobrecimento crescente e da corrupção
teria de ser eliminado. Foi o que disse no discurso de posse, no dia 23 de maio de
1993. Precisávamos enfrentar, como relembrei anteriormente neste livro, os três
grandes problemas do país: a inflação, a inflação e a inflação.
138
Curiosa a vida. Eu sempre olhara para a economia pelo viés sociológico das
questões estruturais. De repente, tive que entrar em cena em um momento no qual
o desafio a ser enfrentado requeria medidas ortodoxas de política fiscal e de política
monetária, sem contar negociações com os banqueiros internacionais para pôr fim à
desafortunada moratória de 1987.
Do Ministério das Relações Exteriores levei para a Fazenda, junto com o embaixador
Sinésio, o conselheiro Eduardo Santos e dois colaboradores desde os tempos do
Senado, Ana Tavares e Eduardo Jorge Caldas Pereira.
Conhecia Ana Tavares havia tempos. Trabalhava na Folha de São Paulo com seu pai,
o colunista José Tavares de Miranda, que me entrevistara algumas vezes. Além
disso, ela era amiga de dois de meus filhos, Paulo Henrique e Luciana. Ajudou-me
na campanha ao Senado em 1986. Com minha eleição, após algum tempo veio
trabalhar em meu gabinete em Brasília. É difícil encontrar alguém tão devotado ao
trabalho e tão leal às pessoas em que confia. Alegre, com opiniões fortes e
definitivas, sabe entretanto ouvir como ninguém, mesmo dando a impressão de que
só ela fala. Sua agudeza de percepção das pessoas e dos processos
políticos substitui com vantagem o aborrecimento que sente frente às
análises demasiadamente sofisticadas ou intelectualizadas, muitas vezes vagas.
Eduardo Jorge, por seu turno, juntou-se a minha equipe depois que Milton Seligman,
conhecido meu e amigo de antiga colaboradora, Gilda Portugal Gouveia, indicou
para atuar em meu gabinete de senador sua irmã, Maria Delith Balaban, funcionária
de carreira do Senado. Eduardo, também servidor de carreira, estava virtualmente
encostado no trabalho devido a picuinhas internas do Senado. Como
temperamento, ele é antípoda de Ana. A expressão carrancuda esconde suas
qualidades de pessoa prestante. Detalhista e arguto, fala pouco e não é fácil
decifrar para que lado vai sua análise, até que, quando tem oportunidade, abre-se
e mostra o quanto de paixão há escondida em seu semblante. Toma
posições sempre firmes.
Os diplomatas Sinésio Sampaio Góes e Eduardo Santos são bem a expressão do
que há de melhor no Itamaraty. O primeiro, de uma geração anterior, erudito e
discreto, sabe como guardar as formas sem perder o olhar agudo. O segundo, mais
jovem, preocupa-se com o aggiornamento das posições políticas de sua casa de
origem. Trabalhador e inteligente,
139
ajudou-me inclusive no Palácio do Planalto: em meu segundo mandato
como Presidente, após ter servido na embaixada em Londres durante o primeiro,
seria o chefe da assessoria diplomática da Presidência, No final do governo,
assumiu a embaixada em Montevidéu.
O começo da organização da equipe foi difícil. Com a ajuda de José Serra e Sérgio
Motta, iniciamos as conversas e os convites. Conheci Sérgio Motta por intermédio
de Serra, quando este voltou do exílio para o Brasil em 1977 e incorporou-se ao
Cebrap. Como um dos sócios de uma empresa de consultoria em engenharia, a
Hidrobrasileira, ele contratou o Cebrap para a análise social de um projeto urbano.
Soube depois que estava ajudando financeiramente a publicar o semanário de
oposição Movimento, resultante de uma cisão da equipe que editava o Opinião.
Integrara o grupo católico de esquerda Ação Popular (AP). Desde então nos
tornamos amigos, tendo sido ele um dos organizadores de minha campanha à
Prefeitura de São Paulo em 1985. Bonachão, de uma imensa generosidade --
empregava em sua empresa todos os perseguidos políticos que podia, até mesmo
uma ex-companheira de Carlos Marighella, uma das principais figuras da luta
armada contra o regime autoritário *-, era dotado de coragem e audácia.
Extremamente inteligente, às vezes precipitado, podendo ser rude, tinha uma
capacidade de trabalho e de entrega às causas em que acreditava que engolfava,
em seu ardor de mudar o mundo, os que dele se aproximavam. Foi sempre leal
comigo.
Inteligente, sem contenção verbal, me criou vários transtornos, todos mais do que
perdoáveis pela grandeza de alma que o mantinha como figura ímpar.
Convidamos, de início, Clóvis Carvalho, ex-secretário adjunto de Planejamento de
Serra em São Paulo durante o governo Montoro, que aceitou deixar a função de
více-presidente do grupo industrial Villares (siderurgia e outros empreendimentos)
para assumir a secretaria executiva do Ministério. No passado, participara das lutas
políticas como católico de esquerda, graças ao que esteve preso.
Completamente talhado para o cargo -• engenheiro formado pela Escola Politécnica
da USP, cabeça metódica, organizador competente e leal -, veio trabalhar comigo
por puro idealismo. Sua correção e profissionalismo ajudariam a plasmar a gestão
administrativa, separando claramente o público do privado, graças a uma retidão
absoluta. Três economistas que participaram dos debates para a formação do PSDB
e integrantes do partido, Edmar Bacha - de há muito
140
meu conhecido, desde que lecionei nos anos 1970 nos EUA, onde ele aperfeiçoava
seus estudos -, Winston Fritsch e, logo após, Gustavo Franco, igualmente vieram
colaborar, mais por dever político do que por crença na possibilidade que teríamos
de fazer o necessário, tal a desconfiança que tinham do governo e dos políticos.
Bacha incorporou-se à equipe como consultor especial, ocupando-se, de início, da
tarefa de arquitetar os passos indispensáveis à recomposição das finanças públicas.
Fritsch assumiu como secretário de Política Econômica e Gustavo Franco,
inicialmente, seria seu adjunto, para logo depois se encarregar da área externa do
BC. E foi assim, com uma pequena equipe diante de um desafio gigantesco, como
um exército Brancaleone, que começamos a trabalhar, sob um clima político
desanimador.
Assumindo interinamente a Presidência a 2 de outubro de 1992 (a posse definitiva
se daria depois da renúncia de Collor diante do impeachment que seria decretado
pelo Senado, a 29 de dezembro), o governo Itamar Franco tentava dar rumo ao país
diante de enormes dificuldades. Fui o quarto ministro da Fazenda em sete meses,
como assinalei no capítulo anterior. A atmosfera conturbada incluiu também a tarefa
de o Congresso purgar seus males, o que desaguaria na Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) dos Anões do Orçamento, finalmente instalada em outubro de
1993, e destinada a rastrear os caminhos da corrupção dentro do Legislativo. Na
área econômica, o governo patinava num vaivém inconseqüente. A inflação poderia
ultrapassar, se anualizada nos momentos de pico, os 3,000% ao ano. E todos a
esperar a revisão constitucional automática, prevista no texto da Carta de 1988
para cinco anos após o início de sua vigência, que deveria começar também
em outubro de 1993. A exigência de um quorum menor do que o da
regra constitucional para promover modificações - em vez dos votos de três quintos
dos congressistas, bastariam os da metade mais um - teoricamente facilitava muito
o processo e criava expectativas (que não se realizariam).
O Orçamento se constituía em uma peça de ficção. As contas do BC e do Tesouro
se misturavam e delas ninguém sabia grande coisa. O BB e as demais instituições
financeiras públicas ou privadas viviam do floating, isto é, de apropriarem-se das
sobras inflacionárias. Não obstante, a inflação dava a muita gente (mas não à
grande massa de brasileiros pobres) a ilusão da abundância. Os diferentes tipos
de depósitos que tinham direito
141
a correção monetária rendiam esperança. Os bancos oficiais emprestavam e não
sabiam se ganhavam ou perdiam, o que pouco importava, já que a inflação gerava
resultados fictícios nos balanços. Os estados contratavam dívidas impagáveis junto
a seus bancos para financiar déficits crescentes.
Enfim, governava-se às cegas e na desordem. O Congresso imperava na ilusão
económica: para prometer acima do que podia entregar bastava aumentar um
pouco a taxa de inflação esperada e gerar no Orçamento bilhões em recursos
inexistentes, como se os parlamentares fossem, para lembrar o romance de André
Gide, moedeiros falsos.1 A cada tantos meses recalculavam-se os excedentes de
arrecadação. O Tesouro, por seu lado, dava de ombros: um simples atraso de
alguns pagamentos (até mesmo salários) e a inflação corroía o valor real dos
desembolsos, poupando-lhe recursos. Ao final do ano tudo dava aparentemente
certo.
Nem tudo, porém, era ilusão. Alguns congressistas poderosos, alguns lobistas muito
bem relacionados, sempre com alguma cumplicidade na máquina administrativa,
conseguiam "agilizar" a liberação de recursos contingenciados - ou seja, cuja
liberação depende de decreto do Presidente da República - e com isso podiam se
beneficiar.
Esse era o sistema. Não o do período autoritário, que os editoriais de O Estado de São
Paulo grafavam com S maiúsculo. Mas outro, mais sutil, para melhor operar nas
sombras, que não gostava de ver-se descrito nem com letras minúsculas.
As várias tentativas para deter a inflação nos governos Sarney (1985- 1990) e Collor
(1990-1992) haviam deixado um travo amargo nos economistas. No povo, o pavor
de novos congelamentos de salários ou do confisco de depósitos e poupanças.
Apesar disso, também se espraiava a sensação de que não seria possível continuar
do jeito que estava. O único plano do qual o público e os políticos tinham saudades
era o Cruzado. É certo que o Cruzado terminou em moratória e na volta da inflação.
Pelo menos, no entanto, legara a boa lembrança do gosto de expansão do consumo
e de melhores salários durante um certo período.
Essa é a dificuldade política para lidar com a economia. O Cruzado ruíra, entre
outras razões, porque o governo não teve força para impor
Nota: André Gide, Os moedeiros falsos, São Paulo, Abril Cultural, 1985.
142
maior disciplina fiscal e porque, na partida, concedeu um aumento real de salários.
Uma medida que produziu sensação de desafogo e prosperidade - e até mesmo
crescimento económico - causou também o recrudescimento da inflação. Depois da
tentativa frustrada de volta ao paraíso com o Plano Bresser (junho de 1987) e das
peripécias do Plano Verão (janeiro de 1989), veio a catástrofe do Plano Collor
(março de 1990). A prefixação dos preços, os congelamentos temporários,
as mudanças de índices perpassaram vários desses planos e geraram incontáveis
demandas judiciais, dando margem a parte do que se chamou de "esqueletos" do
setor público, ou seja, dívidas existentes, ou bombas-relógios de débitos em pleno
curso de estourar, mas não incluídas formalmente na contabilidade pública. Diante
da algaravia dos economistas, das alterações súbitas das leis, enfim, das incertezas
que se seguiram aos vários planos salvadores, explicam-se a desconfiança
do povo, o ceticismo dos economistas envolvidos nas experiências anteriores de
estabilização e a urgência em tomar alguma providência que aliviasse a situação,
O curioso é que o invento tupiniquim da correção monetária - que levou à indexação
generalizada e aos "ganhos inflacionários" (seja via floating bancário, seja pelos
ganhos do governo) - dava a falsa sensação de normalidade à minoria que
aprendera como conviver com a inflação e dispunha de condições para tanto. Quem
realmente pagava o custo era a massa de assalariados e os pobres que não tinham
conta remunerada em banco e nem poupança para ser resguardada pela correção
monetária, instituída no início do regime militar pelo governo do marechal Humberto
Castello Branco e parte integrante da vida do país desde então.
Compreende-se, portanto, o temor do nosso exército Brancaleone. No começo
tínhamos apenas a disposição de Clóvis Carvalho, com a colaboração contínua do
secretário do Tesouro, Murilo Portugal - ex-funcionário do Itamaraty com
doutorado em Economia em Cambridge, na Inglaterra, membro da elite do que há
de melhor entre os profissionais da burocracia federal -, para reorganizar as dívidas
dos estados, e a luta de Edmar Bacha, Winston Fritsch, Gustavo Franco e Eduardo
Jorge para ganhar no dia-a-dia a batalha orçamentária, os cortes de gastos e o
destrinchamento das relações entre o BC e o Tesouro Nacional, para o que foi
fundamental o "livro branco" preparado por Bacha, analisando aquelas
143
complexas e confusas relações. Ao lado disso, travava-se uma guerra
para submeter ao controle do Ministério da Fazenda as finanças das
empresas estatais, tentando melhorar sua eficiência para serem menos
dependentes do dinheiro dos contribuintes, se não fosse possível torná-las fonte
de receitas para o Erário.
Havia maior consenso, fora e dentro do governo, quanto ao combate ao déficit
público. Mesmo assim, certos economistas renomados de diferentes tendências,
bem como determinadas forças sociais, não viam ou não queriam ver relação direta
entre uma e outra coisa. Refiro-me a nomes como Paul Singer, João Sayad e, até
certo ponto, Delfim Netto, e a setores como os industriais da área de consumo,
organizados na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e no
Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (iedi). O argumento
que sustentávamos para dizer que existia, sim, relação entre controle fiscal e
inflação baseava-se na interconexão entre dispêndios descontrolados e a
expectativa de corrosão da moeda, que tornava cómodo para os governos continuar
alimentando o que se chamava de déficit potencial. Quer dizer, sem inflação as
contas públicas, em vez de exibirem falsos superávits operacionais, mostrariam na
verdade o vermelho em que se encontravam, como Edmar Bacha explicara. Não
apenas os bancos, mas também o governo ganhava com a inflação.
Apesar da unanimidade da equipe a favor das medidas racionalizadoras do gasto
público, sabia-se perfeitamente que elas não seriam suficientes para matar, como
se dizia, o "dragão da maldade" inflacionária.
Quatro frentes de batalha e uma arma: a persuasão
O caminho para chegar a uma economia mais estável passava por várias frentes de
batalha e desdobrava-se em etapas. Não tínhamos de antemão inteiramente
estabelecido o mapa de vôo, mas certa noção do rumo que queríamos tomar e, não
menos importante, dos descaminhos pelos quais nos recusaríamos a enveredar.
A primeira frente de batalha era ajustar tanto quanto possível o Orçamento daquele
ano, 1993, e preparar um Orçamento equilibrado para 1994. Estabelecer a "verdade
orçamentária" segundo expressão da época,
144
era parte essencial do esforço para recuperar a credibilidade do governo. A
sociedade precisava acreditar que o governo estava de fato comprometido com o
equilíbrio das contas públicas. O governo, por sua vez, necessitava dispor dos
meios para tanto. E tinha que elaborar um Orçamento que espelhasse isso da forma
mais transparente possível. Sem encaminhar solução adequada a essa complicada
equação, o combate à inflação não iria longe. Por essa razão, nos empenhamos em
obter no Congresso leis que permitissem cortar gastos, elevar impostos e reduzir a
rigidez do Orçamento, desvinculando receitas de gastos predeterminados.
A segunda frente de batalha travou-se principalmente com os estados,
que acumulavam gigantescas dívidas com a União e não as vinham pagando com a
regularidade devida. Pôr fim à inadimplência quase generalizada dentro do setor
público e impedir que ela viesse a se repetir no futuro constituíam também tarefas
indispensáveis à reconstrução da credibilidade do governo.
A terceira frente consistiu em defender a necessidade de caminhar no processo de
privatização de empresas estatais, não só para ajudar o esforço de ajuste fiscal, mas
principalmente para promover o investimento na expansão e melhoria de serviços
públicos, conforme a sociedade exigia de um governo sem recursos. Ainda que
nessa frente não se tenha podido progredir muito, a insistência na idéia preparou
o terreno para, quando cheguei à Presidência, deslanchar as privatizações nos
setores de infra-estrutura.
A quarta frente dizia respeito à renegociação da dívida externa e ao retorno do Brasil
ao mercado financeiro internacional, com a suspensão da moratória. A conclusão do
acordo da dívida, em bases satisfatórias para o país, era outro dos elementos
fundamentais para a recuperação da confiança, não somente do mundo financeiro
internacional, mas também da própria sociedade brasileira.
Em seu conjunto, essas quatro frentes de batalha formavam o que entendíamos ser
a etapa preparatória para um ataque frontal à inflação.
Não havia como empreender a reforma monetária propriamente dita sem obter,
como precondição, progressos significativos nessas frentes.
Pouco a pouco, em meio a muitas discussões dentro da equipe, tornou-se claro que
a reforma monetária se desdobraria em duas fases. Na primeira, o objetivo seria
promover um alinhamento voluntário de preços
145
e preparar o terreno para a derrubada da inflação, sem congelamentos e
desrespeito a contratos. Como "alinhar preços", se eles variavam a cada dia? Seria
preciso mostrar à população que era o dinheiro nacional que variava, e não o custo
objetivo da produção ou o ganho com ela. A maneira mais simples de ver isso seria
transcrever tudo em dólares, mas este procedimento traria vários inconvenientes.
Daí a decisão de utilizar como termo de comparação uma moeda estável inventada
por nós, a Unidade Real de Valor (URV), que seria um substituto do dólar
como ponto de referência. A população já se acostumara, por exemplo, a
pagar impostos com o que se chamava de Unidade Fiscal de Referência (Ufir), que
atualizava o valor dos impostos e de alguns contratos diante do desgaste da moeda.
Pretendíamos deixar claro que uma moeda - o cruzeiro real de então - estava
doente, e que a outra era sã, estável. Dito assim pode parecer simples. Custou,
porém, muita discussão técnica e cuidado jurídico para que a idéia inicial tomasse
forma concreta.
A segunda fase da reforma monetária consistiria no lançamento da nova moeda
propriamente dita e na definição das regras cambiais e monetárias consistentes com
o objetivo de manter a inflação baixa.
Nas várias frentes e etapas, atuei para que as incertezas e temores de toda ordem,
que muitas vezes eu mesmo compartilhava, e os obstáculos de toda natureza, que
freqüentemente pareceram intransponíveis, não bloqueassem o caminho do
processo de estabilização. Busquei exercer a arte da política, que consiste
justamente em criar condições para que se possa realizar um objetivo para o qual
as condições não estão dadas de antemão. Por isso a política é uma arte e não
uma técnica. E sua arma principal na democracia é a persuasão. Graças à
persuasão, ao convencimento da sociedade, em que me empenhei
obsessivamente, acabou sendo possível formar os consensos mínimos onde eles
eram presumivelmente mais difíceis e certamente mais necessários: dentro
do governo, no Congresso, com os partidos, ou seja, entre os agentes que tomam
as decisões políticas ou impedem que elas sejam tomadas. Não sendo economista,
minha ação se animava pela intuição política e pelos valores da minha formação
democrática. Em meio a muitas dúvidas, abrigava só uma e fundamental certeza, de
que só um programa que pudesse ser explicado e compreendido pelas pessoas
seria capaz de derrubar a inflação de forma duradoura e colocar em marcha a
reorganização do Estado brasileiro.
146
A dura tarefa de pôr a casa em ordem
O primeiro passo para reduzir a inflação de modo consistente era pôr um mínimo de
ordem na casa. Tomamos como ponto de partida a elaboração do que chamamos
de Plano de Ação Imediata (PAI). Tivemos pouco tempo para prepará-lo. Já no dia
13 de junho, três semanas após assumir a Fazenda, apresentei o que chamamos
de início de um programa de combate à inflação. Programa, não pacote, como nos
tempos do autoritarismo ou dos choques heterodoxos.
A leitura desse documento mostra que, desde o início, graças aos seminários
realizados pelo PSDB citados no Capítulo 2 e à pregação de seus líderes
intelectuais, inclusive vários economistas, tínhamos claramente propostas social-
democráticas. Para fundamentar o ajuste fiscal, está escrito no PAI: "A
reorganização financeira e administrativa do setor público tem implicações que vão
muito além do econômico. É uma tarefa de salvação nacional e um desafio político
que pode ser resumido nos seguintes termos:" e cita os desequilíbrios sociais "que
infernizam o dia-a-dia da população"; a dívida social que só seria resgatada com a
retomada do crescimento auto-sustentado; o fim da superinflação, que só poderia
ser derrotada com o fim da desordem das contas públicas dos municípios, dos
estados e da União; e tudo isso ocorreria somente quando "as forças políticas"
decidissem "caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses
menores".2
Estávamos convictos da necessidade de reconstruir degrau a degrau as teias que
dão ao Estado condições para agir na área económica. Como tornar transparentes
as contas públicas? Como retirar do Orçamento o caráter ficcional? Como incutir na
mente dos administradores públicos (governantes, presidentes de bancos,
autarquias, empresas e seus funcionários) a plena noção de contrato? Como levá-
los a agir para que pagassem nas condições estipuladas nos contratos?
Edmar Bacha dera o ponto de partida do documento e na versão final houve a ajuda
de José Serra, então deputado federal. Da experiência do Plano Cruzado, o PAI
reteve a lição fundamental: não bastava dispor de boa técnica sem o essencial
passo de buscar apoios na sociedade,
Nota: Plano de Ação Imediata, Brasília, Ministério da Fazenda, junho de 1993, p. 2-3.Fim da nota.
147
na mídia, no Congresso, principalmente para propor medidas tidas como impopulares.
No início ninguém acreditava ser possível, já não digo estabilizar a economia, mas
ao menos dar maior seriedade e eficiência à gestão financeira e fiscal do Estado. A
pequena equipe mantinha sempre um pé no ar, prestes a lançá-lo fora do governo,
para não passar pelas frustrações do passado. Cito como exemplo o caso de um
dos diretores do BC, Francisco Pinto, que ajudou a elaborar o Plano Real. Um dia
ele me procurou dizendo achar quase impossível que, por conveniência político-
eleitoral, não fôssemos obrigados a fazer concessões. Queria ir embora. Eu o
dissuadi por alguns meses, mas ele acabou pedindo demissão. Esse estado de
desânimo durou até quase o momento final da proposta da URV. A cada instante
meus colaboradores insistiam na necessidade de precondições: sem que
controlássemos o BB, a Caixa Econômica, o Ministério do Planejamento e não sei
quantas outras posições estratégicas, seria impossível domar a inflação. Lembrei-
lhes que o Presidente da República era Itamar Franco, não eu, e que ele, sim,
esperava que nós resolvêssemos, nas condições dadas, os percalços da economia.
Teríamos que atuar dentro delas e só pouco a pouco, credenciando-nos pelo êxito,
poderíamos ganhar confiança e obter influência sobre outras áreas significativas.
Tomei a decisão prudente de conferir clareza a cada passo, para que a sociedade,
ou pelo menos a opinião interessada, compreendesse nossos propósitos e pudesse
dar-nos sustentação. Evitamos apresentar metas quantitativas globais, que logo no
dia seguinte pudessem ser desqualificadas pelo não-cumprimento eventual.
Cuidamos de não cair na tentação de dolarizar a economia, como havia sido feito na
Argentina no ano anterior pelo Plano Cavallo - assim denominado por causa
do poderoso ministro da Economia do Presidente Carlos Menem, Domingo Cavallo
-, na época muito popular. Em vez dessa alternativa, insistimos em temas pouco
atraentes, como o combate ao déficit público e a busca do equilíbrio fiscal.
Era inevitável o choque entre a lentidão dos resultados das medidas propostas e as
expectativas formadas no governo e na sociedade. Quase todos aspiravam a um
golpe rápido e certeiro na inflação. Desiludidos pelo ippon fracassado do governo
anterior, esperavam algo na linha de um "pacto social" que reunisse ao redor da
mesma mesa sindicatos de trabalhadores,
148
empresários e governo para controlar os preços. Seria a tão anelada
versão cabocla do Pacto da Moncloa - o grande acordo que permitiu a consolidação
da democracia e alavancou o progresso económico da Espanha, em 1977 ->, que
povoava (e continuou povoando) a imaginação de setores influentes no país.
Como pedir paciência ao povo se a cada mês a moeda perdia 30% de seu valor?
Como convencer os políticos de que a inflação se alimentava de expectativas
futuras e, pior ainda, expectativas formadas nos mercados, e não simplesmente
pela ganância dos especuladores (que por certo havia) e por custos crescentes?
Nesse processo, a própria expectativa de um novo choque acelerava a inflação.
Tudo isso, entretanto, feria o senso comum, e a decifração dessa charada desafiava
quem sabe que a economia é também política.
A briga se anunciava de bom tamanho. Na opinião corrente, em uma visão popular
do keynesianismo, cortar gastos públicos acarretaria a recessão. Na verdade, não
se cortavam investimentos, e sim espuma inflacionária. Mais difícil ainda seria
promover um ajuste patrimonial para equilibrar o gasto público, quer dizer, privatizar
empresas públicas, ou melhor, continuar a privatizá-las. Isso ia contra o sentimento
tradicional da esquerda, impenetrável à percepção de que, dada a crise fiscal do
Estado, privatizar significava a saída não só para cortar os déficits mas para
viabilizar a expansão dos serviços públicos. O maior obstáculo, no entanto, não
estava nas visões ideológicas, e sim nos interesses corporativos dos empregados
públicos e das empresas privadas beneficiárias do modelo nacional-estatista. Uns e
outros viam na empresa estatal a alavanca para o crescimento do país e a promoção
de seus interesses.
Na época, como hoje, havia grande resistência a aumentar a carga fiscal.
Q importante, dizia-se, é combater a sonegação, o que também é verdade.
Só que a sonegação baseia-se em dois pilares firmes, que tornam exíguos os
resultados do combate. Primeiro, as decisões liminares da Justiça - ou seja,
proferidas em caráter provisório - nunca julgadas no mérito, mas concedidas por
juizes de direito com base nas brechas da lei.
Ademais, seguindo o devido processo legal, os devedores do Fisco podiam apelar
das decisões sem depositar o montante de recursos correspondente às suas
dívidas, A morosidade do Judiciário jogava a favor dos eventuais devedores: com
inflação alta, a diferença para mais entre as taxas de juros
149
obtidas por eles no mercado e as diferentes formas de correção monetária que
incidiam sobre suas dívidas favorecia grandemente os contribuintes relapsos.
O segundo pilar em que se funda a sonegação é a economia informal, a que se
soma uma cumplicidade muitas vezes inconsciente, embora generalizada, do
consumidor e sua prática de não pedir nota fiscal nas compras. Em um país de
economia inflacionária é difícil desenvolver a consciência do contribuinte para exigir
provas de pagamento dos impostos. Falei abundantemente nas emissoras de TV e
rádio sobre os ralos de dinheiro da República, criticando duramente a sonegação,
o desperdício e a corrupção. Critiquei-os, não porque esperasse que o combate a
esses males resolvesse a crise fiscal sem aumentar impostos, mas porque, além de
colaborar na solução dela, expunha seu caráter de moralmente inaceitáveis. São os
verdadeiros inimigos do bolso dos contribuintes e da crença nas instituições.
O PAI era basicamente um programa de ajuste fiscal, mas enquadrado em uma
visão estratégica sobre os passos necessários à retomada do crescimento.
Precisávamos cortar o equivalente a 6 bilhões de dólares do Orçamento corrente,
de 1993. Enquanto o Congresso não aprovasse a amarga medida, o Ministério da
Fazenda aplicaria cortes trimestrais no orçamento de cada Ministério. Propusemos
um Orçamento mais realista para 1994, sem contar com receitas inflacionárias.
Pedimos ao Senado que aprovasse projeto de lei votado na Câmara, que limitava o
gasto com pessoal nos estados e municípios a 60% da receita.
A inflação, sabíamos, não baixaria apenas com austeridade fiscal. O antigo hábito
de aceitar como normal a desvalorização da moeda mantinha firmes as expectativas
inflacionárias. Havia que redefinir as políticas monetária e cambial. A indexação
generalizada garantia que a elevação de um dos preços da economia contagiaria
automaticamente os demais. Os entraves estruturais requeriam reformas (a
tributária, a previdenciária etc.) que se pensava empreender quando da revisão
constitucional, prevista, como vimos, para começar em outubro de 1993.
Conhecíamos o diagnóstico e sabíamos o que deveria ser feito. Faltava convencer o
país sobre o caminho. Embora cada segmento da sociedade estivesse, em termos
gerais, de acordo com o rumo, ao longo da marcha cada um deles poderia ter
interesses contrariados ou pelo menos assim
150
imaginar. As expectativas favoráveis criadas com a boa acolhida de
minha nomeação iam sendo corroídas pelo tempo. Os interesses reais e
os ideológicos afetados pelos rumos definidos no PAI começaram a mover-
se contra nós. A impaciência, como se verá adiante, se refletia na mídia.
E, quem sabe, o próprio Presidente pudesse ter outros coelhos na cartola para
atender as aflições do povo.
O nervosismo dos meios políticos e da mídia era inversamente proporcional à difícil
carpintaria requerida para alcançar os objetivos que pretendíamos. A ponte entre os
anseios da população e os períodos de tempo necessários para o combate radical à
inflação tinha de ser construída pelo ministro e por seus partidários. Muito discurso,
muitas entrevistas, muitas explicações pelo rádio e pela TV. Nessa tarefa
a competência verbal e a seriedade dos técnicos ajudam bastante, porque em geral
eles são mais ouvidos do que os políticos.
A luta por um ajuste fiscal
Tínhamos consenso na equipe quanto à política fiscal. Fora do governo, entre os
membros das elites econômicas e em setores conservadores, existia forte clamor
para cortar gastos públicos. Havia mesmo quem visse na redução do gasto público
(e se possível da carga tributária) a ante-sala da felicidade. Exageros à parte, o
equilíbrio orçamentário, ou pelo menos criar a expectativa de alcançá-lo, é com
efeito essencial em qualquer programa de estabilização.
Outros setores da sociedade tinham visão diametralmente oposta. Para esses o
importante era assegurar o bem-estar social. Muitos imaginavam que para tal
bastava vincular no Orçamento um percentual de recursos destinado às áreas
sociais, importando menos os efeitos inflacionários dos gastos ou até sua
viabilidade. Não podíamos, pois, deixar de mostrar ao Congresso e ao país que, na
verdade, o repasse automático de verbas aos estados e municípios (sem a
contrapartida de honrar suas responsabilidades, especialmente para com o Tesouro
nacional) e a rigidez acarretada à gestão pública por receitas vinculadas
eram incompatíveis com a boa administração do gasto público.
Reuni-me incontáveis vezes com as bancadas partidárias e com a Comissão do
Orçamento do Congresso (que inclui deputados e senadores).
151
Finalmente, no dia 13 de julho obtivemos a aprovação de uma nova lei orçamentária
com o corte requerido de 6 bilhões de dólares. Ajudou-me extraordinariamente,
nesta como em outras ocasiões, ter sido senador da República e líder no Senado
tanto do PMDB quanto do PSDB. A prévia e longa passagem pelo Congresso me
dava autoridade e familiaridade para tratar com os congressistas e, quando
necessário, enfrentá-los, sem o temor que a agressividade oratória pode causar aos
ministros e técnicos não habituados às práticas parlamentares.
Vencida a luta pela reorganização do Orçamento de 1993, pusemo-nos a criar
condições para elaborar um Orçamento melhor para 1994.
Inicialmente, os economistas pretendiam propor uma lei geral das finanças, que
assegurasse melhor manejo dos recursos. Edmar Bacha, pragmático, logo desistiu
de tamanha ambição. Em seguida, Gustavo Franco, aconselhado por Eduardo
Jorge, bom conhecedor da máquina pública, também se convenceu de que
teríamos que nos contentar com um remendo.
O remendo foi um Fundo Social de Emergência (FSE), desenhado por Edmar Bacha
com a colaboração do economista Raul Velloso, respeitado especialista em contas
públicas, e do economista e funcionário de carreira da área económica Daniel de
Oliveira - posteriormente nomeado para a diretoria do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID).
Propus o FSE ao Congresso como emenda a ser votada no processo de revisão
constitucional. A proposta se resumia a obter a liberação da utilização de 20% das
receitas constitucionalmente vinculadas a despesas específicas, como educação e
seguridade social, e das que eram transferidas automaticamente aos estados e
municípios. Com o FSE o governo federal aumentaria sua reduzida margem de
manobra, podendo usar os recursos liberados para a necessária amortização de
dívidas ou para financiar programas sociais.
Nós demonstramos, à sociedade, que sem a desvinculação proposta o dinheiro que
o governo federal podia movimentar sem amarras mal chegava a 15% do total do
Orçamento - e era com esse dinheiro que se levantavam obras públicas e se
atendiam os programas prioritários. O Congresso aprovou o FSE e, com pequenas
modificações, prorrogou sucessivas vezes esse remendo, com diferentes nomes
(primeiro mudou para Fundo de Estabilização Fiscal, o FEF, e depois para
Desvinculação das Receitas da União, a DRU). Houve críticas à designação Fundo
"Social" de Emergência, quando seu objetivo na verdade nada teria de social:
tratava-se simplesmente
152
de desengessar um pouco o Orçamento para o governo poder dirigir mais
recursos para seus programas, fossem eles sociais ou não.
A verdade, admito, é que o denominamos "Social" para facilitar sua aprovação pelo
Congresso.
Logo depois de publicada a medida que propunha o FSE, o deputado José Serra me
enviou uma nota alertando que a emenda seria recusada na parte que atingia os
estados e municípios. E assim aconteceu. Os estados que mais dependiam de
transferências de recursos federais previstas na Constituição, por terem escassa
receita própria, eram precisamente os que detinham representação no Congresso
desproporcionalmente maior que os demais em relação à sua população e se
opuseram tenazmente à emenda.
Por isso, para aprovar o FSE tivemos que fechar um acordo isentando estados e
municípios dos efeitos da medida. A aprovação só ocorreu a 9 de fevereiro de 1994.
As apostas até aquela data eram contra o êxito do esforço fiscal. O Congresso
reagiu lentamente. Apesar do muito que realizáramos nos oito meses anteriores em
matéria de pregação da necessidade do ajuste fiscal, a mídia recebeu com surpresa
a vitória no Congresso. Alcançamos um placar de 338 votos favoráveis contra
88, nestes incluídos o PT e boa parte do que se chamava de esquerda. Sem essa
aprovação teria sido impossível levar adiante o que depois se batizou de Plano
Real. Àquela altura chamavam-no de Plano FHC-2 porque a mídia, alimentada
pelos críticos à direita e à esquerda, estabelecia subliminarmente um paralelo com o
Cruzado, que teve os números 1 e 2, tendo sido o segundo o enterro das
esperanças do primeiro.
As dívidas dos estados e uma mudança cultural
A árdua batalha para rever as dívidas dos estados e pactuar novos contratos ficou
sob o comando de Clóvis Carvalho. O trabalho para rever o endividamento dos
estados já vinha de antes. O secretário do Tesouro, Murilo Portugal, como
funcionário da área económica, tinha lidado com as conseqüências da moratória da
dívida externa de 1987. A União, que dera aval aos estados, teve que assumir
essas dívidas para com a Caixa Económica Federal ou o Tesouro. (O BC também
executara várias operações de salvamento de bancos estaduais, redescontando
suas dívidas
153
para evitar riscos que poderiam atingir todo o sistema financeiro.) E ainda havia
dívidas dos estados para com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o
FGTS, negociadas com a União no fim dos anos 1980. A despeito disso, elas não
eram pagas. Essa inadimplência criou na equipe do Tesouro uma forte indisposição
para abrir novas negociações com os governadores.
Ao longo de 1993 houve um tremendo esforço para criar um mecanismo "blindado"
quer dizer, que obrigasse os estados a honrar compromissos que viessem a
assumir. Além das dívidas referidas, precisávamos alcançar um entendimento para
que o BB, a Caixa Econômica e outros credores no âmbito da União recebessem
dos estados o que lhes era devido. A verdade é que o país vivia um clima de calote
público generalizado. No setor elétrico, por exemplo, graças à ação de
Eliseu Rezende, meu antecessor na Fazenda, se alcançou um acerto para
pagar dívidas dos estados, principalmente de São Paulo, em valor superior a 20
bilhões de dólares.
Como conclusão desse esforço inicial, o Congresso aprovou uma
emenda constitucional para permitir que a União, caso algum estado não pagasse o
estipulado nos contratos de refinanciamento, se apropriasse automaticamente de
quantia equivalente, subtraída das receitas federais que seriam transferidas ao
estado caloteiro. Esta emenda3 não bastou, entretanto, para garantir que os estados
efetivamente pagassem o que deviam. Com efeito, trabalhamos duro o restante do
ano para aprovar uma lei federal autorizando nova rolagem das dívidas; obter leis
em cada estado autorizando o governador a assinar contrato que não poderia
ser modificado mesmo que leis posteriores beneficiassem os devedores; obter o
parecer de cada procuradoria-geral dos estados reconhecendo a legitimidade
dessas leis. Enfim, numa maratona técnica e política exaustiva, de proporções
provavelmente jamais realizadas no país em qualquer época nesse terreno, criamos
um arcabouço jurídico para evitar que, no futuro, os estados deixassem de pagar à
União.
Concomitantemente, tivemos que negociar com cada secretaria estadual
de Fazenda o montante das dívidas, e as chamadas "datas de corte", quer dizer, até
que data as dívidas se beneficiariam com novos prazos de
Nota: 3 Emenda Constitucional n° 3, de 17/3/1993.
154
pagamento e novas taxas de juros, e numerosos outros detalhes. Custou uma
trabalheira imensa convencer os bancos federais a participar do esforço saneador
dos estados. De tudo isso se ocupou Clóvis Carvalho, com a ajuda competente de
Murilo Portugal e do adjunto de Clóvis, Fuad Noman, economista que havia
trabalhado no BB e, anos depois, se tornaria secretário da Fazenda do governador
de Minas, Aécio Neves (PSDB).
A Lei n° 8.727, aprovada no dia 5 de novembro de 1993, refinanciou por um prazo
de 20 anos, prorrogáveis por outros 10, um montante equivalente a 33,4 bilhões de
dólares de dívidas estaduais para com a União, a uma taxa real de juros de 6,5% ao
ano, equivalente ao que os estados, em alguns casos, pagavam por mês aos
credores privados.
Apesar de todo esse esforço, com a estabilização, a partir de julho de 1994,
surgiram novos problemas. Alguns governadores não avaliaram corretamente as
conseqüências da estabilização. Concederam aumentos salariais que, não sendo
mais corroídos pela inflação, colocaram os tesouros estaduais em maus lençóis por
muitos anos. Assim, a despeito do aumento de arrecadação havido, surgiram
dificuldades para honrar os compromissos. A pressão política levou a novas
negociações com o governo federal. A essa altura o interesse do governo não era
apenas receber o que os estados lhe deviam, mas que estes aceitassem certa
disciplina fiscal.
No final de 1995, sendo eu já Presidente da República, o Conselho Monetário
Nacional aprovou uma resolução permitindo nova reestruturação das dívidas dos
estados. Ela obrigava, ao mesmo tempo, a adoção de medidas para obter um
equilíbrio fiscal sustentável. Os estados se comprometiam a manter os gastos com
pessoal no limite legal de 60% das receitas, a privatizar ou conceder serviços
públicos à iniciativa privada, a melhorar a arrecadação do ponto de vista técnico, a
assumir metas de superávit primário e a oferecer suas contas à análise do Tesouro.
Assumidos tais compromissos, haveria novas linhas de crédito federal.
Mais ainda, as dívidas dos estados com os bancos particulares, por meio das
chamadas Antecipações de Receitas Orçamentárias (AROs), isto é, empréstimos
garantidos por receitas futuras, que haviam sido contratados com taxas de juros
elevadíssimas, seriam refinanciadas pelos mesmos bancos, porém com taxas bem
menores, porque os empréstimos seriam avalizados pela União.
155
Como esse mecanismo não funcionou a contento, em 1997 começamos
a aprofundar a reestruturação fiscal dos estados. Eles em geral não pagavam os
juros e muito menos o principal das dívidas que contraíam com seus próprios
bancos públicos. Não bastasse isso, alguns deles, além das dívidas com a União,
tinham emitido papéis no mercado. Essa dívida com o público - dívida mobiliária -
precisava ser equacionada para que os estados gerassem superávits primários.
Resultado: novas negociações, novos limites de comprometimento das receitas
estaduais com o pagamento da dívida (até a um máximo variável de 11% a 15%
da receita) e novos mecanismos para progressivamente reduzir o endividamento a
uma relação de 1 para 1 com a receita líquida real. Isto é, o montante da dívida não
poderia ultrapassar o valor da receita líquida anual de cada estado, sob pena de
uma série de restrições para os faltosos. A nova lei de reestruturação seguiu, em
linhas gerais, o arcabouço jurídico e os mecanismos que haviam sido estabelecidos
pela anterior, de 1993.
A lei proibiu os estados de contraírem novas dívidas e a União pôde ressarcir-se
automaticamente do que lhe era devido. Graças a esses mecanismos, a
percentagem de 11% a 15% das receitas que passou a ser paga à União se
transformou em superávit primário dos estados.
Sem essa luta contínua, áspera, que demandou tempo, não teríamos podido levar
adiante o programa de estabilização. Tudo isso seria coroado, anos depois, pela Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada em maio de 2000, graças, neste
caso, ao empenho do ministro do Planejamento, Martus Tavares, e à colaboração
de técnicos como o economista José Roberto Afonso, ligado ao PSDB. A partir daí o
governo federal passou a dispor de instrumentos para obrigar os estados
a cumprirem seus compromissos, com uma sólida base legal para evitar calotes.
Essa luta produziu também, com o transcorrer do tempo, um efeito importantíssimo:
uma transformação cultural. Nos primeiros anos, como vimos, foi necessário um
grande esforço - técnico e político - para evidenciar que sem ajuste fiscal não havia
plano de estabilização duradouro. Já a tramitação da LRF pelo Congresso não
demandou energia comparável à que tinha sido despendida para aprovar, por
exemplo, o FSE.
Nota: Lei Complementar n° 101, de 4/5/2000.
156
A privatização emperrada: até a Igreja era contra
Quando assumi o Ministério da Fazenda, o programa de privatização já fora definido
por lei. O Presidente Itamar Franco, contudo, via com muita cautela a venda de
empresas públicas, principalmente a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A Petrobras exercia o monopólio definido
pela Constituição, mas ele era, de direito, da União. Nunca esteve em nossa
cogitação privatizá-la, nem mesmo depois de rompido o monopólio estatal da
exploração e refino de petróleo por emenda constitucional que propusemos ao
Congresso, em 1995.5 Participei da privatização da CSN apenas como ministro
das Relações Exteriores, quando, a instâncias do Presidente da República, atuei
em uma reunião para definir o lance mínimo no leilão de privatização.
Muito custou explicar a alguns integrantes do governo, preocupados em propor um
preço mínimo elevado - como o ministro do Trabalho, Walter Barelli, e alguns
colaboradores próximos do Presidente Itamar, como o assessor especial Alexandre
Dupeyrat -, que o importante era atrair um grande número de compradores, pois o
próprio leilão se encarregaria de alcançar o melhor preço. Se, pelo contrário, o
governo fixasse um valor elevado demais para o lance mínimo, surgiriam poucos
concorrentes e o Tesouro poderia ter prejuízo relativo. Também não foi fácil deixar
de lado a idéia de senso comum que defende como preço mínimo o valor histórico
do património - e não, como é o normal no mundo capitalista, uma relação entre
faturamento, endividamento e expectativas futuras de geração de caixa.
Esse, entretanto, era o clima da época (e, de certo modo, continuou sendo). Existe
sempre a suspeita de que há alguma manipulação para vender os ativos públicos
"abaixo do valor", sem explicar que valor, se o do mercado, o histórico ou até o
sentimental. Na verdade uma ojeriza ao sistema capitalista, por parte de pessoas
que jamais foram socialistas e que, no fundo, mesmo sem o saber em certos casos,
são patrimonialistas ou estatistas. Cansei de ouvir falar em "vender o património
público a preço de banana" quando, na verdade, certas estatais tinham património
negativo
Nota: ' Emenda Constitucional ne 9, de 9/11/1995.
157
e requeriam constantes injeções de dinheiro por causa de alto endividamento e
má gestão.
Outras empresas trabalharam durante bom tempo tendo como principal objetivo
melhorar a vida de seus funcionários - depositando exorbitâncias em seus fundos
de pensão, por exemplo, e dando pouco ou nenhum retorno ao Tesouro ou ao
contribuinte. A propósito, lembro-me de que o economista de enorme bagagem
Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento (1964-1967) e ex-senador e então
deputado federal (PDSRJ), usando dados oficiais, demonstrou naquele mesmo
1993 que a Petrobras - cujo maior acionista é a União - recolhia ao fundo de pensão
de seus funcionários, o Petros, dez vezes mais do que repassava ao Tesouro.
Isso acabou em meu período como Presidente, quando finalmente se estabeleceram
limites à contribuição das empresas estatais aos fundos de pensão dos respectivos
funcionários: elas podem depositar no máximo o equivalente ao que o servidor
recolhe, ele próprio, por mês. Por nossa iniciativa, o Congresso aprovou os limites
no âmbito da Emenda Constitucional n° 20, de 15/12/1998, a chamada emenda da
reforma da Previdência, por meio de alteração no parágrafo 3° do artigo 202
da Constituição.6
O programa do PSDB, redigido em 1988, foi o primeiro a admitir a necessidade das
privatizações e o papel eventualmente positivo do capital estrangeiro. Ressalvava,
entretanto, as empresas que deveriam permanecer estatais "por sua importância
estratégica". Certamente, quando se trata de privatizações, coloca-se a questão dos
interesses nacionais estratégicos. O problema é como defini-los
adequadamente diante dos condicionantes contemporâneos da economia e da
política. No caso da CSN, estabelecida em 1941 por Getúlio Vargas, restava o
valor simbólico de ter sido pioneira na industrialização brasileira.
Ocorre, porém, que a diversificação da produção de aço no Brasil, a existência de
vários grupos nacionais e estrangeiros operando no setor e, ao lado disso, o
endividamento crescente das empresas públicas nessa área, obrigando os
contribuintes a arcarem com os custos da má gestão, aconselhavam a privatização.
E, além de tudo, a crise fiscal do Estado impedia
Nota: 6 A questão seria regulamentada por projeto igualmente apresentado pelo governo e
que se transformou na Lei Complementar n° 108, de 29/5/2001. Fim da
nota.
158
que houvesse os investimentos necessários para melhorar a produtividade e ampliar
a produção.
Com base nesses argumentos, quando assumi o Ministério da Fazenda reafirmei
que intensificaria o ritmo da privatização, não porque a empresa privada fosse
necessariamente mais bem gerida do que a pública - embora na maior parte das
vezes o seja -, mas porque o Estado se tornara desinvestidor líquido pela falta de
recursos. E também por causa das dificuldades burocráticas para adaptar as
empresas públicas à dinâmica dos mercados. Tratava-se de uma opção prática para
revigorar o crescimento dos setores industrial e de serviços, e não de uma
opção ideológica.
Em fins de julho e começo de agosto de 1993 a polémica sobre a privatização da
Vale esquentou. Confesso que eu mesmo custei a aceitar a necessidade de
privatizá-la, processo que só ocorreria no curso de meu primeiro mandato no
Planalto. O Presidente Itamar mostrava-se ainda mais relutante. Promoveu
mudanças na Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização (PND),
aumentou os obstáculos para sua efetivação e deixou clara sua pouca disposição a
respeito quando o secretário executivo da Fazenda, Clóvis Carvalho, se
manifestou favoravelmente à venda da estatal, em um seminário promovido
pela Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais (Abamec).
Reagindo às declarações de Clóvis Carvalho, um funcionário, encarregado do
Departamento Nacional de Combustíveis (DNC), emitiu nota criticando duramente o
secretário executivo da Fazenda, sem que houvesse qualquer reação reparadora do
Palácio. A nota, típica do pensamento nacional-estatista que se pensa esquerdista,
dizia: "Vender a Vale é entregar para grupos estrangeiros parte do território
nacional; é abrir a Amazónia por meio de Carajás para o interesse estrangeiro. É
esquecer a participação do povo mineiro na construção da companhia" - e por
aí afora. A Vale acabou sendo privatizada em maio de 1997, passando a
ser controlada por fundos de pensão e empresas nacionais. O incidente me alertou,
entretanto, para os riscos de tentar forçar o governo a acelerar as privatizações:
acabaria por perder a confiança do Presidente Itamar, vital para eu levar adiante o
programa de estabilização.
A reação contrária às privatizações não se restringiu aos círculos políticos. Sem falar
nos sindicatos mais ligados aos partidos de oposição, a Igreja Católica revelou-se,
por intermédio da CNBB, crítica pertinaz dessa
159
matéria, que de religiosa tem muito pouco. Ou melhor, no sentido vulgar, tem tudo,
pois não privatizar era sagrado para portadores de uma visão que confunde o
interesse do povo com os interesses momentâneos de corporações e partidos.
Mesmo tempos depois, sendo eu Presidente da República, o presidente da CNBB,
dom Luciano Mendes de Almeida, em diversas oportunidades manifestou esse
pensamento, tanto em conversas comigo quanto publicamente. Por mais que não
visse ligação entre a pastoral religiosa e uma posição contrária à privatização,
jamais consegui, com argumentos razoáveis, demover alguns setores da
Igreja Católica da crítica acérrima à "entrega" da Vale. O mesmo se diga de setores
que se apossaram da OAB e outras associações corporativas cuja obediência
fundamental era aos interesses da oposição, com pouca atenção para o que
efetivamente podia ser feito para tirar o Brasil da inflação e do atraso económico e
tecnológico.
O processo de privatização andou muito pouco no período de preparação
da estabilidade. Prudentemente, esperamos momento mais oportuno para fazer um
ajuste patrimonial de maior envergadura, tirando das costas do Tesouro a dívida de
algumas estatais. Só então alguns serviços e setores produtivos tiveram condições
para se expandir. Simultaneamente, o Estado teve o tempo necessário para se
reorganizar, com a criação de agências reguladoras para assegurar o interesse
nacional, a vigência dos contratos de concessão e o interesse dos usuários.
Renegociando a dívida: a paciência chinesa de Malan
Desde a moratória de 1987, no governo Sarney, o Brasil viu-se envolvido em um
emaranhado de negociações com mais de 700 bancos. O próprio governo Sarney
esforçou- se para alcançar um entendimento que nos livrasse do peso da moratória,
representado por falta de recursos externos novos para financiar o país e taxas de
juros escorchantes sobre o pouco dinheiro que se conseguia captar. Tornava-se
vital viabilizar um acordo compatível com a capacidade de pagamento do Brasil e
que nos desse novamente acesso ao mercado financeiro internacional.
O assunto adquiriu gravidade econômico-financeira com forte conotação política.
Muitos setores consideravam um acordo com o FMI que fosse realizado no
processo de renegociação das dívidas tão ou mais
160
lesa-pátria do que a venda da Vale. Desde priscas eras esta organização internacional,
da qual o Brasil é fundador e parte integrante, projetava horror nos corações e nas
mentes de quem se dizia progressista. E existiam boas razões para isso. Primeiro
porque sempre tivemos no Brasil um progressismo anticapitalista (embora
raramente se confessasse isto) e profundamente nacionalista, alimentando uma
visão autárquico-isolacionista. Segundo, o Fundo - afastando-se da missão para a
qual havia sido criado, pelo menos na aspiração do grande economista britânico
John Maynard Keynes, um de seus idealizadores - tornara-se, na prática, guardião
dos interesses dos credores, impondo quase sempre receitas de recessão que
custavam caro aos trabalhadores e empresários locais. Sem falar, claro, no custo
dos juros, que a política do BC dos EUA - o Federal Reserve Board, ou Fed - havia
levado naquela época à estratosfera para padrões de Primeiro Mundo, chegando
a ultrapassar 15% ao ano. Duvidava-se também da legitimidade das dívidas.
Consequentemente, não faltava quem propusesse, pura e simplesmente, não pagá-
las.
Houve vários negociadores da dívida externa, no transcorrer do tempo:
os diplomatas Sérgio Amaral e Jório Dauster, os economistas Pedro Malan e André
Lara Resende. O Senado criou uma CPI sobre a dívida externa, de que eu tinha
sido relator. Nada ficou demonstrado quanto a fraudes e o que realmente importava
avaliar seria a utilização dos recursos da dívida no Brasil, pela qual não se podia
responsabilizar os banqueiros internacionais, mas sim, caso houvesse desvios de
finalidade no uso do dinheiro ou mesmo corrupção, as autoridades locais e os
destinatários dos empréstimos.
Pouco a pouco nossos negociadores foram desbastando o terreno.
Finalmente, Pedro Malan, primeiro como negociador-chefe e depois
como presidente do BC, com firmeza e seriedade, além da paciência chinesa que o
caracteriza, preparou um intrincado pacote de opções para a troca dos antigos
títulos da dívida por novos, com melhores condições de pagamento.
Essa negociação, entretanto, supunha que o FMI firmasse um acordo com o governo
brasileiro e monitorasse nossas contas, dando uma espécie de chancela para os
bancos credores confiarem nos pagamentos futuros.
Havendo acordo com o FMI, os credores saberiam que as políticas fiscal e
monetária, bem como o regime cambial a serem praticados, seriam
161
"confiáveis e tecnicamente corretos". Com esse aval nas mãos o Tesouro americano
emitiria bónus de uma série especial que o BC do Brasil compraria e depositaria no
Banco Internacional de Compensações (BIS) - espécie de banco central dos bancos
centrais, sediado em Basiléia, na Suíça. Esses bónus serviriam de garantia aos
bancos credores (o que nas negociações financeiras chama-se de colaterais) na
troca dos títulos velhos por novos, com melhores condições de pagamento e juros
menos agressivos.
O volume total da dívida renegociada chegou a 70 bilhões de dólares, sendo cerca
de 50 bilhões com credores privados e o restante com governos e instituições
oficiais. Emitiram-se títulos novos de prazo médio superior a 20 anos. Com a
renegociação da dívida, o Brasil saiu da moratória e voltou ao mercado internacional
de crédito. Foi a maior operação de renegociação de dívidas feita até então pelo
mercado financeiro internacional. Malan, com a experiência que tinha, desconfiava
que o FMI não daria o nihil obstat a nosso programa de estabilização. Por isso, antes
de nossa visita ao Fundo em setembro de 1993, conversou comigo sobre a
eventualidade de o BC começar a comprar os papéis do Tesouro americano no
mercado secundário, sem esperar pela emissão especial dos bónus.
A operação era arriscada. Tínhamos que agir cautelosamente para que o mercado
não percebesse o interesse do BC nas compras, o que aumentaria o valor dos
papéis, e para evitar que o Tesouro americano e o FMI se sentissem ludibriados.
Mais ainda, Malan e eu tivemos que assumir a responsabilidade da decisão sem
que qualquer outra pessoa soubesse.
E assim fizemos,
Malan, que estava em Washington, combinara que só me chamaria se
tudo estivesse resolvido ou se o impasse fosse grande. Nos momentos finais da
negociação com o FMI, antes do acerto definitivo com o comité negociador dos
bancos, chefiado por Bill Rhodes, vice-presidente do Citibank, ele telefonou-me de
Washington pedindo que eu viajasse para lá com urgência. Ao chegar ao FMI fui ter
com o diretor-gerente, o francês Michel Camdessus, a quem conhecera por
intermédio do ex-ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira e de Michel
Rocard, ex-PrimeiroMinistro da França. Na conversa a sós, Camdessus foi franco:
ele não via maneira de obter aprovação do programa pela equipe técnica do Fundo.
Vivíamos grande incerteza política no Brasil - além da imprevisibilidade do
Presidente Itamar, estávamos nos primórdios do que seria a CPI dos
162
Anões do Orçamento - e baixo grau de convicção sobre o êxito eventual do plano
proposto (àquela altura ainda incompleto).
Quem pensa que o aspecto pessoal não ajuda em questões institucionais engana-
se. Sempre conservei uma boa relação com Camdessus, homem com formação de
fundo evidentemente humanístico, discrepando da média do funcionário típico das
organizações financeiras internacionais.
Pessoalmente caloroso e simpático, até brincalhão, tinha características antes de
político do que de tecnocrata, fora o fato de conhecer de perto a realidade de muitos
países. Apesar de tudo, disse-me ele, dada a simpatia que nutria pelo Brasil e pelos
negociadores brasileiros, havia escrito uma carta, na véspera, em francês e de
próprio punho, que passava a ler. A carta concedia uma espécie de endosso
pessoal e indireto ao programa de estabilização, manifestando confiança em
nosso trabalho. Agradeci o gesto, mas, comentei, nossas
dificuldades permaneciam. Teríamos de convencer os bancos a fechar a
negociação sem o aval do FMI e obter os bónus do Tesouro para depositá-los no
BIS.
Sorridente, Camdessus disse:
- Mas vocês já os têm...
O segredo meu e de Malan vazara, porém era tarde: já havíamos comprado os
papéis.
Mesmo assim faltava resolver onde depositar as garantias, posto que sem o aval do
Tesouro nem o BIS nem o Fed aceitariam a guarda. Disso também se ocupou o
diretor-geral do FMI. Se Enrique Iglesias, presidente do BID, concordasse,
assegurou-me, seria possível depositar os títulos com ele. Juntamo-nos à equipe
brasileira para o almoço e em seguida Camdessus e eu concedemos uma entrevista
à imprensa na qual o anfitrião mostrou-se generoso em elogios ao programa de
estabilização e hábil em desconversar sobre o apoio formal. Em seguida enviou a
carta pessoal aos bancos, conforme prometido.
Ato contínuo, Malan, André Lara e os demais companheiros fomos ao BID falar com
Iglesias que, com a solidariedade de sempre, dispôs-se a guardar os títulos do
Tesouro americano. Do BID partimos para o Departamento do Tesouro, que nos
EUA corresponde ao Ministério da Fazenda. O encontro foi com o subsecretário
encarregado das questões internacionais, Larry Summers, depois ele próprio
secretário do Tesouro e, posteriormente, presidente da Universidade Harvard.
Recebeu-me com um abraço, quase eufórico:
163
- Parabéns, ministro.
Já sabia tudo a respeito dos bônus e até facilitou a guarda dos títulos.
A certa altura perguntou-me (o que também ocorrera com Camdessus):
- O senhor será candidato à Presidência da República? Começava a obsessão, no
Brasil e no exterior, com as candidaturas. Eu,
no exterior, não negava porque sentia que isso facilitava as negociações, embora
estivesse longe de pretender ser candidato.
Foi de posse desse apoio, quase pessoal e informal, que conversamos em Nova
York com Bill Rhodes e demais membros do comité negociador. Pouco tempo
depois Malan e eu assinamos os novos contratos da dívida externa brasileira, em
Toronto, no Canadá, no dia 30 de outubro de 1993, durante uma manhã inteira -
pois tratava-se literalmente de milhares de papéis relativos a contratos com mais de
700 bancos participantes da renegociação. Estava suspensa a moratória e nossos
compromissos redefinidos com 30 anos de prazo para pagá-los com taxas de
juros limitadas.7
O nome do jogo foi: firmeza, decisões arriscadas mas competentes e construção de
credibilidade. Pedro Malan e, nos momentos finais, André Lara funcionaram como os
artífices dessa carpintaria.
Nota: 7 A dívida foi renegociada em prazos entre 12 e 30 anos (prazo médio ao redor de
20 anos), com taxas de juros girando em torno dos índices das duas taxas
internacionais de referência, a Libor e a Prime Rate, mais um percentual fixo
comparativamente baixo. Com isso a dívida pública brasileira tornou-se estável e
cadente nos anos seguintes. Os 124,6 bilhões que devíamos em 1993 reduziram-se
até atingir seu ponto mínimo em 1997, durante meu primeiro mandato: 108,4
bilhões, após o que a dívida pública voltaria a crescer gradualmente devido às
necessidades da economia brasileira. O que explodiu entre 1993 e 1999 foi a
dívida externa privada, na esteira da sobrevalorização do câmbio e da onda
de investimentos deflagrada pelo real. Os 21,07 bilhões de dólares devidos por
empresas brasileiras em 1993 subiram vertiginosamente até atingir 128,3 bilhões de
pico em 1998, iniciando o processo de queda a partir de 2000. Ao final de meu
segundo mandato, o montante atingia 85,2 bilhões de dólares. Quanto aos juros
anuais pagos sobre a dívida externa ao longo dos três governos anteriores ao de
Lula, eles foram de 9,7 bilhões de dólares em 1990, diminuíram para 7,9 bilhões em
1995, elevaram-se para 14,9 bilhões em 1999, após a desvalorização do câmbio, e
declinaram ligeiramente desde então, chegando ao patamar de 13 bilhões de
dólares/ano a partir de 2002. Fim da nota.
164
A questão salarial e a busca da racionalidade
Nos programas de estabilização a questão politicamente mais delicada costuma ser
a salarial. A experiência indica que nesses programas, principalmente quando
monitorados pelo FMI, são freqüentes o aumento do desemprego e a perda da
renda dos trabalhadores.
Embora tenha havido com o correr do tempo mudanças nas políticas de controle
inflacionário recomendadas pelo Fundo, essa não era a experiência disponível na
primeira metade dos anos 1990. O aumento da taxa de juros para conter a
especulação e a limitação aos agregados monetários, ou seja, as restrições às
emissões de moeda e ao crédito, levavam freqüentemente à recessão. E, portanto,
à diminuição da renda dos assalariados e ao desemprego.
Não foi isso que propusemos, nem o programa de estabilização passou
por monitoramento do Fundo. Não obstante, politicamente, o flanco mais vulnerável
para criticar o governo e o Ministério da Fazenda é sempre a questão salarial, com
a afirmação de que os trabalhadores é que pagarão a conta da estabilização. Por
causa da inflação elevada, diferentes dispositivos legais passaram a determinar ao
longo dos anos o reajuste do valor tanto do salário mínimo quanto dos salários em
geral a cada 12 meses e até em períodos mais curtos.
Graças a isso, estabelecera-se um jogo de complementaridade entre os atores
políticos. Os dirigentes sindicais afirmavam sua liderança propondo "aumentos
salariais" que, no melhor dos casos, apenas repunham a inflação, dando margem,
entretanto, a mobilizações de trabalhadores e a greves. Os empresários transferiam
o custo dos reajustes para seus preços e, portanto, para os consumidores. Além
das centrais sindicais e dos sindicatos, também alguns partidos e congressistas
competiam para ver quem conseguia maiores "aumentos", ganhando, assim, a boa
vontade dos assalariados. E o Executivo, em geral representado pelo ministro
da Fazenda, que pedia o veto, e pelo Presidente, que o atendia, desempenhava o
papel de mau, negando total ou parcialmente os reajustes para evitar que as contas
públicas e a própria inflação saíssem de controle.
A regra geral de ajuste vigente na época foi definida pela Lei n° 8.542, de 23 de
dezembro de 1992. Ela determinava ajustes quadrimestrais para repor a inflação
passada e uma antecipação bimestral de 60% da inflação
165
ocorrida no período. Era de esperar que os mesmos atores que se envolviam na
luta por aumentos fictícios de salários aproveitassem a proposta do PAI, que
acarretava aumento de impostos e corte nos gastos, para bater na tecla do "reajuste
já".
Com efeito, mal anunciamos os cortes no Orçamento de 1993 e propusemos
o aumento da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a
criação do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), precursor da
CPMF, a Comissão do Trabalho da Câmara dos Deputados aprovou um projeto do
deputado Paulo Paim (PT-RS) que mandava repor integralmente os salários a cada
mês.
Tivemos uma peleja muito difícil para derrotar essa proposta. Embora a experiência
mostrasse que a inflação ganhava sempre dos salários e portanto o certo seria
acabar com ela, o senso comum não percebia isso.
Não havia tampouco crença nas políticas oficiais, dados seus fracassos anteriores.
Mais valia uma ave na mão, a reposição salarial, do que duas voando - a
estabilização e seus benefícios. Para agravar o problema, o governo acabara de
conceder um reajuste de vencimentos aos funcionários públicos. Como justificar a
não-correção dos salários do setor privado?
A 23 de junho de 1993 a Câmara aprovou a emenda que criava o IPMF,
com validade até 31 de dezembro do ano seguinte. A proposta obteve o
quorum mínimo para uma mudança na Constituição: disseram "sim" 308 deputados
- os votos de exatos três quintos dos 513 exigidos pela Carta. Votaram contra 87
deputados, entre esses a "esquerda", PT à frente, e parte da bancada do bloco
PFL-PTB, inclusive a poderosa bancada baiana do PFL.
Com a aprovação desse imposto e o aumento também autorizado na alíquota da
Cofins (só esta renderia 9 bilhões de dólares), obtivemos boa folga para o
Orçamento de 1994.
No dia seguinte, entretanto, a Câmara "reparou o mal". Aprovou quase
por unanimidade o projeto salarial da Comissão do Trabalho, que introduzia a
correção integral da inflação todo mês, contra o voto de somente dois deputados,
sendo um deles o ex-ministro da Fazenda Gustavo
Krause.
As incertezas sobre o futuro do programa de estabilização
aumentaram imediatamente. Membros da equipe económica me procuraram,
assustados com as conseqüências da decisão. Garanti-lhes que o projeto ainda
166
teria de passar pelo Senado e, se aprovada a lei, o Presidente Itamar a vetaria. No
Senado, graças à ação do senador Beni Veras (PSDB-CE), repusemos boa parte do
que nos parecia razoável. Inutilmente: a Câmara, para a qual o projeto precisava
voltar por ter sido alterado na outra Casa, recusou de novo todas as modificações
introduzidas pelo Senado.
Hoje é difícil avaliar a preocupação que tais problemas causavam. Na época as
incertezas eram grandes. As resistências a medidas racionais, antipopulares na
aparência, não se limitavam à oposição. Basta dizer que a aprovação do projeto da
Comissão do Trabalho teve o voto dos líderes de todos os partidos, inclusive os do
governo. E mesmo no governo havia dificuldades para lidar com a questão salarial.
Apesar de eu ter garantido o veto presidencial, ele seria custoso. O Presidente fora
evasivo ao responder à imprensa se vetaria ou não a lei. Chamou uma reunião com
a liderança sindical, na busca do almejado Pacto da Moncloa caboclo.8 Nela, diante
da firmeza dos sindicalistas, muitos ministros calaram, deixando a mim o ónus da
argumentação racional, que sempre aparecia como impiedosa.
Anteriormente, em reunião do Ministério, o Presidente mandara exibir um vídeo
sobre o New Deal, o audacioso conjunto de medidas - a começar por maciços
investimentos públicos - com as quais o Presidente Franklin Delano Roosevelt tirou
os EUA da catástrofe causada pela Grande Depressão iniciada com o crack da
Bolsa de Nova York em 1929. O recado me pareceu óbvio: em vez de cortar gastos
públicos e de ser restritivo nos aumentos salariais, por que não ativar a economia
com investimentos públicos? Ao terminar a reunião pedi a palavra e disse:
- Agiu bem o governo Roosevelt na crise americana. Lá o setor privado estava sem
liquidez e o setor público dispunha de crédito praticamente ilimitado. Exatamente o
oposto de nossa situação. No Brasil as empresas estão financeiramente líquidas e o
setor público quebrado.
Nota: O deputado Aloizio Mercadante (PT-SP), preocupado com as consequências da
votação no Congresso, procurou-me no Ministério da Fazenda e sugeriu que
convocássemos os líderes sindicais para uma negociação. Achei a sugestão
pertinente. Em julho, em Salvador, no próprio hotel onde se realizava a III Cúpula
Ibero-Americana e em que estava hospedado, e antes da reunião deles com o
Presidente Itamar e os ministros, tive um encontro com dirigentes sindicais.
Fim da nota.
167
Os colegas ministros me ouviram calados. O solitário apoio veio do ministro da
Previdência, António Britto:
- Palavras de estadista - disse ele.
Os meses de junho, julho e agosto foram extremamente ásperos. O PMDB quase
rompeu com o governo. Numa reunião da Comissão Executiva Nacional, a
permanência no governo Itamar se definiu por três ou quatro votos, em um total de
50 membros. Dificilmente teríamos conseguido mudar as decisões do Congresso e
do próprio governo não fosse o sofrimento da sociedade com a inflação e o
desgoverno dos anos anteriores. Somando-se a isso havia nossa convicção
militante de que era necessário insistir nos ajustes fiscais. Conseguimos assim
vencer a descrença, a resistência surda dos beneficiados pela inflação e o barulho
dos setores políticos que se opunham a qualquer medida racionalizadora do gasto
público. O Presidente vetou a lei salarial do Congresso e editou uma MP, embora
repondo parte das vantagens previamente aprovadas na Câmara.
Novamente o senador Beni Veras foi o relator da proposta e, num parecer luminoso,
fez prevalecer os ajustes quadrimestrais com uma regra, sugerida por Gustavo
Franco, que previa a antecipação mensal da parte da inflação que excedesse 10%,
mas somente para quem ganhasse até seis salários mínimos. Em sessão conjunta
o Congresso aprovou o parecer do relator, no dia 19 de agosto de 1993. Dessa
feita, seguindo a argumentação do líder do PSDB, o deputado José Serra, os
partidos que em tese apoiavam o governo - PMDB, PSDB, PFL, PTB, PPS e o PPR
(que depois seria PPB e PP) - votaram a favor. Não, entretanto,
sem constrangimentos. Nas palavras do líder do PPS, Sérgio Arouca (RJ), votaram
"com o coração partido". A MP, modificada, obteve 318 votos favoráveis e 144
contrários, transformando-se na Lei n° 8.700.
Ultrapassamos os obstáculos para mudar a lei salarial e para aprovar medidas de
reforço fiscal graças ao apoio da opinião pública e de setores organizados do
empresariado. A Fiesp, sob o comando de Carlos Eduardo Moreira Ferreira, junto
com outros setores da sociedade civil, lançou o movimento Acorda Brasil, destinado
a apoiar as reformas.
Sabíamos, no entanto, ser sucesso momentâneo, pois a luta para dar maior
racionalidade ao manejo das finanças públicas e para conter a inflação mais se
assemelha ao mito de Sísifo: mal termina, recomeça.
168
Veremos adiante que em 1994, quando o Plano FHC, com a URV, estava prestes a
se transformar em Plano Real, a questão salarial voltou com força total.
Na equipe, muito engenho, muita arte e muito debate
Os juros altos e a indagação constante sobre o nível que a inflação atingiria no final
de 1993 enervavam a todos, desde o povo até o Presidente, passando por mim,
como ministro da Fazenda. As taxas de juros criavam indisposição com o BC,
sempre acusado de favorecer os banqueiros. Itamar volta e meia referia-se à "caixa-
preta" do BC. Por causa dessa indisposição, na primeira oportunidade ele
dispensou o presidente da instituição, Paulo César Ximenes, aliás, funcionário
de carreira e sem ligação com bancos privados. A demissão deu-se porque, quando
decidimos cortar três zeros do cruzeiro, criando o cruzeiro real, o BC, com razão,
alertou que os cheques pré-datados, largamente utilizados, perdiam valor. Portanto
seus detentores deveriam refazê-los, formatando-os de acordo com a nova moeda.
Esse aspecto aborreceu o Presidente. Sua mãe, dona Itália, fora proprietária de
uma farmácia em Juiz de Fora e ele dizia se lembrar sempre da importância dos pré-
datados para o pequeno comércio, e do impacto que a nova situação provocaria. A
reação negativa de Itamar levou à demissão de Ximenes. A despeito das
qualidades de Ximenes, o incidente permitiu, paradoxalmente, que a equipe
económica fosse reforçada. Conto com algum detalhe o episódio. Cansado de ouvir
críticas ao BC, Ximenes, que havia sido nomeado antes de minha chegada ao
Ministério da Fazenda, telefonou a Clóvis Carvalho para colocar o cargo à
disposição. Ele não acreditava mais poder ser útil a nós, dadas as críticas
crescentes a todas as ações do BC. Eu estava no Rio de Janeiro quando o
Presidente me telefonou para dizer que aceitaria o pedido de demissão e queria que
eu indicasse o substituto. No dia seguinte, como ocorria habitualmente na semana
que, a cada mês, passava no Brasil, Pedro Malan - que continuava morando nos
EUA e terminando os acertos extremamente complexos do acordo da dívida -
jantaria comigo. André Lara Resende, com quem eu privava desde anos antes, por
ocasião das discussões sobre a fundação do PSDB, e que já colaborava
informalmente conosco, nos faria companhia. O jantar foi numa sexta- feira, 13 de
agosto, no apartamento
169
funcional onde eu morava em Brasília. André e eu tentávamos convencer Malan a
aceitar a presidência do BC. A mudança súbita para o Brasil acar* retaria
transtornos pessoais a ele, com filhos pequenos há tempos vivendo e estudando
nos EUA. No afã de dobrar suas resistências, André se dispôs a assumir o final da
negociação da dívida externa. Malan hesitou mas acabou cedendo. Nem bem
assentiu e coloquei-o no telefone com o Presidente Itamar, tendo-lhe dito que iria
falar com o novo presidente do BC. Assim, constrangido, Malan iniciou sua trajetória
no governo, que iria durar quase dez anos... André, ipso facto, tornou-se negociador
da dívida. Ele, que só se dispusera a me ajudar informalmente, acabou enredado
nas teias oficiais, embora tivesse empurrado para Malan o compromisso mais
pesado.
Não foi de outro modo que Pérsio Árida integrou o grupo. Economista de há muito
ligado ao PSDB - daí nossas relações pessoais -, com doutorado no Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT) e fecunda produção académica, Árida tinha
sido um dos formuladores do Cruzado, como Bacha e André, e ocupara uma
diretoria do BC no governo Sarney. Acabou se juntando ao time em conseqüência
de um conflito entre o ministro do Planejamento, Aléxis Stepanenko, e o empresário
Luiz Carlos Delben Leite, presidente do BNDES, que deixou o posto. Conversei
bastante sobre quem poderia substituí-lo. Cogitei convidar o economista
Luiz Gonzaga Belluzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
também um dos formuladores do Cruzado e ex-integrante da equipe económica do
governo Sarney, ligado ao PMDB, para ampliar o apoio no partido. Visitei Belluzo
em São Paulo, mas ele, magoado com denúncias sobre supostas irregularidades em
importações de equipamentos para universidades quando ocupara a Secretaria de
Ciência e Tecnologia do governo Quércia, em São Paulo, não queria voltar à vida
pública.
Todos na equipe gostariam que fosse Árida, mas havia o temor de uma leitura
perigosa: reagrupados os dois economistas considerados os principais criadores do
Cruzado, Pérsio e André, haveria inevitavelmente especulação sobre um novo
choque heterodoxo, mais um pacote que do dia para a noite mudaria a vida dos
brasileiros. Àquela altura, uma simples cogitação dessa natureza poderia
produzir expectativas inflacionárias de difícil controle, devido às desventuras do
passado. Sabendo que o Presidente não queria outra coisa senão um choque
salvador, dei-lhe pelo telefone
170
uma lista com três nomes, entre os quais o de Pérsio, com a advertência que
cabia sobre os riscos de se imaginar que estávamos fabricando outro pacote
mágico. O escolhido para o BNDES acabou sendo, naturalmente, Pérsio Árida.
Reforçada a equipe responsável pela tessitura do Plano Real, muito engenho e arte
estiveram presentes, ao calor de muito debate. Este se deu fora da luz pública, para
evitar apostas sobre o "choque" que estaríamos preparando, que levariam o
mercado à loucura e quem sabe o governo à ruína.
Àquela altura, 1993-1994, não se especulava sobre divergências
entre "desenvolvimentistas" e "neoliberais" dentro do governo, que mais
tarde encheram páginas de jornais e revistas. Na equipe existia, apenas,
a disposição de criar as precondições para acabar com a inflação e algumas
variações sobre quais seriam as melhores. Quanto às políticas monetária e cambial,
tínhamos mais dúvidas do que decisões amadurecidas. Mantínhamos discussões
infindáveis sem que encontrássemos as respostas que a sociedade esperava.
Havia entre especialistas e políticos a antiga discussão sobre se o déficit público é
causa da inflação. Meus colaboradores acreditavam que sim, pois a inflação levava
o governo a ter e propiciar aos outros a ilusão de que podia gastar acima das
possibilidades reais, e até mesmo gerar superávits. Nas palavras de Bacha, o
governo estava "casado" com a inflação. Todos, portanto, viam como vital o ajuste
fiscal proposto no PAI. Nem dentro nem fora da equipe, entretanto, se formara um
consenso sobre que passos adicionais adotar para derrubar a inflação.
Do quanto me recordo, Gustavo Franco e Winston Fritsch, a certa altura, quando a
inflação se acelerou, cogitaram uma combinação entre o PAI (cujo efeito sobre a
inflação seria de longo prazo) e algum esquema que atuasse mais diretamente
sobre o processo de formação de preços, como uma prefixação temporária,
concentrada nos setores oligopolistas. José Serra, fora da equipe, ostentava a
postura mais fiscalista entre todos.
Francisco Pinto, diretor do BC, era guardião da liberdade do mercado, sempre
temeroso do intervencionismo político. À luz da História transcorrida pode parecer
estranho que fossem essas as posições. Na época, contudo, eu brincava com
Gustavo Franco chamando-o de "pedetista", pois seria o mais intervencionista, e
Francisco Pinto de "pessedista",
171
embora o correto tivesse sido qualificá-lo de "udenista" por mais liberal.
Bacha, não obstante soubesse da necessidade de uma reforma
monetária, duvidava que tivéssemos condições políticas para tanto.
Assim, aferrava-se ao ajuste fiscal.
Desde o Plano Cruzado, André Lara Resende e Pérsio Árida, que
costumavam trabalhar a quatro mãos a ponto de serem conhecidos como a
dupla "Larida", vinham revisitando idéias sobre o que chamavam de
"inflação inercial". Elas tinham originalmente sido apresentadas no célebre artigo
assinado por André que forneceria inspiração teórica ao Plano Cruzado, "Moeda
indexada: projeto para eliminação da inflação inercial", publicado em 26 de
setembro de 1984 no jornal Gazeta Mercantil A tese é simples, mas suas
conseqüências de grande complexidade. Em uma economia indexada, como era a
brasileira, o aumento de uns preços puxa automaticamente o dos outros, mas com
um descompasso permanente que realimenta a inflação. Os preços tendem a subir
no futuro simplesmente porque subiram no passado. A inflação se
reproduz continuamente, por inércia. A sociedade percebera intuitivamente
esse mecanismo e apostava sempre na continuidade da inflação.
A conversa que mudou meu ânimo
Antes de avançar mais na descrição de como se chegou à nova moeda, o real,
passando por um embrião de moeda, a URV, cabe um esclarecimento.
Cresciam as pressões para que obtivéssemos um resultado mais palpável.
De tempos em tempos, Luiz Carlos Bresser- Pereira, na condição de amigo e
economista experimentado, insistia na necessidade de um "plano B", pois, como ex-
ministro da Fazenda que tentara uma estabilização, não acreditava que o PAI,
embora necessário, bastasse para dar conta do recado. Em nossas conversas, ele
sempre mencionava o famoso artigo da dupla Larida e também antigas propostas de
Francisco Lopes, o Chico Lopes, outro economista que tinha colaborado na
construção do Plano Cruzado e, posteriormente, trabalhado com o próprio Bresser
no Ministério. Até fins de julho eu não estava preparando nenhum plano alternativo.
No dia 6 de agosto de 1993, nas reuniões que fazíamos às sextas-feiras em meu
apartamento de Brasília, Edmar Bacha me trouxe a sugestão de tomar a Ufir, ou
seja, o índice com o qual se reajustavam as dívidas com a Receita
172
Federal, como referencial geral para a economia. Em fins de julho, antes, portanto,
da sugestão de Bacha, inspirado nas conversas com Bresser, visitei André Lara
Resende em sua casa, em São Paulo. Era um fim de semana. Dirigindo eu mesmo
o carro, fui discretamente e sozinho à busca de novas idéias. Essa conversa mudou
meu ânimo.
André produzia idéias aos borbotões. Com seu jeito um tanto sôfrego de falar,
levantando- se da cadeira e ajustando as calças a cada instante na excitação do
entusiasmo, foi abrindo meu horizonte com novas perspectivas. Falou sobre a
bimonetização, a dolarização, a inflação inercial, o currency board (basicamente, um
regime monetário e cambial que vincula a emissão da moeda nacional à existência
de um fundo em moeda forte, de curso internacional) e outros conceitos. E também
sobre as dificuldades políticas para dar o combate correto à inflação.
Gato escaldado, como os demais economistas que tiveram decepções prévias
com o sistema político, não faltaram lamentações sobre a fragilidade do governo, os
interesses enraizados na sociedade e no Congresso que favoreciam a inflação, a
falta de liderança e questões semelhantes. Com jeito e persistência, acabei
arrancando dele o compromisso de me ajudar informal e discreta, senão
secretamente. Disse-lhe que só deveria falar sobre o plano (B?) com duas pessoas:
Bacha e Malan.
Assim, quando Bacha, na reunião do dia 6 de agosto, mencionou a "ufirização", o
amarrar todos os contratos à mesma unidade de referência (e até se cogitou que
pudesse ser o dólar), aquilo soou como música a meus ouvidos. Esta seria,
segundo ele, a resposta à questão que Clóvis Carvalho e Winston Fritsch
levantavam. Nas palavras deste último, dispúnhamos de um plano de vôo mas
ainda precisávamos de um trem de aterrissagem para conduzir a economia, com
segurança, da superinflação à estabilidade. Bacha, como a maioria dos
colaboradores, buscava dar-me mais um plano de defesa para responder às críticas
de imobilismo do que propriamente um programa que viesse a ser posto em prática.
Antes de tão auspicioso resultado, alguma crise política, acreditavam,
nos derrubaria. Com um plano, não sairíamos de mãos abanando e haveria
uma resposta política para o PSDB utilizar: "não nos deixaram fazer o que era
necessário", diríamos, e iríamos embora.
Daí por diante, principalmente depois que Malan, André e Pérsio se juntaram ao
pequeno núcleo inicial, passamos a dispor de massa crítica.
173
As discussões se sucediam com regularidade. Para que a imprensa
não desconfiasse que estávamos preparando algo inesperado, reuníamo-nos, seja
no gabinete de Clóvis, seja em nossas casas em Brasília, seja em meu gabinete no
edifício do Ministério da Fazenda, em São Paulo, na região central da cidade. Clóvis
tinha a obsessão de introduzir método em nosso trabalho. Estipulou multa para
quem chegasse atrasado, anotava tudo num quadro- negro, distribuía tarefas e as
cobrava, para que o fio da meada não se perdesse em discussões interessantes,
mas vãs. As idéias, brilhantes e cambiantes, iam se sucedendo, mas com
muita dificuldade de migrar para o papel sob forma de futuros decretos, MPs
ou projetos de lei. O duro trabalho de fazer a lição de casa para resolver os
problemas que iam surgindo coube principalmente a Gustavo Franco, que, claro,
também participava com idéias. No meio das discussões, de repente um dos
economistas se punha no quadro-negro e escrevia uma equação que me intrigava.
Meus conhecimentos da matéria são de consumidor de textos, sobretudo dos
clássicos, tendo chegado com esforço a ler a Teoria geral do emprego, do juro e da
moeda,9 o clássico de Keynes, mas incapaz de acompanhar a matemática que está
por trás dos modelos contemporâneos. Pedia que não me confundissem
e traduzissem para a vida política as conseqüências do que estavam propondo, pois
caberia a mim explicar ao país e assumir as responsabilidades. Eles o faziam com
generosidade.
Meu entusiasmo aumentou quando, em uma das reuniões de fim de semana
no edifício do Ministério em São Paulo, após longas digressões e várias fórmulas no
quadro-negro, houve um debate acérrimo entre os principais membros da equipe e
Pérsio Árida apresentou a sugestão revolucionária:
minimizar as regras e torná-las transparentes. A complicada relação entre preços
cambiantes, graças à erosão diária do cruzeiro real, e a URV seria explicada à
população. Isso batia com o que eu mais acreditava, a pedagogia democrática.
Nada seria secreto. Nós anteciparíamos os principais passos do que iria ocorrer e
mostraríamos que se tratava de um processo e não de um ato milagroso.
Portanto, haveria que trabalhar com o tempo e tornar o povo partícipe ativo desse
processo. Riscos havia:
Nota: ' O livro foi lançado em 1936 na Grã-Bretanha como General Theory of Employment,
Interest and Money. Uma das mais recentes edições brasileiras até a publicação
deste livro era a da Atlas, São Paulo, 1992. Fim da nota.
174
se os meios de comunicação não atuassem para ajudar nas explicações, se nós não
fôssemos capazes de certo didatismo, se a descrença vencesse antes da troca de
moeda (quer dizer, antes de a URV transformar-se em real), perderíamos a guerra.
Preferi, no entanto, correr esse risco e não fazer um plano apenas tecnocrático.
A esquerda e à direita, uma bateria de críticas
Outra decisão que teve significado político foi a de evitar a dolarização. Lembro-me
de que certa feita Domingo Cavallo visitou São Paulo e eu o acompanhei em uma
solenidade no consulado argentino. Ele dizia não entender por que estávamos
hesitando tanto em fazer qualquer coisa do género currency board; nossas reservas
em dólar eram grandes o suficiente para darmos o passo. E Cavallo tinha atrás de si
o êxito do câmbio fixo, gabado urbi et orbi. Enquanto no Brasil discutíamos
nosso plano de estabilização, compareci à reunião anual do FMI em Washington e
verifiquei o quanto elogiavam o sucesso alcançado na Argentina. Eu me sentia
como a Gata Borralheira, vendo o francês Camdessus conversar com grande
familiaridade - em espanhol - com vários ministros e autoridades sobre fatos de que
eu não tinha participado e sobre pessoas que eu não conhecia. Além de não-
economista no meio de tantos sábios, fora incapaz de dolarizar ou coisa que o valha
para conseguir a estabilização. Não obstante, a engenhosa URV nos daria a
vantagem de dispormos de uma unidade estável de valor, como se fosse o dólar,
essencial para se ter uma amarra de estabilização, sem contudo ser o dólar. Ou
seja, preservando margens de manobra para proceder a alguma
desvalorização não traumática. E, sobretudo, não perdendo o valor simbólico de
moeda nacional, um fator de identidade cultural e de autonomia decisória.
O não-congelamento e o não-atrelamento da nova moeda ao dólar,
todavia, conferiam apenas os contornos mais significativos do plano
de estabilização. Não constituíam, por assim dizer, seu miolo. O aspecto didático da
utilização simultânea de duas moedas - ou melhor, de uma moeda de curso
corrente corroída pela inflação e de outra estável, mas virtual - contrariava as
expectativas, sobretudo as dos políticos, que desejavam algo mais contundente,
como o congelamento ou a prefixação dos preços essenciais da economia. A não-
dolarização agradava à maioria dos políticos,
175
mas era vista com certa desconfiança por alguns setores econômicos, sempre
temerosos das influências políticas na economia.
Eu, como já disse, concordava com ambos os pontos, ou seja, com não dolarizar
nem congelar preços, mas continuava preocupado com a seqüência das medidas
necessárias para o andamento do programa de estabilização. Travava-se intensa
discussão teórica, dentro e fora do governo. João Sayad, economista consagrado
ligado ao PMDB, ex-secretário da Fazenda de Montoro em São Paulo e ex-ministro
do Planejamento de Sarney, por exemplo, provocou uma polémica sobre a
existência de relação de causa e efeito entre déficit público e inflação, até
porque, alegava, não estava havendo déficit operacional - ou seja, a diferença entre
tudo o que o governo arrecada e tudo o que gasta, incluindo o pagamento dos juros
-, apesar da inflação elevadíssima. Em todo caso, melhor seria fazer primeiro a
reforma monetária para depois enfrentar o problema fiscal, defendia.
Os economistas à esquerda viam com maus olhos os cortes orçamentários
e acreditavam que o ponto central da inflação era de ordem distributiva, quer dizer,
o da apropriação dos resultados inflacionários. Não sem razão, apontavam os
interesses entrincheirados na inflação - dos banqueiros que se apossavam de parte
dos ganhos inflacionários, dos especuladores, dos industriais e comerciantes que
remarcavam preços incessantemente - como o principal obstáculo à estabilização.
O preço desta, temiam, seria pago pelos trabalhadores. Paul Singer, por exemplo,
era taxativo: a questão, argumentava, é que o PAI partia de um diagnóstico falso, o
de que a causa da inflação seria a desordem administrativa e financeira do setor
público. Além de pedir mais e melhores gastos públicos, afirmava que os cortes e os
acertos de contas entre União, estados e municípios não serviam para coisa
alguma.10 Posteriormente, sendo o plano já de conhecimento público, Maria
da Conceição Tavares, economista de formação matemática, inspiradora de idéias
seminais e detentora de um amplo círculo de influência, elaborou mais claramente
os mesmos argumentos." Raciocínio semelhante expunha Aloizio Mercadante,
Nota: 10 "O plano não basta", Jornal do Brasil, 18/6/1993.
11 "O sacrifício para derrubar a inflação", Folha de São Paulo, 20/2/1994.
Fim da nota.
176
para quem a inflação não causaria déficit, pois ela resolveria os problemas do
Tesouro.12
Mesmo contendo grãos de verdade, as críticas sobre a questão redistributiva não
apontavam caminhos conseqüentes para conter a inflação. A menos que fosse
possível e desejável uma revolução, como propôs o filósofo e professor de Harvard
Roberto Mangabeira Unger: que não se pagassem as dívidas ou que o peso delas
recaísse somente sobre as "classes endinheiradas", que se colocassem na cadeia
os grandes banqueiros e industriais, que o BC fosse "nacionalizado", que
houvesse um Estado forte e outras teses nessa linha. Antecipando-se à
minha própria percepção das coisas, pois na época eu nem sonhava
com candidatura à Presidência, ele disse que estávamos propondo uma terceira via,
substituindo o "nada" (os ministros anteriores) pelo "pouco" (por mim), com o claro
projeto de chegar ao governo.13 Haja imaginação premonitória!
No plano oposto, os economistas liberais (ou "ortodoxos"?) cobravam rapidez: ajuste
patrimonial imediato com privatização acelerada para reduzir as dívidas do Estado,
abertura dos mercados, corte profundo nos gastos públicos, se possível redução e
não aumento de impostos. E nada de "artificialismos", isto é, de choques
heterodoxos. Outros comentaristas, como o jornalista Fernando Pedreira, embora
favoráveis ao programa de estabilização, começavam a dar sinais de inquietação
à medida que a inflação aumentava.14 Mais otimista, Bresser-Pereira acreditava
nas nossas chances de êxito.15 Num exemplo da cultura autoritária prevalecente,
António Carlos Magalhães (PFL), governador da Bahia, recomendava que eu
deveria "ser mais agressivo e menos conciliador".16
Com maior ou menor ironia ou mesmo cinismo, esse era o tom das críticas.
O economista da USP Celso Martone, por exemplo, achava que
estávamos próximos de uma aventura heterodoxa de conseqüências incertas, dada
a fragilidade do ajuste fiscal. Criticava duramente o aumento dos impostos e
classificava a proposta do PAI como sendo outra "melancólica
Nota: 12 "Para Mercadante, não há déficit", Folha de São Paulo, 5/1/1994.
13 "A Terceira Via no poder", Folha de São Paulo, 28/5/1993.
14 "O médico e sua medicina", O Estado de São Paulo, 25/7/1993.
15 "A hora e a vez", Folha de São Paulo, 27/7/1993.
16 Exame, 4/8/1993. Fim da nota.
177
repetição da pusilanimidade e falta de imaginação que tem caracterizado os
ministros da Fazenda"17 Cobrava cortes adicionais e descria da capacidade de a lei
substituir a coragem política e a responsabilidade fiscal dos governantes (ele não
sabia, pois não tinha o dom divinatório de Mangabeira Unger, dos efeitos da futura
LRF). Ou seja, no fundo o combate à inflação, ou a ausência dele, seria uma
questão moral!
Roberto Campos, com fina ironia, chegou a afirmar que ainda não tínhamos plano
porque "nosso simpático, ameno e inteligente ministro não resiste ao impulso de
agradar a todos" De novo, tratar-se-ia de uma questão subjetiva: para "agradar" a
Itamar, nada de privatização, para "agradar" à Receita, nada de simplificação
tributária, e assim por diante. O plano consistiria em uma âncora cambial disfarçada
e no aumento da carga fiscal, com o FSE escondendo o objetivo verdadeiro.
Faltava decisão, segundo ele. Para quê? Para privatizar mais e mais depressa, não
aumentar impostos, desregular a economia e atrair capitais.
A fórmula era sempre a mesma. Só faltava apontar o caminho e dizer
como percorrê-lo, como se nisso não estivessem os verdadeiros problemas -
e Roberto Campos, ex- embaixador nos EUA (1961-1964) e ex-ministro
do Planejamento, certamente os conhecia. Como se a vontade (em uma
visão simetricamente oposta e equivalente ao voluntarismo de esquerda)
operasse no vazio, sem que existissem os interesses, as visões contrastantes, as
estruturas estabelecidas.
A cantilena de descrença foi constante e até piorou quando anunciamos a URV com
mais detalhes. Vários economistas expressaram publicamente sua opinião, todos
num mesmo tom de ceticismo. Campos criticava a URV como um mecanismo pelo
qual o governo "induzia as pessoas a corrigir os preços diariamente", podendo,
portanto, "ter um efeito infla-
cionário".
Entre esses extremos, havia quem entendesse as dificuldades teóricas e práticas
para pôr em marcha um plano de estabilização nas condições políticas da época.
Deles falaremos oportunamente. Antes, contudo, convém explicitar melhor o que
chamei de miolo do Plano FHC, ou seja, a proposta da URV.
Nota: 17 Ver reportagem de Rolf Kuntz, "Reformas não avançaram, dizem técnicos", com
entrevistas de vários outros economistas, O Estado de São
Paulo, 11/7/1993. Fim da nota.
178
A URV: matando a inflação com o próprio veneno
A idéia de aproveitar a indexação preexistente para estabelecer a noção de valor
estável tinha semelhanças com o princípio da homeopatia, similia similibus curantur.
mataríamos a inflação usando seu próprio veneno, a indexação. Corrigiríamos os
preços, diariamente, por um indicador da perda de valor da moeda corrente, o
cruzeiro real. O governo adotaria e induziria a sociedade a adotar esse indexador
diário para denominar os valores de contratos e preços. Depois de um
tempo, quando todos se acostumassem a usar essa moeda virtual como uma
unidade estável de valor, como muitos já faziam com o dólar ela se transformaria na
nova moeda corrente, o real. Nesse período de transição os agentes económicos
teriam oportunidade de alinhar espontaneamente os preços, evitando que reajustes
defasados "contaminassem" a moeda nova com a inflação na moeda velha, como
ocorrera em planos anteriores.
O risco era grande, como anotaram Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen -
economista dos mais qualificados do Brasil em qualquer época, que havia sido
ministro da Fazenda e do Planejamento e que exercia uma grande influência por
meio de artigos, entrevistas e palestras -, este com a metáfora dos patins no gelo: a
proposta de corrigir diariamente os preços, inclusive os salários, poderia
terminar em uma derrapagem espetacular, com a corrida contra a inflação
gerando hiperinflação. Tínhamos dois tipos de argumentos para sustentar
a estratégia proposta. Um "iluminista": acreditávamos que a
população compreenderia o mecanismo e iria preferir a referência de valor
estável que era a URV (um "feto de moeda", na expressão descrente e maldosa
de Saulo Ramos), à moeda corrente, corroída pela inflação. Outro, simbólico-
pragmático: trocaríamos fisicamente a moeda, quando transformássemos a URV
em real.
Eu me preocupava muito com a questão simbólica da troca das moedas.
Desde dezembro de 1993, portanto antes da aprovação e mesmo do desenho final
do Plano Real, determinei a Eduardo Jorge que entrasse em contato com o diretor
da Casa da Moeda, Tarcísio Jorge Caldas Pereira, seu irmão e almirante da
reserva, para verificar o tempo necessário e o custo da produção em massa de
novos bilhetes e de novas moedas propriamente ditas. Determinei mais ainda: que
Tarcísio conversasse sobre esta matéria exclusivamente com Gustavo Franco, para
receber suas instruções.
179
Não fosse essa decisão e teria sido impossível efetuar a troca do meio
circulante inteiro em um único dia, o 1° de julho de 1994.
Havia que importar papel especial para a impressão, redesenhar as matrizes e
cuidar da complexa logística da distribuição das cédulas e das moedas por um
território gigantesco como o do Brasil.
Tudo isso era muito bonito, mas deixava de lado questões fundamentais.
Com velha ou nova moeda, quais seriam as regras de emissão? Havia a proposta
monetarista, sobre o controle quantitativo da massa de moedas, desde as moedas
correntes até as fiduciárias (ou seja, os cheques, os títulos de toda espécie, os
títulos sobre depósitos bancários, as mil formas de crédito que são negociáveis
como quase-moedas). Que regras definir? Nesse ponto os economistas não se
entendiam, nem os favoráveis ao monetarismo clássico, que de fora do governo
criticavam o plano por não ser monetarista, nem os que trabalhavam nele. Gustavo
Franco entendia necessário estabelecer metas mais rígidas para regular
as emissões monetárias. Pérsio Árida acreditava ser difícil calcular a demanda
monetária no momento em que a inflação caísse. Sem esquecer que André Lara
Resende namorava a idéia do currency board. Essas decisões foram sendo
tomadas até às vésperas do lançamento da nova moeda, naquele 1° de julho de
1994, quando eu já estava afastado do Ministério para ser candidato à Presidência
da República.18
O resultado final seria um tanto eclético. Bacha propôs uma solução salomônica:
dobrar os limites propostos por Gustavo Franco para regular as emissões
monetárias e dar uma folga de 20% para o Conselho Monetário Nacional autorizar o
BC, em situações extraordinárias, a ultrapassar as metas. Mais ainda, incorporando
uma preocupação de André, fora da equipe naquele momento, e para atender aos
reclamos do mercado por regras de emissão, a MP de 29 de junho de 1994 que
criou o real, em seu artigo 3°, chegou a fazer uma referência à vinculação entre a
nova moeda, o real, e as reservas internacionais. A regulamentação desta parte
da nova lei, que ao pé da letra assegurava a relação entre 1 real e 1 dólar, jamais se
efetivou. Mesmo porque, em outro artigo, a lei facultava ao Conselho Monetário
Nacional revogar a vinculação.
Nota: 18 As afirmações acima estão baseadas em entrevistas com Gustavo Franco e
Pérsio Árida, feitas por Sérgio Fausto especialmente para este livro.
180
Esses poucos parágrafos são suficientes para mostrar que em matéria de política
monetária e cambial o Plano Real estava longe de ser uma obra acabada. As
conseqüências iriam se perceber logo no início de 1995, quando o governo tentou
corrigir o câmbio, como veremos no Capítulo 5.
Outras questões merecem tratamento mais cuidadoso. A primeira é a relativa ao
respeito aos contratos. Até a aprovação final do plano, tivemos um trabalho insano
para antecipar problemas e resolvê-los.
Nesse esforço, a preservação da ordem jurídica teve um peso enorme.
Assustava-nos o fantasma das ações na Justiça contra o governo geradas por
planos anteriores, por falta de pleno fundamento legal nas decisões. Desta
carpintaria, que não vê a luz da ribalta como os engenhos dá URV, ocupou-se
Gustavo Franco, com a colaboração de Eduardo Jorge, de Ruy Jorge Rodrigues
Pereira, advogado da Petrobras e primo de Eduardo Jorge, e da equipe jurídica do
BC, à frente o doutor José Coelho. O apoio da consultoria jurídico-tributária dos
doutores
José Luiz Bulhões Pedreira, Gilberto de Ulhôa Canto, um dos autores do Código
Tributário Nacional, Alcides Jorge Costa e Tadeu de Chiara foi inestimável. E
a equipe ouviu também os advogados Saulo Ramos e Ives Gandra Martins.
A questão mais delicada era como inserir a URV, uma moeda virtual,
no ordenamento jurídico monetário. Qualquer engano e seriam bilhões de cruzeiros
reais, ou que moeda viesse a ser reconhecida pelos tribunais, a serem pagos pelos
cofres públicos como indenização por prejuízos causados. Tanto mais que havia as
indexações e a transformação de milhões de contratos de uma unidade monetária
em outra, com a imensa quantidade de dúvidas sobre os índices de reajuste.19
Pois bem, até a publicação deste livro apenas uma única causa relevante contra o
Plano Real havia sido acolhida pelo STF: uma ação referente
Nota: 19 Tomo emprestada de Gustavo Franco a explicação sobre como se calculava a
passagem de uma a outra unidade monetária:"(...) A metodologia para cálculo da
paridade diária entre o cruzeiro real e a URV tomaria por base uma 'banda' de três
índices de preço de ampla utilização - IGP-M, IPCA-E e o IPC-Fipe, 3a
quadrissemana - adotando, assim, procedimento muito semelhante ao utilizado para
reajuste da Ufir diária, que refletia, a cada dia, uma 'projeção' do IPCA
(série especial) relativo ao mês em curso, apenas enquanto o índice 'fechado' não
era divulgado" (Gustavo H. B. Franco, O Plano Real e outros ensaios, Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1995). Fim da nota.
181
à data de conversão para a URV dos salários dos servidores do Legislativo e
Judiciário. A decisão implicou um aumento de 11% nos salários.
Tudo isso tem a ver com nosso ponto de partida de crença na necessidade de
estabilizar a economia garantindo contratos e respeitando a democracia. Muitos
julgavam esse tremendo esforço de modo sumário, como mostrarei adiante. Críticos
e adversários (quando não alguns aliados)
superestimavam a vontade política como fator de mudança. Subestimavam
as dificuldades, as rugosidades da vida real. E, ex-cathedra, lançavam no papel
artigos demolidores ou jogavam ao ar discursos inflamados, cuja falta de
correspondência com a realidade do país equivalia à arrogância com que julgavam
nossas intenções.
Covas não acreditava, mas apoiou
A exposição de motivos para justificar a MP do Real ficou pronta em dezembro de
1993, embora a respectiva lei somente tenha sido finalmente aprovada pelo
Congresso em junho de 1995.20 (Até lá, a MP foi sendo reeditada.) Ainda que
André estivesse afastado de posições de governo, incumbi-o de redigir os
resultados a que chegáramos para conceber o Plano Real. A proposta tinha uma
arquitetura simples e arriscada.
Outros planos haviam soçobrado não tanto por erro central de concepção, mas pela
negligência para com os detalhes. As poucas alusões que fiz às dificuldades para
chegar a acordos e o tatear em quase tudo, principalmente nas reações do
Congresso e do governo, mostram que a implementação de um programa como o
Plano Real, que implicava mudar uma cultura e requeria transformações na
organização do Estado, é algo muito diferente do previsto nos textos dos manuais
ou em reflexões meramente teóricas sobre como deve ser a boa economia. No
espírito dos que estávamos tentando mudar o Brasil abrigavam-se menos certezas
do que apostas.
Entre outubro e dezembro de 1993 os lineamentos básicos do plano
estavam formulados. Já se sabia que não daríamos um choque de estilo
habitual, que não seriam impostos congelamentos nem prefixações, que
apostaríamos nas induções corretas para o mercado e a população
reagirem adequadamente. Acreditávamos que o somatório entre informação
Nota: 20 Lei n° 9.069, de 29/6/1995. Fim da nota.
182
adequada e liberdade de escolha apresentaria bom resultado. Mas tínhamos receio
de muitas coisas. Lográramos um apoio tíbio dos mercados internacionais, com a
negociação da dívida externa. A desconfiança sobre o êxito de nossos propósitos
era considerável.
Em mais de uma oportunidade Stanley Fischer, que fora professor de André Lara no
MIT e funcionava como uma espécie de assessor informal de Larry Summers,
estivera no Brasil para avaliar os avanços na formulação do plano. (Dali a um ano,
Fischer se tornaria o vice- diretor-gerente do FMI.) Também me encontrei com ele
por ocasião da tal reunião no FMI em que me senti um tanto deslocado. Em
conversas com Fischer e com Alexandre Kafka, legendário representante do
governo do Brasil no Fundo, percebi as dúvidas. Não se questionava a boa
qualidade da equipe, mas tinham-na como "inexperiente". Os progressos que
vínhamos obtendo no ajuste fiscal não pareciam suficientes aos técnicos do FMI.
Em certo momento Stanley Fischer chegou a sugerir um congelamento de preços
por dois a três meses, para facilitar a aceitação do plano pelos sindicatos. Sim, essa
sugestão não partiu de economistas de esquerda, de setores nacionalistas ou de
saudosistas do Plano Cruzado: veio de alguém próximo do supremo escalão do
Departamento do Tesouro dos EUA.
Era difícil manter o moral da tropa com tantas incertezas e, ainda por cima, com o
clamor da opinião pública para que agíssemos com presteza, sabendo, como
sabíamos, que ainda faltava acertar numerosos pontos. Foi neste contexto que pedi
apoio ao PSDB. Reunimo- nos em meu apartamento de Brasília, creio que em fins
de setembro. Pelo PSDB, Mário Covas, Tasso Jereissati, ex-governador do Ceará,
e seu sucessor, Ciro Gomes, e José Serra. Tasso era presidente do partido, Covas
e Serra, líderes no Senado e na Câmara. Dentre os meus colaboradores estavam
Clóvis, Bacha, Gustavo Franco, Winston Fritsch, André e Pérsio, todos filiados
ao PSDB. Mostramos aos líderes políticos, em linhas gerais, no que consistiria o
plano: um risco complexo com a utilização de duas moedas.
Insistimos que precisávamos da aprovação do FSE e do aumento de impostos para
equilibrar a situação fiscal, antes de propormos as medidas de maior impacto. Mais
difícil ainda: não haveria congelamentos e outras decisões politicamente apetitosas.
Eu não esperava da reunião, diferentemente do que se publicou a respeito, apenas
o endosso do partido. Esperava uma injeção de entusiasmo
183
para evitar a tendência de "é melhor não fazer já, porque as coisas ainda não estão
maduras na nossa cabeça". Ou seja, receava que o temor do fracasso levasse a
equipe ao imobilismo. Os líderes ali presentes reagiram com certa decepção por
estarmos pedindo tanto (sem falar nas reformas constitucionais que nos pareciam
indispensáveis para enfrentar a reorganização do Estado, a questão tributária e a
previdenciária) e oferecendo tão pouco como moeda política de troca. Indagados
sobre o cronograma do plano de estabilização, nossos economistas tergiversaram e
mencionaram como data provável o mês de novembro de 1994 - depois
das eleições, portanto. Jogar o deslanche do programa para o final do ano denotava
o receio de arriscar tanta coisa, com escassas certezas. Àquela altura as chances de
vitória de um candidato que nos apoiasse eram muito pequenas. Com a possível
derrota eleitoral em outubro, o plano iria ladeira abaixo.
O silêncio de uns e a perplexidade de outros não diminuíram a solidariedade e
também a visão clara dos líderes de que era tudo ou nada. Se nada fizéssemos ou
se não desse certo, o PSDB, com seus candidatos, pagaria o preço do nosso
fracasso. Foi Mário Covas quem expôs isso de maneira decidida, franca, sem
ilusões, mas com muita solidariedade:
- Vocês sabem o que estão pedindo, não é? Que a gente concorde em ser derrotado
nas eleições, que são em outubro... Mas se é esse o preço que vocês acham que é
preciso pagar para o país sair da entalada, eu apoio.
Acrescentou:
- Não sei se vai dar certo, acho que não, mas apoio e vou lutar no Congresso até o
fim para aprovar as medidas que vocês enviarem.
E assim agiu, com raro espírito público, a despeito de ser pré-candidato ao governo
de São Paulo e de ter tido a impressão de que o plano prejudicaria suas chances
eleitorais.
Como me tornei candidato à Presidência
Apesar do delineamento do programa de estabilização ter sido apresentado em
dezembro de 1993, o ceticismo continuava, como registrado pelos comentários que
reproduzimos páginas atrás. Pior, começava a aparecer o espectro de minha
candidatura à Presidência. Em dezembro de 1993 Hélio Jaguaribe publicou um
artigo no qual pôs o dedo na ferida afirmando
184
que o plano tinha tudo para se converter em grande trunfo eleitoral.21 As águas
começaram a dividir-se, mesmo antes de eu ter considerado seriamente a hipótese
de concorrer. Não posso afirmar com segurança quando esta eventualidade se
tornou clara na minha consciência. Em dezembro de 1993 minha preocupação
obsessiva ainda se concentrava no plano de estabilização. O PSDB buscava
contatos com o PT, para uma eventual aliança. O partido realizava pesquisas de
opinião com seus nomes mais conhecidos, inclusive o meu, sobretudo a instâncias
de Tasso Jereissati, mas os resultados mostravam baixo reconhecimento por parte
do eleitorado. Tentávamos também atrair para o PSDB, para ser nosso candidato, o
ministro da Previdência, António Britto, filiado ao PMDB. Ele fazia boa administração
e me apoiou dentro do governo o tempo todo. Além de tudo, imaginávamos Britto
entre os tucanos em razão da pequena chance de ser escolhido por seu próprio
partido.
Lembro-me de que na fase de elaboração do programa recebi em meu apartamento
o presidente do PT, deputado José Dirceu (SP), e Lula, o candidato óbvio do
partido. Chamei-os para tentar convencê-los a apoiar as medidas do Plano Real no
Congresso. Disse-lhes que não me pareciam acarretar perdas aos trabalhadores.
Pelo contrário, o acerto dos salários tendo como referência a URV, uma vez
estancada a inflação, seria vantajoso. A certa altura Dirceu me perguntou:
- Você acha que será possível, no segundo turno, uma disputa entre o PT e o
PSDB?
Na eleição anterior estivéramos juntos no segundo turno, com os principais nomes
do PSDB apoiando Lula contra Collor. Não hesitei e, referindo-me a meu partido,
respondi com sinceridade:
- É quase impossível.
Não mudei o ânimo dos petistas, pois votaram contra tudo no Congresso, mas disse
o que realmente pensava na ocasião. De fato não acreditava que tivéssemos
chance de chegar ao segundo turno,
À época, me parecia visível que o Presidente Itamar tinha bastante apreço por Britto
e por mim. Provavelmente o que mais pesou no meu espírito para enfrentar o
desafio de uma candidatura à Presidência tenha sido sua decisão, no final de
dezembro de 1993, de pedir a renúncia de
Nota: 21 "O plano e a candidatura Cardoso", Jornal do Brasil,
15/12/1993. Fim da nota.
185
todos os ministros que fossem participar das eleições de 1994, com exceção do
ministro da Fazenda. Considerei tratar-se, à maneira oblíqua de Itamar, de um sinal
de sua preferência entre os dois. Além do que, como Britto se encaminhou para
disputar o governo do Rio Grande do Sul - uma candidatura à Presidência pelo
PSDB implicaria troca de partido, o que entre os gaúchos sempre constituiu
problema sério -, Itamar estava ficando sem opções.
O curioso nesse processo - e agora cabe-me fazer uma revelação - é que terminei
sendo o candidato de Itamar sem que jamais, em nenhuma ocasião, tivéssemos
conversado de maneira aberta e clara sobre a questão, embora, obviamente, nos
cercassem cogitações de terceiros. O Presidente nunca abria o jogo, neste assunto
como em vários outros. Não dizia nada; ouvia. Não posso garantir, mas creio que,
dentro do governo, minha candidatura era encarada com simpatia pelo advogado-
geral da União, José de Castro, um dos colaboradores próximos do Presidente, e
também seu amigo de muitos anos, da mesma forma como entendo que outro dos
amigos do círculo íntimo, o chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, a ela não se
opunha. Apesar de retrancado em sua prudência mineira, a realidade é que Itamar
sem dúvida me apoiou o tempo todo.
Aliás, devo deixar claro aqui o que considero ter sido uma relação muito generosa
que Itamar, na Presidência, sempre teve para comigo, começando no Itamaraty e
prosseguindo em meu período como ministro da Fazenda. Ao contrário do que
muita gente comentava na época, e das futricas que apareciam em veículos da
mídia, o Presidente jamais manifestou ciúmes ou inveja pela evidência em que meu
trabalho no governo me colocava.
Como ministro da Fazenda, não raro o Presidente, em vez de discursar
em encontros de trabalho ou reuniões ministeriais, tomava a iniciativa de pedir a
mim que falasse. Quando chanceler, em viagens ao exterior, por iniciativa de
Itamar, por vezes parecia que eu, e não ele, era o chefe da delegação. De minha
parte, sempre me mantive leal ao Presidente e não avançava o sinal. As coisas
entre nós dois só se complicaram depois, quando eu já o sucedera, e tardiamente
percebi que Itamar gostaria de voltar à Presidência. Eu não podia imaginar isso,
diante da contrariedade e mesmo do sofrimento que, não poucas vezes,
manifestou com o exercício do cargo.
O fato é que, com a simpatia do Presidente, acabei sendo candidato. Até então
preferia apoiar um nome que, uma vez eleito, me mantivesse à
186
frente do Ministério da Fazenda. Se Itamar não tivesse um candidato, provavelmente
perderia interesse em sustentar minha ação no Ministério, como sustentava, a
despeito de seu estilo um tanto enigmático.
Ficaríamos em tal caso no pior dos mundos, sem chances de implementar o plano
de estabilização.
A candidatura ajudou a aprovar o FSE
Estas considerações ex-post não serviriam, como não serviram, para evitar o
inevitável: a partir do fim de dezembro de 1993, início de janeiro de 1994, a
discussão do plano de estabilização, para o bem ou para o mal, partidarizou-se mais
ainda. Graças a isso, paradoxalmente, conseguimos aprovar o FSE no começo de
fevereiro. O PFL estivera retraído, quando não contrário ao plano, pois temia que
ele dificultasse a revisão constitucional automática prevista na Carta, na qual
haveria mais oportunidades para as reformas liberalizantes que desejava implantar,
com redução de impostos. Aos poucos, todavia, o partido foi perdendo as ilusões
quanto à efetividade da revisão constitucional.
Passou então a cogitar de me apoiar como candidato. Tive pelo menos dois cafés-
da-manhã no apartamento de Marco Maciel com Jorge Bornhausen e o deputado
Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), entre outros, onde o apoio me foi oferecido.
Num terceiro encontro, lembro-me da frase com que Bornhausen deixou clara a
posição do PFL:
- Olha, nós estamos dispostos a apoiar você. De modo que conte conosco.
Não pude ser conclusivo, porque precisava aplainar o caminho com
meus companheiros do PSDB. Tinha, contudo, plena clareza não apenas do
peso eleitoral do PFL - no Nordeste, território do partido, nosso único bastião era o
Ceará de Tasso Jereissati e Ciro Gomes - como da importância de seu apoio no
Congresso para a implementação de um plano de governo, caso me elegesse. A
partir dessas conversas, e mesmo antes da aliança formal PSDB-PFL, aumentou
substancialmente a base de sustentação para as medidas que propusemos ao
Congresso. Além do PFL e de boa parte do PMDB, que já apoiava o Plano Real,
outros deputados e senadores passaram a ver que o "sacrifício" de votar medidas
nem sempre populares poderia ser compensado por uma candidatura que, se ainda
não apresentava
187
viabilidade eleitoral nem havia sido assumida, começava a ter peso político.
Mais tarde, em abril, depois que o PSDB em bloco me visitou no Ministério da
Fazenda e aceitei formalmente ser candidato, participei de um almoço no
apartamento de Serra na SQN 302 de Brasília com a direção do partido - Covas,
Richa, Tasso, Montoro, Pimenta, Scalco e outros. Durante a conversa, mencionei
reunião que tivera no mês anterior com Carlos Augusto Montenegro, presidente do
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), no apartamento
de Eduardo Jorge. Montenegro mostrou dados, retirados dos
periódicos levantamentos de opinião pública que promovia, indicando que
duas pessoas tinham potencial para vencer as eleições daquele ano: Antônio Britto
e eu. Podíamos, um ou outro, ganhar sozinhos, assegurou.
- Mas a gente não governa sozinho - lembrei, para defender novamente
a necessidade da aliança com o PFL. - Uma coisa é pesquisa, outra é a vida depois.
Tal como Ulysses fizera com Montoro, Roberto Gusmão e eu a respeito
da candidatura de Tancredo pelo Colégio Eleitoral, quase dez anos antes, perguntei
a eles:
- Quero saber a opinião de cada um de vocês sobre essa aliança com
o PFL
Houve unanimidade em aceitar o apoio dos liberais, embora mais tarde,
na convenção do PSDB em Contagem que selou a aliança, dia 18 de maio, tenha
havido um início de tumulto de parte de militantes hostis ao PFL.
Ciro Gomes chegou perto de se envolver em luta corporal com alguns deles.
O apoio do PTB, que se aliaria à chapa PSDB-PFL, veio em seguida. O presidente
do partido, senador José Eduardo Andrade Vieira (PR), aspirava à candidatura, mas
abriu mão dela para juntar-se a nós.
Colegas no Senado, os dois nos aproximamos como ministros de Itamar.
Como chanceler, cabia-me tratar em fóruns internacionais da
questão, extremamente intricada, da legislação de patentes, e Andrade
Vieira, ministro da Indústria e Comércio, me ajudou muito no esclarecimento
do assunto. Banqueiro, um dos donos do Bamerindus, não faltou quem achasse, e
talvez tenha continuado a achar, que ele financiou a campanha. De modo algum.
Certamente contribuiu - eu nunca soube com quanto -, inclusive por ter cedido para
uso da campanha um espaçoso jatinho HS.
188
O fundamental, porém, seria seu apoio político, porque o PTB contava muito, tanto para a
sustentação ao Plano Real como do ponto de vista eleitoral. Ele dedicou-se com
afinco à corrida eleitoral, integrou o comité principal de campanha que viríamos a
constituir, sediado em Brasília, e, entre outras tarefas, ajudou a organizar o comité
de arrecadação de recursos em São Paulo, trabalhando junto ao tesoureiro, Luiz
Carlos Bresser-Pereira.
A postura do PFL e também a do PTB explicam como foi possível aprovar o FSE
com tanto ceticismo ao redor. Vejamos alguns exemplos, não só de ceticismo, mas
de oposição real ao que propusemos.
A crítica mais constante era a de que a URV não passava de uma promessa de
efeitos duvidosos; em contraposição, o FSE deixava margem imediata para o
governo gastar arbitrariamente e, ainda por cima, havia o aumento considerável de
impostos que pedimos ao Congresso com o objetivo de equilibrar o Orçamento de
1994.
Esse estado de espírito prevaleceu desde a divulgação do plano. A conversão dos
contratos para serem denominados em URV seria realizada livremente, dando-se
aos contratantes o direito de definir se desejavam ou não fazê-lo, tanta era nossa
confiança em que a população entenderia as vantagens de uma moeda estável
quando contrastada com outra, inflacionária. Esta proposta, não autoritária,
chocava-se, entretanto, não só com o comportamento do governo nos seis planos
anteriores, desde o Cruzado, como com a cultura política tradicional, segundo a
qual o Estado deve impor e não oferecer opções. Além disso, achavam injusto que
a conversão dos salários para a URV fosse obrigatória e a dos outros preços da
economia, voluntária. Não percebiam as vantagens da conversão para os
trabalhadores.
Mesmo publicações que no geral apoiavam o plano expressavam restrições.
"O pacote do ministro Fernando Henrique não deixa de vir embrulhado
no velhíssimo papel do aumento dos impostos." Esta era a opinião da revista
Exame, que no entanto explicava a proposta de maneira favorável, dizendo que a
URV buscava restabelecer a noção de preço, baseando-se na inflação corrente,
não na passada, e mostrando que ela só se transformaria em moeda depois de um
período de adaptação das pessoas à proposta.22
Nota: 22 "
Façam suas apostas, senhores", Exame, 8/12/1993.
189
A generalizada descrença abriu a brecha para o contra-ataque dos políticos. O mais
direto: é inaceitável cortar verbas dos estados e municípios, entoavam os
governadores do Nordeste, com apoio ostensivo do presidente do Senado,
Humberto Lucena, e do líder da bancada do PMDB, senador Mauro Benevides (CE).
Todos propunham a solução popular:
aumentar os impostos sobre os bancos (por mais que os taxássemos, e taxamos
bastante, obteríamos recursos bem inferiores aos 20% das verbas orçamentárias
que o FSE propiciaria).
Em dezembro de 1993 e janeiro de 1994, negociei diligentemente com
cada bancada partidária e cada grupo de governadores. Com o auxílio de
Edmar Bacha, me desdobrei em cafés-da-manhã, almoços e jantares (às vezes dois
de um deles no mesmo dia). Esfalfei-me, com dados à mão para mostrar que
precisávamos de mais recursos para depois lançar medidas mais audaciosas. Cedi
no caso dos estados e municípios, cedi em outros pontos, porém não desisti nem
cedi no essencial. Em 17 de dezembro a Gazeta Mercantil trazia na manchete:
"Fernando Henrique luta sozinho pela aprovação do plano." A Folha, recolhendo a
opinião de parlamentares, proclamava no dia 30: "Estilo de FHC
desagrada parlamentares." Para comprovar citava o deputado Delfim Netto (PPR-
SP):
"Ele está fazendo terrorismo ao dizer que a única solução para o país é seu plano."
No meio-tempo, consegui que o Presidente Itamar assinasse uma MP elevando os
impostos antes do fim do ano, como a Constituição exigia para que o aumento
valesse no ano seguinte. Com isso ganhamos tempo, pois o Congresso poderia
aprovar a medida na convocação extraordinária de janeiro. O líder do PFL na
Câmara, Luís Eduardo Magalhães, comentou:
- Ministro, isso vai cair. Vai ter gente brigando para ver quem derruba primeiro essa
medida.
A briga não se travaria só com os parlamentares arredios. O líder do governo,
deputado Roberto Freire (PPS-PE), um dos que tinham recomendado com maior
ênfase ao Presidente minha nomeação como ministro da Fazenda, defendia
ardorosamente um projeto de lei para readmitir dezenas de milhares de funcionários
públicos demitidos pelo governo Collor. Eu me opus ao projeto devido à aberta
contradição existente entre elaborar um Orçamento austero, aumentar impostos
para cobrir despesas obrigatórias e, ao mesmo tempo, admitir mais
funcionários, sendo que
190
parte deles já recebera indenização do poder público. A proposta, todavia, era
politicamente irresistível. Apoiavam-na políticos de meu próprio partido, o PSDB,
para não falar no Presidente Itamar, de coração sempre pronto a abrigar
reivindicações justas em si, embora nem sempre viáveis.
Os ministros militares, o da Educação, Murílio Hingel, e, principalmente, o do
Trabalho, Walter Barelli, colocavam dúvidas sobre a conversão dos salários em
URV e sobre os cortes de verbas. O ministro da Saúde, Henrique Santillo, não
queria a desvinculação dos recursos destinados a sua pasta. O procurador-geral da
República, Aristides Junqueira, impetrou ação junto ao STF pedindo que o corte de
25% no Orçamento do Judiciário por nós aplicado fosse declarado inconstitucional.
O senador Sarney, por sua vez, considerava inconstitucional o pedido para aprovar
o FSE no processo da revisão constitucional automática (quando, lembro
novamente, precisaríamos de apenas 50% mais um dos votos do Congresso), como
emenda às Disposições Transitórias da Constituição, já aceita pelo relator, Nelson
Jobim.
Nesse clima, era difícil não concordar com a mídia: "Pode parecer exagero, mas o
fato é que não existe nenhuma corrente política no Congresso, à exceção talvez do
PSDB do ministro Fernando Henrique, interessada em colaborar no sucesso do
plano", como publicou Exame (22/12/1993).
Durante janeiro a luta parecia perdida, tanto para a aprovação do FSE como do
aumento dos impostos que facilitaria o Orçamento de 1994. O relator da Comissão
de Orçamento, deputado Marcelo Barbieri, do PMDB quercista de São Paulo, foi
irredutível. Como o Orçamento de 1994 incluía verbas que só existiriam se o FSE
fosse aprovado, considerou o procedimento inconstitucional. "Logo, todo o
Orçamento deve ser recusado", defendia.
Os governadores, como já dito, opunham-se ao FSE. E nós da equipe económica
lutando como se estivéssemos sós dentro e fora do governo, pois o Presidente
Itamar nos apoiava, mas não expressava publicamente sua posição. Revendo as
manchetes dos jornais, o bordão era sempre o mesmo: o Congresso não vai
aprovar o ajuste, nem a emenda constitucional. Pior ainda, se aprovar, nada dará
certo... Os economistas, mesmo quando favoráveis, continuavam céticos. "Brasil
não terá hiper nem estabilidade" manchetava a Folha de São Paulo (2/1/1994).
Na reportagem, os economistas ouvidos insistiam na tecla: embora o Plano seja
consistente,
191
não há condições políticas para executá-lo. Os burocratas de
Washington associavam-se ao coro do pessimismo. "Banco Mundial e FMI vêem
poucas chances para o plano", noticiava a Folha (29/1/1994), citando
o vicepresidente do Banco Mundial, Sahid Hussain: "O Brasil é a nova nuvem no
horizonte da América Latina."
E assim foi mesmo depois de 19 de janeiro de 1994, a partir de quando o Congresso
começou a aprovar, por etapas e com alterações, as principais medidas do Plano
Real. Aprovava-as, com idas e vindas, com falta de número para votar na comissão
especial, com ausência de deputados no plenário, com desânimo. Repito: as
análises expressas na mídia apenas ecoavam o clima de desconfiança criado pelas
inúmeras dificuldades que tivemos que enfrentar.
No dia 27 de janeiro, por exemplo, houve falta de quorum para votar uma elevação
no IR das empresas, sendo que o aumento do mesmo imposto para as pessoas
físicas já havia sido aprovado. A imprensa proclamou nossa derrota no Congresso,
que poria tudo a perder. Vi- me obrigado a reagir com energia. Reclamei
publicamente da displicência da maioria governista que se ausentara, ameacei
renunciar, recebi apoio explícito dos ministros militares e, em fevereiro, vencemos
de novo. A intriga política, no entanto, continuava. "Presidente está decepcionado
com resultado do Plano FHC", apregoava a Folha (26/1/1994). "Sucessão põe em
risco o Plano Cardoso", previa o Correio Braziliense (28/1/1994). "Do caos nasce a
desconfiança", escrevia Dora Kramer no Jornal do Brasil (29/1/1994). "O Plano FHC
está isolado" sustentava Carlos Alberto Sardenberg na Folha (30/1/1994).
Não bastassem as outras dificuldades, a emenda constitucional sobre o FSE
ocupava o último lugar na pauta do Congresso. Foi preciso que o líder do governo,
a essa altura o deputado Luiz Carlos Santos (PMDB-SP), com a ajuda do líder do
PFL, Luís Eduardo Magalhães, lançasse mão de uma manobra regimental pedindo
preferência para votá-la.
Tudo isso com muita articulação: negociamos com o PMDB, Itamar ficou firme e
ganhamos por 388 a 38 votos. Para um ministro "ameno" e propenso a agradar a
todos não foi um resultado tão mau assim.,.
Não obstante, Fernando Pedreira vaticinou: "O ministro Fernando Henrique acabou
ganhando sua decisiva batalha política no Congresso,
192
embora cometesse três erros crassos que o mineiro José Maria Alckmin [primeiro
ministro da Fazenda de Juscelino] certamente não cometeria."
A saber: lancei-me candidato à Presidência, promovi um aumento de impostos e
anunciei "antes da hora" uma URV ainda mal definida. "Um ministro da Fazenda
que joga com as cartas abertas é porque não sabe que espécie de jogo está
jogando."23
Para evitar derrotas de última hora nas votações no segundo turno, reclamei da
conduta de alguns ministros que estavam cabalando votos contra nossas propostas
e o Presidente Itamar me apoiou, fato que tornei público. Tudo isso em um ambiente
turvo, enquanto o Presidente enfrentava críticas e pressões após uma
desafortunada passagem pelo desfile das escolas de samba do Carnaval do Rio.
Chegaram a pairar no ar boatos sobre sua renúncia, o que levou a um desmentido
formal do líder do governo no Senado, Pedro Simon.
As dificuldades eram tantas que a cada vitória cantava-se um réquiem. O Globo
escreveu: "Com esta vitória, Fernando Henrique saiu fortalecido, mas, como
contrapartida, praticamente inviabilizou sua candidatura à sucessão presidencial."24
Além disso, ponderava o jornal, ainda haveria que enfrentar o segundo turno de
votação da emenda e, se aprovada, sua promulgação isolada, antes do fim da
revisão constitucional, seria questionada no Judiciário.
Nada acabou sendo impossível. Insisti e vencemos. Tinha razão, entretanto, o
editorial de O Globo quando disse: "As dificuldades para a aprovação do Fundo
Social provam que os filhos da inflação ainda darão muito trabalho nos meses pela
frente."
Os salários e a URV: oposição até dentro do governo
Lançado o plano com a idéia da URV, os meses seguintes, de janeiro e fevereiro de
1994, serviram-nos para aprimorar a MP que consubstanciaria o programa de
estabilização e para aprovar no Congresso o FSE. Tínhamos enfrentado uma dura
refrega para aprovar o FSE, mas ela se esgotava no círculo político. Tratou-se de
uma luta pela repartição do bolo orçamentário
Nota: 23 "O jogo dos três erros", Jornal do Brasil, 13/2/1994, * O Globo, 9/2/1994.
193
entre a União, por um lado, e os congressistas e governadores, pelo outro.
Já a questão salarial afetava todo mundo e tinha nos sindicatos e nos partidos os
interlocutores mais ativos.
Os combates para aprovar a URV superaram em dificuldades os travados para a
aprovação do FSE. Havia numerosos problemas. Os principais eram, de um lado, a
conversão dos salários, e de outro as aplicações no mercado financeiro. Com o
mesmo espírito com que demos duro para resolver as questões dos contratos e as
questões jurídicas em geral, dedicamo-nos a solucionar o contrato mais sensível
para o povo, o salarial.
Os Planos Collor, Bresser e Verão deram margem a numerosas disputas judiciais (e
a um alto custo para o Tesouro com as causas ganhas pelos que contestavam a
União, como no caso do FGTS) porque não implicaram mudança de padrão
monetário, isto é, troca da moeda corrente. No caso de mudanças de padrão
monetário, entretanto, o STF reconhecia que não fazia sentido pagar na moeda
nova a inflação prevista na moeda velha.
Essa configurava uma questão-chave para as aplicações financeiras. A introdução
de uma "moeda virtual", mantendo-se a moeda antiga, corresponderia a uma
mudança de padrão monetário? E quando ela efetivamente ocorreria - desde a
introdução da URV ou só depois que ela se transformasse em real? Isso ensejou
muita discussão. Por fim, o artigo 36 da MP determinou que não se levasse em
conta no momento da conversão dos contratos para URV a projeção da inflação na
moeda "velha", o cruzeiro real. Politicamente a medida era indispensável,
para mostrar que não estávamos privilegiando as aplicações financeiras em relação
aos salários. Nada disso, no entanto, diminuiu a barulheira sobre as supostas
perdas salariais.
Outro ponto polémico, mesmo dentro do governo, viria a ser a conversão dos
salários. O modo de fazê-la tomou em consideração uma sugestão do professor de
Direito do Trabalho da USP Amauri Mascaro do Nascimento.
Ele aconselhou o ministro da Previdência, Sérgio Cutolo, e o secretário executivo do
Ministério, Luciano Oliva Patrício, que cuidaram da matéria, a introduzir
explicitamente no artigo 27 da MP uma regra determinando a revisão dos salários
na primeira data-base de cada categoria
de trabalhadores.
Na época a lei previa uma data para o reajuste salarial de cada grupo
de trabalhadores. A regra preexistente, como vimos, falava em reajuste a
194
cada quatro meses e antecipação bimestral de 60% da inflação. Decidimos que a
conversão em URV seria efetuada em 31 de março de 1994 pela média dos salários
recebidos em cruzeiros reais nos últimos quatro meses.
Na antevéspera da assinatura da MP, o ministro do Trabalho, Walter Barelli, e o
almirante Arnaldo Leite Pereira, ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas
(Emfa), encarregado da questão salarial dos militares dentro do governo, chegaram
juntos ao Ministério da Fazenda altas horas da noite, cálculos à mão, para mostrar o
"desastre"
que a URV ocasionava nos salários. Seria um achatamento geral dos vencimentos.
Técnicos dos dois lados se juntaram e, ao final, constatou-se estarem erradas as
suposições em que as perdas se baseavam.
Não obstante, no dia seguinte, um sábado calorento de fim de fevereiro, dia 26, o
Presidente convocou alguns ministros ao Palácio do Planalto para revisar a MP,
dentre eles os que tinham estado comigo na véspera.
A discussão foi extremamente ardorosa. Além das "perdas" havia a questão do
salário mínimo, que o ministro Barelli queria aumentar, no que era acompanhado
por quase todo mundo na sociedade, no Congresso e no governo. Falava- se em
elevá-lo para o equivalente a 100 dólares. Nós havíamos fixado o salário mínimo em
64,5 URVs, mera conversão dos valores de então. Estávamos convencidos de que o
fim da inflação proporcionaria um ganho na capacidade real de compra. Sabíamos
também, sem a menor dúvida, do valor baixíssimo do mínimo. Só que ele interferia
diretamente no equilíbrio fiscal, pois a Previdência Social é a maior pagadora de
salários mínimos do país e qualquer incremento aumenta o déficit do INSS.
A questão, portanto, não era a de que o salário mínimo fosse aceitável ou que não
devesse ser aumentado, mas de insistir que naquele momento estávamos fazendo
somente uma conversão monetária, dentro de um processo de controle da inflação.
Os aumentos deveriam vir depois, como vieram.25 Assim como, se possível, o
governo deveria promover no Congresso a desvinculação do piso de benefícios do
INSS ao salário mínimo dos trabalhadores ativos do setor privado. Isso viria a
ocorrer, na prática,
Nota: O salário mínimo teve aumentos sustentados a partir do Plano Real. De junho de
1994 até o fim de meu governo, acumulou um aumento real de mais de 40%. Em
relação ao custo da cesta básica, a valorização foi de 93%. Fim da
nota.
195
a partir da promulgação da lei complementar que permitiu aos governadores fixar
pisos salariais nos estados,26 embora poucos tenham usado essa faculdade.
Confesso que me irritei profundamente na reunião do dia 26. Os mesmos ministros
que me haviam procurado na véspera, aos quais demonstramos - com a anuência
dos respectivos técnicos, diga-se - os erros de avaliação dos efeitos da URV nos
vencimentos do funcionalismo, pressionavam o Presidente (agregando, ainda, a
questão do salário mínimo) para que ele me obrigasse a ceder.
Tivemos uma discussão longuíssima. Gustavo Franco participou de parte da reunião
para esclarecer certos pontos. Voltou à tona a mesma dificuldade da véspera, como
se minha reunião anterior com os ministros não tivesse existido. Insistia-se em que
haveria perdas para os assalariados e, portanto, era necessário aumento de salário.
Nesta reunião, de que participaram, além de Barelli e o almirante Arnaldo, entre
outros, o chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, o secretário-geral da
Presidência, Mauro Durante, o ministro da Indústria e Comércio, Élcio Álvares, e o
ministro da Administração, general Romildo Canhim, só obtive o apoio efetivo de
Élcio. Ao longo das discussões, vinha-me com freqüência à memória o aumento
salarial concedido pelo Presidente Sarney no lançamento do Cruzado, em 1986 -
sem dúvida um dos fatores da explosão de demanda que levaria o plano
a fracassar.
Cheguei a me exaltar, dizendo:
- Vocês não estão entendendo nada, está tudo errado.
E olhava para o Presidente Itamar. Ele se mantinha como uma esfinge.
Dirigia o olhar para baixo, para os lados, sua fisionomia crispada deixando evidente
sua tensão e constrangimento. Não tomava, entretanto, uma decisão. No fundo,
julgo saber o que se passava no interior do Presidente. Itamar estava dividido entre
o impulso generoso, que o inclinava a conceder um aumento, de um lado, e, de
outro, o respeito a mim somado à expectativa de que finalmente teríamos um plano.
Cedi pouco: propus que concedêssemos um aumento geral de 5% aos funcionários
antes de converter seus vencimentos à URV e que formássemos
Nota: " Lei Complementar n° 103, de 14/7/2000.
196
uma comissão para avaliar até o fim daquele ano, 1994, a possibilidade e as
conseqüências da elevação do salário mínimo para 100 dólares.
Isso depois de um episódio que não pude evitar de protagonizar.
Levantei-me da mesa, contrafeito, saí de meu posto, e me dirigi a Hargreaves.
Inclinei-me sobre ele e sussurrei a seu ouvido, ilustrando o que dizia com o gesto de
bater a mão em meu próprio ombro:
- Estou cansado de carregar o governo aqui. Cansei de carregar vocês nas costas,
estou fazendo isso há muito tempo. Vá lá e diga a seu chefe que nomeie o Barelli
para meu lugar. Ele deve ter soluções melhores para os nossos problemas. Cansei.
O Presidente continuava tenso, mas não proferiu qualquer palavra que
me desautorizasse. Até que, a certa altura, com um meneio, manifestou
sua concordância com a solução que propus. Saí da reunião quase na
hora anunciada em que, diante de uma multidão de jornalistas que me aguardava
no Ministério da Fazenda, explicaria ao país como seria, finalmente, a MP da URV e
como funcionaria o plano. Concedi uma bateria de entrevistas naquela mesma noite
a vinte e tantos diferentes veículos da mídia, começando pelas TVs, que haviam
montado toda uma parafernália eletrônica no edifício do Ministério. Falei calma e
claramente, respondendo a todas as perguntas dos jornalistas, como se o dia
houvesse transcorrido na maior normalidade. A imprensa, contudo, nos
dias seguintes, relataria as dificuldades e o tom das negociações. "Reunião de nove
horas vence resistências", noticiou O Globo (28/2/1994). "FHC cede e dá abono de
5% ao servidor", registrou Clóvis Rossi na Folha de São Paulo na mesma data.
"Itamar ficou à margem até a última hora", dizia outra matéria da Folha, também no
mesmo dia.
Os sindicatos logo protestaram contra as "perdas" que estaríamos infligindo aos
trabalhadores. Para demonstrá-las, tomavam o valor mais alto dos salários de cada
mês, que não correspondia ao dia efetivo de seu recebimento pelos trabalhadores,
mas ao da entrada em vigor do aumento, convertiam em URV estes "picos" e
comparavam com o que aconteceria com o valor das médias em URV.
Tautologicamente, "demonstravam" as perdas.
Deixavam de lado o principal, ou seja, que se a inflação atingisse, como chegou a
acontecer, 40% ao mês, um salário que hipoteticamente valia 100 cruzeiros reais no
dia 1° de determinado mês, quando fosse
197
efetivamente recebido pelo trabalhador, trinta dias depois, teria encolhido para 60
cruzeiros reais. Feita a conversão pelos "picos", estaríamos concedendo um
enorme aumento salarial, que inflacionaria os custos e poria por terra o esforço de
estabilizar. O desastroso aumento real decidido por ocasião do lançamento do
Cruzado fora relativamente pequeno em comparação com o que ocorreria se
cedêssemos às pressões para corrigir os salários pelo pico.
Esse raciocínio era formulado com clareza meridiana não somente pelos técnicos do
governo mas por vários economistas independentes. "Desta vez, existe a âncora do
bom senso", Mário Henrique Simonsen escreveu na revista Exame (16/3/1994).
Como demonstrou nesse e em outros artigos, ele talvez tenha sido o economista de
fora do governo que melhor entendeu e apoiou o plano.
Nem por isso as críticas deixaram de ser contundentes. O
Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos
(Dieese), órgão de pesquisas ligado aos sindicatos, publicou dados mostrando
as "perdas", usando naturalmente o critério acima criticado de comparar picos com
médias sem levar em conta o valor real dos salários no dia em que concretamente
eram pagos. Errou tanto que teve que se desdizer nos meses seguintes, quando os
trabalhadores perceberam que estavam ganhando com a URV.
Académicos continuaram a dar sustentação à tese das "perdas". Paul Singer, em
diversos artigos desde dezembro de 1993, previu recessão e outros efeitos
negativos a menos que o Congresso corrigisse o plano e aí, quem sabe, fosse
possível discutir as verdadeiras causas da inflação - para ele, como já vimos, o
conflito distributivo. O ideal seria negociá-lo ao redor de uma mesa, em uma série
de Câmaras Setoriais da produção.27
Maria da Conceição Tavares, embora advertindo que não podia
concordar tecnicamente com a proposta que logo veremos de criar um
"gatilho salarial", acabou pedindo-o para proteger os trabalhadores, posto que os
banqueiros, com o artigo 36, apenas deixariam de ganhar, enquanto "esse plano, se
der certo, jogará na pobreza uma grande quantidade de gente,
Nota: 27 "Estabilização e repartição da renda", Jornal da Tarde, 25/2/1994; "A transição
monetária", Jornal do Brasil, 11/3/1994; "O plano FHC e os credores", Jornal da
Tarde, 26/3/1994. Fim da nota.
198
porque bancos, exportadores e empresas, para se ajustarem, vão demitir".
Propunha também ajustar os preços por meio de uma negociação com as cadeias
produtivas, depois que Lula fosse eleito Presidente, como ela acreditava que
aconteceria.28 Note-se que todos os dados posteriores mostraram diminuição da
proporção das pessoas que viviam abaixo da linha de pobreza. Demissões
aconteceram, mas muito posteriormente, ligadas às crises internacionais e à política
cambial, que em 1994 ainda não fora definida.
Com esse tipo de argumentação "técnica", não é de estranhar que os sindicatos, o
PT e os políticos que apostavam em outra saída política tivessem feito o que
fizeram durante a campanha eleitoral, mantendo sob intenso fogo de críticas o
Plano Real.
De fato, mal a MP que criava a URV aportou na Câmara, o deputado petista Paulo
Paim voltou à carga. Propôs que na data-base de cada categoria profissional
houvesse a reposição das "perdas" salariais. Isso, diga-se em louvor do deputado,
apesar de ter sido um dos poucos de seu partido a considerar o plano bem-
intencionado, bem fundamentado. Acreditava que a sociedade aderiria a ele se se
fizesse a reposição proposta e não via razão para o movimento sindical convocar
uma "greve geral" antes da hora, como vinha sendo feito. Numa reunião no
Ministério da Fazenda para explicar a URV a alguns membros da bancada do PT, o
deputado Paim disse duas vezes que não estava entendendo:
- Então, trata-se do salário móvel? - indagou.
Era uma velha reivindicação do movimento trabalhista. De certa forma, era isso
mesmo. Não adiantava, no entanto, explicar aos líderes sindicais ou aos políticos da
oposição: a questão era derrotar o governo e os potenciais adversários na sucessão
presidencial.
Lançada a semente da reposição das perdas, floresceram as idéias salvadoras. A
comissão especial do Congresso que analisaria a MP, presidida pelo senador
Odacir Soares (PFL- RO), tendo como relator o deputado Gonzaga Motta (PMDB-
CE), dedicou-se a estudar iniciativas para "remediar o mal". Logo surgiu a proposta
do infalível "gatilho"
salarial, quer dizer, um mecanismo para corrigir automaticamente o valor dos
salários toda vez que a inflação atingisse certa percentagem mensal ou por que
período fosse.
Nota: 28 O Estado de São Paulo, 14/3/1994.
199
As propostas sobre que percentagem requeria o disparo do gatilho e em
que intervalos de tempo variavam ao gosto de cada parlamentar. O que não variava
era a convicção de que a inflação voltaria. E nós no pólo oposto, a querer apagar a
memória inflacionária e, portanto, as medidas que a reavivavam. Até o PFL
propunha mecanismos de correção salarial.29
Os líderes sindicais ameaçavam com a "greve geral", antiga palavra de ordem que,
embora jamais se cumprisse na plenitude, assustava meio mundo. Sindicatos
ligados à CUT e à Força Sindical chegaram a promover greves que, mesmo não
sendo gerais, alcançaram proporções significativas. Entretanto, a maioria da
população, trabalhadores inclusive, aguardou os resultados da URV antes de perder
a esperança em alguma melhoria na "carestia", como a inflação era
chamada popularmente.
Diante desse quadro, minha posição foi firme: "Pela primeira vez os trabalhadores
farão greve para ganhar menos, porque o plano beneficia os assalariados" disse.30
De fato, como o valor da URV expresso em cruzeiros reais variava diariamente e se
realizava a conversão aos salários pelo valor da URV no dia do pagamento, havia
uma espécie de correção diária e automática dos salários de todo mundo,
empregados em atividade ou aposentados. O argumento era forte.
No Congresso, entretanto, a desinformação e a demagogia tornavam-se difíceis de
vencer. Optamos por não votar o relatório sobre a URV na comissão especial. O
relator se havia comprometido com setores sindicais a incluir gatilhos, datas-base e
quejandos, que alterariam completamente o programa.
Nota: 29 Folha de SÃO Paulo, 2/3/1994.
30 Ibidem. Ver também O Globo, 5/3/1994, quanto às reações às tentativas do
Congresso de desvirtuar a URV: "Meu plano é consistente e, em certos pontos,
impopular. Se meu objetivo fosse eleitoral, com as condições que temos
poderíamos fazer um 'cruzadinho' que durasse um ano, mas isso nunca passou
pela minha cabeça." Na mesma reportagem há o relato de um discurso que proferi
na Secovi-SP (sindicato do setor imobiliário), que me pedia o reajuste dos contratos
imobiliários em menos de um ano.
Alegavam que havia uma "cultura do mercado imobiliário" Repliquei: "É preciso
então mudar a cultura do pessoal. Com a URV não vai ser preciso reajustar os
preços antes de um ano."
A linguagem era a mesma para lidar com sindicalistas, congressistas, ministros,
banqueiros ou empresários. Fim da nota.
200
O PMDB ajudou o governo, o relator faltou à reunião na
qual apresentaria seu parecer, e o PFL, àquela altura já comprometido com minha
candidatura, convenceu o presidente da comissão especial a não apreciar a
matéria. Assim passou o mês de março de 1994 e, à medida que a URV ia sendo
percebida por todos, trabalhadores à frente, como proveitosa, pois não acarretava
perdas e, em geral permitia ganhos, sua aceitação se tornou mais fácil.
Perdidos ficaram os líderes sindicais que se manifestaram contra o plano. Vicente
Paulo da Silva, o Vicentinho, presidente da CUT, e com ele o PT persistiram nas
críticas mesmo depois da nova moeda estar circulando e de os efeitos da inflação
terem começado a ceder. "Parece pesadelo, mas é real", ele escreveu.31 Paulo
Pereira da Silva, o Paulinho, da Força Sindical, deu meia-volta e alfinetou o PT: "Só
faz campanha contra o real quem sente o pesadelo de ver mais uma vez
suas chances de virar Presidente irem por água abaixo."32
Num último lance da negociação para conseguir a aprovação da MP da URV antes
do lançamento do real, Edmar Bacha, estimulado por mim, formulou uma regra que
assegurava a reposição automática da inflação na nova moeda desde 1° de julho de
1994 na primeira data-base de cada categoria de trabalhadores. A novidade,
embora tenha amaciado o caminho para a aprovação do plano, criou um resíduo de
indexação legal que viria a dificultar a mudança da política cambial em 1995.
A lei resultante da conversão da MP da URV foi finalmente sancionada no dia 27 de
maio de 1994.33
O triunfo do real e o papel de Ricupero
Com a votação da URV ainda inconclusa, exonerei-me no dia 2 de abril do Ministério
da Fazenda para ser candidato à Presidência da República.
Era o último dia do prazo previsto na Constituição para o afastamento dos
ocupantes de determinados cargos públicos que quisessem ser candidatos às
eleições de 3 de outubro. Voltei ao Senado e continuei apoiando
Nota: 31 Folha de São Paulo, 1/7/1994,
32 "É preciso uma política salarial", Folha de São Paulo, 14/7/1994.
33 O Congresso converteu a MP da URV na Lei n° 8.880, de 27/5/1994. Fim
da nota.
201
as lutas do governo Itamar para consolidar o plano. Dias antes, a bancada do PSDB
e sua Executiva, com Pimenta da Veiga e Tasso Jereissati à frente, conforme já
narrei, me haviam procurado no Ministério para que eu declarasse formalmente
aceitar a candidatura.
Em seguida, a imprensa queria saber quem me sucederia na Fazenda.
Respondi, naturalmente, que essa questão competia ao Presidente. Diante da
insistência sobre nomes de eventuais sucessores, disse:
- Há diversos modelos possíveis para o Presidente se fixar em um nome.
Se prevalecer a escolha de um técnico, temos vários - e arrolei os nomes de meus
principais colaboradores.
Se um político, sugeri Tasso ou Serra. Se uma figura de indiscutível autoridade
moral e intelectual, indiquei Clóvis Carvalho ou Rubens Ricupero, diplomata com
excelentes conhecimentos de economia, que fora embaixador nos EUA em 1991 e
1992 e àquela altura estava à frente do Ministério do Meio Ambiente.
O Presidente Itamar Franco, por decisão própria, previamente tomada pelo que
entendi, escolheu o embaixador Ricupero para me suceder.Tendo a seu lado José
de Castro,34 Itamar me informou da decisão e das razões para a escolha. Ele
acreditava, e com muito acerto, que o embaixador Ricupero dispunha de estatura
intelectual e moral para dialogar com o país. Ricupero manteve toda a equipe
econômica e se transformou em um apóstolo do real. Mostrou-se mais didático do
que eu poderia ter sido, ganhou a confiança da sociedade e teve papel decisivo na
implantação do programa. Até que uma armadilha do acaso o impediu de continuar.
Nota: 34 José de Castro foi consultor-geral da República (função que seria absorvida pela
Advocacia-Geral da União) e advogado-geral da União do governo Itamar. Pertencia
ao chamado "grupo íntimo" do Presidente.
Sempre colaborou para fortalecer minha posição e minhas propostas económicas.
Entreguei, por exemplo, ao Presidente a minuta da MP da URV numa sexta-feira
(anterior àquela da discussão no Palácio) junto com algumas propostas de reformas
constitucionais que complementariam o plano. Na segunda-feira seguinte o
Presidente me chamou e, tendo ao lado José de Castro, na sala íntima (saleta entre
o gabinete presidencial e um salão de recepções), disse-me que lera os
papéis superficialmente, mas confiava em mim. Assinaria também as
emendas constitucionais, algumas das quais, eu o advertira, poderiam
ser-lhe incómodas. Certamente, se o Presidente disse que as leu superficialmente foi
porque José de Castro, pessoa de sua estrita confiança, as havia examinado
atentamente e com elas concordara. Fim da nota.
202
Colhido pela fadiga e na informalidade de uma conversa privada com o jornalista Carlos
Monforte, que o entrevistaria em seguida para a TV Globo na sede da sucursal de
Brasília da emissora, ele expressou com palavras pouco felizes o grau de empenho
que tinha para ajudar o Plano Real e minha eleição. Sem que nenhum dos dois se
desse conta, a fala do ministro foi captada pelo sistema da emissora e transmitida a
milhares de lares servidos por antenas parabólicas. Surpreendido pela
divulgação espalhafatosa dessa conversa, teve que se exonerar duas semanas
antes das eleições presidenciais. O Brasil deve a Rubens Ricupero o ter
dado continuidade a uma política de difícil aceitação, para cujo êxito contribuíram em
grande grau sua seriedade, seu empenho e sua capacidade de convencimento.
Até que essa vitória fosse mais perceptível, entretanto, as
escaramuças continuaram. Quando deixei o Ministério, a equipe económica
hesitava sobre o melhor momento para transformar a URV em real. Mesmo fora
do governo, várias vezes me vi obrigado a interferir junto ao Presidente para que se
marcasse a data definitiva. Eu achava mais oportuno efetuar a troca das moedas no
dia 1° de junho. A cada trinta dias, conforme a Constituição permitia na época, havia
que reeditar as MPs ainda não aprovadas pelo Congresso. Terminamos com uma
solução de compromisso. A MP do dia 1° de junho marcaria a data de 1° de julho de
1994 para a troca das moedas.
Não obstante, as dúvidas sobre o lançamento do real continuaram. Algumas delas
tinham fundamento operacional, outras, nem tanto. Prosseguia, dentro do governo,
o embate entre os que acreditavam no programa estabilizador e os que queriam
"um outro modelo" para a economia. Na véspera do dia em que o Presidente
deveria assinar a MP estabelecendo a troca das moedas, e depois de uma estafante
discussão entre os membros de sua equipe e o ministro da Justiça, Alexandre
Dupeyrat - este como representante da ala mais atrasada do governo, que se
pensava "de esquerda" -, o ministro Ricupero procurou o Presidente Itamar
para reclamar das impertinências e cobranças descabidas para modificar o texto da
medida. Graças à postura firme do ministro da Fazenda, o Presidente entendeu que
era inaceitável a interferência de última hora por pessoas despreparadas para
compreender as decisões daquele momento.
Pérsio Árida e André Lara, entre outros economistas, preferiam por motivos
operacionais que houvesse uma "fase longa" de transição entre a
203
URV e o real. Seria melhor, ao ver deles, dar mais tempo para que os contratos
fossem progressiva e livremente reescritos na nova moeda, permitindo mais fôlego
à sociedade para a repactuação. O casulo poderia amadurecer um pouco mais
antes de virar borboleta. Não se tratava de opinião isolada da dupla. Chico Lopes,
por exemplo, também pensava dessa maneira. Eu não achava necessário muito
mais tempo, pois a velocidade com que as pessoas aderiram à URV foi maior do
que esperávamos. Além de tudo, havia indiscutivelmente a questão eleitoral. Nas
primeiras sondagens de opinião após ter deixado o governo (e ainda em fins
de maio) eu não ultrapassava muito os 15% das preferências, e Lula alcançava
40%. Sem que os efeitos práticos do fim da inflação fossem sentidos no bolso dos
assalariados e sem o efeito simbólico da nova moeda, tornar-se-ia verdadeira a
lengalenga de que o real era um "estelionato eleitoral" (como dizia, entre outros, o
deputado Delfim Netto, sempre pronto a disparar uma frase de efeito para encobrir
os malabarismos de seu raciocínio ou as inverdades que quer passar adiante como
válidas).
No meio tempo, mais problemas: o Presidente desejava dar continuidade à decisão
constitucional de incluir todos os funcionários em um estatuto jurídico único. E o faria
em termos tais que os servidores previamente contratados pelas normas do setor
privado, submetidos à CLT (chamados por isso "celetistas"), passariam a gozar de
todas as vantagens do funcionalismo, inclusive aposentadoria integral. Da mesma
maneira, o Presidente gostaria de ver melhorados os salários de todos, unificando-
os e dando-lhes aumentos. Essa discussão perpassou o período inteiro da gestão
Itamar, mesmo quando Ciro Gomes, deixando o governo do Ceará, por quatro
meses - até o final do mandato de Itamar - substituiu o ministro Ricupero. Muitas
vezes tive que mediar entre a pressão dos técnicos, temerosos das conseqüências
dos incrementos salariais sobre a situação fiscal (como de fato ocorreu), e a
vontade presidencial de atender os funcionários.
Estranhos curtos-circuitos
Apesar de tudo, implantamos o real e venci as eleições, no primeiro turno, com 54%
dos votos - 35,9 milhões de votos, entre 67,6 milhões de votos válidos. Como foi
possível isso, em circunstâncias tão desfavoráveis?
204
Os candidatos dos demais partidos opuseram-se ao Plano Real durante todo o
tempo, desde a discussão no Congresso até a campanha eleitoral, apregoando que
ele traria conseqüências nefastas ao país. A recessão era inevitável, diziam, e a
volta da inflação também, além das catastróficas perdas salariais. Os candidatos,
inclusive o principal oponente, Lula, guiados por seus economistas, batiam com
insistência nessa tecla, que se chocava crescentemente com a percepção popular.
A opinião técnica se dividia, embora àquela altura - durante a campanha eleitoral - a
maioria já se alinhasse a favor do plano, Roberto Campos, que fora relutante em
aceitá-lo, temia que uma derrota nossa no Congresso desencadeasse uma reação
heterodoxa. "Se o Fernando Henrique sair, haverá choque. Só não tivemos neste
governo por causa dele."35 E passou a apoiar o programa.
Assim, só o contexto explica como foi possível estabilizar a economia.
Paradoxalmente, porque "faltavam condições políticas", um pequeno grupo de
pessoas com visão política, a partir do Presidente, somado a outro pequeno grupo
de técnicos, empenhados e convictos da necessidade de produzir uma mudança
significativa nos rumos do país, teve a chance de levar adiante a transformação que,
ao contrário do que diziam as pitonisas do fracasso, perdurou. A desorganização
das forças políticas tradicionais, desde o impeachment do Presidente Collor até a
CPI dos Anões do Orçamento, facilitou a ação decidida do nosso
exército Brancaleone e o Plano Real passou no Congresso. Fossem normais
as condições, os beneficiários da inflação ter-se-iam oposto às transformações com
maior energia, defendendo seus interesses.
Contou também para o êxito o apoio do PSDB e o faro político de outros partidos
para se darem conta de que havia algo de novo no ar. E, sobretudo, contou o
cansaço da sociedade, do povo, com a "carestia".
Isso levou à busca de um caminho de esperança. O apoio popular mantinha a
expectativa otimista de que seria possível melhorar o país, embora sem muita
clareza sobre os caminhos para tanto. Este sentimento difuso tornou-se apoio mais
concreto pela ação da mídia e do empresariado, que jogaram papel importante na
aceitação do programa. Quase por saturação, a velha ordem de coisas deu
passagem a uma situação nova.
Nota: 35 O Globo, 5/2/1994.
205
A verdade é que o clima na mídia virara e a opinião pública tornara-se favorável.
Não quero cansar o leitor com detalhes adicionais. A lista de editoriais e de
articulistas que sustentaram teses a favor do novo programa econômico é grande.
Bem como seria valiosa, ao lado do apoio político, a colaboração de líderes
empresariais e decisiva, em textos na imprensa, a solidariedade de políticos de
peso do PSDB.36
Assim operam os mecanismos de mudança nas sociedades contemporâneas.
Nelas a luta entre interesses de classe e de grupos contrapostos permanece como
pano de fundo. Mas tais grupos são extremamente fragmentados e constituem
coalizões eventuais e mutáveis, com pouca clareza quanto a objetivos globais, num
caleidoscópio que se rearranja na medida em que mudam as percepções sobre os
interesses gerais e os caminhos para servi-los. O passado conta e pesa, mas a
visão de futuro é essencial para mover a sociedade, desprendendo-a, ainda
que parcialmente, do passado. E cada vez mais esta visão de futuro requer um
"programa".
Nota: 36 Por exemplo, O Estado de São Paulo, bem como o Jornal da Tarde, apoiaram os
esforços estabilizadores desde o início. Ver o editorial "Programa para o futuro",
8/12/1993, do Estado, e "Instinto de conservação", do Jornal da Tarde, 8/12/1993.
Ver ainda, Jornal do Brasil, "Dilema fatal", de 8/12/1993, e O Globo, como já citado.
Também as revistas Veja e Exame, sobretudo esta última, eram favoráveis
ao programa. Os editoriais de Mário Henrique Simonsen em Exame e as matérias
da revista, inclusive de capa, deram suporte contínuo ao Plano FHC e, depois, ao
Real. A colunista Míriam Leitão viu desde o início perspectivas melhores para o
país. Ver, por exemplo, a coluna "Panorama Econômico" de O Globo, 23/5/1993.
Na área política os principais dirigentes do PSDB escreveram artigos de apoio. Ver
José Serra, "Mitos e problemas", Folha de São Paulo, 14/12/1993; Mário Covas, "Sem
magias e com transparência", Folha de São
Paulo, 11/12/1993; Tasso Jereissati, "O plano que pode unir", O Globo, 12/12/1993;
António Kandir, "Estabilização passo a passo", Folha de São
Paulo, 1/3/1994.
Empresários e suas associações, da mesma maneira, manifestaram-
se favoravelmente ao Plano Real.
Alguns articulistas também apoiaram o programa desde o início. Outros mudaram de
opinião à medida que viam os resultados. Ver, a título de exemplo, Luiz Weis, "O
pacote-que-não-é", O Estado de São Paulo, 9/12/1993, e Carlos Alberto Sardenberg,
"O êxito do plano depende da candidatura FHC", Folha de São Paulo, 12/12/1993.
Outros, mesmo sendo críticos de alguns aspectos, mantiveram posição equilibrada.
Ver António Barros de Castro, "Armadilhas da estabilização", e Luiz Gonzaga
Belluzo, "Câmbio fixo e superávit fiscal", ambos na Folha de São Paulo, 30/4/1994.
Fim da nota.
206
Programa que se fundamenta em valores, como a democracia, e por isso mesmo não deve
levar os que dirigem o país a afastar-se da missão republicana de busca do
equilíbrio entre os interesses setoriais em choque para tornálos compatíveis com os
do povo e do país. Cada vez mais, porém, os dirigentes precisam apresentar um
caminho prático, com base técnica, sem o qual a sociedade não se mobiliza ou,
quando se mobiliza e não encontra os resultados esperados, dá meia-volta, como
aconteceu com o Plano Collor. Nada disso ocorre sem a formação de uma opinião
pública que, nos dias de hoje, é inseparável da opinião publicada, isto é, dos meios
de comunicação de massa.
Em 1986, muito antes de ser Presidente, ao passar a presidência da Associação
Internacional de Sociologia, em Nova Delhi, na índia, proferi uma conferência sobre
as teorias de mudança social. Inspirado no que vira em 1968 em Nanterre, na
França, quando da chamada Revolução de Maio, disse que as mudanças em
sociedades complexas podem dar-se pelo que chamei de "curtos-circuitos". Um
gesto, uma greve, um choque emocional, uma proposta galvanizadora são capazes
de despertar reações em cadeia que levam a transformações muito mais profundas
do que havia sido inicialmente imaginado ou desejado. Dependendo, naturalmente,
da história das reivindicações, dos conflitos de classe, dos choques ideológicos, das
frustrações preexistentes etc.
Foi o que ocorreu com o Plano Real. A sociedade brasileira, cansada da inflação e
de seus efeitos nefastos, viu nele uma saída. Aderiu a ele contra a opinião de
muitas pessoas e contra muitos interesses. Em certos momentos, contra a maioria
dos "bem-pensantes" e dos pretensos donos das massas populares.
O "pragmatismo responsável", no entanto, não explica a mudança. Sem
uma liderança capaz de apresentar um caminho aceito como válido pela maioria
não acontecem transformações significativas em uma sociedade democrática. E
essa aceitação não se dá às cegas. Sem uma pedagogia democrática, sem que
haja o convencimento, quer dizer, o esforço para "vencer juntos", a ordem
tradicional prevalece sobre os ímpetos modernizadores e mudancistas. Tudo fica
mais fácil quando há símbolos que ajudam a visualizar a mudança.
O real, como moeda física e como expressão de um valor, de um caminho para o
Brasil, teve uma importância enorme. Darcy Ribeiro,
207
na época senador (PDT-RJ), com seu instinto de antropólogo, percebeu a força
simbólica da moeda. Ressaltou que a moeda, junto com o idioma e a bandeira, tem
uma função aglutinadora fundamental. Daí por que a dolarização, ainda que
pudesse funcionar como âncora para a estabilização, implicaria perda simbólica de
soberania, além das limitações efetivas que acarretaria na gestão das políticas
econômicas.
No dia 11 de julho de 1994, candidato, eu participava de um comício em Santa Maria
da Vitória, no sertão da Bahia. Naquele dia percebi que ganharia as eleições. Na
praça, o povo, com notas de 1 real nas mãos, pedia que eu as autografasse. Alguns
gritavam, entusiasmados, sem prever as conseqüências disso, que o real valia mais
do que o dólar, moeda na qual nunca haviam tocado. Naquele instante, o senhor
político da Bahia, que estava a meu lado, era menor do que eu, um
professor paulista três meses antes praticamente desconhecido naqueles sertões.
O real resgatava a esperança e a confiança, não só na moeda e na estabilização
econômica, mas no país. Meu adversário eleitoral, Lula, era um símbolo em si. Um
líder operário, migrante e pobre de origem, reivindicando o mando supremo no
Brasil. Não precisava de símbolos. Eu, sem que o tivesse feito para isso, criei um
símbolo e venci. E tive como desafio manter viva a esperança.
A campanha eleitoral: epopéia e aprendizado
Para enfrentar esse desafio de manter viva a esperança, tão logo se formalizou a
aliança com o PFL e com o PTB, mergulhei de corpo e alma na campanha eleitoral -
um trabalho física e psicologicamente estafante além do imaginável por quem não
conhece a política de perto. O candidato se desdobra, envolvendo-se em dois
planos. O primeiro é o da relação com o público, o que inclui os comícios, as
caminhadas, as carreatas, os debates, as entrevistas e os programas de rádio e TV
do horário eleitoral. Outro é o da articulação política com seu partido, com os
demais da aliança e, no meu caso em 1994, com o governo. A relação com o
público envolve o aspecto especificamente cênico, e não raro épico, que
representam os comícios gigantes, os deslocamentos de comitivas, a enorme
infraestrutura necessária para mover a máquina da candidatura.
208
Meu procedimento, desde o começo, foi o de me entregar por inteiro à campanha
propriamente dita e à busca do apoio político, do convencimento e do voto do
eleitorado. Embora participasse em algum grau dos bastidores de tudo, e fosse
informado a respeito, não me envolvi nem me preocupei diretamente com mais
nada que não a campanha - nem com o comitê financeiro, nem em discutir a
programação a ser cumprida, muito menos com detalhes como o esquema de
transporte e hospedagem. Sequer da roupa que usava eu cuidava. Periodicamente
o comando ou comitê da campanha se reunia com o candidato, estabeleciam-se as
premissas e prioridades básicas, e depois cada área tocava o seu barco. Se não for
assim, o candidato se perde - e perde a eleição. (No nosso caso, tínhamos um
comitê composto por Sérgio Motta, coordenador-geral, Pimenta da Veiga, como
presidente do PSDB, o deputado Saulo Queiroz, MT, secretário-geral do PFL, e
Andrade Vieira, como presidente do PTB.)
Torna-se vital concentrar-se no que é importante. Preparar o programa eleitoral na
TV é importante, mais que isso, decisivo. Estar descansado para ir a um comício é
importante. As articulações vão sendo crescentemente menos importantes,
perdendo espaço para o trato com o público, que por sua vez abranda as
dificuldades políticas.
O candidato precisa ter muito cuidado ao lidar com a mídia. Tem que bater o martelo
final sobre os comícios, porque, aqui e ali, há o risco de um deles ser um fracasso, e
em tal caso a prudência indica o cancelamento como a melhor solução. Toda
atenção à distribuição do tempo é pouca. E, como todo mundo dá palpite o tempo
inteiro, o candidato precisa saber resistir, filtrar, até esquecer. Se for atrás dos
palpites, também se perde.
Selecionei ao máximo os conselheiros. Sobre TV, ponto-chave de tudo, e rádio,
seguia as recomendações dos publicitários Nizan Guanaes e Geraldo Walter, o
"Geraldão" - que infelizmente viria a falecer em 1998 -, e de alguns de seus
colaboradores. Boas dicas recebia também do jornalista Gilnei Rampazzo, sócio da
produtora encarregada dos programas. Sobre o conteúdo do que ia ao ar, eram
fundamentais os não-marqueteiros: Sérgio Motta, sempre muito próximo a mim, e
Paulo Renato, Vilmar Faria e Eduardo Graeff, que haviam elaborado o
tuturo programa de governo. No meio do torvelinho da campanha, as reuniões
com esse time se tornavam interregnos agradáveis e divertidos, sempre em torno
de uma
209
mesa farta, montada na própria sede da produtora, no bairro paulistano da Bela
Vista. Sérgio, Geraldão e Nizan eram comilões extraordinários, que eu procurava,
com alguma cautela, acompanhar. Participava também Paulo César Bernardes, o
"PC", autor de comerciais e jingles de primeira qualidade, por sinal um excelente
imitador de Lula.
Como sempre, ouvia Ana Tavares. Além das qualidades já referidas,
sua espontaneidade e franqueza às vezes brutais lhe permitiam dizer a certas
pessoas aquilo que eu não poderia. E também dava ouvidos à publicitária Bya
Aidar, encarregada da complexa armação dos shows da campanha, que abrangia
desde itens como a escolha de músicos e cantores, da trilha sonora, do som e da
iluminação até a forma segura de o candidato chegar ao palanque e, depois, sair
dele.
A dedicação à TV, como disse, é crucial. A TV tem uma linguagem própria, e cabe
ao candidato o cuidado de não deixar que o pessoal de marketing político o
transforme em algo que ele não é. Na TV, há uma série de detalhes a serem
levados em conta. Por exemplo: o teleprompter, instrumento importante que, após
algum treino, permite ao candidato falar com naturalidade a partir de um texto
escrito, pode também ser um complicador. Quem escreve os textos não é o
candidato, por absoluta falta de tempo. As palavras utilizadas não são
necessariamente as dele, a respiração que elas impõem não é a dele, nem as
pausas e o corte das frases. Às vezes o candidato tem alguma dificuldade de
pronunciar uma ou outra palavra e, portanto, evita utilizá-las - só que de repente,
na hora da gravação, lá estão elas. É necessário, pois, dedicar algum tempo a
rever, pessoalmente, os textos antes de gravá-los. E isso requer que o candidato
esteja minimamente descansado. Como sou calmo e brincalhão, me dava bem com
todos da equipe e a feitura dos programas de TV, como os de rádio, acabava não
apenas não pesando, mas me dando prazer.
Numa campanha, porém, o inesperado sempre está à espreita, e o candidato deve
preparar seu espírito para isso.
Um bom exemplo é o que ocorreu comigo no Rio Grande do Sul. No estado,
o deputado e àquela altura ex-ministro da Previdência António Britto encarava um
problema delicado. Ele finalmente saíra candidato ao governo gaúcho pelo PMDB,
cujo aspirante à Presidência era o ex-governador paulista Orestes Quércia. Britto
nunca aceitou Quércia, sempre esteve comigo e" depois de uma complexa
articulação, seu apoio público a mim
210
iria se materializar no dia 4 de setembro, com a inauguração de um comité
conjunto dos dois candidatos em Porto Alegre. Não poderia me esquecer da
ocasião porque coincidiu com a crise que levou à saída do governo do ministro
Rubens Ricupero.
Desembarquei em Porto Alegre e, já à noite, Britto e eu fomos visitar em casa o
senador Pedro Simon, que tinha passado por uma cirurgia. Ali nos inteiramos do
episódio Ricupero. No dia seguinte de manhã seria a inauguração do comitê e o
anúncio do apoio de Britto. Difícil haver timing mais complicado. Mas fomos em
frente, inauguramos o comitê, e precisei fazer das tripas coração para enfrentar o
pesado questionamento da imprensa, uma vez que Ricupero havia dito, para
resumir em poucas palavras, que ele e o governo fariam qualquer coisa para eu
ganhar.
Diante de tal quadro, desde a noite anterior, naturalmente, minha cabeça estava em
Brasília. Preocupava-me muito com a continuidade do Plano Real, tão bem
conduzido até ali por Ricupero. Do hotel simples em que me hospedei, troquei
inúmeros telefonemas com o Presidente Itamar.
Indiquei nomes para substituir o ministro, como os de Bacha e Malan, cuja
competência ele conhecia. Mas Itamar já se decidira por outro: o de Ciro Gomes.
Admirava o Canal do Trabalhador, obra de emergência com a qual o governador do
Ceará, em poucos meses, pretendia trazer água de grandes açudes do interior para
abastecer Fortaleza, e gostava de Ciro.
Com um número maior ou menor de sobressaltos, como a súbita queda de Ricupero
naquela ocasião, e apesar da imensa importância da TV, não há campanha sem
comício. Quando me lancei à Presidência, já me candidatara três vezes - ao
Senado, em 1978, à Prefeitura de São Paulo, em 1985, e novamente ao Senado,
em 1986. Tinha, portanto, certa experiência com comícios, embora nunca tivesse
me sentido inteiramente à vontade neles.
O caminho, então, seria tentar aprender e me aperfeiçoar. Assim, procurava prestar
atenção aos oradores que me antecediam. Poucos, muito poucos são aqueles
capazes de "segurar" a massa. A grande maioria dos oradores políticos é
monocórdia, não captura a atenção da multidão, não consegue sintonizar-se com
ela. Procurei aprender com os melhores.
António Carlos Magalhães, por exemplo, era um peixe n'água nos comícios.
Impressionante: ele fica à vontade com o povo, se eletriza, e como que mergulhava,
fisicamente, na multidão antes ou depois de subir ao palanque. Aprendi muito com
Tasso Jereissati - prestes a obter seu
211
segundo mandato após ter deixado o governo do Ceará quatro anos antes
- e sua empatia com o público. Também com Marcelo Alencar, ex-
Senador, ex-prefeito do Rio e que venceria as eleições para governador
do estado naquele ano pelo PSDB. Tinham o que chamo de sentimento de
povo. Enriqueceu-me ouvir e ver os políticos com sentimento de povo,
tentando entender como e por que tinham "liga" com o povo.
Era sempre interessante observar. O estilo dos oradores de comício varia muito pelo
Brasil afora. Uns são mais discursivos, conversam com a multidão, e ela
acompanha; alguns se exaltam, chegam a gritar e o povo acompanha; outros que
fazem a mesma coisa encaram o silêncio ou o desinteresse do público. Nem sempre
o bom orador de auditório é bom no comício em praça pública, e vice-versa. Com
freqüência, nenhum deles funciona na TV. Uma das dificuldades dos comícios é que
suas imagens serão usadas na TV. Duas linguagens distintas aí se cruzam, e
precisam compatibilizar-se: a audiência da TV não gosta da gritaria do
comício enquanto, por sua vez, o público do comício precisa, justamente, de calor,
é complicado dosar tudo isso. Tive que aprender a trocar constantemente
de pele -
porque saía de um comício, com todo o tom emocional que ele envolve, para uma
entrevista no rádio, onde precisava ser calmo e didático; logo adiante, deixava uma
reunião política intrincada e em seguida já me via num estúdio de TV para
gravar programas para o horário eleitoral, e assim por diante.
Em relação especificamente aos comícios, ao longo da campanha, a experiência, a
observação e os conselhos dos companheiros me ajudaram, até que passei a me
sentir bem com a rotina de falar a multidões distintas entre si a cada momento.
Lembro-me de certo dia em Canudos, na Bahia em que, por sinal, nada tinha a ver
com a Canudos da minha imaginação, uma vez que a cidade do Conselheiro acabou
inundada por uma represa, meio-dia, praça principal lotada. Falaram ao povo
Luís Eduardo, Paulo Souto, vice-governador de ACM, ex-secretário estadual
e candidato a governador, e o próprio ACM - e eu prestando atenção. Aí chegou
minha vez. Falei à multidão. Terminado o comício, ACM, com sua franqueza sem
cerimónia, me disse:
- Ah, o senhor está melhorando....
O candidato aprende também em outros aspectos, à medida que transcorre
a campanha. Percebe, por exemplo, que uma coisa é um comício no
212
interior de São Paulo, outra, no sertão da Bahia ou, mais diferente ainda, na
Amazónia, Em São Paulo o usual são as carreatas, não raro mais importantes que
os comícios - a longa fila de carros embandeirados, os alto-falantes ribombando, as
pessoas nas ruas aplaudindo, agitando cartazes, saudando o candidato e sendo
saudadas por ele. Já no interior da Bahia, da Paraíba ou de Pernambuco,
não existe campanha sem a massa na praça. E é claro que acontecem equívocos e
tropeços, que também nos ensinam. Certa ocasião, começamos uma carreata no
interior de Santa Catarina tarde demais - caía a noite, a temperatura baixou muito,
não havia quase ninguém nas ruas.
Viver a campanha, os deslocamentos, as carreatas, os encontros com chefes
políticos locais, os comícios é que me levou a dizer que campanha eleitoral, no
Brasil, é uma troca de energia física. As pessoas querem pegar no candidato,
abraçá-lo, até beijá-lo, e o candidato tem que se deixar abraçar, e abraçar também.
As pessoas se comportam desse jeito porque de alguma forma precisam, e
esse comportamento não tem a mais remota e longínqua alusão a erotismo, é outra
coisa, é algo profundo. Nosso país é assim. E o público claramente se frustra se o
candidato, por vontade própria ou não, permanece distante. Uma vez eu estava no
interior de Pernambuco, num lugarejo bem próximo à divisa com Alagoas para um
comício, e um agente da Polícia Federal, parte do esquema designado para a
proteção dos candidatos, me disse:
- Hoje ninguém chega perto do senhor aqui.
A PF tinha prendido um homem que ameaçara atirar em mim. Não houve nada de
grave no episódio, mas naquele dia os agentes me cercaram, deixando irritados
todos os políticos e militantes locais em cima e em volta do palanque porque, como
sempre, eles queriam chegar perto.
Quando o candidato acerta o ponto no contato com o público, acaba ele próprio se
enchendo de entusiasmo e vitalidade, é aplaudido por onde passa. É porque
provocou uma reação, uma imantação - e, se não provocar, a candidatura não
decola. Ou o candidato produz eletricidade no ar, ou perde a eleição,
Os comícios, porém, representam também um constante teste de tolerância para o
candidato. Em meu caso, havia sempre que se levar em conta que o PT e seus
aliados constituíam um adversário aguerrido. Podíamos estar certos de que, a certa
altura do comício, haveria provocação.
213
E o candidato não pode se abalar com provocação. No começo, admito que não era
fácil, sobretudo para um professor universitário, habituado a ser ouvido: volta e
meia, enquanto discursava, grupos gritavam ofensas.
Acabei me acostumando.
A enorme diversidade de auditórios é outro desafio. Durante uma visita a Mato
Grosso, o governador Jaime Campos (PFL) e seu irmão, o senador Júlio - um
político divertidíssimo -, foram me pegar no hotel em Cuiabá para o primeiro
compromisso: visitar uma igreja pentecostal. Tratava-se de um galpão gigantesco,
com vários pastores oficiando uma cerimónia para duas, três mil pessoas, que a
cada momento proclamavam "Aleluia!", "Aleluia!" Os pastores deram a palavra para
Júlio, e o que vi a partir daquele momento foi uma verdadeira pregação. Quando me
tocou falar, um tanto atordoado, acabei inserindo num discurso sobre o Plano
Real referências a Deus mas também a Max Weber, o qual, analisando a
ética calvinista, mostra que a acumulação de riquezas pode ser vista como
um chamado do Senhor a seus eleitos. Toda a mídia nacional estava
lá representada, e fiquei temeroso do que seria publicado.
À saída da igreja, com Júlio à frente, e sempre com os louvores mútuos de "Aleluia!"
entre o público e os políticos - acabei também aderindo -, percebia que Júlio se
detinha diante de um e outro, como se abençoasse: "Aleluia, irmão! Aleluia, irmão!"
Ao entrarmos no carro, expus a Jaime minha surpresa:
- Eu não sabia que seu irmão era tão ligado à Igreja Pentecostal. O governador
respondeu:
- Ih, o senhor não viu nada, ainda. Precisava ver o Júlio na umbanda,
ele é ótimo.
São características do Brasil. Político canta em igreja evangélica, toma passe em
terreiro de umbanda e se ajoelha em igreja católica. Será demagogia, ou farsa?
Muitas vezes, claro que sim. Mas é difícil entender o Brasil quando a pessoa se
agarra apenas ao estereótipo. Há ocasiões, e como tal considero o ocorrido em
Cuiabá, em que tais gestos acabam contendo um sinal de respeito. De algum
maneira o político está expressando para aquelas pessoas que tem empatia com
elas, que vai respeitá-las. É como se procurasse entrar no comprimento de onda
delas.
É um gesto, e política também é gesto.
214
O aprendizado propiciado pela corrida presidencial abrange ainda aquilo que Sérgio
Motta chamava "fazer cara de paisagem" ante uma série de situações ocorridas nas
próprias hostes do candidato, principalmente devido a pendengas regionais. São
seus partidários que brigam entre si para ver quem fala primeiro e quem fala depois
nos comícios, ou sobre se determinada figura vai ou não subir no palanque, ou ainda
se o candidato visita a casa de um ou de outro, antes ou depois do comício. Isso
é outra dificuldade brasileira: há um candidato à Presidência apoiado por diversos
partidos, mas em vários estados estão em curso brigas ferozes entre candidatos
locais desses partidos. O candidato à Presidência, diante disso, manda emissários
falarem com uma e outra partes antes da viagem ao estado, efetua acordos,
combina ir ao comício de um candidato de dia, e ao de outro à noite. Se o comício
diurno é menos importante, há que compensar realizando determinada visita, ou
participando de um jantar na casa de algum líder local. É tudo assim. Às vezes, é
melhor não ir a certos estados onde seus apoiadores, adversários entre si, parecem
querer se matar. O candidato tem sempre que fingir que não está acontecendo
nada, nunca deve se envolver, precisa saber pairar acima desses arrufos. São
problema dos outros.
Outra questão que se dá no interior da campanha é a permanente disputa por
espaço junto ao candidato, a chamada "hierarquia da bicada". As pessoas
imaginam que quanto mais perto estão dele e quanto mais influentes se tornem na
campanha, mais garantido será seu futuro. Aí começam as cotoveladas, as rusgas
sobre quem tem acesso ou não tem acesso, a ciumeira. Manter-se à parte é
fundamental, inclusive pelo fato de, se e quando a eleição for ganha, a equipe de
campanha não se tornará a assessoria do Presidente. A transição de uma coisa
para a outra, aliás, é um momento traumático: o candidato não pode enganar grande
parte das pessoas que tanto o ajudaram, mas precisa despedir-se delas. Nessa
fase, ocorre outra transição igualmente nada simples, do informal (o candidato) para
o formal (o Presidente eleito). Requer que o candidato lance mão de suas reservas
de habilidade para agir, sempre tendo em mente que continuará a haver a
hierarquia da bicada.
Com esse retrato que procurei traçar, pode-se constatar que a campanha política é
um enorme gerador de tensão. O candidato se sente uma
215
corda de violino permanentemente esticada. Depois de três ou quatro meses, e a
despeito dos cuidados que possa tomar, está exausto.
Portanto, se não se aplicar com convicção e de bom grado àquela tarefa, se achar
que tudo é aborrecido, se desanimar diante das dificuldades, a empreitada se
transforma num grande sofrimento e muito dificilmente chegará a bom termo.
Entendi isso nos primeiros dias, em maio, quando cheguei a esmorecer:
os resultados das pesquisas de intenção de votos não melhoravam, e um jantar
com possíveis colaboradores financeiros da campanha, na casa de Andréa
Matarazzo em São Paulo, me decepcionara, ante a hesitação de empresários que,
convidados, cancelaram o comparecimento. Cheguei a mencionar a Ruth que me
passava pela cabeça a idéia de desistir. Não teria, claro, nenhum cabimento, e seria
uma irresponsabilidade que não faz meu jeito. Resolvi, em vez disso, encarar as
coisas de frente, aceitar plenamente os encargos e a dureza de ser candidato, e
tratei de esquecer tudo o mais: lia só por alto jornais e revistas, examinava
as pesquisas eleitorais apenas de vez em quando para não me atormentar, e me
entreguei de corpo e alma ao objetivo de convencer as pessoas, de ganhar suas
mentes e seus corações para nossas idéias e projetos. Deu certo.
Por tudo o que expus, considero que a campanha política, além de ser uma epopéia,
constitui também uma experiência humana extremamente enriquecedora e uma
espécie de obra de arte. Não é difícil concluir que, apesar dos sobressaltos, do
dispêndio de energia, das pressões, do cansaço, gostei imensamente da longa
jornada que me levaria ao Palácio do Planalto.
A vitória, a posse e o peso da História sobre mim
Veio, então, o dia da eleição. Pelo calor da campanha, pelas pesquisas de intenção
de voto, pela reação da mídia - por tudo -, eu sabia, racionalmente, que ela estava
ganha. No íntimo, porém, não tinha certeza da vitória já no primeiro turno, embora
os números e o ambiente do país a desenhassem com clareza. Ruth e eu votamos
em São Paulo e depois decidimos, procurando não permitir que a informação
vazasse à imprensa, nos refugiar do enorme rebuliço a nosso redor num
local agradável e tranqüilo: a Fazenda Bela Vista, em Pardinho, a 200 quilómetros
da capital,
216
pertencente ao empresário Jovelino Mineiro e a sua mulher, Maria do Carmo Sodré,
antigos amigos nossos. Viajamos até a cidade próxima de Botucatu, num dos
jatinhos que nos serviram durante a campanha. Do pequeno aeroporto local nos
levaram de carro à fazenda.
Nossos filhos, genros, nora e netos foram todos para lá. Paulo Henrique, o mais
velho, à época casado com Ana Lúcia Magalhães Pinto, e as filhas gémeas, Joana
e Helena; Luciana, grávida da filha Isabel, mais o marido, Getúlio Vaz; e Beatriz, a
Bia, com o então seu marido, David Zylberztajn, e os filhos Júlia e Pedro. Apenas
nós, e os anfitriões com o filho, Bento, assistimos num grande aparelho de TV aos
resultados da apuração. Não tardou para minha dúvida íntima se dissipar, e
ficou claro que, sim, vencia no primeiro turno.
A partir daí, passamos um curto período agradabilíssimo e alegre, comendo bem,
conversando, descansando e desfrutando da companhia da família. Carmo e
Jovelino transformaram a terra vazia num belo empreendimento, um centro de
excelência para a melhoria genética de touros da raça Brangus. A fazenda faz jus
ao nome: situada num platô, da sede - inclusive da piscina, onde dei alguns
mergulhos - avista-se um grande vale e cinco ou seis cidades, entre elas Botucatu e
Pardinho.
Dois dias depois, a Globo descobriu que estávamos lá. Começou uma revoada de
helicópteros da imprensa, com muita movimentação, e decidimos regressar a São
Paulo.
Imediatamente iniciei as conversas sobre a formação do governo, no apartamento
em que então morava, na rua Maranhão. Na calçada do prédio, postava-se um
permanente plantão de jornalistas. Veículos da mídia e toda aquela tralha
tecnológica das emissoras de TV atravancavam a rua.
Acabara de vez minha paz. Mas o ritmo da campanha me acostumara a isso, que é
parte do jogo e que o político deve encarar com tolerância e equilíbrio.
O PSDB alugou uma casa no Lago Sul, em Brasília, para que eu
pudesse permanecer na capital durante esse período, no qual naturalmente
também seriam freqüentes os contatos com o governo Itamar. Ruth e eu
nos transferimos para lá. O Presidente Itamar, que estava morando havia algum
tempo no Palácio do Jaburu - residência oficial do Vice-Presidente da República -,
cedeu-me o Alvorada para despachar e realizar encontros.
Comecei a usar a biblioteca do palácio como local para discutir a
217
montagem de minha equipe. Às vezes, almoçava ali mesmo. Nessas condições, o
Presidente eleito dispõe de uma barreira protetora excelente, que lhe permite
trabalhar sem ser assediado, e escolher com tranqüilidade com quem vai falar e
quando. No final de meu governo, procurei propiciar a Lula um esquema
semelhante. No meu caso, em 1994, foi mais simples essa transição, porque eu era
muito próximo a Itamar, fora seu ministro e seu candidato. Existia, naquele período,
plena confiança entre nós.
Ruth e eu mudamos para o Alvorada no dia 31 de dezembro de 1994, véspera da
posse. Levamos alguma bagagem, e depois aos poucos nos instalamos por
completo. No geral, contudo, o que carregamos conosco foram roupas, livros e
objetos pessoais. A maioria de meus livros, como os de Ruth, permaneceu em São
Paulo, da mesma forma como nossos quadros. Meus livros e uma grande massa de
documentos atulhavam, naquela época, uma casa da família na rua dos Ingleses, no
bairro da Bela Vista, onde nossa filha Bia havia morado. Como ilustração do que é
nosso país, registre-se que a casa foi assaltada duas vezes - estando eu
na Presidência da República...
O dia da posse não poderia ser mais carregado de emoção. Deixei o Alvorada num
veículo da Presidência, escoltado por carros da segurança e por motociclistas.
Diante da Catedral de Brasília, a comitiva parou para que eu e o vice eleito, Marco
Maciel, subíssemos no Rolls- Royce presidencial. Como é de tradição,
acompanhava-nos, no banco da frente, o futuro chefe da Casa Militar, general-de-
divisão Alberto Cardoso.37 Ruth e Ana Maria, esposa de Marco Maciel, não
seguiram neste carro. Em certo sentido, Brasília é anticlímax para tais solenidades,
não só por seus enormes espaços vazios, mas especialmente porque a
Constituição, talvez em momento infeliz, fixou a posse para o dia 1° de janeiro.
Sendo o primeiro dia do ano, por vezes em meio a um feriado prolongado,
torna inviável o comparecimento de muitos chefes de Estado e de governo
que poderiam conferir ainda maior peso e importância à data.
Mesmo personalidades da iniciativa privada, do mundo da cultura, parlamentares e
até os novos governadores - empossados no mesmo dia - acabam encontrando
dificuldade para comparecer a Brasília. Além disso, a cidade não vivia um
Nota: 37 Embora tenhamos o mesmo sobrenome, o general Cardoso não tem relações de
parentesco comigo. Fim da nota.
218
daqueles dias luminosos de hábito, com um céu esplêndido sem nuvens:
pelo contrário, caía uma garoa intermitente.
Mas o tempo incerto não impediu que uma considerável multidão se concentrasse
na Esplanada dos Ministérios, nas proximidades do Congresso e na Praça dos Três
Poderes. A garoa dava folga aqui e ali, de modo que foi possível manter baixada a
capota do Rolls- Royce conversível. De pé, eu e Marco acenávamos para o público
durante o pequeno desfile até a porta do Congresso, onde seríamos empossados
em sessão solene. Tudo nesse dia é ritual, e ritual rígido, produto de um trabalho
conjunto do Cerimonial do Palácio do Planalto e dos diplomatas do Itamaraty, que
pré* viamente nos instruíram a respeito de cada passo e, durante o dia inteiro,
diante de qualquer pequena hesitação minha ou de Marco, nos conduziam com
indicações discretas.
Subimos a rampa do Congresso, recebidos pelos presidentes do Senado e
da Câmara e, no grande Salão Negro, nos esperavam os líderes partidários.
Daí, com dificuldade devido à massa que se comprimia no Salão Negro, aos poucos
seguimos para o plenário da Câmara, que é também o do Congresso, para o solene
juramento à Constituição, a assinatura do termo de posse diante, também, do
presidente do STF, e meu discurso, já como Presidente da República.
No Brasil não temos muito o gosto pelos rituais solenes. Há sempre um pouco de
desordem, até de tumulto. Naquele dia, no Congresso, as pessoas avançavam em
minha direção, queriam me abraçar, me cumprimentar, dar uma palavra ou um
sorriso, para desalento e preocupação dos diplomatas. Algo semelhante se dera
durante o desfile no Rolls-Royce, e voltaria a ocorrer quando da transmissão do
cargo de Itamar para mim, no Palácio do Planalto. Embora possam prejudicar
os detalhes do espetáculo programado, a afetividade e o calor humano, em nosso
país, são mais fortes do que o ritual.
Com tumulto ou com um pouco de desordem, o certo é que uma poderosa emoção
tomou conta de mim à medida que o veículo que me trazia do Alvorada ia se
aproximando da Catedral de Brasília. Ao subir no Rolls-Royce, me vinham
pensamentos e sentimentos sobre a imensa responsabilidade que teria dali por
diante, e interrogações sobre o que seria de meu governo, o que iria acontecer nos
próximos quatro anos e o que eu poderia fazer pelo país. Toda a carga simbólica e
o peso da História e
219
de sua continuidade me vieram à mente e começaram a se fazer sentir sobre meus
ombros: o próprio Rolls-Royce, que o Presidente Getúlio Vargas recebeu como
presente de empresários e transferiu ao património público em 1953, servira a
Vargas, a Juscelino
Esse sentido de História continuou me acompanhando pelo dia afora, reforçado por
outro fato simbólico: assinei o termo de posse no Congresso com uma caneta
Sheaffer's dourada que Vargas dera ao segundo ministro da Guerra de seu governo
constitucional (1951-1954), general Ciro do Espírito Santo Cardoso, primo-irmão de
meu pai, e presenteada a mim por seu filho, meu primo, embaixador Ciro Filho. À
saída do Congresso, já empossado, novas solenidades tocantes: perfilados,
Marco Maciel e eu ouvimos o Hino Nacional executado por uma banda
militar, enquanto troava uma salva de 21 tiros de canhão e a Esquadrilha da Fumaça
da Força Aérea Brasileira (FAB) marcava o céu com listras verdes e amarelas.
Tornamos ao Rolls-Royce para o pequeno trajeto do Congresso ao Planalto. Subi a
rampa com Marco, sua esposa, Ana Maria, e Ruth.
Itamar esperava à porta. Na passagem da faixa presidencial - outro elemento
poderosamente evocativo -, tanto Itamar como eu estávamos profundamente
emocionados. Quando ele a colocou em meu peito, brinquei:
- Itamar, quem sabe um dia eu ainda lhe devolva essa faixa... O Presidente me deu
um abraço apertado. Éramos àquela altura muito próximos, embora depois
tenhamos seguido caminhos diferentes e, por iniciativa dele, rompido relações,
posteriormente em certo grau restauradas. De toda maneira, tinha e ainda tenho
plena consciência do quanto lhe devo, porque com todas as suas ambivalências,
me proporcionou, no governo e nas eleições, um apoio fundamental.
Encerrado o ato, meu passo seguinte seria, já como Presidente, conduzir o ex-
Presidente até o elevador que leva à garagem para iniciar sua viagem de partida
para Juiz de Fora, sua terra. Despedimo-nos, de novo em clima de amizade e
emoção.
Esse conjunto de atos consumiu toda a tarde. Tivemos um breve período
de descanso e recuperação de forças para o evento seguinte, o banquete de gala
no Itamaraty - um banquete imenso, com mil e tantas pessoas, todas com traje a
rigor. O ritual reza que o Presidente que sai, Itamar, recebe no Planalto as
delegações estrangeiras que chegam para a posse, e o Presidente que assume as
recepciona no Palácio do Itamaraty, juntamente
220
com embaixadores estrangeiros, políticos, empresários, intelectuais, artistas e
alguns amigos e parentes. O casal presidencial precisa circular pelo amplo
ambiente do banquete, cumprimentar as pessoas, trocar palavras e amabilidades.
Cheguei a ficar com um começo de tendinite, de tanto estender a mão - o que havia
feito desde o começo do dia. Não sentia dor, porém, anestesiado de emoção e de
cansaço como estava.
Sempre durmo bem, é uma espécie de bênção que recebi. Naquela noite, a despeito
da torrente de emoções e do extremo cansaço, não foi diferente. Mas era a
segunda noite que Ruth e eu passávamos no Alvorada, e ainda estranhávamos o
ambiente. Gosto, sempre gostei do Alvorada. Os aposentos presidenciais são muito
agradáveis e cómodos. E, claro, faziamnos companhia os filhos e netos. Até me
sentir em casa, contudo, levou algum tempo. O problema do palácio é que ele
também é uma repartição pública, embora o Alvorada, dos que tive a
oportunidade de conhecer, seja dos que menos dão essa impressão. Ainda
assim trata-se de uma repartição pública. No palácio e seu entorno devem
viver umas cem pessoas, entre a segurança presidencial, a guarda do Palácio, os
empregados - mordomos, garçons, cozinheiros, copeiras, arrumadeiras.
Há gente dia e noite operando nos setores de serviço. O Presidente e sua família o
tempo todo se defrontam com pessoas que não conhecem.
Passa- se a residir numa espécie de aquário - e, no caso do Alvorada, a metáfora é
ainda mais apropriada, sendo como é um edifício envidraçado.
No segundo andar, onde mora o Presidente, há privacidade. Só têm acesso direto à
área empregadas e garçons que atendem a família. Os próprios ajudantes-de-
ordens pedem licença para subir. A família do Presidente chega ao andar por um
elevador privativo. Ele dá para um pequeno hall e para a porta principal dos
aposentos. Aberta, conduz a um grande salão confortavelmente mobiliado que
transformamos numa espécie de sala de TV, mas onde também tínhamos livros e
minha mesa de trabalho, e dispúnhamos de um excelente banheiro. Muitas vezes
fazíamos nesse salão nossas refeições - uma vez que a enorme sala de banquetes
do andar térreo só se destina a ocasiões oficiais de gala. (Quando tinha convidados
- políticos ou jornalistas, por exemplo -, lançava mão de uma sala de almoço no
térreo, erigida posteriormente à construção original do palácio.) Mais adiante,
passado um hall, há outra sala que seria o escritório de Ruth, forrado de livros.
Passa-se um vestíbulo e chega-se a um closet
221
destinado ao Presidente, tão vasto que jamais tive roupas para preenchê-lo.
Uma passagem leva ao quarto do casal, com banheiros individuais e uma varanda.
Tudo muito grande, amplo e alegre.
À medida que nos familiarizamos com o Alvorada, passamos a usar todo o segundo
andar, cujo mezanino dispunha de um salão confortável, com poltronas, uma mesa
de jantar e uma copa anexa, que nos permitia fazer refeições também ali. A ala
residencial inclui vários apartamentos completos. Graças a eles, pode-se aplacar a
"solidão do poder"
hospedando a família e alguns amigos.
Ali vivi, com Ruth, oito anos intensos, de que me recordo, apesar das muitas
limitações e dos equívocos que possa ter cometido, e que descrevo neste livro, com
a sensação de dever cumprido.
CAPÍTULO 4
No Planalto: desvendando a esfinge do poder
A alma e o diabo
Eleito Presidente, senti desde o início a "solidão do poder". Lançado por uma
coligação heterogénea, como todas são, centrada em um partido ainda pequeno e
inexperiente, com não mais de seis anos de vida, que elegera menos de 20% da
Câmara de Deputados, com que forças contar para promover as mudanças que
haviam sido desde sempre a razão para eu ingressar na vida polítieo-partidária?
Que poder seria esse, meu Deus?
Essa era a esfinge a ser decifrada. O mapa que levaria a desvendá-la não poderia
ser outro que a força das convicções para desenhar os objetivos consistentes com
elas e o cálculo dos meios para alcançá-los.
Meu aprendizado político não fora longo. Contudo, tinha sido suficiente para
evidenciar as artimanhas do jogo partidário, a fragilidade das alianças e a pouca
renovação da máquina pública para fazer frente a uma sociedade que se urbanizara
rapidamente, com elevada taxa de crescimento demográfico. Para não falar das
grandes transformações no panorama mundial, com suas conseqüências
econômicas e políticas.
Eu aprendera a necessidade de ter rumo na política e a importância de não
menosprezar as instituições, mesmo que aparentemente frágeis.
Costumo dizer que fiz "cursinho" de Presidente. Quando ministro da Fazenda do
Presidente Itamar Franco, assisti ao desmanche do Congresso com a CPI dos
Anões do Orçamento e as brechas que essa situação abriu para o exercício do
comando pelo Executivo, calçado pela opinião pública. Pouco antes, durante o
impeachment presidencial, presenciei a fuga desabalada dos "aliados" diante do
imperativo maior da voz das ruas. E muitas vezes testemunhei cambalhotas na
política. Quando se espera que o inevitável aconteça, ocorre o imprevisto.
Arte difícil esta, a da política. As estruturas pesam, sem dúvida. Os interesses
organizados atuam. O sonho faz parte dela, sob a forma antiga de ideologias
cristalizadas ou, mais modernamente, inspirado em maior grau
223
por visões do que por certezas. De qualquer modo, sempre é necessário ter
objetivos e tratar de alcançá-los, ainda que eles se reduzam, como ocorre com
alguns, à manutenção do poder pelo desfrute dele. E há, permanentemente, um
jogo entre as estruturas nacionais e internacionais (dos partidos, das igrejas, dos
sindicatos, das empresas, das organizações económicas internacionais, da
burocracia civil e militar, da mídia), de um lado, e> de outro, os movimentos, as
propostas, as lideranças, a busca contínua do convencimento para ganhar mais
adeptos e acumular mais força para se chegar aonde se deseja.
Quem menosprezar um dos lados, seja o do já estabelecido, mesmo que antiquado
ou aparentemente frágil, seja o dos impulsos que levam à mudança, com suas
propostas e com o tecer do novo, ainda que a partir do antigo, não caminha.
Quantas vezes, na ânsia de buscar mudanças, somos obrigados a pactuar com o
oposto? Trata-se, como no caso do Fausto, não diria de vender, mas de alugar a
alma ao diabo. Se o aluguel se prolonga e o demo não ganha pelo menos os
contornos do anjo, quem faz o pacto se perde. No ponto de partida não há certeza
sobre o vencedor da aposta. A vontade política e a firmeza dos objetivos
não asseguram a vitória: existem mais incertezas entre o céu e o inferno do que
imagina a vã ingenuidade. O resultado dependerá sempre da ação de muitos e das
repercussões das ações e dos desejos de quem manda. As pessoas reagirão
indiferentes à vontade e à motivação dos atores principais, e, em certas
circunstâncias, até aos seus êxitos, se estes não forem suficientemente amplos e
consistentes para convencer a maioria.
O círculo próximo e sua importância crucial
Vista do ângulo mais terreno do dia-a-dia da política, a primeira tarefa de quem
ganha o ápice do poder formal é constituir o grupo da estrita confiança. Esse
procedimento ocorre nas mais variadas estruturas de poder: na empresa, na
associação esportiva, em uma repartição pública, em urn sindicato, ou no plano
maior do poder nacional. E se repete, indiferente ao tamanho das estruturas, em
qualquer país ou organização.
Quem são os próximos, o inner arde, é definição fundamental. Sem um grupo sólido
de apoio pessoal e direto é difícil caminhar. Só com ele, contudo, não se vai longe.
E dele podem partir também os maiores aborrecimentos.
224
Cabe ao chefe, ao líder, constituí-lo e limitá-lo, dar-lhe força e cortar-lhe as
asas.
Quem chega ao mando pela via democrática constitui esse grupo no decorrer das
campanhas eleitorais. Quem, além disso, viveu a experiência da administração, vai
ampliando o círculo, colhendo dentre os não-políticos as pessoas que possam
ajudar a governar. A tentação maior nas estruturas tradicionais de mando é limitar o
inner arde à família e amigos, ou compô-lo com demasiados membros da parentela
ou da clientela. Não em meu caso: o núcleo duro do poder foi sendo
composto, desde os tempos do Ministério da Fazenda, por profissionais que
eu julgava capazes e por políticos em quem confiava.
Não faltou, naturalmente, quem me acusasse de nepotismo, concentrado em dois
pontos: o trabalho de minha filha Luciana no Planalto e a designação do engenheiro
e ex-secretário de Energia do governo de São Paulo David Zylberzstajn, na época
meu genro, para a direção- geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
No caso de Luciana, era o nome mais indicado para uma função inteiramente
desconhecida do público, mas essencial a quem está na Presidência: estabelecer a
ligação do Palácio do Planalto com a família e os assuntos pessoais do Presidente,
sua correspondência familiar e a de pessoas íntimas, contas, talões de cheque etc.
Ela trabalhava num setor sob a supervisão do secretário-geral da Presidência. Não
era subordinada a mim, jamais estive em sua sala, nunca soube sequer em
que andar do Palácio ficava. Não tinha ligação direta comigo. Tratava dos assuntos
com Ruth e com o chefe do gabinete pessoal do Presidente.
Vários presidentes respeitáveis tiveram uma pessoa da família exercendo essas
tarefas. Basta lembrar Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha de Getúlio, que ia além
na assistência política que prestava ao pai.
Quanto a Zylberzstajn, designei-o em primeiro lugar por se tratar de um técnico
extremamente competente: um engenheiro e professor da USP com sólida
experiência em administração pública no governo de São Paulo, sob o comando
rigoroso e exigente de Mário Covas. A nomeação atendeu também a uma decisão
política que tomei. A instalação, em janeiro de 1998, da ANP, agência reguladora e
físcalizadora, certamente significaria - como de fato significou - um difícil
enfrentamento com a Petrobras. Setores poderosos dentro e fora da empresa
resistiam às claras
225
à situação inédita que a Petrobras passaria a viver, submetendo-se a um efetivo
controle externo. A circunstância de o primeiro diretor-geral da ANP manter uma
ligação pessoal comigo lhe conferia condições especiais para exercer esse papel.
Foi, na verdade, um fator essencial para a escolha. E não custa lembrar que seu
nome passou pelo crivo do Senado, como manda a lei.
Voltando ao círculo próximo ao Presidente, na verdade ele obedece às regras da
geometria variável: para a administração, ele é formado por certas pessoas; para o
jogo político no Congresso, por outras; para a política mais ampla, por outras ainda.
Se possível, convém mantê-los razoavelmente separados. A autonomia decisória do
Presidente depende de sua habilidade para jogar com a diversidade dos
personagens e com a informação posta à disposição por cada um dos componentes
dos vários círculos ao seu redor. Cada qual terá acesso apenas a parte do
cenário, pois o Presidente deve dispor do maior número de informações,
ficando mais bem situado para as decisões finais.
Essas considerações me serviram de base quando comecei a escolher
quem formaria a barreira protetora no Palácio e a montagem do Ministério.
Existem modelos variáveis para preencher o organograma do poder. Decidi dar toda
força administrativa à Casa Civil e tirar- lhe o poder político. Mais que isso, pelo
menos no início, tentei organizar as relações entre o Palácio do Planalto e o
Congresso por meio de mediadores nãopolíticos, fossem ministros ou secretários. O
contato propriamente político se formalizaria por intermédio dos presidentes dos
partidos que sustentavam o governo.
Nomeei Clóvis Carvalho para a chefia da Casa Civil. Essencialmente um executivo,
Clóvis, contudo, era filiado ao PSDB, com experiência política advinda da
resistência aos governos autoritários e já familiarizado com as engrenagens do
governo federal por sua atuação por quase dois anos como secretário executivo do
Ministério da Fazenda.
(Além dele, nos oito anos de governo tive um único ministro nessa área, Pedro
Parente, funcionário de carreira do BC de ampla experiência político-administrativa,
com passagens por vários cargos de relevo na Fazenda e no Planejamento.) Não
somente nomeei Clóvis Carvalho como, ao anunciar a formação do Ministério, disse
que ele seria "o segundo" na hierarquia, depois de mim. Sobrevieram tempestades
imediatas, mostrando que eu tinha razão:
226
outros, de maior proximidade pessoal comigo e de maior poder partidário,
sentiram o golpe. Perceberam que gozavam da minha confiança, mas era em
minhas mãos que estava o poder real. Podiam até dar a impressão de que eram os
"donos do pedaço", porém sabiam que não era assim. Mantive de caso pensado
fora do palácio os colaboradores e amigos mais próximos a mim, como José Serra e
Sérgio Motta.
Por certo, os que ambicionavam ser uma espécie de ersatzdo
Presidente descarregaram os tiros de que dispunham na direção do chefe da
Casa Civil, bem como nos ministros que vieram a ocupar-se das relações com
o Congresso, mas não tiveram êxito, porque deleguei aos escolhidos a força
necessária para atravessar as tempestades. Nunca me passou pela cabeça a idéia
de hostilizar amigos. Não tive outra motivação que o interesse maior do governo e a
necessidade de distinguir o público do privado.
Além dessa, tomei outras decisões eminentemente pessoais, como a designação da
titular da Secretaria de Imprensa, Ana Tavares, que lá ficou os oito anos de meus
dois mandatos e realizou um excelente trabalho. Levei comigo para o Planalto
antiga colaboradora desde os tempos do Cebrap, Danielle Ardaillon. Danielle chefiou
o setor da Presidência da República que cuida da documentação histórica.
Antropóloga com formação na USP, onde fez doutorado em Sociologia, não só
demonstrou capacidade excepcional na função como, pela lealdade, discrição e
competência, ocupou-se também das gravações que eu fazia para registrar minhas
impressões. Já transcreveu os registros relativos ao primeiro mandato (cerca de 4
mil páginas) e continua trabalhando comigo com a eficiência de sempre. Até hoje foi
a única pessoa que teve acesso à referida documentação e é quem cuida da minha
bibliografia, das publicações de meus artigos, livros e da documentação do
instituto que organizei depois de deixar a Presidência.
Como secretário particular, nomeei Francisco "Xico" Graziano - agrónomo, professor
da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e antigo colaborador, que conheci ainda
durante minha campanha à Prefeitura de São Paulo, em 1985, e que se tornaria
meu assessor na capital paulista depois que assumi o mandato de senador, em
1983. Eduardo Jorge Caldas Pereira foi de grande valia, como secretário-geral da
Presidência, indo parar em sua mesa de trabalho os mais variados assuntos. Todos
os três tinham longa convivência comigo. Posteriormente, com a saída de
227
Graziano para assumir a presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), chamei o doutor José Lucena Dantas, assessor do Senado que
trabalhou com Mário Covas na Constituinte e que servia no Ministério das
Comunicações com Sérgio Motta, para assumir as funções de chefe do gabinete
pessoal, função que desempenhou com discrição e eficiência até o final do segundo
mandato.
Junto ao Presidente, ao lado dos auxiliares mencionados anteriormente, funcionam
o gabinete do porta-voz e a Assessoria Especial, que decidi compor principalmente
de diplomatas. Nesse setor tive no início a colaboração do embaixador Gelson
Fonseca e, posteriormente, do conselheiro Eduardo Santos, o primeiro contando
com a cooperação dos diplomatas Luís Fernando Panelli, José Estanislau do Amaral
e Júlio Bitelli, e o segundo, com a de Tarcísio Costa e José Humberto de Brito Cruz.
Para a função de porta-voz do governo, e de seu adjunto, nomeei outros dois
diplomatas: os embaixadores Sérgio Amaral e Georges Lamazière. Cabe à
Assessoria Especial, além de fazer a ponte com o Itamaraty e lidar com as questões
internacionais, preparar os discursos (que eu nem sempre lia na íntegra, mas que
tomava em consideração para meus "improvisos") e as entrevistas presidenciais,
pelas quais a principal responsabilidade é da Secretaria de Imprensa.
Essa Secretaria, graças a Ana Tavares, acabaria sendo essencial para o que
acredito ter sido um bom e transparente relacionamento da Presidência com a
imprensa. Detenho-me no assunto porque, para o governante, numa democracia, o
trato freqüente com a mídia é uma forma de prestar contas à opinião pública, e para
tanto é preciso estar disponível com a possível freqüência. Tive contato intenso com
a imprensa. Costumava conceder entrevistas coletivas com regularidade, no Brasil
ou no exterior - foram dezenas ao longo de meus dois mandatos.
Ana me mostrou a conveniência de uma vez por semana descer de meu gabinete no
segundo andar do Planalto até a chamada sala de briefing, no primeiro, onde o
porta-voz conversava diariamente com os jornalistas.
Ali, eu próprio dava alguma notícia em primeira mão, fazia um ou outro comentário e
acabava respondendo a todas as perguntas dos jornalistas credenciados. Não
passei uma semana sequer sem conversar pessoalmente com algum jornalista, em
cafés-da-manhã, almoços, jantares ou encontros no Planalto ou no Alvorada.
Recebia sempre donos de empresas de comunicação, diretores
228
de jornais e revistas, dirigentes de emissoras de TV, editores e repórteres, com
quem também falava, regularmente, por telefone.
Devo a Ana uma diretriz que adotei o tempo todo, com uma ou outra rara exceção:
não ter jornalistas, assim como empresários, viajando comigo no avião presidencial.
Trata-se de situação em que o Presidente, pela própria circunstância física de
espaço, acaba ficando à mercê do interlocutor, e por tempo prolongado. Ana
igualmente me lembrou da necessidade de dar atenção à mídia do interior do país.
Inventou o que chamava de "rodadas de rádio". Separava o país em Norte, Sul,
Leste e Oeste, e de cada vez eu atendia a emissoras de uma dessas regiões, das 7
às 11 horas da manhã, ao vivo. O jornalista António Martins coordenava esse
trabalho, realizado num pequeno estúdio montado no Palácio da Alvorada. Não era
raro um radialista do Amapá ou de Roraima, por exemplo, perguntar, no meio da
entrevista:
- Que horas são aí em Brasília, Presidente?
Era para mostrar que estava ao vivo, e eu respondia.
A mídia é o trilho por onde corre a política, e o político que não entender isso se dá
mal. Mas minhas preocupações naquele momento, por certo, iam além da
imprensa. Desde a preparação do programa de governo, na campanha eleitoral e,
mais tarde, na Assessoria Especial, meu amigo e colaborador Vilmar Faria, doutor
em Sociologia por Harvard, professor da Unicamp e ex-diretor do Cebrap, além de
antigo aluno na Faculdade Latino- Americana de Ciências Sociais (Flacso), no Chile,
atuou como meu braço direito. Algodão entre cristais e sempre dedicado e
imaginativo no encaminhar as questões sociais e harmonizar pontos de vista entre
os ministérios afetos à área, foi um assessor excepcional, até que a
morte prematura aos 60 anos, em 2001, privou os amigos de sua convivência e
o governo de sua competência. Na Casa Civil, chefiada por Clóvis Carvalho, contava
com Eduardo Graeff, sociólogo de formação, também antigo aluno na USP,
colaborador de grande valia, tanto na preparação de programas como na
articulação política, além de ser capaz como ninguém de corrigir meus textos e,
sendo necessário, funcionar como ghost writer, e com outro excelente quadro,
Silvano Gianni, experiente funcionário que ajudara a montar, no governo Sarney, a
Secretaria do Tesouro, no Ministério da Fazenda, tinha dirigido o Serviço Federal
de Processamento de Dados (Serpro) e que depois presidiu, no biénio
229
2003 - 2004, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae).
Esse pequeno grupo, dedicado e eficiente, somado ao general Alberto Cardoso,
chefe da Casa Militar (que posteriormente seria reorganizada como Gabinete de
Segurança Institucional), constituiu, por assim dizer, o "primeiro círculo de defesa"
do Presidente. Sem esquecer, é claro, das duas fiéis secretárias, Maria Tereza de
Fátima Barbosa e Soraia Barros Gomes, e dos incansáveis e utilíssimos ajudantes-
de-ordens, oficiais das Forças Armadas que atendem diretamente ao
Presidente, alguns dos quais serviram anos a fio em meu gabinete, em meus
dois mandatos. Menciono, com seus postos à época, os majores- aviadores
José Luiz Villaça Oliva e Carlos Eduardo Alves da Silva, o capitão-aviador Aldo
Matsuhiro Miyaguti, o major do Exército Tomás Miguel Mine Ribeiro Paiva, os
capitãesde- corveta Marcus Jorge Matusevicius, Carlos Alberto de Souza Filho e
Marcos Valle Machado da Silva, e os capitães do Exército Eduardo Paiva
Maurmann e Alexandre Oliveira Cantanhede.
Quem desconhece os meandros do poder não imagina o quanto é de
vital importância contar com esse pelotão quase anônimo. É ele quem
apara arestas, ajuda a implementar decisões e, principalmente, agüenta
as pressões de todos os que desejam ter acesso ao Presidente. Na Secretaria de
Imprensa, então, a pressão é indescritível: o tempo todo, um nunca cessar de
chamadas telefónicas, de que somente a agilidade de Ana Tavares poderia dar
conta durante oito anos. Na Casa Civil, entre muitas outras funções, efetua-se a
triagem dos despachos e se analisa, documento por documento, a imensidão de
papéis que vêm à mesa do Presidente. Nos casos mais sérios há que contar com o
apoio do advogado-geral da União, sustentáculo jurídico das
decisões presidenciais.
Logo depois desse círculo, estão os diplomatas, os "da Casa", que cuidam do
protocolo, e os do Itamaraty, cuja proximidade com o Presidente só é comparável à
do chefe da Casa Militar, como então se chamava, e dos ajudantes-de-ordens, que
estão o tempo todo no gabinete e acompanham o Presidente por toda parte - no
carro oficial, no helicóptero que atende ao Presidente, no avião presidencial, em
todas as viagens pelo país ou ao exterior. Desempenharam essas funções os
diplomatas Júlio César Gomes dos Santos, Valter Pecly Moreira e Frederico César
de Araújo, todos embaixadores no momento em que escrevo este livro.
230
Na verdade, do ponto de vista instrumental, o corpo diplomático e os militares, ao
lado da burocracia fazendária em geral - funcionários concursados e de carreira de
órgãos como o BC, o Tesouro, a Receita Federal, o Instituto de Pesquisa
Económica Aplicada (Ipea) e o Orçamento -, fornecem os quadros técnicos de maior
valia à Presidência.
E os ministros da Fazenda e das Relações Exteriores costumam gozar de uma
proximidade funcional, e por fim pessoal e afetiva, que lhes dá um lugar de
destaque no círculo de poder. Mesmo não dispondo das alavancas políticas,
exercem uma influência que não deve ser subestimada.
Tive o cuidado, desde o início, de estabelecer procedimentos simples, mas eficazes,
para delimitar os graus de intimidade com o Presidente.
Partindo da experiência antiga no trato da coisa pública, desde a de meus
ancestrais, tios e primos até as recentes experiências pessoais como ministro das
Relações Exteriores e da Fazenda, determinei que o acesso à sala presidencial se
fizesse invariavelmente por intermédio dos ajudantes-de-ordens. Ninguém, nem
sequer os familiares, entraria na sala sem prévio anúncio. Quase sempre as
audiências tinham o término marcado pela volta do ajudante-de-ordens a lembrar ao
visitante os outros compromissos do Presidente. No carro, da mesma maneira,
decidi que a meu lado, no banco de trás, sentaria sempre um ajudante-de-ordens, à
frente o coronel da segurança - durante meus oito anos, exerceram as funções os
coronéis do Exército Sérgio Sett Sparta de Souza, José Elito Carvalho Siqueira e
Manoel Luiz Narvaz Pafiadache - e o motorista (foram muitos a servir durante minha
Presidência). Dessa maneira, ninguém, nem um ministro ou um amigo, teria a
possibilidade de conversar com o Presidente e, sem o perceber, entrar em assuntos
que os acompanhantes do banco da frente não devessem escutar. Além de
evitar as interpretações sobre quais amigos ou ministros eram mais próximos, os
"amigos do peito" do Presidente. Regra semelhante se aplicava às viagens no
helicóptero presidencial. Nele só entravam os auxiliares diretos e, nas visitas aos
estados, os governadores. Regras banais, porém importantes: a polidez
presidencial, somada a certas pequenas restrições de acesso - debitadas ao
protocolo -, ajudam a prática de uma convivência suave, mas não confundida com
falta de decoro ou com excesso de intimidades, que não combinam com o exercício
da máxima função pública.
231
Tudo isso, entretanto, são os preparativos para as batalhas. Estas se dão
principalmente (mas não de modo exclusivo) entre o Executivo e o Congresso, e,
dentro e fora dele, entre os partidos. A presa são os ministérios e as políticas a
serem implementadas, bem como os cargos a serem distribuídos. Esse é o jogo
maior, sempre vigiado pela mídia que, mais do que voz da opinião pública, é
também fator de poder. E por sobre tudo isso, o jogo de poder da sociedade com o
governo e com o Congresso, mediado ou não pelos partidos e movimentos sociais.
Governo de coalizão não é estelionato eleitoral
O sistema político brasileiro tem suas peculiaridades. Diz-se que
nosso presidencialismo é imperial. Será? Sim e não. É certo que do ponto de vista
formal, e mesmo na prática em muitas questões e momentos, o poder presidencial
(a vontade de quem manda) se aproxima do que se imaginaria uma função imperial.
Mais no sentido de nossa Constituição do Império, com a esdrúxula figura do Poder
Moderador e da prática interveniente e clientelística, do que do presidencialismo
autoritário dos anos recentes. Muitas vezes o Presidente dispõe do instrumento
legal para transformar sua vontade, senão em lei, em decreto ou MP com força
de lei. E mesmo da autoridade, isto é, do reconhecimento da legitimidade da
decisão, para que a ordem seja obedecida. Por motivo da boa política, contudo, para
ganhar mais adeptos ou para suavizar e viabilizar a efetivação de seus propósitos,
não exerce em toda a extensão o poder virtual e trata de compor situações nas
quais, embora sua vontade não transpareça na integralidade, as probabilidades de
êxito das políticas e das decisões que deseja efetivar se tornam maiores.
Por que isso? Porque o Executivo, simbolizado pelo Presidente e pelos ministros, é
somente uma parte do sistema de poder (para não falar na dominação
estruturalmente exercida pelas classes e setores de classe, organizados na
estrutura não-formal de mando, que no dia-a-dia exercem pressão e dispõem de
recursos de poder entrincheirados de mil maneiras nas práticas sociais). O
Congresso, os partidos, o Judiciário, para me limitar aos componentes formais da
estrutura de mando, condicionam, obviamente, o jogo político.
232
Com boa dose de exagero, diria que o Presidente eleito (com seu partido ou sua
coligação) ao ser consagrado nas urnas levanta a esperança da mudança e da
construção do caminho do paraíso. Quando Presidente e partido estão alicerçados
em um programa com objetivos claros e espelham uma "visão" afim com o
sentimento e as possibilidades das conjunturas nacional e internacional, o sistema
decisório começa a andar. Dependendo, naturalmente de o Executivo estar
preparado, técnica e politicamente, para propor medidas e implementá-las.
A maior parte dessas medidas, sendo renovadoras, requer aprovação no Congresso
e apoio nos partidos, com tudo o que isso representa em matéria de vinculação aos
interesses da sociedade e de intermediação dos meios de comunicação. O
eleitorado, ao depositar a confiança no Presidente eleito, despreocupa-se das
condições do suporte para sua ação. O Presidente vê-se só diante dos interesses
estabelecidos, do Congresso e dos partidos. Transposta esta primeira barreira
para colocar em prática seus projetos, encontrará no Judiciário o teste final para
saber se poderá ou não concretizar o que deseja. Em suma, vivemos, de fato, uma
situação democrática. À nossa moda, funcionam os freios e contrapesos para evitar
que a vontade de um, de alguns, ou mesmo da maioria, se imponha sem mais a
todos.
O maior engano do Presidente (refiro-me simbolicamente, pois não se trata apenas
de uma pessoa, mas do grupo vencedor) é imaginar que, sozinho, tudo pode t que o
Congresso é um tigre de papel. Já era suficientemente maduro quando assisti às
crises de Jânio Quadros (1961)
e de João Goulart (1961-1964). Participei, como senador, da débâcle do governo
Collor. Nesses casos, o menosprezo ao Congresso levou os governos à paralisia e
depois à ruína. Por outro lado, se o Presidente "se entrega" ao Congresso, está
perdido. É esse o jogo político principal; para realizar o que a sociedade deseja e o
que ele prometeu na campanha, o Presidente necessita do Congresso. Constrói,
portanto, alianças, de vez que em nosso sistema eleitoral, em uma Federação
muito desigual, os partidos são fragmentados e o Presidente apenas com o
seu partido não dispõe de maioria. Pode fazer as alianças antes (o que é melhor) ou
depois do voto. Mas terá de fazê-las para governar. A grande questão é: alianças
para quê? Só para se manter no poder, ou para realizar os objetivos de um projeto
específico e claro de governo? E com quem?
233
É esse o nó górdio a ser desatado logo no início do mandato, quando os partidos (o
do Presidente, os coligados ou, quando nem assim se consegue a maioria, os dos
ex- adversários), com apetite voraz, sentam-se à mesa para discutir que partes terão
no latifúndio do poder.
É o momento da formação do Ministério e da definição dos comandos parlamentares
(controle das Mesas que dirigem a Câmara e o Senado e designação de líderes).
Se o governo não dispuser dos recursos políticos e de informação para preservar os
setores do Executivo que considera essenciais à realização de seus projetos, ao
"fechar" as alianças e entregar partes do mando a pessoas e partidos que
não necessariamente comungam de visão e valores comuns, começa a vender
a alma ao diabo sem chances de recompra.
No meu caso, desde a campanha, havia uma marca de "governo de coalizão".
Como já descrito, optamos por uma aliança eleitoral que juntou o PFL e o PTB ao
PSDB. Essa "juntada", entretanto, partiu de uma visão e de um programa. As idéias
básicas e os objetivos do governo foram registrados em um livro chamado Mãos à
obra, Brasil,1 preparado sob a coordenação de Paulo Renato Souza, economista
com obra reconhecida, ex-reitor da Unicamp e ex-secretário da Educação do
governo Montoro, além de amigo, e de meus assessores Vilmar Faria e Eduardo
Graeff. A própria formulação do Plano Real durante o governo Itamar implicara uma
série de definições e comprometimentos que balizaram as alianças e as ações
do que seria meu governo. Ainda que não tenha podido realizar tudo o que prometi,
tanto no primeiro como no segundo mandato (para o qual preparamos outro livro
com o título de Avança Brasil),1 não me afastei da
filosofia proposta.
Os partidos e grupos que se aproximaram do governo não o fizeram, portanto,
porque eu tivesse praticado um "estelionato eleitoral", dizendo uma coisa na
campanha e me associando a eles com outros propósitos, nem poderiam alegar
ignorância dos objetivos governamentais. Isso não quer dizer que os tenham
seguido unânime e conscientemente, mas significa que o governo sempre
proclamou que tinha um rumo, e procurou mantê-lo. E também não quer dizer que o
governo não tenha feito compromissos, aceitando a participação de pessoas e
setores partidários que se sabia,
Nota: 1 Fernando Henrique Cardoso, Mãos à obra, Brasil: proposta de governo, Brasília,
1994.
2 Idem, Avança Brasil: proposta de governo, Brasília, 1998. Fim da
nota.
234
de antemão, não comungavam de propósitos idênticos: o pragmatismo
com objetivos definidos implica um cálculo e uma aposta. O cálculo diz respeito aos
apoios necessários à sustentação geral da política governamental, mesmo quando
em detrimento de objetivos específicos, e a aposta tem a ver com a crença de quem
conduz de que é capaz de induzir (ou, no limite, forçar) os aliados, inclusive os
de última hora, a aceitarem os objetivos que pretende alcançar.
O risco de perder o controle do processo ou de o governo se descaracterizar é
permanente. Trata-se de uma aventura perigosa, pois mesmo com a melhor das
intenções pode-se errar nas apostas. O sucesso delas, repito, depende de
condições objetivas e de disposições de vontade que não se definem nem são
limitadas apenas pelo círculo maior do poder. De qualquer forma, política não é
apenas a continuação da guerra por outros meios, conforme o célebre conceito de
Clausewitz,3 não é a substituição da força pela submissão. Nem é um método
para contar e separar os bons dos maus. É a arte de persuadir os "maus" a
se tornarem "bons", ou em todo caso a agirem como se fossem, nem que seja pelo
temor das conseqüências. De transformar os inimigos em adversários, os
adversários eventualmente em aliados. Quando ocorre a cooptação em vez da
persuasão (por diferentes meios), o lugar da política é ocupado pelo escambo entre
interesses menores. O drama é que são ténues os limites entre a grandeza e a
perdição.
Controle do Congresso: Luís Eduardo, Sarney, ACM, Temer, Aécio
Mal terminada a eleição, pus-me a campo para ampliar a base de apoio do governo.
Para alcançar meus objetivos como Presidente, precisava propor mudanças na
Constituição que conferissem maior competitividade à economia brasileira. Era
urgente liberar o Estado, ainda em franca crise fiscal, do pesado ônus de ser o
único responsável pelos investimentos de infra-estrutura, graças aos
monopólios constitucionais. Tínhamos que
Nota: ' Carl Philipp Gottfried von Clausewitz (1780 - 1831), general prussiano e pensador
militar. Sua obra mais conhecida, Vom kriege, publicada em 1832, mereceu várias
traduções em português. Ver Carl von Clausewitz, Da guerra, São Paulo, Martins
Fontes/ Universidade de Brasília, 1979, tradução de Teresa Barros Pinto Barroso.
Fim da nota.
235
preparar o Estado para levar adiante, com mais recursos e melhor gestão, as
políticas sociais e previdenciárias que lhe correspondem. Era preciso adaptar a
máquina pública às suas novas funções regulatórias, criando agências
independentes, dirigidas por funcionários com mandato fixo e não coincidente com
o período presidencial, para assegurar aos investidores o rigoroso cumprimento dos
contratos e aos consumidores o bom desempenho dos serviços públicos que
passariam a ser executados, parcialmente, por agentes privados.
Tais objetivos implicavam uma reforma profunda do setor público, desde o modo de
fazer o Orçamento e de executá-lo, de distribuir tarefas e despesas, por exemplo,
na educação, entre municípios, estados e governo federal, até a quebra dos
monopólios. Requeriam emendas à Constituição, e as reformas constitucionais,
como sabemos, exigem a aprovação de três quintos do total dos parlamentares em
cada uma das Casas do Congresso, em votações repetidas, artigo por artigo, dadas
as peculiaridades dos regimentos da Câmara e do Senado.
Pareceu-me que, além das alianças previamente feitas para a eleição com o PFL e o
PTB, era indispensável a inclusão do PMDB na base de sustentação do governo.
Dos grandes partidos brasileiros o PMDB é o mais peculiar. Embora tenha perdido
lideranças e mesmo capacidade aglutinadora interna depois da redemocratização,
continuou enraizado no país e manteve considerável eleitorado. Herdeiro da
tradição democrática da luta contra o autoritarismo e possuidor de um vago ideário
desenvolvimentista algo estatizante - muito afim com o sentimento geral do país,
deve-se reconhecer -, não deixa de ser um aliado importante, até indispensável
para os governos que desejam reformas constitucionais, graças às dimensões de
suas bancadas no Congresso.
Nessas circunstâncias o jogo político exigia perícia para distribuir no tabuleiro do
poder o partido do Presidente, o de seus aliados de campanha e os recém-
chegados. As peças do jogo deviam ser alocadas em posições nos ministérios, nos
grandes órgãos de governo e no Congresso, sem falar dos postos de mando nos
estados da Federação. No Congresso, decidiu-se de início respeitar a tradição que
atribui a Presidência de cada Casa ao respectivo partido majoritário. No entanto,
acabou sendo preciso fazer uma composição para assegurar o controle da Câmara
dos Deputados ao PFL, com bancada menos numerosa do que o PMDB. A Câmara
236
é o organismo político mais nervoso e nevrálgico da República. Composta por
513 deputados, com a tradição de renovar cerca de 40% dos membros em
cada eleição (por especificidades do sistema eleitoral que não cabe esmiuçar), é
nela, normalmente, que se esboçam os movimentos opositores mais contestatórios
e é dela que advêm as pressões mais diretas dos eleitores. Embora o Senado
disponha de poderes equivalentes, e de algumas prerrogativas adicionais em casos
especificados na Constituição, sua renovação é mais lenta e a acomodação dos
interesses mais fácil, sem contar que abriga muito menos parlamentares (81).
No que respeita a mim, senador que fui por doze anos, tendo exercido a liderança
de dois partidos, o PMDB e o PSDB, o relacionamento com o Senado era mais
pessoal e direto. Na Câmara, além das características descritas, contava (sempre
conta) o fato de que os projetos de lei enviados pelo Executivo ao Congresso,
inclusive as reformas constitucionais, se iniciam ali e, se terminarem sendo
derrotados, nem chegam ao Senado. Havia, portanto, que ter na direção da Câmara
alguém de minha total confiança.
Na aliança para as eleições presidenciais, coube ao PFL a Vice-Presidência da
República. Minha preferência, na época não acompanhada pelo PSDB, recaía
sobre o deputado Luís Eduardo Magalhães.
Mas Luís Eduardo, para meu partido, era pano vermelho por causa
das desconfianças provocadas pelo pai, António Carlos. Ouvi de diferentes líderes
tucanos quase a mesma frase:
- Não dá, o ACM vai conspirar contra você.
Luís Eduardo, político jovem porém atilado, percebia perfeitamente o problema. Sem
que nunca tivéssemos comentado as dificuldades trazidas pelo nome do pai, ele
próprio, em gesto de fidalguia, procurou-me para dizer que era sabedor de meu
desejo mas também de minhas dificuldades e por isso assumiria publicamente a
decisão de não aceitar a posição.
Diante da reação do deputado, o PSDB não teve dificuldades em aceitar o nome do
senador Guilherme Palmeira (AL) para figurar como candidato a Vice-Presidente na
chapa. Votara em Tancredo no Colégio Eleitoral, era um político experiente (ex-
prefeito de Maceió e ex- governador de Alagoas) e uma pessoa esplêndida, de trato
muito agradável e fácil - por coincidência, outro vizinho de apartamento em Brasília -,
com trânsito em diversas áreas. Acabou renunciando à indicação depois que
um deputado do PT representou contra ele na Procuradoria-Geral da
237
República por suposto favorecimento a uma empreiteira via emendas ao Orçamento.
As acusações, como freqüentemente ocorre, não seriam provadas na Justiça.
Ficamos, Guilherme e eu, sabendo da história durante um compromisso
de campanha em Chapecó (SC), num dia de frio terrível, em maio de 1994.
Ainda hoje tenho a impressão de que, no fundo, ele não estava à vontade como
candidato e não queria ir até o fim naquela empreitada. Não porque não confiasse
em nossa vitória, mas como se achasse que o posto deveria ser destinado a outro
líder do PFL Na volta a Brasília, durante reunião comigo no escritório de advocacia
de Pimenta da Veiga, de que participaram também, pelo PSDB, Tasso Jereissati e,
pelo PFL, Jorge Bornhausen e Luís Eduardo, Jorge indicou como substituto de
Guilherme o ex-presidente da Câmara, ex-ministro, ex-governador e senador
Marco Maciel (PE). E foi uma bênção. Difícil encontrar pessoa que, além
de competente, seja mais discreta, eficiente e leal. Exerceu durante oito anos a
Vice-Presidência, assumiu dezenas de vezes o cargo e nunca deu um passo que
não fosse absolutamente correto. Ajudou-me substancialmente em várias questões,
sobretudo na coordenação política, e o fazia com discrição e eficiência. Tínhamos
sido colegas no Senado por vários anos, mas sua polidez irretocável levava-o a me
chamar, cerimoniosamente, de "senhor".
Quanto a Luís Eduardo, quando cavalheirescamente recusou ser meu companheiro
de chapa, respondi que, uma vez vencedor na disputa eleitoral, caberia a ele
escolher o posto que desejasse no governo. Com meu entusiasmo, preferiu tentar
ser presidente da Câmara, para o que trabalhei. Sem grande resistência dos outros
partidos, cumpriu-se o desejado: a união entre PSDB e PFL garantiu o requisito de
maioria.
Com a decisão relativa à Câmara, passou a ser natural que a presidência do Senado
coubesse a um peemedebista, não somente porque o partido ali tinha maioria (que
poderia ser contestada se houvesse a junção dos demais partidos aliados num
bloco contra o PMDB), como porque a governabilidade requeria distribuição de
poder entre as legendas que formariam a base parlamentar do governo. Em
encontro que tive com o senador José Sarney, na casa do embaixador Júlio César
Gomes dos Santos - encarregado dos assuntos externos do Ministério da Fazenda
e que se licenciara das funções para participar da campanha eleitoral -, ouvi dele
238
o interesse em assumir a posição. Embora no PMDB houvesse também
a candidatura do senador Pedro Simon, peemedebista histórico e
combativo, pareceu-me que naquele momento a grande experiência do senador
Sarney, que incluía naturalmente seus cinco anos na Presidência, serviria melhor a
meus propósitos reformistas e aos interesses da República do que a impetuosidade
oposicionista, um tanto nacional-estatizante à moda dos anos 1970, do senador
gaúcho. Não interferi, mas não me desagradou a eleição do senador pelo Amapá
para a presidência do Senado.
O equilíbrio entre os grandes partidos, deixando meu próprio partido, t> PSDB, à
margem do controle do Congresso, mesmo quando se tornou majoritário na Câmara
após as eleições de 1998, revelou-se fundamental para compor um quadro de
estabilidade. Este quadro sofria alguma perturbação a cada dois anos, quando se
processavam as renovações das Mesas Diretoras, mais por motivos grupais,
regionais e pessoais, do que pela ação de correntes políticas descontentes com o
governo. O equilíbrio político só se rompeu em janeiro de 2001, quando o
PSDB, dizendo-se cansado de ser sacrificado pelos interesses do Executivo (como
se não detivesse as posições fundamentais nele), movimentou-se pela candidatura à
presidência da Câmara do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), neto de Tancredo,
seu ex- secretário e hábil articulador, com apoio do PMDB. Aécio só seria derrotado
se o governo, isto é, o Presidente, impusesse um veto. Não me pareceu, àquela
altura, que coubesse tal interferência, inclusive pelas excelentes relações
que sempre mantive com o deputado. Alertei, porém, o presidente do
PSDB, senador Teotônio Vilela Filho (AL) - companheiro leal e pouco ambicioso -,
das conseqüências do gesto: rompido o equilíbrio, o PMDB, que na época
governava a Câmara, não concordaria com a manutenção do PFL no comando do
Senado, ocupado até então pelo senador António Carlos Magalhães, e buscaria a
adesão do PSDB, para que este retribuísse o apoio recebido na Câmara.
Dito e feito: naquele início de 2001, a luta entre ACM e o líder do PMDB no Senado
e presidente nacional do partido, Jader Barbalho (PA), que vinha desde quando
disputavam as luzes da ribalta das CPIs do Judiciário e do Sistema Financeiro, em
1999, eclodiu com estrépito.
Jader derrotou o candidato à presidência do Senado apoiado pelo PFL, Arlindo
Porto (PTB-MG). Daí por diante, até as eleições de 2002 (embora não só por causa
desse episódio), o apoio ao governo no Congresso perdeu
239
progressivamente pontos de equilíbrio. Antes disso, as rusgas intra e interpartidárias na
disputa pela composição das Mesas do Congresso, salvo poucas exceções, tinham
sido levadas com tranqüilidade pelo governo.
Uma dessas raras exceções se deu quando, em fevereiro de 1997, o candidato do
PMDB à presidência da Câmara, deputado Michel Temer (SP), também líder do
partido, teve a eleição contestada pelo chamado "baixo clero"4 e pelas oposições.
Foi lançado um candidato contestatório, extraído do próprio PSDB, Wilson Campos
(PE). Caro custou ao governo e a seus líderes assegurarem os votos adicionais de
que o PMDB necessitava para eleger Michel Temer. Ao final, o placar indicava
vitória, mas com a diferença de apenas um voto. Nessas horas, ou o comando
governamental é forte e se empenha, ou, quando perde a influência na condução
da Câmara ou do Senado, começa o enfraquecimento do governo. Não por
acaso as oposições, como não têm força própria para vencer as votações,
buscam sempre apoiar candidato dissidente do grupo governista, para abrir
uma brecha no muro do poder.
Com menor desgaste, também a eleição de António Carlos Magalhães para suceder
José Sarney, no mesmo ano de 1997, enfrentou o desafio da candidatura
peemedebista de íris Rezende (GO). Mas a força política de seu filho Luís Eduardo,
presidente da Câmara, somada à impetuosidade do ministro Sérgio Motta, de
indiscutível liderança no PSDB, além sem dúvida do prestígio e da ação do
candidato, garantiram os votos necessários à vitória. Para não desarrumar o
equilíbrio na distribuição de poderes entre os grandes partidos, ou seja, pela exata
razão que levou a Presidência a se jogar diretamente no apoio à candidatura
de Michel Temer na Câmara, desta feita, no Senado, preferi não me envolver em tal
grau na disputa, apesar das boas relações que mantinha com íris Rezende.
Nota: 1 Assim se tornou conhecido, de forma algo depreciativa, o conjunto
de parlamentares que não dispõem de prestígio suficiente para exercer funções de
liderança formal ou informal, ou que não se situam no comando das comissões nas
quais se realiza o processo parlamentar. Em geral não mais de cinqüenta
parlamentares, talvez um pouco mais, se sobressaem em cada Legislatura, ou seja,
10% da Casa. Os demais, embora muitos de valor, não conseguem aparecer na
mídia nacional nem exercer influência política preponderante. Não obstante, é deles
que vêm os votos para a aprovação das decisões fundamentais, a começar pelas
eleições das Mesas. Fim da nota.
240
Questões de fácil entendimento na lógica maior do poder, mas de difícil aceitação pelas
pessoas envolvidas no quotidiano da política e pelos que de longe acompanham
essas manobras.
As dificuldades para acomodar interesses no comando do Congresso implicam
negociações com os chefes partidários, ou seja, com um número reduzido de
pessoas. Já o relacionamento com o conjunto dos parlamentares, principalmente
com o "baixo clero", é muito mais complicado. No início do governo imaginei ser
possível uma relação institucional com o Congresso, por intermédio dos presidentes
de partidos. Eles deveriam encaminhar as questões com as bancadas. Tanto
o deputado Pimenta da Veiga, que chefiava o PSDB, como o deputado
Luiz Henrique, presidente do PMDB, ou o senador Bornhausen, do PFL, como
o senador Andrade Vieira, do PTB, constituiriam um comité para gerir as relações
dos congressistas comigo e com o governo. O mecanismo seria logo prejudicado
pela decisão do senador Andrade Vieira de assumir ele próprio a posição ministerial
que caberia ao PTB (o Ministério da Agricultura). Em seguida, os líderes partidários
de cada uma das Casas passaram a se queixar de que o relacionamento com os
presidentes de partidos deveria incluí-los. Por fim, na dura realidade de
nossos partidos, viu-se que o comando sobre as bancadas, não apenas o
dos presidentes como o de muitos líderes, é ténue.
O paradoxo desafiador: partidos fracos, Congresso forte
Cabe aqui um parêntese sobre a natureza de nossos partidos e da representação
parlamentar. Com exceção dos ditos de esquerda, desde as variantes dos partidos
de origem comunista ao PT, que vêm de uma tradição de "centralismo
democrático", os demais, variavelmente, têm um comando frouxo sobre as
bancadas. Alguns, como o PDT, o PSDB e o Partido Socialista Brasileiro (PSB),
ainda mantêm alguma consistência no voto dos parlamentares, embora com
dissidências admitidas. Outros, como o PFL, se esforçam por obtê-la, mas
freqüentemente se dividem em função de lideranças regionais. Outros mais já dão
por descontado que cada cabeça sempre será uma sentença. O próprio sistema
eleitoral encoraja a desconfiança entre companheiros de legenda: elege-se
deputado quem obtém maior número de votos comparativamente com outros
candidatos da mesma chapa. Ou seja, os membros do mesmo partido competem
241
em todo o território de seus estados uns com os outros. Ademais, não vigoram regras
de fidelidade partidária que levem à homogeneização do voto nas pelejas
parlamentares.
Por fim, no processo eleitoral os eleitores votam preferencialmente na pessoa, não
na legenda e muito menos no partido, se esse for entendido não como mera sigla e
sim como uma organização composta por pessoas que defendem um conjunto de
princípios, formando uma visão política coerente. As regras do processo eleitoral
permitem ao eleitor votar em candidatos de diferentes partidos para diferentes
cargos - por exemplo, em um determinado partido para deputado estadual, em outro
para federal ou num terceiro para governador ou presidente. Isso dá ao deputado
uma grande liberdade de atuação no Congresso: ele sabe que na próxima eleição o
eleitor, se ainda se lembrar do representante escolhido no pleito anterior, não
cobrará dele fidelidade partidária, mas serviços prestados à comunidade, a seu
grupo de apoio ou mesmo a ele próprio, eleitor, individualmente.
Dessa maneira temos um sistema representativo cuja "representação", quando
chega a se organizar, é pós-eleições. Entretanto, se ficarmos apenas nesta
constatação, podemos incorrer no engano de pensar que o Congresso, no conjunto,
não representa interesses ou valores, o que não é certo. A forma dessa
representação é que tem peculiaridades. Certos segmentos de congressistas e de
partidos expressam valores e interesses.
Parlamentares desses segmentos representam, de fato, as partes da sociedade que
lhes deram o voto. Outros parlamentares há que são selecionados por setores da
sociedade para expressar seus interesses depois de eleitos. A seleção se dá
porque determinado setor identifica em certo parlamentar ou grupo de
parlamentares afinidade com seus interesses ou, na via inversa, os próprios
parlamentares tratam de se aproximar de grupos de interesse na sociedade.
Chegam até a se organizar em frentes parlamentares suprapartidárias que
defendem, por exemplo, a educação pública, ou os fazendeiros, ou os
pequenos produtores, quando não ambos os grupos, ou os interesses do
sistema financeiro, ou todo tipo de interesses corporativos, de funcionários públicos
a sindicatos ou setores da produção, ou então valores morais ou religiosos. Refiro-
me a essa forma estranha de "representação" pós-voto sem necessariamente
desqualificá-la: os interesses ou os valores assim atendidos podem ser bons ou
maus, dependendo da filosofia
242
de quem os julgue, bem como podem ou não ser legítimos - e se forem
ilegítimos devem, é claro, ser combatidos.
Não é a partir de uma perspectiva moral que desejo chamar a atenção para essa
forma de atuação parlamentar e de conexão entre o Congresso e a sociedade.
Processos semelhantes podem se observar em algumas democracias consolidadas,
inclusive nos EUA. Chamo a atenção para outro aspecto, o do jogo político entre o
Legislativo e o Executivo. Ele se torna muito mais volátil nesse tipo de representação
parlamentar do que nas situações nas quais os partidos têm maior tradição e
capacidade de controlar o comportamento dos parlamentares, como nos
sistemas parlamentaristas de governo. É por isso que as tentativas
de relacionamento "institucional" entre o Presidente, ou o Executivo, e os partidos
funciona precariamente. É pela mesma razão que a negociação política, ainda que
legítima, aparece aos olhos do público como uma negociação "de balcão": ela se dá
quase individualmente ou, no caso das "frentes parlamentares", juntando deputados
que podem ir, por exemplo, do PT ao PP, unidos em situações específicas ao redor
do mesmo propósito, como a redução da dívida agrária, a oposição à facilitação do
aborto ou a defesa do parlamentarismo.
Os próprios líderes partidários tornam-se cada vez mais partes de uma cadeia de
transmissão das demandas individuais dos parlamentares ao Executivo do que
guias políticos de seus liderados. Muitas análises incorrem em simplificações ao
tomar as legendas por partidos e considerá-los, em bloco, "de esquerda" ou "de
direita" ou até como "governistas" e "oposicionistas": como qualificar em bloco, se
os "partidos" são fragmentados?
Além dos inconvenientes de funcionamento desse sistema político, existem outros
mais sérios. Há riscos para o sistema democrático, advindos da transformação de
partes do Congresso em lobbies, ainda que legítimos.
Esvaem-se os partidos, se por estes se entenderem organizações sem dúvida
comprometidas com a defesa de seus interesses de poder, mas que têm também
uma visão sobre "a boa sociedade" e orientam sua conduta política por valores
compartilhados por seus membros.
A experiência prática da situação acima descrita me levou a estabelecer uma teia de
relações complexas para conseguir a aprovação dos projetos indispensáveis ao
encaminhamento da agenda reformista. Essa teia enredada e trabalhosa era
manejada mais freqüentemente por ministros ou
243
secretários encarregados das relações com o Congresso. Contei permanentemente,
da mesma forma, com a cooperação do PSDB, tanto graças à ação de seus
sucessivos presidentes, Pimenta da Veiga, Artur da Távola, Teotônio Vilela e José
Aníbal, como de Sérgio Motta, que foi secretário-geral e, enquanto viveu, manda-
chuva. Não havendo partidos coesos e homogéneos, a negociação institucional
torna-se impossível.
Embora eu tivesse resistido de início à nomeação de um político para fazer a
mediação fragmentada com o Congresso, acabei nomeando, em abril de 1996* o
deputado Luiz Carlos Santos (PMDB-SP), líder do governo na Câmara, como
ministro Extraordinário para a Coordenação Política.
Mesmo sendo certo que cabia ao ministro político a função de indicar as pessoas
combinadas com os parlamentares para exercer certos cargos que a lei permite
serem de livre provimento, a consecução do ato passava pelo crivo da Secretaria-
Geral, da Casa Civil e do ministro da pasta correspondente ao cargo pretendido.
Evitei entregar a materialização dos acordos políticos aos ministros que cuidaram da
área política.
Barravam-se assim os compromissos que poderiam afetar o desempenho, por falta
de capacitação profissional suficiente dos indicados, ou a honorabilidade do
governo, por eventual falta de qualificação moral deles. Embora nem sempre a
peneira tenha sido efetiva, ela limitou os desgastes do governo. Por outro lado, o
ocasional descumprimento de acordos teve um alto custo para os ministros
enca/rregados da coordenação política. Daí a rotatividade relativamente elevada
dos titulares dessa pasta, que tinham de funcionar como "fusíver do Executivo. Em
dois mandatos, contei com seis auxiliares nessa função.
Na prática este mecanismo de relacionamento dos deputados com o eleitorado e
com os partidos, bem como com o Executivo, torna a própria caracterização de
nosso sistema governamental um tanto elusiva. Como falar propriamente de um
"presidencialismo de coalizão", que em geral se refere às alianças partidárias,
quando a fragmentação de interesses e de focos de poder desborda os canais
partidários? A noção é valiosa, mas precisa ser contextualizada.5 Antes tivéssemos
a possibilidade de organizar alianças estáveis e coalizões. Na verdade, o
aspecto "imperial" do presidencialismo
Nota: ' Quem melhor chamou atenção para o presidencialismo de coalizão foi o cientista
político Sérgio Àbranches. Fim da nota.
244
brasileiro deriva menos da vontade do Presidente do que das condições
efetivas de funcionamento do jogo político.
Contraditoriamente, queira ou não o Presidente, dada a fraqueza relativa dos
partidos e a força do Congresso - um paradoxo brasileiro -, se o Presidente não se
mantém forte, o "fisiologismo" (como vulgarmente se chama o sistema de pressões
diretas dos parlamentares sobre os recursos públicos, materiais e políticos)
predomina sobre a capacidade de o governo definir e implementar uma agenda de
transformações no país.
Do Presidente, para se manter forte, além de habilidade política, se requerem certas
características e condições. A característica indispensável é a respeitabilidade, que
depende em grande parte da compostura frente às questões públicas. Depois, vem
a popularidade, que está sujeita ao êxito das políticas, sobretudo das económicas,
ou da sorte de viver conjunturas favoráveis. Não sendo o caso, o Presidente e o
governo têm que ser capazes de se desvencilhar das condições adversas. Tudo
isso dependerá em parte da capacidade de comunicação do Presidente, sem
esquecer da sustentação do governo na mídia. Nessa altura, a opinião pública volta
a ser a voz do eleitorado e, portanto, a senhora da verdadeira fonte do poder
democrático. Isso não quer dizer que em nosso regime político os presidentes
caiam necessariamente ao perderem respeitabilidade e popularidade. No entanto é
inegável, dada a fragilidade do apoio propriamente partidário, que os riscos
de interrupção do mandato existem e a agitação para-golpista de
setores oposicionistas continua sendo um sinal de fraqueza institucional que não
deve ser descuidado. Ainda que não se chegue a esses extremos, o desempenho
do governo, sua capacidade de administrar e implementar políticas, decai muito
quando as condições que mencionei se tornam desfavoráveis. O marasmo político-
administrativo prepara, então, futuras derrotas.
A escolha na Fazenda: Malan queria ficar só um ano
Composto o círculo próximo, e não necessariamente em ordem cronológica, tarefa
decisiva é a da formação do Ministério. É nesse momento que os políticos e o
Congresso sentem o pulso de quem comanda. Para comandar, o Presidente precisa
ter noção clara do que deseja fazer na administração e por intermédio de que
pastas. No meu caso havia uma
245
obsessão inicial óbvia: continuar o que começara, a estabilização.
Portanto dediquei-me, mesmo antes da posse, a escolher os colaboradores da área
econômica. E não se tratou de tarefa fácil.
A primeira pessoa com quem conversei sobre a composição do governo, lá por fins
de novembro de 1994, foi Tasso Jereissati, recém-eleito pela segunda vez
governador do Ceará. Ele tinha sido o articulador principal das eleições e era
presidente do PSDB, e sempre nos entendemos muito bem. Abordei em especial a
área económica, pois havia rumores de que alguns de seus componentes queriam
deixar o governo. Em dezembro chegou a vez do primeiro convite: queria Edmar
Bacha como ministro da Fazenda.
Não obtive êxito: Bacha estava cansado do governo, de morar em Brasília e queria
voltar ao Rio de Janeiro e se dedicar à família. O argumento era de difícil
contestação:
- Assim acabo me separando de minha mulher. Ela ficou trabalhando no Rio, e eu,
afogado de trabalho em Brasília esses meses todos. Para mim, não está dando
mais.
No limite, consegui que aceitasse a presidência do BNDES, cuja sede é no Rio.
Chamei Pedro Malan, já que eram os dois a meu ver mais adequados para a
função. Foi também muito difícil. A família se adaptara completamente à vida em
Washington, onde Malan residia como negociador da dívida externa, e resistia à
mudança. Conversei com Pérsio Árida.
Não poderia nomear André Lara Resende porque ele se afastara do governo e
assumira o comando de um banco privado, o Matrix. Nesta hipótese, pensei e disse
a alguns, nomearia José Serra, de todos o amigo mais próximo, economista
competente e relativamente crítico de algumas das políticas que vinham sendo
postas em prática. Com a eventual escolha de Serra concordou André, como Tasso
já assentira. Acabei não indo nessa direção pelos problemas que surgiriam com a
situação de ter, à frente da equipe económica, alguém que não participara do
trabalho de concepção e implantação do Plano Real.
Vários membros da equipe económica inclinavam-se por Clóvis Carvalho, pelo
extraordinário desempenho como secretário executivo do Ministério, pelas
qualidades pessoais e morais acima do comum e por sua capacidade de fazer
grupos funcionarem. Eu, no entanto, tinha outros planos para aproveitar sua
colaboração. Além disso, minha opinião, idêntica
246
no caso à de André, era de que são requisitos absolutos para um ministro da
Fazenda possuir conhecimentos sólidos, profundos de economia ou, então, força
política, e eles não se aplicavam a Clóvis.
Diante de minha insistência com Malan, ele acabou por aceitar o Ministério por um
curto período (falava em no máximo um ano, e durou oito...). Acho que o fato de
termos conseguido para sua família uma casa, e não um apartamento funcional,
colaborou para o "sim" de Malan.
Pressionei Pérsio Árida para que presidisse o BC. Pérsio, sempre hesitando entre o
sentimento do dever, que nele é forte, e seu estilo de vida pessoal - gosta de
música, de leitura, de vida acadêmica e do mercado -, disse-me que aceitaria,
observando, premonitoriamente:
- Mas só por um tempo, até o Armínio poder me substituir.
Gustavo Franco, que desejava a posição e tinha capacidade para exercêla, ficou no
comando da área externa do BC. Contra meu desejo, porém, Winston Fritsch,
importante colaborador do Plano Real, não quis continuar no governo.
O outro ponto nevrálgico de qualquer governo é o Ministério do Planejamento.
Inicialmente a idéia era de trazê-lo para junto do Planalto, como uma secretaria
próxima do Presidente, e entregá-lo a Paulo Renato Souza. O sociólogo Luciano
Martins, amigo de longa data, que ajudara a formulação do organograma de
governo e que depois se integrou à Assessoria Especial, concebera, junto com
Eduardo Jorge, uma Secretaria de Planejamento funcionando no Planalto, que
cuidaria também do Orçamento.
Discuti muito o futuro político de Serra
Eu queria muito que José Serra, não podendo ficar no comando da
equipe económica, integrasse o governo. Isso tanto pela proximidade que
temos como por sua incrível capacidade de trabalho e inteligência analítica.
Meu outro objetivo fundamental era recompor as áreas sociais, à frente os
Ministérios da Educação e da Saúde, para colocar em marcha políticas universais
de acesso à cultura, à cidadania e ao bem-estar social. Não consegui convencer
Serra a tocar uma das duas pastas. Parecia-me que, além de ganhar um
colaborador de primeira nessas áreas-chave, qualquer dos dois ministérios lhe
abriria mais facilmente um caminho político-eleitoral do que as pastas económicas.
Seria difícil obter êxito eleitoral gerindo
247
ministérios econômicos. A situação que vivi graças ao Plano FHC, que virou Real e
pôs fim à inflação, dificilmente se repetiria.
Minha opinião não era compartilhada por Serra. Conversei muito com Sérgio Motta
sobre as perspectivas de Serra na vida pública. Ele tinha talento e ambição política.
Eu achava que seu futuro dependeria de votos. Tentei convencê-lo disso, mas ele
compartilhava a obsessão de muitos economistas de pensar que sua carreira deve
estar ligada à respectiva área. Talvez não acreditasse em minha convicção de
um caminho eleitoral que passasse pelas áreas sociais. Quem sabe eu estivesse
tentando "enrolá-lo", poderia pensar. Nunca me disse nada a respeito, mas a
resposta era simples:
- Eu não sei nada de saúde e nem mesmo de educação. Não me sinto
à vontade.
Que futuro político de Serra era esse de que eu cogitava? A essa altura, era uma
preocupação genérica com um velho amigo cujo talento e capacidade eu admirava.
Não pensava especificamente em minha sucessão na Presidência, mas devo dizer,
neste livro, que para mim ele sempre foi uma possibilidade como meu sucessor, até
porque nenhum dos outros técnicos ou políticos que eu estava nomeando ministros
me parecia ter de antemão um caminho definido para chegar ao Palácio do
Planalto.
Os futuros membros do grupo económico e, principalmente, Sérgio Motta, que
gozava de grande proximidade e prestígio junto a mim, considerando o peso técnico
e político de Serra, pressionaram para que eu o colocasse no Planejamento. Relutei
um pouco pelas razões já expostas em relação à cogitação de seu nome para a
Fazenda, e novamente por temer choques de pontos de vista e de temperamento,
dessa feita entre o time da Fazenda e a equipe do Planejamento. Preferia Paulo
Renato, mas avaliei que Serra tinha como ninguém os contatos e o pulso
necessários para negociar o Orçamento com o Congresso, a que pertencera
como deputado e para o qual fora eleito senador a 3 de outubro.
Tomada a decisão, sobrava a questão para mim crucial de escolher bons ministros
da Educação e da Saúde. A ela me dediquei. Primeiro tratei de convencer Paulo
Renato, desagradado por ter perdido o Planejamento, de que muito haveria a fazer
na Educação. Consegui. Em seguida, tentei Ciro Gomes para a Saúde. Achava,
com a experiência de lidar com os vários ministérios desde que me encarreguei da
Fazenda, que a boa
248
condução do Ministério da Saúde, assim como do da Educação, dependeria mais de
capacidade gerencial e conhecimento dos mecanismos orçamentários do que de
know-how específico das respectivas matérias, que poderia ser preenchido por
equipes técnicas competentes. Sentia-me devedor a Ciro Gomes pela disposição
que teve de deixar o governo do Ceará para substituir Rubens Ricupero na
Fazenda, em pleno momento eleitoral. Embora, como na época ele próprio
reconhecia, ainda sem um perfil nacional e o conhecimento das sutilezas político-
administrativas de Brasília, tinha reputação de haver realizado um bom governo.
Convidei-o, pois, para a Saúde. Ele, entretanto, declinou do convite, dizendo que
iria estudar nos EUA e que, se no futuro eu tivesse que trocar algum ministro,
poderia considerar seu ingresso no governo.
Almoçamos sozinhos, na casa alugada pelo PSDB em Brasília, e Ciro me disse com
franqueza:
- Preciso de um tempo. Quero estudar para me preparar melhor.
Pareceu-me sincero.
Não dei razões para a ruptura de Ciro
A ida de Ciro para uma temporada em Harvard talvez tenha marcado o início de sua
distância em relação a mim e a meu governo. Ele aproximouse de Mangabeira
Unger, crítico da política econômica que eu adotava, e suas próprias críticas a mim
começaram por ela. Conhecera-o no Ceará como jovem impetuoso e de futuro,
como parceiro de Tasso Jereissati, que apoiou sua vitoriosa candidatura a prefeito
de Fortaleza, em 1988, e depois à sua sucessão como governador do estado, em
1990. Tinha dele uma boa imagem, embora certa feita haja me impressionado mal a
agressividade com que atacou Eduardo Azeredo durante um encontro do PSDB na
Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio.
Os reparos de Ciro à ação econômica do governo subiram de tom e se estenderam
ao terreno político. Embora seja difícil avaliar políticos pela via da psicologia, passei
a ver no ex-governador traços de um iconoclasta, que busca a notoriedade
postando-se contra quem está no poder. O fato é que não propiciei motivos para
que rompesse comigo.
Rememorando eventos, contudo, considero possível que a raiz de seu afastamento
possa estar num episódio acontecido no processo de sua escolha
249
- que men cionei anteriormente - como ministro da Fazenda do Presidente Itamar,
em substituição ao embaixador Ricupero. Como Itamar se detivera sem hesitação
no nome do governador do Ceará, eu, já candidato ao Planalto e logicamente
interessado na continuidade do real, julguei ser meu dever ajudar o Presidente a
convencer Ciro, bastante relutante diante da perspectiva de assumir a Fazenda.
Tivemos um encontro no meu apartamento à rua Maranhão, em São Paulo. Disse-
lhe que, se aceitasse o convite do Presidente, eu próprio lhe ficaria grato.
-Você vai nos tirar do sufoco - explicitei.
E Ciro:
- Não sei se vai dar certo. Você sabe o meu jeito lá no Ceará. Tenho um jeito meio
estabanado de fazer política, não sei se vai funcionar em
nível nacional.
Insisti. E também adiantei que ele seria nome certo em meu governo,
em caso de vitória. Só que acrescentei:
- Mas não na área económica.
Talvez o problema todo tenha começado com essa frase.
O distanciamento que mantivemos não impediu que, já no final de meu primeiro
mandato, quando Ciro pretendia candidatar-se à Presidência e dava sinais de que
deixaria o PSDB, eu quisesse interferir para mantêlo em nosso partido. Tasso me
pediu que não, que ele próprio cuidaria do assunto. Muita gente gostava de Ciro no
PSDB. De São Paulo, o governador Covas me cobrava uma atitude. Ciro acabou,
mesmo, indo para o PPS do deputado Roberto Freire (PE). Considero um erro
político essa saída easy rider, solitária. Em política, há que se jogar com um time e
com um elenco de idéias. Se Ciro tivesse se mantido fiel ao PSDB, e com
uma atitude de mais equilíbrio, menos estabanada, poderia ter chegado a alturas
maiores.
Na campanha da reeleição, em 1998, efetivamente Ciro, candidato pelo PPS, atacou
muito ao governo e a mim. Tempos depois das eleições, recebi recado de Tasso de
que ele gostaria de ter um encontro comigo.
Recebi-o no Planalto. Explicou que suas críticas eram políticas, não pessoais,
reafirmou suas principais discrepâncias, mas desculpou-se por eventuais exageros
cometidos. Pareceu-me um gesto conciliatório, embora mais adiante ele voltasse às
críticas, muitas delas duríssimas. Como é de meu feitio,
250
porém, tento não misturar política e relações pessoais. Mesmo rompidos, telefonei a
sua mulher, a atriz Patrícia Pillar - a quem não conhecia pessoalmente -, para
solidarizar-me quando soube do câncer que ela terminaria vencendo. Também
telefonei a Ciro quando seu pai, José Euelides, ex-prefeito de Sobral (CE), faleceu.
Voltaria a encontrá-lo de modo circunstancial, como quando do casamento de uma
das filhas do Presidente Itamar, no Rio - ele me cumprimentou civilizadamente -,
e, mais tarde, quando me preparava para firmar acordo com o FMI em 2002
e julguei ser meu dever informar com detalhes, um a um, os candidatos
à Presidência, conforme narro ao longo do Capítulo 6.
Curiosamente, para alguém que passou a me recriminar severamente depois de
termos sido aliados e companheiros, Ciro havia sido, anos antes, o principal
defensor de minha ida para o governo que terminou maldito: o de Fernando Collor.
A primeira tentativa de me atrair para o governo Collor antecedeu sua posse,
ocorrida a 15 de março de 1990. A sondagem se deu durante visita a meu
apartamento em São Paulo do senador Carlos Chiarelli (PFL-RS), que iria assumir o
Ministério da Educação. Éramos colegas de Senado, ele líder de seu partido, eu do
PSDB, e nos dávamos bem. Não se tratava de incorporar o PSDB ao governo, mas
de minha eventual ida, individualmente, para o Itamaraty. Respondi a Chiarelli com
franqueza:
- Não tem cabimento. Trabalhei para o Mário Covas no primeiro turno e nós,
tucanos, subimos no palanque do Lula no segundo, justamente contra Collor.
O assunto morreu ali.
Anos depois, em abril de 1992, o tema recomeçou quando Collor chamou Jorge
Bornhausen para um cargo político denominado Secretaria de Governo. Era o início
do que se tornaria uma grande reforma ministerial para o Presidente enfrentar os
primeiros esboços da crise que viria a derrubá-lo, com a incorporação ao governo
de um grupo dos assim chamados "ministros éticos", como o ex-embaixador Marcílio
Marques Moreira indo para o então existente Ministério da Economia ou o ex-
ministro do STF Célio Borja assumindo a Justiça. Jorge viajou a São Paulo e
se encontrou comigo no bar do hotel Maksoud Plaza. Antes de narrar as linhas
gerais da reforma e do que ele próprio pretendia no governo, me avisou:
251
- Não vou falar com você agora sobre sua ida para o governo porque você vai
recusar. Mas quero que saiba que estou indo, pretendo fazer uma grande
transformação lá e vou precisar de vocês [os tucanos].
Tempos depois, eu estava em viagem ao exterior e Jorge tentou, sem conseguir,
falar comigo em Moscou. Da Rússia segui para a Itália, onde me esperava um
compromisso com um grupo de trabalho em ciência política no campus da
Universidade de Bolonha, em Forli. José Serra me alcançou ao telefone e colocou-
me a par dos rumores sobre a eventual participação de tucanos no governo - a que
ele se manifestava totalmente contrário -, começando por mim, novamente cotado
para as Relações
Exteriores.
Na volta, Pimenta da Veiga esperava-me no aeroporto de Brasília. De pronto me
informou que Collor solicitara uma conversa com os tucanos mas que a direção do
partido, reunida, havia decidido recusar a ida ao Planalto. Repliquei que achava
errado qualquer grupo político negar-se a conversar com o Presidente da República.
O ato seguinte seria uma reunião da Executiva do PSDB, no edifício anexo ao do
Senado, durante a qual vários integrantes, entre os quais Franco Montoro,
Tasso Jereissati e eu concordamos em que, até por elementar cortesia, deveríamos
nos avistar com Collor. Afinal, ele não nos apresentara proposta alguma: o convite
era para conversar.
A Executiva designou Tasso e eu para irmos ao Planalto. Entramos pela garagem.
Dirigi-me à sala de Bornhausen, e Tasso, como presidente do partido, reuniu-se
com Collor. Daí a algum tempo, o Presidente nos chamou. Após as amenidades de
praxe, disse-me, chamando- me pelo primeiro nome, como fazíamos um com o outro
desde quando colegas no Congresso - eu no Senado, Collor como deputado:
- Olha, Fernando, o Tasso não está querendo aceitar, mas eu preciso de vocês.
Gostaria de ter você nas Relações Exteriores e ele no Ministério de Minas e Energia
(MME). Preciso de gente com quem eu me entenda, gente de uma nova geração de
políticos, como vocês.
Ao longo da reunião, ficara claro para nós que Collor não queria o PSDB ajudando-o
a formular políticas, a mudar de rumos sua administração, a nada. Queria ter a grife
do partido no governo, que já estava montado e preparado há algum tempo, com
tudo definido. O partido não teria voz nem vez no governo, não influiria em coisa
alguma.
252
Respondi:
- O Tasso não veio aqui para ser ministro, eu também não. Viemos para ouvi-lo.
Com sua maneira impaciente, ele nos deu 24 horas para decidir. No carro rumo à
casa do senador Sérgio Machado (CE) num setor de Brasília denominado Parkway,
onde a Executiva novamente se reunia, Tasso me deixou claro que não aceitaria o
convite, mas me apoiaria caso eu decidisse dizer sim. Disse o mesmo a ele. Da
casa de Sérgio, telefonei a Covas, informei-o do que ocorrera e pedi que viesse à
reunião. Ele tinha um compromisso antes, uma rápida entrevista à TV Manchete. Na
sucursal da rede em Brasília, como era inevitável, perguntaram sobre os tucanos no
governo Collor, e Covas, obviamente, disse que ninguém aceitaria participar. Muita
gente acha ainda hoje que Covas "vetou" a entrada de Tasso e a minha no governo,
mas não houve nada disso, muito menos qualquer má-fé por parte do senador. Ele
não se ofereceu à TV Manchete, nem atropelou a Executiva. Disse o que pensava,
que era o que os demais pensavam.
E foi nesse segundo encontro da Executiva que Ciro se alterou. Ele era favorável a
que Tasso e eu aceitássemos o convite. Covas defendia posição radicalmente
contrária, e um se exaltou com o outro. Ao fim do encontro, Serra e Euclides Scalco
foram designados para comunicar nosso "não" a Bornhausen, o que fizeram
naquela mesma noite. Circularam várias versões e contraversões a respeito do
episódio, mas o que ocorreu, e que presenciei, se deu exatamente assim.
Militares: o requisito era apoiar o Ministério da Defesa
Voltando à formação do governo, diante da recusa de Ciro em ocupar o Ministério da
Saúde, inclinei-me por Adib Jatene, que fora ministro na fase final do governo Collor.
Não apenas um grande cirurgião, Jatene era conhecedor do Orçamento da
República, grandemente respeitado e bataIhador. Eu pensara nele para ministro de
Ciência e Tecnologia, pois também é inventor e tem interesse pela matéria. Por
intermédio de um amigo comum, o médico Adolpho Leirner, mantive um encontro
com Jatene em São Paulo, sem que fosse registrado pela mídia. Alguns dias depois
o chamei para a entrevista conclusiva.
253
Os comandantes das Forças Armadas, que ainda conservavam status de ministro,
também deviam ser de escolha direta do Presidente. Convidei o general Zenildo de
Lucena, que já ocupava o cargo de ministro do Exército, para permanecer.
Acompanhei seu trabalho no governo Itamar, ele me apoiou dentro do governo nas
negociações sobre o Plano Real e eu o admirava por ser discreto, eficiente, de trato
fácil, além de ter autoridade. Não me decepcionou, comandando a tropa com
tranqüilidade, tanto quanto o general Gleuber Vieira - que era o chefe do Estado-
Maior do Exército e, com a criação do Ministério da Defesa no segundo mandato,
passou a ser comandante do Exército - seguiu as linhas de profissionalismo e
serenidade do antecessor. Para a Aeronáutica nomeei o brigadeiro Mauro Gandra,
que gozava de prestígio na Arma, e para a Marinha, depois de certa hesitação, fiz
convite ao almirante Mauro César Rodrigues Pereira. A hesitação se deveu a uma
definição prévia que eu tomara: a criação do Ministério da Defesa.
A criação dessa pasta era importante para melhorar o desempenho conjunto das
Forças Armadas e porque ela simbolizava um relevante avanço democrático,
exprimindo com maior clareza a subordinação dos militares ao poder civil. Nenhum
dos meus antecessores quis colocar a mão na cumbuca, possivelmente temendo as
reações dos militares. Decidi mudar esse estado de coisas, com paciência mas com
determinação. Não tinha certeza do apoio à idéia por parte de alguns oficiais-
generais. Por isso, estabeleci a aceitação da tese como condição prévia para
as nomeações. No caso da Marinha, pedi a Eduardo Jorge, com trânsito na área por
causa de seu irmão, o almirante Tarcísio, que consultasse o eventual futuro ministro
antes da conversa final comigo. O almirante Mauro César respondeu de forma
positiva à sondagem, e declarou-se a favor da criação do Ministério da Defesa,
embora mais tarde tenha se mostrado relutante a respeito. Quanto à chefia do Emfa,
escolhi o general Benedito Leonel, amigo do senador José Richa, com quem
mantive longas conversações. Pensava inicialmente nomeá-lo ministro do Exército.
Se não o fiz, nada teve a ver com falta de competência e confiança, mas porque
queria manter o general Zenildo na pasta e porque era decisivo encontrar o homem
certo para encaminhar a formação do Ministério da Defesa. Confiei a tarefa ao
general Leonel e ele, também por sua posição no Emfa, com uma
254
visão global dos demais ministérios militares, e sempre contando com o apoio do
general Alberto Cardoso6 e de Clóvis Carvalho, trabalhou paciente e habilmente até
alcançar o alvo desejado.
Em poucas palavras: nomeei os ministros da área militar que quis e nas condições
que quis e deles não tenho senão memória de lealdade. Apesar das inúmeras
dificuldades orçamentárias para atender tanto a parte salarial como a do
equipamento de Exército, Marinha e Aeronáutica, e a despeito das suscetibilidades
políticas que poderiam advir da minha firme disposição de rever os abusos do
período dos governos militares, tanto os ministros inicialmente nomeados como os
que os sucederam mantiveram a disciplina e o profissionalismo necessários para o
bom funcionamento das Forças Armadas em uma democracia.
Como informei aos militares a decisão de rever os abusos
Sobre minha disposição de encarar a questão, naturalmente delicada, dos abusos
da ditadura, vale estender-me a respeito da conversa franca que tive com meus
ministros militares logo no início do governo, durante um jantar na residência oficial
do ministro da Marinha, no Lago Sul.
Acompanhou-me o general Cardoso, chefe da Casa Militar. Presentes, além do
almirante Mauro César, anfitrião, os generais Zenildo e Benedito Leonel e o
brigadeiro Gandra. Jantar agradável, com todos em manga de camisa, sem as
esposas. Propus um brinde à democracia, brincando com eles que, afinal, o
Presidente da República estava reunido com os ministros militares e não apenas
ninguém estranhava o fato, como nem sequer a imprensa andava em nosso
encalço.
Depois do jantar, passamos a uma sala de estar ao lado. Disse, então, que
pretendia promover reparações no caso das pessoas mortas, desaparecidas,
torturadas ou presas de forma ilegal durante o regime militar. Expliquei que não se
tratava de uma questão política, mas de direitos humanos e, para mim, se revestia
até de um caráter existencial.
Nota: 6 Devo ao general Zenildo a indicação de Cardoso para a Casa Militar.
Para o processo de criação do Ministério da Defesa, ver Eliezer Rizzo de Oliveira,
Democracia e defesa nacional: a criação do Ministério da Defesa na Presidência de
FHC, Barueri, Manole, 2005. Fim da nota.
255
Narrei-lhes a própria experiência pessoal de minha breve, e nem por isso menos marcante,
prisão pelo DOI-Codi, em 1975, a que já me referi de passagem ao longo do
Capítulo 1. O que sucedeu comigo não foi nada diante do ocorrido com tantas
pessoas durante o período autoritário. Nunca utilizei essa passagem de minha vida
como argumento político, e poucas vezes comentei-a fora do círculo de pessoas
próximas. Mas julguei ser oportuno fazer o relato a meus ministros militares.
Descrevi-lhes as tentativas de intimidação e grosserias que me foram dirigidas, já
sem o capuz que me haviam colocado para levar-me aos porões da rua
Tutóia, situada no bairro ironicamente denominado de Paraíso, em São Paulo.
De uma patética ameaça que meus interrogadores proferiram contra
Roberto Campos - sim, o grande economista conservador, ex-ministro do
marechal Castello Branco e um dos Grandes Satãs prediletos das esquerdas -
por terem lido notinha de jornal sobre um jantar a que ele e eu comparecemos. Das
barbaridades que vociferavam contra o governador de São Paulo, Paulo Egydio
Martins. Contei-lhes que, tal como um delinqüente, fotografaram-me com algum
número, talvez uma data, para me identificar junto aos chamados órgãos de
segurança (a foto deve existir em algum arquivo dessa época; jamais me preocupei,
mesmo como Presidente, em procurá-la, o que vale igualmente para eventuais
dossiês que existiram a
meu respeito).
Os interrogadores queriam saber de mim sobre o movimento trotskista na Argentina
e no Uruguai, a respeito de que, obviamente, eu não tinha a mais longínqua idéia.
Eram vários, que se revezavam na saraivada de perguntas, gritos e ameaças.
Ostentavam um monte de papéis, sabe-se lá de onde. Perguntavam qual era a
minha organização. "O Cebrap", respondia... Até que percebi a origem de pelo
menos parte das perguntas.
Eu estivera num evento na Universidade do México, em Oaxaca, de que também
participou o teórico marxista alemão Ernst Mandei, principal líder do movimento
trotskista internacional, com quem, por sinal, debati e de quem divergi em várias
passagens. Na hora de embarcar no aeroporto para voltar ao Brasil, porém, coincidiu
de me encontrar com Mandei e sua mulher. Fiz a gentileza de carregar a mala dela,
e alguém fotografou. Sabe-se lá como, essa foto deveria ter chegado aos
chamados órgãos de segurança. Ali estava a razão de meu "envolvimento" com
o trotskismo
256
de que queriam saber os interrogadores. Tudo isso relatei a meus ministros militares.
Inclusive que, a uma certa altura na sede do DOI-Codi, lembrando-me de conselho
de meu pai para a hipótese de prisão - "nunca deixe de manter algum diálogo com o
carcereiro" - , disse a um deles que queria ir ao banheiro. Indicaram-me o caminho,
e, ao longo dele, vi, no chão de uma cela, pessoas inequivocamente torturadas.
Os ministros me ouviam sem interromper. Disse-lhes que até mesmo recordava do
nome do militar responsável pelo DÓI, um certo coronel Paes. O general Zenildo
sabia de quem se tratava. Era o coronel José de Barros Paes, chefe da Segunda
Seção do Estado-Maior do então denominado II Exército, que não comandava o
DÓI, mas ao qual o organismo era, pelo menos teoricamente, subordinado.
(Posteriormente eu viria a saber que, depois do assassinato de Vladimir Herzog no
calabouço da rua Tutóia, no final daquele mesmo 1975, o Exército o transferiu para
uma unidade em Mato Grosso.) Estava ainda vivo, contou-me o general Zenildo, e
em Mato Grosso. Lembrou-se que tinha um esdrúxulo apelido. Pois bem,
acabei depois de minha prisão estando duas ou três vezes com esse coronel,
no quartel- general do II Exército, ao lado da sede da Assembléia Legislativa de São
Paulo, onde ficava seu gabinete, para reclamar da prisão de companheiros do
Cebrap, como o economista Paul Singer e o sociólogo Vinícius Caldeira Brant.
Numa das visitas, acompanhou-me Juarez Brandão Lopes. Não sei exatamente
como me permitiram chegar à sala dele - talvez devido a essa característica tão
brasileira de a pessoa chegar, vestida formalmente e pisando firme, com ar de
classe dominante, para então ver as portas se abrirem sem que lhe
façam perguntas. Por alguma razão, o coronel mantinha um rádio ligado, em
alto volume. Cheguei a ter altercação com ele, que, diante de meu protesto ante
violências físicas cometidas contra colegas meus, alegava que eu falava sobre
coisas que "não existiam". Lembrei-lhe que vi marcas de tortura em Vinícius
Caldeira Brant e, diante de suas juras de amor ao país, contestei que não era ele
quem iria me dar lições de patriotismo.
O jantar e a conversa com os ministros militares terminaram como começaram, em
clima agradável e cortês. Os ministros, comunicados de minha intenção de criar a
comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos, e de iniciar um processo
de reparação aos atingidos pelo regime
257
militar,7 não opinaram, já que era decisão tomada por seu chefe, mas receberam-na
com naturalidade.
O porquê de Sérgio Motta e a surpresa com Pelé
Da mesma forma como procedera com os ministros militares, escolhi por critérios
pessoais os outros colaboradores das áreas afins com a Presidência. Nomeei como
ministro das Relações Exteriores o embaixador Luiz Felipe Lampreia, secretário-
geral do Ministério em meu período como chanceler. Diplomata completo, deu
continuidade e impulso ao que eu considerava essencial nessa matéria. Tive apenas
dois chanceleres. Além de Luiz Felipe, nomeei no segundo mandato antigo
companheiro meu, Celso Lafer, intelectual respeitado, professor da Faculdade de
Direito da USP e grande conhecedor de nossa diplomacia, ex- embaixador junto
à Organização Mundial do Comércio (OMC) e ex-chanceler na fase final do governo
Collor. Para a Secretaria de Assuntos Estratégicos trouxe outro diplomata, o
embaixador Ronaldo Sardenberg, na época nosso representante na ONU. Desloquei
Sardenberg nos primeiros meses do segundo mandato para o Ministério de Ciência
e Tecnologia, onde desempenhou papel notável. Ele assentou novas bases para o
avanço dessa área, que já se havia beneficiado muito com a ação do professor
José Israel Vargas, ministro da pasta no governo Itamar e que mantive durante todo
o primeiro mandato. Vargas, velho amigo desde quando alunos da USP, pôde
realizar um trabalho sério durante os seis anos em que chefiou o Ministério.
Na Saúde, Jatene resolveu deixar o governo em novembro de 1996.
Estava insatisfeito com as restrições orçamentárias ao uso das verbas que
ele obtivera por ter batalhado fortemente, desde o governo anterior, em favor do
novo imposto que se tornaria a CPMF, destinado a financiar os gastos de sua área.
Com a ajuda de Vilmar Faria, trouxemos para o cargo um médico que se
notabilizara na administração hospitalar em Porto Alegre,
7 Para a cerimônia em que assinaria os respectivos atos, convidei para estar
presente a advogada e batalhadora pelos direitos humanos Eunice Paiva, viúva do
ex-deputado Rubens Paiva, amigo dileto a quem cheguei a auxiliar na campanha
eleitoral para a Câmara, em 1962, e que fora morto em janeiro de 1971, depois de
preso por agentes dos chamados órgãos de segurança, no Rio. Seu corpo jamais foi
encontrado.
258
Carlos César de Albuquerque. O ministro deu vigoroso impulso ao novo Plano de
Atendimento Básico da Saúde. Acabaria sendo substituído em março de 1998 por
José Serra, que se manteve na posição até quase o final do governo e teve tanto
êxito na pasta que dela saiu para ser candidato à Presidência da República, em
2002.
Também para o Ministério da Cultura procedi a uma escolha pessoal, o professor
Francisco Weffort, antigo aluno e meu colaborador na USP e na Cepal, meu amigo
e que, mesmo tendo sido secretário-geral do PT e assessor internacional do partido,
se dispunha a trabalhar comigo.
Percebi isso em sondagem que realizei durante um almoço na mesma casa alugada
pelo PSDB na região do Lago Sul de Brasília em que conversara com Ciro Gomes.
Weffort aceitara convite para comparecer a um seminário preparatório ao novo
governo, em dezembro, que eu ajudara a promover, de que participaram, como do
almoço, vários intelectuais, inclusive o já referido Albert Hirschman, o brasilianista
americano Alfred Stepan e o sociólogo francês Alain Touraine, amigo de longa data,
sempre interessado no Brasil. Na Cultura, Weffort realizaria um excelente trabalho e
acabou permanecendo os oito anos à frente do Ministério, assim como aconteceu
com Paulo Renato e Malan. (Ronaldo Sardenberg também ficou oito anos no
governo, mas em dois diferentes postos.)
Nomeei ainda, dentro do que chamei de minha quota pessoal, os ministros da
Administração e Reforma do Estado, das Comunicações e o da Comunicação
Social. Para a primeira dessas pastas indiquei o antigo companheiro Luiz Carlos
Bresser-Pereira, ex-tesoureiro das minhas duas campanhas e que caro pagou por
isso, graças às infâmias de uns poucos membros do Ministério Público que, a
despeito de todo tipo de devassa com base em hipóteses, nada encontraram que o
desabonasse, nem aos demais correligionários que trabalharam nessa função
extremamente espinhosa. Ocorre que uma planilha de avaliação de possibilidades
de arrecadação caiu nas mãos de uma repórter da Folha de São Paulo e terminou
sendo publicada como se se tratasse de dinheiro efetivamente doado à nossa
campanha, supostamente não declarado à Justiça Eleitoral.
Integrantes do Ministério Público convocaram empresários para prestar depoimento,
escarafuncharam o que podiam e não encontraram nada irregular - não se instaurou
sequer processo.
259
Até poucas horas antes de anunciar a composição do Ministério passei grudado no
telefone com Bresser, que estava em São Paulo e eu em Brasília, discutindo o
alcance de sua gestão. Meu desejo era lançar as bases de um novo Estado, mais
ágil e competente, que nada tinha a ver com a imagem que as oposições tentaram
grudar de um mini-Estado, de corte neoliberal. Bresser, professor da FGV de São
Paulo, espírito inovador, deu um empurrão importante na modernização da
máquina pública.
Para a Secretaria encarregada da comunicação institucional do governo, a de
Comunicação Social, nomeei inicialmente Roberto Muylaert, que cogitara para o
Ministério da Cultura, dado seu desempenho criativo na direção da Fundação Padre
Anchieta, gestora da TV Cultura de São Paulo.
Muylaert, entretanto, nunca se sentiu muito à vontade na função, mesmo porque na
época os recursos para publicidade e as maiores possibilidades de atuar ficavam no
âmbito das estatais e de cada Ministério, e não centralizados na Comunicação
Social Em abril de 1995, deixou o governo, sendo substituído pelo embaixador
Sérgio Amaral, que passou a exercer o cargo cumulativamente com as funções de
porta-voz do governo.
Uma escolha a ser pesada com grande critério era a do titular do Ministério das
Comunicações. Sabia que a área requeria profundas reformasão Paulo Renato Souza,
Vilmar Faria e Eduardo Jorge haviam preparado na plataforma eleitoral as diretrizes
para o impulso que veio a ser dado mais tarde com a privatização da Telebrás. Eu
pensara nomear Sérgio Motta, que seria o ministro, para a presidência da
Eletrobrás, dada sua experiência anterior, durante o governo Montoro, como vice-
presidente da Eletropaulo, na época estatal paulista da área de energia. Sérgio
mostrou-se tão trabalhador, dedicado e competente durante a campanha eleitoral
de 1994, da qual foi coordenador-geral, que, sendo figura de proa do PSDB, ganhou
a confiança do PFL e do PTB.
Vi seu nome na mídia para a pasta das Comunicações e observei as reações,
positivas. Havia o boato de que a pasta viria a ser entregue a "alguém ligado à
Globo'*, organização cujos proprietários jamais mencionaram o tema a mim e que,
procurada para obter informações técnicas sobre pessoal competente, reafirmou
que não esperava nada do governo no plano ministerial e que desejava apenas
seriedade e equanimidade. Mesmo assim, e não só por causa da TV Globo, nesta
área o ditado sobre a mulher de César é absolutamente válido.
260
Os antecedentes de manipulação política na concessão de canais de rádio e TV me
levavam a redobrar os cuidados com ela. Entregue a pasta a Sérgio Motta, ficava
claro que eu a controlava, não partidos ou interesses empresariais. Além disso,
dado seu caráter impulsivo, sendo Sérgio o poderoso ministro das Comunicações
os adversários teriam receio de preparar armadilhas para ele. Nomeei-o e mostrou-
se um colosso na rearticulação de todo o sistema de telecomunicações.
Na apresentação do Ministério em uma conferência de imprensa, reservei uma
surpresa: nomeei Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, para o recém-criado
Ministério de Esporte. A escolha de Pelé merece um registro à parte, por ser meu
ex-ministro a figura única que é e também pelos lances um tanto cinematográficos
que envolveram o encontro em que acertamos sua vinda para o governo. De início,
minha opção era por uma Secretaria de Esportes, e sondei o jornalista Juca Kfouri,
que eu conhecera ainda estudante do primeiro ano de Ciências Sociais na
USP como aluno de Ruth na cadeira de Antropologia e que sempre lutara, ao longo
da carreira, pela moralização do esporte. Juca, entretanto, não se via na vida
pública, e não aceitou. Mas se propôs a me ajudar. Com Sérgio Motta no circuito,
logo se chegou ao nome de Pelé. Não imaginávamos que aceitaria um convite. A
nosso pedido, Juca telefonou para Pelé, que se encontrava em Nova York. Juca me
relataria a reação do craque:
- Já recebi três convites desse tipo antes. Mas com o Fernando Henrique acho que
vou aceitar.
O passo seguinte seria marcar um encontro entre nós, que eu não pretendia tornar
público por duas razões: poderíamos não chegar a um acordo e, mesmo que tudo
corresse bem, gostaria de manter a surpresa do anúncio. Juca ofereceu o local: sua
casa, um apartamento à rua João Lourenço, no bairro de Vila Nova Conceição, em
São Paulo. No dia combinado, o encontro se daria às 9h30. A mídia, que me seguia
por toda parte, já sabia de minha programação, oficialmente uma visita a um ex-
aluno (ele participara de seminários em que atuei depois de ter sido afastado da
USP pelo governo militar). Nem imaginava que Pelé estaria presente. Para evitar
risco de vazamentos, o anfitrião prontificou-se a, com grande antecedência, buscar
pessoalmente Pelé em seu carro. O craque chegou à garagem do edifício às 8
horas, deitado no chão do Fiat Tempra de Juca e tendo o corpo coberto por um
paletó.
261
Observado por um batalhão de jornalistas, subi ao apartamento na hora combinada.
Pelé e eu conversamos sobre o novo Ministério e sobre a necessidade de moralizar
os esportes, sobretudo o futebol. Pelé, além de glória nacional e esportista mundial,
nunca deixou de ter preocupação social. Com generosidade e espírito público, se
dispôs a ajudar-me, aceitando o encargo. Explicou que tinha contratos
de divulgação comercial no Brasil e no exterior. Diante de ponderações minhas,
imediatamente dispôs-se a cancelar tudo o que se referisse ao país, evitando
conflitos de interesse. Num determinado momento, toca o interfone. Alguém quer
falar com Juca. Era uma repórter do SBT que pergunta:
- O Pelé está aí?
Como parte do despiste, Juca deu uma gargalhada e respondeu:
- Mas não basta estar aqui o Presidente da República? Você também
quer que esteja o Rei?
Acertados os ponteiros com Pelé, despedi-me e segui para outro com promisso,
brincando com Juca, enquanto ele me acompanhava até a garagem:
- Agora você é que tem que tourear os seus amigos da imprensa. Ele me contaria
depois que, conversando com os colegas, ninguém
acreditou na história da visita a um ex-aluno. Os repórteres estavam certos de que
eu o convidara para o Ministério. Acabaram, no entanto, indo embora, exceto a
insistente jornalista do SBT. Juca já tinha passado da hora de sair para o trabalho -
aguardavam-no os deveres de diretor de revista na Editora Abril - e precisou deixar
Pelé um tempo mais em sua casa. À saída da garagem, topou novamente com a
repórter.
Ela continuava desconfiada de que Pelé estivera no apartamento e poderia, só
agora, estar se esgueirando para fugir da imprensa. Juca abriu as janelas do carro,
descortinando o ulterior, e ofereceu- se para abrir o porta-malas. Convencida, a
moça finalmente capitulou. Pelé sairia dali a pouco, novamente deitado no chão de
um automóvel - desta vez, o Santana de Leda, mulher de Juca -, e uma vez mais
coberto com o paletó.
Do trabalho de Pelé no Ministério, entre várias outras iniciativas que beneficiaram o
esporte, resultou a Lei Pelé. Avaliações que me chegaram de diversos setores
indicaram que a lei significou um marco na modernização possível do futebol
brasileiro, incluindo o fim da escravidão profissional que era o "passe" dos
jogadores. Somente seria aprovada tendo
262
alguém como Pelé à frente. Infelizmente, porém, depois que Pelé deixou
o Ministério, em abril de 1998, começaram pressões para modificá-la. Mais adiante,
uma série de mudanças promovidas por parlamentares, à frente o senador Maguito
Vilela (PMDB-GO), acabou por desvirtuá-la.
Durante a fase da transição meus colaboradores haviam definido as linhas gerais de
um programa novo, que veio a ser denominado Comunidade Solidária. Ele resultou
da cooperação entre Ruth Cardoso, Vilmar Faria e a socióloga Ana Peliano, do
Ipea, órgão ligado ao Ministério do Planejamento. Além de sua excelente reputação
profissional, Ana conhecia perfeitamente os meandros burocráticos. Este programa
se dividiria em duas partes. Uma, para obter recursos privados e
dinamizar parcerias, seria dirigida por um Conselho, composto por gente do governo
e da sociedade civil8 e presidido por Ruth. Outra, uma secretaria governamental,
que eu quis entregar a Euclides Scalco. Com a recusa deste, optei por Ana Peliano.
O conjunto de ações desse programa teria um caráter inovador e ajudaria o governo
a focar os programas sociais para serem implementados por meio dos ministérios
da área social, como Educação e Saúde, e da Secretaria de Ação Social do
Ministério da Previdência. Como havíamos
Nota: ' Os primeiros conselheiros da sociedade civil que designei (biénio 1995-1996)
foram: André Roberto Spitz (Furnas e Comité das Entidades Públicas no Combate à
Fome e pela Vida), Arzemiro Hofrnann (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil), Augusto de Franco (Comunidade Solidária), Denise Dourado Dora (Themis,
Assessoria Jurídica e Estudos de Género), dom Luciano Mendes de Almeida
(CNBB), Érem de Aguiar Maranhão (Universidade Federal de Pernambuco,
UFPE), Gilberto Gil (cantor e compositor), Hélio de Souza Santos (Núcleo
de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro, Neib), Herbert José de Souza, o
Betinho (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Económicas, Ibase), Joaquim de
Arruda Falcão Neto (FGV), Jorge Eduardo Saavedra Durão (Federação de Órgãos
para Assistência Social e Educacional, Fase), Maria do Carmo Brant de Carvalho
(Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária,
Cenpec, e PUC-SP), Miguel Darcy de Oliveira (Instituto de Ação Cultural, Idac), Ney
Bittencourt de Araújo (Associação Brasileira de Agrobusiness, Abag), Pedro
Moreira Salles (Unibanco), Regina Duarte (atriz e produtora), Renato Aragão (ator e
embaixador do Unicef), Romeu Padilha de Figueiredo (Câmara dos Deputados),
Ruth Cardoso (Comunidade Solidária), Sérgio Eduardo Arbulu Mendonça (Dieese) e
Sônia Míriam Draibe (Núcleo de Estudo de Políticas Públicas da Unicamp, Neep).
Fim da nota.
263
extinguido o Ministério da Ação Social, bem como a Legião Brasileira de Assistência
(LBA), de má memória pela corrupção reinante em ambos no período Collor, quis
criar um órgão mais moderno e dinâmico, logo acoimado pelas oposições como
eleitoreiro. Os críticos não se pejaram de atacar o fato de a mulher do Presidente
estar à frente de um Conselho que, imaginavam, teria dinheiro público à disposição,
coisa que não passou por minha cabeça e não ocorreu. Confundindo o Conselho
com o órgão estatal dirigido por Ana Peliano, levou tempo para aprenderem que a
ação do programa Comunidade Solidária foi extremamente positiva
para implementar novos métodos de ação social, baseados na parceria entre
os setores público e privado, e nada tinha de eleitoreiro. Ruth, como eu esperava,
desempenhou-se com grande competência, trabalhando arduamente e
com discrição.
Todas as áreas mencionadas até aqui, fundamentais a meu projeto de governo,
ficaram abrigadas dos vendavais da política partidária. Com baixíssima rotatividade
de ministros, houve continuidade administrativa.
Sobre partidos, nomeações e sapos engolidos (ou não)
Assegurado o conjunto de ministros capazes de me ajudar a imprimir a marca que
eu queria de um governo responsável na economia, reformador e voltado, desde o
início, para a universalização do atendimento na educação e na saúde, tornou-se
mais fácil a negociação com os partidos.9 Isso não quer dizer que as demais pastas
tivessem importância menor ou que eu as tivesse deixado à sanha de interesses
menores.
Esclareço, para evitar aparecer bem na fotografia porque retocada: a ordem
cronológica não teve a rigidez do primeiro e do depois. As decisões se tomaram no
tumulto das pressões cotidianas. O que é necessário preservar, nessas
Nota: ' É de assinalar que preservei o conjunto da área econômico-financeira das
nomeações meramente políticas: BB, BC, Caixa Económica Federal, BNDES,
Banco do Nordeste, Banco da Amazónia, Receita Federal, Petrobras, as geradoras
de energia e similares. Com a privatização, muito do butim eleitoral perdeu sentido:
só nas teles foram eliminadas mais de cem nomeações para cargos de direção e
responsabilidade, em geral políticas. Em algumas circunstâncias fizeram-se
nomeações políticas, mas para cargos de menor responsabilidade e, sempre
que possível, houve compensação técnica no mesmo órgão para evitar
maiores desvios de rumo. Fim da nota.
264
circunstâncias, é o sentido geral, o propósito maior. Às vezes não se consegue nomear
a pessoa desejada para o cargo. Paciência, busca-se outra. Ou então a pressão
política leva à nomeação de alguém para um cargo que estaria mais bem servido se
fosse preenchido por livre escolha do Presidente. O que se vai fazer? São injunções
normais da vida política, que só se tornam graves quando se perde a capacidade
de definir o rumo principal. Inversamente, nem sempre a indicação partidária, só por
isso, é ruim. Existem bons quadros nos partidos e o Presidente sempre (ou quase
sempre) pode influenciar as escolhas visando melhorá-las e ajustá-las aos
propósitos fundamentais do governo. E há dirigentes partidários com espírito público
que cuidam de preservar os interesses da administração quando fazem suas
indicações.
Para incorporar o PMDB à base de apoio a meu governo, procurei o presidente do
partido, deputado Luiz Henrique, antigo companheiro cujas relações comigo se
estreitaram na legislatura de 1986, quando fomos líderes das bancadas do PMDB,
ele na Câmara, eu no Senado. Com a intermediação de Pimenta da Veiga,
presidente do PSDB, entabulou-se a negociação por meio de trocas de cartas, uma
de Pimenta, abrindo a possibilidade de participação, outra de Luiz Henrique,
explicitando pontos programáticos. Daí por diante nos lançamos a definir quem
seriam os representantes do PMDB no governo. O primeiro nome cogitado
foi Nelson Jobim. Pela admiração que tenho por ele, queria-o mais perto
da Presidência, na Advocacia-Geral da União, ajudando-me no emaranhado
de ações que existiam contra o Tesouro e que nos obrigavam a
desembolsar bilhões de reais, freqüentemente pelo descuido dos defensores ou
pela escassez de recursos humanos. Ele, no entanto, preferia o Ministério
da Justiça, o qual, no meu entender, se transformara mais em um Ministério "da
cidadania e da segurança pública". Concordei, por fim. Coube a Geraldo Magela
Quintão, antigo consultor-chefe do BB, recuperar para a Advocacia-Geral da União
a capacidade de defender os interesses do Estado.
O PMDB desejava obter mais do que uma pasta, mormente sendo a Justiça, em
nosso governo, um Ministério mais "de Estado" que de ação política.
Luiz Henrique me sugeriu o nome de um emedebista histórico, Odacyr Klein
(PMDB-RS). Era candidato a liderar a bancada na Câmara. Em geral eu preferia
não nomear parlamentares para o Ministério, porque para cada escolhido há vários
que se sentem preteridos e, logo após a
265
nomeação, a despeito das manifestações de agrado das respectivas bancadas, o
raciocínio é outro: "Fulano 'foi atendido', é ministro, eu não; preciso uma
compensação..." Acabei concordando, no entanto, com a nomeação de Odacyr.
Tinha indiscutível prestígio e biografia sem mácula na vida pública, requisitos
importantes em geral e em especial para o Ministério dos Transportes,
freqüentemente envolto em suspeitas em seus vultosos contratos de obras. Adverti
Luiz Henrique de que o ministro Alberto Goldman (que por mim teria continuado no
Ministério, faltando-lhe, porém, apoio no PMDB) estava levando adiante processos
de concessão de rodovias e ferrovias, aos quais eu pretendia dar continuidade.
Ademais, havia que implementar a Lei dos Portos, objeto de muitas contestações na
área sindical, mas a que meu governo igualmente queria dar curso. Luiz Henrique
conversou com Odacyr Klein sobre tudo isso e o trouxe para que selasse comigo o
compromisso quanto a esses temas.
Mesmo assim, continuaram as pressões. Os dois peemedebistas escolhidos eram
do Sul, dando margem a demandas regionalistas: como fica o Nordeste, onde o
PMDB e o PFL têm tanta presença? E lá vinha o argumento das desigualdades
regionais para dar sustentação a mais uma pretensão ministerial. No caso a
pressão veio dobrada. Nas conversas com o PFL, como logo direi, eu escolhera um
pernambucano para o Ministério e agora, para contentar o PMDB, a proposta era
incluir um paraibano.
Mas aí como ficaria a Bahia, que pretendia o Ministério dos Transportes, se este
fosse, como ocorreu, atribuído ao PMDB do Rio Grande do Sul? O embrulho era
grande. Na verdade o regionalismo nessas horas é muito mais uma cortina de
fumaça para esconder os apetites das chefias regionais. Veio daí a acusação de eu
haver formado um "paulistério", ou seja, de haver privilegiado nomes de meu estado
de adoção. Na verdade, entreguei a área económica não a uma região, mas a um
grupo de colaboradores dos tempos do Plano Real, muitos por sinal do Rio de
Janeiro, a começar por Malan, e alguns de São Paulo. Nos ministérios em que
nomeei livremente para garantir meu programa de governo, pouco me importava
que viessem de São Paulo ou do PSDB. Sua escolha não se deveu a tais fatores e
os titulares se comportaram como "ministros nacionais", sem região ou partido. O
carro pega é na discussão com os partidos, que usam o regionalismo como uma
deixa para ampliar o controle sobre partes da máquina pública.
266
O PMDB reivindicava criar um Ministério de Integração Regional e o candidato
apontado era Cícero Lucena, ex-governador da Paraíba, que eu conhecera quando
ministro da Fazenda e sobre quem tinha boa opinião.
Quando iniciei conversas com o PFL sobre participação no Ministério, disse a seu
presidente, senador Jorge Bornhausen, que gostaria de contar com dois pefelistas,
Gustavo Krause e o deputado Reinhold Stephanes (PR), exministro da Previdência
quando a pasta era abrangida pela do Trabalho, no governo Collor, cuja visão
reformista me agradava.
Certifiquei-me das qualidades de Stephanes com Sérgio Cutolo, técnico competente
que nos ajudara na formatação do Plano Real como secretário executivo do
Ministério da Previdência. Quanto a Krause, conhecíamo-nos desde quando ele
tinha sido titular da Fazenda e eu chanceler. A excelente conversa que mantivemos
sobre governo e administração pública reafirmou minha percepção contrária à
criação de um Ministério da Integração Regional, como alguns defendiam. Os
argumentos eram os mesmos do senador Beni Veras, grande conhecedor de
assuntos regionais:
estes deveriam ser tratados pelo Ministério do Planejamento com políticas nacionais
que diminuíssem as desigualdades e não por meio de órgãos regionais que acabam
nas mãos das oligarquias, como ocorreu com as Superintendências de
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e da Amazónia (Sudam). Vendo o
entusiasmo com que Krause discorria sobre a problemática das águas, pedi para
que aceitasse ser ministro do Meio Ambiente. Orientei-o desde logo para a criação
de uma Agência Nacional de Águas (ANA), que acabaria sendo implantada mais
tarde e entregue a um técnico competente, Jerson Kelman, a quem conheci por
intermédio de Tasso Jereissati.
Meu propósito inicial para a área do meio ambiente era ter no Ministério o deputado
Fábio Feldman (PSDB-SP), um grande conhecedor e batalhador ecológico. O fato
de Krause ser nordestino e não ser filiado ao PSDB pesou em desfavor de Feldman.
Criou, porém, um problema: nomearia um pernambucano e, ainda a decidir pelo
nome, um baiano (a Bahia me dera muitos votos e nela a liderança dos Magalhães
era incontrastável), e ambos do PFL. Isso desequilibrava a relação entre o PFL e o
PMDB do Nordeste. Daí a pressão para nomear Cícero Lucena, à qual cedi
em parte. Criei uma Secretaria de Políticas Regionais, no Ministério
do Planejamento, e lhe entreguei o comando. Não sem antes recomendar que
267
o importante era coordenar políticas, e não simplesmente fazer nomeações na
Sudene, na Sudam, na Zona Franca de Manaus ou no Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas (DNOCS) - que no final acabariam sujeitas aos Ministérios
do Planejamento e dos Transportes.
No xadrez político-partidário restavam várias questões, algumas impossíveis de
resolver e outras que pude solucionar. Uma destas foi precisamente a questão
baiana. Embora a pretensão fosse o Ministério dos Transportes, graças à
intermediação de Luís Eduardo Magalhães e à compreensão de António Carlos o
PFL baiano aceitou a pasta de Minas e Energia. O indicado, Raimundo Brito,
advogado e técnico de vasta experiência que incluía duas gestões na secretaria
estadual correspondente em duas administrações de ACM, revelou-se excelente.
Ficou combinado também que os dirigentes das grandes empresas de geração de
energia seriam indicados por mim.
É de justiça ressaltar a franqueza de António Carlos quando discutimos a presença
de nordestinos em postos ministeriais. Disse-me que considerava difícil o
aproveitamento de Krause por causa de sua derrota nas eleições para o governo de
Pernambuco para Miguel Arraes, a essa altura no PSB. (Concordo com o raciocínio
de ACM quanto a trazer para o governo federal companheiros derrotados nas
eleições. Krause acabaria sendo a única exceção que fiz.) Acrescentou que na
Bahia via apenas um nome e que os outros deveriam vir do Ceará: Tasso ou Ciro.
Tasso, moderno na visão política, não pensava em ministérios, até porque acabava
de ser eleito para o segundo do que seriam três mandatos de governador do
estado; indicou um nome, competente, para o Banco do Nordeste, Byron Queiroz,
seu ex-secretário da Fazenda e Planejamento, executivo formado em Administração
com experiência também na iniciativa privada. Ciro, como vimos, não aceitou
integrar o Ministério. O PFL, pelas vozes de Bornhausen, Marco Maciel e Luís
Eduardo, teve atitude compreensiva e aceitou de bom grado as indicações de
Krause e Stephanes.
Falta mencionar o problema mineiro. Entre os políticos dos grandes estados, os de
Minas Gerais são os mais ciosos da influência de seu estado na Federação. O
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), órgão do Ministério dos
Transportes, tradicionalmente ficava sob controle mineiro e nele continuou. Utilizei
critério semelhante ao da escolha do ministro da área: nomeei o ex~deputado
Tarcísio Delgado,
268
peemedebista histórico e de boa reputação, e ademais de Juiz de Fora, terra de
Itamar Franco. Por falar no ex-Presidente, eu o mantinha informado das decisões
que ia tomando e, embora ele nada tivesse pedido, cuidei de preservar alguns ex-
colaboradores próximos, como o ex-chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves,
designado para a direção dos Correios, e Djalma Moraes, ex-ministro das
Comunicações, para a BR Distribuidora, braço importante da Petrobras.
A grande questão política, contudo, era mesmo a partilha dos ministérios. No caso
mineiro, a equação requeria, além de não desagradar Itamar Franco, satisfazer o
governador eleito, Eduardo Azeredo (PSDB), e também o governador que terminava
o mandato e fora aliado fiel na campanha eleitoral, Hélio Garcia (PTB). A
designação de Paulo Paiva para o Ministério do Trabalho agradou a Itamar. Filiado
ao PTB, secretário do Planejamento de Hélio Garcia desde o início de sua gestão,
relacionava-se bem com o ex-Presidente. Para reforçar os mineiros e porque se
tratava de boa solução, utilizei o fato de José Israel Vargas, ministro de Ciência e
Tecnologia de Itamar, ser mineiro e ter bom curso no setor do PFL ligado ao
senador Francelino Pereira para fazer de conta que sua nomeação, em vez de ser,
como era na verdade, de minha quota pessoal, fora uma indicação política.
Entretanto, por engenhosa que tivesse sido a solução, não resolveu
as suscetibilidades mineiras. Em dezembro de 1994 estive em Minas para assistir à
assinatura dos acordos de Ouro Preto, sobre o Mercosul.
Esperava avistar-me com Hélio Garcia, a quem estimo. Houve
equívocos protocolares e não me encontrei com ele. No aeroporto estavam
Pimenta da Veiga, como sempre me ajudando a costurar soluções, e
Eduardo Azeredo. Deram-me conta dos incómodos que permaneciam.
Azeredo pressionava pela nomeação de um mineiro com peso político no PSDB,
como Aécio Neves ou Roberto Brant, sendo Aécio próximo a mim, política
e afetivamente, O que não faltava no Ministério, entretanto, eram tucanos.
Ofereci-lhes a Presidência do BB, na pessoa de um técnico, João Heraldo de Lima,
que tinha sido secretário da Fazenda de Hélio Garcia e reorganizara as finanças
mineiras. Ou então Dorothea Werneck, economista com grande experiência
administrativa - entre as várias funções que exerceu, fora ministra do Trabalho no
final do governo Sarney. Terminei designando o ex-presidente do BC no governo
Itamar, Paulo César Ximenes.
269
O Ministério tornava-se vergonhosamente masculino. Malan me sugerira Dorothea
para o Ministério de Indústria e Comércio,10 posição com peso político e
importância econômica, e concordei. Eu já decidira dar continuidade à direção das
empresas estatais. Assim, tanto a Petrobras como a Vale do Rio Doce
permaneceriam nas mesmas mãos, igualmente mineiras, que as dirigiam desde o
governo Itamar Franco: Joel Rennó na Petrobras e Francisco Schettino na Vale.
Além da continuidade administrativa, queria ganhar tempo para decidir como levaria
adiante a quebra do monopólio do petróleo e, eventualmente, a privatização da Vale.
Seria melhor ir modificando aos poucos as chefias das empresas.
Esse breve resumo evidencia as dificuldades para se compor o governo e a margem
de manobra de que o Presidente dispõe no início do mandato. No fundo, com
poucas exceções, mesmo quando as escolhas foram ou apareceram como sendo
partidárias, orientei a maior parte delas e tomei decisões segundo meus critérios. A
leitura das negociações políticas feita pela opinião pública, que em grande medida é
a opinião publicada pela mídia, freqüentemente exagera as pressões e os "sapos"
que o Presidente tem de engolir. Assim como exagera as "barganhas" de todo tipo a
que são reduzidas as negociações políticas. A verdade é que, pelo menos
inicialmente, se erros há (e naturalmente acertos também), eles se devem mais ao
julgamento do Presidente (e talvez ao de seus próximos) do que a capitulações e
pressões insuportáveis.
Coisa muito diferente de montar o time é fazê-lo andar, processo que também é da
responsabilidade do Presidente mas que, seja por obstáculos administrativos, por
equívocos nas escolhas ou pelas dificuldades para harmonizar estilos pessoais e
interesses, às vezes se torna muito difícil.
O caso Sivam: nem crise militar nem escândalo
As modificações no Ministério promovidas no decorrer do mandato já são muito mais
complicadas. A primeira mudança, tumultuada e inesperada (à parte as ocorridas na
área económica, descritas em outros capítulos),
Nota: 10 Antes de cogitar o nome de Dorothea eu havia pensado em Luiz
Fernando Furlan, alto executivo e acionista da indústria de alimentos Sadia, que,
anos mais tarde, seria nomeado para a mesma posição no governo Lula.
Fim da nota.
270
seria a do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Mauro Gandra, em novembro de 1995.
Ela ocorreu como conseqüência do episódio dos "grampos telefónicos" que levaram
à saída do governo de Xico Graziano, meu exsecretário particular, na ocasião
presidente do Incra, e do chefe do Cerimonial da Presidência, embaixador Júlio
César Gomes dos Santos. O ministro, na verdade, não teve nada a ver com o
assunto, que se relacionava a um suposto tráfico de influência (que nunca houve)
no rastro do projeto do Sistema de Vigilância da Amazónia (Sivam), uma rede de
coleta e processamento de informações destinada a monitorar e proteger a
Amazónia Legal (que compreende toda a região Norte, o Mato Grosso e parte do
Maranhão).
Por motivos para mim incompreensíveis, o brigadeiro Gandra se sentiu atingido e,
embora eu o tivesse instado para que não se demitisse, pois alguém de má-fé
poderia ver no gesto não brios ofendidos, mas confissão de responsabilidade no
episódio, não logrei convencê-lo. Num dia de troca da grande bandeira brasileira
que tremula na Praça dos Três Poderes, em ato organizado pela Aeronáutica, nos
encontramos em meu gabinete no Palácio do Planalto, uma vez que deveríamos
seguir juntos, a pé, até o palanque oficial. O brigadeiro mencionou seu pedido
de demissão e mostrou-se irredutível; só não me surpreendeu porque eu
fora alertado antes pelo general Alberto Cardoso de sua decisão. Assim
sendo, dirigi-me sozinho ao encontro do chefe do Estado-Maior da
Aeronáutica, brigadeiro Sérgio Pérola, que me acompanhou na revista à tropa
e, depois, ao palanque onde se perfilavam dezenas de ofidais- generais.
Foi a única ocasião em que senti o travo de uma possível crise militar.
Felizmente, nada ocorreu. Recebi de todos a civilidade e o respeito devidos e me
pus a buscar um novo ministro. Estava em jogo a continuidade do projeto Sivam,
naquele momento sob fogo cruzado dos que haviam perdido a concorrência e da
má-vontade de certos círculos ultranacionalistas que preferiam desenvolver
tecnologia própria para os radares de vigilância em vez de comprá-los no exterior,
sobretudo porque a empresa vencedora era norte- americana. Eu queria
dar continuidade à decisão do Presidente Itamar e, além de já termos um contrato
assinado, eu me convencera plenamente de que uma eventual decisão em prol do
desenvolvimento doméstico da tecnologia demoraria demais. Enquanto isso a
Amazónia permanecia desprotegida em relação a uma série de ações daninhas
271
que a implantação do Sistema ajudaria a coibir, de invasões de terras indígenas e
sobrevoo de aeronaves clandestinas ao tráfico de drogas e eventuais incursões,
fronteira adentro, de guerrilheiros colombianos.
Como anos depois do final de meu governo volta e meia críticos e opositores
continuavam se referindo ao "escândalo" Sivam, vou discorrer mais detalhadamente
sobre esse projeto - que, por sinal, foi decidido antes de minha chegada à
Presidência.11
As Forças Armadas sempre se preocuparam com a efetiva proteção da Amazônia.
Ao longo do tempo, consolidou-se no âmbito da Aeronáutica, depois com a
cooperação da Secretaria de Assuntos Estratégicos, o que se chamaria de projeto
Sivam. No governo Itamar, em 1993, já devidamente formatado e detalhado, ele foi
aprovado pelo Conselho de Defesa Nacional. Em 1994, ainda sob a Presidência
Itamar, e com dispensa de licitação autorizada por lei por tratar-se de tema ligado
à segurança nacional, o governo encarregou de desenvolvê-lo e implantá-lo uma
das grandes fabricantes internacionais de material militar, a empresa norte-
americana
Raytheon.
A disputa pelo gordo contrato - 1,4 bilhão de dólares - interessou a meia centena de
empresas. No final, tinha se afunilado de forma acirrada entre a Raytheon e a
francesa Thomson, apoiadas mais ou menos abertamente pelos respectivos
governos. Lembro-me de que o Presidente Bill Clinton chegou a telefonar a respeito
ao Presidente Itamar. Os franceses faziam pressão semelhante. A Thomson oferecia
não apenas tecnologia, mas boas condições de financiamento. Os
especialistas brasileiros, porém, consideravam a Raytheon tecnologicamente
mais capacitada, e o martelo acabou sendo batido quando, num esforço
da Aeronáutica, o Eximbank americano se dispôs a financiar a proposta
da Raytheon em condições similares às do projeto rival da Thomson. A
feroz disputa entre as duas empresas, que com freqüência incluía
vazar informações nem sempre acuradas para a imprensa, resultaram, ainda,
na divulgação de acusações sobre supostos subornos a funcionários brasileiros. O
ruído não impediu que o Senado aprovasse o acordo com a Raytheon em 1994,
ainda na Presidência Itamar.
" Baseei boa parte da narrativa sobre o caso no "livro branco" Combate à corrupção
e denuncismo na era FHC, elaborado por Eduardo Graeff, publicado pelo Instituto
Teotônio Vilela, ligado ao PSDB, e divulgado em outubro de 2002.
272
Para o desfecho pró-Raytheon minha participação havia sido nula, pois o ministro da
Fazenda, meu cargo na ocasião, sequer integrava o Conselho de Defesa. Já como
Presidente eleito, para ajudar o governo do Presidente Itamar, solicitei ao
embaixador Júlio César Gomes dos Santos, que também tinha trabalhado com
Sarney, que pedisse ao ex-Presidente seus bons préstimos para um objetivo
específico. Sarney era amigo do senador Gilberto Miranda (PMDB-AM), relator da
comissão especial criada no Senado para reavaliar o projeto e examinar os
termos do empréstimo do Eximbank. A solicitação era para que Miranda agilizasse o
trabalho de forma a que o projeto fosse aprovado antes do término do mandato de
Itamar. Em conseqüência disso (e foi a única participação do embaixador no
episódio) ambos vieram ter à minha casa.
Sem a presença do embaixador, o senador Miranda me disse que apresentaria, e
prontamente, parecer favorável.
Mas, já como Presidente, vi-me exposto a denúncias nesse episódio que culminou
com a saída do brigadeiro Gandra. Na ocasião Xico Graziano me encaminhou a
transcrição de conversas telefónicas entre o embaixador Júlio César e o
representante da Raytheon no Brasil, José Afonso Assumpção, presidente da
empresa Líder Táxi Aéreo. Numa das conversas, o embaixador aludia ao que
parecia ser exigência de propina pelo senador Gilberto Miranda.
Quem passara as fitas a Graziano, divulgadas com estardalhaço pela revista Istoé,
fora um seu assessor, Paulo Chelotti, agente de carreira da Polícia Federal (PF) e
irmão do diretor- geral da PF, Vicente Chelotti. As gravações tinham prévia
autorização de um juiz da Vara de Entorpecentes do Distrito Federal, a pedido de
um delegado da PF que estaria investigando suspeitas de narcotráfico. Tais
suspeitas, segundo um relatório em poder do delegado - apoiado em denúncias
anónimas -, envolveriam Júlio César. O juiz declarou posteriormente que o
relatório não informava ser o suposto envolvido embaixador, muito menos
assessor direto do Presidente da República, e que autorizara a escuta para não ser
acusado de impedir uma investigação policial sobre narcotráfico.
Ao saber da identidade do investigado, o magistrado determinou a suspensão do
"grampo" por ter ficado claro para ele que o motivo da escuta era outro. A imprensa
especulou que havia partido de Graziano a sugestão
273
para a feitura das gravações, e que ele e Júlio César teriam se atritado quando
Graziano chefiava o gabinete do Presidente da República, antes de assumir o Incra.
Xico Graziano, estou convicto, não sugeriu nem encomendou nada,
mas provavelmente as gravações foram, sim, produzidas para agradá-lo. E eram
corretas as especulações segundo as quais ele e Júlio César não se entendiam. Os
dois mantinham uma pinimba que vinha desde a campanha eleitoral, e que envolvia
a "hierarquia da bicada" a que já me referi, algo usual em redor do governante -
quem dava ou não a terceiros acesso a mim. Além do mais, Xico abrigava a
suposição, falsa, de que o embaixador Júlio César estava levando lobistas para
conversar comigo.
Júlio efetivamente tinha relações pessoais com Assumpção, e, nos EUA, chegou a
ir num avião da Líder ou por ela alugado a uma festa. Ele se licenciou do governo
para isso, mas não teve como evitar que a mídia utilizasse o episódio para
engrossar o caldo do "escândalo". Também o brigadeiro Gandra certa vez se
hospedara na casa de Assumpção, e talvez por isso haja concluído ser melhor pedir
demissão. O fato é que, embora tenham deixado o governo, não perdi a confiança
que depositava nos três.
De toda maneira, ordenei em dezembro de 1995 a formação de uma comissão de
sindicância interna para apurar se ocorrera tráfico de influência envolvendo gente
do governo. No mês seguinte, a comissão concluiu que existiam "indícios da prática
de atos passíveis de caracterizarem transgressão a dispositivos do Regime Jurídico
Único [do funcionalismo público]". Por isso, propôs, entre diversas outras
providências, a remessa dos autos à Procuradoria-Geral da República e ao
Ministério das Relações Exteriores, para que procedessem à abertura ou instrução
de inquéritos. O secretário-geral da Presidência aprovou as conclusões
da comissão, mas não tornou público o relatório final da sindicância para não
prejudicar o direito de defesa das partes.
Concretamente, a única falta atribuída a Júlio César foi ter aceitado a tal carona nos
EUA. No Itamaraty, uma comissão de inquérito composta por três embaixadores
respeitáveis decidiu pelo arquivamento do processo administrativo contra Júlio
César "por não haver prova de que tenha transgredido" a lei que rege a conduta dos
servidores públicos. Na Procuradoria-Geral da República, nunca se tomou qualquer
iniciativa contra o embaixador junto à Justiça.
274
Sindicâncias da Polícia Federal não confirmaram que o embaixador tivesse feito
lobby em favor da Raytheon, como se alegara. Depondo no Senado, Júlio César
confirmou ter perguntado ao presidente da Líder "quan* to é que ele queria",
referindo-se ao senador Gilberto Miranda, tendo em vista as objeções por este
levantadas ao prosseguimento do projeto Sivam. Negou, porém, ter sugerido tratar-
se de pagamento de propina.
"Foi uma pergunta interlocutória dentro de um contexto irônico, em tom de troça",
disse, e se desculpou publicamente com o senador.
O Tribunal de Contas da União (TCU) instaurou 16 procedimentos SÓ" bre o Sivam,
incluindo seis auditorias, desde 1995. Em dezembro de 1996, o tribunal considerou
"regulares os procedimentos adotados pelo Ministério da Aeronáutica" no governo
Itamar para a seleção e contratação da Raytheon. Em março de 2001, um acórdão
do TCU concluiu pela "inexistência de prejuízos ao erário", que "não houve afronta
à legalidade e à moralidade administrativa" e "que não houve má-fé por parte dos
responsáveis, não tendo nenhum deles se locupletado com dinheiro público, e que
em nenhum momento houve a intenção de causar dano ao erário, restando
evidenciado que todos agiram no estrito senso do cumprimento do dever que lhes
era confiado"
Finalmente, no Congresso, um relatório de avaliação do Senado, de fevereiro de
1996, e uma CPI da Câmara dos Deputados, encerrada em junho de 2002,
tampouco apontaram irregularidades no projeto. As que chegaram a meu
conhecimento, posteriores à conclusão do contrato, diziam respeito a uma empresa,
integrada por alguns oficiais da FAB já na reserva, que estava contratada para
acompanhar a implementação do projeto. Dei ordens e o Ministério da Aeronáutica
tomou todas as providências para corrigir eventuais erros e restabelecer
a transparência necessária aos contratos públicos. A isso se resume o "caso
Sivam", uma infâmia utilizada politicamente pela oposição.
Com a demissão do brigadeiro Gandra, decidi convocar novamente o brigadeiro
Lélio Lobo, engenheiro e ex-ministro da Aeronáutica de Itamar e, portanto, um dos
patrocinadores do Sivam. O brigadeiro Lobo se deslocou da presidência da
Telebrás, para onde eu o havia nomeado, e substituiu sem traumas o brigadeiro
Gandra, mantendo-se no posto até a criação do Ministério da Defesa, em 1999.
Sempre correto, ajudou, junto com o brigadeiro Marcos Antônio Oliveira, a salvar o
Sivam e manifestou grande
275
lealdade quando, em outro momento, autorizei a compra de aviões para a
Marinha dispor de uma aviação embarcada, matéria extremamente delicada nas
relações entre as duas Forças.
Ato contínuo à demissão de Gandra, convidei-o para um almoço no Palácio da
Alvorada, com todos os ministros militares e o chefe da Casa Militar. Fiz uma breve
saudação deixando claro que sua saída não se deveu a quebra de confiança. O
brigadeiro agradeceu emocionado. Pensava assim ter encerrado o episódio.
Tempos depois, insinuações de má-fé levaram-me a escrever-lhe uma carta,
reafirmando o que dissera na saudação. A carta se tornou pública no jornal O
Globo. Como neste caso, tanto quanto possível tratei de manter boas relações com
os colaboradores que acharam por bem deixar o governo ou que, por uma ou outra
razão, tive de afastar.
As emendas como instrumento de pressão
A primeira mudança mais ampla no Ministério se deu entre abril e junho de 1996. Ela
ocorreu por dois motivos. O primeiro teve a ver com as pretensões normais de
alguns ministros de se tornarem candidatos a prefeito, pois as eleições seriam em
outubro de 1996, o que obrigava à desincompatibilização seis meses antes. O
segundo motivo está ligado à contínua pressão política sobre o controle que o
Palácio exercia no processo legislativo e nas nomeações, que deixava insatisfeitos
os parlamentares. A pressão dos partidos voltava- se contra a decisão, correta, de
entregar o relacionamento com o Congresso e o peneiramento das nomeações ao
secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, e não a um ministro político.
Um ano e meio depois de iniciado o governo, as forças partidárias evidenciavam
estar insatisfeitas e pouco articuladas. Apesar da gritaria das oposições e do
permanente jogo de cumplicidade entre elas e parte da reportagem que denuncia
incessantemente o "fisiologismo", a verdade é que o governo mostrou-se cauteloso
nas nomeações. Os grandes ministérios, como os da Previdência, Educação, Saúde
e Reforma Agrária, adotaram critérios formais ou informais crescentemente
rigorosos para impedir que o clientelismo minasse a ação administrativa. Da
mesma forma, o Ministério de Minas e Energia procurou preservar a
qualidade técnica dos
276
comandos das empresas e departamentos (nem sempre com sucesso, graças
ao peso dos partidos, e não pela indulgência dos ministros). A privatização das teles
eliminou a pepineira que eram mais de cem diretorias, anteriormente preenchidas
por critérios político- partidários. E assim se procurou proceder na administração
toda.
A nomeação de políticos e de pessoas por eles indicadas para realizar uma política
é um processo normal nas democracias. O que não é normal nem aceitável é o
clientelismo e sua versão "moderna", o aparelhamento partidário. A privatização, de
um lado, e a profissionalização da máquina pública, do outro, não a tornaram imune
às influências partidárias, mas limitaram o efeito deletério do clientelismo,
do aparelhamento e da corrupção que anda junto com eles.
Na tensão política permanente entre o Executivo e os partidos e parlamentares,
estes dispõem de um poderoso instrumento de pressão: a força do voto para
aprovar legislação em geral e o Orçamento em especial. Esse instrumento acabou
sendo reforçado pela faculdade de senadores e deputados apresentarem emendas
ao Orçamento, garantida pela Constituição de 1988. Iniciado meu governo, o leito
preferencial para as chamadas "emendas paroquiais" dos parlamentares -
destinando dinheiro a pequenas obras ou serviços em seus redutos eleitorais - foi
aos poucos sendo a Secretaria de Políticas Regionais. O ministro Cícero
Lucena administrava adequadamente esse difícil dia-a-dia, mas afastou-se
para concorrer à Prefeitura de João Pessoa. Em junho de 1996, nomeei para
seu lugar o correligionário Fernando Catão, ex-secretário de Planejamento
do próprio Lucena no governo da Paraíba, que ficou até quase o final do primeiro
mandato. No início do segundo mandato, para ampliar a presença do PMDB (de
que eu precisava por motivos que logo explicitarei), convenci o senador Fernando
Bezerra (RN), presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a assumir a
pasta, dando-lhe o status de Ministério autónomo com o propósito de ser o órgão
encarregado da Integração Nacional, ficando a ele subordinadas as agências
de desenvolvimento regional. Apesar dos esforços do senador para reformar a
Sudene e a Sudam e cuidar da transposição das águas do rio São Francisco, o
assédio dos parlamentares com suas emendas reduziu muito o alcance da ação do
Ministério.
Essa tendência ia aos poucos se acentuando na medida em que o
segundo mandato transcorria, a despeito do empenho dos diferentes
277
ministros que ocuparam a posição. Nessas circunstâncias o governo passa a utilizar o
contingenciamento de verbas como último recurso em defesa do Tesouro - ou seja,
o Presidente não assina os decretos de autorização de gastos. A história desse
Ministério mostra não só o erro em que incorri ao criá-lo (apesar dos bons
propósitos de alguns dos ministros e meus) como põe a nu o quanto de atraso
subsiste em nosso sistema político. Quando se comparam os montantes dos
recursos para as emendas parlamentares na área da Integração Nacional, ou em
setores de outros ministérios sujeitos a pressões semelhantes, com o total de
recursos do Orçamento, vê-se que são relativamente pequenos. Por pequenos
que sejam, entretanto (e nem sempre são tão pequenos assim), infectam
a percepção do uso de recursos públicos. Toda liberação de verbas proveniente de
emendas parlamentares é noticiada com alarido, como se tudo fosse clientelismo e
todo clientelismo, em si mesmo, corrupção. O resultado é que os ministros ou
secretários incumbidos da relação com os parlamentares acabam por sofrer
considerável desgaste, na medida em que não cedem às pressões. E quando
cedem, ainda que nos limites da lei e do moralmente aceitável, vêem-se associados
às piores práticas.
Em abril de 1996, aproximando-se o momento das desincompatibilizações para os
ministros candidatos, o conjunto do sistema partidário começou a reclamar
mudanças no Ministério. Mesmo os líderes mais próximos a mim, como Sérgio
Motta e Luís Eduardo Magalhães, ponderaram que, para o Congresso continuar a
apoiar as reformas, depois da avalanche de emendas à Constituição aprovadas em
1995 que quebraram os monopólios, era preciso reforçar os vínculos político-
partidários. Havia em causa, especialmente, as reformas administrativa e da
Previdência, estando ainda em tramitação a CPMF e o que veio a ser o Fundo
Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundei), que
abriu possibilidades de propiciar acesso à escola fundamental para 97%
das crianças em idade escolar, para mencionar apenas algumas das medidas para
cuja aprovação a maioria congressual era indispensável. Os partidos pleiteavam
mais espaço no Ministério (caso do PMDB), seu ingresso nele (caso do PPB, que
depois se transformaria em PP), ou melhor "acesso" às decisões, com o que
queriam significar o afastamento de Eduardo Jorge, considerado meticuloso e duro,
do controle das nomeações.
278
Nessas ocasiões o governo mede suas forças, recua se necessário, mas não deve
capitular. Tanto o líder do governo na Câmara, Luiz Carlos Santos, como Luís
Eduardo Magalhães, presidente da Casa, como Sérgio Motta, que se juntava aos
dois, avaliaram que seria importante contar com o PPB.
Nas avaliações, Francisco Dornelles parecia ser a melhor indicação
para representar esse partido no governo, com o que concordavam também
Jorge Bornhausen e o Vice-Presidente Marco Maciel. De início, propuseram-no para
o Ministério da Agricultura, pois circulavam notícias do afastamento do titular,
Andrade Vieira. A sugestão me pareceu descabida: Dornelles, além de não ter
ligação alguma com a agricultura, representava um estado sem tradição agrícola, o
Rio de Janeiro.
As pressões para um ajuste no Ministério continuaram. Minha percepção era
diferente. Eu queria ganhar tempo, aprovar as reformas e só depois modificar o
governo. Tinha horror a cair, como caí, na armadilha de partidos e parlamentares de
transformar a aprovação das reformas em instrumento de pressão para exigir mais
espaço no governo. Visto a posteriori se poderia até dizer que eu estava certo e
deveria ter resistido mais à intromissão crescente do jogo partidário no
andamento do governo. Na situação da época as coisas apareciam de outra forma.
Vejamos.
A injustiça que cometi com Dorothea Werneck
Na segunda quinzena de abril de 1996 um fogo cerrado alvejava o governo.
Acabara de ocorrer uma chacina de militantes do MST pela PM do Pará
que procurava cumprir um mandado judicial na localidade de Eldorado dos Carajás,
no sul do estado. O governo federal nada tinha a ver com a tragédia, que me
indignou profundamente. Mas ela deu gás às oposições.12 Tive uma reunião de
cerca de duas horas com líderes do MST,
Nota: 12 Tanto o chefe de gabinete do ministro da Justiça, José Gregori, como o general
Cardoso se deslocaram para a área dos acontecimentos. Jobim, posteriormente, foi
a Belém e voltou com a impressão de que a apuração estava sendo levada adiante
de maneira insuficiente. Tomamos as medidas políticas cabíveis para, sem que
houvesse qualquer tipo de intervenção no estado, dar força ao governador Almir
Gabriel (PSDB) de forma a que ele levasse adiante as investigações. Deslocamos
tropas para a região e a mantivemos sob controle até que os ânimos se
desanuviassem. Fim da nota.
279
o dirigente João Pedro Stédile à frente, para mostrar o empenho do governo em
apurar os fatos e não esmorecer na continuidade da reforma agrária.
Ao mesmo tempo eu enfrentava séria crise no Paraguai, onde o
Presidente constitucional Juan Carlos Wasmosy encontrava- se sob ameaça
iminente de sofrer um golpe de Estado. Vi-me compelido a atuar pessoalmente
nesse momento delicado de um aliado tão próximo do Brasil, sempre com a
ajuda do embaixador em Assunção, Márcio Paulo de Oliveira Dias, do Itamaraty
e das Forças Armadas. Simultaneamente, discutíamos os aumentos do
salário mínimo (pois era tradição defini-lo no 1° de maio, Dia do Trabalho) e das
aposentadorias. O ministro Stephanes falara em reajustar as aposentadorias em
18%, os ministros do Planejamento e da Fazenda não convergiam quanto ao
percentual razoável. Estava no ar a discussão sobre se o esforço fiscal deveria ser
feito cortando-se gastos correntes e de investimento, para produzir superávits
primários, ou se toda a questão se resumia às altas taxas de juros (embora no
momento estivessem em queda). Havia dúvidas sobre se os aumentos provocariam
uma piora acentuada na situação fiscal, já não tão sólida.
Esse conjunto de fatores provocou uma onda de desânimo que me levou a promover
várias reuniões com os chamados formadores de opinião. A indústria crescera 8%
no trimestre e os supermercadistas me informaram, naqueles dias, que o consumo
de produtos importados não ultrapassava os 2% do total, mostrando estar em curso
a readaptação da indústria depois da avalanche importadora provocada pelo real
estável e valorizado. Eu recebia incessantemente informações sobre novos
investimentos, em especial no setor automobilístico. Apesar disso, a todos parecia
que "sem as reformas" a catástrofe nos aguardava... Esse era o tom
das declarações de empresários, financistas internacionais, economistas e da mídia
em geral.
Talvez aproveitando o quadro instalado, as forças políticas se moveram para me
pressionar, seja pelo ânimo de aumentar sua presença no governo,
Nota: Além disso, insistimos com o Congresso para que crimes que ferissem os direitos
humanos passassem à alçada da Justiça Federal, saindo da esfera estadual. Até o
final de meu segundo mandato" não conseguimos a aprovação da medida. Assim, o
governo federal sofria as conseqüências de atos que não praticara e não dispunha
de elementos para punir seus atores. Fim da nota.
280
seja pelas legítimas preocupações de que sem mais apoios as reformas não
andariam. Acabei concordando com a sugestão de incorporar o PPB, mas em outro
Ministério que não o da Agricultura - o da Indústria e Comércio, que seria ocupado
por Francisco Dornelles. Para discutir o assunto convoquei para almoço no Alvorada
Luiz Carlos Santos, Luís Eduardo Magalhães, Sérgio Motta e José Serra. Este último
resistiu muito a que o governo perdesse a colaboração de Dorothea Werneck, a
titular da Indústria e Comércio, decisão que a mim também doía. Disse que nada do
decidido deveria transparecer antes de eu conversar com a ministra.
Eu resolvera transferir Luiz Carlos Santos da liderança no Congresso para a
coordenação política do governo, com anuência dos novos dirigentes do PMDB,
que desejavam participar mais diretamente das indicações dos ministros que os
representariam. Pedi a Luiz Carlos para começar suas funções negociando com o
PPB, pois nele existiam três grupos: o do prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, que
àquela altura queria ir para a oposição; o do deputado Vadão Gomes (SP), ao redor
de quem se agrupavam principalmente os deputados da bancada ruralista,
que desejava o Ministério da Agricultura; e, por fim, havia os que aceitavam
Dornelles.
No mesmo dia do almoço houve vazamento do possível convite a Dornelles para
assumir a pasta da Indústria e Comércio. A TV Globo noticiou a decisão, bem como
a designação do novo coordenador político. Isso me causou profundo
aborrecimento e posso imaginar como se sentiu Dorothea Werneck, que estava fora
do país quando soube da notícia pela mídia.
Dois dias depois, decidi visitá-la em seu apartamento. Sentia-me inseguro e mal com
a decisão tomada naquelas circunstâncias. Tivemos longa e penosa conversa,
muito emotiva de parte a parte, e saí mais convencido ainda do valor de Dorothea e
da injustiça que praticara,13 em nome das reformas... Dorothea, às lágrimas, me
disse:
- Logo agora que meu trabalho está rendendo essa gente da política vem para
estragar tudo.
Nota: 13 Não tendo sido possível reparar de imediato a injustiça que fiz, assim que tive
uma oportunidade, anos mais tarde, convidei Dorothea para dirigir a Agência de
Promoção de Exportações (Apex). Logo em seguida à decisão de substituí-la no
Ministério, já havia pedido a Paulo Renato Souza que visse com Enrique Iglesias a
possibilidade de nomeá-la diretora adjunta da Cepal, no Chile, função que ela
recusou. Fim da nota.
281
Serra sai do governo para concorrer em São Paulo
A designação de um coordenador político, embora não alterasse muita coisa, uma
vez que Luiz Carlos Santos já era líder do governo, provocou reações no PSDB. O
partido temia perder força e, apesar dos bons modos do líder José Aníbal e do
presidente Teotônio Vilela Filho, ambos expressaram sua contrariedade. Expliquei-
lhes as contingências em que nos encontrávamos e voltei à tecla. Tratava-se de um
recuo, mas não de uma capitulação. Não destituí Eduardo lorge da Secretaria-Geral
nem o desobriguei, mesmo não participando das negociações com o Congresso,
de proceder à triagem das nomeações. De igual modo, José Abraão, ex-deputado
do PSDB de São Paulo (que posteriormente chefiou o Incra, sucedendo Raul
Jungmann quando este, em 2002, se afastou para ser candidato a deputado),
continuaria sendo adjunto da coordenação política e Eduardo Graeff a fazer o
relacionamento da Casa Civil com o Congresso.
As modificações não pararam por aí. Andrade Vieira, ministro da Agricultura, a quem
se subordinava o Incra, me comunicou que se afastaria do governo para cuidar da
reorganização do Bamerindus, do qual era um dos acionistas controladores. Isso
logo depois de Eldorado dos Carajás, o que me pareceu inconveniente. O MST vivia
em pé de guerra contra o ministro da Agricultura. A saída de Andrade Vieira
poderia passar a impressão de haver relação entre uma coisa e outra,
puxando para o governo federal o tema do massacre. O ministro demorou um
pouco a dar curso à demissão. Dias depois, como que confirmando
minha suposição, procuraram-me os líderes do PTB na Câmara, deputado
Pedro Abraão (GO), e do PFL, Inocêncio Oliveira (PE) -, pois os dois
partidos estavam unidos em um bloco parlamentar - preocupados com a
vacância, como se houvesse sido conseqüência de pressão do Planalto por causa
de Eldorado. Expliquei-lhes que não e, efetivamente, o próprio ministro depois veio
ter a mim com Abraão e reafirmou que se afastava para dirigir o banco em
dificuldades. Percebi que também o PTB queria ter uma palavra na designação do
sucessor. Ato contínuo, para não perder o controle da nomeação do novo titular,
aproveitando uma sugestão do ministro Paulo Paiva, do PTB, resolvi pelo nome do
senador Arlindo Porto. Era mineiro, petebista, amigo de Hélio Garcia e de
Eduardo Azeredo, calmo, agricultor de café mas não tão ligado à bancada ruralista.
E aceitava manter a equipe
282
técnica do Ministério, dirigida pelo secretário de Política Agrícola, Guilherme da Silva
Dias, que se entrosara perfeitamente com José Roberto Mendonça de Barros, o
"Beto", secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Desse modo,
seria possível continuar as diretrizes que estávamos levando adiante na área. De
novo, evitei um recuo.
Mais ainda, por sugestão de Tasso Jereissati, trazida quando houve uma convenção
do PSDB em abril, resolvi criar o que ele chamou de Ministério da Terra, e que com
o tempo se transformaria no Ministério da Reforma Agrária. A este liguei a
Secretaria de Desenvolvimento Rural, de onde surgiu o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que se tornaria pedra angular
dessa atividade. A primeira sugestão de titular, creio que do próprio Tasso, voltou-
se para o presidente da Contag, Francisco Urbano, filiado ao PSDB. Urbano
ponderou que sua designação provocaria resistências à esquerda, por causa da
CUT, que desejava ocupar a Contag e não conseguia, e à direita, que o tinha como
perigoso invasor de terras.
Diante disso, quase designei Odacyr Klein, ligado às cooperativas rurais, porque
assim manteria o apoio do PMDB e poderia abrir nova vaga no Ministério se ele
deixasse os Transportes. Tanto Paulo Renato como Serra favoreciam essa
alternativa. Acabei, contudo, por aceitar a indicação de Clóvis Carvalho: Raul
Jungmann, companheiro desde o governo Itamar Franco, quando ocupou a
secretaria executiva do Ministério do Planejamento e que realizava boa
administração no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama). Jungmann, além de muito trabalhador, é dotado de
coragem intelectual e política, facilidade de diálogo e trato com a imprensa, e teria
aptidão, como teve, para enfrentar os radicalismos, de lado a lado, e para levar
adiante a reforma agrária. Ademais era filiado ao PPS, sucessor do antigo Partidão
comunista. Daríamos assim uma resposta à altura dos desafios colocados pelo
previsível acirramento das pressões no campo depois da tragédia de Eldorado dos
Carajás.
A última pasta a ser preenchida seria a do Planejamento. José Serra finalmente
resolvera concorrer à Prefeitura de São Paulo, depois de me ter pedido para não
citar seu nome entre os possíveis candidatos e de o governador Mário Covas
patrocinar a candidatura de Sérgio Motta (que preferiu continuar enfiado até o
pescoço na privatização do sistema de
283
telecomunicações). Perguntei-lhe uma noite, à saída do Palácio da Alvorada, a razão
da mudança de opinião. A resposta foi simples: havia uma espécie de veto do PFL
a seu nome e ele queria quebrar essa resistência injustificada. Escrevo isso porque
não faltaram hipóteses sobre meu interesse em afastá-lo do governo ou sobre sua
candidatura como sendo uma forma de sair do Ministério sem romper comigo.
A verdade é muito outra: quando chamei o economista e deputado António Kandir
(PSDB- SP) para suceder Serra, em conversa reservada na salinha contígua ao
gabinete presidencial no Planalto e na presença do ministro que se afastava, deixei
claro a Kandir que se Serra não fosse eleito o lugar no Planejamento continuaria a
ser dele. Eu optara por Kandir, exintegrante da equipe económica no governo Collor,
por ser um economista de talento (que também trabalhara no Cebrap) e um
deputado operoso. Certamente se haveria bem à frente do Ministério. O
outro candidato óbvio era o economista Andréa Calabi, que só não escolhi porque
poderia significar falta de confiança na vitória de Serra: Calabi era seu segundo no
Ministério e a nomeação apareceria à opinião pública como algo temporário.
(Lamentavelmente, Serra não venceu a eleição para a Prefeitura naquele ano. O
secretário de Finanças de Maluf, Celso Pitta, embalado por marqueteiros
competentes, seria o novo prefeito - e faria uma das mais desastrosas
administrações da história de São Paulo.
Algo que Serra, eleito finalmente para o cargo em 2004, com bela vitória sobre
Marta Suplicy, do PT, ajudaria a consertar.) Depois dessas a única modificação que
promovi em 1996, em dezembro, foi a substituição já referida de Adib Jatene por
Carlos César de Albuquerque.
A verdadeira história da reeleição
Muito das não-decisões e da morosidade das reformas se atribuiu, não tanto na
época, mas em versões posteriores, à concentração de energia política,
principalmente de minha parte, para a aprovação da emenda constitucional que
permitiu a reeleição, que ao ver de alguns poderia ser postergada, senão que era
mesmo inconveniente.
Tal como apresentado ao debatç público, o tema da reeleição tornou-se matéria mais
de interesse político-paftidário do que propriamente uma discussão sobre
"Engenharia institucional", em cujos termos tem cabimento.
284
Vale a pena, entretanto, rememorar as discussões sobre a reeleição e seus
efeitos sobre a condução da política económica.
Que eu me lembre e nos registros que tenho de meus dias de governo, a primeira
menção ao assunto comigo partiu do deputado baiano João Almeida, do PMDB.
Mas desde o início de 1996 havia alusões à possibilidade de se mudar a regra
constitucional que proibia a reeleição. O deputado José Mendonça Filho (PFL-PE)
apresentara, à minha revelia, proposta de emenda à Constituição nesse sentido. A
matéria estava no ar desde quando, ao longo dos trabalhos da
revisão constitucional automática iniciada em 1993, ocorreu a redução do mandato
presidencial de cinco para quatro anos, no entendimento mais ou menos explícito de
que, com um mandato encurtado, haveria mudança de regra para permitir a
reeleição. Mais tarde, por manobras casuísticas, pelo temor da eleição de Lula - à
época da revisão constitucional de 1993, as pesquisas de intenção de voto o
colocavam como virtual vencedor da disputa presidencial no ano seguinte -, o
complemento da decisão acabou não sendo votado.14
Em fins de fevereiro de 1996 tenho registro de uma conversa com um governador do
partido chefiado na época por Paulo Maluf, Esperidião Amim (PPB-SC). Dela concluí
que Amim se oporia à reeleição se não houvesse anuência para a generalização da
regra, ou seja, o princípio da reeleição deveria abranger também prefeitos e
governadores. Se não, pensava o governador, que se deixasse a discussão para
depois do pleito municipal de outubro daquele mesmo ano. Eu achava que, em se
tratando de um princípio, ou bem se incluiriam os três níveis de governo, ou seria
um casuísmo gritante, ad hominem, beneficiando o Presidente que estivesse em
exercício. No final de março de 1996 autorizei a deputada Sandra Cavalcanti a
transmitir minha opinião sobre a matéria.
Paralelamente, no início de março houve uma quase rebelião no Senado e na
Câmara. Começaram fortes rumores sobre uma CPI do Sistema Financeiro, limitada
a investigar fatos ocorridos em 1995, para envolver o governo. O alvo era o
Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento
Nota: 14 A redução do mandato para quatro anos foi estabelecida pela
Emenda Constitucional de Revisão n° 5, de 7/6/1994; a reeleição foi instituída pela
Emenda Constitucional n° 16, de 4/6/1997, originária da Proposta de Emenda
Constitucional n° 1, apresentada pelo deputado Mendonça Filho em 22/2/1995.
Fim da nota.
285
do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que a oposição alegava ter
sido criado para beneficiar banqueiros, pensando no Banco Nacional, que na
ocasião tinha minha nora, Ana Lúcia Magalhães Pinto, como uma das acionistas.
Chegou a haver aprovação pelo plenário de requerimento firmado por 27
senadores, quorum necessário à tramitação de um pedido de CPI. (Acabaria
havendo, bem depois, uma CPI do Proer na Câmara, que abordarei no Capítulo 5, e
da qual o governo se saiu muito bem.) Em seguida, outro problema: na reforma da
Previdência, perdemos a votação do parecer do relator, que obteve 296 "sim"
quando seriam necessários 308. Isso depois de o líder do governo, Luiz Carlos
Santos, me haver assegurado que as coisas estavam sob controle. Ou seja,
houve um movimento de rebeldia capitaneado por alguns líderes do PMDB, à frente
o senador Jader Barbalho, com apoio nos descontentes da base parlamentar do
governo. Ao mesmo tempo, a situação do sistema bancário era delicada, como
relatarei adiante, no Capítulo 5. Resultado: me vi obrigado a mobilizar congressistas
para impedir a constituição da CPI que, além de ser uma provocação ao governo,
punha em risco a estabilidade do sistema financeiro. Os políticos não sabiam,
mas estávamos às vésperas de reconhecer as dificuldades do BB decorrentes da
inadimplência do setor rural, dos altos salários de seus funcionários e das
dificuldades de viver sem o floating inflacionário, o que implicaria socorrê-lo com um
gigantesco reforço de caixa do Tesouro, que chegou a 8 bilhões de reais, na época
equivalentes a dólares.
Foi nestas circunstâncias que anotei, pela primeira vez, as vantagens de se aprovar
a emenda da reeleição. Mais tarde passou a ser lugar-comum que, sem o fantasma
da reeleição, teria sido mais fácil para o governo conseguir a aprovação das
reformas. Meu raciocínio era o oposto:
temerosos da eventualidade de minha candidatura, os pré-candidatos à Presidência
dos partidos que me apoiavam ficariam inibidos. Isso dificultaria a formação de um
pólo aglutinador independente do governo, o que, por conseqüência, reforçaria meu
poder no Congresso. Estando eu fortalecido, cessariam ou diminuiriam os
arreganhos prematuros de desafiar a autoridade presidencial, inclusive nas
reformas, pouco menos de três anos antes do fim do mandato. Não considerava
ainda, no meu íntimo, uma candidatura efetiva, mas apenas sua possibilidade,
para fortalecer-me politicamente. As pesquisas de opinião eram claras: a tese da
reeleição tinha apoio
286
superior a 60% entre os consultados, contra vinte e tantos por cento que se
opunham.
O assunto foi-se espichando no decorrer de 1996. Falava-se da possibilidade de
uma candidatura do ex-Presidente José Sarney ao Planalto, pelo PMDB. No dia 8
de junho tive longa conversa com Luís Eduardo Magalhães. Ele ponderou que a
emenda da reeleição deveria ser votada já naquele ano, depois das eleições
municipais de outubro.
Argumentou com razões políticas. Por um lado, meu nome unificaria o bloco
majoritário. Por outro, ainda sendo presidente da Câmara, ele teria como controlar a
formação da comissão encarregada do parecer inicial sobre a reeleição. Além do
mais, poderíamos jogar com as ambições dos candidatos do PMDB à sua sucessão
no comando da Casa, pois os dois principais (Michel Temer e Luiz Carlos Santos)
tudo fariam para ter as graças do Presidente da República. Apesar disso, no dia 31
de julho anotei: "Tenho pensado sobre essa questão de reeleição, que vira e mexe
aparece como se fosse um tema prioritário meu. É um tema prioritário do país. Mas
fico pensando se não devo, num dado momento, dizer: 'Bom, tudo bem, mas não
vou ser candidato a mais nada, mesmo que haja a possibilidade.' Em um dado
momento talvez faça isso. Estou há um ano e meio [no mandato], faltam dois anos e
meio. É muito tempo. As pessoas não imaginam o que significa de esforço para se
conseguir ficar esse tempo todo realmente segurando o leme. Mas a verdade é que
existe um desgaste."
No dia 15 de agosto de 1996, discuti com Tasso Jereissati, pela primeira vez, o
assunto reeleição. E falei sobre nomes para minha sucessão, com ou sem a
aprovação de uma emenda pró-reeleição, eventualmente ele próprio. Nesse mesmo
dia, mais tarde, mantive longa conversa com o líder do PMDB no Senado, Jader
Barbalho, pretendente à presidência da Casa. Com seu jeito desconfiado de índio
na tocaia, mas preciso e franco nos conceitos e no jogo político, pôs as cartas na
mesa: ele poderia ou não apoiar a reeleição.
- O jogo é mais complicado do que parece - disse.
Jader temia que Sarney, presidente do Senado, estivesse manobrando para ajudar a
eleição de seu ex-poderoso ministro das Comunicações e grande amigo António
Carlos como sucessor. Sendo ACM do PFL, isso colocaria o PMDB, partido de
Jader, em posição difícil e não seria razoável imaginar que nessas condições
Sarney pudesse ser o interlocutor principal
287
do partido. Ou seja, de novo os prenúncios da tempestade que caiu sobre o
Congresso: os partidos aliados disputando espaço político, como é natural, e os
líderes se confrontando em luta aberta. Jader, realista, eventualmente até abriria
mão da pretensão à presidência do Senado, mas gostaria de saber, com a reeleição,
que parte lhe tocaria no controle político do Pará (cujo governador, Almir Gabriel,
era do PSDB).
No dia seguinte jantei em Brasília na casa da governadora do Maranhão, Roseana
Sarney (PFL). Seu pai, o senador Sarney, a sós comigo, em sala à parte, aflorou o
tema da reeleição. Ele sabia das intrigas de que sua eventual candidatura à
Presidência seria contra mim, e assegurou, chamando-me de "você", como eu a ele
quando não estávamos diante de terceiros:
- Você não deve acreditar nessa história de minha candidatura para lhe prejudicar.
Se a emenda for aprovada, ela vai incluir governadores e prefeitos, e a Roseana
poderá se reeleger. Eu, como você, sou político.
Quando o cavalo passa selado, a gente monta. Mas não é o caso agora. O Maluf
quer ser candidato à Presidência, e ele é inaceitável. Nós dois nos damos bem,
somos intelectuais e temos sentido público.
Sarney, além do mais, sabia da relação amistosa que eu mantinha com Roseana.
Sendo assim, disse, ele estava disposto a apoiar a reeleição.
Portanto, dali por diante conviria afinar a viola: a votação da matéria deveria
começar pelo Senado e nós teríamos que nos ocupar da renovação das Mesas do
Congresso. Ele iria ter um encontro com o ex-Presidente Itamar Franco, outro
possível candidato à Presidência, para dissuadi-lo do propósito. Em outros termos,
colocação semelhante, mas provavelmente em sentido contrário, à do senador
Jader. Lembrei que, embora fosse certo que tanto ele como eu preferíamos a
eleição do deputado Luiz Carlos Santos para a presidência da Câmara, havia meu
compromisso com Luís Eduardo de começar a votação da emenda da reeleição por
aquela Casa, pelas razões já expostas.
A despeito dos sinais de apoio não só à tese da reeleição como à
minha candidatura, no dia 27 de agosto reiterei a António Carlos Magalhães, Luís
Eduardo, Tasso e Sérgio Motta, ou seja, ao PFL e ao PSDB, que continuava
acreditando que não deveria intervir diretamente no debate ou no encaminhamento
da questão. Não queria me comprometer de antemão com a candidatura. Mais
ainda, ressaltei que o governo não poderia
288
entrar de cabeça no assunto, até porque nos faltavam dados para avaliar melhor a
situação. No outro dia, tudo o que se discutiu estava na mídia... Durante o mês de
setembro me mantive em posição de cautela e um tanto irritado com a insistência
da imprensa, que refletia as conversas havidas, vendo tudo como se eu estivesse
ansioso pela reeleição. "Tudo em função do meu desejo. E meu desejo não é tão
grande assim (...) até porque comecei a ficar cansado, entediado, as coisas estão
começando a entrar na rotina demais", confidenciei ao general Alberto Cardoso, no
dia 27 de setembro, conforme meu registro ao gravador. Reiterava que a questão
era dos partidos e da possibilidade de levar adiante nosso projeto de país.
Por certo, não sou ingénuo. Começava, sim, a considerar a hipótese da reeleição.
Não via quem pudesse aglutinar as forças políticas necessárias para levar adiante a
modernização em curso. Nenhuma liderança surgira com força suficiente para
exercer esse papel.
Portanto, além da preocupação com meu fortalecimento político para ganhar as
batalhas no Congresso, despontava também no horizonte psicológico - devo admitir,
sem margem de dúvida-a tentação da reeleição. As adesões dos parlamentares
continuavam aos magotes. Na oposição, o PT e Maluf, que não me queria como
adversário numa disputa a que pretendia se lançar, como fizera em 1989. (Havia
gente no PT um tanto embaraçada porque o partido fora favorável ao princípio
da reeleição no debate da revisão constitucional.) As pesquisas de opinião, com
acentos diferentes de interpretação conforme os órgãos de comunicação fossem
mais aberta ou discretamente favoráveis à tese, corroboravam a vontade da maioria
nessa direção. Cada vez mais a argumentação, um tanto artificiosa, de separar o
princípio da pessoa beneficiada e minhas reservas em assumir compromissos com
a recandidatura se transformavam em escudo preventivo, mais do que
em disposição íntima.
Mesmo assim, havia um jogo ambivalente. Em dia melancólico, depois de assistir
sozinho no cinema do Palácio da Alvorada ao filme The Secret Garden, da cineasta
polonesa Agnieszka Holland, anotei: "Fico às vezes sozinho, pensando: 'Meu Deus,
mais seis anos é muito tempo,' Não estou seguro de que valha a pena, nem de que
eu tenha, no momento adequado, energia para topar tudo isso."
Esses lamentos vieram depois de uma enxurrada de distorções aparecidas na mídia.
Artigos de antigos companheiros das lides universitárias,
289
frases e declarações de políticos, enfim, parcelas da opinião, sempre julgando
intenções que desconheciam e querendo fazer crer que o governo estava
paralisado, "preparando somente o espetáculo do Congresso para a reeleição" e
calçando-a, como se diz, com "trocas fisiológicas". Ora, eu vinha me esfalfando para
agilizar as reformas, manter a economia sob controle, ativar a administração e
convicto, como anotei em outubro, de que "não houve nenhuma troca fisiológica,
não vai haver, não precisa, não deve" para assegurar a vitória da tese da reeleição.
No começo de novembro o jogo dos partidos (e dentro deles) para o controle das
Mesas do Congresso começou a ficar mais claro, embora não mais calmo. Luís
Eduardo Magalhães apoiou Michel Temer, do PMDB (e não Luiz Carlos Santos),
para a Câmara, no que resultou ser mais fácil que um pefelista (no caso António
Carlos) assumisse o Senado. Sérgio Motta, respondendo a interesses políticos de
setores do PSDB, se lançou abertamente a favor de ACM. O PMDB viu nisso, sem
que fosse certo, manobra minha, tornando mais tensa a situação. No começo do
ano seguinte, buscando ter maioria, ACM levou o senador Gilberto Miranda
do PMDB para o PFL. Estavam armados o jogo e a confusão. Misturaram-se
as lutas dos partidos por espaço no Congresso com o tema da reeleição.
Começaram as acusações. Rumores de que Maluf estaria comprando votos
dos membros da comissão especial que daria parecer sobre a emenda.
Ninguém, entretanto, se dispunha a confirmar. Por outra parte, acusava-se
o governo, sem comprovação, de pressionar deputados usando informações do BB
sobre suas dívidas.
Indiferente às tricas e futricas, o Ibope registrou o estado de ânimo da população,
medido a 12 de dezembro de 1996: a tese da reeleição tinha o apoio de 63% dos
entrevistados. O governo continuava trabalhando:
aprovou a delicada questão do aumento do Imposto Territorial Rural (ITR) para
propriedades não exploradas devidamente, de forma a facilitar a reforma agrária,15
e o rito sumário na desapropriação de terras,16 algo que detalharei quando tratar
mais detidamente da reforma agrária,
Nota: 15 Para isso, o Congresso converteu a MP n° 1.528, de 19/11/1996, na Lei n° 9.393,
de
19/12/1996.
16 O rito sumário constava de projeto que o governo apresentou no final de 1995 e
que o Congresso aprovou como a Lei Complementar n° 88, de 23/12/1996.
Fim da nota.
290
no Capítulo 8. Temas distintos, com prazos e dificuldades diferentes, mas aprovados no
contexto da mesma e difícil negociação no Congresso, simultaneamente com a
bancada ruralista e os sem-terra. Como se tudo isso não bastasse, o governo
insistia em fazer com que as reformas avançassem, embora, como sempre, a conta-
gotas.
Neste quadro tenso, ainda mais que Sarney parecia haver encampado a candidatura
do senador íris Rezende à presidência do Senado, resolvi aceitar a tese do ex-
governador Montoro, então deputado federal, que era favorável a um referendo para
decidir o tema da reeleição. No fim do ano e começo de janeiro viajei com a família
para descansar em Fernando de Noronha. Aproveitei para ler bastante. Li um livro
sobre o casal Clinton,17 outro do historiador francês e meu amigo François Furet,18
li também as memórias do jornalista e político Mário Martins, preparadas por seu
filho Franklin Martins, jornalista da Globo,19 um estudo de Roger Bastide20 sobre o
candomblé, e assim por diante. E li matérias na imprensa que me chamavam a
atenção para os inconvenientes da reeleição: entre muitas, um artigo de Gilberto
Dimenstein e uma entrevista de velho conhecido meu, o inglês Perry Anderson,
editor da New Left Review e historiador famoso, criticando o fato de eu ter aceitado a
reeleição sem antes fazer a reforma dos partidos, o que lhe parecia um equívoco.
Gostei das análises e anotei: "Acho que se houvesse uma saída que não a reeleição
teria sido melhor (...) o ideal seria [ter sido previsto na Constituição] um mandato um
pouco mais longo (...). Minha primeira reação à reeleição sempre foi essa.
Em termos biográficos, não é uma boa. (...) Claro que pode ser até presunção da
minha parte, mas busquei, falei com os partidos, ninguém topa outro nome. Não sei
se estou racionalizando, mas com certeza para mim, pessoalmente, não é nenhuma
boa ficar mais quatro anos."
Daí a recidiva, de tempos em tempos, da idéia do referendo: quem sabe
o consentimento expresso do eleitorado diminuísse minha angústia. O referendo se
transformou em plebiscito na pena de Elio Gaspari e no ânimo
Nota: 17 Roger Morris, Partners in Power: The Clintons and their America, Nova York,
Henry Holt & Co., 1996.
18 François Furet, O passado de uma ilusão, São Paulo, Siciliano, 1995.
19 Mário Martins, Valeu a pena, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.
20 Roger Bastide, O candomblé da Bahia, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
Fim da nota.
291
do senador José Serra. O assunto ultrapassou o fim do ano até o período da
convocação extraordinária do Congresso, em janeiro de 1997.
Eu me opus à idéia de um plebiscito, não por receio de perdê-lo (a opinião pública
era maciçamente favorável à tese da reeleição), mas por temer a "democracia
direta" que marginaliza o Congresso. Para mim, àquela altura, seria fácil jogar o
povo contra o Congresso, se fosse o caso. Mas, além de não ser necessário, eu
jamais embarcaria em tal tipo de aventura antidemocrática. Referendo, sim, porque
o povo, em vez de dar um cheque em branco aos poderosos, como no plebiscito, é
levado a dizer "sim" ou "não" a uma proposta concreta, de antemão aprovada
pelo Legislativo. Entretanto, a tramitação da matéria levaria praticamente um ano e,
aí sim, tudo o mais se paralisaria à espera de uma decisão. Como conseqüência,
me joguei a fundo em apressar a decisão: precisaria ser em janeiro de 1997, para
nos ocuparmos logo do que era essencial para o país, ou seja, completar as
reformas, para dar sustentação ao crescimento, gerar mais renda e emprego.
Tivemos um janeiro extremamente difícil, que me obrigou a um envolvimento direto
na apreciação da reeleição. A precipitação da candidatura ACM à presidência do
Senado acendeu luzes amarelas no PMDB.
O apoio de Sérgio Motta levou as luzes a mudarem de cor para vermelhas.
Apesar das juras de governismo e fidelidade eterna, não havendo homogeneidade
no partido e existindo interesses divergentes entre senadores e deputados, o PMDB
voltou ao seu hamletismo tradicional. O núcleo de comando na Câmara, estimulado
pelo apoio de Luís Eduardo, fechou questão em torno de Michel Temer; os
senadores peemedebistas, que tinham a presidência do Senado na pessoa de José
Sarney, se aglutinaram ao redor de íris Rezende. E todos desconfiando de mim e
do governo. Resultado: sob a chefia do ex-deputado Paes de Andrade
(CE), presidente do partido e adversário da tese da reeleição, convocaram
uma convenção para decidir se a apoiariam ou não e, sobretudo, para deslocar a
data de votação para depois da eleição das Mesas Diretoras da Câmara e do
Senado (a 15 de fevereiro).
Estava configurada a manobra do PMDB: queriam prender o Planalto a
suas estratégias de expandir o poder congressual do partido e enroscarme
nas disputas internas do Congresso. Eu me indignei. Busquei apoio
nos governadores do PMDB, também eles interessados em resolver a
questão
292
da reeleição. Tentei esvaziar a convenção. Pedi ajuda a Sarney e a Jader, antes
comprometidos com a aceleração da decisão. Inútil: com as manobras de praxe, o
partido levou à frente a convenção e decidiu postergar a votação. Isso se deu num
domingo, 12 de janeiro. Ato contínuo, na segunda-feira, convoquei os líderes,
inclusive íris Rezende e Sarney, presidente do Senado (no que, confesso, exagerei,
por sua posição institucional e por ser ex-Presidente), e li para todos eles, com certa
solenidade, em uma grande mesa montada no salão contíguo ao gabinete
presidencial, uma nota redigida de próprio punho. Nela, falo de deslealdade ("tenho
um punhal cravado nas costas...") e exijo, preto no branco: ou colocam em votação
a emenda da reeleição ainda em janeiro, separadamente da eleição das Mesas, ou
se considerem fora do governo. Expliquei:
- Qualquer um pode ser contra a reeleição. O que não aceito é fazer de conta que se
está a favor e, além de tudo, tentar aprisionar o Presidente para que ele influa na
decisão do Congresso a favor de uma das partes.
íris Rezende teve a hombridade de assumir a responsabilidade pela manobra,
enquanto alguns outros dos ali presentes, tão ou mais responsáveis do que ele,
calaram.
Apesar das queixas de que eu teria "passado um pito" no PMDB e em figuras
respeitáveis da República (na verdade apenas lamentei a falta de lealdade), daí por
diante ganhamos fôlego para forçar uma decisão, qualquer que fosse, antes da
eleição das Mesas Diretoras, salvaguardando o Executivo de maiores pressões. Não
cabe entrar em pormenores. Com avanços e recuos, entretanto, o Congresso
voltava ao leito do anteriormente combinado, ao mesmo tempo em que as adesões
à tese da reeleição cresciam. No dia 15 de janeiro a comissão especial
do Congresso aprovou a emenda pró-reeleição por inequívoca maioria: 19 a favor e
11 contra, com o PMDB votando a favor. Isso acirrou os ânimos e a busca de votos
pelos perdedores para o embate no plenário. Voltei a cogitar de uma consulta
popular. Estava não somente irritado com os procedimentos, mas querendo me
afastar das pressões por "trocas fisiológicas". Ou como se diria mais
elegantemente, do escambo entre nomeações e votos. Nos dias anteriores à
votação da emenda da reeleição continuou forte a zoeira sobre "compra de votos",
não pelo governo, e sim por setores contrários à tese. No dia 18, um sábado, no fim
da tarde, Sérgio Motta procurou-me no Palácio da Alvorada. Mostrava-se aflito e
horrorizado.
293
Tivera uma conversa com o presidente da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), Clésio
Andrade - que diziam pretender o Ministério dos Transportes com apoio do ex-
governador mineiro Newton Cardoso -, que o alertou para o que estaria ocorrendo,
principalmente nas hostes malufistas, em matéria de "compra de votos". Eu disse a
ele:
- Não podemos fazer absolutamente nada que autorize alguém a entrar por esse
caminho em nosso nome. Vamos sempre seguir o caminho da negociação política.
Sérgio concordou, embora receando que a "lama" como chamou, acabasse
por derrotar de todo modo a tese da reeleição. Ele tinha razões para temer que o
diz-que-diz-que malévolo e irresponsável nos atingisse. Um ex-governador de
estado, cujo nome não posso citar, chegou a lhe apresentar, à margem de uma
reunião política de que ele participou, uma lista de parlamentares, dizendo:
- Esses apoiam a reeleição, mas custam tanto.
Sérgio cortou a conversa na hora, com um "nem pensar!", mas teve tempo de ver
alguns nomes da tal lista. Pois bem, vários deles já tinham assumido, sem qualquer
tipo de desonestidade, o compromisso político de votar pela reeleição. E Sérgio
temeu que a afirmativa de que "custariam" um preço, caluniosa para esses
deputados, pudesse ter curso.
O que impediria o ex-governador, por exemplo, de dizer a terceiros que havia lhe
passado uma lista, sugerindo assim que Sérgio estaria tocando um "esquema"
desonesto?
Era esse o clima. E eu insistindo na votação das reformas. Ainda no dia 21,
conversei com o líder do governo no Senado, Élcio Álvares (PFLES), para saber por
que se dera a substituição do senador Vilson Kleinubing (PFL-SC) pelo tucano Beni
Veras como relator da reforma da Previdência.
Fiz referências elogiosas ao senador Veras, pedi pressa e solicitei apoio às
propostas de reforma política do senador Sérgio Machado, relator de uma comissão
especial para tratar do assunto. Elas previam várias alterações importantes, como a
exigência de fidelidade partidária, para impedir que parlamentares continuassem
com o troca-troca imoral de legendas, ou a cláusula de barreira, destinada a evitar
os partidos de aluguel, sem voto popular mas com direito a vários privilégios legais,
como o acesso ao horário eleitoral na TV e no rádio, que muitos deles negociavam
como mercadoria. Enquanto isso, eu tentava naqueles dias distrair o
294
espírito lendo o De senectute,21 do grande cientista político italiano Norberto
Bobbio, mas em vão. No dia 22, novas informações, vindas do PFL, de movimentos
suspeitos por parte de pessoas que, por suas posições, deveriam ser insuspeitas.
Os votos contra, percorrendo caminhos tortuosos, pareciam aumentar. Eduardo
Jorge relatou que um deputado do Espírito Santo tentou lhe falar sobre
"dificuldades financeiras" - clara insinuação sobre receber dinheiro em troca de
voto - e que ele foi muito claro:
- Olha, não posso nem ouvir esse tipo de conversa.
Não obstante nossos cuidados e nossa atitude, registrei no gravador que "o pior é
que a imprensa, como sempre (...) tem olho voltado sobre o governo e não sobre a
oposição, mesmo quando essa oposição é Maluf".
Mais adiante, me deterei com vagar sobre a suposta "compra de votos".
Esses fatos e rumores me levaram a novamente cogitar de um referendo ou mesmo
de um plebiscito, e só desisti pela demora que o procedimento requeria para
tramitar no Congresso, como já escrevi. O tema chegou a ser objeto de
negociações políticas, não apenas com o senador Sarney, mas até com setores da
oposição, como o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).
Minhas objeções à forma plebiscitaria de decisão, e conseqüentemente
a preferência pelo referendo foram anotadas no sábado, dia 25 de janeiro:
"O plebiscito por um lado põe o Congresso em maus lençóis. Assalta o Congresso
por meio da decisão direta do povo. Por outro lado [quem obtém] a vitória no
plebiscito - no caso não é somente a reeleição, mas sou eu - passa a ser encarado
pela população como um salvador. Mas de novo o Congresso existe [e] ou eu faço
negociações com ele ou vão achar [o povo] que eu traí, ou então vou marchar
firmemente cada vez mais contra o Congresso. Isso é o risco da ditadura. (...) É um
cesarismo (...) virtual."
Com miuçalhas maçantes, negociações, pressões, tentativas de suborno pelos
adversários da tese e outros movimentos, o certo é que a emenda da reeleição
terminaria sendo aprovada na Câmara, na data em que eu queria, 28 de janeiro de
1997, por uma expressiva maioria de 336 votos, ou seja, 28 acima da exigência do
quorum qualificado mínimo de três quintos dos deputados. Alguns meses depois o
Senado aprovou com mais de 80% de votos favoráveis, depois de um segundo turno
na Câmara com
Nota: 21 Norberto Bobbio, De senectute e altri scritti autobiografia, Turim, Einaudi, 1996.
Fim da nota.
295
votação mais folgada do que no primeiro. No processo tive novamente o cuidado de
"não derramar sangue inútil". Mantive portas abertas para o PMDB. Voltei a
negociar politicamente com todos eles, inclusive com o grupo goiano, que estava
amuado. Os jornais anunciaram várias capitulações minhas... Eu, preocupado com
as reformas futuras, falava a meus amigos do PSDB e do PFL que devíamos ser
generosos na vitória e deixar para lá as pirraças contra os que tinham se oposto à
emenda por motivos de política regional ou de interesses pequenos,
mas politicamente legítimos.
Às vésperas da primeira votação na Câmara, no meio do fogaréu, encontrei tempo
para conversar com António Octávio Cintra e Fábio Wanderley Reis, cientistas
políticos, sobre o que seria um comportamento de "exemplaridade" em política, que
alguns colegas da universidade, alimentados pelas informações incompletas da
mídia, cobravam de mim.
Anotei: "O que tem que haver (...) nessa tensão, nesse vaivém da política [é] não
deixar que o realismo seja só a vitória. O realismo implica também criar condições
para que dessa vitória resulte uma ação concreta favorável aos ideais, aos objetivos
que se deseja preservar.
E, portanto, não [se] pode permitir expansão de ego nem expansão de poderes além
de certos limites. Ainda que fosse possível nessa conjuntura exacerbar as duas: o
ego e os poderes concretos, [isso]
seria muito negativo porque poria em risco a democracia. E se, por outro lado, eu
não tivesse a humildade necessária para recompor com o PMDB, receber críticas
do PSDB e da sociedade, não teria condições de mais adiante fazer avançar os
projetos que tenho em mente. E não quero estar no governo só por governar, mas
para mudar o Brasil."
Esta foi, por assim dizer, a rationale de meu comportamento. Visto às vezes como
arrogante, cesarístico, outras como capitulacionista, frouxo, na verdade nem uma
coisa nem outra. Buscava alcançar objetivos, embasados em valores, mas por
métodos democráticos e não deixando que o realismo necessário se transformasse
em cinismo, nem que a exemplaridade abstrata dos que se aferram a princípios sem
criar condições para pô-los em prática engessasse o processo político. Ao reabrir
negociações com os que haviam sido "desleais", eu levava em conta a necessidade
de não rachar o sistema político, de manter o PMDB como uma ficção de unidade
necessária para que pudesse negociar com seus integrantes ou pelo menos
296
simbolicamente ter sua adesão às reformas que estávamos levando à frente.
Compreendi que as jogadas do PMDB naquele momento encerravam
um fundamento político e não poderiam ser avaliadas apenas no plano subjetivo
das lealdades: temiam perder a eleição das Mesas Diretoras do Congresso e, com a
aprovação da emenda da reeleição, ter menos poder.
Não sendo partícipes originários do pacto advindo das eleições de 1994, meu
fortalecimento poderia ser-lhes fatal. Tendo os propósitos que tinha, eu não poderia
permitir que fosse adiante essa percepção. Dada a expressão numérica da bancada
peemedebista, ela poria por terra as ambicionadas mudanças no Brasil.
A absurda acusação de "compra de votos"
Uma nova onda de modificações no governo viria em abril de 1997. As condições e
características dessa nova mexida foram semelhantes às das alterações anteriores.
Nelas o que importa ressaltar, mais do que as minúcias históricas, é o vaivém do
jogo político. O Presidente guarda, naturalmente, a última palavra. Em determinadas
ocasiões, contudo, mal pode balbuciá-la, tal a força dos acontecimentos. Os
personagens envolvidos nas decisões são poucos e quase sempre os mesmos, no
caso o segmento do círculo próximo que participa das decisões políticas e um ou
outro dirigente partidário, às vezes também membro desse círculo, que opina por
sua força institucional. Raramente os interesses organizados da sociedade e seus
grupos de pressão atuam diretamente nas escolhas. Esta pressão se dá, muito
indiretamente, por meio de comentários na imprensa.
No jogo com partidos e candidatos a ministro ou a cargos de alto escalão, o
Presidente procura preservar seus objetivos. Os partidos, bem como
individualmente os líderes políticos, buscam não só maior controle efetivo da
máquina pública e dos mecanismos decisórios, mas freqüentemente a manutenção
ou a expansão de sua presença simbólica no tabuleiro do poder. Nessa hipótese,
em geral mal lhes importa a competência do designado para a função. Mais vale
que "fulano é meu" ou "fui eu quem o indicou" Nesse equilíbrio simbólico de poder
entram considerações sobre a influência relativa de cada partido, de cada estado ou
de cada corrente ou líder dentro do mesmo partido. Feita a nomeação, os
"padrinhos" pouco se interessam pelo desempenho do indicado, e sobra para o
Presidente
297
e para o governo apagar os incêndios eventualmente provocados com a
nomeação, ou responder pela ineficiência da performance.
As mudanças entre maio e junho de 1997 foram tocadas ao sopro do vendaval
político. As reformas caminhavam lentamente. Em fins de abril, o governo chegou a
perder uma votação importante na reforma administrativa. A privatização da Vale
provocou forte reação entre procuradores da República, OAB, CNBB, CUT e demais
organizações influenciadas em maior ou menor grau pelo PT e pelas esquerdas
em geral. As afrontas ao Presidente se multiplicavam, chegando a ponto de a
maioria dos procuradores da República assinarem uma nota ameaçando-me de
processo por "crime de responsabilidade". O desassisado da ameaça era total. Eu
exercia o poder de acordo com a Constituição para efetivar políticas aprovadas pelo
Congresso, como, no caso, a privatização. A nova política, contudo, feria os
interesses e as suscetibilidades ideológicas de muitos procuradores, como de vários
grupos políticos e de pressão, que haviam sido derrotados nas eleições. O próprio
STF, pela decisão individual de um ministro - não vem ao caso lembrar quem foi -
, acolheu liminar que interferia no andamento das votações na Câmara, sustando
matéria previdenciária, e assim por diante. No plenário do Congresso, cada vez que
o governo ganhava, lá vinham os "apitaços" para significar que supostamente
houvera barganha e, em seguida, a oposição levava as decisões legislativas ao
STF, para impedir seus efeitos.
Verificou-se uma verdadeira "tribunalização" da política. Enfrentávamos uma
guerrilha cotidiana de liminares para impedir a ação administrativa do governo,
principalmente nas privatizações.
Para cúmulo, em maio, fui surpreendido e reagi com indignação à volta das infâmias:
a denúncia de compra de votos, não pelos opositores à tese da reeleição, mas pelo
governo! As votações sobre a reeleição, já aprovada pela Câmara, iam se arrastado
no Senado. Enquanto isso, as oposições, PT à frente, mas com respaldo de parte
da imprensa, criaram a novela da "compra de votos".
No dia 13 de maio, antes da votação da emenda no Senado, surgiu a "denúncia": a
Folha de São Paulo publicou a transcrição de trechos de conversas entre o deputado
Ronivon Santiago (PFL-AC) e um personagem não identificado, chamado na
matéria de "Senhor X" que teria feito as gravações e entregue ao jornal. Nos trechos
publicados, Ronivon afirma que ele e outros quatro deputados, todos do Acre - João
Maia, Zila
298
Bezerra e Osmir Lima, do PFL, e Chícão Erigido, do PMDB - teriam recebido 200 mil
reais cada um para votar a favor da reeleição. O dinheiro teria sido prometido pelo
governador do Acre, Orleir Cameli (sem partido), e o pagamento efetuado pelo
governador do Amazonas, Amazonino Mendes (PFL). No dia seguinte, 14 de maio,
a Folha trouxe novos trechos de conversas gravadas pelo "Senhor X" com Ronivon e
João Maia. Em alguns desses trechos são citados Sérgio Motta, Luís
Eduardo Magalhães e o deputado Pauderney Avelino (PFL-AM). Em 15 de maio,
na terceira e última matéria da Folha baseada nas gravações do tal "Senhor X",
Ronivon alega que teria recebido do ministro Sérgio Motta uma concessão de TV e
iria receber uma de rádio.
As matérias da Folha, com base nessas conversas, sustentavam o envolvimento do
governo na compra de votos dos deputados para a emenda da reeleição. Pronto.
Essa versão foi abraçada pela oposição, que passou a exigir a instalação de uma
CPI e a anulação da votação da emenda na Câmara. Na voragem do denuncismo,
estava feita a "prova" do fato e do envolvimento de Sérgio Motta no caso. Era o
"Fora FHC".
Qualquer argumento parecia bom para minar o prestígio do governo, sobretudo na
área da decência.
Como indício de que eu estaria envolvido na operação apareceu outra "prova": teria
recebido os governadores do Acre e do Amazonas em três ou quatro oportunidades
no decorrer do ano. Naturalmente se esqueceram de cotejar quantas vezes concedi
audiência aos outros governadores, com alguns do quais tive até onze encontros.
Não importa, levantara-se a suspeita. Deputados petistas, sempre prontos a
encenar a farsa do bommocismo ético, se deram ao desplante de ir lavar a rampa do
Palácio do Planalto para, em manobra à Ia Goebbels, fixar na opinião pública
a imagem de um governo corrupto.
Nesses dias jantei com Luís Eduardo, José Serra, Marco Maciel e o exgovernador
do Rio e deputado Moreira Franco (PMDB). Registrei a respeito: "Reavaliamos tudo,
é um pouco repetitivo, a questão do pessoal lá do Norte. O Luís Eduardo é
favorável, como eu também, que cassem logo o rapaz, eu esqueço... não sei nem o
nome dele, um bando realmente de gente muito perigosa." E acrescentei não saber
se era certo ou não ter havido compra de votos regionalmente. Até poderia
ter ocorrido - afinal, e isso os acusadores nunca mencionaram e sequer levaram em
conta,
299
a reeleição interessava a todos os 27 governadores, como também aos milhares de
prefeitos de todo o país -, mas sem qualquer pedido ou interferência do governo.
Uma comissão de sindicância da Câmara presidida pelo deputado
Severino Cavalcanti (PPB- PE), corregedor da Casa, ouviu os deputados citados
e os governadores do Acre e do Amazonas. Todos negaram participação na venda
ou compra de votos. A Folha entregou à comissão uma cópia editada das
gravações, suprimindo as intervenções do "Senhor X" e outros trechos aptos a
identificá-lo. O perito Ricardo Molina, da Unicamp, atestou a autenticidade dos
trechos que examinou e reconheceu a voz dos deputados Ronivon Santiago e João
Maia em todos, exceto uma passagem onde faltaram "elementos acústicos
suficientes para uma avaliação
segura".
Em 21 de maio, Ronivon Santiago e João Maia renunciaram ao mandato
de deputado.
No mesmo dia a comissão de sindicância aprovou relatório do deputado e ex-
ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel (PPB-MG) concluindo pela existência de
indícios de comportamento incompatível com o decoro parlamentar por parte dos
deputados Osmir Lima, Zila Bezerra e Chicão Erigido. "As conversas dos deputados
Ronivon Santiago e João Maia (...)
contêm ainda elementos de convicção sobre a prática de crime de corrupção, por
eles expressamente atribuído aos governadores do Amazonas e do Acre, bem como
ao sr. Eládio Cameli [irmão do governador Orleir Cameli], diretor da empresa
Marmud Cameli, e, ainda que de maneira imprecisa, ao ministro Sérgio Motta."
Seguindo as recomendações da comissão, a Câmara abriu processo na Comissão
de Constituição e Justiça (CCJ) contra os deputados Osmir Lima, Zila Bezerra e
Chicão Erigido por quebra de decoro parlamentar e encaminhou cópia do relatório
da sindicância às assembléias legislativas, aos procuradores-gerais de Justiça do
Acre e do Amazonas e ao procurador-geral da República.
Sérgio Motta, aludido, indignou-se. Queria logo uma CPI, na ingenuidade de
imaginar que, naquelas circunstâncias, da CPI resultasse alguma coisa diferente do
que culpar o governo. No dia da publicação da terceira matéria da Folha, 15 de
maio, Sérgio divulgou nota contestando as ilações feitas a partir das menções ao
seu nome nas gravações.
300
A transcrição das conversas publicadas não contém nenhum fato real ou
acusação concreta. Os fatos citados são absurdos, mentirosos e, diria, surrealistas.
No caso da Retransmissora de Televisão (RTV), a permissão foi outorgada em 9 de
maio de 1996 [ou seja, um ano antes da votação da emenda da reeleição], como
detalhamos a seguir."
Em 17 de junho, concordei com seu desejo de depor na CCJ. Sérgio negou, com a
ênfase que lhe era habitual, qualquer participação na suposta compra de votos.
Releu para a comissão os trechos das conversas em que era citado, mostrando que
nenhum deles continha nenhuma acusação específica contra ele. Em nenhum
momento nas gravações - é bom relembrar - os deputados diziam que o ministro
lhes teria prometido ou pedido a quem quer que fosse para lhes dar dinheiro. Pelas
conversas gravadas, as tratativas sobre dinheiro teriam sido com os
governadores do Acre e do Amazonas. As menções a "Serjão"-como muitos se
referiam a Sérgio Motta -, dando a entender que ele teria alguma combinação com
o governador do Amazonas, eram alusões vagas em frases truncadas, entremeadas
de expressões como "quem sabe" "parece", "eu acho, sei lá".
Sérgio esclareceu que recebera o deputado João Maia uma vez, em 23 de janeiro,
antes da votação da emenda da reeleição na Câmara, na companhia do governador
e de outros membros da bancada do Acre, para falar da construção da rodovia BR-
364, a grande reivindicação do estado junto ao governo federal, E concedera
audiência ao deputado Ronivon Santiago em 6 de março, após a votação, também
na companhia do governador. Com o governador do Amazonas, informou que tivera
somente dois encontros formais, sem nenhuma conversa mais longa. Os membros
da CCJ, inclusive os da oposição - é bom ressaltar -, não questionaram
especificamente as explicações do ministro. Os oposicionistas limitaram-se a insistir
na tese de que só uma CPI poderia investigar o episódio a fundo.
Ronivon Santiago revelou a outros deputados a identidade do interlocutor oculto nas
gravações, embora não tenha confirmado essa informação à comissão de
sindicância. Seria Narciso Mendes, ex-deputado (PPBAC), dono de uma emissora
de TV no estado, casado com a deputada Célia Mendes (PFL-AC). Os líderes do
governo sabiam da movimentação de Narciso Mendes na Câmara, especialmente
junto ao PPB malufista, contra a proposta de reeleição. O "Senhor X", segundo a
Folha, levou meses
301
gravando conversas com Ronivon e João Maia. Narciso Mendes, além
de prestar um serviço a Maluf, tumultuando a tramitação da emenda da reeleição,
teria seus próprios motivos para produzir as gravações. No Acre ele estava em
conflito com o governador Orleir Cameli. E tinha uma pendência de vários milhões
de reais com a Receita Federal por sonegação de imposto, em relação à qual tentou,
sem êxito, conseguir alguma interferência do governo. Segundo depoimento dado a
mim pelo secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, apesar dos
muitos pedidos para aliviar pesada multa que sofrera - nenhum deles vindo
de gente do governo, diga-se -, ela foi mantida pela Receita.
A Câmara não encontrou outras provas que justificassem a cassação dos deputados
Osmir Lima, Zila Bezerra e Chicão Erigido. A ação dos governadores do Acre e do
Amazonas na suposta compra de votos tampouco se comprovou. Nas conversas
gravadas, Ronivon Santiago e João Maia se referem a "atrasados" que teriam a
receber do governador Orleir Cameli.
Conhecendo-se os personagens e os costumes políticos da região, é possível que
os deputados tenham se aproveitado da oportunidade da votação da emenda da
reeleição para saldar suas próprias dívidas, como contam nas gravações.
Nunca, nem por ouvir dizer, falou-se do envolvimento de outros deputados nesse
caso. Nem jamais se acusou o ministro Sérgio Motta de abordar deputados ou
quem quer que seja com propostas de suborno. Tudo o que existe para sustentar o
envolvimento de Sérgio, um homem honrado, são alusões desconexas nas
conversas entre essas três figuras - Ronivon, João Maia e Narciso Mendes ou
"Senhor X" - gravadas e editadas nas condições descritas acima.
A despeito de o suposto autor da vaga denúncia não ser pessoa de respeito, parte
da imprensa manteve no ar o clima de suspeição, sem nunca endossar abertamente
a acusação. Na lógica política, pouco importava o descrédito do acusador. Havia
interesse em desacreditar o governo. Mesmo o deputado Almino Affonso (SP), à
época em meu partido, o PSDB, disse que era necessário "lancetar o tumor", mas
que não existiam condições para isso. Não se referiu, porém, à motivação política
óbvia de uma CPI, como se o governo é que não tivesse interesse em apurar as
coisas. Em suma, o governo estava no pelourinho e daí por diante, a cada
302
crise, lá vinham as oposições com a lengalenga da compra de votos, apesar do
disparate. Tendo o governo maioria esmagadora da opinião e dos votos no
Congresso - que, torno a lembrar, também refletia o enorme interesse de
governadores e prefeitos na reeleição, algo sempre deixado de lado por meus
críticos -, se não fosse por motivos éticos e de estrita obediência à lei, até por mera
desnecessidade jamais iríamos nos meter na desventura e no pântano de comprar
votos. (Vale lembrar que, no ano seguinte, Jorge Viana, do PT, com apoio do PSDB,
ganhou a eleição para governador no Acre. Em novembro de 2000, ele denunciou
a participação de Narciso Mendes e do deputado federal José Aleksandro,
do Partido Social Liberal (PSL), num plano para matá-lo. O plano envolveria o ex-
deputado Hildebrando Paschoal, cassado e cumprindo pena desde 1992 por
homicídio e narcotráfico.) Se houve compra e venda de votos, ela se deu no plano
regional, envolvendo personagens e práticas da velha política que o PSDB, com
respaldo de meu governo, ajudou o PT a derrotar no Acre.
Com o passar das semanas, não sem prejuízo nas sondagens de opinião e, o que é
mais grave, na credibilidade do governo, o assunto foi saindo da pauta da mídia.
Mesmo porque surgiu outro escândalo: denúncias de militantes do PT contra Lula,
como se ele estivesse comprometido com manobras menos claras para a obtenção
de contratos em prefeituras controladas pelo partido. Como Presidente, dei logo
declarações de que o acusavam sem provas e manifestei testemunho de apreço,
temeroso de processos de desmoralização a granel de todos os políticos.
Por que tantas dificuldades no caminho das reformas? Por um lado porque os
economistas, empresários, articulistas, políticos responsáveis, governadores e
outros setores favoráveis à privatização e às reformas da Previdência e da
administração como que se cansaram com a morosidade do andamento do
Legislativo. Alguns cobravam do Presidente "pulso firme", mais autoridade (sem
explicar que tipo, se democrática ou fujimorista). Na hora das votações, no entanto,
muitos não apareciam para mostrar apoio às propostas, como se a aprovação delas
fosse problema exclusivo do Presidente, deixando os parlamentares sob
o bombardeio dos lobbies de funcionários, sindicalistas, ONGs e outras entidades e
grupos organizados contrários às reformas. Os próprios parlamentares favoráveis
se sentiam atropelados pela fúria contestatória das oposições.
303
Freqüentemente o governo ganhava as votações, mas apanhava o tempo todo nos discursos
e faltava ânimo a muitos defensores das reformas para o combate verbal. Por outro
lado, havia certa desarticulação entre os ministros e os líderes governistas no
Congresso, bem como internamente entre eles.
O ministro Sérgio Motta, que era um colosso na ação em sua pasta e que combatia
com vigor e lealdade, tinha características de personalidade que freqüentemente o
levavam a perder a batalha da opinião. Com entusiasmo e energia característicos,
atropelava aqui e ali a autoridade presidencial, com declarações que afetavam estar
ele de posse dos pensamentos mais recônditos do Presidente. Mais de uma vez
falou à imprensa sobre matérias fora de sua alçada e sobre decisões que a seu ver
o Presidente iria tomar, mas que não correspondiam ao que eu pensava nem ao
que iria fazer. A tal ponto que, em maio de 1997, escrevi-lhe uma carta pedindo que
se abstivesse de intrometer-se em outras áreas, chegando a dizer-lhe que tais
atitudes poderiam levar-me a dispensar sua colaboração, por mais que isso me
custasse. Ocorre que Sérgio Motta, no cômputo geral, sem contar sua competência
específica como ministro das Comunicações, mais ajudava no terreno político do
que - por seu estilo, não por suas intenções - atrapalhava.
Por trás de tudo estava a questão eleitoral. As pesquisas de opinião davam que a
maioria da população apoiava a reeleição. A quase totalidade dos editoriais da
grande imprensa ia na mesma direção. No plenário da Câmara, como já vimos na
votação realizada, também. No Senado, para minha surpresa, depois de toda a
zoada promovida pelas oposições em torno da suposta compra de votos, uma vasta
diferença de votos aprovou, a 21 de maio de 1997, a emenda da reeleição (o
placar final foi 63 a 6 porque a oposição se ausentou; se tivesse permanecido no
plenário, teria sido 66 a 17).
Isso ia dando à oposição a sensação de estar em um beco sem saída. Ela própria
espalhara que eu governava de forma imperial, abusando das MPs (provavelmente
nem sonhavam que nesse terreno o governo Lula me bateria de longe...). Optou por
desmoralizar o governo e atacar pessoalmente o Presidente. O slogan golpista
"Fora FHC" seria derrotado na direção máxima do PT por apenas um voto. Esse
partido se negou sempre a dialogar (ainda em maio tentei conversar com o próprio
Lula, que ironizou o convite) e sobretudo a votar a favor do que quer que fosse,
304
não só em matéria de reformas como de medidas que beneficiariam, por exemplo,
a educação, como quando se propuseram contra o Fundef.
Ao núcleo duro da oposição, que àquela altura ainda se acreditava ideológico,
somaram-se os ressentidos com o governo e os temerosos de um mau resultado
eleitoral, em uma espécie de "complô" contra minha força política e eleitoral, no que
foram seguidos pelos setores da imprensa que preferem um governo mais fraco a
um mais forte.
Não se governa só com amigos bem-intencionados
Assim estavam as coisas quando tomei a decisão de mudar alguns ministérios e
fortalecer os vínculos institucionais com o PMDB.
Expliquei detalhadamente a meus principais colaboradores o que ia fazer. Disse-
lhes que não era possível, nas circunstâncias, continuar mantendo relações fictícias
com o PMDB, constrangendo-o aceitar como sendo indicações do partido os nomes
que queríamos em vez de conceder aos peemedebistas maior margem de efetiva
escolha, pois isso dificultava a marcha legislativa. Chamei mesmo a atenção para
a necessidade de uma autocrítica do governo, que me incluía. Não tinha cabimento
imaginar ser possível governar o Brasil com um grupo de dez ou vinte amigos bem-
intencionados. Até àquela altura a única aliança real efetiva que fizéramos fora com
o PFL, mais constante nas votações e mais comprometido com nossas teses. (O
PTB nos apoiava, e seus votos eram importantes, mas tinha participação pequena
no governo. Os ministros que "representavam" o partido eram muito mais de
minha confiança do que da máquina petebista.)
Eu sabia, disse a meus colaboradores, que a direção do PMDB não controlava todo
o partido e que os votos viriam sempre pela metade, mas que precisávamos ter o
comprometimento efetivo de algumas dezenas de deputados e de alguns senadores,
para caminhar com mais segurança no Congresso. Por isso, nomearia o senador
íris Rezende para a pasta da Justiça, que ficara vaga com a indicação de Nelson
Jobim para o STF, e um deputado gaúcho, àquela altura quase desconhecido por
mim, Eliseu Padilha, para o Ministério dos Transportes. Eles eram os preferidos
do setor do partido que se dispunha a apoiar o governo. Consultei previamente os
peemedebistas conterrâneos do novo ministro Padilha, o governador Antônio Britto
e o ministro Nelson Jobim, que o avalizaram.
305
Os companheiros de partido e de jornada decepcionaram-se grandemente.
Para a Justiça, preferiam outros peemedebistas: o deputado paulista Aloysio Nunes
Ferreira (que posteriormente migraria para o PSDB) ou o senador gaúcho José
Fogaça. Eu havia pensado também em José Paulo Sepúlveda Pertence, ministro do
STF, e autorizei Eduardo Jorge a sondálo. Pertence, contudo, na ocasião há oito
anos no posto, deixou entrever que gostaria de continuar no tribunal e esse
movimento não prosperou. Nos Transportes, os tucanos desejavam promover de
secretário executivo a ministro o engenheiro José Luís Portella, filiado ao
PSDB paulista. Nas conversas com Padilha, disse-lhe que Portella permaneceria na
secretaria executiva do Ministério. O PSDB ficou descontente em Goiás e o de
Minas queria que eu criasse um Ministério da Habitação, para compensar a perda
relativa de prestígio dos tucanos dada a presença maior do PMDB
no governo.
No começo de junho, finalmente, conseguimos que Luís Eduardo
Magalhães assumisse a liderança do governo na Câmara. (Houve quem achasse
que ele não aceitaria a função, por ter exercido cargo de maior relevância - a própria
presidência da Casa. Sem contar os temores em relação a seu pai, ACM.) Seu
nome vinha aparecendo na mídia há um mês, desde quando o deputado José
Aníbal, líder do PSDB, me trouxera a sugestão. O prestígio e a experiência de Luís
Eduardo nos deram maior margem de controle nas votações. O PSDB contra-
atacou, propondo que o peemedebista Luiz Carlos Santos fosse substituído por um
tucano na função de ministro da Coordenação Política. Luiz Carlos, na verdade,
desanuviou- se quando se tornou claro que Luís Eduardo se somaria a ele, um
atuando na Câmara, outro desde o Executivo, para imprimir maior velocidade ao
processo político. Tive ainda que esclarecer, em reunião de líderes, os temores do
senador Jader Barbalho, visto que António Carlos insinuara que "fizera" o ministro
da Justiça. Na verdade, apenas consultei-o previamente porque, afinal de contas,
ele havia disputado a presidência do Senado com íris e do episódio poderia ter
restado alguma aresta entre os dois. Desculpei-me, de toda maneira, por não ter
participado com antecedência ao líder do PMDB no Senado a decisão de nomear
um de seus liderados para o Ministério: mais um exemplo das minudências
que fazem a trama do quotidiano da política e que são importantes, mesmo que não
pareçam.
306
Itamar rompe comigo: "ingrato"
Não foram menores as agruras para recompor o Ministério em 1998, quando novas
eleições se aproximavam. No início de março comecei a conversar com Vilmar
Faria, Clóvis Carvalho e Eduardo Jorge. Cogitamos trazer Paulo Paiva para o
Planejamento, pois António Kandir se afastaria para candidatar-se à reeleição como
deputado, e de criar um Ministério, a ser eventualmente entregue a José Serra, que
cuidasse do desenvolvimento urbano e do emprego - obsessão de Vilmar. (Depois
de perder a eleição para a Prefeitura de São Paulo em 1996, Serra voltara ao
Senado, para o qual fora eleito com grande votação em 1994.)
Só que dessa vez as mudanças teriam de levar em conta não somente o
que desejávamos para o bom governo como também a proximidade das
eleições, em outubro. E nessas o PMDB era o problema maior. O PMDB convocara
uma convenção para o dia 8 de março de 1998 e Itamar Franco movimentava-
se fortemente, ao lado do presidente do partido, Paes de Andrade, para que na
ocasião triunfasse a idéia de uma candidatura própria, com nome a ser definido em
junho. Isso depois de me haver reafirmado que não era candidato - a nota que
enviara ao PMDB candidatando-se não seria para valer, disse-me.
Na mesma conversa, expressou seu desejo de ser deslocado da embaixada junto à
Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, para onde eu o
designara no final de 1996, depois de ter exercido por um ano e meio idêntica
função em Portugal, para a representação do Brasil na Itália.
Esse tema já tinha sido examinado entre nós em encontro realizado em Nova York,
em 1997, por ocasião de reunião da ONU a que ambos comparecemos. Já na
ocasião havia rumores de que Itamar se lançaria candidato a Presidente. Reunimo-
nos no hotel em que me hospedava.
Itamar trazia consigo um papelzinho com anotações, como que um roteiro para a
conversa. Disse estar insatisfeito com o cargo da OEA. Gostaria de mudar de
embaixada e ir para "um país latino". Confesso que me preocupei com a hipótese
de ele pretender representar o Brasil na Argentina, função delicada e estratégica,
que requer um embaixador de carreira. No meio da conversa, entretanto, o ex-
Presidente mencionou o fato de sua mãe se chamar Itália. Perguntei se gostaria
de transferir-se para Roma. E ele:
307
- Sim, mas você não vai conseguir... Perguntei:
- Mas por quê?
- Porque o Lampreia [Luiz Felipe Lampreia, ministro de Relações Exteriores] não vai
deixar.
- Mas, Itamar, afinal quem é o Presidente? - perguntei.-Vou falar com o Lampreia e
você vai para Roma, sim. Sem problema.
Por alguma razão, Itamar continuou:
- E daria para você nomear o Carlos Alberto [Leite Ribeiro, embaixador em Paris]
para meu lugar na OEA?
Um tanto desconcertado, disse-lhe que, se fosse o caso, sim. Ele, não sei até hoje
se brincando ou falando sério, arrematou:
- Ah, mas esse você não consegue mesmo...
O embaixador Carlos Alberto acabaria, sim, sendo designado para o posto na OEA.
Voltaríamos ao tema da embaixada em Roma em janeiro de 1998, no Alvorada.
Perguntou- me se mantinha a disposição de nomeá-lo para o posto. Naturalmente,
confirmei. Ele, por sua vez, comentou os rumores sobre uma candidatura à
Presidência. Disse-me ainda que era contrário à reeleição, e também que
considerava a hipótese de ser candidato a Presidente. Respondi que respeitava sua
opinião. Contudo, lembrei, o caminho não seria simples: ele precisaria costurar
apoios, obter recursos, montar um complexo esquema de campanha. Com
franqueza, acrescentei:
- Não teria nada contra a sua candidatura. Se você for meu adversário, não há
problema algum. Mas pense bem, porque acho que vou ganhar.
Mudamos de assunto. Itamar reclamou de supostas "perseguições" a aliados seus
na máquina pública. Procurei esclarecer os casos que me trouxe.
Terminamos em bons termos. Dias depois, no entanto, ele me transmite por fax
cópia de mensagem ao PMDB, colocando o nome à disposição como candidato. No
mesmo fax, dirigindo-se a mim, explicava que ainda não se decidira firmemente a
concorrer.
De todo modo, havia uma corrente pró-candidatura própria no PMDB. Diante disso,
contra- ataquei com os setores do partido que preferiam apoiar meu nome à
reeleição, tendo à frente os líderes no Senado, Jader Barbalho, e na Câmara,
Geddel Vieira Lima (BA), somadofi a Eliseu
308
Padilha, Moreira Franco, os governadores peemedebistas e várias seções regionais
do partido. Até as vésperas da convenção, o PMDB não tinha certeza se Itamar
voltaria ou não de Washington para ser candidato. No dia anterior à convenção,
conhecedor das correntes que se entredevoravam no partido e preocupado com o
que pudesse acontecer com o ex- Presidente, chamei ao Palácio os ministros íris e
Eliseu e expus minha preocupação:
- Estou achando que vão aprontar com o Itamar na convenção.
Tranqüilizaram-me, assegurando que o grupo mais turbulento do partido, o MR-8,
controlado pelo ex-governador Orestes Quércia, meu adversário, apoiava Itamar.
Mesmo assim, por intermédio de um amigo do exministro José Aparecido de
Oliveira, muito próximo do ex-Presidente, mandei recado a Itamar para que tomasse
cuidado. Talvez ele não devesse comparecer à convenção, ponderei, pois, apesar
de meus esforços junto aos ministros do PMDB, não considerava haver garantias de
que o MR-8 abandonaria as técnicas de violência verbal e física que
o caracterizavam, e haveria revide. (Grupos controlados pelo governador do Distrito
Federal, Joaquim Roriz, dispunham-se ao enfrentamento.)
Itamar compareceu, terminou sendo desacatado e perdeu na votação. No mesmo
dia, telefonei-lhe. Não consegui encontrá-lo, deixei recado para que me ligasse no
Alvorada. Ocorreu um desencontro: ele retornou a chamada enquanto eu estava no
cinema do palácio e, a despeito de minhas recomendações para me interromperem
caso o ex- Presidente estivesse ao telefone, os funcionários não o fizeram. Não nos
falamos, e isto certamente contribuiu para o mal-entendido que se seguiria.
No dia seguinte os vitoriosos vieram me ver no Palácio da Alvorada. A imprensa
fotografou o grupo comigo e o fato de eu aparecer sorridente serviu de pretexto
para Itamar, dizendo- se "traído", romper comigo, concedendo uma entrevista muito
agressiva à revista IstoÊ.22 Na entrevista, disse que até então me apoiava,
considerou-me conivente com a baderna na convenção - "quando vi aquela foto,
aquele riso dele ao lado dos bandidos que me agrediram na convenção, me senti
traído" -, tachoume de "ingrato" acusou-me de desvirtuar o Plano Real, criticou
as reformas promovidas por meu governo e, sobretudo, combateu a privatização da
Vale do Rio Doce.
Nota: Edição de 1/4/1998.
309
Daí por diante ficou claro que eu teria no máximo o apoio da metade do PMDB,
tanto nas votações na Câmara como na eleição, e assim mesmo se reforçasse a
presença do partido no governo. Essa circunstância serviu como condicionante na
remodelação ministerial. Entregamos a Secretaria de Políticas Regionais a um
representante das forças majoritárias de Goiás, Ovídio de Angelis. Na substituição
de íris Rezende, candidato ao governo goiano, o Ministério da Justiça passou, por
indicação dos senadores peemedebistas e com a concordância do presidente do
Senado, José Sarney, às mãos do senador Renan Calheiros (AL). Tentei viabilizar a
nomeação de José Fogaça, mas não obtive sucesso no partido. Mantive Padilha
nos Transportes, pasta que o PMDB queria para Jader Barbalho, que, porém, nunca
havia pressionado neste sentido.
A negociação com o PPB foi mais fácil. Com a habilidade de sempre, Dornelles, que
se afastava do Ministério da Indústria e Comércio para candidatar-se à Câmara,
induziu o embaixador José Botafogo Gonçalves, diplomata muito qualificado para a
área graças à sua formação e a experiência como um dos principais negociadores
do Mercosul, a filiar-se ao partido. Dessa forma, quando veio quase toda a bancada
ao Alvorada, à frente Paulo Maluf, presidente do PPB, para pedir a nomeação
de Botafogo, não fez mais do que expressar o que havia sido uma
combinação prévia entre mim e o ministro Dornelles. Maluf tentou indicar
pessoas até mesmo para ministérios que não caberiam ao PPB, mas eu lhe disse
que nomearia outro correligionário dele para o Ministério da Agricultura:
Francisco Turra, que já estava dirigindo a Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab) e era bem avaliado no governo. A Agricultura iria ficar vaga diante da
recusa de seu titular, Arlindo Porto, em aceitar o convite para assumir o Trabalho,
substituindo Paulo Paiva, que seria transferido para o Planejamento. No dia
seguinte Maluf "lançou" o nome de Turra para a Agricultura. Concretizada a
nomeação, o meio político-jornalístico revelou-se impressionado com a força do
político paulista, logo atribuindo a mim a intenção de fortalecê-lo em São Paulo na
disputa com o governador Mário Covas, candidato de meu próprio partido...
Quanto ao PFL, de novo se colocou a questão dos equilíbrios simbólicos.
Pediram-me a substituição do ministro peemedebista da Coordenação Política, Luiz
Carlos Santos, por um pefelista, talvez o senador Guilherme Palmeira, meu ex-
companheiro de chapa em 1994, com quem
310
conversei e que não demonstrou interesse pela posição. Para o lugar de Reinhold
Stephanes, que buscaria a reeleição como deputado pelo Paraná, escolhi o senador
Waldeck Ornelas (BA). Embora estreitamente ligado a ACM, sua nomeação não se
deu por pressão baiana (ao contrário, Luís Eduardo reclamou que os baianos
seriam debitados pela nomeação quando a escolha fora livremente minha), mas sim
porque a meu ver era o mais capacitado para levar adiante as reformas na
Previdência, não só legislativas mas administrativas. E assim procedeu, com
correção, até que tive de demiti-lo por razões políticas, em 2001, quando a
conduta de Antônio Carlos ultrapassou os limites de minha tolerância, como narrarei
mais à frente. Novamente se colocou a questão dita regional e de equilíbrios
internos ao partido. Resultado: criei um Ministério Extraordinário para as Reformas
Institucionais (cuja abreviatura, Mirin, não sem razão deu margem a muita charge) e
o entreguei ao senador Freitas Neto, ex-governador do Piauí e pessoa séria. Desse
modo encontramos uma forma de não descontentar o PFL.
Sobra mencionar as modificações que promovi para tornar mais ágil e eficaz a
administração em certas áreas. Nomeei para o Ministério do Trabalho um técnico,
Edward Amadeo, economista estudioso das questões do emprego (mais tarde
desloquei-o para a Secretaria de Política Econômica da Fazenda) e, no fim de abril,
o presidente do BNDES, o economista e ex-diretor do BC Luiz Carlos Mendonça de
Barros para as Comunicações, depois da traumática morte de Sérgio Motta, sobre a
qual falarei páginas adiante, André Lara Resende substituiu Mendonça de Barros no
BNDES e os dois se encarregaram de levar adiante a privatização e regulação do
sistema de telecomunicações, tão brilhantemente iniciadas por Sérgio. Apesar das
críticas injustas que se despejaram sobre eles no Senado e na mídia, e de ações
judiciais movidas por interesses contrariados, continuaram a obra com
competência, de tal forma que o Brasil passou a dispor de um sistema
de telecomunicações de padrão mundial. Data dessa época também a criação, no
âmbito do Ministério do Planejamento, da Câmara de Comércio Exterior (Camex),
para coordenar as políticas de exportação, entregue à competência do economista
José Roberto Mendonça de Barros, irmão de Luiz Carlos.
Nessa temporada de modificações, houve a substituição do ministro Carlos César de
Albuquerque por José Serra. Serra vinha discutindo
311
comigo desde fevereiro sua eventual volta ao governo. Ele pensava inicialmente na
criação de um superministério, juntando desenvolvimento urbano, emprego e
saneamento, em uma ampliação da sugestão que Vilmar me apresentara. Achei
que isso só acirraria as disputas no governo.
Como reagiria à mudança, por exemplo, o BNDES, que cogitávamos passar para a
órbita do novo Ministério? E a Caixa Económica, grande financiadora da área de
habitação e saneamento, que papel teria e a quem ficaria subordinada?
Jamais gostei de grandes estruturas burocráticas, menos ainda quando derivam da
fusão entre burocracias com culturas organizacionais distintas. Custei, mas persuadi
Serra de que seria melhor voltar à proposta inicial, dos primórdios da formação de
meu governo, entregando-lhe a pasta da Saúde. Houve apenas um incidente que
me aborreceu. Serra consultou algumas pessoas sobre a conveniência de aceitar a
pasta e a hipótese inevitavelmente acabou indo parar na imprensa, deixando o
ministro Albuquerque em situação incómoda e eu, uma vez mais, como "fritador" de
colaboradores. Na verdade minha apreciação sobre Carlos César de Albuquerque é
positiva. Ele deu uma contribuição marcante na criação do Programa de
Atendimento Básico da Saúde (PAB), como contarei com mais detalhes no Capítulo
8. Apenas, não tendo base política e devendo o Congresso decidir sobre uma
complexa proposta de emenda constitucional que garantia o financiamento da
saúde nos planos federal, estadual e municipal,23 parecia-me que Serra
tinha melhores condições para obter sua aprovação por deputados e
senadores, além de levar mais longe a implantação do PAB, como de fato ocorreu
nos anos seguintes.
As referências que registrei para caracterizar em que condições o Presidente opera
quando efetua as modificações no Ministério são suficientes para mostrar que elas
seguem um certo padrão. Primeiro, a proximidade das eleições (que no Brasil se
dão a cada dois anos) aguça os apetites dos partidos, da imprensa e dos candidatos
aos diferentes postos. O governo também se aproveita da oportunidade para
tentar corrigir algumas deficiências administrativas e políticas. Começada
a temporada,
Nota: 23 A Emenda Constitucional n° 29, de 13/9/2000, que teve origem em proposta
apresentada em 1995 pelo deputado Carlos Mosconi (PSDB-MG).
312
os partidos dificultam o quanto podem a marcha do processo legislativo e a efetivação das
alianças eleitorais, ganhando assim maior poder de barganha. Dado o sinal de
partida das alterações ministeriais, ele desencadeia um efeito em cascata nas
expectativas: começa o jogo efetivo e simbólico de participação no poder. O
argumento regional quase sempre entra em cena para reforçar posições de grupos
ou líderes em cada partido. O Presidente e o círculo próximo, por seu lado,
tentam melhorar as condições para a concretização do projeto de governo, ou pelo
menos para evitar que ele se desfigure.
Fica visto também que se o governo tiver um projeto e o Presidente for capaz de
navegar, é possível limitar os danos que a pressão partidária pode eventualmente
causar à eficiência administrativa, sem esquecer que freqüentemente - é bom
repetir isto - são feitas boas indicações partidárias. Em muito poucos casos a
pressão partidária, a começar pela do meu próprio partido, o PSDB, tornou
realmente difícil nomear ministros compatíveis com os projetos do governo. Em
geral pude, ou bem escolher quem quis, ou acolher boas indicações, ou mesmo
conseguir que os partidos me trouxessem nomes que eu queria nomear.
Nosso presidencialismo oferece margens razoáveis para o titular do cargo operar
politicamente e conseguir chegar a seus objetivos fundamentais.
É verdade que em certas conjunturas a decisão presidencial se vê limitada. Mostrei
em que condições políticas fui levado a pactuar algumas alianças muito criticadas
por certos setores que não compreendem a necessidade de incorporar grupos
políticos que não coincidem sempre com os valores do governo. Sem essas
alianças "heterodoxas" não se obtém apoio para aprovar no Congresso medidas
que o Presidente considera necessárias e com as quais, freqüentemente,
se comprometeu diante do eleitorado. É esse um paradoxo da política, com o tipo
de representação partidária que temos.
Ao se aproximar uma eleição, o Presidente, pelas características de nosso sistema
político, se transforma não apenas em chefe de seu partido, mas, freqüentemente,
em chefe de cada um dos partidos aliados.
Nessas ocasiões ele é levado a interferir mais do que é razoável nas lutas
partidárias e paga um preço por isso. Não só a popularidade decai na medida em
que a figura presidencial se confunde com a de um líder partidário, como
313
ele é levado a conformar-se com nomeações que em outras
circunstâncias dificilmente aceitaria. Entretanto, não é preciso assumir acordos
que comprometam o rumo traçado. Há modos de avaliar se essa regra está sendo
cumprida. Um é a capacidade de o governo continuar a definir e controlar a agenda
legislativa e de manter a ação administrativa. Outro, quando há eleições gerais, é ver
se o eleitorado avaliza ou não o governo, seu partido e os partidos aliados.
Duas grandes perdas: Sérgio Motta e Luís Eduardo
Ao terminar as várias modificações no governo já mencionadas, sofri, em abril de
1998, dois brutais abalos: a morte de Sérgio Motta no dia 19 de abril e, dois dias
depois, a de Luís Eduardo Magalhães. Eram esteios políticos do governo e,
afetivamente, pessoas muito próximas a mim.
Participaram decisivamente das mudanças descritas até aqui.
Sérgio, aos 58 anos, tinha excesso de peso e não gozava de boa saúde.
Luís Eduardo morreu de repente, na plenitude da vida, aos 43 anos, com toda uma
carreira diante de si.
Sérgio já passara por complicações de saúde antes de ser ministro:
tivera a "doença dos legionários", uma devastadora forma de pneumonia bacteriana
assim denominada porque se manifestou pela primeira vez em um grupo de
veteranos de guerra dos EUA, filiados à Legião Americana, durante convenção da
organização em 1976, matando dezenas de pessoas.
Quando Sérgio contraiu a doença, ela era praticamente desconhecida no Brasil, e
seus médicos foram auxiliados por um especialista da França com quem trocaram
informações e resultados de exames por telefone. No primeiro ano de meu governo,
já ministro, sofrera um enfarte.
A doença dos legionários lhe deixara seqüelas permanentes nos pulmões e o
obrigaria a uma segunda internação que o levaria a uma UTI. Quando deixou o
hospital, me segredou que pretendia escrever um livro sobre o que vive, sobretudo
interiormente, uma pessoa numa UTI. A experiência, somada a um determinado
sonho que tivera, tornou-o algo místico. Ele então já fizera uma viagem até o
santuário de Fátima, em Portugal, com a mulher, Wilma, e as três filhas. Como
amigo, intuí que ele estava com um certo sentimento de morte, embora fingindo que
não. Tão logo deixou o hospital daquela feita, porém, Sérgio voltou a sua vida de
314
sempre: interessava-se por tudo, trabalhava quase sem limites, dormia tarde, era
comilão, apreciava um bom vinho, gostava imensamente da vida. As conseqüências
da doença dos legionários, enquanto isso, minavamlhe o organismo. Um mês antes
de falecer, precisou ir aos EUA.
Constatou-se que estava sofrendo um gradativo enrijecimento dos
alvéolos pulmonares. De lá, Wilma me telefonou:
- Seu amigo quer falar com você.
Ele me disse, sem manifestar sobressalto correspondente à gravidade do que
narrava, que talvez tivesse que realizar um transplante de pulmão - operação
delicada, dificílima, de alto risco. Não lhe restavam alternativas.
Mas Sérgio era um grande lutador. Voltou ao Brasil e ao trabalho, insistindo em tocar
para frente a gigantesca obra que realizava no setor de Comunicações. No final,
andava permanentemente com um tubo portátil de oxigénio para auxiliar na
respiração. Naquela que seria a última vez em que falaríamos, ele compareceu ao
Alvorada com o tubo de oxigénio. Fiz um grande esforço para não demonstrar o
quanto me penalizava seu estado. Ele também agia como se nada
estivesse acontecendo. Pensava no Brasil, no governo. Queria completar o
processo de transformação no setor, queria comandar a privatização - tarefa que os
fados acabaram atribuindo a seu sucessor no Ministério, Luiz Carlos Mendonça de
Barros.
Nesse meio-tempo, sofreu insinuações, acusações e calúnias de todo tipo por sua
condução à frente das Comunicações - ele, que era um homem valente, idealista e
íntegro. Insinuou- se que estaria participando de um suposto esquema de combinar
previamente, num jogo de cartas marcadas, a distribuição das empresas estatais de
telecomunicações a setores do empresariado, quando, na verdade, a privatização
das teles se deu em processo público de licitação, impecavelmente conduzido.
Doente, ele viveu um período enormemente tenso, brigando e rebatendo acusações.
Sua saúde, porém, chegara ao limite. Depois de nossa conversa no Planalto, viajou
para São Paulo e ainda compareceu, sempre com o tubo portátil de oxigênio, a uma
solenidade na sede dos Correios.
Seu estado se agravou, e sobreveio nova internação no Hospital Israelita Albert
Einstein. Apreensivo, segui para São Paulo. Queria ver Sérgio, falar com ele. Do
aeroporto, telefonei a Wilma. E ela:
- Melhor não, hoje ele não está bem.
315
Preocupado, segui para a casa de campo da família em Ibiúna. Ali recebi, por fax, o
famoso bilhete em que ele recomendava: "Não se apequene."24 Não demorariam a
surgir interpretações sobre o bilhete: de que Sérgio, nas entrelinhas, estaria
criticando alianças políticas que precisei tecer. De minha parte, enxerguei uma
mensagem extremamente amistosa e um recado para que eu fosse fundo e adiante
nas reformas. Sérgio, ao contrário do que certas pessoas diziam, era muito
favorável a alianças políticas para se atingirem objetivos de interesse público.
Fui ao hospital, mas não pude falar com o amigo. Só o vi na UTI, semí-inconsciente.
Quando veio a notícia da morte, mesmo esperada, me golpeou duramente. Não sou
de chorar, mas não houve como evitar.
Compareci ao velório, no saguão da Assembléia Legislativa de São Paulo, porém
não ao cemitério, diante de insistente recomendação da segurança.
Devia, além de tudo, voar para a Espanha, em viagem de Estado programada com
meses de antecedência.
Foi justamente no velório de Sérgio que percebi algo de errado com Luís Eduardo.
Muito amigo de Sérgio, o deputado mostrava-se desolado, inconsolável, e chorava
copiosamente. Muita gente mais também chorava, porque Sérgio era uma figura
grandiosa, de uma presença forte, generosa, telúrica. Às vezes atropelava os
amigos e eu próprio, mas era tão leal, tão repleto de boas intenções, de dedicação,
tinha um tal caráter missionário, que o bem nele sempre prevalecia. Acho que
sua perda deixou um vazio até nos inimigos. Luís Eduardo,
transtornado, extremamente pálido e chorando, me abraçou. Ao fazê-lo, encostou
o rosto no meu. Percebi então que ele estava gelado.
Puxei para um lado seu pai, António Carlos:
- Senador, estou preocupado com o Luís Eduardo. Ele não está bem.
ACM atribuiu o estado do filho à carga de emoção que se abatia sobre todo mundo
naquele saguão.
Nota: 24 No bilhete, ele dizia literalmente, entre outras coisas: "Não são processos
conjunturais que deverão alterar ou afetar nossas políticas de transformação do
Brasil. Nada disso (é verdade!) seria possível na minha área sem o seu apoio. Tudo
o que propus e está revolucionando o setor, você nunca titubeou. Aja assim
SEMPRE, em todas as áreas e conte comigo. (...) Não se apequene. Cumpra seu
destino histórico. Coordene as transformações do país. Obrigado pelo apoio."
Fim da nota.
316
Tive que seguir viagem para a Espanha. Levei na comitiva minhas netas mais
velhas, as gémeas Joana e Helena, na época adolescentes. Visitas de Estado são
revestidas de pompa, mesmo que o objetivo esteja mais no estreitamento de
relações entre países do que na solução de problemas específicos, normalmente
discutidos em visitas oficiais - e realizei várias à Espanha durante meu governo.
Desembarcamos em Madri e nos conduziram ao Palácio de El Pardo, destinado aos
hóspedes oficiais. Ali apresentei minhas netinhas ao Rei Juan Carlos, com quem
sempre mantive excelentes relações, houve uma pequena cerimônia e revista a
uma guarda de honra. A solenidade principal seria no dia seguinte: um banquete
de honra no Palácio Real, no centro de Madri, presidido pelo Rei e pela Rainha
Sofia.
À noite, jantamos com a comitiva na embaixada do Brasil. Durante o jantar telefonam
do Brasil. Ana Tavares atende e me informa que Luís Eduardo tivera um enfarte.
Ligo imediatamente para António Carlos em Brasília. ACM parecia relativamente
calmo e controlado, Luís Eduardo, disse, passa bem e se recupera. Mesmo assim,
não pude deixar de preocupar-me. Estava amargurado pela morte de Sérgio e,
agora, surgia um problema sério com o meu outro operador político por quem nutria
um sentimento de irmão mais velho. O jantar se encerrou e voltamos a El Pardo, De
madrugada, o ajudante-de-ordens me despertou com a notícia terrível: Luís
Eduardo tinha morrido.
Fiquei atónito, principalmente porque ACM me tranqüilizara sobre o estado do filho.
Não bastasse a pancada afetiva e política que isso representava, tínhamos pela
frente um embaraço diplomático: era evidente que eu precisava voltar ao Brasil e
abortar a visita de Estado, conforme me lembrava com insistência, entre outros, Ana
Tavares, Com seu agudo espírito jornalístico, me alertava para a hecatombe
que representaria aparecerem simultaneamente, na mídia, o noticiário sobre a
morte de Luís Eduardo, no Brasil, e fotos de eu brindando com o Rei, em Madri, O
chanceler Luiz Felipe Lampreia, que integrava a comitiva, assumiu a frente das
tratativas com a diplomacia espanhola.
Naturalmente uma situação dessas é delicada, porque em lugar nenhum do mundo
pareceria natural a necessidade de um Presidente voltar abruptamente a seu país
devido à morte de um deputado.
317
Como poderiam saber a profundidade de minhas relações com Luís Eduardo e sua importância
para o governo? Os espanhóis, contudo, revelaram-se compreensivos, e
interrompeu-se a visita.
Rumamos diretamente para Salvador, onde o corpo de Luís Eduardo estava sendo
velado e seria sepultado. A comoção na capital da Bahia era tal que me lembrou
outra tragédia, a morte de Tancredo. Uma multidão colossal acompanhou o corpo
ao cemitério. O senador ACM, fora de si diante da morte do filho dileto e herdeiro
político, parecia ter perdido a alma: a exuberância física se fora, envelhecera anos
em um dia, chorava sem parar. Uma tristeza enorme me invadiu. Vieram-me
à lembrança, em flashes, sucessivas imagens do político simpático, elegante e bem-
apessoado de quem me tornei amigo durante a Constituinte, apesar de eu ser 24
anos mais velho e estarmos, na ocasião, em campos políticos opostos. Integrante
do Centrão, Luís Eduardo um dia me brindou com um cumprimento:
- Ah, senador, se tivéssemos alguém como o senhor do nosso lado... Eu lamentava
a perda do amigo e também do político jovem mas já
muito hábil, que sempre preferia o entendimento ao confronto e que tanto ajudara na
aprovação de reformas importantes para o país. Com sua partida, dois dias depois
de perdermos Sérgio, sentia-me desalentado e só. Quando ACM regressou a
Brasília, ainda arrasado, Marco Maciel e eu fomos estar com ele na casa oficial do
presidente do Senado, no Lago Sul, onde se reunira toda a família, inclusive a mãe
de Luís Eduardo, dona Aríete, a viúva, Michelle, e os três filhos. Numa pequena
sala, reservada, sentamo-nos os três. Marco e eu procurávamos, de alguma forma,
confortá-lo. O senador, mostrando grande comoção, bateu a mão em minha perna e
disse:
- O Luís morreu, agora é o senhor... Seu gesto de voltar da viagem me deixou
extremamente comovido. Serei permanentemente grato.
Sua atitude me tocou. Não soube interpretar exatamente o que ACM quis dizer com
"agora é o senhor". Mas senti profunda sinceridade no senador. Isso não evitou que,
mais tarde, tivéssemos sérios desentendimentos.
O vazio imenso representado pela ausência de Sérgio e Luís Eduardo não tardaria a
se refletir na ação do governo. Não podendo mais contar
318
com eles no prosseguimento das reformas e nas negociações da pauta legislativa,
logo em maio, perdemos por apenas um voto um aspecto crucial da reforma da
Previdência, a definição de idade mínima para a aposentadoria. Para uma agenda
legislativa tão importante quanto difícil, que abrangia a reforma da Previdência e
várias outras em discussão, e com uma oposição tão anacrônica e irada, tanto as
alianças partidárias como as ações de líderes verdadeiros eram imprescindíveis.
Na leva de alterações no governo a que me referi anteriormente, eu substituíra
Eduardo Jorge por Eduardo Graeff na Secretaria-Geral da Presidência porque o
primeiro, cansado de tantas pressões e do bombardeio até de fogo amigo, fazia
tempo queria se afastar do governo.
Ele exercia uma função, reconheço, ingrata e desgastante, principalmente por se
constituir em uma barreira sólida, como de fato era, a um aluvião de interesses
fisiológicos, de dentro e de fora da máquina pública - por nomeações, por ação
junto a fundos de pensão, por negócios de todo tipo com o governo. Isso lhe custou
aborrecimentos sem conta, inclusive gravações clandestinas de telefonemas seus.
Servidor de carreira há muitos anos, chegou a me confessar estar com "horror"
da vida pública. Um dia, desabafou, referindo-se à resistência a pressões que
opunha no dia-a-dia:
- O senhor não imagina o que é isso aí, Presidente. É tentativa de assalto para todo
lado.
Não se interessou por um posto que insisti para que aceitasse: uma vice-presidência
do BID, em Washington, para a qual era plenamente qualificado. Acabou pedindo
para sair do governo, e saiu. Logo após a morte de Sérgio e de Luís Eduardo,
porém, procurou-me:
- O senhor vai mesmo ser candidato? Respondi:
- Que alternativa eu tenho a essa altura?
Eu já estava convencido, então, de que o segundo mandato seria fundamental para
consolidar conquistas alcançadas a duras penas no primeiro - um período em que
tentaríamos aprovar mudanças importantes como a LRF e ampliar e fortalecer a
rede de proteção social, para ficar em apenas dois exemplos. Eduardo Jorge, diante
de minha disposição de candidatar-me novamente, prontificou-se a colaborar
comigo. A mim vinha a calhar, face à necessidade de ter alguém de confiança para
319
coordenar operacionalmente a campanha eleitoral. A coordenação política coube a
Euclides Scalco. Eduardo Jorge, ao contrário das insinuações malévolas freqüentes,
nunca desempenhou funções de "tesoureiro" da campanha, mas sim de controllery
ou seja, a pessoa encarregada de supervisionar o fluxo de despesas, verificar se é
compatível com a receita obtida e autorizar gastos. A comissão encarregada de
coletar recursos para a vitoriosa campanha da reeleição foi presidida novamente por
Luiz Carlos Bresser-Pereira.
O segundo mandato e a gangorra PMDB-PFL
Descrevo no Capítulo 5 - "Pedras no caminho: as incertezas da economia"
- as condições econômicas adversas nas quais ganhei as eleições de 1998 e,
montei, em janeiro de 1999, o novo governo. Quando eleitores e opinião pública em
geral esperavam um Ministério "de grandes nomes"
(diga-se de passagem, nem sempre os mais eficazes para mover a
máquina administrativa), eu me preocupava em ter uma equipe com apoio político e
capacidade de influenciar o Congresso a aprovar as medidas de ajuste fiscal. É
preciso admitir que o Congresso, com exceção da decisão tomada em dezembro de
1998 contrária à contribuição dos inativos para a Previdência, que tanto nos custou
em termos de repercussão internacional, mostrou-se célere e deu ao governo os
instrumentos necessários para ultrapassar as dificuldades financeiras. E também é
de justiça reconhecer que as presidências da Câmara e do Senado, da
mesma forma como os líderes parlamentares, se desdobraram para fazer face
ao desafio, que era de grandes proporções.
As dificuldades financeiras e, em seguida, as políticas tornaram 1999 o ano de maior
instabilidade ministerial em meu governo. Não sendo um ano eleitoral, era de
esperar que depois de definido o Ministério houvesse calma para administrar. Mas
não. No princípio, pelas razões já indicadas, reforcei os laços com o PPB, indicando
Francisco Dornelles para o Ministério do Trabalho, pasta mais política, e reequilibrei
as relações com o PFL, algo esgarçadas desde o último arranjo que fortalecera o
PMDB. Troquei o ministro de Minas e Energia porque, a despeito de estar satisfeito
com o trabalho do titular, Raimundo Brito, as forças majoritárias do
320
PFL baiano desejavam ver nomeado Rodolpho Tourinho, ex-secretário de Finanças,
com prestígio nas áreas técnicas do governo federal. Isso resolvido, para atender ao
regionalismo e às correntes internas do partido havia que designar alguém do Sul
para o time. A indicação do PFL recaiu no ex-prefeito de Curitiba, Rafael Greca,
para a ex-pasta de Esporte, reconfigurada como Ministério do Esporte e Turismo.
Apesar de minhas ponderações quanto à pouca experiência nacional de um
deputado recém-eleito como ele, Jorge Bornhausen, Marco Maciel e ACM
insistiram.
Faltava compensar o Nordeste pefelista. Escolhi o deputado José Sarney Filho
(PFL-MA) para ministro do Meio Ambiente (depois de cogitar a nomeação do
compositor e cantor Gilberto Gil), não só pelas conexões políticas óbvias como
porque tinha o apoio de grupos ambientalistas (de fato, desempenharia suas
funções a contento). Nomeei ainda, para a Caixa Econômica, Emílio Carazzai, ligado
a Marco Maciel e homem de vasta experiência na administração federal - ocupara
postos de responsabilidade nos Ministérios da Fazenda e da Agricultura -, para
dar um sinal de que prestigiava meu Vice, companheiro impecável.
Competente, Carazzai não era filiado a partidos. Não obstante, no início houve
resistências nas áreas técnicas do governo, ante minha diretriz de não submeter às
injunções partidárias nomeações nos órgãos financeiros. Quando perceberam a
qualidade do indicado, o sentimento mudou completamente.
Resolvi também que a Pimenta da Veiga caberia o comando do Ministério das
Comunicações. Eu havia cogitado de Pimenta para a coordenação política do
governo, mas apareceram restrições do PMDB. Tal como no primeiro mandato,
queria ter nas Comunicações alguém percebido como de minha confiança pessoal e
imaginei que Pimenta pudesse seguir a linha de Sérgio Morta, que se fortaleceu
politicamente sem comprometer as decisões técnicas do órgão. Os demais
ministérios também foram preenchidos por critérios pessoais: o da Comunicação
Social atribuí a Andréa Matarazzo, que, além da vivência como empresário,
ocupara posições na administração paulista e sempre colaborou com o governo.
Para o Desenvolvimento, Indústria e Comércio designei Celso Lafer, que vinha
exercendo as funções de embaixador junto à OMC, e para o Ministério de Ciência e
Tecnologia desloquei Luiz Carlos Bresser-Pereira. Transformamos o antigo
Ministério da Administração e Reforma do Estado comandado
321
por Bresser em Secretaria de Administração e Património, subordinada ao
Ministério do Planejamento, e dela se ocupou Cláudia Costin, doutora em Políticas
Públicas pela FGV e funcionária de carreira da área da Fazenda. Para a Secretaria
de Assistência Social no Ministério da Previdência nomeei Wanda Engel, geógrafa e
especialista em educação e na área de combate à pobreza, ex-secretária da área
social do prefeito César Maia (PFL) no Rio de Janeiro, que teve papel importante na
redefinição dos programas sociais, como já antes sua antecessora, deputada Lúcia
Vânia (PSDB-GO). Ainda criei uma Secretaria de Desenvolvimento Urbano para a
qual transferi Sérgio Cutolo, que deixava a Caixa Económica, onde realizou
esplêndido trabalho de modernização e moralização antes da gestão de Carazzai.
Cabe registro à parte sobre o Ministério da Defesa. Depois de longas tratativas -
afinal, o tema por décadas esteve em aberto na vida institucional brasileira -,
finalmente, criamos o Ministério, há muito devido. Não o fizemos por modismo e
menos ainda por pressão norte- americana, como chegaram a insinuar certos
críticos. Simplesmente não tinha mais sentido, dado o avanço institucional do Brasil
e a necessidade de racionalização e entrosamento entre as Forças
Armadas, mantê-las sob a égide de ministérios distintos e mesmo distanciados.
Não houve qualquer resistência militar à idéia de que o ministro fosse civil. Talvez
preferissem pessoa de prestígio, mas não ligada a outras corporações do Estado.
Por isso, embora tivesse cogitado de convidar o embaixador Ronaldo Sardenberg,
destacado quadro do Itamaraty, desisti da idéia. É provável que os militares
ficassem agradados com a designação do Vice-Presidente Marco Maciel para
exercer a função, mas me pareceu desarrazoado, em tese, nomear alguém que em
caso de substituição poderia causar uma dificuldade institucional. O nome de Élcio
Álvares, líder do governo no Senado, me foi lembrado pelo ministro da Marinha,
almirante Mauro César, com bons argumentos: tinha prestígio e condições de lutar
por melhores verbas orçamentárias para as Forças Armadas. Infelizmente Élcio não
pôde permanecer muito tempo, sobretudo devido ao desgaste político provocado
por uma assessora de alto escalão que criou arestas com chefes militares e no
Congresso e além disso viu-se acusada de envolvimento com irregularidades
no Espírito Santo, seu estado de origem. Resolvi substituir
322
Élcio pelo advogado-geral da União, Geraldo Quintão, que lá ficou até o fim do
governo desenvolvendo bom trabalho e sendo objeto de respeito dos comandos das
Forças Armadas.
Precisei rever uma vez mais a composição do Ministério entre abril e setembro de
1999. Após a crise financeira do início de 1999, as crises políticas se sucederam.
Uma coisa é certa no Brasil: o mercado e o Congresso não se afinam pelo mesmo
diapasão. Em abril já era claro para o mercado e para as finanças internacionais
que o governo e a sociedade haviam ganho a batalha da desvalorização do real.
Não haveria inflação significativa e o câmbio flutuante permitiria o aumento
das exportações. Mais tarde, as metas infiacionárias para regular a política
monetária, somadas ao ajuste fiscal que começaria a ser efetivo em outubro de
1998, dariam condições de estabilidade à economia. Desde meados de março,
quando Pedro Malan e o novo presidente do BC, Armínio Fraga, fizeram um périplo
por bancos europeus, as linhas de crédito para as exportações começaram a ser
reabertas.
Os políticos, contudo, não enxergavam o cenário dessa maneira. Muitos imaginaram
que o governo perderia o controle do processo administrativo e legislativo. Um dos
líderes da oposição, Tarso Genro, ex-prefeito petista de Porto Alegre, chegou a
publicar um artigo pedindo a interrupção de meu mandato,25 coisa que em outras
épocas se chamaria de golpe, principalmente porque se tratava de governo recém-
eleito, e com vitória no primeiro turno, e transcorrido menos de um mês de um
mandato de quatro anos!
Enquanto as oposições se desmandavam em ataques, os "aliados" tampouco se
aquietaram. Data desta época o início da briga aberta entre os senadores António
Carlos Magalhães e Jader Barbalho, cada qual incentivando uma CPI diferente no
Senado, um a do Judiciário, outro, a do Sistema Financeiro. Os temas eram
atraentes para a opinião pública e em ambiente de CPI sempre sobra para o
governo, tenha ou não responsabilidade nos fatos investigados. A CPI do Judiciário
deparou-se com o escândalo do TRT de São Paulo, em que a oposição tentou sem
êxito envolver o governo nos desmandos de que era acusado o juiz Nicolau
dos Santos Neto e que resultaram em sua condenação.
Nota: 25 "Por novas eleições presidenciais" Folha de São Paulo, 25/1/1999.
323
A CPI do Sistema Financeiro também produziu resultados negativos ao governo. Ao
longo de seus trabalhos, desencadeou-$e verdadeira fúria contra dirigentes do BC,
com exageros e injustiças. Freqüentemente a oposição tenta transformar políticas
com as quais não concorda em atos criminosos. As suspeitas, mesmo que não
comprovadas, permanecem no ar e enfraquecem o governo, dificultam a agenda
legislativa e criam oportunidades para os partidos aliados, quando não o do
próprio Presidente, para pressioná-lo.
Nesse contexto, as críticas se generalizaram na sociedade. De empresários,
clamando por menores taxas de juros, e de comentaristas da mídia, não se
apercebendo da mudança radical na política económica, que permitiu que o PIB
voltasse a crescer à taxa de 4,4% já em 2000. Muitos acreditavam iminente um
desastre político. Essa leitura da conjuntura resultava em mais pressão para trocas
no Ministério, o PFL querendo afastar o PMDB e este, de sua parte, queixoso do
adversário. Não faltou mesmo quem no PSDB concordasse com essa tese, mas
resisti: o equilíbrio político do governo e o êxito nas votações congressuais
dependiam da gangorra entre esses dois partidos, dando margem a que o PSDB e
o governo arbitrassem as disputas.
Diante de tanto despautério e da pressão de Itamar Franco, a essa
altura governador recém- empossado de Minas, para que seus colegas de partido
e de oposição se juntassem no não- pagamento das dívidas dos estados para com a
União e na recusa em aprovar a CPMF, Lula teve uma conversa telefónica comigo
bem mais aberta e responsável, evitando arremessar lenha à fogueira. E a Câmara,
a 18 de março, a despeito de tudo, aprovou a CPMF por 357 votos, contra 125 do
PT e aliados e 2 abstenções. Os números mostravam com quantas cartas o
governo podia jogar.
Rearticulando batalhões para a guerra política
As pressões, entretanto não baixaram. O acúmulo de "escândalos" em maior ou
menor grau fabricados, somado a uma oposição crescentemente decidida menos a
discutir o interesse nacional e mais a desgastar o governo a qualquer preço,
produzia efeitos. As brigas freqüentes entre PFL e PMDB tornavam árdua a
operação político-administrativa do governo. Houve uma sucessão de episódios
negativos: em fevereiro, o caso Marka-
324
FonteCindam; em abril, o caso Cacciola26 e, logo em seguida, o escândalo do juiz
Nicolau, tudo isso saindo das duas CPIs em que se defrontavam caciques do PMDB
e do PFL mas das quais quem tirava proveito político eram as oposições. No final,
de palpável quase nada. Nesse ínterim ressurgiu com força a também equívoca
polarização na mídia, alimentada por descontentes do governo, entre monetaristas
que controlariam a equipe económica, Pedro Malan à frente, e
desenvolvimentistas, supostamente inspirados por Luiz Carlos Mendonça de Barros
e cujo ponto de referência seria o ministro da Saúde (e economista) José Serra.
Tais rumores, naturalmente, provocavam apreensões nos mercados financeiros.
Além do mais, fisgou-se artificialmente o nome de Eduardo Jorge
Nota: 26 Foram dois episódios diferentes, embora coincidentes no tempo e assemelhados
em sua natureza. Um diz respeito ao Banco Marka, controlado por Salvatore
Cacciola, outro ao Banco FonteCindam, que tinha entre seus sócios dois ex-
diretores do BC (António Carlos Lemgruber e Luiz António Gonçalves). Ambos os
casos ocorreram no espaço de dois dias entre o anúncio da nova banda de câmbio,
em 13 de janeiro de 1999, e seu colapso, dois dias depois. (Tratarei dessa questão
com detalhes no Capítulo 5 deste livro.) Nesse intervalo o BC vendeu dólares às
duas instituições em valor inferior ao da cotação que o câmbio havia atingido (1,32
real por dólar, o teto da banda natimorta). O BC justificou a operação com o
argumento de que ambas as instituições tinham volumes expressivos de contratos
de câmbio vendidos a 1,20 dólar por real - a cotação anterior à mudança da banda
- e que, sem auxílio da autoridade monetária, eles não teriam capital para honrar
esses contratos. Em conseqüência, provocariam uma quebradeira em cascata na
Bolsa Mercantil & de Futuros. O argumento do BC baseava-se na tese do "risco
sistêmico"
(a diretora de fiscalização, Tereza Grossí, solicitara à BM&F uma carta formal
confirmando a existência de risco sistémico se aqueles bancos não honrassem os
seus contratos).
A oposição procurou imputar crise de responsabilidade a Malan, alegando que ele
sabia da operação e a havia autorizado. A respeito, faço duas observações
importantes. A primeira é que Malan não sabia de nada e isso ficou claro no curso
da CPI do Sistema Financeiro, a tal ponto que a Ombudsman da Folha de
São Paulo,
à época da conclusão dos trabalhos da comissão, reconheceu o modo impróprio
pelo qual o jornal tratara o caso. A segunda observação é que o BC tomou a
decisão de vender dólares mais baratos sob circunstâncias dramáticas, em meio a
enormes incertezas e riscos. Pode ter sido errada, o que é fútil julgar fora
do contexto em que ocorreu, mas não surgiram evidências de que tenham tido o
objetivo de favorecer A ou B (se o Marka dispunha de informação privilegiada, então
como é que estava na chamada "ponta" errada do mercado no dia 13 de janeiro, ou
seja, apostando na manutenção da política cambial de Gustavo Franco, e não em
sua mudança?). Fim da nota.
325
no escândalo do juiz Nicolau para uma vez mais dar a impressão de que se
estava em um mar de lama, tema que voltaria com força em 2001.
Embora sabedor da inverdade de todas a acusações, não podia deixar de me
recordar que Getúlio se suicidou quando não teve mais força para controlar a
política, embora jamais qualquer das inúmeras denúncias contra ele tivesse
fundamento no aspecto moral. Eu precisava, pois, rearticular os batalhões para a
guerra política. Foi o que fiz.
Modifiquei de novo o Ministério, conferindo-lhe um caráter mais técnico.
Paulo Paiva havia se deslocado para a vice-presidência do BID em Washington e
em março Pedro Parente passou a comandar o Planejamento.
Esse arranjo, entretanto, durou pouco. Logo em julho chamei Parente para a chefia
da Casa Civil por haver optado por Clóvis Carvalho para o Ministério do
Desenvolvimento. Clóvis tinha ligações com setores da área económica percebidos
como "desenvolvimentistas". Além disso, os empresários queriam mais ação no
Ministério e, sendo injustos com o então titular, Celso Lafer, acreditavam que alguém
considerado "duro"
no trato com a Fazenda e conhecedor da Casa, como Clóvis, teria maior aceitação e
poderia conseguir maior êxito nas negociações com sua burocracia. Daí por diante
Pedro Parente, exemplo de servidor público, constituiu-se, como Clóvis, em "pau-
para-toda-obra". Seu desempenho, para citar um caso, na crise energética de 2001 -
que abordarei no Capítulo 9 - mostra a qualidade técnica de alguns dos nossos
melhores funcionários. Outro modelo de dedicação ao serviço público, o
economista Martus Tavares, profundo conhecedor da área económica, em que
ocupara várias funções, assumiu o Planejamento. Substituí o ministro Bresser pelo
embaixador Sardenberg na Ciência e Tecnologia. Para a Agricultura - onde
revolucionaria a área e seria paladino e precursor da virada exportadora -, nomeei
Marcus Vinícius Pratini de Morais, do PPB gaúcho, que somava à condição de líder
empresarial a de bom conhecedor da vida pública. Finalmente, coloquei Aloysio
Nunes Ferreira na coordenação política, entregando-a, portanto, ao PSDB.
No final de abril de 1999 nomeei o economista Henri-Philippe Reichstul, meu amigo
de muito tempo, para substituir Joel Rennó na Petrobras.
Economista competente, Reichstul estivera comigo no Cebrap e, com
minha intercessão, tinha obtido uma bolsa de estudos na London School
of Economics. Sua experiência na administração pública incluía ter
326
trabalhado com João Sayad no Ministério do Planejamento do governo Sarney.
Rennó conheci já presidente da Petrobras, desde quando, como ministro das
Relações Exteriores, convenci-o a iniciar a substituição da importação de petróleo
do Oriente Médio pelo oriundo de Argentina e Venezuela, o que deu base à
expansão de nossas trocas comerciais com os países da América do Sul e diminuiu
nossa dependência de uma região do mundo com alto potencial de instabilidade.
Mais ainda, foi Rennó quem obteve a aquiescência da direção da Petrobras para a
política de flexibilização do monopólio. Quando nomeei Reichstul,
modificamos também os critérios de direção da companhia. Ela se tornou menos
sujeita a influências partidárias e passou a ser controlada por um Conselho
de Administração técnico, com presença mais forte de acionistas minoritários e de
representantes do governo e de companhias privadas.
Pusemos fim, com essa medida, à esdrúxula situação anterior na qual os diretores
eram simultaneamente membros do Conselho que deveria fiscalizá-los. No último
ano de governo, Reichstul foi substituído por Francisco Gros, a quem conheci
quando, presidente do BC no governo Collor, lhe pedi, cumprindo missão do
Presidente Itamar, que permanecesse no cargo em nome da continuidade
administrativa. Gros conservou a orientação de Reichstul na estatal. Sob a direção
de ambos, a Petrobras se firmou como a mais importante multinacional
brasileira, manteve seu nível técnico de excelência e se dinamizou financeira
e comercialmente, deixando o país pronto para alcançar a auto-suficiência na
produção de petróleo.
Em outra área do governo, o ministro da Justiça, Renan Calheiros, entrou em
divergência com a Casa Militar da Presidência sobre a política de combate às
drogas, bem como com o governador Mário Covas. Teve que deixar o governo e
para seu lugar veio José Carlos Dias, jurista de valor, defensor dos direitos
humanos e ex-integrante do governo Montoro em São Paulo. Para compensar a
diminuição da participação do PMDB do Senado no governo com a saída de Renan,
designei para o recém-criado Ministério da Integração Nacional o senador Fernando
Bezerra, que pertencia a grupo distinto no partido e era mais próximo a mim, além
de ser presidente da CNI. Indiquei ainda Andréa Calabi para o BNDES, reforçando
as ligações com os setores industriais paulistas.
Entretanto, o que de mais insólito ocorreu foi a substituição, em setembro, de Clóvis
Carvalho por Alcides Tápias, executivo dinâmico, ex-
327
vice-presidente do Bradesco, ex-presidente da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban) e, naquele momento, presidente do grupo Camargo Corrêa (construção
civil e outras atividades). Insólito porque tive que tomar uma das decisões mais
difíceis de meu governo: exonerar um ministro leal e competente em razão de uma
infelicidade vocabular em discurso que pronunciou em seminário organizado pelo
PSDB precisamente para mostrar a unidade do partido e do governo. Clóvis usou
palavras fortes referindo-se à condução da política económica, que foram repetidas
ad nauseam pela mídia. Ora, no meio de toda a borrasca eu sempre mantivera
posição pública de defesa inabalável da política económica. Em momento no qual
ela se achava sob mira, não poderia deixar no ar a interpretação, inevitável dada a
proximidade que tinha com o ministro, de que estava mudando de posição. Os
setores produtivos saudaram efusivamente a nomeação de Tápias, especialmente
porque ele vinha de posturas muito críticas quanto à morosidade da
reforma tributária e proferiu enfática declaração no discurso de posse dizendo que
seria um "guerrilheiro" em sua defesa.
O ano de 2000 transcorreu muito mais calmamente. A economia crescendo, as
crises políticas, forjadas ou advindas de choques efetivos de opinião ou de
interesses, amainadas. Enfim, depois de tantos trancos económicos e políticos,
voltava-se a discutir o principal: como melhorar o desempenho da máquina pública,
como melhorar as condições sociais e como acelerar o crescimento da economia
em um mundo globalizado. Nada disso, é claro, impedia a continuidade da
política partidária e de percalços como os choques entre Jader Barbalho e António
Carlos Magalhães. ACM, que desde a CPI do Judiciário assumira as vestes de
Catão, insistia na política de "dossiês", em geral recosidos de notícias publicadas
em jornais e revistas ou mesmo de processos que corriam dentro do governo, e
portanto públicos. Com a ajuda de Ciro Gomes, que se tornara um adversário tenaz,
procurava fixar a imagem de que o governo (ou o Presidente) "não rouba, mas
deixa roubar", quer dizer, deixava que o PMDB participasse do governo. Além
desse mote, o senador baiano, hábil como ninguém para levantar tema8 que
interessam à mídia e sabendo fazê-lo com agilidade e estardalhaço? viveu
nas manchetes dos jornais, quando não como o anticorrupção e pessoa, como
o paladino dos pobres. Propôs um Fundo de Combate & Pobreza que terminaria
sendo útil porque, com
328
ajuda do relator da matéria, senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE), o governo usou a
deixa para absorver as verbas nos programas sociais que já existiam e subtraiu da
proposta o caráter demagógico.
As mudanças ministeriais foram pequenas. Logo no início do ano tive de demitir o
comandante da Aeronáutica, brigadeiro Walter Brauer, que já vinha insatisfeito com
as pressões exercidas pelo governo para ampliar o controle civil em órgãos que,
sem razão, estavam subordinados à Aeronáutica, como o Departamento de Aviação
Civil (DAC) e a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero). Infeliz
em declarações à imprensa, deixou o ministro da Defesa em posição incómoda.
Mandei exonerá-lo, teve a solidariedade de militares da reserva, assumiu o
comando o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista e nada de mais sério ocorreu. Em
abril seria a vez de o novo ministro da Justiça, que se chocara com o diretor da
Secretaria de Combate às Drogas, dirigida pelo juiz aposentado e especialista em
crime organizado Walter Fanganiello Maierovitch, e preferiu se afastar.
Passou a gerir o Ministério o jurista Miguel Reale Júnior, que também pediu
demissão logo depois - explicarei as razões mais adiante - e foi por seu turno
substituído por José Gregori.
Gregori vinha colaborando com o governo desde o início, primeiro como chefe de
gabinete do ministro Jobim e depois na função inovadora de titular da Secretaria de
Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça. Esta área foi fundamental no
desenho do Brasil democrático e seu titular conseguiu êxito, chamando a atenção
do país para a dimensão essencial à democracia da luta contra todos os tipos de
discriminação e sobretudo contra a violência. Quando Gregori passou para o
Ministério da Justiça, da Secretaria encarregou-se o diplomata Gilberto
Sabóia, exembaixador na Suécia e também experiente e respeitado nesse
terreno por ter representado o Brasil junto à Comissão de Direitos Humanos
da ONU, em Genebra. Seria sucedido por outro paladino, Paulo Sérgio Pinheiro,
professor de Ciência Política e diretor do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Todos eles foram dedicados e efetivos na difícil tarefa de ampliar os direitos da
cidadania. Em maio o deputado Carlos Melles (PFL-MG) assumiu o Ministério do
Esporte e Turismo, substituindo o ministro Greca, depois de acusações, não
comprovadas posteriormente, de que o ex-prefeito de Curitiba receberia propinas
para autorizar o funcionamento de casas de bingo. E houve outras duas alterações
em áreas importantes:
329
o procurador da República Gilmar Mendes substituiu Geraldo Quintão
como advogado- geral da União e, no BNDES, Francisco Gros assumiu no lugar
de Calabi, que se chocara com o ministro Tápias.
As modificações acima são, por assim dizer, de rotina, e não fruto de entrechoques
políticos maiores, mostrando, uma vez mais, que com a economia em ascensão é
muito mais fácil governar. Não que faltem problemas: o ano de 2000 foi de muita
pressão do MST e agravamento da criminalidade e da sensação de insegurança
nos cidadãos. Matéria dificílima de equacionar, até porque a ação do governo
federal é limitada por dispositivos constitucionais e porque não se
conseguiu, baldados os esforços, unificar os comandos das polícias estaduais, civil
e militar, nem atribuir ao poder central maior controle ou pelo menos influência
sobre a área. E mesmo que assim não fosse, o governo não dispõe de condições
organizacionais para enfrentar a questão que talvez seja o maior desafio para o país
no começo do século XXI.
Estrépitos: os casos Jader, ACM e Roseana
No início de 2001, a despeito das boas perspectivas da economia, havia nuvens
cinzentas no horizonte da política. A tensão entre PMDB e PFL, que vinha se
arrastando desde 1999, ora tomava o aspecto de uma disputa entre o presidente do
Senado, António Carlos Magalhães, do PFL, e o da Câmara, Michel Temer, do
PMDB, ora surgia com estrépito como um choque direto entre o líder do PMDB no
Senado, Jader Barbalho, e o presidente da Casa. Lançou-se mão sem reservas das
armas habituais da política de caciques. Brandiram-se "dossiês" antigos para
desmoralizar o líder peemedebista que se candidatara a substituir o presidente do
Senado, pois em fevereiro haveria renovação das Mesas, sem possibilidade
de reeleição dos ocupantes. A presidência, pela tradição, caberia à maior bancada,
que era a do PMDB e que cerrara fileiras em torno de Jader.
Enquanto isso, na Câmara, o PMDB, sobretudo pela ação de Geddel Vieira Lima,
oferecia apoio à candidatura de Aécio Neves, cujo partido, o PSDB, constituíra um
bloco parlamentar com o PTB e se tornara amplamente majoritário. O PSDB sentia-
se "primo pobre" da aliança governista. Embora sendo o partido do próprio
Presidente da República e controlasse muitos ministérios, o critério de seleção e o
modo de atuação dos
330
ministros mantinham consonância com os propósitos do governo e não
de clientelismos partidários. A bancada queixava-se de uma sensação de "falta de
espaço", compensada, é verdade, por "muito carinho"
presidencial, mas com poucas nomeações. Estava presente, além disso,
a insatisfação dos parlamentares pela pressão contínua do governo em favor de
medidas impopulares, como as reformas, e as rédeas curtas nos aumentos de
vencimentos do funcionalismo.
Tudo isso era fácil de ser explorado com o tema; o governo é imperial e o Presidente
governa com MPs, esquecido o fato de que elas poderiam ser recusadas de plano
se funcionassem a contento as comissões do Congresso encarregadas de dar o
parecer sobre sua admissibilidade - ou seja, se elas cumpriam os pré-requisitos
constitucionais, sobretudo os de urgência e relevância. António Carlos destacou-se
como o paladino da luta "pela dignidade" do Congresso, isto é, pela limitação do uso
das MPs. Aécio Neves logo encampou a tese e, naturalmente, as
oposições também. Em conseqüência, depois de eleito Aécio presidente da Câmara
e de negociações comigo, se chegou a uma fórmula nova. O mecanismo adotado
limitou a apenas uma vez o poder presidencial de reeditar as MPs, restringiu
consideravelmente a gama de assuntos passíveis de serem tratados por MPs e
propiciou o bloqueio da ação legislativa: não submetendo as MPs a voto depois de
esgotado seu prazo de validade constitucional, a Câmara passou a não poder mais
deliberar sobre qualquer outra matéria. Apesar de minhas advertências sobre
os inconvenientes institucionais da solução - principalmente a possibilidade de
freqüente paralisia dos trabalhos legislativos -, cedi, pois estava no final do governo
e não queria lançarme a um cabo-de-guerra com o Congresso, em especial estando
a Câmara sob direção do PSDB.
Essa foi também a razão pela qual me tinha comprometido com Aécio Neves a não
vetar sua candidatura. Explicitei ao deputado e ao senador Teotônio Vilela Filho,
presidente do PSDB, os inconvenientes da ruptura do equilíbrio de forças no
Congresso, cuja manutenção vinha sendo minha política desde o início do governo.
O PFL, inconformado, lançou a candidatura de Inocêncio Oliveira na Câmara e
queria minha interferência direta contra a candidatura Jader no Senado pelo PMDB.
Começaram as manobras de bastidores. Enquanto Inocêncio, na busca de votos,
se aproximou do PT e deu declarações desassisadas sobre o governo, os
331
adversários de Jader, mesmo no PSDB, embora não pudessem "abrir o jogo"
para não prejudicar a eleição de Aécio (que dependia grandemente do PMDB),
torciam por sua derrota. Nenhum, entretanto, se dispondo a pôr as mangas de fora,
temerosos dos efeitos de uma retaliação do PMDB na Câmara, que cortaria as
chances de Aécio. Qualifiquei a situação como uma armadilha.
Aécio elegeu-se folgadamente para o posto ambicionado, enquanto fracassaram no
Senado as tentativas do PFL de convencer algum peemedebista ou o PSDB a
lançar candidatura avulsa contra a majoritária do PMDB. O PFL não ousara lançar
nome próprio porque diminuiria as chances de Inocêncio na Câmara. Para abater a
candidatura Jader, tentaram em vão Pedro Simon e José Fogaça, logo dois
senadores do PMDB do Rio Grande do Sul, estado em que a fidelidade partidária
tem mais sentido do que em qualquer outro - e que, portanto, teriam que votar
no correligionário Jader. Os pefelistas então se voltaram para o senador Sarney,
que reiterou a mim que não seria candidato, embora não chegasse a descartar
inteiramente a possibilidade diante de seus pares, Finalmente acordaram em lançar
o senador do PTB Arlindo Porto para competir com Jader. Verifiquei com
antecipação, por intermédio do líder do governo, José Roberto Arruda (PSDB-DF),
que os pefelistas equivocavam-se redondamente quanto às chances de êxito do
candidato.
Ainda assim me surpreendeu o número de votos alcançados por Jader, 41, ou seja,
maioria absoluta, que excedeu as expectativas.
O PFL ficou com a impressão de que eu, no fundo, queria Jader, porque não fui
enfático no apoio a uma candidatura Sarney nem pedi votos para Arlindo Porto. Eu
estava, entretanto, diante de outro dilema: como manter a governabilidade em
condições políticas cada vez mais precárias. Não queria me expor interferindo além
do razoável nas decisões dos parlamentares. Mesmo a ala do PFL que não agia
sob a influência de António Carlos, mais ligada ao presidente Jorge Bornhausen,
andava estomagada comigo, o que me preocupou. Por intermédio tanto de Tasso
Jereissati como de Pimenta da Veiga, que eram próximos a Bornhausen, inteirei-me
de rumores quanto à disposição do PFL de manter o apoio ao governo somente se
eu denutisse os ministros Padilha e Dornelles, que estiveram ativos nas articulações
em favor de Aécio, como se os ministros pefelistas não tivessem procedido de
forma semelhante para beneficiar seus companheiros.
332
Antes da votação sobre as Mesas mandei publicar uma nota que redigi de
próprio punho, dizendo que contava com o apoio dos partidos para continuar as
reformas, inclusive a do sistema político. Eu tinha o propósito de, depois do
Carnaval daquele 2001, apresentar o programa de governo para os dois anos finais
de mandato e só então escolher novos ministros, por critérios que eu definiria, sem
ter no entanto o objetivo de compensar os perdedores da disputa na Câmara e no
Senado.
Era perceptível a fratura na base de sustentação do governo. Eu recebia também
sinais inquietantes de desavenças internas no PSDB. O ministro Paulo Renato me
procurou para expor temores sobre o encaminhamento das candidaturas
presidenciais:
- O Serra está atropelando todo mundo. Acho que ainda não é hora
para candidaturas.
Em seguida, no entanto, expressava suas próprias pretensões a respeito.
O governador Tasso Jereissati via em cada movida no Congresso - por exemplo, a
eleição do novo líder do PSDB na Câmara, deputado Jutahy Magalhães (BA) - o
dedo de José Serra, talvez com minha cumplicidade...
Os ingredientes para uma crise estavam dados. Eles vinham de longe, mas se
precipitaram com a questão da eleição das Mesas e com os estilhaços das CPIs do
Judiciário e do Sistema Financeiro, que ricocheteavam ora nuns, ora noutros, tendo
no horizonte a sucessão presidencial em 2002.
Vitorioso Jader, as escaramuças se transformaram em guerra. "Delenda Jader",
mas na verdade, "Delenda FHC". Por um desses paradoxos comuns na política
brasileira, embora com motivações diversas, esquerda e direita convergiram, se é
que ao frenesi pela obtenção de poder por qualquer meio se pode chamar de
esquerda e ao caciquismo atrasado de direita.
Ao moralismo de momento de ACM, que renovou denúncias não só contra Jader
mas também contra os ministros peemedebistas, além de lançar achincalhes a mim,
somou-se o udenismo - já sem macacão - do PT.
Propalava-se, novamente, a suposição de que existia um "mar de lama".
Eduardo Jorge novamente entrou na berlinda em função de insinuações
não assumidas de ACM a certos procuradores da República muito bem relacionados
com a mídia e com a oposição. A conversa, gravada, veio a público. A certa altura,
o senador recomendava aos procuradores que quebrassem o sigilo telefónico de
Eduardo Jorge, pois assim nos "pegariam",
333
a ele e a mim. Pela reprodução dessa sugestão me convenci de que António
Carlos efetivamente fizera as insinuações. Meses antes, ele havia sugerido que
Eduardo Jorge abrisse para o Senado os sigilos bancário, fiscal e telefónico.
Eduardo Jorge seguiu a sugestão, exceto pelo sigilo telefónico. Ponderou a mim o
provável incómodo para terceiras pessoas de se revelarem os telefonemas feitos
por ele durante a campanha eleitoral de 1998. Eu, ingenuamente, transmiti
essa preocupação a António Carlos.
Assistiu-se a um corre-corre no PFL para disfarçar o episódio patético de se ver um
ex- presidente do Senado, à socapa, fazendo alegações levianas. Jader voltou a ser
atacado com base em antigas acusações, do tempo em que governava o Pará na
década de 1980, sobre desvio de recursos públicos. O senador acabaria
renunciando à presidência do Senado e, depois, ao mandato, como forma de evitar
a cassação por seus colegas e a conseqüente suspensão dos direitos políticos.
(Sucedeu-o o senador Ramez Tebet, do PMDB de Mato Grosso do Sul, que
conduziu o Senado com equilíbrio até o final de meu governo.)
Nessas ocasiões a racionalidade na política baixa muito. Costumo dizer que em
política a lucidez só aumenta o sofrimento. Sabe-se o que vai ocorrer (ou se pensa
saber) e nada de efetivo se pode fazer para mudar o curso das coisas. A sorte
estava lançada desde quando se rompeu o equilíbrio entre as forças de sustentação
do governo. Jader passou a atacar não somente António Carlos como o BC, que
teria vazado relatórios. Nesses momentos, quando o escândalo e a infâmia
substituem as propostas e a ação negociadora para alcançá-las, sobra para
todo mundo e é difícil deslindar os novelos que enroscam os
personagens envolvidos. Para cúmulo, pouco depois, António Carlos é atingido
por denúncias de ter violado o sigilo do painel de votações do Senado durante a
decisão sobre a cassação de um senador do PMDB, Luís Estêvão (DF). As
oposições, nesse quadro, nadavam de braçada, alimentando denúncias daqui e dali,
sem se importar com a seriedade delas e muito menos com as instituições. Mas não
foi assim também quando a União Democrática Nacional (UDN) liquidou Getúlio, ou
quando Juscelino era bombardeado de acusações pela construção de Brasília? E
não foi Jânio Quadros quem, mal tendo recebido o governo das mãos de
Juscelino, passou-lhe a conta de outra "herança maldita"?
Em vez de me lamuriar, preparei-me para reagir à minha maneira. António Carlos,
antes de passar pelo pelourinho da Comissão de Ética do
334
Senado sobre a violação de sigilo, que o levou à renúncia para escapar da cassação
- caso que terminaria atingindo o líder Arruda, que igualmente renunciou -, se
vangloriava de que dizia o que bem entendia e eu não teria coragem para reagir.
Confundia responsabilidade e cálculo com subjetivismo moral, ter ou não ter
"coragem". A mídia dava curso, com gosto, às bravatas. Não faltava quem achasse
que eu era lento nas decisões, não gostava de demitir ninguém, hesitava...
Gostar de demitir é perversidade a ser evitada. Deixar de fazê-lo quando necessário
é erro de alto custo. Hesitar pode ser uma tentativa de escolher o melhor momento
para a decisão. Talvez eu me excedesse em cautelas, mas creio ser equivocada a
percepção de que não fui capaz de atuar nos momentos necessários, ainda que
correndo riscos. Foi o que fiz com António Carlos.
O que estava em jogo era a sustentação política do governo, que poderia ficar
seriamente abalada se eu errasse o golpe. Por outro lado, por mais tolerante e
paciente que eu fosse, há limites a partir dos quais a falta de resposta às ousadias
deixa de ser jogo de prudência para se transformar em pusilanimidade. Era o caso
diante das atitudes estrepitosas e das declarações de António Carlos depois da
derrota de seu candidato na eleição da Mesa do Senado. Concedeu
entrevistas, pronunciou discursos, insinuou corrupção e assim por diante.
Isso quando, ao mesmo tempo, o governo abrigava dois ministros baianos ligados
politicamente a ele. Eu, como se diz na gíria, dispus-me a ir engolindo sapos porque
tinha uma obsessão: queria apresentar o plano de governo depois do Carnaval, no
dia 5 de março de 2001, e, para dar mais compostura às ações, mudar o Ministério
somente depois de os partidos declararem formalmente sua aprovação ao plano.
Desse modo, ao escolher novos ministros partidários, teria razões para além do
jogo de poder.
António Carlos, indagado pelo líder Arruda se era certo que levara as denúncias aos
procuradores, antes de serem públicas, negou. Meus assessores políticos e
pessoais sabiam que a situação dos ministros baianos era insustentável. António
Carlos iria para Miami durante o Carnaval. Eu disse aos assessores: ele vai
tranqüilo porque acredita que não vou demitir ninguém... Até que, nas vésperas do
Carnaval, vi na TV Globo o senador, já em Miami, dando pelo telefone uma
entrevista bastante ousada. Os dois ministros ligados a ele, Waldeck
Ornelas
e Rodolpho Tourinho, não tiveram a gentileza de sequer me telefonar durante o
curso de todos os episódios
335
relatados. Levantei-me de onde assistia à TV, na parte íntima do Palácio da
Alvorada, e redigi naquela mesma madrugada a nota de demissão dos dois.
Assunto encerrado. Fiz o que já decidira fazer havia muito, mas esperei o momento
oportuno porque não queria oferecer ao PFL argumentos para deixar o governo.
Troquei os dois baianos por dois políticos do partido, só que não carlistas: o
deputado Roberto Brant (MG) no Ministério da Previdência e o senador José Jorge
(PE) no de Minas e Energia. A descrição um tanto longa desse episódio ilustra
o que ocorre quando a disputa partidária se acirra e repercute no governo.
Não é o caso de seguir passo a passo os acontecimentos posteriores.
Algo semelhante se deu na proximidade das eleições de 2002, quando
aconteceu outro choque com o PFL. Desde o começo do ano os partidos
buscavam quais seriam os candidatos à Presidência. A governadora do
Maranhão aparecia bem situada em pesquisas de intenção de voto, após
inteligente utilização dos espaços do horário eleitoral gratuito pelo PFL, e eu, como
lhe disse, não via com maus olhos a candidatura. Certa feita, Roseana Sarney veio
jantar comigo no Alvorada. Asseverou-me que não queria disputar a Presidência:
- Essa história de candidatura acaba dando dor de cabeça. Observei
com sinceridade:
- Mas você não tem nada a perder, Roseana. E pode ser uma boa alternativa.
Julgava que ela poderia firmar-se e, mesmo que não fosse o caso, daria uma boa
composição com o PSDB. Até que investigações em curso na Sudam, que já
haviam atingido o senador Jader, tiveram desdobramentos no Maranhão e
acabaram levando o PFL a se afastar do governo. A despeito de não ser este meu
desejo e, creio eu, nem deles, os ministros de Minas e Energia, Previdência, Meio
Ambiente e Esporte e Turismo tiveram que se exonerar. Foram substituídos,
respectivamente por Francisco Gomide, José Cecchin, Caio Carvalho e José Carlos
Carvalho, todos eles técnicos que já vinham servindo à administração em posições
de relevo.
Cabe aqui um parêntese sobre outra das artes da política. Nas constantes trocas de
ministros impostas pela vida real, a continuidade administrativa é em boa parte
assegurada pela burocracia profissional.
O Estado brasileiro, diferentemente do que muitas vezes se imagina e proclama,
dispõe de quadros altamente competentes. É só saber motivá-los com
336
um desafio e atribuir-lhes a importância devida que ajudam o governo a funcionar
melhor. No ano final do mandato, afastados os ministros já referidos e outros que
saíram para campanhas eleitorais, chegou o momento de fazer justiça, alçando ao
comando de ministérios profissionais que, sem ambições especificamente políticas,
sustentaram a administração anos a fio, comandaram grupos de trabalho,
promoveram mudanças, deram idéias e se mostraram capazes de implementá-las.
Foi o que fiz com Barjas Negri, designado para o Ministério da Saúde, com vários
técnicos que substituíram os ministros pefelistas em debandada, com José Abraão
(Reforma Agrária), Guilherme Gomes Dias (Planejamento) e alguns outros mais,
como Juarez Quadros, que cooperou grandemente com Sérgio Motta e já exercera
o Ministério das Comunicações interinamente em mais de uma ocasião, até tornar-
se titular. Quase todos eles haviam sido, nos respectivos ministérios, secretários
executivos, função que corresponde à de vice-ministro.
Por certo, Ministério é função política e não estou a pregar a burocratização do
poder. Contudo, cum grano safe, é útil recompensar quem trabalha e demonstra
competência, mesmo arriscando a fragilidade política. Tais critérios não podem ser
aplicados no caso de certos ministérios, como o que se encarrega da coordenação
política. Para essa função, depois que Aloysio Nunes se deslocou para a Justiça,
chamei o deputado Arthur Virgílio Neto (PSDB-AM) e, quando este se candidatou
ao Senado, apelei para um antigo companheiro que daquela vez estava prestando
excelentes serviços na presidência da hidrelétrica de Itaipu, Euclides Scalco.
Também para o Ministério da Justiça, sobretudo em ano eleitoral, era preciso
buscar quem tivesse qualidades especiais para exercê-lo, como fiz escolhendo o
jurista Paulo de Tarso Ribeiro.
Sempre há ministros que se vão por motivos próprios, como Alcides Tápias em
agosto de 2001. Designei como seu substituto o embaixador Sérgio Amaral, que
conferiu enorme impulso ao trabalho dos antecessores. Os efeitos do câmbio
flutuante começavam a se fazer sentir, bem como os esforços do Itamaraty e da
Camex, de modo que a virada exportadora e seus desdobramentos nos saldos
comerciais deram concretude ao mote que lancei quando da posse de Sérgio
Amaral: "Exportar ou morrer".
Mas, fechando o parêntese sobre a burocracia profissional, retomo, agora, o fio da
meada da questão que levou ao rompimento do PFL com
337
o governo. A ironia do episódio é que era desdobramento das
mesmas investigações que haviam sido objeto dos vendavais verbais de ACM.
Este, sem o querer, atiçou o fogo que queimou seu próprio partido. Num fim de
tarde, quando eu recebia o governador do Rio Grande do Norte, Garibaldi Alves
(PMDB), Jorge Bornhausen me telefonou aflito. Grande estrépito: ele me pedia ajuda
para apagar um incêndio no Maranhão, porque a família Sarney e amplos setores
do PFL estavam irritados com a violência da invasão, por agentes da Polícia
Federal, dos escritórios de uma empresa de propriedade da governadora Roseana e
do marido, Jorge Murad. Como não sabia da investigação - que corria nas mãos
do Ministério Público, tendo a intervenção da PF se dado por determinação da
Justiça -, procurei o ministro da Justiça para me informar. Não o encontrei. Recorri
ao diretor da PF, delegado Agílio Monteiro Filho, que tampouco sabia de alguma
ordem para praticar o ato. Mais tarde me telefonou informando que a PF dava
cumprimento a uma decisão judicial, informação que tive também de Everardo
Maciel, secretário da Receita Federal, igualmente envolvida na ação. Ato contínuo
pedi uma cópia da ordem judicial. À noite, telefonei para o presidente do PFL e
transmiti a ele os termos do mandado de busca e apreensão.
No episódio, minha boa-fé revelou-se pouco útil. Tudo foi atribuído a uma armação
com propósitos eleitorais para beneficiar... José Serra, àquela altura pré-candidato à
Presidência pelo PSDB. Ficou claro que o governo nada teve a ver com a ação do
Ministério Público e da polícia, mas continuamos levando a "culpa" por não termos
interferido para impedila. Caso se tratasse de um "inimigo" das forças atingidas,
como ocorreu com Jader, tudo bem que a lei desabasse sobre sua cabeça,
fosse quem fosse. Tratando-se, porém, de forças políticas "amigas", a isenção do
governo é vista como conivência com os adversários, na melhor das hipóteses. De
qualquer forma o caso mostra também que muita coisa mudou.
O espírito republicano prevaleceu sobre o favoritismo. Mudou nas instituições e, se
não em todos os políticos, em um número significativo deles.
Diante dos acontecimentos, pensei comigo com certo contentamento:
termino o governo rompido com as principais oligarquias políticas. Isto representa
um avanço institucional. Não poderia imaginar que o PT, vitorioso, iria reerguer o
prestígio de muitos anjos decaídos do poder...
338
CAPÍTULO 5
Pedras no caminho: as incertezas na economia
Em vez de "lua-de-mel?crise cambial e nervos de aço
A mídia refere-se aos cem primeiros dias de governo como uma "luade-mel". De
fato, a população costuma ser generosa nas avaliações iniciais. Mas, a medir pelos
azares da política, meus cem primeiros dias foram tormentosos. Antes mesmo da
posse, a 1° de janeiro de 1995, nuvens pesadas toldavam o horizonte da economia.
A crise financeira do México estourou doze dias antes, a 20 de dezembro de 1994.
Isso tornava impossível a sugestão que me fora trazida por José Serra e
Pérsio Árida, de pedir ao Presidente Itamar Franco que tomasse medidas de ajuste
de câmbio para facilitar a ação do BC, como o Presidente Sarney fizera às vésperas
de transmitir o cargo ao Presidente Collor. Parecia claro que a taxa de câmbio a 82
centavos de real por dólar criaria problemas futuros para as exportações,
encarecendo os produtos brasileiros. Mas interferir no câmbio quando o sistema
financeiro internacional dava sinais de fadiga seria insensatez. Esse
permanente pesadelo acompanhou o governo até janeiro de 1999, quando os
mercados nos obrigaram a permitir a flutuação do câmbio.
Se o problema tinha sido percebido desde o início, por que, então, tanto tempo para
resolvê- lo?
As decisões de política económica não diferem de qualquer decisão, no Congresso
ou no Executivo, que envolva escolhas complexas: há algo mais entre a teoria e a
prática do que imagina quem pensa que basta saber ou querer para acontecer. E
saber, quando se olha a História já feita, é bem mais fácil do que quando ela está
sendo tecida, sob condições adversas.
Na impossibilidade de ajustar o câmbio antes de minha posse, o assunto voltou à
tona logo em janeiro de 1995. Realizamos reuniões com os ministros Pedro Malan,
José Serra e Clóvis Carvalho e o presidente do BC, Pérsio Árida. Ampliamos os
encontros para incorporar José Roberto Mendonça de Barros, Edmar Bacha e
também Gustavo Franco e Francisco Lopes,
339
diretores do BC. A meu juízo, independentemente de posições hierárquicas,
eles deveriam tomar parte das decisões pelo conhecimento dos temas ou
capacidade de execução que tinham.
A maioria, eu inclusive, considerava que a valorização do câmbio chegara a um
ponto impossível de manter. Gustavo era o mais resistente à mudança. Havia
operado a casa de máquinas do BC com competência na partida do Plano Real.
Não fosse a apreciação do câmbio, dificilmente a nova moeda teria atravessado o
Rubicão dos primeiros meses, quando maiores eram as pressões inflacionárias e os
riscos de o plano perder credibilidade. Malan apoiava Gustavo. Se houvesse
alteração de rumos, que fosse implementada de maneira lenta, gradual e segura.
Serra, apreensivo com as repercussões da valorização cambial sobre a
balança comercial e a indústria, sugeria puxar a taxa de câmbio, de uma só
vez, para um degrau consideravelmente superior, e ali estacioná-la por
algum tempo. Pérsio compartilhava a preocupação de Serra com o nível do câmbio.
Defendia, no entanto, não só uma engenharia rápida, mas a adoção de uma nova
arquitetura cambial: um sistema de banda - espécie de faixa dentro de cujos limites
mínimo e máximo se permitiria que o valor do real flutuasse - que pudesse levar, em
algum momento do futuro, à flutuação livre do câmbio. O piso e o teto da banda
se ampliariam progressivamente, à semelhança do que se havia implementado em
Israel e do que estava fazendo o Chile.
As discussões não envolviam apenas a política cambial. Os mais resistentes a uma
alteração chamavam atenção para o risco de retomada da inflação, por causa do
cenário externo que continuava turbulento e do ainda incipiente processo de
desindexação da economia. Pérsio cogitava, com o auxílio de Bacha e o apoio de
Serra, da adoção de medidas que golpeassem mais duramente a indexação. Isso
significava acabar com a reposição automática aos salários da inflação
acumulada entre a data de lançamento do real e a primeira data-base de
cada categoria de trabalhadores. Colocavam-se também questões sobre
a desindexação dos contratos financeiros. Como mexer nos salários e não nas
aplicações? E se realizássemos mudanças nessas, qual seria o risco de
desorganização do sistema financeiro, com danos para toda a sociedade?
Discussões e discussões, dificuldades inesperadas, embora não de todo
imprevisíveis depois de décadas de inflação e indexação.
Decidimos eliminar a Ufir, o índice
aplicado às obrigações dos contribuintes com a Receita. Ao mesmo
tempo, buscávamos meios de acabar com a velha prática do BC de
recomprar automaticamente títulos públicos da carteira dos bancos - a
chamada "zeragem automática", que restringia a ação da política monetária.
A "zeragem automática" consistia na obrigação de o BC comprar de volta no
encerramento diário do mercado os títulos vendidos aos bancos, se assim fosse do
interesse deles. A obrigação derivava da inclusão de uma cláusula de recompra
automática nos títulos vendidos, em parte colocados nas próprias carteiras dos
bancos, em parte revendidos ao público por meio de fundos e cadernetas de
poupança. Dessa maneira, o BC assumia, de antemão, o risco que corriam os
bancos, seus principais credores, ao carregar títulos do governo. Tratava-se de uma
espécie de "seguro" contra prejuízos dos agentes privados na compra
desses títulos. Foi a forma que os governos anteriores tinham encontrado
para assegurar que obteriam financiamento no mercado em meio a um processo
de crescente desconfiança com relação a sua capacidade de pagamento.
Os problemas não paravam aí. Tínhamos de olhar o conjunto das
políticas económicas, também a fiscal e as regras de importação, sobretudo
no referente aos veículos, que consumiam boa quantidade de divisas do país.
Eu não duvidava de que seria preciso mudar a taxa de câmbio. A questão para mim
era em que velocidade, quando e junto com que outras medidas.
Pelas minhas anotações, pensava que deveríamos alterar as regras até o Carnaval
(a quarta-feira de Cinzas seria dia 1° de março daquele 1995).
Pérsio, junto com Serra, batia na tecla de pedir uma decisão rápida para alcançar
um nível mais confortável na relação real/dólar.
Inicialmente eu simpatizava com a posição de Pérsio. Depois, fiquei mais cauteloso.
João Sayad, em carta a Serra, advertiu sobre os riscos de uma mudança forte e
súbita. Armínio Fraga, em telefonema dos EUA, onde trabalhava com o
megainvestidor George Soros, chamara minha atenção para os argumentos de um
artigo de Mário Henrique Simonsen sobre o mesmo ponto. Eu já recebera o texto
em que Simonsen expressava preocupação com a rapidez de uma eventual
mudança. Mantive também abertos os ouvidos à questão fiscal e fiquei mais
inclinado a tomar medidas de contenção do consumo, como alguns ministros
desejavam. Em janeiro a indústria crescia 17% ao ano e isso criaria problemas na
341
balança comercial, pois aumentaria a importação de insumos industriais, além de
gerar pressões inflacionárias.
Continuei insistindo para que se alterassem as regras cambiais durante o Carnaval.
No dia 22 de fevereiro, recebi três documentos distintos, de Gustavo Franco, Pérsio
Árida e Chico Lopes, entrando em detalhes sobre o nível da taxa de câmbio e a
maneira de defini-la para o futuro. Não cabe aqui esmiuçar tecnicalidades. Quero
apenas registrar a angústia que vivíamos para modificar as regras do câmbio e os
diferentes caminhos propostos, assim como as dificuldades de implementação.
Tudo era tão complexo e incerto que concordei com Pérsio quando opinou
que postergássemos a mudança para 6 de março. Acompanhava assim
os constantes apelos de Gustavo e de Malan na mesma direção. Pareceu-
me conveniente não aumentar as divergências no grupo.
Fixada uma data para a decisão, preparamos uma série de medidas para mostrar ao
país e ao mercado que apertaríamos os gastos, cuidaríamos das importações, que
se avolumavam, e iniciaríamos as esperadas reformas, sobretudo a da Previdência
e a tributária, bem como aceleraríamos as privatizações. Providências e reflexões
terminaram sendo posteriormente consubstanciadas num documento preparado por
José Serra, com a ajuda de Fábio Giambiagi, talentoso economista de carreira do
BNDES há tempos próximo ao PSDB. Intitulava-se Esclarecimento sobre as
medidas recentes do governo na área econômica, e foi antecedido de uma
discussão, no dia 22 de fevereiro, com base em outro paper denominado Propostas
de medidas fiscais.
Coloquei de lado a sugestão anterior de Serra, que desejava uma subida vigorosa
do dólar para depois fixá-lo em um degrau mais estável - ou seja, uma
maxidesvalorização, como se promoveu no passado, seguida de um câmbio fixo
que obrigaria o governo a vender os dólares, se os tivesse, quando a procura
crescesse, podendo ser difícil ao Tesouro manter a posição. Dessa forma, havia
duas outras possibilidades em discussão. Uma, capitaneada por Pérsio, com apoio,
entre outros, de Serra e de Chico Lopes. O BC de imediato passaria a operar o
câmbio dentro de uma banda mais larga e acima da faixa de variação informal
em que vinha atuando até então; em lugar de 0,82 dólar por real como piso e 0,86
como teto, o câmbio poderia flutuar entre 0,88 e 0,93.
Simultaneamente, a autoridade monetária anunciaria a compra de dólares, para
entrega em maio, a uma
342
taxa ainda mais elevada, indicando a ampliação do teto da banda e deixando clara a
decisão de tornar menos rígida a política cambial.
Gustavo, com apoio de Malan, entendia ser melhor assegurar maior controle do BC
sobre a evolução da taxa de câmbio. Ele se convencera, após o lançamento do
Real, de que o mercado livre conduziria o dólar a um patamar elevado de
valorização. Se no período de introdução da nova moeda acreditou, seguindo
Pérsio, que, gradativamente, as forças do mercado encontrariam um ponto de
equilíbrio, com a experiência de operador verificara, segundo dizia, que o
mecanismo puro de mercado não funcionava. Teoricamente, a entrada de dólares
com o novo programa encontraria um freio nas expectativas dos operadores; eles
perceberiam ser insustentável cotação tão elevada do real, o que autocorrigiria
a valorização inicial.
Em vez disso, o comportamento de manada levara a um afluxo contínuo de dólares
sem nenhuma preocupação com uma desvalorização futura. Diante desse
comportamento Gustavo defendia uma desvalorização lenta, temendo um ataque
especulativo nas condições de um mercado internacional nervoso desde a crise do
México. Por ele, o governo tornaria oficial a banda informal de 0,83 a 0,86 por dólar,
por um período curto, após o que o centro da banda seria levemente alterado para
cima e, então, também durante algum tempo, acompanharia a média das cotações
do mercado. O BC, comprando e vendendo dólares, procuraria manter o valor da
moeda tão próximo quanto fosse viável do centro da banda. Na prática, teríamos um
câmbio quase fixo, e de todo modo muito controlado.1
O estopim de uma crise interna estava pronto para ser aceso. As discussões nos
dias pré- Carnaval foram, como se diz hoje, estressantes.
Além do mais, durante o Carnaval, Pérsio Árida, inadvertidamente, passou pela
fazenda de um amigo, Fernão Bracher, ex-presidente do BC no governo Sarney. Só
que o amigo àquela altura era banqueiro, diretor do Banco BBA. Embora a
integridade e o espírito público de Pérsio indicassem que ele jamais forneceria
qualquer informação a quem pudesse ser remotamente
Nota: 1 Este episódio está esmiuçado no interessante livro da jornalista Maria Clara R. M.
do Prado, A real história do Real: uma radiografia da moeda que mudou o Brasil,
Rio de Janeiro, Record, 2005. Fim da nota.
343
beneficiário dela (mesmo porque nada até aquele momento fora decidido) e
o banco em causa, como se investigou depois, não tenha feito qualquer movimento
especulativo, já se armara o enredo para a mídia: escândalo à vista.
A busca de consenso levou a uma reunião no domingo, 5 de março, da qual resultou
uma vitória intelectual de Pérsio. Aceitou-se a idéia da adoção de uma nova banda
de variação, devidamente acoplada à venda de dólar futuro a uma taxa ainda mais
alta. A decisão, no entanto, se deu à base de um compromisso: haveria de imediato
a formalização de uma banda de variação relativamente estreita, como queria
Gustavo, só que embutindo uma desvalorização logo de cara, levando a uma banda
entre 0,86 e 0,90 - maior do que Gustavo gostaria e menor do que a defendida por
Pérsio. Concomitantemente, seria anunciado que o BC passaria a comprar e vender
dólares em operações futuras a vencer em maio, mas dentro de uma banda
relativamente bem mais larga (entre 0,86 e 0,98) - tal qual Pérsio propusera, e que
apontava na direção da abertura da banda.
Tudo acertado, enfim. A fórmula parecia engenhosa. Só que não funcionou.
A solução levada ao mercado no dia 6 de março não foi fruto, como muito se
especulou, de uma "luta pelo poder" no BC, e sim das dúvidas e divergências sobre
o melhor modo de chegar ao que se desejava:
desvalorizar o real sem pressões inflacionárias insuportáveis e sem riscos
especulativos. Na hora da operação, o anúncio da banda futura aos dealers (os
bancos autorizados a operar no mercado de câmbio em nome do BC) provocou a
pergunta inevitável: a compra de dólares para entrega em maio seria computada
dentro dos limites que havia para os bancos comprarem ativos naquela moeda? Se
excedesse o limite, os bancos tinham de efetuar depósitos não remunerados no BC,
em valor equivalente.
Gustavo, como diretor da área externa do BC, respondeu afirmativamente, deixando
os bancos com um pé atrás, pois os limites vigentes eram tidos como apertados.
Seria necessária uma reunião da diretoria do BC para ampliálos. Uma única
instituição apresentou proposta de compra de dólar futuro ao preço preestabelecido.
Tão logo soube que teria de realizar um depósito no BC sobre aquilo que
ultrapassasse o limite, desfez a oferta.
Na quarta-feira, dia 8, o fracasso da operação tornou-se claro para todos.
Foi um corre-corre. Desde quarta-feira, entrando pela madrugada e durante toda a
quinta- feira, para anunciar na sexta-feira, dia 10 de março,
344
novas bases para o câmbio, só Deus sabe as aflições pelas quais passou a
equipe econômica, e, naturalmente o Presidente e seu chefe da Casa Civil e porta-
voz junto à equipe, Clóvis Carvalho. A cada dia eram bilhões de dólares que
voavam do BC para o exterior ou para as tesourarias dos bancos. No total, mais de
6 bilhões se foram das reservas, trocados por reais, cujo valor futuro, em termos de
dólares naquele instante, passava a ser indeterminado. A sensação é de que
se está num hospital, em plena mesa de operações, e o paciente sofre
de hemorragia em várias artérias, nem se sabe direito quais. Pior, o cirurgião-chefe,
o Presidente, sequer é médico, pois não tem formação de economista e muito
menos experiência de operador em mesa de câmbio. É à sua política, contudo, que
se atribuirão todas as "culpas". Nessa hora é preciso, como diria Lupicínio, ter
"nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração". Isso se aplica aos principais
responsáveis pela condução econômica: presidente do BC, operadores diretos,
ministro da Fazenda, chefe da Casa Civil, Presidente da República. Até mesmo
na ordem inversa, pois o nervosismo dos maiores responsáveis contamina todos.
Antes de qualquer coisa, em tais ocasiões é necessário agir. Ter algum grau de
racionalidade, mas muito de decisão e coragem. É como um toureiro enfrentando um
touro em mau momento. Se piscar, perde. Pode ser que não tenha a força ou o
ângulo de visão para enfiar a espada no ponto certo. Entretanto, é melhor golpear
do que ser golpeado. E o mercado financeiro sente logo se o BC está ou não
conduzindo o processo, como os cavalos que percebem se quem os monta é ou
não cavaleiro. Por isso, Clôvis partiu para a reunião final na noite de quinta-feira
com o ânimo e as instruções claras: chega de discussão teórica; ação, jáí
Gustavo, que nunca estivera realmente de acordo com a mudança introduzida,
saltou à frente: propôs uma banda de variação do câmbio entre um piso de 0,88 e
um teto de 0,93, com uma puxada violenta na taxa de juros (para conter a
especulação dos que se endividavam em reais para comprar dólares, e também
para atrair investidores em dólares). E ainda, por sugestão de José Roberto
Mendonça de Barros, uma oferta de títulos com correção cambial, permitindo que as
empresas se protegessem - fizessem hedge-contra a desvalorização. Com o
anúncio dessas decisões pelo BC na manhã de sexta-feira, os tesoureiros
das multinacionais ficaram mais tranqüilos, os investidores externos da Bolsa se
acalmaram
345
e os especuladores que haviam apostado na alta do dólar perderam. De tudo fui
sendo informado por Pérsio e Malan, desde quinta-feira. Clóvis Carvalho foi o nervo
de aço que na quinta à noite levou a equipe às decisões. Estas, se não eram as dos
nossos sonhos, despertaram-nos de um pesadelo. Na sexta-feira, dia 10, a Bolsa de
São Paulo, que despencara, subiu 22,5%.
Relatei essa crise com algum detalhe porque ela revela o padrão de outras crises.
Há sempre um problema real em jogo: a inconsistência da taxa de câmbio com as
condições gerais da economia. Sobre a mesa, alternativas teóricas, mescladas com
posições pessoais (afetivas, de interesse legítimo, de "poder pessoal", auto-estima,
enfim, decisões de seres humanos). Pode haver erros de dosagem, de percurso e
de implementação. Com alguma freqüência existe um "escândalo", em
geral imaginário, alimentando os boatos, muita especulação e grandes
dúvidas quanto ao acerto das decisões. E sempre o imperativo: decidir é
preciso, caminhar não se sabe se será possível.
Quem decide, nessas horas, decide em boa medida no escuro. Necessita, porém, ao
menos de uma lanterna (e não na popa). Não basta o jogo da força e da psicologia
do poder. É preciso saber, ou pelo menos divisar, qual é o caminho possível. E
sempre existem vários. Em geral os não-percorridos são apresentados ao público
como os melhores, até que sejam experimentados, quando se verá que também
eles apresentam percalços. No fundo o verdadeiro problema é que no sistema no
qual vivemos, o capitalista (e, pelo menos por agora, outro não há), os mercados
não somente existem e têm muita força como eles sempre contêm um ingrediente
de irracionalidade, "o comportamento de manada", que perturba o pressuposto do
cálculo racional. Mais ainda, o sistema inclui também um ingrediente de
especulação inerente e necessário ao seu funcionamento. E durma-se com um
barulho desses!
Foi importante ser firme na greve dos petroleiros
Mas, no início do governo, não foi essa pedra cambial a única em meu caminho. O
Presidente toma posse no dia 1° de janeiro, mas os novos parlamentares só em 15
de fevereiro. Até lá, deputados e senadores não eleitos somam suas frustrações à
ansiedade dos que virão depois, recém-
eleitos, com o ânimo de realizar logo seus sonhos. Neste clima político tive de me
haver com dois desafios imediatos. Um, o de sancionar a anistia votada pelo
Congresso "velho", reunido em convocação extraordinária, para anular uma decisão
da Justiça Eleitoral que cassara o mandato do senador Humberto Lucena. O
senador fora acusado de proceder como era hábito de outros, por sinal autorizado
pelo Regimento Interno do Senado: imprimir na gráfica da Casa calendários com
seu nome e fotografia, material utilizado na propaganda eleitoral. Eu poderia vetar a
lei ou, escondendo-me, deixar que o próprio Congresso a promulgasse. Estava
convencido, porém, como disse na exposição de motivos da sanção, que a decisão
da Justiça Eleitoral abrigava ânimo de política local. Embora eu não tivesse jamais
lançado mão desse tipo de recurso e o julgasse equivocado, ele não estava
capitulado dessa forma no Regimento do Senado nem nos costumes vigentes. Punir
apenas um, quando muitos incorriam na mesma prática, seria discriminatório.
Sancionei a lei de anistia por essas razões. A opinião pública, no entanto, queria
"punir" um poderoso, coisa que se compreende, mas não deve servir de base para
uma decisão presidencial. Não faltou quem interpretasse meu gesto como adesão
ao clientelismo dominante.
Só que eu tinha à frente um desafio mais sério. Dia 18 de janeiro, junto com a anistia
do senador Lucena, o Congresso votou lei elevando de 70 para 100 reais o salário
mínimo - um reajuste de 42,8%. O aumento equivalia a romper o equilíbrio de um
Orçamento já ampliado nos gastos pelo aumento de vencimentos do funcionalismo
concedido pelo governo anterior. Como votar contra uma medida que, na percepção
de senso comum, diminuiria as desigualdades e combateria a pobreza? De minha
parte, vetei a lei com a convicção de que salário aumentado antes da hora, à custa
de déficit, gera inflação que o corrói. Não poderia ser outra a atitude de um
governante que se lançara, com o Plano Real, à busca da estabilidade. Como
sempre, no entanto - e esta tem sido a permanente dor de cabeça e de consciência
de todos os presidentes -, o desgaste é inevitável. Paciência. Quando se tem
convicções, agüentam-se as pedradas, embora sangrando. O veto reforçaria o
ambiente de estabilidade que possibilitaria o aumento real dos salários, como de fato
ocorreu. O aumento real do salário mínimo acabou ficando entre 42% e 44% nos
meus oito anos de governo, dependendo dos índices deflatores tomados em
347
consideração, o que significa uma média anual de 4,7%. Como comparação, saliente-se
que nos três primeiros anos do governo Lula obteve-se um aumento de apenas
11,18%, com média anual de 3,69%.
Sucede, porém, que ademais das dúvidas pessoais e do esforço para manter a
coerência e o rumo, as pressões salariais desencontradas sempre deixam um rastro
político. Barrei em janeiro o salto de 70 para 100 reais no mínimo, mas em 1° de
maio concordei com reajuste nesse exato montante, com o conseqüente aumento
de gastos de toda a Previdência em junho. É verdade que o ministro Serra,
encarregado do Orçamento, resistiu, em função das conseqüências negativas sobre
as contas públicas. Teve apoio do ministro Malan, mas eu, por motivos de equilíbrio
político e, quem sabe, para corrigir mais depressa tão injusta redistribuição de
renda, não ouvi as ponderações dos ministros da área económica. De toda forma,
com o reajuste se dando na data tradicional, e entrando em vigor em junho, o
impacto sobre a Previdência e sobre os municípios, onde centenas de milhares
de servidores recebem o mínimo, foi muito menor do que se não
tivéssemos barrado a pretensão do Congresso em janeiro.
Não terminara a "lua-de-mel" dos cem primeiros dias de governo e tive pela proa
outro problema de monta, uma greve da Petrobras. Enfrentá-la me doeu. Pertenço a
uma família que historicamente lutou pela "emancipação nacional" (era assim que
se dizia na época).
Conseqüentemente, apoiou a campanha "O Petróleo é Nosso", da qual surgiu a
Petrobras. Meu pai foi presidente em São Paulo do Centro de Estudos e Defesa do
Petróleo, principal instrumento de mobilização política em favor da nacionalização
da exploração do petróleo, e eu tesoureiro, conforme narrei na "Introdução" a este
livro. Um tio meu ocupou a presidência nacional desse mesmo Centro. Muito antes,
na casa do marechal Júlio Caetano Horta Barbosa, outro dos líderes da época e
que presidiu o Conselho Nacional do Petróleo, brincando com seus netos, que eram
meus primos, na rua Constante Ramos, em Copacabana, no Rio, via no aparador
da sala de jantar vidrinhos cheios de petróleo extraído no Brasil, e isso nos anos
1940. Como enfrentar psicologicamente uma greve que, por trás da reivindicação
salarial, sustentava de fato o monopólio do petróleo?
Os sindicalistas mantiveram a greve apesar de decretada sua ilegalidade e
agrediram o Tribunal Superior do Trabalho (TST) com manifestações grosseiras.
Daí por diante, houve um confronto direto com a Justiça.
348
O Executivo atender à reivindicação dos petroleiros significaria desmoralizá-la. Na
questão de fundo, embora os petroleiros estivessem em luta aberta contra a
privatização da Petrobras, ela nunca esteve em causa. O que eu viria a propor, com
apoio da diretoria da empresa, foi o que chamei de "flexibilização" do monopólio,
isto é, que outras empresas igualmente pudessem atuar em toda a indústria do
petróleo, concorrendo com a estatal. Por que isso? Porque, além de permitir
maior rapidez na obtenção da meta de auto-suficiência do país em óleo, a Petrobras
passaria a sujeitar-se à concorrência, o que a levaria a atuar mais como empresa e
menos como repartição pública. (Eu reconhecia a eficiência da Petrobras, mas
amarrada às regras do setor público em áreas como as licitações para compra de
material, sem contar o grau de corporativismo de seus funcionários a que já me
referi.)
O resultado dessa política mostrou-se positivo. Em 1995 a Petrobras produzia 700
mil barris de petróleo por dia e em 2002, 1,5 milhão, para uma demanda de 1,7
milhão. E o óleo cru importado custava zero em termos cambiais, pois o país
exportava a gasolina que excedia o consumo doméstico. Não bastassem esses
números, a Petrobras melhorou consideravelmente a performance financeira e a
governança empresarial, com a diminuição, durante meus dois mandatos, da
ingerência política em seus negócios. E ainda passou a pagar royalties aos
municípios afetados pela exploração de petróleo, proporcionando melhores
condições financeiras a muitas prefeituras e alguns governos estaduais.
Nada disso, entretanto, se colocava em jogo na greve. Alguns dirigentes sindicais
confundiam suas visões políticas e interesses corporativos com o interesse nacional:
queriam impedir que um governo eleito democraticamente implantasse as políticas
constantes de seu programa e que julgava adequadas ao país nas novas
circunstâncias. Por isso não me deixei abalar quando cotejado com minhas posturas
históricas.
Continuava, como continuo, achando que a Petrobras deve ser
controlada majoritariamente pelo Estado. Mas ela e o país se beneficiam com
a concorrência e, dada sua força, nenhuma empresa, nacional ou estrangeira,
conseguiu abalar sua posição de liderança no mercado.
O controle da greve não foi fácil. Diante das ameaças ao património da União e da
coação aos empregados que queriam trabalhar, tive que ordenar a presença das
Forças Armadas do lado de fora das refinarias.
349
Dada a insistência dos sindicalistas na continuação de uma greve ilegal que afetava
o abastecimento da população, podendo paralisar a economia, decretei a
intervenção no sindicato dos petroleiros e resisti às tentativas de readmissão dos
líderes demitidos por justa causa pela direção da empresa. Naqueles momentos
delicados, de quase braço de ferro, contei sempre com a ação do ministro
Raimundo Brito. Bem que desejei apoiar uma tentativa de entendimento, de
iniciativa do presidente da CUT, Vicentinho, sugerida com a intermediação do
senador Artur da Távola (PSDB-RJ). Um tal acordo, contudo, causaria mal-estar no
governo e entre os que tinham sido coerentes tratando a greve conforme o decidido
pelo mais alto tribunal trabalhista do país - como ilegal. Decidi não negociar. Assim
agi porque percebi que se não me mantivesse firme o governo teria dificuldades em
discutir e aprovar no Congresso as primeiras propostas de reformas constitucionais
que enviei, relativas, precisamente, à flexibilização dos monopólios.
É o preço que os homens de governo têm que pagar para manter coerência de
propósitos e consistência no percurso. Não hesitei. Posso ter errado, exagerado ou
ficado aquém do necessário. Só não fui pusilânime ou arbitrário, nem destoei do
que havia pregado nas campanhas eleitorais.
Ainda dúvidas sobre o câmbio e um impasse com a Argentina
Logo depois dos cem dias da "lua-de-mel" que não existiu, em maio de 1995
tornaram-se crescentes os sinais de inquietação na área bancária.
Nós nos havíamos preparado, como se viu no Capítulo 3, sobre o Real, para
enfrentar a crise de alguns bancos públicos. Os bancos do Estado de São Paulo
(Banespa) e do Estado do Rio de Janeiro (Banerj)
encontravam-se sob intervenção do BC. Eu chamara a atenção de Mário Covas,
ainda antes do primeiro turno das eleições de 1994 - antes, portanto, de ele ser
eleito governador de São Paulo -, para a necessidade de indicar pessoas de sua
confiança para tratar da crise do Banespa junto ao Ministério da Fazenda. A
intervenção acabou ocorrendo na véspera da sua posse como governador.
Inconformado com a medida, ele levou muito tempo tentando reaver o banco.
O BB fora alertado desde o governo Itamar Franco para os problemas do floating,
isto é, de viver de empréstimos e lucros feitos na esteira da
350
espuma inflacionária. Nada disso impediu que por duas vezes em meu governo o
Tesouro tivesse que socorrê-lo com vultosas quantias para evitar a falência, tal o
nível de inadimplência dos empréstimos concedidos (principalmente na área agrária
e para quem ou era político ou tinha "padrinhos" poderosos).
Não sabíamos o grau de fragilidade do setor bancário privado. O primeiro banco de
porte a sofrer com as desconfianças do mercado foi o Económico, o que produziu
não apenas um tremor na área financeira, mas um terremoto político, como
veremos à frente.
Pouco antes da crise do Económico eclodir, Pérsio Árida começou a falar em se
demitir. Ele não se sentia confortável presidindo o BC sem poder pôr em prática
suas idéias. O BC funciona com uma direção colegiada.
Sempre havia a discordância de Pérsio com Gustavo Franco, firme defensor de um
câmbio relativamente apreciado e juros mais altos, e com Chico Lopes, defensor de
uma política monetária apertada, com juros altos e crédito limitado. Pérsio queria
bandas de flutuação menores e desvalorizações mais freqüentes, sem taxas de
juros tão elevadas. No dia 24 de maio de 1995, reafirmou que iria embora. Instei-o
para que ficasse, pelo menos como meu assessor para o programa de estabilização.
Ele concordou. Pedimos que não deixasse o posto no meio da greve
dos petroleiros. Àquela altura, em seguidas reuniões com toda a equipe económica,
especialmente com José Roberto Mendonça de Barros, Serra, ministro do
Planejamento, e Chico Lopes, parecia que se caminhava na direção de uma
proposta cambial à chilena, com uma banda que deslizasse mais depressa.
A instâncias de Pedro Malan, que chamava a atenção para o lançamento de um
empréstimo em bónus no Japão, denominado "samurai", conseguimos que Pérsio
adiasse a demissão para a quarta-feira seguinte, 31 de maio. Eu já escolhera o
novo presidente do BC (seria Gustavo Loyola), embora a decisão se mantivesse em
sigilo. Gustavo Franco sinalizara a vontade de ocupar o posto, mas àquela altura
preferi alguém mais experiente. Eu conhecera Loyola quando presidente do BC no
governo Itamar, antes de Ximenes ocupar essa posição, e achava que poderia roer
o osso duro da crise bancária que se desenhava no horizonte. As discussões sobre
o câmbio continuavam no mesmo impasse de março. Antes da saída de Pérsio, em
uma tentativa de acomodação, Gustavo Franco concordou em subir o piso da
banda para 92 centavos de real por dólar e, com o apoio
351
de Malan, reafirmou que para deslizar o câmbio com mais rapidez seria preciso
olhar o conjunto da política económica. Quase todos, formalmente, pareciam
convergir para o "modelo chileno", que me satisfazia. Serra duvidava que os
colegas viessem afinal a implementar proposta semelhante. Gustavo e Malan
argumentavam sempre sobre a necessidade de primeiro aprofundar a desindexação.
E ainda por cima precisávamos colocar um freio nas importações de automóveis. O
governo anterior se esquecera, quando assinou o Acordo de Ouro Preto sobre o
Mercosul, de depositar junto à OMC o documento que explicitava as regras vigentes
em matéria automobilística, o que possibilitaria manter por certo tempo incentivos
especiais à produção local de autos. A Argentina, no entanto, fez o dever de casa.
Em conseqüência, recebia investimentos crescentes, enquanto tarifas reduzidas
levavam ao crescimento das nossas importações de automóveis.
José Serra e Dorothea Werneck, ministra da Indústria e Comércio, um tanto ao
arrepio dos acordos existentes, mas com a força da necessidade, queriam rever a
questão. Nova tensão, desta vez entre Serra e Dorothea, de um lado, e de outro
Malan e o chanceler Lampreia. Nos meses seguintes, elevaríamos as tarifas de
importação e criaríamos um novo regime de incentivos aos investimentos na
indústria automobilística local, à custa, porém, de muita briga e muito trabalho
diplomático.
Senti que era o caso de negociar diretamente com o Presidente da Argentina,
Carlos Menem, numa reunião num hotel em São Paulo.
Foi uma noite tensa. As duas delegações se entreolhavam com pouca vontade de
chegar a um compromisso. Mesmo Menem, em geral afável e até carinhoso,
mostrava-se lacônico e de rosto fechado. Chamei-o a um canto, propus uma
flexibilização recíproca e redigi, em castelhano e à mão, termos de um acordo que
entendia possível. Ele por fim concordou.
Nosso embaixador na OMC, Celso Lafer, conseguiu sustentar a discussão
em Genebra, com o argumento de que sofríamos de grande desajuste do balanço
de pagamentos, que nos obrigava a tomar medidas de proteção (embora o pior
desse desajuste já tivesse ficado para trás).
Na quinta-feira, 25 de maio, para emitir um sinal firme de minha disposição de baixar
os juros, anunciei que, nos empréstimos agrícolas com recursos do governo, iria
fixá-los em 16% ao ano, sem correção monetária. Isso não agradou à equipe
económica - preocupada com o custo da
352
medida para o Tesouro. Não consultei a equipe previamente: presentes ao anúncio,
eles souberam ali mesmo e "engoliram" a decisão. Ao mesmo tempo,
começávamos a ganhar no Congresso as votações para alterar a Constituição,
modernizando-a no aspecto económico. Parecia que o horizonte se desanuviaria. A
própria greve dos petroleiros, depois da tentativa de conciliação pelo presidente da
CUT e da presença, sem incidentes, das Forças Armadas, dava sinais de refluir. No
dia 2 de junho, acabou. Minha popularidade e a do Plano Real, a despeito de tudo,
permaneciam em patamares muito satisfatórios.2
No entretempo, avançávamos com as reformas constitucionais, como se verá no
Capítulo 7. Logo em fevereiro, aprovamos a Lei de Concessão de Serviços
Públicos,3 com base em projeto que eu próprio apresentara como senador em
1991. Por falta dessa lei, os investimentos em energia elétrica tinham praticamente
cessado nos anos anteriores. A partir de fins de abril, o Congresso começou a
aprovar as emendas que acabavam ou flexibilizavam monopólios e punham fim à
discriminação constitucional contra a empresa brasileira de capital estrangeiro. Se
as reformas da ordem económica caminhavam bem, as dificuldades para caminhar
nas reformas fiscal, tributária, previdenciária e administrativa começavam a se
tornar claras.
Crises bancárias e tiroteios políticos
Até que... Enfim, até que, de fato, os bancos começaram a pipocar.
Falava-se do Nacional, mas entre os maiores bancos quem primeiro sofreu um abalo
forte foi o Económico. Sobre o Nacional, aos poucos o BC constatou que havia
problemas, mas também potencial comprador: o Banco de Boston (anos depois
rebatizado como BankBoston). O Nacional colocava para mim uma questão
delicada, pois tinha minha nora Ana Lúcia entre os acionistas controladores. A
exploração política de qualquer tentativa de solução seria inevitável. Mas isso não
nos desobrigava de atuar e nos
Nota: 2 Pesquisa do Instituto Datafolha divulgada a 2/7/1995 pela Folha de S.
Paulo indicava que 40% dos pesquisados consideravam o governo "ótimo/bom", e
69% apoiavam o Plano Real.
3 Leino8.987.de 13/2/1997. Fim da nota.
353
impunha cuidados redobrados para evitar quaisquer facilidades indevidas,
como se verá.
O Económico estourou como uma bomba de grande alcance. Em meados de julho
era patente a situação insustentável do banco. Nesse meio tempo, Pérsio
continuava meu assessor (permaneceu até fins de julho) e discutíamos, sem
avançar, o que fazer com o câmbio, sempre os mesmos personagens e as mesmas
opções ou falta delas.
A complexidade do quadro levou a questão do Econômico a tomar vulto maior do
que a de uma intervenção em mais um banco. Não somente tinha porte
considerável, como se tratava de um banco regional e da Bahia, cujos dirigentes
políticos eram muito influentes. Havia o senador António Carlos Magalhães e seu
filho, o presidente da Câmara, Luís Eduardo Magalhães, sem falar no governador
Paulo Souto e em toda a bancada baiana, unida e poderosa. O episódio merece
consideração especial porque revela as vinculações profundas entre o jogo político
e as decisões económicas, nas circunstâncias brasileiras.
Desde meados de julho, os rumores sobre dificuldades no Banco Económico vinham
crescendo. A revista Veja andava no encalço do assunto. Eu visitara a Venezuela e,
nas conversas com o Presidente Rafael Caldera, impactou-me a descrição da crise
bancária vivida pelo país no ano anterior. A quebra de um banco desatara uma
formidável reação em cadeia. Na ausência de providências enérgicas para deter o
problema no nascedouro, a Venezuela mergulhara em recessão e estava a braços
com a necessidade de capitalização do sistema financeiro privado com
dinheiro público, em montante que devorava grande parte dos recursos do governo.
Posteriormente, o BID estimaria em espantosos 13% do PIB o custo fiscal daquele
programa.
No dia 31 de julho, em Canoas (RS), tive uma conversa ocasional com um grande
empresário da Bahia razoavelmente a par da situação do Económico. Disse-lhe que
o governo não pressionaria ninguém para "salvar" o banco, nem estimularia a sua
compra na bacia das almas com dinheiro público. O comprador teria de aportar
recursos e, mais ainda, era indispensável afastar os administradores e os
controladores do banco e substituí-los por administradores profissionais. Dei conta
da conversa ao ministro da Fazenda e ao presidente do BC e reafirmei os dois
pontos: não permitiríamos que o controle do património continuasse nas mãos dos
354
que levaram o banco ao desastre e nos guiaríamos única e exclusivamente pela
preocupação de manter o sistema financeiro estável, sem favorecer quem quer que
fosse, vendedores ou compradores. Outra não era a atitude de meus interlocutores
no governo, e assim pensava também o empresário com quem eu conversara.
No dia 10 de agosto, após reunião com a equipe económica, alertaram-me de que a
situação do Económico estava "por um triz". Dito e feito. No dia seguinte, Malan me
informou que um diretor do Bamerindus, sondado para saber se haveria interesse
na compra do Económico, deu resposta negativa. O ministro da Fazenda acreditava
que o governo deveria partir para uma intervenção. No mesmo dia, sexta-feira, 11
de agosto, eu despertara com uma chamada telefónica de António Carlos
Magalhães, muito exaltado, embora educado, dizendo ser contra uma intervenção
no Econômico e pedindo que, em qualquer caso, ele não tivesse tratamento distinto
do que merecia o Banespa. O Banespa sofrera uma intervenção sob o Regime de
Administração Especial Temporária (Raet) do BC, que garantia os depósitos
bancários e presumia, por ser temporária, que o banco não seria fechado. Retruquei
que não apenas ele, como senador pela Bahia, mas eu próprio, como Presidente,
tinha o maior interesse em não prejudicar os depositantes e que não pensávamos
em liquidação do banco baiano.
Essa frase, de boa-fé, criou mais tarde grande confusão. Malan me esclareceu,
depois da conversa telefónica com António Carlos, que existiam razões técnicas
para não aplicar o Raet ao Banco Económico; em última análise, a alternativa
levaria a comprometer recursos públicos, sem perspectiva de retorno, numa
instituição privada levada àquela situação por má gestão de seus controladores. A
solução seria uma intervenção que poderia marchar para a liquidação. Estava
armado o imbróglio. António Carlos telefonou para Malan, confiado no que ouvira de
mim, e recebeu uma resposta diferente do ministro da Fazenda. Mandei chamar Luís
Eduardo. Expliquei a ele meu equívoco. Ato contínuo, liguei para Gustavo Loyola e
pedi que transmitisse a Luís Eduardo o que ocorreria quanto às garantias que
seriam dadas aos depositantes, dentro das restrições dos regulamentos, que não
permitiam "salvar" todos os depositantes com dinheiro do BC.
Luís Eduardo me disse, repetindo expressão que seu pai usara:
- Isso vai ser uma tempestade na Bahia.
355
- Sim - respondi -, mas o que você quer que eu faça, privatize o Meridional e
estatize o Económico?
O Meridional era um banco federal gaúcho cuja privatização o PFL defendia
reiteradamente, com apoio da equipe económica. Luís Eduardo percebeu a
incoerência, mas me pediu que ouvisse a opinião do economista e banqueiro Daniel
Dantas, que tinha algumas sugestões.
Nesse meio tempo, telefonemas incessantes do senador António Carlos e dos
políticos preocupados com a situação. Tive uma conversa com Daniel Dantas. Ele
acreditava ser possível aplicar o Raet, embora admitindo que o Tesouro pagaria o
preço do salvamento. Mencionou também a possibilidade de o governo da Bahia
desapropriar o banco, o que talvez permitisse aplicar o Raet, pois nesse caso se
trataria de um banco público. Pedi que Loyola falasse com ele. António Carlos me
telefonou e disse com
franqueza:
- Presidente, para nós seria melhor ganhar tempo até o domingo
[o que equivaleria a três dias].
Transmiti a sugestão a Loyola, que pediu para refletir. Uma hora depois me ligou
dizendo:
- Presidente, não dá para esperar. A situação do banco é delicada. Só há uma
solução técnica: a intervenção.
Ou seja, na prática, uma pré-liquidação.
Insisti em saber se existia outra possibilidade, e ele foi franco:
- Se a posição do BC causar incómodo político ao senhor, nós não
seremos obstáculo.
Era só o que faltava! Perder o presidente do BC numa situação daquelas.
Fez-se a intervenção naquele dia mesmo.
À noite liguei para António Carlos, respondendo aos inúmeros chamados que me
dirigira durante a tarde. Muito tenso, ouviu minhas explicações, reafirmou que eu lhe
informara de modo diferente como seria a intervenção, mas que respeitava minha
decisão e divulgaria uma nota a respeito. Coisa que fez, em termos adequados.
Eu sabia que estávamos apenas no começo de um enredo complicado. No fim de
semana, domingo, creio, repassei com Malan todas as questões. Recebi nova
chamada telefónica de Luís Eduardo dizendo que a Bahia se pusera em pé de
guerra. O tiroteio político incluía propostas de CPI sobre o BC e um exame do fluxo
dos empréstimos interbancários, pois suspeitavam
356
que a Caixa Económica, por baixo do pano, vinha sustentando
alguns bancos. Ou seja, poderiam alastrar o fogo por todo o sistema financeiro.
Ficamos de divulgar uma nota do BC dizendo que prosseguiríamos as negociações
para encontrar um comprador para o Econômico e que o restante do sistema
financeiro mantinha-se saudável.
Os baianos começaram a se articular com o governador Miguel Arraes, pois o
Mercantil de Pernambuco também sofrera intervenção, e a coisa tomava proporções
de uma luta política do Nordeste, espoliado, contra São Paulo, beneficiado (porque
o Banespa não tinha sido liquidado).
Ironicamente, ao mesmo tempo, em São Paulo o governador Covas esbravejava por
achar injusta a intervenção no Banespa.
Na segunda-feira, 14 de agosto, o governo constatou que estava
havendo transferência de recursos de alguns bancos privados nacionais para
os bancos públicos e para o exterior. Espalhou-se um boato de que o BC não teria
honrado uma dívida de 20 milhões de dólares do Económico fora do país. Enfim, o
terrorismo dos dirigentes baianos produzia efeitos.
Depois de muita conversa decidimos que talvez fosse melhor reatar as negociações
para ver se seria possível, como proposto, que o governo da Bahia entrasse em
campo, levando os grandes depositantes baianos a ajudarem a manter um banco
regional e quem sabe, nessas condições, coubesse tecnicamente a aplicação do
Raet. No mesmo dia, ao final da manhã, surgiram novos rumores: o senador
António Carlos teria dado um ultimato (que não sei no que poderia consistir) para
que se resolvesse a situação do Económico até as 14 horas. Peguei o telefone
pessoalmente e liguei para Luís Eduardo em tom de desabafo:
- Luís, desse jeito nada dá certo.
E o deputado, referindo-se à informação sobre o ultimato do pai:
- Mas, Presidente, não é verdade. Não houve declaração nenhuma nesse sentido.
Mais tarde o próprio António Carlos falou com Ana Tavares, desmentindo a pretensa
insolência.
Telefonei para o governador Paulo Souto para dizer-lhe que não bastava o governo
estadual desapropriar o banco. Teria de colocar dinheiro e assegurar depósitos do
setor privado, O governador me disse que o Banco do Estado da Bahia (Baneb) não
teria recursos para efetuar a compra.
Lembrei que se ele desapropriasse o banco mesmo por 1 real estaria
357
fazendo péssimo negócio para o Tesouro baiano, porque assumiria uma pesadíssima
dívida do Económico, cerca de 2 bilhões de reais, e que talvez a transação, ainda
por cima, lhe custasse no futuro uma ação popular na Justiça. Ainda assim Souto
me informou que o governo federal precisaria assinar um decreto para que a
desapropriação pudesse avançar.
Encarreguei o secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, de verificar com o
advogado- geral da União, Geraldo Quintão, o procedimento jurídico pertinente.
Enquanto estávamos às voltas com esse emaranhado, recebi nova
ligação telefónica de ACM dizendo que queria vir com a bancada da Bahia
ao Planalto para agradecer o esforço que estava sendo feito e, com o gesto,
desfazer qualquer mal-entendido em relação a mim e ao BC.
Marcamos o encontro para as 15 horas. De fato, à hora aprazada entram António
Carlos e a bancada da Bahia. Recebi-os no salão que fica ao lado do gabinete
presidencial, todos nós de pé. Eu desejava o testemunho da imprensa, mas, para
não repetir mecanicamente o que fizera em outras circunstâncias o Presidente
Itamar Franco ao receber o senador para denúncias, concordei, equivocadamente,
em não ter a presença de jornalistas. Não obstante, o microfone do qual
falaríamos, como é habitual quando a audiência se abre para a mídia,
permaneceu inadvertidamente ligado. Esse microfone, além de retransmitir
os discursos à sala de imprensa, era conectado a um gravador, para posterior
divulgação aos repórteres ausentes das cerimónias daquele tipo. Dessa feita, como
se cancelou a presença da mídia à última hora, sobraram as gravações.
António Carlos agradeceu em nome da Bahia, disse que nada das insinuações
divulgadas era certo e que esperava a solução do problema, com a desapropriação
do Económico pelo governo da Bahia e posterior reabertura. Ao agradecer, reiterei
algo do que dissera ao governador Paulo Souto e mencionei ainda as dúvidas
jurídicas que persistiam. Notei que o senador não gostou da referência. Por isso, à
saída, voltei a tocar no assunto a sós com ele, que retrucou:
- Mas o BC sabia da situação e nas conversas que tivemos não levantou dúvida
jurídica alguma.
Tornei a me certificar com o presidente do BC sobre suas dúvidas e ele me alertou
que, dependendo da forma da desapropriação, o proprietário
358
do banco poderia alegar coação na Justiça e reaver o controle. Diante disso, me
reuni novamente com alguns responsáveis pela área econômica e decidimos que o
BC divulgaria nova nota, colocando no papel, preto no branco, as condições
necessárias para a reabertura do Econômico. E ressaltaria principalmente um
ponto: a União não promoveria nenhum tipo de "socorro" financeiro ao banco. Ato
contínuo, o porta-voz do governo, Sérgio Amaral, leu a nota para a mídia.
Terminada a elaboração da nota, Gustavo Loyola, ao se despedir, disse que
precisava ir depressa ao BC porque havia nova crise no ar:
insatisfação com o que era percebido como "vacilações" do Presidente por pressão
política. Os jovens dirigentes do BC eram avessos a esse tipo de pressão. Naquele
dia, o Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, realizava visita oficial ao
Brasil. À noite, compareci ao jantar de gala no Itamaraty. Na volta ao Alvorada, lá
pela meia-noite, Pedro Malan, de regresso de uma viagem de trabalho a Buenos
Aires, me chama ao telefone: estava no BC e sentia, compartilhando, mal-estar
no ambiente diante dos últimos acontecimentos.
Chamei todos ao Alvorada para uma reunião que terminou às 2h30 da madrugada.
Rememorei etapa por etapa o que se passara, sempre com o testemunho correto de
Loyola, e mostrei o descabido das apreensões. O diretor de Fiscalização, Cláudio
Mauch, declarou que não havia como salvar o Económico. Retruquei que "se é
assim, perdemos tempo", pois eu estava seguro até então de que a discussão era
entre aplicar o Raet ou proceder a outro tipo de intervenção, ambas permitindo,
porém, uma renegociação para posterior reabertura do banca "O governo", disse
eu, "não cedeu a pressões políticas." Apenas tentamos evitar, sem prejuízo para o
Tesouro, a quebra de um importante banco regional.
A razão para toda a atmosfera negativa era uma só: a ida de ACM, a pé e à frente
da bancada baiana, da sede do Congresso ao Planalto. A cena, fotografada e
televisionada por toda a imprensa, deu lugar à versão de que teriam ido ao Palácio
para "exigir" que o Presidente da República cedesse e anulasse a intervenção no
Banco Econômico. Além de tudo, a diretoria do BC estava estomagada com as
contínuas ameaças de ACM, falando sempre em "dossiês" contra eles ou a
instituição. Percebi que, embora os diretores do BC acreditassem na sinceridade do
que eu afirmava, queriam algo que mostrasse mais claramente a nossa posição.
Disse-lhes:
359
- Se vocês quiserem, processem António Carlos pelos dossiês contra vocês que ele
vem proclamando ter. O governo vai apoiá-los e não vai exonerar ninguém. Mas,
por favor, não pratiquem um desatino pedindo
demissão.
Mostrei a eles que uma demissão coletiva causaria um dano enorme ao governo e
ao país, e, adicionalmente, daria "vitória" a ACM.
Disse-lhes ainda:
- Amanhã, quarta-feira [na verdade já estávamos na madrugada de quarta-feira], a
imprensa vai cair de pau em mim. Depois será a vez do Congresso, partindo do
pressuposto de que "cedi" aos políticos baianos... Mas pouco a pouco as coisas
serão repostas em seus lugares e o importante é evitar uma tremenda crise
financeira.
A quarta-feira toda se consumiu em telefonemas e reuniões, pois a repercussão
negativa do "ultimato" conseguira transformar um sério problema bancário em uma
pugna ACM versus FHC. A nota lida pelo portavoz desapareceu no fogo de artifício
das manchetes e no verbo ácido das oposições. Brizola, que ficara em quinto lugar
na eleição presidencial de 1994, com pequena votação, mas ainda dirigia o
PDT, disse que eu já era um cadáver ambulante. Lula classificou-me de "frouxo".
Até Pedro Simon, formalmente governista, sentenciou: "O governo acabou." Depois,
conhecedor dos detalhes, se desdisse. Chamei uma reunião de líderes para explicar
tintim por tintim o que ocorrera.
Isso após ouvir do senador Jader Barbalho, líder do PMDB, que o governo (quer
dizer, o Presidente) fora desautorizado-"o pior que poderia acontecer a um
governo", disse. Após minhas explicações, porém, o mesmo Jader, seguido pelo
líder do governo, Élcio Álvares, fez a melhor defesa de nossa postura no Senado.
Em seu discurso, aproveitou para criticar duramente ACM, antecipando o choque
que eclodiria entre os dois, anos mais tarde.
Também na Câmara os deputados governistas foram à forra: exigiram que António
Carlos apresentasse formalmente, e embasadas em dados, as denúncias com que
ameaçava o BC, reafirmaram que o governo não forneceria dinheiro público para
salvar o Econômico, e assim por diante. Recuperamos o fôlego, não sem perda de
tempo. Concedi entrevistas aos jornais, às revistas e às emissoras de TV e rádio
para desfazer uma jogada de marketing que talvez não tivesse sido premeditada
pelo próprio António Carlos. As circunstâncias favoreceram as interpretações pelas
quais
360
um Presidente é "jogado às cordas" pelo ímpeto de um líder audacioso. O próprio
senador provavelmente agiu de boa-fé quando se aferrou à primeira conversa
telefónica que tivéramos, na qual me equivoquei sobre as condições da ação do
governo no Econômico, e talvez não tenha entendido todas as dificuldades legais
para levar adiante a solução que preconizava, até porque isso de the due legal
process não é muito afim com as chefias tradicionais. Mas, quando começou, um
tanto gabola, a dar entrevistas, mandei entregar a Luís Eduardo a gravação de
nossa conversa com a bancada baiana, sugerindo que era melhor ACM ter
mais cuidado com o que andava dizendo. Dali em diante, ele foi cuidadoso.
O que ocorreu com o Económico depois é história sabida. Tentativa malsucedida de
compra por um concorrente (além do Bamerindus, sondamos o Bradesco, que não
se interessou) e, finalmente, após ser adquirido por um banco menor, o Excel,
liquidação para ressarcir os prejuízos aos depositantes e ao BC. O processo se
espichou pelo ano de 1995 adentro, consumindo nossa energia. A liquidação viria
em 1996. No meiotempo, conversas infindáveis com a área econômica e com
dirigentes do PFL preocupados com as conseqüências políticas dos
acontecimentos bancários. No rastro da intervenção no Económico, outros
bancos começaram a balançar. Não se requeria muita argúcia para adivinhar o que
sucederia dali em diante.
No retrato que tracei, vê-se não somente o dia-a-dia de um Presidente e seus
principais auxiliares nos momentos de crise, mas, sobretudo, como a pressão
política interfere nas decisões e de que modo tudo isso se imbrica na mídia e na luta
do Presidente pela legitimação por meio do convencimento, seja racional, seja
emocional. Em tais condições, promover o saneamento das finanças deixa de ser
uma questão técnica para ser eminentemente política. Da grande política: as
conseqüências das decisões podem afetar o equilíbrio entre os partidos no
Congresso. De política interna do governo: é preciso convencer os próprios
auxiliares no curso da ação para não perdê-los e não jogar lenha na fogueira
dos que são contrários à ação do Presidente. E do posicionamento geral
da Presidência em meio ao novelo de avaliações.
Volta-se por aí à tecla antiga: a versão é o fato. Uma imagem bem jogada na TV,
como a "marcha sobre o Planalto" da bancada baiana, põe em xeque uma política
de convicções e responsabilidade.
361
Refazer a tessitura da razão custa um trabalho tão penoso quanto essencial. Tanto mais que se
tratava, de certa maneira, de um embate entre dois mundos:
um, do mandonismo local e da fidelidade à região, e outro, baseado em uma
concepção racional-legal, tendo em vista os interesses gerais do país. Em certos
momentos os lances podem assumir uma conotação dramática. Quando, por
exemplo, Luís Eduardo, convencido da necessidade da ação saneadora, teve de
ceder aos imperativos das circunstâncias político-emocionais. Situação em que o vi
tantas vezes envolvido, sempre procurando, ao servir à terra natal, não desservir ao
país, tais eram suas virtudes pessoais.
Nessas horas difíceis, o Presidente precisa ter o descortino para visualizar não só o
que fazer, mas quando fazer. Ser capaz de avançar e de retroceder. Ter, enfim, a
capacidade de ajuizar. Não existe regra que prescreva o certo e o errado. Há
apostas que podem falhar e devem ser refeitas. O que não se deve é perder a visão
de conjunto e o sentido de oportunidade. No meio do bombardeio contra mim,
aproveitei um encontro no Palácio do Planalto naquela mesma semana para,
ao apresentar um programa de saneamento básico conduzido pelo ministro José
Serra, discorrer sobre o que significava ser homem de Estado e o que é um político
tradicional. Estavam presentes alguns governadores, entre eles os da Bahia, Paulo
Souto, e de Pernambuco, Miguel Arraes.
Este, antigo amigo dos tempos de exílio e que sempre teve sentido da política
maior, saudou-me em nome dos colegas e mostrou o quanto vínhamos atuando nas
áreas sociais. Aproveitei a deixa para, sem citar António Carlos, estabelecer o
contraste.
No dia seguinte, a mídia e o Congresso registraram o contraponto. Sem que isso,
naturalmente, abalasse a força e o prestígio devidos, na ótica tradicional, ao.
combativo e ardiloso senador baiano. Quantas vezes, ao longo de meus dois
mandatos, em circunstâncias variadas, se deu essa mesma polarização. Quanto
tempo e esforço perdemos com ela. Foi possível, todavia, com paciência e
tolerância, manter os apoios necessários para as transformações a que me propus.
Até que as tensões políticas tornaram impossível a "ternura" (que tinha sido
recíproca) e eu, para dar um basta às bazófias, tive que romper com o
senador, demitindo e perdendo colaboradores competentes próximos a ele.
362
O Proer, o Nacional e o que não fizemos direito: explicar
Se o caso Económico significou grande gasto de energia e preocupação, susto
maior com o sistema bancário aconteceu quando se tornou claro que o Nacional
abrigava um "furo" próximo a 4 bilhões de reais. Fomos nos apercebendo da
situação aos poucos. Ainda no quadro da discussão sobre alternativas para resolver
a crise do Econômico, viu-se a gravidade que significava o país não dispor de um
sistema de seguros para os depositantes.
Não existiam compradores nacionais para todos os bancos periclitantes.
Para evitar a liquidação e as perdas decorrentes, Pedro Malan sugeriu que eu
delegasse ao Conselho Monetário Nacional a faculdade que a Constituição me
atribuía de autorizar a entrada de bancos estrangeiros no mercado brasileiro.
Legalmente, porém, a delegação não era possível.
Posteriormente eu mesmo autorizei, amparado em dispositivo da Constituição, o
banco britânico HSBC a ter uma participação pequena no Bamerindus para tentar
evitar, o que afinal se revelou inviável, que o banco tivesse dificuldades maiores.
Nossas digressões continuaram. Até que, após uma reunião com os dirigentes da
área económica para discutir uma proposta do governador Covas de trocar dívida
por patrimônio e assim suspender a intervenção no Banespa, Loyola e Cláudio
Mauch, junto com Malan, me pediram uma reunião reservada.
Quando ministros pedem reunião reservada, sobretudo o ministro da Fazenda
acompanhado por diretores do BC, já se sabe que alguma bomba está por estourar.
Esse tipo de reunião ou se realizava na biblioteca do Palácio da Alvorada, em geral
à noite, para despistar a imprensa, ou na sala contígua ao gabinete presidencial, no
Planalto. Uma pequena sala dotada de banheiro que durante algum tempo, no
passado, contivera uma cama (resquício dos hábitos militares de estar o
comandante sempre preparado para eventualidades que o levem a dormir no
quartel), substituída por um sofá, uma pequena geladeira, TV e duas cadeiras.
A salinha era o local preferido pelo Presidente Itamar para conversar com seus
interlocutores mais íntimos. Eu raramente a usava.
Dessa feita, diante do ar misterioso dos que me pediram a reunião, deixamos o
gabinete presidencial, no qual estávamos sozinhos, e fomos para a sala reservada.
A informação não chegou a me surpreender:
tratava-se do
363
"furo" no caixa do Nacional. Que algo estranho havia, já imaginávamos. Que o
"furo" fosse tão grande, acho que nem os proprietários, a família Magalhães Pinto,
sabiam. O susto foi enorme e a antecipação de crise maior ainda, pois, dadas
minhas relações familiares, era fatal a exploração política, por mais que
fôssemos rigorosos e corretos. Os participantes da reunião são testemunhas
das determinações que transmiti: impessoalidade e preservação do
interesse público acima de qualquer outra consideração. É de justiça dizer que
não aconteceu qualquer pressão familiar para que agíssemos de modo diferente.
Houve, naturalmente, as apreensões de quem percebia que as coisas evoluíam mal
e que eventualmente tudo poderia explodir.
Houve tentativas de compra do Nacional pelo Banco de Boston. No entanto, as
negociações não prosseguiram satisfatoriamente porque esbarraram em exigências
da legislação bancária americana para autorizar a operação.
O governo logo recebeu sinais de que o Unibanco também se interessava pelo
Nacional. No fim de outubro chegou-me uma informação direta de que isso era
certo. Minha posição foi clara: "Até prefiro que o comprador seja um banco nacional,
mas, no caso, deve prevalecer a melhor proposta para os vendedores e para o
Tesouro."
Por que o Tesouro? Porque àquela altura o BC começava a delinear com
o Ministério da Fazenda o que veio a ser depois o Programa de Estímulo
à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer),4 ou
seja, um instrumento para amparar juridicamente intervenções bancárias que não
constituíssem meras "operações de salvamento" de bancos privados à custa do
dinheiro do Erário e que visava, também, garantir o equilíbrio e a solidez do
sistema financeiro. Finalmente, e não menos importante, instituía a até
então inexistente garantia, dentro de certos limites, do dinheiro dos depositantes.
Não se aceitaria a permanência dos antigos proprietários no controle dos bancos
objeto de intervenção e muito menos a pura e simples transferência de recursos do
BC para viabilizar as compras por particulares, como procederam alguns governos
anteriores, principalmente durante o regime militar.
Nota: 4 O programa foi instituído pela MP n° 1.179, de 3/11/1995, que passou por várias
reedições. Três anos depois, convertida pelo Congresso, tornou-se a Lei n° 9.710,
de 19/11/1998. Fim da nota.
364
Tal discussão se estendeu até o começo de novembro. A essa altura, as revistas
semanais farejavam confusão, arrastando o Nacional e, em seguida, o Bamerindus.
Sob pressão de uma crise que poderia ser catastrófica, a Fazenda me apresentou o
projeto do Proer, que deu origem à MP n° 1.179 e à Resolução do BC n° 2.208,
ambas de 3 de novembro de 1995. A MP permitia a separação dos bancos em crise
em duas partes, o "banco bom" que seria vendido no mercado, e o "banco
mau", cujas contas (débitos) ficariam penduradas no BC, com as garantias que os
acionistas pudessem oferecer, e desde logo as pessoais. Quer dizer, os bens dos
acionistas, inclusive seus depósitos bancários particulares, com a única exceção da
casa própria (que a Constituição veda penhorar), se tornariam indisponíveis para
garantir o ressarcimento das dívidas com o BC.
Mais ainda: como havia a questão familiar e para que dúvidas não houvesse sobre a
lisura dos procedimentos, o BC baixou circular especificando que o dispositivo se
aplicava não só aos administradores dos bancos em dificuldade, mas a todos os
acionistas que formassem parte do bloco de controle. Desse modo, no dia em que o
BC decretou a intervenção no Nacional, a pedido, aliás, do próprio Marcos
Magalhães Pinto, seu presidente, ficaram bloqueadas as contas e os bens de toda
a família proprietária, que, naturalmente, não foi avisada de que as coisas se
passariam dessa maneira. E o BC repetiria idêntico procedimento em 1997 para o
caso do Bamerindus, cujo principal controlador, José Eduardo Andrade Vieira, tinha
sido não só meu ministro da Agricultura como um entusiasta apoiador de minha
campanha em 1994, como se viu no Capítulo 3.
Tomaram-se todos os cuidados com o interesse público, sem levar em conta o
impacto que as medidas necessárias pudessem ter nos sentimentos das pessoas,
inclusive nos meus. A despeito disso, o Proer foi criticado no Congresso e na mídia
como uma "maracutaia" para salvar com dinheiro público banqueiros falidos,
deixando-se de levar em conta que os Magalhães Pinto e Andrade Vieira, só para
mencionar os dois casos mais graves ocorridos em meu governo, tiveram os bancos
que controlavam liquidados extrajudicialmente - ou seja, ficaram sem os bancos.
Na verdade, as avaliações internacionais de entidades respeitáveis são unânimes
em reconhecer que o Proer se constituiu em uma operação extremamente bem-
sucedida e relativamente pouco custosa. Em países como Argentina, Chile e
México, além da Venezuela que mencionei há pouco,
365
o custo do saneamento bancário superou 10% do PIB! Em nosso país, as
estimativas mais recentes até o momento em que escrevi este livro apontavam para
um custo inferior a 3%. É claro que não se trata de valor desprezível, pelo contrário.
Quando, porém, se cotejam essas estimativas com os gigantescos prejuízos em
matéria de renda e emprego e mesmo a tragédia social decorrentes de uma
quebradeira de bancos, fica ainda mais claro que não havia alternativa. Além disso,
com a experiência do que aconteceu com o Econômico, o governo criou,
com recursos dos próprios bancos, um sistema de seguros para os
depósitos, protegendo assim a maioria dos correntistas que, sem o saber, podem
ser vítimas de uma crise financeira ou da má gestão de determinadas instituições.
Mais importante, o BC reforçou a supervisão sobre os bancos, aplicando legislação
voltada a prevenir a ocorrência de novas crises no sistema financeiro, à luz do
Acordo de Basileia, de 1988, que o Brasil, entre outros países, recém-assinara.
As críticas das oposições e o jogo de cena no Congresso, contudo, se arrastaram
por longo tempo. Até projeto proibindo socorro aos bancos chegou a ser
apresentado, como se, sem um mecanismo como o Proer, não coubesse aos
próprios depositantes e, por conseqüência, ao sistema económico como um todo,
pagar o preço da crise. Durante cada campanha eleitoral desde então as críticas
voltam a aparecer, sempre para dar a impressão de que o governo estava servindo
aos banqueiros amigos e não à economia do país... Faltou a meu governo e a mim,
no caso, a capacidade de exercitar a pedagogia democrática, explicando e
tornando a explicar à opinião pública do que se tratava. Mea culpa,
Consolam-me as conclusões favoráveis ao Proer por uma CPI instaurada pela
Câmara dos Deputados especificamente para investigar o programa, tendo como
relator o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP). A despeito de ter criticado o BC
por não haver detectado fraudes praticadas por administradores do Nacional, o
relatório final, aprovado em 17 de abril de 2002 pelos integrantes da comissão,
pertencentes a diferentes partidos, considerou o Proer como sendo "uma
necessária intervenção do poder público para evitar um mal maior" quando existe
possibilidade de risco a todo o sistema financeiro provocado pela situação de
uma instituição. O item 8 das conclusões do trabalho é taxativo: "Não há banqueiros
beneficiados. Pelo contrário, [os banqueiros das instituições ali mencionadas]
366
passaram a ser responsáveis solidários com os administradores das instituições.
Deixaram de ser banqueiros e respondem, civil e criminalmente, pelos danos
provocados, tendo seus bens tornados indisponíveis."
O que fazer com o dinheiro das privatizações?
Fossem somente essas as pedras em que tropeçamos em 1995-1996 e já daria para
entender que efetuar mudanças cambiais, nas circunstâncias, era arriscado. Houve,
entretanto, outros problemas políticos e financeiros de trato igualmente difícil. Ainda
no caso dos bancos, o governador do Rio, Marcelo Alencar (PSDB), compreendeu
logo a importância da privatização do Banerj. O processo transcorreu calmamente,
nos marcos do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na
Atividade Bancária (Proes), criado pela MP n° 1.514, de agosto de 1996,5
o equivalente do Proer aplicável aos bancos estaduais (com custo muito maior para
o Tesouro, diga-se, do que o Proer). As tratativas com São Paulo, ao contrário,
foram longas e difíceis. As dívidas do Banespa eram vultosas, provocadas pela
administração desastrada dos dois antecessores de Covas, Orestes Quércia (1987-
1991) e Luiz António Fleury Filho (1991-1995), ambos do PMDB, que, sem a menor
cerimónia, ligaram o banco ao Tesouro estadual.
As tentativas de trocar dívidas por património esbarravam num
obstáculo intransponível: não havia imóveis que nem de longe as
compensassem, mesmo nas avaliações mais favoráveis. Por outro lado, o BC
obstinava-se em efetuar a privatização. Resultado: terminamos por federalizar
o Banespa como primeira etapa, realizar um acerto de contas com São Paulo (a
essa altura Covas já se convencera da real situação e dispunha-se a sanear o
estado, como saneou), e só muito mais tarde, em novembro de 2000 - seis anos
depois da intervenção -, e enfrentando toda sorte de objeções políticas, corporativas
e de chicana judiciária, conseguimos
Nota: 5 Esta MP passou por várias reedições até a MP n° 2.192-70, de 24/8/2001, ainda
em vigor quando da edição deste livro por efeito da Emenda Constitucional n° 32,
de 12/9/2001, que alterou as regras sobre edição de MPs, mantendo por prazo
indeterminado a validade das que tramitavam nessa data no Congresso, até sua
apreciação final por Câmara e Senado. Fim da nota.
367
privatizá-lo, aliás, por excelente preço. O grupo espanhol Santander pagou nada
menos que 281% de ágio em relação ao valor mínimo estabelecido (que era de 1,8
bilhão de reais) para comprar 60% do capital votante do banco. Não sem que o
governo federal absorvesse, como disse, grande parte da dívida mobiliária de São
Paulo (cerca de 50 bilhões de reais em valores correntes de 1997, equivalentes a
cerca da metade do total da dívida dos estados renegociada com a União,
que passaram a ser pagos em parcelas mensais).
Esse processo integrou o portentoso esforço fiscal descrito no capítulo sobre o Plano
Real. A mobilização de energias e de trabalho incluiu o Proes e se desdobrou com
uma MP que decretei em dezembro de 1996 regulando a renegociação das dívidas
dos estados,6 desta feita sob condução de Pedro Parente. Era política, financeira e
juridicamente intricado o processo de saneamento das finanças estaduais. Não
menos complexa era a tramitação das reformas da Previdência e da administração
pública no Congresso. O ritmo lento desses processos e as incertezas quanto aos
resultados finais colocavam pressão sobre as taxas de juros, dificultando sua queda
mais rápida e aumentando, portanto, o endividamento do governo federal.
Nesse contexto, aflorou dentro do governo e na opinião pública a discussão sobre o
destino a ser dado às receitas do programa de privatização de empresas e
concessões de serviços públicos, que deslanchava depois da aprovação das
emendas constitucionais alterando dispositivos sobre a ordem económica, em 1995,
e da Lei de Concessões, em 1997. Usar as receitas para abater dívidas públicas ou
para realizar investimentos em infraestrutura e na área social? Com exceção de
um aporte de 500 milhões de dólares que destinei ao programa Toda Criança na
Escola, em 1998, todos os recursos serviram para a amortização da dívida pública.
Insensibilidade? Não, convicção de que se tratava da melhor alternativa para o
desenvolvimento. A utilização de receitas de privatização para abater dívidas é,
salvo situações excepcionais, a opção recomendável para qualquer governo
fiscalmente responsável. Além de tudo, naquelas circunstâncias, representava uma
das condições para que pudéssemos ter sucesso na estratégia de ir gradualmente
ajustando as contas públicas.
Nota: 4 Aprovada pelo Congresso, a MP converteu-se na Lei n* 9.496, de
11/9/1997.
368
Levianamente houve quem acusasse o governo de ter "sumido" com o dinheiro da
privatização. A acusação infundada tomava o aumento da divida pública no período
como prova de que as receitas do programa não haviam sido utilizadas para o fim
anunciado. A verdade é que, não fosse termos lançado mão delas para esse fim, a
dívida pública teria aumentado ainda mais e provavelmente fugido ao controle do
governo, levando o país à moratória da dívida interna. Seria o colapso financeiro, a
recessão e a retomada da inflação. Infelizmente, a destinação das receitas para o
abatimento da dívida pública se deu num período em que, pela suprema
conveniência de manter a inflação sob controle, não tínhamos alternativa senão
manter em patamares altos as taxas de juros pagas pelo governo aos compradores
de seus papéis. O efeito sobre o total da dívida, portanto, terminou sendo muito
inferior ao que poderia ter sido em outras circunstâncias - daí, provavelmente, parte
das críticas desinformadas ou mal-intencionadas.
Retomando a iniciativa
Durante os anos do primeiro mandato, não houve "contenção orçamentária", o que
não significa, como vimos, que não tenhamos realizado intenso trabalho de criação
de condições para a mudança do regime fiscal. Não podíamos ignorar a ânsia do
país, absolutamente compreensível, por programas sociais, embora só no segundo
mandato tenhamos definido uma política mais focalizada na pobreza. Os governos
estaduais igualmente careciam de espaço para fazer frente às demandas locais. Tal
quadro levava o Ministério do Planejamento (durante a gestão Serra, mas
também quando António Kandir o substituiu), as áreas sociais do governo e
o próprio Presidente a não apoiarem uma política orçamentária mais restritiva. Ao
contrário, lançamos o programa Brasil em Ação, baseado em meu plano de governo
como candidato à Presidência, e desencadeamos investimentos de vulto.
Com a inflação em queda e o gasto em expansão, o resultado primário do governo
federal - ou seja, o total de receitas menos o total de despesas, excetuadas as
destinadas aos pagamentos da dívida pública - passou de um superávit de 4% do
PIB em 1994 para zero em 1995, mantendo-se nesse patamar até 1997, Perdemos
com isso? Ou o gasto foi necessário
369
para atender às expectativas do país com a mudança da inflação galopante para a
estabilidade? O fato é que não havia, salvo na área económica do governo, a
consciência aguda da necessidade de aperto orçamentário, envolvidos que
estávamos nas questões apontadas acima - o saneamento do sistema financeiro, o
equacionamento das dívidas dos estados, as reformas constitucionais -, que
significaram também o assentamento das bases para a reconstrução de longo prazo
das finanças públicas. Depois de passados os anos, muitos dos que naqueles
tempos cobravam investimentos passaram a me acusar de "irresponsabilidade
fiscal" no primeiro
mandato.
Enquanto isso, o BC, preocupado com os resultados fiscais de curto prazo,
continuava com sua política de desvalorização lenta do real.
Diga-se de passagem, política que, dada a calmaria externa e o afluxo de dólares,
contava com apoio da maioria dos economistas (com as exceções conhecidas) e da
população em geral. Também foram, ao contrário do que hoje dizem os que tanto
criticam esse período da política económica, os anos de ouro do consumo interno.
O real era o vetor da incorporação das massas populares ao mercado, da melhoria
das condições alimentares do povo, da redução drástica do número e da proporção
de pobres na população e, graças à queda contínua das taxas de juros depois da
crise do México, da ampliação do acesso aos bens de consumo duráveis.
Além disso, o real apreciado frente ao dólar permitiu o reequipamento industrial em
condições mais favoráveis: importar equipamentos ficou mais barato para as
empresas brasileiras.
Somada à já comentada campanha de difamação do Proer, a oposição teve relativo
êxito em instrumentalizar politicamente episódios lamentáveis como os que
descrevi, sem mencionar o grotesco caso da chamada "pasta rosa" encontrada no
Banco Econômico.7 O prestígio do Plano Real,
Nota: ' Em dezembro de 1995 a imprensa divulgou uma lista encontrada quatro meses
antes, na sede do Banco Económico, dentro de uma pasta referente a contribuições
a candidatos nas eleições de 1990. O já mencionado "livro branco" preparado por
Eduardo Graeff e divulgado em outubro de 2002, Combate à corrupção e
denunásmo na era FHC, assim trata do assunto: "Tentou-se estabelecer um nexo
obscuro, seja entre os financiamentos e a alegada demora da intervenção do
governo no banco, seja entre a divulgação da lista e a ação do Proer no
saneamento do Económico. Fim da nota.
370
do governo e do Presidente, a despeito de tudo, mantinha-se em
patamares elevados.8 E dava-nos fôlego político para progredir no caminho
das reformas administrativa e da Previdência, vencendo a resistência do velho
Brasil a tudo que significasse quebra do paternalismo estatal.
Para alavancar as exportações, apesar da taxa de câmbio desfavorável, que
encarecia nossos produtos no mercado externo, o governo precisava atuar com
vigor. Deveríamos, porém, fazê-lo de forma menos atabalhoada do que em 1995
para conter as importações de automóveis e eletroeletrônicos, quando o aumento
de tarifas ocorrido afinal se mostrou maior do que o necessário para proteger a
indústria nacional. O principal instrumento de coordenação das ações
governamentais nessa área viria a ser a Camex, criada em 1995. Dentro dela,
podíamos tomar medidas eficazes para incentivar a "inserção competitiva" do Brasil
na economia internacional, sempre com apoio do BNDES. O próprio BNDES,
com sua capacidade de financiamento ampliada em mais de três vezes
nesse período, firmou-se como o principal instrumento para ir desenhando o que
não se chamava assim, mas era, um conjunto de políticas industriais, incluindo a
rearticulação, entre outros, dos setores de papel e celulose, siderúrgico, têxtil, de
móveis, calçados e, mais lentamente, petroquímico. Por tais razões, sempre encarei
como uma idéia fora do lugar qualificar de "neoliberal" meu governo. Na
verdade, em vez de "abrir" a economia, acabei em bom grau por "fechá-la"
com aumento de tarifas e dei sustentação à modernização da indústria nacional, não
porque quisesse evitar a abertura necessária, mas para que o real depreciado não
levasse ao desmantelamento de alguns setores industriais, como se chegou a
temer.
Nota: Em janeiro de 1996, o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, determinou à Polícia
Federal a abertura de inquérito para apurar os fatos. Com base no relatório recebido
um mês depois, ele concluiu que não havia 'elementos de convicção de práticas
delituosas' (crime eleitoral) e emitiu parecer pelo arquivamento do inquérito. O
parecer foi acatado pelo presidente do STF, ministro Octavio Galotti." 1 Relatório
de pesquisa telefônica da Marketing e Comunicação Institucional Ltda (MCI)
de 19/12/1995 indicava que, embora os episódios recentes tivessem contribuído
para 37% dos entrevistados diminuírem sua confiança no governo, para 71% deles
o primeiro ano do governo havia sido "melhor" do que esperavam ou "igual" ao que
esperavam, 71% consideravam o Plano Real o fato mais positivo da administração e
42% avaliavam o governo como "ótimo" ou "bom". Fim da nota.
371
As pressões contra Gustavo Franco
Como sempre, é mais fácil dizer o que poderia ter sido feito mas não foi depois de
transcorrida a História. Reconstituindo-se com minúcias o clima político e as
perspectivas económicas, entende-se melhor em que circunstâncias tomaram-se ou
não as decisões.
Passado o impulso inicial das reformas económicas no ano anterior, 1996 seria um
período relativamente calmo. A abundância dos dólares que começaram a ingressar
por causa das privatizações e da retomada do crescimento, bem como o ainda
elevado diferencial entre as taxas de juros domésticas e as internacionais, que atraía
capital estrangeiro, dava credibilidade ao ponto de vista dominante no BC. Ou seja,
não havia por que acelerar a correção da taxa de câmbio e, sem maior aperto fiscal,
a baixa da taxa de juros deveria ser lenta e progressiva, para evitar o risco de
recaída inflacionária, em uma economia com a memória fresca da inflação.
Mantinham-se contra esse ponto de vista algumas associações
industriais, sobretudo a Fiesp e o ledi, e as oposições. Estas criticavam a partir do
"Delenda FHC": se as medidas vêm do governo, são por definição e por princípio
más e servem a interesses inconfessáveis. Denunciavam desde o desemprego até
a miséria crescente, tudo sempre se debitando na conta do governo "neoliberal". E
"desvendavam" o sentido oculto das ações governamentais: servir, sempre e
invariavelmente, aos interesses internacionais,,. A verdade é que, àquela altura,
listava-se o Brasil entre os países de menor desemprego no mundo. A taxa era
pouco superior a 5% da população ativa. Mesmo assim, preocupava-me o índice de
7% medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Grande São
Paulo, que mais tarde, comparativamente, não pareceria tão alto, pois no primeiro
ano do governo Lula se aproximaria de 9% pelo mesmo critério. Quanto à miséria,
entre 1995 e 2002, a renda média com a principal fonte de trabalho passou de 416
para 611 reais - um aumento nada negligenciável de 46%, descontada a inflação do
período. Esse aumento se verificou fundamentalmente fora das regiões
metropolitanas, nas quais a renda permaneceu praticamente estável, sem
crescimento, quando se comparam os dois anos extremos do período. Já o
percentual de pobres na população diminuiu de 42%, na média do período de 1992-
1994, para 33%,
372
na média dos oito anos de meu governo. O percentual de indigentes caiu de 20%, no
mesmo período, para 14%.9
Eu recebia com uma ponta de dúvida as críticas dos órgãos de classe
dos empresários industriais: não estariam saudosos de um modelo "nacional-
estatista", mais do que desenvolvimentista, que supunha dirigismo económico, e,
quem sabe, favorecimentos indevidos a setores, quando não a empresas, graças ao
protecionismo e a empréstimos subvencionados do BNDES?
Naturalmente havia quem, de dentro do governo, persistisse questionando tanto o
câmbio como as taxas de juros. O ministro do Planejamento, José Serra, manteve
suas críticas, embora outros, como Chico Lopes, tenham moderado suas opiniões.
Chico Lopes, em um exercício econométrico apresentado no dia 15 de fevereiro de
1996, indicara que alterações razoáveis nas taxas de câmbio e de juros teriam efeito
praticamente neutro para acelerar o crescimento da economia. Prevalecia a opinião
de que seria mais seguro um crescimento moderado (como estava ocorrendo)
sem riscos inflacionários. Havia sido um êxito controlar a inflação e começar a
mudar o regime fiscal sem recessão, tão temida por todos e tão apregoada pela
oposição.
No fim de março de 1996, em discussão na Câmara de Política Económica, Serra
insistiu que os juros elevados para garantir o fluxo de dólares sem alterações
maiores nas taxas de câmbio pesavam mais sobre as contas públicas do que a falta
de maior aperto fiscal. O documento apresentado na mesma ocasião por José
Roberto Mendonça de Barros fincava pé, com anuência geral, em dois aspectos
diferentes: a crise bancária e o comportamento fiscal. Este causava preocupação
por causa de um acúmulo de novas despesas: os aumentos salariais do
funcionalismo federal no fim do governo Itamar Franco; as novas despesas da
Previdência, embora moderadas, que o ministro Reinhold Stephanes propunha, com
um aumento de 18% para os aposentados e pensionistas; a ajuda a idosos carentes
que passaria a ser paga com a entrada em vigor da Lei Orgânica da Assistência
Social (Loas).
Nota: 9 O Ipea considera pobres as famílias cuja renda é inferior a meio salário mínimo percápita, e indigentes as famílias de renda inferior a um quarto do salário
mínimo por
componente. Fim da nota.
373
Àquela altura as exportações cresciam, diminuindo a pressão por correções
cambiais, e os juros caíam. Ainda assim, Serra e Sérgio Motta, ambos ministros e
amigos próximos, continuavam criticando Gustavo Franco. No dia 17 de maio de
1996, disse-lhes que se eu acolhesse a sugestão de substituí-lo, rolaria também a
cabeça de Malan, dada a relação de afinidade e de lealdade no trabalho que ligava
os dois.
Tirar Gustavo é tirar Malan - disse-lhes.
Procurei conversar com um tertius, no caso, Edmar Bacha, em cujas opiniões
sempre confiei e que, exercendo atividades na iniciativa privada, não queria nada
para si no governo, para me ajudar a ver as coisas com maior clareza. Tivemos um
encontro no dia 21 de maio de 1996, em meu apartamento em São Paulo, que
reforçou rneu sentimento.
Demos voltas à imaginação para ver quem eventualmente poderia substituir Malan.
Apesar de existirem bons candidatos, como José Roberto Mendonça de Barros,
nenhum nos parecia superar, na média, a soma de contatos e experiência
internacionais, respeitabilidade pública, correção, dedicação e capacidade de
trabalho de Malan.
Em maio, Serra, instado por Mário Covas e também descontente com a política
económica, começou a cogitar de candidatar-se a prefeito de São Paulo nas
eleições daquele ano. O novo ministro do Planejamento, António Kandir, que
assumiu em junho, empenharia seus esforços mais na elaboração do programa
Brasil em Ação e na reforma das práticas orçamentárias do que na crítica da política
do BC. Porém, os fatores objetivos que deram margem às críticas do ministro
anterior permaneciam. Sem contar que o ajuste fiscal dos estados era recebido com
apreensão, até por governadores aliados e competentes. Não apenas Covas
protestou de início. Também os governadores de Minas, Eduardo Azeredo, e do Rio
Grande do Sul, António Britto (este temeroso das conseqüências políticas da
privatização do Banco Meridional), para não falar de governadores filiados a partidos
oposicionistas, como José Orcírio da Silva, o Zeca do PT, de Mato Grosso do Sul, ou
a partidos de relação instável com o governo, como o do Piauí, Francisco de Assis
de Moraes Souza, o "Mão Santa", do PMDB. Seria, porém, injusto restringir só a
esses as reticências ao ajuste, pois quase todos penavam com a falta de recursos
para cumprir as respectivas obrigações. Na verdade, todos pagamos alto preço
eleitoral em outubro de 1996.
374
A crise bancária continuou pelo ano afora. O BB parecia ter um "furo"
assustador de duas dezenas de bilhões de reais, que depois se revelou próximo a 8
bilhões. Ainda assim, um rombo colossal, que exigia a capitalização do banco pelo
Tesouro. Indaguei como fora possível chegar a tal descalabro. A resposta: sem o
floating inflacionário, veio à tona a cara medonha dos desatinos de administrações
anteriores. A situação do BB reforçou em mim a convicção de que era necessário
privatizar os bancos estaduais e gerir o grande banco estatal com critérios
de empresa e de mercado, para evitar que o povo pagasse pelos atos
de administradores perdulários do dinheiro público, como tão
freqüentemente acontecera no passado.
Quando estávamos a braços com problemas desse tipo, alguns
senadores propuseram uma CPI do Sistema Financeiro. Só que, tal como aprovada
em comissão do Senado, a CPI seria para verificar os problemas
financeiros ocorridos a partir de 1995 - ou seja, de meu governo, única
e exclusivamente, como já disse antes. A má-fé política era evidente:
queriam levantar suspeitas sobre o Banco Nacional e os demais, como se se
tratasse de responsabilidade minha ou de meu governo, quando essas instituições
vinham capengando há anos. Por trás dessa atitude, um episódio menor: uma
reportagem crítica de Veja sobre aposentadorias de políticos, mexendo com o
presidente do Senado, José Sarney, e familiares, provocara retaliação, a partir da
suposição infundada de que fora inspirada "pelo Planalto" O episódio Económico
permanecia gotejando o tempo todo. Buscavam-se "culpados", no caso Gustavo
Loyola e sua equipe, o que os levava a pensarem continuamente em
demissão, para me deixar com as mãos livres para os acordos políticos (que eu
não pensava em fazer).
Ainda o câmbio, o caso Lamarca e a polémica entrevista de Sérgio Motta
No início de agosto daquele 1996, Gustavo Franco voltou à carga contra a política
fiscal. O balanço das transações correntes, quer dizer, a diferença entre os recursos
em dólar que o país envia para o exterior e tudo o que recebe de lá, era razoável
(déficit de 3 bilhões de dólares); não fazia sentido olhar apenas o déficit da balança
comercial, que era crescente. Precisávamos cortar gastos orçamentários. Mas
como?
Só se fosse no físico,
375
anotei eu: dispensa de pessoal, coisa que a Constituição vedava - excetuados os
ocupantes de cargos de livre provimento, de significação mínima em meu governo,
e pessoal necessário ao andamento da máquina do Estado
> cortar serviços públicos etc., em circunstâncias nas quais o déficit
maior provinha dos estados e municípios. Uma verdadeira camisa-de-força.
André Lara Resende, na ocasião integrando o Banco Matrix, com quem conversei
no dia 20 de agosto de 1996, três dias depois da apresentação de Gustavo, expôs
duras críticas ao governo. Repliquei que a perda de tempo inicial nas reformas da
Previdência e administrativa se deveu à falta de propostas de mais simples
entendimento. André se sensibilizou e se dispôs a colaborar na reforma da
Previdência.
Nesse meio-tempo, vários complicadores, entre eles, a discussão sobre a reeleição,
como vimos no capítulo anterior. Também problemas provocados pela delicada
questão dos mortos e desaparecidos durante o regime militar. O general Osvaldo
Gomes, representante do Exército na comissão especial que criei no Ministério da
Justiça sobre o assunto - que julgava os pedidos de reparação às vítimas da
ditadura -, ameaçava renunciar se se concedesse indenização à família do ex-
guerrilheiro Carlos Lamarca. Alegava que o ex- capitão morrera de armas na mão, e
não em prisões sob responsabilidade do Estado. Além do que, argumentava,
a família de Lamarca já recebia pensão mensal do Exército.
O general era um homem digno. Eu o conhecera anos antes, quando exercia a
função de assessor parlamentar do Exército na Constituinte. Ele me procurou no
Alvorada, seguido pela imprensa. Lembrou que vinha trabalhando com correção e
lealdade na comissão. Contou-me inclusive que, estando na reserva, não somente
votara em mim nas eleições de 1994 como criara um comité de apoio a minha
candidatura em sua cidade, Juiz de Fora. Acreditava, pois, em meu governo. Mas
queixou-se:
- Presidente, todas as minhas propostas são derrotadas na comissão. Não há uma
que passe, não há hipótese. Minha situação está ficando difícil, e agora vem esse
caso Lamarca.
Disse ao general que respeitava seus argumentos, que eles mereciam
ser discutidos, porém que eu não poderia de forma alguma deixar de seguir uma
recomendação da comissão oficial. E acrescentei:
- O senhor naturalmente tem o direito de se demitir, mas vai me criar um grande
embaraço.
376
Ao sair do Alvorada, o general Gomes informou à imprensa que não deixaria a
comissão.
Vaivéns constantes, com algum progresso, nas reformas e na aprovação do FEF e
da CPMF. Na área política, com a proximidade do fim do ano os partidos
começaram a se mover para controlar as Mesas da Câmara e do Senado, cujas
eleições se realizam no começo do ano seguinte. Malan me propôs, no dia 14 de
setembro, substituir Loyola, sempre demissionário da presidência do BC, por
Gustavo Franco. Anteriormente, Bacha me apresentara a mesma sugestão,
argumentando que o mercado temia Gustavo Franco - que jogava duro nas apostas
e tinha uma atitude de combate franco diante de tentativas de especulação - e que
esse sentimento constituía um trunfo para evitar sobressaltos. Com a preocupação
de minimizar perdas e de somar em lugar de diminuir o número já tão pequeno de
pessoas capazes e dispostas a se sacrificar para reconstruir o país, tratei sempre
de afastar soluções potencialmente sangrentas. Não substituí Loyola. No meio de
novembro, logo após o feriado do dia 15, Luiz Carlos Bresser-Pereira, outro crítico
permanente da política cambial, disse compreender as dificuldades do momento,
mas sugeriu que eu promovesse as modificações necessárias entre março e abril
do ano seguinte, 1997. Certamente pensava que seria mais fácil depois de resolvida
a questão da reeleição.
No meu registro da conversa com Bresser, digo que, de fato, estávamos hesitando
em acelerar o deslizamento do câmbio e que o déficit na balança comercial não nos
deixava tranqüilos. Temíamos, contudo, as perdas de reservas e o descontrole da
inflação. Em balanço no dia 18 de setembro com Clóvis e os irmãos Mendonça de
Barros (antes críticos do que entusiastas da política do BC), verificamos que a
inflação do mês se aproximava de zero; a balança comercial não era uma
maravilha, mas parecia razoável; havíamos resolvido os principais "pepinos"
da agricultura - renegociação da dívida passada, redução e fixação das taxas de
juros etc, - e o investimento crescera bastante em toda a economia. Neste contexto,
anotei: "Não sou favorável a nenhuma movida no câmbio que possa pôr em risco as
reservas. (...) Porque receio algumas oscilações no mercado internacional que nos
afetem. (...) O fato de termos um colchão de divisas como reserva ajuda, o custo
não é tão alto como se diz." Manifestei-me favoravelmente a uma diminuição mais
rápida do valor do real,
377
com cuidado, porém, para não provocar uma fuga de capitais. E acrescentei: "Mas a
taxa de juros vai ter que cair também." O quadro geral era, portanto, de certa calma
e detectavam-se sinais nítidos de fortalecimento da economia, dando margem a
oscilações na apreciação sobre a trajetória futura de variáveis críticas como as taxas
de juros e o câmbio. Estaria o copo meio cheio ou meio vazio?
Questões políticas dominaram o final de 1996 e o início de 1997:
dificuldades com o PMDB, debate sobre a reeleição e eleição das Mesas do
Congresso. Em fevereiro, de novo, um problema à vista no sistema financeiro: a
situação do Bamerindus parecia agravar-se. E nova pressão de Malan: a questão é
fiscal e não cambial; quer dizer, o governo continuava a gastar muito, acumulando
déficits, e era isto que elevava a taxa de juros, não apenas nem principalmente a
alta taxa de câmbio que mantínhamos; devemos nomear logo Gustavo Franco para
o BC. Isso em um momento no qual se discutia a volta de Serra ao governo e
falava-se num Ministério do Comércio Exterior. O Itamaraty e a Fazenda sempre
se opuseram à criação de um Ministério para cuidar de áreas que eram "deles" -
principalmente se tocasse a Serra comandar a nova pasta. A equipe económica
temia novas tensões internas. Mas a criação desse Ministério não estava, então, de
modo algum em minhas cogitações.
Depois da vitória na Câmara da tese da reeleição, no fim de janeiro de 1997, insisti
para que o Senado votasse logo a reforma da Previdência.
Instigado por notas informais de José Roberto Mendonça de Barros, que
me chegaram às mãos por intermédio de Clóvis Carvalho, não sem que antes
o autor as tivesse mostrado a Malan, instruí o chefe da Casa Civil a reunir a equipe
económica para colocar em pauta a idéia de acelerar a correção da taxa de câmbio.
José Roberto assinalava a conveniência de fortalecer o ajuste fiscal e flexibilizar a
política cambial. Pressentia problemas no horizonte do sistema financeiro
internacional e pedia que nos preparássemos antecipadamente. Clóvis, que
normalmente coordenava as reuniões da Câmara de Política Económica, convocou
reuniões à parte, mais restritas, para a discussão do tema câmbio. Pelas
informações que eu recebia, caminhava-se ali a duras penas na direção de um
consenso em torno da adoção de uma banda mais larga de flutuação do câmbio
que se abriria progressivamente segundo uma regra preestabelecida, à
semelhança do que,
378
em linhas gerais, defendera Pérsio em março de 1995. O consenso, no
entanto, era fugidio. Dentro e fora do governo.
Em meados de março, promovemos uma reunião com gente de fora do governo em
quem eu confiava intelectualmente, organizada pelo sociólogo Luciano Martins, meu
assessor especial. Participaram António Barros de Castro, economista, professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), meu amigo e ex-colega na Cepal e
ex-presidente do BNDES na gestão Itamar; Gilberto Dupas, economista e ex-
secretário de Agricultura do governo Montoro em São Paulo; Edward Amadeo,
economista próximo ao PT, funcionário de carreira da área econômica e que
acabaria se tornando mais tarde meu ministro do Trabalho; e Dionísio Dias
Carneiro, da PUC do Rio de Janeiro, considerado um dos maiores economistas
brasileiros.
Nessa reunião, a situação da Argentina serviu para uma discussão interessante:
criticaram-se os efeitos do câmbio fixo sobre a indústria do país, mas Dionísio voltou
ao argumento de Gustavo Franco: a Argentina já se desindustrializara antes de ter
sua moeda equiparada ao dólar. Estaria errado visualizar os problemas somente do
ângulo do déficit da balança comercial.
Sem ser economista e vendo a diversidade de opiniões dos técnicos, anotei: "Enfim,
há algumas nuvens no horizonte. Não digo isso de público, mas acho que há. Não
sei se a equipe económica tem condições de dar uma reviravolta sem se estilhaçar."
Minha preocupação, como sempre, era administrar as tensões e conflitos dentro da
equipe na expectativa de que, desse processo, resultassem as melhores
soluções, evitando rompimentos que poderiam abalar a credibilidade da
política económica, além de acarretar a perda de auxiliares de inquestionável valor
e capacidade técnica.
Pouco depois, no dia 25 do mesmo mês de março, voltei a ouvir opiniões de
economistas de fora do governo, presentes também Malan, Loyola e José Roberto
Mendonça de Barros. As mesmas questões foram colocadas, o desequilíbrio da
balança comercial, sobretudo. Mesmas dúvidas, com uma sugestão concreta de um
dos participantes: deixar o câmbio flutuar;
provavelmente ele encontraria um ponto de equilíbrio próximo ao de então, mas
terminaria a desconfiança de que ele seria forçado. Tal opinião já havia sido
exposta publicamente por Ibrahim Eris, ex-presidente do BC na gestão Collor, que,
tendo nascido na Turquia e falando com
379
acento característico, emitia idéias com grande clareza, sem tropeçar em qualquer
sotaque. Na prática, o governo estava em outra posição: não mexer no câmbio e
conter importações.
Daquele encontro em diante as coisas se complicaram. Em abril, houve intervenção
no Bamerindus e a emenda da reforma da administração pública passou raspando
no Congresso em uma votação delicada que nos obrigou a ceder em relação ao
teto salarial de parlamentares e membros do Judiciário. Desdobrei-me em
conversas durante o mês. Jantei com o grupo do ledi, inquieto com os juros e a taxa
cambial. Encontrei-me com João Sayad, a quem sempre gostei de ouvir por sua
independência de espírito e imaginação. Sayad achava que seria preciso um aperto
fiscal e uma pequena recessão antes de alterar a política cambial, o que só seria
possível passadas as eleições de 1998. No fim do mês Loyola voltou à carga na
questão de sua demissão. Propôs André Lara Resende para substituí-lo, o que era
um modo de dizer que não queria Gustavo Franco.
Eu disse a Loyola que concordava com a análise de Ibrahim Eris de deixar o câmbio
flutuar:
- Acho que não dá para esperar, esperar, esperar. Não estou preocupado com a
opinião pública ou com a questão da eleição. Por mim, tomo a medida já.
A partir de maio de 1997 a situação política piora. Surge a denúncia da "compra de
votos" para aprovar a emenda da reeleição. As reformas se arrastam lentamente no
Congresso que, a despeito de tudo, aprova algo importantíssimo, que produziria
uma revolução no setor: a Lei Geral de Telecomunicações.10 Nada disso diminui a
pressão no BC: as mesmas indefinições e divisões internas. Em junho Malan volta a
propor a nomeação de Gustavo Franco e eu postergo, ainda preocupado em
manter Chico Lopes e não perder Beto Mendonça. A partir de julho, a despeito de
clarividentes notas deste último sobre as conseqüências que poderiam resultar de
crises nos países do sul da Ásia (desde abril, mas sobretudo num memorando de
julho, depois do colapso cambial da Tailândia e da Indonésia), não há convergência
de pontos de vista na equipe, e mesmo Chico Lopes parece pouco propenso a
promover alterações no câmbio.
Nota: Lei n° 9.472, de 16/7/1997.
380
As condições políticas levaram-me a mudar o Ministério para incluir representantes
do grupo majoritário do PMDB. Queria assim aplainar o caminho das reformas, bem
como me prevenir contra a agressividade das oposições. Elas jogavam pesado com
as ameaças e realidades das CPIs, inclusive a famosa sobre os precatórios, que
alcançava a Prefeitura de São Paulo e alguns governos estaduais. Buscavam algum
pretexto, como a alegada compra de votos, para complicar a vida do governo. Sem
falar na crise em polícias estaduais, que me levou a autorizar o uso de tropa federal
para manter a ordem pública. Em julho, na discussão sobre estabilidade do
funcionalismo, apesar de gigantesco esforço, ganhamos apertado no Congresso a
aprovação da possibilidade de demissão em casos de insuficiência de desempenho:
obtivemos tão-somente os 308 votos indispensáveis.
A nomeação de Gustavo Franco era objetada por quase todos, e insistentemente
defendida por Malan. Eu buscava abrandar as resistências, ao mesmo tempo em
que enfrentava dificuldades com o Congresso. No fim de julho, dentro de
características pessoais que comentei no capítulo anterior, Sérgio Motta concedeu
uma entrevista a Veja11 sobre mudanças no Ministério, opinando desabridamente
sobre políticos de quem não gostava e sobre decisões que tomamos. Classificou de
"incestuosas" relações que o governo precisava manter com setores do Congresso,
tachou como "decepcionante" a aliança com o PMDB e o ingresso de dois ministros
do partido no governo, ironizou o PFL, nosso firme aliado, considerou "uma
vergonha" uma nomeação que fizéramos para uma área do Ministério dos
Transportes e chegou a insinuar omissão do ministro da Fazenda, Pedro Malan,
durante uma votação importante no Congresso. No horizonte, a crise da Bolsa de
Hong Kong, que provocou queda passageira em nossas bolsas. Luiz Carlos
Mendonça de Barros, dirigindo àquela altura o BNDES, com a experiência de
mercado que tinha, me alertou:
- Eles (os especuladores) voltarão.
Finalmente decidi, nas circunstâncias e pela dedicação e competência de Gustavo
Franco, nomeá-lo para a presidência do BC. Chico Lopes, que poderia aspirar à
posição, teve uma reação positiva, para não falar de Beto Mendonça que, ainda
quando discordando, sempre foi construtivo.
Nota: 11 Edição de 23/7/1997.
381
A crise asiática e nós, vítimas do próprio êxito
Vínhamos nessa toada quando surgiram os primeiros sinais de que uma crise
financeira com epicentro na Ásia, detectados já em abril por Beto Mendonça,
poderia espalhar-se pelo mundo. Entrávamos no segundo semestre de 1997.
Embora dúvidas e receios nos atormentassem, particularmente a mim, até aquele
momento acreditávamos que a estratégia de ajuste fiscal gradual (sem aperto
drástico do Orçamento no curto prazo) e correção também gradual da valorização
do câmbio (ocorrida no início do Plano) surtiria efeito. Asseguraríamos, assim, sem
recessão e sem traumas, a consolidação da estabilidade e a modernização
do aparelho produtivo, bases para o desenvolvimento. A mudança no
cenário internacional nos obrigaria, entretanto, a mudar radicalmente de estratégia.
Já em julho houve significativa troca de documentos entre os membros da área
económica sobre a crise que parecia aproximar-se, incluindo o paper mais
consistente antecipando o que ocorreria no Sudeste Asiático e suas repercussões
no Brasil, elaborado por Beto Mendonça, intitulado Ajuste na questão externa.
Cabe, portanto, renovar a pergunta: por que não se tomaram as medidas cabíveis?
Pedi a Gustavo que discutisse comigo e com Beto Mendonça as medidas
que pensava tomar. Em meados de agosto, consta nas minhas anotações
que, depois de longa reunião com os principais condutores da política econômica e
com Clóvis Carvalho, chegou-se à conclusão de que, diante do quadro
internacional, qualquer mudança mais drástica ou de surpresa seria arriscada.
Passou-se assim o mês de setembro até que, em fins de outubro, a tempestade
recomeçou intensa. Começávamos a descobrir o que era o "contágio" entre as
bolsas de valores dos países chamados emergentes. Por causa da crise em Hong
Kong, a Bolsa de São Paulo num só dia, 27 de outubro de 1997, caiu 14%!
Naquele dia recebi o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, a quem
vinha concedendo uma série de entrevistas das quais resultou o livro O presidente
segundo o sociólogo.12 Ele descreveu o ambiente do Palácio da Alvorada em plena
crise como sendo de calma. Olhando o parque em
Nota: 12 Fernando Henrique Cardoso entrevistado por Roberto Pompeu de Toledo, O
presidente segundo o sociólogo, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
Fim da nota.
382
volta do palácio, que dá para o lago de Brasília, as emas, com seus passos longos e
elegantes, compunham a paisagem quase bucólica que se divisava da biblioteca. O
cerrado brasiliense tem uma beleza tímida, como de uma adolescente que ainda
não se sabe bonita. O ambiente, talvez, mas eu não estava tão calmo como parecia.
Nas minhas gravações anotei: "Essa questão do sistema internacional, desde a
minha primeira fala na Cepal, quando fui eleito Presidente, até hoje, continua
me atormentando. O sistema está de cabeça para baixo e esse capital especulativo,
[com os] chamados derivativos, comanda o processo económico produtivo real. Isso
é uma inversão forte, (...) não tenho formação económica suficiente para fazer
análise mais profunda, mas acredito que isso é gerador de uma possível crise
mundial de conseqüências imprevisíveis. Tomara seja só um pressentimento, mas
quero deixar registrado."
No dia seguinte anotei que meus pressentimentos não estavam equivocados.
Antes de dormir vi pela CNN o que acontecia em Hong Kong e adjacências.
Resultado: naquele dia perdemos 9 bilhões de reais, pouco menos em dólares, para
defender o valor da moeda nacional. O montante dessas perdas é sempre relativo.
Na verdade o BC troca dólares por reais. Se os especuladores ganham e a moeda
se desvaloriza, ter-se-á perdido o equivalente ao percentual da desvalorização. Se
o BC consegue dobrar os especuladores, recupera-se o "perdido" ou até se ganha,
dependendo do valor da moeda no momento da venda do dólar, comparado com
seu valor no momento em que se decida comprar dólares para recompor as
reservas. Nos dias seguintes, entretanto, os operadores de mercado calculariam a
seu modo as perdas e desencadeariam novos ataques. Contraatacamos:
mais reformas e medidas fiscais. António Carlos Magalhães - e nessas horas ele
sempre surpreendeu favoravelmente - disse que as apoiaria; mais tarde houve um
só ponto, relativo ao aumento do IR das pessoas físicas, a que o senador se opôs
momentaneamente. Apesar disso, e de a Bolsa haver subido 6%, em reunião no fim
da tarde de 29 de outubro constatamos que os "locais", bancos e sobretudo fundos
de investimento, jogaram pesado contra o real. A crise se manifestou mais profunda
do que parecia, mas Gustavo Franco se saiu muito bem como um operador frio
e competente, contornando a tempestade.
Enrique Iglesias, presidente do BID, me telefonou, como freqüentemente ocorria nas
horas difíceis, sugerindo que Malan entrasse em contato
383
com o FMI. Desde o lançamento do Plano Real não tínhamos programa algum
com aquela instituição, apesar dos brados constantes de "Fora FMI" da CUT e das
oposições. O próprio Stanley Fischer, número dois do Fundo, deu declarações
dizendo que o Brasil tinha uma situação muito diferente da que prevalecia na Ásia,
e isso depois de certos arrufos entre nosso pessoal e ele, em reunião havida em
Cingapura. Mesmo assim, anotei: "Não estou convencido (...) de que as coisas já
estejam superadas."
Pareci adivinhar: o dia 30 de outubro foi um inferno. Telefonemas sem fim. No final
do dia, o resultado, mais ou menos óbvio: vencida a especulação inicial, elevação
drástica dos juros, para segurar o sistema financeiro. Dobramos a taxa Selic, que
passou de 22% para 44% ao ano. Anotei: "Espero que seja provisório. Perdas
grandes de toda maneira, perda para a velocidade de crescimento do Brasil." Vale
a pena, apesar de uma ou outra incorreção na minha percepção sobre o que estava
acontecendo, reproduzir um pouco mais de minhas anotações no calor da hora:
"Muitos bancos brasileiros, bancos de investimento, entraram na corrida
especulativa e na verdade foram bancados por bancos americanos. As agências
desses bancos lá fora estão muito endividadas e os bancos americanos estão
querendo ganhar na margem (isto é, na dívida contraída para garantir as apostas,
os 'derivativos', no mercado de futuros). Querem que os bancos brasileiros vendam
seus portfólios, suas ações Telebrás, Petrobras, a preço de banana (para pagar
os empréstimos) e por isso parecem estar fazendo circular rumores de que o Brasil
é a bola da vez." Anoto também que nada justificava os rumores, nem sequer o
endividamento público que, àquela altura, não era tão grande assim.
As apreensões não terminaram aí. A despeito da perícia do BC em enfrentar a
especulação, os ares agitados do mundo não se acalmaram.
Dias depois, nova manifestação do mesmo vírus contagiante. Eu estava
em Cartagena de índias, em visita oficial à Colômbia, para conversações com o
Presidente Ernesto Samper, então muito pressionado pelos americanos sobre a
questão do tráfico de drogas. Nunca me esquecerei quando, visitando com Samper
uma bela igreja colonial, recebi uma ligação telefónica de Pedro Malan. Para não
chamar atenção, me encaminhei para trás de um altar e comecei a absorver
notícias inquietantes. Novamente, o real sob ataque. Dúvidas: vou para a
ilha Margarita, na Venezuela, onde haveria
384
reunião da VII Cúpula Ibero-Americana, ou volto ao Brasil? Se vou, podem julgar-me
indiferente às tragédias nacionais; se volto, dou sinais de nervosismo ao mercado.
Ah, o mercado, esse terrível senhor, sem cara e sem coração, tão irracionalmente
racional ou vice- versa, capaz de arrasar em poucos dias o trabalho de tantos anos.
E ainda há quem o idolatre...
Decidi ir à ilha Margarita. Lá, no mesmo dia, preocupado, conversei com Enrique
Iglesias. Tudo de novo. Tento dizer que não há nenhum problema insuperável com
a economia brasileira. Ele sabe. Mas, que fazer? Os dois sabíamos também que
não é isso o que conta, são as "percepções", voláteis e tão cruéis (e, sejamos
francos, da mesma forma contavam nossas vulnerabilidades, que vínhamos
buscando corrigir gradualmente).
Entráramos no radar que vigiava a Rússia e a Coréia do Sul. Iglesias conversou por
telefone com Camdessus, o diretor-gerente do FMI, e com Stanley Fischer. Este,
conhecedor da situação brasileira, mostrava-se mais animado, teve uma reação
positiva. Também eu falei pelo telefone com eles. Camdessus estava em Paris.
Renovou os votos de confiança, como quando nos encontramos em 1993 para a
renegociação da dívida com os bancos. Disse, tal qual dissera Fischer, que se
dispunham a fornecer uma barragem de dólares (como se procedera antes com o
México e com a Indonésia) e que seria preciso que Malan entrasse em contato com
eles.
Transmiti o recado ao ministro e regressei apressadamente ao Brasil, passando
apenas uma noite e um dia na ilha. Não sem antes trocar experiências e pontos de
vista com o Primeiro- Ministro espanhol, José Maria Aznar, o Presidente de Portugal,
Jorge Sampaio, e seu Primeiro-Ministro, António Guterres, e os Presidentes do
México, Ernesto Zedillo, e da Argentina, Carlos Menem.
Voltei sábado, 8 de novembro, chegando à meia-noite. Imediatamente me informei
pelo telefone, como faria na manhã seguinte, sobre as diversas visões da crise.
André Lara Resende, que já me dirigira a mesma pergunta uma semana antes,
colocou no ar a dúvida inquietante: não será melhor desvalorizar o real? Parou logo
de raciocinar em voz alta e todos calaram. Naquele momento a medida provocaria
um desastre. Gustavo preferia controlar a especulação agindo com os instrumentos
do BC, como logo contarei, Chico Lopes, que sempre temeu a flutuação do câmbio
por ser difícil avaliar o ponto de equilíbrio, expôs suas dúvidas sobre nossa
capacidade de enfrentar a especulação no mercado. Gustavo reafirmou
385
que poderíamos enfrentá-la, mas pediu guerra total, quer dizer: aperto fiscal
também.
À tarde desse domingo, 9 de novembro, juntei a chamada equipe
econômica ampliada ao redor da grande mesa da biblioteca do Palácio da
Alvorada onde, desde o tempo do Presidente Itamar, me reuni tantas vezes e
quase sempre sobre o mesmo tema, o famoso "que fazer?" para evitar a
débâcle, seja política, seja econômica. Eram os doze a quinze personagens,
da Fazenda, BC, Planejamento e Casa Civil, que podem tomar providências nas
horas de crise na economia. E de não pouca tensão. Realmente calmos, que me
lembre, além de mim, só Gustavo Franco e Malan. Gustavo jogara muitas fichas
para conter a especulação. Descobrira, como os homeopatas, que nada melhor do
que usar o mesmo mal para o bom combate.
Em matéria de mercados futuros o BC seria imbatível. A cada pergunta de quanto
das reservas tinha-se perdido (na verdade, esvaíramse delas 14 bilhões de dólares)
ou de quanto se precisaria para jogar nas margens, Gustavo dava uma resposta
evasiva, mas continuava transpirando confiança. Luiz Carlos, com espírito prático,
afirmava que o mercado só tem medo de quem tem cacife. Defendeu inclusive a
securitização das reservas de petróleo, ou seja, a emissão de títulos para
obter empréstimos garantidos pelo petróleo já descoberto mas ainda não explorado
e mostrar nosso poderio financeiro.
A insegurança era grande, mas não perdemos a capacidade de decidir.
Passamos em revista e aprovamos as medidas de aperto fiscal que vinham sendo
preparadas pelos técnicos do governo nas semanas anteriores. Com o "Pacote 51",
apelido que lhe deu a imprensa por conter esse mesmo número de medidas, e com
certeza por alusão zombeteira a uma marca de cachaça, tentamos responder à
crise, no olho do furacão, ajudando a política monetária a deter o ataque
especulativo por meio de cortes em todos os lados no Orçamento, que para meu
dissabor pessoal atingiram até bolsas de estudos. O "Pacote 51" visava também
aumentar a confiança quanto à trajetória futura das contas públicas. Mostrou-se mais
eficaz no cumprimento do primeiro do que do segundo objetivo. O impacto
da elevação abrupta das taxas de juros, que demorariam a voltar a cair, colocou a
dívida pública em uma trajetória de acelerado crescimento. As contas externas
igualmente sofreram, com a retração da economia mundial e a queda nos preços
das nossas commodities de exportação.
Seja como for, houve um imenso alívio como impressão inicial, depois de algum
vaivém derradeiro. Ainda no dia 11 de novembro, uma terça-feira, ocorreu pressão
especulativa, o pregão da Bolsa foi suspenso às 17 horas - mesmo assim as
cotações caíram 10% - e a semana seria atribulada. O Presidente argentino Carlos
Menem estava em visita oficial, e manifestou compreensão e confiança na
economia brasileira. A semana seguinte transcorreria com menos agitação. Em
minhas anotações diárias recordei os alertas de Beto Mendonça desde julho e as
discussões com ele e André na mesma direção, falando em "mudança de regime
cambial"
para evitar a malsinada palavra "desvalorização".
O susto da crise nos permitiu retomar a iniciativa no Congresso, que aprovou o
Fundo Social de Emergência13 e permitiu que a reforma administrativa caminhasse
razoavelmente. Alguns itens mereceram votação expressiva, 351 a 133 votos,
quorum superior ao já altíssimo de 308 votos exigido em reformas constitucionais.
No início de dezembro de 1997, o Congresso deu sua aprovação às medidas do
"Pacote 51", incluindo a elevação da alíquota do IR da pessoa física, contra a qual
ACM se insurgira, recuando depois, demovido pelo filho Luís Eduardo, a quem
recorri.
Antes da votação, parti para o Reino Unido, em visita de Estado. Na véspera, Pedro
Parente, secretário executivo do Ministério da Fazenda, informou-me que Antônio
Carlos não colocaria obstáculos à aprovação das medidas no Congresso. Viajei
confiante. O primeiro encontro que tive em Londres foi na Câmara Britânica de
Indústria (CBI), onde recebem quatro chefes de governo ou de Estado por ano.
Apresentei um resumo da situação brasileira e assegurei que o Congresso votaria,
como votou, tudo o que pedimos para superar a crise. Os britânicos me aplaudiram
de pé. Ovação a mim? Não, ao país que vencera a crise. Vencera?
Na volta, as pesquisas de opinião mostravam que 80% da população estavam a
favor das medidas solicitadas ao Congresso. Em fins de novembro e dezembro
ainda houve rumores de mal-estar financeiro no Japão e especulações sobre se
poderiam alcançar a Argentina. Não o Brasil, contudo. O Congresso continuou
votando as reformas. Lembro-me de reuniões que tive com Gustavo Franco e
Demóstenes Madureira de Pinho Meto,
Nota: 13 Emenda Constitucional n° 17, de 22/11/1997.
387
diretor do BC. Os juros haviam começado a baixar devagar, mas tanto
Demóstenes como eu queríamos alterar algo no câmbio. Repito o registrado: "Vale
mais a pena manter a taxa de juros um pouco apertada e mexer no câmbio, que o
câmbio é um problema" (10/12/1997). Gustavo não concordava que constituísse um
problema para as exportações, mas sustentava que deveríamos alargar a banda de
variação por causa do volume das importações, que seguia elevado.
Rapidamente as reservas cresceram e a confiança voltou. Talvez tenha sido isso
que nos levou a perder oportunidades para rever a questão cambial no primeiro
quadrimestre de 1998, quando eventualmente teria sido possível fazê-lo. Entretanto,
com a lembrança recente da superação da crise, o ânimo de mudança arrefeceu.
Nos meses seguintes, com eleições à vista, aumentou a resistência à alteração de
rumos. Não por causa de "populismo cambial" para assegurar vitória eleitoral e
sim pelo temor de que o nervosismo político- eleitoral contagiasse os mercados:
modificar regras cambiais a essa altura poderia provocar disparada de preços. Em
uma economia ainda parcialmente indexada e com viva memória de décadas de
inflação, o temor de uma recaída no inferno da hiperinflação nos atormentava.
Quedamo-nos vitoriosos e imóveis. O êxito do combate à especulação tornou-nos
vítimas dela.
Os episódios antes descritos e os comentários que vou expor adiante sobre a
passagem forçada para o regime de flutuação do câmbio, em janeiro de 1999, são
suficientes para justificar o que escrevi na introdução deste capítulo: que as
decisões se dão no âmago de um conjunto muito mais complexo do que
simplesmente a escolha teórica do "bom caminho". Mesmo porque este, como disse
o grande escritor espanhol Antônio Machado em Provérbios y cantares,1* se faz ao
caminhar.
Nota: 14 Antônio Machado, Provérbios y cantares, in Poesias completas, 14"
ed., Madri, EspasaCalpe, 1973, p, 158. Fim da nota.
388
CAPÍTULO 6
Dos obstáculos à herança bendita
Enfrentando a armadilha dos juros e do câmbio
Com o crescimento das reservas,1 logo após janeiro de 1998, e passado o turbilhão
político a que me referi em outro capítulo, em vez de haver pressões para
desvalorizar o câmbio mais depressa (excetuadas, naturalmente, as provenientes
dos críticos contumazes), voltamos ao antes devagar-esempre do que
precipitadamente. A economia mantinha-se em crescimento, embora não nos
patamares em que gostaríamos: uma média de 3,5% ao ano, de 1995 a 1997.
Continuávamos perseguidos pelo fantasma da crise asiática. O Japão e a Coréia do
Sul prosseguiam emitindo sinais preocupantes. O temor de outra trepidação no
momento de alterar as regras cambiais, somado a um certo alívio na economia,
encaminhava nossas energias para prosseguir nas reformas e reorganizar a
máquina pública.
Em maio, bem depois de controlados os efeitos da crise asiática sobre o Brasil, este
era meu estado de espírito sobre a questão: "Estou preocupado: tivemos em 1994 a
crise do México, com a repercussão sobre a metade de 1995. Em 1997, a crise do
Sudeste Asiático, que tem repercussão sobre nós em 1998. As crises estão se
seguindo. Receio que a Bolsa de Nova York, lá em cima, de repente despenque e,
aí sim, a coisa venha toda abaixo..." A preocupação não se voltava apenas para a
área internacional. No começo de julho, nos reunimos várias vezes para discutir o
que fazer. Em seguida a um almoço com José Roberto Mendonça de Barros e
Nota: 1 As reservas do BC passaram de pouco mais de 50 bilhões de dólares
em dezembro de 1995 para 60 bilhões em dezembro de 1996 e se
mantiveram próximas deste patamar até setembro de 1997. Com a crise da
Ásia, caíram em outubro para 53 bilhões, mas, superada a crise,
foram progressivamente crescendo até atingir o pico de 74 bilhões em abril de 1998.
A partir de agosto do mesmo ano, despencaram, dobrando o ano de 1999 com 44
bilhões, já computados os recursos provenientes do FMI. No início de 1999
desceram ao degrau dos 30 bilhões. Com o câmbio flutuando, o nível de reservas
não precisou mais retornar aos altos patamares anteriores. Fim da nota.
389
Clóvis Carvalho, registrei: "O Beto se preocupa com a área externa. Ele acha que, na área
interna, temos que forçar ainda mais a queda da taxa de juros reduzindo
drasticamente o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Concordo. Vou
apertar a área económica nesse sentido. Finalmente parece que todos estão vendo
que não se trata só de combater o déficit, segurando gastos de governo, mas
também de uma política mais agressiva de redução da taxa de juros."
No transcorrer de agosto de 1998, avolumaram-se os sinais de crise.
Perdemos 3 bilhões de dólares das reservas. No dia 23, nova reunião com os
responsáveis pela área económica. Se bem que não houvesse igual nível de
ansiedade em cada um, era clara a preocupação com a defesa da moeda. Quem
sabe não deveríamos transformar os títulos da dívida de Itaipu em recebíveis do
Tesouro, ou seja, emitir títulos e colocá-los no mercado para o governo dispor de
dinheiro antes do vencimento e os aplicadores ganharem a redução entre o valor de
face dos títulos e o que pagam por eles, além dos juros? Ou utilizar as reservas em
ouro para ir comprando os títulos da dívida? Ou então, promover a diminuição do IR
para os capitais de renda fixa, ou mesmo alterar os prazos mínimos para a
permanência de capitais externos no país? Enfim, idéias para enfrentar o terremoto
que parecia avizinhar-se. No fim do mês, registrei em minhas gravações: "Houve
uma perda muito grande do valor dos nossos títulos da dívida externa e agora há
realmente o risco de uma nova corrida contra o real. Embora a questão fundamental
seja que mudou o quadro do mundo e nós vamos ter de modificar nossas
políticas macroeconômicas."
Tudo ficava cada vez mais difícil. Os bancos alemães tentavam salvar a Rússia do
colapso - após malbaratar recursos internacionais obtidos em empréstimos, o
governo russo perdeu o controle da economia, com inflação explodindo, desordem
fiscal, caos no sistema tributário e total inépcia do Tesouro -, o que poderia estancar
a crise antes de atingir mais fortemente o Brasil. Alguns de nós queríamos alterar
as regras de câmbio e juros mais depressa, mas havia pouca convergência
de opiniões sobre como fazê-lo. Busquei apoios para enfrentar a situação e mudar
rumos. Conversei com Luiz Carlos Mendonça de Barros, que a essa altura
substituíra Sérgio Motta no Ministério das Comunicações.
Disse-lhe que pediria a Beto Mendonça, Chico Lopes e André Lara Resende que
começassem a pensar em alternativas. Sentia que a recessão se aproximava, com
as bolsas desabando.
390
Como fizera com André no passado para imaginar o Plano Real, estava na
hora de ter uma equipe pensando na saída da armadilha dos mercados que caíam,
das taxas de juros elevadas e do câmbio valorizado.
Esse era o desafio pelo qual o governo teria que passar.
Tormenta e vento esquivo: pensei até em medidas heterodoxas
No último dia de agosto de 1998 a imprensa começou a noticiar que eu iria substituir
Malan e Gustavo Franco. Alguém fora indiscreto e, a partir de minhas preocupações
com as mudanças de política, se precipitou em transformá-las, muito antes da hora,
em troca de pessoas nos cargoschave do governo. Em seguida, vieram rumores a
respeito de desavenças entre o BNDES e o BB, ou seja, André Lara, com apoio de
Luiz Carlos Mendonça de Barros, versus Paulo César Ximenes e o diretor da área
internacional, Ricardo Sérgio de Oliveira, sobre o leilão de privatização das
empresas de telefonia, ocorrido no mês anterior, julho. Percebi logo, e anotei, que
haveria complicações. O FMI, por sua vez, buscava contatos. Malan, conhecedor
daquela casa, relutava em aceitar a visão deles. Acreditava que deveríamos cobrar
as responsabilidades do G-7 - o grupo de países mais ricos do mundo - e do Fundo
pela crise mundial, e não assumir as culpas pela situação. E continuava, obstinado,
a mencionar o déficit fiscal, embora, como anotei, não descuidasse da "questão
central" o câmbio. Novamente reclamei da desunião da equipe, pois recebera
informações de que alguns haviam comentado com jornalistas minhas inclinações e
a disposição de mudar o rumo das coisas.
Antes que tivéssemos tempo para isso, as rajadas da ventania precursora da crise
começaram a se fazer sentir. No dia 3 de setembro a agência de classificação de
risco Mood/s rebaixou os títulos da dívida externa da União. Perdemos em um só
dia 2 bilhões de dólares de reservas.
Telefonei a Chico Lopes para debater a necessidade de aumentar a taxa de juros,
pois novamente o "contágio" transmitira a crise russa ao Brasil, a despeito das
declarações do FMI e de autoridades monetárias de que nossa situação era
diferente. Os sonhos de ajustes na política monetária foram ladeira abaixo. No
entretempo, Serra me enviou interessante palestra sobre as vantagens do câmbio
flutuante proferida no Banco Mundial, em abril, pelo economista americano James
Tobin, da Universidade Yale - o mêsmo
391
que propôs que se taxassem as transações financeiras internacionais como
forma de conter a volatilidade dos mercados e proteger países vulneráveis. Àquela
altura, pensei, flutuaremos todos nós... Anotei:
"Quando estávamos em boas condições podíamos ter ousado mais. Agora não dá
para fazer, vamos agüentar firme." Os diversos membros da equipe económica
continuavam se desentendendo quanto às medidas concretas. Luiz Carlos e André
queriam uma desvalorização do real. Ao ver deles, Gustavo Franco e Demóstenes
Madureira também concordariam com esse ponto de vista. Chico Lopes alegava que
ou bem se continuava defendendo o câmbio na trincheira das bandas estreitas ou
seria melhor deixá- lo flutuar. André, por sua vez, considerava que, nas
circunstâncias, a flutuação produziria um desastre.
Paradoxalmente, em meados de setembro, em pesquisa do Datafolha sobre
as eleições presidenciais do mês seguinte, eu aparecia com 48% dos votos, contra
25% de Lula. Maioria absoluta de votos válidos, vitória no primeiro turno. Mau
momento para vencer eleições... Enquanto isso vivíamos a angústia de cada dia.
Era um tal de olhar resultados das bolsas mundo afora, de ver quanto das reservas
saíam do país e de repetir declarações quanto possível otimistas, que ninguém
agüentava mais. A Fazenda, já se preparando para as conversas com o
FMI, anunciava planos de cortes orçamentários, buscando repetir o êxito (fugaz)
ocorrido no ano anterior. Os ministros das áreas fundamentais, especialmente o da
Saúde, protestando contra os cortes e ameaçando renunciar. Repliquei que
tampouco me alegravam os cortes, mas que ninguém me dera alternativas, mesmo
os que concordavam em linhas gerais com Serra. Lembrava a eles que a flutuação
do câmbio resultaria em Indonésia, ou seja, uma brutal desvalorização da moeda
seguida de grave desorganização da economia, e a centralização de câmbio daria
em Malásia - isto é, uma economia sob maior controle do Estado e mais distanciada
do mercado internacional, levando a um recuo de investidores estrangeiros.
Estávamos tentando evitar uma repetição do ocorrido com ambos os países
asiáticos; como não me ofereciam escolha, optei pelo caminho do aperto fiscal.
Na quinta-feira, 10 de setembro, as bolsas despencaram. De novo, passei em revista
a opinião de muitos colaboradores. Avisei José Roberto que não queria que se
tomasse qualquer medida sem meu prévio conhecimento.
Disse a André Lara e a Luiz Carlos que, diante da preocupação de
392
todos, concordaria até com algo malvisto pelo mercado e por organismos como o
FMI: a centralização do câmbio, ou seja, um conjunto de medidas que implicassem
um controle sobre a saída de dólares. Os agentes económicos perderiam a
liberdade de remeter divisas ao exterior e passariam a submeter-se a critérios
discricionários estabelecidos por atos administrativos do BC com vistas à proteção
das reservas internacionais. Deixei claro, porém, que não concordaria com
a flutuação do real, que levaria o valor do dólar às nuvens e destruiria todo o nosso
esforço. À noite recebi a informação de que o BC elevara ainda mais a taxa de
juros. A balbúrdia entre os técnicos era grande.
Gustavo Franco, com discreto apoio de Malan, propunha dificultar remessas de
dólares para o exterior. Chico Lopes se demitiria se fosse tomada alguma medida
heterodoxa, como essa. Como resultado das divergências internas, a elevação dos
juros promovida pelo BC levara a taxa para 49,75%. Não menor era minha
inquietação. A predisposição de aceitar a centralização do câmbio se deu depois de
verificar com Gustavo a consistência das soluções "via mercado" ou seja,
aumentando a taxa de juros, o que eu não acreditava que resolvesse a crise.
Começaram então a chegar notícias do Fundo e do Tesouro americano, dizendo que
dariam sustentação ao mercado brasileiro e reafirmando confiança no governo. Os
esforços de Malan, que sabia de minha disposição de aceitar até mesmo medidas
heterodoxas, tiveram êxito.
Falei pelo telefone, longamente, com Robert Rubin, secretário do Tesouro dos EUA,
e com Michel Camdessus. Rubin me disse que na véspera estivera analisando a
questão do Brasil durante horas com Larry Summers, a segunda pessoa do
Tesouro. Elogiou Malan e garantiu que nos proporcionariam vigoroso amparo. Da
mesma maneira Camdessus recordou nossas conversas anteriores em situações
difíceis e confirmou o apoio, apesar da relutância de alguns países do G-7 em
colocar recursos no pacote de empréstimos para erguer uma muralha de
sustentação ao real.
Repliquei, sobretudo a Rubin, que já estávamos tomando medidas de contenção
fiscal, que aceitaríamos começar a tratar com técnicos do Fundo e com o Tesouro,
mas que era cedo para buscar um acordo formal com o FMI, embora a possibilidade
não me assustasse. Deixei entreabertas as portas. Cumpriram o prometido. A nota
do FMI, com o OK do Tesouro americano, apoiava Brasil, Argentina e México, que
viviam, em graus diferentes, situações análogas.
393
Confesso que não acreditava que obteríamos o apoio. Cheguei a registrar que se a
nota demorasse 24 horas chegaria tarde demais. Uma vez dado o apoio, porém, a
elevação da taxa de juros para a estratosfera me pareceu precipitada. Carlos
Menem, aflito, me telefonou, temendo que permitíssemos a flutuação do câmbio:
- Fernando, yo no creo que vás a dejar flotando el cambio, no? Confio en que vos
no vás a permitir que todo eso explote en el aire.
Respondi:
- Farei todo o possível para evitar isso.
Ainda tínhamos 52 bilhões de dólares nas reservas, daí minha pressa para, se fosse
o caso, promover alterações nas regras cambiais enquanto dispúnhamos de fôlego.
Com o apoio obtido achei que, se não havia luz, pelo menos se divisava uma
lamparina no fim do túnel. Enrique Iglesias me telefonou confirmando o respaldo
que teríamos da comunidade financeira internacional. Tudo isso gerou a esperança
de saírmos do buraco; esperança, naquele momento, não compartilhada por mim. A
Bolsa e as cotações subiam e desciam, às vezes fortemente e nos dois
sentidos, dependendo das declarações e dos rumores. O próprio presidente
americano Bill Clinton (às voltas com um processo de impeachment que
paralisava seu governo) fez declarações incisivas sobre a necessidade de rever
o sistema financeiro internacional para ajudar os países em crise. Chegou mesmo a
propor um fundo de emergência que colocaria à disposição de países sob pressão
especulativa uma massa de recursos, a juros baixos, suficiente para conter os
especuladores que apostavam na desvalorização das moedas. Clinton me
telefonou.
- Henrique [é assim que sempre me chamou], o que posso fazer para ajudar? Será
que você poderia dar uma declaração de apoio ao que eu disse? [sobre o fundo de
emergência].
Respondi que sim, e cumpriria logo em seguida. E também expliquei:
- Não posso de modo algum desvalorizar o real agora. Não tenho condições de
fazer isso. Vai dar a impressão de que enganei o povo.
- Compreendo - continuou ele, acrescentando: - Posso dizer claramente que nós
apoiamos a política de vocês. Mas não vai prejudicá-lo
nas eleições?
Disse-lhe que não, e que, ainda que prejudicassem, suas declarações
eram importantes para o Brasil.
394
Apesar das dificuldades, a equipe económica continuava dividida. Os favoráveis a
medidas ortodoxas, entre elas o aperto fiscal, se opunham aos que cogitavam de
medidas heterodoxas que nos livrassem da camisa-deforça juros/câmbio. As
posições de cada um não eram imutáveis.
Oscilavam. Edmar Bacha, por exemplo, que estava fora do governo, trabalhando
como consultor mas sempre me servindo de conselheiro informal, se posicionava
contra heterodoxias, embora a favor de romper a camisa-deforça. (Naturalmente, a
despeito de ter inteira confiança em Bacha, mas cioso de minhas responsabilidades
como Presidente, e tal qual sempre procedia em circunstâncias semelhantes, ouvi
sua opinião sem adiantar minha posição nem revelar o que se passava
internamente no governo.) Beto Mendonça, em reunião comigo e Clóvis Carvalho,
dia 20 de setembro, disse que qualquer mexida na equipe poderia
gerar desconfiança.
Como pano de fundo, existiam divergências genuínas de visão teórica e, em alguns
casos, disputa de posições na máquina governamental. E pouca gente a quem
apelar. Ou seja, com as pessoas que estavam à mão e sem desgastá-las em
desavenças ainda maiores, eu tinha dificuldades para tomar qualquer iniciativa
diferente de um forte ajuste fiscal.
Dez dias antes das eleições, li no Itamaraty um discurso preparado pelo Ministério
da Fazenda, mas muito emendado por mim e minha assessoria, anunciando
medidas fiscais duras e a provável ida ao FMI para negociar um acordo. A reação
foi muito positiva. Todos os líderes, dos países e instituições internacionais acima
referidos, do G-7 e de outros países amigos, me telefonaram ou enviaram
mensagens de felicitações pela coragem das medidas anunciadas, sobretudo em
momento pré- eleitoral, em geral estimulador de cautela e não de ousadia em
matéria de contenção fiscal. Para contrabalançar horizonte tão sombrio disse, em
entrevista posterior, que criaria um "Ministério da Produção". Pronto: luz vermelha
para quem via nas preocupações com o crescimento econômico reação negativa ao
rigor fiscal. Não era o que eu pensava. Queria apenas não desanimar o país com as
propostas de sucessivos cortes. Sem o desejar, reforcei a crença na existência de
um bloco coeso de "desenvolvimentistas" em contraposição ao dos "fiscalistas"
dentro do governo, como se houvesse uma contradição insanável entre estas
duas posições.
Não obstante, bem ou mal, também as repercussões internas do "pacote"
anunciado foram positivas. Eu me livrava de praticar um "estelionato
395
eleitoral", como disseram a respeito do Plano Cruzado, pois anunciava medidas
restritivas antes e não depois das eleições. A despeito desse cuidado, a tese do
"estelionato" reapareceu como arma política, tendo como um dos mais loquazes
arautos o deputado Delfim Netto. Useiro e vezeiro em promover
maxidesvalorizações e promessas não cumpridas durante seu período como
ministro da área económica dos governos militares, criticava com desfaçatez nossos
esforços para equilibrar a economia, para cujas aflições sua desastrosa política em
décadas anteriores tanto havia contribuído. A opinião geral era de
que conseguiríamos superar a crise.2 Eu, no entanto, não pensava assim.
Diante das loas cantadas em homenagem à disposição de cortar o déficit fiscal,
registrei, às vésperas da eleição: "Tudo isso é um pouco meia verdade. Certamente
existe um déficit fiscal a ser combatido, mas a questão que nunca foi enfrentada é a
cambial. A relação juros elevados/câmbio sobrevalorizado, esta é a questão central.
Tentei várias vezes mexer nesse tema. Na hora H, os economistas têm medo
da flutuação, têm medo, pior ainda, claro, do câmbio centralizado, têm medo do
câmbio fixo único. Discutimos lá atrás, em fevereiro do ano passado, e de novo
neste ano. Não deram nem um passo, mantiveram a posição ortodoxa." Descontado
o desabafo no calor do momento, eu considerava impossível manter aquele
equilíbrio de juros e câmbio e jogar tudo nas costas do Orçamento, ou seja, cortar,
cortar, cortar.
Havia debatido a respeito com Beto Mendonça e Clóvis Carvalho. Na nossa primeira
oportunidade de respirar, teríamos que enfrentar o problema.
Todos receávamos a volta da inflação, pois sua memória recente continuava
parecendo onipresente e seguiam existindo restos de indexação. Uma forte
desvalorização do real poderia desencadear um desajuste que levaria à alta de
preços. Nosso sentimento, portanto, não era desmotivado.
Nota: 2 Foi maciço o noticiário a respeito, dentro e fora do país. Ver, por exemplo, na
edição de 23/9/1998 de Veja, "Tufão sobre o país - Bancos e nações ricas armam
estratégia para defender o Brasil da tempestade financeira; na Folha de
São Paulo,
2/10/1998, "Rubin faz elogios ao Brasil"; ainda na Folha, 4/10/2005, "Empresários
se preparam para medidas de contenção". No exterior, a revista americana Business
Week, edição de 19/10/1998, trazia reportagem dizendo "O Brasil precisa
de empréstimos do FMI - e da reeleição de Cardoso"; a britânica The Economist,
por sua vez, na edição d? 29/10/1998, informava que "o pacote de austeridade vai
alavancar a longamente aguardada ajuda ao Brasil". Fim da nota.
396
Ninguém pode afirmar, com certeza, o momento adequado para promover
uma mudança de envergadura sem causar pesados prejuízos, em uma
economia ainda com grandes déficits. Paradoxalmente, a rigidez das posições
da Fazenda e do BC empurravam-me a cogitar de soluções menos ortodoxas.
Não chegou a haver "oportunidade para respirar". A situação se deteriorava a olhos
vistos. Em longa reunião com a área econômica na segunda-feira, 29 de setembro,
o pessimismo era grande. André Lara Resende, que mantivera contatos com o
Tesouro norte-americano, com o FMI e vários banqueiros internacionais, expôs um
resumo do que pensavam.
Anotei em minhas gravações: "Todo mundo pessimista. Eles não conhecem
a situação do Brasil e querem um ajuste fiscal de proporções enormes, que não é
absolutamente factível. E nós resolvemos ao final não restabelecer as negociações
com o Fundo à moda antiga, mas tentar forçar a discussão com novas
possibilidades, como, por exemplo, a questão relativa a esse fundo de emergência
proposto por Clinton. Não sei o que vai resultar disso tudo. Disse que nós
precisávamos manter uma posição altiva porque afinal é enorme a capacidade de o
Brasil criar embaraço para o mundo, e que nós não temos a menor condição
de entrar num desses acordos do FMI em que eles pedem o impossível."
A posição dos diversos ministros e responsáveis pela área económica não era muito
diferente. Chico Lopes mantinha-se contra qualquer heterodoxia. Não queria saber,
entretanto, de controle dos programas pelo Fundo. André, mais ousado nas medidas
a serem tomadas, chegando a falar em algum tipo de controle cambial, tampouco
morria de amores pela vigilância do Fundo. Em geral compartilhavam dessa posição
Pedro Parente, José Roberto, Clóvis Carvalho e Gustavo Franco, este
sempre resistente a soluções "fora do mercado". Pareceu-me que apenas
Malan tinha uma certa abertura para um entendimento com o FMI. Também
Luiz Carlos, realista, ponderava que o respaldo do Fundo poderia permitir
a retomada do fluxo de capitais, sem o qual nos afogaríamos. Ainda dispúnhamos
de 45 bilhões de dólares nas reservas. O capital especulativo voara; dali em diante o
capital dito nacional (incluindo-se o das empresas estrangeiras) escaparia em
volumes ao redor de 300 milhões por dia. Havia que decidir, antes que o
colapso decidisse por nós.
397
No dia 4 de outubro, fechadas as urnas, começou a contagem dos votos. O PSDB
dispunha de um "modelo estatístico" para, à medida que os resultados parciais
apareciam, calcular o resultado final. À noite, na sala de jogos do subsolo do
Alvorada, estávamos umas vinte pessoas, entre as quais, além de Ruth, familiares,
líderes políticos e alguns auxiliares do círculo íntimo, meu barbeiro, Raimundo
Manoel dos Santos, o "Dom Raimundo". Até a hora em que subi para o segundo
andar para deitar-me, ainda não se configurara vitória no primeiro turno.
Recordo-me que, entredormindo, pensava: "Dessa vez o segundo turno vai ser
difícil." Não faltou ansiedade.
A privatização das teles e o caso dos "grampos"
Mas eu ganhara as eleições. Tive 53% dos votos válidos, quase a mesma proporção
da eleição de 1994, quando alcancei 54%. A vitória não me permitiu um sorriso:
sabia melhor que ninguém das dificuldades que me esperavam. Ao mesmo tempo,
negociava a paz entre o Equador e o Peru, que mantinham escaramuças militares
por questões de fronteiras e terminariam assinando em Brasília, no fim do mês, um
acordo que pôs fim a seis décadas de problemas; começava a pensar na formação
do novo Ministério; ajudava, sempre nos limites da lei e do decoro, a eleição dos
companheiros que disputavam o segundo turno, como Mário Covas, que acabaria
obtendo a reeleição em São Paulo.
No caso de São Paulo, a maledicência correu solta: eu não apoiaria Covas, diziam.
Tudo porque Maluf, que concorria contra ele e tinha como vice Luiz Carlos Santos, a
instâncias deste último, mandou produzir outâoors em que me apoiava. Este é
sempre o dilema dos candidatos majoritários no Brasil: dada a fragmentação
provocada pelo sistema eleitoral, o próprio partido nunca tem, sozinho, votos para
garantir a eleição. Logo, precisa de apoios, que não implicam
necessariamente reciprocidade. Apoiei Mário Covas, é evidente, e votei
abertamente em meu companheiro no primeiro turno. Ganhas as eleições, dei
uma entrevista à TV Globo, e reafirmei meu apoio a Covas no segundo turno.
Ele me telefonou e dias depois enviou António Angarita, seu chefe da Casa Civil e
nosso amigo comum, e em seguida seu velho amigo José Maria Monteiro, que
deixara a presidência da estatal Companhia de Seguros do Estado de São Paulo
398
(Cosesp) para ser o coordenador político de sua campanha à reeleição, para discutir
como eu lhe emprestaria o apoio. Ganhou no segundo turno - para o bem de São
Paulo e do Brasil.
O dissabor da intriga em relação a Maluf não seria nada comparado ao
que representou a volta de algo que já havia sido divulgado no meio do ano, e que
se referia a uma realização da qual meu governo se orgulhava: a privatização dos
serviços de telefonia no Brasil. As notícias de "grampo" nos telefones do BNDES
atingiam Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações, e André Lara
Resende, presidente do banco no curso do processo de privatização. Essa escuta,
revelada de modo fragmentário, parte em meados do ano, pela Folha de
São Paulo,
parte no final do ano - desta feita por diferentes órgãos da imprensa -, em vez de
provocar repulsa pelo método desleal e ilegal de obter informações, gerou protestos
contra o governo e denúncias de "corrupção". Até meu impeachment chegou a ser
sugerido por um ou outro setor político e órgãos de imprensa!
As gravações telefónicas ilegais (provavelmente a serviço de interesses comerciais,
mas que se acusava de terem sido feitas por agentes da Agência Brasileira de
Informações, a Abin) pareciam envolver não apenas Luiz Carlos e André, mas o
próprio Presidente da República em manobras para beneficiar um dos concorrentes
num leilão de privatização das teles.
Para entender o episódio, é preciso antes contar o principal: como se deu a
privatização. O governo dividiu o sistema Telebrás, que comportava 27 empresas
estaduais controladas pela Telebrás (holding do sistema) e uma empresa de
telefonia de longa distância, a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel),
em quatro áreas: Tele Centro-Sul, Tele NorteLeste, Telesp (somente o estado de
São Paulo) e Embratel. Pelo plano de outorgas, definido por decreto
presidencial, proibia-se que um mesmo consórcio controlasse mais de uma área.
À Tele Norte-Leste correspondia a maior área do sistema, estendendo-se do Rio de
Janeiro à região Norte, passando por todos os da região Nordeste. Era vista como a
que mais exigiria da competência e capitais, pelo número de empresas existentes
(16) e pelas necessidades de expansão, definidas em lei sob a forma de metas de
universalização, em regiões de baixa densidade de telefones por habitante. Por
outro lado, pelas mesmas razões, apresentava um potencial de retorno dos
mais significativos.
399
O Ministério das Comunicações e o BNDES trabalharam intensamente nos meses e
semanas que antecederam o leilão para atrair o maior número de consórcios
possível para a disputa. Até a véspera, no entanto, o leilão da Tele Norte-Leste
corria o risco de fracassar. De início, surgira um único consórcio interessado,
liderado por uma grande operadora de telefonia, a Telecom Itália, em associação
com o fundo de investimentos Opportunity e com a possível participação da Previ,
fundo de pensão do BB. Em seguida, formou-se outro consórcio, integrado por
empresas nacionais sem prévia experiência no ramo de telecomunicações (como
o Grupo Jereissati, focado em indústria metalúrgica e comércio, e a construtora
Andrade Gutierrez) e sem sócios fortes no setor financeiro.
A formação desse consórcio nasceu cercada de problemas. Estimulou-a o próprio
ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, que pediu a Ricardo
Sérgio de Oliveira, diretor do BB, tido como influente na Previ, para mobilizar grupos
empresariais com a finalidade de criar competição na disputa pela Tele Norte-Leste.
Começaram em seguida as divergências entre os dois. Luiz Carlos Mendonça ficou
assustado com a falta de tradição em operações telefónicas do consórcio para o
qual Ricardo Sérgio havia ajudado a obter uma caução no BB, o Telemar.
Mendonça passou a tratá-los como "adversários".
Em depoimento no Senado em 20 de novembro de 1998, motivado pelo vazamento
dos "grampos do BNDES", Luiz Carlos declarou: "O Consórcio Telemar vinha sendo
formado com base num truque financeiro que foi por nós identificado ainda a tempo
de ser evitado e que consistia em pegar o dinheiro dos fundos de pensão, pagar a
primeira parcela, de 40%, e depois promover a fusão da empresa holding que eles
estavam comprando com as 16 empresas operacionais, transferindo os 60%
remanescentes da dívida para o Tesouro e diluindo essa dívida entre os
acionistas minoritários." Evitou-se o truque com a introdução, no edital do leilão, de
um dispositivo submetendo atos societários relativos à fusão e à incorporação das
empresas à aprovação dos acionistas minoritários.
Mesmo impedindo o artifício, no entender de Mendonça e de André Lara persistiram
as dúvidas sobre a capacidade financeira do consórcio Telemar. Tanto assim que,
quando se aproximava a data do leilão, 12 de julho, a seguradora do BB, que
também o integrava, aumentou sua participação nele, para tornar mais viável o
negócio. Simultaneamente, surgiram
400
problemas no outro consórcio, liderado pela Telecom Itália. É que a Previ
negaceava a assinatura de confirmação da existência do consórcio, condição
exigida pelo Citibank para a emissão de uma necessária carta de fiança. O impasse
continuou até o dia anterior ao leilão.
Deu-se então a conversa telefónica entre Ricardo Sérgio e Luiz Carlos em que o
primeiro diz a frase famosa: "Estamos no limite da irresponsabilidade." Ela aparece
quando Luiz Carlos sugere que o BB concedesse a carta de fiança ao consórcio da
Telecom Itália. Ricardo Sérgio responde que já havia comprometido recursos do
banco com o outro consórcio, e também com um dos consórcios que disputariam a
Embratel, e Luiz Carlos replica, ressaltando que não existia risco, porque uma
das cartas de fiança não teria efeito prático nenhum (pois só um dos consórcios
seria vencedor). O BB concedeu a carta de fiança ao consórcio da Telecom Itália,
tornando, pois, viável a competição entre pelo menos dois contendores, o que
beneficiaria o Tesouro, aumentando o valor dos lances.
Em suma, vendo que o consórcio montado pelo grupo nacional competidor
(o Telemar) ganhara musculatura, Luiz Carlos, André Lara e o vice-presidente do
BNDES, Pio Borges, resolveram mahtê-lo em cena, para não deixar o outro
consórcio competidor (o da Telecom Itália e Opportunity) chegar ao leilão como
único disposto a comprar a empresa.
Não imaginavam, no entanto, que o Telemar pudesse ser vencedor. É
nesse contexto que ocorre a conversa entre Luiz Carlos e André, "grampeada"
e publicada na imprensa, em que fazem referência a Pérsio Árida, à época sócio de
Daniel Dantas no Opportunity, e mencionam táticas de levar os dois grupos à
competição. Os termos da conversa, sem o contexto, deram a muitos a impressão
de que teria havido ingerência indevida dos responsáveis pelo processo de
privatização (e eventualmente interesses escusos) para beneficiar um dos grupos,
quando na verdade o propósito era forçar os dois à competição em prol do Tesouro.
A linha de defesa de Luiz Carlos no Senado consistiu justamente em assegurar que
tudo o que fez foi em defesa do interesse público, uma vez que promover a disputa
era essencial para elevar o preço final de compra da Tele Norte-Leste. "Recuso-me
a ser um ministro burocrata", dizia ele a respeito de sua atuação nos preparativos
do leilão. André ia pela mesma linha de argumentação: "O mocinho virou bandido,
se tivéssemos sido omissos quanto à competição, não estaríamos sob suspeita."
Luiz Carlos
401
agregava outro elemento à defesa: "Se quiséssemos favorecer o consórcio do
Opportunity teríamos dito a eles que o concorrente tinha dificuldades financeiras e
eles apresentariam o lance mínimo no leilão, mas na verdade apresentaram,
segundo me disseram depois, um lance 1 milhão de dólares acima do mínimo."
Ocorre que o leilão da Tele Centro-Sul se realizou antes do leilão da Tele Norte-
Leste e terminou sendo vencido por um consórcio liderado pela mesma Telecom
Itália. Em obediência ao plano de outorgas, que vedava a presença de uma
empresa no controle de mais de uma área, o envelope com o lance que a Telecom
Itália apresentara para o leilão da Tele Norte-Leste teve que ser imediatamente
picotado, sem sequer ser aberto. Resultado: o consórcio Telemar levou a Tele
Norte-Leste por apenas 1% acima do preço mínimo. Vencedora, conseguiu recursos
junto à Previ para concretizar o pagamento da primeira e maior parcela. Diga-se que
a Previ era e continuou sendo após meu governo controlada por um colegiado no
qual os empregados têm o mesmo número de representantes que a direção do BB
e, na época, os representantes dos funcionários eram ligados a partidos de
oposição, notadamente o PT.
O Ministério Público federal iniciou em outubro de 1998 investigação para apurar
eventual uso de informações privilegiadas no episódio. Em novembro de 1999, o
inquérito foi arquivado e todos os integrantes do governo inocentados. O saldo dos
leilões seria extraordinariamente positivo para o Tesouro e para a população.
Abordarei os benefícios da privatização das teles para o país mais adiante, no
Capítulo 9.
Naquele final de 1998, porém, o tema dos "grampos" telefónicos tomava proporções
descabidas e começava nova e mais abjeta infâmia, o malfadado "Dossiê Cayman",
uma papelada forjada por falsários em Miami, depois condenados à prisão, segundo
a qual Mário Covas, Sérgio Motta, José Serra e eu compartilharíamos uma conta
multimilionária num banco daquele paraíso fiscal do Caribe. A grosseira falsificação
não impediu a compra do material por pessoas próximas a Fernando Collor nem
que acabasse nas mãos de Paulo Maluf. Não alcançou o impacto eleitoral
que poderiam esperar (rumores a respeito circularam desde meados do
ano, durante a campanha eleitoral, embora só viessem fortemente à tona
em novembro, por meio da Folha de São Paulo). O fato é que ecoou meses a fio na
opinião mal informada, que sempre podia alegar que "onde
402
há fumaça há fogo". Mesmo com esse clima, empreendemos as negociações com o
FMI e continuamos a pedir ao Congresso o apoio necessário para governar.
Sai o acordo com o FMI - e saem também os irmãos Mendonça e André
Com o agravamento da crise financeira internacional, Malan voou para Washington
logo em seguida às eleições, para reuniões com as autoridades monetárias. De lá
informava a mim e a Pedro Parente (seu substituto interino no Ministério) o que
estava ocorrendo. Malan resistiu galhardamente às pressões do FMI. Elas iam na
direção de uma mudança brusca do regime cambial. Os representantes do G-7
pressionavam pela flutuação do câmbio, ou por uma subida forte do dólar, seguida
de fixação, ou, pelo menos, para que promovêssemos um grande alargamento da
banda de deslizamento do valor do real frente à moeda americana. A posição da
Fazenda, como disse, era de manter a política vigente, reforçar as reservas (daí a
necessidade de apoio do FMI) e recuperar progressivamente o crédito externo do
país, para só alterar o regime cambial em momento de mais calma, evitando-se
uma pressão inicial demasiado vigorosa sobre o real. Quando enfim nos chegou o
suporte do sistema financeiro internacional, ele veio nas condições
que propusemos, mantendo as regras cambiais vigentes. Eu entendia
que alterações maiores de rumo deveriam ter sido promovidas antes. Não daria
para adotá-las naquele momento sem correr um risco muito grande de descontrole.
Isso, reafirmo, depois de eu ter vencido as eleições e, portanto, sem qualquer
conotação de "populismo cambial".
Dei a cobertura que pude às negociações de Washington. Aproveitei para reforçar
nossas teses nos telefonemas de cumprimentos que recebi do Presidente francês
Jacques Chirac, do Primeiro-Ministro português António Guterres, do Rei Juan
Carlos, da Espanha, e seu Primeiro-Ministro José Maria Aznar, e de todos os
presidentes da América do Sul e o do México. Com Clinton conversei detidamente.
Expus as razões de por que não modificaríamos as regras cambiais e disse que
não poderia aceitar um programa de austeridade vindo do FMI que nos pedisse o
impossível. Nós próprios definiríamos nosso ajuste. Pedi que ele nos apoiasse e a
resposta
403
foi muito positiva: ajudou efetivamente nas negociações, sem questionar
nossa autonomia.
Ao mesmo tempo continuavam as tratativas para a reorganização do Ministério e
para abrir caminho, no médio prazo, a mudanças mais profundas nas políticas
macroeconômicas. No dia 7 de outubro fui informado de que Gustavo Franco, por
motivos pessoais, talvez não pudesse continuar no governo. A empresa que sua
mulher, Cristina, herdara, enfrentava dificuldades. Ademais seu pai, Guilherme
Arinos Barroso Franco, estava em idade avançada e requeria que Gustavo
se concentrasse nos negócios da família. Sua posição no BC obviamente o tolhia
do ponto de vista ético para agir, e ele teve que pedir para sair. Sondei Chico Lopes
para ver se, ocorrendo o afastamento de Gustavo, ele poderia substituí-lo no BC. Eu
estava determinado a agir com presteza e não levantar dúvidas, postergando as
modificações sobre a continuidade da política cambial. Chico pretendia alterações
maiores, e as colocou no papel algum tempo depois para meu conhecimento.
Mencionei que pretendia trazer André Lara Resende para Brasília, talvez na pasta
do Planejamento. Reafirmei que manteria Malan na Fazenda.
Contava com Malan, anotei, "como uma espécie de diplomata financeiro que ele é,
e dos melhores. Ele é muito correto, muito competente, muito tenaz, como
demonstrou agora mesmo nas negociações de Washington".
Não desisti, entretanto, de procurar meios para baixar a taxa de juros e ajustar o
câmbio. Acreditava que isso ocorreria nos seis meses seguintes. As negociações
com o Fundo foram se espichando por todo o mês de outubro. No dia 29, por causa
do tratado de paz entre Peru e Equador, Bill Clinton telefonou para me felicitar e me
pareceu um tanto preocupado com a demora na finalização do acordo com o FMI,
pois continuavam as restrições da banca internacional ao Brasil. Asseverei que
levaríamos ainda umas duas semanas antes de chegar a um entendimento. No fim
de outubro o governo publicou o programa de ajuste, chamado Programa de
Estabilização Fiscal (1999-2001). As dúvidas, no entanto, continuavam. Gustavo
Franco estava em Basiléia em reunião com os presidentes dos BCs das dez maiores
economias do mundo e com vários banqueiros. De lá me transmitiu a impressão de
que não acreditavam que levássemos adiante o ajuste fiscal. Malan, que conversara
por telefone com muitos deles, completou essas informações. Os americanos
nos apoiavam vigorosamente
404
na obtenção de um empréstimo de 40 bilhões de dólares, mas queriam que o G-7 e
os grandes bancos privados também se comprometessem na operação.
Finalmente, no dia 13 de novembro saiu o acordo, anunciado com pompa
e circunstância até pelo Presidente Clinton, que mostrou a importância de evitar um
colapso da economia brasileira. O cataclismo não ocorreu.
Na área política, contudo, a temperatura subira muito. Como sempre, o ajuste fiscal
provoca reação dos que não são da área económica. Somada à iminência de troca
de ministros para o novo mandato, aguçou apetites e conflitos. O comparecimento
de Luiz Carlos ao Senado para explicar as insinuações contidas no episódio dos
"grampos" abriu espaço para muita crítica, vinda de senadores formalmente
pertencentes à base de sustentação do governo. Pouca defesa mesmo por parte de
líderes governistas, inclusive do senador Élcio Álvares, sempre tão prestante.
As oposições, naturalmente, se deliciavam com "mais um escândalo".
Resultado: demissão de Luiz Carlos, José Roberto e de André Lara Resende,
apesar dos apelos meus e de Malan para que não o fizessem, pois a saída dos três
poderia convalidar as acusações, como se houvesse algo a esconder. O episódio
alimentou a troca de acusações entre PSDB, PFL e PMDB. Realizei reuniões
seguidas com os partidos e os adverti para, diante da gravidade da situação,
deixarem as disputas para depois. Inútil. No dia 2 de dezembro a Câmara rejeitou o
projeto de lei sobre taxação de inativos, os funcionários públicos aposentados,
que não haviam contribuído quase nada para a manutenção da Previdência pública.
A derrota do governo, inesperada, pois se tratava de matéria que requeria apenas
maioria simples, foi lida no exterior como falta de vontade para aplicar, de fato,
medidas de austeridade.
As conseqüências da derrota não tardaram. No dia seguinte, 3 de dezembro, as
bolsas despencaram, as taxas de juros futuros subiram e os rumores pelo mundo
afora se encarregaram de derramar pessimismo sobre a economia brasileira.
Anotei: "Isso, curiosamente, foi ontem, no mesmo dia em que o FMI aprovou o
empréstimo para o Brasil. O efeito positivo esperado perdeu-se graças à
irresponsabilidade da Câmara." Nesse dia 3, por ironia, eu estava reunido com Paulo
Paiva (que assumira o Ministério do Planejamento quando António Kandir se
afastou para se candidatar à Câmara) discutindo estratégias de responsabilidade
fiscal e o texto do projeto da LRF...
405
A demissão de Gustavo Franco
Daí por diante, mesmo com bilhões de dólares nas reservas e tudo o mais, não
houve quem convencesse esse personagem de má catadura chamado mercado de
que o Brasil estava seriamente empenhado em continuar no caminho da
austeridade. A imagem do que ocorrera na Rússia, onde bilhões de rublos foram
trocados por milhões de dólares de um programa de estabilização do Fundo e dos
bancos internacionais e voaram para contas privadas em bancos no exterior,
perseguia nosso país como pretexto para a volta da especulação. Alguns técnicos
de alto escalão do FMI, descontentes com o modo altivo como definimos nosso
programa, se encarregaram de soprar ao mercado que voltara à cena o
"risco Brasil".
Todos esses fatos me levaram a repensar a tática de ganhar tempo para mudar as
regras cambiais. Precisávamos apressar o processo. Tentei em dezembro e
começo de janeiro buscar um plano que acelerasse a desvalorização do real. Debati
com Gustavo Franco e Chico Lopes, e naturalmente com Pedro Malan, bem como
com os economistas próximos em quem confiava. As divisas minguavam a cada
semana. Gustavo trouxe dois documentos, em ocasiões diferentes, para responder
às minhas inquietações. Não consegui convencê-lo da necessidade de acelerar
o ritmo das minidesvalorizações. Ainda no dia 16 de dezembro reuni-me com ele e
anotei: "Sei que Chico Lopes gostaria de ser presidente do BC. O Gustavo está
cansado, mas ele é símbolo dessa política. Todo mundo critica a política de câmbio
e juros, mas não faz outra. Conversei com Malan sobre isso e sobre alguns nomes,
de novo, para ministérios." Tudo o que eu queria é que Gustavo, com a autoridade
de que dispunha diante do mercado financeiro, concordasse em caminhar mais
depressa no ajuste cambial. Até porque eu sabia que substituí-lo causaria
preocupação a Malan.
Na antevéspera do Natal recebi André em minha casa em São Paulo. André, antigo
batalhador por modificações mais profundas na política cambial e monetária, opinou
que chegara a hora de nomear Chico Lopes, pois Gustavo não cedia. Pedi a André
que ajudasse, juntamente com José Roberto Mendonça de Barros, mesmo estando
ambos fora do governo, na formulação de um novo Ministério, que seria "da
produção" e se transformou em "do desenvolvimento", entregue a Celso Lafer. Pedi-
lhe também que acompanhasse as idéias de Chico Lopes. No fim do ano, dia 28,
406
novamente tive uma conversa telefónica com André. Havia ainda a possibilidade de
manter Gustavo no BC e aproveitar suas férias para, com sua concordância,
começar a flexibilizar as bandas cambiais.
Afinal, seria apenas uma mudança de velocidade nas minidesvalorizações.
Voltei a debater o assunto com Gustavo e Malan, tanto antes do fim do ano como
no princípio de janeiro de 1999. Efisse a Malan que era melhor chamar logo Chico
Lopes. Malan ficou de contatá-lo, mas estava visivelmente perturbado com o que
percebia ser minha vontade de ir mais fundo na questão do BC se Gustavo não
cedesse. No jantar comemorativo da posse do segundo mandato, no Palácio da
Alvorada, a 1° de janeiro de 1999, abordei André e perguntei o que lhe parecera a
proposta de Chico Lopes de alargar a banda e deslizar mais depressa o câmbio.
Respondeu:
- Eu faria o mesmo.
Pedi-lhe que expusesse sua opinião a Malan. E reiterei a Gustavo no começo de
janeiro ponderações sobre maior flexibilidade. Não tendo conseguido êxito,
comuniquei a Malan que resolvera mudar o presidente do BC e que eu mesmo
cuidaria do assunto.
E assim fiz, penosamente, numa sexta-feira à noite, dia 9 de janeiro.
Telefonei ao presidente do BC e comuniquei:
- Gustavo, tomei a decisão de mudar a política e a presidência do Banco Central.
Gustavo, muito correto sempre, e sempre formal, retrucou com simplicidade:
- Pois não, Presidente.
E se prontificou a ajudar a transição. Ele entraria em férias, mas antes de deixar
oficialmente o governo faria o necessário para uma mudança com êxito.
A "moratória" de Itamar e a diagonal endógena
Tomada a decisão quanto à política cambial, eu não podia antever as surpresas e
dificuldades que me aguardavam. No afã de não perder colaboradores de valia,
vinha tateando as reações de uns e outros. Nos dias 4 e 7 de janeiro de 1999
discutira com Gustavo o que fazer e de tudo dei ciência a Malan. As propostas de
Gustavo e de Chico Lopes não eram inconciliáveis, as personalidades, sim. E as
aspirações no governo também.
407
Gustavo evoluiu Para a sugestão de uma espécie de "serpente", como se fez na
Europa. Centro da qual o câmbio flutuaria, e a cada dez dias o BC fixaria a ponto
médio do que ocorrera naquele intervalo. Chico Lopes queria uma desvalorização
imediata de 5 a 7% seguida de um cone de desvalorização, ou seja, ampliaríamos
seguidamente a margem de desvalorização, como se a cotação do real fosse
deslizando ao redor de um cone. Quando percebi que a "serpente" sugerida por
Gustavo mantinha o ritmo lento, perguntei quando, adotada sua proposta, a
confiança retornaria. Respondeu-me que em alguns meses. Eu tinha verdadeiro
pavor de ver nossas reservas próximas a zero. Pensei comigo: estamos esperando
Godot.
- Tudo isso era aflitivo. Na véspera da conversa decisiva com Gustavo, quando ele se
aferrou à toada antiga, anotei; "O difícil é que estamos repetindo o que aconteceu
em fevereiro de 1995, ou seja, a equipe não está coeza. E se eu demito um, para o
outro poder realizar a modificação, o mercado inteiro fica sabendo na hora. (...)
Situação delicada. (...) Vamos ter que colocar os dois, Gustavo e Chico
Lopes, numa linha de entendimento provisório, tomar uma decisão sobre qual vai
ser o tipo de medida e avançar. Com o que não posso mais concordar é com essa
taxa de juros na lua e a placidez com que tanto o Gustavo como um pouco o Malan
olham tudo isso, como se bastasse o ajuste fiscal." Tratava-se, na verdade, de uma
placidez aparente. Estávamos todos sob grande tensão.
No fim de semana que se seguiu ao telefonema em que comuniquei a Gustavo a
decisão de trocar a guarda, Malan viajou ao Rio para discutir com Chico Lopes e
com outros funcionários do BC, notadamente com Deflióstenes Madureira, sobre as
mudanças pretendidas. Voltou não muito Convencido do êxito da operação. Na
segunda-feira seguinte, 11 de janeiro* reunimo-nos em jantar no Alvorada, Malan,
Clóvis Carvalho, Chico Lopes e eu. Malan reiterou que não deveríamos divulgar a
troca na presidência do BC antes das novas regras. Chico Lopes, antevendo
a reprise de fevereiro-março de 1995, se opôs tenazmente a qualquer colaboração
com Gustavo, Faria sozinho as modificações. Entregou- me um documento
atualizando as medidas que gostaria de adotar e estava muito convicto da justeza
delas. Marcamos a data de 13 de janeiro para deslanchar as decisões. Que risco! -
diriam os supersticiosos, Mas era uma quarta-feira... Registrei: "Vai ser uma data
importante. Por quê?
Porque estamos mudando,
408
na prática, o regime cambial. Não sei como isso vai ser encarado, se haverá
corrida contra o real, se seremos capazes de agüentar, mas vamos sair do
imobilismo que nos está levando ao sufoco."
Enquanto preparava a mudança, despistava a todos, inclusive os mais próximos.
Não punha de lado meus objetivos finais, mas media o efeito de meus atos e
mesmo das aparências. Recordo ter sido procurado por Paulo Renato e José
Gregori, que vieram criticar a política cambial do BC. Defendi-a, como se não
estivesse a um triz de mudá-la. Qualquer piscada de olho, nessas horas, pode ser
fatal. Beto Mendonça, que esteve comigo no dia 11 de janeiro, insistiu que a
mudança deveria ser feita no Carnaval ou durante a Semana Santa, mas em
qualquer hipótese não passar de abril. Desconversei, pois Beto estava fora do
governo, e nem com ele, colaborador antigo e absolutamente confiável, eu
podia abrir o jogo.
Agindo assim, no dia 12, véspera do anúncio, viajei para Sergipe, dizendo que iria
descansar na casa de praia do governador Albano Franco (PMDB), na Praia do
Saco. A caminho, passei pelo Rio para inaugurar no vizinho município de Duque de
Caxias as novas instalações gráficas de O Globo. Levei vários parlamentares no
avião presidencial, inclusive o senador Antônio Carlos Magalhães. Conversamos
alegremente e nenhuma palavra sobre mudança alguma. Tampouco, é claro,
durante a cerimônia de inauguração. À entrada, alguns repórteres me dirigiram as
perguntas que o momento exigia, mostrando-se mais interessados em saber se
Malan continuaria ministro. Taxativamente reafirmei que sim. Perguntado
sobre Gustavo Franco, fingi que não ouvi.
A calma e o despistamento duraram pouco. Em Sergipe, mal tive tempo para me
alojar na casa de praia do governador Albano e dar um mergulho no mar. Voltei da
praia para jantar, acompanhado apenas por Leôncio Martins Rodrigues, cientista
político e meu velho amigo, e pelo ajudante-de-ordens, o já major-aviador Aldo
Miyaguti, pois o governador estava reunido com seus pares em São Luís.
Terminado o jantar, tocou o telefone. Era Clóvis Carvalho: os boatos corriam à solta
em Brasília, havia muito nervosismo na equipe, aconselhou-me a regressar.
Voltei logo na manhã seguinte.
Nem bem cheguei a Brasília, discursei ao país, tentando acalmar os ânimos. No
Palácio da Alvorada, assisti pela TV à explicação pouco convincente de Chico
Lopes sobre a nova regra cambial, que ele batizou de
409
"diagonal endógena". Nesse mesmo dia falei ao telefone com Michel Camdessus. A
conversa fluiu sem dificuldades, se bem que num contexto delicado. A equipe
económica entendera ser melhor promover as modificações sem consulta prévia ao
Fundo, por motivos óbvios, pois o organismo se oporia ao estabelecimento de
novas regras sem ter havido antes o ajuste fiscal.
Terminei o telefonema, ouvido por Malan, e transmiti o conteúdo aos demais
presentes ao Alvorada (Clóvis, Pedro Parente, Sérgio Amaral, Andrea Matarazzo,
secretário da Comunicação Social, e o secretário executivo da Fazenda, Amaury
Bier, um economista excepcional que integrara o Cebrap e que António Kandir
levara para o governo).
Assinalei que, embora Camdessus nada me tivesse pedido, eu acreditava que
"eles", quer dizer, o FMI e os banqueiros internacionais, no fundo queriam provas
adicionais de que continuaríamos seguindo o que consideravam o bom caminho.
Registrei minha reação assim: "O que é que eles querem? Algum sinal na
privatização. Já sei: ou a Petrobras ou o BB. Pois bem, eu não vou privatizar nem
uma nem outro. Eles estão colocando o sarrafo cada vez mais alto para nós
saltarmos. E ficam falando da questão fiscal. Mas estamos avançando no fiscal, que
ninguém duvide. O Congresso está cedendo (referia-me a uma primeira votação
da CPMF que aprovamos com facilidade). Agora, como é que vamos quebrar
os ritos da democracia? (...) Querem que vá depressa, o que a lei não permite. É
preciso que se entenda isso e o Fundo não pode exigir o que a democracia não
permite."
Esse era meu estado de ânimo naquele momento. Assegurei aos presentes que não
diria de público o que estava pensando e disse compreender as inquietações do
Fundo: consideravam Gustavo Franco mais sensível às necessidades do ajuste
fiscal e, penso, viam Chico Lopes como resistente a seu receituário. Contei a
observação que Camdessus me transmitiu sobre a necessária disposição para o
reajuste, e minha resposta reafirmando que já o estávamos levando adiante.
Motivos havia tanto para minha irritação quanto para a desconfiança do FMI. O
quadro político se deteriorara. Alguns setores industriais que pediam mudanças do
regime cambial com urgência, como certos líderes da Fiesp, continuavam
reclamando. Queriam taxas de juros menores imediatamente. Chegaram a
classificar-me de irresponsável por estar "em férias" quando deveria estar no
comando da economia...
410
Pior do que isso: alguns governadores recém-empossados se mobilizavam para não
se submeter às duras regras do ajuste fiscal, que vinha progressivamente se
impondo desde quando renegociamos as dívidas dos estados, em 1997. Com
efeito, no mesmo dia em que, nas circunstâncias a que já aludirei, o câmbio flutuou,
telefonou o ministro Carlos Velloso, do STF, comunicando-me que concedera liminar
em mandado de segurança proposto pelo governo do Rio Grande do Sul,
comandado há poucos dias por Olívio Dutra, do PT, para, em vez de pagar em
moeda a dívida gaúcha para com a União, depositar o valor contestado da parcela
vencida sob a forma de penhora de bens imóveis do estado, até que a Justiça
decidisse sobre a legitimidade dos débitos.
Muito pior fez o governador de Minas, Itamar Franco (PMDB). Ele havia perdido a
indicação para concorrer à Presidência por seu partido, como vimos, o que deixara o
PMDB livre para me apoiar. Inconformado, desencadeou verdadeira guerra de
guerrilha contra o governo federal.
Açulado por alguns colaboradores próximos, que nunca aceitaram a estabilização
nos moldes realizados pelo Plano Real, e menos ainda as privatizações, não teve
melhor idéia do que anunciar uma "moratória"
das dívidas de Minas. A medida era tecnicamente impossível, porque lei anterior
permitia ao Tesouro ressarcir-se automaticamente, não transferindo a Minas (no
caso) os recursos do IR e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) que o
governo federal efetua todo mês aos estados. Politicamente, porém, a
atitude do
governador bastou para produzir um desastre nas finanças nacionais. Em bom grau
por desconhecimento das complexidades institucionais do país, a notícia correu o
mundo como rastilho de pólvora.3 O valor dos títulos da dívida externa despencou e
aumentou consideravelmente a descrença na capacidade de o governo federal
efetivar o ajuste fiscal.
Não contentes com o estrago, os bravos guerrilheiros do governo
mineiro anunciaram que desfariam o acordo sobre o controle da
Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), firmado pelo governo
estadual anterior, de Eduardo Azeredo, quando privatizou parcialmente a empresa.
Com fumaças de um patriotismo ultrapassado e exacerbado e da suposta
Nota: Ver, por exemplo, "Itamar decreta moratória de 90 dias", Folha de
São
Paulo, 7/1/1999. Fim da nota.
411
defesa intransigente dos interesses de Minas contra a "derrama" da União,
continuaram, sem entender os novos tempos, na faina ingrata de, opondo-se a mim,
se oporem na prática a medidas naquele momento indispensáveis para permitir um
futuro melhor ao país. Na verdade o acordo de renegociação da dívida dos estados
livrou-os de pagar juros de 6% ou 7% ao mês, para pagar percentagem equivalente,
ou não muito mais que isso, ao ano. Diga- se de passagem, essa circunstância
explica parte do crescimento da dívida da União, que se financia a taxas em geral
10 pontos percentuais acima das que cobra dos estados. Os críticos
da renegociação da dívida dos estados jamais levam em conta esses dados.
O ministro Eliseu Padilha, que havia sido decisivo no apoio à eleição de Itamar para
o governo mineiro, tentou dissuadi-lo dos desatinos que estava cometendo. Esforço
vão, pois o governador agia com objetivos políticos e pouco se preocupava com as
conseqüências econômicas de seus atos e declarações. A tragicomédia persistiu
meses afora, perdendo impacto nos mercados à medida que a opinião pública se
apercebia do ridículo de algumas ações (por exemplo, cercar a sede do
governo mineiro, o Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, com soldados de elite
da PM, em uniforme de combate, até com máscaras no rosto, para "defender
Minas" de um iminente ataque federal... Ou "acantonar" tropas da PM às margens
de uma represa de Furnas sob o pretexto de exercícios de rotina, mas como se fora
com o objetivo de "resistir" a qualquer tentativa de privatização da estatal federal, tão
cara aos mineiros).
Apesar das adversidades, nos meus apontamentos de 13 de janeiro continuava a
sustentar a correção das decisões tomadas: "Vamos ter um braço de ferro duro com
esses que estão especulando uma vez mais. Só que agora, se vencermos essa
parada, teremos saído da armadilha juro/ câmbio. Vejo pelas notícias que alguns
estão começando a entender que a desvalorização vai permitir aumentar as
exportações."
A proposta de Chico Lopes, entretanto, não convenceu os mercados.4 Era apenas o
começo de uma trajetória do tipo rojão frustrado em noite de São João, que produz
fumaça, parece que vai se abrir em um chuveiro de prata e, de repente, murcha e
desaparece sem deixar rastro de beleza.
Nota: 4 Ver, por exemplo, "Governo muda política cambial; mercado reage com ceticismo",
Folha de São Paulo, 14/1/1999. Fim da nota.
412
No dia seguinte a sua apresentação, o diretor de fiscalização do BC, Cláudio Mauch,
demissionário desde há algum tempo, anunciou que iria mesmo embora, o que
aumentou a tensão dos mercados. O câmbio elevou-se para a ponta de
desvalorização admitida pela "diagonal endógena" de Chico Lopes: 1,32 real por
dólar, contra 1,22 real da abertura no dia anterior. As bolsas caíram 10 pontos
percentuais e as vendas dos títulos da dívida externa brasileira no mercado
internacional foram suspensas.
Registrei no sábado, 16 de janeiro: "Terminei minha gravação de anteontem
dizendo que lesjeux sontfaits. Infelizmente os jogos se fizeram e perdemos a
primeira rodada. Quinta-feira, dia 14, foi na verdade um dia desastroso."
Na noite da mesma quinta, Malan, Amaury Bier, Chico Lopes, Demóstenes e - não
estou seguro - provavelmente Pedro Parente jantaram juntos e discutiram até tarde
sobre que providências adotar para domar o mercado, essa fera temida. Às 7h30 da
manhã de sexta- feira Malan me telefonou, disse que havia trocado opiniões com
Stanley Fischer e que, depois das discussões durante o jantar, chegaram à
conclusão de que teríamos de seguir uma das alternativas: fechar o mercado
na sexta-feira para discutir com o FMI o que fazer; criar um currency board (que
demandaria tempo) e tornar fixa a taxa de câmbio, como na Argentina; ampliar a
banda de variação do real, fixando um valor mais alto para o teto (Malan achava
que o "centro" da banda deveria ser o teto anterior, de 1,32 real por dólar); ou deixar
o câmbio flutuar.
Repliquei que não me assustaria tomar as decisões necessárias. Não simpatizava
com o currency board, disse, "porque acho que isso no Brasil não vai funcionar".
Reiterei minha preocupação, antiga: decidir antes que as reservas se esgotassem.
A situação, no entanto, mudara. A fim de deter a sangria das reservas, tanto uma
banda bem mais larga quanto a flutuação do câmbio me pareciam opções viáveis,
embora envolvessem riscos. A opinião do BC era de permitir a flutuação, com o
que concordei.
Quando a decisão presidencial é, e deve ser, solitária
A essa altura, na manhã de sexta-feira, 15, parecia que nosso esforço de anos para
conseguir a estabilização ia evaporar em poucas horas de pressão contra a moeda.
À desvalorização rápida e forte se seguiria a temida
413
inflação, derretendo novamente os ganhos dos assalariados e desorganizando a
economia. André Lara Resende, que falou comigo pelo telefone de Paris,
entretanto, continuava entusiasmado com as mudanças.
Da mesma maneira, José Roberto Mendonça de Barros, com quem mantive longa
reunião, estava esperançoso. Pedi que animassem Malan. Anotei:
"Chico Lopes era a alternativa de que dispúnhamos para a mudança. Não havia
mais ninguém em volta."
Para surpresa geral, o câmbio oscilou até atingir um ponto máximo, e assimilável, de
1,55 real por dólar. As bolsas fecharam aquela sexta-feira com uma valorização de
33%. Nos dias subseqüentes as felicitações não tardaram a chegar, vindas seja de
interlocutores habituais, como Júlio Sanguinetti, Presidente do Uruguai, e
Enrique Iglesias, do BID, seja de empresários como o banqueiro José Safra e Paulo
Cunha, este dizendo que tínhamos demonstrado grande coragem. O Congresso
também se mostrou sensível ao momento. Tanto os principais líderes do PFL como
os do PMDB, para não mencionar o apoio constante do PSDB, perceberam que era
hora de acelerar as votações que permitiriam o ajuste fiscal.5
Olhando em retrospectiva, não havia razão para tanto entusiasmo. Com efeito eu
queria e, por fim, impus a mudança cambial. Vivi uma daquelas muitas ocasiões nas
quais a decisão presidencial é e tem que ser solitária. As coisas, contudo, não
saíram como desejado. O mercado estourou a velha política, mas também rejeitou a
fórmula proposta de uma desvalorização sob controle, embora mais acelerada.
Diante da realidade, tivemos que nos ajustar aos acontecimentos e dar a volta por
cima. Isso foi possível porque as modificações até então ocorridas na
economia brasileira propiciaram sustentação ao câmbio flutuante sem provocar
uma catástrofe: a renegociação das dívidas dos estados, a solidez do
sistema financeiro, graças aos tão criticados Proer e Proes, e o longo trabalho de
desindexação afastaram o fantasma da volta da inflação.
É fácil alguém dizer: por que não fizeram antes? Quem é capaz de responder com
certeza que, feita antes, a alteração cambial teria dado certo?
Nota: 5 Ver, por exemplo, "ACM e Temer prometem acelerar votação do ajuste", Folha de
São Paulo, 19/1/1999. Mais adiante, "Congresso assume amanhã com missão de
votar ajuste", na mesma Folha* 31/1/1999, Tambéiü "Apoiaremos PH até o final",
entrevista de Inocêncio Oliveira a limar FranCO) jomal do Brasil, 31/1/1999.
Fim da nota.
414
Vendo os fatos em retrospecto, acredito que no primeiro trimestre de 1998, sim,
poderia ter dado certa Decisões dessa envergadura, entretanto, se fazem com
pessoas de talento. Pessoas de talento têm ambições, idiossincrasias e, como foi o
caso, idéias divergentes; às vezes se precipitam, às vezes perdem a possibilidade
de atuar no momento adequado. Quem está no comando precisa saber de tudo isso
e, como se estivesse conduzindo um transatlântico, não imaginar que sozinho pode
dar uma freada ou uma guinada, sob pena de naufragar.
Naqueles dias tumultuados, e mesmo depois da aparente vitória, anotei:
"No balanço que fizemos (...) tínhamos pulado o Rubicão um pouco por acaso,
pelas circunstâncias que nos empurravam. A decisão que eu já tomara, na verdade
desde o ano passado, de mudar o regime cambial, se devia a razões óbvias, por
causa da taxa de juros e da impossibilidade de crescimento da economia, da
camisa-de-força em que estávamos. O temor que todos tínhamos, e evidentemente
ainda temos - porque vamos ver o que acontece na semana que vem -, era de que
o Brasil, como não é Inglaterra, desse em México. A Inglaterra promoveu uma
desvalorização, o mercado aceitou e pronto: não aconteceu nada. O México fez
uma desvalorização, o mercado não aceitou e deu um pulo, desvalorizou muito sua
moeda [refiro-me à crise de 1994, sobre as conseqüências da qual o Presidente
Ernesto Zedillo conversara comigo várias vezes]." Mais adiante observei que o
mercado até aquela altura nos estava impondo uma desvalorização de cerca de
20% e que, a ser assim, "é possível, através de uma política monetária austera,
controlar a subida da inflação. Se não atravessássemos o Rubicão não teríamos
como divisar um final de mandato com maiores perspectivas de crescimento da
economia".
A impressão de que poderíamos nos ajustar mais suavemente, como ocorrera com o
Reino Unido em 1992, foi percebida dessa forma também em Londres, como me
disse, por telefone, nosso embaixador, Rubens Barbosa.
Malan chegou a pedir demissão
Passado o susto inicial, e sem divisar quantas surpresas o futuro próximo nos
reservaria, pusemo-nos a repensar as políticas para sair do sufoco. Boa parte do
que restava da equipe econômica viajou para Washington e para
415
Londres, em busca de desafogo para o aperto financeiro: o mercado secara, não
havia linhas de crédito nem para as exportações. Em tais ocasiões os boatos se
intensificam, a especulação encontra terreno fértil.
Dos EUA, Malan relatava as dificuldades. O ministro das Finanças da Alemanha,
Oskar Lafontaine, do Partido Social-Democrata, não apoiava a posição do FMI, que
insistia em que aumentássemos os juros. Só não queria dizer isso de público para
não mostrar divisões de opinião no G-7. O Fundo de fato pressionava fortemente
por um aumento da taxa básica. Stanley Fischer propunha que a elevássemos dos
22% em que então se situava para 35% ao ano. No dia 19 de janeiro, tive uma
conferência telefónica com Malan, assistida por Chico Lopes e Pedro Parente.
Chico e eu desejávamos no máximo 31%. Por fim concordamos que Malan
poderia chegar aos 32%, para lhe permitir certa margem nas negociações com
o FMI. Tampouco Alan Greenspan, presidente do BC americano, o Fed, e
o presidente do Fed de Nova York, William MacDonough, refletindo a posição dos
banqueiros internacionais, viam necessidade de aumentos significativos. No Brasil,
governadores, políticos, empresários, é desnecessário dizer, opunham-se
fortemente a qualquer elevação. Quando a crise bate feio à porta é nesse contexto
que as decisões são tomadas:
não há ponto intermediário. É fechar os olhos, ou melhor, abri-los bem para tentar
enxergar mais longe, e decidir.
Indiferente às nossas dúvidas, o mercado continuou agindo, oscilando, castigando,
levando uns a ganhar, outros a perder e a economia nacional como um todo a
pagar os custos. Assim transcorreram os primeiros dias após a decisão de deixar o
câmbio flutuar. Por todos os lados, dúvidas, e quase todos, consciente ou
inconscientemente, ansiosos por "alguma regra". Depois de tantas décadas de
câmbio controlado, não era fácil para os agentes económicos e políticos se
acostumarem a deixar o mercado definir o nível de equilíbrio do câmbio, uma
quimera. Eu pensava comigo, e gravei: "Essa coisa de livre mercado, num
país subdesenvolvido como ainda é o Brasil, com essa mentalidade de que é preciso
ter as amarras no Estado, é complicada. Mais do que podemos imaginar."
No dia 20 de janeiro daquele 1999 o Congresso aprovou, por 334 a 140 votos, uma
medida adicional para facilitar o ajuste fiscal, no caso, em matéria previdenciária.
Telefonei imediatamente a Malan para que ele
416
transmitisse a informação aos descrentes técnicos do FMI. Não adiantou nada: no
dia 22 o câmbio chegou a atingir 1,80 real por dólar, embora fechando a 1,70. Com
essas e outras Malan, na volta, começou a falar em sair do governo.
- Eu, como ministro, sou o responsável - disse-me ele. - Se as coisas não deram
certo, é melhor imaginar outro ministro da Fazenda.
Rebati com energia, respondendo:
- Não concordo. Primeiro, porque se há algum responsável, sou eu.
Segundo porque é difícil encontrar alguém que o substitua neste momento. Tenho
falado pelo telefone com todo mundo aqui e lá fora.
Todos mantêm a confiança em você.
Voltei a falar por telefone com André e Luiz Carlos, que estavam na Europa. Malan e
eu pedimos a André que fosse aos EUA para falar com Stanley Fischer e com Larry
Summers, buscando ganhar confiança em nossas possibilidades de sair da crise.
Combinamos também que o BB venderia dólares para fazer o que os economistas
chamam uma dirty flotation, ou seja, uma "flutuação suja" - o governo apregoa que
é livre a flutuação, mas na prática intervém no mercado -, que deu resultado: o dólar
cedeu nos dias seguintes.
No meio tempo eu me comunicava com o público onde pudesse. Na CNI,
nas emissoras de TV, junto às bancadas parlamentares, recebendo
empresários estrangeiros, na inauguração de uma fábrica de automóvel ou
de compensados, em toda parte. Reafirmava minha confiança no Brasil, no rumo
traçado de austeridade fiscal e reajuste do câmbio, na competência do ministro da
Fazenda, em nossa capacidade negociadora e assim por diante. E escondia meu
estado de espírito, embora a mídia o registrasse,6 deformando às vezes meus atos
(dizendo, por exemplo, que eu "passara a perna" em Gustavo Franco) e
contrapondo minha expressão de ansiedade ao sorriso vitorioso de Itamar Franco
por causa de sua "moratória", como se minhas preocupações estivessem em
contraposição aos arroubos dele.
Nota: 6 Ver, por exemplo, O Globo, 9/2/1999, coluna "Panorama Político", nota sob o título
"O estresse de FH" citando o senador Pedro Simon: "Mas o homem que encontrei
agora, embora cordial como sempre, é outro, cansado e preocupado."
417
Enquanto isso, eu registrava parte do que me preocupava: "Hoje de manhã (era 22
de janeiro) ouço na TV que Menem já está se antecipando, discutindo a dolarização
e a união monetária da Argentina com os EUA.
Seria o golpe de morte no Mercosul - e aí o Brasil, ou fica isolado, ou ingressa na
Alca em condições piores do que nunca." O chanceler Lampreia, com quem almocei
em seguida, me tranqüilizou: haveria eleições na Argentina, eles não teriam
possibilidades de levar adiante a substituição do peso pelo dólar como moeda
corrente, tratava-se só de uma atitude acauteladora.
Malan insistiu muito em se demitir. Ele, que jamais acreditara na proposta de Chico
Lopes, se sentia desconfortável e via as imensas dificuldades que teríamos, no
exterior, para recuperar credibilidade.
Na verdade, pensava, seria necessária uma mudança mais radical na equipe,
inclusive com sua substituição e a de Chico Lopes. Quem sabe André iria para a
Fazenda, afirmava. No sábado, 23 de janeiro, Celso Lafer me telefonou e passou a
ligação para Affonso Celso Pastore, ex-presidente do BC por ano e meio durante o
governo do Presidente Figueiredo e meu antigo colega dos tempos da Faculdade
de Economia, quando éramos professores assistentes. Ele se mostrou franco
e realista: pensava ser inútil atuar na taxa de juros e disse que tudo derivava da
percepção dos credores. Estes viam o esforço fiscal como insuficiente e ainda
achavam que não tínhamos força política para implementá- lo. Era o fantasma da
moratória que ameaçava se materializar depois de haver assombrado, como o pai
de Hamlet, o dubitativo príncipe das Minas Gerais. Apesar disso, Pastore me disse
que haveria alguma inflação, o que ajudaria a colocar as contas em ordem, e que
deveríamos continuar no rumo e, sobretudo, resistir às pressões dos governadores.
O FMI queria que imitássemos o Plano Cavallo
Chamei André Lara Resende ao Brasil. No dia 26 jantamos no Alvorada com Malan,
Chico Lopes e Armínio Fraga, que estava em visita a Brasília, desligando-se de
suas atividades no grupo do investidor George Soros.
Por insistência de Malan, conversei com Armínio em um canto do grande salão de
estar do Alvorada e perguntei se no futuro se disporia a colaborar
418
com o governo. Naquele momento o BC não passava pela minha cabeça como lugar
de aterrissagem para ele, até porque os últimos dias haviam sido relativamente
calmos e as conclusões de nosso jantar menos pessimistas do que as análises dos
dias anteriores. André e o próprio Armínio sempre se manifestaram favoráveis às
modificações que, aos trancos e barrancos, estávamos realizando. Armínio
respondeu que não via urgência em mudanças no governo naquele janeiro mas
que, quando voltasse, em junho, se disporia a conversar sobre o tema.
No domingo, dia 24, Malan me telefonou para dar conta do que discutira com
Camdessus. A proposta do diretor-geral do FMI consistia em manter os juros
elevados e preparar condições para um currency board. Como ele sabia que eu me
oporia a imitar a Argentina, fixando o câmbio, mormente por meio de um currency
board, na prática propunha juros altos, controle da massa monetária e definição de
um alvo para a inflação.
Ouvido Malan, anotei: "Não deixa de ter (a proposta) racionalidade formal, mas falta
racionalidade substantiva. Como é que vou impor mais taxas de juros a esse país,
diante do Congresso, dos empresários, dos trabalhadores? Esse 'detalhe' - parece
que é detalhe para eles - o FMI nunca discute."
Mais tarde, no mesmo dia, recebi telefonema do responsável pelo Fundo.
Na conversa, Camdessus revelou-se, como sempre, caloroso. Disse que entendia
nossa preocupação com a autonomia decisória (cheguei a interpretá-lo mal,
achando que desejava lavar as mãos, e lhe disse que, àquela altura, não sairíamos
da crise sem apoio do Fundo), mas que seria útil se houvesse troca de informações
mais constante da nossa equipe com o Fundo e os mercados. Em sua opinião,
tínhamos três alternativas:
continuar com a política de Chico Lopes de câmbio flutuando sem juros altos; voltar
ao combinado em Washington em novembro, ou seja, nas palavras dele, defender
os ganhos do real, apertando a política monetária para que da desvalorização não
decorresse aumento da inflação;
ou, finalmente, aplicar o sistema de currency board, como feito por Cavallo na
Argentina. Esta última lhe parecia a melhor alternativa.
Camdessus estava inteirado por Enrique Iglesias de minha indignação com a
persistência das dúvidas sobre nossos propósitos, apesar da aprovação pelo
Congresso de todas as medidas de ajuste fiscal enviadas pelo
419
governo. As dúvidas se transformavam, pensava eu, em instrumento de pressão e
terminavam facilitando as especulações financeiras. Minha indignação provinha da
convicção de que faríamos o ajuste, "Essa é a situação nua e crua como vejo hoje.
Não me faltam forças para realmente liberar as forças produtivas do Brasil. Este vai
ser um ano de dureza no que diz respeito à questão fiscal. Esta é decisão já tomada,
nem é a decisão, é a empreitada na qual temos que nos meter. Para isso preciso de
homens fortes no governo junto comigo", anotei no dia 24.
No dia seguinte, foi a vez de Stanley Fischer ao telefone. Declarou-se com todas as
letras favorável ao currency board, embora sabedor de nossas resistências.
Manifestou entusiasmo ante nossa disposição de agir firmemente no ajuste fiscal,
mas, reiterou, o problema de credibilidade era muito sério. O Fundo e o governo
brasileiro estavam convencidos de que não havia risco de suspensão do pagamento
da dívida interna. No entanto, o governo precisava demonstrar ao mundo
como operava o mecanismo de financiamento interno no Brasil, pois a
imagem externa se formava com base no que ocorrera no México com os
tesobonus, ou seja, os títulos que financiavam a dívida interna do governo,
cotados em dólar. Mais delicada ainda era a falta de crença em nossa
capacidade de honrar a dívida externa. Seria necessário reunir os banqueiros e lhes
apresentar um cronograma crível de desembolso. Acrescentou que ninguém melhor
do que Malan para mostrar que o Brasil tinha uma âncora forte de credibilidade.
Também com o governo americano as tratativas prosseguiram. Tornei a falar com
Clinton no dia 29 de janeiro. Ele me disse que precisávamos trabalhar para fazer o
que eles chamam de confidence building. Ou seja, o Tesouro e o FMI não estavam
confiantes no BC brasileiro. Mencionou a questão dos governadores, reafirmando,
porém, a disposição de nos ajudar. Pedi que falasse com Robert Rubin para mostrar
ao FMI a necessidade de definir depressa o apoio ao Brasil A questão
básica persistia: percepção externa. Depois do acordo com o FMI em
novembro, que nunca tinha sido desejado por Chico Lopes, nem teve os amores
de Gustavo Franco, o BC, em vez de manter elevadas as taxas de juros, baixou-as
progressivamente, com o apoio de todos nós, governo, empresários, mídia, políticos,
enfim, da opinião pública. Estávamos confiantes em que o ajuste fiscal seria feito.
Quando, em dezembro, o Congresso recusou a contribuição dos inativos, o mundo
veio abaixo no exterior. Daí em diante
420
recomeçou a votação das medidas de ajuste e até mesmo a contribuição
dos inativos terminaria sendo finalmente aprovada. Na verdade o Congresso se
houve de modo admirável durante a crise. Do ponto de vista da percepção externa,
entretanto, de nada valeu. A "moratória"
inconseqüente de Itamar serviu de estopim para o estouro da boiada.
Entramos em cabo-de-guerra: nós a resistir a novas altas das taxas de juros, o
mundo financeiro externo a pedi-las. O FMI e o Tesouro americano, amuados por
não termos seguido o combinado, ainda por cima com as modificações de comando
e de linha no BC, não davam os sinais positivos necessários. Anotei no fim de
janeiro: "Esse silêncio pesado ou as falas constrangidas do Fundo e do Tesouro
passaram para o mercado a sensação de que não teríamos solidez para levar
adiante o processo e que as coisas iriam agravar-se."
Internamente a política continuava nervosa. Governadores de oposição, como Olívio
Dutra, do Rio Grande do Sul, e Anthony Garotinho (PDT), do Rio, além de Itamar,
continuavam ameaçando não pagar as dívidas, fazendo reuniões e lançando
manifestos em favor de uma revisão do "pacto federativo", eufemismo para pedir
mais dinheiro ao governo federal. Opositores tradicionais da política de câmbio do
BC, da nova e da antiga, aproveitavam o momento para opinar. Mas o economista
James Tobin, àquela época muito popular à esquerda por aquela proposta de taxar
as transações financeiras internacionais, deu uma entrevista aplaudindo as
decisões brasileiras. José Serra me transmitiu uma publicação na qual se descrevia
o conjunto de medidas adotado pelo Primeiro-Ministro da Malásia, Mahatir
Mohammed, para conter a crise asiática. O Estado de São Paulo pedia, em editorial, a
demissão do ministro da Saúde, sob alegação de que ele estava querendo
substituir Malan ("O presidente precisa demitir um ministro", 27/1/1999). A Folha de
São Paulo fazia contínuas pesquisas de opinião que mostravam a deterioração do
apoio popular a mim ("Para 70% dos paulistanos, crise vence FHC", 31/1/1999). Foi
nesses dias que o petista Tarso Genro, prefeito de Porto Alegre, publicou seu artigo
sobre o encurtamento de meu mandato. Era assim o dia-a-dia, com um sabor de
volta a um passado de descontrole econômico e administrativo e de instabilidade
política.
Isso três meses depois de uma reeleição consagradora. Nesse clima, eu me
concentrava no essencial: repor a economia nos trilhos.
421
Vi rancor nos olhos do povo
Dia 29 de janeiro o dólar rompeu a temida barreira psicológica dos 2 reais. Era o que
os economistas chamam de overshooting (um superpontapé, em linguagem mais
vulgar). Malan insistia: ou o FMI envia logo uma missão para negociar conosco ou
não teremos condições para segurar o caos. Neste contexto viajei a São Paulo para
inaugurar as novas instalações da TV Globo. À tarde o telefone não parava. Ora era
o general Alberto Cardoso, chefe do Gabinete Militar, ora o doutor Lucena, chefe de
meu gabinete pessoal, e o tempo todo Ana Tavares, que me acompanhava na
viagem e recebia informações telefónicas incessantes:
notícias de corrida bancária. O boato do momento assegurava que no fim de
semana decretaríamos o congelamento dos depósitos, como se deu na estréia do
governo Collor. Naquela tarde, quando o cortejo presidencial descia a avenida
Rebouças, em São Paulo, percebi e senti, pela primeira e única vez no exercício da
Presidência, o olhar de distanciamento, a perplexidade e até o rancor do povo. Nas
campanhas eleitorais e em atos públicos de governo vi com freqüência olhares
enfurecidos, mas sempre de militantes políticos adversários. Não da massa popular
que, no Brasil, é antes receptiva à autoridade do que ameaçadora. Naquela sexta-
feira, entretanto, o ânimo, mesmo mudo, era outro.
Embora houvesse veículos da segurança da Presidência à frente e atrás de meu
carro, eu não gostava do espalhafato que normalmente acompanha os trajetos do
Presidente e não apenas não queria batedores de motocicleta com sirenes ligadas
à minha volta como não permitia que se controlassem os semáforos para nos dar
passagem. Assim, era vagarosamente que o cortejo presidencial descia a avenida,
indo de minha casa, no bairro de Higienópolis, para a nova sede da Rede Globo na
região da avenida Luís Carlos Berrini, próxima à avenida Marginal de Pinheiros.
Podia perceber com nitidez a atitude das pessoas. Ninguém me saudou com as
mãos, como o habitual. Eu via nos olhares perplexidade, medo, ressentimento.
Ao final da inauguração concedi uma entrevista à Globo. Indagado com ansiedade
pela jornalista Miriam Leitão sobre a situação, também pela primeira vez baixei a
guarda. Em lugar do otimismo oficial, disse que, tal como nos tempos da Segunda
Guerra Mundial Churchill falara em
422
sangue, suor e lágrimas, teríamos que, sem sangue, suar muito e sofrer bastante
para rearrumar a casa. Não haveria moratória alguma, mas aperto fiscal. Do local
da inauguração segui para o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista,
para conversar com Mário Covas, não sem antes reunir-me com Andréa Matarazzo,
ministro da Comunicação Social, para contra-atacar a onda de boatos.
No Palácio dos Bandeirantes reafirmei à imprensa que nada do que estávamos
fazendo ou faríamos se comparava às medidas de Collor. Que eu, reeleito em
primeiro turno com mais de 35 milhões de votos e com toda uma história de nunca
enganar o povo, não iria perder esse património político com medidas demagógicas.
Os bancos continuariam abertos na segunda-feira seguinte e não haveria
congelamento de nada, depósitos ou preços, e eu jamais tocaria na poupança da
população.
Manteríamos a política desenhada desde o Plano Real.
O encontro com Covas foi excepcional. Primeiro porque ele, apesar de àquela altura
já estar se submetendo a quimioterapia para o tratamento do grave câncer que
finalmente o derrotaria em 2001, me pareceu vigoroso e animado. Depois porque,
embora achasse que eu deveria trocar o comando da economia para recuperar a
confiança da população, aceitou minhas ponderações. Disse-lhe:
- O problema é: quem nomear? Não é fácil, não se encontra uma pessoa. O Pedro
Malan está aberto. Tem tido uma grande franqueza e uma solidariedade
excepcionais para comigo e para com o Brasil. Meu receio é introduzir mais um
elemento de instabilidade.
Mário não só concordou como se dispôs a ir a Brasília, em reunião com
os governadores, para manifestar apoio ao governo federal. Reafirmou que sabia
avaliar as dificuldades e que, fosse qual fosse minha decisão, seria solidário a ela.
Retornei a Brasília e no dia seguinte, sábado, chamei Pedro Malan e Pedro Parente
para uma conversa decisiva. Anotei: "O dia foi terrível.
À noite [de sexta para sábado] fui dando balanço, boatos de todo tipo, o dólar a 2
reais e não sei quanto, uma coisa desatinada." Passei o dia trocando idéias e
informações com Malan e Parente e dependurado ao telefone com os personagens
de sempre, Pérsio e André. Com eles discuti a sugestão do Fundo e de Cavallo -
que desde há muito, como vimos, nos instava a imitar a Argentina -, de criarmos um
cunency bord. Não
423
obstante sabedores ao efeito rápido que isso ocasionaria na taxa de juros,
provocando sua queda, temiam a mudança sem que antes tivessem ocorrido os
efeitos do ajuste fiscal. Por outro lado, consideravam a flutuação do câmbio um
mecanismo superior ao currency board. A pressão sobre o real, disse Pérsio, é uma
bolha que vai furar.
Armínio no BC ajuda a restaurar a confiança
Merece registro, ainda, a conversa telefónica que tive com Robert Rubin, na manhã
desse sábado. Ele se encontrava no Fórum Económico Mundial, em Davos? na
Suíça. A conversa foi muito longa, calma, com jeito agradável.
- O senhor sabe, Presidente, além dos recursos há a questão da confiança. É
preciso restabelecê-la.
Ele se referia, naturalmente, à mudança cambial sem qualquer aviso prévio ao FMI e
ao Tesouro dos EUA. Na prática, embora não me tenha dito dessa forma, confiança
de volta queria dizer mudar a direção do BC. Da reunião de Davos recebi também,
por meio de Lampreia, avaliações pessimistas. Um diretor do Goldman Sachs lhe
mostrara um relatório em que o banco reiterava a necessidade de reestruturação de
nossas dívidas.
Evitei entrar em detalhes com Rubin sobre assuntos internos nossos e disse que
Stanley FÍscher precisava vir ao Brasil para retomar logo as negociações.
Relembrei-o de meus argumentos, mas avancei com outro com o qual ele estava de
acordo: se subíssemos a taxa de juros, o mercado que olha para o cârflbio não
tomaria conhecimento disso e o mercado que olha para a dívida interna acharia que
tornávamos mais difícil ainda o seu pagamento. Logo pioraria a nossa situação.
Insisti que o aumento dos juros era uma imposição do FMI que não tinha cabimento
e precisava ser revista.
Apesar da boa vontade de Rubin e de seu tom amistoso, no fundo era uma conversa
de surdos. Com ele, que era dos mais sensíveis aos nossos argumentos, e com os
demais. Nós preocupados com a disparada do dólar, que estava acontecendo, e
eles com a da inflação, que não ocorrera.
Pediam juros mais altos para controlar uma eventual inflação, com o que não se
resolvia a disparada do dólar. Para resolvê-la precisávamos de um empréstimo
urgente que solidificasse nossas reservas e permitisse a retomada
424
da confiança, a qual tinha menos a ver com pessoas do que com fatos. Havia
que mostrar cacife para entrar no jogo.
Por razões internas, entretanto, era preciso mudar as pessoas. Fiquei chocado
quando Chico Lopes, no meio de toda a confusão armada com a corrida bancária,
sequer me telefonou. Viajou para seu sítio em Teresópolis (RJ) e de lá voltou na
segunda-feira para ter uma conversa comigo, quando lhe informei da decisão
tomada de substituí-lo. Coube novamente a mim a ingrata tarefa de demitir um
colaborador. A mídia a dizer, como já acontecera várias vezes antes, que eu não
gostava de demitir ninguém (a propósito, isso é coisa para se gostar?), e eu,
para poupar o ministro da Fazenda, a quem o presidente do BC se
reportava, exercendo uma das piores exigências da vida pública.
Chico Lopes me perguntou por quem seria substituído. Quando disse que por
Armínio Fraga - como logo comentarei -, demonstrou alívio, pois considerava que
sua linha seria mantida. Achava o que ocorrera algo normal no início de uma
experiência nova com o câmbio flutuante (o câmbio abrira naquela segunda-feira a
1,76 real por dólar, quando na sexta-feira anterior chegara a 2,15), que
provavelmente haveria uma inflação de uns 30%, mas teríamos saltado o Rubicão.
No futuro, disse ele, essa política renderia frutos, pois permitiria a retomada
do crescimento. Deixou claro que lhe parecia um erro sua substituição.
Quem sabe mesmo atribuísse minha decisão de tê-lo nomeado como mero
jogo político, quando não uma manobra para afastar Gustavo de modo a colocar no
lugar quem eu realmente queria. Registro tais observações para mostrar o estilo de
Chico Lopes: um intelectual inteligente e dedicado, com pouco senso político e, até
quanto possa julgar, absolutamente decente. As infâmias e humilhações que ele
sofreu posteriormente não guardam qualquer proporção com os atos praticados. Nas
vezes em que interagiu comigo, sempre o vi movido por convicções. Um tanto
abstratas para o exercício da chefia em posições públicas, o que lhe custou o cargo,
mas nunca de má-fé.
Mas não era só isso. Malan, como disse, nunca se sentiu confortável com a
orientação do BC sob Chico Lopes. Naquelas circunstâncias eu não deveria aceitar
a demissão do ministro, apresentada por escrito na tarde de domingo, dia 31, e não
poderia manter a ambigüidade de comando. Havendo passado em revista com
Malan e Pedro Parente todas as dificuldades, já no sábado, 30 de janeiro - dois dias
antes de demitir Chico Lopes
425
-, tinha autorizado Parente a sondar Armínio para ocupar a presidência do
BC, Depois do sinal verde, no domingo telefonei para ele em Nova York e
combinamos que na terça-feira, 2 de fevereiro, estaria novamente no Brasil para se
incorporar ao governo.
Houve críticas à escolha. Elio Gaspari se antecipara em sua coluna em O Globo e
na Folha de São Paulo, chamando a atenção para o risco de conferir à raposa a
guarda do galinheiro.7 Até Lula, em geral pouco ativo na oposição direta a mim, fez
comentários na mesma linha.8 Eu pensando comigo: é exatamente disso que
precisamos; de alguém que, sendo honesto, conheça o funcionamento dos
mercados financeiros, dos chamados derivativos e da especulação, e que use esse
conhecimento para defender a moeda e os interesses nacionais. Em geral a
acolhida ao nome de Armínio foi positiva.
Havia ainda outros problemas a contornar: a Constituição requer a aprovação do
presidente do BC pelo Senado. Este dera seu assentimento a Chico Lopes, que se
saiu com brilho da respectiva sabatina, apenas uma semana antes. Além do que, a
Casa entraria em recesso. Malan, a instâncias de Pedro Parente, conversou com o
presidente do Senado para explicar a situação e pedir compreensão, e obteve
sucesso. Antônio Carlos dirigiu-se à imprensa e elogiou Armínio, carioca com
raízes familiares na Bahia. O gesto de ACM, por sinal, permitiu que alguns políticos,
sobretudo do PSDB, divisassem na nomeação o aumento da influência do cacique
baiano, que absolutamente nada teve a ver com a decisão. O saldo: mais
disposição negativa de setores políticos contra o "predomínio" do PFL no governo...
Recebíamos fogo amigo, e, claro, rajadas de balas da oposição. Notas
de governadores, respostas do Planalto, brigas no Congresso por causa da eleição
das Mesas Diretoras, imprensa fustigando e nós na dura luta para convencer o FMI
a liberar recursos. O Fundo condicionava a liberação à aprovação final da CPMF,
medida que, junto com a implantação de um imposto sobre combustíveis, era mais
importante para o governo equilibrar as contas do que o próprio FMI imaginava.
Fomos aprovando tudo,
Nota: 7 Ver "O governo capturou o especulador", publicado nos dois jornais a 7/2/1999.
8 Ver "Itamar e Lula criticam mudança no BC", Folha de São Paulo, 3/2/1999.
Fim da nota.
426
item por item, e as nomeações políticas que assinei na recomposição do Ministério
mostraram sua utilidade, apesar das críticas de quem esperava que, pelo menos no
segundo mandato, eu montasse um Ministério "purosangue", com grandes nomes.
Com o transcorrer do tempo, a situação internacional - que estivera na origem de
nossa crise desde os acontecimentos com a Rússia, passando pela falência de um
grande fundo americano de investimentos, o Long Term Capital Management
(LTCM) - ia se desanuviando. A bolha financeira americana não arrebentou com
fragor. As linhas de crédito começaram a fluir nos fins de fevereiro e as discussões,
árduas, com os técnicos do Fundo progrediram. Stanley Fischer, antigo conhecedor
da economia e das pessoas do Brasil, auxiliado pela economista italiana
Teresa Ter-Minassian, da direção do Fundo, abandonaram a infeliz idéia de formar
um currency board. Do nosso lado, Malan, Amaury Bier, Pedro Parente e Armínio
Fraga passaram a formular, sob minhas vistas, o que veio a ser depois uma nova
política macroeconômica, que continuou sendo seguida no governo Lula, baseada
em três pontos: câmbio flutuante, metas de superávit primário e metas de inflação.
Stanley Fischer veio ao Brasil e Cavallo continuou a propagar as vantagens do
currency board em visita a mim em Brasília (argumentando, não sem razão, que
não deveríamos afastar de todo essa hipótese para evitar, taticamente, a
preocupação dos mercados com uma decisão de centralizar o câmbio).
Atuando oficialmente como consultor de Malan enquanto o Senado não voltasse a
se reunir para referendar sua indicação, Armínio começou a montar equipe e a
operar. Entusiasmado com a nova política que se ia desenhando, conseguiu ir
restabelecendo a buscada confiança. Para reforçá-la, gostaria de um programa de
privatizações mais agressivo, sobre o qual eu tinha dúvidas.
Na sexta-feira antes do Carnaval recebi o Presidente Menem em São José dos
Campos (SP), a caminho de uma visita à estância climática de Campos do Jordão,
frustrada pelo mau tempo, para ir acertando com ele as reações dos argentinos às
conseqüências do câmbio livre e da desvalorização do real, que tornaram os
produtos brasileiros bem mais competitivos em seu mercado. Durante o Carnaval, na
casa de campo em Ibiúna, me pus a ler e a falar ao telefone para entender
em profundidade o novo
427
sistema de metas inflacionárias. Passamos o final de fevereiro discutindo o nível do
superávit primário desejado. Propusemos 3,1% do PIB, o Fundo queria mais:
3,25%. Sempre a mesma tática de subir o sarrafo para ver se saltávamos. A
economia real funcionando razoavelmente, a despeito de tudo. Empresas
estrangeiras e nacionais informando-nos que continuariam investindo no Brasil.
Nem por isso os mercados financeiros deixavam de corcovear. Enquanto isso,
sabatinado no Senado, Armínio reagiu com serenidade e altivez às insinuações
de uns poucos cuja imaginação e compreensão da coisa pública têm
alcance limitado. O senador Simon, por exemplo, fora duríssimo. Havia por trás de
cada pergunta a pressuposição de que o galinheiro estava sendo entregue
efetivamente à raposa. Eu recomendara que Armínio agisse com prudência e
firmeza. Registrei para mim mesmo ao gravador o que lhe dissera: "Você vai fazer
esse debate no Senado. Não se impressione, você tem que ser aprovado. O debate
é como jornal: no dia seguinte ninguém mais se lembra. Não se esqueça de que
seu objetivo é ser aprovado. Você vai ser. Mas não se esqueça também do
seguinte: o Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas não gostam
do capitalismo, os jornalistas não gostam do capitalismo, os universitários não
gostam do capitalismo. E, no capitalismo, têm horror aos bancos, ao sistema
financeiro e aos especuladores. Então o ponto fraco vai ser sua relação com Soros.
Eles não sabem que não gostam do sistema capitalista, mas não gostam. Gostam
do Estado, gostam de intervenção, do controle, do controle do câmbio, o que puder
ser conservador é melhor do que ser liberal.
"Essa é uma dificuldade imensa que temos, porque estamos propondo a integração
do Brasil ao sistema internacional. Eles não gostam nem do capitalismo nacional,
quanto mais do internacional, desconfiam de nossa ligação com o sistema
internacional. O ideal, o pressuposto, que está por trás das cabeças, é um regime
não-capitalista e isolado, com Estado forte e bem-estar social amplo. Isso tudo é
utópico, as pessoas não têm consciência, (...) Um governo que se propõe a fazer a
integração do Brasil à nova divisão internacional do trabalho é visto
como neoliberal. Isso é xingamento, e quer dizer na prática que o governo tem
distância ou ojeriza ao social. Mesmo que se mostre por 'A' mais 'B' que meu
governo foi o que mais realizou pelo social, não adianta, porque também foi o que
mais fez pela integração do Brasil ao sistema mundial, e isto não é bem-visto aqui."
428
A lembrança da verdadeira guerra empreendida por alguns senadores contra Luiz
Carlos Mendonça de Barros quando do caso dos "grampos" do BNDES continuava
a me preocupar. Mas Armínio houve-se muito bem no Senado.
Chegou a desarmar os ânimos quando, depois de muito criticado, até por ter mãe
norte-americana (a que ponto chega a má-vontade de oposicionistas), respondeu
assim à provocação do senador Saturnino Braga (PSB-RJ) de que seria um "génio
do mal":
- Génio não sei, mas sou do bem....
Para a retomada da confiança, contou muito o jeito de Armínio. Simples, direto,
convincente. Além de tudo, desde princípios de março, começamos a perceber
sinais de melhoria na economia. Reagindo a nova puxada na taxa de juros, que
chegou a 45% no dia 5 de março, o mercado cedeu na pressão altista do dólar. Os
dados sobre a inflação surpreenderam. Os índices para o consumidor no acumulado
do ano calculados pela Fundação Instituto de Pesquisas Económicas (Fipe), ligada
à USP, não ultrapassavam 2% até março. Imaginávamos ser possível chegar à
época do salário mínimo com uma inflação próxima a 7% e ao fim do ano com 11%
ou 12%. Anotei que se continuasse assim a taxa de juros poderia
cair significativamente.
Isso de fato ocorreu. O Congresso aprovou a CPMF, tivemos uma reunião muito
positiva com os governadores em fins de março e Armínio Fraga continuou lutando
com o Fundo para utilizar com maior liberdade as reservas, de modo que o mercado
visse que tínhamos "bala na agulha". A limitação no uso das reservas após
obtermos os empréstimos do FMI já tinha atado nossas mãos nos meses anteriores,
praticamente impedindo as intervenções pontuais para conter a pressão sobre o
câmbio. Vencidas as dificuldades, Stanley Fischer telefonou em abril. Em ligação de
semanas antes, ele havia perguntado se os dados de inflação que recebera
eram acurados. Respondi-lhe que sim. Dessa feita, disse apenas:
- Só quero felicitá-lo. É um prazer ver o que aconteceu com a economia brasileira,
depois de tantas dificuldades.
As taxas de juros efetivamente começaram a cair até atingir 19,5% em julho e 19%
em setembro, correspondendo a uma taxa real de cerca de 10%, alta, é verdade,
mas a menor desde o início do governo. A economia se recuperava. Não era essa,
entretanto a percepção dos políticos. No Congresso, começaram a lutar pelo
controle de CPIs, a do Sistema Financeiro
429
e a do Judiciário. Os fundamentos para a nova etapa da economia brasileira, no
entanto, estavam lançados. O sistema de metas inflacionárias seria mantido pelo
governo seguinte e sancionei a LRF em 2000. Esses são os pilares da estabilidade
económica. Por outro lado, a flutuação do câmbio abriu espaço para o Brasil voltar a
ser uma economia exportadora mais sólida.
A hipótese de um governo Lula assusta os mercados
Os fundamentos do real voltaram a ser testados em 2002, ano delicado para a
economia por causa das conseqüências imaginadas pelo mercado com a eventual
eleição de Lula para a Presidência da República. Àquela altura o país não sabia o
quanto o PT e seu candidato haviam mudado.
Mesmo porque eles não se deram ao trabalho de informar ao eleitorado que iriam
seguir, e com a paixão dos recém-convertidos, as linhas fundamentais do que fomos
estabelecendo, com muito esforço, desde 1993, contando sempre com a oposição
encarniçada e muitas vezes desleal deles próprios e de seus aliados.
Restabelecida a confiança na economia brasileira, os investimentos voltaram a fluir
do exterior e a brotar no interior. Em 2000 atingimos um pico de 33 bilhões de
dólares em investimento estrangeiro direto, com o Brasil se situando atrás apenas
da China, entre as economias emergentes, na atração deste tipo de recursos. O PIB
cresceu 4,4%. Mesmo em 2001, apesar da crise de energia, houve um bom volume
de investimentos. Os governamentais atingiram 20,9 bilhões de reais, soma apenas
inferior, em toda a série de dados disponíveis no Tesouro Nacional, aos 21,7
bilhões investidos em 1987.
A situação se tornou mais tensa depois do 11 de setembro de 2001, com o atentado
às torres gémeas em Nova York, Ainda assim, no fim do ano a economia retornou
marcha ascendente e no primeiro trimestre de 2002 os dados mostraram-se
razoavelmente positivos, mesmo comparados com o primeiro trimestre de 2001, de
forte crescimento.
Em minhas lembranças o horizonte começou a toldar em abril. No começo do mês
eu cheguei a anotar que havia uma "prosperidade relativa", que poderia
desaparecer se o Congresso não continuasse votando as medidas necessárias.
Eram a renovação das mesmas, em um percurso de Sísifo,
430
ou pequenos passos na senda aberta por votações anteriores: CPMF, reforma
tributária, da Previdência etc. Seria nesse abril que a investigação do Ministério
Público sobre fraudes na aplicação de incentivos fiscais levaria à apreensão, pela
Polícia Federal, de recursos de origem pouco clara numa empresa da governadora
do Maranhão, então pré-candidata à Presidência da República. Embora o
governo federal nada tivesse a ver com o affaire, como expliquei no final do Capítulo
4, o PFL, partido da governadora - que marchara comigo desde a aliança de 1994,
e ao qual pertencia meu Vice, Marco Maciel -, não se conformou e iniciou um
processo de ruptura política, complicando a sustentação do governo no Congresso.
A cena internacional era desanimadora. A Argentina, passados os anos de ilusão da
paridade cambial entre sua moeda e o dólar, submergia em crise. O FMI, apesar de
gestões contínuas do Presidente chileno Ricardo Lagos e minhas, não movia um
dedo para ajudar o país vizinho. Malan e Armínio me sugeriram que conversasse
com o Presidente argentino, Eduardo Duhalde, com quem eu já falara em outras
oportunidades. Àquela altura me parecia que o Fundo pedia a Duhalde medidas que
ele não tinha condições políticas de implantar. A crise da Argentina se
arrastou durante todo o ano e nós sempre solidários. O Mercosul, como registrei na
época, estava com um pneu furado. Ainda assim, dado seu peso histórico e nossos
interesses, o governo brasileiro continuou a sustentá-lo e a estimular investimentos
na Argentina. Nossa política sul-americanista, com a incompreensão de alguns
setores, continuava firme. Expressei tudo isso no 2° Encontro de Presidentes Sul-
americanos em Guaiaquil, no Equador, em 26 de julho de 2002.
Na cena mais ampla, o governo do Presidente americano George W.
Bush começava a mostrar a que viera. Denunciava tratados inovadores, como
o Protocolo de Kyoto, destinado a controlar a emissão de gases causadores do
efeito estufa, pressionava adversários e aliados. Em meados de 2002 eu já
registrava com preocupação em minhas gravações a possibilidade de um
bombardeio americano ao Iraque (a guerra começaria em março do ano seguinte),
com o alastramento das dificuldades no Oriente Médio e todas as conseqüências
negativas de tal postura. Na França, o Primeiro-Ministro socialista Lionel Jospin
sofreu uma derrota eleitoral acachapante. Os ventos do mundo sopravam para a
direita. Aos poucos se tornava claro que uma coisa era negociar com o FMI durante
o governo
431
Clinton, outra no governo Bush, embora em relação ao Brasil o tratamento tivesse
sido sempre correto. Não, todavia, para com a Argentina, cujos pedidos de
compreensão eram vistos com gélida desconfiança, quando não com desprezo.
Anotei que a respeito da Argentina o mundo tinha fechado os olhos e amarrado os
bolsos.
As fontes de preocupação não se restringiam a essas, porém. Na área financeira
dois fatores independentes se cruzaram e complicaram o panorama. Primeiro, o BC
percebeu que alguns fundos de investimento não estavam seguindo a diretriz de
avaliar suas cotas pelo valor de mercado em vez de fazê-lo pelo valor nominal, o
que na prática significava iludir os investidores. Como vigorava a determinação legal
de seguir o valor de mercado, boa parte dos investidores - os menos avisados -
teriam perdas inesperadas em seus haveres. Os bem-informados já
sacavam recursos dos fundos cujos papéis haviam perdido valor, optando
por alternativas eventualmente mais rendosas.
No dia 27 de maio de 2002 Malan e Armínio me procuraram no Alvorada
para explicar a situação e pedir meu visto bueno para, no dizer de Armínio, "limpar a
pedra", quer dizer, impor a regra clara para todos. Era de esperar, como ocorreu,
fuga de recursos de muitos fundos. Anuí, não sem ter comentado que me parecera
equivocada a decisão tomada pelo Comité de Política Monetária (Copom) uma
semana antes, de manter no mesmo nível a taxa básica de juros, em vez de reduzi-
la. Armínio argumentou que a decisão tinha sido adotada por pequena margem de
votos ante a expectativa de que a inflação do ano ultrapassasse um pouco o
teto desejado. Contra-argumentei (foi, a propósito, a única vez que
expressei comentários sobre uma decisão do Copom) que em certas
circunstâncias manter o ânimo do povo e dos empresários é mais importante que 1
ponto percentual a mais de inflação. Armínio replicou que, "se nada
diferente ocorresse", provavelmente na próxima rodada baixariam a taxa de juros.
Anotei: esse é o problema; quando se perde uma oportunidade, nunca se sabe se
ela volta. Sempre pode sobrevir uma perturbação.
Um segundo e decisivo fator pesou no desatino do mercado financeiro: a percepção
da possibilidade da eleição de Lula. A instável situação dos partidos, o negativismo
permanente da oposição, sua dificuldade para entender as mudanças da economia
global e da posição que o Brasil ocupava nela, seu elenco de propostas
descabeladas no passado, inclusive a de
432
aplicar um calote na dívida externa, defendida várias vezes pelo próprio Lula,
deixavam claro para mim que seria necessário um esforço de entendimento para
viabilizar o futuro período presidencial, independentemente de quem fosse o
vencedor. Recordei que quando eu era ministro da Fazenda, o deputado José
Dirceu (SP), presidente do PT, aceitou convite para tomar o café-da-manhã em meu
apartamento de Brasília e abordou a necessidade de uma aliança entre as
pessoas honestas para fazer frente à onda de corrupção vigente (era época da CPI
dos Anões do Orçamento). Talvez fosse possível retomar esse caminho.
Eu não sabia ainda quanto o PT havia mudado, tanto no sentido de ter uma visão
mais realista da política económica como de se adaptar com facilidade às
circunstâncias para obter o que mais queriam seus dirigentes: poder.
No começo de maio os mercados começaram a reagir à hipótese da vitória de Lula.
Retomando o clima de 1999, as agências de rating voltaram a opinar sobre assunto
de que entendem pouco: a política brasileira. E, no fim do mês, lá foi o risco Brasil
para cima. O Congresso, diferentemente de 1999, quando eu dispunha de anos de
governo pela frente, tinha uma eleição à vista e os partidos que até então
me apoiaram estavam fragmentados. Cada votação requeria um esforço extra para
convencer que a aprovação das medidas propostas era importante para o país não
mergulhar na desordem. Tivemos dificuldades para votar a lei de regulamentação
do setor elétrico. Lula chegou a escrever contra a lei uma carta-manifesto,
endereçada a mim, que assustou investidores e mercados.9
Naquele começo de maio ficara visível que Lula havia penetrado muito em camadas
da população que antes lhe eram adversas. Começavam antecipadamente os
efeitos do slogan do publicitário Duda Mendonça, o novo ideólogo da campanha,
"Lulinha paz e amor". Slogan que, eu pensava equivocadamente, serviria apenas
para ganhar as eleições, encobrindo os objetivos políticos reais.
Nota: 9 Lula criticava as compensações concedidas às concessionárias de energia elétrica
em razão do racionamento decretado pelo governo no ano anterior, acusava o
governo de "generosidade" para com as empresas e pedia a retirada da MP que o
Congresso examinava, a qual careceria "inteiramente de sustentação legal e moral".
Pedro Parente, então chefe da Casa Civil, respondeu mencionando
"constrangedores equívocos" e uma "miríade de disparates" no documento do
candidato do PT (Folha de São
Paulo, 15/4/2002). Fim da nota.
433
Comecei a perceber que não era bem assim quando, ainda no primeiro turno, a
instâncias de Pedro Parente, então ministro-chefe da Casa Civil, e de Armínio
Fraga, preocupados com o desajuizado dos mercados, procuramos líderes do PT,
como o deputado Aloizio Mercadante (SP), para mostrar o emperramento da
rolagem dos títulos da dívida interna ocasionado por cada declaração mais
irresponsável dos candidatos.
Mercadante, em declarações à imprensa, não deixou de aproveitar o encontro com
Armínio para dar a impressão de que o governo estava pedindo água.
Ciro Gomes, candidato da coligação PPS-PDT-PTB, me parecia caso perdido.
Tinha a pretensão de conhecer economia e proferia incessantemente declarações
megalómanas. Apesar de sua boa situação nas pesquisas de intenção de voto,
decidi que não era o caso de conversarmos com ele. Eu confiava em que Serra
disputaria o segundo turno, mesmo quando muitos desanimaram. Não via senão
vantagens em informar o PT sobre a situação financeira, pois ao final, pensava, um
dos dois, Serra, em quem confiava, ou Lula, governaria o Brasil.
Ainda em maio, numa breve viagem oficial à Espanha e à Itália, muito
me impressionou a má-vontade que encontrei, àquela altura, entre empresários,
políticos, jornalistas influentes e até em setores do Vaticano em relação a uma
possível Presidência de Lula. Nessa eventualidade, anotei, eu reagiria como
brasileiro e não aumentaria as dificuldades do país. Se ganhasse Lula, ajudaria a
realizar o que depois se chamou de transição.
Uma série de conversas com o PT
Em junho a situação financeira piorou de forma considerável. Conseguimos aprovar
a renovação da CPMF e, preventivamente, aumentamos a meta de superávit
primário de 3,5% para 3,75% do PIB. Novas pesquisas de opinião mostravam Serra
em melhor posição. Mas tudo inútil. O mercado, "esta enteléquia", via o fantasma de
Lula por todo lado. Nesse contexto, certas ponderações de Parente e Armínio
ganharam peso. Seria preciso, defendiam os dois, declarações expressas dos
candidatos dizendo que respeitariam as regras do jogo. Apesar das reticências
que já expus a respeito de Ciro Gomes, por intermédio do PTB, que apoiava sua
candidatura, e de Tasso Jereissati, amigo do ex-governador do Ceará, tentaríamos
obter dele algo nesse sentido. Serra, por suas conhecidas posições, não
traria
434
problemas ao governo. Quanto a Lula, eu próprio, com a intermediação de Pedro
Parente, falaria com José Dirceu, presidente do PT e coordenador de sua campanha
eleitoral. No dia 14, no começo da noite, Silvano Gianni, subchefe da Casa Civil,
trouxe o deputado à minha presença no Palácio da Alvorada.
Tivemos a primeira de uma série de conversas. Expus com franqueza como eu via a
situação. Transmiti inclusive as impressões que colhera no exterior. Disse-lhe que
não apostaria nunca em uma crise institucional e que, embora esperasse a vitória
de Serra, se Lula ganhasse não criaria dificuldades, pois para mim o Brasil estava
em primeiro lugar.
Mostrei a necessidade de os candidatos respeitarem os contratos, comprometerem-
se a resolver a questão das dívidas em negociações de mercado, serem firmes em
assegurar superávits primários no Orçamento e sustentarem os rigores da LRF.
Também era importante continuar a discussão sobre alterações no artigo 192 da
Constituição para permitir, posteriormente, autonomia operacional ao BC. Enfim,
todos os pontos que de havia algum tempo Malan vinha pregando como
fundamentos para qualquer governo nas condições atuais do mundo.
Para minha surpresa, Dirceu mostrou-se perfeitamente enfronhado disso, sabia da
estreiteza da margem de manobra existente e, se não disse, me deu a impressão
de estar ciente de que estávamos fazendo o possível e não havia caminhos
alternativos. Mais realista ainda se mostrou na questão das alianças, que sabia
serem custosas. Pensei com meus botões:
quem está aliado ao PL, com bispos (da Igreja Universal) tão hábeis em negócios e
com leigos vorazes, não tem mais o que aprender na política prática. Uma conversa
fluida que terminou em um jantar do deputado só comigo e com Ruth.
Os mercados não paravam de jogar contra, a despeito de boas notícias na área
produtiva, de dados do IBGE divulgados àquela altura mostrarem considerável
evolução nas condições de vida da população, de Serra em fins de junho ter
melhorado o desempenho nas pesquisas de opinião e de elas avaliarem de maneira
mais positiva o governo.10 Em discussões com Malan,
Nota:10 O Instituto Datafolha informava que a diferença entre Lula e Serra caíra 7 pontos
percentuais: as preferências de intenção de voto de Lula haviam descido de 43%
para 40%, e as de Serra subido de 17% para 21%, fazendo com que o candidato do
PSDB ultrapassasse Anthony Garotinho, do PDt, e ficasse isolado em
segundo lugar na disputa (Folha de São Paulo, 9/6/2002). Sobre a
popularidade do governo, o datafolha informava, na mesma edição do
jornal, que o percentual de eleitores que consideravam o governo
"ótimo/bom" se elevara de 27 per cente para 31 per cente, mantendo-se os que o viam como
"regular" na mesma faixa de 40 per cente da pesquisa anterior. Fim da
nota.
435
nossa conclusão era de que havia boa dose de pretexto e especulação nos
mercados, mais usando que temendo a vitória de Lula, para obter condições mais
vantajosas. Mesmo porque Lula fizera um discurso "beijando a cruz". O sapo
começava, como na fábula, a virar príncipe.
A vida, entretanto, não parava, para o bem e para o mal. Em Santo André (SP), foi
seqüestrado e depois assassinado no início do ano o prefeito Celso Daniel,
coordenador da equipe que trabalhava no plano de governo de Lula. Protestos de
todo lado. O PT ligou o caso ao assassinato do prefeito petista de Campinas,
António da Costa Santos, o Toninho do PT, ocorrido no ano anterior, criando a
sensação de que haveria uma ação orquestrada contra seus líderes. Um tempo
depois, novos protestos: o telefone de Lula teria sido objeto de escuta. Por mais que
procurasse me informar, nunca me veio qualquer comprovação disso. Houve,
sim, escuta autorizada pela Justiça na investigação do caso Celso Daniel e uma
denúncia do Ministério Público paulista sobre pagamento de propina ao PT por
concessionários de ônibus da região.
A situação de segurança pública em diferentes regiões atingira alto teor de
gravidade. Criamos forças-tarefa para ajudar o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, O
caso do Espírito Santo me custou desgaste, porque o ministro Miguel Reale Júnior
se demitiu, acreditando que eu não daria seguimento a pedido de intervenção
federal no estado, que ele julgava necessária. Na verdade, o procurador-geral da
República, Geraldo Brindeiro, titular de um cargo com autonomia em relação ao
Presidente, me comunicou não ver sentido jurídico na intervenção. O ministro
soube da notícia pela mídia, e não por mim, que tivera um dia ocupadíssimo.
Sentiu-se agravado e pediu demissão. O desconcertante, na história, é que
Brindeiro expressara ao próprio Reale, antes de falar comigo, sua concordância
quanto à idéia de intervenção. Eu me inteirei tarde demais da história. No final,
permaneceu no ar a idéia de que o Presidente não queria enfrentar o tráfico de
drogas e a corrupção, quando, ao contrário, eu
436
continuava mais do que disposto a dar-lhes combate, como se viu posteriormente
com a força-tarefa composta por integrantes de diversas áreas do governo federal e
de autoridades do Espírito Santo, que teve êxito no estado.
O Orçamento, como sempre, mas em grau maior, era apertado. As
demandas, crescentes - dos procuradores, por salários, dos militares, por material,
de todo mundo, principalmente dos deputados e senadores, por liberação de
emendas. Só uma notícia realmente boa: o Brasil se tornou pentacampeão mundial
de futebol na Copa de Japão/Coréia do Sul. Recebi os jogadores da seleção de Luiz
Felipe Scolari, o Felipão, no Palácio do Planalto e o Brasil festejou-os,
merecidamente, como heróis.
No começo de julho, contemplando o panorama político, anotei que para meu gáudio
as oligarquias pareciam estrebuchar: caciques regionais perdiam prestígio, alguns
tiveram que abandonar a vida pública. Não haviam recebido ainda a injeção de óleo
canforado que, depois da vitória, o PT lhes aplicou. Pensava que somente duas
forças políticas tinham condições de disputar o predomínio, o PSDB e o PT.
Fariam algumas alianças e teriam a responsabilidade de "conduzir o
atraso", expressão que ouvi na TV dita pelo cientista político Luís Werneck Vianna.
Sintetizava com exagero o quadro, cometendo injustiça contra alguns partidos.
Em meados de julho, participei de uma reunião do Mercosul na Argentina e pedi a
todos, sobretudo a Ricardo Lagos, que ajudassem a realização da conferência de
meio ambiente de Johanesburgo, na África do Sul, pois se tornava claro que os
EUA agiam fortemente para esvaziar a ONU e atuar de forma unilateral nas
questões globais. De volta ao Brasil, encontrei o clima eleitoral pior: Ciro Gomes
subira e ultrapassara Serra em 7 pontos.
José Dirceu, que viajara aos EUA e, com apoio de nossa embaixada, manteve
contatos com círculos empresariais e intelectuais, me telefonou de Washington para
esclarecer que não dissera que entre Lula e Ciro num eventual segundo turno eu
ficaria com Lula, como noticiado, e me transmitiu a apreciação que ouvira em um
dos think thanks visitados, segundo a qual a moratória era inevitável. Respondi que
não pensava assim, mas que dependeria dos compromissos e palavras dos
candidatos e de seus partidos.
437
Bilhões do FMI para ajudar a transição
No dia 23 de julho recebi a segunda pessoa na hierarquia do FMI, não mais Stanley
Fischer de tantas negociações, mas agora a americana Anne Kruger. Disse-lhe que
não entendia a aflição dos mercados, pois os fundamentos de nossa economia
estavam saudáveis. Respondeu-me: eles sabem que os fundamentos são bons, mas
não acreditam no futuro. Ao que repliquei: isso acaba se tornando uma profecia que
se autocumpre. De tanto desacreditar no futuro, tornam-no inviável. O secretário
do Tesouro dos EUA, Paul O'Neill, prestes a vir ao Brasil, agravou a situação com
uma declaração insultuosa: disse não ser favorável a enviar dinheiro do FMI ao país
porque iria parar em contas na Suíça. Mandei chamar a embaixadora dos EUA,
Donna Hrinack, sempre correta, e exigi desculpas públicas. A Casa Branca e o
Tesouro se desculparam. Quando, logo a seguir, veio ao Brasil, recebi o secretário
do Tesouro, mas apenas formalmente no Planalto, sem o jantar habitual no
Alvorada. O dólar subiu para R$ 3,38, em seguida passou a R$ 3,60, caindo depois
da vinda de O'Neill para o patamar de R$ 3,00. Ansiedade de muitos, lucro de
poucos.
Havia que negociar uma extensão do acordo com o FMI para conseguir alguma
tranqüilidade pós-eleitoral. Tratava-se de um acordo cuja vigência afetaria o
mandato seguinte, pois o meu ainda estava coberto pelo compromisso existente.
Surgiram sugestões para que eu consultasse os candidatos a respeito de matéria
tão delicada. De início, recusei.
Achava que deveria assumir sozinho a responsabilidade e, mais tarde, se o
Presidente eleito quisesse, denunciaria o acordo. Mudei, no entanto, de opinião, e
explico por quê.
As negociações estavam difíceis. Não com a cúpula do FMI, que acolheu
a possibilidade assim que, por sugestão de Malan, enviamos Amaury Bier para as
conversas preliminares. No entanto, o corpo técnico queria que nos
comprometêssemos com um superávit primário de 4,5% do PIB em 2003, no lugar
dos 3,75% que vínhamos mantendo. Parecia-nos exigência excessiva para uma
administração que se estaria iniciando (não poderíamos adivinhar a fúria fiscalista do
governo do PT, que logo ofereceu voluntariamente mais do que havíamos
estabelecido). Malan e Armínio instaram-me a telefonar ao diretor-gerente do Fundo,
o alemão Horst Kõhler, sucessor de Camdessus, para acelerar os entendimentos.
438
Foi o que fiz, no dia 4 de agosto, enquanto "descansava" na fazenda da família em Minas.
Longa conversa. Eu recebera de Malan notas minuciosas orientando-
me tecnicamente. Como sempre, a conversa tomou outro rumo, mais geral.
Kõhler me perguntou sobre a situação social. Disse-lhe que estava calma, que não
era essa minha preocupação, pois até o MST, diante das conveniências eleitorais de
Lula, não vinha agitando. Minhas preocupações eram de outra ordem, econômicas e
políticas. Perguntou-me dos candidatos. Prossegui dizendo acreditar que mesmo
Ciro Gomes aceitaria em linhas gerais o apoio do Fundo, que Lula tornara
públicas declarações responsáveis e que Serra, desde logo, se dispunha a
cooperar com o governo. Anthony Garotínho, então candidato do PSB, não entrou
em pauta. O diretor do Fundo perguntou minha opinião sobre uma conversa direta
dele com cada um dos três principais candidatos. Disse-lhe que achava
inconveniente: a que título eles falariam com o FMI, posto que não se sabia quem
seria o Presidente? Preferia assumir eu diretamente a responsabilidade da decisão
e, quando tivéssemos um rascunho do acordo, mostraria a cada um deles.
Afirmei, entretanto, que não poderia pedir aos candidatos um compromisso com um
nível de rigidez no Orçamento que os levasse à paralisação.
Talvez meu governo pudesse ultrapassar em 2002 os 3,75% do PIB prometidos,
mas não me sentia à vontade para impor tamanha restrição ao futuro Presidente
sem que ele próprio conduzisse as negociações. Kõhler persistia apontando razões
técnicas para o nível elevado de superávit fiscal, porém não cedi. Às razões técnicas
contrapus motivos políticos.
Pedi que ele recebesse Amaury Bier, a quem elogiou, e solicitei pressa na decisão.
Respondeu-me que o Fundo entraria em férias no dia 12 de agosto, oito dias depois.
Portanto a decisão teria de ser anterior àquela data.
Terminada a conversa, relatei-a a Malan. O ministro jantaria naquele dia com O'Neill
no Rio, e lhe pedi que dissesse ao secretário do Tesouro que queríamos apoio
expresso e rapidez. Isso motivou as declarações positivas de O'Neill, além do
arrependimento pelo que dissera nos EUA a respeito do Brasil. O secretário
conhecia bem o país, pois fora presidente da multinacional de alumínio Alcoa, que
tem investimentos no Maranhão. Sendo mais homem de empresa do que político,
deixou que as palavras, ou quem sabe alguma recordação do passado, voassem
mais depressa para
439
a imprensa do que sua avaliação objetiva do presente, em declarações infelizes que
tanto me irritaram.
Na noite do mesmo domingo, dia 4, em que troquei o telefonema com Kõhler, houve
um debate entre os candidatos. Acompanhei com grande interesse o que disseram
pela TV. Nada comprometedor. Serra teve boa performance. Lula estava em plena
fase de agregar apoios, viessem de onde fosse, para vencer as eleições. Ciro
Gomes, embora arrogante, viu- se muito apertado por Serra. Garotinho falava mais
para o povo humilde (que àquela hora não assistia à TV) do que para o público
interessado em discutir diretrizes para o Brasil. No front externo, o Presidente Jorge
Batlle, do Uruguai, conseguiu o apoio de que necessitava para controlar a situação
do país, profundamente abalado pela crise da vizinha Argentina.
Na terça-feira seguinte, vieram de Washington notícias positivas. O FMI parecia
preparar um pacote de 25 bilhões de dólares para facilitar a transição brasileira.
Concordavam com os 3,75% de superávit primário, desde que se estendessem por
três ou quatro anos mais.
Uma confissão: não esperava tanto dinheiro do FMI
Queriam, porém, uma palavra clara de aceitação pelos candidatos.
Combinamos que Malan falaria com Serra, Armínio com Ciro e eu com José Dirceu.
Optei por Dirceu, em sua condição de presidente do PT, por entender inconveniente
e um tanto indelicado convocar Lula, que liderava as pesquisas de intenção de
votos da corrida sucessória e era àquela altura o favorito para me substituir. Tive,
por isso, na mesma noite, novo encontro com o deputado.
Dirceu estava tão convencido quanto eu da importância e da necessidade do
acordo. Nessa ocasião ele se mostrava temeroso com a subida de Ciro nas
pesquisas e imaginava que uma parte do PSDB pudesse apoiar Lula, eu inclusive.
Disse-lhe continuar convicto de que Serra iria para o segundo turno e que eu
continuava empenhado na vitória do candidato de meu partido. Ele sabia disso,
obviamente. Em todo caso, afirmei, eu agiria como magistrado. Não escondi, no
entanto, que me parecia que Ciro era imprevisível, juntava os ressentidos com meu
governo e não tinha maiores compromissos com uma determinada linha ou com
partidos.
Entre ele e Lula, opinei - como mudam as coisas! -, Lula daria mais
440
segurança para o futuro do país. Dirceu sabia àquela altura que, se bem que o governo
só tivesse 25% de aprovação ("ótimo" e "bom") da população, meu próprio índice
chegava a 40%. Mas o que ele procurava era minha influência política junto aos
governadores e às lideranças da sociedade.
No dia 8 de agosto chegamos a um acordo com o Fundo. Voltei a falar com Kõhler,
que me adiantou estar disposto a apoiar um empréstimo de 30 bilhões de dólares,
além da liberação de 10 bilhões das nossas reservas para que Armínio, com a
competência que tem, enfrentasse os desafios do mercado. E aqui vai uma
confissão que até hoje não fiz: jamais imagináramos tanto dinheiro. Voltei a falar
com José Dirceu, contei os termos gerais do acordo e pedi que dissesse a Lula para
não disparar contra ele sem antes falar comigo. Dirceu me garantiu que Lula iria
a meu encontro e faria declarações gerais favoráveis ao acordo.
No dia seguinte os vários setores empresariais apoiaram o acordo e a mídia fez coro
com eles. Serra, entrevistado na TV Globo, se saiu muito bem e o apoiou sem
restrições. Lula, embora se declarando disposto ao necessário para assegurar a
estabilidade da economia, respeitando contratos, lançou diatribes contra o FMI.
Ciro, de início, se manifestara positivamente. Mas, irritado possivelmente com
uma conferência que proferi na Escola Superior de Guerra (ESG) em que desmentia
suas afirmações sobre dívidas, não se conteve: num debate com estudantes,
atacou duramente o Fundo. Resultado, a Bolsa desabou e o mercado financeiro
rumou para a estratosfera. Os principais papéis da dívida externa brasileira
perderam 8% de valor. Para cúmulo, nova pesquisa: Serra e Garotinho, 11%, Ciro,
27% e Lula, 32%. Pareceu-me que seria muito difícil Serra recuperar a posição de
contendor no segundo turno.
Meus encontros com Lula, Ciro e Garotinho sobre o FMI
No fim de semana realizamos um balanço da situação e, após hesitar sobre se
convinha ou não uma declaração pública minha e se deveríamos ou não convidar
os candidatos para, por meu intermédio, tomarem conhecimento do acordo com o
FMI, finalmente decidimos chamá-los. Resolvemos estender o convite também a
Anthony Garotinho, que subia nas pesquisas, mostrando consistência eleitoral. Não
foi fácil. O jogo eleitoral se sobrepunha aos interesses do país.
441
A rápida ascensão de Ciro nas pesquisas levou desconfiança ao PSDB:
convocar todos os candidatos não seria uma maneira de antecipar a vitória de
alguém fora dos quadros partidários? Lula, por sua vez, só queria conversar na
semana seguinte, pois Ciro, em atitude menos responsável que a do PT, criticava o
FMI com energia. Os mercados financeiros se assustaram. Tinham a impressão de
que, qualquer que fosse o vencedor entre os dois, iríamos marchar para algum tipo
de moratória ou de reestruturação forçada das dívidas. As linhas de crédito de novo
minguaram, a despeito do provável acordo com o FMI, mostrando que o Fundo não
gozava da força de antigamente para acalmar a banca internacional Tornara-se
pequeno diante do montante e da velocidade dos fluxos financeiros internacionais.
Sob esse pano de fundo, conversei em separado com os quatro candidatos,
mostrando-lhes no que consistia o acordo e pedindo que dissessem expressamente
que o cumpririam. De forma delicada, pedi que cessassem as
declarações demagógicas e reafirmassem apoiar o acordo, depois de cada um
deles tomar conhecimento de seus termos e verificar que eram os
melhores possíveis nas circunstâncias.
Cada candidato veio acompanhado de três assessores para as reuniões comigo,
Malan, Armínio Fraga e Pedro Parente, sentados todos à grande mesa redonda que
havia em meu gabinete no Planalto para esse fim. A conversa com José Serra foi
tranqüila. Garotinho, anteriormente resistente em relação ao acordo que
programávamos, entrou na sala com um ar um tanto alheio e, em atitude bizarra,
espantosa mesmo, não apenas para o momento que vivíamos como pelo local em
que se encontrava, entrou assobiando. Seu assessor económico, Tito Ryff, fez
algumas perguntas, mas, excetuada a desconcertante atitude do ex-governador
à entrada, o encontro transcorreu normalmente.
Ciro Gomes, cuja mão me pareceu fria quando nos cumprimentamos, pouco a pouco
serenou, dirigiu-me palavras corteses e declarou que desfaria os mal-entendidos
provocados por declarações anteriores, principalmente uma, muito agressiva contra
o sistema financeiro, feita na casa de um empresário.
Lula entrou sorridente, me cumprimentou como amigo, referiu-se a um encontro
casual que tivera dias antes com meu filho Paulo Henrique, recordou sua estada
nos anos 1980, com a família, na casa de praia em
442
Picinguaba, no litoral paulista, que minha família manteve até 1986, e pediu para
falar a sós comigo. Todos cumpriram o prometido nas declarações públicas ou nos
documentos que entregaram à mídia.
A herança bendita
A opinião pública mostrava tendência mais favorável do que contrária ao acordo com
o FMI; uma pesquisa do Instituto Datafolha junto ao eleitorado revelou 40% pró, e
35% contra.1' E a dramaticidade da situação causada pela desconfiança do sistema
financeiro e pelo aproveitamento das nossas dificuldades em benefício da
especulação gerava um clima de busca urgente de uma saída. Deixamos cada
candidato inteirado dos termos do acordo: superávit primário de 3,75%
versus liberação, na prática, de 40 bilhões de dólares a partir de 2003, a taxas de
5% a 6% ao ano, com maior margem imediata para a utilização das reservas, sem
qualquer outra cláusula lateral.
A repercussão do acordo, das reuniões com os candidatos e a da reação deles
compôs um cenário positivo. Via-se o Presidente preocupado com
a governabilidade, agindo em função dos interesses nacionais e não
dos partidários. Não faltaram maledicências sobre a conversa à parte que tive com
Lula, na sala privativa do Presidente. Como parecia que os dois contendores seriam
Lula e Ciro, imaginaram logo algum acordo para eu apoiar o candidato do PT. Na
verdade, durante a reunião a sós Lula solicitou que eu aplainasse as dificuldades
financeiras de Itamar no governo de Minas, transferindo rodovias federais para o
estado e dando recursos que, sob pretexto de se destinarem à manutenção das
estradas, permitiriam o pagamento de salários do funcionalismo, pois o
governador estava temeroso dos ditames da LRF. Respondi que também eu tinha
que obedecer a essa lei e que qualquer ajuda (também desejada por Aécio Neves,
candidato do PSDB favorito à sucessão mineira) seria concedida respeitando as
normas e as possibilidades do Tesouro. A certa altura, mas de forma afável e bem-
humorada, Lula me perguntou;
- Quem você acha que vai ganhar?
Nota: 11 Folha de São Paulo, 18/8/2002. Fim da nota.
443
Respondi que ele tinha chance de vitória e que eu, da mesma maneira que dissera
a Dirceu, lutaria dentro dos limites éticos e legais por Serra.
Se Serra não conseguisse ir para o segundo turno, atuaria como magistrado entre
ele, Lula, e Ciro, mas que tínhamos, nós dois, relações boas e garanti que, se ele
vencesse, não criaria qualquer tipo de obstáculo na transição, até por ser meu dever
para com qualquer que fosse o eleito.
Lula venceu Serra no segundo turno, não criei qualquer obstáculo ao futuro governo,
pelo contrário, mas os mercados só se acalmaram quando, para surpresa de
muitos, o Presidente eleito e o novo ministro da Fazenda, o ex-deputado e ex-
prefeito de Ribeirão Preto (SP) Antônio Pallocci, mostraram claramente que
seguiriam o curso traçado por meu governo. O primeiro sinal claro seria a
designação do presidente do BC.
Depois de ter tateado várias hipóteses, inclusive a da manutenção temporária de
Armínio Fraga (defendida, entre outros, pelo recém-eleito senador petista pelo DF
Cristovam Buarque), terminou por escolher Henrique Meirelles, ex-presidente
mundial do Banco de Boston, que acabara de se eleger deputado federal pelo
PSDB de Goiás. Uma bela manhã, Lula, que como Presidente eleito já se instalara
na Granja do Torto, telefonou-me e disse:
- O presidente do BC vai ser um tucano, seu amigo.
Explicou que seria Meirelles. Em seguida passou o telefone ao próprio recém-
convidado para dirigir o BC, Felicitei-o mas lembrei:
- Você terá de renunciar ao mandato e se afastar do PSDB. Meirelles me pareceu
surpreso com a segunda ressalva. Ele de qualquer
maneira teria de renunciar ao mandato. Mesmo assim, indagou:
- Mas preciso também sair do partido?
- Claro - respondi. Parecia-me evidente a resposta, não apenas pela posição técnica
e neutra, e portanto apartidária, que o presidente do BC deve manter, como também
pelo fato de que ele passaria a integrar um governo de um partido adversário do
PSDB.
Os mercados começaram a se acalmar, e o Brasil, a preservar a possibilidade de
dias melhores. Passada a borrasca, em grande medida provocada pelas
apreensões do mercado e de muita gente com a perspectiva de o PT ir para o
poder, a situação econômico-financeira desanuviou-se a partir do segundo semestre
de 2004. A herança de seriedade e solidez recebida pelo governo Lula valeu não só
a ele, mas ao Brasil.
444
CAPÍTULO 7
A luta contínua para reordenar o Estado
Um cenário em que prepondera o jogo de interesses
Os episódios relatados nos capítulos anteriores mostram as condições e as
dificuldades do relacionamento entre os Poderes e os partidos. Não se trata apenas
de características pessoais ou de desvios de conduta, embora eles possam ocorrer.
Há algo de inerente ao modo de funcionar do sistema político brasileiro que torna
esse relacionamento instável, sob ameaça de permanente crise. Enquanto não se
modificarem as regras eleitorais e não for possível estabelecer novas bases para
consolidar os partidos haverá uma luta contínua e fragmentada entre o governo e
o resto do sistema político. O governo terá de fazer e refazer continuamente alianças
com partidos, dissidências e mesmo lideranças individuais, na tentativa de levar
adiante a agenda legislativa e administrativa. Terá de acomodar os interesses
partidários por meio de nomeações e, simultaneamente, se defender das intrusões
partidárias quando elas excederem o limite do razoável.
A urgência da sociedade para resolver seus problemas e a do governo para obter
resultados não permitem esperar modificações no sistema político para só então
atuar. Não é possível postergar tentativas de mudanças necessárias enquanto se
discute o desenho ideal das instituições. É necessário ir em frente, mesmo em
condições adversas. Não há escolha:
agir ou agir.
No padrão estabelecido no sistema político brasileiro, uma contrafação de
presidencialismo de coalizão, o Executivo tem de mover uma agenda legislativa que
abra espaço para a realização de seu programa e encarne as aspirações do povo e
do país, expressas nas eleições. Como os partidos não se sentem obrigados a
respaldar programaticamente as ações do Executivo, o jogo de interesses
prepondera. Os "aliados" (com a possível exceção da maior parte do partido do
Presidente e de setores de algum outro partido mais afinado com os propósitos do
governo) tudo o que desejam é aumentar a pressão sobre o Executivo para ampliar
os respectivos espaços
445
políticos e obter vantagens. Isso os leva a transigir com a oposição que, por
outros motivos, quer dificultar a vida do governo, além de, obviamente, não
compartilhar de seus objetivos. No processo legislativo, um dos resultados dessa
situação é que normalmente os projetos que mais contam para a ação administrativa
ou de política transformadora vão parar na mão de relatores ou presidentes
de comissões que se opõem às diretrizes do governo. Essa prática torna o processo
legislativo uma maratona com barreiras.
Muitas vezes os obstáculos criados pelo jogo de interesses
estritamente parlamentares se somam aos que decorrem dos interesses
organizados da sociedade. Estes, mesmo quando se contrapõem à política
governamental, encontram freqüentemente boa acolhida nos vários partidos, até
nos que formalmente apoiam o governo. A dicotomia entre governo e oposição
só se cristaliza na votação em plenário. Até lá, nos escaninhos do
processo legislativo, os interesses estabelecidos vão se entrincheirando nas várias
comissões e desfigurando as propostas do Executivo. Em plenário, para obter as
maiorias necessárias, principalmente para as emendas constitucionais, novas
negociações (a imprensa as chamará sempre de "barganhas", e às vezes o são
realmente) adulteram ainda mais o propósito inicial.
É parte do jogo democrático passar as propostas do Executivo pelo crivo do
Congresso. Modificações e recusas são normais. Não é isso, portanto, que critico,
mas a falta de um critério propriamente político - ou seja, que expresse um ponto de
vista endossado pelos partidos - para dizer "sim" ou "não", em função de uma visão
de sociedade ou de país que tais partidos eventualmente tenham. Quando se faz
uma comparação com o que ocorre em algumas democracias consolidadas pode-se
argumentar que se trata de uma questão de grau. O fato é que na situação
brasileira o procedimento aberrante de sempre sujeitar a tramitação legislativa
à acomodação de interesses grupais e pessoais se tornou norma.
Assim, as corporações de funcionários, sindicatos, grandes empresas nacionais e
internacionais, os proprietários rurais organizados, as entidades da indústria, o
sistema financeiro, determinadas confissões religiosas, ONGs ou quem quer que
tenha condições para se movimentar e "pescar" algum representante que abrace
seu interesse ou sua causa encontram campo fértil para atuação. Às vezes o esforço
para aprovar uma proposta torna- se uma luta de emboscada e sem tréguas.
Freqüentemente o adversário
446
é o companheiro do lado. Contudo, não termina aí: segmentos da sociedade e
os partidos de oposição com interesses eventualmente derrotados no Congresso
deslocam a controvérsia política para os tribunais.1 Utilizam um sem-número de
pedidos de liminar em mandados de segurança, propõem ações de declaração de
inconstitucionalidade (Adins)
e lançam mão de outros instrumentos processuais, que, aos poucos, vão perdendo
o caráter originário de recursos de defesa e garantia de direitos violados para se
metamorfosearem em armas de combate político-partidário. Os partidos de
esquerda e alguns integrantes do Ministério Público, partidarizados, usaram e
abusaram desse procedimento em meu período de governo.
Nosso projeto de país: muito longe do nacional-estatismo
Conhecedor desse quadro, logo depois de eleito em 1994 pus-me a refletir sobre as
estratégias para aprovar no Congresso leis e emendas constitucionais que dariam
corpo à minha visão, referendada nas urnas, de um Brasil remodelado. Da
experiência como ministro da Fazenda e das enormes dificuldades para estabilizar a
economia me ficara nítida a sensação de que se o Brasil não corresse perderia
oportunidades para se inserir de modo mais favorável no processo de globalização.
Eu sofrera no Ministério da Fazenda fortes pressões, tanto à esquerda quanto
à direita, para não levar adiante a abertura da economia e continuar "protegendo" a
indústria nacional.
O velho fantasma sentimental-ideológico de que estamos cercados de "inimigos" e
somos grandes e fortes o suficiente para crescer isolados do mundo estava e ainda
se mantém vivo. Perdêramos para os países asiáticos nos anos 1970 e 1980 a
corrida do crescimento económico: não queríamos
Nota: 1 Deixo de abordar com algum detalhe neste livro as disputas entre governo e
partidos que acabam nos tribunais. A referida "tribunalização" da política e, em
menor proporção, a "politização" de alguns setores do Judiciário levam também a
uma constante pugna entre o governo e setores da sociedade cujos interesses são
decididos pela Justiça. A "tribunalização", de todo modo, não é algo exclusivo
das democracias em formação. Basta recordar o que aconteceu com o New Deal de
Roosevelt nos EUA dos anos 1930, cujas principais medidas foram questionadas na
Corte Suprema e não raro derrogadas. Fim da nota.
447
ser meras "plataformas de exportação", como se aqueles países se reduzissem a
isso. A estabilização da economia começara com o Plano Real, mas este apenas
engatinhava e eu sabia do vastíssimo elenco de medidas adicionais e de reformas
necessárias para consolidar a economia. A estabilização chegou quando o mercado
internacional já estava deixando de nadar de braçada numa enxurrada de dólares.
A crise do México, que irrompeu dias antes de minha posse, foi um aviso. Daí
em diante, as crises financeiras enxugaram os dólares a tal ponto que,
com freqüência, sofremos com a secura dos mercados. Não chegáramos a tempo de
nos beneficiar do período de maior abundância de capitais e de financiamento
externo.
Por outro lado, além da estabilidade e do crescimento económico, eu tinha duas
outras obsessões: uma, óbvia para quem vinha de minha trajetória, a de que era
preciso financiar adequadamente a saúde e a educação, especialmente a
fundamental. Tínhamos que revolucionar essas áreas, sem o que, além do valor
intrínseco de proporcionar aos mais pobres acesso à escola e aos hospitais e
centros de atendimento, em um mundo globalizado jogaríamos como perdedores.
Outra, a de promover uma reestruturação do Estado, para permitir os avanços
sociais e económicos desejados. Não no sentido de se chegar ao "Estado mínimo"
dos neoliberais, mas tampouco para manter o Estado ingurgitado - e havia, tanto à
esquerda quanto à direita, quem assim quisesse. Se tivesse prevalecido esta
orientação, o melhor da burocracia continuaria sujeito às pressões partidárias e as
nomeações se expandiriam sem agregar competência para modernizar o serviço
público e, pior ainda, agravando a crise fiscal do Estado. Não se podia avançar sem
enfrentar os grandes défícits: os dos estados e municípios, os embutidos e
mascarados, os compromissos não reconhecidos ou adiados (os "esqueletos") e,
acima de tudo o déficit estrutural crescente da Previdência, prestes a
se transformar no grande problema fiscal do país.
Tínhamos, portanto, um projeto para o Brasil. O refrão de setores das
oposições foi, o tempo todo, o de que não havia um "projeto nacional". Isso não era
certo: havia Um projeto, só que muito diferente do ambicionado por eles. Não
podendo
mais proclamar que queriam implantar o socialismo, desde a crise simbolizada pela
queda do Muro de Berlim e a adesão chinesa ao "socialismo de mercado" (nem
sequer o MST se afirma abertamente socialista, e muito menos comunista),
as oposições de esquerda se aferraram ao antigo projeto nacional-
desenvolvimentista,
448
na verdade ao nacional-estatismo. Esqueceram-se de que tinham combatido esse
projeto na época áurea de sua prevalência, seja com o desenvolvimentismo de JK,
associado às multinacionais, seja com o estatismo do regime militar. Mesmo esse
reviver do nacional- estatismo é pálido: quase ninguém ousa mais dispensar, por
exemplo, o capital estrangeiro, a participação dos conglomerados privados nas
obras de infra-estrutura, as parcerias governo- sociedade civil.
Não dispensam, mas "denunciam" o caráter antinacional de tudo que cheire a
globalização. E jamais deram o braço a torcer para reconhecer que pusemos em
marcha um outro projeto de país, tão nacional quanto possível nas circunstâncias
do mundo contemporâneo; tão antiburocrático quanto necessário e tão democrático
e aberto aos controles da sociedade civil quanto desejável, embora com a presença
ativa do Estado. Portanto, tão favorável aos interesses nacionais e às aspirações e
objetivos de igualdade e justiça social quanto o ideário apregoado pelas
oposições esquerdistas ou simplesmente nacionalistas. Com uma diferença:
a sociedade, não o Estado, seria o sujeito principal da História aggiomata do Brasil.
A cantilena da "desnacionalização" da indústria, do sentido supostamente
antinacional e elitista das propostas de meu governo, permaneceu até que o
governo Lula deu impulso, em certos casos maior, às diretrizes que vinham sendo
implementadas no setor econômico-financeiro, retrocedendo, é verdade, nas
políticas sociais, que se tornaram centralizadoras e burocráticas, e na concepção
do Estado, no qual passaram a pesar crescentemente os interesses clientelísticos e
de "aparelhamento" da máquina pública pelos partidos pretendentes à hegemonia.
De qualquer maneira, convém repetir a máxima de que houve um tempo no qual os
acontecimentos que agora estão no passado ainda estavam no futuro. Era este meu
desafio: o de construir caminhos para um futuro do Brasil que deixasse longe os
inconvenientes do passado. Muito do que hoje é rotina era então uma ténue
expectativa de futuro.
Por que não comecei pela reforma política
No início de meu primeiro mandato, o Brasil se via tomado pela preocupação com as
privatizações, com a quebra dos monopólios estatais e com as reformas da
Previdência e tributária. Sabíamos o rumo a seguir, apesar
449
de não dispormos de um roteiro detalhado. O caminho se construiu ao caminhar.
Não faltou quem entendesse essencial, talvez com razão, começar pela reforma
política, mãe de todas as outras. No Congresso, entretanto, a reforma
política tinha pouca viabilidade. Pelo menos esse era meu juízo e minha convicção.
Por quê?
Primeiro porque havíamos perdido o plebiscito sobre sistema de governo, em abril
de 1993. O parlamentarismo aplicaria, por assim dizer, um choque no sistema
político tradicional e obrigaria a mudanças mais profundas. Já no desenrolar da
campanha parlamentarista de 1993 tornou-se claro que as forças sociais e políticas
se inclinavam pelo presidencialismo.
Segundo, porque eu fora autor no Senado de emenda para estabelecer o voto
distrital misto e nunca consegui, mesmo sendo líder do partido majoritário, sequer
levar a proposta à votação em plenário depois de sua aprovação pela CCJ, com
parecer favorável do senador Josaphat Marinho (PFL-BA).2 O Congresso é
contrário a mudar regras eleitorais que prejudiquem ou pareçam prejudicar,
justamente, os que devem decidir sobre as mudanças, ainda que as novas regras
sejam melhores para o país.
Nota: 2 Por sistema de voto distrital (distrital "puro") se entende um procedimento eleitoral
que restringe o âmbito dos eleitores a regiões menores que os estados e, conforme
o tamanho de certos municípios, também menores que eles. Cada estado é
dividido, para efeitos eleitorais, em tantos distritos quantos sejam os deputados
federais que o representam. Os distritos podem variar de tamanho geográfico,
mas devem ter aproximadamente o mesmo número de eleitores. Em cada um deles,
cada partido apresenta apenas um candidato a deputado, e quem tiver mais votos
se elege. Pode-se adotar, como fazem alguns países, o sistema de dois turnos,
ficando para o segundo turno, no caso, os dois candidatos mais votados, caso não
hajam obtido maioria absoluta no primeiro escrutínio.
O sistema distrital misto faz com que metade da representação de cada estado seja
eleita pela votação por distrito, e a outra metade pelo voto que o eleitor confere à
legenda partidária. O eleitor vota duas vezes: uma num candidato de seu distrito,
outra no partido de sua preferência.
O número de vagas por partido dependerá da proporção total de votos que o partido
receba nas urnas. Se ao partido couber uma vaga pelo sistema de listas, o
candidato que encabeça sua lista é o eleito. Se couberem duas, os dois primeiros da
lista, e assim sucessivamente. Em alguns países os eleitores podem alterar a ordem
dos candidatos na lista, diminuindo o controle das máquinas partidárias sobre as
candidaturas. Fim da nota.
450
Com essa experiência, previa resposta negativa do Congresso a reformas amplas do
sistema eleitoral. Recordo bem quando, afrouxado o regime autoritário, uma das
principais alterações promovidas na Constituição de 1967 - 1969 consistiu em retirar,
em clima de júbilo democrático, o artigo que levava ao voto distrital.
Terceiro, porque desde a aprovação da emenda constitucional de 1985 que permitiu
reconhecer os partidos de esquerda, até então ilegais, e facilitou a criação de novas
agremiações, predominava o sentimento de que o exercício continuado do voto
aumentaria a consciência do eleitorado, permitindo redefinir e conferir maior
coerência ao quadro partidário sem necessidade de modificações na legislação.
Acreditava-se no espontaneísmo iluminista do povo, desde que vigorasse a
democracia.
Em suma: eu achava que se começássemos pela reforma política, mesmo com a
autoridade que a recente eleição em primeiro turno me havia conferido, não
sairíamos dela, pois não a aprovaríamos tão cedo.
Faltava amadurecer as condições para levá-la adiante. Sua discussão bloquearia
todas as demais reformas, apaixonaria o Congresso e a mídia, obscurecendo as
outras medidas legislativas para o aggiornamento do Brasil.
Levando tais fatores em consideração, afirmei que a reforma política era essencial,
mas que caberia ao Congresso, e não ao Executivo, encaminhá-la. Ao longo dos
oito anos de mandato tratei de apoiar, com muita dificuldade, a tramitação de
medidas de aperfeiçoamento do sistema de voto e de fortalecimento dos partidos.
Algumas delas avançaram: houve a informatização da Justiça Eleitoral, que se
deveu à clarividência de dois presidentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os
ministros José Néri da Silveira e Carlos Velloso, e eu lhes dei sustentação. Ela
permitiu reduzir grandemente as fraudes nas votações, se não eliminá-las. Mudança
na legislação impediu que partidos registrados em coligações diferentes para as
eleições majoritárias se reunissem em uma mesma coligação para as eleições
proporcionais (uma modificação que não equivale à verticalização do voto, porque
se aplica somente dentro de cada circunscrição eleitoral - federal, estadual
ou municipal). Aprovou-se a cláusula de desempenho, que retira prerrogativas dos
partidos que não conseguem obter um mínimo de votos em um mínimo de estados,
poderosa arma contra os "partidos de aluguel", aliás adotada em várias
democracias maduras. 451
Deixamos em discussão no Congresso matéria apoiada por meu governo,
quando apresentada, versando sobre a inelegibilidade de parlamentares que trocam
de legenda, dificultando a infidelidade partidária, pois pela proposta não se
permitiriam candidaturas durante três anos a quem mudasse de partido, e vários
outros pontos. Não obstante, visto a posteriori, tudo isso é insuficiente. Praza aos
céus que o espírito reformista continue a aperfeiçoar as regras eleitorais e
partidárias.
Pareceu-me claro que o ponto de partida deveriam ser, simultaneamente, as
reformas da Previdência e da administração e um conjunto de modificações
constitucionais que dessem maior flexibilidade à economia, permitindo maior
investimento privado em setores de infra-estrutura e atraindo capitais nacionais e
estrangeiros. O Estado, devido à crise fiscal, não dispunha de recursos para
responder às crescentes necessidades de investimento exigidas pela melhoria e
ampliação dos serviços de infra-estrutura. O setor privado, sim, tinha recursos
e podia gerir melhor esses serviços, desde que adequadamente regulados.
A prioridade: reordenar o Estado
Foi com esse propósito que dei largada à série de propostas de emenda
à Constituição, começando pela redefinição do conceito de empresa nacional. Tal
como formulado na Constituição de 1988, ele permitia a discriminação de empresas
que tivessem controle acionário em mãos não-brasileiras, ainda que sediadas no
Brasil e aqui produzindo riquezas, pagando impostos e empregando brasileiros. Isso
passava um sinal equivocado para os investidores, como se o país quisesse
e pudesse prescindir do investimento externo, ou a ele fosse hostil.
Essa discriminação se tornara inteiramente obsoleta com o mercado de
capitais internacionalizado (para não falar dos "paraísos fiscais" que escondem
a propriedade individual e familiar em holdings anônimas). Junto com
essa modificação, enviamos ao Congresso em meados de fevereiro de
1995, portanto menos de dois meses após o início do governo, uma série
de propostas de emenda constitucional que viriam a ser básicas para
a transformação da economia brasileira nos anos seguintes. Abria-se a exploração
do gás natural aos capitais privados, mediante concessão;
quebrava-se o monopólio estatal das telecomunicações, o que propiciaria, com a
privatização bem-sucedida" a
452
modernização e dramática ampliação dos sistemas de telefonia fixa e celular e de
transmissão de dados; permitia-se a navegação de cabotagem por navios de
qualquer bandeira, nas condições definidas em lei; e - o que enfrentou maior
resistência - propunha-se o que eu chamei de "flexibilização" do monopólio do
petróleo, ou seja, sem privatizar a Petrobras, promover a concorrência da estatal
com outras empresas, nacionais e estrangeiras, nas atividades de exploração,
importação e refino.
Votou-se todo esse conjunto de mudanças com rapidez. Basta dizer que a 15 de
agosto de 1995, seis meses depois de termos enviado as propostas ao Congresso,
deputados e senadores já haviam aprovado todas, com exceção da emenda sobre
o petróleo.
Houve muito mal-entendido a respeito do que significava a "flexibilização" desejada
para o monopólio que a União exerce sobre o petróleo. Não se tratava de tirar da
União a propriedade exclusiva das reservas de petróleo e gás natural. Apenas se
permitia que terceiras empresas, além da Petrobras, concorressem pelas
concessões da União para explorá-las. À Petrobras se reservavam direitos de
exploração em amplas áreas já mapeadas e que pareciam ter probabilidades de
conter óleo. Não esperava outra coisa que não os acirrados debates que se
travaram, pois a Petrobras, como é sabido, tornou-se há décadas uma espécie de
símbolo de "emancipação nacional".
Como dito em capítulo anterior, tudo isso me tocava política e emocionalmente.
Racionalmente, entretanto, eu estava convencido de que a flexibilização traria
maiores recursos para acelerar a exploração do petróleo, assegurando dessa
maneira mais depressa a auto-suficiência.
Além do mais, acreditava que ela seria um instrumento para obrigar a Petrobras, até
então monopolista, a ser mais transparente, mostrando para a sociedade seus
números e procedimentos, obscuros mesmo para o principal acionista, o Tesouro
Nacional. Não custa lembrar que, por peculiaridades das empresas estatais
brasileiras, a Petrobras não era de propriedade exclusivamente estatal. Tinha ações
negociadas em bolsa e acionistas privados. A presença do ente privado não
constituía, portanto, algo tão insólito na vida da empresa como davam a entender
os defensores do monopólio. Em meu segundo mandato, com a
mesma preocupação de democratizar a gestão da companhia, facilitamos a
compra de ações pelo público em geral e especialmente por trabalhadores, usando
recursos do FGTS.
453
Redigimos o texto da emenda na biblioteca do Palácio da Alvorada: eu, o ministro
Raimundo Brito e o presidente da Petrobras, Joel Rennó, pois a direção da empresa
concordava com a flexibilização. Coube ao ministro da Justiça, Nelson Jobim, moldar
a forma jurídica final da proposta e dos projetos de leis complementares que se
seguiriam à aprovação da emenda. Argumentos racionais, não obstante, são frágeis
para apaziguar paixões e, mais ainda, para conter interesses políticos. No
Congresso não faltavam discursos eloqüentes. Utilizava-se a mesma retórica
dos anos 1950, embora a situação fosse muito diferente: o país já contava com uma
grande empresa - uma das maiores do planeta, na verdade - que permaneceria sob
controle do Estado, não dispunha de capitais suficientes para acelerar a exploração
das jazidas e o aparelho estatal era forte o bastante para assegurar os interesses
nacionais e os dos consumidores, uma vez criada uma agência reguladora, como
ocorreu alguns meses depois, quando o Congresso aprovou a ANP.
Visto retrospectivamente, parece óbvio o que estou escrevendo: a Petrobras se
fortaleceu e a produção dobrou em meus oito anos de governo. Nas licitações,
introduziram-se regras que estimularam a produção nacional de equipamentos de
exploração petrolífera. Com a flexibilização, empresas acorreram ao Brasil para
prospectar petróleo, trazendo investimentos, tecnologia e empregos. No momento
da votação, entretanto, nem todos percebiam assim. Um dos vice-líderes do
governo na Câmara, Almino Affonso, pronunciou o principal discurso
encaminhando a votação contra a emenda. Ele me procurara no Alvorada para me
dizer que votaria "não", e respeitei sua decisão. Não sabia, porém, que seria o
portavoz da oposição. O governo venceu por 360 votos a 129, no dia 20 de junho de
1995, após ter resistido à dura greve dos petroleiros, em maio de 1995, que utilizava
a demanda pelo aumento dos salários como palavra de ordem mobilizadora, mas
que, politicamente, como vimos, constituía uma advertência contra a flexibilização
do monopólio.
Mesmo no Senado, onde o governo sempre dispôs de ampla maioria, as resistências
foram grandes. Resistências, repita-se, vindas não somente das bancadas
oposicionistas, mas também das fileiras dos partidos aliados. Na discussão da
emenda que flexibilizava o monopólio, essa reação, tanto na Câmara quanto no
Senado, era compreensível: havia o temor da
454
"privatização" da Petrobras, assim como existia, em especial no PFL, quem
realmente desejasse claramente a privatização. Não era este meu pensamento.
Alguns senadores, com pruridos nacionalistas, desejavam uma manifestação direta
e formal de que eu não privatizaria a empresa.
Respondi, de bom grado, em carta enviada ao presidente do Senado, José Sarney,
reafirmando que não tomaria essa iniciativa. No dia 18 de outubro de 1995, oito
meses depois do envio da mensagem presidencial, o Senado aprovou em primeiro
turno a flexibilização do monopólio por 58 votos contra 17, decisão que foi
confirmada em segundo turno, em 8 de novembro, por 60 votos a 15 do total de 81
senadores.
Por maior que tivesse sido o empenho do Presidente e dos líderes do governo
nessas batalhas, o certo é que àquela altura o país desejava andar com rapidez na
formatação de um quadro institucional mais apto a nos dar chance de participar
ativamente da nova quadra da economia local e mundial. Os primeiros sinais nesta
direção foram os votos de aprovação das emendas aos dispositivos da Constituição
sobre a ordem económica. Sem o ânimo da opinião pública e o papel dos
chamados formadores de opinião, seria muito difícil obter reformas tão importantes
em prazo tão exíguo. Acrescente-se a aprovação, depois de mais de cinco anos de
tramitação, da Lei de Concessão de Serviços Públicos.
A tramitação das leis complementares, que posteriormente regulamentaram as
mudanças constitucionais, bem como a criação das agências reguladoras, foi difícil
e, às vezes, demorada. Mas a verdade é que a agenda de modernização da
economia acabou sendo posta em marcha com êxito e, bem pesadas as coisas, em
velocidade que muitos não esperavam.
Começava a se desenhar o novo quadro institucional que, complementando os
êxitos na estabilização da economia, forneceria os fundamentos para um novo
Brasil. Ao reler os discursos no Congresso e o noticiário dos jornais e revistas,
vêem-se uma saraivada de cobranças quanto à lentidão do processo legislativo,
assim também, antes de cada votação, alertas sobre a iminente derrota do governo.
É normal e faz parte do jogo democrático: a mídia dá maior espaço ao ruído das
oposições e a suas apostas do que à voz dos governos. E de quando em quando,
acerta.
No cômputo geral, entretanto, a despeito das críticas acerbas dos adversários
dessas mudanças (que em tudo enxergavam a "desnacionalização", a fúria
privatizante,
455
a busca do "Estado mínimo" neoliberal), o Brasil reordenou as
bases institucionais de sua economia. O aparelho de Estado efetivamente encolheu,
perdendo gordura, mas reorganizou-se e ganhou ímpeto para fazer face à
globalização e ao dinamismo das condições contemporâneas de produção. Ao
mesmo tempo, as empresas privadas encontraram maior campo para o
investimento e a sociedade passou a dispor de melhores instrumentos de controle
da ação pública e da atividade privada.
Não creio que em qualquer outro período da vida democrática brasileira (salvo,
naturalmente, durante a Constituinte de 1987-1988) o Congresso haja aprovado
tantas emendas constitucionais e votado leis complementares e leis ordinárias de
tão amplo alcance como entre 1995 e 2002. Só emendas constitucionais
atualizando a Constituição foram 35.
Nem tudo o que nos parecia necessário se conseguiu. As estacas plantadas,
entretanto, tinham solidez, tanto que continuaram de pé depois da vitória em 2002
dos que se opunham a elas. Ocorreu algum retrocesso, é verdade, na área da
regulação das atividades econômicas.
Talvez mais grave do que isso, a volta da retórica estatizante e das práticas
clientelistas quebrou o ímpeto da cultura de modernização que começamos a
implantar. Nada, porém, foi mudado estruturalmente.
Previdência: uma reforma radical custaria dois PIBs
Muito mais difícil e mais sujeita aos azares da política do que as iniciativas que
acabo de descrever viria a ser a tramitação da reforma da Previdência. A
Previdência Social, que fora superavitária até o governo Itamar (chegou-se mesmo
a conceder um aumento real do salário mínimo com base nesse superávit),
apresentava os primeiros e fortes sinais negativos. A Constituição de 1988 corrigira
uma série de injustiças no modelo de aposentadorias e pensões. Por exemplo:
para evitar a deterioração contínua do valor das aposentadorias, tornou-
se obrigatório garantir o valor real do salário mínimo e este se tornou piso dos
benefícios previdenciários. Aumentou-se o valor das aposentadorias dos
trabalhadores rurais de apenas meio salário mínimo para um salário completo,
independentemente de os beneficiários haverem ou não contribuído para o sistema
(a esmagadora maioria não o fazia).
Diminuíram-se os requisitos de idade
456
para aposentadoria de homens e mulheres no setor rural, de 65 para 60 anos no
caso dos homens e de 60 para 55 no das mulheres. Tudo isso com alta
sensibilidade social mas pouca preocupação com as fontes de financiamento para
atender à expansão dos gastos. A tal ponto que, na prática, dos 20 milhões de
beneficiários do sistema INSS em 2001, somente 6 milhões haviam contribuído, e
mesmo estes em montante insuficiente para cobrir a continuidade dos custos.
Outros itens do gasto público se expandiram quase automaticamente nos anos
seguintes à promulgação da Constituição, porque suas novas disposições tornavam
obrigatórios certos dispêndios. A implantação da Loas, por exemplo, que até então
fora letra morta, começou a pesar nas despesas, assegurando, mais do que
justamente, um certo valor em reais para os idosos cujas famílias não auferissem
um mínimo de renda. O SUS, estabelecido pela Constituição, expandia-se
rapidamente, exigindo cada vez mais recursos para um atendimento universal. As
demandas pela reforma agrária eram igualmente crescentes.
Assoberbado por este quadro, o governo tinha que atuar em dupla direção:
assegurar maiores receitas e conter gastos, com uma política restritiva quanto ao
aumento do número de funcionários e mesmo de sua remuneração.
Coube a meu governo arcar com o ônus financeiro do importante aumento dado ao
funcionalismo pelo governo anterior. Este abrangeu todo o pessoal da União, pois,
vale assinalar novamente, o regime jurídico único previsto na Constituição acabou
transformando em funcionários públicos de carreira os antigos celetistas, o que
restringiu possibilidades para aumentos gerais futuros. Neste quadro a
Previdência tornou-se objeto de preocupação e requereu esforços para controlar
o vultoso custo e para corrigir algumas distorções.
A escolha do ministro Reinhold Stephanes indicava esta preocupação, Ele já
ocupara o cargo e demonstrara interesse em reformar a Previdência. O tema é
extremamente complexo, Em 1995 o governo ainda não dispunha de informações
suficientes para avaliar a situação real da Previdência.
Tivemos que caminhar um tanto às cegas. Levamos as semanas iniciais discutindo
que reforma fazer e principalmente como chegar a ela. À medida que o Congresso
postergava decisões sobre as reformas, íamos aperfeiçoando o sistema de
informações públicas e conseguindo elementos
457
para uma análise mais objetiva. Batalhávamos para remendar a situação de déficits
crescentes, mas continuamos tentando soluções mais radicais, como comentarei
adiante.
No início resolvemos enviar ao Congresso uma só emenda, tratando tanto da
Previdência privada (INSS) como da pública. E nesse aspecto me equivoquei, de
vez que adversários da reforma nos dois setores se somaram e aumentaram os
obstáculos à tramitação no Congresso. Houve, é verdade, quem opinasse no
governo para que separássemos as duas reformas, como Sérgio Motta. Mais tarde,
lamentei não ter lhe dado ouvidos.
As forças políticas que apoiavam o governo abrigavam também parlamentares que
não queriam sequer tocar no assunto da Previdência.
Os anos de grande expansão económica até 1980, que ampliaram a base
de arrecadação, e a inflação galopante até 1994, que corroeu o valor real dos
benefícios, deixaram em muita gente a impressão de que seria simples equilibrar as
contas. Achavam que não era preciso reforma nenhuma.
Bastaria (como se fosse fácil, aliás) incorporar à formalidade o setor informal do
mercado de trabalho - o contingente atingiu cerca de 40 milhões de trabalhadores
em 2001 -, fazendo-os contribuírem, e também aumentar o salário mínimo, pois isso
acarretaria maiores ingressos ao INSS. Nesse último raciocínio não tomavam em
conta a desproporção entre o aumento de contribuições gerado pelo incremento do
mínimo e a expansão das obrigações de gastos dele decorrentes. Portanto, diziam,
o aumento do mínimo, somado a taxas razoáveis de crescimento económico, faria
sumir o déficit.
Santa ingenuidade, pois as despesas não se fariam apenas com os
salários mínimos, mas igualmente com as aposentadorias mais elevadas e com
os pensionistas, que tinham suas rendas atreladas ao mínimo e não contribuíam
para a Previdência. Ainda alegavam que as aposentadorias rurais eram uma
espécie de programa de renda mínima (o que é certo), uma vez que os recursos
para seu pagamento não advêm de qualquer contribuição e, assim sendo, elas não
poderiam ser levadas em conta quando se falava em déficit na Previdência. Esse
raciocínio significava simplesmente mudar o rombo de lugar, deslocando-o da
Previdência para o Tesouro, sem se preocupar com o conjunto do déficit público.
Em contraste, havia no horizonte a reforma chilena, radicalmente de mercado, que
consistiu em privatizar para valer o sistema previdenciário,
458
substituindo o sistema chamado de "repartição simples" por um sistema
de "capitalização".3 Por mais que esse tipo de reforma entusiasmasse economistas
e técnicos, ele se mostrou inviável no Brasil. Entusiasmava por motivos óbvios: com
a gigantesca massa de capitalização gerada pelos aportes dos trabalhadores
privados e pelos do setor público, somados aos aportes dos respectivos
empregadores, a economia do país contaria com uma valiosa alavanca para novos
investimentos, uma vez que essa capitalização toda precisava obter rendimentos
para pagar as aposentadorias dos trabalhadores contribuintes, e os rendimentos
viriam de investimentos. Era inviável porque, no nosso caso, o Tesouro
não dispunha de recursos excedentes (no Chile, sim) e não podia fazer frente aos
gastos em três direções: em primeiro lugar, custear as aposentadorias já
concedidas; depois, mais à frente, pagar as dos trabalhadores em atividade
ingressados no serviço público ou filiados ao INSS antes da reforma; finalmente,
pagar sua parte como empregador, relativa aos servidores que ingressassem na
carreira após a mudança no sistema.
Essa discussão dentro do governo durou enquanto tramitava a reforma bem menos
ambiciosa que o Executivo encaminhara ao Congresso. Até que uma comissão
impulsionada por André Lara Resende e Francisco de Oliveira, economista do Ipea,
contando com a coordenação executiva de Sheila Najberg, economista do BNDES,
apresentou em fins de 1998 as conclusões do estudo que faziam havia mais de
ano, com dados definitivos quanto ao custo da mudança do sistema corrente de
Previdência para um sistema de capitalização como o chileno. O custo da transição
de um para outro regime era espantoso: equivaleria a cerca de duas vezes o PIB.
Resultado: o BC vetou a proposta. Bastaria falar em endividamento
Nota: 3 No regime de repartição simples, as contribuições dos trabalhadores ativos pagam
os benefícios dos aposentados e pensionistas, ou seja, as gerações mais novas
sustentam a inatividade das gerações mais velhas;
nem sempre (ou quase nunca), por diferentes razões, as contribuições conseguem
financiar as aposentadorias. Já no regime de capitalização, cada indivíduo é
responsável por sua própria aposentadoria e a financia com os recursos
acumulados por suas contribuições e pelos aportes feitos pela empresa em que
trabalha. O dinheiro fica em uma conta pessoal, acrescido dos rendimentos, como se
fosse uma aplicação financeira. O montante que a pessoa vai receber quando se
aposentar dependerá do quanto esse fundo pessoal acumulou ao longo de sua vida
de trabalho. Fim da nota.
459
público em volume tão exorbitante para disparar o estopim do desastre final nos
mercados interno e externo, dada a situação delicada das contas governamentais.
Tive que concordar.
Por que a Previdência é uma bomba-relógio
Entre o frenesi privatizante e o imobilismo dos que apostavam na autocorreção do
sistema, optamos por concluir a proposta enviada ao Congresso em março de 1995,
que, sem ser radical e portanto sem resolver todos os problemas da Previdência,
era relativamente ambiciosa, pois mantinha o sistema existente de repartição
simples mas buscava assegurar o pagamento das aposentadorias em longo prazo.
Qual era (e é) o fundo da questão da Previdência no Brasil? A resposta não é fácil.
Existem bons estudos que mostram com clareza os vários aspectos do problema e
justificam os argumentos esgrimidos pelo governo para convencer a opinião pública
sobre a necessidade das reformas.4 No conjunto do sistema previdenciário
brasileiro há aspectos gritantes de desigualdades.
Para começar, coexistem três diferentes sistemas em funcionamento:
primeiro, o regime geral de previdência social, que abrange os trabalhadores do
setor privado, sejam empregados ou autônomos. Neste caso, as aposentadorias e
pensões ficam a cargo do INSS. Cerca de dois terços dos gastos do INSS são com
pessoas que recebem o piso de benefícios, que corresponde a um salário mínimo.
E existe um teto, ou seja, um valor máximo de benefícios, que tem oscilado entre
nove e dez salários mínimos. Segundo, no caso dos funcionários públicos,
federais, estaduais e municipais, existem regimes próprios de previdência
social, que asseguram privilégios em comparação com o regime geral. Por exemplo,
aposentadoria correspondente ao valor integral dos proventos na atividade, ou até
Nota: 4 Refiro-me especialmente aos trabalhos de Marcus André Melo, "A transição
incompleta: a reforma da Previdência Social no governo FHC", e de Vinícius
Carvalho Pinheiro, "Reforma da Previdência: uma perspectiva comparada", in Fábio
Giambiagi et ai, Reformas no Brasil, balanço e agenda, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2004. Não farei referências minuciosas a essas reformas neste capítulo,
mas o leitor interessado encontrará nos textos acima elementos suficientes
para compreendê-las melhor. Fim da nota.
460
superior, aproximando-se de ou até superando 20 mil reais, durante meu governo. (Sem
contar os incontáveis benefícios e vantagens sistematicamente incorporados por via
judicial a muitas aposentadorias, graças a brechas ou artimanhas contidas em leis
federais, estaduais e municipais, que com freqüência elevam o valor muito acima
desses 20 mil mencionados.) Por fim, existe o regime de previdência complementar,
com recursos administrados por fundos de pensão fechados, como no caso
das empresas estatais (em geral generosas com seus empregados,
tendo contribuído para os fundos de pensão, no passado, em proporção maior
do que os associados, sempre à custa do Erário, prática daninha que meu governo
eliminou, conforme já relatei no Capítulo 3), ou por bancos e seguradoras, no caso
dos fundos abertos em que qualquer pessoa pode se inscrever, mas à sua custa.
Por questionáveis que fossem as desigualdades existentes no sistema, por si só elas
não teriam força para mover a sociedade na direção de mudanças. O principal
motivo da reforma era o perigo de quebradeira generalizada. Perigo este,
entretanto, não iminente, e sim virtual.
Fosse iminente e todos os beneficiários, com medo da bancarrota, apoiariam as
reformas. Quando é virtual, são "os mercados" os primeiros a se mover, ao
perceberem a inadimplência futura do governo como "perigo à vista!" E os mercados
se movem pressionando para cima as taxas de juros.
Não sem razão: há causas estruturais que tornam a Previdência uma bomba-relógio
de potencial devastador. Elas começam por algo que é uma ótima notícia no plano
humano e social: a expectativa de vida subiu cerca de 10 anos entre 1970 e 2001,
passando o brasileiro a viver em média quase 70 anos (em 2004 atingiu os 71
anos). Melhor ainda (e pior para a Previdência, se novas reformas não são feitas),
quando ele chega aos 50 anos, sua esperança de vida se eleva para quase 77
anos;
chegando aos 60, deve viver, em média, 78 anos. Isso é sinal de progresso no
desenvolvimento humano, mas, do ponto de vista fiscal, se a idade média com que
as pessoas se aposentam não aumenta na mesma medida, torna-se problemática a
sustentabilidade do regime de previdência. Mesmo países sólidos, com economias
gigantescas e eficientes, como os EUA, os principais da Europa e o Japão, estão
às voltas com esse problema, e enfrentando-o.
Outra peculiaridade do sistema previdenciário brasileiro é que a idade mínima de
aposentadoria para as mulheres é menor do que para os homens, embora as
mulheres vivam em média mais do que os homens.
461
A pressão demográfica sobre o sistema previdenciário se agrava também por algo
que, em muitos outros aspectos, é positivo: a queda da taxa de fecundidade. Se em
1950 cada mulher tinha, em média, mais de cinco filhos, em 2002 esse número não
passava de dois, e as projeções são cadentes. Ou seja, o número de trabalhadores
cairá (diminuindo a pressão sobre o mercado de trabalho, o que pode ser positivo
em matéria de emprego) e a taxa de crescimento da população também, o que
poderá permitir, havendo crescimento económico, aumento mais significativo
da renda per cápita. O outro lado da medalha, contudo, em termos previdenciários,
é que haverá menos trabalhadores ativos para sustentar os inativos.
Ora, o sistema previdenciário brasileiro está baseado no princípio da solidariedade
entre as gerações, ou seja, na repartição entre os mais moços do ónus de sustentar
os mais velhos. Logo, havendo menor número de jovens na população ou (o que
quer dizer a mesma coisa) envelhecendo a população, aumenta o peso da carga
tributária dos mais moços para sustentarem os aposentados e pensionistas.
Problema semelhante, e mais acentuado, ocorre com as sociedades européias,
que, por mais que alguns setores reajam, precisarão de um número crescente de
trabalhadores imigrantes para manter o ritmo da economia e não permitir o
naufrágio de seus sistemas previdenciários.
Tem maior dramaticidade ainda o problema do custeio das aposentadorias do setor
público. No INSS, apesar das modestíssimas quantias pagas aos aposentados, as
contribuições dos trabalhadores são insuficientes para cobrir o custo do sistema. O
Tesouro tem que complementá-las, ou seja, o dinheiro vem dos impostos pagos por
toda a sociedade. No caso do funcionalismo, a desproporção entre o total das
contribuições e o dos proventos pagos é muito maior e também sai diretamente do
Tesouro, quer dizer, do bolso da população, inclusive da mais pobre.
Chama a atenção, por ser escandalosa, a diferença de peso que cada um desses
setores significa para os ombros do contribuinte. No final de 2002, o déficit total da
previdência dos funcionários públicos federais, estaduais e municipais somados era
muito superior ao do INSS, mesmo beneficiando um número muitíssimo menor de
pessoas. No I Fórum Nacional de Seguro de Vida e Previdência, em outubro
daquele ano, em São Paulo,
462
o ministro da Previdência, José Cecchin, mostrou as cores da inacreditável injustiça
do sistema: 20 milhões de trabalhadores aposentados pelo INSS produziam um
déficit de 17 bilhões de reais na Previdência; enquanto isso, apenas 4 milhões de
funcionários públicos da União, estados e municípios cavavam uma cratera de 53
bilhões de reais nas contas públicas. Essa é uma das razões para o aumento
contínuo de impostos nos três níveis de governo. Contudo, por mais que os
governos arrecadem, é impossível evitar a percepção de insolvência se não
houver mudança nas regras de concessão de benefícios.5
Daí porque nos lançamos, com fervor, à reforma da Previdência. Tínhamos um
múltiplo propósito: aumentar a arrecadação, diminuir distorções e desigualdades e
conseguir que o período de vida ativa fosse prolongado, tanto mais que no serviço
público as aposentadorias se davam, em média, com menos de 50 anos de idade,
independentemente do tempo de contribuição, algo que nem países riquíssimos
podiam ou podem se dar ao luxo de sustentar, quanto mais o Brasil.
A emenda da Previdência: um calvário
A emenda constitucional que remetemos em março de 1995 ao Congresso era uma
tentativa de retirar da Constituição as regras de aposentadoria por tempo de serviço
e de idade e o valor dos benefícios, deixando-os para serem definidos por lei
complementar, mais fácil de ser modificada e,
Nota: 5 Em 2000 o déficit do regime geral dos assalariados correspondeu a 0,9% do PIB, o
dos servidores federais atingiu 2% e o dos servidores estaduais e municipais,
respectivamente 1,5% e 3% do PIB. O INSS, superavitário antes da Constituição de
1988 e mesmo depois, até o final do governo Itamar, já em 1998, dez anos após a
vigência da nova Carta, apresentava um déficit de 16,6 bilhões de reais. Esses
déficits, somados aos da previdência dos funcionários públicos, levaram a
transferências crescentes do Tesouro para cobrir despesas com aposentadorias,
pensões e outros benefícios previdenciários: em 1987,25% das despesas não-
financeiras da União eram destinados ao pagamento de benefícios do INSS e aos
inativos e pensionistas da União. Em 2001 essas transferências foram de 61% do
total das despesas do Orçamento federal. Para complementar as informações: em
1991 os inativos e pensionistas da União correspondiam a 50% dos funcionários em
atividade, enquanto em 2000 havia o mesmo número de ativos e inativos, cerca de
950 mil. Dados em Marcus André Melo, op. cit,, p. 2-3. Fim da nota.
463
ao longo do tempo, sofrer adaptações para adequar-se às realidades demográficas, A
aposentadoria por tempo de serviço seria substituída pela aposentadoria por tempo
de contribuição. Proibia-se a acumulação de aposentadorias com as remunerações
recebidas em função de cargo, emprego ou função pública. Tocava-se na delicada
questão dos privilégios, como, por exemplo, contar em dobro, para fins
de aposentadoria, o tempo de licenças não gozadas por servidores, ou considerar
"penosas" ocupações tais como as de magistrado e professor e, com isso, reduzir o
tempo de trabalho necessário para a aposentadoria. Proibia- se a aposentadoria
proporcional ao tempo de serviço que permitia, por exemplo, que o funcionário se
aposentasse depois de trabalhar apenas 20 anos. Propunha-se a diminuição
da diferença do requisito mínimo de idade entre homens e mulheres para fins de
aposentadoria e outras mudanças. Mas não se alteravam os fundamentos do
sistema previdenciário, baseado na solidariedade entre as gerações.
Dessa feita a santa ingenuidade era do governo: imaginar possível, em um país
"cartorial", que o Congresso aceitasse tantas mudanças e a sociedade
compreendesse as razões delas. Como se fosse pouco, ainda propúnhamos a
centralização na União da legislação previdenciária de estados e municípios, onde
ocorria toda sorte de abusos. Impedia-se, por exemplo, que vantagens concedidas
aos funcionários em atividade fossem automaticamente transferidas para os inativos
(isso em um país onde houve casos em que viúvas de parlamentares auferiram o
pagamento de horas extras de convocações das Assembléias!). Limitava-se
a contribuição das empresas estatais aos fundos de pensão de seus empregados.
O resultado não demorou: a tramitação legislativa foi um calvário. As oposições se
esbaldaram em denunciar o governo e considerar os parlamentares que lhe davam
sustentação como ávidos para esfolar "os velhinhos" sem reconhecer que estes não
eram "velhinhos", e sim funcionários públicos com salários relativamente altos e
baixíssima média de idade ao se aposentarem. Sem reconhecer, também, que
as medidas propostas em geral não afetavam os trabalhadores, porque no INSS as
aposentadorias eram de valor ínfimo em comparação com as do serviço público e
seus beneficiários raramente se aposentavam com menos de 60 anos, além de não
gozarem dos privilégios que estávamos propondo acabar.
464
Logo de início, na CCJ da Câmara de Deputados, surgiram os obstáculos. O relator
na comissão, deputado Rodrigues Palma (PTB-MT), embora aliado do governo,
tachou a proposta de inconstitucional, porque alterava ao mesmo tempo matérias de
natureza distinta. O governo reagiu e o deputado Roberto Magalhães (PFL-PE)
propôs uma alternativa logo aceita pelas lideranças e pelo ministro da Previdência:
haveria quatro subemendas, das quais a principal incorporaria o que tínhamos
como essencial à reforma. Deixava-se para outras emendas a decisão sobre
a competência da União para definir leis relativas ao custeio da Previdência, sobre a
quebra do sigilo bancário dos sonegadores e sobre os temas referentes à saúde,
todos eles constantes da emenda original.
A tramitação na CCJ foi longa. Enquanto ela se dava, o PMDB voltou a pleitear mais
espaço no governo, a imprensa criticava a falta de coordenação do Executivo no
Congresso, ecoando as pressões dos partidos para que eu nomeasse um ministro
coordenador político saído "da base" - a despeito de os líderes do governo na
Câmara, deputado Luiz Carlos Santos, e no Congresso, deputado Germano Rigotto
(PMDB-RS), estarem se saindo bem - e assim por diante. Mesmo lideranças
chegadas ao governo tinham dificuldades em fazer a matéria ir além. O deputado
Michel Temer, na época líder do PMDB, resumiu corretamente a questão:
"As outras reformas [as económicas] discutem teses. Esta [a da Previdência]
mexe com as pessoas."
O tempo passava e nada parecia andar no Congresso. Na volta da Semana Santa,
em abril de 1995, surgiu a idéia de aprovar a emenda na CCJ desde que seus
efeitos só valessem para quem entrasse no mercado de trabalho a partir de sua
promulgação. Na prática, queria dizer que levaríamos 30 anos para começar a
corrigir os déficits... Ainda em março o Congresso derrubara um veto a uma lei que
obrigava corrigir por igual índice os preços mínimos para produtos agrícolas e as
dívidas rurais: a bancada ruralista começava a mostrar sua força. Em reunião
dramática, tomei a decisão, a despeito das resistências de alguns líderes, de forçar a
votação da reforma da Previdência sem alterar o projeto. No dia 18 de abril,
ganhamos por 36 votos a 15 na CCJ, e isso depois de o TCU ter dado publicidade a
um parecer dizendo que em 1994 as contas da Previdência tinham sido
superavitárias em 1,4 bilhão de reais (como se os aumentos
465
ocasionados pelas disposições da Constituição de 1988 não fossem
incidir crescentemente nos Orçamentos subseqüentes).
Ocorre que, se a vitória não chegou a ser de Pirro, esteve muito longe de assegurar
uma tramitação, senão calma, pelo menos mais veloz dali para frente. Em seguida à
aprovação da emenda pela CCJ, todas as lideranças pediram que se adiasse o
passo seguinte e anterior à votação em plenário, que seria a formação da comissão
especial para analisá-la no mérito, como se diz em linguagem parlamentar - ou seja,
analisar o conteúdo propriamente dito da proposta. O governo, temeroso com
a ameaça de obstrução na votação das emendas da ordem económica se
não adiasse a da Previdência, não teve remédio senão concordar. Sérgio Motta
resumiu a novela: "A ordem agora é menos velocidade e mais debate." Concordei
com um adiamento por 60 dias, que significou postergar o andamento da reforma
para o segundo semestre de 1995.
A verdade é que as oposições, à frente o PT e a CUT, puxando o conjunto dos
interessados de todos os partidos, ganharam a etapa inicial da luta pela opinião
pública. Com discursos, cartazes com o nome dos defensores da reforma
apresentados como "traidores" e muita inverdade, passaram a mensagem: "eles",
os neoliberais, querem tirar os direitos dos trabalhadores. Querem roubar "sua"
aposentadoria, esquecendo-se de dizer que a maioria dos trabalhadores do setor
privado não seria prejudicada pelas medidas moralizadoras, porque não gozava de
privilégios.
Realizamos um imenso esforço, ministros, líderes e eu próprio, reunindo-nos com
cada bancada parlamentar na sede da Escola Fazendária, em Brasília, para expor
minuciosamente a natureza da reforma, sua necessidade e suas conseqüências.
Tudo em vão. Nossos argumentos não sensibilizaram os deputados nem a opinião
pública, que eles temem mais que o diabo à cruz.
Diante das dificuldades, começou o processo de "culpabilização". Ora era o
Presidente, que não deveria, ou deveria, ter cedido aqui e ali; ora o ministro da
área, que seria "duro" ou inábil; ora a descoordenação entre os líderes. Quando
não, chegava a vez do bode expiatório maior, a "má comunicação" do governo. O
ministro da área preparou uma campanha publicitária sobre a reforma. O ministro
das Comunicações objetou, não seria por aí... Pensando na agenda do segundo
semestre, o líder do governo na Câmara, Luiz Carlos Santos, propunha várias
reformas, entre
466
as quais a política, e sugeria que deixássemos a da Previdência para o ano
seguinte, 1996. Sérgio Motta defendia a regulamentação das reformas da ordem
económica - o que fizemos - e queria a continuação da previdenciária.
Enfim, quando se "perde o ponto" na política é como acontece ao se assar um bolo,
nada dá certo. Provavelmente estávamos pagando o preço da ambição: queríamos
promover muitas reformas simultaneamente. E também de um erro: deveríamos ter
separado, reafirmo, a reforma do INSS das demais do setor previdenciário, até
porque para as alterações nos privilégios do setor público contávamos com o apoio
da Força Sindical.
Já a CUT, embora obstaculizasse tudo, tinha interesse maior em paralisar a reforma
da previdência pública do que a do INSS, pois o grosso dos sindicatos que davam
base a suas mobilizações era os dos funcionários. E quem sabe tenhamos pagado
ainda por certa soberba tecnocrática, de negociar pouco com os legitimamente
interessados no tema.
O fato é que só retomamos o debate no segundo semestre de 1995 e já no prejuízo
junto à opinião pública. Ainda em junho os líderes do PPB, Francisco Dornelles, e
do PFL, Inocêncio Oliveira, e o próprio líder do governo na Câmara diziam não
haver clima para votação no decorrer daquele ano. A direita tampouco dava trégua
e criticava o governo pela suposta lentidão nas privatizações e na votação das
reformas.
Empresários e governadores, por sua parte, pareciam mais interessados na reforma
tributária do que na agenda de ajuste do setor público. Na época o economista
Marcos Cintra, ardente defensor da precedência à reforma tributária, escreveu artigo
expressivo nesse sentido.6 Não que o governo se distraísse do objetivo de aprovar
também a emenda da reforma tributária, que alterava sobretudo a legislação do
ICMS. Mas esta encontrava resistências ainda maiores para tramitar e não
ser inteiramente desfigurada pela comissão especial que a examinava, tendo como
relator o deputado Mussa Demes (PFL-PI). As inúmeras dificuldades nos levaram a
optar por uma mudança parcial, voltada apenas para a legislação do ICMS,
especificamente destinada a desonerar as exportações e o investimento, o que
seria obtido pela Lei Kandir, de 1996.7
Nota: 6 "Reformas perdem fôlego" (Folha de São Paulo, 24/9/1995).
7 Lei complementar n° 87, de 13/9/1996. Fim da nota.
467
Somente em setembro de 1995 formou-se a comissão especial que daria parecer
sobre a reforma da Previdência. Dentro da "lógica" de entregar a função de relator e
a presidência das comissões a parlamentares com idéias opostas às do governo, ou
pelo menos divergentes, coube a presidência a Jair Soares (PFL-RS), ex-ministro
da Previdência no governo Figueiredo e, curiosamente, muito resistente às reformas
de uma área que sabia terrivelmente problemática. O relator seria o deputado Euler
Ribeiro (PMDB-AM), ligado às associações de fiscais do Ministério da Previdência,
que não viam a reforma com bons olhos.
Seguiu-se o previsível. Depois de várias declarações de "independência"
em relação ao governo, o relator começou por acatar um sistema à parte para a
previdência dos militares. Com essa modificação o governo pôde concordar, devido
às muitas especificidades da carreira. Não, porém, com outras que visavam manter
privilégios, começando pela aposentadoria especial dos próprios parlamentares. Foi
o mote para que a CUT, nesse caso com apoio da rival Força Sindical, reforçasse
sua campanha contra as reformas em nome de maior igualdade entre o setor
público e o privado. O parecer Euler Ribeiro acabou por ser inaceitável para
todo mundo. No fim do ano, as oposições e as centrais sindicais impediram sua
votação, com manifestações violentas.
O relator, batucando na mesa da sala em que a comissão se reunia, acompanhava o
coro oposicionista: "Um, dois, três/ quatro, cinco, mil/ se mexer na Previdência/
paramos o Brasil." O presidente da comissão, cúmplice, via a obstrução com
euforia: "É ótima, excelente." O próprio vicepresidente da Câmara, "governista"
Ronaldo Perim (PMDB-MG), ajudou a frustrar o empenho do presidente da Casa,
Luís Eduardo Magalhães, para repor a ordem. Alinhavam-se aos óbvios promotores
da obstrução Arlindo Chinaglia (SP), Jair Meneguelli (SP) e Paulo Paim (RS), entre
os mais ardorosos no PT, e Arnaldo Faria de Sá (SP), do PPB malufista. Mesmo
o presidente da Comissão de Seguridade Social, Roberto Jefferson (PTB-RJ), em
geral apoiador das teses dos governos, disse com propriedade ser impossível votar
a favor de uma emenda que tinha a oposição dos próprios assessores dos
parlamentares. Diante de todos esses obstáculos, o presidente da Câmara resolveu
extinguir a comissão especial em fevereiro de 1996 e levar a reforma da
Previdência diretamente a plenário, mantendo o mesmo relator.
468
Àquela altura o governo estava quase só. Lutavam por ele no plenário o presidente
da Câmara, o PSDB, seu líder José Aníbal, o vice-líder governista Arnaldo Madeira
(PSDB- SP) e poucos parlamentares mais dos partidos aliados, conscientes da
necessidade de "fazer alguma coisa"
para corrigir o desequilíbrio das contas públicas e as distorções do sistema
previdenciário. As centrais sindicais aproveitaram o momento para ganhar força.
Alegavam dificuldades de mobilização pelo temor ao desemprego, mas assim
mesmo, diante da "ameaça maior" da reforma, convocaram uma greve geral para o
dia 30 de janeiro de 1996. A paralisação seria também em prol da indexação dos
salários, isto é, contra o Plano Real. Luiz Inácio Lula da Silva publicou um artigo
de balanço de fim do ano de 1995 que, relido por ele anos depois, provavelmente o
faria corar se cotejado com seus discursos como Presidente da República.8
Ao mesmo tempo, propunham negociações. Vicentinho, presidente da
CUT, escreveu artigo criticando o governo e o Presidente, mas dizendo que sua
central sindical queria uma reforma de verdade, e utilizando argumentos que
serviriam de base a um acordo, se pudessem ser mantidos durante as negociações
e não tivessem unicamente o propósito de justificar a obstrução. Iniciei o ano de
1996 adiantando, logo em janeiro, que minhas prioridades continuavam a ser a
reforma da Previdência e a administrativa ainda durante a
convocação extraordinária do Congresso. Em seguida entrei em contato,
pessoalmente ou por telefone, com as lideranças das duas principais
centrais sindicais.
A CUT, por intermédio de Vicentinho, mostrou-se disposta a avançar, sendo seguida
pela Força Sindical. Negociávamos um compromisso ao redor de pontos
importantes da reforma, incluindo a substituição do critério de tempo de serviço pelo
de tempo de contribuição para a aposentadoria.
No PT, porém, o líder Jaques Wagner (BA) e o presidente José Dirceu criticaram
abertamente a central e forçaram Vicentinho a recuar. Além das posturas de
Wagner e Dirceu, ele sofreu uma patrulha terrível, e inaceitável numa democracia,
por parte de vários setores oposicionistas, pelo simples fato de ter, na ocasião,
comparecido ao Planalto para
Nota: 1 Ver, respectivamente, Vicente Paulo da Silva, "Por uma Previdência digna", Folha
de São Paulo, 17/12/1995, e Luiz Inácio Lula da Silva, "O fraco desempenho de
1995", Folha de São Paulo, 31/12/1995.
469
conversar com o Presidente da República. Acabou recuando e usando
como pretexto a falta de cumprimento de acordo por parte do relator, o que era
certo, pois o relatório remetido à votação se esmerara em manter privilégios.
Os líderes do PMDB fizeram declarações dizendo que não apoiariam
medidas impopulares e muito menos qualquer disposição que contrariasse "direitos
adquiridos", quer dizer, expectativas de direito para todos que já estavam no
mercado de trabalho, público ou privado. O líder do PFL na Câmara, Inocêncio
Oliveira, não ficou atrás: viu muitas dificuldades para aprovar o relatório e pediu
maior participação do partido no núcleo decisório do governo.
Eu contra-atacava junto às lideranças e incentivava os ministros a procederem da
mesma forma. Em pronunciamentos públicos, procurava mostrar que o governo e o
país tinham rumo e era preciso persistir nele. Em janeiro, concedi uma entrevista
coletiva expondo minuciosamente a situação. Assim continuamos a lutar até que
chegou o dia da votação, 7 de março de 1996. Obtivemos 294 votos a favor
contra 190 e 8 abstenções, e não alcançamos o quorum de 308 votos
necessário para mudar a Constituição. Houve deserções por todo lado na base
de sustentação do governo, com dois partidos se destacando neste aspecto:
o PMDB e o PPB, justamente os que forçavam por "mais espaços" no governo. Foi
a primeira grande derrota do governo em plenário.
Não desistimos. Os partidos continuavam a pressionar. Eu negociava mudanças no
Ministério e insistia nas votações. No Congresso corriam soltas listas para uma CPI
do Sistema Financeiro, pouco importa:
material de combustão para fritar o governo. Idas e vindas, retiradas de assinaturas.
As oposições e partes da mídia, com túnicas de Catão, a reclamar da "fisiologia" de
um governo inteiramente voltado à aprovação das reformas. E os partidos "aliados"
exigindo maiores garantias de participação no governo para apoiá-las. Havia que
nomear agora um relator de plenário para voltar à discussão a partir do texto
original do Executivo (posto que o texto do substitutivo apresentado pelo
relator Euler Ribeiro fora derrotado). O deputado Michel Temer se encarregou
da tarefa. Montou o que se chama de uma "emenda aglutinativa", composta pelas
emendas de muitos parlamentares ao texto original do Executivo, e levou-a a
votação.
470
No dia 21 do mesmo mês de março de 1996 a Câmara aprovou a emenda
Temer por 318 votos contra 136, com 7 abstenções. Jornais que choraram a derrota
anterior, agora criticavam a vitória. É sempre assim, pelo menos em parte da mídia.
E talvez mesmo da opinião pública: quem perde desperta maior simpatia do que os
vencedores. Na verdade, importante não era vencer, mas convencer e transformar
um sistema obsoleto.
Aprovada a reforma em termos gerais (e no caso altamente insatisfatórios para todo
mundo, governo e oposições), recomeçou o martírio da votação específica de cada
item mais difícil de ser aprovado, graças aos infindáveis destaques para votação em
separado, cujo mecanismo expliquei anteriormente. Este processo se arrastou até
julho, não sem voltas e contravoltas. Houve por exemplo uma liminar de um ministro
do STF, que não necessito nominar, mandando paralisar as votações
sobre mudanças no regime de aposentadoria. Eu, para manter viva a chama, falava
ao público e mantinha contatos incessantes. Novo pronunciamento público em
maio, desta vez na CNI, em Brasília. Dias depois, o líder do governo na Câmara me
alcançou pelo telefone durante visita oficial que fazia a Portugal para pedir que eu
aceitasse um compromisso de suspender a votação de vários destaques que
interessavam ao governo.
Ele estava no restaurante Piantella, em Brasília, na companhia dos líderes do PFL e
do PMDB. Insatisfeito com os resultados, mas ansioso para me ver livre de tanta
pressão, concordei, apesar de saber da opinião contrária de meus colaboradores
próximos. Sinceramente, não agüentava mais: preferi ir em frente na Câmara e
tentar melhor sorte no Senado, onde o quadro era mais favorável. O projeto Temer
foi aprovado em segundo turno na Câmara por 351 votos contra 139 e 2
abstenções.
No Senado: ganhamos mas não levamos
Mesmo no Senado, a despeito do trabalho do líder do governo, Êlcio Álvares, os
senadores relutavam em dar a partida ao projeto. Era compreensível: haveria
eleições em outubro e novembro e o assunto queimava votos. O PMDB, majoritário,
que poderia, portanto, designar o relator, passou a batata quente ao PSDB e
reservou para si o que então era sua bandeira eleitoral, a reforma tributária.
471
Chamei ao Palácio o presidente do PSDB, senador Teotônio Vilela Filho, e o líder
do partido no Senado, Sérgio Machado, para pedir mais pressa no andamento do
projeto. Inútil: só depois de 15 de novembro foi a resposta. Em reunião com todos
os líderes, voltei a lembrar a importância da matéria (como se fosse necessário!) e
desenhei o mínimo que queria como reforma: o que se propusera no início, antes
da deformação feita na Câmara, começando pela idade mínima de aposentadoria
de 60 anos para os homens e de 55 para as mulheres. Sem tais pontos não se
poderia falar com propriedade em "reforma".
Estava patente que a tramitação no Senado seria lenta. Decidi assinar MP sobre
alguns temas que podiam ser mudados sem alterações constitucionais. Por
exemplo, o fim de aposentadorias, na Justiça do Trabalho, de juizes classistas,
teoricamente representantes de trabalhadores e de empregadores nas Juntas de
Conciliação e Julgamento (que serviam cinco anos e já podiam se aposentar) e dos
abusos nas aposentadorias por insalubridade, que passaram a estar sujeitas a
uma classificação das ocupações elaborada por especialistas em saúde, E tomei a
decisão de convocar extraordinariamente o Congresso durante as férias de início de
1997. A leitura dessa decisão foi outra: a convocação seria para aprovar a emenda
da reeleição...
Dia 31 de janeiro de 1997, aprovada a emenda da reeleição, concordou-se em
designar o senador Beni Veras para ser o relator da emenda da Previdência. As
coisas mudaram de figura. Beni levou três meses para apresentar o relatório,
preparado com minúcia e consciência. Em dado momento trouxe um de seus
principais assessores do Senado à minha presença para que eu ouvisse o ponto de
vista contrário. Tinha mesmo razão o deputado Roberto Jefferson: tratava-se de
assunto altamente impopular até entre os assessores do Legislativo. Em meados de
abril de 1997, finalmente, o relator mostrou seu parecer aos líderes governistas.
Mudava da água para o vinho o aprovado na Câmara. Retomava o requisito de
idade mínima para as aposentadorias. Condicionava-as ao tempo de contribuição
aos cofres da Previdência. Propunha um período de transição para os que tinham a
expectativa de se aposentar por estarem próximos das condições exigidas pela
legislação vigente. Estabelecia a obrigatoriedade de revisão das pensões e
aposentadorias uma vez ao ano (para evitar o que acontecera no passado, quando
a inflação erodiu seu
472
valor) e, ao mesmo tempo, eliminava a chamada paridade, isto é, a obrigatoriedade
de extensão imediata aos aposentados de qualquer vantagem concedida aos
funcionários em atividade. Acabava com as aposentadorias especiais de
parlamentares e magistrados. Garantia condições especiais aos professores
primários que estivessem efetivamente nas salas de aula, mas terminava as
aposentadorias por tempo de serviço. Entre outras medidas adicionais, estipulava
um valor máximo para as aposentadorias, que não poderiam ultrapassar
a remuneração recebida pelo funcionário em atividade,
A proposta Beni Veras me entusiasmou. De Toronto, no Canadá, onde
me encontrava em viagem oficial, fiz enérgicas declarações diante de
400 empresários, reclamando da demora nas votações e das afirmações correntes
de que as reformas não saíam por "falta de vontade política".
Não saíam porque boa parcela da sociedade não tinha sido convencida
da importância delas e porque os únicos que se mobilizavam eram os
grupos interessados em manter tudo como estava.
Enquanto isso, o meio político continuava a exigir maior presença no governo. Tanto
o presidente da Câmara, Michel Temer, como o líder do PMDB, Geddel Vieira Lima,
que apoiavam o governo, expressavam esta preocupação. O líder do PFL,
Inocêncio Oliveira, criticava a pressa nas reformas. O governador Tasso Jereissati,
pelo PSDB, e eu fazíamos o fogo de encontro enquanto as negociações
prosseguiam. Foi quando, em maio, nomeei os peemedebistas íris Rezende e
Eliseu Padilha para o Ministério e, em seguida, em junho, convenci Luís Eduardo
Magalhães a assumir a função de líder do governo na Câmara.
Eu me preparava para a guerra parlamentar - e não somente a da Previdência,
também a das emendas sobre a reforma administrativa e o FEF. Esse tríplice
desafio nada mais tinha a ver, sublinho, com a emenda da reeleição, previamente
aprovada. Não obstante, pelos anos afora ela continuou sendo usada como
"explicação" de por que as reformas não avançavam mais depressa ou então para
alegar: "Ah! se o Presidente tivesse se empenhado pelas reformas como se
empenhou pela emenda da reeleição, elas teriam sido aprovadas logo..." Chamei os
senadores Élcio Álvares, Sérgio Machado e José Roberto Arruda e traçamos
os planos para a votação em plenário. Convoquei extraordinariamente o Congresso
em julho de 1997. O debate na questão da Previdência se concentrou em dois
473
temas: a paridade entre aposentadorias e vencimentos dos funcionários
em atividade e as aposentadorias especiais para a magistratura. ACM, que ajudava
na aprovação do relatório, se empenhou vigorosamente contra as aposentadorias
especiais para os magistrados. Recebeu apoio inesperado de um dos ministros do
STF, Marco Aurélio de Mello.
A reação não tardou: manifesto de juizes reunidos em Manaus, reclamações de
todos os lados, principalmente de associações de classe de magistrados. Os
sindicalistas, que em março haviam promovido uma passeata contra a reforma, não
descansavam. E os teóricos da oposição pontificavam. Paul Singer, por exemplo,
depois de haver escrito um artigo até razoável e descritivo sobre a questão
previdenciária, concedeu entrevista à Folha de S. Paulo9 onde não deixou por
menos.
Perguntado sobre se as oposições estavam tendo êxito nas lutas contra as
reformas, foi enfático: "Acho que sim. Porque no mínimo as reformas administrativa
e da Previdência estão paradas. E chamar isso de corporativismo é correto. É
corporativismo mesmo. Só que na sociedade de classes tudo é corporativismo." Ele
já escrevera antes sobre o caráter de "luta de classes" de que se revestiam as
reformas. Aplicava assim verniz teórico "revolucionário" à defesa
eminentemente conservadora de interesses particularistas, em detrimento do
interesse geral.
No dia 1° de julho de 1997, comemorando o terceiro aniversário da nova moeda,
dirigi-me à nação pela TV, mostrando os avanços havidos no Brasil desde a
implantação do Plano Real. A partir do dia 10 reiniciei o corpo a corpo com os
senadores. No final de julho, enquanto os grupos corporativos se manifestavam com
estridência contra as reformas, eclodiu uma séria crise no governo. O ministro
Sérgio Motta, insatisfeito, como muitos tucanos, com as recentes nomeações para o
Ministério, especialmente dos peemedebistas, deu a entrevista bombástica à Veja
a que já me referi no Capítulo 5, e que provocou forte reação entre os partidos
aliados.10 Luís Eduardo, recém-nomeado líder do governo, sentiu-se atropelado
pelo ministro e quis se demitir. Sérgio falou por conta própria e desinformado de
minhas intenções e articulações políticas.
Nota: 9 Edição de 29/6/1997.
10 Já informei em nota anterior, mas não custa ajudar o leitor a se localizar: a
entrevista foi publicada na edição de 23/7/1997. Fim da nota.
474
Consegui convencer Luís Eduardo de que sua demissão poria em risco o equilíbrio político e com
ele as reformas, e concedi uma entrevista criticando abertamente os exageros do
ministro. No dia seguinte a CCJ do Senado aprovou o relatório Beni Veras.
O senador Veras, dando-se conta das dificuldades, fechou um acordo entre os
governistas e a oposição, suavizando as condições pelas quais se faria a relação
entre proventos da aposentadoria e vencimentos, garantindo 100% para quem
ganhasse até 10 salários mínimos e estabelecendo, daí por diante, uma redução
progressiva. Concordei com o ajuste, a despeito da opinião contrária dos ministros
Malan e Kandir.
Preparávamo-nos para a votação em plenário no Senado. Na Câmara, com Luís
Eduardo, tentávamos mudar a regra dos destaques para votação em separado, que
conferia uma formidável capacidade de bloqueio aos adversários minoritários de
qualquer projeto, especialmente um tão complexo como o da Previdência, que em
breve voltaria à Câmara.
Tentamos e falhamos por meia dúzia de votos (só precisaríamos de 257) e por um
misto de incúria e esperteza: mesmo os partidários e aliados gostavam de ver o
governo espremido, para arrancar as concessões de praxe. Para que simplificar o
processo de votação?
Em setembro, antes da votação no Senado, voltei a falar ao país, batendo nas
mesmas teclas. No dia 23, vencemos a votação do parecer Beni Veras por 59 a 12.
Daí em diante, as matérias mais difíceis foram sendo votadas, em destaques, até
chegar ao segundo turno, a 8 de outubro, quando vencemos por 54 a 13, com 1
abstenção. Ganhamos as principais votações de destaques. Ganhamos, mas, como
diz o povo, não levamos.
Michel Temer, o presidente da Câmara, Casa pela qual o projeto teria de passar
novamente, declarou-se favorável à manutenção das aposentadorias especiais para
os magistrados. Novas batalhas no horizonte...
Eu ia dizer "marajás? disse "vagabundos" e...
Àquela altura eu não imaginava o trabalho que teríamos pela frente para aprovar na
Câmara uma reforma que o Senado tivera o bom senso de salvar. A novela durou
até a votação em segundo turno, a 15 de dezembro de 1998, do parecer do
deputado Arnaldo Madeira, que se tornara o relator da matéria. Três anos e tanto de
luta, decepções, transigências, pressões
475
para votar uma emenda "suave", que não mudava radicalmente a vida
de ninguém!... E que, sabia quem estudava o problema a fundo, ainda não era
suficiente nem de longe para efetivamente sanear a Previdência, como viriam a
mostrar os esforços despendidos no governo Lula para empreender novas
modificações nas regras. Não é necessário retomar passo a passo o esforço que
custou a tramitação da matéria durante todo o ano de 1998, mas vale repassar o
assunto em linhas gerais.
No fim de 1997 tínhamos pela frente a crise da Ásia e a necessidade de novas
medidas fiscais. Apesar de tudo, porém, no jogo entre Executivo e Legislativo, com
todas as delongas, pressões e contrapressões dos partidos, quando o governo sabe
o que quer e é persistente, acaba obtendo resultados. A volta da emenda da
Previdência à Câmara significou um recomeço de todo o procedimento deliberativo:
análise na CCJ, formação de comissão especial, apresentação de novo
relatório, votação na comissão, votação no plenário em primeiro turno, votação
em separado de cada destaque, artigo por artigo, votação em segundo turno, novos
destaques, aprovação da redação final. Só escrevendo à antiga:
ufa!
A CCJ aprovou a emenda por 35 votos a 14 no dia 12 de novembro, sendo relator o
deputado Aloysio Nunes Ferreira. Até o final do ano os debates e o esperneio das
oposições deram-se ao redor da contribuição dos inativos do setor público à
Previdência. Convoquei o Congresso extraordinariamente e nesse período
constituiu-se a comissão especial para analisar a emenda, com relatoria do
deputado Madeira. Os deputados contrários chegaram ao exagero, com apoio do
senador Eduardo Suplicy (PT-SP), de ensaiar uma subida forçada de um grupo de
aposentados do INSS (os quais não eram afetados pela emenda, diga-se de
passagem) pela rampa do Palácio do Planalto para protestar. No dia 31 de janeiro
de 1998, Madeira apresentou seu parecer mantendo intactos os
pontos fundamentais do projeto Beni Veras. Continuei fazendo, como dizia
a imprensa impropriamente, lobby pela aprovação. Jandira Feghali, Miro Teixeira e
Arnaldo Faria de Sá, ou seja, Partido Comunista do Brasil (PC do B), PDT e PPB, a
despeito das diferenças ideológicas, se irmanaram e marcharam juntos ao STF
alegando inconstitucionalidade da emenda. Perderam por 10 a 1, o que mostra 4ue
"e tratava de puro recurso político protelatório. No dia 11 de fevereiro de 1998, com
a presença recorde
476
de 500 deputados, o parecer de Madeira seria aprovado por 346 votos contra 151 e
3 abstenções.
Aprovada a emenda "em globo", recomeçou a batalha ladeira acima da votação em
separado dos destaques. Os meses de março e abril foram difíceis. Mudanças no
Ministério, dada a proximidade das eleições, obrigando ao afastamento dos
ministros que seriam candidatos. Em abril, dá-se o golpe duplo e brutal da morte de
Sérgio Motta e Luís Eduardo Magalhães, esteios políticos do governo. Os partidos
tornaram-se ainda mais inquietos com as vacâncias no governo e também porque
em maio nomeei José Serra para a Saúde, o que fez soar o sinal de alarme com
a expansão do PSDB no Ministério.
A 7 de maio, entrou em pauta na Câmara a delicada questão da idade mínima para
a aposentadoria. O governo obteve apenas 307 votos, um único a menos do que o
necessário, devido a um acidente de percurso quase inverossímil: António Kandir,
ex-ministro, de volta à Câmara como deputado, e Germano Rigotto, líder do
governo, equivocaram-se no momento de votar utilizando o sistema eletrônico, e o
governo perdeu dois votos preciosos que teriam aprovado esse ponto-chave das
mudanças.
Novo discurso meu para interpretar o significado da derrota e ressaltar que a base
governista continuava sólida. De fato, prosseguimos vencendo as votações, sempre
com placar superior aos 308 votos.
No dia 12 de maio fiz uma exposição na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, e,
indignado com os abusos e privilégios de alguns setores minoritários que se
aposentavam com menos de 50 anos de idade e gordos proventos, disse a frase
verdadeira, mas infeliz: "Não sejam vagabundos num país de miseráveis." Ia
dizendo "marajás", me recordei da conotação negativa por ser slogan do ex-
Presidente Collor, e a emenda saiu pior do que o soneto. Na hora não me dei conta
da exploração possível da palavra "vagabundo". O auditório reagiu muito bem à
minha exposição cheia de argumentos. No dia seguinte, porém, as manchetes dos
jornais não perderam o prato. Daí por diante, o episódio foi repetida
e invariavelmente utilizado por meus críticos como revelador de que eu considerava
todos os aposentados, indiscriminadamente, como vagabundos.
Sob esse clima pesado, o plenário da Câmara votou o primeiro turno da proposta
Beni Veras. Ganhamos por 333 a 149. Continuaram os
477
protestos, ameaças de greve geral e o constante vociferar de setores oposicionistas até
nossa vitória em segundo turno, em 3 de junho de 1998, por 331 votos a 137, com 3
abstenções. Entretanto, faltavam ainda os tais destaques.
Em julho o Congresso entrou em recesso para só retomar as votações após as
eleições gerais de outubro. Madeira, designado líder do governo, conduziu a
votação dos destaques do segundo turno, que se espicharam até 1° de dezembro
de 1998, quando se deu a aprovação da redação final.
No dia 15, quatro anos depois de seu envio ao Congresso, a reforma
da Previdência foi promulgada.11 A essa altura, a crise financeira internacional
deflagrada pela moratória da Rússia alcançara o Brasil.
Diante do enorme esforço para dar um passo adiante - importante, mas não mais
que um passo - nesse delicado assunto, os oposicionistas dedicaram-se
exclusivamente a obstruir e votar contra, apresentando, em geral, argumentos
paupérrimos. Lula me acusou de não ter "coragem moral" para expor as
dificuldades da situação e que eu poderia "comprar"
os deputados, como teria feito no caso da reeleição.12 Pior ainda, disse que Bill
Clinton estava em uma enrascada por causa da "União Soviética" [sic] e que o
apoio financeiro que prometera ao Brasil era jogada de marketing...
Depois de cinco anos, ainda uma reforma incompleta
A derrota na aprovação de idade mínima para as aposentadorias no INSS deixou
inconformados os técnicos, o ministro - a essa altura o senador Waldeck
Ornelas - e,
naturalmente, o Presidente. No ano seguinte à promulgação da reforma, 1999,
estimava-se o déficit da previdência dos funcionários públicos federais em 19,4
bilhões de reais e o do INSS em 9,5 bilhões, ambos crescentes. Urgia tomar
providências para controlá-los.
O ministro Ornelas, com o apoio da técnica Solange Paiva Vieira, propôs uma
solução engenhosa, que veio a se chamar de "fator previdenciário", para contornar
a inexistência de idade mínima de aposentadoria.
Consistia basicamente na combinação de três variáveis para definir o
válor
Nota: 11 Emenda Constitucional n° 20, de 15/12/1998.
12 Folha de São Paulo, 13/9/1998. Fim da nota.
478
da aposentadoria: tempo de serviço, tempo de contribuição e expectativa de vida.
Quanto mais tempo de serviço e de contribuição e menor a distância entre a idade
da aposentadoria e a esperança de vida, maior o provento, e vice-versa. O cálculo
do valor inicial da aposentadoria se faria tomando-se em conta a média dos
salários recebidos nos anos trabalhados a partir de 1994 (anos do Plano Real), ao
qual se aplicaria um coeficiente correspondente ao fator previdenciário. Com isso se
estimulava o trabalhador a permanecer mais tempo em atividade para obter melhor
remuneração ao retirar-se, evitava-se o peso das aposentadorias precoces para os
cofres públicos e se desfazia a diferença de idade mínima entre homens e
mulheres.
Era de prever a gritaria no Congresso e na sociedade. Os líderes do PFL e do
PSDB, cada um a seu jeito, anunciaram que não havia compromisso de aprovar o
projeto de lei a respeito. A exceção foi o líder do PMDB, Geddel Vieira Lima, para
quem a filosofia do projeto agradava seu partido. Que dizer das oposições? José
Genoino antecipou que iriam ao STF, pois a questão da idade mínima fora
derrotada anteriormente na Câmara, Seguindo a praxe, designaram para relatar a
matéria na Comissão de Seguridade Social ninguém menos do que a combativa
Jandira Feghali (RJ). A deputada do PC do B não se fez de rogada: apresentou
parecer destruindo o "fator previdenciário". Para derrotá-la, tarefa difícil, os líderes
empenharam-se em uma série de substituições de membros da comissão por
parlamentares mais afinados com a visão do governo.
Derrubado o parecer, coube ao deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS)
reconstruir a proposta, em negociações na Comissão de Finanças que tiveram a
cooperação do Ministério da Previdência. O parecer do relator em Plenário,
deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB), adotou o texto obtido por Perondi e seria
finalmente aprovado. Essa é a prática rotineira e saudável: as escaramuças no
Congresso obrigam o Executivo a aparar arestas e rever posições. No relatório de
Hauly tomava-se como base para a aposentadoria a média dos maiores salários
dos últimos dez anos, o que melhorou o ponto de partida do cálculo do benefício.
Restabeleceu-se a diferença de tempo mínimo para a aposentadoria das mulheres e
se concedeu, ainda, um adicional automático de contagem de tempo de cinco anos
para professores primários, conforme manda a Constituição. Também se
479
ofereceu aos trabalhadores que se aproximavam da idade ou do tempo
de aposentadoria a possibilidade de escolher entre o sistema antigo e o novo.
A votação em plenário nos preocupou porque no meio tempo, em outubro de 1999, o
STF julgou inconstitucional lei fixando a contribuição que os inativos pagariam à
Previdência, bem como um aumento na alíquota da contribuição dos funcionários
em exercício. A decisão induziu o governo não somente a concordar com as
modificações referidas acima como a propor uma regra de transição mais favorável
aos trabalhadores. Com essas alterações a Câmara referendou o fator
previdenciário por 301 a 157 votos. Estava assim contornada a derrota havida
quando os deputados derrubaram, na votação da emenda constitucional da
Previdência, a exigência de idade mínima. Com o fator previdenciário tornou-
se possível a redução do déficit ao longo do tempo.
A CUT reagiu duramente. A certa altura, Ornelas teve que ir a público desmentir
panfletos que assustavam os trabalhadores, com suposições enganosas sobre os
efeitos negativos do fator previdenciário. A reação, contudo, não obstou a
aprovação da lei pelo Senado, no dia 18 de novembro.13 Tampouco a nova vitória
do governo desanimou os opositores ferrenhos da reforma: o senador José Eduardo
Dutra (PT-SE) vaticinou que o STF poria por terra o fator previdenciário e tanto as
centrais sindicais como todos os partidos de oposição pediram ao tribunal
que declarasse a lei inconstitucional, no que não tiveram êxito.
Quase cinco anos para uma reforma da Previdência, sem a ter completado!
Por aí se vê como são difíceis as reformas estruturais quando implicam mudança de
mentalidades. Nem a evidência dos déficits crescentes e ameaçadores induz o
Congresso a uma conduta mais razoável. É difícil remover hábitos e interesses de
curto prazo em nome de benefícios de longo prazo. Maquiavel é quem tinha razão.
Quem é ou imagina ser prejudicado pelas reformas percebe de imediato e se move
contra, enquanto os beneficiários nem se dão conta do bem que poderão usufruir no
futuro e permanecem apáticos.
Desde o final de 1998 o Congresso estava cansado de tanta reforma e o governo
operava quase sem defensores ardorosos. Tinha que pressionar
Nota: 13 Finalmente aprovado, o projeto tornou-se a Lei n° 9.876, de 26/11/1999.
480
cada vez mais, deixando os parlamentares e a opinião pública com o sentimento de
que as decisões eram não apenas impopulares, o que talvez fosse certo, como
também contrárias ao interesse público, o que absolutamente não era verdadeiro.
O que sobrou para o governo Lula
Com a reforma da Previdência incompleta (será que alguma vez se completará?) o
governo que se iniciou em 2003 teve que lidar com os déficits que antes lhe
pareciam ser de simples resolução (bastaria cobrar mais duramente a dívida das
empresas com o INSS, diziam, entre outras platitudes...). Voltaram ao tema da
reforma, colocando ênfase em completar o ajuste da previdência do setor público a
que se haviam oposto obstinadamente durante meu governo.
O governo Lula propôs e conseguiu tudo ou quase tudo aquilo que antes seus
partidários combatiam, pois as novas oposições, basicamente o PSDB e o PFL,
votaram a favor, em atitude oposicionista exatamente oposta à que o PT manteve
em relação a meu governo. A começar pela introdução de algo semelhante ao "fator
previdenciário" para calcular as aposentadorias dos funcionários públicos: elas
corresponderão à média dos salários de contribuição e não mais ao último salário
de final de carreira. Mais ainda, taxaram os rendimentos dos inativos em 11%
do auferido acima do teto do INSS, por meio de emenda constitucional de teor
semelhante à da lei aprovada em janeiro de 1999, à época execrada e contestada
pelos partidos de oposição a meu governo e posta a pique no STF.
Esses são uns poucos exemplos da súbita e bem-vinda mudança de posição das
pessoas do governo que substituiu o meu e de seus partidários.
Procederam-se, no entanto, a muitas outras alterações: para a aposentadoria dos
funcionários que vierem a ingressar no serviço público, desde que trabalhem em
órgão que disponha de sistema de previdência complementar, fixou-se um teto
equivalente ao dos trabalhadores que se aposentam pelo INSS. Além disso, para a
obtenção da aposentadoria integral, antecipou-se a vigência da exigência de idade
mínima de 60 anos para os homens e de 55 para as mulheres, com exceção dos
professores primários, para os quais se manteve a regra anterior. Também se
aceitou a aplicação de redutores de ganho para os funcionários que, estando em
condições de
481
se aposentar até fins de 2005, quisessem antecipá-las. E assim por diante, embora
o governo Lula até a publicação deste livro não tivesse apresentado ao Congresso
as leis complementares a essas decisões, sem as quais a reforma é letra morta.
A receita das contribuições ao INSS tem sido da ordem de 5% a 5,5% do PIB nos
dez anos anteriores à publicação deste livro, e as despesas variam entre 7% e
7,5%. Já no caso dos inativos da União (se somarmos estados e municípios, o
quadro piora) as receitas variaram de 0% a 0,5% do PIB e as despesas de 2% a
2,5%. Enquanto o INSS pagava em 2005 a cerca de 20 milhões de pessoas, o
Tesouro atendia a 1 milhão de aposentados e pensionistas federais, responsáveis
por um déficit equivalente ao dos trabalhadores do setor privado. (Por aí se vê
a disparidade de ganhos entre aposentados de um e outro setores: 1 milhão de
aposentados e pensionistas federais "custam" o mesmo déficit que 20 milhões de
trabalhadores do setor privado.) Por isso, olhando pelo prisma de 2005, parece que
o vilão é o déficit do setor público. Quando se vê a evolução das contas públicas,
entretanto, o quadro é diferente:
o déficit do INSS está crescendo muito mais rapidamente do que o do setor público.
De um equilíbrio entre receita e despesa em 1994 passou-se a um déficit de 1% do
PIB em 1998 e caminhou-se rumo a 2% do PIB nos anos recentes, a despeito da
(insuficiente) reforma do Regime Geral da Previdência e em decorrência dos
sucessivos aumentos reais do salário mínimo, ao qual estão indexados vários dos
benefícios pagos.
Apesar de todo o empenho de meu governo e do de Lula para equacionar os déficits
previdenciários, e sem embargo dos inegáveis avanços havidos, os dados
evidenciam que eles continuam e, o que é pior, de forma crescente. Estudo bem
fundamentado insiste em que determinados fatores dificultam profundamente o
ajuste nas contas previdenciárias.14 Os autores mencionam, entre esses fatores, os
critérios "benevolentes" para concessão de aposentadoria por tempo de
contribuição constantes das reformas que empreendemos, o crescimento médio
relativamente baixo do PIB (o que aumenta a relação entre gastos previdenciários e
PIB) e um crescimento do salário mínimo - ao qual está vinculado o piso da
Nota: 14 Ver Fábio Giambiagi et ai, Diagnóstico da Previdência Social no Brasil, texto para
discussão n° 1.050, Rio de Janeiro, Ipea, outubro de 2004.
482
Previdência - superior ao do PIB nos últimos dez anos até 2005. Como solução,
propõem definição de idades mais elevadas para a concessão das aposentadorias
no INSS, igualdade de critério de idade entre homens e mulheres, supressão das
vantagens de idade e tempo de contribuição concedidas aos professores primários,
desvinculação entre o piso das aposentadorias e benefícios e o salário mínimo e,
finalmente, progressão menor nos gastos com a assistência social.
Não é preciso ser génio em política para perceber que soluções desse tipo, embora
racionais e certamente necessárias do ponto de vista de fazer as contas fecharem,
produziriam um abalo tão forte que dificilmente um governo democrático teria êxito
em sua aprovação integral, ou mesmo coragem para propô-las, e seria muito
improvável que viessem a ser aceitas pelo Congresso. Não obstante eu as
reproduzi porque elas mostram a gravidade da situação e a radicalidade com
que, em algum momento do futuro, o tema previdenciário terá de voltar a
ser enfrentado.
Mudança com democracia dá trabalho mesmo
O que ocorreu com a discussão da reforma da Previdência em minha gestão, tanto
em termos do relacionamento do governo com o Congresso como da mobilização
dos interesses contrariados, não foi diferente do sucedido com as outras reformas
ou leis importantes, É que elas implicavam mudanças no modo de o Estado se
organizar e se relacionar com a sociedade e, simultaneamente, modificações na
percepção das coisas e na valoração do que é o bom e do que é o mau nas
políticas públicas. É compreensível que diante de propostas inovadoras a primeira
reação seja julgá-las pelo retrovisor. Vistas pela ótica do que sempre se praticou, as
inovações costumam ser mal avaliadas.
Depois da aprovação das emendas da ordem económica, tornou-se
necessário enviar ao Congresso projetos de leis complementares para regular o
modo de funcionamento de cada área. Para o leitor ter uma idéia da
energia aplicada por nosso governo, diga-se que só a Lei Geral
de Telecomunicações, mencionada no Capítulo 5, consumiu um esforço
parecido com o realizado para aprovar cada uma das etapas da emenda
da Previdência. O mesmo ocorreu quando se tratou de setores como o do petróleo,
o da navegação de cabotagem e outros.
483
Essas leis reguladoras, bem como matérias que afetavam empresas
que continuaram a ser estatais, foram votadas por um contingente apreciável de
parlamentares com interesses constituídos. E os congressistas dos partidos de
esquerda que atuavam de forma mais ideológica também se opunham a elas. É o
que explica a lentidão e a dificuldade para aprovar instrumentos legais que, vistos
de uma ótica inovadora, pareciam óbvios.
Os parlamentares com interesses clientelísticos (ou outros piores) na manutenção
da situação anterior se aproveitavam das posições ideológicas das oposições para
retardar as votações ou desfigurá-las, embora permanecessem, formalmente,
"governistas". Tiravam as castanhas com a mão do gato da oposição. A defesa das
leis inovadoras cabia aos segmentos de parlamentares que sustentavam o governo
movidos por convicções, e que não se dispunham ao jogo clientelístico.
Se eu fosse descrever o que se passou, por exemplo, com a emenda da reforma
administrativa, assim como com muitas das leis mais importantes, percorreria
circuito parecido com o que se viu acima sobre a reforma previdenciária. Trocaria o
nome do ministro da Previdência pelo de Luiz Carlos Bresser-Pereira, idealizador do
que ele chamava de Estado-regulador,15 e o do relator da matéria pelo do
deputado Moreira Franco (que, no segundo mandato, trabalhou como meu assessor
no Planalto), mas não mudaria a descrição da contenda. Os magros progressos
obtidos nessas questões levaram quase tanto tempo quanto a reforma da
Previdência.
Não se pense, no entanto, que os embates no Congresso e a morosidade decisória
atingiram apenas o que se chamava de emendas reformistas da ordem económica.
Mesmo em matérias nas quais seria de esperar maior cooperação em nome do
interesse público travou-se uma luta feroz. Darei como exemplo o caso do Fundef,
como poderia exemplificar utilizando os esforços do Ministério da Saúde para
aprovar novas medidas para seu financiamento, desde a CPMF até a Emenda
Constitucional n° 29, de 13 de setembro de 2000 (que estabelecia a aplicação de
recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde e contou, ademais, com
restrições de setores do próprio governo por questões de técnica orçamentária).
Por outro lado, para mostrar como, pouco a pouco, houve maior
Nota: 15 Ver Luiz Carlos Bresser-Pereira, Reforma do Estado para a cidadania, São Paulo,
Editora 34,2002. Fim da nota.
484
sensibilidade para as questões do equilíbrio do gasto público, vou me referir à
aprovação da LRF. Farei menção também à emenda constitucional que instituiu o
"fundo da pobreza" que reafirma a importância da interação entre Executivo e
Legislativo e mostra como, a despeito das críticas que desfiei neste capítulo à
morosidade da tramitação parlamentar, o jogo democrático enriquece a ação
pública.
Com os exemplos que se seguem o leitor encontrará elementos para entender as
peculiaridades do funcionamento do Congresso e suas relações com o Executivo e
poderá avaliar como são difíceis as mudanças estruturais quando as instituições
democráticas são respeitadas - como devem ser. Democracia é o melhor regime
que existe, mas só quem a pratica efetivamente sabe o trabalho que dá.
O Fundef e a nódoa do analfabetismo
O refrão de que a educação fundamental deve ser a preocupação de todos os
governantes e da sociedade só não é mais velho do que a Sé de Braga porque esta
se edificou antes da descoberta do Brasil. Mesmo não indo tão longe, basta ler o
livro inspirador de José Bonifácio de Andrada e Silva, Projetos para o Brasil,16 para
ver que um pai da Pátria tão importante como ele tinha claramente a convicção, no
início do século XIX, de que o ensino fundamental era o cimento da cidadania e da
nação.
Cansei de ouvir meus professores ilustres, Fernando Azevedo e
Florestan Fernandes, reafirmando a mesma tese, embasados em sólidas
convicções democráticas. Outro não foi o ensinamento do grande educador
Anísio Teixeira, com quem colaborei na sucursal paulista do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), e de meu colega e amigo Darcy Ribeiro.
Cansei de dizer durante os dois mandatos, parodiando Nabuco, que a nódoa do
Brasil era o analfabetismo.
Não é sem motivo que desde os preparativos para o governo, na elaboração do
texto básico do programa de campanha, Mãos à obra, Brasil, já com a coordenação
de Paulo Renato Souza, tratou-se o tema com prioridade.
Paulo Renato, uma vez ministro, passou a tornar prática a preocupação
Nota: 16 Coletânea de textos organizada por Míriam Dohlnikoff, Companhia das Letras,
São Paulo, 1998.
485
genérica com o ensino fundamental.17 Como primeiro passo importante
tivemos a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), que vinha se arrastando pelo Congresso fazia anos. Na Câmara, onde
ocorreu muita mobilização corporativa, chegou-se a um texto que, se mantido,
impediria muito do que se conseguiu depois.
Graças à ação de Paulo Renato e de seus colaboradores, no caso especialmente a
professora Eunice Durhan Ribeiro, secretária de Política Educacional do Ministério, e
graças à criatividade e visão do senador Darcy Ribeiro, o projeto sofreu completa
modificação, incorporando sugestões de numerosos setores, e se transformou em lei
em dezembro de 1996.18 Paralelamente, Paulo Renato, sempre com a colaboração
de Eunice, acrescida pela ajuda de Barjas Negri, Maria Helena Guimarães de
Castro e Iara Prado, concebeu aos poucos um plano engenhoso para disciplinar a
responsabilidade pelo ensino fundamental, valorizar o magistério neste nível e
redistribuir recursos entre municípios, estados e União para reverter a situação do
ensino primário.
Tradicionalmente a responsabilidade pelo ensino fundamental se dividia entre os
municípios e os estados. Em alguns estados, os municípios respondiam pelo maior
número de matrículas. Em outros, nem tanto. No conjunto, apesar do progresso
havido na inclusão das crianças em idade escolar em salas de aula, ainda havia no
início de meu governo cerca de 12% fora delas. Dentre essas, as crianças negras
eram as menos atendidas: apenas 75% estavam matriculadas. Como chegamos
aos quase 100% (mais precisamente, 97%, no total)? A resposta é simples mas
foi trabalhosa.
Desde a convocação de uma Conferência Nacional dos Educadores, no governo
Itamar Franco, em 1994, e dos estudos da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), sabia-se que seria preciso melhorar a
remuneração do magistério das escolas primárias (em certas regiões não
ultrapassava humilhantes 20 ou 30 dólares por mês),
Nota: 17 Ver Paulo Renato Souza, A revolução gerenciada: educação no Brasil, 1995-
2002, São Paulo, Prentice Hall, 2005. Este livro explica, de maneira sucinta e
adequada, como foi possível fazer o que chamei de "uma revolução branca" na
educação brasileira, graças à ação do ministro e de excepcionais colaboradores
que ele conseguiu recrutar.
18 Lei n° 9.394, de 20/12/1996. Fim da nota.
486
melhorar a qualificação dos professores e corrigir o desequilíbrio regional,
tanto em termos da proporção em que estados e municípios participavam do
esforço educacional quanto do montante de recursos com que cada município
contava, no final das contas, para a educação. Isso porque, pela Constituição, 25%
do Orçamento deveriam dirigir-se ao ensino; ora, em muitos municípios do Sudeste
e do Sul, dependendo também da participação dos estados na rede de escolas
fundamentais, havia até excesso de dinheiro (o que levava os prefeitos a incluir nos
gastos educacionais, por exemplo, a compra de ônibus escolares ou
outros veículos, de forma a atingir o percentual obrigatório), enquanto na imensa
maioria das regiões mais pobres do Brasil era terrível a escassez de verbas e os
salários dos professores, baixíssimos.
A solução consistiu, basicamente, em dispor que, durante dez anos, 15% de toda a
receita dos estados e municípios seriam dirigidos a um fundo fiscal a ser distribuído
entre eles, conforme o número de alunos matriculados nas escolas fundamentais
em cada um desses níveis administrativos - municípios ou estados.19 Além disso,
garantia- se um gasto mínimo de 300 reais anuais por aluno (na época equivalentes
a dólares) e, não sendo os recursos do fundo suficientes para atender ao requisito,
como acabaram não sendo, o governo federal os complementaria. Adicionalmente,
uma cláusula estabeleceu que 60% dos recursos seriam obrigatoriamente utilizados
pelos municípios ou estados para o pagamento de salários aos professores
efetivamente atuando nas salas de aula do ensino fundamental.
A proposta parecia um ovo de Colombo. Permitia atender à demanda por melhores
salários, transformando a realidade de abnegados que, em cidades miseráveis,
trabalhavam duramente por salários ínfimos (embora não incluísse a reivindicação
de um piso salarial uniforme, para não torná-la inviável nas regiões pobres). Ao
mesmo tempo, assegurava recursos federais para o ensino fundamental, o que até
então não havia, e premiava os professores que realmente lecionavam, deixando
fora os numerosos "comissionados" em funções burocráticas. Não obstante,
a aprovação da proposta não foi tão fácil quanto parecia. Em primeiro lugar,
Nota: 19 Ver artigo 60 das Disposições Constitucionais Transitórias, na forma dada pela
Emenda Constitucional n° 14, de 12/9/1996. Fim da nota.
487
porque entendimento anterior entre o Executivo e o Congresso previa encaminhar
de uma só vez as propostas relativas a cada capítulo da Constituição. Resultado:
propusemos o Fundef na mesma emenda ao parágrafo da Constituição que
assegura autonomia às universidades, acrescentando a ele a expressão "na forma
da lei". Isso se fez não com o propósito de diminuir a autonomia (até porque fui um
dos autores do dispositivo na Constituição) mas para resolver uma questão relativa
ao financiamento das universidades.
Logo sobreveio a tempestade. Reação de estudantes, professores, reitores e
políticos. Resistia-se a mudar a destinação dos recursos federais:
tradicionalmente eles eram dirigidos ao ensino superior, agora a emenda abria
portas para financiar também o ensino fundamental. Ora, sabedores das limitações
dos recursos públicos, os universitários temiam perdêlos e nessa hora não há
"progressista" que resista: criticam as injustiças sociais mas acham que os recursos
para fazer frente a elas devem sair do bolso dos outros, não do próprio.
Se a resistência ao projeto parasse por aí... Logo alguns governadores perceberam
que em seus estados os municípios iriam ganhar recursos às expensas dos cofres
estaduais porque havia mais alunos inscritos nas escolas municipais do que nas
estaduais. Em face das pressões que bloquearam o andamento do projeto na
Câmara, a despeito do apoio de alguns parlamentares e do governador petista do
Distrito Federal, Cristovam Buarque, professor e ex-reitor da Universidade de
Brasília, o governo acabou desistindo da proposta sobre as universidades e
se concentrando no fundo para o ensino fundamental. Mesmo este sofreu críticas
acerbas, sobretudo das oposições. A reação da bancada do PT teve o seguinte tom:
por que em vez de remanejar recursos não se acrescentavam novos? - como se o
governo federal não estivesse disposto a também contribuir para o fundo, o que
constava expressamente da emenda. Ou seja, somavam-se muitas vozes contra o
projeto, a começar, devo dizer, pela área econômica do governo, que não via com
bons olhos uma nova vinculação de verbas do Orçamento. Governadores que se
sentiam prejudicados (com as exceções de alguns aliados e alguns de
oposição que apoiaram a matéria), interesses corporativos temerosos de
perderem suas vantagens e, por fim, o setor congressual do "Delenda FHC",
que era contra tudo que viesse do
488
governo ou que pudesse ser percebido pela opinião pública como ato positivo do
governo.
Nessas circunstâncias, outra vez, ou o Presidente dá mão forte ao ministro e aos
técnicos e insiste, dentro do governo e com o Congresso, dizendo que quer, não
porque quer, mas porque é importante para o país, ou as boas intenções naufragam
de encontro ao rochedo dos vários tipos de resistência. A tramitação levou um ano,
sendo o projeto aprovado a 13 de setembro de 1996, quando se promulgou a
Emenda Constitucional n° 14.
E não só: a lei que a regulamenta20 somente passou a vigorar a partir de 1° de
janeiro de 1998, porque para contentar os governadores se definiu um período de
um ano de transição - e isso depois de muita negociação. Ou seja, a definição do
caminho que levou ao início da redenção da nódoa do analfabetismo no Brasil
consumiu quase três anos de tramitação e debates e não logrou convencer a
oposição na Câmara, que, apesar de gritar sempre por melhores condições de vida
para os mais pobres, votou contra o Fundef. Nisso a bancada do PT foi exemplar:
unanimemente contra.
A Lei de Responsabilidade Fiscal: um pressuposto ético
Parodiando o que ocorre na Natureza, a aprovação da LRF em maio de 2000 mostra
que também na História nem tudo se perde, algo se transforma. Com efeito, custa a
crer que um Congresso que se mostrou refratário a andar depressa na discussão e
votação de algumas reformas de vital importância para o país e que só acelerava as
decisões diante das crises financeiras haja aprovado uma lei como essa, em prazo
bem menor do que o demandado anteriormente para dar seu itnprimatur a leis
de impacto muito menor. Surpreende mais ainda o fato de, em comparação
com outras medidas, terem sido relativamente poucas as resistências à
sua aprovação. É possível buscar muitas explicações para este comportamento.
Sejamos otimistas: deu-se um avanço na consciência social quanto a certas
questões que afetam criticamente a estabilização e podem colocar em risco os
ganhos da luta contra a inflação. E talvez em decorrência da
Nota: 20 Lei n° 9.424, de 24/12/1996. Fim da nota.
489
estabilização comece a haver maior cuidado no manejo dos recursos públicos e
maior respeito aos interesses do povo.
Essas observações não querem dizer, contudo, que haja sido um mar de rosas
elaborar, apresentar e aprovar a LRF.21 Ela foi decorrência, como vimos no
Capítulo 3, dos avanços no controle do gasto público e da organização
orçamentária. Com a situação fiscal difícil depois da crise de 1998, obrigando o
governo a gerar superávits, havia que introduzir regras abrangentes, que
alcançassem a União, os estados e os municípios. A elaboração do anteprojeto da
lei coube ao Ministério do Planejamento durante o primeiro semestre de 1999. Em
agosto, seria levado ao Congresso, com a resposta típica: as lideranças dos
partidos que apoiavam o governo distanciaram-se logo do aspecto
draconiano atribuído à futura lei. O governo estava enfraquecido depois da crise do
câmbio. A nova mudança ministerial no meio do ano não bastara para acalmar os
apetites dos políticos que imaginavam ganhar pontos na opinião pública afastando-
se de um governo que perdia popularidade.
Em tom um tanto oportunista, surgiram iniciativas parlamentares independentes: a
LRF não é prioridade do semestre, disseram. Os oposicionistas radicais preferiam
uma CPI "sobre o desemprego" (como se tal problema fosse da responsabilidade
penal do Presidente). O presidente da Câmara, Michel Temer, também guardava
distância, insistindo em que a reforma do Judiciário em tramitação no
Congresso (que, diga-se de passagem, não fora de iniciativa do Executivo) e
a reforma tributária, espécies de panaceias com as quais todos se dizem de acordo
no genérico mas divergem no específico, eram as causas preferenciais do partido,
não a LRF. Os mais astutos, como o senador Antônio Carlos, vieram com novas
propostas: um Fundo de Combate à Pobreza, matéria contra a qual ninguém em sã
consciência pode se opor, que, contudo, em momento de apertar os cintos e de
rigidez orçamentária, se torna um problema adicional para o governo. O líder do PFL
na Câmara, Inocêncio Oliveira, acrescentou logo: o partido voltaria à
"independência" em relação ao governo,
Nota: 21 Ver o estudo de Martus Tavares, "Vinte anos de política fiscal no Brasil: dos
fundamentos do novo regime à Lei de Responsabilidade Fiscal", Revista de
Economia e Relações Internacionais, v. 4, n° 7, p.
79 - 101, São Paulo, Fundação Armando Álvares Penteado, julho de 2005.
Fim da nota.
490
votando a favor só daquilo que não contrariasse sua linha programática.
Dessa maneira, se defendia da crítica de "mais arrocho", mas não dizia posicionar-
se contra.
Diante da fragmentação do quadro de sustentação do governo, o deputado Marcelo
Déda (SE), líder do PT, constatou com satisfação: acabou o "alinhamento
automático" dos parlamentares ao Planalto (como se alguma vez tivesse existido) e
o próprio relator da matéria, deputado Pedro Novaes (PMDB-MA), proclamou não
ser "teleguiado" pelo governo. Não concordava com a fixação dos limites de
endividamento dos estados e municípios em lei orçamentária, pois isso seria função
constitucional do Senado, e considerava exagerados os controles sobre os
orçamentos dos municípios pequenos. Enfim, críticas e ataques generalizados, sob
a inspiração principalmente de Antônio Carlos, com o auxílio, no entanto, das vozes
menos potentes dos líderes do PMDB e do PFL. Alegavam que a defesa da
estabilidade do real cansara e tinha chegado a hora do crescimento econômico
(plus ca change, plus c'est Ia même chose, diriam os responsáveis pelo Orçamento
e pela política monetária e fiscal do governo que me sucedeu). Mesmo do lado do
governo as críticas vieram pesadas, aí incluídos secretários da Fazenda de estados
governados por tucanos.
No meio dessa saraivada de pressões, o relator preparou um
substitutivo, apresentado em dezembro. O prazo nos levou a
convocar extraordinariamente o Congresso em janeiro de 2000. Eu esperava
que nessa convocação os parlamentares aprovassem a DRU, isto é, a
emenda constitucional que sucedeu ao FEF.22 Àquela altura, como contraponto
às necessidades legislativas do governo, havia um clamor pela limitação
da faculdade que o Presidente dispunha de emitir MPs. As
reclamações oposicionistas repercutiam na sociedade civil, especialmente nos
meios jurídicos.
22 O FEF, como já visto, consistia na desvinculação de 20% das receitas da União
comprometidas com gastos preestabelecidos. Tal como o seu antecessor, o FSE,
criado na preparação para o lançamento do real, ele permitia que o governo
destinasse livremente esses 20% para as finalidades que considerasse mais
urgentes ou necessárias ao país. A DRU manteve esse mecanismo, com uma
diferença: deixou de incidir sobre a parcela do IR de servidores da União lotados
nos estados. Com isso, teve fim uma queda de braço entre governo federal e
governos estaduais que durava desde a implantação do FSE.
491
A questão era delicada, pois a reivindicação continha boa dose de verdade: a
reedição a cada trinta dias das MPs não votadas pelo Congresso e, principalmente,
a possibilidade de introduzirem-se mudanças no texto a cada reedição, levavam a
uma situação de grande instabilidade jurídica. Não foram raros casos em que, ao
longo do tempo, burocratas enfiaram nas reedições parágrafos ou incisos
remetendo a outros tantos parágrafos e incisos de leis citadas apenas por
números, de forma a contrabandear em determinadas MPs disposições que
nada tinham a ver com o assunto original - uma verdadeira aberração. Por outro
lado, é impossível governar no mundo contemporâneo sem um instrumento decisório
mais ágil: o Plano Real, por exemplo, jamais teria existido sem as MPs. A discussão,
apaixonante, desviava as atenções de outras matérias igualmente importantes. Ela
se dava em um contexto político no qual parecia que se nada mudava era por culpa
da vontade imperial do Presidente. O tema só foi resolvido, e mal resolvido, como
adiante se veria mais claramente, meses depois. Mas serviu de plataforma para os
presidente do Senado e da Câmara defenderem a independência do Congresso.
Enquanto isso, o governo se esfalfava para aprovar a LRF com o mínimo possível de
distorções. O cabo-de-guerra se deu entre o governo e sua base aliada. De um lado,
queríamos manter a inelegibilidade por oito anos para os infratores da lei.
Pretendíamos, também, vedar aos governos estaduais e às prefeituras contrair
dívidas junto a bancos por meio do comprometimento de receitas futuras, daquelas
chamadas AROs, de má memória. (O caso mais estridente terá sido a situação
crítica em que o governador Orestes Quércia colocou o Banespa, em 1990,
alavancando recursos para obras eleitoreiras de forma a eleger seu sucessor,
Luiz António Fleury Filho.) Finalmente, desejávamos proibir novas despesas
e contratação de pessoal seis meses antes das eleições. De outro lado, a "base
aliada" pretendia abrandar as normas. As oposições se aferravam na crítica ao
projeto porque concedia prioridade ao pagamento dos juros da dívida (como se
fosse possível escrever na lei que não seria assim e, portanto, que se abria caminho
ao calote). O tema da proibição de despesas não abrangia as chamadas "despesas
continuadas" de obras e contratos que se prolongavam no tempo. Havia, entretanto,
objeções quanto ao prazo dentro do qual se consideraria continuada ou não
uma despesa. Os prefeitos,
492
por seu turno, demandavam prazo mais dilatado para o início da vigência da nova lei.
Para contrabalançar os argumentos da oposição e fazer frente aos dos aliados, fiz
um pronunciamento no dia 25 de janeiro de 2000, acentuando que a lei em
discussão não se devia a qualquer imposição do FMI, como afirmava a oposição,
mas se tratava de um imperativo ético nosso: a responsabilidade na execução
orçamentária e no uso dos recursos públicos era pressuposto da moral republicana,
sem contar a premente situação financeira em que nos encontrávamos. O governo
não cederia, avisei. Fomos aos votos e ganhamos por 385 contra 86, com 4
abstenções.
O líder Inocêncio Oliveira acabou se destacando como um dos maiores defensores
da proposta, e o PT isolou-se, votando contra, acompanhado por seus poucos
aliados.
O Senado propiciou uma tramitação mais rápida. O senador Álvaro Dias (PSDB-PR),
relator, aceitou, com anuência do governo, sugestão para tornar ainda mais rígida a
proibição de contratações antes das eleições, incluindo nela os serviços
terceirizados, e recusei seis de sete emendas propostas por quinze governadores
para atenuar alguns dos efeitos da lei. No dia 13 de abril ela veio a minha sanção,
depois de aprovada no Senado por 60 votos a 10, com 3 abstenções.
Na verdade, ocorreu com a LRF, apenas em menor lapso de tempo, o que se dera
com as demais leis transformadoras: no início quase todos, aliados ou não,
manifestavam-se contra; lutavam para fazer crer que os propósitos do governo eram
antinacionais e contra o povo; apresentavam emendas para acomodar interesses e
também para melhorar a proposta;
travava-se uma disputa com o Executivo e, na medida em que este se mantivesse
resoluto e setores da opinião pública emitissem, principalmente por meio da mídia,
sinais mais favoráveis às propostas, ou pelo menos não negativos, o governo criava
condições para ganhar a parada.
O rosto feio da pobreza e a rede de proteção social
Mencionarei apenas mais um exemplo das relações entre o governo e o Congresso
e dos partidos entre si, referindo-me à proposta da criação de um Fundo de
Combate à Pobreza, O tema da pobreza passou a ser prioritário na pauta nacional
depois da redemocratização. País desigual e ainda
493
com um contingente de pobres e miseráveis muito elevado e intolerável, na medida
em que a opinião pública se alargava graças à urbanização e à democratização, foi
como se, de repente, o Brasil olhasse seu rosto no espelho das estatísticas e se
achasse feio e desconjuntado. Desde então não há dado positivo que apareça na
mídia sem o subtítulo imediato do "porém..." - e lá vêm os números a mostrar que
nem tudo é cor-de-rosa.
Assim, por exemplo, nem bem surgiram elementos para mostrar que a proporção de
pobres na população caíra de 42% para 33% com a estabilização da moeda e se
relembrou a outra face de um país com muitos milhões de pessoas ainda pobres e
miseráveis. A mídia e os analistas, para não falar dos políticos, deram depressa o
salto para passar da estatística de renda para a da fome. Dessa situação nasceu
a ânsia por programas de distribuição de cestas básicas que culminou no Fome
Zero, um programa de boa imagem mundial e baixa eficiência local.
Sob o manto geral de Bolsa Família o governo que me sucedeu deslocou o foco da
questão do emprego e renda, e da preparação de programas que, além de
assistenciais, são incentivadores da capacitação das pessoas para o trabalho e a
vida, para olhar a mera distribuição de recursos.
Com a expansão acelerada do Bolsa Família, o governo perdeu parte dos controles
das contrapartidas que as pessoas devem oferecer em troca do recebimento desses
recursos - por exemplo, a freqüência das crianças às aulas ou aos postos de
vacinação. O programa guarda-chuva ficou sob responsabilidade do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e não de ministérios, como os da
Educação e da Saúde, que têm know-how específico e dariam melhor conta do
recado.
Há momentos e situações nos quais torna-se urgente e mais do que justificada a
distribuição de recursos ou de comida. Por exemplo, no caso das secas ou de
populações localizadas e altamente vulneráveis.
Meu governo vinha preparando e pondo em prática uma série de medidas de uma
agenda social robusta que, posteriormente, veio a se chamar de "rede de proteção
social". Os passos iniciais de alguns programas criativos nessa área haviam sido
dados anteriormente pelo duas vezes prefeito de Campinas José Roberto
Magalhães Teixeira (PSDB), no segundo ano de seu segundo mandato, 1994: a
família da criança de rua que fosse matriculada na escola receberia um auxílio
pecuniário da prefeitura.
Mais de 4 mil famílias se beneficiaram no lançamento do programa. No ano
seguinte,
494
o governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, criou programa similar,
abrangendo 20 mil famílias. Outros prefeitos em diferentes estados começaram a
enveredar por essa trilha. Posteriormente, o governador de Goiás, Marconi Perillo
(PSDB), introduziu o controle da distribuição de recursos por meio de cartões
eletrônicos.
No Congresso, de há muito o senador Suplicy se batia pela aprovação de um
programa de "renda mínima", que, após longos debates nos quais me envolvi no
Senado, tinha sido aprovado. Entretanto, de acordo com a forma final obtida no
Senado, ele só se efetivaria com o cancelamento de outros programas sociais, para
haver a necessária transferência de recursos. O projeto seguiu do Senado para a
Câmara e lá, submetido a debates, seria beneficiado por uma iniciativa que
tramitava havia algum tempo, e que acabou unindo o conceito de renda mínima ao
de contrapartida. O deputado Nelson Marchesan (PSDB-RS) apresentara
um projeto de lei sobre garantia de renda mínima, condicionando a concessão de
benefício em dinheiro à obrigação de as famílias manterem os filhos na escola. Foi
sob esta forma que a iniciativa de Suplicy no Senado transformou-se em lei na
Câmara e, para cumpri-la, o Orçamento de 1998 destinou 100 milhões de reais,
quantia obviamente insuficiente.
O senador António Carlos Magalhães, no ano seguinte, levantou o tema da pobreza
como prioritário, em contraposição às restrições da política económica posteriores à
crise do real de janeiro de 1999. António Carlos, aderindo verbalmente às teses do
PT, defendia um aumento do salário mínimo para 100 dólares (que na ocasião
levaria a Previdência à ruína e o governo às cordas) para corrigir as distorções
sociais e propunha, ;ambém, a criação de um Fundo de Combate à Pobreza,
com previsão de arrecadar de 6 a 8 bilhões de reais, a partir do aumento
de impostos sobre produtos ditos supérfluos (como fumo, bebidas ou mercadorias de
luxo). Com um toque moralizador, sugeriu adicionalmente a redução das verbas
destinadas às chamadas "emendas parlamentares" ao Orçamento.
A proposta me pegou de surpresa, quando em visita oficial ao Peru.
Respondi que nossa administração já tinha uma programação social intensa, pois
era evidente a estocada: o governo só se preocupa com o mercado e não com os
pobres. O PT, por seu lado, brigava pela paternidade dos programas sociais, pois a
renda mínima, achavam, teria sido invenção deles. O senador Jader Barbalho, do
PMDB, mostrava a incoerência de o
495
PFL ter indicado o ministro da Previdência, senador Ornelas, que dizia ser
impossível aumentar o salário mínimo no limite dos desejos dos parlamentares,
enquanto seu líder maior, ACM, para fustigar o governo, propunha elevá-lo a 100
dólares e ainda por cima queria mais aumento de impostos. (Muito depois disso,
com Lula já eleito, a revista Veja, em 6 de novembro de 2002, dedicou ampla
reportagem a uma avaliação de projetos desse tipo, mostrando que o Fundo de
Combate à Pobreza carecia de base técnica no aspecto fiscal e que as críticas do
PT a nossa gestão, com sua proposta de Fome Zero, eram inconsistentes, tanto
mais, mostrou a revista, que o governo já dispunha de programas sociais mais bem
montados.)
Durante a tramitação do projeto de António Carlos no Congresso o governo acabou
conseguindo se ajustar à situação. Entre novembro de 1999 e maio de 2000, o
Senado exprimiu sua concordância com o Fundo de Combate à Pobreza, com
parecer básico do senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE). Os técnicos do Ministério da
Fazenda recalcularam custos e, finalmente, para fazer face a eles, fechou-se um
acordo entre o Executivo e o Legislativo para aumentar em 0,8 ponto percentual a
alíquota da CPMF. A Câmara, no mesmo ano, entre junho e dezembro, aprovou a
proposta com parecer favorável do deputado Paulo Magalhães - do PFL e da Bahia,
mas sem relação de parentesco com ACM -, e deu seu OK em votação final no dia
13 de dezembro de 2000. Tramitação rapidíssima para uma emenda constitucional.
Como fora possível?
Muitos fatores explicam essa velocidade. Em primeiro lugar, como indiquei acima, a
sociedade desejava dar maior profundidade aos programas sociais. Ern seguida,
havia entre as forças que apoiavam o governo tanto a vontade de criticar a política
económica como um desejo semelhante ao da sociedade. Por fim, também o
governo percebeu a conveniência de emitir sinais mais claros de seu compromisso
social e de solidariedade para com as camadas menos desfavorecidas.
Àquela altura, as áreas econômicas e as áreas sociais, desde a Secretaria
de Assuntos Sociais até minha assessoria direta, sobretudo Vilmar Faria e os
técnicos que o ajudavam, como Ana Maria Lobato, estavam preparando o que se
chamou de Projeto Alvorada. Este, sob comando de Wanda Engel e em estreita
colaboração com a Secretaria do Comunidade Solidária, previa programas
orientados para as áreas mais pobres do país, definidas pelo índice de
496
desenvolvimento humano (IDH), um instrumento de mensuração criado
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Tais iniciativas, somadas ao enorme esforço do governo na educação fundamental,
poderiam propiciar aos municípios cobertos pelo Projeto Alvorada um salto de
melhoria, desde que os programas fossem mantidos pelos recursos que o
Congresso aprovara.
Deu-se, portanto, uma coincidência muito grande de intenções e interesses entre a
sociedade, os partidos no Congresso e o governo. A colaboração entre técnicos da
administração pública e os relatores do projeto inicial de combate à pobreza no
Legislativo evitou o desperdício de recursos em iniciativas bem-intencionadas, mas
mal focalizadas e mal concebidas. Aprovou-se verba considerável (1,7 bilhão de
reais em vez dos 100 milhões iniciais) para dar partida, já em 2001, à ambiciosa
rede de proteção social, englobando o programa Bolsa Alimentação do Ministério da
Saúde e o Bolsa Escola do MEC.
Só para relembrar: o Bolsa Alimentação tinha como meta diminuir as carências
nutricionais de pessoas pertencentes a famílias com renda mensal inferior a meio
salário mínimo per capita. As famílias (na verdade, as mães) deveriam, em troca
dos até 45 reais recebidos por mês, cumprir vários compromissos com a saúde,
como realizar exames pré-natais, pesar e vacinar regularmente as crianças e
receber orientação sobre alimentação e nutrição dos agentes comunitários
de saúde. O Bolsa Escola pretendia assegurar a permanência de crianças
de famílias de baixa renda na escola, amenizar a situação de pobreza absoluta de
parte da população e auxiliar na erradicação do trabalho infantil. Transferia a famílias
cuja renda mensal per cápita não ultrapassasse meio salário mínimo, mediante
cartão magnético, 15 reais por cada criança de 6 a 15 anos matriculada e
freqüentando o ensino fundamental.
O ministro Paulo Renato percebeu o alcance da medida e a velocidade com que se
expandiriam suas verbas, graças ao incremento na CPMF. Em janeiro de 2001, com
a ajuda do secretário executivo do MEC, Luciano Oliva Patrício, preparou um
projeto de MP e obteve meu apoio direto na pugna com os setores financeiros e
orçamentários do governo para transformar o anterior programa, limitado, de juntar
a renda mínima à exigência de escolaridade, em um amplo programa de alcance
nacional, a ser implementado de maneira descentralizada pelos estados e
municípios.
497
Daí nasceria uma Secretaria especial dirigida por Floriano Pesaro que, antes de
trabalhar no MEC, atuara na Justiça e na Previdência. Sua área em pouco tempo
distribuiu recursos em cartões magnéticos entregues a milhões de mães de família
cujos filhos estivessem efetivamente cursando as escolas.23
Vê-se, com este exemplo, que o Congresso também sabe ser ágil e que pode haver
proveito geral no jogo democrático, ainda que em meio a tensões políticas. Isso
quando o governo dispõe de metas, competência para alcançá-las e flexibilidade
para ajustar-se às vontades políticas expressas pelos parlamentares, ainda que
reaja negativamente às tentativas de ser posto no pelourinho por propostas nem
sempre coerentes e bem-intencionadas. Havendo rumo e competência por parte
do Executivo, o jogo político em uma democracia, por lento que seja e, muitas vezes
até demagógico, não é obstáculo suficiente para um governo persistente introduzir
modificações importantes na sociedade e no Estado.
Nota: 23 Ver Paulo Renato Souza, op. cít, cap. 5. Fim da nota.
498
CAPÍTULO 8
A sociedade como protagonista
A herança político-burocrática de Portugal
Um dos versos do Hino Nacional inquieta nosso subconsciente:
"Deitado eternamente em berço esplêndido", diz, referindo-se ao Brasil. Pois bem,
nos dias que correm, se o Estado ainda não despertou totalmente para cumprir suas
tarefas, a sociedade está muito ativa, o povo se organiza cada vez mais. Este é
outro corte essencial para entender as mudanças havidas e para refazer os
conceitos, valores e atitudes que guiam nossa política.
Vem de priscas eras a noção de que o Brasil como nação organizada é fruto mais da
ação do Estado do que da sociedade, do povo. É um truísmo reconhecer que os
colonizadores portugueses aportados na primeira onda de "globalização", se assim
posso me referir anacronicamente à expansão do capitalismo comercial europeu do
século XVI, levaram tempo para saber o que fazer com a Terra de Santa Cruz. Na
primeira tentativa de algo que não fosse deixar os indígenas levando suas vidas nos
limites de suas culturas, doaram-se sesmarias hereditárias aos amigos do Rei.
As capitanias trouxeram os vícios do patrimonialismo e do favorecimento, que
permaneceriam como que embutidos em nosso tecido social. E com elas veio
também o mal de origem: o latifúndio.
Não tardou, contudo, para a Coroa perceber que súditos distantes ou absenteístas
cuidariam mais de si que dos interesses de Portugal.
Centralizou-se então o poder e, com delegação direta dos reis, os vice-reis, pessoas
mais próximas da Coroa e mais dispostas a servir a seus interesses, assumiram a
gerência de tanta terra e tanto problema.
Para a Coroa e seus representantes diretos, duas questões primavam: pôr ordem
na casa (nada de rebeliões libertárias, nem de "subversões", quer dizer, escravos
que quisessem ser algo mais do que instrumentum vocalis) e morte aos inimigos
espanhóis. Por volta de 1750, na época do Tratado de Madri, que definiu os limites
das possessões hispânicas com as portuguesas, não era de estranhar que nossos
vice-reis achassem melhor a ocupação das terras por
499
"meio-portugueses", ou seja, descendentes de pai luso e mãe índia, do que por
gente vinda das terras das quais se dizia em Portugal que não traziam bons ventos
nem boas esposas, as temidas terras de Castela.
José Sebastião Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, preocupado com a
ocupação da Amazónia e, posteriormente, do Pará e do Maranhão, recomendou a
seus delegados, como mostrou o brasilianista britânico Kenneth Maxwell, que
dessem vantagens aos varões portugueses que se casassem com as "tapes", as
mulheres indígenas. Não custou para que os jesuítas, com o objetivo de "defender
os nativos", bem como manter seu domínio sobre eles, se opusessem aos
desígnios pombalinos, o que resultou, com o tempo, e não só por este motivo, na
expulsão da Companhia de Jesus.
Latifúndio, burocracia imperial e escravidão, eis o retrato do Brasil Colónia, tão bem
descrito por Caio Prado Júnior. Só que, por simples que fosse a estrutura colonial,
ela tinha a marca de algumas contradições. Não apenas na tensão entre senhor e
escravo, objeto das controvérsias clássicas entre as interpretações de Gilberto
Freyre e as da "escola sociológica paulista", na qual como cientista social me incluo,
mas na tensão entre os interesses da Coroa e os dos grandes proprietários, ex-
sesmeiros ou novos aventureiros, que se "apropriaram"
dos grandes tratos de terra, as fazendas (e escrevo apropriaram entre aspas
porque, sendo a posse concedida, o domínio das terras continuava com a Coroa).
Não por acaso na História do Brasil colonial tantas "cidades", melhor, vilas, queriam
ostentar o título de súditas diretas do Rei, desde a Vila Boa de Goiás de meus
ancestrais, até as inúmeras valorosas vilas d'El Rey espalhadas pelo Brasil afora.
Nos conselhos das vilas -• as câmaras municipais, como são hoje --, os grandes da
terra, verdadeiros senhores de escravos e usurpadores de terras indígenas,
que não possuíam qualquer título de nobreza de Portugal, mandavam
e desmandavam, entrando freqüentemente em choque com os burocratas, nobres
ou não, representantes do Estado português.1 Os mandões das câmaras locais
preferiam manter relações diretas com Lisboa.
Nota: 1 A formação histórica do Brasil, tão bem estudada por tantos autores, mostra com
clareza como nos diferenciamos, no ponto de partida, dos Estados Unidos, Lá,
desde o início da República, o acesso à terra e mesmo o conhecimento da
quantidade de terras disponíveis foi muito mais democrático. Ainda por cima, com a
Guerra Civil ou Guerra de Secessão (1860-1865), o escravismo ficou como uma
chaga "do Sul" e não como sustentáculo de toda a riqueza nacional. Fim
da nota.
500
Nessa estrutura, a "sociedade civil" (no sentido das pessoas e setores cuja
legitimação não advinha de ligações com o Estado) era embrionária e se compunha
somente do segmento dominante. Os dominados eram escravos ou agregados sem
"cidadania", e o Estado tinha sua expressão visível nos funcionários do Rei, sendo a
garganta do Vice-Rei sua única voz política. Essa situação complicou-se
extremamente tanto pela evolução das "cidades", com seus comerciantes e
traficantes de escravos, como porque Napoleão Bonaparte varreu da Europa as
antigas famílias reinantes. Em conseqüência, os Bourbon (de Dona Carlota
Joaquina, esposa de Dom João VI) e os Bragança de Portugal vieram se aninhar
no Rio de Janeiro em 1808. A chegada da Corte portuguesa, com
exércitos, tribunais, magistrados, biblioteca, missões compostas por cientistas
e artistas, além de centenas de nobres sem ocupação definida, tumultuou o Rio,
mas permitiu fortalecer a ordem burocrática e estender os tentáculos da Coroa, que,
entretanto, nunca alcançaram os rincões mais longínquos do país. E constituiu fato
inédito no mundo colonial: o Rio se transformou na capital do Império português.
Pouco tempo depois o Brasil passou à categoria de "Reino Unido" a Portugal,
concretizando o que fora a antevisão de um importante emissário diplomático da
Coroa portuguesa, dom Luís da Cunha, que propôs em 1736 a transferência
da capital do império para o Brasil com o Rei, como um Carlos Magno redivivo,
tomando o título de "Imperador do Ocidente" - diz o mesmo Maxwell.
Quando a independência se fez, não só quem a proclamou foi Dom Pedro I, filho do
Rei de Portugal (e futuro Pedro IV, de lá também Rei) como o novo Estado brasileiro
herdou as estruturas político-burocráticas portuguesas. Tudo isso contrasta
grandemente com a fragmentação das antigas colónias espanholas, mais depressa
liberadas do peso da tradição, mas, em contrapartida, muito menos organizadas em
torno de uma estrutura estatal sólida. Tal herança político-burocrática
pesou igualmente na continuidade da tensão entre as forças localistas e
as centralizadoras, durante o período da Monarquia (1822-1889).
Há diferenças nas análises da sociedade brasileira desse período, pois autores,
como Caio Prado Júnior, põem mais ênfase no binómio latifúndio-escravidão para
analisar sua evolução, enquanto Raymundo Faoro, por exemplo, olha mais de perto
a influência dos segmentos políticos e burocráticos. De modo geral, entretanto, as
interpretações coincidem em
501
que o "povo" praticamente inexistia como categoria política. Por certo, nada disso
nega nem as tentativas de revoltas dos escravos (basta mencionar Zumbi dos
Palmares, morto em 1695) nem rebeliões populares como a revolta chamada de
"Cabanada", em Pernambuco (1832-1835), a dita "das Balaiadas", no Maranhão e
também no Piauí (1838-1841), e muitas outras, sem mencionar, ainda no século
XVIII, a Inconfidência Mineira (1792), que já mostrava a presença de classes
médias educadas, pelo menos nas áreas de mineração, e a luta chamada "dos
alfaiates" na Bahia, ou Conjuração Baiana (1798), que teve à frente
pequenos comerciantes e artesãos. Entretanto, por heróicas que tenham sido
tais lutas e por referências que sejam para a formação nacional, a estrutura de
poder estava solidamente incrustada nos elementos dominantes mencionados
acima.
O jogo político da Monarquia, tão admiravelmente descrito por Joaquim Nabuco em
Um estadista do Império e tão brilhantemente interpretado por Sérgio Buarque de
Holanda nos volumes sobre o Império de sua História geral da civilização
brasileira,2 baseava-se, de fato, em uma sólida aliança com os produtores rurais,
senhores de escravos, que a sabedoria política de Pedro II nobilitava, agraciando-os
geralmente com o título de barão. A aliança, básica para que o poder imperial se
mantivesse, precisava ser complementada, no entanto, e não de modo secundário,
pela lealdade dos que dispunham da força militar (alguns dos quais, sobretudo
depois da Guerra do Paraguai, travada entre 1864 e 1870, seriam transformados
em marqueses e viscondes, tendo mesmo havido um duque) e das camadas
"superestruturais", compostas por grandes políticos, altos funcionários e intelectuais,
a quem a Coroa igualmente nobilitou, principalmente como viscondes e marqueses.
Com a República, as "oligarquias" se mantiveram.3 Pesavam nelas, entretanto, mais
os proprietários das novas áreas de produção, que já utilizavam
Nota: 2 Sérgio Buarque de Holanda, História geral da civilização brasileira, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, v. 3,9a ed., 2003; v. 4,9a ed., 2004;
v. 5,8a ed., 2004; v. 6,6a ed., 1995; e v. 7,6a ed., 2005.
3 Depois de proclamada a República, meu bisavô Felicíssimo escreveu carta a meu
avô Joaquim Ignacio comentando o que acontecia em Goiás. De memória,
transcrevo: "Vocês aí no Rio fizeram a República. Aqui em Goiás, como antes,
continuam mandando os Caiado de Castro [tradicional oligarquia da então província,
depois estado]".
502
a mão-de-obra livre dos imigrantes, do que as arruinadas
classes proprietárias das regiões de produção antiga, como o Nordeste, onde
a escravidão havia imperado no passado. As estruturas burocráticas
também começaram a mudar. Depois da Guerra do Paraguai, surgia uma nova
classe média vinculada ao aparato estatal. Não se tratava ainda de uma
classe média ligada às forças do mercado, como existe hoje, e na época tinha peso
comparativamente diminuto. Era uma camada composta por "filhos de alguém"
(fidalgos, etimologicamente) advindos das famílias ditas "tradicionais", ou seja, que
em algum momento do passado tiveram ligações com a terra ou com o estamento
burocrático imperial e que perderam status. Na República, a escolha de quem
mandava na política e no governo passou a depender do voto. Por imperfeito e
fraudulento que fosse, o voto dava primazia aos que pudessem controlá-lo. Data
desse período a força dos "coronéis", assim chamados tanto os que eram,
no sentido moderno, bosses eleitorais, como os que tinham graduação na Guarda
Nacional, instituição imperial criada em 1831 que a República soube transmutar em
seu benefício. Basta ler o livro clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e
voto,4 para perceber como se dava o imbricamento do poder republicano com a
nova ordem dominante e ver a importância relativa dos chefes locais, coletores de
votos.
Os donos do poder, a dinâmica das classes e a cidadania
Na formação do Brasil é possível distinguir a base económica da estrutura político-
social. A dinâmica de ambas, entretanto, supõe uma inter-relação. Por isso, penso
que os autores citados, com suas distintas visões, antes se complementam do que
se opõem. A partir de qualquer deles é inegável que o que hoje chamamos de
"sociedade civil"
era débil, praticamente inexistente. Isso só começa a deixar de ser certo, para
mencionar um marco, a partir da Primeira Guerra Mundial, travada entre 1914 e
1918 (Celso Furtado mostra a importância dos conflitos mundiais, que cortavam as
importações, para a dinâmica da produção nacional e, portanto, para a emergência
de novos grupos sociais). Se o povo "bestificado" assistiu
Nota: 4 Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, 3a ed., Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1997. Fim da nota.
503
à Proclamação da República, no dito famoso de Aristides Lobo - republicano
histórico, jornalista e político que chegou a integrar o governo do marechal Deodoro
da Fonseca (1889-1891) -, as revoluções dos tenentes, de 1922 e 1924, assim como
a derrubada da República Velha, em 1930, tiveram a simpatia das classes médias
urbanas. Desde o início do século XX houve alguma conexão, pelo menos em
termos do clima de protesto, com os movimentos operários, presentes nas cidades
maiores, sendo significativas as ações dos anarquistas e a fundação do PCB.
A partir dessa época torna-se mais difícil conferir ênfase excessiva aos estamentos
burocráticos para entender quem eram os donos do poder. A dinâmica das classes
ganha importância crucial, embora Faoro mantenha sua tese sobre os donos do
poder até o período do Estado Novo.
Não é nem de longe meu propósito refazer nesta seção a História política do Brasil,
mas apenas procurar responder à questão: qual é o peso relativo das forças sociais
independentes do Estado no jogo político?
Com base na linha de pensamento exposta, de que o Estado desempenhou
um papel maior do que se imagina (para alguns autores, maior do que o papel da
sociedade, nela englobadas as forças econômicas e principalmente o povo),
enraizou-se a crença de que o Estado é o cadinho da sociedade e cabe a ele
preservar os interesses daquela, afirmá-la, conferir legitimidade política ao povo e
assim por diante.
No período do governo Vargas, sobretudo durante o Estado Novo, essa ideologia
predominou. O autor paradigmático é Oliveira Vianna, que, com fortes traços
racistas e inclinações despótico-fascistas, refez a história de nossa formação para
culminar na defesa do corporativismo e do regime autoritário. No México do Partido
Revolucionário Institucional, o PRI (também corporativista e burocrático-
autoritário), havia um ditado expressivo, que se pode aplicar a essa concepção:
El que vive afuera dei presupuesto vive en el error, ou, adaptando à nossa situação,
fora do Orçamento do Estado caímos em pecado, não há salvação. Ditame que se
aplicaria não apenas aos funcionários públicos, mas aos empresários e até mesmo
ao povo, receptor de benesses governamentais.
Parece indiscutível, contudo, que desde os anos 1930, e, em especial, a partir da
Segunda Guerra Mundial (que trouxe um boom industrializador e poderosos
impulsos migratórios internos, adensando as cidades),
504
o que veio a se chamar de sociedade civil ganhou peso na vida política. Sua presença se
tornou mais perceptível a partir da década de 1970. Daí por diante as forças
dinâmicas da sociedade não pararam de se mover.5
O processo de formação da "cidadania" e de incorporação das massas rurais não foi
linear. Vem se fazendo com idas e vindas. A partir da ruptura do isolamento do
Brasil, tanto em termos comerciais e políticos como culturais (com a Internet e a TV
é impossível isolar idéias), as ideologias estatistas e a noção de que os cidadãos
precisam de tutela do governo para atuar na cena pública se tornaram anacrónicas.
Essa persistência anacrónica se explica parcialmente porque o processo de
formação da "cidadania" e de incorporação das massas rurais se desenvolveu
caprichosamente. Em certos momentos, coube ao Estado autoritário garantir as
franquias democráticas e sociais, invertendo evolução do que aconteceu em vários
países da Europa. Talvez por isso o progressismo social tenha incorporado com
tanto vigor uma concepção política que é inequivocamente autoritária e vê no Estado
o construtor de uma sociedade melhor, enquanto o mercado aparece como um
muro de contenção ao acesso das massas. Se somarmos a essa tendência a
tradição comunista, que tanto influenciou nossos intelectuais e alguns
setores políticos, de um Estado forte e "benfeitor" das massas, além
de "desenvolvimentista", é fácil perceber o porquê dos caminhos tortuosos da
percepção de nossa modernização social e política.
5 O crescimento da população e seu deslocamento do campo para a cidade foram
impressionantes. Entre 1940 e 2000, nossa população multiplicou-se por quatro!
Passou de 41 milhões de pessoas em 1940 para 160 milhões em 2000, atingindo
184 milhões em 2004. A distribuição entre população rural e urbana sofreu
mudanças rápidas e de vulto. Até 1960, a rural era mais numerosa do que a urbana,
as duas crescendo: em 1940,12,8 milhões a urbana contra 28,3 milhões. Em
1960,31,3 milhões versus 38,2 milhões. Em 1970, a urbana ultrapassa a rural - 52
milhões contra 41 milhões - e cresce velozmente. Em 1980 já viviam nas
cidades 80,4 milhões de pessoas, em contrapartida aos 38,5 milhões que
habitavam o campo, para alcançar, em 2000, 137,7 milhões de residentes
urbanos face aos 31,8 milhões de habitantes rurais (Fonte: IBGE). As conseqüências
desses movimentos migratórios, como a favelização, tornaram-se desafiadoras.
Embora não trate delas neste livro, meu governo se preocupou com a questão
habitacional e com a titulação da propriedade urbana. O Estatuto das Cidades (Lei
n° 10.257, de 10/7/2001), que sancionei, foi um marco importante.
505
A literatura sobre esses caminhos é conhecida. O que o sociólogo britânico T. H.
Marshall chamou de cidadania, tomando o conceito de seu homónimo economista,
era "uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de
participação integral na comunidade (...) o qual não é inconsistente com as
desigualdades que diferenciam os vários níveis económicos na sociedade. Em
outras palavras, a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável
desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida."6 A expansão da cidadania,
na Grã-Bretanha, abrangeu, progressiva e seqüencialmente, os direitos civis,
os políticos e os sociais. Os direitos civis asseguraram as liberdades individuais
(liberdade de movimentos, de imprensa, de pensamento e de fé, o direito à
propriedade, à consecução de contratos válidos, de acesso individual à Justiça). Os
direitos políticos são basicamente o de voto e o de participação nas estruturas de
poder, enquanto os sociais dizem respeito a um mínimo de bem-estar econômico e a
possibilidade de levar a vida de acordo com os padrões civilizados reconhecidos
pela sociedade, notadamente assegurando- se o direito de acesso à educação e à
saúde.
T. H. Marshall estudou a evolução histórica desses diversos direitos na Grã-
Bretanha e acreditava que a expansão da cidadania levaria à diminuição das
desigualdades económicas geradas pelo capitalismo. Ainda que não se obtivesse a
igualdade absoluta, seria possível remover as desigualdades tidas como injustas,
chegando-se em certas situações (dependendo especialmente do aprofundamento
dos direitos sociais) a anulá-las. Tornou assim a luta pela franquia dos direitos de
cidadania parte da luta contra as desigualdades e fundamento da
ordem democrática.
Dentre os autores que se inspiraram em Marshall para analisar aspectos da
evolução de nossa sociedade ou que lidaram com as questões da evolução
histórica da cidadania, quero chamar a atenção para dois. O pr imeiro, o historiador
José Murilo de Carvalho, que mostrou como a seqüência marshalliana se inverteu
no Brasil: houve primeiro a expansão de direitos sociais, depois os direitos políticos
e só mais recentemente chegamos à fase dos direitos civis. Nas conclusões de
seu pequeno grande livro
Nota: ' T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar, 1967,
tradução de Merton Porto Gadelha, p. 62. Fim da nota.
506
Cidadania no Brasil: o longo caminho,7 nas quais analisa as encruzilhadas da
cidadania, José Murilo diz: "Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados
em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por
um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira
também bizarra.
A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os
órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do
regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da seqüência de
Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi
colocada de cabeça para baixo."
Em análise anterior sobre os direitos sociais e sua relação com a cidadania, o
cientista político Wanderley Guilherme dos Santos havia tornado evidentes as
vinculações entre regimes autoritários e certos progressos nas políticas sociais,
bem como entre eles e a outorga de direitos sociais. Analisou a evolução das
instituições que asseguram tais direitos desde antes de 1930, passando pelo
varguismo e pelos governos militares, para insistir no que chamou de
"cidadania regulada": uma enorme quantidade de pessoas e ocupações carecem
de direitos sociais por não estarem incluídas nas regulamentações governamentais.
Chama a atenção a observação de Wanderley Guilherme quando diz,
apropriadamente: "A desorganização da vida social que se seguiu ao movimento de
1964 poderá ter gerado, apesar de seus líderes, as condições para a emergência
de um sistema de valores centrados em torno dos conceitos de cidadania universal,
trabalho e justiça."8
É a partir desta brecha na interpretação que me coloco. É certo que houve a
inversão da pirâmide das franquias democráticas. Também é verdadeiro que as
relações entre elas e os regimes autoritários, tanto de base civil, no caso de Vargas,
como militar, depois de 1964, foram paradoxais. No entanto, a Constituição de 1988
expressa juridicamente um outro momento. Ela reflete os movimentos sociais e
políticos iniciados vinte anos antes.
Nota: 7 José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2001, p. 219-220. Para quem queira uma síntese bem-feita da
evolução política e social do Brasil nada melhor que a leitura deste livro.
* Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e justiça: a política social na ordem
brasileira, Rio de Janeiro, Campus, 1979, p. 123. Fim da nota.
507
Permanecem desencontros temporais e a universalização dos direitos civis e
sociais está incompleta, mas a força motora da sociedade civil na cena pública é
iniludível. As expectativas de que a ação de forças burocráticas movidas por um
governo "esclarecido" ("de esquerda") possa assegurar a ampliação dos direitos de
cidadania, sem sociedade civil ativa e com um Estado mais interferente no
mercado, passam a ser, ao contrário do que foram no passado, entraves
à democratização da sociedade.
Novas políticas sociais: a importância das parcerias
A afirmação de que a sociedade civil hoje está muito mais ativa do que no passado
não reduz a ação do Estado, mas a modifica. Desde a fase final do regime
autoritário, melhor dito, desde o início das lutas pela redemocratização a sociedade
brasileira dava sinais de que havia mudado. As greves do final dos anos 1970
demonstravam que as tentativas do movimento de 1964 para eliminar as conexões
políticas com o sindicalismo e as reivindicações populares não impediram o
nascimento de novas lideranças e de novas formas de organização popular. Os
dois livros mencionados acima dão elementos suficientes para que se veja como se
constituíram grupos ativos na sociedade civil. Grupos tanto oriundos das classes
médias - a OAB (existente desde os anos 1930), a SBPC ou a ABI revitalizada -
como entidades ligadas às camadas populares. Para a ativação desses últimos
setores a ação da Igreja Católica, logo seguida por outras organizações religiosas,
mostrou-se importantíssima. O próprio MST nasceu vinculado a ela, mais
especificamente à Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os movimentos de luta por
direitos como os ligados à saúde ou à habitação se desenvolveram em toda parte.
Não foi só no âmbito das lutas políticosociais que a sociedade civil se organizou.
Cresceu incessantemente o número de associações profissionais e empresariais,
associações culturais, esportivas e muitas outras, e principalmente de ONGs - que
hoje existem às centenas de milhares - constituídas ao redor de temas novos.
Paralelamente ocorreu a expansão das antigas estruturas sindicais, que viram a luz
do dia pela concessão estatal mas se reorganizaram em centrais sindicais
independentes do governo (CUT, Força Sindical, CGT, Democracia Social, Contag).
508
Os governos militares se despreocuparam dos novos movimentos: eles
não provinham dos setores que os gladiadores da guerra fria, vencedores em 1964,
consideravam inimigos históricos. Espelhavam uma sociedade que se formou
independentemente dos propósitos dos donos do poder no período posterior ao
golpe: a sociedade urbana de massas. Massas de consumo insuficiente, porém
crescente. Se a renda não permite que o conjunto da população se incorpore
plenamente ao mercado (especialmente as massas rurais, as das periferias das
grandes cidades e as nordestinas), os não-incorporados notam que a seu lado há
quem consuma, e muito desigualmente. Daí que as pressões, mesmo quando não
diretamente políticas, passassem a ser uma constante da vida brasileira.
Nasceram forças que aos poucos vão dando forma a uma "sociedade aberta".
Sociedade desigual, injusta, porém aberta. Quer dizer,
crescentemente reivindicante, insatisfeita e com meios de expressão. Essas
massas sequiosas de direitos e de acesso aos bens materiais e espirituais, logo que
encontram um caminho, se lançam na busca de melhores condições de vida, mesmo
que a custo elevado (por exemplo, pagando a crédito as compras, com juros
escorchantes). Para sentir a vontade de ascensão social e a força das pressões
basta ver a imensa quantidade de cursos de capacitação profissional de todo tipo
espalhados pelo país inteiro, ou, no plano das reivindicações, a grande vitalidade
das mulheres na linha de frente das demandas populares.
Nessa remontagem social, o papel das liberdades e especialmente da liberdade de
imprensa, dos meios de comunicação em geral, é essencial.
De certo modo a seqüência européia das franquias democráticas se empastelou, se
posso usar a imagem vulgar. As liberdades civis, ainda que incompletas e não
abertas a todos, se expandiram muito. Os direitos políticos se generalizaram (a
Constituinte estendeu o direito de voto aos analfabetos e reduziu a idade mínima
dos eleitores de 18 para 16 anos. Em 2005 o Brasil atingiu 120 milhões de eleitores).
Os direitos sociais, embora mais do que insatisfatórios, estão na ordem do dia
e clamam por universalização. Isso em uma sociedade cuja população
quase dobrou entre 1970 e 2000, de 93 milhões para 160 milhões de
habitantes, dos quais 56% viviam nas cidades em 1970 - percentual que chegou
a 81,2% em 2000. Chama mais atenção ainda que, a despeito desse crescimento, a
renda per cápita
509
tambem tenha praticamente dobrado9 e a mobilidade social continuado extremamente
elevada.10
As classes médias ganharam novas feições. Os grupamentos
"tradicionais", geralmente ligados à burocracia civil e militar, à Justiça, à polícia e às
universidades, continuam a existir. Mas os segmentos de classe média ligados ao
mercado e não ao Estado são mais numerosos e têm aspirações e reivindicações
mais modernas. Refiro-me, só para dar alguns exemplos, à burocracia das
empresas, aos técnicos, aos novos segmentos profissionais da indústria de
comunicação e de entretenimento, aos ligados aos serviços de transportes e ao
sistema financeiro, aos milhões de pequenos empresários urbanos e, mais
recentemente, até mesmo no campo. Sem esquecer dos gerentes e executivos de
grandes empresas nacionais e multinacionais, que ocupam os estratos médios e
altos das novas classes médias. São pessoas em processo de ascensão
social, oriundas de famílias de mais baixo status, enquanto nas classes
médias tradicionais dá-se o oposto: em geral seus componentes perderam status ou,
no máximo, conseguem mantê-lo, sem progressos significativos.
Esse dinamismo não eliminou as desigualdades, nem seria possível, em
uma economia concentradora de renda. À concentração da riqueza
fundiária somou-se a dos grandes capitais urbanos. Mesmo antes, o
modelo nacional-desenvolvimentista já criara padrões de emprego
altamente concentradores de renda no setor produtivo estatal. Como
conseqüência das desigualdades e da concentração de renda, aumentou o gap
cultural, manifesto tanto no analfabetismo funcional quanto no digital, produzindo
barreiras novas em uma sociedade que, contraditoriamente, pode ser considerada
"da informação", mas capenga, graças a esse desnível. Com todas essas distorções,
de qualquer maneira, os governos não podem mais se dar ao luxo de olhar só "para
cima". Tampouco é possível reviver o período de Vargas, quando o apelo às
massas é que vinha de cima, com o "Boa noite, trabalhadores do Brasil", do
ministro do Trabalho do Estado Novo, Alexandre Marcondes Filho, em A voz
do Brasil. Agora, não bastam apelos
Nota: 9 Segundo o Ipea, em reais de 20 04, o PIB per cápita, que era de 5.012,31 reais
anuais em 1970, chegou a 9.466,66 em 2000.
10 Ver José Pastore e Nelson do Valle Silva, Mobilidade social no Brasil, São Paulo,
Makron Books, 2000. Fim da nota.
510
top-down, de cima para baixo, para que as camadas populares se sintam integradas,
como na época áurea do populismo. As forças populares exigem, não pedem;
interpelam, não apelam; atuam, não esperam por benesses do governo.
A democratização em curso obriga à redefinição da ação do Estado. A presença de
grandes massas urbanas, as transformações da classe operária (que nos setores
mais dinâmicos da economia se incorporou à sociedade de consumo) e das
próprias massas rurais reivindicantes forçam os governantes a torná-las em conta. E
não se pense que a dinâmica dessa sociedade renovada se expressa apenas
pelas reivindicações grupais. Na antiga ordem, a democratização implicava
o fortalecimento institucional e a liberdade para que os grupos organizados (partidos,
associações de classe, grupos comunitários de toda ordem, empresas, sindicatos
etc.) funcionassem. A sociedade contemporânea dá margem a um novo padrão de
sociabilidade que, sem eliminar o anterior, se infiltra nele. Renascem as
motivações, objetivos e comportamentos que refletem a presença ativa das pessoas
- sem cingir-se, entretanto, ao antigo "individualismo".
Explico-me: as pessoas querem crescentemente obter informações que
lhes permitam escolher para então decidir, sem serem massa de manobra.
E, simultaneamente, desenvolvem uma espécie de obrigação moral que, à falta de
melhor nome, denominaria "compromisso social". Não se trata, portanto, do
renascimento do individualismo clássico, chamado por alguns autores de
"individualismo possessivo", diretamente guiado pelos valores do mercado.
Atualmente, existe uma dimensão de solidariedade virtual no comportamento e
mesmo uma busca de formas de sociabilidade que animem um sentimento de
coesão social (basta constatar a expansão das religiões pentecostais, ou os
movimentos ambientalistas). Mas cada participante quer saber por que agir de um
ou de outro modo e que conseqüências decorrem de sua ação, para si e para os
outros. Essa é a marca distintiva das sociedades abertas contemporâneas. As
pessoas estão sequiosas não apenas por mais mobilidade social como por
mais informação, mais transparência, mais compromissos claros. Não se trata de
uma rejeição abstrata e absoluta das organizações preexistentes na sociedade, mas
de uma cobrança por mais informação que permita, antes da participação, a
deliberação: por que me lanço, por que adiro a isso ou aquilo. Tudo isso amplia as
tarefas do político e do homem de Estado.
511
Para responder a esses processos, procurei imprimir contornos novos às políticas
sociais de meu governo. A galvanização ideológica promovida pela "velha
esquerda" que manteve a visão da antiga sociedade (nela compreendida o PT),
com seus sindicatos, partidos e grupos de pressão, somada aos interesses de
grupos empresariais e de classe média que floresceram à sombra das antigas
instituições estatais e da proteção à concorrência, se opuseram acirradamente à
modernização pretendida.
Mesmo quando, em tese, seriam favoráveis ao que se propunha, procuravam negar
a sinceridade ou o alcance das propostas para rejeitá- las.
As políticas sociais que coloquei em prática tinham alvos, mecanismos e percursos
claros: universalização do acesso à educação e à saúde;
acesso mais amplo à terra; equalização dos benefícios previdenciários;
focalização das políticas compensatórias de combate à miséria e à pobreza; inclusão
de novos temas para uma visão moderna da cidadania (combate ao racismo,
preocupação com o meio ambiente, igualdade de género, políticas de direitos
humanos); acesso à Justiça e preocupação com a segurança, pública e individual.
Esses itens não cobrem toda a política social, mas constituem o miolo do que é
necessário para consolidar os direitos de cidadania e para ampliar o acesso a eles.
A consecução dessas políticas em uma sociedade aberta, democrática e de massas
depende de formas novas de articulação entre o Estado e a sociedade. É preciso
incorporar a noção de parceria e implementar políticas descentralizadoras. Em um
movimento de pinças, cabe atuar para que a sociedade civil se responsabilize
crescentemente, junto com o Estado, pela implementação das políticas
públicas, ajudando-o e controlando o gasto público. É preciso aprimorar
a articulação entre o governo federal, os estados e os municípios para que a
descentralização administrativa seja mais eficaz, e dê acesso à maior participação
das pessoas. Nada disso se alcançará sem um Estado reformado: o fortalecimento
do componente técnico e profissional da burocracia, com a universalização do
concurso público e a constante preocupação de treinamento e aperfeiçoamento dos
servidores, somado à limitação do clientelismo e do corporativismo, tornam-se
indispensáveis para o governo atingir seus objetivos Por outro lado, é conveniente
uma certa "porosidade", para usar um termo de Gramsci, para as burocracias se
abrirem à cooperação com a
512
sociedade civil. E ampliar tal cooperação é mais fácil no nível local do que no plano
federal.
Procurei implementar uma política social-democrática renovada. Política que
dispensa o patrimonialismo ou o protecionismo estatal e que não se opõe à
competição e à meritocracia, na vida pública e no mercado.
Antes de entrar na apresentação de cada item, convém recordar que
os experimentos do programa Comunidade Solidária e seu braço governamental, a
Secretaria da Comunidade Solidária, constituíram o fermento para as ações
públicas inovadoras, com maior participação da sociedade. O entrosamento de
modo não-burocrático dos ministros e técnicos da área social com esses programas
representou elemento importante na formatação de novas práticas. Não vou me
referir mais detidamente ao tema porque escapa ao propósito deste capítulo, mas
ele é essencial para a visão da social-democracia renovada. No passado,
os governos social-democráticos ou de esquerda em geral assentavam as políticas
sociais exclusivamente na burocracia estatal. Hoje repousam mais na mobilização
da sociedade, na descentralização administrativa e na participação das pessoas nos
processos deliberativos. Falta fazer muito. Em meus dois mandatos conseguimos,
no máximo, desenhar o esboço de um Estado nacional modernizado, mais apto a se
transformar em um Estado de bem-estar social.
A tarefa de reformulação do Estado, portanto, não se completou, até porque a cada
momento surgem novos desafios, entre os quais o de lidar com a "sociedade incivil".
Com esta expressão quero ressaltar o lado negativo da modernização e da
globalização: as redes criadas graças ao uso da Internet e das modernas
tecnologias da comunicação e deslocamento que permitem a ampliação das ações
criminosas nacionais e transnacionais, abrangendo as drogas, os sequestros, o
contrabando, o tráfico de mulheres, de órgãos e de armas, a pirataria e outras
ameaças aos direitos e à segurança dos cidadãos. Os Estados
nacionais democratizados têm de enrijecer na luta contra essas modalidades
de crime organizado e contra a corrupção, sua irmã gémea.
Para complicar as coisas, em uma sociedade de massas, onde por definição a mídia
desempenha papel importantíssimo, é fácil jogar com a política de escândalos, até
porque a rapidez da urbanização e a velocidade da mobilidade social quebram
controles sociais tradicionais e abrem
513
espaço para toda sorte de comportamentos fora da lei. Na política de escândalos o
alvo prioritário são pessoas que atuam no âmbito estatal ou, pelo menos, público.
Quando, ainda por cima, as instituições políticas não são fortes (o clientelismo mina
a autoridade pública, os partidos usam o governo em benefício próprio e o prestígio
dos líderes se sobrepõe aos controles partidários e mesmo institucionais), torna-
se difícil obter a adesão da sociedade para a reconstrução do aparelho estatal.
A lista a seguir, das áreas nas quais meu governo se esforçou para mudar algumas
políticas e a própria estrutura da administração, é apenas exemplificativa. Por outro
lado, é preciso reconhecer, como disse anteriormente, que a tarefa está longe de
concluída.
Educação: levantando-se do berço esplêndido
O primeiro cuidado que tive no terreno da educação foi o de nomear um ministro
competente. É óbvio que o Presidente sempre deve procurar agir assim. No caso da
Educação e da Saúde, como no da Fazenda, no entanto, por serem áreas vitais para
meu projeto de governo, tive cuidado redobrado. Nomeei ministros com
personalidade forte, competência comprovada, pulso para administrar seu campo
de ação e topete para enfrentar a área económica. Quando ministro da Fazenda,
constatei a importância que têm a Educação, a Saúde e a Previdência para
o controlador do gasto público, seja ele o titular da Fazenda, o do Planejamento ou
ambos. A observação vale também para o Ministério da Agricultura, que sem
financiamento pouco pode realizar. Se os ministros dessas áreas não dispõem dos
conhecimentos necessários para entender o Orçamento do país, ou da força política
e da argumentação para convencer os titulares das pastas económicas da justeza
de seus pleitos, são engolidos pela máquina fazendária.
No MEC as prioridades eram óbvias: ampliar o ensino fundamental, melhorar a
qualificação dos professores, tentar pagar-lhes melhor, sobretudo nas zonas mais
pobres do país e, ao mesmo tempo, revitalizar o ensino profissional e racionalizar os
gastos com o ensino superior.
Além disso, tínhamos que incutir a necessidade de avaliação do desempenho.
Quem conhece a estrutura burocrática do MEC sabe o poder das
corporações universitárias e conhece o peso do clientelismo político. Ambos
514
emperram à máquina administrativa. Tivemos grandes dificuldades para pôr em
prática políticas que invertiam as prioridades, passando-as do ensino superior para
o fundamental e, ainda por cima, com medidas de descentralização administrativa
que incluíam, sempre que possível, critérios de mérito, com sucessivas avaliações.
Havia que moralizar as aquisições de livros didáticos distribuídos gratuitamente (no
final do governo chegavam a 120 milhões de exemplares anuais), entregá-los
a tempo e hora, dar-lhes durabilidade, refazer as listas de indicação bibliográfica,
quebrar os monopólios de venda e outras tarefas de igual importância e magnitude.
O mesmo se diga sobre as compras para a merenda escolar, objeto de escândalos
no passado. Saltava à vista que, para aproveitar a energia e a capacidade de
controle das comunidades e baratear custos, como também colaborar para a
atividade econômica local, seria indispensável a descentralização e o entrosamento
com governadores, prefeitos e a sociedade civil.
Muito disso se fez. Com o passar do tempo se tem a sensação de que o
MEC sempre funcionou como viria a funcionar quando transmitimos o governo
a meu sucessor, mas não é certo. Caro custou a dedicados funcionários e
a pessoas de qualidade trazidas de fora da máquina pública (é importante contar
com elas para arejar a burocracia, desde que não sejam apenas "militantes") lutar
contra máfias externas incrustadas no MEC e contra a mentalidade de alguns de
seus setores mais acomodatícios.
Houve muitas decisões inovadoras assegurando maior responsabilidade para as
comunidades, como no caso da distribuição direta de dinheiro para os diretores das
escolas utilizarem-no segundo suas necessidades. Ou, então, da difusão
sistemática pela A voz do Brasil de informações sobre o repasse de recursos
educacionais a cada município, facilitando o controle por parte das comunidades.
Sem falar nos programas de apoio às prefeituras para disporem de condução
escolar, facilitando o acesso às escolas nas áreas rurais. E haveria muitas outras
iniciativas a mencionar.
A renovação mais marcante se deu na atenção ao ensino fundamental. Não preciso
repetir o que está analisado no capítulo em que falo sobre as reformas
constitucionais e menciono o Fundef. Essa emenda constitucional compôs a base
da "revolução silenciosa" na educação.
Houve melhoria acentuada do salário dos professores nas áreas mais pobres. No
Nordeste, por exemplo, o valor médio da remuneração dos docentes das escolas de
515
educação fundamental, trabalhando 40 horas semanais, incluindo professores de
escolas locais e estaduais, subiu 59,6% reais, entre dezembro de 1997 e junho de
2001. Quanto possível, vinculamos aumentos salariais ao desempenho efetivo nas
salas de aula. Registraram-se, por outro lado, progressos de vulto na qualificação
dos docentes. A pedra angular para essas modificações foi a aprovação da LDB,
que passou a requerer formação completa para os professores do ensino básico.
Com tal diretriz, a proporção dos "professores leigos", quer dizer, sem formação,
reduziu-se de 24% a somente 6%, entre 1995 e 2002. Nesse período também
conseguimos passar de 75% para 90% o percentual de professores da primeira à
quarta série primária com formação completa de magistério, e de 67% para 77% os
professores do ensino médio com licenciatura completa. São dados importantes,
que, com raras exceções, nunca vi devidamente valorizados na mídia. Convém
lembrar que o universo de professores do ensino fundamental no Brasil supera
2 milhões de profissionais.
Essa política radicalmente democrática não gerou frutos apenas no aspecto
quantitativo. Despendeu-se um notável trabalho na remodelação de "parâmetros
curriculares nacionais", com a mobilização de milhares de professores, ou no
expurgo dos textos dos livros didáticos de conceitos preconceituosos quanto a raça,
classe ou género. Sem falar no ensino bilíngüe para as populações indígenas,
produzindo-se os respectivos materiais apropriados, ou no uso intenso da TV
educativa e de programas de distribuição e acesso a computadores.
O resultado dessas e de muitas outras medidas complementares é conhecido: ao
final de meu governo, cerca de 97% das crianças em idade escolar estavam em
salas de aula, realizando- se os objetivos da campanha mobilizadora que lançamos
em meu primeiro mandato, Escola para Todos. Em 1992 já havia 91% delas
freqüentando as escolas, mas somente 79% eram negras. Após meus dois
mandatos, conseguíramos elevar este último percentual para 94%.
Pode haver programa maior de inclusão social? É na escola que os laços de
sociabilidade se ampliam e as bases da cidadania se fortalecem.
Posso dizer com satisfação: meu governo ajudou a liquidar a
mancha contemporânea, o analfabetismo. O que restava dele decorrido
meu período (12%) se concentrava nas coortes mais idosas ou era residual entre as
516
crianças. Questão de pouco tempo: havendo continuidade, teremos liquidado os
traços que amarravam nossos pés aos grilhões do atraso, como ocorreu com a
escravidão no século XIX. Preparamo-nos para sair do berço esplêndido,
fortalecendo a cidadania.
Se acrescentarmos que o programa de merenda escolar, iniciado muito antes de
meu governo, atendia no final de 2002 cerca de 35 milhões de crianças
matriculadas nas escolas públicas, que ele melhorou consideravelmente com a
descentralização das compras e que, nas áreas atendidas pelos programas da
Comunidade Solidária, em vez de uma passamos a oferecer duas refeições por dia
a cada criança, percebe-se o quanto de demagogia havia no natimorto programa
Fome Zero. Já dispúnhamos de um programa alimentar à escala quase universal
para as crianças. Paralelamente, os programas de atenção às grávidas e
às lactantes estavam combatendo o verdadeiro problema nesse terreno, que não é
exatamente a fome, embora certamente ela exista, mas a subnutrição originária do
berço.
Não limitamos a intervenção do MEC ao ensino fundamental. Com a
visão democrática de que cumpre desobstruir os canais de mobilidade social,
o ensino profissional sofreu modificações, facilitando a obtenção de diplomas de
término dos estudos ou o ingresso nas universidades para quem quiser seguir
adiante na formação profissional. A matrícula nesses cursos cresceu nada menos
que 300% entre 1995 e 2001, com o número de estudantes passando de 90 mil
para 267 mil. De igual modo, o número de estudantes no ensino médio cresceu de
4,9 milhões para 8,8 milhões, entre 1994 e 2002, ou seja, um aumento de 70%.
Para que se tenha uma idéia do progresso obtido, basta contrastar esses 4 milhões
de novos alunos em oito anos aos somente 2,1 milhões acrescidos ao ensino
médio nos 14 anos anteriores a 1994.
Quanto ao ensino superior, infelizmente não logramos aprovar, no Congresso, uma
lei atribuindo maior autonomia e responsabilidade às universidades. A oposição
continuada das corporações de professores e entidades estudantis permeadas por
visões passadistas pretendia obter autonomia financeira sem, todavia, aceitar
recursos orçamentários definidos, inviabilizando qualquer negociação. A tecla na
qual batiam para combater a reforma universitária era pobre, impraticável,
mas cheia de apelo às mentes desinformadas: "querem privatizar as universidades".
Como se,
517
além de tudo o que se pudesse argumentar racionalmente contra tal disparate,
algum capitalista se interessasse por comprar instituições custosas e de déficit
garantido, como são as universidades públicas.
Ainda assim não se estagnou o processo de injeção de maior dinamismo ao ensino
superior. As matrículas passaram de um total de 1,8 milhão de alunos em 1995 para
3,5 milhões em 2002. É de se notar o aumento de estudantes em escolas privadas,
cujo universo pulou de 1 milhão para 2,4 milhões no mesmo período, enquanto as
universidades públicas tiveram um aumento de 400 mil alunos. Registrou-se uma
significativa expansão da oferta de cursos de nível superior fora das capitais,
eloqüente sinal do dinamismo dessas áreas. O professorado se aprimorou: o
número de professores com grau de mestre ou doutor passou de 54,8 mil para 157,2
mil entre 1994 e 2002, ou seja, de 39% para 65% do total.
Ao lado da expansão da matrícula e da qualificação do corpo docente, o MEC criou
um sistema de avaliação engenhoso que começou a minar nossa tradição
estamental e seu horror a julgamentos externos à corporação. O chamado "Provão",
a que se opôs ferrenhamente a União Nacional dos Estudantes (UNE) e parte da
corporação académica, avaliava o desempenho das escolas. Não repercutia
diretamente na aprovação do aluno, mas estabelecia saudável competição entre os
cursos. A divulgação dos resultados, por sua vez, levava à busca de melhores
escolhas por parte dos jovens e dos pais, bem como à procura de aperfeiçoamento
por parte das escolas. O Provão não substituiu as avaliações normais do MEC,
mas estas são mais efetivas na pós-graduação, onde constituem um dos pilares do
bom desempenho desses cursos.11
É verdade que não se conseguiu a autonomia financeira das universidades.
Expandiu-se, contudo, o gasto com o ensino superior. As instabilidades cambiais e
a necessidade de contenção fiscal não permitiram que se oferecesse uma
remuneração condigna ao professorado. Mesmo assim, houve reajustes. Ao
introduzi-los, procuramos atá-los a dois critérios: a ocupação efetiva do tempo nas
salas de aula e o mérito. Este é individual
Nota: 11 Não é meu propósito, repito, analisar exaustivamente os programas e ações na
área educacional. Para um aprofundamento da questão, ver A revolução
gerenciada, de Paulo Renato Souza, op. cif., ou, para estatísticas, Brasil; a era do
Real (1994-2002), Brasília, Presidência da República, 2002. Fim da nota.
518
e se mede pelas pesquisas realizadas pelo professor, pelos trabalhos que publicou e
por seu desempenho acadêmico. A corporação ofereceu tenaz resistência à
associação entre qualificação e remuneração - fincada, como sempre, nas idéias de
privilégio de status, devidamente disfarçadas de igualitarismo. Os sinais que
percebemos no governo que me sucedeu indicavam que dificilmente seriam
mantidos os avanços democráticos por nós obtidos na questão salarial, com uma
visão competitiva e de valorização do mérito de cada um.
Esforços semelhantes aos que descrevi estenderam-se também à área da pós-
graduação. A tradição universitária brasileira, principalmente na pós-graduação, é
boa. O acesso se democratizou com o sistema de bolsas, por intermédio de duas
instituições, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes), ligada ao MEC, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. (Vale
ressaltar, por falar em tradição, que o CNPq data de 1953, mesma época em que se
criaram similares nos Estados Unidos e na França.) Aprofundamos medidas
para aumentar o número dos cursos e o de estudantes neles matriculados.
Entre 1994 e 2002, cresceu de 43 mil para 65 mil o número de matrículas, e 23 mil
alunos formaram-se em nosso último ano de governo, em contraposição aos 9 mil
em 1994. No doutorado, no mesmo intervalo de tempo, passamos de 19 mil para
37,4 mil alunos.
Esses números evidenciam um progresso importante no ensino superior e que a
sociedade brasileira, mesmo continuando a ser injusta, se modernizou. O número
de doutores formados pelo Brasil equivale ao que o Canadá, a Itália ou a Coréia do
Sul produzem. De modo semelhante, o número de artigos científicos publicados por
brasileiros em revistas especializadas reconhecidas internacionalmente, ou o
número de citações desses artigos em outras publicações, teve uma expansão
acentuada. A produção científica brasileira compara- se favoravelmente à dos
países de desenvolvimento médio. Infelizmente não são tão propícios os
dados sobre o número de patentes registradas. Continua a existir uma visão mais
orientada para a ciência básica do que para a aplicação prática. É de esperar que a
Lei de Inovação, resultado do trabalho do Ministério de Ciência e Tecnologia em
meu governo para incentivar maior interconexão entre a indústria e a universidade,
aprovada em 2004 com algumas modificações
519
introduzidas pelo governo que me sucedeu,12 mantenha esse mesmo espírito e
que possamos colher seus frutos.
Em resumo, houve aumento do gasto, mas principalmente seu redirecionamento.
Esta é uma questão-chave. Quando se debatem os temas sociais, com freqüência a
ênfase é dada à falta de recursos. Minha experiência mostra que, se é certo que
eles não existem em abundância, podem no entanto ser redirecionados, evitando-se
o desperdício e inovando na maneira de executar as políticas. Chama a atenção,
por exemplo, que o investimento em educação no Brasil não se situe mal
nas comparações internacionais. Em 1998 gastávamos 5,2% do PIB,
percentagem menor do que a da França (6%) ou a de Canadá e Portugal (que
investiam 5,7% do PIB). Em compensação, nos situávamos proporcionalmente à
frente dos EUA (que investiam 5,1%), do Reino Unido, da Malásia ou da
Espanha, para não mencionar todos os países da América Latina e mesmo a Coréia
e o Japão (3,5% do PIB).
Como acontece com qualquer comparação internacional, é preciso considerar o
tamanho do PIB desses países e o muito que alguns deles já construíram em
matéria educacional. Mesmo assim, não nos colocamos mal.
Se não logramos resultados melhores é mais por falta de eficiência e racionalização
do gasto do que em função de nossa pobreza relativa ou porque "pagamos juros
muito altos" para honrar nossa dívida. Isto é certo, mas não explica o atraso nas
áreas sociais. Lembro que o investimento do Brasil por aluno universitário, em 1999,
era de 13,2 mil dólares, superado apenas pelo dos EUA (19,2 mil por aluno),
bem maior que o de todos os demais países citados na comparação anterior.
O importante é orientar melhor os esforços educacionais e entrosar crescentemente
o Estado com a sociedade para que esta possa controlar o destino dos recursos
públicos, sentir-se co-responsável pelo gasto - e cobrar os resultados.
Em conjunto, se houve área da qual se possa dizer que nela a ação do governo fez
diferença foi a educação. E isso se deve muito à capacidade do ministro Paulo
Renato, titular da pasta durante os oito anos, de agregar colaboradores, ter visão
empreendedora e ter-se devotado ao trabalho com entusiasmo.
Nota: 12 O projeto que encaminhamos ao Congresso em 2002, aprovado
com modificações, tornou-se a Lei n° 10.973, de 2/12/2004. Fim da nota.
520
A saúde e a busca da universalização
Diretrizes semelhantes orientaram as políticas na área da saúde.
Tínhamos também que mudar a ênfase da medicina hospitalar para a preventiva e
transformar em realidade o que a Constituição assegurava como norma:
atendimento universal e gratuito à saúde, um bem público.
Em outras palavras: precisávamos dar vida ao SUS. Este nascera na Constituinte,
como resultado das Conferências Nacionais de Saúde, que envolveram muitos
profissionais da área e setores organizados da sociedade civil. Na oitava reunião,
realizada em 1986, as idéias básicas sustentadas pelo Movimento da Reforma
Sanitária estavam claras:
elas propugnavam um sistema de saúde que fosse único, gratuito
e descentralizado, para atender a toda a população.
Aprovada a Constituição, não se revelou tarefa simples substituir a mentalidade
rotineira desenvolvida por meio do antigo Instituto Nacional de Assistência Médica
da Previdência Social (Inamps) e introduzir novas práticas. Em 1990 o Congresso
aprovou duas leis importantes para facilitar a articulação entre os diferentes níveis
da administração (federal, estadual e municipal) e viabilizar a transferência de
dinheiro federal para as outras instâncias e o setor privado. O Ministério da Saúde,
por intermédio do que se chama de Normas Operacionais Básicas (NOB), começou
a pôr em prática os ditames constitucionais. Assim, houve regulamentações em
1991, 1992,1993 e 1996. Como atender a toda a população e assegurar a
gratuidade? Como descentralizar, quer dizer, usar os serviços dos estados e
municípios?
Como fazer participar de um sistema único de saúde a rede hospitalar e
a prestadora de serviços médicos privada? O impulso-chave para a descentralização
só veio a ser efetivo na norma de 1993. Para vincular o sistema privado ao
financiamento público criou-se um mecanismo, chamado de Autorização de
Internação Hospitalar (AIH). Era o instrumento das transferências de recursos
públicos para pagar os hospitais privados, ressarcindo-os pelo atendimento que
prestassem às pessoas habilitadas a utilizarem o SUS. Mais tarde as AIHs
mereceram duras críticas pelas distorções e a corrupção a que deram margem.
Apesar das inegáveis tentativas sérias de governos anteriores para ordenar os
gastos e melhorar o atendimento da saúde, os vícios de gestão e
521
a desordem financeira derivada das altas taxas de inflação e do clientelismo político
dificultavam muito a obtenção de resultados. Como ministro da Fazenda,
testemunhei, por exemplo, a luta para implantar os medicamentos genéricos, como
também a preocupação constante do Presidente Itamar com o custo dos remédios.
Na ocasião não dispúnhamos de condições para racionalizar o gasto e ao mesmo
tempo levar adiante uma política social mais ambiciosa: a inflação solapava tudo.
Recordo-me, com desalento, das greves dos hospitais, dos atrasos
nas transferências de recursos para que eles pudessem saldar as dívidas e
de outros problemas do género. Situação que durou até o início de meu governo.
Naquele período a estabilização desinchou o Orçamento, reduzindo os recursos
para a saúde. Cumpria buscar novas fontes de financiamento. Estas, graças à luta
do ministro Jatene, vieram da CPMF, que inicialmente deveria atender apenas aos
gastos da saúde.
Em suma, se é certo que o SUS era a diretriz constitucional e que o governo e as
áreas médico-hospitalares, bem como os segmentos mobilizados da sociedade,
lutavam para implantá-lo, as questões práticas e as dificuldades não eram poucas, e
os interesses aninhados na desordem tradicional, no clientelismo e mesmo na
corrupção se opunham a qualquer racionalização.
Para colocar em marcha novas políticas na saúde tivemos que reconstruir as fontes
de financiamento e criar condições para o controle efetivo dos serviços e do gasto
público. Demos ênfase no Congresso à obtenção de novos recursos e, no
Ministério, a uma renovação completa de práticas. A diretriz consistiu em ampliar os
cuidados com a prevenção da doença (o Brasil tem tradição de campanhas públicas
de vacinação bem- sucedidas) e não descuidar, simultaneamente, da assistência
hospitalar;
separar as funções de atendimento básico à população da medicina de alta
complexidade; desenvolver uma rede de atendimento às carências elementares das
famílias mais pobres e desenvolver ações médico- sociais (por exemplo, de
saneamento, nas regiões sem recursos) que incidissem sobre a mortalidade infantil
e outras mazelas. Ainda por cima, havia que atender às novas demandas, dentre as
quais destaco as dos portadores do vírus da aids ou daqueles já com a doença, as
da saúde da mulher em seus múltiplos aspectos e o atendimento aos idosos.
Estavam por ser regulamentadas
522
também as relações entre o Estado e a rede privada de saúde, com seus
seguros e planos de assistência, e as relações entre a indústria farmacêutica e o
governo, com todas as implicações correspondentes em uma economia de
mercado.
Das novas formas de financiamento cuidou em primeiro lugar o ministro Adib Jatene,
como já indiquei. Em 1994 havíamos criado o "imposto sobre o cheque" no bojo das
medidas para a estabilização financeira.
Chamou-se de IPMF. Em 1997 o caráter provisório do tributo desapareceu e a
mudança constitucional passou a valer até 1998, destinando os recursos
exclusivamente para os gastos de saúde. Posteriormente conseguimos endosso do
Congresso para estender a vigência da CPMF até 2002 e seus recursos destinaram-
se também aos gastos com a Previdência.
Não se deve falar em corda em casa de enforcado: com necessidades sociais
imperativas e dinheiro escasso, a boa vontade para diminuir os impostos termina
quando se obtém o aumento deles. Foi o que aconteceu.
Pior ainda: a área fazendária, diante da crise fiscal e de pressões inflacionárias, se
viu obrigada a bloquear verbas que deveriam ser da saúde e a não lhes dar a
destinação exclusiva prevista. Resultado, todos gritam e ninguém tem razão.
Essa situação tornou politicamente desgastante administrar os choques entre
ministérios. O ministro Jatene, depois de vencedor na batalha congressual para
criar o IPMF/CPMF, sentiu-se desarmado para responder às pressões dos hospitais
por mais verbas ou mesmo para o pagamento de débitos atrasados. Em diversas
ocasiões Jatene se queixara das dificuldades para garantir a transferência do
dinheiro da CPMF para a saúde. Acabou cansando e me disse, em audiência:
- O senhor sabe como essa gente da Fazenda é. Eles sempre têm um modo
de calcular diferente do nosso. Sou médico, tenho que prestar contas a meus
colegas. Assim fica difícil.
Tive que concordar com o pedido de demissão, pois eu também não
podia desconsiderar o realismo da Fazenda, sempre a clamar que era melhor cortar
gastos do que incorrer em aumento dos já elevados déficits globais.
O substituto de Jatene, ministro Carlos César de Albuquerque, tinha competência
administrativa comprovada em um hospital público de
523
Porto Alegre. Ele realizou as modificações necessárias, com a ajuda inestimável do
secretário executivo, Barjas Negri, que desloquei do MEC, onde havia colaborado
na proposição da Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa, Extensão e Pós-
Graduação (Fundep), para auxiliar o novo ministro no relacionamento com a
máquina federal e o Congresso.
A nova gestão firmou uma mudança fundamental de procedimentos com a saúde
pública. Havia uma norma definindo o PAB, que, como vimos páginas atrás, era o
Plano Assistencial Básico da saúde. Cada município recebia uma parcela fixa de
recursos correspondente ao tamanho da população.
Isso distorcia a distribuição de dinheiro: municípios ricos, porém mais populosos,
recebiam mais do que municípios menos populosos, mas com população pobre
maior. O Programa Saúde da Família (PSF), uma iniciativa do ministro Jatene em
governo anterior, por exemplo, encontrava limites para sua expansão nesse
quantitativo fixo. Esse programa, inspirado na experiência cubana, contou
decisivamente na melhoria geral das condições de saúde e de redução da
mortalidade infantil. Ele começou timidamente: em 1994 havia 328 equipes de
saúde (compostas por agentes comunitários, atendentes, enfermeiros e médicos)
cuidando de cerca de 1,1 milhão de pessoas em 55 municípios. No fim de meu
segundo mandato, em outubro de 2002, havíamos multiplicado o número de
equipes e de brasileiros atendidos cinqüenta vezes! Eram 16.657 equipes,
operando em 4.132 municípios, atendendo a cerca de 53,7 milhões de pessoas.
A melhoria só foi possível porque houve aumento dos recursos e uma
ampla descentralização, graças às transformações do PAB, cujo nome mudou
para Piso de Atenção Básica. As verbas para mante-lo passaram a ser transferidas
diretamente do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para os fundos municipais. O
quantitativo se compôs de duas partes: uma fixa, em função do volume da
população do município, e outra variável, com a qual o Ministério pagava a
expansão do Saúde da Família. O governo federal passou a custear também os
gastos dos municípios nos programas de Assistência Farmacêutica e de Controle
das Carências Nutricionais.
Desde 1997 discutia-se esse novo PAB, mas ele somente se tornou efetivo depois
de 1998, na gestão de José Serra. Nela se consolidaram os avanços no Ministério
da Saúde: o PAB passou a cobrir, além dos gastos elementares de assistência, os
de promoção e prevenção. Aumentou muito o
524
investimento em saúde13 e se deu igualmente a transferência para os municípios da
gestão dos programas. A descentralização apregoada se tornou um fato: em 1996
apenas 144 municípios recebiam recursos federais e eram responsáveis por sua
gestão, contra 5.539 ao final de meu governo. Em lugar de o Ministério pagar aos
hospitais por meio das AIHs de má memória, os municípios passaram a receber
dinheiro com regularidade automática e se empenharam na administração pública
da saúde. Em quase todos os municípios criaram-se Conselhos de
Saúde, compostos por representantes da sociedade civil, para opinar sobre
a utilização do dinheiro. Embora em alguns casos se trate de uma organização mais
virtual do que efetiva, lançaram-se as sementes para um maior controle do gasto
público pela sociedade. De toda maneira, reduziram-se drasticamente o clientelismo
e a má ingerência política na distribuição do dinheiro público.
Os resultados positivos não demoraram. Para não cansar o leitor, vou ficar em um
só exemplo, mas importante. Assim como o indicador mais adequado para medir a
melhoria na educação em países com amplas massas empobrecidas é a matrícula
na escola fundamental, na saúde o indicador que sintetiza as transformações é o
relativo à mortalidade infantil. Ao longo de meu período como Presidente, tivemos
uma queda constante e expressiva desse terrível índice: em 1994 morriam antes de
completar um ano de idade 38,4 crianças para cada mil nascidas vivas no Brasil;
em 2000 o número de mortes caiu para 29,6. É claro que não podemos
nos conformar com esse quadro, porque é vergonhoso um país com os recursos do
Brasil apresentar índice ainda tão alto. De qualquer forma, o trabalho realizado nos
colocou no caminho de cumprir as Metas do Milénio
Nota: 13 Entre 1995 e 2002, os gastos com custeio e capital na área da saúde tiveram um
aumento real de 34%, enquanto o Orçamento global cresceu 12,3%. Houve redução
no gasto com pessoal e, para dar solvência ao Ministério, foram pagas as dívidas
contraídas anteriormente com o Fundo de Assistência ao Trabalhador (FAT).
Ressalte-se que os gastos nas ações de atenção básica aumentaram 88,9%.
Devemos ao empenho e ao conhecimento orçamentário dos ministros Jatene e
Serra, respectivamente, com meu discreto sopro, a aprovação de medidas pelo
Congresso que, embora criticáveis tecnicamente - como a vinculação de verbas -,
nas circunstâncias de então se justificavam para atender às carências da população
e para assegurar previsibilidade nas ações do Ministério. Fim da nota.
525
da ONU (estabelecidas em 2000 pela comunidade internacional, para
serem atingidas em 2015); e os índices alcançados na redução de males como
a diarréia, grande causadora de óbitos em crianças de menos de um ano, também
vêm acompanhando as metas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A verdade é que até há bem pouco tempo a mortalidade infantil era elevadíssima no
Brasil e que a década de 1990 marcou uma virada nessa tendência. Se a média
ainda se mantém alta é porque nas regiões mais pobres, sobretudo no Nordeste, os
números são extremamente desfavoráveis, enquanto no Centro-Sul e no Sul a cada
dia nos aproximamos dos países desenvolvidos, nos quais há menos de dez
óbitos para cada mil crianças nascidas vivas.
Se a orientação básica na área da saúde consistiu em propiciar acesso universal e
gratuito à assistência médico-hospitalar, bem em linha com as políticas social-
democráticas, o modo de atendê-la, da mesma forma, levou em conta os
imperativos de articulação entre o setor privado, a sociedade civil e os recursos
públicos. O SUS espelha isso. Em ações específicas, como no combate à
mortalidade infantil e, mais amplamente, na melhoria da saúde materno- infantil, a
Pastoral da Criança, da Igreja Católica, sem ser o único exemplo, é o mais
expressivo dessa articulação. Por meio de convénios com o Ministério, a Pastoral
recebeu recursos que tornaram as ações de saúde mais baratas e eficazes.
O governo tomou cuidados especiais em programas cujos públicosalvo fazem parte
de setores vulneráveis, no sentido de terem menos acesso aos benefícios da
cidadania, como os indígenas, as mulheres pobres, os negros, os idosos e os
doentes ou portadores do vírus da aids.
Não é o caso de descrever esses esforços um a um.14 Basta dizer que, não sem
resistências da Fundação Nacional do índio (Funai), o Ministério da Saúde passou a
ocupar-se das populações indígenas, reduzindo uma corrupção larvar e melhorando
o atendimento. Depois de décadas de diminuição do número absoluto de indígenas
em nosso país, sua população voltou a crescer. Além disso, os programas
de.vacinação prevenindo
Nota: 14 Para aferir resultados, ver o já citado Brasil: a era do Real. Para uma análise dos
mecanismos decisórios e de gestão, ver Barjas Negri, A política de saúde no Brasil
nos anos 90: avanços e limites, Brasília, Ministério da Saúde, 2000. Fim
da nota.
526
moléstias típicas da terceira idade, ou, por exemplo, os mutirões de cirurgias
de catarata (sempre em associação com organizações profissionais e da sociedade
civil) indicam os cuidados com os idosos.
Trabalhouse para controlar a anemia falciforme, que se desenvolve especialmente
entre os negros. Por incrível que pareça, sendo as mulheres maioria na população,
no Ministério elas entravam em consideração apenas no item "cuidados materno-
infantis". Implantamos então o Programa Saúde da Mulher, prestando treinamento a
4,3 mil profissionais que lidam com a questão, garantindo às mulheres
consultas pré-natais. Estas passaram de 1,8 milhão em 1994 para mais de 20
milhões em 2001. Desse trabalho resultou uma queda na mortalidade materna
das internadas pelo SUS de 37 para 28 mulheres por cada 100 mil internações.
Sem falar nos serviços para atender mulheres vítimas de violência e nos esforços,
ainda insuficientes e sabotados por diferentes setores da sociedade, para
disponibilizar meios anticoncepcionais.
Talvez o programa mais reconhecido internacionalmente como um grande progresso
tenha sido o de combate à aids. Nele, de novo, estiveram presentes os traços que
entendo serem distintivos de uma política social-democrática renovada. O Estado é
parte fundamental dela, mas se complementa com ações da sociedade civil
organizada. No caso específico, coube ao governo fornecer gratuitamente os
medicamentos antivirais, assim como coube, com o vigor exemplar do ministro da
Saúde, José Serra, apoiado pelo Itamaraty, sustentar nos fóruns internacionais
a tese, por fim vitoriosa, de que a saúde das pessoas deve prevalecer sobre o lucro
das multinacionais farmacêuticas.
Conseguimos baratear o custo dos remédios, ameaçando os laboratórios com a
quebra de patentes. Enfrentamos também preconceitos, difundindo, nos meios de
comunicação, propaganda muito clara sobre a necessidade do uso da camisinha.
Ao contrário do lema conservador norte-americano que propõe abstinência em vez
de sexo, a mensagem é: sexo seguro. No empenho para combater a aids foi
essencial a cooperação das pessoas portadoras do HIV e de suas organizações.
Novamente o entrosamento entre Estado e sociedade provou ser vantajoso, com
resultados expressivos: a mortalidade causada pela aids se reduziu drasticamente -
em 50% - entre 1995 e 1999. A partir de 1996, cerca de 65 mil pessoas passaram a
receber fármacos gratuitos, reduziram-se expressivamente as
527
internações hospitalares e desde quando o Ministério iniciou a produção nacional,
diminuindo o custo dos remédios, os usuários saltaram de 73 mil para 105 mil por
ano, entre 1999 e 2001. Graças a essas providências não se materializaram as
projeções feitas pela OMS de crescimento explosivo da aids no Brasil, muito pelo
contrário.
Haveria um sem-número de aspectos para mostrar que tampouco nos descuidamos
dos procedimentos de alta complexidade. Para eles, criou-se em 1999 um Fundo de
Ações Estratégicas e Compensação (Faec), de modo que os recursos destinados a
esse tipo de assistência não concorressem com os destinados às ações básicas de
saúde que atendiam às populações mais pobres. O Faec possibilitou um número
crescente de procedimentos como transplantes de rim, fígado ou coração realizados
gratuitamente pelo SUS. Em outra área, constituíram instrumentos eficazes
para reduzir a subnutrição o programa de distribuição gratuita de medicamentos,
somado ao de incentivo ao combate às carências nutricionais, criado em 1998 e
implantado em 5.127 municípios, beneficiando mais de 850 mil crianças, mulheres
grávidas e nutrizes (95% da meta nacional) e também ao Programa de Bolsa
Alimentação, lançado em setembro de 2001. Sem demagogia e exigindo
sempre contrapartida à ajuda financeira por parte dos beneficiários,
esses programas constituem alavancas poderosas para erradicar os males
da pobreza.
Resta mencionar neste resumo a criação de duas agências reguladoras.
Elas exemplificam as novas estruturas estatais exigidas para fazer frente à dinâmica
do capitalismo contemporâneo. Em janeiro de 1999 sancionei a lei que criou a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),15 modificada em agosto de 2001
por MPs. Em janeiro de 2000, a lei criando a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS),16 também modificada por MPs em agosto de 2001. Por
intermédio das duas agências o poder público passou a dispor de instrumentos mais
aptos a lidar, no primeiro caso, com o registro de medicamentos e controle de
sua eficácia e, noutro, com a fiscalização dos planos de saúde.
A questão dos planos de saúde é altamente intricada. Enquanto eles estiveram
sujeitos à regulamentação geral que o Ministério da Fazenda
Nota: 15 Lei n° 9.782, de 26/1/1999.
16 Lei n° 9,961, de 28/1/2000. Fim da nota.
528
exerce sobre os seguros, as especificidades de decisões que interferiam na saúde e
no bolso da população escapavam ao controle público. Com a ANS o panorama
mudou, dando maior racionalidade à verificação de custos e à saúde financeira das
seguradoras, e oferecendo aos consumidores um instrumento para a defesa de
seus interesses. A Anvisa, por sua vez, entre outros serviços relevantes que vem
prestando, exerceu papel crítico na implementação dos medicamentos genéricos,
que facilitaram o acesso do público a uma grande série de princípios ativos e
que, adotados na rede pública, resultaram em grande redução de gastos.
O Ministério da Saúde sob o comando de José Serra se notabilizou por ações
enérgicas em defesa da população, como na questão das patentes dos fármacos de
tratamento da aids, ou nas campanhas pelo uso de proteção nas relações sexuais.
Desde antes, em 1997, o Ministério havia fechado a Central de Medicamentos
(Cerne), uma repartição que deveria apoiar a produção de medicamentos a preços
acessíveis, mas que acabou se tornando antro de corrupção. O Ministério criou um
sistema de cartas-denúncia, para que os usuários do SUS pudessem informar
ao governo sobre eventuais desvios de conduta. Da mesma maneira, enfrentou as
multinacionais e empresas locais produtoras de bebidas e de cigarros, limitando
severamente a propaganda desses produtos. Pelo lado positivo, desenvolveu uma
série de programas de melhoria do atendimento hospitalar, introduzindo métodos de
controle da qualidade.
O acesso à terra: conta do passado que é preciso pagar
Um governo social-democrata deve fazer grande esforço para assegurar
a universalização do acesso à saúde e à educação. De natureza distinta são os
programas de acesso à terra: eles abrangem apenas parte da população. Em tese
devem alcançar todas as pessoas ou famílias que vivem da terra em áreas
reduzidas ou que desejam obter acesso a um pedaço dela para dar sustento a si, a
seus familiares e a um número pequeno de outros trabalhadores rurais engajados
na produção doméstica.
Antiga bandeira de luta, com alta dose de conotação política, principalmente em
países com grande concentração da propriedade fundiária, a reforma agrária é
também um símbolo de luta contra as desigualdades.
529
Não corresponde aos objetivos deste livro discutir a procedência ou a vigência dos
argumentos favoráveis à reforma agrária. Muito menos entrar em minúcias sobre as
diversas experiências para implantá-la em nosso continente, com ou sem revolução
mais ampla. É bom relembrar, entretanto, que minha visão sobre a necessidade e a
pertinência da reforma agrária se formou no decorrer dos últimos quarenta anos.
Recordo-me quando, no início dos anos 1960, pronunciei uma conferência em Belo
Horizonte sobre as lutas para a obtenção da terra no Brasil, algumas em curso
nesse período, tanto no Noroeste paulista como no Norte do Paraná. A conferência
mostrava a preocupação em distinguir situações:
na época emergiam os bóias-frias - um proletariado rural -, posseiros lutavam para
defender os territórios que ocupavam das invasões por grileiros (que formavam a
ponta de lança da grande propriedade territorial), e havia, especialmente no Sul, os
descendentes dos imigrantes que se instalaram em "colônias" e que se tornaram
"sem-terra"
por causa da repartição, em sucessivas gerações, das heranças das pequenas
propriedades.
Em 1963, representando a USP, participei de uma comissão destinada a implantar a
reforma agrária em São Paulo, criada pelo governo Carvalho Pinto (1959-1963), sob
o comando do secretário da Agricultura, José Bonifácio Coutinho Nogueira. Não
seria de estranhar, portanto, que anos depois tivesse apresentado, como senador,
um projeto de reforma agrária muito próximo do que eram então as propostas da
Contag. No meio-tempo, os governos militares, desde a iniciativa de Castello
Branco, que se serviu das idéias e da competência de José Gomes da Silva,
definiram políticas de reforma agrária - o Estatuto da Terra é de novembro de 1964 -
, as quais tiveram continuidade nos governos posteriores à Constituição de 1988.
Nesta, como descrevi ao longo do Capítulo 2, o tema "reforma agrária" funcionou
como um divisor de águas do qual resultaram certos progressos e consideráveis
esforços de conciliação para adequar os impulsos reformistas ao direito de
propriedade.
Antes do golpe de 1964 houve grande pressão pelas à época chamadas "reformas
de base". A chamada "reforma agrária na lei ou na marra"
defendida por setores à esquerda serviu como um dos estopins para a mobilização
direitista. As tentativas de encampar o tema agrário pelos governos militares se
deram no quadro de uma modernização conservadora:
na verdade o velho patrimonialismo agrário mal dava espaço para o
530
agronegócio. Nos anos 1980 ocorreu cumulativamente a desagregação da
economia familiar rural sulista, a expansão da fronteira no Centro-Oeste e o início
das pressões populares por maiores franquias democráticas. O governo da Nova
República lançou o Programa Nacional de Reforma Agrária. Neste contexto, sob o
manto das reivindicações da Igreja Católica, nasceu o MST, em 1985.
Quando assumi a Presidência, tanto a Contag como principalmente o MST estavam
muito ativos nas reivindicações. Para atendê-las, o governo contava com o Incra,
mal aparelhado e eivado de corrupção e clientelismo. Não tínhamos um sistema
adequado para o financiamento da agricultura familiar. Nos primeiros anos nos
defrontamos com o múltiplo desafio de compatibilizar a necessidade urgente de
repor a produção agrícola, remontar o sistema de financiamento rural em geral,
resolver a dívida dos produtores agrícolas, inclusive no setor de agricultura
de exportação, e, concomitantemente, atender às reivindicações de acesso à terra e
criar as condições mínimas de infra-estrutura nos assentamentos rurais.
Ainda por cima estavam presentes as questões políticas: quanto mais
os movimentos reformistas se tornavam agressivos, incentivando a ocupação de
terras e não só das improdutivas, mais as forças contrárias se organizavam e
resistiam. A bancada ruralista, formada para protestar contra a dívida agrária (que
crescia com o vendaval dos juros altos) e defender outros interesses dos produtores
do campo, passou a ter um apoio considerável no Congresso e na mídia,
dificultando a ação do governo e vendo em qualquer "concessão" à reforma agrária
uma ameaça à democracia e a conivência de um governo "sem autoridade" isto é,
não repressivo, com as forças do mal. Era com esses olhos que a
principal associação política dos produtores, a UDR - criada para combater
as invasões de propriedades e a reforma agrária, de que falei no Capítulo 2 quando
tratei da Constituinte - via o governo e se contrapunha às organizações dos
trabalhadores do campo. O tempo todo pairou no ar a dúvida: o MST e, em menor
proporção, a Contag, querem a reforma agrária ou a revolução social?
Essas duas organizações, àquela altura fortemente sustentadas pelo PT e seus
aliados, tinham ampla capacidade mobilizadora. Sobretudo depois da difusão da
novela O rei do gado pela TV Globo em 1996, em que a problemática da terra e dos
militantes era tratada de forma simpática.
Não só os segmentos sociais diretamente envolvidos nas lutas a favor da reforma
531
agrária, mas amplos setores da classe média, principalmente os ligados às
universidades, estavam convencidos de sua urgência e indispensabilidade. Assim
como no passado houve o slogan "Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva
acaba com o Brasil" - e parece que ambos estão bem vivos -, enxergava-se a
reforma agrária como condição necessária para a democracia e o progresso. Ou se
fazia logo a reforma agrária, ou não haveria desenvolvimento económico.
Recordo-me de uma ocasião em que compareci à inauguração da
tradicional exposição anual dos criadores de gado zebu em Uberaba (MG),
quando, após os discursos, a diretoria me convidou para assistir a um
vídeo mostrando incêndios e outras violências praticadas por invasores de terras,
seguidores do MST. Pediam-me "providências". Disse-lhes, diante de um alto
funcionário da TV Globo, também convidado:
- Está criado no Brasil um clima do tipo bandido e mocinho no qual o MST é o bom
moço. Basta ver O rei do gado. Agora vocês pedem ação enérgica do governo. A
primeira morte que ocorra serei o culpado. Não contem comigo para isso. Será
preciso um longo caminho para reconquistar as emoções e abrir espaço para uma
ação mais racional.
O curioso é que um sentimento pró-reforma agrária a qualquer custo se difundiu no
mesmo momento em que a agricultura passava por uma revolução, pois o
agronegócio tomava o lugar das modalidades mais tradicionais de produção, que
estavam nas mãos de fazendeiros retrógrados e de latifundiários. Essa mudança só
foi percebida anos depois, com a explosão da produção do campo e com o brutal
aumento das exportações.
Nesse contexto, tendo eu indicado no início do primeiro mandato para o Ministério
da Agricultura um banqueiro e fazendeiro, embora presidente do PTB, partido que
teoricamente tem como centro de preocupações o trabalhismo, as acusações de que
o Incra não apoiava a reforma agrária encontravam eco. A situação melhorou
quando designei para chefiá-lo Francisco Graziano, que, infelizmente, teve de sair
do governo após o episódio Sivam, que relatei no Capítulo 4. Seu substituto,
Marcos Lins, sociólogo que fora ligado ao grupo de Miguel Arraes em Pernambuco,
com bom trânsito na Igreja Católica - cuja CPT era muito ativa nas reivindicações
rurais -, trabalhou duro para mudar essa imagem. Nada disso, entretanto, adiantou
diante do cataclismo provocado pela chacina de trabalhadores rurais ocorrida em
abril de 1996 em Eldorado dos Carajás,
532
não obstante o governo federal nada tivesse a ver com sua deflagração, conforme
também narrei ao longo do Capítulo 4.
O MST bloqueava com freqüência vias de comunicação para obrigar o Incra a
vistoriar fazendas e desapropriá-las. Como noto no Capítulo 4, tomamos uma série
de medidas em relação ao episódio de Eldorado dos Carajás, mas a verdade é que
a morosidade da Justiça em geral e da estadual em particular acaba por dar razão
aos protestos e, por mais que seja descabido, a imprimir foros de verdade à crítica
de que o governo federal compactua com a lentidão nas apurações e na punição
dos crimes.
Disso à conclusão de que o governo não faz e não quer fazer a reforma agrária é
um passo curto.
Diante dos impasses, resolvi ceder à antiga pressão para que se criasse um
Ministério da Reforma Agrária, apesar das objeções em relação à ampliação
desnecessária da máquina burocrática, uma vez que já existia o Incra, o
instrumento específico para a reforma. Antes, pressionaram-me para que ligasse o
Incra diretamente à Presidência.
Entre a vinculação à Presidência ou a criação de um Ministério, entretanto, optei por
este último. As pressões políticas invariavelmente iam na direção de resolver todos
os temas críticos pela criação de órgãos subordinados à Presidência ou de
ministérios e secretarias especiais, na tradição personalista que à
racionalidade institucional prefere o bafejo do líder. Com isso nada se resolve,
mas tudo se politiza e, pior, tudo ricocheteia no Presidente. Para o novo Ministério,
escolhi Raul Jungmann, como igualmente consta do Capítulo 4, e pelas razões ali
apontadas - coragem pessoal, experiência administrativa, origem na esquerda e
facilidade de diálogo. Jungmann condicionou a aceitação do cargo ao exercício
simultâneo da direção do Incra, pois conhecia a máquina e sabia que um ministro
sem instrumento de ação fica flutuando ao sabor das críticas e pressões sem
poder resolvêlas. Concordei.
Por que todos esses cuidados? Porque a reforma agrária, com todo o seu peso
simbólico, era um instrumento político das oposições para desmoralizar o governo,
sob a acusação de que ele não a levava à frente, nem poderia, dado seu
"neoliberalismo". Mas também se tratava, inequivocamente, de uma necessidade
social e com custo financeiro elevado. Tema herdado do passado, pois a República
não enfrentou a questão da propriedade e do uso da terra, era uma hipoteca a ser
paga.
Não que a produção
533
agrícola dependesse da reforma agrária. A cidadania, contudo, dependia.
Sem contar a necessidade de proporcionar meio de vida a milhões de brasileiros
que, sem terra para a produção doméstica, aumentariam o exército de
desempregados nos centros urbanos. A reforma agrária se constituía numa questão
do passado que se tornava instrumento importante para enfrentar os desafios do
presente, ganhando relevo a despeito, como disse, da revolução em curso na
agricultura. De novo, deparávamo-nos com um caso paradoxal provocado pela
irresolução do atraso do passado, processo que torna nosso presente tão
contraditório.
É só comparar a situação brasileira com o que ocorreu nos EUA para compreender o
porquê do peso das estruturas arcaicas em nosso presente.
Lá as leis fundiárias e o conhecimento que o Estado tinha da localização e da
extensão das terras devolutas (a partir de levantamentos cartográficos) permitiram a
execução de políticas de acesso à propriedade desde os primórdios do século XIX.
Em 1796 um Ato Executivo fixou em 2 dólares o valor do hectare. Além disso
previu crédito para o financiamento da aquisição de terras. Em meados do século
XIX, quando a fronteira agrícola atingia as pradarias próximas das Montanhas
Rochosas, novas medidas de acesso à terra foram tomadas.
O Deep South, o Sul profundo, no qual havia a escravidão, manteve situação mais
próxima à brasileira, mas com a Guerra Civil as forças políticas sulistas perderam
espaço, e a falta de franquias democráticas levou às lutas anti-racistas a partir dos
anos 1950-1960.
Se não quisermos buscar comparações tão longínquas, voltemo-nos então para o
que aconteceu no pampa úmido da Argentina, terras fertilíssimas, nas quais os
chacareros formaram uma classe média rural, processo que jamais chegou a
ocorrer no Brasil. Aqui a pequena agricultura manteve-se marginal até muito
recentemente, com exceção das zonas de colonização estrangeira, no Sul do Brasil
e em áreas do Sudeste.
Nunca tive dúvidas, portanto, quanto à importância de proporcionar acesso à terra a
quem precisa, senão por motivos económicos, pelos sociais e políticos. A pressão
dos movimentos sociais contra o governo e em prol da reforma agrária, entretanto,
vinha em um crescendo desde a passeata-monstro realizada em Brasília no
primeiro quadrimestre de 1997.
Como Presidente, tinha que atender às minhas convicções, mas também
534
às leis e às ponderações sobre os riscos de desorganização da produção na medida
em que as demandas crescessem além do razoável. Os partidos de oposição e a
Igreja Católica, sempre interessada nas causas dos trabalhadores rurais, não
perdiam ocasião para criticar o governo e "denunciar" nossa falta de empenho na
reforma agrária. Eu procurava manter o diálogo. A cada dia 7 de setembro
promovia-se o "Grito da Terra" terminando na Basílica de Aparecida (SP), que
invariavelmente lançava os defensores dos excluídos contra o governo.
O fato de a manifestação se encerrar em Aparecida era uma explicitação do quanto
setores da Igreja Católica militavam na causa da reforma agrária, não raramente de
maneira espalhafatosa. E aqui cabe referir um episódio muito significativo, que
nunca antes revelei em detalhes. Num dos cinco encontros que tive com o Papa
João Paulo II - três no Vaticano, em diferentes datas, e dois no Rio de Janeiro,
durante sua visita de 1997 ao Brasil -, o tema principal foi a reforma agrária
e, dentro do assunto, o MST. E, por iniciativa do Papa, numa sala de audiências
próxima a seu gabinete, no Vaticano, Naquela oportunidade, primeiro conversei
longamente com o cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado e cabeça política
da Santa Sé. Depois ficamos a sós, João Paulo II e eu, o Papa sentado em uma
cadeira de espaldar alto, atrás de uma escrivaninha, eu do lado oposto.
Demonstrando interesse pelo Brasil e conhecimento do país, ele comentou o perfil e
a atuação de cada um dos cardeais brasileiros. Ademais, falou o tempo todo em
português. Mesmo quando tentei trocar para outro idioma, imaginando facilitar-lhe
a conversa - o espanhol ou o francês -, ele voltava ao português. Mas o que
realmente chamou minha atenção foram as perguntas sobre a reforma agrária e o
MST, Com olhar penetrante e atenção concentrada, como se quisesse sugar o que
pudesse de cada troca de informações, e o vozeirão poderoso, apesar de já
alquebrado, o Papa preocupava-se com a agitação do MST e recriminava os
exageros de alguns bispos e padres na questão agrária. De certa maneira me
competiu fazer diante dele a defesa de setores que tanto me combatiam no Brasil.
Disse-lhe:
- Vossa Santidade precisa considerar que um jovem padre que sai da Europa e,
chegando ao Brasil, vê uma desigualdade tão grande, acaba se revoltando. Sei que
há exageros, mas posso entendê-los.
535
Uma situação paradoxal, portanto: João Paulo II fazia observações críticas sobre
adversários estridentes do meu governo ligados direta ou indiretamente à sua igreja,
e eu colocava panos quentes. Curiosamente, o que vazou da conversa, no Brasil,
foi o exato oposto do que ocorreu, como se eu tivesse ido me queixar deles ao
Papa.
Não posso precisar com absoluta certeza se foi depois desse encontro, mas a partir
de um certo momento, em meu governo, passamos a manter o Vaticano
diretamente informado sobre a questão da terra e a pobreza no Brasil, duas
grandes preocupações da Igreja. O ministro Raul Jungmann tinha freqüentes
contatos com o Núncio Apostólico no país, dom Alfio Rapisarda, e mais de uma vez
voou para Roma com o mesmo propósito.
Apesar da postura crítica que a CPT mantinha contra o governo, a Igreja, como
instituição, sabia o que estávamos fazendo e o que era possível fazer.
Anualmente o governo recebia os representantes da Contag, menos radicais do que
os do MST, para discutir uma pauta de reivindicações que procurávamos cumprir.
Nos encontros comigo não houve senão respeito e trabalho produtivo, com a ajuda
permanente do ministro Jungmann. Antes do encontro público eu recebia dois ou
três dirigentes dessa organização, no Palácio da Alvorada, para acertarmos
ponteiros. A conversa nada tinha de manipulação, era somente um
instrumento civilizado para promover o progresso das negociações, uma vez que
eu podia usar o poder presidencial para obter a anuência de algum setor do governo
mais recalcitrante às reivindicações. Com o MST, não mantínhamos propriamente
negociações ou diálogo, como já narrei neste livro. Minhas tentativas nessa direção
foram inúteis. Até me vi submetido a "julgamento" como responsável pala chacina
de Eldorado dos Carajás, em tribunal composto pelas figuras de sempre, amantes
de alegadas boas causas mas nem sempre respeitosas da verdade factual.
A propósito, um dos jurados desse "tribunal", o escritor português José Saramago,
Prémio Nobel de Literatura de 1998, viajou ao Chile comigo em março de 2000 no
avião presidencial para assistir à cerimónia de posse do Presidente Ricardo Lagos.
Como já tive oportunidade de exprimir neste livro, tento não misturar política e
relações pessoais.
Aproveitei para, durante o almoço, dar-lhe informações sobre o trabalho do governo
com a reforma agrária. Saramago, que é álgido, mas tem um olhar penetrante,
536
separado do interlocutor pelas características lentes grossas, disse-me de repente
com seu sotaque lusitano (entendo às vezes melhor sua mulher, a simpática
espanhola Pilar dei Rio, do que a ele):
- Espero que se faça justiça ao Rainha
Referia-se ao dirigente do MST na área do Pontal do Paranapanema (SP), José
Rainha Júnior, naquela ocasião submetido a júri na cidade de Pedro Canário (ES),
sob acusação de homicídio de um fazendeiro e de um policial. Eis mais uma
demonstração de como se confundem as coisas na questão da reforma agrária: o
que é que meu governo poderia ter com o julgamento de Rainha pela Justiça do
Espírito Santo? Por aí se vê como é difícil fazer crer que as regras democráticas
funcionam no Brasil, com independência entre os Poderes.
Rainha, condenado mas posteriormente absolvido em outra instância, teve algum
contato comigo. Ia ao Palácio da Alvorada, à noite, levado por dirigentes da Força
Sindical. Da mesma forma que ocorria com a Contag, esses encontros não eram
para obter concessões indevidas, e sim para tentar acordos sobre pontos concretos
de reivindicações. Não obstante, esses poucos episódios ilustram as peculiaridades
do processo político brasileiro e mostram como, pelo menos na questão das
reivindicações básicas da cidadania e nas lutas por mais igualdade, os atores
são diferentes do que parecem. Não por acaso, em uma das visitas de
Rainha, enquanto me esperava em uma sala lateral à biblioteca do Palácio,
Ruth cruzou com ele e mais tarde me perguntou, com total espanto:
- É ele mesmo?
Com todas as dificuldades, políticas, gerenciais e financeiras, as conquistas nas
questões agrárias foram de monta. No plano institucional promoveu-se uma
reviravolta completa no Incra. O combate à corrupção não pode ser um objetivo
específico de um governo social- democrata, pois é requisito de qualquer governo
decente. No caso brasileiro, o clientelismo, somado a articulações com a burocracia,
principalmente jurídica, marcaram história recente com corrupção: lembremo-nos de
que as desapropriações de imóveis que não cumprem sua "função social", conforme
a Constituição, são pagas em títulos da dívida agrária que dão margem aos
chamados precatórios. No final do governo, graças aos esforços de Raul Jungmann,
de José Abraão e de um sem-número de funcionários, diminuiu drasticamente a
prática das indicações políticas de servidores, com
537
freqüência propiciadoras de irregularidades. Até concursos e contratos de gestão se
promoveram para preencher cargos de confiança, o que constituiu uma revolução
nas práticas tradicionais.
Também conseguimos modificar profundamente o arcabouço jurídico das questões
fundiárias e os procedimentos para as desapropriações e o estabelecimento de
assentamentos. Em dezembro de 1996 o Congresso aprovou projeto de lei
complementar à Constituição que o Executivo enviara para instituir o chamado rito
sumário na desapropriação das terras. Com ele, fazia-se a transferência imediata
para a União das terras consideradas pelo Incra como desapropriáveis por
improdutivas, desde que um juiz exarasse a sentença e o governo efetuasse o
depósito dos recursos avaliados como justos para indenizar o proprietário.
Impedia-se dessa forma que se postergassem indefinidamente decisões na Justiça
e, em conseqüência, que houvesse invasão das terras. Assim como se evitavam as
manipulações de advogados que recorriam incessantemente de decisões judiciais e
pediam polpudas indenizações para os proprietários por supostos erros de avaliação
das terras desapropriadas ou das benfeitorias nelas existentes.
Simultaneamente, o Congresso aprovou outro projeto do Executivo que alterou o
ITR, tornando consideravelmente mais progressivas as alíquotas e fortalecendo os
instrumentos de fiscalização do registro da propriedade rural e da renda gerada em
sua exploração. Com isso desestimulamos bastante a posse especulativa de terras.
Os preços já vinham caindo desde que o Plano Real tornou a propriedade
fundiária pouco útil como reserva de valor, dada a queda da inflação, e se tornaram
ainda mais baixos pelo aumento dos impostos.
Em 1999 determinamos o recadastramento de todos os imóveis rurais com área
superior a 10 mil hectares, do que resultou o cancelamento da propriedade irregular
de terras em um total equivalente a 7,5% de todo o território nacional. Não me
lembro de qualquer registro realmente significativo na mídia a esse respeito.
Aumentou-se assim a oferta de terras passíveis de inclusão no programa de
reforma agrária e reduziu-se uma das causas do conflito agrário, a grilagem.
Para prosseguir no combate à grilagem, críamos em 2001 o Sistema Público
de Registros de Terras. A respectiva lei permite coibir a falsificação de títulos de
propriedade, pois tornou obrigatória a comunicação mensal ao Incra das alterações
538
nas matrículas dos imóveis rurais, com aplicação de penas administrativas, civis e criminais
aos infratores. Todos os imóveis rurais devem estar submetidos a um código no
cadastro, permitindo-se o cruzamento de informações a respeito de cada um
existentes no Incra, na Receita, no Ibama, na Funai e demais órgãos reguladores
do campo. Portanto, além das desapropriações e dos assentamentos, cuidamos de
construir as bases institucionais para que o Estado exerça suas funções
reguladoras e controladoras. Criamos também a Ouvidoria Agrária Nacional,
responsável pela mediação dos conflitos no campo, pondo em contato as partes
direta ou indiretamente interessadas: Judiciário, Ministério Público, autoridades
policiais e representantes dos trabalhadores e dos proprietários rurais. Em lei
anterior já havíamos determinado que o Ministério Público acompanhasse os
processos de desapropriação para coibir fraudes e corrupção.
Assim como na democratização do acesso à escola, a matrícula no
ensino fundamental é o indicador-chave e, na saúde, a queda da mortalidade infantil
cumpre o mesmo papel, no caso da reforma agrária a extensão das
desapropriações e o número de famílias assentadas medem a velocidade e a
extensão do processo. Entre 1995 e 2002 foram beneficiadas mais de 635 mil
famílias, quase cinco vezes mais do que entre 1985 a 1994 - e oito vezes mais do
que em toda a História do Brasil antes de 1985. Só para comparar, nos dois
primeiros anos do governo Lula assentaram-se, segundo o Incra, 118 mil famílias,
cerca de 60 mil por ano, enquanto nos meus oito anos de governo a média chegou
a 80 mil famílias por ano. Os investimentos em aquisição, implantação
e consolidação de assentamentos superaram os 13 bilhões de reais e o total de
terras transferidas, cerca de 20 milhões de hectares, corresponde ao tamanho dos
territórios de Bélgica, Holanda e Luxemburgo somados - ou, se ficarmos no Brasil,
aproximadamente ao porte do estado do Paraná.
Além das desapropriações, a reforma agrária avançou por outros caminhos.
Criamos em 1998 o Fundo para Aquisição de Terras e Reforma Agrária, o chamado
Banco da Terra, que abriu linhas subsidiadas de crédito para cooperativas e
associações de pequenos agricultores para a compra de terra e a implantação de
infra-estrutura mínima. Esse mecanismo sofreu forte resistência do MST e mesmo
da Contag, porque permite, em certas circunstâncias, comprar em vez de
desapropriar. Mas ele é muito útil diante da evidência de que o estoque de terras
desapropriáveis reduziu-se muito
539
(embora os mais radicais defensores da reforma agrária não acreditem no
argumento, pois ele implica reconhecer que caiu o número de latifúndios
improdutivos, contrariando bandeira de luta política desfraldada ao arrepio dos
dados). Para estabelecer novos assentamentos, em decorrência, tornou-se
necessária a compra. O Banco da Terra reduziu bastante o custo do acesso à terra
e permitiu localizar os pequenos proprietários mais próximos aos mercados de
comercialização e consumo, áreas nas quais as terras improdutivas (e portanto
desapropriáveis)
escasseiam. Com isso se facilitou a integração da produção familiar aos mercados.
O Banco da Terra integra uma política de fortalecimento da pequena agricultura que
tem um sólido pilar no Pronaf. Vê-se, outra vez, a criação de novas instituições para
dinamizar a integração social como parte fundamental das políticas sociais de meu
governo. O Pronaf, formalizado em 1996, concedeu até 2002 cerca de 5 milhões
de empréstimos, com valor médio de 24 mil reais, beneficiando mais de 3 milhões
de agricultores com recursos para plantio, colheita e comercialização da produção.
São números e cifras significativos em qualquer parte do mundo. Houve um dispên*
dio total de cerca de 12 bilhões de reais para créditos com juros baixos e
subsidiados, contra praticamente zero em toda a História do Brasil. A injustiça com
os pequenos produtores familiares era gritante. Basta comparar o que acontecia com
os grandes: no início de meu governo só de dívidas no Banco do Brasil, havia um
contencioso de 22 bilhões de dólares (que foram penosamente renegociados, no
decorrer dos oito anos). Imagine-se o montante global de crédito concedido para
sustentar a agricultura! Não é de estranhar que as invasões de terras hajam caído
de uma média anual de 385, entre 1995 e 1999, para 166 de 2000 a 2002, e que o
número de vítimas fatais em conflitos rurais declinasse de 41 e 54 em 1995 e 1996,
respectivamente, para 10 e 14, em 2001 e 2002.
Recebemos, naturalmente, muitas críticas por termos gasto recursos tão expressivos
para a implantação de uma política que, no dizer dos maldosos, apenas criava no
campo uma camada de funcionários públicos disfarçados, uma nova clientela do
Estado. Embora possa haver grãos de verdade na crítica, o certo é que, pouco a
pouco, a política desenvolvida passou a ser, mais do que simplesmente
desapropriar terras e assentar famílias, a de dar sustentabilidade econômica e
técnica a segmentos de pequenos produtores em um "novo mundo rural". Já no
livro contendo o
540
programa de campanha de 1998, o Avança Brasil,17 esta visão estava presente.
Dela é sintomática a mudança proposta nó nome do Ministério que, de ser da
Reforma Agrária, passou a ser do Desenvolvimento Agrário. Desde 1998 o governo
cancelou os programas de crédito a fundo perdido, substituídos pelo Pronaf, e
procurou, junto com o Banco da Terra, fortalecer o Conselho Nacional para o
Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), a cuja reunião inicial compareci. É
um colegiado do Ministério do Desenvolvimento Agrário, com a participação
de diversos outros ministérios, órgãos públicos estaduais e representantes de
trabalhadores rurais e de pequenos agricultores, incluindo-se as mais combativas
organizações agrárias. Para fortalecer tecnicamente as decisões do colegiado
vinculou-se a ele um Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead).
Em suma, estabelecemos as bases para a integração da pequena
agricultura familiar e dos assentamentos rurais no contexto de uma economia
agrária altamente dinâmica, que tem como carro-chefe o agronegócio.
Faltou, graças à oposição sistemática dos "reformistas agrários" profissionais, criar
um mecanismo, como se fez com a saúde e com a educação, que mobilizasse os
estados e principalmente os municípios para levar adiante de modo mais racional,
econômico e eficaz a formação do anelado "novo mundo rural". As nuvens
plúmbeas do passado estatista e centralizador continuam a influenciar as lideranças
rurais de esquerda. Elas se opõem a uma efetiva descentralização, temendo o
fantasma das oligarquias locais, sem se dar conta dos avanços democráticos da
sociedade brasileira e buscando manter a visão tradicional, que prefere politizar e
partidarizar a questão agrária a resolver as demandas das populações pobres do
campo.
A pobreza: tentando sair do "Estado de mal-estar"
Por mais que em longo prazo a eliminação da miséria e da pobreza no Brasil
dependa da continuidade do crescimento económico, da geração de empregos dele
conseqüente e da universalização do acesso aos bens sociais básicos (saúde,
educação e terra), é ociosa a discussão sobre se a prática
541
de políticas assistencialistas é ou não correta. Quem tem fome, é analfabeto, não
pode colocar os filhos na escola ou não tem emprego definido não pode esperar
que esses processos estruturais amadureçam.
Estariam condenados à degradação e à miséria se não por toda a vida, pelo menos
por um período insuportavelmente longo de tempo.
O primeiro grande impacto redutor da miséria durante meu governo se deu, não
obstante, pela própria estabilização da moeda. Disso tinha plena consciência desde
quando enviei ao Presidente Itamar a Exposição de Motivos contendo as medidas
preparatórias do Plano Real, em dezembro de 1993. Apesar da reação célica de
determinadas esferas políticas e de organizações ligadas à luta por melhores
condições de vida para o povo, os dados nunca deixaram de me dar razão. O índice
de pobreza caiu 9 pontos percentuais com a introdução do real e permaneceu
estável, enquanto a miséria absoluta continuou a se reduzir o tempo todo.18
A queda da pobreza se deveu diretamente aos benefícios do fim da inflação.
Processo similar ocorreu com o Plano Cruzado, com a diferença de que, na medida
em que ele perdeu eficácia, a pobreza voltou aos níveis anteriores, enquanto desta
feita, vitorioso o combate à inflação, nunca mais o nível de pobreza aumentou no
Brasil. Sua redução, de meu governo em diante, dependerá não só de medidas
assistencialistas, mas principalmente da continuidade do crescimento econômico a
taxas razoáveis e da implantação de políticas dinamizadoras do mercado
de trabalho, a começar pela alteração de diversas leis laborais, respeitados os
direitos fundamentais dos trabalhadores. Já a redução contínua do nível de miséria
se deve, indiscutivelmente, às políticas focalizadas para combatê-la, que fomos
aplicando no correr do tempo.
18 A proporção de pobres no Brasil, segundo o Ipea, com base em dados do IBGE e
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), teve a seguinte evolução:
entre 1981-1984, a média da população classificada como pobre equivalia a 47% do
total; de 1985-1989, a proporção caiu para 40%; entre 1990- 1994, voltou a crescer
para 42%; dos anos do real em diante (1995-2000) passou a abranger 33% da
população. A proporção de indigentes descreveu curva similar no tempo, sendo
muito significativa, e contínua, sua redução no período do real: 20% em 1990-1994
para 14% entre 1995-2000. Mesmo em números absolutos houve redução tanto
da quantidade de pobres como da de indigentes.
542
Tão logo conseguimos sair do sufoco das crises econômicas e das restrições
orçamentárias necessárias à garantia da continuidade da estabilização económica,
nos lançamos a construir as bases de uma política assistencial mais transparente,
capaz de fazer os resultados chegarem aos que efetivamente mais precisavam.
Como já indiquei antes, aproveitamos a ansiedade de setores parlamentares em
criar fundos assistencialistas tradicionais para deslocar essas verbas
para programas mais bem definidos, que o governo vinha elaborando desde
o início. O investimento nessas políticas cresceu significativamente nos meus oito
anos de governo. Ao contrário do que aconteceu na maioria dos planos de
estabilização, com o Real houve expansão e não arrocho do gasto social. Mesmo
quando tivemos que praticar uma política fiscal mais apertada, a partir de 1999,
preservamos dos cortes orçamentários os programas sociais essenciais. (Muitos
criticaram essa decisão, por significar uma política fiscal mais frouxa, com
superávits primários no Orçamento que não satisfaziam os fiscalistas mais
exigentes, esquecendo-se de que ela significou também estabilidade social
e melhoria da condição de vida de milhões de brasileiros.)19
O melhor indicador para medir os efeitos das políticas sociais em seu conjunto é o
IDH das Nações Unidas, uma síntese de três indicadores:
longevidade, educação e renda. Quanto mais o índice se aproxima de l, melhor é o
desenvolvimento humano do país. Por esta medida, o Brasil passou de 0,676 em
1980 para 0,71 em 1990; deste patamar, alcançou 0,734 em 1995 e 0,75 em 2000,
atingindo, em 2003 (números referentes a 2001), 0,777. Este índice situa o Brasil
entre os mais bem colocados na faixa dos países de desenvolvimento médio (IDH
de 0,5 a 0,799), já não tão distante do piso que determina os de desenvolvimento
superior (IDH de 0,8 e mais). Não sem razão recebi do secretário-geral da ONU,
Kofi Annan, em nome do Brasil, o Prémio Mahbub ul Haq, nome do
economista paquistanês idealizador do IDH, como reconhecimento pelos
progressos havidos na área social.
No que consistiram as políticas específicas?
Nota: 19 O gasto social superou em média 14% anuais do PIB em 1998-1999, contra
11,3% do PIB em 1993, antes do Real. Na média da década de 1980 não
ultrapassara 11,1% do produto. No segundo mandato, manteve-se acima de 14%.
Fim da nota.
543
A primeira, que jamais deve ser esquecida, é que, apesar de todas as dificuldades,
o salário mínimo real se elevou acima do crescimento do PIB no meus oito anos de
governo.20 No caso brasileiro o salário mínimo incide basicamente nos gastos da
Previdência Social, pois correspondem a 80% dos benefícios pagos. Mais ainda:
como dobramos o valor das pensões recebidas pelos trabalhadores rurais que se
aposentaram sem ter contribuído para a Previdência, e como estas são atadas ao
salário mínimo, o impacto do aumento do mínimo sobre o nível de vida dos
mais pobres foi muito expressivo.
A segunda política específica foi o que os técnicos chamam de "focalização" das
políticas sociais, ou seja, procuramos atingir públicos-alvo que realmente necessitam
da ajuda. Formamos uma rede de proteção social, composta por 11 programas que
no último ano do governo gastaram recursos correspondentes à totalidade do
dinheiro arrecadado pelo governo federal com o IR. Ou seja, 29,5 bilhões de
reais, aproximadamente 10 bilhões de dólares. A que se pode chamar isso, se
não distribuição de renda? Deixando de lado os programas mais amplos
e preexistentes, cujo valor elevamos (como o abono salarial do PIS/Pasep, o seguro-
desemprego, as aposentadorias rurais e um antigo programa que paga pensões
vitalícias a cerca de 700 mil beneficiários), ou o seguro-safra, para atender a
situações específicas como o flagelo das secas, cabe destacar ainda dois outros:
20 Pelos dados do Ipea, o salário mínimo real, deflacionado pelo índice de Preços
ao Consumidor (IPC) da Fipe, em reais de abril de 2000, teve a seguinte trajetória:
passou do índice inicial de 144, em 1940, para 168 em 2002. Em 1972 chegou ao
fundo do poço com 97 pontos variando posteriormente, no fim da década de 1980,
voltando a cair para 111 em 1992. Do real em diante, subiu até alcançar 168 em
2002. Quando se compara o salário mínimo com a cesta básica, vê-se que, se em
1994 ele comprava 63% do valor da cesta, em 2002, iria comprar 126%. O
rendimento mensal médio dos trabalhadores, da mesma forma, teve incremento:
entre 1991-1993 era de 575 reais, pulando para 855 reais entre 1995-2002. A renda
domiciliar per cápita passou de 245 reais, no período 1990-1994, para 307 reais
entre 1995-2000.
Em conjunto, houve continuidade no aumento real do salário mínimo nos meus dois
mandatos e no governo Lula (considerando-se o aumento dado em 2006), o que em
65 anos só teria ocorrido em um outro momento desde sua implementação no Brasil,
segundo a mesma fonte.
544
1.0 Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que em 2002 retirou 810
mil crianças de situações penosas de trabalho em carvoarias, corte de cana ou de
sisal e as colocou na escola, concedendo-se uma bolsa às famílias para compensar
a perda de renda;
2. A Bolsa de Prestação Continuada, um benefício concedido pela Loas, que jamais
fora implementada e que no final do governo alcançou 1,5 milhão de idosos (de 67
anos ou mais) que viviam em famílias de baixa renda, aos quais se passou a pagar
um salário mínimo mensal.
Ao lado desses programas, demos impulso a uma solução criativa, consistente em
distribuir aos chefes de família, homens ou mulheres, mas preferencialmente a
estas, um cartão magnético que dava direito a uma ajuda financeira, desde que
houvesse contrapartidas, de modo a incentivar a promoção social. Parte desse
auxílio se distribuiu no programa Bolsa Alimentação que abordei quando comentei
os investimentos feitos em saúde.
No final do segundo mandato a Caixa Econômica estava trabalhando
no aperfeiçoamento do cadastro dos beneficiados, para juntá-los em um mesmo
cartão magnético, que denominamos Cartão do Cidadão. Este se comporia de cinco
diferentes programas, inclusive o Auxílio Gás (para ajudar na compra de gás de
botijão a famílias abaixo de determinados níveis de renda). A grande vantagem
desses programas, além de visarem públicos específicos, é permitir escapar da
influência de intermediários políticos ou de quaisquer outros: o chefe da família, de
posse dos cartões magnéticos, se dirige diretamente à agência distribuidora
de recursos, seja a própria Caixa Econômica ou uma casa lotérica. A
grande dificuldade, por outro lado, é o cadastramento, ou seja, a avaliação
do beneficiário, que no primeiro momento se efetua por intermédio da administração
local, nem sempre isenta. Embora tivéssemos criado em alguns desses programas
formas de controle com a participação direta dos beneficiários e da sociedade local,
esses mecanismos ainda eram precários.
Por fim, cabe salientar que a pobreza no Brasil tem localização definida.
Regionalmente ela se concentra no Nordeste ou nos migrantes, principalmente
dessa região, que constituíram outros tantos bolsões de miséria nas periferias das
grandes cidades. No passado poder-se-ia afirmar com mais certeza que a miséria
tinha localização, gênero, situação civil e cor: a probabilidade de uma mulher negra,
com filhos, sem marido, nordestina e vivendo no campo ser pobre ou viver na
miséria era (e é) altíssima.
545
As migrações espalharam a miséria, mas não a desconcentraram. Além de
se manter nas áreas rurais, sobretudo do Nordeste, a miséria se instalou nas
periferias das cidades, especialmente nas regiões metropolitanas.
Daí porque estabelecemos o Projeto Alvorada, mencionado de
passagem anteriormente. Este programa abrangeu 2.361 municípios cujo IDH é
igual ou inferior a 0,500, nos quais vivem cerca de 38 milhões de pessoas. Por seu
intermédio, os Portais do Alvorada - na verdade escritórios onde se concentravam as
informações sobre os programas sociais disponíveis e se fazia o entrelaçamento
entre eles - aproveitavam as experiências dos programas Comunidade Solidária e
Agente Jovem (composto por jovens contratados para trabalhar nos Portais, dando
assistência às populações pobres para que pudessem ter acesso aos programas do
governo) e deram impulso aos programas federais disponíveis. Buscava-se, assim,
articular os distintos programas e entrosar a ação das prefeituras e das comunidades
locais com o espírito de empreendimento social. Por exemplo, foi possível levar a
demanda das populações carentes ao Ministério de Minas e Energia, que
desenvolvia o programa Luz no Campo, para estender a eletrificação às áreas rurais
de mais de mil municípios.
Se não conseguimos acabar com o lema que eu mesmo lancei - "o Brasil não é um
país subdesenvolvido, é um país injusto" -, pelo menos iniciamos ou remodelamos
políticas públicas visando diminuir a desigualdade. No relatório do Banco Mundial de
2004 sobre a América Latina, o Brasil, a despeito de ser campeão na matéria,
figurou como o único país da região em que o Coeficiente de Gini, que mede a
desigualdade, apresentou resultados favoráveis na década 1991-2000. Ainda não
conseguimos apagar outra frase que cunhei sobre o Estado brasileiro, que seria
do "mal-estar social", mas algo fizemos para que ele possa começar a ser fator ativo
no bem-estar da população.
Na segurança, ainda um longo caminho a percorrer
Em algumas áreas, como a da segurança pública, ainda temos um extenso caminho
a percorrer. Em outras apenas se começou a renovação de práticas e outras há que
permanecem bloqueadas.
As críticas quanto à atuação de meu governo no setor de segurança pública foram
muitas e com certa razão. Todo governo faz escolhas. Eu achei,
546
por muitos motivos, que não dispúnhamos das condições para enfrentar as questões
da área com a amplitude necessária. A Constituição atribui aos estados a
responsabilidade direta sobre ela e os estados, é justo que se diga, muito menos
dispõem de todos os meios necessários para enfrentá-la com firmeza. A separação
pouco clara das responsabilidades entre as polícias militares e as polícias civis
(existe mais de uma polícia civil; a penitenciária, por exemplo, responde às
secretarias de Justiça e não às de Segurança) e a dualidade de comando entre elas
é um problema organizacional sério que reduz o alcance da ação dos governadores.
Depois de uma das crises de rebelião nas polícias militares e de violências em geral,
enviei ao Congresso, a instâncias do governador Mário Covas, proposta de emenda
constitucional para aumentar a coordenação entre as polícias. O projeto continuava
em debate ao final de meu segundo mandato, submetido às pressões de toda sorte
de lobbies, sem aprovação final.
A despeito de a segurança pública não ser área diretamente afeta ao governo
federal, criei no Ministério da Justiça um fundo de apoio à modernização das polícias
estaduais. Tratamos de vincular a liberação dos recursos a projetos específicos,
como, por exemplo, a melhoria da coordenação entre as polícias e seus sistemas de
informação, com a utilização de linguagens computacionais compatíveis. Acelerei
a distribuição de recursos para ajudar os estados na construção de penitenciárias,
para minorar os efeitos negativos da superpopulação carcerária, verdadeira fábrica
de criminosos e permanente fonte de barbárie. Graças a isso foi possível, por
exemplo, demolir o gigantesco depósito de presos (e constante foco de rebeliões
sangrentas) que era a Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, de tão má
memória.
Na nossa área de atribuição específica, tratei de ampliar o recrutamento de
profissionais, abrindo concursos para a Escola de Polícia Federal, paralisada no
início de meu governo, Reestruturamos, também, a carreira dos policiais,
assegurando-lhes melhor remuneração. Os frutos desse trabalho começam a
aparecer com o desempenho da Polícia Federal nos últimos anos. No plano
institucional criei a Secretaria Nacional de Combate às Drogas (Senad), ligada
diretamente à Presidência da República para salientar a importância que esse
assunto deve merecer no Estado contemporâneo. Confiei sua organização ao
general Alberto Cardoso, que lhe deu caráter preventivo e educacional. Deslocamos,
assim, o combate ao uso de
547
drogas do âmbito exclusivamente repressivo (que cabe à Polícia Federal)
para o da prevenção. A batalha contra as drogas requer a mobilização da sociedade
e o reforço dos valores básicos da vida associativa, tarefa das famílias, das igrejas e
das organizações morais da sociedade, pois sem uma intensa ação preventiva ela
se perderá nos desvãos da corrupção, que é o instrumento poderoso dos traficantes
quando se defrontam com a violência repressiva.
Para que não se superestime a capacidade de atuação da Polícia Federal (em tese
mais bem preparada que as demais e talvez menos vulnerável aos apelos da
corrupção), basta dizer que seus efetivos eram ao final de meus dois mandatos da
ordem de 8 mil funcionários, enquanto o conjunto das polícias civil e militar dos
estados somam cerca de meio milhão de homens e mulheres. Como pode a Polícia
Federal exercer vigilância eficaz sobre os milhares de quilómetros de fronteiras
secas e marítimas com um quadro tão reduzido? Só para comparar, os Estados
Unidos têm cerca de 3 mil quilómetros de fronteira seca com o México e, a despeito
da abundância e da qualidade de seus recursos humanos e materiais,
não conseguem controlar o tráfico nem a imigração clandestina ao longo dela.
A situação da segurança clama por uma mobilização nacional que provavelmente
agora, consolidada a democracia, iniciada a reforma do Estado e estabilizada a
economia, possa vir a ser feita com sucesso.
Cito alguns exemplos de transformações institucionais que empreendemos.
Quando assumi, o Código Penal sequer previa a tipificação de crime de lavagem de
dinheiro, a Receita não podia receber informações sobre transações financeiras
disponíveis no BC (por causa do sigilo bancário)
e não havia, como agora existe, o Conselho de Controle das Atividades Financeiras
(Coafi), ao qual os bancos têm de informar, para o necessário monitoramento
preventivo, sobre transações em moeda acima de um certo valor. Tudo isso contribui
para controlar a corrupção e o tráfico de drogas.
Por fim, uma advertência: o combate à transgressão não termina com a ação
policial. Sem um Código de Processo Penal que simplifique e acelere as decisões
judiciais e restrinja o abuso na concessão de decisões liminares nunca julgadas em
definitivo tampouco haverá combate eficaz ao crime, às drogas e à corrupção. Sem
contar que nossa legislação de execução penal é excessivamente benévola: o
bom comportamento na prisão e certas circunstâncias permitem que autores
de crimes horrendos virtualmente
548
ganhem as ruas após cumprirem penas curtas, contribuindo para a sensação
de que a impunidade campeia.
Direitos humanos: mudança na imagem do país
Mais do que qualquer outra, a luta pelo restabelecimento da democracia no Brasil foi
a bandeira da geração de políticos a que pertenço.
Dedicamos nossas energias e nossos melhores anos à derrubada de um regime
autoritário que em sua longa trajetória praticou incontáveis violações aos direitos
humanos, causando inúmeras vítimas, muitas mortas por tortura quando estavam
sob a custódia e, portanto, sob a responsabilidade jurídica do Estado brasileiro.
Minha solidariedade sempre se dirigiu para os que se opuseram, desde o início, ao
autoritarismo. Nunca pude aceitar qualquer argumento invocado para a supressão
das liberdades básicas e dos direitos civis e políticos. Por isso, além das idéias
marxistas e de esquerda que em diferentes momentos me atribuíram - acho que
terei sido um dos poucos políticos brasileiros classificados como marxista e como
neoliberal, sem nunca ter na verdade mudado fundamentalmente minhas posições
e convicções políticas -, fui também, pessoalmente, perseguido pelas forças da
repressão e forçado a deixar o país por alguns anos, conforme relatei em outras
passagens deste livro.
Até minha história de vida me levava, portanto, a reparar, num dos primeiros atos de
meu governo, o que eu sempre entendera como uma injustiça: a falta de
reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pela morte ou
"desaparecimento" de presos políticos. A Lei de Anistia, de agosto de 1979,21 ao
estabelecer uma espécie de perdão mútuo aos envolvidos nos dois lados na "guerra
suja" e o silêncio sobre o que ocorrera nos anos duros da repressão, revelou-se na
verdade uma solução muito conveniente para os próprios militares, que a ela
sempre recorreram para impedir que fosse esmiuçado o passado. Parcela
razoável dos militares considerava que se travara uma guerra subversiva no Brasil,
com duas partes em conflito, que seriam iguais enquanto forças beligerantes. Isto
não é verdade. Nunca aconteceu durante o período militar algo sequer próximo
549
a uma guerra civil. Existiram, sim, resistência armada e atos terroristas da esquerda
(e também da direita), que deveriam ser punidos de acordo com a lei e as
instituições. E, quando presos os transgressores, jamais poderiam ser torturados e
eventualmente mortos estando sob a tutela das forças do Estado. A
responsabilidade jurídica por aquelas mortes não se extinguiu, a meu ver, com a Lei
da Anistia.
Tocou-me reparar parte dos abusos cometidos pelo Estado brasileiro, com a decisão
jurídico-política de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto, depois convertido
na Lei n° 9.140, de 4/12/1995 - reconhecendo como mortas as pessoas
desaparecidas em razão de participação política, no tempo da ditadura militar e nos
anos imediatamente anteriores a 1964 -, e segundo a qual o Estado brasileiro
admitia a responsabilidade por essas mortes e concedia indenização aos familiares
das vítimas.
Somando-se ao processo de consolidação democrática, essa iniciativa foi importante
para a reconstituição da verdade sobre o arbítrio no período autoritário e permitiu
expandir a questão dos direitos humanos no país.
Mais de quatrocentos casos foram analisados e as famílias indenizadas, tudo
baseado no princípio de que os que desapareceram ou morreram torturados se
encontravam sob a guarda do Estado, como prisioneiros, e deviam ser julgados
pelas leis, que, embora autoritárias, não previam, nem mesmo elas, a execução
sumária ou a tortura.
Coube-me, igualmente, adotar ações corretivas em relação ao legado de um outro
capítulo, este bem mais antigo, de nossa História marcada por injustiças: a questão
dos negros. Também aqui entraram convicções de ordem pessoal, uma vez que
alguns de meus primeiros estudos de campo como sociólogo tiveram como objeto,
como já narrei, o tema das relações raciais. Nunca me convenci da tese da
democracia racial no Brasil e sempre reprovei seu uso indevido para justificar a falta
de políticas de proteção aos negros. Reconheço, é óbvio, as dificuldades
de classificar quem seja negro num país em que houve enorme miscigenação.
Tal dificuldade, no entanto, não deve ser pretexto para a paralisia e a ausência de
políticas públicas voltadas à correção de um problema que está à vista de todos.
Abri um leque de ações nessa área, sem radicalismo, pois ela se presta facilmente a
excessos de um lado e de outro, com o objetivo de gradualmente mudar a "política
racial" do Brasil. O primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), de 1996,
dedica um capítulo às populações
550
negras em que se reconhece a existência do racismo no país e já não se fala de
"democracia racial" e sim em "raças distintas". Este foi o primeiro passo para a
adoção de políticas públicas, tais como a menção ao quesito "cor" nos documentos
oficiais e programas afirmativos de inclusão de negros em cursos
profissionalizantes. Criou-se ainda um Grupo de Trabalho para Valorização da
População Negra, integrado por representantes de diversos ministérios. Como
resultado deste Grupo, surgiram as primeiras propostas de ações afirmativas,
algumas das quais foram levadas à Conferência Internacional de Durban (África do
Sul)
sobre Combate ao Racismo, em 2001, entre elas a de introdução de quotas nas
universidades, ou de mecanismos mais adequados à nossa realidade que as
substituam. Com o sincretismo e a miscigenação vigentes é impossível, além de ser
inconveniente, traçar linhas rígidas de cor e, pior ainda, de raça. Embora muito
esteja por ser feito neste terreno, demos alguns passos à frente, depois de mais de
um século de silêncio, desde a Abolição, como se o Brasil se constituísse no
paraíso da tolerância e do convívio raciais.
De modo mais amplo, o caminho percorrido pelo governo federal no terreno dos
direitos humanos a partir da segunda metade dos anos 1990 tornou-se um marco
para o Brasil, graças ao trabalho de colaboradores como José Gregori, Paulo Sérgio
Pinheiro e Gilberto Sabóia. Não se limitou à proteção jurídica - significativamente
fecunda -, mas a inúmeras iniciativas para além da agenda tradicional. Evoluiu para
a criação de políticas de tutela dos direitos humanos nas suas dimensões históricas:
os direitos civis e políticos, os direitos económicos, sociais e culturais e os
chamados direitos difusos e coletivos, que incluem entre muitos, por exemplo, o
direito à preservação do meio ambiente.
José Gregori procurou dar maior organização e estruturação aos projetos de direitos
humanos. Os debates surgidos no Congresso, no governo e na sociedade civil
organizada, além das recomendações da Declaração de Viena de 1993, fruto de
uma grande conferência internacional sobre o tema realizada na capital da Áustria,
criaram as condições para que o Brasil elaborasse o PNDH, do qual as organizações
de direitos humanos são co-autoras e parceiras e que, em 1996, seria
significativamente lançado no dia 13 de maio, data da Abolição.
A forma pela qual se sistematizou o PNDH nunca negou a indivisibilidade e a
interdependência das diversas dimensões dos direitos humanos:
551
as garantias civis e políticas e as políticas sociais inclusivas. O programa
contemplou e implementou inúmeras iniciativas e projetos referentes aos direitos
econômicos e sociais, ao tratar, por exemplo, das convenções da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), dos direitos das crianças, dos negros, das
mulheres, dos homossexuais, da saúde ou do reconhecimento da propriedade da
terra aos quilombolas, deixando claro não haver uma divisão estanque entre as
diversas dimensões dos direitos humanos.
Uma Secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça substituiu
em 1997 a Secretaria dos Direitos da Cidadania.
Posteriormente, em 1999, ela passou a dispor de capacidade de articulação política
e poderes de formulação e execução de políticas públicas, com seu titular tendo
prerrogativas de ministro. As providências demonstraram a importância do tema
para o governo, que não desejava apenas proclamá-lo em um programa, mas
implementar políticas públicas efetivas. Várias medidas puderam assim ser
colocadas em prática, visando instaurar no país uma cultura de paz e de
concretização dos direitos humanos. Muitas metas do PNDH se relacionavam com
a modernização e melhoria do aparato legal para coibir o ciclo fatal das graves
violações.22
Cabe mencionar ainda empreitadas como a ação do Ministério do Trabalho, por
intermédio de um grupo especial, para pôr fim à prática de trabalho escravo,23 bem
como a implantação do Programa de Proteção à
22 Como também nesse terreno não faltaram críticas injustas a meus colaboradores,
e ao governo, cito alguns exemplos:
1. A sanção da Lei n° 9.299, de 7/8/1996, proposta pelo deputado Hélio Bicudo (PT-
SP), que transferiu da Justiça Militar para a Justiça comum os crimes dolosos
praticados por policiais;
2. A sanção da Lei n° 9.455, de 7/4/1997, tipificando o crime de tortura, com penas
severas, tornando possível a aplicação dos preceitos da Convenção internacional a
respeito do assunto, de 28/9/1989;
3. A sanção da Lei n° 9.437, de 20/2/1997, que criminalizou o porte de armas e criou
o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) para controle integrado de armamentos e
munições pelos governos estaduais em parceria com o governo federal;
4. As leis de repressão às organizações criminosas (Lei n° 9.303, de 5/9/1996) e de
tipificação do crime de lavagem de dinheiro (Lei n° 9.613, de 3/3/1998);
5. A gratuidade para o registro de nascimentos e óbitos (Lei n° 9.534, de
10/12/1997).
552
Testemunha. Todas as medidas legislativas relacionadas aos direitos humanos que
entraram em vigor tiveram origem no Executivo ou contaram com seu esforço para
a aprovação no Congresso e foram postas em prática, sem contar outras que
propusemos ao Legislativo - como, por exemplo, o aumento de 12 para 14 anos da
idade mínima para o trabalho de adolescentes (proposta de emenda constitucional
n° 368/96).
Essa ampla pauta obteve um reconhecimento internacional que ajudou a mudar a
imagem do país no exterior em matéria de preocupação com os direitos humanos.
Dois exemplos: os prémios concedidos pela ONU ao secretário de Estado José
Gregori pelo trabalho realizado na consolidação dos direitos humanos no Brasil e,
mais tarde, ao ministro da Saúde, José Serra, pelo programa brasileiro contra a
aids. De resto, a ação internacional do governo quanto aos direitos humanos
marcou-se pela transparência e pela aceitação do monitoramento internacional
a partir de um contínuo e permanente intercâmbio de informações, em particular
com os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos.
Em oito anos, muita coisa pôde ser concretizada em uma vivência inovadora nessa
área. Houve a mobilização de importantes setores da sociedade e deixamos clara
internacionalmente nossa adesão aos princípios fundamentais de defesa dos direitos
humanos e de respeito aos tratados que os asseguram. Mantivemos nesse terreno
a linha básica das políticas sociais: a convicção de que a proteção e promoção
dos direitos humanos é uma tarefa de todos, governo e sociedade.
"Novos temas": pluralidade racial, género, ambiente
O desafio contemporâneo do fortalecimento da cidadania não pode desconhecer os
"novos direitos". Além da necessidade de reconhecer a pluralidade racial (não só
dos negros, dos indígenas também) como um valor básico da democracia, é preciso
incorporar à agenda do Estado e da sociedade a questão de género e a dos direitos
difusos e coletivos.
Se é certo que o Estado brasileiro tem certa tradição em lidar com as populações
indígenas - algumas vezes, infelizmente, com ações desastrosas -, ele sempre se
mostrou mais relutante em assumir essas outras questões.
A despeito das incompreensões iniciais na questão das demarcações de terras
indígenas quando o ministro da Justiça, Nelson Jobim, anulou
553
algumas delas,24 o fato é que nunca se realizou tanto nesse particular quanto nos
meus dois mandatos, principalmente no Amazonas. O governo se articulou com
algumas ONGs - no caso, o Instituto Socioambiental - para acelerar as
demarcações. Muito se conseguiu também em matéria de educação e saúde para
preservar a vida e a cultura dos indígenas.
Não posso dizer o mesmo quanto à incorporação das questões de gênero. É certo
que na área da saúde da mulher tivemos resultados (inclusive no que se refere à
distribuição pública de contraceptivos) e que se manteve oficialmente o discurso da
igualdade de gênero. Também é certo que o novo Código Civil,25 finalmente
aprovado, reconhece vários novos direitos às mulheres. Da mesma forma, o MEC
promoveu a remoção nos livros didáticos dos estereótipos sobre elas, os negros, os
indígenas e os homossexuais. As diferenças salariais para trabalho igual
entre homem e mulher, entretanto, continuam grandes e mesmo a perspectiva
de gênero na definição das políticas públicas ainda é uma conquista a
ser alcançada. Isso a despeito da mobilização de movimentos feministas que, a
partir do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), continuaram
pressionando o governo. De toda maneira, criamos a Secretaria da Mulher,
conferindo status de ministro a sua primeira titular, a advogada e promotora pública
em Alagoas Solange Jurema.
A criação da Secretaria não se revelaria tarefa fácil. O Conselho data do governo
Sarney e, sob o comando da produtora cultural Ruth Escobar, foi uma organização
pioneira. Com o tempo quase todos os países passaram a dispor de órgãos
semelhantes e mesmo de ministérios encarregados de zelar pelas questões de
gênero. Havia que proporcionar melhores condições políticas para o acolhimento
das reivindicações das mulheres, daí o empenho na criação de um Ministério.
Quando finalmente, em 2001, sob fortes argumentos de Ruth Cardoso e de Solange
Jurema, tomei a decisão de vencer a resistência burocrática à inovação e
mandei preparar os atos
Nota: 24 Havia que evitar uma decisão do STF prestes a anular demarcações efetuadas
em governo anterior por não ter sido respeitado o princípio do contraditório, isto é,
não se ter concedido possibilidade de defesa aos que seriam expropriados. Por isso
o ministra propôs sua anulação, para posterior demarcação a ser feita, como foi,
com o atendimento à exigência legal.
25 Lei n° 10.406, de 10/1/2002. Fim da nota.
554
correspondentes, custou caro à titular vê-los postos em prática. Diante da resistência de
assessores da Casa Civil, ela finalmente lhes disse:
- Os senhores querem diminuir o status do novo órgão. Não foi isso que ouvi do
Presidente, perguntem de novo a ele.
Alguns dias depois, já sem esperanças, Solange Jurema, que estava em Maceió,
telefonou para uma das conselheiras que tinha posição executiva no Ministério do
Trabalho, Carmen Rocha, para saber o conteúdo do ato publicado no Diário Oficial
Quando ouviu a reafirmação de que eu criara uma Secretaria Nacional (retirando o
Conselho aa subordinação até então existente ao Ministério da Justiça) e que ainda
por cima a titular teria a condição de ministro de Estado, não queria acreditar...
Só para exemplificar a resistência burocrática surda: em ocasião na qual a Fazenda
promoveu um corte de 3% no orçamento global do Ministério da Justiça, o aperto se
resolveu internamente - cortando-se 83% do total das verbas a serem atribuídas ao
CNDM!
Já na questão dos chamados direitos difusos e coletivos, a defesa feita pela
Procuradoria- Geral da República dos direitos abrangidos por esta definição permitiu
conquistas apreciáveis. Nunca antes os integrantes desse órgão atuaram com mais
liberdade do que em nosso período de governo. Nem sempre com isenção, diga-se.
Apesar do partidarismo evidente em muitos episódios, dirigido até mesmo contra
mim e minha família, sempre sustentei a importância da instituição do
Ministério Público: ela deve zelar pela sociedade, não pelo Estado, e deve
fazer com que as leis sejam obedecidas. Os procuradores da República
tiveram ação constante e enérgica contra a corrupção (ação esmaecida no
governo que me sucedeu). No caso dos direitos difusos do cidadão, o caso
mais visível refere-se à preservação do meio ambiente.
No capítulo meio ambiente, o tema vinha há tempos sendo objeto de crescente
preocupação no Brasil, e ela se acentuou de maneira mais eloqüente a partir da
Conferência do Rio, em 1992, organizada pela ONU.
Não só por havermos sediado um dos maiores eventos ecológicos mundiais - como
ocorreu novamente na conferência chamada Rio+5, em 1997, à qual compareci -,
como pela importância estratégica do Brasil: a maior parte da Floresta Amazônica
está em nosso território (sem falar em ecossistemas como o Pantanal e a Mata
Atlântica) e talvez tenhamos a maior quantidade de água doce do planeta em
nossos rios, lagos e subsolo,
555
além de as florestas e campos do país abrigarem uma diversidade biológica
extraordinária.
O Ministério do Meio Ambiente, por intermédio do Ibama, cuida das licenças
ambientais para a realização de obras de infra-estrutura e se responsabiliza pela
preservação das áreas verdes. Era necessário conferir-lhe melhores condições de
controle, o que se fez com a utilização de satélites de monitoramento ambiental que
fornecem imagens diárias de toda a região amazônica, e da instalação do Sivam e
do Sipam,26 de enorme valia, para a mesma finalidade. Faltava,
contudo, regulamentar e dar forma institucional a uma agência que cuidasse
do riquíssimo património nacional
que são as águas.
Em 1997 o Executivo enviou ao Congresso, que a aprovou, melhorando-a, a Lei das
Águas.27 A ANA, agência criada em 2000 e mencionada no Capítulo 4, para a
direção da qual nomeei o competente engenheiro, Jerson Kelman, se tornou
responsável pela execução da lei e pela Política Nacional de Águas, que prevê a
constituição de organismos de gestão das bacias hidrográficas, descentralizados
administrativamente e controlados localmente pela participação direta dos
interessados. A despoluição dos rios, juntamente com a tomada de medidas para
evitar a desertificação (sobretudo no Nordeste), passaram a ser diretrizes básicas
da ANA. Cabe a ela também encaminhar a delicada questão do custo e pagamento
pelo
uso desse recurso.
Instalei e passei a presidir um Fórum Nacional de Meio Ambiente, órgão diretamente
ligado à Presidência, tendo como secretário o ex-deputado e incansável militante da
área Fábio Feldman. O objetivo era fazer a ligação entre o governo e a sociedade
civil nessa matéria, pois se existe uma questão na qual o governo sozinho pouco
pode é esta. Sem que a sociedade tome consciência dos problemas do meio
ambiente e participe das políticas para resolvê-los, o Estado caminha a passos de
tartaruga.
Nota: 26 Graças ao Sivam, já tratado neste livro, foi possível a criação do Sistema de
Proteção da Amazónia (Sipam), que integra informações e gera know-how para
políticas públicas na Amazónia Legal. O Sipam lançará mão de dados produzidos
por uma complexa infra-estrutura tecnológica, que inclui radares, estações
meteorológicas e plataformas de coletas de dados.
27 Lei n° 9.433, de 8/1/1997. Fim da nota.
556
Nossa posição na defesa do meio ambiente se destacou internacionalmente.
Segui de perto as negociações para a elaboração do Protocolo de Kyoto, de 1997,
destinado à redução da emissão de gases poluentes, e acompanhei diretamente as
discussões posteriores havidas em Amsterdã. O mecanismo, chamado "de
desenvolvimento limpo", que levará à redução global das emissões de gases
causadores do efeito estufa, em especial o dióxido de carbono, é engenhoso. Ele
permite que os países poluidores do presente (na maioria ricos), detentores também
de um feio recorde no passado, financiem a execução de projetos de diminuição de
emissões em países em desenvolvimento. Os ricos poderão, com isso, contabilizar
os valores de redução de gases resultantes dos projetos que financiaram como
parte do cumprimento de suas próprias metas de redução fixadas pelo Protocolo de
Kyoto. Abre-se assim um mercado importante para empresas brasileiras que
conservam o meio ambiente.
Para a preservação e exploração sustentável das florestas adotamos várias
medidas. Implantamos parques florestais importantes. Para ficar em um só
exemplo, o de Tumucumaque, no Amapá, é a maior reserva florestal tropical do
mundo, com 3,8 milhões de hectares, mais extensa do que a Bélgica e quase tanto
quanto o Estado do Rio de Janeiro, representando, sozinho, 1% de toda a Floresta
Amazônica. De 1995 a 2002 o Brasil dobrou as áreas de proteção ambiental, de
15,3 milhões para 29,5 milhões de hectares. Para possibilitar maior flexibilidade
às políticas de proteção das florestas e áreas verdes, criamos as unidades de
conservação de uso sustentável e as unidades de proteção integral.
Nas primeiras, permite-se que os proprietários, mesmo explorando-as, atuem como
zeladores do meio ambiente. Nas de proteção integral, mantém-se a proibição de
qualquer atividade produtiva e se promovem as desapropriações necessárias.
Não e fácil, entretanto, responder aos desafios do meio ambiente. As forças
económicas, muitas vezes entrelaçadas com interesses políticos, obstruem
constantemente os propósitos governamentais. Tanto os madeireiros e mineradores
como os agricultores que derrubam a floresta encontram apoio em setores do
Congresso. Embora o poder destrutivo de grandes empresários rurais seja maior,
mesmo os pequenos agricultores, principalmente no chamado "arco de
desmatamento", na fronteira sul da Amazónia (no Pará, em Mato Grosso, em
Rondônia e no Acre), derrubam árvores e queimam o que sobra, para preparar o
plantio. O desmatamento
557
e as queimadas são uma constante preocupação para o governo e a sociedade.
Olhando os números do desmatamento, é fácil verificar que a cada impulso maior
de crescimento da economia, maior é a devastação.
Com o boom do real, em 1994-1995, por exemplo, foram destruídos quase 30 mil
quilómetros quadrados de florestas na Amazónia Legal, comparados com os 14 mil
de 1992 - 1994. Conseguimos reduzir a destruição a 13 mil quilómetros quadrados em
1996 - 1997, estabilizamos em 17 mil quilómetros nos anos posteriores, mas ela
voltou a aumentar, atingindo 18 mil quilómetros quadrados em 2000 (quando o PIB
cresceu 4,4%).
Essa constatação coloca um sério problema: o governo consegue, no máximo,
diminuir o tamanho do desastre quando a economia não está muito aquecida,
apesar das inúmeras medidas tomadas para conter os ímpetos dos desmatadores.
A Lei de Crimes Ambientais,28 aprovada em 1998, é extremamente rigorosa. Mas a
vastidão do território, a ausência de máquina estatal nas regiões remotas e o poder
dos que querem produzir a qualquer custo e ganhar dinheiro mesmo
comprometendo as gerações futuras só poderão ser mitigados se a sociedade
aumentar o grau de consciência quanto aos riscos para o país e para a
Humanidade da irresponsabilidade ecológica.
Por fim, cumprimos também o compromisso assumido em 1992 e elaboramos uma
relação de medidas na chamada Agenda 21, para uma efetiva política de
desenvolvimento sustentável. O Ministério do Meio Ambiente, por meio da
Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável, em cooperação com outros
níveis de poder e com a sociedade civil - governos estaduais e organizações
envolvendo cerca de 40 mil pessoas - , produziu, a partir de 1997, um documento
que em 2002 se transformou em compromisso oficial. A Agenda 21 integra um
esforço planetário para colocar o trato do meio ambiente na vanguarda das políticas
públicas. Como não poderia deixar de ser, a ótica do documento não se limita à
proteção da natureza. Ela coloca no centro da luta pelo desenvolvimento
sustentável a preservação da vida humana em condições saudáveis. Por isso,
mostra que somente haverá vitória na questão do meio ambiente se reduzirmos
ou até eliminarmos, ao mesmo tempo, a pobreza e a miséria.
558
CAPITULO 9
Estado e crescimento econômico
O solo firme do interesse público
Não preciso insistir sobre o cantochão deste livro: jamais subscrevi as idéias
"neoliberais" a favor de um Estado mínimo. Mais ainda, durante meus oito anos de
governo o gasto público se expandiu e empreendemos um grande esforço para a
reconstrução do Estado e da administração pública. A inflação transformara a
máquina pública em um queijo suíço, cheio de furos. Andava mal, lentamente e em
moldes tradicionais. Sem um Estado mais competente, se grande ou pequeno
depende das circunstâncias, torna-se impossível enfrentar o desafio de pôr
em andamento uma política social para incorporar as massas empobrecidas.
Ao mesmo tempo, sem possuir os instrumentos necessários para lidar com as forças
do mercado globalizado, cada vez mais poderosas, por maior que seja o Estado em
número de funcionários ou em proporção dos gastos, ele será ineficiente e não
servirá ao desenvolvimento do país.
A reforma do Estado esteve na agenda dos países da América Latina durante toda a
década de 1990. Até hoje permanece inconclusa, mesmo porque é da natureza
desses processos ter uma longa duração e uma quase permanente busca de
aperfeiçoamento. Muito se consegue quando não ocorrem ziguezagues, como os
que infelizmente passaram a se verificar no Brasil após meu período como
Presidente.
É inegável que o BID, o Banco Mundial e outras agências internacionais pregaram a
reforma do Estado, assim como é certo que alguns autores e certas correntes
políticas propuseram um Estado mínimo. No Brasil tais idéias não passaram de
floreios políticos para criticar o governo pela direita (o governo gasta muito e está
"inchado", de tantos funcionários inúteis) ou pela esquerda (o governo está
desmantelando a máquina pública para servir melhor aos interesses privados). Na
prática, talvez só o mal pensado desmonte da máquina pública do período do
Presidente Fernando
559
Collor possa ter-se inspirado em tal reducionismo. De lá para cá os governos
apenas têm tentado enfrentar o desafio de aumentar a eficiência e a racionalidade
da administração. Essa tarefa se tornou extremamente difícil porque a Constituição
estabeleceu várias normas contaminadas pelo mais puro clientelismo tradicional. É
verdade que ela também possui regras inspiradas nos ideais de um Estado
democrático de direito para garantir prerrogativas razoáveis aos servidores. Torna-
se fácil, por isso, dizer que as reformas, propondo-se a expurgar as primeiras, na
verdade atingirão as segundas. A partir daí, a reforma administrativa passa a ser
vista como uma perseguição aos funcionários.
A reforma exigida pelas circunstâncias quando chegamos ao Palácio do Planalto era
de natureza muito distinta do que simplesmente enxugar a máquina pública para
obter um Estado mínimo. Eu tinha isso muito claro desde a formação do primeiro
Ministério, ao convidar Luiz Carlos Bresser-Pereira para a pasta da Administração,
que denominamos Ministério da Administração e Reforma do Estado (Maré). A
proposta do ministro, logo consubstanciada em um Plano Diretor da Reforma
do Aparelho do Estado, apresentada em 1995, seguida por um projeto de emenda
constitucional enviado ao Congresso em agosto do mesmo ano, procurava reduzir
os efeitos negativos da burocratização da máquina pública. Longe de representar o
ideal weberiano de burocracia, nossa administração estava permeada pelo
clientelismo da política tradicional e enrijecida pela defesa de interesses da própria
corporação dos funcionários, com menosprezo do interesse público. O ministro
defendia, em lugar da administração burocrática, corporativa e clientelista,
o estabelecimento de uma administração empresarial-"gerencial", isto é, pautada
por critérios de eficiência, e voltada ao atendimento dos cidadãos, que substituísse
a gestão burocrática.1
Em sentido oposto ao que os críticos nos atribuíam, movia-nos a necessidade de
implantar políticas que livrassem o país da "privatização do Estado". Esta ocorrera
nas décadas anteriores, acentuando-se no período
Nota: 1 Dentre os muitos trabalhos de Luiz Carlos Bresser-Pereira, ver especialmente A
reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle, Brasília, Maré,
1995, e Crise econômica e reforma do Estado no Brasil, São Paulo, Editora 34,1996.
Fim da nota.
560
autoritário, com o crescimento desordenado da burocracia e da intervenção estatal
na economia. A partir de então se formaram alianças entre os interesses
corporativos dos funcionários e os de segmentos do setor privado que haviam
conseguido penetrar nos meandros burocráticos para obter vantagens. No período
do autoritarismo eu chamei tais alianças de "anéis burocráticos" e fiz sua crítica. A
racionalização da administração e a crescente transparência que propúnhamos
terminariam com essa forma de privatização disfarçada da área pública,
sempre travestida de defesa dos verdadeiros interesses nacionais e populares.
O governo exigia maior eficiência no desempenho dos funcionários.
Propusemos, em emenda constitucional, a dispensa de quem não fosse capaz de
se haver a contento na função pública. Proposição tão clara e democrática como
essa (até porque se definiam as condições para a dispensa e porque é inimaginável
não incluir a competência profissional como requisito para exercer alguma função
em qualquer organização) se transformou, na boca e nas ações dos que se
opunham às reformas, num modo soez de quebrar o sacrossanto princípio da
estabilidade, assegurado pela Constituição. Propúnhamos também definir a idade
mínima para a aposentadoria dos funcionários, dadas a crise fiscal e a desigualdade
entre os setores público e privado, que as regras vigentes permitiam. No setor
privado as pessoas trabalhavam pelo menos até os sessenta anos; em
contraposição, em certas categorias de funcionários, como a dos professores
universitários, aposentavam-se, em média, aos cinqüenta anos. Os proventos de
aposentadoria dos funcionários eram integralmente garantidos, enquanto o setor
privado obedecia a tetos, muito baixos na esmagadora maioria dos casos.
A reforma do Estado, entretanto, não se limitava às questões do funcionalismo. Em
seu significado mais amplo incluía a criação de novos órgãos e instituições, capazes
de dar maior racionalidade, agilidade e transparência à máquina pública, bem como
maior controle sobre ela.
Além de abranger as privatizações, que escapavam do âmbito específico
do Ministério.
No aspecto mais restrito da política de pessoal, a reforma alterou várias regras.
Definiu limites efetivos às despesas com a folha de pagamento nos três Poderes,
aperfeiçoando e dando dentes à chamada Lei
561
Camata,2 limites posteriormente consagrados na LRF. Para enquadramento
das despesas de pessoal nos limites fixados em lei, obedecidas
determinadas condições, tornou-se possível a demissão de funcionários,
inclusive estáveis, depois de esgotadas etapas como demissões de ocupantes
de cargos de confiança e de servidores não-estáveis. Buscou-se estabelecer a
possibilidade de demissão por insuficiência de desempenho.
Ao contrário do que pregavam as oposições, a reforma não se voltou contra os
funcionários. Ademais da quebra da estabilidade no emprego, que galvanizou a
opinião pública dando a impressão de que tudo se resumia a isso, houve uma clara
busca de qualificação e valorização do pessoal. Este sofrera considerável desnível
depois da promulgação da Constituição de 1988, com a inclusão em caráter
permanente na máquina federal de centenas de milhares de funcionários nomeados
sem concurso.
Pesquisa feita pelo Ministério da Administração demonstrou que a distorção salarial
tornou- se enorme: boa parte dos novos funcionários, com os aumentos concedidos
de forma geral e indiscriminada, embora menos qualificados, passaram a ganhar
proporcionalmente mais do que os mais bem preparados e já há mais tempo em
atividade. Num perverso paradoxo, funcionários menos qualificados ganhavam mais
do que os de melhor qualificação.
Tínhamos que renovar o quadro dos servidores públicos e melhorar sua qualidade.
Demos novo ímpeto à Escola Nacional de Administração Pública. Após concursos
públicos, nomeamos 45 mil novos servidores, que correspondiam a 10% dos
funcionários em atividade em 2002. Destes, 76% tinham nível de formação superior,
de tal modo que a proporção de funcionários com esta qualificação passou de 44%
do total em 1997 para 54% em agosto de 2002. No que se refere às carreiras e aos
salários, a partir de janeiro de 2001 reestruturamos quatorze carreiras,
abrangendo um total de 45.643 servidores. Implantamos a reestruturação para
obter maior racionalidade nas carreiras e para elevar os salários, respeitando
critérios de qualificação. Criamos 8.703 funções técnicas comissionadas
1 Lei Complementar n° 82, de 27/3/1995, assim denominada por ter sido resultado
de projeto da deputada Rita Camata (PMDB-ES), candidata a Vice-Presidente na
chapa de José Serra em 2002. A LRF, mais abrangente, revogaria a Lei Camata,
incorporando seus principais fundamentos.
562
com requisitos de qualificação, experiência e competência, aumentando-lhes a
remuneração. As pessoas que preencheriam esses cargos em comissão não
poderiam vir de fora dos quadros de funcionários.
Na época se tratou politicamente e com superficialidade o tema do aumento salarial:
"o governo arrochou os salários". Na verdade, nos opusemos aos "aumentos
gerais", como se fazia no período inflacionário.
Esta prática distorcia os objetivos da boa administração, que devem ser os de
vincular a ascensão na carreira e os aumentos de salário ao mérito e à qualificação.
Fizemos, no entanto, inúmeras correções para restabelecer a justiça salarial.
Diversas categorias de funcionários chegaram a obter 200% de aumento. O fato de
a folha de pagamentos, de 31 bilhões de reais no final de 1995, ter praticamente
dobrado para 59 bilhões em 2002 não significou gastança, porque a inflação
acumulada no período chegou perto de 100%, A folha, na verdade, diminuiu em
termos reais. Mesmo com aumentos reais concedidos a categorias
extremamente defasadas, a preocupação com as contas públicas nos levou a
reduzir a proporção dos gastos com o funcionalismo em relação à receita
corrente líquida de 56,2% em 1995 para 32,1% em 2002. Em média, não houve
arrocho algum, já que o contingente de servidores federais em atividade
também diminuiu - 17% entre 1995 e agosto de 2002 (seu número
absoluto decresceu de cerca de 952 mil para 781 mil funcionários. Redução
mais expressiva ainda quando se soma o contingente dos que trabalhavam
nas empresas estatais regidos pelo regime da CLT: de 1,14 milhão de funcionários e
empregados, passamos para 785 mil).
Pretendíamos, no Plano Diretor a ser aplicado, introduzir inovações na redefinição
dos objetivos e dos meios pelos quais a administração pública cumpre suas
obrigações. Primeiro, a distinção clara entre um núcleo estratégico de funcionários
que se dedicam às carreiras exclusivas do Estado (militares, policiais, magistrados,
membros do Ministério Público e da Advocacia-Geral da União, fiscais, diplomatas)
e os que se dedicam à prestação dos serviços fundamentais que o Estado deve
cumprir (a promoção da saúde, da educação, da pesquisa, da cultura e da
seguridade social). Os objetivos da administração seriam os de servir
eficientemente o público (gestão empresarial), com impessoalidade (sem
clientelismo patrimonialista) e transparência. Para alcançá-los, haveria que
descentralizar a gestão pública e articular seus três níveis (municipal, estadual e
federal), como
563
também criar formas novas de enlace entre os cidadãos e o Estado, valorizando a
sociedade civil, conforme as concepções que expus ao longo do capítulo anterior,
"A sociedade como protagonista".
A administração deveria ser cada vez menos "estatal", no sentido de exclusivamente
burocrática, e cada vez mais "pública". Daí a proposta, que foi aprovada, de criar
formas mais modernas de gestão, permitindo-se inclusive a transferência de
recursos federais para órgãos da sociedade civil, desde que eles se tornassem
responsáveis publicamente, isto é, se sujeitassem aos mecanismos de controle
e prestação de contas, e, sendo o caso, às sanções previstas. Nasceram assim as
chamadas organizações sociais de interesse público (Osips), que permitiram maior
flexibilidade
à administração.
Na prática, porém, não conseguimos realizar muito do pretendido. Não conseguimos
instituir regimes de emprego diferenciados conforme a tipicidade da carreira. O
Congresso desfigurou o projeto que fixava quais seriam as carreiras típicas de
Estado a tal ponto que o governo preferiu deixá-lo no acostamento. Algumas outras
propostas nossas tombaram depois na Justiça. Mas constituiu grande progresso
a valorização de determinadas carreiras, em especial as ligadas às áreas de
planejamento, orçamento e finanças, além da Polícia Federal.
Nos capítulos anteriores se viu que em quase todas as áreas de prestação de
serviços houve transferência de recursos da União para os estados e municípios,
bem como tentativas de melhor articulação entre os três níveis de governo, cabendo
ao federal definir políticas, transferir recursos, estimular e controlar o desempenho
dos programas descentralizados. Para tanto, desempenharam importante papel o
espírito e as ações do programa Comunidade Solidária, ou seja, a busca
de parcerias com as "forças vivas" da sociedade (parcerias e não cooptação ou
aparelhamento) para enfrentar questões de interesse público. O Comunidade
Solidária representou uma das fontes de reflexão e formulação dentro do governo,
de início temido pelos macroeconomistas pelos efeitos fiscais que pudesse vir a
causar e menosprezado pelos agentes políticos de sensibilidade "de-
senvolvimentista".
Por intermédio do Comunidade Solidária, embora não fosse ele o único "canal", o
Brasil absorveu a reflexão sobre a construção de "capital social" como ingrediente-
chave do desenvolvimento. A reflexão estava no ar,
564
nutrida internacionalmente por teóricos como o economista indiano Amartya Sen,
Prémio Nobel de Economia de 1998, e por pesquisadores como o argentino
Bernardo Kliksberg e o peruano Hernán de Soto, ambos consultores do Banco
Mundial, entre outros. Havia diálogo entre eles e o "institucionalismo" em ascensão,
mas os pesquisadores e teóricos do "capital social" desenvolviam uma reflexão
própria, uma vez que os "institucionalistas" estavam voltados sobretudo para a
discussão dos macrotemas da regulação econômica. A reflexão em torno do
"capital social" engajou também a (pequena) comunidade dos
economistas brasileiros ligados ao estudo da pobreza e da desigualdade. A
reflexão irradiada a partir do Comunidade Solidária ramificou-se direta
ou indiretamente para outras instituições do governo, embora não se possa dizer
que tenha se consolidado daí um novo modelo de políticas públicas. Sinais da
reflexão estimulada pelo Comunidade Solidária podem ser identificados em
programas de microcrédito criados por bancos públicos federais, como o Banco do
Nordeste e o BNDES, na ação do Sebrae em apoio a arranjos produtivos locais e no
próprio Plano Plurianual de Investimentos (PPA) 1999-2003, que buscou incorporar
o conceito de desenvolvimento local integrado à noção de eixos de integração
e desenvolvimento. A ênfase do Comunidade Solidária no desenvolvimento de base
local coadunava-se com a preocupação quanto ao fortalecimento do controle pelas
comunidades que existia entre os formuladores das grandes políticas sociais. Da
ótica desses formuladores, como Vilmar Faria, era crucial haver meios e modos de
conferir maior eficiência e eficácia às políticas públicas de educação, saúde e
assistência social, no contexto da descentralização desenhada pela Constituição.
Como poderia o conjunto de propostas que pretendemos aplicar à administração
pública ser considerado neoliberal, ou determinado pelo Consenso de
Washington?3 Só na retórica pseudodemocrática, na verdade clientelista e
conservadora (tudo que é moderno ou novo é suspeito), de uma "esquerda" que
perdeu o rumo (ressaltaria também o contraste entre
Nota: 3 Assim se denominou uma corrente de pensamento liberal que defendia uma série
de reformas pró-economia de mercado como saída para os países da América
Latina voltarem a crescer, superando um quadro de pesado endividamento somado
à recessão e altas taxas de desemprego. O nome "Consenso de Washington" vem
de um seminário
565
o velho "aparelhismo" das esquerdas antiquadas e o novo ativismo
social representado por iniciativas do tipo do Comunidade Solidária).
Não obstante, a insistência em slogans dessa natureza, mesmo não tendo sentido,
bloqueou muito do que poderíamos ter avançado. O Congresso tomou decisões
indulgentes com os interesses estabelecidos, nem sempre coincidentes com o que
é melhor para o interesse geral. A maioria dos parlamentares não representa os
funcionários, mas muitos têm servidores em família e os próprios assessores
parlamentares pertencem à burocracia. E todos pressionam. Vê-se, pois, porque é
tão difícil inovar em matéria de leis que regem o funcionalismo. Mesmo assim
muito se alcançou.
Olhando-se para a reestruturação dos órgãos públicos, mais do que para as
medidas relacionadas ao funcionalismo, torna-se fácil perceber o quanto se inovou.
Ousaria dizer que nessa matéria o único momento equivalente foi o período em que
Getúlio Vargas, com o antigo Departamento de Administração do Serviço Público
(Dasp) à frente, sentou as bases do antigo Estado brasileiro. Juscelino, para
acelerar a realização das metas que havia definido, justapôs comissões e grupos
de trabalho à máquina pública, mas não reconstruiu propriamente as instituições.
Apenas no período militar, sobretudo no governo Castello Branco, houve a definição
de algumas políticas novas e a criação de órgãos para executá-las. Mesmo assim,
sem uma visão coerente que enquadrasse os novos órgãos em uma filosofia
definida. Além do mais, tanto as reformas de Getúlio como as de Castello não se
fizeram em ambientes e segundo propósitos propriamente democráticos.
Não vou cansar o leitor com a análise minuciosa das novas instituições e órgãos
públicos, mesmo porque nos capítulos anteriores há muitas menções a eles. Tanto
na administração financeira como na prestação dos serviços essenciais de
educação e saúde foram lançadas as sementes de um novo Estado. Na área
educacional, basta referir ao Provão e ao Fundef,
Nota: realizado em 1989, na capital americana, coordenado pelo economista britânico
John Williamson, reunindo economistas norte-americanos, latino-americanos e
funcionários dos principais organismos internacionais, a começar pelo Banco
Mundial. Não poucos consideram "Consenso de Washington" como sinônimo de
neoliberalismo ou mesmo de globalização, até porque suas recomendações foram,
em parte, adotadas pelo Banco Mundial e outras agências internacionais.
Fim da nota.
566
sem que seja necessário sequer dar o nome por inteiro dos
programas correspondentes a essas siglas, pois todos sabem a que se referem.
O Fundef permitiu conciliar o objetivo nacional de universalizar o
ensino fundamental e valorizar o magistério com a autonomia de estados
e municípios na gestão de seus sistemas de ensino. Pela primeira vez, vinculou-se o
montante de dinheiro transferido pelo governo federal ao número de matrículas e
assegurou- se um complemento àqueles estados que não atingissem um mínimo
previsto em lei. Na área da saúde, o SUS finalmente saiu do papel e reforçou-se a
atenção básica. O Piso Assistencial Básico (PAB) garantiu a todos os municípios
um mínimo necessário de recursos para o atendimento de seus habitantes, o
que antes não havia.
Na área da assistência, a antiga LBA, transformada em instrumento da política
clientelista, quando não da mais rasteira corrupção, deu lugar a programas de
transferência direta de renda ao cidadão pobre. Que idoso pobre não ouviu falar da
Loas? Antes de o programa ser englobado na bolsa-ônibus, dita da Família, que
gestante pobre não tinha ouvido falar do Bolsa Alimentação? Que mãe pobre com
crianças em idade escolar não ouviu falar do Bolsa Escola?
Na gestão da política econômica, a decisão sobre a taxa básica de juros deixou de
ser monocrática e passou a ser colegiada, com a criação do Copom, composto pelo
presidente e todos os diretores do BC, sendo que de suas reuniões participam
também chefes de departamento e outros técnicos. A definição do regime de metas
obrigou o BC a dar explicações à sociedade sobre as razões das decisões tomadas
em relação à taxa de juros. Na área do fomento às exportações e ao
investimento, implantou-se a Apex, para apoiar as micro e pequenas empresas
na conquista de mercados externos. A criação do sistema simplificado
de pagamento de tributos, o chamado Simples, representou outra
mudança duradoura em favor desse segmento de empresas. Não foi diferente na
área do desenvolvimento rural: quem, estando ligado à agricultura, não sabe o que
é o Pronaf, o Banco da Terra, a cédula do produtor rural ou o seguro-safra lastreado
em opções?
Não é necessário continuar a enumeração para confirmar que reformulamos muitas
práticas estatais. A prova da necessidade e da robustez dessas instituições seria
dada com sua continuidade depois do final de
567
meu governo, às vezes com outros nomes, a despeito das inúmeras críticas que os
novos donos do poder dirigiam a muitas delas. O que fizemos está fincado no solo
firme da necessidade e do interesse público, tornando difícil destruir.
O papel inovador das agências reguladoras - e a oposição a elas
Uma área que sofreu transformação importante foi a da reforma patrimonial do
Estado. Freqüentemente se olha para ela em termos simplistas: "O governo FHC
vendeu (e barato, acrescentam os mais maldosos ou menos conhecedores das
coisas) o património público e ainda por cima desnacionalizou a economia." Pois
bem, se existe área em que praticamos a inovação na busca do interesse público,
com o sentido de servir aos cidadãos, foi a da privatização.
Em outras partes deste livro cuidei dela sob o ângulo económico. Aqui se trata de
salientar sua função na renovação do Estado, preparando-o para defender o
interesse público e nacional na era da economia globalizada.
Fizemos o processo de privatização com o cuidado de evitar a mera transferência do
monopólio estatal para mãos privadas: os avanços advêm da competição entre as
empresas e de sua capacidade de investimento, incorporando novas tecnologias, e
não pura e simplesmente da passagem delas para a iniciativa privada. Como se viu
em capítulo anterior, minha posição na matéria não se prende a concepções
ideológicas, mas decorre do reconhecimento de dois fatos: primeiro, que, em
princípio, todo monopólio é ruim; segundo, que, com a crise fiscal do Estado,
o Brasil ficaria à margem da competição global, já em marcha, pois não havia
recursos públicos suficientes para investir. Só adicionalmente mencionaria outro
elemento: a maior flexibilidade administrativa do setor privado e a inevitável
burocratização patrimonialista do setor estatal da economia. Cito este fator em
último lugar porque ele não é decisivo para justificar a privatização. Corporações
como a Petrobras ou o BB, quando liberadas de influências político-clientelísticas
e preservadas de pressões corporativas, mostram que, a despeito dos entraves
burocráticos, algumas empresas públicas podem dar conta de segmentos do setor
produtivo.
568
O Programa Nacional de Desestatização começou com a lei aprovada
pelo Congresso em 1990,4 sob cuja égide se privatizou a Usiminas, em 1991.
Quando assumi o governo, algumas empresas menores, que estavam sob controle
do BNDES porque sofreram dificuldades financeiras, já haviam sido devolvidas ao
setor privado. Ao longo de meus dois mandatos, completamos as privatizações no
setor industrial, que avançou no governo Itamar Franco com a venda de duas
siderúrgicas importantes, a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e a CSN, esta
um verdadeiro símbolo do período inaugural da industrialização pesada no Brasil.
A mais significativa privatização nesse setor ocorrida em meu governo foi, sem
dúvida, a da Vale do Rio Doce, considere-se o aspecto simbólico, financeiro ou
produtivo. A despeito de inumeráveis tentativas de bloquear o leilão de privatização
com protestos e medidas judiciais, sob o pretexto de que a companhia iria ser
vendida "na bacia das almas" a grupos estrangeiros, a privatização ocorreu e hoje a
Vale desmente, por seu desempenho, todos os receios pretextados pelos que
se opunham à sua venda por motivos políticos e ideológicos ultrapassados.
Lucrativa como jamais em toda a sua história, ela consolidou presença no mundo,
sendo, ao lado da Petrobras, a maior multinacional brasileira.
Controlada por capitais brasileiros, paga hoje mais impostos ao Tesouro do que
rendiam suas ações quando sob controle governamental Anos depois de ter
deixado o poder, porém, continuei a ver este aspecto fundamental não ser levado
em conta pelos que continuaram a criticar sua privatização.
Também a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) fora privatizada, com meu
endosso como ministro da Fazenda, no governo do Presidente Itamar. Os
resultados estão ao alcance dos olhos de todos:
transformou-se na quarta maior produtora de aviões comerciais do mundo, a maior
no segmento de jatos de porte médio, e é orgulho da tecnologia nacional.
Tecnologia, diga-se de passagem, apropriada pelo país graças ao trabalho da FAB.
Trata-se de mais um exemplo de que o dogmatismo não ajuda nesta matéria (como
em nenhuma outra): há inegavelmente complementaridade entre os setores público
e privado. A primazia que se deva conceder a um ou a outro depende do momento
vivido e da natureza da tarefa a ser realizada. Em uma visão moderna (social-
democrática) do estado,
569
não existe lugar para a privatização pela privatização nem para a
estatização em si, pois nenhuma delas é o abre-te-sésamo da prosperidade e a
garantia da defesa dos interesses nacionais. No caso brasileiro, a quebra dos
monopólios estatais e a aprovação da Lei de Concessões dos Serviços Públicos
permitiram uma espiral de investimentos que puseram o país no caminho da
capacidade de competir internacionalmente.
A quebra dos monopólios e a abertura dos setores de infra-estrutura aos capitais
privados nacionais e estrangeiros foram feitas em cascata, por intermédio de
emendas constitucionais, quer dizer, com apoio de ampla maioria no Congresso:
abertura da exploração de gás à iniciativa privada sob regime de concessão
(concessões estaduais), igualdade de tratamento para empresas brasileiras de
capital nacional ou estrangeiro, possibilidade de investimentos nacionais e
estrangeiros na pesquisa e lavra de riquezas minerais, abertura da navegação
de cabotagem, quebra do monopólio estatal das telecomunicações e, por
fim, flexibilização da prospecção, exploração, importação, refino e transporte de
petróleo.
As regras que definiram as privatizações a partir do arcabouço dado pela Lei n°
8.031 foram aperfeiçoadas por nova legislação aprovada pelo Congresso em 1997.
As empresas ou serviços incluídos no Programa Nacional de Desestatização seriam
analisados econômica e financeiramente por um consórcio escolhido em licitação
para fixar o preço mínimo de venda. Haveria em seguida a publicação de um edital
de privatização e, posteriormente, o credenciamento dos consórcios de empresas
interessados no leilão, desde que comprovada sua capacidade de pagamento. A lei
determinava também que as empresas seriam vendidas em hasta pública a quem
ofertasse, em envelopes fechados, o melhor preço.
Na hipótese de as diferenças entre os lances serem inferiores a 20%, haveria leilão
subseqüente em viva voz. Com todos esses cuidados, a despeito das acusações
políticas da ocorrência de "fraudes" ou do pagamento de propinas (nunca
comprovadas nem levadas aos tribunais pelos acusadores, nem muito menos
submetidas a revisão pelo governo que me sucedeu, cujos líderes combateram com
ferocidade as privatizações), os procedimentos adotados no Brasil, comparados
com os praticados por outros países da região em que houve privatizações, foram
muito mais transparentes e confiáveis.
As privatizações do setor financeiro também merecem menção. A razão fundamental
para elas foi o descalabro a que a inflação somada à
570
irresponsabilidade fiscal havia conduzido o setor bancário estadual. É certo que o
setor federal não diferia nessa matéria quando assumimos, mas o Ministério da
Fazenda tinha a faca e o queijo na mão para forçar um comportamento mais
responsável de todas essas instituições. Ainda assim, como já vimos, o Tesouro se
viu forçado a socorrer duas vezes o Banco do Brasil para evitar sua
descapitalização. Vários governos estaduais haviam utilizado os bancos locais para
tomar empréstimos que não tinham condições de honrar, sem esquecer que tais
bancos emprestaram sem critério ao setor privado dinheiro que se transformou em
créditos podres, ou seja, dívidas que as instituições dificilmente conseguiriam
receber. O BC tinha que assumir, em seguida, os custos dessa farra, lançando mão
das reservas bancárias, para não haver um caos financeiro generalizado. Tudo isso,
cedo ou tarde, era pago pelo bolso dos contribuintes.
Diante dessa situação criamos o programa paralelo ao Proer que já mencionei
anteriormente, o Proes, que permitiu viabilizar a privatização de doze bancos
estaduais e a liquidação extrajudicial de dez deles, além de havermos transformado
outros em agências de fomento, sem acesso às reservas bancárias. Some-se a isso
a privatização de um banco federal. Inevitavelmente sobreveio a barulhenta reação
dos interessados, especialmente governadores, políticos regionais, burocracia
bancária e beneficiários do sistema: "O governo está entregando património público
ao setor privado a preço de banana." Na verdade, pelo contrário, estávamos
simplesmente defendendo o Tesouro e os contribuintes.
Antes eu autorizara, como a Constituição me permitia, a participação de capital
estrangeiro em bancos privados. A primeira de maior monta, já referida antes, foi a
do HSBC, e a compra de 5% do Bamerindus seria uma tentativa de evitar que a
instituição fosse engolfada pela crise bancária que se aproximava. Outros pequenos
bancos, sobretudo estaduais, também foram comprados por capitais estrangeiros e
um de porte, o Banespa, seria adquirido pelo espanhol Santander, como já
comentei, com um lance na época avaliado como altíssimo. Com o tempo, alguns
grupos bancários nacionais foram readquirindo dos estrangeiros os
ativos financeiros que eles controlavam e por seu turno novos bancos
forâneos, como os holandeses, compraram bancos brasileiros, resultando disso
um mix positivo: em termos gerais, os estatais controlavam ao final de meu governo
entre 40 e 50% dos depósitos (ou dos empréstimos, dependendo do critério que
571
se use para medir o porte dos bancos), os bancos de capital em mãos de brasileiros
correspondem a cerca de 25 a 30% do total e os estrangeiros outro tanto. Não
houve a "desnacionalização" nem a "desestatização"
completa do sistema financeiro, longe disso: os dois maiores bancos do país são
controlados pelo governo (BB e Caixa Económica Federal) e os dois maiores
bancos privados são os nacionais Bradesco e Itaú.
Durante meus dois mandatos, as privatizações geraram receitas de 78,6 bilhões de
dólares, aos quais se devem somar outros 14,8 bilhões, correspondentes às
transferências de dívidas das empresas privatizadas, em um total de 93,4 bilhões de
dólares, que abateram dívidas do governo. No período 1991-1994, o programa de
privatização havia gerado apenas 11,9 bilhões de dólares. Do montante obtido por
meu governo somente 5% provieram do uso de "moedas podres", quer dizer,
papéis correspondentes a dívidas do governo em mãos dos compradores -
enquanto nas anteriores o governo recebeu apenas 19% das receitas em
moeda corrente, o que provocara um dilúvio de críticas.
Para cada setor privatizado ou objeto de concessões federais tínhamos que definir
como os concessionários ou os novos controladores das empresas (por exemplo,
petrolíferas ou de energia) atuariam para servir ao país e ao público. Se a
aprovação das emendas constitucionais da ordem económica deu-se no embalo do
início de governo, a tramitação das leis regulamentando as relações entre o
governo e os concessionários privados, em cada uma das áreas da infra-estrutura,
porém, seria bem mais complexa. Não poderia ser diferente, em vista da ausência
de um marco legal adequado e das mudanças tecnológicas e organizacionais
que vinham e vêm ocorrendo nesses setores em todo o mundo.
Tome-se, por exemplo, o setor de telecomunicações, que já então abarcava não só
os serviços de telefonia fixa, mas também a telefonia móvel e a transmissão digital
de dados, voz e imagem, tudo isso em constante evolução, exigindo
simultaneamente segurança jurídica para a realização dos investimentos e
flexibilidade legal suficiente para não engessar e impedir a expansão e
modernização dos serviços. Nunca será demais ressaltar o papel de Sérgio Motta
na condução do processo de privatização das telecomunicações. Sem dogmatismos
ideológicos, ele se cercou dos melhores especialistas, nos campos técnico e
jurídico, jogou-se de corpo e alma no
572
entendimento profundo da área de telecomunicações e colocou a sua capacidade de
trabalho a serviço da reforma do setor. Em quatro anos, logramos aprovação do
Congresso para quatro leis que configuraram um marco regulatório consistente com
o objetivo de promover o investimento privado, impedir a formação de monopólios e
assegurar a expansão e a melhoria de qualidade dos serviços de telecomunicações.
Dentro desse marco legal, que igualmente criou a Agência Nacional
de Telecomunicações (Anatel), deu-se a privatização das telefonias fixa e móvel,
inclusive de longa distância, sem a qual o Brasil ficaria patinando no atoleiro.
Menos feliz viria a ser a mudança de modelo no setor de energia elétrica. Aliás, um
dos maiores problemas foi justamente esse: não conseguimos realizar a mudança
do modelo. Ficamos no meio do caminho, por resistências que se espraiaram das
oposições para parte da base de apoio ao governo, encontrando eco nos estados.
Avançamos na privatização das distribuidoras de energia, para na seqüência passar
à das geradoras. A escolha era lógica. Tendo em vista que são as distribuidoras que
recebem o dinheiro das contas pagas pelos consumidores, que investidor privado se
disporia a investir na geração enquanto a distribuição, suas regras e tarifas
permanecessem em mãos do Estado? Estavam vivos na memória de todos os
sucessivos calotes aplicados nos anos anteriores pelas distribuidoras estatais, que
não pagavam às geradoras pela energia fornecida, levando o governo a
emitir, quando eu era ministro da Fazenda, mais de 20 bilhões de dólares em dívida
para evitar o colapso do sistema.
Ao mesmo tempo em que realizávamos a privatização das empresas de distribuição
- a rigor estimulando e apoiando os estados, detentores de quase todas elas, a
fazê-lo -, preparávamos o marco legal para completar a reforma do setor elétrico.
Em 1996, aprovou- se a lei que criou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel),
que passou a ser dirigida pelo respeitado engenheiro José Mário Abdo, e disciplinou
o regime de concessões. Em 1998, seria a vez da lei que definiu o
Mercado Atacadista de Energia (MEA) e o papel de coordenação do
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Logo em seguida, colocou- se
em marcha o processo legal visando à privatização das empresas de
geração federais, a começar por Furnas. Levantou-se então uma ampla e
variada frente de interesses contrariados, aproveitando o momento de fragilidade
que o governo vivia com as incertezas dos meses subseqüentes à mudança
cambial. Em meio
573
a uma batalha política e jurídica, a reforma do setor elétrico acabou sendo
bloqueada a meio caminho de sua conclusão.
Seria pretensioso assegurar que, se efetivamente realizado, o modelo concebido
teria produzido os resultados desejados em termos de investimento, modernização
e expansão do sistema. Duas coisas, no entanto, são certas: uma delas é que não
foi o modelo que fracassou, pois ele sequer chegou a ser testado; a outra é que o
modelo que se implantou no governo do Presidente Lula, verdadeira profissão de fé
nos dons do planejamento estatal centralizado, revelou-se até a publicação deste
livro incapaz de entregar o que prometera. Com os investimentos em queda,
sobram preocupações quanto à oferta de energia no futuro.
O simples enunciado desse conjunto de providências tomadas e de leis aprovadas
criando órgãos novos e disciplinando o relacionamento entre empresas privadas e o
setor público mostra a complexidade da reforma do Estado vista de uma perspectiva
abrangente. Mas não foi só isso que fizemos.
Para o aggiornamento da economia brasileira, tão importante quanto as leis novas
foi pôr em prática determinações legais que existiam apenas no papel. É o caso da
chamada lei de modernização dos portos, aprovada no final de 1993, assim como
da lei de 1994 que deu autonomia e maiores atribuições ao Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (Cadê) para julgar atos potencialmente prejudiciais à livre
concorrência.
Aspecto importante da privatização foi a redução do número de postos
nas empresas estatais, cobiçados na partilha política dos cargos, que contribuiu
para reduzir a corrupção no país. Até as privatizações, além das dezenas de
milhares de funcionários das estatais transferidos ao setor privado, havia centenas
de gordos cargos de direção. Os escolhidos eram apontados, em grande parte,
pelos partidos e pelos interessados nas respectivas áreas. E tinham, fora confortos
e privilégios pessoais variados, gabinetes, assessores, secretárias - toda uma infra-
estrutura atraente (e cara) aos olhos dos políticos. Pode-se imaginar a
reação negativa que a perda desse "espaço político" ocasionou. E no caso
de empresas que o governo jamais pensou em privatizar, como a Caixa Económica
Federal, o BB ou a Petrobras, houve durante os oito anos em que estive na
Presidência um grande esforço de profissionalização, quer dizer, de restrição às
ingerências políticas.
574
Imunizar de ingerências políticas áreas tão importantes da economia foi uma das
razões que levaram à criação das agências reguladoras, os órgãos mais inovadores
no conjunto de organizações públicas que pusemos em pé. As primeiras agências
que criamos, a ANP, a Anatel e a Aneel, destinaram-se a regular as áreas de infra-
estrutura. Mais tarde vieram leis referentes às agências reguladoras dos
transportes, a Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência
Nacional dos Transportes Aquáticos (Antaq), de consolidação ainda precária
quando deixei o governo. Mais consolidada ficou a agência encarregada
de disciplinar o uso e a preservação das águas, a ANA, e mais inovadora, por incluir
a área cultural, foi a criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Além dessas
criamos, como já visto no Capítulo 8, duas importantes agências que regulam
aspectos sensíveis da área da saúde, a Anvisa e a ANS.
Ao contrário do que disse meu sucessor já como Presidente, com a criação das
agências reguladoras não houve a "terceirização do Estado". É verdade que elas,
em alguns aspectos, substituíram os antigos ministérios, pois, além de
fiscalizadoras do cumprimento dos contratos, têm a capacidade de regulamentar
como as empresas privadas devem atender ao interesse dos consumidores e do
país, mas segundo diretrizes fixadas em leis, às quais elas próprias estão
submetidas. Quem critica as agências em geral padece de uma visão personalista e
limitada do exercício do poder. Desconhece que a gestão do Estado na
sociedade contemporânea não pode estar sujeita a espasmos e arrancos
decorrentes da vontade circunstancial de um governante ou da coalizão de forças
que o apoia.
Não são as agências que definem o teor dos contratos, as metas e as condições
para o desempenho dos serviços. Essas continuam a ser atribuições dos ministros
e, em última instância, do Presidente e do Congresso, que aprova, modifica ou
derruba os projetos de lei encaminhados pelo Executivo. Não tem propósito,
portanto, falar em terceirização, como se houvesse aí uma abdicação indevida da
delegação recebida do povo. O que as agências fazem é permitir maior
segurança aos investidores e aos consumidores de que o contrato será cumprido
e que não poderá ser alterado unilateral e abruptamente nem pelo poder concedente
(o Estado) nem pelo concessionário. Para poder exercer essas tarefas, elas
dispõem de autonomia administrativa e financeira. A indicação de seus integrantes
pelo Presidente da República, por lei, precisa ser aprovada pelo Senado.
575
O mandato deles tem duração fixa, não coincidente com o período presidencial, e
somente pode ser revogado em casos extremos, como em decorrência de
condenação judicial ou processo disciplinar. Ou seja: os dirigentes nomeados têm
independência em face das pressões, tanto as do governo como as dos partidos
políticos.
Com a atuação das agências, as condições de prestação de um serviço público -
reajuste de tarifas, por exemplo - tornam-se menos suscetíveis ao eventual
oportunismo político de uns e ao eventual oportunismo empresarial de outros.
Assim, por exemplo, se determinado governo preferir manter artificialmente baixas
as tarifas, digamos, de eletricidade, ou o preço da gasolina - para reprimir a inflação
e/ou por populismo eleitoral -} não poderia fazê-lo. Essa é uma
garantia fundamental para o investidor que coloca bilhões na operação de
um serviço público. Por outro lado, as agências têm poderes para obrigar
os concessionários privados a cumprir metas de melhoria e expansão dos serviços
fixadas no contrato de concessão, e de impedir a adoção de práticas de monopólio
que prejudiquem o consumidor.
Ao fazer a defesa do modelo das agências para a regulação daqueles setores em
que a concorrência perfeita não impera e o interesse público está em jogo, não
estou dizendo que esse modelo não deva e possa ser aperfeiçoado. Pelo contrário,
a experiência vem mostrando que é cabível definir melhor o papel dos ministérios e
o das agências. Elas, porém, devem ser preservadas para que funcionem como
pontes entre o interesse público e o privado, ao mesmo tempo garantidoras da
eficiência da prestação dos serviços e fiscalizadoras independentes dos contratos.
O que não pode haver, por ser negativo para o desenvolvimento, é a destruição
sub-reptícia das agências, seja por nomeações a serviço de interesses partidários
e/ou corporativos, seja por sua asfixia financeira.
As agências reguladoras não fazem parte da tradição jurídica que herdamos do
mundo ibérico, baseada no Direito romano. Antes nasceram na tradição anglo-saxã
que não se arrepia quando o Executivo transfere, sob condições previstas em lei,
funções reguladoras para um órgão autônomo, como são essas agências: órgãos
que além de seu papel regulador, fiscalizador e punitivo, atendem ainda
reclamações dos usuários dos serviços públicos (que são pessoas jurídicas de
Direito Público). Elas abrangem em
576
seu escopo regulamentador aspectos econômicos e também sociais, no que diferem
da tradição americana ou inglesa.
Não se trata, portanto, de uma imitação, e sim da adaptação criativa de instituições.
Vale ressaltar que a "adaptação criativa" das agências ao contexto brasileiro está
longe de ser trivial. Um dos problemas reside no conflito jurisdicional entre as
decisões por elas tomadas e as dos tribunais do Judiciário, aquelas valendo-se de
critérios mais bem técnicos e aderentes à letra do contrato e estes apoiando-se
em critérios mais abstratos de justiça social.
O país só tem a ganhar, a meu ver, com o aperfeiçoamento das agências, e é
desejável dar maior liberdade ao governo para definir as políticas de cada área. A
crítica, entretanto, raramente se apresenta por este ângulo. Continua forte a
ideologia intervencionista e arbitrária que vê em qualquer limitação ao Executivo um
atentado à soberania nacional. Não se confia em órgãos independentes, embora
submetidos a leis e regras, responsáveis perante a sociedade.
Mudando a forma burocrática de governar
E crença generalizada entre nós que o governo tudo pode, na economia como na
vida, Ela vem se reduzindo, mas ainda é grande o peso da tradição estatista. Há
uma confusão que leva a coincidir a boa ou a má política econômica com bons ou
maus resultados na economia. O crescimento do PIB passa a ser uma espécie de
atestado de boa conduta governamental. Até certo ponto é assim mesmo. Mas até
que ponto?
Este livro mostra que me dediquei (em conjunto com muitas forças e pessoas) a
reconstruir as instituições fundamentais da economia, do Estado e, em menor
proporção, da sociedade, reforçando a capacidade operacional dos primeiros e
fortalecendo as instituições políticas, principalmente para permitir uma relação
renovada entre o Estado e a sociedade civil, Essas são precondições para o bom
resultado de uma economia moderna. Só liberais antiquados e alguns neoliberais
exaltados deixam de perceber que sem Estado competente na regulação e
no controle, embora não interferente na seara própria do mercado, o
bom desempenho da economia não se sustenta em longo prazo. É
igualmente óbvio, entretanto, que uma política econômica inadequada pode levar
o país ao desastre. Assim como
577
é certo que a boa política por si só não basta: o mundo contemporâneo entrelaça os
mercados, de modo que uma maré internacional positiva ajuda decisivamente a
economia - desde que estruturalmente bem ajustada e com regras capazes de
aproveitar a onda -, mas os maus ventos procedentes não mais do leste, da
Espanha, como diziam os portugueses que nos conquistaram, e sim do norte,
esfrangalham os melhores esforços.
Por isso, ao mesmo tempo em que revigorei algumas das instituições económicas
básicas, tomei as medidas acima descritas (e várias outras mais) para fortalecer o
Estado. No que diz respeito ao fortalecimento do mercado, desde a instituição do
Plano Real, permitimos que os mecanismos de formação de preços atuassem mais
livremente. Há três preços, entretanto, que dependem das políticas governamentais:
o dos juros, o do câmbio e o do salário mínimo. Nos capítulos correspondentes viu-
se como evoluíram e que regras colocamos em prática para lidar com eles. Quanto
às instituições básicas para o funcionamento do mercado, por exemplo, o BC e a
Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que são outro tipo de agências
reguladoras, seguimos a mesma pauta de conferir liberdade e responsabilidade aos
gestores. Com uma ressalva: o BC não goza de autonomia constitucional.
Desde que fui ministro da Fazenda o BC virtualmente ganhou
autonomia operacional. Não obstante, por duas vezes, como já descrito, mudei
seu presidente para alterar as políticas que estavam sendo postas em prática. Em
uma economia emergente, sujeita às chuvas e trovoadas do mundo e às pressões
políticas domésticas, é difícil que se produza um consenso básico quanto às
melhores políticas monetárias e cambiais.
Neste contexto, o Presidente ainda tem que atuar como um guarda-chuva protetor
do BC no plano interno, dando força política a seus gestores, e como um moderador
no caso de discrepância gritante entre as políticas que estão sendo implementadas
e as condições do mundo. Afinal quem se responsabiliza em última análise pelas
conseqüências delas, repito, em uma sociedade que tudo espera do governo, é o
Presidente.
A definição de políticas não é suficiente para assegurar resultados.
Eles dependem de uma série de fatores, dentre os quais a disponibilidade de
poupança e as decisões de investimento pelos empresários. Contudo, é grande o
papel que o governo exerce na indução de investimentos, seja direta ou
indiretamente, estimulando e traçando políticas apropriadas.
578
Sobretudo nas áreas de infra-estrutura, as responsabilidades públicas aumentaram
mais ainda com as privatizações, pois as funções reguladoras, se bem exercidas,
ajudam a atrair o investimento privado.
Além da inversão direta de recursos próprios, o governo sinaliza os caminhos do
desenvolvimento econômico e social. Como foi feito isso?
Embora pareça aberrante para um governo "acusado" de
neoliberalismo, reconstruímos os mecanismos de planejamento e mantivemos e
reforçamos o Ministério do Planejamento. Sob a condução deste Ministério
lançamos em 1996 o programa Brasil em Ação, composto por 42 projetos
de investimentos em infra-estrutura e de desenvolvimento social. Com uma visão
renovada do desenvolvimento regional (em que a integração do mercado interno e
mercados externos era vista como complementar e não antagónica),
desenvolvemos o conceito de Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento,
formalizado, pela primeira vez, no PPA do quadriénio 1996-1999. (O inspirador do
conceito de tais "eixos" foi Eliezer Batista, homem de múltiplos talentos, grande
empresário, duas vezes presidente da Vale quando estatal, ex-ministro de Minas e
Energia e da Secretaria de Assuntos Estratégicos e um pensador do
desenvolvimento brasileiro.) Nele distribuímos os 42 projetos, no valor total de
cerca de 70 bilhões de reais (na ocasião equivalentes aproximadamente ao
mesmo em dólares), dos quais, entretanto, apenas 16% provinham do
Orçamento federal: a noção de parceria público-privada estava em marcha.
Desses 42 projetos, 14 se orientaram para as áreas sociais (redução da mortalidade
infantil, valorização do magistério no ensino fundamental, reforma agrária e
fortalecimento da agricultura familiar, entre outros).
No sistema de planejamento indutor inovamos as práticas
administrativas, designando um gerente para cada projeto, ligando-os à
administração por uma rede on Hm de conexões eletrônicas, e definindo, projeto
por projeto, objetivos, metas e dispêndios, sendo estes liberados mês a mês, sem
interrupção, conforme o andamento físico de cada projeto. Com isso, dos 24 projetos
de infra-estrutura propostos, 12 estavam concluídos em dezembro de 1999 e, dos
18 na área social, 13 atingiram as metas propostas, no mesmo período. Os projetos
não concluídos tiveram continuidade no PPA seguinte.
Este, o segundo PPA (2000-2003), contou com o benefício de um estudo feito sob a
orientação do BNDES sobre os Eixos de Integração
579
e Desenvolvimento. O estudo reavaliou as oportunidades de investimento para o
desenvolvimento econômico e social, tendo como objetivos a integração nacional e
internacional, o aumento desejado da competitividade sis' têmica e a redução das
disparidades regionais e sociais. Cerca de oitenta técnicos do BNDES, do Ministério
do Planejamento e de vários outros órgãos públicos se somaram a uma consultoria
especializada, selecionada por licitação pública, que liderou a cooperação com
diversas universidades e com técnicos do setor privado, em uma parceria
para determinar os investimentos fundamentais que, em um horizonte de oito anos,
poderiam produzir os estímulos desejados para alcançar os fins propostos
pelo Plano.
Concluído o trabalho preliminar, no início de 1999, submetemos seus resultados a
um amplo debate, durante quatro meses, com representantes da sociedade civil,
autoridades dos três níveis da administração, parlamentares, empresários e
académicos, abrangendo cerca de 2.500 pessoas nos diversos estados do Brasil. A
discussão levou a modificações e, no final, compusemos um portfólio de 952
projetos, no valor total de 317 bilhões de reais, constituindo a demanda brasileira
global de investimentos em infra-estrutura econômica e social. Avaliação realizada
em dezembro de 2001 mostrou que 18,7% dessas oportunidades de investimento
haviam sido realizadas ao final do segundo ano do novo PPA.
Este segundo PPA, batizado de Avança Brasil, contou com uma maneira mais eficaz
de vinculação com o Orçamento. Por decreto que assinei em outubro de 1998,
seguido de instruções do ministro do Planejamento, Paulo Paiva, e do controle
efetivo da execução pelo engenheiro José Paulo Silveira (que foi quem trouxe da
Petrobras a técnica de planejamento de metas com controle de resultados),
mudamos uma prática de mais de 30 anos de classificar os gastos da União em
programas, subprogramas, projetos e atividades que não guardavam qualquer
relação com os resultados ou com os problemas a serem resolvidos. Superava-
se assim, na linha da reforma geral da administração e do Estado, a
forma burocrática de governar, substituída agora por práticas
empreendedoras orientadas a obter resultados. No Orçamento para o ano
seguinte arrolaram-se 365 programas, relacionando-se os gastos aos
resultados esperados, tornando-se essa relação transparente ao Congresso e
à sociedade. Os programas, com seus
580
gerentes, mais do que as "repartições", passaram a ser as unidades de gestão,
podendo ser diretamente responsabilizados por êxitos ou falhas.
Os PPAs, com definição específica de cada programa vinculado aos
gastos autorizados pelo Orçamento anual, combinados com a LRF,
são instrumentos centrais para uma verdadeira revolução gerencial no setor público
brasileiro. Desde que haja continuidade e aperfeiçoamento das ações.
Crescimento modesto não impediu melhoria social
As medidas que tomamos no plano institucional e a redefinição das políticas
macroeconômicas permitiram transformar consideravelmente a base produtiva do
país, a despeito de um cenário internacional adverso.
Mostrei nos capítulos anteriores que durante o primeiro mandato o governo se
ocupou em criar as condições para a modernização do Estado e assegurar a
continuidade da estabilização lograda com o Plano Real.
Críticos desatentos das condições históricas e conjunturais insistem no alto preço
pago pelo país pela apreciação do câmbio e pela relativa frouxidão fiscal daquela
época. Em capítulo anterior reconheci que em tese poderíamos ter alterado essa
situação antes de 1999. Contudo, não se devem minimizar as circunstâncias: o
governo, ou melhor, o Estado, não dispunha dos recursos institucionais, nem da
experiência para controlar da noite para o dia a desordem financeira herdada do
período inflacionário.
Em um país recém-democratizado, com várias forças sociais pressionando por mais
recursos, com o hábito do calote no Tesouro, sem instrumentos adequados para
tratar simultaneamente de taxa de juros, câmbio e inflação e, ainda por cima, com
intensos e contínuos reclamos da sociedade para acelerar a taxa de crescimento,
era preciso buscar alguma amarra mais sólida para manter a estabilidade e ganhar
tempo para executar ajustes estruturais mais profundos e para aprender a lidar
com a economia global. Essa amarra, por quatro anos, foi a apreciação do real. Não
obstante, a base produtiva do país se modernizou e deu um salto qualitativo tanto
no setor industrial como na agricultura e no setor dos serviços. Sem pretender
exaurir a análise, é o que mostrarei, a título exemplificativo, na parte subseqüente
deste capítulo.
581
Antes, uma ressalva: não resta a menor dúvida de que as taxas de crescimento do
PIB foram decepcionantes.5 A modéstia dos números contrasta, entretanto, com a
contínua melhoria dos indicadores sociais e mesmo com o aumento do consumo.
Cada vez que o IBGE publicava dados sobre a renda e o PIB eu costumava dizer
em tom de blague a seu presidente, Sérgio Besserman Vianna, que deveria haver
algum equívoco.
Como explicar o aumento do consumo e, ao mesmo tempo, a diminuição da renda,
o aumento físico da produção e a pequena variação positiva do PIB? Existem
fatores que podem explicar essa hipótese. Por exemplo, se houver forte aumento de
produtividade, ampliando a quantidade de bens produzidos e reduzindo seu custo.
Como o PIB mede valores e não bens físicos, é possível ocorrer relação desse tipo.
Por outro lado, sob uma democracia a pressão salarial é mais forte, daí o aumento
na renda das pessoas e das famílias,6 sem significar necessariamente um aumento
na poupança e nos investimentos.
Nota: 5 Desde o Plano Real, em 1994, até ao final de meu segundo mandato, em 2002
(com a ressalva de que tecnicamente o segundo mandato terminou no ano
seguinte, pois foi no dia 1° de janeiro de 2003 que transmiti o cargo a Lula), o PIB
cresceu 24,6%, ou seja, em média 2,7% ao ano. Nos meus dois mandatos
crescemos 18,7%, isto é, 2,33% ao ano. Esse baixo crescimento permaneceu depois
de 2002: de 2003 a 2005, o PIB cresceu 7,9%, ou seja, em média 2,66% ao ano.
Mesmo assim é de notar que não houve, como em décadas passadas, qualquer
ano com crescimento negativo.
Apenas em 1998 e em 2003, anos de crise, o PIB per cápita diminuiu.
6 Com o Plano Real o rendimento médio mensal real do trabalho saltou de 681 reais
em 1993 para 879 reais em 1995, atingindo o pico de 903 reais em 1996, declinando
com a crise de 1998-1999, até chegar a 793 reais em 2002, graças ao "efeito Lula".
Mesmo assim, muito acima dos 681 reais de 1993. A queda persistiu: em 2003
chegou a 733 reais e permaneceu nesse patamar em 2004. Para avaliar o efeito
dessa tendência sobre a massa de bens consumidos é preciso considerar também o
nível de ocupação da população. Em termos absolutos, a população ocupada
passou de 61 milhões em 1995 para 64 milhões em 2002, atingindo, em números
redondos, 67 milhões em 2004.
A taxa de desemprego, que até 1997 variava entre 6% e 7% da
população economicamente ativa, saltou para 9% em 1999, atingindo o pico de
9,7% em 2003, para voltar aos 9% em 2004, segundo dados do IBGE.
Também o Coeficiente (ou índice) de Gini, que mede desigualdade entre as classes
de renda, melhorou lenta e continuamente, passando de 0,600 em 1993 para 0,547
em 2004 (quanto mais próximo de 1, pior a distribuição da renda). Segundo relatório
do Banco Mundial, o Brasil foi o único país da América Latina que apresentou
indicadores favoráveis entre 1991 e 2000. Fim da nota.
582
Neste caso, a produção aumenta mais pela utilização da capacidade
ociosa do que por expansão dos investimentos, embora os ciados do PIB devessem
registrar o deslocamento de recursos dos investimentos para o consumo das
famílias. Poderia mesmo ter havido aumento de investimentos nos setores de bens
de consumo e retraimento ou estagnação nos de produção. Ainda assim, as contas
nacionais deveriam ter registrado o que ocorrera.
De qualquer modo, e por paradoxal que pareça, houve um câmbio qualitativo na
base produtiva e uma melhoria de algumas condições sociais, sem que o
crescimento do PIB fosse significativo. Aos economistas cabe deslindar como se
deu esse processo e a mim não utilizá-lo para negar o óbvio: que tivemos uma
modesta expansão do PIB e, portanto, que ainda há muito por fazer para assegurar
um futuro melhor ao povo e ao país.
Industrialização e competitividade
A despeito da polémica sobre a contraposição entre política fiscal e política de
crescimento económico, entre políticas universais e definição de áreas específicas
(estratégicas, se diz) que requerem a ação governamental,
Nota: 7 A taxa de investimento como proporção do PIB atingiu 20,45% em 1995 (quando
em 1991 fora de 18,10%). Variou entre 19% e 20% até 1998, caiu para 18,90% em
1999, voltou a um patamar pouco superior a 19% em 2000 e 2001, para, sob o
"efeito Lula" regredir aos 18,32% em 2002. Caiu mais ainda em 2003, para 17,78%,
e se recuperou em 2004, chegando a 19,60%.
Em resumo: a taxa de investimento se manteve, grosso modo, em níveis baixos.
Chama a atenção que o investimento direto estrangeiro, embora variável, tenha sido
elevado. Quer dizer, a poupança doméstica é realmente baixa, pois na proporção
de investimento sobre o PIB estão computados tanto os investimentos diretos
estrangeiros como os domésticos.
O ingresso líquido de investimento estrangeiro no Brasil somou 174 bilhões de
dólares de 1995 até 2002. Entre 2003 e 2004 ingressaram mais 28 bilhões,
totalizando, desde o início do Plano Real, 192 bilhões de dólares. Só para comparar,
em 1994 haviam entrado 2 bilhões e no ano anterior menos do que isso. O maior
ingresso se deu em 2000: quase 33 bilhões de dólares. O menor ocorreu em
2003,10 bilhões. A média dos investimentos estrangeiros ao longo de meus dois
mandatos chegou a 21,8 bilhões de dólares por ano. No período do Presidente Lula,
até o momento da publicação deste livro, a média era de 14 bilhões. Fim
da nota.
583
o certo é que desde o Plano Real, embora nem sempre tenha havido rigor fiscal,
sempre tivemos - retóricas fundamentalistas à parte - preocupação com o
fortalecimento de setores industriais. A abertura da economia produziu um tremor
de terra em alguns setores, em outros um terremoto de grandes proporções,
afetando o parque industrial do país. É assim que o sistema competitivo cresce:
destrói, reconstrói e, se houver sorte e condições favoráveis, continua crescendo.
Foi o que ocorreu.
De início, alguns segmentos industriais sofreram bastante, não só por causa da
competição com os produtos importados, mas porque as taxas de juros, as
dificuldades para a obtenção de empréstimos de longo prazo e a modernização do
parque produtivo, exigindo investimentos crescentes, afetaram-nos fortemente. A
indústria têxtil, a de calçados e a moveleira, por exemplo, foram bastante
prejudicadas. A abertura atingiu negativamente também os setores de bens de
capital e de insumos para as montadoras de veículos. Nesse último caso, as
próprias multinacionais montadoras, devido a descuido do governo anterior, tendiam
a deslocar investimentos em benefício da Argentina, como relatei no Capítulo 5.
Não fosse a reação pronta do governo, que renegociou um regime automotivo
especial, como descrevi brevemente antes e logo se verá outra vez neste capítulo,
teria havido a desindustrialização do setor automobilístico.
Inegavelmente, a área fazendária se preocupava em evitar custos demasiado altos
com a proteção industrial. Temia-se mesmo uma recaída em práticas do passado,
quando os bancos públicos e especialmente o BNDES se tornaram "hospitais": na
prática pagavam os custos não só da necessária adaptação industrial aos novos
tempos, o que seria razoável se fosse para promovê-la, mas também da
incompetência empresarial ou da falta de investimento direto dos controladores de
certas empresas, que preferiam separar os ganhos pessoais e familiares sem
reinvesti-los em modernização. Essa tensão interna aos governos é natural e mal
não faz, desde que o Presidente arbitre. Atuei nesse sentido o tempo todo.
Mantive permanentemente contato direto com os presidentes do BNDES
para incentivá-los a reestruturarem os setores industriais fundamentais e assegurar
a presença de grupos nacionais, sem ultrapassar os limites do que é próprio nesta
matéria, ou seja, atendo-me aos delineamentos gerais da política industrial, jamais
pleiteando soluções para grupos específicos. Tinha em mente a importância de
robustecer os segmentos
584
nacionais para garantir a competição e porque, a mais longo prazo, haveria de
incentivar, como fizemos, a globalização de algumas corporações brasileiras.
As indústrias tradicionais, prejudicadas pela abertura, pelos juros elevados e pela
apreciação do real,8 se beneficiaram, principalmente depois de 1999, do ajuste do
câmbio. No caso da indústria têxtil, desenvolvemos entre 1996 e 1998 (antes,
portanto, do ajuste cambial de 1999) um programa de recuperação do setor visando
sua modernização tecnológica, dando- lhe financiamento adequado a juros
reduzidos.
Tomamos uma série de medidas que favoreceram o conjunto da cadeia produtiva.
Impusemos quotas às importações de peças de vestuário e tecidos, provenientes
principalmente de países asiáticos, que estavam causando danos ao setor com
práticas de dumping. Reconstituímos a lavoura algodoeira, que tinha sido muito
prejudicada. Para isso o BNDES emprestou recursos não apenas à indústria têxtil,
mas à própria lavoura. Houve um empenho da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para criar variedades de sementes de algodão
mais resistentes (a praga do "bicudo" destruíra as lavouras cearenses e mesmo as
do fertilíssimo Paraná tinham baixa produtividade) e se fundou uma cooperativa de
produtores em Mato Grosso, com a assistência técnica dessa competente estatal,
para deslocar a produção para o Estado. Diante desse exemplo, é possível falar de
falta de apoio a políticas setoriais?
O mesmo ocorreu - e me dispenso de exemplificar para não cansar o leitor - com as
indústrias de móveis, de calçados e várias outras.
De 2001 em diante, as exportações de têxteis, em especial de vestuário, deram vida
nova ao setor. Cabe lembrar que a Apex, criada pelo Sebrae com apoio do
Ministério do Desenvolvimento, se revelaria decisiva para abrir o mercado externo a
este tipo de mercadoria que até então só ocasionalmente aparecia na pauta
exportadora. (A Apex voltou-se à promoção das exportações de pequenas e médias
empresas por meio da formação de consórcios; não é um instrumento específico de
promoção das exportações
Nota: ' A valorização do real frente ao dólar tanto prejudicou as exportações como teve
efeito benéfico na importação de equipamentos. O endividamento externo das
empresas preocupou no curto prazo, mas em médio prazo permitiu um amplo
processo de modernização do equipamento. Fim da nota.
585
têxteis.) Sempre se pode argumentar, e vale para os outros
ramos tradicionais: "mas primeiro foram destruídos". É verdade, porque havia que
melhorar a qualidade empresarial, a tecnologia e a visão de mercado.
Freqüentemente é uma nova camada de empresários e de empresas que ressurge.
São as dores do parto de um sistema, o capitalista, que é cruel na forma como se
desenvolve.
Em outros setores, como o automotivo, a intervenção do governo foi decisiva. Em
1995 promovemos uma legislação criando incentivos para baratear o custo do
investimento, reduzindo o imposto de importação de bens de capital e o custo da
produção, baixando impostos sobre a importação de componentes dos veículos e
sobre as matérias-primas. Foi essa medida que ocasionou o choque entre Brasil e
Argentina, resolvido com muitas dificuldades pela ação presidencial direta e pela
defesa de nosso embaixador junto à OMC.
Não nos limitamos às normas gerais de incentivos. Buscando brechas nas regras
internacionais que permitem incentivos para regiões de menos desenvolvimento
relativo, incluímos vantagens para que as fábricas pudessem se localizar no
Nordeste e no Centro- Oeste. Isso não se deu propriamente como uma decisão
global de política industrial, mas antes por pressões regionais e, diria, quase por
acidente. Explico-me: eu tinha muita preocupação com três estados que estavam
perdendo dinamismo económico relativo: o Rio de Janeiro, Pernambuco e o Rio
Grande do Sul.
Neste último caso, em combinação com o governador António Britto, pensava em
três áreas de intervenção. A primeira seria a modernização do porto de Rio Grande
e a complementação das rodovias de acesso da produção até ele. A segunda, a
revitalização do que se chama de "a metade Sul", ou seja, as zonas fronteiriças, que
sofriam o desgaste do fechamento de frigoríficos e de falta de energia, e a
terceira consistiria em criar um pólo metal-mecânico. Em consonância com
esse propósito, o governador Britto deu início a uma política de incentivos para a
indústria automobilística, do que resultou a instalação de uma fábrica da General
Motors em Gravataí. O passo seguinte viria a ser a instalação de outra montadora,
no caso a Ford, que desistiu de construir fábrica em território gaúcho diante das
críticas aos incentivos vociferadas durante toda a campanha eleitoral ao governo
do estado pelo candidato do PT, Olívio Dutra, que derrotaria Britto em sua tentativa
de reeleição. (Eu pensava, além de fortalecer o
586
Rio Grande, dar maior viabilidade ao Mercosul, pois parte das necessidades de
importação de componentes pelas montadoras poderia vir de Córdoba, importante
centro industrial na Argentina.)
A partir da decisão da Ford abriu-se uma temporada de competição entre estados
para ver quem se beneficiaria com a decisão a ser tomada pela empresa. A
Fazenda, que jamais vira com bons olhos a política de incentivos - porque ela
diminui as receitas no curto e médio prazos e pode introduzir distorções no sistema
tributário e mesmo nas regras de competição -, se opunha ao exagero de renúncias
fiscais que alguns governos queriam implementar, notadamente o da Bahia, parte
dos quais à custa do Tesouro. São Paulo, estado no qual se concentrava a
produção automobilística, preocupava-se com a concorrência em bases desiguais.
Tive que arbitrar. O governador da Bahia, César Borges (PFL), e o senador António
Carlos, depois de uma conversa comigo na qual eu concordara com alguns
incentivos, pressionaram o Congresso para obter mais vantagens, sem minha
anuência. São Paulo e a Fazenda viram nisso manobras minhas, mesmo porque o
chefe da Casa Civil, Pedro Parente, participara nas negociações com o governo da
Bahia. A verdade é que eu, embora não tivesse de fato sido informado do conjunto
de incentivos pleiteado, queria a desconcentração industrial e não vi com maus
olhos a instalação da Ford na Bahia. Pelo contrário.
Esse não foi o único caso de apoio a incentivos para desconcentrar a indústria.
Procedi da mesma forma com respeito ao pólo metal-mecânico de Porto Real, perto
de Resende (RJ), consoante minha preocupação com a falta de dinamismo da
economia fluminense e que encontrou em Marcelo Alencar um governador de visão
moderna, que muito se empenhou na recuperação do estado. O certo é que da
política para o setor automotor resultou o espraiamento das novas montadoras.
Como resultado, elas aumentaram de número em São Paulo, cresceram em Minas
Gerais, instalaram-se no Paraná, no Rio Grande do Sul, na Bahia, no Rio de Janeiro
e em Goiás. Quando iniciei o governo somente em São Paulo existia indústria
automobilística, com a exceção da Fiat, localizada em Minas Gerais (estado que
hoje conta também com a Mercedes-Benz, para o que interferi pessoalmente junto à
direção da empresa na Alemanha).
E não se trata apenas das montadoras. Em 1997 o BNDES criou um
programa especial para apoiar o segmento de autopeças, com o objetivo
587
de tornar a produção local competitiva. No mundo todo, a relação entre as
montadoras e os fornecedores de autopeças sofria profunda transformação, devido
a modificações no sistema produtivo que requeriam que as compras de autopartes
fossem feitas fora da empresa montadora (outsourcing) e ao mesmo tempo exigiam
rapidez na entrega (o sistema just on time). Era necessário, portanto, estabelecer
novos elos na cadeia produtiva. Este processo resultou em falências e no
nascimento de novas empresas, em geral estrangeiras, dotadas de melhores
condições para atender às demandas tecnológicas das novas montadoras, que
eram top de linha. A despeito de muita reclamação quanto à "desnacionalização"-
como ocorreu quando Juscelino trouxe a Volkswagen e outras indústrias nos anos
1950 -, o fato é que os investimentos globais no setor chegaram perto de 20 bilhões
de dólares, a capacidade de produção passou de 1,8 milhão de veículos para 2,7
milhões de unidades por ano, nove novas montadoras se instalaram no país
e verificou-se um brutal aumento da capacidade exportadora, com o que o Brasil
continuou a se beneficiar após meus dois mandatos.
Algo semelhante se passou no setor siderúrgico. Entre 1994 e 2001 o BNDES
destinou 14 bilhões de reais para apoiar o setor. Os recursos visavam o aumento de
produtividade e eficiência, bem como a modernização de sua estrutura de controle,
pois as privatizações ocorridas anteriormente fragmentaram excessivamente o
capital (havia que desfazer controles cruzados das empresas). No caso, tratava-
se principalmente de empresas controladas por capitais nacionais, embora tenha
havido compras no setor por multinacionais, com o efeito benéfico de melhoria
tecnológica e de assegurar a competição. A realidade é que o setor siderúrgico,
renovado, está em expansão (adquirindo empresas na América Latina, nos EUA e
no Canadá) e participa ativamente da pauta de exportações. Poderia continuar a
desfilar outros casos, notadamente do setor de papel e celulose, no qual teve
importância tanto a ação do BNDES como a capacidade empresarial nacional, ou no
petroquímico, no qual, graças à ação do BNDES, ficou claro, depois da venda do
complexo de Camaçari, que empresas de capital nacional poderiam colocar
a multinacional do setor, a Dow Chemical, em posição não dominante.
Simultaneamente fortalecemos a competitividade nacional, com o lançamento de
um pólo gás-
588
químico no Rio de Janeiro. Sem falar no que antes comentei: a privatização da Vale
do Rio Doce, mantido o controle nacional, melhorou enormemente a performance
da empresa. A ela não faltou apoio de órgãos governamentais. Tornou-se uma das
maiores mineradoras do mundo, expandindo-se globalmente.
Casos tão notáveis quanto esses foram os do setor de telecomunicações e o de
petróleo e gás. A expansão da rede de telefonia fixa e móvel, com as privatizações,
deu um salto colossal: de 800 mil celulares em 1995, passamos a dispor em 2005
de mais de 80 milhões! Houve também enorme expansão da telefonia fixa (saímos
de 12 milhões de linhas quando assumi a Presidência para mais de 40 milhões em
2005). Ao mesmo tempo, o custo de instalação tanto quanto o de uso caiu
vertiginosamente para o consumidor. Sem essa transformação, que faríamos na era
da Internet?
Não se pense que esse processo afeta apenas os setores da produção organizada:
o setor informal (pequenos empreiteiros, pintores, pequenos comerciantes,
pedreiros, taxistas, costureiras, empregadas diaristas, o que seja) se beneficiou
diretamente com a generalização do acesso aos meios de comunicação. Como nos
outros casos, o BNDES financiou a expansão da rede.
O apoio governamental se estendeu para atrair as principais fornecedoras de
equipamentos das operadoras privadas e não descuidou de manter a capacidade
nacional de desenvolvimento tecnológico. O antigo centro da Telebrás que cuidava
da matéria, o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações
(CPqD), em Campinas, foi transformado em fundação, com recursos financeiros
públicos, enquanto o apoio para a fabricação no Brasil de equipamentos de
telecomunicações contou com 7,8 bilhões de dólares de empréstimos do BNDES.
Na área de petróleo e gás, além do que o Tesouro arrecadou com a concessão de
novas áreas de exploração, houve explicitamente o propósito de manter a
competitividade, aumentando a concorrência e a produtividade e, junto com isso, de
assegurar participação crescente dos produtores nacionais de equipamentos na
expansão da indústria. Nos leilões de áreas de exploração ou concessão, os editais
incluíram sempre o quesito relativo à percentagem de nacionalização da
produção do equipamento. Criou-se uma associação de fabricantes nacionais
que, em cooperação
589
com a ANP, zela pela consecução desse objetivo. Os resultados estão à vista; a
Petrobras, transformada gerencialmente em uma corporação moderna, sem
ingerências políticas, com suas ações cotadas em bolsas internacionais, dobrou a
produção de petróleo em oito anos, como já vimos. Não fora o atraso na fabricação
de novas plataformas - devido à decisão política do governo que me sucedeu de
cancelar alguns contratos de fabricação - e a esperada auto-suficiência já teria
ocorrido ainda nos primeiros anos da nova administração. Lástima maior é ter o
novo governo incidido no pecado de fazer nomeações políticas na empresa (assim
como para a ANP, a ponto de nomear como diretor um ex-deputado, além do mais
um dos mais ferrenhos opositores da flexibilização do monopólio).
Tão importante quanto a expansão da produção viria a ser o reconhecimento de
reservas. A Petrobras saltou para o rol das empresas que detêm grandes reservas
de óleo, o que, diante da escassez certa no futuro, dá solidez à empresa e um
horizonte ao Brasil em matéria energética, sem contar que dispomos da alternativa
do álcool.
Quando assumi o governo nossa matriz energética era basicamente sustentada pela
hidreletricidade e pelo dieseL Com o gasoduto Brasil-Bolívia, com as novas
descobertas de gás no Brasil e com a interconexão com a Argentina, passamos a
contar com uma alternativa econômica e ecologicamente mais limpa que, somada à
utilização mais ampla do álcool como combustível, deixa-nos em posição
confortável para o futuro. O que não significa, é claro, que possamos menosprezar
as vantagens da hidreletricidade como fonte energética, diante da vastidão de
nossos recursos hídricos.
A energia hidrelétrica e a crise do"apagão"
Ainda na área de infra-estrutura, realizamos considerável investimento em energia
hidrelétrica. Basta dizer que das 23 obras que encontramos paralisadas no início de
1995, quinze foram concluídas até 2000. Em média, entre 1996 e 2001, houve um
acréscimo anual de 2.830 MW, mais do que o dobro do período 1986-1995. No
começo de meu primeiro mandato havia cerca de 57 mil MW instalados, para
chegarmos ao final de 2002 com pouco mais de 80 mil MW, ou seja, uma expansão
superior a 30% no sistema energético.
590
Acrescemos de duas unidades geradoras a capacidade de Itaipu, das seis de
Xingó
(AL), cinco foram feitas em meu período, expandimos Tucuruí (PA), lançando a
segunda fase da usina e dando prosseguimento às obras da eclusa. Enfim, o
desfilar de nomes de novas usinas está aí para atestar o trabalho feito: Machadinho
e Itá (RS), Jorge Lacerda IV (SC), Angra-2 (RJ), Serra da Mesa-Luís Eduardo
Magalhães (TO), Samuel, Aparecida, Santana e Manso (MT), para não mencionar
as 32 termelétricas contratadas para complementarem a matriz energética. Alguns
estados, antes carentes, passaram a exportar energia, caso de Mato Grosso.
Naturalmente essas obras tiveram que ser complementadas com a extensão das
linhas de transmissão, ampliadas em 10 mil quilómetros, passando o total do país
de cerca de 60 mil para ao redor de 70 mil quilómetros.
Houve a interconexão das linhas Norte-Sul, o Nordeste teve ampliada a capacidade
de receber eletricidade de Itaipu e de Xingó, e assim por diante, com toda a
complexidade de obras que isso implica, em subestações e entroncamentos. Além
do que interconectamos Roraima com a Venezuela e o Sul do Brasil com o Uruguai
e a Argentina, de tal forma que, levando-se em conta a ligação preexistente com o
Paraguai em Itaipu e a nova, do gasoduto com a Bolívia, nosso país - como
estão fazendo os europeus - buscou suprimento em países vizinhos e
assegurou laços físicos de integração económica, rompendo a política
autárquica do passado.
Diante de tudo isso, a pergunta inevitável: então por que aconteceu a crise do
"apagão"? (Escrevo entre aspas porque houve racionamento, que evitou o apagão
propriamente dito.) Terá sido conseqüência da mera falta de chuvas?
A resposta é claramente: não.
Entre a promulgação da Constituição de 1988 e a Lei de Concessões do Serviço
Público, em 1997, as incertezas do marco regulatório do sistema elétrico tornaram-
se grandes. A crise fiscal do Estado diminuíra a capacidade pública de investimento
e o setor privado não via com clareza novas regras estáveis. Com as leis do sistema
elétrico e com a criação da Aneel, mencionadas neste capítulo, começou a
desenhar-se um novo modelo. Neste, as empresas distribuidoras de energia só
poderiam vender seu produto se tivessem a garantia firme de produção
pelas geradoras, estabelecida por contratos bilaterais de compra e venda entre as
distribuidoras ou as consumidoras livres com as empresas geradoras (chamados
591
Contratos Iniciais). As distribuidoras, na medida da expansão da demanda de energia
futura, assinalariam a necessidade de investimento às geradoras, o que não
ocorreu. E não ocorreu porque as distribuidoras estavam confiadas na oferta
previsível estabelecida nos Contratos Iniciais. Faltou uma avaliação mais realista da
capacidade geradora a partir do início do novo
modelo.
No passado, com toda a geração e distribuição nas mãos do governo, o Ministério
de Minas e Energia dispunha de um planejamento que calculava a geração de
energia necessária ao consumo previsto acrescida de uma margem de segurança
de 5%. Com o início das privatizações (digase, a bem da verdade, que estas, se
avançaram em estados como São Paulo, engatinharam no plano federal: apenas a
Eletrosul foi privatizada, continuando o sistema Chesf, Furnas, Itaipu, Angra,
Tucuruí e outras estatais nas mãos do governo), o Ministério perdeu a
capacidade planejadora e o sistema de alerta, a ser dado pelas geradoras,
não funcionou. Houve uma subestimação inicial da necessidade de aumentar
a produção no momento da transição entre um modelo e outro.
As conclusões da comissão de alto nível que criei logo em maio de 2001,9 em plena
crise, para explicar o que aconteceu, são taxativas: não houve aumento imprevisto
do consumo, a escassez de água, que era real, poderia até ter ocasionado danos
piores se a estiagem tivesse ocorrido no verão de 2000, pois o nível das reservas já
era crítico em 1999, e houve um atraso em obras que, se concluídas a tempo
oportuno, talvez tivessem evitado a dramaticidade da escassez de água nos
reservatórios.
Por que não o foram? Novamente, questões mal resolvidas quanto a quem cabiam
decisões, se ao Ministério, à Aneel ou a quem seja, inclusive na delicada área do
licenciamento ambiental, prejudicaram o ritmo das obras.
Nota: 9 Chamava-se Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica e
teve a coordenação de Jerson Kelman, na época presidente da ANA e que no
governo Lula passou a dirigir a Aneel. Compunham- na Altino Ventura Filho, diretor
técnico executivo da Itaipu Binacional, Sérgio Valdi Bajay, professor da Unicamp,
João Camilo Penna, ex-ministro de Minas e Energia e conselheiro de Itaipu, e
Cláudio Luiz da Silva Haddad, presidente do Instituto Brasileiro de Mercado de
Capitais (Ibmec), com a consultoria dos especialistas na área Mário Veiga Ferraz,
Frederico Gomes e José Rosenblatt. Fim da nota.
592
Cabe a pergunta: e o governo, não sabia disso? Sim e não, depende do nível que
considerarmos. Pelo mesmo relatório se vê que desde 1999 a Petrobras e o
Ministério vinham tratando de implementar um programa de energia térmica
baseada no uso do gás, que serviria de socorro para o caso de crise no setor
hidrelétrico. Cogitavam também do aluguel de barcaças com geradores a diesel,
solução cara, mas emergencialmente adequada. De novo, postergações e
desentendimentos entre ministérios (inclusive os da Fazenda e do Planejamento) e
deles com a Aneel impediram a solução dos problemas. Estes aliás não eram
simples: a forma de pagamento do gás afetava as questões cambiais e era por
elas afetada, pois seu preço estava atrelado ao dólar, o que incidia também no
combate à inflação, em cujo cálculo entraria o custo mais ou menos elevado do
combustível.
Logo no início da crise criei um órgão especial - a Câmara de Gestão de Crise de
Energia Elétrica (CGE), vinculada à Presidência - para tratar da escassez de
energia e coloquei sua coordenação, por sugestão de Pedro Malan, nas mãos de
Pedro Parente, que a dirigiu com exímia competência, e encaminhou as soluções
cabíveis. Na ocasião fiz uma declaração que espantou muita gente: "Eu nunca
soube nada dessa escassez de água!"
E era a pura verdade. Poucas semanas antes o ministro Rodolpho Tourinho fora
demitido em função do choque, já descrito, com ACM. A conversa que tive com o
senador José Jorge quando o convidei para suceder seu correligionário no
Ministério de Minas e Energia, no Alvorada, durou duas horas. Relatei minúcias dos
problemas energéticos, pois eu acompanhara com paixão o renascer do sistema
hidrelétrico e a introdução do gás natural Tinha visitado várias obras e comparecido
à inauguração de outras tantas. Sabia detalhes das usinas, das linhas de
transmissão, do programa Luz no Campo (rebatizado depois de meu governo como
Luz para Todos). Pois bem, não disse ao novo ministro uma só palavra sobre a falta
de água nos reservatórios. Para mim, portanto, caiu como um raio em dia de céu
azul a informação de que as geradoras propunham um corte do fornecimento de
energia por um certo número de horas diárias e que a Aneel calculava em 20% o
corte necessário.
Telefonei a David Zylberzstajn, presidente da ANP, pedindo que se informasse sobre
o assunto e visse uma alternativa para o corte obrigatório de eletricidade. Só então,
por este intermédio, recebi cópia de um aviso de Mário Santos, superintendente do
ONS - uma organização não-governamental,
593
responsável por coordenar a oferta de energia, e, portanto, por liberar a
água dos reservatórios -, falando da enorme escassez de água. Calculo que tenha
sido no dia 20 de março de 2001. E foi graças aos esforços de David e de alguns
outros técnicos, somados à competência de Pedro Parente, à disposição de
centenas de funcionários, empresários e consultores, mais à incrível modernidade e
disposição de serviço público da mídia nacional (sobretudo a TV) - sem falar
no extraordinário povo brasileiro que, uma vez bem informado, age com espírito de
solidariedade nacional -, que evitamos um "apagão" de fato, substituído por um
racionamento voluntário, incentivado pelo governo.
Por fim, o que extraio do relatório da Comissão de Alto Nível sobre
as responsabilidades do governo pela crise: o Ministério de Minas e Energia estava
"tempestivamente ciente da urgente necessidade de criação de energia adicional",
diz o documento. A partir do início de 1999, tentou iniciativas para solucionar a
questão (Programa Prioritário de Termelétricas, barcaças com geradores a diesel
etc) que não funcionaram. Tanto a Eletrobrás como o Ministério, o ONS e a
Aneel estavam cientes dos riscos, a partir daquela data. Mas "houve instruções do
Ministério para que não se divulgassem publicamente as avaliações de risco e
severidade, com o objetivo de evitar preocupações exageradas por parte da
sociedade". A Aneel tampouco disse qualquer coisa a respeito antes de março de
2001. Em reunião no dia 26 de julho de 2000, entre a equipe econômica, o
Ministério e o Presidente da República - continuo repetindo o mesmo relatório -,
segundo palavras do próprio ministro, foi dado um alerta baseado nas informações
do ONS, mas nos seguintes termos tranqüilizadores: "Considerando o
Programa Prioritário de Termelétricas, mesmo que se verifique um
consumo superior ao previsto, não haverá problemas de suprimento de energia (...)
no período 2002-2003, desde que ocorram condições hidrológicas com afluências
superiores a 85% da MLT (média de longo prazo)." O ministro, diz o relatório,
estimou haver 90% de probabilidade de essas condições ocorrerem.
Comentário dos membros da Comissão: "A linguagem adotada teria induzido não-
especialistas a concluir que não havia razões para alarme que justificassem a
deflagração de ações corretivas imediatas." Ou seja, o Relatório conclui que o
Presidente da República não foi devidamente alertado da possibilidade de uma
crise energética. Moral da história:
temores
594
de divulgar informações, falta de clareza diante do Presidente e proibições de
divulgação de resultados comprometem o governo e causam dano ao país. A
população, quando informada, reagiu bem. Se tivesse obtido a informação a tempo,
e isso vale para mim, teríamos poupado muitas perdas e muito aborrecimento.
Retomando obras de infra-estrutura de transportes
Ciente de que a modernização do país e sua inclusão nos circuitos globais de
comercialização, tanto pelo aumento das exportações quanto pelo das importações,
requeriam um despertar da infra-estrutura de transportes, lançamos as bases para a
renovação dessa área. Iniciamos, e em alguns casos concluímos, obras em estradas
que não se duplicavam ou cuja pavimentação há tempos não era cuidada. Lembro,
por exemplo, entre outras realizações, o complexo viário com a denominação geral
de Rodovia do Mercosul, que vai de Belo Horizonte a Osório (RS), passando pelo
estado de São Paulo com o nome de Rodovia Fernão Dias. Ela incluiu a duplicação
da BR-116, a Régis Bittencourt, entre São Paulo e Curitiba (ficaram faltando trechos
entre São Paulo e a cidade também paulista de Apiaí por problemas ambientais), e
a duplicação da BR-376, de Curitiba a Florianópolis, seguindo depois na direção de
Osório. O trecho catarinense dessa estrada era antes conhecido como "estrada da
morte", tal a precariedade em que se encontrava. Mas não foi só no Sul
que cuidamos das obras. Concluímos a BR-174, ligando Manaus à
Venezuela, objeto de minha atenção desde quando ocupei o Ministério de
Relações Exteriores. A BR-317, dita Estrada do Pacífico, cortando o Acre,
teve grande impulso, assim como a ligação da capital, Rio Branco, à fronteira com o
Peru. Mesmo estradas longas e difíceis como a BR-230, sem ter sido concluída, no
Tocantins e no Pará, tiveram andamento. E, no Centro-Oeste, terminamos ou
duplicamos, em Mato Grosso, tanto a BR- 070, ligando Cáceres à fronteira com a
Bolívia, como a BR-267, entre Jardim e Porto Murtinho, na fronteira com o Paraguai,
e, em Goiás, a BR-060, entre Goiânia e Brasília.
Houve cuidado especial com o Programa de Restauração e Manutenção
de Rodovias (Crema), fruto da pertinácia do ministro Eliseu Padilha, que mudava os
critérios de controle e as formas de pagamento das obras de restauração e
recuperação de estradas, problema grave em um país tão
595
vasto como o nosso, com o peso dos caminhões macerando a pavimentação e com
as chuvas tropicais minando as bases do asfalto. Infelizmente esse programa não
teve continuidade no governo que sucedeu ao nosso.
Se olharmos para a coragem com que o governo de Mário Covas e, depois, o de
Geraldo Alckmin enfrentaram as concessões de estradas - nas quais, naturalmente,
se cobra pedágio -, melhorando a já boa rede rodoviária de São Paulo a ponto de
incluir várias rodovias com padrão de Primeiro Mundo, veremos quanto ainda falta
caminhar no plano federal. Devo dizer que o governo federal colaborou no máximo
de seus recursos para iniciativas estaduais em projetos de infra-estrutura. Isso
incluiu obras viárias (por exemplo, custeando um terço das obras do Rodoanel
de São Paulo, posto que a Prefeitura local, sob Celso Pitta e Marta Suplicy, não
colaborou com a obra) ou a duplicação da BR-232, entre Recife e Caruaru,
propiciando grande incentivo ao turismo no interior de Pernambuco, e de
saneamento, como em Belém, um dos maiores projetos que pudemos apoiar nessa
área. Para não falar das obras nos metrôs, financiadas pelo BNDES em São Paulo,
Rio, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Salvador e
Porto Alegre.
No plano federal as dificuldades foram muitas para modernizar as estradas e
implementar práticas de maior eficácia e rigor nos gastos.
Muita coisa conspirava contra, desde a burocracia envelhecida e distorcida do
Ministério dos Transportes até as inúmeras liminares pedidas à Justiça, em nome de
causas como a defesa do meio ambiente ou, então, por setores ideologicamente
contrários às concessões de serviço público, por eles chamadas de privatizações.
E, naturalmente, se podia incluir na lista as distorções tradicionais, difíceis de
combater, provenientes de corrupção ou simples desmazelo nas obras,
freqüentemente paralisadas pelo TCU devido a irregularidades. Mesmo assim,
quebramos o marasmo que se instalara a partir de quando a Constituição extinguiu
as verbas vinculadas para
o antigo DNER.
Nos aeroportos, que contam com verbas autónomas do Orçamento da
União, derivadas de taxas pagas à Infraero pelos passageiros e usuários, refizemos
todo o planejamento e demos grande impulso a sua modernização, ficando
assentadas as bases de um programa de obras que continuou a frutificar no
governo seguinte. Em 2002 processavam-se trabalhos de construção, ampliação ou
reforma em aeroportos de dezoito capitais,
596
além de outros em cidades menores. Concluímos a construção ou a modernização
dos aeroportos de Porto Alegre, Curitiba, Londrina (PR), Rio de Janeiro-Galeão (ala
Tom Jobim), Brasília, Palmas (TO), Salvador, Natal (RN), Fortaleza, São Luís,
Belém e Rio Branco. Deixamos com mais de meio caminho andado aeroportos
como os de Maceió e Recife. Esse trabalho facilitou o transporte de carga e em
especial o de passageiros, em um momento no qual o turismo passou a ser item
importante de nossas atividades de serviços.
O mais inovador em matéria de infra-estrutura que pudemos contabilizar, porém, foi
a revitalização dos transportes ferroviários e hidroviários.
Estes últimos, bandeira das propostas do governador Montoro, pioneiro na matéria,
também encontraram obstáculos - alguns de respeito - nas restrições ambientais.
Mesmo assim, conseguimos normalizar o fluxo de barcos entre o rio Madeira, a
partir de Porto Velho (RO), até Itacoatiara (AM), no rio Amazonas, apoiamos a
construção de dois portos fluviais naquelas cidades pela iniciativa privada,
concedendo-lhe financiamento público, e, entre outras medidas, fizemos as
devidas sinalizações pelo sistema GPS para permitir a navegação noturna.
Como resultado, parte significativa da produção de grãos do Centro-
Oeste, principalmente da região da serra dos Parecis (MT), é hoje escoada para a
Europa por via fluvial, sendo feito o transbordo para navios oceânicos em
Itacoatiara. Conseguimos, desse modo, importante redução nos custos de
transporte. Também na área da bacia dos rios Tietê-Paraná e no rio Paraguai houve
progressos palpáveis. No conjunto uma percentagem razoável da produção agrícola
na região já utiliza o transporte fluvial. Como demos impulso aos terminais
intermodais de conexão, tornou-se mais fácil tirar proveito do tipo de transporte
mais eficiente e barato em cada zona.
No transporte ferroviário, por seu turno, o salto foi grande. O governo privatizou a
Rede Ferroviária Federal, sucateada e endividada, com resultados bastante
positivos, notadamente no Sul e no Sudeste.
Financiamos a construção e a modernização do sistema ferroviário, principalmente a
Ferronorte, que ao final de meu governo ligava os portos de Santos e Sepetiba (RJ)
ao coração do Brasil, no meio de Mato Grosso. Para isso, tivemos que concluir uma
ponte rodoferroviária sobre o rio Paraná, de 2.600 metros de extensão, de modo a
conectar a Ferronorte com a Ferroban (privatizada). Da mesma forma,
demos continuidade à ferrovia
597
Norte-Sul, ligando Estreito a Açailândia, no Maranhão, para fazer a conexão com a
Estrada de Ferro Carajás, que leva ao porto de Itaqui, para que a produção da
importante fronteira agrícola que abrange o sul do Maranhão e o do Piauí encontre
melhor escoamento. As obras dessa ferrovia prosseguiram no rumo do sul, com a
construção da ponte sobre o rio Tocantins. As obras, ao final de meu período de
governo, esperavam o encontro dos trilhos que partirão de Goiânia para o norte com
os que prosseguem de Estreito na direção sudoeste.
Essas referências às estradas e às ferrovias mostram que muitas delas ganham
sentido quando desembocam nos portos. Pois bem, nessa área, paralelamente à já
mencionada implantação da lei dos portos e da privatização que levou à
modernização e à redução dos custos de vários terminais, revitalizamos os portos
de Santos e Rio Grande, construímos o de Pecém (CE), terminamos o importante
porto de containers em Sepetiba, completamos o de Suape (PE) - essas duas
últimas obras parte do programa de revitalização dos estados do Rio de Janeiro e
Pernambuco - e remodelamos o de Cabedelo (PB).
Sucintamente: longe de havermos feito a estabilização e o controle fiscal para
contemplar, de braços cruzados, o crescimento económico de outros países,
lançamos as bases para uma expansão consistente de nossa economia.
Obedecemos sempre à visão dos objetivos estratégicos desenhada pelo
Planejamento e não empreendemos obras sem o concurso ativo do setor privado.
Na agropecuária, a força da capacidade inovadora
Desse setor quase não preciso falar: é de domínio público que o Brasil se tornou
uma potência agropecuária. Não se trata mais apenas da agricultura. Até o nome do
Ministério mudamos (para da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), de modo a
fazer referência clara ao gado.
Como salientei ao abordar a reforma agrária, houve uma explosão produtiva do
agronegócio, que teve por trás a capacidade empresarial de nossos fazendeiros e
criadores, somada à capacidade do governo para resolver as questões do
endividamento agrário, com a criação de novos instrumentos de financiamento rural,
e de solucionar o imbróglio das taxas de juros e do câmbio. Entretanto, essa
explosão não teria ocorrido sem a competência técnica
598
da pesquisa agropecuária, com a Embrapa à frente, e a decisão governamental de
facilitar a compra de equipamentos agrários com o programa Modernfrota, do
BNDES - do meio milhão de máquinas até então em utilização no campo, o
programa propiciou a troca de 100 mil ao longo de meu governo. E, principalmente,
sem um mercado mundial crescentemente comprador.
O fato é que no final de 2002 já éramos o primeiro ou segundo maior produtor
mundial de cana-de-açúcar, laranja, café, soja, milho, carne, frango e frutas. De lá
em diante só crescemos. A produção de grãos, de 69 milhões de toneladas em
1995/1996, atingiu o pico de 119,6 milhões na safra plantada em 2002 (2002/2003),
dobrando em oito anos. A produção, depois de certa queda por motivos climáticos,
manteve-se vigorosa nos anos seguintes. O saldo da balança agrícola, que sempre
foi positivo, disparou com o boom das exportações, sob pressão da
demanda internacional. No item das carnes, observou-se dinamismo equivalente.
Passamos de 5,2 milhões para 6,5 milhões de toneladas de carne
bovina, dobramos a produção de aves de 3,4 milhões para 6,4 milhões de toneladas
e no que respeita aos suínos passamos de 1,3 a 2,1 milhões.
De lá por diante, os aumentos têm sido constantes e as exportações crescem
fortemente. De novo, por trás desse salto, além dos fatores mencionados, estão os
cuidados fitossanitários e uma atitude mais agressiva no plano internacional para
buscar nichos de mercado e repelir práticas de concorrência desleal, como ocorreu
no famoso episódio da "vaca louca" ou no não-reconhecimento (que caro nos
custou depois de minha Presidência) de que imensas áreas do território nacional
estão livres da febre aftosa.
À guisa de fecho deste capítulo, já que nele mencionei a importância da Embrapa e
das pesquisas, cabe recordar que, se houve atração de capitais para o Brasil e
progressos no desenvolvimento agrário, industrial e dos serviços, é porque nós nos
destacamos entre as economias emergentes como um país no qual governo e
sociedade de há muito compreenderam que sem o desenvolvimento científico e
tecnológico nada se fará de grandioso. Falta muito nesta matéria. Mas foram
sendo historicamente construídas as bases para o país sobreviver bem num mundo
regido pela economia globalizada com suas crescentes demandas tecnológicas.
O esforço contínuo de universidades, institutos de pesquisa, órgãos de governo e
empresas vem dando frutos. A Lei da Inovação, preparada pelo
599
Ministério de Ciência e Tecnologia, em boa hora reavivada pelo governo que me
sucedeu, os fundos setoriais para ativar pesquisas científicas e tecnológicas,
infelizmente sempre limitados pelas políticas de austeridade fiscal, a política de
bolsas do CNPq, da Capes e, mais recentemente, dos órgãos estaduais, como a
Fapesp, já mencionadas neste livro, a criação que proporcionamos dos centros de
excelência, apoiados no programa Institutos do Milénio, foram iniciativas
fundamentais para que se possa alcançar um desenvolvimento que, sem ser
propriamente autónomo, permita graus de manobra em defesa dos interesses
nacionais.
Sem capacidade inovadora, os países perdem as oportunidades de um
futuro melhor para a economia e para o povo.
600
CAPÍTULO 10
Política externa: o papel e as viagens do Presidente
Os ventos do mundo e a diplomacia presidencial
A coesão dos povos possui indiscutível dimensão nacional, independentemente da
globalização, e a competição global desatada não a desfaz. Cada país, portanto, luta
por seus objetivos específicos. Mas para essa luta ter embasamento prático e não
se perder na retórica é preciso rever algumas visões do passado, quando se
confundia autonomia com retraimento e progressismo com interferência dos
governos na sociedade civil.
No mundo atual, ser progressista, ou, como se diria no antigo e carinhoso termo, ser
de esquerda, significa essencialmente colocar-se ao lado da justiça e da igualdade
de oportunidades na sociedade nacional e na internacional. Significa, portanto,
defender os interesses do país no plano internacional e buscar formas de
organização política mundial que tomem em conta os valores e requisitos
da comunidade planetária. Para ter efeitos práticos, cabe assumir esta postura sem
retórica, criando-se e fortalecendo-se as instituições que conduzam aos objetivos
desejados.
No plano interno devem-se adotar práticas de comportamento que mantenham a
sociedade aberta, sem repressões, caminhando na direção da inclusão social e do
bem-estar. Na economia, é preciso sustentar políticas de estabilidade, sem as quais
há maior empobrecimento e o crescimento não se mantém. Tais políticas devem
permitir o quanto possível a expansão da economia e, simultaneamente, reduzir a
concentração de renda e as desigualdades produzidas pelo sistema capitalista.
Infelizmente não há no horizonte histórico sistema alternativo capaz de preservar
as vantagens deste último - com seu dinamismo tecnológico, sua capacidade de
gerar riquezas e sua força transformadora das relações sociais - e de eliminar, ao
mesmo tempo, suas múltiplas desvantagens. Mas isso não nos deve inibir de
explorar meios e modos para reduzir essas desvantagens sem entorpecer sua força
criativa.
601
Na política externa, por conseqüência, a atitude progressista requer ações que
quebrem as barreiras e impedimentos internacionais acaso existentes, para
favorecer o desenvolvimento econômico-social e a democratização de cada país.
No campo dos valores, a visão progressista leva à defesa dos direitos humanos e
ao compromisso com formas de desenvolvimento sustentáveis social e
ecologicamente. Tudo isso sob a égide da preservação da paz e da democracia -
valores universais - e na busca constante do aperfeiçoamento da ordem
internacional. Nessa, os objetivos principais são os de assegurar maior
institucionalização, maior transparência nas decisões e democratização crescente
dos processos deliberativos nos órgãos internacionais.
Para tornar-nos mais aptos a enfrentar essas lutas, como chanceler, ministro da
Fazenda e Presidente da República, procurei substituir as práticas e visões do
Brasil pré-globalização por perspectivas mais dinâmicas, que permitissem à
economia se ajustar às realidades globais sem perder graus de autonomia, dentro
do possível, embora tentando o impossível. Em suma, busquei manter uma atitude
que qualifico de progressista e sustentei políticas compatíveis com essa visão
da sociedade e do mundo, que vê um entrelaçamento entre o externo e o interno,
sem desfazer o que é próprio da cultura de cada país nem, muito menos,
desatender aos interesses nacionais.1
Nos dias de hoje, graças às facilidades de comunicação e de deslocamento de
pessoas, a diplomacia dos países inclui uma dimensão presidencial.
Por mais que a "diplomacia presidencial", com as conseqüentes e seguidas viagens
internacionais do Presidente, seja criticada por quem não conhece como se formam
as teias decisórias contemporâneas, ela é indispensável. O número de reuniões de
cúpula é grande, nelas a presença presidencial é obrigatória e os interesses do país
levam a reuniões bilaterais freqüentes. Só os ilusos acreditam no disparate de
que alguma forma de lazer esteja entre as razões dessas viagens ou que elas se
limitem a buscar a expansão do comércio. Esta eventualmente pode decorrer de
algum
Nota: 1 Em artigos em publicações especializadas mas também na imprensa, Celso Lafer
tem tratado com propriedade desse entrelaçamento, objeto também de reflexões em
seu livro A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado,
presente e futuro, 2a ed., São Paulo, Perspectiva, 2004. Fim da nota.
602
acordo assinado entre presidentes. Com mais freqüência, entretanto, o fluxo de
comércio depende de condições econômicas objetivas, da atividade empresarial e
da ação contínua dos Ministérios do Exterior e do Comércio. O interesse da
diplomacia presidencial é, sobretudo, político. Sucede que as boas relações políticas
facilitam os laços económicos.
No discurso de posse, ao assumir o Ministério das Relações Exteriores, a 5 de
outubro de 1992, sublinhei que o Brasil mantinha elos com o mundo em muitas
direções. Nossos interesses comerciais abrangem vários continentes. Da Ásia
longínqua, com o Japão e a China, até nossos vizinhos mais próximos do Mercosul,
passando pelo México, pelo Chile e pelos países andinos. Encontramos nos
mercados maduros da União Européia e dos EUA parceiros essenciais. O Oriente
Médio também é relevante.
Durante minha gestão como chanceler, ainda importávamos muito petróleo da
região, e o peso da imigração árabe em nossa população é conhecido.
A África, mesmo sem ser comercialmente prioritária, pulsa em nosso sangue e vibra
em nossa cultura. Assim, nossa vocação universalista é indiscutível. Não apenas
porque somos global traders mas também porque nosso tamanho físico e
populacional dá-nos papel de relevo na região onde estamos inseridos. O aspecto
multirracial e de cultura sincrética de nosso povo, da espiritual à material,
predispõem-nos aos contatos com o mundo, sem esquecer a tradição de paz e de
busca de soluções diplomáticas e negociadas que é um dos maiores patrimónios da
história diplomática brasileira, nem sempre devidamente valorizado. A vocação
de autarquia, tão presente na visão do desenvolvimento económico "autónomo", se
chocava, de certa forma, com essa evolução histórica.
Outra não foi, no começo do século, a percepção do Barão do Rio Branco, o grande
ministro de Relações Exteriores da República Velha, um dos poucos e verdadeiros
"heróis" brasileiros. Sentindo o desafio da época, com a emergência dos EUA como
potência mundial, Rio Branco se lançou a consolidar as fronteiras e a olhar com
carinho os vizinhos do Prata, nossos adversários, às vezes ferrenhos, em alguns
períodos do Império.
Estendeu suas preocupações ao Chile e, decididamente, optou pela cartada
americana. Abriu dessa forma um guarda-chuva protetor às eventuais ingerências
européias. Com uma ressalva fundamental:
pan-americanismo, sim, mas com visão universalista e não de domínio da nação
mais poderosa. Daí por diante, nossa diplomacia sempre preferiu os fóruns
603
multinacionais aos bilaterais. Desde o período da construção da ONU até
sua fundação, em outubro de 1945 (colhendo a experiência de nossa presença na
Liga das Nações e no Tribunal da Haia), até hoje esta tem sido a conduta brasileira
na política externa.
Embora seja importante para a diplomacia a preservação de uma linha de conduta
coerente, é essencial que a política externa sinta os ventos do mundo. Não para
curvar-se a eles, mas para utilizá-los na direção do interesse nacional e poder assim
projetá-lo com algum impacto num mundo em acelerada mudança. Precisa,
portanto, ser flexível para permitir ajustes que deixem o peso da tradição trabalhar
em favor dos interesses contemporâneos. País com interesses múltiplos como o
nosso é avesso a interesses excludentes, como foi Rio Branco.2
Tentei seguir esse padrão de política externa. Para sintetizar, lanço mão de
expressão cunhada pelo embaixador Gelson Fonseca, que foi meu assessor direto,
segundo a qual a política externa que persegui desde minha curta passagem pelo
Itamaraty (de outubro de 1992 a maio de 1993)
buscou "a autonomia pela participação" numa realidade internacional cambiante, em
contraposição à "autonomia pela distância" da ordem mundial vigente, que em
momentos anteriores marcou governos autoritários.
De fato, a tendência à autonomia pela distância ficou clara, no decorrer do tempo, ao
longo da maioria dos governos militares. O Itamaraty, geralmente entregue a
diplomatas de carreira naqueles anos de tendência tecnocrática, acabou por
desenhar uma política de defesa de nossos interesses que jogava com o terceiro-
mundismo. Sem dispormos de poder militar e sufocados pelo pouco espaço de
manobra deixado pela bipolaridade ideológica, política e estratégica americano-
soviética, procuramos nos defender apoiando no plano econômico o grupo,
chamado G-77, por uma nova ordem mundial "mais justa". O país participou
da discussão sobre a
Nota: Para quem quiser aprofundar-se sobre a importância do legado de Rio Branco,
sugiro a leitura de duas obras: Carlos Henrique Cardim e João Almino (orgs.), Rio
Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil, Rio de Janeiro, EMC, 2002,
lançada por ocasião do centenário da posse do Barão no Itamaraty e para a qual
tive o prazer de escrever o prefácio; e Rubens Ricupero, José Maria da Silva
Paranhos, Barão do Rio Branco: biografia fotográfica 1845-1995, organização,
iconografia e legendas de João Hermes Pereira de Araújo, Brasília, Funag, 1995.
Fim da nota.
604
redistribuição de poder no plano económico e ajudou a inserir o tema Norte/Sul no
confronto Leste/Oeste. No plano político, houve alguma aproximação com o
Movimento Não-Alinhado, embora o Brasil nunca tenha sido mais que observador
desse grupo de países, com ressalvas do Itamaraty quanto a seu neutralismo
político devido a nossa inexorável dimensão ocidental. Mas o Brasil fazia a crítica ao
monopólio do poder e negou- se, por exemplo, a subscrever o Tratado de Não-
Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1968. Desenvolvemos uma política mais
ativa na África e no Oriente Médio, a qual, se produziu conseqüências negativas
(por exemplo, dívidas não pagas referentes a produtos e serviços exportados e,
principalmente, compromissos político-militares com ditaduras árabes), também
teve aspectos positivos, como o apoio às nações africanas que se tornavam
independentes e a condenação do regime racista do apartheid na África do Sul. No
entanto, é preciso não esquecer que a mesma política externa que, com uma mão,
se apresentava como defensora de princípios e ideais de justiça no mundo, com a
outra fugia como o vampiro da luz de tudo que passasse perto do reconhecimento
de uma responsabilidade internacional pelos direitos humanos e que pudesse pôr
em risco a complacência tradicional com abusos praticados por países não-
alinhados ou antiamericanos. Basta lembrar o apoio ao colonialismo português, até
a virada de nossa política em Angola, o caso do voto brasileiro na ONU
equiparando sionismo a racismo e nossa omissão diante da invasão do Timor
Leste pela Indonésia.
Meu governo procurou suprir nosso dever moral para com esse rincão de cultura
aparentada à nossa, ocupado brutalmente pela ditadura militar da Indonésia de
1975 a 1999, e depois administrado pela ONU até sua independência, em 2002.
Visitei o Timor Leste em janeiro de 2001, quando mantive longas conversas com o
grande líder da independência do país, Xanana Gusmão, que seria eleito
Presidente no ano seguinte.
Apoiamos Sérgio Vieira de Mello, o alto funcionário da ONU que cumpriu de forma
exemplar sua missão de governar o território em frangalhos e que,
lamentavelmente, seria morto em atentado no Iraque, em 2003, e seus esforços de
reconstrução e preparo da independência do país.
Autorizamos o envio de um pequeno contingente para integrar a Força Internacional
da ONU e respaldamos vários projetos de cooperação, que incluíram alfabetização,
formação profissional e a área da saúde, entre outros.
605
O contraste entre o que pudemos fazer por Timor e o silêncio do governo militar
diante do massacre ali promovido pela Indonésia está entre as razões de meu
pasmo quando setores de esquerda se referem à política externa daquela época
como "progressista" ou de defesa da soberania nacional, provavelmente só por
haver exacerbado um antiamericanismo presente em setores da sociedade
brasileira. A política externa do regime militar tinha a legitimidade do governo que a
criara. Após a queda do muro de Berlim, em 1989, e com a aceleração dos
processos económicos vinculados à globalização, nos anos 1980 e 1990, havia
que rever seus objetivos centrais.
As primeiras reações vieram ainda no governo José Sarney, que ampliou o quadro
de nossas relações diplomáticas, reconhecendo Cuba, dando maior ênfase à China
e, principalmente, fincando colunas mais sólidas na América Latina, em especial na
Argentina e no Uruguai, recém-reingressados na vida democrática. Os governos
posteriores deram continuidade ao que os Presidentes Raul Alfonsín e Sarney
haviam iniciado, selando a participação do Brasil no Mercosul, por meio do Tratado
de Assunção, de 1991. O governo Fernando Collor tentou imprimir um matiz
primeiro-mundista a nossos contatos externos. Abriu a economia, sofrendo reparos
por não haver obtido contrapartidas de maior acesso aos mercados externos, e
passou a criticar as deformações das políticas de substituição de importações.
Numa referência famosa, um tanto quanto forçada, embora não totalmente
desprovida de verdade, Collor chamou de "carroças" os automóveis brasileiros de
então. O Presidente Itamar Franco encaminhou-se para o lado oposto: inspirou a
volta da fabricação dos "fusquinhas" e criou regras favoráveis à produção de
carros populares. No plano externo, retomou a linha sul-americanista ao assinar em
dezembro de 2004 o Acordo de Ouro Preto, que definiu regras muito liberais para o
Mercosul, e deu passos importantes na aproximação com a Venezuela, que, sob o
comando de Rafael Caldera, pela primeira vez olhou para o sul.
Em síntese, os avanços da globalização económica combinados com
o fortalecimento da democracia nos diferentes países da região desenhavam um
horizonte novo, ao mesmo tempo em que suscitavam e tornavam possíveis
processos de integração, diluindo as fronteiras entre o externo e o interno. Os
atores envolvidos nas relações internacionais provieram não apenas do Estado, com
seus diplomatas e funcionários, mas também da
606
sociedade civil. Novos temas, como os referentes à paz, aos direitos humanos, ao
meio ambiente e à democracia, entraram na agenda das relações internacionais.
Em conjunto isso contribuiu para redefinir a noção de soberania nacional, sem,
naturalmente, diluí-la, mas dando-lhe novas dimensões e compromissos.
Menem fala num Mercosul só com Brasil e Argentina
A decisão de conferir maior ênfase à nossa região não era nova e vinha se
consolidando. Relato dois episódios para ilustrar essa evolução, muitas vezes feita
de vaivéns, e para mostrar como, também na diplomacia, os imprevistos contam,
pois avançávamos mesmo sem ter clareza sobre os no-
vos rumos.
Um deles mencionei anteriormente de passagem neste livro. Eu ainda era chanceler,
portanto sem obrigações específicas na área económica, quando recebi a visita do
presidente da Petrobras, Joel Rennó, estando presente o empresário paulista
Jacques Eluf. Perguntei-lhe quanto importávamos de petróleo de dois grandes
produtores latino-americanos, Argentina e Venezuela. A resposta decepcionante:
quase nada. Expus as razões políticas e estratégicas para um comércio mais ativo
na região e, a partir daí, a política de compras da Petrobras começou a mudar.
Em vez de importarmos do Oriente Médio quase todas as nossas necessidades em
matéria de petróleo, herança das alianças preferenciais dos governos militares,
passamos a comprar de nossos vizinhos. Em meados de meu segundo mandato, as
importações alcançaram somas expressivas em dólares: quase meio bilhão da
Venezuela e quase l bilhão da Argentina.
Este último valor correspondeu ao déficit no comércio bilateral com os argentinos,
permitindo ativar as trocas comerciais sem prejuízo real para nós: se não
importássemos petróleo da Argentina o faríamos do Oriente Médio, sem
contrapartida de exportações. Conseqüência das mudanças no mundo: a primeira
guerra do Golfo, em 1991, e o subseqüente embargo ao Iraque decretado pela
ONU, bem como a desconfiança crescente do mundo ocidental em relação ao
regime teocrático do Irã, haviam bloqueado boa parte de nossas vendas à região.
Sem contar, naturalmente, a extrema instabilidade em torno do golfo Pérsico,
fonte permanente de preocupação para quem depende do petróleo proveniente dali.
607
O segundo episódio se deu também durante meu período como chanceler, durante
as negociações para a construção do gasoduto Brasil-Bolívia, e mostra como são
muitos, e às vezes um tanto aleatórios, os fatores que podem perturbar uma efetiva
integração do espaço sul-americano. O acordo para a construção do gasoduto,
antiga aspiração nacional desde o Tratado de Roboré - assinado entre os dois
países em 1938 e atualizado em 1958 -, estava quase concluído. O ministro Paulino
Cícero, de Minas e Energia, apoiado na Petrobras (que antes e mesmo depois
resistiu bastante à utilização do gás como fonte energética), terminara
as negociações preliminares com o governo de La Paz. Negociações difíceis e
multifacetadas, que implicavam a definição do preço do gás e cujos desdobramentos
se arrastariam por boa parte de meu primeiro mandato.
Construir um gasoduto de mais de 3 mil quilómetros, passando pelo Pantanal, com
respeito absoluto às regras ambientais, tendo de convencer o BID a conceder um
financiamento para uma empresa estatal, e, finalmente, decidir a que partes e
regiões do Brasil o gasoduto deveria chegar não eram questões triviais.
Numa manhã, o ministro Paulino Cícero telefonou solicitando minha presença no
Palácio do Planalto. A viagem para Cochabamba, cidade em que se firmaria o
acordo, marcada para o dia seguinte, estava ameaçada.
Em mais de uma ocasião socorri Paulino Cícero, ajudando-o a convencer
o Presidente Itamar sobre a necessidade de eventuais aumentos de preço
dos combustíveis, medidas nada populares, mas necessárias, e que
sempre encontram resistências no Planalto. Por isso o ministro uma vez
mais recorreu a mim.
Cheguei ao gabinete do Presidente para tratar do assunto. Itamar logo afirmou:
- Eu não irei mais à Bolívia, avise a eles. Indaguei:
- Por que isso, Presidente? Resposta:
- Porque o Aureliano [Chaves, ex-Vice-Presidente da República e exministro de
Minas e Energia, entendedor da matéria] leu o dossiê e me disse que está errado.
Parece que nem gás existe na quantidade que estão nos oferecendo.
608
Neste meio-tempo, chega o próprio Aureliano Chaves. Repetem-se os argumentos.
O ministro Paulino Cícero contra-ataca, dizendo que a Petrobras havia revisado
tudo e concordava. Pedi que Aureliano examinasse uma vez mais os documentos.
Ele se dirigiu ao saguão contíguo à sala presidencial com o papelório nas mãos,
enquanto Itamar, Paulino e eu continuamos conversando. De volta da nova
leitura, Aureliano concluiu que, a seu ver, não se deveria mesmo assinar o acordo.
Sugeri que se chamasse o presidente da Petrobras para, juntos, reavaliarmos a
questão. O Presidente aceitou a sugestão, mas, à saída, pediu- me que avisasse o
governo boliviano sobre a suspensão da viagem.
Voltei para o Itamaraty e liguei para o embaixador Jório Salgado, que estava em
Cochabamba preparando a visita presidencial. Adverti-o da possibilidade de
cancelamento. Jório mostrou desalento, pois tudo estava preparado para receber
com júbilo o Presidente do Brasil: ruas engalanadas com bandeiras dos dois países,
estudantes mobilizados, presentes dois ex-presidentes da Bolívia que iniciaram
tratativas sobre o gasoduto havia muitos anos. Pouco depois me chama pelo
telefone o chanceler boliviano, Ronald MacLean, apreensivo com a possibilidade
de cancelamento da viagem. Resolvi por conta própria dizer- lhe que eram boatos.
Volto ao Palácio e me dou conta do porquê da aflição dos bolivianos: o próprio
Presidente Itamar, antes de ir para o almoço no Alvorada, dera a entender à
imprensa que não iria mais a Cochabamba.
Tive nova conversa com o Presidente para mostrar a dificuldade diplomática que
poderia causar a suspensão, à última hora, de tudo que se negociara árdua e
longamente. Contei-lhe que não havia informado à Bolívia sobre o cancelamento.
Sem muito entusiasmo, embarcamos para a Bolívia no dia seguinte, tendo
o Presidente se feito acompanhar por mim, pelo ministro Paulino Cícero e pelo
ministro da Justiça, Maurício Corrêa. Paulino e eu tratamos de encorajar o
Presidente, até que, ao chegar, ele desfilou em carro aberto e constatou a alegria
dos milhares de bolivianos que acorreram às ruas. Perspicaz como é, recobrou
ânimo, assinou com confiança o acordo que preparáramos, junto com o Presidente
Jaime Paz Zamora, e nunca mais se falou da falta de gás nas jazidas do país
vizinho.
Como Presidente eleito, visitei Buenos Aires. Depois de surpreendente conversa que
tive (presenciada pelo embaixador do Brasil na Argentina,
609
Marcos Azambuja, e pelo embaixador Júlio César Gomes dos Santos,
meu assessor) com o Presidente Menem e os ministros Guido di Telia, do Exterior,
e Domingo Cavallo, da Economia, concedi uma entrevista à imprensa.
Perguntaram-me sobre o Mercosul e sobre a cadeira no Conselho de Segurança da
ONU. Respondi que o Brasil, por sua trajetória e suas peculiaridades de país com
uma cultura de paz e tolerância cultural, estaria sempre à disposição das demais
nações, principalmente das vizinhas, para ser útil nos fóruns internacionais,
especialmente no Conselho de Segurança. Mas, e o mas conta, entre uma cadeira
no Conselho e a amizade com a Argentina e com nossos vizinhos, ficaríamos com a
segunda. Eu via como melhor caminho para nosso país ingressarmos no clube dos
desenvolvidos, na época o G-7, graças ao nosso trabalho e à integração com os
vizinhos, em vez de lutarmos por uma posição política, de prestígio, para a qual
talvez não tivéssemos o apoio deles, tão importante para o crescimento de nossa
economia e para a consolidação de nossa experiência integradora.
Ficara claro para os argentinos que jogaríamos a carta da região. A surpreendente
conversa com Menem a que me referi tem a ver com isso. De repente, o Presidente
disse achar muito bom que tivéssemos decidido que o Mercosul abrangesse
"apenas Argentina e Brasil". Olhei, surpreso, para os embaixadores que me
acompanhavam. Estávamos a pouco tempo do encontro que iria realizar-se em
Ouro Preto para formar o Mercosul como união aduaneira, incluindo naturalmente o
Uruguai e o Paraguai e, pensava eu, Menem não estava inteiramente a par dos
fatos. A surpresa aumentou quando Cavallo interveio apoiando a declaração de
Menem. Ao regressar à embaixada, Azambuja telefonou para Guido di
Telia, manifestando nossa perplexidade. Guido, antigo amigo meu e do
Brasil, visitou-me naquela mesma tarde na embaixada, acompanhado de
alguns auxiliares. Desculpou-se, renovou as expressões de amizade e de confiança
no Brasil e disse que, no dia seguinte, o próprio Cavallo - àquela altura o ministro
mais importante do governo Menem - iria tomar café- damanhã comigo para
esclarecer que tudo fora um equívoco. E assim foi feito. O fato, porém, é que, até o
último momento, houve dúvida quanto à abrangência do Mercosul, embora o Brasil
nunca tenha hesitado:
a integração deveria incluir o Uruguai e o Paraguai. (O episódio me preocupou
610
a ponto de, em seguida, visitar o Presidente Luís Alberto Lacalle na estância
Anchorena, residência oficial de verão dos presidentes do Uruguai às margens do
rio da Prata, próximo a Colónia dei Sacramento, para expressar-lhe ao vivo a
disposição do Brasil quanto a seu país.
Também tranqüilizei o governo paraguaio.) Mais ainda, durante todo o meu governo,
esforçamo-nos para estender a integração a toda a América do Sul.
Este foi um dos pilares de minha política externa: consolidar nossa presença na
América do Sul, sem deixar de reconhecer a importância do México como parte da
América Latina e sua natural e poderosa influência na América Central. Quanto
mais fortalecêssemos nossos vínculos latinoamericanos, mais poderíamos negociar
vantajosamente com os EUA e o Canadá na Alça.
Ao se aproximar o final do mandato do Presidente Itamar, eu já eleito Presidente, em
dezembro de 1994, no mesmo mês da reunião de Ouro Preto em que se consolidou
o Mercosul, os norte-americanos convocaram uma reunião dos chefes de governo
do Hemisfério, em Miami. O Presidente Itamar, sempre generoso comigo, pediu-me
para que também eu estivesse presente. Embora fosse um tanto exótico o Brasil se
apresentar com dois presidentes à mesa, tanto o governo americano como o
brasileiro assim quiseram. E foi o que ocorreu. Lá chegando, tive uma surpresa com
a apresentação do protocolo, em seguida aprovado, de criação da Alca. Ele fora
negociado pelo Itamaraty e dele tomei conhecimento naquele instante. Pareceu-me
que tampouco o Presidente Itamar estivesse muito bem informado do tema. Fora
uma iniciativa sugerida pelo VicePresidente norte- americano Al Gore em visita ao
México e encampada por Bill Clinton. No Brasil o tratamento da questão fora
burocrático. Recordo que pronunciei, em Miami, pequeno discurso de improviso
ponderando que a data fixada para a conclusão das negociações da Alça, 2005,
parecia irrealista. Precisaríamos de mais tempo para ajustar os interesses de nossa
produção às regras da competição livre.
Não obstante, estavam claros os sinais dos novos tempos. Não haveria como
escapar da grande questão: teríamos de nos integrar à economia global. Restava
saber de que modo, até que ponto e com quais parceiros.
O chanceler da segunda fase do governo Itamar, que no governo Lula passaria uma
vez mais a dirigir nossa diplomacia, Celso Amorim, iniciara pressão para o Brasil
obter uma cadeira no Conselho de Segurança.
611
As uvas na ocasião ainda não tinham amadurecido por completo quando
eu concluía este livro. A questão central, contudo, se pusera: qual será o grau de
influência do Brasil no plano global? Seremos reconhecidos como "potência
regional"? Que implicações isso acarreta? Que responsabilidades estamos
dispostos a assumir e com que meios contamos para fazer frente a nossas eventuais
ambições no plano internacional?
Uma única resposta não cabia: a de continuarmos ensimesmados, olhando com
desconfiança um mundo em que outros países disputavam com todo ímpeto
espaço, mercados e poder.
De novo, sem exclusivismos, devemos olhar o entorno, manter boas relações com o
Norte das Américas e visar uma presença global.
Portanto, também são importantes nossas relações com a Europa Ocidental e a
Ásia, sobretudo a China, se possível reavivando os laços históricos com o Japão
visando novos investimentos. E precisamos de mais comércio, abrindo novas frentes
com a índia, a Malásia e a Indonésia e reforçando laços com o cone sul da África -
Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul. Como os recursos são escassos, é
preciso realizar escolhas e dar prioridade às ações diplomáticas, tendo em vista os
objetivos e variando de parceiros conforme o tema e as circunstâncias. Assim,
o Oriente Médio, que fora importante nos governos militares, perdia relevância,
dado o grau de conflito que se estabeleceu na região e nossa falta de meios para
intervir construtivamente. A China ganhava primazia, mesmo em comparação com o
Japão, e o eixo ocidental continuava sendo nossa natural casa de acolhida.
Queiramos ou não, somos parte do Ocidente, mesmo que na condição de "Extremo
Ocidente", com as vantagens e desvantagens que isso acarreta.
O roteiro de minhas viagens internacionais e os convites para que dignitários de
outros países nos visitassem seguiram as prioridades assinaladas.
Da renúncia às armas nucleares ao Protocolo de Kyoto
A visão de "autonomia pela participação" estendeu-se também aos
temas conflituosos da época da guerra fria, que nos isolavam do mundo.
Ainda como chanceler, eu ajudara a aprovar no Congresso regras para o
Brasil respeitar os direitos de propriedade intelectual
internacionalmente
612
aceitos, no chamado acordo TRIPS, de 1994.3 Tema controverso, pois havia quem
achasse que melhor seria não haver tais regras, porque sem elas poderíamos
copiar livremente patentes, em especial no caso de medicamentos e softwares. O
fato, porém, é que o Brasil já tinha condições de produzir know-how, quem
produzisse teria vantagens e interesse em patenteá- los, e, acima de tudo, nada
justificaria ficarmos, como no passado, à margem das regras e da
respeitabilidade internacionais. Mais ainda, pela lei de patentes aprovada
pelo Congresso, não nos submetemos às restrições que os
produtores multinacionais queriam impor. Tanto é que, anos mais tarde, na
reunião que lançou uma nova rodada de negociações comerciais na OMC em Doha,
no emirado de Qatar, pudemos salvaguardar o princípio de que a saúde do povo
vale mais que o lucro das farmacêuticas multinacionais e as ameaçamos com a
quebra de patentes, obrigando-as a reduzirem drasticamente o preço dos
medicamentos para o combate à aids.
Durante todo meu governo levamos adiante a postura de aggiornamento de nossa
posição na dinâmica dos acordos multinacionais, contando sempre com a
competência dos chanceleres Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer e com a
dedicação dos diplomatas brasileiros. É de destacar o papel positivo de meus
assessores diplomáticos no Palácio do Planalto e dos que colaboravam com eles.
Já me referi ao embaixador Gelson Fonseca.
Sucedendo-o, contei com a firmeza do embaixador Eduardo Santos, bem como dos
auxiliares diretos de ambos, que mencionei no Capítulo 4. Quantas vezes, como por
exemplo no apoio que prestaram ao ministro Lafer durante a tentativa de derrubada
do Presidente venezuelano Hugo Chávez, em abril de 2002, foram a habilidade, a
competência e a coragem de Eduardo Santos e de seus colaboradores que
permitiram expressar melhor meus pontos de vista, mesmo quando as cautelas
burocráticas pendiam para outro lado.
O caso paradigmático de mudança de linha em relação aos acordos internacionais
terá sido, sem dúvida, o adesão do Brasil ao TNP. Trinta anos após sua assinatura,
o governo brasileiro, por intermédio do chanceler Lampreia, aderiu a suas normas e
o Congresso, tempos depois, ratificou-o.
Nota: 3 Iniciais em inglês do Acordo sobre Aspectos Relacionados ao Comércio dos
Direitos de Propriedade Intelectual. Fim da nota.
613
Desde o governo Sarney havíamos posto fim às pretensões, felizmente
nunca materializadas, de fabricar a bomba atômica. A Constituição de 1988 veda
expressamente qualquer ação nesse sentido.
Não obstante, não assinávamos o TNP sob a alegação histórica, que tem seu
fundamento, de que ele é injusto: embora vede a posse de armas atómicas aos
signatários, alude apenas à futura redução do arsenal nuclear dos países que dele
dispõem, sem fixar prazos. Fica assim estabelecida uma assimetria entre os que
podem e os que não podem dispor de artefatos nucleares. Não abrimos mão de
continuar combatendo essa assimetria, mas não havia mais por que, em um mundo
pós-guerra fria e no qual não temos inimigos militares, ficarmos sujeitos a toda
sorte de restrições da comunidade internacional e, além do mais,
sermos incoerentes com a Constituição. Mais ainda, com a assinatura
desse tratado, emitíamos um sinal claro de que reforçaríamos nossa presença
no mundo pelo aprimoramento continuado de nossas credenciais
tecnológicas, econômicas e sociais, e não perseguindo a posse de um arsenal
nuclear.
O Brasil já havia concluído com a Argentina um acordo de inspeção recíproca das
instalações atómicas, que fora reconhecido pela Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA) e teve início no período em que estive à frente do Itamaraty. Graças
a ele pudemos manter nossas instalações nucleares tanto em Iperó (SP), onde
desenvolvemos tecnologia própria de enriquecimento de urânio, como em Resende,
onde esta tecnologia nos permite produzir material para o abastecimento das
duas usinas de produção de energia elétrica de Angra dos Reis (RJ), sem suspeitas
de violação do banimento de armas atómicas na América Latina previsto no Tratado
de Tlatelolco, de 1967, de que somos parte. Não havia por que pagar o alto preço
da desconfiança internacional pela negativa de firmar o TNP, sem qualquer
benefício que não fosse a defesa retórica de princípios. Outra não foi nossa conduta
no caso do domínio da tecnologia de foguetes, tecnologia dita "dual", ou de duplo
uso, pois os foguetes tanto podem transportar satélites, como fazemos
em cooperação com a China, como carregar armamentos.
Nos primeiros meses de meu primeiro mandato, o brigadeiro Mauro Gandra, ministro
da Aeronáutica, me informou que as pesquisas desenvolvidas no âmbito da FAB
tinham levado o país a dominar a tecnologia do lançamento de foguetes, incluindo
os complexos sistemas de orientação dos veículos.
614
Naturalmente, manifestei agrado pelo feito. Meu governo, porém,
estava firme em sua política de incorporação do Brasil às melhores práticas
internacionais. Disse ao brigadeiro que, diante do feito, deveríamos anunciar nossa
adesão ao mecanismo internacional regulador do uso dessa tecnologia para fins
exclusivamente pacíficos, o Missile Technology Control Regime (MTCR). Caso
contrário, o país sofreria discriminações e restrições em diferentes fóruns. Além
de tudo, tratava-se de uma questão delicada por causa dos nossos vizinhos e
parceiros argentinos. A Argentina havia desmantelado seu Projeto Condor, de
pesquisa sobre mísseis, em decorrência da distensão de parte a parte iniciada nos
governos Alfonsín e Sarney na área nuclear. O Brasil dispor de tal tecnologia sem
aderir aos controles internacionais desequilibraria a balança e certamente
provocaria reações desfavoráveis no governo de Buenos Aires.
Tempos depois, a 18 de agosto de 1995, aproveitei para fazer o anúncio oficial de
que o Brasil dispunha dessa tecnologia, em discurso pronunciado na solenidade de
lançamento do avião EMB-145, na sede da Embraer, em São José dos Campos.
Anunciei, no mesmo ato, nossa adesão ao MTCR. Curiosamente, a imprensa
brasileira não deu atenção a isso, só despertando para o fato depois que ele
repercutiu na mídia americana.
Com alguma freqüência, nós, brasileiros, somos desatentos a essas questões
estratégicas. Nosso domínio em tal área tecnológica, porém, ainda é relativo: o
Veículo Lançador de Satélites (VLS), principal parte do programa, sofreu vários
fracassos, um deles resultando em trágico acidente em 2003.
Do mesmo modo como aderimos progressivamente aos aspectos da
ordem internacional que visam assegurar a paz mundial, atuamos e cobramos
das grandes potências que assumam suas responsabilidades em matérias
que afetem o bem-estar coletivo dos povos. Foi assim em Kyoto, no Japão,
e, posteriormente, Haia, na Holanda, quando foi proposto o Protocolo
do mecanismo de desenvolvimento limpo para limitar a emissão de gases
que provocam o aquecimento do planeta, que mencionei no Capítulo 8. O Protocolo
de Kyoto teve participação decisiva do Brasil desde a proposição inicial até os
ajustes finais. As ações do Itamaraty e do Ministério do Meio Ambiente, somadas à
contribuição de técnicos, como Gilvan Meira - ex-presidente da Agência Espacial
Brasileira (AEB), na época secretário de Tecnologia do Ministério de Ciência e
Tecnologia -, e à ação pessoal dos ministros de Ciência e Tecnologia, José
Israel Vargas,
615
nas negociações de Kyoto, e Ronaldo Sardenberg, em Amsterdã,
foram fundamentais. Empenhei-me de perto para o êxito dessas tratativas, seguindo
o curso das negociações junto aos ministros e interagindo pelo telefone com o
Presidente Bill Clinton.
O Brasil não se empenhou em respeitar a regulação internacional apenas em
aspectos do núcleo duro do jogo de poder. Também apoiamos ativamente os
esforços para a definição e consecução das chamadas "Metas do Milénio", que
prescrevem objetivos sociais a serem cumpridos pelos países-membros da ONU e
definem indicadores de desempenho e metodologias para avaliá-los, conforme o
descrito no Capítulo 8. Em movimento paralelo, prestigiamos as organizações da
sociedade civil que têm dado sustentação aos esforços da ONU na revalorização de
temas essenciais, como a luta contra o racismo, a defesa do meio ambiente,
a igualdade de género ou o direito à moradia. Pela primeira vez o Itamaraty,
modificando a posição tradicional de isolar-se das ONGs internacionais por
considerá-las críticas "do país", quando na verdade exprimiam críticas às injustiças
existentes entre nós, passou a contar com a colaboração de relatórios apresentados
por estas organizações para sustentar o ponto de vista brasileiro. Foi assim desde o
Congresso do Cairo, sobre população e desenvolvimento, e continuou da mesma
forma nos encontros mundiais sobre racismo em Durban e meio ambiente
em Johanesburgo (ambos na África do Sul), questões ligadas à mulher em Pequim
(China), habitação e temas correlates em Istambul (Turquia) e outros mais. Durante
meu período como chanceler introduzi a prática de o Ministério das Relações
Exteriores ouvir segmentos da sociedade civil.
O Ministério convidou as centrais sindicais a participar de discussões na Fundação
Alexandre de Gusmão, ligada ao Itamaraty, e empresários formaram parte de um
conselho consultivo para a discussão da política comercial.
Apoiamos firmemente, com o empenho do ministro José Gregori, a formação do
Tribunal Penal Internacional de Roma, de jurisdição supranacional e extraordinário
significado, que julga infrações para punir os culpados por violações sistemáticas
dos direitos humanos e crimes contra a humanidade depois de esgotados os
recursos domésticos.
Esses poucos exemplos mostram que sacudimos a poeira de uma predisposição
arcaica à não-participação e à não-submissão às regras da convivência
internacional, estratégia que havia sido elaborada com requintes
616
de sofisticação intelectual nos governos do período autoritário para nos defendermos
dos efeitos da guerra fria e que permaneceu insepulta por alguns anos mais. Já era
mais do que tempo de o governo brasileiro abrirse ao mundo, seguindo, de resto, os
passos de sua população, que passou a ver no exterior mais oportunidades do que
riscos.
A utilidade dos conselhos de Helmut Kohl
Foi, todavia, no campo económico e no dos esforços para o aprimoramento da
ordem internacional que jogamos com mais força e onde se evidenciaram as
mudanças ocasionadas pela política de participação. Com ela, exercemos nossa
soberania sem alarde e recuperamos o prestígio internacional do Brasil. No âmbito
do Mercosul e da Alca, especialmente, o empenho foi grande. Para ilustrar, começo
aludindo a um diálogo que tive, logo no início do meu mandato, com o
Chanceler (Primeiro-Ministro) da Alemanha, Helmut Kohl, durante almoço
realizado em seu próprio gabinete - por sinal de proporções modestas -, em
Bonn, na ocasião ainda a capital do país. Compareceram, além de mim, o chanceler
Lampreia, nosso embaixador na Alemanha, Roberto Abdenur, e o embaixador
Gelson Fonseca. Dois assessores do Ministério do Exterior ligados à área da
América Latina acompanhavam o governante alemão.
Fomos à Alemanha para reforçar laços econômicos e comerciais, objetivo da
apresentação que fiz de nossa economia na poderosa associação dos industriais.
Queríamos também, como conseguimos, participar junto com a Alemanha de certos
projetos de defesa do meio ambiente.
Kohl só fala alemão, mas a conversa fluiu muito bem porque a intérprete do
Chanceler era extremamente desenvolta em português. Kohl contou-nos o
constrangimento que passara em sua adolescência quando, vivendo na zona de
ocupação francesa, posteriormente à derrota da Alemanha na Segunda Guerra
Mundial, era obrigado a sair das calçadas para dar passagem caso cruzasse com
um militar francês. Disse que um parente próximo fora morto na guerra e que ele se
educara na resistência, senão no ódio, aos franceses, rivais seculares dos alemães.
Até que compreendeu que, se algo não fosse feito para pôr termo àquele estado de
coisas, os dois países terminariam em nova guerra. Pouco a pouco foi sendo
conquistado, contou ele, para a idéia do que viria a ser mais tarde a União Europeia:
617
- A aliança da Alemanha com a França, vocês sabem, foi fundamental para criarmos
a Europa - comentou o chanceler. - Hoje estamos unidos. Mas a Alemanha é o país
mais populoso e o economicamente mais forte. Precisou ser também o mais
generoso. Nunca permitiremos, entretanto, transformar a Europa em um bastião
isolado do mundo, sem livre comércio.
Aludia, naturalmente, às restrições francesas às importações agrícolas.
Em dado momento olhou para mim e disse:
- Vocês, lá no Brasil, também são mais poderosos e mais ricos que seus vizinhos.
Têm que se unir à Argentina e devem ser generosos.
Não só com ela, estava subentendido, mas com os demais parceiros.
Chamou-me a atenção, no chanceler alemão, como o raciocínio político sempre se
sobrepunha ao económico. Era genuíno seu interesse sobre o Mercosul, seus
mecanismos, seus progressos, suas possibilidades. Àquela altura, Kohl refletia o
interesse dos europeus pela associação entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
E não só, talvez nem principalmente, pelo aspecto económico. Era por tratar-se de
uma instituição política agrupando vários países, algo que a Europa fizera avançar
extraordinariamente - e, também, pela oportunidade que um relacionamento entre
as duas entidades oferecia como um contraponto à poderosa influência dos EUA na
América Latina. Com base em sua própria experiência, os europeus perceberam
imediatamente a importância política do Mercosul, ao passo que nós próprios, aqui
na América Latina, abordamos a instituição o tempo todo apenas como um
mecanismo de comércio. Não tivemos a visão de grandeza dos europeus, e creio
que era para isso que Kohl tentava chamar minha atenção.
Esse diálogo voltou freqüentemente ao meu espírito quando discutia os problemas
do Mercosul. Procurei exercer nossa liderança neste âmbito sem querer obter
vantagens comerciais na base do "olho-por-olho, dentepor-dente". E sempre com a
perspectiva de construir no Cone Sul um regionalismo aberto que facilitasse a nossa
integração na América do Sul e no mundo. Tanto assim que, ao mesmo tempo em
que dávamos ênfase ao Mercosul, inclusive à necessidade de construirmos
mecanismos políticos que possibilitassem ações comuns de seus países-membros
no cenário internacional, buscamos ampliar os acordos de livre comércio entre
o Mercosul e terceiros países. Dentro da região, assinaram- se os Acordos
618
com Chile e Bolívia, e mais tarde deixamos bem encaminhado, graças ao trabalho
competente de Sérgio Amaral à frente do Ministério do Desenvolvimento, o acordo
com o Peru, integrante da Comunidade Andina.
O problema é que, se é verdade que a Alemanha é mais próspera do que seus
vizinhos e que quatro ou cinco deles juntos puderam ser generosos e criar os
fundos compensatórios que beneficiaram os parceiros menos ricos (de início,
Espanha e Portugal, logo seguidos pela Grécia, mais tarde a Irlanda e,
posteriormente, países empobrecidos do Leste Europeu), tal não é o caso do
Mercosul. Existem assimetrias, de fato, mas evidentemente não há abundância de
recursos que permita a transferência de uns para outros. Por este motivo, apesar
das intenções, não conseguimos, até o final de meu governo e os primeiros anos da
gestão de meu sucessor, ultrapassar os limites de acordos comerciais e de
propostas de tarifas comuns, quase sempre sujeitas a "perfurações", isto é, a
permissão para exceções que terminam por desmoralizar todo o processo
integrador. Faltou-nos a disposição genuína, demonstrada pelos europeus, de criar
uma comissão supranacional, com maiores poderes do que cada Estado nacional e
com capacidade para resolver controvérsias e estipular regras. Resultado: a cada
novo choque de interesses comerciais ou desajuste de políticas macroeconômicas,
como, por exemplo, mudanças súbitas nos regimes cambiais, instaura-se a crise e a
diplomacia presidencial volta à tona para colocar esparadrapos e evitar uma ruptura
maior. Faltou também o encorajamento da distribuição do processo produtivo no
espaço geográfico comum, e não houve a fusão, na escala que queríamos,
de capitais de empresários dos diversos países-membros do Mercosul. Assim, a
despeito dos avanços no intercâmbio comercial e da inegável relação mais próxima
entre os membros da associação e mesmo da maior capacidade de entendimento
recíproco entre as populações dos países da região, os progressos políticos do
Mercosul foram modestos, ficando muito aquém do potencial. Não se deve
esquecer, porém - e o lembrete vale como nota de esperança -, que a integração
européia levou 50 anos para consumar-se.
Além disso, cabe ressaltar a importância da inclusão da "cláusula democrática", que
obriga os países-membros do Mercosul a manterem o Estado de direito e as
práticas democráticas. A cláusula ajudou em mais de uma oportunidade a evitar
desdobramentos autoritários.
619
A integração física da América do Sul - e a Alca
Tendo em conta essas dificuldades, nossos esforços integradores não se poderiam
limitar a manter vivo e ativo o Mercosul. A integração física de nosso espaço tornou-
se um dos objetivos das propostas de planejamento que levamos à discussão dos
presidentes dos países da América do Sul. Adotamos um novo conceito de
planejamento, defendido pelo empresário Eliezer Batista, experiente conselheiro de
governos, que, como expus no capítulo anterior, substituía a política
de fortalecimento de "pólos" de desenvolvimento pela criação de "eixos"
de desenvolvimento, movidos por uma visão mais favorável à desconcentração do
progresso social e económico. Projetos estratégicos com esse fim foram incluídos
nos programas de investimento em meus dois mandatos, Deslancharam assim,
entre outras iniciativas, o gasoduto Brasil-Bolívia, a integração energética com a
Argentina, a rodovia BR-173 entre Manaus e a fronteira com a Venezuela e a linha
de transmissão da hidrelétrica venezuelana de Guri, uma das maiores do mundo,
trazendo energia do país vizinho para a região amazônica, iniciada no segundo
mandato do Presidente Rafael Caldera (1994- 1999) e concluída sob o governo de
seu sucessor, Hugo Chávez.
Em agosto de 2000, convocamos em Brasília a primeira reunião da História juntando
todos os presidentes da América do Sul, a que se seguiu outra, em Guaiaquil, no
Equador, em 2001. Naquela ocasião, deu-se início à chamada Iniciativa para a
Integração da Infra- estrutura Regional Sul-Americana, conhecida pela sigla URSA.
Com o apoio do BID, nos anos seguintes, os governos dos países sul-americanos
realizaram um amplo estudo das necessidades e possibilidades de integração física
da região, selecionado um conjunto de projetos estratégicos para
o desenvolvimento do continente.
Essa complementação de esforços para a construção de um "espaço sul-americano"
tem a ver com a integração regional em matéria de energia, transportes e
telecomunicações. Politicamente, entretanto, pareceu a alguns países,
especialmente ao México, que a iniciativa poderia significar o isolamento das nações
sul-americanas, sob liderança brasileira, do resto da América Latina mais próxima
aos EUA.
Nunca foi essa a intenção. Da mesma forma como o México lançou um programa
que se estendia de seu território e abrangia toda aAmérica
620
Central, chamado "De Puebla ao Panamá" - porque as ligações de infraestrutura se
fazem com os países geograficamente próximos --, reuníamos os vizinhos da
América do Sul. Nada além disso. Graças a nossa política claramente não-
hegemônica e a meu relacionamento próximo com os mexicanos (não só com o
Presidente Ernesto Zedillo, que governou de 1994 a 2000 e de quem sou amigo,
mas também com seu sucessor, Vicente Fox, e com dezenas de personalidades do
país), expliquei do que se tratava e convidei o chanceler Jorge Castaneda, cientista
social e antigo colega de lides intelectuais, para participar da reunião na qualidade
de observador. A semente lançada no encontro de Brasília prosperou sem
desconfianças.
Ao lado de marcar sem arrogância a presença brasileira na região, pois parti da
convicção de que liderança se exerce sem proclamá-la, procurei, com a ajuda do
ministro Lampreia e seus diplomatas, conduzir a bom termo as negociações da
Alca. Em encontro preparatório a que compareci, realizado em Belo Horizonte, ainda
em 1997, reunindo os ministros de Relações Exteriores e de Comércio do
Hemisfério, presente a embaixadora Charlene Barshefsky, negociadora-chefe de
comércio dos EUA (espécie de ministra do Comércio Exterior), asseguramos que
o acordo de livre comércio obedeceria ao princípio do single undertaking, isto é, um
único compromisso abrangente que só seria firmado se todas as questões
pertinentes estivessem negociadas e acertadas previamente. Não seria possível
negociar apenas partes do acordo, como serviços, ou comércio ou indústria, nem
fatiar as negociações de cada uma dessas partes. De posse desse valioso
instrumento negociador, que evitava a imposição do interesse de um país sobre os
outros, compareci à reunião de cúpula de chefes de Estado do Hemisfério em
Quebec, no Canadá, em 2001, preparado para dizer em que condições entraríamos
na Alca.
No encontro com Bush,sua preocupação era Chávez
Antes da reunião de Québec, tive o primeiro encontro com o novo Presidente dos
EUA, George W. Bush. Ele me havia telefonado antes, dizendose recomendado por
seu pai e pelo Presidente Clinton a falar comigo, e se mostrou aberto a manter
contatos diretos. Eu tivera vários encontros com
621
o pai, George H. Bush, Presidente dos EUA entre 1989 e 1993. O primeiro creio ter
sido durante uma reunião da OEA, em Washington, a que compareci como senador,
e Bush pai era Vice-Presidente de Ronald Reagan (1981-1989). Na mesma
condição, de Vice- Presidente, ele visitara o Brasil e o Congresso, onde novamente
conversamos. Bush pai voltou ao Brasil outras vezes, uma delas quando eu
ocupava a Presidência e ele havia deixado a Casa Branca. A 21 de novembro de
1996, tivemos um almoço no Alvorada. Bush pai - um homem sofisticado, agradável
e com vasta experiência, pois antes de ser Vice- Presidente e Presidente tinha sido
deputado, embaixador em Pequim e diretor da CIA - se fez acompanhar da nora,
Columba, casada com seu filho Jeb, governador da Flórida. Estiveram também
presentes o embaixador americano Melvin Levitsky e diplomatas brasileiros.
Às vésperas de me receber na Casa Branca, o Presidente Bush dissera à imprensa
que gostaria de olhar-me "olho no olho", como é de seu estilo.
Encontrei-o em seu gabinete de trabalho, o Oval Office, local que conhecia do
tempo de Clinton. Ele me esperava em pé, cumprimentou-me e mostrou-se muito
afável, embora sua linguagem corporal - a forma um tanto rígida de movimentar-se
e de andar, e algo nos olhos, talvez um leve estrabismo - , lhe confiram, à primeira
impressão, um ar de certa arrogância, de certo distanciamento. A conversa revelou
um homem diferente: informal, risonho, amigável. Quando a imprensa entrou
para nos fotografar, ao fim da reunião, sentados lado a lado em duas poltronas, tirei
os óculos e mirei fixamente nele, como a mostrar que a conversa fora franca e eu
não tinha nada a esconder.
Bush, àquela altura, não tinha muitas informações sobre o Brasil. Sabia mais sobre o
tema de sua obsessão, energia. Estava bastante ciente da questão quanto à
Venezuela e ao México, grandes produtores de petróleo, mas parece ter-se
surpreendido e ficou agradado quando lhe disse que nós éramos praticamente auto-
suficientes. Chegou a comentar comigo, também, sua posição favorável à
controvertida exploração de petróleo no estado norte- americano do Alasca, espécie
de santuário da vida selvagem, apesar dos efeitos sobre o meio ambiente.
- O mundo precisa de um motor - ressaltou. E esse motor, os EUA,
consome petróleo.
622
Mostrou-se um tanto ansioso com a reunião de Québec. Seria seu
début internacional e tinha preocupações de que o presidente da Venezuela
lhe pudesse ser hostil. Disse-lhe que mantinha boas relações com Hugo Chávez e
que não acreditava que ele tivesse tal propósito. Em todo caso, acrescentei, eu teria
um encontro em Brasília com o Presidente Chávez e lhe faria a ponderação.
Cumpri o prometido. Expus a Chávez a opinião de que, se ele fosse cortês,
desarmaria o interlocutor, mesmo porque não acreditava que o Presidente da
Venezuela viesse a ser agressivo com o Presidente norteamericano, Chávez
respondeu-me, sorrindo matreiro:
-Você me conhece. Eu sou ardoroso. Quando, nas reuniões da Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (Opep), começo a me entusiasmar, o sultão de
Qatar, que é meu amigo, tem uma combinação comigo: olha para mim com as mãos
postas perto do rosto, em forma de oração, e eu modero minha fala, antes de
proclamar a República nas monarquias árabes.
E acrescentou:
-Vamos fazer o mesmo em Québec.
Na cúpula hemisférica, coube-me fazer o discurso de abertura. Transmiti uma
mensagem clara e firme: "A Alca será bem-vinda se a sua criação for um passo
para dar acesso aos mercados mais dinâmicos; se efetivamente for caminho para
regras partilhadas sobre anti- dumping, se reduzir as barreiras não-tarifárias; se
evitar a distorção protecionista das regras sanitárias; se, ao proteger a propriedade
intelectual, vier a promover, ao mesmo tempo, a capacidade tecnológica de nosso
povo. E, ademais, se for além da Rodada Uruguai [de negociações comerciais
internacionais] e corrigir as assimetrias então cristalizadas, sobretudo na
área agrícola."
Quando terminei o discurso sob os aplausos dos mais de mil presentes, Hugo
Chávez saltou da fila em que se encontrava atrás de mim, aproximou-se da cadeira
para onde eu voltava para sentar-me e, com as mãos em sentido de oração, me
saudou efusivamente. Nós, latino- americanos, podemos até não ser bons
negociadores, mas não perdemos o senso de humor. E Chávez, naturalmente, não
fez qualquer desaire ao Presidente americano. Em almoço informal, quando
expunha ardorosamente suas
623
reivindicações frente aos EUA, o Presidente uruguaio Jorge Batlle, homem de
espírito e também com sentido de humor, disse, dirigindo-se a Bush:
- Presidente, as reivindicações do Uruguai são poucas. Queremos apenas ter nos
EUA tantos açougues quantos os postos de gasolina que a Venezuela tem.
Todos riram, dada a grande presença da gasolina venezuelana no
mercado americano e ao fato de a carne ser o maior produto de exportação
do Uruguai.
A reação do Presidente Bush a seus colegas hemisféricos, mal iniciado seu
mandato, pelo menos durante aqueles dois dias em Quebec, foi a de um homem
simples, pouco pomposo, que queria entender um mundo que lhe era estranho. Nos
dois anos em que nos relacionamos como presidentes, falamos pelo telefone
algumas vezes. Uma delas foi para ajudarlhe a entender a política na Argentina,
logo depois da posse do Presidente Eduardo Duhalde, no começo de 2002.4
Sempre tratei de valorizar nossos vizinhos, àquela época considerados,
notadamente pelo FMI, como parceiros que não cumpriam os acordos. Bush,
entretanto, não se interessou tanto pelas observações que lhe adiantei pelo telefone
sobre a tradição dos caudillos portenhos ou sobre os vezos peronistas.
Também não quis entrar em detalhes da situação económica, que lhe esbocei
em linhas gerais. Bem a sua moda texana me perguntou:
- Mas, olhando olho no olho, como é ele? How is theguy? ["como é o cara?"] Dá para
confiar nele?
Não sei julgar as pessoas dessa exata forma, por esses critérios.
Respondi dizendo que Duhalde era um político experiente, com tradição, e que
certamente faria um grande esforço para tirar a Argentina da crise.
Nota: 4 Duhalde foi eleito Presidente pelo Congresso argentino no dia 1° de janeiro de
2002 para governar até 10 de dezembro de 2003, completando o mandato do
Presidente Fernando de La Rua, eleito por uma coligação capitaneada pela
tradicional União Cívica Radical, de centro, mas aliada a correntes de esquerda, e
que renunciara após uma série de protestos populares contra sua política
econômica. A Argentina viveu dias dificílimos, com três governos interinos e a
discussão sobre a antecipação ou não das eleições diretas do ano seguinte, até que
se chegou à escolha pelo Congresso de Duhalde, político cuja longa trajetória no
peronismo incluiu ter sido senador, governador da província de Buenos Aires e
Vice-Presidente de Menem. Fim da nota.
624
É assim sua percepção política, muito direta, vendo mais as pessoas do que as
circunstâncias. Também eu telefonei para ele em algumas ocasiões, como quando
expressei a solidariedade dos brasileiros após o pavoroso atentado de 11 de
setembro de 2001. Elogiei seu gesto de visitar uma mesquita em Washington, pois
não havia que confundir terrorismo com a religião muçulmana.5
Eu me lembrava do espanto de Bush quando lhe falei, na visita a Washington, do
grande número de brasileiros de origem árabe, e cabia portanto recordar naquele
instante nossa visão de tolerância cultural e religiosa. Naquela mesma conversa
Bush se mostrou surpreso quando lhe disse que quase metade da população
brasileira era de "não-brancos",
- Mas há tantos negros no Brasil? - perguntou, no que foi atalhado pela assessora
de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, que lhe disse que a maior população
negra fora da África provavelmente estaria no Brasil.
Nada disso foi dito com menoscabo. É apenas o modo de sentir de um homem que
até aquela época vivia somente os problemas de sua gente e de seu país e que
teve de aprender depressa como lidar com o mundo.
Àquela altura a despreocupação do Presidente Bush com os assuntos da América
Latina era perceptível. (A obsessão pelas questões energéticas logo perderia
primazia para o Oriente Médio entre suas prioridades.) A tal ponto que antes de
finalizar nosso encontro cheguei a sugerir-lhe o que me fora proposto por nosso
embaixador em Washington, Rubens Barbosa:
que houvesse uma pauta mais aberta de negociações diretas entre o Brasil e os
EUA. Afinal, co-presidiríamos a Alca, o que nos dava uma boa oportunidade para
uma revisão positiva do relacionamento bilateral. As palavras só não caíram no
vazio porque Condoleezza Rice disse que a questão precisava ser mais bem
ponderada...
Apesar de nunca termos sido próximos, as relações de Bush para comigo e para
com o Brasil foram discretas e corretas.
Nota: 5 Após o 11 de setembro, o Brasil foi o primeiro país a propor na OEA que se
aplicasse aos EUA o Tratado do Rio de Janeiro, de 1940, que considera atacadas
todas as nações do hemisfério quando uma delas é agredida. A sugestão me foi
trazida pelo chanceler Celso Lafer e pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa,
secretário-geral do Itamaraty, por motivos óbvios: essa forma de expressar
solidariedade dava o enquadramento jurídico para qualquer ato ou reação. Fim da nota.
625
Um fim de semana com Bili Clinton em Camp David
Voltando ao tema do Mercosul e da AJca, também o Presidente Bill Clinton (1993-
2001) havia tido reações construtivas em relação a essas matérias. Desde nosso
primeiro encontro como presidentes, que coincidiu com a tragédia do atentado a
bomba de Oklahoma City, em abril de 1995, recordo-me bem, Clinton demonstrou
simpatia para comigo e para com o Brasil. Tão logo ficamos sós, sentados às
mesmas poltronas já referidas quando da visita a Bush na Casa Branca, perguntou-
me, com a cabeça estendida no encosto:
- O que eu posso fazer para ajudar você e o Brasil?
E assim agiu sempre. Quando visitou o país em outubro de 1997, deparamo-nos
com uma declaração de Madeleine Albright, secretária de Estado, cheia de
restrições à nossa estratégia de fortalecer o Mercosul enquanto se fazia a
negociação da Alca. Não queríamos desfazer um para aderir à outra, até porque,
como disse apropriadamente o ministro Lafer, o Mercosul é nosso destino, ao passo
que a Alca é uma opção. Tivemos um jantar de gala no Palácio da Alvorada.
Depois, durante sarau que promovemos especialmente, Clinton, que já havia
encantado as centenas de pessoas que o foram saudar no Itamaraty (a imprensa
fizera muita carga sobre o excesso de segurança dos presidentes americanos e ele
não se fez de rogado, saltando as linhas de proteção para cumprimentar
os convidados), entusiasmou-se com a cantora baiana Virgínia Rodrigues.
(Ele continuou fã de Virgínia. Ainda em 2005, quando o encontraria em uma de
minhas idas para compromissos nos EUA, fui portador de um CD que a cantora
enviou ao ex-Presidente.)
Terminada a apresentação, pediu-me para conhecer os aposentos particulares da
Presidência,6 como ele nos mostrara os da Casa Branca.
Nota: 6 Também o presidente da China, Jiang Zemin, que muito me
impressionou favoravelmente durante sua visita ao Brasil, em abril de 2001, ao
final do banquete que lhe foi oferecido no Itamaraty manifestou curiosidade em
conhecer o palácio onde moram os presidentes brasileiros. Levei-o até lá, de
madrugada, quase sem segurança e certamente sem garçons, o que fez com que
Ruth preparasse um chá que ela e eu servimos ao Presidente e um pequeno grupo
de assessores. Tivemos longa e proveitosa conversa, inclusive a respeito de uma
fábrica da Embraer na China e da intensificação de nossas relações de comércio.
Fim da nota.
626
Quando estávamos nos aposentos presidenciais privados, com Ruth e Hillary, disse-lhe:
- Amanhã teremos uma conversa formal no Palácio do Planalto. Ao redor de uma
imensa mesa oval (hélas!), uma dezena de ministros e altos funcionários de um lado
e de outro e só nós dois "falando", melhor, perorando, e disso não resulta grande
coisa.
Propus, então, que substituíssemos a reunião por um longo diálogo só entre ambos.
Em seguida, faríamos algo breve com o grupo todo. Clinton imediatamente aceitou,
e a reunião foi muito significativa.
De fato, naquela conversa, além de termos discutido a situação política na
Argentina, pois o Presidente Menem estava sendo duramente atacado e havia
alegações de suborno envolvendo altos personagens de seu círculo, entrei de
chofre na questão do Mercosul. Mostrei-lhe que sem o Mercosul, a Alca
isoladamente não nos serviria sequer como ponto de partida para negociações. Dei-
lhe as razões econômicas e políticas.
Clinton compreendeu-as e me perguntou:
- Se eu, na entrevista de imprensa, manifestar minha concordância com o ponto de
vista brasileiro, isso ajuda?
- Claro que sim - respondi.
Clinton agiu de forma impecável. Nos jardins do Alvorada, o Presidente dos EUA
apoiou publicamente o ponto de vista brasileiro sobre a importância do Mercosul e
sua compatibilidade com a futura formação de uma área de livre comércio nas
Américas.
Em um fim de semana que Ruth e eu passamos em 1998, junto com
os embaixadores do Brasil em Washington, Paulo Tarso e Lúcia Flecha de Lima, na
casa de campo dos presidentes americanos, em Camp David, no estado de
Maryland, próximo à capital, tive uma conversa a sós com Clinton, em seu pequeno
gabinete com as paredes cheias de desenhos e retratos de Thomas Jefferson,
principal redator da Declaração de Independência dos EUA e terceiro presidente do
país (1801-1809). Camp David fica em área ondulada, em meio a um bosque de
grandes árvores. Os hóspedes oficiais e o Presidente hospedam-se em cabanas de
madeira confortáveis, com sala, dois quartos, um estúdio e demais instalações.
Há uma cabana central, a casa comum, contendo um salão, uma sala de estar
menor, mais aconchegante, e, subindo um degrau, a sala de jantar.
Contígua à sala de estar, há um pequeno, quase mínimo, gabinete onde
o Presidente
627
trabalha, e uma ampla sala de reuniões. Conversa marcante. Nela se revelava o
ser humano, culto e com visão da História, preocupado com os países mais pobres.
A certa altura disse-me:
- Quando nos aproximamos de um país, de uma nação, precisamos responder a
perguntas simples e básicas. Por exemplo: qual é seu maior temor?
Qual seu objetivo maior como nação? Alguns temem ser invadidos, outros, se
desintegrarem, outros as convulsões sociais. Ou então, têm vocação de grandeza,
que pode ser expansionista ou não, podem querer apenas deixar uma marca
civilizatória, e assim por diante.
Incitou-me a que o Brasil tivesse uma participação mais audaciosa na cena
internacional. No caso, queria maior envolvimento do nosso país na situação da
Colômbia, por causa das drogas e da guerrilha, e também do Oriente Médio.
Mantive minha posição: é cedo para um país com tantos problemas internos de
pobreza e desenvolvimento insuficiente, como o Brasil, aventurar-se por esses
mares bravios. Também procurei dissuadir Clinton, por considerar de justiça, de
incluir a Colômbia entre os países não-cooperativos na luta internacional contra as
drogas, na classificação anual publicada pelo governo americano. (Mais tarde,
já fora do governo, o ex-Presidente colombiano Ernesto Samper revelou-
se publicamente grato por minha postura em Camp David.) Mas a intenção
de Clinton era inequívoca, desejava parcerias confiáveis e sólidas.
Durante o jantar participaram também, além dos anfitriões Hillary e Bill Clinton, Ruth
e eu e o casal Flecha de Lima, o assessor de Clinton para assuntos de Segurança
Nacional, Samuel "Sandy" Berger e sua mulher, Susan, empresária de sucesso.
Enquanto Clinton bebia, como sempre, sucessivas latinhas de Coca-Cola light,
embeveceu-me o vasto conhecimento que Hillary demonstrou da situação da África,
seus diferentes países, regimes e problemas. Desfiava nomes de dirigentes, de
líderes oposicionistas e de figuras de destaque em vários países.
Talvez soubesse mais sobre a política africana do que qualquer um à mesa - mais
do que eu, certamente. Hillary, constatei uma vez mais, é uma mulher de marcante
personalidade, múltiplos interesses e permanente curiosidade intelectual. Não é por
acaso que, dois anos depois, se elegeria senadora pelo Bestado de Nova York.
Clinton, como disse, achava possível compatibilizar Mercosul e Alca. O Brasil,
entretanto, nunca enfrentou realmente a questão da Alca.
628
O empresariado se divide. Há os que já estão aptos à competição externa e a desejam.
Há os que, no setor industrial, sabem que as tarifas americanas deixam livres de
proteção cerca de 70% dos produtos importados pelo país e, portanto, nada
ganham ou perdem com a Alca, ou melhor, perdem sem ela na medida em que, em
lugar da Alca, multiplicam-se acordos bilaterais entre os EUA e os países
da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), que colocam em xeque as
vantagens comerciais que temos com muitos desses países. Além disso, dois
setores industriais importantes - o do suco de laranja e o siderúrgico - esbarram em
medidas protecionistas no mercado norte-americano: o suco em taxas ad hoc, ou
seja, criadas especificamente para barrá-lo e proteger os produtores
americanos, especialmente os da Flórida, e o setor siderúrgico em políticas anti-
dumpingde duvidoso embasamento técnico. Nossos agricultores são os que sofrem
as maiores restrições com as altas tarifas americanas. E há os que temem a
concorrência no setor de serviços, como se ela já não existisse.
No plano político, partes da esquerda, somadas à Igreja Católica e ao MST, não têm
dúvidas: para eles a Alca significa a anexação pura e simples dos interesses
brasileiros pelo imperialismo, como se vivêssemos antes de 1950. E mesmo no
espectro político mais à direita, há quem tema as conseqüências negativas do
acordo para os interesses nacionais. Como se não se tratasse de uma negociação
comercial e como se empresários e homens de governo fossem incapazes de
defender os interesses próprios e os do país, ou, pior ainda, de
sistematicamente atraiçoá-los. Esses setores chegaram a organizar um plebiscito
contra a Alca, junto com outro sobre o repúdio à dívida externa.
Posteriormente, já no governo Lula, substituiu-se a dificuldade crescente em dar
passos à frente por uma mudança de postura fundamental: tanto o governo
americano como o brasileiro resolveram colocar de lado o princípio do single
undertaking e permitiram que, de um cardápio de opções oferecido para diferentes
tipos de entendimento, os países selecionassem o que melhor lhes aprouvesse.
Resultado: os EUA se puseram a campo e vêm fazendo acordos setoriais com
todos os países, menos com os do Mercosul. Assinaram-se acordos com o Chile,
que lhe assegurou um tratado de livre comércio (em condições inaceitáveis
pelo Brasil), com a
629
Comunidade Andina e, finalmente, com a América Central e o Caribe (exceto Cuba).
Em conseqüência, teremos de competir com os EUA na América Latina
em condições desvantajosas, e a América Latina é responsável por boa parte de
nossas exportações de manufaturas. Sobra para nós fechar acordos também
bilaterais, como o que assinamos com o México no final de meu governo, o qual,
ainda que não abrangente, permitiu o bootn de exportações de veículos para o
mercado mexicano, que neste aspecto substituiu a Argentina, cuja crise levara à
diminuição drástica de compras de produtos brasileiros.
Vejo com preocupação a crescente desintegração econômica da América Latina e
até mesmo o possível aumento dos conflitos de visão política.
A onda eleitoral após os fortes processos de ajuste econômico dos anos 1990 tem
levado à formação de governos de tendência mais estatizante e protecionista,
erradamente rotulados de esquerdistas ou populistas. Não chegam a ser nem uma
coisa nem outra. São mais reativos, defensivos, dando sinais de que as sociedades
da região, com duas ou três exceções conhecidas, temem adotar,uma política mais
agressiva de integração à ordem mundial que possa ser proveitosa para os
interesses nacionais. Em alguns casos, dadas as fragilidades existentes, até se
compreende que assim seja: sem condições efetivas de competição, as
aberturas econômicas e as políticas de austeridade se tornam insuportáveis para os
respectivos povos. Em outros casos é menos justificável a indecisão das elites
governantes para adotar medidas que permitiriam um salto significativo na
economia e nas condições de vida das populações.
Vitórias na OMC e diplomacia financeira
No âmbito do encontro, também o primeiro da História, entre chefes de governo da
América Latina e da União Européia, realizado no Rio de Janeiro em 1999,
começamos a negociar um acordo comercial. Lembro-me de uma conversa que tive
na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) com o Presidente da França,
Jacques Chirac, na qual eu dizia que para romper o protecionismo agrícola europeu
haveria que buscar mais investimentos, em especial franceses, no processamento
de alimentos no Brasil, pois assim os próprios produtores franceses enfrentariam o
arraigado
630
protecionismo rural da França e de outros países europeus. Também nesse
âmbito os progressos têm sido lentos.
Daí a razão de a opção multilateral continuar sendo importante para nós.
Aproveitando a experiência e a competência de alguns de nossos
melhores embaixadores no trato das questões comerciais, incluindo a dos
dois chanceleres que serviram em meus mandatos, ampliamos muito as ações
na OMC. Pela primeira vez, com o apoio do empresariado, o Itamaraty organizou
uma unidade específica para o tratamento dos contenciosos comerciais, destinada a
encaminhar os pleitos do setor privado brasileiro na organização. Os exemplos de
sucesso logo se multiplicaram e continuaram a se desdobrar após o término de meu
governo. Entre outros episódios, tivemos a vitória, ao lado da Venezuela,
no contencioso com os EUA sobre gasolina; o êxito na contestação
das salvaguardas impostas pelos EUA em matéria de aço; a abertura
de contencioso contra barreiras não-tarifárias impostas também pelos americanos a
nossas exportações de suco de laranja; idem no caso da União Européia no
referente ao açúcar; finalmente, o pedido de consulta para abertura de painel (mais
tarde vitorioso) contra subsídios americanos em algodão, matéria que teve a
decisiva colaboração do ministro da Agricultura, Pratini de Morais, e do secretário
de política agrícola do Ministério, Pedro de Camargo. No conjunto
estivemos presentes em 14 reclamações, envolvendo-nos em um total de
21 controvérsias se somarmos as reclamações contra nós, ganhando a
maioria delas.
Para finalizar estas anotações sobre o comércio internacional, recordo que, nas
negociações da OMC realizadas em Doha, não apenas ganhamos um ponto
importante na questão dos medicamentos para combater a aids, graças à ação dos
ministros Lafer e José Serra e do embaixador Celso Amorim, como obtivemos, junto
com nossos aliados, vitória sem precedentes: o mandato negociador para a
agricultura, tema mais do que sensível e no qual as negociações entre regiões ou
entre países nada caminharam. Ou seja, ficou cabendo à OMC a definição das
regras do comércio internacional que se aplicam à agricultura, válidas para todos os
paísesmembros da organização.
No plano da diplomacia financeira, sempre em consonância com a percepção de
que a globalização é um processo em marcha e de que,
631
diante dele, o Brasil tem a rara possibilidade de ser, ao mesmo tempo, beneficiário e
crítico, não perdemos oportunidades para assumir uma posição compatível com
nossos interesses. Desde meu primeiro discurso sobre esta matéria, em fevereiro
de 1995, na sede da Cepal, até o final do governo, critiquei as assimetrias da ordem
mundial. Assim como não deixei de propor modificações que favorecessem os
países em desenvolvimento.
A cada reunião dos países ricos (G-7/8) enviei cartas a seus dirigentes propondo
mudanças na ordem econômica, e meus sherpas, como se denominam os
assessores presidenciais que cuidam de cada uma dessas reuniões, numa alusão
aos habilíssimos guias que auxiliam os alpinistas no Himalaia, atuaram ativamente
nessa direção.
As sucessivas crises financeiras, as políticas e receitas nem sempre adequadas do
FMI (cujos erros, como no caso do Sudeste Asiático e da Indonésia, objeto de
múltiplas críticas e sugestões, levaram sua direção a introduzir algumas mudanças
de orientação), a falta de recursos suficientes do Banco Mundial e, principalmente, a
falta de transparência e de mecanismos democráticos no controle das
instituições internacionais foram objeto constante das cartas aos presidentes e
da ação de nossos diplomatas e economistas.
Sempre que pude tornei públicas as críticas às discriminações existentes no âmbito
financeiro internacional e propus medidas que permitiam reduzi-las. Em reunião
anual do BID, realizada em Fortaleza, em 2001, por exemplo, critiquei duramente o
fato de as instituições internacionais, especialmente o FMI, diferentemente do que
faziam com os países da União Européia, contabilizarem como sendo dívidas
os investimentos em empresas estatais como a Petrobras, que rendiam recursos ao
Tesouro e funcionavam como multiplicadores de riqueza.
Dessa observação e das negociações que se seguiram resultou mudança
que isentou a Petrobras das restrições quanto a investimentos. Novos passos para
ampliar as exceções ainda estão por vir.
Não preciso me alongar sobre essas questões, pois os capítulos nos quais descrevo
a implantação do Plano Real e as crises financeiras ilustram as dificuldades de uma
economia emergente que se quer afirmar em um contexto global injusto. Falta dizer
que o ministro Malan e os presidentes do BC Gustavo Franco e Armínio Fraga
revelaram-se incansáveis no
632
convencimento das mudanças necessárias. O Brasil teve presença marcante
nos grupos de acompanhamento das propostas de mudança no sistema
financeiro global criados tanto junto ao BIS, em Basiléia - a que me
referi anteriormente e que é uma espécie de banco central dos bancos centrais -,
como no FMI. Disso resultou um aumento extraordinário de nossa credibilidade
internacional. O Brasil, de país caloteiro, passou a ser parceiro respeitável.
Quanto a mim, tratei de manifestar com clareza e firmeza a necessidade de uma
mudança mais ampla na ordem internacional. Além do mencionado discurso na
Cepal, em Santiago do Chile, não perdi oportunidades para reafirmar esse ponto de
vista. Nos encontros de presidentes da América do Sul, como, por exemplo, em
Guaiaquil, mantive um tom contundente. Na reunião da Cúpula Ibero-americana
realizada na cidade do Porto, em Portugal, em 1998, cheguei a apoiar a proposta de
um imposto sobre a circulação financeira internacional, a famosa taxa Tobin,
para expressar meu desacordo com as assimetrias existentes, mesmo sabendo
de sua impraticabilidade.
Da mesma maneira, no encontro da Terceira Via, ou da Liderança Progressista, em
Florença, em 1999, manifestei as críticas pertinentes, diante do olhar pouco
receptivo de meus companheiros de mesa-redonda televisiva, Presidente Clinton e
Primeiros-Ministros Massimo D'Alema, da Itália, Gerhard Schroeder, da Alemanha,
Lionel Jospin, da França, e Tony Blair, do Reino Unido. Apenas Clinton demonstrou
maior simpatia pelas teses reformistas da ordem mundial, mesmo porque ele
próprio havia proposto a formação de um fundo de assistência aos países
em dificuldades, tempos antes. Os dirigentes da Terceira Via mais se preocupavam
em definir e propagar as melhores práticas de governo dos países desenvolvidos do
que dar impulso ao crescimento económico dos países pobres e propiciar às nações
de economia emergente, como o Brasil, acesso ao poder mundial.
A Terceira Via é um movimento inspirado pelo encontro do progres*
sismo democrático de Bill e Hillary Clinton com a tradição social-
democrática européia reformada por Tony Blair e seu mentor intelectual, o
sociólogo e ex-diretor da London School of Economics Anthony Giddens. O
movimento não chegou a se sensibilizar com as demandas dos países de
economia emergente, o G-20, como se diria hoje. Se é certo que as
633
lideranças desses últimos não absorveram completamente as políticas da Terceira
Via mais voltadas para a sociedade civil, tampouco os líderes dos países ricos
perceberam a importância de uma integração mais adequada das economias em
desenvolvimento a uma ordem mundial renovada.
Talvez por isso a Terceira Via não tenha conseguido maior apelo no mundo em
desenvolvimento. Uma pena, pois deixou este último à mercê de recaídas nacional-
populistas, ou melhor, antiamericanas e antiglobalizadoras, que continuam a atrair
parte considerável do pensamento de esquerda, como disse repetidamente neste
livro.
Um quadro na parede do Torto - e Fujimori aceita a paz com o Equador
Por fim, no plano propriamente político, no desempenho da diplomacia presidencial,
agi sempre de acordo com nossas prioridades em matéria de política externa, tal
como enunciadas no início deste capítulo. Darei uns poucos exemplos dessa
atitude, começando pela América Latina.
Em nossa região, tive preocupação constante de manter boas relações com todos os
países e ajudar o fortalecimento da paz e da democracia. Sobre este último ponto
basta referir algumas ações que conduzi. No Paraguai, em mais de uma ocasião,
sempre a pedido das forças legitimamente constituídas, vi-me obrigado a atuar para
evitar que a ordem política se rompesse. Em certa ocasião, em abril de 1996, o
Presidente Juan Carlos Wasmosy veio a Brasília, discretamente, para me informar
que iria demitir o comandante do Exército e temia reações. Antes disso,
Wasmosy enviou um emissário a São Paulo e me pediu que indicasse alguém
de minha confiança para encontrá-lo. Pedi a Eduardo Jorge que fosse ter com o
representante do Presidente paraguaio. Combinaram que o Presidente viria a
Brasília, se não me engano em uma quinta-feira, pilotando seu avião particular, para
que a visita permanecesse em sigilo.
Na data aprazada designei o embaixador Sebastião do Rego Barros, secretário-
geral do Itamaraty, para receber Wasmosy na Base Aérea de Brasília, dizendo-lhe
que informasse às autoridades aeronáuticas dá vinda do avião, sem dar-lhes
maiores detalhes. Tarde da noite eles chegaram ao Palácio da Alvorada, onde o
Presidente paraguaio me disse:
634
-Vou demitir o general Lino Oviedo na próxima segunda-feira e ele pode mandar me
matar.
Disse-lhe que apoiaríamos a legalidade e acrescentei, com humor amargo e para
aliviar a tensão:
- Bem, se você morrer não posso lhe ajudar. Mas não deixarei de ajudar o Paraguai
a manter-se na democracia.
Ele procedeu como anunciado, e o general Oviedo se rebelou. Coube
ao embaixador do Brasil em Assunção, Márcio Paulo de Oliveira Dias, junto com os
colegas do Mercosul e com a embaixada americana, proporcionar sustentação
política ao Presidente. Em comunicações telefônicas contínuas me mantive
informado e, depois de haver assegurado com nossas Forças Armadas condições
de segurança para a hidrelétrica de Itaipu, da qual vem um quarto da energia
consumida no Brasil, pedi ao general Zenildo, ministro do Exército, que fora instrutor
do general paraguaio, para que explicasse a seu colega de farda que ele não teria
nosso apoio para qualquer aventura. Finalmente Oviedo, que não queria falar
com ninguém, atendeu a um telefonema do general Zenildo. Transmitido o recado,
Oviedo cedeu; saiu do Paraguai e mais tarde pediu-nos, e lhe concedemos, asilo
político.
Em outra oportunidade - março de 1999 -, também no Paraguai, desencadeou-se
séria crise política. O Presidente Raul Cubas me telefonou quando eu estava no Rio
de Janeiro, pedindo que o Brasil lhe enviasse suprimentos de balas de borracha
para as forças da ordem poderem conter o povo. Viajei a São Paulo e, à noite, nova
comunicação telefônica. Já havia vítimas entre os populares. Ponderei ao
Presidente Cubas que ele desempenhara papel positivo na transição do Paraguai
para a democracia, e que seria penoso e arriscado resistir pelas armas
às manifestações populares. Diante da extensão e da gravidade da
crise evidenciadas pelo seu próprio relato ao telefone, convenci-o de que seria
melhor renunciar e receber asilo do Brasil. Pediu-me tempo para responder,
certamente porque queria consultar seus aliados políticos e militares, mas naquela
mesma noite anuiu. Enviamos a Assunção um avião da FAB e, com a proteção de
nosso embaixador e de alguns soldados, ele pôde deixar seu país e passou alguns
anos convivendo conosco. Em qualquer hipótese, a sucessão deveria respeitar,
como respeitou, os ditames constitucionais.
635
Lembro esses dois episódios nos quais interviemos politicamente e poderia, se
fosse oportuno, mencionar situação em que me opus à utilização de força
dissuasória para assegurar a democracia no Paraguai. Sempre acreditei que
qualquer intervenção estrangeira, mesmo com objetivo de restabelecer ou de
manter a democracia, tem custo político elevado e deixa justificado ressentimento
popular contra quem intervém. No caso específico do Paraguai, país amigo e com o
qual temos portentoso investimento hidrelétrico em Itaipu, cabe
adicionalmente manter uma atitude correta, não-intervencionista e solidária, para
que nosso vizinho não seja levado a autorizar a presença em seu território de tropas
estrangeiras à região, como, infelizmente, acabou ocorrendo algum tempo após o
término de meu governo.
Com respeito à Venezuela, conto um episódio, apenas ilustrativo do já sabido: que o
Brasil sempre defende a sustentação da ordem democrática.
Relato os fatos porque mostram como é custoso o enraizamento democrático. Ainda
em meus primeiros meses como chanceler, em novembro de 1992, tive notícia de
um levante em Caracas contra o governo de Carlos Andrés Perez. Imediatamente
me pus em contato telefônico com o Presidente venezuelano, antigo conhecido meu
de reuniões promovidas por círculos da Internacional Socialista. Apesar da situação,
encontrei-o cheio de ânimo (ouvia-se barulho de tiroteio pelo telefone, e
o Presidente fez questão de que eu o escutasse), dizendo que resistiria e ganharia o
confronto. Assegurei-lhe nossa solidariedade. Quase dez anos depois, exercendo a
Presidência, chama-me ao telefone o Presidente Hugo Chávez. Ele, que de certa
forma fora o inspirador do cerco ao Palácio presidencial, uma vez que desfechara,
em fevereiro do mesmo 1992, uma primeira e frustrada tentativa de golpe contra
Perez, estava agora cercado por revoltosos. Pediu-me apoio. Disse-lhe que daria
instruções ao chanceler Celso Lafer, que participava de reunião do Grupo do
Rio7 em San José da Costa Rica, para instar os países participantes a de público
repudiarem o golpe, o que aconteceu imediatamente.
Nota: 7 Mecanismo de consultas políticas de alto nível e pouca burocracia adotado em
1986 e ampliado em 2000. Participam 18 países latino-americanos e um
representante da Comunidade do Caribe (Caricom). Fim da nota.
636
Poderia estender-me em uma série de episódios para mostrar a disposição brasileira
de ajudar a construir a democracia nos países vizinhos, sem envolvimentos
facciosos. Da mesma forma, atuamos sempre solidariamente quando eles
enfrentaram dificuldades financeiras. Tentei inúmeras vezes convencer o FMI e os
Estados Unidos a ajudarem a Argentina a sair da crise (e nisso teve ação exemplar
o Presidente Ricardo Lagos, do Chile)
ou a resolverem problemas tópicos quando conflitos comerciais afetavam nossas
relações com os vizinhos.
O auge da diplomacia presidencial em face de situações críticas durante meus dois
mandatos deu-se quando conseguimos pôr fim ao contencioso militar entre o
Equador e o Peru que citei anteriormente neste livro e que custara, nos 40 anos
anteriores, intermitentemente, milhares de vidas. Um trabalho paciente para garantir
a paz, no qual estávamos envolvidos o Brasil, o Chile, a Argentina e os EUA, mas
que na fase final se desenrolou principalmente no Brasil. Ouvimos as duas
partes durante anos. Várias vezes, altas horas da noite, chegavam a Brasília os
presidentes, principalmente do Equador, com mapas de posições estratégicas à
mão, para discutir os termos de uma negociação aceitável. Pelo lado peruano tratei
o tempo todo com o Presidente Alberto Fujimori, que governou entre 1990 e 2000,
parte dos quais, lamentavelmente, com poderes ditatoriais. No Equador sucederam-
se presidentes. Os que dedicaram mais tempo à questão foram Sixto Duran Ballén
(1992-1996) e Jamil Mahuad Witt (1998-2000).
O contencioso territorial, depois de duros combates, havia sido objeto de uma
negociação da qual resultou o Protocolo do Rio de Janeiro de 1942, que não
satisfez às partes. Os equatorianos diziam pertencer a eles um território
montanhoso que se abria a um vale que, bem adiante, dava acesso à bacia
amazônica. O Tratado do Rio, entretanto, concedera a área aos peruanos. Estes,
naturalmente, contestavam a pretensão equatoriana. No meio tempo, a imprecisão
das demarcações originais frente às técnicas de fotografias por satélite punham por
terra mapas e acordos antigos. Depois de muito sofrimento e algumas novas
arrancadas militares (a última propiciara ligeira vantagem no terreno
aos equatorianos), as condições para a paz pareciam amadurecer. Entre armistícios
conseguidos a duras penas, o envio de tropa brasileira para assegurar a paz na
zona de conflito,
637
a presença de representante direto meu na zona de conflito, embaixador Júlio
César Gomes dos Santos, e intensas consultas diplomáticas e militares, o tempo
passava e pouco se progredia.
Fujimori era determinado, objetivo e prático. Manejava propostas e imaginava as
manchetes dos jornais de Lima no dia seguinte. O Presidente Mahuad, cheio de boa
vontade e coragem, tinha até credenciais pessoais no caso - perdera um avô nas
lutas. Homem educado, de formação universitária, tinha encantamento por um
professor de Harvard especialista na solução de conflitos. Fujimori, de
poucas palavras, sorridente e astucioso, punha a sagacidade oriental a serviço da
causa peruana. Não se chegava, no entanto, a um acordo. Certa noite, jantando
com os dois presidentes, propus que se construísse um parque ecológico binacional
em um trecho da selva que era contestado. A idéia parecia caminhar, mas sempre
havia um "porém", e as forças políticas locais reinterpretavam cada proposta ao
sabor de suas conveniências, dificultando as margens de manobra dos presidentes
para a transigência.
Quando estávamos quase a ponto de bater o martelo, em uma reunião em
uma pequena sala da Granja do Torto, novo impasse: um trecho do futuro parque
fora usado como cemitério para alguns soldados equatorianos mortos nas batalhas.
Sugeri, então, que se abrisse uma estrada ligando o cemitério com a fronteira do
Equador, com livre acesso para os nacionais daquele país. Fujimori fingiu que não a
aceitaria, mas, de repente, virou-se para um pequeno quadro de paisagem bucólica
pendurado na parede. Era um quadro modesto, de pintor desconhecido, mostrando
uma carrocinha puxada por um burro em uma estrada de terra. Apontando
a estrada, disse:
- Só se for daquela largura... Por ali não passam carros com tropas, imagino.
Sua atitude selou o acordo, assinado a 27 de outubro de 1998 no Itamaraty diante
dos reis da Espanha, do secretário-geral da OEA, César Gaviria, e de vários
presidentes de países amigos. De todos os pronunciamentos carregados de
emoção o do Presidente Mahuad foi o mais comovedor. Assinou o tratado com
lágrimas (e não só ele as derramou, também eu estava profundamente
emocionado) e coragem. Não sei se alguém caminha pela estradinha para chorar a
dor de haver perdido um ente querido, mas a paz se restabeleceu, e devido ao
papel desempenhado pelo Brasil recebi as mais altas condecorações e as maiores
homenagens dos governos
638
e dos Congressos dos dois países. E cada vez que caminhei pelas ruas de Lima
ou de Quito recebi abraços efusivos de populares que da guerra queriam distância,
mas sentiam que a paz só valeu a pena porque o sentimento nacional não foi
atropelado.
Alguns anos mais tarde tive de haver-me com a repulsa continental à terceira eleição
consecutiva de Fujimori. Não foram poucas as críticas que sofri pela paciência com
que nossa diplomacia manejou o problema.
Houve grande pressão norte-americana e de inúmeras organizações da sociedade
civil internacional contra a aceitação do resultado eleitoral. Nosso embaixador em
Lima, José Viegas Filho (que mais tarde o Presidente Lula nomearia ministro da
Defesa), informava com minúcias à chancelaria brasileira das sutilezas do caso.
Uma intervenção externa contestando a legalidade do pleito, pois disso se tratava,
mesmo com o propósito de assegurar a legitimidade do poder, poderia
prejudicar nossos interesses de longo prazo, mostrando-nos ao povo peruano
como intervencionistas. Seria melhor apostar na evolução da própria sociedade
peruana. Assim procedemos, embora sem endossar substantivamente as manobras
que resultaram na reeleição de Fujimori.
Lembro-me que, meses mais tarde, quando o futuro Presidente Alejandro Toledo era
candidato com muitas chances de vitória e veio me ver em Brasília acompanhado
por sua mulher, Eliane Karp, houve ligeiro mal-estar em nossa conversa,
principalmente por parte dela. Como alguém com minhas tradições democráticas
(Toledo estudou em Stanford e me conhecia do tempo em que eu dera aulas
naquela universidade) podia ter apoiado Fujimori? Ela espelhava na pergunta a
opinião de vários críticos da oposição a meu governo. Disse-lhe que uma coisa era
minha atitude como intelectual, radicalmente democrata e progressista, outra minha
conduta como chefe de Estado. Não que fossem contraditórias. Não apoiara
Fujimori, mas a voz da inteligência livre não tem por trás de si baionetas e a do
Presidente de um país carrega ameaças, principalmente quando este país é mais
forte. Pior, outros países ainda mais fortes já estavam claramente se manifestando
pela destituição de Fujimori. Nessas circunstâncias, em vez de ser um grito pela
liberdade, meu protesto seria uma ingerência.
É importante ressaltar que não apoiamos ilegalidades no Peru. Demos, isto sim, um
voto de confiança aos peruanos, na convicção de que eles
639
próprios saberiam como se haver com as questões domésticas, como acabaria
ocorrendo. A posteriori é fácil dizer: "Estão vendo? Deu certo. Fujimori não reina
mais e restabeleceu-se a democracia." Mas, e se tal não acontecesse? Neste caso,
uma vez mais a moral da responsabilidade teria inibido sua compatibilização com a
ética das convicções e o ato que praticamos pagaria alto preço pelo sofrimento que
a duração do governo fujimorista acarretaria ao povo peruano.
Tormento de quem governa e sabe que nada assegura de antemão a "validade" de
suas decisões.
"Fidel, que diabo, homem! Que vai fazer com esta ilha?"
Ainda uma palavra sobre a região. Para quem é de minha geração, Cuba e Fidel
Castro não podem ser tratados como estranhos. Visitei Cuba em viagem de Estado
e participei, em seguida, da Cúpula Ibero-americana realizada em Havana em 1999.
Fidel esteve no Brasil inúmeras vezes.
Para a América Latina a revolução cubana constitui um marco, a despeito de seus
resultados decepcionantes e da repulsa que causam os aspectos contrários aos
direitos humanos e às liberdades, sem contar as péssimas condições de vida que o
povo cubano vem suportando desde o começo da década de 1990 (verdade que
graças também ao bloqueio econômico norte-americano). Além do apelo à maior
igualdade numa região de desigualdades extremas que Cuba representa, há a
simbologia da luta de Davi contra Golias, tornada permanente pelo embargo norte-
americano. É esse conjunto de fatores que nos leva a tratar de maneira menos dura
o que em outras situações seria (e é) inaceitável. Com esse pano de fundo, as
relações entre Brasil e Cuba, durante meus dois mandatos, transcorreram de
maneira correta, com aprofundamento das relações econômicas e de busca da
inclusão da ilha no espaço latino-americano.
Do mesmo modo, no plano pessoal sempre fui tratado com consideração por Fidel e
seus principais colaboradores. Surpreendi-me com a curiosidade de Fidel sobre
dados econômicos e minúcias, por exemplo, sobre a questão energética,
especialmente petróleo. Nas conversas me dava a impressão de ser mais um
professor aposentado, que fazia observações e reflexões sobre o mundo, dentro de
sua visão inegavelmente dogmática, do que um líder revolucionário, como foi no
passado. Pensei comigo: o poder desgasta e a burocracia estiola, mesmo os
espíritos mais audazes.
640
Sua obsessão por entender os processos econômicos e políticos se revelava até em
detalhes banais. Por exemplo, um dia, em almoço no Alvorada, quando
conversávamos a sós longamente na biblioteca do Palácio, ele me perguntou:
- Como você organiza sua rotina?
Contei-lhe que levantava relativamente cedo, nadava por recomendação médica
para cuidar da coluna e relaxar das tensões do cargo, tomava café, lia a síntese dos
jornais e ia para o Palácio do Planalto despachar, presidir reuniões, receber
pessoas em audiências, telefonar para ministros e líderes parlamentares. Replicou:
- Você está errado. Eu também fazia isso. Depois percebi que não queria falar com
os que tinham audiências comigo. Perdia meu tempo. Daí por diante, fico em casa,
lendo livros, recebendo resumos preparados por meus colaboradores e pensando
sobre as questões da economia mundial e sobre Cuba, para tentar resolver melhor
seus problemas.
Pensei comigo: "Fidel está há quarenta anos no poder, eu há menos de quatro. Se
fizer isso, meu governo vai por água abaixo." Quem sabe, contudo, terá sido por
seu conselho, subconscientemente, que no segundo mandato passei mais manhãs
no Alvorada, defendido das pressões políticas e burocráticas, despachando com
meus auxiliares diretos e com alguns ministros.
Mas não quero ser injusto. Vi inúmeras vezes Fidel debatendo com contendores
mordazes, colegas ibero-americanos. Saiu-se quase sempre com galhardia e
elegância, com uma única exceção, em dia infeliz no Panamá. Não seria
apropriado, neste livro, contar minúcias do relacionamento pessoal dos chefes de
Estado, mas asseguro que, se pudesse fazê-lo, Fidel Castro ocuparia bom espaço,
tal a riqueza das oportunidades que tive para analisá-lo, e, com menos certeza,
para tentar vislumbrar o futuro de Cuba. Não tenho ilusões quanto a mudanças que
possam ocorrer sob o comando de Fidel, não obstante me alegrasse a perspectiva
de vê-lo mais transigente na questão democrática e mais capaz de antever o
alcance de longo prazo que essa atitude teria para a manutenção dos avanços que
Cuba conseguiu em matéria social. Vem-me à lembrança um encontro que tivemos
ao fim da reunião da Cúpula Ibero-americana, em 1999, em Havana, quando quase
todos já haviam partido. Fidel ofereceu um almoço em um clube recém-refeito, com
vistas para o envolvente mar das
641
Antilhas, a uma dúzia de chefes de Estado e de governo, incluindo o Rei de
Espanha, Juan Carlos, sempre bonachão e simpático. Um dos presentes, sobre
cuja identidade calo por motivos protocolares, levantou-se da mesa e, batendo nela
com a mão, dirigiu-se ao anfitrião:
- Fidel! Que diabo, homem, você está entre os poucos amigos que ainda tem. Que
vai fazer com esta ilha?
Entre impropérios, tornados amistosos mais do que agressivos pelos bons goles do
excelente vinho espanhol Vega Sicília-Ünico que todos tomávamos, o líder
continuou pressionando Fidel. Em seguida lançou uma saraivada de críticas e
inquietações sobre "a transição" para a democracia. Lá estavam Menem, José
Maria Aznar, António Guterres, Jorge Sampaio, Fujimori, Zedillo e uns poucos mais
que, embora compreensivos e não se afastando da tradição de convidados, não
mediram palavras para pressionar o comandante. Este, como mais tarde vi fazer em
broma na casa de verão do Presidente do Chile, em Vina dei Mar, respondendo a
Aznar - "Pêro yó, dentre todos Ustedes, soy el que menos poder tiene, pues todo en
Cuba es colectivo..." -, utilizou seus dotes de sofista para não responder nada.
Definitivamente, ele não pensa como o personagem do escritor italiano Tomaso di
Lampedusa que algo queria mudar para nada mudar. Mais teimoso - em espanhol se
diria testarudo, ou cabeçudo - que o personagem do romance, prefere nada mudar
para evitar que tudo desabe.
Sobre a ilha, finalmente uma observação: jamais desejei que o Brasil fosse "ponte"
entre Cuba e os EUA. Não creio que tal postura corresponda a nossos interesses
nem aos dos dois contendores. Talvez por sentir essa disposição, tivemos mais
facilidade para manter o diálogo diplomático com Cuba e seus líderes. Uma só vez
fugi a esta regra, quando Bill Clinton me deu uma informação sobre obstáculos que
o tão ansiado tráfego aéreo entre Cuba e os EUA enfrentava e me
pediu explicitamente que esclarecesse o assunto com Fidel. Este, depois de ouvir
minha ponderação de que não me competia o papel de mensageiro, mas que
naquele caso parecia razoável transmitir-lhe a informação, redarguiu com um
galanteio:
- Mejor mensajero nopodria haber encuentrado el Presidente Clinton.
Espero ansioso o dia em que meu embaixador na ilha, Luciano Martins,
que escreveu relatórios tão lúcidos, publique suas reflexões sobre o que mudou e o
quanto pode mudar Cuba. Temo que, alheia ao tempo, a ilha, que poderia ser um
ponto de referência para o modo latino-americano
642
de conciliar socialismo com democracia, deixe para a História apenas as
marcas do inaceitável autoritarismo, perdendo as sendas de maior igualitarismo, tão
necessárias para este continente de injustiças sociais.
Presidentes da América Latina e calor humano
Não quero terminar essas anotações sobre o relacionamento com os países e
dirigentes da América Latina sem mencionar, ainda que brevemente, o quanto de
calor humano houve no trato com um ou outro deles. Em várias partes deste livro
falei dos presidentes Menem, da Argentina, Jorge Batlle, do Uruguai, Ernesto
Samper, da Colômbia, seu xará Zedillo, do México, os peruanos, equatorianos,
venezuelanos, bolivianos, paraguaios. Se não pude, como sempre desejei, visitar os
países do Caribe, com exceção de Cuba e da República Dominicana, com
cujo Presidente (entre 1996 e 2000, e novamente a partir de 2004),
Leonel Fernandez, mantenho relações cordiais, devo dizer que os
responsáveis pelas nações caribenhas de fala inglesa sempre me trataram e ao
Brasil com especial respeito. Talvez porque alguns deles conhecessem
meus estudos sobre os negros brasileiros ou porque soubessem que Eric Williams,
Primeiro-Ministro da Jamaica entre 1962 a 1981 e grande historiador da escravidão,
serviu de fonte de inspiração para mim quando jovem professor na USP. Realizei,
contudo, a primeira visita de Estado de um Presidente brasileiro à América Central.
Fui à Costa Rica em abril de 2000, onde o presidente Miguel Ángel Rodríguez teve
a gentileza de hospedar seus colegas da região para que eu pudesse manter ricas
conversações, individualmente e em conjunto, com todos eles.
Tratei de motivá-los a ampliar o comércio com o Brasil, a utilizar mais nossas
empresas de serviços e a ter maior cercania política conosco.
Também na América Central, visitei mais de uma vez o Panamá. Em novembro de
2000, quando compareci à X Cúpula Ibero-Americana, na Cidade do Panamá, pude
realizar um gesto de alto valor simbólico: devolver ao país documentos preciosos,
as atas de um congresso - denominado Congresso Anfíteônico - convocado em
1826, em território panamenho, pelo grande libertador de vários países latino-
americanos, Simón Bolívar.
Por alguma razão, os documentos estavam em nossos arquivos, e, no Panamá,
foram depositados num grande memorial a Bolívar. Desse
643
congresso do século XIX resultaram decisões e tratados importantes que, já
naquele tempo, consagravam princípios como paz, segurança coletiva e ajuda
mútua entre países recém- libertos do colonizador espanhol. Talvez como retribuição
ao gesto, em março de 2002 a Presidente Mireya Moscoso convidou-me para
participar de solenidade marcando o início de obras de ampliação do Canal do
Panamá, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico.
Viajei acompanhado do chanceler Celso Lafer. Ao Brasil interessava
a modernização do Canal como parte não apenas de nossa visão sobre
a integração física da América Latina, mas também para melhorar a competitividade
de nosso comércio com a Ásia, sobretudo o desdobramento marítimo da logística
do transporte fluvial da soja e, quem sabe, com algumas empresas brasileiras
participando da obra.
Com alguns dos presidentes latino-americanos mantive e mantenho
relações cordiais, se não afetivas. Carlos Menem (1989-1999) teve a visão
de continuar o caminho aberto por Alfonsín na aproximação com o Brasil.
Não houve assunto em nossas relações, por delicado que fosse, que deixasse de
ser encaminhado com competência e compreensão recíproca entre a Argentina e o
Brasil. E ninguém se iluda: Menem, mesmo quando parece ausente das questões,
comanda o desenrolar dos acontecimentos.
Seu sucessor, Fernando de La Rua (1999-2001), teve menos êxito no manejo da
política. Tocaram-lhe tempos difíceis, depois da quebra da moeda. De La Rua, um
professor universitário ponderado e talvez menos propenso à luta de foice
característica de nossa política, em mais de uma ocasião pareceu- me não
inteiramente enfronhado dos riscos que corria. Recordo-me que certa feita, estando
os dois em Madri, mas por motivos diferentes, recebi uma chamada telefônica de
Armínio Fraga, presidente do BC. Armínio estava reunido, penso que no Canadá,
com um grupo de economistas e dirigentes econômicos mundiais.
Estes expressaram preocupação com o desenrolar da crise na Argentina e Armínio
me pediu que alertasse o presidente De La Rua. Não sei se o pedido era somente
dele ou incorporava o desejo de seus interlocutores.
Relutei em fazê-lo, pois é sempre delicada a intromissão de um Presidente nos
assuntos internos de outro país. No mundo atual, contudo, como venho dizendo
neste capítulo, interno e externo se confundem, até porque qualquer crise na
Argentina afetaria o Brasil e a recíproca é verdadeira. Telefonei à embaixada da
Argentina e me dispus a visitar o Presidente,
644
que nos recebeu, a mim e ao chanceler Lampreia, com fidalguia.
Fazia-se acompanhar por seu chanceler, Adalberto Rodríguez Giavarini, e pelo
ministro da Economia, José Luís Machinea. Cuidadosamente fui orientando a
conversa para as dificuldades que eu próprio havia vivido com a crise do real e
descrevendo o modo como busquei apoios internacionais, envolvendo-me
pessoalmente em parte das negociações.
Fernando de La Rua foi simples e direto:
- Não se preocupem, não se preocupem. Na Argentina tudo vai bem. É diferente.
Não me cabia insistir. O Presidente argentino partiu para uma viagem à aldeia de
seus ancestrais espanhóis e, infelizmente, nada era diferente do que ocorrera no
Brasil. Homem correto, perdeu o controle da situação política e teve de renunciar.
Depois de vários sucessores de curtíssima duração, o governo parou nas mãos de
Eduardo Duhalde, em janeiro de 2002. Durante seu período na Casa Rosada,
embora tivessem sido poucos os contatos, o espírito de cooperação com o Brasil
permaneceu vivo.
Conheda Duhalde do tempo em que fora Vice-Presidente de Menem e em seguida
candidato derrotado à Presidência. Quando assumiu o governo depois de eleito
pelo Congresso, decidi visitar a Argentina para expressar solidariedade ao país em
momento de graves dificuldades. No jantar que mantivemos, a sós, na residência
presidencial de Olivos, onde passei a noite, tive uma conversa muito franca com o
Presidente sobre a situação. Impressionou-me sua reação peremptória:
- Eu vou pôr ordem nos piqueteiros (grupos de desordeiros
manipulados politicamente que viviam obstruindo ruas e estradas),
restabelecerei relações com o Congresso e farei eleições.
Dito e feito. Não é pouco mérito. Menos de dois anos depois, eleito Nestor Kirschner,
a quem conheço superficialmente, fez o indispensável:
com apoio de seu ministro da Economia, Roberto Lavagna, enfrentou o tema da
dívida externa e, com medidas e palavras que a muitos soaram demagógicas,
conseguiu legitimidade para governar apesar de haver obtido apenas 22% dos votos
no primeiro turno das eleições de abril de 2003 (assumiu em maio, após seu
concorrente, Menem, desistir de disputar o segundo turno). Avaliar o êxito do
conjunto de suas ações vai requerer tempo, mas indiscutivelmente tomou medidas
necessárias para restabelecer no país irmão a crença em qualquer governo.
645
Com o Uruguai minhas relações são muito antigas: participei da elaboração de um
dos planos de desenvolvimento do país nos anos 1960, como funcionário da Cepal,
quando Enrique Iglesias, futuro presidente do BID, ainda era presidente do Banco
Central uruguaio. Júlio Sanguinetti, intelectual de qualidade e político maduro,
estando ou não na Presidência, que ocupou duas vezes (entre 1985 e 1990, e entre
1995 e 2000), sempre foi um ponto de apoio e um amigo. Convivi menos tempo
com o Presidente Lacalle (1990-1995), mas já relatei a visita que lhe fiz em
Anchorena e tanto Lacalle como Sanguinetti, ou Jorge Batlle, por diferentes que
sejam seus partidos, e a despeito da lenda de que um deles é mais "brasileirista" do
que o outro, e dos estilos pessoais diversos entre Batlle e Sanguinetti, nas tratativas
com o Brasil e comigo, somos todos hermanos, tal a densidade de
nossos relacionamentos, e o mesmo diria do Presidente eleito em 2005,
Tabaré Vasquez. Jorge Batlle (2000-2005) é um espírito brilhante, irônico e tem,
como aliás também Sanguinetti, familiaridade com a História e os costumes do
Brasil.
Sobre o Chile, embora pouco tenha dito, não devo falar muito mais: seria tentado a
escrever outro livro, tantas são minhas afeições e tanto é meu conhecimento
daquelas terras. Mas, já havendo mencionado Ricardo Lagos algumas vezes, cabe
registrar que nenhum outro país de nossa região teve a sorte ou foi capaz de
encontrar na História recente líderes como os presidentes Patrício Aylwin (1990-
1994), Eduardo Frei RuizTagle (1994-2000) e Ricardo Lagos (2000-2005). A aliança
obtida pelos chilenos, juntando "liberais", democratas- cristãos e socialistas, que há
poucas décadas se combatiam tão vivamente, é a prova da maturidade do povo. Os
resultados estão à vista: perseveraram nos objetivos e vêm aceleradamente
mudando o país para melhor.
Com os países do Hemisfério de fora da região latino-americana, nossa participação
na política internacional é de outra ordem e mais modesta.
Além dos cuidados referidos de não transformar cada choque concreto
de interesses entre nós e os EUA em uma confrontação mais ampla de país a país
e da busca permanente de uma postura de colaboração e independência,
mantivemos excelentes relações com o Canadá. Houve visitas oficiais recíprocas.
Sustentamos, ao mesmo tempo, posição firme na chamada crise da vaca louca, na
qual o ministro Pratini de Morais teve desempenho marcante diante da alegação,
francamente absurda, de risco
646
dessa doença que afeta o gado bovino na Europa - mas inexistente no Brasil - como
razão para a suspensão das importações canadenses.
Firmeza, mas ponderação, foi nossa postura também nos contenciosos comerciais
por causa dos aviões da empresa canadense Bombardier na guerra comercial com
a nacional Embraer. Tratava-se de crise, digamos assim, entre países maduros,
cujas economias avançaram e, eventualmente, tiveram choques de competição
econômica, e não confrontações "ideológicas" ou totais. Freqüentemente o
Primeiro-Ministro Jean Chrétien e eu falávamos ao telefone sobre os mais variados
assuntos.
Nossas conversas, em geral, giravam sobre os problemas globais, mais do que
apenas sobre as relações bilaterais. Afinávamos a viola, para melhor entender o
jogo dos donos do mundo,
Um símbolo de que o mundo pode ser melhor: Mandela
Já com a África foi diferente, mantivemos relações mais próximas e mais ao estilo
latino- americano, no qual a emoção pesa tanto quanto a razão e facilita
negociações. Enviamos tropas a Angola para assegurar a paz, e o tamanho do
contingente - mais de mil homens - mostra nosso empenho em ajudar o país de
onde vieram, como escravos, os ancestrais de tantos brasileiros. Nossos soldados
desempenharam com eficácia a dificílima tarefa de colaborar na eliminação dos
campos minados que uma guerra civil de mais de duas décadas espalhou por toda
parte. Visitei Kuito, no interior, para ver nossos soldados acampados em região
circunscrita por minas e destroçada por batalhas passadas, cheia de adultos e
de crianças sem pernas ou sem braços, situação que me comoveu profundamente.
Temos investimentos produtivos no país e muita proximidade política com o
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido dominante.
Também com Moçambique nossas relações foram especiais. Visitei oficialmente o
país e assinei o perdão de uma dívida de 450 milhões de dólares que o povo
moçambicano não tinha condições de pagar. Iniciei também negociações para a
Vale do Rio Doce investir em mineração e recebi várias vezes no Brasil o
Presidente Joaquim Chissano, assim como o Presidente José Eduardo dos Santos,
de Angola. De igual modo, o Presidente Thabo M'Beki esteve entre nós, e o nível de
entendimento econômico e político com a África do Sul é elevado. Convidei
os presidentes desses três
647
países para assistirem a reuniões do Mercosul, sempre buscando o fortalecimento
de nossos laços com eles. Com a Namíbia e o Presidente Sam N'joma da mesma
forma temos relações próximas, estando nossa Marinha muito ativa em prestar-lhes
assistência técnica.
Nelson Mandela é um caso à parte. O grande patriarca da liberdade na África do Sul
esteve no Brasil em julho de 1998, em visita de Estado, e magnetizou quem o viu ou
esteve com ele. Em sua tribo de origem, Mandela é príncipe - e não há a menor
dúvida de que se trata de um príncipe quando se está em sua presença. Ouvi de
uma conterrânea sua, Manphela Ramphele, diretora do Banco Mundial, uma
definição perfeita para o que penso em relação a ele. Ramphele comparava outros
líderes carismáticos de hoje ou do passado a Mandela. Dizia dos primeiros que eles
obtêm o reconhecimento e a glória porque perseguiram esse objetivo. Já com
Mandela, acrescentou, é diferente: a própria glória é que vai até ele. De fato. Sua
simples presença, sem que ele mova um dedo, permite perceber que está ali alguém
com uma aura especial, um homem excepcional. Ademais, é de uma simpatia
irradiante e muito afetivo: profundamente africano em seu calor humano.
Mantivemos uma longa conversa no Palácio do Planalto sobre delicados assuntos
político- partidários africanos. O almoço que lhe oferecemos ao redor da piscina do
Alvorada contou com a presença da bateria e de passistas da escola de samba da
Mangueira, de capoeiristas e de cantores de toada da Amazónia, além de
personalidades da comunidade negra brasileira - entre as quais as atrizes Camila
Pitanga e Thaís Araújo e Cafu, capitão da seleção brasileira de futebol. Mandela
se divertiu e se alegrou genuinamente. Sua esposa, Graça Machel (viúva do herói
da libertação de Moçambique, Samora Machel), tem o português como língua
materna e participa com Ruth de alguns fóruns internacionais.
Tudo isso envolve de carinho, além da admiração, o relacionamento com Mandela.
A visita de Estado de Mandela ao Brasil retribuiu a que fizéramos a ele no segundo
ano de meu mandato. De todas as minhas viagens oficiais ao exterior, só as feitas
ao Chile, pela emotividade dos anos que lá passei no exílio e dos amigos que
adquiri (de Enzo Faletto a Ricardo Lagos e sua mulher, Luisa Durán, de cujos pais
fui vizinho em Santiago por alguns anos), podem se comparar ao calor e mesmo ao
amor ao Brasil que senti
648
quando, na manhã de 27 de novembro de 1996, caminhei pelas ruas da fervilhante
cidade- dormitório de Soweto, próxima a Johanesburgo, ou quando, no banquete
oficial, na capital, Pretória, Mandela saiu dançando e cantando, agarrando-me pelo
braço. Em Soweto, berço histórico da resistência aaú-apartheid, fomos à pracinha
onde há um marco de saudade em homenagem a Hector Peterson, estudante de
treze anos morto pelas costas em 1976, durante uma manifestação contra a decisão
do governo de tornar obrigatório aos negros o ensino do africânder, idioma dos
antigos colonizadores holandeses. Junto ao monumento, depositei flores.
Centenas de jovens de ambos os sexos nos cercaram e cantaram em
nossa homenagem. De lá partimos para a casa do legendário Walter Sisulu, mestre
de Mandela, também herói das lutas contra o racismo, que lhe valeram quase três
décadas na prisão. Casa modesta, no bairro que foi favela, onde morava um
verdadeiro líder, no sentido de guia moral, que tinha sido deputado e agora,
recolhido à vida privada (sua mulher, Albertina, ainda era deputada), simbolizava a
inteireza da trajetória de um batalhador. De óculos, alquebrado aos 84 anos,
cabelos inteiramente brancos, voz frágil, disse palavras tão expressivas e sentidas
de reconhecimento ao Brasil por nossa postura histórica contra o racismo e de tanta
afetividade que, ao despedirmo-nos, chorávamos todos, o casal anfitrião, o visitante
e o casal Lampreia - o chanceler Luiz Felipe e sua mulher, Lenir. Orgulho-me de ter
ido até Sisulu:
fiquei sabendo que nunca chefe de Estado algum o visitara em casa.
Voltei a Johanesburgo, anos depois, no início de setembro de 2002, para participar
da Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, patrocinada pela ONU - também
chamada de Rio+10, porque haviam transcorrido dez anos da primeira reunião do
género, no Rio de Janeiro. Em ato à parte, lancei, com Mandela (já então há três
anos fora do poder), um programa em defesa das florestas úmidas. Era um ato
público, ao ar livre, apenas com o palco protegido contra uma eventual chuva.
Novamente me impressionei profundamente com o modo pelo qual o grande líder
expressa pensamentos e sentimentos. Sempre elegante, fluente, cativante,
muito pessoal e, de repente, telúrico, quase profético, eletriza a audiência e, mais do
que isso, a compromete com a causa que está defendendo. As pessoas aplaudiam,
gritavam de alegria, cantavam. Mandela
649
parecia produzir uma hipnose coletiva. Vi-o de novo na Noruega, em Tromsoe, no
Círculo Polar Ártico, em 2005, dessa vez abraçando a causa do combate à aids.
Ninguém, de tantos líderes que conheci no mundo, tem a liderança espiritual de
Mandela: não esquece o passado, não renega a realidade, mas, sem
ressentimentos, olha e aposta no futuro da humanidade. Tendo passado 27 anos na
prisão, boa parte em solitária, por sua luta contra o regime racista do apartheid, ele
foi capaz de, libertado em 1990, estender a mão a seus algozes em prol de uma
causa maior, a democratização e a reconciliação nacional em seu país. O próprio
Presidente do regime racista, Frederik De Klerk, com quem Mandela negociou
intensamente uma transição democrática, acabou sendo candidato a Vice-
Presidente na chapa que levou o grande líder negro a ser o primeiro chefe de
Estado livremente eleito da República da África do Sul, em 1994. Ambos ganharam
o Prêmio Nobel da Paz em 1993. Se há um símbolo vivo de que o mundo poderá
ser melhor, este símbolo é Mandela.
Precisamos decidir o que queremos na Ásia
Dando continuidade aos movimentos de reaproximação com a Ásia, que iniciara
ainda como chanceler, tratei também de visitar, naquela região, os países que me
pareciam fundamentais tanto para o papel político do Brasil no mundo como para as
ligações comerciais, fortalecendo nossas exportações e buscando investimentos.
Fui em março de 1996 ao Japão, e o Imperador Akihito e sua esposa, a Imperatriz
Michiko, retribuíram a visita vindo ao Brasil em junho de 1997. Tratou-se da primeira
visita de um Imperador japonês à América Latina depois da Segunda Guerra
Mundial. As relações entre os dois países são muito especiais, cercadas de
simbolismos e de gestos na direção de uma sempre maior proximidade. Na tradição
japonesa, por exemplo, uma vez ao ano os imperadores e sua família se reúnem,
talvez junto ao seu círculo mais íntimo, para uma troca de poesias. A Imperatriz
(fluente em inglês e na literatura nesta língua) nos presenteou com um livro em que
estão vertidos, para o inglês, os poemas que ela e o esposo fizeram. Num deles,
que me sensibilizou especialmente pela beleza (e não é o único com alusões desse
tipo), há referências ao Brasil e à nossa natureza, rememorando
650
viagem que fizeram nos anos 1960, ainda como príncipes, logo depois do
casamento. Sutilezas que bem mostram o espírito japonês.
A despeito de toda a imigração japonesa e da presença de cerca de 250 mil
brasileiros que fizeram o percurso inverso ao de seus ancestrais e hoje trabalham,
em contínuo revezamento, no Japão, as conversas com o Primeiro-Ministro Ryutaro
Hashimoto indicavam certa dificuldade de movimentos. Fiquei com a impressão de
que o Japão estava ainda muito amarrado em sua política externa e que dificilmente
se moveria, por exemplo, para fazer uma pressão comum em favor de nossa
participação como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
Recentemente, já sob a liderança de Junichiro Koizumi, foi possível realizar
avanços naquela direção.
De qualquer modo, os titubeios finais indicam que as conveniências
do relacionamento estratégico do Japão com os EUA e o temor dos japoneses de
se verem desamparados no confronto com a China pesam mais do que quaisquer
alternativas que lhe possam ser oferecidas pela associação com outros países. Até
mesmo os investimentos no Brasil, embora continuem a ser importantes, não
tiveram crescimento comparável aos europeus depois da estabilização de nossa
economia. Continuamos, no entanto, tentando exportar nossos produtos agrícolas
ao mercado japonês, que é enorme, e espero que o Japão volte, pouco a pouco,
a desempenhar o papel de relevo que sempre teve em nossas relações com a Ásia.
Diferente é o relacionamento com a China. Não só fiz uma visita de Estado (isto é,
no mais alto grau protocolar e de intenções de estabelecer sólidos relacionamentos)
àquele país, como percebi que não fomos nós, na verdade, que escolhemos a
China como parceiro estratégico. Muito antes de nós, na verdade desde que o
Presidente Sarney lá esteve, em 1988, os chineses já haviam tomado a decisão
de aproximar-se do Brasil e de certa forma tinham a iniciativa do processo. Sabiam
muito bem o que queriam.
Na visão estratégica de seus dirigentes, a China precisa de fontes confiáveis de
abastecimento que tenham capacidade de suprir suas enormes necessidades de
matérias- primas e alimentos. País de dimensões continentais, superpovoado, mas
cujas terras são plenamente agriculturáveis em apenas 7% do território, a China não
dispõe de todos os recursos minerais necessários à sua produção industrial, nem de
água suficiente. A gigantesca
651
represa de Três Gargantas,8 por exemplo, embora com muito maior potência
disponível do que Itaipu, produzirá em média menos energia do que nossa usina,
porque não há fluxo de água constante para movê-la.
A China precisa de parceiros. Cabe-nos tirar proveito dessa situação e verificar o
que poderemos obter em contrapartida, além de nossas exportações, o que não é
pouco, de soja, minério de ferro e carne bovina e suína, como resultado de esforços
que inicialmente foram feitos pelos ministros Pratini de Morais e Sérgio Amaral.
Firmamos um acordo tecnológico no campo espacial, muito incentivado pelo
ministro José Israel Vargas, desde os tempos do Presidente Itamar, e
estamos fabricando, em colaboração com os chineses, tanto lá com aqui, satélites
que permitem, entre outros resultados, registros fotográficos de alta precisão.
Negociamos, e dei o empurrão inicial, a instalação de uma planta da Embraer na
China, assim como já tínhamos lá uma fábrica de compressores que pude visitar.
Estamos apenas engatinhando na colaboração científico-tecnológica, tateando
outras oportunidades de complementaridade que existem entre nossas economias.
A Bolsa de Mercadorias & Futuros, por exemplo, abriu em 2004 um escritório
em Xangai.
Das várias conversas que tive com Jiang Zemin e com o Primeiro-Ministro Zhu
Rongji, ficou muito nítido que eles, chineses, desejam ser respeitados no mundo.
Conto pequeno episódio que ilustra este fato.
Poucos dias antes da chegada de Zemin ao Brasil, em abril de 2001, o Presidente
Bush me telefonou e pediu que eu intercedesse junto ao Presidente visitante para
que fossem liberados os tripulantes de um avião-espião americano que havia caído
na China pouco tempo antes.
Depois de prometer a Bush que tentaria encaminhar a questão, nos limites do
protocolo, fiz o pedido ao líder chinês quando tive a oportunidade da conversa a sós
com ele em meu gabinete no Planalto.
Resposta:
- Você sabe quantas vezes o Presidente Clinton me chamou ao telefone para
desculpar-se das bombas que acertaram nossa embaixada em Belgrado?
Cinco ou seis. Só então respondi ao telefone. [Referia-se ao episódio em que, em
1999, durante os bombardeios aéreos dos países-
Nota: 1 Quando o Presidente Jiang Zemin nos visitou, presenteei-o com uma fotografia de
uma das imensas turbinas fabricadas para Três Gargantas em São Paulo tendo,
dentro de seu diâmetro, todos os operários envolvidos no trabalho. Fim
da nota.
652
membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a Belgrado e outras
cidades, para pressionar o governo da então Iugoslávia a deter os massacres
provocados por forças servias contra minorias étnicas na província de Kosovo, três
mísseis americanos atingiram por engano a embaixada da China na capital,
matando quatro funcionários chineses.]
Quantos anos têm os Estados Unidos, quinhentos?
Repliquei que, como nação independente, nem trezentos.
- Pois é, a China tem cinco mil. Eles, americanos, têm de aprender a nos respeitar.
O Presidente Bush é muito moço, ele precisará se desculpar pela violação do
espaço aéreo chinês. Eu vou liberar, sim, os tripulantes, mas tomará algum tempo...
Esta é a China, um país que sabe que a política, especialmente a diplomacia, tem
que jogar com o tempo. Nós, de nossa parte, é que precisamos definir qual é nosso
jogo. Dá para jogar com os chineses, mas se somente eles tiverem objetivos
estratégicos e souberem o que buscam, com este jogo pouco ganharemos. Ainda
não vejo claramente qual é a posição brasileira nesse tabuleiro. Alguns, tanto por
motivos políticos como econômico-comerciais, temem a China. Outros a idealizam e
vêem vantagens para nós em tudo. É provável que estejam certos, à condição de
definirmos, como os chineses fazem, o que queremos. No curto prazo, é inegável
que a voracidade chinesa por alimentos e matérias-primas está proporcionando um
impulso considerável a nossa balança comercial. No médio prazo depende de
nossa capacidade de formular e implementar os propósitos que definirmos.
No comércio com a China tem havido muita "troca de procedência", quer dizer,
produtos que antes vinham da índia e de outros países, hoje vêm da China. Nossos
produtores reclamam mas nem sempre têm razão. Mesmo assim, o reconhecimento
da China como economia de mercado pelo governo que me sucedeu nos deixa ao
desabrigo para taxar os produtos chineses.
Por outro lado, constitui um problema o fato de o gigante asiático, mesmo tendo se
integrado à OMC, ser ainda o grande centro mundial de produção de produtos
piratas de todo tipo.
Visitei também a índia, em janeiro de 1996, onde fui hóspede de honra
na comemoração dos 50 anos de independência. Igualmente o Presidente da índia,
Kocheril Raman Narayanan, esteve no Brasil em maio de 1998.
Confesso que me é mais fácil ver a reciprocidade entre os nossos
653
interesses e os da China do que o mesmo com a índia. Culturalmente tenho fascínio
pela índia. Visitei-a, sem contar a viagem presidencial, umas três vezes. Quando
presidente da Associação Internacional de Sociologia, realizei nosso congresso
internacional em Nova Delhi, em 1986. Li com paixão a obra-prima de Octavio Paz,
Vislumbres de Ia índia?
Porém, até hoje há algo na alma indiana que me escapa inteiramente.
Nossas conversas, sempre amáveis, jamais se concretizaram política
ou economicamente. Fizemos algum progresso na área de medicamentos, pois
o ministro da Saúde José Serra, empenhado na fabricação de genéricos, logrou
alguns avanços com os indianos. Mas o fluxo comercial e o de investimentos são
muito baixos, quando existentes. Vejo com satisfação que mais recentemente, pelo
menos no campo das negociações comerciais, na OMC, alianças estratégicas têm
sido possíveis. Novamente, a questão está em saber quais nossos interesses
peculiares e quais os deles, pois não são similares em tudo. O Brasil, porém, não
pode ignorar, entre outros aspectos, o gigantesco mercado interno representado
pela índia.
Se o país, com 1 bilhão de habitantes, ainda tem grande contingente de pobres,
estima-se que sua classe média comporte entre 250 e 300 milhões de pessoas.
Visitei a Malásia em dezembro de 1995, logo em meu primeiro ano de governo.
Kuala Lumpur impressiona mesmo aos que temos vivência das grandes cidades do
Terceiro Mundo. A justaposição entre o pós-moderno dos edifícios recentemente
construídos e as habitações tradicionais, o trânsito engarrafado, não deveriam
chocar quem vive em São Paulo. Pois chocam. Assim como chama a atenção a
peculiar monarquia governante: há um rodízio de reis a cada 6 anos, contemplando
várias famílias nobres de distintas regiões. E os reis ainda andam, com as rainhas,
sob um pálio, havendo uma cor reservada à monarquia, o amarelo. Nos
banquetes mantém-se a high tàble onde se sentam os reis e os hóspedes
especiais, sendo servidos por garçons que se aproximam, só desta mesa, quase
de cócoras e sem encarar os comensais, com baixelas de ouro. Mas o que conta
mesmo, quem manda é o Primeiro-Ministro, na época o famoso Mahatir
Mohammed, que governou a Malásia durante 22 anos consecutivos, até 2003. Com
ele mantive longas conversações e estivemos juntos novamente em Buenos Aires,
em reunião com outros presidentes latino-americanos.
Nota: 9 Octavio Paz, Vislumbres de Ia índia, Barcelona, Planeta, 1996.
654
Na época, Mahatir travava uma guerra com o FMI, e outra com o mundo não-
muçulmano, especialmente com os judeus. Suas receitas macroeconômicas (que,
diga-se, tiraram a Malásia do aperto) implicavam controle do fluxo de capitais,
centralização do câmbio e forte intervencionismo. Nas empresas, sob a indução do
Estado, buscava-se obter um equilíbrio entre as populações de origem malaia,
chinesa e indiana - os três principais grupos étnicos do país - e outros
setores, públicos ou privados. As composições acionárias, em geral, obedeciam
a esta lógica, sempre conforme os interesse do governo. Na época, o homem- chave
da economia, o ministro das Finanças Anwar Ibrahim, parecia ter idéias menos
heterodoxas. Pouco tempo depois foi acusado de uma série de supostos crimes e
preso. Por mais sedutoras que fossem as idéias intervencionistas, no câmbio, nos
investimentos, como em tudo o mais, era óbvio que o complemento delas era a
ausência da democracia. Em nosso caso, uma receita que não respeitasse o Estado
de direito era não só inviável como indesejável. Nós, não obstante, queríamos
participar de algumas concorrências para a construção de hidrelétricas e para
a exportação de manufaturados. Os malaios queriam que nós utilizássemos seu
porto como porta de entrada na Ásia, especialmente para a China, competindo
assim com Cingapura.
Por fim, fiz proveitosa viagem à Coréia do Sul em janeiro de 2001. O Presidente Kim
Dae- jung ganhara o Prémio Nobel da Paz, e com ele encontrei coincidência de
propósitos, assim como pude sentir nos empresários coreanos boa disposição de
investir no Brasil, país no qual existe uma comunidade de não menos de 50 mil
imigrantes coreanos e descendentes. Pude ver de perto os progressos tecnológicos
e mesmo assinar um acordo de cooperação na área de nanotecnologia. Mas o que
me impactou mesmo foi visitar o paralelo 38, que divide as duas Coréias desde a
guerra de 1950-1953. As linhas de arame farpado e as muralhas de concreto
passam a não muitos quilómetros da capital, Seul, e chama a atenção a disposição
belicosa das tropas norte-americanas estacionadas do lado sul e das norte-
coreanas, a pouca distância. Há um ponto, um meeting point, em que o visitante vê
o outro lado a cerca de cinco metros de distância. O "lado de lá" é tão aterrador
quanto o "lado de cá", em que o oficialcomandante expunha a mim, a Ruth e ao
chanceler Lafer o estado de prontidão para a guerra.
655
É bom ver de perto os resquícios da guerra fria para aumentar os temores de uma
"guerra quente" que pode ser provocada por uma precipitação atómica, por
exemplo, de alguma potência regional, somada à incompreensão das grandes
potências. Como estávamos em momento de distensão, graças aos esforços do
Presidente sul-coreano, aproveitei a deixa para, no salão próximo ao meetingpoint,
fazer uma proclamação pela paz à Coréia do Norte - diante de um microfone e de
alto-falantes que ecoavam nos dois lados da linha de demarcação - e anunciar que
o Brasil, dentro do espírito de reconciliação anunciado, estava pronto para reatar
relações com o regime de Pyongyang, coisa que fizemos.
Daquela ocasião para hoje, embora tenha havido alguma distensão
no relacionamento entre as duas Coréias, no plano global houve pouco progresso.
Continuam as escaramuças entre Pyongyang e Washington, sempre com a Coréia
do Sul temerosa de ser a primeira vítima, e a China fazendo o jogo da mediação
acanhada.
Espanha e Portugal, grandes investidores, e o Rei, um fiador da amizade
Com a Europa, o Brasil mantém relações culturais e políticas de outra natureza. O
peso da História limita a criatividade do presente. Mesmo assim, houve algo de
novo nos últimos quinze anos: a Europa Latina redescobriu a América Latina. Em
mais de uma oportunidade me referi às Cúpulas Ibero-americanas. Todos os anos
os presidentes, reis e primeirosministros de Portugal, Espanha e América Latina têm
um encontro. Muitas vezes critica-se a falta de "resultados práticos"
dessas cúpulas. (Fui encarregado de apresentar um projeto de remodelação da
cooperação neste âmbito e de revitalização das cúpulas, o que fiz em 2003, na
reunião de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, quando já deixara a Presidência.) A
verdade, no entanto, é que esses encontros, como outros da mesma natureza,
ajudam no conhecimento recíproco, na familiaridade mesmo, o que, em momentos
de necessidade, é de grande valia. Formam-se relações de confiança que, junto com
as chamadas telefónicas, facilitam grandemente o relacionamento entre os países.
Pois bem, nesse contexto, os vínculos econômicos e políticos da América Latina
com Portugal, Espanha,
656
França e, talvez em menor proporção, com a Itália, aumentaram muito.
Pouco a pouco, esses países expandiram seus investimentos e hoje alguns deles
desfrutam posição de destaque como nossos parceiros.
No caso do Brasil, a presença portuguesa e espanhola se renovou. Isso não se deu
ao acaso. Houve decisões políticas claras. Portugal, sob a inspiração do Presidente
Mário Soares (1986-1996) e, em seguida, com a Presidência de Jorge Sampaio
(sucessor de Mário, reeleito em 2001) e com António Guterres como Primeiro-
Ministro (1995-2002), todos socialistas (bem como com o Premier social-democrata
José Manuel Durão Barroso, que governou de 2002 a 2004), decidiu
claramente reaproximar-se do Brasil, no que foi correspondido por nós. Os
contatos entre líderes políticos, o mundo cultural e o económico se amiudaram.
Em janeiro de 1999, em plena crise cambial brasileira, Guterres enviou seu ministro
da Economia, Joaquim Pina Moura, ao Brasil. Ele assistiu à inauguração de uma
fábrica com capitais portugueses no Paraná, discursou reafirmando a crença no
Brasil e na continuidade dos investimentos de seu país e transmitiu-nos o apoio e a
confiança de seu governo. Não foi diferente a resolução espanhola. Por ocasião da
Cúpula Ibero-Americana em Havana, recebi convite para jantar na
embaixada espanhola com o Rei Juan Carlos e o PrimeiroMinistro José Maria
Aznar, do centro-direitista Partido Popular (PP), então no poder há três anos.
Aznar me assegurou, com a anuência do Rei, que seu país apostava no Brasil e
que, a despeito da afinidade de idioma da Espanha com os países de língua
castelhana, seriam conosco as relações prioritárias na América Latina. Assim
aconteceu. Empresas espanholas realizaram e continuam realizando gigantescos
investimentos no Brasil.
O governo anterior, do socialista Felipe González (1982-1996), havia sido decisivo
para intensificar o relacionamento entre a União Européia e o Mercosul. Poucos
dirigentes europeus, se é que algum (com exceção dos portugueses), têm como
Felipe González conhecimento da política brasileira e simpatia para com nosso
país. Dele se pode dizer, parodiando Garcia Lorca no poema a Ignácio Sanchez
Mejía, toureiro morto na arena, que custará muito a nascer, se é que nascerá, um
andaluz tão puro de intenções em suas relações com a América Latina. Felipe
tem visão abrangente do mundo e calor humano muito especial para sentir suas
dores. Não lhe faltam também a coragem e a determinação racional para enfrentar
os desafios da atualidade, como fez na Espanha. Com estilo oposto, cortante
657
como uma espada de Toledo, o castelhano filho de basco José Maria
Aznar, sucessor de Felipe, representou também um sólido ponto de apoio para
a aproximação entre os dois países. Existem duas Espanhas, como eles próprios se
deliciam em dizer. Uma mais católica, mais quixotesca e conservadora, na qual os
princípios são como labaredas que podem consumir seus objetos de dedicação. E
outra, mais liberal, capaz de aceitar mais facilmente a pluralidade e o compromisso.
A verdade é que uma e outra Espanha se reencontraram na América Latina atual.
Dá gosto ver como pessoas tão díspares são unânimes na simpatia pelo Brasil:
Manuel Marín, que conheci quando comissário da União Européia encarregado da
América Latina e mais tarde, deputado socialista, seria o presidente do Congresso
de Deputados da Espanha; ou Fernando Solana, meu ex-colega ministro do Exterior
- ele da Espanha, eu do Brasil - , que se tornou uma espécie de ministro da Defesa e
do Exterior da Europa;
ou, ainda, Narcis Serra, ex-vice-presidente do Conselho de Ministros e ex-ministro
da Defesa de Felipe González; sem contar os veteranos Manuel Fraga, de longa
carreira desde os tempos do ditador Franco e, na democracia, várias vezes
governante da Galícia, ou Jordi Pujol, que por mais de vinte anos dirigiu a
Catalunha. Personalidades marcantes com o mesmo ânimo positivo em relação a
nós são também Alberto RuizGallardón, do PP, prefeito de Madri quando terminei
de escrever este livro, no começo de 2006, e Esperanza de Aguirre, presidente da
região autónoma de Madri, do mesmo PP, mas de ala distinta à de Gallardón. Com
todos eles tive o gosto de lidar, encontrando em cada um o genuíno sentimento e
interesse em buscar aproximação conosco. Sobre todos, porém, para mim,
resplandece a figura ímpar de los Reyes, como dizem lá, Juan Carlos e Sofia.
A esta altura, permito-me uma pequena indiscrição para mostrar em que ambiente
de fraternidade se dão hoje as relações entre dirigentes brasileiros e alguns líderes
espanhóis. Numa de suas várias visitas ao Brasil, quando os reis da Espanha
estavam para regressar a seu país, o Rei Juan Carlos e eu nos despedimos ao
telefone, O roteiro da viagem incluíra, a pedido do casal real, uma estada de uns
poucos dias na Amazónia. No telefonema, o Rei contou-me sobre um pequeno
incidente, quando a Rainha, brincando com um macaco, sofrera uma mordida.
Tempos depois, estando na Espanha com Ruth, nosso filho Paulo Henrique,
sua mulher,
658
Evangelina Paranaguá Muniz Gouveia, e nossa filha Beatriz, a família real
gentilmente nos convidou para jantar. Chamei meus filhos e, como gosto de fazer
brincadeiras, disse-lhes que se tratava de encontro extremamente formal. Instruí-
lhes, mencionando um suposto item do protocolo real: jamais se dirijam aos reis
senão quando por eles perguntados, e, quando o fizerem, usem sempre o
cerimonioso tratamento de "majestade". Estando presente o Príncipe Felipe (que,
eu sabia, não iria ao jantar), é de praxe chamá-lo de "alteza". A reação não
poderia ser pior: se é assim não iremos, porque não sabemos como usar
essas formalidades etc.
Mas foram. O jantar seria na residência dos reis, o Palácio de Ia Zarzuela, um tanto
retirado, nos limites de Madri. A Zarzuela, onde estivera antes algumas vezes e
voltei posteriormente, mais parece uma boa casa de fazenda do que um palácio. É
espaçosa, com alguns acréscimos ao corpo principal, como se faz nas zonas rurais.
Salas amplas, sem luxo, com ante-salas. Automóveis entram por um portão lateral.
Há outras dependências mais burocráticas, com outra entrada.
Fomos recebidos muito natural e simplesmente. Os reis estavam vestidos de
maneira pouco formal. A Rainha Sofia, se pode parecer reservada ao primeiro
contato, é muito inteligente e agradável logo que ganha confiança nos
interlocutores. Ela foi logo dizendo, de bom humor, que trazia marcas indeléveis do
Brasil na própria pele, referindo-se à mordida que sofrera e lhe deixara leve cicatriz.
Pouco tempo depois noto que Beatriz e o Rei mantinham longa conversação, sem a
menor cerimônia, e nem sempre estando de acordo, sobre uma terra muito querida
de ambos, a Catalunha, região de forte sentimento nacionalista dentro da Espanha.
Beatriz viveu e estudou na capital da Catalunha, Barcelona, onde se especializou
em psicologia infantil no Instituto Municipal de Pedagogia, chegando a escrever uma
tese em catalão. Um a zero, pois "Sua Majestade" não fala catalão,
logo compensado por um empate, pois o português do Rei, aprendido no exílio de
sua família no Estoril, em Portugal, é melhor no vernáculo do que o nosso. Para
culminar e mostrar o modo gentil e familiar com que fomos tratados, quando nos
dirigíamos à sala de jantar, ao passar por um corredor no qual havia alguns óleos
retratando figuras da nobreza, Beatriz se dirige à Rainha Sofia:
- Eres tu?-perguntou, lançando mão de um pronome pessoal que só se usa na
Espanha quando se tem intimidade com o interlocutor.
659
Foi demais. Meu conservadorismo de comportamento (a meus próprios pais nunca
dei outro tratamento que o de "o senhor" e "a senhora") falou mais alto:
- Majestade - disse eu à Rainha, carregando no formalismo, que não era usual no
trato entre os dois casais -, não há solução; treinei direitinho todos eles e veja só o
que acontece...
Daí por diante, numa sala de jantar pequena, sentamo-nos ao redor de uma mesa
quadrangular, que deixava os convivas próximos uns dos outros, num ambiente
cálido, à vontade. A conversa fluiu na boa e tradicional maneira do encontro entre
pessoas que se querem e dão mais atenção à substância dos sentimentos e dos
pensamentos do que às investiduras que representam.
O fato é que minhas relações pessoais se estreitaram muito com os dirigentes da
Península Ibérica e desde então houve, como continua a haver, consultas
permanentes entre nossos governos e apoio claro a nossos pleitos, no FMI e nos
concílios políticos em geral.
Com António Guterres, tanto quando Primeiro-Ministro (1995-2002) como depois,
tive muitas ocasiões para que pudesse apreciá-lo e respeitálo cada vez mais.
Passamos inesquecível fim de semana no Pantanal, com ele, seus filhos e uma
irmã, após o falecimento de sua esposa, Luísa.
Com Jorge Sampaio e sua mulher, Maria José Ritta, do mesmo modo, os encontros
foram e continuaram a ser o de antigos amigos. Sampaio (1996-2006) é um
intelectual refinado que redefiniu o papel da Presidência portuguesa de maneira
absolutamente democrática e fiel ao espírito da Constituição. E de Mário Soares
(Primeiro- Ministro de 1976 a 1978 e de 1983 a 1985, além de Presidente de 1986 a
1996) e Maria Barroso - ela com luz própria, como ex-atriz, veterana
militante socialista e ex-deputada -, o que dizer, senão invejar-lhes o ânimo
e renovar a admiração pelos serviços prestados à causa da democracia?
Recordo-me de que pouco antes da Revolução dos Cravos (1974), Mário esteve em
São Paulo. Foi difícil juntar alguns amigos no Cebrap que o ouviram dizer, sem que
acreditássemos, que a ditadura salazarista, liderada por Marcelo Caetano, cairia em
breve. Depois viajei a Portugal tantas vezes a estar com ele, em campanhas
eleitorais ou em seus gabinetes de ministro do Exterior, Primeiro-Ministro ou
Presidente da República, que não sabia como, enquanto finalizava
660
este livro, deixar de me emocionar vendo-o novamente a dar o melhor de si, na flor
dos oitenta anos, para tentar sem sucesso levar seu Partido Socialista à vitória, nas
eleições presidenciais de janeiro de 2006.
Revendo a guerra fria diante de Gorbachov
Com os demais países europeus, se não houve revigoramento tão notável no que
diz respeito aos investimentos, o nível de convergência política aumentou muito.
Com a Alemanha, especialmente, país que visitei em três ou quatro oportunidades,
no qual se originam famílias de milhões de brasileiros e que tem investimentos
produtivos há longos decénios no Brasil, estabelecemos, desde o tempo de Helmut
Kohl (1982-1998), um programa de apoio às reivindicações ecológicas. O
democrata-cristão Kohl é um gigante, e não só no tamanho físico, com seus 2,03
metros de altura. É um homem cortante, até áspero no contato, mas sua
aparência, rude à primeira vista, contrasta com uma aguda visão da História.
Mesmo com as amarguras que sofreu, o reunificador da Alemanha continua
como um marco na nova Europa. Na primeira volta à Alemanha após as
acusações que sofrera por suposto uso de dinheiro irregular para fins partidários, e
não sendo mais Primeiro-Ministro, chamei-o ao telefone em Berlim para lhe dar um
abraço. A voz vigorosa respondeu:
- Eu vou continuar lutando e vencerei.
Vi-o bem depois, em março de 2005, em um encontro de três dias em Turim, na
Itália, patrocinado pelo World Political Fórum, entidade ligada à Fundação
Gorbachov, de que faço parte, intitulado "Vinte anos que mudaram o mundo: 1985-
2005". No segundo dia, em tarde memorável, juntaram-se o próprio ex-Presidente
da extinta União Soviética Mikhail Gorbachov, Kohl e o ex-Primeiro-Ministro italiano
Giulio Andreotti para nos contarem como se deu o degelo Leste-Oeste em seguida
à perestroika e à queda do Muro de Berlim. Ouviu-se a História vivida e contada.
Num salão belíssimo de um antigo edifício de Turim, assistiam pouco mais de cem
personalidades. Muita gente que queria ver os líderes ficou de fora por falta de lugar.
Antes de começar a sessão sentei-me ao lado de Andreotti, que, atento e ativo aos
88 anos, tomava notas num bloco.
Fascinou-me tratarem, entre outros assuntos, de como se processava
a comunicação entre governantes durante o período da guerra fria.
Referiam-se
661
não apenas a eles próprios, todos protagonistas do período - Andreotti em menor
grau, devido à menor importância relativa da Itália em matéria de confrontação com
o bloco soviético -, mas também a vários líderes que tiveram papel nesse processo,
especialmente o Presidente americano Ronald Reagan e a Primeira-Ministra
britânica Margaret Thatcher (1979-1990). Tudo durante a guerra fria era complicado,
às vezes dificílimo, contaram. Falo ou não pelo telefone? O que devo dizer?
Como serei recebido? Todos os detalhes eram interessantes. Veio-me a sensação
de que tudo aquilo parecia ter acontecido ontem, e no entanto estavam ali, naquele
auditório, personagens que fizeram História, sobretudo Gorbachov, senhor de todas
as Rússias de 1985 até o fim da União Soviética, em 1991. Conheci Gorbachov há
muitos anos e estive várias vezes com ele. É um homem efusivo, cordialíssimo,
vital.
Acredita realmente na democracia. Minha admiração por ele inclui o fato de, ainda
enquanto governante, ter sido um dos primeiros líderes mundiais, e com certeza o
primeiro da exURSS, a dizer que o mundo mudou tanto que questões como o meio
ambiente são causas da Humanidade inteira e ultrapassam classes sociais,
convicções políticas e fronteiras nacionais. Isso é de um significado imenso para
quem, como ele, e de alguma maneira também pessoas de minha geração em todo
o mundo, teve desde sempre enraizados, por formação, conceitos como nação e
classe. Em Turim, ao revê-lo nas circunstâncias que descrevo, parecia-me que no
fundo estava assistindo ao início do mundo contemporâneo, em que a Alemanha de
Kohl jogou papel crucial, O sucessor de Kohl, o social-democrata Gerhard
Schroeder (1998- 2005), esteve mais de uma vez no Brasil, demonstrando que a
aproximação política com a Alemanha continuara. Entre os muitos contatos que
tivemos, um dia, em 2000, ele me telefonou pedindo que eu ajudasse a obter votos
para o candidato que indicava à substituição de Camdessus no FMI. Tratava-se de
seu vice-ministro da Economia, Caio Koch Weser, que nasceu no Brasil, aqui viveu
algum tempo e é fluente em português. Acabou não sendo possível obter acordo
entre os países ricos para o lançamento de Weser. Para seu lugar, os europeus
indicaram o também alemão Horst Kõhler, ex-presidente do Banco Europeu para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (e, posteriormente, Presidente da República
Federal da Alemanha), para quem orientei alguns votos, sempre a pedido de
662
Schroeder. Resultado: eleito, a primeira visita do novo diretor-gerente do Fundo foi
ao Brasil, para agradecer o apoio recebido. Não pude deixar de reagir ironicamente
quando vi na imprensa os comentários habituais de críticos do governo segundo os
quais ele vinha ao Brasil para "dar-nos ordens". O mundo mudou, o Brasil mudou,
podemos jogar um jogo mais hábil a nosso favor, mas os clichês continuam os
mesmos...
No esforço de reposicionar o Brasil e assegurar-nos maior credibilidade, visitei
praticamente todos os países da Europa Ocidental, com especial destaque para a
Itália, país onde estive várias vezes, sendo recebido pelos Presidentes Oscar Luigi
Scalfaro (1992-1999) e Cario Azeglio Ciampi, seu sucessor, e pelos Primeiros-
Ministros Romano Prodi (1996-1998) e Massimo D'Alemã (1998-2000). Todos eles
retribuíram as visitas e nelas o tema sempre foi a aproximação entre o Mercosul e
a União Européia e o revigoramento das relações comerciais, dos investimentos,
das relações culturais e políticas com um país de cujos imigrantes descendem no
Brasil mais de 25 milhões de pessoas, em termos absolutos a maior quantidade de
oríundi em todo o mundo. Detalhe curioso: quando recebi da Universidade de
Bolonha o título de doutor honoris causa, Prodi, Primeiro-Ministro e professor
daquela universidade, que assistiu à solenidade, pediu carona no avião presidencial
para voltar a Roma. Lição para todos nós: governante de um dos seis países mais
ricos do mundo, não se fazia acompanhar por guarda-costas e não dispunha de
meio de transporte aéreo.
Visitei ainda a Eslovênia, a Rússia, a Ucrânia e a Polônia. O Presidente da
Eslovênia, Rudolf Shuster (1999-2004), havia escrito dois livros sobre o Brasil. Na
década de 1920, seu pai estivera em expedição fotográfica explorando a Amazônia,
percurso que o filho refez. Com o Presidente da Polônia, Alexander Kwasniewski
(1995-2005), e sua mulher, Yolanta, passamos bons momentos em Varsóvia, No
banquete que nos ofereceram levei minha neta Júlia, na época com doze anos, que
pelo lado paterno descende de judeus poloneses. No dia seguinte, fomos visitar o
Gueto de Varsóvia. Diante do monumento aos mortos na rebelião contra o nazismo,
ela, o ministro Celso Lafer e eu nos preparamos para uma fotografia. Júlia me disse:
663
-Você não, vovô.
Apontou para o ministro, membro proeminente da comunidade judaica de
São Paulo, e afirmou:
- Só nós dois somos judeus.
Isso é o Brasil. Júlia, para os judeus ortodoxos, nem é judia, pois sua mãe não o é.
Ela assume sem dificuldade a condição cultural porque sente que isso nos aproxima
de povos lutadores que sofreram discriminações. Mais tarde o Presidente da
Polônia e esposa retribuíram a visita. Nossas relações comerciais aumentaram e a
simpatia pessoal também. Não me esquecerei da observação que me fez quando,
na abertura de um concerto de piano em Varsóvia, ao terminar nosso Hino
Nacional, Kwasniewski, conhecedor e apreciador de hinos, me disse:
- Mas este não é apenas um hino, é uma ópera. Tem libreto?
Na vastidão do Kremlin, com Yeltsin e Putin
Seria cansativo e desnecessário entrar em mais detalhes. Para mostrar o tipo de
relacionamento alcançado com alguns dirigentes mencionarei apenas visitas à
Rússia, ao Reino Unido e à França. Estivera algumas vezes na Rússia, no passado,
desde um congresso da Associação Internacional de Sociologia, em 1982. Em
1994, Presidente eleito, decidi em dezembro acompanhar Ruth para um evento da
Unesco de que ela participaria. Era também uma ocasião para fugir um pouco do
intenso cerco da mídia, a poucos dias de minha posse. Interessado em conhecer-
me, o Presidente Boris Yeltsin (1991-1999) convidou-me a visitá- lo.
Antes do encontro, eu percorrera parte do Kremlin, que como se sabe é um conjunto
gigantesco e heterogéneo, uma fortaleza que abriga igrejas e palácios. Entre
maravilhas de arte e arquitetura guiou-me um parente algo distante, Serguei
Zaremovitch Tchernov. Arqueólogo, ele trabalhava em escavações no local e era
neto de um primo-irmão de minha mãe, Octávio Brandão Rego, comunista que se
refugiou na União Soviética nos anos 1930, e depois voltou ao Brasil, deixando três
filhas em Moscou.
Até reunir-me com Yeltsin eu nunca ingressara na parte funcional do Kremlin. Essa
área, com salas grandes e móveis sem estilo, nada tinha de atraente. Mantivemos
conversa longa e boa. Yeltsin se fez acompanhar por diplomatas que tratavam de
questões da América Latina, e eu
664
pelo embaixador Rego Barros. O interesse em uma aproximação política, mas
sobretudo comercial, entre nossos países foi o tema principal do encontro.
Criticou-se muito Yeltsin e sua gestão. Pessoalmente, porém, aquele homem
corpulento e efusivo, que falava muito, tinha forte presença e cativava.
Impressionaram-me seu magnetismo e sua disposição de estreitar relações
conosco. Para amenizar o início da conversa relatei experiência recente que tivera
no Pantanal e, depois de convidá-lo a visitar ao Brasil, descrevi as maravilhas da
vida selvagem.
Curiosamente, quase um ano mais tarde, por ocasião do 50° aniversário da ONU,
em Nova York, quando ele solicitou ver-me, o Presidente se lembrou perfeitamente
de minha descrição do Pantanal. Havia grande expectativa na imprensa brasileira
que cobria minha viagem: afinal, o que desejaria dizer o Presidente da Rússia,
potência nuclear, ao Presidente brasileiro? Travamos, então, um diálogo espantoso:
- Como se chama seu Primeiro-Ministro? - perguntou-me o gigante russo, sempre
incisivo.
Diante da resposta de que não tínhamos um Premier no Brasil, ele prosseguiu:
- Mas então quem trabalha lá? [Como procurando saber quem se ocupava
das questões administrativas no governo.]
Para não responder que era eu próprio, mencionei que além de mim havia o Vice-
Presidente.
- Como se chama?
Mencionei o nome de Marco Maciel, ao que Yeltsin repetiu duas ou três vezes, com
o "c" e o "l" prolongados dos russos:
- Maccciell? Macccielll?- como que enrolando a língua. Depois, sem mais, me disse:
- Irei ao Brasil no próximo abril - e pediu a um assessor que tomasse nota da data
(eu não havia mencionado nenhuma data).
E acrescentou:
-Vou levar umas vodcas para o Pantanal.
Pronunciou várias vezes, como que deliciado, e muito alegre, a palavra "pantanal",
em português.
Respondi-lhe (já em tom de brincadeira) que deveríamos ter cuidado com isso,
porque se bebêssemos muito correríamos o risco de cair na água
665
e as piranhas nos devorariam. Abraçou-me, caloroso, na despedida. O difícil, ao
final, foi tentar resumir para os jornalistas as conversações que tivemos sobre,
imaginavam eles, a aproximação comercial Brasil-Rússia. O tema de fato foi
abordado, mas, menos do que um sinal de abertura comercial, Yeltsin queria
expressar o desejo de se aproximar do Brasil, país que por seu porte eventualmente
pode servir de contrapeso a outras influências maiores nas Américas.
Essa mesma vontade era manifesta nos encontros que tive com o sucessor de
Yeltsin, Vladimir Putin, em janeiro de 2002. Na ocasião, como hóspede oficial no
Kremlin, pude sentir de perto os restos da autocracia. A segurança e a guarda do
Palácio, comparadas às nossas, são de dar medo. Hospedei-me numa parte do
Kremlin que não conhecia.
Imensa, repleta de salões, salas e ante-salas, mas, como todo palácio antigo, pouco
funcional e sem certos confortos da modernidade que, por exemplo, abundam na
equivalente americana, a Blair House, em Washington. Encerrado o banquete com
Putin - realizado, este sim, num esplêndido salão ovalado do século XIV, antecedido
por belas ante-salas e repleto de candelabros belíssimos -, convidei os brasileiros
que aproveitaram minha presença para também visitar a Rússia, que não
eram poucos, a tomar um drinque em meus aposentos. Quando chegaram,
uma surpresa: nada havia para servir. Funcionários russos, com muito boa vontade,
acabaram improvisando alguns itens.
As conversas com o Presidente russo revelaram um homem fisicamente
bem plantado, sólido, reservado, com olhar penetrante e um tanto glacial.
Com ele, percebe-se estar diante de uma pessoa articulada e aguda, que sabe o
que quer. Talvez por sua carreira de ex-agente da antiga polícia secreta do velho
regime, a KGB, dá a impressão de ser um tanto fechado, formal. Mas foi simpático.
Agia como se não falasse inglês e recorria a intérprete, embora em outras ocasiões
tivesse usado o idioma comigo.
Trata-se de recurso clássico, em certos encontros de chefes de Estado:
com intérpretes, ganha-se tempo para refletir antes de falar.
Tratamos de vários temas das relações diplomáticas e comerciais entre nossos
países e ele avançou alguns comentários interessantes sobre como via o momento
político internacional.
Sobre suas observações, me ficou na memória que sua preocupação política se
desdobrava em dois planos: a integridade territorial da Rússia
666
e a atitude dos americanos, que ele não compreendia. Por que reabrir naquele
momento o tema da "guerra nas estrelas" por exemplo? - indagava, referindo-se ao
sistema antimísseis no espaço que os americanos discutem e pesquisam desde os
anos 1980.
- Se só os dois [os EUA e a Rússia] podemos enfrentar esta guerra e nós, russos,
não estamos nos preparando para ela, por que isso agora? - perguntou.
Em seguida reafirmou, a despeito dessas ressalvas, seu propósito de manter as
melhores relações com os EUA, até porque não seria viável cuidar ao mesmo
tempo da unidade interna e de adversidades externas.
Não havia por que duvidar de sua sinceridade. O Presidente tinha diante de si o
desafio colossal de reerguer um país que descera ao fundo do poço na gestão
anterior, pós-comunismo, e ao mesmo tempo enfrentar movimentos separatistas em
diferentes regiões do vastíssimo território russo, sem contar a instabilidade de
vizinhos, como a Geórgia e algumas das repúblicas da Ásia Central, Nessas
condições, as relações conosco não mereciam lugar excepcional na agenda russa,
resumindo-se mais especificamente, como vem ocorrendo há vários anos, à
ampliação do comércio - é cada vez maior a importância da Rússia em
nossas exportações de carne bovina e suína, por exemplo.
Pelé abala a fleugma britânica e Blair se impressiona com o Brasil
Quanto à Grã-Bretanha, visitei várias vezes o país. Em uma das visitas, em
dezembro de 1997, Ruth e eu nos hospedamos por três dias no Palácio de
Buckingham, com as honras de estilo. Recebi doutoramentos honoris causa das
universidades de Cambridge (onde lecionei em meados dos anos 1970 e em outras
oportunidades) e Oxford, assim como da London School of Economics. Em outubro
de 2001, passei um fim de semana com Ruth como hóspedes de Chérie e Tony
Blair, em Chequers, casa de campo dos primeiros-ministros britânicos e local
predileto de Churchill durante a Segunda Guerra Mundial. Com Ruth, eu estivera em
viagem oficial a Madri - ocasião em que se formou o Clube de Madri, composto por
ex-chefes de Estado e de governo com o objetivo de discutir
667
a democracia e disseminá-la pelo mundo - e de lá tomamos um avião que nos
conduziu à Base Aérea de Brize Norton, em Oxford, de onde seguimos de carro
pelo belo campo inglês até Chequers, em Buckinghamshire. Chequers, um grande
complexo com a típica coloração avermelhada das velhas e sólidas casas inglesas,
talvez não seja bela, mas é imponente. Há um amplo hall de entrada, com as
paredes cobertas de quadros de pintores britânicos importantes de diferentes
épocas. A seguir, uma grande sala de jantar. O primeiro andar abriga
uma estupenda biblioteca, comprida como se fosse uma galeria, de teto não muito
alto, repleta de raridades em prateleiras com portas envidraçadas.
O hall da biblioteca é uma espécie de sala de estar, muito agradável.
Andares superiores comportam também os quartos, simples mas confortáveis.
Nessa oportunidade, Bill Clinton se juntou a nós para o jantar.
Sentou-se à mesa conosco também a governanta que cuidava de Leo, o filho
caçula do casal Blair, então com três anos de idade. Depois, fomos tomar um
drinque na sala de estar da biblioteca. Assisti à empolgante conversa entre os dois
líderes sobre o Oriente Médio, posto que o Primeiro- Ministro britânico visitaria nos
dias seguintes a Palestina e Israel,
Clinton conhecia profundamente a situação, e lamentou ter chegado ao fim de seu
governo, em janeiro daquele 2001, sem ter obtido a paz. Segundo disse, a paz
havia estado "ao alcance da mão" durante as conversações que patrocinara no ano
anterior entre o Primeiro- Ministro israelense Ehud Barak e o Presidente palestino
Yasser Arafat. Sua familiaridade com o Oriente Médio chegava ao ponto de
conhecer detalhes sobre o acesso dos povos da região à água, e a relação entre a
questão e as dificuldades estratégicas. Blair, a despeito de estar no poder
desde 1997 e ter vasta experiência em assuntos internacionais, me
pareceu embevecido. Impressionou-me que Clinton desfiasse ao Primeiro-
Ministro, nome por nome, as pessoas dos dois lados que lhe seria útil procurar.
No dia seguinte tomei café-da-manhã com Blair. Ele estava com atenções voltadas
para a questão israelense-palestina, mas também se declarava preocupado com a
existência de armas de destruição em massa no Iraque (que tropas americanas e
britânicas invadiriam em março de 2003; as armas, como se sabe, não foram
encontradas). Deixei com Blair o texto do discurso que faria dias depois, sólido
aliado dos EUA, na Assembléia
668
Nacional da França. Blair fala francês, e provavelmente não terá gostado do texto,
em que eu mencionava que um eventual ataque ao Iraque poderia ser fonte de
terrorismo.
Por ocasião daquele fim de semana em Chequers, Blair já estivera, meses antes -
em julho - no Brasil. Era a primeira viagem de um Primeiro-Ministro do Reino Unido
à América Latina. Até então ele não tinha idéia do que realmente é nosso país.
Insisti para que realizasse a visita, importante para as relações bilaterais, e Clinton
reforçou, dizendo-lhe a mesma coisa. Percebi o quanto o impressionou o
Brasil após visitar Brasília, São Paulo e, no Paraná, a hidrelétrica de Itaipu e as
cataratas do Iguaçu, diante das quais ficou extasiado. Pareceu-me claro que seu
interesse por nossos assuntos e problemas aumentou depois da visita. Durante meu
governo, Blair manteve relação muito positiva com o Brasil.
Conseguimos nos relacionar não só respeitosamente com os líderes das grandes
potências, mas fazê-lo com certa naturalidade. De todo modo, confesso que passar
duas ou três noites no Palácio de Buckingham, como nos ocorreu em 1997, mexe
com o imaginário. Não pelo palácio propriamente dito. Buckingham, também um
museu, é grande, com pédireito alto, forrado de quadros e tapetes, embora um tanto
desajeitado. Mas impressiona, sem dúvida, embora seja gesto natural e decorrente
do protocolo ver a Rainha, solícita, a mostrar-nos os aposentos em que ficaríamos
hospedados, chamados "do Príncipe Albert", no térreo. Amplo salão, quarto de
dormir e de vestir, banheiro, saguão, corredores e uma piscina grande, que serve a
todo o palácio. Da mesma forma o que se deu no dia seguinte, quando o Príncipe
Philip nos veio buscar para que o acompanhássemos ao andar de cima. Lá,
Elizabeth II nos apresentou um por um a mais de uma dezena de seus parentes e,
em seguida, saímos em cortejo, antecipados por dois gentis-homens que não
podiam dar-nos as costas e que entravam solenemente no enorme salão de
banquetes, à passagem do qual as cerca de duzentas pessoas que lá estavam
faziam as mesuras de praxe a Sua Majestade.
O salão de banquetes tinha um mezanino ao fundo onde ficava uma orquestra. À
mesa (com serviço de vermeil), circundado pela soberana e pela Rainha-mãe,
também Elizabeth, vendo em outra mesa o então jovem e recém-eleito Tony Blair,
ouvi a Rainha - toda engalanada com
669
as famosas águas-marinhas que Assis Chateaubriand lhe dera quando embaixador
do Brasil em Londres, e que de tão numerosas serviam de adorno para o colar, as
pulseiras, os brincos e até mesmo a tiara - tecer loas ao Brasil que renascera.
Respondi-lhe mais sobriamente, meio desajeitado na casaca alugada, cuidando
para que a condecoração real que atravessava meu peito em faixa vermelha não
despencasse sobre o texto que eu lia. Tudo isso, no entanto, embora formal, se
desfez no ar pela graça da Rainha-mãe.
Como presente oficial, eu lhe oferecera um pássaro de pedras brasileiras e bico
prateado - esses discutíveis presentes que nossa avareza de meios impõe como se
de preciosidades se tratassem. E ela se entusiasmou com o nome que atribuí ao
pássaro. Perguntado sobre como se chamava, respondi de pronto, do fundo de
minha ignorância:
- Jaburu, madame.
Ela repetia com delícia, trocando o u por a, o nome daquele pássaro imaginário.
Marcou-me também naquele jantar a acuidade da Rainha Elizabeth a me contar
suas recordações de primeiros-ministros com quem lidara, de Churchill (1940-1945 e
1951-1955) a Blair, passando por Margaret Thatcher. A respeito de Thatcher, ela
emitiu um comentário surpreendente para quem imagina a Rainha mantendo
absoluta contenção sobre temas políticos: a Primeira-Ministra (que governou por
onze anos), opinou, talvez tenha permanecido tempo demais no cargo...
Contraponto necessário: uma determinada manhã eu deveria visitar um clube de
futebol. Para fazer-me companhia chegou a Buckingham meu ministro de Esporte,
Pelé. Aí, sim, houve alvoroço. Se é de bom-tom apresentar os principais serviçais a
hóspedes ilustres, no caso de Pelé não houve nada disso: momentaneamente
abandonada a fleugma britânica, houve corrida desabalada de todos quantos por lá
estavam, dos royals aos empregados da cozinha, dos mordomos às damas de
companhia. Todos queriam um autógrafo ou uma foto com o "Rei" urbi et orbi. Disse-
lhe, brincando:
- Pelé, enquanto eu for Presidente você nunca mais viajará comigo, sob pena de eu
virar parte humilde do cortejo de Vossa Majestade universal...
670
A criatividade do povo é o fundamento da grandeza
Por fim, uma palavra sobre a França. As relações com o Presidente Chirac nunca
deixaram de ser muito positivas, produto de nossos vários encontros. Com ele estive
inclusive na Guiana Francesa, oficialmente uma extensão do território francês. Lá,
lembramos que a maior fronteira da França é com o Brasil: os 700 quilómetros ao
longo dos quais o Amapá se encontra com a Guiana. Nossos governos discordam
em pontos importantes sobre o protecionismo agrícola. As convergências, no
entanto, são muito mais numerosas. Isso ocorreu tanto entre 1997 e 2002, quando
o Primeiro-Ministro era Lionel Jospin (com quem voltei a me encontrar em Florença,
no âmbito da Terceira Via, mais de vinte anos depois de um jantar em minha casa
em São Paulo, sendo na ocasião Jospin dirigente do Partido Socialista e eu
senador), como em fases em que as cores políticas eram menos avermelhadas. Os
interesses entre países saltam diferenças partidárias. Meu trato com ambos, Chirac
e Jospin, permitiu, quando necessário, que, ademais dos contatos pessoais nas
visitas oficiais mútuas, nunca hesitássemos em usar o telefone para resolver dúvidas
ou pedir ajuda. Isso aconteceu, por exemplo, em 1996, quando o leilão de
privatização da Light, empresa distribuidora de eletricidade do Rio de Janeiro,
chegava à beira do fracasso por falta de compradores (consideravam o preço alto
demais e não queríamos vendê-la pelo menor lance - de igual modo como
procedemos para valorizar a venda das teles)
e insisti com Chirac para que os franceses participassem. Mas inegavelmente, do
ponto de vista simbólico, o momento culminante no relacionamento com a França
durante minha Presidência foi o convite que recebi da Assembléia Nacional para, a
30 de outubro de 2001, dirigir-me aos deputados. Lá estavam presentes, com
Jospin, dois ou três ex-primeiros- ministros e muitos parlamentares. Pronunciei
discurso duro contra o protecionismo e apelando à paz por causa dos
acontecimentos posteriores ao 11 de setembro nos EUA. Discurso que, se repercutiu
bem na França, desagradou a setores do governo americano.
Não se pense que a presença brasileira crescente se faz só pela diplomacia e pelos
laços económicos. Fiquei impressionado pela acolhida que a Assembléia francesa
me dispensou, mas igualmente pela presença de Ronaldinho Gaúcho entre os
convidados para o coquetel posterior ao discurso, À sua chegada - não pude deixar
de me lembrar de Pelé em Buckingham -, cessaram de cantar as antigas musas.
Deu-se um esbaforido corre-corre entre políticos franceses e convidados para
tirar fotografias - não comigo, obviamente, mas com nosso craque que,
chegado então há apenas alguns meses na França para atuar na equipe do
Paris Saint Germain, já era ídolo, sem mencionar que já arranhava um francês digno
de respeito. E isso que acontece com Ronaldinho Gaúcho, com Pelé e com os
grandes craques, como Ronaldo, repete-se com nossos músicos e artistas. A força
de um país não se limita à de suas armas, de sua economia ou de seu talento
diplomático. A criatividade de seu povo é o fundamento da verdadeira grandeza.
Palavras finais
Escrevi este livro nos últimos dois anos e meio, esparsamente. Comecei-o em
Providence, no estado de Rhode Island, nos EUA, onde fica a Universidade de
Brown, na qual trabalho durante parte do outono americano. No mais das vezes,
trabalhei em minha casa em São Paulo, entre uma e outra atividade, uma e outra
viagem, para cumprir minhas obrigações nacionais e internacionais. Pude dar-lhe
impulso maior nos três meses que passei, no começo de 2004, no Krueger Center
da Biblioteca do Congresso, em Washington, e o retomei tanto em 2004 como em
2005 no Watson Institute for International Relations de Brown. Reli-o nas últimas
semanas de dezembro de 2005 e nas primeiras de 2006. Escrevo estas palavras
finais entre uma palestra em Oxford, a Olof Palme Lecture, e uma reunião em
Genebra, na qual estamos discutindo o futuro da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), organização criada na ONU sob a
inspiração do economista argentino Raul Prebisch - que foi seu primeiro diretor-geral
- para que os países "do Sul" pudessem se organizar para fazer frente aos
"do Norte", entrincheirados no Acordo Geral sobre Tarifas e Comérico (GATT)
e mais tarde na OMC.
Confesso que ao relê-lo senti uma certa decepção. Decepção que não advém da
insuficiência das descrições e análises que fiz para resumir o esforço despendido
com afinco para melhorar o Brasil, nem de imaginar que nada mudou. Valeu o
esforço. Por outro lado, as condições atribuladas nas quais trabalho, se não
justificam, explicam as insuficiências mencionadas. O que me decepciona é ver o
tempo que custou para o país obter os resultados que alcançamos, tão longe
ainda do necessário. Por mais que tivéssemos feito, por mais que o Brasil tenha
mudado, o mundo não parou e, olhando em volta, fica-se sem saber o grau de
avanço relativo.
Nos anos 1970 e 1980 perdemos a corrida com os "Tigres Asiáticos".
Dizíamos que eles eram meras plataformas de exportação e nós dispúnhamos de
um enorme mercado interno, confundindo população com capacidade de compra. E
agora, perderemos novamente na comparação com a
673
índia e a China? Fosse só a perda de posição no ranking do poder ou
do crescimento da economia, e eu não sentiria tanta ansiedade. Mas o que se
perdem são chances de mais gente ascender à escola, ter melhor atendimento na
saúde, obter mais e melhores empregos e ter maior capacidade para tomar
decisões verdadeiramente livres, porque com mais opções.
Essa sensação de ficar para trás, prejudicando tanta gente, deixando que os bolsões
de pobreza material e espiritual sufoquem os avanços conseguidos, provoca em
mim, depois da decepção, indignação. Dava para ter liberado mais depressa o país
das amarras de um passado que, se teve seus momentos de brilho, hoje funciona
como lanterna na popa. Pior, mantendo a pretensão de ser o farol do futuro. O futuro
depende de melhor organização da sociedade e do governo, de mais
criatividade, mais e melhor educação, mais ciência e tecnologia, menos
privilégios, mais competição apoiada no mérito, mais avaliação, mais coragem
para mudar. E, sejamos claros, mais decência na vida pública, mais Justiça, menos
corrupção e mais segurança para as pessoas.
Como é possível falar em alargamento da cidadania sem tudo isso? E, por acaso,
para falar em democracia basta o direito de votar, mesmo que não haja proximidade
entre eleitor e representante, nem cobrança pelo eleitor da conduta dos
representantes que os penalizem, afastando-os nas eleições subseqüentes?
A indignação vem de olhar o passado recente e ver que os personagens hoje no
poder (pessoas, partidos, forças sociais) resistiram a toda inovação para melhorar o
Brasil e agora alardeiam como feito próprio o que brotou das raízes que tanto
fizeram para impedir que vingassem.
Quanto tempo perdido pela cegueira ideológica, pela falta de humildade para
aprender a manejar as políticas públicas e para entender a sociedade. Confesso
candidamente minha decepção. Depois de haver construído uma transição de
governo que abriu espaço para uma convergência em benefício do país, colhemos
novamente dos que se arrogavam ser a expressão máxima das virtudes públicas e
portadores do futuro a pecha de "adversários", quando não de "inimigos". Diante
da enormidade do esforço feito pela sociedade e por meu governo para ajustar o
país aos novos tempos, esforço que, mesmo capengando, teve continuidade no
governo que me sucedeu, não teria sido possível e mais construtivo ter-se aberto
um diálogo nacional,
674
em vez de colher apoios no balcão da indignidade com pagamento à
vista?
Não adianta chorar sobre o leite derramado. Que pelo menos o travo da desilusão -
que não é só minha, é de gregos e troianos - não impeça desenhar um cenário
melhor para o futuro. Se até agora não soubemos juntar mais forças para estarmos
à altura dos desafios que o país precisa enfrentar (eu, embora tenha tentado, aqui e
ali, ultrapassar a barreira tradicional entre governo e oposição, não me empenhei
com a obstinação e a humildade necessárias, e minha voz não ultrapassou a zoeira
dos arautos do passado), olhemos para frente com mais disposição de fazê-lo.
Não nos enganemos, o desafio não será apenas o de consolidar as transformações,
por assim dizer, materiais da sociedade e do povo. Para consolidá-las sabemos que
falta deslindar a armadilha dos juros altos, da dívida interna que cresce a golpes de
esbanjamento de recursos públicos com despesas correntes e descontrole na
Previdência; será preciso aumentar a poupança doméstica e atrair mais
investimentos interno e externo para expandir a riqueza e o mercado de trabalho.
O país clama por mais igualdade e melhor distribuição da renda, com elevação do
piso do ganho dos mais pobres, processo que não se constrói no curto prazo e
requer uma sofisticada combinação de políticas que se mantenham no tempo.
Porém, é preciso mais do que isso: a alma do país está acabrunhada. Vaga sobre as
construções materiais e institucionais sem acreditar em um destino comum que
aproveite a todos.
Convém voltar às palavras de Weber: a política requer perspectiva e paixão. Não
basta cantar os louros do progresso material, das exportações, das migalhas em
que se transformaram as iniciativas de promoção social. É preciso muito mais para
renovar as esperanças. Não que eu descreia de um povo que é capaz de renovar
sua cultura, suas artes, seus esportes e assim é capaz de se refazer. Nem,
portanto, que o pessimismo me abata. Não; mas a crença, a paixão por reconstruir,
por abrir novos caminhos, deverá vir acompanhada por uma perspectiva realista à
qual as pessoas possam se agarrar porque acreditam e porque vêem no caminho a
ser percorrido os benefícios que podem colher.
Os motores já instalados na economia são poderosos. À capacidade técnico-
intelectual das universidades, centros de pesquisa, organizações empresariais (na
indústria, nos serviços e no agronegócio)
e até mesmo
675
em agências públicas permite a adaptação progressiva do país à ordem global.
Como mostrei neste livro, fortalecemos as instituições e há liberdade. Formou-se
uma opinião pública mais livre e as pessoas, cada vez mais, se informam, buscam
decidir por conta própria e lutam por melhorar suas vidas. A mobilidade social e
geográfica continua caracterizando o país. Contudo, a velocidade do processo
é insatisfatória. Persistem níveis de pobreza e de falta de acesso à cultura (não é só
o analfabetismo funcional que forma uma barreira;
também o gap tecnológico é fatal nas sociedades da informação). É para superar
esses obstáculos que precisamos criar uma nova coalizão, que tenha abrangência
não apenas política, mas sociocultural e que junte os que crêem ser possível
convergir para alcançar objetivos comuns. E saibam como lográ-los.
O primeiro objetivo para restabelecer a confiança nas pessoas é a diminuição da
distância real e emocional entre quem manda e quem obedece. É preciso
reconstituir os fios de legitimidade do poder. Nada mais alheio ao realismo do que
propor uma vasta e única reforma política salvadora. Talvez essa seja a área que
mais requer uma mudança incremental. Quem sabe um "curto-circuito", como eu
caracterizei as mudanças das pequenas coisas que produzem resultados em cadeia
trazendo grandes conseqüências, ou, como modernamente se chama, uma reforma
que toque nos ttpping points, rompendo os pontos de equilíbrio. Por exemplo,
estabelecendo o voto distrital misto para as eleições dos vereadores nas cidades
com mais de 200 mil eleitores. Provada valiosa a experiência, ela se estenderia às
eleições dos deputados.
Senão, alguma experiência com a utilização de uma lista fechada de candidatos,
ordenada pelo partido, elegendo-se de forma progressiva o número de candidatos
correspondente proporcionalmente aos votos dados à legenda e não a cada
candidato individualmente, dando-se aos eleitores, talvez, a possibilidade de mudar
a ordem estabelecida pela direção do partido. Em qualquer caso, é indispensável
complementar essas inovações com medidas que reduzam o custo das campanhas,
como as já aventadas, de não permitir a produção marqueteira dos programas de
TV nem o uso de brindes eleitorais. Nada disso "salva" por si a democracia nem
a decência, processo que depende mais de valores morais do que de
regras eleitorais. Mas diminui no eleitor - o que hoje é indispensável - o sentimento
de que, ocorra o que ocorrer, o escândalo que for, nada mudará
676
nem ninguém será punido e que entre ele e o representante não há liame de
responsabilidade recíproca.
O outro aliciente da descrença nacional é o sentimento de impunidade.
Tanto se fala em reforma do Judiciário e tão pouco se faz para alterar os códigos de
processo para dar mais facilidade de acesso à Justiça, tornála menos custosa e
mais rápida. Há, sem dúvida, experiências bem-sucedidas, como os juizados de
pequenas causas, a informatização de certas varas judiciais, os esforços de tribunais
e juizes para uma mais rápida e eficiente prestação jurisdicional. Os entraves
legais, entretanto, os loopholes, as liminares jamais julgadas e a boa e
cara advocacia podem postergar quase indefinidamente as decisões. Sem que
se removam esses obstáculos, como pode o cidadão comum acreditar na Justiça?
Pelo contrário, achará, com razão, que a impunidade é a mãe dos ricos e
poderosos.
E em que Justiça pode crer o homem da rua, se nem na polícia, que é prévia àquela,
ele pode confiar? Estamos como avestruzes, não querendo ver o que todos vemos:
a droga, a corrupção e a violência estão de mãos dadas e algumas dessas mãos
recebem, além do butim advindo do crime, o cheque do dinheiro público. A
segurança das pessoas, principalmente do pobre que não dispõe de recursos para
pagar segurança privada (esta tantas vezes acumpliciada com o crime) tornou-se
questão prioritária.
Questão de direito humano fundamental, o direito à vida.
Tampouco nessa matéria há grandes soluções salvadoras. Mas é preciso começar
por enfrentar a descoordenação das polícias - as militares com as civis, as múltiplas
agências burocráticas em que essas se dividem - e dos vários níveis da
administração, pois constitucionalmente a segurança pública depende de cada
governo estadual e não do federal, enquanto o combate às drogas e a guarda das
fronteiras ao plano federal (Polícia Federal e repartições aduaneiras). A
comunicação entre elas é precária, faltam guardas municipais nas cidades e a cada
momento se imagina que as Forças Armadas deveriam se ocupar do crime
organizado, principalmente do narcotráfico. E morrem no nascedouro inovações
mais adequadas, como a criação de uma Guarda Nacional militarizada, federal, que
pudesse combater com mais eficácia o crime organizado quando este, pela via da
corrupção e da violência, desmoraliza a autoridade do Estado e cria "zonas livres"
nas favelas, nas periferias das grandes cidades ou mesmo em zonas fronteiriças.
677
Mas quem ainda tem a santa ingenuidade de imaginar que é possível combater o
crime organizado e a disseminação do uso de drogas aos golpes de repressão?
Sem muita informação, serviços adequados de inteligência que se comuniquem,
sem controle da lavagem de dinheiro e, sobretudo, sem mobilização social que os
previna e ajude a combater, o crime e a droga são imbatíveis porque organizados
em redes mais eficientes do que as de que o Estado dispõe. Quando a isso se
soma a indulgência de segmentos da sociedade e da vida política com o crime e a
droga, esses se tornam quase inexpugnáveis. Essa é matéria típica de reconstrução
moral do país, que requer a cooperação de quase todos e precisa ser tratada acima
das lutas partidárias.
Chegamos ao ponto nevrálgico. Uma nação se forma com valores.
Sendo democrática, com uma multiplicidade de valores, podendo mesmo
haver conflitos entre eles, desde que não atinjam o fundamental estatuído
na Constituição. Qualquer projeto de reconstrução social, económica ou moral
independe da idéia autoritária e antiga de "projeto nacional"
nascido na cabeça de intelectuais aninhados em algum aparato de poder.
Ele deve nascer da livre cooperação, do debate, com ou sem consenso, que se
estabeleça a cada momento no entrechoque de opiniões e interesses da própria
sociedade. Nesta estão incluídos naturalmente o Estado e as organizações
económicas, bem como as famílias, os interesses regionais, os das associações
voluntárias, leigas ou religiosas, profissionais, políticas etc. O sentimento nacional
nas sociedades mais tradicionais depende da ação das famílias, das religiões e do
Estado.
Nas mais dinâmicas, plurais e democráticas, além desses agentes de manutenção e
transformação da ordem social, as empresas, os partidos e a "opinião pública"
jogam papel decisivo. A escola fornece o molde cultural básico, sobre o qual as
outras organizações e instituições atuam para refundir as crenças e as práticas. Daí
a importância, nas democracias, do sistema público de ensino, complementado,
mas não substituído, pela escola privada laica ou confessional. Em geral a busca de
caminhos novos se faz procurando, o quanto possível, desenvolver laços com o
património histórico-moral da nação e a escola é o cadinho dessa fusão.
Em nosso caso, a família vem perdendo a capacidade de ser a unidade fundamental
de formação e manutenção de modelos culturais. A mobilidade social e geográfica,
somada à condição de pobreza de muitas famílias,
678
à tendência da família a ser unipolar (geralmente chefiada pela mãe) e ao fato
de os laços estáveis entre os casais durarem em média relativamente pouco tempo,
diminuem a capacidade dessa instituição para servir de base da coesão social. A
inevitável inversão de influência entre as gerações, pois é mais fácil a absorção das
técnicas modernas de adaptação às mudanças e de estilos de vida pelos mais
moços, torna a família tradicional um agente menos ativo na manutenção e difusão
dos valores.
A própria religião vem perdendo a capacidade de socializar seus seguidores de
forma mais ampla, A religião predominante, a católica, há muito tempo restringiu
seu papel na educação. Seus segmentos mais dinâmicos passaram, é verdade, a
ter importante função na ampliação da consciência social e mesmo na organização
do protesto popular. Mas a Igreja como um todo perdeu força como agência
propulsora de um modelo de vida de alcance nacional. As religiões reformadas,
sobretudo as pentecostais, guardam, é certo, importante papel
socializador, principalmente junto às camadas mais pobres e menos integradas
à sociedade. Dão a seus crentes acesso a setores sociais, localizados muitas vezes
em estratos mais altos da hierarquia social. Funcionam segmentadamente como
fator de coesão e de integração social, mas também sem perspectiva nacional.
Quando se olha para a dinâmica da sociedade brasileira com perspectiva realista, é
fácil perceber que o dia-a-dia das pessoas encontra no trabalho, e mais
significativamente no trabalho organizado na empresa ou no Estado, o molde que
orienta o uso do tempo, forma a disciplina, dá a expectativa de melhoria (ou não) de
vida, define as formas de conduta aceitáveis, os modelos culturais e sociais. A
esses agentes de socialização se soma a influência difusa, mas importante, da
mídia, e, mais especificamente, a da TV. Quase toda informação que chega
às massas populares vem dos boletins informativos. As telenovelas, de outro lado,
têm enorme poder de disseminação de modelos de comportamento e mesmo de
suscitar a discussão de temas importantes e controversos.
Dessa forma, na medida em que a instituição escolar se desorganiza, o país fica
cada vez mais à mercê da capacidade de o mercado e o Estado gerarem modelos
de conduta. Convenhamos que para a formação de uma sociedade democrática
isso não só é insuficiente como chega a ser perigoso. Qual o cimento, por assim
dizer, que nos unirá como nação? Em que moldes se formará, abusando de
expressão antiquada, nossa alma popular?
679
Ela só aparecerá quando nos unirmos na torcida pelos campeonatos mundiais
de futebol (e ainda bem)? Ou prezamos e estamos dispostos a reforçar outras
formas mais complexas e democráticas de manter a coesão nacional?
Não teria sentido esperar que no mundo atual os moldes das antigas comunidades
sirvam de base para as comunidades nacionais complexas. O estar fisicamente
juntos, a relação face a face dada pelas circunstâncias do nascimento em um
mesmo lugar e de falar-se a mesma língua não são fatores suficientes nas
sociedades contemporâneas para definir o sentimento de pertencimento à nação.
As forças desagregadoras da sociedade tradicional mencionadas anteriormente
atuam com presteza e quando não se criam formas novas de coesão, a anomia de
segmentos sociais amplos é quase inevitável. Há um elemento de volição,
de deliberação, e mesmo de cognição na definição do que significa ser membro da
mesma associação nacional. É preciso querer estar junto culturalmente, e não
apenas, como no passado, viver de fato uma situação de proximidade, até porque
as redes de interação mediadas pela comunicação eletrônica fornecem outros meios
para o "estar junto"
moderno.
A escola é a agência fundamental para que a renovação das formas de socialização
transcorra democraticamente. Só a escola pública, de acesso universal, não
dogmática nem confessional, pode complementar a família, a religião, o partido, a
empresa e o Estado, evitando que o particularismo da visão de cada uma dessas
agências absorva todas as dimensões da vida. E a escola como instituição está em
crise, com dificuldades para gerar modelos de conduta. No reencontro
de perspectivas a que me refiro é fundamental dar prioridade máxima à educação
em todos os seus níveis. Prioridade para o ensino fundamental, valorizando
socialmente o professor ou a professora, pois sem a melhor qualificação do corpo
docente e sem melhores salários não haverá reforma que se enraíze. Prioridade,
sobretudo, ao conteúdo do ensino para melhor capacitar o cidadão e a pessoa na
busca de aperfeiçoamento profissional e humano. É preciso voltar à concepção da
escola como base da socialização democrática, como locus de privilégio para o
aprendizado das opções culturais e não como máquina de inculcar moldes únicos
nos alunos.
Os economistas já cansaram de repetir que a melhoria da renda depende do grau de
escolaridade e, portanto, que pobreza também se combate
680
com mais escola e não só com mais empregos. E já sabemos que a sociedade
do futuro será a sociedade da inovação e do conhecimento, e que, portanto, a
modernização da escola profissional e a reformulação da universidade são
fundamentais para o desenvolvimento do país como uma sociedade
contemporânea. Não teremos acaso a capacidade de convergir no objetivo de
reestruturar as instituições educacionais brasileiras, dando-lhes condições para
cumprir seu papel no prazo, digamos, de vinte anos?
Bastam as referências feitas neste epílogo aos poucos temas a que aludi para
justificar a necessidade de uma convergência de propósitos que nos permita sair da
letargia em que nos encontramos em áreas tão sensíveis às pessoas e tão
fundamentais para avançarmos mais depressa na busca de uma sociedade melhor.
Uma palavra final para enlaçar com o capítulo inicial deste livro.
Caminhadas novas requerem líderes. Líderes democráticos e inovadores são
líderes morais, que podem ser também políticos. Não são heróis nem super-homens,
e muito menos santos. São pessoas capazes de apontar caminhos e dar exemplos.
Sem ir muito longe na História: Ulysses Guimarães foi um desses líderes na luta pela
democratização. Teotônio Vilela, quando entrou à força em uma prisão para pregar
a anistia, não fez outra coisa. O cardeal Paulo Evaristo Arns, quando teve a
coragem de falar contra a tortura, mostrou um caminho da luta pelos
direitos humanos. Antes deles, os que deram suas vidas na tortura por causas
nas quais acreditaram, sem que eu as endosse ou julgue, são outros
tantos exemplos. Dom Helder Câmara, que fora integralista, soube converter-se à
causa dos pobres e da justiça social, e outra coisa não fez Betinho ao proclamar a
prioridade para o tema da fome. Mesmo Lula, antes de se envolver nas paixões
partidárias e de se perder nos escaninhos entre o poder e suas facilidades, mostrou
como os trabalhadores podiam resistir ao regime autoritário.
Se houve no passado recente quem empunhasse as bandeiras da reforma,
da democracia e do progresso, não faltará quem possa olhar para a frente e levar
adiante as transformações necessárias para restabelecer a confiança em nós
mesmos e no futuro desse grande país. São meus votos.
fim do livro
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Ricardo A. Setti
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Rio de Janeiro 2006
COPYRIGHT (c) Fernando Henrique Cardoso, 2006
CAPA Leonardo laccarino
FOTO DA CAPA Júlio Bittencourt / Valor Económico l Agência O Globo
FOTO DA QUARTA CAPA Cristiano Mascam
Para Ruth
CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS
EDITORES DE LIVROS, RJ
Cardoso, Fernando Henrique, 1931-
C262a A arte da política: a história que vivi / Fernando Henrique Cardoso;
coordenação editorial: Ricardo A. Setti. - Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
ISBN 85-200-0735-X
1. Cardoso, Fernando Henrique, 1931- . 2. Ciência política. 3. Brasil - Política e
governo, 1995-2002.4. Brasil - Política económica. 5. Brasil - Condições sociais. 6.
Reforma monetária - Brasil. 7. Estabilização económica - Brasil. I. Título.
06-0545
CDD 320.981 CDU 32(81)
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento
ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito.
Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA um selo
da
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 - 20921 -380 - Rio de Janeiro, R] - Tel. 2585-2000
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Impresso no Brasil 2006
EDITORA AFILIADA
Pensadores
1978
EDITOR: VICTOR CIVITA
http://groups.google.com/group/digitalsource
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP
Comte, Auguste, 1798-1857.
C739c Curso de filosofia positiva ; Discurso sobre o espírito positivo ; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo ; Catecismo positivista / Auguste Comte ; seleção de textos de José Arthur Giannotti ; traduções de José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. — São Paulo : Abril Cultural, 1978.
(Os pensadores)
Inclui vida e obra de Comte.
Bibliografia.
1. Comte, Auguste, 1798-1857 2. Filosofia francesa 3. Positivismo I. Giannotti, José Artur, 1930- II. Título: Curso de filosofia positiva. III. Título: Discurso sobre o espírito positivo. IV. Título: Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. V. Título: Catecismo positivista. VI. Série.
CDD-1464
-190.92
78-0409 -194
Índices para catálogo sistemático:
1. Comtismo : Filosofia 146,4
2. Filosofia francesa 194
3. Filósofos franceses 194
4. Filósofos modernos : Biografia e obra 190.92
5. Positivismo : Filosofia 146.$
CONTRA CAPA
ESTE VOLUME CONTÉM AS SEGUINTES OBRAS:
CURSO DE FILOSOFIA POSITIVA (1830/42)
Exposição sistemática das principais idéias que fundamentam o positivismo de Comte: a lei dos três estados; a caracterização do espírito positivo; a necessidade da fundação de uma "física social"; a crítica do método subjetivo em psicologia; a classificação das ciências.
DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO (1844)
Inicialmente esse Discurso servia de introdução ao Tratado Filosófico de Astronomia Popular. Além de analisar o estado teológico, o metafísico e o positivo, estuda as relações entre ciência e arte, entre ciência e teologia.
DISCURSO PRELIMINAR SOBRE O CONJUNTO DO POSITIVISMO (1848)
Comte apresenta uma síntese clara de suas principais idéias.
CATECISMO POSITIVISTA (1852)
Exposição sumária da religião universal, apresentada sob a forma de diálogos entre uma mulher e um sacerdote da Humanidade.
Seleção de textos: José Arthur Giannotti
Traduções de: Miguel Lemos e José Arthur Giannotti
Consultor da Introdução: José Arthur Giannotti
ORELHAS DO LIVRO
"O verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir disso o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais."
A. COMTE: Discurso sobre o espírito positivo.
"O povo só pode interessar-se essencialmente pelo uso efetivo do poder, onde quer que resida, e não por sua conquista especial. Logo que as questões políticas, ou melhor, a partir de agora sociais, se reportarem ordinariamente à maneira pela qual o poder deve ser exercido para melhor atender a seu destino geral, principalmente relativa, para os modernos, à massa proletária, não tardaremos a reconhecer que o desdém atual não se vincula de modo algum a uma perigosa indiferença. Até lá a opinião popular permanecerá estranha a esses debates que, aos olhos dos bons espíritos, aumentando a instabilidade de todos os poderes, tendem especialmente a retardar essa indispensável transformação. Numa palavra, o povo está naturalmente disposto a desejar que a vã e tempestuosa discussão dos direitos seja enfim substituída por uma fecunda e salutar apreciação dos diversos deveres essenciais, quer gerais, quer especiais. Tal é o princípio espontâneo da íntima conexão, que, cedo ou tarde pressentida, ligará necessariamente o instinto popular à ação social da filosofia positiva."
A. COMTE: Discurso sobre o espírito positivo.
AUGUSTE COMTE
CURSO DE
FILOSOFIA POSITIVA
*
DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO
*
DISCURSO PRELIMINAR
SOBRE O CONJUNTO
DO POSITIVISMO
*
CATECISMO POSITIVISTA
Seleção de textos de José Arthur Giannotti
Traduções de José Arthur Giannotti e Miguel Lemos
Títulos originais:
Cours de Philosophie Positive
Discours sur l'Esprit Positif
Discours sur l'Ensemble du Positivisme
Catéchisme Positiviste ou Sommaire
Exposition de la Religion Universelle
© Copyright Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1978.
A tradução, por Miguel Lemos, do Catecismo Positivista
que figura neste volume foi gentilmente cedida
à Abril S.A. Cultural e Industrial
para esta edição pela Igreja Positivista do Brasil,
detentora dos direitos autorais.
Direitos exclusivos sobre as demais traduções deste volume
Abril S. A. Cultural e Industrial.
COMTE
(1798-1857)
VIDA e OBRA
Consultoria de José Arthur Giannotti
A
uguste Comte nasceu em Montpellier, França, a 19 de janeiro de 1798, filho de um fiscal de impostos. Suas relações com a família foram sempre tempestuosas e contêm elementos explicativos do desenvolvimento de sua vida e talvez até mesmo de certas orientações dadas às suas obras, sobretudo em seus últimos anos. Freqüentemente, Comte acusava os familiares (à exceção de um irmão) de avareza, culpando-os por sua precária situação econômica. O pai e a irmã, ambos de saúde muito frágil, viviam reclamando maior participação de Auguste em seus problemas. A mãe apegou-se a ele de forma extremada, solicitando sua atenção "da mesma maneira que um mendigo implora um pedaço de pão" para sobreviver, como diz ela em carta ao filho já adulto. Tão complexos laços familiares foram afinal rompidos por Comte, mas deixaram-lhe marcas profundas.
Com a idade de dezesseis anos, em 1814, Comte ingressou na Escola Politécnica de Paris, fato que teria significativa influência na orientação posterior de seu pensamento. Em carta de 1842 a John Stuart Mill (1806-1873), Comte fala da Politécnica como a primeira comunidade verdadeiramente científica, que deveria servir como modelo de toda educação superior. A Escola Politécnica tinha sido fundada em 1794, como fruto da Revolução Francesa e do desenvolvimento da ciência e da técnica, resultante da Revolução Industrial. Embora permanecesse por apenas dois anos nessa escola, Comte ali recebeu a influência do trabalho intelectual de cientistas como o físico Sadi Carnot (1796-1832), o matemático Lagrange (1736-1813) e o astrônomo Pierre Simon de Laplace (1749-1827). Especialmente importante foi a influência exercida pela Mecânica Analítica de Lagrange: nela Comte teria se inspirado para vir a abordar os princípios de cada ciência segundo uma perspectiva histórica.
Em 1816, a onda reacionária que se apoderou de toda a Europa, depois da derrota de Napoleão e da Santa Aliança, repercutiu na Escola Politécnica. Os adeptos da restauração da Casa Real dos Bourbon conseguiram o fechamento temporário da Escola, acusando-a de jacobinismo. Comte deixou a Politécnica e, apesar dos apelos insistentes da família, resolveu continuar em Paris. Nesse período sofreu as influências dos chamados "ideólogos": Destutt de Tracy (1754-1836), Cabanis (1757-1808) e Volney (1757-1820). Leu também os teóricos da economia política, como Adam Smith (1723-1790) e Jean-Baptiste Say (1767-1832), filósofos e historiadores como David Hume (1711-1776) e William Robertson (1721-1793). O fator mais decisivo para sua formação foi, porém, o estudo do Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano, de Condorcet (1743-1794), ao qual se referiria, mais tarde, como "meu imediato predecessor". A obra de Condorcet traça um quadro do desenvolvimento da humanidade, no qual os descobrimentos e invenções da ciência e da tecnologia desempenham papel preponderante, fazendo o homem caminhar para uma era em que a organização social e política seria produto das luzes da razão. Essa idéia tornar-se-ia um dos pontos fundamentais da filosofia de Comte.
O filósofo e sua musa
Um ano depois de sair da Escola Politécnica, em 1817, Comte tornou-se secretário de Saint-Simon (1760-1825), do qual receberia profunda influência. Em carta de 1818, Comte declara, sobre suas relações com Saint-Simon: "Pela cooperação e amizade com um desses homens que vêem longe nos domínios da filosofia política, aprendi uma multidão de coisas, que em vão procuraria nos livros; e no meio ano durante o qual estive associado a ele meu espírito fez maiores progressos do que faria em três anos, se eu estivesse sozinho; o trabalho desses seis meses desenvolveu minha concepção das ciências políticas e, indiretamente, tornou mais sólidas minhas idéias sobre as demais ciências..."
Essa íntima ligação intelectual foi [pág. VI] extremamente proveitosa para Comte, pois acelerou seu processo de desenvolvimento. Terminou, contudo, de maneira tempestuosa, como acontecia com quase todas as relações pessoais de Comte. Ele e Saint-Simon eram de temperamentos muito diversos para que pudessem trabalhar juntos durante muito tempo: o rompimento ocorreu quando o discípulo começou a sentir-se independente do mestre, discordando de suas idéias sobre as relações entre a ciência e a reorganização da sociedade. Comte não aceitava o fato de Saint-Simon, nesse período, deixar de lado seus planos de reforma teórica do conhecimento e dedicar-se a tarefas práticas no sentido de formar uma nova elite industrial e científica, que teria como alvo a reforma da ordem social. O conflito culminou com a publicação do Plano de Trabalhos Científicos Necessários à Reorganização da Sociedade, escrito por Comte e do qual Saint-Simon discordou. A separação entre os dois ocorreu em 1824. No mesmo ano, Comte casou-se com Caroline Massin e, não tendo mais os proventos de secretário de Saint-Simon, passou a ganhar a vida dando aulas particulares de matemática. Dois anos depois, exatamente no dia 2 de abril de 1826, iniciou em sua própria casa um curso, do qual resultou uma de suas principais obras, o Curso de Filosofia Positiva, em seis volumes, publicados a partir de 1830. Alguns dos maiores nomes da época freqüentavam suas aulas, como o fisiólogo Henri-Marie de Blainville (1777-1850) e o psicólogo Jean-Étienne Esquirol (1772-1840).
O curso, no entanto, foi interrompido logo na terceira aula, devido à crise mental sofrida por Comte, à qual se seguiu profunda depressão melancólica. [pág. VII] Depois disso, Comte tornou-se repetidor de análise matemática e de mecânica, não tendo conseguido elevar-se a funções superiores, apesar de várias tentativas em concursos para obtenção de cátedra. Em 1838, as relações com a esposa pioraram sensivelmente até a completa separação em 1842.
Dois anos após separar-se de Caroline, Comte publicou o Discurso sobre o Espírito Positivo, ao mesmo tempo que perdeu o posto de examinador de admissão na Escola Politécnica. A exclusão definitiva da Escola Politécnica resultou sobretudo das criticas aos matemáticos, feitas no prefácio do último volume do Curso de Filosofia Positiva, editado em 1842. Atacando os especialistas em matemática, Comte afirmava ter chegado o tempo de os biólogos e sociólogos ocuparem o primeiro posto no mundo intelectual.
A perda do meio de sobrevivência fez com que Comte passasse a ser sustentado por amigos e admiradores, corno o filósofo John Stuart Mill (1806-1873) e o dicionarista Littré (1801-1881), seu entusiasmado discípulo.
Em 1844, Comte conheceu a mulher que iria transformar sua vida e dar nova orientação ao seu pensamento. Chamava-se Clotilde de Vaux e era esposa de um homem que se encontrava preso por crime infamante. Clotilde de Vaux, contudo, considerava indissolúvel seu casamento, não permitindo que suas relações com o filósofo ultrapassassem os limites de uma intima amizade. Comte apaixonou-se perdidamente por Clotilde e pretendeu transformá-la em nova Beatriz, a musa de Dante. Nela, encontrou alguém que, lhe permitiu expressar todos os seus sentimentos e necessidades emocionais. A afeição tornou-se ainda mais profunda com a morte de Clotilde, um ano depois. Comte transformou-a então no gênio inspirador de uma nova religião, cujas idéias se encontram numa extensa obra em quatro volumes, publicados entre 1851 e 1854: Política Positiva ou Tratado de Sociologia Instituindo a Religião da Humanidade. Além dessa obra, Comte publicou, em 1852, o Catecismo Positivista ou Exposição Sumária da Religião Universal. Para esse trabalho, preparou-se, fazendo "higiene cerebral", por ele entendida como abstenção de quaisquer leituras e aprofundamento na meditação solitária. Pretendia, assim, afastar-se de todos os elementos perturbadores e assegurar unidade ao projeto de constituição das doutrinas da nova religião. Nesse mesmo período, dedicou-se ao estudo da música, à poesia italiana e espanhola e à leitura da Imitação de Cristo, obra que considerava um grande poema sobre a natureza humana. A palavra "Deus" do texto da Imitação deveria, segundo Comte, ser entendida como significando a humanidade em geral.
Os últimos anos da vida de Comte transcorreram em grande solidão e desencanto, sobretudo por ter sido abandonado por Littré; seu mais famoso discípulo não concordava com a idéia de uma nova religião. Auguste Comte faleceu no dia 5 de setembro de 1857.
Os três temas básicos
O núcleo da filosofia de Comte radica na idéia de que a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada através [pág. VIII] de uma completa reforma intelectual do homem. Com isso, distingue-se de outros filósofos de sua época, como Saint-Simon e Fourier, preocupados também com a reforma das instituições, mas que prescreviam modos mais diretos para efetivá-la. Enquanto esses pensadores pregavam a ação prática imediata. Comte achava que antes disso seria necessário fornecer aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo.
Por essa razão, o sistema comteano estruturou-se em torno de três temas básicos. Em primeiro lugar, uma filosofia da história com o objetivo de mostrar as razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele filosofia positiva ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Em segundo lugar, uma fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva, finalmente, uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de modificação da sociedade, permitisse a reforma prática das instituições. A esse sistema deve-se acrescentar a forma religiosa assumida pelo plano de renovação social, proposto por Comte nos seus últimos anos de vida.
O progresso do espírito
A filosofia da história — primeiro tema da filosofia de Comte — pode ser sintetizada na sua célebre lei dos três estados: todas as ciências e o espírito humano como um todo desenvolvem-se através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva.
No estado teológico, pensa Comte, o número de observações dos fenômenos [pág. IX] reduz-se a poucos rasos e. por isso, a imaginação desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversidade da natureza, o homem só consegue explicá-la mediante a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. O mundo torna-se compreensível somente através das idéias de deuses e espíritos. Segundo Comte, a mentalidade teológica visa a um tipo de compreensão absoluta; o homem, nesse estágio de desenvolvimento, acredita ter posse absoluta do conhecimento. Para além dos limites dos seres sobrenaturais, o homem não coloca qualquer problema, sentindo-se satisfeito na medida em que a possibilidade de recorrer à intervenção das divindades fornece um quadro para compreensão dos fenômenos que ocorrem ao seu redor.
Paralelamente às funções de explicação da natureza, a mentalidade teológica desempenharia também relevante papel de coesão social, fundamentando a vida moral. Confiando em poderes imutáveis, fundados na autoridade, essa mentalidade teria como forma política correspondente a monarquia aliada ao militarismo.
O estado teológico, para Comte, apresenta-se dividido em três períodos sucessivos: o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo. No fetichismo, uma vida espiritual, semelhante à do homem, é atribuída aos seres naturais. O politeísmo esvazia os seres naturais de suas vidas anímicas — tal como concebidos no estágio anterior — e atribui a animação desses seres não a si mesmos, mas a outros seres, invisíveis e habitantes de um mundo superior. No monoteísmo, a distância entre os seres e seus princípios explicativos aumenta ainda mais; o homem, nesse estágio, reúne todas as divindades em uma só.
A fase teológica monoteísta representaria, no desenvolvimento do espírito humano, uma etapa de transição para o estado metafísico. Este, inicialmente, concebe "forças" para explicar os diferentes grupos de fenômenos, em substituição às divindades da fase teológica. Fala-se então de uma "força física", uma "força química", uma "força vital". Num segundo período, a mentalidade metafísica reuniria todas essas forças numa só, a chamada "natureza", unidade que equivaleria ao deus único do monoteísmo.
O estado metafísico tem, segundo Comte, outros pontos de contato com o teológico. Ambos tendem à procura de soluções absolutas para os problemas do homem: a metafísica, tanto quanto a teologia, procura explicar a "natureza íntima" das coisas, sua origem e destino últimos, bem como a maneira pela qual são produzidas. A diferença reside no fato de a metafísica colocar o abstrato no lugar do concreto e a argumentação no lugar da imaginação. Nessa perspectiva comteana, o estado metafísico se caracterizaria fundamentalmente pela dissolução do teológico. A argumentação, penetrando nos domínios das idéias teológicas, traria à luz suas contradições inerentes e substituiria a vontade divina por "idéias" ou "forças". Com [pág. X] isso, a metafísica destruiria a idéia teológica de subordinação da natureza e do homem ao sobrenatural. Na esfera política, o espírito metafísico corresponderia a uma substituição dos reis pelos juristas; supondo-se a sociedade como originária de um contrato, tende-se a basear o Estado na soberania do povo.
O pensamento positivo
O estado positivo caracteriza-se, segundo Comte, pela subordinação da imaginação e da argumentação à observação. Cada proposição enunciada de maneira positiva deve corresponder a um fato, seja particular, seja universal. Isso não significa, porém, que Comte defenda um empirismo puro, ou seja, a redução de todo conhecimento à apreensão exclusiva de fatos isolados. A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, entendidos como relações constantes entre fenômenos observáveis. Quando procura conhecer fenômenos psicológicos, o espírito positivo deve visar às relações imutáveis presentes neles — como quando trata de fenômenos físicos, como o movimento ou a massa; só assim conseguiria realmente explicá-los. Segundo Comte, a procura de leis imutáveis ocorreu pela primeira vez na história quando os antigos gregos criaram a astronomia matemática. Na época moderna, o mesmo procedimento reaparece em Bacon (1561-1626), Galileu (1564-1642) e René Descartes (1596-1650), os fundadores da filosofia positiva, para Comte.
A filosofia positiva, ao contrário dos estados teológico e metafísico, considera impossível a redução dos fenômenos [pág. XI] naturais a um só princípio (Deus, natureza ou outro equivalente). Segundo Comte, a experiência nunca mostra mais do que uma limitada interconexão entre determinados fenômenos. Cada ciência ocupa-se apenas com certo grupo de fenômenos, irredutíveis uns aos outros. A unidade que o conhecimento pode alcançar seria, assim, inteiramente subjetiva, radicando no fato de empregar-se um mesmo método, seja qual for o campo em questão: uma idêntica metodologia produz convergência e homogeneidade de teorias.
Essa unidade do conhecimento não é apenas individual, mas também coletiva; isso faz da filosofia positiva o fundamento intelectual da fraternidade entre os homens, possibilitando a vida prática em comum. A união entre a teoria e a prática seria muito mais íntima no estado positivo do que nos anteriores, pois o conhecimento das relações constantes entre os fenômenos torna possível determinar seu futuro desenvolvimento. O conhecimento positivo caracteriza-se pela previsibilidade: "ver para prever" é o lema da ciência positiva. A previsibilidade científica permite o desenvolvimento da técnica e, assim, o estado positivo corresponde à indústria, no sentido de exploração da natureza pelo homem.
Em suma, o espírito positivo, segundo Comte, instaura as ciências como investigação do real, do certo e indubitável, do precisamente determinado e do útil. Nos domínios do social e do político, o estágio positivo do espírito humano marcaria a passagem do poder espiritual para as mãos dos sábios e cientistas e do poder material para o controle dos industriais.
Do simples ao complexo
A classificação das ciências — segundo tema básico da filosofia comteana — vincula-se à filosofia da história. Ao traçar o mapa do desenvolvimento histórico do espírito, em sua caminhada para a apreensão da realidade, Comte mostra que a evolução de cada ciência obedece à periodização dos três estados, mas que essa periodização não se faz ao mesmo tempo em todos os domínios: o estado metafísico de uma ciência como a física, [pág. XII] por exemplo, não é contemporâneo do estado metafísico da biologia. Por outro lado, o desenvolvimento das ciências é assintótico, isto é, elas jamais atingem a compreensão absoluta dos seus objetos respectivos.
Segundo Comte, as ciências classificam-se de acordo com a maior ou menor simplicidade de seus objetos respectivos. A complexidade crescente permite estabelecer a seqüência: matemáticas, astronomia, física, química, biologia e sociologia. As matemáticas possuem o maior grau de generalidade e estudam a realidade mais simples e indeterminada. A astronomia acrescenta a força ao puramente quantitativo, estudando as massas dotadas de forças de atração. A física soma a qualidade ao quantitativo e às forças, ocupando-se do calor, da luz, etc. que seriam forças qualitativamente diferentes. A química trata de matérias qualitativamente distintas. A biologia ocupa-se dos fenômenos vitais, nos quais a matéria bruta é enriquecida pela organização. Finalmente, a sociologia estuda a sociedade, onde os seres vivos se unem por laços independentes de seus organismos. A sociologia é vista por Comte como "o fim essencial de toda a filosofia positiva". Matemática, astronomia, física, química e biologia atingem o estado positivo antes da sociologia mas, permanecendo adstritas a parcelas do real, não conseguem instaurar a filosofia positiva em sua plenitude. A totalização do saber somente poderia ser alcançada através da sociologia, na qual culminaria a formulação de "um sistema verdadeiramente indivisível, onde toda decomposição é radicalmente artificial (...), tudo relacionando-se com a Humanidade, única concepção completamente universal".
A sociologia é entendida por Comte no mais amplo sentido da palavra, incluindo uma parte essencial da psicologia, toda a economia política, a ética e a filosofia da história.. Da mesma forma como protesta contra a abordagem dos fenômenos psicológicos individuais independentemente do desenvolvimento mental da raça, Comte opõe-se também ao isolamento da política e da ética em relação à teoria geral da sociedade. Comte ressaltou ainda que os objetos das ciências sociais não devem ser tratados independentemente do curso de desenvolvimento revelado pela história.
Aspecto fundamental da sociologia comteana é a distinção entre a estática e a dinâmica sociais. A primeira estudaria as condições constantes da sociedade; a segunda investigaria as leis de seu progressivo desenvolvimento. A idéia fundamental da estática é a ordem; a da dinâmica, o progresso. Para Comte, a dinâmica social subordina-se à estática, pois o progresso provém da ordem e aperfeiçoa os elementos permanentes de qualquer sociedade: religião, família, propriedade, linguagem, acordo entre poder espiritual e temporal, etc.
Uma nova religião
A reforma das instituições — terceiro tema básico da filosofia de Comte — tem seus fundamentos teóricos na sociologia que ele concebeu. A sociologia conduziria à política, cumprindo-se, assim, o desígnio que Comte sempre se propôs de [pág. XIII] fazer da filosofia positivista um instrumento para a reforma intelectual do homem e, através desta, a reorganização de toda a sociedade. No seu modo de ver, a Revolução Francesa destruiu as instituições sociais do homem europeu e impunha-se, conseqüentemente, estabelecer uma nova ordem. A Revolução fora necessária, pensava Comte, porque as antigas instituições sociais e políticas eram ainda teológicas, não correspondendo, portanto, ao estado de desenvolvimento das ciências da época. A Revolução não ofereceu, porém, fundamentos para a reorganização da sociedade, por ter sido negativa e metafísica em seus pressupostos. A tarefa a ser cumprida deveria, portanto, ser a instauração do espírito positivo- na organização das estruturas sociais e políticas. Para isso, seria necessária uma nova elite científico-industrial, capaz de formular os fundamentos positivos da sociedade e desenvolver as atividades técnicas correspondentes a cada uma das ciências, tornando-as bem comum.
Com relação ao principal problema social de sua época — o crescimento do proletariado industrial —, a posição de Comte não foi uma posição revolucionária como a de Marx (1818-1883). Comte considerava que todas as medidas sociais deveriam ser julgadas em termos de seus efeitos sobre a classe mais numerosa e mais pobre. Acreditava também que os proletários (e as mulheres) pudessem abrandar o egoísmo dos capitalistas e que uma ordem moral humanitária poderia abolir todos os conflitos de classe. Os capitalistas deveriam ser moralizados e não eliminados: a propriedade privada deveria ser mantida.
Comte foi, na verdade, um conservador e característicos dessa atitude são os seus elogios á ordem católica e feudal da Idade Média. Dentro de uma linha de revalorização do catolicismo, típica de sua época, atacou o protestantismo, [pág. XIV] considerando-o uma religião negativa e anárquica intelectualmente.
Os anseios de reforma intelectual e social de Comte, contudo, não se limitaram a uma política e se desenvolveram no sentido da formulação de uma religião da humanidade. Isso aconteceu nos últimos quinze anos de sua vida, quando estabeleceu os princípios fundamentais dessa nova religião. Formulou então um novo calendário, cujos meses receberam nomes de grandes figuras da história do pensamento, como Descartes; o calendário tinha também seus dias santos, nos quais se deveriam comemorar as obras de Dante, Shakespeare, Adam Smith, Xavier de Maistre e outros. Comte redigiu ainda um novo catecismo, cuja idéia central reside na substituição do Deus cristão pela Humanidade.
O positivismo no Brasil
O positivismo de Auguste Comte exerceu larga influência nos mais variados círculos. Enquanto doutrina sobre o conhecimento e sobre a natureza do pensamento científico, incorporou-se a outras correntes análogas, que procuraram valorizar as ciências naturais e suas aplicações práticas. Junto a essas outras correntes, o positivismo constitui um dos traços característicos do pensamento que se desenvolveu na Europa, durante o século XIX.
Entre os mais fiéis seguidores de Comte destaca-se o lexicógrafo Émile Littré, que, no entanto, renegou a religião da humanidade. O mesmo não aconteceu com Pierre Laffite (1823-1903), que aderiu principalmente à última fase do pensamento do mestre. Na Inglaterra, o positivismo de Comte, excluída a religião da humanidade, teve grande difusão, contando-se entre seus propagadores o filósofo John Stuart Mill, além de outras figuras menos conhecidas, como G. H. Lewes (1817-1878), Harriet Martineau (1802-1876) e Richard Congreve (1818-1899), fundador da Sociedade Positivista de Londres.
Solo mais fértil foi encontrado pelo positivismo comteano, incluindo-se a religião positivista, em países de menor tradição cultural e carentes de ideologia para seus anseios de desenvolvimento. [pág. XV] Esse fenômeno ocorreu na América do Sul, sobretudo no Brasil.
As primeiras manifestações do positivismo no Brasil datam de 1850, quando Manuel Joaquim Pereira de Sá apresentou tese de doutoramento em ciências físicas e naturais, na Escola Militar do Rio de Janeiro. A esse trabalho viriam juntar-se a tese de Joaquim Pedro Manso Sayão sobre corpos Flutuantes e a de Manuel Pinto Peixoto sobre os princípios do cálculo diferencial. Em todos encontram-se inspirações da filosofia comteana.
Passo mais importante, contudo, foi dado por Luís Pereira Barreto (1840-1923), com a obra As Três Filosofias, na qual a filosofia positivista era apontada como capaz de substituir vantajosamente a tutela intelectual exercida no país pela Igreja Católica. Pereira Barreto não foi um positivista ortodoxo, como Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), que se iniciaram no positivismo através da matemática e das ciências exatas, quando estudantes na Escola Politécnica. Os dois entreviram na ciência fundada por Auguste Comte as bases de uma política racional e pressentiram, na sua coordenação filosófica, o congraçamento definitivo da ordem e do progresso, como dirá mais tarde o próprio Miguel Lemos.
Em 1876, fundou-se a primeira sociedade positivista do Brasil, tendo à frente Teixeira Mendes, Miguel Lemos e Benjamin Constant (1836-1891). No ano seguinte, os dois primeiros viajaram para Paris, onde conheceram Émile Littré e Pierre Laffite. Miguel Lemos decepcionou-se com "o vazio do littreísmo" e tornou-se adepto fervoroso da religião da humanidade, dirigida por Laffite. De volta ao Brasil, fundou a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, que constitui a origem do Apostolado Positivista do Brasil e da Igreja Positivista do Brasil, cuja finalidade era "formar crentes e modificar a opinião por meio de intervenções oportunas nos negócios públicos". [pág. XVI]
Entre essas intervenções, sem dúvida, foi importante a participação dos positivistas no movimento republicano, embora seja um exagero dizer-se que foram eles que proclamaram a República, em1889. Influíram, é verdade, na Constituição de 1891 e a bandeira brasileira passou a ostentar o lema comteano "ordem e progresso". No século XX, o entusiasmo pelo positivismo religioso decresceu consideravelmente, mas continuou a existir a Igreja Positivista do Brasil, no Rio de Janeiro, que permanece atuante até os dias de hoje.
CRONOLOGIA
1798 — Nasce Auguste Comte, em Montpellier, a 19 de janeiro.
1804 — Napoleão é sagrado imperador pelo papa, em Paris.
1807 — Hegel publica a Fenomenologia do Espírito.
1815 — Napoleão é derrotado em Waterloo. Reúne-se o Congresso de Viena.
1817 — Comte torna-se secretário de Saint-Simon.
1821 — O México e o Peru tornam-se independentes.
1830 — Comte inicia a publicação do Curso de Filosofia Positiva.
1832 — Comte é nomeado repetidor de análise matemática e de mecânica da Escola Politécnica.
1842 — Caroline Massin separa-se de Comte, após dezoito anos de matrimônio. No mesmo ano, encerra-se a publicação do Curso de Filosofia Positiva de Comte.
1844 — Comte conhece Clotilde de Vaux. Editam-se Os Princípios do Comunismo, de Engels.
1846 — Morte de Clotilde de Vaux. Proudhon publica Contradições Econômicas ou A Filosofia da Miséria.
1847 — É editada A Miséria da Filosofia, de Karl Marx. Descobre-se a nitroglicerina.
1851 — Comte inicia a publicação do Sistema de Política Positiva ou Tratado de Sociologia Instituindo a Religião da Humanidade.
1852 — Publica o Catecismo Positivista ou Exposição Sumária da Religião Universal.
1854 — Encerra a publicação do Sistema de Política Positiva.
1857 — Morre a 5 de setembro, em Paris.
BIBLIOGRAFIA
ARBOUSSE-BASTIDE. P.: La Doctrine de l'Éducation Universelle dans la Philosophied'Auguste Comte, 2 vols., Presses Universitaires de France. Paris. 1957.
GOUHIER, H.: La Vie d 'Auguste Comte, J. Vrin, Paris, 1965.
GOUHIER, H.: La Jeunesse d'Auguste Comte et la Formation du Positivisme, 3 tomos. J. Vrin. Paris. 1933-1964.
LACROIX. J.: La Sociologie d'Auguste Comte, Presses Universitaires de France. Paris. 1956.
MILL, J. S.: Auguste Comte and Positivism, University of Michigan Press. Ann Harbor. 1961.
HALBWACHS, M.: Statique et Dynamique Sociale chez Auguste Comte, Centre de Documentation Universitaire, Paris. 1943.
DUCASSE, P.: Essai sur les Origines Intuitives du Positivisme, Alcan, Paris, 1939.
DUCASSE , P.: Méthode et Intuition chez Auguste Comte, Alcan, Paris. 1939.
DUMAS. G.: Psychologie de Deux Messies Positivistes, Saint-Simon et Auguste Comte, Alcan. Paris, 1905.
GURVITCH, G.: Auguste Comte, Karl Marx et Herbert Spencer, Centre de Documentation Universitaire. Paris, 1957.
ACTON, H.B.: Comte's Positivism and lhe Science of Society, in Philosophy, vol. 26, outubro de 1951.
SARTON. G.: Auguste Comte, Historian of Science, in Osiris, vol. 10, 1952.
HÖFFDING, H.: A History of Modern Philosophy, Dover Publications, Nova York, 1955.
CRUZ COSTA, J.: Panorama da História da Filosofia no Brasil, Ed. Cultrix, São Paulo, 1960.
CRUZ COSTA. J.: Contribuição à História das Idéias no Brasil, Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1967.
© Copyright mundial Abril S.A. Cultural e
Industrial, São Paulo, 1978. [pág. XVIII]
CURSO DE
FILOSOFIA POSITIVA
Tradução de José Arthur Giannotti [pág. 01]
PRIMEIRA LIÇÃO
Exposição da finalidade deste curso, ou considerações gerais sobre a natureza e a importância da filosofia positiva
SUMÁRIO: I — Objeto da primeira lição: definir o objetivo e a natureza da filosofia positiva. II — Lei dos três estados: teológico, metafísico, positivo; características de cada um desses estados. III — Demonstração da lei dos três estados: 1.° provas históricas; 2.º provas teóricas. IV — Natureza da filosofia positiva: princípio das leis; as explicações positivas. V — Breve histórico do positivismo. VI — Situação atual; resta fundar apenas a física social. VII — Necessidade de uma sistematização das ciências; papel e espírito da filosofia positiva nesta reorganização do conjunto dos conhecimentos. VIII — Vantagens de semelhante trabalho: 1.° descoberta racional das leis do espírito humano; crítica do método subjetivo em psicologia; 2.º reorganização dos métodos de educação; 3.° contribuição ao progresso das ciências especiais; 4.° reorganização da sociedade. IX — Resumo. X — Impossibilidade de reduzir a uma lei única a explicação de todos os fenômenos.
I — O objetivo desta primeira lição é expor nitidamente a finalidade do curso, a saber, determinar exatamente o espírito no qual serão considerados os diversos ramos fundamentais da filosofia natural, indicados pelo programa sumário que lhes apresentei.
Sem dúvida, a natureza deste curso não poderia ser completamente apreciada, de maneira a propiciar uma opinião definitiva, a não ser quando as diversas partes fossem sucessivamente desenvolvidas. Tal é o inconveniente ordinário das definições relativas a sistemas de idéias muito extensos, quando estas precedem a exposição. Mas as generalidades podem ser concebidas sob dois aspectos, quer como vistas duma doutrina a estabelecer, quer como resumo duma doutrina estabelecida. Se é somente deste último ponto de vista que adquirem todo o seu valor, não deixam de possuir, ao menos já sob o primeiro, extrema importância, caracterizando desde a origem o assunto a considerar. A circunscrição geral do campo de nossas investigações, traçada com toda severidade possível, constitui, para o nosso espírito, preliminar particularmente indispensável num estudo tão vasto e até aqui pouco determinado, como aquele de que vamos nos ocupar. É a fim de obedecer a essa necessidade lógica que eu creio dever indicar-lhes, desde este momento, a série de considerações fundamentais que deram nascimento a este novo curso, e que serão, de resto, especialmente desenvolvidas em seguida, com toda a extensão que reclama a alta importância de cada uma delas.
II — Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história.
Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro vôo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas [pág. 03] pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes dum exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição.
No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.
No estado metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma entidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir.
O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que é suscetível quando substituiu, pela ação providencial de um ser único, o jogo variado de numerosas divindades independentes, que primitivamente tinham sido imaginadas. Do mesmo modo, o último termo do sistema metafísico consiste em conceber, em lugar de diferentes entidades particulares, uma única grande entidade geral, a natureza, considerada como fonte exclusiva de todos os fenômenos. Paralelamente, a perfeição do sistema positivo à qual este tende sem cessar, apesar de ser muito provável que nunca deva atingi-la, seria poder representar todos os diversos fenômenos observáveis como casos particulares dum único fato geral, como a gravitação o exemplifica.
III — Aqui não é o lugar de demonstrar especialmente esta lei fundamental do desenvolvimento do espírito humano e deduzir dela as conseqüências mais importantes. Trataremos disso diretamente, com toda a extensão conveniente, na parte deste curso relativa ao estudo dos fenômenos sociais. Só a considero agora para determinar com precisão o verdadeiro caráter da filosofia positiva, em oposição às duas outras filosofias, que dominaram sucessivamente, até os últimos séculos, todo o nosso sistema intelectual. Presentemente, a fim de não deixar por inteiro sem demonstração uma lei dessa importância, cujas aplicações se apresentarão freqüentemente em toda a extensão deste curso, devo limitar-me a uma indicação rápida dos motivos gerais mais sensíveis que podem constatar sua exatidão. [pág. 04]
Em primeiro lugar, basta, parece-me, enunciar tal lei para que sua justeza seja imediatamente verificada por todos aqueles que possuam algum conhecimento aprofundado da história geral das ciências. Não existe uma única, com efeito, que, tendo chegado hoje ao estado positivo, não possa ser facilmente representada por qualquer pessoa como essencialmente composta, no passado, de abstrações metafísicas e, se se remontar ainda mais no tempo, como inteiramente dominada por concepções teológicas. Teremos, infelizmente, mais de uma ocasião formal de reconhecer, nas diversas partes deste curso, que as ciências mais aperfeiçoadas conservam, ainda hoje, alguns traços muito sensíveis desses dois estados primitivos.
Essa revolução geral do espírito humano pode ser facilmente constatada hoje, duma maneira sensível embora indireta, considerando o desenvolvimento da inteligência individual. O ponto de partida sendo necessariamente o mesmo para a educação do indivíduo e para a da espécie, as diversas fases principais da primeira devem representar as épocas fundamentais da segunda. Ora, cada um de nós, contemplando sua própria história, não se lembra de que foi sucessivamente, no que concerne às noções mais importantes, teólogo em sua infância, metafísico em sua juventude e físico em sua virilidade? Hoje é fácil esta verificação para todos os homens que estão ao nível de seu século.
No entanto, além da observação direta, geral ou individual, que prova a exatidão dessa lei, devo sobretudo, nesta indicação sumária, mencionar as considerações teóricas que fazem sentir sua necessidade.
A mais importante dessas considerações, recolhida na própria natureza do assunto, consiste na necessidade, em todas as épocas, duma teoria qualquer para ligar os fatos, necessidade combinada com a impossibilidade evidente, para o espírito humano em sua origem, de formar teorias a partir de observações.
Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém, ao estado viril de nossa inteligência. Mas, reportando-se à formação de nossos conhecimentos, não é menos certo que o espírito humano, em seu estado primitivo, não podia nem devia pensar assim. Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, é igualmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa duma teoria qualquer. Se, contemplando os fenômenos, não os vinculássemos de imediato a algum princípio, não apenas nos seria impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto, mas seríamos inteiramente incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos passariam despercebidos aos nossos olhos.
Pressionado entre a necessidade de observar para formar teorias reais e a necessidade, não menos imperiosa, de criar algumas teorias para poder entregar-se a observações seguidas, o espírito humano, em seu nascimento, encontrava-se fechado num círculo vicioso, de que nunca teria meios de sair, se não lhe fosse felizmente aberta uma porta natural, graças ao desenvolvimento espontâneo das concepções teológicas, que apresentaram um ponto de aproximação desses esforços e forneceram um alimento à sua atividade. Tal é, independentemente das altas considerações sociais que a isso se vinculam e que não devo nem mesmo indicar neste momento, o motivo fundamental que demonstra a necessidade lógica do caráter puramente teológico da filosofia primitiva.
Essa necessidade se torna ainda mais sensível tendo em vista a perfeita conveniência da filosofia teológica com a própria natureza das pesquisas em que o espírito humano em sua infância concentra, de modo tão eminente, toda a sua atividade. É bem notável, com efeito, que as questões mais radicalmente inacessíveis a nossos meios — a [pág. 05] natureza íntima dos seres, a origem e o fim de todos os fenômenos — sejam precisamente aquelas que nossa inteligência se propõe acima de tudo neste seu estado primitivo, todos os problemas verdadeiramente solúveis sendo quase tomados como indignos de sérias meditações. Concebe-se facilmente a causa, pois somente a experiência pode nos oferecer a medida de nossas forças. E, se o homem não tivesse começado tendo delas uma opinião exagerada, estas nunca teriam adquirido todo o desenvolvimento de que são suscetíveis. Assim o exige nossa organização. Mas, seja como for, representemo-nos, na medida do possível, essa disposição tão universal e tão pronunciada, perguntemo-nos qual seria a acolhida que receberia nessa época, se já estivesse formada, a filosofia positiva, cuja mais alta ambição é descobrir as leis dos fenômenos e cujo primeiro caráter próprio é precisamente considerar proibidos necessariamente à razão humana todos esses sublimes mistérios, que a filosofia teológica explica, ao contrário, com tão admirável facilidade, até em seus mínimos pormenores.
O mesmo acontece considerando, sob o ponto de vista prático, a natureza das investigações que ocupam primitivamente o espírito humano. Dessa óptica, atraem energicamente o homem oferecendo-lhe um império ilimitado sobre o mundo exterior, tomado então como inteiramente destinado a nosso uso como se apresentasse, em todos os seus fenômenos, relações íntimas e contínuas com nossa existência. Ora, essas esperanças quiméricas, essas idéias exageradas da importância do homem no universo, que a filosofia teológica faz nascer e que a primeira influência da filosofia positiva destrói para sempre, constituem, na origem, estimulante indispensável, sem o qual não se poderia certamente conceber que o espírito humano se consagrasse primitivamente a penosos trabalhos.
Estamos hoje de tal modo afastados dessas disposições primeiras, ao menos quanto à maioria dos fenômenos, que temos dificuldade em nos representar exatamente a potência e a necessidade de considerações semelhantes. A razão humana está agora suficientemente madura para que empreendamos laboriosas investigações científicas, sem ter em vista algum fim estranho, capaz de agir fortemente sobre a imaginação, como aquele que se propunham os astrólogos e os alquimistas. Nossa atividade intelectual estimula-se suficientemente com a pura esperança de descobrir as leis dos fenômenos, com o simples desejo de confirmar ou infirmar uma teoria. Mas isto não poderia ocorrer na infância do espírito humano. Sem as atrativas quimeras da astrologia, sem as enérgicas decepções da alquimia, por exemplo, onde teríamos haurido a constância e o ardor necessários para coletar as longas séries de observações e experiências que mais tarde serviram de fundamento para as primeiras teorias positivas de uma e de outra classe de fenômenos?
Essa condição de nosso desenvolvimento intelectual foi vivamente sentida desde há muito por Kepler, quanto à astronomia, e justamente apreciada, em nossos dias, por Berthollet, quanto à química.
Percebe-se, pois, graças a este conjunto de considerações, que, se a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele para o qual sempre tendeu progressivamente, não deixou de precisar, no início e durante uma longa série de séculos, quer como método, quer como doutrina provisória, da filosofia teológica; filosofia cujo caráter é ser espontânea e, por isso mesmo, a única possível na origem, a única também capaz de oferecer a nosso espírito nascente o devido interesse. E hoje muito fácil perceber que, para passar da filosofia provisória para a filosofia definitiva, o espírito humano necessita naturalmente adotar, como filosofia transitória, os métodos e as doutrinas metafísicos. Esta última consideração é indispensável para completar a vista geral da grande lei indicada. [pág. 06]
Concebe-se sem pena que nosso entendimento, forçado a caminhar apenas por graus quase insensíveis, não podia passar, bruscamente e sem intermediários, da filosofia teológica para a filosofia positiva. A teologia e a física são de tal modo incompatíveis, suas concepções possuem caracteres tão radicalmente opostos, que, antes de renunciar a umas para empregar exclusivamente outras, a inteligência humana precisou servir-se de concepções intermediárias, de caráter bastardo, adequadas, por isso mesmo, para operar gradualmente a transição. Tal é o destino natural das concepções metafísicas, não possuem outra utilidade real. Substituindo, no estudo dos fenômenos, a ação sobrenatural diretriz por uma entidade correspondente e inseparável, apesar de esta ser no início pensada apenas como emanação da primeira, o homem habituou-se pouco a pouco a considerar tão-somente os próprios fatos. As noções desses agentes metafísicos volatilizaram-se gradualmente a ponto de se transformarem, aos olhos de todo espírito reto, em nomes abstratos de fenômenos. É impossível imaginar por que outro processo nosso entendimento pudesse ter passado das considerações francamente sobrenaturais às considerações puramente naturais, do regime teológico ao regime positivo.
IV — Depois de ter assim estabelecido, tanto quanto o posso fazer sem entrar numa discussão especial que estaria deslocada neste momento, a lei geral do desenvolvimento do espírito humano, tal como a concebo, nos será mais fácil determinar com precisão a própria natureza da filosofia positiva, o objeto essencial deste discurso.
Vemos, pelo que precede, que o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam primeiras, sejam finais. É inútil insistir muito sobre um princípio, hoje tão familiar a todos aqueles que fizeram um estudo um pouco aprofundado das ciências de observação. Cada um sabe que, em nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos então além de recuar a dificuldade. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude.
Assim, para citar o exemplo mais admirável, dizemos que os fenômenos gerais do universo são explicados, tanto quanto o podem ser, pela lei de gravitação newtoniana; porque, de um lado, essa bela teoria nos mostra toda a imensa variedade dos fatos astronômicos, como constituindo apenas um único e mesmo fato considerado de diversos pontos de vista: a tendência constante de todas as moléculas umas em relação às outras na razão direta de suas massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Enquanto, de outro lado, esse fato geral se nos apresenta como simples extensão de um fenômeno eminentemente familiar e que, por isso mesmo, o consideramos como particularmente conhecido, a gravidade dos corpos na superfície da terra. Quanto a determinar o que são nelas próprias essa atração e essa gravidade, quais são suas causas são questões que consideramos insolúveis, não pertencendo mais ao domínio da filosofia positiva, e que abandonamos com razão à imaginação dos teólogos ou à sutileza dos metafísicos. A prova manifesta da impossibilidade de obter tais soluções reside em que, todas as vezes que se procurou dizer a esse propósito algo verdadeiramente racional, os maiores espíritos só puderam definir um dos princípios pelo outro, dizendo, no que respeita à atração, não ser outra coisa que a gravidade universal e, em seguida, no que respeita à gravidade, consistir simplesmente na atração terrestre. Tais explicações, que fazem sorrir tão logo alguém pretenda conhecer a natureza íntima das coisas e o modo de geração dos [pág. 07] fenômenos, constituem, porém, tudo o que podemos obter de mais satisfatório, mostrando-nos como idênticas duas ordens de fenômenos, que por muito tempo foram tomados como não tendo nenhuma relação entre eles. Nenhum espírito justo procura hoje ir mais longe.
Seria fácil multiplicar exemplos, inúmeros durante o andamento deste curso, porquanto este é o espírito que agora dirige exclusivamente as grandes combinações intelectuais. Para citar apenas neste momento um único dentre os trabalhos contemporâneos, escolherei a bela série de pesquisas do Sr. Fourier sobre a teoria do calor. Oferece-nos a verificação muito sensível das observações gerais precedentes. Neste trabalho, cujo caráter filosófico é tão eminentemente positivo, as leis mais importantes e precisas dos fenômenos termológicos se encontram desvendadas, sem que o autor tenha inquirido uma única vez sobre a natureza íntima do calor, sem que tenha mencionado, a não ser para indicar sua vacuidade, a tão agitada controvérsia entre os partidários da matéria calórica e aqueles que fazem consistir o calor em vibrações dum éter universal. No entanto, trata-se nessa obra das mais altas questões, muitas das quais nunca nem mesmo tinham sido colocadas, prova capaz de que o espírito humano, sem se lançar em problemas inalcançáveis, e restringindo-se a investigações de ordem inteiramente positiva, pode encontrar aí alimento inesgotável para sua atividade mais profunda.
V — Depois de ter caracterizado, tão exatamente quanto me é permitido fazê-lo nesta visão panorâmica, o espírito da filosofia positiva, tarefa que o curso inteiro está destinado a desenvolver, devo agora examinar que época de sua formação atingiu hoje essa filosofia, e o que resta a fazer para completar sua constituição.
Para isso é preciso, de início, considerar que os diferentes ramos de nossos conhecimentos não necessitaram percorrer com igual velocidade as três grandes fases de seu desenvolvimento indicadas acima, nem, por conseguinte, chegar simultaneamente ao estado positivo. Existe, a esse respeito, uma ordem invariável e necessária que nossos diversos gêneros de concepções seguiram e tiveram de seguir em sua progressão, e cuja consideração exata é o complemento indispensável da lei fundamental precedentemente enunciada. Essa ordem será o assunto especial da próxima lição. Basta-nos, por hora, saber que se conforma com a natureza diversa dos fenômenos e que se determina por seu grau de generalidade, de simplicidade e de independência recíprocas, três considerações que, embora distintas, concorrem ao mesmo fim. Desse modo, primeiro os fenômenos astronômicos, como sendo os mais gerais, simples e independentes de todos, e, sucessivamente, pelas mesmas razões, os fenômenos da física terrestre propriamente ditos, os da química, e enfim os fenômenos fisiológicos foram conduzidos às teorias positivas.
É impossível determinar a origem precisa dessa revolução, pois é possível dizer com exatidão, como de todos os outros grandes acontecimentos humanos, que se processou constante e gradativamente desde, de modo particular, os trabalhos de Aristóteles e da escola de Alexandria e em seguida, desde a introdução das ciências naturais na Europa ocidental pelos árabes. No entanto, já que convém fixar uma época para impedir a divagação das idéias, indicarei a data do grande movimento impresso ao espírito humano, há dois séculos, pela ação combinada dos preceitos de Bacon, das concepções de Descartes e das descobertas de Galileu, como o momento em que o espírito da filosofia positiva começou a pronunciar-se no mundo, em oposição evidente ao espírito teológico e metafísico. É então que as concepções positivas se desprenderam nitidamente do amálgama supersticioso e escolástico que encobria, de certo modo, o verdadeiro caráter de todos os trabalhos anteriores. [pág. 08]
VI — Desde essa época memorável, o movimento de ascensão da filosofia positiva e o movimento de decadência da filosofia teológica e metafísica foram extremamente realçados. Pronunciaram-se, enfim, de tal modo que hoje se tornou impossível, a todos os observadores conscientes de seu século, desconhecer a destinação final da inteligência humana para os estudos positivos, assim como seu afastamento, de agora em diante irrevogável, destas vãs doutrinas e destes métodos provisórios, que só poderiam convir a seus primeiros passos. Essa revolução fundamental se cumprirá, assim, necessariamente em toda a sua extensão. Se lhe resta ainda alguma conquista a fazer, algum ramo principal do domínio intelectual a invadir, podemos estar certos de que a transformação se operará do mesmo modo por que se efetuou em todos os outros. Pois seria evidentemente contraditório supor que o espírito humano, tão disposto à unidade de método, conservasse indefinidamente, para uma única classe de fenômenos, sua maneira primitiva de filosofar, quando uma vez chegou a adotar para todo o resto novo andamento filosófico, de caráter absolutamente oposto.
Tudo se reduz, pois, a uma simples questão de fato. A filosofia positiva, que, nos dois últimos séculos, tomou gradualmente tão grande extensão, abraça hoje todas as ordens de fenômenos? É evidente que isto não ocorre e, por conseguinte, resta ainda uma grande operação científica a executar para dar à filosofia positiva este caráter de universalidade indispensável à sua constituição definitiva.
Nas quatro categorias principais de fenômenos naturais, enumeradas há pouco, fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, notamos uma lacuna essencial relativa aos fenômenos sociais que, embora compreendidos implicitamente entre os fisiológicos, merecem, seja por sua importância, seja pelas dificuldades próprias a seu estudo, formar uma categoria distinta. Essa última ordem de concepções, que se reporta a fenômenos mais particulares, mais complicados e mais dependentes de todos os outros, teve necessariamente por isso de aperfeiçoar-se mais lentamente do que todos os precedentes, mesmo sem levar em conta os obstáculos mais especiais que consideraremos mais tarde. Seja como for, é evidente que ainda não entrou no domínio da filosofia positiva. Os métodos teológicos e metafísicos que, relativamente a todos os outros gêneros de fenômenos, não são mais agora empregados por ninguém, quer como meio de investigação, quer até mesmo como meio de argumentação, são ainda utilizados, nesta ou naquela direção, em tudo o que concerne aos fenômenos sociais, a despeito de essa insuficiência já ser percebida por todos os bons espíritos, cansados de vãs contestações intermináveis entre o direito divino e a soberania do povo.
Eis a grande mas, evidentemente, única lacuna que se trata de preencher para constituir a filosofia positiva. Já agora que o espírito humano fundou a física celeste; a física terrestre, quer mecânica, quer química; a física orgânica, seja vegetal, seja animal, resta-lhe, para terminar o sistema das ciências de observação, fundar a física social. Tal é hoje, em várias direções capitais, a maior e mais urgente necessidade de nossa inteligência. Tal é, ouso dizer, o primeiro objetivo deste curso, sua meta especial.
As concepções, que tentarei apresentar a respeito do estudo dos fenômenos sociais e de que espero fazer com que este discurso já deixe entrever o germe, não poderiam pretender dar imediatamente à física social o mesmo grau de perfeição que possuem os ramos anteriores da filosofia natural, o que seria evidentemente quimérico, porquanto estas já apresentam entre elas, a esse propósito, extremas desigualdades, aliás, inevitáveis. Mas serão destinadas a imprimir a essa última classe de nossos conhecimentos o caráter positivo que todas as outras já tomaram. Se essa condição for uma vez realmente preenchida, o sistema filosófico dos modernos estará fundado, enfim, em seu conjunto, [pág. 09] pois nenhum fenômeno observável poderia evidentemente deixar de entrar numa das cinco grandes categorias, desde já estabelecidas: fenômenos astronômicos, físicos, químicos, fisiológicos e sociais. Homogeneizando-se todas as nossas concepções fundamentais, a filosofia constituir-se-á definitivamente no estado positivo. Sem nunca mais poder mudar de caráter, só lhe resta desenvolver-se indefinidamente, graças a aquisições sempre crescentes, resultantes inevitáveis de novas observações ou de meditações mais profundas. Tendo adquirido com isso o caráter de universalidade que lhe falta ainda, a filosofia positiva se tornará capaz de substituir inteiramente, com toda a superioridade natural, a filosofia teológica e a filosofia metafísica, as únicas a possuir realmente hoje essa universalidade. Estas, privadas do motivo de sua preferência, não terão para os nossos sucessores além de uma existência histórica.
VII — Exposta, assim, a meta especial deste curso, é fácil compreender seu segundo objetivo, seu fim geral, aquilo que faz dele um curso de filosofia positiva e não apenas um curso de física social.
Posto que a fundação da física social completa o sistema das ciências naturais, torna-se possível e mesmo necessário resumir os diversos conhecimentos adquiridos, que atingiram, então, um estado fixo e homogêneo, a fim de coordená-los, apresentando-os como diferentes ramos dum tronco único, ao invés de continuar considerando-os apenas como vários corpos isolados. Para esse fim, antes de proceder ao estudo dos fenômenos sociais, considerarei sucessivamente, na ordem enciclopédica anunciada mais acima, as diferentes ciências positivas já formadas.
É supérfluo, penso eu, advertir que não poderia ser questão aqui duma série de cursos especiais sobre os ramos principais da filosofia natural. Sem falar da duração material duma empresa semelhante, está claro que tal pretensão seria insustentável de minha parte e, creio poder acrescentar, da parte de qualquer outro, no estado atual da educação humana. Muito ao contrário, um curso desta natureza exige, para ser convenientemente ouvido, uma série prévia de estudos especiais sobre as diversas ciências a serem aqui consideradas. Sem essa condição, é bem difícil perceber e impossível julgar as reflexões filosóficas de que essas ciências são o objeto. Numa palavra, é um Curso de Filosofia Positiva e não de ciências positivas que me proponho realizar. Trata-se unicamente aqui de considerar cada ciência fundamental em suas relações com o sistema positivo inteiro e no que respeita ao espírito que a caracteriza, a saber, sob a dupla relação de seus métodos essenciais e de seus resultados principais. Muito freqüentemente deverei apenas me limitar a mencionar estes últimos, conforme conhecimentos especiais, para tratar de apreciar sua importância.
A fim de resumir as idéias relativas à dupla meta deste curso, devo fazer notar que os dois objetos, um especial, outro geral, que me proponho, apesar de serem distintos em si mesmos, são necessariamente inseparáveis. Pois, de um lado, seria impossível conceber um curso de filosofia positiva sem a fundação da física social, já que lhe faltaria, então, um elemento essencial. Isto, por isso mesmo, faria com que as concepções não possuíssem esse caráter de generalidade, que deve ser seu principal atributo, e distingue nosso estudo atual da série de estudos especiais. De outro lado, como proceder com segurança no estudo positivo dos fenômenos sociais, se o espírito não for antes preparado pela consideração aprofundada dos métodos positivos já comprovados para os fenômenos menos complicados? Se não for equipado, além do mais, com o conhecimento das leis principais dos fenômenos anteriores, leis que influenciam, de maneira mais ou menos direta, os fatos sociais? [pág. 10]
Se bem que todas as ciências fundamentais não inspiram aos espíritos vulgares igual interesse, não há nenhuma que deva ser negligenciada num estudo como o que nós empreendemos. Quanto à sua importância para a felicidade da espécie humana, todas são certamente equivalentes quando consideradas de maneira profunda. Aquelas cujos resultados apresentam, num primeiro momento, menor interesse prático, recomendam-se eminentemente, seja pela maior perfeição de seus métodos, ou como constituindo o fundamento indispensável de todas as outras. Esta é uma consideração a que terei especialmente oportunidade de voltar na próxima lição.
Para prevenir, tanto quanto possível, todas as falsas interpretações, legítimas de temer sobre a natureza de um curso tão novo como este, devo acrescentar sumariamente às explicações precedentes algumas considerações diretamente relativas à universalidade de conhecimentos especiais. Juizes irrefletidos poderiam olhar essa universalidade como a tendência deste curso, quando ela é considerada, com justa razão, inteiramente contrária ao verdadeiro espírito da filosofia positiva. Essas considerações terão a vantagem mais importante de apresentar este espírito sob novo ponto de vista, adequado para terminar de esclarecer sua noção geral.
No estado primitivo de nossos conhecimentos, não existe nenhuma divisão regular em nossos trabalhos intelectuais. Todas as ciências são cultivadas simultaneamente pelos mesmos espíritos. Esse modo de organização dos estudos humanos, no início inevitável e mesmo indispensável, como teremos ocasião de constatar mais tarde, altera-se pouco a pouco, na medida em que diversas ordens de concepções se desenvolvem. Por uma lei cuja necessidade é evidente, cada ramo do sistema científico se separa insensivelmente do tronco, desde que cresça suficientemente para comportar uma cultura isolada, isto é, quando chega ao ponto de poder ser a ocupação exclusiva da atividade permanente de algumas inteligências. É a essa repartição de diversas espécies de pesquisas entre diferentes ordens de sábios que devemos, evidentemente, o desenvolvimento tão notável que tomou, enfim, em nossos dias, cada classe distinta dos conhecimentos humanos e que torna manifesta a impossibilidade, entre os modernos, dessa universalidade de pesquisas especiais, tão fácil e tão comum nos tempos antigos. Numa palavra, a divisão do trabalho intelectual, aperfeiçoada progressivamente, é um dos atributos característicos mais importantes da filosofia positiva.
Embora reconhecendo os prodigiosos resultados dessa divisão, vendo de agora em diante nela a verdadeira base fundamental da organização geral do mundo dos cientistas, é impossível não se aperceber dos inconvenientes capitais que engendra em seu estado atual, em virtude da excessiva particularidade das idéias de que se ocupa exclusivamente cada inteligência individual. Este incômodo defeito é, até certo ponto, sem dúvida inevitável, como inerente ao próprio princípio da divisão. Por isso, medida alguma nunca nos permitirá igualar, a esse respeito, os antigos, entre os quais tal superioridade advinha sobretudo do parco desenvolvimento de seus conhecimentos. Podemos, todavia, parece-me, por meios convenientes, evitar os mais perniciosos efeitos da especialidade exagerada, sem prejudicar a influência vivificadora da separação das pesquisas. É urgente ocupar-se com isso de modo sério, pois tais inconvenientes que, por sua natureza, tendem a crescer sem parar, começam a vir a ser muito sensíveis. Todos o admitem, as divisões, estabelecidas para a maior perfeição de nossos trabalhos, nos diversos ramos da filosofia natural, são por fim artificiais. Não esqueçamos que, a despeito dessa afirmação, já é bem pequeno, no mundo dos cientistas, o número de inteligências cujas concepções abarcam o conjunto duma ciência única, a qual, por sua vez, nada mais é do que parte de um grande todo. A maioria já se limita inteiramente à consideração isolada duma secção [pág. 11] mais ou menos extensa duma ciência determinada, sem muito se preocupar com a relação desses trabalhos particulares com o sistema geral dos conhecimentos positivos. Apressemo-nos em remediar o mal, antes que se agrave. Receemos que o espírito humano acabe por se perder nesses trabalhos de pormenor. Não dissimulemos que aí está essencialmente o lado fraco, pelo qual os partidários da filosofia teológica e da filosofia metafísica podem ainda atacar, com alguma esperança de sucesso, a filosofia positiva.
O verdadeiro meio de cessar a influência deletéria que parece ameaçar o porvir intelectual, em conseqüência duma demasiada especialização das pesquisas individuais, não poderia ser, evidentemente, voltar a essa antiga confusão de trabalhos, que tenderia a fazer retroceder o espírito humano e que se tornou hoje, felizmente, impossível. Consiste, ao contrário, no aperfeiçoamento da própria divisão de trabalho. Basta fazer do estudo das generalidades científicas outra grande especialidade. Que uma classe nova de cientistas, preparados por uma educação conveniente, sem se entregar à cultura especial de algum ramo particular da filosofia natural, se ocupe unicamente, considerando as diversas ciências positivas em seu estado atual, em determinar exatamente o espírito de cada uma delas, em descobrir suas relações e seus encadeamentos, em resumir, se for possível, todos os seus princípios próprios num número menor de princípios comuns, conformando-se sem cessar às máximas fundamentais do método positivo. Ao mesmo tempo, outros cientistas, antes de entregar-se a suas especialidades respectivas, devem tornar-se aptos, de agora em diante, graças a uma educação abrangendo o conjunto dos conhecimentos positivos, a tirar proveito das luzes propagadas por esses cientistas votados ao estudo de generalidades e, reciprocamente, a retificar seus resultados, estado de coisas de que os cientistas atuais se aproximam cada vez mais. Uma vez cumpridas essas duas condições — é evidente que o podem ser —, a divisão do trabalho nas ciências será levada, sem qualquer perigo, tão longe quanto o desenvolvimento dessas diversas ordens de conhecimento o exigir. Existindo uma classe distinta, incessantemente controlada por todas as outras, tendo por função própria e permanente ligar cada nova descoberta particular ao sistema geral, não cabe mais temer que demasiada atenção seja dada aos pormenores, impedindo de perceber o conjunto. Numa palavra, a organização moderna do mundo dos cientistas estará, então, completamente fundada, podendo desenvolver-se indefinidamente, ao mesmo tempo que conserva o mesmo caráter.
Formar, assim, do estudo de generalidades científicas uma seção distinta do grande trabalho intelectual é simplesmente estender a aplicação do mesmo princípio de divisão que, sucessivamente, separou as diversas especialidades. Enquanto as diferentes ciências positivas foram pouco desenvolvidas, suas relações mútuas não podiam possuir bastante importância para dar lugar, ao menos duma maneira permanente, a uma classe particular de trabalho, ao mesmo tempo que a necessidade desse novo estudo era muito menos urgente. Mas hoje cada uma dessas ciências tomou separadamente extensão suficiente para que o exame de suas relações mútuas possa dar lugar a trabalhos contínuos, ao mesmo tempo que essa nova ordem de estudos torna-se indispensável para prevenir a dispersão das concepções humanas.
Tal é a maneira pela qual concebo o destino da filosofia positiva no sistema geral das ciências positivas propriamente ditas. Tal é, ao menos, a finalidade deste curso.
VIII — Agora que tentei determinar, tão exatamente quanto pude, nesta primeira visão geral, todo o espírito dum curso de filosofia positiva, creio dever, para imprimir a este quadro todo seu caráter, assinalar rapidamente as principais vantagens gerais que pode ter esse trabalho, se as condições essenciais forem convenientemente preenchidas, quanto ao progresso do espírito humano. Reduzirei esta última ordem de considerações à indicação de quatro propriedades fundamentais. [pág. 12]
Primeiramente, o estudo da filosofia positiva, considerando os resultados da atividade de nossas faculdades intelectuais, fornece-nos o único verdadeiro meio racional de pôr em evidência as leis lógicas do espírito humano, que foram procuradas até aqui por caminhos tão pouco próprios a desvendá-las.
Para explicar convenientemente meu pensamento a esse respeito, devo primeiro lembrar uma concepção filosófica da mais alta importância, exposta pelo Sr. De Blainville na bela introdução de seus Princípios Gerais de Anatomia Comparada. Consiste em que todo ser ativo, especialmente todo ser vivo, pode ser estudado, em todos os seus fenômenos, de duas ópticas fundamentais, a estática e a dinâmica, isto é, como apto a agir e como agindo efetivamente. E claro que todas as considerações que se podem apresentar entrarão num ou noutro modo. Apliquemos essa luminosa máxima fundamental ao estudo das funções intelectuais.
Se consideramos essas funções sob o ponto de vista estático, seu estudo só pode consistir na determinação das condições orgânicas de que dependem. Forma, assim, parte essencial da anatomia e da fisiologia. Considerando sob o ponto de vista dinâmico, tudo se reduz a estudar a marcha efetiva do espírito humano em exercício, graças ao exame dos processos realmente empregados para obter os diversos conhecimentos exatos que já adquiriu, o que constitui essencialmente o objeto geral da filosofia positiva, assim como o defini neste discurso. Numa palavra, considerando todas as teorias científicas como diferentes grandes fatos lógicos, é unicamente pela observação aprofundada desses fatos que se pode atingir o conhecimento das leis lógicas.
Tais são, evidentemente, as duas únicas vias gerais, uma complementar à outra, pelas quais se pode chegar a algumas noções racionais verdadeiras sobre os fenômenos intelectuais. Percebe-se que de nenhuma perspectiva há lugar para essa psicologia ilusória, última transformação da teologia, que se tenta em vão reanimar hoje e que, sem perturbar nem o estudo fisiológico de nossos órgãos intelectuais, nem a observação dos processos racionais que dirigem efetivamente nossas diversas pesquisas científicas, pretende chegar à descoberta das leis fundamentais do espírito humano, contemplando-o ele próprio, a saber, fazendo completa abstração das causas e dos efeitos.
A preponderância da filosofia positiva se afirmou como tal desde Bacon. Ganhou hoje indiretamente tão grande ascendência sobre os espíritos — até mesmo aqueles que permaneceram mais estranhos a seu imenso desenvolvimento — que os metafísicos, entregues ao estudo de nossa inteligência, não podem esperar frear a decadência de sua pretensa ciência, a não ser mudando de opinião. Devem apresentar suas doutrinas como também fundando-se na observação dos fatos. Para este fim, imaginaram, nos últimos tempos, distinguir, graças a uma sutileza singular, duas espécies de observações de igual importância, uma exterior, outra interior, a última unicamente destinada ao estudo dos fenômenos intelectuais. Não é aqui o lugar de entrar na discussão especial desse sofisma, fundamental. Devo limitar-me a indicar a consideração principal que prova claramente que essa pretensa contemplação direta do espírito por si mesmo é pura ilusão.
Há muito pouco tempo atrás, acreditava-se explicar a visão dizendo que a ação luminosa dos corpos determina na retina quadros representativos das formas e das cores exteriores. A isto os fisiologistas objetaram, com razão, que, se as impressões luminosas agissem como imagens, seria mister outro olho para enxergá-las. Não acontece o mesmo, de modo ainda mais forte, no caso presente?
É perceptível que, por uma necessidade invencível, o espírito humano pode observar diretamente todos os fenômenos, exceto os seus próprios. Pois quem faria a observação? Concebe-se, quanto aos fenômenos morais, que o homem possa observar a si próprio no [pág. 13] que concerne às paixões que o animam, por esta razão anatômica: que os órgãos, em que residem, são distintos daqueles destinados às funções observadoras. Ainda que cada um tivesse a ocasião de fazer sobre si tais observações, estas, evidentemente, nunca poderiam ter grande importância científica. Constitui o melhor meio de conhecer as paixões sempre observá-las de fora. Porquanto todo estado de paixão muito pronunciado, a saber, precisamente aquele que será mais essencial examinar, necessariamente é incompatível com o estado de observação. No entanto, quanto a observar da mesma maneira os fenômenos intelectuais durante seu exercício, há uma impossibilidade manifesta. O indivíduo pensante não poderia dividir-se em dois, um raciocinando enquanto o outro o visse raciocinar. O órgão observado e o órgão observador sendo, neste caso, idênticos, como poderia ter lugar a observação?
Este pretenso método psicológico é, pois, radicalmente nulo em seu princípio. Do mesmo modo, consideremos a que processos profundamente contraditórios conduz de imediato. De um lado, recomenda-se que vós vos isoleis, tanto quanto possível, de toda sensação exterior; é preciso, então, impedir-vos todo trabalho intelectual; pois, se vós vos ocupásseis unicamente em fazer o cálculo mais simples, no que se converteria a observação interior? De outro lado, depois de ter, enfim, à força de precauções, atingido este estado perfeito de sono intelectual, vós devíeis vos ocupar em contemplar as operações que se executariam em vosso espírito, quando aí nada mais se passasse. Nossos descendentes verão sem dúvida, um dia, encenadas tais pretensões.
Os resultados duma maneira tão estranha de proceder são perfeitamente conformes ao princípio. Há dois mil anos que os metafísicos cultivam assim a psicologia, e não puderam até agora concordar com uma única proposição inteligível e solidamente firmada. Estão até hoje divididos numa multidão de escolas que disputam incessantemente sobre os primeiros elementos de suas doutrinas. A observação interior engendra quase tantas opiniões divergentes quantos indivíduos há que acreditam a ela se entregar.
Os verdadeiros cientistas, homens votados aos estudos positivos, pedem, ainda em vão, a esses psicólogos para citar uma única descoberta real, grande ou pequena, que provenha desse método tão elogiado. Não vale dizer com isso que todos os seus trabalhos ficaram absolutamente sem qualquer resultado, no que respeita aos progressos gerais de nossos conhecimentos, independentemente do serviço eminente que prestaram, sustentando a atividade de nossa inteligência numa época em que não podia ter alimento mais substancial. Mas podemos afirmar que tudo aquilo que, em seus escritos, não Consiste, segundo a judiciosa expressão dum ilustre filósofo positivo (Sr. Cuvier), em metáforas tomadas por raciocínios, mas apresenta alguma noção verdadeira, em vez de provir de seu suposto método, foi obtido graças a observações efetivas sobre a marcha do espírito humano, que o desenvolvimento das ciências fez nascer de tempos em tempos. Além do mais, essas noções tão ralas, proclamadas com tanta ênfase e que provêm exclusivamente da infidelidade dos psicólogos a seu suposto método, encontram-se o mais das vezes muito exageradas ou muito incompletas, bastante inferiores às observações já feitas pelos cientistas, sem qualquer ostentação, a respeito dos processos que empregam. Seria fácil citar exemplos flagrantes, se não temesse estender aqui essa discussão: vede, entre outros, o que aconteceu com a teoria dos signos.
As considerações que acabo de indicar, relativamente à ciência lógica, tornam-se ainda mais patentes quando são transportadas para a arte lógica.
Quando se trata não apenas de saber o que seja o método positivo, mas de ter dele um conhecimento bastante nítido e profundo para usá-lo efetivamente, é mister considerá-lo em ação. São as diversas grandes aplicações já verificadas e efetuadas pelo espírito [pág. 14] humano que convém estudar. Numa palavra, a isto só é possível chegar evidentemente mediante o exame filosófico das ciências. O método não é suscetível de ser estudado separadamente das investigações em que se emprega; ou, ao menos, este é apenas um estudo morto, incapaz de fecundar o espírito que a ele se entrega. Tudo o que se pode dizer de real, quando o tomamos abstratamente, se reduz a generalidades de tal modo vagas que não poderiam ter qualquer influência sobre o regime intelectual. Quando estabelecemos firmemente, como tese lógica, que todos os nossos conhecimentos devem fundar-se em observações, que devemos proceder quer dos fatos aos princípios, quer dos princípios aos fatos, e quaisquer outros aforismos parecidos, conhecemos muito menos nitidamente o método do que quem estudou duma maneira pouco aprofundada uma única ciência positiva, mesmo sem intenção filosófica. É por ter desconhecido esse fato essencial que nossos psicólogos foram conduzidos a tomar por ciência seus próprios sonhos, acreditando compreender o método positivo por ter lido os preceitos de Bacon ou o discurso de Descartes.
Ignoro se, mais tarde, será possível fazer a priori um verdadeiro curso de método inteiramente independente do estudo filosófico das ciências, mas estou bem convencido que isto é inexeqüível hoje, já que os grandes procedimentos lógicos não podem ainda ser explicados com precisão suficiente, separadamente de suas aplicações. Ouso acrescentar, ademais, que, quando tal empresa puder realizar-se mais tarde (isto é possível de conceber), será somente graças ao estudo das aplicações regulares dos procedimentos científicos que se chegará a formar um bom sistema de hábitos intelectuais, o que é, entretanto, a meta essencial do método. Não tenho necessidade de insistir mais, neste momento, sobre um assunto que voltará freqüentemente durante este curso, e a respeito do qual apresentarei especialmente novas considerações na próxima lição.
Tal deve ser o primeiro grande resultado direto da filosofia positiva, a manifestação pela experiência das leis que nossas funções intelectuais seguem em suas realizações, e, por conseguinte, o conhecimento preciso das regras gerais convenientes para proceder de modo seguro na investigação da verdade.
Uma segunda conseqüência, não menos importante e de interesse muito mais urgente, necessariamente destinada a produzir hoje o estabelecimento da filosofia positiva definida neste discurso, é presidir à reforma geral de nosso sistema de educação.
Já os bons espíritos reconhecem unanimemente a necessidade de substituir nossa educação européia, ainda essencialmente teológica, metafísica e literária, por uma educação positiva, conforme ao espírito de nossa época e adaptada às necessidades da civilização moderna. Tentativas variadas se multiplicaram progressivamente desde há um século, particularmente nestes últimos tempos, para propagar e aumentar incessantemente a instrução positiva, e às quais hoje os diversos governos europeus sempre se associam com empenho, quando eles próprios não tomaram a iniciativa. Tentativas que testemunham suficientemente que, em todas as partes, desenvolve-se o sentimento espontâneo dessa necessidade. Mas, a despeito de secundar tanto quanto possível essas úteis empresas, não se deve dissimular que, no estado presente de nossas idéias, não são de modo algum suscetíveis de atingir seu fim principal, a saber, a regeneração fundamental da educação geral. Pois a especialidade exclusiva, o isolamento demasiadamente pronunciado que caracterizam ainda nossa maneira de conceber e de cultivar as ciências influenciam necessariamente, em alto grau, a maneira de expô-las no ensino. Se um bom espírito quiser hoje estudar os principais ramos da filosofia natural a fim de formar-se um sistema geral de idéias positivas, será obrigado a estudar separadamente cada um deles, seguindo o mesmo modo e o mesmo pormenor como se pretendesse vir a ser [pág. 15] especialmente astrônomo ou químico, etc. Isto torna tal educação quase impossível e necessariamente imperfeita, até mesmo para as mais altas inteligências, situadas nas mais favoráveis circunstâncias. Tal maneira de proceder seria, pois, totalmente quimérica quanto à educação geral. No entanto, esta exige absolutamente um conjunto de concepções positivas sobre todas as grandes classes de fenômenos naturais. E tal conjunto que deve converter-se, de agora em diante, em escala mais ou menos extensa, até mesmo entre as massas populares, na base permanente de todas as combinações humanas, base que, numa palavra, deve constituir o espírito geral de nossos descendentes. Para que a filosofia natural possa terminar a regeneração, já tão preparada, de nosso sistema intelectual, é, pois, indispensável que as diferentes ciências de que se compõe, presentes para todas as inteligências como diversos ramos dum tronco único, se reduzam de início ao que constitui seu espírito, isto é, seus métodos principais e seus mais importantes resultados. Somente assim o ensino das ciências pode constituir para nós a base duma nova educação geral verdadeiramente racional. Que a essa instrução fundamental se acrescentem em seguida os diversos estudos científicos especiais, que devem suceder à educação geral, isto não pode evidentemente ser posto em dúvida. Mas a consideração essencial que quis indicar aqui consiste em que todas essas especialidades, embora acumuladas penosamente, seriam necessariamente insuficientes para renovar realmente o sistema de nossa educação, se não repousassem sobre a base prévia deste ensino geral, resultado direto da filosofia positiva definida neste discurso.
Não somente o estudo especial das generalidades científicas se destina a reorganizar a educação, mas deve, ainda, contribuir para o progresso particular das diversas ciências positivas, o que constitui a terceira propriedade fundamental que me proponho assinalar.
As divisões que estabelecemos entre nossas ciências, sem serem arbitrárias, como alguns o crêem, são, com efeito, essencialmente artificiais. Na realidade, o assunto de nossas investigações é uno; nós o dividimos com o fito de separar as dificuldades para melhor resolvê-las. Resulta daí mais de uma vez que, contrariamente a nossas repartições clássicas, questões importantes exigiram certa combinação de vários pontos de vista especiais, a qual não pode ocorrer na constituição atual do mundo científico. Isto abre a possibilidade de esses problemas permanecerem sem solução mais tempo do que seria necessário. Tal inconveniente deve apresentar-se sobretudo para as doutrinas mais essenciais de cada ciência positiva em particular. Pode-se citar facilmente exemplos muito salientes, o que farei cuidadosamente, na medida em que o desenvolvimento natural deste curso nos apresentar a ocasião.
Poderia citar, no passado, um exemplo eminentemente memorável, considerando a admirável concepção de Descartes relativa à geometria analítica. Esta descoberta fundamental, que mudou a face da ciência matemática, e na qual se deve ver o verdadeiro germe de todos os grandes progressos ulteriores, que é mais do que o resultado duma aproximação estabelecida entre duas ciências, concebidas até então de maneira isolada? Mas a observação será mais decisiva fazendo-a cair sobre questões ainda pendentes.
Limitar-me-ei a escolher na química a teoria tão importante das proporções definidas. Certamente, a memorável discussão que se levanta hoje, quanto ao princípio fundamental dessa teoria, não poderia ainda, sejam quais' forem as aparências, ser considerada como irrevogavelmente terminada. Pois não é apenas, parece-me, uma questão de química. Creio poder avançar que, para obter a esse propósito uma decisão verdadeiramente definitiva, isto é, para determinar se devemos olhar como lei da natureza que as moléculas se combinem necessariamente em número fixo, será indispensável reunir o ponto de vista químico com o ponto de vista fisiológico. O que o indica, na versão dos próprios [pág. 16] químicos ilustres que contribuíram mais potentemente para a formação dessa doutrina, é, podemos dizer, no máximo, que se verifica constantemente na composição dos corpos inorgânicos; mas falha ao menos nas composições orgânicas e até aí parece até agora inteiramente impossível estendê-la. Ora, antes de erigir essa teoria como princípio realmente fundamental, não seria preciso dar conta dessa imensa exceção? Não provirá ela desse mesmo caráter geral, próprio a todos os corpos orgânicos, que faz com que em nenhum de seus fenômenos haja lugar para conceber números invariáveis? Seja como for, uma ordem inteiramente nova de considerações, pertencendo igualmente à química e à fisiologia, torna-se evidentemente necessária para decidir finalmente, duma maneira qualquer, essa grande questão de filosofia natural.
Creio ser conveniente indicar ainda um segundo exemplo de mesma natureza, mas que, reportando-se a um assunto de pesquisa muito mais particular, é ainda mais concludente, para mostrar a importância especial da filosofia positiva na solução de questões, exigindo a combinação de várias ciências. Tomo-o também da química. Trata-se da questão, ainda indecisa, que consiste em determinar se o azoto deve ser tomado, no estado presente de nossos conhecimentos, como corpo simples ou composto. Vós sabeis por que considerações puramente químicas o ilustre Berzelius chegou a comover a opinião de quase todos os químicos atuais quanto à simplicidade deste gás. Mas não devo negligenciar, particularmente, de notar a influência exercida a esse propósito sobre o espírito do Sr. Berzelius, como ele próprio o admite de modo preciso, por esta observação fisiológica: os animais que se alimentam de matérias não azotadas conservam na composição de seus tecidos tanto azoto quanto os animais carnívoros. Daí se torna claro que, para decidir realmente se o azoto é ou não corpo simples, será necessário fazer intervir a fisiologia e combinar, com as considerações químicas propriamente ditas, uma série de pesquisas novas sobre a relação entre a composição dos corpos vivos e seu modo de alimentação.
Seria agora supérfluo multiplicar ainda mais os exemplos desses problemas de natureza múltipla, que só poderiam ser resolvidos pela íntima combinação de várias ciências, cultivadas hoje duma maneira totalmente independente. Os que acabo de citar bastam para fazer perceber, em geral, a importância da função que deve cumprir, no aperfeiçoamento de cada ciência natural em particular, a filosofia positiva, imediatamente destinada a organizar, duma maneira permanente, tais combinações, incapazes de formar-se convenientemente sem ela.
Por fim, devo notar desde agora uma quarta e última propriedade fundamental do que chamei de filosofia positiva. Esta deve, sem dúvida, merecer, mais do que qualquer outra, atenção especial, por ser hoje a mais importante para a prática. Só a filosofia positiva pode ser considerada a única base sólida da reorganização social, que deve terminar o estado de crise no qual se encontram, há tanto tempo, as nações mais civilizadas. A última parte deste curso será especialmente consagrada a estabelecer essa proposição, desenvolvendo-a em toda a sua amplitude. Mas no esboço geral do grande quadro, que me propus indicar neste discurso, faltaria um de seus elementos mais característicos, se negligenciasse de assinalar aqui uma consideração tão essencial.
Algumas reflexões muito simples bastarão para justificar o que tal qualificação parece, de início, apresentar de demasiadamente ambicioso.
Não é aos leitores desta obra que acreditaria dever provar que as idéias governam e subvertem o mundo, em outros termos, que todo o mecanismo social repousa finalmente sobre opiniões. Sabem eles sobretudo que a grande crise política e moral das sociedades atuais provém, em última análise, da anarquia intelectual. Nosso mais grave mal [pág. 17] consiste nesta profunda divergência entre todos os espíritos quanto a todas as máximas fundamentais, cuja fixidez é a primeira condição duma verdadeira ordem social. Enquanto as inteligências individuais não aderirem, graças a um assentimento unânime, a certo número de idéias gerais capazes de formar uma doutrina social comum, não se pode dissimular que o estado das nações permanecerá, de modo necessário, essencialmente revolucionário, a despeito de todos os paliativos políticos possíveis de serem adotados — comportando realmente apenas instituições provisórias. É igualmente certo que, se for possível obter essa reunião dos espíritos numa mesma comunhão de princípios, as instituições convenientes daí decorrerão necessariamente, sem dar lugar a qualquer abalo grave, posto que a maior desordem já foi dissipada por este único feito. É, pois, para aí que deve dirigir-se principalmente a atenção de todos aqueles que percebem a importância dum estado de coisas verdadeiramente normal.
Agora, do ponto de vista elevado em que nos colocaram gradualmente as diversas considerações indicadas neste discurso, é fácil, ao mesmo tempo, caracterizar nitidamente, em sua íntima profundidade, o estado presente das sociedades e deduzir a possível via de mudá-lo essencialmente. Reportando-me à lei fundamental enunciada no começo deste discurso, creio poder resumir exatamente todas as observações relativas à situação atual da sociedade dizendo simplesmente que a desordem atual das inteligências vincula-se, em última análise, ao emprego simultâneo de três filosofias radicalmente incompatíveis: a filosofia teológica, a filosofia metafísica e a filosofia positiva. É claro que se uma qualquer dessas três filosofias obtivesse, na realidade, preponderância universal e completa, haveria uma ordem social determinada, pois o mal consiste sobretudo na ausência de toda verdadeira organização. É a coexistência dessas três filosofias opostas que impede absolutamente de estender-se sobre algum ponto essencial. Ora, se essa maneira de ver é exata, não se trata mais de saber qual das três filosofias pode e deve prevalecer pela natureza das coisas. Todo homem sensato deverá em seguida, sejam quais forem as opiniões particulares que manteve antes da análise da questão, esforçar-se para concorrer a seu triunfo. Uma vez reduzida a investigação a esses termos simples, não parece ela dever conservar-se por muito tempo incerta. É evidente, em virtude de algumas das principais razões de toda sorte que indiquei neste discurso, que a filosofia positiva é a única destinada a prevalecer, conforme o curso ordinário das coisas. Só ela, desde uma longa série de séculos, constantemente progrediu, enquanto suas adversárias estiveram constantemente em decadência. Que isto seja justo ou injusto pouco importa; o fato geral é incontestável e basta. É possível deplorar, mas não destruí-lo nem, por conseguinte, negligenciá-lo, sob pena de entregar-se tão-somente a especulações ilusórias. Essa revolução geral do espírito humano está hoje quase inteiramente realizada. Nada mais resta, como indiquei, além de completar a filosofia positiva, introduzindo nela o estudo dos fenômenos sociais e, em seguida, resumi-la num único corpo de doutrina homogênea. Quando este duplo trabalho estiver suficientemente avançado, o triunfo definitivo da filosofia positiva ocorrerá espontaneamente e restabelecerá a ordem na sociedade. A preferência tão pronunciada que quase todos os espíritos, desde os mais elevados até os mais vulgares, atribuem hoje aos conhecimentos positivos sobre as concepções vagas e místicas anuncia suficientemente a acolhida que receberá essa filosofia, quando adquirir a única qualidade que ainda lhe falta, um caráter de generalidade conveniente.
IX — Em resumo, a filosofia teológica e a filosofia metafísica disputam entre si a tarefa, muito superior às forças de cada uma, de reorganizar a sociedade. Sob esse aspecto, só elas permanecem lutando. A filosofia positiva interveio até agora na contestação apenas para criticar a ambas, e nisto se saiu suficientemente bem para desacreditá-las [pág. 18] inteiramente. Coloquemo-la, enfim, no estado de desempenhar um papel ativo, sem nos inquietar por mais tempo com debates que se tornaram inúteis. Completando a vasta operação intelectual iniciada por Bacon, por Descartes e por Galileu, construamos diretamente o sistema de idéias gerais que esta filosofia, de agora em diante, está destinada a fazer prevalecer na espécie humana, e a crise revolucionária, que atormenta os povos civilizados, estará essencialmente terminada.
Tais são os quatro pontos de vista principais sobre os quais, como acreditei dever indicar desde já, se exerce a influência salutar da filosofia positiva, isto a fim de servir de complemento essencial à definição geral que tentei expor.
X — Antes de terminar, desejo por um instante chamar a atenção sobre uma última reflexão que me parece conveniente para evitar, tanto quanto possível, a formação prévia de uma opinião errônea da natureza deste curso.
Ao determinar como finalidade da filosofia positiva resumir num só corpo de doutrina homogênea o conjunto de conhecimentos adquiridos, relativos às diferentes ordens de fenômenos naturais, estava longe do meu pensamento querer proceder ao estudo geral desses fenômenos, considerando-os como efeitos diversos dum princípio único, como sujeitos a uma única e mesma lei. Embora deva tratar especialmente deste problema na próxima lição, desde já creio dever esclarecê-lo, a fim de prevenir os reproches muito mal fundados que poderiam dirigir-me aqueles que, a partir duma falsa visão sinóptica, classificassem este curso entre as tentativas de explicação universal a que cotidianamente assistimos proliferar da parte de espíritos essencialmente estranhos aos métodos e aos conhecimentos científicos. Aqui não se trata de nada semelhante, e o desenvolvimento deste curso fornecerá a prova manifesta a todos aqueles dentre os quais os esclarecimentos contidos neste discurso puderam deixar ainda alguma dúvida.
Conforme profunda convicção pessoal, considero essas empresas de explicação universal de todos os fenômenos por uma lei única como eminentemente quiméricas, mesmo quando são tentadas pelas mais competentes inteligências. Acredito que os meios do espírito humano são muito fracos, o universo muito complicado para que tal perfeição científica esteja um dia ao nosso alcance. Penso, ademais, que se faz geralmente uma idéia muito exagerada das vantagens que daí resultariam necessariamente, se isso fosse possível. Em todo caso, parece-me evidente que, tendo em vista o estado atual de nossos conhecimentos, estamos muitíssimo longe disso, para que tais tentativas sejam viáveis. antes de um lapso de tempo considerável. Pois, se pudéssemos esperar chegar a elas, isto só poderia acontecer, creio eu, vinculando todos os fenômenos naturais à mais geral das leis positivas que conhecemos, a lei de gravitação, que já liga todos os fenômenos astronômicos a uma parte dos fenômenos da física terrestre. Laplace expôs efetivamente uma concepção pela qual se veria nos fenômenos químicos tão-somente simples efeitos moleculares da atração newtoniana, modificada pela figura e posição mútua dos átomos. Mas, além da indeterminação na qual permaneceria provavelmente para sempre essa concepção, por causa da ausência dos dados essenciais sobre a constituição íntima dos corpos, é quase certo que a dificuldade de aplicá-la seria tão grande que nos obrigaríamos a manter, de modo artificial, a divisão hoje estabelecida como natural entre a astronomia e a química. Também Laplace apenas apresentou essa idéia como simples jogo filosófico, incapaz de exercer realmente alguma influência útil no progresso da ciência química. Acresce ainda que, mesmo supondo vencida essa insuperável dificuldade, não teríamos ainda atingido a unidade científica. Seria, em seguida, preciso tentar unir à mesma lei o conjunto dos fenômenos fisiológicos, o que por certo não seria a parte menos difícil da empresa. No entanto, a hipótese que acabamos de percorrer seria, se a considerarmos com cuidado, a mais favorável a essa unidade tão desejada. [pág. 19] Não preciso de maiores pormenores para terminar por convencer que a finalidade deste curso não é, de modo algum, apresentar todos os fenômenos naturais como sendo, no fundo, idênticos, em que pese a variedade de circunstâncias. A filosofia positiva seria, sem dúvida, mais perfeita se isto fosse possível. Mas essa condição não é, de maneira alguma, necessária para sua formação sistemática, não mais do que para a realização das grandes e felizes conseqüências que a vemos destinada a produzir. A única unidade indispensável é a unidade do método, que pode e deve evidentemente existir e já se encontra, na maior parte, estabelecida. Quanto à doutrina, não é necessário ser una, basta que seja homogênea. É, pois, sob o duplo ponto de vista da unidade dos métodos e da homogeneidade das doutrinas que consideraremos, neste curso, as diferentes classes de teorias positivas. Tendendo a diminuir, o mais possível, o número das leis gerais necessárias para a explicação positiva dos fenômenos naturais, o que é, com efeito, a meta filosófica da ciência, consideraremos, entretanto, como temerário aspirar um dia, ainda que para um futuro muito afastado, a reduzi-las rigorosamente a uma só.
Tentei, neste discurso, determinar, tão exatamente quanto esteve em meu poder, a meta, o espírito e a influência da filosofia positiva. Marquei, pois, o alvo para o qual sempre tenderam e tenderão incessantemente todos os meus trabalhos, seja neste curso, seja de qualquer outra maneira. Ninguém está mais profundamente convencido do que eu da insuficiência de minhas forças intelectuais, fossem elas mesmo muito superiores a seu valor real, para responder a uma tarefa tão vasta e tão elevada. Mas o que não pode ser feito por um único espírito ou durante uma única vida, um só pode propô-lo nitidamente. Tal é toda minha ambição.
Tendo exposto a verdadeira finalidade deste curso, a saber, fixado o ponto de vista a partir do qual considerarei os diversos ramos principais da filosofia natural, completarei, na próxima lição, estes prolegômenos gerais, passando à exposição de seu plano, isto é, determinando a ordem enciclopédica que convém estabelecer entre as diversas classes de fenômenos naturais e, por conseguinte, entre as ciências positivas correspondentes. [pág. 20]
SEGUNDA LIÇÃO
Exposição do plano deste curso, ou considerações gerais sobre a hierarquia das ciências positivas
SUMÁRIO: I — As classificações das ciências propostas até o momento fracassaram; causas desses fracassos: 1.° incompetência dos filósofos; 2.° caráter prematuro de suas tentativas. II — As circunstâncias são favoráveis ao positivismo, já que os filósofos deram o modelo das classificações. III — Distinção dos conhecimentos em teóricos e práticos; relações entre a especulação e a ação. IV — Distinção entre as ciências abstratas e as ciências concretas. V — Qualquer classificação das ciências é necessariamente artificial: obrigação que tem o filósofo de combinar a exposição histórica com a exposição dogmática. VI — Princípio da hierarquia dos conhecimentos no positivismo: simplicidade e generalidade decrescente, dependência crescente dos fenômenos estudados. VII — Ciências dos corpos brutos ou física inorgânica. Ciências dos corpos organizados ou física orgânica. VIII — Divisão e subdivisão da física inorgânica. IX — Divisão da física orgânica. X — Resumo da classificação das ciências e plano do curso. XI — Notas gerais sobre as propriedades desta classificação: 1.º sua conformidade com a partilha espontânea do trabalho científico; 2.° sua conformidade com a história das ciências; 3.° a hierarquia positivista indica exatamente o grau de perfeição relativa de cada ordem de conhecimento. Distinção entre a precisão e a certeza; 4.° determinação do plano de uma educação racional. XII — A ciência matemática.
Caracterizamos, tão exatamente quanto possível, na lição precedente, as considerações a serem apresentadas neste curso sobre todos os ramos principais da filosofia natural. É preciso determinar agora o plano que devemos seguir, isto é, a classificação racional mais conveniente a ser estabelecida entre as diferentes ciências positivas fundamentais, a fim de estudá-las sucessivamente sob o ponto de vista que fixamos. Esta segunda discussão geral é indispensável para fazer com que o verdadeiro espírito deste curso seja por fim conhecido desde a origem.
I — Concebe-se facilmente de início que não se trata aqui de fazer a crítica, infelizmente muito fácil, das numerosas classificações, propostas sucessivamente, desde há dois séculos, para o sistema geral dos conhecimentos humanos, formados em toda a sua extensão. Estamos hoje totalmente convencidos de que todas as escalas enciclopédicas constituídas, como as de Bacon e de D'Alembert, na base de uma distinção qualquer das diversas faculdades do espírito humano, são por isso mesmo radicalmente viciadas, ainda quando esta distinção, como acontece muitas vezes, seja mais sutil do que real. Pois, em cada uma dessas esferas de atividades, nosso entendimento emprega simultaneamente todas as suas faculdades principais. Quanto a todas as outras classificações propostas, basta observar que as diferentes discussões levantadas a esse propósito tiveram por resultado definitivo mostrar, em cada uma, vícios fundamentais. Por isso nenhuma pôde obter assentimento unânime, existindo a esse respeito tantas opiniões quantos indivíduos. Essas diversas tentativas foram mesmo, em geral, tão mal concebidas, que desencadearam involuntariamente, na maioria dos bons espíritos, uma prevenção desfavorável contra toda empresa deste gênero.
Sem nos demorar mais num fato bem constatado, é mais essencial procurar sua causa. Ora, pode-se facilmente explicar a profunda imperfeição dessas tentativas enciclopédicas, freqüentemente renovadas até agora. Não preciso observar que, desde o descrédito [pág. 21] geral em que caíram os trabalhos dessa natureza, em conseqüência da pouca solidez dos primeiros projetos, essas classificações apenas são concebidas muitas vezes por espíritos quase inteiramente alheios ao conhecimento dos objetos a serem classificados. Sem atentar para essa consideração pessoal, existe outra muito mais importante, colhida na própria natureza do assunto, e que mostra claramente por que não foi possível, até aqui, chegar a uma concepção enciclopédica verdadeiramente satisfatória. Consiste no defeito de homogeneidade que sempre existiu, até nestes últimos tempos, entre as diferentes partes do sistema intelectual, umas chegando a ser positivas sucessivamente, enquanto outras permaneceram teológicas ou metafísicas. Num estado de coisas tão incoerente, é evidentemente impossível estabelecer alguma classificação racional. Como chegar a dispor, num sistema único, concepções tão profundamente contraditórias? É uma dificuldade contra a qual fracassaram necessariamente todos os classificadores, sem que algum deles a tenha sentido distintamente. Era bem perceptível, entretanto, para quem quer que conheça a verdadeira situação do espírito humano, que tal empresa era prematura e não podia ser tentada com sucesso, a não ser quando todas as nossas concepções principais se tornassem positivas.
Essa condição fundamental pode agora ser considerada preenchida, segundo as explicações dadas na lição precedente; é, então, possível proceder a uma disposição verdadeiramente racional e durável dum sistema em que todas as partes, enfim, venham a ser homogêneas.
II — Por outro lado, a teoria geral das classificações, estabelecida nos últimos tempos pelos trabalhos filosóficos dos botânicos e dos zoólogos, permite esperar um sucesso real para semelhante trabalho, oferecendo-nos um guia certo, graças ao verdadeiro princípio fundamental da arte de classificar, que até agora nunca tinha sido concebido distintamente. Este princípio é conseqüência necessária da única aplicação direta do método positivo à própria questão das classificações, que, como qualquer outra, deve ser tratada pela observação, em vez de ser resolvida por considerações a priori. Consiste em que a classificação deve provir do próprio estudo dos objetos a serem classificados, sendo determinada pelas afinidades reais do encadeamento natural apresentado por eles, de sorte que essa classificação seja ela própria a expressão do fato mais geral, manifestado pela comparação aprofundada dos objetos que abarca.
Aplicando essa regra fundamental ao caso presente, é, pois, segundo a dependência mútua, ocorrendo efetivamente entre as diversas ciências positivas, que devemos proceder à sua classificação. Essa dependência, para ser real, só pode resultar da dependência dos fenômenos correspondentes.
III — Mas, antes de efetuar, com tal espírito de observação, essa importante operação enciclopédica, é indispensável, a fim de não nos perder num trabalho muito extenso, circunscrever com mais precisão do que fizemos até aqui o assunto próprio da classificação proposta.
Todos os trabalhos humanos são especulações ou ações. Assim a divisão mais geral de nossos conhecimentos reais consiste em distingui-los em teóricos e práticos. Se considerarmos de início esta primeira divisão, é evidente que somente os conhecimentos teóricos devem ser tratados num curso da natureza deste, pois não cabe observar o sistema inteiro das noções humanas, mas unicamente o das concepções fundamentais, sob as diversas ordens dos fenômenos, que fornecem uma base sólida para todas e quaisquer de nossas combinações, e que não estão, por sua vez, fundadas sobre algum sistema intelectual antecedente. Ora, neste trabalho só a especulação é que deve ser considerada, não a aplicação, esta última apenas enquanto esclarecer a primeira. Isto provavelmente entendia [pág. 22] Bacon, embora muito imperfeitamente, por essa filosofia primeira, que ele indica ser extraída do conjunto das ciências, e que foi tão diversa e sempre tão estranhamente concebida pelos metafísicos que se propuseram a comentar seu pensamento.
Sem dúvida, ao tomar o conjunto completo de toda sorte dos trabalhos da espécie humana, deve-se conceber o estudo da natureza, destinando-se a fornecer a verdadeira base racional da ação do homem sobre ela. O conhecimento das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é fazer com que sejam previstos por nós, evidentemente pode nos conduzir, de modo exclusivo, na vida ativa, a modificar um fenômeno por outro, tudo isso em nosso proveito. Nossos meios naturais e diretos para agir sobre os corpos que nos rodeiam são extremamente fracos e inteiramente desproporcionados às nossas necessidades. Todas as vezes que chegamos a exercer uma grande ação, é somente porque o conhecimento das leis naturais nos permite introduzir, entre as circunstâncias determinadas sob a influência das quais se realizam os diversos fenômenos, alguns elementos modificadores que, em que pese a sua própria fraqueza, bastam, em certos casos, para fazer reverter, em nosso proveito, os. resultados definitivos do conjunto das causas exteriores. Em resumo, ciência, daí previdência; previdência, daí ação: tal é a fórmula muito simples que exprime, duma maneira exata, a relação geral da ciência e da arte, tomando essas duas expressões em sua acepção total.
Mas, a despeito da importância capital dessa relação, que nunca deve ser desconhecida, seria formar das ciências uma idéia bem imperfeita concebê-las somente como base das artes. A isto infelizmente todos hoje se inclinam demasiado. Sejam quais forem os imensos serviços prestados à indústria pelas teorias científicas (embora, segundo a expressão enérgica de Bacon, a potência seja proporcional ao conhecimento), não devemos esquecer que as ciências possuem, antes de tudo, destinação mais direta e mais elevada, a saber, a de satisfazer à necessidade fundamental, sentida por nossa inteligência, de conhecer as leis dos fenômenos. Para perceber quanto essa necessidade é profunda e imperiosa, basta pensar um instante nos efeitos fisiológicos do espanto, e considerar ser a sensação mais terrível que podemos sentir aquela que se produz todas as vezes que um fenômeno nos parece ocorrer de modo contraditório às leis naturais, que nos são familiares. A necessidade de dispor os fatos numa ordem que podemos conceber com facilidade (o que é o objeto próprio de todas as teorias científicas) é de tal maneira inerente a nossa organização que, se não chegássemos a satisfazê-la com concepções positivas, voltaríamos inevitavelmente às explicações teológicas e metafísicas, às quais primitivamente deu nascimento, como já expus na última lição.
Acreditei dever assinalar expressamente, desde este momento, uma consideração que se reproduzirá freqüentemente em toda a série deste curso, a fim de indicar a necessidade de premunir-se contra a grande influência dos hábitos atuais, tendentes a impedir que se formem idéias justas e nobres sobre a importância e o destino das ciências. Se a potente preponderância de nossa organização não corrigisse, mesmo involuntariamente, no espírito dos cientistas, o que há a esse respeito de incompleto na tendência geral de nossa época, a inteligência humana, reduzida a ocupar-se apenas de investigações suscetíveis duma utilidade prática imediata, encontrar-se-ia por isso, como justamente observou Condorcet, inteiramente impedida em seu progresso, mesmo a propósito dessas aplicações a que teria imprudentemente sacrificado os trabalhos puramente especulativos. Pois as aplicações mais importantes derivam constantemente de teorias formadas com simples intenção científica, e que muitas vezes foram cultivadas durante vários séculos sem produzir resultado prático algum. Pode-se disso citar um exemplo bem notável, tomando as belas especulações dos geômetras gregos sobre as seções cônicas que, depois [pág. 23] duma longa série de gerações, serviram, determinando a renovação da astronomia, para conduzir finalmente a arte da navegação ao grau de aperfeiçoamento que atingiu nos últimos tempos, ao qual nunca teria chegado sem os trabalhos tão puramente teóricos de Arquimedes e de Apolonius. Por isso Condorcet pode dizer com razão: "O marinheiro, o qual uma exata observação da longitude preserva do naufrágio, deve a vida a uma teoria conhecida dois mil anos antes, por homens de gênio que tinham em vista simples especulações geométricas".
É, pois, evidente que, depois de ter concebido, de maneira geral, o estudo da natureza como servindo de base racional à ação sobre ela, o espírito humano deva proceder a pesquisas teóricas, fazendo completamente abstração de toda consideração prática; porquanto nossos meios para descobrir a verdade são de tal modo fracos que, se não os concentrássemos exclusivamente neste fim, se, na procura desta verdade nos impuséssemos, ao mesmo tempo, a condição estranha de encontrar nela uma utilidade prática imediata, quase nos seria sempre impossível chegar a ela.
Seja como for, é certo que o conjunto de nossos conhecimentos sobre a natureza e o dos procedimentos que daí deduzimos para modificá-la em nosso proveito formam dois sistemas essencialmente distintos em si mesmos, sendo conveniente conceber e cultivá-los separadamente. Além do mais, o primeiro sistema forma a base do segundo, de sorte que evidentemente convém considerá-lo, no início, um estudo metódico, mesmo quando nos propusermos abarcar a totalidade dos conhecimentos humanos, relativos à aplicação e à especulação. Esse sistema teórico me parece dever constituir exclusivamente hoje o tema de um curso verdadeiramente racional de filosofia positiva; é assim que, pelo menos, o concebo. Sem dúvida, seria possível imaginar um curso mais extenso, abrangendo ao mesmo tempo generalidades teóricas e práticas. Mas não penso que tal empresa, mesmo independentemente de sua extensão, possa ser tentada convenientemente no estado presente do espírito humano. Parece-me, com efeito, exigir previamente um trabalho muito importante, e de natureza muito particular, que até agora não foi feito, isto é, formar, conforme teorias científicas propriamente ditas, as concepções especiais destinadas a servir de bases diretas aos procedimentos gerais da prática.
No grau de desenvolvimento já atingido por nossa inteligência, não é de imediato que as ciências se aplicam às artes, pelo menos, nos casos mais perfeitos. Existe entre essas duas ordens de idéias uma ordem mediana que, ainda mal determinada em seu caráter filosófico, é mais perceptível quando se considera a classe social que dela se ocupa especialmente. Entre os cientistas propriamente ditos e os diretores efetivos dos trabalhos produtivos, começa a formar-se, em nossos dias, uma classe intermediária, a dos engenheiros, cuja destinação especial é organizar as relações entre a teoria e a prática. Sem ter, de modo algum, em vista o processo dos conhecimentos científicos, ela os considera em seu estado presente para daí deduzir as aplicações industriais de que são suscetíveis. Tal é, ao menos, a tendência natural das coisas, embora ainda exista a esse respeito muita confusão. O corpo de doutrina próprio a essa nova classe, e que deve constituir as teorias verdadeiras e diretas de diferentes artes, poderia sem dúvida dar lugar a considerações filosóficas de grande interesse e importância real. Mas um trabalho que as abrangesse juntamente com aquelas, fundadas sobre as ciências propriamente ditas, seria hoje totalmente prematuro, pois essas doutrinas intermediárias entre a teoria pura e a prática direta não estão ainda formadas. Delas existem apenas, até agora, alguns elementos imperfeitos relativos às ciências e às artes mais avançadas e que permitem somente conceber a natureza e a possibilidade de semelhantes trabalhos para o conjunto das operações humanas. É assim, para citar aqui o exemplo mais importante, que se deve [pág. 24] considerar a bela concepção de Monge, quanto à geometria descritiva, que é apenas uma teoria geral das artes de construção. Terei o cuidado de indicar sucessivamente o pequeno número de idéias análogas já formadas, e de fazer apreciar sua importância, na medida em que o desenvolvimento natural do curso no-las apresentar. Mas é claro que concepções, até agora tão incompletas, não devem entrar como parte essencial num curso de filosofia positiva que só há de compreender, tanto quanto possível, doutrina já possuindo caráter fixo e nitidamente determinado.
Conceber-se-á melhor a dificuldade de construir essas doutrinas intermediárias que acabo de indicar se se considerar que cada arte não só depende duma certa ciência correspondente mas, ao mesmo tempo, de várias, de modo que as artes mais importantes se socorrem diretamente de quase todas as diversas ciências principais. É assim que a verdadeira teoria da agricultura, para me limitar ao caso mais essencial, exige íntima combinação de conhecimentos fisiológicos, químicos, físicos e, até mesmo, astronômicos e matemáticos — e o mesmo ocorre com as belas-artes. Percebe-se facilmente, conforme essa consideração, por que tais teorias não puderam ainda ser formadas, porquanto supõem o desenvolvimento prévio de todas as diferentes ciências fundamentais. Resulta daí igualmente novo motivo de não integrar tal ordem de idéias num curso de filosofia positiva. Longe de contribuir para a formação sistemática dessa filosofia, as teorias gerais próprias às diferentes artes principais devem, ao contrário, como o vemos, constituir mais tarde, provavelmente, uma das conseqüências mais úteis de sua construção.
Em resumo, não devemos considerar neste curso a não ser teorias científicas e de modo nenhum suas aplicações. Mas, antes de proceder à classificação metódica de suas diferentes partes, resta-me expor, quanto às ciências propriamente ditas, uma distinção importante, que terminará de circunscrever nitidamente o assunto próprio do estudo que empreendemos.
IV — É preciso distinguir, em relação a todas as ordens de fenômenos, dois gêneros de ciências naturais: umas, abstratas, gerais, tendo por objeto a descoberta de leis que regem as diversas classes de fenômenos e que consideram todos os casos possíveis de conceber; outras, concretas, particulares, descritivas, designadas algumas vezes sob o nome de ciências naturais propriamente ditas, e que consistem na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres existentes. As primeiras são, pois, fundamentais, sendo a elas que neste curso nossos estudos se limitarão. As outras, seja qual for sua importância, são de fato apenas secundárias e não devem, por conseguinte, fazer parte dum trabalho cuja extensão extrema nos obriga a reduzir ao mínimo seu desenvolvimento possível.
A distinção precedente não pode apresentar qualquer obscuridade aos espíritos que possuem algum conhecimento especial das diferentes ciências positivas, pois equivale aproximadamente à distinção, que se enuncia de ordinário, em quase todos os tratados científicos, comparando a física dogmática com a história natural propriamente dita. Alguns exemplos bastarão, de resto, para tornar sensível essa divisão, cuja importância não é ainda apreciada de modo conveniente.
Poder-se-á de início percebê-la muito nitidamente comparando, duma parte, a fisiologia geral, e, de outra, a zoologia e a botânica propriamente dita. São evidentemente dois trabalhos de caráter distinto, estudar em geral as leis da vida, ou determinar o modo de existência de cada corpo vivo em particular. Este segundo estudo, ademais, funda-se necessariamente no primeiro.
O mesmo acontece com a química em relação à mineralogia; a primeira é evidentemente a base racional da segunda. Na química, consideram-se todas as combinações [pág. 25] possíveis de moléculas, em todas as circunstâncias imagináveis; na mineralogia, consideram-se somente aquelas combinações que se encontram realizadas na constituição efetiva do globo terrestre, sob a influência das únicas circunstâncias que lhe são próprias. Isto mostra claramente a diferença do ponto de vista químico e do ponto de vista mineralógico, embora as duas ciências se dirijam aos mesmos objetos. A maioria dos fatos abrangidos pela primeira possui apenas existência artificial, de sorte que um corpo, como o cloro ou o potássio, poderá possuir extrema importância para a química, graças à extensão e à energia de suas afinidades, enquanto não terá quase nenhuma em mineralogia. Reciprocamente, um composto, como o granito ou quartzo, sobre o qual se reporta a maior parte das considerações mineralógicas, só terá, para a química, um interesse muito medíocre.
O que torna em geral mais sensível ainda a necessidade lógica dessa distinção fundamental entre as duas grandes seções da filosofia natural é que não apenas cada seção da física concreta supõe a cultura prévia da seção correspondente da física abstrata, mas exige ainda o conhecimento das leis gerais relativas a todas as ordens de fenômenos. Assim, por exemplo, o estudo especial da terra, considerada sob todos os pontos de vista que pode efetivamente apresentar, não apenas exige o conhecimento prévio da física e da química, mas não se estabelece convenientemente sem introduzir, duma parte, conhecimentos astronômicos, doutra parte, até mesmo conhecimentos fisiológicos, de sorte que mobiliza todo o sistema das ciências fundamentais. O mesmo acontece com cada uma das ciências naturais propriamente ditas. É precisamente por esse motivo que a física concreta fez até agora tão poucos progressos reais, pois só começou a ser estudada, duma maneira verdadeiramente racional, depois da física abstrata, quando todos os diversos ramos principais desta tomaram caráter definitivo, o que só teve lugar em nossos dias. Até então, a esse respeito, só foi possível recolher materiais mais ou menos incoerentes, além de serem incompletos. Os fatos conhecidos não serão coordenados de maneira a formar verdadeiras teorias especiais dos diferentes seres do universo, a não ser quando a distinção fundamental, lembrada acima, for mais aprofundadamente percebida e mais regularmente organizada; quando, por conseguinte, os cientistas, particularmente os entregues ao estudo das ciências naturais propriamente ditas, tiverem reconhecido a necessidade de fundar suas investigações num conhecimento aprofundado de todas as ciências fundamentais, condição que ainda hoje está muito longe de ser convenientemente cumprida.
O exame dessa condição confirma nitidamente por que devemos, neste curso de filosofia positiva, reduzir nossas considerações ao estudo das ciências gerais, sem abraçar ao mesmo tempo as ciências descritivas ou particulares. Assistimos aqui ao nascimento duma nova propriedade essencial deste estudo próprio das generalidades da física abstrata: fornecer a base racional duma física concreta verdadeiramente sistemática. Assim, no estado presente do espírito humano, haveria uma espécie de contradição em querer reunir, num único e mesmo curso, duas ordens de ciências. Pode-se dizer, ademais, que, quando a física concreta atingir o grau de perfeição da física abstrata, sendo possível, então, num curso de filosofia positiva abranger ao mesmo tempo uma e outra, caberá ainda de modo evidente começar pela seção abstrata, que permanecerá a base invariável da outra. É claro, de resto, que só o estudo das generalidades das ciências fundamentais é suficientemente amplo por si mesmo para que importe afastar dele, quanto possível, todas as considerações que não sejam indispensáveis. Ora, aquelas relativas às ciências secundárias serão sempre, aconteça o que acontecer, de gênero distinto. A filosofia das ciências fundamentais, apresentando um sistema de concepções positivas [pág. 26] sobre todas as nossas ordens de conhecimentos reais, basta, por isso mesmo, para constituir essa filosofia primeira que Bacon procurava e que, sendo destinada a servir de agora em diante de base permanente para todas as especulações humanas, deve ser cuidadosamente reduzida à mais simples expressão possível.
Não preciso insistir mais, neste momento, em tal discussão, que terei, naturalmente, várias ocasiões de reproduzir nas diversas partes deste curso. A explicação precedente é bastante desenvolvida para justificar a maneira pela qual circunscrevi o assunto geral de nossas considerações.
Assim, resultando de tudo o que acabo de expor nesta lição, vemos: 1) que a ciência humana se compondo, em seu conjunto, de conhecimentos especulativos e conhecimentos de aplicação, é somente dos primeiros que devemos nos ocupar aqui; 2) que os conhecimentos teóricos ou as ciências propriamente ditas, dividindo-se em ciências gerais e ciências particulares, devemos considerar aqui apenas a primeira ordem, limitando-nos à física abstrata, em que pese o interesse que possa nos apresentar a física concreta.
Já que o assunto próprio deste curso esta com isto exatamente circunscrito, e fácil agora proceder a uma classificação racional verdadeiramente satisfatória das ciências fundamentais, o que constitui a questão enciclopédica, objeto especial desta lição.
V — É preciso, antes de tudo, começar por reconhecer que, por mais natural que possa ser tal classificação, sempre encerrará necessariamente algo, se não arbitrário, ao menos artificial, de maneira a apresentar uma verdadeira imperfeição.
A finalidade principal que se deve ter em vista em todo trabalho enciclopédico é, com efeito, dispor as ciências na ordem de seu encadeamento natural, seguindo sua dependência mútua, de tal sorte que se possa expô-las sucessivamente, sem nunca cair no menor círculo vicioso. Ora, essa condição me parece impossível de ser preenchida de maneira totalmente rigorosa. Que me seja permitido dar aqui algum desenvolvimento a esta reflexão, em cuja importância creio, para caracterizar a verdadeira dificuldade da pesquisa que nos ocupa atualmente. Essa consideração, de resto, me dará a oportunidade de estabelecer, quanto à exposição de nossos conhecimentos, um princípio geral de que terei mais tarde de apresentar freqüentes aplicações.
Toda ciência pode ser exposta mediante dois caminhos essencialmente distintos: o caminho histórico e o caminho dogmático. Qualquer outro modo de exposição não será mais do que sua combinação.
Pelo primeiro procedimento, expomos sucessivamente os conhecimentos na mesma ordem efetiva, segundo a qual o espírito humano os obteve realmente, adotando, tanto quanto possível, as mesmas vias.
Pelo segundo, apresentamos o sistema de idéias tal como poderia ser concebido hoje por um único espírito que, colocado numa perspectiva conveniente e provido de conhecimentos suficientes, ocupar-se-ia de refazer a ciência em seu conjunto.
O primeiro modo é evidentemente aquele pelo qual começa, com toda necessidade, o estudo de cada ciência nascente, pois apresenta a propriedade de não exigir, para a exposição dos conhecimentos, nenhum novo trabalho distinto daquele de sua formação. Toda a didática se resume, então, em estudar sucessivamente, na ordem cronológica, as diversas obras originais que contribuíram para o progresso da ciência.
O modo dogmático, supondo, ao contrário, que todos esses trabalhos particulares foram refundidos num sistema geral, a fim de serem apresentados segundo uma ordem lógica mais natural, aplica-se apenas a uma ciência já suficientemente desenvolvida em alto grau. Mas, na medida em que a ciência progride, a ordem histórica de exposição torna-se [pág. 27] cada vez mais impraticável, por causa da longa série de intermediários que obrigaria o espírito a percorrer, enquanto a ordem dogmática torna-se cada vez mais possível, ao mesmo tempo que necessária, porque novas concepções permitem apresentar as descobertas anteriores de um ponto de vista mais direto.
Assim, por exemplo, a educação dum geômetra da Antiguidade consistia simplesmente no estudo sucessivo de pequeníssimo número dos tratados originais, produzidos até então, referentes às diversas partes da geometria, que se reduziam essencialmente aos escritos de Arquimedes e de Apolonius. Ao contrário, um geômetra moderno termina comumente sua educação sem ter lido uma só obra original, exceto relativamente às descobertas mais recentes, que só podem ser conhecidas por esse meio.
A tendência constante do espírito humano, quanto à exposição dos conhecimentos, é, pois, substituir progressivamente a ordem histórica pela ordem dogmática, a única conveniente ao estado aperfeiçoado de nossa inteligência.
O problema geral da educação intelectual consiste em fazer com que, em poucos anos, um único entendimento, muitas vezes medíocre, chegue ao mesmo ponto de desenvolvimento atingido, durante uma longa série de séculos, por um grande número de gênios superiores, que aplicaram, sucessivamente, durante a vida inteira, todas as suas forças ao estudo de um mesmo assunto. É claro, com isto, que, apesar de ser infinitamente mais fácil e mais curto aprender do que inventar, seria certamente impossível atingir o fim proposto se pretendêssemos sujeitar cada espírito individual a percorrer sucessivamente os mesmos passos intermediários que teve de seguir necessariamente o gênio coletivo da espécie humana. Daí a necessidade indispensável da ordem dogmática, tão perceptível hoje entre as ciências mais avançadas, cujo modo ordinário de exposição não mais apresenta traço algum da filiação efetiva de seus pormenores.
É preciso, entretanto, acrescentar, para prevenir todo exagero, que o modo real de exposição é, inevitavelmente, certa combinação da ordem dogmática com a ordem histórica, na qual somente a primeira deve dominar constante e progressivamente. A ordem dogmática não pode, com efeito, ser seguida de maneira inteiramente rigorosa, pois para isso exige nova elaboração dos conhecimentos adquiridos. Não se aplica assim, em cada época da ciência, às partes recentemente formadas, cujo estudo só comporta uma ordem essencialmente histórica. Esta não apresenta, de resto, neste caso, os inconvenientes principais que, em geral, provocam sua rejeição.
A única imperfeição fundamental que se poderia censurar ao modo dogmático é deixar ignorar a maneira por que se formaram os diversos conhecimentos humanos. Esta, apesar de ser distinta da própria aquisição de conhecimentos, desperta em si o mais alto interesse em todo espírito filosófico. Tal consideração teria, a meus olhos, muito peso, se fosse realmente motivo em favor da ordem histórica. Mas é fácil ver que existe apenas uma relação aparente entre estudar uma ciência segundo o modo chamado histórico e conhecer verdadeiramente a história efetiva dessa ciência.
Não somente as diversas partes de cada ciência, que somos levados a separar na ordem dogmática, desenvolveram-se na realidade simultaneamente e sob a influência recíproca umas das outras — o que tenderia a fazer preferir a ordem histórica —, mas, considerando em seu conjunto o desenvolvimento efetivo do espírito humano, vê-se, além disso, que as diferentes ciências foram, de fato, aperfeiçoadas ao mesmo tempo e imbricadas. Vê-se, ainda, que o progresso das ciências e o das artes dependeram um do outro, em virtude de inumeráveis influências recíprocas e, enfim, que todos estiveram estreitamente ligados ao desenvolvimento geral da sociedade humana. Este vasto encadeamento é de tal modo real que, muitas vezes, para conceber a geração efetiva duma teoria científica, [pág. 28] o espírito foi levado a considerar o aperfeiçoamento de alguma arte que não mantinha com ela nenhuma ligação racional, ou até mesmo algum progresso particular na organização social, sem o qual essa descoberta não teria podido ocorrer. Disso veremos em seguida numerosos exemplos. Resulta, assim, que não se conhece a verdadeira história de cada ciência, isto é, a formação real das descobertas de que se compõe, a não ser estudando, de maneira geral e direta, a história da humanidade. Por isso todos os documentos recolhidos até agora sobre a história da matemática, da astronomia, da medicina, etc., embora preciosos, só podem ser tomados como materiais.
A suposta ordem histórica de exposição, ainda quando pudesse ser seguida rigorosamente nos pormenores de cada ciência em particular, já seria puramente hipotética e abstrata, sob as ópticas mais importantes, se fosse considerada isolada do desenvolvimento de cada ciência. Bem longe de pôr em evidência a verdadeira história da ciência, tenderia a fazer com que se fizesse dela uma opinião muito falsa.
Estamos por certo convencidos de que o conhecimento da história das ciências é da mais alta importância. Penso, ainda, que não conhecemos completamente uma ciência se não conhecemos sua história. Mas este estudo deve ser concebido inteiramente separado do estudo próprio e dogmático da ciência, sem o qual essa história não seria inteligível. Consideraremos, pois, com muito cuidado, a história real das ciências fundamentais que serão o tema de nossas meditações, mas isto acontecerá somente na última parte deste curso, a relativa ao estudo dos fenômenos sociais, que trata do desenvolvimento geral da humanidade, em que a história das ciências constitui a parte mais importante, embora até aqui a mais negligenciada. No estudo de cada ciência, as considerações históricas incidentes que se apresentarem terão caráter nitidamente distinto, de maneira a não alterar a própria natureza de nosso trabalho principal.
A discussão precedente, de resto, como se vê, a ser mais tarde especialmente desenvolvida, tende a precisar ainda mais, tomando-o sob novo ponto de vista, o verdadeiro espírito deste curso. Mas, sobretudo a propósito da questão atual, resulta na determinação exata das condições que nos impomos e esperamos justamente cumprir na construção duma escala enciclopédica das diversas ciências fundamentais.
Percebe-se, com efeito, em que pese a perfeição suposta, que essa classificação não poderia estar rigorosamente conforme ao encadeamento histórico das ciências. Seja qual for nosso modo de agir, não podemos evitar totalmente apresentar (como anterior) uma ciência que terá necessidade, sob algum ângulo particular mais ou menos importante, de tomar emprestadas noções de outra ciência classificada num lugar posterior. É preciso cuidar somente que tal inconveniente não ocorra quanto às concepções características de cada ciência, pois então a classificação seria totalmente viciosa.
Assim, por exemplo, parece-me incontestável que, no sistema geral das ciências, a astronomia deve ser colocada antes da física propriamente dita, e, todavia, vários ramos desta, sobretudo a óptica, são indispensáveis para a exposição completa da primeira.
Tais defeitos secundários, estritamente inevitáveis, não poderiam prevalecer contra uma classificação que cumprisse, de resto, convenientemente, as condições principais. Concernem ao que há de necessariamente artificial em nossa divisão do trabalho intelectual.
No entanto, apesar de, conforme às explicações precedentes, não dever tomar a ordem histórica por base de nossa classificação, não posso deixar de indicar de antemão, como propriedade essencial da escala enciclopédica que vou propor, sua conformidade geral com o conjunto da história científica. Isto num sentido que, a despeito da simultaneidade real e contínua do desenvolvimento das diferentes ciências, aquelas que serão [pág. 29] classificadas como anteriores serão, com efeito, as mais antigas e constantemente mais adiantadas do que as apresentadas como posteriores. É o que deve ocorrer inevitavelmente se, na realidade, tomamos, como há de ser, por princípio de classificação o encadeamento lógico natural das diversas ciências, pois o ponto de partida da espécie é necessariamente o mesmo que o do indivíduo.
Para acabar de determinar, com toda precisão possível, a dificuldade exata da questão enciclopédica a ser resolvida, creio útil introduzir uma consideração matemática simples, que resumirá rigorosamente o conjunto dos raciocínios expostos até aqui nesta lição. Vejamos no que consiste.
Propomo-nos classificar as ciências fundamentais. Ora, veremos logo que, tudo bem considerado, não é possível distinguir menos de seis; a maioria dos sábios admite provavelmente ainda maior número. Posto isto, sabemos que seis objetos comportam setecentas e vinte disposições diferentes. As ciências fundamentais poderiam, pois, dar lugar a setecentas e vinte classificações distintas, dentre as quais se trataria de escolher a classificação necessariamente única, que melhor satisfizesse às principais condições do problema. Vê-se que, a despeito do grande número de escalas enciclopédicas sucessivamente propostas até o presente, a discussão abrangeu pequena parte das disposições possíveis. Creio, no entanto, poder afirmar sem exagero que, examinando cada uma dessas setecentas e vinte classificações, não haveria talvez uma única em favor da qual se pudesse fazer valer alguns motivos plausíveis. Observando as diversas disposições que foram efetivamente propostas, notam-se entre elas as mais extremas diferenças. As ciências colocadas por uns no início do sistema enciclopédico são remetidas por outros para a extremidade oposta, e reciprocamente. É, pois, nesta escolha duma única ordem verdadeiramente racional, dentre o número muito considerável dos sistemas possíveis, que consiste a dificuldade precisa da questão proposta.
VI — Abordando agora de maneira direta essa grande questão, lembremos, primeiro, que para obter uma classificação natural e positiva das ciências fundamentais é preciso procurar seu princípio na comparação das diversas ordens de fenômenos, cujas leis elas têm por finalidade descobrir. Queremos determinar a dependência real entre os diversos estudos científicos. Ora, essa dependência só pode resultar da dependência dos fenômenos correspondentes.
Considerando sob este ponto de vista todos os fenômenos observáveis, veremos ser possível classificá-los num pequeno número de categorias naturais, dispostas de tal maneira que o estudo racional de cada categoria funde-se no conhecimento das leis principais da categoria precedente, convertendo-se no fundamento do estudo da seguinte. Essa ordem é determinada pelo grau de simplicidade ou, o que vale o mesmo, pelo grau de generalidade dos fenômenos, donde resulta sua dependência sucessiva e, por conseguinte, a facilidade maior ou menor de seu estudo.
É claro, a priori, que os fenômenos mais simples, aqueles que menos se complicam com os outros, são também necessariamente os mais gerais, pois o que se observa na maioria dos casos se desprende, por isso mesmo, o mais possível das circunstâncias próprias de cada caso separado. É, portanto, do estudo de fenômenos mais gerais ou mais simples que é preciso começar, procedendo em seguida sucessivamente até atingir os fenômenos mais particulares ou mais complicados; isto se quisermos conceber a filosofia natural de maneira verdadeiramente metódica, pois essa ordem de generalidade ou de simplicidade, determinando necessariamente o encadeamento racional das diversas ciências fundamentais por meio da dependência sucessiva de seus fenômenos, fixa o seu grau de facilidade. [pág. 30]
Ao mesmo tempo, em virtude duma consideração auxiliar que acredito importante notar aqui e que converge exatamente com todas as precedentes, os fenômenos mais gerais ou mais simples, sendo necessariamente os mais estranhos ao homem, devem, por isso mesmo, ser estudados numa disposição de espírito mais calma e racional, o que constitui novo motivo para que as ciências correspondentes se desenvolvam de modo mais rápido.
VII — Tendo assim indicado a regra fundamental que deve presidir à classificação das ciências, posso passar imediatamente à construção da escala enciclopédica, segundo a qual o plano deste curso deve determinar-se e que cada um poderá facilmente apreciar com o auxílio das considerações precedentes.
Uma primeira contemplação do conjunto dos fenômenos naturais nos leva a dividi-los primeiramente, conforme o princípio que acabamos de estabelecer, em duas grandes classes principais, a primeira compreendendo todos os fenômenos dos corpos brutos, a segunda todos aqueles dos corpos organizados.
Estes últimos são evidentemente mais complicados e particulares do que os outros; dependem dos precedentes que, ao contrário, deles não dependem de modo algum. Daí a necessidade de estudar os fenômenos fisiológicos depois dos fenômenos dos corpos inorgânicos. Seja qual for a maneira por que se expliquem as diferenças dessas duas sortes de seres, é certo que se observam nos corpos vivos todos os fenômenos, sejam mecânicos, sejam químicos, que têm lugar nos corpos brutos, acrescidos duma ordem muito especial, a dos fenômenos vitais propriamente ditos, aqueles que dizem respeito à organização. Não se trata aqui de examinar se as duas classes de corpos possuem a mesma natureza ou não são constituídos por ela, questão insolúvel que se ventila demasiadamente em nossos dias, por causa dum resto de influência de hábitos teológicos e metafísicos. Tal questão não é do domínio da filosofia positiva, que formalmente faz profissão de ignorar absolutamente a natureza de qualquer corpo. Mas não é de modo algum indispensável considerar os corpos brutos e os corpos vivos como de naturezas essencialmente diferentes para reconhecer a necessidade da separação de seus estudos.
Sem dúvida, as idéias não estão ainda suficientemente fixadas a propósito da maneira geral de conceber os fenômenos dos corpos vivos. Mas, seja qual for o partido que se tome a esse respeito, em conseqüência dos progressos ulteriores da filosofia natural, a classificação que estabelecermos não será por isso afetada. Suponhamos, com efeito, demonstrado, o que se pode apenas entrever no estado presente da fisiologia, que os fenômenos fisiológicos sejam fenômenos mecânicos, elétricos e químicos, modificados pela estrutura e composição próprias aos corpos organizados; nem por isso deixaria de subsistir nossa divisão fundamental. Pois permanece sempre verdadeiro, mesmo sob essa hipótese, que os fenômenos gerais devem ser estudados antes de se proceder ao exame das modificações especiais que sofrem em certos seres do universo, em virtude duma disposição particular das moléculas. Assim, a divisão, que hoje é considerada fundada, para a maioria dos espíritos esclarecidos, sobre a diversidade das leis é de natureza a manter-se indefinidamente, por causa da subordinação dos fenômenos e dos estudos, em que pese a aproximação que se possa alguma vez estabelecer solidamente entre as duas classes de corpos.
Não é aqui lugar de desenvolver, em suas diversas partes essenciais, a comparação geral entre os corpos brutos e os corpos vivos, que será objeto especial dum exame aprofundado na seção fisiológica deste curso. Basta por ora reconhecer, em princípio, a necessidade lógica de separar a ciência relativa aos primeiros da ciência relativa aos segundos, só procedendo ao estudo da física orgânica depois de ter estabelecido as leis gerais da física inorgânica. [pág. 31]
VIII — Passemos agora para a determinação da subdivisão principal de que é suscetível, conforme a mesma regra, cada uma das duas grandes metades da filosofia natural.
Para a física inorgânica vemos, primeiro, conformando-nos sempre à ordem de generalidade e de dependência dos fenômenos, que deve ser dividida em duas seções distintas, segundo considera os fenômenos gerais do universo ou, em particular, aqueles apresentados pelos corpos terrestres — donde a física celeste, ou astronomia, quer geométrica, quer mecânica; e a física terrestre. A necessidade desta divisão é exatamente parecida com a precedente.
Sendo os fenômenos astronômicos os mais gerais, os mais simples, os mais abstratos de todos, é por seu estudo evidentemente que deve começar a filosofia natural. Isto porque as leis a que se sujeitam influenciam as leis de todos os outros fenômenos, sendo ao contrário essencialmente independentes destas últimas. Em todos os fenômenos da física terrestre observam-se de início os efeitos gerais da gravitação universal, acrescidos de alguns outros efeitos que lhes são próprios e que modificam os primeiros. Segue-se que, quando se analisa o fenômeno terrestre mais simples, não só tomando um fenômeno químico mas escolhendo ainda um fenômeno puramente mecânico, encontra-se aquele sempre de modo mais composto do que o fenômeno celeste mais complicado. Assim é, por exemplo, que o simples movimento de um corpo pesado, mesmo quando se trata apenas de um sólido, configura realmente, quando se quer levar em conta todas as circunstâncias determinantes, um tema de pesquisa mais complicado do que a questão astronômica mais difícil. Tal consideração mostra claramente como é indispensável separar nitidamente a física celeste da física terrestre, somente procedendo ao estudo da segunda depois do da primeira, sua base racional.
A física terrestre, por sua vez, subdivide-se, conforme o mesmo princípio, em duas partes muito distintas, segundo considera os corpos sob o ponto de vista mecânico ou sob o ponto de vista químico. Donde a física propriamente dita e a química. Esta, para ser concebida duma maneira verdadeiramente metódica, supõe evidentemente o conhecimento prévio da outra. Pois todos os fenômenos químicos são necessariamente mais complicados do que os fenômenos físicos; dependem deles sem os influenciar. Cada um de nós sabe, com efeito, que toda ação química se submete, primeiro, à influência da gravidade, do calor, da eletricidade, etc., e apresenta, além do mais, alguma coisa de próprio que modifica a ação de seus agentes precedentes. Essa consideração, que mostra evidentemente a química só podendo caminhar depois da física, apresenta-a ao mesmo tempo como ciência distinta, porquanto seja qual for a opinião adotada sobre as afinidades químicas, ainda que não se vejam nelas, como é possível de ser concebido, modificações da gravitação geral produzidas pela figura e pela disposição mútua dos átomos, permanece incontestável que a necessidade de atentar continuamente para essas condições especiais não permite tratar a química como simples apêndice da física. Seremos, pois, obrigados, em todos os casos, embora seja apenas para facilitar o estudo, a manter a divisão e o encadeamento que se tomam hoje como provenientes da heterogeneidade dos fenômenos.
Tal é a distribuição racional dos principais ramos da ciência geral dos corpos brutos. Uma divisão análoga se estabelece, da mesma maneira, na ciência geral dos corpos organizados.
IX — Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintos, os relativos ao indivíduo e os concernentes à espécie, sobretudo quando esta é sociável. É principalmente em relação ao homem que esta distinção é fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complicada e mais particular do que a primeira, depende dela sem a influenciar. Daí duas grandes seções da física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, fundada na primeira. [pág. 32]
Em todos os fenômenos sociais observa-se, primeiramente, a influência das leis fisiológicas do indivíduo e, ademais, alguma coisa de particular que modifica seus efeitos e que provém da ação dos indivíduos uns sobre os outros, algo que se complica particularmente na espécie humana por causa da ação de cada geração sobre aquela que lhe segue. É, pois, evidente que, para estudar convenientemente os fenômenos sociais, é preciso partir de início do conhecimento aprofundado das leis relativas à vida individual. Por outro lado, essa subordinação necessária dos dois estudos não prescreve, de modo algum, como certos fisiologistas de primeira ordem foram levados a crer, a necessidade de ver na física social simples apêndice da fisiologia. A despeito de os fenômenos serem por certo homogêneos, não são idênticos, e a separação das duas ciências é duma importância verdadeiramente fundamental. Pois seria impossível tratar o estudo coletivo da espécie como pura dedução do estudo do indivíduo, porquanto as condições sociais, que modificam a ação das leis fisiológicas, constituem precisamente a consideração mais essencial. Assim, a física social deve fundar-se num corpo de observações diretas que lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária com a fisiologia propriamente dita.
Poder-se-ia facilmente estabelecer uma simetria perfeita entre a divisão da física orgânica e aquela acima exposta para a física inorgânica, lembrando a distinção vulgar da fisiologia propriamente dita em vegetal e animal. Seria fácil, com efeito, vincular essa subdivisão ao princípio de classificação que seguimos constantemente, já que os fenômenos da vida animal se apresentam, em geral ao menos, como mais complicados e mais especiais do que os da vida vegetal. Mas a investigação dessa simetria precisa teria alguma coisa de pueril se levasse a desconhecer ou a exagerar as analogias reais ou as diferenças efetivas dos fenômenos. Ora, é certo que a distinção entre fisiologia vegetal e fisiologia animal, de grande importância para o que chamei de física concreta, não possui quase nenhuma na física abstrata, a única de que se trata aqui. O conhecimento das leis gerais da vida, que deve constituir, a nossos olhos, o verdadeiro objeto da fisiologia, exige a consideração simultânea de toda a série orgânica, sem distinção de vegetais e animais, distinção que, de resto, se apaga dia a dia, na medida em que os fenômenos são estudados de maneira mais aprofundada.
Persistiremos, pois, em considerar apenas uma única divisão na física orgânica, apesar de termos acreditado dever estabelecer duas partes sucessivas na física inorgânica.
X — Como resultado dessa discussão, a filosofia positiva se encontra, pois, naturalmente dividida em cinco ciências fundamentais, cuja sucessão é determinada pela subordinação necessária e invariável, fundada, independentemente de toda opinião hipotética, na simples comparação aprofundada dos fenômenos correspondentes: a astronomia, a física, a química, a fisiologia e, enfim, a física social. A primeira considera os fenômenos mais gerais, mais simples, mas abstratos e mais afastados da humanidade, e que influenciam todos os outros sem serem influenciados por estes. Os fenômenos considerados pela última são, ao contrário, os mais particulares, mais complicados, mais concretos e mais diretamente interessantes para o homem; dependem, mais ou menos, de todos os precedentes, sem exercer sobre eles influência alguma. Entre esses extremos, os graus de especialidade, de complicação e de personalidade dos fenômenos vão gradualmente aumentando, assim como sua dependência sucessiva. Tal é a íntima relação geral que a verdadeira observação filosófica, convenientemente empregada, ao contrário de vãs distinções arbitrárias, nos conduz a estabelecer entre as diversas ciências fundamentais. Este deve ser, portanto, o plano deste curso. [pág. 33]
Aqui só pude esboçar a exposição das considerações principais sobre as quais repousa essa classificação. Para concebê-la completamente, seria mister agora, depois de a ter tomado de um ponto de vista geral, examiná-la relativamente a cada ciência fundamental em particular. É o que faremos cuidadosamente começando o estudo especial de cada parte do curso. A construção dessa escala enciclopédica, retomada assim sucessivamente a partir de cada uma das cinco grandes ciências, fará com que adquira maior exatidão e, sobretudo, porá plenamente em evidência sua solidez. Essas vantagens serão tanto mais sensíveis quanto virmos então a distribuição interior de cada ciência estabelecer-se naturalmente conforme ao mesmo princípio, o que apresentará todo o sistema dos conhecimentos humanos decomposto, até seus pormenores secundários, segundo uma consideração única constantemente seguida, a do grau de abstração maior ou menor das concepções correspondentes. Mas trabalhos deste gênero, além de nos arrastar muito longe agora, estariam por certo deslocados nesta lição, em que nosso espírito deve manter-se no ponto de vista mais geral da filosofia positiva.
XI — No entanto, para fazer apreciar tão completamente quanto possível, desde este momento, a importância dessa hierarquia fundamental, de que farei, na seqüência deste curso, aplicações contínuas, devo assinalar rapidamente aqui suas propriedades gerais mais essenciais.
Cabe de início observar, como verificação muito decisiva do caráter exato desta classificação, sua conformidade essencial com a coordenação, de algum modo espontânea, que os cientistas admitem implicitamente ao se dedicarem ao estudo dos diversos ramos da filosofia natural.
Uma condição ordinariamente negligenciada pelos construtores de escalas enciclopédicas é apresentar como distintas ciências que a marcha efetiva do espírito humano conduziu, sem desígnio premeditado, a serem cultivadas separadamente, estabelecendo entre elas uma subordinação conforme às relações positivas que seu desenvolvimento cotidiano manifesta. Entretanto, tal acordo constitui evidentemente o índice mais seguro duma boa classificação, pois as divisões que se introduzem espontaneamente no sistema científico só puderam ser determinadas pelo sentimento, por muito tempo experimentado, das verdadeiras necessidades do espírito humano, sem perder-se em generalidades viciosas.
Embora a classificação proposta acima cumpra inteiramente essa condição, o que seria supérfluo provar, disso não se poderia concluir que os hábitos geralmente estabelecidos hoje, graças às experiências dos cientistas, tornariam inútil o trabalho enciclopédico que acabamos de executar. Apenas tornaram possível essa operação que apresenta a diferença fundamental duma concepção racional em contraposição a uma classificação puramente empírica. Falta tão-somente que esta classificação seja ordinariamente concebida e sobretudo seguida com toda precisão necessária e que sua importância seja convenientemente apreciada. Bastaria, para disso se convencer, considerar as graves infrações todos os dias cometidas contra esta lei enciclopédica, em grande prejuízo do espírito humano.
Um segundo caráter muito essencial de nossa classificação é o de conformar-se necessariamente à ordem efetiva do desenvolvimento da filosofia natural. Isto é verificado por tudo o que se sabe da história das ciências, particularmente nestes dois últimos séculos, quando podemos seguir sua marcha com mais exatidão.
Concebe-se, com efeito, que o estudo racional de cada ciência fundamental, exigindo a cultura prévia de todas aquelas que a precedem em nossa hierarquia enciclopédica, não pode fazer progressos reais e tomar seu verdadeiro caráter a não ser depois [pág. 34] dum grande desenvolvimento das ciências anteriores, relativas a fenômenos mais gerais, mais abstratos, menos complicados e independentes dos outros. É, pois, nesta ordem que a progressão, embora simultânea, necessitou ter ocorrido.
Essa consideração me parece de tal importância que não creio ser possível compreender a história do espírito humano sem levá-la em conta. A lei geral que domina toda essa história, exposta por mim na lição precedente, não pode ser convenientemente entendida se não a combinarmos, na aplicação, com a fórmula enciclopédica que acabamos de estabelecer. Porquanto é seguindo a ordem enunciada por essa fórmula que as diferentes teorias humanas atingiram, sucessivamente, primeiro o estado teológico, depois o estado metafísico e, por fim, o estado positivo. Se no uso da lei não levarmos em conta essa progressão necessária, encontraremos freqüentemente dificuldades que parecerão insuperáveis, pois é claro que o estado teológico ou o estado metafísico de certas teorias fundamentais tiveram temporariamente de coincidir, algumas vezes coincidindo, com efeito, com o estado positivo daquelas que lhes são anteriores em nosso sistema enciclopédico, o que tende a lançar sobre a verificação da lei geral uma obscuridade que não pode ser dissipada a não ser pela classificação precedente.
Em terceiro lugar, essa classificação apresenta a propriedade muito notável de marcar exatamente a perfeição relativa das diferentes ciências, a qual consiste essencialmente no grau de precisão dos conhecimentos e de sua coordenação mais ou menos íntima.
É fácil perceber que, quanto mais os fenômenos são gerais, simples e abstratos, menos dependem dos outros, mais ainda os conhecimentos que a eles se dirigem podem ser precisos, ao mesmo tempo que sua coordenação pode ser mais completa. Assim, os fenômenos orgânicos só comportam um estudo ao mesmo tempo menos exato e menos sistemático que os fenômenos dos corpos brutos. Do mesmo modo, na física inorgânica, os fenômenos celestes, tendo em vista sua maior generalidade e sua independência em relação a todos os outros, deram lugar a uma ciência muito mais precisa e muito mais amalgamada do que a dos fenômenos terrestres.
Essa observação, tão flagrante no estudo efetivo das ciências, e que propiciou muitas vezes esperanças quiméricas ou injustas comparações, explica-se, pois, completamente pela ordem enciclopédica que estabeleci. Terei, naturalmente, a oportunidade de dar toda sua extensão na próxima lição, mostrando que a possibilidade de aplicar a análise matemática ao estudo dos diversos fenômenos (o que é meio de trazer para esse estudo o mais alto grau possível de precisão e de coordenação) encontra-se exatamente determinada pelo lugar que ocupam esses fenômenos em minha escala enciclopédica.
Não devo passar a outra consideração sem advertir ao leitor que um erro grave, embora muito grosseiro, é ainda extremamente comum. Consiste em confundir o grau de precisão que nossos diferentes conhecimentos comportam com seu grau de certeza, donde resulta o preconceito muito perigoso de que, se o primeiro é evidentemente muito desigual, assim deve acontecer com o segundo. Fala-se muitas vezes também, embora menos do que outrora, da desigual certeza das diversas ciências, o que tende diretamente a desencorajar a cultura das ciências mais difíceis. É claro, entretanto, que a precisão e a certeza são duas qualidades em si muito diferentes. Uma proposição inteiramente absurda pode ser extremamente precisa, como se disséssemos, por exemplo, que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a três retos; e uma proposição muito certa pode comportar precisão medíocre, como quando se afirma, por exemplo, que todo homem morrerá. Se, conforme a explicação precedente, as diversas ciências devem necessariamente apresentar uma precisão muito desigual, não resulta daí, de modo algum, sua certeza. [pág. 35] Cada uma pode oferecer resultados tão certos como qualquer outra, desde que saiba encerrar suas conclusões no grau de precisão que os fenômenos correspondentes comportam, condição nem sempre fácil de cumprir. Numa ciência qualquer, tudo o que é simplesmente conjetural é apenas mais ou menos provável, não está aí seu domínio essencial; tudo o que é positivo, isto é, fundado em fatos bem constatados, é certo — não há distinção a esse respeito.
Enfim, a propriedade mais interessante de nossa fórmula enciclopédica, por causa da importância de suas múltiplas aplicações imediatas possíveis, é determinar diretamente o verdadeiro plano geral duma educação científica inteiramente racional. E o que resulta, de imediato, da mera composição da fórmula.
Percebe-se, com efeito, que, antes de empreender o estudo metódico de alguma das ciências fundamentais, é preciso preparar-se por meio do exame daquelas referentes aos fenômenos anteriores, em nossa escala enciclopédica, posto que estes influenciam sempre, de maneira preponderante, aqueles de que se procura conhecer as leis. Essa consideração é de tal modo flagrante que, a despeito de sua extrema importância prática, não tenho necessidade de insistir mais, neste momento, sobre um princípio que, mais tarde, se reproduzirá, aliás inevitavelmente, em relação a cada ciência fundamental. Limitar-me-ei somente a fazer observar que, se se aplica eminentemente à educação geral, aplica-se também, de modo particular, à educação especial dos cientistas.
Assim os físicos que não estudaram de antemão astronomia, ao menos de um ponto de vista geral; os químicos que, antes de se ocuparem com sua própria ciência, não estudaram previamente astronomia e, depois, a física; os fisiologistas que não se prepararam para seus trabalhos especiais, graças ao estudo preliminar da astronomia, da física e da química, desrespeitaram todos eles uma das condições fundamentais de seu desenvolvimento intelectual. O mesmo acontece, de forma evidente, com os espíritos que pretendem entregar-se ao estudo positivo dos fenômenos sociais sem antes ter adquirido um conhecimento geral da astronomia, da física, da química e da fisiologia.
Como tais condições são muito raramente cumpridas hoje, como nenhuma instituição regular está organizada para preenchê-las, podemos dizer que não existe ainda para o cientista educação verdadeiramente racional. Essa consideração tem, a meus olhos, tão grande importância que não temo atribuir em parte a este vício de nossas educações atuais o estado de imperfeição extrema em que vemos ainda as ciências mais difíceis, estado verdadeiramente inferior ao que prescreve, com efeito, a natureza mais complicada dos fenômenos correspondentes.
Quanto à educação geral, essa condição é ainda muito mais necessária. Acredito ser de tal modo indispensável que vejo o ensino científico incapaz de realizar os resultados gerais mais essenciais que se destina a produzir em nossa sociedade, a fim de renovar o sistema intelectual, se os diversos ramos principais da filosofia natural não forem estudados na ordem conveniente. Não esqueçamos que, em quase todas as inteligências, mesmo as mais elevadas, as idéias permanecem ordinariamente encadeadas segundo a ordem de sua aquisição primeira, sendo, por conseguinte, um mal muitas vezes irremediável não ter começado pelo começo. Cada século conta apenas com um número muito pequeno de pensadores capazes, na época de sua virilidade, como Bacon, Descartes e Leibniz, de fazer verdadeiramente tabula rasa, a fim de reconstruir por completo todo o sistema de suas idéias já adquiridas.
A importância de nossa lei enciclopédica para servir de base à educação científica não pode ser convenientemente apreciada a não ser considerando-a também em relação ao método, em vez de tomá-la somente, como acabamos de fazer, quanto à doutrina. [pág. 36]
Sob esse novo ponto de vista, uma execução conveniente do plano geral de estudos, que determinamos, deve ter como resultado necessário dar-nos um conhecimento perfeito do método positivo, o que não poderia ser obtido de nenhuma outra maneira.
Já que os fenômenos naturais foram classificados de tal modo que os realmente homogêneos permaneçam sempre enfeixados num mesmo estudo, enquanto aqueles submetidos a estudos diferentes sejam efetivamente heterogêneos, deve necessariamente resultar daí que o método positivo geral será constantemente modificado, de maneira uniforme, na extensão duma mesma ciência fundamental, sofrendo sem cessar modificações diferentes e cada vez mais compostas, ao passar duma ciência a outra. Teremos, assim, a certeza de considerá-la em todas as variedades reais de que é suscetível, o que não poderia ter acontecido se tivéssemos adotado uma fórmula enciclopédica que não cumprisse as condições essenciais postas acima.
Essa nova consideração é de importância verdadeiramente fundamental. Se vimos, em geral, na última lição, a impossibilidade de conhecer o método positivo separadamente de seu emprego, devemos acrescentar hoje que não podemos fazer dele uma idéia nítida e exata a não ser estudando, sucessivamente e na ordem conveniente, sua aplicação a todas as diversas classes principais de fenômenos naturais. Uma única ciência não basta para atingir essa finalidade, mesmo escolhendo-a do modo mais judicioso possível. Porquanto, embora o método seja essencialmente o mesmo em todas, cada ciência desenvolve especialmente este ou aquele de seus procedimentos característicos, cuja influência, muito pouco pronunciada em outras ciências, passaria despercebida. Assim, por exemplo, em certos ramos da filosofia, é a observação propriamente dita; em outros, é a experiência, e esta ou aquela natureza de experiências, que constituem o principal meio de exploração. Do mesmo modo, tal preceito geral, que faz parte integrante do método, foi primitivamente fornecido por uma certa ciência e, se bem que possa ter sido em seguida transportado para outras, precisa ser estudado em sua fonte para ser bem conhecido, como, por exemplo, a teoria das classificações.
Limitando-se ao estudo duma única ciência, seria preciso, sem dúvida, escolher a mais perfeita para ter um sentimento mais profundo do método positivo. Ora, a mais perfeita sendo ao mesmo tempo a mais simples, teríamos assim um conhecimento bem incompleto do método, pois não aprenderíamos as modificações essenciais que deve sofrer para adaptar-se aos fenômenos mais complicados. Cada ciência fundamental tem, assim, desta perspectiva, vantagens que lhe são próprias, o que prova claramente a necessidade de considerar todas elas, sob pena de formar exclusivamente concepções muito estreitas e hábitos insuficientes. Essa consideração, devendo reproduzir-se muitas vezes em seguida, é inútil desenvolvê-la ainda mais neste momento.
Devo, entretanto, aqui, sempre no que respeita ao método, insistir especialmente na necessidade, para bem conhecê-lo, não apenas de estudar filosoficamente todas as diversas ciências fundamentais, mas de o fazer segundo a ordem enciclopédica estabelecida nesta lição. Que pode produzir de racional, a menos que possua extrema superioridade natural, um espírito que se ocupe desde o início com o estudo dos fenômenos mais complicados, sem ter previamente aprendido a conhecer, graças ao exame de fenômenos mais simples, o que seja uma lei, o que seja observar, o que seja uma concepção positiva, o que seja, até mesmo, um raciocínio encadeado? Tal é, contudo, ainda hoje o caminho ordinário de nossos jovens fisiologistas, que iniciam imediatamente o estudo dos corpos vivos sem ter, o mais das vezes, sido preparados a não ser pela educação preliminar reduzida ao estudo de uma ou duas línguas mortas, e possuindo, no máximo, um conhecimento muito superficial da física e da química, conhecimento quase nulo no que respeita [pág. 37] ao método, porque não foi obtido comumente de maneira racional e partindo do verdadeiro início da filosofia natural. Concebe-se quanto importa reformar um plano de estudos tão vicioso. Do mesmo modo, no que concerne aos fenômenos sociais, ainda mais complicados, não seria dar um grande passo para o retorno das sociedades modernas a um estado verdadeiramente normal ter reconhecido a necessidade lógica de proceder ao estudo desses fenômenos só depois de ter preparado sucessivamente o órgão intelectual graças ao exame filosófico aprofundado de todos os fenômenos anteriores? Pode-se, mesmo, dizer com precisão que aí reside toda a dificuldade principal. Pois há poucos bons espíritos que não estejam convencidos hoje da necessidade de estudar tais fenômenos sociais segundo o método positivo. Aqueles que se ocupam desse estudo não sabem e não podem saber exatamente em que consiste esse método, por falta de o ter examinado em suas aplicações anteriores, de sorte que essa máxima permaneceu até agora estéril para a renovação das teorias sociais, que não saíram ainda do estado teológico ou estado metafísico, a despeito dos esforços dos pretensos reformadores positivos. Esta consideração será, mais tarde, especialmente desenvolvida. Devo aqui limitar-me a indicá-la unicamente para salientar todo o alcance da concepção enciclopédica que propus nesta lição.
Tais são, pois, os quatro pontos de vista principais, aos quais tive de me reportar, a fim de dar relevo à importância geral da classificação racional e positiva, estabelecida acima para as ciências fundamentais.
XII — Para completar a exposição geral do plano deste curso, resta-me agora considerar uma lacuna imensa e capital que, de propósito, deixei em minha fórmula enciclopédica, e que o leitor, sem dúvida, já notou. Não marcamos, com efeito, em nosso sistema científico, o lugar da ciência matemática.
O motivo dessa omissão voluntária reside na própria importância dessa ciência, tão vasta e fundamental. A próxima lição será inteiramente consagrada à determinação exata de seu verdadeiro caráter geral e, por conseguinte, à fixação precisa de seu lugar enciclopédico. Mas, para não deixar incompleto, num item tão capital, o grande quadro que me propus esboçar nesta lição, devo indicar aqui sumariamente, por antecipação, os resultados gerais do exame que empreenderemos na lição seguinte.
No estado atual do desenvolvimento de nossos conhecimentos positivos, convém, acredito eu, olhar a ciência matemática menos como parte constituinte da filosofia natural propriamente dita do que sendo, desde Descartes e Newton, a verdadeira base fundamental de toda essa filosofia, embora, para falar exatamente, seja ao mesmo tempo uma e outra. Hoje, a ciência matemática possui muito menos importância em virtude de seus conhecimentos muito reais e precisos, de que se compõe diretamente, do que como constituindo o instrumento mais poderoso que o espírito humano pode empregar na investigação das leis dos fenômenos naturais.
Para apresentar a esse propósito uma concepção perfeitamente distinta e rigorosamente exata, veremos ser preciso dividir a ciência matemática em duas grandes ciências, cujo caráter é essencialmente diferente: a matemática abstrata ou o cálculo, tomando a palavra em sua grande extensão, e a matemática concreta, que se compõe, duma parte, da geometria geral, de outra, da mecânica racional. A parte concreta necessariamente se funda na parte abstrata, tornando-se por sua vez a base direta de toda a filosofia natural, que considera tanto quanto possível todos os fenômenos do universo como geométricos ou mecânicos.
A parte abstrata é a única puramente instrumental, não sendo outra coisa além de uma imensa extensão admirável da lógica natural a uma certa ordem de deduções. A [pág. 38] geometria e a mecânica devem, ao contrário, ser tomadas como verdadeiras ciências naturais, fundadas, assim como todas as outras, na observação, embora, por causa da extrema simplicidade de seus fenômenos, comportem um grau infinitamente mais perfeito de sistematização. Isto pode algumas vezes levar a desconhecer o caráter experimental de seus primeiros princípios. Mas essas duas ciências físicas se particularizam porque, no estado atual do espírito humano, já são e sempre serão empregadas cada vez mais como método, muito mais do que como doutrina direta.
É, de resto, evidente que, colocando a ciência matemática no topo da filosofia positiva, apenas estamos estendendo ainda mais a aplicação desse princípio de classificação, fundado na dependência sucessiva das ciências, resultante do grau de abstração de seus fenômenos respectivos, que nos forneceu a série enciclopédica, estabelecida nesta lição. Nada mais fazemos agora do que restituir a essa série seu primeiro termo, cuja importância própria exigia um exame especial mais desenvolvido. Vê-se que os fenômenos geométricos e mecânicos são, entre todos, os mais gerais, os mais simples, os mais abstratos, os mais irredutíveis e os mais independentes de todos os outros, de que constituem, ao contrário, a base. Concebe-se paralelamente que seu estudo seja preliminar indispensável ao estudo de todas as outras ordens de fenômenos. A ciência matemática deve, pois, constituir o verdadeiro ponto de partida de toda educação científica racional, seja geral, seja especial, o que explica o uso universal, que se estabeleceu desde há muito a esse propósito, duma maneira empírica, embora não tenha primitivamente outra causa que sua maior ancianidade relativa. Devo me limitar, neste momento, a uma indicação muito rápida dessas diversas considerações, que serão o objeto especial da lição seguinte.
Determinamos exatamente nesta lição, não conforme vãs especulações arbitrárias, mas como assunto dum verdadeiro problema filosófico, o plano racional que nos deve guiar constantemente no estudo da filosofia positiva. Como resultado definitivo temos a matemática, a astronomia, a física, a química, a fisiologia e a física social; tal é a fórmula enciclopédica que, dentre o grande número de classificações que comportam as seis ciências fundamentais, é a única logicamente conforme à hierarquia natural e invariável dos fenômenos. Não preciso lembrar a importância desse resultado, com que o leitor deve familiarizar-se para dele fazer, em toda a extensão deste curso, uma aplicação contínua.
A conseqüência final dessa lição, expressa sob a forma mais simples, consiste, pois, na explicação e justificação do grande quadro sinótico posto no início desta obra. Em sua construção me esforcei por seguir, tão rigorosamente quanto possível, para a distribuição interior de cada ciência fundamental, o mesmo princípio de classificação que acaba de nos fornecer a série geral das ciências. [pág. 39]
DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO*
Tradução de José Arthur Giannotti
* Este discurso servia de introdução ao Tratado Filosófico de Astronomia Popular. Foi publicado em 1844, e figura como obra de divulgação do conjunto do sistema de Comte. [pág. 41]
PRIMEIRA PARTE
O espírito positivo é mais apto para organizar a harmonia mental do que o espírito teológico-metafísico
Sumário: I — Estudo do estado teológico e de suas fases: o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo. II — O estado metafísico é intermediário entre a teologia e o positivismo. Do ponto de vista intelectual, é puramente crítico. Do ponto de vista histórico, tem por função dissolver a ordem existente. III — O estado positivo tem por caráter o estabelecimento de leis naturais invariáveis e a subordinação da imaginação à observação. É relativo à nossa organização e à evolução social. Põe como fim da ciência a previsão racional fundada em leis. IV — O espírito positivo está apto para constituir a harmonia mental. Realiza a unidade em cada entendimento, tornando nossas concepções contínuas e homogêneas. Essa unidade não poderia ser objetiva, como queria o materialismo: só pode ser subjetiva, sendo nós que a efetuamos relacionando todas as nossas concepções à Humanidade. V — Estudo das relações entre a ciência e a arte. A ciência dirige a ação racional sobre a natureza, tanto inorgânica e orgânica quanto política e moral. A relação à Humanidade, como fim, orienta, torna precisa e ativa a procura das leis. O desenvolvimento do regime industrial favorece a substituição da teologia pelo positivismo. VI — A ciência é incompatível com a teologia, do ponto de vista da lógica e da doutrina. É o progresso da ciência que fez a Humanidade passar do politeísmo ao monoteísmo. Caráter provisório da transação metafísica, que pretendia conciliar as leis da natureza com a onipotência divina. Substituição da doutrina das causas finais pelo princípio das condições de existência. VII — Caracteres distintivos do espírito positivo: realidade, utilidade, certeza, precisão, aptidão orgânica, relatividade. VIII — Relações do espírito positivo com o bom senso universal. O bom senso universal fornece os primeiros princípios das especulações positivas. O espírito positivo desenvolveu-se por extensão da influência da razão comum, concreta, sobre a razão teórica, abstrata. A harmonia entre a ciência e o bom senso universal termina pela fundação da sociologia e da moral positiva, e pela sistematização do conjunto das concepções positivas.
I — O conjunto dos conhecimentos astronômicos, considerado até aqui muito isoladamente, a partir de agora deve constituir apenas um dos elementos indispensáveis do novo sistema indivisível da filosofia geral, sistema gradualmente preparado pelo concurso espontâneo de todos os grandes trabalhos científicos próprios aos últimos três séculos, e que chegou finalmente hoje à sua verdadeira maturidade abstrata. Em virtude dessa íntima conexão, ainda muito pouco compreendida, a natureza e o destino desse tratado não poderiam ser suficientemente apreciados, se este preâmbulo necessário não fosse sobretudo consagrado a definir convenientemente o verdadeiro espírito fundamental dessa filosofia, cuja instalação universal deve, no fundo, tornar-se a meta essencial de tal ensino. Como ela se distingue principalmente por uma contínua preponderância, ao mesmo tempo lógica e científica, do ponto de vista histórico ou social, devo primeiramente, para caracterizá-la melhor, relembrar sumariamente a grande lei que estabeleci, em meu Sistema de Filosofia Positiva, sobre toda a evolução intelectual da Humanidade, lei à qual, aliás, nossos estudos astronômicos em seguida freqüentemente recorrerão.
Conforme essa doutrina fundamental, quaisquer de nossas especulações estão inevitavelmente sujeitas, quer no indivíduo, quer na espécie, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes, que as denominações habituais de teológico, metafísico e positivo poderão aqui qualificar suficientemente, ao menos para aqueles que tenham bem [pág. 43] compreendido o verdadeiro sentido geral. Embora no início em todos os aspectos indispensável, o primeiro estado deve, de agora em diante, ser sempre concebido como puramente provisório e preparatório; o segundo, que do primeiro constitui apenas uma modificação dissolvente, comporta apenas uma simples destinação transitória, a fim de conduzir gradualmente ao terceiro; este, o único plenamente normal, constitui, em todos os gêneros, o regime definitivo da razão humana. Em seu primeiro impulso, necessariamente teológico, todas as nossas especulações manifestam espontaneamente uma predileção característica por questões mais insolúveis, assuntos mais radicalmente inacessíveis a toda investigação decisiva. Graças a um contraste que, em nossos dias, deve parecer de início inexplicável, mas que, no fundo, está em plena harmonia com a verdadeira situação inicial de nossa inteligência, num tempo em que o espírito humano está ainda aquém dos mais simples problemas científicos, este espírito procura, avidamente e duma maneira quase exclusiva, a origem de todas as coisas, as causas essenciais, quer primeiras, quer finais, dos diversos fenômenos que o tocam, e seu modo fundamental de produção. Em uma palavra, conhecimentos absolutos. Esta necessidade primitiva se encontra naturalmente satisfeita — tanto quanto o exige tal situação e, do mesmo modo, tanto quanto isso possa chegar a sê-lo — por nossa tendência inicial a transportar para todos os lugares o tipo humano, assimilando todos os fenômenos, quaisquer que eles sejam, àqueles que produzimos nós mesmos e que, a esse título, começam por nos parecer bastante conhecidos, segundo a intuição imediata que os acompanha. Para bem compreender o espírito puramente teológico, proveniente do desenvolvimento, cada vez mais sistemático, desse estado primordial, não se deve limitar a considerá-lo em sua última fase. Esta termina, sob nossos olhos, nas populações mais avançadas, mas não é, vista de perto, a mais característica. Torna-se, assim, indispensável ter uma visão verdadeiramente filosófica sobre o conjunto de sua marcha natural, a fim de apreciar sua identidade fundamental sob as três formas principais que sucessivamente lhe são próprias.
A mais imediata e mais pronunciada constitui o fetichismo propriamente dito. Este consiste sobretudo em atribuir a todos os corpos exteriores vida essencialmente análoga à nossa, apesar de quase sempre mais enérgica, segundo sua ação ordinariamente mais potente. A adoração dos astros caracteriza o grau mais elevado dessa primeira fase teológica que, no início, apenas difere do estado mental em que param os animais superiores. Embora essa primeira forma de filosofia teológica se encontre com evidência na história intelectual de todas as nossas sociedades, hoje não mais predomina diretamente, a não ser entre as menos numerosas das três grandes raças que compõem nossa espécie.
Sob a segunda fase essencial, sob o verdadeiro politeísmo, muito freqüentemente confundido pelos modernos com o estado precedente, o espírito teológico configura nitidamente a livre preponderância especulativa da imaginação, enquanto até então o instinto e os sentimentos tinham prevalecido nas teorias humanas. A filosofia inicial sofre, pois, a mais profunda transformação que pode comportar o conjunto de seu destino real, na medida em que a vida é por fim retirada dos objetos materiais, para ser misteriosamente transportada para seres fictícios diversos, habitualmente invisíveis. A intervenção ativa e contínua destes torna-se agora a fonte direta de todos os fenômenos exteriores e, em seguida, até mesmo dos fenômenos humanos. É durante essa fase característica, hoje mal apreciada, que é preciso estudar principalmente o espírito teológico, que nela se desenvolve com plenitude e homogeneidade ulteriormente impossíveis. Esse tempo é, sob todos os aspectos, o de sua maior ascendência, ao mesmo tempo mental e social. A maioria de nossa espécie ainda não saiu de tal estado, que persiste hoje entre as mais numerosas das três raças humanas, além da elite da raça negra e a parte menos avançada da raça branca. [pág. 44]
Na terceira fase teológica, o monoteísmo propriamente dito, começa o inevitável declínio da filosofia inicial que, a despeito de conservar por longo tempo grande influência social, ainda mais aparente do que real, sofre então rápido decréscimo intelectual, conseqüência espontânea dessa simplificação característica, onde a razão vem restringir cada vez mais o domínio anterior da imaginação, deixando gradualmente desenvolver o sentimento universal, até então quase insignificante, da sujeição necessária de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis. Sob formas muito diversas, até mesmo radicalmente inconciliáveis, esse extremo modo do regime preliminar persiste ainda, com energia muito desigual, na imensa maioria da raça branca. No entanto, apesar de serem de observação tão fácil, essas mesmas preocupações pessoais levantam hoje obstáculo muito freqüente à sua judiciosa apreciação, na falta duma comparação bastante racional e bastante imparcial com os dois modos precedentes.
Seja qual for a imperfeição que pareça atingir essa maneira de filosofar, importa sobremaneira ligar indissoluvelmente o estado presente do espírito humano ao conjunto de seus estados anteriores, reconhecendo convenientemente ter sido ela por muito tempo tanto inevitável quanto indispensável. Limitando-nos à simples apreciação intelectual, seria de início supérfluo insistir sobre a tendência involuntária que, até mesmo hoje, nos conduz a todos, de modo evidente, às explicações essencialmente teológicas. Isto logo que pretendemos penetrar diretamente no mistério inacessível do modo fundamental de produção de quaisquer fenômenos e, sobretudo, daqueles cujas leis reais ainda ignoramos. Os mais eminentes pensadores podem constatar sua própria disposição natural para o mais ingênuo fetichismo, quando essa ignorância se encontra momentaneamente combinada com alguma paixão pronunciada. Se, pois, todas as explicações teológicas sofreram, entre os modernos ocidentais, uma dessuetude crescente e decisiva, é unicamente porque as misteriosas investigações que tinham em vista foram progressivamente afastadas como radicalmente inacessíveis à nossa inteligência. Esta se habituou gradualmente a substituí-las irrevogavelmente por estudos mais eficazes e harmonizados com nossas verdadeiras necessidades. Até mesmo num tempo em que o verdadeiro espírito filosófico prevalecia em relação aos fenômenos mais simples, e tratando de um assunto tão fácil como a teoria elementar do choque, o memorável exemplo de Malebranche lembrará sempre a necessidade de recorrer à intervenção direta e permanente duma ação sobrenatural todas as vezes que se tenta remontar à causa primeira de um acontecimento qualquer. Ora, de uma parte, tais tentativas, embora possam justamente hoje parecer pueris, constituíam certamente o único meio primitivo de fazer crescer o impulso contínuo das especulações humanas, depurando espontaneamente nossa inteligência do círculo profundamente vicioso em que está no início necessariamente envolvida pela oposição radical de duas condições igualmente imperiosas. Porquanto, se os modernos deveram proclamar a impossibilidade de fundar qualquer teoria sólida, a não ser graças ao concurso suficiente de observações convenientes, não é menos incontestável que o espírito humano nunca poderia combinar, nem mesmo recolher, esses materiais indispensáveis, sem estar sempre dirigido por algumas visões especulativas previamente estabelecidas. Desse modo, essas concepções primordiais só podiam, evidentemente, resultar duma filosofia desprovida, por sua natureza, de toda preparação longa, e suscetível, numa palavra, de surgir espontaneamente, sob o único impulso de um instinto direto, a despeito do caráter quimérico que deveriam possuir especulações tão carentes de todo fundamento real. Tal e o feliz privilégio dos princípios teológicos, sem os quais, podemos assegurar, nossa inteligência nunca poderia sair de seu torpor inicial. Eles foram os únicos que puderam permitir, dirigindo sua atividade especulativa, a preparação gradual de [pág. 45] um melhor regime lógico. Essa aptidão fundamental foi, de resto, secundada potentemente pela predileção, originária do espírito humano, por questões insolúveis, que perseguia sobretudo essa filosofia primitiva. Só poderíamos medir nossas forças mentais e, por conseguinte, circunscrever sabiamente sua destinação depois de tê-las suficientemente exercido. Ora, esse exercício indispensável nunca podia ser no início determinado, sobretudo nas mais fracas faculdades de nossa natureza, sem a enérgica estimulação inerente a tais estudos, onde tantas inteligências mal cultivadas persistem ainda em procurar a mais pronta e a mais completa solução de questões diretamente usuais. Foi mesmo necessário, durante muito tempo, a fim de vencer suficientemente nossa inércia nativa, recorrer também a potentes ilusões, que suscitava espontaneamente tal filosofia, sobre o poder quase indefinido do homem para modificar, à sua vontade, um mundo concebido então como essencialmente ordenado para seu uso, e que nenhuma grande lei poderia subtrair à arbitrária supremacia das influências sobrenaturais. Faz apenas três séculos que, na elite da Humanidade, as esperanças astrológicas e alquimistas, último vestígio científico desse espírito primordial, realmente cessaram de servir à acumulação cotidiana das observações correspondentes, como Kepler e Berthollet respectivamente indicaram.
O concurso decisivo desses diversos motivos intelectuais seria, ademais, potentemente fortificado, se a natureza desse tratado me permitisse assinalar suficientemente a influência irresistível das altas necessidades sociais, que convenientemente apreciei na obra fundamental mencionada no início desse Discurso. Pode-se, primeiramente, demonstrar plenamente como o espírito teológico foi por muito tempo indispensável à combinação permanente das idéias morais e políticas, ainda mais especialmente do que às outras, seja em virtude da complicação superior destas, seja porque os fenômenos correspondentes, primitivamente muito pouco pronunciados, só poderiam adquirir desenvolvimento característico depois de um crescimento muito prolongado da civilização humana. E uma estranha inconseqüência, apenas escusável por causa da tendência cegamente crítica de nosso tempo, reconhecer, para os antigos, a impossibilidade de filosofar sobre os mais simples assuntos, a não ser segundo o modo teológico, desconhecendo, entretanto, sobretudo entre os politeístas, a necessidade insuperável de um regime análogo em relação às especulações sociais. Mas é preciso perceber, além disso, embora não possa ser estabelecido aqui, que essa filosofia inicial não foi menos indispensável ao crescimento preliminar de nossa sociabilidade do que ao de nossa inteligência, seja para constituir primitivamente algumas doutrinas comuns, sem as quais o vínculo social não poderia adquirir nem extensão nem consistência, seja suscitando espontaneamente a única autoridade espiritual possível de surgir.
II — Apesar do caráter sumário, que devem ter aqui essas explicações gerais sobre a natureza provisória e o destino preparatório da única filosofia, que com efeito foi conveniente à infância da Humanidade, elas fazem sentir facilmente que esse regime inicial difere de modo muito profundo, sob todos os aspectos, daquele que veremos corresponder à virilidade mental para que a passagem gradual de um a outro pudesse originalmente se operar, no indivíduo ou na espécie, sem a assistência crescente duma espécie de filosofia intermediária, essencialmente limitada a esse ofício transitório. Tal é a participação especial do estado metafísico propriamente dito na evolução fundamental de nossa inteligência. Esta, antipática a toda mudança brusca, pode assim elevar-se, quase de maneira insensível, do estado puramente teológico ao estado francamente positivo, embora essa situação equívoca se aproxime, no fundo, muito mais do primeiro do que do último. As especulações dominantes nele conservaram o mesmo caráter essencial de tendência habitual aos conhecimentos absolutos. Só a solução sofreu uma transformação [pág. 46] notável, capaz de melhor facilitar o crescimento das concepções positivas. Como a teologia, a metafísica tenta, antes de tudo, explicar a natureza íntima dos seres, a origem e o destino de todas as coisas, o modo essencial de produção de todos os fenômenos. Mas, em vez de empregar para isso agentes sobrenaturais propriamente ditos, ela os substitui progressivamente por essas entidades ou abstrações personificadas, cujo uso, verdadeiramente característico, permitiu muitas vezes designá-las sob o nome de ontologia. E muito fácil observar hoje tal maneira de filosofar que, embora preponderando sobre os fenômenos mais complicados, apresenta cotidianamente, até mesmo nas teorias mais simples e menos atrasadas, tantos traços apreciáveis de sua longa dominação. A eficácia histórica dessas entidades resulta diretamente de seu caráter equívoco, pois, em cada um desses seres metafísicos, inerente ao corpo correspondente, sem confundir-se com ele, o espírito pode à vontade, conforme esteja mais perto do estado teológico ou do estado positivo, ver ou uma verdadeira emanação da potência sobrenatural, ou uma simples denominação abstrata do fenômeno considerado. Não é mais a pura imaginação que domina, embora não seja ainda a verdadeira observação. Mas o raciocínio adquire muita extensão e se prepara confusamente para o exercício verdadeiramente científico. Deve-se, de resto, notar que sua parte especulativa se encontra primeiramente muito exagerada, em virtude dessa tendência obsessiva de argumentar em lugar de observar, que, em todos os gêneros, caracteriza habitualmente o espírito metafísico, mesmo entre os seus mais eminentes órgãos. Uma ordem de concepções tão flexível, que de modo algum comporta a consistência própria durante tanto tempo ao sistema teológico, deve chegar, aliás muito mais rapidamente, à unidade correspondente, graças à subordinação gradual das diversas entidades particulares a uma única entidade geral, a natureza, destinada a determinar o fraco equivalente metafísico da vaga ligação universal resultante do monoteísmo.
Para melhor compreender, sobretudo em nossos dias, a eficácia histórica de tal aparelho filosófico, importa reconhecer que, por sua natureza, só é espontaneamente suscetível duma simples atividade crítica ou dissolvente, até mesmo mental e com maior razão social, sem nunca poder organizar algo que lhe seja próprio. Radicalmente inconseqüente, esse espírito equívoco conserva todos os princípios fundamentais do sistema teológico, retirando-lhe entretanto cada vez mais o vigor e a fixidez indispensáveis à sua autoridade efetiva. É numa alteração semelhante que consiste, com efeito, sob todos os aspectos, sua principal utilidade passageira, quando o regime antigo, por muito tempo progressivo para o conjunto da evolução humana, encontra-se inevitavelmente neste grau de prolongamento abusivo, em que tende a perpetuar indefinidamente o estado de infância que, no início, tinha dirigido de modo tão feliz. A metafísica não é, no fundo, mais do que uma espécie de teologia gradualmente inervada por simplificações dissolventes, que lhe tiram espontaneamente o poder direto de impedir o crescimento especial das concepções positivas, conservando-lhe, entretanto, a aptidão provisória de manter certo exercício indispensável para o espírito de generalização, até que ele possa enfim receber melhor alimento. Conforme seu caráter contraditório, o regime metafísico ou ontológico se encontra sempre nesta inevitável alternativa de tender a uma restauração vã do estado teológico, para satisfazer às condições da ordem, ou de conduzir a uma situação puramente negativa, a fim de escapar ao império opressivo da teologia. Essa oscilação necessária, que agora só é observada em relação às mais difíceis teorias, do mesmo modo existiu outrora a respeito das mais simples, enquanto durou a idade metafísica, em virtude da impotência orgânica sempre própria a uma tal maneira de filosofar. Se a razão pública não a tivesse desde há muito afastado no que respeita a certas noções fundamentais, não deveríamos temer assegurar que as dúvidas insensatas que suscitou, há vinte séculos, [pág. 47] sobre a existência dos corpos exteriores, subsistiriam ainda essencialmente, porquanto nunca as dissipou por meio de qualquer argumentação decisiva. Podemos, pois, finalmente considerar o estado metafísico como uma espécie de doença crônica, naturalmente inerente à nossa evolução mental, individual ou coletiva, entre a infância e a virilidade.
As especulações históricas quase nunca retrocedem, entre os modernos, além dos tempos politéicos. O espírito metafísico deve parecer-lhes aproximadamente tão antigo como o próprio espírito teológico, o qual necessariamente presidiu, embora duma maneira implícita, a transformação primitiva do fetichismo em politeísmo, a fim de já suplementar a atividade puramente natural que, retirada assim diretamente de cada corpo particular, devia deixar aí espontaneamente alguma entidade correspondente. No entanto, como essa primeira revolução teológica não pôde, então, promover qualquer discussão verdadeira, a contínua intervenção do espírito ontológico só começou a tornar-se plenamente característica na revolução seguinte, na redução do politeísmo em monoteísmo, de que teve de ser o órgão natural. Sua crescente influência deveria primeiro parecer orgânica, enquanto permanecia subordinada ao impulso teológico. Mas sua natureza essencialmente dissolvente teve, em seguida, de se manifestar cada vez mais, quando tentou gradualmente levar a simplificação da teologia até mesmo além do monoteísmo vulgar, que constituía, necessariamente, a extrema fase verdadeira possível da filosofia inicial. Assim é que, durante os cinco últimos séculos, o espírito metafísico secundou negativamente o crescimento fundamental de nossa civilização moderna, decompondo pouco a pouco o sistema teológico, transformado finalmente em retrógrado, desde que a eficácia social do regime monotéico se tinha essencialmente gasto no fim da Idade Média. Infelizmente, depois de ter realizado, em cada gênero, esse ofício indispensável mas passageiro, a ação muito prolongada das concepções ontológicas necessitou sempre tender a impedir também qualquer outra organização real do sistema especulativo; de sorte que o mais perigoso obstáculo à instalação final duma verdadeira filosofia resulta, com efeito, hoje, desse mesmo espírito, que muitas vezes se atribui ainda o privilégio quase exclusivo das meditações filosóficas.
III — Essa longa sucessão de preâmbulos necessários conduz, enfim, nossa inteligência, gradualmente emancipada, a seu estado definitivo de positividade racional, que deve aqui ser caracterizado duma maneira mais especial do que os dois estados preliminares. Já que tais exercícios preparatórios constataram espontaneamente a inanidade radical das explicações vagas e arbitrárias, próprias da filosofia inicial, teológica ou metafísica, de agora em diante o espírito humano renuncia de vez às pesquisas absolutas, que só convinham à sua infância. Circunscreve seus esforços ao domínio, que agora progride rapidamente, da verdadeira observação, única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados a nossas necessidades reais. A lógica especulativa tinha até então consistido em raciocinar, de maneira mais ou menos sutil, conforme princípios confusos que, não comportando qualquer prova suficiente, suscitavam sempre debates sem saída. Reconhece de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os princípios que emprega são apenas fatos verdadeiros, somente mais gerais e mais abstratos do que aqueles dos quais deve formar o elo. Seja qual for, porém, o modo, racional ou experimental, de proceder à sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta, com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica. A pura imaginação perde assim irrevogavelmente sua antiga supremacia mental, e se subordina necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado lógico plenamente normal, [pág. 48] sem cessar, entretanto, de exercer, nas especulações positivas, ofício capital e inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação definitiva ou provisória. Numa palavra, a revolução fundamental, que caracteriza a virilidade de nossa inteligência, consiste essencialmente em substituir em toda parte a inacessível determinação das causas propriamente ditas pela simples pesquisa das leis, isto é, relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores quer dos mais sublimes efeitos, do choque ou da gravidade, do pensamento ou da moralidade, deles só podemos conhecer as diversas ligações mútuas próprias à sua realização, sem nunca penetrar no mistério de sua produção.
Nossas pesquisas positivas devem essencialmente reduzir-se, em todos os gêneros, à apreciação sistemática daquilo que é, renunciando a descobrir sua primeira origem e seu destino final; importa, ademais, sentir que esse estudo dos fenômenos, ao invés de poder de algum modo tornar-se absoluto, deve sempre permanecer relativo à nossa organização e à nossa situação. Reconhecendo, sob esse duplo aspecto, a imperfeição necessária de nossos diversos meios especulativos, percebe-se que, longe de poder estudar completamente alguma existência efetiva, de modo algum poderíamos garantir a possibilidade de constatar assim, ainda que muito superficialmente, todas as existências reais, cuja maior parte talvez deva nos escapar totalmente. Se a perda de um sentido importante basta para nos esconder radicalmente uma ordem inteira de fenômenos naturais, cabe pensar, reciprocamente, que a aquisição de um sentido novo nos desvendaria uma classe de fatos, de que não temos agora idéia alguma, a menos de crer que a diversidade dos sentidos, tão diferentes entre os principais tipos de animalidade, se encontre levada, em nosso organismo, ao mais alto grau que possa exigir a exploração total de nosso mundo exterior, suposição evidentemente gratuita e quase ridícula. Nenhuma ciência pode manifestar melhor do que a astronomia essa natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, porquanto nela a investigação dos fenômenos, não podendo realizar-se por um único sentido, facilmente aprecia as conseqüências especulativas da supressão ou da simples alteração de um deles. Não existiria astronomia alguma para uma espécie cega, fosse qual fosse a inteligência que lhe supuséssemos, nem existe astronomia dos astros obscuros, que são talvez os mais numerosos, nem ainda se a atmosfera através da qual observamos os corpos celestes permanecesse sempre e em toda parte nebulosa. O curso inteiro desse tratado nos oferecerá freqüentes ocasiões de apreciar espontaneamente, de maneira menos equívoca, essa íntima dependência, onde o conjunto de nossas condições próprias, exteriores ou interiores, afeta inevitavelmente cada um de nossos estudos positivos.
Para caracterizar suficientemente essa natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, importa perceber, ademais, de um ponto de vista mais filosófico, que, se quaisquer de nossas concepções devam ser consideradas como tantos fenômenos humanos, tais fenômenos não são simplesmente individuais, mas também e sobretudo sociais, porquanto resultam, com efeito, duma evolução coletiva e contínua, de cujos elementos e fases são essencialmente conexos. Se portanto, sob o primeiro aspecto, se reconhece que nossas especulações devem sempre depender das diversas condições essenciais de nossa existência individual, é preciso igualmente admitir, sob o segundo, que não estão menos subordinadas ao conjunto da progressão social, de maneira a nunca poder comportar essa fixidez absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei geral do movimento fundamental da Humanidade consiste, a esse respeito, em que nossas teorias tendem, cada vez mais, a representar exatamente os assuntos exteriores de nossas constantes investigações, sem que entretanto a verdadeira constituição de cada um deles [pág. 49] possa, em caso algum, ser plenamente apreciada. A perfeição científica deve limitar-se à aproximação desse limite ideal, tanto quanto o exigem nossas diversas necessidades reais. Esse segundo gênero de dependência, próprio das especulações positivas, se manifesta tão claramente como o primeiro em todo o curso dos estudos astronômicos, ao considerar, por exemplo, a seqüência das noções cada vez mais satisfatórias, obtidas desde a origem da geometria celeste, sobre a figura da Terra, sobre a forma das órbitas planetárias, etc. Assim, de uma parte, a despeito de as doutrinas científicas serem necessariamente duma natureza bastante móvel para dever afastar delas toda pretensão ao absoluto, de outra, suas variações graduais não apresentam qualquer caráter arbitrário que possa motivar um ceticismo mais perigoso. Cada mudança sucessiva conserva, de resto espontaneamente, para as teorias correspondentes, uma aptidão indefinida para representar fenômenos que lhes serviram de base, ao menos enquanto não se deva ultrapassar o grau primitivo de precisão efetiva.
Desde que a subordinação constante da imaginação à observação foi unanimemente reconhecida como a primeira condição fundamental de toda especulação científica sadia, uma viciosa interpretação muitas vezes levou a abusar muito deste grande princípio lógico, fazendo degenerar a ciência real numa espécie de estéril acumulação de fatos-incoerentes, que não poderia oferecer outro mérito essencial além da exatidão parcial. Importa, pois, bem sentir que o verdadeiro espírito positivo não está menos afastado, no fundo, do empirismo do que do misticismo. É entre essas duas aberrações, igualmente funestas, que se deve sempre caminhar. A necessidade de tal atitude de reserva contínua, tão difícil como importante, bastaria aliás para verificar, conformemente a nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente preparada, de maneira a não poder de modo algum convir ao estado nascente da Humanidade. Nas leis dos fenômenos consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, em que pese a sua exatidão e a seu número, não fornecem mais do que os materiais indispensáveis. Ora, considerando a destinação constante dessas leis, pode-se dizer, sem exagero algum, que a verdadeira ciência, longe de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar, quanto possível, a exploração direta, substituindo-a por essa previsão racional que constitui, sob todos os aspectos, o principal caráter do espírito positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos nos fará sentir claramente. Tal previsão, conseqüência necessária das relações constantes descobertas entre os fenômenos, não permitirá nunca confundir a ciência real com essa vã erudição, que acumula maquinalmente fatos sem aspirar a deduzi-los uns dos outros. Esse grande atributo de todas as nossas especulações sadias não interessa menos à sua utilidade efetiva do que à sua própria dignidade; pois a exploração direta dos fenômenos acontecidos não bastará para nos permitir modificar-lhes o acontecimento, se não nos conduzisse a prevê-los convenientemente. Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir disso o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais.
Esse princípio fundamental de toda filosofia positiva, sem contudo estender-se suficientemente por completo ao conjunto dos fenômenos, começa felizmente, desde três séculos, a se nos tornar de tal modo familiar que, em conseqüência dos hábitos absolutos anteriormente enraizados, passamos quase sempre a desconhecer até agora sua verdadeira fonte, esforçando-nos, segundo uma vã e confusa argumentação metafísica, por representar como uma espécie de noção inata, ou ao menos primitiva, o que só pôde resultar certamente duma lenta indução gradativa, ao mesmo tempo coletiva e individual. Não somente qualquer motivo racional, independente de toda exploração exterior, não nos indica de início a invariabilidade das relações físicas, mas é incontestável, ao [pág. 50] contrário, que o espírito humano sente, durante sua longa infância, uma tendência muito viva em desconhecê-la, justamente onde uma observação imperfeita já lhe manifestaria tal invariabilidade, se não fosse arrastado, então, por sua tendência necessária a reportar todos e quaisquer acontecimentos, sobretudo os mais importantes, a vontades arbitrárias. Em cada ordem dos fenômenos existem, sem dúvida, alguns assaz simples e assaz familiares para que sua observação espontânea tenha sempre sugerido o sentimento confuso e incoerente duma certa regularidade secundária; de sorte que o ponto de vista puramente teológico nunca pôde ser rigorosamente universal. Mas essa convicção parcial e precária se limita por muito tempo aos fenômenos menos numerosos e mais subalternos, não permitindo, pois, evitar as freqüentes perturbações atribuídas à intervenção preponderante dos agentes sobrenaturais. O princípio da invariabilidade das leis naturais só começa realmente a adquirir alguma consistência filosófica quando os primeiros trabalhos verdadeiramente científicos puderam manifestar exatidão essencial a respeito de uma ordem inteira de grandes fenômenos, o que só poderia resultar, de modo suficiente, da fundação da astronomia matemática, durante os últimos séculos do politeísmo. A partir dessa introdução sistemática, esse dogma fundamental sem dúvida tendeu a estender-se, por analogia, a fenômenos mais complicados, antes mesmo de que suas leis próprias pudessem ser de algum modo conhecidas. No entanto, além de sua esterilidade efetiva, essa vaga antecipação lógica tinha nesse momento pouca energia para resistir convenientemente à ativa supremacia mental que as ilusões teológico-metafísicas conservavam ainda. Um primeiro esboço especial do estabelecimento de leis naturais em relação a cada ordem principal de fenômenos foi, em seguida, indispensável para conferir a tal noção essa força inquebrantável que começa a apresentar nas ciências mais avançadas. Essa convicção não poderia tornar-se bastante firme enquanto uma elaboração parecida não fosse verdadeiramente ampliada a todas as especulações fundamentais, devendo a incerteza deixada pelas mais complicadas afetar progressivamente cada uma das outras. Não se pode reconhecer essa reação tenebrosa, mesmo hoje, quando, por causa da ignorância ainda habitual das leis sociológicas, o princípio da invariabilidade das relações físicas permanece algumas vezes sujeito a graves alterações, até mesmo nos estudos puramente matemáticos, quando os vemos, por exemplo, preconizar cotidianamente um pretenso cálculo do acaso, que supõe implicitamente a ausência de toda lei real a respeito de certos acontecimentos, sobretudo quando o homem neles intervém. Quando, porém, essa extensão universal foi enfim suficientemente esboçada, condição agora preenchida para os espíritos mais avançados, esse grande princípio filosófico adquire logo plenitude decisiva, ainda que as leis efetivas na maioria dos casos particulares devam permanecer ignoradas por muito tempo; porquanto uma analogia irresistível leva a aplicar de antemão a todos os fenômenos de cada ordem o que apenas foi constatado para alguns dentre eles, desde que tenham importância conveniente.
Depois de ter considerado o espírito positivo relativamente aos objetos exteriores de nossas especulações, é preciso terminar de caracterizá-lo, apreciando também sua destinação interior, para a satisfação contínua de nossas próprias necessidades, quer digam respeito à vida contemplativa, quer à vida ativa.
IV — Apesar de as necessidades mentais serem sem dúvida as menos enérgicas de todas aquelas inerentes à nossa natureza, é incontestável sua existência direta e permanente em todas as inteligências. Constituem elas o primeiro estímulo indispensável a nossos diversos esforços filosóficos, atribuídos demasiadamente sobretudo aos impulsos práticos que, se na verdade os desenvolvem muito, não seriam capazes de fazê-los nascer. Essas exigências intelectuais, relativas, como todas as outras, ao exercício regular das [pág. 51] funções correspondentes, reclamam sempre uma feliz combinação de estabilidade e de atividade, donde resultam as necessidades simultâneas de ordem e progresso, ou de ligação e extensão. Durante a longa infância da Humanidade somente as concepções teológico-metafísicas poderiam, segundo nossas explicações anteriores, satisfazer provisoriamente a essa dupla condição fundamental, embora duma maneira extremamente imperfeita. Mas quando a razão humana por fim amadureceu, renunciando francamente às pesquisas inacessíveis e circunscrevendo sabiamente sua atividade ao domínio verdadeiramente apreciável por nossas faculdades, a filosofia positiva lhe traz certamente uma satisfação muito mais completa, sob todos os aspectos, ao mesmo tempo que mais real, desses dois carecimentos elementares. Tal é evidentemente, com efeito, sob esse novo aspecto, a destinação direta das leis que descobre sobre os diversos fenômenos e da previsão racional, que lhe é inseparável. No que respeita a cada ordem de acontecimentos, essas leis devem ser distinguidas em duas espécies, conforme ligam por similitude aqueles que coexistem ou — por filiação — os que se sucedem. Essa indispensável distinção corresponde essencialmente, para o mundo exterior, àquela que este nos oferece espontaneamente entre os dois estados correlatos de existência e de movimento. Daí resulta, em toda ciência real, uma diferença fundamental entre apreciação estática e apreciação dinâmica de um assunto qualquer. Os dois gêneros de relações contribuem igualmente para explicar os fenômenos e, paralelamente, conduzem à sua previsão, apesar de as leis da harmonia parecerem sobretudo destinar-se à explicação, e as leis de sucessão à previsão. Quer se trate de explicar, quer de prever, tudo sempre se reduz a ligar. Toda ligação real, estática ou dinâmica, descoberta entre dois fenômenos quaisquer, permite ao mesmo tempo explicar e prevê-los um depois do outro, pois a previsão científica convém evidentemente ao presente, assim como ao passado e ao futuro. Esta consiste, sem cessar, em conhecer um fato independentemente de sua exploração direta, em virtude de suas relações com outros já dados. Assim, por exemplo, a assimilação demonstrada entre a gravitação celeste e a gravidade terrestre levou, a partir das variações acentuadas da primeira, a prever as fracas variações da segunda, que a observação imediata não podia desvendar suficientemente, embora as tenha logo em seguida confirmado. Do mesmo modo, em sentido inverso, a correspondência antigamente observada entre o período elementar das marés e o dia lunar foi explicada logo que se reconheceu a elevação das águas em cada ponto resultando da passagem da lua pelo meridiano local. Todas as nossas verdadeiras necessidades lógicas convergem, pois, essencialmente para essa destinação comum: consolidar, quanto possível, graças a nossas especulações sistemáticas, a unidade espontânea de nosso entendimento, constituindo a continuidade e a homogeneidade de nossas diversas concepções, de maneira a satisfazer igualmente às exigências simultâneas da ordem e do progresso, fazendo com que reencontremos a constância no meio da variedade. Ora, é evidente que, sob esse aspecto fundamental, a filosofia positiva comporta, necessariamente, entre os espíritos preparados, uma aptidão muito superior àquela que alguma vez pôde oferecer a filosofia teológico-metafísica. Ainda que esta seja considerada na época de sua maior ascendência ao mesmo tempo mental e social, isto é, no estado politéico, a unidade intelectual se encontrava certamente constituída duma maneira muito menos completa e estável que vai lhe permitir proximamente a preponderância universal do espírito positivo, quando se estenderá, por fim, habitualmente às mais eminentes especulações. Então reinará com efeito, por toda parte, sob diversos modos e diferentes graus, essa admirável constituição lógica, cujos estudos mais simples hoje apenas podem nos dar uma idéia justa, onde a ligação e a extensão, cada uma plenamente garantida, se encontrem, além do mais, espontaneamente solidárias. Esse grande resultado filosófico [pág. 52] não exige, aliás, outra condição necessária a não ser a obrigação permanente de restringir todas as nossas especulações às pesquisas verdadeiramente acessíveis, considerando essas relações reais, seja de similitude, seja de sucessão, como não podendo constituir para nós a não ser simples fatos gerais que devem sempre sofrer a tendência de reduzi-los ao menor número possível, sem que o mistério de sua produção nunca possa ser de maneira alguma penetrado. Isto conforme o caráter fundamental do espírito positivo. Mas, se essa constância efetiva das ligações naturais é a única que verdadeiramente apreciamos, ela também satisfaz a nossas verdadeiras necessidades de contemplação ou de direção.
Importa, entretanto, reconhecer em princípio que, sob o regime positivo, a harmonia de nossas concepções se encontra necessariamente limitada, em certo grau, pela obrigação fundamental de sua realidade, a saber, duma suficiente conformidade a tipos independentes de nós. Em seu cego instinto de ligação, nossa inteligência aspira quase a poder sempre ligar entre si dois fenômenos quaisquer, simultâneos ou sucessivos. Mas o estudo do mundo exterior demonstra, ao contrário, que muitas dessas aproximações seriam puramente quiméricas. Uma multidão de acontecimentos ocorre continuamente sem verdadeira dependência mútua, de sorte que essa inclinação indispensável tem tanta necessidade como qualquer outra de ser regulada por uma sadia apreciação geral. Por muito tempo habituado a uma espécie de unidade de doutrina, embora vaga e ilusória, sob o império de ficções teológicas e de entidades metafísicas, o espírito humano, passando ao estado positivo, tentou primeiro reduzir todas as diversas ordens de fenômenos a uma única lei comum. Mas todas as tentativas realizadas durante os dois últimos séculos para obter uma explicação universal da natureza apenas chegaram a desacreditar radicalmente tal empreendimento, a partir de agora abandonado a inteligências mal formadas. Uma judiciosa exploração do mundo exterior o apresentou muito menos ligado que supõe ou deseja nosso entendimento, cuja fraqueza o predispõe ainda mais a multiplicar relações favoráveis a seu andamento e, sobretudo, a seu repouso. As seis categorias fundamentais, que distinguiremos abaixo entre os fenômenos naturais, não poderiam certamente ser todas elas enfeixadas sob única lei universal. Cabe, ainda, assegurar que a unidade de explicação, apesar de procurada por tantos espíritos sérios em relação a cada uma dessas categorias tomada à parte, nos está finalmente proibida, mesmo nesse domínio muito mais restrito. A astronomia fez nascer, a esse respeito, esperanças muito empíricas, que nunca poderiam ser realizadas para os fenômenos mais complicados, não só quanto à física propriamente dita, cujos cinco ramos principais permanecerão sempre distintos, em que pese a suas incontestáveis relações. Freqüentemente nos predispomos a exagerar muito os inconvenientes lógicos de tal dispersão necessária, porque apreciamos mal as vantagens reais que apresenta a transformação das induções em deduções. No entanto, é preciso francamente reconhecer essa impossibilidade direta de enfeixar tudo sob uma única lei positiva como grave imperfeição, conseqüência inevitável da condição humana, que nos força a aplicar uma inteligência muito fraca a um universo muito complicado.
Essa incontestável necessidade, porém, que importa reconhecer a fim de evitar todo vão desperdício das forças mentais, não impede de modo algum a ciência real de comportar, sob outro aspecto, suficiente unidade filosófica, equivalente àquela constituída passageiramente pela teologia ou pela metafísica, que lhe é, de resto, muito superior, tanto em estabilidade como em plenitude. Para perceber sua possibilidade e apreciar sua natureza, é mister antes de tudo recorrer à luminosa distinção geral esboçada por Kant entre os dois pontos de vista objetivo e subjetivo, peculiares a qualquer estudo. Considerada [pág. 53] sob o primeiro aspecto, isto é, quanto à destinação exterior de nossas teorias, como exata representação do mundo real, nossa ciência não é certamente suscetível duma plena sistematização, em virtude duma inevitável diversidade dos fenômenos fundamentais. Nesse sentido, não devemos procurar outra unidade além da unidade do método positivo considerado em seu conjunto, sem pretender chegar a uma verdadeira unidade científica, aspirando somente à homogeneidade e à convergência das diferentes doutrinas. A situação é diferente noutro aspecto, isto é, quanto à fonte interior das teorias humanas, ao serem consideradas como resultados naturais de nossa evolução mental, ao mesmo tempo individual e coletiva, e destinadas à satisfação normal de nossas próprias necessidades, sejam elas quais forem. Assim reportados, não ao universo, mas ao homem, ou melhor, à Humanidade, nossos conhecimentos reais tendem, ao contrário, com evidência espontânea, para uma inteira sistematização, tanto científica quanto lógica. Não se deve, então, conceber, no fundo, mais do que uma ciência, a ciência humana, ou mais exatamente social, ao mesmo tempo princípio e fim de nossa existência, e à qual naturalmente vem se fundir o estudo racional do mundo exterior, a duplo título de elemento necessário e preâmbulo fundamental, igualmente indispensável quanto ao método e quanto à doutrina, como explicarei abaixo. Somente assim nossos conhecimentos positivos podem formar um verdadeiro sistema, de maneira a oferecer caráter plenamente satisfatório. A própria astronomia, embora objetivamente mais perfeita do que outros ramos da filosofia natural, por causa de sua simplicidade superior, só o é sob esse aspecto humano; pois o conjunto deste tratado fará nitidamente perceber que ela deveria, ao contrário, ser julgada muito imperfeita se fosse reportada ao universo e não ao homem. Todos os nossos estudos reais necessariamente são, pois, limitados ao nosso mundo que, no entanto, constitui apenas um mínimo elemento do universo, cuja exploração nos é essencialmente proibida. Essa é, pois, a disposição geral que deve finalmente prevalecer numa filosofia verdadeiramente positiva, não somente quanto a teorias diretamente relativas ao homem e à sociedade, mas também quanto àquelas que concernem aos fenômenos mais simples, mas afastados, na aparência, desta apreciação comum: conceber todas as nossas especulações como produtos de nossa inteligência, destinadas a satisfazer a nossas diversas necessidades essenciais, nunca se apartando do homem, a não ser para voltar a ele, depois de ter estudado os outros fenômenos enquanto indispensáveis a seu conhecimento para desenvolver nossas forças ou apreciar nossa natureza e nossa condição. Podemos, então, perceber como a noção preponderante da Humanidade deve necessariamente instaurar, no estado positivo, plena sistematização mental, ao menos equivalente àquela que por fim havia comportado a idade teológica, a partir da grande concepção de Deus, substituída tão fracamente, em seguida, a esse respeito, durante a transição metafísica, pelo vago pensamento da natureza.
Depois de ter assim caracterizado a aptidão espontânea do espírito positivo em constituir a unidade final de nosso entendimento, torna-se fácil completar essa explicação fundamental, estendendo-a do indivíduo para a espécie. Essa indispensável extensão era até agora essencialmente impossível aos filósofos modernos que, não tendo logrado sair suficientemente do estado metafísico, nunca se instalaram no ponto de vista social, o único suscetível entretanto duma plena realidade, seja científica, seja lógica, pois o homem não se desenvolve isolada mas coletivamente. Afastando, como radicalmente estéril, ou melhor, profundamente nociva, essa viciosa abstração de nossos psicólogos ou ideólogos, a tendência sistemática que acabamos de apreciar no espírito positivo adquire enfim toda a sua importância porque ela indica nele o verdadeiro fundamento filosófico da sociabilidade humana, enquanto ao menos essa depender da inteligência, cuja [pág. 54] influência capital, apesar de não ser exclusiva, não poderia ser contestada. É o mesmo problema humano, com efeito, constituir a unidade lógica de cada entendimento isolado ou estabelecer uma convergência durável entre entendimentos distintos, cujo número não poderia influir essencialmente, a não ser na rapidez da operação. Assim, em todos os tempos, aquele que conseguiu tornar-se suficientemente conseqüente adquiriu, por isso mesmo, a faculdade de reunir gradualmente os outros, segundo a similitude fundamental de nossa espécie. A filosofia teológica foi, durante a infância da Humanidade, a única adequada para sistematizar a sociedade, unicamente porque era então a fonte exclusiva duma certa harmonia mental. Se, pois, o privilégio da coerência lógica passou, a partir de agora, ao espírito positivo, o que não pode ser seriamente contestado, cabe então reconhecer também nele o único princípio efetivo dessa grande comunhão intelectual. Esta vem a ser a base necessária de toda verdadeira associação humana, quando for convenientemente ligada a duas outras condições fundamentais, uma conformidade suficiente de sentimentos e uma certa convergência de interesses. A deplorável situação filosófica da elite da Humanidade bastaria hoje para dispensar a esse respeito toda discussão, pois não mais observamos a verdadeira comunidade de opiniões, a não ser sobre assuntos já submetidos às teorias positivas, os quais, infelizmente, não são de longe os mais importantes. Uma apreciação direta e especial, que estaria aqui deslocada, faz aliás perceber facilmente que a filosofia positiva é a única capaz de realizar gradualmente esse nobre projeto de associação universal, que o catolicismo tinha, na Idade Média, prematuramente esboçado, mas que era, no fundo, necessariamente incompatível — como a experiência constatou plenamente — com a natureza teológica de sua filosofia, a qual instituía uma coerência lógica muito fraca para comportar essa eficácia social.
V — A aptidão fundamental do espírito positivo está, desde agora, suficientemente caracterizada em relação à vida especulativa. Resta-nos apenas apreciá-la em relação à vida ativa que, sem poder mostrar nele alguma propriedade verdadeiramente nova, manifesta, duma maneira muito mais completa e sobretudo mais decisiva, o conjunto dos atributos que nele reconhecemos. As concepções teológicas foram, até mesmo sob esse aspecto, por muito tempo necessárias para despertar e sustentar o ardor do homem, graças à esperança indireta duma espécie de um império ilimitado; é sobre isso, entretanto, que o espírito humano necessitou, primeiramente, testemunhar sua predileção final para os conhecimentos reais. É, sobretudo, como base racional da ação da Humanidade sobre o mundo exterior que o estudo positivo da natureza começa hoje a ser universalmente estimado. Nada mais sábio, no fundo, do que esse juízo vulgar e espontâneo, pois tal destinação, quando convenientemente apreciada, lembra necessariamente, por meio do mais feliz resumo, todos os grandes caracteres do verdadeiro espírito filosófico, tanto no que concerne à racionalidade quanto no que concerne à positividade. A ordem natural resultante, em cada caso prático, do conjunto das leis dos fenômenos correspondentes, deve evidentemente nos ser, de início, bem conhecida, a fim de que possamos modificá-la, para vantagem nossa ou, ao menos, adaptar-lhe nossa conduta, no caso de toda intervenção humana ser então impossível, como ocorre com acontecimentos celestes. Tal explicação é sobretudo conveniente para tornar familiarmente apreciável essa previsão racional que vimos constituir, sob todos os aspectos, o principal caráter da verdadeira ciência. A pura erudição, onde os conhecimentos, reais, mas incoerentes, consistem em fatos e não em leis, não poderia evidentemente bastar para dirigir nossa atividade. Seria supérfluo insistir aqui numa explicação tão pouco contestável. É verdade que a preponderância exorbitante consagrada agora aos interesses materiais muitas vezes levou a compreender essa ligação necessária de modo a comprometer gravemente o futuro científico, [pág. 55] tendendo a restringir as especulações positivas às únicas pesquisas de utilidade imediata. Mas essa cega disposição resulta apenas duma maneira falsa e estreita de conceber a grande relação da ciência com a arte, na falta de se ter suficiente e profundamente apreciado uma e outra. O estudo da astronomia é de todos o mais conveniente para retificar essa tendência, seja porque sua simplicidade superior permite apreender melhor seu conjunto, seja em virtude da espontaneidade mais íntima das aplicações correspondentes, que, há vinte séculos, se encontram evidentemente ligadas às mais sublimes especulações, como salientará nitidamente este tratado. Mas importa sobretudo bem reconhecer, a esse respeito, que a relação fundamental entre a ciência e a arte não pôde ser até agora convenientemente concebida, até mesmo pelos melhores espíritos, em conseqüência necessária da extensão insuficiente da filosofia natural, que permanece ainda estranha às pesquisas mais importantes e mais difíceis, aquelas pesquisas que diretamente concernem à sociedade humana. Com efeito, a concepção racional da ação do homem sobre a natureza ficou essencialmente limitada ao mundo inorgânico, donde resultou uma excitação científica demasiadamente imperfeita. Quando essa imensa lacuna for suficientemente preenchida, como hoje começa a ser feito, poder-se-á perceber a importância fundamental dessa grande destinação prática para estimular habitualmente, e até mesmo muitas vezes para melhor dirigir, as mais eminentes especulações, sob a única condição normal duma constante positividade. Pois a arte não será mais então unicamente geométrica, mecânica ou química, etc., mas também e sobretudo política e moral. A principal ação exercida pela Humanidade deve, sob todos os aspectos, consistir no aprimoramento contínuo de sua própria natureza, individual ou coletiva, dentre os limites que indicam, do mesmo modo que em todos os outros casos, o conjunto das leis reais. Quando essa solidariedade espontânea da ciência com a arte puder ser convenientemente organizada, não podemos então duvidar de que, ao invés de tender a restringir as sadias especulações filosóficas, ela lhes designaria, ao contrário, um oficio muito superior a seu alcance efetivo. Isto se de antemão não tivermos reconhecido, como princípio geral, a impossibilidade de jamais tornar a arte puramente racional, a saber, de elevar nossas previsões teóricas ao verdadeiro nível de nossas necessidades práticas. Nas próprias artes mais simples e perfeitas, um desenvolvimento direto e espontâneo permanece constantemente indispensável, sem que as indicações científicas possam, em algum caso, suplementá-las completamente. Seja qual for o grau de satisfação, por exemplo, que tenham obtido nossas previsões astronômicas, sua precisão é ainda, e provavelmente sempre o será, inferior às nossas justas exigências práticas, como terei ocasião muitas vezes de indicar.
Essa tendência espontânea a constituir diretamente uma inteira harmonia entre a vida especulativa e a vida ativa deve ser finalmente olhada como o privilégio mais feliz do espírito positivo. Nenhuma outra sua propriedade pode tão bem manifestar o verdadeiro caráter e facilitar a ascendência real. Nosso ardor especulativo se encontra assim mantido, e mesmo dirigido, por uma potente estimulação contínua, sem a qual a inércia natural de nossa inteligência o predisporia a satisfazer muitas vezes a nossas necessidades teóricas com explicações fáceis, mas insuficientes, enquanto o pensamento da ação final lembra sempre a condição duma precisão conveniente. Ao mesmo tempo, essa grande destinação prática completa e circunscreve, em cada caso, a prescrição fundamental relativa à descoberta de leis naturais, tendendo a determinar, segundo as exigências da explicação, o grau de precisão e a extensão de nossa previdência racional, cuja justa medida não poderia, em geral, ser fixada de outra maneira. Se, de uma parte, a perfeição científica não poderia ultrapassar tal limite, sob o qual, ao contrário, ela sempre se encontrará realmente, não poderá, de outra parte, ultrapassá-la sem logo cair numa apreciação [pág. 56] muito minuciosa, não menos quimérica do que estéril, que comprometeria finalmente todos os fundamentos da verdadeira ciência. Isto porque nossas leis nunca podem representar os fenômenos a não ser com certa aproximação, além da qual seria perigoso e inútil levar nossas investigações. Ao ser essa relação fundamental da ciência com a arte convenientemente sistematizada, tenderá algumas vezes, sem dúvida, a desacreditar tentativas teóricas, cuja esterilidade radical seria incontestável. Mas, longe de oferecer inconveniente real, essa inevitável disposição tornar-se-á muito favorável a nossos verdadeiros interesses especulativos, prevenindo este vão desperdício de nossas fracas forças mentais, que resulta muitas vezes hoje duma cega especialização. Na evolução preliminar do espírito positivo, este necessitou ligar-se em toda parte a quaisquer questões que se lhe tornassem acessíveis, sem muito perguntar da sua importância final, derivada da relação com o conjunto que no início não poderia ser percebida. Mas esse instinto provisório, sem o qual a ciência teria carecido de alimento conveniente, deve terminar por subordinar-se habitualmente a uma justa apreciação sistemática, isso logo que a plena maturidade do estado positivo tivesse permitido, de modo suficiente, apreender sempre as verdadeiras relações essenciais de cada parte com o todo, de maneira a oferecer constantemente uma destinação ampla às mais eminentes pesquisas, evitando contudo toda especulação pueril.
A respeito dessa íntima harmonia entre ciência e arte, importa enfim observar especialmente a feliz tendência, que dela resulta, para desenvolver e consolidar a ascendência social da sã filosofia, graças a uma série espontânea da preponderância crescente que, evidentemente, obtém a vida industrial em nossa civilização moderna. A filosofia teológica não poderia realmente convir a não ser a esses tempos necessários de sociabilidade preliminar, quando a atividade humana há de ser essencialmente militar, a fim de preparar gradualmente uma associação normal e completa, impossível de início, segundo a teoria histórica que estabeleci em outro lugar. O politeísmo se adaptava sobretudo ao sistema de conquista da Antiguidade, e o monoteísmo à organização defensiva da Idade Média. Fazendo prevalecer cada vez mais a vida industrial, a sociabilidade moderna deve, pois, poderosamente secundar a grande revolução mental, que hoje eleva definitivamente nossa inteligência do regime teológico ao regime positivo. Não só essa ativa tendência cotidiana para a melhoria prática da condição humana é necessariamente pouco compatível com as preocupações religiosas, sempre relativas, sobretudo sob o monoteísmo, a uma destinação de outra espécie. Mas, além disso, tal atividade é de natureza a suscitar finalmente uma oposição universal, tão radical quanto espontânea, a toda filosofia teológica. De uma parte, com efeito, a vida industrial é, no fundo, diretamente contrária a todo otimismo providencial, porquanto supõe necessariamente que a ordem natural seja bastante imperfeita para exigir sem cessar a intervenção humana, enquanto a teologia apenas admite logicamente, como meio de modificá-la, a solicitação de um apoio sobrenatural. Em segundo lugar, essa oposição, inerente ao conjunto de nossas concepções industriais, reproduz-se continuadamente, sob as mais variadas formas, no término especial de nossas operações, quando devemos considerar o mundo exterior não dirigido por uma vontade qualquer, mas submetido a leis suscetíveis de permitir-nos suficiente previsão, sem a qual nossa atividade prática não comportaria qualquer base racional. Assim, a mesma correlação fundamental, que torna a vida industrial tão favorável à ascendência filosófica do espírito positivo, imprime-lhe, sob outro aspecto, uma tendência antiteológica mais ou menos pronunciada, inevitável porém mais cedo ou mais tarde, sejam quais forem os esforços contínuos da sabedoria sacerdotal para conter ou temperar o caráter antiindustrial da filosofia inicial, com a qual a vida guerreira era a única [pág. 57] suficientemente conciliável. Tal é a íntima solidariedade que faz involuntariamente todos os espíritos modernos, até mesmo os mais grosseiros e rebeldes, participar na substituição gradual da antiga filosofia teológica por uma filosofia plenamente positiva, a única suscetível, de agora em diante, de uma verdadeira ascendência social.
VI — Somos levados a completar, enfim, a apreciação direta do verdadeiro espírito filosófico, mediante uma última explicação que, embora sendo sempre negativa, torna-se hoje realmente indispensável, para terminar de caracterizar, de modo suficiente, a natureza e as condições da grande renovação mental agora necessária à elite da Humanidade. Salientaremos diretamente a incompatibilidade final das concepções positivas com todas as opiniões teológicas, quaisquer que sejam elas, monotéicas, politéicas ou fetichistas. As diversas considerações indicadas neste Discurso mostraram já implicitamente a impossibilidade de qualquer conciliação durável entre as duas filosofias, tanto no que respeita ao método quanto no que respeita à doutrina; de sorte que toda incerteza a esse propósito pode ser facilmente dissipada. Sem dúvida, a ciência e a teologia não estão no início em oposição aberta, posto que não se propõem as mesmas questões. Isto permitiu durante muito tempo o florescimento parcial do espírito positivo, apesar da ascendência geral do espírito teológico e, até mesmo, sob muitos aspectos, debaixo de sua tutela prévia. Mas, quando a positividade racional, limitada primeiramente a humildes investigações matemáticas, que a teologia tinha desprezado especialmente, começou a estender-se ao estudo direto da natureza, sobretudo por meio das teorias astronômicas, tornou-se inevitável a colisão, embora latente. Isto em virtude do contraste fundamental, ao mesmo tempo científico e lógico, que se desenvolveu progressivamente entre as duas ordens de idéias. Os motivos lógicos pelos quais a ciência se proíbe radicalmente os misteriosos problemas de que a teologia se ocupa essencialmente são de natureza a desacreditar, mais cedo ou mais tarde, para todos os bons espíritos, as especulações que descartarmos, na qualidade de necessariamente inacessíveis à razão humana. Além do mais, a sábia reserva, com que o espírito positivo procede gradualmente em relação a assuntos muito fáceis, deve levar indiretamente à apreciação da louca temeridade do espírito teológico a respeito das mais difíceis questões. No entanto, é sobretudo por meio das doutrinas que a incompatibilidade das duas filosofias deve manifestar-se para a maior parte das inteligências, muito pouco atingidas ordinariamente por simples dissidências de método, embora essas sejam no fundo as mais graves, como sendo a fonte necessária de todas as outras. Ora, sob esse novo aspecto, não se pode desconhecer a oposição radical das duas ordens de concepções, onde os mesmos fenômenos são de um lado atribuídos a vontades diretoras, de outro reportados a leis invariáveis. A mobilidade irregular, naturalmente inerente a toda idéia de vontade, não pode de modo algum conciliar-se com a constância das relações reais. Assim, na medida em que as leis físicas se tornaram conhecidas, o império das vontades sobrenaturais se estreitou cada vez mais, exercendo-se apenas nos fenômenos cujas leis permaneciam ignoradas. Tal incompatibilidade se torna diretamente evidente quando opomos a previsão racional, que constitui o principal caráter da verdadeira ciência, à adivinhação por revelação especial, que a teologia deve apresentar como oferecendo o único meio legítimo de conhecer o futuro. É verdade que o espírito positivo, chegando à sua inteira maturidade, também tende a subordinar a própria vontade a verdadeiras leis, cuja existência está, com efeito, pressuposta tacitamente pela razão vulgar, já que os esforços práticos para modificar e prever as vontades humanas não poderiam ter, sem isso, qualquer fundamento razoável. Mas tal noção não conduz de modo algum a conciliar ambos os modos opostos, segundo os quais ciência e teologia concebem necessariamente a direção efetiva dos diversos fenômenos. Pois semelhante previsão [pág. 58] e a conduta que daí resulta exigem evidentemente profundo conhecimento real do ser no seio do qual as vontades se produzem. Ora, esse fundamento prévio só poderia provir de um ser menos igual, julgado também por semelhança; não o podemos conceber da parte de um inferior e a contradição aumenta com a desigualdade da natureza. Assim, a teologia sempre recusou a pretensão de penetrar de algum modo nos desígnios providenciais, da mesma forma que seria absurdo supor os últimos animais dotados da faculdade de prever as vontades dos homens ou dos outros animais superiores. É, entretanto, a essa louca hipótese que seríamos necessariamente conduzidos se pretendêssemos conciliar finalmente o espírito teológico com o espírito positivo.
Historicamente considerada, esta oposição radical, aplicável a todas as fases essenciais da filosofia inicial, desde longo tempo tem sido geralmente admitida em relação às fases completamente ultrapassadas pelas populações mais avançadas. É mesmo certo que, a esse respeito, exagera-se muito tal incompatibilidade, por causa desse absoluto desdém, que cegamente inspiram nossos hábitos monotéicos, para os dois estados anteriores do regime teológico. A sã filosofia, sempre obrigada a apreciar o modo necessário segundo o qual cada uma das grandes fases sucessivas da Humanidade efetivamente concorreu para nossa evolução fundamental, retificará cuidadosamente estes injustos preconceitos, que impedem toda verdadeira teoria histórica. No entanto, a despeito de o politeísmo e mesmo de o fetichismo terem de início secundado realmente o florescimento espontâneo do espírito de observação, cabe reconhecer que não poderiam ser verdadeiramente compatíveis com o sentimento gradual da invariabilidade das relações físicas, logo que este pôde adquirir certa consistência sistemática. Devemos, assim, conceber essa inevitável oposição como a principal fonte secreta das diversas transformações que sucessivamente decompuseram a filosofia teológica, reduzindo-a cada vez mais. Aqui vale completar, a esse respeito, a indispensável explicação indicada no início deste Discurso, quando essa dissolução gradual foi especialmente atribuída ao estado metafísico propriamente dito, que, no fundo, disso não podia ser mais do que simples órgão e nunca o verdadeiro agente. É preciso, com efeito, observar que o espírito positivo, em conseqüência da falta de generalidade característica de sua lenta evolução parcial, não podia convenientemente formular suas próprias tendências filosóficas, que se tornaram apenas sensíveis diretamente durante os últimos séculos. Daí resultava a necessidade especial da intervenção metafísica, a única que poderia sozinha sistematizar convenientemente a oposição espontânea da ciência nascente com a antiga teologia. Apesar de tal ofício ter exagerado muito a importância efetiva deste espírito transitório, é fácil, entretanto, reconhecer que o progresso natural dos conhecimentos reais era o único a dar consistência séria à sua atividade rumorosa. Esse progresso contínuo, que de início havia mesmo determinado no fundo a transformação do fetichismo em politeísmo, constituiu em seguida, sobretudo, a fonte essencial da redução do politeísmo ao monoteísmo. Devendo a colisão operar-se principalmente mediante teorias astronômicas, este tratado há de me fornecer a ocasião natural para caracterizar o grau preciso de seu desenvolvimento, a que cabe atribuir, em realidade, a irrevogável decadência mental do regime politéico, que reconheceremos então logicamente incompatível com a fundação decisiva da astronomia matemática pela escola de Tales.
O estudo racional dessa oposição demonstra claramente que não podia limitar-se à teologia antiga, devendo estender-se em seguida ao próprio monoteísmo, embora sua energia tenha necessitado decrescer, na medida em que o espírito teológico continuava a decair em virtude do mesmo progresso espontâneo. Sem dúvida, essa extrema fase da filosofia inicial era muito menos contrária do que as precedentes ao florescimento dos [pág. 59] conhecimentos reais, que não mais reencontravam a cada passo a perigosa concorrência duma explicação sobrenatural especialmente formulada. Assim, é sobretudo sob p regime monotéico que deveu realizar-se a evolução preliminar do espírito positivo. Mas a incompatibilidade, por ser menos explícita e mais tardia, no fim não permanecia menos inevitável, mesmo antes do tempo em que a nova filosofia viesse a ser bastante geral para tomar caráter verdadeiramente orgânico, substituindo irrevogavelmente a teologia, tanto em seu ofício social quanto em sua destinação mental. Como o conflito teve ainda que se operar sobretudo pela astronomia, demonstrarei aqui com precisão que evolução mais avançada estendeu necessariamente sua oposição radical até o mais simples monoteísmo, antes apenas limitada ao politeísmo propriamente dito. Reconheceremos então que essa inevitável influência resulta da descoberta do duplo movimento da Terra, logo seguida pela fundação da mecânica celeste. No estado presente da razão humana, podemos assegurar que o regime monotéico, por muito tempo favorável ao florescimento primitivo dos conhecimentos reais, entrava profundamente a marcha sistemática que eles devem tomar de agora em diante, impedindo o sentimento fundamental da invariabilidade das leis físicas de adquirir, enfim, sua indispensável plenitude filosófica. Pois o pensamento contínuo duma súbita perturbação arbitrária na economia natural deve sempre permanecer inseparável, ao menos virtualmente, de toda e qualquer teologia, ainda que reduzido quanto for possível. Sem tal obstáculo, com efeito só possível de ser ultrapassado com a inteira dessuetude do espírito teológico, o espetáculo cotidiano da ordem real já teria determinado uma adesão universal ao princípio fundamental da filosofia positiva.
Muitos séculos antes de o florescimento científico permitir apreciar diretamente essa oposição radical, a transição metafísica tentara, sob um impulso secreto, restringir, no próprio seio do monoteísmo, a ascendência da teologia, fazendo abstratamente prevalecer, no último período da Idade Média, a célebre doutrina escolástica, que submeteu a ação efetiva do motor supremo a leis invariantes, que este teria estabelecido primitivamente determinando-se depois jamais alterá-las. Mas essa espécie de transação espontânea entre o princípio teológico e o princípio positivo não comportava, evidentemente, a não ser uma existência passageira, própria a facilitar ainda mais o declínio contínuo de um e o triunfo gradual de outro. Seu império limitava-se essencialmente aos espíritos cultivados, pois, enquanto a fé persistiu realmente, o instinto popular sempre teve de rejeitar, com energia, uma concepção que, no fundo, tendia a anular o poder providencial, condenando-o a uma inércia sublime, que deixava toda atividade habitual à grande entidade metafísica. A natureza associava-se assim regularmente ao governo universal, a título de ministro devedor e responsável, a que se deveria endereçar então a maior parte das queixas e dos votos. Percebe-se que, sob todos os aspectos essenciais, essa concepção parece muito com aquela que a situação moderna fez cada vez mais prevalecer, no que respeita ao reinado constitucional. A analogia não é de modo algum fortuita, porquanto o tipo teológico forneceu, com efeito, a base racional do tipo político. Essa doutrina contraditória, que arruína a eficácia social do princípio teológico, sem consagrar a ascendência fundamental do princípio positivo, não poderia corresponder a nenhum estado verdadeiramente normal e duradouro; ela consiste somente no mais potente dos meios de transição adequados ao último ofício necessário do espírito metafísico.
Finalmente, a incompatibilidade necessária da ciência com a teologia teve de manifestar-se também sob outra forma geral, especialmente adaptada ao estado monotéico, fazendo cada vez mais salientar a imperfeição radical da ordem real, assim oposta ao inevitável otimismo providencial. Esse otimismo teve, sem dúvida, de permanecer por [pág. 60] muito tempo compatível com o florescimento espontâneo dos conhecimentos positivos, já que uma primeira análise da natureza devia então inspirar, por toda parte, uma admiração ingênua pelo modo de realização dos principais fenômenos que constituíam a ordem efetiva. Mas essa disposição inicial tende em seguida a desaparecer não menos necessariamente, na medida em que o espírito positivo, tomando um caráter cada vez mais sistemático, substitui paulatinamente ao dogma das causas finais o princípio das condições de existência. Este lhe oferece, num grau mais alto, todas as propriedades lógicas, sem apresentar qualquer um de seus graves perigos científicos. Paramos então de estranhar que a constituição dos seres naturais se encontre, em cada caso, disposta de maneira a permitir a realização final de seus fenômenos efetivos. Estudando com cuidado essa inevitável harmonia, com o único propósito de compreendê-la melhor, terminamos em seguida por observar as profundas imperfeições que apresenta, sob todos os aspectos, a ordem real, quase sempre inferior em sabedoria à economia artificial, estabelecida por nossa fraca intervenção humana em seu domínio limitado. Como esses vícios naturais devem ser um tanto maiores quando se trata de fenômenos mais complicados, as indicações irrecusáveis que nos oferecerá, sob esse aspecto, o conjunto da astronomia bastarão aqui para levar ao pressentimento de quanto tal apreciação deve estender-se, com nova energia filosófica, a todas as outras partes essenciais da ciência real. Mas importa sobretudo compreender, em geral, a propósito de tal crítica, que não tem somente um destino passageiro, a título do meio antiteológico. Liga-se, de maneira mais íntima e durável, ao espírito fundamental da filosofia positiva, na relação geral entre especulação e ação. Se, de outra parte, nossa ativa intervenção permanente repousa, antes de tudo, no conhecimento exato da economia natural, de que nossa economia artificial não deve constituir, sob todos os aspectos, senão a progressiva melhoria, não é menos certo, de outra parte, que assim supomos a imperfeição necessária dessa ordem espontânea, cuja modificação gradual constitui o fim cotidiano de nossos esforços individuais ou coletivos. Abstração feita de toda crítica passageira, a justa apreciação dos diversos inconvenientes, próprios à constituição efetiva do mundo real, deve pois ser concebida, de agora em diante, como inerente ao conjunto da filosofia positiva, mesmo no que concerne aos casos inacessíveis a nossos fracos meios de aperfeiçoamento, a fim de melhor conhecer, seja nossa condição fundamental, seja a destinação essencial de nossa atividade contínua.
VII — O concurso espontâneo das diversas considerações gerais, indicadas neste Discurso, basta agora para caracterizar aqui, sob todos os aspectos principais, o verdadeiro espírito filosófico que, depois duma lenta evolução preliminar, atinge hoje seu estado sistemático. Tendo em vista a evidente obrigação em que nos encontramos agora de qualificá-lo habitualmente por uma curta denominação especial, tive de preferir aquela a que a preparação universal atribuiu progressivamente, durante os últimos três séculos, a preciosa propriedade de resumir, da melhor maneira possível, o conjunto de seus atributos fundamentais. Como todos os termos vulgares elevados assim gradualmente à dignidade filosófica, a palavra positivo oferece, em nossas línguas ocidentais, várias acepções distintas, mesmo afastando o sentido grosseiro, que de início se vincula a ela entre os espíritos mal cultivados. Mas importa notar aqui que todas essas diversas significações convêm igualmente à nova filosofia geral, indicando-lhe alternativamente diferentes propriedades características. Assim, esta aparente ambigüidade não mais oferecerá qualquer inconveniente real. Seria preciso ver nisso, ao contrário, um dos principais exemplos dessa admirável condensação de fórmulas que, nas populações avançadas, reúne, sob uma única expressão usual, vários atributos distintos, quando a razão pública chega a reconhecer sua ligação permanente. [pág. 61]
Considerada de início em sua acepção mais antiga e comum, a palavra positivo designa real, em oposição a quimérico. Desta óptica, convém plenamente ao novo espírito filosófico, caracterizado segundo sua constante dedicação a pesquisas verdadeiramente acessíveis à nossa inteligência, com exclusão permanente dos impenetráveis mistérios de que se ocupava, sobretudo em sua infância. Num segundo sentido, muito vizinho do precedente, embora distinto, esse termo fundamental indica o contraste entre útil e ocioso. Lembra então, em filosofia, o destino necessário de todas as nossas especulações sadias para aperfeiçoamento contínuo de nossa verdadeira condição individual ou coletiva, em lugar da vã satisfação duma curiosidade estéril. Segundo uma terceira significação usual, essa feliz expressão é freqüentemente empregada para qualificar a oposição entre a certeza e a indecisão. Indica assim a aptidão característica de tal filosofia para constituir espontaneamente a harmonia lógica no indivíduo, e a comunhão espiritual na espécie inteira, em lugar dessas dúvidas indefinidas e desses debates intermináveis que devia suscitar o antigo regime mental. Uma quarta acepção ordinária, muitas vezes confundida com a precedente, consiste em opor o preciso ao vago. Este sentido lembra a tendência constante do verdadeiro espírito filosófico a obter em toda parte o grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme às exigências de nossas verdadeiras necessidades; enquanto a antiga maneira de filosofar conduzia necessariamente a opiniões vagas, comportando apenas uma indispensável disciplina, baseada numa repressão permanente e apoiada numa autoridade sobrenatural.
É preciso, enfim, observar especialmente uma quinta aplicação, menos usada que as outras, embora igualmente universal, quando se emprega a palavra positivo como contrária a negativo. Sob esse aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua própria natureza, não a destruir, mas a organizar. Os quatro caracteres gerais que acabamos de lembrar distinguem-na ao mesmo tempo de todos os modos possíveis, quer teológicos, quer metafísicos, próprios à filosofia inicial. Essa última significação, indicando aliás uma tendência contínua no novo espírito filosófico, oferece hoje uma importância especial para caracterizar diretamente uma de suas principais diferenças, não mais com o espírito teológico, que foi por muito tempo orgânico, mas com o espírito metafísico propriamente dito, que nunca foi mais do que crítico. Seja qual for, com efeito, a ação dissolvente da ciência real, essa influência foi sempre nela puramente indireta e secundária. Seu defeito de sistematização impedia até agora que fosse possível ser de modo diferente, e o grande ofício orgânico que lhe cabia então se oporia a tal atribuição acessória, que tende, de resto, a tornar-se supérflua. A sã filosofia afasta radicalmente, é verdade, todas as questões necessariamente insolúveis, mas, motivando sua rejeição, evita nada negar a seu respeito, o que seria contraditório com essa dessuetude sistemática, pela qual devem apagar-se todas as opiniões verdadeiramente indiscutíveis. Em relação a cada uma delas, tendo em vista sua comum indiferença, mais imparcial e mais tolerante do que podem demonstrar os partidários opostos, preocupa-se em apreciar historicamente sua influência respectiva, as condições de sua duração e os motivos de sua decadência, sem nunca pronunciar alguma negação absoluta, mesmo quando se trata das doutrinas mais antipáticas ao estado presente da razão humana, nas populações de elite. Assim, faz escrupulosa justiça tanto aos diversos sistemas de monoteísmo, diferentes daquele que expira hoje entre nós, quanto às crenças politéicas ou mesmo fetichistas, reportando-os sempre às fases correspondentes da evolução fundamental. Sob o aspecto dogmático, professa aliás que quaisquer concepções de nossa imaginação, quando sua natureza as torna necessariamente inacessíveis a toda observação, deixam de ser, então, suscetíveis de negação ou de afirmação verdadeiramente decisivas. Ninguém, sem dúvida, demonstrou [pág. 62] logicamente a não-existência de Apoio, de Minerva, etc., nem das fadas orientais ou das diversas criações poéticas, o que não impediu de modo algum o espírito humano de abandonar irrevogavelmente os dogmas antigos quando, enfim, cessaram de convir ao conjunto de sua situação.
O único caráter essencial do novo espírito filosófico, não ainda indicado diretamente pela palavra positivo, consiste em sua tendência necessária a substituir, em todos os lugares, absoluto por relativo. Mas esse grande atributo, ao mesmo tempo científico e lógico, é de tal modo inerente à natureza fundamental dos conhecimentos reais que sua consideração geral não tardará a ligar-se intimamente aos diversos aspectos já combinados por essa fórmula, quando o moderno regime intelectual, até aqui parcial e empírico, passar comumente ao estado sistemático. A quinta acepção que acabamos de apreciar é sobretudo conveniente para determinar essa última condensação da nova linguagem filosófica, então plenamente constituída, segundo a evidente afinidade de ambas as propriedades. Concebe-se, de fato, que a natureza absoluta das antigas doutrinas, teológicas ou metafísicas, determinasse necessariamente cada uma delas a tornar-se negativa em relação a todas as outras, sob pena de ela própria degenerar num absurdo ecletismo. É, ao contrário, em virtude de seu gênio relativo que a nova filosofia pode sempre apreciar o valor próprio das teorias que lhe são mais opostas, sem contudo chegar a uma vã concessão, suscetível de alterar a nitidez de suas vistas ou a firmeza de suas decisões. Cabe, portanto, presumir, conforme o conjunto de tal apreciação especial, que a fórmula empregada aqui para qualificar habitualmente essa filosofia definitiva lembrará, de agora em diante, a todos os bons espíritos a total combinação efetiva de suas diversas propriedades características.
VIII — Quando se procura a origem fundamental dessa maneira de filosofar, não se tardará em reconhecer que sua espontaneidade elementar coincide realmente com os primeiros exercícios práticos da razão humana, pois o conjunto dessas explicações indicadas neste Discurso demonstra claramente que todos os seus atributos principais são, no fundo, os mesmos que os do bom senso universal. A despeito da ascendência mental da mais grosseira teologia, a conduta cotidiana da vida ativa sempre teve de suscitar, diante de cada ordem de fenômenos, certo esboço das leis naturais e das previsões correspondentes, em algum caso particular, que somente pareciam então secundários ou excepcionais. Ora, tais são com efeito os germes necessários da positividade, que deveria permanecer por muito tempo empírica, antes de poder vir a ser racional. Importa muito perceber que, sob todos esses aspectos essenciais, o verdadeiro espírito filosófico consiste sobretudo na extensão sistemática do simples bom senso a todas as especulações verdadeiramente acessíveis. Seus domínios são radicalmente idênticos, já que as maiores questões da sã filosofia sempre se reportam aos fenômenos mais vulgares, diante dos quais os casos artificiais constituem apenas uma preocupação mais ou menos indispensável. Possuem, lado a lado, o mesmo ponto de partida experimental, o mesmo fim de ligar e prevenir, a mesma preocupação contínua da realidade, a mesma intenção final de utilidade. A diferença essencial entre eles reside na generalidade sistemática de um, mantendo sua abstração necessária, oposta à incoerência especializada do outro, sempre ocupado com o concreto.
Vista sob o aspecto dogmático, essa conexão fundamental representa a ciência propriamente dita como simples prolongamento metódico da sabedoria universal. Desse modo, muito longe de pôr em questão o que esta verdadeiramente decidiu, as sãs especulações filosóficas devem sempre tomar emprestado da razão comum suas noções iniciais, para lhes fazer adquirir, graças à elaboração sistemática, um grau de generalidade e de consistência que não poderiam obter espontaneamente. Durante todo o curso de tal [pág. 63] elaboração, o controle permanente dessa vulgar sabedoria conserva de resto alta importância, a fim de prevenir tanto quanto possível as diversas aberrações, por negligência ou ilusão, que suscita freqüentemente o estado contínuo de abstração indispensável à atividade filosófica. A despeito de sua afinidade necessária, o bom senso propriamente dito deve sempre permanecer antes de tudo preocupado com a realidade e com a utilidade, enquanto o espírito especialmente filosófico tende a apreciar muito mais a generalidade e a ligação, de sorte que sua dupla reação cotidiana vem a ser igualmente favorável a ambos, consolidando-lhes as qualidades fundamentais que naturalmente seriam alteradas. Essa relação indica logo quanto são necessariamente ocas e estéreis as investigações especulativas dirigidas, a respeito de um assunto qualquer, aos primeiros princípios que, devendo sempre surgir da sabedoria vulgar, nunca pertencem ao domínio verdadeiro da ciência, de que constituem, ao contrário, os fundamentos espontâneos e, por conseguinte, indiscutíveis. Isto descarta radicalmente uma multidão de controvérsias, ociosas ou perigosas, que nos legou o antigo regime mental. Podemos igualmente perceber assim a profunda inanição final de todos os estudos prévios relativos à lógica abstrata, quando se trata de apreciar o verdadeiro método filosófico isoladamente de qualquer aplicação a uma ordem qualquer de fenômenos. Os únicos princípios verdadeiramente gerais que podem ser estabelecidos a esse respeito se reduzem necessariamente, como é fácil de verificar nos mais célebres desses aforismos, a algumas máximas incontestáveis mas evidentes, emprestadas da razão comum, e que nada acrescentam verdadeiramente de essencial às indicações, resultantes, para todos os bons espíritos, de um simples exercício espontâneo. Quanto à maneira de adaptar essas regras universais às diversas ordens de nossas especulações positivas, o que constituiria a verdadeira dificuldade e a utilidade real de tais preceitos lógicos, só poderia comportar apreciação válida, depois duma análise especial dos estudos correspondentes, conforme à natureza própria dos fenômenos considerados. A sã filosofia nunca separa, pois, a lógica da ciência, o método e a doutrina só podendo em cada caso ser bem julgados segundo suas verdadeiras relações mútuas. Não é pois possível, em última instância, dar nem à lógica nem à ciência caráter universal por meio de concepções puramente abstratas, independentes de todos os fenômenos determinados. Tentativas desse gênero indicam ainda a secreta influência do espírito absoluto inerente ao regime teológico-metafísico.
Considerada agora sob o aspecto histórico, esta íntima solidariedade natural entre o gênio próprio da verdadeira filosofia e o simples bom senso universal mostra a origem espontânea do espírito positivo, resultante, em toda parte, duma reação especial da razão prática sobre a razão teórica, cujo caráter inicial se modificou assim sempre progressiva-mente. Mas essa transformação gradual, como já sabemos, não podia operar-se, ao mesmo tempo, nem sobretudo com igual velocidade, nas diversas classes de especulações abstratas, todas primitivamente teológicas, como nós o reconhecemos. Esse constante impulso concreto nelas só poderia fazer penetrar o espírito positivo segundo uma ordem determinada, conforme à complicação crescente dos fenômenos, a ser diretamente explicada logo abaixo. A positividade abstrata, nascida necessariamente nos mais simples estudos matemáticos e propagando-se em seguida por via de afinidade espontânea ou imitação instintiva, só poderia, pois, oferecer de início caráter especial e, sob vários aspectos, empírico. Isto deveria por muito tempo dissimular, para a maioria de seus promotores, quer sua incompatibilidade inevitável com a filosofia inicial, quer sobretudo sua tendência radical para fundar novo regime lógico. Seus progressos contínuos, sob o impulso crescente da razão vulgar, apenas podiam então, determinar diretamente o triunfo prévio do espírito metafísico, destinado, por sua generalidade espontânea, a servir-lhe de órgão filosófico durante os séculos escoados entre a preparação mental do monoteísmo [pág. 64] e sua plena instalação social. Depois disso, o regime ontológico, tendo obtido toda a ascendência que comportava sua natureza, tornou-se logo opressivo para o florescimento científico, que tinha até então secundado. Também o espírito positivo só pôde manifestar suficientemente sua própria tendência filosófica quando se encontrou afinal levado, por essa opressão, a lutar especialmente contra o espírito metafísico, com o qual por muito tempo parecia confundir-se. Eis por que a primeira fundação sistemática da filosofia positiva não poderia ir além da memorável crise em que o conjunto do regime ontológico começou a sucumbir, em todo o Ocidente europeu, sob o concurso espontâneo de dois admiráveis impulsos mentais: um, científico, emanado de Kepler e Galileu; outro, filosófico, proveniente de Bacon e Descartes. A imperfeita unidade metafísica constituída no fim da Idade Média foi então irremediavelmente dissolvida, do mesmo modo que a ontologia grega já tinha destruído para sempre a grande unidade teológica correspondente ao politeísmo. Desde essa crise verdadeiramente decisiva, o espírito positivo, crescendo muito mais em dois séculos do que o pôde fazer durante sua longa carreira anterior, não deixou outra unidade mental possível a não ser a que resultasse de sua própria ascendência universal. Cada novo domínio sucessivamente conquistado por ele nunca mais pôde voltar à teologia nem à metafísica, em virtude da consagração definitiva que essas conquistas crescentes encontravam cada vez mais na razão vulgar. E somente por essa sistematização que a sabedoria teórica emprestou verdadeiramente à sabedoria prática um equivalente digno, em generalidade e em consistência, ao ofício fundamental que dela recebeu, em realidade e eficácia, durante sua lenta iniciação gradual. Porquanto, as noções positivas obtidas nos dois últimos séculos são, vale dizer na verdade, muito mais preciosas como materiais ulteriores duma nova filosofia geral do que por seu valor direto e especial, a maioria dentre eles não tendo podido ainda adquirir seu caráter definitivo, nem científico nem mesmo lógico.
O conjunto de nossa evolução mental, e sobretudo o grande movimento realizado na Europa ocidental desde Descartes e Bacon, não deixa, pois, a partir de agora, outra saída possível a não ser constituir enfim, depois de tantos preâmbulos necessários, o estado verdadeiramente normal da razão humana. Traz assim para o espírito positivo a plenitude e a racionalidade que lhe faltam ainda, de maneira a estabelecer, entre o gênio filosófico e o bom senso universal, uma harmonia que de forma suficiente nunca pôde existir. Ora, estudando estas duas condições simultâneas, de complementaridade e de sistematização, que a ciência real hoje deve cumprir para elevar-se à dignidade duma verdadeira filosofia, não tardaremos em reconhecer que coincidem finalmente. De um lado, a grande crise inicial da positividade moderna só deixou essencialmente fora do movimento científico propriamente dito teorias morais e sociais, largadas então a um isolamento irracional, sob a estéril dominação do espírito teológico-metafísico. Consiste, pois, em levá-las também, em nossos dias, ao estado positivo, a última prova do verdadeiro espírito filosófico, cuja extensão sucessiva a todos os outros fenômenos fundamentais já se encontrava suficientemente esboçada. Mas, de outro lado, essa última expansão da filosofia natural tendia espontaneamente a sistematizá-la logo, constituindo o único ponto de vista, científico ou lógico, que pode dominar o conjunto de nossas especulações reais, sempre necessariamente redutíveis ao aspecto humano, isto é, social, o único suscetível duma ativa universalidade. Tal é a dupla finalidade filosófica da elaboração fundamental, ao mesmo tempo especial e geral, que tentei empreender na grande obra indicada no início deste Discurso. Os mais eminentes pensadores contemporâneos a julgam assim suficientemente realizada para ter já posto as verdadeiras bases diretas da total renovação mental projetada por Bacon e Descartes, mas cuja execução decisiva estava reservada ao nosso século. [pág. 65]
SEGUNDA PARTE
O espírito positivo é mais apto que o espírito teológico-metafísico para organizar a sociedade e sistematizar a moral
Sumário: IX — As escolas políticas atuais são impotentes para conciliar a ordem e o progresso: as revoluções de 1789 e de 1830, a política negativa e a política retrógrada, enfim, a política estacionária, igualmente fracassaram. X — O positivismo faz da ordem a condição do progresso e do progresso a meta da ordem. Assegura a ordem e garante o progresso. XI — Valor moral do positivismo: a moral está atualmente comprometida, porque permanece solidária com um sistema de crenças votado à ruína total. XII — No entanto, a moral pública melhorou, graças ao desenvolvimento do espírito positivo e ao bom senso universal; a organização do jesuitismo mostra que os teólogos perderam a esperança de reconquistar sua ascendência sobre os espíritos. XIII — Necessidade de novo poder espiritual. XIV — Caráter egoísta da moral teológico-metafísica. XV — Altruísmo da moral positivista.
Para que essa sistematização final das concepções humanas seja hoje assaz caracterizada, não basta apreciar, como acabamos de fazer, seu destino teórico; também é preciso considerar aqui, de maneira distinta, embora sumária, sua aptidão necessária para constituir a única saída intelectual que possa realmente abranger a imensa crise social desenvolvida, desde meio século, no conjunto do Ocidente europeu e sobretudo em França.
IX — Enquanto se processava gradualmente, durante os cinco últimos séculos, a dissolução irrevogável da filosofia teológica, o sistema político de que formava a base mental sofria cada vez mais uma decomposição não menos radical, igualmente presidida pelo espírito metafísico. Esse duplo movimento negativo tinha por órgãos essenciais e solidários, de uma parte, as universidades, primeiramente emanadas do poder sacerdotal mas logo rivais dele; de outra parte, as diversas corporações de legistas, gradualmente hostis aos poderes feudais. Só na medida em que a ação crítica se disseminava, seus agentes, sem mudar de natureza, tornavam-se mais numerosos e mais subalternos; de sorte que, no século XVIII, a principal atividade revolucionária teve de passar, na ordem filosófica, dos doutores propriamente ditos aos simples literatos e, em seguida, na ordem política, dos juizes aos advogados. A Grande Crise final necessariamente começou quando essa decadência comum, primeiro espontânea e depois sistemática, a que aliás todas e quaisquer classes da sociedade moderna tinham concorrido diversamente, chegou, enfim, ao ponto de tornar universalmente irrecusável a impossibilidade de conservar o antigo regime e a necessidade crescente duma ordem nova. Desde sua origem essa crise sempre tendeu a transformar, num vasto movimento orgânico, o movimento crítico dos cinco últimos séculos, apresentando-se como destinada sobretudo a operar diretamente a regeneração social, da qual todos os preâmbulos negativos se encontravam então suficientemente realizados. Mas essa transformação decisiva, embora cada vez mais urgente, teve de permanecer até agora essencialmente impossível, na falta duma filosofia verdadeiramente adequada para fornecer-lhe base intelectual indispensável. Ao mesmo tempo que a realização suficiente da prévia decomposição exigia a dessuetude das doutrinas puramente negativas, que a haviam dirigido, uma fatal ilusão, nesse momento inevitável, conduziu, ao contrário, a conferir espontaneamente ao espírito metafísico, único ativo durante esse longo preâmbulo, a presidência geral do movimento de reorganização. [pág. 66] Quando uma experiência plenamente decisiva constatou para sempre, aos olhos de todos, a total impotência orgânica dessa filosofia, a ausência de qualquer outra teoria não permitiu satisfazer, de início, às necessidades da ordem que já prevaleciam a não ser por uma espécie de restauração passageira desse mesmo sistema, mental e social, cuja irreparável decadência tinha levado à crise. Enfim, o desenvolvimento dessa reação retrógrada determinou, em seguida, uma manifestação memorável, que nossas lacunas filosóficas tinham tornado tão indispensável quanto inevitável, a fim de demonstrar de modo irrevogável que o progresso constitui, como a ordem, uma das duas condições fundamentais da civilização moderna.
O concurso natural dessas duas provas irrecusáveis, cuja renovação se tornou agora tanto impossível como inútil, nos conduziu hoje a essa estranha situação, em que nada verdadeiramente grande pode ser empreendido, nem para a ordem, nem para o progresso, por falta duma filosofia realmente adaptada ao conjunto de nossas necessidades. Todo sério esforço de reorganização logo cessa diante dos temores de retrogradação, que ele próprio naturalmente deve inspirar, num tempo em que as idéias de ordem emanam ainda essencialmente do tipo antigo, hoje antipático às populações atuais. Do mesmo modo, as tentativas de aceleração direta da progressão política não tardam em ser radicalmente entravadas pelas inquietudes muito legítimas, suscitadas pela iminência da anarquia, enquanto as idéias de progresso permanecerem sobretudo negativas. Como antes da crise, a luta aparente continua ainda desenvolvendo-se entre o espírito teológico, reconhecidamente incompatível com o progresso que é levado a negar dogmaticamente, e o espírito metafísico, que, depois de resultar, na filosofia, na dúvida universal, só pode tender, em política, a continuar a desordem ou um estado equivalente de desgoverno. No entanto, depois do sentimento unânime de sua comum insuficiência, nem um nem outro podem agora inspirar, nos governantes ou nos governados, profundas convicções ativas. Seu antagonismo continua, entretanto, alimentando-os mutuamente, sem que um deles possa comportar quer uma dessuetude verdadeira, quer um triunfo decisivo. Isto porque nossa situação intelectual os torna ainda indispensáveis para representar, duma maneira qualquer, as condições simultâneas da ordem e do progresso, até que uma única filosofia possa satisfazê-las igualmente, de maneira a tornar enfim igualmente inúteis a escola retrógrada e a escola negativa, na situação moderna em que uma se destina sobretudo a impedir a total predominância da outra. No entanto, as inquietações opostas, relativas a ambas dominações contrárias, deverão naturalmente persistir ao mesmo tempo enquanto durar esse interregno mental, em conseqüência inevitável dessa cisão irracional entre as duas faces inseparáveis do grande problema social. Com efeito, cada uma das escolas, em virtude de sua preocupação exclusiva, não é mesmo capaz de conter de agora em diante, de modo suficiente, as aberrações inversas de seu adversário. A despeito de sua tendência antianárquica, a escola teológica mostrou-se, em nossos dias, radicalmente impotente para impedir a avalancha de opiniões subversivas que, depois de se terem desenvolvido sobretudo durante sua principal restauração, freqüentemente são propagadas por ela na base de frívolos cálculos dinásticos. Do mesmo modo, seja qual for o instinto anti-retrógrado da escola metafísica, não possui mais hoje toda força lógica que exigiria seu simples ofício revolucionário, posto que sua inconseqüência característica a obriga a admitir os princípios essenciais do próprio sistema, de que ataca, sem cessar, as verdadeiras condições de existência.
Essa deplorável oscilação entre duas filosofias opostas, que se tornaram igualmente vãs e que só se extinguirão ao mesmo tempo, deveria suscitar o desenvolvimento duma espécie de escola intermediária, essencialmente estacionária, destinada sobretudo a lembrar [pág. 67] diretamente o conjunto da questão social, proclamando, enfim, como igualmente necessárias, as duas condições fundamentais que isolavam as duas opiniões ativas. Mas, por falta duma filosofia capaz de realizar essa grande combinação do espírito da ordem com o espírito do progresso, esse terceiro impulso permanece ainda logicamente mais impotente do que os dois outros, já que sistematiza a inconseqüência, consagrando simultaneamente os princípios retrógrados e as máximas negativas, a fim de poder neutralizá-los mutuamente. Longe de tender a terminar a crise, tal disposição só poderia eternizá-la, opondo-se diretamente a toda verdadeira preponderância de um sistema qualquer, se não a limitássemos a uma simples destinação passageira para satisfazer empiricamente às mais graves exigências de nossa situação revolucionária, até o advento decisivo das únicas doutrinas que possam de agora em diante convir ao conjunto de nossas necessidades. Mas, assim concebido, esse expediente provisório se tornou hoje tão indispensável como inevitável. Sua rápida ascendência prática, reconhecida implicitamente por ambos os partidos ativos, constata cada vez mais, nas populações atuais, o amortecimento simultâneo das convicções e paixões anteriores, retrógradas ou críticas, gradualmente substituídas por um sentimento universal, real apesar de confuso, da necessidade e mesmo da possibilidade duma conciliação permanente entre o espírito de conservação e o espírito de melhoramento, igualmente apropriados ao estado normal da Humanidade. A tendência correspondente dos homens de Estado a impedir hoje, tanto quanto possível, todo grande movimento político encontra-se aliás espontaneamente conforme às exigências fundamentais de uma situação que só comportará realmente instituições provisórias, enquanto uma verdadeira filosofia geral não vincular suficientemente as inteligências. Desconhecida pelos poderes atuais, essa resistência instintiva colabora para facilitar a verdadeira solução, ajudando a transformar uma estéril agitação política numa ativa progressão filosófica, de maneira a seguir, enfim, a marcha prescrita pela natureza, adequada à reorganização final, que deve primeiro ocorrer nas idéias para passar em seguida aos costumes e, finalmente, às instituições. Tal transformação, que já tende a predominar em França, deverá naturalmente desenvolver-se cada vez mais em toda parte, tendo em vista a necessidade crescente, em que se encontram colocados hoje nossos governos ocidentais, de manter a grandes custos a ordem material no meio da desordem intelectual e moral, necessidade que pouco a pouco deve absorver essencialmente seus esforços cotidianos, conduzindo-os a renunciar implicitamente a toda presidência séria da reorganização espiritual, cedida assim à livre atividade dos filósofos que se mostrarem dignos de dirigi-la. Essa disposição natural dos poderes atuais está em harmonia com a tendência espontânea das populações para uma aparente indiferença política, motivada pela impotência radical das diversas doutrinas em circulação e que há sempre de persistir enquanto os debates políticos continuarem, por falta de impulso conveniente, a degenerar em vãs lutas pessoais, cada vez mais miseráveis. Esta é a feliz eficácia prática que o conjunto de nossa situação revolucionária traz momentaneamente a uma escola essencialmente empírica que, sob o aspecto teórico, nunca pode produzir mais do que um sistema radicalmente contraditório, não menos absurdo e perigoso, em política, do que, na filosofia, o ecletismo correspondente, também inspirado pela vã intenção de conciliar, sem princípios próprios, opiniões incompatíveis.
X — Conforme o sentimento, cada vez mais desenvolvido, de igual insuficiência social que hoje oferecem o espírito teológico e o espírito metafísico, os únicos até agora a disputar ativamente um lugar ao sol, a razão pública deve encontrar-se implicitamente disposta a acolher atualmente o espírito positivo como a única base possível para uma verdadeira resolução da profunda anarquia intelectual e moral, que caracteriza sobremaneira [pág. 68] a grande crise moderna. Mantendo-se ainda estranha a tais questões, a escola positiva gradualmente preparou-se para elas, constituindo, quanto possível, durante a luta revolucionária dos três últimos séculos, o verdadeiro estado normal de todas as classes mais simples de nossas especulações reais. Ancorada por tais antecedentes científicos e lógicos, livre, aliás, das diversas aberrações contemporâneas, apresenta-se hoje adquirindo por fim a total generalidade filosófica que lhe faltava até aqui. Ousa então empreender, por sua vez, a solução ainda intata do grande problema, transportando convenientemente aos estudos finais a mesma regeneração que sucessivamente já operou no domínio dos diferentes estudos preliminares.
Não se pode primeiramente desconhecer a aptidão espontânea dessa filosofia a constituir diretamente a conciliação fundamental, ainda procurada de tão vãs maneiras, entre as exigências simultâneas da ordem e do progresso. Basta-lhe, para isso, estender até os fenômenos sociais uma tendência plenamente conforme à sua natureza e que tornou agora muito familiar em todos os outros casos essenciais. Num assunto qualquer, o espírito positivo leva sempre a estabelecer exata harmonia elementar entre as idéias de existência e as idéias de movimento, donde resulta mais especialmente, no que respeita aos corpos vivos, a correlação permanente das idéias de organização com as idéias de vida e, em seguida, graças a uma última especialização peculiar ao organismo social, a solidariedade contínua das idéias de ordem com as idéias de progresso. Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e, reciprocamente, o progresso vem a ser a meta necessária da ordem; como no mecanismo animal, o equilíbrio e a progressão são mutuamente indispensáveis, a título de fundamento ou destinação. Especialmente considerado, em seguida, no que respeita à ordem, o espírito positivo apresenta-lhe hoje, em sua extensão social, poderosas garantias diretas, não somente científicas mas também lógicas, que poderão logo ser julgadas muito superiores às vãs pretensões duma teologia retrógrada, que cada vez mais se degenera, desde vários séculos, num ativo elemento de discórdias, individuais ou nacionais, incapaz, a partir de agora, de conter as divagações subversivas de seus próprios adeptos. Atacando a desordem atual em sua verdadeira fonte, necessariamente mental, constitui, tão profundamente quanto possível, a harmonia lógica, regenerando, de início, os métodos antes das doutrinas, por uma tripla conversão simultânea da natureza das Questões dominantes, da maneira de tratá-las e das condições prévias de sua elaboração. Demonstra, com efeito, de uma parte, que as principais dificuldades sociais não são hoje essencialmente políticas, mas sobretudo morais, de sorte que sua solução possível depende realmente das opiniões e dos costumes, muito mais do que das instituições, o que tende a extinguir uma atividade perturbadora, transformando a agitação política em movimento filosófico. Sob outro aspecto, considera sempre o estado presente como resultado necessário do conjunto da evolução anterior, de modo a fazer constantemente prevalecer a apreciação racional do passado no exame atual dos negócios humanos — o que logo afasta as tendências puramente críticas, incompatíveis com toda sadia concepção histórica. Finalmente, em lugar de deixar a ciência social no vago e estéril isolamento em que a situam a teologia e a metafísica, vincula-a irrevogavelmente a todas as outras ciências fundamentais, que constituem gradualmente, para esse estudo final, vários preâmbulos indispensáveis, onde nossa inteligência adquire, ao mesmo tempo, os hábitos e as noções sem os quais não se pode abordar, de modo útil, as mais eminentes especulações positivas. Isto já institui uma verdadeira disciplina mental, apropriada a melhorar radicalmente essas discussões, de agora em diante racionalmente proibidas a uma multidão de entendimentos mal organizados ou mal preparados. Essas grandes garantias lógicas são, aliás, [pág. 69] logo em seguida plenamente confirmadas e desenvolvidas pela apreciação científica propriamente dita, que, diante dos fenômenos sociais e de todos os outros, sempre representa nossa ordem artificial como devendo consistir sobremaneira num simples prolongamento judicioso, primeiramente espontâneo, depois sistemático, da ordem natural resultante, em cada caso, do conjunto das leis reais, cuja ação efetiva é ordinariamente modificável por nossa sábia intervenção, entre limites determinados, tanto mais afastados quanto os fenômenos sejam mais elevados. O sentimento elementar da ordem é, numa palavra, naturalmente inseparável de todas as especulações positivas, constantemente dirigidas para a descoberta dos meios de ligação entre as observações, cujo principal valor resulta de sua sistematização.
Isto é ainda mais evidente no que concerne ao progresso que, a despeito de vãs pretensões ontológicas, encontra hoje, no conjunto dos estudos científicos, sua mais incontestável manifestação. Segundo sua natureza absoluta e, por conseguinte, essencialmente imóvel, a metafísica e a teologia não poderiam comportar, uma não mais do que a outra, verdadeiro progresso, a saber, uma progressão contínua na direção de um alvo determinado. Suas transformações históricas incorrem sobretudo, ao contrário, numa constante dessuetude, mental ou social, sem que as questões agitadas tenham podido algum dia dar um passo real, em virtude propriamente de sua insolubilidade radical. É fácil reconhecer que as discussões ontológicas das escolas gregas se reproduziram essencialmente, sob outras formas, com os escolásticos da Idade Média, e encontramos hoje seus equivalentes em nossos psicólogos e ideólogos. Nenhuma das doutrinas controversas, durante esses vinte séculos de debates estéreis, pôde resultar em demonstrações decisivas, não apenas no que respeita à existência dos corpos exteriores, ainda tão problemática para os argumentadores modernos quanto para seus mais antigos predecessores. Evidentemente a marcha contínua dos conhecimentos positivos inspirou, há dois séculos, na célebre fórmula filosófica de Pascal, a primeira noção racional de progresso humano, necessariamente estranha a toda a filosofia antiga. Estendida em seguida à evolução industrial e mesmo estética, mas permanecendo ainda muito confusa no domínio do movimento social, tende hoje vagamente para uma sistematização decisiva, que só pode emanar do espírito positivo, que por fim se generalizou convenientemente. Em suas especulações cotidianas reproduz espontaneamente o ativo sentimento elementar, sempre retomando a extensão e o aperfeiçoamento de nossos conhecimentos reais como a meta essencial de nossos diversos esforços teóricos. Sob o aspecto mais sistemático, a nova filosofia indica diretamente, como destino necessário de toda nossa existência, ao mesmo tempo pessoal e social, o melhoramento contínuo de nossa condição e, sobretudo, de nossa natureza, enquanto comportar, em todas as esferas, o conjunto das leis reais exteriores ou interiores. Elevando assim a noção de progresso a dogma verdadeiramente fundamental da sabedoria humana, seja prática, seja teórica, imprime-lhe o caráter mais nobre e, ao mesmo tempo, o mais completo, sempre representando o segundo gênero de aperfeiçoamento como superior ao primeiro. De uma parte, a ação da Humanidade sobre o mundo exterior, ao depender sobremaneira das disposições do agente, é sua melhoria que deve constituir nosso principal recurso. De outra parte, sendo os fenômenos humanos individuais ou coletivos dentre todos os mais modificáveis, é em relação a eles que nossa intervenção racional comporta naturalmente maior eficácia. O dogma do progresso só pode vir a ser suficientemente filosófico depois duma exata apreciação geral do que constitui sobremaneira esse melhoramento contínuo de nossa própria natureza, principal objeto da progressão humana. Ora, a esse respeito, o conjunto da filosofia positiva demonstra plenamente, como se pode ver na obra indicada no início deste Discurso, que [pág. 70] esse aperfeiçoamento consiste essencialmente, tanto para o indivíduo como para a espécie, em fazer predominar de modo progressivo os eminentes atributos que distinguem a mais nobre humanidade da simples animalidade, a saber, de uma parte, a inteligência, de outra, a sociabilidade, faculdades naturalmente solidárias que mutuamente se servem de meio e de fim. Apesar de o curso espontâneo da evolução humana, pessoal ou social, desenvolver sempre sua comum influência, sua ascendência combinada não poderia, entretanto, chegar ao ponto de impedir que nossa principal atividade derivasse habitualmente de tendências inferiores, que nossa constituição real torna muito mais enérgicas. Assim, essa ideal preponderância de nossa humanidade sobre nossa animalidade cumpre naturalmente as condições essenciais dum verdadeiro tipo filosófico caracterizando um limite determinado, de que nossos esforços devem sempre nos aproximar constantemente, sem poder entretanto jamais atingir.
Essa dupla indicação da aptidão fundamental do espírito positivo a sistematizar espontaneamente as sadias noções simultâneas de ordem e de progresso basta aqui para assinalar sumariamente a alta eficácia social própria à nova filosofia geral. Seu valor, a esse respeito, depende, antes de tudo, de sua plena realidade científica, a saber, da exata harmonia que estabelece hoje, tanto quanto possível, entre os princípios e os fatos, no que concerne aos fenômenos sociais e a todos os outros. A reorganização total, a única capaz de terminar a grande crise moderna, consiste, com efeito, sob o aspecto mental que de início deve prevalecer, em constituir uma teoria sociológica apropriada a explicar convenientemente o conjunto do passado humano. Tal é o modo mais racional de pôr a questão essencial, a fim de melhor afastar dela toda paixão perturbadora. É assim que a superioridade necessária da escola positiva sobre as diversas escolas atuais pode então ser apreciada mais nitidamente. Pois o espírito teológico e o espírito metafísico são ambos conduzidos, em virtude de sua natureza absoluta, a considerar apenas a porção do passado em que cada um deles dominou de modo preponderante. O que precede e o que segue lhes parecem apenas uma tenebrosa confusão e uma desordem inexplicável, cuja ligação com essa estreita parte do grande espetáculo histórico não pode, a seus olhos, resultar senão duma intervenção miraculosa. Por exemplo, o catolicismo sempre mostrou, a respeito do politeísmo antigo, uma tendência tão cegamente crítica como a que hoje lhe censura justamente o espírito revolucionário propriamente dito. Uma verdadeira explicação do conjunto do passado, conformemente às leis constantes de nossa natureza individual ou coletiva, é pois necessariamente impossível para as diversas escolas absolutas que ainda dominam, nenhuma delas tendo suficientemente tentado estabelecê-la. O espírito positivo, em virtude de sua natureza eminentemente relativa, é o único a poder representar convenientemente todas as grandes épocas históricas, como tantas fases determinadas duma mesma evolução fundamental, onde cada uma resulta da precedente e prepara a seguinte, segundo leis invariáveis que fixam sua participação especial na progressão comum, de maneira a sempre permitir, sem maior inconseqüência do que parcialidade, fazer exata justiça filosófica a qualquer sorte de cooperação. Apesar de esse incontestável privilégio da positividade racional dever, no início, parecer puramente especulativo, os verdadeiros pensadores nisso logo reconhecerão a primeira fonte necessária da ativa ascendência social reservada finalmente à nova filosofia. Porquanto se pode assegurar hoje que a doutrina que vier a explicar suficientemente o conjunto do passado obterá inevitavelmente, por causa dessa única prova, a presidência mental do futuro.
Tal indicação das altas propriedades sociais que caracterizam o espírito positivo não seria ainda bastante decisiva se não lhe fosse acrescentada uma sumária apreciação [pág. 71] de sua aptidão espontânea para, enfim, sistematizar a moral humana, o que sempre constituirá a principal aplicação de toda verdadeira teoria da Humanidade.
XI — No organismo politéico da Antigüidade, a moral, radicalmente subordinada à política, nunca podia adquirir nem a dignidade nem a universalidade convenientes à sua natureza. Sua independência fundamental e até mesmo sua ascendência normal resultaram enfim, quanto o era possível então, do regime monotéico próprio à Idade Média. Esse imenso serviço social, devido sobretudo ao catolicismo, sempre formará seu principal título ao eterno reconhecimento do gênero humano. Somente desde essa indispensável separação, sancionada e completada pela divisão necessária das duas potências, a moral humana pôde realmente começar a tomar caráter sistemático, estabelecendo, ao abrigo de impulsos passageiros, regras verdadeiramente gerais para o conjunto de nossa existência, pessoal, doméstica e social. Mas as profundas imperfeições da filosofia monotéica, que então presidia essa grande operação, alteraram muito sua eficácia, chegando a comprometer gravemente sua estabilidade, logo suscitando fatal conflito entre o florescimento intelectual e o desenvolvimento moral. Ligada assim a uma doutrina que não podia por muito tempo permanecer progressiva, a moral havia em seguida de encontrar-se cada vez mais afetada pelo descrédito crescente que necessariamente iria sofrer uma teologia que, a partir de então retrógrada, se tornaria enfim radicalmente antipática à razão moderna. Exposta desde esse momento à ação dissolvente da metafísica, a moral teórica sofreu, com efeito, durante os últimos cinco séculos, em cada uma de suas três partes essenciais, assaltos cada vez mais perigosos, que nem sempre puderam reparar, para a prática, a retidão e a moralidade naturais do homem, em que pese o feliz desenvolvimento contínuo que lhes deveria trazer o curso espontâneo de nossa civilização. Se a ascendência necessária do espírito positivo não vinha, enfim, pôr termo a essas anárquicas divagações, por certo imprimia mortal flutuação a todas as noções um pouco delicadas da moral usual, não apenas social mas também doméstica e até mesmo pessoal, deixando por toda parte subsistir apenas as regras relativas aos casos mais grosseiros, que a apreciação vulgar poderia diretamente garantir.
Em tal situação deve parecer estranho que somente a filosofia que hoje pode consolidar a moral se encontre, ao contrário, tachada a esse respeito de incompetência radical pelas diversas escolas atuais, desde os verdadeiros católicos até os simples deístas, que, no meio de seus debates ociosos, se põem de acordo antes de tudo para proibir-lhe essencialmente o acesso a essas questões fundamentais, na base deste motivo único de que seu gênio muito parcial até agora se tinha limitado a assuntos mais simples. O espírito metafísico, que tão freqüentemente tendeu a dissolver ativamente a moral, e o espírito teológico, que desde muito tempo perdeu a força de preservá-la, persistem, entretanto, em fazer dela um apanágio eterno e exclusivo, sem que a razão pública tenha ainda convenientemente julgado essas pretensões empíricas. Deve-se reconhecer, é verdade, que em geral a introdução de qualquer regra moral teve por toda parte de operar-se primeiramente sob inspirações teológicas, então profundamente incorporadas a todo sistema de nossas idéias, sendo as únicas suscetíveis de constituir opiniões suficientemente comuns. Mas o conjunto do passado demonstra igualmente que essa solidariedade primitiva sempre decresceu com a própria ascendência da teologia. Os preceitos morais, como todos os outros, foram, cada vez mais, levados a uma consagração puramente racional, na medida em que o vulgo se tornou capaz de apreciar a influência real de cada conduta sobre a existência humana, individual ou social. Separando irrevogavelmente a moral da política, o catolicismo necessitou desenvolver muito essa tendência contínua, posto que a intervenção sobrenatural se reduziu, então, diretamente à formação de regras gerais, cuja [pág. 72] aplicação particular estava essencialmente confiada à sabedoria humana. Dirigindo-se a populações mais avançadas, entregou à razão pública uma multidão de prescrições especiais que os antigos sábios acreditaram nunca poder dispensar das injunções religiosas, como pensam ainda os doutores politéicos da Índia, por exemplo, quanto à maioria das práticas higiênicas. Pode-se ainda observar, mesmo três séculos depois de São Paulo, as sinistras predições de vários filósofos ou magistrados pagãos sobre a iminente imoralidade que iria acarretar necessariamente a próxima revolução teológica. As declamações atuais das diversas escolas monotéicas não impedirão o espírito positivo de terminar hoje, sob condições convenientes, a conquista prática e teórica do domínio moral, já espontaneamente entregue cada vez mais à razão humana, da qual não nos resta outra coisa a fazer senão sistematizar enfim as inspirações particulares. Por certo a Humanidade não poderia permanecer indefinidamente condenada a só poder fundar suas regras de conduta sobre motivos quiméricos, de maneira a eternizar uma desastrosa oposição, até agora passageira, entre as necessidades intelectuais e as necessidades morais.
XII — Bem longe de a assistência teológica ser para sempre indispensável aos preceitos morais, a experiência demonstra, ao contrário, que, para os modernos, tornou-se cada vez mais nociva, fazendo com que estes inevitavelmente participem, em conseqüência dessa funesta aderência, da decomposição crescente do regime monotéico, sobretudo durante os três últimos séculos. Primeiramente, essa fatal solidariedade devia de modo direto enfraquecer, na medida em que a fé se extinguia, a única base em que podiam ainda repousar as regras que, muitas vezes expostas a graves conflitos com impulsos muito enérgicos, precisam ser cuidadosamente preservadas de toda hesitação. A antipatia crescente que o espírito teológico inspirava justamente à razão moderna afetou gravemente muitas importantes noções morais, não somente relativas às maiores relações sociais, mas também concernentes à simples vida doméstica, e até mesmo à existência pessoal. Um cego ardor de emancipação mental levou, de resto, de maneira exagerada, a erigir algumas vezes o desdém passageiro por essas máximas salutares em uma espécie de louco protesto contra a filosofia retrógrada, donde pareciam emanar exclusivamente. Até entre aqueles que conservavam a fé dogmática, essa funesta influência fazia-se diretamente sentir, porque a autoridade sacerdotal, depois de ter perdido sua independência política, via também decrescer cada vez mais a ascendência social indispensável à sua eficácia moral. Além dessa impotência crescente em proteger as regras morais, o espírito teológico também lhes foi freqüentemente nocivo duma maneira ativa, por causa das divagações que suscitou, desde que deixou de ser disciplinável, sob o inevitável florescimento do livre exame individual. Exercendo-se desse modo, realmente inspirou ou secundou muitas aberrações anti-sociais, que o bom senso, deixado a si mesmo, teria espontaneamente evitado ou rejeitado. As utopias subversivas que hoje parecem ter crédito, seja contra a propriedade, seja quanto à família, etc., quase nunca saíram de inteligências plenamente emancipadas, nem foram acolhidas por elas, a despeito de suas lacunas fundamentais; foram-no, aliás, por aquelas que perseguiam ativamente uma espécie de restauração teológica, fundada sobre um vago e estéril deísmo, ou sobre um protestantismo equivalente. Enfim, essa antiga aderência à teologia se tornou também necessariamente funesta à moral, sob um terceiro aspecto geral, opondo-se à sua sólida reconstrução sobre bases puramente humanas. Se esse obstáculo consistisse apenas em cegas declamações, muitas vezes oriundas das diversas escolas atuais teológicas ou metafísicas, contra o pretenso perigo de tal operação, os filósofos positivos poderiam limitar-se a rejeitar odiosas insinuações, graças ao irrecusável exemplo de sua própria vida cotidiana, pessoal, doméstica e social. Mas essa oposição é, infelizmente, muito [pág. 73] mais radical, pois resulta da incompatibilidade necessária entre essas duas maneiras de sistematizar a moral. Os motivos teológicos devendo naturalmente oferecer aos olhos do crente intensidade muito superior à de todos os outros, nunca poderiam eles vir a ser simples auxiliares dos motivos puramente humanos. Não podem conservar qualquer eficácia real logo que deixem de dominar. Não existe, pois, nenhuma alternativa duradoura entre fundar, enfim, a moral sobre o conhecimento positivo da Humanidade e deixá-la repousar sobre injunções sobrenaturais. As convicções racionais puderam secundar as crenças teológicas, ou melhor, substituí-las gradualmente, na medida em que a fé se extinguia. Mas a combinação inversa constitui apenas uma utopia contraditória, onde o principal estaria subordinado ao acessório.
Uma judiciosa exploração do verdadeiro estado da sociedade moderna configura, pois, como cada vez mais desmentida pelo conjunto dos fatos cotidianos a pretensa impossibilidade de dispensar de agora em diante toda teologia para consolidar a moral. Posto que essa ligação perigosa veio a ser, desde o fim da Idade Média, triplamente funesta à moral, seja desfibrando ou desacreditando suas bases intelectuais, seja nelas suscitando perturbações diretas, seja, ainda, impedindo sua melhor sistematização. Se, a despeito dos ativos princípios da desordem, a moralidade prática melhorou realmente, este feliz resultado não poderia ser atribuído ao espírito teológico, que se degenerava então num perigoso dissolvente. Ele é causado de modo essencial pela crescente ação do espírito positivo, já eficaz sob sua forma espontânea, a saber, o bom senso universal, cujas sábias inspirações secundaram o impulso natural de nossa civilização progressiva, para combater utilmente as diversas aberrações, sobretudo aquelas que emanavam das divagações religiosas. Quando, por exemplo, a teologia protestante tendia a alterar gravemente a instituição do casamento pela consagração formal do divórcio, a razão pública neutralizava seus funestos efeitos, impondo quase sempre o respeito prático dos costumes anteriores, os únicos conformes ao verdadeiro caráter da sociabilidade moderna. Irrecusáveis experiências provaram, aliás, ao mesmo tempo, em vasta escala, no seio das massas populares, que o pretenso privilégio exclusivo das crenças religiosas para determinar os grandes sacrifícios ou devotamentos ativos podia igualmente pertencer a opiniões diretamente opostas, ligando-se em geral a toda convicção profunda, fosse qual fosse sua natureza. Esses numerosos adversários do regime teológico que, há meio século, garantem com tanto heroísmo nossa independência nacional contra a coalizão retrógrada, não mostram sem dúvida menor abnegação plena e constante do que os bandos supersticiosos que, no seio de França, secundaram a agressão exterior.
Para acabar de apreciar as pretensões atuais da filosofia teológico-metafísica de conservar a sistematização exclusiva da moral usual, basta considerar diretamente a doutrina perigosa e contraditória que o inevitável progresso da emancipação mental logo forçou a estabelecer a esse propósito, consagrando em toda parte, sob formas mais ou menos explícitas, uma espécie de hipocrisia coletiva, análoga àquela que se supõe, de modo canhestro, ter sido habitual entre os antigos, embora não tenha comportado a não ser um sucesso precário e passageiro. Não podendo impedir o livre florescimento da razão moderna entre os espíritos cultivados, propôs-se, assim, obter deles, em vista do interesse público, o respeito aparente a antigas crenças, a fim de manter, para o vulgo, a autoridade julgada indispensável. Essa transação sistemática não é de modo algum particular aos jesuítas, embora constitua no fundo a parte essencial de sua tática. O espírito protestante também lhe imprimiu, à sua maneira, uma consagração ainda mais íntima, mais extensa, e, sobretudo, mais dogmática. Os metafísicos propriamente ditos a adotaram tanto quanto os próprios teólogos. O maior deles, a despeito de sua alta moralidade [pág. 74] ser verdadeiramente digna de sua eminente inteligência, foi levado a sancioná-la essencialmente, estabelecendo, de uma parte, que quaisquer opiniões teológicas não comportam nenhuma verdadeira demonstração, e, de outra, que a necessidade social força a manter indefinidamente seu império. Apesar de tal doutrina tornar-se respeitável entre aqueles que não vinculam a ela qualquer ambição pessoal, não deixa de tender a viciar todas as fontes da moralidade humana, fazendo com que repouse necessariamente sobre um estado contínuo de falsidade, e até mesmo de desprezo, dos superiores em relação aos inferiores. Enquanto aqueles que deveriam participar dessa dissimulação sistemática permaneceram pouco numerosos, sua prática foi possível, embora precária. Mas se tornou tão ridícula quanto odiosa, no momento em que a emancipação estendeu-se suficientemente a ponto de essa espécie de piedosa conspiração dever abranger, como seria preciso hoje, a maioria dos espíritos ativos. Enfim, ainda supondo essa quimérica extensão, esse pretenso sistema deixa subsistir toda dificuldade a respeito das inteligências libertas, cuja própria moralidade se encontra, assim, abandonada à sua pura espontaneidade, já justamente reconhecida insuficiente na classe submissa. Se for preciso também admitir a necessidade duma verdadeira sistematização moral entre esses espíritos emancipados, só poderá desde então repousar sobre bases positivas, que finalmente serão assim julgadas indispensáveis. Quanto a limitar sua destinação à classe esclarecida, além de que essa restrição não poderia mudar a natureza dessa grande construção filosófica, seria evidentemente ilusória num tempo em que a cultura mental, suposta por essa liberação fácil, já se tornou muito comum, ou quase universal, ao menos em França. Assim, o expediente empírico, sugerido pelo vão desejo de manter a todo preço o antigo regime intelectual, só pode finalmente resultar em deixar a maioria dos espíritos ativos indefinidamente desprovida de toda doutrina moral, como se vê freqüentemente hoje.
XIII — É, pois, sobretudo em nome da moral que é preciso, de agora em diante, trabalhar ardentemente para constituir enfim a ascendência universal do espírito positivo, substituindo assim um sistema decaído que, já impotente, já perturbado, exigiria cada vez mais a compressão mental como condição permanente da ordem moral. A nova filosofia é a única a poder estabelecer hoje, a propósito de nossos diversos deveres, convicções profundas e ativas, verdadeiramente suscetíveis de sustentar com energia o choque das paixões. Conforme à teoria positiva da Humanidade, irrecusáveis demonstrações, apoiadas sobre a imensa experiência que agora possui nossa espécie, determinarão exatamente a influência real, direta ou indireta, privada ou pública, adequada a cada ato, a cada hábito e a cada tendência ou sentimento, de onde resultarão naturalmente, como tantos inevitáveis corolários, as regras da conduta, quer gerais, quer especiais, mais conformes à ordem universal e que, por conseguinte, deverão se dar ordinariamente como as mais favoráveis à felicidade individual. Apesar da extrema dificuldade desse grande assunto, ouso assegurar que, tratado convenientemente, comporta conclusões tão certas como as da própria geometria. Nunca se pode esperar sem dúvida tornar suficientemente acessíveis a todas as inteligências essas provas positivas de várias regras morais destinadas, entretanto, à vida comum. Isto, no entanto, já ocorre para diversas prescrições matemáticas, que são aplicadas sem hesitação nas mais graves ocasiões, quando, por exemplo, nossos marinheiros arriscam cotidianamente suas existências, baseados na fé de teorias astronômicas que não compreendem de modo algum. Por que igual confiança não seria também atribuída a noções mais importantes? É, de resto, incontestável que a eficácia normal de tal regime exige, em cada caso, além do potente impulso, resultante naturalmente dos preconceitos públicos, a intervenção sistemática, ativa ou passiva, duma autoridade espiritual, destinada a relembrar com energia as máximas fundamentais e [pág. 75] dirigir sabiamente suas aplicações, como especialmente já expliquei na obra indicada acima. Cumprindo assim o grande ofício social que o catolicismo não mais exerce, esse novo poder moral utilizará cuidadosamente a feliz aptidão da filosofia correspondente para incorporar espontaneamente a sabedoria de todos os diversos regimes anteriores, segundo a tendência ordinária do espírito positivo a respeito de um assunto qualquer Quando a astronomia moderna afastou irrevogavelmente os princípios astrológicos, não deixou de conservar preciosamente todas as noções verdadeiras obtidas sob seu domínio — o mesmo aconteceu com a química em relação à alquimia.
XIV — Sem poder empreender aqui a apreciação moral da filosofia positiva, cabe entretanto assinalar a tendência contínua que resulta diretamente de sua própria constituição, científica ou lógica, para estimular e consolidar o sentimento de dever, sempre desenvolvendo o espírito de conjunto que a ela se encontra naturalmente ligado. Esse novo regime mental dissipa espontaneamente a fatal oposição que, desde o fim da Idade Média, existe cada vez mais entre as necessidades intelectuais e as necessidades morais. De agora em diante, ao contrário, todas as especulações reais, convenientemente sistematizadas, sem cessar concorrerão a constituir, tanto quanto possível, para a universal preponderância da moral, posto que o ponto de vista social virá a ser necessariamente o vínculo científico e o regulador lógico de todos os outros aspectos positivos. É impossível que tal coordenação, desenvolvendo familiarmente as idéias de ordem e de harmonia sempre ligadas à Humanidade, não tenda a moralizar profundamente, não apenas os espíritos de elite, mas também a massa das inteligências, que deverá participar, em menor ou maior grau, dessa grande iniciação, conforme um sistema conveniente de educação universal.
Uma apreciação mais íntima e mais extensa, ao mesmo tempo prática e teórica, representa o espírito positivo como sendo, por natureza, o único suscetível de desenvolver diretamente o sentimento social, primeira base necessária de toda moral sadia. O antigo regime mental não podia estimulá-lo a não ser com o auxílio de penosos artifícios indiretos, cujo sucesso real deveria ser imperfeito, tendo em vista a tendência essencialmente pessoal dessa filosofia, quando a sabedoria sacerdotal não continha a influência espontânea. Essa necessidade é agora reconhecida, ao menos empiricamente, para o espírito metafísico propriamente dito, que não pode resultar, no caso da moral, em outra teoria efetiva além do desastroso sistema do egoísmo, tão empregado hoje, em que pesem tantas declamações contrárias. Mesmo as seitas ontológicas que protestaram seriamente contra semelhante aberração em seu lugar deixaram apenas vagas ou incoerentes noções, incapazes de eficácia prática. Uma tendência tão deplorável e, contudo, tão constante, deve ter raízes mais profundas do que se supõe comumente. Ela resulta, sobretudo, da natureza essencialmente pessoal dessa filosofia que, sempre limitada à consideração do indivíduo, nunca pôde realmente abranger o estudo da espécie, por causa duma conseqüência inevitável de seu fútil princípio lógico, essencialmente reduzido à intuição propriamente dita, que não comporta evidentemente qualquer aplicação coletiva. Suas fórmulas ordinárias apenas traduzem ingenuamente seu espírito fundamental. Para cada um de seus adeptos, o pensamento dominante é o do eu; todas e quaisquer outras existências, mesmo humanas, são confusamente envolvidas numa única concepção negativa, e seu vago conjunto constitui o não-eu, a noção do nós não podendo encontrar nenhum lugar direto e distinto. Mas, examinando esse assunto ainda mais profundamente, cabe reconhecer que, a esse respeito, como a todos os outros, a metafísica deriva, tanto dogmática quanto historicamente, da própria teologia, de que só poderia constituir uma modificação dissolvente. Com efeito, esse caráter de personalidade constante pertence [pág. 76] sobretudo, com energia mais direta, ao pensamento teológico, sempre preocupado, em cada crente, com interesses essencialmente individuais, cuja imensa preponderância absorve necessariamente qualquer outra consideração, sem que o mais sublime devotamento possa inspirar a verdadeira abnegação, considerada justamente então como perigosa aberração. Só a oposição freqüente desses interesses quiméricos com os interesses reais forneceu à sabedoria sacerdotal um potente meio de disciplina moral, que muitas vezes conduziu, em proveito da sociedade, a admiráveis sacrifícios, que entretanto o eram apenas na aparência e sempre se reduziam a uma prudente ponderação de interesses. Os sentimentos benevolentes e desinteressados, próprios da natureza humana, deveram sem dúvida manifestar-se mediante tal regime e mesmo, sob certos aspectos, sob seu impulso indireto. Mas, a despeito de seu florescimento não poder ter sido assim comprimido, seu caráter necessitou receber dele grave alteração, que provavelmente não nos permite ainda conhecer plenamente sua natureza e sua intensidade, por falta de um exercício próprio e direto. Cabe presumir, de resto, que esse hábito contínuo de cálculos pessoais a respeito dos mais caros interesses do crente desenvolveu no homem, mesmo no que concerne a outras coisas, por via de afinidade gradual, um excesso de circunspecção, de previdência e, finalmente, de egoísmo, que sua organização fundamental não exigia e que poderá então diminuir um dia sob melhor regime moral. Seja qual for o sentido dessa conjetura, permanece incontestável que o pensamento teológico é, por sua natureza, essencialmente individual, nunca diretamente coletivo. Aos olhos da fé, sobretudo da fé monotéica, a vida social não existe por falta duma meta que lhe seja própria. A sociedade humana só pode, então, surgir imediatamente como simples aglomeração de indivíduos, cuja reunião é quase tão fortuita como passageira, os quais, ocupados cada um com sua própria salvação, não concebem a participação na salvação de outrem, a não ser como meio poderoso de melhor merecer a sua, obedecendo às prescrições supremas que impuseram essa obrigação. Nossa respeitosa admiração sempre será devida por certo à prudência sacerdotal que, sob o feliz impulso dum instinto público, soube retirar por muito tempo uma alta utilidade prática duma filosofia tão imperfeita. Mas esse justo reconhecimento não poderia ir até prolongar artificialmente esse regime inicial além de sua destinação provisória, quando finalmente veio a época duma economia mais conforme ao conjunto de nossa natureza intelectual e afetiva.
XV — O espírito positivo, ao contrário, é diretamente social, tanto quanto possível, e sem nenhum esforço, precisamente por causa de sua realidade característica. Para ele, o homem propriamente dito não existe, existindo apenas a Humanidade, já que nosso desenvolvimento provém da sociedade, a partir de qualquer perspectiva que se o considere. Se a idéia de sociedade parece ainda uma abstração de nossa inteligência, é sobretudo em virtude do antigo regime filosófico, porquanto, a bem dizer, é à idéia de indivíduo que pertence tal caráter, ao menos em nossa espécie. O conjunto da nova filosofia sempre tenderá a salientar, tanto na vida ativa quanto na vida especulativa, a ligação de cada um a todos, sob uma multidão de aspectos diferentes, de maneira a tornar involuntariamente familiar o íntimo sentimento de solidariedade social, convenientemente desdobrado para todos os tempos e todos os lugares. Não somente a ativa procura do bem público será, sem cessar, considerada como o modo mais próprio de assegurar comumente a felicidade privada graças a uma influência ao mesmo tempo mais direta e mais pura e, finalmente, mais eficaz; o mais completo exercício possível das tendências gerais tornar-se-á a principal fonte da felicidade pessoal, ainda que não devesse trazer excepcionalmente outra recompensa além de uma inevitável satisfação interior. Pois se, como não caberia disso duvidar, a felicidade resulta sobremaneira duma sábia atividade, deve então depender [pág. 77] principalmente de instintos simpáticos, a despeito de nossa organização não lhes atribuir ordinariamente energia preponderante. Isto porque os sentimentos benevolentes são os únicos que podem desenvolver-se livremente no estado social, que naturalmente os estimula progressivamente e lhes abre um campo indefinido, enquanto em compensação exige, necessariamente, certa repressão permanente dos diversos impulsos pessoais, cujo florescimento espontâneo suscitaria conflitos contínuos. Nesta vasta expansão social, cada um reencontrará a satisfação normal dessa tendência a eternizar-se, que só poderia então ser satisfeita com o auxílio de ilusões, de agora em diante incompatíveis com nossa evolução mental. Podendo prolongar-se unicamente por meio da espécie, o indivíduo será assim impulsionado a nela se incorporar o mais completamente possível, ligando-se profundamente a toda sua existência coletiva, não apenas atual, mas também passada e, antes de tudo, futura, de maneira a obter toda a intensidade de vida que comporta, em cada caso, o conjunto das leis reais. Tanto essa grande identificação poderá vir a ser mais íntima e melhor sentida quanto a nova filosofia designar necessariamente a ambas as espécies de vida um mesmo destino fundamental e mesma lei de evolução, consistindo sempre, para o indivíduo e para a espécie, na progressão contínua, cujo fim principal foi acima caracterizado, isto é, a tendência de fazer, de uma e de outra parte, com que prevaleça, quanto possível, o atributo humano, ou a combinação da inteligência com a sociabilidade, em prejuízo da animalidade propriamente dita. Quaisquer de nossos sentimentos só se desenvolvem pelo exercício direto e contínuo, sendo mais indispensáveis quando são no início menos enérgicos.
Por isso seria aqui supérfluo insistir ainda mais, diante de alguém que possua, embora empiricamente, um verdadeiro conhecimento do homem, no sentido de demonstrar a superioridade necessária do espírito positivo sobre o antigo espírito teológico-metafísico, no que respeita ao florescimento próprio e ativo do instinto social. Essa proeminência é de natureza de tal modo sensível que, sem dúvida, a razão pública a reconhecerá suficientemente muito antes que as instituições correspondentes tenham podido realizar convenientemente suas felizes propriedades. [pág. 78]
TERCEIRA PARTE
Condições do estabelecimento do regime positivo
Sumário: XVI — As atuais condições são favoráveis ao advento do regime positivo; os obstáculos vêm dos teólogos, dos metafísicos e dos sábios. XVII — Necessidade duma educação universal para regenerar o espírito científico por meio de estudos positivos. XVIII — A educação universal se destina essencialmente aos proletários; afinidades entre a classe dos proletários e a dos filósofos. XIX — A política popular segundo o positivismo; programa social dos proletários: a educação normal e o trabalho regular. XX — Papel do governo. XXI — Necessidade de seguir uma ordem nos estudos positivos; condições impostas a essa ordem. XXII — Hierarquia das ciências. XXIII — A lei enciclopédica completa a lei dos três estados, garante a independência e a realidade dos diversos elementos científicos. XXIV — Conclusão; importância da astronomia na educação popular.
XVI — Conforme o conjunto das indicações precedentes, a superioridade espontânea da nova filosofia sobre algumas que hoje disputam a supremacia encontra-se agora tanto caracterizada sob o aspecto social quanto o era já do ponto de vista mental, ao menos quanto comporta esse Discurso, descontando as indicações indispensáveis à obra citada. Terminando essa apreciação sumária, importa observar a feliz correlação que se estabelece naturalmente entre tal espírito filosófico e as disposições, sábias mas empíricas, que a experiência contemporânea faz progressivamente prevalecer nos governados e nos governantes. Substituindo diretamente a estéril agitação política por um imenso movimento mental, a escola positiva explica e sanciona, conforme um exame sistemático, a indiferença ou a repugnância que a razão pública e a prudência dos governos concordam em manifestar hoje em relação a toda elaboração séria e direta das instituições propriamente ditas, num tempo em que essas só podem existir eficazmente em caráter puramente provisório ou transitório, na falta de qualquer base racional suficiente, isto enquanto durar a anarquia intelectual. Destinada a, enfim, dissipar essa desordem fundamental pelas únicas vias capazes de superá-la, essa nova escola necessita, antes de tudo, da manutenção contínua da ordem material, tanto interior como exterior, sem a qual nenhuma grave meditação social poderia ser acolhida convenientemente, nem mesmo suficientemente elaborada. Tende, pois, a justificar e a secundar a preocupação muito legítima que inspira hoje, em toda parte, o único grande resultado político imediatamente compatível com a situação atual. Essa situação, aliás, lhe dá um valor especial, tendo em vista as graves dificuldades que suscita, sempre colocando o problema, insolúvel a longo prazo, de manter uma certa ordem política no meio duma profunda desordem moral. Além de seus trabalhos para o futuro, a escola positiva se associa imediatamente a essa importante operação, graças à sua tendência direta a desacreditar radicalmente as diversas escolas atuais, já cumprindo melhor que cada uma delas os ofícios opostos que lhes restam ainda, e que somente ela combina espontaneamente, de maneira a mostrar-se logo mais orgânica do que à escola teológica e mais progressiva do que a escola metafísica, sem nunca poder comportar os perigos de retrocesso ou de anarquia que lhes são peculiares respectivamente. Desde que os governos renunciaram essencialmente, embora de [pág. 79] maneira implícita, a toda séria restauração do passado e as populações renunciaram a toda subversão grave das instituições, a nova filosofia só pode pedir a ambas as partes as disposições naturais que, no fundo, todos estão preparados para dar-lhe (ao menos em França, onde deve sobretudo realizar-se primeiro a elaboração sistemática), isto é, liberdade e atenção. Sob essas condições naturais, a escola positiva tende, de um lado, a consolidar todos os poderes atuais, sejam quais forem seus possuidores; de outro, a impor-lhes obrigações morais cada vez mais conformes às verdadeiras necessidades dos povos.
Essas disposições incontestáveis parecem não deixar hoje à nova filosofia outros obstáculos essenciais além dos que resultarem da incapacidade ou da incúria de seus diversos promotores. Uma apreciação mais madura mostra, ao contrário, que deve encontrar enérgicas resistências em quase todos os espíritos atualmente ativos, em virtude da difícil renovação que exigiria deles, a fim de associá-los diretamente à sua principal elaboração. Se essa inevitável oposição devesse limitar-se aos espíritos essencialmente teológicos ou metafísicos, ofereceria então pouca gravidade real, posto que lhe restaria o potente apoio daqueles que se consagram sobretudo ao estudo positivo, e cujo número e influência crescem dia a dia. Mas, por uma fatalidade facilmente explicável, é destes que a nova escola deva talvez esperar a menor assistência e a maioria dos entraves. Uma filosofia diretamente oriunda das ciências encontrará provavelmente seus mais perigosos inimigos naqueles que as cultivam hoje. A principal fonte desse deplorável conflito consiste na especialização cega e dispersiva que caracteriza profundamente o espírito científico atual, segundo sua formação necessariamente parcial, acrescida da complicação crescente dos fenômenos estudados, como indicarei expressamente abaixo. Essa marcha provisória, que uma perigosa rotina acadêmica se esforça hoje por eternizar, sobremaneira entre os geômetras, desenvolve a verdadeira positividade em cada inteligência; no entanto, atingindo uma fraca porção do sistema mental, deixa todo o resto sob o vago regime teológico-metafísico, ou abandona-o a um empirismo ainda mais opressivo. Por isso, o verdadeiro espírito positivo, que corresponde ao conjunto dos diversos trabalhos científicos, se encontra, no fundo, na impossibilidade de ser plenamente compreendido por aqueles que assim o prepararam naturalmente. Cada vez mais submetidos a essa inevitável tendência, os sábios propriamente ditos são ordinariamente conduzidos, em nosso século, a manter uma insuperável aversão contra toda idéia geral, ficando na impossibilidade total de apreciar realmente alguma concepção filosófica. Perceber-se-á melhor, de resto, a gravidade dessa oposição observando que, oriunda de hábitos mentais, essa filosofia teve de estender-se em seguida até os diversos interesses correspondentes, que nosso regime científico vincula, profundamente, sobretudo em França, a essa desastrosa especialidade, como já demonstrei cuidadosamente na obra citada. Assim, a nova filosofia, que exige diretamente o espírito de conjunto, e que faz prevalecer para sempre, sobre todos os estudos hoje constituídos, a ciência nascente do desenvolvimento social, encontrará necessariamente uma íntima antipatia, ao mesmo tempo ativa e passiva, nos preconceitos e paixões da única classe que poderia diretamente oferecer-lhe um ponto de apoio especulativo, e da qual ela só pode esperar por muito tempo adesões puramente individuais, talvez mais raras aí do que em outras partes.
XVII — Para vencer convenientemente esse concurso espontâneo das diversas resistências que lhe apresenta hoje a massa especulativa propriamente dita, a escola positiva não poderia encontrar outro recurso geral além de organizar um apelo direto e maciço ao bom senso universal, esforçando-se, a partir de agora, em propagar sistematicamente, na massa ativa, os principais estudos científicos adequados para constituir a base indispensável de sua grande elaboração filosófica. Esses estudos preliminares, naturalmente [pág. 80] dominados até agora por esse espírito de especialidade empírica que preside as ciências correspondentes, são sempre concebidos e dirigidos como se cada pessoa devesse preparar-se para a única profissão exclusiva; o que evidentemente impede a possibilidade, mesmo entre aqueles que possuiriam mais lazer, de abraçar várias ou, ao menos, tantas quantas exigisse a formação ulterior de sadias concepções gerais. Isto não acontecerá mais, entretanto, quando essa instrução for diretamente destinada à educação universal, mudando necessariamente seu caráter e sua direção, a despeito de toda tendência contrária. O público, com efeito, que não quer vir a ser nem geômetra, nem astrônomo, nem químico, etc., sempre carece simultâneamente de todas as ciências fundamentais, cada uma reduzida a suas noções essenciais. Precisa, conforme a expressão de nosso grande Molière, de clareza de tudo. Essa simultaneidade necessária não existe apenas para ele, quando considera seus estudos em sua destinação abstrata e geral, como a única base racional do conjunto das concepções humanas. Encontra-a ainda, embora menos diretamente, até mesmo nas diversas aplicações concretas, cada uma das quais, no fundo, ao invés de reportar-se exclusivamente a um certo ramo da filosofia natural, também depende, em maior ou menor grau, de todas as outras. Desse modo, a propagação universal dos principais estudos positivos não se destina hoje unicamente a satisfazer uma necessidade já muito pronunciada no público. Cada vez mais este sente que as ciências não são exclusivamente reservadas aos sábios, mas existem antes de tudo para ele. Por uma feliz reação espontânea, tal destinação, quando for convenientemente desenvolvida, deverá melhorar radicalmente o espírito científico atual, despojando-o de sua especialidade cega e dispersiva, de maneira a fazer com que adquira, pouco a pouco, o verdadeiro caráter filosófico, indispensável à sua principal missão. Essa vida é, ademais, a única que pode, em nossos dias, constituir gradualmente, fora da classe especulativa propriamente dita, um vasto tribunal espontâneo, tão imparcial como irrecusável, formado pela massa dos homens sensatos, diante do qual virão se extinguir, irrevogavelmente, muitas das falsas opiniões científicas, cujas visões, adequadas à elaboração preliminar dos dois últimos séculos, vieram misturar-se profundamente às doutrinas verdadeiramente positivas, alteradas necessariamente enquanto tais discussões não ficarem por fim submetidas ao bom senso universal. Num tempo em que só se pode esperar eficácia imediata de medidas sempre provisórias, bem adaptadas à nossa situação transitória, a organização necessária de tal ponto de apoio geral para o conjunto dos trabalhos filosóficos converte-se, a meus olhos, no principal resultado social que pode hoje produzir a total vulgarização dos conhecimentos reais. O público dará à nova escola um equivalente pleno dos serviços que essa organização lhe prestar.
Esse grande resultado não poderá ser suficientemente obtido se esse ensino contínuo permanecer destinado a uma única classe, seja ela qual for, por maior que seja sua extensão. É preciso, sob pena de abortamento, ter sempre em vista a universalidade das inteligências. No estado normal que este movimento deve preparar, todas, sem qualquer distinção ou exceção, sentirão a mesma necessidade fundamental dessa filosofia primeira, resultante do conjunto das noções reais, e que deve então vir a ser a base sistemática da sabedoria humana, tanto ativa como especulativa. Ela desempenha assim, mais convenientemente, o indispensável oficio social que antigamente cumpria a instrução universal dos cristãos. Muito importa, pois, que, desde sua origem, a nova escola filosófica desenvolva, tanto quanto possível, este grande caráter elementar de universalidade social que, finalmente, no que respeita à sua principal destinação, constituirá hoje sua maior força contra as diversas resistências que deve encontrar.
XVIII — A fim de melhor marcar essa tendência necessária, uma íntima convicção, no início instintiva e depois sistemática, determinou-me, já há muito tempo, a sempre [pág. 81] configurar o ensino exposto neste tratado como dirigindo-se sobretudo à classe mais numerosa. Nossa situação a deixa desprovida de toda instrução regular, por causa da dessuetude crescente da instrução puramente teológica. Esta foi substituída provisoriamente, apenas para os letrados, por uma certa instrução metafísica e literária, mas não pode ter, sobretudo em França, um equivalente parecido para a massa popular. A importância e a novidade de tal disposição constante, meu vivo desejo de que seja convenientemente apreciada e, até mesmo, ouso dizer, imitada obrigam-me a indicar aqui os principais motivos desse contato espiritual, que a nova escola filosófica deve especialmente instituir hoje com os proletários, sem fazer com que seu ensino venha a excluir uma classe qualquer. A despeito de alguns obstáculos que a falta de zelo ou de grandeza de alma possam realmente opor, de ambas as partes, a tal aproximação, é fácil reconhecer em geral que, de todas as partes da sociedade atual, o povo propriamente dito deve estar no fundo melhor predisposto, em virtude das tendências e das necessidades que resultam de sua situação característica, a acolher favoravelmente a nova filosofia. Esta finalmente deve encontrar aí seu principal apoio tanto mental como social.
Uma primeira consideração, que importa aprofundar, apesar de sua natureza sobretudo negativa, resulta duma judiciosa apreciação do que, à primeira vista, poderia parecer oferecer uma grave dificuldade, isto é, a ausência atual de toda cultura especulativa. Sem dúvida, é lamentável, por exemplo, que este ensino popular da filosofia astronômica não encontre ainda, entre todos aqueles a que antes de tudo se destina, alguns estudos preliminares de matemática já feitos. Estes tornariam tal ensino ao mesmo tempo mais eficaz e mais fácil, além de que são necessariamente supostos por mim. Mas a mesma lacuna seria também encontrada na maior parte das outras classes atuais, num momento em que a instrução positiva permanece, em França, limitada a certas profissões especiais, vinculadas essencialmente à Escola Politécnica ou às escolas de medicina. Nada há, pois, aí que seja verdadeiramente particular a nossos proletários. Quanto ao defeito habitual dessa sorte de cultura regular, recebida hoje pelas classes letradas, não temo em cair em exagero filosófico afirmando que, para os espíritos populares, isto resulta em notável vantagem ao invés dum inconveniente real. Não voltemos a uma crítica infelizmente muito fácil, demasiadamente levada a cabo há muito tempo e que a experiência cotidiana confirma cada vez mais aos olhos da maioria dos homens sensatos. Mas seria difícil imaginar uma preparação mais irracional, e no fundo mais perigosa, para a conduta ordinária da vida real, ativa e até mesmo especulativa, do que aquela que resulta dessa vã instrução, que se faz, primeiro, na base de palavras, depois, de entidades, e em que se perdem ainda tantos anos preciosos de nossa juventude. Na maior parte daqueles que a recebem inspira atualmente um desgosto quase insuperável por todo trabalho intelectual, isto durante todo o curso de sua carreira. Mas esses perigos se tornam muito mais graves para aqueles que se entregaram especialmente a ele. A inaptidão para a vida real, o desdém pelas profissões vulgares, a impotência para apreciar convenientemente alguma concepção positiva e a antipatia contra ela que disso tudo logo resulta os predispõem muito freqüentemente hoje a secundar uma estéril agitação metafísica. Inquietas pretensões pessoais, desenvolvidas por essa desastrosa educação, não tardam em transformá-la em perturbações políticas, sob a influência direta duma viciosa erudição histórica que, fazendo prevalecer uma falsa noção do tipo social próprio da Antiguidade, impede-os comumente de compreender a sociabilidade moderna. Considerando que, sob diversos aspectos, quase todas as pessoas que agora dirigem os negócios humanos foram preparadas para isso, não poderíamos ficar surpreendidos com a vergonhosa ignorância que manifestam muito amiúde sobre os menores assuntos, até mesmo materiais, nem com sua [pág. 82] freqüente disposição em negligenciar o fundo em benefício da forma. Colocam acima de tudo a arte de bem dizer, apesar de sua aplicação vir a ser contraditória ou perniciosa. Nem nos surpreenderíamos, enfim, com a tendência especial de nossas classes letradas a acolher avidamente todas as aberrações que surgem cotidianamente de nossa anarquia mental. Tal apreciação predispõe, ao contrário, a estranhar que esses diversos desastres não sejam ordinariamente mais extensos, e conduz a admirar profundamente a retidão e a sabedoria naturais do homem que, sob o feliz impulso adequado ao conjunto de nossa civilização, contêm espontaneamente, em grande parte, as perigosas conseqüências de um absurdo sistema de educação geral. Desde o fim da Idade Média, esse sistema tem sido, como ainda o é, o principal ponto de apoio social do espírito metafísico, primeiro contra a teologia, segundo também contra a ciência. Daí conceber se facilmente que as classes que não foram envolvidas por ele devam encontrar-se, por isso mesmo, muito menos afetadas por essa filosofia transitória e, em conseqüência, melhor predispostas ao estado positivo. Ora, tal é a importante vantagem que a ausência de educação escolástica traz hoje a nossos proletários e os torna, no fundo, menos acessíveis do que a maioria dos letrados aos diversos sofismas perturbadores. Isto conforme à experiência cotidiana e a despeito duma contínua excitação sistematicamente dirigida contra as paixões relativas à sua condição social. OS proletários necessitaram outrora estar sob o domínio profundo da teologia, notadamente católica; durante sua emancipação mental, a metafísica apenas pôde infiltrar-se neles, por não encontrar uma cultura especial em que repousasse; somente a filosofia positiva poderá de novo tomá-los radicalmente. As condições prévias, tão recomendadas pelos primeiros pais dessa filosofia final, devem aí encontrar, pois, seu cumprimento melhor do que em qualquer outra parte. Se a célebre tabula rasa de Bacon e de Descartes fosse plenamente realizável, isto se daria por certo entre os proletários atuais, principalmente em França, os quais estão muito mais próximos que qualquer outra classe do tipo ideal dessa disposição preparatória para a positividade racional.
Examinando, sob um aspecto mais íntimo e mais durável, essa inclinação natural das inteligências populares para a sã filosofia, reconhecer-se-á facilmente que sempre deve resultar da solidariedade fundamental que, segundo nossas explicações anteriores, vincula diretamente o verdadeiro espírito filosófico ao bom senso universal, sua primeira fonte necessária. Apenas este bom senso, tão justamente preconizado por Descartes e por Bacon, deve hoje encontrar-se mais puro e mais enérgico nas classes inferiores, em virtude precisamente desta feliz carência de cultura escolástica, que os torna menos acessíveis aos hábitos vagos ou sofísticos. A essa diferença passageira, que uma melhor educação das classes letradas dissipará gradualmente, cabe ainda acrescentar outra, necessariamente permanente, relativa à influência mental das diversas funções sociais próprias às duas ordens de inteligências, segundo o caráter respectivo dos trabalhos habituais. Desde que a ação real da Humanidade sobre o mundo exterior começou com os modernos a organizar-se espontaneamente, ela exige a combinação contínua de duas classes distintas, muito desiguais em número mas igualmente indispensáveis: de uma parte, os empreendedores propriamente ditos, sempre pouco numerosos, que, possuindo diversos materiais convenientes, mais o dinheiro e o crédito, dirigem o conjunto de cada operação, assumindo, pois, a principal responsabilidade de quaisquer resultados; de outra, os operadores diretos, visando a um salário periódico e formando a imensa maioria dos trabalhadores, que executam, numa espécie de intenção abstrata, cada um dos atos elementares, sem especialmente preocupar-se com seu concurso final. Esses últimos são os únicos às voltas imediatamente com a natureza, enquanto os primeiros se ocupam [pág. 83] sobretudo da sociedade. Em conseqüência necessária dessas diversidades fundamentais, a eficácia especulativa, que reconhecemos inerente à vida industrial para desenvolver involuntariamente o espírito positivo, deve ordinariamente ser melhor percebida entre os operadores do que entre os empreendedores, porquanto seus próprios trabalhos oferecem caráter mais simples, fim mais nitidamente determinado, resultados mais próximos e condições mais imperiosas. A escola positiva deverá, pois, encontrar aí naturalmente um acesso mais fácil para seu ensino universal e uma simpatia mais viva para sua renovação filosófica, quando puder convenientemente penetrar neste vasto meio social. Aí deverá também encontrar, ao mesmo tempo, afinidades morais não menos preciosas do que essas harmonias mentais, segundo essa comum indiferença para as coisas materiais, que aproxima espontaneamente nossos proletários da verdadeira classe contemplativa, ao menos quando esta desenvolver, enfim, os costumes correspondentes a seu destino social. Essa feliz disposição, tão favorável à ordem universal quanto à verdadeira felicidade pessoal, adquirirá um dia muita importância normal, conforme a sistematização das relações gerais que devem existir entre ambos os elementos extremos da sociedade positiva. Mas, a partir deste momento, pode facilitar essencialmente sua união nascente, suplementando o pouco lazer que as ocupações cotidianas deixam a nossos proletários para sua instrução especulativa. Se, em algum caso excepcional de extrema sobrecarga, esse obstáculo contínuo pareça, com efeito, dever impedir todo florescimento mental, é ordinariamente compensado por este caráter de sábia imprevidência que, em cada intermitência natural de trabalhos obrigados, confere ao espírito plena disponibilidade. O verdadeiro lazer só deve faltar habitualmente na classe que se acredita especialmente dotada dele, pois, por causa precisamente de sua fortuna e de sua posição, permanece comumente preocupada com inquietações ativas que quase nunca comportam verdadeira calma intelectual e moral. Esse estado deve ser fácil, ao contrário, para os pensadores e para os operadores, conforme seu comum desprendimento espontâneo dos cuidados relativos ao emprego de capitais e independentemente da regularidade natural de suas vidas cotidianas.
Quando essas diferentes tendências mentais e morais tiverem agido convenientemente, é, pois, entre os proletários que deverá melhor realizar-se a universal propagação da instrução positiva, condição indispensável para o cumprimento gradual da renovação filosófica. É também entre eles que o caráter contínuo de tal estudo poderá tornar-se mais puramente especulativo, pois se encontrará assim mais isento dessas visões interessadas que lhe trazem mais ou menos diretamente as classes superiores, quase sempre preocupadas com cálculos ávidos ou ambiciosos. Depois de procurar nele o fundamento universal de toda sabedoria humana, aí virão haurir em seguida, como nas belas-artes, uma doce diversão habitual ao conjunto de suas penas cotidianas. Posto que sua inevitável condição social deva lhes tornar muito mais preciosa tal diversão, quer científica, quer estética, seria estranho que as classes dirigentes quisessem ver nisso, ao contrário, um motivo fundamental para mantê-los essencialmente privados dela, recusando sistematicamente a única satisfação que pode ser infinitamente partilhada entre aquelas que devem renunciar sabiamente aos prazeres menos comunicativos. Para justificar tal recusa, freqüentemente ditada pelo egoísmo e pela irreflexão, tem-se objetado, na verdade, que a vulgarização especulativa tenderia a agravar profundamente a desordem atual, desenvolvendo a funesta disposição, já tão pronunciada, ao desregramento universal. Mas esse temor natural, única objeção séria que a esse respeito mereceria uma verdadeira discussão, resulta hoje, na maioria dos casos de boa fé, duma irracional confusão da instrução positiva, ao mesmo tempo estética e científica, com a instrução metafísica [pág. 84] e literária, a única atualmente organizada. Esta, a que reconhecemos o exercício duma ação social muito perturbadora para as classes letradas, tornar-se-ia muito mais perigosa se fosse estendida aos proletários, onde desenvolveria, além do desgosto pelas ocupações materiais, ambições exorbitantes. Mas felizmente eles estão em geral muito menos dispostos a reclamá-la do que se está a fornecer-lhes. Quanto aos estudos positivos, sabiamente concebidos e convenientemente dirigidos, não comportam de modo algum tal influência. Aliando-se e aplicando-se por sua natureza a todos os trabalhos práticos, tendem, ao contrário, a confirmar ou mesmo inspirar o gosto por eles, quer enobrecendo seu caráter habitual, quer adoçando suas conseqüências penosas. Conduzindo, de resto, a uma sadia apreciação das diversas posições sociais e das necessidades correspondentes, predispõem a perceber que a felicidade real é compatível com todas e quaisquer condições, desde que sejam desempenhadas com honra e aceitas convenientemente. A filosofia geral que daí resulta representa o homem, ou melhor, a Humanidade, como o primeiro dos seres conhecidos, destinado, para o conjunto das leis reais, a sempre aperfeiçoar, tanto quanto possível e sob todos os aspectos, a ordem natural, tornando-a ao abrigo de toda inquietação quimérica, o que tende a revelar profundamente o ativo sentimento universal da dignidade humana. Ao mesmo tempo, tempera espontaneamente o orgulho exaltado que esse sentimento poderia suscitar, mostrando, sob todos os aspectos e com familiar evidência, quanto devemos permanecer sem cessar abaixo da meta e do tipo assim caracterizados, seja na vida ativa, seja até mesmo na vida especulativa, onde percebemos, quase a cada passo, que nossos sublimes esforços não podem nunca ultrapassar senão uma pequena parte de nossas dificuldades fundamentais.
A despeito da alta importância dos diversos motivos precedentes, considerações ainda mais poderosas determinarão, antes de tudo, que as inteligências populares secundem hoje a ação filosófica da escola positiva, por causa de seu ardor contínuo em propagar universalmente os estudos reais. Tais estudos reportam-se às principais necessidades coletivas adequadas à condição social dos proletários e podem ser resumidos nesta proposição geral: não foi possível até agora uma política especialmente popular, só a nova filosofia pode constituí-la.
XIX — Desde o início da grande crise moderna, o povo só interveio como simples auxiliar nas principais lutas políticas, com a esperança, sem dúvida, de obter com elas alguma melhoria de sua situação geral, mas não conforme uma óptica e um fim que lhe fossem realmente próprios. Todos os debates habituais permaneceram essencialmente concentrados nas diversas classes superiores ou médias, já que se vinculavam sobretudo à posse do poder. Ora, o povo não podia por muito tempo interessar-se diretamente por tais conflitos, porquanto a natureza de nossa civilização impede evidentemente os proletários de esperar e até mesmo desejar alguma participação importante no poder político propriamente dito. Além do mais, depois de ter essencialmente realizado todos os resultados sociais que poderiam esperar da substituição provisória pelos metafísicos e legistas da antiga preponderância política das classes sacerdotais e feudais, tornam-se hoje cada vez mais indiferentes ao estéril prolongamento dessas lutas mais e mais miseráveis, atualmente quase reduzidas a vãs rivalidades pessoais. Sejam quais forem os esforços cotidianos da agitação metafísica para fazê-los intervir neste debate frívolo, por meio do engodo chamado direitos políticos, o instinto popular já compreendeu, sobremaneira em França, quanto seria ilusória e pueril a posse de tal privilégio que, mesmo em seu grau atual de disseminação, não inspira habitualmente qualquer interesse verdadeiro à maioria daqueles que o gozam de modo exclusivo. O povo só pode interessar-se essencialmente pelo uso efetivo do poder, onde quer que resida, e não por sua conquista especial. Logo que [pág. 85] as questões políticas, ou melhor, a partir de agora sociais, se reportarem ordinariamente à maneira pela qual o poder deve ser exercido para melhor atender a seu destino geral, principalmente relativa, para os modernos, à massa proletária, não tardaremos a reconhecer que o desdém atual não se vincula de modo algum a uma perigosa indiferença. Até lá a opinião popular permanecerá estranha a esses debates que, aos olhos dos bons espíritos, aumentando a instabilidade de todos os poderes, tendem especialmente a retardar essa indispensável transformação. Numa palavra, o povo está naturalmente disposto a desejar que a vã e tempestuosa discussão dos direitos seja enfim substituída por uma fecunda e salutar apreciação dos diversos deveres essenciais, quer gerais, quer especiais. Tal é o princípio espontâneo da íntima conexão, que, cedo ou tarde pressentida, ligará necessariamente o instinto popular à ação social da filosofia positiva; pois essa grande transformação equivale evidentemente àquela outra, acima motivada pelas mais altas considerações especulativas, que faz do movimento político atual simples movimento filosófico. Seu primeiro e principal resultado social consistirá em formar solidamente uma ativa moral universal, prescrevendo a cada agente, individual ou coletivo, as regras de conduta mais conformes à harmonia fundamental. Quanto mais meditarmos sobre essa relação natural, tanto melhor se reconhecerá que essa mutação decisiva, só proveniente do espírito positivo, não encontra hoje um sólido apoio, a não ser o povo propriamente dito, o único disposto a bem compreendê-la e por ela se interessar profundamente. Os preconceitos e as paixões, próprios às classes superiores ou médias, se opõem conjuntamente a que essa relação seja primeiramente percebida de modo suficiente, porque devemos ser ordinariamente mais tocados pelas vantagens inerentes à posse do poder do que pelos perigosos resultados de seu exercício vicioso. Se o povo está agora e deve permanecer a partir desse momento indiferente à posse direta do poder político, nunca pode renunciar à sua indispensável participação contínua no poder moral. Este é o único verdadeiramente acessível a todos, sem perigo algum para a ordem universal, muito pelo contrário: traz-lhe grandes vantagens cotidianas, autorizando cada um, em nome duma comum doutrina fundamental, a chamar convenientemente as mais altas potências a seus diversos deveres essenciais. Na verdade, os preconceitos inerentes ao estado transitório ou revolucionário tiveram que encontrar também algum acesso em nossos proletários alimentando, com efeito, inoportunas ilusões sobre o alcance indefinido das medidas políticas propriamente ditas. Impedem de apreciar quanto a justa satisfação dos grandes interesses populares depende hoje muito mais das opiniões e dos costumes do que das próprias instituições, cuja verdadeira regeneração, atualmente impossível, exige, antes de tudo, uma reorganização espiritual. No entanto, podemos assegurar que a escola positiva terá muito maior facilidade em fazer penetrar este salutar ensino nos espíritos populares que em qualquer outra parte, seja porque a metafísica negativa aí não pode enraizar-se tanto, seja, sobretudo, por causa do impulso constante das necessidades sociais inerentes à sua situação necessária. Essas necessidades se reportam essencialmente a duas condições fundamentais, uma espiritual, outra temporal de natureza profundamente conexa. Trata-se, com efeito, de assegurar convenientemente a todos, primeiro, uma educação normal, depois o trabalho regular. Tal é, no fundo, o verdadeiro programa social dos proletários. Não pode mais existir verdadeira popularidade a não ser para uma política que tenda necessariamente para esse duplo destino. Ora, tal é evidentemente o caráter espontâneo da doutrina social peculiar à nova escola filosófica. Nossas explicações anteriores devem aqui dispensar a esse respeito qualquer outro esclarecimento, aliás reservado para a obra tantas vezes indicada neste Discurso. Importa somente acrescentar que a concentração necessária de nossos pensamentos e de nossa atividade sobre a vida real [pág. 86] da Humanidade, afastando toda vã ilusão, tenderá especialmente a fortificar muito a adesão moral e política do povo propriamente dito à verdadeira filosofia moderna. Com efeito, seu judicioso instinto aí logo perceberá um motivo potente e novo para dirigir sobretudo a prática social para o sábio aperfeiçoamento contínuo de sua própria condição geral. As quiméricas esperanças inerentes à antiga filosofia levaram demasiadamente, ao contrário, a negligenciar com desdém tais progressos, ou a afastá-los por uma espécie de adiamento contínuo, segundo a mínima importância relativa que naturalmente devia lhes deixar essa eterna perspectiva, imensa compensação espontânea de todas e quaisquer misérias.
XX — Essa sumária apreciação basta para assinalar, sob os diversos aspectos essenciais, a afinidade necessária das classes inferiores com a filosofia positiva que, tão logo o contato possa plenamente estabelecer-se, encontrará aí seu principal apoio natural, ao mesmo tempo mental e social. A filosofia teológica não mais convém senão às classes superiores, de que tende a eternizar a preponderância política. E a filosofia metafísica se endereça sobretudo às classes médias, de que secunda a ativa ambição. Todo espírito meditativo deve compreender, enfim, a importância verdadeiramente fundamental que apresenta hoje uma sábia vulgarização sistemática dos estudos positivos, destinada essencialmente aos proletários, a fim de neles preparar uma sadia doutrina social. Os diversos observadores que podem libertar-se, ainda que de momento, do turbilhão cotidiano concordam agora em deplorar, e por certo com muita razão, a anárquica influência exercida em nossos dias por sofistas e professores de retórica. Mas essas queixas justas permanecerão inevitavelmente vazias enquanto não percebermos melhor a necessidade de sair, enfim, duma situação mental em que a educação oficial só pode terminar, de ordinário, formando professores de retórica e sofistas, que em seguida tendem espontaneamente a propagar o mesmo espírito, por meio do triplo ensino proveniente dos jornais, dos romances e dos dramas, entre as classes inferiores. A instrução regular não evita o contágio metafísico, que essas classes recusam apenas por causa de sua razão natural. Embora devamos esperar, a esse respeito, que os governos atuais percebam logo quanto a propagação universal dos conhecimentos reais pode secundar cada vez mais seus esforços contínuos para a difícil manutenção duma ordem indispensável, não nos cabe esperar deles, nem mesmo desejar, uma cooperação verdadeiramente ativa nesta grande preparação racional, que por muito tempo deve resultar sobretudo de um zelo livre e privado, inspirado e sustentado por verdadeiras convicções filosóficas. A imperfeita conservação duma grosseira harmonia política, sem cessar comprometida no meio de nossa desordem mental e moral, absorve muito justamente a solicitude cotidiana desses governos e até os coloca numa posição muito inferior para que possam dignamente compreender a natureza e as condições de tal trabalho, cuja importância é preciso apenas que entrevejam. Se, por um zelo intempestivo, hoje tentassem dirigi-lo, só poderiam ser levados a alterá-lo profundamente, de maneira a comprometer muito sua principal eficácia, não o vinculando a uma filosofia assaz decisiva, o que o faria logo degenerar numa incoerente acumulação de especialidades superficiais. Assim, a escola positiva, resultante dum ativo concurso voluntário de espíritos verdadeiramente filosóficos, terá que pedir por muito tempo a nossos governos ocidentais, a fim de que possa cumprir convenientemente seu grande ofício social, apenas a liberdade plena de exposição e de discussão, equivalente àquela de que já gozam a escola teológica e a escola metafísica. A primeira pode, cada dia, em suas mil tribunas sagradas, preconizar a seu bel-prazer a excelência absoluta de sua eterna doutrina, e votar todos e quaisquer adversários à danação irrevogável. A segunda, em numerosas cátedras que lhe asseguram a munificência [pág. 87] nacional, pode cotidianamente desenvolver, diante de imensos auditórios, a universal eficácia de suas concepções ontológicas e a proeminência indefinida de seus estudos literários. Sem pretender tais vantagens, que só o tempo deve trazer, a escola positiva pede apenas essencialmente hoje o simples direito de asilo regular nos locais municipais, para aí fazer diretamente com que seja apreciada sua aptidão final para a satisfação simultânea de todas as nossas grandes necessidades sociais, propagando com sabedoria a única instrução sistemática que pode de agora em diante preparar uma verdadeira reorganização, primeiro mental, depois moral e, por fim, política. Desde que esse livre acesso lhe permaneça sempre aberto, o zelo voluntário e gratuito de seus raros promotores, secundado pelo bom senso universal, sob o impulso crescente da situação fundamental, nunca temerá sustentar, mesmo a partir desse momento, uma ativa concorrência filosófica com os numerosos e potentes órgãos, até mesmo quando reunidos, das duas escolas antigas. Não cabe mais recear que, de agora em diante, os homens de Estado se afastem gravemente, a esse respeito, da moderação imparcial cada vez mais inerente à sua própria indiferença especulativa. A escola positiva pode, a esse propósito, contar com a benevolência habitual dos mais inteligentes dentre eles, não somente em França, mas ainda em todo nosso Ocidente. Sua vigilância contínua desse livre ensino popular logo se limitará a apenas prescrever a condição permanente duma verdadeira positividade, afastando, com inflexível severidade, a introdução, ainda muito iminente, das especulações vagas ou sofísticas. Mas, a esse respeito, as necessidades essenciais da' escola positiva juntar-se-ão diretamente com os deveres naturais dos governos, pois, se estes devem rejeitar tal abuso, em virtude de sua tendência anárquica, aquela, além deste justo motivo, o julga plenamente contrário à destinação fundamental de tal ensino, como reanimando esse mesmo espírito metafísico onde vê hoje o principal obstáculo ao advento social da nova filosofia. Sob esse aspecto, assim como sob todos os outros, os filósofos positivos se sentirão sempre quase tão interessados quanto os poderes atuais na dupla manutenção contínua da ordem interior e da paz exterior, pois vêem nisso a condição mais favorável para uma verdadeira renovação mental e moral. Somente do ponto de vista que lhes é próprio devem perceber mais longe o que poderia comprometer ou consolidar esse grande resultado político do conjunto de nossa situação transitória.
XXI — Já caracterizamos suficientemente, sob todos os aspectos, a importância capital que apresenta hoje a propagação universal dos estudos positivos, notadamente entre os proletários, para constituir de agora em diante um indispensável ponto de apoio, ao mesmo tempo mental e social, para a elaboração filosófica que deve determinar gradualmente a reorganização espiritual das sociedades modernas. Mas essa apreciação permaneceria ainda incompleta, e até mesmo insuficiente, se o fim deste Discurso não estivesse diretamente destinado a estabelecer a ordem fundamental que convém a essa série de estudos, de maneira a fixar a verdadeira posição a ser ocupada, em seu conjunto, pelo estudo de que este tratado em seguida se ocupará exclusivamente. Este arranjo didático não é quase indiferente, como nosso vicioso regime científico o faz muitas vezes supor, podemos assegurar; muito ao contrário, é dele que sobretudo depende a principal eficácia, intelectual ou social, desta grande preparação. Existe, aliás, íntima solidariedade entre a concepção enciclopédica, donde resulta, e a lei fundamental de evolução, que serve de base à nova filosofia geral.
Tal ordem deve, por sua natureza, preencher duas condições essenciais, uma dogmática, outra histórica, de que é preciso de início reconhecer a convergência necessária. A primeira consiste em ordenar as ciências segundo sua dependência sucessiva, de sorte que cada uma repouse sobre a precedente e prepare a seguinte. A segunda prescreve [pág. 88] sua disposição conforme a marcha de sua formação efetiva, passando sempre das mais antigas para as mais recentes. Ora, o equivalente espontâneo dessas duas vias enciclopédicas provém em geral da identidade fundamental que existe inevitavelmente entre a evolução individual e a evolução coletiva, as quais, tendo origem parecida, semelhante destino e um mesmo agente, devem sempre oferecer fases correspondentes, salvo as únicas diferenças de duração, intensidade e velocidade, inerentes à desigualdade dos dois organismos. Esse concurso necessário permite, pois, conceber os dois modos como dois aspectos correlativos dum único princípio enciclopédico, de maneira a poder habitualmente empregar aquele que, em cada caso, manifeste melhor as relações consideradas, com a preciosa faculdade de poder constantemente verificar por meio de um o que resultará de outro.
A lei fundamental dessa ordem comum de dependência dogmática e sucessão histórica foi completamente estabelecida na grande obra acima indicada, e que determina o plano geral. Consiste em classificar as diferentes ciências segundo a natureza dos fenômenos estudados, conforme sua generalidade e sua dependência decrescente ou sua complicação crescente, donde resultam especulações cada vez menos abstratas e mais difíceis, mas também progressivamente eminentes e completas, em virtude de sua relação mais íntima com o homem, ou melhor, com a Humanidade, objeto final de todo sistema teórico. Essa classificação tira seu principal valor filosófico, quer científico, quer lógico, da identidade constante e necessária existente entre todos esses diversos modos de comparação especulativa dos fenômenos naturais. Daí resultam todos esses teoremas enciclopédicos cuja explicação e uso pertencem à obra citada. Sob a perspectiva da ação, esta acrescenta ainda a importante relação geral de que os fenômenos se tornam cada vez mais modificáveis, oferecendo um domínio cada vez mais vasto para a intervenção humana. Basta aqui indicar sumariamente a aplicação deste grande princípio à determinação racional da verdadeira hierarquia dos estudos fundamentais, diretamente concebidos, de agora em diante, como diferentes elementos essenciais duma única ciência, a da Humanidade.
XXII — Esse objeto final de todas as nossas especulações reais exige, evidentemente, por sua natureza, ao mesmo tempo científica e lógica, um duplo preâmbulo indispensável, relativo, duma parte, ao homem propriamente dito, de outra parte, ao mundo exterior. Não se poderia, com efeito, estudar racionalmente os fenômenos estáticos ou dinâmicos da sociabilidade se, primeiramente, não se conhecesse suficientemente o agente especial que os opera e o meio geral em que se realizam. Daí resulta, pois, a divisão necessária da filosofia natural, destinada a preparar a filosofia social, em dois grandes ramos, um orgânico, outro inorgânico. Quanto à disposição relativa desses dois estudos igualmente fundamentais, todos os motivos essenciais, quer científicos, quer lógicos, concorrem para prescrever, na educação individual e na evolução coletiva, começar pela segunda, cujos fenômenos, mais simples e mais independentes, por causa de sua generalidade superior, são os únicos a comportar de início uma apreciação verdadeiramente positiva, enquanto suas leis, diretamente relativas à existência universal, exercem em seguida uma influência necessária sobre a existência especial dos corpos vivos. A astronomia constitui, necessariamente, sob todos os aspectos, o elemento mais decisivo dessa teoria prévia do mundo exterior, já como a mais suscetível de plena positividade, já enquanto caracterizando o meio geral de todos os nossos fenômenos, quaisquer que sejam, e manifestando, sem outra complicação, a simples existência matemática, isto é, geométrica ou mecânica, comum a todos os seres reais. No entanto, ainda quando condensamos o mais possível as verdadeiras concepções enciclopédicas, não poderíamos [pág. 89] reduzir a filosofia inorgânica a esse elemento principal, porque permaneceria então completamente isolada da filosofia orgânica. Seu elo fundamental, científico e lógico, consiste sobretudo no ramo mais complexo da primeira, o estudo dos fenômenos de composição e de decomposição, os mais eminentes daqueles que comporta a existência universal e os mais próximos do mundo vital propriamente dito. É assim que a filosofia natural, considerada como o preâmbulo necessário da filosofia social, decompondo-se no início em dois estudos extremos e um estudo intermediário, compreende sucessivamente essas três grandes ciências, a astronomia, a química e a biologia, das quais a primeira toca imediatamente na origem espontânea do verdadeiro espírito científico e a última em seu destino essencial. O florescimento inicial respectivo se reporta, historicamente, à Antiguidade grega, à Idade Média, e à época moderna.
Tal apreciação enciclopédica não preencheria ainda de modo suficiente as condições indispensáveis de continuidade e espontaneidade adequadas a tal assunto. De uma parte, deixa uma lacuna capital entre a astronomia e a química cuja ligação não poderia ser direta; de outra, não indica assaz a verdadeira fonte desse sistema especulativo, como simples prolongamento abstrato da razão comum, cujo ponto de partida científico não poderia ser diretamente astronômico. Mas, para completar a fórmula fundamental, basta, em primeiro lugar, inserir entre a astronomia e a química a física propriamente dita, que somente assumiu uma existência distinta com Galileu; em segundo lugar, colocar no início deste vasto conjunto a ciência matemática, o único berço necessário da positividade racional, tanto para o indivíduo como para a espécie. Se, por uma aplicação mais especial de nosso princípio enciclopédico, decompusermos por sua vez essa ciência inicial em seus três grandes ramos (cálculo, geometria e mecânica), determinamos, enfim, com a última precisão filosófica, a verdadeira origem de todo sistema científico. Este primeiramente nasce, com efeito, das especulações puramente numéricas que, sendo entre todas as mais gerais, simples, abstratas e independentes, quase se confundem com o impulso espontâneo do espírito positivo nas inteligências mais vulgares, como o confirma ainda, sob nossos olhos, a observação cotidiana do crescimento individual.
Chegamos, assim, gradualmente a descobrir a invariável hierarquia, ao mesmo tempo histórica e dogmática, igualmente científica e lógica, das seis ciências fundamentais, matemática., astronomia, física, química, biologia e sociologia. A primeira constitui necessariamente o ponto de partida exclusivo, e a última a única meta essencial de toda filosofia positiva, considerada de agora em diante como formando, por sua natureza, um sistema verdadeiramente indivisível, em que toda decomposição é radicalmente artificial, sem ser aliás, de modo algum, arbitrária, já que tudo se reporta finalmente à Humanidade, única concepção plenamente universal. O conjunto dessa fórmula enciclopédica, exatamente conforme às verdadeiras afinidades dos estudos correspondentes, e que de resto compreende evidentemente todos os elementos de nossas especulações reais, permite, enfim, a cada inteligência renovar a seu bel-prazer a história geral do espírito positivo, passando, de maneira quase insensível, das menores idéias matemáticas aos mais altos pensamentos sociais. Está claro, com efeito, que cada uma das quatro ciências intermediárias se confunde, por assim dizer, com a precedente, quanto a seus mais simples fenômenos, e com a seguinte, quanto aos mais eminentes. Essa perfeita continuidade espontânea tornar-se-á sobremaneira irrecusável a todos aqueles que reconhecerem, na obra acima indicada, que o mesmo princípio enciclopédico também fornece a classificação racional das diversas partes constituintes de cada estudo fundamental, de sorte que os graus dogmáticos e as fases históricas podem aproximar-se, tanto quanto exige a precisão das comparações ou a facilidade das transições. [pág. 90]
No estado presente das inteligências, a aplicação lógica dessa grande fórmula é ainda mais importante que seu uso científico; é o método em nossos dias mais essencial do que a doutrina, sendo o único, aliás, suscetível de plena regeneração. Sua principal utilidade consiste hoje, pois, em determinar rigorosamente a marcha invariável de toda educação verdadeiramente positiva, no meio de preconceitos irracionais e de hábitos viciados, só adequados ao desenvolvimento preliminar do sistema científico. Este se forma gradualmente mediante teorias parciais e incoerentes, cujas relações mútuas deviam permanecer despercebidas por seus fundadores sucessivos. Todas as classes atuais de cientistas hoje violam, com igual gravidade, embora a diversos títulos, essa obrigação fundamental. Limitamo-nos aqui a indicar os dois casos extremos. Os geômetras, justamente orgulhosos de estarem colocados na verdadeira fonte da positividade racional, obstinam-se cegamente em reter o espírito humano neste grau puramente inicial do verdadeiro nascimento da especulação, sem nunca considerar seu único fim necessário. Os biólogos, ao contrário, preconizam, com razão, a dignidade superior de seu assunto, imediatamente vizinho dessa grande destinação, mas persistem em conservar seus estudos num isolamento irracional, desfazendo-se arbitrariamente da difícil preparação que exige sua natureza. Essas disposições opostas, mas igualmente empíricas, conduzem muitíssimas vezes hoje alguns a um vão desperdício de esforços intelectuais, de agora em diante consumidos, na maior parte, em pesquisas cada vez mais pueris; e outros a uma instabilidade contínua das diversas noções essenciais, por falta dum encaminhamento verdadeiramente positivo. Sob este último aspecto sobretudo devemos observar, com efeito, que os estudos sociais não são os únicos que agora permanecem ainda exteriores ao sistema plenamente positivo, sob a estéril dominação do espírito teológico-metafísico. No fundo, os próprios estudos biológicos, notadamente dinâmicos, apesar de estarem constituídos do ponto de vista acadêmico, não atingiram até agora uma verdadeira positividade, já que nenhuma doutrina capital foi ainda esboçada, de sorte que o campo das ilusões e dos malabarismos permanece quase indefinido. Ora, esse deplorável prolongamento de tal situação se deve, essencialmente, em ambos os casos, ao cumprimento insuficiente das grandes condições lógicas determinadas por nossa lei enciclopédica. Porquanto ninguém mais contesta, desde há muito tempo, a necessidade de um encaminhamento positivo, mas todos desconhecem sua natureza e suas obrigações, cuja característica só pode fornecer a verdadeira hierarquia científica. O que esperar, seja a respeito dos fenômenos sociais, seja, ainda, a respeito do estudo mais simples da vida industrial, duma cultura que aborda diretamente especulações tão complexas, sem estar dignamente preparada por uma sadia apreciação dos métodos e das doutrinas relativas aos diversos fenômenos menos complicados e mais gerais, de maneira a não poder conhecer suficientemente nem a lógica indutiva — no estado rudimentar caracterizada principalmente pela química, pela física e, de início, pela astronomia —, nem mesmo a lógica dedutiva ou a arte elementar do raciocínio decisivo que só a iniciação matemática pode desenvolver convenientemente?
Para facilitar o uso habitual de nossa fórmula hierárquica, convém muito, quando não se tem necessidade duma grande precisão enciclopédica, agrupar os termos dois a dois, de maneira a reduzi-la a três pares, um inicial, matemático-astronômico, outro final, biológico-sociológico, separados e reunidos pelo par intermediário, físico-químico. Essa feliz condensação resulta duma apreciação irrecusável, porquanto existe, com efeito, maior afinidade natural, seja científica, seja lógica, entre os dois elementos de cada par do que entre os próprios pares consecutivos, como confirma muitas vezes a dificuldade que se tem em separar nitidamente a matemática da astronomia, a física da química, [pág. 91] em conseqüência dos hábitos vagos que dominam ainda todos os pensamentos de conjunto. A biologia e a sociologia, em particular, continuam a quase se confundir para a maioria dos pensadores atuais. Sem nunca ir até essas viciosas confusões, que alterariam radicalmente as transições enciclopédicas, seria freqüentemente útil reduzir assim a hierarquia elementar das especulações reais a três pares essenciais, cada um podendo ser aliás brevemente designado por seu elemento mais especial, que é sempre efetivamente o mais característico e o mais próprio para definir as grandes fases da evolução positiva, individual ou coletiva.
XXIII — Essa sumária apreciação basta para indicar o destino e assinalar a importância de tal lei enciclopédica, em que finalmente reside uma das duas idéias mestras, cuja íntima combinação espontânea constitui necessariamente a base sistemática da nova filosofia geral. O término deste longo Discurso, onde o verdadeiro espírito positivo foi caracterizado sob todos os aspectos essenciais, aproxima-se assim de seu início, porquanto essa teoria da classificação deve ser considerada, em último lugar, como naturalmente inseparável da teoria da evolução exposta primeiramente. De sorte que o discurso atual forma ele próprio um verdadeiro conjunto, imagem fiel, apesar de contraída, de um vasto sistema. É fácil compreender, com efeito, que a consideração habitual de tal hierarquia deve tornar-se indispensável, seja para aplicar convenientemente nossa lei inicial dos três estados, seja para dissipar suficientemente as únicas objeções sérias que pode comportar. A freqüente simultaneidade histórica das três grandes fases mentais diante de especulações diferentes constituiria, de outra maneira, uma inexplicável anomalia, mas se resolve, ao contrário, espontaneamente, graças à nossa lei hierárquica, relativa tanto à sucessão quanto à dependência dos diversos estudos positivos. Concebe-se paralelamente, em sentido inverso, que a regra da classificação supõe essa evolução, já que todos os motivos essenciais da ordem assim estabelecida resultam, no fundo, da rapidez desigual de tal desenvolvimento nas diferentes ciências fundamentais.
A combinação racional dessas duas idéias mestras, constituindo a unidade necessária do sistema científico, cujas partes concorrem progressivamente a um mesmo fim, assegura também, de outra parte, a justa independência dos diversos elementos principais, muitíssimas vezes alterados ainda por aproximações viciosas. No seu despertar inicial, o único que até agora foi realizado, o espírito positivo deve estender-se gradualmente dos estudos inferiores aos estudos superiores; por isso estes últimos ficaram inevitavelmente expostos à opressiva invasão dos primeiros, contra a ascendência dos quais sua indispensável originalidade não encontrava de início outra garantia a não ser o prolongamento exagerado da tutela teológico-metafísica. Essa deplorável flutuação, muito sensível ainda nas ciências dos corpos vivos, caracteriza hoje o que, no fundo, contêm de real as longas controvérsias, de resto tão inócuas a todos os outros propósitos, entre o materialismo e o espiritualismo. Representam, de maneira provisória, sob formas igualmente viciosas, as necessidades igualmente graves, apesar de infelizmente opostas entre si até este momento, da realidade e da dignidade de quaisquer de nossas especulações. Chegando finalmente à sua maturidade sistemática, o espírito positivo dissipa ao mesmo tempo as duas ordens de aberrações, terminando esses conflitos estéreis, graças à satisfação simultânea de ambas as condições viciosamente contrárias, como logo indica nossa hierarquia científica, combinada com nossa lei de evolução, porquanto cada ciência não pode chegar a uma verdadeira positividade a não ser que a originalidade de seu próprio caráter seja plenamente consolidada.
XXIV — Uma aplicação direta dessa teoria enciclopédica, ao mesmo tempo científica e lógica, nos conduz, enfim, a determinar exatamente a natureza e a destinação do [pág. 92] ensino especial a que este tratado se consagra. Resulta, com efeito, das explicações precedentes que a principal eficácia, primeiro mental, depois social, a ser hoje procurada numa sábia propagação universal dos estudos positivos depende necessariamente duma estrita observância didática da lei de hierarquia. Para cada rápida iniciação individual, como para uma lenta iniciação coletiva, permanecerá sempre indispensável que o espírito positivo, desenvolvendo seu regime na medida em que amplia seu domínio, eleve-se pouco a pouco do estado matemático inicial ao estado sociológico final, percorrendo sucessivamente os quatro graus intermediários, astronômico, físico, químico e biológico. Nenhuma superioridade pessoal pode verdadeiramente dispensar essa gradação fundamental, a respeito da qual temos demasiadas ocasiões de constatar hoje, nas mais altas inteligências, uma irreparável lacuna, que às vezes tem neutralizado eminentes esforços filosóficos. Tal marcha deve, pois, tornar-se ainda mais indispensável na educação universal, onde as especialidades possuem pouca importância, e cuja principal utilidade, mais lógica do que científica, exige essencialmente plena racionalidade, sobretudo quando se trata de constituir, enfim, o verdadeiro regime mental. Assim esse ensino popular deve hoje reportar-se principalmente ao par científico inicial, até que se encontre convenientemente vulgarizado. É aí que todos devem primeiramente colher as verdadeiras noções elementares de sua positividade geral, adquirindo os conhecimentos que servem de base a todas as outras especulações reais. A despeito de essa estrita obrigação conduzir necessariamente a colocar no início os estudos puramente matemáticos, é preciso, contudo, considerar que não se trata ainda de estabelecer uma sistematização direta e completa da instrução popular, mas somente de dirigir de modo conveniente o impulso filosófico que aí deve desembocar. Daí reconhecer-se facilmente que tal movimento deve sobretudo depender dos estudos astronômicos que, por sua natureza, oferecem necessariamente a plena manifestação do verdadeiro espírito matemático, de que constituem, no fundo, a principal destinação. Há tanto menos inconvenientes atuais em caracterizar assim o par inicial unicamente pela astronomia quanto os conhecimentos matemáticos verdadeiramente indispensáveis à sua judiciosa vulgarização já estão bastante divulgados ou são bastante fáceis de adquirir, para que se possa hoje limitar-se a supô-los provenientes duma preparação espontânea.
Essa preponderância necessária da ciência astronômica na primeira programação sistemática da iniciação positiva está plenamente conforme à influência histórica de tal estudo, até aqui principal motor das grandes revoluções intelectuais. O sentimento fundamental de invariância das leis naturais deveria, com efeito, desenvolver-se primeiramente com respeito aos fenômenos mais simples e mais gerais, cuja regularidade e grandeza superiores nos manifestam a única ordem real completamente independente de toda modificação humana. Antes mesmo de comportar qualquer caráter verdadeiramente científico, essa classe de concepções determinou sobretudo a passagem decisiva do fetichismo ao politeísmo, em toda parte resultando do culto dos astros. Seu primeiro esboço matemático, nas escolas de Tales e de Pitágoras, constituiu em seguida a principal fonte mental de decadência do politeísmo e da ascendência do monoteísmo. Enfim, o florescimento sistemático da positividade moderna, tendendo abertamente a um novo regime filosófico, resultou essencialmente da grande renovação astronômica iniciada por Copérnico, Kepler e Galileu. Não cabe, pois, admirar-se de que a universal iniciação positiva, sobre a qual deve apoiar-se o advento direto da filosofia definitiva, também se encontre na dependência inicial de tal estudo, segundo a conformidade necessária da educação individual com a evolução coletiva. Este é, sem dúvida, o último ofício fundamental que lhe deve ser peculiar no desenvolvimento geral da razão humana que, uma vez atingindo [pág. 93] para todos uma verdadeira positividade, deverá marchar em seguida sob novo impulso filosófico, diretamente emanado da ciência final, desde agora investida para sempre de suas prerrogativas normais. Tal é a eminente utilidade, tanto social quanto mental, que aqui se trata de retirar, enfim, duma judiciosa exposição popular do sistema atual dos sábios estudos astronômicos. [pág. 94]
DISCURSO PRELIMINAR
SOBRE O CONJUNTO
DO POSITIVISMO
Tradução de José Arthur Giannotti [pág. 95]
Enfastia-se de pensar e até de agir,
mas nunca de amar
Nesta série de visões sistemáticas sobre o positivismo, caracterizarei seus elementos fundamentais, seus apoios necessários e, finalmente, seu complemento essencial. Apesar dessa tripla apreciação dever ser muito sumária, bastará, espero, para ultrapassar definitivamente prevenções desculpáveis, embora empíricas. Todo leitor bem preparado poderá constatar, assim, que a nova doutrina geral, que até agora parece só poder satisfazer à razão, não é, no fundo, menos favorável ao sentimento e até mesmo à imaginação.
PREÂMBULO GERAL
O positivismo se compõe essencialmente duma filosofia e duma política, necessariamente inseparáveis, uma constituindo a base, a outra a meta dum mesmo sistema universal, onde inteligência e sociabilidade se encontram intimamente combinados. Duma parte, a ciência social não é somente a mais importante de todas, mas fornece sobretudo o único elo, ao mesmo tempo lógico e científico, que de agora em diante comporta o conjunto de nossas contemplações reais.1
1 O estabelecimento deste grande princípio constitui o resultado mais essencial de meu Sistema de filosofia positiva. Embora todos os seis volumes dessa obra já tenham aparecido de 1830 a 1842, sob o título de Curso (sugerido pela elaboração oral que, em 1826 e 1829, preparou esse tratado fundamental), sempre em seguida o qualifiquei de Sistema, para marcar melhor seu verdadeiro caráter. Na espera de que uma segunda edição regularize essa retificação, este aviso especial prevenirá, assim o espero, toda má compreensão a esse respeito.
Ora, a ciência final, ainda mais do que cada uma das ciências preliminares, não pode desenvolver seu verdadeiro caráter sem uma exata harmonia geral com a arte correspondente. Mas, por uma coincidência de nenhum modo fortuita, sua fundação teórica encontra logo imenso destino prático, a fim de presidir hoje toda a regeneração da Europa Ocidental. De outra parte, na medida em que o curso natural dos acontecimentos caracteriza a grande crise moderna, a reorganização política se apresenta cada vez mais como necessariamente impossível, sem a reconstrução prévia das opiniões e dos costumes. Uma sistematização real de todos os pensamentos humanos constitui pois nossa primeira necessidade social, igualmente quanto à ordem e ao progresso. A realização gradual desta ampla elaboração filosófica fará espontaneamente surgir, em todo o Ocidente, uma nova autoridade moral, cuja inevitável ascendência colocará a base direta da reorganização final, ligando as diversas populações avançadas através da mesma educação geral, que fornecerá para toda parte, para a vida pública como para a vida privada, princípios fixos de julgamento e de conduta. [pág. 97] Desse modo, os movimentos intelectual e de comoção social, cada vez mais solidários, conduzem de agora em diante a elite da humanidade ao advento decisivo dum verdadeiro poder espiritual, ao mesmo tempo mais consistente e mais progressivo do que aquele esboçado prematuramente, numa tentativa admirável, pela Idade Média.
Tal é, pois, a missão fundamental do positivismo: generalizar a ciência real e sistematizar a arte social. Essas duas faces inseparáveis duma mesma concepção serão sucessivamente caracterizadas pelas duas partes deste discurso, indicando, primeiro, o espírito geral da nova filosofia, e, em seguida, sua conexidade necessária com o conjunto da grande revolução de que ela dirigirá o término orgânico.
A essa dupla apreciação sucederá naturalmente a dos principais apoios adequados à doutrina regeneradora. Esta indispensável adesão não poderia hoje, salvo preciosas exceções individuais, provir de qualquer uma das classes dirigentes que, todas elas dominadas mais ou menos pelo empirismo metafísico e pelo egoísmo aristocrático, só podem tender, em sua cega agitação política, a prolongar indefinidamente a situação revolucionária, disputando entre si os restos vãos do regime teológico e militar, sem nunca conduzir a uma verdadeira renovação.
A natureza intelectual do positivismo e sua destinação social somente lhe permite sucesso verdadeiramente decisivo, no meio em que o bom senso, preservado duma cultura viciosa, deixa prevalecer melhor as visões do conjunto, onde os sentimentos gerais são menos reprimidos. A esse duplo título, proletários e mulheres constituem necessariamente os auxiliares essenciais de nova doutrina geral que, embora destinada a todas as classes modernas, só obterá ascendência verdadeira nas camadas superiores, quando surgir sob este irresistível patrocínio. A reorganização espiritual só pode começar com o concurso dos mesmos elementos sociais que em seguida devem secundar, do melhor modo, seu vôo regular. Em virtude de sua menor participação no governo político, estão mais propícios a sentir a necessidade e as condições do governo moral, destinado sobretudo a garantir-lhes contra a opressão temporal.
Farei, pois, que a terceira parte deste discurso caracterize sumariamente a coalizão fundamental entre os filósofos e os proletários, a qual, preparada de ambos os lados pelo conjunto do passado moderno, é a única a produzir hoje um impulso verdadeiramente decisivo. Perceber-se-á assim que, aplicando-se a retificar e a desenvolver as tendências populares, o positivismo aperfeiçoará e consolidará de muito sua própria natureza, ela mesma intelectual.
No entanto, essa doutrina apenas mostrará toda sua potência orgânica e manifestará plenamente seu verdadeiro caráter, adquirindo o apoio menos previsto como prêmio de sua aptidão necessária a melhorar e a regularizar a condição social das mulheres, como indicará especialmente a quarta parte deste discurso. O ponto de vista feminino é o único a permitir à filosofia positiva abranger o autêntico conjunto da existência humana, ao mesmo tempo individual e coletiva. Pois essa existência não pode ser dignamente sistematizada a não ser tomando por base a subordinação contínua da inteligência à sociabilidade, diretamente representada pela verdadeira natureza pessoal e social da mulher.
Embora este discurso deva simplesmente esboçar essas duas grandes explicações, fará, espero, com que se perceba suficientemente quanto o positivismo está mais apto do que o catolicismo a utilizar profundamente as tendências espontâneas do povo e das mulheres para a instituição final do poder espiritual. Ora, a nova doutrina só pode obter esse duplo apoio na base de sua aptidão exclusiva para dissipar radicalmente as diversas utopias anárquicas, que, cada vez mais, ameaçam toda existência doméstica [pág. 98] e social. Ao mesmo tempo, de ambas as partes, muito enobrecerá o caráter fundamental e sancionará ativamente todos os votos legítimos.
É assim que uma filosofia, provindo primeiramente das mais altas especulações, já se mostra capaz de abraçar, sem esforço, não somente a plenitude da vida ativa, mas também o conjunto da vida afetiva. No entanto, para manifestar inteiramente sua universalidade característica, deverei ainda assinalar um complemento indispensável, indicando enfim, apesar dos preconceitos muito plausíveis, sua profunda aptidão a fecundar também essas brilhantes faculdades que melhor representam a unidade humana, na medida em que, contemplativas por sua natureza, elas se vinculam ao sentimento, mediante seu principal domínio, e à atividade, mediante sua influência geral. Essa apreciação estética do positivismo será diretamente esboçada na quinta parte deste discurso, como conseqüência natural da explicação relativa às mulheres. Aí farei, espero, entrever como a nova doutrina, justamente por abarcar realmente o conjunto das relações humanas, é a única a poder preencher uma grande lacuna especulativa, logo constituindo uma verdadeira teoria geral das belas-artes, cujo princípio consiste em colocar a idealização poética entre a concepção filosófica e a realização política, na coordenação positiva das funções fundamentais da humanidade. Essa teoria explicará por que a eficácia estética do positivismo só poderá manifestar-se pelas produções características, quando a regeneração intelectual e moral encontrar-se bastante avançada para já ter despertado as principais simpatias que lhe são próprias e sobre as quais deverá repousar o novo florescimento da arte. Mas, depois dessa primeira comoção mental e social, a poesia moderna, investida enfim de sua verdadeira dignidade, virá, por sua vez, conduzir a humanidade para um futuro que não será mais nem vago nem quimérico, tornando ainda familiar a sã apreciação dos diversos estados anteriores. Um sistema, que erige diretamente o aperfeiçoamento universal em meta fundamental de toda a nossa existência pessoal e social, determina necessariamente um ofício capital às faculdades destinadas sobretudo a cultivar em nós o instinto da perfeição em todos os gêneros. Os estreitos limites deste discurso não me impedirão, ademais, de indicar que, embora abrindo à arte moderna uma imensa carreira, o positivismo lhe fornecerá, não menos espontaneamente, novos meios gerais.
Terei assim esboçado plenamente o verdadeiro caráter da doutrina regeneradora, sucessivamente apreciada sob todos os aspectos principais, passando, conforme um encadeamento sempre natural, primeiro, de sua fundação filosófica à sua destinação política, daí à sua eficácia popular, em seguida, à sua influência feminina, terminando em sua aptidão estética. Para concluir este longo discurso, simples prelúdio dum grande tratado, só me restará indicar como todas essas diversas apreciações, espontaneamente resumidas por uma divisa decisiva, vêm condensar-se ativamente na concepção real da humanidade que, dignamente sistematizada, constitui finalmente a total unidade do positivismo. Formulando essas conclusões características, serei naturalmente conduzido também a assinalar, em geral, conforme ao conjunto do passado, a marcha anterior da regeneração humana que, limitada de início, sob a iniciativa francesa, à grande família ocidental, deverá estender-se, em seguida, segundo as leis indicáveis, a todo o resto da raça branca, e até mesmo, enfim, às duas outras raças principais. [pág. 99]
PRIMEIRA PARTE
Espírito fundamental do positivismo
A verdadeira filosofia se propõe a sistematizar, tanto quanto possível, toda a existência humana, individual e sobretudo coletiva, contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos que a caracterizam, pensamentos, sentimentos e atos. Sob todos esses aspectos, a evolução fundamental da humanidade é necessariamente espontânea, e a exata apreciação de sua marcha natural é a única a nos fornecer a base geral duma sábia intervenção. Mas as modificações sistemáticas, que aí podemos introduzir, possuem, entretanto, extrema importância para muito diminuir os desvios parciais, os atrasos funestos e as graves incoerências, próprias a um vôo tão complexo, se permanecesse inteiramente abandonado a si próprio. A realização contínua dessa indispensável intervenção constitui o domínio essencial da política. No entanto, sua verdadeira concepção só pode provir da filosofia, que aperfeiçoa sem cessar sua determinação geral. Para essa comum destinação fundamental, o ofício próprio da filosofia consiste em coordenar entre elas todas as partes da existência humana, a fim de conduzir a noção teórica a uma completa unidade.
Tal síntese não poderia ser real a não ser que representasse exatamente o conjunto das relações naturais, cujo estudo judicioso vem a ser a condição prévia dessa construção. Se a filosofia tentasse influenciar diretamente a vida ativa, a não ser mediante essa sistematização, usurparia viciosamente a missão necessária da política, o único arbítrio legítimo de toda evolução prática. Entre essas duas funções principais do grande organismo, o elo contínuo e a separação normal residem, ao mesmo tempo, na moral sistemática, que constitui naturalmente a aplicação característica da filosofia e o guia geral da política. Explicarei, ademais, como a moral espontânea, isto é, o conjunto dos sentimentos que a inspiram, deve sempre dominar as investigações de uma e as empresas de outra, como indiquei em minha obra fundamental.
Essa grande coordenação, que caracteriza o ofício social da filosofia, só poderia ser real e durável abarcando o conjunto de seu triplo domínio, especulativo, afetivo e ativo. Conforme as reações naturais que unem intimamente essas três ordens de fenômenos, toda sistematização parcial seria necessariamente quimérica e insuficiente. No entanto, somente hoje a filosofia, atingindo o estado positivo, pode enfim conceber dignamente a verdadeira plenitude de sua missão fundamental.
A sistematização teológica proveio espontaneamente da vida afetiva, devendo igualmente a essa única origem sua preponderância inicial e sua dissolução final. Dominou, por muito tempo, as principais especulações, sobretudo durante a idade politéica, quando o raciocínio restringia ainda muito pouco o primitivo império da imaginação e do sentimento. Mas, mesmo nessa época de sua grande força mental e social, a vida ativa escapou-lhe essencialmente, salvo inevitáveis reações, em geral mais relativas à forma [pág. 101] do que ao conteúdo. Essa cisão natural, embora no início insensível, tendeu em seguida, graças a seu crescimento contínuo, a dissolver radicalmente a construção inicial. Uma coordenação puramente subjetiva não poderia acordar com a destinação necessariamente objetiva, que caracteriza a existência prática, conforme sua invencível realidade. Enquanto uma representava todos os fenômenos como regidos por vontades mais ou menos arbitrárias, a outra cada vez mais levava a concebê-los sujeitos a leis invariáveis, sem as quais nossa atividade contínua não poderia comportar regra alguma. Segundo essa impotência radical de abarcar realmente a vida ativa, a sistematização teológica teve também de permanecer sempre muito incompleta quanto à vida especulativa e até mesmo afetiva, cujo florescimento geral se subordina necessariamente às principais exigências práticas. A existência humana não podia, pois, sistematizar-se plenamente, enquanto o regime teológico prevalecesse, porque nossos sentimentos e nossos atos imprimiam então a nossos pensamentos dois impulsos essencialmente inconciliáveis. Seria ademais supérfluo apreciar aqui a inanidade necessária da coordenação metafísica que, a despeito de suas pretensões absolutas, nunca pôde retirar da teologia o domínio afetivo, sendo sempre menos própria a abarcar a vida ativa. No tempo de seu maior esplendor escolástico, a sistematização ontológica não saiu do domínio especulativo, reduzido aliás à vã contemplação abstrata duma evolução puramente individual. O espírito metafísico é radicalmente incompatível com o ponto de vista social. Demonstrei suficientemente, em minha obra fundamental, que este espírito transitório nunca foi capaz de realmente construir algo. Sua dominação excepcional comportava somente um destino revolucionário, para secundar a evolução preliminar da humanidade, decompondo pouco a pouco o regime teológico que, depois de ter dirigido sozinho o crescimento inicial, haveria de converter-se, sob todos os aspectos, em retrógrado de modo irrevogável.
Por isso mesmo, todas as especulações positivas provieram, primeiro, da vida ativa, manifestaram sempre mais ou menos sua aptidão característica para sistematizar a existência prática, que a coordenação primitiva não podia abraçar. Embora seu defeito de generalidade e de ligação ainda entrave muito o desenvolvimento dessa propriedade, não impediu seu sentimento universal. Teorias, diretamente relativas às leis dos fenômenos e destinadas a fornecer previsões reais, são hoje apreciadas sobretudo como as únicas capazes de regularizar nossa ação espontânea sobre o mundo exterior. É porque o espírito positivo pode vir a ser cada vez mais teórico e tender a conquistar paulatinamente todo o domínio especulativo, sem nunca perder a aptidão prática inerente à sua origem, mesmo quando perseguia investigações verdadeiramente ociosas, desculpáveis somente a título de exercícios lógicos. Desde seu primeiro florescimento matemático e astronômico, mostrou sua tendência a sistematizar o conjunto de nossas concepções, segundo a extensão contínua de seu princípio fundamental. Esse novo princípio filosófico, depois de ter por muito tempo modificado cada vez mais o princípio teológico metafísico, esforça-se evidentemente, desde Descartes e Bacon, por substituí-lo irrevogavelmente. Tendo assim tomado gradualmente posse de todos os estudos preliminares, de agora em diante liberados do antigo regime, faltava-lhe completar sua generalização apossando-se também do estudo final dos fenômenos sociais. Interditado ao espírito metafísico, este estudo nunca foi apreendido pelo espírito teológico a não ser duma maneira indireta e empírica, como condição de governo. Ora, esse complemento decisivo foi, ouso dizer, suficientemente realizado, em minha elaboração fundamental, para já tornar incontestável a aptidão do princípio positivo em coordenar toda existência especulativa, sem parar de desenvolver e até mesmo de fortalecer sua tendência inicial em também regularizar a vida ativa. [pág. 102]
A coordenação positiva de todo o domínio intelectual se encontra assim tanto melhor assegurada quanto essa criação da ciência social, completando o florescimento de nossas contemplações reais, imprime-lhe logo o caráter sistemático que lhe faltava ainda, oferecendo necessariamente o único elo universal que comportam.
Essa concepção está suficientemente dotada para que algum verdadeiro pensador desconheça agora a tendência necessária do espírito positivo para uma sistematização durável, compreendendo ao mesmo tempo existência especulativa e ativa. Mas tal coordenação estaria ainda longe de apresentar a total universalidade, sem a qual o positivismo permaneceria impróprio para substituir inteiramente o teologismo no governo espiritual da humanidade; se não abarcasse a parte verdadeiramente preponderante de toda existência humana, a vida afetiva. Só esta fornece às duas outras impulso e direção contínuos, sem os quais seu próprio nascimento logo se consumiria em contemplações viciosas ou ao menos ociosas, numa agitação estéril ou até mesmo perturbadora. A persistência dessa imensa lacuna tornaria de resto ilusória a dupla coordenação teórica e prática, privando-a do único princípio que lhe possa trazer uma consistência real e durável. Tal impotência seria ainda mais grave do que a insuficiência necessária do regime teológico em relação à vida ativa, pois nem a razão, nem mesmo a atividade podem constituir a verdadeira unidade humana. Na economia individual e sobretudo coletiva, a harmonia nunca repousará a não ser no sentimento, como indicará especialmente a quarta parte deste discurso. É à sua fonte espontaneamente afetiva que a teologia sempre deveu seu império essencial. A despeito de sua evidente caducidade, conservará ainda, ao menos em princípio, algumas legítimas pretensões à preponderância social, enquanto a nova filosofia não a tiver despojado deste privilégio fundamental. Tal é, pois, a condição final que a evolução moderna não pode em nada dispensar. A coordenação positiva, sem deixar de ser teórica e prática, deve também tornar-se moral e colher no sentimento seu verdadeiro princípio de universalidade. Somente então poderá enfim afastar todas as pretensões teológicas, realizando melhor do que o antigo regime a destinação decisiva de toda doutrina geral. Pois terá assim coordenado, pela primeira vez desde o início do crescimento humano, todos os aspectos fundamentais de nossa tripla existência. Se o positivismo não puder preencher essa inevitável condição, nenhuma sistematização seria de agora em diante possível; o princípio positivo encontrando-se, de um lado, suficientemente desenvolvido para neutralizar o princípio teológico; de outro lado, permanecendo sempre incapaz duma supremacia equivalente. É porque tantos observadores conscienciosos são levados hoje a desesperar do futuro social, reconhecendo a impotência final dos antigos princípios do governo humano, sem perceber o advento gradual das novas bases morais, por falta duma teoria suficientemente real e completa que lhes revele a tendência definitiva da situação moderna. O caráter atual do princípio positivo parece justificar tal opinião, pois sua inaptidão para jamais se apossar do domínio afetivo deve parecer tão constatada quanto sua próxima preponderância na ordem ativa e na ordem especulativa.
Mas um exame mais aprofundado retificará plenamente essa primeira apreciação, mostrando que a aridez, que justamente se censura até agora às inspirações positivas, provém somente da especialidade empírica de seu desenvolvimento preliminar, sem participar de modo inerente de sua verdadeira natureza. Surgindo primeiramente de impulsos materiais e por muito tempo limitando-se aos estudos inorgânicos, a positividade só permanece antipática em geral, ao sentimento, por não ter se tornado suficientemente completa e sistemática. Estendendo-se às especulações sociais, que devem formar seu principal domínio, perde necessariamente os diversos vícios peculiares à sua longa infância. [pág. 103] Em virtude de sua própria realidade característica, a nova filosofia se encontra conduzida a vir a ser mais moral do que intelectual, colocando na vida afetiva o centro de sua própria sistematização, para representar exatamente os direitos respectivos do espírito e do coração na verdadeira economia da natureza humana, individual ou coletiva. A elaboração de questões sociais a leva hoje a dissipar radicalmente as orgulhosas ilusões inerentes à sua preparação científica, quanto à pretensa supremacia da inteligência. Sancionando a experiência universal, melhor do que o pôde fazer o catolicismo, o positivismo explica por que a felicidade privada e o bem público dependem mais do coração do que do espírito. Mas, além disso, o exame direto da questão de sistematização o conduz a proclamar que a unidade humana só pode resultar duma justa preponderância do sentimento sobre a razão e até mesmo sobre a atividade
Caracterizando-se nossa natureza ao mesmo tempo pela inteligência e pela sociabilidade, sua unidade parece primeiramente poder estabelecer-se segundo dois modos diferentes, conforme a supremacia pertença a um ou a outro desses atributos. No entanto, existe apenas um só modo de sistematização, já que os dois atributos não possuem, sob quase todos os aspectos, a mesma capacidade de prevalecer. Que se considere a natureza própria de cada um deles ou que se compare suas energias respectivas, pode-se claramente reconhecer que a inteligência somente comporta de fato o destino durável de servir à sociabilidade. Quando, em vez de se constituir dignamente como seu principal ministro, aspira à dominação, nunca chega a realizar essas orgulhosas pretensões, o que só pode desembocar numa anarquia desastrosa.
Mesmo na vida privada, é possível reinar entre nossas diversas tendências uma harmonia contínua somente por causa da preponderância universal do sentimento, que nos inspira a vontade sincera e habitual de fazer o bem. Essa tendência, como todas as outras, é sem dúvida essencialmente cega, precisa do socorro da razão para conhecer os verdadeiros meios de satisfazer-se, do mesmo modo que a atividade se lhe torna indispensável para aplicá-los. Mas a experiência cotidiana prova, entretanto, que tal impulso constitui a principal condição do bem, posto que, conforme o grau ordinário de inteligência e de energia que nossa natureza apresenta, esta estimulação continuada basta para dirigir, com frutos, as investigações de uma e as empresas da outra. Privadas de tal móvel habitual, ambas se esgotam necessariamente em tentativas estéreis ou incoerentes, recaindo logo em seu torpor inicial. Nossa existência moral só comporta, pois, verdadeira unidade enquanto a afeição dominar concomitantemente a especulação e a ação.
A despeito desse princípio fundamental convir de muito à vida individual, é na vida pública que melhor manifesta sua irrecusável necessidade. Isto não é porque nela a dificuldade muda realmente de natureza, nem que exija novas soluções, mas atinge grau muito mais apreciável, que não permite qualquer incerteza sobre os meios. A independência mútua dos diversos seres que é preciso então ligar mostra claramente que a primeira condição de seu concurso habitual consiste em sua própria disposição ao amor universal. Não há cálculos pessoais que possam de ordinário substituir esse instinto social, nem em virtude da instantaneidade e extensão das aspirações, nem pela ousadia e persistência das resoluções. Na verdade, essas afeições benevolentes devem ser muitas vezes menos enérgicas nelas próprias do que as afeições egoístas. Mas possuem necessariamente essa admirável propriedade que a existência social permite e provoca seu florescimento quase ilimitado, enquanto comprime incessantemente seus adversários. É assim que, antes de tudo, conforme a tendência crescente das primeiras em prevalecer sobre as segundas, se deve medir o principal progresso da humanidade. Sua ascendência espontânea pode muito ser secundada pela inteligência, quando se aplica a consolidar a sociabilidade, [pág. 104] apreciando melhor as verdadeiras relações naturais, e a desenvolvê-la, esclarecendo seu exercício, com o auxílio das indicações do passado sobre o futuro. Neste nobre serviço, a nova filosofia concentra o principal destino do espírito, a que fornece, assim, ao mesmo tempo, incomparável consagração e campo inesgotável, muito mais adequado a satisfazê-lo profundamente do que os vãos triunfos acadêmicos e suas pueris investigações atuais.
No fundo, as soberbas aspirações de inteligência em vista do domínio universal, desde que a grande unidade teológica rompeu-se irrevogavelmente, nunca puderam comportar qualquer realização, sendo somente susceptíveis de uma eficácia insurreicional contra um regime que se tornara retrógrado. O espírito não se destina a reinar, mas a servir; quando crê dominar, entra a serviço da personalidade, em lugar de secundar a sociabilidade, sem que possa de modo algum dispensar-se de assistir a uma paixão qualquer. O comando real exige, com efeito, a força antes de tudo; a razão, não possuindo mais do que a luz, precisa de um impulso de fora. As utopias metafísicas, muito bem acolhidas pelos cientistas modernos, a respeito duma pretensa perfeição duma vida puramente contemplativa, não são mais do que ilusões orgulhosas, quando não cobrem artifícios culpáveis. A despeito de ser, sem dúvida, real a satisfação ligada somente à descoberta da verdade, nunca possuiu bastante intensidade para dirigir a conduta habitual. O impulso duma paixão qualquer é indispensável à nossa raquítica inteligência, para determinar e sustentar quase todos os seus esforços. Se essa inspiração emana duma afeição benévola, nós a tomamos como sendo ao mesmo tempo mais rara e mais estimável; sua vulgaridade impede, ao contrário, de distingui-la quando nasce de motivos pessoais de glória, ambição ou cupidez; tal é, no fundo, a única diferença ordinária. Ainda que o impulso mental resultasse duma espécie de paixão excepcional pela verdade pura, sem qualquer mistura de orgulho e de vaidade, esse exercício ideal, desprendido de todo destino social, não deixaria de ser profundamente egoísta. Terei logo ocasião de indicar como o positivismo, ainda mais severo do que o catolicismo, imprime necessariamente uma marca de ignomínia sobre tal tipo metafísico ou científico, no qual o verdadeiro ponto de vista filosófico leva a reconhecer um abuso culpável das facilidades que traz a civilização, com fito totalmente diferente, para a existência contemplativa.
É assim que o princípio positivo, espontaneamente provindo da vida ativa, e sucessivamente estendido a todas as partes essenciais do domínio especulativo, encontra-se, em sua plena maturidade, inevitavelmente conduzido, em conseqüência natural de sua realidade característica, a abraçar também o conjunto da vida afetiva, onde logo coloca o único centro de sua sistematização final. De agora em diante, o positivismo erige, pois, em dogma fundamental, ao mesmo tempo filosófico e político, a preponderância contínua do coração sobre o espírito.
Sem dúvida, essa indispensável subordinação, a única base possível da unidade humana, já tinha sido organizada, embora empiricamente, pelo regime teológico, como notei acima. Mas, por causa duma fatalidade peculiar do estudo inicial, essa primeira organização se encontrava necessariamente afetada dum vício radical, que só lhe permitia um destino provisório. Pois devia logo se tornar profundamente opressiva para a inteligência, que só veio à luz mediante a dissolução dela, modificando-a progressivamente até a dissolver, como resultado geral dessa inevitável insurreição de vinte séculos, que de resto desenvolveu naturalmente anárquicas utopias de orgulho metafísico e científico. Se o coração deve sempre colocar questões, cabe sempre ao espírito resolvê-las. Tal é o verdadeiro sentido que o positivismo acaba de estabelecer, sistematizando para sempre o princípio necessário de toda economia individual ou coletiva. Ora, a impotência [pág. 105] primitiva do espírito, que só podia cumprir dignamente seu ofício depois duma longa e difícil preparação, obrigou primeiramente o coração a substituí-lo, suplementando a falta de noções objetivas pelo florescimento espontâneo de inspirações sucessivas, sem as quais toda evolução humana, tanto mental como social, teria permanecido indefinidamente impossível, como explica meu Sistema de filosofia positiva. Mas este império absoluto, por muito tempo indispensável, não podia em seguida evitar tornar-se hostil ao próprio desenvolvimento da razão, na medida em que esta chegasse a esboçar concepções, fundadas sobre uma apreciação mais ou menos real do mundo exterior. Tal é, em geral, a principal fonte direta das grandes modificações sucessivas ocorridas no conjunto das crenças teológicas. Desde que esse sistema sofreu as correções compatíveis com sua natureza fundamental, o conflito intelectual, tomando-se mais grave e mais rápido por causa do florescimento decisivo dos conhecimentos positivos, tomou caráter progressivamente mais retrógrado, de um lado, e revolucionário, de outro, conforme a impossibilidade, cada vez mais sentida, de conciliar dois regimes tão opostos. Tal é antes de tudo o caráter da situação atual, em que a antiga dominação da teologia, se fosse susceptível de restauração, constituiria diretamente uma profunda degradação intelectual e, por conseguinte, moral, ajustando, unicamente mediante nossos desejos e nossas conveniências, todas as nossas opiniões sobre a verdade exterior. Também a humanidade não pode mais dar qualquer passo decisivo sem renunciar totalmente ao princípio teológico, que no Ocidente já não conserva outra eficácia essencial além de manter, por sua resistência necessária, a verdadeira posição da questão principal. Obriga a nova sistematização a concentrar-se enfim na vida afetiva, a despeito dos prejuízos e dos hábitos próprios à imensa transição revolucionária, que já dura desde o fim da Idade Média. Mas o positivismo, preenchendo ainda melhor do que qualquer teologismo essa condição fundamental de toda organização, termina necessariamente a longa insurreição do espírito contra o coração. Porquanto, por uma decisão ao mesmo tempo espontânea e sistemática, atribui à inteligência a livre participação total que lhe pertence no conjunto da vida humana. Conforme a interpretação positiva do grande princípio orgânico, o espírito só deve essencialmente tratar as questões propostas pelo coração para a justa satisfação final de nossas diversas necessidades. A experiência já mostrou demasiadamente que, sem esta regra indispensável, o espírito seguiria quase sempre sua inclinação involuntária para especulações ociosas ou quiméricas, que são ao mesmo tempo as mais numerosas e as mais fáceis. Mas em qualquer elaboração do assunto assim proposto, o espírito deve permanecer o único juiz, seja da conveniência dos meios, seja da realidade dos resultados. Cabe unicamente a ele apreciar o que há de ser previsto como acontecendo no futuro, e descobrir os processos de melhoramento. Numa palavra, o espírito deve sempre ser o ministro do coração, nunca seu escravo. Tais são as condições correlativas da harmonia final instituída pelo princípio positivo. Pouco se deve temer que sejam gravemente perturbadas, porque os dois elementos desse grande equilíbrio logo se encontrarão dispostos naturalmente a mantê-lo, como igualmente favoráveis a cada um deles. Os hábitos insurrecionais da razão moderna não lhe autorizam supor um caráter indefinidamente revolucionário, uma vez que suas legítimas reclamações se encontrem largamente satisfeitas. Além do mais, conforme às necessidades, meios não faltariam ao novo regime para reprimir de modo suficiente as pretensões subversivas, como terei logo ocasião de fazer perceber. De outro lado, o novo domínio do coração nunca poderia vir a ser, como o antigo, seriamente hostil ao espírito. Pois o verdadeiro amor demanda sempre ser esclarecido sobre os meios reais de atingir o fim que persegue. O reino do verdadeiro sentimento deve ser habitualmente favorável tanto à sã razão quanto à sábia atividade. [pág. 106]
Eis como uma doutrina, que não comporta mais hipocrisia do que opressão, vem hoje, como resultado geral das diversas evoluções anteriores, regenerar ao mesmo tempo a ordem pública e a ordem privada, cada vez mais comprometidas por uma situação radicalmente anárquica. Vincula para sempre a verdadeira filosofia à sã política, sob o mesmo princípio fundamental, não menos susceptível de ser sentido do que de ser demonstrado, igualmente capaz de tudo sistematizar e tudo reger. Esse grande dogma positivo da preponderância universal do coração sobre o espírito será de resto configurado, na quinta parte deste discurso, como também capaz de aptidão estética, potência filosófica e eficácia social. Terminar-se-á assim de compreender a possibilidade de tudo concentrar, de agora em diante, em torno dum princípio único, ao mesmo tempo moral, racional e poético, somente ele sendo capaz de terminar realmente a mais profunda revolução da humanidade. Já se pode constatar aqui que a força, essencialmente moderna, da demonstração, que sob tantos aspectos permanece ainda dissolvente, santifica-se necessariamente, quando de sua plena maturidade, ao receber irrevogavelmente, do novo impulso geral, uma importante destinação orgânica, que em futuro próximo muito desenvolverá. Posso, pois, sem qualquer exagero, concluir do conjunto das indicações precedentes que, a despeito de sua origem puramente teórica, o positivismo de agora em diante convém tanto às almas ternas quanto aos espíritos meditativos e aos caracteres enérgicos.
Tendo assim determinado a natureza e o espírito da sistematização total que os verdadeiros filósofos devem agora construir, resta-me caracterizar sua marcha necessária e, em seguida, seu núcleo fundamental.
Apesar dessa construção só poder convir a seu destino abarcando o conjunto de seu triplo domínio, especulativo, afetivo e ativo, suas três partes essenciais não poderiam realizar-se ao mesmo tempo, sem que sua inevitável sucessão altere de algum modo sua solidariedade espontânea, pois ela resulta, ao contrário, duma justa apreciação de sua mútua dependência. Importa reconhecer, com efeito, que os pensamentos devem sistematizar-se antes dos sentimentos e estes, antes dos atos. É sem dúvida pelo instinto confuso dessa ordem necessária que os filósofos tinham até aqui limitado unicamente à existência contemplativa o domínio geral da sistematização humana.
A inevitável obrigação de coordenar antes de tudo as idéias não resulta apenas de que sua ligação é mais fácil e comporta maior perfeição, de maneira a construir uma útil preparação lógica para o resto da grande síntese. Aprofundando ainda mais esse tema, descobre-se o motivo mais decisivo e menos saliente, que configura este preâmbulo, desde que seja completo, como a base necessária do conjunto da construção, que felizmente não lhe pode mais oferecer em seguida qualquer dificuldade de primeira ordem, ao menos se limitar, com sabedoria, ao grau de coordenação que sua destinação final realmente exige.
Essa importante preponderância da simples sistematização intelectual parece, primeiramente, contrariar a fraca energia das funções correspondentes na economia total de nossa verdadeira natureza, onde o sentimento e a atividade contribuem, por certo, mais do que a razão para cada resultado habitual. Se tentarmos resolver esta espécie de paradoxo, somos conduzidos a discernir enfim no que consiste o núcleo fundamental do grande problema da unidade humana.
Tal unidade exige de início um princípio necessariamente subjetivo, como foi posto acima; a preponderância contínua do coração sobre o espírito. Sem ela nem a existência coletiva, nem mesmo a simples existência individual comportariam qualquer harmonia durável, por falta do impulso bastante enérgico para fazer habitualmente convergir as numerosas tendências, heterogêneas e muitas vezes opostas, dum organismo tão complexo. [pág. 107] Mas essa indispensável condição interior estaria longe de bastar, se ao mesmo tempo o mundo exterior não nos oferecesse espontaneamente uma base objetiva, independente de nós, na ordem geral dos diversos fenômenos que regem a humanidade, e cuja preponderância evidente pode permitir ao sentimento de amor disciplinar as inclinações discordantes, quando a inteligência nos desvendou o verdadeiro conjunto de nosso destino. Tal é a principal missão do espírito, dignamente consagrado de agora em diante ao serviço do coração, mediante a teoria positiva da sistematização humana.
Se, no início deste discurso, apresentei essa construção como inevitavelmente insuficiente e até mesmo quimérica, enquanto permanecesse parcial, devo agora acrescentar, para completar o grande programa filosófico, que não deve mais permanecer isolada. Ademais, a harmonia subjetiva seria impossível sem um vínculo objetivo. Em primeiro lugar, essa coordenação puramente interior, se à parte a supusermos já realizada, não comportaria evidentemente quase nenhuma eficácia habitual em relação a nossa felicidade privada ou pública, que muito depende do relacionamento de cada um de nós com o conjunto dos seres reais. Mas, além disso, em virtude da extrema imperfeição de nossa natureza, as tendências discordantes do egoísmo fundamental são de tal modo superiores às disposições simpáticas da sociabilidade que estas nunca poderiam prevalecer sem o ponto de apoio da economia exterior, que necessariamente provoca seu desenvolvimento contínuo, enquanto reprime a ascendência de seus adversários.
Para apreciar suficientemente essa reação indispensável, é preciso conceber essa ordem exterior como abarcando, além do mundo propriamente dito, o conjunto de nossos fenômenos que, apesar de serem os mais modificáveis de todos, também se sujeitam a leis naturais invariáveis, principal objetivo de nossas contemplações positivas. Ora, nossas afeições benévolas se encontram espontaneamente conforme àquelas leis, que regem diretamente a sociabilidade, e nos dispõem, de resto, a respeitar todas as outras, logo que nossa inteligência descubra seu império. A harmonia afetiva, mesmo privada, e, sobretudo pública, somente é possível mediante a evidente necessidade de subordinar a existência humana a essa ascendência exterior, única a tornar disciplináveis nossos instintos egoístas. A preponderância destes neutralizaria facilmente nossos impulsos simpáticos, se estes não encontrassem no exterior este apoio fundamental, que só a razão pode colocar a serviço do sentimento para regular a atividade.
É assim que a sistematização intelectual, essencialmente relativa a esse grande espetáculo natural, adquire necessariamente uma importância muito superior a suas próprias exigências teóricas, de ordinário tão fracas, mesmo dentre os mais contemplativos. Neste sentido, a síntese especulativa logo resolve a principal dificuldade apresentada pela síntese afetiva, associando a nossos melhores impulsos interiores uma poderosa estimulação exterior, que lhe permite conter de modo suficiente nossas inclinações discordantes, para estabelecer a harmonia habitual que sempre perseguem, mas nunca poderiam realizar sem tal contínuo socorro. Sabe-se, ademais, que essa concepção geral da ordem natural constitui diretamente a base indispensável de toda sistematização real dos atos humanos, que só comportam eficácia, em virtude de sua conformidade permanente ao conjunto dessa irresistível economia. Essa parte de nossa grande demonstração se encontra hoje de tal modo familiar que me dispenso indicá-la. Se a síntese especulativa permitir realizar a síntese afetiva, é claro que a síntese ativa não mais poderá oferecer dificuldades maiores, porquanto a unidade de impulso terminará por instituir uma unidade de ação já preparada pela unidade de concepção. Desse modo, toda a sistematização humana depende finalmente da simples coordenação mental, que no início deve parecer tão pouco decisiva. [pág. 108]
A seu princípio subjetivo, a preponderância do sentimento, o positivismo associa pois uma base objetiva, a imutável necessidade exterior, a única a permitir realmente subordinar a sociabilidade ao conjunto de nossa existência. A superioridade da nova sistematização sobre a antiga é mais evidente deste segundo aspecto do que do primeiro. Porquanto, este elo objetivo resultava, no teologismo, da crença espontânea nas vontades sobrenaturais. Ora, seja qual for a realidade que se atribua a essa ficção, a fonte permanecia subjetiva, o que devia tornar confusa e muito móvel sua eficácia habitual. A disciplina correspondente não podia ser comparável, nem em evidência nem em energia, nem mesmo em estabilidade, com a que comporta a noção contínua duma ordem verdadeiramente exterior, confirmada, apesar de nós mesmos, por toda nossa existência.
Esse dogma fundamental do positivismo deve ser concebido não como o produto instantâneo duma inspiração geral, mas como resultado gradual duma imensa elaboração especial, que começou com o primeiro exercício da razão humana e que apenas terminou hoje em seus órgãos mais avançados. Constitui a mais preciosa aquisição intelectual do conjunto da humanidade, preparando com esforço, durante sua longa infância, o único regime que convém finalmente à sua verdadeira natureza. Em todos os casos fundamentais, só é realmente demonstrável pela observação, salvo a extensão pela analogia. Jamais comporta provas dedutivas, a não ser em relação a fenômenos evidentemente compostos por aqueles em que já foi constatado. Assim, por exemplo, somos logicamente autorizados a admitir, em geral, leis meteorológicas, embora a maior parte ainda seja ignorada e talvez deva permanecer desconhecida, pois tais acontecimentos resultam por certo do concurso de influências naturais, astronômicas, físicas, químicas, etc., cada uma sendo reconhecida como sujeita a uma ordem invariável. Mas em relação a todos os fenômenos verdadeiramente irredutíveis a outros, somente uma indução especial pode determinar, a esse respeito, nossa convicção. Como poderia ser deduzido um princípio necessariamente destinado a fornecer a base tácita de toda dedução real? Eis por que esse dogma, tão estranho a nosso regime inicial, exigiu uma preparação tão longa que os mais eminentes pensadores não podiam dispensar. Quando as concepções metafísicas pareceram antecipar, a esse respeito, as verificações indispensáveis, sua eficácia resultou no fundo de sua aptidão provisória em generalizar, de maneira mais ou menos confusa, as analogias espontâneas suscitadas pela descoberta efetiva das leis naturais dos fenômenos mais simples. Essas antecipações dogmáticas permaneceram sempre equívocas, e, sobretudo, muito estéreis, enquanto não puderam vincular-se a um esboço especial de teoria verdadeiramente positiva. Assim, apesar da potência aparente de tais argumentações, tão familiares à razão moderna, o verdadeiro sentimento de ordem exterior encontra-se ainda profundamente insuficiente para os melhores espíritos, por falta duma verificação conveniente junto aos fenômenos mais complicados e mais importantes, salvo o pequeno número de pensadores que já admitem como definitiva minha descoberta fundamental das principais leis sociológicas. A incerteza que subsiste assim num estudo intimamente ligado a todos os outros exerce ademais sobre estes tenebrosa reação, que altera gravemente a noção de invariabilidade até em seus mais simples temas; como o testemunha, por exemplo, a aberração radical de quase todos os geômetras atuais quanto ao pretenso cálculo do acaso, em que se supõe necessariamente que os fatos correspondentes não seguem lei alguma. Esse grande dogma não poderia ser, pois, em caso algum, solidamente estabelecido a não ser que sua verificação especial se estendesse a todas as categorias essenciais de fenômenos elementares. Mas já que essa difícil condição se encontra suficientemente preenchida hoje, entre os pensadores verdadeiramente ao nível de seu século, podemos enfim constituir diretamente a unidade humana, sobre [pág. 109] esta base objetiva, de agora em diante, inabalável: todos os acontecimentos reais, compreendendo os de nossa própria existência individual e coletiva, estão sempre sujeitos a relações naturais de sucessão e de similitude, essencialmente independentes de nossa intervenção.
Tal é, pois, o fundamento exterior da grande síntese, tanto afetiva e ativa como puramente especulativa, constantemente relativa a essa ordem imutável. Sua apreciação real constitui o principal objeto de nossas contemplações; sua preponderância necessária regula o florescimento geral de nossos sentimentos; seu aperfeiçoamento gradual determina a finalidade contínua de nossas ações. Para melhor apreender sua influência, bastaria supor, por um momento, sua inexistência afetiva: então nossa inteligência se consumiria em divagações desenfreadas, logo seguidas dum torpor incurável; nossas melhores inclinações não mais conteriam a ascendência espontânea sobre os instintos menos nobres; e nossa atividade só chegaria a uma agitação incoerente. Embora essa ordem tenha sido ignorada por muito tempo, seu império inevitável nem por isso deixou de tender a regular, sem que quiséssemos, toda nossa existência, primeiro, ativa, e, em seguida, contemplativa ou mesmo afetiva. Na medida em que a conhecemos, nossas concepções se tornaram menos vagas, nossas inclinações menos caprichosas, nossa conduta menos arbitrária. Desde que apreendemos seu conjunto, tende a regularizar, em todos os gêneros, a sabedoria humana, apresentando sempre nossa economia artificial como um judicioso prolongamento dessa irresistível economia natural. Esta é preciso estudar e respeitar, para chegar a aperfeiçoá-la. Mesmo naquilo que nos oferece de verdadeiramente fatal, isto é, de não modificável, essa ordem exterior é indispensável para a direção de nossa existência, a despeito das recriminações artificiais de tantas inteligências orgulhosas. Se, por exemplo, supusermos o homem subtraído da necessidade de habitar a terra e livre de mudar à vontade sua residência planetária, toda noção de sociedade se encontraria logo destruída, em virtude das tendências vagabundas e inconciliáveis a que se entregariam assim as diversas individualidades. A irresolução e a inconseqüência, inerentes à multiplicidade e à mediocridade de nossas inclinações, não nos permitem uma conduta contínua e unânime, a não ser por causa dessas exigências insuperáveis, sem as quais nossa razão raquítica, a despeito de seus vãos murmúrios, nunca chegaria a terminar suas confusas deliberações. Incapazes de criar, só sabemos modificar, em nosso proveito, uma ordem essencialmente superior à nossa influência. Supondo possível a independência absoluta, sonhada pelo orgulho metafísico, percebemos logo que, longe de melhorar nosso destino, ela impediria todo florescimento real de nossa existência, até mesmo privada. O principal artifício do aperfeiçoamento humano consiste, ao contrário, em diminuir a indecisão, a inconseqüência e a divergência de quaisquer de nossos desígnios, vinculando-os a motivos exteriores, àqueles hábitos intelectuais, morais e práticos que emanam no início de fontes puramente interiores. Pois todos os vínculos mútuos de nossas diversas tendências são incapazes de assegurar sua fixidez, até que encontrem fora um ponto de apoio inacessível a nossas variações espontâneas.
Seja qual for, porém, a feliz eficácia do dogma positivo, precisamente no que a ordem natural nos oferece de imutável, devemos sobremaneira considerar as modificações artificiais de que essa economia é susceptível sob tantos aspectos, porquanto fornecem a principal destinação de nossa atividade. Os mais simples de todos os fenômenos, os de nossa existência planetária, são, com efeito, os únicos que não podemos modificar de modo algum. Embora, desde que conheçamos suas leis, possamos facilmente conceber diversos melhoramentos. Mas nossa potência física, seja qual for a extensão que chegue um dia, permanecerá sempre incapaz de mudar algo. Cabe a nós, ao contrário, dispor [pág. 110] nossa existência para sofrer, da melhor forma possível, essas irresistíveis condições gerais, cuja simplicidade superior nos permite previsões mais preciosas e mais longínquas. Sua apreciação positiva, de que dependeu notadamente a longa evolução preparatória de nossa inteligência, nos fornecerá sempre a fonte mais nítida e mais decisiva do verdadeiro sentimento da imutabilidade. Se seu estudo demasiadamente exclusivo tende ainda a nos conduzir ao fatalismo, essa influência, de agora em diante regulada por uma educação mais filosófica, pode facilmente concorrer para nosso melhoramento moral, predispondo-nos melhor à sábia resignação a respeito de todos os males verdadeiramente insuperáveis.
Em todo o resto da ordem exterior, sua invariabilidade fundamental sempre se concilia com suas modificações secundárias. Tornam-se mais profundas e mais variadas na medida em que a complicação crescente dos fenômenos permite, à nossa fraca intervenção, melhor alterar os resultados provenientes do concurso das mais diversas e mais acessíveis influências, como insisti em meu Sistema de filosofia positiva. Seguindo o espírito desta obra, nossa intervenção adquire assim tanto mais eficácia quanto as leis naturais mais se reportam à nossa existência, seja individual, seja coletiva. Em relação a esta, sobretudo, as modificações comportam tal extensão que muito contribuem para ainda manter o erro vulgar, que apresenta esses fenômenos como libertos de toda regra imutável.
Para completar tal apreciação geral do dogma positivista, importa acrescentar que essa aptidão crescente da ordem exterior a sofrer a intervenção humana combina-se necessariamente com sua imperfeição maior, do que constitui assim uma espécie de compensação espontânea, muito preciosa embora insuficiente. Pois esses dois caracteres resultam igualmente da complicação gradual da economia natural. O próprio regime astronômico é muito imperfeito, a despeito de sua simplicidade superior, o que de resto torna para nós mais irrecusáveis suas diversas inconveniências, cuja sumária consideração merece uma séria atenção. Embora não possamos remediar, essa visão nos preserva duma estúpida admiração, podendo utilmente concorrer para fixar a atitude definitiva da humanidade em presença das dificuldades de todos os gêneros, que caracterizam seu verdadeiro destino. Sobretudo tende a afastar radicalmente a vã pesquisa do bem absoluto, que tanto entrava a sábia procura de melhorias reais.
Quanto a todos os outros fenômenos, a imperfeição crescente da economia natural determina incessantemente uma ativa estimulação de toda nossa existência positiva, tanto moral e mental quanto puramente prática, chamando-nos sempre a aliviar os males capazes de serem contidos pelo judicioso concurso de nossos esforços contínuos. É sobretudo assim que a humanidade pode desenvolver um caráter de firmeza e de dignidade sempre estranho à sua longa infância teológica. Para quem quer que se eleve hoje ao verdadeiro ponto de vista do futuro social, a concepção do homem, tomada sem escrúpulo e sem jactância como o único arbítrio, dentro de certos limites, do conjunto de seu destino, constitui por certo uma noção muito mais satisfatória, sob todos os aspectos, do que a antiga ficção providencial, que nos supunha sempre passivos. Tal apreciação habitual tende diretamente a fortificar o vínculo social, em que cada um é levado a ver seu principal recurso privado a seu dispor contra as misérias gerais da condição humana. Despertando nossos mais nobres sentimentos, nos faz assim melhor apreender a importância da principal cultura intelectual, dirigida então a seu verdadeiro destino. Embora essa feliz influência sempre tenha aumentado entre os modernos, foi até agora muito restrita e empírica para que se possa formar dela uma idéia justa, a não ser antecipando a propósito do futuro humano, segundo uma teoria histórica sadia. Pois nossa [pág. 111] arte sistemática não compreende ainda esta parte da economia fundamental que, sendo ao mesmo tempo a mais modificável e imperfeita além da mais importante, deve constituir, sob todos os aspectos, o principal objeto de nossa permanente solicitude. A arte médica propriamente dita começa apenas a sair de sua rotina inicial. Quanto à arte social, moral ou política, permanece de tal modo mergulhada nessa rotina que a maioria dos homens de estado até mesmo contesta a possibilidade de um dia sairmos dela. E este é o único recurso para racionalizar todo o resto de nossa existência prática. Mas tais visões limitadas só existem hoje graças ao sentimento demasiadamente incompleto da realidade das leis naturais relativas aos fenômenos mais eminentes. Quando a ordem fundamental é dignamente reconhecida em seu verdadeiro conjunto, a concepção habitual da arte torna-se necessariamente tão extensa e homogênea quanto a da ciência; nenhum bom espírito pode então contestar que nossa existência social constitua agora o principal domínio de ambas.
O serviço geral da inteligência em relação à sociabilidade não se limita, pois, a fazer com que esta conheça a economia natural, de que deve aceitar o império inevitável. Para que essa determinação teórica possa guiar nossa atividade, é preciso a ela acrescentar a exata apreciação dos diversos limites de variação peculiares a essa ordem exterior e também os limites de suas principais imperfeições. Esses dois dados gerais são os únicos a permitir caracterizar e circunscrever nossa sábia intervenção. A crítica positiva da natureza sempre constituirá pois importante atributo da sã filosofia, embora a intenção antiteológica, que a inspirou no início, tenha deixado de oferecer um interesse maior, em conseqüência de sua irrevogável eficácia. Sem se ocupar de qualquer luta, conceber-se-á de agora em diante tal exame como destinado a melhor colocar o conjunto da questão humana. Liga-se diretamente à finalidade contínua de toda nossa existência no regime positivo, porquanto o aperfeiçoamento supõe primeiramente a imperfeição. Essa conexidade geral torna-se antes de tudo necessária em relação à nossa própria natureza, pois a verdadeira moralidade exige profundo sentimento habitual de nossos vícios espontâneos.
Todas essas indicações bastam para caracterizar a condição fundamental, segundo a qual a grande sistematização humana, sem deixar de ser essencialmente afetiva por seu princípio subjetivo, deve finalmente depender duma operação especulativa, a única capaz de fornecer-lhe uma base objetiva, ligando-a ao conjunto da economia exterior, de que a humanidade sofre e modifica o império. A despeito das dificuldades próprias a tal explicação, esta é suficiente para o fim deste discurso, simples prelúdio de um tratado completo. Faz diretamente apreciar o núcleo essencial da síntese positiva, como consistindo em descobrir a verdadeira teoria da evolução humana, ao mesmo tempo individual e coletiva. Porquanto, todo esboço decisivo sobre o tema final logo completa a noção geral da ordem natural e, necessariamente, a erige em dogma fundamental duma sistematização universal, gradualmente preparada pelo conjunto do movimento moderno. O concurso espontâneo dos trabalhos científicos, peculiares aos três últimos séculos, só deixa, a esse respeito, lacuna capital em relação aos fenômenos morais e notadamente sociais. Demonstrando também a existência de leis invariáveis, graças a uma primeira coordenação total do passado humano, a razão moderna termina sua laboriosa iniciação; construindo então seu regime final, eleva-se ao único ponto de vista donde tudo pode abraçar.
Esta foi a dupla finalidade da elaboração fundamental pela qual, conforme afirmam os principais pensadores atuais, completei e coordenei o conjunto da filosofia natural, estabelecendo a lei geral da evolução humana, social e intelectual. Não deve voltar aqui [pág. 112] essa grande lei, não mais contestada atualmente, e que de resto encontrará seu lugar dogmático no terceiro volume deste novo tratado. Proclama, como se sabe, a passagem necessária de todas as nossas especulações por três estados sucessivos; primeiro, o teológico, em que dominam francamente as ficções espontâneas, desprovidas de qualquer prova; depois, o estado metafísico, caracterizado sobretudo pela preponderância habitual das abstrações personificadas ou entidades; por fim, o estado positivo, sempre fundado numa exata apreciação da realidade exterior. O primeiro regime, embora puramente provisório, constitui em toda parte nosso único ponto de partida; o terceiro, o único definitivo, representa nossa existência normal; quanto ao segundo, comporta apenas influência modificadora, ou melhor, dissolvente, que o destina somente a dirigir a transição duma a outra constituição. Tudo começa, com efeito, sob inspiração teológica, para desembocar na demonstração positiva, passando pela argumentação metafísica. Desse modo, uma mesma lei geral nos permite de agora em diante abarcar ao mesmo tempo o passado, o presente e o futuro da humanidade.
A esta lei de filiação meu Sistema de filosofia positiva sempre associou a lei de classificação, cuja aplicação dinâmica fornece o segundo elemento indispensável à minha teoria da evolução, determinando a ordem necessária, segundo a qual nossas diversas concepções participam de cada fase sucessiva. Sabe-se que essa ordem está regulada pela generalidade decrescente dos fenômenos correspondentes, ou, o que implica o mesmo, por sua complicação crescente. Daí resulta sua dependência espontânea em relação a todos aqueles que são mais simples e menos especiais. A hierarquia fundamental de nossas especulações reais consiste assim em sua classificação natural em seis categorias elementares: matemática, astronômica, física, química, biológica e, enfim, sociológica; cada uma sofrendo antes da seguinte os diferentes graus essenciais da evolução total, que só poderia oferecer um caráter vago e confuso, sem o uso contínuo de tal classificação.
Uma teoria formada pela íntima combinação dessa lei estática com a lei dinâmica parece primeiramente concernir apenas ao movimento intelectual da humanidade. Mas as explicações indicadas acima nos garantem previamente sua aptidão necessária a também abarcar o desenvolvimento social, cuja marcha geral necessitou sempre depender da marcha de nossas concepções elementares sobre o conjunto da economia natural. A parte histórica de minha grande obra demonstra a correspondência contínua entre a evolução ativa e a evolução especulativa, cujo concurso natural deveria regular a evolução afetiva. Essa extensão decisiva da teoria fundamental exige unicamente que se lhe acrescente um último complemento essencial, diretamente relativo ao crescimento temporal da humanidade. Consiste, como se sabe, na sucessão necessária dos diversos caracteres principais da atividade humana, primeiro, conquistadora, depois, defensiva e, finalmente, industrial. Sua solidariedade natural com a preponderância respectiva do espírito teológico, do espírito metafísico e do espírito positivo, logo explica o conjunto do passado, sistematizando sem esforço a única concepção histórica que seja espontaneamente sancionada pela razão pública, isto é, a distinção geral entre a Antiguidade, a Idade Média e o Estado moderno.
Para fundar enfim a verdadeira ciência social bastava pois estabelecer irrevogavelmente essa teoria da evolução, combinando, com a lei dinâmica que a caracteriza, primeiro, o princípio estático que a consolida, depois, a extensão temporal que a completa. Essa fundação decisiva termina por constituir o conjunto da filosofia natural, afastando para sempre a distinção provisória que, desde Aristóteles e Platão, a separava profundamente da filosofia moral. O espírito positivo, por tanto tempo limitado aos mais simples [pág. 113] fenômenos inorgânicos, finaliza então sua difícil iniciação, estendendo-se até as especulações mais complicadas e importantes, de agora em diante liberadas de todo regime teológico ou metafísico. Tornando-se assim homogêneas todas as nossas concepções reais, a unidade especulativa tende logo a estabelecer-se espontaneamente, de maneira a fornecer uma sólida base objetiva para a sistematização total, que constitui a finalidade característica da verdadeira filosofia, que permaneceu até agora impossível, por falta de elementos suficientes.
Perceber-se-á como a principal dificuldade desta síntese definitiva consistia, ouso dizer, na descoberta de minha teoria fundamental da evolução humana, se considerarmos que tal teoria, ao mesmo tempo que completa e coordena essa base objetiva, subordina-a espontaneamente ao princípio subjetivo, que sempre deve dirigir o conjunto da construção filosófica. Apreciando assim a ordem universal, a inteligência, orgulhosa dum ofício indispensável que somente ela pode cumprir, está muitas vezes disposta a desconhecer sua destinação necessária ao serviço contínuo da sociabilidade. Tende a seguir livremente sua inclinação natural para divulgações especulativas, de tal modo fortalecidas hoje por hábitos empíricos peculiares ao florescimento preliminar das especialidades positivas. É preciso pois que a inspiração subjetiva a reconduza incessantemente à sua verdadeira vocação, impedindo suas contemplações de tomar um caráter absoluto e uma expansão ilimitada, que reproduzissem, sob a forma científica, os principais inconvenientes do regime teológico-metafísico. O universo deve ser estudado não por si mesmo, mas para o homem, ou melhor, para a humanidade. Qualquer outro desígnio seria no fundo tão pouco racional quanto moral. Pois é somente como subjetivas, nunca como puramente objetivas, que nossas especulações reais podem ser verdadeiramente satisfatórias, quando se limitam a descobrir na economia natural as leis que, duma maneira mais ou menos direta, influenciam com efeito nossos destinos. Fora desse domínio, determinado pela sociabilidade, nossos conhecimentos sempre permanecerão imperfeitos e ociosos, mesmo em relação aos mais simples fenômenos, como testemunha a astronomia. Sem essa constante preponderância do sentimento, o espírito positivo logo retornaria às predileções, espontâneas de sua longa infância, para as contemplações mais afastadas do homem, que também são as mais fáceis. Enquanto sua iniciação permaneceu incompleta, essa tendência natural de dar prosseguimento indistintamente a todas as investigações verdadeiramente acessíveis só se pôde justificar pela eficácia lógica que a maior parte daquelas desprovidas de toda utilidade científica comportava. Mas desde que o método positivo desenvolveu-se suficientemente para, diretamente, dirigir-se à sua verdadeira destinação, esses exercícios ociosos prolongaram viciosamente o regime preliminar. Essa vaga anarquia especulativa toma ainda um caráter cada vez mais retrógrado, tendendo a destruir os principais resultados obtidos pelo espírito de pormenor, enquanto permaneceu verdadeiramente positivo.
A construção de base objetiva indispensável à grande síntese humana suscita pois uma dificuldade muito grave em conciliar a liberdade habitual, sem o qual a inteligência não poderia proceder convenientemente, com a disciplina contínua que exige sua tendência espontânea às divulgações indefinidas. Essa conciliação seria essencialmente impossível, enquanto o estudo da ordem natural não se estender até as leis sociológicas. Mas logo que o espírito positivo abrace realmente esta atribuição final, a supremacia necessária de tais especulações o submete, sem esforço, ao jugo legítimo do sentimento. Em sua marcha geral do exterior para o interior, a apreciação objetiva vem então vincular-se espontaneamente ao impulso subjetivo, de que havia por muito tempo entravado o império fundamental. Nenhum verdadeiro pensador pode mais recusar admitir as demonstrações [pág. 114] decisivas que, ainda sob o simples aspecto especulativo, estabelecem, de agora em diante, a preponderância lógica e científica do ponto de vista social, como único elo possível de todas nossas contemplações reais. Sua ascendência necessária nunca poderia tornar-se opressiva em relação aos diversos estudos positivos que constituirão sempre, quer para o método, quer para a doutrina, o preâmbulo indispensável dessa ciência final. Este regime definitivo imprime, ao contrário, a cada ciência preparatória, ao mesmo tempo uma consagração preciosa e uma fecunda estimulação, ligando-a diretamente ao conjunto da humanidade.
Tal é o modo natural por meio de que, como anunciava no início deste curso, o espírito positivo, graças à fundação da sociologia, vem se colocar para sempre sob a justa dominação do coração, de maneira a permitir, enfim, a total sistematização, conforme à subordinação contínua da base objetiva em relação ao princípio subjetivo. Dissipando definitivamente o antagonismo excepcional que, desde o fim da Idade Média, necessitou desenvolver-se entre a razão e o sentimento, essa operação filosófica chama de imediato a humanidade para penetrar no regime, individual ou coletivo, que convém plenamente à sua natureza. Enquanto permaneceram contrárias entre si essas duas nobres influências, a sociabilidade não podia chegar a modificar profundamente o império prático da personalidade. No entanto, a despeito de sua fraca energia espontânea em nossa imperfeita organização, seu concurso íntimo e contínuo, susceptível de imensa expansão, poderá, de agora em diante, sem alterar o caráter essencialmente egoísta da vida ativa, imprimir-lhe um grau habitual de moralidade, de cujo passado não poderia formar idéia alguma, tendo em vista a harmonia insuficiente que estes dois moderadores necessários de todos os nossos instintos preponderantes comportavam até agora. [pág. 115]
CATECISMO
POSITIVISTA
Tradução e notas de Miguel Lemos [pág. 117]
PREFÁCIO
"Em nome do passado e do futuro, os servidores teóricos e os servidores práticos da humanidade vêm tomar dignamente a direção geral dos negócios terrestres, para construir, enfim, a verdadeira providência, moral, intelectual e material; excluindo irrevogavelmente da supremacia política todos os diversos escravos de Deus, católicos, protestantes ou deístas, como sendo, ao mesmo tempo, atrasados e perturbadores." Tal foi a declaração decisiva com que terminei, no Palais Cardinal, no domingo, 19 de outubro de 1851, após um resumo de cinco horas, meu terceiro Curso Filosófico sobre a História Geral da Humanidade. Depois desse memorável encerramento, a publicação do segundo tomo do meu Sistema de Política Positiva acaba de comprovar diretamente quanto convém semelhante destino social à filosofia capaz de inspirar a teoria mais sistemática da ordem humana.
Vimos, pois, abertamente libertar o Ocidente de uma democracia anárquica e de uma aristocracia retrógrada, para constituirmos, tanto quanto possível, uma verdadeira sociocracia, que faça concorrer sabiamente para a regeneração comum todas as forças humanas, aplicadas sempre conforme a natureza de cada uma. Com efeito, nós, sociocratas, não somos nem democratas, nem aristocratas. Aos nossos olhos, a massa respeitável destes dois partidos opostos representa empiricamente, de um lado, a solidariedade, do outro, a continuidade, entre as quais o positivismo estabelece profundamente uma subordinação necessária, que substitui enfim o antagonismo deplorável que as separava. Mas, conquanto nossa política se eleve igualmente acima destas duas tendências incompletas e incoerentes, estamos longe de aplicar hoje a mesma reprovação aos dois partidos correspondentes. Trinta anos há que dura minha carreira filosófica e social e sempre senti um profundo desprezo pelo que se tem chamado, sob nossos diversos regimes, a oposição, e uma secreta afinidade pelos construtores quaisquer. Aqueles mesmos que queriam construir com materiais evidentemente gastos pareceram-me sempre preferíveis aos meros demolidores, num século em que a reconstrução geral se torna por toda parte a principal necessidade. Apesar do atraso de nossos conservadores oficiais, nossos puros revolucionários se me afiguram ainda mais afastados do verdadeiro espírito de nosso tempo. Estes prolongam obcecadamente, pelo meio do século XIX, a direção negativa que só podia convir ao XVIII, sem resgatarem esta estagnação pelos sentimentos generosos de renovação universal que caracterizaram seus predecessores.
Por isso, se bem que as inclinações populares permaneçam espontaneamente favoráveis a eles, o poder passa sempre às mãos de seus adversários, que, pelo menos, reconheceram a incompetência orgânica das doutrinas metafísicas, e procuram alhures princípios de reconstrução. Na maior parte destes, a retrogradação não é, no fundo, senão um último recurso provisório, em falta de coisa melhor, sem nenhuma convicção teológica [pág. 119] verdadeira, contra uma anarquia iminente. Posto que todos os estadistas pareçam pertencer agora a esta escola, pode-se assegurar que ela apenas lhes fornece as fórmulas indispensáveis à coordenação de suas vistas empíricas, enquanto esperam pela concatenação mais real e mais estável dimanada de uma nova doutrina universal.1
1 De conformidade com o conselho dado por Augusto Comte a um dos seus discípulos ingleses, John Fisher, que então tentava traduzir este Catecismo, suprimimos o parágrafo relativo ao Czar Nicolau I.
A título de documento, reproduzimos aqui, conforme a cópia autêntica que nos remeteu Jorge Lagarrigue, o trecho da carta em que Fisher comunica a Henry Edger essa resolução do Mestre: "Manchester 18th Aristotles 69. My dear Sir and Confrère. Let me first complete a duty — with reference to the translation of the Catechism. I nave received the command of our reverend Master to make the following alterations: The paragraph commencing "Tel est certainement", p. 7 and ending with the words "fixe en France", p. 8, is to be left out of the next edition, consequently out of any translations".
Tal é certamente o único chefe temporal verdadeiramente eminente de que nosso século pode até aqui honrar-se, o nobre czar que, fazendo expandir-se seu império imenso tanto quanto sua situação atual comporta, preserva-o, com enérgica sabedoria, de uma vã fermentação. Seu judicioso empirismo compreendeu que o Ocidente era o único investido da gloriosa e difícil missão de fundar a regeneração humana, de que o Oriente deve em seguida, pacificamente, apropriar-se, à medida que ela surja. Ele me parece mesmo ter sentido que esta imensa elaboração se achava especialmente reservada para o grande centro ocidental, cuja espontaneidade necessariamente desordenada deve apenas ser sempre respeitada, como profundamente indispensável à solução comum. A agitação habitual de todo o restante do Ocidente, embora mais difícil de ser contida que a do Oriente, é, no fundo, quase tão nociva ao curso natural da reorganização final, de que ela tende a deslocar inutilmente o principal foco, quanto ao conjunto do passado fixado em França.
Nossa situação ocidental exclui por tal modo o ponto de vista puramente revolucionário que ela reserva ao campo oposto a produção das máximas mais características. Sem embargo da memorável fórmula prática devida a um democrata, afortunadamente iletrado,2 foi entre os puros conservadores que surgiu a mais profunda sentença política do século XIX. Só se destrói o que se substitui. O autor desta admirável máxima, tão bem expressa quanto bem pensada, não oferece, entretanto, nada de eminente sob o aspecto intelectual. Ele só se recomenda verdadeiramente por uma rara combinação das três qualidades práticas, a energia, a prudência e a perseverança. Mas o ponto de vista orgânico tende hoje por tal forma a alargar as concepções, que ele basta, numa situação favorável, para inspirar a um espírito superficial um princípio realmente profundo, que o positivismo adota e desenvolve sistematicamente.3
2 Alude a Caussidière, prefeito de polícia do governo da Revolução de 1848. A máxima é esta: "Precisamos fazer ordem com desordem".
3 É por engano que Augusto Comte atribui aqui e alhures a máxima citada a Luís Bonaparte, depois Napoleão III. Este, com efeito, empregou semelhante frase numa carta política dirigida ao General Piat, pouco tempo antes da composição deste Catecismo. Não há dúvida, porém, de que tal sentença já havia sido formulada, provavelmente por Danton, como se infere do seguinte trecho da Biographie des Ministres de la Révolution, obra publicada em 1825: "Danton parecia estar convencido deste princípio político, que só se destrói verdadeiramente o que é substituído, e ele fazia consistir neste sistema toda a revolução".
Seja como for, a natureza retrógrada das doutrinas exaustas que os nossos conservadores empregam provisoriamente deve torná-las essencialmente impróprias para dirigir a política real no meio de uma anarquia que teve sua primeira origem na impotência final das antigas crenças. A razão ocidental não pode mais deixar-se guiar por opiniões evidentemente indemonstráveis, e até radicalmente quiméricas, como todas as que são inspiradas por uma teologia qualquer, ainda mesmo reduzida ao seu dogma [pág. 120] fundamental.4 Todos reconhecem hoje que a nossa atividade prática deve cessar de consumir-se em hostilidades mútuas, para fomentar na paz o aproveitamento comum do planeta humano. Menos ainda podemos persistir neste estado de infância intelectual e moral em que a nossa conduta não assenta senão sobre motivos absurdos e degradantes. Sem nunca repetir o século XVIII, deve o século XIX continuá-lo sempre, realizando enfim o nobre voto de uma religião demonstrada dirigindo uma atividade pacífica.
4 Deus.
Desde que a situação afasta toda tendência puramente negativa, as únicas escolas filosóficas do último século que caíram em verdadeiro descrédito são as seitas inconseqüentes, cujo predomínio não podia deixar de ser efêmero. Os demolidores incompletos, como Voltaire e Rousseau, que julgavam poder derrubar o altar conservando o trono, ou vice-versa, estão irrevogavelmente decaídos, depois de terem dominado, segundo o destino normal que lhes cabia, as duas gerações que prepararam e que levaram a termo a explosão revolucionária. Desde, porém, que a reconstrução está na ordem do dia, a atenção pública volta-se cada vez mais para a grande e imortal escola de Diderot e Hume, que há de realmente caracterizar o século XVIII, ligando-o ao anterior por Fontenelle e ao seguinte por Condorcet. Igualmente emancipados em religião e em política, esses poderosos pensadores tendiam necessariamente para uma reorganização total e direta, por mais confusa que devesse ser então a noção de semelhante reforma. Todos eles abraçariam hoje a única doutrina que, fundando o futuro sobre o passado, assenta, enfim, as bases inabaláveis da regeneração ocidental. É de uma tal escola que me honrarei sempre de descender imediatamente, por intermédio de meu precursor essencial, o eminente Condorcet. Pelo contrário, nunca esperei senão óbices, espontâneos ou propositais, por parte dos atrasados destroços das seitas superficiais e imorais oriundas de Voltaire e de Rousseau.
Mas a essa grande estirpe histórica sempre referi o que os nossos últimos adversários, quer teológicos, quer metafísicos, ofereceram de realmente grande. Hume constitui meu principal precursor filosófico, Kant se acha a ele acessoriamente ligado; a concepção fundamental deste não foi verdadeiramente sistematizada e desenvolvida senão pelo positivismo. Do mesmo modo, sob o aspecto político, foi necessário que eu completasse Condorcet por De Maistre, de quem assimilei, logo no começo de minha carreira, todos os princípios essenciais, que não são mais agora apreciados senão na escola positiva. Tais são, com Bichat e Gall, como precursores científicos, os seis predecessores imediatos que hão de me religar sempre aos três pais sistemáticos da verdadeira filosofia moderna, Bacon, Descartes e Leibniz. Em virtude desta nobre filiação, a Idade Média, intelectualmente resumida por Santo Tomás de Aquino, Rogério Bacon e Dante, subordina-me diretamente ao príncipe eterno dos verdadeiros pensadores, o incomparável Aristóteles.
Remontando até esta origem normal, sente-se profundamente que, desde a suficiente extensão do domínio romano, as populações de elite procuram em vão a religião universal. A experiência demonstrou cabalmente que este voto final não pode ser satisfeito por nenhuma crença sobrenatural. Dois monoteísmos incompatíveis aspiraram igualmente a essa universalidade necessária, sem a qual a humanidade não poderia seguir o seu destino natural. Mas os esforços opostos de um e outro apenas conseguiram neutralizar-se mutuamente, de modo que semelhante atributo ficou reservado às doutrinas demonstráveis e discutíveis. Há mais de cinco séculos que o islamismo desistiu de dominar o [pág. 121] Ocidente, e o catolicismo abandonou ao seu eterno antagonista o túmulo de seu pretenso fundador. 5
5 Para Augusto Comte, São Paulo é o verdadeiro fundador do catolicismo.
Estas vãs aspirações espirituais nem sequer puderam abarcar todo o território do antigo domínio temporal, que ficou repartido quase igualmente entre os dois monoteísmos inconciliáveis.
O Oriente e o Ocidente devem, pois, procurar, fora de toda teologia ou metafísica, as bases sistemáticas de sua comunhão intelectual e moral. Esta fusão tão esperada, e que deverá estender-se em seguida gradualmente à totalidade de nossa espécie, não pode evidentemente provir senão do positivismo, isto é, de uma doutrina caracterizada sempre pela combinação da realidade com a utilidade. Suas teorias, por muito tempo limitadas aos fenômenos mais simples, produziram aí as únicas convicções realmente universais que têm existido até hoje. Mas este privilégio natural dos métodos e das doutrinas positivas não podia ficar sempre circunscrito ao domínio matemático e físico. Desenvolvido primeiramente quanto à ordem material, ele abraçou em seguida a ordem vital, de onde acaba enfim de estender-se até a ordem humana, coletiva ou individual. Esta plenitude decisiva do espírito positivo desvanece agora todos os pretextos para a conservação factícia do espírito teológico, que se tornou, no Ocidente moderno, tão perturbador quanto o espírito metafísico, que dele se origina histórica e dogmaticamente. Por outro lado, havia muito, aliás, que a degradação moral e política do sacerdócio correspondente destruíra toda a esperança de atalhar, como na Idade Média, os vícios da doutrina pela sabedoria instintiva de seus melhores intérpretes.
De hoje em diante, abandonada espontaneamente à sua corrupção natural, a crença monotéica, cristã ou muçulmana, merece cada vez mais a reprovação que seu advento inspirou, pelo espaço de três séculos, aos mais nobres práticos e teóricos do mundo romano. Não podendo, então, julgar o sistema senão pela doutrina, eles não hesitavam em repelir, como inimiga do gênero humano, uma religião provisória que fazia consistir a perfeição num isolamento celeste. O instinto moderno reprova ainda mais uma moral que proclama as inclinações benévolas como alheias à nossa natureza, que desconhece a dignidade do trabalho, a ponto de fazê-lo derivar de uma maldição divina, e que erige a mulher como fonte de todo mal. Tácito e Trajano não podiam prever que, durante alguns séculos, a sabedoria sacerdotal, auxiliada por uma situação favorável, haveria de conter suficientemente os vícios naturais de tais doutrinas para delas tirar, provisoriamente, admiráveis resultados sociais. Desde que o sacerdócio ocidental se tornou irremediavelmente retrógrado, sua crença, entregue a si mesma, tende a desenvolver sem peias o caráter imoral inerente à sua natureza anti-social. Ela só mereceu os resguardos dos conservadores prudentes enquanto foi impossível substituir-lhe uma concepção melhor do mundo e do homem, a qual só podia resultar de uma lenta ascensão do espírito positivo. Mas esta laboriosa iniciação estando agora terminada, o positivismo elimina irrevogavelmente o catolicismo, como qualquer outro teologismo, em virtude mesmo da admirável máxima social acima citada.
Depois de ter plenamente satisfeito a inteligência e a atividade, a religião positiva, sempre impulsionada por sua realidade característica, estendeu-se convenientemente até o sentimento, que doravante forma seu domínio principal e se torna a base de sua unidade. Não receamos, pois, que os verdadeiros pensadores, teóricos ou práticos, possam hoje, como no começo do catolicismo, desconhecer a superioridade de uma fé real e completa, que, longe de ser fortuitamente social, se mostra tal por sua própria natureza. [pág. 122] Compete, aliás, à conduta moral e política de seu sacerdócio nascente, e de todos os seus verdadeiros adeptos, o fazer apreciar empiricamente a excelência da nova fé, mesmo por aqueles que não puderem julgar diretamente os princípios dela. Uma doutrina que há de desenvolver sempre todas as virtudes humanas, pessoais, domésticas e cívicas será em breve respeitada por todos os seus adversários honestos, qualquer que seja a vã predileção destes por uma síntese absoluta e egoísta oposta à síntese relativa e altruísta.
A fim de instituir, porém, esta concorrência decisiva, cumpria primeiro condensar assaz o positivismo para que ele se pudesse tornar verdadeiramente popular. Tal é o destino especial deste opúsculo excepcional, por cuja causa interrompo, durante algumas semanas, minha grande construção religiosa, da qual só está terminada até agora a primeira metade.6 A princípio julguei que este precioso episódio teria de ser adiado até o completo acabamento daquele imenso trabalho. Mas, depois de ter escrito, em janeiro de 1851, a teoria positiva da unidade humana, senti-me bastante adiantado para fazer suceder este intermédio ao volume cujo primeiro e principal capítulo consta dessa teoria. Crescendo cada vez mais, à medida que eu elaborava esse tomo decisivo, semelhante esperança tornou-se completa quando escrevi seu prefácio final. Realizo-a hoje, antes de começar a construção da sociologia dinâmica, que caracterizará, no ano próximo, o terceiro volume do meu Sistema de Política Positiva.
6 Refere-se ao Sistema de Política Positiva, do qual só estavam então publicados os dois primeiros volumes.
Devido à maturidade inesperada de minhas concepções principais, esta resolução foi muito fortalecida pela crise feliz que acaba de abolir o regime parlamentar e de instituir a república ditatorial, duplo preâmbulo de toda verdadeira regeneração.7 Sem dúvida, esta ditadura não oferece ainda o caráter essencial explicado em meu curso positivista de 1847. Falta-lhe sobretudo conciliar-se suficientemente com uma plena liberdade de exposição, e mesmo de discussão, diretamente indispensável à reorganização espiritual, e que é, aliás, a garantia única contra toda tirania retrógrada. Mas este complemento necessário não tardará muito em realizar-se de um modo qualquer, que infelizmente me parece supor, como as fases precedentes, uma última crise violenta. Obtido que seja este complemento, seu advento empírico deverá determinar em breve a pacífica evolução do triunvirato sistemático que caracteriza a ditadura temporal, apresentada, no curso a que acima aludi, como peculiar à transição orgânica.8 Sem esperar, porém, por estas duas novas fases do empirismo revolucionário, a situação ditatorial permite já a propagação direta das meditações regeneradoras. A liberdade de exposição que ela proporciona espontaneamente a todos os verdadeiros construtores, quebrando, enfim, o vão domínio dos palradores, devia especialmente convidar-me a dirigir imediatamente os pensamentos femininos e proletários para a renovação fundamental.
7 Alude ao golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851. Cumpre observar que, se este mereceu a aprovação de Augusto Comte, porque abolia o regime parlamentar e inaugurava a ditadura republicana, por ele aconselhada à França desde 1847, não deixou o nosso Mestre de reprovar a restauração do Império. Lembraremos, a este propósito, um fato muito pouco conhecido e completamente esquecido pelos historiadores: o único senador da República que votou contra semelhante restauração foi Viellard, aderente filosófico e político do nosso Mestre desde 1822.
8 Cumpre completar e retificar o que aqui se diz acerca do advento do triunvirato sistemático, com a marcha que para tal advento traçou depois Augusto Comte, no último capítulo do tomo IV de seu Sistema de Política Positiva e no Apelo aos Conservadores.
Este trabalho episódico fornecendo dignamente uma base sistemática à propagação ativa do positivismo, auxilia necessariamente minha construção principal, trazendo a nova religião para o seu verdadeiro meio social. Por mais sólidos que sejam os fundamentos [pág. 123] lógicos e científicos da disciplina intelectual que a filosofia positiva institui, esse regime severo é demasiado antipático aos espíritos atuais para que ele possa prevalecer jamais sem o apoio irresistível das mulheres e dos proletários. A necessidade de tal regime não pode ser somente apreciada senão nesta dupla massa social, que, alheia a toda pretensão doutoral, é a única que pode impor a seus chefes sistemáticos as condições enciclopédicas exigidas pelo ofício social deles. Eis por que não receio popularizar aqui alguns termos filosóficos realmente indispensáveis, que o positivismo não inventou, mas cuja concepção foi por ele sistematizada, e cujo emprego ele desenvolveu. Tais são nomeadamente dois pares essenciais de fórmulas características: primeiro estático e dinâmico, em seguida objetivo e subjetivo, sem os quais minha exposição ficaria insuficiente. Quando estes termos são definidos com propriedade de uma vez por todas, sobretudo segundo uma acepção invariável, o judicioso emprego deles facilita muito as explicações filosóficas, em vez de as tornar menos inteligíveis. Não hesito em consagrar aqui expressões que a religião positiva deve fazer passar desde já na circulação universal, atenta à alta importância de seu uso intelectual e também moral.
Levado, assim, a compor um verdadeiro catecismo para a religião da humanidade, tive, em primeiro lugar, que examinar sistematicamente a forma dialógica, sempre adotada em tais exposições. Não tardei em achar aí um novo exemplo do atilado instinto com que a sabedoria prática antecipa muitas vezes as sãs indicações da teoria. Tendo acabado de construir especialmente a teoria positiva da linguagem humana, senti logo que, devendo a expressão ter sempre por objeto final a comunicação, sua forma natural consiste no diálogo. E como, por outro lado, toda combinação, mesmo física, e sobretudo lógica, é binária, tal conversação não comporta, sob pena de ser confusa, senão um único interlocutor. O monólogo só pode realmente convir à concepção, cuja marcha ele se limita a formular, como se a pessoa pensasse em voz alta, sem cuidar de nenhum ouvinte. Quando o discurso não tem somente por fim assistir às investigações do raciocínio, mas dirigir a comunicação dos resultados deste, ele exige uma nova elaboração, especialmente adaptada a essa transmissão. É necessário, então, considerar o estado peculiar do ouvinte, e prever as modificações que semelhante exposição há de suscitar em sua marcha espontânea. Em uma palavra, a simples narrativa deve assim transformar-se numa verdadeira conversação. E nem as condições essenciais desta podem ser suficientemente preenchidas senão supondo um interlocutor único e claramente determinado. Se, porém, este tipo for bem escolhido, poderá ele, no uso ordinário do diálogo, representar suficientemente qualquer leitor; pois que, por outro lado, não é possível variar o modo de exposição segundo as diversas conveniências individuais, como no caso da verdadeira conversação.
O discurso plenamente didático deveria, portanto, diferir essencialmente do simples discurso lógico, em que o pensador segue desimpedido sua própria marcha sem levar em nenhuma conta as condições naturais de uma comunicação qualquer. Todavia, afim de evitar uma laboriosa refusão, limitamo-nos quase sempre a transmitir os pensamentos como eles foram a princípio concebidos, posto que este modo grosseiro de exposição muito contribua para a pouca eficácia da maior parte das leituras. A forma dialógica, peculiar a toda verdadeira comunicação, é reservada para explicar as concepções que são, ao mesmo tempo, assaz importantes e assaz amadurecidas. É por isso que o ensino religioso foi em todos os tempos efetuado por via de conversação e não de narrativa. Longe de denunciar uma incúria, que só seria desculpável nos casos secundários, esta forma, quando bem instituída, constitui, pelo contrário, o único modo de exposição verdadeiramente didático: convém igualmente a todas as inteligências. Mas as dificuldades [pág. 124] próprias da nova elaboração que o diálogo exige fazem justamente que se desista dele nas comunicações ordinárias. Seria pueril procurar esta perfeição num ensino destituído de interesse fundamental. Por outro lado, esta transformação didática só é realizável em relação a doutrinas bastante elaboradas para permitir comparar nitidamente as diversas maneiras de expor o conjunto delas e prever com facilidade as objeções que elas hão de suscitar.
Se eu houvesse de indicar aqui todos os princípios gerais que convêm à arte de comunicar, ainda caracterizaria o aperfeiçoamento relativo ao estilo. Dedicados sobretudo à expressão dos sentimentos, os poetas reconheceram sempre quanto os versos são para isso preferíveis à prosa, afim de tornar mais estética a linguagem artificial, aproximando-a mais da linguagem natural. Ora, os mesmos motivos seriam também aplicáveis à comunicação dos pensamentos, se a esta se devesse ligar igual importância. A concisão do discurso e a assistência das imagens, duplo caráter essencial da verdadeira versificação, seriam tão adequados a aperfeiçoar a exposição como a efusão. Assim, a comunicação perfeita não exigiria tão-somente a substituição do diálogo pelo monólogo, mas também a da prosa pelo verso. Todavia, este segundo melhoramento didático deve ainda ser mais excepcional que o primeiro, por causa dos novos cuidados que requer. Ele supõe, até, maior maturidade nas concepções correspondentes, não só no intérprete, mas também no auditório, tendo este de suprir logo, por um trabalho espontâneo, as lacunas da concisão poética. Por isso é que muitos poemas admiráveis ainda jazem escritos em prosa, apesar da imperfeição de semelhante forma, desculpável, então, por se tratar de um domínio muito pouco familiar. Um motivo análogo foi ainda maior impedimento para que se versificasse qualquer catecismo religioso. Mas a realidade e a espontaneidade que distinguem as crenças positivas permitirão um dia dotar sua exposição popular com este último aperfeiçoamento, quando elas começarem a se difundir assaz para comportarem uma concisão imaginosa. É só provisoriamente, portanto, que nos devemos limitar aí a substituir o monólogo pelo diálogo.
Fundado nesta teoria especial da forma didática, fui levado não só a justificar o uso anterior, mas também a melhorá-lo no que se refere ao interlocutor. A indeterminação total do ouvinte tornava essencialmente vago o modo dialógico que assim até ficava quase ilusório. Tendo sistematizado a instituição empírica do diálogo, senti logo que ela ficaria incompleta, e, portanto, insuficiente, enquanto o interlocutor não fosse nele com clareza definido, ao menos para o autor. É só tendo em vista uma comunicação real, embora atualmente ideal, que se podem desenvolver bastante todas as vantagens essenciais de semelhante forma. Institui-se, então, uma verdadeira conversação, em vez de uma narrativa dialogada.
Aplicando logo este princípio evidente, não podia eu deixar de espontaneamente escolher a angélica interlocutora que, após um único ano de influência objetiva, se acha, há mais de seis, subjetivamente associada a todos os meus pensamentos como a todos os meus sentimentos. Graças a ela tornei-me, enfim, para a humanidade um órgão verdadeiramente duplo, como todo aquele que experimentou de modo digno o ascendente feminino. Sem ela nunca eu teria podido fazer suceder ativamente a carreira de São Paulo à de Aristóteles, fundando a religião universal sobre a sã filosofia, depois de ter tirado esta da ciência real. A constante pureza de nosso laço excepcional e também a superioridade admirável do anjo menosprezado já são, aliás, assaz apreciadas pelas almas de elite. Quando, há quatro anos, por ocasião da publicação de meu Discurso sobre o Conjunto do Positivismo, revelei esta incomparável inspiração, ela não podia a princípio ser julgada senão pelos seus resultados intelectuais e morais, desde então manifestos aos corações [pág. 125] simpáticos e aos espíritos sintéticos. Mas, no ano passado, o tríplice preâmbulo, que sempre distinguirá o primeiro tomo de meu Sistema de Política Positiva, fez com que cada um pudesse apreciar diretamente essa natureza egrégia. Por isso, em minha recente publicação do segundo volume desse mesmo tratado, pude já felicitar-me abertamente pela tocante unanimidade das simpatias decisivas que ambos os sexos sentem pela nova Beatriz. Estes três antecedentes públicos dissipam aqui qualquer hesitação acerca de minha santa interlocutora, bastante conhecida dos leitores dignamente preparados para que as nossas conferências possam na realidade lhes inspirar um interesse próprio e direto.
Semelhante catecúmena preenche vantajosamente todas as condições essenciais do melhor tipo didático. Madame Clotilde de Vaux foi-me tão cedo arrebatada que, apesar de sua superioridade pessoal, ela não pôde ser bastante iniciada no positivismo, para o qual tendiam espontaneamente seus votos e seus esforços.9 Antes que a morte interrompesse de modo irrevogável esta afetuosa instrução, já a dor e os desgostos a haviam profundamente estorvado. Efetuando hoje subjetivamente a preparação sistemática que apenas pude esboçar objetivamente, a discípula angélica só me oferece, pois, as disposições essenciais que apresentam também a maioria das mulheres, e mesmo muitos proletários. Em todas essas almas que o positivismo ainda não atingiu, eu apenas suponho, como no caso de minha eterna companheira, um desejo profundo de conhecer a religião capaz de superar a anarquia moderna, e uma sincera veneração pelo seu sacerdote. Preferirei, até, os leitores que nenhuma cultura escolástica impeça de preencherem espontaneamente, no grau necessário, estas duas condições prévias.
9 Clotilde de Vaux nasceu a 3 de abril de 1815 e faleceu a 5 de abril de 1846.
Todos os que conhecem minha instituição geral dos verdadeiros anjos da guarda, já bastante explicada em minha Política Positiva, sabem, aliás, que o principal tipo feminino é aí habitualmente inseparável dos outros dois. Esta doce conexão aplica-se mesmo ao caso excepcional que me oferece reunidas, em minha casta companheira imortal, a mãe subjetiva que minha segunda vida pressupõe e a filha objetiva que estava destinada a embelezar minha existência temporária. Desde que a sua invariável reserva purificara suficientemente minha afeição até levantá-la ao nível da sua, eu não aspirava senão à união plenamente confessável que devia resultar de uma adoção legal, em harmonia com a desigualdade de nossas idades. Quando eu publicar nossa digna correspondência,10 minha última carta constatará diretamente este santo projeto, fora do qual nossas fatalidades respectivas nos teriam vedado o sossego e a felicidade.
10 Esta correspondência só foi publicada, com o Testamento, Orações e Confissões Anuais, em 1886.
É pois, sem nenhum esforço, que vou aplicar neste catecismo os qualificativos pessoais impostos habitualmente pela instrução religiosa. O sacerdócio positivo exige, ainda mais do que o sacerdócio teológico, uma inteira maturidade, sobretudo em virtude de sua imensa preparação enciclopédica. Eis aí por que estabeleci a idade de quarenta e dois anos para a ordenação dos padres da humanidade, pois é então que finaliza todo o desenvolvimento corpóreo e cerebral, e termina, ao mesmo tempo, a primeira vida social. Os nomes pai e filha tornam-se, pois, especialmente apropriados entre o iniciador e a catecúmena, segundo a antiga etimologia do título sacerdotal. Empregando-os aqui, aproximo-me espontaneamente das relações pessoais em que eu teria vivido se não fosse nossa fatal catástrofe.
Mas esta concentração da santa conferência no anjo preponderante não deve encobrir, nem ao leitor, nem a mim próprio, a constante participação tacitamente peculiar às [pág. 126] minhas duas outras padroeiras. A venerável mãe11 e a nobre filha adotiva,12 cuja influência subjetiva e ação objetiva já fiz conhecer alhures, estarão aqui sempre presentes a meu coração quando meu espírito sofrer dignamente o impulso dominante. Inseparáveis daqui por diante, estes três anjos se acham de tal modo ligados a mim que o concurso contínuo deles acaba de sugerir, ao eminente artista de que o positivismo se honra hoje, uma admirável inspiração estética que converteu um simples retrato num quadro profundo.13
11 A mãe de Augusto Comte, Rosália Boyer Comte, falecida em Montpellier a 3 de março de 1837.
12 A filha adotiva chamava-se Sofia Bliaux Thomas, que de simples criada do Mestre foi por ele elevada a tão eminente categoria pela sua inexcedível dedicação. Sobreviveu ao Mestre, falecendo a 5 de dezembro de 1861.
13 Augusto Comte refere-se a um quadro a óleo executado por Antonio Etex. Essa notável composição representava o filósofo escrevendo sob a inspiração dos seus três anjos (sua mãe, Clotilde e Sofia). Depois da morte de Augusto Comte, o quadro ficou em poder da "indigna viúva", que, por vingança e despeito, mandou apagar as figuras acessórias, deixando apenas a cabeça do Mestre. É o que resta de tão memorável tela, hoje conservada no domicílio sagrado da rua Mr. le Prince.
Instituindo, assim, a conversação didática, facilito tanto meu trabalho como o do leitor. Porquanto semelhante exposição pública aproxima-se muito das explicações privadas que naturalmente me teria pedido a minha santa companheira, se nossa união objetiva se houvesse prolongado mais, como já o prova minha carta filosófica sobre o casamento.14 A própria estação do ano em que efetuo esta grata elaboração recorda-me especialmente os desejos espontâneos de iniciação metódica que ela manifestou no decurso do nosso ano incomparável. Basta, pois, transportar-me a sete anos atrás para conceber objetivamente o que hoje devo desenvolver subjetivamente, atribuindo a 1852 minha situação de 1845. Mas esta transposição forçada proporciona-me a preciosa compensação de fazer apreciar melhor o ascendente angélico que não posso assaz caracterizar senão combinando dois admiráveis versos, respectivamente destinados a Beatriz e a Laura:
Quella che'mparadisa la mia mente15
Ogni basso pensier dal cor m'avulse.16
Esta tardia realização de uma iniciação afetuosa torna-a, por outro lado, mais de acordo com as disposições paternais que finalmente prevaleceram em relação àquela que sempre me será associada como discípula e colega ao mesmo tempo. Sua idade tendo-se tornado fixa, segundo a lei geral da vida subjetiva, é excedida cada vez mais pela minha, a ponto de já não me permitir senão imagens filiais. Esta continuidade mais perfeita de nossa dupla existência aperfeiçoa também a harmonia total de minha própria natureza. Explicando assim a constituição positiva da unidade humana, eu desenvolvo e consolido a ligação fundamental entre minha vida privada e minha vida pública. A reação filosófica devida ao anjo inspirador torna-se então tão completa e tão direta quanto pode ser, e, por conseqüência, plenamente irrecusável aos olhos de todos. Ouso, portanto, esperar que, para testemunhar minha justa gratidão, a condigna assistência das almas seletas suprirá em breve a profunda inópia que sinto no meio de minhas melhores efusões cotidianas, como Dante em relação à sua suave padroeira:
Non è l'affezion mia tanto profonda.
Che basti a render voi grazia per grazia.17
14 Esta carta acha-se reproduzida no ensaio biográfico de Augusto Comte pelo Dr. Robinet.
15 "Aquela que emparaísa minha mente." Dante, Paraíso, canto 28.°, v. 3.
16 "Que me arranca do coração todo pensamento baixo." Petrarca, Sonetos.
17 "A minha afeição não é tão profunda que baste para vos retribuir graça por graça." Dante, Paraíso, canto 4.°, vv. 121, 122. [pág. 127]
Este reconhecimento público, porém, deve aqui estender-se, tanto quanto o meu próprio, aos outros dois anjos que completam meu principal impulso feminino. Por mais remota que seja, infelizmente para mim, a imponente recordação do perfeito catolicismo que dominou minha nobre e terna mãe, ela me impulsionará sempre a fazer prevalecer, melhor do que na minha mocidade, a cultura contínua do sentimento sobre a da inteligência, e mesmo sobre a da atividade. Por outro lado, se a apreciação demasiado exclusiva dos fundamentos privados, que as verdadeiras virtudes públicas exigem, pudesse arrastar-me aqui a desconhecer a importância própria e direta da moralidade cívica, eu logo retificaria meu desvio, graças à admirável sociabilidade de minha terceira padroeira. Empreendo, pois, este trabalho excepcional sob a assistência especial de todos os meus anjos, embora a cooperação de dois deles tenha que permanecer muda, sem que isto altere seus títulos pessoais à veneração universal.
Apreciada sob um aspecto mais geral, esta instituição didática tende diretamente a caracterizar de modo profundo a religião correspondente; porquanto ela faz sobressair espontaneamente a natureza fundamental do regime positivo, o qual, destinado sobretudo a disciplinar sistematicamente todas as forças humanas, baseia-se principalmente no concurso contínuo do sentimento com a razão para regular a atividade. Ora, esta série de conversações representa sempre o coração e o espírito concertando-se religiosamente a fim de moralizarem o poder material a que o mundo real se acha necessariamente submetido. A mulher e o sacerdote constituem, de fato, os dois elementos essenciais do verdadeiro poder moderador, ao mesmo tempo doméstico e cívico. Organizando esta santa coligação social, cada elemento procede aqui de acordo com a sua genuína natureza: o coração propõe as questões que o espírito resolve. Assim, a própria composição deste catecismo logo indica a principal concepção do positivismo: o homem pensando sob a inspiração da mulher, para fazer sempre concorrer a síntese com a simpatia, a fim de regularizar a sinergia.
Em virtude de semelhante instituição do novo ensino religioso, dirige-se ele de preferência ao sexo afetivo. Esta predileção, já conforme ao verdadeiro espírito do regime final, convém sobretudo á transição extrema, em que todas as influências peculiares ao estado normal devem sempre funcionar com mais intensidade, porém menos regularmente. Posto que eu creia que este opúsculo decisivo há de ter em breve um grande acolhimento entre os dignos proletários, ele convém mais às mulheres, principalmente às mulheres iletradas. Só elas podem compreender assaz a preponderância que merece a cultura habitual do coração, tão comprimida pela grosseira atividade, teórica e prática, que domina o Ocidente moderno. É só no santuário da alma feminina que se pode hoje encontrar a digna submissão de espírito exigida por uma regeneração sistemática. Nestes últimos quatro anos, um deplorável exercício do sufrágio universal tem viciado profundamente a razão popular, até então preservada dos sofismas constitucionais e dos conluios parlamentares, concentrados nos ricos e nos letrados. Dando largas a um obcecado orgulho, nossos proletários acreditaram-se, assim, dispensados de todo estudo sério para decidirem as mais elevadas questões sociais. Conquanto esta degeneração seja muito menor entre os ocidentais do Meio-Dia, que a resistência católica abrigou contra a metafísica protestante ou deísta, também começa a ser aí muito propagada por leituras negativas. Por toda parte vejo que só as mulheres podem oferecer-me, em virtude de sua salutar exclusão política, um ponto de apoio capaz de fazer prevalecer livremente os princípios que hão de habilitar, enfim, os proletários a colocar bem sua confiança teórica e prática.
A profunda anarquia das inteligências motiva, por outro lado, este apelo especial da religião positiva ao sexo afetivo, pois que essa anarquia torna mais necessário do que [pág. 128] nunca o predomínio do sentimento que atualmente é o único preservativo da sociedade ocidental contra uma completa e irremediável dissolução. Desde o fim da Idade Média, é só a intervenção feminina que secretamente refreia os estragos morais peculiares à alienação mental para a qual tem tendido cada vez mais o Ocidente, e sobretudo seu centro francês. Este delírio crônico tendo chegado ao seu auge, visto que nenhuma máxima social consegue superar uma discussão corrosiva, só os sentimentos é que sustentam a ordem ocidental. Mas estes mesmos já se acham muito alterados por causa das reações sofísticas, sempre favoráveis aos instintos pessoais, aliás mais enérgicos.
Dos três pendores simpáticos que caracterizam nossa verdadeira constituição cerebral, os dois extremos estão muito enfraquecidos, e o médio quase extinto na maior parte dos homens que hoje tomam parte ativa na agitação ocidental. Quando se penetra no seio das famílias atuais é que se vê quanto o apego está debilitado nas relações que o devem desenvolver melhor. Quanto à bondade geral, tão preconizada hoje, ela indica mais o ódio contra os ricos do que o amor pelos pobres, porquanto a filantropia moderna exprime muitas vezes uma pretendida benevolência com as formas peculiares à sanha ou à inveja. Mas o mais usual dos três instintos sociais, por ser aquele que oferece a única base direta de toda verdadeira disciplina humana, a veneração, acha-se ainda mais alterado que os outros dois. Esta degeneração, sensível sobretudo entre os letrados e os ricos, lavra também entre os proletários, a menos que uma judiciosa indiferença não os afaste do movimento político.
A veneração pode, entretanto, persistir no meio dos maiores extravios revolucionários, contra os quais ela ministra espontaneamente o melhor corretivo. Disso tive eu mesmo a prova outrora durante a fase profundamente negativa que devia preceder meu desenvolvimento sistemático. Nessa época eu só fui preservado de uma desmoralização sofistica pelo entusiasmo, conquanto este me expusesse especialmente às seduções passageiras de um charlatão superficial e depravado.18 A veneração constitui hoje o sinal decisivo que caracteriza os revolucionários suscetíveis de uma verdadeira regeneração, por mais atrasada que ainda tenham a inteligência, sobretudo entre os comunistas iletrados.
18 Alude a Saint-Simon, o fundador do industrialismo. Sobre as relações de Augusto Comte com este sofista, vêde Filosofia Positiva, tomo VI, prefácio, p. 7, nota; Política Positiva, tomo III, p. 15; Lettres ã M. Valat, pp. 36, 37, 51, 75, 106, 107, e sobretudo toda a carta XVI, p. 112; a Biografia de Augusto Comte, pelo Dr. Robinet; La Loi des Trois États, pelo Dr. Sémérie, e Revue Occidentale, tomos VIII e IX.
Mas, apesar de este precioso sintoma se verificar agora na imensa maioria dos negativistas, ele falta com certeza à maior parte dos seus chefes, no meio de uma anarquia que faz prevalecer temporariamente por toda parte as naturezas más. Apesar de seu pequeno número, estes homens verdadeiramente indisciplináveis exercem uma vasta influência, que predispõe à fermentação subversiva todos os cérebros desprovidos de convicções inabaláveis. Contra esta peste ocidental não pode existir agora outro recurso habitual senão o desprezo das populações ou a severidade dos governos. Mas à única doutrina que há de regularizar esta dupla garantia não é dado, no princípio, comportar outro apoio decisivo senão o sentimento feminino, em breve assistido pela razão proletária.
Sem a digna intervenção do sexo afetivo, a disciplina positiva não conseguiria rechaçar para as últimas fileiras esses pretendidos pensadores que decidem peremptoriamente em sociologia conquanto ignorem a aritmética. De fato, o povo, partilhando ainda a muitos respeitos os vícios principais de tais chefes, conserva-se até agora incapaz de [pág. 129] coadjuvar o novo sacerdócio contra esses faladores perigosos. Pelo menos, não posso esperar desde logo um concurso coletivo senão por parte dos proletários que se têm conservado alheios aos nossos debates políticos, posto que espontaneamente apegados, como as próprias mulheres, ao fito social da grande revolução. Tal é o duplo meio preparado para este catecismo.
Afora os motivos gerais que devem aqui dirigir para as mulheres minha principal solicitude, há muito que fui levado a pensar que delas depende sobretudo o advento decisivo da solução ocidental indicada pelo conjunto do passado.
Em primeiro lugar, seria absurdo pretender pôr termo sem elas à mais completa das revoluções humanas, quando é sabido que as mulheres contribuíram profundamente para todas as renovações anteriores. A repugnância instintiva que elas sentem pelo movimento moderno bastaria para torná-lo estéril, se realmente tal repulsão fosse invencível. É daí que decorre, no fundo, a singular e funesta anomalia que impõe chefes retrógrados a populações progressivas, como se ao idiotismo e à hipocrisia competisse subministrar as garantias oficiais da ordem ocidental. Só depois que houver assaz vencido estas resistências femininas é que a religião positiva poderá desenvolver suficientemente, contra os principais partidários das várias doutrinas atrasadas, a reprovação decisiva que merece a inferioridade mental e moral deles.
Os que negam hoje a existência natural dos afetos desinteressados tornam-se justamente suspeitos de só repelirem neste ponto as demonstrações da ciência moderna por causa da imperfeição radical de seus próprios sentimentos. Não perseguindo o mínimo bem senão sob o engodo de uma recompensa infinita, ou pelo temor de um suplício eterno, o seu coração mostra-se tão degradado quanto evidentemente está o seu espírito, visto o absurdo de suas crenças. Entretanto, a adesão tácita das mulheres confia ainda a direção oficial do Ocidente àqueles que por tais característicos serão avisadamente excluídos de toda função superior, quando o positivismo houver sistematizado condignamente a razão pública.
A religião da humanidade, porém, privará em breve a retrogradação deste apoio augusto, que só um justo horror da anarquia lhe conserva. Com efeito, apesar de prevenções empíricas, as mulheres acham-se muito dispostas para bem apreciar a única doutrina que pode hoje conciliar radicalmente a ordem com o progresso. Elas hão de reconhecer sobretudo que esta síntese final, posto que abrangendo todas as faces de nossa existência, faz prevalecer melhor o sentimento do que a síntese provisória, que a ele sacrificava a inteligência e a atividade. Nossa filosofia torna-se plenamente conforme ao espírito feminino, rematando a escala enciclopédica com a moral, que, como ciência e como arte, constitui necessariamente o estudo mais importante e mais difícil, resumindo e dominando todos os outros. Desenvolvendo, enfim, o sentimento cavalheiresco, comprimido outrora pelos conflitos teológicos, o culto positivo erige o sexo afetivo como providência moral de nossa espécie. Cada digna mulher ministra habitualmente a esse culto a melhor representação do verdadeiro Grande Ser. Sistematizando a família, como base normal da sociedade, o regime correspondente faz dignamente prevalecer naquela a influência feminina, transformada, enfim, em supremo árbitro privado da educação universal. Por todos estes títulos, a verdadeira religião será plenamente apreciada pelas mulheres, logo que elas reconhecerem suficientemente os principais caracteres que a distinguem. Aquelas mesmo que a princípio deplorarem a perda de esperanças quiméricas não tardarão em sentir a superioridade moral de nossa imortalidade subjetiva, cuja natureza é profundamente altruísta, sobre a antiga imortalidade objetiva, que não podia deixar de ser radicalmente egoísta. A lei da viuvez eterna, que caracteriza o casamento positivista, bastaria para instituir a este respeito um contraste decisivo. [pág. 130]
A fim de incorporar melhor as mulheres à revolução ocidental, cumpre conceber a última fase desta como devendo oferecer-lhes um profundo interesse especial, diretamente relativo ao próprio destino delas.
As quatro grandes classes que compõem o fundo da sociedade moderna tiveram que sofrer sucessivamente o abalo radical que a sua regeneração definitiva primeiro exigia. Esse abalo começou, no último século, pelo desenvolvimento intelectual, instituindo, enfim, uma insurreição decisiva contra o conjunto do regime teológico e militar. A explosão temporal que devia seguir-se surgiu em breve de uma burguesia que, desde muito, aspirava cada vez mais a substituir a nobreza. Mas a resistência européia desta não pôde ser vencida senão chamando-se os proletários franceses em auxílio de seus novos chefes temporais. Assim introduzido na grande luta política, o proletário ocidental ergueu irresistíveis pretensões à sua justa incorporação na ordem moderna, quando a paz lhe permitiu uma suficiente manifestação de suas próprias aspirações. Todavia, este encadeamento revolucionário não abrange ainda o elemento mais fundamental do verdadeiro regime humano. A revolução feminina deve agora completar a revolução proletária, como esta consolidou a revolução burguesa, dimanada a princípio da revolução filosófica.
Só então é que o abalo moderno terá verdadeiramente preparado todas as bases essenciais da regeneração final. Enquanto ele não se estender às mulheres, não conseguirá senão prolongar nossas deploráveis oscilações entre a retrogradação e a anarquia. Mas este complemento decisivo resulta mais naturalmente do conjunto das fases anteriores do que qualquer destas da precedente. Ele liga-se sobretudo à revolução popular, em virtude da evidente solidariedade que subordina a incorporação social do proletariado à digna isenção da mulher de todo trabalho exterior. Sem esta emancipação universal, complemento necessário da abolição da servidão, a família proletária não poderá ser realmente constituída, pois que a existência feminina fica, assim, habitualmente entregue a uma horrível alternativa entre a miséria e a prostituição.
O melhor resumo prático de todo o programa moderno breve consistirá neste princípio incontestável: O homem deve sustentar a mulher, a fim de que ela possa preencher convenientemente seu santo destino social. Espero que este catecismo faça apreciar a íntima conexão que existe entre esta condição e o conjunto da grande renovação considerada sob todos os seus aspectos: moral, mental e mesmo material. Sob a santa reação da revolução feminina, a revolução proletária purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que até aqui a têm neutralizado. O sexo afetivo, tendendo afazer justamente prevalecer por toda parte a influência moral, reprova especialmente as brutalidades coletivas, e ainda suporta menos o jugo do número que o da riqueza. Mas seu latente impulso social produzirá em breve modificações não menos preciosas, posto que mais indiretas, relativamente às outras duas faces da revolução ocidental. Ele secundará o advento político do patriciado industrial e do sacerdócio positivo, dispondo-os a se desprenderem irrevogavelmente das classes heterogêneas e efêmeras que dirigirão a transição negativa. Por este modo completada e purificada, a revolução ocidental há de tender firme e sistematicamente para o seu pacífico termo, sob a direção geral dos verdadeiros servidores da humanidade. O impulso orgânico e progressivo afastará, onde quer que estejam, os retrógrados e anarquistas, tratando todo prolongamento do estado teológico ou metafísico como uma enfermidade cerebral que inabilita para o governo.
Tais são as condições essenciais que representam a composição deste catecismo como cabalmente acomodada ao seu objeto principal, atual ou permanente. Quando a religião positiva houver suficientemente prevalecido, este opúsculo tornar-se-á o seu melhor [pág. 131] resumo usual. Agora deve ele servir, a título de apanhado geral, para preparar o livre advento dela, por meio de uma propagação decisiva, que até hoje carecia de um guia sistemático.
O conjunto desta construção episódica caracteriza, por sua própria forma e marcha, todos os grandes atributos, intelectuais e morais, da nova fé. Sempre há de sentir-se aqui uma digna subordinação da razão masculina ao sentimento feminino, a fim de que o coração aplique todas as forças do espírito ao ensino difícil e importante. A reação final deste opúsculo deve, pois, fazer respeitar, e até compartilhar, meu culto íntimo pelo anjo incomparável donde procedem, ao mesmo tempo, as inspirações principais e a melhor exposição delas. Depois de tais serviços, minha santa interlocutora não tardará em tornar-se cara a todas as almas verdadeiramente regeneradas. Sua própria glorificação, doravante inseparável da minha, constituirá minha mais preciosa recompensa. Irrevogavelmente incorporada ao verdadeiro Ser supremo, sua terna imagem ministra-me, aos olhos de todos, a melhor personificação dele. Em cada uma das minhas três orações cotidianas, esta dupla adoração resume todos os meus votos de aperfeiçoamento íntimo no admirável anelo em que o mais sublime dos místicos preparava, a seu modo, a máxima moral do positivismo: Viver para outrem.
Amem te plus quam me, nec me nisi propter te!19
Augusto Comte
Fundador da Religião da Humanidade
Paris, 25 de Carlos Magno de 64 (domingo, 11 de julho de 1852).
P. S. Para aumentar a utilidade deste catecismo, ajunto a seu prefácio uma edição melhorada do breve catálogo que publiquei a 8 de outubro de 1851, a fim de dirigir os bons espíritos populares na escolha de seus livros habituais. Semelhante oficio só podia dimanar hoje do sacerdócio positivo, em virtude de seu caráter enciclopédico, que assim se torna mais apreciável. Os estragos intelectuais e morais que por toda parte exercem as leituras desordenadas devem hoje indicar assaz a importância crescente deste trabalhinho sintético. Posto que tal coleção não tenha sido ainda formada, pode cada um reunir facilmente desde já, sob qualquer forma, os seus diversos elementos.20
19 "Ame-te a ti mais do que a mim, e não me ame a mim senão por amor de ti." Imit. de Cristo, livro III, capítulo V.
20 (Biblioteca Positivista) Reproduzimos esta lista de obras segundo a edição (oitava) dada pelo Dr. Robinet no seu livro biográfico.
Sobre as várias edições, traduções, etc., dessas obras, nosso folheto: Calendário e Biblioteca Positivista, seguidos respectivamente de um Índice Onomástico e de um Índice Bibliográfico. Rio, 1902. [pág. 132]
Biblioteca Positivista no Século XIX
CENTO E CINQÜENTA VOLUMES
1.° — Poesia (trinta volumes)
A Ilíada e a Odisséia, reunidas em um só volume, sem anotações.
Ésquilo, seguido do Édipo Rei, de Sófocles, e Aristófanes, idem. Píndaro e Teócrito, seguidos de Dáfnis e Cloe, idem.
Plauto e Terêncio, idem.
Virgílio completo, Horácio escolhido e Lucano, idem.
Ovídio, Tibulo, e Juvenal, idem.
Os Fabliaux da Idade Média, coligidos por Legrand d'Aussy.
Dante, Ariosto, Tasso e Petrarca escolhido, reunidos num único volume, em italiano.
Os Teatros escolhidos de Metastásio e Alfieri, idem.
Os Noivos, por Manzoni (um único volume, em italiano).
O Dom Quixote e as Novelas de Cervantes (num mesmo volume em espanhol).
O Teatro Espanhol escolhido, coleção editada por Dom José Segundo Flores (um volume em espanhol).
O Romanceiro Espanhol escolhido, compreendendo o Poema do Cid (um volume em espanhol).
O Teatro escolhido de Pierre Corneille.
Molière completo.
Os Teatros escolhidos de Racine e Voltaire (reunidos num só volume).
As Fábulas de La Fontaine seguidas de algumas fábulas de Lamotte e Florian.
Gil Blas, por Lesage.
A Princesa de Clèves, Paulo e Virgínia, e o Último Abencerrage (reunidos num só volume).
Os Mártires, por Chateaubriand.
O Teatro escolhido de Shakespeare.
O Paraíso Perdido e as Poesias Líricas de Milton.
Robinson Crusoé e O Vigário de Wakefield (reunidos num só volume).
Tom Jones, por Fielding (em inglês, ou traduzido por Chéron).
As sete obras-primas de Walter Scott:
Ivanhoe, Waverley, A Formosa Donzela de Perth, O Oficial de Fortuna (Legenda de Montrose), Os Puritanos (Old Mortality), A Prisão de Edimburgo (Heart of Midlothian), O Antiquário.
As obras escolhidas de Byron (suprimindo nomeadamente o Don Juan).
As obras escolhidas de Goethe.
As Mil e Uma Noites. [pág. 133]
2.º — Ciência (trinta volumes)
A Aritmética de Condorcet, a Álgebra e a Geometria de Clairaut, e mais a Trigonometria de Lacroix ou Legendre (num só volume).
A Geometria Analítica de Augusto Comte, precedida da Geometria de Descartes.
A Estática de Poinsot, seguida de todas as memórias do mesmo autor sobre mecânica.
O Curso de Análise de Navier na Escola Politécnica, precedido das Reflexões sobre o Cálculo Infinitesimal, por Carnot.
O Curso de Mecânica de Navier na Escola Politécnica, seguido do Ensaio sobre o Equilíbrio e o Movimento, por Carnot.
A Teoria das Funções, por Lagrange.
A Astronomia Popular de Augusto Comte, seguida dos Mundos de Fontenelle.
A Física Mecânica de Fischer, traduzida e anotada por Biot.
O Manual Alfabético de Filosofia Prática, por John Carr.
A Química de Lavoisier.
A Estática Química, por Berthollet.
Os Elementos de Química, por Graham.
O Manual de Anatomia, por Meckel.
A Anatomia Geral de Bichat, precedida do seu Tratado sobre a Vida e a Morte.
O primeiro (e único) volume de Blainville sobre a Organização dos Animais.
A Fisiologia de Richerand, anotada por Bérard.
O Ensaio Sistemático sobre a Biologia, por Segond, e o Tratado de Anatomia Geral do mesmo autor.
Os Novos Elementos da Ciência do Homem, por Barthez (2.a edição, 1806).
A Filosofia Zoológica, por Lamarck.
A História Natural de Duméril.
O Tratado sobre a Natureza dos Rios, por Guglielmini (em italiano).
Os Discursos sobre a Natureza dos Animais, por Buffon.
A Arte de Prolongar a Vida Humana, por Hufeland, precedida do Tratado sobre os Ares, as Águas, e as Localidades, por Hipócrates, e seguida do livro de Cornaro Sobre a Sobriedade (reunidos num único volume).
A História das Flegmasias Crônicas, por Broussais, precedida de suas Proposições de Medicina, e, em primeiro lugar, dos Aforismos de Hipócrates (em latim), sem nenhum comentário.
Os Elogios dos Cientistas, por Fontenelle e Condorcet.
3.° — História (sessenta volumes)
O Resumo de Geografia Universal, por Malte-Brun.
O Dicionário Geográfico de Rienzi.
As Viagens de Cook e as de Chardin.
A História da Revolução Francesa, por Mignet.
O Manual da História Moderna, por Heeren.
O Século de Luís XIV, por Voltaire.
As Memórias de Madame de Motteville. [pág. 134]
O Testamento Político de Richelieu e a Vida de Cromwell (num só volume).
A História das Guerras Civis de França, por Davila (em italiano).
As Memórias de Benvenuto Cellini (em italiano).
As Memórias de Comines.
O Resumo da História de França, por Bossuet.
As Revoluções de Itália, por Denina.
Compêndio da História de Espanha, por Ascargota.
A História de Carlos V de Robertson.
A História de Inglaterra, por Hume.
A Europa durante a Idade Média, por Hallam.
A História Eclesiástica, por Fleury.
A História da Decadência Romana, por Gibbon.
O Manual da História Antiga, por Heeren.
Tácito completo (traduzido por Dureau de La Malle).
Heródoto e Tucídides (num só volume).
As Vidas de Plutarco (traduzidas por Dacier).
Os Comentários de César e as Expedições de Alexandre, por Arriano (num só volume).
A Viagem de Anacársis, por Barthélemy.
A História da Arte entre os Antigos, por Winckelmann.
O Tratado da Pintura, por Leonardo da Vinci (em italiano).
As Memórias sobre a Música, por Grétry.
Filosofia, Moral e Religião
4.° — Síntese (trinta volumes)
A Política e a Moral de Aristóteles (num só volume).
A Bíblia completa.
O Alcorão completo.
A Cidade de Deus, por Santo Agostinho.
As Confissões do mesmo, seguidas do Tratado sobre o Amor de Deus, por São Bernardo.
A Imitação de Jesus Cristo (o original latino com a tradução em verso de Corneille).
O Catecismo de Montpellier, precedido da Exposição da Doutrina Católica, por Bossuet, e seguido do Comentário sobre o Sermão de Jesus Cristo, por Santo Agostinho.
A História das Variações Protestantes, por Bossuet.
O Discurso sobre o Método, por Descartes, precedido do Novum Organum, de Bacon, e seguido da Interpretação da Natureza, por Diderot.
Os Pensamentos escolhidos de Cícero, Epicteto, Marco Aurélio, Pascal e Vauvenargues, seguidos dos Conselhos de uma Mãe, por Madame de Lambert, e das Considerações sobre os Costumes, por Duclos.
O Discurso sobre a História Universal, por Bossuet, seguido do Bosquejo Histórico, por Condorcet.
O Tratado do Papa, por De Maistre, precedido da Política Sagrada, por Bossuet.
Os Ensaios Filosóficos de Hume, precedidos da dupla Dissertação sobre os Surdos e os Cegos, por Diderot, e seguidos do Ensaio sobre a História da Astronomia, por Adam Smith.
A Teoria do Belo, por Barthez, precedida do Ensaio sobre o Belo, por Diderot.
As Relações entre o Físico e o Moral do Homem, por Cabanis. [pág. 135]
O tratado sobre as Funções do Cérebro, por Gall, precedido das Cartas sobre os Animais, por Georges Leroy.
O tratado sobre a Irritação e a Loucura, por Broussais (1.a edição).
A Filosofia Positiva de Augusto Comte (condensada por Miss Martineau), sua Política Positiva, seu Catecismo Positivista e sua Síntese Subjetiva.
AUGUSTO COMTE
(10, rua Monsieur-le-Prince)
Paris, 24 de Guttemberg de 64 (sábado, 4 de setembro de 1852).
[pág. 136]
INTRODUÇÃO
[pág. 137]
PRIMEIRA CONFERÊNCIA
TEORIA GERAL DA RELIGIÃO
A MULHER — Muitas vezes tenho perguntado a mim mesma, meu caro pai, por que razão persistis em qualificar de religião vossa doutrina universal, conquanto ela rejeite toda crença sobrenatural. Refletindo, porém, sobre isso, considerei que esse título aplica-se em comum a muitos sistemas diferentes, e até incompatíveis, cada um dos quais o toma para si exclusivamente, sem que nenhum deles tenha nunca deixado de contar, na totalidade de nossa espécie, mais adversários do que adeptos. Isto levou-me a pensar que esse termo fundamental deve ter uma acepção geral, que independa radicalmente de toda fé especial. Desde então, presumi que, atendo-vos a esse significado essencial, podíeis chamar assim ao positivismo, apesar de seu contraste mais profundo com as doutrinas anteriores, que proclamam suas dissidências mútuas como não menos graves que as suas concordâncias. Todavia, parecendo-me esta explicação ainda confusa, rogo-vos que comeceis vossa exposição por um esclarecimento direto e preciso acerca do sentido radical da palavra religião.
O SACERDOTE — Este nome, minha querida filha, não apresenta, de fato, pela sua etimologia, nenhuma solidariedade necessária com as opiniões quaisquer que possam ser empregadas para atingir o fim que ele designa. Em si mesmo, este vocábulo indica o estado de completa unidade que distingue nossa existência, a um tempo pessoal e social, quando todas as suas partes, tanto morais como físicas, convergem habitualmente para um destino comum. Assim, este termo seria equivalente à palavra síntese, se esta não estivesse, não por sua própria estrutura, mas segundo um uso quase universal, limitada agora só ao domínio do espírito, ao passo que a outra compreende o conjunto dos atributos humanos. A religião consiste, pois, em regular cada natureza individual e em congregar todas as individualidades; o que constitui apenas dois casos distintos de um problema único. Porquanto todo homem difere sucessivamente de si mesmo tanto quanto difere simultaneamente dos outros; de maneira que a fixidez e a comunidade seguem leis idênticas.
Não podendo semelhante harmonia, individual ou coletiva, realizar-se nunca plenamente em uma existência tão complicada como a nossa, esta definição da religião caracteriza, portanto, o tipo imutável para o qual tende cada vez mais o conjunto dos esforços humanos. Nossa felicidade e nosso mérito consistem sobretudo em nos aproximarmos tanto quanto possível dessa unidade, cujo surto gradual constitui a melhor medida do verdadeiro aperfeiçoamento, pessoal ou social. Quanto mais se desenvolvem os diversos atributos humanos, tanto mais importância adquire o concurso habitual deles; este, [pág. 139] porém, se tornaria também mais difícil, se essa evolução não tendesse espontaneamente a tornar-nos mais disciplináveis, como breve vo-lo explicarei.
O apreço que sempre se ligou a esse estado sintético devia concentrar a atenção sobre o modo de o instituir. Foi-se assim levado, tomando o meio pelo fim, a transferir o nome religião ao sistema qualquer das opiniões correspondentes. Por mais inconciliáveis, porém, que pareçam, à primeira vista, essas numerosas crenças, o positivismo as combina essencialmente, referindo cada uma ao seu destino temporário e local. Não existe, no fundo, senão uma única religião, ao mesmo tempo universal e definitiva, para a qual tenderam cada vez mais as sínteses parciais e provisórias, tanto quanto o comportavam as respectivas situações. A esses diversos esforços empíricos sucede agora o desenvolvimento sistemático da unidade humana, cuja constituição direta e completa tornou-se, enfim, possível graças ao conjunto de nossas preparações espontâneas. É assim que o positivismo dissipa naturalmente o antagonismo mútuo das diferentes religiões anteriores, formando seu domínio próprio do fundo comum a que todas se reportaram de modo instintivo. A sua doutrina não poderia tornar-se universal se, apesar de seus princípios antiteológicos, o seu espírito relativo não lhe ministrasse necessariamente afinidades essenciais com cada crença capaz de dirigir passageiramente uma porção qualquer da humanidade.
A MULHER — Vossa definição da religião me satisfará de todo, meu pai, se vos for possível esclarecer suficientemente a grave dificuldade que me parece resultar de sua excessiva extensão. Porquanto, caracterizando nossa unidade, vós incluis nela tanto o físico como o moral. Com efeito, eles estão de tal maneira unidos que uma perfeita harmonia não pode nunca estabelecer-se quando se quer separá-los. Contudo, não poderia habituar-me a fazer entrar a saúde na religião, de modo a prolongar até a medicina o verdadeiro domínio da moral.
O SACERDOTE — Entretanto, minha filha, o cisma arbitrário que desejais manter seria diretamente contrário à nossa unidade. Tal divórcio só é realmente devido à insuficiência da última religião provisória, que não pode disciplinar a alma senão abandonando aos profanos o domínio do corpo. Nas antigas teocracias, que constituíram o modo mais completo e mais duradouro do regime sobrenatural, esta vã divisão não existia; a arte higiênica e médica foi sempre aí um simples anexo do sacerdócio.
Tal é, com efeito, a ordem natural, que o positivismo vem restabelecer e consolidar, em virtude de sua plenitude característica. A arte humana e a ciência humana são respectivamente indivisíveis, como os diversos aspectos peculiares ao destino comum de ambas (o homem), no qual tudo se acha constantemente ligado. Não se pode mais tratar bem nem do corpo nem da alma, por isso mesmo que o médico e o padre estudam exclusivamente o físico ou o moral; sem falar do filósofo que, durante a anarquia moderna, arrebata ao sacerdócio o domínio do espírito, deixando-lhe o do coração.
As moléstias cerebrais, e mesmo muitas outras, aí estão mostrando todos os dias a impotência de toda medicação restrita aos órgãos mais grosseiros. Não é menos fácil reconhecer a insuficiência de todo sacerdócio que quiser dirigir a alma desprezando sua subordinação ao corpo. Esta separação duas vezes anárquica deve, pois, cessar irrevogavelmente mediante uma sábia reintegração da medicina no domínio sacerdotal, quando o clero positivo houver preenchido suficientemente suas condições enciclopédicas. O ponto [pág. 140] de vista moral é, com efeito, o único próprio para fazer prevalecer ativamente prescrições higiênicas, tanto privadas como públicas. Isto verifica-se facilmente pelos vãos esforços dos médicos ocidentais para regular nossa alimentação habitual, desde que ela não é mais dirigida pelos antigos preceitos religiosos. Nenhuma prática incômoda pode ser ordinariamente aceita em nome só da saúde pessoal, que deixa cada um juiz de si mesmo: porquanto amiúde os inconvenientes atuais e certos nos abalam mais do que as vantagens remotas e duvidosas. É necessário invocar uma autoridade superior a toda individualidade, para impor, mesmo nos casos mínimos, regras verdadeiramente eficazes, fundadas, então, sobre uma apreciação social que jamais comporta indecisões.
A MULHER — Depois de ter assim reconhecido, em toda a sua plenitude, o domínio natural da religião, eu quisera saber, meu pai, em que consistem as condições gerais dela. Freqüentes vezes ela se me tem representado como dependendo unicamente do coração. Sempre pensei, porém, que o espírito aí também concorre. Poderei compreender claramente as suas atribuições respectivas?
O SACERDOTE — Essa apreciação resulta, minha filha, de um exame aprofundado da palavra religião, talvez o mais bem composto de todos os termos humanos. Ele é construído de maneira a caracterizar uma dupla ligação, cuja noção exata basta para resumir toda a teoria abstrata de nossa unidade. Com efeito, a fim de constituir uma harmonia completa e duradoura, é preciso ligar o interior pelo amor e o religar ao exterior pela fé. Tais são, em geral, as participações necessárias do coração e do espírito nesse estado sintético, individual ou coletivo.
A unidade supõe, antes de tudo, um sentimento ao qual se possam subordinar os nossos vários pendores. Porquanto as nossas ações e os nossos pensamentos sendo sempre dirigidos pelos nossos afetos, a harmonia humana ficaria impossível se estes não fossem coordenados sob um instinto preponderante.
Mas esta condição interior da unidade não bastaria se a inteligência não nos fizesse reconhecer, fora de nós, uma potência superior a que a nossa existência deve sempre submeter-se, mesmo quando a modifica. É a fim de melhor sofrermos esse império supremo que a nossa harmonia moral, individual ou coletiva, se toma sobretudo indispensável. Reciprocamente, essa preponderância do exterior tende a regular o interior, favorecendo o ascendente do instinto mais conciliável com semelhante necessidade. Assim, as duas condições gerais da religião são naturalmente conexas, sobretudo quando a ordem exterior pode tornar-se o objeto do sentimento interior.
A MULHER — Nesta teoria abstrata de nossa unidade, depara-se-me, meu pai, uma dificuldade radical no tocante à influência moral. Considerando a harmonia interior, parece-me que esqueceis que os nossos instintos pessoais são infelizmente mais enérgicos que os nossos pendores simpáticos. Ora, o predomínio dos primeiros, que parece dever erigi-los em centros naturais de toda a existência moral, tornaria, por outro lado, a unidade pessoal quase incompatível com a unidade social. Mas, como, apesar disto, estas duas harmonias foram conciliadas, necessito que um novo esclarecimento mas mostre, enfim, como plenamente compatíveis.
O SACERDOTE — Propusestes assim diretamente, minha filha, o principal problema humano, que consiste, de fato, em fazer gradualmente prevalecer a sociabilidade sobre a personalidade, sem embargo de ser esta espontaneamente preponderante. Para [pág. 141] que possais compreender melhor a possibilidade disso, é necessário, em primeiro lugar, que compareis os dois modos opostos que a unidade moral parece naturalmente comportar, conforme essa base interior seja egoísta ou altruísta.
As expressões múltiplas que acabais de empregar, referindo-vos à personalidade, atestam involuntariamente a impotência radical do egoísmo para constituir qualquer harmonia real e duradoura, mesmo num ente isolado. Porque esta monstruosa unidade não exigiria somente a ausência de todo impulso simpático, mas também o predomínio de um único egoísmo. Ora, isso não existe senão nos últimos animais, onde tudo se refere ao instinto nutritivo, sobretudo quando os sexos não estão separados. Em todos os demais casos, porém, e principalmente em nossa espécie, a satisfação dessa necessidade fundamental deixa sucessivamente prevalecer vários outros pendores pessoais, cujas energias quase iguais anulariam as opostas pretensões de cada um dos mesmos a dominar o conjunto da existência moral. Se todos eles não se subordinassem a afetos exteriores, o coração estaria sem cessar agitado por conflitos íntimos entre os impulsos sensuais e os estímulos do orgulho ou da vaidade, etc., quando a cobiça propriamente dita deixasse de reinar com as necessidades puramente corporais. A unidade moral é, pois, impossível, mesmo na existência solitária, em todo ente exclusivamente dominado por afeições pessoais, que o impedem de viver para outrem. Tais são muitos animais ferozes quê vemos, salvo durante algumas aproximações passageiras, flutuar ordinariamente entre uma atividade desregrada e um ignóbil torpor, porque não encontram no exterior os móveis principais de sua conduta.
A MULHER — Compreendo assim, meu pai, a coincidência natural entre as verdadeiras condições morais da harmonia individual e as da harmonia coletiva. Mas continuo a ter a mesma dificuldade em conceber a abnegação habitual dos instintos mais enérgicos.
O SACERDOTE — Esta dificuldade, minha filha, será facilmente vencida quando notardes que a unidade altruísta não exige, como a unidade egoísta, o inteiro sacrifício dos pendores contrários ao seu princípio, mas apenas a criteriosa subordinação deles ao afeto preponderante. Condensando toda a sã moral na lei Viver para outrem, o positivismo consagra a justa satisfação permanente dos diversos instintos pessoais, enquanto indispensável à nossa existência material, sobre a qual assentam sempre nossos atributos superiores. Por conseguinte, ele condena, posto que inspiradas amiúde por motivos respeitáveis, as práticas demasiado austeras, que, diminuindo nossas forças, nos tornam menos aptos para o serviço de outrem. O destino social, em cujo nome ele recomenda os cuidados pessoais, deve ao mesmo tempo nobilitá-los e regularizá-los, evitando tanto uma preocupação exagerada como uma viciosa negligência.
A MULHER — Mas, meu pai, esta mesma consagração dos pendores egoístas, constantemente excitados, aliás, pelas nossas necessidades corporais, parece-me ainda incompatível com um predomínio habitual dos nossos fracos afetos simpáticos.
O SACERDOTE — E é por isso, minha filha, que esse aperfeiçoamento moral há de constituir sempre o principal objeto da arte humana, cujos esforços contínuos, individuais e coletivos, dele nos aproximam cada vez mais, sem que nunca possamos realizá-lo de modo completo. Esta solução crescente funda-se unicamente na existência social, em virtude da lei natural que desenvolve ou comprime nossas funções e nossos órgãos conforme [pág. 142] são ou não exercitados. Com efeito, as relações domésticas e cívicas tendem a conter os instintos pessoais mediante os conflitos que suscitam entre os diversos indivíduos. Pelo contrário, elas favorecem o surto das inclinações benévolas, únicas suscetíveis, em todos, de um desenvolvimento simultâneo, naturalmente contínuo, por causa dessas excitações mútuas, posto que necessariamente limitado pelo conjunto de nossas condições materiais.
Eis aí por que a verdadeira unidade moral não pode surgir assaz senão em nossa espécie, pois que o progresso social deve pertencer exclusivamente à mais bem organizada das raças sociáveis, a menos que outras não se lhe agreguem como livres auxiliares. Mas, sem que tal harmonia se possa desenvolver alhures, o seu princípio é facilmente apreciável em muitos animais superiores, que até forneceram as primeiras provas científicas da existência natural dos afetos desinteressados. Se esta grande noção, sempre pressentida pelo empirismo universal, não houvesse sido sistematizada tão tardiamente, ninguém tacharia hoje de afetação sentimental uma doutrina diretamente verificável entre tantas espécies inferiores à nossa.
A MULHER — Esta explicação suficiente só me deixa a desejar, meu pai, um último esclarecimento geral, relativo à condição intelectual da religião. Através da incoerência das diversas crenças especiais, não compreendo claramente em que consiste o domínio fundamental da fé, que entretanto deve comportar uma apreciação comum a todos os sistemas.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, nossa fé nunca teve senão um mesmo objeto essencial: conceber a ordem universal que domina a existência humana, para determinar nossa relação geral para com ela. Quer se assinalassem suas causas fictícias, quer se estudassem suas leis reais, o que sempre se quis foi apreciar essa ordem independente de nós, a fim de a sofrer melhor e de a modificar mais. Toda doutrina religiosa repousa necessariamente sobre uma explicação qualquer do mundo e do homem, duplo objeto contínuo de nossos pensamentos teóricos e práticos.
A fé positiva expõe diretamente as leis efetivas dos diversos fenômenos observáveis, tanto interiores como exteriores; isto é, suas relações constantes de sucessão e de semelhança, as quais nos permitem prever uns por meio dos outros. Ela afasta, como radicalmente inacessível e profundamente ociosa, toda pesquisa acerca das causas propriamente ditas, primeiras ou finais, de quaisquer acontecimentos. Em suas concepções teóricas, ela explica sempre como e nunca porquê. Quando, porém, indica os meios de dirigir nossa atividade, ela faz, pelo contrário, prevalecer constantemente a consideração do fim, já que, então, o efeito prático dimana com certeza de uma vontade inteligente.
Todavia, a indagação das causas, posto que diretamente vã, foi a princípio tão indispensável quão inevitável, como especialmente vo-lo explicarei, para substituir e preparar o conhecimento das leis, que supõe um longo preâmbulo. Procurando o porquê, que não se podia achar, acabava-se então, por descobrir o como, cujo estudo não era instituído imediatamente. Só se deve realmente condenar a pueril persistência, tão comum em nossos letrados, em querer penetrar as causas quando as leis são conhecidas. Porquanto nossa conduta não se referindo nunca senão a estas, a pesquisa daquelas torna-se não menos inútil que quimérica.
O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto, na existência constatada [pág. 143] de uma ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras, diz igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito contemplador. Leis físicas supõem, com efeito, leis lógicas, e reciprocamente. Se o nosso entendimento não seguisse espontaneamente regra alguma, não poderia ele nunca apreciar a harmonia exterior. Sendo o mundo mais simples e mais poderoso que o homem, a regularidade deste seria ainda menos conciliável com a desordem daquele. Toda fé positiva assenta, pois, nesta dupla harmonia entre o objeto e o sujeito.
Semelhante ordem apenas pode ser constatada, e nunca explicada. Ela fornece, pelo contrário, a única fonte possível de toda explicação razoável, que consiste sempre em fazer entrar nas leis gerais cada evento particular, desde logo suscetível de uma previsão sistemática, único fim característico da verdadeira ciência. Por isso também a ordem universal foi durante muito tempo desconhecida, enquanto prevaleceram as vontades arbitrárias a que se teve primeiro que atribuir os principais fenômenos de toda sorte. Mas uma experiência, amiúde reiterada e nunca desmentida, fez enfim reconhecer essa ordem, apesar das opiniões contrárias, em relação aos acontecimentos mais simples, donde a mesma apreciação estendeu-se gradualmente até os mais complexos. Foi só em nossos dias que esta extensão penetrou em seu último domínio, representando também os fenômenos mais eminentes da inteligência e da sociabilidade como sujeitos sempre a leis invariáveis, que ainda negam muitos espíritos cultivados. O positivismo resultou diretamente desta descoberta final, que, completando nossa longa iniciação científica, terminou necessariamente o regime preliminar da razão humana.
A MULHER — Meu pai, por este primeiro apanhado, julgo a fé positiva muito satisfatória para a inteligência, mas muito pouco favorável à atividade, que ela parece subordinar a inflexíveis destinos. Entretanto, pois que o espírito positivo, como o dizeis amiúde, surgiu por toda parte da existência prática, não pode ser-lhe contrário. Quisera conceber nitidamente seu acordo geral.
O SACERDOTE — Para o conseguirdes, minha filha, bastará retificar a apreciação espontânea que vos faz considerar as leis reais como imodificáveis. Enquanto os fenômenos foram atribuídos a vontades arbitrárias, a concepção de uma fatalidade absoluta tornou-se o corretivo necessário de uma hipótese diretamente incompatível com toda ordem efetiva. A descoberta das leis naturais tendeu, em seguida, a manter esta disposição geral, porque a princípio tal descoberta dizia respeito aos acontecimentos celestes, inteiramente subtraídos à intervenção humana. À medida, porém, que o conhecimento da ordem real se desenvolveu, tem ela sido considerada como essencialmente modificável, mesmo por nós, e tanto mais quanto os fenômenos mais se complicam, como vo-lo explicarei daqui a pouco. Esta noção estende-se hoje até a ordem celeste, cuja simplicidade superior nos permite imaginar com mais facilidade seu melhoramento, a fim de corrigir um respeito cego, conquanto nossos fracos meios físicos não o possam jamais realizar.
Quaisquer que sejam os fenômenos, sem excetuar os mais complexos, as suas condições fundamentais são sempre imutáveis; mas, por toda parte, também, inclusive nos casos mais simples, as disposições secundárias podem ser modificadas, e amiúde por nossa intervenção. Estas modificações em nada alteram a invariabilidade das leis reais, porque elas nunca se tornam arbitrárias. Sua natureza e extensão seguem sempre regras [pág. 144] próprias, que completam nosso domínio científico. A imobilidade total seria por tal modo contrária à mesma noção de lei, que esta caracteriza, por toda parte, a constância percebida no meio da variedade.
Assim, a ordem natural constitui sempre uma fatalidade modificável, que se torna a base necessária da ordem artificial. Nosso verdadeiro destino compõe-se, pois, de resignação e de atividade. Esta segunda condição, longe de ser incompatível com a primeira, repousa diretamente sobre ela. Uma judiciosa submissão às leis fundamentais é, com efeito, o único preservativo contra o vago e a instabilidade de nossos desígnios quaisquer, permitindo-nos instituir, segundo as regras secundárias, uma sábia intervenção. Eis aí como o dogma positivo consagra diretamente nossa atividade, que nenhuma síntese teológica podia abarcar. Este surto prático torna-se mesmo aí o principal regulador de nossos trabalhos teóricos relativos à ordem universal e suas diversas modificações.
A MULHER — Após tal explicação, resta-me, meu pai, conceber a maneira por que a fé positiva se concilia plenamente com o sentimento, ao qual sua natureza parece-me ser radicalmente contrária. Compreendo, todavia, que seu dogma fundamental fornece duplamente uma forte base de disciplina moral, já subordinando nossos pendores pessoais a um poder exterior, já citando nossos instintos simpáticos para melhor sofrermos ou modificarmos a fatalidade comum. Apesar, porém, destes preciosos atributos, o positivismo não me oferece ainda um estímulo assaz direto dos santos afetos que parecem dever formar o principal domínio da religião.
O SACERDOTE — Reconheço, minha filha, que o espírito positivo apresentou até aqui os dois inconvenientes morais peculiares à ciência, inchar e secar, desenvolvendo o orgulho e desviando do amor. Esta dupla tendência se conservará sempre nele o bastante para exigir habitualmente precauções sistemáticas de que vos hei de falar mais tarde. Contudo, vosso principal reproche resulta, a este respeito, de uma apreciação insuficiente do positivismo, que vós considerais apenas no estado incompleto em que ele ainda se mostra na maioria de seus adeptos. Estes limitam-se à concepção filosófica dimanada da preparação científica, sem ir até a conclusão religiosa, resumo único do conjunto dessa filosofia. Mas, completando o estudo real da ordem universal, vê-se o dogma positivo concentrar-se finalmente em torno de uma concepção sintética, tão favorável ao coração como ao espírito.
Os entes quiméricos que a religião empregou provisoriamente inspiraram diretamente vivos afetos humanos, que foram mesmo mais poderosos sob as ficções menos elaboradas. Essa preciosa aptidão devia por muito tempo parecer estranha ao positivismo, por efeito de seu imenso preâmbulo científico. Enquanto a iniciação filosófica abraçou apenas a ordem material, e mesmo a ordem vital, ela não pôde desvendar senão leis indispensáveis à nossa atividade, sem nos ministrar nenhum objeto direto de afeição permanente e comum. Mas já não é mais assim desde que essa preparação gradual se acha finalmente completada pelo estudo próprio da ordem humana, individual e coletiva.
Esta apreciação final condensa o conjunto das concepções positivas na noção única de um ente imenso e eterno, a humanidade, cujos destinos sociológicos se desenvolvem sempre sob o predomínio necessário das fatalidades biológicas e cosmológicas. Em torno deste verdadeiro Grande Ser, motor imediato de cada existência individual ou coletiva, nossos afetos se concentram tão espontaneamente quanto nossos pensamentos e ações. A [pág. 145] idéia só desse Ser supremo inspira diretamente a fórmula sagrada do positivismo: O Amor por princípio, a Ordem por base, e o Progresso por fim.21 Sempre fundada sobre um livre concurso de vontades independentes, a sua existência composta, que toda discórdia tende a dissolver, consagra logo a preponderância contínua do coração sobre o espírito, como a única base de nossa verdadeira unidade. É assim que a ordem universal se resume daqui por diante no ente que a estuda e aperfeiçoa sem cessar. A luta crescente da humanidade contra o conjunto das fatalidades que a dominam apresenta ao coração, como ao espírito, um espetáculo mais digno que a onipotência, necessariamente caprichosa, de seu precursor teológico. Mais acessível, tanto aos nossos sentimentos como às nossas concepções, em virtude de uma identidade de natureza que não obsta a sua superioridade sobre todos os seus servidores, semelhante Ser supremo excita profundamente uma atividade destinada a conservá-lo e melhorá-lo.
21 A fórmula sagrada do positivismo foi a princípio redigida por Augusto Comte do seguinte modo, como se pode ver na 1.ª edição deste Catecismo: O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim. Mais tarde, porém, modificou esta redação pela maneira que se vê no texto, isto é, ligando o segundo membro ao primeiro pela conjunção, e separando o terceiro por um ponto e vírgula. Eis como o nosso Mestre se exprime em sua décima confissão anual (1854) acerca desta alteração:
"Sob este impulso, minhas afeições e meus trabalhos adquiriram uma conexão crescente, há muito superior às esperanças indicadas em nossos primeiros contatos, escritos ou verbais. Já este colóquio acaba de inspirar-me a feliz modificação que esta manhã introduzi, a tempo, sem dúvida, na fórmula fundamental de nossa religião. Combino o segundo termo com o primeiro, isolando o último; o que doravante deve adaptá-la melhor ao seu destino normal. Enquanto eu tive de superar a insurreição do espírito contra o coração e a cisão do progresso relativamente à ordem, a forma primitiva era preferível. Mas, tendo o meu volume final preenchido assaz essas duas condições, a nova redação fará sentir melhor a constituição religiosa do positivismo, a aliança entre o amor e a fé para guiar a atividade. Representando a unidade como proveniente do concurso da simpatia interior com a ordem exterior, ela permite mais regular toda a existência, mesmo física, mediante um destino sempre altruísta". (Testamento, etc., p. 216.)
A MULHER — Todavia, meu pai, o trabalho material imposto sem cessar por nossas necessidades corporais se me afigura diretamente contrário a essa tendência afetiva da religião positiva. Porque tal atividade me parece dever conservar sempre um caráter essencialmente egoísta, que se estende mesmo até os esforços teóricos por ela suscitados. Ora, isto bastaria para impedir a preponderância real do amor universal.
O SACERDOTE — Espero, minha filha, fazer-vos reconhecer em breve que é possível transformar radicalmente essa personalidade primitiva dos trabalhos humanos. À medida que a atividade material se vai tornando mais coletiva, ela tende cada vez mais para o caráter altruísta, posto que o impulso egoísta tenha que ficar sempre indispensável a seu primeiro surto. Com efeito, trabalhando cada um habitualmente para outrem, semelhante existência desenvolve necessariamente os afetos simpáticos, quando é assaz apreciada. Não falta, pois, a esses laboriosos servidores da humanidade, senão um sentimento completo e familiar da existência real desses afetos. Ora, isto há de resultar naturalmente de uma extensão suficiente da educação positiva. Já poderíeis verificar esta tendência se a atividade pacífica, ainda destituída de toda disciplina sistemática, estivesse tão regulada quanto a vida guerreira, única organizada até aqui. Mas os grandes resultados morais obtidos outrora em relação a esta, e que ainda permanecem sensíveis sob sua degradação atual, assaz indicam os que a outra comporta. Devemos, mesmo, esperar do instinto construtor reações simpáticas mais diretas e mais completas que as do instinto destruidor. [pág. 146]
A MULHER — Por esta última indicação começo, meu pai, a compreender a harmonia geral do positivismo. Já concebo nele como é que a atividade, naturalmente subordinada à fé, pode também submeter-se ao amor, que ela parece a princípio repelir. Isto posto, julgo que essa doutrina preenche, enfim, todas as condições essenciais da religião tal como a definistes, pois que ela convém igualmente às três grandes partes de nossa existência, amar, pensar, agir, que nunca foram assim tão combinadas.
O SACERDOTE — Quanto mais estudardes a síntese positiva tanto melhor sentireis, minha filha, quanto a sua realidade a torna mais completa e mais eficaz que qualquer outra. O predomínio habitual do altruísmo sobre o egoísmo, onde reside o grande problema humano, resulta aí diretamente de um concurso contínuo de todos os nossos trabalhos, teóricos e práticos, com as nossas melhores inclinações. Essa vida ativa, que o catolicismo figurava como oposta ao nosso íntimo aperfeiçoamento, torna-se, no positivismo, sua principal garantia. Concebeis agora semelhante contraste entre dois sistemas dos quais um admite e o outro nega a existência natural dos afetos desinteressados. As precisões corporais, que pareciam dever nos separar sempre, podem doravante tender a unir-nos mais do que se delas estivéssemos isentos. Porquanto o amor se desenvolve mais por atos que por votos; e, ademais, que poderíamos nós almejar para aqueles a quem nada faltasse? Pode-se também reconhecer que o tipo de existência real, peculiar aos positivistas, sobrepuja necessariamente, mesmo quanto ao sentimento, a vida quimérica prometida aos teologistas.
A MULHER — A fim de completardes esta conferência preliminar, rogo-vos, meu pai, que me expliqueis sucintamente a divisão geral da religião, cujas diversas partes essenciais me exporeis em seguida. Pedindo-vos este esclarecimento, sinto que o amor sendo o princípio da unidade humana, a parte que a ele se refere tem de naturalmente prevalecer no sistema religioso, e que é por ela que deveis começar minha iniciação positivista.
O SACERDOTE — Esta última reflexão, minha filha, prova ainda uma vez quanto a simpatia é favorável à síntese. Acabais, com efeito, de assinalar espontaneamente o traço mais característico da religião positiva, a precedência que ela dá ao culto sobre o dogma. Para o reconhecerdes, deveis notar que a decomposição a que aludis resulta de uma exata apreciação da existência total que à religião cabe dirigir. O culto, o dogma e o regime concernem respectivamente aos nossos sentimentos, pensamentos e atos. Excessiva deferência para com os meus predecessores católicos arrastou-me espontaneamente a colocar a princípio o dogma antes do culto, sem examinar se esta disposição seria tão conforme à nova síntese como à antiga. Uma solicitude exagerada pela racionalidade fez-me em seguida manter esta ordem, a fim de que o culto assentasse sobre uma base sistemática. A aplicação, porém, do arranjo primitivo demonstrou-me gradativamente que ele não é assaz sintético.
Para resolver definitivamente este problema, basta distinguir as duas constituições, sintética e analítica, que a doutrina universal comporta. O culto repousa necessariamente sobre a primeira, a qual ele desenvolve, idealizando-a. Longe, porém, de exigir a segunda, é o culto que, pelo contrário, se torna indispensável ao estabelecimento da constituição analítica do dogma. De onde resulta, minha filha, que é necessário, antes de tudo, elevar-mo-nos até a exata compreensão da humanidade. Depois cultivamos os sentimentos apropriados à existência que ela nos prescreve. Só então podemos efetuar a elaboração teórica destinada a fazer conhecer analiticamente a ordem fundamental e o Ente supremo que a modifica. Enfim, pelo regime, regulamos diretamente cada. conduta humana. [pág. 147]
Eis aí como a religião positiva abraça ao mesmo tempo as nossas três grandes construções contínuas, a poesia, a filosofia e a política. A moral, porém, aí domina sempre, quer o surto de nossos sentimentos, quer o desenvolvimento de nossos conhecimentos, quer o curso de nossas ações, de modo a dirigir sem cessar nossa tríplice pesquisa do belo, do verdadeiro e do bom. [pág. 148]
SEGUNDA CONFERÊNCIA
TEORIA DA HUMANIDADE
A MULHER — Pelo que ouvi em nossa conferência preliminar, sinto-me atemorizada, meu pai, por minha profunda insuficiência para a elevada exposição que ides começar. Pois que a concepção da humanidade condensa o dogma da religião universal, o qual consiste na filosofia positiva, minha inteligência se me afigura demasiado fraca, ou, pelo menos, muito pouco preparada, para bem compreender essa explicação, por mais simples que vos seja dado fazê-la. Eu só trago aqui uma confiança plena, um respeito sincero e uma simpatia ativa para com a doutrina que parece, após tantas tentativas vãs, apropriada a superar, enfim, a anarquia moderna.» Receio, porém, que estas disposições morais não bastem para que eu possa encetar com bom êxito um estudo tão difícil.
O SACERDOTE — Vossos temores exigem, minha filha, algumas reflexões prévias que, espero, vos hão de tranqüilizar logo. Não se trata aqui senão de efetuar, acerca da nova religião, uma exposição geral equivalente à que vos iniciou outrora no catolicismo. A natureza mais inteligível de uma doutrina sempre demonstrável deve, até, além da atual maturidade de vossa razão, tornar-vos este segundo trabalho mais fácil que o primeiro. Lembrai-vos, por outro lado, da admirável máxima que o nosso grande Molière fez proclamar pelo homem de gosto de sua última obra-prima:
Consinto em que a mulher de tudo tenha luzes 22
e notai também que o consinto de então se transformaria agora em convém.
22 "Je consens qu'une femme ait des clartés de tout", Molière, Les Femmes Savantes, ato 1.°, cena 3.ª.
No fundo, o domínio intelectual do sacerdócio foi sempre o mesmo que o do público, salvo a diversidade de cultura, sistemática de um lado, puramente espontânea do outro. Esta identidade essencial, sem a qual não se conceberia nenhuma harmonia religiosa, torna-se ao mesmo tempo mais direta e mais completa no positivismo do que nunca o pôde ser sob o teologismo. O verdadeiro espírito filosófico consiste, de fato, como o simples bom senso, em conhecer o que é, para prever o que há de ser, a fim de o aperfeiçoar tanto quanto possível. Um dos melhores preceitos positivistas declara, até, viciosa, ou, pelo menos, prematura, toda sistematização que não for precedida e preparada por um suficiente surto espontâneo. Esta regra resulta logo do verso dogmático, com que o positivismo caracteriza o conjunto de nossa existência:
Agir por afeição e pensar para agir.
O primeiro hemistíquio corresponde à espontaneidade, e o segundo, à sistematização consecutiva. Quaisquer que sejam os inconvenientes que a atividade irrefletida suscite, só ela pode ordinariamente fornecer os primeiros materiais de uma meditação eficaz que permitirá agir melhor. [pág. 149]
Considerai, enfim, que nenhum espírito pode abster-se de uma opinião qualquer sobre a ordem universal, quer exterior, quer humana. Sabeis já agora que o dogma religioso teve sempre o mesmo objeto essencial, com esta única diferença geral que o conhecimento das leis substitui nele, daqui por diante, a indagação das causas. Ora, hipóteses quiméricas em relação a estas não podem parecer-vos mais inteligíveis do que noções reais sobre aquelas.
As mulheres e os proletários, que esta exposição tem principalmente em vista, não podem nem devem converter-se em doutores, e nem eles o querem. Todos, porém, precisam compreender quanto baste o espírito e a marcha da doutrina universal, para imporem a seus chefes espirituais uma suficiente preparação científica e lógica, sobre a qual repousa necessariamente o ofício sistemático do sacerdócio. Ora, esta disciplina intelectual é hoje por tal forma contrária aos hábitos criados pela anarquia moderna, que ela nunca prevalecerá se o público de ambos os sexos a não impuser aos que pretendem dirigir suas opiniões. Esta condição social tornará sempre preciosa a propagação geral da instrução religiosa, além de seu destino próprio para guiar cada existência, individual ou coletiva. Mas semelhante serviço adquire agora uma importância capital, a fim de se pôr um paradeiro decisivo à anarquia ocidental, principalmente caracterizada pela revolta intelectual. Se este Catecismo pudesse convencer as mulheres e os proletários que seus pretensos guias espirituais são radicalmente incompetentes para as altas elaborações que cegamente lhes são confiadas, muito contribuiria para a pacificação do Ocidente. Ora, esta convicção unânime não pode resultar hoje senão de uma suficiente apreciação do dogma final, adequada a tornar incontestáveis as condições gerais de sua cultura sistemática.
Quanto às dificuldades que temeis agora neste estudo indispensável, contais muito pouco, para as superar, com as vossas excelentes disposições morais. Nenhuma academia atual hesitaria em proclamar doutoralmente que o espírito pensa sempre como se o coração não existisse. Mas as mulheres e os proletários nunca desconheceram a íntima reação do sentimento sobre a inteligência, explicada enfim pela filosofia positiva. Vosso sexo, sobretudo, cujo doce ministério involuntário nos transmitiu, tanto quanto possível, os admiráveis costumes da Idade Média através da anarquia moderna, julga diariamente a heresia metafísica que separa esses dois grandes atributos. Pois que, segundo a bela máxima de Vauvenargues,23 o coração é necessário às principais inspirações do espírito, deve ele servir também para fazer compreender os resultados dessas inspirações. Esta poderosa assistência convém sobretudo às concepções morais e sociais, em relação às quais o instinto simpático pode secundar melhor o espírito sintético, cujos maiores esforços não venceriam, sem esse socorro, as dificuldades que tais concepções oferecem. Mas o mesmo auxílio se pode aplicar às teorias inferiores, em virtude da conexão necessária de todas as nossas especulações reais.
23 A máxima de Vauvenargues é a seguinte: "Os grandes pensamentos vêm do coração".
Das duas condições fundamentais da religião, amor e fé, a primeira deve certamente prevalecer. Com efeito, ainda que a fé seja muito própria para consolidar o amor, a ação inversa é mais poderosa como mais direta. O sentimento não só preside às inspirações espontâneas que a princípio exige toda elaboração sistemática, mas, ainda, consagra e auxilia a esta quando lhe reconhece a importância. Não há mulher dotada de experiência que ignore a insuficiência demasiado freqüente dos melhores afetos quando não são assistidos de convicções inabaláveis. Esta palavra convencer bastaria, atenta sua origem, para lembrar a aptidão das crenças profundas a consolidar o interior ligando-o ao exterior.
A insuficiência teórica que vos atemoriza aqui assenta, enfim, sobre a confusão ordinária entre a instrução e a inteligência. Vossa admiração familiar pelo incomparável [pág. 150] Molière não vos preservou, a este respeito, do erro vulgar, cuidadosamente entretido pelos nossos Trissotinos 24 de todas as profissões. Entretanto, devíamos corar por estarmos hoje menos adiantados que na Idade Média, em que todos sabiam apreciar o profundo mérito intelectual de personagens muitíssimo iletrados. Não tendes por vezes encontrado em tais espíritos uma aptidão mais real que na maioria dos doutores? Hoje, mais do que nunca, a instrução só é verdadeiramente indispensável para construir e devolver a ciência, cujo conjunto deve sempre ser instituído de maneira a tornar-se diretamente acessível a todas as inteligências sãs. Sem isto, nossas melhores doutrinas degenerariam logo em mistificações perigosas: este desvio peculiar aos teoristas quaisquer não pode ser neles assaz atalhado senão por meio de uma digna fiscalização de ambos os sexos.
24 Trissotin, ou Trissotino, aportuguesando o nome, é um tipo de pedante imortalizado por Molière em sua comédia Les Femmes Savantes.
A MULHER — Animada pelo vosso preâmbulo, rogo-vos, meu pai, que passeis a uma explicação mais direta e mais completa do princípio universal de nossa religião, conforme mo anunciastes. Já compreendi que a vossa concepção do verdadeiro Grande Ser resume necessariamente o conjunto da ordem real, não só humana, mas também exterior. Eis por que sinto necessidade de uma determinação mais nítida e mais precisa acerca dessa unidade fundamental do positivismo.
O SACERDOTE — Para o conseguirdes, deveis, minha filha, definir em primeiro lugar a humanidade como o conjunto dos seres humanos, passados, futuros e presentes. Esta palavra conjunto indica-vos bastante que não se deve compreender aí todos os homens, mas só aqueles que são realmente assimiláveis, por efeito de uma verdadeira cooperação na existência comum. Posto que todos nasçam necessariamente filhos da humanidade, nem todos se tornam seus servidores, e muitos permanecem no estado parasitário, que só foi desculpável durante a sua educação. Os tempos anárquicos fazem sobretudo pulular, e demasiadas vezes florescer, esses tristes fardos do verdadeiro Grande Ser. Mais de um de vós deve ter trazido à lembrança a admirável reprovação de Dante, esboçada já por Horácio e reproduzida por Ariosto:
Che visser senza infamia e senza lodo.
..............................................................
Cacciarli i ciel per non esser men belli,
Nè lo profondo inferno li riceve,
Ch 'alcuna gloria i rei avrebber d 'elli.
..............................................................
Non ragioniam di lor, ma guarda e passa.25
25 "Que viveram sem infâmia nem louvor... O céu os expulsou para não ser menos belo, e nem o profundo inferno os recebe, porque os condenados tirariam deles alguma glória... Não falemos mais deles, olha e passa." Dante, Inferno, canto 3.°. Horácio, como o Mestre indica, já havia caracterizado esses parasitas no trecho seguinte: "Nos numerus sumus, et fruges consumere nati". (Epístolas, 2.a, livro I.) O que, livremente traduzido, quer dizer: "Nós não servimos senão para fazer número e consumir alimentos". Filinto Elísio verteu assim:
"Nós só viemos a fazer quantia
E a consumir searas".
(Obras, tomo V.)
Quanto à alusão a Ariosto, refere-se ela ao seguinte verso de uma de suas Sátiras:
"Venuto al mondo sol per far letame".
Este verso acha-se citado no texto da 1.ª edição desta tradução. Suprimimo-lo nesta segunda em conseqüência da substituição que fizemos dos termos: produtores de esterco, por parasitas, de conformidade com a recomendação que o nosso Mestre fez a esse respeito ao seu discípulo inglês John Fisher. (V. Lettres à des Positivistes Anglais, p. 56, e a nota correspondente a esta da 1.a edição de nossa tradução.) [pág. 151]
Vedes assim que, a este como a qualquer outro respeito, a inspiração poética antecedeu muito a sistematização filosófica. Seja como for, se esses parasitas não fazem realmente parte da humanidade, uma justa compensação vos prescreve de agregardes ao novo Ente Supremo todos os seus dignos auxiliares animais. Toda útil cooperação habitual nos destinos humanos, quando exercida voluntariamente, erige o ser correspondente em elemento real dessa existência composta, com um grau de importância proporcional à dignidade da espécie e à eficácia do indivíduo. Para avaliar este complemento indispensável, basta imaginar que ele nos falta. Ninguém hesitará, então, em considerar tais cavalos, cães, bois, etc., como mais estimáveis que certos homens.
Nesta primeira concepção do concurso humano, a atenção volta-se naturalmente para a solidariedade, de preferência à continuidade. Mas, conquanto esta seja a princípio menos sentida, por exigir um exame mais profundo, é a noção dela que deve finalmente prevalecer, porquanto o surto social pouco tarda em depender mais do tempo que do espaço. Não é só hoje que cada homem, esforçando-se por apreciar o que deve aos outros, reconhece uma participação muito maior no conjunto de seus predecessores do que no de seus contemporâneos. Semelhante superioridade manifesta-se em menores proporções nas épocas mais remotas, como o indica o culto comovente que sempre nesses tempos se rendeu aos mortos, segundo a bela observação de Vico.26
26 Vico fazia do culto dos mortos um dos caracteres fundamentais da espécie humana. (V. La Scienza Nuova, ed. Ferrari.)
Assim, a verdadeira sociabilidade consiste mais na continuidade sucessiva do que na solidariedade atual. Os vivos são sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos mortos: tal é a lei fundamental da ordem humana.
Para se conceber melhor esta lei, cumpre distinguir, em cada verdadeiro servidor da humanidade, duas existências sucessivas: uma, temporária, mas direta, constitui a vida propriamente dita; a outra, indireta, mas permanente, só começa depois da morte. Sendo a primeira sempre corporal, pode ser qualificada de objetiva; sobretudo por contraste com a segunda, que, não deixando subsistir a cada um senão no coração e no espírito de outrem, merece o nome de subjetiva. Tal é a nobre imortalidade, necessariamente imaterial, que o positivismo reconhece à nossa alma, conservando este termo precioso para designar o conjunto das funções intelectuais e morais, sem nenhuma alusão à entidade correspondente.
Em virtude desta elevada noção, a verdadeira população humana se compõe, pois, de duas massas sempre indispensáveis, cuja proporção varia sem cessar, tendendo a fazer com que os mortos prevaleçam mais sobre os vivos em cada operação real. Se a ação e o resultado dependem sobretudo do elemento objetivo, o impulso e a regra dimanam principalmente do elemento subjetivo. Liberalmente dotados pelos nossos predecessores, nós transmitimos de graça aos nossos sucessores o conjunto do domínio humano, com uma extensão cada vez mais fraca proporcionalmente ao que recebemos. Esta gratuidade necessária encontra sua digna recompensa na incorporação subjetiva que nos permitirá perpetuar nossos serviços, transformando-os.
Se bem que semelhante teoria pareça constituir hoje o último esforço sistemático do espírito humano, as mais longínquas evoluções oferecem sempre o germe espontâneo dela, já sentido pelos mais antigos poetas. A mínima cabilda, e mesmo cada família um pouco considerável, julga-se logo como a estirpe essencial dessa existência composta e progressiva que não comporta, no espaço e no tempo, outros limites necessários que os do estado normal peculiar ao seu planeta. Posto que o Grande Ser não esteja ainda assaz formado, as colisões mais íntimas nunca ocultaram sua evolução gradual, que, sistematicamente [pág. 152] apreciada, fornece hoje a única base possível de nossa unidade final. Mesmo sob o egoísmo cristão, que ditava ao duro São Pedro a máxima característica: Consideremo-nos sobre a terra como estrangeiros ou exilados,27 vemos já o admirável São Paulo antecipar, pelo sentimento, a concepção da humanidade, nesta imagem tocante, mas contraditória: Nós somos todos membros uns dos outros.28 Só o princípio positivista devia revelar o tronco único ao qual necessariamente pertencem todos esses membros espontaneamente confusos.
27 "Charissimi, obsecro vos tanquam advenas et peregrinos..." ("Caríssimos, eu vos rogo como a estrangeiros e peregrinos...") São Pedro, Epístola, 1.ª, II, 11.
28 "Ita multi unum corpus sumus in Christo, singuli autem alter alterius membra." ("Assim, ainda que muitos, somos um só corpo em Cristo, e cada um de nós membros uns dos outros.") São Paulo, Epístola aos Romanos, XIII, 5.
A MULHER — Não posso deixar de admitir, meu pai, esta concepção fundamental, por mais dificuldades que ela ainda me apresente. Amedronto-me, porém, de minha nulidade pessoal ante semelhante existência, cuja imensidade me abate mais do que outrora a majestade de um Deus, com o qual, embora mesquinha, me sentia em relação própria e direta. Depois de me haverdes subjugado pela preponderância crescente do novo Ente Supremo, careço, pois, que reanimes em mim o justo sentimento de minha individualidade.
O SACERDOTE — Vai isso resultar, minha filha, de uma apreciação mais completa do dogma positivo. Basta reconhecer que, posto que o conjunto da humanidade constitua sempre o principal motor de nossas operações quaisquer, físicas, intelectuais ou morais, o Grande Ser nunca pode agir senão por intermédio de órgãos individuais. É por isso que a população objetiva, apesar de sua subordinação crescente à população subjetiva, continua necessariamente indispensável a toda influência desta. Decompondo, porém, essa participação coletiva, vê-se, afinal, que ela resulta de um livre concurso entre esforços puramente pessoais. Eis aí o que deve reerguer cada digna individualidade em presença do novo Ente Supremo, ainda mais que perante o antigo. Com efeito, este não tinha realmente nenhuma necessidade de nossos serviços quaisquer, senão para vãos louvores, devendo, até, sua pueril avidez por eles degradá-los aos nossos olhos. Recordai-vos deste verso decisivo da Imitação:
Eu te sou necessário, e tu de nada me serves.29
29 O verso citado neste lugar é tirado da tradução de Corneille:
"Je te suis nécessaire, et tu m'es inutile".
O original latino diz assim: "Tu mei indiges, non ego tui indigeo". ("Tu precisas de mim, eu não preciso de ti.") É Deus quem fala. Imit. de Cristo, livro IV, cap. XII.
Poucos, sem dúvida, são os homens que se podem considerar como realmente indispensáveis à Humanidade: isto só quadra aos verdadeiros promotores de nossos principais progressos. Mas toda digna existência humana pode e deve sentir habitualmente a utilidade de sua cooperação pessoal nessa imensa evolução, que cessaria necessariamente logo que todos os seus mínimos elementos objetivos desaparecessem a um tempo. O desenvolvimento e mesmo a conservação do Grande Ser ficam, portanto, subordinados sempre aos livres serviços de seus diversos filhos, posto que a inação de cada um deles seja de ordinário suscetível de uma suficiente compensação.
Esta sumária exposição do dogma fundamental de nossa religião permite-me, minha filha, proceder agora à explicação, primeiro geral, depois especial, do culto positivista. [pág. 153] Seu estudo vos fará sentir, assim o espero, que a aptidão poética do positivismo está verdadeiramente ao nível de seu poder filosófico, sem ter ainda podido produzir resultados tão decisivos. [pág. 154]
PARTE PRIMEIRA
EXPLICAÇÃO DO
CULTO
[pág. 155]
TERCEIRA CONFERÊNCIA
CONJUNTO DO CULTO
A MULHER — As nossas duas conferências anteriores, respectivamente consagradas à teoria geral da religião e à exposição sintética do dogma da Humanidade, tiraram-me irrevogavelmente da situação contraditória em que eu flutuava entre o impulso católico e a tendência voltairiana. Considerando-me já como positivista, venho, pois, pedir-vos que doravante me ensineis diretamente a melhor amar para melhor servir a incomparável Deusa que me revelastes, e à qual espero merecer ser finalmente incorporada. Isto posto, minha atitude muda espontaneamente, e nossas conferências tomam um caráter mais pronunciado de verdadeiras conversações. Em vez de submeter-vos dúvidas essenciais, que exijam longas explicações, só vos interromperei a fim de esclarecerdes e desenvolverdes algumas indicações insuficientes. Espero, até, em relação ao culto, tornar-me bastante ativa para secundar-vos, antecipando certas explicações de modo a fazer vossa exposição mais rápida, sem que por isso fique menos completa. Entramos aqui no domínio do sentimento, onde a inspiração feminina, conquanto sempre empírica, pode verdadeiramente assistir a construção sacerdotal.
O SACERDOTE — Conto muito, minha filha, com essa cooperação espontânea, para tornar esta parte de nosso Catecismo menos extensa que a seguinte. Mas, a fim de utilizar melhor vossa disposição atual, esta nova conferência, que só diz respeito ao conjunto do culto, deve começar sistematizando o plano geral da religião, posto que já vos seja ele familiar.
Toda combinação, mesmo física, e sobretudo lógica, devendo ser sempre binária, como assaz o indica a etimologia da palavra, a mesma regra estende-se necessariamente a decomposições quaisquer. A divisão fundamental da religião satisfaz naturalmente a esta regra, repartindo o domínio religioso entre o amor e a fé. Em toda evolução normal, individual ou coletiva, o amor nos conduz primeiro à fé, enquanto o surto permanece espontâneo. Mas, quando este se torna sistemático, a fé é construída para regular o amor. Esta divisão principal equivale à verdadeira distinção geral entre a teoria e a prática.
O domínio prático da religião decompõe-se necessariamente também em dois, segundo a distinção natural entre os sentimentos e os atos. A parte teórica não corresponde senão à inteligência, única base possível da fé. Mas a parte prática abrange todo o resto de nossa existência, tanto os nossos sentimentos como os nossos próprios atos. O uso universal e espontâneo, que constitui o melhor regulador da linguagem, consagra diretamente semelhante apreciação, qualificando de práticas religiosas os hábitos relativos ao culto, tanto, se não mais, que aqueles de que o regime é o objeto próprio. Esta confusão aparente assenta sobre uma sabedoria profunda, posto que empírica, a qual, desde muito cedo, ensinou ao público, sobretudo feminino, como ao sacerdócio, que o aperfeiçoamento de nossos sentimentos sobreleva, em importância e dificuldade, o [pág. 157] melhoramento imediato de nossas ações. Como o nosso amor não se torna nunca místico, o culto positivo pertence normalmente ao domínio prático da verdadeira religião: nós amamos mais a fim de servir melhor. Mas, por outro lado, nossos atos comportam sempre, no verdadeiro ponto de vista religioso, um caráter essencialmente altruísta; pois que a religião deve sobretudo dispor-nos e ensinar-nos a viver para outrem. Inspiradas pelo amor, nossas ações tendem, reciprocamente, a desenvolvê-lo. Diretamente evidente em relação ao aperfeiçoamento intelectual, quando bem dirigido, esta aptidão natural estende-se mesmo ao progresso material, se ele for convenientemente instituído. Eis aí por que o regime, apreciado religiosamente, pertence, tanto quanto o culto, ao domínio do amor.
Este duplo princípio, que torna prático o nosso culto e afetivo o nosso regime, sem contudo confundi-los nunca, não podia surgir enquanto a religião permaneceu teológica. Então o culto e o regime eram radicalmente heterogêneos, endereçando-se um a Deus e o outro referindo-se ao homem. O culto não dominava o regime senão pela subordinação necessária do segundo ente ao primeiro. Ambos tinham um caráter essencialmente egoísta, de acordo com a constituição, profundamente individual, de uma fé que foi sempre incompatível com a existência natural dos pendores benévolos, consagrada somente pelo positivismo. Então, a divisão entre o regime e o culto era tão marcada como a que separa o culto do dogma, de modo a tornar ininteligível o plano geral da religião, em virtude de nossa justa repugnância pelas combinações ternárias.
No estado final, as distinções religiosas tornam-se, pelo contrário, não menos favoráveis à razão que ao sentimento. O dogma difere aí do culto e do regime muito mais do que estes diferem entre si. É assim que a constituição usual da religião volta a ser ternária, mas segundo uma divisão sempre binária, completando a distinção principal por uma única subdivisão, que até então lhe era irracionalmente equiparada. O conjunto destas três partes essenciais forma, finalmente, uma progressão normal, visto a homogeneidade natural de seus diversos elementos. Ela conduz, sem esforço, do amor à fé, ou vice-versa; conforme se seguir a via subjetiva ou a marcha objetiva, nas duas idades principais da iniciação religiosa, respectivamente dirigida pela mulher ou pelo padre. Mas nesses dois sentidos, igualmente usuais, o culto ocupa sempre o mesmo lugar, antes do dogma e do regime. Repousando, como já sabeis, sobre a constituição sintética da doutrina universal, ele se torna indispensável ao digno estabelecimento da instituição analítica desta, ou dogma propriamente dito, essencialmente destinada ao regime. Isto basta para explicar a aptidão cotidiana do culto a representar toda a religião.
A MULHER — Um apressuramento muito natural em começar diretamente o estudo de nosso culto fazia-me a princípio transpor, meu pai, o preâmbulo geral que acabais de expor. Sinto agora quanto ele me era necessário para conceber com clareza o plano da religião, cujas três partes eu até então não havia coordenado bastante. Todavia, este precioso esclarecimento parece-me tão cabal que espero poder estudar imediatamente o conjunto do culto peculiar à nossa Deusa.
O SACERDOTE — Nós não a adoramos, minha filha, como ao antigo Deus, para fazer-lhe cumprimentos, mas a fim de a servir melhor, aperfeiçoando-nos. Importa lembrar aqui este destino normal do culto positivo, no intuito de prevenir ou corrigir a degeneração mística a que sempre ficamos expostos quando uma preocupação demasiado exclusiva dos sentimentos nos dispõe a desprezar, ou mesmo a esquecer, os atos que eles devem reger. O meu caráter mais sistemático me arrastaria mais do que a vós a semelhante abuso, cujos estragos práticos seriam logo apontados pela vossa criteriosidade espontânea, que poderia, até, compensá-los bastante por uma feliz inconseqüência teórica. [pág. 158] Cumpre-me, sobretudo, evitar este desvio na presente conversação, que, sendo mais abstrata e mais geral, o torna por isso mais iminente e mais grave. Vossas retificações empíricas acabariam, sem dúvida, por trazer-me de novo ao verdadeiro ponto de vista, porém muitas vezes demasiado tarde, de modo a obrigar-me algumas vezes a laboriosas reparações.
Sob esta contínua precaução, concebamos o conjunto do culto como destinado sistematicamente a ligar as outras duas partes da religião à concepção sintética do Grande Ser, idealizando a ambas. Idealizar o dogma a fim de idealizar o regime, tal foi. sempre o destino próprio do culto, que assim se torna capaz de representar o conjunto da religião. Ele oferece-nos, com efeito, o tipo antecipado do dogma, porque ele desenvolve a concepção sintética que o resume e o institui, tornando-nos ao mesmo tempo mais familiar e mais imponente a noção da humanidade, mediante uma representação ideal. Mas, como tipo do regime, o culto deve tender diretamente a melhorar os nossos sentimentos, levando sempre em conta as modificações que lhes imprimem habitualmente os três graus da vida humana, pessoal, doméstica e social. Posto que estas duas maneiras gerais de conceber e de instituir o culto possam a princípio parecer inconciliáveis, a concordância natural delas resulta da aptidão necessária de uma digna idealização do Grande Ser para consolidar e desenvolver o amor, sobre o qual assenta toda a sua existência. Portanto, esse contraste primitivo não tende, de modo algum, a decompor o culto em dois domínios separáveis, dos quais um pertenceria exclusivamente à inteligência e o outro ao sentimento. Tal divisão seria tão impraticável ordinariamente quanto a distinção geral entre o cálculo algébrico e o cálculo aritmético, que não podem verdadeiramente ser isolados senão em casos muito simples, e, até, em sua maioria, artificiais, embora estes dois cálculos se misturem sempre, sem que nunca se confundam. Esta comparação dá uma idéia exata da íntima conexão que liga naturalmente os dois aspectos, intelectual e moral, ou teórico e prático, peculiares, já ao conjunto do culto positivo, já a cada uma de suas partes. Apesar, porém, da espontaneidade deste vínculo, devida à natureza do sistema religioso a que ambos os aspectos se referem, a criteriosa combinação deles suscita, de fato, a principal dificuldade que pode oferecer a instituição do nosso culto. Porquanto o culto está exposto, como o dogma, e até mais do que ele, a degenerar em misticismo ou em empirismo, conforme houver excesso ou falta de generalização e de abstração. Ora, estes dois abusos contrários produzem moralmente estragos equivalentes, pois que a eficácia social dos sentimentos humanos tanto se altera quando eles se tornam muito sutis como quando se tornam muito grosseiros.
A MULHER — Para melhor apreciar esta dificuldade geral, creio, meu pai, poder reduzi-la a bem instituir a vida subjetiva sobre a qual assenta necessariamente o conjunto do culto positivista, quer o consideremos intelectual ou moralmente. O nosso Grande Ser compõe-se primeiro muito mais de mortos, e depois de pessoas por nascer, do que de vivos, e destes mesmos a maior parte não são senão servidores, sem que possam atualmente ser seus órgãos. Muito poucos homens existem, e ainda menos mulheres, que sejam, a este respeito, plenamente julgáveis antes de terem terminado sua carreira objetiva. Durante a maior porção de sua vida direta, cada um de nós poderia ordinariamente compensar, e até exceder muito, o bem que fez pelo mal que faria. Assim, a população humana compõe-se sobretudo de duas sortes de elementos subjetivos, uns determinados, outros indeterminados, entre os quais só o elemento objetivo, embora cada vez menor, é que institui um liame imediato e completo. Compreendo então que, para nos representar o verdadeiro Grande Ser, o culto positivo deve desenvolver muito, em cada um de nós, [pág. 159] a vida subjetiva: o que, aliás, o há de tornar, quer-me parecer, eminentemente poético. Ao mesmo tempo, tais exercícios, em que o pensamento se produz sobretudo com o auxílio de imagens, são muito adequados a cultivar diretamente os nossos melhores sentimentos.
A condição intelectual e o fim moral afiguram-se-me, pois, plenamente conciliáveis, segundo o princípio que acabais de fornecer-me. Mas este meio necessário parece-me suscitar, por sua vez, uma nova dificuldade geral. Porque mal posso conceber como se poderá constituir, e sobretudo fazer unânime, este surto diário, tanto privado, como público, da vida subjetiva, cuja prática universal é, no entanto, indispensável à nossa religião. Sem dúvida, a regeneração total da educação humana há de ministrar, a este respeito, recursos imensos, que hoje dificilmente podemos avaliar. Sem embargo, receio que fiquem sempre insuficientes para vencer semelhante dificuldade, em relação à qual o passado não me parece oferecer, ao menos diretamente, nenhum motivo de esperança geral.
O SACERDOTE — Pelo contrário, minha filha, espero dissipar em breve vossos temores, aliás muito naturais, mediante uma sã apreciação desse longo início, cujo termo decisivo a própria feitura deste Catecismo já comprova. Não se pode, com efeito, desconhecer a aptidão, natural e unânime, de nossa espécie para viver subjetivamente, quando vemos prevalecer nela, por espaço de quarenta séculos, sob diversas formas, semelhante existência. Os espíritos emancipados sabem hoje que durante essa imensa existência todos os cérebros humanos estiveram habitualmente dominados por entes puramente imaginários, posto que se lhes atribuísse uma realidade exterior. Mas os diversos teologistas estão quase tão convencidos disso, visto como cada fé julga assim todas as outras, cujos partidários reunidos formaram sempre uma grande maioria contrária, sobretudo depois da dispersão atual das crenças sobrenaturais. Cada qual só excetua da ilusão sua própria fábula.
Nós somos de tal modo propensos à vida subjetiva que esta prevalece mais à medida que remontamos para a idade ingênua da plena espontaneidade, individual ou coletiva. A principal força de nossa razão consiste, pelo contrário, em subordinar suficientemente o subjetivo ao objetivo, para que as nossas operações interiores possam representar o mundo exterior com o predomínio imutável que a este pertence, tanto quanto o exigem as nossas relações, ativas e passivas. Este resultado normal só se obtém, no indivíduo como na espécie, no tempo da verdadeira madureza, vindo a ser o melhor sinal desta. Posto que semelhante transformação tenda agora a mudar radicalmente o regime do entendimento humano, ela não nos impedirá nunca de desenvolver a vida subjetiva, além mesmo de todas as necessidades do culto positivo. Sempre havemos de precisar de uma certa disciplina para conter no grau conveniente nossa disposição espontânea a substituir exageradamente o interior ao exterior. Não deveis, portanto, abrigar, a este respeito, nenhum receio sério, a menos que não julgueis o homem futuro pela tendência atual das especialidades científicas a apagar a imaginação como a secar o coração, o que apenas constitui um dos sintomas naturais da anarquia moderna.
A única diferença essencial entre a nova subjetividade e a antiga deve consistir em que aquela será plenamente sentida e confessada, sem que ninguém a confunda jamais com a objetividade. Nossas contemplações religiosas efetuar-se-ão cientemente no interior, ao passo que os nossos predecessores se esforçavam em vão por ver no exterior o que não existia senão neles mesmos, salvo o recurso de adiarem para a vida futura a realização final de suas visões. Podemos facilmente resumir este contraste geral mediante uma oposição decisiva entre os dois modos de conceber a principal subdivisão intelectual. [pág. 160] Na existência normal, a contemplação, mesmo interior, é mais fácil e menos iminente que a meditação, pois que a nossa inteligência aí permanece quase passiva. Em uma palavra, nós contemplamos para meditar, porque os nossos estudos essenciais dizem sempre respeito ao exterior. Pelo contrário, a meditação devia parecer aos teologistas menos difícil e mais vulgar do que a contemplação, erigida então em principal esforço de nosso entendimento. Eles só meditavam a fim de poder contemplar entes que sem cessar lhes fugiam. Um sinal familiar indicará em breve esta distinção quanto à maior parte do culto privado. Com efeito, o positivista fecha os olhos durante as suas efusões secretas, a fim de ver melhor a imagem interior, ao passo que o teologista os abria para perceber no exterior um objeto quimérico.30
30 Cumpre completar o texto com o seguinte trecho da pág. 118 do tomo IV do Sistema de Política Positiva:
"... a faculdade de suspender voluntariamente a visão permite-nos proporcionar às imagens interiores um acréscimo de intensidade que os resultados da audição não comportam. Contudo, não convém subtrair os olhos ao espetáculo exterior, a fim de vermos melhor em nós mesmos, quando a obscuridade for espontaneamente suficiente. Porquanto o esforço necessário para isolarmo-nos assim desvia uma parte do poder cerebral, ao passo que o esforço exigido pela contemplação objetiva concorre para a evocação interior, aproximando nossa situação da que primitivamente nos afetou".
A MULHER — Posto que este esclarecimento decisivo dissipe já meus receios anteriores, persisto, meu pai, em considerar a instituição da vida subjetiva como a principal dificuldade do culto positivo. Apenas a nova subjetividade parece-me agora poder sempre conciliar-se assaz com a profunda realidade que distingue a nossa fé. Mas esta concordância afigura-se-me dever exigir incessantes esforços especiais.
O SACERDOTE — Apanhastes convenientemente, minha filha, a condição essencial que devo preencher aqui. Porquanto o melhor contraste entre o culto e o regime consiste sobretudo em lhes assinalar para domínios respectivos a vida subjetiva e a vida objetiva. Embora cada um deles se refira simultaneamente a ambas, a primeira domina evidentemente no culto e a segunda no regime. Não há nada mais próprio para caracterizar a dignidade superior do culto comparado ao regime, em virtude da preponderância necessária da subjetividade sobre a objetividade no conjunto da existência humana, mesmo individual, e sobretudo coletiva.
A MULHER — Esta sanção sistemática de minha inspiração espontânea leva-me, meu pai, a perguntar-vos agora em que consiste a verdadeira teoria da vida subjetiva. Posto que semelhante doutrina só possa ser aqui esboçada, o seu princípio fundamental parece-me diretamente indispensável. Nenhum positivista pode prescindir, sobre este assunto, de uma explicação geral, cujo uso quase diário será exigido por seu culto, público ou privado, a fim de prevenir aí qualquer degeneração mística ou empírica.
O SACERDOTE — Para satisfazer a vosso justo desejo, concebei, minha filha, a lei fundamental da vida subjetiva como consistindo sempre em sua digna subordinação à vida objetiva. O exterior não cessa nunca de regular essencialmente o interior, ao passo que o alimenta e o excita; o que se deve entender tanto de nossa vida cerebral, como da corporal. Nossas concepções mais fantásticas trazem sempre o cunho apreciável desse império involuntário, se bem que ele se torne menos puro, e mesmo menos completo, à medida que é mais indireto. Tudo isso resulta necessariamente do princípio irrecusável que hei de vos expor quando vos explicar o dogma, e que dei para base ao conjunto de nossa teoria intelectual, tanto dinâmica como estática, assim reatada ao sistema fundamental das noções biológicas. [pág. 161]
A ordem artificial não podendo nunca consistir senão em aperfeiçoar a ordem natural, sobretudo desenvolvendo-a, sente-se aqui, como em qualquer outro assunto e mesmo mais, que a nossa verdadeira liberdade resulta essencialmente de uma digna submissão. Mas, para estender convenientemente à vida subjetiva esta regra geral da vida objetiva, cumpre examinar, em primeiro lugar, sob este novo aspecto, a constituição natural da ordem universal. Porquanto todas as leis que a compõem estão longe de convir igualmente à vida subjetiva. A fim de fixar melhor vossas idéias, só especificarei o caso mais simples, e também o mais usual, quando se aplica o culto subjetivo a fazer reviver dignamente um ente querido. Sem esta determinação precisa, em que o coração auxilia o espírito, facilmente nos transviaríamos no estudo de um tal domínio. Mas todas as noções, assim construídas para o culto mais íntimo e mais apreciável, poderão estender-se sem dificuldade, com as convenientes modificações, aos outros casos sociolátricos.
A MULHER — Agradeço-vos, meu pai, esta precaução que sinto ser indispensável para mim. Esta doutrina é tão nova quanto difícil, pois que esse grato problema nem sequer pôde ser proposto, enquanto prevaleceram as crenças sobrenaturais, que só nos permitiam representar-nos nossos mortos numa situação misteriosa, e comumente indeterminada. Tal estado não lhes consentia nenhuma analogia essencial conosco. Ainda mesmo que os nossos temores pela sua sorte final fossem dissipados, nem assim se poderia nunca instituir em relação a eles uma vida subjetiva que tornaria cada um de nós sacrílego, por desviar para a criatura o afeto devido ao Criador. Mas se esta comovente questão é necessariamente peculiar ao positivismo, sua solução geral não lhe pertence menos, porque só ele desvendou as verdadeiras leis de nossa inteligência, que vós já me fizestes entrever. Concebo, pois, ao mesmo tempo, a instituição geral do culto subjetivo e seu fundamento normal, que converte essa existência ideal em um simples prolongamento da existência real. Rogo-vos, porém, que me expliqueis diretamente as modificações que comporta semelhante extensão.
O SACERDOTE — Elas consistem, minha filha, em suprimir, ou pelo menos, em pôr de lado, todas as leis inferiores, para deixar prevalecer melhor as leis superiores. Durante a vida objetiva, o domínio da ordem exterior sobre a ordem humana é tão direto quanto contínuo. Mas, na vida subjetiva, a ordem exterior torna-se puramente passiva, e só prevalece de modo indireto, como fonte primeira das imagens que queremos cultivar. Nossos mortos queridos não estão mais dominados pelas leis rigorosas da ordem material, nem mesmo da ordem vital. Pelo contrário, as leis peculiares à ordem humana, sobretudo moral, mas também social, regem, melhor do que durante a vida, a existência que cada um deles conserva em nossos cérebros. Essa existência, desde logo puramente intelectual e afetiva, consiste essencialmente em imagens, que reanimam ao mesmo tempo os sentimentos que inspira o ente que nos foi arrebatado e os pensamentos que ele suscitou. O objeto do culto subjetivo reduz-se, pois, a uma espécie de evocação interior, produzida gradualmente por um exercício cerebral dirigido segundo as leis correspondentes. A imagem conserva-se sempre menos nítida e menos viva que o objeto, segundo a lei fundamental de nossa inteligência. Mas, já que o inverso sucede amiúde nas moléstias cerebrais, uma feliz cultura pode aproximar o estado normal desse limite necessário muito além do que se acreditou até aqui, enquanto esse belo domínio permaneceu vago e tenebroso.
A fim de precisar melhor aquela subordinação geral, notai que a evocação subjetiva [pág. 162] do ente querido refere-se sempre às últimas impressões objetivas que ele nos deixou. Isto se torna sobretudo sensível em relação à idade, que a morte subtrai a todo aumento. Nossas perdas prematuras proporcionam assim uma eterna juventude aos objetos de nossas afeições. Do adorador primitivo, esta lei se estende necessariamente aos seus aderentes mais longínquos. Ninguém, segundo Dante, poderá nunca representar-se a sua suave Beatriz senão na idade de vinte e cinco anos. Embora possamos concebê-la mais jovem, não poderíamos imaginá-la mais idosa.
O contraste fundamental entre a vida objetiva e a vida subjetiva consiste, pois, em que a primeira é diretamente dominada pelas leis físicas e a segunda pelas leis morais: as leis intelectuais convêm igualmente a ambas. Semelhante distinção torna-se menos marcada quando se reconhece que, nos dois casos, a ordem mais geral prevalece sempre sobre a mais especial. Porquanto a diferença reduz-se, então, ao modo de apreciar a generalidade, medida primeiro em relação aos fenômenos e depois quanto às nossas concepções, conforme será explicado no nosso estudo do dogma.
Seja como for, esta preponderância necessária das leis morais na vida subjetiva é de tal modo conforme com a nossa natureza, que ela foi, não somente respeitada involuntariamente, mas cientemente apreciada, desde o primeiro surto da inteligência humana. Vós sabeis, com efeito, que o esboço empírico das grandes leis morais foi muito anterior a todo desenvolvimento decisivo das menores leis físicas. Ao passo que as nossas ficções poéticas violavam sem escrúpulo as condições gerais da ordem material, e até da ordem vital, elas conformavam-se, com admirável exatidão, às principais noções da ordem social e sobretudo da ordem moral. Admitiam-se facilmente heróis invulneráveis e deuses que se transformavam a seu bel-prazer. Mas o instinto do público, como o gênio do poeta, teria logo repelido toda incoerência moral, se, por exemplo, alguém tivesse ousado supor, em um avarento, ou em um covarde, uma conduta liberal, ou corajosa.
A MULHER — À vista de vossas explicações, concebo, meu pai, que no culto subjetivo, nós possamos desprezar as leis físicas, para melhor apegar-nos às leis morais, cujo verdadeiro conhecimento há de aperfeiçoar tanto esta nova ordem de instituições. Nossa imaginação facilmente liberta-se das condições mais gerais, mesmo em relação ao espaço e ao tempo, contanto que as conveniências humanas sejam sempre respeitadas. Desejaria, porém, saber como devemos usar de semelhante liberdade, no intuito de facilitar mais o fim essencial do culto subjetivo, isto é, a evocação cerebral dos entes queridos.
O SACERDOTE — Assim proposta, minha filha, vossa questão facilmente se resolve, mediante a observação evidente de que, para concentrar melhor nossas forças nesse santo destino, cumpre não distrair uma só parcela em modificações supérfluas da ordem vital, nem mesmo da ordem material. Conservai, pois, com cuidado todas as relações exteriores que foram habituais ao ente adorado. Empregai-as mesmo em melhor reanimar sua imagem. No Sistema de Política Positiva achareis, a este respeito, uma observação importante: "Nossas recordações íntimas se tornam mais nítidas e mais fixas quando se determina assaz o meio inerte antes de nele colocar a viva imagem". Aconselho-vos até, em geral, a decompor esta determinação exterior em suas três partes essenciais, procedendo sempre do exterior para o interior, segundo nosso princípio hierárquico. Esta regra de culto consiste sobretudo em precisar primeiro o lugar, depois a sede ou atitude e enfim o vestuário, peculiares a cada caso especial. Ainda que o coração possa a princípio impacientar-se com tal demora, ele breve reconhece a sua íntima eficácia, [pág. 163] quando vê a imagem querida ir, assim, adquirindo gradualmente uma força e uma nitidez que antes pareciam impossíveis.
Estas operações essencialmente estéticas concebem-se melhor quando cotejadas com as operações científicas, por causa da identidade necessária de suas leis principais. No fundo, a ciência, que nos indica de antemão um futuro amiúde longínquo, tenta um esforço ainda mais ousado que o da arte, que quer evocar uma lembrança querida. Nossos brilhantes triunfos no primeiro caso, em que o espírito é no entanto muito menos secundado pelo coração, autorizam-nos a esperar resultados mais satisfatórios em relação ao segundo, que é o único que sempre nos oferece a certeza de uma solução qualquer. Esta, na verdade, assenta inteiramente sobre o conhecimento das leis cerebrais, que são ainda tão confusamente apreciadas. Pelo contrário, as nossas previsões astronômicas dependem sobretudo das leis exteriores mais simples e mais bem conhecidas. Mas, posto que esta distinção baste para explicar a presente disparidade dos dois resultados, ela no-la mostra como puramente provisória.
Quando as leis superiores forem bastante conhecidas, o sacerdócio positivo há de tirar delas resultados mais preciosos, e mesmo mais regulares, que os da melhor astronomia. Porquanto as previsões desta tornam-se incertas, e amiúde impossíveis, logo que os casos planetários se complicam muito, como vemos quase sempre em relação aos come-tas. Sem que possa ser com justiça acoimada de uma presunção quimérica, a providência humana pode e deve aspirar a introduzir, na ordem que ela melhor modifica, mais regularidade do que a que pode comportar, em relação à maior parte dos acontecimentos, a ordem que só é governada por uma cega fatalidade. A complicação superior dos fenômenos cederá finalmente, no que se refere a esses casos sublimes, à sabedoria preponderante do agente modificador, quando a ordem humana for assaz conhecida.
A MULHER — Sinto, meu pai, que a subordinação do subjetivo ao objetivo constitui ao mesmo tempo a obrigação constante e o principal recurso do culto positivo. Fizestes-me compreender assaz que, longe de nos subtrairmos a esse jugo necessário, devemos aceitá-lo voluntariamente, mesmo quando nos seja lícito abrir mão dele. Porquanto esta plena submissão facilita muito nossa vida subjetiva, ao passo que economiza melhor o conjunto de nossas forças mais preciosas. Mas então não vejo mais em que consiste a nossa própria atividade nessa existência interior, que me parece contudo dever tornar-se, a seu modo, ainda menos passiva que a existência exterior.
O SACERDOTE — Ela consiste, minha filha, em idealizar quase sempre por subtração, e raramente por adição, mesmo quando se tomam todas as cautelas convenientes. A idealidade deve melhorar a realidade, sob pena de insuficiência moral: é a compensação normal de sua nitidez e vivacidade muito menores. Cumpre, porém, que a primeira se subordine sempre à segunda, sem o que a representação não seria mais bastante fiel e o culto se tornaria místico, ao passo que ficaria empírico se a realidade fosse servilmente respeitada. Nossa regra evita igualmente estes dois desvios opostos. Ela se acha naturalmente indicada pela nossa tendência a esquecermos os defeitos dos mortos para só nos lembrarmos de suas qualidades.
Assim concebida, esta regra não é senão uma dedução especial do dogma da Humanidade. Portanto, se nossa Deusa não incorpora a si senão os mortos verdadeiramente dignos, ela afasta também, de cada um deles, as imperfeições que sempre lhes macularam a vida objetiva. Dante pressentira, a seu modo, essa lei, quando construiu sua bela ficção em que faz o homem preparar-se para a beatitude bebendo primeiro no rio do esquecimento [pág. 164] e em seguida no Eunoé,31 que só lhe restitui a lembrança do bem. Não ajunteis, pois, aos vossos tipos exteriores senão aperfeiçoamentos muito secundários, que não possam nunca alterar seu verdadeiro caráter, mesmo físico, e sobretudo moral. Mas desenvolvei muito, ainda que sempre com prudência, vossa disposição espontânea a purificá-los de seus vários defeitos.
31 "L'acqua che vedi non surge di vena
Che ristori vapor che giel converta,
Come fiume ch'aquista e perde lena;
Ma esce di fontana da due parti aperta
Da questa parte con virtù discende,
Che toglie altrui memoria del peccato;
Dall'altra, d'ogni ben fatto la rende.
Quince Letè, cosi dall'altro lato
Eunoè si chiama, e non adopra,
Se quinci e quindi pria non è gustato."
Dante, Purgatório, canto 28.°.
"A onda que aqui vês não flui de veio,
Que gelos alimentam liquefeitos,
Quais rios, cujo curso abate ou cresce;
Corre de fonte inexaurível, pura,
A qual de duplo jorro o humor que verte
Na Vontade divina tem origem:
Com virtude desliza, de uma parte,
De apagar a lembrança do passado,
De outra, de memorar as ações boas.
Este Eunoé se chama, aquele o Letes
Mas de um o efeito só se prova
Do outro bebido tendo antes a linfa."
(Trad. de Bonifácio de Abreu.)
A MULHER — Assim, meu pai, a verdadeira teoria da vida subjetiva leva finalmente nosso culto a deixar a ordem exterior tal qual é, a fim de melhor concentrar na ordem humana nossos principais esforços de aperfeiçoamento íntimo. A nobre existência que nos perpetua em outrem torna-se, então, o digno prolongamento daquela que nos fez merecer esta imortalidade; o progresso moral do indivíduo e da espécie constitui sempre o principal destino das duas vidas. Nossos mortos estão emancipados das necessidades materiais e vitais, e destas eles só nos deixam a lembrança para que possamos melhor figurá-los tais como os conhecemos. Mas eles não cessam de amar, e mesmo de pensar, em nós e por nós. A doce troca de sentimentos e idéias que entretínhamos com eles, durante sua objetividade, torna-se ao mesmo tempo mais íntima e mais contínua quando eles se acham desprendidos da existência corporal. Posto que a vida de cada um deles fique desde então profundamente misturada com a nossa, sua originalidade moral e mental não sofre por isso a mínima alteração, quando seu caráter tiver sido verdadeiramente distinto. Pode-se até dizer que as diferenças principais se tornam mais pronunciadas à medida que este comércio íntimo se vai desenvolvendo melhor.
Esta concepção positiva da vida futura é certamente mais nobre que a dos teologistas quaisquer, e ao mesmo tempo a única verdadeira. Quando eu era católica, o meu maior fervor nunca me impediu de sentir-me profundamente chocada, estudando o pueril desenvolvimento da beatitude em um doutor tão recomendável, pelo coração e pelo espírito, como foi Santo Agostinho. Quase que me indignava vendo-o esperançado de ficar um dia isento da gravidade, e mesmo de toda necessidade nutritiva, se bem que, por uma contradição grosseira, ele se reservasse a faculdade de comer à vontade, sem receio, aliás, de engordar indefinidamente. Tais comparações servem muito para fazer sentir quanto o positivismo aperfeiçoa a imortalidade, ao passo que a consolida, transformando-a de objetiva em subjetiva. Mas esta superioridade evidente não me impede de sentir a falta da grande instituição da prece, que tínhamos no antigo culto, e que não me parece compatível com a nova fé.
O SACERDOTE — Semelhante lacuna, minha filha, seria extremamente grave se fosse real, pois que o exercício regular da oração, privada ou pública, constitui a condição [pág. 165] principal de um culto qualquer. Longe de ser deficiente neste ponto, o positivismo é aí mais satisfatório que o catolicismo, porque purifica esta instituição ao mesmo tempo que a desenvolve. Vosso equívoco, a este respeito, resulta da noção grosseira que ainda todos formam da prece, quando a fazem consistir sobretudo em pedidos, materiais as mais das vezes, segundo a natureza profundamente egoísta de todo culto teológico. Para nós, ao contrário, a oração se torna o ideal da vida. Porque rezar é ao mesmo tempo amar, pensar, e mesmo agir, pois que a expressão constitui sempre uma verdadeira ação. Nunca os três aspectos da existência humana podem ser tão profundamente unidos como nessas admiráveis expansões de reconhecimento e de amor para com a nossa grande deusa ou seus dignos representantes e órgãos. A pureza de nossas efusões não é mais maculada por nenhum motivo interessado.
Todavia, como a prática cotidiana destas efusões melhora muito nosso coração, e mesmo nosso espírito, podemos legitimamente ter nelas em vista esse precioso resultado, sem receio de que semelhante personalidade nos degrade jamais. Embora o positivista reze sobretudo para expandir os seus melhores afetos, ele pode também pedir, mas somente nobres progressos, assim quase assegurados. Desejar com fervor ficar mais terno, mais venerador, ou mesmo mais corajoso, já é realizar, até certo grau, o melhoramento desejado, ao menos por uma confissão sincera dos nossos defeitos atuais, primeira condição do próximo aperfeiçoamento. Esta santa reação pode, aliás, estender-se até a inteligência, ainda que não seja senão inspirando-nos novos esforços para pensar melhor. Pelo contrário, pedir um acréscimo de riqueza ou de poder constituiria, no nosso culto, uma prática tão absurda quanto ignóbil. Nós não invejamos aos teologistas o império ilimitado que eles assim esperam obter sobre a ordem exterior. Todos os nossos esforços objetivos limitam-se a aperfeiçoar tanto quanto possível a ordem humana, ao mesmo tempo mais nobre e mais modificável. Em uma palavra, a oração positivista apodera-se essencialmente do supremo domínio reservado outrora à graça sobrenatural. A nossa santificação sistematiza sobretudo aqueles progressos que até então foram concebidos como alheios a qualquer lei invariável, conquanto a sua preeminência fosse já sentida.
A MULHER — De conformidade com essa explicação decisiva, rogo-vos, meu pai, que me indiqueis a marcha geral que convém à oração positivista.
O SACERDOTE — Para isso, minha filha, cumpre distinguir nela duas partes sucessivas, uma passiva, outra ativa, que respectivamente concernem ao passado e ao futuro unidos pelo presente. O nosso culto exprime sempre um amor motivado e desenvolvido por um reconhecimento crescente. Cada prece, privada ou pública, deve, pois, preparar-nos à efusão pela comemoração: esta durará ordinariamente o dobro daquela. Quando uma feliz combinação de sinais e imagens consegue reavivar assaz nossos sentimentos para com o ente adorado, nós os expandimos com verdadeiro fervor, que logo tende a aumentá-los ainda, e, portanto, aproximar-nos mais da evocação final.
A MULHER — Esta indicação podendo bastar-me, peço-vos, meu pai, que completeis vossa apreciação geral de nosso culto caracterizando diretamente as suas reações fundamentais sobre o nosso principal aperfeiçoamento. Conquanto eu as sinta profundamente, não poderia defini-las assaz de modo a fazer com que elas sejam convenientemente aquilatadas. Por isso peço-vos, sobre este ponto, uma explicação sistemática, que servirá para dirigir, primeiro, minha própria prática, e, sem seguida, meu digno proselitismo.
O SACERDOTE — Embora nosso culto aperfeiçoe ao mesmo tempo o coração e o espírito, importa, minha filha, apreciar separadamente sua reação moral e sua influência intelectual. [pág. 166]
A primeira resulta necessariamente da principal lei de animalidade. Porquanto o culto constitui sempre um verdadeiro exercício, e, até, mais normal que qualquer outro, como o indica a linguagem usual, quadro constantemente fiel da existência humana. Semelhante apreciação é incontestável quando a prece se torna completa, isto é, quando é oral e mental ao mesmo tempo. Com efeito, os músculos que empregamos para exprimir, quer por meio de sons, quer por meio de gestos ou atitudes, são os mesmos que os que empregamos quando queremos agir diretamente. Assim, toda digna expressão dos nossos sentimentos tende a fortalecê-los e desenvolvê-los, do mesmo modo que quando realizamos os atos que eles nos inspiram.
Devo entretanto, a este respeito, prevenir um exagero perigoso, invitando-vos a não confundir nunca estas duas grandes reações morais. Apesar da semelhança de suas leis essenciais, elas não podem ser consideradas, em caso algum, como equivalentes. Segundo a experiência universal, plenamente sancionada pela nossa teoria cerebral, as obras terão sempre maior peso que as efusões, não só nos resultados exteriores, mas também para o melhoramento interior. Não obstante, depois da prática das boas ações, nada há que tanto sirva para avigorar e desenvolver os nossos melhores sentimentos como a digna expansão deles, contanto que ela se torne bastante habitual. Ora, este meio geral de melhoramento é-nos ordinariamente mais acessível do que a mesma ação, a qual amiúde exige materiais ou circunstâncias fora do nosso alcance, de modo a reduzir-nos algumas vezes a desejos estéreis. É em virtude de tal disponibilidade que as práticas do culto se tornam, para o nosso progresso moral, um precioso suplemento da existência real, que aliás se concilia plenamente com elas, por efeito da perfeita homogeneidade da religião positiva.
A MULHER — Tendo assim compreendido a reação moral de nosso culto, terei necessidade, meu pai, de explicações mais desenvolvidas em relação à sua influência intelectual, que é para mim muito menos sensível.
O SACERDOTE — Distingui, aí, minha filha, dois casos essenciais, conforme a eficácia for estética ou científica.
Sob o primeiro aspecto, o poder mental do culto positivo é direto e saliente, primeiro para com a arte em geral, e mesmo, em seguida, sobre as duas artes especiais do som ou da forma. A poesia constitui a alma do culto, como a ciência a do dogma e a indústria a do regime. Toda oração, quer privada, quer pública, torna-se no positivismo uma verdadeira obra de arte, pois que exprime nossos melhores sentimentos. Como nada pode aí dispensar uma constante espontaneidade, cada positivista deve ser, a certos respeitos, uma espécie de poeta, ao menos para seu culto íntimo. Posto que as fórmulas devam tornar-se fixas, a fim de obtermos maior regularidade, é indispensável que elas sejam sempre originariamente compostas pela própria pessoa que as emprega, sob pena de não comportarem nenhuma grande eficácia. Por outro lado, esta fixidez nunca é completa, porque só diz respeito aos sinais artificiais, cuja uniformidade faz sobressair melhor as variações espontâneas da linguagem natural, quer musical, quer mímica, sempre mais estética que a outra.
Esta originalidade poética se desenvolverá muito quando a educação regenerada houver assaz exercitado todos os positivistas nas apreciações, e mesmo nas composições, correspondentes, como vo-lo indicarei na terceira parte deste catecismo. Então a arte geral será sempre convenientemente assistida pelas artes especiais, pois que todos se terão familiarizado com o canto, base essencial da música, e com o desenho, fonte geral da tríplice arte da forma, pintada, esculturada ou construída. Enfim, cada elaboração do culto será, as mais das vezes, adornada com suplementos especiais avisadamente escolhidos [pág. 167] no tesouro estético da humanidade. Ainda que este aditamento pareça limitado ao culto público, o culto privado admite uma aplicação útil e freqüente dele, contanto que os empréstimos sejam feitos com discernimento e moderação. Os verdadeiros poetas tendo sempre exprimido os principais sentimentos de nossa imutável natureza, suas produções comportam amiúde uma suficiente analogia com as nossas próprias emoções. Quando esta coincidência, sem ser completa, muito se aproxima de o ser, tais empréstimos poéticos não nos oferecem só o mérito intelectual de uma expressão mais perfeita. Neles achamos sobretudo o encanto moral de uma simpatia pessoal. Quanto mais antigos são esses ornamentos, mais nos convém, sancionando os nossos próprios afetos por essa harmonia espontânea em que nos sentimos, não só com o eminente autor, mas também com todas as gerações cujas efusões ele tem sucessivamente assistido. Mas este precioso auxílio só se torna de uma eficácia plena sob a condição de ficar sempre puramente acessório, embora a sua participação proporcional deva variar conforme os casos, como vo-lo indicarei daqui a pouco.
A MULHER — Antes de me explicardes a influência científica do culto positivo, rogo-vos, meu pai, que esclareçais uma grave dificuldade, naturalmente suscitada pela exposição anterior. O culto e a poesia se me afiguram por tal modo confundidos em nossa religião que o surto comum daquele e desta parece exigir uma classe sacerdotal inteiramente distinta da que desenvolve e ensina o dogma. Sinto que esta separação seria em extremo perigosa, estabelecendo uma rivalidade intratável entre essas duas corporações, para decidir-se a qual delas pertenceria finalmente a direção do regime, que do mesmo modo poderia convir a ambas. Este conflito antolha-se-me tão grave que cumpre, de necessidade, desfazê-lo, sob pena de comprometer radicalmente a organização geral do nosso sacerdócio, que ficaria desde logo incapaz de presidir à vida privada, e sobretudo à vida pública. Mas, por outro lado, não compreendo como poderemos evitar suficientemente esta colisão, pois que a cultura poética e o estudo filosófico parecem exigir regimes inconciliáveis.
O SACERDOTE — Este erro, que importa muito retificar, constitui, minha filha, um dos principais resultados da anarquia moderna, que tende por toda parte a dispersar nossas forças por meio de uma deplorável especialidade, não menos absurda que imoral. No estado normal só os trabalhos práticos são verdadeiramente especiais, pois que ninguém pode fazer tudo. Mas, cada qual devendo conceber tudo, a cultura teórica deve, pelo contrário, permanecer sempre indivisível. Sua decomposição fornece o primeiro sinal da anarquia. É assim que pensava a antiguidade teocrática, única sociedade plenamente organizada até hoje. Quando os poetas aí se separaram do sacerdócio, a decadência deste começou.
Se bem que o gênio filosófico e o gênio poético não possam nunca achar simultaneamente altos destinos, a natureza intelectual de ambos é em tudo idêntica. Aristóteles teria sido um grande poeta e Dante um filósofo eminente se a situação histórica houvesse sido menos científica para um e menos estética para o outro. Todas estas distinções escolásticas foram imaginadas e sustentadas por pedantes que, não possuindo nenhuma espécie de gênio, nem sequer sabem apreciar o gênio alheio. A superioridade mental é sempre semelhante entre as diferentes carreiras humanas: a escolha de cada um é determinada pela sua situação, sobretudo histórica, porquanto a espécie domina sempre o indivíduo. [pág. 168]
A este respeito, a única diferença essencial que realmente existe é a que resulta da continuidade natural do serviço filosófico, em oposição à intermitência necessária do serviço poético. Os grandes poetas são os únicos eficazes, mesmo intelectualmente, e sobretudo moralmente; todos os outros fazem mais mal do que bem: ao passo que os menores filósofos podem ser verdadeiramente aproveitados, quando assaz honestos, sensatos e corajosos. A arte, devendo sobretudo fomentar em nós o sentimento da perfeição, não suporta nunca a mediocridade. O verdadeiro gosto supõe sempre uma grande suscetibilidade para sentir viva repulsão pelas produções inferiores. Desde Homero até Walter Scott, não existem no Ocidente senão treze poetas32 verdadeiramente grandes, dois antigos, onze modernos, incluindo mesmo neste número três prosadores. Entre os outros todos não se poderia citar mais de sete cuja leitura possa ou deva tornar-se diária. Quanto ao resto, será, sem dúvida, destruído quase inteiramente, por tão nocivo ao espírito como ao coração, quando a educação regenerada houver permitido extrair dele todos os documentos úteis, sobretudo históricos. Não há, pois, que constituir, na sociocracia ainda menos que na teocracia, uma classe fixa, exclusivamente ocupada da cultura poética. Mas os padres, habitualmente filósofos, se tornarão momentaneamente poetas quando a nossa Deusa precisar de novas efusões gerais, que bastem em seguida, durante muitos séculos, ao culto público e privado. As composições secundárias, naturalmente mais freqüentes, ficarão, de ordinário, entregues à espontaneidade feminina ou proletária. Quanto às duas artes especiais, a aprendizagem prolongada que elas exigem, sobretudo em relação à forma, obrigará, sem dúvida, a consagrar-lhes alguns mestres escolhidos, que a educação positiva indicará espontaneamente ao sacerdócio diretor. Eles virão a ser verdadeiros membros deste ou permanecerão simples pensionistas, conforme a natureza deles for mais ou menos sintética.
32 Estes treze poetas são os seguintes: Homero, Ésquilo, Dante, Tomás de Kémpis, Ariosto, Tasso, Cervantes, Shakespeare, Calderón, Corneille, Milton, Molière, Walter Scott. Augusto Comte servia-se da figura de um triângulo retângulo para colocar estes treze nomes, pelo modo por que se vê na figura abaixo, reprodução de uma cópia que nos foi enviada pelo Dr. Audiffrent.
[pág. 169]
A MULHER — Semelhante esclarecimento permite-vos, meu pai, passar imediatamente à vossa última explicação geral sobre a eficácia de nosso culto. Sua aptidão estética parece-me evidente. Não vejo, porém, em que possa consistir sua influência científica.
O SACERDOTE — Consiste, minha filha, em desenvolver melhor por toda parte a lógica universal, sempre fundada sobre um digno concurso dos sinais, das imagens e dos sentimentos, para assistir a elaboração mental. A lógica dos sentimentos é mais direta e mais enérgica que qualquer outra; porém os seus meios são demasiado vagos e inflexíveis. Eminentemente disponíveis e assaz multiplicados, os sinais artificiais compensam, por esta dupla propriedade, a menor eficácia lógica que resulta de sua fraca e indireta ligação com os nossos pensamentos. Mas as imagens devem completar este conjunto de recursos intelectuais, e mesmo só elas é que podem instituí-lo suficientemente, em virtude da natureza intermediária que lhes é própria. Ora, é sobretudo em relação a este laço normal de nossa verdadeira lógica que o culto deve ser eficaz, conquanto ele também desenvolva os outros dois elementos. A este respeito, a criança que dignamente reza exercita melhor o seu aparelho meditativo do que o algebrista orgulhoso que, por falta de ternura e de imaginação, não cultiva, no fundo, senão o órgão da linguagem, mediante uma gíria especial, cujo bom emprego é muito limitado.
Esta indicação faz assaz entrever o principal resultado científico do culto positivo. Vê-se, assim, que ele só diz respeito ao método propriamente dito e muito pouco à doutrina, salvo as noções morais, e mesmo intelectuais, que as nossas práticas religiosas espontaneamente proporcionam. O método, porém, terá sempre mais valor do que a doutrina, como os sentimentos em relação aos atos, e como a moral comparada com a política. A maior parte dos trabalhos teóricos até aqui acumulados quase que não têm senão um valor lógico: amiúde só nos ensinam noções ociosas, e algumas vezes nocivas. Se bem que este contraste provisório haja de diminuir muito, quando a disciplina enciclopédica nos houver libertado da mixórdia acadêmica, a verdadeira lógica não cessará nunca de prevalecer sobre a ciência propriamente dita, sobretudo para o público, e mesmo no sacerdócio.
A MULHER — Só me resta perguntar-vos, meu pai, qual deve ser o destino especial das duas outras conferências que me prometestes acerca do culto positivo. Conquanto eu sinta bem que não exploramos bastante este belo domínio, não vejo nele o ponto para onde devemos dirigir ainda os nossos esforços.
O SACERDOTE — Vós o compreendereis, minha filha, considerando que o nosso culto deve ser, sob pena de malogro radical, primeiro privado, depois público. Tais serão os objetos respectivos das duas conversações seguintes. Mas, antes de encetar a matéria, vossa atenção geral precisa apreciar diretamente esta grande subordinação, da qual depende, no fundo, a principal eficácia da religião positiva.
A fim de apanhar melhor essa dependência, concebei estes dois cultos como endereçados respectivamente o primeiro à Mulher, o segundo à Humanidade. Sentireis, então, que a nossa Deusa não comporta como adoradores sinceros senão os que se prepararam para seu culto augusto por meio de uma prática condigna das secretas homenagens diariamente devidas aos seus melhores órgãos, sobretudo subjetivos, e mesmo objetivos. Em uma palavra, a verdadeira Igreja tem sempre por base primitiva a simples Família, ainda mais na ordem moral do que sob o mero aspecto social. O coração não pode evitar este primeiro início, conservado em seguida como estimulante habitual, do mesmo modo que o espírito não pode desprezar os menores graus enciclopédicos para subir aos mais [pág. 170] elevados, que lhe fazem sentir sempre a necessidade de se retemperar na fonte de onde partiu.
É sobretudo a prática assídua do culto privado que há de distinguir finalmente os verdadeiros positivistas dos falsos irmãos com que vamos ser obstruídos logo que a verdadeira religião prevalecer. Sem este sinal, uma fácil hipocrisia usurparia logo a consideração que só é devida aos adoradores sinceros da Humanidade. Entre esta e a Família cumprirá mesmo desenvolver o intermédio normal que resulta dos sentimentos naturais, hoje vagos e impotentes, que nos ligam de modo especial à Pátria propriamente dita. A impossibilidade de bem cultivar estes afetos intermediários senão em associações assaz restritas fornecerá sempre o melhor motivo para a redução, que mais tarde terei de vos explicar, dos grandes Estados atuais a simples cidades convenientemente escoltadas. [pág. 171]
QUARTA CONFERÊNCIA
CULTO PRIVADO
A MULHER — O culto privado parece-me, meu pai, que se deve compor, como a existência correspondente, de duas partes bem distintas, uma pessoal, outra doméstica, cuja separação afigura-se indispensável para que ele possa ser explicado.
O SACERDOTE — Esta divisão natural, que eu não devia misturar com a principal decomposição do culto, determina, de fato, minha filha, o plano de nossa conferência atual. Duas grandes instituições sociolátricas, uma relativa aos verdadeiros anjos da guarda, outra aos nove sacramentos sociais, vão caracterizar aqui respectivamente em primeiro lugar o culto pessoal, depois o culto doméstico. Os motivos que fazem com que este dependa daquele são, em menor escala, essencialmente semelhantes aos que representam o conjunto do culto privado como a única base sólida do culto público. Mais íntimo que qualquer outro, o culto pessoal é o único que pode desenvolver assaz hábitos decisivos de uma adoração sincera, sem os quais nossas cerimônias domésticas e, com mais forte razão, nossas solenidades públicas careceriam de eficácia moral. A sociolatria institui assim, para cada coração, uma progressão natural, onde as efusões individuais preparam dignamente as celebrações coletivas, pelo intermédio normal das consagrações domésticas.
A MULHER — Pois que o culto íntimo se torna, assim, a primeira base de todas as nossas práticas sagradas, rogo-vos, meu pai, que me expliqueis diretamente a verdadeira natureza dele.
O SACERDOTE — Ele consiste, minha filha, na adoração cotidiana das melhores personificações que nos seja dado assinalar à Humanidade, à vista do conjunto de nossas relações privadas.
Toda a existência do Ser supremo fundando-se no amor, único laço que reúne voluntariamente os seus elementos separáveis, o sexo afetivo constitui naturalmente o representante mais perfeito, e ao mesmo tempo o principal ministro do Grande Se. A arte jamais poderá representar a Humanidade de modo condigno senão sob a forma feminina.Mas a providência moral de nossa Deusa não se exerce só pela ação coletiva do vosso sexo sobre o meu. Esse ofício fundamental resulta sobretudo da influência pessoal que cada digna mulher desenvolve sem cessar no seio de sua própria família. Do santuário doméstico dimana de contínuo esse santo impulso, único que nos pode preservar da corrupção moral a que sempre nos dispõe a existência prática ou teórica. Sem tais raízes privadas, a ação coletiva da mulher sobre o homem não comportaria, por outro lado, nenhuma eficácia permanente. É também na família que se realiza uma apreciação suficiente do sexo afetivo, do qual cada um de nós só pode conhecer de modo real os tipos com que vive intimamente.
Eis aí como, no estado normal, cada homem acha em torno de si verdadeiros anjos da guarda, ao mesmo tempo ministros e representantes do Grande Ser. A adoração secreta deles, consolidando e desenvolvendo a influência contínua que lhes cabe, tende [pág. 173] diretamente a nos tornar sempre melhores e mais felizes, fazendo gradualmente prevalecer o altruísmo sobre o egoísmo, pela expansão de um e compressão do outro. Nossa justa gratidão pelos benefícios já recebidos transforma-se, assim, em fonte natural de novos progressos. A feliz ambigüidade da palavra francesa patron33 caracteriza assaz esta dupla eficácia do culto íntimo, no qual cada anjo deve ser igualmente invocado como protetor e como modelo.
33 Com efeito, patron, em francês, designa ao mesmo tempo patrono (protetor) e padrão (modelo). A mesma ambigüidade caracterizou outrora, em português, a palavra patrão, que hoje tem um sentido mais restrito.
A MULHER — Este primeiro apanhado deixa-me, meu pai, muito indecisa sobre a natureza do tipo pessoal, que, parece-me, poderia dimanar, do mesmo modo, de qualquer uma das grandes relações domésticas.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, cumpre combinar dignamente três dessas relações para que o culto angélico comporte uma eficácia plena. Esta multiplicidade se acha dogmaticamente indicada pela de nossos instintos simpáticos, a cada um dos quais corresponde especialmente uma das principais influências femininas. A mãe, a esposa e a filha devem, em nosso culto, como na existência que ele idealiza, desenvolver respectivamente em nós a veneração, o apego e a bondade. Quanto à irmã, seu impulso próprio é muito pouco distinto, e pode sucessivamente prender-se a cada um dos três tipos essenciais. O conjunto deles nos representa os três modos naturais da continuidade humana, em relação ao passado, ao presente e ao futuro, como também os três graus da solidariedade que nos ligam aos superiores, aos iguais e aos inferiores. Mas a harmonia espontânea dos três tipos não pode ser assaz mantida senão mediante a subordinação natural deles, que deve fazer prevalecer habitualmente o anjo materno, sem que a sua doce presidência altere jamais os dois outros impulsos.
Para o principal destino deste culto íntimo, que de ordinário se refere à idade madura de cada adorador, concorre o fato de ter um dos três tipos femininos já se tornado subjetivo na maioria dos casos, ao passo que um dos outros se conserva ainda objetivo. Esta mistura normal aumenta a eficácia de tais homenagens, onde a força e a nitidez das imagens ficam, assim, mais combinadas com a consistência e a pureza dos sentimentos.
A MULHER — Conquanto esta explicação se me afigure muito satisfatória, sinto, meu pai, uma grande lacuna com relação ao meu próprio sexo, cujas necessidades morais me parecem ser aqui desprezadas. Nossa ternura especial não pode, contudo, nos dispensar dessa cultura habitual.
O SACERDOTE — A pluralidade dos tipos angélicos fornece facilmente, minha filha, a solução normal desta grave dificuldade, que de outro modo seria insuperável. Com efeito, o anjo principal é o único que deve ser comum aos dois sexos, tomando cada um destes ao outro os dois anjos complementares. Porquanto a mãe tem para ambos os sexos igual preponderância, não só como fonte essencial de nossa existência, mesmo física, mas sobretudo em virtude de sua presidência normal no conjunto de nossa educação. A esta adoração comum, vosso sexo ajunta o culto do esposo e do filho, pelos motivos acima indicados para o meu quanto à esposa e à filha. Somente este contraste é quanto basta para corresponder às necessidades respectivas, que exigem um patrocínio adequado a desenvolver especialmente, de um lado a energia e do outro a ternura.
A MULHER — Apesar do atrativo que já me inspira esta santa instituição, ainda encontro nela, meu pai, duas imperfeições gerais, quer por não utilizar todas as relações privadas, quer por não haver previsto assaz a insuficiência muito freqüente dos tipos naturais.
O SACERDOTE — Este duplo óbice desaparece, minha filha, tendo-se em conta os diversos tipos acessórios que se prendem espontaneamente a cada um dos nossos três [pág. 174] tipos principais, segundo a conformidade dos sentimentos e a similitude dos laços. Em torno da mãe agrupam-se naturalmente, em primeiro lugar, o pai, e algumas vezes a irmã, depois o mestre e o protetor, além das relações análogas que se podem multiplicar muito na família, e sobretudo fora dela. Estendendo a mesma apreciação aos outros tipos, instituímos uma série de adorações, gradativamente menos íntimas, porém cada vez mais gerais, de onde resulta uma transição quase insensível do culto privado para o culto público. Este desenvolvimento normal também permite preencher, tanto quanto possível, as lacunas excepcionais, substituindo, em caso de necessidade, um dos tipos essenciais pelo seu melhor adjunto. Pode-se, assim, renovar subjetivamente as famílias mal compostas.
A MULHER — À vista deste esclarecimento complementar, só me resta, meu pai, pedir-vos explicações mais precisas sobre a instituição geral das orações que correspondem a este culto fundamental.
O SACERDOTE — O culto íntimo exige, minha filha, três orações cotidianas: ao levantarmo-nos, ao aproximar-se o sono e no meio das ocupações práticas ou teóricas. A primeira, mais extensa e mais eficaz que as outras duas, faz começar cada dia humano por uma digna invocação angélica, única capaz de nos dispor habitualmente ao bom emprego de nossas forças quaisquer. Na última exprime-se a gratidão devida a essa proteção cotidiana, de modo a prolongar sua eficácia durante o sono. A do meio do dia deve-nos libertar por alguns momentos dos impulsos teóricos e práticos, para melhor fazer penetrar neles a influência afetiva, de que eles tendem sempre a nos afastar.
Semelhante destino logo indica as épocas respectivas das três preces positivistas, e mesmo os modos de sua realização. A primeira terá lugar, antes de qualquer ocupação, no altar doméstico, instituído de conformidade com as nossas melhores recordações, e na atitude da veneração.34 A última, porém, deve efetuar-se no leito e prolongar-se, tanto quanto possível, até a invasão do sono, a fim de assegurar melhor a calma cerebral, quando estamos menos garantidos contra as tendências viciosas. Posto que a hora da oração média não possa ser tão bem determinada, pois que deve variar segundo as conveniências individuais, importa que cada um lhe dê, pelo modo que puder, uma fixidez rigorosa, que facilitará as disposições que ela exige.
34 Isto é, de joelhos.
A duração respectiva de nossas três orações cotidianas é analogamente indicada destino próprio de cada uma delas. Em geral, convém que a da manhã dure duas vezes mais, a do meio duas vezes menos, que a da noite. Quando o culto íntimo se acha plenamente desenvolvido, a oração principal absorve espontaneamente toda a primeira hora de cada dia. É isto devido sobretudo à decomposição de sua fase inicial em duas partes que duram tanto como a fase final, fazendo preceder a comemoração comum a todos os dias da semana pela que se torna peculiar a cada um deles. Daí resulta a divisão usual da reza da manhã em três tempos iguais, em que prevalecem, respectivamente, primeiro as imagens, depois os sinais, e por fim os sentimentos. As duas outras preces não comportam a mesma proporção entre a comemoração e a efusão. Ao passo que de manhã esta dura, ao todo, duas vezes menos que aquela, a relação torna-se inversa à noite e a igualdade distingue a do meio do dia. Facilmente explicareis estas diversidades secundárias. Convido-vos, porém, a notar que, à vista do conjunto destas indicações, a duração total de nosso culto cotidiano alcança somente duas horas, mesmo para aqueles que são levados a reproduzir à noite a oração do meio do dia.
Cada positivista consagrará, portanto, ao seu íntimo aperfeiçoamento cotidiano menos tempo do que absorvem hoje as leituras viciosas e as diversões inúteis ou funestas. É só aí que se efetua o surto decisivo da vida subjetiva, em virtude de nossa identificação crescente com o ente adorado, cuja imagem gradualmente purificada se torna mais viva [pág. 175] e mais nítida em cada novo ano de culto. Por estas práticas secretas, cada qual se prepara para receber dignamente a excitação simpática que resultará da publicidade peculiar aos outros ritos sagrados de nossa religião. Espero que as nossas regras sociolátricas, graças a um tal conjunto de aptidões morais, poderão superar, na elite dos dois sexos, a grosseria atual dos costumes ocidentais. As almas vulgares e incultas consideram ainda como perdido todo o tempo que não é preenchido pelo trabalho material. Nas classes cultivadas já se reconhece o valor próprio do exercício meramente intelectual. Mas desde o fim da Idade Média o homem tem esquecido por toda parte o valor direto e superior da cultura moral propriamente dita. E quase se envergonharia de lhe consagrar tanto tempo quanto lhe dedicava diariamente o grande Alfredo,35 sem que isso alterasse de modo algum sua admirável atividade.
35 Alfredo, o Grande, rei da Inglaterra. "Ele dividia habitualmente seu tempo em três porções iguais: uma era consagrada ao sono, às refeições e aos exercícios do corpo; outra, ao despacho dos negócios; a terceira, ao estudo e à devoção." (Hume, História da Inglaterra) — Alfredo ocupa no calendário concreto o primeiro domingo do mês de Carlos Magno.
Para completar esta teoria especial das orações cotidianas, devo assinalar-vos a este respeito a desigual participação dos ornamentos, sempre acessórios, tirados com critério do tesouro estético da humanidade. Eles são naturalmente mais próprios para secundar a efusão do que a comemoração. Por conseguinte, essa assistência convém mais à noite do que pela manhã. Mas este auxílio é sobretudo destinado a dispensar-nos da espontaneidade que de ordinário nos falta na prece média, onde a efusão final se pode efetuar quase inteiramente por meio de uma acertada escolha de trechos poéticos. Quando o canto e o desenho se tiverem tornado por toda parte tão familiares como a palavra e a escrita, esta contribuição exterior satisfará mais nossas necessidades interiores, durante esses langores demasiado freqüentes de nossas melhores emoções.36
36 É mister completar tudo quanto ficou explicado sobre a oração positivista com os seguintes trechos da Política Positiva (tomo IV, pp. 114-118):
"Devo agora completar a exposição do culto pessoal explicando o conjunto de práticas cotidianas, únicas que podem proporcionar-lhe uma eficácia suficiente. Todas devem ser qualificadas de preces, reduzindo este termo necessário ao nobre sentido que as almas ternas apanharam cada vez mais através do egoísmo teológico. Então ele designa sempre uma comemoração seguida de efusão.
"No culto íntimo, estas duas partes essenciais da prece positiva tomam, quase igualmente, um destino concreto, dirigido sobretudo ao principal patrocínio, a fim de concentrar melhor as emoções. Conquanto a fase ativa deva diretamente tornar-se mais decisiva do que a fase passiva, esta serve habitualmente de base àquela, que de outro modo não poderia comportar bastante profundeza. Por isso é que, na principal prece cotidina, a efusão dura metade menos do que a comemoração. Porém esta deve então decompor-se em duas fases iguais: a primeira, peculiar a cada dia da semana, segundo as recordações que a ele se referem; a segunda, comum a todos os dias, para aí lembrar sem cessar o conjunto das relações, contempladas conforme a verdadeira sucessão delas. O campo mais vasto da última não deve fazê-la durar mais, porque os sinais dominam nela, ao passo que a outra emprega sobretudo as imagens. Assim preparada pela contemplação mais completa sucedendo à mais intensa, a efusão, sempre sintética, tende diretamente para o destino geral do culto íntimo. Tal é a decomposição normal da prece pessoal em três fases de igual duração, cujo conjunto constitui uma progressão cerebral, onde a preponderância sucessiva das imagens, dos sinais e dos sentimentos, deve terminar na evocação subjetiva que caracteriza a eficácia da adoração.
"Este resultado decisivo do culto intimo não pode nunca adquirir a nitidez nem a intensidade das impressões objetivas. Mas, como este limite ideal é atingido, e algumas vezes excedido, na exaltação mórbida, o estado normal permite que dele nos aproximemos cada vez mais, à medida que a assiduidade das adorações cotidianas vai desenvolvendo a eficácia cerebral delas. As almas dignas podem assim obter satisfações desconhecidas dos corações sem cultura, e mesmo dos que dirigem suas homenagens a entes heterogêneos.
"A fim de aumentar a energia destas práticas habituais, importa empregar nelas criteriosamente o concurso do sentido mais simpático com o mais sintético, aliando os sons às formas. Se bem que a prece oral pareça reservada às celebrações coletivas, sempre se reconheceu que ela pode também aperfeiçoar a adoração solitária, freqüentes vezes qualificada de invocação. Todavia, ela convém mais à efusão do que à comemoração, cuja primeira fase sobretudo deve empregá-la pouco. [pág. 176]
"O conjunto destas indicações basta para representar a prece cotidiana dos positivistas como uma obra de arte, cuja composição pertence a cada adorador, que é o único que pode fazer ali concorrer dignamente os sons e as formas, a fim de exprimir melhor seus sentimentos. Esta combinação espontânea dos dois modos estéticos adquire mais eficácia quando se completa a positividade pela fetichidade, sem que vãos escrúpulos devam, jamais, demover-nos de animar ingenuamente todos os objetos assaz ligados à adoração. Conquanto nada aí possa dispensar-nos da originalidade das composições, estas podem ser aperfeiçoadas mediante aceitados empréstimos ao tesouro poético da Humanidade. Contanto que essas fórmulas gerais sejam assaz conformes com as nossas emoções, a assistência moderada delas deve aumentar o poder das emoções, ativas ou passivas, proporcionando-lhes, além da sanção de um órgão eminente, o concurso ideal de todas as almas que ele comoveu. Mas a plenitude estética da educação positiva permitirá que se complete este auxílio subordinando à arte fundamental seus dois auxiliares especiais, quando o canto e o desenho se tiverem tornado tão familiares quanto a palavra e a escrita. Serão aí sobretudo destinados a compensar a uniformidade necessária de cada prece, cujo fundo, uma vez instituído, não deve receber senão raros melhoramentos, em virtude de necessidades sentidas durante muito tempo, a fim de que o hábito facilite a expansão. Como toda variedade tem de limitar-se ao desenvolvimento, fônico ou mímico, das fórmulas consagradas, as duas artes especiais o tornarão mais completo e mais enérgico se a assistência deles não exigir esforços atuais.
"Quanto à pluralidade das preces cotidianas, cumpre reconhecer primeiro o predomínio normal da adoração que consagra a primeira hora de cada dia a colocar o conjunto deste sob o patrocínio das melhores personificações da Humanidade. É aí que todos os meios secundários devem mais concorrer para completar cada uma das três fases do culto pessoal. Mas, na proximidade do sono, uma prece conveniente, durando a metade do tempo, protegerá a harmonia cerebral contra as perturbações noturnas. Enfim, pelo meio do dia, a mais curta das adorações cotidianas suspenderá as ocupações, teóricas ou práticas, para recordar-nos afetivamente o destino fundamental que elas tendem a desprezar. Tais são as três preces cotidianas do verdadeiro positivista, que deverá saber proporcionar convenientemente nelas a comemoração e a efusão, assim como graduar com critério o uso dos meios acessórios, sem que seja necessário especificar aqui estas fáceis explicações.
"Porém, estas práticas cotidianas, que se devem concentrar na padroeira principal, exigem um complemento hebdomadário, no qual essa presidência contínua, assistida pelos dois outros tipos essenciais, permita o digno surto das homenagens pessoalmente devidas a todas as adjunções. As propriedades numéricas que dirigiram espontaneamente a instituição subjetiva desse período (a semana) devem introduzi-lo no culto íntimo, posto que ele convenha melhor às celebrações públicas. Dando maior desenvolvimento a algumas destas solenidades hebdomadárias, cada qual construirá para si festas anuais, que completarão a adoração pessoal, em conseqüência de sua relação normal com o segundo elemento objetivo da coordenação dos tempos. Seria ordinariamente supérfluo instituir celebrações mensais, quando o uso universal do calendário positivista, explicado adiante, fará concordar as datas peculiares aos dois períodos artificiais. Cada um dos dois cultos extremos deve apenas oferecer três graus normais: cotidiano, hebdomadário, anual, em relação à adoração pessoal; hebdomadário, mensal, anual, nas solenidade públicas.
"Para manter a continuidade sociolátrica, a prece principal cotidiana exige uma precaução habitual destinada a prevenir a divergência proveniente de seu início variar conforme os dias da semana. A conexão estabelece-se mediante um preâmbulo uniforme, constituindo uma curta invocação, à qual preside uma das imagens secundárias que se referem à véspera. Se este dia não tiver deixado objetivamente senão uma única recordação, colher-se-ão em breve as outras nas impressões subjetivas que há de produzir espontaneamente o hábito do culto, cujas principais influências se transformarão em acontecimentos pessoais.
"Em segundo lugar, a faculdade de suspender voluntariamente a visão permite-nos proporcionar às imagens interiores um acréscimo de intensidade que os resultados da audição não comportam. Contudo, não convém subtrair os olhos ao espetáculo exterior a fim de vermos melhor em nós mesmos, quando a obscuridade for espontaneamente suficiente. Porquanto o esforço necessário para nos isolarmos assim desvia uma parte do poder cerebral, ao passo que o esforço exigido pela contemplação objetiva concorre para a evocação anterior, aproximando nossa situação da que primitivamente nos afetou.
"Cumpre também anotar, a respeito de todos os modos peculiares à adoração íntima, uma precaução suscitada pela sua natureza concreta, em conseqüência do estado subjetivo que ordinariamente apresenta a imagem preponderante e mesmo a maior parte das outras. Em relação a cada um desses entes objetivamente extintos, não devemos temer contemplar habitualmente a catástrofe que nos privou dele. O quadro de seus últimos momentos deve figurar dignamente em cada adoração, a fim de caracterizar melhor aí a inauguração natural da eternidade subjetiva que queremos, sob sua assistência, merecer com ele."
Finalmente, devemos assinalar a inovação introduzida no culto íntimo por Henry Edger, e aceita pelo Mestre, que consiste em consagrar cada um dos dias da semana à repressão especial de um dos sete instintos egoístas (Lettres à Edger, pp. 24-25). [pág. 177]
A MULHER — Tendo assaz compreendido nosso culto pessoal, esforço-me, meu pai, por pressentir em que deverá consistir o culto doméstico propriamente dito. Mas não posso ainda formar espontaneamente uma idéia satisfatória. Vejo bem que, assim como o culto íntimo, pode o culto doméstico instituir uma adoração assídua dos tipos comuns a toda a família. Do mesmo modo pode ele reproduzir, para esta associação elementar, as invocações coletivas que o culto público endereça diretamente à humanidade. Estas duas ordens de práticas religiosas, sob o sacerdócio espontâneo do chefe da família, comportam, sem dúvida, uma alta eficácia moral. Todavia, isto não basta para imprimir ao nosso culto doméstico um caráter verdadeiramente distinto, que não o confunda com nenhum dos outros dois cultos, aos quais ele deve servir de intermediário.37
37 O extrato seguinte da Política Positiva (tomo IV, pp. 120-121) completa o que ficou dito no texto sobre o culto doméstico:
"Tendo assaz explicado o culto fundamental, devo caracterizar agora o segundo elemento da sociolatria. A primeira vista parece não se distinguir dos outros dois senão pelo esboço doméstico da adoração concreta ou da efusão abstrata que lhes são respectivamente próprias. Conquanto esta dupla diferença não comporte instituições especiais, ela exige novas preces, adaptadas ao primeiro grau de associação (a família). Tornada assim coletiva, a adoração concreta estende-se mais, sobretudo quanto ao passado, quando o chefe da família invoca, como deuses, seus principais antepassados, cuja evocação subjetiva, assistida dos meios estéticos, deve reanimar os sentimentos comuns. O sacerdócio espontâneo, da mãe, em seu santuário normal, prepara o culto do Grande Ser, que ela aí personifica, mediante preces abstratas das quais meu prefácio geral já indicou uma feliz tentativa". *
*Augusto Comte refere-se ao Ensaio sobre a Oração, por José Lonchampt, de que falaremos adiante. (M. L.)
O SACERDOTE — A instituição dos sacramentos sociais preenche, minha filha, esta condição necessária. É por eles que o culto doméstico se distingue profundamente dos outros dois, ao passo que lhes fornece uma transição natural. Consiste essa instituição em consagrar todas as fases sucessivas da existência privada, ligando cada uma delas à vida pública. Daí resultam os nossos nove sacramentos sociais: a apresentação, a iniciação, a admissão, a destinação, o casamento, a madureza, o retiro, a transformação e, enfim, a incorporação. A sucessão invariável destes sacramentos constitui uma série de preparações pelas quais, durante o conjunto da vida objetiva, cada digno servidor da Humanidade tende gradualmente para a eternidade subjetiva que deve erigi-lo, afinal, em órgão próprio da deusa.
A MULHER — Posto que os limites normais deste catecismo vos vedem, meu pai, uma explicação verdadeiramente completa de todos os nossos sacramentos, espero que podereis suficientemente caracterizar aqui cada um deles.
O SACERDOTE — Pelo primeiro, minha filha, a religião final consagra sistematicamente cada nascimento, como fizeram espontaneamente todas as religiões preliminares. A mãe e o pai do novo rebento da Humanidade vêm apresentá-lo ao sacerdócio, que recebe deles o compromisso solene de o prepararem convenientemente para o serviço da deusa. Esta garantia natural é completada por uma dupla instituição, cujo germe o positivismo se honra de ter tomado ao catolicismo, desenvolvendo-o sob a inspiração social. Um par artificial, por escolha dos pais, mas com a aprovação do sacerdócio, proporciona livremente ao futuro servidor do Grande Ser uma nova proteção, sobretudo espiritual, e, em caso de necessidade temporal, à qual se associam todas as testemunhas especiais. O apresentado recebe também, de suas duas famílias, dois patronos particulares, um teórico, outro prático, que ele próprio completará por ocasião de emancipar-se, impondo-se a si mesmo um terceiro prenome,38 tirado igualmente dos representantes sagrados da Humanidade.39
38 É necessário adotarmos este termo (prenome) com a significação precisa que tem em francês. Nossa expressão — nome de batismo — só pode ser aplicada aos casos cristãos. V. nosso Discurso Consecratório da Apresentação, Rio, 1885.
A apresentação deverá efetuar-se, tanto quanto possível, durante o primeiro ano, antes do fim do aleitamento (Lettres à Edger, p. 18); e o seu adiamento nunca deverá exceder o 14.° ano (Carta a Laurent, v. Lettres d'Auguste Comte à Divers, tomo I).
39 Os representantes sagrados da Humanidade são os tipos que figuram no calendário histórico. Cumpre, porém, atender à restrição estabelecida por Augusto Comte numa carta ao seu discípulo norte-americano Henry Edger: "Quanto ao prenome provisório que tomastes,* devo recomendar-vos, para evitar um precedente vicioso, que circunscrevais doravante essas escolhas aos meses de São Paulo e de Carlos Magno, onde se encontram os únicos tipos femininos que comportam o patrocínio moral (excetuando, todavia, Isabel, a Católica, e Maria de Molina, no mês de Frederico). Todas as outras mulheres do calendário histórico, não representando senão o mérito intelectual, não podem servir de padroeiras, mesmo provisoriamente. Com mais forte razão cumpre assim julgar as escolhas masculinas,** a menos que não sejam aplicadas a meninos, e neste caso o mês de César pode ser juntado aos outros dois (Lettres à Edger, p. 21).
* Trata-se de uma menina. (M. L.)
** Confessamos de plano que não temos certeza sobre a verdadeira interpretação deste típico final. A solução que nos parece mais aceitável é admitir que Augusto Comte refere-se aqui a nomes de homens tornados femininos, como Albertina, de Alberto, etc. (M. L.) [pág. 178]
Na civilização antiga, este primeiro sacramento.era amiúde recusado, sobretudo aos entes julgados incapazes da atividade destrutiva que então prevalecia. Mas a sociabilidade moderna utilizando cada vez mais todas as naturezas, a apresentação será quase sempre aceita pelo sacerdócio, salvo em casos tão excepcionais que não é necessário prevê-los.
O segundo sacramento é qualificado de iniciação porque marca o primeiro surto da vida pública, quando o menino passa, aos catorze anos, da educação espontânea, que sua mãe dirigia, para a educação sistemática, ministrada pelo sacerdócio. Até então os conselhos do padre só se endereçavam aos pais naturais e artificiais, para lembrar-lhes os seus deveres essenciais durante a primeira infância. Mas aqui o novo ser recebe diretamente advertências religiosas, destinadas sobretudo a premunir-lhe o coração contra as reações viciosas muito amiúde inerentes à cultura teórica a que ele vai se submeter. Este segundo sacramento é suscetível de adiamento, e algumas vezes de recusa, ainda que raramente, se a educação doméstica não tiver dado resultado satisfatório.
Sete anos depois, o jovem adepto, primeiro apresentado, em seguida iniciado, obtém, em virtude do conjunto de suas preparações, o sacramento da admissão, que o autoriza a servir livremente a Humanidade, da qual até então ele tudo recebeu sem lhe retribuir nada. Todas as legislações temporais têm reconhecido a necessidade de adiar, e de até recusar, semelhante emancipação aos entes que uma organização demasiado imperfeita, mal retificada pela educação, condena a uma infância eterna. Uma apreciação mais exata há de, com mais razão, conduzir o sacerdócio a severidades análogas, cujos resultados diretos se limitarão sempre ao domínio espiritual.
Este terceiro sacramento erige o menino em servidor, mas sem que ele possa especificar ainda sua própria carreira, muitas vezes diferente daquela que se lhe supôs durante a aprendizagem prática que teve de coexistir com sua educação teórica. Só ele pode decidir convenientemente sobre este assunto, em virtude de ensaios livremente tentados e suficientemente prolongados. Daí resulta a instituição de um quarto sacramento social que vem, aos vinte e oito anos, salvo pedido ou prescrição de adiamento, consagrar a destinação assim escolhida. O culto antigo apenas oferecia um esboço deste sacramento quanto às mais elevadas funções, na ordenação dos padres e na sagração dos reis. Mas [pág. 179] a religião positiva deve sempre instituir socialmente todas as profissões úteis, sem distinção de públicas ou privadas. Os mínimos servidores do Grande Ser virão, no seu templo, receber solenemente, do sacerdócio da Humanidade, a consagração inicial de suas cooperações quaisquer. É o único sacramento suscetível de verdadeira renovação, sempre excepcional.
A MULHER — Compreendo, meu pai, esta série de consagrações anteriores ao casamento, que será seguido dos outros quatro sacramentos positivistas. Quanto a este sacramento principal, o único que completa o conjunto das preparações humanas, já conheço a doutrina essencial do positivismo. Sobretudo comove-me profundamente a grande instituição da viuvez eterna, há muito esperada por todos os corações verdadeiramente femininos. Além de sua importância doméstica, e mesmo cívica, só ela pode desenvolver assaz a vida subjetiva para elevar nossas almas até a representação familiar do Grande Ser, mediante uma digna personificação. Todas estas noções preciosas já me eram quase próprias, antes de ser vossa catecúmena. Sei, aliás, que voltareis ao assunto, sob outro aspecto, quando me explicardes o regime. Podemos, portanto, começar a última série de nossas consagrações. 40
40 Completar o que fica dito sobre a viuvez eterna e o sacramento respectivo com os seguintes extratos: Preâmbulo casto e viuvez eterna. "Sabe-se que a religião da Humanidade considera o estabelecimento da monogamia como o principal resultado da transição ocidental entre a teocracia e a sociocracia. Depois de ter-se aproximado gradualmente, durante estes trinta séculos, de sua plenitude normal, esta instituição decisiva atinge-a na regeneração positivista que faz prevalecer livremente a viuvez eterna, sem a qual a poligamia persiste subjetivamente.
"Resumo natural da verdadeira teoria do casamento, este complemento necessário torna-se o guia geral da quinta consagração. Para assegurar melhor a madureza de tal compromisso, a experiência da nova igreja já provou que ele não deve ser recebido senão três meses após a celebração cívica que permite ao novo par uma inteira intimidade. Um mês antes da cerimônia municipal os noivos prometem solenemente guardar uma castidade perfeita durante este preâmbulo trimestral da consagração religiosa. Sem semelhante prova, nenhum deles poderia garantir suficientemente sua própria resolução, nem contar assaz com a do outro. O laço conjugal fica dignamente inaugurado por este noviciado decisivo, que, apesar da liberdade legal, mostra os dois esposos preparando-se para o casamento subjetivo, fruindo, em toda a sua pureza, a fusão das almas.
"Assim dispostos a considerar o aperfeiçoamento mútuo como o verdadeiro destino de uma associação em que a procriação é apenas acessória, são eles admitidos, no nome do Grande Ser, a assinar, com todas as testemunhas, o compromisso solene de uma eterna união. Conquanto estas garantias devam ordinariamente tornar irrevogável essa livre obrigação, ela comporta, entretanto, dispensas excepcionais, cuja concessão pertence unicamente ao Sumo Pontífice da Humanidade, fundando-se num inquérito especial. Esta decisão pontificai oferece tanto mais gravidade quanto ela estigmatiza naturalmente uma memória, a menos que o sobrevivente não se ache espontaneamente desligado do seu voto por um arrastamento verificado, que tais precauções tornam quase impossível. No caso normal, a promessa da viuvez eterna será solenemente renovada seis meses depois do ano de luto, sem que nunca mais possa comportar dispensa alguma. Mas o compromisso deve, mesmo então, permanecer puramente religioso, a fim de que sua dignidade não seja jamais alterada por prescrições legais, quaisquer que venham a ser as exigências da opinião universal, às quais o patriarcado saberá resistir sempre pelas instâncias do sacerdócio." (Política Positiva, tomo IV, pp. 127-128.)
Casamento misto. "Visto a próxima extensão do casamento positivista, devo resolver aqui uma dificuldade especial, sobre a qual tenho sido amiúde consultado, quanto às uniões mistas, que, finalmente estranhas ao estado normal, prevalecerão durante a transição orgânica. O positivismo é a única doutrina que as pode consagrar, sem inconseqüência, em virtude de seu caráter relativo, que lhe permite encarar todas as crenças anteriores como outras tantas preparações para a fé demonstrável. Ele fará concorrer esses laços para a digna propagação do culto universal, tanto entre os politeístas, e mesmo entre os fetichistas, como entre os diversos monoteístas.
"Esta fusão exige duas condições gerais, a fim de não alterar nunca o justo ascendente da religião final por [pág. 180] uma tentativa sem êxito, amiúde degenerada em luta permanente. Cumpre, antes de tudo, restringir a esperança da conversão ao sexo mais modificável, cujo apego aos antigos cultos merece o maior respeito, como determinado sobretudo pelas necessidades do coração, apesar das instigações do espírito. Conquanto o positivismo deva utilizar, melhor do que o catolicismo, a influência feminina, ele manterá mais a dignidade masculina, confiando somente ao esposo um ofício didático que não convém à esposa. A harmonia conjugal ficaria gravemente comprometida se a mulher esperasse do casamento a conversão que ela não tiver podido determinar previamente. Mas o homem deve de ordinário esperar trazer gradualmente à fé positiva uma companheira naturalmente disposta a receber dignamente a iniciação mental, e sobretudo a sentir convenientemente a superioridade moral da verdadeira religião.
"Assim concebido, o casamento misto é permitido a todo positivista assaz emancipado das religiões anteriores para tomar parte passivamente em suas cerimônias quaisquer, sem nenhuma adesão mentirosa. Muitas vezes tenho induzido verdadeiros parentes a dar livremente esse justo testemunho de deferência pessoal e de respeito cívico. Mas, em virtude dessa iniciativa do homem, a mulher deve sempre conceder uma reciprocidade suficiente, consentindo em contrair, no templo da Humanidade, o compromisso solene da viuvez positivista. Este grau de adesão à religião universal permite já a harmonia conjugal e deixa esperar para breve uma conversão decisiva, em que o coração auxiliará o espírito a sentir a indivisibilidade da verdadeira fé. Se a mulher recusar semelhante concessão, o sacerdócio não poderá conceder o casamento, e o homem deverá adiá-lo até que essa condição seja preenchida, a fim de não suscitar uma luta incerta, tão contrária à felicidade como à dignidade. Na situação ocidental, em que a antiga fé não pode realmente inspirar nenhum fanatismo, esta obstinação anunciaria a esperança de um vicioso domínio, mal dissimulado sob a impossibilidade de renunciar ao culto anterior. Ilusório para os monoteístas, dos quais certos antepassados tiveram que abandonar a religião de seus pais, este motivo só se torna verdadeiramente respeitável em mulheres politeístas ou fetichistas, entre as quais a viuvez positivista será sempre acolhida.
"Qualquer que seja o modo por que se efetue o casamento misto, ele não deve alterar nunca a regra positivista que confia à mãe a superintendência da educação dos filhos sem distinção. Uma crença atrasada não obsta a que a esposa seja, em virtude de sua preeminência moral, mais capaz do que o esposo para dirigir a iniciação doméstica, e mesmo para fiscalizar a instrução pública, a fim de subordinar o espírito ao coração. Todo verdadeiro positivista respeitará sempre esta atribuição, já por efeito de uma sã apreciação do verdadeiro ofício da inteligência na preparação humana, já porque sente assaz a superioridade de sua própria fé para esperar que ela acabe por prevalecer espontaneamente." (Ibid., pp. 408-410.)
Augusto Comte foi levado mais tarde a excluir do casamento misto as mulheres que não professassem religião alguma. Referindo-se ao caso particular que lhe inspirou semelhante exclusão, nosso Mestre escrevia a J. Fisher:
"Podemos verificar assim quanto é perigoso aliar-se a essas famílias, incuravelmente revolucionárias, cujo tipo permanece felizmente restrito à França, onde ele estende-se mesmo raramente às mulheres. Sob o impulso de um pai estupidamente rousseauniano, essa jovem senhora pensa e diz que a vida humana não precisa absolutamente ser sistematicamente regulada, e que o sentimento basta só para conduzir-nos. Por conseguinte, ela não professa senão um deísmo vago e estéril, ou, antes, perturbador, que de modo algum pode determinar o casamento misto, que de boa mente eu concederia a toda mulher católica, muçulmana, protestante ou mesmo judia. Daqui por diante saberei impedir, tanto quanto couber em mim, semelhantes uniões, recusando-me a casar, desde o preâmbulo, todo positivista cuja esposa for inteiramente destituída de qualquer religião. Todas as almas verdadeiramente religiosas devem, sob a nossa presidência, se concertar para repelir semelhantes famílias, que cumpre gradualmente reduzir a não se aliarem senão entre si só pelo laço municipal". (Lettres à des Positivistes Anglais, p. 65.)
Renovação do casamento. O positivismo também concede a sanção religiosa aos cônjuges convertidos posteriormente ao seu casamento, efetuado por outro rito, ou apenas civilmente.
Ainda a propósito do caso particular do parágrafo anterior, Augusto Comte escrevia ao mesmo discípulo:
"A união religiosa desse par já não pode mais efetuar-se senão pelo modo peculiar aos casamentos renovados, do que já existem dois exemplos normais, exigindo, porém, pelo menos, três anos de vida em comum, para que a experiência tenha assaz manifestado a insuficiência dos laços ordinários, que primeiro foram julgados bastantes". (Ibid., p. 64 — V. também sobre este assunto as páginas 187, 189 e 203 do Volume Sagrado: Testamento, Preces, Confissões, etc.) [pág. 181]
O SACERDOTE — Todavia, minha filha, cumpre fixar, em primeiro lugar, a idade normal do principal sacramento social. Pois que o casamento deve seguir, e não preceder, a destinação especial, o homem não poderá receber o sacramento respectivo antes de ter completado vinte e oito anos. O sacerdócio aconselhará mesmo ao governo que estenda até trinta anos41 o veto legal do chefe de família, a fim de prevenir melhor toda precipitação no mais importante de todos os nossos atos privados. Quanto às mulheres, o sacramento da destinação coincide necessariamente com o da admissão, por causa da feliz uniformidade de sua vocação sempre conhecida. Elas ficam aptas para o casamento desde a idade de vinte e um anos, o que, aliás, garante melhor a harmonia conjugal. Estes limites inferiores não podem ser diminuídos, em um e outro sexo, senão por motivos muito excepcionais, maduramente apreciados pelo sacerdócio, sob sua responsabilidade moral. Mas não é necessário fixar, em geral, nenhum limite superior, se bem que as mulheres devam quase sempre casar-se antes dos vinte e oito anos e os homens antes do trinta e cinco, quando a vida conjugal for dignamente instituída.42
41 Completar e retificar o texto com o seguinte trecho da Política Positiva (tomo IV, pp. 302-303):
"Respeitando a espontaneidade que deve sempre oferecer o preenchimento das sete condições* exigidas pela teoria religiosa da família, o sacerdócio será contudo obrigado a solicitar, a respeito delas, algumas medidas legais, sobretudo quanto à idade do casamento civil. Todos os códigos ocidentais permitem a este respeito excessiva precocidade, principalmente para as mulheres, que, segundo a lei francesa, são amiúde sacrificadas às brutalidades masculinas antes que a sua constituição, mesmo física, possa estar assaz formada. O pontificado da Humanidade deve, pois, obter das diversas ditaduras que a mulher nunca seja esposada antes de ter completado dezenove anos; mas sem exigir os vinte e um, ficando esta idade peculiar à união religiosa. Quanto ao homem, convém prolongar até os vinte e oito anos, idade normal do sacramento da destinação, o veto paterno relativo ao casamento. Por efeito desta dupla disposição, a maioria das uniões positivistas se efetuarão entre mulheres de vinte e dois anos e homens de vinte e nove; de maneira a manter a desigualdade de sete anos, que parece a mais apropriada".
* Viuvez eterna, superintendência da educação, sustento da mulher pelo homem, livre supressão de dotes e heranças femininas, faculdades de testar e de adotar. (M. L.)
42 "Contudo o sacerdócio não deverá permitir, sem graves motivos, o casamento além de trinta e cinco anos no homem e de vinte e oito na mulher." (Ibid., p. 127.)
A MULHER — O primeiro dos sacramentos depois do casamento parece-me, meu pai, bastante explicado só pela sua definição. Vós já me tínheis feito notar a coincidência ordinária do pleno desenvolvimento orgânico do homem com a sua inteira preparação social na idade de quarenta e dois anos. Não tenho aqui em vista senão o vosso sexo, pois que o sacramento da madureza lhe pertence exclusivamente. A vocação feminina; é ao mesmo tempo tão uniforme e tão fixa que não comporta nenhuma da duas consagrações entre as quais se acha compreendido o casamento.
O SACERDOTE — Apesar de terdes apanhado espontaneamente, minha filha, a verdadeira natureza do nosso sexto sacramento, não poderíeis apreciar assaz a sua importância própria. Durante os vinte e um anos que o separam do sétimo, o homem desenvolve sua segunda vida objetiva, única decisiva para sua imortalidade subjetiva. Até então, a nossa existência, essencialmente preparatória, naturalmente suscitou desvios, algumas vezes graves, porém sempre reparáveis. Daí por diante, pelo contrário, as nossas novas faltas não comportam quase nunca uma compensação suficiente, seja exterior ou mesmo interior. Importa, pois, impor de um modo solene ao servidor da Humanidade a inflexível responsabilidade que vai começar para ele, tendo especialmente em vista sua função própria, já plenamente apreciável.
A MULHER — Quanto ao sacramento seguinte, não lhe vejo, meu pai, outro destino senão marcar o termo normal da grande fase de atividade completa e direta, inaugurada pela sexta consagração.
O SACERDOTE — O sacramento do retiro torna-se, pelo contrário, minha filha, um dos mais augustos e dos mais bem caracterizados, quando se considera o último oficio fundamental que preenche, então, cada verdadeiro servidor da Humanidade. Na [pág. 182] ordem positiva, um funcionário qualquer, sobretudo temporal, designa sempre seu sucessor, sob a sanção de seu superior, salvo os casos excepcionais de indignidade ou incapacidade, como hei de explicar-vos logo mais. Desde já sentis que é o único meio de regularizar suficientemente a continuidade humana. Vindo livremente abdicar, aos sessenta e três anos, uma atividade exausta, para desenvolver daí por diante sua legítima influência consultiva, o cidadão exerce solenemente este último ato de elevada autoridade, desde então submetido publicamente à inspeção sacerdotal e popular, que poderá conduzir a que ele seja dignamente modificado. Nos ricos, esta transmissão do ofício completa-se naturalmente, segundo as mesmas regras, pela transferência da porção do capital humano que serve de instrumento ao funcionário, exceto o que ele precisa para suas provisões pessoais.
A MULHER — Agora, meu pai, concebo todo o alcance social do nosso sétimo sacramento, no qual, a princípio, eu não via senão uma espécie de festa doméstica.
Quanto ao seguinte, já estou bastante familiarizada com a verdadeira religião para compreender espontaneamente em que consiste. Ele deve substituir a horrível cerimônia em que o catolicismo, entregue sem freio ao seu caráter anti-social, arrancava abertamente o moribundo a todos os afetos humanos, para o transportar isolado ao tribunal celeste. Em nossa transformação, o sacerdócio, juntando os pêsames da sociedade às lágrimas da família, aprecia dignamente o conjunto da existência que termina. Depois de ter obtido as reparações possíveis, ele deixa esperar as mais das vezes a incorporação subjetiva, mas sem nunca comprometer um julgamento que ainda não está maduro.
O SACERDOTE — Pois que caracterizastes convenientemente, minha filha, o último sacramento objetivo, devo explicar-vos agora a consagração final.
Sete anos depois da morte, quando todas as paixões perturbadoras se acham assaz extintas, sem que se tenham já perdido os melhores documentos especiais, um juízo solene, cujo germe a sociocracia toma à teocracia, vem irrevogavelmente fixar a sorte de cada um.43
43 "Sete anos após a consagração extrema, o sacramento subjetivo completa a série de preparações objetivas, proclamando, ante o digno féretro, uma solene incorporação ao Grande Ser. Semelhante intervalo concilia a madureza do juízo sacerdotal e a conservação das diversas informações que ele exige. Para melhor admitir aí o exame público, uma decisão provisória, suscetível de retificação, deve, durante o quarto ano, preparar a sentença irrevogável." (Ibid., p. 130.)
A sentença do sacerdócio sendo favorável ao morto, seguir-se-á o transporte dos restos sagrados para o cemitério religioso, e o mais que se lê no texto do Catecismo.
"Na maior parte dos outros casos, a condenação, essencialmente negativa, limitar-se-á a tornar irrevogável a sepultura municipal, sempre independente do sacerdócio. Mas a completa infamação consiste em transportar convenientemente o funesto fardo ao deserto dos réprobos, entre os supliciados, os suicidas e os duelistas, se bem que não deva sofrer, como eles, a exploração anatômica." (Ibid.)
O sacramento da incorporação não deverá, porém, ser aplicado senão mediante pedido prévio:
"Todavia," diz Augusto Comte, "esta consagração final exige, mais do que qualquer outra, uma liberdade completa, a fim de obter uma eficácia plena. Ninguém deve ser submetido ao julgamento sacerdotal sem o ter especialmente pedido ao receber o sacramento da transformação. Este assentimento pessoal não será ainda suficiente, se não for, depois da morte, ratificado pela família. Evita-se assim a maioria dos casos de reprovação e obtém-se uma autoridade mais decisiva para os que se realizarem. A principal vantagem de semelhante prudência deve entretanto dizer respeito ao julgamento favorável, anulando de antemão os protestos que a vaidade das famílias há de levantar amiúde contra o grau de glorificação obtido." (Ibid., p. 335.) Aproveitamos este ensejo para lembrar também que, independentemente deste sacramento, que, como se acaba de ver, só tem lugar sete anos depois da morte, Augusto Comte estabeleceu uma comemoração fúnebre geral, no terceiro domingo após a inumação de cada finado. (V. o Volume Sagrado, p. II e 225.)
O sacerdócio, tendo pronunciado a incorporação, preside ao pomposo transporte dos restos santificados, que, depositados até então no campo cívico, vêm ocupar o seu jazigo eterno no bosque sagrado que rodeia o templo da Humanidade. Cada túmulo [pág. 183] será aí ornado com uma simples inscrição, um busto ou uma estátua, conforme o grau da glorificação obtida.
Quanto aos casos excepcionais de indignidade caracterizada, a condenação manifesta-se transportando-se convenientemente o funesto fardo ao deserto dos réprobos, entre os supliciados, os suicidas e os duelistas.
A MULHER — Esta suficiente indicação dos nove sacramentos sociais deixa-me, meu pai, um pesar geral em relação ao meu sexo, que me parece não estar aí bastante apreciado. Todavia, eu não reclamo de modo algum contra a nossa exclusão natural de três dessas consagrações, pois que se funda em motivos honrosíssimos para as mulheres, cuja vida menos perturbada não exige tantos cuidados religiosos. Mas não posso conceber que o paraíso subjetivo não admita aquelas que a nossa religião proclama como mais aptas para o merecerem. Contudo, não vejo como partilharíamos, em geral, da incorporação pessoal, que, segundo me parece, não pode resultar senão de uma vida pública justamente vedada ao meu sexo, salvo casos muito excepcionais.
O SACERDOTE — Preenchereis, minha filha, esta grave lacuna, considerando que a incorporação masculina deve abraçar também todos os dignos auxiliares de cada verdadeiro servidor da Humanidade, sem excetuar sequer os nossos adjuntos animais.44
Como o principal oficio das mulheres consiste em formar e aperfeiçoar os homens, seria tão absurdo quanto injusto glorificar um bom cidadão, se se deixasse de honrar a mãe, a esposa, etc., a quem foi devido sobretudo o sucesso dele. Em torno, e algumas vezes dentro de cada túmulo sagrado, o sacerdócio deverá, pois, reunir, em nome do Grande Ser, todas as personalidades que dignamente concorreram para os serviços que esse túmulo recompensa. Posto que vosso sexo, mais bem organizado que o meu, saboreie mais a pura felicidade que proporciona imediatamente o surto e o exercício dos bons sentimentos, ele não deve nunca renunciar aos justos elogios, nem sobretudo à imortalidade subjetiva que tão bem sabe apreciar.45
A MULHER — À vista desta explicação complementar, só me resta, meu pai, perguntar-vos em que consiste a obrigação pessoal de receber os nossos diversos sacramentos.
44 A propósito da incorporação dos animais:
"A objeção principal de vossa primeira carta merece mais atenção, posto que eu pense também que a mesma leitura (isto é, do 4.° vol. da Política Positiva) vai em breve dissipá-la. Talvez, que ela me determine a pôr uma explicação especial sobre esse tópico, em caso de nova edição do Catecismo Positivista. Importa que o positivismo reerga os animais associáveis do desdém inspirado pelo monoteísmo, sobretudo ocidental; porquanto o islamismo acha-se, a este respeito, como a muitos outros, muito mais próximo do estado normal. Mas não creio que isso possa nunca fazer com que alguém receie qualquer assimilação degradante dos servidores diretos do Grande Ser ao seus auxiliares indiretos. Todas as honras merecidas por estes são ordinariamente privadas, mesmo em seus serviços. Contudo, eles podem excepcionalmente obter uma glorificação pública, em caso de devotamento eficacíssimo para com um digno servidor. Vossa respeitosa advertência faz-me ver a necessidade de não deixar implícito semelhante esclarecimento num opúsculo destinado naturalmente a leitores que, em sua maioria, não conhecerão o principal tratado". (Lettres à Hutton, p. 43.)
45 "Quanto às vossas observações sobre a glorificação feminina, também encontrarão suficiente resposta no meu volume final. Mas elas me levariam a algumas explicações especiais em caso de segunda edição do meu Catecismo. Destinadas a formar homens, as mulheres devem ser, como todos os autores, julgadas pelas suas obras. Entretanto, seria injusto torná-las responsáveis dos insucessos, e mesmo não honrar a árvore independentemente do fruto, se sua própria virtude puder ser verificada sem isso. O culto público poderá, pois, glorificar as mulheres cujos esposos ou filhos não merecerem nenhum louvor, quando elas houverem desenvolvido de modo certo grandes qualidades para uma cultura que entretanto não vingou, posto que o caso apresente graves dificuldades na apreciação de tais méritos, sempre excepcionais." (Ibid. p. 45.) [pág. 184]
O SACERDOTE — Eles devem, minha filha, ficar sempre legalmente facultativos, sem que nunca imponham mais do que um simples dever moral, demonstrado na educação e sancionado pela opinião.
Para que melhor conservem este caráter puramente espiritual, condição principal de sua eficácia, nossas consagrações devem mesmo ser acompanhadas de instituições paralelas, estabelecidas e mantidas pelo poder temporal, como as únicas exigíveis em cada caso. A apreciação mais grosseira e menos severa daquele dispensará dos ritos sagrados as naturezas que estes podem atemorizar, e cujos serviços sociais não devem, contudo, ficar perdidos ou comprometidos.
Cumpre, por exemplo, não considerar como anárquica, apesar de sua origem revolucionária, a instituição do casamento civil como preâmbulo necessário do casamento religioso, que ele pode legalmente dispensar. O uso oposto provinha de uma usurpação católica que o positivismo nunca imitará. Aos que repugna aceitar a lei da viuvez, sem a qual entretanto nenhum casamento positivista se deverá efetuar, é necessário contrair uma união civil que os preserve do vício e garanta o estado legal de seus filhos. O mesmo direi, em grau menor, quanto à maioria dos outros sacramentos sociais, sobretudo a admissão e a destinação. O sacerdócio deverá, sendo preciso, solicitar, junto ao governo, a instituição das regras legais destinadas a temperar a justa severidade de nossas prescrições religiosas, cuja observância sempre livre não será jamais recompensada senão pela consciência e pela opinião. [pág. 185]
QUINTA CONFERÊNCIA
CULTO PÚBLICO
A MULHER — Encetando o estudo direto de nosso culto público, devo submeter-vos, meu pai, a resposta que já dei espontaneamente a algumas críticas, superficiais mas sinceras, dirigidas contra o conjunto desta solene adoração. Dizem que cada positivista se glorifica a si mesmo quando honra um ente necessariamente composto de seus próprios adoradores. Este reproche não pode, de forma alguma, aplicar-se ao nosso culto privado: refere-se unicamente a adoração direta da Humanidade, sobretudo mediante homenagens coletivas. Podemos, porém, repelir facilmente semelhante acusação fundados na verdadeira noção do Grande Ser, cuja composição é principalmente subjetiva. Os que lhe protestam sua gratidão não estão nada seguros, em geral, de ser a ele afinal incorporados. Eles apenas têm a esperança de tal recompensa porque contam merecê-la, por uma carreira digna, sempre apreciada pelos seus sucessores.
O SACERDOTE — Esta retificação está plenamente de acordo, minha filha, com o verdadeiro espírito de nosso culto público, no qual o presente glorifica o passado para melhor preparar o futuro, apagando-se espontaneamente entre essas duas imensidades. Longe de exaltarem o nosso orgulho, essas efusões solenes tendem sem cessar a inspirar-nos uma sincera humildade. Porquanto elas nos fazem sentir profundamente quanto somos incapazes, apesar dos nossos melhores esforços coletivos, de nunca retribuir ao Grande Ser mais do que uma mínima parte do que recebemos dele.
A MULHER — Antes de explicar-me o conjunto desta adoração pública, rogo-vos, meu pai, que caracterizeis suficientemente os templos em que ela se deverá efetuar. Quanto ao sacerdócio que a dirige, sinto que a sua constituição essencial será assaz indicada na exposição do regime.
O SACERDOTE — Os nossos templos, minha filha, não podem ser agora plenamente apreciáveis, porque a arquitetura sendo a mais técnica e a menos estética de todas as belas-artes, cada nova síntese nela penetra mais tarde que em qualquer outra. Será mister que a nossa religião esteja não só muito desenvolvida, mas também muito espalhada, antes que as necessidades públicas possam apontar a verdadeira natureza dos edifícios que lhe convêm. Deveremos, portanto, servir-nos provisoriamente dos antigos templos, à medida que caírem em desuso, conquanto este preâmbulo necessário tenha de durar menos para nós do que para o catolicismo, reduzido, por espaço de muitos séculos, às construções politeístas.
A única indicação geral que sobre isto possa agora ser proclamada diz respeito à situação e à direção, já determinadas pela natureza do culto positivo. Pois que a Humanidade se compõe essencialmente dos mortos dignos de sobreviver, seus templos devem ser colocados no meio dos túmulos de elite. Por outro lado, o principal atributo da religião positiva consiste em sua universalidade necessária. Cumpre, pois, que, em todas as [pág. 187] partes do planeta humano, os templos do Grande Ser sejam dirigidos para a metrópole geral, que o conjunto do passado fixa, por muito tempo, em Paris. O positivismo utiliza assim o feliz esboço do islamismo acerca de uma preciosa instituição, a qual, pela comum atitude de todos os verdadeiros crentes, faz sobressair melhor a tocante solidariedade de suas livres homenagens.
Eis tudo o que devo indicar-vos em relação aos nossos edifícios sagrados. Quanto à sua distribuição interior, por ora só devo assinalar a necessidade de reservar o principal santuário para mulheres convenientemente escolhidas, a fim de que os sacerdotes da Humanidade se achem aí sempre rodeados dos melhores representantes dela. 46
A MULHER — Esta última indicação leva-me, meu pai, a completar minha pergunta precedente, interrogando-vos sobre os símbolos de nossa deusa. A determinação desses símbolos referindo-se à pintura e à escultura deve ser desde já mais apreciável que a dos templos, em virtude da marcha mais rápida das duas primeiras artes da forma comparadas com a terceira.
46 "Quanto à distribuição interior dos templos positivistas, ela comporta apenas duas prescrições imediatas. Em primeiro lugar, o santuário, onde a estátua da Humanidade domina a cátedra sacerdotal, deve poder conter um sétimo do auditório, a fim de que o intérprete do Grande Ser fique aí rodeado das mulheres seletas que constituem sua melhor representação. Em segundo lugar, cada uma das sete capelas de cada lado conterá a estátua de um dos treze órgãos principais da iniciação humana, rodeada dos bustos dos seus quatro melhores adjuntos, reservando a capela décima quarta para o grupo dos tipos femininos." * (Política Positiva, tomo IV, p. 156.)
Entre os papéis de Augusto Comte achou-se o traçado de um grande templo da Humanidade. Incluímos aqui uma reprodução desse plano, tal como foi publicado na Revue Occidentale, número de janeiro de 1880. Augusto Comte tinha também chegado a conceber o altar da Humanidade. Sobre este assunto, ver o opúsculo do Dr. Audiffrent — Le Temple del'Humanité (1885) —, e a nota correspondente a esta, na 1.ª edição de nossa tradução do Catecismo.
É aqui oportuno lembrar outra indicação dada por Augusto Comte a um de seus discípulos. Vimos (pp. 171-172) que os templos positivistas devem ser orientados na direção de Paris. Segundo o Mestre, esta adaptação do Kebla muçulmano "convirá também ao oratório privado que fará parte da habitação normal do mínimo positivista. Basta, porém, que o crente tome esta atitude durante as suas preces, o que pode ser realizado em qualquer lugar, mediante uma fácil determinação geográfica" (Lettres à Edger, p. 13).
No mesmo tópico do Catecismo, referindo-se a Paris, Augusto Comte nos diz que por muito tempo a grande cidade será a metrópole geral. Esta restrição supõe que num futuro mais remoto outra cidade virá a ser a capital do mundo. Com efeito, o nosso Mestre profetizou a Constantinopla este glorioso destino, conforme se vê no seguinte trecho de uma carta, ainda inédita, endereçada ao Dr. Audiffrent, em 1856:
"A única concepção verdadeiramente nova que espero proclamar aí,** e que já comuniquei à Sociedade Positivista, consiste em determinar a capital final do planeta humano. Paris não pode conservar a preeminência universal senão como centro da república Ocidental, enquanto esta vanguarda prevalecer sobre o resto de nossa espécie. Mas quando a homogeneidade positivista for suficientemente completa, o Ocidente apagar-se-á diante da Terra, e Paris não preencherá mais as diversas condições essenciais de um verdadeiro centro universal, transferindo sua sede da capital provisória para a verdadeira cidade eterna, que condensa todas as grandes recordações humanas".
Alguns dias depois escrevia ao mesmo discípulo:
"Vossa retidão e profundeza habituais apanharam dignamente os principais motivos da determinação final da capital terrestre, segundo a qual Constantinopla deve eternamente obter o predomínio universal, gradualmente preparado, durante os trinta séculos de transição ocidental, pelo ascendente sucessivo de Atenas, de Roma e de Paris, nas três fases, especulativa, ativa e afetiva, dessa iniciação".
* Capela de Heloísa, como se vê no plano anexo.
** Alude a um opúsculo que projetara escrever sob o título Pana, e de que sua prematura morte nos privou para sempre. [pág. 188]
[pág. 189]
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, a natureza do Grande Ser não deixa agora nenhuma dúvida acerca de sua representação plástica. Figurada ou esculturada, nossa deusa terá sempre por símbolo uma mulher de trinta anos tendo seu filho nos braços. A preeminência religiosa do sexo afetivo caracterizará semelhante emblema, em que o sexo ativo deve ficar colocado sob a santa tutela daquele. Posto que grupos mais compostos pudessem fazer a representação mais completa, esta não seria então assaz sintética, de modo a se tornar verdadeiramente usual.47
Dos dois modos peculiares a esta simbolização normal, a escultura convém à imagem fixa colocada em cada templo, no meio das mulheres de elite, e por trás da tribuna sagrada. Mas a pintura deve prevalecer para os estandartes móveis, destinados a guiar nossas marchas solenes. Ao passo que sua face branca conterá a santa imagem, a fórmula sagrada do positivismo encherá a face verde, voltada para a procissão.
A MULHER — Para terminar minhas perguntas preliminares, peço-vos, meu pai, que me expliqueis o sinal usual que poderia representar assaz essa fórmula característica.
O SACERDOTE — Resulta ele, minha filha, da teoria cerebral, como terei o cuidado de vo-lo mostrar quando fizermos o estudo do dogma. Pode-se recitar nossa fórmula fundamental colocando sucessivamente a mão sobre os três principais órgãos do amor, da ordem e do progresso.48 Os dois primeiros são contíguos e o último só se acha separado deles pelo da veneração, cimento natural de um tal conjunto, de modo que o gesto se pode tornar contínuo.49
47 Segundo uma tradição constante em Paris, mas cuja autenticidade ainda não pudemos verificar, Augusto Comte indicara para representação provisória da Humanidade a Virgem, de Rafael, chamada de S. Sisto. Nosso Mestre esperava que na idealização do futuro, os traços de Clotilde de Vaux ficassem consagrados definitivamente. (V. Política Positiva, tomo IV, p. 554; e o Volume Sagrado, p. 160.)
48 Isto é, a bondade, a dedução e a perseverança.
49 "Muita razão tivestes", escrevia Augusto Comte a H. Edger, "em afastar espontaneamente o projeto irrefletido de vosso eminente amigo (J. Metcalf) sobre um sinal exterior. A cruz pertence ao catolicismo, como o crescente ao islamismo; nem um nem outro convêm ao positivismo. Quanto ao seu equivalente para a nossa fé, é isso uma solicitude ainda prematura, cuja final satisfação exige nosso advento social. Por enquanto, estamos suficientemente providos de divisas decisivas, e mesmo de sinais característicos. Conheceis aquele que consiste em recitar nossa fórmula fundamental, colocando sucessivamente a mão direita sobre os três órgãos cerebrais que correspondem ao amor, à ordem e ao progresso; ao passo que a mão esquerda colocada sobre o coração indica que para tudo isso é necessário sangue. Quanto a indícios exteriores e permanentes, podem eles duplamente derivar da bandeira positivista, descrita no discurso preliminar da minha obra principal. Em primeiro lugar, todos os positivistas podem, quando o julgarem oportuno, trazer ao meio do braço a fita verde com que cinjo o meu, quando em minhas funções sacerdotais, contanto que eles o ponham no braço esquerdo, reservando aos padres o braço direito, o que basta para prevenir a confusão. Todos podem também pendurar ao pescoço ou sobre o coração uma pequena reprodução da estatueta da Humanidade que encima a haste da bandeira positivista, sem se inquietarem pela sua semelhança com a imagem da Virgem-Mãe dos católicos; pois que o culto desta deve servir finalmente de transição para o de nossa deusa." (Lettres à Edger, pp. 31-32.)
Eis aqui a descrição da bandeira positivista, a que alude Augusto Comte:
"Para determinar a bandeira política cumpre conceber primeiro o estandarte religioso. Estendido em quadro, ele representa, na sua face branca, o símbolo da Humanidade, personificada por uma mulher de trinta anos, tendo seu filho nos braços. A outra face conterá a fórmula sagrada dos positivistas. O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim, sobre um fundo verde, cor natural da esperança, peculiar aos emblemas do futuro.
"Esta mesma cor é a única que convém à bandeira política comum a todo o Ocidente. Devendo flutuar em pavilhão, não comporta pintura alguma, substituída neste caso pela estatueta da Humanidade, no vértice da haste. A fórmula fundamental aí se decompõe, sobre as duas faces verdes, nas duas divisas que caracterizam o positivismo: uma política e científica, Ordem e Progresso; e a outra moral e estética, Viver para Outrem. (Política Positiva, tomo I, p. 387.) A terceira divisa, Viver às claras, servirá especialmente para ser inscrita nas moedas, vindo assim completar o conjunto das outras duas, fornecendo o resumo prático do sistema, ao [pág. 190] mesmo tempo moral e político, irrevogavelmente adotado". (Ibid., tomo IV, p. 459.)
Quanto à cor das letras de nossas divisas, devem elas ser brancas em fundo verde, e verdes em fundo branco. Ainda sobre a cor verde dos emblemas positivistas escrevia Augusto Comte ao seu discípulo J. Fisher:
"Esta nuança convém aos homens do futuro, porque caracteriza a esperança, em virtude do anúncio habitual fornecido por toda parte pela vegetação, ao mesmo tempo que ela indica a paz; duplo título para simbolizar a atividade pacífica. Historicamente, esta cor inaugurou a Revolução Francesa, pois que os assediantes da Bastilha não tiveram, em sua maioria, outros topes senão folhas subitamente arrancadas às árvores do Palais Royal, em conseqüência da feliz exortação de Camille Desmoulins, embora os orleanistas tenham feito prevalecer, alguns dias mais tarde, sob diversos pretextos há muito esquecidos, a libré tricolor de sua dinastia. Além destes motivos, devia esforçar-me por evitar a adoção do vermelho que, no povo central, e mesmo entre outros ocidentais, designa especialmente, ainda hoje, a sanguinária atitude dos revolucionários mais atrasados. O verde é, portanto, apropriado para emblema dos verdadeiros regeneradores, quer em relação ao estado normal, quer mesmo para a transição". (Lettres à des Positivistes Anglais, p. 24.)
Não será descabido reproduzir, em confirmação da prioridade da cor verde no início da Revolução, o seguinte trecho de uma carta do herói do dia, Camille Desmoulins, a seu pai, escrita a 16 de julho de 1879: "Meu caríssimo pai. Posso agora escrever-vos, a carta chegará às vossas mãos. Eu próprio coloquei ontem uma sentinela numa agência do correio, não há mais gabinete secreto onde as cartas sejam violadas. Quão mudada está a 'face das coisas de três dias para cá! No domingo, Paris inteira achava-se consternada pela demissão de M. Necker; em vão procurei inflamar os ânimos, ninguém pegava em armas. Junto-me a eles; vêem o meu zelo, rodeiam-me, instam para que eu suba sobre uma mesa: no mesmo instante, tenho em torno de mim seis mil pessoas. 'Cidadãos', disse eu então, 'sabeis que a nação tinha pedido a conservação de Necker, e que se lhe erguesse um monumento: ele foi expulso! Que desafio mais insolente poderia vos ser atirado? Depois deste golpe, eles vão ousar tudo, e meditam, para esta noite, preparam talvez, uma Saint-Barthélemy dos patriotas.' Sentia-me sufocado sob uma multidão de idéias que me assediavam, falava desordenadamente. 'Às armas', gritei, 'às armas! Tomemos todos topes verdes, cor da esperança...' Declarei que eu não queria ter nenhum comando e que apenas queria ser um soldado da pátria. Tomei uma fita verde e amarrei-a ao meu chapéu..." (Oeuvres de Camille Desmoulins, tomo II, pp. 91-92, edição da Bibliothèque Nationale.)
Nessa mesma carta encontramos mais adiante indicado incidentemente um dos vários pretextos que, segundo nosso Mestre, serviram poucos dias depois para fazer adotar as cores da dinastia de Orléans. Descrevendo uma procissão cívica efetuada na véspera (15 de julho), Camille assim se exprime: "A noite, a procissão foi mais bela ainda. Cento e cinqüenta deputados da Assembléia Nacional, Clero, Nobreza e Comunas vinham nos coches do rei trazer a paz. Chegaram às três horas e meia à praça Luís XV, desceram dos carros e seguiram a pé, atravessando a rua Saint-Honoré até o paço municipal (Hôtel de Ville). Marcharam sob as bandeiras dos guardas franceses, que eles beijavam dizendo: 'Eis as bandeiras da nação, da liberdade e no meio de cem mil homens armados e de oitocentos com topes vermelhos e azuis'. O vermelho, para mostrar que estavam prontos a derramar seu sangue, e o azul, para indicar que aspiravam a uma constituição celeste". (Ibid., p. 97.)
Outro pretexto aventado foi o fato de o azul e o vermelho serem as cores da cidade de Paris, às quais se ajuntou o branco, cor da bandeira real, para significar a união da realeza com o povo. Outros finalmente diziam que as três cores representavam a fusão das três ordens: o vermelho, o clero; o branco, a nobreza; e o azul, o terceiro estado. [pág. 191]
[pág. 192]
Quem uma vez adquiriu bem o hábito deste sinal não tarda em suprimir a recitação da fórmula, conservando apenas a expressão mímica. Enfim, como o lugar de ordem dos órgãos cerebrais caracteriza plenamente as funções deles, o sinal torna-se redutível, sendo necessário, à simples sucessão dos números correspondentes do quadro cerebral que vereis mais adiante. É assim que, sem nenhuma instituição arbitrária, o positivismo já se acha munido de sinais usuais mais expressivos que todos os do catolicismo e do islamismo.
A MULHER — Agora, meu pai, não devo mais retardar vossa explicação direta do conjunto do culto público.
O SACERDOTE — Vós o encontrareis, minha filha, plenamente caracterizado pelo quadro que aqui está (vide o quadro A, na página seguinte). O duplo objeto deste culto, como dos dois precedentes, consiste em fazer-nos compreender melhor e realizar melhor a existência correspondente. Devemos, pois, idealizar, em primeiro lugar, os laços fundamentais que a constituem, em seguida as preparações essenciais que ela exige, e, enfim, as funções normais de que ela se compõe. Tais são os destinos respectivos dos três sistemas de festas mensais que devem encher o ano positivista, que assim fica dividido em treze meses de quatro semanas, mais um dia complementar consagrado ao conjunto dos mortos.
Quando estudarmos o dogma, conhecereis as quatro classes fundamentais, afetiva, especulativa, patrícia e plebéia, necessariamente peculiares à ordem normal. Quanto aos estados preparatórios, não é possível, sem risco de confusão, condensá-los mais, à vista das profundas diferenças, intelectuais e sociais, que sempre devem distinguir o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo, mesmo na iniciação espontânea de cada positivista.50 Relativamente aos laços essenciais, não se pode deixar de celebrar em primeiro lugar o mais universal, e glorificar em seguida cada um dos afetos privados que são os únicos que lhe podem dar uma verdadeira consistência. Ora, estas relações elementares são realmente em número de cinco: o casamento, a paternidade, a filiação, a fraternidade e a domesticidade, classificando-as, de acordo com o nosso princípio hierárquico, segundo a generalidade crescente e a intimidade decrescente.
50 V. adiante a nota 63 da Nona Conferência.
O número, na aparência paradoxal, dos meses positivistas torna-se, pois, sagrado quando se apreciam seus motivos religiosos. Muitas experiências já têm provado, aliás, que ele poderá facilmente prevalecer com a fé correspondente. É só também a religião universal que há de estabelecer a regularidade cronológica resultante de nossa exata decomposição de cada mês em quatro períodos hebdomadários. Quaisquer que sejam as vantagens práticas de semelhante instituição, elas não bastariam para fundá-la se as necessidades do culto não dissipassem a hesitação sempre inerente aos motivos materiais.
A MULHER — Ao primeiro aspecto geral do quadro sociolátrico, apenas descubro nele, meu pai, uma única dificuldade grave, que diz respeito à domesticidade, cuja importância parece-me ter sido aí exagerada, colocando-a entre os seus laços fundamentais.
O SACERDOTE — Tal objeção, minha filha, recorda-me que nascestes no norte, se bem que felizmente preservada do protestantismo. Porquanto os ocidentais do Meio-Dia conservam melhor, neste particular, os verdadeiros sentimentos humanos, tão nobremente desenvolvidos na Idade Média.
Longe de dever desaparecer algum dia, a domesticidade há de ir sempre aumentando, purificando-se mais de toda servidão primitiva. Tornando-se plenamente voluntária, ela fornece a muitas famílias o melhor meio de servirem dignamente ao Grande Ser, prestando uma assistência indispensável aos verdadeiros servidores dele, teóricos ou práticos. Este concurso para o bem público, conquanto indireto, é mais completo e menos incerto que o da maioria dos cooperadores diretos. Ela pode também cultivar mais nossos melhores sentimentos. Limitar a domesticidade a certas classes é ter dela uma noção muito estreita. Em todas as categorias sociais, e sobretudo entre os proletários, cada cidadão passou por semelhante situação, enquanto durou sua iniciação prática. Cumpre, pois, idealizar a domesticidade como o complemento dos laços de família e o início das relações cívicas.
A MULHER — Meu coração não precisava, meu pai, senão desta retificação sistemática para vencer os preconceitos anárquicos que me obstavam de fraternizar assaz [pág. 193] com os dignos tipos, sobretudo femininos, que muitas vezes me deparou essa situação malprezada. Este salutar esclarecimento não me deixa agora a desejar senão uma última explicação geral, relativamente à outra extremidade de nosso quadro sociolátrico. As posições respectivas do patriciado e do proletariado parecem-me aí invertidas. Pode a política assim classificá-los, segundo a ordem do poder material, mas a religião, que classifica segundo a dignidade moral, creio que devia dispô-los de outro modo.
O SACERDOTE — Vós esqueceis, minha filha, que, na religião positiva, o culto e o regime devem sempre corresponder-se exatamente. Mas de boa mente desculpo vosso equívoco, atendendo ao nobre motivo que o inspirou. Também eu já pensei como vós, quando ligava exagerada importância à extrema imperfeição do patriciado atual, tão amiúde indigno de seu elevado destino social. A verdadeira superioridade cerebral, quer intelectual, quer sobretudo moral, acha-se hoje mais espalhada proporcionalmente entre as classes preservadas de uma educação e de uma autoridade degradantes. Todavia, posto que esta exceção incontestável deva ser cuidadosamente apreciada ao instituir a transição ocidental, cumpre saber afastá-la sistematicamente quando se constrói o culto abstrato da Humanidade, destinado principalmente ao estado normal. Contemplando demasiado o presente, e insuficientemente o futuro, seríamos levados, com certeza, a pôr o próprio sacerdócio abaixo do proletariado, visto como a sua imperfeição atual sobreleva muito a do patriciado, quer a apreciemos nos destroços teológicos ou entre os rudimentos metafísicos e científicos.
No culto positivo, como na existência normal que ele idealiza, o digno patrício avantaja-se ordinariamente ao digno plebeu, tanto em verdadeira nobreza como em poder real. Ordenando as classes humanas segundo a aptidão de cada uma delas a representar o Grande Ser, a importância e a dificuldade dos serviços peculiares ao patriciado, como a educação que eles exigem e a responsabilidade que eles impõem, o colocarão sempre acima do proletariado. É em nome mesmo de semelhante classificação que a sabedoria sacerdotal, convenientemente assistida da sanção feminina e do apoio popular, deve chamar dignamente os patrícios, isolados ou reunidos, ao cumprimento de seus eternos deveres sociais, quando lhes sucede descurá-los gravemente. Mas estas advertências excepcionais errariam seu alvo principal se o culto normal não honrasse suficientemente os ministros necessários de nossa providência material. Colocando o proletariado no extremo inferior da escala social, o culto recordará que a aptidão característica dele para fiscalizar e retificar todos os poderes humanos resulta sobretudo de uma situação essencialmente passiva, que não desenvolve nenhuma tendência pronunciada. Nosso quadro sagrado, como o regime correspondente, deve, pois, inserir os dois grandes poderes, espiritual e temporal, entre as duas massas, feminina e popular, que incessantemente reagem sobre os sentimentos e a conduta deles. Se o patriciado fosse rebaixado, a harmonia positiva ficaria tão rota em sociolatria como em sociocracia.
A MULHER — Como já estou assaz familiarizada com o conjunto do culto público, podeis, meu pai, explicar-me a decomposição hebdomadária das treze celebrações mensais. Este desenvolvimento final, que nunca deixará a nossa semana sem uma festa geral, deve concorrer profundamente para o fim moral da grande adoração, assim reproduzida sob aspectos muito variados, mas sempre convergentes.
O SACERDOTE — Antes de começar esta explicação, devo, minha filha, indicar-vos a idealização final dos diferentes dias da semana. Ela dimana em primeiro lugar de seus nomes atuais, que cumpre conservar com todo cuidado, porque eles lembram o conjunto da iniciação humana, em virtude da instituição fetíchica, da consagração politéica e da adoção monotéica, que os caracterizam. Esta propriedade tem tanto mais valor [pág. 194] quanto ela resulta de que a sucessão deles representa os diferentes astros realmente ligados ao planeta humano essencialmente independente de todos os outros.
Mas esta concordância, histórica e dogmática, por demasiado abstrata, exige um complemento concreto, que deve provir da transição ocidental entre a teocracia e a sociocracia. Consiste ele, sem mudar esses preciosos nomes, em consagrar os sete dias à memória respectiva dos sete órgãos principais de tal movimento, Homero, Aristóteles, César, São Paulo, Carlos Magno, Dante e Descartes, cuja sucessão representa assaz o conjunto dessa evolução decisiva que, conquanto peculiar ao Ocidente, merecerá sempre ser familiarmente celebrada por toda parte, porque só ela permitiu a regeneração final.
A semana comporta, além dessa, uma consagração abstrata, dedicando-se seus sete dias às sete ciências fundamentais, matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral. Este segundo modo, compatível com o primeiro e conforme ao espírito do culto público, tornará mais familiares a hierarquia enciclopédica e a concepção relativa da ordem universal.
Em virtude do concurso destas duas consagrações, a festa que termina cada semana ficará caracterizada ao mesmo tempo pela ciência preponderante e pelo precursor direto da religião final.51
51 As explicações que precedem sobre a consagração da semana foram tiradas textualmente da Política Positiva, tomo IV, pp. 135-136.
Devo declarar-vos aqui que, antes de ter concebido a idealização da semana que acabo de vos resumir, fui levado a aceitar, por uma benevolência imerecida, a consagração dos diferentes dias da semana aos diversos laços fundamentais. Cumpre rejeitar este especioso projeto, que não deixará outro vestígio senão a comovente série de orações compostas nessa ocasião por um dos nossos jovens irmãos. Libertando-as de uma solidariedade viciosa, ele designará essas rezas segundo o objeto de cada uma, respeitando os nomes antigos da semana.52
52 Aqui tivemos que alterar o texto do original. O Catecismo foi composto em 1852, e nessa época Augusto Comte havia aceitado o projeto de um de seus efêmeros discípulos, que lhe propuseram substituir os nomes atuais dos dias da semana por outros consagrados a cada um dos laços fundamentais, do seguinte modo:
Lundi ................ao Casamento ....................Maridi
Mardi .................à Paternidade ....................Patridi
Mercredi .............à Filiação ..........................Filidi
Jeudi ..................à Fraternidade ..................Fratridi
Vendredi .............à Domesticidade ...............Domidi
Samedi ...............à Mulher ou ao Amor ........Matridi
Dimanche ...........à Humanidade .................Humanidi
Esta reforma foi depois abandonada por Augusto Comte, como se vê neste trecho de sua Política Positiva (tomo IV, p. 404):
"Cumpre rejeitar o especioso projeto que uma benevolência imerecida me dispôs demasiado a recomendar relativamente à consagração dos diferentes dias da semana aos diversos laços fundamentais. Além de que tal modo não pode convir ao estado normal em que este oficio pertence ao mês, seria ele inútil durante a transição naturalmente limitada às festas públicas, a adoração íntima e os sacramentos domésticos tendo já atingido seu estado definitivo. A tentativa malograda não deixará outro vestígio senão a comovente série de orações de que ela forneceu ensejo ao coração de um verdadeiro positivista, que, desligando-as de uma viciosa solidariedade, as designará pelo objeto de cada uma, respeitando os nomes antigos".
Modificamos, portanto, o texto original de acordo com estas restrições, servindo-nos para isso, em grande parte, das próprias palavras do nosso Mestre.
É mister, porém, resolver aqui uma dificuldade que a decisão definitiva de Augusto Comte oferece em relação à nossa língua. Os motivos em que o nosso Mestre se funda para conservar os nomes atuais dos dias da semana não seriam aplicáveis ao português, onde prevalecem, para os cinco primeiros dias, a denominação eclesiástica de feira* posto que, no princípio, como o atestam os documentos coevos, os portugueses usassem também nomes análogos aos que existem em espanhol: Lunes, Martes, Mércoles, Jóves, Vérnes.** Impõe-se, portanto, a necessidade de adotar em nossa língua novas denominações que correspondam suficientemente à idealização positivista da semana, tal como acaba de ser estabelecida pelo Fundador. Primeiro nos pareceu que o mais acertado seria restaurar os nomes antigos, semelhantes aos do espanhol, que acima reproduzimos. Mas reflexões subseqüentes nos convenceram de que o melhor seria construir novos nomes pautados pelos correspondentes da língua italiana, a quem cabe a presidência ocidental. Eis aqui as novas denominações, comparadas com as suas análogas em italiano, francês e sua origem latina:
Português Italiano Francês Espanhol Origem Latina
Lunedia ..........Lunedi .........Lundi ...........Lunes ..........Lunae dies
Martedia .........Martedi ........Mardi ...........Martes ........Martii dies
Mercuridia ......Mercoledi .....Mercredi ......Miércoles .....Mercurii dies
Jovedia ...........Giovedi ........Jeudi ...........Jueves .........Jovis dies
Venerdia .........Venerdi .......Vendredi .......Viernes ........Veneris dies
Sábado ...........Sabato .........Samedi .........Sábado ........Sabbati dies
Domingo ........Domenica .... Dimanche .....Domingo ......Dominica dies
O primeiro dia, consagrado à Lua, lembra o fetichismo astrolátrico; o segundo, terceiro, quarto e quinto, respectivamente dedicados a Marte, Mercúrio, Júpiter ou Jove e Vênus, recordam o politeísmo; o sábado (dia do Sabat), o monoteísmo judaico; e o domingo (dia do Senhor), o monoteísmo católico.
Em inglês e alemão os nomes dos dias da semana sofreram a intercorrência da mitologia teutônica. Ao passo que alguns recordam a fase astrolátrica, as outras denominações foram tiradas dos nomes dos deuses teutônicos que correspondiam mais ou menos às divindades greco-romanas que forneceram às línguas neolatinas as denominações desses mesmos dias. Mas a uniformidade onomástica neste caso, em virtude das exigências do culto, há de forçosamente estender-se às línguas do norte.
As orações a que Augusto Comte se refere no trecho acima citado foram compostas por José Lonchampt. Eis o título desse livrinho, que já conta três edições, uma tradução inglesa e outra portuguesa: Essai sur la Prière, 3ème. edition augmentée d'une lettre sur la mission religieuse de la femme, Paris, 1878, I vol. in-32. Os editores ajuntaram, a título de introdução, uma interessante notícia sobre o culto da Razão, apreciado como um pressentimento da religião da Humanidade. Este trabalhinho, conquanto anônimo, é da lavra do Dr. Robinet.
* De feria, dia de festa. A Igreja Católica chamava ao domingo 1.a feira, ao dia seguinte 2.ª feira, e assim por diante até sábado, que era a 7.ª feira.
** V. Portugaliae Monumento Historica, tomo I.
Para completar a regularidade de nosso culto, cumpria fazer com que cada dia de uma semana qualquer ocupasse no ano um lugar invariável. Obtém-se essa fixidez deixando de dar qualquer denominação hebdomadária, primeiro ao dia complementar que [pág. 195] termina todo ano positivista, depois ao dia adicional que o segue se o ano for bissexto, segundo a regra usada no Ocidente. Cada um destes dois dias excepcionais se acha, com efeito, assaz designado pela festa correspondente. Isto posto, nosso calendário fica perpétuo; o que tanto importa ao regime como ao culto.
A MULHER — Concebo, meu pai, toda a eficácia moral de semelhante fixidez, em virtude da qual qualquer dia de nosso ano poderia receber, como o dia final, uma designação puramente sagrada, o que o catolicismo nunca obteve senão por exceção.
O SACERDOTE — Estabelecido este preâmbulo, posso começar diretamente, minha filha, a indicação sucessiva das solenidades peculiares aos dias sétimos de todas as nossas semanas. O quadro sociolátrico vos mostra a maneira por que cada celebração mensal se decompõe em quatro festas hebdomadárias. Só me resta, pois, motivar e caracterizar tal decomposição, mediante alguns esclarecimentos sumários.
Nosso primeiro mês, consagrado à Humanidade, poucas explicações exige a este respeito. Depois de ter aberto o ano positivista pela mais augusta de todas as nossas solenidades, essa festa direta do Grande Ser fica completada pelas quatro celebrações hebdomadárias, em que são respectivamente apreciados os diversos graus essenciais do laço social. Eles aí se ordenam, segundo o decrescimento de extensão e o acréscimo de intimidade [pág. 196]
[pág. 197]
das relações coletivas. A primeira festa glorifica o laço religioso, único suscetível de universalidade; a segunda, a ligação de vida a antigas relações políticas que, embora extintas, deixam subsistir uma comunhão suficiente de língua e poesia. Na terceira, celebra-se diretamente a união ativa que resulta de um mesmo governo livremente aceito por todos. A quarta honra, a menos extensa, porém a mais completa das relações cívicas, aquela em que a coabitação familiar melhor nos aproxima da intimidade doméstica.
Para desenvolver o mês do casamento, sua primeira solenidade glorifica a união conjugal em toda a sua plenitude, ao mesmo tempo exclusiva e indissolúvel, mesmo pela morte. O sacerdócio faz aí sentir profundamente, pelo coração e pelo espírito, o progresso geral desta admirável instituição, primeira base de toda a ordem humana, caracterizando cada uma de suas fases essenciais, desde a poligamia primitiva até o casamento positivista.
Na festa seguinte, celebra-se a castidade voluntária, que graves motivos morais ou físicos podem eternamente prescrever a dignos esposos. O principal destino do casamento, o aperfeiçoamento mútuo dos dois sexos, torna-se aí mais bem apreciável, sem que esta união excepcional obrigue, aliás, a renunciar aos afetos relativos ao futuro, sempre possíveis mediante uma acertada adoção. Far-se-á convenientemente sobressair, nessa ocasião, a tendência de semelhante união a regular, enfim, a procriação humana, posto que vícios hereditários não devam privar ninguém dos benefícios do casamento.
A terceira semana deste mesmo mês termina pela celebração das uniões excepcionais em que uma desigualdade, amiúde desculpável, não impede a principal eficácia, sobretudo quando os costumes finais limitarem a discordância às idades. Enfim, a quarta festa honra a união póstuma que há de resultar freqüentemente da constituição normal do casamento humano, cujas doçuras mais íntimas se consolidam e desenvolvem pela purificação e fixidez peculiares ao amor subjetivo.
Nossos três meses seguintes podem ser explicados simultaneamente, em virtude da uniformidade espontânea de suas subdivisões hebdomadárias. Com relação ao principal dentre eles, sua primeira metade é consagrada à paternidade completa, primeiro involuntária, depois adotiva; e a segunda, à paternidade incompleta, que proporciona, em toda sociedade regular, a autoridade espiritual ou patrocínio temporal. Daí dimanam, decrescendo, os quatro graus normais da afeição paterna, respectivamente glorificados pelas quatro festas hebdomadárias do terceiro mês positivista. Ora, as mesmas distinções e gradações se reproduzem necessariamente a respeito da filiação e da fraternidade, o que dispensa aqui toda nova explicação para o quarto e quinto meses.
Quanto ao sexto, ele honra, em primeiro lugar, a domesticidade permanente, que sempre há de distinguir uma classe muito numerosa, porém especial; depois, a situação análoga em que todo homem se acha de ordinário em sua iniciação prática. O primeiro caso exige nitidamente uma subdivisão importante, que é habitualmente indicada pela residência, conforme a domesticidade seja completa no criado propriamente dito, ou incompleta no caixeiro ou empregado, apenas incumbido de um ofício determinado. Quando os costumes normais tiverem assaz conciliado o serviço doméstico, sobretudo feminino, com o pleno surto das afeições de família, o culto positivo fará sentir profunda-mente a superioridade moral da primeira situação em que o devotamento se manifesta mais puro e mais intenso. A mesma distinção aplica-se, se bem que de modo menos pronunciado, à domesticidade passageira, e também se acha neste caso indicado pelo domicílio. Daí resultam as duas outras festas do sexto mês, respectivamente consagradas aos pajens e aos aprendizes, conforme os patrões sejam ricos ou pobres.
A MULHER — Todo este desenvolvimento especial dos diversos laços fundamentais não me oferece, meu pai, nenhuma dificuldade. Receio, porém, que minha insuficiência [pág. 198] histórica me impeça de compreender satisfatoriamente a segunda série sociolátrica. Porquanto não conheço ainda o conjunto da preparação humana senão pela vossa primeira lei de evolução, chamada dos três estados, que eu por vezes tenho ouvido formular, e que se acha hoje tão divulgada.
O SACERDOTE — Isso basta, minha filha, para fazer-vos já apreciar a sucessão geral dos três estados preliminares indicados no quadro sociolátrico. Quanto, porém, à decomposição hebdomadária de cada um deles, vós não podereis, com efeito, concebê-la bem senão depois das duas conferências históricas que terminarão este Catecismo. Limito-me, pois, à coordenação principal, encarregando-vos de a completar espontaneamente quando tiverdes adquirido as noções convenientes.
A síntese fictícia, sempre fundada na indagação das causas, comporta dois modos diferentes, conforme as vontades a que os acontecimentos são atribuídos pertençam aos próprios corpos ou a entes exteriores, habitualmente inacessíveis a todos os nossos sentidos. Ora, o regime direto, mais espontâneo que qualquer outro, constitui o fetichismo inicial, ao passo que o indireto caracteriza o teologismo que o segue. Mas este último estado, menos puro e menos duradouro que o primeiro, apresenta sucessivamente duas constituições distintas, segundo os deuses permaneçam múltiplos ou se condensem em um só. O teologismo, que, no fundo, não institui senão uma imensa transição espontânea do fetichismo ao positivismo, dimana do primeiro pelo politeísmo e conduz ao segundo pelo monoteísmo. Quando esta sucessão intelectual é completada pela progressão social que lhe corresponde, o conjunto da iniciação humana fica assaz caracterizado, como o haveis de sentir daqui a pouco.
Podereis, então, apreciar suficientemente a aptidão de nossa segunda série sociolátrica para dignamente glorificar todas as fases essenciais dessa longa preparação, desde o primeiro surto das cabildas mais insignificantes até o duplo desenvolvimento de transição moderna. Esta plena celebração do passado humano em doze festas hebdomadárias resulta do condensamento histórico que pela sua natureza o culto abstrato comporta.
A MULHER — Podemos assim, meu pai, encetar a última série sociolátrica. O mês aí consagrado à providência moral não me apresenta nenhuma dificuldade, graças à distinção evidente que separa os tipos femininos peculiares às quatro festas hebdomadárias. Mas ainda não percebi a decomposição do mês sacerdotal.
O SACERDOTE — Concebei-a, minha filha, segundo os diversos modos ou graus do sacerdócio positivo, classificados na ordem de sua plenitude crescente. Este grande ministério exige um raro concurso das qualidades morais, tanto ativas como afetivas, com os talentos intelectuais, estéticos e científicos. Se, pois, estes forem os únicos salientes, seus possuidores, após uma cultura conveniente, terão de permanecer, talvez para sempre, simples pensionistas do poder espiritual, sem aspirarem nunca a ser nele incorporados. Em tais casos, felizmente excepcionais, o maior gênio poético ou filosófico não pode dispensar de ternura e de energia um funcionário que deve estar habitualmente animado por simpatias íntimas e destinado amiúde a lutas difíceis. Este sacerdócio incompleto permite o digno cultivo de todos os verdadeiros talentos, sem comprometer nenhum serviço social.
Quanto ao sacerdócio completo, ele exige, em primeiro lugar, um grau preparatório, que o aspirante não transporá se, apesar de sua vocação proclamada, não passar com bastante êxito pelo noviciado conveniente. Vencida essa prova decisiva, obtém ele, aos trinta e cinco anos, o sacerdócio direto e definitivo, mas exercendo-o durante sete anos no grau secundário, que caracteriza o vigário ou suplente. Depois de ter dignamente preenchido todas as fases de nosso ensino enciclopédico, e mesmo esboçado as outras [pág. 199] funções sacerdotais, ele eleva-se, aos quarenta e dois anos, ao grau principal, tornando-se de modo irrevogável um sacerdote propriamente dito. Tais são as quatro classes teóricas que respectivamente celebram as festas hebdomadárias do undécimo mês.
A MULHER — O mês seguinte, meu pai, não exige nenhuma explicação especial. Posto que a existência prática me seja pouco familiar, seu caráter nitidamente marcado permite-me compreender assaz a decomposição normal do patriciado em quatro classes essenciais, segundo a generalidade decrescente das funções e a multiplicidade crescente dos funcionários. Talvez mesmo que, em nossos tempos de anarquia, as mulheres sejam mais aptas que os proletários, e, sobretudo, mais que os seus doutores, para bem apreciar esta hierarquia natural, porque elas se acham mais preservadas das paixões perturbadoras e das vistas sofísticas. Felicito-me, pois, que as quatro festas hebdomadárias de nosso duodécimo mês venham honrar anualmente e, portanto, moralizar esses diversos modos necessários do poder material, sobre o que assenta toda a economia social. Mas não apanho tão bem a decomposição do mês final.
O SACERDOTE — Esta resulta, minha filha, da generalidade espontânea que caracteriza o proletariado, no qual todos os grandes atributos humanos exigem uma idealização distinta. Esta imensa massa social, estirpe necessária de todas as classes especiais, se acha essencialmente votada à vida ativa, diretamente celebrada pela primeira festa hebdomadária do mês plebeu. Depois deste proletariado ativo, cumpre honrar em separado o proletariado afetivo que necessariamente o acompanha. Só esta glorificação especial das mulheres proletárias pode completar de modo digno a celebração geral dos tipos femininos, considerados, no décimo mês, sob o aspecto comum a todas as classes, mas apreciados aqui em seu surto popular.
A terceira festa de nosso décimo terceiro mês deve caracterizar dignamente o proletariado contemplativo, sobretudo estético, ou mesmo científico, que, não tendo podido penetrar em um sacerdócio necessariamente circunscrito, sente-se contudo mais teorista que prático. Devemos algumas vezes lastimar esses tipos excepcionais, e sempre respeitá-los, a fim de os utilizar tanto quanto seja possível, dirigindo com sabedoria suas tendências espontâneas. É principalmente deles que deve dimanar a fiscalização geral do proletariado em relação aos poderes especiais, conquanto o impulso correspondente exija naturezas mais ativas.
Enfim, a última festa de nosso mês popular refere-se essencialmente à mendicidade, quer passageira, quer mesmo permanente. A melhor ordem humana não poderá nunca prevenir de todo esta conseqüência extrema das imperfeições peculiares à vida prática. Assim, a idealização de nossa sociabilidade ficaria incompleta se o sacerdócio não a terminasse por uma justa apreciação dessa existência excepcional. Quando plenamente motivada e dignamente exercida, ela pode merecer amiúde as simpatias, e algumas vezes os elogios, de todas as almas honradas. Mais móvel que qualquer outra, esta classe complementar liga-se de modo espontâneo a todas as categorias sociais, que alternativamente lhe devem tomar e fornecer indivíduos. Ela torna-se, assim, muito apropriada a desenvolver a reação geral do proletariado sobre todos os poderes humanos. Haveria, pois, tanta imprevidência quanto injustiça em não a favorecer com uma idealização distinta.
A MULHER — Quanto ao dia complementar, compreendo, meu pai, por que o positivismo transporta para o fim do ano a celebração coletiva dos mortos, avisadamente introduzida pelo catolicismo. Esta tocante comemoração, que interposta teria perturbado a economia normal de nosso culto público, completa de modo digno o conjunto deste e prepara naturalmente a sua volta anual. Convinha que a festa própria do Grande Ser fosse precedida pela glorificação de seus órgãos quaisquer. [pág. 200] O dia adicional dos anos bissextos não me oferece também nenhuma dificuldade, Meu sexo não podendo quase nunca merecer diretamente uma apoteose pessoal e pública, o culto abstrato devia, sem degenerar em celebração concreta, honrar, assim, o conjunto das mulheres dignas de celebração individual. Completa-se a idealização humana glorificando o bom emprego das diversas aptidões excepcionais que a natureza feminina comporta, quando seu principal caráter não recebe por causa disso nenhuma alteração.
O SACERDOTE — Pois que espontaneamente acabastes, minha filha, a explicação suficiente de nosso culto público, a primeira parte deste Catecismo está inteiramente terminada.53 Devemos, pois, entrar agora no estudo do dogma.
53A exposição do culto público que aqui termina precisa ser completada pela leitura da parte correspondente da Política Positiva, tomo IV, pp. 122-158.
Inserimos na página 181 o quadro sociolátrico como foi depois publicado por Augusto Comte na sua obra principal. Comparando-o com o da página 176 deste Catecismo, ver-se-á que difere deste pela introdução de um grande número de festas concretas incorporadas ao culto abstrato, como se acha explicado nas páginas da Política Positiva, acima indicadas. [pág. 201]
PARTE SEGUNDA
EXPLICAÇÃO DO
DOGMA
[pág. 203]
SEXTA CONFERÊNCIA
CONJUNTO DO DOGMA
A MULHER — Iniciada, pela nossa segunda conferência, no conhecimento sintético da Humanidade, e, pelas três seguintes, no culto que lhe devemos, rogo-vos, meu pai, que me exponhais agora a coordenação sistemática do conjunto do dogma positivo em torno de tal unidade.
O SACERDOTE — Para este fim, minha filha, deveis renunciar, em primeiro lugar, a toda pretensão de unidade absoluta, exterior, em uma palavra, objetiva; o que vos será mais fácil do que aos nossos doutores. Semelhante aspiração, compatível com a pesquisa das causas, torna-se contraditória com o estudo das leis, isto é, das relações constantes apanhadas no meio de uma diversidade imensa. Estas não comportam senão uma unidade puramente relativa, humana, em uma palavra, subjetiva. Com efeito, as leis são necessariamente múltiplas, em virtude da impossibilidade notória de fazer-se jamais entrar um no outro os dois elementos gerais de todas as nossas concepções reais, o mundo e o homem. Ainda mesmo que se chegasse a condensar cada um destes dois grandes estudos em torno de uma única lei natural, a unidade científica continuaria vedada por causa da inevitável separação desses dois estudos. Posto que o mundo, para ser conhecido, suponha o homem, aquele poderia existir sem este, como talvez aconteça em muitos astros inabitáveis. Do mesmo modo, o homem depende do mundo, porém não resulta dele. Todos os esforços dos materialistas para anular a espontaneidade vital, exagerando a preponderância dos meios inertes sobre os seres organizados, só têm conseguido desacreditar essa pesquisa, tão vã quanto ociosa, doravante abandonada aos espíritos anticientíficos.
Mas, além disto, muito longe está de ser verdade que a unidade objetiva possa jamais estabelecer-se no domínio interior de cada elemento geral de semelhante dualismo. Os diversos ramos essenciais do estudo do mundo ou do homem desvendam-nos uma multidão crescente de leis diferentes, que hão de permanecer constantemente irredutíveis entre si, apesar das frívolas esperanças que no princípio inspirou nossa gravitação planetária. Conquanto a maior parte dessas leis seja ainda ignorada, muitas devendo, até, sê-lo sempre, já temos verificado um número bastante grande delas para tornar inabalável o princípio fundamental do dogma positivo, a sujeição de todos os fenômenos quaisquer a relações invariáveis. Dá-se à ordem que por toda parte resulta do conjunto das leis reais o título geral de destino ou de acaso, conforme essas leis nos são conhecidas ou desconhecidas. Esta distinção há de conservar sempre uma grande importância prática, pois que a ignorância dessas leis monta tanto, para a nossa conduta, como se não existissem, impedindo-nos toda previsão racional, e, portanto, toda intervenção regular. Pode-se, contudo, esperar achar, para cada caso essencial, regras empíricas, que, apesar de sua insuficiência teórica, nos preservem assaz de uma atividade desordenada. [pág. 205]
No meio dessa diversidade crescente, o dogma da Humanidade fornece ao conjunto de nossas concepções reais a única unidade que elas comportam e o único laço de que tenhamos necessidade. A fim de conceber a natureza e a construção de tal unidade, cumpre primeiro distinguir três sortes de leis, físicas, intelectuais e morais. As primeiras pertencem espontaneamente ao sexo ativo, e as últimas ao sexo afetivo, ao passo que a ordem intermediária constitui o domínio próprio do sacerdócio, o qual, devendo sistematizar o concurso dos dois sexos, participa desigualmente na dupla vida de ambos. É por isso que os dois estudos extremos foram cultivados empiricamente desde os tempos mais remotos para as necessidades correspondentes, porém com êxito muito diferente. Com efeito, as leis físicas sendo, no fundo, independentes das leis morais, os homens puderam fundar nelas isoladamente convicções estáveis, se bem que incoerentes. Pelo contrário, as leis morais dependendo necessariamente das leis físicas, as mulheres não puderam construir naquele domínio nenhuma doutrina inabalável, e seus esforços apenas comportaram uma preciosa reação afetiva. A sã cultura teórica teve, pois, de surgir da ordem física, desligando-se assaz das especialidades ativas. Mas, como o termo necessário de nossas meditações reais reside na ordem moral, a unidade lógica e científica só podia estabelecer-se por meio de uma suficiente ligação desses dois domínios extremos. Ora, eles não podem ser reunidos senão pelo domínio intermediário, que se liga naturalmente a cada um deles. É assim que a construção de uma verdadeira unidade teórica depende, finalmente, de uma elaboração suficiente das leis próprias do entendimento.
A MULHER — Conquanto esta conclusão pareça-me difícil de ser achada, sua admissão imediata não me apresenta, meu pai, nenhuma dificuldade. As minhas meditações morais freqüentes vezes me têm feito sentir quão indispensável seria o conhecimento das leis intelectuais para a ativa consistência de tais meditações, pois que as regras próprias da função apreciadora se mesclam sempre às da função apreciada. Todavia, os homens devem sentir menos tal conexão relativamente às leis físicas, preocupação principal desse sexo. Podeis, portanto, encetar, sem mais preâmbulo, a exposição direta das leis mentais, das quais depende toda unidade sistemática.
O SACERDOTE — Em primeiro lugar, minha filha, devo distingui-las, como em todos os demais casos, em estáticas e dinâmicas, conforme se referirem às disposições imutáveis ou variações essenciais do objeto correspondente. Estes dois termos conexos tornaram-se indispensáveis a toda exposição séria do positivismo, que em breve os há de popularizar. Contudo, eles nunca poderão inspirar ao vosso sexo o atrativo moral que já vos oferecem as qualificações objetiva e subjetiva, finalmente destinadas sobretudo a caracterizar as nuanças mais doces de nossas melhores emoções. Mas o seu uso puramente intelectual não deve privá-los do respeito que merece sua utilidade teórica. Estes dois pares de expressões filosóficas são, aliás, os únicos que sou forçado a fazer-vos aceitar.
Pela definição anterior, facilmente Concebeis que, a respeito de um domínio qualquer, o estudo estático precede necessariamente o estudo dinâmico, que nunca pode surgir sem tal preparação. Cumpre, com efeito, ter determinado as condições fundamentais de cada existência antes de apreciar seus diversos estados sucessivos. Os antigos, que viam por toda parte a imobilidade, foram profundamente alheios a toda concepção dinâmica, mesmo em matemática. Pelo contrário, o príncipe eterno dos verdadeiros filósofos, o incomparável Aristóteles, lançou já todas as bases essenciais dos mais elevados estudos estáticos sobre a vida, a inteligência e a sociedade. Mas, segundo esta marcha necessária, o complemento dinâmico torna-se indispensável onde quer que seja. Sem ele, a apreciação estática fica sempre provisória, de modo a não poder guiar bastante a prática, [pág. 206] que seria por ela arrastada isoladamente a erros graves, sobretudo em relação aos casos principais.
A lei estática de nosso entendimento torna-se, para o positivismo, uma simples aplicação do princípio fundamental que por toda parte subordina o homem ao mundo. Consiste ela, com efeito, na subordinação contínua de nossas construções subjetivas aos nossos materiais objetivos. O gênio de Aristóteles esboçou a noção geral de tal lei neste admirável apanhado: Nada há no entendimento que não proviesse primeiro da sensação. Tendo, porém, os modernos abusado amiúde de semelhante axioma para representar nossa inteligência como puramente passiva, o grande Leibniz foi obrigado a juntar-lhe uma restrição essencial, destinada a formular a espontaneidade de nossas disposições mentais. Esta explicação, que se limitava realmente a desenvolver melhor a máxima de Aristóteles, foi completada por Kant, com a sua imortal distinção entre as duas realidades, objetiva e subjetiva, de cada concepção humana. Contudo, este princípio só foi verdadeiramente sistematizado quando o positivismo o referiu, como convinha, à lei geral que, em todos os fenômenos vitais, coloca todo organismo sob a dependência contínua do meio correspondente. Para as nossas mais elevadas funções espirituais, como em relação aos nossos atos mais materiais, o mundo exterior serve-nos ao mesmo tempo de alimento, de estimulante e de regulador. Ao passo que a subordinação do subjetivo ao objetivo cessava, assim, de ser isolada, recebia também, da filosofia positiva, seu complemento indispensável, sem o qual o estudo estático da inteligência não poderia ser ligado suficientemente ao estudo dinâmico. Ele consiste em reconhecer que, no estado normal, as imagens subjetivas são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões objetivas de onde elas dimanam. Se assim não fosse, o exterior nunca poderia regular o interior.
Em virtude deste duplo princípio estático, as nossas concepções quaisquer resultam necessariamente de um comércio contínuo entre o mundo, que lhes fornece a matéria, e o homem, que lhes determina a forma. Elas são profundamente relativas, ao mesmo tempo, ao sujeito e ao objeto, cujas variações respectivas necessariamente as modificam. Nosso principal mérito teórico consiste em aperfeiçoar assaz essa subordinação natural do homem ao mundo, para que o nosso cérebro se torne o fiel espelho da ordem exterior, cujos resultados futuros podem desde logo ser previstos mediante as nossas operações interiores. Esta representação, porém, não comporta nem exige uma exatidão absoluta. Seu grau de aproximação é regulado pelas nossas exigências práticas, que mede a precisão que convém às nossas previsões teóricas. Este limite necessário deixa ordinariamente à nossa inteligência uma certa liberdade especulativa, de que ela deve servir-se para satisfazer melhor às suas próprias inclinações, quer científicas, quer mesmo estéticas, tornando nossas concepções mais regulares, e mesmo mais belas, sem serem menos verdadeiras. Tal é, mentalmente, o positivismo, que, prosseguindo sempre o estudo das leis, caminha sem cessar entre duas sendas igualmente perigosas, o misticismo, que quer penetrar até as causas, e o empirismo, que se cinge aos fatos.
A MULHER — Esta teoria estática de nossa inteligência deixa, segundo creio, meu pai, uma grave lacuna, porque parece só referir-se ao estado de razão propriamente dito, sem poder estender-se até a loucura, que, entretanto, ela deveria também explicar. A vida real oferece diariamente tantas nuanças intermediárias entre estas duas situações mentais que todos esses casos devem seguir as mesmas leis essenciais, com simples diferenças de grau, como em relação às nossas funções corporais.
O SACERDOTE — Bastará, minha filha, que considereis mais atentamente a doutrina precedente para reconhecerdes que ela contém, com efeito, a verdadeira teoria da [pág. 207] loucura e do idiotismo. Estes dois estados opostos constituem os dois extremos da proporção normal que o estado de razão exige entre os impulsos objetivos e as inspirações subjetivas. O idiotismo consiste no excesso de objetividade, quando o nosso cérebro se torna demasiado passivo; e a loucura propriamente dita, no excesso de subjetividade, devido à atividade desmedida desse aparelho. Mas o grau médio, que constitui a razão, segue ele próprio as variações regulares que experimenta toda a existência humana, tanto social como pessoal. A apreciação da loucura torna-se, assim, tanto mais delicada quanto cumpre aí levar em conta os tempos e os lugares, em geral as situações, como tão bem o faz sentir a admirável composição do grande Cervantes. E esse o caso em que se percebe melhor quanto o estudo estático da inteligência permanece insuficiente sem o seu complemento dinâmico.
A MULHER — À vista desta reflexão admirável, quisera eu, meu pai, se o julgásseis conveniente, começar já essa apreciação complementar, pois só assim as minhas próprias meditações poderão conceber, enfim, o conjunto desse grande espetáculo. Já sei que as variações quaisquer das opiniões humanas nunca podem ser puramente arbitrárias. Mas preciso ainda de novos esclarecimentos para deslindar melhor a marcha geral que elas seguem.
O SACERDOTE — Segundo o enunciado que conheceis, essa marcha consiste, minha filha, na passagem necessária de toda concepção teórica por três estados sucessivos: o primeiro, teológico, ou fictício; o segundo, metafísico, ou abstrato; o terceiro, positivo, ou real. O primeiro é sempre provisório, o segundo puramente transitório, e o terceiro o único definitivo. Este último difere, sobretudo, dos outros dois pela sua substituição característica do relativo ao absoluto, quando o estudo das leis toma, enfim, o lugar da pesquisa das causas. Entre os dois primeiros não existe, no fundo, outra diferença teórica a não ser a redução das divindades primitivas a simples entidades. Mas semelhante transformação, tirando das ficções sobrenaturais toda forte consistência, sobretudo social, e mesmo mental, a metafísica permanece sempre um puro dissolvente da teologia, sem nunca poder organizar seu próprio domínio. Por isso essa doutrina de revolta e de modificação não comporta, em nossa evolução original, individual ou coletiva, nenhuma outra eficácia senão o permitir a transição gradual do teologismo para o positivismo. Ela adapta-se tanto melhor a este ofício passageiro quanto as suas concepções equívocas podem alternativamente tornar-se ou representações abstratas dos agentes sobrenaturais ou qualificações gerais dos fenômenos correspondentes, conforme se está mais perto do estado fictício ou do estado real.
A MULHER — Conquanto esta lei dinâmica já esteja bastante confirmada pela minha própria experiência, desejo, meu pai, apanhar, tanto quanto possível, o princípio intelectual de semelhante evolução.
O SACERDOTE — Resulta ele, minha filha, da lei estática que nos obriga a tirar de nós mesmos os laços subjetivos de nossas impressões objetivas, as quais, sem isso, ficariam sempre incoerentes. Às relações verdadeiras não podendo nunca ser percebidas senão mediante uma análise difícil e gradual, que vou explicar-vos, as nossas primeiras hipóteses foram puramente espontâneas, e, portanto, fictícias. Mas esta disposição geral, que hoje constituiria um excesso de subjetividade, achava-se no princípio de acordo com a nossa situação mental, em que a evolução só podia surgir de tal iniciativa. Só uma longa experiência, ainda hoje suficiente para os espíritos atrasados, nos havia de revelar a inanidade necessária da pesquisa das causas. Ora, este vão problema nos ofereceu durante muito tempo um atrativo invencível, ao mesmo tempo teórico e prático, prometendo-nos a possibilidade de procedermos sempre por dedução sem exigir nenhuma indução [pág. 208] especial, e de modificarmos o mundo ao nosso talante. Assim, o duplo motivo que impulsionou os pensadores primitivos coincide essencialmente com aquele que há de dirigir sempre os nossos esforços intelectuais. O mesmo se dá, no fundo, com o princípio lógico desse regime inicial. Porquanto, toda a sã lógica é redutível a esta regra única: formar sempre a hipótese mais simples compatível com o conjunto dos dados obtidos. Ora, os pensadores teologistas, e mesmo fetichistas, aplicaram-na melhor que a maioria dos doutores modernos. Propondo-se a penetrar as causas, aqueles limitaram-se a explicar o mundo pelo homem, única fonte possível de toda unidade teórica, atribuindo todos os fenômenos a vontades sobre-humanas, aliás interiores ou exteriores. Semelhante problema não comporta, pela sua natureza, senão esta solução, muito superior às tenebrosas ficções dos nossos ateus ou panteístas, cujo estado mental mais se aproxima da loucura do que da ingênua situação dos verdadeiros fetichistas. Essa superioridade manifesta-se sobretudo pelos resultados respectivos. Ao passo que a ontologia germânica retrograda hoje para o seu berço grego, sem inspirar nenhum pensamento real e perdurável, a teologia primitiva abriu ao espírito humano a única saída que a nossa situação inicial comportava. Posto que não pudesse nunca conduzir-nos à determinação das causas, o liame provisório que ela estabeleceu entre os fatos nos trouxe espontaneamente ao descobrimento das leis.
Este único estudo, que no começo foi julgado puramente secundário, tendeu logo a tornar-se principal, sob o impulso prático que o representava como adaptando-se melhor às previsões exigidas pela nossa atividade. No fundo, os bons espíritos nunca procuraram a causa senão enquanto não podiam achar a lei; e a conduta deles é, então, irrepreensível, como sendo mais própria do que qualquer torpor teórico para preparar essa aquisição final. Nossa inteligência tem, até, tal predileção pelas concepções positivas, por causa sobretudo da superioridade prática que as distingue, que amiúde se esforçou por substituí-las às ficções teológicas muito antes que as preparações convenientes estivessem assaz acabadas. O termo, pois, da evolução mental é ainda menos duvidoso do que o seu início.
A MULHER — Esta explicação de vossa Lei dos três estados deixa-me, meu pai, muitas névoas acerca dos casos freqüentes em que o espírito humano parece-me ao mesmo tempo teológico, metafísico e positivo, conforme as questões de que se ocupa. Se esta coexistência ficasse inexplicada, ela comprometeria diretamente vossa regra dinâmica, que entretanto creio ser incontestável. Tirai-me, rogo-vos, de semelhante perplexidade.
O SACERDOTE — Ela desaparecerá, minha filha, quando notardes a ordem constante que preside à marcha simultânea de nossas várias concepções teóricas, segundo a generalidade decrescente e a complicação crescente dos fenômenos correspondentes. Daí resulta uma lei complementar, sem a qual o estudo dinâmico do entendimento humano ficaria obscuro, e mesmo quase inaplicável. Com facilidade compreendereis que, fenômenos mais gerais sendo necessariamente mais simples, as especulações correspondentes devem ser mais fáceis, e apresentar, portanto, um surto mais rápido. Esta gradação, que se verifica até nas diversas fases teológicas, convém sobretudo ao estado positivo, em virtude das preparações laboriosas que ele exige. Eis aí como certas teorias permanecem metafísicas, ao passo que outras mais simples já se tornaram positivas, posto que outras mais complicadas ainda se conservem teológicas. Nunca, porém, se observa o inverso; o que basta para dissipar cabalmente a objeção oriunda dessa diversidade simultânea.
A ordem natural que acabo de indicar-vos entre as nossas diferentes concepções, e da qual vou tirar a verdadeira escala enciclopédica, é só o que permite compreender [pág. 209] suficientemente a marcha geral dessas concepções. Ela funda a lógica positiva, desvendando o encadeamento segundo o qual os nossos diversos estudos teóricos devem suceder-se para que conduzam a construções duradouras. Posto que cada classe de fenômenos tenha sempre as suas leis próprias, as quais supõem induções especiais, estas quase nunca podem tornar-se eficazes sem as deduções fornecidas pelo conhecimento prévio das leis mais simples. Esta subordinação subjetiva resulta da dependência objetiva dos fenômenos menos gerais para com todos os que o são mais. Assim, a ordem contínua dos nossos estudos, elevando-se sempre do mundo ao homem, não é só motivada pela preparação lógica que as especulações mais simples comportam melhor; assenta também na dependência científica das teorias superiores em relação às inferiores, em virtude da subordinação dos respectivos fenômenos.
A MULHER — Agora, meu pai, já me explicastes quanto basta as leis intelectuais, quer dinâmicas, quer estáticas; mas ainda não vejo dimanar delas a construção fundamental que a princípio eu esperava no tocante ao conjunto do dogma positivo. Preciso, pois, compreender diretamente como é que o princípio universal da Humanidade pode enfim instituir, mediante essas leis, uma verdadeira unidade especulativa, ligando as leis morais às leis físicas.
O SACERDOTE — Essa legítima aspiração ficará satisfeita, minha filha, considerando sob um novo aspecto geral a lei complementar que acabo de assinalar ao movimento intelectual. Assim concebida, esta lei é sobretudo subjetiva, como o devia ser aquela que ela assiste. Mas vós sabeis também que esta classificação comporta diretamente uma significação objetiva, regulando a dependência geral dos diversos fenômenos. Nesta nova apreciação, seu destino torna-se sobretudo estático, para caracterizar não a coexistência dos nossos diferentes progressos teóricos mas a ordem fundamental que domina o conjunto dos acontecimentos quaisquer. A lei da classificação fica então plenamente distinta da lei de filiação, conquanto a íntima conexão das duas explique assaz a simultaneidade de sua descoberta.
Antes de vos expor esta grande hierarquia teórica, devo circunscrever suficientemente seu campo geral. Isto resulta, no fundo, da verdadeira distinção filosófica entre a especulação e a ação. Ao passo que a prática permanece necessariamente especial, a verdadeira teoria é sempre geral. Mas esta generalidade característica não se adquire jamais senão mediante uma abstração prévia, que altera mais ou menos a realidade das concepções correspondentes. Quaisquer que sejam os perigos práticos de semelhante alteração, cumpre que a eles nos resignemos, a fim de adquirir a coerência que só uma inteira universalidade das leis teóricas pode ministrar. A sabedoria vulgar proclama com razão que toda regra comporta exceções. Entretanto, nossa inteligência precisa achar enfim, por toda parte, regras que nunca falhem, a fim de evitar uma flutuação indefinida.
Só se pode conseguir isto decompondo, tanto quanto possível, o estudo dos seres, único ordinariamente direto, nos estudos dos diversos acontecimentos gerais que compõem a existência de cada um deles. Obtemos, assim, leis abstratas cujas diferentes combinações explicam em seguida cada economia concreta. Conquanto já de si muito multiplicadas, estas leis irredutíveis, sobre as quais assenta toda a nossa sabedoria teórica, são muito menos numerosas que as regras particulares que elas dominam. Estas últimas, além de serem em grande número, resistirão sempre, em virtude de sua complicação natural, aos nossos melhores esforços, tanto indutivos como dedutivos. Mas também o conhecimento delas seria para nós essencialmente inútil, com exceção das raras influências que de fato afetam os nossos destinos. Para estes casos excepcionais, o gênio prático, único aí competente, pode sempre achar regras empíricas que bastem para a nossa [pág. 210] conduta, auxiliando-se com critério das indicações gerais dimanadas do gênio teórico. Porquanto a regularidade dos acontecimentos compostos, se bem que menos apreciável que a de seus elementos gerais, resulta necessariamente desta, de modo a poder manifestar-se por uma observação especial bastante prolongada.
Nós não conheceremos nunca, por exemplo, as leis gerais das variações peculiares à constituição normal da atmosfera terrestre. Todavia, os navegantes e os agricultores sabem tirar, de suas observações locais ou temporárias, regras particulares que, conquanto empíricas, nos dispensam essencialmente da pretendida meteorologia. O mesmo direi de todos os outros estudos concretos, geológicos, zoológicos e mesmo sociológicos. Tudo quanto não puder ser aí realmente abordado pelo gênio prático será sempre ocioso. A verdadeira ciência permanece, pois, necessariamente abstrata. Suas leis gerais acerca das categorias pouco numerosas que abrangem todos os fenômenos observáveis bastam para demonstrar sempre a existência das leis concretas, posto que a maioria destas não possa nem deva ser jamais conhecida, salvo os casos práticos.
A MULHER — Entrevejo, meu pai, a profunda simplificação que há de experimentar vossa construção filosófica, em conseqüência desta análise fundamental que reduz o estudo dos seres ao estudo dos acontecimentos. Atemoriza-me, porém, a abstração habitual que semelhante regime científico exige, posto que eu esteja felizmente dispensada de tomar parte nele. Sua instituição parece-me, até, acima de nossas forças intelectuais, se todas as ordens de fenômenos houverem de ser estudadas diretamente no Grande Ser, que é o único que nos oferece o conjunto delas.
O SACERDOTE — Para tranqüilizar-vos, minha filha, basta que considereis sob um novo aspecto o princípio geral da hierarquia abstrata. Posto que ele só institua diretamente a subordinação dos acontecimentos, deve também conduzir indiretamente à dos seres. Porquanto os fenômenos são tanto mais gerais quanto maior é o número das existências a que eles pertencem. Os mais simples de todos, embora espalhados por toda parte, devem, pois, se encontrar em seres que não nos oferecem outros, e nos quais seu estudo próprio se torna, portanto, mais acessível. Na verdade, o segundo grau teórico estará sempre necessariamente reunido ao primeiro; é sobretudo isto, mais do que a própria natureza dos fenômenos, que constitui o acréscimo de complicação. Porém, quaisquer que sejam estas acumulações sucessivas, cada nova categoria de acontecimentos poderá ser estudada em seres independentes das seguintes, posto que submetidos às precedentes, cuja apreciação prévia permitirá concentrar a atenção na classe introduzida. Ainda mesmo que os seres deixassem um dia de ser distintos uns dos outros, o método positivo conservaria sua principal eficácia se eles apresentassem estados diferentes, o que nunca pode deixar de dar-se, em virtude da natureza de tal classificação. Assim, a hierarquia teórica que vou expor-vos, posto que destinada a princípio a fornecer apenas uma escala dos fenômenos, constitui necessariamente a verdadeira escala dos seres, ou pelo menos das existências. Ela é alternativamente abstrata ou concreta, conforme seu destino é subjetivo ou objetivo. É por isso que a subordinação enciclopédica das artes coincide essencialmente com a das ciências.
A MULHER — Antes que enceteis, meu pai, essa exposição hierárquica, cujo princípio geral começo a perceber, rogo-vos que me expliqueis diretamente a marcha que cumpre aí seguir. Parece que, para cimentar a união fundamental entre o mundo e o homem, ela pode partir do mesmo modo de cada um deles tendendo para o outro. Seu uso habitual afigura-se-me exigir mesmo que ela possa, como qualquer outra escala, tornar-se indiretamente ascendente ou descendente. Ignoro, porém, se esta dupla via convém à sua construção. [pág. 211]
O SACERDOTE — O concurso normal desses dois métodos, um objetivo, o outro subjetivo, é tão necessário, minha filha, para a formação como para a aplicação da hierarquia teórica. A elaboração espontânea desta dependeu do primeiro método; mas sua instituição sistemática exigiu o segundo. Cada iniciação individual deve neste, como em qualquer outro caso importante, representar essencialmente a evolução coletiva, com a diferença de que daqui por diante far-se-á conscientemente o que outrora se fez às cegas. A combinação destas duas marchas é o único meio que permite reunir as vantagens de ambas, neutralizando seus perigos. Subir do mundo ao homem sem ter primeiro descido do homem ao mundo expõe a estender demasiado os estudos inferiores, perdendo de vista o verdadeiro destino teórico de tais estudos, de modo a consumir nossos esforços científicos em puerilidades acadêmicas, tão contrárias ao espírito como ao coração. A ligação e a dignidade são, então, sacrificadas à realidade e à nitidez. Entretanto, foi assim que teve de proceder a positividade abstrata durante o longo preâmbulo científico que se estende de Tales e Pitágoras até Bichat e Gall, a fim de elaborar os materiais sucessivos da sistematização final. As necessidades superiores de nossa inteligência só foram então satisfeitas imperfeitamente mediante a tutela heterogênea que ainda exercia o espírito teológico-metafísico. Hoje, porém, que o princípio universal da síntese definitiva se acha irrevogavelmente assentado, em virtude daquela imensa preparação, o método subjetivo, tornado enfim tão positivo quanto o método objetivo, deve assumir diretamente a iniciativa enciclopédica. Só ele pode instituir convenientemente a construção que o outro poderá, então, elaborar dignamente. Esta regra quadra tanto a cada grande pesquisa científica como o conjunto do sistema teórico.
A MULHER — Eis-me, pois, pronta, meu pai, para bem acompanhar a consagração religiosa que o dogma da Humanidade confere sucessivamente a todas as partes essenciais da ciência abstrata, consolidando as mais eminentes e nobilitando as mais inferiores por essa conexão universal.
O SACERDOTE — A fim de caracterizar melhor semelhante síntese, deveis recordar primeiro, minha filha, o fim contínuo da vida humana, a conservação e o aperfeiçoamento do Grande Ser, que cumpre ao mesmo tempo amar, conhecer e servir. Cada qual realiza espontaneamente este tríplice ofício que a religião sistematiza pelo culto, pelo dogma e pelo regime. A construção filosófica, conquanto indispensável, é apenas, no fundo, destinada a consolidar e desenvolver as outras duas. Em si mesmo, o estudo direto da humanidade pode degenerar tanto como as ciências inferiores, se esquecermos que não devemos conhecer o Grande Ser senão para amá-lo mais e servi-lo melhor. Quando a preocupação do meio faz desconhecer ou descurar o fim, o desenvolvimento sistemático se torna, no fundo, menos recomendável que a espontaneidade vulgar.
Concebeis, assim, por que é que coloco no ápice da escala enciclopédica a Moral, ou a ciência do homem individual. Pois que o Grande Ser nunca funciona senão por intermédio de órgãos finalmente pessoais, é preciso primeiro estudar sobretudo estes, para que aquele seja convenientemente servido durante a existência objetiva deles, de onde dependerá a influência subjetiva de tais órgãos. É assim que o positivismo consolida irrevogavelmente o preceito fundamental da teocracia inicial: Conhece-te para melhorar-te. O princípio intelectual aí concorre com o motivo social. Com efeito, a mais útil de todas as ciências é também a mais completa, ou, antes, a única completa; visto como os seus fenômenos compreendem subjetivamente todos os outros, conquanto estejam por isso mesmo objetivamente subordinados a estes. O princípio fundamental da hierarquia teórica faz, portanto, prevalecer diretamente o ponto de vista moral, como o mais complicado e o mais especial. [pág. 212]
Aí cessa, porém, necessariamente a conformidade filosófica entre o positivismo e o teologismo. Este, preocupado sempre com causas, entregava imediatamente os estudos morais aos princípios sobrenaturais com que explicava tudo. Suscitando assim observações puramente interiores, consagrava a personalidade de uma existência que, ligando diretamente cada homem a um poder infinito, o isolava profundamente da humanidade. Pelo contrário, o positivismo não procurando jamais senão a lei para melhor dirigir a atividade, sempre essencialmente social, faz repousar a ciência moral sobre a observação dos outros, muito mais do que sobre a observação de si próprio, a fim de estabelecer noções ao mesmo tempo reais e úteis. Sente-se, então a impossibilidade de abordar convenientemente semelhante estudo sem ter apreciado primeiro a sociedade. A todos os respeitos, cada um de nós depende sem cessar da Humanidade, sobretudo quanto às nossas funções mais nobres, sempre subordinadas aos tempos e aos lugares em que vivemos, como vo-lo recordam estes belos versos de Zaíra:
No Ganges me curvara escrava a falsos lares,
Cristã fora em Paris, do Islão nestes lugares.54
54 "J'eusse été, près du Gange, esclave des faux dieux, Chrétienne dans Paris, musulmane en ces lieux." — Voltaire, Zaire, ato 1.°, cena 1.a.
Eis aí o modo por que a moral, concebida como a nossa principal ciência, institui, em primeiro lugar, a Sociologia, cujos fenômenos são ao mesmo tempo mais simples e mais gerais, de acordo com o espírito de toda a hierarquia positiva.
A MULHER — Permiti, meu pai, que vos detenha um momento neste primeiro passo, a fim de resolverdes a contradição que ele me parece apresentar entre essas duas condições da vossa classificação porque dir-se-ia que excepcionalmente a complicação cresce aqui com a generalidade. Eu sempre julguei o ponto de vista moral como mais simples que o ponto de vista social.
O SACERDOTE — Isso é devido, minha filha, ao fato de terdes até agora procedido antes por inspiração do sentimento do que guiada pela razão; pois que a moral deve ser, para o vosso sexo, mais uma arte do que uma ciência. Se houvéssemos de comparar a multiplicidade dos casos, a multiplicidade dos indivíduos haveria de vos parecer superior à que notais entre os povos, e que tanto vos preocupa. Mas, limitando-nos à própria complicação, esqueceis que a ciência moral, além de todas as influências que a ciência social considera, tem também de apreciar impulsos que esta puser de lado como quase insensíveis. Refiro-me às reações íntimas que se exercem sempre, segundo leis muito pouco conhecidas ainda, entre o físico e o moral do homem. Apesar de sua grande eficácia pessoal, a sociologia não as toma em consideração especial, porque os resultados opostos dessas reações nos diversos indivíduos anulam-se essencialmente em relação aos povos. Pelo contrário, toda apreciação moral que as desprezasse expor-nos-ia aos mais graves enganos, fazendo-nos atribuir à alma o que provém do corpo, ou vice-versa, como o estais vendo todos os dias.
A MULHER — Compreendo assim, meu pai, o que me fez suspender no começo vosso encadeamento hierárquico, que vos rogo continueis agora até o fim, sem receio de qualquer nova interrupção, que me impediria de apanhar suficientemente a filiação geral.
O SACERDOTE — Vossa objeção, aliás muito natural, serve aqui, minha filha, para assinalar melhor nosso primeiro passo enciclopédico, tipo necessário de todos os outros, os quais daqui por diante se efetuarão com mais rapidez, como se dá a respeito de qualquer escala. Espero que descereis sem esforço de cada ciência à seguinte, sob o mesmo impulso que acaba de vos conduzir da moral à sociologia, consultando sempre a subordinação natural dos fenômenos correspondentes. [pág. 213]
Este princípio fundamental vos faz sentir em primeiro lugar que o estudo sistemático da sociedade exige o conhecimento prévio das leis gerais da vida. Com efeito, os povos sendo seres eminentemente vivos, a ordem vital domina necessariamente a ordem social, cujo estado estático e surto dinâmico ficariam profundamente alterados se nossa constituição cerebral, ou mesmo corporal, mudasse de modo notável. Aqui, o duplo acréscimo de generalidade e simplicidade torna-se plenamente irrecusável. É assim que a sociologia, instituída primeiro pela moral, institui, por sua vez, a Biologia, que aliás também apresenta relações diretas com a ciência principal. Não devendo estudar a vida senão no que ela oferece de comum em todos os seres que dela gozam, os animais e os vegetais formam o domínio próprio desta ciência, se bem que ela seja finalmente destinada ao homem, cujo verdadeiro estudo ela apenas pode esboçar de modo grosseiro. Assim concebida, a biologia aprecia judiciosamente as funções corporais estudando as existências em que elas se acham espontaneamente isentas de toda complicação superior. Quando esta instituição lógica a expuser à degeneração acadêmica, insistindo demasiado sobre seres ou atos insignificantes, a disciplina filosófica deverá fazê-la voltar ao regime normal sem nunca estorvar uma marcha indispensável às pesquisas de tal ciência.
Entre estas três primeiras ciências, existe uma conexão tal que o nome da média me serve para designar o conjunto delas no quadro enciclopédico que compus (o quadro B anexo) para facilitar-vos a apreciação geral da hierarquia teórica positiva. De fato, a sociologia pode facilmente ser concebida como absorvendo a biologia a título de preâmbulo, e a moral a título de conclusão. Quando a palavra Antropologia for mais e melhor usada, será preferível para este destino coletivo, pois que significa literalmente estudo do homem. Dever-se-á, porém, empregar por muito tempo o nome sociologia, a fim de caracterizar mais a principal superioridade do novo regime intelectual, que consiste sobretudo na introdução enciclopédica do ponto de vista social, essencialmente alheio à antiga síntese.
Os seres vivos são necessariamente corpos, que, apesar da sua maior complicação, seguem sempre as leis mais gerais da ordem material, cuja preponderância imutável domina todos os fenômenos próprios deles, sem todavia anular nunca a espontaneidade dos mesmos. Um terceiro passo enciclopédico, plenamente análogo aos precedentes, subordina, pois, a biologia, e, por conseguinte, a sociologia com a moral, à grande ciência inorgânica que chamei Cosmologia. Seu verdadeiro domínio consiste no estudo geral do planeta humano, meio necessário de todas as funções superiores, vitais, sociais e morais. Ela ficaria, pois, mais bem qualificada pela palavra Geologia, que diretamente oferece uma tal significação. Mas a anarquia acadêmica desnaturou por tal forma esta expressão que o positivismo deve desistir de empregá-la, até a próxima eliminação da pretendida ciência decorada com esse título. Então se poderá seguir melhor as leis da linguagem, aplicando ao conjunto dos estudos inorgânicos uma denominação mais exata, e cuja natureza concreta deve, até, recordar com mais força a necessidade de apreciar cada existência no caso menos complicado.
Eu terminaria aqui a operação enciclopédica, sem decompor de qualquer modo a cosmologia, se só tivesse em vista o estado final da razão humana, que deverá contrair as ciências inferiores e dilatar as superiores. Mas cumpre também prover agora às necessidades especiais da indicação ocidental, cujo equivalente essencial há de reproduzir-se sempre em cada evolução individual. Este duplo motivo obriga-me a distinguir, em cosmologia, duas ciências igualmente fundamentais, das quais uma, sob o nome geral de Física, estuda diretamente o conjunto da ordem material. A outra, mais simples e mais geral, com razão qualificada de Matemática, serve de base necessária àquela, e, portanto, [pág. 214]
[pág. 215]
a todo o edifício teórico, apreciando em primeiro lugar a existência mais universal, reduzida apenas aos fenômenos que se encontram por toda parte. Sem esta decomposição, não se conceberia o surto espontâneo da filosofia positiva, que só pode começar por semelhante estudo, cujo aperfeiçoamento mais rápido fez com que fosse considerada a princípio como a ciência única. Conquanto seu nome lembre muito mais do que era mister esse privilégio inicial, extinto há muito tempo, deverá ser conservado até que a superioridade natural deste tipo científico e lógico haja regulado assaz o surto popular das leis enciclopédicas. Então uma denominação menos vaga e mais bem construída poderá caracterizar seu verdadeiro domínio, a fim de comprimir sistematicamente a obcecada ambição teórica de seus adeptos exclusivistas.55
55 Realizando mais tarde este voto, Augusto Comte adotou definitivamente o nome de Lógica para designar a matemática, condensando pelo modo seguinte a hierarquia enciclopédica representada no quadro B, à página 199 desta tradução:
Preâmbulo sintético: FILOSOFIA PRIMEIRA
1.° LÓGICA. Ciência do ESPAÇO ......................... (MATEMÁTICA)
(ASTRONOMIA)
(FÍSICA)
2.° FÍSICA. Ciência da TERRA ............................ propriamente dita
(QUÍMICA)
(BIOLOGIA)
3.° MORAL. Ciência da HUMANIDADE................ (SOCIOLOGIA)
(MORAL)
propriamente dita
Construímos este quadro de conformidade com a introdução de sua Síntese Subjetiva, tomo I, único publicado, contendo o Sistema de Lógica Positiva ou Tratado de Filosofia Matemática, Paris, 1856.
Seja como for, deveis reconhecer a necessidade de descer até aí para dotar a escala enciclopédica de uma base espontânea, que possa erigir seu conjunto em prolongamento gradual da razão comum. Com efeito, a própria física, muito mais simples que as outras ciências, ainda o não é bastante. Suas induções particulares não podem ser sistematizadas senão graças a deduções mais gerais, como em qualquer outra parte; apenas esta necessidade lógica e científica faz-se sentir menos nela. É só em matemática que se pode induzir sem ter deduzido primeiro, por causa da extrema simplicidade de seu domínio, onde a indução passa amiúde despercebida, a ponto de os geômetras acadêmicos não verem aí senão deduções, que seriam assim ininteligíveis, por lhes faltar uma origem. As únicas convicções verdadeiramente inabaláveis que podem existir onde quer que seja são as que assentam finalmente sobre este fundamento imutável de toda a filosofia positiva. Tal será sempre o remate necessário do encadeamento subjetivo, segundo o qual todo espírito são, animado por um coração honesto, poderá instituir sempre, como acabo de o fazer, a série fundamental dos cinco principais graus enciclopédicos. [pág. 216]
QUADRO DAS QUINZE LEIS DE FILOSOFIA PRIMEIRA OU PRINCÍPIOS UNIVERSAIS SOBRE OS QUAIS ASSENTA O DOGMA POSITIVO
PRIMEIRO GRUPO, tanto objetivo como subjetivo
1.° Formar a hipótese mais simples e mais simpática que comporta o conjunto dos dados a representar (I).
2.° Conceber como imutáveis as leis quaisquer que regem os seres pelos acontecimentos, posto que só a ordem abstrata permite apreciá-los (II).
3.° As modificações quaisquer da ordem universal limitam-se sempre à intensidade dos fenômenos, cujo arranjo permanece inalterável (III).
SEGUNDO GRUPO, essencialmente subjetivo
1.a Série: leis estáticas do entendimento.
1.° Subordinar as construções subjetivas aos materiais objetivos (Aristóteles, Leibniz, Kant) (IV).
2.° As imagens interiores são sempre menos vivas e menos nítidas que as impressões exteriores (V).
3.° A imagem normal deve ser preponderante sobre as que a agitação cerebral faz simultaneamente surgir (VI).
2.a Série: leis dinâmicas do entendimento.
1.º Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII).
2.° A atividade é primeiro conquistadora, em seguida defensiva, e enfim industrial (VIII).
3.° A sociabilidade é primeiro doméstica, em seguida cívica, e enfim universal, segundo a natureza peculiar a cada um dos três instintos simpáticos (IX).
TERCEIRO GRUPO, sobretudo objetivo
1.a Série: a mais objetiva da filosofia primeira.
1.° Todo estado, estático ou dinâmico, tende a persistir espontaneamente sem nenhuma alteração, resistindo às perturbações exteriores (X).
2.° Um sistema qualquer mantém sua constituição ativa ou passiva quando seus elementos experimentam mutações simultâneas, contanto que sejam exatamente comuns (XI).
3.° Existe por toda parte uma equivalência necessária entre a reação e a ação, se a intensidade de ambas for medida conformemente a natureza de cada conflito (XII).
2.a Série: mais subjetiva que a precedente.
1.° Subordinar por toda parte a teoria do movimento à da existência, concebendo todo o progresso como o desenvolvimento da ordem correspondente, cujas condições quaisquer
regem as mutações que constituem a evolução (XLII).
2.° Toda classificação positiva procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva (XIV).
3.° Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera (XV).
[pág. 217]
A MULHER — Atribuo, meu pai, a essa reação do sentimento sobre a inteligência a facilidade que tenho em acompanhar semelhante operação, que a princípio me atemorizou tanto. Constantemente preocupado com a moral, única base sólida de sua justa influência, meu sexo terá sempre o maior empenho em proporcionar, enfim, a essa arte fundamentos sistemáticos, que possam resistir aos sofismas das más paixões. Hoje, sobretudo, achamo-nos alarmadas contemplando os estragos morais já produzidos pela anarquia intelectual, que ameaça dissolver em breve todos os laços humanos, se convicções irresistíveis não prevenirem, afinal, seu ascendente espontâneo. Os verdadeiros filósofos podem, pois, contar com o concurso tácito e o reconhecimento íntimo de todas as dignas mulheres, quando eles reconstruírem a moral sobre fundamentos positivos, a fim de substituir de modo irrevogável suas bases sobrenaturais, cuja decrepitude é demasiado evidente. As que sentirem, como eu o faço neste momento, a necessidade de descer para isso até as ciências mais abstratas, saberão apreciar convenientemente este socorro inesperado que a razão vem, enfim, prestar ao amor. Compreendo assim por que o quadro enciclopédico que vou estudar procede em sentido inverso da exposição que ele resume. Com efeito, é necessário sobretudo familiarizar-se com essa ordem ascendente, segundo a qual se desenvolveram sempre as diversas concepções positivas. Instituindo-a pelo modo por que acabais de o fazer, dissipastes a principal repugnância que naturalmente inspira às mulheres uma marcha demasiado abstrata, que até aqui elas viram conduzir, com tanta freqüência, à secura e ao orgulho. Agora que posso sempre perceber e recordar o fim moral de toda a elaboração científica, e as condições próprias de cada uma de suas fases essenciais, eu não terei menos satisfação em subir do que em descer vossa escala enciclopédica.
O SACERDOTE — Esta alternância vos será mais fácil, minha filha, se notardes que, em ambos os sentidos, o percurso teórico poderá seguir o mesmo princípio, procedendo sempre segundo o decrescimento de generalidade. Para isto basta referir a série fundamental, ora aos próprios fenômenos, ora às nossas próprias concepções, conforme o uso dela for objetivo ou subjetivo. Com efeito, as noções morais compreendem necessariamente todas as outras, que nós tiramos das primeiras por abstrações sucessivas. É sobretudo nisto que consiste a complicação superior de tais noções. A ciência correspondente oferece, portanto, mais generalidade subjetiva do que todos os estudos inferiores. Pelo contrário, os fenômenos matemáticos são os mais gerais, só porque são os mais simples. O seu estudo apresenta, portanto, mais generalidade objetiva, porém menos generalidade subjetiva do que qualquer outro. Sendo o único que se pode aplicar a todas as existências apreciáveis, é também o que dá a conhecer menos os seres correspondentes, dos quais esse estudo apenas pode desvendar as leis mais grosseiras. Todos os casos intermediários oferecem, em graus menores, este duplo contraste entre a matemática e a moral.
Mas, quer se suba ou se desça, o percurso enciclopédico apresenta sempre a moral como a ciência por excelência, pois que é ao mesmo tempo a mais útil e a mais completa. É nela que o espírito teórico, tendo gradualmente perdido sua abstração inicial, vem unir-se sistematicamente ao espírito prático, depois de ter acabado todas as preparações indispensáveis. Por isso a sabedoria pública, regularizada pelo positivismo, há de fazer respeitar sempre o admirável equívoco, tão deplorado pelos nossos pedantes, que, aí somente, confundem a arte e a ciência sob uma mesma denominação.
Esta confusão aparente ministra à ciência moral um feliz equivalente da disciplina que, em todos os outros domínios, previne ou corrige as divagações teóricas peculiares à cultura ascendente. Com efeito, a regra geral consiste em restringir cada fase enciclopédica [pág. 218] ao desenvolvimento necessário para preparar o grau seguinte, reservando, aliás, ao gênio prático os estudos mais detalhados que ele julgar especialmente convenientes. Apesar das declamações acadêmicas, sabe-se agora que semelhante disciplina consagra todas as teorias verdadeiramente interessantes, excluindo apenas as puerilidades científicas, cuja repressão é hoje prescrita pelas exigências combinadas do espírito e do coração. Ora, essa regra, tão preciosa onde quer que seja, falha necessariamente em relação a ciência colocada no ápice da escala enciclopédica.
Se as teorias morais fossem tão cultivadas como o são as outras, sua complicação superior expô-las-ia, dada essa indisciplina especial, a divagações mais freqüentes e mais nocivas. Mas o coração vem, então, guiar melhor o espírito, recordando com mais força a subordinação universal da teoria à prática, em virtude de um título felizmente ambíguo. Os filósofos devem, com efeito, estudar a moral com a mesma disposição com que as mulheres a estudam, a fim de haurir nela as regras de nossa conduta. Somente a ciência dedutiva deles proporciona às induções femininas uma generalidade e uma coerência que estas não poderiam adquirir por outro modo, e que entretanto se tornam quase sempre indispensáveis à eficácia pública, ou mesmo privada, dos preceitos morais.
A MULHER — O verdadeiro regime teórico ficando assim constituído, rogo-vos, meu pai, que termineis esta longa e difícil conferência caracterizando as propriedades gerais de vossa série enciclopédica, considerada daqui por diante no sentido ascendente, que em breve me será familiar. Espontaneamente percebo os perigos intelectuais e morais peculiares a essa cultura objetiva, enquanto permaneceu desprovida da disciplina subjetiva que acabais de me explicar. Então a sucessão necessária das diversas fases enciclopédicas obrigou provisoriamente o gênio científico a seguir um regime de especialidade dispersiva, diretamente contrário à plena generalidade que deve caracterizar as vistas teóricas. Daí deviam resultar cada vez mais, nos cientistas sobretudo e, por conseguinte, no público também, de um lado, o materialismo e o ateísmo, do outro, o desdém pelas afeições ternas e o desuso em que caíram as belas-artes. Eu sei há muito tempo quanto, sob todos estes aspectos, o verdadeiro positivismo, longe de oferecer qualquer solidariedade real com seu preâmbulo científico, constitui, pelo contrário, o melhor corretivo dele. Mas sem vosso auxílio não poderei apanhar os atributos essenciais que devo agora apreciar no conjunto de vossa hierarquia teórica.
O SACERDOTE — Reduzi, minha filha, esses atributos a dois principais, que correspondem ao duplo destino geral dessa hierarquia, tanto subjetivo como objetivo, ou melhor, aqui, lógico e científico, conforme se considere sobretudo o método ou a doutrina.
Sob o primeiro aspecto, a série enciclopédica indica a um tempo a marcha necessária da educação teórica e o surto gradual do verdadeiro raciocínio. Principalmente dedutivo no seu berço matemático, onde as induções indispensáveis são quase sempre espontâneas, o método positivo torna-se cada vez mais indutivo, à medida que atinge especulações mais eminentes. Nesta longa elaboração, cumpre distinguir quatro graus essenciais, em que a complicação crescente dos fenômenos nos faz desenvolver sucessivamente a observação, a experiência, a comparação e a filiação histórica. Cada uma destas cinco fases lógicas, incluindo o exórdio matemático, absorve espontaneamente todas as que precedem, em virtude da subordinação natural dos fenômenos correspondentes. A sã lógica fica assim completa, e, portanto, sistemática, logo que o surto decisivo da sociologia faz surgir o método histórico, como a biologia havia instituído antes a arte comparativa, depois de a física ter suficientemente desenvolvido a observação e a experiência. [pág. 219]
Uma feliz ignorância dispensa hoje vosso sexo das demonstrações filosóficas pelas quais o positivismo se esforça por convencer os homens de que não se pode aprender a raciocinar senão raciocinando, com certeza e precisão, sobre casos nitidamente apreciáveis. Os que melhor sentem que toda arte deve ser aprendida pelo exercício ainda ouvem os sofistas que lhes ensinam a raciocinar, ou mesmo a falar, raciocinando ou falando unicamente sobre o raciocínio ou a palavra. Mas, posto que vos tenham ensinado a gramática, e talvez a retórica, pouparam-vos pelo menos a lógica, o mais ambicioso dos três estudos escolásticos. Graças a isso, vossa própria razão, felizmente cultivada sob o ensino do vosso querido Molière, pode logo aquilatar as duas outras puerilidades clássicas. Fortalecida agora por convicções sistemáticas, não hesitareis em rir-vos convenientemente dos Trissotinos que quiserem ensinar-vos a arte dedutiva, sem dela terem nunca feito eles próprios o mínimo uso matemático. Cada parte essencial do método positivo deverá sempre ser estudada sobretudo na doutrina científica que primeiro a fez surgir.
A MULHER — Esta primeira apreciação não me apresentando afortunadamente nenhuma dificuldade, pois que não vejo aí senão bom senso, peço-vos, meu pai, que passeis já à segunda propriedade geral de vossa escala enciclopédica.
O SACERDOTE — Consiste ela, minha filha, na concepção sistemática da ordem universal, como vo-lo indica o segundo título do nosso quadro. Desde a ordem material até a ordem moral, cada ordem se superpõe aí à precedente, segundo esta lei fundamental, conseqüência necessária do verdadeiro princípio hierárquico. Os fenômenos mais nobres estão por toda parte subordinados aos mais grosseiros. É a única regra verdadeiramente universal que o estudo objetivo do mundo e do homem possa desvendar-nos. Não podendo absolutamente esta regra dispensar outras leis menos extensas, ela não bastaria para constituir em tempo algum a estéril unidade exterior que em vão procuraram todos os filósofos, desde Tales até Descartes.
Renunciando, porém, a este frívolo incentivo, substituído com muito mais vantagem pelo destino moral de todos os nossos esforços teóricos, folgamos de apanhar, entre todas as nossas doutrinas abstratas, um laço objetivo inseparável de sua coordenação subjetiva. A prática social deve sobretudo utilizar semelhante apreciação do conjunto das fatalidades reais. Nossa dependência e nossa dignidade tornando-se, assim, conexas, nós ficaremos mais bem dispostos a sentir o valor da submissão voluntária, principal condição de nosso aperfeiçoamento moral, e mesmo intelectual.
Com efeito, para completar essa grande lei, notai que, sob o aspecto prático, ela representa a ordem real como sendo cada vez mais modificável à medida que rege fenômenos mais complicados. O aperfeiçoamento supõe sempre a imperfeição, que por toda parte aumenta com a complicação. Mas vedes também que a providência humana torna-se, então, mais eficaz, dispondo de agentes mais variados. Tal compensação é, sem dúvida, insuficiente; de sorte que a ordem menos complicada é de ordinário a mais perfeita, embora cegamente governada. Todavia, esta lei geral da modificabilidade erige, por um duplo motivo, a moral em arte principal, já pela sua importância superior, já também em virtude do campo mais vasto que ela oferece à nossa criteriosa atividade. A prática e a teoria concorrem, portanto, para justificar cada vez mais o predomínio sistemático que o positivismo concede à moral.
A MULHER — Pois que já me explicastes sucintamente o conjunto do dogma positivo, quisera, meu pai, antes de vos deixar hoje, conhecer de antemão o objeto próprio das outras duas conferências que me prometestes sobre esta segunda parte de vosso Catecismo. Com efeito, não vejo o que ainda me falta saber sobre esta base sistemática da religião universal, para passar convenientemente ao estudo direto e especial do regime, com que, a par do culto, me devo sobretudo ocupar. [pág. 220]
O SACERDOTE — As noções precedentes, minha filha, por demasiado abstratas e gerais, não deixariam em vosso espírito suficientes vestígios se eu não as completasse com explicações menos universais e mais bem determinadas, de que hei de fazer, aliás, freqüente uso. Sem deter-vos especialmente em cada fase enciclopédica, como na nova educação ocidental, limito-me a pedir-vos que aprecieis em separado as duas partes desiguais que compõem historicamente o conjunto da filosofia positiva.
Esta divisão espontânea consiste em decompor a ordem universal em ordem exterior e ordem humana. A primeira, a que correspondem a cosmologia e a biologia, constituiu, sob o nome de filosofia natural, que se tornou vulgar na Inglaterra, o único domínio científico da Antiguidade, que não pode mesmo senão esboçá-lo sob o aspecto estático. Além de o verdadeiro espírito teórico não comportar, então, um surto mais completo, o regime social devia repelir uma extensão prematura, que por muito tempo só podia dar como resultado comprometer a ordem inicial sem assistir realmente o progresso final. Somente o gênio excepcional de Aristóteles, depois de ter sistematizado, tanto quanto possível, a filosofia natural, preparou a sã filosofia moral, esboçando suficientemente as duas partes essenciais da estática humana, primeiro coletiva e depois individual. Por isso também ele só foi verdadeiramente apreciado na Idade Média, quando a separação provisória dos dois poderes suscitou o surto direto de nossas principais especulações. Mas este precioso impulso social não podia dispensar o verdadeiro espírito filosófico do longo preâmbulo científico que ainda o separava de seu melhor domínio. Eis por que esta divisão provisória se prolongou até nossos dias. Ela deve, assim, presidir à última transição da razão ocidental, dirigida pelo positivismo. [pág. 221]
SÉTIMA CONFERÊNCIA
ORDEM EXTERIOR — PRIMEIRO MATERIAL, DEPOIS VITAL
A MULHER — Estudando o quadro que resume nossa conversação fundamental sobre o dogma positivo, compreendo, meu pai, a necessidade das outras duas conferências que finalmente me prometestes acerca dele. Meu coração devia impelir-me primeiro a sentir a necessidade de cada fase enciclopédica para a sistematização moral, a que é sobretudo destinada essa imensa construção teórica. É mister, agora, que meu espírito reconheça como se sucedem os diversos andares desse edifício abstrato, desde a base até o vértice, sem todavia penetrar no seu interior. Esta ascensão sistemática torna-se o complemento indispensável da descida fundamental que me fizestes executar. Com efeito, se o espírito pode subir, segundo uma progressão quase insensível, das mínimas noções matemáticas até as mais sublimes concepções morais, será esse para mim o mais admirável dos espetáculos. Conquanto meu sexo não possa nunca acompanhar os detalhes de tal filiação, deve ele compreender hoje sua possibilidade geral, a fim de certificar-se de que a moral sistemática comporta, assim, fundamentos verdadeiramente inabaláveis. A opinião feminina votará então à ignomínia, como desejais, os sofistas anárquicos que, após a irrevogável decadência da fé teológica, se opõem ao advento da fé positiva, para prolongarem indefinidamente um interregno religioso favorável à sua indignidade e incapacidade. Não receeis, pois, deter primeiramente minha atenção no grau matemático, onde reside, segundo vós, a única base sólida do conjunto das teorias reais. A aversão pronunciada que este estudo inspira a todos os nossos trapalhões metafísicos dispõe-me a pressentir a eficácia orgânica que vós lhe atribuís.66
56 Augusto Comte, pela boca de subjetiva interlocutora, acaba de chamar a matemática: "a única base sólida do conjunto das teorias reais"; e mais algumas linhas abaixo "a base lógica e científica de todo o edifício abstrato". Isto deve ser entendido sem prejuízo da filosofia primeira, concepção posterior a este Catecismo, e que constitui o "preâmbulo sintético do dogma", como se viu no quadro da nota anterior. No Complemento a esta tradução, elaborado pelo Sr. Teixeira Mendes,* encontrará o leitor as informações necessárias sobre este assunto. Aqui, nos limitaremos a reproduzir na página anterior o quadro das quinze leis universais que constituem essa filosofia primeira, tais como foram formuladas por Augusto Comte em sua Política Positiva, tomo IV, pp. 173-181.
* "As últimas concepções de Augusto Comte, ou Ensaio de um complemento ao Catecismo Positivista". Rio de Janeiro, 1878.
O SACERDOTE — Para conceberdes com clareza essa base lógica e científica de todo o edifício abstrato, basta, minha filha, que aprecieis bem o domínio geral que lhe assinala nosso quadro enciclopédico. A matemática estuda diretamente a existência universal, reduzida aos seus fenômenos mais simples, e, por conseguinte, os mais grosseiros, sobre os quais assentam necessariamente todos os outros atributos reais. Estas propriedades fundamentais de um ser qualquer são o número, a extensão e o movimento. Tudo [pág. 223] o que não comporta esta tríplice apreciação não pode existir senão no nosso entendimento. Mas a natureza manifesta-nos muitos seres em que não podemos conhecer outra coisa além desses atributos elementares. Tais são sobretudo os astros, que, não sendo acessíveis senão mediante uma longínqua exploração visual, só comportam de fato este estudo matemático, que aliás basta plenamente para regular convenientemente nossas verdadeiras relações para com eles. Por isso, a astronomia nos há de oferecer sempre a aplicação mais direta e mais completa da ciência matemática. Todavia, se as leis gerais do número, da extensão e do movimento só tivessem podido ser estudadas nesses casos celestes, elas nos teriam escapado sempre, apesar de sua extrema simplicidade. Porém, como elas se acham por toda parte, foi possível descobri-las mediante casos mais acessíveis, depois de se ter afastado, por abstrações espontâneas, os outros atributos materiais que então complicavam a apreciação de tais leis.
Observai desde já como o nosso princípio hierárquico preside à verdadeira distribuição interior de cada grande ciência tão naturalmente como a coordenação geral das teorias reais. Porquanto, estes três elementos irredutíveis da matemática, cálculo, geometria e mecânica, constituem uma progressão, ao mesmo tempo histórica e dogmática, essencialmente análoga àquelas que vos apresenta de modo mais sensível o conjunto do sistema abstrato. As idéias de número são certamente mais universais e mais simples que mesmo as de extensão, as quais, por sua vez, precedem, por motivos semelhantes, as idéias de movimento.
Relativamente à maior parte dos astros, os nossos conhecimentos reais se reduzem, no fundo, a enumerações exatas, sem que possamos sequer verificar a figura e a grandeza deles, que aliás nos interessam pouco. Os números aplicam-se tanto aos fenômenos como aos seres. Esta apreciação, numérica, que confunde tudo, é, no fundo, a única plenamente universal, por ser a única que se estende até os nossos pensamentos quaisquer. Sua grosseria natural não a impede de comportar um digno emprego, para aperfeiçoar por toda parte a harmonia e a fixidez, cujos melhores tipos nos são originariamente fornecidos por ela. Por isso vedes as crianças começarem espontaneamente sua iniciação abstrata por simples especulações numéricas muito antes que cheguem a meditar sobre os atributos geométricos.
Quanto ao movimento, sem dificuldade sentis o aumento de complicação e o decréscimo de generalidade que colocam seu estudo no ápice do domínio matemático. Foi por isso que os gregos, tão adiantados em geometria, só puderam esboçar a mecânica em alguns casos de equilíbrio, sem nunca entrever as leis elementares do movimento.
Comparando estas três partes essenciais da matemática, reconhece-se que o cálculo, cujo principal surto é antes algébrico do que aritmético, tem sobretudo um destino lógico, além de sua utilidade própria e direta. Sua aptidão essencial consiste em desenvolver tanto quanto possível nosso poder dedutivo. O estudo da extensão e o do movimento adquirem, assim, uma generalidade e uma coerência que não poderiam obter sem a transformação de todos os seus problemas em simples questões de números. Porém, sob o aspecto científico, a matemática consiste sobretudo na geometria e na mecânica; só estas é que instituem diretamente a teoria da existência universal, primeiro passiva, depois ativa.
A mecânica adquire, assim, muita importância enciclopédica como transição necessária entre a matemática e a física, cujos caracteres respectivos nela se combinam profundamente. Aqui, toda a instituição lógica não parece ser apenas dedutiva, como o faz supor, em geometria, a extrema facilidade das induções indispensáveis. Começa-se, então, a sentir distintamente a necessidade de uma base indutiva, já difícil de se apanhar [pág. 224] no meio de nossas observações concretas, para permitir o surto das concepções abstratas que deverão referir a essa base o problema geral da composição e da comunicação dos movimentos. Foi sobretudo por falta de tal fundamento exterior que a mecânica racional não pôde desenvolver-se senão no século XVII.
Até então o espírito matemático não tinha feito sobressair senão leis, subjetivas, únicas sensíveis na geometria e no cálculo, em pensadores que ainda não compreendiam a conexão necessária dessas leis com as leis objetivas. Estas, porém, ficaram distintamente apreciáveis em virtude da grande dificuldade que elas opuseram aos fundadores da mecânica. A importância e a universalidade dessas três leis fundamentais do movimento me obrigam a vo-las indicar aqui como os melhores tipos das verdadeiras leis naturais, simples fatos gerais que não comportam nenhuma explicação, e que, pelo contrário, servem de base a toda explicação razoável. Posto que o regime metafísico houvesse estorvado muito a descoberta de tais leis, esta foi sobretudo demorada por sua dificuldade própria. Porquanto, essa descoberta constituiu o primeiro esforço capital do gênio indutivo, discernindo, enfim, no meio dos acontecimentos mais vulgares, relações gerais que até então haviam escapado a todas as meditações humanas.
A primeira lei, descoberta por Kepler, consiste em que todo movimento é naturalmente retilíneo e uniforme. Assim, o movimento curvilíneo ou variado não pode nunca resultar senão de uma composição contínua de impulsos sucessivos, aliás ativos ou passivos. A segunda lei, devida a Galileu, proclama a independência dos movimentos relativos de muitos corpos quaisquer em relação a todo movimento comum ao conjunto deles. Mas é necessário que esta comunhão seja completa, tanto em velocidade como em direção. Só debaixo desta condição é que os corpos particulares permanecem no mesmo estado relativo de repouso ou de movimento como se seu conjunto estivesse imóvel. Por isso esta segunda lei não se aplica aos movimentos de rotação, donde surgiram, com efeito, as viciosas objeções que sofreu sua descoberta. Enfim, a terceira lei do movimento, a de Newton, consiste na igualdade constante entre a reação e a ação, em toda colisão mecânica, contanto que, ao medir cada alteração, se tome na devida conta tanto a massa como a velocidade. Esta lei é a base peculiar a todas as noções relativas à comunicação dos movimentos, assim como a lei de Galileu regula tudo o que diz respeito à composição dos mesmos, tendo a de Kepler determinado primeiro por toda parte a natureza de cada um deles. O conjunto destas três leis basta, pois, para que o problema geral da mecânica possa ser abordado dedutivamente, reduzindo gradualmente, por meio de artifícios matemáticos, cuja instituição especial torna-se amiúde difícil, os casos mais complicados aos mais simples.
Estas leis gerais vos servirão diretamente para explicar uma multidão de fenômenos diários no meio dos quais viveis sem os compreender, e, até, sem os perceber. Elas são eminentemente próprias para fazer-vos sentir em que consiste o verdadeiro gênio científico. Deveis, enfim, notar nelas a maneira por que cada uma dessas leis se acha compreendida espontaneamente em uma lei comum a fenômenos quaisquer, tanto sociais e morais como puramente materiais. A primeira refere-se à lei de persistência que reina por toda parte; a segunda, àquela que reconhece a independência das ações parciais relativamente às condições comuns, e de onde resulta socialmente a conciliação do progresso com a ordem. Quanto à terceira, ela comporta diretamente uma aplicação universal, que nunca varia senão quanto à medida das influências respectivas. Este cotejo filosófico acaba de caracterizar a importância enciclopédica peculiar ao limite extremo do domínio matemático. [pág. 225]
A MULHER — Posto que a abstração e a novidade destas considerações devam impedir-me, meu pai, de as compreender bem hoje, sinto que uma suficiente reflexão me permitirá apreciá-las. Rogo-vos, portanto, que passeis imediatamente ao estudo direto da ordem material.
O SACERDOTE — A plena instituição filosófica desse estudo obriga-me, minha filha, a exigir de vós um último esforço enciclopédico, pois que tenho que decompor a segunda ciência cosmológica, que coletivamente chamei de Física, em três grandes ciências verdadeiramente distintas. Mencionando-as na ordem ascendente, com a qual já vos ides familiarizando, são: primeiro a astronomia, depois a física propriamente dita, que conserva o nome comum, e enfim a química, como acessoriamente vo-lo indica nosso quadro. Assim, a hierarquia teórica deve finalmente oferecer-vos sete graus enciclopédicos, em vez dos cinco que já conheceis. Passa-se de um modo para o outro pelo simples desenvolvimento do segundo grau primitivo, como o puxar alonga o tubo de uma luneta portátil. Só a aplicação é que vos pode fazer sentir depois qual é aquele que deveis preferir em cada caso.
Esta série fundamental comporta, com efeito, muitas constituições diferentes, conforme a contraímos ou dilatamos, a fim de melhor satisfazer nossas necessidades intelectuais, sem nunca inverter a sucessão dos diversos termos que a compõem. Sua máxima condensação e sua principal expansão acham-se igualmente bem indicadas em nosso quadro. Quando estiverdes mais adiantada, haveis de reduzir amiúde todo o feixe enciclopédico ao simples dualismo entre a cosmologia e a sociologia, o que no princípio vos exporia ao vago. Nunca, porém, aumentareis esta contração por causa da evidente impossibilidade de fazer entrar objetivamente um no outro dois grupos principais, que só podem ser unidos pela apreciação subjetiva, quando nos colocamos diretamente no verdadeiro ponto de vista religioso.
Depois de vos ter indicado esta expansão enciclopédica, servindo-me para isso de termos muito usados, devo sobretudo motivá-la, caracterizando-a.
A MULHER — A julgar pelo pouco que sei de ouvir dizer, a respeito das três ciências que acabais de introduzir, suspeito, meu pai, a razão por que as intercalais aqui. Com efeito, esta interposição antecipa um voto que eu vos teria em breve manifestado, quanto à continuidade enciclopédica. Comparando, sob este aspecto, as ciências inferiores e as ciências superiores, nossa escala primitiva de cinco graus oferecia-me uma grave incongruência. Concebo sem esforço, em virtude apenas da conexão dos fenômenos, como é que nos elevamos insensivelmente da biologia à sociologia, e desta à moral, se bem que eu careça conhecer, a este respeito, vossas explicações especiais, para melhor precisar minhas idéias. Pelo contrário, no princípio eu não podia bem compreender a transição da matemática para o estudo direto da ordem material, e ainda menos a passagem da cosmologia para a biologia. Isto podia provir, sem dúvida, de minha ignorância ser mais completa em relação às concepções inferiores. Mas eu sentia também que essa falta de harmonia devia resultar da própria constituição de nossa primeira escala, conquanto não pudesse, de modo algum, atinar com o remédio, nem mesmo saber se ele existia. Habituar-me-ei, pois, sem custo, aos sete graus enciclopédicos, se esta ligeira complicação me proporcionar uma satisfação suficiente desta necessidade de ordem. Todavia, reconheço que, se tivésseis procedido assim no princípio, eu teria experimentado muitíssima dificuldade em conceber o conjunto de vossa hierarquia abstrata.
O SACERDOTE — Pois que penetrastes o motivo fundamental desta modificação final, só me resta, minha filha, completar vosso trabalho espontâneo indicando-vos sistematicamente a natureza e a destinação das três ciências introduzidas. [pág. 226]
A religião positiva define a astronomia como o estudo celeste do planeta humano; isto é, o conhecimento de nossas relações geométricas e mecânicas com os astros que podem afetar nossos destinos, modificando o estado da terra. É, pois, em torno de nosso globo que condensamos subjetivamente todas as teorias astronômicas, afastando radicalmente as que, não se referindo à terra, se tornam logo ociosas, ainda mesmo que fossem acessíveis. Daí resulta a eliminação final, não só da pretendida astronomia sideral, mas também dos estudos planetários que tenham por objeto astros invisíveis aos olhos desarmados, e, portanto, destituídos necessariamente de toda real influência terrestre. Nosso verdadeiro domínio astronômico se reduzirá, pois, como no começo, aos cinco planetas sempre conhecidos, com o sol, centro de nossos movimentos como dos deles, e a lua, nosso único cortejo celeste.
Toda a diferença essencial entre nossa doutrina e a dos antigos consiste aqui, como alhures, em substituir, enfim, o relativo ao absoluto, tornando puramente subjetivo um centro que durante muito tempo foi objetivo. É por isso que a descoberta, ou, antes, a demonstração do duplo movimento da terra constitui a principal revolução científica peculiar ao regime preliminar da razão humana. Um dos precursores mais eminentes do positivismo, o sábio Fontenelle, fez admiravelmente sentir ao vosso sexo o alcance filosófico dessa revolução científica, tanto quanto então convinha, num opúsculo encantador, cuja frivolidade aparente não o privou de uma justa imortalidade.57
57 O nosso Mestre alude aos Entretiens sur la Pluralité des Mondes. (1686).
Com efeito, foi em virtude do movimento terrestre que o dogma positivo ficou diretamente incompatível com todo o dogma teológico, tornando profundamente relativas nossas mais vastas especulações, que até então podiam conservar um caráter absoluto. A descoberta de nossa gravitação planetária constituiu em breve a continuação científica e o complemento filosófico daquele movimento. Posto que o empirismo acadêmico tenha estorvado muito a reação enciclopédica desta dupla teoria, o positivismo a erige finalmente em primeira base geral do estudo direto da ordem material, assim ligado imediatamente ao fundamento matemático do dogma total.
Na astronomia, essa ordem é, com efeito, apreciada apenas sob o aspecto geométrico-mecânico, afastando as pesquisas, não menos absurdas do que ociosas, sobre a temperatura dos astros ou sua constituição interior. Passando, porém, da astronomia à física propriamente dita, o que se opera quase insensivelmente mediante a mecânica planetária, estuda-se a natureza inerte de modo mais aprofundado. Todavia, a fim de melhor caracterizar esta nova apreciação, cumpre primeiro conceber a mais alta ciência cosmológica, cujo caráter mais fortemente acentuado deve em seguida facilitar a compreensão do caráter da simples física, muito pouco pronunciado diretamente. Esta marcha vos permite notar um dos principais preceitos lógicos do positivismo, que prescreve por toda parte não conceber os casos intermediários senão em virtude dos dois extremos cuja ligação eles devem instituir. A química foi, com efeito, introduzida, como ciência distinta, tanto no Oriente como no Ocidente, muitos séculos antes que a física, fundada espontaneamente por Galileu a fim de estabelecer uma transição real entre a astronomia e a química, aproximadas até então de modo quimérico.
Para encurtar e simplificar esta dupla explicação, considerai a química e a física como essencialmente sujeitas às mesmas influências gerais, que, no fundo, aí não diferem senão pelas modificações mais ou menos intensas que assim experimenta a constituição material. Mas esta única diversidade não dá margem a nenhum equívoco sobre a verdadeira natureza de cada caso, apesar da confusão acadêmica. Com uma intensidade plena, [pág. 227] os estados de calor, de eletricidade e até de luz modificam assaz a constituição material a ponto de mudarem a íntima composição das substâncias. O acontecimento pertence, então, à química, isto é, ao estudo das leis gerais da combinação e da decomposição. Estas ações podem e devem ser concebidas sempre como puramente binárias. Raramente elas comportam mais de três complicações sucessivas, a união tornando-se mais difícil e menos duradoura à medida que se complica. Em grau menor, as mesmas influências modificadoras mudam, quando muito, o estado dos corpos, sem alterar-lhes nunca a substância. Neste caso, a ordem material é apenas estudada sob o aspecto físico propriamente dito. Apesar da igual universalidade destas duas ciências, o decréscimo de generalidade é tão sensível quanto o acréscimo de complicação, quando passamos de uma a outra. Porquanto, a física, estudando o conjunto das propriedades que constituem toda existência material, considera do mesmo modo todos os corpos, com simples diferença de grau. Seus diversos ramos devem, portanto, corresponder aos diversos sentidos que nos revelam o mundo exterior. Pelo contrário, a química considera todas as substâncias como essencialmente distintas; e seu principal objeto consiste em determinar essas diferenças radicais. Conquanto os fenômenos que ela estuda sejam sempre possíveis em um corpo qualquer, eles nunca se efetuam senão sob condições especiais, cujo concurso, raro e difícil, exige amiúde a intervenção humana.
Destas duas ciências vizinhas, a física é mais importante sob o aspecto lógico e a química sob o aspecto científico, quando comparamos seu peso enciclopédico, depois de ter primeiro reconhecido a necessidade indispensável, teórica e prática, de cada uma delas. É sobretudo da física que dimana o surto decisivo do gênio indutivo, pelo desenvolvimento da observação, demasiado espontânea na astronomia; e em seguida da experimentação, muito equívoca em qualquer outro domínio. A química, porém, avantaja-se à física quanto à influência enciclopédica das noções que ministra. Sua extrema imperfeição teórica, que só pode cessar sob a disciplina positiva, não a impediu de exercer uma luminosa reação sobre o conjunto da razão ocidental. Esta preciosa eficácia resulta sobretudo da análise geral de nosso meio terrestre, gasoso, líquido e sólido, completada pela análise, não menos indispensável, das substâncias vegetais e animais. Pode-se, assim, conceber, enfim, a economia fundamental da natureza, até então ininteligível, por não se ter ainda verificado, em todos os seres reais, tanto vivos como inertes, elementos materiais essencialmente idênticos.
Concebeis, portanto, como é que só a química propriamente dita institui uma transição normal entre a cosmologia e a biologia, de acordo com vosso legítimo voto de continuidade total. Esta grande condição enciclopédica, tão favorável por fim ao coração como ao espírito, teria, ainda, para vós mais valor se eu vos indicasse a verdadeira distribuição da astronomia, da física e da química, como o fiz no começo em relação à matemática. Devemos, porém, reservar estes desenvolvimentos para conferências mais especiais, que não são religiosamente indispensáveis hoje. Aquele tipo inicial deve aqui bastar para vos fazer sentir a possibilidade geral de uma ascensão gradual da matemática até a moral, aplicando, com precisão e especialidade crescentes, nosso imutável princípio hierárquico.
Completando esta apreciação subjetiva ou lógica por uma equivalente apreciação objetiva ou científica, a sucessão geral destes três estudos abstratos começa a manifestar-vos uma verdadeira escala concreta, se não dos seres, pelo menos das existências. Não observais, em astronomia, senão a simples existência matemática, que, até então quase ideal, realiza-se aí em corpos que não podemos explorar sob nenhum outro aspecto, e que, portanto, se tornam o melhor tipo de tal existência. Na física, porém, elevamo-nos [pág. 228] a fenômenos menos grosseiros e mais íntimos, que tendem mais para o caso humano. Enfim, a química oferece-vos a mais nobre e mais profunda das existências materiais, sempre subordinada às precedentes, de acordo com a nossa lei universal. Conquanto a grande noção objetiva que resulta de tal progressão só deva desenvolver-se assaz em biologia, importa notar seu esboço cosmológico, a fim de fazer apanhar convenientemente o verdadeiro princípio da classificação dos seres quaisquer.
A MULHER — Esta continuidade admirável dispõe-me, meu pai, a julgar melhor os ruidosos conflitos que se levantam algumas vezes entre os diversos departamentos científicos. A natural predileção de meu sexo pelas explicações morais arrastava-me a considerar esses debates teóricos como essencialmente devidos às paixões humanas. Agora vejo para eles uma origem mais legítima na incerteza profunda que, por falta de princípios enciclopédicos, as diferentes classes de cientistas tiveram amiúde de experimentar a respeito de suas atribuições normais, em virtude dessa sucessão quase insensível entre seus domínios respectivos.
O SACERDOTE — Tal continuidade constitui, minha filha, o principal resultado filosófico do conjunto dos esforços peculiares à razão moderna. Porquanto, o verdadeiro gênio teórico consiste sobretudo em ligar, tanto quanto possível, todos os fenômenos e todos os seres. O gênio prático completa em seguida este resultado geral; pois que os nossos aperfeiçoamentos artificiais têm sempre por efeito consolidar e desenvolver as ligações naturais. Deveis, assim, começar a sentir que o espírito moderno não é puramente crítico, como disso o acusam, e que substitui construções duradouras aos destroços impotentes do dogma antigo. Ao mesmo tempo, já podeis reconhecer aqui a incompatibilidade necessária entre os dois regimes teológico e positivo, pela impossibilidade de conciliar as leis reais com as vontades sobrenaturais. O que seria desta ordem admirável, que gradualmente vai ligando nossos mais nobres atributos morais aos mínimos fenômenos materiais, se fosse mister interpor nela um poder infinito, cujos caprichos, não comportando previsão alguma, a ameaçariam sempre de uma inteira subversão?
A MULHER — Antes de apanhar diretamente essa continuidade geral, resta-me, meu pai, preencher uma grande lacuna a respeito da ordem vital, cuja apreciação sistemática deveis agora explicar-me. Já compreendi, durante nossa descida enciclopédica, sua ligação natural com a ordem humana. Mas ainda não pude compreender o modo por que se liga espontaneamente à ordem material: porquanto um abismo intransponível parece-me separar o domínio da vida e o domínio da morte.
O SACERDOTE — Vosso embaraço, minha filha, acha-se de plena conformidade com a marcha histórica da iniciação humana. Apenas duas gerações são passadas depois que os verdadeiros pensadores puderam começar a conceber nitidamente este laço fundamental, onde reside o nó essencial de toda a filosofia natural. Os cosmologistas deviam, primeiro, pelo advento da química, levar o estudo da ordem material até os fenômenos mais nobres e mais complicados. Mas era necessário que em seguida os biologistas descessem convenientemente às funções vitais mais grosseiras e mais simples, únicas suscetíveis de se ligarem diretamente àquelas bases inorgânicas. Tal foi o resultado principal da admirável concepção devida ao verdadeiro fundador da filosofia biológica, o incomparável Bichat. Graças a uma profunda análise, as funções vitais mais nobres foram aí, enfim, representadas, mesmo no homem, como repousando sempre sobre as mais grosseiras, segundo a lei geral da ordem real. A animalidade se subordina por toda parte à vegetalidade, ou a vida de relação à vida de nutrição.
Este princípio luminoso conduz a reconhecer que os únicos fenômenos verdadeiramente comuns a todos os seres vivos consistem nessa decomposição e recomposição que [pág. 229] a substância deles experimenta sem cessar, em virtude do meio correspondente. O conjunto das funções vitais assenta, assim, sobre atos muito análogos aos efeitos químicos, dos quais aqueles só diferem essencialmente pela instabilidade das combinações, aliás mais complexas. Esta vida simples e fundamental é a única que se manifesta nos vegetais, onde encontramos seu mais intenso desenvolvimento, pois que ela aí transforma diretamente os materiais inorgânicos em substâncias orgânicas, o que nunca fazem os entes mais elevados. A definição geral da animalidade consiste, com efeito, na natureza viva dos alimentos correspondentes: de onde resultam, como condições necessárias, a aptidão para os discernir e a faculdade de os apreender; por conseqüência, a sensibilidade e a contratilidade.58
58 E, como propriedade intermediária, o instinto. V. Política Positiva, tomo I, p. 600.
O grande Bichat, para consolidar sua análise fundamental da vida, teve, logo depois, de construir uma concepção anatômica que pudesse oferecer o complemento e o resumo dessa análise. O tecido celular, único universal, constitui a sede própria da vida vegetativa; ao passo que a vida animal reside no tecido nervoso e no tecido muscular. Então o pensamento geral da biologia fica completo, de modo a tornar possível por toda parte uma suficiente harmonia entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica, a fim de passar convenientemente da função ao órgão, ou vice-versa.
Segundo o princípio lógico que prescreve que os fenômenos quaisquer devem ser sobretudo estudados nos seres em que eles são ao mesmo tempo mais desenvolvidos e mais isentos de toda complicação superior, a teoria dos vegetais se torna a base normal da biologia. Ela estabelece diretamente as leis gerais da nutrição segundo o caso mais simples e mais intenso. É a única parte da biologia que poderia ser plenamente separada da sociologia, se a instituição subjetiva não devesse sempre dominar a cultura objetiva. Aí opera-se imediatamente a transição natural entre a existência material e a existência vital.
A MULHER — Por este modo concebo, meu pai, que a continuidade enciclopédica se possa estabelecer em relação à parte inferior da hierarquia teórica. Partindo, porém, de uma vitalidade tão grosseira como é essa simples vegetalidade, não vejo como se pode subir até o verdadeiro tipo humano, conquanto eu reconheça nossa própria sujeição às leis da nutrição, tanto quanto às da gravidade.
O SACERDOTE — A dificuldade que experimentais, minha filha, corresponde, com efeito, ao principal artifício biológico, gradualmente elaborado, desde Aristóteles até Blainville, para instituir-se uma imensa escala, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, destinada a ligar o homem ao vegetal. Se só existissem estes dois termos extremos, suposição esta de modo algum contraditória, nossa unidade teórica se tornaria impossível, ou pelo menos muito imperfeita, por causa da lacuna brusca que assim sofreria a continuidade enciclopédica. Porém a imensa variedade dos organismos animais nos permite estabelecer entre a vitalidade mais grosseira e a mais nobre uma transição tão gradual quanto nossa inteligência o deva exigir.
Todavia, esta série concreta é necessariamente descontínua, em virtude da lei fundamental que mantém a perpetuidade essencial de cada espécie no meio de suas variações secundárias. O velho regime intelectual estorvou muito o surto desta grande construção, procurando em vão nela o resultado absoluto das relações objetivas. Mas a preponderância enciclopédica do método subjetivo desvanece, enfim, esses debates estéreis e sem saída, subordinando sempre a formação da série animal ao seu verdadeiro destino, antes lógico que científico. Não devendo nós estudar os animais senão para conhecer melhor [pág. 230] o homem, ligando-o ao vegetal, estamos plenamente autorizados a banir de tal hierarquia todas as espécies que a perturbem. Um motivo análogo nos permite, ou, antes, nos prescreve, introduzir nela de modo conveniente algumas raças puramente ideais, especialmente imaginadas para aperfeiçoar as transições principais, sem nunca contrariarmos as leis estáticas e dinâmicas da animalidade. Os estudos mais desenvolvidos sobre certos animais pertencem realmente ao domínio prático, e dizem respeito às raras espécies com as quais a existência humana se acha, por diversos motivos, mais ou menos ligada. Todas as outras especialidades zoológicas só poderiam resultar de uma degeneração teórica, em uma ciência que, por sua complicação e imensidade, está mais exposta às puerilidades acadêmicas, já tão multiplicadas na matemática.
Porém o conjunto dos animais suscetíveis de formarem uma verdadeira série nos oferecerá sempre um profundo interesse abstrato, para esclarecermos o estudo geral de todas as nossas funções inferiores, acompanhando cada uma delas em sua simplificação e complicação graduais. A humanidade não constituindo, no fundo, senão o principal grau da animalidade, as mais elevadas noções da sociologia, e mesmo da moral, encontram necessariamente na biologia seu primeiro esboço, para os espíritos verdadeiramente filosóficos que sabem apanhá-las aí. Nossa concepção teórica mais sublime se torna, assim, mais apreciável, quando se considera cada espécie animal como um Grande Ser mais ou menos abortado, em virtude da inferioridade de sua própria organização e do surto do predomínio humano. Porque a existência coletiva constitui sempre a tendência necessária da vida de relação que caracteriza a animalidade. Mas este resultado geral não pode, sobre um mesmo planeta, desenvolver-se assaz senão em uma só das espécies sociais.
A MULHER — Pelo conjunto destas explicações, compreendo, meu pai, como é que a biologia, filosoficamente cultivada, pode, enfim, preencher todas as graves lacunas enciclopédicas, instituindo uma transição gradual entre a ordem exterior e a ordem humana. Essa imensa progressão, tanto dos seres como dos fenômenos, sempre conforme ao princípio hierárquico do positivismo, liga-se, no seu termo inferior, à sucessão normal dos três modos essenciais da existência material. Concebo assim a plena realização da admirável continuidade que a princípio me parecia impossível. Antes, porém, de deixarmos a ordem vital propriamente dita, quisera conhecer, de modo mais distinto e preciso, as duas partes essenciais de seu domínio, vegetalidade e animalidade.
O SACERDOTE — Vosso justo desejo, minha filha, será convenientemente satisfeito, concebendo as três grandes leis que regem cada uma delas. Cumpre considerar essas leis como outros tantos fatos gerais, subordinados entre si, mas completamente distintos, e cujo conjunto explica sempre, quer as funções contínuas da vida de nutrição, quer as funções intermitentes da vida de relação.
A primeira lei de vegetalidade, base necessária de todos os estudos vitais, sem excetuar o caso humano, consiste na renovação material a que está constantemente sujeito todo ente vivo. A esta lei fundamental sucede a do desenvolvimento e declínio, terminando na morte, que, sem ser por si mesma a conseqüência necessária da vida, é sempre o resultado constante dela. Enfim, este primeiro sistema biológico se completa pela lei da reprodução, na qual a conservação da espécie compensa a destruição do indivíduo.
A principal propriedade do conjunto dos seres vivos consiste na aptidão de cada um deles para reproduzir seu semelhante, como ele próprio proveio sempre de uma origem análoga. Não só nenhuma existência orgânica dimana jamais da natureza inorgânica, mas, além disso, uma espécie qualquer não pode resultar de outra, nem superior, nem inferior, salvo as variações muito limitadas, posto que muito pouco conhecidas ainda, [pág. 231] que cada uma delas comporta. Existe, pois, um abismo verdadeiramente intransponível entre o mundo vivo e a natureza inerte, e mesmo, em grau menor, entre os diversos modos de vitalidade. Confirmando a impossibilidade de toda síntese puramente objetiva, esta apreciação não altera de modo algum a verdadeira síntese subjetiva, que por toda parte resulta de uma ascensão assaz gradual para o tipo humano.
Quanto às leis de animalidade, a primeira consiste na necessidade alternativa de exercício e de repouso peculiar a toda a vida de relação, sem excetuar nossos mais nobres atributos. Esta intermitência característica das funções animais liga-se naturalmente à bela observação de Bichat sobre a simetria constante dos órgãos correspondentes, podendo cada metade ser ativa quando a outra permanece passiva. A segunda lei, que, como em todos os outros casos, supõe a precedente sem resultar dela, proclama a tendência de toda função intermitente a tornar-se habitual, isto é, a reproduzir-se espontaneamente após a cessação do seu impulso primitivo. Esta lei do hábito encontra seu complemento natural na lei da imitação, que verdadeiramente não se distingue dela. Segundo a profunda reflexão de Cabanis, a aptidão de imitar a outrem resulta, com efeito, da aptidão de cada um a imitar-se a si mesmo; pelo menos em toda espécie dotada de simpatia. Enfim, a terceira lei de animalidade, subordinada à do hábito, consiste no aperfeiçoamento, ao mesmo tempo estático e dinâmico, inerente a todos os fenômenos de relação. A respeito de cada um deles, o exercício pode fortalecer as funções e os órgãos, que o desuso prolongado tende a enfraquecer. Esta última lei, que assenta sobre as outras duas sem confundir-se com elas, resume o conjunto da teoria da animalidade, como o concebestes primeiro quanto à lei final da vegetalidade.
Combinando estas duas grandes leis, institui-se uma sétima lei vital, a da hereditariedade, que merece cientificamente uma apreciação distinta, conquanto ela não seja logicamente senão uma conseqüência necessária das precedentes. Toda função ou estrutura animal sendo perfectível até certo grau, a aptidão de todo ente vivo para reproduzir o seu semelhante poderá, pois, fixar na espécie as modificações suficientemente profundas sobrevindas no indivíduo. Daí resulta o aperfeiçoamento, limitado mas contínuo, sobretudo dinâmico, e mesmo estático, de cada raça qualquer, por meio de regenerações sucessivas. Esta elevada faculdade, que espontaneamente resume o duplo sistema das leis biológicas, desenvolve-se tanto mais quanto mais elevada é a espécie, e, por conseguinte, mais modificável e também mais ativa, em virtude de sua própria complicação.
Conquanto as leis gerais da transmissão hereditária sejam ainda muito pouco conhecidas, semelhante consideração indica sua alta eficácia para o melhoramento direto de nossa própria natureza, física, intelectual e sobretudo moral. De fato, é incontestável que a hereditariedade vital se aplica tanto, e mesmo mais, aos nossos atributos mais nobres como aos mais grosseiros. Porquanto, os fenômenos se tornam mais modificáveis, e, portanto, mais perfectíveis, à medida que a natureza deles é mais elevada e mais especial. Os preciosos resultados obtidos nas principais raças domésticas não devem dar senão uma fraca idéia dos melhoramentos reservados à espécie mais eminente, quando ela for sistematicamente dirigida sob sua própria providência.
A MULHER — Esta conclusão geral do estudo da vitalidade acaba, meu pai, de me fazer compreender suficientemente seu alcance teórico e prático. Sinto-me, assim, preparada para o estudo direto da ordem humana, ao qual reservais a última conferência sobre o dogma positivo.
O SACERDOTE — Podeis, minha filha, utilmente resumir, sob o principal aspecto filosófico, o conjunto desta conferência pelo simples contraste que deveis ter notado, em nosso quadro enciclopédico, entre as duas divisões, histórica e dogmática, da filosofia [pág. 232] positiva. A primeira, que convém a toda iniciação teórica, individual ou coletiva, aproxima a biologia da cosmologia; a outra, que representa nosso estado final, a combina, pelo contrário, com a sociologia. Esta oposição faz sobressair nitidamente o principal caráter da ordem vital, como laço natural entre a ordem exterior e a ordem humana. [pág. 233]
OITAVA CONFERÊNCIA
ORDEM HUMANA — PRIMEIRO SOCIAL, DEPOIS MORAL
A MULHER — Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo, meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que com freqüência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim, estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo.
O SACERDOTE — É fácil, minha filha, superar este embaraço preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade.
Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a inter-posição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional.
Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da terra, ou doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas cientificas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar, ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários. [pág. 235]
Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação, e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, os bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal.
A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofistico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento.
A MULHER — Este esclarecimento preliminar me permitirá, meu pai, repelir doravante sofismas ainda muito aceitos entre os espíritos mal cultivados. Peço-vos, pois, que me expliqueis diretamente a extensão do dogma positivo ao mundo social.
O SACERDOTE — Primeiramente, minha filha, deveis conceber esta grande ciência como composta de duas partes essenciais: uma, estática, que constrói a teoria da ordem; a outra, dinâmica, que desenvolve a doutrina do progresso. A instrução religiosa considera sobretudo a primeira, onde a natureza fundamental do verdadeiro Grande Ser é diretamente apreciada. Porém a segunda deve completar esta determinação, explicando os destinos sucessivos da Humanidade, a fim de guiar convenientemente a prática social. Estas duas metades da sociologia se acham profundamente ligadas entre si em virtude de um princípio geral estabelecido pelo positivismo para religar por toda parte o estudo do movimento ao da existência. O progresso é o desenvolvimento da ordem. Já conveniente em matemática, semelhante lei aplica-se tanto melhor quanto mais os fenômenos se complicam; porque a distinção entre o estado estático e o estado dinâmico torna-se, então, mais pronunciada, ao passo que a simplificação proveniente desta ligação de estudos adquire também mais valor. A sociologia devia, portanto, oferecer a melhor aplicação deste grande princípio e a verdadeira fonte de sua sistematização. Aí ele convém mesmo tanto no sentido inverso como no sentido direto; porque os estados sucessivos da Humanidade devem assim manifestar cada vez mais a sua constituição fundamental, cujos germes essenciais estão todos necessariamente contidos em seu esboço inicial. Mas a eficácia teórica e prática da sociologia dinâmica ficará especialmente caracterizada pelas duas conferências finais deste Catecismo. Devo, pois, limitar-me agora a explicar-vos as principais noções da estática social.
A MULHER — Esta redução convém, aliás, meu pai, à insuficiência de minha instrução histórica. Conquanto as concepções estáticas da sociologia devam ser mais abstratas que as suas vistas dinâmicas, eu poderei apanhá-las melhor, com a atenção que exigem sua importância e dificuldade. Aí, pelo menos, sentir-me-ei amparada contra minha ignorância pela certeza de achar em mim mesma a confirmação de uma doutrina diretamente emanada de nossa natureza.
O SACERDOTE — Bastará, com efeito, minha filha, que vos examineis atentamente para reconhecerdes logo a constituição necessária da ordem social; porquanto, a fim de representar a existência geral da Humanidade, deve ela oferecer uma combinação [pág. 236] decisiva de todos os nossos atributos essenciais. Posto que vossa própria existência vos mostre estes atributos de modo confuso, ela vo-los faz assaz sentir para que possais compreender melhor sua harmonia fundamental, quando órgãos coletivos permitem a cada um deles um surto plenamente característico.
Concebei, pois, o Grande Ser como sendo dirigido, do mesmo modo que vós, porém em grau mais pronunciado, pelo sentimento, esclarecido pela inteligência e sustentado pela atividade. Daí resultam os três elementos essenciais da ordem social, o sexo afetivo, a classe contemplativa, isto é, o sacerdócio, e a força prática. São assim classificados segundo sua dignidade decrescente, mas também segundo sua independência crescente. O último constitui, portanto, a base necessária de toda a economia do Grande Ser, segundo a lei fundamental, já familiar para vós, que por toda parte subordina os mais nobres atributos aos mais grosseiros.
Com efeito, as necessidades contínuas oriundas de nossa constituição corporal impõem à Humanidade uma atividade material que domina o conjunto de sua existência. Não podendo desenvolver-se senão por uma cooperação crescente, essa atividade, principal estimulante de nossa inteligência, fornece sobretudo à nossa sociabilidade sua mais poderosa excitação. Ela aí subordina cada vez mais a solidariedade à continuidade, onde reside o mais decisivo e o mais nobre de todos os atributos do Grande Ser. Porquanto os resultados materiais da cooperação humana dependem mais do concurso das gerações sucessivas que do concurso das famílias coexistentes. Longe de ser radicalmente desfavorável ao surto intelectual e moral, este predomínio contínuo da vida prática deve, pois, fornecer a melhor garantia de nossa unidade, proporcionando ao espírito e ao coração uma direção determinada e um destino progressivo. Sem este impulso universal, nossas melhores disposições mentais, e mesmo morais, degenerariam breve em tendências vagas e incoerentes que não produziriam nenhum progresso, privado ou público.
Todavia, a fonte, necessariamente pessoal, de semelhante atividade deve a princípio imprimir-lhe um caráter profundamente egoísta, que só a transformação gradual resultante do desenvolvimento coletivo pode tornar altruísta. Eis por que a constituição geral da ordem social não seria assaz apreciada se não se decompusesse a classe ativa em dois elementos sempre distintos e amiúde apostos. Eles devem especialmente desenvolver, um o impulso prático, com a personalidade que supõe sua principal energia, o outro a reação social que o nobilita cada vez mais.
Para fazer esta decomposição indispensável, basta dividir a força ativa em concentrada e dispersa, conforme resulte da riqueza ou do número.
Posto que a primeira não possa ser senão indireta, ela prevalece ordinariamente, e mesmo cada vez mais, porque representa a continuidade, ao passo que a segunda corresponde à solidariedade. Com efeito, os tesouros materiais que a Humanidade confia aos ricos provêm sobretudo de uma longa acumulação anterior, apesar da necessidade permanente da renovação parcial exigida pelo consumo necessário de tais tesouros. Todo forte impulso prático dimana, pois, do patriciado em que rendem esses poderosos reservatórios nutritivos, cuja principal eficácia social resulta de sua concentração pessoal. É assim que a propriedade material é diretamente consagrada pela religião positiva, como a condição fundamental de nossa atividade contínua, e, portanto, a base indireta de nossos mais eminentes progressos.
O segundo elemento prático, sem o qual o primeiro se tornaria ilusório, consiste no proletariado, que constitui o fundo necessário de toda população. Não podendo adquirir influência social senão pela união, ele tende diretamente a desenvolver nossos melhores instintos. Sua própria situação solicita sem cessar sua atenção principal para as regras [pág. 237] morais de uma economia cujas perturbações ele especialmente suporta. Naturalmente libertado da grave responsabilidade e das preocupações de espírito que são a conseqüência habitual de uma autoridade qualquer, teórica ou prática, ele torna-se muito próprio para chamar espontaneamente o sacerdócio e o patriciado ao destino social que estes devem preencher.
A MULHER — Acredito, meu pai, que esta reação contínua da classe ativa não é menos indispensável para conter ou compensar, nas mulheres, exagero do sentimento. Alheio à vida prática, meu sexo amiúde propende a menosprezar ou a pôr de lado as condições grosseiras que essa vida impõe. Porém o sentimento que o domina pode sempre fazer-lhe aceitar dignamente tais condições, a fim de realizar o bem ao qual ele aspira naturalmente, quando esse impulso necessário nos conduz a apreciá-las assaz.
O SACERDOTE — Acabastes assim, minha filha, de compreender espontaneamente o grande ofício social que caracteriza o proletariado. Porquanto, se a influência afetiva pode também esquecer seu verdadeiro destino, preocupando-se demasiado das necessidades que lhe são próprias, este perigo deve desenvolver-se mais no poder especulativo e no poder ativo, cuja atenção acha-se habitualmente absorvida por esforços especiais. A providência moral das mulheres, a providência intelectual do sacerdócio e a providência material do patriciado carecem, pois, de ser completadas pela providência geral oriunda do proletariado, para constituírem o admirável conjunto da providência humana. Todas as nossas forças podem, assim, tender sempre, cada qual segundo sua natureza, para a conservação e o aperfeiçoamento do Grande Ser.
Esta concepção geral de nossa constituição social basta para caracterizar-lhe os três elementos necessários. Classificados segundo sua aptidão decrescente a representarem naturalmente a Humanidade, eles seguem a mesma ordem no predomínio sucessivo que lhes cabe em cada iniciação completa. A providência feminina, que deve sempre dominar nosso surto moral, dispõe-nos, primeiro, a sentir a continuidade e a solidariedade, dirigindo a educação espontânea que se realiza no seio da família. Em seguida, a providência sacerdotal faz-nos apreciar de modo sistemático a natureza e o destino do Grande Ser, revelando-nos gradualmente o conjunto da ordem real. Caímos, enfim, sob o predomínio direto e perpétuo da providência material, que nos inicia na vida prática, cujas reações afetivas e especulativas completam nossa preparação.
Uma coincidência espontânea entre a plenitude de nosso desenvolvimento pessoal, tanto cerebral como corporal, e a terminação ordinária de nosso início social constitui assim nossa maturidade real. Começa, então, nossa segunda vida, essencialmente de ação, sucedendo ao conjunto das preparações que nos habilitam a bem servir o Grande Ser. Esta nova existência objetiva, posto que ordinariamente mais curta que a primeira, é a única decisiva para proporcionar a cada chefe de família a existência subjetiva que o incorporará convenientemente à Humanidade.
A fim de compreender melhor a constituição social, é mister apreciar separadamente seus dois elementos, mais especiais, únicos que formam classes propriamente ditas, o sacerdócio que aconselha e o patriciado que comanda. É nestas classes que se conservam e aumentam respectivamente os tesouros espirituais e os tesouros materiais da Humanidade, a fim de serem convenientemente distribuídos, segundo as leis naturais deles, a todos os servidores dela.
Da classe teórica dimana primeiro a educação sistemática e depois a influência consultativa sobre toda a vida real, a fim de chamar cada atividade parcial à harmonia geral, que aquela nos dispõe a desconhecer. A admirável instituição da linguagem humana, embora resulte sempre de uma cooperação universal, torna-se o patrimônio especial [pág. 238] do sacerdócio, como depósito espontâneo da religião e principal instrumento de seu exercício. Naturalmente imperecíveis, os bens espirituais podem servir simultaneamente a todos, sem nunca se esgotarem; de sorte que a conservação deles não exige nenhuma partilha e constitui um simples anexo de cada existência sacerdotal. Eminentemente sintética e social, a linguagem consolida e desenvolve a subordinação natural da ordem humana à ordem exterior. Aumenta também nossa ligação mútua, sobretudo instituindo uma conexão íntima entre a sabedoria sistemática e a razão comum.
O destino pessoal e a instabilidade natural dos produtos materiais impõem leis muito diferentes à sua conservação e uso. Além da solicitude coletiva do patriciado, assistida por uma fiscalização universal, eles exigem uma posse individual, sem a qual sua concentração normal se tornaria ilusória, ou antes, impossível. Esta apropriação pessoal, primeira base da providência material, não pode adquirir bastante consistência senão apoiando-se no solo, sede natural e fonte necessária de toda produção prática. É assim que se formam espontaneamente, através dos séculos, os reservatórios nutritivos da Humanidade, que devem sem interrupção reanimar por toda parte a existência material, ao passo que seus guardas dirigem os trabalhos exigidos pela renovação contínua desses reservatórios.
Este ofício principal dos patrícios consiste em substituir, em cada órgão social, os materiais que ele consome sempre, como provisões para sua subsistência ou como instrumento para sua função. O salário nunca tem outra influência normal, qualquer que seja a classe a que se aplique. Com efeito, o trabalho humano, isto é, a reação útil do homem contra sua sorte, não pode ser senão gratuito, porque não comporta nem exige nenhum pagamento propriamente dito. Só entre os materiais do trabalho é que pode existir uma verdadeira equivalência, e não entre seus atributos essenciais. Sempre reconhecida relativamente ao sexo afetivo e à classe contemplativa, e mesmo em relação ao poder prático que salaria todos os outros, esta gratuidade necessária de todo ofício humano só é ainda duvidosa quanto ao proletariado, isto é, naqueles que menos recebem, Semelhante contradição assaz indica a origem histórica desta anomalia, essencialmente devida não à inferioridade das operações correspondentes, mas à prolongada servidão de seus órgãos. Só a religião positiva é que pode superar neste ponto a anarquia moderna, fazendo sentir por toda parte que cada serviço pessoal não comporta jamais outra recompensa senão a satisfação de efetuá-lo e o reconhecimento que proporciona.
A MULHER — Conquanto as almas vulgares possam hoje acoimar de exagero sentimental semelhante apreciação, atrevo-me a prometer-vos, meu pai, que ela não tardará em ser acolhida dignamente entre as mulheres. Freqüentes vezes tem-me chocado o egoísmo habitual que, mediante um salário insignificante, dispensa-se de toda gratidão por serviços importantes e difíceis, cujos autores comprometem a saúde, e algumas vezes a vida, em cada operação. Este princípio positivista ministra uma consistência sistemática a sentimentos universais que só carecem de ser formulados e coordenados para que prevaleçam gradualmente. Ele acaba de fazer-me compreender a possibilidade de imprimir, enfim, um caráter verdadeiramente altruísta ao conjunto de nossa existência, mesmo material. Com efeito, esta santa transformação exige apenas que cada um, sem ser habitualmente um entusiasta, sinta com profundidade sua participação geral e a de todos os outros na obra social. Ora, semelhante convicção pode certamente resultar de uma sábia educação universal, em que o coração disporá o espírito a apanhar sempre o conjunto da verdade.
O SACERDOTE — Para completar a apreciação fundamental da ordem social, falta-me, minha filha, caracterizar os três modos ou graus que lhes são próprios. [pág. 239]
Todo organismo coletivo oferece necessariamente os diversos elementos essenciais que acabo de vos explicar. Mas eles se acham aí mais ou menos pronunciados, e, portanto, distintos, segundo a natureza e a extensão da sociedade correspondente. O predomínio respectivo de cada um deles conduz a reconhecer três associações diferentes, que cumpre classificar segundo a intimidade decrescente e a extensão crescente delas. A do meio assenta na precedente e serve de base à seguinte. Única fundada naturalmente no amor, a Família é a sociedade mais íntima e mais restrita, elemento necessário das outras duas. A atividade constitui em seguida a Cidade ou Pátria, em que o laço resulta sobretudo de uma cooperação habitual, que não poderia ser assaz sentida se esta associação política combinasse um número excessivo de associações domésticas. Vem, enfim, a Igreja, a qual, ligando-nos essencialmente pela fé, é a única que comporta uma verdadeira universalidade, que a religião positiva há de necessariamente realizar. Estas três sociedades humanas têm por centros respectivos a mulher, o patriciado e o sacerdócio.
A família de que cada qual provém pertence a uma cidade qualquer, e mesmo a uma certa igreja. Mas este último laço sendo mais fraco comporta mais variações, se bem que não sejam nunca arbitrárias. Quando ele se torna bastante consistente, é o único que fornece o meio de reduzir convenientemente a cidade, em torno da qual as existências se concentram ordinariamente, em virtude do predomínio natural da atividade sobre a inteligência e mesmo sobre o sentimento. De fato, o estado social não pode ser verdadeiramente duradouro senão conciliando assaz a independência com o concurso, condições igualmente inerentes à verdadeira noção da Humanidade. Ora, este acordo necessário impõe às sociedades políticas limites de extensão muito inferiores aos que hoje prevalecem.
Na Idade Média, a separação esboçada entre a associação religiosa e a associação civil já permitiu substituir a livre incorporação dos povos ocidentais à incorporação forçada que lhes proporcionara a princípio o domínio romano. O Ocidente ofereceu, assim, durante muitos séculos, o admirável espetáculo de uma união sempre voluntária, fundada unicamente numa fé comum e mantida por um mesmo sacerdócio, entre nações cujos diversos governos tinham toda a devida independência. Porém esse grande resultado político não podia sobreviver à emancipação prematura de um poder que só à religião positiva compete convenientemente instituir e libertar irrevogavelmente. O declínio necessário do catolicismo restabeleceu a concentração temporal, que se tornou então indispensável para impedir a inteira deslocação política a que se era impelido pela dissolução crescente dos laços religiosos. É assim que, apesar dos costumes da Idade Média, cujos vestígios são ainda sensíveis, os ocidentais deixaram que por toda parte se formassem Estados vastos demais.
Os motivos políticos dessa extensão exorbitante tendo já cessado suficientemente, começam-se a sentir, mesmo na França, os perigos radicais, e também o próximo termo, de semelhante anomalia. Mas a religião positiva reduzirá em breve estas monstruosas associações à extensão normal que dispensará o emprego da violência para manter a união temporal entre nações suscetíveis apenas de laços espirituais. Tal será a próxima aplicação do princípio estático que erige em órgão político do Grande Ser a simples cidade, completada pelas populações menos condensadas que a ela estiverem ligadas livremente. O sentimento patriótico, hoje tão vago e tão fraco por causa de sua difusão exagerada, poderá desde então desenvolver dignamente toda a energia que comporta esta concentração cívica. Mas a união habitual das grandes cidades se tornará mais real e eficaz tomando o caráter normal de um concurso voluntário. A fé positiva fará convenientemente sentir a solidariedade e também a continuidade, que devem finalmente reinar entre todas as regiões quaisquer do planeta humano.
A MULHER — Graças ao conjunto de vossas indicações sobre a teoria da sociedade, [pág. 240] sinto-me, meu pai, bastante preparada agora para pousar, enfim, no vértice do edifício enciclopédico, cujos andares fizestes-me apreciar sucessivamente. Posto que a ciência moral deva ser a mais difícil de todas, sua cultura empírica é tão familiar ao meu sexo que não lhe inspirará o mesmo receio que as outras. Folgo, portanto, de chegar convenientemente ao estudo sistemático do homem individual.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, só este remate necessário de toda a preparação enciclopédica é que pode encher tanto o espírito como o coração. A ciência moral é mais sintética do que qualquer outra, e sua conexão direta com a prática consolida este atributo natural. É só aí que todos os aspectos abstratos se reúnem espontaneamente para construir o guia geral da razão concreta. Desde Tales até Pascal, todo verdadeiro pensador cultivava ao mesmo tempo a geometria e a moral, por um secreto pressentimento da grande hierarquia que devia enfim combiná-las. O nome de mundo pequeno que os antigos davam ao homem já indicava quanto o estudo deste parecia próprio para condensar todos os outros. Tal estudo constitui naturalmente a única ciência que pode ser verdadeiramente completa, sem pôr de lado nenhum ponto de vista essencial, como necessariamente o faz cada uma das que lhe servem de base. Porquanto, considerando estas como determinando as leis correspondentes do homem, elas só conseguem isto desprezando de propósito todas as propriedades superiores aos seus domínios respectivos, onde elas apenas incorporam os atributos inferiores. Por estas abstrações decrescentes, o espírito teórico fica suficientemente preparado para abordar, enfim, o único estudo que não o obriga mais a nada abstrair de essencial no objeto comum de nossas diversas especulações reais. É somente assim que a meditação masculina se une irrevogavelmente à contemplação feminina, para constituir o estado final da razão humana.
A cosmologia estabelece, em primeiro lugar, as leis da simples materialidade. Em seguida, a biologia constrói sobre essa base a teoria da vitalidade. Enfim, a sociologia subordina a este duplo fundamento o estudo próprio da existência coletiva. Mas, conquanto esta última ciência preliminar seja necessariamente mais completa que as precedentes, ela não abarca ainda tudo o que constitui a natureza humana, visto como os nossos principais atributos não se acham nela assaz apreciados. Ela considera essencialmente no homem a inteligência e a atividade combinadas com todas as nossas propriedades inferiores, mas sem estarem diretamente subordinadas aos sentimentos que as dominam. Este desenvolvimento coletivo faz sobretudo ressaltar nosso surto teórico e prático. Nossos sentimentos só figuram, em sociologia, mesmo estática, por causa dos impulsos que exercem sobre a vida comum ou das modificações que esta lhes imprime. As suas leis próprias não podem ser convenientemente estudadas senão pela moral, onde adquirem o predomínio que compete à sua dignidade superior no conjunto da natureza humana. É isso que dispõe amiúde os espíritos pouco sistemáticos a desconhecerem a plenitude sintética que caracteriza esta ciência final, que eles restringem demasiado a esse domínio principal, em torno do qual devem, enfim, concentrar-se todos os outros.
A MULHER — O encadeamento teórico entre a sociologia e a moral oferece-me ainda algumas dúvidas, que, peço-vos, meu pai, dissipeis antes de expordes diretamente a concepção positiva da natureza humana. Não esqueci os motivos incontestáveis que, em nossa sexta conferência, me fizeram sentir a subordinação objetiva da moral à sociologia; pois que o homem é sempre dominado pela Humanidade. Por outro lado, porém, parece-me que a ciência social precisa continuamente das principais noções que a ciência moral deve ministrar a respeito de nossa verdadeira natureza.
O SACERDOTE — Este embaraço muito legítimo desaparecerá, minha filha, atendendo aos conhecimentos espontâneos que por toda parte precedem e preparam os estudos [pág. 241] sistemáticos. A ciência constitui sempre um simples prolongamento da sabedoria comum. Nunca ela cria realmente doutrina essencial alguma. As teorias limitam-se a generalizar e coordenar os apanhados empíricos da razão universal, a fim de lhes dar uma consistência e um desenvolvimento que por outro modo não poderiam obter. Semelhante conexão convém mais aos estudos morais que, embora só possam ser sistematizados em último lugar, por causa de sua complicação superior, forneceram sempre, em virtude de sua importância preponderante, principal alimento das meditações comuns, sobretudo femininas. Desta cultura empírica surgiram em breve noções preciosas, apesar de sua incoerência, que só foram desprezadas até aqui pelo gênio sistemático, porque este não podia representá-las suficientemente em suas teorias teológicas ou metafísicas. Ao espírito positivo, único suscetível de abranger o ponto de vista social, é que estava reservado o generalizá-las e coordená-las, depois de ter fundado a última ciência preliminar. Mas sua aptidão para as sistematizar lhe permitia apreciá-las dignamente. Apesar dos prejuízos filosóficos, pôde ele primeiro utilizá-las bastante para construir, enfim, a sociologia. Se examinardes o modo por que o conhecimento da natureza humana é habitualmente empregado em sociologia, haveis de reconhecer logo que, de fato, só se usa aí esse estudo espontâneo, muito mais real do que todas as especulações morais dos filósofos anteriores. Esse esboço empírico pode bastar, com efeito, às concepções relativas à existência coletiva, antes de ter ainda passado pela sistematização que só a ciência final lhe deve proporcionar.
A MULHER — Semelhante explicação, meu pai, dissipa inteiramente a confusão teórica que acessoriamente me ofereciam os dois aspectos essenciais da ordem humana. Tendo minha ignorância me preservado dos dogmas clássicos acerca de nossa natureza, pude apreciar melhor a realidade das noções morais empregadas pela sociologia, e reconhecer a coincidência delas com os resultados espontâneos devidos à razão comum.
O SACERDOTE — Para fundar diretamente a ciência final, basta, minha filha, sistematizar convenientemente a decomposição que essa sabedoria universal não tardou em perceber no conjunto da existência humana, distinguindo nesta o sentimento, a inteligência e a atividade. Esta análise fundamental, apreciável sob diversas formas, nos mais antigos poetas, acha-se neles completada empiricamente pela divisão geral de nossos pendores em pessoais e sociais. Conquanto as teorias teológicas, e sobretudo as metafísicas, fossem especialmente incapazes de representar esta última noção, sua evidência espontânea superou sempre os sofismas filosóficos nos espíritos incultos. Tal é o domínio natural cuja sistematização e desenvolvimento constituem o objeto essencial da ciência moral. As outras teorias reais também consistem sempre em determinar sobretudo as leis gerais dos fenômenos mais vulgares; como a química, por exemplo, relativamente à combustão e à fermentação.
Se bem que a ciência moral não pudesse ser suficientemente abordada por teologia alguma, cumpre dignamente notar a tentativa inicial do verdadeiro fundador do catolicismo para satisfazer às necessidades sistemáticas oriundas do novo ensino religioso. O grande São Paulo, construindo a sua doutrina geral da luta permanente entre a natureza e a graça, esboçou realmente, a seu modo, o conjunto do problema moral, não só prático, mas também teórico. Porque esta preciosa ficção compensava provisoriamente a incompatibilidade radical do monoteísmo com a existência natural dos pendores benévolos, que movem todas as criaturas a se unirem mutuamente em vez de se voltarem isoladamente ao seu criador. Apesar de todos os vícios naturais de semelhante teoria, seu desenvolvimento na Idade Média constitui o único passo essencial que a ciência moral comportava desde seu antigo esboço teocrático até sua recente instituição positiva. Pelo menos, os resultados essenciais da sabedoria comum se achavam aí muito mais bem [pág. 242] representados do que pela deplorável ontologia que dirigiu a dissolução gradual do catolicismo. Por isso os místicos do século XV, e principalmente o admirável autor da Imitação, são também os últimos pensadores em que se pode verdadeiramente apanhar, antes do positivismo, o conjunto da natureza humana, tão viciosamente concebida em todas as doutrinas metafísicas.
Lembrando-vos um dogma moral que foi justamente caro à vossa juventude, não é meu único fito honrar um esforço muito mal prezado hoje. Além de ter substituído provisoriamente a teoria positiva da natureza humana, cujo preâmbulo objetivo tinha ainda de durar muito tempo, ele preparou-a espontaneamente, formulando seu domínio sistemático. Foi sob esta influência que, mesmo antes da fundação da sociologia, o verdadeiro gênio científico empreendeu, neste assunto, uma tentativa decisiva, embora insuficiente, logo que a filosofia biológica surgiu.
Era mister instituir primeiro, neste supremo domínio teórico, uma harmonia geral entre a apreciação estática e a apreciação dinâmica, assinalando a sede de nossas principais funções. Malgrado a confusão metafísica que queria reduzir tudo à inteligência, à qual se consagrava o conjunto do cérebro, a razão comum havia atravessado as trevas filosóficas, pelo menos quanto aos pendores, sobretudo pessoais, em virtude da energia espontânea deles. Os antigos pensadores consagraram a distinção, fazendo-os residir, ainda que vagamente, nas diferentes vísceras da vida de nutrição. Todavia, nenhum órgão fora designado para os instintos simpáticos, e a ciência, de acordo com a teologia, falou sempre das paixões como se só existissem as más. Por outro lado, a inteligência ficava indivisa e sua subordinação ao sentimento não podia ser teoricamente representada.
Sem este preâmbulo histórico, não poderíeis apreciar bem o admirável esforço pelo qual o gênio de Gall fundou a teoria positiva da natureza humana, posto que não pudesse construí-la até o ponto de torná-la verdadeiramente eficaz, o que supunha a sociologia. Esse poderoso impulso firmou dois princípios gerais, um dinâmico, outro estático, cuja conexão natural servirá sempre de base ao verdadeiro estudo da alma e do cérebro. Gall estabeleceu ao mesmo tempo a pluralidade de nossas funções superiores, assim mentais como morais, e a comum residência delas no aparelho cerebral, cujas diversas regiões deviam corresponder às distinções reais entre aquelas. Apesar dos vícios essenciais oriundos, sobretudo em relação à inteligência, de uma análise superficial e de uma localização empírica, ele conseguiu representar suficientemente a decomposição geral de nossa existência, e mesmo consagrar, enfim, os pendores benévolos. A luta fictícia entre a natureza e a graça foi desde então substituída pela oposição real entre a massa posterior do cérebro, sede dos instintos pessoais, e a região anterior, onde residem distintamente os impulsos simpáticos e as faculdades intelectuais. Tal é a base indestrutível sobre a qual o fundador da religião positiva construiu em seguida a teoria sistemática do cérebro e da alma, depois de ter instituído a sociologia, única fonte de onde podia emanar a inspiração conveniente.
A MULHER — Entrevejo, meu pai, todo o alcance direto do duplo princípio estabelecido pelo último precursor do positivismo. As relações contínuas entre nossos sentimentos e pensamentos, como as relações naturais dos nossos vários instintos, não podiam ser bem representadas por causa da separação exorbitante das sedes que se lhes havia atribuído outrora. A teoria cerebral permitiu, enfim, conceber estas importantes relações, de modo a aperfeiçoar o conhecimento real das mesmas. No entanto, tirando aos órgãos nutritivos essa atribuição moral, que repugnava ao destino grosseiro deles, suscita-se, parece-me, uma grave lacuna geral a respeito das ligações incontestáveis desses órgãos com as nossas funções superiores. A influência recíproca entre o físico e o [pág. 243] moral, exagerada pela antiga hipótese, afigura-se-me, pois, desprezada na nova concepção.
O SACERDOTE — Esta censura não é aplicável, minha filha, senão ao esboço da teoria cerebral. Não cabe ao seu estado definitivo, em que essas grandes relações se acham plenamente sistematizadas. Conservando da antiga opinião as noções reais que por tanto tempo a abonaram, devemos primeiro restringir essas influências vegetativas aos pendores propriamente ditos sem conceder-lhes nenhuma ação direta sobre as funções intelectuais, nem mesmo sobre os impulsos práticos. As regiões especulativa e ativa do cérebro só têm comunicações nervosas com os sentidos e os músculos, a fim de perceberem e modificarem o mundo exterior. Pelo contrário, a região afetiva, que constitui a massa principal do cérebro, não tem laços diretos com o exterior, ao qual se liga indiretamente pelas suas relações próprias com a inteligência e com a atividade. Porém, afora estas ligações cerebrais, existem nervos especiais que a ligam profundamente aos principais órgãos da vida de nutrição, por efeito da subordinação necessária do conjunto dos instintos pessoais à existência vegetativa. Se esta correspondência geral puder ser assaz especificada, como devemos esperá-lo, ela fornecerá meios poderosos para aperfeiçoar mutuamente o físico e o moral do homem.
A MULHER — Esta concepção positiva da natureza humana parece-me, meu pai, muito de acordo com a experiência universal, sobretudo porque funda diretamente nossa unidade sobre a subordinação contínua do espírito ao coração. Já me havíeis explicado que, dos dois modos próprios a este predomínio afetivo, o regime altruísta é o único que pode dar ao homem, mesmo individual, uma unidade completa e duradoura, conquanto mais difícil de constituir que a unidade egoísta. Mas semelhante teoria da harmonia humana ainda me oferece uma grave dificuldade, para a conciliar com a primeira lei de animalidade, que proclama a intermitência de toda a vida de relação, sem poder excetuar as funções cerebrais, visto como a verdadeira unidade não pode ser descontínua. A inteligência e a atividade podem e devem descansar periodicamente, como os sentidos e os músculos correspondentes. Pelo contrário, a afeição não comporta nenhuma suspensão. Porventura poderíamos jamais deixar de amar em nós e fora de nós?
O SACERDOTE — A ligação direta entre a vida afetiva e a vida vegetativa deve levar-vos, minha filha, a considerar a primeira como tão contínua como a segunda. Para conciliar esta continuidade necessária com a intermitência comum a toda a vida de relação, basta considerar a duplicidade cerebral. Todos os órgãos do cérebro são, como os sentidos e os músculos, compostos de duas metades simétricas, separadas ou contíguas, cada uma das quais pode funcionar durante o repouso da outra. Tal alternância permite que o sentimento não experimente nenhuma interrupção, apesar da intermitência cerebral. Algumas vezes a inteligência funciona assim durante o sono, se não mediante o aparelho contemplativo, diretamente ligado aos sentidos, pelo menos mediante o aparelho meditativo, que não depende imediatamente deles. Daí resultam os sonhos, estados passageiros de alienação mental, em que, como acontece na loucura, os impulsos subjetivos prevalecem involuntariamente. Esta persistência acidental das funções intelectuais durante o sono permite compreender, por analogia, a persistência normal das funções afetivas. Mas ela fornece, além disto, o testemunho indireto desta última, porque os sonhos trazem sempre o cunho dos instintos dominantes. Pois que o coração dirige o espírito durante a vigília, apesar das impressões exteriores, ele deve dominá-lo mais quando estas se acham suspensas. Pode-se, pois, esperar que a teoria cerebral conduza finalmente a bem interpretar os sonhos, e mesmo a modificá-los, segundo o voto prematuro de toda a Antiguidade. [pág. 244]
A MULHER — Eu não poderia, meu pai, conceber suficientemente a teoria positiva da natureza humana, se, depois de me terdes explicado as relações gerais entre o coração, o espírito e o caráter, não me fizésseis conhecer a decomposição sistemática de cada um deles em funções verdadeiramente irredutíveis.
O SACERDOTE — Esta decomposição resulta, minha filha, do quadro cerebral que aqui vos apresento (vide o quadro C anexo). Ele deverá tornar-se para vós tão familiar quanto o nosso quadro enciclopédico. Porém, embora mais extenso, não achareis nele tanta dificuldade. Qualquer pessoa, sobretudo de vosso sexo, que tiver vivido suficientemente, há de em breve sentir a realidade de semelhante análise, que, por sua natureza, não pode assentar senão sobre observações ao alcance de todos. Se para verificá-las fossem indispensáveis contemplações especiais e difíceis, ela seria necessariamente viciosa. Os grandes esforços que exigiu a construção deste quadro não podem afetar de modo algum seu uso, sobretudo nos espíritos preservados de nossa educação clássica; porque tais dificuldades resultaram menos da natureza do problema do que das falsas teorias que dominavam neste assunto. Este domínio, conquanto seja o mais antigo de nossa inteligência, é o último a que devia estender-se a concordância gradual entre a razão teórica e a razão prática. Mas este acordo fundamental fica, assim, aí afinal firmado, de modo a reproduzir nesse domínio, melhor do que alhures, os progressos que tal acordo sempre suscita.
Esta classificação cerebral oferece-vos por toda parte uma nova aplicação do princípio universal da generalidade decrescente, sobre o qual já vistes repousar a hierarquia enciclopédica. Haveis de notar isto sobretudo em relação aos instintos que são ao mesmo tempo mais numerosos e mais salientes. Seu decréscimo de generalidade à medida que se tornam mais nobres e menos enérgicos verifica-se plenamente no conjunto da série animal. Os últimos graus não apresentam senão o instinto fundamental da conservação individual, até a inteira separação dos sexos. Então todos os outros instintos se vão sucessivamente ajuntando, primeiro os pessoais, depois os sociais, na ordem indicada pelo quadro cerebral, à medida que subimos para o homem. Esta comparação zoológica bastaria, pois, para demonstrar semelhante análise, cuja elaboração, se bem que sempre dirigida pela inspiração sociológica, foi mesmo freqüentes vezes secundada por ela. A porção mais elevada da série animal, compreendendo os mamíferos e os pássaros, depara-nos certamente uma reunião completa de todas as nossas funções superiores, com simples diferenças de grau. Vede como o maior dos poetas pressentiu esta similitude fundamental, colocando em meio das sublimidades de seu paraíso este admirável quadro da existência moral de um pássaro:
Come l 'augello intra l'amate fronde
Posato al nido de 'suoi dolci nati,
La notte che le cose ci nasconde,
Che, per veder gli aspetti desiati,
Eper trovar lo cibo onde li pasca,
In che i gravi labor gli son aggrati,
Previene 'l tempo in su l'aperta frasca,
E con ardente affetto il sole aspetta
Fiso guardando pur che l'alba nasca.59
59 Dante, Paraíso, canto 23.°. Eis aqui a tradução destes tercetos por Bonifácio de Abreu: — Por entre a amada sombra a avezinha/ Da doce prole junto ao ninho queda;/ Enquanto a noite envolve a terra em trevas/ A bem de contemplar tão caros entes,/ Suave se lhe torna labor grave./ Dos ramos pela fresta espreita o dia,/ E com ardente afeto o Sol aguarda,/ Vigiando fixa, quando surge a aurora./ [pág. 245]
[pág. 246]
Nesta encantadora descrição, um animal muito afastado do homem oferece o mesmo concurso normal que se dá em nós entre o sentimento, a inteligência e a atividade. Tal fraternidade é ainda mais preciosa para o coração do que para o espírito, estendendo a simpatia além de nossa espécie, de modo a temperar nossos conflitos demasiado freqüentes com as raças subordinadas.
A MULHER — Conquanto eu goste muito, meu pai, de contemplar os animais, com o fim de achar neles também todos os nossos móveis essenciais, presumo que o quadro cerebral pode dispensar esta verificação, que não está ao alcance de todos os espíritos.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, as observações limitadas à nossa espécie bastam para desvanecer qualquer incerteza sobre cada parte desta teoria positiva da alma e do cérebro. A própria análise intelectual, mais delicada que as outras duas, por ser menos pronunciada, pode ser verificada mediante os fatos cotidianos. Basta comparar, assim, os dois sexos para se reconhecer a distinção principal entre o aparelho contemplativo e o aparelho meditativo; pois que a primeira função é mais desenvolvida na mulher e a segunda no homem. Semelhantemente separamos os dois órgãos meditativos, notando que vosso sexo é mais apto para aproximar os fatos e o meu para coordená-los. Se nossos doutores fossem tão sagazes como a maioria das mulheres, e igualmente desprendidos de opiniões viciosas, as comparações admiráveis que fornece a série zoológica seriam inúteis para os convencer a este respeito.
A MULHER — Antes de estudar o quadro cerebral, eu quisera, meu pai, tirar a limpo algumas dúvidas nascidas de uma primeira inspeção. O conjunto dos instintos parece-me estar bem apreciado, salvo o instinto materno, que eu esperava ver figurar no altruísmo e não no egoísmo.
O SACERDOTE — Vós o confundis, minha filha, com as reações simpáticas que ele comporta, mas que lhe não são inerentes, pois que freqüentes vezes faltam. A observação zoológica não deixa nenhuma dúvida sobre esta distinção, mostrando a maternidade em animais tão inferiores que não podem oferecer os sentimentos elevados que em nossa espécie costumam acompanhá-la. Podeis, porém, dissipar toda incerteza sem sair de nossa espécie. Por mais precioso que seja o aperfeiçoamento que este instinto recebe da civilização, sobretudo da moderna, pela reação crescente da sociedade sobre a família, pode-se ainda descobrir diariamente sua genuína natureza nas mulheres pouco simpáticas, em que ele se isola melhor. Reconhece-se, então, que o filho constitui diretamente, para a mãe, tanto como para o pai, mais uma simples posse pessoal, objeto de domínio, e amiúde de cobiça, do que de uma afeição desinteressada. Somente as relações que resultam da maternidade podendo estimular muito os pendores benévolos, elas contribuem espontaneamente para desenvolver estes em todas as boas índoles, mas sem criar nunca as simpatias que essa reação supõe. Comparando os diversos estados sociais, simultâneos ou sucessivos, apanha-se o verdadeiro caráter de um instinto que, antes de ser elaborado pela providência humana, dispõe amiúde a vender os filhos, e mesmo a matá-los, por meros motivos pessoais. Ademais, olhai em torno de vós o modo por que se decide habitualmente das profissões ou dos casamentos; e perguntai-vos a vós mesma se o egoísmo dos pais não prevalece aí as mais das vezes, depois que a anarquia moderna enfraquece a reação doméstica da sociedade.
O instinto sexual foi algumas vezes honrado com um equívoco semelhante, não pelo vosso sexo, que de ordinário sabe apreciar seu caráter pessoal, mas por alguns homens, que também o confundiram com as simpatias cujo desenvolvimento ele pode estimular [pág. 247] quando bem dirigido. Todos os pendores pessoais, sem excetuar o instinto destruidor, comportam reações semelhantes, que não suscitam os mesmos enganos, porque elas são aí menos diretas e menos pronunciadas. Esta relação geral facilita muito o grande problema humano: subordinar o egoísmo ao altruísmo. Com efeito, a energia superior dos instintos pessoais pode assim servir para compensar a frouxidão natural dos instintos simpáticos, fornecendo um impulso inicial que estes não teriam espontaneamente. Uma vez despertada, a afeição benévola persiste e cresce pelo seu encanto incomparável, apesar da cessação desse grosseiro estimulante. A superioridade moral de vosso sexo dispensa-o amiúde de tal preparação, dispondo-o a amar logo que encontra objetos de amor, sem procurar neles nenhuma satisfação pessoal. Mas a grosseria masculina não pode quase nunca prescindir deste preâmbulo indireto, necessário sobretudo na vida pública, para nobilitar o orgulho ou a vaidade.
A MULHER — Quanto às funções intelectuais, admiro-me, meu pai, de ver excluídas do quadro cerebral as faculdades clássicas: memória, juízo, imaginação, etc.
O SACERDOTE — Considerai-as, minha filha, como resultados do conjunto da organização mental, que durante muito tempo foram tomados por atributos especiais. A comparação dos indivíduos e dos sexos, completada, por mister, pela das espécies, prova diretamente a inanidade da antiga análise intelectual e a realidade da nova. Porquanto a observação mostra, assim, diferenças pronunciadas e permanentes, quanto à contemplação ou à meditação, sem nunca conduzir a resultados nítidos e fixos a respeito das faculdades escolásticas. O juízo mais insignificante exige um concurso habitual das cinco funções intelectuais, a fim de instituir, entre o interior e o exterior, essa coincidência durável e unânime que caracteriza a verdade. O mesmo digo, com mais forte razão, de cada esforço de memória ou de imaginação, que amiúde exige induções e deduções inteiramente análogas às operações científicas. Quanto à vontade, ela vem a ser o resultado direto de todo impulso afetivo, aprovado pela inteligência como devendo dirigir a conduta.
A MULHER — Ao inverso de minha observação precedente, surpreende-me, meu pai, ver a linguagem figurar como função distinta no quadro cerebral, em vez de ser considerada um produto do conjunto das funções intelectuais.
O SACERDOTE — Vosso erro, minha filha, resulta de confundirdes a aptidão especial para criar sinais artificiais com os resultados determinados pela digna subordinação dessa aptidão às outras forças mentais. Apesar da insuficiência ordinária de suas análises intelectuais, Gall não hesitou nunca em dotar a linguagem de um órgão distinto, sobre cuja existência a observação dos animais, dos homens e dos povos não podia deixar-lhe nenhuma dúvida.
Quando fica entregue a si mesmo, sem nenhuma disciplina cerebral, como vemos amiúde nas moléstias, e algumas vezes no estado de saúde, sua atividade direta não produz senão uma pura verbiagem, que só a razão pode transformar num verdadeiro discurso. Em outros casos, pelo contrário, a atonia excepcional deste órgão impede a transmissão dos pensamentos mais bem elaborados. Ademais, cumpre não confundir, nos animais, a função própria da linguagem com seus instrumentos vocais, que nem sempre lhe correspondem. Cada espécie superior tem sua linguagem natural, entendida por toda a raça, e mesmo entre as espécies assaz vizinhas: porém, os meios físicos de comunicação permanecem com freqüência muito imperfeitos. Quanto à linguagem atual das nações civilizadas, ela constitui, com efeito, um resultado complexíssimo do conjunto do desenvolvimento humano. Todavia, sua primeira origem reside também no órgão cerebral que dispõe a criar, por qualquer espécie de meios, sinais artificiais, sem nenhuma [pág. 248] preocupação direta das comunicações mentais ou morais que por esse modo possam ser efetuadas.
A MULHER — A fim de completardes esta importante apreciação, rogo-vos, meu pai, que me indiqueis o uso geral que deverei fazer do quadro cerebral quando o tiver suficientemente estudado.
O SACERDOTE — Só podereis possuí-lo bem, minha filha, mediante uma aplicação contínua. As mulheres exercitam-se habitualmente em descobrir, em nossos atos e discursos, os sentimentos e os pensamentos que verdadeiramente os inspiram. Considerai, sobretudo, o quadro cerebral como um meio geral de aperfeiçoar muito este ofício feminino. Haveis de reconhecer amiúde que a alma humana não é impenetrável. O cérebro pode, assim, tornar-se um livro inalterável, que podereis ler apesar de todos os artifícios da dissimulação. Completando estas observações individuais pela comparação das nações bastante distintas, e até dos animais facilmente apreciáveis, tereis concluído vossa iniciação na teoria positiva da natureza humana.
Porém, a fim de evitar ou corrigir enganos muito fáceis, cumpre sempre considerar que a maior parte dos resultados observáveis, tanto intelectuais como morais, provém do concurso de várias funções cerebrais. Raramente é que cada uma destas pode ser observada isolada. Assim, vossa exploração há de exigir as mais das vezes uma análise, cujos elementos vos serão sem cessar fornecidos pelo nosso quadro, elementos que haveis de combinar até que essa síntese represente assaz o caso correspondente. Por exemplo, a inveja resulta de uma combinação entre o instinto destruidor e qualquer um dos outros seis instintos egoístas sob o influxo de um secreto sentimento da inferioridade pessoal, tanto mental como moral. Existem, portanto, seis espécies de inveja, conforme seu segundo elemento consista na cobiça, ou na luxúria, etc.
O quadro cerebral resume tudo quanto há hoje de verdadeiramente demonstrado na teoria positiva da natureza humana. Eis por que só indiquei aí o número e a sede dos órgãos intelectuais e morais, sem nada precisar mesmo sobre a forma ou tamanho deles. Só um estudo objetivo, que ainda não está instituído convenientemente, é que pode completar esta teoria subjetiva do cérebro, determinando a constituição de cada um desses órgãos. Cumpre, porém, não ligar importância exagerada a este complemento, sem o qual a doutrina cerebral pode preencher assaz o seu principal destino, como o prova este Catecismo.
A posição dos órgãos constitui, com efeito, a determinação mais importante e também a mais difícil. Ela logo indica as influências mútuas, que, sem nenhum intermédio nervoso, dependem da simples contigüidade. É assim que facilmente podemos explicar as relações, por outra forma ininteligíveis, e no entanto incontestáveis, entre o instinto sexual e o instinto destruidor. A ordem dos órgãos, sobretudo afetivos, mede sua energia respectiva de conformidade com a lei que vedes inscrita no quadro. Por exemplo, entre dois instintos consecutivos, vê-se assim que o pendor a destruir é naturalmente mais forte que o pendor a construir. Não se pode duvidar disso, notando-se a preferência que aquele obtém por toda parte, sem excetuar nossa espécie, quando o ente acredita ter a livre escolha dos meios.
Mas o uso mais nobre do quadro cerebral consiste em assentar melhor o problema humano, o ascendente da sociabilidade sobre a personalidade, como já o sentistes tanto antes desta explicação direta. As três qualidades práticas são, em si mesmo, indiferentes ao bem e ao mal: diretamente, elas só aspiram à ação. Quanto às cinco funções intelectuais, seu verdadeiro destino consiste, evidentemente, em servir os três pendores sociais [pág. 249] de preferência aos sete afetos pessoais: é o meio único de fazer com que o desenvolvimento próprio delas se torne vasto e duradouro. Todavia, a fraqueza intrínseca que as distingue as impede freqüentemente de resistir à energia natural dos impulsos egoístas; e dali resulta a principal dificuldade. Se o espírito não atraiçoa sua santa missão, a personalidade, aliás incoerente, subordina-se facilmente a uma sociabilidade que não lhe recusa nunca as satisfações legítimas. A harmonia ficando assim firmada entre o sentimento e a inteligência, a atividade segue espontaneamente um impulso que lhe fornece um campo inesgotável. Portanto, tudo, afinal, depende de uma combinação profunda entre os dois órgãos contíguos que presidem respectivamente ao principal instinto simpático e ao espírito essencialmente sintético. Representando cada uma das três regiões cerebrais pelo seu órgão preponderante, a fórmula sagrada do positivismo acha-se naturalmente gravada em qualquer cérebro, pois que ela prescreve a harmonia habitual de três órgãos adjacentes.
A MULHER — Pelo conjunto desta conferência e da precedente, reconheço, meu pai, que o dogma positivo basta agora para o governo espiritual da Humanidade, como já mo fizera pressentir nossa sexta conferência. Sua natureza profundamente relativa não lhe permite a imobilidade peculiar ao caráter absoluto do dogma teológico. Mas esta pretendida imutabilidade acaba realmente na morte, ao passo que as modificações graduais do positivismo são sintomas certos de uma vida tão duradoura quanto a de nossa espécie. Sem esperar pelos seus aperfeiçoamentos inesgotáveis, sinto-o assaz elaborado para dirigir hoje a reorganização ocidental.
O SACERDOTE — Esta convicção final permite-me, minha filha, proceder agora à explicação, primeiro geral, depois especial, do regime, que constitui diretamente o objetivo final de toda a iniciação positiva, em que o dogma, e mesmo o culto, são apenas preparatórios. Depois de ter apreciado o positivismo como a verdadeira religião, primeiro do amor, em seguida da ordem, cumpre, enfim, reconhecer nele também a única religião plenamente conveniente ao conjunto do progresso humano, sobretudo moral. [pág. 250]
PARTE TERCEIRA
EXPLICAÇÃO DO
REGIME
[pág. 251]
NONA CONFERÊNCIA
CONJUNTO DO REGIME
A MULHER — Neste estudo final, sinto, meu pai, que minha atitude deve continuar quase tão passiva como em relação ao dogma, posto que eu conte achar aqui menos dificuldades. O regime não me oferece um domínio essencialmente afetivo, como era o do culto, em que eu podia algumas vezes antecipar vossas explicações. Aqui o coração já não pode bastar mais para inspirar-me vistas que freqüentes vezes supõem a mais completa experiência e a mais profunda reflexão, naturalmente vedadas ao sexo, cujas contemplações mal podem ultrapassar com êxito o círculo da vida privada. Com efeito, é mister, agora, construir diretamente as regras gerais que devem presidir aos atos humanos, sobretudo aos habituais, e mesmo aos excepcionais. Ora, esta determinação exige uma exata apreciação do conjunto de nossa existência, quer coletiva, quer individual, a fim de julgar os verdadeiros resultados próprios a cada sistema de conduta. As aberrações do sentimento devem ser neste caso evitadas com tanto maior cuidado quanto a influência delas seria aqui mais perniciosa, por afetar imediatamente a vida real e comum.
O SACERDOTE — Esta digna reserva não deve dissimular-vos nunca, minha filha, o ofício fundamental que o conjunto do regime assinala ao vosso sexo.
O culto é principalmente destinado a desenvolver os sentimentos que nos dispõem a viver para outrem. Todo o estudo do dogma positivo leva depois a concluir que a nossa verdadeira unidade consiste sobretudo nessa vida altruísta. Sobre este duplo fundamento, o regime deve agora fazer prevalecer diretamente, na existência prática, esse princípio único da harmonia universal. Ora, tal objetivo supõe necessariamente o concurso íntimo e contínuo dos dois sexos, porque ele depende tanto do coração como do espírito. Passando, assim, da moral teórica para a moral prática, só a inteligência é que pode determinar quais os hábitos que devem prevalecer, e mesmo quais os meios por que eles se estabelecem. Mas este duplo estudo abortaria quase sempre se o sentimento não impelisse a superar constantemente suas altas dificuldades. Daí resultam as partes respectivas que competem ao sacerdócio e ao sexo afetivo em nosso regime moral. Ao passo que o sacerdote atua sobre o coração pelo espírito apreciando cada conduta, a mulher deve agir sobre o espírito pelo coração, fazendo prevalecer espontaneamente a melhor disposição. Este concurso necessário convém do mesmo modo à idade preparatória e à existência real.
A MULHER — Tranqüilizada por este preâmbulo, devo, meu pai, perguntar-vos em primeiro lugar qual o verdadeiro campo desta terceira parte de nossa religião. Posto que o regime diga sempre respeito à vida ativa, como o dogma se refere à vida especulativa, e o culto, à vida afetiva, dificilmente poderia eu compreender que as prescrições religiosas do primeiro se estendessem a uma atividade qualquer. Entretanto, não percebo sobre que se fundaria a distinção correspondente. [pág. 253]
O SACERDOTE — O domínio prático da religião limita-se, minha filha, às disposições verdadeiramente universais, sem penetrar no preenchimento especial de cada ofício. Ela deve, contudo, apreciar exatamente as diversas funções sociais, mas só para lhes prescrever as regras adequadas a conservar e desenvolver a harmonia geral. Tudo o que se refere à execução particular pertence aos diferentes modos ou graus do governo propriamente dito, quer privado, quer público, e nunca ao sacerdócio.
A fim de precisar melhor esta distinção fundamental, cumpre agora estender ao progresso a divisão geral que o estudo do dogma vos tornou familiar em relação à ordem. Pois que decompusemos primeiro a ordem universal em ordem exterior e ordem humana, devemos apreciar semelhantemente os aperfeiçoamentos que ela comporta. Distinguem-se, assim, duas espécies de progresso, um exterior, outro humano. Posto que ambos se refiram finalmente a nós mesmos, só o último diz respeito à nossa própria natureza, e o primeiro limita-se à nossa situação, que ele melhora reagindo sobre todas as existências capazes de afetar a nossa. É por isso que esse progresso exterior é habitualmente qualificado de material, se bem que se estenda à ordem vital propriamente dita, mas apenas em relação às espécies que nos servem de provisões ou de instrumentos. O ponto de vista do progresso sendo necessariamente mais subjetivo que o da ordem, a uniformidade da linguagem nem sempre corresponde, nele, à identidade das noções.
Esta distinção basta para introduzir convenientemente a divisão fundamental entre os domínios práticos do governo e do sacerdócio. Concebendo todas as forças sociais como igualmente votadas ao aperfeiçoamento universal, é mister, assim, distingui-las conforme elas melhoram a ordem exterior ou a ordem humana. Tal é a melhor origem elementar da separação normal entre a ação temporal e a ação espiritual. A dignidade superior desta resulta, então, da preponderância natural do progresso correspondente. Assim, o domínio prático da religião consiste em aperfeiçoar a ordem humana, primeiro física, depois intelectual, enfim, e sobretudo moral. Apesar da diversidade destes três aspectos, eles devem sempre ficar inseparáveis, em virtude de sua íntima conexão, que cumpre respeitar ainda mais para a ação que para a especulação. Quanto à ordem exterior, seu melhoramento direto e especial não compete à religião: constitui o domínio próprio da política ou da indústria. Todavia, a religião acha aí indiretamente uma participação importante, porém geral, pela grande influência que o estado do agente humano exerce necessariamente sobre os resultados efetivos de sua ação qualquer. Em toda operação prática, o bom êxito exige em primeiro lugar que cada cooperador seja honesto, inteligente e corajoso. Mas é só neste sentido que a religião tem sempre uma parte na constituição fundamental de cada indústria especial.
A MULHER — Assim, meu pai, a moral, considerada como uma arte, difere de todas as outras pela sua inteira generalidade. É a única que deverá ser universalmente aprendida, pois que todas as existências humanas têm igualmente necessidade contínua dela. Seu estudo espontâneo pertence, pois, a todos, proporcionalmente à aptidão natural e às luzes empíricas de cada um. Mas este estudo não pode ser sistematizado senão pelo sacerdócio, em virtude de suas relações necessárias com o conjunto das teorias reais. É assim que a moral parece-me constituir o domínio essencial da religião, primeiro como ciência e depois mesmo como arte.
O SACERDOTE — Deveis completar, minha filha, semelhante apreciação considerando a ingerência especial que cabe ao sacerdócio positivo no conjunto de cada indústria, por ser ele o único que conhece todas as leis essenciais da ordem exterior. Conquanto essas noções teóricas nunca possam dispensar os estudos práticos, como o sonha amiúde o orgulho científico, elas deverão sempre servir-lhes de base, e até de guia. Tendo [pág. 254] primitivamente aprendido com o sacerdócio as principais leis dos fenômenos a modificar, cada prático refere depois a elas todos os desenvolvimentos especiais provenientes de suas induções empíricas. Quando o surto de seus próprios trabalhos lhe fizer sentir a necessidade de novas noções gerais, é ainda ao sacerdócio que ele deverá pedi-las, em vez de perturbar sua marcha industrial por uma vã cultura científica.
A MULHER — Graças ao conjunto dessa explicação, compreendo, meu pai, a separação fundamental entre o sacerdócio e o governo, como resultado sobretudo da divisão necessária entre a teoria e a prática. Mas a apreciação anterior não se refere essencialmente senão ao progresso, isto é, à atividade. Ora, para estabelecer solidamente um princípio tão capital, seria preciso ainda, parece-me, referi-lo diretamente à ordem propriamente dita, isto é, à conservação. Se, na harmonia social, o proletariado deve naturalmente ser sobretudo progressista, meu sexo, em virtude de sua situação passiva, aí funciona principalmente como conservador.
O SACERDOTE — Para satisfazer-vos convenientemente, basta, minha filha, que consideremos estaticamente o regime humano. Estudai nele a existência em vez do movimento, e chegareis logo à divisão dos dois poderes, como base universal da ordem social, partindo unicamente do princípio da cooperação, sobre o qual Aristóteles fundou a verdadeira teoria da associação cívica oriunda do concurso das famílias.60 Com efeito, cada servidor da Humanidade deve sempre ser apreciado sob dois aspectos distintos, embora simultâneos, primeiro, em relação ao seu oficio especial, depois, quanto à harmonia geral. O primeiro dever de todo órgão social consiste, sem dúvida, em bem preencher sua própria função. Mas a boa ordem exige também que cada um assista, tanto quanto possível, à realização dos outros ofícios quaisquer. Semelhante atributo torna-se mesmo o caráter principal do organismo coletivo, em virtude da natureza inteligente e livre de todos os seus agentes.
60 O princípio da cooperação, atribuído por Augusto Comte a Aristóteles, consiste no seguinte: O caráter essencial de toda organização coletiva reside na separação dos ofícios e na convergência dos esforços. Não se encontra nas obras de Aristóteles a formulação de tal princípio. Augusto Comte extraiu-o como contido implicitamente nos trabalhos de filosofia política do grande pensador grego, e sua escrupulosa probidade científica levou-o a referir-lhe a autoria de tal descoberta.
Ora, existe espontaneamente uma oposição cada vez mais pronunciada entre estes dois ofícios, um especial, outro geral, de cada funcionário humano. Porquanto, o primeiro, particularizando-se mais à medida que a cooperação se desenvolve, suscita disposições intelectuais, e mesmo tendências morais, que o afastam cada vez mais de uma apreciação de conjunto, que também se vai tornando cada vez mais difícil. Tal é o verdadeiro ponto de vista elementar da teoria geral do governo, primeiro temporal, depois espiritual.
Como nenhuma função, mesmo vital, e sobretudo social, pode ser bem preenchida senão por meio de um órgão próprio, o mínimo concurso humano exige, pois, uma força especialmente destinada a chamar de novo às vistas e aos sentimentos de conjunto agentes que tendem sempre a desviar-se de tais condições. Ela deve sem cessar conter as suas divergências e desenvolver as suas convergências. Por outro lado, este poder indispensável surge naturalmente das desigualdades que sempre suscita a evolução humana.
Apesar da íntima simpatia que constitui a simples associação doméstica, mesmo reduzida ao par fundamental, não está ela nunca isenta de semelhante necessidade. É aí que se pode apreciar melhor este grande axioma: Não existe sociedade sem governo.
Na ordem cívica, cada concurso de famílias para um fim determinado faz em breve surgir um chefe prático, cuja autoridade se acha espontaneamente limitada pelo conjunto das operações que ele pode realmente dirigir, quer pela sua própria aptidão, quer, sobretudo, [pág. 255] em virtude de seus capitais. É aí que reside o verdadeiro poder temporal, igualmente capaz de impulsionar e de reter, conforme as necessidades. Todo poder mais vasto dimana necessariamente de uma fonte espiritual. Os diferentes chefes práticos tendem, contudo, a se coordenar entre si, mediante uma hierarquia nascida das relações naturais de seus diversos trabalhos. Este concurso espontâneo institui, pois, uma espécie de governo mais geral, porém sempre reduzido ao seu poder material, mais adequado a resistir que a dirigir. Seus diferentes membros são ordinariamente incapazes de abarcar o conjunto correspondente, apesar da competência de cada um deles em relação a um dos sistemas parciais.
A simples solidariedade bastaria, pois, quando um pouco extensa, para indicar a insuficiência do poder prático e a necessidade de uma autoridade teórica que, privando-se de toda ação especial, faça prevalecer constantemente a harmonia geral. A continuidade, porém, da qual depende cada vez mais a ordem humana, torna essa necessidade plenamente irrecusável. Esses poderes empíricos, aspirando a dirigir o presente, não conhecem o passado que o domina, nem o futuro que ele prepara. Por isso a intervenção deles permanece cega e amiúde perturbadora, quando não a subordinam aos conselhos teóricos. Ao mesmo tempo, a influência sacerdotal lhes é indispensável, como a única capaz de consagrar assaz seu ascendente material quase sempre exposto a invejosas contestações. Cada consagração consiste em representar o poder correspondente como o ministro de um poder superior geralmente respeitado: Deus sob o regime provisório, a Humanidade na ordem definitiva. Ora, isto supõe sempre, mas sobretudo em relação a este estado final, que o presente se prende dignamente ao passado e ao futuro. O sacerdócio, único que pode instituir esta dupla ligação, torna-se, assim, o consagrador necessário de todos os poderes humanos, sem precisar ele próprio de nenhuma consagração estranha, pois é o órgão direto da suprema autoridade.
Eis aí de onde procede este segundo axioma: Nenhuma sociedade se pode desenvolver e conservar sem um sacerdócio qualquer. Semelhantemente indispensável a todos para a educação e para o conselho, só este poder teórico é capaz de consagrar os governantes e de proteger os governados. Ele constitui o moderador normal da vida pública, como a mulher o da vida privada, conquanto estas duas existências exijam, aliás, o concurso contínuo da influência moral com o poder intelectual. Podeis resumir o conjunto das atribuições sociais do sacerdócio qualificando-o de Juiz, segundo a expressão bíblica, porquanto seu tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador se efetua sempre julgando, isto é, mediante uma apreciação respeitada.
A MULHER — Felizmente o catolicismo me tinha preparado, meu pai, para bem conceber este princípio fundamental, apesar do crédito obtido pelos sofismas protestantes e deístas, alvejando, com obcecado encarniçamento, a principal construção da Idade Média. Não compreendo, porém, suficientemente a razão por que o positivismo, consolidando e desenvolvendo esse grande esboço, conserva algumas expressões que parecem à primeira vista só se referir à sua origem teológica, posto que admitam um sentido puramente natural. Além do justo respeito que devia ter inspirado essa nomenclatura histórica, presumo que ela também assenta sobre motivos dogmáticos, conquanto eu não possa discerni-los.
O SACERDOTE — Esses motivos resultam sobretudo, minha filha, da falta de homogeneidade que apresentam estas duas expressões, cujo contraste recorda, assim, os dois caracteres principais da grande divisão social, em vez de indicar apenas um só. Qualificando de espiritual o poder teórico, faz-se assaz sentir que o outro é puramente material. Por este modo fica indiretamente assinalada a melhor comparação social que [pág. 256] esses dois poderes comportam, a qual consiste em considerá-los como disciplinando, um as vontades, e o outro os atos. Reciprocamente, qualificar de temporal o poder prático é recordar assaz a eternidade que caracteriza o poder teórico. Isto posto, podemos definir suficientemente seus domínios respectivos: de um lado o presente, do outro o passado e o futuro; um institui especialmente a solidariedade, o outro a continuidade; a um pertence sobretudo a vida objetiva, ao outro a vida subjetiva. Ora, estes dois atributos essenciais, simultaneamente indicados pela própria discordância dos nomes usados, concorrem para lembrar também a última oposição entre os dois poderes humanos, quanto à sua extensão respectiva. De fato, a potência teórica, já como espiritual, já como eterna, comporta espontaneamente uma inteira universalidade, ao passo que a autoridade prática, por ser material e temporal, permanece necessariamente local. Deste contraste final resulta a separação das duas, logo que ele se desenvolve assaz.
A MULHER — Meus antigos hábitos católicos inclinam-me, meu pai, a condensar todas as atribuições essenciais do poder espiritual na direção sistemática da educação universal, onde sua competência exclusiva é incontestável.
O SACERDOTE — Tal é, com efeito, minha filha, o ofício fundamental do sacerdócio, que, quando cumpre dignamente este principal dever, adquire necessariamente uma grande influência sobre o conjunto da vida humana. Suas outras funções sociais constituem apenas a continuação natural ou o complemento indispensável deste destino característico. A predica torna-se em primeiro lugar um prolongamento necessário desse ofício fundamental, a fim de recordar convenientemente os princípios da harmonia universal, que a atividade especial nos arrasta amiúde a menosprezar. É também em virtude daquela base que o poder espiritual adquire sua aptidão para consagrar as funções e os órgãos, em nome de uma doutrina unanimemente considerada como devendo regular sempre a existência humana. Sobre o mesmo fundamento assenta a influência consultiva do sacerdócio acerca de todos os atos importantes da vida real, privada ou pública, em que cada qual sente amiúde a necessidade de recorrer livremente aos conselhos esclarecidos e benévolos dos sábios que dirigiram sua iniciação sistemática. Enfim, a educação permite que o sacerdócio se torne, por um comum assentimento, o regulador normal dos conflitos práticos, por causa da igual confiança que naturalmente inspira aos superiores e inferiores.
A MULHER — Sou assim levada, meu pai, a perguntar-vos em que é que consiste, no regime positivo, essa função preponderante do poder religioso. Sinto já que a educação deve sobretudo dispor a viver para outrem, a fim de reviver em outrem por outrem, um ser espontaneamente inclinado a viver para si e em si. Esta grande transformação exige o concurso íntimo da mulher e do sacerdote, agindo convenientemente sobre o coração e o espírito. Mas necessito conceber com mais precisão seus ofícios respectivos.
O SACERDOTE — Para isto, minha filha, considerai em primeiro lugar a educação propriamente dita como tendo seu termo natural na idade da emancipação, em que cada qual, depois de ter recebido o terceiro sacramento social, torna-se, enfim, um servidor direto da Humanidade, que até então teve de conservá-lo sob tutela. Decomponde em seguida esta preparação de vinte e um anos em duas partes essenciais, uma espontânea, outra sistemática, das quais a segunda dura duas vezes menos que a primeira. Distinguireis, assim, os domínios sucessivos do sexo afetivo e do poder teórico no conjunto da iniciação humana, começada pelo coração e completada pelo espírito, posto que ambos aí colaborem sempre.
A primeira fase, que se estende até a puberdade, deve ser dividida em duas outras de igual duração, separadas pela dentição normal. Até este termo é só a mãe que dirige uma [pág. 257] educação inteiramente espontânea, ao mesmo tempo física, intelectual e moral. Posto que o desenvolvimento corporal deva aqui prevalecer, o coração não tarda em tomar uma parte decisiva, que se fará sentir durante toda a existência. O surto das afeições domésticas nesta fase leva já a criança ao primeiro esboço do culto positivo, pela adoração de sua mãe, que lhe representa necessariamente a humanidade, cuja preponderância distinta se lhe torna, contudo, apreciável pela instituição da linguagem. Ao mesmo tempo, o espírito colhe empiricamente noções de todo gênero, que hão de fornecer em seguida os materiais da verdadeira sistematização. Se estes exercícios naturais dos sentidos e dos músculos forem suficientemente utilizados, sem que se lhes altere nunca a espontaneidade, a vida especulativa e a vida ativa ficarão auspiciosamente esboçadas, subordinando-se sempre à vida afetiva. Mas a mãe é a única que pode combinar dignamente estes três aspectos. Ela incitará a criança, sobretudo patrícia, a executar habitualmente algumas operações materiais, a fim de que aprecie melhor a dificuldade de levar qualquer trabalho até o seu destino usual, e para que simpatize mais com as classes correspondentes. Esses exercícios tornarão o espírito mais preciso e mais nítido, e o coração mais terno e mais humilde.
Desde a dentição até a puberdade, a educação doméstica começa a sistematizar-se pela introdução gradual de uma série de estudos regulares. Contudo, continua sempre dirigida pela mãe, que facilmente poderá guiar trabalhos puramente estéticos, quando ela própria tiver convenientemente recebido a educação universal. Até então, deve ter-se vedado cuidadosamente à criança todo estudo propriamente dito, ainda mesmo de leitura ou de escrita, salvo as aquisições verdadeiramente espontâneas. Mas agora nasce o hábito do trabalho intelectual, pelo desenvolvimento regulado das faculdades de expressão, cuja cultura convém eminentemente a esta segunda infância. Semelhante estudo, essencialmente isento de preceitos quaisquer, consiste apenas em exercícios estéticos, em que as leituras poéticas são criteriosamente combinadas com o canto e o desenho. 61 Ao passo que nesta fase o surto moral continua espontaneamente, o culto se desenvolve em breve, à medida que a criança adquire novos meios para exprimir melhor suas afeições. Com efeito, ela deve resumir o conjunto de seus exercícios por um canto e um retrato consagrados à sua mãe.62 Ao mesmo tempo, ela adquire sentimento mais completo da Humanidade, familiarizando-se com as principais obras-primas de todas as artes, contanto que nenhuma mistura de produções medíocres altere a um tempo seu gosto e sua moralidade.
61 "Se bem que tal elaboração deva conservar-se essencialmente espontânea, a solicitude materna já prepara aí a disciplina normal, instituindo exercícios habituais, poéticos, fônicos e plásticos, mesmo antes da leitura e da escrita." (Política Positiva, tomo IV, p. 262.)
62 "Uma prece, um canto, um desenho, em honra da mãe, caracterizarão, pelo seu aperfeiçoamento crescente, a aptidão gradual para formular as emoções reais, sob a assistência tirada do tesouro estético da Humanidade." (Ibid., p. 263.)
A MULHER — Estas duas idades da educação doméstica só me suscitam, meu pai, dificuldades sérias quanto à religião. Posto que então se possa, pelo coração, dispor muito a criança para a religião, não se pode tentar lhe ensinar coisa alguma dogmaticamente, por lhe faltarem as bases científicas, reservadas à sua última preparação. Entretanto, não é possível evitar que ela se ocupe com este assunto e indague a respeito dele.
O SACERDOTE — Lembrai-vos, minha filha, de que cada evolução individual deverá reproduzir espontaneamente todas as fases essenciais da iniciação coletiva. Concebereis, assim, que é mister, a este respeito, deixar a criança seguir livremente as leis gerais de nosso surto intelectual. Ela será naturalmente fetichista até a dentição e depois [pág. 258] politeísta até a puberdade.63 Estes dois estados filosóficos dispô-la-ão, como a espécie, a melhor desenvolver primeiro o espírito de observação, em seguida as faculdades estéticas.
63 Corrigir isto de acordo com o seguinte trecho da Política Positiva (tomo IV, p. 263.): "Meu discurso preliminar assinala para a segunda idade* uma síntese politéica, naturalmente oriunda da observação abstrata e plenamente conforme à cultura estética. Cumpre aqui restringir esta modificação aos três primeiros séculos do estado normal, cuja filiação histórica deve ficar, então, universalmente sentida. Quando a fusão da fetichidade na positividade determinar a inteira eliminação do teologismo,** a filosofia da primeira idade*** subsistirá durante a segunda, para incorporar-se, sob a terceira,**** ao estado final da razão humana. A cultura estética se tornará conciliável com este aperfeiçoamento da iniciação individual, desde logo dispensada de reproduzir servilmente a evolução coletiva. Sob o ascendente da língua universal, o surto da poesia fetíchica, em virtude de uma plena instituição dos meios subjetivos, fará surgir obras-primas mais bem adaptadas que as antigas ao conjunto do estado normal".
* Dos sete aos catorze anos. (M. L.)
** V. a introdução da Síntese e o Complemento do Sr. Teixeira Mendes. (M. L.)
*** Do nascimento aos sete anos. (M. L.)
**** Dos catorze aos vinte e um. (M. L.)
Quanto às perguntas que ela poderá fazer a seus pais, se descobrir que estes pensam de modo diverso dela, o caráter profundamente relativo do positivismo lhes permitirá sempre responder sem hipocrisia. Bastará que declarem lealmente à criança que as opiniões atuais dela são as que convêm à sua idade, mas prevenindo-a de que em breve hão de mudar, segundo a lei a que eles próprios obedeceram outrora. Fazendo-lhe notar que ela já passou espontaneamente do fetichismo para o politeísmo, ela acreditará sem custo em novas transformações, que aliás não devem ser apressadas artificialmente. Seu espírito ficará, assim, afastado do absoluto, ao passo que seu coração simpatizará mais com as populações que representam esses estados preliminares.
A MULHER — Este esclarecimento permite-me, meu pai, passar a apreciar a educação sistemática. Conquanto ela deva ser sempre dirigida pelo sacerdócio, o ascendente contínuo que o positivismo concede ao coração sobre o espírito anuncia-me já que ela não há de subtrair nunca o adolescente às suas relações de família. A reação diária destas relações torna-se até mais necessária para ele quando suas preocupações teóricas vão tender a secar-lhe o coração e a enchê-lo de orgulho. Conheço a profunda aversão que vos inspiram os nossos claustros escolásticos, em que a corrupção se desenvolve ainda mais que a estupidez.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, é sob a constante superintendência de sua mãe que o adolescente, após ter recebido o sacramento da iniciação, vai, cada semana, à escola anexa ao templo da Humanidade ouvir do sacerdote uma ou duas lições de dogma. O fruto principal deste ensino exterior depende, aliás, do trabalho interior correspondente; porquanto a verdadeira influência didática nos dispõe a melhor meditar, em vez de dispensar-nos disso.
O plano geral deste estudo sistemático do dogma positivo é naturalmente indicado pela hierarquia enciclopédica que caracteriza a ordem universal. Aos seus sete graus fundamentais correspondem outros tantos anos de noviciado teórico, reservando-se a quarta parte de cada ano para os exames e o descanso. O número das lições anuais fica, assim, reduzido a quarenta, com uma única por semana, o que basta para o estudo filosófico de cada ciência. Somente, a extensão e a dificuldade especiais da iniciação matemática, cuja importância teórica há de sempre prevalecer, exigem duas aulas hebdomadárias durante os dois primeiros anos, em que a aprendizagem prática ocupa menos. É assim que, desde a geometria até a moral, cada adolescente deve efetuar sistematicamente, [pág. 259] em sete anos, a ascensão objetiva que tantos séculos exigiu ao surto espontâneo da Humanidade. 64
64 Lembraremos, porém, que, como Augusto Comte depois o estabeleceu, o estudo do dogma deve começar pela filosofia primeira, cuja exposição preencherá as três primeiras semanas, sendo feita em comum aos dois sexos reunidos no templo, perante todo o presbitério, e na presença dos principais magistrados e das famílias catecúmenas. V. Política Positiva, tomo IV, pp. 267-268, e o Complemento do Sr. Teixeira Mendes.
Durante esta elaboração teórica, um monoteísmo gradualmente simplificado oferece-lhe, como à espécie, uma transição geral para o positivismo final. 65 A uniformidade normal do sacerdócio ocidental tornará tais estudos plenamente conciliáveis com as preciosas viagens de nossos proletários. Enquanto se realizam esses estudos, o prolongamento natural da cultura estética secundará a influência materna para prevenir ou reparar a degeneração moral deles. Limitadas no princípio às nossas línguas vivas, as leituras poéticas dos ocidentais abraçarão então as fontes greco-romanas de nosso surto intelectual e social, mas sempre sem nenhum mestre especial.
65 V. atrás a nota 63 desta Conferência.
Depois de ter desenvolvido seu culto íntimo, e sentido já o culto doméstico, o futuro cidadão começa diretamente a adoração sistemática do verdadeiro Grande Ser, cujos principais benefícios ele pode então apreciar dignamente. O conjunto destas preparações conduz o jovem positivista a merecer o sacramento da admissão, quando seu espírito pode, enfim, servir à Família, à Pátria e à Humanidade, sem que o coração cesse de amá-las.
A MULHER — Durante esta última iniciação, a superintendência materna, parece-me, meu pai, que há de estar gravemente preocupada dos desvios a que as paixões expõem então o adolescente. Os discursos dos médicos por vezes me têm assustado a este respeito, fazendo-me temer que as leis naturais de nosso desenvolvimento corpóreo não tornem esses vícios ordinariamente inevitáveis. Necessito ser especialmente tranqüilizada acerca de tal perigo, em que a perturbação moral pode, aliás, comprometer a evolução teórica.
O SACERDOTE — Essas declamações doutorais vos afetariam muito menos se sentísseis suficientemente a incompetência de seus autores. Apesar da pretensão de estudarem o homem, os médicos, teóricos ou práticos, estão longe de poder conhecer nossa natureza, sobretudo entre os modernos, porquanto eles se limitam essencialmente ao que temos de comum com os outros animais; de modo que mereceriam antes o título de veterinários, se a cultura empírica não compensasse um pouco, nos melhores dentre eles, os vícios da instrução teórica. Pois que o homem é o mais indivisível dos seres vivos, quem não estudar nele a alma e o. corpo simultaneamente não formará a respeito dele senão noções falsas ou superficiais.
O materialismo acadêmico não pode, pois, prevalecer contra experiências numerosas e decisivas, plenamente explicadas pela verdadeira teoria da natureza humana. Essa pretendida fatalidade sexual foi comumente superada, durante o conjunto da Idade Média, por todos aqueles que sofreram assaz a disciplina católica e cavalheiresca. Mesmo no meio da anarquia moderna, muitos exemplos individuais confirmam, ainda, a possibilidade de se conservar até o casamento uma verdadeira pureza. Uma existência laboriosa e sobretudo o surto contínuo das afeições domésticas bastam de ordinário para prevenir tais perigos, que só se tornam realmente insuperáveis em alguns casos muito excepcionais, abusivamente erigidos em tipos por doutores alheios às lutas morais. Nossos jovens adeptos serão habituados, desde a infância, a considerar o triunfo da sociabilidade sobre a personalidade como o principal destino do homem. Preparar-se-ão a vencer [pág. 260] um dia o instinto sexual lutando desde cedo contra o instinto nutritivo, que, aliás, se liga naturalmente àquele pela contigüidade dos órgãos respectivos. Sabeis, enfim, que uma ternura profunda constitui sempre o melhor preservativo contra a libertinagem. Assim, a mãe acabará de garantir seu filho contra os vícios que temeis, dispondo-o a colocar dignamente as afeições pessoais que deverão fixar em seguida o seu destino doméstico, em vez de esperar que elas surjam bruscamente de encontros fortuitos.
A MULHER — Esta preciosa explicação não me deixa a desejar, meu pai, quanto ao conjunto da educação positiva, outro esclarecimento essencial senão acerca do que se refere especialmente ao meu sexo. Sinto já que, para que as mães possam dirigir a iniciação doméstica, elas próprias devem ter participado dignamente da instrução enciclopédica, de que ninguém deve ser excluído, salvo raras exceções individuais. Sem esta plena universalidade, a fé positiva não poderia obter o ascendente sistemático exigido pelo seu destino moral. Ademais, a mãe não poderia conservar assaz a superintendência moral da educação humana se sua própria ignorância a expusesse aos desdéns mal dissimulados de um filho amiúde cheio de orgulho teórico. Duvido, contudo, que as mulheres devam seguir os mesmos estudos que os homens, e sob os mesmos mestres, posto que com lições separadas.
O SACERDOTE — O grande Molière vos responde de antemão, minha filha, prescrevendo ao vosso sexo clarezas a respeito de tudo; porquanto nossa instrução enciclopédica não tem, com efeito, outro fim. Ela é inteiramente desprendida do caráter especial que com razão vos repugna nos estudos atuais, tão pouco convenientes, de ordinário, aos homens como às mulheres. Desse fundo comum, cada prático ou teórico deve depois tirar espontaneamente, por si mesmo, os desenvolvimentos peculiares ao seu destino, sem ter habitualmente necessidade de nenhum ensino particular, a menos que tenha recebido mal a iniciação universal.
Nosso plano geral do noviciado sistemático não comporta realmente, no tocante ao vosso sexo, outra redução a não ser a da duplicação hebdomadária que distingue os dois primeiros anos. Dispensadas da vida ativa, as mulheres devem limitar-se, em matemática, a um estudo antes lógico do que científico, para o qual basta uma lição por semana, como em todo o resto do curso setenário. Esta simplificação apenas exige mais esforços filosóficos por parte do professor.
Quanto à diversidade dos funcionários, ela tenderia a desacreditar igualmente os mestres e os alunos. Seria, aliás, contrária à natureza profundamente sintética que deve caracterizar o sacerdócio positivo. A fim de excluir melhor as tendências dispersivas, importa que cada sacerdote ensine sucessivamente os sete graus enciclopédicos. Daí deve resultar, ainda, a preciosa vantagem social de desenvolver, durante esta longa iniciação, relações contínuas com os mesmos alunos, que serão, assim, devedores de toda a sua instrução teórica ao mesmo sacerdote. Tal permanência facilitará muito a ação ulterior de nosso sacerdócio sobre o conjunto da vida real.
Ora, motivos semelhantes exigem também que os dois sexos bebam nas mesmas fontes sua iniciação sistemática. Se o Sumo Pontífice da Humanidade não mudar demasiado as residências sacerdotais, todos os conflitos domésticos serão mais facilmente apaziguados por efeito dessa subordinação pessoal dos diversos membros da família a mestres idênticos. Sacerdotes que só falassem a um dos sexos se tornariam socialmente insuficientes, além de que o seriam primeiro sob o aspecto intelectual.
A MULHER — Agora, meu pai, concebo assaz a influência social que o sacerdócio positivo há de naturalmente ganhar com o digno cumprimento do seu ofício fundamental. No entanto, não sei se esta única base poderá proporcionar-lhe uma autoridade [pág. 261] suficiente. Peço-vos, pois, que caracterizeis diretamente os diversos meios gerais de que o sacerdócio dispõe para fazer prevalecer sempre, tanto quanto possível, a harmonia universal.
O SACERDOTE — Todos esses meios devem resultar, minha filha, do conjunto da educação. A fim de apreciá-los melhor, cumpre considerar que o noviciado positivo se termina por um ano inteiramente consagrado à moral. Esta instrução final será sempre dividida em duas partes iguais, uma teórica e outra prática. Na primeira, todas as leis essenciais de nossa natureza ficarão solidamente fundadas sobre o conjunto das noções relativas ao mundo, à vida e à sociedade. Esta base permitirá estabelecer de modo definitivo verdadeiras demonstrações para as regras de conduta peculiares a cada caso, pessoal, doméstico ou cívico. Aí serão especificados todos os deveres de cada um dos quatro poderes necessários à providência humana. Estas determinações finais, que resumem a educação positiva, comportam uma grande eficácia, em virtude da disposição moral dos iniciados, até então preservados dos desvios inerentes à vida ativa.
O conjunto destas regras práticas oferece a cada um o duplo destino de dirigir sua própria conduta e de julgar a alheia. Esta segunda aplicação acha-se mais garantida do que a primeira contra as paixões perturbadoras, que raras vezes nos impedem de apreciar os erros dos outros, por maior que seja a cegueira que elas nos inspirem em relação aos nossos. Ninguém está menos disposto do que o egoísta a tolerar o egoísmo, que por toda parte lhe suscita concorrentes intratáveis.
É mister, assim, distinguir dois modos gerais na disciplina espiritual, um direto, outro indireto. O sacerdócio esforça-se principalmente por modificar o culpado, agindo primeiro sobre seu coração, depois sobre seu espírito. Este modo é ao mesmo tempo o mais puro e o mais eficaz, embora o menos aparente. Será sempre o único plenamente conforme com a natureza do poder espiritual, que deve disciplinar constantemente as vontades pela persuasão e pela convicção, sem nenhuma influência coercitiva. Mas seu emprego prolongado com prudência é muitas vezes insuficiente. Então o sacerdote, não podendo retificar as tendências interiores, procede indiretamente contra elas, invocando a opinião exterior.
Sem converter o culpado, ele o contém pelo juízo dos outros. Nunca se poderá contestar a plena legitimidade deste meio indireto, que assenta sempre sobre uma simples apreciação de cada conduta. Ninguém poderá impedir tal juízo, para o qual cada um concorre em relação aos outros, e que repousa sobre uma doutrina livremente aceita por todos. Entretanto, o culpado que não reconhece sua falta, ou cuja vontade não mudou, sofre assim a pressão de uma força verdadeiramente coercitiva. Não pode reclamar, porém, contra ela, porque tal força conserva-se puramente moral. Se os outros se abstivessem de julgar, seriam eles então os oprimidos, e sem o terem merecido por forma alguma. Todavia, apesar da evidente legitimidade deste modo indireto, só se deverá recorrer a ele depois de ter esgotado os meios diretos.
Quando se torna indispensável, ele comporta sucessivamente três graus gerais. O sacerdócio emprega primeiro a simples admoestação doméstica, perante os parentes e amigos convocados especialmente; depois, a censura pública, proclamada no templo da Humanidade; enfim, a excomunhão social, temporária ou perpétua. Sem exorbitar de sua justa autoridade, o poder espiritual pode chegar, com efeito, até a pronunciar, em nome do Grande Ser, a indignidade radical de um falso servidor, incapaz, portanto, de partilhar dos deveres e dos benefícios da associação humana. Se, porém, o sacerdócio abusasse de semelhante atribuição, quer para satisfazer injustas animosidades, quer mesmo por um zelo obcecado e importuno, logo receberia o castigo. Com efeito, como toda a [pág. 262] eficácia deste modo assenta na livre sanção do público, a neutralidade deste faria malograr o golpe, que tenderia, então, a desacreditar seus autores. Quando a opinião geral auxilia suficientemente a reprovação sacerdotal, esta disciplina espiritual comporta uma eficácia de que o passado não pode oferecer nenhuma medida, porque tal concurso ainda não pode ser instituído plenamente, por falta de educação positiva.
Então o culpado, por mais rico ou poderoso que seja, ver-se-á algumas vezes, sem experimentar nenhuma perda material, gradualmente abandonado pelos seus subordinados, pelos seus fâmulos, e até pelos seus parentes mais próximos. Apesar de sua fortuna, ele poderá, nos casos extremos, ficar reduzido a prover diretamente à sua própria subsistência, porque ninguém quererá servi-lo. Se bem que tenha a liberdade de expatriar-se, ele só escapará à reprovação do sacerdócio universal refugiando-se nas populações que ainda forem alheias à fé positiva, que há de estender-se finalmente a todo o planeta humano. Este desenvolvimento extremo da disciplina religiosa deve felizmente permanecer sempre excepcional. Porém, sua apreciação distinta é agora indispensável para nos indicar melhor a eficácia de semelhante regime.
A MULHER — Por maior que seja esse poder moral, eu dificilmente conceberia, meu pai, que ele sempre dispensasse todo recurso à compressão material, quer sobre os bens, quer sobre as pessoas.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, a legislação propriamente dita ficará sempre necessária, para suprir a insuficiência da simples moral quanto às necessidades sociais mais urgentes. A consciência e a opinião seriam amiúde impotentes contra as infrações diárias, se a força temporal não aplicasse repressões físicas aos casos mais grosseiros. Além destes desvios freqüentes, porém leves, devidos sobretudo à inércia dos bons instintos, a mesma garantia convém ainda mais às graves aberrações que resultam diretamente do predomínio dos maus pendores. Existem, com efeito, em nossa espécie, como nas outras, individualidades radicalmente viciosas, que não comportam ou não merecem nenhuma verdadeira correção. Relativamente a estas organizações excepcionais, a defesa social não deixará nunca de ser levada até a destruição solene de cada órgão vicioso, quando a indignidade for suficientemente verificada por atos decisivos. Só uma falsa filantropia pode conduzir a prodigalizar aos malvados uma comiseração e uma solicitude que seriam mais bem empregadas em favor de tantas vítimas honestas de nossas imperfeições sociais. Mas, sem que a morte jurídica e, com mais forte razão, a confiscação total ou parcial possam nunca cessar inteiramente, seu emprego há de tornar-se cada vez menos freqüente à medida que a Humanidade se desenvolver. O surto contínuo do sentimento, da inteligência e da atividade tende cada vez mais a fazer prevalecer a disciplina espiritual sobre a repressão temporal, embora esta se conserve sempre indispensável.
A MULHER — Esta vista geral do regime humano parece-me, meu pai, não tomar em consideração os casos em que a prevaricação moral provier do próprio sacerdócio.
O SACERDOTE — Então, minha filha, a disciplina espiritual segue uma marcha semelhante, se bem que com menos regularidade. Porquanto, a moral universal demonstra os deveres do sacerdócio tanto como os de qualquer classe, e até os faz sobressair mais, visto sua importância preponderante. A censura pública tende, aliás, a dirigir-se de preferência contra esses juizes universais, secretamente odiados pelos patrícios, friamente respeitados pelos proletários, e que de ordinário só despertam profundas simpatias entre as mulheres. Enfim, a natureza sempre discutível da fé positiva não lhe permite suscitar prestígios capazes de impedir uma crítica que se tenha tornado verdadeiramente indispensável. [pág. 263]
Por maior que seja a veneração que habitualmente circunde o sacerdócio da Humanidade, ela não poderá resultar nunca senão do suficiente cumprimento de um ofício bem definido. As condições intelectuais e morais que o poder espiritual impõe a todos em nome da fé comum podem ser, com a mesma razão, voltadas contra ele, quando as infringir.
Se, segundo a hipótese mais freqüente, a prevaricação for apenas parcial, a disciplina interior do sacerdócio bastará para acudir ao mal. Mas, em caso de negligência, a reparação pode sempre ser livremente provocada por um crente qualquer. A plenitude e a precisão que caracterizam a fé positiva permitem que qualquer um exerça espontaneamente, sob sua responsabilidade própria, esse sacerdócio irregular, que se torna eficaz quando a opinião o sanciona. Enfim, se a corrupção se tornasse geral entre os nossos padres, um novo clero não tardaria em surgir de acordo com os votos públicos, preenchendo melhor as condições impostas por uma doutrina inalterável, sempre superior aos seus órgãos quaisquer.
A MULHER — Sou assim levada, meu pai, a pedir-vos que completeis esta apreciação geral indicando a constituição peculiar ao sacerdócio positivo.
O SACERDOTE — Facilmente Sentireis, minha filha, que o destino fundamental de nosso sacerdócio exige, como primeira condição, uma renúncia completa ao domínio temporal, e mesmo à simples riqueza. É o compromisso inicial que todo aspirante ao sacerdócio deve contrair solenemente ao receber, aos vinte e oito anos, o sacramento de destinação. Nossos padres não herdam nem de suas famílias, quer para se preservarem dos desvios temporais, quer para deixarem os capitais aos que podem utilizá-los. A classe contemplativa deve ser sempre coletivamente sustentada pela classe ativa; primeiro, mediante os livres subsídios dos crentes, depois por intermédio do tesouro público, quando a fé torna-se unânime. Ela não deve, pois, possuir coisa alguma em particular, nem terras, nem casas, nem mesmo rendimentos quaisquer: salvo seu orçamento anual, sempre fixado pelo poder temporal. As vistas gerais e os sentimentos generosos que devem sempre distinguir o sacerdócio são profundamente incompatíveis com as idéias de detalhe e com as disposições orgulhosas inerentes a todo domínio prático. Para que alguém se limite a aconselhar, é necessário que não possa nunca mandar, nem pela riqueza: de outro modo nossa miserável natureza fica disposta a substituir amiúde a força às demonstrações. Esta condição sacerdotal foi sentida até o mais sublime exagero pelo admirável santo que tentou em vão, no século XIII, regenerar o catolicismo exausto.66 Prescrevendo, porém, aos seus discípulos uma pobreza absoluta, que eles em breve iludiram, esqueceu ele que os distraía assim do seu ofício pelos cuidados diários de sua existência material.
66 Refere-se a São Francisco de Assis (1182-1226).
É oportuno observar aqui que a lei religiosa que obriga o sacerdote positivista a desistir de toda herança só será aplicável rigorosamente no estado normal, ou quando o subsídio positivista garantir plenamente a existência material do novo clero. V. sobre esse assunto o trecho da carta de Augusto Comte ao Dr. Foley, reproduzido por nós em nossa Décima Circular Anual (1890), segundo a cópia que nos foi fornecida pelo Sr. R. Congreve. V. também a nota correspondente a esta em nossa edição francesa deste Catecismo.
A fim de caracterizar melhor a proporção conveniente, creio dever indicar-vos os ordenados anuais que competem aos diversos graus do sacerdócio, adaptando-os à taxa atual das despesas usuais na população francesa, média, a este respeito, entre os diferentes povos ocidentais. Esta indicação sumária vos mostrará, por outro lado, a organização interior do clero positivo, já esboçada na explicação do culto.67
67 Os dados estatísticos e numéricos apresentados adiante, e em outros lugares desta e de outras obras de Augusto Comte, têm apenas por fim, como ele próprio o declarou, "tornar as questões assaz precisas, embora esses dados não possam ainda ser exatamente determinados". (Política Positiva, tomo IV, p. 253.) [pág. 264]
Nosso sacerdócio compõe-se, em geral, de três ordens sucessivas: os aspirantes, admitidos aos vinte e oito anos; os vigários ou suplentes, aos trinta e cinco; e os sacerdotes propriamente ditos, aos quarenta e dois.
Conquanto os primeiros, cujo número é naturalmente ilimitado, sejam já considerados como dotados de uma verdadeira vocação sacerdotal, eles não pertencem ainda ao poder espiritual, do qual não exercem nenhuma função. Por isso sua livre desistência de toda herança é puramente provisória, e do mesmo modo seu ordenado, que fixamos em três mil francos. Sem residência sacerdotal, eles são contudo regularmente vigiados em seus trabalhos e costumes.
Os vigários pertencem irrevogavelmente ao sacerdócio, posto que não exerçam ainda senão as funções de ensino e predica, salvo delegação especial em caso urgente. Além da renúncia definitiva aos bens temporais, sua admissão exige um digno casamento. Eles residem com as suas famílias, porém em separado dos sacerdotes, no presbitério filosófico adjacente a cada templo da Humanidade, paralelamente à escola positiva. A classe que dirige em todas as outras a reação do coração sobre o espírito deve fornecer por sua vez o melhor tipo masculino do surto moral, mediante um pleno desenvolvimento das afeições domésticas, sem as quais o amor universal se torna ilusório. Embora o casamento fique facultativo para os cidadãos ordinários, ele torna-se obrigatório para os padres, cujo ofício não pode ser dignamente preenchido sem a influência contínua, aliás objetiva ou subjetiva, da mulher sobre o homem. A fim de melhor experimentá-los a este respeito, a religião positiva impõe já esta condição aos simples vigários. Este segundo grau, que conduz sempre ao terceiro, salvo malogro excepcional, proporciona um ordenado anual de seis mil francos.
Durante os sete anos que o separam do sacerdócio completo, cada vigário professou todos os graus enciclopédicos e exercitou suficientemente seus talentos de prédica. Torna-se, então um verdadeiro sacerdote, e pode preencher, nas famílias ou nas cidades, o tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador, que socialmente caracteriza o clero positivo. Neste estado definitivo, seu ordenado eleva-se a doze mil francos, além das indenizações pelas suas viagens de inspeção diocesana.
Cada presbitério filosófico compõe-se de sete sacerdotes e três vigários, cujas residências podem sempre mudar, se bem que estas remoções nunca devam ter lugar senão por motivos verdadeiramente graves. O número destes colégios sacerdotais é de dois mil em todo o Ocidente: o que faz corresponder um funcionário espiritual para seis mil habitantes; de onde cem mil para a terra inteira. Por mais fraca que pareça semelhante proporção, ela bastará realmente para todos os serviços, em virtude da natureza de uma doutrina que raramente exige explicações sistemáticas, quase sempre substituídas pela intervenção espontânea das mulheres e dos proletários. Importa restringir, tanto quanto possível, a corporação sacerdotal, quer a fim de evitar despesas supérfluas, quer, sobretudo, para que o clero seja mais bem composto.
A MULHER — Em semelhante indicação não vejo, meu pai, a cabeça que deve reger esse vasto corpo.
O SACERDOTE — Posto que sua doutrina e seu ofício tendam, minha filha, a dirigi-lo espontaneamente, sob a assistência da opinião pública, ele exige, com efeito, um chefe geral. Este poder supremo pertence ao Grande Sacerdote da Humanidade, que naturalmente há de residir na metrópole parisiense do Ocidente regenerado. 68 Seu ordenado pessoal é o quíntuplo do ordenado dos padres ordinários, além das despesas materiais que há de exigir seu imenso serviço.
68 Não esquecer o que já ficou dito sobre a presidência provisória de Paris, como capital religiosa. [pág. 265]
Ele governa por si todo o clero positivo, instituindo, removendo, e mesmo demitindo sob sua própria responsabilidade moral, os membros quaisquer do sacerdócio. Sua principal solicitude consiste em manter a integridade do caráter sacerdotal contra as diversas seduções temporais. Todo padre servil ou sedicioso, que pretender o domínio político lisonjeando o patriciado ou o proletariado, será finalmente excluído do sacerdócio, a menos que não passe a figurar excepcionalmente entre os pensionistas, se tiver bastante mérito teórico.
Para o conjunto de suas atribuições, o chefe supremo do positivismo ocidental é assistido por quatro superiores nacionais,69 cujo ordenado é metade do seu. Regem eles respectivamente, sob sua direção, as quatro classes de igrejas, italianas, espanholas, britânicas e germânicas. Quanto à França, o Sumo Pontífice serve aí de superior nacional, se bem que ele possa provir de qualquer das cinco populações positivistas. Sua substituição normal efetua-se, como na ordem temporal, designando ele próprio seu sucessor; mas neste caso sua escolha deverá ser sancionada pelo assentimento unânime dos quatro chefes parciais, e, mesmo em caso de divergência, segundo o voto dos dois mil decanos presbiteriais.
69 Depois Augusto Comte estabeleceu sete superiores nacionais, em vez de quatro, dos quais três são destinados às expansões coloniais do Ocidente. "Mas este número ainda aumentará à medida que a religião positiva se for aproximando de sua universalidade normal. Este eminente sacerdócio oferecerá, pois, quarenta e nove membros quando a raça humana estiver completamente regenerada. Além de seu ofício habitual, eles deverão, após a morte ou o retiro do pontífice, controlar ou retificar a escolha que ele tiver livremente feito de seu sucessor, a respeito do qual consultarão, se for necessário, o conjunto dos decanos subordinados a cada um deles." (Política Positiva, tomo IV, p. 256.) [pág. 266]
DÉCIMA CONFERÊNCIA
REGIME PRIVADO
A MULHER — Ao terminarmos nossa última conversação, não vos perguntei, meu pai, qual seria o objeto próprio de cada uma das outras conferências sobre o regime. Eu sentia assaz que as duas metades do domínio prático de nossa religião haviam de oferecer as mesmas divisões essenciais, sempre tiradas da existência que elas devem respectivamente idealizar e guiar. O estudo do culto indicava-me, pois, o plano que convém ao do regime, primeiro privado, depois público. Em relação ao que hoje nos ocupa, também concebo que ides aí distinguir semelhantemente a existência pessoal e da vida doméstica.
O SACERDOTE — Quanto à primeira, que se torna a base normal de toda a conduta humana, a regeneração positiva consiste sobretudo, minha filha, em instituí-la socialmente. Esta transformação radical, sempre vedada ao teologismo, sobretudo monotéico, mas constantemente pressentida e reclamada cada vez mais pelo instinto público, não resulta agora de nenhum exagero sentimental. Ela assenta unicamente sobre uma exata apreciação da realidade, que, na ordem humana, mais sintética que qualquer outra, diz respeito ao conjunto primeiro do que às partes.
Posto que cada função humana se exerça necessariamente por um órgão individual, sua verdadeira natureza é sempre social; pois que a participação pessoal subordina-se aí constantemente ao concurso indecomponível dos contemporâneos e dos precedentes. Tudo em nós pertence, portanto, à Humanidade, porque tudo nos vem dela: vida, fortuna, talento, instrução, ternura, energia, etc. Um poeta, que nunca foi suspeito de tendência subversiva, fez proclamar por Tito esta sentença decisiva, digna na verdade de semelhante órgão:
Sò che tutto è di tutti; e che nè pure
Di nascer meritò chi d'esser nato
Crede solo per se.70
70 Metastásio, Clemência de Tito (drama), ato 2.º, cena 10.ª: "Sei que tudo é de todos; e que nem sequer foi digno de nascer quem acredita que nasceu só para si".
Pressentimentos análogos poderiam ser encontrados nas mais antigas composições. Assim, o positivismo, reduzindo toda a moral humana a viver para outrem, limita-se realmente a sistematizar o instituto universal, depois de ter erguido o espírito teórico até o ponto de vista social, inacessível às sínteses teológicas ou metafísicas.
O conjunto da educação positiva, tanto intelectual como afetiva, nos tornará profundamente familiar nossa inteira dependência para com a Humanidade, de maneira a fazer-nos dignamente sentir nosso necessário destino ao seu serviço contínuo. Na idade preparatória, incapaz de uma atividade útil, cada um de nós confessa sua própria impotência [pág. 267] ante suas principais necessidades, cuja satisfação habitual reconhecemos que nos vem de alhures. Primeiro acreditamos que só devemos este auxílio à nossa família, que nos sustenta, cuida, instrui, etc. Não tardamos, porém, em distinguir uma providência mais elevada, da qual nossa mãe não é, em relação a cada um de nós, senão o ministro especial e o melhor representante. A instituição da linguagem bastaria por si só para revelar-nos essa providência. Porquanto, semelhante construção excede todo poder individual e resulta unicamente do concurso acumulado de todas as gerações humanas, apesar da diversidade dos idiomas. Por outro lado, o homem menos favorecido sente-se continuamente devedor à Humanidade de uma multidão de outros tesouros materiais, intelectuais, sociais e mesmo morais.
Quando este sentimento é assaz nítido e vivo na idade preparatória, ele pode resistir depois aos sofismas apaixonados que suscita a vida real, teórica ou prática. Nossos esforços habituais tendem então a fazer-nos desconhecer a verdadeira providência, exagerando nosso valor pessoal. Mas a reflexão pode sempre dissipar esta ilusão ingrata naqueles que foram convenientemente educados. Porquanto a estes basta notar que o próprio bom êxito de seus trabalhos quaisquer depende sobretudo da imensa cooperação que seu obcecado orgulho esquece. O homem mais hábil e de melhor atividade não pode nunca retribuir senão uma porção mínima do que recebe. Ele continua, como na sua infância, a ser alimentado, protegido, desenvolvido, etc., pela Humanidade. Somente os ministros desta mudaram de modo a não serem mais distintamente apreciáveis. Em vez de tudo receber dela por intermédio dos pais, ela transmite-lhe, então, seus benefícios por uma multidão de agentes indiretos, cuja maior parte ele nunca virá a conhecer. Viver para outrem torna-se, pois, para cada um de nós, o dever contínuo que resulta rigorosamente deste fato irrecusável: viver por outrem. Tal é, sem nenhuma exaltação simpática, o resultado necessário de uma exata apreciação da realidade, filosoficamente apanhada em seu conjunto.
A MULHER — Muito folgo, meu pai, de ver assim consagrada sistematicamente uma disposição que eu me exprobrei algumas vezes a mim própria, atribuindo-a ao exagero de meus sentimentos. Antes de ser positivista, eu costumava dizer: "Que prazeres podem exceder os da dedicação?"71 Agora saberei defender este santo princípio contra as zombarias dos egoístas, e talvez despertar-lhes emoções tais que os impossibilitem de duvidar dele.
71 Pensamento de Clotilde de Vaux, em sua novela Lucie, publicada primeiro no Nacional, a 20 e 21 de junho de 1845, e depois reproduzida pelo Mestre no 1.° volume de sua Política Positiva.
O SACERDOTE — Espontaneamente pressentistes, minha filha, o principal caráter do positivismo. Consiste ele em resumo, enfim, numa mesma fórmula, a lei do dever e a da felicidade, até então proclamadas inconciliáveis por todas as doutrinas, embora o instinto público aspirasse sempre a combiná-las. A concordância necessária de ambas resulta diretamente da existência natural das inclinações benévolas, cientificamente demonstrada no século passado pelo conjunto dos animais, em que as partes respectivas do coração e do espírito são mais bem apreciáveis.
Além de que nossa harmonia moral repousa exclusivamente sobre o altruísmo, só este pode proporcionar-nos também a maior intensidade de vida. Esses entes degradados, que hoje não aspiram senão a viver, teriam tentações de renunciar ao seu brutal egoísmo se uma só vez tivessem provado suficientemente o que vós tão bem chamais os prazeres da dedicação. Eles compreendem, então, que viver para outrem fornece o único meio de desenvolver livremente toda a existência humana, estendendo-a simultaneamente ao mais [pág. 268] vasto presente, ao mais antigo passado, e mesmo ao mais remoto futuro. Os instintos simpáticos são os únicos que comportam um surto inalterável, porque cada indivíduo é aí secundado por todos os outros, que comprimem, pelo contrário, suas tendências pessoais.
Eis aí como a felicidade coincidirá necessariamente com o dever. Sem dúvida, a bela definição da virtude, por um moralista do século XVIII, como um esforço sobre si mesmo em favor dos outros,72 não deixará nunca de ser aplicável. Nossa imperfeita natureza há de sempre precisar, de fato, de um verdadeiro esforço para subordinar à sociabilidade essa personalidade que nossas condições de existência excitam continuamente. Mas quando esse triunfo é assim obtido, ele tende espontaneamente, além da força do hábito, a consolidar-se e desenvolver-se, em virtude do encanto incomparável inerente às emoções e aos atos simpáticos.
72 Duclos, Considération sur les Moeurs de ce Siècle, capítulo IV (1751).
Sentimos, então, que a verdadeira felicidade resulta sobretudo de uma digna submissão, única base durável de uma nobre e vasta atividade. Longe de deplorar o conjunto das fatalidades que nos dominam, esforçamo-nos por corroborar a ordem correspondente, impondo-nos regras artificiais, que melhor combatam nosso egoísmo, fonte principal do infortúnio humano. Quando estas instituições são estabelecidas livremente, reconhece-se em breve, segundo o admirável preceito de Descartes,73 que elas merecem tanto respeito como as leis involuntárias, cuja eficácia moral não é tão grande.
73 Discours de la Méthode, 3.a parte: "Algumas regras de moral tiradas do método", 2.a máxima (1637).
A MULHER — Semelhante apreciação da natureza humana faz-me compreender enfim, meu pai, a possibilidade de tornar essencialmente altruístas mesmo as regras relativas à existência pessoal, sempre motivadas até aqui por uma prudência egoísta. A sabedoria antiga resumiu a moral neste preceito: Tratar os outros como se desejaria ser por eles tratado. Por mais preciosa que então fosse esta prescrição geral, limitava-se ela a regular um cálculo puramente pessoal. Este caráter encontra-se também no fundo da grande fórmula católica: Amar seu próximo como a si mesmo. Não só o egoísmo é assim sancionado em vez de ser comprimido, mas, ainda, é diretamente excitado pelo motivo em que se funda essa regra, pelo amor de Deus, sem nenhuma simpatia humana, além de que semelhante amor reduzia-se ordinariamente ao temor. Todavia, comparando este princípio ao anterior, reconhece-se nele um grande progresso. Porquanto o primeiro limitava-se aos atos, ao passo que o segundo penetra até os sentimentos que dirigem aqueles. No entanto, este aperfeiçoamento moral fica muito incompleto, enquanto o amor teológico conserva-lhe sua mácula egoísta.
Só o positivismo é ao mesmo tempo digno e verdadeiro, quando nos convida a viver para outrem. Esta fórmula definitiva da moral humana não consagra diretamente senão os pendores benévolos, fonte comum da felicidade e do dever. Porém ela sanciona implicitamente os instintos pessoais como condições necessárias de nossa existência, contanto que se subordinem aos primeiros. Sob esta única reserva, a satisfação contínua deles nos é até prescrita, a fim de bem adaptarmo-nos ao serviço real da Humanidade, à qual pertencemos inteiramente.
Compreendo assim a profunda reprovação que vos vi lançar sempre contra o suicídio, que até então só me parecera condenado pelo catolicismo. Com efeito, devemos ainda menos dispor arbitrariamente de nossa vida do que de nossa fortuna ou de nossos talentos quaisquer; pois que ela é mais preciosa à Humanidade, de quem a recebemos. Porém, pelo mesmo princípio, a religião positiva condena também, se bem que amiúde provenha de motivos respeitáveis, essa espécie de suicídio crônico, pelo menos social, [pág. 269] que o regime católico acoroçoou com demasiada freqüência. Lembro-me de que o abuso diário da disciplina corporal tinha por tal forma anulado os solitários da Tebaida, que os seus abades viram-se afinal obrigados a permitir que eles rezassem sentados, ou mesmo deitados, por não poderem ficar muito tempo de joelhos.
O SACERDOTE — Além de nobilitarmos a justa satisfação dos instintos pessoais, subordinando-os sempre ao seu destino social, notai, minha filha, que esta subordinação necessária torna-se aí a única base possível de prescrições verdadeiramente inabaláveis. Sem este princípio único, as regras mais insignificantes relativas à existência pessoal conservam-se necessariamente flutuantes, a menos de referi-las arbitrariamente aos decretos sobrenaturais, que não comportam senão uma validade temporária e parcial, doravante exausta.
Quando nossa sobriedade apenas baseia-se na prudência pessoal, fica amiúde exposta aos sofismas da gula, que se tornam mesmo irrefutáveis em relação a muitos indivíduos, capazes de suportar por muito tempo as orgias com uma verdadeira impunidade corporal. Mas a apreciação social dissipa logo toda incerteza, prescrevendo a cada um uma alimentação quase sempre menos abundante do que a que poderia ser sem perigo material para ele. Com efeito, indo além da medida muito moderada que exige o nosso serviço da Família, da Pátria e da Humanidade, consumimos assim provisões que a eqüidade moral destinava a outros. Ao mesmo tempo, a reação cerebral de semelhante regime corporal tende necessariamente a degradar nossa fraca inteligência, científica, estética ou técnica. As imagens se tornam habitualmente mais confusas, a indução e a dedução mais difíceis e menos rápidas: tudo fica atenuado, inclusive os talentos de expressão.
Mas a reação moral da mínima intemperança diária é que constitui seu principal perigo, por ser menos evitável e mais corruptora. Porquanto, estendendo assim o mais pessoal de todos os atos além do que exige nossa verdadeira conservação, nós cultivamos, tanto quanto possível, o egoísmo à custa do altruísmo; pois que vencemos até nossa simpatia involuntária por aqueles que então carecem de alimentos. Ademais, a íntima vizinhança cerebral dos diversos instintos egoístas propaga em breve a todos os outros a forte excitação, mesmo passageira, de qualquer um deles. O admirável pintor da natureza humana a quem devemos o incomparável poema da Imitação sentiu profundamente esta conexão normal, quando nos diz: Frena guiam, et omnem carnis inclinationem facilius frenabis.74 Se relerdes cotidianamente esse tesouro inesgotável da verdadeira sabedoria, substituindo nele Deus pela Humanidade, não tardareis em sentir que esta transformação final muito consolida aí semelhante preceito, como a maior parte dos outros.
74 Imitação de Cristo, livro I, capítulo XIX: "Refreia a gula e mais facilmente refrearás toda inclinação carnal".
A sua restrição do instinto nutritivo ainda está muito longe da extensão sistemática que gradualmente lhe há de proporcionar a religião positiva. Porquanto nossa sensualidade sofistica continua a erigir em necessidades essenciais muitas excitações materiais que são antes nocivas que úteis. Tal é, sobretudo, o uso do vinho, cuja proibição muçulmana conservou-se sincera e geral durante os séculos em que o islamismo desenvolveu melhor o gênero de atividade temporal para o qual julgamos essa bebida especialmente indispensável.75
75 Eis aqui os trechos proibitivos do Alcorão: "Eles te interrogarão sobre o vinho e o jogo. Dize-lhes: Em ambos existem mal e vantagens para os homens, porém o mal excede as vantagens que eles proporcionam". (Cap. II, § 216, trad. francesa de Kasimirski.) "Oh, crentes! o vinho, os jogos de azar, as estátuas e a sorte das flechas são uma abominação inventada por Satã; abstende-vos deles e sereis felizes." (Cap. V, §§ 92 e 93.)
Perscrutando dignamente os admiráveis desígnios do grande Maomé, [pág. 270] reconhece-se logo que ele quis assim aperfeiçoar radicalmente o conjunto da natureza humana, primeiro no indivíduo e depois na espécie, em virtude da lei da hereditariedade. Esta nobre tentativa não malogrou realmente, como também não abortaram todos os outros esforços peculiares ao monoteísmo da Idade Média, tanto do Oriente, como do Ocidente, em favor de nosso aperfeiçoamento essencial. Somente aquela, como estes, carece de ser sistematizada pelo positivismo, que a saberá consolidar e desenvolver, sem comprometer nosso surto industrial. Desde hoje, esta salutar abstinência, tão comum já em vosso sexo, pelo menos no sul, pode gradualmente estender-se a todos os órgãos avançados do progresso humano. À medida que o positivismo prevalecer, as mulheres e os sacerdotes renunciarão livremente, em todo o Ocidente, salvo os casos excepcionais, a esta excitação habitual, tanto mais funesta quanto ela conduz com freqüência a muitos outros abusos.
A MULHER — Compreendo, meu pai, por que tendes insistido tanto sobre a disciplina positiva do instinto nutritivo. Na verdade, além de seu predomínio direto e das suas reações indiretas, ela constitui aqui o tipo suficiente de todas as outras repressões normais dos apetites egoístas. O conjunto destas regras sistematiza, em ambos os sexos, a verdadeira pureza, primeira base de uma moralidade inabalável. Com efeito, esta preciosa expressão não deve ficar limitada aos dois órgãos contíguos que determinam a conservação da espécie e do indivíduo. Devemos também estendê-la ao conjunto dos sete instintos pessoais, que temos sempre que purificar suficientemente, mediante sua subordinação normal ao serviço contínuo da Humanidade.
O SACERDOTE — Este grande princípio, minha filha, não cessará nunca de superar a este respeito todas as dúvidas sinceras, e de resolver mesmo os mais capciosos sofismas. O coração do verdadeiro positivista deve, no interior, repelir sempre as vontades arbitrárias, como seu espírito as afasta no exterior. Nossa humilde deusa está, com efeito, isenta dos vários caprichos peculiares ao seu precursor todo-poderoso. Seus atos quaisquer seguem leis apreciáveis, que o estudo positivo de sua natureza e de seu destino nos revela cada vez mais. Subordinando-nos tanto quanto possível a essas leis, faremos sem cessar progressos inexauríveis na conquista da paz, da felicidade e da dignidade.
A MULHER — O conjunto destas indicações parece-me, meu pai, caracterizar assaz a constituição positiva do regime pessoal. De acordo com o quadro cerebral, poder-se-ia realizar, para cada um dos instintos egoístas, um estudo moral equivalente àquele de que acaba de ser o objeto principal deles, a fim de se determinarem as repressões convenientes. Quanto aos meios de desenvolver as diversas inclinações simpáticas, nosso culto já indica os que não resultam do exercício direto. Todas estas explicações especiais excederiam os limites da atual exposição, e até a desviariam de seu principal destino. Quando a fé positiva houver prevalecido, chegará o tempo de compor um novo Catecismo mais análogo ao dos católicos, para detalhar essas diferentes regras práticas, cujas bases gerais serão já familiares aos verdadeiros crentes.76 Mas este Catecismo inicial é, pelo contrário, destinado sobretudo a assentar esses fundamentos essenciais, não considerando as aplicações senão enquanto indispensáveis ao estabelecimento dos princípios. Rogo-vos, pois, que, sem insistirdes mais na moral pessoal, passeis agora à segunda parte do regime privado, caracterizando a regeneração positiva de existência doméstica.
76 "Penso como vós a respeito da utilidade de um manual positivista mais popular e menos sistemático que o nosso Catecismo. Mas ele só pode dimanar de uma mulher. Já o teríamos se eu não tivesse sido objetivamente privado, há dez anos, da colega angélica que regenerou meu coração e por conseguinte completou o desenvolvimento de meu espírito." (Lettres à des Positivistes Anglais, p. 84). [pág. 271]
O SACERDOTE — Consiste ela essencialmente, minha filha, na constituição altruísta do casamento humano, instituído até aqui segundo um princípio puramente egoísta, como satisfação legítima dos apetites sexuais, tendente à reprodução da espécie. Esta brutal apreciação teve de prevalecer sistematicamente, enquanto as doutrinas dominantes desconheceram os pensadores benévolos. Mas o instinto público nunca cessou de protestar contra ela, e suscitou sempre impulsos empíricos cada vez mais fortes, de que resultaram os aperfeiçoamentos sucessivos da instituição conjugal. Só o positivismo vem estabelecer enfim, sob este aspecto fundamental, uma digna concordância entre a teoria e a prática, apoiando-se na principal descoberta da ciência moderna, quanto à existência natural dos instintos altruístas.
Esta grande noção, cujo alcance é ainda tão pouco compreendido, conduz logo a regenerar o casamento humano, concebendo-o doravante como destinado sobretudo ao aperfeiçoamento mútuo dos dois sexos, abstraído de toda sensualidade. Ela demonstra diretamente a dupla preeminência afetiva da mulher, pela menor intensidade dos pendores pessoais, sobretudo dos mais grosseiros, e pela energia superior das inclinações simpáticas. Daí resulta a teoria positiva do casamento, em que vosso sexo melhora o meu, disciplinando o impulso carnal sem o qual a inferioridade moral do homem não lhe permitiria quase nunca uma suficiente ternura. Porém esta relação fundamental é felizmente secundada por todos os outros contrastes cerebrais dos dois sexos. A superioridade masculina é incontestável em tudo o que diz respeito ao caráter propriamente dito, fonte principal do comando. Quanto à inteligência, ela oferece, no homem, mais força e extensão; na mulher, mais justeza e penetração. Tudo, pois, concorre para provar a eficácia mútua dessa união íntima, que constitui a mais perfeita das amizades, embelezada por uma incomparável posse recíproca. Fora de semelhante laço, as rivalidades atuais ou possíveis impedem sempre a plenitude de confiança que só pode existir de um sexo em relação ao outro.
Os apetites sexuais não têm aí outro destino senão produzir ou entreter, sobretudo no homem, os impulsos adequados a desenvolver a ternura. Mas para isso cumpre que as satisfações desses apetites permaneçam muito moderadas. De outra sorte, sua natureza profundamente egoísta tende, pelo contrário, a estimular a personalidade, quase tanto como os excessos nutritivos, e amiúde mesmo com mais gravidade, porque a mulher é aí odiosamente sacrificada às brutalidades do homem. Quando meu sexo consegue ser bastante puro, como ordinariamente é o vosso, a ponto de a ternura poder surgir assaz nele sem essa excitação grosseira, a principal eficácia do casamento desenvolve-se muito melhor.
Tal será o caso normal da casta união consagrada pelo nosso culto quanto aos casais incapazes de concorrerem dignamente para a propagação da espécie humana. Muitas moléstias se transmitem, e mesmo se agravam, pela hereditariedade; de sorte que milhares de crianças nascem fracas para pouco depois morrerem, sem que sua existência tenha nunca deixado de ser um fardo. Na civilização moderna, em que todos os nascimentos são igualmente protegidos, esses tristes resultados multiplicam-se mais do que entre os antigos, que destruíam a maior parte dos descendentes débeis. Se perscrutássemos suficientemente esta grande questão talvez achássemos que a quarta parte das populações ocidentais deveria sabiamente abster-se de toda procriação, para que tal função ficasse concentrada nos pares convenientemente dotados. Quando a propagação de nossa espécie merecer os mesmos cuidados que a das principais raças domésticas, há de se reconhecer a necessidade de assim regulá-la. Mas isso não pode resultar senão da livre instituição dos casamentos castos, de conformidade com a teoria positiva da união conjugal, [pág. 272] em que as relações sexuais não são diretamente necessárias. Com efeito, a proibição legal do casamento, freqüentes vezes invocada pelos médicos contra as moléstias hereditárias, ofereceria um remédio tão odioso quanto ilusório. Só a influência privada e pública da religião positiva é que pode determinar, a este respeito, resoluções que tanto carecem de eficácia como de dignidade quando não são plenamente voluntárias. Nestas uniões excepcionais, a verdadeira natureza do casamento se tornará mais bem apreciável quando as duas almas forem bem organizadas. Um amplo uso da adoção permitirá, mesmo neste caso, o surto dos outros afetos de família, aliviando, por outro lado, os casais especialmente votados à propagação.
A MULHER — Esta teoria basta, meu pai, para caracterizar diretamente o casamento, abstraindo de seus resultados corporais, que nem sempre se realizam. O melhoramento moral do homem constitui, pois, a principal missão da mulher nessa incomparável união instituída para o aperfeiçoamento recíproco dos dois sexos. Quanto às funções da mãe, já vós as definistes como consistindo sobretudo em dirigir o conjunto da educação humana, a fim de que o coração aí prevaleça sempre sobre o espírito. Assim, em virtude da sucessão normal destes dois ofícios femininos, vosso sexo permanece sempre sob a providência afetiva do meu. Semelhante destino desde logo indica que o laço conjugal deve ser único e também indissolúvel, a fim de que as relações domésticas possam adquirir a plenitude e a fixidez que sua eficácia moral exige. Esta dupla condição é tão conforme à natureza humana que as uniões ilícitas tendem para ela espontaneamente. Acredito, porém, que o divórcio não deve ser inteiramente proibido.
O SACERDOTE — Vós sabeis, minha filha, que Santo Agostinho, superando, pela sua própria razão, o gênio necessariamente absoluto de sua doutrina teológica, começa sua obra principal observando que o homicídio pode amiúde tornar-se desculpável, e algumas vezes louvável.77 O mesmo se pode dizer da mentira e de quase tudo o que merece uma reprovação geral. Estendendo, porém, esta exceção ao divórcio, cumpre não alterar a indissolubilidade fundamental do casamento. Verdadeiramente só existe um único caso em que a união conjugal deva ser legalmente dissolvida, e vem a ser quando um dos cônjuges é condenado a uma pena infamante qualquer, que o fere de morte social. Nas outras perturbações, a indignidade suficientemente prolongada pode somente determinar a ruptura moral do laço, o que produz uma separação pessoal, mas sem permitir um novo casamento. A religião positiva impõe ao inocente uma castidade compatível, aliás, com a mais profunda ternura. Ainda que esta condição lhe pareça rigorosa, deve ele aceitá-la, primeiro atendendo à ordem geral, e depois como uma justa conseqüência de seu primitivo erro.
77 Cidade de Deus, cap. 21 do Livro I.
A MULHER — Já conheço, meu pai, a santa lei da viuvez eterna, pela qual o positivismo completa, enfim, a grande instituição do casamento. Meu sexo nunca objetará contra isso, e vós me ensinastes a refutar os diversos sofismas, mesmo científicos, que ainda poderiam dimanar do vosso. Sem tal complemento, a monogamia torna-se ilusória, pois que as novas núpcias produzem sempre uma poligamia subjetiva, a menos que a esposa anterior não seja esquecida, o que deve tranqüilizar pouco a outra. Só o pensamento de tal mudança basta para alterar muito a união atual, em virtude de uma eventualidade sempre possível. É só pela segurança de uma inalterável perpetuidade que os laços íntimos podem adquirir a consistência e a plenitude indispensáveis à sua eficácia moral. A mais desprezível das seitas efêmeras geradas pela anarquia moderna parece-me ser aquela que quis erigir a inconstância em condição de felicidade, como a instabilidade das ocupações [pág. 273] em meio de aperfeiçoamento.78 Li, na Política Positiva, uma observação que muito me impressionou a este respeito: "Entre dois entes tão complexos e tão diversos como o homem e a mulher, a vida inteira não é demais para se conhecerem bem e se amarem dignamente".79 Longe de acoimar de ilusão a alta idéia que dois verdadeiros esposos formam amiúde um do outro, quase sempre tenho-a atribuído à apreciação mais profunda que só pode ser obtida por uma intimidade plena, que, aliás, desenvolve qualidades desconhecidas aos indiferentes. Deve-se mesmo considerar como muito honrosa para a nossa espécie essa grande estima que seus membros se inspiram mutuamente quando se estudam muito. Com efeito, só o ódio e a indiferença deveriam merecer a acusação de cegueira que uma apreciação superficial aplica ao amor. É necessário, portanto, julgar como plenamente conforme à natureza humana a instituição que prolonga além do túmulo a identificação de dois dignos esposos. Não há intimidade que possa ser comparada à deles; pois que, entre a mãe e o filho, a diferença de idade, e mesmo uma justa veneração, impedem sempre uma inteira harmonia.
78 Augusto Comte parece referir-se aqui ao fourierismo.
79 Política Positiva, tomo I, p. 237.
O SACERDOTE — Além disso, minha filha, a viuvez é o único meio de proporcionar à influência feminina sua principal eficácia. Porquanto, durante a vida objetiva, as relações sexuais alteram muito a reação simpática da esposa, mesclando a esse influxo uma grosseira personalidade. Eis aí por que a mãe permanece então nosso principal anjo da guarda. Os anjos não têm sexos, pois que são eternos.
Mas, quando a existência subjetiva purificou a intimidade superior que distingue a esposa, esta se torna definitivamente nossa melhor providência moral. Um só ano de digno casamento basta para ministrar à vida mais longa uma fonte de felicidade e de aperfeiçoamento que o tempo desenvolve sem cessar, depurando-a sempre à medida que, esquecidas as imperfeições, as qualidades mais sobressaem. Assim, sem a união subjetiva que resulta da viuvez, suprimir-se-ia a ação moral da mulher sobre o homem justamente no momento em que devem surgir seus principais resultados, por efeito da plenitude e da pureza que tal influxo adquire pela morte. Quando este complemento do matrimônio for suficientemente apreciado, ele há de fornecer um dos melhores caracteres práticos da religião positiva, pela evidente incompatibilidade de semelhante instituição com o princípio teológico.
A MULHER — Para acabar de compreender a constituição doméstica, falta-me, meu pai, conhecer suas condições materiais.
O SACERDOTE — Elas resultam, minha filha, do destino moral e social dessa constituição doméstica. O duplo ofício fundamental da mulher, como mãe e como esposa, equivale, em relação à família, ao do poder espiritual no Estado. Exige, portanto, a mesma isenção da vida ativa, e uma análoga desistência de todo comando. Esta dupla abstenção é ainda mais indispensável à mulher do que ao padre, a fim de conservar a preeminência afetiva onde reside seu verdadeiro mérito, menos suscetível que a superioridade mental de resistir aos impulsos práticos. Toda mulher deve, pois, ser cuidadosamente preservada do trabalho exterior, a fim de poder preencher dignamente sua santa missão. Voluntariamente encerrada no santuário doméstico, a mulher aí promove livremente o aperfeiçoamento moral de seu esposo e de seus filhos, cujas justas homenagens ela aí dignamente recebe.
Semelhante constituição assenta materialmente sobre esta regra fundamental, que só o positivismo sistematizou, mas que sempre foi pressentida pelo instinto universal: O [pág. 274] homem deve sustentar a mulher. Ela equivale à obrigação da classe ativa para com a classe contemplativa, salvo a diferença essencial quanto ao modo de execução. Para o sustento do sacerdócio, o dever fica puramente coletivo, e não pode tornar-se individual senão em casos muito excepcionais. É precisamente o inverso a respeito das mulheres, em virtude da diversidade das influências morais, domésticas num caso, e universais no outro. Sustentada primeiro pelo seu pai ou pelos seus irmãos, cada mulher é em seguida sustentada pelo seu esposo, ou pelos seus filhos. Na falta destes amparos especiais, a obrigação do sexo ativo para com o sexo afetivo torna-se geral, e o governo deve prover a isso, sob a inspiração do sacerdócio. Tal é a base material da verdadeira constituição doméstica.
Porém, para o preenchimento desta condição necessita-se desde logo outra instituição, a renúncia das mulheres a toda herança. Esta livre deserdação é tão justificada quanto a dos padres já para prevenir uma influência corruptora, já a fim de concentrar os capitais humanos nas mãos dos que devem dirigir seu emprego. A riqueza é mesmo mais perigosa para vosso sexo do que para o sacerdócio, porque altera mais a preeminência moral do que a superioridade mental. Enfim, a deserdação feminina fornece o único meio de suprimir o uso dos dotes, tão pernicioso a tantas famílias, e diretamente contrário à verdadeira instituição do casamento. Então a união conjugal resultará de uma digna escolha, ampliada livremente a todas as classes, em virtude da uniformidade que a educação universal há de produzir entre elas, apesar das desigualdades necessárias do poder e da riqueza. Porém, a fim de que o conjunto destes motivos conserve toda a sua validade, é preciso que a deserdação feminina fique plenamente voluntária, sem nunca resultar de uma determinação legal.
A MULHER — A religião positiva pouco custo terá, meu pai, em fazer prevalecer esta resolução entre as mulheres, quando a existência material delas estiver dignamente assegurada em virtude dos deveres privados garantidos pelas convicções públicas. Muitas vezes têm-se deplorado os caprichos que produz a riqueza ociosa nas que querem assim mandar em vez de amar. Mas a degradação moral tem-me parecido ainda maior quando a mulher se enriquece pelo seu próprio trabalho. A avidez contínua do lucro faz-lhe perder então aquela benevolência espontânea que o outro tipo conserva em meio de suas dissipações. Não podem existir piores chefes industriais do que as mulheres.
O SACERDOTE — A fim de completar este apanhado geral da constituição doméstica peculiar ao positivismo, resta-me indicar-vos, minha filha, uma instituição indispensável para a inteira eficácia de semelhante renovação. Consiste ela no pleno desenvolvimento da faculdade de testar, agregando-se-lhe a livre adoção; mas sob a responsabilidade moral do chefe de família, sempre submetido ao digno exame do sacerdócio e do público. Na conferência seguinte vos assinalarei o alcance social desta dupla instituição, para remediar, tanto quanto possível, os principais inconvenientes que comporta a transmissão hereditária das propriedades materiais. Agora, porém, só deveis apreciar nela sua aptidão doméstica para purificar e consolidar todos os laços elementares, libertando-os dos ignóbeis votos que hoje os maculam. É o único meio de tornar o afeto dos filhos pelos pais, se não tão terno, ao menos tão nobre quanto o das mulheres pelos maridos. A amizade fraternal ficará, assim, mais bem garantida do que pela igualdade revolucionária das partilhas, ou mesmo do que segundo a subordinação feudal aos primogênitos. Entre os ricos, cada qual só esperará dos seus os auxílios materiais necessários à sua educação e à sua instalação social. Então todos se entregarão sem inquietação [pág. 275] ao pleno desenvolvimento das melhores afeições. Se os pais não obtiverem filhos dignos, suprirão esta falta mediante criteriosas adoções.80
80 Este quadro da família normal deve ser completado pelas seguintes indicações da Política Positiva (tomo IV, pp. 292-294):
"Este preâmbulo permite explicar diretamente a sistematização da Família pela Pátria em nome da Humanidade. Devo começar esta exposição completando e retificando minhas indicações estáticas sobre o número normal dos elementos domésticos.
"Minha teoria da família os reduz a dois grupos, um formado do par fundamental, o outro do produto, ordinariamente tríplice, da união conjugal. Ora, esta constituição, suficiente para a solidariedade, fica incompleta quanto à continuidade, que aí se limita a ligar o futuro ao presente, mas sem abarcar o passado. Para que este esteja também compreendido, a família positiva deve admitir um outro par, composto dos pais do marido. Sem semelhante complemento, o estado normal ficaria, a este respeito, abaixo do modo em que a instituição dos anciãos colocou a existência preparatória. A família não ofereceria uma suficiente harmonia com a cidade, pois que o elemento feminino não manifesta aí senão o caráter moral do poder espiritual, cuja natureza intelectual só pode ser representada pela velhice. Estas duas fontes do ascendente religioso achando-se combinadas na mãe do esposo, ela se tornará a deusa da família positiva, quando o conjunto do regime final tiver dissipado por toda parte conflitos fundados sobre pretensões ilegítimas. Tão subjetiva como objetiva, a unidade doméstica assim constituída não consolidará menos os deveres materiais do que as condições morais, assegurando assaz a subsistência dos velhos para que eles renunciem livremente aos capitais que cessam de administrar.
"Semelhante complemento deve assinalar por toda parte sete membros à composição média da família positiva, assim formada de três elementos que representam respectivamente o passado, o presente e o futuro, desenvolvendo tanto a continuidade como a solidariedade. Mas esta constituição doméstica, que basta à massa popular, exige um novo suplemento nas classes dirigentes, sobretudo nas práticas, pela incorporação dos auxiliares completos e permanentes, instituídos no culto universal.* Sejam quais forem as restrições reclamadas pelo luxo dos ricos, o serviço público ficaria gravemente comprometido se os patrícios, e mesmo os padres, se vissem tão obrigados como os proletários a satisfazer pelas suas próprias famílias os cuidados materiais de suas casas.
"A fonte invejosa das repugnâncias democráticas manifesta-se, a este respeito, pela sua inconseqüência ordinária, que recusa aos ricos o que permite aos pobres, pois que os hábitos católicos consagraram os servidores do clero. Estas disposições anárquicas serão facilmente superadas pelo positivismo, que, sistematizando os costumes ocidentais, desenvolvidos nos povos preservados do protestantismo e do deísmo, santifica a domesticidade, de hoje em diante incorporada ao culto da Humanidade.
"À vista deste suplemento, as famílias serão ordinariamente compostas cada uma de dez membros, na dupla aristocracia que deve dirigir a existência normal; pois que a adjunção do elemento doméstico não seria digna e estável se o serviço obrigasse a renunciar aos laços principais. Quando a existência dos trabalhadores estiver assegurada por toda parte, nenhum rico poderá mais encontrar, salvo raras exceções, um auxiliar livremente separado de sua mulher e filho, tão apropriados, aliás, a assisti-lo em relação aos outros como a si mesmo.
"Entre as famílias patrícias, cumpre dobrar esta adjunção de três membros, que basta para o clero. Porquanto, além das exigências de uma ostentação muito ligada ao mando para que os costumes normais devam e possam extingui-la, um serviço mais vasto e mais complexo exige semelhante acréscimo, que aliás unirá mais o patriciado ao proletariado. Assim a família positiva, ordinariamente composta de sete membros, compreende dez ou treze entre os chefes teóricos ou práticos, sem que os costumes e as situações comportem habitualmente uma extensão superior."
* Augusto Comte refere-se aqui aos criados dos dois sexos (M. L.)
Tais são as famílias em cujo seio um sacerdócio livremente venerado por todos os seus membros se esforçará sem cessar por prevenir ou reparar os conflitos mútuos provenientes das más paixões. Ele fará sentir às mulheres o mérito da submissão, desenvolvendo esta admirável máxima de Aristóteles: A principal força da mulher consiste em superar a dificuldade de obedecer.81
81 Em vão procuramos na obra de Aristóteles (traduções latinas e francesas) a frase textual atribuída aqui por Augusto Comte ao "príncipe eterno dos verdadeiros filósofos". O que encontramos de mais aproximado foi o seguinte trecho da Política, segundo a tradução de Barthélemy Saint-Hilaire: "Reconheçamos, portanto, que todos os indivíduos de que acabamos de falar têm seu quinhão de virtude moral, porém que a sabedoria do homem não é a mesma que a da mulher; que sua coragem, sua eqüidade não são as mesmas, como pensava Sócrates, e que a força do primeiro é toda de comando, ao passo que a da segunda é toda de submissão". (Livro I, cap. 5, § 8.)
Augusto Comte costumava citar de cor. e, por isso, conquanto essencialmente exatas, suas citações apartam-se às vezes da letra dos originais.
A educação as terá preparado para compreenderem [pág. 276] que todo domínio, longe de elevá-las realmente, degrada-as necessariamente, alterando o principal valor de seu sexo, por esperarem da força o prestígio que é só devido ao amor. Ao mesmo tempo, o sacerdócio as protegerá contra a tirania dos esposos e contra a ingratidão dos filhos, recordando com critério a uns e a outros os preceitos da religião positiva sobre a superioridade moral e o ofício social do sexo afetivo. É sobretudo pela reação preponderante da vida pública que a vida privada tem sido gradualmente melhorada até hoje. O regime final confia o desenvolvimento desta influência ao sacerdócio da Humanidade, pois só ele pode penetrar dignamente no seio das famílias, para nobilitar e consolidar todos os afetos domésticos, referindo-os sempre ao seu destino social. [pág. 277]
UNDÉCIMA CONFERÊNCIA
REGIME PÚBLICO
A MULHER — Ao encetarmos a parte superior da moral positiva, devo pedir-vos, meu pai, três esclarecimentos preliminares.
O primeiro versa sobre a acusação metafísica que freqüentes vezes se faz ao positivismo de não admitir nenhuma espécie de direitos. Se assim é, sinto-me mais propensa a felicitar-vos do que a queixar-me por isso; porquanto a intervenção do direito quase sempre tem-me parecido destinada a dispensar de razão ou de afeição. Felizmente tal interferência é vedada às mulheres, que ainda ficam valendo mais por isso. Vós conheceis minha máxima favorita: Mais do que as outras, nossa espécie precisa de deveres para gerar sentimentos.82
82 Outro pensamento de Clotilde de Vaux, numa de suas cartas a Augusto Comte (79.a da coleção publicada com o Testamento do Mestre).
O SACERDOTE — É verdade, minha filha, que o positivismo não reconhece a ninguém outro direito senão o de cumprir sempre o seu dever. Em termos mais corretos, nossa religião impõe a todos a obrigação de auxiliarem a cada um no preenchimento de sua função peculiar. A noção de direito deve desaparecer do domínio político, como a noção de causa do domínio filosófico; porque ambas se referem a vontades indiscutíveis. Assim, os direitos, quaisquer que eles sejam, supõem necessariamente uma origem sobrenatural, única que pode subtraí-los à discussão humana. Quando estiveram concentrados nos chefes, eles comportaram uma verdadeira eficácia social como garantias normais de uma indispensável obediência, enquanto durou o regime preliminar, fundado sobre o teologismo e a guerra. Mas depois que o declínio do monoteísmo dispersou os direitos pelos governados, em nome, mais ou menos distinto, do mesmo princípio divino, eles se tornaram tão anárquicos neste caso como retrógrados no outro. Desde então, só conduzem, de ambos os lados, a prolongar a confusão revolucionária; de sorte que eles devem desaparecer inteiramente por comum acordo dos homens honestos e sensatos de qualquer partido.
O positivismo não admite nunca senão deveres de todos para com todos; pois que seu ponto de vista sempre social não pode comportar nenhuma noção de direito, constantemente fundada na individualidade. Nós nascemos carregados de obrigações de todo gênero para com os nossos predecessores, os nossos sucessores e os nossos contemporâneos. Elas não fazem depois senão desenvolver-se ou acumular-se antes que possamos prestar qualquer serviço. Sobre que fundamento humano poderia, pois, assentar a idéia de direito, que razoavelmente suporia uma eficácia prévia? Por maiores que possam ser nossos esforços, a mais longa vida bem empregada não nos permitirá jamais restituir senão uma parte imperceptível do que houvermos recebido. Entretanto, só depois de uma [pág. 279] restituição completa é que ficaríamos dignamente autorizados a reclamar a reciprocidade dos novos serviços. Todo direito humano é, portanto, tão absurdo quanto moral. Pois que não existem mais direitos divinos, esta noção deve ser eliminada de todo, como puramente relativa ao regime preliminar e diretamente incompatível com o estado final, que não admite senão deveres, em virtude de funções.
A MULHER — Agora, meu pai, eu quisera saber se, além da relação geral entre o regime público e o regime privado, este não suscita disposições que possam nos preparar pessoalmente para o outro.
O SACERDOTE — As que resultam da existência individual consistem sobretudo, minha filha, no culto íntimo que lhe corresponde. Este não é somente adequado a consolidar e desenvolver todas as virtudes privadas. Sua principal aplicação diz respeito à vida pública, na qual nosso tríplice anjo custódio deve a um tempo desviar-nos do mal e impulsionar-nos para o bem, mediante breves invocações especiais relativas aos diferentes casos essenciais. O poder de semelhante auxílio foi já dignamente sentido no nobre esboço de culto feminino tentado pela admirável cavalaria da Idade Média. Essas almas egrégias tinham harmonizado tão bem a vida privada e a vida pública que a imagem que-rida vinha amiúde animar e aformosear suas cenas guerreiras, deixando surgir as mais ternas emoções no meio mesmo da desolação ou do terror. Se, pois, as afeições brandas puderam combinar-se familiarmente com uma atividade destrutiva, um concurso análogo deve resultar com mais vantagem de trabalhos diretamente relativos à felicidade humana e puros de quaisquer conseqüências dolorosas para quem quer de seja. O santo cântico que termina o mais belo dos poemas convém mais ao novo culto do que ao antigo.
Donna, se' tanto grande e tanto vali
Che qual vuol grazia ed a te non ricorre
Sua disianza vuol volar senz 'ali.
La tua benignità non pur soccorre
A chi dimanda, ma molte fiate
Liberamente al dimandar precorre.
In te misericordia, in te pietate,
In te magnificenza, in te s'aduna
Quantunque in creatura è di bontate.83
83 Dante, Paraíso, canto último:
Senhora, tão grande és, e tão potente / Que mercês implorar sem teu auxílio / Equivale a querer voar sem asas. / Tua Benignidade não sufraga / Somente a orações; mas, com freqüência, / Com generosos dons as antecipa / Em ti misericórdia, em ti piedade, / Em ti munificência se coadunam / E quanto tem mais nobre a criatura. (Trad. de Bonifácio de Abreu.)
Mais do que qualquer outra classe, o sacerdócio da Humanidade deve utilizar semelhante assistência. Suas lutas sociais só servirão para melhor desenvolver-lhe a coragem, a perseverança e também a prudência. Porém elas hão de tender amiúde a perturbar sua pureza moral por seduções ambiciosas, tanto mais temíveis quanto parecerão dimanar de um santo zelo. Nossos padres sentirão, pois, freqüente necessidade de retemperarem sua verdadeira dignidade em um nobre comércio, primeiro subjetivo, e depois mesmo objetivo, com o sexo amante.
Quanto às disposições provenientes da existência doméstica, esta suscitará sobretudo a melhor aprendizagem desta regra fundamental que cada um se deverá impor livremente, como base pessoal do regime público: Viver às claras. Para esconderem suas torpezas [pág. 280] morais, nossos metafísicos fizeram prevalecer a vergonhosa legislação que ainda nos proíbe escrutar a vida privada dos homens públicos. Mas o positivismo, sistematizando dignamente o instinto universal, invocará sempre a escrupulosa apreciação da existência pessoal e doméstica como a melhor garantia da conduta social. Como ninguém deve aspirar senão à estima daqueles a quem também estima, não somos obrigados a dar a todos, sem distinção, conta habitual de nossas ações quaisquer. Porém, por mais restrito que possa vir a ser, em certos casos, o número de nossos juizes, basta que sempre existam alguns para que a lei de viver às claras nunca perca sua eficácia moral, impelindo-nos constantemente a nada fazer que não seja confessável. Semelhante disposição prescreve logo o respeito contínuo da verdade e o cumprimento escrupuloso de todas as promessas. Este duplo dever geral, dignamente introduzido na Idade Média, resume toda a moral pública e faz-vos sentir a profunda realidade daquela admirável sentença em que Dante, representando o impulso cavalheiresco, designa para os traidores o mais horrível inferno.84
84 É o nono círculo do Inferno, cujo pavimento é constituído por duríssimo gelo. Divide-se ele em quatro compartimentos concêntricos, respectivamente destinados aos que traem seus pais, sua pátria, seus amigos e seus benfeitores. No quarto, intitulado Judeca, por causa de Judas Iscariotes, acham-se Bruto e Cássio, assassinos do grande César. A descrição destes quatro compartimentos ocupa os quatro últimos cantos do Inferno.
No meio mesmo da anarquia moderna, o melhor cantor da cavalaria proclamava dignamente a principal máxima de nossos heróicos antepassados:
La fede unqua non deve esser corrotta,
O data a un solo, o data insieme a mille;
..............................................................
Senza giurare, o segno altro più espresso,
Basta una volta che s'abbia promesso.85
85 Ariosto: Orlando Furioso, canto 21, 2.ª estância:
"A fé nunca deve ser quebrada, ou dada a um só ou dada a mil ao mesmo tempo ..... Sem jurar, ou sem qualquer outro sinal expresso, basta ter prometido uma vez".
Estes pressentimentos crescentes dos costumes sociocráticos são irrevogavelmente sistematizados pela religião positiva, que representa a mentira e a traição como diretamente incompatíveis com toda cooperação humana.
A MULHER — Devo perguntar-vos enfim, meu pai, se o regime público não comporta uma divisão geral análoga à do regime privado, baseada na desigual extensão dos laços correspondentes. Nem o coração, nem mesmo o espírito, pode subir dignamente da Família à Humanidade sem o intermédio da Pátria. Isto posto, a vida pública parece-me oferecer necessariamente dois graus bem distintos, considerando nela primeiro as relações cívicas, depois as relações universais.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, esta distinção determina o plano geral da presente conferência. Antes, porém, de aplicá-la, cumpre dar-lhe bastante precisão e consistência, restringindo a santa noção de Pátria, hoje demasiado vaga, e por conseguinte quase estéril, entre os modernos, por causa da extensão exorbitante dos Estados ocidentais. Completando a indicação esboçada no estudo do dogma, deveis conceber aqui as futuras repúblicas como muito mais circunscritas do que o anunciam hoje os preconceitos revolucionários. A dissolução gradual do sistema colonial a partir da independência americana não é, no fundo, senão o começo de um deslocamento irrevogável de todos os domínios demasiado vastos que surgiram depois da ruptura do laço católico. [pág. 281]
Na ordem final, os Estados ocidentais não terão uma extensão superior à que nos apresentam agora a Toscana, a Bélgica, a Holanda e em breve a Sicília, a Sardenha, etc. Uma população de um a três milhões de habitantes, na proporção ordinária de sessenta por quilômetro quadrado, constitui, com efeito, a extensão que convém aos Estados verdadeiramente livres; porque só devem ser assim qualificados aqueles cujas partes todas acham-se reunidas, sem nenhuma violência, pelo sentimento espontâneo de uma solidariedade ativa. O prolongamento da paz ocidental, dissipando os temores sérios de invasão exterior e mesmo de coligação retrógrada, fará sentir em breve, por toda parte, a necessidade de dissolver pacificamente agregações factícias daqui por diante destituídas de verdadeiros motivos. Antes do fim do século XIX, a República Francesa achar-se-á livremente decomposta em dezessete repúblicas independentes, formadas cada uma de cinco departamentos atuais. A próxima separação da Irlanda deve em seguida conduzir à ruptura dos laços artificiais que hoje reúnem a Escócia, e mesmo o País de Gales, à Inglaterra propriamente dita. Operando-se uma decomposição semelhante em todos os Estados demasiado vastos, Portugal e Irlanda, se nenhuma divisão surgir nestes dois países, formarão, no começo do século seguinte, as maiores repúblicas do Ocidente. É a pátrias assim restritas que deve ser aqui aplicada a apreciação normal do regime público. Então o sentimento nacional torna-se um verdadeiro intermediário entre a afeição doméstica e o amor universal.
A MULHER — Graças a esta preciosa simplificação da política positiva, espero não encontrar, meu pai, nenhuma dificuldade grave em vossa explicação direta de nosso regime público.
O SACERDOTE — O regime público consiste todo ele, minha filha, em realizar dignamente esta dupla máxima: Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fracos pelos fortes. Nenhuma sociedade pode perdurar se os inferiores não respeitarem os superiores. Nada confirma melhor semelhante lei do que a degradação atual, em que, por falta de amor, cada um não obedece senão à força, se bem que o orgulho revolucionário deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, que sabiam amar seus chefes. A segunda parte da dupla condição social é, pois, comum a todos os tempos. Mas a primeira não foi realmente introduzida senão na Idade Média; pois que toda a Antiguidade, salvo felizes exceções pessoais, pensava de modo diverso, como o atesta seu aforismo predileto: Paucis nascitur humanum genus.86 Assim, a harmonia pública repousa sobre a atividade combinada dos dois melhores instintos altruístas, respectivamente apropriados aos inferiores e aos superiores em suas mútuas relações. Todavia, este concurso só pode surgir e persistir nas almas assaz preparadas por um hábito suficiente da mais enérgica, conquanto a menos eminente, das três inclinações simpáticas mediante um justa surto dos afetos domésticos.
86 "Humanum paucis vivit genus" (Lucano, Farsália, Livro V, v. 343): "O gênero humano vive para um pequeno número de homens".
Tal solução reside inteiramente na separação fundamental entre os dois poderes espiritual e temporal. Não é possível assegurar a dedicação dos fortes aos fracos senão pelo advento de uma classe de fortes que só possa obter ascendente social devotando-se aos fracos, em virtude da livre veneração destes. É assim que o sacerdócio se torna a alma da verdadeira sociocracia. Mas isto supõe que ele se cinja sempre a aconselhar, sem nunca poder mandar.
Eis aí por que tanto insisti sobre sua desistência completa do poder, e até da riqueza. A fim de garantir melhor tal renúncia, é também necessário que os padres se abstenham [pág. 282] de tirar algum proveito material de seus trabalhos quaisquer, livros ou lições, de modo a só subsistirem sempre de seus ordenados anuais. O orçamento central do sacerdócio proverá, salvo exceções, à impressão de todos os escritos dimanados de seus membros, com a única obrigação de serem assinados pelos seus autores, deixando a distribuição a cargo destes, que disso devem ser os melhores juizes, e que assim ficam constantemente responsáveis. Todo sacerdote que vendesse seus livros ou suas lições seria, portanto, castigado severamente, até perder seu ofício na terceira infração.
A fim de completar a purificação do sacerdócio, cumpre também impedir que ele oprima qualquer doutrina contrária à sua. É por isso que o regime positivo exigirá sempre plena liberdade de exposição, e mesmo de discussão, como convém a dogmas constantemente demonstráveis. As únicas restrições normais dessa liberdade fundamental devem resultar da opinião pública, a qual, em virtude de uma sábia educação universal, repelirá espontaneamente as teses contrárias às suas convicções quaisquer. Já se pode fazer idéia disso pela disciplina involuntária que a fé positiva mantém, sem nenhuma coação material, quanto às principais noções da ciência moderna. Contanto que a contradita nunca seja legalmente proibida, ninguém se poderá queixar razoavelmente da repugnância que inspirar ao público. Semelhante conjunto de condições obrigará sempre o sacerdócio a persuadir ou convencer para exercer uma ação real sobre os grandes e os pequenos.
A MULHER — Devendo a intervenção cívica do sacerdócio consistir sobretudo em regular dignamente as relações habituais entre a patriciado e o proletariado, rogo-vos, meu pai, que caracterizeis especialmente esse ofício fundamental.
O SACERDOTE — Para isso, minha filha, devo em primeiro lugar especificar mais a constituição normal da indústria moderna. Assenta ela sobre duas condições gerais, já sensíveis no fim da Idade Média, e que desde então se foram sempre desenvolvendo: a divisão entre os empresários87 e os trabalhadores; e a hierarquia interna do patriciado, da qual resulta a do proletariado. A subordinação dos campos às cidades completa esta organização.
87 Servimo-nos da palavra empresário para verter o vocábulo entrepreneur, na acepção que este termo é aqui empregado. Não achamos outra mais adequada.
Depois de abolida a servidão, a indústria cresceu assaz para prescindir de trabalhar por encomenda; ela começou a prover de antemão às necessidades públicas. Desde então, os empresários propriamente ditos não tardam em separar-se dos simples trabalhadores. Seu surto distinto determinou gradualmente, segundo a natureza de suas ocupações, a hierarquia normal que o nosso culto já vos indica. Eleva-se ela dos agricultores aos fabricantes, em seguida destes aos comerciantes, para subir enfim aos banqueiros, fundando cada classe sobre a precedente. Operações mais indiretas, confiadas a agentes mais escolhidos e menos numerosos, exigem, assim, concepções mais gerais e mais abstratas, como também uma responsabilidade mais vasta. Esta classificação espontânea, sistematizada pelo positivismo de acordo com o nosso princípio hierárquico, erige a coordenação normal da indústria em prolongamento natural das que são peculiares primeiro à ciência, depois à arte.
A eficácia social desta hierarquia industrial supõe que o patriciado está assaz concentrado para que cada membro aí administre tudo o que ele puder realmente dirigir, a fim de diminuir o mais possível as despesas de gerência e assegurar melhor a responsabilidade. Aqui o verdadeiro interesse dos inferiores coincide plenamente com a tendência natural dos superiores, porque grandes deveres exigem grandes forças. O que sobretudo [pág. 283] agrava nossas desordens atuais é a invejosa ambição da pequena burguesia e seu obcecado desdém pelas existências populares. Quando os costumes dela se regenerarem assaz, sob o impulso combinado das situações e das convicções, sua cabeça fundir-se-á no patriciado e sua massa no proletariado, de maneira a dissolver as classes médias propriamente ditas.
A MULHER — Esta indispensável concentração das riquezas já é desejada, meu pai, pelos proletários de nossas grandes cidades, como um verdadeiro benefício social, embora nossos camponeses persistam demasiado em querer uma dispersão quase indefinida. Mas semelhante condensação deve depender muito da transmissão hereditária das propriedades. A indicação que esboçastes a este respeito quando me explicastes o culto parecendo-me insuficiente, rogo-vos que a completeis aqui.
O SACERDOTE — Cumpre, minha filha, referi-la ao princípio mais geral que regula a sucessão normal dos funcionários quaisquer. O modo eletivo não foi introduzido senão como um protesto, por muito tempo indispensável, contra o regime das castas, que afinal se havia tomado opressivo. Mas, em si mesma, toda escolha dos superiores pelos inferiores é profundamente anárquica: nunca serviu senão para dissolver gradualmente uma ordem viciosa. O estado final só deve, a este respeito, diferir do regime primitivo em substituir à hereditariedade teocrática, baseada unicamente no nascimento, a hereditariedade sociocrática, proveniente sempre de uma livre iniciativa de cada funcionário.
Todas as complicações sociais inspiradas pela desconfiança não conduzem realmente senão à irresponsabilidade. Confiança inteira e plena responsabilidade, tal é o duplo caráter do regime positivo. O digno órgão de uma função qualquer é sempre o melhor juiz de seu sucessor, cuja designação deverá, contudo, ser submetida por ele ao seu próprio superior. É somente na ordem espiritual que todas as escolhas pertencem ao chefe supremo, a fim de se obter a suficiente concentração de um ofício tão difícil.
Em relação às mais elevadas funções temporais, a inspeção do superior é naturalmente substituída pelo exame do sacerdócio e do público. É por isso que o chefe deve designar solenemente seu sucessor ao receber, como sabeis, o sacramento do retiro, numa idade em que sua escolha pode ainda ser livremente modificada de acordo com os avisos convenientes. Nos casos excepcionais o sacerdócio poderia, pois, recusando essa consagração, impedir suficientemente este derradeiro ato de um poder indigno ou incapaz.
A riqueza sendo socialmente concebida como uma autoridade, sua transmissão deve seguir as mesmas regras gerais. Esta livre escolha do herdeiro, em virtude de uma plena faculdade de testar e de adotar, fornece o melhor remédio contra os abusos ordinários da posse. Com efeito, cada qual fica então responsável por uma sucessão indigna, que atualmente não lhe pode acarretar nenhuma censura. É pouco para temer que a herança caiba ordinariamente a um dos filhos, se todos forem verdadeiramente incapazes; porquanto a tendência dos chefes industriais a perpetuarem dignamente suas casas os dispõe amiúde a escolher seus sucessores fora da própria família, o que eles não podem fazer hoje senão sacrificando suas filhas. É assim que a hereditariedade sociocrática, longe de diminuir o poder dos ricos, favorece-o mais do que a hereditariedade teocrática, ao passo que aumenta muito sua responsabilidade moral.
A MULHER — Tal explicação acaba, meu pai, de fazer-me conhecer assaz a constituição temporal do regime positivo. Podeis, portanto, apreciar diretamente a intervenção geral do sacerdócio da Humanidade nos principais conflitos cívicos.
O SACERDOTE — A fim de caracterizar melhor essa atribuição decisiva, julgo, minha filha, dever indicar-vos primeiro a estatística normal do patriciado para o conjunto [pág. 284] do Ocidente. Dois mil banqueiros, cem mil comerciantes, duzentos mil fabricantes e quatrocentos mil agricultores parecem-me fornecer chefes industriais em número suficiente para os cento e vinte milhões de habitantes que compõem a população ocidental. Nesse pequeno número de patrícios se acharão concentrados todos os capitais ocidentais, cuja ativa aplicação eles deverão dirigir livremente, sob sua constante responsabilidade moral, em proveito de um proletariado trinta e três vezes mais numeroso.
Em cada república particular, o governo propriamente dito, isto é, o supremo poder temporal, pertencerá naturalmente aos três principais banqueiros, respectivamente consagrados de preferência às operações comerciais, manufatureiras e agrícolas. É, pois, sobretudo a esses duzentos triúnviros que o sacerdócio ocidental, dirigido pelo Sumo Pontífice da Humanidade, deverá submeter dignamente as reclamações legítimas de um imenso proletariado. A classe excepcional, que habitualmente contempla o futuro e o passado, aplica, então, ao presente todas as suas solicitudes, falando aos que vivem em nome dos que viveram e pelos que hão de viver.
A MULHER — Essa linguagem, meu pai, parece-me basear-se sempre numa justa apreciação das diversas existências. Erigindo todos os cidadãos em funcionários sociais, em virtude da utilidade real de seus ofícios respectivos, o positivismo nobilita a obediência e consolida o comando. Em vez de ter um simples destino privado, cada atividade sente-se honrada pela sua digna participação no bem público. Ora, para obter esta salutar transformação, o sacerdócio nunca precisará suscitar um entusiasmo excepcional. Bastar-lhe-á sempre fazer prevalecer por toda parte uma exata apreciação das realidades habituais.
O SACERDOTE — Nosso princípio fundamental sobre a gratuidade necessária do trabalho humano proporciona, minha filha, poderosos meios de desenvolver melhor os sentimentos e as convicções que convêm a cada classe social. Quando o salário não é mais concebido como pagando o valor do funcionário, mas apenas os materiais que ele consome, o mérito pessoal de cada um sobressai mais aos olhos de todos. O sacerdócio pode, pois, cumprir melhor o seu principal dever social, que consiste em sempre opor dignamente a classificação abstrata dos indivíduos, segundo a apreciação intelectual e moral deles, à classificação concreta que resulta da subordinação dos ofícios. Este contraste, convenientemente desenvolvido, inspirará aos superiores melhores disposições para com seus inferiores, quando reconhecerem que a sua própria elevação é mais devida à situação do que ao mérito. Posto que só a vida subjetiva possa fazer verdadeiramente prevalecer a classificação pessoal sem suscitar nenhuma tendência subversiva, essa contraposição religiosa fará com que a classificação oficial possa ser mais bem apreciada, conservando-lhe todavia um justo respeito.
Porém, ao mesmo tempo, o sacerdócio fará sentir profundamente aos proletários as verdadeiras vantagens da condição social em que se acham. As almas preparadas por uma sábia educação, e constantemente penetradas de afetos domésticos, não lhes há de ser difícil demonstrar a realidade íntima desta admirável máxima do grande Corneille:
"Com passo mais firme seguimos do que guiamos".88
88 Verso da tradução da Imitação de Cristo por Corneille:
On va d'un pas plus ferme à suivre qu'à conduire. (Livro I, cap. 9.)
A felicidade que resulta de uma digna submissão e de uma justa irresponsabilidade será sem cessar apreciada nesta classe, quando a vida de família houver surgido convenientemente no meio mais apropriado a saboreá-la melhor. Então o proletariado sentirá que o principal ofício do patriciado consiste em proporcionar a todos o sossegado surto [pág. 285] dessas satisfações domésticas, nas quais reside sobretudo nossa verdadeira felicidade. Seu menor desenvolvimento nos chefes espirituais ou temporais, sempre preocupados de uma responsabilidade imensa, fará considerar geralmente como mais digna de pena do que de inveja uma elevação que não tem outra compensação sólida senão a de contribuir melhor para o bem público. Mas esta nobre recompensa só é assaz apreciada pelas almas de elite, sempre muito raras no patriciado, e mesmo no seio do sacerdócio. É necessário, pois, deixar um justo curso às satisfações vulgares do orgulho ou da vaidade, únicas de ordinário capazes de excitarem suficientemente o zelo que exigem o mando e o conselho.
A MULHER — Eu quisera, meu pai, conhecer de modo mais preciso essa atribuição fundamental dos livres administradores do capital humano destinada a assegurar aos proletários um digno surto da existência doméstica, primeira garantia normal da ordem civil.
O SACERDOTE — Limitai-vos, minha filha, a conceber cada homem primeiro como proprietário, depois como assalariado. Um proletário qualquer deve possuir todos os materiais de uso exclusivo e contínuo, quer seu, quer de sua família. Esta regra, evidentemente realizável, é o único meio de assegurar a ordem prática. Porém, longe estamos de seu digno preenchimento. Muitos homens estimáveis não gozam ainda da propriedade de seus móveis mais usuais; e alguns nem sequer têm a de seu vestuário. Quanto ao domicílio, vós sabeis que a maioria dos proletários está antes acampada do que alojada em nossas cidades anárquicas. Entretanto, bastaria decompor em apartamentos89 a venda ordinária das casas, como se vê em algumas cidades, para que cada família popular, após um leve acréscimo de aluguel durante alguns anos, viesse a possuir irrevogavelmente sua habitação.90
89 Em Paris as casas são era geral, subdivididas em appartements, que se alugam separadamente, morando assim várias famílias no mesmo prédio. O porteiro (concierge) representa o proprietário e serve de laço entre os diferentes inquilinos.
90 Posse normal do domicílio. "A existência material dos plebeus deve assentar, tanto como a dos patrícios, sobre uma ligação especial à sede planetária da Humanidade. Sem semelhante base, as operações quaisquer carecem de consistência, a continuidade fica comprometida, e mesmo a solidariedade permanece incompleta. Por falta desta conexão, a mais antiga e a mais importante das revoluções temporais, a passagem da existência nômade para a vida sedentária, ainda não se acha terminada em parte alguma. Porquanto a indústria ocidental oferece amiúde o escândalo de ricos empresários que não possuem os edifícios em que se efetuam suas funções habituais. Mas a principal imperfeição deste laço diz respeito aos proletários, que raramente satisfazem à lei social estabelecida no meu segundo volume. Para instituir o estado normal, é necessário que cada família se torne proprietária de tudo quanto lhe serve exclusiva e continuamente. Em relação aos proletários, pode-se condensar este princípio da posse do domicílio, além da qual a tendência deles para a propriedade se tornaria tão contrária à sua felicidade como ao seu dever.
"Esta apreciação comporta dois modos, conforme ela se limita ao apartamento ou se estende à casa inteira; como respectivamente o exigem a concentração urbana e o isolamento rural. O primeiro, aliás mais praticável, oferecerá diversas vantagens sociais, quando os costumes normais houverem dissipado as origens dos conflitos que ele agora poderia suscitar. Ele consolida a homogeneidade do proletariado desenvolvendo-lhe as relações pessoais, e cimenta os laços mútuos entre os plebeus e os patrícios sempre proprietários, e algumas vezes habitantes, das casas assim decompostas em apartamentos vendidos isoladamente. Em cada uma dessas casas, a disposição mais freqüente consistiria em três andares, habitando, cada um dos dois superiores, três famílias proletárias, reservando o resto para os locais industriais e a habitação principal. Um sétimo domicílio plebeu pertenceria à família encarregada de cuidar do conjunto do edifício, de manter nele a ordem comum e de facilitar as relações mútuas, representando a magistratura local do proprietário." (Política Positiva, tomo IV, pp. 338-339.)
"A aquisição do domicílio deverá estar realizada normalmente quando o jovem agente receber o sacramento da destinação, ou, pelo menos, antes do casamento, a fim de prover à segurança da nova família. O melhor modo consiste em uma anuidade setenal, descontada sobre os salários, antes que as despesas atinjam sua taxa normal. Todavia, o novo trabalhador não poderia ordinariamente preencher semelhante condição sem a assistência paterna, cujo último ato deve ser habitualmente suscitado por esse motivo." (Ibid., p. 340.) [pág. 286]
O culto e o regime privados determinam suficientemente a extensão normal de semelhante domicílio,91 e caracterizam a importância de sua fixidez, sem a qual se pode dizer que a primeira revolução humana, a passagem da vida nômade para o estado sedentário, fica inacabada. Tal fixidez deve mesmo reagir sobre a estabilidade material das relações industriais, suprimindo espontaneamente uma vagabundagem funesta. Se bem que consagre a plena liberdade do concurso humano, a religião positiva impõe a cada um o dever de nunca mudar sem graves motivos nem seus inferiores nem seus superiores. A própria mudança caprichosa dos fornecedores habituais torna-se censurável, pois que tende a perturbar a economia geral de suas operações, a qual supõe uma fixidez suficiente na clientela.92
91 Composição normal do domicilio. — É necessário completar estas determinações indicando, mas só quanto ao caso principal, a composição correspondente do domicílio doméstico. Confundindo as palavras família e casa na palavra menage, a linguagem indica uma apreciação universal da comunidade de habitação como resultado e condição de uma suficiente intimidade. É sobretudo assim que se pode circunscrever nitidamente a associação elementar, afastando os laços demasiado fracos para comportarem uma mesma residência.
"Segundo as indicações precedentes, cada um dos três elementos* da família proletária exige uma parte distinta do apartamento comum, além da sala de reunião e de recepção, de ordinário independente daquela em que os alimentos são separados e consumidos. Apesar da profundeza das simpatias e da identidade de educação, a diversidade das idades e das situações impediria uma suficiente harmonia, se o par ativo e o par passivo não pudessem, à sua vontade, reunir-se ou separar-se, e bem assim afastar as crianças. A parte reservada a estas deve sempre ser subdividida, a fim de isolar cada sexo, mas sem distinção de número. Enfim, toda família precisa de um oratório, em que cada qual possa desenvolver dignamente o culto pessoal, e que sirva de santuário para a comum celebração do culto doméstico. Assim composto de sete peças desiguais, sem nada conter de inútil, o apartamento normal do trabalhador não pode parecer exagerado senão em virtude da anarquia que dispõe os patrícios a descurarem seus deveres e os plebeus a menosprezarem sua dignidade. "Quando a religião positiva houver feito sentir assaz a importância universal da vida de família como a melhor garantia de ordem pública e a principal fonte da felicidade privada, todos os chefes reconhecerão obrigação de a consolidar por toda parte. Então a determinação precedente, fundada em motivos irrecusáveis, será geralmente considerada como fornecendo uma justa medida dos deveres dos ricos e das reclamações dos pobres, em nome do Grande Ser, cujos ministros e agentes são.
"Se se observar que semelhante regra determina para o domicílio doméstico um número de peças igual ao dos membros da família, poder-se-á estendê-la com facilidade do caso principal a cada um dos outros dois. Deixo ao leitor o cuidado de reconhecer assim que o apartamento deverá compreender dez ou treze peças, conforme a família for sacerdotal ou patrícia.** Esta lei permite apreciar nitidamente o verdadeiro luxo, a fim de que os costumes possam, estigmatizando o abuso, tolerar, sobretudo em relação ao patriciado, o grau que convém à imperfeição ordinária da natureza humana." (Ibid., pp. 294-296.)
* Estes três elementos são: os avós paternos, os pais e os filhos, respectivamente representantes do passado, do presente e do futuro. (M.L.)
** O aumento resulta das famílias agregadas como auxiliares (criados). (M.L.)
92 Reações da posse do domicílio. "Além de sua eficácia direta e especial, a apropriação do domicílio comporta indiretamente uma reação geral sobre o coração e o espírito, aumentando a fixidez dos sentimentos e dos pensamentos pela fixidez dos hábitos. Ela consolida e desenvolve o dever, demasiado descurado por toda parte, de nunca mudar arbitrariamente as relações práticas, mesmo com os mínimos fornecedores, a fim de facilitar as previsões industriais. Conquanto imposta pela moral positiva, esta obrigação social seria amiúde iludida, sobretudo entre os proletários, aos quais convém seu principal exercício, se a fixidez de habitação não viesse refrear os caprichos espontâneos.
"Mas a instituição urbana do domicílio popular comporta uma reação religiosa, que o estado normal deve desenvolver muito entre os filhos do Grande Ser. Não só cada um deles liga assim todo o passado de sua família ao apartamento em que nasceu, mas a aderência dessa habitação ao conjunto do edifício representa-lhe a solidariedade cívica, e mesmo o laço universal: porquanto a partilha do domínio planetário entre os possuidores do solo é análoga à da habitação social entre os clientes do proprietário comum, que lhes oferece, salvo o caso de indignidade, a imagem local do ser ao qual tudo pertence." (Ibid., pp. 339-340.)
Quanto ao salário periódico, deve ele compor-se normalmente de duas partes desiguais, uma independente do trabalho efetivo e peculiar ao ofício correspondente, outra [pág. 287] subordinada aos resultados diários. É o único meio de garantir os operários contra as chomagens93 que não lhes forem imputáveis, sem deixar contudo de permitir aos chefes um justo surto dos diversos aperfeiçoamentos industriais, sobretudo mecânicos. A extensão das máquinas que reergue a dignidade moral do trabalhador humano e aumenta sua eficácia material poderá então efetuar-se livremente, ao abrigo de toda censura social. Mas a proporção entre a parte fixa e a parte móvel do salário dos operários deve variar nas diferentes indústrias, segundo leis que só o patriciado pode determinar.94
93 Não há outro remédio senão aportuguesarmos a palavra chomage, pois não temos em nossa língua seu equivalente preciso, no sentido que este vocábulo francês tem hoje na vida industrial.
94 Composição do salário. "Seria supérfluo voltar aqui a ocupar-me do princípio de minha estática pessoal que prescreve a decomposição do salário normal em duas partes desiguais: uma fixa para cada operador, qualquer que seja o trabalho; outra proporcional ao produto da atividade. Esta lei é tão incontestável como a da gratuidade necessária do trabalho humano sobre a qual a primeira repousa, num regime em que tudo pertence ao Grande Ser, que confia seus tesouros aos seus ministros a fim de nutrir seus agentes. Devo, porém, completar agora essa lei ousando fixar a relação normal cuja determinação ulterior meu segundo volume* havia deixado a cargo dos chefes práticos. Reconheci depois que este princípio não poderia ser assaz apreciado se a iniciativa religiosa não lhe desse uma precisão imediata, salvo retificação final, como a respeito de todos os apanhados numéricos do presente capítulo. Eis aí por que não hesito em propor, por cada um dos treze meses do ano positivista, para cada trabalhador, um ordenado de cem francos, sempre dimanado do empresário correspondente, urbano ou rural, enquanto durar o livre contrato mútuo.
"Nas cidades, que cumpre instituir primeiro, esta taxa parece-me dever formar ordinariamente a terça parte do salário total, cuja parte móvel regulo em sete francos por dia médio de trabalho efetivo. Deixando sempre aos costumes as prescrições relativas às festas quaisquer, e à folga hebdomadária,** pode-se presumir que o culto será escrupulosamente praticado, sobretudo entre os proletários, aos quais é ele principalmente destinado. As taxas precedentes marcam, pois, nove francos para o sustento cotidiano de uma família operária, que as minhas explicações anteriores compõem normalmente de sete membros." (Política Positiva, tomo IV, pp. 340-341.)
* É este o Catecismo, composto entre o II e III vols. da Política Positiva. (O grifo é nosso.) (M. L.)
** Aproveitamos esta alusão incidente ao descanso semanal para dizer que meditações ulteriores levaram Augusto Comte a estabelecer dois dias consecutivos de folga por semana (domingo e lunedia), votados um à vida pública e o segundo à vida privada, como já o havia tentado uma lei de Cromwell (V. Lettres à Edger, p. 69). Todos sabem, aliás, da tendência universal a não se trabalhar no lunedia. (M. L.)
A MULHER — Apesar da influência salutar dessa ordem normal, sinto, meu pai, que o instinto destruidor, solicitando os outros pendores egoístas, suscitará sempre conflitos quaisquer entre os ocidentais regenerados. Devo, portanto, perguntar-vos qual será a intervenção do sacerdócio nesses debates inevitáveis.
O SACERDOTE — Ele esforçar-se-á primeiro, minha filha, por preveni-los tanto quanto for possível, mediante um criterioso emprego de sua disciplina espiritual. Esta difere sobretudo da regra temporal em excitar os bons pendores de preferência a combater os maus. Sua marcha é, pois, mais positiva do que negativa, corrigindo mais por comparação do que por compressão, recompensando os bons em vez de punir os maus; posto que também saiba proceder com rigor sendo necessário, como já vo-lo expliquei.
O conjunto destes meios prevenirá amiúde, ou reparará com brevidade, os conflitos cívicos provenientes da atividade prática, sob a influência do jogo natural das paixões egoístas. Toda a religião positiva tende a fazer sentir que, repousando sempre a sociedade sobre um livre concurso, não existem transações duráveis e modificações legítimas senão as que resultam de um assentimento voluntário dos diversos cooperadores. A maior das revoluções sociais, a abolição gradual da escravidão ocidental, realizou-se, na Idade Média, sem uma única insurreição.
Todavia, como nossa imperfeição cerebral não há de permitir ao sacerdócio o fazer sempre respeitar assaz as vontades humanas, ele deverá finalmente aplicar-se a moderar [pág. 288] os conflitos que não puder impedir. Sua regra geral, conforme à natureza da civilização moderna, consiste em estigmatizar radicalmente, por tão anárquico como retrógrado, todo processo militar dos superiores ou dos inferiores. Na associação industrial, as lutas materiais, quando não puderem ser evitadas, deverão basear-se na riqueza, concentrada ou dispersa, e nunca na violência pessoal, que cumpre reservar contra os malfeitores propriamente ditos. De fato, não se deve reprimir pela força senão os atos unanimemente reprovados, inclusive pelos seus próprios autores.
O instinto destruidor pode sempre admitir semelhante transformação, quase completa hoje relativamente às infrações crônicas, mesmo coletivas, e que só falta sistematizar, estendendo-as às perturbações agudas. Já as perseguições habituais, que outrora atentavam contra a vida, respeitam mesmo a liberdade, para se limitarem à fortuna, de maneira a se tornarem mais evitáveis e mais reparáveis: como, entre os criminosos, os roubos têm substituído os homicídios. Pode-se, pois, esperar que a religião positiva determinará os homens a liquidarem seus mais violentos debates sem nenhuma guerra propriamente dita, mesmo civil. A restrição normal das repúblicas parciais há de facilitar muito esta transformação final, aumentando ao mesmo tempo o poder do patriciado e a independência do proletariado.
A MULHER — Por mais preciosa que seja semelhante conversão das lutas materiais, ela parece-me, meu pai, mais vantajosa para os superiores do que para os inferiores. Renunciando a todo emprego habitual da força propriamente dita, para se cingirem a conflitos pecuniários, os trabalhadores parecem-me fazer um grande ato de generosidade social, aliás plenamente motivado. Receio, porém, que, deixando assim transportar os debates para o domínio peculiar aos empresários, aqueles não sejam amiúde vítimas do egoísmo dos ricos, mesmo quando tiverem obtido por toda parte a justa autorização de se coligarem à sua vontade sem nenhuma violência. Com efeito, por maior que seja o poder cívico que os plebeus possam tirar de suas dignas recusas coletivas de cooperação industrial, os imensos capitais de nossos patrícios permitirão talvez a estes superarem finalmente as mais justas resistências. Posto que o sacerdócio deva dar muita força às coligações operárias quando ele as tiver sancionado, temo ainda a abusiva preponderância da riqueza.
O SACERDOTE — A fim de tranqüilizar-vos, minha filha, considerai em primeiro lugar a influência habitual do sacerdócio sobre o patriciado em virtude de íntimas relações pessoais. Segundo nosso apanhado estatístico, o número normal dos banqueiros é igual, no Ocidente, ao dos templos positivistas, achando-se cada um destes naturalmente colocado sob o protetorado temporal do banqueiro adjacente, encarregado, pelo triunvirato nacional, de transmitir todos os pagamentos sacerdotais. Daí resultarão freqüentes relações entre os padres e os principais chefes industriais, de maneira a reanimar especialmente nestes a veneração nascida da própria educação que receberam e prolongada pela dos filhos.
A MULHER — Consenti, meu pai, que vos interrompa um momento quanto a esta última influência. Como nossa instrução enciclopédica não deve nunca tornar-se obrigatória, os ricos talvez sejam levados, por um tolo orgulho, a não deixar que seus filhos participem desse ensino, e sobretudo suas filhas, embora tenham de renunciar aos sacramentos subseqüentes, e mesmo às recomendações sociais que ele há de proporcionar. Isto posto, a influência pessoal que assinalais ficaria essencialmente reduzida à deferência involuntária que por toda parte obtêm o talento e a virtude.
O SACERDOTE — Essa objeção incidente, minha filha, é mais forte do que cuidais; entretanto, afastá-la-ei sem custo. De fato, não será necessário ter freqüentado nossas [pág. 289] escolas positivistas para ser admitido a receber nossos sacramentos sociais, e mesmo para ser submetido aos nossos exames públicos, nos quais não se indagará nunca de quem provém a instrução, contanto que esta seja real e suficiente. Apenas, quando ela não dimanar do sacerdócio, nossos padres precisarão empregar mais esforços a fim de colher as informações morais que serão sempre tão indispensáveis como os julgamentos intelectuais.
Apesar desta plena liberdade de ensino, que aliás aumentará o zelo dos professores, as escolas oficiais não serão nunca abandonadas pelos ricos, a menos que o sacerdócio degenere; porquanto eles não hão de querer que seus filhos fiquem abaixo da instrução popular, da qual, entretanto, não poderão proporcionar-lhes, mesmo com grandes despesas, um equivalente privado. Com efeito, o sacerdócio há de naturalmente absorver os melhores professores, que suas outras funções afastarão sempre do ensino particular, o qual, aliás, como sabeis, lhes será severamente proibido. Os mestres privados recrutar-se-ão, pois, entre os homens incapazes de se tornar padres ou mesmo vigários; de sorte que suas lições serão habitualmente desconceituadas.
A MULHER — Esta explicação tranqüiliza-me completamente, meu pai, a respeito das repugnâncias aristocráticas contra nossa educação universal. Assim, rogo-vos que retomeis vossa importante apreciação das influências peculiares ao sacerdócio positivo para prevenir ou reparar, junto dos chefes industriais, os mais graves conflitos práticos.
O SACERDOTE — Além de suas relações pessoais com a primeira classe patrícia, que tanto pode reagir sobre as outras, o sacerdócio achará por toda parte, minha filha, auxiliares especiais, mediante uma digna reorganização do protetorado voluntário. A instituição cavalheiresca não é de modo algum peculiar à existência militar, cujo brutal princípio devia, pelo contrário, ter dificultado muito seu admirável surto na Idade Média. Ela convém mais, sob melhores formas, ao regime positivo, em que a proteção, posto que tornada essencialmente pecuniária, suscitará amiúde devotamentos menos brilhantes, porém mais eficazes e, por outro lado, mais bem regularizados. Muitos chefes industriais, sobretudo entre os banqueiros, se filiarão, desde a mocidade, à livre associação que, dispondo de capitais imensos, exercerá espontaneamente, ou ao apelo do sacerdócio, uma generosa intervenção nos principais conflitos. Seu nobre patrocínio não se limitará aos proletários oprimidos: deverá também garantir os sacerdotes contra a tirania temporal. 95
95 Organização da cavalaria industrial. "Cumpre ligar mais importância ao suplemento universal, ao mesmo tempo moral e político, proveniente do desenvolvimento sistemático da cavalaria, cujo germe feudal deve ser dignamente cultivado no estado industrial, salvo as modificações práticas. O protetorado voluntário devendo, como as ofensas que repara ou previne, referir-se mais aos bens que às pessoas, sua organização se tornará mais fácil e mais vasta. Sua principal consistência assentará sobre um núcleo central, formado de patrícios viúvos, solenemente votados a esse livre ofício, mas sem deixar de participar da vida prática, salvo retiros periódicos em edifícios especiais, a fim de retemperarem sua vocação junto ao sacerdócio. Em torno deles se agremiarão, antes da maturidade, os que, providos de fortuna suficiente, aspiraram a fazer parte um dia da corporação protetora. Semelhante consagração fará compreender melhor quanto importa respeitar o livre emprego dos capitais, mesmo nos que, destituídos de um ofício determinado, podem excepcionalmente se tornar os mais úteis dos ricos, dirigindo bem sua disponibilidade especial. A cavalaria central há de habitualmente encontrar um segundo apoio entre os velhos do patriciado, que amiúde conservarão uma grande autoridade, mesmo depois de terem transmitido a sua principal riqueza. Enfim, ela se completará pela afiliação universal dos melhores proletários, cujo devotamento e energia compensarão a pobreza, para proporcionar à livre tutela uma aliança decisiva." (Ibid., pp. 336-337.)
A MULHER — Esta preciosa instituição parece-me completar, meu pai, o conjunto dos meios próprios ao sacerdócio da Humanidade para regular dignamente as relações [pág. 290] cívicas. Podeis, portanto, explicar-me sua intervenção normal nas relações universais.
O SACERDOTE — Cumpre, minha filha, distinguir nessas relações duas classes, conforme dizem respeito a populações positivistas ou a povos ainda alheios à verdadeira religião.
O primeiro caso só exige de fato uma simples extensão das considerações precedentes; de modo que pode ser prontamente apreciado. Mesmo a influência sacerdotal torna-se aí a um tempo mais fácil e mais decisiva, porquanto, após a próxima decomposição dos Estados atuais, a grande República Ocidental ficará dividida em sessenta repúblicas independentes, que só terão de verdadeiramente comum seu regime espiritual. Aí nunca surgirá nenhuma autoridade temporal suscetível de mandar por toda parte, como o vão imperador da Idade Média, o qual não foi, em relação ao sistema católico, senão um destroço perturbador, empiricamente dimanado da ordem romana. Todas as operações coletivas, aliás puramente temporárias, serão sempre conduzidas na nova ordem mediante o concerto passageiro dos triunviratos correspondentes. Quanto às instituições práticas que se devem tornar verdadeiramente universais, seu próprio destino as reserva constantemente ao sacerdócio, único capaz de as fazer livremente prevalecer por toda parte, apesar das rivalidades nacionais. Os governos especiais só devem intervir aí para facilitar a fundação delas, fazendo as despesas convenientes. É só por esta forma que as moedas, as medidas, etc., podem adquirir, rápida e pacificamente, uma verdadeira universalidade.
Assim, as sessenta repúblicas do Ocidente regenerado não se acharão habitualmente ligadas entre si senão por uma mesma educação, por costumes uniformes e por festas comuns. Em uma palavra, sua união será religiosa, e não política; salvo as relações históricas provenientes das agregações anteriores, e em breve obliteradas pelas novas aproximações, quando não se apoiarem na comunhão da linguagem. O Sumo Sacerdote da Humanidade constituirá, melhor do que nenhum papa da Idade Média, o único chefe verdadeiramente ocidental. Ele poderá, portanto, em caso de necessidade, concentrar toda a ação sacerdotal, a fim de reprimir cada triunvirato tirânico, invocando aliás os cavalheiros vizinhos, e mesmo a pacífica mediação dos governos imparciais. Se, contudo, as lutas industriais se tornarem inevitáveis, sua digna sanção poderá dar às coligações operárias uma extensão decisiva, fazendo com que nelas tomem parte todos os colaboradores ocidentais, mesmo fora da profissão comprometida. Mas reciprocamente, quando o sacerdócio censurar a conduta dos trabalhadores, ou somente recusar aprová-la, os empresários vencerão facilmente todas as reclamações viciosas.
A MULHER — Agora, meu pai, só temos que determinar as relações sistemáticas da população positivista com as nações que ainda não tiverem abraçado a religião universal.
O SACERDOTE — Em virtude da íntima conexão proveniente da iniciativa católico-feudal, sucedendo por toda parte a incorporação romana, vós Concebeis, minha filha, que a nova fé há de prevalecer simultaneamente no conjunto do Ocidente europeu, compreendidos seus diversos apêndices coloniais, sobretudo americanos. As convergências devidas ao surto positivo, científico, estético e técnico sobrepujam, a muitos respeitos, as divergências oriundas da ruptura do laço católico e mesmo de uma viciosa nacionalidade. Mas esta vasta república espiritual mal compreende a quinta parte de toda a população humana. Importa, pois, apreciar, em geral, o modo por que o Ocidente regenerado deverá gradualmente reunir debaixo de sua fé os habitantes quaisquer do nosso planeta.
Quando a reorganização ocidental se achar suficientemente assegurada, este digno proselitismo exterior se tornará a principal ocupação coletiva do sacerdócio positivo. [pág. 291] Apesar das pretensões temporais, seu privilégio exclusivo para tal atribuição não pode ser contestado. Se o sacerdócio já é o único competente para regular dignamente as relações mútuas dos diversos povos ocidentais, com mais forte razão deve reger, sem concorrência alguma, as mais vastas relações sociais. Através dos domínios efêmeros e desastrosos, é aos aperfeiçoamentos científicos ou técnicos que são realmente devidas todas as comunicações úteis e duráveis do Ocidente com o resto do planeta humano. O gênio sempre relativo do positivismo o torna exclusivamente apto para comportar verdadeiras missões, capazes de agregar gradualmente as populações quaisquer à sua unidade característica, única digna de tudo abraçar.
A MULHER — Essa imensa conversão, necessária à plena constituição do Grande Ser, deve seguir, meu pai, uma marcha natural, cujo caráter essencial eu quisera conhecer.
O SACERDOTE — Este resulta, minha filha, das afinidades decrescentes do positivismo ocidental com as diversas populações estranhas, primeiro monoteístas, em seguida politeístas, e enfim fetichistas. Porém, os casos que parecem mais desfavoráveis, em virtude de uma menor preparação espontânea, comportam, pelo contrário, uma maior intervenção sistemática, quando se aplica dignamente a teoria geral das transições humanas. Toda a conversão pode ser suficientemente esboçada em três gerações, uma para cada grau principal, deixando ao século seguinte o desenvolver as diferentes bases de uniformidade assentadas por um sacerdócio numeroso e zeloso, se este for convenientemente assistido.
O primeiro caso diz respeito aos monoteístas orientais, primeiro cristãos depois muçulmanos ou à Rússia e à Turquia com a Pérsia.96 Tanto de um lado como do outro pode-se erguer as populações ao nível final do Ocidente, sem lhes impor uma servil e perigosa imitação da marcha tempestuosa e difícil que a evolução original exigiu. Mesmo desde já, o positivismo fornecerá, pela sua teoria histórica, preciosas luzes aos nobres governos que se esforçam por dirigir esta ascensão necessária, preservando-a das perturbações ocidentais. A Rússia, que no século passado se guiava pela França, é agora levada a isolar-se dela sistematicamente. Esta mudança é muito criteriosa, pois que a antiga imitação exporia doravante as populações eslavas a perturbações imensas, sem lhes proporcionar nenhum progresso verdadeiro, intelectual ou social.
96 Augusto Comte retificou depois esta ordem, colocando a Turquia antes da Rússia: "Para a primeira fase da transição complementar, não hesito em resolver esta questão, representando a regeneração positiva como devendo prevalecer primeiro na Turquia, depois na Rússia, enfim na Pérsia". Segue-se a explicação da origem da ordem primitiva e uma exposição dos fundamentos em que assenta a emenda. (Política Positiva, tomo IV. p. 505.)
Mas, quando Paris regenerado cessar de oferecer por toda parte um tipo insurrecional, poderá fornecer aos dignos czares noções e auxílios próprios para secundar sistematicamente seu admirável zelo espontâneo pelo pacífico melhoramento interior de seus vastos Estados. Em vez de invitá-los a imitarem um passado que não comporta nenhuma reprodução, o positivismo exortá-los-á em breve a apreciar melhor suas próprias vantagens. Por exemplo, a decomposição das grandes fortunas feudais foi necessária na França para preparar o advento de um novo patriciado, sob o surto efêmero das classes médias. Na Rússia, pelo contrário, importa hoje manter a concentração de riqueza exigida pelo estado final, e que nós teremos aqui muito trabalho para reconstruir. Todo o esforço de um sábio autocrata deve, então, limitar-se à transformação industrial do caráter militar, baseada já na permanência, doravante inalterável, da paz universal. [pág. 292]
A MULHER — Semelhante influência dos conselhos positivistas parece-me, meu pai, limitada à Rússia, em virtude de sua analogia religiosa com o Ocidente. A Turquia, porém, e a Pérsia talvez não comportem senão uma intervenção muito menor, pois que nem sequer chegaram à monogamia.
O SACERDOTE — A poligamia é hoje, minha filha, mais real amiúde em Paris do que em Constantinopla. Além de o islamismo ter passado pela mesma dissolução que o catolicismo, formamos em geral uma idéia exagerada da diversidade de costumes e de opiniões entre os orientais e os ocidentais; como o atesta a tendência espontânea dos muçulmanos a nos tomarem por guias.
Repelindo a divisão dos dois poderes, a fim de constituir melhor sua teocracia militar, o incomparável Maomé pressentiu que esse imenso aperfeiçoamento da ordem social era ainda prematuro, por ser incompatível com o princípio teológico. Ele teve, então, de considerar semelhante tentativa como peculiar ao Ocidente, onde o seu malogro final havia de suscitar durante muito tempo graves perigos. Se o islamismo privou os orientais dos admiráveis progressos realizados na Idade Média, sob o impulso católico, ele preservou-os mais tarde da transição anárquica que nos atormentou durante os cinco últimos séculos, e de onde resultam hoje tantos obstáculos. Graças ao seu regime, os muçulmanos estão essencialmente isentos de metafísicos e mesmo de legistas. O positivismo, demovendo-os de uma imitação desastrosa, lhes fará apreciar cordatamente esta vantagem capital, que muito pode secundar a regeneração final deles.
A MULHER — Compreendo, meu pai, semelhante relação, cujo princípio tinha-me escapado, por não conhecer assaz vossa teoria histórica. Mas, quanto aos politeístas, que formam quase a metade da população humana, surpreender-me-ia muito que a nossa fé comportasse imediatamente uma eficácia equivalente, pois que a distância é aí demasiado grande.
O SACERDOTE — Pelo contrário, minha filha, nós podemos vir a ser muito mais úteis aos politeístas do que aos monoteístas, poupando-lhes uma transição mais longa e difícil. Seu surto espontâneo talvez os fizesse passar primeiro por um monoteísmo qualquer, posto que eles pouco propendam para isso observando o descrédito total em que o monoteísmo tem caído, há um século pelo menos, no Ocidente e mesmo no Oriente. Mas a religião positiva os dispensará dessa marcha empírica, instituindo especialmente a transição direta deles para a fé final do homem. O monoteísmo só é verdadeiramente necessário na evolução original. Muitos dos nossos adolescentes deixarão espontaneamente de passar por essa fase durante seu noviciado enciclopédico. Com mais forte razão, o zelo sistemático do sacerdócio ocidental poderá preservar do monoteísmo os politeístas atuais, cujos principais dogmas são transformáveis em noções positivas cobertas apenas de uma espécie de iluminura divina, que não tardará em desvanecer-se.97
97 V. no tomo IV da Política Positiva, p. 511, as transformações transitórias a efetuar no dogma positivo a fim de adaptá-lo a facilitar a passagem das populações politeístas para o positivismo.
A MULHER — Quanto aos fetichistas, aliás pouco numerosos, seu estado parece-me, meu pai, por tal forma afastado do nosso que não concebo a possibilidade de os trazer rapidamente ao nível final do Ocidente.
O SACERDOTE — Apesar de seu pequeno número, minha filha, eles ocupam, no centro da África, uma vasta região completamente inacessível ainda à nossa civilização, que não poderá penetrar aí senão sob o impulso prolongado do sacerdócio positivo. Nossos dignos missionários acharão aí o caso mais apropriado para estimular os esforços teóricos e o zelo prático, propondo-se estender diretamente a religião universal por essas [pág. 293] ingênuas povoações, sem lhes impor nenhuma transição monotéica, nem mesmo politéica. A possibilidade de semelhante sucesso resulta da profunda afinidade do positivismo com o fetichismo, que não difere daquele, quanto ao dogma, senão em confundir a atividade com a vida, e, quanto ao culto, em adorar os materiais em vez dos produtos.
Em toda iniciação humana, espontânea ou dirigida, o fetichismo constitui o único modo do regime fictício verdadeiramente inevitável, porque ele surge em uma época em que a espécie e o indivíduo são incapazes de reflexões quaisquer. Cada uma das duas fases preliminares pode ser poupada à evolução plenamente sistemática. Se tivéssemos empenho em preservar nossos filhos do politeísmo, poderíamos consegui-lo prolongando o estado fetíchico até que, por modificações graduais, ele fosse terminar no positivismo. Mas este esforço careceria, então, de oportunidade, sem falar de sua tendência a perturbar o surto natural da imaginação humana. O caso é muito diverso tratando-se da evolução coletiva da África central, onde tais transformações comportarão a mais salutar eficácia, tanto local como universal.
A MULHER — Só tenho, meu pai, uma última observação a submeter-vos acerca dessas imensas transformações intelectuais e sociais, que dão tanto interesse às mais vastas relações humanas, sempre maculadas até aqui de egoísmo e de empirismo. Sem partilhar de modo algum dos bárbaros prejuízos dos brancos contra os pretos, ouso apenas esperar que a universalidade da fé positiva não seja indefinidamente estorvada pela diversidade das raças.
O SACERDOTE — A verdadeira teoria biológica das raças humanas resulta, minha filha, da concepção de Blainville, que representa essas diferenças como variedades devidas ao meio, mas que se tornaram fixas, mesmo hereditariamente, logo que atingiram sua maior intensidade. Segundo este princípio, pode-se construir subjetivamente uma doutrina essencialmente de acordo com as únicas diversidades verificadas pela apreciação objetiva, que não admite realmente senão três raças distintas, branca, amarela e preta.
Com efeito, as únicas diferenças essenciais e duráveis que se podem ter desenvolvido são as que se referem ao predomínio relativo das três partes fundamentais do aparelho cerebral, especulativa, ativa e afetiva. Tais são, portanto, as nossas três raças necessárias, das quais cada uma é superior às outras duas, ou em inteligência, ou em atividade, ou em sentimento, como o confirma o conjunto das sãs observações. Esta apreciação final deve demovê-las de todo desdém mútuo e fazer-lhes igualmente compreender a eficácia de seu concurso íntimo, para acabar de constituir o verdadeiro Grande Ser.
Quando nossos trabalhos houverem saneado uniformemente o planeta humano, estas distinções orgânicas tenderão a desaparecer, em virtude mesmo de sua origem natural, e sobretudo mediante dignos casamentos. A combinação crescente dessas raças nos proporcionará, sob a direção sistemática do sacerdócio universal, o mais precioso de todos os aperfeiçoamentos, aquele que diz respeito ao conjunto de nossa constituição cerebral, assim tornada mais apta para pensar, agir e mesmo amar. [pág. 294]
CONCLUSÃO
HISTÓRIA GERAL
DA RELIGIÃO
[pág. 295]
DUODÉCIMA CONFERÊNCIA
PASSADO FETÍCHICO E TEOCRÁTICO COMUM A TODOS OS POVOS
A MULHER — Estas conferências finais inspiram-me de antemão um vivo atrativo, meu caro pai, pela necessidade que freqüentes vezes tenho sentido de semelhante complemento histórico durante a tríplice exposição que terminais. Já compreendi, em muitos casos, que o estado final regulado pela Religião da Humanidade tem de ser sempre precedido de uma longa e difícil iniciação, indispensável sobretudo a toda evolução original. Mas estas vistas parciais não fazem senão avivar, sem o satisfazer, meu desejo de conhecer sumariamente a teoria histórica que vos permite apreciar o passado de modo a determinar o futuro, para caracterizar o presente.
O SACERDOTE — O principal fundamento dessa teoria consiste, minha cara filha, na dupla lei de evolução mental que vos é agora familiar. Já sabeis como dela resulta a decomposição geral da preparação humana, começada pelo fetichismo, desenvolvida segundo o politeísmo e completada sob o monoteísmo. Contudo, antes de irmos mais longe, deveis voltar a considerar rapidamente este principio fundamental, a fim de julgardes indispensável a marcha que primeiro vos pareceu apenas inevitável.
Apreciai sobretudo a necessidade intelectual de tal iniciação, porque essa necessidade é menos compreendida que outra qualquer. Se toda verdadeira teoria assenta necessariamente sobre fatos observados, não é menos certo que toda observação seguida exige uma teoria qualquer. O espírito humano não podia, pois, achar outra saída primitiva senão num método puramente subjetivo, tirando do interior os meios de ligação que o exterior só havia de fornecer após um longo estudo. Então o sentimento supre a impotência da inteligência, fornecendo-lhe o princípio de todas as explicações, pelos afetos correspondentes dos seres quaisquer, espontaneamente assimilados ao tipo humano. Mas esta filosofia inicial é necessariamente fictícia e, por conseguinte, apenas provisória. Ela institui, entre a teoria e a prática, um antagonismo contínuo, que, gradualmente modificado em virtude da reação crescente da atividade sobre a inteligência, prolonga-se durante toda a nossa preparação e só finaliza no estado positivo. Ao passo que a especulação atribuía tudo a vontades arbitrárias, a ação supunha sempre leis invariáveis, cujo conhecimento, cada vez menos empírico e mais extenso, acabou renovando o entendimento humano.
A MULHER — Eu precisava, meu pai, de semelhante explicação para compreender o destino filosófico do regime inicial, conquanto já lhe tivesse sentido bastante a aptidão poética. Porém, sua necessidade moral não me parece exigir nenhum esclarecimento. Quem quer que tenha observado bem as crianças, ou mesmo apreciado os selvagens através das narrativas dos viajantes, deve considerar esse sustentáculo exterior como indispensável à nossa fraqueza primitiva. O regime fictício é ainda mais apropriado para desenvolver nossa ternura, à qual o estado positivo não pode fornecer um [pág. 297] alimento equivalente senão quando atinge sua plena madurez. Conveniente assim à nossa tríplice natureza individual, a religião inicial deve igualmente aplicar-se à nossa existência social, que a princípio não podia achar nenhuma outra fonte de opiniões comuns nem de autoridades diretoras.
O SACERDOTE — Para completar esta teoria fundamental da evolução humana, só me resta, minha filha, indicar-vos a lei que regula nossa marcha temporal. Ela oferece, como a marcha espiritual, e por motivos análogos, a sucessão necessária de três estados distintos: o primeiro puramente provisório, o segundo simplesmente transitório e o terceiro único definitivo, conforme os diversos modos de nossa atividade. Com efeito, a existência humana começa por ser essencialmente militar, para se tornar enfim completamente industrial, passando por uma situação intermediária em que a conquista se transforma em defesa. Tais são, evidentemente, os caracteres respectivos da civilização antiga, da sociabilidade moderna e da transição peculiar à Idade Média.
Esta marcha da atividade resulta, como a da inteligência, da impossibilidade de qualquer outra saída primitiva. O estado social não pode, sem dúvida, consolidar-se e desenvolver-se senão pelo trabalho. Mas, por outro lado, o surto do trabalho supõe tanto a preexistência da sociedade quanto o da observação exige o impulso teórico. O desfecho de semelhante perplexidade opera-se, pois, ainda mediante uma evolução espontânea, que dispensa toda preparação complicada. Ora, a atividade guerreira é a única que preenche esta condição, por causa do predomínio natural do instinto destruidor sobre o instinto construtor. Não comportando eficácia senão mediante um exercício coletivo, ela é eminentemente própria para suscitar associações consistentes e duráveis, em que a simpatia se torna muito intensa, embora muito restrita, por efeito de uma profunda solidariedade. Enfim, só ela pode determinar a formação dos grandes Estados segundo uma incorporação gradual, que comprime a turbulência militar por toda parte, exceto no povo dominador, onde seu caráter eleva-se, graças a um nobre destino. Não existe outro meio geral de superar a repugnância que no princípio inspira ao homem todo trabalho regular.
Quando este domínio guerreiro adquire bastante extensão, o regime primitivo tende a transformar-se espontaneamente, porque a defesa se torna mais importante do que a conquista. Passa-se, então, ao modo intermediário, durante o qual a preponderância militar prepara a existência industrial, que não tarda em ser a única suscetível de um surto contínuo.
A MULHER — A evolução da atividade parece-me, meu pai, mais fácil de apanhar que a da inteligência. Surpreende-me, porém, que julgueis sua combinação suficiente para fundar a teoria histórica. É verdade que elas se correspondem espontaneamente; porquanto a síntese fictícia adapta-se à guerra como a religião positiva ao trabalho: sente-se mesmo que o espírito metafísico devia ter prevalecido enquanto a atividade militar foi essencialmente defensiva. Contudo, esta concepção dinâmica da humanidade não me parece assaz conforme a noção estática de nossa natureza, na qual o sentimento domina ao mesmo tempo a inteligência e a atividade. Depois da dupla lei da evolução espiritual, e da que regula a marcha temporal, eu esperava uma apreciação equivalente acerca da vida afetiva, sem a qual não compreendo nem o movimento nem a existência.
O SACERDOTE — Vós esqueceis, minha filha, que a principal região do cérebro não tem, como as outras duas, comunicações diretas com o exterior, que não pode, portanto, modificar o sentimento senão por intermédio da inteligência ou da atividade. Verdade é que os órgãos afetivos se acham imediatamente ligados às vísceras vegetativas. Mas a influência moral destas, aliás submetida a leis pouco conhecidas, só se torna [pág. 298] considerável na existência pessoal. Fica omissível em relação ao estado social, em virtude da neutralização espontânea que ela aí experimenta entre os diversos casos, simultâneos ou sucessivos.
Nossas opiniões e nossas situações constituem, portanto, as únicas fontes normais das variações por que passam nossos sentimentos nas diferentes fases da evolução humana, sobretudo coletiva. Porém, a marcha geral destas mudanças indiretas é, aliás, conforme com a das mutações diretas de que dependem. Porquanto, se se pode resumir a evolução especulativa e a evolução ativa considerando-as como tendendo a tornar-nos mais sintéticos e mais sinérgicos, reconhece-se igualmente que a nossa evolução afetiva consiste sobretudo em tornar-nos mais simpáticos. Nossa existência sendo principalmente caracterizada pela unidade, nosso surto deve essencialmente desenvolver a harmonia humana. Assim, toda a história da Humanidade condensa-se necessariamente na história da religião. A lei geral do movimento humano consiste, sob qualquer aspecto, em que o homem se torne cada vez mais religioso. Tal é o resultado final do conjunto das apreciações dinâmicas, desde logo plenamente acordes com as noções estáticas: a educação da espécie, como a do indivíduo, prepara-nos gradualmente a viver para outrem.
A MULHER — À vista deste último esclarecimento, não encontro agora, meu pai, nenhuma grave dificuldade na teoria da evolução que serve de base à verdadeira filosofia da história. Podeis, por conseguinte, proceder imediatamente à sumária explicação das principais fases da Humanidade.
O SACERDOTE — A fim de vos facilitar este estudo, convido-vos, minha filha, a consultar amiúde o quadro aqui anexo (vide o quadro D), extraído da quarta edição do Sistema Geral de Comemoração Pública Peculiar à Transição Orgânica da República Ocidental.98
98 Reproduzimos o Calendário Concreto segundo a edição dada pelo Dr. Robinet no seu livro biográfico sobre Augusto Comte, porque nela foram contempladas as indicações manuscritas deixadas, sobre este assunto, pelo Mestre.
A propósito do calendário, lembraremos que a era positivista provisória, atualmente usada por nós, é referida a 1.º de janeiro de 1789, ano em que o povo parisiense iniciou a Revolução Francesa derrocando a Bastilha. A era supra deverá ser conservada até o fim da transição orgânica, "porque importa que todos os ocidentais possam medir habitualmente o curso da crise final. Mas o estado normal não pode conservar uma era que lembra uma explosão anárquica seguida logo de uma longa retrogradação. Entretanto, não se poderia ligar assaz o futuro ao passado sem tomar no século excepcional o ponto de partida da cronologia final. Para conciliar estas duas condições, basta colocar a era positiva no início da transição orgânica, reservada à última das três gerações compreendidas entre a extinção do teologismo e o estabelecimento do positivismo. Fixado cronologicamente no ano de 1855, este ponto de partida se acha aí sociologicamente caracterizado pela coincidência decisiva de uma irrevogável ditadura com a inteira construção da Religião da Humanidade. As duas eras, provisória e definitiva, do calendário positivista devem, portanto, diferir de dois terços de século; o que facilita a comparação habitual entre o presente e o futuro ou o passado". (Política Positiva, tomo IV, pp. 399-400.)
Haveis logo de notar neste quadro a ausência total de indicações relativas ao fetichismo, que constitui entretanto nosso estado primordial, e que ainda subsiste em numerosas populações. Mas esta lacuna inevitável só é devida à natureza concreta deste quadro, incapaz de abraçar uma fase histórica que não fez surgir nenhum nome duradouro. O fetichismo não pode ser dignamente celebrado senão no nosso culto abstrato, onde sabeis quanto o honraremos.
A eficácia mental do fetichismo consiste sobretudo em fundar espontaneamente o método subjetivo, que, absoluto a princípio, dirigiu o conjunto da preparação humana, e que, tornado relativo, presidirá cada vez mais ao nosso estado normal. A verdadeira lógica, em que os sentimentos dominam as imagens e os sinais, tem, pois, uma origem fetíchica. [pág. 299] Quando uma paixão qualquer nos impele a procurar as causas dos fenômenos cujas leis ignoramos, a fim de os modificar depois de os ter previsto, nós atribuímos diretamente aos seres correspondentes afeições humanas, em vez de os sujeitar a vontades exteriores. O fetichismo é, pois, mais natural que o politeísmo.
Não se pode contestar sua aptidão moral, à vista de sua tendência a fazer prevalecer espontaneamente por toda parte o tipo humano. Ele torna-nos profundamente simpáticos em relação a todas as existências, mesmo as mais inertes, apresentando-no-las sempre como essencialmente análogas à nossa. Por isso também este primeiro estado da Humanidade desperta mais saudades do que qualquer outro naqueles que são a ele subtraídos bruscamente; como o atesta a experiência cotidiana dos infelizes africanos transportados para longínquas terras pela barbárie ocidental.
Mesmo sob o aspecto social, menos favorável ao fetichismo, devem-se-lhe importantes serviços, que o culto positivo dignamente glorificará. Enquanto a existência permanece nômade, ele modera, pela sua tendência à adoração material, as imensas destruições, aliás necessárias, embora cegas, que os povos caçadores ou pastores exercem, então, sobre os animais ou vegetais, para preparar o teatro humano. Porém, o seu principal benefício consiste em dirigir espontaneamente a primeira das revoluções sociais, aquela que serve de base a todas as outras, a passagem para o estado sedentário. Esta grande transformação, cuja dificuldade é tão mal aquilatada quanto à sua importância, pertence certamente ao fetichismo, em virtude do profundo apego que ele nos inspira pelo solo natal.
A principal imperfeição deste regime espontâneo consiste em não deixar surgir senão muito tardiamente um sacerdócio qualquer, capaz de regular em seguida o surto humano. Porquanto este culto, apesar de muito desenvolvido, não exige no princípio nenhum sacerdote, visto sua natureza essencialmente privada, que permite a cada um adorar sem intermediário seres quase sempre acessíveis. Todavia, o sacerdócio acaba por surgir aí, quando os astros, por longo tempo desdenhados, se tornam os principais fetiches, desde logo comuns a vastas populações. A natureza inacessível deles sendo assaz reconhecida, suscita uma classe especial, destinada a transmitir as homenagens e a comentar as vontades. Mas, neste estado final, o fetichismo confina com o politeísmo, que por toda parte proveio da astrolatria, como ainda o indicam os nomes dos grandes deuses, sempre tirados dos astros mais adequados a perpetuarem a síntese fictícia.
A MULHER — Conquanto essa passagem se tenha realizado sem esforço, ela parece-me constituir, meu pai, a mais difícil das revoluções preliminares de nossa inteligência; porquanto temos, então, que substituir bruscamente a atividade pela inércia em nossa concepção geral da matéria, para motivar a influência divina.
O SACERDOTE — Todavia, minha filha, os agentes exteriores introduzem-se espontaneamente quando o espírito humano, atingindo sua segunda infância, eleva-se da contemplação dos seres à dos acontecimentos, única base possível das meditações científicas. Prolongando o método inicial, os fenômenos, considerados simultaneamente em muitos corpos, são então atribuídos a vontades mais gerais, necessariamente dimanadas do exterior. Esta transformação intelectual deveria ser-nos familiar à vista dos freqüentes exemplos que dela podemos observar na idade correspondente da evolução individual.
Seja como for, é principalmente do politeísmo que depende o conjunto da preparação humana, sobretudo social e mesmo mental. Em primeiro lugar, só ele é que completa a filosofia inicial, estendendo-a às nossas mais elevadas funções, que em breve suscitam a ocupação favorita dos deuses. Com efeito, o fetichismo, essencialmente relativo ao mundo material, não podia abarcar de modo distinto nossa existência intelectual e moral, [pág. 300] da qual procediam, pelo contrário, todas as suas explicações físicas. Introduzindo, porém, seres sobrenaturais, pode-se adaptá-los a este novo destino, que não tarda em prevalecer. Ao mesmo tempo, o politeísmo suscita necessariamente um sacerdócio propriamente dito, ou antes, consolida e desenvolve aquele que a astrolatria fundou.
No meio das variedades que apresenta o regime correspondente, notam-se duas instituições conexas, que são comuns a todos os seus modos: a confusão radical dos dois poderes, espiritual e temporal; a escravidão da população laboriosa.
Todos os motivos, mesmo intelectuais, e sobretudo sociais, concorrem espontaneamente para a explicação da primeira. Em primeiro lugar, ninguém pode limitar-se a aconselhar quando fala em nome de uma autoridade sem limites, cujas inspirações todas se transformam naturalmente em comandos absolutos. Em segundo lugar, nosso regime preliminar devia sobretudo desenvolver as diversas forças humanas, reservando à ordem final a sábia regularização delas, baseada no conjunto de tal aprendizagem. Todos os poderes deviam, portanto, achar-se nesse regime profundamente combinados, a fim de superarem assaz a indisciplina natural do homem primitivo. A divisão dos dois poderes humanos teria radicalmente entravado o destino ativo desse regime, opondo-se ao surto das conquistas. Enfim, a íntima discordância entre as concepções teóricas e as noções práticas exigia, então, que estas duas ordens de pensamentos ocupassem igualmente cada cérebro, a fim de que os seus vícios respectivos pudessem ser aí bastante neutralizados. Por outro lado, esta indispensável concentração realiza-se espontaneamente, como o atesta a impossibilidade de conceber-se então uma verdadeira separação entre o conselho e o comando, mesmo pelos filósofos mais bem preparados.
Ponderação semelhante aplica-se à escravidão antiga, que sempre foi julgada necessária à ordem social, até os tempos vizinhos de uma irrevogável emancipação. O escravo, como ainda o lembra a etimologia latina.99 foi a princípio um prisioneiro de guerra, poupado para o trabalho, em vez de ser destruído ou devorado. Em virtude da natureza conciliante do politeísmo, ele podia conservar seu próprio culto, subordinando-o à religião do vencedor, tornado seu chefe espiritual e temporal. Esta condição social, de que ninguém estava inteiramente isento, visto as vicissitudes da guerra, era então bastante natural para ser amiúde aceita independentemente de sua fonte militar, que contudo prevaleceu sempre.
99 Segundo a etimologia até aqui mais aceita, servos deriva-se de servare, conservar, salvar, preservar.
A instituição da escravidão formou duplamente a base da civilização antiga, primeiro por ser indispensável ao desenvolvimento das conquistas, segundo, a fim de habituar o homem ao trabalho, que se tornou assim o único meio de melhoramento pessoal, depois de ter sido o penhor da vida. Sob todos estes aspectos não se pode, de modo nenhum, compará-la à efêmera monstruosidade suscitada pela colonização moderna.
A MULHER — Depois deste apanhado geral do regime politéico, precisaria, meu pai, conhecer sumariamente seus principais modos.
O SACERDOTE — O mais fundamental consiste, minha filha, na teocracia propriamente dita. Este politeísmo conservador constitui a única ordem verdadeiramente completa que comporta o conjunto da preparação humana, da qual todas as outras fases não oferecem senão modificações dissolventes desse regime primitivo, única fonte da consistência parcial dessas fases.
Ele assenta sobre duas instituições conexas, a hereditariedade das profissões quaisquer e o universal predomínio da casta sacerdotal. A primeira fornece o único meio de conservar os progressos realizados, e de permitir lentamente modificações secundárias, [pág. 301] enquanto a educação operou-se antes por imitação do que por ensino, visto não existir separação entre a teoria e a prática. Mas este regime necessário decomporia a população em castas profundamente independentes, se a uniforme preponderância do sacerdócio não viesse constituir nele o Estado, fornecendo todos um laço venerado, que espontaneamente comporta uma vasta extensão.
Esta constituição inicial é por tal modo natural que ainda subsiste nas mais populosas nações de hoje, apesar de imensas perturbações. Posto que tivesse surgido por toda parte, ela não pôde prevalecer a esse ponto senão nos lugares em que a inteligência e o trabalho se desenvolveram antes da atividade militar. Com efeito, esta torna-se sempre o dissolvente espontâneo de semelhante regime, tendendo a fazer prevalecer os guerreiros sobre os padres. Apesar dos imensos esforços da política sacerdotal tendentes a desviar o ardor belicoso para longínquas expedições, sempre seguidas de irrevogáveis colonizações, a teocracia terminou por toda parte no domínio do patriciado militar, mas conservando os costumes antigos. Esta última atitude, irrecusável confirmação da tenacidade de tal regime, permite hoje estudá-lo diretamente, embora muito alterado, mesmo na China100 e na Índia, a fim de compreender melhor o vetusto Egito, venerável mãe de toda a civilização ocidental. Pode-se então apreciar, numa grande escala, o ofício social do sacerdócio, ao mesmo tempo conselheiro, consagrador, regulador e finalmente juiz. Mas vê-se também aí quanto esta atribuição fundamental achava-se profundamente comprometida pelo comando e pela riqueza que necessariamente macularam a intervenção inicial da inteligência no domínio do sentimento e da atividade.
100 Toda a filosofia da civilização chinesa, condensou-a depois Augusto Comte nestas poucas linhas:
"Um concurso especial de influências sobretudo sociais dispôs a civilização chinesa a desenvolver o fetichismo além de tudo quanto foi possível alhures. Mais bem sistematizado que em nenhum outro caso, ele aí prevaleceu sobre o teologismo, e preservou a terça parte de nossa espécie do regime das castas, apesar da hereditariedade das profissões. Superou aí todos os contatos heterogêneos, e conservou seu ascendente nacional no meio das misturas, mais toleradas do que consagradas, do politeísmo exterior, sem acolher jamais o monoteísmo. O culto aí consiste sobretudo na adoração da Terra e do Céu... Segundo o caráter concreto da sociabilidade chinesa, cuja principal imperfeição resulta da falta de desenvolvimento abstrato, o Espaço aí se confunde com o conjunto dos corpos celestes, sob o impulso astrolátrico. Expurgada pela relatividade, esta instituição será facilmente subordinada à Humanidade em um povo onde a destinação social prevalece sempre." (Síntese Subjetiva. Introdução, pp. 22-23.)
O Sr. Laffitte, num interessante opúsculo,* se encarregou de demonstrar em seu conjunto, em suas partes, o teorema sociológico constituído pelo admirável trecho que acabamos de citar.
* Considérations Générales sur l'Ensemble de la Civilisation Chinoise et sur les Relations de l'Occident avec la Chine, par M. Pierre Laffitte, Paris, 1861 — É o único trabalho verdadeiramente recomendável do degenerado discípulo, pretendido sucessor de Augusto Comte. — V. nosso opúsculo: Pour notre Maître et notre Foi. Le Positivisme et le Sophiste Pierre Laffitte, Rio, 1889.
Deve causar-vos surpresa que semelhante regime esteja tão pouco representado no quadro que vos propus. Isto é devido sobretudo, como no caso do fetichismo, à natureza concreta dessa composição histórica, mais estética do que científica. Todavia, tratando-se de um regime que deixa tantos monumentos de todo gênero, tal explicação geral precisa de um desenvolvimento especial. Consiste em notar um dos mais nobres caracteres da verdadeira teocracia, no qual o governo humano reside em corporações imensas e perpétuas, sem que os serviços prestados possam quase nunca ligar-se a nomes particulares. Se semelhante tendência para a absorção dos indivíduos não existisse então, os diversos colégios sacerdotais teriam sido amiúde perturbados pelas rivalidades naturais das divindades politéicas. É somente quando a teocracia, segundo uma exceção felizmente única, se funda no monoteísmo, que uma extrema concentração faz aí sobressair os nomes supremos. Por isso a natureza concreta do nosso quadro forçou a escolher Moisés como [pág. 302] tipo pessoal do regime inicial, conquanto ele represente de modo muito imperfeito uma constituição essencialmente peculiar ao politeísmo.
A MULHER — Esta admiração refletida pela teocracia faz-me apreciar melhor, meu pai, a profunda injustiça das obcecadas imputações de que ela é ainda objeto por parte da maioria dos homens que se crêem adiantados. A julgar por essas críticas, pareceria que o regime de onde tudo dimana, e que durou mais do que qualquer outro, foi sempre opressivo e degradante; de modo que não se compreenderia mais de onde puderam surgir os progressos realizados.
O SACERDOTE — Todas essas críticas da teocracia devem ser consideradas, minha filha, como tão frívolas quanto as acusações de Santo Agostinho contra o conjunto do politeísmo e as recriminações de Voltaire contra o catolicismo. Nenhum regime pode merecer tais censuras senão durante sua decadência. Nunca teria surgido nem prevalecido se a maior parte de seu domínio não houvesse sido suficientemente conforme com a nossa natureza, e mesmo assaz favorável aos nossos progressos.
As tendências opressivas para a imobilidade não se desenvolvem realmente senão na última fase da teocracia. Elas provêm aí da inevitável degradação do caráter sacerdotal pelo comando e pela riqueza. Mas, por outro lado, tem-se exagerado muito a imutabilidade teocrática, por causa do contraste que resulta da rapidez superior que distingue a marcha ocidental. Independentemente de toda perturbação estranha, indícios decisivos e multiplicados manifestam, há muito tempo, o movimento espontâneo de semelhante civilização. Por exemplo, o budismo, conquanto comprimido no seu centro, produziu em breve no Tibete profundas modificações, desenvolvidas na China pela instituição dos exames.
Quando o positivismo tiver de penetrar nessas imensas populações, será chegado o tempo de estudar com cuidado a progressão natural que as teria levado ulteriormente por si mesmas ao nível final do Ocidente, segundo uma marcha distinta mas equivalente; porque é a essas tendências espontâneas que se deverá sabiamente reatar a aceleração sistemática, afastando todas as perturbações violentas introduzidas pelo monoteísmo, primeiro muçulmano, depois cristão. No entanto, guardando para depois esta importante apreciação, devemos agora concentrar nossos estudos históricos nos antepassados imediatos da civilização ocidental. Somos, assim, levados a fazer predominar o exame das populações em que o estabelecimento teocrático foi previamente evitado por um desenvolvimento precoce da atividade militar.
Mas este politeísmo progressivo apresenta dois modos, muito diferentes, um essencialmente intelectual, o outro eminentemente social. O primeiro dá-se quando as circunstâncias locais e políticas não permitem que a atividade militar, embora muito desenvolvida, institua um verdadeiro sistema de conquistas. Neste caso a reação latente dessa atividade impele todos os homens superiores para a cultura mental, transformada também em principal objeto da atenção pública, e desprendida, assim, da disciplina sacerdotal. Quando, pelo contrário, a guerra pode tender livremente para o domínio universal, a inteligência subordina-se à atividade, e todos os cidadãos são ordinariamente absorvidos pelas solicitudes sociais, tanto no interior como no exterior. Estes dois modos do politeísmo progressivo foram igualmente necessários, cada um segundo sua natureza e em sua época, ao grande movimento ocidental que se seguiu à ruptura espontânea do jugo teocrático.
Nenhuma teocracia escapa finalmente ao ascendente social dos guerreiros sobre os padres. A própria teocracia da Judéia, apesar de sua concentração excepcional, passou também por esta revolução, quando os reis sucederam aos juizes, seis séculos depois de [pág. 303] fundada. Importa, porém, distinguir entre os casos em que esta mudança não se efetua senão quando os costumes teocráticos já adquiriram uma plena consistência e aqueles em que o rápido advento de tal mudança precede semelhante constituição, por conseguinte essencialmente abordada. Nossa evolução ocidental dependeu sobretudo deste último impulso, que todavia nunca teria bastado sem os germes acertadamente tomados às puras teocracias.
Os tempos cantados por Homero marcam nitidamente o começo de semelhante série. Com efeito, duas gerações haviam então passado, quando muito, desde que os guerreiros começaram a dominar os sacerdotes entre nossos antepassados helênicos. A teocracia primitiva se manifesta ainda aí pelos oráculos numerosos e respeitados, embora dispersos, que persistiram na Grécia mais do que alhures.
A MULHER — A partir desta era ocidental, vós me anunciastes, meu pai, que a evolução humana constitui realmente uma imensa transição, sem comportar nenhum verdadeiro regime. Sente-se bastante quanto é exata semelhante apreciação quando se opõe a curta duração dos diversos estados sociais que desde então se sucedem, quer à persistência anterior da teocracia precedida do fetichismo, quer ao incomparável porvir da ordem positiva. Mas eu quisera conceber agora a marcha geral dessa transição necessária.
O SACERDOTE — Semelhante preparação, exatamente representada pelo nosso quadro concreto, refere-se, minha filha, como o conjunto da natureza humana, primeiro à inteligência, depois à atividade, para terminar, enfim, no sentimento. A teocracia inicial cultivava simultaneamente estas três faces da nossa existência, submetida assim a regras completas, conquanto demasiado desfavoráveis aos nossos progressos contínuos. Mas, tanto esta disciplina era a única que se adaptava ao teologismo, que nunca foi possível substituir-lhe nada de durável enquanto prevaleceu a síntese fictícia. Só se acelerou a marcha quebrando semelhante harmonia, para desenvolver sucessivamente cada parte da existência humana à custa das outras duas. Este caráter profundamente incompleto distingue de modo nítido, primeiro a elaboração grega, em seguida a preparação romana, enfim a iniciação católico-feudal.
A ordem destas três evoluções parciais resulta desde logo de seu destino comum. Porquanto cumpria, então, sobretudo desenvolver as forças humanas, sem aspirar ainda a discipliná-las, a não ser pelo seu antagonismo espontâneo. Todo esforço prematuro para regular o conjunto de nossa existência tendia a restabelecer uma teocracia sempre iminente, e tornara-se contrário ao surto especial que se queria secundar Eis aí por que o sentimento, principal fonte de disciplina humana, teve de ser por longo tempo desprezado, de modo a não prevalecer senão quando o desenvolvimento teórico e prático estivesse bastante adiantado. A própria expansão de nossas forças exigia que a inteligência precedesse a atividade; porque, a marcha ativa tendendo então a reunir todos os politeístas progressivos sob um mesmo domínio, se teria tornado incompatível com a plena liberdade que exige á evolução especulativa, se esta não se houvesse efetuado previamente. [pág. 304]
DÉCIMA TERCEIRA CONFERÊNCIA
TRANSIÇÃO PECULIAR AO OCIDENTE
A MULHER — Graças às explicações finais da conferência anterior, eu concebo, meu pai, a natureza e a sucessão das três grandes fases peculiares à transição necessária que nos separa dos tempos homéricos. Preciso, porém, compreender melhor sua marcha e encadeamento, começando pela evolução grega.
O SACERDOTE — O brilho imortal desta não deve impedir-vos, minha filha, de deplorardes seu contraste geral com a evolução romana, quanto à influência respectiva delas sobre as populações correspondentes. Em Roma, trata-se de uma construção coletiva, em que todos os homens livres devem sempre participar ativamente, sob pena de malogro radical. Na Grécia, a população permanece essencialmente passiva e forma uma espécie de pedestal a alguns pensadores verdadeiramente eminentes, cujo número total, na arte, na filosofia e na ciência, não excede a cem, desde Homero e Hesíodo até Ptolomeu e Galeno. De um lado, a elevada atividade comum proporciona à nação uma nobreza universal, cujos vestígios são ainda apreciáveis. Porém, no outro caso, a monstruosa preponderância concedida à especulação sobre a ação conduziu ao aviltamento, demasiado sensível hoje, de uma população sacrificada que acabou por colocar acima de tudo os talentos de expressão. As cidades gregas só foram preservadas de cair cada uma sob a vil tirania de algum retórico pela conquista romana.
Essas tribos por demais gabadas não comportaram verdadeiramente senão uma bela fase social, que apenas se prolongou por dois séculos, e ainda assim interrompida amiúde pelas suas miseráveis contestações. Essa fase resultou da admirável luta, primeiro defensiva, depois ofensiva, que sustentaram contra a violenta opressão com que a teocracia persa ameaçava esse precioso núcleo de livres-pensadores, encarregado então dos destinos intelectuais da Humanidade. Mas aí mesmo os sucessos principais foram devidos sobretudo a alguns cidadãos incomparáveis: porque cada população se mostra amiúde disposta a sacrificar a defesa comum às rivalidades mútuas.
Nessa longa elaboração mental, cumpre distinguir três fases desiguais fielmente caracterizadas no quadro concreto. O movimento começa pela arte de que Homero é o eterno representante. Forçoso era que a poesia, ao mesmo tempo mais independente e mais constrangida, fosse a primeira a desprender-se do tronco teocrático, de modo a começar a emancipação ocidental. Ela prepara o advento da filosofia que, a princípio esboçada por Tales e Pitágoras, personifica-se enfim no incomparável Aristóteles, por tal forma superior ao seu tempo que só pôde ser apreciado na Idade Média. Sob a presidência de sua eterna elaboração, este segundo surto fica assaz caracterizado a ponto de fazer sentir em breve aos verdadeiros pensadores a impossibilidade de ultrapassá-lo sem um longo preâmbulo científico que pudesse desenvolver suficientemente sua primordial base positiva. Então a ciência real, admiravelmente representada por Arquimedes, tornou-se, [pág. 305] por sua vez, o objeto principal do gênio grego, cuja aptidão estética e força filosófica se achavam irrevogavelmente exaustas.
A MULHER — Quanto à preparação romana, sempre achei-a, meu pai, muito mais bem apreciável, em virtude do caráter homogêneo e saliente que distingue essa admirável ascensão gradativa para o domínio universal. A principal obra de Bossuet101 contém, a esse respeito, eminentes apanhados, que há muito tempo conheço. Esse sistema político é por tal modo compreensível, que pode ser assaz definido por uns quantos versos incomparáveis, que me foram explicados outrora.102 Se bem que apenas indiquem o destino exterior, tais versos fazem sentir quanto a constituição inferior estava intimamente ligada àquele.
101 Discours sur l'Histoire Universelle (1681).
102 Alusão aos seguintes versos de Virgílio:
Excudent alii spirantia moilius aera, / Credo equidem; vivos ducent de marmore vultus / Orabunt causas melius; coelique meatus. / Describent radio, et surgentia sidera dicent: / Tu regere imperio populos, Romane, memento; / Haec tibi et erunt artes, pacisque imponere morem. / Parcere subjectis, et debellare superbos.
(Eneida, livro VI.)
Hão de outros mais molemente os bronzes respirantes fundir, sacar do mármore / Vultos vivos; orar melhor nas causas; / Descrever com seu rádio o céu rotundo, / O orto e o sidério curso; tu, Romano, / Cuida o mundo em reger; terás por artes / A paz e a lei ditar, e os povos todos / Poupar submissos, debelar soberbos.
(Trad. de Odorico Mendes.)
O SACERDOTE — Só resta, minha filha, completar semelhante conjunto distinguindo suas duas fases essenciais. Enquanto a incorporação romana não abraçou a maior parte do Ocidente, a atividade guerreira teve de ser dirigida pela casta senatorial forte de seu ascendente teocrático, graças ao qual o surto comum continha suficientemente os ciúmes plebeus. Porém, esta constituição militar houve de mudar quando o domínio se tornou assaz extenso e consolidado para não mais absorver a solicitude do povo, do qual os imperadores se tornaram os verdadeiros representantes contra a tirania patrícia. Virgílio caracterizou a política romana, personificada no incomparável César, no tempo mesmo em que este sistema experimentava, sem que o terno poeta tivesse disso consciência, essa transformação decisiva, primeiro sintoma de seu declínio necessário.
Essas duas fases quase iguais, uma eminentemente progressiva, a outra essencialmente conservadora, tiveram cada uma delas muita eficácia social para o conjunto da preparação ocidental. Se devemos à primeira o salutar domínio que comprimiu por toda parte guerras estéreis, e no entanto contínuas, devemos à outra os benefícios civis dessa incorporação política, em virtude da uniforme propagação da evolução grega. Conquistando a Grécia, Roma rendeu-lhe sempre digno preito e consagrou sua própria influência a derramar resultados estéticos, filosóficos e científicos, cujo principal destino exigia semelhante disseminação.
Quando os últimos movimentos, um intelectual, outro social, peculiares à Antiguidade, ficaram assim combinados irrevogavelmente, a preparação humana tendeu logo para sua última fase necessária. O desenvolvimento, teórico e prático, de nossas principais forças não tardou em fazer sentir profundamente a necessidade de as regular; porquanto a disciplina espontânea que resultava de um destino temporário ficou radicalmente dissolvida logo que esse objetivo foi alcançado. Então o espírito e o coração se entregaram a desregramentos sem exemplos, em que todos os nossos tesouros intelectuais e materiais eram dissipados em ignóbeis satisfações de um egoísmo, infrene. Ao mesmo tempo que a regeneração se tornava indispensável, o conjunto dos antecedentes greco-romanos parecia fornecer-lhe uma base sistemática, em virtude da preponderância [pág. 306] intelectual do monoteísmo, combinada com a tendência social para uma religião universal.
O catolicismo surgiu, assim, para satisfazer a essa imensa urgência de disciplina completa, sob o impulso demasiado menosprezado do incomparável São Paulo, cuja sublime abnegação pessoal facilitou o progresso da unidade nascente, deixando prevalecer um falso fundador. Mas a natureza profundamente contraditória de semelhante construção indicava já esta última transição como mais rápida e menos extensa que as preparações precedentes. Com efeito, o alvo principal não podia ser aí atingido senão pela separação radical dos dois poderes humanos, aliás espontaneamente nascida de uma situação em que o monoteísmo crescia lentamente sob o domínio político do politeísmo. No entanto, semelhante divisão permanecia sempre incompatível com o gênio necessariamente absoluto do teologismo, que, sobretudo em sua concentração monotéica, não permite que o sacerdócio se limite ao conselho senão enquanto não se pode apoderar do comando.
Esta contradição necessária caracteriza-se sobretudo por dois contrastes gerais, um social, outro intelectual. Não é possível, então, fundar a disciplina humana senão sobre a vida futura, à qual o novo sacerdócio confere uma importância até então desconhecida, mesmo na Judéia, a fim de fazer dela um domínio exclusivo para si. Mas semelhante modo tornava-se impróprio para regular a existência real, porque apartava da sociedade para impelir cada crente ao ascetismo solitário. Por outro lado, a íntima discordância entre a teoria e a prática, que se achava dissimulada, e mesmo compensada, enquanto os dois poderes permaneciam confundidos, manifestou-se completamente por efeito de sua separação. A concentração monotéica desenvolveu sobretudo o contraste necessário entre as vontades arbitrárias e as leis imutáveis; porquanto a engenhosa conciliação que Aristóteles havia preparado não era destinada senão à fase ulterior em que o espírito positivo havia de tender primeiro para seu ascendente final sob a tutela teológica.
À vista do conjunto destes contrastes, não é para estranhar que o movimento católico tivesse sido repelido durante tanto tempo, como uma verdadeira retrogradação, pelos melhores tipos, teóricos ou práticos, do Império Romano. Esses chefes eminentes achavam-se gradualmente inclinados, desde Cipião e César, ao advento direto do reino da Humanidade, sob o predomínio simultâneo do espírito positivo e da vida industrial. Eles não tinham, porém, percebido a necessidade de uma verdadeira preparação social, essencialmente relativa ao sentimento, para produzir o regime final pela dupla emancipação das mulheres e dos trabalhadores, reservada à Idade Média.
A MULHER — Este grande resultado parece-me, meu pai, que só é aqui referido primeiro ao catolicismo a fim de caracterizar melhor sua filiação histórica, representando-o como podendo provir do regime antigo sob o novo impulso religioso. Ele foi, porém, secundado profundamente, e mesmo muito acelerado, pela influência feudal. O catolicismo, que outrora possuiu minha fé, conservará sempre minha veneração. Contudo, nunca pude deixar de lhe preferir no meu íntimo a cavalaria, cujo nobre resumo ainda ouço repercutir no século XVI: Faze o que deves, suceda o que suceder.
O SACERDOTE — Só tenho, minha filha, que completar vossa justa apreciação fazendo-vos ver que o estado feudal, atribuído indevidamente às invasões germânicas, foi também uma conseqüência necessária do regime romano, que no fim tendeu para aí espontaneamente. De fato, a extensão do império transformou dentro de pouco a conquista em defesa. Ora, os outros dois caracteres políticos da Idade Média resultam necessariamente dessa transformação principal. De um lado, ela mudou gradualmente a escravidão em servidão, depois de ter naturalmente restringido o tráfico ao interior do mundo [pág. 307] romano. Ao mesmo tempo, ela decompôs cada vez mais o domínio central em autoridades locais, encarregadas cada uma de uma defesa parcial, e cuja subordinação hierárquica constituiu a feudalidade propriamente dita. O catolicismo não fez senão sancionar espontaneamente esta tríplice tendência política, recomendando a paz, a emancipação e a submissão. Mas foi ele, então, o digno órgão dos sentimentos inspirados pela situação ocidental, os quais não devem ser atribuídos à sua doutrina, que amiúde serviu depois para consagrar disposições inteiramente opostas em virtude de seu caráter vago e mesmo anti-social. Ele contribuiu muito menos que o feudalismo, quer para a abolição, primeiro urbana, depois rural, da escravidão ocidental, quer para a emancipação feminina, onde só lhe devemos a pureza prévia, mas de modo algum a ternura final, sempre cavalheiresca. Em toda a Igreja grega, ele ainda consagra a reclusão das mulheres, a servidão dos trabalhadores, que só os czares vão modificando dignamente.
A MULHER — Assaz preparada, meu pai, para esta apreciação geral da Idade Média, só me resta conhecer a principal divisão dessa última transição orgânica.
O SACERDOTE — Ela resulta, minha filha, do duplo sistema de guerras defensivas em que o Ocidente teve, então, de absorver sua atividade coletiva, enquanto nele se consumava gradualmente a grande revolução social que acabo de caracterizar. Uma primeira fase, começando no princípio do século V e terminando com o VII, é preenchida pelo estabelecimento fundamental, em que surgem, sob as invasões suscetíveis de êxito durável, todos os caracteres próprios da Idade Média, salvo a língua. Então a independência prevalece sobre o concurso. Numa segunda fase de igual duração, a necessidade de concentração torna-se dominante, a fim de reprimir as invasões perturbadoras das populações suscetíveis de serem incorporadas ao Ocidente, graças à sua fácil conversão ao catolicismo. Esta atividade coletiva do Ocidente foi sobretudo dirigida pela ditadura do incomparável Carlos Magno, dignamente completada pelos seus sucessores germânicos.
Assim funda-se a República Ocidental, em que a antiga comunhão, devida à incorporação forçada, transforma-se numa associação voluntária de Estados independentes, apenas diretamente ligados por um mesmo regime espiritual, condensado no papado. Esta mudança tende já, apesar das influências eclesiásticas e das recordações políticas, a deslocar o centro social do sistema, transportando-o de Roma para Paris, onde ele se achava irrevogavelmente fixado, desde o fim da Idade Média, como mais adequado às relações locais.
Mas, durante esta segunda fase, o Oriente sofreu um vasto abalo que não tardou em reagir profundamente sobre o conjunto do Ocidente, primeiro prolongando neste o regime católico-feudal, e depois dando começo à sua irreparável dissolução.
A necessidade de Uma religião verdadeiramente universal era sentida havia muito tempo, na maior parte da raça branca, incluindo mesmo a porção que, embora adjacente ao Império Romano, tinha evitado seu domínio. Ora, essa universalidade, cuja invocação caracteriza a um tempo o principal mérito da melhor crítica do catolicismo, não pode de modo algum pertencer ao teologismo, e está exclusivamente reservada ao positivismo. No entanto, o monoteísmo se aproxima mais dela do que o politeísmo. Este foi sempre uma religião essencialmente nacional, porém muito conciliável com a incorporação militar. Pelo contrário, o monoteísmo pode agremiar povos verdadeiramente independentes, conquanto esta aptidão não se tenha realizado assaz senão no Ocidente, na Idade Média. O Oriente devia, pois, tender também para uma fé monotéica, mas profundamente incompatível com a crença ocidental, em virtude da diversidade dos destinos sociais. [pág. 308]
Com efeito, o islamismo dirigia sobretudo o surto militar de uma outra nobre parte da raça branca, aspirando por sua vez a se tornar o principal núcleo do verdadeiro Grande Ser. Por isso a antiga confusão dos dois poderes foi aí necessariamente conservada e mesmo desenvolvida, em virtude da concentração monotéica. Tornado assim mais conforme ao gênio natural do teologismo, o monoteísmo podia, e mesmo devia, adquirir, no Oriente, uma simplicidade dogmática que ele não comportava no Ocidente. Porquanto, entre nós, a separação factícia das duas potências havia forçado o verdadeiro fundador do catolicismo a complicar o dogma completando a revelação, indispensável a todo monoteísmo, pela divinização do suposto fundador. Daí resultaram outras complicações secundárias, que o islamismo se honrou de afastar também para assegurar melhor o predomínio do caráter militar contra a degeneração sacerdotal do chefe supremo. A independência do clero forneceu, com efeito, o motivo essencial dessas sutilezas católicas, que merecem historicamente a veneração dos filósofos, por maior que seja a repugnância que devam inspirar à nossa razão.
Desde o começo dessa luta entre dois monoteísmos inconciliáveis, um livre-pensador poderia ter previsto que ela conduziria breve a desacreditá-los igualmente, mostrando a inanidade radical de suas comuns pretensões à universalidade. Esse imenso conflito enche a última fase da Idade Média, começando com o século XI e terminando no fim do século XIII. Então estabelece-se em primeiro lugar o feudalismo propriamente dito, onde a independência e o concurso, que alternadamente prevaleceram, se achavam enfim dignamente combinados, de modo a fazer já pressentir a sociocracia final. Essa admirável instituição tornou-se no século XII a base geral dessas heróicas expedições em que a República Ocidental, consolidada e desenvolvida pela atividade coletiva, dissipou finalmente todos os receios de invasão muçulmana. A partir do século seguinte, as cruzadas, essencialmente destituídas de destino social, não tardaram em adulterar-se e desacreditar-se. O conjunto do mundo romano ficou dividido, desde então, entre dois monoteísmos incompatíveis, tendendo logo cada um deles para o seu irrevogável declínio, que só foi retardado, de um lado e de outro, pela dificuldade de substituir-lhes um novo regime.
A MULHER — Esta teoria geral da Idade Média deixa-me, meu pai, enfim compreender o conjunto do catolicismo, intelectual e social: concebo seu advento necessário, sua missão temporária e sua irreparável decadência. Porém, tal apreciação indica melhor quanto o catolicismo foi injusto para com a elaboração grega e a incorporação romana, cuja combinação espontânea havia determinado sua formação. Depois de ter amaldiçoado seus pais, ele foi, por sua vez, amaldiçoado por seus filhos. Conquanto o primeiro erro não desculpe o segundo, explica-o, manifestando a ruptura da continuidade humana.
O SACERDOTE — Com efeito, minha filha, essa continuidade havia sido respeitada nas revoluções precedentes. O politeísmo substituíra primeiro o fetichismo de um modo quase insensível, incorporando-o a si espontaneamente. Quando o regime militar veio suceder à teocracia inicial, foi ainda sem romper seus antecedentes sociais que continuaram sempre a ser acatados. O mesmo dá-se quando Roma absorve a Grécia, glorificando-se de prolongar sua evolução. Mas o advento do catolicismo oferece, pelo contrário, um caráter anárquico. O futuro e o presente são nele concebidos e dirigidos como se o passado greco-romano nunca houvesse existido. A injustiça cristã estende-se mesmo até os antecedentes judaicos, apesar da viciosa importância que lhes era atribuída. [pág. 309]
Esta brutal descontinuidade, que o islamismo se esforçou por evitar, alterou muito o sentimento geral do progresso social, cujo primeiro esboço o catolicismo fez surgir espontaneamente, em virtude da superioridade real de seu regime sobre o precedente. Importa apreciar bem semelhante ruptura dos laços históricos. Ela explica, em primeiro lugar, a íntima contradição, intelectual e moral, em que breve ficou colocada uma doutrina que, nascida da discussão, quis depois proibi-la, e que exigiu de seus filhos o respeito que ela negava aos seus pais. Mas cumpre, sobretudo, apanhar aí a verdadeira origem da mais grave disposição peculiar à anarquia moderna. O sentimento e o espírito anti-históricos, cujo predomínio constitui hoje o principal obstáculo à reorganização ocidental, datam assim do advento do catolicismo. Esta imensa dificuldade não pode ser superada senão pelo positivismo, porque só ele é capaz de igualmente fazer justiça a todas as fases, sociais ou mentais, da evolução humana.
Todavia, cumpre reconhecer aqui, como por toda parte alhures, que a eminente sabedoria do sacerdócio católico neutralizou, durante muito tempo, os principais vícios de sua deplorável doutrina. Apropriando-se da língua de Roma quando ela cessou de prevalecer, ele conservou espontaneamente todos os tesouros intelectuais da Antiguidade, inclusive sua bela teologia. A comovente lenda, tão dignamente imortalizada por Dante,103 acerca da feliz intercessão de um santo papa em favor de Trajano bastará para indicar quanto as nobres almas católicas lastimavam que sua cega doutrina as impedisse de honrar seus melhores antepassados. Mas o respeito geral dos antecedentes gregos e romanos foi desenvolvido sobretudo pelos chefes temporais, apesar de sua freqüente ignorância.
103 A lenda imortalizada por Dante, a que A. Comte se refere neste tópico, é a seguinte: Contava-se que o Papa Gregório Magno (599-604), lendo um dia a vida de Trajano e tomado de admiração por tão singulares virtudes, não pôde conformar-se com que, por ser pagão, deixasse esse príncipe de salvar-se no outro mundo. Entrou, pois, numa igreja e orou tão fervorosamente a Deus pela alma do grande imperador que ali mesmo Deus lhe revelou que sua súplica estava deferida e Trajano admitido no reino celestial. O passo da Divina Comédia em que Dante alude a esta lenda é o seguinte:
Quivi era storiata l'alta gloria / Del roman prince, lo cui gran valore / Mosse Gregorio all sua gran vittoria: / Io dico di Trajano imperatore. (Purgatório, canto 10.°.)
Aí se narrava a altiva glória / Do príncipe romano que a Gregório / Deu, por alto valor, causa ao triunfo: / Relato aqui o Imperador Trajano. (Trad. de B. de Abreu.)
No Paraíso o poeta não esqueceu o grande Romano e lá o colocou entre os bem-aventurados.
Por toda parte encontramos um contraste semelhante. Uma admirável disciplina estabelece-se então no conjunto dos sentimentos humanos, posto que ela assente sobre um imenso egoísmo, cuja preponderância era o único meio de dominar no princípio a personalidade vulgar. A ternura cavalheiresca é preparada e sancionada pela fé mais antifeminina que jamais reinou. Em virtude da instituição do celibato eclesiástico, que destrói toda hereditariedade sacerdotal, o golpe mais decisivo vibrado no Ocidente contra o regime das castas emana de uma doutrina naturalmente favorável à teocracia, objeto final do papado degenerado. O monoteísmo, que se torna, enfim, hostil a todos os progressos intelectuais, preparou o surto geral deles, acabando de elaborar a lógica humana. Fundada pelo fetichismo sobre os sentimentos, deveu esta ao politeísmo o emprego das imagens. Mas sua evolução espontânea não se completou senão sob o monoteísmo, mediante a assistência usual dos sinais. Este resultado, essencialmente comum ao islamismo e ao catolicismo, pertence mais a este, por causa da discussão habitual que aí suscitava, em todas as classes, a divisão dos dois poderes.
Todas estas antinomias devem aumentar muito a admiração e o respeito dos verdadeiros filósofos por essas belas naturezas pontificais que, durante alguns séculos, tiraram [pág. 310] tanta eficácia de uma fé radicalmente viciosa, conquanto a única adaptada a essa transição. Contudo, não esqueçamos nunca que os progressos quaisquer da Idade Média foram sempre devidos ao concurso necessário entre os dois elementos heterogêneos que cumpre sem cessar combinar aí, o catolicismo e a feudalidade.
Além de seus serviços imediatos, essa admirável transição fez irrevogavelmente surgirem todos os germes essenciais do regime final. Ela esboçou mesmo, sob cada grande aspecto, a verdadeira ordem humana, ao mesmo tempo temporal e espiritual, tanto quanto o permitiam então a doutrina e a situação. Por isso, ao positivismo só resta agora retomar o conjunto do programa da Idade Média, para realizá-lo dignamente, mediante uma fé melhor, combinada com uma atividade mais favorável. Porém, a influência feudal, que não tem hoje defensores especiais, é injustamente sacrificada, nestas apreciações históricas, à participação católica, única estudada pela escola retrógrada. Um exame aprofundado mostra, entretanto, a reação cavalheiresca até nas modificações demasiado menosprezadas que então experimenta a última fé provisória. Depois de ter admiravelmente esboçado o culto da Mulher, prelúdio necessário da Religião da Humanidade, o sentimento feudal determinou realmente, no século das cruzadas, a alteração que sofreu o monoteísmo ocidental, quando a Virgem tendeu a tomar o lugar de Deus.
Referindo-se, porém, os resultados da Idade Média aos seus verdadeiros autores, sente-se melhor a natureza profundamente precária do regime católico-feudal, derradeiro modo do sistema teológico-militar. Se o sacerdócio foi o único a compensar a imperfeição da sua doutrina, esta aptidão não podia durar senão enquanto seu destino moral e social lhe conservava um caráter progressivo. Ora, o preenchimento mesmo de semelhante missão impeliu o Ocidente para progressos incompatíveis com a fé católica e contrários à constituição final de seu clero, tornado retrógrado, como o mostra a admirável tentativa de regeneração malograda no século XIII. Em uma palavra, todos os resultados da Idade Média necessitaram de um regime novo, desde que o islamismo e o catolicismo se neutralizaram irrevogavelmente. Por exemplo, a emancipação teológica, por muito tempo circunscrita a alguns tipos individuais, difundiu-se muito por efeito das cruzadas, sob o impulso dos Templários, mais bem expostos aos contatos muçulmanos.
O despontar do século XIV abre, assim, a imensa revolução ocidental que o positivismo vem hoje terminar. Então o conjunto do movimento humano torna-se profundamente hostil à ordem anterior, conquanto o novo regime não possa ainda ser, de modo algum, percebido. Porquanto, depois do catolicismo, não havia organização teológica possível; como também o sistema militar não podia mais modificar-se além de sua constituição feudal. O Ocidente começava a realizar os pressentimentos demasiado precoces de César e Trajano a respeito de sua tendência a fazer irrevogavelmente prevalecer uma fé positiva e uma atividade pacífica. Porém, este objetivo ainda exigia que a ciência, a indústria, e mesmo a arte, passassem por uma longa elaboração, que teve de ser essencialmente especial e dispersiva, de modo a dissimular a sua tendência social. Daí resulta esse duplo caráter da última transição humana, cada vez mais anárquica quanto ao conjunto, embora também cada vez mais orgânica quanto aos elementos.
A MULHER — Pois que é assim, meu pai, que o presente se ata diretamente ao passado, preciso conhecer a marcha geral deste movimento, para nele acompanhar suficientemente os progressos simultâneos da anarquia moderna e da renovação.
O SACERDOTE — Na progressão negativa, mais bem caracterizada do que a outra, cumpre, minha filha, distinguir sobretudo duas fases necessárias, conforme a decomposição permanece puramente espontânea ou se torna cada vez mais sistemática. A primeira compreende os séculos XIV e XV, e a segunda os três seguintes. Estes dois [pág. 311] períodos apresentam as mesmas diferenças relativamente ao movimento positivo, se bem que de um modo menos pronunciado. Todo o Ocidente participa da decomposição espontânea; mas a negação sistemática não prevalece senão no norte.
O movimento revolucionário foi sempre dirigido, desde o seu início, por duas classes conexas, oriundas a princípio dos antigos poderes, e em breve rivais destes. Foram elas os metafísicos e os legistas, que constituem o elemento espiritual e o elemento temporal deste regime negativo, caracterizado, sobretudo na França, nas universidades e nos parlamentos. Mas a segunda classe merece mais estima que a primeira, porque nela o espírito comum a ambas se modificou sob o favorável impulso das aplicações sociais. Ao passo que os metafísicos não foram nunca, em relação à teologia, senão inconseqüentes demolidores, os legistas, e sobretudo os juizes, além dos seus serviços temporários ou especiais, tenderam sempre a construir, segundo as pegadas romanas, uma moral puramente humana.
Durante a primeira fase moderna, todo o regime da Idade Média fica radicalmente decomposto, em virtude dos conflitos íntimos de seus diversos elementos, embora suas doutrinas permaneçam intatas. A luta principal devia ser a das duas potências, espiritual e temporal, cuja harmonia precária flutuara sempre entre a teocracia e o império. Aos vãos esforços dos papas do século XIII para estabelecerem um domínio absoluto sucedeu por toda parte, sobretudo na França, a feliz resistência dos reis, que, no decurso do século seguinte, anularam irrevogavelmente o poder ocidental do papado. Esta revolução decisiva foi completada no século pela subordinação de cada clero nacional à autoridade temporal, deixando apenas uma influência ilusória ao chefe central, que desde então degenera em príncipe italiano. Perdendo sua independência, o sacerdócio perde também sua moralidade, primeiro pública, e depois mesmo privada. Para conservar sua existência material, ele põe suas doutrinas a serviço de todos os fortes.
Ao mesmo tempo desenvolve-se a luta, começada na Idade Média, entre o elemento local e o elemento central da constituição temporal. Por toda parte o poder que a princípio foi inferior acaba por triunfar, graças à assistência espontânea das classes surgidas da abolição da servidão. No caso normal, a realeza prevalece sobre a aristocracia. A solução inversa deve ser considerada como uma exceção cujo primeiro tipo nos é oferecido por Veneza, desenvolvido sobretudo na Inglaterra.
Sob um ou outro modo, a combinação desta concentração política com o abatimento do sacerdócio institui em cada nação ocidental uma verdadeira ditadura, único meio de conter a anarquia material trazida pela desorganização espiritual. O melhor tipo desta magistratura excepcional foi o eminente Luís XI, o único que sentiu dignamente e dirigiu sabiamente o conjunto do movimento moderno.
Quanto à progressão positiva, seu principal aspecto, durante esta primeira fase, consiste no surto industrial. Preparado pela dupla organização das classes laboriosas da Idade Média, ele desenvolve-se então mediante três impulsos decisivos, cujo advento nada oferece de fortuito. Primeiro, a invenção da pólvora vem completar a instituição transitória dos exércitos permanentes, dispensando os ocidentais de uma educação militar contrária à sua nova atividade. Em seguida, a imprensa reata a ciência à indústria, permitindo satisfazer o ardor teórico que prevalece por toda parte. Enfim, a descoberta da América e de um caminho marítimo para a Índia fornece um vasto campo à extensão decisiva das relações industriais, de modo a caracterizar e consolidar a nova vida ocidental. O movimento intelectual só se torna então eminente na poesia, abrindo o século XIV [pág. 312] com uma incomparável epopéia,104 e produzindo, no XV, uma admirável composição mística.105 Mas o desenvolvimento científico se prepara mediante úteis materiais de todo gênero.
104 A Divina Comédia de Dante, tantas vezes citada neste Catecismo.
105 A Imitação de Cristo. Sabe-se que no mundo das letras e da erudição é ainda questão muito debatida o saber qual seja o verdadeiro autor deste admirável livro, que todo positivista deve ler diariamente. Mas os melhores argumentos são em favor de Tomás de Kempis, e tal era o parecer de Augusto Comte, como se depreende de ter colocado esse nome no calendário positivista, e dos tópicos em que ele o designa claramente como autor da Imitação. Em todo caso, a opinião dos que querem atribuir essa composição a alguns letrados, e sobretudo a Gerson, é insustentável ante a apreciação filosófica. "A posteridade", escreve Augusto Comte, "nunca cessará de admirar o esboço grosseiro, mas sublime, do quadro sistemático da natureza humana, que uma vã erudição ousa agora disputar ao seu humilde autor, a fim de galardoar com ele o espírito metafísico que aí se acha dignamente estigmatizado." (Política Positiva, tomo III, p. 534.)
Os trabalhos mais completos em defesa da autoria de Tomás de Kempis são: o do bispo Malouj;* o de Karl Hirsche,** a quem se deve também uma edição do original latino de acordo com o manuscrito autêntico conservado na Biblioteca Real de Bruxelas;*** e sobretudo o de F. R. Cruise.****
* Recherches Historiques et Critiques sur le Véritable Auteur du Livre de l'Imitation de J. C, Tournay, 3.ª ed., 1858.
** Prolegomena zu einer neuen Ausgabe der Imitatio Christi nach dem Autograph Thomas von Kempen, 2 vols., Berlim, 1873-1883.
*** Thomae Kempensis. De Imitatione Christi Libri Quator, Barolini, 1884.
**** Thomas à Kempis. "Notes of a visit to the scenes in which his life was spent, with some account of the examination of his relics" (Illustrated), London, Kegan, Paul, Trench & Co., 1887.
O mesmo autor publicou um excelente resumo de seus argumentos em favor de Tomás de Kempis, sob o título: Who Was the Author of the Imitation of Christ?, London, Catholic Truth Society, 1898.
Este opúsculo foi vertido em francês: Qui Est l'Auteur de l'Imitation de Jésus-Christ?, Trad. por Mlle. Agnès Kennedy, Paris, Victor Retaux, 1902.
Este progresso simultâneo da inteligência e da atividade faz sobressair melhor o deplorável abandono do aperfeiçoamento moral, que constituía em todas as classes o principal mérito da Idade Média. O duplo ardor que então prevalece no Ocidente baseia-se essencialmente na expansão universal e desordenada do orgulho e da vaidade, ligada amiúde ao mais ignóbil egoísmo. Verdade é que o desenvolvimento estético, apesar de sua tendência revolucionária, alimenta espontaneamente melhores sentimentos. Mas a cultura moral concentra-se cada vez mais no sexo afetivo, o qual, preservado do arrastamento teórico e prático, é o único que transmite, através da anarquia moderna, os principais resultados da Idade Média, malgrado a aversão crescente que eles inspiram. Esta santa providência não pode, entretanto, impedir que a alteração gradual do verdadeiro princípio de toda disciplina humana deixe de coincidir com o desenvolvimento especial das novas forças, espirituais e temporais, peculiares ao estado final do Ocidente.
A MULHER — A fase inicial do duplo movimento moderno ficando assaz caracterizada, rogo-vos, meu pai, que aprecieis semelhantemente seu período sistemático.
O SACERDOTE — As doutrinas do regime antigo, que antes se haviam conservado intatas, foram então, minha filha, diretamente atacadas por princípios puramente negativos. Esta extensão da anarquia foi tão indispensável quanto inevitável, a fim de que ficasse manifesta a necessidade de uma verdadeira organização, dissimulada sob a aparência de vida que conservava um sistema cujas bases sociais se achavam todas irrevogavelmente destruídas. Porém, para apreciar assaz o seu destino, cumpre dividir tal período em duas fases, das quais a primeira, começando com o século XVI, termina na retrogradação da realeza francesa, coincidindo com o triunfo da aristocracia inglesa. A segunda conduz, um século depois, ao advento direto da crise revolucionária de que o Ocidente ainda sofre, após duas gerações, as deploráveis vicissitudes. [pág. 313]
Esta distinção necessária resulta sobretudo da sistematização crescente que experimenta a doutrina negativa, que a princípio parece compatível com as condições fundamentais do regime teológico, ao passo que se lhes torna depois evidentemente contrária. Estes dois graus sucessivos do movimento negativo devem ser caracterizados pelas qualificações respectivas de protestante e deísta. Apesar da infinita diversidade das seitas protestantes, sua comum adesão à revelação cristã basta para separá-las todas da emancipação mais adiantada que caracteriza o deísmo.
Desde o início da segunda fase moderna, a doutrina negativa firma diretamente seu princípio anárquico, proclamando o individualismo absoluto, e por isso mesmo ela atribui a cada um, sem nenhuma condição de competência, a decisão de todas as questões. Então toda autoridade espiritual extingue-se radicalmente. Os vivos insurgem-se completamente contra os mortos; como o atesta uma cega reprovação do conjunto da Idade Média, mal compensada por uma irracional admiração pela Antiguidade. Assim agrava-se, sob o impulso protestante, a fatal ruptura que o catolicismo introduzira na continuidade humana.
A MULHER — Permiti, meu pai, que eu vos interrompa um momento para manifestar-vos a profunda repugnância que sempre me inspirou o protestantismo, que pretendeu reformar o monoteísmo ocidental despojando-o de suas melhores instituições. É assim que ele suprime o dogma do purgatório, o culto da Virgem e dos santos, o regime da confissão, e desnatura o misterioso sacramento que fornecia aos corações ocidentais um sublime resumo de toda a sua religião. Por isso meu sexo, que outrora secundara tanto o surto católico, permaneceu essencialmente passivo em relação a uma reforma na qual sua ternura repelida não encontrava outra compensação senão a faculdade de comentar alguns livros ininteligíveis e perigosos. O protestantismo teria alterado profundamente a instituição do casamento ocidental pelo restabelecimento do divórcio, se os costumes modernos não houvessem sempre rechaçado espontaneamente semelhante retrogradação, nos próprios países onde esta prevaleceu oficialmente.
O SACERDOTE — Vossas justas repugnâncias explicam espontaneamente, minha filha, a última discordância do Ocidente em relação a uma doutrina puramente negativa, que em breve dividiu as nações, as cidades e até as famílias. Seu sucesso parcial deve, entretanto, ter satisfeito então importantes necessidades, intelectuais e sociais. Apesar de seu caráter anárquico, o princípio protestante secundou no começo a evolução científica e o desenvolvimento industrial, estimulando os esforços pessoais e quebrando regras opressivas. Devemos-lhe duas revoluções preliminares dirigidas, na Holanda, contra a tirania exterior e, na Inglaterra, em prol da regeneração interior. Conquanto a segunda, demasiado prematura, houvesse de abortar finalmente, ela indicou já, sob a admirável ditadura de Cromwell, a tendência necessária do movimento ocidental.
Então as necessidades, igualmente imperiosas, da ordem e do progresso tornaram-se profundamente inconciliáveis, e os ocidentais dividiam-se, conforme sentiam mais umas ou outras. A opressão geral ficaria iminente se o protestantismo não houvesse podido prevalecer algures, porque um clero retrógrado excitava por toda parte a solicitude dos antigos poderes contra um movimento cuja tendência não era mais equívoca. Devemos, porém, felicitar-nos ainda mais de que a maior parte do Ocidente tenha sido preservada do ascendente protestante. Com efeito, a universalidade deste, que houvera sido geralmente considerada como a solução normal da comum revolução, teria dissimulado profundamente por toda parte as condições essenciais da regeneração humana, proclamando a eterna confusão dos dois poderes. Esta dupla apreciação leva-nos a simpatizar também com as grandes almas que lutaram dignamente nesse imenso conflito, preâmbulo necessário de uma verdadeira renovação. [pág. 314]
Apesar dos óbices provenientes da agitação protestante, a segunda fase moderna completou a ditadura temporal dimanada da primeira. Seu surto coincide com a formação das grandes nacionalidades, que provisoriamente resultaram da ruptura do laço peculiar à Idade Média. Porém, esta anomalia política só oferece uma alta eficácia social, aliás necessariamente passageira, em relação à população central. Cada vez mais investida, desde Carlos Magno, da direção geral do movimento ocidental, a França precisava constituir uma potência muito compacta, assaz extensa para imprimir um impulso decisivo e superar toda agressão retrógrada. Nos demais países, semelhante concentração não foi senão uma cega e perigosa imitação dessa política excepcional.
Nesta segunda fase, a progressão positiva desenvolveu sobretudo seu caráter científico e sua tendência filosófica. A cosmologia toma um surto decisivo estabelecendo a doutrina do movimento da Terra, logo depois completada pela sistematização da geometria celeste e a fundação da mecânica celeste. Então o espírito científico torna-se radicalmente inconciliável com todo espírito teológico ou metafísico. A tendência direta para uma filosofia plenamente positiva caracteriza-se abertamente, sob o duplo impulso de Bacon e Descartes, assinalando já a preparação exigida por semelhante síntese. Durante este movimento decisivo, a arte geral e as artes especiais prosseguem dignamente a evolução que a fase anterior deveu à Idade Média. Apesar da ausência de direção filosófica e de destino social, a poesia ocidental produziu em cinco séculos mais obras-primas verdadeiras do que forneceu toda a Antiguidade. Quanto ao surto industrial, sua extensão torna-se então o objeto crescente das solicitudes públicas, embora o subordinem ainda a intentos guerreiros. Mas ele manifesta já a tendência dos empresários a se separarem dos trabalhadores, para se agregarem à aristocracia degenerada.
A MULHER — Eu quisera, meu pai, conceber agora o caráter e o destino da última fase moderna.
O SACERDOTE — Ela se tornou necessária, minha filha, pelo resultado geral da precedente. Renunciando a todo predomínio universal, o protestantismo e o catolicismo dividiam irrevogavelmente o Ocidente, como o conjunto do mundo romano partiu-se outrora entre o Alcorão e a Bíblia. Nos casos principais, esta partilha ocidental coincide naturalmente com a distinção, desde então mais pronunciada, entre os dois modos, aristocrático e monárquico, peculiares à ditadura temporal proveniente por toda parte da fase anterior.
Os dois regimes tinham-se tornado igualmente hostis à emancipação radical que do mesmo modo ameaçava a ambos. Progressiva enquanto teve de vencer fortes resistências, a realeza, sobretudo a francesa, manifestou suas tendências retrógradas logo que não receou mais nenhuma luta. Desde a segunda metade do reinado de Luís XIV, ela congregou gradualmente todos os destroços da ordem antiga, para conter, de combinação com eles, um movimento social que ela devia julgar puramente anárquico. Mas a ditadura aristocrática e protestante tornou-se então, sobretudo na Inglaterra, mais perigosamente hostil ao movimento ocidental do que a ditadura monárquica e católica, porque ela foi mais bem secundada pela população. O protestantismo, que, enquanto teve de lutar, favoreceu a liberdade, esforçou-se por cumprir a emancipação logo que prevaleceu oficialmente, segundo a tendência de toda doutrina que repele a divisão dos dois poderes humanos. Ele estabeleceu, na Inglaterra, um sistema universal de hipocrisia, mais hábil e mais nocivo do que o que ele exprobrava ao jesuitismo, último modo do catolicismo expirante. Mas a principal corrupção proveniente de semelhante regime consistiu no pleno desenvolvimento do sistema do egoísmo nacional que Veneza apenas pudera esboçar e que, adotado em excesso por toda a população britânica, tendeu a isolá-la do Ocidente. [pág. 315]
Semelhante situação tornou tão indispensável quanto inevitável a explosão negativa que caracteriza o século XVIII, e sem a qual não era possível elaborar, nem mesmo conceber, uma verdadeira reorganização. Os dogmas críticos, surgidos primeiramente de seu princípio fundamental sob as duas revoluções protestantes, estavam já suficientemente coordenados pelos sucessores metafísicos de Bacon e Descartes. Foram então propagados universalmente pelos esforços assíduos de uma classe anteriormente subalterna, os literatos propriamente ditos, sucedendo; assim, aos doutores na direção do movimento revolucionário, onde os advogados não tardaram em substituir os juizes. Duas gerações esgotaram o ascendente prévio dessas escolas inconseqüentes, que quiseram destruir o altar conservando o trono, ou vice-versa. Mas o século XVIII nunca será representado filosoficamente por puros demolidores, como Voltaire e Rousseau, quase esquecidos hoje. Sua grande escola, a de Diderot e de Hume, que Fontenelle prepara e Condorcet completa, não abraça o conjunto da destruição senão para conceber tanto quanto possível a regeneração final, de que o grande Frederico foi o precursor prático. Com efeito, desde então, só os espíritos acanhados podiam esperar satisfazer as necessidades da renovação moderna por meio de modificações quaisquer do regime antigo.
Durante esta fase final, o movimento positivo completou a cosmologia fundando a química. Este progresso decisivo termina os serviços do espírito analítico e do regime acadêmico, cuja cega preponderância tornou-se logo um obstáculo crescente a trabalhos que deviam ser assencialmente sintéticos. Na progressão industrial, vê-se então à classe dos banqueiros tender diretamente para o seu ascendente natural, único meio de sistematizar a atividade material. Ao mesmo tempo, a guerra põe-se a serviço do trabalho, por ocasião das lutas coloniais. A extensão decisiva das máquinas acaba de caracterizar a indústria moderna. Mas ela desenvolve também a deplorável deserção dos empresários quanto às condições sociais peculiares aos trabalhadores, cada vez mais explorados em vez de governados.
Concebe-se assim o caráter necessariamente tempestuoso da imensa crise que terminou o conjunto dos cinco séculos que nos separam da Idade Média. Ele resulta de uma fatal discordância entre as duas progressões que compõem o movimento ocidental, onde o surto positivo era incapaz de satisfazer às exigências orgânicas provenientes do surto negativo. Ao passo que este destruía todas as vistas de conjunto, aquele só podia pôr em seu lugar concepções de detalhe. A presidência da regeneração moderna, no momento de sua principal dificuldade, coube à classe mais incapaz, a dos puros escritores, que só aspiravam à pedantocracia metafísica sonhada pelos seus mestres gregos, com o fito de concentrarem em si todos os poderes.
A MULHER — Conquanto esta indicação me explique assaz o conjunto da crise revolucionária, eu quisera, meu pai, conhecer sumariamente sua marcha geral, a fim de bem apreciar seu estado atual, objeto final desta última conferência.
O SACERDOTE — Cumpre primeiro assinalar nela, minha filha, a abolição necessária da realeza francesa na qual se condensava todo o regime decomposto. Os funerais de Luís XIV já permitiam prevê-la se desde então uma verdadeira teoria histórica os tivesse assaz interpretado como anunciando a um tempo a irrevogável degeneração do governo e a antipatia radical do povo.
Após alguns anos de hesitação metafísica, um abalo decisivo derrubou para sempre essa instituição retrógrada, último vestígio do regime das castas, segundo a consagração teocrática que lhe foi conferida pelo servilismo do clero moderno. Mas a gloriosa assembléia, única popular na França, que devia preludiar assim a regeneração social, não podia suprir as lacunas intelectuais do movimento ocidental. Destituída de toda doutrina [pág. 316] verdadeiramente orgânica, ela não pôde, dirigindo heroicamente a defesa republicana, senão formular, de modo vago, o programa moderno, através de uma metafísica sempre incapaz de construir qualquer coisa.
As tendências profundamente subversivas que necessariamente manifestou o triunfo político dessa doutrina negativa determinaram em breve uma reação retrógrada. Iniciada com o efêmero ascendente de um deísmo sanguinário, ela desenvolveu-se sobretudo pela ressurreição oficial do catolicismo, sob a tirania militar. Mas as tendências fundamentais da civilização moderna repeliram igualmente o teologismo e a guerra. A estimulação sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado, cuja adoção universal anuncia a próxima abolição dos exércitos, substituídos por forças de polícia. Todos os artifícios retrógrados introduzidos depois para impedir semelhante resultado foram tão impotentes para reanimar o cadáver da guerra como o do teologismo, mesmo sob pretexto de progresso, e apesar da ausência das convicções públicas que deviam estigmatizar essa conduta. Em relação ao mais imoral desses expedientes, ouso proclamar aqui os votos solenes que faço, em nome dos verdadeiros positivistas, para que os árabes expulsem energicamente os franceses da Argélia, se estes não a souberem dignamente restituir àqueles. Ufanar-me-ei sempre de ter, na minha infância, desejado ardentemente o sucesso da heróica defesa dos espanhóis.106
106 O fato deu-se no Liceu de Montpellier, onde nosso Mestre fez seus estudos preparatórios, como aluno interno. Foi em plena aula que o futuro reformador ousou emitir o voto de que os espanhóis conseguissem expulsar os exércitos de Bonaparte. Teria ele então dez para onze anos de idade.
Esta retrogradação, a que só a guerra havia proporcionado uma consistência aparente, ficou radicalmente malograda em virtude do advento irrevogável da paz ocidental. Mas a ausência prolongada de toda doutrina orgânica conduziu então o empirismo metafísico a tentar erigir finalmente em solução universal uma vã imitação do regime parlamentar peculiar à transição inglesa. Seu domínio oficial durante uma única geração só serviu realmente para regularizar uma deplorável série de oscilações entre a anarquia e a retrogradação, em que o único mérito de cada partido consistia em livrar-nos do seu rival.
Durante esta longa flutuação, que cada vez mais comprovava a igual impotência de todas as doutrinas em circulação, a desordem espiritual chegou ao seu cúmulo, por efeito do comum abatimento das convicções anteriores, tanto revolucionárias como retrógradas. Nenhuma disciplina parcial pode ser real e durável. Ora, o único princípio da disciplina universal, a preponderância contínua do coração sobre o espírito, achava-se mais e mais desacreditado desde o fim da Idade Média, apesar da santa resistência das mulheres, cada vez menos respeitadas pelo delírio ocidental. Por isso é que, mesmo na evolução científica, a ordem provisória que Bacon e Descartes haviam tentado estabelecer desapareceu em breve sob o surto empírico das especialidades dispersivas, que repeliam cegamente toda regra filosófica. Em vez de reduzir cada fase enciclopédica ao que exigia o advento da seguinte, esforçaram-se por desenvolvê-las indefinidamente, isolando-as mais e mais de um conjunto cada vez menos percebido. Esta tendência tornou-se tão retrógrada quanto anárquica, ameaçando destruir até os principais resultados dos trabalhos anteriores, sob o domínio crescente das mediocridades acadêmicas. Mas a anarquia e a retrogradação são ainda mais completas na arte, cuja natureza eminentemente sintética rechaçava com mais força o empirismo analítico. Em relação à própria poesia, a degradação tornou-se tal que os letrados nada podem apreciar além do estilo, a ponto de [pág. 317] colocarem amiúde verdadeiras obras-primas abaixo de composições tão medíocres quanto imorais.
A MULHER — Nesse doloroso quadro, cuja exatidão não posso contestar, não vejo, meu pai, de onde pode provir a solução final explicada por este Catecismo.
O SACERDOTE — Ela surge, minha filha, de uma suficiente realização do imenso prelúdio objetivo que, começando em Tales e em Pitágoras, continuou durante toda a Idade Média, e não cessou de progredir através da anarquia moderna. No início da explosão francesa, ela só era satisfatória em cosmologia, graças ao recente advento da química. Mas o surto decisivo da biologia, fundada por Bichat e completada por Gall, forneceu em breve uma base científica para a renovação total do espírito filosófico. O conjunto do movimento positivo tem, então, como resultado o advento da sociologia, já anunciado pela tentativa, imortal posto que malograda, em que Condorcet tentou subordinar cientificamente o futuro ao passado, no meio das disposições mais anti-históricas.
Sob a universal preponderância do ponto de vista humano, uma síntese subjetiva pode assim construir, enfim, uma filosofia verdadeiramente inabalável, que levou a fundar a religião final, logo que o surto moral completou a renovação mental. Desde então admirou-se a Idade Média, sem deixar de apreciar melhor a Antiguidade. A cultura do sentimento foi radicalmente conciliada com a da inteligência e da atividade.
Todos os nobres corações e todos os grandes espíritos, sempre convergentes daqui por diante, concebem assim terminada a longa e difícil iniciação por que a Humanidade teve de passar, sob o império constantemente decrescente do teologismo e da guerra. O movimento moderno cessa de ser radicalmente antinômico. Sua progressão positiva mostra-se, enfim, capaz de satisfazer a todas as exigências, intelectuais e sociais provenientes de sua progressão negativa, não só quanto ao futuro, mas também quanto ao presente, do qual eu não tinha de ocupar-me aqui. Por toda parte o relativo sucede irrevogavelmente ao absoluto, e o altruísmo tende a dominar o egoísmo, ao passo que uma marcha sistemática substitui uma evolução espontânea. Em uma palavra, a Humanidade substitui-se definitivamente a Deus, sem esquecer jamais seus serviços provisórios.
Eis aí, minha caríssima filha, a última explicação que eu vos devia sobre o advento decisivo da religião universal, a que aspiram, há tantos séculos, o Ocidente e o Oriente. Apesar de tal advento ainda se achar muito entravado, sobretudo no seu centro, pelos prejuízos e pelas paixões que, sob diversas formas, repelem toda verdadeira disciplina, a sua eficácia será sentida em breve pelas mulheres e pelos proletários, principalmente no sul. Mas sua melhor recomendação há de resultar da aptidão exclusiva do sacerdócio positivo para agremiar por toda parte as almas honestas e sensatas, pela digna aceitação do conjunto da sucessão humana. [pág. 318]
Índice
COMTE — Vida e obra
Cronologia
Bibliografia
CURSO DE FILOSOFIA POSITIVA
Primeira Lição — Exposição da finalidade deste curso, ou considerações gerais sobre a natureza e a importância da filosofia positiva
Segunda Lição — Exposição do plano deste curso, ou considerações gerais sobre a hierarquia das ciências positivas
DISCURSO SOBRE O ESPÍRITO POSITIVO
Primeira Parte — O espírito positivo é mais apto para organizar a harmonia mental do que o espírito teológico-metafísico
Segunda Parte — O espírito positivo é mais apto que o espírito teológico-metafísico para organizar a sociedade e sistematizar a moral
Terceira Parte — Condições do estabelecimento do regime positivo
DISCURSO PRELIMINAR SOBRE O CONJUNTO DO POSITIVISMO
Preâmbulo geral
Primeira Parte — Espírito fundamental do positivismo
CATECISMO POSITIVISTA
Prefácio
Biblioteca positivista no século XIX
Introdução
Primeira Conferência — Teoria geral da religião
Segunda Conferência — Teoria da humanidade
PRIMEIRA PARTE — EXPLICAÇÃO DO CULTO
Terceira Conferência — Conjunto do culto
Quarta Conferência — Culto privado [pág. 319]
Quinta Conferência — Culto público
SEGUNDA PARTE — EXPLICAÇÃO DO DOGMA
Sexta Conferência — Conjunto do dogma
Sétima Conferência — Ordem exterior — primeiro material, depois vital
Oitava Conferência — Ordem humana — primeiro social, depois moral
TERCEIRA PARTE — EXPLICAÇÃO DO REGIME
Nona Conferência — Conjunto do regime
Décima Conferência — Regime privado
Undécima Conferência — Regime público
CONCLUSÃO — HISTÓRIA GERAL DA RELIGIÃO
Duodécima Conferência — Passado fetíchico e teocrático comum a todos os povos
Décima Terceira Conferência — Transição peculiar do Ocidente [pág. 320]
ABRIL CULTURAL
Editor e Diretor: VICTOR CIVITA
Diretores: Edgard de Sílvio Faria, Richard Civita,
Roberto Civita, Rubens Vaz da Costa
DIVISÃO DE FASCÍCULOS E LIVROS
Diretor-Gerente: Roger Karman
Diretora Editorial: Elizabeth di Cropani
Diretor de Marketing: Élcio Capalbo
Os Pensadores
Diretor do Grupo de Publicações: Roberto Martins Silveira
CONSELHO EDITORIAL
Diretor: José Américo Motta Pessanha
Editor-Chefe: Paschoal Miguel Forte
Secretário Editorial: Remberto Francisco Kuhnen
Assistentes de Arte: Satiko Arikita e Rosângela Lopes Lourenço
Serviços Editoriais Auxiliares: Marlene de Fátima Alves Merajo
Coordenação Gráfica: Samuel L Silvério
Colaboradores: Florianne Henfield e Roberto Galvão Paes (Arte)
DEPARTAMENTO COMERCIAL
Gerente de Produto: Breno Simões Magro
Operações: Nelson Murauskas
Promoções: José Carlos Mádio
Serviço de Atendimento aos Leitores: Maria Eleonora Rocha
Composto e impresso nas oficinas da
Abril S.A. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo
Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure:
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups.google.com/group/digitalsource
Esta mensagem foi enviada pelo grupo Viciados em Livros
Cancelamento: escreva para viciados_em_livros@googlegroups.com
Solicitar associação: http://groups.google.com/group/viciados_em_livros/subscribe?hl=pt-BR
No Response to " Livros B"
Postar um comentário