Livros - Maria José Dupré - Luz e Sombra

Maria José Dupré

LUZ E SOMBRA

12ª. Edição
Editora Ática
1985

Em memória da amiga Laura Queiroz Aranha de Souza que me auxiliou com as informações sobre a escravidão no Brasil.
A Autora

Je me souviens
Des iours anciens
Et je pleure...
Et je ríen vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte
De çà, de là,
Pareil à la Feuille morte.
Verlaine


IMPOSSÍVEL voltar ao passado; é como uma cortina que se fecha e nos separa do que ficou atrás. É como a morte. Lembramos sempre do que morreu como lembramos do que passou, mas sabemos que nem um e nem outro voltarão.
É como se eu vivesse ainda naquela época, época um pouco sombria, cheia de vidas sombrias. Época de maridos tiranos, de mulheres pálidas como camélias, de vestidos que se arrastavam, rumorosos, de cinturas finas, de gemidos de negro castigado, de casas fechadas como conventos, de olhares ansiosos através das rótulas, de lágrimas em faces maceradas nas noites quietas. Época de sombras. Ouço ainda o estalar das folhas secas do pomar, quando passeávamos à tarde; ouço vozes enérgicas determinando castigos, e suspiros de dor nas senzalas; ouço o tinir das esporas nos degraus da escada; lembro de carnes chicoteadas e dos salões fechados onde os mármores e as pratas refletiam um brilho sem vida. Lembro-me de mamãe bordando um manto para Nossa Senhora do Rosário num bastidor enorme num canto da sala e de papai fumando um charuto, sentado no alpendre do fundo da casa e bebendo uma cerveja vinda da Inglaterra. Lembro-me das rosas desfolhadas entre os canteiros, da caixinha de rapé de tio António, onde havia a figura de uma pastora vestida de azul conduzindo carneirinhos brancos e do pranto sentido de Francisca Miquelina no dia em que disseram que ela ia casar-se com tio Rodolfo. Sombras. É como se eu espiasse por trás da cortina e tentasse rever o que se perdeu no nevoeiro do tempo, mas só visse sombras, tão negras e tristes como a própria morte.
Lembro-me da trepadeira do alpendre; eram florzinhas azuis enfeitando a grade de ferro; do perfume de jasmim nas noites bonitas e do vestido de mamãe arrastando pelo chão. Ouço papai dizer: "O jasmineiro está em flor!"
Ouço o relinchar dos animais nas manhãs escuras quando os homens se preparavam para a caçada e vejo Pampa, meu cavalo malhado, roçar a cabeça no meu braço. Ouço-os partirem; o trote dos cavalos, os latidos dos cães, perdem-se ao longe; tudo recaiu no silêncio. Por mais que eu queira ouvir de novo os sons familiares do passado, não consigo. Tudo está morto à minha volta.
Impossível voltar ao passado. O jasmineiro, se ainda vive, pode cobrir-se de flores e seu perfume ainda pode embriagar, mas aqueles que o plantaram, que o trataram, que o amaram, não mais existem. Perderam-se no nevoeiro. Penso que o jasmineiro já morreu; quando ele florescia e seu perfume entrava pela casa toda, respirávamos jasmim desde manhã; com o perfume, vinha a primavera, a luz, o sol.
Nunca fui alguém na minha numerosa família; por uma farsa cruel do destino, compreendi que era inferior às minhas irmãs; elas eram belas, claras ou morenas, inteligentes e elegantes; eu fui sempre feia e triste. Tinha saúde fraca e por isso, aos vinte e dois anos, chamavam-me solteirona e homem algum me escolheu para esposa.
Mas essa mesma fraqueza me deu forças para, mais tarde, aparar os embates do destino. Atendi sempre aos que me solicitavam; chamavam-me quando alguém estava doente, quando a nascer uma criança ou quando iam viajar e precisavam de mim para tomar conta da casa vazia. E levada assim pelos vendavais da família, vi escoar-se minha mocidade.
Nossa casa era no largo do Ouvidor; um casarão cheio de sacadas de ferro e rótulas; ao lado das sacadas havia enfeites de vidro azul em formato de abacaxi e as rótulas dos nossos quartos nunca se abriam, muitas vezes espiávamos através delas o largo silencioso.
A porta de entrada era enorme, muito alta, com incrustações de madeira escura; ficava aberta o dia todo e quando Benedito a fechava à noite, ela rangia surdamente e dizíamos umas às outras: "Fechou-se a porta do convento."
Ao lado dela, havia um braço de ferro com um lampião de querosene que balançava nos dias de vento e fazia um rumor que acompanhava nosso sono. Sua luz bruxuleante iluminava a porta e uma parte do largo; mais além, a escuridão, somente a escuridão.
Quando papai estava em S. Paulo, o lampião ficava aceso até dez horas da noite e a chama brilhava sinistramente iluminando o largo; quando o lampião não se acendia, os raros passantes diziam entre si: "O Barão de S. Marcos está viajando, o lampião está apagado."
Quase não saíamos de casa e tínhamos licença de ficar à janela somente em dias de procissão; mas muitas vezes quando estavam entretidos lá dentro, abríamos as rótulas e espiávamos. Assim foi no dia em que papai anunciou o casamento de Maria Letícia; estávamos ela e eu olhando o largo deserto e vendo o sol bater em cheio sobre os velhos sobrados; toda a cidade estava silenciosa. Ouvíamos, de quando em quando, a música tocada no salão; Leopoldina, nossa irmã mais velha, tocava piano e Luís acompanhava-a na flauta; tocavam a Gavotta de Felipe. Começamos a marcar o compasso no rebordo da janela; de repente, percebemos que eles erraram um compasso, pararam e logo começaram. Sorrimos e Maria Letícia disse:
— Luís sempre se atrapalha nessa página.
Mas o pensamento de Maria Letícia não estava na música, devia estar longe, no Rio de Janeiro. Pensaria no primo? Tinham-se encontrado duas vezes apenas; a primeira, durante as cavalhadas no Rio de Janeiro, depois em casa dos tios de Paiva; mas ela nem se atreveu a levantar os olhos do chão e corou muito quando se apertaram as mãos. E percebi logo que qualquer cousa ficou entre eles, como se fios imperceptíveis os houvessem ligado para sempre, desde o primeiro encontro. Olhei-a disfarçadamente, mas sem coragem de perguntar, ela era tão orgulhosa. Mamãe dizia:
— Orgulho é pecado, Maria Letícia, e você é orgulhosa.
Era mesmo; orgulhava-se de tudo: da beleza, da altura, das mãos perfeitas, da cor da pele, da fortuna e do título de papai.
A música cessou no salão e o silêncio cresceu perto de nós; apenas um grupo de escravos vinha subindo a Rua de S. Bento carregando os barris que tinham ido buscar no chafariz. De repente, recomeçaram a tocar, mas a música era outra; era uma mazurca de Goddard que Maria Letícia também tocava quando nos reuníamos à noite em volta do grande piano de cauda do salão. Comecei a cantarolar acompanhando a música e pensando em como Maria Letícia estava diferente desde o encontro com primo Fernão nas cavalhadas. Estava esquisita, não havia dúvida; vivia cismando num canto enquanto bordava ou fazia crochê sem falar, sem rir. Quando perguntavam qualquer cousa, ela levava um susto como se tivesse acordado de repente. Louvado Deus! Isto devia ser amor!
Os escravos passaram falando alto sob a janela, arcados sob os barris d'água; nossa mucama Modesta entrou no quarto:
— Ué, não vão jantá? Todos já tão na sala.
— Já vamos.
Modesta falou com voz maliciosa:
— Ouvi umas conversa hoje: vamo tê novidade.
Fingiu-se atarefada, arrumando umas roupas no gavetão da cômoda, mas percebi que, disfarçadamente, vigiava Maria Letícia. Diante do espelho, Maria Letícia passou o pente nos cabelos, bem devagar, depois perguntou com indiferença, como quem não se importa de saber:
— Novidades? Que novidades são essas? Olhe Modesta, não gosto de mexericos.
E sacudiu o pente na direção de Modesta; a mucama parou no meio do quarto, as mãos na cintura:
— Gente, quando é que andei falando mexericos? Diga, Sinhá! Se eu falo que temo novidade, é porque temo. Vieram umas visita procura sinhô barão... Deixa vê quando foi... Fais uns quinze dia. Sinhô barão mandou chamá Sinhá baronesa e eles conversaram um tempão. Não sou boba; ouvi seu nome tantas veis que disse: Isso é casamento pra Sinhá Letícia. Não me engano à toa.
Maria Letícia corou e continuou a pentear-se simulando indiferença. Depois ralhou com Modesta para disfarçar o embaraço:
— Negra novidadeira. Vai ver que andou contando para todo o mundo, não? Decerto não é nada do que está pensando, tudo é invenção.
A mucama exaltou-se:
—- Óie, Sinhazinha, nenhuma palavra saiu desta boca. Sei muito bem o que tô falando. Invenção, é? Olhou de esguelha, continuando:
— Invenção? Sei até quem é o noivo; sei muito bem.
Maria Letícia assustou-se, levou a mão ao coração:
— Quem é, Modesta? Será que acertou?
Bateram na porta chamando para o jantar; Maria Letícia largou o pente, endireitou a gola do vestido e, antes de deixar o quarto, olhou Modesta, com olhar de desprezo; a mucama sorriu e sussurrou:
— Não precisa zanga, Sinhazinha. Chama Sinhô Fernão.
Maria Letícia sorriu também e deixou o quarto com a cabeça erguida, o olhar altivo. Fui atrás dela; no corredor, olhou-me e pôs o dedo indicador nos lábios pedindo silêncio. Fiz com a cabeça um sinal de aquiescência. Então era ele, o primo. Soubéramos dos conciliábulos secretos, das reuniões da família em que a palavra casamento fora repetida muitas vezes e Maria Letícia receara que não fosse Fernão. Se não fosse, lutaria, tenho certeza, pois tinha gênio forte e era destemida.
Entramos na sala de jantar, onde todos estavam reunidos, até os irmãos casados, que jantavam quase sempre em casa; dirigimo-nos para nossos lugares na mesa. Sentávamos pela idade, papai à cabeceira, tendo à direita mamãe, depois os filhos casados; no outro lado, os solteiros e as crianças no outro extremo. Éramos quatorze irmãos e como três já se haviam casado éramos dezessete à volta da mesa de jacarandá, além de meus pais e de tio António, irmão de mamãe. Eu sentava entre Luís, o mais velho dos solteiros e Maria Letícia; mamãe servia os pratos que três escravas distribuíam. Quando fazia calor, e as moscas esvoaçavam pela sala, o moleque Lucas abanava o grande leque de penas sobre nossas cabeças.
A mesa estava farta de iguarias, como todos os dias: frangos, lombos com farofa, arroz de forno, pastéis de carne salpicados de açúcar. Aos domingos, havia peru recheado ou leitoa assada; as leitoas vinham inteiras, com raminhos de salsa na boca, entre os dentes, nos orifícios do focinho e no rabinho torrado e redondo como um o; sobre o corpo corado e luzidio, rodelas verdes de limão. Colocavam a grande travessa diante de papai que, com o trinchante de prata, resplandecente, cortava fatias delicadas que eram logo distribuídas entre todos. As sobremesas eram variadas e numerosas; próximo à despensa, havia o quarto dos doces, com prateleiras até o teto, repletas de latas, boiões e vidros de boca larga cheios de doces de todas as qualidades. Antes do jantar, mamãe ia com a chave dependurada à cintura escolher as sobremesas para o dia; nunca menos de cinco ou seis espécies de doce apareciam na mesa: compoteiras com doce de cidra, de leite, de batata-roxa. Talhadas amarelas de abóbora açucarada, laranjas inteiras em calda espessa e grossa, goiabas vermelhinhas nadavam nas compoteiras de cristal; às vezes eram pastéis de nata, nuvens douradas, papos de anjo e, nos dias de visita, apareciam pratos de manjar branco com folhas de laranjeira à volta toda e uma rosa encarnada espetada no centro. Ou então pirâmides de fios de ovos que, na mesa, diminuíam rapidamente. Na cozinha, trabalhavam a cozinheira, várias ajudantes e a escrava que só lidava no forno e era chamada a forneira; um grande forno de barro dava para a cozinha e a forneira com um pano branco amarrado à cabeça, suarenta e apressada, tinha sempre quitutes para assar.
Os irmãos menores tinham o hábito de perguntar à mamãe todas as tardes: "Quantos doces posso escolher hoje?" E mamãe respondia quase sempre: "Apenas três, mais de três é feio." Durante todo o jantar, as crianças iam pensando nos três doces que iriam escolher; tinham medo de errar e não comer os preferidos. Mas quando havia visitas — o que acontecia sempre — ninguém prestava atenção e as crianças comiam mais do que deviam e tinham depois indigestões que eram tratadas com chá de losna, tomado à força.
Essa tarde estava quente e o sol entrava pelas cinco grandes janelas que se abriam para o jardim interno da casa. Eram quatro horas. Durante o jantar só os mais velhos falavam; papai pedia notícias de uma das fazendas ao meu irmão Félix chegado essa manhã. Félix trazia novidades; contou que, nas terras da fazenda Guararema, encontrara uma madeira chamada araribá, em grande quantidade. Papai ficou interessado.
Félix começou a falar sobre a cor e a grossura da madeira, dizendo que as madeiras de qualidade se espalhavam pelas nossas terras. Ouvíamos com atenção; Leopoldina queria saber quais eram as outras madeiras; Félix enumerou-as entre um bocado e outro. Terminou dizendo que as cinzas da madeira guararema serviam para refinar açúcar porque tinham muita potassa.
Perguntei, admirada:
— Cinza para refinar açúcar?
Riram-se de minha ignorância e Maria Letícia me chamou de boba em voz baixa; papai explicou como se fazia e disse que o avô havia batizado a fazenda com o nome de Guararema por causa dessa madeira. Continuamos a jantar; um dos irmãos falou sobre a peça que estava sendo representada no Teatro S. José; pretendia assistir a ela nessa noite, com a mulher e a cunhada. Era um drama muito bonito: "A avó." Francisca Miquelina disse que tinha vontade de ir, pois ouvira dizer que a peça era empolgante; tratava-se de uma avó que envenenara a neta. As crianças pararam de comer para prestar mais atenção, enquanto Luís falava:
— Já ouvimos contar a história; dizem que o palco fica todo escuro e a gente vê a avó pondo veneno no copo da neta.
Maria Letícia pediu ao irmão que a levasse, quando mamãe falou olhando o nosso lado:
— Hoje, não podem ir; temos que conversar.
Maria Letícia corou e por baixo da mesa apertou minha mão; a sua estava fria. Sorri para ela, encorajando-a. Quando terminamos o jantar, papai iniciou a reza; levantamos com ruído de cadeiras; só meus pais e irmãos casados continuavam sentados. Baixamos as cabeças e papai falou com voz forte que fez tremer-lhe a barba grisalha sobre o peito:
— Bendito e Louvado seja o Senhor que nos deu de comer e nos deu de beber, sem merecer.
Repetimos a oração em voz baixa; em seguida deixamos a mesa e fomos para o jardim; Maria Letícia não havia descido ainda os degraus que davam para o pátio, quando ouvimos a voz de papai:
— Maria Letícia!
Sobressaltada, ela voltou-se e perguntou:
— O senhor chamou, papai?
Ele fez um sinal para que o acompanhasse ao salão, onde mamãe já estava sentada na frente do bastidor, cuja seda esticada mostrava flores prateadas e douradas para o manto de Nossa Senhora do Rosário. Quando Maria Letícia sumiu na porta do salão, olhamos uns para os outros: "Que será?"
Minutos depois, vieram chamar-nos; encontramos Maria Letícia sentada ao lado de mamãe, muito pálida. Papai de pé, com o charuto na mão, olhava as duas e falava:
— Maria Letícia foi pedida em casamento por Fernão Seixas de Albuquerque; a boda está marcada para daqui a dois meses. Está tudo acertado.
Ela continuou imóvel, os olhos no chão, muito branca e sem saber o que falar, mamãe levantou-se para abraçá-la dizendo:
— Minha filha deve sentir-se feliz; faz um bom casamento e todos devemos nos alegrar com a notícia.
Ela apertou os lábios para não chorar e sem dizer uma palavra, correspondeu ao abraço; todos ficamos à volta, olhando. Francisca Miquelina foi a última a entrar e, com os grandes olhos brilhantes, perguntou da porta:
— Que foi? Nosso pai mandou-nos chamar?
Quando soube de que se tratava, saudou Maria Letícia enquanto papai mandava servir o vinho para festejar o acontecimento; tio António, o irmão mais moço de mamãe e que morava conosco, levantou os dois braços para cima, exclamando :
— Três bien, ma petite, três bien.
E beijou com suavidade a testa de Maria Letícia. Ele foi educado na Europa e tinha a mania de falar francês; em toda conversação, enxertava frases em francês e achava isso três distingue. Estava agora começando a envelhecer; já passava dos quarenta e começava a engordar, mas ainda era elegante. Usava bigodes muito bem tratados, à Napoleão III, com as pontas bem finas e retorcidas que ele acariciava com cuidado enquanto conversava. Mas tio António não gostava de trabalhar; papai, por várias vezes, indicara-lhe alguns cargos elevados, que ele recusava com ar superior; nada estava à altura da sua competência, do seu nome, da sua capacidade. Achava que homens ricos não deviam ocupar-se de nada, ainda mais trabalhos rotineiros; era impróprio, ridículo. Passava os dias lendo livros franceses, ou tocando ao piano canções que aprendera em Paris; já não era rico, pois diziam que gastara uma fortuna na Europa, onde tivera cavalos de raça e freqüentara os salões do Faubourg Saint Honoré. Diziam também que tivera um castelo em Fontainebleau, onde dera festas suntuosas; isto, porém, não ficou provado. Quando falava na época passada em Paris e nas manhãs do Bois, onde passeara seus belos cavalos, seus olhos despediam faíscas e todo seu corpo vibrava no entusiasmo das recordações. Papai e meus irmãos mais velhos desprezavam-no um pouco no íntimo, assim creio, pois viam-no levar essa vida ociosa, tomando chá com as damas dizendo que une robe cor de ervilha deve ser usada com rendas creme e que um robe de brocado não precisava enfeite porque a fazenda já enfeitava. Sabia, como ninguém, dar receitas de pratos raros; ele que ensinou mamã Zabel a preparar peitos de pombo com molho de vinho de Porto e um pudim de ovos, delicioso. Nos últimos tempos, vi-o mais de uma vez pedir dinheiro à mamãe, às escondidas, e creio que mamãe dava bem contrariada. Gostava de passar os dias conversando, lendo ou cochilando, deitado na rede do alpendre; às vezes cantava: Mon vieux Paris... Em surdina, sorrindo e afagando os belos bigodes de que se orgulhava.
Nessa tarde, com o cálice de vinho na mão, felicitou Maria Letícia em francês, enquanto papai explicava a todos:
— Esses Seixas de Albuquerque são do Estado do Rio; família de nome. O avô de Fernão, Visconde de Seixas, tomou parte saliente no Gabinete Liberal do Visconde de Macaé, em 48. A família é muito rica, o pai tem umas vinte fazendas e mil e quinhentos escravos trabalhando na cana e no café.
Um ah! de admiração acolheu essas palavras e papai continuou:
— Fernão Seixas já tem uma fazenda própria: Santarém.
Terras muito produtivas. Café e engenho de cana.
Mamãe perguntou com voz apreensiva:
— E a nossa filha vai residir nessa fazenda de Santarém?
— Penso que por ora não; Fernão Seixas pretende primeiro formar-se em Direito; está no quinto ano. Ele me disse que vão ficar uns tempos na chácara da Penha, aqui em S. Paulo. Dizem que é uma belíssima chácara.
Discorreram a respeito do casamento durante algum tempo. Só Maria Letícia não dizia nada, sempre com os olhos no chão. Papai perguntou dirigindo-se a mamãe:
— Fernão Seixas pode fazer uma visita à noiva de hoje a quinze dias?
Mamãe espetou a agulha numa rosa dourada e refletiu um pouco antes de responder:
— O senhor não acha que daqui a um mês será mais conveniente? Haverá tempo de sobra para fazer os preparos com antecedência.
Papai falou com Maria Letícia, sacudindo a cinza do charuto:
— Prepare-se para receber seu noivo de hoje a um mês.
— Sim, senhor.
Dormíamos as três no mesmo quarto: Maria Letícia, Francisca Miquelina e eu. Fiquei acordada durante muito tempo e percebi que Maria Letícia também não dormia; com certeza pensava no noivo, fora tudo tão inesperado! Pensei como havia de ser bom pensar num noivo, imaginar a cor dos seus olhos, as primeiras palavras que me diria no dia do noivado, na ternura do seu olhar, no primeiro aperto de mão. Decerto eu ficaria muito acanhada e nem saberia que havia de dizer. Se dissesse apenas: "Boa tarde!", seria muito pouco. Se dissesse: "O senhor como vai? Está passando bem?" Que bobagem chamar o noivo de senhor; isso é tempo antigo. Hoje a gente diz você logo no primeiro dia; papai é capaz de não gostar, mas eu digo, ora esta! Mais tarde, direi a papai confidencialmente: "No seu tempo a noiva dizia senhor, mas hoje não, papai; desculpe-me, mas os tempos são outros". E digo você a Fernão, desde o princípio. A questão é que me esqueci da cor dos olhos de Fernão; creio que são acinzentados. Já tive um vestido assim, de gorgorão, entre cinzento e azulado. Até discutiam a cor do vestido; quando eu vestia esse vestido, colocava uma camélia na cabeça, não sei por que. Os olhos de Fernão são assim, como o vestido, não como a camélia; camélia é branca ou cor-de-rosa, os olhos dele são cinzentos. Deixa ver se me lembro do jeito que ele sorri... Nossa Senhora! Mas... O que será isto? Estou pensando no noivo de Maria Letícia? Credo! Ele vai casar com ela e não comigo. Vou tratar de dormir; Satanás está me tentando, vou rezar uma Ave-Maria. Espere aí. "Ave, Maria..."
Nesse momento, ouvi soluços do outro lado do quarto; Francisca Miquelina estava chorando, ela também estava acordada na sua cama perto da janela. O que seria? Fiz um movimento para me levantar, quando vi Maria Letícia acender a vela da cabeceira, quase sem fazer ruído. De camisola branca, comprida até os pés, as lindas tranças soltas nas costas, aproximou-se da cama de Francisca Miquelina e perguntou com solicitude:
— Francisca Miquelina, por que está chorando?
Imóvel na minha cama, fiquei escutando e fingi que dormia. Não ouvindo resposta, Maria Letícia colocou o castiçal sobre a mesinha e pegou no braço de Francisca Miquelina; tornou a perguntar:
— O que tem? Por que está chorando? Sente alguma dor? Fale!
Francisca Miquelina parou de chorar um momento; afastou os cabelos que caíam sobre a testa, olhou para Maria Letícia e, mergulhando novamente o rosto entre as mãos, chorou mais forte, soluços angustiosos; Maria Letícia debruçou-se sobre o leito, sem saber o que fazer. Falou energicamente:
— Mana Francisca Miquelina, diga o que tem, diga. Quer que chame nossa mãe?
A resposta veio entre soluços:
— Não. Não quero nada, nada.
— Então por que chora assim? Alguém lhe fez algum mal? Fale, fale, mana.
Francisca Miquelina sentou-se na cama limpando as lágrimas com as mangas da camisola; empurrou os cabelos para trás outra vez e encarou a irmã:
— Não tenho nada. Já disse que não tenho nada e, mesmo que tivesse, não diria.
— Ora esta! Por quê?
Ela apertou os lábios com força e não respondeu.
— Por que, Francisca Miquelina? Fiz alguma cousa?
Então é comigo?
Ela apertou mais os lábios; a chama da vela tremulava iluminando as duas enquanto eu, do meu canto escuro, olhava. Maria Letícia insistiu:
— Diga, é por minha causa?
Os soluços recomeçaram outra vez e Francisca Miquelina tornou a esconder o rosto entre as mãos, dizendo:
— Preferia morrer a dizer.
Maria Letícia pensou um instante; depois pegou o castiçal e aproximou-o do rosto da irmã; com a outra mão segurou-lhe o braço fortemente:
— Diga de uma vez. Eu preciso saber. É por causa de Fernão?
Fez-se breve silêncio. Os soluços diminuíram. Ela insistiu:
— É por causa de Fernão? Francisca Miquelina, fale de uma vez.
— Não.
— Então por quê? Quero que diga logo; é por causa de Fernão que está chorando?
Francisca Miquelina tomou uma resolução; sentou-se na cama, enxugou o rosto e encarou Maria Letícia; depois disse com lábios trêmulos:
— Pensei que... que... que... ele me escolhesse.
Chorou de novo. Maria Letícia sorriu triunfante e aproximou mais a vela do rosto de Francisca Miquelina:
— Mas é a mim que ele quer desposar. Não viu como me olhava durante as cavalhadas no Rio de Janeiro? Eu não olhei, mas vi.
A voz veio entre soluços:
— Mas ele olhava também para mim... pensei que... ele... me quisesse.
Maria Letícia levantou a cabeça com ar altivo:
— Mentira. Ele olhava para mim, só para mim. Eu vi.
E depois... eu sou mais velha, já fiz dezesseis anos, você fez quinze outro dia mesmo. Papai gosta de casar primeiro as mais velhas. E ele me escolheu por ser mais velha; não adianta chorar e suspirar desse jeito. Ele gostou de mim. E se for fazer queixa a alguém, conto para papai. Entendeu bem? Boa noite.
Levantou-se com a vela na mão; Francisca Miquelina segurou-a pela camisola:
— Se papai gosta de casar primeiro as mais velhas, então devia escolher a mana...
E olhou para o meu lado; Maria Letícia sorriu e compreendeu; falou com voz compassiva:
— Boba! Ela não foi feita pra casar, é muito tímida.
Olhe, Francisca Miquelina, o amor é sublime e quando a gente ama, ama até a morte.
Baixou mais a voz:
— Outro dia, tirei um livro da biblioteca de tio António, ninguém sabe... um livro de Stendhal. É proibido para moças.
Interessada, Francisca Miquelina levantou um pouco a cabeça para escutar melhor; apoiou-se num cotovelo enquanto Maria Letícia continuou com ênfase:
— O livro conta a vida de Helena de Campereale. Ela fugiu para amar um homem, fugiu porque os pais não queriam o casamento. Teve muitas aventuras, mas não conseguiu o que queria... Coitada!
— O que queria ela?
— Amar o homem, viver com ele. Houve tanta cousa que eles não conseguiram nada. Ah! Se fosse comigo... Eu havia de conseguir...
— Não diga isso, Maria Letícia!
— Deixaria pai, mãe, tudo para seguir o homem que amo. Isso é amor, você não sabe. Para amar é preciso coragem, beleza e inteligência. Mana Rosa não pode amar. É feia, tola e tímida. (Mana Rosa era eu.)
— E por Fernão você abandonaria tudo?
— Ainda pergunta?
— Conte mais alguma cousa do livro que leu. E depois?
— Agora não, é muito tarde. Amanhã.
Maria Letícia voltou para o leito; assoprou a vela e o quarto retornou ao silêncio. Durante muito tempo, fiquei escutando, tudo estava tranqüilo. Eu era feia, tímida e tola. Pobre de mim, ninguém me escolheria. Na escuridão que nos envolvia, imaginei Maria Letícia trançando e destrançando os cabelos escuros e pensando no noivo. Sorrindo no escuro. As outras irmãs podiam casar-se com quem papai escolhesse, ela não. Foi ela quem escolheu.

CHEGOU o dia da visita de Fernão; Maria Letícia amanheceu pensativa; Modesta entrava e saía do quarto, afobada. Muito antes da hora, começou a penteá-la; repartiu os cabelos quase negros ao meio da testa, prendeu as duas tranças na nuca e borrifou água de jasmim nos braços e no colo de Maria Letícia. Depois, começou a vesti-la, auxiliada por mim; primeiro o camisão, o colete, a armação de arame, as saias de baixo e, finalmente, o vestido de cetim azul celeste. Enquanto vestia, Modesta dizia que, se a cor do vestido fosse um pouco mais escura, combinaria melhor com os olhos da Sinhazinha que pareciam duas flores azuis depois da chuva. Maria Letícia sorriu, satisfeita.
— Ué, não aquerdita? Lembra do córguinho de Guararema? Aquele perto do monjolo que está cheinho de flozinha azul dependurada n'água? Não posso oiá pra vossuncê que lembro das flozinha do córguinho, e quando tô lá e vejo as flozinha lembro de vossuncê.
Modesta apertou com força os cordões do colete enquanto com as saias prontas na mão, eu esperava. Maria Letícia gritou:
— Ai, Modesta, não aperte tanto assim. A flor azul é miosótis. Papai sempre diz que eu tenho os olhos da avó portuguesa, não ouviu falar? Por que aperta desse jeito? Eu arrebento.
Modesta fungou:
— Quem é que qué sê bonita? Quem foi que disse hoje cedo pra mim: "Modesta, quero ficar linda hoje pra receber meu noivo...". Falou noivo com a boca cheia. Quem foi? Quem é que tava me adulando?
— Mentirosa.
— Credo! Sinhá Rosa viu muito bem, sabe que não sô mentirosa. Agora vem com lambança: Não aperte que arrebento. Ainda me chama de mentirosa.
Amarramos os cordões das saias, depois vestimos o longo vestido; Modesta começou a abotoar os colchetes desde a gola até a cintura. Depois resmungou:
— Todas já tão pronta, Sinhá baronesa tá no salão há que horas... Sinhá Leopoldina vai chega. Veja -, um carro parou na porta, deve sê ela.
Maria Letícia arregaçou a saia de cetim e correu para a janela para ver nossa irmã casada descer da carruagem, espiou através da rótula. Modesta foi atrás, censurando:
— Assim desse jeito, eu não acabo de abotoa esse vestido, Sinhazinha. Sossegue um poço.
Com as saias arregaçadas, Maria Letícia fez um sinal para mim:
— Rosa, venha ver Leopoldina com o vestido de veludo cor de pinhão. Depressa.
— Já vi.
— Não viu nada; venha ver daqui.
Modesta resolveu intervir e aproximou-se de Maria Letícia:
— Nossa Senhora do Rosário, sossegue um poco. Vamos acabá de vesti.
— Estou sossegada; também você é uma lerda.
— Pode xingá quanto quisé, mas quero vê quem sabe penteá Sinhazinha tão bem como esta negra aqui.
E bateu no peito. Nesse instante, uma das escravas falou atrás da porta:
— Sinhá baronesa mandô pergunta se Sinhá Letícia não tá pronta. Tão no salão esperando.
Modesta abriu a porta:
— Já vai.
Voltou-se para Maria Letícia:
— Não disse que tamo atrasada? Tava só brincando...
quando eu falo, ninguém aquerdita. Pensa que tudo é brincadeira. Tá vendo?
Tirei um leque da gaveta da cômoda e dei a Maria Letícia. Ela bateu com impaciência o pé no chão:
— Não quero este, quero o novo, o de penas roxas e brancas.
Modesta assustou-se:
— Não, Sinhazinha. Pena roxa é pras casadas.
— Mas eu quero, é muito mais bonito que este. Ande, mana Rosa.
Olhei Modesta; ela tornou a intervir:
— Por amor de Deus, Sinhazinha, o que seu noivo vai pensa? Veja bem, no dia do noivado, aparece com leque de pena roxa? Parece até que tá arrependida. Roxo é tristeza, não é, Sinhá Rosa?
Maria Letícia tornou a bater o pé direito no chão; falei:
— Leve o branco, Maria Letícia, mas esse não.
— O branco não fica bonito.
— Então este. Olhe que beleza.
Maria Letícia não deu atenção às minhas palavras; passou pela gaveta da cômoda, tirou um leque cinzento e saiu do quarto abanando-se. Modesta seguiu-a sacudindo a cabeça e eu fui atrás das duas; antes de entrar no salão, ela chegou à porta do jardim e mandou o moleque Lucas colher uma rosa cor-de-rosa; corri e fui buscar um alfinete e com ele prendi a rosa na cintura de Maria Letícia; ela sabia que, na linguagem das flores, rosa significava amor; lera num livro. Mas no momento de prender a rosa, espetou o dedo mínimo num espinho e foi assim que entrou no salão: chupando o sangue do dedinho.
Todos estavam lá; ela recebeu os cumprimentos dos irmãos e dos parentes próximos; colocou-se entre papai e mamãe e ficou à espera do noivo. Estava linda, mas um pouco agitada; percebi que, com o canto dos olhos, procurou Francisca Miquelina; desde o dia em que tinham anunciado seu compromisso com Fernão Albuquerque, não se falaram mais e discutiram muito no dia seguinte por causa de Fernão. Francisca Miquelina andava esquisita e só lhe dirigia a palavra quando outras pessoas estavam presentes; parecia evitá-la. De repente viu Francisca Miquelina sentada perto de uma porta, entre as primas, conversando com calma; na cabeça, levava como enfeite um ramo de esporinha. Vi que Maria Letícia ficou vermelha de raiva. Sobressaltei-me. Como é que Francisca Miquelina tinha coragem de pôr esporinhas nos cabelos? Toda a gente sabia que essa flor significava tristeza.
Estava escrito no livro. E não ficava bem. Tristeza nesse dia? Teria ela feito de propósito?
Não tive tempo de pensar mais; ouvimos o ruído de um carro parar à porta de casa e, a seguir, o noivo entrou no salão acompanhado dos pais e irmãos mais velhos. Quando ele se inclinou diante de papai que se adiantava para recebê-lo, todos ouvimos papai dizer:
— Maria Letícia, eis aqui seu noivo, Fernão Seixas de Albuquerque.
Como ele era bonito! Muito mais bonito do que a lembrança que ficara na minha memória; olhei os dois e vi quando ele se inclinou diante da noiva, sorrindo levemente. Meu coração deu um salto como se fosse eu a escolhida. Os dois se olharam de perto pela primeira vez. Fernão era forte e moreno, tinha altura regular e um sorriso simpático: era simplesmente atraente. Observei-os com atenção. Faziam um belo par. De vez em quando, eu procurava Francisca Miquelina para observá-la também; conservava-se arredia e enigmática.
Toda a família se adiantou para cumprimentar os noivos; entre o ruge-ruge das sedas e o abanar de leques, vieram apertar as mãos dos noivos e desejar-lhes felicidades. Novamente, vi Maria Letícia procurar com os olhos Francisca Miquelina; ela observava Fernão de longe, pálida e inquieta, os lábios estranhamente cerrados. Vi quando se aproximou dos noivos, o semblante fechado e os olhos baixos; beijou a irmã e, sem dizer uma palavra, apertou a mão de Fernão; depois, afastou-se com passos vagarosos, abanando-se com o grande leque de penas roxas que Modesta não deixara Maria Letícia usar. Ao andar, as esporinhas tremulavam entre os bandós castanhos. Vi que Maria Letícia mordeu os lábios de raiva e murmurou baixinho: Atrevida! Pois Francisca Miquelina fazia de propósito.
Os escravos dirigidos pelo mordomo Benedito entraram trazendo doces e refrescos e, enquanto todos conversavam pausada e cerimoniosamente, os noivos conseguiram trocar entre si as primeiras palavras. Logo mais, papai mandou vir champanha na grande bandeja de prata que pesava dezesseis quilos e vinha carregada por dois escravos; as vozes se calaram. Cada convidado tirou uma taça e, depois de todos servidos, o velho Seixas, pai de Fernão, deu uns passos solenes para o centro do salão. Era alto e forte, estava de sobrecasaca e colete xadrez; tinha uma barba branca à volta do rosto e dava a impressão de uma lua cheia; olhou os noivos e, levantando a taça bem alto, brindou o futuro casal. Disse que havia muito tempo almejava tal aliança entre as duas famílias e o longínquo parentesco existente entre os São Marcos e os Albuquerques iria estreitar-se ainda mais com o feliz enlace; disse mais palavras como essas e terminou levantando mais a taça e quase gritando: Felicidades!
Palmas romperam em todos os cantos do salão; nesse momento, vi Fernão dar um estojo de veludo a Maria Letícia; quando ela abriu, vi o brilho de um adereço de rubis e brilhantes; de um lado, um bracelete e brincos, de outro, um lindo colar. Todas a rodearam para ver as jóias lançando exclamações entusiásticas; Maria Letícia começou a beber o champanha aos golinhos, quase em êxtase; estava tremendo de felicidade e de orgulho ao mesmo tempo.
Os tios idosos pareciam apreensivos pelos cantos do salão: conversavam em voz baixa sobre a guerra do Paraguai; nosso tio de Paiva dizia que soubera no Rio de Janeiro, de fonte fidedigna, que Caxias ia passar o comando do exército. O tio de Sousa Mendes sacudiu com o dedinho a cinza do charuto, um pouco nervoso:
— Então, quem ficará no lugar de Caxias? Quem assumirá o comando das tropas?
— Dizem que será o Conde d'Eu. Várias vozes falaram ao mesmo tempo:
— Não acredito.
—- Não é possível.
— Caxias tem-se portado de maneira brilhante. Temos Itororó.
— E Avaí?
— E Lomas Valentinas?
Papai estendeu a mão pedindo calma:
— Esperemos. Esperemos, senhores. O que mais me impressiona neste momento é que dois filhos meus querem partir.
Tio Paiva suspirou:
— Os meus também... E esta guerra está demorando muito. Não sei onde vamos parar...
Houve uma pausa enquanto os primeiros convidados se retiravam; nessa mesma noite o casamento de Maria Letícia ficou marcado para o mês seguinte: 8 de fevereiro de 1869.
Dirigimo-nos para o quarto onde Francisca Miquelina já estava deitada, a cabeça coberta. Modesta desabotoava os vestidos e comentava a festa; falou do Sinhô Fernão — "garboso como poucos", dos convidados, dos vestidos das damas; desfez as tranças de Maria Letícia e só deixou o quarto depois que a viu deitada; com um "boa noite, Sinhazinhas", apagou a vela e foi embora. Ficamos quietas, escutando a escuridão; por toda a parte o silêncio e as trevas; toda a cidade dormia. "Como eu seria feliz se fosse a noiva. Santo Deus!" Fernão era moço, bom e simpático. Na hora de despedir-se, ficou segurando a mão de Maria Letícia com tanta ternura e eu senti um arrepio como se ele segurasse a minha mão. Era Satanás que me estava tentando outra vez; mentalmente rezei uma Ave-Maria e a tentação passou. Durante todo o tempo, observei-o; quando falava, quando ria, quando tomava vinho. Era capaz de amá-lo até a morte, mas sou feia, tola e tímida. Não posso ser amada. "Meu Deus! Estou outra vez pensando no noivo de minha irmã; dai-me um bom sono e afastai-me da tentação."
Enquanto pensava, ouvi um ruído; era Maria Letícia que se levantava e andava às apalpadelas pelo quarto; ouvi a voz dela chamando em voz baixa Francisca Miquelina:
— Francisca Miquelina!
Ouvi um movimento e uma voz sussurrar:
— Estou com enxaqueca!
— Fale de uma vez. Quero só saber isto: Tem raiva de mim e de Fernão?
— Não.
— Então por que anda tão esquisita? Não falou com ninguém, sempre com ar aborrecido num canto do salão. Até me perguntaram se você estava doente; bem sabe que não tenho culpa do que aconteceu...
Silêncio.
— Você acha que tive culpa?
— Não.
— Então tem raiva dele? Ele tem culpa? Silêncio.
— Você não quer responder? Pois não responda. Ao menos pode dizer-me por que estava com um ramo de esporinhas na cabeça?
— À toa.
—- Não se põe flor à toa no cabelo, veja bem. Conto tudo para nosso pai; conto que você me estava provocando.
— Mas eu não estava.
— Mas eu conto que pôs esporinhas no cabelo só para me aborrecer e para dizer que está triste com meu noivado...
Francisca Miquelina mexeu-se na cama, depois disse com voz de choro:
— Estou com enxaqueca, já disse. Mas não estou zangada.
Maria Letícia ameaçou:
— Veja bem, hein? Se falar a alguém, já sabe o que acontece. Conto tudo.
— Não falo.
Tateando, Maria Letícia voltou para seu leito e deitou-se. Durante algum tempo, fiquei acordada, pensando: "Aqui neste quarto, Fernão Seixas tem três noivas e não uma. Uma é de verdade, duas de coração."
Todas as escravas que sabiam bordar, foram reunidas para fazer o enxoval de Maria Letícia; Modesta dirigia e distribuía o trabalho; passavam o dia todo bordando e tecendo rendas. Maria Letícia continuou tomando lições de piano e francês; durante horas inteiras, ficava sozinha no salão tocando uma mazurca de Goddard de que Fernão gostava muito. Francisca Miquelina continuava esquisita e reservada.
Muito antes do dia determinado para a cerimônia do casamento, nossa casa movimentou-se; chegaram hóspedes do Rio de Janeiro, das fazendas e das chácaras longínquas. Uns vinham a cavalo, outros em grandes carruagens, outros ainda em liteiras. O casarão ficou cheio: os escravos tinham serviço dobrado, mas estavam contentes porque a festa ia durar três dias: receberiam roupas novas e papai daria carta de alforria como fazia sempre que casava um filho. Cochichavam pelos corredores; uns diziam que Zé Congo teria liberdade esse ano, outros diziam que era Jerônima e Teódulo, mas ninguém sabia ao certo e papai guardava segredo até o último momento.
Todas as manhãs, mamãe recebia Modesta em sua sala particular, depois a chefe da cozinha que era Mamã Zabel e o Benedito que dirigia os escravos de dentro e tratava da ornamentação da casa. Mamãe dava ordens, explicava tudo com pormenores e inquiria:
— Mamã Zabel, que se fez ontem?
Mamã Zabel, a escrava mais antiga da casa e de maior confiança, contava nos dedos enquanto revirava o corpo grande e pesado de um lado a outro.
— Ontem foi dia dos sequios. Sequios de araruta, de coco, de polvilho... de fubá mimoso... Tem sequio prum mundão, Sinhá.
Mamãe sorria com complacência; com as pontas dos dedos, arrumava os fios de cabelo que escapavam de dentro da touquinha preta que usava de manhã; depois procurava, na penca de chaves que trazia à cintura, a chave da despensa e a entregava a Mamã Zabel:
— Quero que faça os bolos hoje; biscoitos também.
— Sim, senhora. E os doces de calda?
— Amanhã será dia dos doces de calda.
Mamã Zabel retirava-se, orgulhosa com a confiança que mamãe depositava nela, levando a chave da despensa de modo que todos vissem, com as saias engomadas fazendo: flac, flac...
Modesta entrava e falava das costuras, dos bordados, das rendas; dizia o que precisava para o dia; depois fazia um ar desanimado e ficava olhando o chão, esperando. Mamãe perguntava :
— Que mais, Modesta?
— É aquela negrinha, Sinhá. A Merenciana. Fazia uma pausa e continuava:
— Vadia como ela só. Tá impossive, não trabáia direito, pede toda hora pra saí, até estragou o bordado do cabeção de uma camisa de Sinhá Letícia.
Fazia uma pausa, embaraçada: é — Acho que ela tá precisando de uma sova...
Mamãe que não gostava dos castigos corporais, procurava outros meios para corrigir os escravos e dizia, apaziguando:
— Diga a Emerenciana que se continuar assim não receberá vestido novo para o casamento de Sinhá Letícia. Todas receberão, menos ela.
Modesta saía apressada, pisando firme. Benedito entrava pedindo ordens; dizia ter encomendado flores em todas as chácaras de S. Paulo: rosas, dálias, brincos de princesa, jasmim do cabo, do imperador; mamãe recomendava-lhe não se esquecer de um pouco de "verde" para enfeitar os lustres e as mesas. Benedito perguntava:
— Melindre, Sinhá?
— Pode ser melindre, avencas e palmas, algumas palmas.
E Benedito saía para cumprir as disposições; andava curvado. O tempo que havia trabalhado no eito, deixara-lhe a marca: andava com o busto meio dobrado para a frente como se carregasse um peso enorme e suas mãos eram encarquilhadas e grossas. Ia repetindo pelo caminho contando nos dedos: Melindre, avenca, alguma palma, melindre, avenca...
Ouvia-se o dia todo o piano do salão; eram as primas que tocavam valsas, polcas, mazurcas. De vez em quando, ouvia-se a harpa de Francisca Miquelina, que escolhia as músicas mais tristes e as interpretava com sentimento. Eu ficava espiando na porta do salão; em seus olhos escuros pairava certa melancolia e quando se sentava ao lado do instrumento e seus dedos passeavam tateando as cordas, a harpa parecia chorar com ela e cada nota era como um gemido; parecia acompanhá-la nas horas de tristeza. Todos escutavam em silêncio, quando Francisca Miquelina tocava a Serenata de Schubert, eu disfarçava e ia chorar no quarto, pois a música era muito triste. Ninguém lê nos corações, mas creio que Francisca Miquelina sofreu muito durante o noivado de Maria Letícia; só a harpa sabia, por isso parecia que choravam juntas quando ela tocava.
Dias antes das festas chegaram nossos tios; um era o Conselheiro de Paiva que residia no Rio de Janeiro. Chegou com nossa tia e doze filhos; trouxe grande quantidade de escravos e também parte do enxoval de Maria Letícia, confeccionado pelas bordadeiras da corte. Outro tio, o Barão de Sousa Mendes, era muito rico: morava numa fazenda de Guaratinguetá. Veio com titia e apenas dezesseis filhos mais jovens; os mais velhos andavam de estudos pela Europa. Presenteou Maria Letícia com uma baixela de prata portuguesa de quase cem peças. Os irmãos de mamãe também foram chegando; residiam nas fazendas de Taubaté ou em chácaras fora da cidade.
Uma das tias tinha uma filha aleijadinha, menina de seus doze anos, pálida, nariz muito comprido e olhos amortecidos. Andava sempre em companhia de uma mucama chamada Prudência, a vigiá-la. Era corcunda e as perninhas, finas como se fossem quebrar, mal se adivinhavam sob as saias engomadas; o pescoço parecia desaparecer entre os ombros enormes. Chamava-se Carola, mas, longe dela, as crianças diziam: a priminha corcunda. Não gostavam dela na mesa, costumava beliscar os que sentavam ao lado; era a maneira lógica de vingar-se dos que não tinham nada nas costas.
Muitas vezes Prudência segurava-lhe a mão, já sobre o braço da vítima; e quando Prudência não segurava a tempo, lá vinha o grito: "Ai! Prima Carola me beliscou!"
O pior era quando conseguia arranjar um alfinete ou um broche; aproximava-se disfarçadamente e enterrava o alfinete nas carnes das crianças ou nas pernas das escravas, e então seu rosto pálido transfigurava-se pelo prazer da vingança. As crianças gritavam e as mães precisavam intervir; então Carola chorava e dizia que a provocavam. Prudência pedia que perdoassem, "era doentinha, coitada! Tivessem paciência."
Os pais de Carola ficaram hospedados em casa de nossa irmã casada, Leopoldina, que residia na ladeira da Memória; outros hospedaram-se em casas de parentes, situadas nas redondezas.
O programa das festas ficou assim organizado: concerto e ceia no primeiro dia; segundo dia: jantar de gala, distribuição de cartas de alforria aos escravos e danças; terceiro dia: cerimônia do casamento, ceia, grande baile.
Na noite do concerto, nossa casa encheu-se de animação: mamãe estava triste com a ausência de dois filhos: os gêmeos Inácio e Leontina. Inácio estava na Europa, aonde fora estudar pintura, bem contra a vontade de papai; Leontina estava casada havia dois anos com um primo de Paiva; residia numa fazenda em Campos, onde possuíam grandes usinas de açúcar. Como estava esperando filho, não pôde vir a São Paulo, para as festas do casamento.
À hora do concerto, Fernão, que fora dos primeiros a chegar, sentou-se ao lado de Maria Letícia, no sofá do salão, rodeado por todos nós. Às oito em ponto, deu-se início à música; tocaram solo de piano, depois piano acompanhando a flauta, o violino e o violoncelo. Francisca Miquelina interpretou o minueto de Mozart, na harpa, acompanhada pela flauta de Luís e pelo violino do primo Leônidas. Um dos primos de Paiva, estudante de Direito, declamou uma poesia de Casimiro de Abreu; Leopoldina tocou Dalila em surdina, para acompanhá-lo. Mais tarde, titia de Paiva lembrou-se de pedir a Francisca Miquelina para tocar a Serenata de Schubert, Francisca Miquelina não estava no salão. Mamãe fez-me um sinal para que fosse procurá-la e Modesta foi atrás de mim com um vestido novo engomado, recendendo a manjericão. Encontramos Francisca Miquelina no quarto, a cabeça encostada na rótula, chorando no escuro. A mucama levou um susto e eu fiquei parada, olhando.
— Que será isto, Sinhá Moça? Todos tão chamando Vossuncê pra tocá a Serenata. Não faça Sinhô barão esperá, fica feio.
Aproximei-me de Francisca Miquelina e pedi que voltasse ao salão, pois haviam de reparar e sua ausência seria comentada. Segurei a vela, enquanto Modesta começou a passar o lenço muito de leve no rosto dela, sem parar de falar:
— O que hão de dizê? Começa logo os falatório; o unindo é mais ruim que bão, vão dizê logo que é coisa de amô.
Pensa que não sei? Vai vê. Fica feio, tô avisando.
Francisca Miquelina foi-se acalmando; de repente começou a passear pelo quarto e a desabafar; dizendo-se infeliz.
— Não fale assim, Francisca Miquelina. Por que infeliz?
Modesta acendeu outra vela; olhamos Francisca Miquelina que continuava a andar pelo quarto; Modesta exaltou-se:
— Não diga que é infeliz; quem tem tudo como Vossuncê não pode sê infeliz. Cruz credo! Isso até é tenta do demo.
— Mas sou.
— Num é. Que é que falta pra Sinhá? Bonita como um jasmim, rica, mimada. Um dia arranja um moço bonito como Sinhô Fernão, vamo tê mais festa, mais casamento. Sinhá Rosa tá aí pra falá.
— Francisca Miquelina, vamos para o salão. O que mamãe estará pensando? Vamos!
Ela passeava pelo quarto, arrastando o vestido de brocado de um lado a outro, sem me ouvir, sem se resolver a sair. De pé perto da porta, Modesta a observava e insistia:
— Vamo, Sinhá Francisca. Vamo embora, tô avisando.
De repente, falou em voz baixa:
— Nossa Senhora, será tudo isso por causa do Sinhô Fernão?
Como se alguma cousa a assustasse de súbito, Francisca Miquelina parou no meio do quarto e encarou Modesta com a testa franzida:
— Já vem essa negra novidadeira com embustices; não invente histórias, Modesta. Vá embora e deixe-me sozinha.
Modesta olhou-me rapidamente como se quisesse dizer que acertara; fingiu que estava zangada:
— Num vou, taí. Num vou sem Sinhá Moça saí daqui. O que os convidado vão pensá? Temo que saí junta daqui. Tenha juízo, Sinhá Francisca, tô avisando... Deixe de tá se amofinando por causa do noivo das outras...
Ouvimos o ruído dos passos ligeiros de Mamã Zabel; entrou também no quarto varrendo o tapete com as saias barulhentas.
— Que é que Sinhá Francisca tem? Tudo tá esperando no salão. Vamo toca harpa: Sinhô barão mandô chamá...
— Não mandou...
— Não mandô? Por alma da defunta Sinhá Chica que Deus guarde, mandô. Tô dizendo que mandô.
E Mamã Zabel cruzou dois dedos e beijou-os com efusão; depois ajeitou os cabelos de Francisca Miquelina, enquanto falava:
— Sinhá Moça tá tão bonita hoje. Vamo; tô vendo que logo temo outro casamento nesta casa. Pensa que a negra não tem ôio pra vê? Vamo toca harpa, não esqueceu o leque?
Vamo, Sinhá Rosa.
Entramos no salão; Francisca Miquelina sentou-se ao lado da harpa, passou de leve os dedos pelo instrumento, arranjou a saia em ondas graciosas sobre os pés e olhou à volta; seus olhos pousaram instantaneamente num dos primos que a mirava extasiado. Sorriu para ele e deu os primeiros acordes da Serenata de Schubert; ouvi a música pensando que muito breve ela também se casaria; só eu ia ficando.
Após o concerto, a ceia; dirigimo-nos todos para a sala de jantar onde centenas de velas brilhavam nos lustres de cristal e onde se enroscavam ramos de melindre entrelaçados com dálias e brincos de princesa.
Na mesa principal, sentaram-se os noivos, as pessoas mais velhas da família e os tios; em outras mesas menores, esparsas pela sala, espalharam-se os mais jovens.
Uma orquestra contratada por papai e vinda do Rio de Janeiro, tocava trechos clássicos em surdina, para não perturbar as palestras: sentado logo após os noivos, estava o tio de Paiva, irmão mais velho de papai. Era um velho quase bonito; a pele rosada contrastava com as suíças brancas que lhe ocultavam parte do rosto. Residira sempre no Rio de Janeiro e freqüentava a corte; tinha certo orgulho disso e seu maior prazer era descrever a vida e os esplendores do Palácio de S. Cristóvão. Lembrava-se perfeitamente de quando a Arquiduquesa Leopoldina viera da Áustria para casar-se com D. Pedro; falava com voz forte, autoritária, em tom de oratória. Ouvíamos em silêncio enquanto os escravos serviam a ceia, movendo-se nas pontas dos pés.
Mamãe pediu-lhe para contar a chegada da arquiduquesa aos mais jovens da família, que não tinham tido ainda ocasião de ouvi-la. Ele comeu o último bocado de peru, sorveu um grande gole de vinho e depois de passar o guardanapo pela boca, olhou a sala toda como a pedir mais silêncio, cofiou as suíças e começou:
— Lembro-me como se fosse hoje: toda a cidade do Rio de Janeiro se engalanara para receber a Princesa Leopoldina; eu me encontrava entre o povo acompanhado de meu pajem; vi-a quando ela passou na carruagem, ao lado do rei. Das janelas e balcões das casas pendiam mantos e tapetes coloridos e as mulheres jogavam flores a mancheias na carruagem da arquiduquesa; as pétalas de rosas ficavam pairando uns instantes no ar por causa da brisa. Era uma lindeza. Em outras carruagens vinham a rainha, as outras princesas, o Infante D. Miguel e demais pessoas. O dia estava conforme, muito agradável e belíssimo.
Mordiscou um quindim e continuou:
— Isso foi a 12 de novembro de 1817 e eu contava justamente dezesseis anos; lembro-me muito bem. Depois do desembarque, dirigiram-se todos para o palácio onde foi rezada missa e Te Deum em ação de graças.
Tio Sousa Mendes interrompeu:
— Mas a festa principal foi na cidade ou no Palácio de S. Cristóvão?
— No Palácio de S. Cristóvão que já estava preparado para recebê-los.
Um dos primos perguntou-lhe:
— E o beija-mão, meu tio? Como foi o beija-mão?
O tio Conselheiro alisou as suíças com carinho:
— Ah! Isso foi no dia seguinte; houve beija-mão e, à noite, grande concerto. Eu não compareci porque era criança, mas, nossos pais contavam como foi. Os manos não se lembram de quando nossa mãe contava esse fato?
Papai e tio Sousa Mendes concordaram que ainda lembravam. Ao fim da ceia, brindaram Maria Letícia e Fernão, depois levantaram-se e espalharam-se pelos salões. Alguns formaram roda para conversar a respeito do episódio evocado pelo tio de Paiva, que continuou a falar para um grupo que o rodeava.
De um lado, eu observava os noivos e vigiava Francisca Miquelina, que disfarçadamente também olhava Maria Letícia e Fernão. Eles trocavam poucas palavras entre si, quase todo o tempo conversavam com os que estavam próximos; no momento de se despedirem, Fernão disse uma frase que fez Maria Letícia corar. Olhei Francisca Miquelina que também estava corada como se tivesse ouvido e eu senti minhas faces em fogo.
No segundo dia, rezou-se missa em S. Gonçalo, à qual compareceram todos; depois do almoço houve a cerimônia da entrega das cartas de alforria a alguns escravos; vieram eles com roupas novas, limpos, e postaram-se em fila diante de mamãe e papai. Parte dos parentes assistia ao ato, de um lado do pátio, enquanto outros debruçavam no alpendre. O dia estava muito bonito, embora quente; as folhas paradas, o ar luminoso, o sol brilhante e um ou outro pássaro voando lá no alto. Quatro escravos iam ficar livres. Houve um movimento de alegria quando papai gritou no silêncio do pátio: José Congo! O silêncio que se seguiu foi tão perfeito que uma mosca passou zunindo e todos a ouviram: Zé Congo deixou a fila e caminhou com passos trêmulos para receber a carta; depois ajoelhou-se e beijou a mão de papai; em seguida, beijou a ponta do vestido de mamãe. Explodiram aplausos de todos os lados e Zé Congo voltou para a fila, mostrando as gengivas vermelhas num sorriso trêmulo, sem saber que fazer com o papel que segurava na mão, bem apertado entre os dedos encarquilhados. De repente, ele olhou para o alto; uma porção de nuvens brancas se amontoava num canto do céu e o sol deu em cheio sobre um passarinho que voava baixo; creio que só neste momento Zé Congo compreendeu que estava livre; foi quando viu o brilho da asa refletindo o sol. Liberdade! Vi uma lágrima apontar-lhe no olho esquerdo, o olho sempre dolorido e meio fechado, que, muitos anos antes, meu irmão Lourenço ferira com o chicote. Zé Congo baixou a cabeça para disfarçar a emoção; mas só eu vi aquela lágrima porque papai já chamara outro nome: Salustiana! Salustiana era uma das negras da cozinha; veio pisando firme, com as saias armadas recendendo alecrim e rebolando-se. Recebeu a carta, beijou a mão de mamãe sem se ajoelhar e voltou para o seu lugar, toda orgulhosa. Mamã Zabel, que assistia à distribuição, fez um muxoxo de desprezo esticando o beição e resmungou alto:
— Êta negra embusteira!
O casal Teódulo e Jerônima foram também alforriados esse ano; Jerônima chorou ao receber a carta e, depois de beijar a mão de mamãe, voltou soluçando para a fila. Um dos convidados perguntou:
— E Mamã Zabel? Pensei que Mamã Zabel fosse receber também.
— Gentes, não sabe que sou forra desde o casamento de Sinhá Leopoldina? Foi no pátio da fazenda Guararema; quando Sinhô barão gritou meu nome: Zabé! Senti o coração dá um safanão no peito. Gritei pra mim mesma: "Ah! negra, chegô teu dia". Saí da fila sem saber onde pisava, enrosquei os pé na saia e quase fui pro chão. Tornei a falá: que é isso, negra, tremelique? Quando vortei pra meu lugá, tava qui nem peru co rabo pra cima. Mas não deixei a famia do Sinhô barão; continuei servi eles do mesmo jeito. Quero bem todos; tô aqui desde que Sinhá Leopoldina era um tiquinho de gente assim; hoje tá de fio e eu tô firme. Fico até as pernas se negá a carregá o corpo. Quero bem Sinhá baronesa, taí.
Rimos ao ouvir as explicações de Mamã Zabel; depois fomos assistir à entrega dos presentes aos convidados e aos escravos; Maria Letícia e Fernão distribuíram roupas e calçados aos escravos; depois leques e rendas às primas e parentes.
Recolhemo-nos, então, aos quartos e alcovas para dormir a sesta; à tarde, haveria jantar e danças.
O banquete foi servido na baixela de prata e os vinhos Diais finos acompanharam os pratos escolhidos a capricho. A alegria era geral e culminou depois do banquete, quando a Orquestra tocou músicas de danças e papai, dando o braço a mamãe, encaminhou-se para o salão de festas. Foi organizada a quadrilha dos casados; apenas os casados e os noivos que casariam no dia seguinte, poderiam dançar.
Quando a orquestra começou a tocar a quadrilha de Macbeth e os pares já formados no salão esperavam a voz de mando do tio de Paiva, o salão apresentava aspecto imponente. Nós todos ficamos à volta, assistindo, e atrás de nós ficaram os escravos de dentro, que, nas pontas dos pés, espiavam a festa; seus rostos escuros luziam em sorrisos alegres.
A certo ponto, o tio conselheiro, com toda a solenidade, de casaca preta, colete branco e gravata de cetim, deu um passo à frente levando titia pela mão e gritou: En avant, tour! Trinta e tantos pares se adiantaram com passos cadenciados e inclinaram-se uns diante dos outros; alguns tinham as cabeças grisalhas e outros, inteiramente brancas. Entre os que dançavam, estava a Baronesa de Sobral, com sessenta e poucos anos de idade; era magrinha e empinada; cabeça quase alva, mas era temida pelos seus ditos cheios de sarcasmo e malícia. Todo mundo evitava servir-lhe de alvo; com seus olhos perfurantes como verruma, o nariz em ponta avançando diante do rosto como se se esforçasse por farejar escândalos, zombava de todos com voz fina; a maledicência era seu passatempo predileto. Quando diziam "A Baronesa de Sobral está no salão", muita gente se aprumava e olhava ao espelho para verificar se os cabelos estavam penteados, se a gola estava em ordem, se tudo estava bem, pois a viúva do Barão de Sobral não perdoava e escarnecia dos que mereciam e dos que não mereciam ser escarnecidos. Sua língua ferina não escolhia ninguém e não discernia. Quando dançava, sobressaía-se entre todos não só pelos cabelos completamente brancos e pelo grande vestido preto rodado, como pela maneira de dançar, à moda de Lacombe, aos pulinhos.
Dançava com o tio Sousa Mendes e de vez em quando cochichava e ria para o par; nós que assistíamos à quadrilha dos casados, ficamos entusiasmados ao ver a elegância de todos; nenhum se atrasava, nem se adiantava, mantendo um ritmo perfeito. Tio Antônio, ao nosso lado, não se conteve:
— Oh! Cest beau, voilà!
Mamã Zabel, a um canto, deu uma cotovelada em Modesta:
— Não há como os brancos pra sabê dançá. Veja que importância.
Modesta nem respondeu; com os olhos arregalados, não queria perder um detalhe; apenas confirmou com a cabeça. Só falou quando Maria Letícia passou num galope ao lado dela, de mãos dadas com Fernão, o largo vestido azul borboleteando no ar e sorriu, um largo sorriso de felicidade. Então Modesta deu um suspiro e sussurrou:
— Minha fia é a mais bonita de todas, veja que maravia. Quando digo que os óio dela parece as flozinha azul do córguinho, ninguém aquerdita. Tão luzindo hoje qui nem brasa!
— Onde se viu chama os óio de brasa, rapariga? Tá delirando?
Modesta sacudiu os ombros:
— Modos de falá. Tão luzindo qui nem flô da beira d'água, isso é que falei.
— Isso sim.
Depois da quadrilha, os pares foram tomar refresco de maracujá e de orchata e os moços dançaram o lanceiros; fiquei de um lado, olhando, pois ninguém me convidou para par. Os mais velhos os observavam; os homens bebendo o refresco em golinhos e as senhoras abanando-se com os belos leques de plumas.
A Baronesa de Sobral conversava com D. Escolástica, uma nossa vizinha; comentava a festa; com sua voz esganiçada, a baronesa falava enquanto passava o lencinho de cambraia na testa:
— Maria Letícia precisa ter cuidado; homem bonito não dá certo, toda mulher cobiça. E Fernão Seixas é muito bem posto.
D. Escolástica agitou o leque de rendas e respondeu:
— Ah! baronesa, Fernão Seixas Albuquerque é de boa raça e o que se deve olhar primeiro num casamento é a raça, não acha?
A baronesa tomou um golinho do copo que tinha na mão, conservando os olhos enviesados para o lado dos noivos:
— A senhora fala em raças como se falasse de cavalos; Eles têm razão. A raça está em primeiro lugar, por isso é que é melhor casar os filhos com parentes. Suspirou e continuou:
— Mas pensa por acaso que um homem, por ser de boa estirpe, é mais sério do que outros? Bem se vê que ainda está acreditando na juventude, eu não acredito em ninguém mais.
Tomou outro gole de refresco; D. Escolástica sorriu, lisonjeada:
— Não sou tão nova assim, mas...
A baronesa interrompeu-a mostrando com o copo o tio Sousa Mendes e baixou a voz:
— Olhe o Sousa Mendes, é de boa raça, não é? Conheci-o moço, foi um belo homem, mas muito mulherengo.
Teve tantas aventuras, tantas...
Bateu com o leque umas três vezes na mesa onde estavam os copos vazios:
— Agora vive amasiado, na fazenda dele, com uma mulata e na própria casa. A baronesa finge de sonsa, mas vê tudo.
E virando-se de repente para D. Escolástica:
— E o barão meu marido? Pensa que não teve pecados também? Os homens são peste do diabo.
Senti as faces em fogo e quis sair do meu canto para que me vissem, mas não tive tempo; a baronesa riu com malícia:
— Às vezes as mulheres também...
D. Escolástica riu abafadamente; percebi que escondera o rosto atrás do leque, depois com voz surda:
— Quem é que pode com uma mulher moça e bonita quando dá para virar a cabeça dos homens?
A Sobral riu alto, uma risadinha aguda e bateu com o leque fechado na mão de D. Escolástica; olhou depois o salão e falou, disfarçadamente:
— A mocidade de hoje não tem compostura; veja um pouco os modos da filha mais moça do Conselheiro de Paiva, e não é muito moça. Não sei se se casará, já fez vinte anos.
Não olhe agora, repare nas promenades; revira-se tanto que a gente vê até o meio da perna, atrás. Uma indecência. E que modos esquisitos de dançar! Não vê que no meu tempo era assim; hoje tudo está tão diferente... Olhe, daqui a pouco vê-se-lhe o joelho... Repare agora. Agora! Vai passar!
As duas se inclinaram na porta do salão para ver melhor; D. Escolástica pareceu horrorizada:
— Credo! Como é que os pais vêem isso e nada dizem?
A senhora tem razão; vi-lhe a barriga da perna, inteirinha.
A baronesa abriu o leque e começou a abanar-se, examinando os outros com olhos aguçados e dizendo:
— Viu a barriga da perna? Pois vai ver mais, D. Escolástica. Não demora muito e a senhora verá acima da barriga da perna. Estou dizendo que falta compostura nas moças. No meu tempo... Não vê que era assim. Estas novidades arruínam a sociedade.
E começou a contar episódios do seu tempo; enquanto falava, olhava para os lados, ávida de bisbilhotices, numa ânsia de descobrir segredos.
Tossi umas duas vezes para denunciar minha presença e levantei-me da cadeira onde estava sentada, atrás da cortina de veludo; as duas ficaram quietas de repente e olharam-me, indecisas. Depois, a Baronesa de Sobral olhou rapidamente para D. Escolástica, um pouco assustada, mas dominou-se logo e me disse com voz indiferente:
— Estávamos comentando a festa; estava dizendo que há muito tempo não tinha o gosto de assistir a tão bela reunião.
S. Paulo é uma cidade triste, não tem divertimentos. Mas esta festa vale por todo o tempo em que não tem havido nada, não é mesmo, D. Escolástica?
Antes de ouvir resposta, continuou animada:
— E que belo par fazem sua irmã e Fernão Seixas! Verdadeiramente, não se vê um par bonito assim muitas vezes.
Não é mesmo, D. Escolástica?
Mas D. Escolástica estava preocupada; voltou-se para mim com um amável sorriso:
— Não quis dançar o lanceiros? Ou já dançou e veio descansar um pouquinho no seu canto?
— Não dancei, vim assistir daqui. Estava um pouco cansada...
Olharam-me novamente, assustadas; nesse momento, papai aproximou-se, convidando a Sobral para uma polca; ela hesitou fechando e abrindo o leque uma porção de vezes; falou com voz fininha:
— Já passei da idade das polcas, barão.
— Mas quem dança quadrilha tão bem como vossência, também dança polca.
Ela aceitou e apanhando a grande cauda num gesto rápido, deu o braço a papai e foi dançar a polca; com corpo inclinado para trás, dançava rápida e animadamente, como se fosse uma moça.
Fui para outro lado do salão, onde algumas primas estavam conversando; a prima de Paiva, a mesma que a Sobral Murara, falava a uma outra:
— A Baronesa de Sobral não tira os olhos de nós. Que ela que ver aqui? Velha novidadeira! Outra prima replicou:
— Se fosse só novidadeira, ainda bem. Mas é assanhada.
— Você não viu como ela dança quadrilha? Há quem ache bonito, eu não, parece uma lebre a pular diante do pé de couve.
Rimos todas escondendo o rosto atrás dos leques; a prima Sousa Mendes respondeu:
— Pois ela tem orgulho disso; diz que aprendeu a dançar na Europa.
— Dançavam.. dançavam... mas, agora a moda é outra.
— Será possível? Mas ela diz...
A prima de Paiva tornou a falar:
— Ela diz, como pode dizer muitas outras mentiras.
O que ela é... é presunçosa, isso sim. Presunção e água benta...
Responderam depressa:
— Cada um toma quanto quer.
Tornamos a rir enquanto a prima de Paiva apontava disfarçadamente:
— Olhem, veja como ela dança polca; está dançando com o tio de S. Marcos. Não parece mesmo uma lebre?
— E que vestido exagerado para uma senhora da idade dela. Acho indecente.
Enquanto olhávamos, uma das primas dirigiu-se a mim:
— O que será que Francisca Miquelina tem? Anda triste e arredia, sempre com violetas no cabelo; não sabe, prima Rosa?
— Não. São modos dela; foi sempre assim, um pouco retraída.
E olhei para outro lado a fim de não perceberem que estava mentindo. Continuaram a comentar:
— Violeta é mágoa. Ela está magoada. Por que será?
— Alguma paixão recolhida? Vamos ver se descobrimos?
De longe, começaram a observar Francisca Miquelina que, sentada lá do outro lado, perto de uma janela, olhava a festa, distraidamente.
Às onze horas, ouviu-se o ruído das carruagens que levavam os convidados; no dia seguinte, a festa seria mais suntuosa. Todos se apresentavam para assistir ao casamento de Fernão e Maria Letícia.
Quase não dormi nessa noite; estava excitada e pensando na festa do dia seguinte; mais umas horas, e Maria Letícia deixaria nossa casa. Era a terceira irmã que se casava; para onde a levaria o destino?
O dia seguinte amanheceu límpido e bonito; um dia quente de fevereiro, sem nuvens no céu muito azul, o azul quente do verão. Nossos hóspedes levantaram-se cedo; muitos saíram para ouvir missa em S. Gonçalo. O movimento era incessante no sobrado, um ir e vir de pessoas; uns entravam, outros saíam, outros, ainda, perambulavam pela casa como à procura de alguma cousa. À tarde, o reboliço era indescritível; escravos passavam sobraçando grandes bacias, ou carregavam baldes cheios de água tépida para os banhos dos hóspedes. Portas abriam e fechavam com estrépito, vozes clamavam por pajens e mucamas, gritinhos impacientes irrompiam dos quartos; os escravos de dentro corriam apressados e, por toda a parte, pelos corredores, quartos e salões, a água de cheiro se espalhava pelo ar, impregnando a casa inteira.
No pátio, os escravos falavam todos ao mesmo tempo, vigiavam os cavalos dos hóspedes tudo em grande afobação. Mamãe Zabel, comandava o exército da cozinha, com autoridade e energia. Benedito dirigia os últimos arranjos das salas e alpendre; havia flores em todos os cantos; rosas grandes e quase desfolhadas; dálias compactas, de pétalas muito unidas e entrelidas com melindres, enfeitavam a escadaria de entrada; camélias e avencas caíam abraçadas das arandelas de cristal. Benedito, imponente na farda nova, tudo fiscalizava, reclamando contra o atraso do serviço.
Em nosso quarto, Modesta e duas mucamas vestiam Letícia, cerimônia demorada; Leopoldina e nossas duas cunhadas, Eponina e Aninhas, assistiam dando sugestões, intervindo nos detalhes. O vestido de Maria Letícia era de brocado branco e os desenhos, entretecidos com fios de prata, formavam flores de lis, aqui e ali, tiras de veludo branco atravessavam a larga saia. Sobre o corpete, na cintura, e na cabeça, havia numerosas flores de laranjeira, vindas do Rio de Janeiro; e, para a mão esquerda, estava reservado um grande ramo de botõezinhos amarrados com fitas brancas de cetim, bem compridas.
Os últimos retoques foram dados por Leopoldina e pelas cunhadas. Aninhas e eu colocamos o véu, enquanto Eponina escolhia o colar que a noiva devia usar; Leopoldina, a certa distância dizia:
— Puxe o véu mais para a frente, assim. Não, mais de lado, do lado direito. Assim. Estou achando as flores muito caídas na testa...
Com gotinhas de suor brilhando nas faces, perguntei:
— E assim, está bem?
— Deixe ver. Está. Deixe assim.
As mucamas, agora inativas, olhavam silenciosas; Eponina afastou-se e voltou com um colar na mão:
— Estará bem este aqui?
— Não, contraveio logo Aninhas. Nada de ouro hoje. Pérolas ou brilhantes ficariam melhor.
Leopoldina discordou:
— Acho pérola triste para uma noiva.
Maria Letícia olhou para mim.
— Mana Rosa, veja o colarzinho de pérolas, aquele que tem uma cruzinha de brilhantes, o que papai me deu.
Leopoldina tornou a discordar:
— Maria Letícia, achava melhor pôr só o broche de brilhantes, o que mamãe usou no casamento.
Aninhas e Eponina achavam melhor o colarzinho de pérolas; procurei nas gavetas, nas caixinhas e não o encontrei. De repente, Modesta lembrou que o colar estava na caixa de lenços de Francisca Miquelina; foi buscar.
— Não é este, Sinhá?
— Esse mesmo.
Colocamo-lo com cuidado no pescoço da noiva e nos afastamos um pouco para ver o efeito; Maria Letícia, imóvel, sorria diante do espelho, admirando a própria imagem.
— Já pôs cheiro? perguntou Eponina.
Nossa Senhora, tínhamos esquecido! As mucamas trouxeram às pressas uma garrafa cheia de um líquido amarelo e com ele borrifamos os braços, o colo e as mãos da noiva; depois esfregamos delicadamente. Estava pronta, nada faltava.
Nosso quarto estava em grande desordem; roupas para um lado, caixas abertas pelo chão, sapatos espalhados por toda a parte, gavetas escancaradas mostrando camisas, meias e camisolas, algumas dependuradas fora da gaveta. Os escarpins pretos para viagem que mamãe achara tão caros, pois pagara R$ 500 o par, achavam-se atrás da bacia de banho, quase debaixo da cama. Silenciosamente, as mucamas começaram a pôr tudo em ordem, enquanto Modesta acabava de arrumar os baús e as malas que Maria Letícia levaria para sua nova casa. Mamãe veio chamar-nos dizendo que estava na hora. Um pouco nervosa, Maria Letícia deu o braço a papai e entrou no salão. Estava linda, os grandes olhos azuis sobressaíam na brancura do rosto e contrastavam com os cabelos escuros; notei um frêmito de admiração passar através dos convidados. Murmuravam uns para os outros: "É a filha mais bonita do barão". "Bonita como ninguém".
Diziam que Maria Letícia era orgulhosa; talvez por ser bonita, por ser rica, por ser fidalga, era orgulhosa. Quando ela entrava na igreja, por exemplo, onde papai tinha um banco reservado, fechado a corrente e onde estavam as iniciais "B. de S. M.", ela mantinha a cabeça alta, sem olhar para ninguém e para lado algum. No Teatro S. José, onde tínhamos um camarote e comparecíamos algumas vezes, ela ficava indiferente à multidão que se comprimia lá embaixo, e olhava o palco com o olhar displicente de quem se aborrece irremediavelmente. Tratava de isolar-se; Félix, nosso irmão mais velho, dizia que gostava de viver à margem. Mamãe não gostava e sempre o censurava: "Orgulho é pecado, Maria Letícia". Quando foi pedida em casamento, aceitou porque era Fernão; mas, se não fosse, lutaria, lutaria contra papai, contra os irmãos, a sociedade, os preconceitos, contra tudo. Não era como as outras jovens da nossa época, que se casavam com quem os pais escolhiam. Não, era diferente. Queria que sua vontade prevalecesse sempre. Creio que o primeiro espinho a feri-la foi perceber que Francisca Miquelina também queria casar-se com Fernão. Ficou perplexa e revoltada. Como se atrevera Francisca Miquelina a tanto? Não devia nem sequer pensar nisso. Perturbou-se um pouco a princípio, mas, como saiu vencedora, esqueceu logo. O espinho fizera um arranhão tão leve que não deixara sinal.
Pensei nisso quando a vi dirigir-se ao altar pelo braço de papai; armado no fundo do salão, com um grande crucifixo de prata no centro, o altar brilhava suavemente entre as chamas das velas tremulantes e jarras azuis cheias de jasmins. Todos observavam Maria Letícia com curiosidade; os convidados comentavam entre sussurros a beleza da noiva e o garbo do noivo, que, de pé, esperava junto ao altar. Ela passou entre alas de convidados atentos, a cabeça alta, linda e serena; durante a cerimônia, no silêncio que se fez de repente, ouvia-se o crepitar sutil das chamas e o balbucio de preces. O perfume de jasmins predominava.
Depois da cerimônia, os noivos receberam os cumprimentos dos parentes e amigos. De pé, em frente ao altar, sorriam alegremente, enquanto que de um lado mamãe e a mãe de Fernão enxugavam as lágrimas e disfarçavam a emoção. Dirigimo-nos depois para a sala de jantar, onde, na mesa principal, havia o bolo de noiva, alto e grande, coberto de confeitos, obra-prima de Mamã Zabel que, espiando por uma porta semi-aberta, ria e chorava ao mesmo tempo, enxugando os olhos no avental e admirando: "Que casal tão bonito! Nunca a defunta Sinhá Chica, que Deus guarde, pensou que a neta ficasse tão bonita e casasse tão bem! Deus a conserve, amém".
Nesse momento, ouvimos risadinhas e cochichos; alguns primos vieram da copa, rindo muito e disfarçando; fiquei curiosa e perguntei a uns e outros: afinal meu irmão Lourenço contou: o primo Nicolau Sousa Mendes era robusto e gabava-se da sua força fora do comum; quando viu dois escravos na copa, levantando a grande bandeja de prata para levar ao salão, riu-se dizendo que não eram necessários dois homens para se carregar uma simples bandeja e que, possante como era, ele a carregaria sozinho.
Ao inclinar-se sobre a mesa para segurar a bandeja pelas duas alças e erguê-la, no esforço que fez, sua casaca fez trec... e rasgou-se de alto a baixo, nas costas. Ninguém pôde conter-se e riam-se ainda da cara do primo Nicolau, que sem saber o que fazer, nem para onde se virar, lá ficara com a casaca rasgada. Tio António, entre risonho e penalizado, saiu para livrá-lo de tão aflitiva situação, emprestando-lhe outra roupa. Horas depois, ainda se comentava o episódio, entre risotas e murmúrios.
Quando Benedito entrou dirigindo dois escravos a carregarem com solenidade a bandeja cheia de taças rendilhadas, as atenções de novo se voltaram para os recém-casados. Feito o brinde, serviu-se o jantar que durou mais de duas horas. Tio António escolheu os vinhos próprios para cada prato. Ninguém entendia melhor que ele a qualidade de vinho que devia acompanhar cada prato e, se alguém contestava ou não achava que estava bem, tio António se ofendia e repuxava o lábio inferior em sinal de desprezo.
Em mesas menores, distribuídas pelos cantos da sala e do alpendre, viam-se as crianças com suas mucamas; de vez em quando ouvia-se um gritinho agudo: "Olhe a priminha Carola me cutucando". Às vezes, choravam; outros, mais ousados, devolviam os beliscões e a menina chorava então em altos gritos. Prudência procurava acalmá-la, censurando os outros:
— Tenha paciência com a menina, ela não tem culpa de sê doente.
— Mas ela me cutucou.
— Pobrezinha de minha fia.
Tio António exclamava do seu lugar, à boca cheia:
— Oh! La pauvre petite malade.
Às vezes titia, a mãe de Carola, ia ver o que havia. Era ainda moça, de fisionomia pálida e tristonha; nos lábios tinha sempre um sorriso que mais parecia um rictus, desses que ficam gravados em certos semblantes sofredores; tomava Carola ao colo e abraçava-a dizendo com voz compungida:
— Minha filhinha! Minha pobre filhinha!
E devolvia a pequena à mucama. Penso que não tinha muita paciência com a filha.
Durante o banquete, nosso irmão mais moço, Bonifacinho, sentiu-se mal e saiu vomitando pelo corredor afora; mas a mãe fez-me logo sinal para que o acompanhasse. Tivemos que chamar nosso médico, o Dr. Maranhão, que residia perto, na rua do Jogo da Bola. Mamãe ficou nervosa e durante o banquete levantou-se várias vezes para vê-lo e eu fiquei a maior parte do tempo com ele. À noite, acalmou-se e dormiu; quando acordou, ainda dançavam no salão. Deixei uma escrava velando-o. Quando o viu acordado, ela perguntou se ele queria um prato de canja. Bonifacinho deu um grito dizendo que nunca mais havia de comer na vida dele, que não falasse em comida e atirou-lhe um sapato; a mucama deixou o quarto e foi chamar mamãe dizendo que o Sinhozinho estava bom, pois jogara um sapato em sua cabeça.
Mamãe sorriu, satisfeita, e foi beijar Bonifacinho antes que ele dormisse de novo. Talvez por ser o último da família, Bonifacinho era terrível, cheio de vontades, irrequieto e travesso, o terror dos escravos. Usava cabelos longos e encaracolados até os ombros e todas as manhãs havia gritos, sopapos e reclamações quando a mucama lhe fazia os cachos.
Nesse dia do casamento de Maria Letícia, estava vestido com uma roupa nova de veludo azul, com gola e punhos de renda; mas não se passou muito tempo e a gola de renda de Bruxelas estava toda molhada, assim como os cabelos, porque Bonifacinho fora brincar na água que os escravos usavam para lavar os cavalos, enquanto sua mucama estava na cozinha, ocupada. Os punhos de renda ficaram rotos, em pedaços; teve que vestir outra roupa e a mucama foi severamente repreendida porque não soube vigiá-lo.
Enquanto estávamos ainda à mesa, alguns escravos passaram a fim de trocar as velas do salão; levavam banquinhos para facilitar o trabalho; todas as velas foram trocadas. Depois do banquete, a orquestra executou uma valsa e Maria Letícia dançou com o marido, sozinhos, no grande salão resplandecente de velas; dançaram a dança de roda pela primeira vez.
Pediram, depois, a tio António para marcar a quadrilha dos solteiros, organizada com quase cinqüenta pares. Tio António marcava com elegância; quando dizia tour! A aba de sua casaca fazia uma reviravolta graciosa e rodopiava no ar; com as pontas dos dedos na cintura do par, fazia-o rodopiar também. O cumprimento era soleníssimo, executado com graça, e tio António continuava: promenade à gaúche! À droite! Grand chaine! Tour au centre! Dando à voz uma entonação diferente e forte, a cabeça bem alta, os bigodes pontudos e lustrosos, os olhos brilhantes!
Dancei essa quadrilha com primo Nicolau; ele estava com uma casaca velha de tio António; era um pouco grande e suas mãos estavam ocultas nas mangas. Todas as vezes que girava, a casaca parecia voar, o que provocava risadas e ditos alegres e o deixava bem encafifado; eu, então, tinha vontade de desaparecer debaixo da terra, de tão envergonhada.
Os tios e todos os convidados de idade ficaram postados nas portas e não podiam deixar de aplaudir com. entusiasmo quando tio António passava arrastando atrás de si os cinqüenta pares. Palmas explodiam em todos os cantos. As crianças assistiam sentadinhas à volta, vigiadas pelas mucamas; Carola, com um vestido de gorgorão bem armado para disfarçar o defeito e as pernas fininhas, olhava a festa com ar indiferente e melancólico. Ninguém se sentava perto dela, com medo dos beliscões, mas, se uma criança se aproximava distraidamente, dava logo um grito forte e ia queixar-se à mucama ou aos pais.
Mais tarde, já noite fechada, Bonifacinho acordou outra vez dizendo que queria ver os noivos dançarem; desceu no colo de Modesta e ficou numa das portas do salão, olhando e acenando com a mão para Maria Letícia, o rosto amarelo e os cabelos desgrenhados, caindo-lhe sobre os olhos.
Nossa irmã Leopoldina estava pomposamente vestida de chamalote cor de ouro; tinha ouro nos cabelos e nos braços. Vi-a dançando com o marido uma valsa rodada e as saias giravam, giravam... Parecia uma grande flor de ouro a rodopiar. A Baronesa de Sobral estava com um vestido preto bordado de vidrilhos e conversava com D. Escolástica por trás do leque. Naturalmente, censurava a alegria de Maria Letícia, ou o vestido de Leopoldina, e tudo mais que via. Dizia na sua vozinha fina: "No meu tempo, havia mais recato e uma moça no dia do casamento, não dançava com tanta alegria assim. Olhe só". D. Escolástica confirmava com a cabeça e dava-lhe uma cotovelada quando a grande flor de ouro passava rodopiando; a Sobral animava-se então, pois o assunto era atraente e falava: "E a Leopoldina então? Onde se viu uma senhora casada, mãe de dois filhos, valsar desse jeito? Olhe como as saias se levantam, vê-se o pé inteirinho... até o tornozelo. É como estou dizendo, D. Escolástica, não há mais recato, nem pudor."
E D. Escolástica confirmava com a cabeça outra vez, escandalizada, enquanto a Baronesa de Sobral continuava a cochichar e os leques se agitavam indo e vindo porque a noite estava quente.
Às onze horas, os noivos saíram: pediram a bênção aos pais e foram tomar a caleça que os levou para a chácara da Penha; à frente da carruagem, ia um batedor a cavalo para abrir as porteiras. A caleça era nova e puxada por quatro cavalos tordinhos, que, impacientes, batiam as pesadas patas no chão. O cocheiro trazia libré e cartola alta envernizada; acompanhava-o um ajudante. Os convidados ficaram debruçados à janela do sobrado para assistir à partida dos recém-casados; no Largo do Ouvidor, no Largo de S. Francisco, nas ladeiras adjacentes, a multidão ainda se comprimia para ver a festa. À porta de casa, o lampião de querosene iluminava parte do largo e as carruagens dos convidados. Um chuvisco começou a cair quando Maria Letícia e Fernão disseram adeus e entraram na caleça; era uma garoa sutil que caía de manso, cobrindo a cidade de névoa; o cocheiro estalou o chicote no ar, e os cavalos partiram com estrépito sob o manto cinzento da neblina. Francisca Miquelina e eu estávamos numa das sacadas e continuamos impassíveis, sem dizer uma palavra. Somente percebi que os dedos de Francisca Miquelina foram ficando brancos, brancos como marfim, os dedos que apertavam o leque contra o peito. Vimos nossos pais acenando da porta até a carruagem dobrar a primeira esquina e continuamos silenciosas. De repente, fugi para o nosso quarto para poder chorar, e quando entrei, vi um vulto escuro espiando através das rótulas; quando me viu, voltou-se em silêncio e chorou alto, um choro triste e desconsolado. Era Modesta que se lamentava:
— A fia do coração foi embora. Pronto. Se acabô.
Sentei-me então na cama e chorei também, ao lado de Modesta.
No segundo domingo após o casamento, Maria Letícia e Fernão vieram almoçar conosco. A visita já era esperada, de modo que tio António encomendara, na cozinha, pato assado recheado de pão e leite para ser servido com Chambertin; Benedito guarnecera a sala e a mesa com camélias cor-de-rosa e as crianças foram esperar na porta, animadas, apostando quem veria primeiro a carruagem. Às dez horas, surgiu a caleça na Rua de S. Bento, precedida pelo batedor. Quando parou junto do sobrado, o moleque abriu a portinhola num pulo e Fernão desceu dando a mão a Maria Letícia; viemos todos recebê-los à porta, curiosos e alegres. Modesta estava na ponta dos pés, atrás de mamãe. Maria Letícia veio com um vestido cinza claro enfeitado com rendas largas na gola e nos punhos, as mangas altas e crinolina bem armada; sobre a cabeça um pequeno chapéu com véu preto. Desceu e beijou respeitosamente as mãos de nossos pais, depois beijou-nos; Francisca Miquelina correspondeu com um sorriso frio.
Maria Letícia estava alegre, parecia feliz. Foi beijada na testa por tio António que não pôde deixar de exclamar:
— Como está bonita, ma petite, tu es jolie à ravir!
Ela corou de contentamento e foi procurar Modesta. Alguns parentes, vindos para o casamento, ainda estavam em casa; as mesas armadas na sala de jantar eram muitas, além da mesa principal, onde Fernão se sentou logo à direita de mamãe, pois nesse dia era o convidado de honra. O assunto que nos empolgava nessa ocasião dominou durante todo o almoço; tio Antônio estava escrevendo uma comédia em francês para ser representada no dia do aniversário de D. Gertrudes Bueno, grande amiga de nossa família. Maria Letícia falou durante a refeição, despreocupada e alegre; queria saber quantos atos teria a comédia e como se chamaria; tio António sorriu alisando os bigodes lustrosos:
— O nome! O nome! Tenho-o na cabeça, mas não sei s'il será, bien! — Diga qual é, tio António. É segredo? pedimos todos.
Ele levantou o copo de vinho contra a luz, depois desceu-o devagar, bebeu dois goles com emoção, limpou os bigodes e disse olhando a mesa de ponta a ponta:
— La robe bleue de Mademoiselle Joujou, Voilà!
— Muito bem! Muito bonito!
— E não podemos saber do que se trata? Quis saber Maria Letícia.
— Não. Não. Isso é querer muito.
A mesa toda ficou ansiosa por saber o enredo; Maria Letícia tornou a perguntar:
— E quem vai ser Mademoiselle Joujou? Também não podemos saber?
Tio António apontou o dedo indicador para Francisca Miquelina e continuou a descascar um pêssego:
— Francisca Miquelina?! Oh! Que surpresa! Por que não nos contou antes, Francisca Miquelina?
Nossa mana corou dizendo que não quisera aceitar, mas tio Antônio insistira tanto...
Leopoldina queria saber quais os outros intérpretes; Luís disse que se começassem a divulgar o enredo, perderia a graça. Ele também tomaria parte; os ensaios já haviam começado, um dia em casa deles, outro dia em casa de Leopoldina, mas ninguém a eles assistia, exceto os interessados. Durante uma hora inteira, houve comentários e discussões à volta de tio Antônio que se mostrava imperturbável e, levantando a mão direita, dizia:
— Ainda não, ainda não.
Papai aproveitou um momento de silêncio para contar que recebera uma carta do Rio de Janeiro e soubera que, no Palácio de S. Cristóvão, houvera um brilhante sarau: Gotschald executara, pela primeira vez, o Hino Nacional Brasileiro de uma maneira mui linda e diferente, depois tocara a Tarantela acompanhado por outro piano. O espetáculo terminara com cenas do repertório de Ristori, representada por ela mesma.
Deploramos então a falta de tais festas em S. Paulo; tio António alisou os bigodes, suspirando.
Procurávamos evitar o assunto da guerra; o tema, porém, se impunha, como se os acontecimentos, mais fortes que nós, viessem dominar-nos poderosamente. Aninhas, com a cabeça baixa, quase não comeu e não falou, apenas suspirava de quando em quando e olhava o marido; soubéramos que nosso irmão lhe dissera dias antes em tom decidido:
— Se o Conde d'Eu for para o Paraguai, vou também.
Pode ficar certa disso!
E ela nada respondera; apenas chorara apertando o filho nos braços. Alberto, o marido de Leopoldina, perguntou de repente, como se lesse o pensamento de Aninhas:
— Afinal o Conde d'Eu vai à frente do exército?
Houve um rápido silêncio e todos nos olhamos pensativamente; Aninhas encarou papai numa interrogação; papai hesitou antes de responder:
— Dizem que sim.
O olhar de mamãe cruzou-se com o de Aninhas e ambas baixaram a cabeça, sem nada dizer.
Fernão falou; participou a todos que estava de partida para sua fazenda em Barreiro.
— Então não ficam para assistir à comédia de tio Antônio? perguntou Leopoldina.
Fernão respondeu não lhe ser possível. Precisava ir à fazenda que não visitava havia algum tempo.
— E quando pretendem estar de volta? Indagou mamãe.
Fernão disse que talvez no fim do ano; pretendia passar toda a colheita na fazenda; Leopoldina prometeu mandar-lhe um escravo com uma carta descrevendo a representação e tudo o que houvesse acontecido na cidade durante a ausência deles. Depois do almoço, dispersamos pelo jardim e pelo alpendre; Maria Letícia passeava entre mamãe e eu; olhávamos as rosas e admirávamos algumas que tinham desabrochado nessa manhã. Maria Letícia pediu a mamãe que mandasse Modesta para seu serviço particular; sentia falta de sua mucama; havia outras em casa de Fernão, mas gostava de Modesta com quem se acostumara desde pequena.
— Só ela e mana Rosa me penteiam com gosto, mamãe.
Mamãe prometeu mandar Modesta no dia seguinte, Maria Letícia voltou-se para mim:
— Mana Rosa não quer passar essa semana comigo? convidou-me. Assim me auxilia a arrumar a casa e preparar a viagem para Santarém. Mandaremos buscá-la amanhã; pode ir com Modesta. Já falei com Fernão.
Prometi ir. Fomos até o canteiro de margaridas; de repente, mamãe perguntou em voz mais baixa:
— Sente-se feliz, minha filha?
Maria Letícia olhou-nos de soslaio e, colhendo uma margarida, começou a desfolhá-la, respondendo animosamente:
— Somos muito felizes; Fernão e eu nos queremos muito.
Ele é carinhoso e delicado. Agora estou ansiosa por conhecer Santarém; dizem ser muito grande e bonita. Há lá quinhentos escravos; é bem maior que Guararema. Estou contente de ir.
Jogou fora o resto da flor e perguntou olhando Francisca Miquelina que brincava com Bonifacinho:
— E Francisca Miquelina? Não quis ir para o Rio de Janeiro com os tios de Paiva?
— Não, respondeu mamãe. Mas até foi bom; agora está entretida com essa representação. Foi melhor não ter ido.
Aproximamo-nos de Fernão que conversava com papai e meu irmão; calculava as arrobas de café que esperava colher esse ano. Falava com convicção nos lucros que teria. Não queria, porém, deixar de receber o diploma de bacharel; viria freqüentar os últimos meses de aula e formar-se-ia na Academia de S. Paulo.
Nesse momento, Bonifacinho veio correndo dizer que queria ir com Maria Letícia para a fazenda de Santarém; Maria Letícia inclinou-se para abraçá-lo e disse que, quando voltasse a S. Paulo, ele iria passar uma temporada bem grande com ela na chácara da Penha. Bonifacinho teimou que queria ir nesse dia mesmo, e começou a chorar, puxando os cabelos, como costumava. Uma escrava veio buscá-lo e ele foi meio arrastado, dando pontapés na mucama. Tio Antônio censurou-o:
— Não faça assim, menino. Cest méchant ça.
Maria Letícia foi atrás dele, prometendo trazer-lhe um cavalo alazão da fazenda; ele enxugou os olhos empurrando os cabelos para trás:
— Cavalo de verdade?
— Cavalo de verdade. Um cavalinho novo, alazão de pêlo brilhante.
Mais calmo, acompanhou a mucama pensando no cavalo alazão; mas antes de entrar em casa, a escrava disse qualquer cousa e ele revoltou-se, procurando morder-lhe a mão. Papai observou:
— Esse menino precisa ser castigado; está cada dia pior.
Mamãe defendeu-o, explicando que, com a idade, ficaria melhor; e mandou-me ver o que ele queria. Maria Letícia e Fernão despediram-se de toda a família e fomos acompanhá-los até a caleça; quando esta partiu, acenamos com os lenços e as mãos. Desta vez, Modesta não chorou; foi correndo arrumar as roupas no baú velho, feliz porque Sinhá Letícia não podia passar sem ela. Aprontei também e esperei o trole no dia seguinte.
A chácara da Penha era quase encostada a outra chácara tão bonita ou mais ainda do que a dos Seixas Albuquerque; a casa era pintada de branco com seis janelas de frente, um alpendre coberto de rosas amarelas e, entre os canteiros do grande jardim, dois jardineiros negros aparavam buxos e podavam dálias.
No dia seguinte à minha chegada, vi um vulto feminino passeando entre os canteiros da casa vizinha e dando ordens aos escravos; levava na mão uma sombrinha de renda para resguardar-se do sol que se filtrava através da renda e se refletia no vulto formando desenhos extravagantes. Era ainda moça; andava devagar e a saia rodada ia varrendo o solo e as plantas rasteiras, como se a dona estivesse tão distraída que delas se esquecesse. Perguntei a Maria Letícia quem era a vizinha e ela não soube dizer-me. Uma tarde, ao jantar, Maria Letícia perguntou a Fernão quem eram os vizinhos da chácara pegada; ele, que estava tomando café, interrompeu para responder com displicência, olhando para outro lado da mesa:
— São os Menezes, o Comendador Menezes.
— Conhece-os?
— Pouco. Joguei solo com ele algumas vezes; gostam muito de jogar.
E Fernão, tomando a mão de Maria Letícia, perguntou se ela estava satisfeita de seguir para Santarém na semana seguinte. Inclinei a cabeça para não perturbá-los e comecei a interessar-me vivamente pelo desenho da toalha. Durante os dias que se seguiram, Maria Letícia e eu esquecemos a vizinha; mas no sábado, um dia antes de ir à cidade almoçar em casa de papai, vi-a de novo passeando entre os canteiros. Chamei Maria Letícia e ficamos olhando-a por trás da cortina e seguindo-lhe os movimentos. Ela parava aqui e ali e olhava com insistência para nosso jardim; parecia esperar alguém. Maria Letícia inquietou-se. No dia seguinte, enquanto nos aprontávamos para ir à missa, Fernão desceu e foi esperar-nos no jardim; nesse instante, vimos Fernão conversando com a vizinha. Ela segurava o cabo de uma sombrinha vermelha e parecia nervosa; com a mão esquerda, despetalava uma rosa louca que enfeitava a cerca de separação entre os dois jardins. Ficamos olhando com curiosidade; ela esmagava as pétalas da rosa enquanto conversava com Fernão. Maria Letícia debruçou-se à janela, queria ver se a vizinha era bonita; enquanto falava, a vizinha sorria e fazia a sombrinha girar com mais força sobre a cabeça cheia de cachos. Do outro lado da cerca baixa, Fernão ouvia-a com o chapéu na mão, em atitude respeitosa. Nada podíamos ouvir, mas, de repente, Fernão disse uma frase e a vizinha riu alto, girando a sombrinha. Pudemos então ver-lhe o rosto rapidamente; tinha os cabelos castanhos e sedosos; formavam ondas dos lados e terminavam em rolos até os ombros. Maria Letícia fez um muxoxo, dizendo que não era nada bonita e parecia um pouco velha, mas apressou-se a descer, entre curiosa e enciumada. Disse que ia ser apresentada à vizinha. Escolheu no guarda-roupa a sombrinha mais bonita, uma que o tio Sousa Mendes trouxera da Inglaterra: era de seda azul, listada de branco, e parecia uma borboleta. Calçou mitaines de renda e desceu a escada do jardim, devagar, com elegância. Eu fui atrás, a certa distância. Quando ela se aproximou de Fernão, ele estava só, quebrando com a ponta da bengala todas as plantinhas ao seu alcance, com gestos bruscos e precipitados; vimos então uma carruagem que se distanciava pela estrada cheia de pó. Tomando o braço do marido, Maria Letícia entrou na caleça que nos levou celeremente para a cidade; ela estava um pouco pálida, os lábios apertados de raiva, mas nada perguntou por que era muito orgulhosa. Esperou que o marido falasse alguma cousa da vizinha, mas ele nada disse e isso a magoou. Nem depois da missa, nem durante o almoço em casa de papai, nada se falou sobre o incidente.
Nesse domingo, o almoço foi triste e quase ninguém conversou. Mamãe enxugava furtivamente os olhos e não comia; papai percorria a mesa com olhar ansioso; meus dois irmãos solteiros, Vicente e Lourenço, haviam seguido para o Rio de Janeiro, a fim de partirem com o Conde d'Eu, que assumira, nesse mês, o comando do exército brasileiro em luta contra as forças de Lopez; Augusto, o marido de Aninhas, seguiria dois dias depois. Só Luís não fora aceito por sofrer da vista, e ficara acabrunhado. Dois primos, filhos do tio Sousa Mendes, haviam partido também, e o primo Fabrício, filho do Conselheiro de Paiva. Parecia que um vendaval sinistro passava sobre a família, arrastando os mais jovens e os mais fortes.
Mães e esposas ficaram aterradas, sem ousar, porém, manifestar-se. E os pais, apesar de apreensivos, deram a bênção aos filhos que partiram. A partir desse dia, as mulheres viviam sobressaltadas, esperando noite e dia portadores com notícias dos filhos e maridos. E durante as noites, na cidade silenciosa, se ouviam passos na beirada das casas, sentavam-se na cama e ficavam à escuta, esperando as batidas na porta da rua; mas os passos se distanciavam numa cadência monótona, e ninguém batia.
Deitavam-se então de novo e procuravam dormir, fechando os olhos; mas muitas madrugadas vieram encontrá-las despertas, e algumas, como mamãe, ajoelhadas diante do oratório do quarto, pedindo que os filhos voltassem sãos e salvos da guerra sinistra.
Uns dias antes de partirem para Santarém, Maria Letícia e Fernão convidaram-me para ir com eles; eu não tinha muita vontade de ir devido ser a viagem longa e fatigante; consultei mamãe e papai e disseram-me que eu devia ir; em vista disso, aceitei o convite.
Auxiliei Maria Letícia a preparar todo o necessário para levar à fazenda e, ajudada por Modesta, cobri os móveis e os enfeites da chácara e guardei os objetos de valor.
Dias antes da partida, Maria Letícia tornou a ver a moça da chácara vizinha; viu-a passeando no pomar. Então chamou Modesta e disse que indagasse o nome da vizinha, e se era bonita. Queria saber à toa, por saber. Modesta espiou a moça pela cerca, perguntou aos escravos da chácara e veio contando que se chamava Sinhá Deolinda, era casada com o Comendador Menezes que passava grandes temporadas no Rio de Janeiro e deixava a esposa sozinha. Era bonita, mas esquisita; não era nada boa para os escravos. Maria Letícia perguntou, rindo:
— Esquisita por que, Modesta?
— Não sei dizê, Sinhá. Acho que é cisma de quem falô.
— Modesta é uma negra astuciosa...
A mucama dobrou as roupas na gaveta e eu coloquei no baú as que pretendíamos levar; Maria Letícia ficou pensativa, depois voltou-se para Modesta:
— Olhe aqui Modesta, ela passeia sempre no jardim e, às vezes, conversa com Sinhô Fernão... São conversas sem importância, mas eu bem queria ouvir; se eu fosse um passarinho, ficava num galho, escutando. Há certos dias em que tenho inveja dos passarinhos; há de ser tão bom voar para onde quiser, ir de galho em galho. Ou então, se eu fosse um besouro, ou mesmo uma borboleta bem miúda... assim... olhe.
Modesta olhou: Maria Letícia mostrou com os dedos o tamanho da borboleta:
— Preferia ser borboleta, besouro não. Assim. À toa, sabe? Só para ouvir, tenho uma vontade de saber...
Modesta fechou o gavetão da cômoda e não disse nada; ele quando em quando, chegava à janela e olhava para ver se percebia alguém. Maria Letícia acabou de preparar-se, passou água de cheiro nas mãos e nos cabelos e foi buscar o marido no escritório, para jantar. Depois do jantar, saímos e fomos dar uma volta no jardim; meia hora depois, Maria Letícia disse que se esquecera de dar uma ordem para o dia seguinte e entrou, dizendo:
— Venha ajudar-me, mana Rosa.
Lá em cima, através da vidraça, ela ficou olhando o marido que continuava a andar por entre os canteiros, distraidamente. Fez-me um sinal:
— Venha ver.
Ficamos espiando. Nesse instante, vimos a vizinha aproximar-se da cerca, colher uma rosa louca e cumprimentar Fernão; ele respondeu ao cumprimento e continuou a andar em direção à casa. Então, a vizinha o chamou com um gesto e vimos Fernão voltar em sua direção e falar-lhe, enquanto ela esmigalhava a rosa entre os dedos. Maria Letícia não se conteve:
— Meu Deus! Quem será essa D. Deolinda que só procura meu marido quando estou longe?
E suas mãos começaram a tremer de encontro à vidraça; procurei acalmá-la.
— Tolices! O que tem que conversem?
Ela não respondeu e continuava a olhar; vimos Fernão cumprimentar a vizinha e entrar em casa; Maria Letícia desceu e foi ao seu encontro; percebi que, com esforço, procurava conter-se. Falou na viagem do dia seguinte e esperou mais uma vez que ele se referisse à vizinha, mas ele não falou. Nessa noite, antes de deitar-se, quando Modesta foi preparar-lhe o banho no quarto, percebeu que a mucama queria contar alguma cousa. De fato, logo que temperou a água na bacia de cobre, Modesta murmurou enquanto eu estendia a camisola sobre o leito:
— Sinhá Letícia.
— Que é, Modesta?
— Hoje de tarde, fiquei que nem uma borboletinha deste tamainho, escondida numa moita.
— Onde?
— No jardim. Sabe aquela tocera grande de cidró do lado de lá? Fui lá procurá erva cidrera pra fazê um chá, na horinha que Sinhô Fernão tava lá. Ele não me viu, mas eu vi Sinhá Deolinda chegá doutro lado da cerca e falá com ele, com uma rosa amassada na mão...
Maria Letícia fingiu-se desinteressada e começou a fazer trança nos cabelos; depois, olhou para o meu lado, pedindo:
— Mana Rosa, passe o pente no meu cabelo. E falaram sobre nossa viagem, não foi, Modesta?
— Quem me dera que eu entendesse, Sinhá Letícia. Quem me dera!
Maria Letícia sobressaltou-se e olhou Modesta:
— Ora esta! Por que não entendeu?
— Falaram só em franceis. Eu sei por que ouvi muitas veis Sinhô António fala com vossuncê nessa língua. Ela falô a mesma coisa, tudo atrapaiado e Sinhô Fernão respondeu.
Maria Letícia apertou os lábios fortemente, depois impacientou-se:
— Está bem, Modesta. Pode ir.
A mucama deu umas voltas pelo quarto; antes de sair, falou indecisa:
— Sinhá Moça.
— Que é?
— Cuidado com Sinhá Deolinda. Percisa tê cuidado com ela.
A testa franzida, um ar preocupado, Maria Letícia olhou Modesta pelo espelho; a mucama fez uma pausa e disse antes de fechar a porta:
— Cuidado com ela! Essa muié tá marcada pelo demo... tá marcada...
E puxando o trinco, fechou a porta sem ruído.

DEPOIS de muitos dias de viagem fatigante a cavalo, com pousadas pelo caminho, divisamos ao longe a fazenda de Santarém. Um escravo foi à frente, participar a chegada dos amos; ouviu-se então do alto da serra o toque do sino chamando os que trabalhavam na roça ou capinavam no cafezal. Eram quatro horas da tarde; ouviu-se também o som de uma corneta para os que estavam do outro lado da mata, no plantio do arrozal.
No alto da serra, paramos os cavalos e ficamos olhando a fazenda, onde Maria Letícia iria passar, talvez, a maior parte de sua vida; divisamos a casa grande, branca, com o telhado achatado, de telhas escuras pelos anos. Quis contar as janelas, pintadas de azulão, mas confundi-as na distância, não percebi se eram vinte ou mais. Maria Letícia disse que a casa parecia um quadrado branco jogado no meio da verdura; Fernão achou graça. Grandes arbustos rodeavam-na. Vimos depois os terreiros de café, à direita; pareciam cheios de formiguinhas que corriam, apressadas. Eram os escravos que, sob as ordens dos leitores, se preparavam para receber os amos.
Fernão, ao nosso lado, apontava com o chicote de cabo de prata na direção de Santarém, e explicava o que significava o verde mais claro à esquerda — o canavial. Depois o verde mais escuro — o milharal; os cafezais imensos a se estenderem para os lados tinham um tom verde ainda mais escuro. No fundo da paisagem, com uma linha verde-escura fechando o horizonte, a mata que parecia infinita. Disse-nos que, além da mata, ficavam os arrozais. Vagarosamente, fomos descendo a serra, enquanto as pedrinhas rolavam sob as patas dos cavalos; a terra estava úmida e o ar fresco, apesar da hora. Grandes árvores ao lado do caminho confundiam-se no espaço entre galhos e cipós que escureciam o céu e pássaros soltavam seus pios agudos na parte mais escura da serra; de vez em quando, ouvia-se um bater de asas muito suave e muito manso, sobre nossas cabeças.
Ao pé da serra paramos de novo para dar água aos cavalos, no ribeirão que atravessava Santarém; não era muito volumoso, mas havia lugares onde ele se encachoeirava e depois se abria mais adiante, entre pedras, dando aspecto novo à paisagem. Além, quase no limite da mata, havia o brejo, onde os sapos coaxavam à noite e as saracuras diziam umas às outras, todas as tardes, ao pôr do sol: "Quebrei três potes! Quebrei três potes!" numa voz aguda. Na mesma tarde da nossa chegada, ouvimos os gritos das saracuras. Transposto o ribeirão, já em terras da fazenda, tocamos os cavalos em trote ligeiro para chegar mais depressa; Maria Letícia observava as plantações de lado a lado do caminho. Chamou a atenção para a beleza de tudo, dizendo que achava Santarém muito mais grandiosa e pitoresca que Guararema, a melhor fazenda de papai. Concordei e ficamos admiradas com o movimento de escravos, pois quando divisamos os terreiros de café, na parte leste da casa grande, estacamos de repente os cavalos, num gesto de admiração; quinhentos escravos estavam formados no terreiro diante de nós e saudaram, todos ao mesmo tempo, quando nos avistaram:
— Louvado seja Nosso Sinhô Jesus Cristo!
O som dessas vozes possantes ecoou ao longo e pareceu-nos que atravessava a serra, a mata, os cafezais. O eco repetiu-se ainda mais longe, na linha verde-escura do horizonte. E mal o eco morreu no ar, ouvimos a voz forte de Fernão, respondendo:
— Para sempre seja louvado!
Descemos dos cavalos: os feitores vieram falar com os amos e os negros desfilaram um por um na nossa frente, a cabeça baixa, humildes e silenciosos.
Por ordem de Fernão, o resto daquele dia seria feriado em toda a fazenda e os negros tiveram licença de organizar um batuque à noite para festejar a chegada da nova dona de Santarém.
Visitamos a casa toda; da sala de jantar partia um corredor escuro com quartos de hóspedes de lado a lado; de vez em quando, uma alcova sombria e escura. Em todos os quartos, o mobiliário era o mesmo: camas grandes de jacarandá liso; cômodas pesadas com três ou quatro gavetas, consolos e mesas ao lado das camas. E, sobre os móveis, toalhinhas de crochê amarelecidas pelo tempo. Nas alcovas, uma ou outra canastra de couro de vaca, coberta com tachinhas de cobre. O ar cheirava à umidade e a mofo, principalmente nas alcovas onde mal se viam os móveis, As salas eram alegres, com pinturas de flores, frutas e animais; mesas de mármore, de três pés, encontravam-se nos cantos e sobre elas viam-se castiçais de prata; paisagens e retratos alternavam com espelhos venezianos pendurados às paredes.
Maria Letícia escolheu logo uma saleta perto do alpendre para passar os dias; as cadeiras eram de palhinha e, em cima do sofá enorme, com almofadas de veludo preto nos cantos, havia um desenho colorido; um gato malhado brincando com um novelo de lã verde. A saleta dava para um grande salão, Onde havia candelabros de cristal de mais de cem velas, cortinas e tapetes de grande valor. Numa das paredes, dois retratos à óleo, enormes, de corpo inteiro; eram os avós de Fernão, os fundadores de Santarém. Olhamos com curiosidade para o retrato da avó; estava com um vestido decotado, cor de tabaco, mostrando os ombros roliços e o começo dos seios. Brincos compridos, de ouro e rubis, quase lhe roçavam os ombros; prendendo o decote, um broche de ouro e rubis parecia espalhar ainda cintilações na semi-obscuridade do salão. Os cabelos negros, repartidos ao meio e formando cachinhos na nuca; tinha um ar severo, olhos bonitos, mas frios, boca fina e dura de mulher dominadora. Sem as jóias e os cachos na nuca que amenizavam o retrato, aquela fisionomia daria impressão nítida de revolta. Maria Letícia ficou extática diante do quadro e Fernão procurou descrever a vida de seus antepassados; tinham lutado com índios, com onças, com negros rebeldes; mas tinham vencido, pois ali estava o prêmio das lutas: Santarém! A fazenda rica e produtiva.
As escravas de casa corriam azafamadas para servir; Modesta, como mucama particular de Maria Letícia, era respeitada e a todo momento consultada a respeito dos gostos de Sinhá Letícia.
Terminado o jantar, Maria Letícia e Fernão foram passear no pomar, e eu fiquei olhando através da janela; caminhavam abraçados, com passos lentos, enquanto o sol sumia rapidamente no horizonte. As saracuras começaram a cantar lá longe no brejo; nhambus passavam sobre as árvores do pomar e davam pios tristes. Toda a fazenda se preparava para recolher-se. Arrumei as roupas nas gavetas e depois fui encontrar-me com eles; havia uma figueira nova logo à entrada do pomar; Fernão tirara o canivete do bolso e estava gravando o nome de Maria Letícia no tronco da figueira; em seguida, escreveu seu próprio nome.
Começou o concerto dos sapos em resposta aos gritos das saracuras que contavam numa voz esganiçada, umas às outras, os potes que haviam quebrado. O horizonte ficou vermelho de repente e todo aquele fulgor inesperado caiu sobre Santarém, em reflexos incandescentes.
Sentada sobre um tronco caído de árvore, Maria Letícia parecia radiante; viu os dois nomes entrelaçados sobressaindo, muito brancos, na cor verde-escura do galho. E, olhando para mim, mostrou-me a beleza que a rodeava: o céu rubro, a natureza como que, suspirando, venturosa; ouviu as vozes que emergiam do pomar, do rio, da mata, e riu baixinho, um riso manso e doce. Como era feliz! Na tarde fresca e amena, ao lado do marido que amava, tendo diante de si a imensidão de suas terras a se perderem na distância; vendo aquele cintilante pôr do sol, um sol vermelho e dourado que desmaiava por trás da mata, sentiu que tamanha ventura a sufocava. Respirou profundamente e pareceu-me que, para desviar o sentimento angustioso começou a dizer uns versos de Fagundes Varela que havíamos decorado tempos atrás:
— Na tênue casca de verde arbusto Gravei teu nome, depois parti; Foram-se os anos, foram-se os meses! Foram-se os dias, acho-me aqui! Mas, ai! O arbusto se fez tão alto, teu nome erguendo, que mais não vi! E nessas letras que aos céus subiam meus belos sonhos de amor perdi, Fernão riu alto, depois abraçou-a alegremente.
— São lindos os versos, minha querida, mas não são para nós; não perderemos nosso amor, nem os belos sonhos.
Ela riu-se também e, abraçados, continuaram a percorrer o pomar; voltei sozinha para casa.
Fiquei no alpendre, meditando, e eles só voltaram à noitinha, quando o batuque se estava iniciando no terreiro e os escravos já faziam roda, um deles batendo de manso no tambor. A noite de março estava quente e estrelada; sentaram ao meu lado, no terraço, e ficamos olhando o céu azul-marinho que Maria Letícia comparou com o manto de Nossa Senhora. De súbito, ouvimos o canto dos negros: era o batuque. Prestamos atenção aos primeiros cantos:
— Terra do amô e da glória Baía do Nosso Sinhô. ..
Outros respondiam:
— A Baía é terra santa Terra de São Salvadô.
Fernão observou:
— Foram os baianos que começaram; tenho uns escravos que vieram da Bahia.
O tambor batia sem cessar; Maria Letícia observou com ar pesaroso:
— Pobres criaturas!
Durante algum tempo, permanecemos atentos ao batuque que ia pela noite afora; Fernão convidou-nos para ver de perto, fomos. Quando nos viram, alguns pararam de dançar, e os que estavam de cócoras se levantaram. Fernão disse-lhes:
— Continuem, continuem... Então, um deles, talvez o mais velho escravo da fazenda, gritou com voz rouca:
— Viva Sinhô Fernão! Viva Sinhá Letícia! Responderam num só grito. E as danças recomeçaram mais animadas, o tambor tocando com mais força. Pedro, escravo de dentro, convidou Elisa, sua mulher, para dançar. Dona Elisa, saia na roda, Elisa sabe coroa... Elisa pulava. Era uma negrinha baixa e gorda, toda redonda, com a saia de chita revirando à volta. Dava uns passinhos curtos e rebolava-se, de modo que suas ancas subiam e desciam em movimentos rítmicos; de repente, levantou para o alto os braços luzidios e, num gesto impetuoso, deu uma umbigada no marido; o som ressoou como se tivessem batido num pandeiro, um som surdo e cavo. Continuaram a dançar dando voltas e fugindo um do outro até nova umbigada; os outros que estavam à volta, acompanhavam o pandeiro batendo com os pés no chão e batendo as mãos com movimentos iguais e monótonos. O par deixou a roda; veio outro. Começamos a achar divertido; na fazenda de papai, nunca tivemos permissão de assistir a batuques.
Os que ficavam atrás iam-se revezando com os da frente; corria de vez em quando um pouco de quentão, por ordem do Sinhô; comiam rapadura, canjica, amendoim, batata-doce. A única luz que iluminava as danças era a da fogueira que crepitava, levantando para o alto as labaredas vermelhas como braços esguios, aflitos, em busca de espaço. À volta dela, os mais velhos, que já não dançavam, assavam batatas e alimentavam o fogo, atirando-lhe gravetos que ele agradecia estalando e lançando chispas por todos os lados.
Depois que nos retiramos, a animação aumentou; os feitores assistiam de longe, esperando a hora determinada pelo amo para mandar parar a festa.
Durante horas, já deitada, continuei a ouvir os cantos e o ruído do pandeiro; era tão monótono que se tornava triste. Não ouvia as palavras, mas procurei cantar o que sabia, combinando com as batidas do pandeiro. Lembrei-me de uns versos que começavam assim: "Sozinha no descampado, sozinha sem companheiro, lá vou eu pelos caminhos, em busca de um paradeiro..."
Encaixei os versos na cadência do canto distante e repeti-o durante algum tempo enquanto não vinha o sono. Pensei comigo mesma que Maria Letícia encontrara um paradeiro: Fernão. E eu? Já com as pálpebras cerradas, repeti à toa, para dormir: "Lá vou eu pelos caminhos, em busca de um paradeiro...".
Nos dias que se seguiram, ficamos conhecendo toda a fazenda e tudo o que ela produzia. De manhã, íamos a cavalo, ao lado de Fernão, visitar os canaviais, o arrozal, os cafezais. Fernão tinha um gênio irrequieto e a cada movimento dava demonstração de sua vitalidade, mais ainda, da sua personalidade.
Não sabia ficar quieto, inativo, nem dez minutos; gostava de rir e conversar, gostava de viver. Seus gestos eram impetuosos, mas tinha bom coração e enternecia-se diante de qualquer infelicidade alheia. Não sabia andar devagar e em silêncio; batia as portas, pisava com força no chão, abria as gavetas das cômodas com tal ímpeto que os objetos, se por ventura estivessem sobre o móvel, começavam a dançar e alguns tombavam. Mesmo que os visse no chão, não se dava ao trabalho de levantá-los. Era exuberante nos gestos; quando estava na fazenda, dirigia ele próprio todo animado e alegre. O cavalo ficava quase o dia todo amarrado no moirão da cerca.
Visitamos as senzalas, assistimos à moagem da cana, à do milho, espiamos o monjolo a trabalhar. Passávamos dias em atividade nessas ocasiões, seguiam tropas para as cidades próximas, para vender os produtos da fazenda; desde madrugada, os enfileiravam ao longo da estrada que margeava, carregados de arroz, milho, feijão. Quando era a despachar café, as mulas e os carros de boi iam cheios e gemendo e cantando subiam a serra. Maria Letícia se levantava de madrugada, nos dias em que havia tropas; gostava daquilo. A madrinha ia à frente agitando o cincerro: dlin, dlin, dlin e os burros carregados ficavam obedientes e serenos, sacudindo as grandes orelhas. Indo para as cidades, ver um pouco do mundo, dlin. Iam atravessando o ribeirão, subindo a serra, marchando, pelos caminhos sem fim que eles venciam com passo firme. Ficamos ouvindo o cincerro da madrinha até sumir na trilha e o silêncio de novo voltava à fazenda; só se ouvia o ruído do pilão no terreiro, onde todos os dias o moleque socava o arroz: tan! tan! tan! E quando Ricardo parava de socar, ouvia-se a voz da cozinheira Gabriela gritar da cozinha: "Soca, Ricardo!" E o moleque socava, fazendo ruído na imensidão de Santarém. Às vezes, gritava imitando a cozinheira e seu grito fino repetia: "Soca, Ricardo! Peste do diabo! Peste do diabo!".
Maria Letícia chegava à porta da cozinha e chamava: "Mulata, venha, Mulata!" E dava o dedo à Mulata que a olhava de lado, desconfiada. No terreiro, Ricardo socava e as casquinhas de arroz voavam para os lados, enquanto o sol aquecia Santarém e fazia o rio brilhar, a terra viver, as plantas crescerem; e do poleiro da porta da cozinha, vinha a vozinha artificial da Mulata: "Peste do diabo! Soca Ricardo!". Três meses depois de nossa chegada a Santarém, Maria Letícia mandou uma pequena tropa para S. Paulo com cartas a mamãe, juntamente com alguns presentes da fazenda e, na volta, recebemos várias cartas, uma delas de Leopoldina que lemos várias vezes e guardamos como lembrança:

S. Paulo, 2 de junho de 1870.
Queridas manas:
Que pena não terem assistido à comédia de tio Antônio; tudo correu tão bem que me parece vão representar outra vez no fim do ano e então vocês poderão assistir. Esquecia-me de contar que vamos bem, quero dizer, agora estamos bem, mas houve muita cousa antes. Bonifacinho caiu da mangueira e torceu um pé; mamãe ficou muito aflita, mas agora ele já está curado. Tia Leontina não está nada boa, e os médicos dizem que é uma doença que não tem cura.
Pensamos em Carola; que será dela, assim aleijada? Decerto ficará com mamãe. Estou esperando outro filho, e vou bem. Souberam do combate de Cerro-Corá? Dizem que foi horrível, morreram muitos brasileiros e primo Fabrício desapareceu nessa batalha; não sabem se está prisioneiro ou se morreu.
Acham que morreu. Os tios de Paiva estão desesperados. Os nossos vão bem, graças a Deus. A comédia foi um mimo; mandaram fazer convites impressos; mando um para verem. Aninhas chora dia e noite por causa de Augusto. Lembranças a Fernão e beijos para vocês duas.
Mando um convite para verem.
Leopoldina
Atrás do convite, continuava a carta:
Não está bonito? Uns dias antes, tio Antônio parecia doido com os ensaios; nem dormia sossegado. Em casa, só se falava nisso. Francisca Miquelina ficou radiante com a representação, esqueceu as tristezas que a acabrunhavam.
Quando vocês voltam? Esqueci de contar que a Gama apareceu com um vestido de veludo grená, um sucesso. Dizem que custou 100 na loja Leal e Leme. Imagine só!
Adeus. Beijos da mana saudosa, Leopoldina.

Lemos e relemos a carta; e a guardamos para ler mais tarde, outra vez. Percebi a alegria de Maria Letícia; mandou encilhar o cavalo alazão e galopou a tarde toda ao lado de Fernão. Imaginei que estava contente por saber que Francisca Miquelina havia esquecido as mágoas. Com certeza, não usa no cabelo nem esporinhas nem violetas.
Em agosto, Fernão e Maria Letícia resolveram regressar a S. Paulo e, alegremente, fui preparar minhas malas. Fernão precisava fazer os exames na Academia de Direito e apesar de estudar todas as noites na fazenda, enquanto eu bordava e a Letícia tocava piano, receava perder o ano.
Afinal, chegamos à chácara da Penha, onde os escravos já esperavam com a casa pronta. Só nesse dia, Maria Letícia se lembrou outra vez da vizinha; nessa mesma noite da chegada e como que disfarçando, perguntou ao marido porque não vendiam a chácara; Fernão, com um livro aberto diante dele, arregalou os olhos, admirado:
— Mas, por que, Maria Letícia? Não está satisfeita aqui?
Ela, um pouco embaraçada, baixou os olhos sobre o bordado e respondeu:
— Acho um pouco longe da cidade, gostaria de morar perto.
Fernão olhou-me perguntando:
— Acha longe, Rosa?
Respondi que não, e Maria Letícia olhou-me censurando. Fernão sorriu:
— Mas, querida, a caleça leva menos de uma hora daqui até lá; acha longe essa distância? E se souber que pretendo aumentar a chácara? Já mandei ver as terras lá de baixo; pretendo juntar tudo e fazer uma espécie de sítio que produza tudo o que se possa vender na cidade. Mando vir o Joaquim, que é feitor de confiança, para tomar conta de tudo quando estivermos ausentes. Você não aprova?
Maria Letícia olhou-o e corou um pouquinho ao responder;
— Aprovo tudo que meu marido fizer.
Fernão ficou satisfeito; tomou-lhe a mão e beijou-a. Mais tarde, com um pretexto qualquer, Maria Letícia entrou no meu quarto para dizer que eu devia auxiliá-la e achar longe a chácara; em vez de ajudar, eu havia atrapalhado. Respondi que não podia adivinhar a intenção dela e não falamos mais nisso.
No dia seguinte, visitamos papai e mamãe; quando a caleça com os quatro cavalos tordilhos parou à porta do sobrado, foi um reboliço em casa. Houve gritos de crianças, as escravas correram assustadas, para avisar mamãe, os olhos brilhantes:
— Sinhá Letícia chegou!
Só viam Sinhá Letícia; eu era apenas a sua sombra. Mamã Zabel foi a primeira a receber-nos; com a grande saia engomada, foi cumprimentar Maria Letícia e Fernão:
— Louvado seja Nosso Sinhô! Como Sinhazinha tá bonita, mais corada, mais gorda!
Cruzou os braços sobre o ventre e ficou, extasiada, a olhar Maria Letícia; depois, lembrou-se de que precisava avisar os amos e caminhou à nossa frente, arrastando a saia barulhenta. Só então se lembrou de mim:
— E Sinhá Rosa. Também tá forte... Sinhá baronesa vai ficá contente; Sinhô barão vai leva um susto. Espere um pouco, vou chama os Sinhô.
Voltou-se, rápida, e a saia rodopiou:
— Louvado seja! Tudo vai bem, tudo vai bem.
E lá se foi pelo corredor, muito gorda e redonda: flac, flac, flac...
Tio António estava cochilando na rede do alpendre; levantou-se com preguiça, os olhos ainda meio cerrados por causa da claridade e exclamou ao ver a sobrinha preferida:
— Oh! La petite Marie. Então os viajantes chegaram?
Bonifacinho veio correndo e caiu no meu colo; depois abraçou Maria Letícia. Os outros irmãos também vieram e, finalmente, apareceu mamãe que nos deu a bênção. Quando papai entrou, levantamo-nos todos e Maria Letícia adiantou-se para beijar-lhe a mão. Francisca Miquelina, a princípio um pouco desconfiada, conversou depois, alegremente sobre a representação; todos deram opinião sobre o espetáculo. Uma escrava foi correndo à casa de Leopoldina; e ela veio logo, com dois filhos, numa grande alegria. A roda estreitou-se para conversarmos melhor. Todos faziam perguntas sobre a fazenda de Santarém, sobre a viagem; depois voltamos a falar da família. Alguém lembrou a moléstia de tia Leontina. Os médicos não descobriam a causa da doença, e ela definhava dia a dia. Mamãe suspirou, pensando nos sobrinhos que iam ficar sem mãe; a maior preocupação era Carola. Carola? Alguém perguntou e mamãe respondeu logo:
— Ficará comigo, tenho essa obrigação, pois quando tia Leontina sentiu os primeiros sintomas da moléstia, foi de mim que se lembrou, talvez porque sou a irmã mais velha, e falou, sentada aí nesse sofá: "Mana, vou pedir um favor, quando eu morrer, olhe por Carola. É uma pobre doentinha, aleijada, e não tenho confiança em ninguém, a não ser na mana".
Olhamo-nos em silêncio e pensamos em tia Leontina.
Para quebrar essa tristeza, papai perguntou a Fernão se precisaria colher muito café esse ano; o assunto voltou a Santarém. Contamos às nossas irmãs o batuque no dia de nossa chegada e quanto havíamos gostado. Tio Antônio que estava ansioso, e olhava Maria Letícia, exclamou de súbito:
— Como a petite Marie está bonita! La beauté de mour!
E, alçando os olhos para o teto, alisou os longos bigodes tipo Napoleão III. Rimos todos e Maria Letícia corou intensamente. Fernão perguntou sobre a comédia de tio António e Maria Letícia voltou-se para Francisca Miquelina: E seu vestido? Ficou bonito? Perguntou.
— Fui com o vestido branco de cetim; na cabeça coloquei flores vermelhas e douradas.
Concordamos que devia ter ficado muito bonita.
Bonifacinho interrompeu perguntando quando iria a Santarém e quantos cavalos havia na fazenda. Maria Letícia e eu começamos a explicar; sentado no meu colo, ele pedia pormenores.
Papai perguntou se todos ficariam para o jantar e como dissemos que sim, ele desculpou-se dizendo que o administrador de uma das fazendas o esperava no escritório. Deixou a sala. Fernão beijou Maria Letícia na testa e pediu desculpas, mas precisava ir à Academia ver quando começariam os Atos. Tio António ficou ao nosso lado; recostou-se numa boa poltrona e cerrou os olhos enquanto conversávamos. Nossas cunhadas Eponina e Aninhas vieram logo depois, ansiosas por verem Maria Letícia após tantos meses de separação. As conversas se animaram. Leopoldina perguntou:
— Sabem que Francisca Miquelina está estudando uma música nova? A Muette de Portici, d'Auber.
Não sabíamos; perguntei se era bonita.
— Linda. Luís está tirando a parte de flauta para tocarem no aniversário de papai; mas é segredo, não contem nada.
Eponina interrompeu:
— A princesa imperial tocou essa música a quatro mãos, no Paço.
Aninhas riu:
— Eponina só diz: princesa imperial... princesa imperial... Por que não diz Princesa Isabel? É engraçado!
Francisca Miquelina interrompeu:
— Ué! Ela gosta de falar assim. Maria Letícia não viu ainda o penteado novo à Maria Stuart?
Maria Letícia admirou-se:
— Penteado novo? Não. Como é? Em cachos?
— Não. Em bandós, assim... com flores ou brilhantes; esta parte vai para cima... assim... e esta cai ao lado da testa... assim... Sabe quem estava com esse penteado no dia da representação? A Lages. Dizem que na corte estão usando muito essa moda.
Tio Antônio resmungou do fundo da poltrona, os olhos cerrados;
— Não gosto nada dessa moda.
Houve protestos; Francisca Miquelina falou:
— Oh! Tio António, então não gostou? Acho lindo, principalmente com brilhantes ou plumas caídas nos ombros.
Eponina disse que Maria Letícia devia ficar muito bonita com esse penteado. A mucama entrou com o filho menor de Leopoldina; a criança chorava e, quando parava de chorar, chupava a mãozinha fechada; mamãe explicou:
— Isso é fome. Pobrezinho! Há quanto tempo está sem mamar?
— Não pode ser fome, mamãe. Dei antes de vir; não faz mais de uma hora.
E Leopoldina, pegando o filho ao colo, começou a embalar, cantando baixinho:
— Dorme, meu filhinho, senão o lobo vem... Vem?
(Parava de cantar para falar.)
— Então tio Antônio não gosta do penteado à Maria Stuart? Pois acho bem bonito... Lá... lá... lá... Senão o lobo vem... Vem? Dorme meu filhinho... lá... lá... lá... Mamãe, não é hora do café com mistura? Tenho fome agora, tenho fome toda a hora. Dorme, filhinho...
Achamos graça no modo de Leopoldina embalar o filho; Aninhas aconselhou:
— Dê o peito à criança que ela está querendo mamar.
Não percebe? Você tem fome porque está amamentando.
Leopoldina desabotoou o vestido rapidamente, de costas para tio Antônio, e deu o seio à criança que começou a sugá-lo Com prazer, fazendo um barulhinho ao engolir o leite. Veio o lanche para todos e mamãe pediu-me para servi-lo. As crianças pediram bolos e sequilhos. Estávamos comendo quando Benedito entrou e disse à mamãe que havia uma visita no salão; em nosso primo João António, filho do tio de Paiva. Mamãe reclamou:
— João Antônio? Ah! Mande entrar aqui, Benedito. Diga que entre.
Leopoldina foi para dentro com o filho no colo; Francisca Miquelina exultou:
— Ih! Vamos ter notícias da corte!
João Antônio foi logo beijando a mão de mamãe, numa reverência:
— Senhora minha tia, como está passando?
Sentou-se na cadeira que Benedito ofereceu, depois de ter cumprimentado toda a roda; contou que chegara na véspera do Rio de Janeiro. Viera a negócios. Maria Letícia perguntou rapidamente:
— E o Rio de Janeiro?... Muito animado? Muitas festas?
Ele sorveu um gole de café que eu lhe oferecera e voltou-se para Maria Letícia:
— Ah! Prima Letícia não soube do baile de 20 de julho no palácio do Barão de Itamarati?
Quando dissemos que não sabíamos, ele preparou-se para descrevê-lo; fui correndo chamar Leopoldina lá dentro; ela entregou a criança à mucama e veio para a sala; tio Antônio sentou-se na poltrona, todo empertigado. Francisca Miquelina implorou:
— Conte, primo João. Como foi?
Ele pigarreou, passou o lenço pela boca e contou que o baile fora oferecido ao Conde d'Eu pela Guarda Nacional para festejar o fim da guerra e a vitória. Haviam comparecido cerca de 1.500 pessoas. Repetimos com entusiasmo:
— 1.500 pessoas? Esteve lá, primo? Que beleza!
João António teve um momento de hesitação e seu rosto se contraiu quando disse:
— Não. Da nossa família, ninguém compareceu. Meu pai anda muito amofinado porque Fabrício ainda não voltou da guerra.
Mamãe assustou-se:
— Como não voltou? O que aconteceu?
— Ninguém sabe ainda, minha tia. Meu pai tem feito tudo para descobrir o paradeiro dele. A princípio, pensamos que estivesse prisioneiro, tínhamos quase certeza. Já fizemos indagações; agora estamos desanimados. Não há notícia alguma; desconfiamos que morreu em Cerro-Corá.
Durante alguns instantes, ninguém falou; mamãe ficou compungida:
— Não é possível. Ele voltará. E o conselheiro?
— Papai já perdeu as esperanças e está acabrunhado; mas mamãe ainda espera. Espera todos os dias a chegada dele.
Diz que virá de repente, sem ninguém esperar.
Novo silêncio. Nós que estávamos alegres com a volta dos nossos, sentimos uma espécie de alívio por Fabrício não nos pertencer. Aninhas suspirou:
— Coitada!
João Antônio continuou:
— Depois da guerra contra o Paraguai, a vida social ficou muito mais animada. Elevou-se; e não devemos esquecer que o Conde d'Eu, o nosso general vitorioso, tem recebido todas as honras. Essa festa foi uma das mais lindas... Esqueci de contar que o salão estava iluminado com 800 velas...
Papai entrou na sala esfregando as mãos e dirigiu-se a João Antônio:
— Então, senhor meu sobrinho, como vamos? Como vai o conselheiro?
Voltamos a falar a respeito do Paraguai, de Fabrício e do acabrunhamento do tio de Paiva. João Antônio ficou para jantar.
Durante o jantar, todos reunidos novamente, falamos das festas da corte. Papai também fazia perguntas:
— E concertos? Tem havido muitos?
— Tem havido alguns em residências particulares; temos grandes cantores líricos como Tamberlick; amadores também, alunos de Francisco Manuel. Nunca deixamos de ter boa música.
Falou sobre as damas da corte, citou nomes, animado por sentir, em todos nós, indisfarçável curiosidade e vontade de saber. Explicava:
— Algumas damas são excepcionais; lindas e distintas; a Viscondessa de S. Bento é uma senhora extraordinária; nunca se recosta nem nas carruagens, nem nos camarotes dos teatros.
Sempre muito digna. Muito altiva.
Fernão perguntou:
— A imperatriz e o imperador compareceram ao baile do Barão de Itamarati?
João Antônio sorriu:
— Lá estiveram sim. E dançaram muito. Gostam de dançar a quadrilha de lanceiros. A imperatriz dançou com os ministros da Rússia, da Bélgica, dos Estados Unidos. D. Pedro I dançou com a Viscondessa de Araújo, com a senhora Lemos, e a Ministra Saint-Georges. Havia duas orquestras; vinham em fila, a quatro de fundo.
— Como João Antônio sabe dos detalhes? Alguém lhe contou?
— Dois primos Sousa Mendes foram ao baile.
Serviu-se de fios de ovos:
— Mas, falando em ministros, lembrei-me de contar uma cousa. O Saint-Georges tem tido más notícias da Europa; parece que a política lá não vai bem. A Prússia e a Áustria estão em conflito e a Áustria está sendo derrotada. Agora a Prússia ameaça a França. Quase já se pegaram há alguns anos. Dizem que vai haver guerra, talvez inda este ano.
Houve um silêncio; tio Antônio parou de comer e ficou com a colherinha de sobremesa no ar:
— Oh! La pauvre France. Que querem com ela? Por que não a deixam em paz? Ela nada pede a ninguém, a ninguém importuna.
Bateu a colherinha com força no prato e repetiu:
— Por que não a deixam tranqüila? Pobre França!
— Não se sabe; Bismarck é um lobo mau. Quer tudo para ele: Áustria, Baviera, o Wurtemberg e os demais Estados da Confederação Germânica. É insaciável.
Papai perguntou:
— Afinal o que faz pensar numa guerra com a França?
— O Saint-Georges anda apreensivo; toda a Germânia ficou de repente contra a França, do lado da Prússia. Isso é mau sinal.
Luís disse com voz alta, do outro lado da mesa:
— Se a França entrar na guerra, vou combater por ela.
Permite, papai?
Mamãe olhou-o e suspirou; papai levantou a mão num gesto conciliador:
— Veremos, veremos.
Bonifacinho falou da outra ponta da mesa, sacudindo os cachos dos cabelos:
— Se mano Luís for para a França, eu vou também.
Deixa, mamãe?
Rimos muito. Aninhas sacudiu o dedo indicador na direção dele:
— Criança não fala na mesa.
Tomamos café pensando na guerra; de vez em quando faziam um comentário em voz baixa; então papai fez o sinal de costume e ordenou:
— Vamos rezar.
Levantamo-nos empurrando as cadeiras; olhei Maria Letícia. Ela não se levantava mais, já estava casada. A barba grisalha de papai tremeu sobre o peito:
— Bendito e louvado seja o Senhor que nos deu de comer e nos deu de beber, sem merecer.
Repetimos a frase em voz baixa, as cabeças inclinadas para a frente, pensando na França.

TODOS os dias, Maria Letícia ficava em casa enquanto Fernão freqüentava as aulas da Academia; um dia contou que os filhos, o Comendador Menezes e senhora, tinham convidado Fernão para um jogo de solo às oito horas; ela também fora convidada para tomar chá. Foi logo dizendo que não iria, pretextaria uma dor de cabeça, ou então diria que o chá à noite lhe dava enxaqueca, mas não iria. Reprovamos essas idéias e disse que ela precisava ir, nem pensasse em recusar; Letícia disse olhando para outro lado:
— Eu vou, se mana Rosa for também.
Protestei:
— Mas eu não fui convidada, Maria Letícia. E o que iria fazer lá? Não conheço ninguém.
— Eu também não conheço ninguém. Não me simpatizo com aquela mulher, e digo que você está passando uns dias aqui, por isso vai também.
Mamãe ralhou com ela por chamar a vizinha de mulher; Maria Letícia baixou a cabeça e fez cara de choro. Respondi:
— Mas ela deve saber que não estou mais na sua chácara, estou em casa de meus pais.
Tudo foi inútil; Maria Letícia pediu tanto que pus meu melhor vestido e fui com eles; percebi que Fernão não aprovou muito a idéia. À hora do jantar, ela ainda procurou esquivar-se. Fernão aconselhou: foi a primeira vez que nos convidam, Maria Letícia, não podemos deixar de ir. É boa gente, você vai gostar. A Menezes talvez seja um pouco aloucada, quero dizer, estabanada, mas são boa gente.
Ela aproveitou a ocasião para perguntar:
— Aloucada? Eu já a vi na cerca conversando com você e esmagando rosas entre os dedos. Parece que ela tem sempre muito assunto. E desviou os olhos como fazia sempre quando tocava num ponto sensível, Fernão riu-se:
— Ah! Ela gosta de conversar. E depois, eu os conheço há muito tempo, desde que compramos esta chácara; fomos sempre vizinhos.
Ela olhou-o de frente:
— Então você freqüentou a casa deles?
— Já. Mais de uma vez fui lá a convite para jogar carimbo ou solo, conversar, tomar chá, E também fazer música; ela toca bem, D. Deolinda. Maria Letícia e Rosa vão gostar; vão ver que bela a casa do comendador, com lindos objetos de arte, trazidos da Europa.
— Viajam muito? Perguntei.
— Parece que a segunda filha nasceu lá; já residiram um tempo em Viena. O marido ocupava um cargo qualquer na Embaixada Brasileira, Maria Letícia ficou pensativa e foi para o quarto, vestir-se. Acompanhei-a para auxiliá-la. Não sabia que vestido havia de escolher, afinal escolheu um de seda cor de ervilha, com punhos e gola de bordado inglês.
Modesta começou a penteá-la; ouvimos a voz de Fernão cantando no quarto vizinho, enquanto se vestia: Ninon, Ninon, que fais tu de la vie?
Pelo espelho, vi Maria Letícia apertar os lábios de raiva; tinha esse hábito desde criança. Percebi que estava terrivelmente enciumada, pois nunca o marido cantava assim, parecia mais alegre esse dia que nos outros.
Às oito em ponto, chegamos à casa do comendador, fomos recebidos por um mordomo negro, e D. Deolinda, quando nos viu, se adiantou para receber-nos; foi nesse instante que me lembrei do aviso de Modesta: "Cuidado Sinhá, essa muié tá marcada pelo demo".
Sorri para ela enquanto a olhava nos olhos; tinha uns olhos vivos e grandes, vi-os percorrendo Maria Letícia num relance. No aperto de mão que trocaram, breve e cerimonioso, senti que Maria Letícia estremecia, como se tivesse tido, nesse momento, uma intuição, intuição de que tinha diante de si uma perigosa adversária. Outras pessoas estavam no salão e durante as conversas observei disfarçadamente D. Deolinda; não era muito moça, mas era bonita, com olheiras azuis sob os olhos escuros, e a boca de lábios espessos; quando falava ou ria, mostrava a alvura dos dentes. Trajava-se de gorgorão azul-rei, enfeitado com babadinhos, andava de um lado para outro, com desembaraço e elegância invejáveis. O marido conversava numa roda de homens e observei-o também; falava com voz grossa que se sobressaía das dos outros; fazia grandes gestos com as mãos gordas e peludas; parecia bem mais velho. Tinha suíças grisalhas que lhe caíam em ambos os lados do rosto quase até os ombros; pensei que podia fazer tranças nas suíças do comendador e tive vontade de rir. Sobre o ventre proeminente, uma corrente de ouro que atravessava de um bolso a outro do colete xadrez; uma corrente tão exageradamente grossa como nunca vi outra igual. E usava no dedo mínimo da mão direita, dedo grosso e curto, um anel de ouro com um vistoso brilhante. Comparei-o com Fernão; como eram diferentes! Suspirei e comecei a conversar com a senhora que estava à minha direita; quando olhei de novo a sala, D. Deolinda estava de pé, ao lado de meu cunhado; Fernão estava alegre; com um baralho de cartas na mão, explicava a ela um jogo qualquer. Olhei Maria Letícia que estava mais além; percebi o ciúme apertar-Ihe o coração. Estava pálida e respirava ofegante como se alguma cousa a sufocasse; procurou disfarçar e conversou com uma senhora idosa que estava a seu lado, no sofá. Ouvi-a perguntando se o bronze que estava sobre o consolo era de Morbedienne; a senhora idosa disse que sim e que D. Deolinda era mulher de gosto invulgar; que ali tudo fora escolhido por ela. E continuou, animada:
— Reparou nas cadeiras de charão, minha senhora? São especiais, assim como os candelabros de bronze. E as placas de prata? Só D. Deolinda podia ter-se lembrado de colocar as placas de prata cinzelada dos lados da porta. São pratas de llenner, não sabia? As únicas existentes aqui. Quando conhecer melhor D. Deolinda, verá que mulher extraordinária.
Maria Letícia relanceou os olhos pela sala e abanou-se muito de leve com o leque de renda branca; D. Deolinda, sentou-se ao lado de Fernão, conversava sem cessar. Maria Letícia abanou-se com mais força enquanto olhava o marido ao lado da vizinha. Vi que estava sofrendo, mas nada podia fazer. A senhora idosa insistia nos elogios a D. Deolinda e à casa:
— Reparou nas cortinas combinando com os tapetes? É gosto dela; o comendador não manda aqui dentro. Ah! D. Antoninha Figueiredo aí vem. Está de passagem por S. Paulo. Conheceu? Freqüenta muito a corte.
Levantamos para cumprimentar o casal Figueiredo; ao caminhar, D. Antoninha espalhava um perfume de violetas e abanava-se com um leque de cetim pintado à mão, queixando--se do calor. O comendador convidou os homens para passarem à sala de jogo, onde as mesas estavam formadas para o besigue. O marido de D. Antoninha manifestou sua preferência pelo voltarete e sentou-se à parte, com dois ou três parceiros. De onde eu estava, ao lado da Sra. Maranhão, via uma parte da sala de jogo. D. Deolinda ia e vinha entre os convidados; falava com os homens, sentava-se um instante ao lado de uma senhora e, de repente, ia ver o jogo outra vez. Percebi o interesse de Maria Letícia em observar a dona da casa; espreitava-a; queria saber o que havia entre ela e Fernão, pois desde o princípio achou que devia haver alguma cousa. Conversava com a senhora idosa para disfarçar, mas ao mesmo tempo vigiava D. Deolinda; era difícil vigiá-la porque ela não parava. Eu achava-a desenvolta demais para uma dama distinta.
Quando D. Deolinda ria, mostrava os dentinhos brancos entre os lábios espessos; fiz logo uma observação; ela dirigia-se sempre aos homens, nunca às mulheres. Só falava com as senhoras quando não havia homens por perto. Falava com eles, ria para eles, provocava-os com frases estudadas que jogava como quem joga uma bola. Olhava de soslaio depois que jogava a bola, a cabeça um pouco inclinada para um lado, os olhos cintilantes de malícia e ficava esperando a resposta. Quando se pensava que ela já havia desviado a atenção, percebia-se que ainda olhava sorrindo, de esguelha, os lábios entreabertos, fortes e carnudos, sempre mostrando a alvura dos dentes. Esse olhar assim de lado, persistente e profundo, perturbava; parecia sondar o interlocutor até a alma, parecia querer descobrir, adivinhar. E conforme a resposta à pergunta, ria-se, um riso descarado e maldoso.
Maria Letícia olhava as próprias mãos para disfarçar; parecia concentrar a atenção na conversa, mas não podia. D. Deolinda dominava a sala de uma maneira tão perceptível que o mais insignificante observador o notaria. As mulheres não existiam para ela, pareciam meros objetos decorativos no salão; seus sorrisos, seus olhares, seus gestos e as frases espirituosas que atirava com displicência, eram só para os homens; ela se dirigia a todo instante para a sala de jogo, onde eles estavam. Quando estava conosco, só entre senhoras, toda sua espirituosidade caía como um saco vazio. Procurava manter a fama de bem receber, mas com evidente esforço. Fazia uma ou outra pergunta, dirigia-se às senhoras que estavam a seu lado, mas toda sua atenção estava na outra sala. Era como se seu corpo estivesse conosco e sua alma na sala de jogo. Não se continha; era outra mulher quando estava entre homens; seu espírito brilhava, suas frases eram prontas, seus olhos tinham cintilantes de pedras preciosas e sua boca sorria todo o tempo. Maria Letícia percebeu qualquer cousa porque me olhou com um brilho imperceptível mostrando a atitude diferente, quieta e cismadora de D. Deolinda, ao nosso lado. Enquanto isso, ouvíamos D. Antoninha Figueiredo contar as festas da corte, pomposas e lindas; os bailes, os saraus, os concertos. De longe, eu vi Fernão jogar; ele escolhia a carta e jogava com um gesto indiferente de quem está absorvido pelo jogo. De repente, D. Deolinda foi outra vez à sala de jogo perguntar se queriam ela; e veio de lá rindo-se muito e passando a ponta da língua sobre o lábio superior; Maria Letícia olhou-me horrorizada. Olhei aquele trejeito impróprio de uma senhora; em nossa casa, não se permitiam certos gestos. Aquela mulher era mesmo irritável. Comparei-a a um animal que fica à espreita atrás in loco, esperando outro para subjugar, estrangular. Abanando-me de leve, comecei a pensar a que animal perigoso D. Deolinda podia ser comparada. Onça? Raposa? Tamanduá?
Raposa, porque era astuta e má. Astuciosa. Lembrei-me de uma raposa morta na fazenda de papai, certa madrugada, quando roubava frangos; olhei D. Deolinda para ver se tinha alguma semelhança com a raposa morta. Não tinha. Nesse momento, tinha ela escondido o rosto com o grande leque verde e apenas seus olhos apareciam por cima dele, luminosos e risonhos.
Havia dito uma frase qualquer em voz baixa a Fernão e esperava o efeito, espreitando-o por trás do leque. Voltei-me para falar com a Sra. Maranhão e vi Maria Letícia muito branca, como se estivesse se sentindo mal, a mão na garganta. Parecia sufocar. Não ouvi o que Fernão respondeu, só percebi D. Deolinda rir-se, depois de servir refrescos que as escravas apresentavam em bandejas de prata. Interrompeu-se o jogo; ouviu-se a voz grossa do comendador, do canto da sala de jogo:
— Senhora, prefiro um café forte a esses refrescos de água com açúcar.
O Figueiredo queixou-se da falta de sorte essa noite, apesar de ser o voltarete o seu jogo predileto; sempre que havia reuniões no Paço, lá estava ele. Enquanto tomava o seu refresco, D. Antoninha queixou-se da tristeza de S. Paulo; não compreendia como se podia viver aqui, sem festas, nem bailes. Achava S. Paulo triste e os paulistanos muito retraídos.
Às onze horas, os convidados começaram a retirar-se. Passando outra vez pela sala onde minha mana e eu havíamos deixado nossas mantilhas, Maria Letícia viu, sobre um consolo de mármore, o retrato de um menino de dez anos, forte e muito bonito. D. Deolinda aproximou-se e explicou-nos que era seu filho mais velho, Casimiro. E começou a falar do filho longamente.
Pelo brilho dos olhos, pelas palavras ternas que pronunciava diante do retrato do filho, percebi, ou tive a intuição de que o sentimento dominante daquela mulher que se assemelhava a uma raposa, era o amor maternal. Falava dele com ternura, explicando que estava passando uns tempos na fazenda do pai, em Taubaté.
Despedimo-nos também e saímos para a estrada banhada de luar; as carruagens dos outros convidados desapareciam na distância, levantando nuvens de poeira.
Entramos em casa e, enquanto Fernão fechava a porta de entrada, Maria Letícia perguntou-me em voz baixa se não vira D. Deolinda passando a ponta da língua sobre o lábio superior. Disse que sim; ela estava revoltada e furiosa, disse que jamais vira uma mulher assim abominável. Quis falar mais, porém Fernão entrou na sala e contou um episódio do jogo:
— O Comendador, o Saraiva, o Maranhão e eu jogávamos carimbo. Ah! O Bento também. De repente, as apostas foram-se amontoando no meio da mesa e já havia uns quinhentos mil-réis quando o Maranhão apostou tudo...
— Quinhentos mil-réis?
— Mais ou menos. Então o Comendador Menezes olhou o médico e perguntou: "Maranhão, sabe quanto há na mesa?", como quem diz: "Tem dinheiro para pagar?". O Maranhão tirou uma nota de quinhentos mil-réis da carteira em vez de responder e perguntou: "O comendador tem uma nota igual a esta?" O comendador tirou outra nota idêntica e mostrou; então o Maranhão disse: "As duas notas são iguais, não são? Ambas têm o retrato de D. Pedro II, não têm? Ou a sua será diferente da minha? Pois se são iguais, posso, tanto como o comendador, apostar o que está na mesa." Jogou e ganhou. O comendador ficou sem graça: "Este Maranhão... este Maranhão...". Pelo fato de o Maranhão ser médico e não grande agricultor como ele, o comendador pensou que o parceiro não pudesse pagar. Mas fez mal, e o Maranhão falava com tanta ironia, foi engraçado... Vocês precisavam ver.
Maria Letícia nem ouvia bem, parecia distraída. Perguntei se ela queria um chá de folha de laranjeira; disse que sim e acompanhou-me à cozinha; foi só para falar de D. Deolinda. Comentou os gestos da vizinha, o riso, o modo de falar com os homens, o trejeito de passar a língua sobre o lábio superior. Sufocava de raiva. Tomou o chá dizendo que seria difícil a um homem livrar-se de uma mulher assim absorvente. Seria quase impossível. Despediu-se e entrou no quarto: aconselhei-a a não pensar mais em D. Deolinda, e com os olhos abertos, fiquei pensando durante muito tempo em D. Deolinda; imaginei que Maria Letícia também estava acordada, amofinando-se. Uma semana antes do aniversário de papai, toda a família se alvoroçou para festejar condignamente a data. Haveria um grande almoço e depois todos assistiriam à procissão de Nossa Senhora, uma das mais importantes do ano; e, à noite, haveria um concerto que seria uma surpresa para papai.
Fomos assistir à missa em S. Gonçalo. Almoçamos juntos e ficamos esperando a passagem da procissão; mamãe mandou colocar colchas de seda nas sacadas de casa, pois a procissão passaria no Largo do Ouvidor e mandou as escravas espalharem flores em toda a frente da casa. Da nossa família duas crianças vestiram-se de anjo: Augusto, filho de Aninhas, e Fortunato, filho de Leopoldina. As túnicas iam até o chão e eles estavam sérios e compenetrados, quase não falavam. Bonifacinho começou a caçoar deles e a beliscar a asa de Fortunato; foi preciso mamãe segurar Bonifacinho por um braço. Quando os sinos da igreja de S. Francisco começaram a repicar, avistamos a procissão que vinha subindo solenemente a rua de S. Bento. Toda a gente saiu à rua ao ouvir os sinos badalarem; viam-se palmas e mantos de seda nos balcões das casas, pétalas juncavam o chão; a multidão encheu as esquinas, as janelas, os largos, ansiosa por presenciar o desfile. Primeiro apareceram quatro cavaleiros, depois veio um grupo de anjos, seguidos pelos portadores de candelabros carregando grandes círios enfeitados com flores de cera colorida, pássaros e cabeças de querubins.
Só então apareceram os primeiros andores; as imagens eram em tamanho natural: vieram um rei e uma rainha, vestidos com longas túnicas, cada qual levando um rosário na mão; depois um Santo António e um Cristo, ambos curvados sobre cruzes de madeira; uma Nossa Senhora da Conceição, de pé, envolta em nuvens de tule prateado, bordado com cabeças de anjinhos. Um S. Benedito negro, vestido com túnica escura, tendo na cintura um cordão branco e na mão um crucifixo; depois vieram S. Tiago, de pé, muito alto, com um cão ao lado; S. Luís, rei de França, levando na mão os três pregos e a coroa de espinhos, estava de opa azul, cabeleira branca e grandes bigodes. Santa Isabel, rainha de Portugal, com seu manto amarelo e uma coroa de ouro, fechava a fileira dos Santos. No fim da procissão apareceu Cristo crucificado, ao pé do qual se via Santo António, em atitude de adoração; logo atrás, vinha uma fila de anjos, entre os quais estavam os nossos. Em seguida, desfilaram padres, frades, a banda militar e o povo. A procissão durou quase quatro horas porque caminhavam muito lentamente, entre alas de gente comprimida nas ruas e às portas das casas, os olhos fitos nas imagens e nos anjos com cartazes alegóricos presos em bastões prateados.
Vibramos quando vimos nossos anjos passarem, o azul e o rosa; mas já vinham cansados e suarentos, pois, apesar do nosso entusiasmo, mal nos olharam. Os carregadores de andores paravam para revezar-se, pois o peso era enorme e não o suportavam durante muito tempo. Na esquina do Largo do Ouvidor, as mucamas tiveram ordem de recolher os meninos, que estavam bem cansados. Assim que entraram em casa, os dois pediram água fresca, pois a tarde estivera quente e o sol muito forte. Fui buscar água na moringa, e foi então que se deu a briga dos anjos: Fortunato, cheio de mimos, jogou o resto da água na cara de Augusto; Augusto não disse nada, apenas pegou a asa esquerda de Fortunato e puxou com força; a asa resistiu e ele puxou mais; então a asa destroncou-se e ficou dependurada. Durante esse tempo, recebeu pontapés e tapas de Fortunato, mas não se importou. Tudo foi rápido e, apesar de meus gritos, continuaram a brigar. Fortunato, ao perceber que estava com a asa destroncada, deu um grito e avançou no arco de papelão coberto de papel prateado que ia de um ombro ao outro de Augusto e arrancou-o numa tirada. Augusto, sempre em silêncio, avançou nas plumas que cobriam a cabeça do primo Fortunato e saiu rindo, com as plumas destroçadas nas mãos. Fortunato, cada vez mais furioso, atracou-se então às asas do anjo cor-de-rosa e não as largou enquanto não tirou pedaços; desta vez Augusto gritou, rasgou a camisola do anjo azul e arranhou-lhe o rosto, aos berros. Foi aí que as mucamas acudiram e conseguimos separar os dois anjos; quando as mucamas viram seus Sinhôs naquele estado lastimável, com camisolas rasgadas, asas quebradas, plumas e flores pisadas no chão, começaram a discutir entre si, cada uma pondo a culpa na outra. Leopoldina e Aninhas, ouvindo o barulho da discussão e os gritos das crianças, aproximaram-se; Leopoldina deu uns piparotes no filho e puxou-o por um braço; lá foi ele, choramingando com a asa a arrastar pelo chão. Aninhas ralhou com o filho, dando-lhe um coque e perguntando:
— Onde está sua asa, Augusto?
Augusto chorou mais fortemente e começou a virar-se de um lado a outro à procura da asa, mas esta fora levada pelo primo Fortunato. A mucama saiu correndo para reclamar enquanto Aninhas continuava repreendendo:
— Nunca mais sairá na procissão. Nunca mais. A gente tem um trabalhão para arranjar esse menino, no fim briga e fica sem asa. Anjo não briga.
Augusto, com as mãos sujas e suadas, procurava limpar as lágrimas que lhe corriam pelas faces, desesperado porque perdera a asa. O rosto estava manchado de pó e lágrimas; Aninhas deu-lhe outro coque e mandou-o para casa com a mucama; esta já trouxera a asa, mas faltava um pedaço. Ele foi para casa segurando a mão da escrava, um pedaço de asa debaixo do braço, chorando de raiva.
Mais tarde, na sala de jantar, rimos durante muito tempo ao recordar a briga dos anjos.
Após o jantar, fomos para o salão, onde houve o concerto dedicado a papai. Leopoldina exibiu-se primeiro: tocou uma valsa de Chopin. Depois Luís executou na flauta, acompanhado por Leopoldina, a Valse-Caprice, de Rubinstein. Maria Letícia tocou então uma sonata de Beethoven; papai ouvia extasiado, pois para ele nada havia melhor que a música, por isso obrigara todos os filhos a estudarem, ou piano, ou harpa, ou flauta. Só eu não consegui tocar nada; diziam que tinha os ouvidos tapados para a música.
A primeira parte do programa terminou com Francisca Miquelina tocando na harpa a Muette de Portici. Papai, que não conhecia a música, aplaudiu com entusiasmo; depois felicitou Francisca Miquelina pela admirável interpretação.
A segunda parte incluía alguns recitativos; Félix, nosso irmão mais velho, declamou a Judia, com acompanhamento de piano, em surdina. Augusto, marido de Aninhas, declamou trechos da Divina Comédia, traduzidos por ele mesmo. Leopoldina tocou outra valsa de Chopin e Francisca Miquelina tocou com mestria na harpa Pensée Fugitive, de Papini.
Tio Antônio, que ouvia silencioso, entusiasmou-se afinal, dizendo que François Coppé certa vez ouvira o harpista Lebano tocar e dissera com ênfase, quando Lebano terminara o Sherzo, de Hauser: La harpe est un corps sec et sans flamme, Lebano joue, c'est un âme.
Dias depois, em princípios de outubro, estávamos todos em casa, excitados com as notícias recebidas, quando Maria Letícia e Fernão chegaram ao Largo do Ouvidor. Estávamos todos falando alto e gesticulando; apenas mamãe parecia calma, sentada na poltrona predileta. E quem falava mais era tio Antônio; batia com a palma da mão na mesa, revoltado, os cabelos em desordem, os bigodes caídos, a fisionomia abatida, falando alto:
— O jornal diz que Bazaine foi obrigado a retirar-se para Metz e aí é que está cercado. O exército foi quase todo aniquilado. Pobre França!
Andava de um lado para outro e voltava para bater na mesa com a palma da mão e falar cada vez mais alto:
— Isso foi em princípios de agosto; imaginem agora...
O que não terá acontecido?
Luís observou:
— Para mim, o pior é Napoleão ter sido derrotado e obrigado a capitular em Sedan; é a desgraça da França. Se não fosse isso...
Maria Letícia e Fernão escutavam parados à porta da grande sala; ouvindo essas palavras, Fernão precipitou-se para o nosso lado:
— Que foi? Tiveram notícias da Europa? Napoleão capitulou?
Tio Antônio segurou-o por um braço, explicando:
— Mon pauvre ami, chegaram notícias da Europa, não pode imaginar o que anda por lá. A Europa é um caos... Uma terrível carnificina.
— Bismarck?
— Sim. Bismarck invadiu a França com toda a horda de bárbaros e Bazaine está cercado, completamente cercado. Isso já faz dois meses, mais até... Foi em princípios de agosto. E agora?
E tio Antônio puxou os bigodes.
— Mas por quê? Perguntou Fernão. Que fez a França para ser assim invadida?
Papai, de pé, falou com calma:
— A França é invejada, é cobiçada. Bismarck invadiu-a barbaramente, mas isso não pode ficar assim; o mundo civilizado deve intervir. Não pode.
Félix começou a explicar com o jornal na mão:
— Aqui diz que houve duas grandes batalhas, a de Worth e a de Gravelotte; depois Bazaine foi cercado em Metz e Napoleão derrotado em Sedan.
Fernão empalideceu:
— Como? Derrotado?
O marido de Leopoldina, com as mãos nos bolsos, passeava pela sala, olhando o chão; parou para dizer:
— Mas ainda há esperanças; não devemos desanimar.
Félix sacudiu o jornal:
— Como assim? Não leu os jornais? Onde está a esperança?
Alberto encarou Félix:
— Bem, a França está cercada pelas tropas de Bismarck, mas quem diz que ela não pode resistir? Paris não pode reagir?
Paris é sempre uma esperança...
Tio António pegou o jornal e sacudiu-o diante dos dois:
—- Mas aqui diz que as tropas prussianas estão fortíssimas; em número, em equipamento, em tudo. Levaram anos a se preparar: como pode a França resistir? Mon Dieu!
E abrindo o jornal outra vez sobre a mesa, mostrou as notícias com as mãos espalmadas:
— Leiam isto. Olhe, as notícias são positivas: o cerco de Paris é uma realidade. Como poderão expulsar os invasores, se são os mais fracos? Não sei de que lado pode vir a esperança, não sei...
Disse Augusto:
— Napoleão III tem fracassado sempre; fracassou com Maximiliano no México; isso foi o pior que podia ter feito, enviar aquele pobre homem que não queria ir, para ser fuzilado estupidamente...
Papai com o dedo na cava do colete, disse com calma:
— E foi o único culpado, o único. Tem errado sempre. Admito que se erre, todo o mundo pode errar, mas deve-se fazer tudo para, depois do erro, reabilitar-se e procurar não cair novamente. E Napoleão III só tem feito isso: errar.
— Mas papai, replicou Luís, quem pode impedir que o mais forte aniquile o mais fraco? Isso até me faz lembrar La Fontaine: Le loup et l'agneau. Si ce riest toi, c'est donc ton frère. Je rien ai point. Cest donc quelqu'un des tiens; car vous ne rríépargnez guère, vos bergers et vos chiens. On me l'a dit, II faut que je me venge. Assim, Bismarck avançou na França para se vingar. De quê? Ninguém sabe.
— Muito bem, meu filho, disse papai. Mas não deve esquecer-se de que Napoleão provocou a questão com a Prússia logo depois do fracasso do México; foi por causa de Luxemburgo, há uns três anos. Agora veio a invasão, mas ele andou provocando a Prússia.
Maria Letícia falou pela primeira vez:
— Então papai tem razão; se ele provocou, é culpado da desgraça da França. Não se provocam em vão animais ferozes...
Tio António levantou a cabeça inclinada sobre o jornal e encarou Maria Letícia:
— Muito bem, petite Marie. Três bien.
Alberto interveio:
— Mas Napoleão acalentava uma esperança, meu sogro.
Ele pensava que a Áustria, a Baviera e o Wurtemberg ficassem do lado dele contra a Prússia.
Félix interrompeu:
— Mas isso é uma utopia, um sonho tolo. Só mesmo Napoleão III.
Leopoldina foi em defesa do marido:
— Bem, Félix, mas Napoleão agiu com boas intenções; ninguém pode impedir que uma pessoa tenha boa fé, e ele teve.
Aninhas e Eponina, com os filhos pequenos ao colo, escutavam, imóveis, num canto da sala; papai continuou:
— Foi tolice dele fazer essa suposição. Quem não viu que, desde 1848, os germanos eram um só povo, unido até em espírito? Bismarck impôs a monarquia Hohenzollern. Isso é sabido. Quem não sabe?
Leopoldina fechou a mão direita num gesto de revolta; sacudiu-a no ar:
— Tenho ódio a Bismarck. Ódio! Lobo mau! Atrevido!
Luís acalmou-a:
— É La Fontaine, Leopoldina. Lembre-se da fábula do lobo e o cordeiro e compreenderá Bismarck; o mundo está cheio de lobos assim. Cheio.
Falei timidamente do fundo da sala:
— Mas Paris está cercada pelo exército prussiano, como vai fazer para comer? Oh! Deve ser horrível!
Tio António deu um gemido e olhou-me, furioso:
— Oh! Não falemos nisso. Por que foi lembrar? Só esse pensamento me deixa desesperado. Como estará vivendo aquele grande povo? O povo mais evoluído da Europa. O povo que tem séculos de cultura e que deu ao mundo um Victor Hugo. Sabe o que são séculos de cultura? O que isso representa? A França que deu ao mundo um Pascal... um Voltaire... Falava os nomes bem alto, olhando para cima, como uma invocação. Luís aventurou:
— Um Jean-Jacques Rousseau... Alguns protestaram:
— Esse não, era suíço. Rousseau era suíço. Luís corou um pouquinho:
— Não quis dizer Rousseau. Confundi. Era Balzac. Tio Antônio repetiu como num sonho:
— Honoré de Balzac... Alphonse Daudet... Rabelais...
— E Dumas? perguntou Fernão. Alexandre Dumas? E quantos outros?
Francisca Miquelina observou que a guerra não era na Itália, mas ninguém respondeu. Mamãe, aliviada, abriu a segunda carta; era de nossa irmã Leontina que residia numa fazenda do Estado do Rio e havia casado dois anos antes; contava que o filho já estava com seis meses e ficava de pé; pretendia vir a S. Paulo no fim do ano para batizá-lo. As meninas bateram palmas com a notícia.
Benedito entrou na ponta dos pés para avisar que a Baronesa de Sobral estava no salão; viera fazer uma visita. Olhamo-nos, receosas; Leopoldina disse logo:
— Que novidades trará?
— Vem fazer-nos uma visita, Leopoldina, disse mamãe levantando-se.
Eponina insinuou:
— Creio que mamãe é que está devendo visita. Se veio hoje, é porque tem novidade.
— Não sejam faladeiras, censurou mamãe.
Maria Letícia sorriu:
— Ora, mamãe, a senhora sabe que ela não dá ponto sem nó.
Rimos todas. Mamãe saiu dizendo que traria a visita para tomar chá na sala de jantar; Leopoldina dirigiu-se ao meu quarto para arranjar o vestido. Minhas manas mais moças também deixaram a sala; só ficamos Maria Letícia, Francisca Miquelina e eu. A Baronesa de Sobral entrou logo depois, magrinha e pequena, agitando o leque preto. Depois dos cumprimentos, sentamo-nos à volta da mesa, esperando o chá que Benedito ia servir. A visita perguntava por todos, e abanava-se; seus olhos pequenos e vivos percorriam as pessoas, a toalha, o lustre, as arandelas, o serviço que Benedito ia colocando na mesa com cuidado; as xícaras, os bules e os pratos com bolos e doces. Seus olhos percorriam também as portas fechadas, querendo descobrir o que havia além delas. Quando Leopoldina entrou e cumprimentou-a, ela apenas perguntou:
— Quando teremos a festa, Leopoldina?
— Breve, respondeu Leopoldina corando.
Mamãe fez um imperceptível sinal para que Francisca Miquelina se retirasse; não gostava que ela ouvisse conversas entre casadas; Francisca Miquelina deixou a sala imediatamente. Como eu era considerada solteirona, podia ficar. A baronesa olhou Maria Letícia:
— E Maria Letícia? Quando teremos o herdeiro dos Seixas Albuquerque.
— Não sei, baronesa.
E seu rosto corado voltou-se para mim, os olhos cheios de raiva. Fiz-lhe um leve sinal para que não se importasse, enquanto a baronesa olhava Eponina e Aninhas que entravam na sala e sentavam-se à mesa. Comecei a servir o chá; havia bolo de fubá, geléia de mocotó, rosquinhas e biscoitos.
Saboreando a geléia de mocotó com a colherinha de prata, a Baronesa de Sobral lembrou que se anunciavam espetáculos, no Teatro São José; a companhia era boa e as peças muito interessantes; já assistira no Rio de Janeiro.
Ficamos alvoroçadas, com as colherinhas suspensas no ar; Aninhas e Eponina foram as primeiras a dizer que de certo iriam; os maridos já haviam falado alguma cousa a respeito. Maria Letícia disse que ia pedir a Fernão para que a levasse também; só Leopoldina nada disse e continuou a comer tristemente a geléia; Aninhas cochichou:
— E se aumentasse seu vestido cor de azeitona?
Um brilho diferente apareceu nos olhos castanhos de Leopoldina:
— O de veludo?
— Sim, o de veludo. Não há jeito de aumentar na cintura? Poderá ficar muito bom.
Mamãe olhou-as numa interrogação; Eponina interveio:
— Eu estava assim de seis meses e fui ao baile de D. Gertrudes; creio que Leopoldina pode ir.
Mamãe levantou uma das mãos:
— Não; não. Nada disso. Não fica bem.
A Baronesa de Sobral trincou uma rosquinha e disse, maliciosa:
— Pode ser que desta vez sejam gêmeos, hein, Leopoldina? É de família.
Leopoldina respondeu com indiferença:
— Se forem gêmeos, desejo que sejam duas meninas, porque já tenho dois meninos.
Aninhas lembrou:
— Ela poderia entrar no teatro com a mantilha caída nos ombros, ninguém havia de reparar.
Mamãe tornou a falar:
— Já disse que não fica bem; chamará a atenção de todos. E o que não irão falar? Maria Letícia, corte o bolo de fubá.
Leopoldina fez voz de choro:
— Já perdi o baile das Gama por causa do Fortunato, o aniversário de casamento dos Lage por causa do Vicente, essa festa tinha até orquestra do Rio de Janeiro. Agora perco a temporada de teatro...
Todas rimos baixinho; começamos a comer o bolo de fubá e não voltamos a falar do teatro. As irmãs mais moças entraram na sala e, pedindo licença, sentaram-se na outra ponta da mesa. Mamãe serviu à visita uma segunda xícara de chá e perguntou:
— A prima é servida de mais um pedaço de bolo de fubá? Não faça cerimônia.
A baronesa arrotou forte antes de responder:
— Obrigada, prima, já estou confortada.
E abanou-se outra vez com o leque deixado sobre a mesa, ao lado da xícara.
Falamos sobre a guerra da Europa; trocamos comentários. Nesse momento, tio António entrou na sala; cumprimentou a visita e pediu uma xícara de chá; enquanto eu o servia, contou as últimas notícias recebidas da Europa: tudo ia mal. Trocou umas frases amáveis com a baronesa e afundou-se na poltrona com o jornal sobre os joelhos e a xícara de chá numa das mãos, esquecida. Reparei quanto tio António envelhecera nos últimos tempos; os cabelos estavam inteiramente grisalhos, até os bigodes já não tinham o brilho antigo, nem as pontas reviradas. Só pensava na guerra, numa obsessão doentia. Chamei-lhe a atenção sobre o chá que estava esfriando na xícara; e ouvi a Baronesa de Sobral dirigir-se a Maria Letícia:
— Como vai sua vizinha, D. Deolinda Menezes? Maria Letícia voltou-se, sobressaltada:
— Conhece-a?
— Muito. Meu pai foi vizinho do pai dela, na fazenda. Gente ruim para escravos. Ela é boa?
Maria Letícia hesitou:
— Não posso saber, baronesa. Conheço-a tão pouco, apenas de vista; não temos relações de amizade.
A baronesa animou-se:
— Como? Mas seu marido freqüentava muito a casa do comendador; ia jogar solo, ou então fazer um pouco de música com D. Deolinda. Ele não lhe contou?
Percebi o mal-estar de Maria Letícia; Leopoldina também percebeu, porque olhou para mim, admirada. Maria Letícia respondeu com voz surda:
— Contou, sim, senhora.
Desviou o olhar e ficou vermelha; percebeu que ela acabava de dizer uma mentira. A baronesa com os olhos fitos nela, uns olhos pequenos e vivos, continuou, animada:
— E uma gente perigosa: "Gente capaz de tudo", dizia meu pai. Um tio dela respondeu a júri em Itu porque matou uma escrava de tanta pancada. Dizem que o pai dela também matou; e ouvi dizer que D. Deolinda, quando manda refinar o açúcar, põe cinza nas gemas de ovo, para as escravas não aproveitarem. As claras vão para a refinação e as gemas para as cinzas. Mulher danada. Não sabia?
Percebendo que conseguira um assunto para açular o auditório, não esperou resposta e continuou, imperturbável:
— Ela era muito moça quando se casou com o Comendador Menezes; ele é uns quarenta anos mais velho... E contam cousas do tempo em que era solteira. E depois de casada também...
Relanceou os olhos para a ponta da mesa onde estavam as meninas; hesitou um segundo e resolveu:
— Ela não é boa bisca; não souberam do baile dos Cosmes? Faz uns dois anos mais ou menos...
Olhou firme para Maria Letícia. Sem saber o que falar, virei-me para mamãe; ela estava inquieta e de repente disse:
— Rosa, mande as meninas experimentarem os vestidos.
Mandei Adelaide e Cristina, minhas irmãs mais moças, deixarem a sala outra vez. Levantaram-se devagar e foram saindo, curiosas por ouvirem as conversas da baronesa. Esta dizia:
— A menina ainda não era casada; pois nesse baile ela foi muito criticada. Estava com um vestido de seda creme com rendas da Inglaterra. E deu que falar... deu que falar...
Ajeitou-se melhor na cadeira e abanou-se:
— Seu marido estava lá, deve saber muito bem o que se passou. Fernão Seixas não contou? Eu me lembro bem. Vi e ouvi!
Rematou a frase apontando os olhos e os ouvidos com o leque. Maria Letícia sentiu-se mal; não queria saber e, ao mesmo tempo, queria, estava ávida por descobrir qualquer cousa; era como se se debatesse aflitamente; olhou à volta da mesa e fixou a baronesa. Esta insistia:
— Pois é isso. Até me lembro de que Fernão Seixas dançou o lanceiros com D. Deolinda; não sei se uma ou duas vezes. Deixe ver se me lembro... Duas vezes. Não, enganei-me. Três vezes. Fernão Seixas tinha chegado do Rio de Janeiro e não conhecia bem os costumes daqui. É isso: Três vezes. Esse baile deu pano pras mangas...
Falava sorrindo malevolamente, olhando de esguelha para Maria Letícia que, sem saber o que fazer, fitava ora a mesa, ora a interlocutora, cuja vozinha de papagaio repetia as frases, apressada e nervosa:
— Lembro até que Fernão Seixas havia chegado do Rio de Janeiro havia pouco tempo; todos queriam conhecê-lo, pois era simpático e bem parecido.
Leopoldina remexeu-se na cadeira; não sei como, tive de repente uma idéia. Interrompi a visita e olhei Maria Letícia:
— Mamã Zabel está esperando sua receita de pudim de laranjas; disse que quer fazer hoje. Não se lembra? Agora mesmo ela espiou na porta e fez um sinal para que chamasse você.
— Ah! Havia me esquecido.
E Maria Letícia levantou-se, pedindo desculpas à visita. Depois que deixou a sala, a Baronesa de Sobral mudou de assunto e pouco teve que contar; levantou-se e despediu-se. Seus olhinhos brilhavam de contentamento; conseguira o que desejara; atirar o veneno da dúvida no coração de Maria Letícia. Como quem atira fora flores murchas.
Fomos com ela até a porta da rua; lá estava a cadeirinha esperando-a; era forrada de veludo verde e as cortinas das janelas também eram verdes. Entrou, recomendando-se a toda a família; os negros passaram as correias sobre os ombros e levantaram a cadeirinha; ela puxou as cortinas e cerrou-as bem. Os escravos já haviam dado uns passos, quando a baronesa abriu uma das cortinas rapidamente e pôs o rosto para fora, um rosto enrugado como laranja murcha; disse com sua vozinha de papagaio:
— Esqueci-me de Maria Letícia. Muitas lembranças a ela...
E cerrou com força a cortininha outra vez. Mamãe virou-se para nós:
— Como a conversa da Sobral é inconveniente; raramente fala com sensatez.
— Cobra malvada, resmungou Leopoldina.
Eponina e Aninhas riram-se e Francisca Miquelina acrescentou:
— Mulher especula. Tudo quer saber e mexericar.
Adelaide e Cristina fizeram caretas na direção da cadeirinha que ia virando a Rua José Bonifácio; mamãe levou os dedos aos lábios pedindo silêncio. Leopoldina tinha razão; a Sobral era como a serpente.
Voltamos à sala de jantar. Tio Antônio estava de pé, explicando a Maria Letícia de que modo acabaria a guerra; e Maria Letícia, apoiada à mesa, pálida e trêmula, mal lhe dava atenção.

DESDE esse dia Maria Letícia começou a sentir-se mal, preocupando toda a família; desconfiou-se de que ia ter uma criança; ninguém falava, mas todos tinham o mesmo pensamento. Mamãe, Leopoldina, as cunhadas e até as mucamas da casa esperavam a confirmação da boa nova. Modesta cercou-a de maiores carinhos e cuidados.
Em dezembro, Fernão completou o curso da Faculdade de Direito; foi por ocasião do Natal. Maria Letícia ofereceu, então, um jantar à família e pediu-me que fosse auxiliá-la. Fui novamente para a chácara; tudo correu bem e depois do jantar houve uma hora de arte. Tio Antônio fez questão de cantar a Marselhesa, com acompanhamento de piano e flauta. Um frêmito de entusiasmo perpassou entre todos quando tio António de pé, no meio da sala, ergueu o braço direito e começou a cantar o hino francês, os olhos brilhantes fixos no teto.
Lá fora, a noite era calma e estrelada, uma noite quase selvagem de grandeza e silêncio. Entre as árvores que rodeavam a casa da chácara, somente grilos e vaga-lumes davam sinais de vida; tudo mais era quietude, na rua e nas senzalas.
À meia-noite já se haviam retirado todos, alguns a cavalo, outros em caleças; foram cantarolando pelo caminho, enquanto a poeira se levantava sob as patas dos cavalos. Fiquei com Maria Letícia, Bonifacinho também ficou na chácara para uma temporada.
Certa noite de janeiro de 1871, acordamos, às duas horas, com insistentes batidas no portão; as mucamas levantaram-se e Fernão mandou que abrissem a porta da rua. Quando viu um dos escravos de seu pai, ficou pálido e perguntou logo o que acontecera; Modesta e eu, com os castiçais acima das nossas cabeças para iluminar a cena, vimos ao clarão das velas o escravo cansadíssimo, pois viera diretamente da fazenda Albuquerque, em Valença, contar que o velho Seixas estava à morte.
Fernão leu a carta da mãe, escrita às pressas; o pai sofrera uma queda do cavalo e o acidente trouxera complicações, pois ocasionou congestão cerebral; pedia a presença do filho. Ele ficou um momento assustado, com a carta na mão, olhando para a frente como se não tivesse compreendido; então o escravo tornou a repetir os pormenores do desastre, falando devagar e pausadamente. Parece que de repente Fernão despertou: ordenou a Maria Letícia que fosse ficar esses dias em casa de papai; vestiu-se às pressas, pediu seu melhor cavalo, mandou o escravo Tomásio que se aprontasse para acompanhá-lo e às cinco horas da manhã partiu, aflito e preocupado, tomando o caminho do Rio de Janeiro.
Mais tarde, Maria Letícia mandou atrelar a caleça e seguimos com Bonifacinho e Modesta para a casa do Largo do Ouvidor, onde ocupamos nosso antigo quarto, esperando a volta de Fernão.
Nesse mesmo mês, deram-se dois acontecimentos importantes na nossa família: Francisca Miquelina foi pedida em casamento por tio Rodolfo e Maria Letícia teve certeza de que ia ter um filho. Tio Rodolfo conhecera Francisca Miquelina em nossa própria casa, pois era irmão de mamãe por parte de pai. Vivera sempre na fazenda e pouco freqüentava a cidade; era viúvo e tinha um filho do primeiro matrimônio. Quando Francisca Miquelina soube que fora pedida em casamento por tio Rodolfo, não ficou alegre nem triste: com a maior indiferença, continuou a mastigar sementinhas de maracujá. Maria Letícia ficou preocupada, creio que se lembrou da noite de seu próprio noivado e das lágrimas de Francisca Miquelina; sobressaltou-se um pouco olhando a irmã.
— Você quer casar-se com tio Rodolfo? Perguntou.
— Não sei. Por quê?
Maria Letícia começou a elogiar o noivo:
— Papai e mamãe fazem muito gosto nesse casamento, não é mesmo, mana Rosa? E depois, ele pertence à nossa família, é ótima pessoa. Sabe que é parente dos Lage por parte de mãe? Eles têm fazenda em Taubaté e vão muito ao Rio de Janeiro. Quem sabe se você vai morar na corte? Francisca Miquelina mastigou outra sementinha e respondeu, como um eco:
— Quem sabe?
Maria Letícia tornou a falar:
— Que bom se você for morar no Rio de Janeiro; lá é tão bonito e a vida na corte deve ser interessante... Não, mana Rosa?
Respondi que devia ser interessante. Francisca Miquelina soprou uma sementinha para longe; pegou outra para mascar enquanto Maria Letícia continuava:
— E depois Rodolfo é simpático, um mocetão. Ele e você farão um lindo par. Não acha, mana Rosa?
Respondi que achava. Silêncio. Maria Letícia arriscou uma pergunta:
— Gosta dele, Francisca Miquelina?
Francisca Miquelina cuspiu outra sementinha e disse com jeito displicente:
— Não sei.
E foi brincar no jardim com as irmãs mais moças; Maria Letícia ficou pensativa durante algum tempo. Nessa tarde, seu pai anunciou o noivado de Francisca Miquelina; ela não fez nada. Maria Letícia cochichou com Leopoldina:
— Não acha Francisca Miquelina muito indiferente com noivado?
— Francisca Miquelina? Foi sempre assim, um tanto esquisita, mas tem gênio bom. Se ela e o marido tiverem que morar num rancho de sapê, ela vai do mesmo jeito. Tem um quê assim de pouco caso, nada lhe faz mossa.
— Mas gostará dele?
— Vai gostar, sim, mas ele não é tão moço; vinte anos mais velho que ela.
— Vinte? Não pensei que fosse tanto assim. Não acha Leopoldina?
— Não, acho até razoável. Não vê nossos tios de Paiva?
— Os barões? Meu sogro também? O mínimo de diferença de idade entre um e outro é quinze anos. Você e Fernão, sou, somos exceção; uma diferença de cinco ou dez anos apenas; mas tudo dá certo. Francisca Miquelina vai ser feliz.
Fez uma pausa e continuou:
— E depois ouvi nosso pai dizer uma vez: "Ela se casa com a raça, e a raça é boa".
— Que idéia! Afinal ela se casa com o homem, não é?
— Mas nosso pai olha acima de tudo a raça; e, nos tempos de hoje, é muito razoável pensar assim. Ela vai ser feliz; é muito acomodada.
Maria Letícia suspirou:
— Tomara que seja feliz.
E ficou olhando Leopoldina bordar a camisinha; Leopoldina aconselhou:
— Quando for bordar suas camisinhas, borde assim. Este modelo é muito bonito. Veja.
Abriu o pano de cambraia, aplicado de pontas e entremeios de crochê. As duas estavam distraídas com o bordado; fui para o quarto e encontrei Francisca Miquelina enxugando as lágrimas disfarçadamente. Olhei-a e perguntei.
— Você está chorando?
— Não. Quero dizer, meus olhos encheram-se de lágrimas porque dei uma batida na porta. Só por isso.
Tornei a perguntar:
— Onde foi que bateu?
Ela ficou um pouco atrapalhada, depois respondeu mostrando uma das mãos:
— Aqui no dedinho. Doeu muito; agora está passando.
Olhei o dedinho e não vi nada. Encarei-a:
— Francisca Miquelina, você não quer casar-se com tio Rodolfo?
Ela quis disfarçar e não conseguiu; baixou a cabeça e tapou o rosto com as mãos; soluçou baixinho:
— Não sei se quero ou não, mana Rosa. Nem sei, mas... creio que não.
Abracei-a; ela chorou encostada no meu ombro durante uns momentos.
— Pois então não se casará com ele, consolei-a; vou falar com papai hoje mesmo.
Ela encarou-me, assustada:
— Não. Por favor, mana Rosa. Não fale com papai... Por favor.
— Então falarei com mamãe.
Ela parou de chorar e suplicou:
— Não. Nem com mamãe, não fale nada, não quero.
Separamo-nos; ela começou a passar o lenço pelo rosto.
— E então? Perguntei. Por que não quer que fale? Se não gosta dele?
Enxugando o rosto, respondeu-me:
— Mas eu acabo gostando dele, mana Rosa. Isso acontece com todas, depois a gente gosta. Vai ver; mas, por favor, não fale nada.
Prometi não falar. Maria Letícia entrou no quarto e preparamo-nos para dormir.
Dias mais tarde chegou um escravo da fazenda Albuquerque com a notícia de que o velho Seixas havia falecido devido à queda do cavalo e Sinhô Fernão não o encontrara com vida. Na carta que escreveu, Fernão anunciava a sua volta em fevereiro.
Maria Letícia vestiu luto fechado para esperar o marido em fevereiro; e nesse mesmo mês tivemos más notícias da França. O exército de Metz havia capitulado em outubro; Paris rendera-se ao invasor após um sítio doloroso. E a França pediu paz. A consternação foi geral; tio António começou a usar gravata preta, de luto.
Soubemos que a assinatura da paz fora feita em Versalhes, na Sala dos Espelhos; ávida de territórios, a Alemanha apoderou-se da Alsácia e da Lorena, cujos habitantes tinham condições franceses, assim como Metz e anexou-as ao seu país; dizem que o fez devido às minas de ferro que ela queria para si. Todo mundo previu choques entre súditos franceses e os iluminadores alemães nas regiões anexadas e todo mundo sentindo a dor da França. Napoleão III, derrotado e aniquilado, refugiou-se na Inglaterra.
Quando Fernão chegou de Barreiro, em fins de fevereiro, encontrou Maria Letícia muito pálida, os olhos azuis amortecidos e as mãos diáfanas bordando uma touquinha. Beijou-a e ficou sentado ao lado dela, contando a morte do pai, a tristeza de não o encontrar mais com vida, as atribulações da viagem, a fadiga, o sentimento da mãe. Todos nós, reunidos, dividimos os acontecimentos; durante o jantar, comentamos os filhos.
Nessa mesma tarde, quando eu estava aprontando as roupas de Maria Letícia para ela voltar à chácara, ouvi Fernão perguntar-lhe por que estava tão pálida; ela apenas sorriu. Depois ele perguntou para quem era aquela touquinha que ele a surpreendera bordando; ela respondeu corando:
— Para nosso filho.
Ele tomou-lhe ambas as mãos e beijou-as com carinho; depois beijou-a na face.
No dia seguinte, Maria Letícia contou-me que, antes de dormir, haviam discutido o destino do filho. Deram-lhe o nome de António Fernão; os olhos seriam azuis, como as flores do córguinho, iguaizinhos aos da mãe. Conversaram sobre a cor dos cabelos, com que idade andaria e qual a primeira palavra que seus lábios pronunciariam. Imaginaram o primeiro dente e a festa de batizado; seria grandiosa, com muitos convidados, uma mesa de doces muito grande e até música. Pediriam para Francisca Miquelina tocar harpa.
Só num ponto não estavam de acordo; Fernão disse que o filho devia estudar na Europa, mas Maria Letícia reprovou:
— Mas aqui não se estuda tão bem? Para que ir tão longe? Lá há perigos de guerra; ele poderá ir quando for mais velho, depois de formado.
Fernão teimou em mandar o filho; mostrou as vantagens de estudar na Inglaterra e o quanto se arrependia de não ter querido ir. E concluiu:
— E a cultura européia é outra; não vê seu tio de Paiva, o conselheiro? E seu pai? E tio António? E tantos outros?
Maria Letícia contou-me que se sentou na cama, encarou o marido e disse com voz magoada:
— Ah!. Fernão, então vou separar-me do meu filho? Viver anos e anos longe dele? Não, preferia que não fosse assim.
E ficou fitando a vela que fazia figurinhas na parede do quarto. Fernão refletiu um pouco e sugeriu:
— E se fôssemos também? Podemos ir e ficar um ou dois anos lá com ele até se acostumar; depois voltaremos.
Ela ficou mais animada e acrescentou:
— Assim, sim. Podemos ficar lá o tempo todo que ele estudar, não é?
Dando um bocejo, Fernão respondeu com voz de sono:
— Naturalmente, podemos ficar lá todo o tempo que Antônio Fernão estudar. Deite. Vou apagar a vela.
Maria Letícia deitou-se, tranquilamente, enquanto o quarto mergulhava na escuridão; depois de um instante perguntou sorrindo:
— Afinal, é preciso saber primeiro se ele quer ou não estudar na Europa, não é mesmo?
Fernão começou a ressonar e Maria Letícia ficou imóvel com as duas mãos sobre o ventre como se acariciasse a cabecinha do filho.
Quando acabou de contar, rimos juntas ao lembrar a conversa sobre António Fernão. Depois nos fomos preparar para celebrar o noivado de Francisca Miquelina; Mamã Zabel com o vestido engomado fazendo flac-flac dava ordens na cozinha indo de um lado para outro, enquanto a saia rodopiava. Ralhava porque os quindins não estavam bem assados, porque todos eram vagarosos e ninguém queria trabalhar. Resmungava e censurava; estava ficando velha, a Mamã Zabel.
Benedito enfeitava os lustres e as arandelas com melindre, camélias e dálias; à tarde chegaram Leopoldina e Alberto, nossos irmãos casados e respectivas esposas, e Francisca Miquelina ainda não estava pronta.
A mucama, aflita, foi procurar-nos; Maria Letícia, Leopoldina e eu entramos no quarto onde Francisca Miquelina estava indecisa olhando os vestidos, sem saber qual deles havia de escolher. Leopoldina ralhou:
— Precisa apressar-se; falta apenas meia hora para Rodolfo chegar e você ainda não está pronta.
Ela respondeu:
— Não tenho pressa, ele pode esperar.
— Não diga isso. O que mamãe irá dizer? E papai, que está tão contente com este casamento?
Voltou-se para a mucama e ordenou:
— Tire o vestido cor de alecrim para Sinhá Francisca vestir.
Diante do espelho, vestida apenas com a saia branca que ia até o pescoço, com fitinhas entrelaçadas, Francisca Miquelina passava o pente nos cabelos com gestos vagarosos. Olhei-a e ela desviou o olhar; Maria Letícia resolveu intervir:
— Vamos, mana, nós vamos ajudá-la e num instante ficará pronta.
Francisca Miquelina largou o pente e voltou-se para nós:
— Não quero esse vestido: já disse que não quero. A mucama começou a falar com voz de choro:
— Ela disse que não qué este, nem aquele azul, nem o branco. Eu num sei o que Sinhá tá querendo.
Aninhas entrou também no quarto, com um vestido de moiré antique, cheio de babadinhos de renda;
— O que é isso? Estamos na hora. A noiva não está pronta? Nossos pais já estão no salão.
Eponina entrou atrás, perguntando:
— Não está pronta ainda? Santo Deus! Estamos quase na hora, já estão perguntando pela noiva.
Francisca Miquelina mordeu os lábios, voltou-se e com o vestido cor de alecrim na mão, esperava de um lado. Cruzou os braços nus sobre o peito e disse claramente:
— Não tenho vontade nenhuma de ficar noiva.
Ficaram todas tomadas de espanto, menos eu. Eponina sentou-se arquejando na beira da cama; Aninhas fitou-a com a boca aberta; Leopoldina deu uns passos à frente e Maria Letícia levou a mão à garganta como se algo a sufocasse. Só eu fiquei impassível, mas meu coração sentiu pena dela. Leopoldina falou com impaciência:
— Só agora diz isso? Agora que está tudo pronto e nossos pais tão contentes? Por que não falou antes? Por quê? Papai havia de dar um jeito. Agora que os convidados já estão chegando, a família toda já reunida? Oh, mana! Não, não pode ser. Deus de Misericórdia!
Leopoldina torceu as mãos; Maria Letícia balbuciou:
— Por favor, mana. Ele é um moço bom e bonito; você vai gostar dele. Fernão me disse que é um homem correto, bom e ajuizado... E depois é irmão de mamãe por parte de pai. Nosso parente tão chegado...
Francisca Miquelina interrompeu-a:
— Mas ele é velho, tem mais de quarenta anos.
Eponina e Aninhas aproximaram-se e começaram a dar exemplos de casamentos com grande diferença de idade; contavam nos dedos:
— Veja os tios de Paiva. Veja eu e Félix.
— E minha mana Maria Antônia? Diferença de mais de vinte anos. Vivem tão felizes!
— Meu Deus! E vovô barão?
— E meu pai e minha mãe? Dezoito anos de diferença; ela casou-se aos treze anos.
— E eu, Francisca Miquelina? E eu?
Eponina bateu no peito sobre a renda creme. Houve um silêncio. Leopoldina olhou os vestidos no guarda-roupa:
— Quer este de seda cor-de-rosa com folhas de lièrre? É o vestido mais bonito daqui. Quer?
Aproximei-me de Francisca Miquelina e supliquei que se vestisse e fosse para o salão, pois nosso pai não perdoaria se ela se recusasse, seria uma cousa terrível para a família. De saia branca no meio do quarto, Francisca Miquelina olhou-me como se não tivesse ouvido; depois foi até a rótula e espiou o largo. Ouvia-se o ruído das carruagens que chegavam. Voltou ao meio do quarto sem dizer nada e de repente começou a chorar, a cabeça entre as mãos. Ficamos todas à volta dela, animando-a:
— Pelo amor de Deus, vamos, tenha coragem.
— Não chore assim, fica com o nariz vermelho e os olhos inchados.
Indecisa, ela ergueu a cabeça e murmurou:
— Não gosto de homem que toma rapé.
Olhamos umas às outras e Aninhas sorriu como quem sorri a uma criança:
— Que tolinha que você é. Só por isso? Francisca Miquelina tornou a falar:
— E depois ele é viúvo... Eu não queria. . . Eponina adiantou-se uns passos:
— Francisca Miquelina, será possível que não queira casar-se com Rodolfo por ser ele viúvo? Mas que tem isso? Imaculada Conceição, só por isso?
Leopoldina perdeu a paciência e ordenou com energia:
— Vamos, lave o rosto e passe pó de arroz. O que dirão na sala? Está demorando muito!
Lavei o rosto de Francisca Miquelina com uma toalha úmida, passei pó de arroz de leve no nariz, depois borrifei o perfume no pescoço e nos cabelos; em seguida, Eponina e Aninhas vestiram-lhe o vestido de seda cor de rosa com folhas de lièrre. Como se fosse uma boneca, ela não reagiu, nem disse cousa alguma; percebi, porém, seu coração a bater descompassadamente.
Quase em silêncio, acabamos de aprontá-la; fomos atrás dela até o salão; Rodolfo já estava lá; adiantou-se para cumprimentá-la e nós nos olhamos umas às outras, receosas. Francisca Miquelina, porém, dócil, estendeu a mão ao noivo, que se inclinou diante dela. Com um sorriso triste, ela correspondeu. Só então reparamos que ela levava na mão esquerda, bem fechado entre os dedos, um raminho de violetas: mágoa. Nunca descobrimos onde ela arranjou as violetas, pois não era tempo. Só sei que foi sua única demonstração de desagrado e foi esquecida logo depois. Nunca contamos a ninguém.
Depois da morte do pai, Fernão comprou mais terras que divisavam com a chácara da Penha; aumentou o número de escravos e instalou um engenho. Mandou vir de Santarém o feitor Joaquim para dirigir os trabalhos da moagem; apesar de ser tão grande como uma fazenda, a propriedade continuou sendo "A Chácara da Penha". As senzalas foram aumentadas e Fernão comprou mais escravos; bem cedinho saía a cavalo para dirigir os serviços; mandou um de seus irmãos mais moços para a colheita de café em Santarém.
Fiquei ainda essa temporada com Maria Letícia; ela pediu-me para auxiliá-la no enxoval da criança, pois eu gostava de bordar e fiz quase tudo, ela apenas me indicava os desenhos para os bordados. Duas vezes por semana, íamos passar o dia todo com mamãe e aos sábados, eles, quero dizer, papai, mamãe e nossos irmãos mais moços iam jantar conosco, na chácara. Nesses dias eu também tinha muito trabalho porque a cozinheira de Maria Letícia não sabia o que havia de fazer; e eu ia então ensiná-la e no fim fazia quase tudo. Eu não queria que Maria Letícia se incomodasse com cousa alguma, para não cansá-la.
Tio Antônio, aborrecido um dia, tirou dinheiro adiantado e foi distrair-se no Rio de Janeiro, alegando precisar de diversões, pois sentia-se muito doente.
Em abril, num dia escuro de chuva, estava eu bordando ao lado de Maria Letícia quando Modesta entrou no quarto. Andou de um lado para outro, espreitando o rosto da ama; de repente falou em voz baixa como se contasse um segredo:
— Sinhá Moça, hoje de manhã, eu tava passeando na horta quando vi Sinhá Deolinda.
Maria Letícia que também estava bordando, deixou o bordado no colo e olhou a mucama um pouco assustada:
— Ela estava sozinha?
— Tava; depois eu vi que tava oiando lá pra baixo e Sinhô Fernão vinha vindo a cavalo; vinha no cavalo baio, aquele que Sinhá gosta. Eu tava oiando bem o jeito de Sinhá Deolinda; pra vê mió me escondi atrás de uma tocera de capim; ela oiô aqui pra nossa casa, oiô prós lado da casa dela e passou a mão nos cabelo, ansim... Depois começô a revirá a sombrinha nas mão, uma sombrinha escura que eu não conhecia. Quando Sinhô Fernão foi chegando mais perto dela, deu uns passo pra frente e encostô a cara na cerca, pro vão; a chuva moiava a cara dela, mas ela nem sentia. Ele tirô o chapéu pra cumprimentá e ela disse rindo, o dente briando: ***"Bom dia, dotô, então como vai o vizinho que não vejo há tanto tempo?" Ele também riu e respondeu: "Vamo bem, D. Deolinda. E o comendadô, como vai?" Em vez de respondê, ela preguntô: "Não qué descê um poco do cavalo pra dá uma prosa?" Ele disse: "Não tem medo de chuva, D. Deolinda? Óie que essa chuvinha dá pra moiá". Ela oiô pra ele, se revirô ansim e disse: "Não. Não tenho medo de nada neste mundo, quanto mais de chuva".
Maria Letícia olhou para mim e eu baixei os olhos para o bordado; ela então levantou-se, foi até a janela olhar a chuva que tamborilava na vidraça, Perguntou a Modesta sem se voltar:
— E então? Ele desceu do cavalo?
Modesta respondeu com um tom de triunfo na voz:
— Capais, Sinhá Moça. Nada disso. Óie, não vá me chama de negra novidadeira porque tô contando essas coisa. Mas ovi sem querê e conto tudo bem direitinho.
Maria Letícia voltou-se, curiosa e aflita; sentia uma sufocação na garganta, Modesta continuou:
— Intão ela oiô bem di frente pra ele, com a sombrinha nesta mão e esta mão no peito... Ele tava rindo e não dizia nada, ela então falô: "Sabe que é o homem mais bonito que conheço? E também o mais perigoso? É desses que, a gente não pode esquecê". Ela falô umas coisa ansim e ele fico quieto, sem ri. Eu já tava encharcada d'água, tava em cima de uma poça bem grande. Então Sinhô Fernão começou a passá a mão no pescoço do baio bem devagarinho pra baixo e pra cima, pra baixo e pra cima, depois falô: "Deolinda, sabe que tá perdendo seu precioso tempo?"
Maria Letícia levou a mão à garganta e eu levantei a cabeça para olhar Modesta.
— Ele falou assim mesmo? Você ouviu bem, Modesta? Perguntou Maria Letícia ansiosa.
— Ovi com estes ovido; ansim como Vossuncê tá agora aqui na minha frente, eu vi os dois lá no fim da horta, perto do capinzá. Por Deus do céu, desta vez não falaram francéis e ovi tudo.
— E ela, Modesta? Que fez ela?
— Espere, Sinhá Moça. Conto tudo direitinho. Ele falô mais ainda; não me alembro mais, só sei que quando ele parô um poquinho, ela riu como não tá acreditando, então ele disse: "Não sabe que quero bem à minha muié? E peso minha felicidade"; isso não entendi bem. Tocô o cavalo e disse tirando o chapéu: "Não perca seu tempo, passe bem". Sinhá Letícia, Sinhá Rosa, se visse a cara daquela muié! Tava verde, os óio fuzilando qui nem raio, braba como bicho. Vossuncês já viram cobra quando é pisada? Quando ela vira danada pra mordê? Pois ela tava ansim. Quis fala umas coisa pro Sinhô, mas ele já ia longe, aquele baio é bão marchado. Eu disse baixinho: "Aí, cobra venenosa, vespa braba, marcada pelo demo, muié ruim". Ela arregaçô as saia e saiu correndo pra casa pisando nas poças d'água, tropeçando, o vestido todo enlameado. A sombrinha gotejava... Quando tudo serenô e eles já tavam longe, saí do meu canto e vim pra casa. A desfeita que Sinhá Deolinda recebeu hoje, ela não esquece. Nunca mais ela esquece. Tenho até medo.
Maria Letícia continuou de pé, recostada na vidraça, vendo a chuva cair no jardim; notei que estava mais calma, e até o tremor das mãos havia desaparecido. Quando Modesta deixou o quarto, continuamos em silêncio e não trocamos uma palavra sobre o fato.
À noite ainda chovia, uma chuvinha fina de abril, persistente e fria. No escritório onde Fernão fazia as contas, Maria Letícia estava sentada ao lado dele, bordando. Mais longe um pouco, eu também bordava. De súbito, ela empurrou o bordado para um lado e perguntou a Fernão com voz pouco firme:
— Como irão nossos vizinhos? Há muito tempo que não os vejo.
Fernão levantou a cabeça e encarou-a:
— Os Menezes? Também não tenho sabido deles. De certo o comendador está viajando outra vez.
Vi Maria Letícia apertar os lábios:
— E ela? Também está viajando?
Fernão olhou o livro de contas sobre a mesa e disse com voz que procurava ser indiferente:
— Quem? D. Deolinda? Hoje mesmo eu a vi lá embaixo dando umas ordens.
A voz de Maria Letícia tremeu de leve ao perguntar:
— E você falou com ela? Ou apenas a viu de longe?
Apavorada com a coragem de Maria Letícia, olhei-a e fiz um sinal imperceptível para que não falasse mais; ela fingiu não me ver e ficou esperando a resposta do marido. Ele disse:
— Cumprimentei-a ao passar a cavalo. Apenas de longe.
Fernão acendeu um cigarro, depois levantou-se para fechar uma janela. Acrescentou:
— Estava chovendo muito naquela hora, e até agora está chovendo. Que tempo horrível!
Tremendo de medo por causa de Maria Letícia e receando que ela continuasse a perguntar o que não devia, levantei-me e perguntei se queriam chá que eu iria fazer. Fernão olhou-me com uma expressão feliz no olhar, ela sacudiu os ombros e não respondeu.
— Boa idéia, mana Rosa! disse ele. Ainda mais com este tempo frio. Boa idéia!
Deixei o escritório e fui fazer o chá. Não se tocou mais no assunto, porém, mais tarde, no quarto, quando fui despedir-me dela, observei:
— Que imprudência, Maria Letícia. Não se deve falar ao marido certas cousas. Tive tanto medo que Fernão se impacientasse, ele já estava ficando nervoso.
Ela fez um muxoxo e respondeu:
— Você não sabe nada, mana Rosa. Você não é casada. Viu como os homens mentem? Mentem sempre.
— Também por que você fazer essas perguntas? Isso não se faz.
Pedi-lhe que nunca perguntasse nada a Fernão e ela prometeu. Com essa promessa, deixei o quarto e fui dormir.
Nessa época, Leopoldina deu à luz o terceiro filho ao qual pôs o nome de Alberto, o nome do marido. Papai marcou o casamento de Francisca Miquelina para maio; com a mesma indiferença com que recebeu a notícia do noivado, ela casou. Não sei se chorou escondida no quarto, isso não sei.
Rodolfo tinha quarenta e poucos anos, era baixo e cheio de corpo, moreno, uma barba preta em ponta sob o queixo.
Vivia sempre na fazenda e tinha as maneiras um pouco rudes; mas era simpático. Apesar de ser nosso tio, nunca freqüentou muito nossa casa porque vivia na fazenda; creio que a primeira vez que ele viu Francisca Miquelina foi no casamento de Maria Letícia.
No dia do casamento a casa ficou novamente cheia de hóspedes vindos das fazendas e das chácaras; novamente as mucamas correram de um lado para outro a fim de servir os amos, e papai deu carta de alforria para mais três escravos. À noite, depois da cerimônia, dançaram; os salões enfeitados com flores e avencas, estavam iluminados feericamente; as mesas regorgitavam de bebidas e doces de todas as qualidades.
Francisca Miquelina abriu o baile dançando com Rodolfo uma valsa de Strauss; estava com um vestido de brocado branco, parecido com o de Maria Letícia e havia flores de laranjeira sobre o véu, sobre o corpinho do vestido e no ramo que levava na mão. Muito pálida e silenciosa, deu o braço ao marido e seus pés delicados deslizaram pelo salão aos primeiros compassos da valsa. Desde a festa do noivado, nunca mais se lamentou; e nem chorou à hora do casamento. Conservou a cabeça firme e erguida; estava muito bonita, apesar do semblante triste.
Organizaram depois a quadrilha dos casados, marcada desta vez por papai; em seguida, dançaram o lanceiros, polcas e valsas. À meia-noite, os noivos tomaram a carruagem e foram para a casa dos pais de Rodolfo, de onde seguiriam para a fazenda no dia seguinte.
Um mês depois recebemos a primeira carta de Francisca Miquelina; muito simples e indiferente, dizia que tudo ia bem e não contava nada da fazenda onde residia. Como sempre teve um temperamento retraído e triste, ninguém estranhou.
Em agosto, Maria Letícia teve um filho; fazia muito frio e as mucamas traziam bacias cheias de brasas para aquecer o quarto. Estava em casa de mamãe; durante a noite ninguém pôde dormir. Todas as crianças foram levadas para a casa de Leopoldina. Na cozinha, as escravas passaram a noite rezando; Mamã Zabel pediu um pouco de água benta aos frades da igreja de São Francisco e fez uma simpatia. Modesta foi colher um galho de alecrim à meia-noite e fez uma oração; queimou o galho no fogão. Depois, chegou à porta da cozinha e olhou o céu três vezes, o pescoço bem esticado; voltou da porta sem olhar para os lados até o fogão, onde sapecou o alecrim outra vez, rezando com os olhos fechados. Então, sempre sem falar e sem olhar para ninguém, levou o galho e o colocou disfarçadamente sob o travesseiro de Maria Letícia, para espantar os espíritos das trevas.
No quarto, onde o frio procurava penetrar por todos os vãos das portas, o Dr. Maranhão ora sentava-se numa cadeira de balanço e olhava as brasas que se retorciam na bacia, ora levantava-se e ia ao quarto vizinho, pra fumar um cigarro de palha. Duas escravas estavam ao lado da cama infundindo coragem a Maria Letícia; Leopoldina e nossas cunhadas iam e vinham, desassossegadas, torcendo as mãos inúteis, enquanto mamãe, ajoelhada no oratório do quarto, deslizava dezenas de vezes o rosário entre os dedos trêmulos.
Fernão, que ia e vinha da chácara diariamente, foi chamado às dez horas da noite; montou o cavalo e partiu a galope desenfreado. Em casa, não teve sossego; seu temperamento impulsivo expandia-se de todas as maneiras e por qualquer motivo; dava ordens aos gritos, ia e voltava do quarto de Maria Letícia, ficava dez minutos com papai no escritório e ia conversar com o médico, fumando cigarro sobre cigarro. Batia as portas, pisava com força no chão, bebia cálices de vinho do Porto, tão inquieto e nervoso que a própria Maria Letícia lhe pediu que se acalmasse.
Só de manhã, às seis horas, nasceu Antônio Fernão; todos ficamos aliviados e a vida retomou os hábitos costumeiros, com mais um ser a fazer parte da família. À tarde, os filhos de Leopoldina, de Aninhas e o Bonifacinho entraram no quarto para ver a criança trazida pelos anjos; um cheiro de alfazema queimada enchia o ambiente e os meninos levantaram os narizinhos para o ar aspirando a fumaça que se evolava de um prato no chão. Olharam um tempo para o berço onde a criança estava deitada entre fitas e rendas; examinaram, falaram entre si, debruçaram-se para vê-la melhor, afinal, Fortunato perguntou:
— Onde está o anjo?
Respondi:
— O anjo já foi embora; ele traz a criancinha, deixa em casa da gente e vai voando outra vez para o céu.
— E ninguém vê?
— Não.
— E por que ninguém vê?
— Porque ele vem sempre à noite e todos estão dormindo.
— Eu queria estar aqui para ver o anjo; por que Bonifacinho não ficou para ver?
Bonifacinho respondeu levantando os ombros:
— Me mandaram dormir na sua casa, não sei por que.
Continuaram a espiar a criança; de súbito Bonifacinho disse:
— Eu sou tio dele.
E apontou a criancinha.
— Mentira, disse César, o filho de Aninhas.
— Sou sim. Pergunte pra mana Rosa.
— Bonifacinho é tio dele, assim como é seu tio também. Fortunato e César olharam o tio com um olhar de pouco caso e fizeram um trejeito de mofa. Nesse instante, entraram no quarto, acompanhadas de mamãe, as nossas duas irmãs mais moças: Adelaide e Cristina.
Rodearam o berço fazendo exclamações, uma queria ver os olhos, outra queria ver os pés; depois ficaram em silêncio olhando. Fortunato apontou a criança:
— Ele tem pestana.
Começamos a rir e Cristina explicou:
— Naturalmente que tem Fortunato. Nós também não temos?
Bonifacinho perguntou a Adelaide:
— Você e Cristina viram o anjo?
— Não.
Nenhuma havia visto porque tinham ido dormir em casa de Leopoldina. Fortunato, que era o mais curioso, perguntou:
— Ele é forte?
Adelaide respondeu:
— Quem? O anjo? É forte sim, pois pode carregar uma criança. Não viu a figura?
César disse logo:
— Eu já vi; ele carrega a criança nos braços, dentro de um pedaço de nuvem.
— Eu também já vi, afirmou Fortunato.
De repente, Cristina debruçou-se mais, dizendo:
— Ele agora abriu a mão. Olhem, ele está abrindo a mão.
Debruçamos todos e ela continuou:
— Eu vou ter uma criança porque já pedi para o anjo me trazer uma. No Natal.
Houve uma troca de olhares e Bonifacinho riu, caçoando:
— Ela é boba, pensa que pode ter criança quando quiser. Precisa casar, não precisa, mana Rosa?
Mamãe olhou-os, assustada. Eu disse:
— Precisa, precisa. Vamos embora; a criancinha precisa dormir.
— Mas ela está dormindo...
— Mas com esse barulho pode acordar. Vamos.
Aninhas e Leopoldina riram baixinho; deixamos o quarto e Bonifacinho repetiu, orgulhoso:
— Não disse que precisa casar para ter criança? Não disse?
No momento de sair, os narizinhos espetados no ar. Cristina perguntou:
— Que cheiro gostoso é este?
— Alfazema.
No corredor, disse César:
— Decerto o anjo, também traz alfazema. Só sinto esse cheiro quando tem criança nova em casa. Será que traz?
Ninguém respondeu. Mais tarde, entraram nossos três irmãos solteiros: Luís, Vicente e Lourenço. Falaram com Maria Letícia, viram a criança e saíram. Assim, Antônio Fernão passou seu primeiro dia de vida.
Um mês depois, voltamos para a chácara da Penha; acompanhei Maria Letícia para auxiliá-la a lidar com a criança. O menino ia muito bem; Modesta e eu tratávamos dele enquanto Maria Letícia descansava.
Nunca mais nos lembramos da vizinha. Todas as manhãs, Maria Letícia e eu levávamos o menino para passear na chácara. À tarde, Maria Letícia tocava piano ou acompanhava o marido nos serviços da moagem, enquanto eu ficava com a criança. Fernão havia mandado fazer uma grande reforma na casa, durante o tempo em que Maria Letícia esteve em casa de papai. Aumentou o salão, comprou mobílias novas, cortinas e estatuetas de Sèvres.
Então, nessa época, justamente em outubro, veio uma grata notícia aos corações de Fernão e Maria Letícia; com a morte do pai, Fernão, como o filho mais velho, herdou o título de Visconde de Santarém, honra concedida pelo Imperador ao velho Seixas em retribuição às grandes doações feitas por ele à cidade do Rio de Janeiro. O Correio Paulistano dedicou quase uma página à família Seixas Albuquerque, dizendo que o Dr. Fernão merecia muito dignamente esse nobre título. Cartas de felicitações começaram a chegar do Rio de Janeiro e de outras cidades; Maria Letícia e Fernão, ainda um pouco atordoados com a notícia, resolveram dar um grande baile para comemorar. Tio António, quando soube, veio do Rio de Janeiro cumprimentar a petite Marie e trouxe-lhe de presente um leque tão bonito que Maria Letícia guardou a vida inteira: as varetas eram de marfim trabalhado, e o leque de rendas de Bretanha.
Começaram logo os preparativos para a festa; nossos vestidos foram encomendados no Rio de Janeiro; a orquestra também veio de lá, a mesma que tocava nos bailes da corte. Os convites foram enviados mais de um mês antes e muitas pessoas de destaque na política e na corte vieram a S. Paulo para tomar parte na festa. Tio António trabalhou para que nada fosse esquecido, e em dezembro, dia 20, os viscondes de Santarém abriram seus salões pela primeira vez. Foi uma festa magnífica.
A noite estava quente; à volta da casa, em todo o jardim, Fernão mandou colocar centenas de lanterninhas de papel suspensas nas árvores; isso dava à chácara um aspecto fora do comum. De longe, Leopoldina disse que pareciam vaga-lumes parados no espaço.
Maria Letícia sentia-se ansiosa pelo resultado da recepção; e apesar de não estar ainda acostumada com o título, no íntimo gostava. Enquanto se vestia, disse-me que se sentia orgulhosa de ser viscondessa.
Toda a ala esquerda da casa, o alpendre e a sala de jantar, foi dedicada ao buffet; havia perus recheados, galantinas, cremes, doces, refrescos de várias qualidades.
No fundo do salão, esperando os convidados, Maria Letícia e Fernão estavam de pé para receber os cumprimentos. Maria Letícia pusera um vestido branco de tule, ornado com folhas verdes, sobre o colo, o colar de brilhantes e rubis e os ombros nus muito brancos sobressaíam na brancura do vestido; mais tarde, eu a vi quando dançava, levava no braço a longa cauda, mas com muita graça.
Francisca Miquelina não pôde comparecer; havia levado uma queda na fazenda e, como estava esperando um filho, ficou doente; estava em casa de papai, muito fraca.
Leontina, nossa irmã, que residia numa fazenda no Estado do Rio e que não pôde vir para o casamento de Maria Letícia, nem de Francisca Miquelina, veio assistir a essa festa e trouxe um filho para ser batizado; tínhamos muito respeito por Leontina, talvez porque vivesse sempre longe e raras vezes nos encontrávamos.
Leopoldina chegou afogueada, depois de quase todos os convidados terem chegado; vinha um pouco nervosa. Ouvi-a cochichando para Maria Letícia; tivera que dar de mamar antes de sair.
Quando o mordomo anunciou: Comendador Menezes e D. Deolinda, eu vi Maria Letícia endireitar o busto e levantar a cabeça, linda e orgulhosa; já não era a tímida Maria Letícia, era a mui linda e nobre viscondessa, como os jornais noticiaram no dia seguinte. Olhou de frente a adversária que se aproximava de cabeça erguida; lembrei-me outra vez da frase de Modesta: "Essa muié é marcada pelo demo. Cuidado, Sinhá".
As duas se enfrentaram e quem se inclinou dessa vez foi D. Deolinda; baixou os olhos fazendo uma leve reverência e dirigiu-se para o lado, misturando-se à multidão. Às dez horas, a orquestra tocou a primeira valsa e Fernão e Maria Letícia abriram o baile; depois todos os convidados dançaram.
Mais tarde, quando estávamos no buffet, vimos de longe Fernão convidar D. Deolinda para dançar um schoitish; Maria Letícia abanava-se levemente com o leque de rendas fingindo indiferença, mas seguia sempre o par com os olhos. Corada pela dança e pela excitação, os olhos grandes e negros, D. Deolinda falava com Fernão enquanto dançavam.
Depois, organizaram a quadrilha dos lanceiros; Maria Letícia e Fernão eram vis à vis de Leontina e o marido; depois, recostada num dos reposteiros do salão, um pouco oculta pela cortina, ouvi a voz de D. Deolinda conversando com alguém. Sua voz tinha um tom autoritário:
— O senhor não está cumprindo com as regras do cavalheirismo.
Ouvi uma voz conhecida dizer:
— Como não, minha senhora? Nunca fugi a essas regras.
Levei um susto; era Fernão. Senti meu coração palpitar e procurei Maria Letícia; dançando com nosso irmão Félix, ela me fez um sinal que não entendi. Fiquei imóvel e, enquanto a orquestra tocava uma polca, ouvi outra vez a voz autoritária:
— Mas dançou apenas uma vez comigo, eu, sua vizinha e... amiga, há tanto tempo.
Senti o sangue cobrir-me o rosto; a voz de Fernão respondeu, hesitando:
— D. Deolinda, muitas vezes um homem tem que fugir às regras do cavalheirismo para... para não ser desonesto...
Senti meu coração vibrar como se a conversa fosse comigo; ouvi a risadinha triunfante de D. Deolinda e quase no mesmo instante meu irmão Vicente veio convidar-me para dançar. Procurei segui-los de longe e vi-os dançando juntos outra vez. Que pretendia aquela diabólica mulher? Oh! Ela era abominável. Dançava com Fernão, o rosto alegre, rindo-se muito. Percebi que o resto da festa foi um tormento para Maria Letícia; vigiava-os quanto podia e nem pôde gozar a brilhante reunião. Quando todos estavam distraídos, chegou-se a mim e perguntou o que D. Deolinda e Fernão tinham conversado ali perto da porta. Respondi que nem ouvira bem, mas não podia deixar de ser cousas referentes ao baile. Maria Letícia, porém, tinha sobre mim um incalculável poder; começou a dizer que, em vez de auxiliá-la, eu não me importava com a felicidade dela e outras cousas nesse teor.
Então contei tudo o que ouvira; ficou muito branca e, batendo o leque na mão esquerda, disse que eu devia ter ouvido mais; só o que ouvira não era suficiente. E que eu era uma boba. Percebi que estava atordoada de raiva e de ciúme; sempre que estava com raiva, chamava-me de boba. Aconselhei-a a não se importar com isso, mas percebi que seu orgulho estava ferido e isso a fazia sofrer. Nem acreditou quando os convidados saíram e chegou o fim do baile. Depois que todos se retiraram, perguntou a Fernão:
— Tudo estava bem, mas achei nossa vizinha D. Deolinda um pouco contrariada. Você não reparou?
Entre dois bocejos, ele respondeu:
— Eu não disse uma vez que ela é meio aloucada? Mas é boa pessoa.
Ela não respondeu e acompanhou-me ao quarto, pretextando beijar o filho; lá me disse, contrariada:
— Você jura que eles não disseram mais nada? Só o que me contou?
— Juro.
— Está bem. Só o que estou pensando é o que a Baronesa de Sobral e D. Escolástica vão falar desta festa.
— Vão falar que a festa foi muito bonita e você estava uma beleza.
Ela olhou-me irônica:
— Pensa que sou boba? Vão falar de D. Deolinda e de Fernão.
— Tenha calma, Maria Letícia. Não se incomode com o que vão falar. Ninguém vai falar nada.
— Eu já disse que você é uma boba. E depois não conhece os homens, não se casou.
Saiu fechando a porta e nem me disse boa noite. Percebi que a dúvida, mais uma vez, lhe picava o coração.

INICIARAM-SE os preparativos para a ida a Santarém: a fazenda Santarém e todas as fazendas vizinhas estavam organizando festas da duração de uma semana, em homenagem aos viscondes. De S. Paulo, além deles, iriam nossos irmãos, esposas e filhos, Leopoldina e o marido; tio António, eu e os irmãos solteiros. Uma verdadeira caravana se poria em marcha.
Na véspera da partida, Modesta contou-nos em segredo as ruindades de D. Deolinda para com os escravos. Judiara tanto de uma negra da casa, que um tio de D. Deolinda comprara a escrava de dó, e perdera um conto de réis porque a negra não durara muito. Morrera em conseqüência das judiações que sofreu.
Certa noite, acordei às onze horas com um barulho esquisito vindo da casa vizinha; de quinze em quinze minutos, ouvia-se alguém atirar água no chão do terreiro; levantei-me e espiei pela rótula. Vi então Elisa, uma negrinha de D. Deolinda, ir e vir com um balde de água que trazia do córrego, a uma certa distância: como não tinha o que fazer com a água, jogava-a no chão e esse era o ruído que eu ouvia. A ordem era trazer água e jogar fora até D. Deolinda ter sono, pois a mulher sofria de insônia.
Enquanto eu dobrava as roupinhas de Antônio Fernão num grande baú de folha para a viagem, Modesta contava os casos da vizinha. Em seguida, dobramos os vestidos de Maria Letícia: o branco, o chamalote, o de brocatel. Modesta perguntava:
— Mas por que será que ela é tão ruim, Sinhá? Será que cobra picou ela?
— D. Deolinda? Não sei, Modesta. Ouvi dizer que o pai dela tinha um quartinho bem estreito onde punha os escravos faltosos; eles ficavam de pé no quartinho sem se poder mexer; um dia, ao abrir a porta do tal quarto, um escravo caiu morto diante dele.
— Cruz credo! Não sei por que há gente marvada neste mundo de Deus.
E Modesta parou no meio do quarto, pensativa. Avisei-a:
— Também não sei. Vamos acabar de arrumar as roupas; lembre-se de que seguiremos amanhã de madrugada.
—- Mas Deus castiga ela, ou os fio dela. O fio home, o Casimiro, é bom, mas as fia muié já são mardosa qui nem ela. O dia inteiro tão gritando c'as mucama.
Partimos no dia seguinte, às quatro horas da manhã; à frente, os cavaleiros; em seguida, os banguês com as crianças pequenas e as mucamas, acompanhados dos escravos de confiança que iam a pé, dirigindo as mulas; atrás de tudo, uma pequena tropa com malas e baús. Levamos cestas com virado para comer no caminho.
Nas paradas, geralmente perto de algum rio, em lugar sombreado, esperávamos os banguês com as criancinhas; fazíamos então uma parada, comíamos e descansávamos. Maria Letícia, Leopoldina e Eponina estavam amamentando, e em vez de repousar, cuidavam dos filhos menores, auxiliadas por mim. Depois, partíamos de novo até à próxima pousada, onde dormíamos; e na madrugada seguinte, continuávamos a viagem. Nos primeiros dias, o tempo estava bom, o céu muito azul e firme, as noites claras e estreladas; na alegria da viagem, brincávamos uns com os outros, alguns contavam fatos e anedotas.
As irmãs mais moças paravam para colher flores no caminho, Lourenço e Luís cantavam, enquanto Augusto declamava versos.
Depois de alguns dias, o céu enfarruscou-se, e choveu; os cavalos enterravam as patas nas poças do caminho e os nossos roupões colavam-se nos corpos. Quando chegávamos no pouso, molhados e com frio, tomávamos vinho do Porto que Fernão levava sempre em viagem; enxugávamo-nos como podíamos, secando as roupas em fogueiras improvisadas. Com a mudança do tempo, a nossa alegria decresceu; os cantos cessaram, o riso desapareceu. Preocupada com as crianças, comecei a viajar ao lado dos banguês e meu cavalo enterrava as patas na enxurrada; a lama espirrava para os lados. Nas subidas, os animais escorregavam e lutavam contra a enxurrada; algumas crianças começavam a chorar. Então parávamos um pouco e esperávamos que a chuva diminuísse, mas ela caía com intensidade e às vezes batia tão fortemente contra nós que precisávamos defender nossos rostos com os braços e virar o cavalo de lado. Tio António, sempre à frente, gritava de vez em quando na sua voz forte que repercutia através da chuva:
— Como vai o moral das tropas?
Ríamos apesar de tudo; Leopoldina chamava tio António de general.
Continuamos a caminhada; a chuva enchia os caminhos e o vento sacudia as árvores sobre nossas cabeças; assobiava com força por entre os galhos como em desafio. Flores e folhas corriam juntas na enxurrada, até que afinal, um dia, do alto da serra avistamos Santarém. A descida foi rápida, na pressa de chegar; a chuva foi amainando e a tarde tornou-se clara e fresca. Os pássaros da mata começaram a modular cantos estranhos como chamando uns aos outros, para festejar a bonança depois da tempestade. Os da fazenda tiveram notícia da nossa aproximação pelo escravo posto de sentinela. A banda de música, formada pelos negros, uniformizados de brim pardo, foi esperar-nos pouco acima do ribeirão. Quando viram Fernão e Maria Letícia à frente da comitiva, um deles adiantou-se e gritou:
— Viva Sinhô Visconde e Sinhá Viscondessa de Santarém!
Os outros responderam, e a banda iniciou uma marcha alegre que todos ouvimos parados no declive que, das margens do ribeirão, ia até o jardim da casa grande. Fernão agradeceu tirando o largo chapéu e a viagem terminou com o acompanhamento da banda. Os escravos estavam perfilados no terreiro do lado; dois negros angola e um moleque cafuso ajudaram-nos a descer dos cavalos e, como da outra vez, um só grito se elevou de todas as gargantas:
— Louvado seja Nosso Sinhô Jesus Cristo!
Os donos de Santarém, os parentes que esperavam Fernão, nós e os escravos que vieram conosco respondemos em uníssono. As palavras ecoaram pelo espaço enquanto o sino da fazenda repicava e a banda começava outro número.
Foram aqueles os dias mais festivos que Santarém viveu em toda sua vida; os irmãos de Fernão organizaram os festejos que duraram uma semana. Uma orquestra do Rio de Janeiro tocava para as danças à noite; houve cavalhadas, fogos de artifício, almoços nas fazendas vizinhas e um grande baile de encerramento com a presença de pessoas vindas de toda a redondeza. Os escravos ganharam roupas novas, comida especial e tiveram licença para organizar batuques e jogos.
No terceiro dia, houve uma caçada de veados; desde manhã, bem cedo, o pátio da fazenda estava cheio de movimento e de vida. Leopoldina, Eponina e Adelaide resolveram ir assistir à caçada e pediram para que eu as acompanhasse. Nossos cavalos estavam prontos esperando; cachorros veadeiros, assanhados, iam e vinham entre as patas dos animais já encilhados e amarrados aos moirões das cercas. Eles escavavam o chão com impaciência e estremeciam quando as moscas os importunavam. Negros corriam, aos gritos, ciosos de suas obrigações; e o dia, que amanhecera nublado, recuperou aos poucos seu esplendor, enquanto a neblina desaparecia lá pelos lados do brejo.
Às seis horas, os homens desceram a escadinha do alpendre, fazendo tinir as esporas e, entre exclamações e risadas, montaram. Partimos. Tomásio tocou a corneta três vezes para chamar os cães e estes, com impacientes latidos, foram reunidos e seguros pelos negros que seguiam adiante.
Atravessamos a mata e o grande arrozal e fomos sair num campo imenso que confinava com o rio de um lado e a mata do outro; nesse lugar soltaram os cães. Muito tempo não se passou e houve o alarme; nós, atocaiados entre o campo e a capoeira, ouvimos de longe a cachorrada acuar. Leopoldina, nervosa, aprontou a carabina, pois atirava muito bem. Excitado, nosso irmão Augusto avisou os melhores caçadores e cada um ficou no seu posto, atento. Os latidos dos cães em perseguição ao animal aproximavam-se cada vez mais; era o momento emocionante da caçada. Com as carabinas preparadas, os caçadores permaneceram em expectativa, atrás da capoeira, enquanto os cavalos eram levados para mais longe pelos escravos. Continuamos atentos, à espreita, percebendo pelos latidos dos cães que o veado tomou o lado do rio; os homens espalhados daquele lado não puderam atirar e o animal se distanciou de novo. Ansiosos, esperamos mais; havia momentos em que o som dos latidos parecia desaparecer à distância, de repente tornava-se forte outra vez, como se o vento se divertisse em enganar-nos; ora parecia vir do fundo da terra, ora pareciam gritos de angústia. De súbito, Fernão e alguns outros atravessaram galopando o descampado e dirigiram-se para o lado do rio; Augusto e Luís resolveram montar outra vez e segui-los, deixando os outros à espera. Fui atrás deles, apesar dos gritos de Leopoldina, dizendo para esperar. Quando chegamos a uma das margens, vimos um belo animal, um veado galheiro, nadando vigorosamente, no lugar onde o rio fazia uma larga curva, e as cabeças dos cães desesperados, a nadar em sua perseguição.
Tomásio e outro escravo já haviam cruzado o rio mais adiante, num lugar estreito, para cercar o animal na margem oposta; nas águas escuras, sobressaíam as cabeças dos que nadavam afoitamente, na ânsia de alcançar a margem. Quando o galheiro, já cansado, tentou alcançar a outra borda, foi tocado pelos negros e teve de voltar novamente ao rio, perseguido cada vez mais perto pelos cães.
O veado nadou ainda pelo meio do rio tentando atingir de novo a outra margem, mais acima, pressentindo perigo de morte por todos os lados, sem saber onde encontrar refúgio. Os caçadores, desmontados, esperavam com as carabinas apontadas; e quando o pobre animal, num arranco supremo, alcançou a margem e subiu ao barranco, ansioso por entrar na mata, soou um tiro que o eco repetiu longe no silêncio grandioso; depois outro e outro, e o galheiro, dando um pulo, manteve-se um segundo de pé nas patas traseiras, depois tombou pesadamente, rolando pelo barranco, a bonita cabeça roçando as águas.
Os cachorros rodearam-no no mesmo instante, com as línguas vermelhas fora da boca; sacudindo-se da água, farejavam o animal. Fernão e os amigos foram-se aproximando, e deram tiros para o ar, manifestando assim o regozijo pela vitória. Não me aproximei para ver de perto; Tomásio tocou novamente a corneta e partimos de novo em busca de outra caça. Só então Leopoldina, Adelaide e outros caçadores foram chegando; um dos escravos encarregou-se de levar o veado morto na garupa do cavalo.
Só à tarde voltamos à fazenda; os caçadores vinham jubilosos com três veados mortos; atrás dos nossos cavalos, trotavam os cães, também cansados e alguns estropiados, as patas feridas, sangrando. No pátio da fazenda, os que tinham ficado em casa vieram assistir à chegada, entre risos e gritos de alegria. Os três animais mortos foram enfileirados no chão, diante de Maria Letícia, rodeados pela cachorrada triunfante. Fernão foi logo dizendo que a cabeça do galheiro ficaria muito bem no escritório, sobre a porta da entrada.
Tio Antônio não gostava de caçadas; com as mãos nos bolsos, entrou de chofre no pátio, olhou tudo com um ar reprovador, de desprezo, e exclamou:
— Então os bárbaros já voltaram?
E com a ponta do pé empurrou a cabeça de um dos animais; o focinho escuro voltou-se para cima e os olhos vidrados pareciam fixar sinistramente o céu. Tio Antônio voltou o rosto, com náusea e pena. O solo emanava cheiro de sangue misturado com poeira e suor de homens e animais.
Por toda a extensão do pátio, os escravos corriam desencilhando os cavalos enquanto os cães, deitados à volta, respiravam ofegantes, as línguas pendentes, a olhar os cavalos cobertos de espuma.
Os homens entravam e saíam comentando o êxito da caçada, tinindo as esporas e levantando pó a cada passo; com os chicotinhos batiam nas botas altas, dando estalos. Subimos a escadinha, cansadas, arrastando nossas saias de montaria. As caças abatidas foram levadas para fora a fim de serem retalhadas no dia seguinte de madrugada. O sol sumiu rapidamente e tudo silenciou lá fora, homens e animais desapareceram do pátio; as senzalas aquietaram-se; só se ouviam, vindos do brejo, os gritos de saracuras desnorteadas. Dentro da casa iluminada, havia sons de música, de tinir de copos, de risadas entrecortadas, de vozes alegres; e no escuro, lá fora, alguns escravos assistiam de longe à ceia dos senhores. Cheguei-me a uma das janelas para ver; os girassóis que se enfileiravam em volta do pátio, acompanhando a cerca, estavam sozinhos, as grandes cabeças redondas inclinadas para o chão, como se estivessem saudosos da luz do sol; e tinham uma aparência tão desconsolada que dava pena vê-los abandonados ao silêncio e ao negror da noite.
Passou-se a semana de festas. Os convidados partiram em grupos e Santarém ficou tranqüila de novo; nossos irmãos voltaram a S. Paulo, os irmãos de Fernão foram para Valença. Maria Letícia e Fernão resolveram passar na fazenda o tempo da colheita e pediram-me para ficar com eles. E assim ficamos, juntamente com o menino, na tranqüila propriedade.
O tempo da colheita foi passando devagar; em junho, festejamos o padroeiro da fazenda, São João. Todos os anos, os Seixas Albuquerque davam uma festa nesse dia e a negrada delirava de alegria, desde um mês antes. No dia determinado, logo ao anoitecer, o pátio, o terreiro do lado e o jardim da frente da casa encheram-se de troles e cavalos dos vizinhos e amigos que chegaram para os festejos. Num dos terreiros, foram armadas duas enormes caieiras e, antes que o sol sumisse por trás dos cafezais, levantaram com solenidade o mastro de S. João; estava todo enfeitado de flores e palmas. Rojões subiram para o ar e a banda da fazenda, formada no pátio, tocou com animação. Logo mais, os balões de todas as cores foram preparados para serem soltos; Fernão e os irmãos seguravam com delicadeza o papel de seda, enquanto os feitores umedeciam as mechas com querosene; à volta, nós assistíamos e mais ao longe, espalhados no terreiro, os escravos olhavam, extasiados. Largaram o primeiro balão; ele subiu hesitante, como se ignorasse o rumo a tomar, subiu mais, entortou para um lado, depois para outro, entre a gritaria da assistência, depois firmou e subiu direito como se tivesse afinal acertado o caminho. Largaram o segundo; era verde e preto, como um grande sapo; a uma certa altura, enveredou para o lado do brejo e começou a cair, lenta, lentamente, num desânimo indescritível, sem coragem de prosseguir viagem tão longa.
A molecada correu aos gritos para o lado do brejo, na tentativa de salvar o balão, mas ele queimou-se em poucos instantes, antes de alcançar o solo. E outros subiram depois e desapareceram no alto, como vaga-lumes perdidos; alguns incendiaram-se antes de subir, outros tomaram rumos ignorados e ninguém mais os viu, tal qual vidas humanas.
As caieiras foram acesas e o fogo elevou-se em poucos minutos, estalando no espaço; todos os escravos moços que queriam tomar parte nos jogos ficaram esperando de um lado, e, sobre os bancos do alpendre, os prêmios estavam enfileirados; camisas, serrotes, cachimbos, cintos, canivetes, martelos. Já era noite quando começaram os jogos, à luz das fogueiras; primeiro foi o pau de sebo. Quem subisse e conseguisse alcançar o alto do pau ganharia os prêmios que lá estavam amarrados num saco: uma camisa, um pacote de doces e uma moeda; a competição ia ser renhida porque os prêmios eram cobiçados. O primeiro que se apresentou para subir no pau foi Juvêncio, um moleque esperto e ágil; entre palmas de animação, ele cuspiu nas mãos, esfregou com força os pés nus na terra solta, olhou para cima para ver até onde teria que subir e resolutamente se abraçou ao pau de sebo. Começou então a luta; escorregava porque o sebo não o deixava firmar-se e ele tornava a tentar, numa pertinácia titânica. Durante quinze minutos, Juvêncio tentou incansavelmente, depois deu-se por vencido, arquejante e suarento. Apresentou-se o moleque Ricardo, filho da cozinheira Gabriela; três vezes Ricardo escorregou até o chão e três vezes quase conseguiu chegar ao fim. Vieram outros, resolutos e animados; esfregavam os pés na areia que traziam de propósito para isso, cuspiam nas mãos, tentavam e desistiam. Finalmente, o moleque Juvêncio tentou de novo e chegou até o topo do pau de sebo, num esforço inaudito; o feito foi coroado com palmas, música e os prêmios que tirou, triunfante, do alto do pau.
O quentão passou em canecas de folha, entre os quinhentos escravos que à volta das fogueiras assistiam aos jogos. Chegou então o momento de pular a fogueira; os escravos ficaram em fila, dirigidos pelo próprio Fernão; cada um deles com uma longa vara na mão; aquele que saltasse mais alto ou uma distância maior ganharia os melhores prêmios, que Maria Letícia distribuiria. Os que assistiam riam e aconselhavam os saltadores como deviam fazer, enquanto os negros velhos alimentavam a fogueira e davam canjica, batata-doce e bebida para todos. Os moleques corriam com as varas nas mãos, firmavam-nas no centro da caieira e, num pulo alto, caíam de pé do outro lado e continuavam a correr um pouco mais no impulso do salto; via-se o vulto passar por cima das chamas, entre a fumaça e as faíscas: pareciam demônios. Gritos aplaudiam e acompanhavam a façanha; e logo atrás vinha outro, e outro, em saltos cada vez mais altos.
Em seguida, Maria Letícia desceu a escada do alpendre, acompanhada por mim e por Modesta que levava os prêmios numa bandeja; e os vencedores foram premiados galhardamente pela dona de Santarém, entre rojões e música. Mais tarde, Fernão organizou o jogo da corda; era um jogo novo que um irmão de Fernão havia aprendido na Inglaterra. Colocou dez escravos de um lado e dez do outro e deu ordem para que puxassem, cada um para seu lado. Os possantes negros retesavam os músculos no esforço despendido e a assistência delirava de entusiasmo; minutos depois de iniciada a luta, um grupo conseguiu dominar o outro e palmas estrugiram de todos os lados; novamente a banda de música tocou marchas alegres.
A melhor surpresa foram os bois que Fernão mandou matar para que os escravos comessem carne à vontade nesse dia; e os pedaços sangrentos saíam dos braseiros e eram distribuídos entre eles, que comiam com as mãos, avidamente; à luz das labaredas, podia-se ver a gordura amarela escorrer-lhes entre os dedos. Foi a festa mais bonita que houve em Santarém desde sua fundação; não tinham lembranças de terem visto nada igual, nem ouvido contar pelos antecessores.
Os jogos terminaram. Enquanto reuníamos os convidados para a ceia no alpendre, entre lanternas de papel colorido, a banda tocou, depois dispersou-se e começou o batuque. As fogueiras não morriam porque os negros velhos estavam alertas, alimentando-as; o quentão passava e tornava a passar; algumas cabeças cansadas foram tombando para um lado, sonolentas, enquanto mais além o batuque avançava pela madrugada: Cai sereno, cai sereno, cai na morena, cai sereno.
Durante a noite toda cantaram só isso, ininterruptamente; os convidados aos poucos foram-se retirando; os troles e os cavalos saíram trotando pela estrada da serra, outros pela estrada do cafezal; recolhemo-nos aos aposentos e o batuque continuou na mesma toada cadenciada e monótona, o mesmo bater de tambor e de pés, e o mesmo bater de corpos.
Quando o sol surgiu, brilhou sobre fogueiras mortas, sobre corpos de negros e negras estendidos no terreiro, dormindo profundamente, alguns de costas, bocas abertas para o espaço e um fio de baba escorrendo-lhes pelos cantos da boca. Quando o sol esquentou mais, eles foram acordando, estremunhados, e sorrateiramente se dirigiram para as senzalas a fim de continuarem o sono interrompido, pois Sinhô visconde dera feriado esse dia.
Mais tarde, cousa alguma restava da festa; tudo foi varrido e limpo, nenhum vestígio ficou. Olhei o mastro; lá bem no alto, apenas via a imagem de S. João com a cabeça muito crespa; parecia abraçar carinhosamente o carneirinho; as flores já estavam murchas e caíam, desoladas, ao longo do mastro. E o vento brincava com S. João; obrigava-o a olhar para um lado e para outro como a querer mostrar-lhe as terras de Santarém, e S. João obedecia, risonho, enquanto o mastro rangia de leve, como se rezasse.
Voltamos a S. Paulo depois da colheita. Na chácara da Penha, tudo ia bem; a plantação de cana e o engenho estavam sendo dirigidos por Joaquim, o feitor de confiança.
Foi nessa ocasião que nossa tia, a irmã mais moça de mamãe, morreu de uma moléstia desconhecida; e Carola, a priminha aleijada, foi morar em nossa casa, assim como a mucama que tratava dela.
Se as outras crianças não brincavam com ela, reclamava aos berros, dizendo que ninguém a queria porque era órfã; era bastante inteligente para saber lamentar-se; se brincava, ela as maltratava, ou se queixava de que elas lhe batiam. Mamãe precisava de muita paciência e muita calma para solucionar as questões e Carola continuava a espalhar dissabores e lamentações à sua volta. Mas, em memória de nossa tia, mamãe não se queixava, e quando tio António ou papai se revoltavam, ela pedia que tivessem paciência, que com a idade a menina se tornaria mais dócil, pois era uma pobre doente.
Mas Carola fora criada com mimos exagerados; era malcriada e exigente; batia o pezinho quando a contrariavam e reclamava contra tudo, sempre, chorando ou queixando-se. Bonifacinho não a tolerava; sempre que podia, beliscava-lhe o braço para vingar-se de todas as vezes que fora beliscado; foi preciso proibi-lo de se aproximar dela.
Tio Antônio, que costumava ler deitado na rede do alpendre, reclamava muitas vezes para mamãe:
— Como posso ler Shelley com sossego, ouvindo os berros dessa menina? S'il vous plaít, mana, mande-a embora.
Tapava os ouvidos quando a menina gritava e, muitas vezes, ia fechar-se no quarto para não a ver nem ouvir. Mas, indiferente às antipatias que irradiava e ao transtorno que causava em nossa casa, Carola continuava a brigar, a exigir, a gritar e bater o pé, o comprido nariz destacando-se no rosto sempre pálido, a corcova nas costas entre os ombros desproporcionados.
Na chácara da Penha, Maria Letícia e eu saímos um dia, a pé, para ver o serviço da moagem; o ar estava quente e o sol, abrasador; subimos a encosta do morro, lentamente, segurando as sombrinhas sobre as cabeças; de longe, avistamos a casa vizinha, o alpendre à volta e os jardins cobertos de dálias e rosas. Não víamos D. Deolinda havia muito tempo; soubéramos que estivera fora e essa ausência tranqüilizava Maria Letícia.
Foi nessa manhã que Maria Letícia me contou que ia ter outra criança no fim do ano; queria agora uma filha e até já tinha nome. Enquanto falávamos observamos duas borboletas que esvoaçavam à nossa frente; encontravam-se no ar como se se beijassem, separavam-se repentinamente, para tornar a se encontrarem mais adiante em vôos rápidos e graciosos. Sorrimos olhando as borboletas. Vimos de novo a casa vizinha.
— Felizmente, D. Deolinda e o comendador não se lembraram mais de nos convidar para jogar solo, disse Maria Letícia. Felizmente. Creio que aquela mulher está marcada pelo demo, como disse Modesta. Detesto-a.
Procurei as borboletas; haviam-se distanciado um pouquinho, mas ainda se beijavam no ar; um pássaro voou tão baixo que quase roçou minha sombrinha; pousou um momento sobre uma árvore grande para descansar, já em cima do morro, depois desapareceu no espaço.
Paramos também sob a árvore e olhamos a casa, onde as trepadeiras se enroscavam pelas paredes; Maria Letícia disse que fora construída pelo avô de Fernão, o Visconde Seixas; e a casa, apesar de velha, era confortável e estava agora muito melhor com a reforma feita por Fernão. Procuramos com os olhos Antônio Fernão e Modesta; deviam estar nos esperando no terraço da frente. Vimos, então, os barris d'água fresca enfileirados no alpendre, num lugar sombrio; diariamente os escravos traziam água do rio lá embaixo e colocavam os barris no alpendre do fundo da casa; dali, eles eram retirados e a água servia para a cozinha, para a mesa, para os banhos. Distraídas, os olhos velados por causa da claridade, ficamos olhando a casa batida de sol. Vimos, então, um vulto sair sorrateiramente da cozinha, andar com passos leves, olhar para todos os lados e aproximar-se dos barris; firmamos a vista e reconhecemos Inocência, uma das negrinhas que trabalhava na cozinha. Inocência aproximou-se do primeiro barril, tirou a tampa e cuspiu dentro. Maria Letícia revoltou-se:
— Será possível o que estou vendo, mana Rosa?
Quis correr e gritar, mas segurei-a por um braço; Inocência destampou o segundo barril e fez a mesma cousa; no terceiro, ela parou, olhou para os lados tornou a cuspir. Maria Letícia fez cara de nojo, indignada, pensando no castigo a infligir àquela escrava. Com passos rápidos, dirigimo-nos para casa. Contornamos e entramos pela frente; não encontramos ninguém; sabendo que Fernão estava nó engenho, Maria Letícia mandou chamar o feitor Joaquim. Foi então que fiz uma advertência:
— O que vai ordenar, Maria Letícia?
Ela olhou-me ainda pálida de raiva, os lábios apertados, e disse:
— Vai ver, mana Rosa. Vai ver daqui a pouco. Espere.
Quando sêo Joaquim chegou minutos depois, Maria Letícia ordenou-lhe que castigasse Inocência severamente, pois a vira cuspindo dentro dos barris; ainda revoltada, deu ordem para que toda a água fosse inutilizada e substituída.
Em seguida, subiu para ver o filhinho; estava dormindo nos braços de Modesta, gordo e corado. Contou o que vira e Modesta revoltou-se:
— Essa Inocência é do diabo, Sinhá. Ela não presta; já vi ela fazendo judiação pra pobre da cozinheira; pôs tanto sal na comida da pobre que ela não pôde jantá. Com uma sova bem dada, ela indireita. Uma sova de tirá couro.
Maria Letícia sorriu:
— Joaquim sabe o. que faz; decerto o castigo vai ser forte. E não a deixe mais trabalhar na cozinha; vou pô-la no terreiro.
— Uma boa sova cura aquele demônio, Sinhá. Vai vê só.
Maria Letícia tomou a criança nos braços e beijou-a com carinho; quando a vi mais calma, fiz outra advertência:
— Maria Letícia, não é essa Inocência que sofre de ataques?
— É.
— Então você não devia mandar dar a sova; devia dar outro castigo. Creio que, se a mandasse para Santarém, estaria bem castigada.
Maria Letícia olhou-me com uma expressão aborrecida, admirada por ver-me intrometer em seus próprios assuntos:
— Ora, mana Rosa, eu sei o que estou fazendo. Sei melhor que você, que nunca dirigiu escravos.
Tentei ainda aconselhar Maria Letícia:
— Nunca se deve castigar uma pessoa doente. Chame sêo Joaquim e suspenda o castigo. Ainda é tempo.
Ela riu-se ironicamente:
— Mana Rosa, você ainda não me conhece? Não sabe que não volto atrás nas minhas resoluções? Quando decido, está decidido.
E levantou-se para pôr Antônio Fernão no berço. Deixei o quarto e fui para o meu, onde fiquei à janela, vendo os escravos que vinham subindo o morro, cansados do trabalho. Pensei que o que perdia Maria Letícia era o orgulho; era tão orgulhosa que preferia sofrer a mudar de resolução. E o orgulho é pecado.
Ao jantar, ela contou a Fernão o que acontecera e a ordem dada; Fernão ficou pensativo e disse depois que, em vez de mandar bater na escrava, antes tivesse castigado de outra maneira, enviando-a para Santarém. As escravas moças preferiam a chácara e só o fato de mandá-las de volta à fazenda seria um castigo suficiente. Maria Letícia nada replicou e baixou a cabeça sobre o prato. Não contou que eu tinha aconselhado a fazer o mesmo. Apenas disse:
— Agora é tarde; já dei a ordem e a ordem que se cumpra.
Mas notei que não jantou quase, passou o resto da tarde tocando piano enquanto eu bordava e Fernão trabalhava no escritório. À noite, quando subimos para nossos quartos, tive ímpetos de dizer a Maria Letícia que mandasse saber notícias da escrava, mas entrei para o meu quarto e nada disse. Não dormi bem, mais de uma vez acordei ouvindo gritos; às vezes pareciam gemidos que me deixavam impressionada. Prendia a respiração para ouvir melhor e não ouvia mais nada, apenas o silêncio, o terrível silêncio dos lugares ermos.
De madrugada, quando os primeiros raios de sol começaram a clarear o quarto, ouvi perfeitamente uns gritos que pareciam vir das senzalas; não havia dúvida, alguém gritara. Levantei-me assustada e abri uma das janelas que dava para o quintal; fiquei espiando por trás da cortina; os gritos haviam cessado de repente, apenas vi os escravos dirigirem-se em fila para o engenho. Com calças e camisas brancas de algodão listado, lá iam eles descendo o morro, cabisbaixos; notei qualquer cousa diferente essa manhã, parece que cochichavam uns com outros e olhavam para trás como se me adivinhassem por detrás da cortina. O que seria? Resolvi acordar Modesta e, quando fui para o quarto vizinho, vi Maria Letícia de pé, um ar aflito. Perguntei o que havia e ela me disse que não dormira à noite e agora mandara Modesta fazer um chá, pois estava com enjôo de estômago. Estava de roupão, sentada perto da janela. Por que Modesta demorava tanto? Olhei também pela janela e vi o céu muito azul e montinhos de nuvens que mais pareciam brancos novelos de lã; os novelos passavam depressa como se corressem uns atrás dos outros. Para onde iriam? Bandos de pássaros voavam baixo, procurando as árvores, e as andorinhas que faziam ninho no telhado, começavam seus chilreios, inclinando as cabeças para baixo e espiando o jardim, enquanto passavam e tornavam a passar o bico entre as penas. Depois, voaram do telhado para as árvores, procurando comida para os filhotes. Maria Letícia perguntou-me, então, se eu não ouvira gritos durante a noite. Quem gritara? E por quê? Estava impaciente porque Modesta não voltava. Por que não voltava? De onde estávamos, não podíamos ver as senzalas. Maria Letícia levantou-se e ficou passeando de um lado para outro, apertando o alvo roupão contra o corpo; aproximou-se outra vez da janela e, olhando através da cortina, viu Modesta atravessar quase correndo o espaço entre a horta e a casa; Maria Letícia chamou-me com um gesto para ver também. A mucama tinha a aparência aflita, a mão no peito; estremeci, sem saber se era de frio ou de aflição; Maria Letícia sentou-se na poltrona do canto, aparentando calma.
Ouvimos finalmente os passos de Modesta que se aproximavam, apressados e leves; vi-a no vão da porta, a xícara na mão. Não disse nada e entregou a xícara a Maria Letícia; ela tomou um gole, depois outro; percebi que suas mãos tremiam. Ouvimos a voz de Modesta:
— Está mió?
— Estou melhor, obrigada.
Então Modesta falou com voz rouca, vinda do fundo do peito:
— Sinhá.
Maria Letícia e eu olhamos a mucama, interrogando-a com os olhos! Ela acrescentou:
— A Nocência morreu, Sinhá...
Maria Letícia ficou imóvel, olhando-a sem compreender; de repente, sentiu todo o sangue acumular-se no coração, pois ficou tão branca como seu roupão de flanela.
—- Morreu? perguntou. Mas de que, Modesta? Por quê?
— Morreu da sova, amanheceu morta...
— Mas não é possível, Modesta, interrompi. Maria Letícia não mandou dar tanto assim, não é possível.
Modesta olhou-me:
— Sêo Joaquim deu de chibata, Sinhá Rosa; deu tanta chibatada que matô a negrinha. Deu aqui na cintura; ela começô a uriná sangue sem pará e tava tudo uma sangueira. Eu fui vê ela agorinha mesmo. Pôs sangue pela boca também.
Maria Letícia recostou a cabeça na poltrona e cerrou os olhos; vi que estava se sentindo mal. Tomei-lhe a xícara da mão e pedi-lhe que fosse deitar-se um pouquinho e não pensasse mais no que acontecera. Ela falou:
— Então não foi imaginação. Tudo foi verdade; bem pressenti durante a noite alguma cousa, bem que ouvi gritos. Matei a negrinha.
Levantou-se e foi acordar Fernão; ele já vinha saindo do quarto e perguntou sorrindo, vendo-nos de pé:
— Que madrugada é essa?
Mas, observando nossas feições transtornadas, ficou parado no vão da porta e perguntou:
— Que há? Está se sentindo mal, Maria Letícia?
Ela hesitou antes de responder, depois disse como num gemido, apoiando os braços na cômoda:
— Fernão, que horror! Inocência morreu esta noite, dizem que de tanto apanhar. Mas eu não dei ordem para dar nela assim, só disse que a castigasse. Só isso.
Fernão olhou-a um ar resoluto:
— E ele deu de chibata, não foi?
— Parece que deu.
Fernão apertou os lábios fortemente; depois perguntou:
— Sabe o que é chibata? Sabe bem o que é? Pobre Inocência! O que ela fez, não era para morrer assim...
Maria Letícia tapou os olhos, angustiada; rodeei-lhe os ombros com meus braços e pedi-lhe que não se amofinasse; fiz um sinal a Fernão, ele compreendeu:
— Não se aflija assim, Maria Letícia. Vou ver o que houve; não fique nervosa, deve haver muito exagero nisso tudo.
E deixou o quarto, apressadamente, sem olhar para nosso lado. Ouvimos o choro da criança; dirigimo-nos para lá e quando Maria Letícia viu Antônio Fernão no berço, os braços estendidos para ela, teve um momento de fraqueza. Perguntou-me, hesitando:
— Mana Rosa, matei mesmo Inocência?
E chorou.
À hora do almoço, Fernão mostrou-se apreensivo; não lhe saía do pensamento a morte da escrava. Maria Letícia encarou-o, receosa. Ele queria saber de que forma a ordem havia sido dada; ela repetiu palavra por palavra o que dissera ao Joaquim; ele olhou-a como que incrédulo.
— Pois o Joaquim me disse que você estava furiosa e a ordem foi dada assim: "Dê uma sova bem grande nela, uma sova bem grande e bem dada, porque ela merece."
Maria Letícia revoltou-se:
— Não foi assim que eu falei, Fernão, não foi assim; pode perguntar a mana Rosa. Acredite em mim: eu falei assim, mana Rosa?
Fernão fitou-me com ar de dúvida outra vez; respondi que a ordem foi dada simplesmente e que Joaquim havia exagerado.
Maria Letícia não almoçou, empurrou o prato com um gesto nervoso e passou a mão direita várias vezes pela fronte, como fazia sempre que estava preocupada. Fernão pediu:
— Veja se se lembra bem de suas palavras; talvez tenha dito essas palavras imprudentes e não se lembre. Mana Rosa de certo não ouviu bem, procure lembrar-se você mesma.
— Juro que falei o que já repeti; por mais que eu queira, não me lembro de mais nada.
Houve um, silêncio, depois ela perguntou em voz baixa, angustiada:
— E ela morreu... Por causa disso?
— Morreu. A sova foi tremenda. Parece que o feitor tinha enlouquecido de ódio, a chibata cortou a carne da negra na altura dos rins e ela não resistiu.
Eu fechei os olhos imaginando a cena horrível; não era possível, pensei, não se morre assim facilmente. Maria Letícia insistiu:
— Mas de certo ela sofria do coração; é impossível que uma pessoa morra de uma sova... Não se recorda de que uma vez ela ficou doente e o Dr. Maranhão veio vê-la? Não se lembra do que o médico falou? Parece que ela sofria de uma lesão qualquer.
Ele interrompeu:
— Você não viu o cadáver e não pode avaliar o que é uma sova de chibata. O corpo fica muito maltratado. Já mandei chamar o Maranhão para dar o atestado de óbito. Muito desagradável tudo isto.
Bebeu um grande gole de vinho. Ela tornou a perguntar:
— E agora? Vão enterrá-la?
— Hoje; daqui a pouco. E não pensemos mais nisto. Vou mandar atrelar a caleça; vá para a cidade com mana Rosa e o menino.
Não esperou o café e saiu sem dizer mais nada. Meia hora mais tarde, chegamos à casa de papai; Maria Letícia contou tudo, lamentando-se. Papai, mamãe, tio António consolaram-na dizendo que tais fatos eram freqüentes; os feitores, uns brutos, interpretavam as ordens erradamente. Houvera casos idênticos em muitas famílias, casos de escravos morrerem por um castigo mal aplicado; ela devia procurar esquecer o incidente. Maria Letícia protestou, debilmente:
— Mas, tio Antônio, não sei como foi acontecer isso. Fernão está aborrecidíssimo; quando me lembro de que fui a culpada...
Papai consolou-a:
— Não se esqueça de que a escrava era doente; não precisa aborrecer-se tanto; a negra tinha uma lesão e você não tem culpa disso.
— Foi o que eu disse a Fernão, mas ele alegou que não, que ela morreu da sova mesmo, o corpo estava muito maltratado.
Mamãe interveio:
— Não foi você quem deu a sova, por isso não tem culpa da brutalidade do feitor.
— Mas a ordem foi dada por mim, mamãe. Ah! Meu Deus, por que não foi Fernão?
Torceu as mãos:
— A esta hora decerto está sendo enterrada; o que os outros escravos de Fernão pensarão de mim? Dirão que sou uma mulher perversa que manda surrar até matar. Que horror! Mamãe pôs as mãos sobre os ombros de Maria Letícia:
— Não se aflija assim, vamos ver sua mana Francisca Miquelina que chegou hoje da fazenda. Veio ter a criança...
Fiquei surpreendida e Maria Letícia perguntou:
— Francisca Miquelina chegou? Ainda hoje falamos nela; não foi, mana Rosa?
Acompanhamos mamãe até o quarto de Francisca Miquelina; antes de deixar a sala, ouvi a voz apreensiva de tio Antônio :
— Ça c'est terrible.
No amplo quarto que fora nosso, quando as duas ainda eram solteiras, encontramos Francisca Miquelina deitada, pálida e cansada ainda da viagem; sentou-se no leito quando nos viu e estendeu-nos a mão emagrecida; contou que estava passando bem, só um pouco abatida da viagem e esperava o filho para o próximo mês. Maria Letícia sentou-se de um lado da cama e eu sentei-me do outro, na própria cama. Começamos a conversar e mamãe deixou-nos. Contamos a Francisca Miquelina a história da escrava; os gritos que ouvimos durante a noite e o pressentimento da desgraça; Maria Letícia disse que o próprio Fernão duvidava dela, e isso era o pior... Protestamos dizendo que Fernão nunca duvidaria dela, era impossível. Francisca Miquelina sorriu com ironia e procurou consolar Maria Letícia:
— Não se importe com o que se passou e não diga que é infeliz por causa desse fato. Você não sabe o que é infelicidade, não sabe.
Maria Letícia e eu olhamos para Francisca Miquelina, muito admiradas, pois sua voz estava profundamente triste; ela cruzou os braços atrás da cabeça e continuou:
— Quando me casei, há um ano e tanto, não gostava de tio Rodolfo, mas todos diziam: "Com o casamento, tudo é diferente, acaba querendo bem ao marido, como acontece com muitos casais". Até mamãe disse isso, até Leopoldina, todos.
Eu considerava tio Rodolfo um tio bem mais velho que eu, e não podia pensar nele como marido. Casei e fomos para a fazenda. Lá é bonito, a casa é boa, há muitas plantações e muitos escravos; procurei acostumar-me de todo o jeito. Deus é testemunha de que procurei. Mas nada deu certo; nunca me acostumei nem com a fazenda, nem com cousa alguma. Logo que cheguei, notei qualquer cousa esquisita, qualquer cousa que estava no ar, todos viam, menos eu; então tratei de procurar essa cousa e achei. Todos me olhavam com cara triste, como se tivessem pena de mim e isso me deixava intrigada; mas, como eu mesma era triste, pensei que era devido à minha tristeza. Seis meses depois de casada, Rodolfo começou a levantar-se mais cedo, de madrugada; dizia que precisava ver os escravos quando entravam no serviço. Eu continuava dormindo; uma noite, ele levantou-se quando ainda estava escuro, dizendo que desconfiava que alguém roubava leite e queria descobrir o ladrão. Não sei por que não acreditei. No dia seguinte, a mesma cousa; então na terceira vez quando ele deixou o quarto, fingi dormir, mas fiquei pronta para segui-lo. Fui nas pontas dos pés e vi quando ele saiu pela porta da cozinha; no terreiro, em vez de seguir para o estábulo, onde dizia que ia, foi diretamente para o quarto de uma escrava, a Ambrosina. É uma mulata nova e bonita; fiquei sabendo tudo depois, pela cozinheira da fazenda; os irmãos mais velhos e a mãe de Rodolfo, vendo que ele não deixava a Ambrosina, trataram de arranjar um casamento e eu fui a escolhida. Mandaram a Ambrosina para outra fazenda, para ver se acabava tudo entre eles. Qual! Uns dois meses depois de casado, mandou um escravo raptar a mulata e trazê-la para nossa fazenda. Foi depois de viúvo que começou a viver com ela.
Fez uma pausa e mudou de posição:
— Fiquei quase louca de raiva. Sabe por que perdi o filho o ano passado? Pensa que eu caí dois degraus, não é?
Nada disso. Num domingo, vi quando os dois entravam no mato, atrás do pomar; disfarcei e, fingindo que estava colhendo frutas, fui atrás deles, mas com tanta infelicidade que caí sobre um tronco de árvore que estava no caminho, e machuquei-me muito. Quase morri. Quando Maria Letícia ficou viscondessa, eu estava de cama e nem pude vir à festa, não se lembram?
Um dia falei a ele sobre a Ambrosina; ele me respondeu que, se eu quisesse, podia voltar para casa de papai.
E suspirou:
— Assim vivemos lá, eu e Ambrosina; Ambrosina está em primeiro lugar, por isso, ao chegar, encontrei um ambiente esquisito e todos com pena de mim; e porque sabiam que, mais tarde ou mais cedo, ele iria buscá-la outra vez. Não sei se hoje gosto do meu marido ou não; só sei que ver uma escrava ser preferida assim, quase na mesma casa, fere o coração da gente, e fere fundo. Sofro demais.
Maria Letícia e eu olhávamos para Francisca Miquelina sem dizer nada; de repente, perguntei em voz baixa:
— Contou tudo isso a papai?
— Não, mana Rosa. Para quê? Ele me aconselharia a ter paciência.
Maria Letícia perguntou:
— E a mamãe?
— Mamãe? Também não. Ela acha que as mulheres têm de suportar tudo. Que adianta falar?
Maria Letícia inclinou a cabeça; Francisca Miquelina continuou:
— Por isso eu disse, Maria Letícia, que você não deve lamentar-se; isso foi apenas um episódio sem importância em sua vida; esqueça a morte da escrava. Isso não é nada. Você tem o amor de seu marido, tem o filho forte e bonito, tem riquezas e até o título de viscondessa... Eu não tenho nada; já não digo o amor do marido, mas nem o respeito dele... Perdi o primeiro filho, vivo sempre doente agora, parece que não tenho mais a saúde que tinha. Sofro.
Levou a mão direita aos olhos e concluiu:
— Vamos ver se este filho me traz um pouco de alegria: talvez até Rodolfo se modifique por causa da criança. Mas não creio; a cozinheira, minha confidente, disse que está desconfiada de que Ambrosina também vai ter filho...
Tomei a mão de Francisca Miquelina entre as minhas e, encontrando um pequeno motivo de consolação entre tantas vicissitudes, comecei a falar para confortá-la:
— Francisca Miquelina, um filho de escrava nunca será como um filho seu; lembre-se de que os dela serão mulatos também e isso para ele será um motivo de vergonha; dos seus, porém, ele poderá orgulhar-se. Francisca Miquelina, encare o futuro com coragem; Rodolfo há de mudar, ele é bom, há de mudar. É irmão de mamãe e há de compreender...
Maria Letícia levantou a cabeça com orgulho e interrompeu-me:
— Francisca Miquelina, eu não suportaria essa situação. Nunca. Preferia morrer a ser humilhada assim. Saber que o marido vive com uma escrava e suportar isso em minha própria fazenda? Nunca. Ah! Comigo havia de ver!
Perguntei:
— Que faria você?
— Não sei ainda, mas faria qualquer cousa. Não suportaria isso.
Francisca Miquelina sorriu um pálido sorriso e ia responder; nesse momento, mamãe entrou no quarto trazendo Carola pela mão, A menina cumprimentou-nos e sentou-se num banquinho perto do leito, cruzando as duas mãos sobre os joelhos. Continuamos a conversar; de repente, Carola levantou-se e, tomando um alfinete nas mãos, espetou uma borboletinha azul que esvoaçava contra a vidraça; trouxe-a triunfante para junto de nós. Quanto mais o inseto se debatia, agonizante, mais ela ria e regozijava-se. Maria Letícia perguntou com uma expressão de revolta no olhar:
— Por que fez isso, priminha? Não tem pena da borboleta?
Carola encarou Maria Letícia, os olhos cintilantes de maldade:
— Não. Eu gosto. Pena por quê? Fez uma pausa e perguntou:
— E você, que mandou matar uma escrava?
Diante das nossas fisionomias pálidas, acrescentou, num tom de desafio:
— Pensam que não ouvi? Ouvi tudo!

MARIA Letícia viveu todo esse tempo obcecada pela morte da escrava; não falava, mas percebia-se; pelo modo de falar com os escravos, pela maneira de dar ordens. Uma vez mesmo me disse que sonhara com Inocência. Já se tornara uma obsessão. Passei todo esse tempo com ela e procurava distraí-la sempre que podia; fazia-a tocar piano todos os dias, bordávamos juntas e falávamos de todos os assuntos, mas eu percebia que a idéia fixa estava lá num canto do seu cérebro, martirizando-a. Todos os dias, íamos para casa de mamãe, onde passávamos muitas horas com Francisca Miquelina e Leopoldina.
Um mês mais tarde, Francisca Miquelina teve uma menina; quando chegamos à casa do Largo do Ouvidor, logo depois do almoço, ouvimos o choro da criancinha. Bonifacinho e os filhos de Leopoldina estavam contentes, perguntando uns aos outros onde estaria o anjo; um chegara a ouvir um forte bater de asas, mas, quando chegara à janela para espiar, não vira nada. Que pena! César arriscou uma explicação: disse que estava no alpendre olhando as cousas lá fora, quando ouviu o bater de asas; pensou logo que o anjo devia ser grande, ficou olhando e viu, então, a ponta de uma túnica subir no céu. Percebeu logo que era o anjo.
— A ponta só? Perguntou Fortunato.
— E que cor tinha? Perguntou Bonifacinho.
César ficou um pouco indeciso, dizendo que parecia ser branca ou azul, não pudera verificar bem. Carola chegou-se às crianças e, quando ouviu a conversa, riu-se com superioridade.
Anjo? Quem disse que havia anjo? Ela não acreditava; a mãe contava que algumas crianças eram achadas entre flores, outras nos pés de couve; ela fora encontrada num galho de árvore e, como demoraram para pegá-la, caíra e machucara-se; por isso era diferente das outras, com aquela mala nas costas. Anjos eram para as crianças tolas. Fortunato ofendeu-se; disse que quem mentia era ela, pois o pai nunca mentia e dizia sempre que as crianças eram trazidas por anjos. Essa era a verdade; as crianças eram trazidas pelo ar, presas nos braços dos anjinhos. Carola, não gostando de ser contrariada, agitou-se, os olhos a brilhar de raiva; procurou logo um alfinete para enterrar no braço de Fortunato; este correu e ficou gritando de longe, batendo a mão direita fechada sobre a palma da mão esquerda:
— É o anjo! É o anjo! É o anjo! Carola bateu o pé no chão, teimando:
— Não é, mentiroso! É no pé de couve, é no pé de couve! Fomos ver o que havia: as mucamas queixavam-se de que não podiam zelar pelos meninos: bastava encontrar Sinhá Carola, e eram brigas e alfinetadas. Para acalmá-los, expliquei que as crianças vinham conforme a vontade dos pais; uns preferiam que os anjos as trouxessem, outros preferiam encontrá-las nas plantas. E levei-os para verem a filhinha de Francisca Miquelina.
Voltei para conversar com Maria Letícia que estava sozinha num canto do alpendre. Nossas irmãs mais moças tagarelavam com as primas recém-chegadas do Rio de Janeiro; ouvimos a voz de uma das moças dirigindo-se a Adelaide, que já fizera quatorze anos:
— Prima Adelaide vai casar-se logo?
A voz de Adelaide respondeu um pouco aflita, num tom velado:
— Não sei; dizem que vou casar com o primo Antunes.
Sorrimos; ela nem conhecia o primo, mas o casamento já estava combinado entre nossos pais e os dele. Outra prima do Rio cochichou:
— Pois eu tenho namorado!
Houve um murmúrio de admiração e espanto; sussurraram: "Não fale alto". Depois risadinhas e cochichos. Logo mais, nossos três irmãos reuniram-se ao grupo das moças e comentaram os ensaios da nova comédia; Maria Letícia prestou atenção para saber de que comédia falavam e percebeu que era uma surpresa preparada para ela e Fernão. Queria saber que comédia era aquela, então contei que tio António havia escrito uma comédia intitulada: La confesse est arrivée, e os irmãos a estavam ensaiando; algumas primas do Rio de Janeiro também tomariam parte. Estávamos esperando apenas a chegada de nosso tio conselheiro para marcar a representação, que seria dedicada aos viscondes. Deixamos o alpendre e fomos para o quarto de Francisca Miquelina que estava recostada nos travesseiros, com a filhinha ao lado. O marido devia chegar de um momento para outro; já haviam mandado um escravo à fazenda, com a boa nova. Comentamos a surpresa que estavam preparando para Maria Letícia e ela sorriu, satisfeita. Disse que entre as tristezas que a absorviam, isso era como um raio de sol; sentia-se agora grata a tio António e aos irmãos que procuravam alegrá-la, afastando-lhe os pensamentos que a oprimiam; e, sem nada falar a ninguém, esperou o dia da representação.
Só em fins de maio representaram a comédia; o conselheiro de Paiva não pudera deixar antes o Rio de Janeiro devido aos festejos oferecidos a SS. MM. que haviam regressado de uma viagem à Europa. Jantando em casa de papai, um dia antes do espetáculo, descreveu o grande baile a que assistira no Cassino; Leopoldina e Eponina pediam detalhes a respeito dos trajes da Imperatriz e da Princesa Isabel; ele, porém, fez um gesto desanimado de quem não sabe descrever vestidos. Estava envelhecido, o tio conselheiro; a barba branca em forma de lua à volta do rosto, dava-lhe um ar de desalento. Desde que o filho Fabrício não voltara da guerra contra o Paraguai, sentia-se cada dia mais velho e triste. Falou sobre os enfeites do salão do Cassino, a iluminação, a entrada de SS. MM. ao som do Hino Nacional e contou que a Condessa d'Eu dançara com o ministro da Rússia e com o ministro de Portugal. Leopoldina insistiu:
— Mas o vestido dela, tio de Paiva? Não se lembra ao menos da cor?
Com o vozeirão muito grosso, a mão peluda segurando o copo de vinho tinto, disse:
— Parece-me que era azul. E havia flores no toucado e um colar de pérolas no pescoço...
E bebeu todo o vinho. Fernão e papai pediram-lhe notícias da Europa; as últimas notícias recebidas diziam que os conflitos continuavam, na Alsácia e na Lorena, entre os súditos franceses e os dominadores alemães; e que Napoleão III havia morrido na Inglaterra. Morreu justamente um ano depois da queda da França. Papai fez um comentário:
— Assim terminou o regime dos Bonapartes na Europa. E terminou mal.
Tio de Paiva acrescentou:
— A Alemanha, depois da guerra, parece tomar demasiado impulso; está com a cabeça erguida como um galo antes da briga, desafiando o mundo inteiro. Acha que só ela sabe conduzir a humanidade, só ela pode regenerá-la também; as demais nações são decadentes, insignificantes.
Tio Antônio observou com desprezo:
— É o eterno orgulho dos Hohenzollern.
Fernão replicou:
— Não sei se sabem o que o Conde de Moltke disse: "A paz perpétua é um sonho e nem sequer um belo sonho. A guerra é, no mundo, um elemento de ordem preestabelecida por Deus; sem a guerra, o mundo se estagnaria e se perderia no materialismo". Vejam bem.
— Isso é um contra-senso, disse papai. Haverá materialismo mais brutal que a própria guerra, materialismo mais cru e mais real?
Leopoldina voltou-se com uma expressão de revolta:
— Odeio os alemães! Odeio-os todos!
Alberto acrescentou:
— É pena eu não saber repetir o que o filósofo alemão Nietzsche diz da guerra; o pensamento dele reflete o do povo; diz mais ou menos o seguinte: "Se o povo esquece a guerra, torna-se sentimental e cheio de ilusões; e, quando uma nação perde sua vitalidade, não há nada como uma guerra, o assassínio a sangue frio, a aniquilação do inimigo, a perda de sua própria vida e da de seus irmãos; disso é que um povo precisa, e só uma guerra pode dar".
Protestaram todos, horrorizados. Tio de Paiva afirmou:
— Vejam só, tanto fala um filósofo como um militar; tanto fala o homem do povo como um aristocrata; todos têm o mesmo desejo da guerra porque estão convencidos de que a guerra é uma espécie de remédio para purificar a raça, quando nós todos sabemos que para a humanidade, a guerra só traz miséria e dor.
— É isso mesmo, confirmou papai. E agora, como são os vencedores, querem regenerar o mundo e andam com a cabeça levantada, levantada demais.
Mais tarde, depois do café, tio de Paiva tornou a falar:
— Esqueci-me de contar que no baile do Cassino de que falei, a Condessa d'Eu também dançou com o Grão-duque Alexis.
Francisca Miquelina, ainda lá, pois achava-se muito fraca para voltar à fazenda, animou-se:
— O Grão-duque Alexis foi ao baile, tio de Paiva?
— Ele e todo seu estado-maior. Dançou uma quadrilha com a princesa. Foi uma festa brilhante. Só numa quadrilha dançaram sessenta pares. Houve também lindas marcas de cotillon.
Levantamo-nos da mesa e continuamos a conversar sobre o baile; Maria Letícia perguntou ao tio de Paiva:
— Meu tio, a seu ver, qual era a dama mais bonita dessa festa?
O tio conselheiro olhou-a um momento, depois levantou os olhos para o teto como se quisesse lembrar, baixou-os outra vez, dizendo:
— Estou velho demais para reparar, mesmo nas damas bonitas.
E, sacudindo o dedo gordo perto do rosto de Maria Letícia, acrescentou:
— Filha, digo como Benjamin Constant: J'ai passe Vage ou les vides se remplissent, et je tremble à renoncer à quoi que se soit, ne me sentant pas la puissance de rien remplacer.
E sorrindo acompanhou os homens à sala de jogo; outros foram chegando para uma prosa, como faziam todas as noites quando papai se achava em S. Paulo: o Bulhões, o Cônego Soares, o Dr. Maranhão, o Juiz de Direito, o Dr. Lopes e outros. Naquela noite, o Cônego Soares estava com a palavra; contava um caso ocorrido em 1809 e todos ouviam, um tanto incrédulos. Então ele se levantou e, sacudindo as mãos fortes no ar, fez gestos decisivos e convincentes:
— Mas eu li, senhores, eu li no 2º. Tabelião e, se não me engano, no livro 21, páginas tantas: "Escritura de demissão, consentimento, convenção que faz Dona Beatriz Amaral Gurgel a seu marido Joaquim da Costa da Siqueira para o efeito de ser admitido a ordenar-se de clérigo".
O Cônego Soares parou e tomou fôlego, olhando os interlocutores que, silenciosos, fumavam; como ninguém respondesse, ele continuou, animado, atroando com sua voz rouca o escritório de papai:
— Mais ou menos isto: "Saibam quantos este público instrumento... etc, etc, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e nove, aos cinco de janeiro do dito ano nesta cidade de S. Paulo na casa de morada de Dona Beatriz do Amaral Gurgel em a Rua das Flores onde eu, escrivão da Câmara desta cidade, etc, etc, tem precisão de passar uma escritura de consentimento a seu marido Joaquim da Costa da Siqueira morador nas Minas de Cuiabá para se ordenar de sacerdote". Vi essa escritura no 2º. Tabelião e achei o caso tão interessante que não me pude esquecer...
Sentada perto da porta do escritório, eu ouvia a voz do Cônego Soares; depois o Juiz de Direito tirou o charuto da boca para falar:
— É de fato um caso interessante, um caso inédito. Quanto mais se vive, mais se aprende; e se não fosse contado pelo Cônego...
Os outros também concordaram que não acreditariam. Tranqüilizado, o Cônego sentou-se arregaçando um pouco a sotaina e ficou silencioso, tamborilando os dedos na mesa ao lado. Tio de Paiva acrescentou:
— Muito louvável a resolução desse Joaquim Siqueira; deixar a esposa pelo sacerdócio.
Quando silenciaram, papai chegou-se à porta do salão e pediu-me que chamasse o Benedito; Benedito enfiou a cabeça branca pelo vão da porta:
— O Sinhô chamô?
— O conhaque Napoléon, Benedito.
O mordomo voltou logo depois e distribuiu na roda os copos bojudos; não pude deixar de sorrir; papai devia estar contente esse dia, pois só pedia conhaque Napoléon quando se sentia feliz. Com solenidade, ele foi despejando um pouco da bebida em cada copo; então, como num rito, todos rodearam os copos com as mãos e aspiraram o conhaque quase religiosamente, antes de bebê-lo. Durante segundos ficaram como em adoração diante dos copos; papai, com os olhos resplandecentes de prazer, bebeu-o primeiro com o olhar, espiando o precioso líquido contra a luz, depois com o nariz, aspirando-o com delícia, para finalmente levá-lo à boca, cerimonioso e concentrado. O Cônego Soares, muito simples, conversava com o vizinho, sem rodear o copo com as mãos, sem aspirar a bebida, sem adorá-la. Papai começou a sentir-se mal e quando viu o Cônego fazer menção de beber o conhaque, disse com aquela voz forte que fazia tremer a barba grisalha:
— Cônego Soares, não sabe como se toma um Napoléon?
Se o amigo não sabe, mando vir cerveja preta. Recebi uma partida da Inglaterra. Benedito, traga cerveja preta para o senhor Cônego.
Envergonhado, com visível timidez, o Cônego levantou a mão num fraco gesto de protesto, dizendo:
— Gosto de conhaque, barão, mas uma cervejinha preta é preferível.
Papai fez um gesto de desprezo e ao mesmo tempo de pena; como era possível alguém não gostar de Napoléon?
No dia seguinte, representaram a comédia escrita por tio António e dedicada a Maria Letícia e Fernão. Eles só tiveram permissão de comparecer às oito horas da noite, meia hora antes do espetáculo. Procurei auxiliar os arranjos da casa e dirigir os escravos; toda a casa foi enfeitada com rosas. As rosas-chá cobriam a mesa. Nunca pude esquecer esse dia; essa festa foi o marco que separou a vida de nossa gente; foi como um limite. Começou uma época de tristeza e esse dia foi o último de risos e festas. Foi a sombra interceptando a luz. É estranho pensar como os fatos se sucederam sem interrupção; são como as águas de um rio que deslizam em lugares bonitos ou feios, claros ou escuros, entre árvores ou pedras, sem escolher caminho. Nada interrompe seu curso.
A alegria foi desaparecendo desde esse dia; foi como um vento que arrastasse as vidas mais felizes num turbilhão de incertezas e dor. Tudo se transformou. Nunca mais vi rosas brilhantes e perfumadas; parece que até as flores foram tocadas pelo vendaval.
Só o jasmineiro continuou imperturbável; indiferente ao frio, às tempestades e ao abandono, floriu nos outros anos e, nas manhãs de calor, seu perfume inebriante enchia a casa, mas nunca mais trouxe alegria; parece que esta se fora com o perfume das rosas.
Lembro-me da admiração de Maria Letícia quando chegou:
— Meu Deus! Quanta rosa!
No salão, alguns convidados já se achavam sentados em frente ao palco improvisado; Benedito ia e vinha acompanhando os que chegavam.
Maria Letícia e Fernão sentaram-se no lugar de honra, uma espécie de tribuna, sobre a qual estavam escritos os nomes deles em letras douradas.
Maria Letícia estava com um vestido de veludo-marfim; vendo-a assim, linda e coberta de brilhantes, ninguém adivinharia o que lhe ia no íntimo. Somente eu sabia o quanto ela sofria desde a morte de Inocência.
Perguntava muitas vezes quando estávamos a sós:
— Será que fui culpada, mana Rosa?
Mamãe entrou no salão levando Carola pela mão; os demais espectadores foram-se acomodando também. Tio de Paiva ficou ao lado de papai, depois meus irmãos casados, com as esposas, o Dr. Maranhão e a senhora, e várias famílias amigas.
Começou o espetáculo; a cena passava-se no século XVII e os amadores representaram bem. Era uma comédia chistosa e sutil e tio António mesmo dizia que certos diálogos lembravam os de Molière.
Depois do espetáculo, tio António foi chamado à cena muitas vezes e recebeu muitas palmas. Entre a ceia e as bebidas, ainda se comentava a peça; pediram para ser repetida no fim do ano, mas nunca chegou esse dia.
Nossas irmãs mais moças estavam radiantes; nunca tinham visto festa mais bonita e nem haviam tomado parte em comédias como aquela; Adelaide veio mostrar-me as luvas brancas bem grandes que mamãe mandara vir do Rio de Janeiro para ela; falava depressa, mostrando as mãos cobertas:
— Veja, mana Rosa, veja o que ganhei. São só para saraus. Sabe quanto custaram?
Levantou três dedos perto do meu rosto:
— Três mil-réis! Veja que despropósito. Cristina ganhou mitaines, cada par custou mil e quinhentos... Reparou nos brincos de Leopoldina? São rosetas de ouro. Quando crescer pedirei um assim a mamãe. Eu, se fosse Maria Letícia, ficaria orgulhosa de ser bonita assim, e, ainda por cima, viscondessa. Ela está linda com esse vestido ivoire. Eu ficaria orgulhosa...
Tio António, encantado com o êxito da comédia, ia de um convidado a outro, conversando e trocando opiniões; formaram-se rodas pelas salas; alguns homens foram para a saleta de fumar. Benedito aproximou-se de mim e disse que na porta da rua estava um rapaz querendo falar com Fernão, só com Fernão. Fui ver quem era e mandei chamar Fernão; iluminado pelo lampião de querosene, lá estava um seu antigo colega e amigo, Benevides. Fernão convidou-o a participar da reunião, mas, com ar apreensivo, Benevides foi logo falando:
— Seixas, vim avisá-lo de que está correndo um inquérito policial sobre a morte de uma sua escrava; isso ocorreu há uns quinze dias, não sei bem. Dizem que foi...
Fernão empalideceu e pegou o braço do amigo; fiquei parada no primeiro degrau e, apesar de não ser comigo o assunto, não tive forças para mover-me.
— O que, Benevides? Como soube? Que está sucedendo?
— Pensei que você soubesse alguma cousa; por acaso estive na polícia para tratar de um caso meu, e inteirei-me desse inquérito. Acho bom você procurar já um advogado. Resolvi avisá-lo imediatamente.
Fernão apertou as mãos uma contra a outra num gesto nervoso:
— Ora esta! Se a escrava morreu, que podemos fazer? Mas, o que dizem, afinal? Não se inteirou do assunto?
Procurava dar firmeza às suas palavras, mas estava visivelmente nervoso. Benevides hesitou um instante e respondeu:
— Dizem que ela foi assassinada: é um absurdo, bem sei, mas é o que dizem. E que foi a mandado de sua esposa. Veja o amigo em que tempo estamos, com certeza são intrigas de abolicionistas; eles fazem tudo para ganhar a causa.
Não se apoquente por isso e trate de provar a infâmia da intriga e da calúnia. Procure imediatamente seu advogado.
Com a mão sobre a boca, eu afogava um grito de susto; Fernão revoltou-se:
— Assassinada? Mas estão loucos? Não é possível, Benevides!
— Vim apenas contar o que soube na Polícia. Não sei bem os pormenores; o que sei é que está correndo o tal inquérito devido à morte violenta da escrava. Fiquei sabendo hoje e vim logo avisá-lo. Se precisar de auxílio, conte comigo. Recostado contra a parede, sob a luz do lampião, o rosto de Fernão estava transtornado pela surpresa e pelo susto; seu olhar passeava de um ponto a outro do largo, onde alguns transeuntes estavam parados, olhando nossa casa que, com as janelas iluminadas, se destacava das outras, mergulhadas na escuridão. Absorto, ficou uns momentos em silêncio. Benevides tocou-lhe o braço para despedir-se:
— Fale com seu advogado amanhã mesmo. Cos diabos! Não é grave assim, precisamos lutar contra a onda abolicionista; eles descobrem e até inventam crimes para vencer. Fale com o advogado. Boa noite, Seixas!
— Boa noite!
Quando o amigo já estava longe, Fernão voltou-se para mim dizendo:
— Até esqueci de agradecer ao Benevides. Mana Rosa, não fale nada a ninguém, deixe a festa acabar.
Fiz um sinal de assentimento e entramos de novo no salão. As despedidas já haviam começado. Acompanhei Maria Letícia e Fernão e com eles fui para a chácara. Quando a caleça tomou a estrada, a cidade foi ficando para trás, imersa no silêncio e nas trevas. Fernão disse de repente:
— Meu amigo Benevides foi avisar-me de que há um inquérito contra nós, devido à morte de Inocência.
Maria Letícia debruçou-se, procurando ver o rosto de Fernão na penumbra da caleça:
— Um inquérito? Mas por quê? Não estou compreendendo, Fernão.
— Inquérito por causa da morte de Inocência; dizem que ela foi assassinada; e o pior é que dizem que foi por sua ordem.
— Como? Assassinada? Dizem isso? Quem diz? Mas não foi, Fernão; todos sabemos que não. Temos a maior prova, que é o atestado do Dr. Maranhão, o médico sabia que ela era doente.
— Podia ser doente e viver ainda muito tempo. A sova podia ter-lhe abreviado a vida.
Maria Letícia aspirou o ar com violência; acalmei-a:
— Não se sabe bem o que se está passando, por isso não se apoquente tanto. Amanhã vamos saber a verdade. Ela perguntou com altivez:
— Quem denunciou? Queria saber, saber para destruir a intriga. Só pode ser uma intriga, uma calúnia, uma infâmia.
Quem denunciou?
E acrescentou aparentando calma:
— Não estou apoquentada.
Fernão continuou:
— Não sei quem denunciou; amanhã vou procurar nosso advogado. Deve ser engano do Benevides. Afinal, é um absurdo. Como podem acusar-nos? Onde estão as provas? As testemunhas? É estupidez pensar em semelhante farsa. Isso é uma farsa. E nem devemos pensar nisso.
Levantei a cabeça sentindo alívio:
— Também acho estupidez e absurdo. Quem poderia denunciar Maria Letícia? Alguém do Partido Abolicionista? E como iria provar? Ninguém testemunhou o fato.
— E temos uma atenuante, acrescentou Maria Letícia com animação: Meu defunto sogro não fazia parte da corrente abolicionista? Não era contra a escravatura?
— Era, mas ele já morreu, disse Fernão. E todos sabem que sou contra a Abolição.
Em silêncio, continuamos a viagem. Na chácara, encontramos Modesta ainda acordada, ao lado do berço do menino. Modesta retirou-se e ficamos olhando a criança dormir; seu rostinho meio comprimido pelo travesseiro, estava quase oculto; só sobressaía o brilho dos cabelos castanhos e as duas mãozinhas fechadas e abandonadas sobre a colcha de seda. Maria Letícia inclinou-se e beijou de leve uma das mãozinhas; depois com gestos rápidos começou a tirar as jóias dos cabelos, das mãos, depositando-as sobre a cômoda. Aproveitou um momento em que Fernão deixou o quarto e virou-se para mim, a cabeça alta, o sorriso nos lábios:
— Quero ver quem será capaz de me acusar. Quem?
Era uma hora da manhã e nenhum de nós pensou em dormir; Fernão passeava pelo quarto, um ar indeciso e acabrunhado; parecia duvidar ainda do que havia acontecido. Maria Letícia, um pouco pálida, tomou o leque nas mãos e começou a batê-lo na cômoda e a falar:
— Que infâmia, Fernão. Poderia eu mandar matar alguém? Creia em mim, Fernão; eu disse apenas: "Castigue essa escrava". Foram essas as minhas palavras; mana Rosa está aí para confirmar. Eu seria incapaz...
Sentiu um momento de fraqueza, mas conteve-se, atenta aos gestos e às palavras de Fernão.
— Mas o principal é que ela morreu, disse Fernão. Seja como for, ela morreu, e alguém pode haver denunciado. Temos agora, de enfrentar a Justiça. É horrível!
Sentou-se na poltrona do quarto e ficou imóvel.
— Não acredito que esse inquérito continue, falei. Fernão tem muito prestígio e papai também. Depois temos tio de Paiva que está em S. Paulo e pode auxiliar Fernão.
Maria Letícia encarou-me:
— É verdade, tio de Paiva pode auxiliar-nos. E desconfio de quem deu a denúncia; tenho quase a certeza. Oh! Fernão, temos inimigos temíveis na vizinhança!
Fernão olhou-nos com ar de dúvida:
— Mesmo que seja quem está pensando, o que não creio, que nos adianta saber? Precisamos saber a verdade: se não fosse tão tarde agora, eu ia chamar o Joaquim para interrogá-lo novamente.
Fui para meu quarto tentar dormir; pouco depois, Maria Letícia entrou também vestindo um roupão e recostou-se na cama, dizendo que não podia dormir. Percebi que não queria chorar perto de Fernão, perto de ninguém. Só eu conhecia as fraquezas de Maria Letícia. Não queria ser fraca perto de outras pessoas, dizia que pertencia a uma raça forte e mostraria que era forte. Evocou nessa noite as palavras de papai: "Vergar, mas nunca quebrar, é o lema de nossa família". Mas quando ficamos a sós no quarto meio escuro, onde só uma vela brilhava sobre a cômoda, ela se lamentou:
— Ah! Mana Rosa, creio que vou morrer... Olhei-a sem compreender:
— Morrer como?
— Quando tiver a criança; talvez eu morra. Passei tão mal da primeira vez, que desta não escaparei. Devo morrer para não arrastar o nome de meu marido num escândalo como esse; por minha causa ele está sofrendo, por minha leviandade, talvez por minha maldade.
E chorou. Tentei acalmá-la censurando-a um pouco:
— Não deve pensar assim, nem perder a coragem. Mas o que pesa na sua vida é o orgulho, Maria Letícia. Mamãe diz que você é orgulhosa; e é mesmo.
Ela procurou enxugar as lágrimas:
— Não sou, mana Rosa.
— É sim. Se não fosse, não mandaria surrar a escrava daquele jeito. Eu disse que não desse a ordem, mas você deu e, para não voltar atrás, deixou a coitada apanhar tanto. É orgulho.
— Eu sei que não devia mandar surrar Inocência, devia mandá-la de volta a Santarém, mas fiquei com tanta raiva... Ah! Nossa Senhora do Rosário, só há uma salvação para este caso — a minha morte. Levai-me deste mundo...
— Não fale assim, Maria Letícia. Talvez não haja nada. Fernão tem muitas relações, o inquérito não irá por diante... Você vai ver.
Maria Letícia chorou mais e suspirou:
— Virgem Santíssima do Rosário!
Imaginou-se morta e, sentindo compaixão por si mesma, deixou as lágrimas correrem livremente. Pediu-me para tomar conta do filhinho quando ela morresse e não deixasse Carola maltratá-lo. Prometi.
Os primeiros clarões do dia entraram pelo quarto adentro. Então resolveu vestir-se e descer. Encontramos Fernão embaixo, no escritório, mandando uma carta em que pedia o comparecimento de papai o mais breve possível. Em seguida, vimos entrar Joaquim, o feitor, chamado por Fernão. Era um homem alto e forte, feições duras e grosseiras. Novamente, Fernão o interrogou:
— Joaquim, se por acaso a polícia mandar chamá-lo para fazer perguntas, como vai responder?
O feitor enrolou o chapéu nas mãos, um pouco embaraçado:
— Eu digo que cumpri as ordens dadas pela Sinhá Letícia.
— E quais foram essas ordens?
Ele olhou Maria Letícia e baixou os olhos:
— Ela me disse para dar uma boa sova na Inocência, uma boa sova.
— Foram essas as palavras da Sinhá Letícia?
Perturbado, ele pensou um pouco e replicou:
— Sim senhor. Ela disse: "Uma sova bem grande, bem dada, Joaquim". Foi isso. Eu cumpri as ordens; não tenho culpa se a escrava morreu.
Maria Letícia escutava tremendo; Joaquim era como uma barreira e tudo se batia contra aquela barreira; as palavras dele eram sempre as mesmas, não se alteravam: "Cumpri as ordens, não tenho culpa". Fernão impacientou-se:
— Mas quando viu que a escrava estava sofrendo tanto, com as costas ensangüentadas, por que não parou de bater?
— Porque a ordem foi: "Dar uma sova bem grande". E quando eu dou nos escravos, dou assim mesmo.
— Mas você não percebeu que ela ia morrer, ou podia morrer?
— Não, Sinhô. A Inocência era uma mulher forte e não lembrei que podia morrer.
— Está bem. Pode ir.
Lá se foi o Joaquim novamente, indiferente ao mal que havia causado, uma barreira de estupidez e ignorância sem sequer imaginar o sofrimento dos amos. Ficamos sós na mesa do café. Não falamos; mexíamos as xícaras, tomávamos um gole, tornávamos a mexer e ficávamos olhando a toalha, ou então a louça, cabisbaixos.
Uma chuvinha fina começou a cair e o dia, que amanhecera claro, tornou-se cinzento, sombrio. Fazia frio. Às nove horas, parou uma carruagem à frente da casa e mamãe e tio Antônio entraram, apressadamente e aflitos. Que acontecera? Contaram que papai seguira de madrugada com o tio conselheiro, para Guararema, e, ao chegar a carta de Fernão, já estavam longe. E mamãe, tirando a mantilha que a agasalhava, sentou-se na primeira cadeira, perguntando:
— O que houve? Passei um susto tão grande, e estou vendo todos com saúde. Onde está o menino? Aconteceu alguma cousa ao menino?
Fernão contou que houvera uma denúncia na polícia; soubera pelo amigo Benevides. Mamãe olhou-o, incrédula:
— Será possível? Por causa da escrava? Tio António repetiu:
— Será possível? Quem denunciou? Não é cousa dos abolicionistas?
E, aproximando-se de Maria Letícia, pôs-lhe a mão nos ombros, num gesto carinhoso e protetor.
Fernão mandou atrelar a caleça, onde estavam gravadas em letras de ouro V. de S., sob uma coroa de visconde. E, despedindo-se rapidamente, partiu dizendo que ia falar ao advogado Dr. Simões. Passaram-se horas e mal tocamos nos pratos do almoço; abordávamos e repisávamos o mesmo assunto; era como se dividíssemos o caso em pedacinhos e os fragmentos ficassem rolando no ar até serem juntados novamente e de novo calcados, despedaçados, esmiuçados.
À tarde, Félix, Augusto, Luís, Vicente e Lourenço vieram saber o que havia; foram entrando barulhentamente pela casa adentro, fazendo as esporas tinirem sobre o tapete num som abafado, e perguntando, revoltados:
— Quem denunciou? Quem se atreveu? Quem?
Ah! Se conhecessem o denunciante, vingariam Maria Letícia; para quem levanta assim uma calúnia, só uma bala no peito. Barulhentos e decididos, nossos irmãos andavam e falavam alto, indignados, entre projetos de vingança. Augusto perguntou se Maria Letícia queria que eles fossem ao Rio de Janeiro explicar o caso ao imperador. Iriam a cavalo em viagem direta e contariam tudo; a denúncia havia de desaparecer, morrer, ficar abafada... Pediriam uma audiência a D. Pedro por intermédio de nosso tio de Paiva; falariam, explicariam e tudo se reduziria a nada. Apoiaram todos a idéia de Augusto. Leopoldina e Alberto chegaram mais tarde; demonstravam revolta pelo que sucedera. Num gesto unânime de solidariedade, ali estava toda a família, pronta para apoiar, defender e auxiliar Maria Letícia e Fernão. A horas tantas, disse Alberto, um pouco desanimado:
— Precisamos não esquecer, caros primos, que a corrente abolicionista cresce dia a dia; cada vez se torna mais forte e poderosa; é como se chovesse muito nas cabeceiras de um rio e o rio fosse engrossando de hora a hora. E essa corrente tudo fará para dificultar o caso, para complicar, para fazer de Fernão e Maria Letícia um exemplo do que eles chamam os crimes da escravidão.
Félix retrucou, exaltado, batendo a mão fechada na mesa:
— Os abolicionistas pensam que podem viver sem escravos; nem eles, nem nós, nem o Brasil. É um caso de vida ou morte. Precisamos dos escravos, é um erro pensar o contrário.
Lourenço falou com voz exaltada:
— E os escravos precisam ser tratados assim, com rigor. Se não, tomam conta de nós.
Luís e Vicente apoiaram Lourenço. Depois do chá, ficamos silenciosos um momento, e de súbito ouvimos o ruído de uma carruagem parar à porta; alguns se levantaram e foram ao encontro de Fernão; nós ficamos de pé, em ansiosa expectativa. Fernão entrou, apressado, uma expressão de cansaço na fisionomia; atirando o chapéu para um lado, falou enquanto todos os olhos se cravaram nele:
— Fui à polícia com meu advogado; declarei que, em vista do estado de saúde de minha mulher, eu me apresentava em seu lugar; parece que concordaram. Ouviram meu depoimento e o processo segue seu trâmite. Tenho que responder a júri.
Espanto e incredulidade acolheram essas palavras: falaram todos ao mesmo tempo:
— Mas não é possível chegar a esse ponto!
— Fernão não tem culpa, nem Maria Letícia!
— A escrava morreu de outra cousa, é preciso provar.
Fernão sentou-se e acrescentou com voz cansada:
— Mandaram fazer auto de corpo de delito; examinaram o cadáver e encontraram muitas escoriações pelo corpo, equimoses, sinais de chicotadas; os médicos, porém, acham que não morreu disso, não era suficiente para matar. Parece que foi de uma síncope...
Interromperam exaltados:
— Então por que tanto rumor?
— Por que a polícia se envolve nisso?
— Ela podia ter morrido a qualquer momento, mesmo sem ter sido açoitada.
— Negro precisa ser tratado a chicote!
Fernão tornou a falar:
— Ah! Vocês não sabem como os abolicionistas estão fortes; meu advogado contou-me, em particular, que eles tudo farão para exterminar os escravagistas e que hão de perseguir principalmente os titulares, o mais possível. Eu disse que não me importo de responder a júri porque não tenho culpa; tanto eu como minha mulher, temos a consciência tranqüila.
— E a denúncia, perguntou Luís. De onde partiu? Quem denunciou?
Houve uma curta pausa, depois Fernão respondeu vagarosamente:
— Não sei, só sei que mandaram uma carta anônima à polícia. E essa carta dizia tudo.
— Carta anônima? Quem seria?
Maria Letícia, até então imóvel e calada, levantou os olhos azuis para o teto, numa expressão de acabrunhamento; depois, olhou-me e fez-me um sinal de entendimento.
Leopoldina estava exaltadíssima:
— Mas como? Quem se atreveu a denunciar uma viscondessa? Maria Letícia pertence a uma família de nome e é uma titular. Quem se atreveu?
Fernão respondeu passando as mãos pelos olhos:
— Não se pode saber ainda ao certo; a carta anônima esclarece apenas que os vizinhos ouviram a ordem dada por minha mulher.
Protestos e exclamações partiram de todas as bocas:
— Vizinhos infames, traidores. Que vizinhos são esses? Não sabe, Fernão?
— Que ódio!
— Infames!
Lourenço adiantou-se, batendo a mão direita no punhal que trazia à cinta:
— É pena eu não saber quem denunciou nossa irmã. Queria desafiá-lo e havia de matá-lo. Deve ser uma víbora perigosa; enlouqueço porque nada posso fazer...
Mamãe assustou-se e procurou acalmar Lourenço:
— A vingança a Deus pertence, meu filho. Deus dará o castigo, quando for ocasião.
Tio António de pé, perto da janela, sacudiu a cabeça:
— Mas isso é inacreditável! Em que tempo estamos? Denuncia-se uma senhora de nome como quem denuncia um negro fugido?
Vicente encarou Fernão:
— E nós ficamos assim de mãos atadas? Sem fazer nada? Sem agir?
Alberto perguntou, com medo:
— E Fernão será preso?
Félix procurou acalmá-los:
— Eu já estava com medo dos abolicionistas; já tem havido casos semelhantes e eles perseguem até o fim, sem piedade.
Fernão será aconselhado pelo advogado; vamos esperar. Naturalmente será absolvido, se chegar a responder a júri, no que não acredito.
Fernão levantou-se, um sorriso irônico nos lábios:
— Vou responder a júri, não há dúvida alguma; resta saber se serei absolvido ou condenado. As testemunhas são muitas e todas dizem a mesma coisa: Viram passar uma rede ensangüentada para o cemitério e nessa rede ia o corpo de uma escrava. Dizem que lhe ouviram os gritos, quando foi açoitada, e ouviram também minha mulher dar a ordem: "Joaquim, dê nela até matar". Maria Letícia, num grito abafado, cobriu os olhos com as mãos, esforçando-se por não chorar; ficaram todos pálidos e eu me aproximei dela:
— Maria Letícia, não leve os fatos tão a sério. Fernão está dando aspecto trágico ao caso; ele será absolvido, nem que seja para se recorrer a D. Pedro. É uma calúnia tão grande, que a verdade há de aparecer; eu sei que você não deu essa ordem.
Tio António perguntou:
— E quem são estas testemunhas, Fernão?
— Os negros do comendador Menezes e outros; quase todas as testemunhas são escravos. Há mais de quinze; uma cousa horrível, horrível...
Félix levantou-se para sair:
— Vamos mandar o Lucas chamar nosso pai em Guararema, hoje mesmo.
— Que vá no melhor cavalo para chegar mais depressa.
— Que venha com o tio conselheiro imediatamente, acrescentou Luís. Vamos dar a ordem.
E nossos irmãos saíram juntos, batendo as esporas de prata no. tapete, impetuosos e destemidos; ouviu-se o tropel dos cavalos em disparada. Fez-se silêncio na sala, cortado apenas pelo tamborilar da chuva na vidraça, muito de leve, como triste presságio. Lembramos então que estava chovendo e fazendo frio; ficamos todos imóveis e pensativos, olhando o tapete. Tio António, junto da janela, suspirou e murmurou, olhando a tarde cinzenta e coberta de garoa:
— Que tempos estes! Como se atrevem?
Só então me lembrei de que Fernão devia estar com fome e levantei-me para ir buscar café.

Os primeiros dias se passaram; Fernão saía com o advogado, voltavam sem saber o que iria acontecer. Papai e tio de Paiva chegaram de Guararema, procuraram pessoas influentes para evitar o prosseguimento do inquérito, mas este continuou; os abolicionistas eram poderosos e respeitados.
O inquérito policial terminou um mês depois e chegou às mãos do juiz, que iniciou o sumário de culpa; este foi encerrado com a pronúncia de Fernão. E, assim, teve ele de apresentar-se à prisão e aguardar julgamento, juntamente com o feitor Joaquim.
Num gesto nobre, Fernão tomou a si toda a responsabilidade do processo, apresentando-se como único visado pela denúncia. Foi então que Maria Letícia se desesperou; rodeada por todos nós, viu o marido ser levado à prisão, sem nada poder fazer para salvá-lo. Dias e noites passou aniquilada de dor; perante a família, aparentava calma e conservava atitude altiva Como se nada pudesse atingi-la; mas, a sós comigo, entregava-se ao desespero.
Todas as manhãs, a caleça nos levava, juntamente com António Fernão e Modesta, para a casa do Largo do Ouvidor; na segunda semana após a prisão de Fernão, resolvemos ficar definitivamente em casa de papai; aquele ir e vir todos os dias podia ser prejudicial e depois, todos juntos, afrontaríamos a fatalidade com mais ânimo.
Papai e nossos irmãos visitavam Fernão diariamente, trazendo sempre boas notícias; ele aguardava com calma o dia do julgamento e dizia-se bem tratado na prisão. Os abolicionistas trabalhavam na sombra, mas Fernão nada receava, convicto de que tudo terminaria com sua absolvição. Cercávamos Maria Letícia de cuidados e consolo; apenas Francisca Miquelina, já de volta à fazenda do marido, ignorava a situação. Um dia papai mandou uma carta contando o sucedido a ela e a Rodolfo. Ficaram alarmados e Rodolfo veio um dia, a cavalo, visitar Fernão.
O tempo apresentava-se chuvoso; as ruas cheias de lama viviam desertas naquele inverno de 1872. O frio, insistente e fino como agulha, penetrava nas casas, e nós nos encolhíamos entanguidos e silenciosos, envolvidos em chalés de lã e mantas para nos aquecermos. As crianças, não podendo brincar nos pátios e nos jardins, ficavam o dia inteiro dentro de casa e tornavam-se irritantes e malcriadas.
Num daqueles dias escuros, estávamos todos reunidos à volta da mesa, tomando o café do meio-dia. Mamãe havia mandado acender dois lampiões para iluminar a grande sala de jantar; quase não falávamos. Maria Letícia, a meu lado, servia-se de café e tomava-o sem vontade, os olhos fixos na mesa, pensando no marido. Do outro lado, Leopoldina dava de mamar ao filho mais novo; mal se lhe via o seio branco, meio encoberto pela mantilha, sob a qual a criança sugava avidamente. Ela olhava o filho mamar e de vez em quando acariciava a testa da criança, passando a mão muito de leve para tirar um ou outro fiozinho de cabelo que por acaso a importunasse. Estávamos sós com as crianças; papai, nossos irmãos, cunhados e tio António tinham saído para falar com o advogado de Fernão. No fim da mesa, Carola mastigava com grande apetite um pedaço de bolo de araruta; atrás da cadeira, Prudência vigiava-a. De vez em quando, ouvia-se a voz de Leopoldina falando com o filhinho: "Quer mais, guloso? Olhem como ele mama!" E virava a criança para mamar no outro seio. António Fernão tomava café com leite, bem agasalhado no colo de Modesta; com as duas mãozinhas muito gordas, segurava a xícara, que ia virando devagar, auxiliado pela mucama. Às vezes, parava para respirar e olhar a mesa; procurava entre os bolos qual deles havia de pedir depois; quando terminou, pediu o de araruta, mas não comeu. Espalhou-o no prato, picou-o em pedacinhos, provou e deixou. De repente, Bonifacinho deu um grito:
— Largue meu cabelo!
Era Carola que disfarçadamente puxava o cabelo dele por trás da cadeira; Prudência inclinou-se para ralhar com ela e segurar-lhe a mão. Ela se irritou e escondeu a mão:
— Não puxei o cabelo dele!
— Puxou!
— Não puxei, mentiroso!
Por baixo da mesa Bonifacinho deu-lhe um pontapé e ela correspondeu com outro; Cristina, sentada entre os dois, levou um pontapé na perna; contou a mamãe:
— Mamãe, eles estão brigando por baixo da mesa, levei um pontapé.
Pedi que ficassem quietos, do contrário deixariam a sala e iriam comer na cozinha; fizeram caretas para mim; então mamãe ralhou com ambos e ameaçou-os de castigo. Fortunato, no lado de Leopoldina, fazia de longe sinais a Bonifacinho para que desse um beliscão na priminha Carola; e com a mão para cima, dava beliscões no ar; quando Leopoldina percebeu, deu um tapinha na mão do filho e Fortunato fez cara de choro. Bonifacinho, inclinado sobre a xícara de leite, afastava de vez em quando para um lado os cachos de cabelo que quase lhe caíam dentro do leite; comeu mais bolo e pediu licença para levantar-se; queria brincar com Fortunato no quarto de costura. Quando passou por trás da cadeira de Carola, com gesto rápido puxou-lhe as tranças e saiu correndo. Carola deu um grito e quis correr atrás dele, mas Prudência segurou-a na cadeira. Mamãe mandou Bonifacinho voltar e colocou-o de castigo, de pé, num canto da sala; mal-humorado, ele se encaminhou para o canto e ficou de frente para nós, fazendo caretas e pondo a língua para Carola. Nesse instante, ouvimos o ruído de uma carruagem parar à frente da casa; pensamos que fosse papai que estivesse de volta; o mordomo entrou anunciando visitas; todos nos entreolhamos. Visitas num dia assim?
— Quem, Benedito? perguntou mamãe.
— A Baronesa de Sobral e D. Escolástica.
— D. Escolástica? A Baronesa de Sobral?
Benedito saiu e Leopoldina observou com voz maliciosa:
— Vieram à cata de notícias, as novidadeiras! Vivem falando cousas!
Mamãe levantou-se e censurou Leopoldina mostrando as crianças:
Leopoldina!
Leopoldina entregou a criança adormecida à mucama, dizendo a Maria Letícia:
— Não apareça, Maria Letícia; elas só vieram para saber novidades, não lhes dê esse gosto.
Maria Letícia concordou em silêncio. Mamãe foi para o salão receber as visitas, enquanto Leopoldina se dirigiu ao nosso quarto a fim de passar um pente nos cabelos. Depois que deixaram a sala, Maria Letícia e eu vimos Bonifacinho deixar o canto sem pedir licença. Desanimada, fingi não ver a desobediência. Bonifacinho passou sorrateiro por trás da cadeira de Carola e estendeu o braço para puxar-lhe novamente as tranças, mas não conseguiu porque a mucama o impediu, enquanto Carola dava outro grito agudo. Levantamos a cabeça e olhamos para ele, carrancudas, mas Bonifacinho nem se importou, saiu da sala dando pinotes, os longos cabelos desgrenhados à volta do rosto, arrastando Fortunato pelo braço.
Leopoldina passou outra vez pela sala de jantar, dando de encontro com os meninos e, antes de entrar no salão, ralhou com eles; depois fez-me um sinal para que a acompanhasse e um gesto a Maria Letícia, mostrando a porta do salão.
— Velhas lambisgóias! sussurrou.
Endireitou a cabeça e, compondo um sorriso simpático, encaminhou-se para lá.
Sentada no sofá, ao lado de mamãe, a baronesa, magrinha e empinada, envolvida numa longa mantilha de lã, perguntava por todos da família:
— Então Francisca Miquelina foi embora? E está bem acostumada na fazenda? Gosta de lá?
Tinha o hábito de fazer duas ou três perguntas seguidas, sem esperar resposta; bastava a pessoa confirmar com a cabeça e ela já fazia outra, esquecendo as primeiras; com a vozinha fina, falava sem parar. D. Escolástica, numa cadeira ao lado, confirmava tudo, intercalando uma ou outra observação na conversa:
-— Temos tido mau tempo, muita chuva e muito frio. As lavouras devem sofrer bastante este ano; dizem que vamos ter geada. Ah! Que tempo!
Sentada na beirada da cadeira, o busto muito erguido, a baronesa perguntava:
— E seus filhinhos, Leopoldina? Como vão?
— Todos bem, baronesa. E seus netos?
— Vão bem agora. O último teve caxumba, creio que apanhou no dia da procissão de Corpus Christi. Essas doenças parece que andam no ar. Saiu de anjo na procissão e voltou com caxumba. Agora vai bem.
Adelaide e Cristina entraram; cumprimentaram as visitas e, pedindo licença às senhoras, sentaram-se comportadas e silenciosas. A baronesa continuou:
— Está com mais duas moças em casa, sim senhora! E duas lindas moças. Penso que vamos ter muito breve outras festas de casamento. Multo breve.
As duas coraram, sob o olhar agudo da baronesa, que continuou:
— Como ia dizendo, as doenças andam no ar, mas todos os seus estão bons, não é verdade?
Leopoldina mexeu-se na cadeira e respondeu em lugar de mamãe:
— Todos com saúde, sim senhora. E isso é difícil em família tão grande como a nossa. Meu último filho está forte e gordo; vou mandar trazê-lo para as senhoras verem. Tenho multo leite. Francisca Miquelina também tem leite bastante, a menina dela vai de vento em popa.
Senti que a Baronesa de Sobral tinha outra pergunta nos lábios, mas faltou-lhe coragem para fazê-la, ante a atitude resoluta de Leopoldina. Começou então a falar nas suas fazendas, nos escravos e no café, para ganhar tempo.
— Pois, como ia dizendo, há muitas surpresas nas famílias, e há muitos perigos também. Nunca contei a história das cobras que havia nas minhas terras? A minha amiga Escolina deve lembrar-se.
D. Escolástica confirmou com animação; nós dissemos não com as cabeças. Ela continuou:
— Foi ainda no tempo do barão, meu marido; tínhamos um rio atravessando parte das nossas terras; era um afluente e esse rio formava uma espécie de ilha, não muito longe da casa grande. Tínhamos criação de gado; começamos a observar que todas as reses que iam parar na ilha, em busca de capim mais tenro, morriam. Os escravos vinham contar todos os dias e o prejuízo estava-se tornando grande; eu disse um dia ao barão: "O senhor deve mandar ver o que há naquela ilha. Ou é planta venenosa ou é cobra que mata as nossas reses".
O barão era um bom homem, mas não me deu fé, não acreditava em prosa de mulher; e os animais continuavam a morrer; um dia desapareceu a nossa melhor vaca leiteira; mandamos procurar — estava morta na ilha, a barriga inchada.
Fizemos exclamações de susto; a baronesa prosseguiu:
— Senhor Barão, disse eu, dê ordem para os escravos irem ver o que há naquela ilha; e o barão, certo dia, chamou dois negros possantes, mandou enrolar bastante palha nas pernas deles, com algodãozinho por cima bem amarrado e bem justo até os joelhos, deu-lhes foices bem afiadas dizendo: "Vão ver o que há; se for cobra, matem tudo". Eu me lembro como se fosse hoje; ficamos esperando na beira do rio. Pois, donas, mataram tanta cobra como nunca vi. Fizemos montes assim de cobras mortas. (E ela fez um gesto exagerado mostrando grande altura.)
Leopoldina sentiu um arrepio de medo, enquanto as duas meninas e eu, encolhidas nas cadeiras, víamos cobras subindo nas nossas pernas. D. Escolástica falou:
— Acontecem muitas coisas assim quando se mora em fazenda; e, nas terras onde há muita cobra, todo cuidado é pouco. Em nossa fazenda também houve um caso mais ou menos assim...
Mamãe dirigiu-se a mim:
— Rosa, mande trazer café para as senhoras.
As visitas fizeram gestos hesitantes, levantando as mãos:
— Oh! Por quem é, não se incomode conosco. Não queremos dar trabalho.
Levantei-me para obedecer a minha mãe e D. Escolástica ficou contando uma história. Benedito trouxe a bandeja com café, bolos e sequilhos; nesse momento, a Baronesa de Sobral olhou para o lado de D. Escolástica e, com voz mais fina ainda, perguntou enrolando a franja da mantilha entre os dedos, voltando-se de súbito para mamãe:
— E Maria Letícia? Como vai?
Mamãe fez uma expressão de tristeza e respondeu:
— Vai indo regularmente. Coitada!
Animada com a palavra coitada, a Sobral entrou resolutamente no assunto:
— Pois quando soubemos lá em casa, ficamos muito tristes. Meus filhos e genros mostraram-se desolados; e até disseram: "Fernão Albuquerque e a mulher não mereciam isso; até não são maus para os escravos".
D. Escolástica também protestou com energia:
— Estive na minha fazenda durante a colheita e só soube quando cheguei, há três dias apenas! Ora vejam só! Como foi acontecer uma cousa dessas!
E, baixando a voz, inclinou-se para o lado de mamãe:
— Quando será o julgamento? Logo?
Leopoldina interveio:
— Nada sabemos ainda, D. Escolástica. Nada sabemos. Talvez seja daqui a um mês, dois ou três. Rosa, diga para Benedito trazer aquelas broinhas de fubá.
Ambas levantaram as mãos com protestos veementes:
— Não se incomode, Leopoldina. Ora esta! Não se incomode!
A Baronesa de Sobral acrescentou:
— Mas, como disse à Escolástica, tudo há de acabar bem, com a graça de Deus. Não será arte dos abolicionistas? Eles são perigosos e ameaçam céus e terras, mas nada poderão fazer com nossas consciências tranqüilas, nada. Foi o que eu disse lá em casa.
E servindo-se de mais café, começou a bebê-lo e a comer broinhas; suas mãos magras e secas moviam-se continuamente.
— Os abolicionistas nada conseguirão, afirmou. Estes sequilhos estão muito bem feitos. São de araruta? Na fazenda de um conhecido nosso, deu-se um caso semelhante, mas como não houve denúncia, muito pouca gente ficou sabendo. Dizem que a denúncia contra os viscondes partiu de uma carta anônima, não foi? Ora esta, como podem os outros saber o que se passa em nossa casa?
A Baronesa de Sobral pigarreou, arranjou o xale e insistiu com maldade:
— Aquela vizinha de Maria Letícia é mulher destemida, eu conheço os Menezes... Uma vez.
Interrompeu a frase e ficou com a mão no ar, observando Carola que, amarela e triste, entrou no salão, cumprimentou-as e, dando um pulinho, porque a cadeira era alta para ela, sentou-se ao lado de mamãe com uma boneca ao colo balançando as perninhas finas, suspensas no espaço. A baronesa tomou o fôlego:
- Então a menina Carola tem uma filhinha? E como se chama sua linda filhinha? Mas, como ia contando, os Menezes desconhecidos...
— Quer mais sequilhos, baronesa? interrompi. D. Escolástica, outra broinha? Não? Vou chamar Benedito para levar a bandeja.
Levantei-me para chamar Benedito. Sentindo um arrepio de frio, Carola encolheu-se ao lado de mamãe, aconchegando com carinho a bonequinha ao colo. A Baronesa de Sobral, teimosa, voltou ao assunto; ninguém queria falar no caso, mas ela teimou e falou. Com um simples olhar, mamãe fez um sinal às meninas para que deixassem o salão; saíram, e finalmente Carola também. Apertando a boneca de louça contra o peito atravessou o salão com seu passinho leve, tic-tac, e desapareceu por uma das portas. Como se combinadas, as visitas pulavam de um assunto a outro com incrível presteza e muita habilidade; D. Escolástica perguntou:
— E essa menina doente ficará sempre com a senhora?
Que pena e que cruz, minha senhora; eis uma cruz pesada.
Pobre mãe, que deixou esse encargo para a senhora! Mas um bom coração é bom coração e quem não sabe que a senhora o tem?
Deu um suspiro e ia continuar quando a Baronesa de Sobral a olhou com um olhar impaciente e interrompeu:
— Conheci D. Deolinda Menezes na fazenda do comendador, vizinha da fazenda de meu pai. Como ia contando, é uma mulher valente. Certa vez, incendiou-se o paiol da fazenda, na ausência do marido; D. Deolinda reuniu todos os negros e mandou erguer outro paiol. Começaram a resmungar e o feitor veio dizer que os escravos se recusavam a trabalhar porque já era noite, e estava chovendo. D. Deolinda não respondeu; entrou na casa, pegou a carabina, e foi sozinha enfrentar a negrada; perguntou com voz macia, a carabina no ombro:
"Quem disse que não quer trabalhar? Quem foi?" Ninguém respondeu. Todos sabiam que ela atira num pássaro voando. Levantaram o paiol nessa mesma noite, e ela passou a noite ali, vigiando debaixo de chuva. Não tem medo de nada, é valentona.
Houve outra pausa, ouviu-se a chuva que caía sobre a cidade, numa desolação. Voltou ao assunto:
— Então, nada se sabe do julgamento? Ora, tudo há de acabar bem.
D. Escolástica acrescentou:
— Naturalmente que tudo há de sair bem, pois Fernão Seixas e Maria Letícia não merecem sofrer. Ela está aqui com a senhora?
Leopoldina falou:
— Temos esperança de que tudo acabará bem. Está aqui, sim, senhora.
E dirigindo-se para a Sobral, perguntou:
— Sua filha Sinhá está na cidade? Há quanto tempo não a vejo!
Vendo que o assunto não se encaminhava conforme seu desejo, a Sobral falou ligeiramente sobre a filha e convidou D. Escolástica para sair; ao despedir-se, ainda desejaram que tudo acabasse bem. Entraram na carruagem e partiram.
Voltando à sala de jantar, encontramos Maria Letícia conversando com Adelaide e Cristina; então Leopoldina fingiu que se enrolava numa longa mantilha, e com o busto teso, a voz fina, preparou-se para imitar a Baronesa de Sobral. Perguntou a Maria Letícia:
— Quer ver, mana, como faz a Sobral?
Percebi que o único intuito de Leopoldina era distrair Maria Letícia que estava sempre tão triste. Pigarreando, Leopoldina começou a imitar a voz da baronesa: "Pois que tudo acabe bem, são os meus votos, e meus maiores desejos. Passe bem, minha senhora, passe bem, Leopoldina. Adeus, Rosa. Recomende-me à Maria Letícia. Adeus, adeus, que chuva meu Deus! Recomende-me às outras filhas também e ao barão e a todos. Não sentem frio? Meu Deus, que frio! Adeusinho! Passem bem!"
Começamos a rir. Vendo que Maria Letícia também estava sorrindo, Leopoldina continuou:
—- Agora a Sobral dançando a quadrilha. Olhe Maria Letícia: En avant! Tour! Promenade à droit! Â gaúche! Retourné! Galop!
E Leopoldina virava, revirava, voltava dando pulinhos, o busto muito erguido, dizendo de vez em quando com vozinha fina: Oh! Mon Dieu! Mon Dieu! A saia rodada fazia voltas no ar varrendo tudo que estava ao alcance e Leopoldina, vermelha e mimada pela brincadeira, exagerava cada vez mais, dando pulos cada vez mais altos. Atraídas pelo barulho, as crianças foram aparecendo acompanhadas das mucamas. Fortunato batia palmas: "Olhe mamãe dançando!" As duas meninas, com as mãos nas cinturas, curvaram-se de tanto rir; mamãe ria discretamente e recomendava:
— Pare com isso, Leopoldina, pode fazer mal para o seu leite!
Mas Leopoldina viu Maria Letícia rir com vontade e quanto mais esta ria, mais ela dançava, pulava, exagerava. Carola ficou num canto olhando, a boneca apertada contra o peito; sorriu muito de leve quando viu a prima Leopoldina dançando sozinha, depois deu uma risadinha alegre e de repente começou a rir, a rir que não parava mais, os olhos úmidos, à boca aberta. Como aquilo era engraçado! Leopoldina dava uns pulinhos e dizia imitando voz de homem: Grande chaine! Tour au centre! E quando dizia Galop, arrastava tudo com ela; da última vez, levou Bonifacinho, Fortunato, Cristina, Adelaide. Foi uma correria e uma delícia a brincadeira: Maria Letícia ria, esquecida de tudo, os olhos alegres, a fisionomia feliz. Só cessou o barulho quando papai e nossos irmãos entraram sisudos e preocupados, trazendo notícias de Fernão; sacudindo os chapéus úmidos da chuva, tirando as capas molhadas, espalharam pela sala, falando alto e fazendo barulho. Até as crianças ficaram imóveis, esperando qualquer cousa estranha, como se de repente aquele mundo alegre em que estavam vivendo tivesse virado às avessas e um mundo triste surgisse de súbito para os aniquilar. Suspensas e com olhos espantados, ficaram olhando para papai, esperando sem saber o que, num gesto de proteção; Carola apertou mais a boneca contra si, como se receasse perdê-la.
E Maria Letícia, concentrada e triste de novo, levantou os olhos para papai, numa interrogação, os belos olhos azuis aflitos e inquietos.
Papai foi o primeiro a falar, quebrando o opressivo silêncio da sala:
— Nada de novo, minha filha. Tudo corre bem e seu marido manda lembranças. Está passando bem.
— E o julgamento, papai?
— Nada se sabe ao certo, mas provavelmente será na próxima semana. Não se preocupe tanto; já falei hoje, corri diversas pessoas e todos são unânimes em dizer que Fernão Seixas não tem de que se preocupar.
Félix acrescentou:
— Maria Letícia, foi muito nobre da parte de seu marido chamar a si toda a responsabilidade. Mostra que é de boa raça.
Mamãe mandou servir vinho do Porto porque se estavam queixando de frio; de pé, os cálices nas mãos, continuavam a conversar sobre o caso. Papai pediu o jantar:
— Esse jantar não vem? Já é tarde e estamos com fome.
Apressei-me em mandar servi-lo; a mesa já estava estendida; outros lampiões foram acesos sobre ela. A tarde caía rapidamente e, apesar de não ser ainda cinco horas, parecia noite fechada.
O frio aumentara também; toda a sala estava com as janelas cerradas, mas o vento frio penetrava assim mesmo, como agulhas finas que faziam as mãos doerem e as faces tornarem-se geladas. Tio Antônio entrou comentando o mau tempo e esfregando as mãos; Leopoldina, que fora ver o filho, voltou com ele no colo, bem embrulhado numa manta escocesa. Modesta veio queixar-se de que António Fernão estava impertinente e não queria comer, talvez fosse o frio; mamãe aconselhou:
—- Enrole-o em mais um cobertor, Rosa, no quarto de hóspedes, no fim do corredor, à esquerda, há muitos cobertores.
Maria Letícia levantou-se para acudir o filho: fui ver o cobertor. Passando perto de papai, ela perguntou num tom hesitante:
— Ele tem... bons agasalhos?
— Tem mais de um cobertor. Não se preocupe. E esse jantar?
Sentamos todos à volta da mesa. O marido de Leopoldina chegou um pouco atrasado; estivera tratando do embarque de um café e a chuva atrasara o serviço. Maria Letícia voltou e sentou-se também; tomamos a sopa quase sem falar; na mesa comprida, onde havia mais de vinte pessoas entre grandes e pequenos, só se ouvia o leve ruído das colheres sobre os pratos e o cair da chuva lá fora. De repente, papai levantou a cabeça, passou o guardanapo na boca e disse a Félix, sentado à sua esquerda:
— O que me aborrece são as testemunhas; são muitas e todas dizem a mesma cousa. Isso vai pesar no julgamento.
Voltara a falar no assunto; Maria Letícia ficou imóvel esperando a resposta do irmão; Félix olhou-a de soslaio e, vendo-a com uma aparência tão calma, respondeu:
— Meu pai esquece-se das testemunhas a favor; Fernão Seixas é um homem de coração, nunca mandou castigar severamente os escravos, apenas castigos leves. Ademais, as testemunhas da parte contrária podem estar coagidas.
— Ah! Isso não, protestou papai. Não havia inimizade na vizinhança, pelo contrário, até se visitavam. Por que motivo obrigar os escravos a mentir?
Maria Letícia levantou a cabeça e fitou papai com uma expressão revoltada:
— Então papai acredita que eu dei essa ordem? O senhor também, meu pai?
Papai voltou-se para ela:
— Nunca, minha filha. Tenho a certeza de que minha filha nunca daria uma ordem dessa natureza, tão bárbara assim.
Leopoldina perguntou:
— O que diz o advogado, papai? Ele acredita que Maria Letícia deu a ordem?
Papai ficou um pouco embaraçado; Luís respondeu por ele:
— É isso que as testemunhas dizem; todas dizem a mesma cousa, dizem que ouviram Maria Letícia ordenar...
Félix interrompeu:
— O advogado Simões nos contou hoje em particular...
Eu já estava aflita com o rumo da conversa; mamãe e Alberto falaram quase ao mesmo tempo:
— Não devemos tratar do assunto agora...
E mostraram as crianças no fim da mesa; as mucamas haviam cortado os pedaços de frango que elas comiam em silêncio olhando para os pratos; só Carola espiava os grandes, interessada no que eles falavam.
Leopoldina impacientou-se:
— Não devemos tratar do caso a todo momento, ainda mais na mesa; já tínhamos combinado isso, mas os manos se esquecem...
Augusto deu uma risadinha:
— Ora, quem é que estava tão interessada em saber?
E mostrou Leopoldina. Tio António olhou rapidamente para o lado de Maria Letícia:
— Nunca se deve aumentar a aflição dos aflitos.
Perguntou ao marido de Leopoldina:
— Embarcou muito café hoje?
Falaram longamente a respeito do café; Maria Letícia virava e revirava a comida no prato, mas não pôde jantar. Percebi o que a martirizava a todo o momento: queria adivinhar o que nosso pai e irmãos pensavam dela. Acreditariam que ela tivesse dado aquela ordem?
Depois do jantar, os homens foram para a saleta vizinha fumar charutos e tomar licor. Mamã Zabel entrou como que rolando, a grande saia engomada varrendo o chão; veio contar que chegara um feitor de Guararema trazendo Luís Mina, o escravo cego. As crianças ficaram assanhadas; queriam ver o cego. Leopoldina, Maria Letícia e eu nos levantamos para ir ver o que havia e as crianças correram na frente. Num canto da cozinha, Luís Mina tinha acabado de jantar; estava sentado num banco baixo, as duas mãos apoiadas sobre um pau que servia de bengala, o corpo inclinado para a frente, olhando fixamente um ponto do chão. Os olhos sem vida eram avermelhados, os cabelos cinzentos formavam uma espécie de carapuça sobre sua cabeça e a fisionomia imóvel tinha uma expressão intensa de desalento. As crianças pararam em frente dele, olhando-o com curiosidade; de repente, Bonifacinho passou a mão bem perto do rosto de Luís Mina para ver se era cego de verdade; o escravo continuou imóvel, Fortunato então avançou o dedinho diretamente ao nariz do cego e Luís Mina, como se fosse de pedra, não se moveu.
Entramos na cozinha e Luís Mina levantou-se; olhou para o nosso lado e, guiado por nossas vozes, disse: "Suns Cristo, Sinhás". Leopoldina perguntou o que havia e por que viera de Guararema.
Luís Mina era um escravo alforriado, mas por ser cego, continuara na fazenda debulhando milho, o único serviço que podia fazer. Contou que viera consultar um médico da cidade; o feitor tinha que vir a S. Paulo, para falar com Sinhô barão e ele viera também; andava muito doente, com pontadas no lado esquerdo. Leopoldina animou-o dizendo que no dia seguinte o Dr. Maranhão haveria de examiná-lo e dar-lhe um remédio. Perguntei:
— Não teve medo de vir numa noite assim, Luís Mina? Tão fria e tão escura?
Ele sorriu mostrando as gengivas vermelhas:
— Ah! Sinhazinha, eu vivo na noite escura. Pra mim não há dia, nem luz. Tudo escuro. É uma noite sem fim.
E riu, mostrando os olhos que pareciam duas brasas, num gesto resignado de renúncia. Leopoldina olhou-me com ar de censura e eu sorri, embaraçada, dizendo:
— É verdade, Luís Mina, eu tinha esquecido.
Deixamos a cozinha. Ficamos ainda na sala de jantar depois que as crianças foram para os quartos. Maria Letícia queria saber mais; perguntou a papai o que as testemunhas diziam contra ela. Papai hesitou:
— Dizem que... Maria Letícia deu ordem ao feitor de dar na escrava até matar. Todos dizem a mesma cousa.
— Mas, meu pai, como podem dizer isso? As testemunhas ouviram? Onde estavam? Eis o que não posso compreender...
E ficou olhando fixamente a mesa; passei o braço sobre seu ombro:
— Não se preocupe; ninguém acredita que você pudesse dar essa ordem. Decerto são testemunhas compradas.
— Mas por quem, mana? Quem compraria essas testemunhas para nos acusar?
Leopoldina falou em voz baixa:
— Não seriam os abolicionistas? Tenho quase certeza.
Maria Letícia sacudiu o ombro num gesto de desalento; houve um largo silêncio. Olhou um por um à volta da sala; ninguém reparava nela, estavam distraídos e pareciam pensar em suas próprias atribulações. Levantou-se então dizendo boa noite aos irmãos e, pedindo a bênção a papai e mamãe, chamou-me para ir com ela ao quarto. Era o mesmo quarto grande que ocupávamos quando ela e Francisca Miquelina eram solteiras. Lá estavam a cama da nossa irmã, num canto, e ao lado da sua, o berço de António Fernão. Olhamos a criança; dormia calmamente, bem agasalhada, as mãos ocultas sob as cobertas. A luz fraca da lamparina ardia sobre o oratório; assim mesmo no escuro começamos a nos despir. O frio era intenso. Maria Letícia olhou mais uma vez o filho para ver se estava bem coberto; agasalhou-o mais. De camisola, sentada na cama, pediu-me para penteá-la; desfiz-lhe os cabelos repartindo-os ao meio e fiz duas tranças. Ela deitou-se e tentou rezar, mas não o conseguiu; fixou a imagem de Nossa Senhora do Rosário; a chamazinha às vezes aumentava, às vezes diminuía. E tremulava sempre. Tremulava. Maria Letícia começou a falar:
— Por minha causa, Fernão está sofrendo, mana Rosa; está passando humilhações, vergonha, até frio talvez. É esquisito, mas nunca pensei que alguém pudesse sofrer assim. Só agora, porque estou sofrendo, vejo sofrimento em toda a parte.
Tenho impressão que é só olhar à minha volta...
Deitei-me na cama ao lado e fiquei quieta; ela continuou:
— Quando a gente é feliz, só pensa na própria felicidade e não imagina que há sofrimento, mas o sofrimento existe. A dor existe. Creio que o sofrimento e a dor são como a sombra que surge de repente e ofusca a luz, tapando a claridade. Parece que tudo submerge nas trevas, então a luz se torna um ponto inacessível, tão distante e tão difícil de ser atingida que a gente sente um impulso de submergir, também, no desespero. Não acha que é assim?
— Acho.
— Veja um pouco nossa vida agora. Não estamos vivendo nas trevas?
Não respondi e ela tornou a perguntar:
— Não acha boa a comparação?
— Acho.
— Só agora reparo na desgraça alheia, nunca antes tinha pensado nisso. Veja o escravo cego, por exemplo. Meu Deus! Viver sem nunca ver a luz, o sol, a beleza do mundo, as flores do caminho... Não ver nada. Nada. De dia e de noite, escuridão. Os olhos abertos, olhos fechados, escuridão. Meu Deus! Nunca reparei nos cegos. E nossa prima corcundinha, mana Rosa? Por enquanto, ainda é criança e não sabe avaliar seu sofrimento mas quando for grande, quando for moça e vir todas as moças alegres e bonitas, só ela triste e feia... e levar eternamente aquele peso nas costas, aquela coisa que todo o amor de tia Leontina não conseguiu tirar, que todo o dinheiro do titio não pôde curar... Olhei a chama da lamparina e fiquei seguindo seus movimentos. Maria Letícia tornou a falar:
— E Francisca Miquelina? Em seu próprio lar, ser desprezada, humilhada assim? Ver a outra preferida, uma escrava, Uma negra. Ser trocada por uma negra. Não é horrível, mana Rosa?
— É!
— E nada poder fazer; apenas ficar quieta e fingir. Fingir que ignora e saber que toda a fazenda sabe e comenta. Como pode viver assim?! Ah! Isso eu não suportaria, preferia morrer. Não sou orgulhosa, mas suportar tamanha humilhação, eu não poderia. E você, mana Rosa? Suportaria isso?
— Não sei, mas creio que sim. O que se pode fazer?
— É porque você e Francisca Miquelina são medrosas, tímidas demais. Queria ver se fosse comigo!
Houve uma pausa. Ela continuou:
— Lembra-se da tia Sousa Mendes? Quanto não terá sofrido? Saber que a escrava manda mais que ela, até nos negócios do tio? E depois uma escrava altaneira e mandona. E a tia fecha os olhos, finge que não sabe de nada. Mas deve sofrer. Você não acha?
— Acho.
— E quantas outras? Agora nossa própria irmã sofre a mesma humilhação.
Puxei mais as cobertas e olhei a luz da lamparina; às vezes ia diminuindo, diminuindo, parecia extinguir-se, mas revivia e dava saltos como se uma simples chama pudesse sentir a alegria de viver. Maria Letícia também olhava a lamparina; depois estendeu o braço e apalpou o filho para ver se conservava as mãos cobertas. Perguntei:
— Ele está quentinho?
— Está. E Fernão? Você acha que ele está sentindo frio? Eu não quero pensar nele, mas penso. Antes pensasse no Luís Mina. Pobre cego!
Ouvimos a chuva que caía sem parar; batia na vidraça com um ruído suave, macio, como se não quisesse perturbar nossos pensamentos; caía nas paredes das casas, na lama das ruas, nos lampiões de querosene, nas telhas escuras, inundando e entristecendo a cidade. Pensei também: "Como pode haver testemunhas se Maria Letícia deu a ordem em casa dela e ninguém estava perto? Afinal ela não deu essa ordem; mas quem vai acreditar que não deu? E Fernão, que tomou a si toda a responsabilidade? Como se justificará no dia do julgamento? O que irá dizer? É melhor não pensar". Ouvi a voz de Maria Letícia:
— Estou há meia hora olhando as feições de Nossa Senhora; será que ela sofreu muito?
— Quem? Nossa Senhora? Sofreu, sim.
— E será que foi bonita?
— Não sei, mas creio que sim.
A luz da lamparina tremia, pulava, saltava, desenhando sombras nas paredes do quarto; as sombras desenhavam estranhas figuras. Maria Letícia tornou a falar:
— Na vida também é assim, como a luz da lamparina; a alegria e a tristeza, a subida e a descida, a felicidade e a desventura, a luz e a sombra. Estou agora na sombra. Tudo é escuro à minha volta, como esta própria noite. Tudo... Você acha que a luz voltará?
Com os olhos fixos na imagem de Nossa Senhora, Maria Letícia adormeceu logo depois.
O dia do julgamento amanheceu escuro e frio; o vento sul varria a cidade de leste a oeste fazendo os grandes lampiões de querosene oscilarem nos seus braços de ferro com rangidos sombrios. Poucas pessoas se atreviam a andar pelas ruas, mas, apesar do frio e do vento, a sala do Tribunal do Júri ficou completamente cheia, segundo nos informaram depois nossos irmãos. Toda S. Paulo quis assistir ao julgamento de Fernão e quando ele apareceu entre dois soldados e sentou-se no banco dos réus, um silêncio impressionante caiu sobre o recinto.
Passamos o dia todo a consolar Maria Letícia, procurando infundir-lhe ânimo, e, para acalmá-la, de quando em quando eu trazia um chá de folhas de laranjeira que ela tomava aos golinhos, os olhos rasos d'água. Foi o único dia em que chorou diante de mamãe e das outras irmãs. Sempre procurara mostrar-se calma, como se cousa alguma pudesse atingi-la.
Caiu a noite, uma frígida noite de agosto; o frio aumentara; as horas passavam com uma lentidão inexorável. De dez em dez minutos, Leopoldina mandava o moleque Lucas até à esquina, para ver se Benedito vinha vindo com alguma notícia, pois papai ficou de mandar Benedito com o resultado. Já era tarde, quando Benedito entrou pela sala adentro, o rosto aberto num largo sorriso; levantamo-nos todas ao mesmo tempo e ficamos de pé diante dele que repetiu a seu modo as palavras de papai:
— Diga lá em casa que tudo cabô bem; Sinhô Fernão está livre.
Foi um grande alívio. Momentos depois, Fernão entrou em casa acompanhado por parentes e amigos que ainda lhe davam parabéns e o abraçavam, comovidos. Maria Letícia esperou-o com o tranqüilo sorriso nos lábios, mas, quando viu o marido um pouco pálido ainda e com uma expressão tristonha no rosto, abraçou-o chorando. Félix sorriu:
— Que é isso, mana? Em vez de rir, está chorando?
Augusto sugeriu:
— Se tudo acabou bem, vamos festejar condignamente, em vez de chorar.
Lourenço exultou:
— A corrente abolicionista nada conseguiu desta vez. E papai gritou para Benedito.
— Benedito, traga o conhaque Napoléon.
O Dr. Maranhão, o Cônego Soares, o Lopes, rodeavam Fernão; Maria Letícia, sentada ao lado dele, pedia pormenores do julgamento. Alberto, tio Antônio e os outros irmãos repisavam os fatos passados na sala do Tribunal insistindo em que o Dr. Simões lançara por terra de modo brilhante as torpes acusações das testemunhas. Foi então que o Lopes contou de uma maneira magnífica o que acontecera no Tribunal do Júri.
Todos nós escutamos atentamente, não querendo perder uma só palavra e ficamos cientes de tudo o que se passara. Com o copo de conhaque numa das mãos, com a outra o velho Lopes fazia largos gestos descrevendo o que sucedera:
— Fernão Seixas respondeu com serenidade às perguntas do juiz; declarou seu nome, idade, naturalidade, estado, profissão e residência. Perguntaram-lhe em seguida onde se achava no dia dezoito de junho de 1872, o dia em que se verificou a morte da escrava Inocência. Respondeu que estava em casa dormindo e só soube da morte no dia seguinte cedo, pois a escrava faleceu durante a noite; mandou levá-la então ao cemitério.
Perguntaram-lhe de que faleceu sua escrava Inocência, e como teve conhecimento. Respondeu que na sua convicção e no parecer do médico da família, o Dr. Maranhão, a escrava havia morrido de uma síncope. Soube por sua esposa no dia seguinte e esta ouviu a notícia de sua escrava Modesta...
Papai interrompeu:
— Perguntaram também o que fez ao ter a notícia...
O velho Lopes levantou a mão pedindo que esperasse; levou o copo bojudo aos lábios e tomou um gole.
— Perguntaram-lhe o que fez ao ter notícia. Respondeu que, tendo sido inúteis todos os esforços feitos para salvar a escrava, resolveu então enviar o escravo de nome Tomásio ao Rev. Cura da Sé, e a este pedir o atestado de óbito para o sepultamento da referida escrava, visto que o médico Dr. Maranhão, a quem havia mandado chamar, estava ausente de S. Paulo.
Perguntaram-lhe o porquê da urgência com que havia providenciado para o enterramento. Respondeu que, na sua boa fé, vendo que nada mais havia a fazer, preferiu que o cadáver seguisse para o cemitério e lá ficasse depositado, se necessário, em vez de permanecer em sua casa.
Tio Antônio interrompeu desta vez:
— Nesse ponto está o erro capital. Nunca deviam mandar imediatamente para o cemitério o cadáver da escrava. Deviam enterrá-lo à tarde e não de manhã; o corpo devia ficar na chácara.
Fernão sacudiu os ombros:
— Como podia eu imaginar que ia acontecer o que aconteceu, se tinha a consciência tranqüila?
O Lopes continuou:
— Perguntaram-lhe se alguma pessoa da família ou alguém da casa havia dado ordem para o sepultamento ser feito com urgência, conforme o depoimento das testemunhas. Respondeu que pode asseverar que não, ninguém da família ou da casa deu essa ordem e não lhe consta que alguma pessoa tivesse feito tal recomendação.
Alberto perguntou:
— Houve testemunhas que ouviram a ordem de sepultar com urgência?
— Houve.
O Lopes fez uma pausa:
— Perguntaram-lhe se a escrava Inocência sofreu os castigos constantes do libelo oficial e quais e quantas vezes cada dia e por quem foi isso feito e executado, e bem assim por quem ordenados esses castigos. Respondeu que efetivamente a escrava havia sofrido no dia de seu falecimento alguns castigos, mas não tantos como se diz, e que esses castigos foram em conseqüência de desmandos e desobediência, tendo mandado que, depoente, aplicar os castigos pelo seu feitor Joaquim. Disse mais que os castigos em questão tiveram lugar nesse dia 18 e não em dias consecutivos, como caluniosamente afirmaram algumas testemunhas, tendo ele o costume de só mandar aplicar castigos com o fim de corrigir, retirando assim a calúnia que lhe assacaram.
Nesse ponto, o juiz observou ao interrogado, como lhe pareceu a bem do interesse da verdade e como objeto principal de toda indagação da Justiça, que falasse com sinceridade ao Tribunal, independentemente de qualquer movimento de sua vontade ou em razão do seu título e posição como chefe de família, na presente situação, dizendo qual a parte de responsabilidade que lhe cabia pelos fatos constantes da acusação, bem como a parte da responsabilidade que cabia à co-pronunciada mulher do acusado. Respondeu que tendo anteriormente dado as mesmas ordens, como tinha o governo da casa, essas por sua responsabilidade eram executadas, sendo ele, portanto, quem mandou aplicar os castigos em questão (estando sua mulher em estado delicado de saúde), declarando que considera o fato da morte da escrava uma infelicidade pela qual não pode dar explicações, mas que seria incapaz de mandar praticar barbaridades.
Perguntaram-lhe quais os médicos que deram parecer sobre a morte da escrava. Respondeu que um parecer foi dado nesta cidade pelo Dr. Romualdo Maranhão e outro pelo Dr. Luís Suzano, médico da corte.
Félix interrompeu perguntando se Fernão conhecia as testemunhas que o acusaram; o Lopes retomou a palavra:
— Perguntaram-lhe também isso; se conhecia as testemunhas e se tinha razões particulares a que atribuir o seu depoimento. Respondeu que conhecia algumas apenas de vista, e não tinha motivos nem razões, a não ser a má vontade, a que atribuir tal depoimento.
Perguntaram-lhe também se tinha fatos ou cousas a alegar ou motivos que provassem ou mostrassem sua inocência. Respondeu que sim e que a defesa os apresentaria na esperança de provar a verdade. Perguntaram-lhe finalmente se tinha alguma declaração a fazer ou algum fato a esclarecer ao Tribunal, a bem da verdade e da Justiça. Respondeu que tinha documentos e que estes seriam apresentados pelo advogado de defesa.
Houve um longo silêncio na sala quando o velho Lopes acabou de falar. Tio Antônio fez uma observação:
— A acusação foi forte; acusou firmada nas testemunhas e nos depoimentos. O promotor citou as testemunhas uma por uma e historiou os fatos; disse que a maioria dos escravos de D. Deolinda Menezes ouviu a ordem dada ao feitor por Maria Letícia como também quando a escrava foi açoitada, pois dava gritos agudos, pedindo que não batessem mais pelo amor de Deus.
Maria Letícia, pálida, ouvia atentamente as palavras de tio António. De repente perguntou:
— D. Deolinda também ouviu a ordem, tio Antônio?
Félix respondeu por tio António:
— Diz que não, por que não estava em casa nesse dia, mas quando chegou no dia seguinte ficou ciente, por sua escrava Raimunda, que na casa vizinha haviam matado uma escrava com açoites.
Leopoldina abafou um gritinho:
— Impossível! Que mentira!
O Lopes tornou a falar:
— Outras testemunhas também depuseram dizendo que no dia 19 de junho viram passar uma rede ensangüentada levada por dois negros que conduziam um cadáver ao cemitério.
E o interessante é que dois escravos do comendador Menezes estavam no cemitério a essa hora e ouviram os escravos que levavam a rede pedirem para enterrarem o cadáver com a maior urgência possível.
Fernão sacudiu a cabeça e disse num tom desanimado:
— Isso não posso compreender, pois não dei ordem nenhuma nesse sentido. Por que enterrar a escrava com urgência?
Alberto acrescentou:
— Eu não entendo nada. Onde estavam as testemunhas que ouviram quase tudo? E como ouviram?
Papai contou que a acusação durou muitas horas; nos intervalos que se faziam algumas vezes, ouvia-se o vento assobiar através das ruas e os lampiões rangerem nos braços de ferro. Foi reaberta a sessão e Fernão foi novamente conduzido à presença do Júri; os debates prosseguiram. O advogado da defesa começou com estas palavras: "Por entre as Inumas de um túmulo, envolto na mudez irremediável da morte, vela-se um mistério que a inteligência humana não pode descobrir".
Contaram então que o advogado Simões falou com voz magnífica, que atroava fortemente pelo recinto; foi imponente na defesa. Examinou com detalhes o auto de corpo de delito para chegar à conclusão de que este não confirmava o atestado e parecer médicos atribuindo causa natural à morte da escrava Inocência. Analisou os depoimentos das testemunhas, depois de estudar-lhes a idoneidade moral, e apontou contradições insofismáveis que convenciam da mendacidade de tais testemunhas. Depois de duas horas, encerrou seu trabalho com estas palavras: "Senhores jurados! Neste processo, de que a verdade fugiu como a sombra batida pelo sol, estão em jogo, não apenas a liberdade e a reputação do acusado, o que é muito, mas o prestígio da Justiça, que é tudo. Nesta hora trágica, em que a noite expira e o dia vem raiando, a Justiça sois vós, Juízes de fato e de consciência; sois, sim, a Justiça, mas essa Justiça que eleva e dignifica, operando ressurreições, e não a que se confunde na preamar das paixões que mentem, enganam e envilecem a humanidade. Sois a Justiça que não condena sem provas certas, claras e incontestáveis, respondendo aos que acusam sem oferecer essas provas, pois a dúvida equivale à convicção de inocência. Tudo nesta causa é dúvida, menos a segurança de que o acusado com a lógica dos fatos e das circunstâncias, com seu passado ilibado e nobre, respondeu vantajosamente as reticências, sem máscaras de perfídias, dos urdidores da trama que havia de rematar nesse processo. A trama, porém, repelida pelo veredictum absolutório, que vos adjuro a proferirdes, senhores jurados, em nome da Justiça, não impediu e nem impedirá que o acusado transmita a seus filhos o legado supremo de um nome honrado e respeitável".
Copiei as palavras do advogado e a história toda do processo de um folheto que papai mandou imprimir, o caso de Fernão, como chamávamos. Assim terminou o processo com a absolvição de Fernão, Visconde de Santarém e do feitor Joaquim, igualmente considerado sem culpa.
Tomamos chá enquanto os homens tomavam conhaque; depois, papai tirou o relógio do bolso:
— Meus filhos e amigos, devemos dar graças a Deus porque tudo terminou bem, e para nossa felicidade. Hoje está começando um novo dia, e vamos procurar esquecer o que se passou.
Todos se levantaram para se recolher; os amigos deixaram a casa. Fui para o quarto onde Adelaide e Cristina já estavam recolhidas e, mal me tinha deitado, Maria Letícia entrou com uma vela na mão. Sentei-me na cama, encarando-a.
— Que há, Maria Letícia?
Ela falou em voz baixa tapando a chama da vela com a mão direita.
— Embarcamos para a Europa no primeiro vapor, mana Rosa. Meu marido não se sente com coragem para continuar aqui.
— Para a Europa? Tão longe? Por que não vão para Santarém?
— Fernão disse que prefere a Europa; não quer mais ver esse advogado que o acusou tão fortemente, esses jurados que o olhavam, o juiz que o interrogou como quem interroga um negro fugido. Diz que não pode continuar aqui, quer ir para longe...
Sentada na cama, fiquei imóvel, olhando para Maria Letícia que, a meu lado, continuava:
— Falei para ele ter coragem, tudo já passou e acabou bem, não devia ficar assim desanimado, mas foi inútil; quer ir embora. Disse que falo assim porque não passei pelo que ele passou, as noites sem sono, as horas incertas, a dúvida, a depressão que sentiu quando o advogado Simões relatou o depoimento das testemunhas. Disse que não pode, que adoecerá se ficar.
— E a chácara? perguntei.
— Diz que o mano André tomará conta, até já falou com ele.
— E a fazenda?
— O mano André também olhará pela fazenda; e o administrador é muito trabalhador e muito honesto. Diz que tem confiança.
— Houve um silêncio. Depois perguntei:
— E o filho que você está esperando? Como é?
— Falei também sobre isso: disse que a viagem levará uns trinta e poucos dias e, como espero só lá para o fim do ano, posso ter a criança lá. O navio em que vamos é o Dussant, que passa daqui a quinze dias. Diz que o advogado já tomou as providências e o navio é grande e cômodo. Amanhã já vou começar a preparar tudo; vou pedir a papai para emprestar-me as malas grandes.
— Novo silêncio. Perguntei:
— Para onde vão?
— Para a França.
— Por quanto tempo?
— Não sei ainda, talvez uns seis meses. Passa depressa.
Maria Letícia ficou olhando para mim; levantou mais a vela para me ver melhor. De repente, sussurrou:
— Mana Rosa, pode fazer-me um favor?
— Favor? Naturalmente que posso. O que é? Ela hesitou, depois disse:
— Desejo que nos faça companhia.
Levantei a mão num gesto de protesto e de surpresa; ela continuou:
— Fernão manda pedir, mana Rosa. Assim me ajuda a lidar com as crianças. Vamos. Você disse que faria o favor, não disse?
—- E Modesta?
— Modesta vai para lidar com António Fernão; levaremos Tomásio também. Fernão não passa sem ele. Vamos, mana Rosa.
Eram cinco horas da manhã, quando, depois de muita relutância, prometi acompanhá-los; o vento de agosto sibilava lá fora, sacudindo os lampiões nos braços de ferro, empurrando as portas e tentando entrar pelas janelas cerradas. Parecia um bando de demônios soltos a fazer estripulias pela cidade deserta.
Levantei-me cedo sem ter dormido quase nada e nesse mesmo dia começamos os preparativos para a longa viagem, tão longa que tive medo de nunca mais voltar.

No mesmo dia, começamos os preparativos de viagem; meus pais deram-me licença para acompanhar Maria Letícia e Fernão, mas não apoiaram a resolução súbita da viagem. Fernão, porém, permaneceu inflexível. Fui para a chácara da Penha auxiliar a empacotar roupas e objetos mais necessários; engavetamos pratas, cristais e porcelanas, as mobílias, os quadros e as estatuetas foram cobertos com brim pardo para se resguardarem do pó, os tapetes, enrolados. Fernão determinou tudo conforme pôde, deixou seus negócios nas mãos do Dr. Simões e encarregou o irmão André de dirigir a chácara e a fazenda. Ele e Maria Letícia não se despediram de ninguém, disseram que depois escreveriam. Eu fiz algumas despedidas necessárias. Fui então com Carola à Rua da Imperatriz despedir-me das Lages, depois ao Largo da Memória, onde residiam nossas primas Simões. Em seguida, mandei a carruagem passar em casa de Leopoldina, que era ali mesmo na ladeira; fomos encontrá-la no quarto dos doces, atrapalhada com as formigas que haviam invadido os potes de melado; uma das mucamas estava pregando orações de S. Brás em todos os potes para afastar as formigas, pois isso era muito bom. Quando deixamos Leopoldina, encontramos um velho escravo vendendo imagens de madeira de Santo Onofre, São Damião e outros santos; comprei um Santo Onofre para me acompanhar na viagem à Europa.
Afinal, chegou o dia da partida; foi em fins de agosto, num dia em que o sol amarelado espalhava um brilho triste sobre S. Paulo. Tomamos o trem para Santos; foi tudo tão rápido e inesperado que nem tivemos tempo de pensar; quando sentimos a realidade, nossos pais, irmãos e o mais a que queríamos bem, haviam ficado para trás, sabe Deus por quanto tempo.
Descendo a serra, Maria Letícia disse que a vida é muito estranha e nunca pensara em fazer essa inesperada viagem, que mais parecia uma fuga. Depois, conversamos em voz baixa; disse-me que Fernão andava sempre triste, numa atitude apreensiva, não era o mesmo de antes; já não era alegre, nem expansivo, não tinha os movimentos rápidos que tanto lhe distinguiam a personalidade; vivia triste. Perguntou-me o que seria, achava que era a única culpada de toda aquela tristeza. Respondi que tudo era cisma, não havia nada e Fernão era o mesmo. Ela tornou a dizer que não e, quando pensava nisso, sentia-se sufocar, afinal, pensando bem, ela matara uma escrava, uma criatura humana que tinha tanto direito à vida como ela própria, como seu filho Antônio Fernão que estava dormindo no colo de Modesta, como seu marido. Por mais que vivesse, não poderia esquecer e por mais que a confortassem dizendo que a culpa não era dela, sabia bem que era. Tinha certeza. Tudo isso ela me disse enquanto o trem descia a serra; para disfarçar a angústia, olhava através da vidraça a paisagem que se desenrolava lá fora. Disse afinal:
— Pensei que tudo terminasse quando Fernão saísse livre do julgamento, mas me enganei, mana Rosa. Ele continua arredio e indiferente. Não é mais carinhoso para mim como antes, parece até evitar-me a companhia.
Perguntei se estava variando devido à viagem, pois Fernão era o mesmo de sempre. Respondeu:
— Só penso que vou morrer quando tiver a criança; já fui advertida do que vai acontecer. Morrerei.
Nada repliquei e ela continuou a falar:
— Já sei até o que os jornais vão dizer da minha morte; papai e mamãe vão ficar consternados.
— Oh, Maria Letícia, não pense em tais cousas.
— A Baronesa de Sobral vai levantar o nariz pontudo para cima e vai dizer: "Não há como um dia depois do outro. Ela foi culpada da morte da escrava, agora chegou o seu dia".
— Olhe a paisagem, Maria Letícia, disse eu, procurando desconversar.
Ela não falou mais; o trem continuou descendo, descendo, até que avistamos uma parte da cidade de Santos e o mar coberto de nevoeiro; Antônio Fernão acordou e ficou olhando tudo com ar de admiração. Naquela mesma tarde, instalamo-nos no navio Dussant; dormimos a bordo e no dia seguinte partimos. Modesta e Tomásio foram conosco. Quando vimos a cidade desaparecer à distância, depois os morros que a rodeavam, as montanhas, e só ficou o mar para qualquer lado que nos voltássemos, Maria Letícia apoiou os braços na grade do tombadilho e ficou olhando durante muito tempo, através das lágrimas, para o ponto onde o Brasil havia ficado.
A viagem foi longa e penosa; na cabina estreita e um pouco escura, Maria Letícia passava recostada a maior parte do tempo pensando. Era um pensar sem fim; pensava e falava comigo; nos pais, na mana Leopoldina, nos irmãos, em Francisca Miquelina, na Chácara da Penha. Até em D. Deolinda. Perguntava-me se não fora ela quem escrevera a carta anônima; quem não adivinhava? Só Fernão não queria ver claro. Aquela carta destruíra a alegria da sua vida e a felicidade do seu amor. Mulher abominável! De um lado, eu fazia roupinhas para a criança que ia nascer, ou então lia um pouco para ela ouvir, mas logo o mal-estar a dominava de novo e ela se punha deitada de costas, olhando o teto da cabine e pensando... Três dias depois já sabia de que jeito era o teto.
— Olhe mana, tem uma chapa de ferro pintada de branco. Do lado direito, há uma série de sinais azuis que eu conto todos os dias até doze. Veja. Quando canso de contar em português, conto em francês; depois conto de diante para trás e salteado. Ali no décimo sinal, há um risco irregular, parece uma unhada; fico às vezes meditando quem poderia ter dado unhada tão grande... No meio do teto, quatro pontos pretos parecem marcas de ferrugem. Todos os dias, quando acordo de madrugada e todos ainda estão dormindo, pela claridade baça que entra pela vigia eu procuro os sinais da direita, os pontos pretos e a unhada. É o meu divertimento. Durante o dia também.
— E à noite, quando está escuro, você dorme?
— Nem sempre. Ouço o barulho do mar incansável, cheio de mistérios, e procuro localizar no escuro os sinais do teto. É uma obsessão, pensa que é só isso? Conheço todos os movimentos do navio e todos os estalos que dá conforme os movimentos. Quando ele se inclina da direita para a esquerda, uma porção de tábuas estalam como se alguém as estivesse rachando; quando se inclina em sentido contrário, de uma ponta a outra, dá uma guinada e geme, como se sofresse. Não reparou ainda?
— Não.
— E sabe que sei as horas mesmo sem ver o relógio? Adivinho pela cor da luz que entra pela vigia. Uma cor amarelo-claro é a madrugada; essa cor vai-se acentuando até amarelo mais vivo; então é meio-dia. A cor rosada é o correr do dia; a cor roxa, o crepúsculo; a cor negra, à noite.
Passaram-se dias e começou a segunda semana de viagem; dois dias e duas noites o mar tornou-se agitado e escuro. Ondas enormes quase cobriam o navio; eu não deixava Maria Letícia, estava sempre na cabina com ela. No terceiro dia, ela me disse:
— Atrapalhei-me com a cor desta vez, mana Rosa. A cor roxa predominou durante horas, e dias. Não acertei mais.
Não tomava quase alimento; o médico de bordo deu-lhe calmantes. Dormia pouco. Disse-me que passava muitas noites ouvindo os estalos do navio e procurando decifrar a linguagem de estalos e gemidos; interpretava-os como podia, para passar o tempo. Queria também interpretar o que as ondas diziam quando vinham, uma atrás das outras, bater contra o costado do navio num vaivém constante. Dizia-me:
— Devem ser ais dos que morrem no mar.
Via Fernão só de manhã e à noite, quando se recolhia. Ele perguntava como ela havia passado, conversava um pouco e dormia. Eu ia para a cabina vizinha onde dormia com Modesta e António Fernão. Fernão contava que passava os dias jogando com o capitão e outros companheiros; dizia que o menino estava aproveitando muito, brincava no tombadilho com Modesta e as crianças de bordo. António Fernão não ficava quase com Maria Letícia; naquela cabina pequena e escura, a criança não se sentia feliz. Então, logo de manhã, saíam todos, ávidos de ar e de luz, e eu ficava sozinha com Maria Letícia, ouvindo as vozes e os risos dos que passavam pelo corredor. De costas, contando os sinais do teto, Maria Letícia esperava que mais um dia se passasse.
Quando o navio chegou a Lisboa, ela se levantou e foi para o tombadilho; triste e enfraquecida. Ficou olhando o marido e o filho que desceram para visitar a cidade. À tarde, Modesta e o menino voltaram descrevendo tudo, especialmente os jardins que tinham visitado. Fernão ficara em terra para jantar com uns amigos, só voltaria à noite. Só bem tarde ele voltou, quando faltava meia hora para o navio largar; chegou contando as belezas da cidade e o magnífico dia que passara. Depois, adormeceu tranqüilamente.
Maria Letícia passou a noite em claro, sentindo-se mal; não quis chamar ninguém, julgando que melhorasse, mas o dia chegou e o mal-estar continuou. O médico veio vê-la de novo e disse que ela não esperaria o fim da viagem; a criança iria nascer talvez no dia seguinte. Ficamos alarmados e preparados para o acontecimento, mas nessa altura o navio entrou em águas espanholas e quando o Dussant parou em Vigo, Fernão, aconselhado pelo médico, resolveu desembarcar.
Maria Letícia foi imediatamente transportada para um hospital da cidade, enquanto a criança, eu e Modesta fomos para um hotel. Naquela mesma noite, Maria Letícia deu à luz um filho, Paulo; nasceu antes da época determinada e Maria Letícia não morreu, como desejava.
Tivemos que ficar quase dois meses em Vigo, pequeno porto de mar, então sempre envolto em nevoeiro, e onde tudo era difícil e primitivo. Duas ou três vezes, Fernão deixou-nos e foi para Madrid, onde passou vários dias sem dar notícias. Só em fins de novembro, quando o inverno europeu já se fazia anunciar, ameaçador, Maria Letícia sentiu-se mais forte para continuar a viagem até à França.
Instalamo-nos num hotel em Paris e Fernão logo arranjou uma ama para tomar conta do pequeno; depois transferimo-nos para um apartamento na Rua Saint Roch, perto do Jardim das Tulherias, onde ficamos definitivamente. O inverno já havia caído sobre Paris; as árvores pareciam humilhadas na sua nudez, os pássaros haviam desaparecido dos parques e antes das quatro horas da tarde era preciso acender todas as luzes. Nas ruas e nas lojas, o gás brilhava desde cedo, espalhando cintilações azuladas nas vitrinas de modas e de flores, fazendo parecer tudo mais distante, mais inacessível. E num dia de dezembro a neve começou a cair em floquinhos miúdos e leves, durante a tarde e a noite, ininterruptamente; na manhã seguinte, a cidade amanheceu toda branca, como se alguém a tivesse transformado. Sobre os portões dos jardins e nas grades de ferro havia capuzes brancos e as árvores apresentavam seus galhos pesados e espessos. Ficamos maravilhados; passamos o dia todo sentadas perto da janela olhando a rua, o jardim ao longe e o telhado das casas mais baixas, onde a neve se acumulava em montinhos pequenos e, enquanto se ia derretendo, a água escorria ao longo das casas, deixando sulcos. E a neve caiu durante todo aquele dia, teimosamente; António Fernão quis sair um pouquinho para pegar aquela bolinha branca que caía do céu e foi com Modesta dar uma volta pelo parque, todo enrolado em lãs, só o rostinho de fora. Voltou com o nariz vermelho e gelado de frio.
Quase em fevereiro recebemos as primeiras cartas do Brasil; uma de Leopoldina e outra de mamãe. Ficamos com elas na mão durante muito tempo antes de abri-las; depois, rasgamos os envelopes bem devagar, antegozando o prazer de ter notícias da família; lemos uma, depois outra, depois a primeira novamente. A carta de mamãe pouco contava, mas a de Leopoldina vinha cheia de notícias:
Queridas manas:
Temos tido muitas saudades de vocês; nossa surpresa foi grande quando soubemos do nascimento de Paulo em terras da Espanha. Como vai a criancinha? E Maria Letícia, está forte agora?
Nosso tio conselheiro morreu no dia 17 de dezembro, dizem que de desgosto pelo desaparecimento do primo Fabrício em Cerro-Corá. Papai está muito amofinado e estamos de luto.
Francisca Miquelina está em São Paulo esperando o segundo filho, mas veio muito antes do tempo e nossa mãe ralhou com ela; disse que o lugar dela é na fazenda, ao lado do esposo. Não sei por que não gosta muito de lá, tudo serve de pretexto para vir à cidade.
A Baronesa de Sobral esteve aqui no dia em que partiram para Santos, dessa vez chegou tarde e ficou com o nariz pontudo quando soube que Maria Letícia e Fernão já tinham embarcado para a Europa. Ia me esquecendo de contar que mana Leontina veio do Rio de Janeiro para passar uns tempos aqui; dizem que no Rio de Janeiro correu a nova de que quem ia responder júri era Maria Letícia e não o primo Fernão. A Sobral já nos tinha falado qualquer cousa a respeito; a Idade do ouro do Brasil do mês de setembro trouxe uma referência sobre o caso e papai não gostou muito, bem desagradável. Vejam que absurdo! Uma senhora da sociedade ser julgada por uma cousa à toa, e ainda mais quando não tem culpa. Tolices. Já contei que estou esperando outro filho? É para fins de julho. Maria Letícia e mana Rosa têm passeado muito? Já conhecem bem Paris? Aceite as saudades muito sinceras de Alberto e beijos dos filhos. Um abraço apertado da Leopoldina P. S. — Adeus. Nossas saudades ao primo Fernão e aos filhinhos. O segundo filho de Leontina já está sentando; é muito brejeiro.
Mas muito tempo se passou antes que Maria Letícia desse seu primeiro passeio. Saí com Modesta mais de uma vez para ver se Maria Letícia ficava mais animada; notei então que os chapéus que Maria Letícia e eu havíamos trazido do Brasil já não estavam em moda; eram uma espécie de gorra enfeitada com penas de perdiz. Nas lojas do bairro em que morávamos, vi chapéus bem diferentes: comprei um para mim e joguei fora minha gorra. Comprei botinas com cano mais curto e não usei mais as que usava em S. Paulo, com cano até o meio da perna. Escrevi às minhas irmãs: "Não usem mais gorras com penas de perdiz, nem botinas com canos até o meio das pernas"; e mandei dentro da carta modelos do que mais se usava em Paris.
O inverno já ia desaparecendo e a primavera se fazia anunciar; o céu estava mais azul, as árvores começavam a vestir-se de verde e nos jardins ouvia-se o trinado dos pássaros, cada dia mais. Flores brotavam nos canteiros, nos terraços e nos vasos suspensos da sacada; foi quando Maria Letícia resolveu ir com o marido, eu e António Fernão dar seu primeiro passeio de carro. Ninguém compreendia porque ela não queria sair; os médicos, interrogados, nada souberam dizer; apenas disseram que a doença dela era mais na alma que no corpo. Era inacreditável que uma mulher jovem e bela como Maria Letícia tivesse tão pouca vontade de viver; ninguém compreendia, apenas eu. Os médicos diziam que o segundo parto a debilitara muito, contudo, pelo tempo que passara já devia estar completamente restabelecida. Mas não estava; sentia profunda apatia e olhava tudo com grande indiferença; passou todo o inverno no apartamento e mesmo quando todos saíamos, ela ficava deitada no sofá da sala ou sentada perto da vidraça, quieta e cismadora. Só eu sabia das noites de insônia, do mal que a aniquilava; Fernão fora nobre tomando a responsabilidade sobre si e comparecera ao banco dos réus; mas no íntimo, bem no íntimo, creio que a achava culpada, pois se assim não fosse não fugiria dela e nem se tornaria indiferente ao amor que os unira. Era evidente que ele se esforçava para continuar como antes, para esquecer o passado, mas era inútil. O passado era muito poderoso para ser esquecido e ali estava entre os dois, como uma barreira de pedra, separando-os inexoravelmente. E assim todo o inverno se escoou. Fernão matriculou-se numa Universidade e começou a fazer o curso de Filosofia; passava quase todo o dia fora; comprou um cavalo e todas as manhãs ia passear no Bois com alguns amigos. Já entabulara relações de amizade e quando não o viam na Universidade, nem passeando a cavalo, estava na Embaixada Brasileira, onde conhecia todo o pessoal.
Num dia de primavera, ele forçou Maria Letícia a sair de carro, fomos então, com o menino, dar um grande passeio. Ainda fazia frio e um vento cortante, de fim de inverno, fustigava-nos as faces, mas o sol estava dourado, as aves cantavam e as flores desabrochavam pelos cantos; a cidade parecia acordar de um sono pesado, após uma noite longa e escura.
A carruagem passou diante da massa imponente da Notre Dame, na Ilha da Cite, no Sena. Ficamos comovidas; lembramo-nos das histórias que tio Antônio contava a respeito da Notre Dame, aureolada de mistérios; lá estava ela, erguendo-se majestosa com as duas torres achatadas e batidas pelo sol da primavera. Atravessamos a Pont Neuf sobre o Sena; o rio corria mais rápido sem os gelos do inverno e suas águas pareciam mais claras e tranqüilas; à margem esquerda as velhas casas se destacavam escuras. Entramos na Rua Rivoli; de um lado as vitrinas cintilantes de jóias e objetos preciosos; do outro lado, vimos a massa cinzenta a destacar-se contra o céu. A carruagem dobrou o canal da Rua Marengo e dirigiu-se para a Praça da Concórdia; a estátua da praça estava coberta de crepe e rodeada de coroas; parecia de luto. Fernão explicou-nos que desde 1870 a França chorava a perda da Alsácia e Lorena na guerra contra a Prússia e, em sinal de luto, a estátua que representava a cidade de Strasburgo era conservada envolta em crepe negro. Maria Letícia lembrou-se de escrever ao tio para contar-lhe o fato; falou nos termos da carta enquanto a carruagem ia contornando a praça: "Querido tio, a França ainda chora as cidades da Alsácia e Lorena que perdeu na guerra de 70: se o senhor estivesse aqui, veria o crepe negro envolvendo a estátua de Strasburgo. Fiquei muito comovida...".
A noite, sentados em volta da mesa de jantar iluminada por uma grande lâmpada a óleo, Antônio Fernão comentou o passeio desse dia; de repente, Fernão perguntou a Maria Letícia se não queria viajar um pouco; iriam à Áustria, Alemanha, talvez Inglaterra. As crianças ficariam comigo; assim eles haviam de se distrair e conhecer outras cidades. Olhei Maria Letícia e fiz um breve sinal para que aceitasse; ela olhou o filho mais novo no colo da ama e concordou distraída.
Foi naquela ocasião, quando Paris vibrava de alegria e vida, que nosso mano Inácio chegou da Itália para visitar-nos, era alto e forte e conservava uma barba alourada à volta rosto. Quase não conhecemos nosso irmão, pois havia anos não o víamos; ficamos um pouco acanhadas a princípio, pois nos era quase um estranho. Falava português misturando com palavras francesas e italianas, e assustava Paulo, o pequeno, tinha voz forte e autoritária. Passou três dias conosco, começou a sentir-se de tal forma adaptado à vida européia que não suportava a idéia de voltar ao Brasil; havíamos de sentir, se demorássemos algum tempo mais. Já havia terminado o estudo de pintura, mas queria tomar lições com um mestre italiano. Aquilo sim, é que era vida.
No terceiro dia, refletia maior intimidade entre todos, Inácio falou sobre o julgamento de Fernão; contou que recebeu uma carta de um dos primos Sousa Mendes, dizia ele na carta que rompera relações com um amigo e que esse amigo ousara insinuar que Maria Letícia era quem devia ter respondido júri, e não o marido. Dera a entender que ela fora covarde, pois nunca devia ter permitido que Fernão enfrentasse os jurados sendo ela a acusada.
Mano Inácio, entusiasmado com o vinho que bebera ao almoço, bateu com a mão direita fechada sobre a mesa, fazendo saltar os copos e tinir os pratos:
— Então há alguém que se atreve a acusar a mana? Ah! canalha! Hão de ver quando eu chegar ao Brasil! Hão de se avir comigo. Vou procurar um por um e desafiar para que repitam essas mesmas palavras que disseram ao primo Lourenção. Canalha miúda! Hão de ver o barulho que irei fazer!
Na mesma noite, mano Inácio tomou o trem para Roma. Esquecendo o que dissera ao almoço partiu dizendo não pretender voltar ao Brasil, nunca mais. Beijou as crianças, roçando-lhes as faces com sua barba sedosa e loura, beijou-nos na fronte e, despedindo-se amistosamente de Fernão, saiu pisando firme, deixando atrás de si o suave perfume de águas e pomadas caras. Maria Letícia ficou pensativa; depois, me disse:
— Fiquei tão contente quando mano Inácio disse que ia defender-me quando voltasse ao Brasil; depois creio que ele esqueceu que prometeu defender-me porque acabou dizendo não pretender voltar ao Brasil. Não me deixam tranqüila, mana Rosa. Não basta o que estou sofrendo? Ainda aparecem gotas para fazer transbordar meu cálice de amargura; por que não me deixam em paz? Dizem que sou covarde... Eu não sou covarde! Um dia ainda provarei!
Escondeu o rosto entre as mãos e ficou horas inteiras imóvel e sozinha sentada a um canto da sala.
Em agosto, quando Fernão teve as férias de verão, Maria Letícia acompanhou-o numa viagem rápida à Áustria. Fiquei com as crianças. Quando pensei que ainda estavam a caminho, ei-los de volta e nessa mesma noite ela contou-me que não suportara a saudade dos filhos. Haviam seguido diretamente para Viena; fazia calor e a grande cidade palpitava de vida. Mostrou-me a imagem de Cristo que havia comprado, dizendo:
— Veja, mana, este Cristo Redentor; comprei na Rua Grabeu, é de Thorwaldsen. Trouxe também uns brinquedos para os meninos e uma blusa para você.
Contou que no domingo haviam tomado um carro aberto foram passar o dia no Prater; seguiram por uma estrada em que atravessava granjas, grupos de árvores, campos floridos; as papoulas alegravam os caminhos e os pássaros voavam sobre a carruagem soltando pios estridentes, enquanto gralhas esvoaçavam diante dos cavalos. Depois de atravessarem um bosque de faias, chegaram ao Prater; havia relva e, ao fundo, a mata fresca e sombria. No rio em frente e aos lados do restaurante, espalhavam-se bancos que serviam aos que vinham procurar as sossego do abafamento e calor da cidade; o dono do restaurante apareceu, solícito, tendo na cabeça um gorro de Iinho preto bordado de amarelo. Fernão encomendou uma bebida numa das mesas do pátio, e para fazer tempo foram pelos atalhos do bosque até uma ponte de madeira e um riozinho; aí, Fernão inclinou-se numa das margens e bebeu com a mão a água fresca; almoçaram depois sob as árvores frondosas, observando as famílias que se espalhavam. Vendo as outras crianças que corriam e brincavam em volta das mesas, Maria Letícia teve saudades dos filhos e desejou voltar imediatamente a Paris; lembrou que Paulo ia fazer um ano no fim do mês e quis ardentemente abraçá-lo.
Tentou dissuadi-la, dizendo que ainda estavam no princípio da viagem, pois pretendia levá-la a Bruxelas e Londres; tudo foi inútil. Queria voltar o mais depressa possível.
Entramos na carruagem para voltar a Viena; a estrada estava movimentada e cheia de pó. Os cavalos trotavam e o cocheiro tinha uma pena verde no chapéu; o chicote e cantarolava baixinho. Que gente alegre!
Através da estrada as papoulas vermelhas balançavam-se com o vento; não sei por que, lembrei que podia morrer de repente e pedi a Fernão que, quando eu estivesse doente, para morrer, pusesse nas minhas mãos o Cristo Redentor; gosto da cabeça do Cristo, já reparou? Tem no olhar uma tal expressão de doçura e de promessas de paz, que desejo ser enterrada com ele.
Sorri e ela me olhou sorrindo também:
— Fernão também se riu de minhas palavras e disse que esse dia estava muito longe, que sou muito moça e forte para pensar na morte. Então, olhei a paisagem aos lados do caminho, a alegria daqueles campos floridos, o céu que arroxeava no crepúsculo, e repliquei que para a morte não há idade, ela vem e leva sem escolher, sem procurar, sem esperar. Às cegas.
Tomei a imagem de Cristo entre minhas mãos e fiquei olhando; houve um longo silêncio, depois perguntei:
—- No dia seguinte vieram embora?
— No dia seguinte, sim; mas, nessa mesma noite, Fernão levou-me a um lugar muito divertido, a Neue Welt, o melhor lugar de diversões da cidade; estava iluminado por grande número de bicos de gás ocultos numa espécie de flor de vidro formando tulipas; havia muita gente a divertir-se e as mesinhas, escondidas entre a folhagem, tinham um lindo aspecto.
Dançavam e cantavam.
— E vocês dançaram?
— Uma vez só. A princípio, eu não quis, apenas olhava os outros; só pensava em voltar para junto dos filhos. Depois, quando ouvi a orquestra tocar valsas tão lindas, pedi a Fernão para dançar uma das valsas... A orquestra era magnífica, sabe? E nunca poderei esquecer que o próprio compositor dirigia a orquestra. A valsa que dancei chamava-se O Belo Danúbio Azul e guardei na memória um trecho da letra. Ah! Esquecia-me de contar que todo o mundo dançava e cantava, por isso aprendi a letra e cantei também. Em francês.
— Você cantou?
— Em surdina, mana Rosa. A valsa era tão linda...
— E o compositor quem era?
— O nome dele é Johann Strauss II e a música é assim, quer ouvir?
E Maria Letícia cantarolou para mim:
Fleuvre d'azur... Sur ton jlot pur... Glisse la voile... Comme une étoile…
— E no dia seguinte?
— No dia seguinte, tomamos o trem para Paris. Quando beijei os filhinhos, senti-me mais calma e mais feliz. Graças a Deus, chegamos.
Assim continuamos a mesma vida. No fim desse primeiro ano, perguntei uma noite a Fernão, à hora do jantar: Não está na hora de voltarmos ao Brasil?
— Está com pressa de voltar, mana Rosa?
Respondi que não tinha pressa nenhuma e não se falou mais no assunto. Maria Letícia pouco saía; somente nas tardes ia com as crianças e a governante sentar-se num banco do jardim das Tulherias, onde ficava por algum tempo imóvel pensativa, olhando os filhos brincarem... E assim se foi o lindo o tempo naquela rotina estreita; um ano, dois, três, quatro, cinco... De três em três meses, recebíamos cartas do Brasil; Adelaide já se casara com um primo-irmão, um filho de um irmão de mamãe; o casamento de Cristina estava tratado com o primo Vicente, filho do tio Barão Sousa Mendes. Francisca Miquelina já tinha quatro filhos, meninas e um menino; Leopoldina, porém tivera uma folga do quinto e passara dois anos sem novidade. Mas todas elas diziam que papai e mamãe nunca mais tiveram alegria, viviam tristes com nossa ausência. Mesmo o casamento de Adelaide fora muito íntimo e não houve festa. Perguntavam sempre quando voltaríamos, e, numa carta muito íntima que recebi de Leopoldina, dizia ela que a tristeza de nossos pais vinha desde o julgamento de Fernão; isso os havia acabado muito, apesar de nunca dizerem, principalmente o pai.
No terceiro ano em Paris, Maria Letícia teve uma menina; Antônio Fernão já estava com seis anos, Paulo quase quatro. Eram crianças bonitas e sadias; falavam com a governanta e até com Modesta algumas vezes, aprendera a língua da estranja. Ríamos ao ouvi-lo responder ao porteiro: Oui, m'sieu. Meei trísiê. Fernão adaptou-se de tal forma à vida em Paris que hesitava em retornar ao Brasil; levava uma vida elegante e de ocupações. Possuía cavalos e carruagens próprios; e viajava todos os meses.
Quando Maria nasceu, mudamos para um apartamento nas imediações dos Campos Elíseos e ocupamos todo primeiro andar. Eu saía, com os dois meninos e dávamos grandes voltas; fazia as compras também para todos. Só Maria Letícia continuou a mesma, pouco mudou. Sentia incurável nostalgia da pátria, mas nada dizia. Eu também sofria; chorava muitas vezes sozinha no quarto e nunca me queixei de ausência tão longa; suportava como podia o desejo de voltar, de rever os meus. Dedicava-me então inteiramente aos sobrinhos e ficava admirada da indiferença de Maria Letícia para com Fernão; deixava o marido levar a vida que quisesse e nunca se incomodou com ele, ao menos, aparentemente.
Um dia, estávamos sozinhos em casa, quando Tomásio veio anunciar uma visita; estranhamos o semblante risonho de Tomásio, mas nada dissemos e dirigimo-nos ao salão; era tão raro ter visitas! Quando a porta se abriu, vi um homem adiantar-se para Maria Letícia com os braços abertos; ela assustou-se a princípio, mas, fixando-lhe o rosto, reconheceu tio Antônio; dei um gritinho de espanto: Tio Antônio! Mas como estava diferente, a cabeça inteiramente grisalha, profundas rugas a vincar-lhe as faces magras. Seus bigodes também grisalhos, não tinham mais o brilho da mocidade. Maria Letícia recostou-se no ombro dele, sem uma palavra e começou a chorar; depois, conseguiu dizer: Tio Antônio! E torrentes de lágrimas brotaram-lhe dos olhos. Ele a abraçou comovido:
— Ma petite! Ma petite Marie!
Fernão, que estava passando uma temporada em Londres, surpreendeu-se quando, na volta, encontrou tio Antônio:
— Como? Tio Antônio em carne e osso?
E falaram longamente sobre o Brasil; das famílias, dos conhecidos, das fazendas de café, dos negócios. Durante noites seguidas, ficávamos à mesa depois que as crianças se recolhiam evocando a pátria. Tio Antônio contava como S. Paulo crescia dia a dia:
— É como uma criança bem desenvolvida, que cresce depressa; nossa cidade já conta trinta mil habitantes, talvez até mais.
Fernão admirou-se:
— Então vai muito bem! Em 1872 só havia vinte e sete mil habitantes. E a Província toda, quanto tem?
Tio Antônio hesitou, alisando os bigodes:
— Não estou muito a par, mas creio que tem uns oitocentos e cinqüenta mil habitantes.
Ficamos admirados. Fernão perguntou se as idéias abolicionistas ainda eram discutidas. Tio Antônio animou-se:
— Como não? Trabalham sempre, trabalham na sombra, como sempre digo, mas nada conseguirão. Como podemos viver sem escravos? Eles são a nossa força, o nosso alicerce, a razão de nosso progresso. Mais tarde, pode-se pensar nisso, mas não agora, o Brasil é muito novo.
Fernão concordou. Mais tarde, tio Antônio contou haver devolvido a papai a parte que lhe cabia nas terras de Taubaté; com esse dinheiro viera dar um passeio; senão morreria de tédio. Contou também que Adelaide já tinha uma filha; Cristina estava casada, morando no Rio de Janeiro. Carola, coitada, daquele jeito mesmo. Nosso irmão Lourenço está dando muitos aborrecimentos a papai, pois vivia com uma mulher de má vida, com quem não poderia casar-se; mamãe não sabia de nada. Levantando os braços para cima como um hábito seu, terminou dizendo:
— Isto é um grande desgosto para a família, um grande desgosto.
Deixou a maior novidade para o fim; a estrada de ferro Iigando S. Paulo ao Rio de Janeiro já estava adiantadíssima. Fernão exultou:
— Oh! Mas isso é um grande progresso para nossa terra, Antônio! Vai facilitar o transporte do café. Fernão mandou Tomásio trazer vinho especial para festejar a Estrada de Ferro Central do Brasil. Com essas novidades, as saudades da pátria se avivaram; e pela primeira vez, em muitos anos, Fernão falou em voltar. Ficamos mais esperançosos à idéia do regresso.
Na noite, em que ficamos a sós com tio Antônio, Letícia falou, pela primeira vez, no caso da escrava.
De repente, Maria Letícia levanta a cabeça:
— Tio Antônio, sabe que nunca me conformei com a escrava? E sabe que nunca me conformei também com Fernão ter comparecido ao Tribunal em meu lugar?
Eu devia sentar-me no banco dos réus, não ele. Não posso esquecer-me do que ele sofreu por minha causa, por isso sofro também.
Tio Antônio que brincava com a tesourinha de bordar, voltou-se fazendo um gesto vago:
— O quê? Já faz tantos anos que isso se passou e ainda se lembra? Pois se Fernão quis responder júri em seu lugar, fez muito bem, e foi muito nobre da parte dele; ademais, você não estava em condições de comparecer no Tribunal. Não, isso não. É um absurdo!
Sacudiu a mão no ar e acrescentou:
— Esqueça, esqueça.
— Não posso esquecer. Estes cinco anos foram demasiado longos para mim; mana Rosa aí está para contar. Não reparou como estou envelhecida e cansada? É de tanto pensar, meu tio.
— Não, isso não. Está um pouco abatida, naturalmente devido ao seu estado e também pelas saudades dos seus, mas por isso não, minha filha; não deve pensar nisso; o que passou, passou. Acabou-se.
Deixei o bordado no colo e encarei tio Antônio:
— Já lhe disse muitas vezes para não pensar mais nisso, mas está sempre pensando e se amofinando. Já cansei...
Sob a lâmpada da mesa, tio Antônio observou o rosto cansado de Maria Letícia, onde já havia pequeninas rugas, impróprias da sua idade; viu-lhe as sombras à volta dos olhos e o rictus de amargura no sorriso.
Houve uma pausa, depois ela falou com voz lenta e magoada:
— Tio Antônio, quando voltar ao Brasil, vou provar minha inocência perante o Tribunal.
Levantei a cabeça e sorri para ela, pois pensei que fosse brincadeira. Tio Antônio fitou-a com a boca entreaberta, o olhar incrédulo e admirado:
— Hein?
— Vou, sim, tio Antônio. Como pude deixar Fernão responder júri em meu lugar? Como aceitei tal cousa, se toda a acusação recaiu sobre minha pessoa? Pois se ele nem estava em casa quando dei a ordem! Sou a única culpada do que aconteceu e irei diante dos jurados provar que sou inocente.
Percebi que ela falava seriamente; meu coração como que parou:
— O que, Maria Letícia? Está falando sério? Não compreendo!
Tio Antônio largou a tesourinha sobre a mesa, num gesto de contrariedade. Levantou-se e, cruzando os braços, ficou à frente dela, observando-a; depois disse:
— Não, não e não. Não diga asneiras; o que passou, passou. Nem seu marido consentiria em tal cousa.
Ela levantou a cabeça e encarou-nos com expressão orgulhosa no olhar:
— Ele terá de consentir porque irei; se não for, não poderei mais viver. Não compreenderam que há mais de cinco anos estou morrendo? Morrendo cada dia um pouquinho? Pensa o senhor que estou levando uma bela vida em Paris? Ah! Se soubesse! Mana Rosa aí está para contar. Nunca escrevi nada porque não queria pôr meu coração à mostra, mas desde que chegamos aqui não tive uma única noite calma, um único dia tranqüilo. Meu segundo filho nasceu antes do tempo por causa disso, nem sei como não morreu de tão fraquinho, mana que diga. Não sinto prazer em cousa alguma e não acompanho meu marido a parte alguma, porque nada me faz feliz.
Tentou levar-me, a princípio, mas depois me abandonou; fica mais com os amigos do que comigo e passa dias e dias longe. Não é verdade, mana Rosa? Leva vida alegre e divertida. Eu vivo só para meus filhos e, não fossem eles, há muito eu teria sucumbido...
Fez uma pausa e acrescentou com voz um pouco trêmula:
— Pensei até em suicídio.
Num gesto rápido, tio Antônio pegou-lhe a mão é acariciou-a. Comecei a tremer sem dizer nada.
— Não, ma petite Marie, por piedade, não pense nisso, agora. Creia que seu marido lhe quer muito, e, se faz essa fugida de casa, é porque não encontra aqui os carinhos que necessita; é porque vê a sua indiferença. Notei desde o princípio que havia qualquer cousa entre os dois. Por Deus, não se entregue a pensamentos tristes, que só lhe podem fazer mal. Pense nos filhos que tem e no que vai nascer, em Rosa tão dedicada, nos seus caros pais que a esperam, em seu marido...
Andando ao redor da mesa tio Antônio alisava, pensativo, os bigodes grisalhos: uma moça, tão bonita, tão rica; tem tudo, não pensa em nada. Ainda tem a vida inteira diante de si. Sabe o que significa isso? Olhe para mim, para meus cabelos brancos. Que mais posso esperar? Nada. Não tenho mulher, não tenho filhos; nem futuro tenho. Você tem tudo e está-se amofinando. Sabe por que vim a Paris? Para despedir-me da vida, ma petite. Esta viagem será o meu canto de cisne, depois morrerei sossegado. Fiz todo o sacrifício para vir, não quis envelhecer completamente sem ver, pela última vez, a cidade onde passei o melhor tempo de minha juventude. E você ainda se queixa! Como é estranha a vida!
E tio Antônio sacudiu os ombros, movendo os lábios num risinho irônico. Retomei o bordado em silêncio; Maria Letícia nada disse. Ouviam-se carruagens passando na rua e patas de cavalos batendo no calçamento, como um ruído surdo. Modesta entrou perguntando se Sinhá Letícia precisava de seus cuidados. Tio Antônio olhou para a mucama:
— Até Modesta está mais bonita em Paris, está quase branca. Vous parlez français, Modeste?
Modesta riu-se com discrição e, olhando para o lado de Maria Letícia, respondeu:
— Oui, m'sieu. Un peu.
Tio Antônio voltou-se, divertido:
— Comment? Parlez français? Comment çà va, Modeste?
— Três bien, m'sieu. Merci.
Modesta disse boa noite e deixou a sala. Tio Antônio voltou-se para nós, rindo-se muito:
— Ora a novidade! Não tinha percebido que ela sabia falar francês. E Maria Letícia ainda pensa em cousas tristes, tendo uma mucama preta que fala francês. Essa é boa!
E riu-se com gosto; Maria Letícia apenas sorriu. Mais tarde, fui encontrá-la no quarto; olhei bem para ela e perguntei firmemente:
— É verdade o que disse a tio Antônio? Pretende realizar seu projeto?
— Pretendo.
— Não tem pena de nossos pais? Da vergonha que irão passar?
— Não acho vergonha nenhuma. Vergonha é viver como vivo. É inútil falar e censurar, minha resolução é irrevogável. Boa noite.
Sem dizer nada, retirei-me. Não dormi essa noite; de madrugada, ouvi quando Fernão entrou e deitou-se no quarto vizinho ao dela; depois, ouvi ruído de portas que se abriam e de pisos leves. Devia ser Maria Letícia que se levantava devagarinho e ia examinar as roupas do marido, como fazia sempre. Muitas vezes encontrava flores murchas nos bolsos, perfumes franceses. Uma vez ela me contou que encontrara até um lenço feminino e um bilhetinho perfumado que começava assim: querido. Ouvi o movimento que ela fez ao voltar ao seu quarto. Fico aqui pensando no regresso ao Brasil. Coitada de Maria Letícia, quem a esperaria na pátria? E aquele orgulho que a dominava sempre, onde estaria?


A neve caía lentamente; um véu diáfano e suave cobria tudo: casas, árvores e ruas. Toda a alegria havia desaparecido e os milhares de flocos brancos que caíam no espaço, formavam uma espécie de sudário imaculado; alguns flocos voavam um instante como se escolhessem um lugar para pousar, depois caíam. Tudo se tornava alvacento: os telhados escuros, as cimalhas das casas, os galhos das árvores friorentas, as ruas e as calçadas. As pessoas passavam muito apressadas, com espessos casacos, as mãos nos bolsos e cabeças inclinadas, procurando defender-se do chuvisco gelado.
Maria Letícia e eu sentadas perto da janela, uma de cada lado, quase encostadas à vidraça, olhávamos a neve cair; as crianças conversavam com Modesta em frente à lareira, onde o fogo parecia brincar, uma chama correndo atrás da outra, e somente as vozes infantis quebravam o silêncio. Comentamos em voz baixa que era o quinto inverno que passávamos longe do Brasil.
Fernão encontrava-se na Inglaterra; passava semanas fora e ao voltar, trazia novos planos de viagens. Tio Antônio viajara para Viena; depois dos primeiros dias em Paris, ele resolvera rever o Ostenreich. Partira numa manhã com as mãos enluvadas mergulhadas num grande capote de peles que lhe dava aparência de um bicho, declamando a meia voz:
Et je rríen vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte,
De çà, de là...
Pareil à la feuille morte...
Lá fora a noite era sombria, embora os relógios marcassem apenas quatro e meia; lampiões brilhavam nas esquinas e nas portas de algumas casas, sacudidos de quando em quando pelo vento gélido; a neve continuava a amontoar-se em toda a parte. Passava um ou outro transeunte: às vezes era uma mulher, ou uma criança, outras vezes, um velho; conhecíamos os velhos antes de vê-los, pelo andar lento e arrastado. Os meninos passavam apressados, sorrindo sob os bonés cheios de neve. Fazíamos apostas para ver quem acertava primeiro quem ia passar. Maria Letícia perguntou:
— Estará nevando na Inglaterra?
Pensava no marido. Continuamos a olhar e vimos uma carruagem vir vindo devagar e parar em frente a casa; o vapor d'água que os animais expiram, condensava-se devido ao frio e tornava-se visível. O cocheiro desceu e falou com o porteiro. Voltou a falar com os que estavam dentro do carro, depois arranjou a manta, de um dos cavalos, dando-lhe uma leve palmada, após o que abriu a portinhola do carro. Vimos um casal descer todo agasalhado e entrar apressadamente no prédio, e quase no mesmo instante tocaram a campainha do nosso apartamento. Então a visita era para nós? Quem seria? Levantamo-nos e ficamos no meio da sala, esperando. Tomásio apareceu no vão da porta anunciando os visitantes; era um dos primos de Paiva que foi logo entrando, as mãos estendidas para Maria Letícia. Depois, apresentou a esposa, uma das primas Sousa Mendes, que conhecêramos em menina, e não seríamos capazes de reconhecer se a encontrássemos em outro lugar. Tiraram os capotes e as luvas e aqueceram-se uns instantes em frente à lareira, esfregando as mãos e olhando à volta, curiosos. As crianças, desconfiadas, pararam de brincar e ficaram olhando os recém-chegados, as bocas entreabertas de surpresa. Era tão raro uma visita em Paris!
Agradavelmente surpreendida, Maria Letícia rodeava-os e pedia notícias dos parentes e de S. Paulo; como era bom ter com quem conversar na mesma língua, ter os mesmos pensamentos; era como se um doce calor aparecesse de repente, trazendo-lhe a lembrança de tudo o que ficara distante. Nos seus olhos alegres e na sua maneira de fazer perguntas, lia-se a satisfação que sentia. Pouco a pouco o casal ficou à vontade e começou a contar-nos todas as novidades sobre o Brasil; tinham chegado havia poucos dias em viagem de núpcias; não se admiraram ao saber que Fernão viajara, a negócios, como eu disse.
Convidei-os para jantar; foi uma das únicas noites alegres depois da chegada de tio Antônio. Apesar de Maria Letícia ter achado as primas Sousa Mendes feias e insignificantes e nunca as ter tratado com intimidade, sentiu-se muito feliz ao ver uma delas ali à sua mesa, falando sobre o Brasil. Pensei que o exílio faz milagres de camaradagem;
Maria Letícia tratou-a com gentileza e convidou-a a voltar muitas vezes, e até podiam ir juntas às compras; entristeceu-se quando soube que os primos seguiriam no dia seguinte para a Itália, Após o jantar, quando as crianças se retiraram para dormir, estávamos os quatro na sala, diante do fogo, Maria Letícia mandou servir licor para os primos e nós tomamos uma xícara de chá.
Tomamos vagarosamente e conversávamos; de repente, o primo disse uma frase que fez Maria Letícia sobressaltar-se:
- Sabe, prima, que em S. Paulo, pouco antes de meu intento, a defendi de uma calúnia?
A xícara tremeu na mão de Maria Letícia e eu me levantei para ajudá-la; ela apertou a xícara entre as mãos e, fingindo indiferença, perguntou:
- Que calúnia, primo? A esposa olhou o marido com um olhar de censura, mas continuou, como se não percebesse:
- Por causa da sua questão com a escrava. Por Deus, quase perdi a cabeça; quem falou não sabia que eu era seu primo, depois pediu desculpas, mas ouviu o que não queria ouvir, e ouviu tudo.
Depositando o cálice com força na mesinha de mármore, levantou-se e falou, exaltado, fitando Maria Letícia:
- Quis insinuar que a prima é quem devia responder júri, assumir a responsabilidade e enfrentar os jurados. Até a entender que foi covardia sua fugir...
— Fugir, primo? Eu não fugi! As circunstâncias não permitiram que eu comparecesse perante o Tribunal naquela ocasião, por isso meu marido foi em meu lugar, mas eu não fugi, Nunca fugiria ao cumprimento de um dever! Nunca!
E levantando a cabeça encarou os primos com altivez; a Sousa Mendes procurou acalmá-la:
— Nós sabemos que a prima Letícia não é covarde! Foi ignorância da pessoa que falou; não devia falar. Quando não se sabe o que se passou, não se fala. E meu marido não devia contar-lhe isso...
O primo de Paiva encarou-a com os dedos na cava do colete:
— Ora esta! Não contar por quê? Acho que ela deve saber de tudo, tudo o que dizem e o que disseram naquela ocasião. Uma pessoa prevenida vale por duas.
Perguntei, tentando dar às palavras um tom de indiferença:
— Mas, primo, até hoje falam nisso? Faz tanto tempo... Antes que ele respondesse, a prima falou:
— Não, agora ninguém fala. Falavam naquele tempo... Ele interrompeu:
— Falam até agora. Ninguém esqueceu ainda o fato. Houve um breve silêncio, depois Maria Letícia disse com voz cansada:
— Foi bom o primo contar, foi muito bom. Prefiro saber a viver na ignorância. Muito obrigada, primo.
E tomou os últimos goles de chá que devia estar frio, segurando a xícara com as duas mãos. O primo bateu a mão na mesinha:
— Pois é isso mesmo. Respondi à altura, ele teve de ouvir até o fim. Depois, pediu desculpas. Prima Letícia não deve aborrecer-se; o mundo está cheio de intrigantes e caluniadores.
Não se aborreça; são cousas estúpidas que não se devem levar a sério.
Passeou de um lado para outro na frente da lareira e procurou mudar de assunto, contando outros fatos. A voz de Maria Letícia tornou a se elevar:
— Não me aborreço com isso. Já estou habituada e o que o primo contou, eu já sabia... Não é, mana Rosa?
— É verdade, temos recebido cartas de lá e todas falam sobre isso.
Mais tarde, quando se despediram para sair, tornaram a aconselhá-la a que não levasse a sério o incidente, pois os fatos insignificantes não merecem que se lhes dê importância. Ficamos a porta do apartamento e ouvimos os primeiros passos deles sobre a calçada branca de neve; estava tudo parado; não passava quase ninguém na rua deserta. Voltamos para a sala. Maria Letícia sentou-se diante da lareira, olhando as últimas chamas. Comecei a recolher as xícaras para levar para dentro quando ela me disse:
— Então sou covarde, hein? Covarde? Pois hei de provar que não sou. Hei de provar. Minha raça é de valentes e não negarei a raça. Você verá.
— Eu, se fosse você não levaria a sério o que o primo falou; não deve dar importância.
— Como não dar importância? Precisa ser mesmo água parada para não se importar... Imagine não dar importância. Chamava água parada a todas as pessoas calmas. Continuou a dar um arranjo na sala; os brinquedos das crianças estavam espalhados pelo tapete. Recolhi tudo e fechando as janelas, convidei-a para nos recolhermos. No quarto, comecei a penteá-la, como fazia quase todas as noites; reparti seus cabelos em duas tranças. Enquanto isso, ouvíamos o leve ressonar das crianças no quarto vizinho; de vez em quando um estalo na rua, muito breve como se quebrassem um cristal; talvez fosse um galho de árvore que estalasse sob o peso da neve.
Ela começou a falar:
— Não posso continuar a viver assim, mana Rosa. Não compreende? Preciso dar vazão a este sentimento que se acumulou em todos estes anos de exílio; preciso agir, fazer alguma coisa, gritar bem alto que sou inocente, fazer o mundo acreditar, ou então morrer.
— Lá vem você com idéias negras.
— Morrer, sim. Morrer. Isso não é vida.
Ouvíamos passos na rua; vinham vindo devagar, tão triste, como se arrastassem um peso enorme. Pareciam tão idosos, tão cansados... Ficamos imóveis escutando.
Podia ser um velho. Um pobre velho cansado e miserável, arrastando sua miséria pela neve. Passou devagar sob nossa janela... Seus passos morreram no fim da rua. Com os cabelos de Maria Letícia em minhas mãos, fiquei escutando também. De repente, não ouvimos mais nada. Maria Letícia disse:
— Como há gente infeliz neste mundo! Há gente que sofre, há gente que chora! E há os que sentem frio e os que sentem fome! E há os que são doentes e os que são tristes! Quem seria, meu Deus! esse que passou na rua nesta noite tão fria e quieta? Com passos tão cansados e vagarosos?
— É verdade, quem seria? Algum pobre de Cristo.
— E para onde iria carregando tanta infelicidade? Coitado!
— Coitado! E você que possui tudo, ainda se queixa!
— Eu não tenho tudo, mana Rosa. Você sabe que não tenho.
— O que lhe falta?
— O que me falta?! A coragem para enfrentar a oposição de meu marido e de nossa família. Mas hei de vencer! Sim, vencerei! Os passos cansados do homem que passou, deram-me a coragem de que precisava. Quando Fernão vier da Inglaterra, hei de convencê-lo, e tio Antônio também e papai, mamãe, todos. Para isso sou Maria Letícia! Hei de vencer!
— O primo de Paiva deixou você transtornada esta noite. Vamos dormir.
Deixei-a e fui para meu quarto; na escuridão, fiquei durante muito tempo pensando na resolução de Maria Letícia. Não seria loucura? Pensar num caso ocorrido há tanto tempo? Felizmente Fernão havia de impedir. Toda a família impediria. Eu tinha Santo Onofre para me ajudar.
Em julho de 1878, Maria Letícia teve uma menina, Lídia. Correu tudo com muita felicidade. Um dia, achando-se na saleta com a criança ao colo e animada pelo sol de verão que entrava pelas janelas abertas dando novo brilho aos móveis e tapetes, enquanto uma aragem perfumada balouçava as cortinas, ela disse a Fernão que queria voltar a S. Paulo e comparecer ante o Tribunal para provar sua inocência. Ele fitou-a sem dizer nada, acreditando a princípio tratar-se de simples brincadeira sem conseqüências; mas depois, conversando a sós com tio Antônio, soube que a idéia era velha e amadurecida durante todos esses anos de espera. Fernão veio perguntar-me também o que havia; contei o que sabia; desde a morte da escrava, criara-se um sentimento de remorso no espírito de Maria Letícia e esse sentimento, em forma de angústia, foi-se avolumando, foi se avolumando, foi crescendo e fermentando e, quanto mais tempo passava, mais ela se julgava culpada por haver permitido o comparecimento do marido perante o júri, quando a ordem do castigo partira dela. As insinuações dos que nos visitavam, as cartas que recebíamos, as palavras enganosas: Letícia, não dê importância, só serviam para aumentar-lhe o desgosto.
Começaram então as discussões, todas, porém, em vão.
Tio Antônio e Fernão procuravam destruir em Letícia o sentimento de culpa, mais ele se avolumava teimosamente e mais convicta ela se sentia de que só assim teria paz na sua vida, a paz que a abandonara havia tantos anos, tão longos como uma eternidade, anos sofridos em silêncios, de desejos de esquecimento. As advertências de tio Antônio, as admoestações de Fernão e meus conselhos, caíam diante de sua vontade de ferro; era uma vontade nela em quase sete anos de sofrimento e espera e não haveria palavras ou argumentos capazes de destruí-la.
Desse dia em diante, tio Antônio começou a insistir com Maria Letícia para que ela saísse, passeasse, fosse a teatros.
Ela não queria, resistia, e às vezes ia, sem muita vontade. Eu ficava com as crianças e Modesta. Só uma vez, quando se inaugurava uma Companhia Lírica no Teatro da Ópera, eu fui também e levavam nessa noite a ópera Huguenotes; eu nunca tinha visto nada tão bonito, tão artístico, tão suntuoso. Mas quando ouvi uma harpa tocando, e toda a cena na penumbra, e uma luzinha brilhando num canto, lembrei-me de Miquelina quando tocava harpa. E em vez de ouvir cantarem Huguenotes, ouvi apenas a harpa tocada por minha irmã no velho casarão de S. Paulo, enquanto as lágrimas desciam pelas minhas faces.
Findou-se mais esse ano e quando a última filha de Maria contava já sete meses, em princípios de 1879, Fernão resolveu voltar ao Brasil. Os preparativos foram longos; a estadia na Europa, onde três filhos haviam nascido, eram fundas e não se extinguiriam tão facilmente. Fernão vendeu os cavalos, encaixotou obras de arte, tapeçarias; despediu-se dos inúmeros amigos, fez grandes compras de roupas e vinhos. E um dia com as crianças, uma governanta, Tomásio e Modesta, tomamos o caminho do Havre, e voltaríamos com destino ao Brasil. Tio Antônio ficou; disse que ficaria ainda um ano e depois voltaria; na estação. Beijou as crianças, segurou a mão de Maria Letícia e suas últimas palavras foram:
— Pense bem, petite Marie, lembre-se de seus pais. Esqueça aquela idéia. Quantos não irão sofrer com a sua resolução?
Maria Letícia sorriu de leve, um sorriso irônico e artificial muito diferente do seu belo sorriso antigo, e fez um gesto com os ombros como quem diz: Que importa? O trem começou a rodar e tio Antônio ficou no mesmo lugar, olhando para nós que acenávamos com os lenços, com certeza admirado do ar cético de Maria Letícia.
A travessia foi longa e incômoda; a pequenina Lídia sofreu de dores no ouvido e passávamos horas com ela no colo, ou Maria Letícia ou eu, enquanto as outras crianças estavam com a governanta no tombadilho; Modesta tomava conta da governanta e vinha contar-nos tudo o que se passava. Pouco deixávamos o camarote; apenas Fernão passou o tempo jogando e ouvindo música no salão. Desembarcamos no Rio de Janeiro, onde ficamos uns dias para descansar; seguiríamos depois para S. Paulo pela estrada de ferro. Tomásio foi antes a fim de avisar nossos pais e preparar a Chácara da Penha.
A viagem de trem foi longa e quando chegamos a S. Paulo parecia um sonho; agradeci a Santo Onofre termos chegado em paz; nosso encontro com papai, mamãe e irmãos foi patético e comovedor; choramos nos braços uns dos outros. Tantos anos estivemos separados que, a princípio, reinou entre todos uma atmosfera de reserva e quase frieza, principalmente entre as crianças; os filhos de Maria Letícia estranharam os parentes e preferiram falar francês; Antônio Fernão, que partira ainda pequeno, não conheceu ninguém e tratou a todos com pouco caso. As duas meninas, Maria e Lídia, choravam quando viam os avós; e Maria chamava a governanta aos gritos; não queria agrados, nem mimos, não entendiam o que os outros falavam. Foi um desentendimento completo; só depois, entre conversas, fatos e recordações, voltou o calor da intimidade. A frieza das crianças foi cedendo ao carinho dos grandes; os laços foram-se estreitando de novo e, alguns dias não eram passados, tudo estava bem. As novidades eram muitas; todas iam ver Maria Letícia e Fernão na Chácara da Penha; Leopoldina, entusiasmada com a volta da irmã predileta que trazia de Paris tanta cousa bonita, ia vê-la quase todos os dias, acompanhada dos filhos; Francisca Miquelina veio da fazenda para visitá-los; nossos irmãos e cunhados, primos, parentes de Fernão, todos queriam contar os fatos mais recentes, lembrar alguma cousa que ainda não haviam contado. Perguntavam com um desejo de surpreender:
— Souberam das festas em S. Paulo por ocasião da vinda dos condes d'Eu?
— Não. E por que vieram os condes? Outro se adiantava para explicar.
— Vieram assistir à inauguração da Estrada de Ferro Rio de Janeiro—S. Paulo.
— Ah! Isso nós já sabíamos; Francisca Miquelina escreveu contando. Quando foi mesmo?
— Há dois anos atrás. Outro dizia:
— Mas os condes d'Eu estiveram antes aqui; Maria Letícia não soube? Foi a primeira vez que vieram a S. Paulo, em 1875, não me lembro bem... Leopoldina acrescentava:
— Ah! Já faz tanto tempo...
Alberto lembrava:
— Por sinal que houve uma linda festa em casa do Barão em Monte Alegre na Rua José Bonifácio... Leopoldina exclamava interrompendo:
— É verdade, agora me lembro. Eu estava com um vestido de gorgorão azul e ramagens cor-de-rosa. Um dos vestidos bonitos que já tive. Augusto dizia:
— Ah! Mas a maior novidade os manos não souberam. Abriram em S. Paulo uma Companhia Lírica. Esplêndida! Fernão respondia:
Francisca Miquelina fingia-se desiludida:
— Ah! Então vocês sabem tudo, não há novidades.
Contei que assistira em Paris a uma ópera muito bonita: no Teatro da Ópera; todos me olharam com admiração.
— Que sucesso! Gostou, mana?
Afinal, uma tarde, estando todos reunidos, pois era aniversário de Fernão, Maria Letícia contou a todos que pretendia falar ao advogado e comparecer perante o júri. A impressão foi tremenda! Foi como se a morte passasse na sala numa ronda sinistra. Até o ar que respirávamos pareceu-me gelado. Houve um silêncio e todos se entreolharam; mamãe fixou Maria Letícia como se a estranhasse, papai levantou o braço e deixou-o cair de novo sem nada dizer, um ar perplexo. Félix e Augusto levantaram-se; Aninhas e Eponina olharam uma para outra, profundamente surpreendidas. Só Francisca Miquelina falou:
— Maria Letícia responder júri? Por quê? Por causa da escrava? Faz tanto tempo que isso se passou, ninguém mais se lembra. E depois, Fernão não permitirá...
Maria Letícia interrompeu-a:
— Nunca é tarde para se reparar um erro. Errei fugindo ao cumprimento do dever; eu devia comparecer perante o Tribunal naquela ocasião e não meu marido, pois a acusação foi contra mim. Fui covarde, mas hoje estou resolvida. Fernão já concordou.
Olharam Fernão que se levantou para dizer qualquer cousa. Foi como se caísse tempestade depois do vento gelado; antes que ele falasse, protestos veementes fizeram-se ouvir:
— Como? Maria Letícia pensou bem?
— Fernão permite tal loucura? Impossível que permita!
— Mas isso é uma vergonha para a família; um fato sem precedentes!
— É uma mancha em nosso nome! Mancha indelével!
— Nossa irmã no Tribunal? Nunca!
Maria Letícia levantou-se também, cheia de orgulho e revolta; seu olhar passou sobre todos e admirei-a quando falou:
— Como? Então meus pais e irmãos não acharam que foi vergonha quando Fernão se sentou no banco dos réus? Quando esteve encarcerado meses inteiros esperando julgamento, não foi vergonha? Ele que chamou a culpa sobre si quando a única culpada fui eu? Isso não foi vergonha para o nome dele? Acham vergonha porque agora sou eu? Por que os toca mais de perto? Pois comparecerei ante o juiz e provarei minha inocência.
Rubra de cólera, ela batia a mão no peito, a cada frase pronunciada. Félix gritou, o braço estendido na direção dela:
— Provar o que toda a gente já sabe? Sabemos que está inocente. E a mana esquece que é mulher? Uma mulher no Tribunal?
— Não serei a primeira, Félix.
— Mas não fica bem, é impossível. Que acha, papai?
— Não fica bem eu continuar vivendo com esse remorso de consciência.
Papai falou, pedindo silêncio; sua voz grave e forte dominou as outras:
— Calma, meus filhos. Vamos ver o que podemos fazer. Maria Letícia.
Ela voltou-se, rápida para papai:
— Nada há a fazer, meu pai. O que resolvi, será feito. Não voltarei atrás.
Augusto voltou-se para Fernão:
— A mana está fora de si.
Ela replicou em lugar do marido:
— Fora de mim estava eu naquele tempo. Mamãe interveio, conciliadora:
— Minha filha Maria Letícia, pense bem nas palavras que está dizendo. Pense bem.
— Há sete anos venho pensando minha mãe. Sete anos longos; meus três filhos nasceram sob esse pesadelo, não posso continuar a viver assim. Sinto-me sufocar, morrer. Leopoldina aproximou-se de Maria Letícia procurando uma maneira de fazê-la mudar de idéia; disse-lhe com voz carinhosa:
— Querida mana e os seus filhinhos? Já pensou neles? Maria Letícia respondeu corajosamente:
— Mas é por eles, Leopoldina. É por eles; não quero que cresçam pensando que a mãe foi uma covarde. É por eles.
— Quem fala em covardia? Quem falou que você era covarde?
Um silêncio de apreensões pairou na sala. Fernão falou com uma voz, que procurava ser calma:
— Tudo quanto pode ser feito, já fiz para fazê-la desistir da resolução, e nada consegui. Nada. Parece uma rocha, a razão e o argumento se despedaçam como água, nada conseguindo. Estou exausto, absolutamente exausto.
Papai exaltou-se então; a sua voz ecoou na sala outra vez:
— Irei amanhã falar com o advogado. Não posso permitir que minha filha proceda insensatamente. Vamos ver.
— Perdão, meu pai, mas já mandei uma carta ao advogado.
Aninhas e Eponina olharam-se, horrorizadas; Aninhas tapou a boca com a mão, afogando um grito de espanto. Também fiquei aterrada, pois não sabia de carta alguma. Papai insistiu:
— Entretanto não fica bem, Maria Letícia; uma senhora não pode fazer certas cousas. Não pode e não deve. Como escreveu ao advogado?
Fernão disse que não sabia de nada; Alberto ficou revoltado; estendeu o braço a papai pedindo para falar:
— Perdão, meu sogro, mas Maria Letícia pensa que aqui é como na Europa. Fica feio, no Brasil, uma mulher ter certas liberdades de ação. Isso é imperdoável. Pensa que ainda está na Europa?
Fez a pergunta ironicamente, voltando-se para ela, as mãos cruzadas sobre o peito. Ela também respondeu com ironia:
— Liberdades? Acha liberdade escrever ao nosso advogado sobre um assunto tão importante? Um assunto que me toca de perto? Pois falarei com ele.
Augusto e Félix protestaram:
— Não falará.
— Não pode, não fica bem, Maria Letícia. Onde se viu mulher falar com advogado? Enlouqueceu?
— Falarei amanhã com o advogado Simões. Papai gritou:
— Maria Letícia!
Ela voltou-se calmamente, como se apenas estivessem conversando:
— Peço perdão, papai, se estou contrariando seu desejo, mas falarei com o advogado amanhã. Mandei o Tomásio com uma carta.
Novo silêncio. Lourenço, que estava ausente, chegou nesse momento. Vendo todos quietos, olhou um por um e perguntou:
— Que há? Houve alguma cousa?
Alberto e Leopoldina explicaram a Lourenço a resolução de Maria Letícia; Lourenço ficou espantado, uma expressão de incredulidade no rosto, depois disse:
— Maria Letícia, antes você tivesse ficado na Europa.
Mamãe começou então a chorar convulsivamente, escondendo o rosto entre as mãos.
— Sinto muito, minha mãe, sinto muito, declarou Maria Letícia.
Fez uma pausa e concluiu resolutamente, olhando à volta da sala:
— Minha resolução é irrevogável. Foi por isso que voltei para S. Paulo, foi por isso.
Leopoldina, com os braços sobre os ombros de mamãe, falou sarcástica:
— Como está mudada, Maria Letícia. Foram os ares da Europa que a transformaram assim?
Francisca Miquelina perguntou:
— E se Maria Letícia for condenada? Ninguém pode prever. Aninhas deu um grito agudo e tapou os olhos com as duas mãos. Eponina olhou angustiadamente para Félix; senti dar um pulo, pois até então não tinha pensado nessa possibilidade. Félix observou com voz cansada:
— Mesmo que Maria Letícia seja declarada inocente pela corte, a opinião pública sempre a considerará culpada.
Augusto, Lourenço e Luís concordaram. Maria Letícia voltou-se para Félix:
— Não creio. Se provar minha inocência, como continuarei culpada? Quero provar minha inocência!
— Mas todos sabem que você é inocente! Miquelina encarou-a:
— É porque você não sabe como as pessoas são esquisitas, falam quase sempre com um critério errado, principalmente em se tratando de uma pessoa da alta sociedade, algumas ficarão sempre na dúvida, e essa dúvida será contra sempre.
Eponina que nada ainda havia dito, timidamente apoiou, também penso assim: prove o que provar, a mana Letícia será apontada como mandante do crime.
Letícia sorriu com altivez e não respondeu; mamãe em lágrimas, auxiliada por Leopoldina que a consolava, depois, Maria Letícia tornou a falar: estão todos enganados a meu respeito. Eu disse que sou inocente. E provarei. Poderei provar quem é a pessoa anônima e quem pagou os negros para me acusarem, para deporem contra mim.
Olhou-me como se só eu compreendesse suas palavras. Augusto riu com ironia:
— Maria Letícia está muito bem disposta; lembre-se de que sete anos são sete anos e muitas testemunhas podem ter morrido ou desaparecido.
Fernão tornou a falar, dizendo que tinha muitas vezes chamado a atenção da esposa para esse ponto, mas ela não acreditava; papai falou outra vez, mais calmo:
— Minha filha, você se esquece de que a opinião pública é sempre curiosa, e de uma curiosidade maldosa pelos dramas de família. E não os esquecem nunca.
Félix acrescentou alto, exagerando:
— E quando lêem os detalhes de um crime sensacional só guardam o lado pior, o lado bom é esquecido com facilidade.
Augusto continuou:
— O lado bom não tem interesse para eles; mesmo que o culpado seja declarado inocente, nunca esquecerão seu suposto crime. Eis uma verdade indiscutível.
Leopoldina tornou a intervir:
— Não se esqueça, Maria Letícia, onde há cinzas, há fogo. E a opinião pública só se lembrará do fogo.
Francisca Miquelina continuou:
— E será apontada como culpada, sempre. Daqui a cinqüenta anos, apontarão a mana na rua: "Foi ela... Não se lembram? A história daquele crime da escrava Inocência...", Lourenço deu uma risadinha:
— A Viscondessa de Santarém no júri! Tem graça! Maria Letícia tornou a falar, e desta vez friamente:
— Tudo é inútil. Comparecerei perante o júri.
Fernão correu os olhos à volta, abrangendo todos como que a perguntar: "Não disse que é inútil?"
Foram deixando a sala porque já era quase noite: alguns, ainda revoltados, mal falaram com Maria Letícia. Eu fiquei porque Lídia, a caçula de Maria Letícia estava sofrendo novamente de dor de ouvidos e não queria saber de ninguém, só queria a mim. Papai pediu-lhe no último instante que pensasse bem, refletisse, lembrasse o escândalo que o fato iria causar, tivesse pena da velhice deles. Acabrunhados e tristes, tomaram o carro para a cidade; partiram. Quando os últimos deixaram a sala, Fernão dirigiu-se para o escritório, mas, antes, voltou para falar com Maria Letícia. Apenas disse isto:
— Que bom presente de aniversário você me deu.
E saiu. Ela sentou-se numa cadeira baixa, completamente aniquilada de cansaço. Escondeu o rosto entre as mãos e ficou na semi-obscuridade da sala, pensando de certo que era o princípio, que precisaria de muito mais coragem e valor para chegar ao fim. Coloquei minha mão sobre seu ombro e ia dizer-lhe palavras de animação, quando ouvimos passinhos leves e furtivos; levantamos a cabeça e vimos Aninhas diante de nós, tímida e comovida. Com a vozinha fina, em tom baixo, um tanto receosa, juntando as duas mãos, disse:
— Maria Letícia, esqueci a mantilha aqui de propósito só resolvi voltar e dizer uma palavrinha: gostei de ver você hoje. Fiquei muito orgulhosa. Sozinha contra todos! Sozinha! Até contra o marido! E falou tão bem, tão bonito... Abraçou Maria Letícia e foi saindo depressa:
— Augusto deve estar impaciente; não se amofine, tudo vai dar certo. Gostei de ver... Que coragem! E dando uma corridinha, deixou a sala. Eu fui acender o lampião sobre a mesa; ouvimos uma pessoa parar à porta. Eponina entrou quase correndo, afobada com ar assustado:
— Não viram minha sombrinha? Creio que a deixei... Ah! Está ali naquele canto. Pedi a Félix para voltar e pegar a minha sombrinha que ia esquecendo... Procurando a sombrinha, espiou para os lados e não vendo a não ser nós, aproximou-se de Maria Letícia. Falou, sussurrando:
— Se todas as mulheres tivessem a sua coragem, Maria, o mundo seria outro para nós. Foi divina hoje! Divina! Não esmoreça, continue assim até o fim... Saiu quase correndo, arrastando a ponta da sombrinha no chão do jardim, entre os canteiros. Aumentei a luz do Iampião, olhei para Maria Letícia; ela respirou aliviada e disse-me: já tenho duas pessoas ao meu lado.
Novo processo foi instaurado para o julgamento de Maria Letícia; o advogado Sales foi escolhido para defendê-la; a cidade de S. Paulo ficou animada e toda gente se surpreendeu; Maria Letícia tornou-se o assunto da sociedade. A Viscondessa de Santarém vinha, por sua livre vontade, sentar-se no banco dos réus? Era inacreditável. Furtivamente, quase às escondidas para não dar muito na vista, começou a aparecer gente para assistir à sessão de júri mais extraordinária de todos os tempos. Vinha a cavalo, de trole, ou de trem; das chácaras, das cidades próximas e até da corte.
Todos os nossos irmãos se colocaram ao lado dela logo esquecendo a discussão que houvera de início; uma por uma, as cunhadas deram-lhe seu apoio. Os outros membros reprovaram-na, admirando-a, entretanto, no íntimo.
Viram que era uma mulher de fibra, uma mulher de raça. Quem se atreveria a tanto? Enfrentar o juiz, os jurados, testemunhas maldosas e, acima de tudo, a opinião pública. Simplesmente espartana!
Dias antes, as crianças da família foram com suas governantas e mucamas, para a fazenda de Francisca Miquelina, ficando mais próxima de S. Paulo.
No dia 19 de abril de 1880, quase oito anos depois da morte da escrava, Maria Letícia, Viscondessa de Santarém, compareceu perante o Tribunal de S. Paulo. Nem gosto de lembrar aquele tempo de aflição e medo; durante noites seguidas, rezamos diante do oratório pedindo a absolvição de Maria Letícia. Modesta chorava todos os dias e mamã Zabel fez promessas a São Damião. Chegou afinal o dia 19; era um dia como outro qualquer, mas, para nós, seria inolvidável. Maria Letícia aparentemente estava calma, mas de uma calma muito perfeita para ser natural. Eu fui pentear-lhe os cabelos, depois ajudei-a a vestir-se; mamãe queria que ela fosse de vestido preto: Leopoldina e Aninhas contestaram: Por que preto? Não era luto. Devia até ir com vestido bem alegre. Afinal resolveu pôr um de veludo cor de mostarda, muito bonito. Ela não dizia nada. Quando eu trouxe um chá de folhas de laranjeira, meia hora antes de sair, ela disse que preferia chá de melissa; Modesta foi correndo preparar. Minhas mãos tremiam tanto que a xícara quase foi ao chão.
Ela me perguntou, sorrindo palidamente:
— Que é isso, mana? Medo? Pois eu não tenho medo...
Fui ao oratório do quarto, rezar para Nossa Senhora do Rosário; embrulhei o Santo Onofre de madeira no meu lenço para levá-lo, pois Maria Letícia havia pedido que eu fosse também. Leopoldina quis que Maria Letícia levasse o saco de veludo bordado com lenço e um santo dentro; Maria Letícia disse que não precisava, levaria o lenço dentro da manga, mas Leopoldina e Eponina disseram que ela devia levar para mostrar como se usava em Paris, pois o saco era de Paris. Então levou-o. Quase na hora de sair, fiz uma promessa a Santo Antoninho; prometi levar uma vela de cera, do meu tamanho, de nossa casa até o altar do santo, na Igreja de S. Francisco. A vela tinha que ir acesa, eu de um lado e Maria Letícia do outro. Quando Maria Letícia se levantou para sair, achei-a muito bonita, mas muito pálida. Papai e Fernão seguraram o braço dela e mamãe e Leopoldina começaram a chorar. Então ela própria lhes deu coragem, dizendo, a sorrir:
— Não precisam chorar, e não precisam segurar meu braço. Estou muito firme e não tenho medo. Até parece que sou uma condenada à morte...
Aninhas deu um grito tapando a boca. Descemos a escada para entrar na carruagem; estavam todos tristes e quietos; Modesta aproximou-se de Maria Letícia e disse alguma coisa, entregando-lhe um embrulhinho, creio que um ramo de guiné, mamã Zabel falou alto:
— Vou rezá pra defunta Sinhá Chica; tudo há de corrê bem, Sinhá.
Maria Letícia confirmou com a cabeça e colocou o embrulhinho de Modesta no saco de veludo. Mamãe ficou chorando no alto da escada, apoiada em Leopoldina que tinha os olhos vermelhos; Francisca Miquelina, que havia chegado na véspera, acompanhou-nos até o carro recomendando coragem. Também eslava pálida e nervosa. Partimos. Ninguém falou durante o percurso; quando descemos diante do Tribunal, havia uma multidão nas imediações. Papai disse então:
— Apóie-se em meu braço, Maria Letícia.
E ela deu o braço a papai. Fernão ia do outro lado; achei-a um pouco assustada nesse momento, quando enfrentou a multidão diante do Tribunal. Rodolfo que nos esperava, estava muito calmo; Félix ficou ao meu lado e os outros irmãos também. Entramos. Meu coração batia tanto que eu quase não podia respirar. Vi Maria Letícia distanciar-se com o advogado; fiquei fria, ao lado de papai e Félix. A sala do Tribunal estava completamente cheia e houve um silêncio quando entramos. Maria Letícia sentou-se. Perguntei então a papai:
— Aquele é o banco dos réus?
Papai inclinou a cabeça afirmativamente e não respondeu.
De repente, tive vontade de chorar. Era então Maria Letícia que estava sentada ali, ela que fora sempre altiva, tão bonita, e tão afastada do povo, aquele mesmo povo que ela chamava de gentalha e agora estava ali, diante dela, ávido de curiosidade... Ela que vivia indiferente ao que se passava. Ela que era orgulhosa e não olhava para ninguém, não enxergava ninguém. E estava ali para ser julgada!
Seus cabelos estavam lisos para trás, repartidos ao meio como ela gostava e realçavam-lhe o rosto pálido, no qual se viam os olhos azuis, agora amortecidos. Como era bonita. Estava impassível e serena; apenas uma vez olhou para o lado, depois olhou à volta; parece que sentiu um frêmito de medo ao ver aqueles rostos fitarem-na, admirados.
Assistiu ao julgamento até o fim, sem demonstrar a menor debilidade; depois de responder ao Juiz as perguntas, ouviu sem tremer a acusação da Promotoria. O Dr. Sales começou a falar, através das palavras dele, tive certeza nesse momento, convicção plena de que a luz da verdade brilharia novamente. Ele começou a defesa por historiar os fatos: "Uma carta anônima, escrita e levada à polícia, introduzida à noite por baixo da porta da delegacia, indicava a Viscondessa de Santarém como mandante de um assassínio. Quem escreveu aquela carta? Quem a levou? Insondável mistério. O delegado procedeu ao inquérito contra a viscondessa, mas como ela se achava em melindroso estado de saúde, o visconde, num raro gesto de nobreza, tomou a si a culpa e se apresentou, procurando assim livrá-la de um processo forjado por inimigos que se aproveitaram das trevas e do anonimato para fazer denúncias. Com a consciência tranqüila, ele compareceu perante o júri oito anos antes e, julgado, foi unanimemente absolvido por deficiência de provas".
A voz do Dr. Sales atroou no recinto ao dizer:
— Srs. Jurados, tal qual uma voz eloqüente da Tribuna Judiciária da França, eu voz direi neste momento: escutai-me sem favor, porém sem ódio, eis tudo o que vos peço e tenho direito de esperar de vossa Justiça! Olhai, Srs. Jurados, para o banco dos acusados! Quem toma assento ali hoje é uma mulher, uma senhora, que ides julgar com todo vosso critério e sabedoria. Hei de provar que a ré foi vítima da maledicência, vítima da inveja, esse cancro que procura corroer as reputações e destruir a felicidade alheia. Direi como um grande pensador: La verité est en marche et rien ne l'arretera!
O Dr. Sales passou depois a destruir um por um os depoimentos das testemunhas. O silêncio seria profundo na assistência, não fosse a voz do advogado que, palavra por palavra, frase por frase, descobria um ponto de luz na obscuridade em que se perdiam os fatos. Falou sobre o auto do corpo de delito e depois sobre a inverdade da rede ensangüentada, pois se os peritos no exame cadavérico disseram que o tecido celular do corpo se achava embebido de sangue, mas o sangue estava gelado sob o mesmo tecido, não podia haver extravasamento de sangue e, portanto, não podia haver rede ensangüentada. Foi nesse instante que o promotor público interrompeu dizendo que se baseava no depoimento de D. Deolinda Menezes. Apertei o braço de papai e senti que suas mãos tremiam. A defesa replicou:
— D. Deolinda Menezes pode ser tudo neste processo, menos testemunha. Essa corruptora de consciências escravas, que compra testemunhas, ausente de sua casa só podia ter visto na rede aquela que ela própria teceu para enlear a liberdade e honra da acusada.
Foi como se um vento passasse pelo recinto; todas as cabeças se moveram. Maria Letícia olhou um breve instante para o lado e continuou impassível; houve um murmúrio e depois silêncio. A defesa prosseguiu:
— Quando o conselheiro Delegado de Polícia viu concluir-se o exame de corpo de delito, no cemitério, dirigiu-se para a acusada a fim de procurar vestígios do crime, porém não encontrou nada.
O advogado continuou provando que os escravos do visconde não eram castigados; só o eram quando cometiam maldades. Disse que dois médicos notáveis asseveraram que, no auto do corpo de delito, não era possível afirmar que a vítima Inocência houvesse morrido devido aos castigos; e o Dr. Maranhão, o ilustre médico da família, já testemunhara que ela sofria de síncopes e que tratara dela mais de uma vez.
Maria Letícia mal respirava; parecia uma estátua. Quando o advogado falou sobre a testemunha Sebastiana que dissera ter ouvido sons de castigo, o promotor interrompeu:
— Ouviu também a voz da vítima pedindo que não a castigasse mais, pelo amor de Deus!
O Dr. Sales provou que a escrava Sebastiana, a maior testemunha existente, não era mais escrava, mas uma mulher livre, que lhe fora prometido, fora dado: carta de alforria para dizer o que não ouvira. E tudo era falso, pois atrás de tudo havia uma pessoa interessada em arruinar reputações e relatara o nome dessa pessoa. Houve um momento de sensação e de ansiosa expectativa; a platéia como que estremeceu quando o promotor percebeu que o depoimento da escrava Sebastiana foi falso no processo porque foi coagida a mentir para receber liberdade, quem nos diz que não foi coagida agora a mentir dizendo o contrário?
A tristeza começou a apoderar-se de mim ao ouvir acusações fortes, mas não tive tempo de pensar porque o advogado leu prontamente:
— O ônus da prova cabe a quem acusa. Se a acusação se funda em testemunhas que ela própria aponta como versáteis, forçoso é concluir que nula é a prova em que assenta. Certo é, porém, que Sebastiana foi subornada para perder a acusada, e não para salvá-la. E não foi só Sebastiana; foram também Manuel, Damásio e Pedro, comprados como aquela para dizer o que não viram e o que não ouviram. Por outro lado é de se indagar por que os escravos do outro vizinho também não ouviram a voz de Inocência implorando que a não castigassem mais? Se a distância entre a casa da acusada e a dos vizinhos é a mesma, e eu o afirmo porque verifiquei in loco, todos os escravos desses vizinhos, e não somente os escravos do Comendador Menezes, teriam por igual ouvido tais gritos.
O promotor contraveio:
— Mas os outros vizinhos podiam estar ausentes da casa na ocasião.
O Dr. Sales revidou:
— É uma suposição que não tem foros de argumento.
— Isso pode ter-se dado; e a vizinha da frente, Maria d'Angola, ouviu também sons de castigo, mas disse que não prestou muita atenção, insistiu o promotor.
O Dr. Sales replicou:
— Isso prova que os castigos não foram exagerados, nem demasiados, pois, se o fossem, todos os vizinhos prestariam atenção, e não somente os escravos de D. Deolinda. O depoimento de Maria d'Angola peca por falta de base; é uma antiga escrava, hoje livre, que reside numa casinha em frente à chácara e é muito dada a libações alcoólicas. Todo o mundo sabe, pois é bastante conhecida na cidade. A nobre Promotoria deve compreender que, se os escravos do comendador falaram a verdade, toda a vizinhança devia ter ouvido os castigos nessa noite, como em muitas outras noites ou dias consecutivos, segundo as testemunhas que disseram que os castigos da chácara do visconde eram bárbaros e contínuos. Pergunto eu: Seria possível que os vizinhos mais próximos não se queixassem nunca? Não dessem parte às autoridades? Não, Srs. Jurados, é falso, como é falsa desde a base toda a acusação. É inacreditável. Disseram que, durante toda a noite de quinta-feira, se ouviram sons de castigos e gritos na chácara do visconde, mas quem corrobora esse depoimento?
A promotoria respondeu:
— D. Deolinda Menezes.
— D. Deolinda Menezes e Maria d'Angola são as vizinhas mais próximas da chácara; uma não se encontrava em casa nesse dia, e outra disse que ouviu, mas não deu importância aos gritos. Não devemos esquecer, Srs. Jurados, que Maria d'Angola também foi escrava de D. Deolinda Menezes!
Toda a assistência se agitou como tocada por um vendaval. A Promotoria revidou:
— Mas há uma testemunha que não foi escrava de D. Deolinda Menezes. Felício Benedito...
— Felício Benedito apenas ouviu contar o fato; não ouviu os gritos no dia da morte da escrava.
Nesse instante rezei a São Damião: "São Damião, venha em socorro de Maria Letícia, salvai-a do abismo em que está submergida. Iluminai o Dr. Sales".
A Promotoria continuou a acusar:
— Não ouviu nesse dia, mas em dias anteriores ouviu diversos castigos na chácara do visconde. Quando ele passava pela cidade, muitas vezes ouviu sons de que uma pessoa estava sendo açoitada...
— A nobre Promotoria deve concordar comigo que todo senhor de escravos tem o direito de castigá-los quando cometem erros ou desobedecem a seus senhores. Disse que dias antes, passando pela chácara às quatro da tarde, ouviu sons de castigos; passando outra vez de noite, ouviu sons de castigos. E, como dias ocorreu a morte da escrava Inocência, Felício Benedito disse que Inocência era castigada durante cinco horas por dia. Todos sabem que Felício Benedito é amigo de Baco.
O Promotor interrompeu:
— Maria d'Angola podia estar ausente da casa entre quatro e a noite.
— Mas não estava. E diz que não se lembra muito bem.
O Promotor fez então a pergunta capital:
— Mas oito anos são decorridos depois disso. Por que a acusada não veio a julgamento naquela ocasião?
Senti-me desfalecer e vi que tudo estava perdido. Rezei desesperadamente a Santo Onofre: "Santo Onofre, agora é a sua vez. Valei-nos, meu santinho. Socorrei Maria Letícia. Auxiliai o Dr. Sales". Maria Letícia fez um leve movimento com a mão e ficou ainda mais pálida. Fernão fez também um movimento como se quisesse levantar-se. O Dr. Sales respondeu:
— Porque para uma senhora, e ainda mais uma senhora da mais alta sociedade, era repugnante e deprimente ir para a casa da detenção e esperar julgamento, não só devido ao seu estado de saúde, mas também porque era inocente e mesmo aos inocentes a prisão e o julgamento inspiram repulsa.
Veio o marido responder por ela, mas os anos passados depois desse fato não permitiram que ela esquecesse a calúnia infamante que sofreu e ei-la então, diante de vós, Srs. Jurados, esperando a vossa sentença de justiça. Não é fácil para uma senhora enfrentar um Tribunal onde se reúne a multidão, arrostar o vexame de sentar-se no banco dos réus, ouvir as palavras cheias de dureza da Promotoria, encarar os Jurados, enfrentar os Juízes, ouvir os fatos relatados com toda a crueza e realidade, ser a figura central do julgamento, ocupando a posição humilhante de acusada e enfrentar a opinião pública que muitas vezes se engana e acusa injustamente.
Parou e olhou todo o recinto. O silêncio era profundo. Continuou:
— Precisamos espancar as sombras do erro, varrer as trevas da ignorância, pois queremos luz, a luz transparente, a luz branca da verdade. Antes de terminar, cito uma frase de Foudras, pois nessa frase se baseia todo este julgamento: On se crotte soi-même, quand on court sur la boue pour eclabousser quelqu'un! E nesta frase se baseia também o primeiro processo, assim como o sofrimento e as lágrimas de quase oito anos de dúvidas, incertezas e trevas! Termino pedindo justiça.
Justiça, Srs. Jurados, para uma inocente, Justiça para a mater dolorosa de cujo seio se quer arrancar o bando predestinado de crianças que são os seus quatro filhos, por via de uma condenação iníqua e imerecida. Justiça para quem como acusada já trocou a coroa de nobreza por essa outra de espinhos que uma odisséia dolorosa de infortúnios e de sofrimento. Justiça!
Uma tempestade de palmas irrompeu pelo recinto; muitas pessoas abraçaram o Dr. Sales. Percebi que papai estava profundamente comovido, apertei-lhe o braço para dizer que eu também estava. Depois, veio um silêncio terrivelmente penoso, disso dependia a salvação de Maria Letícia. Creio que foi a única vez em minha vida que percebi como é terrível esperar.
Letícia continuava imperturbável. Baixou os olhos e ficou olhando as mãos. Nunca esperei tanto. E se ela fosse incriminada? Enquanto os jurados deliberavam na sala secreta, lembrei-me de quando Maria Letícia era criança. Voluntariosa, enérgica, quando queria qualquer cousa, é porque queria.
Lembro-me que mamã Zabel disse que ela precisava tomar um remédio; ela disse que não tomaria e bateu o pé: "Não. Não. Não".
Veio mamãe, veio papai, vieram várias mucamas. Rodearam-na. Mamãe dizia: "Beba". Ela respondia: "Não quero beber". Papai disse: "Traga a toalha". Ela não se perturbou.
Colocaram uma toalha no seu corpo para prender os braços e papai veio com a colher de remédio. No colo de mamã ela procurava fugir, gritava e se descabelava, enquanto isso as mucamas procuravam segurar-lhe as pernas. Com a colher, papai abriu-lhe a boca cerrada; veio o remédio.
Ela rejeitou a colher com tanta força que quebrou um dente; houve gritos, sustos e sangue. E ela não engoliu o remédio que caiu pela toalha toda. Lembro-me de que houve comentários e mamã Zabel atirou o dente de leite com solenidade em cima do telhado. Disse que, se não jogasse no telhado, não nasceria outro. E Maria Letícia venceu.
Lembrei-me de quando éramos crianças, e ela dizia que eu era bobona e água podre por que aceitava tudo sem recusar. Quando crescemos mais, ela trocou água podre por água.
Por qualquer cousa, dizia: Você é uma água. E quando batia o pezinho e dizia não, era não para a vida. E foi crescendo orgulhosa.
No fim de algum tempo que não sei dizer como se passou, ouvi uma voz dizer que a Viscondessa de Santarém fora unanimemente absolvida. A absolvição foi confirmada pela sentença do Meritíssimo Juiz de Direito Presidente do Tribunal de S. Paulo. A alegria reinou em todo o recinto; respirei e sorri para ela. Estava de pé, linda no seu vestido de veludo mostarda, e auxiliada pelo marido e por nossos irmãos deu os primeiros passos para a porta de saída. Caminhei também ao lado dela e entramos na carruagem. Muita gente falava e dava os parabéns e o povo se comprimia à volta do carro. Os cavalos começaram a trotar e respirei aliviada. Maria Letícia continuava estranhamente calma.
Nossa casa apresentava um movimento fora do comum; pessoas amigas vieram testemunhar solidariedade e congratular-se pelo bom término do caso. Mamã Zabel e Modesta choravam de alegria; mamãe, Leopoldina, Francisca Miquelina, irmãos e cunhadas riam e falavam abraçando umas às outras, sem saber o que fazer. Carola passou correndo com um ramo de rosas-chá na mão; foi levar para enfeitar o oratório do quarto, pois tinha feito uma promessa a Nossa Senhora do Rosário. Maria Letícia recebeu as pessoas que a procuravam com palavras de agradecimento e aceitou as provas de amizade com um sorriso pálido e distante. Num momento em que ficamos a sós num canto da sala, ela me disse em voz baixa:
— Agora vou para Santarém e nunca mais deixo a fazenda, aconteça o que acontecer.
Perguntei:
— Ora esta! Por quê? Agora...
Vimos a Baronesa de Sobral que se aproximava, exuberante em palavras e gestos, o nariz pontudo como que furando o ar; estendeu a mão magra e seca, calçada com mitaines de renda preta, dizendo com um sorriso melífluo:
— Oh! Maria Letícia, quero dizer, viscondessa, quanto me alegro! Sinto-me tão feliz como se o caso fosse comigo. Parabéns! Eu não disse sempre que D. Deolinda não é boa bisca? Foi ela quem fez tudo, hein? Comprou escravos prometendo casas e cartas de alforria... Mulher cousa ruim!
Não pode falar mais; outras pessoas chegavam e falavam animadamente. Aninhas estava com o nariz vermelho, assoando-se com ruído. Alguns filhos do tio de Paiva que residiam no Rio de Janeiro vinham entrando para felicitá-la. Diziam palavras amáveis e comentavam a maldade de D. Deolinda Menezes. Foram todos unânimes em declarar que se Maria Letícia não tivesse pedido novo processo e não tivesse descoberto algumas testemunhas ainda do julgamento, uma dúvida sempre havia de pairar em muitos espíritos, mesmo os que diziam acreditar na inocência dela, duvidariam. De um lado, Félix e o velho Lopes formou um grupo de que forma a polícia descobriu a verdade; muitas testemunhas haviam desaparecido; entretanto, três ex-escravos de D. Deolinda Menezes compareceram à polícia. Após horas de apertado inquérito, declararam que tinham recebido promessas de liberdade, casa e dinheiro, se dissessem que ouviram a viscondessa dar a ordem; a pessoa cumprira em parte o prometido, mas não porque a viscondessa não comparecera ao Tribunal. Aí deixou de ser cumprida inteiramente. Esses depoimentos foram sensacionais. Apertaram o interrogatório: E quem foi essa pessoa? Os três homens hesitaram, titubearam com medo de uma vingança; refletiam olhando para o chão, e só resolveram contar quando a polícia resolveu protegê-los. Interrogados novamente, um deles olhou os companheiros como a pedir-lhes apoio; confessou em voz baixa e atemorizada: Sinhá Deolinda.
Depois, os outros dois confirmaram as palavras do primeiro e causou perplexidade entre todos nós. Lourenço falou:
— Como ela fez isso? A vizinha que se dava com eles, os convidava para jogar e para festas! Hipócrita!
Ele continuou:
— No primeiro momento, até a polícia duvidou: Não era mentira daqueles negros? Não seria uma calúnia? Pois que ela sempre foi ruim para os escravos. Mas isso tudo foi esclarecido e a verdade transpareceu. Sobral sacudiu a mão calçada de mitaine e disse: Ela é capaz de tudo, de tudo.
Maranhão aproximou-se com um sorriso animado a Maria Letícia; o Cônego Soares também lhe apertou a mão calorosamente. Mas seus olhos amortecidos olhavam todos indiferentemente e seu sorriso era tão triste como seu rosto. Mais tarde, ela me disse outra vez:
— Mana Rosa, a provação foi muito dura para mim. Enquanto estava no Tribunal ouvindo o Dr. Sales, uma idéia surgiu na minha cabeça, e foi ficando cada vez mais firme. Vou para Santarém e lá ficarei até morrer.
— Meu Deus, agora que tudo vai bem, você fala em ir embora?
— Ah! É porque você não sabe o que é perder a fé nas pessoas e na felicidade. Parece que não creio mais em nada; parece que tudo o que era bom e doce na minha vida desapareceu com a fé. Você não compreende isso. Adquiri, de repente, a certeza, a convicção de que, enquanto viver, não serei feliz. Santarém será para mim um refúgio, uma espécie de esconderijo, um lenitivo para a enorme desilusão que tenho hoje do mundo e das pessoas.
— Não diga isso... Tudo acabou bem, e você poderá ser tão feliz ainda, tem Fernão, os filhos...
— Não. Nada mais importa. Sofri muito; os anos podem passar, arrastar tudo com eles; tudo pode viver e fenecer. Viverei sempre à sombra desta lembrança, desta dor por que passei e tenho a certeza de que, por mais que tente libertar-me, não o conseguirei. Sinto-me como que meio morta...
— Qual! Há de passar. Você fala isso hoje porque ainda está sob a impressão do Tribunal, dos jurados, do juiz, do advogado da acusação. Foi mesmo deprimente, Maria Letícia, mas passou. Trate de esquecer e não tenha idéias negras, Vocês têm a Chácara da Penha, tão bonita, tão agradável para se morar.
Todas as visitas, os parentes e amigos foram deixando a casa; aquela nuvem negra que durante anos havia pairado sobre nossa família, havia afinal desaparecido. Maria Letícia sorriu feliz novamente; à noite, quando se despediu para ir para a chácara, eu lhe disse:
— Fui a única que ainda não a cumprimentou, Maria Letícia. Graças a Deus, tudo acabou bem...
Ela me olhou sorrindo.
— Graças a Deus, mana.
Mas seu sorriso não era feliz. Não compreendi por que, pois devia sentir-se venturosa ao realizar o que tanto desejou. Provou perante a família, perante o marido, perante a sociedade de S. Paulo, que era inocente. A intriga e a calúnia haviam-na torturado durante esses longos anos; o coração nefando de Deolinda havia-a perseguido e maltratado, mas tudo terminara com a graça de Deus. Tudo terminara. Ela podia levantar a cabeça bem alto e dizer: "Não dei ordem para matarem a escrava. Se morreu, não tenho culpa". Fora absolvida. Li então uma frase sobre os caluniadores: Le demon la fraude, ce monsíre étrange et redoutable...
Manteve-se firme à resolução de residir em Santarém; que as crianças, mesmo depois de crescidas, poderiam ficar com a governanta que os acompanhava desde a Europa, era muito instruída. Mais tarde, mandaria contratar um professor de dança e outro de música.
Na Chácara da Penha, eram grandes os preparativos para a mudança definitiva; encaixotavam-se louças, enrolavam-se talheres, a azáfama era geral, como se aquilo fora o fim de tanta cousa irremediável. Maio havia chegado; as chuvas, naquele ano, começaram a cair incessantemente.
Ficou tudo alagado; as plantações, as ruas; e até o córrego da chácara cresceu como um ribeirão. Leopoldina tentava, por todos os meios possíveis, dissuadir Maria Letícia de ir para Santarém; eu estava na chácara auxiliando-a. Leopoldina ia todos os dias para lá a fim de convencê-la, ela continuava inflexível. Numa quinta-feira fria Leopoldina passou horas conversando conosco a fim demover a irmã uma vez mais. As crianças brincavam no canto da sala, não podiam sair devido ao tempo.
Depois do chá, despediu-se e fomos até o portão acompanhar até a carruagem. A rua parecia deserta, a chuva teimosa e fria continuava a cair; o ar estava úmido e as plantas, como que cansadas de tanta água, inclinavam os galhos pesados.
Nunca mais, na família, falamos sobre o julgamento de Maria Letícia; papai disse que o melhor era pôr uma pedra em cima. E assim foi; ninguém ousava tocar na pedra. Os Menezes continuavam a residir na chácara vizinha, mas nunca mais os vimos, nem deles ouvimos falar; Modesta contou que estavam também de mudança, para o Rio de Janeiro.
Depois que Leopoldina partiu com os filhos, Maria Letícia e eu ficamos à janela, vendo a chuva cair. Vimos umas negras subindo a ladeira. Duas delas equilibravam na cabeça tabuleiros, cobertos de panos devido à chuva. Passaram por nós e de longe ofereceram doces: sacudimos a cabeça para dizer que não queríamos. Maria Letícia disse:
— Os doces devem estar molhados, com esta chuva...
Perguntei:
— Que doces serão?
— Quindins, pastéis de nata, cocadas... Uma vez Paulo pediu para comprar alguns e vi o tabuleiro; tudo muito arranjadinho, muito limpo, dá gosto ver. São negras forras que vivem de vender doces na cidade.
Elas tinham parado no alto da ladeira e descansavam, as cabeças cobertas com panos brancos; os tabuleiros estavam colocados no chão, perto de um barranco. Foi então que vimos Casimiro, o filho de D. Deolinda Menezes, sair à rua com um chicote na mão; era um belo rapaz de dezoito anos, louro e corado. Modesta que estava por trás de nós, à janela, falou:
— Um dia esse moço ainda sofre um desastre. Tá domando a parêia do carro novo que compraram; são uns cavalo preto, danado. É perigoso porque os cavalos são bravo. Sinhá já viu?
E por trás de nós mostrou o escravo que vinha conduzindo o carro novo puxado por dois cavalos negros. Num pulo, o rapaz subiu à boléia e empunhou as rédeas; admirei a destreza e elegância com que o rapaz dominou os cavalos impacientes; Maria Letícia comentou o quanto ele era bonito. No ar pairava agora apenas uma leve garoa, a chuva quase desaparecera. Casimiro estava sem chapéu e os cabelos alourados reluziam molhados pela chuva. Não se importando com as ruas enlameadas aprontou-se para dirigir o carro e ordenou ao escravo que largasse os cavalos. Vimos as negras dos tabuleiros, interessadas pelo rapaz, seguir os movimentos dele, enquanto uma delas tirou um cachimbo do bolso da saia, acendendo-o e tirou uma fumaçada. Quando o escravo largou os cavalos, fez uma advertência ao rapaz, com certeza sobre a lama da rua; vimos Casimiro sacudir os ombros num gesto de desafio, e, dando um estalo leve com o comprido chicote, obrigou os cavalos ao trote. Ao partir, fez um sinal a alguém que se ocultava numa das sacadas da casa vizinha; Maria Letícia sussurrou que devia ser D. Deolinda. Acompanhamos Casimiro com o olhar; vimos seu pulso forte dominar os cavalos com perícia; lá no fim da rua, voltou em rápido galope.
As vendedoras de doces falaram alto, entusiasmadas; a negra com o cachimbo, apontou-o para Casimiro, rindo alegremente. Olhamos outra vez para o carro; os cavalos obedeciam a Casimiro, mas percebia-se que o faziam com certa relutância, ainda não estavam habituados ao carro. Num esforço que o rapaz fez para contê-los, inclinava o busto para trás e via-se então o seu belo rosto banhado de umidade; airoso e ágil, volteava o chicote no ar e, cada vez que passava diante da casa vizinha, dava um adeus para a pessoa oculta atrás da cortina. Subiu novamente a rua, procurando cansar os animais; tornou a descê-la num trote largo. O céu estava cinzento-escuro, carregado, ameaçador. As vendedoras seguiam a corrida do carro, com interesse; a negra do cachimbo tirava grandes fumaçadas e falava com animação. Casimiro tornou a passar para dizer adeus, e de súbito, no fim da descida, ouvimos o barulho de madeira quebrada, depois gritos estridentes e aflição seguida, um grito agudo de mulher, tão desesperado prolongado que abafou os outros ruídos.
As negras dos doces desceram a ladeira com as mãos abanando, aflitas, aos gritos, deixando os tabuleiros ao lado, esquecidos sob a chuva.
Debruçamo-nos no parapeito da janela para ver o que tinha acontecido e presenciamos então um espetáculo horroroso: Casimiro caíra do carro, mas um dos pés ficara preso e os cavalos o arrastavam, pisando-o várias vezes; o carro ia aos saltos, levando o corpo dele. Com um leve gemido, Maria Letícia tapou os olhos com suas mãos, não querendo acreditar no que via; dei um grito agudo de horror e no mesmo instante grande alarido em toda a rua. Os escravos de D. Deolinda, os vizinhos, Tomásio e Modesta, correram para acudir, cheios de espanto e terror. Em baixo da ladeira, os cavalos pararam, afinal; o carro estava desmantelado, e uma das rodas separou-se do carro e rodou sozinha até encostar num barranco, metros além. Deixamos a janela, descemos as escadas e corremos ao portão do jardim. Todos corriam e se aprestavam para auxiliar. Só então vimos D. Deolinda Menezes passar por nós; levava as mãos à cabeça e gritava, enquanto suas saias de seda se arrastavam na lama pegajosa da rua; sua voz era rouca e angustiada, a fisionomia estampava desespero: Meu filho! Meu Casimiro!
Ficamos imóveis no portão, sem conseguir desviar os olhos da mãe desesperada; era horrível; as mãos de Maria Letícia tremiam enquanto apertavam contra o peito a mantilha de lã. Murmurou:
— Mana Rosa, o que ela mais amava no mundo era esse filho.
Tudo fora muito rápido, não havia possibilidade de o rapaz ainda estar com vida; lá embaixo, os gritos eram cada vez mais estridentes, lancinantes; entre todos, sobressaía o grito da mãe: Ca-si-mi-ro! E o eco repetia não sei onde: Ca-si-mi-ro!
Vimos o grupo fúnebre subindo devagar a ladeira enlameada; dois negros carregavam o rapaz, cuja cabeça estava irreconhecível — um monte de lama e sangue; ao lado deles, a mãe angustiada tropeçava nas poças d'água, arquejava, chorava e procurava amparar com carinho um dos braços do filho, quase separado do corpo. Uma das vendedoras de doces levava entre as mãos a botina do rapaz; as outras diziam:
— Virge do Céu, tão bonito, com aquela cara de anjo, quem havera de dizê.
Nesse momento, o comendador saiu da casa e foi ao encontro do grupo. Parecia uma figura sinistra; quando compreendeu o que havia acontecido, não pôde chegar até onde estava o filho, como se fosse demasiado para ele; caiu de joelhos no chão, arquejando num estertor. Depois, o tronco tombou pesadamente para a frente, tal qual uma árvore derrubada a machado; e ficou deitado, o rosto contra a lama todo encharcado de água, até que Modesta e outros escravo, solícitos, o levantaram e levaram.
A rua encheu-se de gente no mesmo instante; comentavam o acidente; falavam todos ao mesmo tempo querendo explicar como se dera o fato; entre gritos e explicações, outros escravos traziam pela rédea um dos cavalos, o outro ficou no mesmo lugar com uma perna quebrada, iriam matá-lo mais tarde.
Maria Letícia entrou e eu ainda fiquei olhando; vi as vendedoras de doces deixarem a casa falando alto e dirigirem-se para onde haviam deixado os tabuleiros; ficaram conversando ainda durante algum tempo, depois uma delas tornou a pegar o cachimbo do bolso da saia e tornou a acendê-lo. Colocaram os tabuleiros na cabeça e foram andando devagar; vez em quando, olhavam para trás e falavam; a do cachimbo, apontava-o para o fim da rua, onde se dera o desastre. Fui ver Maria Letícia que estava com os filhos na sala de jantar; passou o resto da tarde quase sem falar e nem a ouvir os comentários de Modesta. Quando Fernão chegou, sabia de tudo; um escravo fora contar lá onde ele estava. Jantamos em silêncio, depois ficamos olhando através da vidraça. Como aconteceu algumas vezes, a chuva passara, só a cerração estava forte, envolvendo a cidade manto escuro. Anoiteceu. Fernão e Maria Letícia ficaram silenciosos, sem coragem de falar, apenas olhando a escuridão que se fazia lá fora cada vez mais densa. De vez em quando, ouvíamos um grito na casa vizinha; era alguém chamando outro alguém: Ca-si-mi-ro! Mas ninguém respondia, e as trevas iam crescendo e, com elas, a cerração. Maria Letícia foi para o meu quarto durante a noite, não conseguia dormir. Com a mão sobre o coração, como a querer parar as pancadas aflitivas, ouvia a voz torturada chamando pelo filho nas horas mortas da noite, mas só o silêncio respondia ao apelo angustioso,
A voz torturada gemeu e gritou a noite toda, até a Lua aparecer num canto do céu: Casimiro! e o eco vindo não sei de onde, como a brincar: Casimiro!
Em Santarém, Maria Letícia procurou adaptar-se para o resto da vida, como dizia; mau grado sua mocidade, completara trinta anos de idade, procurava o isolamento que sua alma sempre ambicionara e o desejo tanto tempo alimentado de viver à margem, quase isolada. A pedido dela e de Fernão, acompanhei-os; Lídia não se separava de mim. Organizamos horários para os estudos das crianças como se estivessem na cidade; Fernão mandou fazer um galpão perto do pomar, onde os meninos estudavam nos dias de sol, quase ao ar livre. Também comprou livros e assinou revistas estrangeiras para não perder completamente o contato com o mundo; de quinze em quinze dias, recebíamos jornais que papai mandava de S. Paulo; então, metodicamente, Maria Letícia punha-se a lê-los pela ordem das datas.
Carola foi para Santarém passar algum tempo; já tinha dezenove anos, mas uns dezenove anos fracos, raquíticos, doentios. Não crescera quase e continuava pálida e magra, o comprido nariz a salientar-se na magreza do rosto e não dava mais beliscões, nem alfinetadas nas escravas, e seu rosto adquirira um ar tristonho. Sua vida, porém, encontrara afinal um objetivo; cantava. À noite, quando Maria Letícia tocava piano na sala grande, ela cantava acompanhando; sua voz, embora fraca, era agradável. Mamãe mandara-a estudar canto durante alguns anos e proporcionara-lhe a felicidade; Carola encontrara alegria em seu caminho, pois enquanto cantava esquecia seu mal. Esquecia sua desdita e na sua vozinha trêmula parecia pulsar toda a tortura de sua alma doente. Quando eu a via, feia e triste, cantando ao lado de Maria Letícia, esquecia a deformidade que a infelicitava e só reparava na voz, aquela voz harmoniosa que se elevava no silêncio da fazenda, cantando as tristezas de sua vida. Parecia um passarinho encarcerado de asa quebrada; muitas vezes, quando cantava, dava toda uma escala inesperada, como um desabafo. Durante o dia, fazia crochê; eram metros e metros de crochê que saíam de suas mãos amareladas: toalhas, colchas, roupa branca, entremeios, enfeites. Às vezes, ia dar um passeio a pé e em algumas dessas ocasiões Maria Letícia e eu fomos encontrá-la sentada num canto do pomar, sobre folhas secas, a riscar o chão com um pauzinho. Maria Letícia perguntava:
— Que está fazendo, priminha? A vozinha fina respondia:
— Olhando as formigas.
Certa ocasião Bonifacinho e os dois filhos mais velhos de Leopoldina foram passar as férias em Santarém; houve grande animação na casa. Os quartos de hóspedes foram abertos e arejados; das gavetas, quase emperradas, das grandes cômodas, foram retiradas colchas da Índia, lençóis de linho, toalhas de crochê para os consolos e as mesas. Todos os dias organizavam-se passeios a cavalo; almoços na mata, banhos no ribeirão, entre gritarias e brincadeiras; Bonifacinho já estava com dezessete anos, não era muito alto, mas forte e cheio de vivacidade; ria-se quando recordava os tempos em que usava os cabelos em cachos; andava o dia todo de esporas e dava galopadas loucas através dos campos, esporeando os animais.
Quando as aulas foram reiniciadas e os meninos voltaram para S. Paulo, Carola também voltou para continuar as aulas. Maria Letícia e eu ficamos novamente sós as com crianças. Fernão viajava continuamente; ora estava em S. Paulo, ora na fazenda; dirigia também os negócios da mãe.
Um ano depois que estávamos em Santarém, tio Antônio voltou da Europa e refugiou-se na fazenda. Gastara tudo que mais possuía e não tendo terras para vender, nem tendo direito à fazenda que herdara, foi viver em Santarém com Maria Letícia e Fernão. Estava velho; com cinqüenta e poucos anos, mas davam-lhe muito mais; bigodes grisalhos caíam-lhe sobre a boca e tinha os olhos empapuçados. Comparava a vida a uma fruta, dizia que se deve tirar todo o suco enquanto se pode, segundo essa teoria, espremera a fruta de tal forma que nada mais restava, nem bagaço. Sua velhice era como a fruta espremida; não conservara amizades, afeições, carinhos. Somente recordações, o que ele ainda achava muito.
Andava à cavalo uma vez ou outra; vivia deitado na rede com uma pilha de livros e revistas estrangeiras ao lado. Maria Letícia se sentava ali perto para costurar, deixava a revista cair das mãos e começava a falar da França; então seus olhos adquiriam novo brilho e, entremeando palavras inteiras em francês, contava episódios que Maria Letícia ouvia com complacência, confirmando com a cabeça de quando em quando. Às vezes, dormia na rede, longas horas, a boca aberta e a cabeça pendida para um lado.
Muitas cartas chegavam com freqüência a Santarém, contando novidades; Leopoldina escrevia:
Queridas manas:
Temos tido bons espetáculos ultimamente; o Rossi conseguiu encher o S. José duas noites consecutivas, pela primeira vez. Maria Letícia não se anima a vir assistir? Por que esse degredo, essa amofinação? Sentimos tanto a ausência das manas. Venham.
Adelaide que estava passando uns tempos em São Paulo, escreveu também:
Querida Maria Letícia:
Já deve saber pelos jornais que papai mandou, que vamos ter uma Companhia Lírica de primeira ordem em S. Paulo, graças a Deus. Vamos ouvir o Trovador, Huguenotes, Rigoletto, pela Maria Duran e Bassi. Estou tão feliz! Nunca assisti a nada disso e estou emocionada. Como pode a mana viver assim longe de tudo? Creio que somos bem diferentes uma da outra; nossos pais sofrem com seu exílio voluntário. Venha ao menos no fim do ano.
Saudades de Adelaide.

Mais cinco anos decorreram, longos e silenciosos. Sem emoções, sem vibrações, sem movimento. E a vida passou como as águas paradas de um lago numa planura deserta; não havia ondas no lago e, se as houvesse, não perturbariam a superfície sempre lisa, igual e monótona como a de um espelho. A vida refletida nesse espelho era tão estreita que não empanava seu brilho; todos os dias a mesma rotina; tudo rodava como a grande roda de um moinho e só se ouviam rangidos, às vezes, o único ruído a perturbar o silêncio de Santarém. Blen... Blen... Blen... O sino chamando os escravos na roça, os sinos avisando a hora de seguir, a hora do almoço, a hora de voltar. Ricardo socando o pilão todos os dias, espalhando para longe as casquinhas de arroz. Quando o sol a pino parecia incendiar a fazenda, o papagaio gritava do seu poleiro na cozinha: Soca, Ricardo, peste do diabo! E Ricardo socava.
Nas noites de luar, ouviam-se tímidos sons de viola, lá para os lados das senzalas e de vez em quando uma voz no silêncio, uma voz medrosa e cheia de nostalgia. Saudade. Vontade de chorar. E silêncio. Silêncio a imperar por toda a vastidão; até o ribeirão corria em silêncio. Somente no charco, os sapos coaxavam durante a noite; e ao anoitecer, à hora do crepúsculo, um nambu chamava outro com gritos breves e as saracuras gritavam: Quebrei três potes! Umas às outras. Um cão levantava o focinho para a lua e uivava tristemente até que um grito o fizesse calar. E o silêncio voltava de novo, a imperar mais fortemente por toda a vastidão. Silêncio dos lugares ermos, sem vida, onde os dias são muito longos e as noites quase infinitas.
No decorrer desses cinco anos, fui duas vezes para S. Paulo e por duas vezes tornei a voltar para Santarém. Maria Letícia foi apenas uma vez, quando papai teve uma congestão e ficou meio paralítico do lado esquerdo. Encontramos ele convalescente, livre de perigo; recebeu-nos recostado nos travesseiros altos e quando viu Maria Letícia entrar no quarto ficou aflito, seu olho direito estremeceu e encheu-se de lágrimas; o esquerdo continuou estranhamente parado e fixo depois que nos inclinamos para beijar-lhe a mão. Não falava com voz possante que fazia vibrar o casarão, falava balbuciando as palavras e a face esquerda estremecia de leve ao movimento da boca, como se fosse repuxada.
No dia seguinte, mamãe contou-nos entre lágrimas que o causador dessa desgraça fora Lourenço. Ultimamente, Lourenço andava querendo casar com uma moça de má fama, e ele não queria o casamento; um dia, papai e ele altercaram fechados no escritório; mamãe estava de fora escutando e ouviu papai dizer: "Se continuar com essa maluquice, será expulso desta casa". Francisca Miquelina, interrompeu a mamãe:
— Que maluquice era essa a que papai se referia?
— O casamento. Lourenço disse ao pai que ia casar-se com a moça.
Olhamos admiradas para mamãe; Leopoldina e nossas irmãs escutavam em silêncio. Francisca Miquelina perguntou: Mas ele falou em casar com a moça? Maria Letícia sacudiu a cabeça, reprovando; mamãe enxugou as lágrimas e continuou:
— Ah! Minhas filhas, o que temos sofrido por causa de Lourenço. A princípio, não queriam que eu soubesse e andaram ocultando o fato, depois fiquei sabendo de tudo por mamã Zabel. Isso vem durando há uns quatro anos já, nem sei mais. Lourenço teimando sempre, não queria deixar esse namoro. Tem sido uma luta.
Maria Letícia perguntou, resoluta:
— Por que não mandaram Lourenço para a Europa?
— Tentou-se tudo, nada ele quis. Na semana passada, apareceu aqui muito agitado, dizendo que se tinha casado nessa manhã.
Olhamo-nos umas às outras, atoleimadas; falei, horrorizada:
— Casado? Então Lourenço casou? Santo Onofre, valei-nos!
Mamãe tornou a chorar; depois mais calma:
— Casou-se com a rapariga; seu pai, quando ouviu a nova, ficou branco e levantou-se dizendo: "Saia desta casa, filho desobediente! Já". Eu gritei: "O senhor se esquece de que Lourenço é nosso filho?" Mas ele foi intransigente. Havia dito, um dia, que expulsaria Lourenço se ele se casasse, e expulsou. É homem de palavra.
Houve uma pausa; Leopoldina e Francisca Miquelina escutavam de cabeça baixa. Mamãe falou chorando:
— O barão ficou desesperado. Disse que Lourenço havia desprezado... as tradições do nome e da... família, casando-se com uma rapariga sem nome, sem bons costumes, sem distinção. Chegou a dizer que ele havia desonrado nossos cabelos brancos... Foi horrível de se ouvir, principalmente quando o expulsou.
Maria Letícia perguntou:
— E Lourenço? Que fez?
— Não disse uma palavra. Pegou o chapéu que estava sobre uma cadeira e saiu. Antes de sair, olhou para mim e isso me cortou o coração. Essa cena foi depois do jantar, podia ser umas cinco horas. Nessa noite, seu pai teve a congestão.
Escutávamos, consternadas. Depois Francisca Miquelina perguntou em voz baixa:
— E a rapariga não presta mesmo?
Mamãe assoou-se e disse:
— A moça não sei quem é, nem quero saber; mas a avó dela foi mulher-dama. Viveu muito tempo com um homem sem ser casada e já tinha cinco filhos quando resolveu casar.
Leopoldina acrescentou:
— Os filhos eram todos naturais; e a mãe da moça é uma das filhas desse casal.
Francisca Miquelina juntou as mãos:
— Viviam amancebados? Que horror! e o pai dela, quem era? É de família conhecida?
Eponina explicou:
— Não sabemos, vieram do interior. Gentalha. Dizem que são pobres, mas direitos, moram numa casinha lá pela Estação do Vergueiro. Não sei, só se sabe que a avó foi cousa à toa.
Arrisquei a medo:
— Quem sabe até são gente boa? E que culpa tem a neta, se a avó não prestava? Pode ser muito boa moça...
Mamãe interrompeu-me asperamente:
— A raça é que vale; se a avó não prestava, como quer que a neta preste? Não diga asneiras, Rosa.
— A raça em primeiro lugar, não se esqueça disso, advertiu Leopoldina.
Maria Letícia perguntou:
— Como é que Lourenço, de uma família como a nossa, foi gostar de uma rapariga de uma família tão baixa? Não compreendo.
Leopoldina suspirou:
— Como se pode saber? Loucuras da educação moderna. Não reparou nos modernismos de hoje? Em vez de procurar uma boa moça para se casar, preferem qualquer uma por aí. São liberdades de que os moços de hoje abusam. O resultado é casar com uma desconhecida! Ou, então, devia casar com a vizinha, como papai sempre diz: "casai vosso filho com a do vosso vizinho". Dava mais certo.
Suspirei: que infelicidade! E Lourenço era tão bom! Nunca vi isso dele. Nem eu! Nem eu! Rodeamos mamãe que recomeçava a chorar, sentada numa cadeira baixa, de palhinha, o rosto entre as mãos. Carola que estava num canto escutando, não disse nada. De repente, lembrou, com um arzinho assustado:
— Nossa Senhora da Boa Morte! Que não dirá a Baronesa Sobral?
Na tarde desse mesmo dia, levamos um susto muito grande: estávamos tomando o café do meio-dia na sala de jantar, quando o mordomo Benedito cochichou qualquer cousa ao ouvido de mamãe. Vi o rosto dela transfigurar-se, e, olhando para todos, começou a tremer enquanto suas mãos, que serviam o café, deixaram o bule e começaram também a tremer. Leopoldina notou e levantou-se, assustada:
— Que há mamãe?
Maria Letícia ficou indecisa e perguntou também, olhando à volta:
— Aconteceu alguma cousa?
Mamãe serenou um pouco; fazendo sinal para esperarmos, tomou um pouco d'água que Benedito já havia posto na sua frente; bebeu uns golinhos e, depondo o copo sobre a mesa, falou baixinho para todas nós que esperávamos curiosas:
— Lourenço está aí! Soube que o pai está doente e pediu para vê-lo.
Olhamo-nos, perplexas; Maria Letícia foi a primeira a falar, os lábios cerrados:
— Impossível! Papai não o receberá!
Falei:
— Coitado! Papai está tão doente... Quem sabe, falando com ele...
As mãos de mamãe tornaram a tremer.
— Não falemos nisso, eu conheço o barão. Se ele expulsou Lourenço, é porque não quer saber dele. Eu sei. É um homem de palavra.
Leopoldina perguntou, conciliadora:
— E se tentássemos, mamãe? Quem sabe?
Reunimo-nos mais estreitamente para deliberar, enquanto Benedito foi avisar Lourenço que voltasse mais tarde, à hora do jantar. Depois do conciliábulo secreto, Leopoldina e eu fomos em primeiro lugar falar com papai e ver se conseguiríamos a reconciliação. Entramos no grande quarto que, com as rótulas cerradas, estava quase às escuras; papai, sentado numa poltrona de veludo marrom desbotado, tinha uma bengala grossa ao alcance da mão direita; servia-lhe de apoio quando se levantava, ou para bater com força na cadeira próxima a fim de chamar alguém. Leopoldina abriu um vãozinho numa das rótulas para poder observar a fisionomia de papai quando começasse a falar; arranjei-lhe a almofada sob a cabeça, vi se havia água fresca na moringa de barro, enquanto Leopoldina perguntava se ele queria alguma cousa; depois, sentamo-nos ao lado dele e Leopoldina foi firme ao assunto:
— Papai, tenho muita pena de Lourenço.
Ele agitou a mão direita que descansava sobre uma das mesas, e segurou a bengala; nada disse. Ela continuou:
— Acho que ele é infeliz, afinal de contas; agora mesmo estava falando nisso para Mana Rosa. Depois, deve estar tão arrependido! Tenho pena dele.
Confirmei com a cabeça e acrescentei:
— Eu também.
Leopoldina repetiu:
— Muita pena mesmo.
Silencio. Espiamos o rosto de papai. Falei mais animada:
— Quantos rapazes não dão cabeçadas para depois se arrependerem? Ele é um coitado e deve estar arrependido. Não é, Leopoldina?
Leopoldina ia falar, mas papai falou antes dela, com dificuldade:
— Por que não me falou antes? Não é assim, chegar ante de mim e dizer: Casei-me hoje. Isso não se faz. A língua enrolava-se-lhe fazendo as palavras brotarem entrecortadas. Leopoldina ouviu as palavras balbuciantes e disse:
— Ora, papai, são loucuras da mocidade; defeitos da época moderna. Ele foi sempre tão bom, tão obediente...
Pausa. Perguntei:
— Ele sempre foi bom filho, não papai?
Ele não respondeu e sacudiu de leve o ombro direito, Leopoldina falou, um tanto receosa:
— Nosso pai devia perdoar-lhe. Temos tanta pena dele.
Papai agitou-se de novo levantando a bengala que continuava a segurar:
— Nunca. Não me fale nisso. Nunca. E bateu a bengala no chão como se golpeasse alguém, olhei depressa para Leopoldina que estava um pouco assustada, suspirou e mudou de assunto, completamente desanimada:
— Não sente calor, papai? Alberto disse que este ano as chuvas vêm atrasadas e vão estragar a colheita.
Papai concordou com um ligeiro aceno da cabeça. Minutos depois, Leopoldina e eu voltamos à sala de jantar, onde as outras esperavam, ansiosas, o resultado da conversa:
— Então? Conseguiram?
— Nada. Diz que nunca perdoará a Lourenço. Mamãe suspirou:
— Minha Nossa Senhora! Tenha pena de nós! Francisca Miquelina olhou para Maria Letícia:
— E se fôssemos tentar, Maria Letícia? Leopoldina sorriu, como a desafiá-las:
— Tentem. Nós nada conseguimos.
Francisca Miquelina pôs o filho pequeno no colo de Eponina, enquanto Maria Letícia acabava de mastigar um biscoito:
— Vamos então. Mana Rosa, vamos também.
Mamãe olhava fixamente a mesa; dirigimo-nos silenciosamente para o corredor escuro, Maria Letícia fez Francisca Miquelina parar um instante:
— Francisca Miquelina nunca mais tivemos ocasião da conversar; eu queria saber sobre aquela conversa... há tantos anos atrás. Lembra-se? Quando você estava para ter o primeiro filho, e eu e Mana Rosa estávamos no seu quarto. Sobre Rodolfo.
— Rodolfo? Vai bem. Você quer saber sobre a Ambrosina, não é?
Confirmamos com a cabeça. Ela baixou a voz:
— Vai do mesmo jeito. Não há remédio, Rodolfo continua com a Ambrosina lá em casa. E a Ambrosina anda arrogante, quer tudo para os filhos dela, do bom e do melhor. Ah! Eu tenho sofrido!
— Ela tem filhos?
— Tem. A única diferença é que ela tem dois e eu tenho quatro; e não posso impedir que meus filhos brinquem com os dela o dia inteiro. São amigos.
Maria Letícia quase deu um grito. Olhamos assustadas uma para a outra:
— Como, Francisca Miquelina? Os filhos brincam juntos? Mas isso é indigno de um homem de bem. Como pode Rodolfo permitir tal cousa? E você não se revolta?
Perguntei:
— Por que deixa? Não devia deixar.
— Já me revoltei muitas vezes. O que adianta? O melhor é fingir que não se sabe; temos que abafar nossas revoltas nesse mundo. O que fazer? Há muitos maridos que se amancebam com as escravas, o meu não é o primeiro, e nossa mãe diz que nosso dever é aceitar a situação. Conheço muitos assim...
Terminou sacudindo os ombros num gesto de indiferença repetindo:
— Muitos!
O semblante de Maria Letícia tornou-se zangado; falou com uma expressão colérica, batendo uma mão na outra:
— Mas há certos fatos que nos deixam revoltadas. E mesmo que a gente queira esconder, não é possível. Esse, por exemplo, eu não suportaria. Ah! Nunca suportaria! Ver meus filhos brincando com os filhos da escrava? Nunca! Falaria com ele, contaria a toda gente, mas não ficaria quieta. Não sei, mas alguma cousa me diz que nossas filhas ou nossas netas terão outra visão que não a nossa...
Francisca Miquelina sorriu palidamente e levantou a mão num gesto vago, mas nada disse. Arranjou a gola do vestido.
Fizemos um momento em silêncio, depois nos dirigimos para o quarto de papai, no fim do corredor. Maria Letícia ia à frente, murmurando:
— Que vida triste a sua, mana! Que vida triste!
Sentaram ao lado de papai, perguntaram se se sentia bem, se tudo estava em ordem; depois, puseram-se a conversar a respeito do tempo, da Companhia Lírica, dos filhos, papai escutava, interessado, e dava um ou outro aparte. Maria Letícia falou:
— Papai precisava ver como Lídia é estudiosa! Fica horas inteiras com o livro na mão, lê tudo o que pode. Não é mesmo Rosa? E o que não pode também; outro dia surpreendi-a com um romance francês de tio Antônio...
Papai, que estava sorridente, franziu o sobrolho, Francisca Leopoldina tomou a palavra:
— Meu pai precisava ver Aninhas recitar Meus oito anos. O mais engraçado é que ela apenas tem sete e diz que pode bem ter saudades dos oito anos porque ainda não chegou. Por mais que se lhe diga que só se tem saudades do que passou, é inútil. Diz que também se pode ter saudades do que está para vir... Rimos. A fisionomia de papai alegrou-se outra vez. Maria Letícia continuou:
— E o Antônio Fernão que quer estudar medicina? Só pensou e resolveu. Paulo quer ir para a Europa, estudar pintura, como mano Inácio. Acho lindo ser pintor, e, quando mano Inácio nos visitou em Paris, Paulo impressionou-se, não se lembra, mana Rosa? Diz que quer ter uma barba loura e grande como o mano e uma gravata com laço esvoaçante. Maria gosta de música; tenta tudo quanto toco, gosta mesmo de piano. Francisca Miquelina interrompeu:
— Ah! Isso os meus também. Principalmente quando me vêem tocando harpa, todos querem estudar também, até já andei dando umas lições a Aninhas.
Continuaram por algum tempo ainda, cada qual fazendo sobressair as qualidades dos filhos; de um lado, eu abanava papai com um leque para as moscas não pousarem nele. De repente, lembraram-se do motivo que as levara ali; olharam-se em silêncio e Maria Letícia falou:
— Meu pai, ficamos tão tristes hoje... Não, Francisca Miquelina?
— Nem fale.
Papai olhou-as interrogando; Maria Letícia hesitou antes de mentir:
— Soubemos que... que mano Lourenço está doente...
Fixaram os olhos em papai e ficaram esperando. Nada.
Então Francisca Miquelina acrescentou com voz entrecortada:
— E bem doente... Pobre Lourenço! Tão bom e nosso amigo. Lembra-se, Maria Letícia, como ele sofreu quando você foi julgada no Tribunal? Como se revoltou! Quis até matar a pessoa que mandou a carta anônima.
Maria Letícia, que não gostava que tocassem no caso e até papai já tinha pedido para pormos uma pedra em cima, irritou-se; voltou-se para Francisca Miquelina e fez um gesto incontido de revolta, os olhos fuzilantes:
— Por que falar nisso agora? Ora esta! Águas passadas... Você parece gostar de recordar certas cousas...
Abanei papai com mais força; Francisca Miquelina sorriu timidamente e baixou a cabeça como a pedir perdão de ter tocado na ferida; Maria Letícia esperou um instante para se acalmar e falou:
— Papai, soubemos que Lourenço está arrependido, muito arrependido de ter-se casado...
Os dedos da mão direita de papai começaram a se abrir e fechar, abrir e fechar; de súbito, fecharam-se sobre o castão da bengala. Francisca Miquelina, não reparando nesses sinais evidentes de cólera, manifestou-se diretamente.
— Papai, dizem que a mulher dele é boa; os pais dela também são bons, só a avó é que não prestava...
Não concluiu. Papai espumava de raiva; o olho direito brilhava de ódio e a boca se movia, mas não articulava som algum. A longa barba, quase inteiramente branca, agitava-se-lhe sobre o peito; levantou a bengala à altura da cabeça das duas e conseguiu dizer:
— Não me fa... lem nesse filho in... gra... to. Nem uma palavra. Não quero saber de...le. Já dis...se mais de u... ma vez.
E bateu a bengala com tanta força na cadeira da frente que o leque caiu de minha mão; as duas estremeceram. Maria Letícia ficou estarrecida; tomei um copo com água e levei-o aos lábios de papai:
— Tome um pouco d'água. Não falemos mais nisso, nosso pai não quer.
Francisca Miquelina, emocionada, levantou-se e aproximou-se da janela, procurando uma frase qualquer para esquecer o incidente; falou, satisfeita, olhando através da rótula:
— Maria Letícia, venha ver nossos maridos que vêm chegando. Félix também está com eles. Vamos saber que novidades nos trazem e mandar buscar café.
Aliviadas, deixamos o quarto. Chegando à sala de jantar, quando os homens acabavam de entrar, encontramos Leopoldina, curiosa por saber o resultado da conversa com papai:
— Então manas? Foram bem sucedidas?
— Nada. Nada conseguimos. Leopoldina fitou-nos, meio zombeteira:
— Eu já sabia.
Aquela tarde era de carnaval; desde dias antes, Aninhas, Antonina, Leopoldina e eu nos reuníamos num cômodo pegado à despensa a fim de preparar laranjinhas para os rapazes se divertiram. Em vista do estado de saúde de papai haver melhorado muito nos últimos dias, os rapazes tiveram permissão para fazer parte nos folguedos.
Ali estávamos nós lidando com a cera finíssima, a forma e o perfume para enchê-las; Leopoldina era mestra no preparo da flor de laranjeira, receita de mamã Zabel; Aninhas moldava a cera com forminhas côncavas e semicirculares; Eponina tratava de colori-las e eu unia uma metade à outra cuidando de que as bordas ficassem bem coladas. As bandejas foram-se enchendo de delicados globos coloridos; de vez em quando, Bonifacinho espiava pelo vão da porta:
— Manas, quando podemos sair? Estamos em pleno entrudo ...
— Tenha um pouco mais de paciência, Roma não se fez num dia.
À tarde, Bonifacinho, Fortunato, César e Augusto, muito bem preparados, despediram-se de papai, de mamãe, de nós todas e saíram à rua para os divertimentos do entrudo; iriam primeiro à casa das primas Simões. Cada um deles ia acompanhado de um pajem sobraçando uma bandeja carregada de laranjinhas de cheiro. As ruas estavam movimentadas e cheias de gente que se divertia; jogavam-se e retribuíam-se laranjinhas; das janelas jogavam água sobre os incautos que passavam próximo às casas. O carnaval estava em plena animação. Os rapazes foram em primeiro lugar à casa das primas Simões, no Largo da Memória. Depois contaram que, de longe, avistaram as primas; lá estavam elas à janela, ataviadas e preparadas para o brinquedo. Bonifacinho foi o primeiro; com muita delicadeza, acertou uma laranjinha no pescoço da prima Zenaide; ela deu um gritinho de susto enquanto o perfume de flor de laranjeira se espalhava no ar. Num gesto gracioso, prima Zenaide passou a mão no pescoço, onde a laranjinha havia acertado, depois tomou outra da bandeja que uma escrava segurava junto à janela e atirou com tal pontaria que foi bater em cheio no peito de Bonifacinho. Com a laranjinha, enviou-lhe seu mais belo sorriso. Bonifacinho agradeceu e o jogo tomou grande animação; César, Fortunato e Augusto tomaram parte ativa na batalha; sentia-se a mistura agradável de vários perfumes. Meia hora não era passada, quando um dos pajens dos rapazes voltou correndo para casa, em busca de mais laranjinhas, pois os Sinhôs se dirigiam agora à Rua da Imperatriz, à casa das Lages. Enchi duas bandejas que o pajem levou quase correndo; nas ruas o movimento era cada vez maior e o pajem disse que quase não se podia andar de tanto povo. À noite, os rapazes voltaram, as roupas úmidas de perfume, cansados e suarentos; haviam passado uma tarde divertidíssima. Carnaval tão animado como esse, havia muitos anos que não se via em S. Paulo, À volta da mesa, na sala de jantar, nossos irmãos mais velhos conversavam. Foi quando Bonifacinho entrou, mostrou o olho esquerdo inchado e vermelho; recebera uma laranjinha nesse olho, atirada com tanta força, que ele até julgara que tivesse vazado a vista. Corri com água de salmoura para passar-lhe no olho; e, enquanto eu o fazia, contou ele que essa laranjinha não partira das moças; fora atirada por uma pessoa qualquer do povo, gentalha com certeza, porque a cera era grossa, mal feita; por isso machucara. Félix revoltou-se:
— Eis a brutalidade dos brinquedos de hoje; o entrudo, no meu tempo, era muito mais delicado e divertido. Ofereciam-se flores às moças; quando elas moravam num sobrado, colocavam-se as flores na ponta de uma vara toda enfeitada; ou, quando a janela era baixa, dava-se na mão. Conforme a beleza da moça, assim era a beleza da flor... Lembra-se, Eponina? Olhamos para Eponina que ficou muito vermelha; Félix continuou:
— As belezas precisavam aproximar-se. E o mais interessante é que nossos pajens já sabiam disso; escolhiam a mais bela flor quando a moça era bonita de fato. Da janela, a moça retirava a flor da ponta da vara, agradecia e colocava outra que nós agradecíamos também. Dei flor para muita gente bonita no meu tempo...
E olhou outra vez para Eponina que baixou os olhos e fez um muxoxo de pouco caso. Rodolfo também falou:
— Era muito mais divertido que hoje; percorríamos a cidade toda a cavalo com os pajens levando a vara e a bandeja de flores. Nem se compara com as brutalidades de agora. Félix continuou:
— Muito mais delicado; não gosto dos jogos modernos, grosseiros, fica-se todo molhado, molha-se os outros também, com risco de apanhar um resfriado... ou então de se machucar como o Bonifacinho.
Augusto interrompeu:
— E se vissem o que vi hoje na Rua do Jogo da Bola!
Pessoas jogando enormes jarros de água uns nos outros, entre as pessoas da multidão que enchia a rua. Um absurdo.
Fernão replicou:
— Isso até devia ser proibido pela polícia. Uma selvageria sem conta; gente do povo só se diverte assim...
Rodolfo disse:
— Mas o povo também precisa divertir-se; Nero já dizia: Dai pão e circo que o povo fica satisfeito.
César e Fortunato contaram que em casa das Lages, na Rua da Imperatriz, se haviam divertido muito. Bonifacinho foi na frente e bateu na porta; a Leontina Lages perguntou quem era, sem abri-la; então, Bonifacinho falou: "Sou Bonifacinho, abra a porta, prima Leontina, deixe-me esconder aí, pois querem atirar-me dentro de uma tina d'água". Leontina Lages abriu a porta e todos entraram fazendo grande alvoroço; a sala estava cheia de moças e não tinham laranjinhas suficientes para jogar nos rapazes; então, jogavam água que as mucamas traziam em jarros e outras vasilhas. Foi um grande divertimento. Mamãe perguntou, sorrindo:
— E Nhá Chica Lages?
Augusto, o filho de Aninhas, respondeu:
— Nhá Chica estava deitada na rede num canto da sala; jogamos laranjinhas nela também, que se levantou e pôs a rede na frente, assim, para se defender. Depois uma das moças contou que ela estava com reumatismo.
Houve exclamações de susto e eu perguntei:
— Coitada! Com reumatismo? Então a esta hora está pior.
Os rapazes riram-se. Fortunato falou:
— Qual o quê! Agora ela vai sarar; água de flor de laranja faz bem para reumatismo.
Bonifacinho queixou-se de que o olho estava dolorido; Leopoldina e eu nos levantamos e fomos novamente aliviá-lo com banhos de salmoura. Félix disse a Bonifacinho que trouxesse cerveja preta porque fazia calor; já haviam tomado café. Rodolfo preferiu, lembrando a hora, um cálice de Calvados. Do outro lado da sala, recostadas no sofá medalhão, estavam Eponina, Aninhas e mamãe; comentavam em voz baixa o caso de Lourenço. Lourenço viria aquela tarde. Que iríamos fazer? Como resolver a questão?
Sentado na frente de Fernão, Rodolfo tomava o seu Calvado; a barba preta rodeava-lhe o rosto todo, dando-lhe aparência de homem distinto e ilustre. Félix, à cabeceira da mesa, no lugar onde papai costumava sentar-se, depositou o copo vazio sobre a mesa, exclamando:
— Uma cerveja preta é bem agradável num dia de calor!
Fernão concordou esvaziando seu copo, depois disse:
— Mas em 1854, nossa zona, veja bem, só nossa zona produziu mais de um milhão de arrobas de café; eu sei por que papai dizia. E temos lá em Santarém os dados sobre a produção.
Percebia-se que o assunto já estava sendo debatido antes de entrarem os rapazes; haviam-no interrompido para o café e a cerveja. Rodolfo respondeu:
— Está certo. Não digo este ano, mas o ano que vem vamos ter uma produção maior.
— Não creio.
— Como não? Não tem reparado nos cafezais? Nunca vi tanta florada tão promissora como este ano, as árvores estão carregadinhas de flores. Félix interrompeu:
— Deixe vir uma chuva de pedra ou uma geada, então vamos ver.
— Bom. Isso estragará a florada, mas que a lavoura promete, promete.
Nosso irmão Augusto replicou:
— Não creio na colheita de café, como diz Rodolfo, creio na de algodão.
— Algodão? Está muito enganado.
— Enganado por quê? Já produzimos centenas de arrobas de algodão; há uns anos atrás não foi assim? Por que acha que não continuará a produzir este ano? Luís concordou com Augusto:
— Só em Guararema vamos colher várias arrobas. Félix tornou a encher o copo de cerveja:
— Estamos falando no ar. Já leram os jornais?
Todos olharam Félix esperando que ele continuasse: Vejam o que dizem os abolicionistas. Vamos lutar por falta de braços, meus amigos.
E bebeu um gole de cerveja. Alberto perguntou:
— Acredita na abolição tão depressa assim?
— Tão certo como estarmos aqui.
Uma torrente de protestos levantou-se à volta da mesa; junto com a fumaça dos cigarros e com o cheiro das bebidas e da água de flor de laranja que ainda pairava no ar, as vozes alteraram-se, excitadas. Rodolfo explicou batendo na mesa, fazendo o cálice saltar:
— Se tivermos que lutar, lutaremos, mas não podemos aceitar essa lei. Pelo menos agora, não estamos preparados.
Não queremos a abolição para já. Vamos ter uma guerra de secessão como a dos Estados Unidos em sessenta. Escutem as minhas palavras. Vão ver.
Félix olhou-o com ar céptico:
— Rodolfo, não é questão de querer ou não querer. A lei virá.
Ele voltou-se, arrogante, para Félix:
— Você acredita nesse absurdo? E para Fernão:
— Você também? Ora esta! Fernão respondeu:
— Daqui a pouco tempo deixará de ser um absurdo, será uma realidade.
— Não daqui a pouco tempo, daqui a muitos anos talvez. Não diga que será logo. É uma utopia, um sonho de meia dúzia de visionários. Diga uma cousa: Como vamos colher nosso café? Nosso algodão? Com o quê?
— Colheremos da mesma forma por que colhemos hoje; só que teremos assalariados e não escravos.
— E o capital que empregamos na aquisição desses escravos? Quem nos indenizará?
Houve novos protestos ao redor da mesa; Luís lembrou que deviam mandar um abaixo-assinado ao imperador pedindo proteção aos fazendeiros. Rodolfo tornou a bater na mesa, exaltado:
— Qual o quê! Iremos nós em pessoa falar com D. Pedro.
Organizaremos uma comissão de agricultores e iremos ao Rio de Janeiro a cavalo pedir uma audiência. Isso é o mais aceitado; não podemos ficar assim, desprotegidos. Já estamos pensando nisso, queremos ver se arranjamos uns mil ou mais cavalarianos. Será de impressionar.
Alberto perguntou acendendo um cigarro:
— Já pensaram na fase mais obscura da questão? Olharam Alberto em silêncio. Augusto arriscou:
— Tudo é obscuro e intrincado nessa questão.
Alberto continuou:
— Digamos que venha a abolição. Está bem. Pagaremos nossos escravos, quero dizer, serão homens assalariados daí em diante. Mas eles, como homens livres, terão o direito de escolher; muitos quererão vir para as cidades viver por outros meios. Mas a produção tende a aumentar, pois há uns dez anos atrás a produção cafeeira no Município de Moji das Cruzes foi de 100.000 arrobas de café, e hoje é o dobro; quer dizer que tende sempre a subir e os braços tendem a faltar, muitos escravos nos abandonarão, tenho a certeza. E então? Rodolfo protestou:
— Por isso digo que é cedo para a abolição no Brasil. Félix interveio:
— Mas para isso temos a imigração... Rodolfo exaltou-se de novo:
— Imigração italiana? Qual! Não tenho fé. Se vier essa lei maldita, o Brasil ficará na miséria e nunca mais se levantará. Acreditem.
Luís protestou:
— Não diga isso. Só em S. Paulo recebemos há dois anos atrás cerca de 30.000 imigrantes. Por que não há de dar certo?
Rodolfo rebateu:
— Porque eles não se aclimatam aqui. Meu vizinho recebeu várias famílias italianas para colher café; pensa que ficaram? Nem dois meses. Foram embora dizendo que não podiam com o clima, nem com a comida, embarcaram para a Argentina no Provence. Sei disso porque vi.
Félix replicou:
— Isso é um caso isolado, cunhado. A imigração está vindo com grande incremento, principalmente nesta província; todos os anos recebemos italianos, espanhóis, portugueses, alemães. Hão de se acostumar afinal.
Fernão perguntou:
— O que entra mais? Italianos?
— Em primeiro lugar italianos, depois portugueses, espanhóis. Depois outras nacionalidades como austríacos, alemães, dinamarqueses. Alberto admirou-se:
— Ué! Dinamarqueses também?
— De 82 para cá chegaram mais de mil, não sabia?
Fernão levantou-se e interpelou Rodolfo:
— Na América do Norte a guerra civil durou quatro anos; foi tremenda, mas a abolição venceu graças a Lincoln.
— Não vê que o país ficou mais pobre?
— Ficou. Tenho certeza de que o país empobreceu; se a agricultura hoje é uma fonte de riqueza e se amanhã destroem a fonte, o país tem que sofrer forçosamente. Não leu os artigos da Revue des Deux Mondes!
Alberto replicou:
— Mas esse empobrecimento é transitório. O país se levantará de novo.
— Mas quando? Daqui a quantos anos? Essa mania de abolição me deixa nervoso, não sei que pensar.
E Rodolfo começou a passear de um lado para outro da sala; todos se levantaram. Augusto e Luís foram para o quarto de papai. Mamãe chamou Félix para um lado e contou, aflita, esfregando as mãozinhas finas, uma contra a outra:
— Que faremos, filho? Lourenço esteve aqui e quer ver o pai, mas ele se nega a recebê-lo.
— Lourenço esteve aqui?
— Esteve e falou com Benedito; as meninas já foram sondar o pai e ele ficou exaltadíssimo; pediu até que não lhe tocassem mais nesse assunto. Pode até fazer mal e ele piorar.
— E quando Lourenço vai voltar?
— Hoje à hora do jantar.
O assunto foi ventilado; todos ficaram a par do que se passava e cada um deu sua opinião a respeito. Afinal, ficou resolvido que falariam com Lourenço na porta da rua, pois se papai soubesse que ele fora recebido por nós, podia ter uma recaída e o Dr. Maranhão recomendara muitas vezes que evitassem contrariedades ao doente. Mais tarde, quando Lourenço chegou e Benedito veio na ponta dos pés avisar que Sinhozinho estava à porta, esperando, mamãe foi falar com ele acompanhada por Félix, Augusto e eu. Eles explicaram a situação a Lourenço; papai já estava melhor, mas se negava a recebê-lo, talvez mais tarde, quando a afronta estivesse esquecida. Lourenço, nada disse; beijou a mão de mamãe, e despedindo-se de nós montou a cavalo e partiu para a chácara dos sogros, lá pelos lados do Vergueiro. Tive ímpetos de perguntar-lhe da esposa mas tive medo de meus irmãos mais velhos que eram muito rigorosos.
À hora do jantar, evitamos o assunto sobre Lourenço, grande era o abatimento de mamãe. Fernão e Maria Letícia resolveram regressar no dia seguinte para Santarém, em vista da melhora de papai. Rodolfo voltou-se para Francisca Miquelina com ar autoritário:
— Prepare-se para voltarmos também, Francisca Miquelina. Sairemos amanhã de madrugada para a fazenda.
— Está muito bem, respondeu Francisca Miquelina com voz sumida.
Maria Letícia e eu olhamos de esguelha para nossa irmã. Pensei: "Ela se humilha tanto, por isso o marido judia dela. Ele parece tratá-la com superioridade e, quando fala com ela, adota um tom de mando. Atrevido!"
E, olhando Rodolfo, vi que ele olhava para mim por cima do copo de vinho; então sorri para ele amavelmente.
Bonifacinho tornou a queixar-se do olho durante o jantar. Mamãe mandou vir salmoura outra vez; quando nos levantamos da mesa, mamãe sentou-se no sofá e Bonifacinho deitou a cabeça no colo dela para que pingasse salmoura nos olhos. Com muito cuidado, passei o algodão muitas vezes pelos olhos de Bonifacinho. Do outro lado da sala, Leopoldina perguntava a Benedito se papai jantara bem. Os irmãos mais velhos, reunidos ainda à volta da mesa, recomeçaram a discutir sobre a abolição e suas conseqüências.
No dia seguinte, fui com Francisca Miquelina e Rodolfo para a fazenda deles, Santa Engraça. Havia muito tempo, Francisca Miquelina tinha-me pedido para ajudá-la a fazer roupas para as crianças, bordar fronhas e lençóis para a casa da fazenda. Maria Letícia porém, não gostou muito, pois já se acostumara comigo em Santarém; fez-me então prometer que não ficaria mais de três meses. Prometi.
Santa Engraça ficava perto da cidade de Itu. Era uma fazenda muito grande, onde colhiam não sei quantas arrobas de café por ano. Tinha sido do pai de Rodolfo; lá haviam residido por muitos anos, lá a mãe dele morrera e a primeira mulher também, a Carlotinha. Por isso diziam que a casa da fazenda era mal-assombrada. Nunca acreditei muito nessas cousas de assombração, mas, quando vi a casa velha entre árvores enormes, muito sombrias, lembrei-me das almas do outro mundo.
Logo no dia seguinte cortei as costuras e começamos a costurar e a bordar; as camisinhas para as meninas eram de crepe; cada uma das meninas usava duas saias por cima das calças e, como estas eram bordadas com ponto de espinhos, havia muito serviço a fazer. Quando íamos de visita a outras famílias ou a S. Paulo, as mucamas colocavam as meninas em uma mesa e, com as duas mãos por baixo das saias, viravam estas para cima a fim de ficarem bem armadas; tinham as saias guarnecidas com três ordens de fofos e todas enfeitadas com franja Tom Pouce.
Muitas vezes, durante a noite, eu ficava acordada, esperando o fantasma; diziam que ele entrava pela porta da frente e vinha andando pelo corredor escuro: paf... paf... paf... Ouvia-se muito bem. Quase sempre parava em frente à porta do quarto, onde Francisca Miquelina dormia com Rodolfo; as escravas contavam que era a defunta Carlotinha que vinha todas as noites passear pela casa e vigiar o marido. O fantasma parava à porta do quarto deles e nunca ouvi dizer que tivesse entrado, felizmente. Creio que ficava só escutando. Francisca Miquelina contou-me que uma vez ela estava sozinha com as crianças e as mucamas; Rodolfo tinha ido a S. Paulo. Uma noite, logo que ela se deitou, ouviu os passos que vinham vindo da porta da frente, pelo corredor, como que arrastados. Ela sentiu um calafrio e sentou-se na cama, escutando; por mais que pareça impossível, disse-me que não teve medo, apenas fez o sinal da cruz. O fantasma parou na porta do quarto dela e, como a porta estava fechada com chave, não pôde entrar. No dia seguinte, ela deixou a porta fechada só com o trinco e ficou esperando. Recolheu-se cedo, mas ainda tomou banho, rezou, viu se as crianças estavam bem cobertas e esperou. Quase sempre o fantasma vinha à meia-noite; de repente, quando faltavam uns minutos ela apagou a vela e esperou; lá vinham os passos, vagarosos e arrastados... Quando pararam na porta do quarto, Francisca Miquelina disse em voz alta: "Entre". Esperou o trinco mover-se e a porta abrir-se diante do fantasma da defunta Carlotinha, mas a porta continuou fechada. Sentada na cama, ela rezava e esperava; rezou para Santo António e São Damião. Dizia: "Valei-me, São Damião, socorrei-me Santo Antoninho... "Entre"... São Damião, acuda-me; São Damião, proteja-me... "Entre". Disse três vezes a palavra "entre" para a defunta Carlotinha e, apesar de a porta estar aberta essa noite, ela não entrou. Senti um arrepio quando Francisca Miquelina me contou e perguntei o que ela faria se a Carlotinha entrasse; respondeu que perguntaria o que desejava e, se fosse missa, mandaria rezar por alma dela. Aconselhei-a a mandar rezar missas para Carlotinha, mesmo que ela não pedisse. E nessa noite, esperei a visita do fantasma; cheguei a ouvir algum ruído, depois percebi que era o vento no jardim. Felizmente nunca veio para o lado do meu quarto; também eu dormia agarrada a Santo Onofre.
Quase sempre passeávamos à tarde pelo pomar que ficava quase pegado à casa ou então íamos até o tanque de lavar café, às vezes até o princípio do cafezal. Logo nos primeiros dias que passei em Santa Engraça, fiquei conhecendo a Ambrosina e os dois filhos; ela ajudava a passadeira de roupa, mas creio que só fingia que trabalhava: levava um vidão. E fosse Francisca Miquelina dizer alguma cousa para ver; tinha que ficar calada. Ela era uma mulata clara e um pouco gorda, bem bonita. Francisca Miquelina quase não falava com ela e, quando queria dar alguma ordem, falava com Alexandrina, a escrava de dentro, mas a Ambrosina era dengosa; procurava meios de falar com Francisca Miquelina ou inventava pretextos, creio que era provocadora. Vinha também falar comigo e eu fingia que ignorava o que se passava com ela e Rodolfo.
Um dia veio trazer-me umas goiabas porque eu havia dito que gostava dessa fruta; estávamos todas costurando no alpendre, quando ela apareceu com um cesto de goiabas muito bonitas na cabeça. Agradeci as frutas e conversei com ela; enquanto conversávamos, o dedal de ouro de Francisca Miquelina desapareceu. Procuramos por todos os cantos e nada; então Ambrosina disse que ia pedir a São Longuinho que fazia achar as cousas perdidas; mas o santo era engraçado, gostava de barulho, por isso ela ia gritar. E ali mesmo, no alpendre, deu três gritos que acordaram o pequeno lá dentro; o dedal de ouro apareceu no mesmo instante no próprio cestinho de costura de Francisca Miquelina; creio que São Longuinho fez aparecer o dedal.
Eu conversava sempre com a Ambrosina e apesar de achar um dos filhos dela muito parecido com Rodolfo, não disse nada fingi não haver notado. Durante esse tempo, fui uma vez a cavalo com Francisca Miquelina, Rodolfo e as duas meninas mais velhas, até a cidade de Itu, onde assistimos a uma procissão muito concorrida. Demos umas voltas pela cidade e voltamos nesse dia mesmo; no dia seguinte, amanheceu chovendo, estava costurando perto da janela do meu quarto e de vez em quando levantava a cabeça e olhava a chuva cair lá fora. As crianças tinham ido com Alexandrina até à casa do administrador e a chuva as retivera lá. Todas as plantas estavam cheias de água; eu estava distraída com meus pensamentos e meu trabalho e de repente comecei a ouvir uns gritos vindos lá de dentro. Eram gritos abafados de quem estava tapando a boca para não queria gritar; levantei-me e fui ver o que era; percebi que vinham do quarto de Francisca Miquelina e fiquei assustada. Corri para lá e empurrei a porta com força; vi então Francisca Miquelina pálida como uma morta, de pé, encostada à janela e chorando; Rodolfo no meio do quarto, tinha um chicote na mão. Ele olhou furioso para mim; seus olhos não pareciam os mesmos e toda sua fisionomia estava transtornada pela cólera; parecia outro homem. Gritou para mim:
— O que quer?
Não sei como tive a presença de espírito de responder como respondi; creio que foi Santo Onofre que me ajudou. Disse:
— Ouvi chamarem meu nome, por isso vim. Você não chamou, Francisca Miquelina?
E minha voz era tão calma, toda a minha pessoa era tão plácida e tão tranqüila que a mão que segurava o chicote foi-se abrindo devagar e o chicote caiu ao chão, perto dele. Inclinei-me para levantar o chicote do chão, depois disse:
— Rodolfo, olhe seu chicote.
E, voltando-me para Francisca Miquelina, perguntei com voz mais calma ainda:
— Está sentindo alguma cousa, mana? Quer algum chá? Sente dor?
Arrastando o chicote pelo chão, Rodolfo deixou o quarto sem nada dizer; Francisca Miquelina caiu sentada na cama e chorou amargamente. Depois, contou-me que isso acontecia muitas vezes e ela suportava tudo porque nada podia fazer.
— Mas por quê? perguntei. O que você fez para ele lhe bater?
— Nada. Às vezes é porque falo mal da Ambrosina; às vezes porque tem ciúmes de mim.
— Ciúmes? Ele tem ciúmes de você? Mas de quem? Se não vem ninguém aqui.
— Ele disse que ontem em Itu, na procissão, eu olhei muito para o lado onde estava um moço. Diz que eu fiz de propósito.
' — Mas quem era esse moço?
— Não sei, mana. Não vi moço nenhum.
— Que horror! É sempre assim?
— Quase sempre, mas depois ele se arrepende e pede perdão, às vezes até chora.
— E algumas vezes aquele chicote machuca você?
— Como não, mana Rosa? Hoje mesmo fiquei com um vergão no braço. Veja.
Vendo-lhe o vergão no braço, chorei ao lado dela e misturamos nossas lágrimas; depois, passei-lhe um bálsamo no braço ferido. Ela ainda se lamentou:
— Por isso nunca convidei ninguém para vir a Santa Engraça, mana. Esse gênio terrível de Rodolfo me mata, encurta minha vida. E tenho vergonha; não quero que mamãe saiba, que ninguém saiba, não vale a pena.
Prometi não falar a ninguém e consolei-a quanto pude. Em meu quarto, fui ver quanto tempo ainda ficaria na fazenda, pois esperava a vinda de Luís e Bonifacinho, em cuja companhia eu regressaria para S. Paulo. Apenas alguns dias, felizmente.
Nessa mesma tarde, ao jantar, Rodolfo estava amável e alegre; mandou servir cerveja preta e fez questão de que todos tomassem, até as duas meninas; convidou-me depois para ficar mais tempo, pois iríamos fazer um lindo passeio a Porto Feliz, belo rio. Respondi que infelizmente não podia, tinha muito que fazer em S. Paulo e só esperava que meus irmãos viessem buscar-me. Mas sentia muito não poder ficar. E enquanto eu tomava o copo de cerveja, olhava a fisionomia sorridente de Rodolfo: já não parecia o mesmo que segurava o chicote. Que sombrios pensamentos passavam por trás daquela máscara?
Somente um ano e meio depois, no inverno de 1886, Maria Letícia voltou a S. Paulo para ter outro filho; Lídia já estava com sete anos. Dessa vez sofreu muito desde o princípio; seu organismo ressentiu-se dando-lhe aparência de grande abatimento. Eu fazia-lhe companhia em Santarém; ela passava os dias deitada num sofá que Fernão mandou colocar no alpendre a fim de poder seguir o movimento das filhas no jardim; ou, então, deixava-se ficar sentada na poltrona baixa da sala de estar, sem coragem para nada. Não quis seguir logo para S. Paulo, preferindo esperar mais tempo, e isso era motivo de muitas discussões com o marido; Fernão achava que devia ir o mais breve possível e ela procurava mil pretextos para ficar mais tempo na fazenda; parece que qualquer cousa lhe segredava no coração que não devia partir. Disse-me um dia que achava Fernão agitado, inquieto, como nunca estivera até então. Os negócios andariam mal?
É verdade que aquele ano não era promissor; primeiro as chuvas de pedra, depois o frio de junho haviam destruído grande parte da colheita; a cana estava mirrada, não daria boa safra como nos anos anteriores.
Estendida no sofá do alpendre e enrolada numa manta escocesa por causa do frio, Maria Letícia todas as manhãs acompanhava o movimento da casa. Via Lídia e Maria saírem para o pomar com a professora; via Modesta ir e vir várias vezes pela sala dando ordens à cozinheira, à forneira e à lavadeira; via tio António passar com um livro sob o braço e desaparecer no caminho da mata. Via Estefânia, a filha da lavadeira, entrar carregando a cesta de roupa na cabeça; era quase branca, pois seu pai, o feitor Belisário, era branco. Diziam que ela ia casar-se com Juvêncio, um cafuzo esperto e trabalhador, o melhor auxiliar do feitor. Seria um bom casamento e Maria Letícia pretendia organizar uma festa para os noivos. Estefânia, equilibrando a cesta, aproximava-se de nós:
— Bom dia, Sinhá Letícia. Bom dia, Sinhá Rosa. Vossuncês tão boa?
Conversávamos ligeiramente; Estefânia podia ter uns dezesseis anos, era uma cabocla bonita; roliça e corada. Quando ria, mostrava os dentinhos brancos, muito iguais. Com os dois braços levantados, mantinha a cesta no alto, enquanto eu lhe observava os braços perfeitos, morenos e torneados, o busto cheio, onde sobressaíam os seios pequeninos e redondos. Perguntava, para vê-la corar:
— Como vai o Juvêncio, Estefânia?
Ela enrubescia; baixava os olhos escuros e ficava virando-se de um lado para outro, olhando os pés, envergonhada, tímida, Maria Letícia ria-se ao vê-la corar. As crianças vinham do pomar com a professora; bem agasalhadas e alegres corriam para ver quem chegava primeiro perto de mamãe. E durante o dia, muitas vezes, quando Maria Letícia ficava na salinha próxima ao escritório do marido, olhava cismadora para o quadro onde um gato rajado dava tapinhas num novelo de lã. Eu costurava ao lado dela. Ouvíamos as vozes das meninas, no alpendre, cantando juntas para mamãe ficar logo boa; cantavam em francês, como a professora ensinara e as duas vozinhas elevavam-se ao silêncio:
— Oh! Ma Reine, oh! Viège Marie, Je vous donne mon coeur, Je vous consacre pour la vie Mes peines, mon bonheur.
E Maria Letícia não se sentia melhor; sempre um mal-estar, uma sufocação que não a deixava tranqüila. Afinal, resolveu ir a S. Paulo e pediu-me para ficar em Santarém com as crianças. Estava tão fraca que Fernão mandou preparar o carro de bois para transportá-la à estação, pois subir a serra no trole podia ser prejudicial. Apenas Modesta acompanhou-a. O carro de bois subiu a serra gemendo e cantando nas grandes rodas; ia devagar e Fernão o acompanhava a cavalo. Já ia longe e eu ainda ouvia o rangido vagaroso e monótono; o carreiro espicaçava os bois sonolentos: Eia, Pintado! bamo, Tinhoso!
Fernão voltou uma semana depois; disse que a viagem fora penosa e Maria Letícia chegara muito enfraquecida. Nossos pais assustaram-se ao vê-la e o Dr. Maranhão foi chamado imediatamente; tranqüilizou-os e dias depois ela estava melhor. Apesar de ter saudades das meninas, estava conformada em casa de mamãe e em companhia dos filhos mais velhos, António Fernão e Paulo que já estavam nessa época com dezesseis e quinze anos e estudavam na capital. Mas estava aflita por voltar a Santarém; disse que o amor que sentia por aquelas terras, aquela solidão, com os cafezais de um lado e a mata do outro, a perder-se de vista no horizonte verde-negro, não lhe permitia ser feliz em qualquer outro lugar. Amava Santarém. Mus eu percebia que Maria Letícia ainda não era feliz.
Em Santarém, Fernão continuou desassossegado. A inquietação que o dominava havia meses, aumentou com a ausência de Maria Letícia. Tio António parecia não existir: ou estava de visita às outras fazendas, ou vivia no pomar, vagando com um livro na mão. Quando comia em Santarém, quase não almoçava e, mal terminava a refeição, saía a pé ou a cavalo, desaparecendo nos cafezais. Eu ficava costurando, sempre ao lado das duas meninas e da professora; as meninas brincavam ou estudavam. À tarde Fernão jantava conosco, depois ia com as meninas dar um passeio pelo pomar; às vezes iam de mãos dadas no tanque de lavar o café ou até o ribeirão.
Era agosto e fazia bastante frio; muitos fazendeiros receavam nova geada; perscrutavam o céu ansiosamente procurando divisar além das nuvens. Quando apareciam na fazenda, perguntavam a Fernão:
— Reparou como o céu estava limpo ontem? Pensei que viesse uma geada.
— Reparei. Mas recobrei alento quando vi o céu sujando-se lá pelo lado sul. Disse com meus botões: Por hoje estamos livres.
O outro coçava a cabeça, pensativo:
— É, mas, se ela vier, vai ser um estrago. A florada está bonita.
— É verdade. Se se perder o restinho da lavoura este ano, vai ser um estrago. O negócio está feio, ainda mais com esses rumores de abolição.
— Creio que geada não cai este ano. Penso mais na escravatura; se ela nos faltar, estamos mal.
— Qual! Não é para já.
E despediam-se, apreensivos. Fernão levantava-se de madrugada, mandava encilhar o alazão e ia esperar os negros na roça. Depois corria toda a fazenda; fiscalizava as plantações, dava ordens, aparecia em toda a parte, e olhava os escravos limparem os carreadores. Um dia, mandou pôr fogo numa capoeira para nela fazer uma plantação de feijão; à tardinha, vieram avisá-lo de que o fogo se estendera à mata e alastrava-se cada vez mais. Foi imediatamente ver o que havia; Tomásio contou depois que foi preciso mandar fazer um grande aceiro para isolar a mata do perigo; todos os escravos da fazenda foram dar combate ao fogo. A Estefânia, filha do Belisário, também estava lá procurando auxiliar o pai.
Viram Estefânia ao clarão das labaredas, as faces coradas, quando tentava cortar os galhos com uma machadinha. Quando Sinhô Fernão chegou perto, ouviram-na avisando:
— Acho bom vossuncê não ficá muito perto que é pirigoso.
Ele aproximou-se mais e perguntou:
— E para você não é perigoso?
Tomásio disse que ela riu e levantou a machadinha acima da cabeça, depois respondeu:
— Não tenho medo.
E os olhos dela brilhavam que nem fogo. Não demorou muito tempo, um galho queimado, quente como brasa, caiu de repente e roçou-lhe o braço. Ela deu um grito e Fernão chegou perto para ver; ela fazia força para não chorar de dor e apertava o braço queimado; o pai e alguns escravos foram examinar a queimadura; então Fernão montou a cavalo e foi em casa buscar um bálsamo. Eu mesma tirei o bálsamo da prateleira, onde Maria Letícia guardava os remédios e dei-o a Fernão; quando ele voltou, ela estava sentada no chão, soprando a queimadura; então ele mesmo passou o bálsamo no lugar queimado e ao agradecer ela estava corada de vergonha. O fogo só foi extinto de madrugada.
No dia seguinte, eu estava no alpendre, quando vi Estefânia chegar muito ressabiada, dizendo que Sinhô Fernão dera ordem para ir todos os dias curar o braço na fazenda; achei muito razoável e muita bondade da parte de Fernão; levantei-me para ir buscar o bálsamo quando vi Fernão deixar o escritório e dizer que ele mesmo trataria do braço de Estefânia, não precisava eu me incomodar. Desde esse dia, Estefânia aparecia todas as tardes para curar o braço; uma vez, eu ia passando pelo corredor, quando ouvi a risadinha de Estefânia no escritório de Fernão; achei impróprio Fernão recebê-la no escritório; não resisti e espiei pelo vão da porta; vi os dois de pé e Fernão acariciar-lhe o rosto com os dedos finos. Estefânia procurava desviar-se e inclinava o busto para trás, mas ele insistia; depois ele perguntou-lhe se alguém já lhe havia dito que ela era muito bonita. Estefânia baixava os olhos, envergonhada; corri, até o fim do corredor, quase sem fôlego; pensei em escrever para Maria Letícia no mesmo dia, mas de que adiantaria, se ela não podia vir? Resolvi intervir de qualquer modo e, criando coragem, voltei pelo corredor, fazendo barulho com minhas botinas e tossindo; felizmente ela já tinha ido embora. Então comecei a vigiá-los. Quando via Estefânia subindo a escada do alpendre, mandava a qualquer pretexto as crianças lá para dentro; mandava uma buscar um carretel de linha, outra trazer-me a linha de bordar que eu havia esquecido no quarto, pedia para trazerem um copo d'água; e, às vezes, ia eu mesma passar pela porta do escritório para ver se via alguma cousa mais. E sempre perguntava a Estefânia se o braço já estava curado, se precisava mais curativos, se o bálsamo era bom.
Uma tarde, ela não apareceu; fiquei aliviada pensando que tivesse acabado. Fui com as crianças até o pomar e, sentei à sombra das árvores, fizemos nossa merenda de bolos e geléias. Quando voltávamos, as meninas quiseram levar a professora até o curral, onde havia um bezerrinho doente. Entrei sozinha em casa; as mucamas tagarelavam na cozinha, o papagaio gritava na sua vozinha fina: Peste do diabo! Peste do diabo!... Depois, silêncio. Quando ia para o meu quarto, lembrei-me de passar pelo escritório para ver se não havia novidade. O escritório de Fernão estava deserto; fui sem fazer barulho até o fim do corredor. Foi quando ouvi um sussurro de vozes. Parei para escutar, e percebi que as vozes vinham de uma das alcovas pegadas a um dos quartos de hóspedes. Caminhei mais e quase dei um grito de susto: Fernão e Estefânia estavam na alcova sozinhos. Ouvi vozes abafadas; depois a voz de Estefânia perguntar:
— Sinhô, como é Sinhá? Não ouvi a resposta dele nem quis mais ficar ali; voltei desesperada para o quarto, arrependida de não ter ido ver o bezerrinho doente.
Dessa tarde em diante, percebi que as cousas mudaram em Santarém. Estefânia começou a trabalhar no quarto de passar roupa, como ajudante da passadeira; Fernão mandou preparar um quarto só para ela, pegado ao quarto das mucamas. Deu uma casa maior para Belisário, perto da mata. Muitas vezes, durante o dia, eu ouvia um assobio especial; a princípio, não sabia o que era; depois percebi que quando Estefânia ouvia este assobio, saía disfarçando do quarto para passar roupa e tomava o caminho do pomar. Um dia fingi que ia colher laranjas e fui atrás dela; percebi então que o pomar era um pretexto; ela dava uma grande volta e encaminhava-se depois para o lado da mata. Imaginei que eles se encontravam lá, no silêncio da mata onde ninguém podia desconfiar. Passei noites de insônia, pensando no que aconteceria se Maria Letícia um dia descobrisse a verdade; e guardei bem guardado o segredo.
Quando recebemos em Santarém a nova de que Maria Letícia tivera uma filhinha, Fernão contrariou-se em vez de se alegrar; percebi que não podia viver mais sem Estefânia. Teve que ir para S. Paulo buscar Maria Letícia, mas me admirei quando o vi voltar sozinho; disse-me então que achava Maria Letícia ainda muito fraca para viajar e resolvera deixá-la mais uns tempos em casa dos pais. Contou que a criança era forte e fizeram o batizado muito simples em casa de papai; puseram-lhe o nome de Ernestina. Já estávamos em outubro e ele me disse que Maria Letícia só viria em novembro. No dia em que Fernão chegou quase não dormi; fiquei acordada durante muito tempo; foi quando ouvi uma porta abrir-se lá dentro, lá pelo lado da cozinha. Levantei-me e fui ver o que havia; mas como pressenti que devia ser Fernão, não acendi a vela e abri a porta com cuidado; vi então Fernão com uma vela na mão seguir até o fim do corredor; depois vi dois vultos que se encaminhavam para a alcova; a vela estava apagada. Compreendi tudo; ele não queria trazer Maria Letícia para ficar mais à vontade com Estefânia na própria casa, pois o quarto dela era pegado ao quarto das negras e não era tão seguro. Com risco de me surpreenderem, fui no escuro até a porta da alcova; e fiquei escutando. E todas as noites foi a mesma cousa. Assim se passou outubro e chegou novembro; não havia razão para uma ausência tão prolongada e Fernão foi buscar Maria Letícia.
Passei uns dias tranqüilos; pensei que o melhor seria fazer o casamento de Estefânia com o Juvêncio assim que Maria Letícia chegasse; pensei em ir falar com a mãe da Estefânia para não deixá-la mais trabalhar na casa grande, mas não fiz nada e continuei calada.
Maria Letícia e Fernão chegaram de S. Paulo numa tarde quente; todos queriam ver a criancinha nova e cumprimentar Sinhá Letícia. Estefânia também foi, mas já não era a moça acanhada e medrosa que baixava os olhos e corava, mal respondendo às perguntas; tinha agora um ar arrogante e ousado que Maria Letícia estranhou. Perguntou depois que ela saiu:
— Que tem Estefânia? Parece mais bonita, mais alta! Ninguém respondeu; ela voltou-se para Fernão que estava perto:
— Quando é o casamento dela com o Juvêncio? Já está marcado?
— Não sei, respondeu ele distraidamente, brincando com a filhinha.
Nessas primeiras noites, não ouvi nada. Creio que ele não levou Estefânia para dentro da casa. Dias mais tarde, porém, marcaram os encontros na mata. Ouvi os assobios. E poucas se manas depois encontraram-se outra vez no quarto de hóspedes; ouvi quando ele deixou o próprio quarto e vi-o andando no escuro até a alcova. Tremi por Maria Letícia, mas ninguém percebeu, nem ouviu. Todas as escravas da casa já sabiam, nada falavam, nem comentavam. Ouvi uma delas dizer a outra: "Sinhô faz o que qué e ninguém tem que repará."
Eu esperava com curiosidade o dia em que o pai e a mãe de Estefânia soubessem da vergonha; o Belisário iria fazer um barulhão e havia de chamar Estefânia de desavergonhada. Ao mesmo tempo, achava que não haveria nada — patrão é patrão.
Maria Letícia ficou satisfeita em encontrar o marido mais calmo, mais moderado; já não era irrequieto como meses atrás, não se queixava da falta de sono e nem se levantava da mesa sem jantar. Agora ficava horas inteiras deitado na rede do alpendre, ora dormindo, ora brincando com as filhas. Lembrei-me de um dia em que Fernão contara ter visto Estefânia dando banho nos irmãozinhos na beira do ribeirão; ele ia passando a cavalo quando vira a cena; ela estava com a saia arregaçada, os braços nus, e ensaboava rapidamente as quatro crianças; empurrou-as depois para dentro d'água, entre gritos e protestos. Fernão rira ao assistir à cena e só nesse dia notou a beleza de Estefânia, porque disse ao jantar que ela parecia uma flor, tinha a cor do jambo maduro e o corpo faria inveja a muita moça branca. Concordamos, distraídas, mas achei suas palavras um pouco inconvenientes. Recapitulando, lembrei-me de que o desassossego de Fernão começara nessa época – era paixão. Uma paixão desvairada. Não dormia, não tinha calma e saía galopando pelos cafezais afora. Como deixara esse sentimento apoderar-se dele? Não teria forças para resistir? Como podia viver assim atormentado? Era até estupidez; um homem como ele, culto, rico, viajado, um homem que sempre tirara da vida o melhor bocado, viver obcecado por uma mestiça ignorante que mal sabia falar. Nunca pude compreender.
Um dia, a Zefa me disse que a Estefânia era muito ambiciosa e astuciosa; e a Zefa ficou a olhar-me de lado para ver o que eu diria; continuei costurando e nada respondi; então ela falou que Estefânia queria ter vestido de seda como os de Sinhá Letícia, tinha orgulho de dizer que o pai era branco e o primeiro feitor da fazenda, e que um dia ainda havia de mandar nas outras escravas, principalmente nela e na Clementina, as duas mucamas de dentro. Eu disse à Zefa que nada disso aconteceria e não repetisse essas cousas para ninguém porque tudo era mentira da Estefânia, mas fiquei preocupada. E se Maria Letícia descobrisse? O que faria?
Uma tarde, no cafezal, vi os dois; eu tinha ido na frente para esperar a professora e as meninas; estava sentada num toco de árvore, distraída, quando ouvi vozes e percebi que Estefânia e Fernão estavam ali perto conversando. No desvairamento da paixão, ele não pensava em nada, nem mesmo nas filhas que podiam aparecer de um momento para outro ali perto. Fiquei imóvel, sem saber se devia tossir e dar sinal de minha presença, ou continuar quieta. Percebi que as vozes se vinham aproximando mais; levantei-me para ir embora quando vi os dois atrás de um enorme pé de café. Não me movi. De repente, ele abraçou-a e beijou-a no pescoço e no rosto; ela tentou resistir, olhando assustada para todos os lados; mas Fernão não se importou e segurou-a entre os braços. Estefânia ainda procurou fugir e evitar os beijos apaixonados, mas não o conseguiu; parece que o corpo dela foi perdendo as forças, foi amolecendo e vi Fernão carregá-la como se ela fosse uma pena e levá-la para longe; ela ainda protestava, mas fracamente. Impressionada, saí correndo, tropeçando nos paus atravessados no cafezal, completamente aniquilada de vergonha e medo. Aquilo era paixão, paixão, paixão.
Uma noite, semanas depois, a criancinha chorou e eu acordei; fui ao quarto de Maria Letícia saber o que havia; encontrei-a passeando pelo quarto com Ernestina ao colo; pediu-me para ficar com a criança enquanto ia buscar um remédio no armário. Receando que ela pudesse descobrir a verdade, ofereci-me prontamente para ir buscar o remédio. Depois de tratarmos da Ernestina, ficamos ainda um tempo conversando e fui para o meu quarto. Percebi a porta do quarto de Fernão fazer clic e ranger levemente; devia ser ele que saía. Passou-se meia hora e não ouvi o menor ruído; a casa estava silenciosa e mergulhada na escuridão. A fazenda também; às vezes ouvia-se o latido de um cão ou o canto de um galo, muito ao longe.
Mais tarde, acordei outra vez com o choro da criança; levantei-me novamente e fui ver se Maria Letícia precisava de alguma cousa. Ela não estava no quarto; no berço, a criancinha choramingava como se sentisse dor. Tomei-a no colo e procurei Maria Letícia; de repente, a porta do corredor abriu com ruído e Maria Letícia entrou, mais branca que a cal da parede; assustou-se um pouco quando me viu e disse que havia ido à. cozinha fazer uma tisana para a criança, pois o remédio para a dor de ouvidos não dera resultado, devia ser dor de barriga. Enquanto falava, observei-a e não tive dúvida: Maria Letícia descobrira a verdade! Estava trêmula, esquisita, um olhar desvairado. Tomou a Ernestina dos meus braços e disse-me que podia ir dormir, que ela mesma daria o chá à criança. Voltei sem nada dizer.
Na noite seguinte, fiquei acordada até tarde; o silêncio era profundo. Ouvi a porta ranger. Era Fernão. Levantei-me no escuro e abri a porta do meu quarto com todo o cuidado; logo mais vi Maria Letícia passar também. Levava um castiçal na mão esquerda e com a direita protegia a chama da vela contra o vento, apesar de não haver vento. Estava de camisola, as lindas tranças soltas nas costas. Passou pela sala de jantar e continuou; tudo estava escuro e deserto. Entrou no corredor que levava aos quartos dos hóspedes; logo que deu alguns passos nesse segundo corredor, creio que assoprou a vela porque a escuridão se tornou completa. Com certeza ouviu a voz de Fernão, vinda da alcova dos hóspedes; num gesto aflito, levei a mão ao peito e fiquei comprimindo-o como se as fortes batidas de meu coração pudessem ser ouvidas. Procurei acalmar-me. Pobre Maria Letícia! Nunca poderia imaginar que Fernão fizesse o que ela tanto recriminara em Rodolfo: receber alguém na sua própria casa e ficar fechado na alcova. Era inquietante e desesperador. Mais tarde, percebi quando ela voltou; deitei-me e fiquei quieta, como se dormisse, caso ela entrasse em meu quarto. Mas não entrou. Ouvi-a chorando depois, abafando os soluços no travesseiro; passou o resto da noite numa angústia sem fim. A madrugada já se anunciava e as pombas estavam arrulhando no telhado quando a porta do quarto de Fernão rangeu de novo. Que faria ela no dia seguinte? De que forma receberia essa humilhação? Ela que era orgulhosa, diferente, e dizia que não suportaria a situação de Francisca Miquelina? Não tivera coragem de enfrentar um Tribunal? Com certeza não sofreria tamanho ultraje e falaria com Fernão. Era intrépida e, de qualquer modo, falaria.
Assim se passou o primeiro dia, igual aos outros; só Maria Letícia estava inquieta, irritada com as crianças e parecia vigilante, mas nada demonstrou. Pensei que decerto ela. não sabia quem estava com Fernão na alcova dos hóspedes. Como podia saber? Por isso, parecia vigilante, atenta a tudo o que se passava e, quando Fernão estava presente, observava-o. Devia desesperar tal situação: saber que alguém passava as noites com o marido em sua própria casa e ignorar esse alguém.
Desconfiaria de muita gente, menos da Estefânia; pois Estefânia não ia casar-se com o Juvêncio? E Estefânia não era escrava, era filha do Belisário. Pensaria que fosse a Clementina, ou Zefa ou outra qualquer, menos a Estefânia. Seu cérebro trabalharia desesperadamente, mas seria difícil acertar. Passou-se o segundo dia; ela foi cedo para o quarto, pretextando enxaqueca. Fiquei à espreita. Já era tarde quando a porta rangeu. Logo mais, percebi que ela também se levantava para seguir o marido; tive medo, um medo horrível de qualquer cousa e levantei-me também, sem saber ainda o que fazer. Que tortura! Durante mais de uma hora, esperei. Depois, resolvi ir à cozinha fazer um chá para mim; podia assim evitar muita cousa. Fiz barulho, acendi vela, abri a porta do meu quarto batendo de leve, tossi alto e, após tudo isso, saí para o corredor. Nada. Penso que ela correu e refugiou-se no quarto quando ouvia meus movimentos. Atravessei a sala de jantar e entrei no corredor sombrio e quieto, passei pela alcova sem parar como das outras vezes e entrei na cozinha. Voltei com uma xícara na mão e entrei no meu quarto outra vez; nada mais ouvi essa noite.
No dia seguinte, estávamos no alpendre, quando a Estefânia passou de longe com um vestido cheio de ramagens vermelhas; Maria Letícia teve um choque. Moveu-se na cadeira e ficou seguindo Estefânia com a vista até desaparecer por trás da tulha. Ouvi-a mais tarde, perguntando a Modesta se o marido da Clementina estava na fazenda; parece que ouvira dizer que Fernão o mandara embora. Modesta negou:
— Clementina? Tá aí mesmo, Sinhá. E o marido também. Inda onte vi ele passando com um saco de mio nas costas.
Maria Letícia suspirou; então não era a Clementina. Disfarçadamente perguntou depois:
— Onde está Rita, Modesta? Faz tanto tempo que não a vejo.
Modesta contou que Rita estava lavando roupa no rio e esperava a vinda de um padre à fazenda para fazer o casamento dela com João Cipó, Maria Letícia suspirou outra vez; então, não era Rita.
Começou a dar voltas pelas dependências da casa todos os dias; ia à cozinha mais de uma vez falar com Gabriela, ia no quarto de passar roupa, visitava os quartos dos hóspedes, nesse segundo dia mandou abri-Ios todos e examinou durante bom tempo a alcova onde ouvira vozes. Com certeza, queria descobrir algum indício, algum sinal, alguma roupa que denunciasse quem entrava ali durante a noite, mas creio que nada descobriu. Perguntou depois a Modesta:
— E Estefânia, Modesta? Vai casar-se com Juvêncio?
Modesta hesitou um momento e olhou, depressa para mim que estava costurando muito distraída. Respondeu que o casamento se realizaria, mas não sabia quando, talvez em dezembro, no Natal. Percebi que Modesta sabia.
Mais tarde, estava tio António cochilando na rede quando Maria Letícia perguntou se havia gente nova na fazenda. Parece que em sua ausência Fernão comprara novos escravos. Tio António disse que não sabia de nada, mas achava que não havia ninguém de fora. Só a mim, nada perguntou. E nessa noite, seguiu-o outra vez, e assim muitas outras. Começou a emagrecer desde então e a enfraquecer-se; durante o dia tinha sono, mas não queria dormir para ficar vigilante e descobrir. Percebi que seu único objetivo era descobrir a mulher, não pensava em mais nada.
Chegou dezembro e os dois filhos mais velhos, em companhia dos filhos de Leopoldina, vieram passar as férias em Santarém; mais tarde, chegou Bonifacinho. A casa novamente ficou cheia de vida e barulho; os quartos foram arrumados e espanados; as gavetas emperradas foram abertas e as toalhas de crochê, os lençóis de linho, as colchas da Índia foram de novo usados. As noites eram tranqüilas e nunca mais ouvi ranger de portas. Todo o mês de dezembro se escoou; chegou janeiro com muitas chuvas; os rapazes saíam a cavalo paia dar seus passeios e voltavam completamente molhados; trocavam de roupa entre gritaria e gargalhadas.
Um dia houve uma estiada e o sol apareceu quente o bonito; Maria Letícia convidou-me para dar um passeio. Chamou as crianças, mas elas já tinham ido com a professora ver a enchente do ribeirão; resolvemos ir também. Tomamos o caminho da mata; tudo estava úmido e sombrio. Desviávamos das poças d'água formadas no caminho quando ouvimos um ruído de galhos quebrados; alguém andava por ali. Estacamos e ficamos esperando. Vimos então Estefânia saindo do fundo do arvoredo, onde a mata era mais fechada, mas uma Estefânia muito diferente. Seu lindo corpo esbelto e roliço engrossara, os seios haviam crescido e o vestido mal disfarçava a gravidez. Deu de frente conosco e ficou vermelha, olhando o pés, num grande embaraço, como quem quer chorar. No primeiro instante, Maria Letícia ficou parada, olhando a cabocla sem nada dizer; depois, perguntou pelos pais e irmãos.
Continuamos a caminhada sem falar. Quando chegamos à margem do ribeirão, onde estavam todos vendo a enchente, Maria Letícia parou de repente com a mão no peito, muito pálida. Creio que só nesse momento ela soube que era a Estefânia; não precisava ninguém contar nem precisava ver para se certificar. Com os olhos muito azuis fixos na correnteza que passava rugindo, arrastando galhos, troncos, folhas secas, cousas mortas, entre o alarido que as crianças faziam mostrando o que o rio ia carregando, Maria Letícia estava como que desvairada de ódio. Ódio da Estefânia. Não precisava ninguém contar o que eu tanto procurava esconder. Os olhos haviam denunciado o que o coração guardara.

DESDE então todos os meus caminhos foram ásperos e espinhosos; e a tempestade rugia sobre minha cabeça. Na fazenda de Francisca Miquelina, onde eu esperava encontrar tranqüilidade, encontrara chicotes em mãos brutais, vergões vermelhos em braços brancos e lágrimas tristes. Em Santarém, onde eu sempre tivera paz e amor, encontrara agora uma paixão desvairada, uma loucura. Onde me refugiar? Foi quando recebi carta de S. Paulo dizendo que papai pedia minha presença. Mamã Zabel havia morrido de repente; dera para beber nos últimos tempos, e a casa toda ficara desorganizada. Chorei a morte de Mamã Zabel; ela me havia criado, passara noites inteiras comigo ao colo, deixara os filhos dela por mim, era minha segunda mãe. Maria Letícia não chorou quando soube, a princípio fiquei impressionada, depois lembrei-me que o desgosto que ela estava sofrendo nessa ocasião, era tão grande que pairava por cima de tudo e não seria a morte de uma criada velha que iria comovê-la.
Preparei meu saco de viagem e meu baú velho e esperei a vinda de Bonifacinho; assim que ele chegou, partimos. Desta vez não senti deixar Santarém, nem minha sobrinha Lídia que era muito agarrada comigo; fui-me embora depressa, deixando a tempestade que rugia, ameaçadora.
Em S. Paulo, papai não tivera melhoras; continuava na almofada de veludo, paralítico do lado esquerdo, impaciente e fastioso. Adelaide viera do Rio de Janeiro visitar papai, e o filho mais velho, talvez estranhando o clima, teve pneumonia e quase morreu. Eu passei muitas noites com o menino ao colo quando mamãe e Adelaide já estavam exaustas e papai reclamava o abandono em que ficava nesses dias em que todos só se dedicavam à criança doente. Adelaide nada sabia fazer, senão chorar. E o filhinho, com as faces a queimar de febre, respiração sibilante, parecia agonizar em meus braços. De hora em hora, trocava o emplastro de linhaça e mostarda que o Dr. Maranhão receitara, mas a criança gemia e sofria. Só na segunda semana de luta, começou a melhorar. Então fui dormir sossegada.
Foi então que reparei na situação política de S. Paulo, conservadores e liberais discutiam pelas esquinas das ruas, nas portas das igrejas e nas reuniões de família. Abolicionistas e escravagistas tramavam às ocultas; nas horas quietas da noite, muitos escravos fugidos eram recolhidos nas casas dos abolicionistas e lá ficavam escondidos, esperando a lei que viria libertá-los para sempre. Por toda a parte havia polêmicas; o país caminhava para grandes modificações.
Uns diziam que o império estava abalado; outros, que não, que nunca estivera tão firme. E tudo foi-se transformando aos poucos; não se sabia de que forma terminaria, mas sabia-se que haveria um fim próximo para a situação, do contrário o Brasil mergulharia no caos.
Todas as noites, em nossa casa, os amigos reuniam-se para discutir política; o primeiro a chegar era o Bulhões, depois o Cônego Soares, o Dr. Maranhão e o Lopes Velho. Em seguida, vinham outros e sentavam-se no quarto de papai, em cômodas cadeiras. Tomavam café e examinavam a situação; papai, apesar de não poder tomar parte ativa na conversa, gostava de ouvir e quando queria dar um aparte e sucedia estarem todos falando, ele levantava a bengala com a mão direita e batia-a com força sobre a cadeira em frente; fazia-se então silêncio e papai falava vagarosamente, enrolando a língua, para externar suas idéias.
A lei de 28 de setembro de 85 era intensamente discutida; os escravos sexagenários haviam sido libertos sob a condição de servirem seus senhores por mais alguns anos. Havia forte corrente contra o abolicionismo. O número de imigrantes já era considerável em S. Paulo, mas mesmo assim o pânico foi-se apoderando dos fazendeiros, pois os escravos fugiam das fazendas cada dia em maior número; nada mais os retinha e ninguém conseguia capturá-los. Encontravam guarida em casas abolicionistas. De Guararema, chegavam más notícias todas as semanas; Rodolfo, exaltado, exasperava-se contra a situação e vinha a S. Paulo frequentemente, queixar-se também. Em sua fazenda, era um verdadeiro êxodo; e não se sabia mais que medidas tomar.
Por toda parte, discutia-se com animação. O Bulhões partidário da lei de 1885, achava-a benéfica; negros com mais de sessenta anos não deviam mesmo continuar no eito. Estava perto. O Cônego Soares também estava de acordo, mas não aceitava a abolição total da escravatura, antes de uns cinco anos ainda; julgava que o país não estava preparado ainda para enfrentar o problema, o sonho desses apaixonados idealistas iria levar o Brasil a uma tremenda decadência. O Dr. Maranhão dizia que a lei abolicionista devia ser promulgada o mais breve possível, porque viver à beira de um abismo era pior do que viver dentro dele; que viesse a lei para as providências serem tomadas. Assim como estava, o país se arruinaria. Essas palavras desencadeavam controvérsias fervorosas. Então o médico chamava a atenção dos ouvintes para os Estados Unidos.
— A América do Norte vai num surto de progresso invejável depois da lei da abolição; seguiremos esse exemplo e não havemos de nos arrepender. Nabuco tem razão.
— Nabuco determinou a data da abolição total para o primeiro de janeiro de 1890. Duvido que consiga; é loucura, absurdo.
— A Lei Dantas foi sancionada porque era justa, mas fixar a data da abolição é uma utopia; e se essa lei for sancionada nessa data, onde iremos parar? Estamos perdidos.
O Cônego Soares levantava o braço pedindo a palavra:
— Ainda bem que o gabinete e a maioria liberal se recusaram a discutir a propósito, mas, se aceitassem a sugestão de Nabuco, o país estaria perdido. Desde a Lei do Ventre Livre, vimos sofrendo o problema de braços para a lavoura. Quantos escravos fugiram desde então? E quantos ficaram livres? Verdadeira calamidade, senhores. Há quem segure hoje um negro fugido?
E suas mãos gordas e peludas agitavam-se, nervosas. Rodolfo interrompia:
— Cada dia está pior, padre. Cada dia está pior. Onde estão os imigrantes para substituir os escravos? Onde a indenização para o enorme prejuízo que estamos tendo? O Dr. Maranhão apaziguava:
— As províncias do Ceará e Amazonas libertaram seus escravos dois anos antes. Estão vivendo pior? Não me consta. Pior estamos nós à beira de um vulcão, como já disse.
— É porque o amigo não está lá para ver; ouvir falar de longe é uma cousa, vá lá para ver. Estão lutando para viver; os senhores de engenho estão a braços com um problema sem solução. E o Ceará e o Amazonas não são S. Paulo...
— Discordo. Não é um problema sem solução.
— Dantas venceu com a lei da libertação dos sexagenários, mas não venceu com a lei total.
Rodolfo bateu no braço da cadeira:
— Não vencerá. Lutaremos se for necessário, como lutaram na América do Norte, dois, três, quatro anos, mas é cedo para a abolição. Talvez daqui a alguns anos. E digo talvez, notem bem.
Benedito entrava com a bandeja de café e eu servia; alguns pediam um copo d'água antes do café e eu ia tirar água fresca da moringa.
O Dr. Maranhão fazia, a medo, uma advertência:
— Não se enganem. Mais cedo ou mais tarde, a lei será discutida novamente e sairá vencedora. Talvez mais cedo do que pensamos. O melhor é prevenir...
Rodolfo exaltou-se:
— Prevenir como? Quem segura os negros hoje? Estão arrogantes e desaforados. Pois se aqui mesmo em S. Paulo há muito abolicionista que acoita escravos, dá-lhes alimento e trato. Onde se viu isso? É uma desmoralização para nós; por que os negros hão de cumprir nossas ordens, sabendo que há gente que os protege contra nós? Ainda não estamos perdidos, havemos de reagir.
Acabou de tomar o café, olhou o relógio e pediu-me sua capa preta. Vestiu a capa que caía até os pés e ficou abotoando-a em silêncio. O Cônego Soares aproveitou a ocasião para contar um fato:
— Lembra-se, senhor barão, da escrava Guilhermina que estava separada do filho há muitos anos?
E voltando-se para os outros, explicou:
— Esta escrava Guilhermina foi vendida há muito tempo a meu tio Pedro, em Campinas. Ela vivia lamentando-se e contava aos tios que na mesma ocasião em que foi vendida também lhe venderam o filho, Sabino, para outro senhor. Pois bem, anos se passaram e ela não pôde esquecer o filho, vivia chorando. Agora fiquem sabendo o fim da história. Tempos atrás, estava uma leva de escravos exposta na porta da igreja matriz, em Campinas, a fim de serem vendidos. Mulheres de um lado, homens do outro. Pois bem. A escrava Guilhermina ia entrando na igreja com Nhanhã, como chamava minha tia, e de repente, fixando um dos moleques que estava à venda, exclamou: "É meu filho! É meu filho que perdi quando pequeno. É Sabino." Chegou-se ao moleque e perguntou: "Como é seu nome?" "Sou Sabino", respondeu o moleque. E era mesmo o filho de Guilhermina, perdido havia tanto tempo. A escrava começou a chorar e abraçar o filho; nesse mesmo dia tio Pedro comprou o moleque e reuniu mãe e filho outra vez.
Ficou esperando os comentários. O Dr. Maranhão acrescentou:
— Isso é uma barbaridade, vender a mãe para um dono e o filho para outro.
Lopes Velho perguntou:
— Mas como se explica que ela reconhecesse o filho depois de tantos anos? Ele já era adulto?
— Era adulto, mas ela o reconheceu. Decerto a voz do coração; qualquer instinto contou-lhe que aquele era o seu filho.
Papai agitou-se para falar:
— Nunca fiz... se... me... lhante cousa. Nun... ca.
Rodolfo começou a despedir-se; papai agitou-se novamente:
— Não vem dormir a... qui?
— Sim. Voltarei mais tarde; vou visitar um amigo que está me esperando. Na Rua de São Bento.
Deixou o quarto e fez-se silêncio na roda; de repente, Bulhões falou, cofiando a barba branca:
— Tem havido umas reuniões por aí, contra o movimento abolicionista. Isso é perigoso; a corrente da abolição está forte e pode haver qualquer distúrbio.
O Cônego Soares concordou com a cabeça. Bulhões continuou com o seu vozeirão:
— Já ouvi dizer que tem havido escaramuças depois dessas reuniões; gente que fica de tocaia na rua, esperando.
Papai mexeu-se de novo e seu olho direito brilhou estranhamente; percebi o que ele ia dizer e perguntei, enquanto recolhia as xícaras vazias:
— Será que Rodolfo foi a uma dessas reuniões?
Ninguém respondeu e todos se entreolharam. O Dr. Maranhão respondeu depois:
— Não. Creio que não. Ele me disse hoje que iria visitar um amigo doente, se não me engano, na Rua de São Bento.
Papai queria saber quem estava doente na Rua de São Bento, mas não souberam dizer. Lopes Velho procurou mudar de assunto:
— Chamam a princesa de fanática por causa desse movimento; e, por falar nisso, como irá o imperador? As últimas notícias diziam que estava sofrendo males do fígado.
O Cônego Soares voltou ao assunto:
—- Precisavam ver como o Sul se refere a esse movimento; diz que o Brasil está declinando "sob o Império de uma senhora inclinada ao fanatismo e casada com um príncipe estrangeiro". Foram essas as palavras; tem havido sérios tumultos por causa disso.
— Isso é um absurdo; quero ver o que os republicanos vão fazer; se vencerem, eles vão levar o Brasil à desgraça. Digo e afirmo.
Papai concordou energicamente com a cabeça; todos os velhos eram conservadores extremados, enquanto a maioria da mocidade propendia pela República e como Rodolfo, embora escravagista, era republicano, esperaram a sua saída para por o coração à larga. Papai pediu-me para arranjar-lhe os travesseiros. Disse um dos presentes:
— Os distúrbios são inevitáveis; eu já disse que pode haver até guerra civil, como na América do Norte; aí sim, o país levará a breca...
O Bulhões levantou-se:
— E os quilombos existentes por aí? A negrada anda às soltas, ameaçando a paz de todos nós... Santos virou ninho de negros fugidos, e o negro que cai lá, ninguém pega.
— Não precisamos ir tão longe. Por aqui também, no Ipiranga, é a mesma cousa...
O Cônego Soares levantou-se de repente, como se tivesse uma idéia:
— Ah! senhor barão, ia-me esquecendo de lhe mostrar o documento de que lhe falei outro dia. Quer ver agora? Lembrei porque se falou no Ipiranga. É uma carta escrita por um tal Gabriel Cantinho, pedindo soldados para os canhambolas que viviam no Ipiranga. Tenho a cópia comigo. Quer ver?
Benedito levou a bandeja e os copos usados. O Bulhões que havia falado em sair, sentou-se outra vez, resignado. Eu estava na porta quando o Cônego me perguntou se não queria ouvir. Parei para escutar; ele tirou um papel amarelado do bolso, estendeu-o sobre os joelhos, colocou os óculos no nariz e leu pausadamente:
Exmos. Revmos. Snrs. E Senhorias:
Consta-me que ao pé desta cidade em uma passagem chamada Ipiranga, está hum Quilombo de Canhambolas que estão roubando pelos caminhos e furtando gado e também negros. Tenho dado as providências aos Capitam de Matto e Ordenanças, mas como me dizem que estão fortes eu da minha parte peço auxilio a Vss. e Srias. para darem soldados para se arrumarem nas estradas, e tudo deve ser da meia-noite para o dia, determinando V. Exa. e Srias., a quem dar os soldados para o auxilio a toda a hora que se lhe pedir.
Deus guarde a V. E. e S. S. S. Paulo 19 de Janeiro de 1818.
De v. Ex. o mais humilde súdito.
Gabriel Frz. Cantinho
Alguns riram da maneira como a carta estava escrita; O Dr. Maranhão tirou o cigarro da boca para falar:
— Estão vendo? Desde essa época, os negros estão ameaçando. Quando foi mesmo?
— 1818.
— Pois é isso. Precisamos acabar de uma vez com essa ameaça; do contrário, nunca teremos sossego.
A carta andou de mão em mão e alguns liam alto certos trechos. O Bulhões resmungou:
— Com esta eu vou indo...
E tirando o relógio do bolso do colete, admirou-se: O quê! Dez e tanto. Pensei que eram nove e pouco. Boa noite, senhores.
Os outros levantaram-se também e aos poucos foram saindo pela noite afora. Benedito veio preparar papai para dormir; mamãe apareceu perguntando se ele desejava alguma cousa. Dormia no quarto próximo.
Fiquei imóvel no meu leito, durante muito tempo, no quarto escuro, sem poder dormir. Pensava nos perigos que Rodolfo corria freqüentando reuniões contra o abolicionismo, pois era quase certo que as freqüentava, apesar de nada dizer. Bem mais tarde, ouvi o ruído de passos parar junto à porta da casa; era Rodolfo que entrava. Acendi a vela e olhei as horas; uma hora da manhã. Tornei a apagar a vela num leve sopro. Ouvi depois mamãe perguntar a papai, do outro quarto:
— O senhor está sentindo alguma coisa?
— Não; estou bem.
Papai também estava acordado à espera de Rodolfo; também não dormira ainda. Imaginei-o com o olho esquerdo meio fechado, parecendo morto, a pálpebra descida, e o olho direito fixando sinistramente as trevas, enquanto seu pensamento girava em torno da lei da abolição. Que iria acontecer depois?
Voltei a Santarém no fim desse ano, pois Maria Letícia estava desolada; Fernão resolvera mandar para a Europa os dois filhos mais velhos. António Fernão e Paulo. Um dos genros de nosso tio de Sousa Mendes ia ocupar um posto na Embaixada Brasileira na Itália; ficou então combinado que levaria António Fernão e Paulo. Apesar da insistência do marido, ela não quis acompanhar os filhos até o Rio de Janeiro; sentia-se tão velha e cansada que preferiu não deixar Santarém. Eles passaram dois dias na fazenda em setembro, para se despedir da mãe. Ela não se perturbou muito na hora da despedida, abraçou e beijou os filhos agora com dezessete e dezesseis anos, António Fernão parecia-se mais com ela, tinha os mesmos olhos azuis e uma expressão tranqüila. Paulo saíra ao pai; até na inquietação do gênio; era vivo, irrequieto, mais alegre que o irmão. De pé, no trole que os levava à estação, voltaram-se muitas vezes para acenar à mãe que ficara no portãozinho do jardim, muito calma e resignada, sacudindo a mão para eles. Mas quando a última curva do caminho os ocultou de nossa vista, ela voltou-se e entrou rapidamente no quarto, ajoelhou-se diante do berço da filhinha e começou a chorar, um pranto sentido e angustiado, vindo do fundo do coração. Passou o dia todo com os olhos vermelhos, lembrando-se dos meninos que partiam para tão longe; nem sabia quando os veria de novo. Sentia-se profundamente infeliz.
Achei Santarém muito triste dessa vez; a tristeza pairava em toda a parte. Não havia um som em toda aquela solidão, os pássaros cantavam baixinho, o ribeirão corria a medo, como que suspirando, os sapos pouco coaxavam durante a noite e a Mulata, no poleiro da porta da cozinha, não gritou uma vez sequer.
Modesta, uma tarde, contou-me tudo. Disse que o feitor Belisário, chegando da roça um dia, cansado e coberto de suor, encontrou a mulher chorando: perguntou-lhe o que havia e ela, sentada à porta da casa, negava-se a responder-lhe; mas ele insistiu, interpelou-a com dois berros e ela confessou entre soluços; estranhava Estefânia há vários dias; estava pálida, não comia e queixava-se de dores no estômago. Não sabia o que era, mas desconfiava... Belisário bebeu uma caneca cheia d'água, jogou o resto no chão da cozinha e passando as costas da mão direita pela boca, indagou:
— Onde tá ela?
— Na casa grande; só vem aqui pra se queixa e às veis passa dois, três dias sem aparecê.
Belisário mandou o filho menor chamar Estefânia e pediu o jantar; enquanto esperava, foi dar milho às galinhas e recolheu o bezerrinho; meia hora depois, avistou a filha vindo pelo caminho da mata; pôs a mão em pala sobre o rosto e semicerrou os olhos para observá-la; como estava diferente! E ele que não notara nada até então? Até o modo de andar era outro. Desgraçada! Havia-se perdido por aí... Mas havia de ver, havia de ver.
Ela chegou, tomou a bênção ao pai, depois entrou na cozinha para falar com a mãe. Eram quatro horas e o sol já ia sumindo por trás do cafezal; o dia estivera quente e abafado, prenunciador de chuvas. Quando se sentaram à mesa de tábua para jantar, Estefânia não apareceu; ficou na cozinha fazendo uma tisana para aliviar sua dor de estômago; Belisário gritou por ela:
— Estefânia!
A rapariga chegou à porta, ressabiada e indecisa, as duas mãos sobre o estômago. Ele ordenou:
— Venha jantá, Estefânia.
— Não tenho fome, pai. Vou fazê um chazinho pra mim.
— Já disse que venha jantá. Sente aí.
E apontou-lhe o banco tosco em frente a ele; ela sentou-se com os olhos baixos e tomou um prato para se servir. O pai tornou a falar:
— Por que não come, rapariga?
— Não tenho fome, pai. Prefiro tomá chá de erva-cidreira ou de losna.
Mas o pai, teimoso, mandou-a jantar; a mãe preparou-lhe o prato; os meninos comiam avidamente, sem reparar o que se passava à volta. Estefânia pegou a colher e começou a misturar a comida no prato, sem coragem de comer; amassou o feijão, misturou-o com arroz, batata-doce e farinha; depois de tudo misturado, provou uma colherada. Disfarçou a náusea com medo do pai e comeu outra colherada; fez esforço para engolir; na terceira vez, o estômago reagiu e ela sentiu que o alimento lhe subia de novo pela garganta. Levantou-se da mesa com a mão na boca e foi vomitar na porta da cozinha, tomada por ânsias horríveis; pôs tudo para fora, entre gemidos de dor. Depois, em vez de voltar à mesa, postou-se num canto da cozinha, trêmula de medo; bebeu uns goles d'água da caneca o sentiu-se melhor. Os meninos foram brincar no terreiro, cada um mastigando seu pedaço de rapadura. Belisário começou a fazer um cigarro de palha, a testa cheia de rugas, um ar preocupado. Quando a mulher trouxe o café e colocou a cafeteira à frente dele, juntamente com uma tigelinha desbeiçada, ele pediu pinga. Mau sinal. Só bebia ao jantar quando perdia o bom humor. Tomou a pinga de um trago e bateu com força a caneca sobre a mesa, gritando:
— Estefânia!
Ela veio da cozinha, encolhida, amedrontada, os olha úmidos; perguntou baixinho:
— Chamou, pai?
— Que tem, rapariga?
— Num sei. Faz dia que tô assim com um enjôo e umas dores nas cadera.
— Que ando fazendo? Quando começô isso?
Enrolando o cigarro, observava a filha; ela hesitou um instante, depois disse que desde o outro mês, não estava passando bem, mas aquilo havia de passar, não era nada. Do repente, ele explodiu:
— Pois quando o dotô vier no fim do mês, vai te examiná.
— Não precisa, pai, isso passa.
— Precisa. Já disse que precisa e acabô-se. E esta noite dorme aqui. Não vai para o sobrado.
O beiço inferior da Estefânia começou a tremer e ela disse, num soluço:
— Tenho que voltá, pai. Tão me esperando.
Ele levantou-se e ficou diante dela, na expectativa:
— Quem está esperando?
— As mucamas tão esperando pra acabá de passá roupa.
— Mentira. Ninguém vai passá roupa fora de hora.
— Mas preciso ir, pai, elas me pediram.
E encarou o pai, com ar aflito e ao mesmo tempo resoluto. Belisário encarou-a também como a adivinhar qualquer cousa, qualquer cousa que o cobria de vergonha. Avançou para a filha:
— Desavergonhada! Ocê qué dormi por aí, isso é o que ocê qué. Não qué fica mais na casa de seu pai, pois vai vê, rapariga.
E estalou uma tapa no rosto da filha; ela escondeu a cabeça entre os braços e começou a chorar alto; a mãe, na porta da cozinha, assistia à cena, assustada, as mãos cruzadas sobre o ventre. O pai tornou a levantar o braço:
— Quem é que te fez isso, rapariga? Conta ou te arrebento.
Soluçando, Estefânia não falou; seus ombros tremiam. A mãe procurou acalmar o marido:
— Num bate nela, Belisário. Ela conta.
— Conta? Quem num vê que essa rapariga me desgraçô?
E avançou outra vez, segurando-lhe o braço. Sacudiu-a:
— Fale quem é, Estefânia. Com quem tu anda pela mata?
Não é à toa que uns negro me avisaram e deram risada, mas não acreditei. Os safados. Diga quem é ou te arrebento. Fale de uma veis. Fale.
Sacudiu-a com mais força pelo braço. Mas Estefânia não pronunciou uma só palavra; procurava abafar os soluços na manga do vestido, sem ânimo para falar. Então o Belisário dirigiu-se a um canto da sala, onde um chicote estava dependurado, sob o chapéu de palha. Com o chicote na mão, olhou a filha; os meninos atraídos pelos gritos do pai, ficaram espiando pela janela, olhos arregalados, surpresos e medrosos.
As galinhas cacarejavam no terreiro em frente à casa; a mãe aconselhou à filha:
— Fale, Estefânia, fale de uma veis. Ocê não engana com esse jeito, rapariga. É mió falá.
O pai levantou o chicote e brandiu-o nas pernas da filha; o couro enrolou-se nas saias de Estefânia e ela soltou um grito, encolhendo-se. Mas não se moveu; continuou chorando no mesmo lugar. O pai perguntou:
— Quem é? O Juvêncio?
Estefânia continuou chorando e não falou; o chicote tornou a subir e tornou a descer; desta vez enrolou-se na cintura e ela deu um grito maior. Retorceu-se e pediu:
— Não me bata, pai. Não me bata mais.
— Então fala. A mãe insistiu:
— Fala, Estefânia.
— Será que essa desgraçada andô com algum negro safado e não tem coragem de contá?
E pela terceira vez o chicote subiu; então a Estefânia caiu de joelhos e descobrindo a cabeça, gritou entre lágrimas:
— Eu falo, pai, si vossuncê não bate mais.
— Então fale, quem é?
Ela procurou enxugar o rosto com a manga do vestido, fungando, aflita, e ali mesmo, ajoelhada, pronunciou um nome que ninguém entendeu. A mãe aproximou-se dela e procurou levantá-la.
— Fale, fia. Teu pai não te bate mais se falá. Quem é?
Ela levantou-se cambaleando e sentou-se num banquinho no canto da sala; depois balbuciou, entre envergonhada e orgulhosa:
— É Sinhô, pai.
Pai e mãe duvidaram; inclinaram-se para ouvir melhor. A mãe pediu:
— Repita, Estefânia.
— Sinhô Fernão, mãe.
Eles entreolharam-se e nada disseram; Belisário jogou o chicote longe, com força, no terreiro, e o couro bateu, em cheio sobre uma galinha, que saiu correndo e cacarejando, asas abertas. Estefânia parou de chorar e dirigiu-se para o quarto dela, em silêncio. A mãe foi à cozinha lavar as panelas e o pai ficou sentado na porta da casa, enrolando outro cigarro. A noite foi caindo devagar e tudo ficou silencioso à volta da casa; os animais aquietaram-se e nada mais se ouviu.
Foi quando Modesta chegou à casa do Belisário e a mulher dele contou tudo. Só se ouviam os grilos a fazerem cri-cri nas moitas e viam-se os vaga-lumes iluminando o caminho da mata. O candeeiro de querosene foi aceso e colocado na mesinha da sala, sobre a toalha de crochê. Atraídos pela luz, alguns besouros, entraram e debateram-se, tontos, contra o candeeiro; depois caíram no chão e ficaram pelos cantos, esquecidos, alguns de costas, esforçando-se por se levantar, sacudindo as patinhas no ar inutilmente. Modesta deu boa noite e retirou-se.
A casa do Belisário continuou em silêncio; ninguém mais falou; mais tarde o feitor apagou o lampião e todos foram deitar-se, como de costume. Logo mais, o casal ouviu o ruído da porta abrindo e fechando; era Estefânia que fugia furtivamente para ir à casa grande, passar a noite; Belisário e a mulher ouviram. A mulher avisou:
— Lá vai ela, Belisário, ouvi o barulho da tramela da porta.
Belisário respondeu, dando à voz um tom descoroçoado:
— Pois que vá. Que posso fazê? É o destino, muié, e o destino tem muita força na vida da gente.
Quando Modesta acabou de contar-me, fiquei assustadíssima. Perguntei:
— E Maria Letícia, Modesta?
Modesta disse que Maria Letícia vivia amargurada, mas nada dizia. Continuava como se não soubesse de nada. Mas sofria. Quem não via que ela estava sofrendo?
Nessa mesma noite, quando ficamos sozinhas em Santarém, pois Fernão tinha ido ao Rio de Janeiro acompanhar os filhos, Maria Letícia contou-me que descobrira tudo havia muito tempo, antes de minha ida a São Paulo e que havia de se vingar. Olhei para ela, muito assustada e perguntei:
— Mas de que jeito, Maria Letícia?
— Não sei ainda, e todas as noites, quando me deito, tenho projetos de desforra na minha cabeça, mas não sei.
Aconselhei-a a continuar a fingir ignorância e nada fazer, como era costume entre as mulheres de nossa família. Perguntou-me, indignada:
— Acha então que devo ficar quieta? Aquilo que tanto critiquei no marido de Francisca Miquelina e falei a ele muitas vezes, a Fernão, e agora meu marido faz a mesma indignidade?
É cruel e indigno, não há perdão para um ato desses... Nunca perdoarei. Já pensei em me separar dele definitivamente, não recebê-lo mais no meu quarto, mas não tive forças para afastá-lo. Afinal é meu marido, o pai dos meus filhinhos adorados, não sei o que possa fazer. Fingir ignorância e procurar esquecer, não conseguirei. Impossível.
E, amargurada, Maria Letícia chorou de novo.
Os dias foram-se passando com desesperadora lentidão. Em vão procurei ver Estefânia ou ouvir alguma frase referente a ela, sem perguntar. Mas nada ouvi durante muitos dias, nem sequer a vi. Soube um dia, por acaso, que Estefânia estava em casa dos pais, esperando o filho; Maria Letícia e eu íamos passando pelo quarto de passar roupa quando ouvimos duas escravas conversando. Maria Letícia parou para escutar. Rita dizia:
— Agora tá importante qui nem rainha, nem fala co'a gente. Decerto qué que chame ela de Sinhá Estefânia, mas não chamo. Nem que me mate, num chamo. Pronto.
Ouvimos a outra escrava assoprar o ferro de engomar, o estalinho do dedo molhado para experimentar o calor; depois a voz da engomadeira:
— Os brancos fais tudo que qué, depois é isso: o fio vem vindo. A Estefânia era assanhada, logo vi. Não se alembra quando vinha trazê roupa? Nem sei o que parecia de tão orguiosa.
— Agora tá na casa da mãe esperando. Lá o Sinhô num vai.
— Pra quê? Quem não sabe que eles se encontram na mata pra lá do ribeirão? Rita, esse ferro tá quente demais, rapariga. Chamusca a camisa.
Outro estalinho e a voz de Rita:
— Num chamusca. Num tem perigo.
Puxei Maria Letícia por um braço e fomos embora. Era demasiado para ela.
Fernão voltou do Rio de Janeiro contando que os filhos haviam embarcado no vapor Valparaiso, e estavam contentíssimos com a viagem.
Passaram-se mais alguns meses. Em junho, os dias eram muito bonitos, mas muito frios. Calculei que o filho de Estefânia devia nascer nessa época. Por mais que observasse Fernão nada notava. Continuava imperturbável. Um dia, ouvi Maria Letícia perguntar a Modesta, procurando dar a voz um tom natural:
— Estefânia já teve a criança?
Modesta admirou-se da calma da Sinhá e respondeu serenamente:
— Teve, Sinhá. Fais uns três dias. Diz que não passô bem, a criança não queria nascê. Comadre Josefa foi assisti ela, diz que foi um custo. É um menino.
Maria Letícia nada disse, continuou a costurar, pensativa. Suspirou e absorveu-se no trabalho, fingindo-se muito interessada pela costura. À noite, vi-a quando observava Fernão. Ouviu-o contando história para Maria e Lídia, alheio ao que se passava. Pensei: "Como os homens podem ser assim? Que vida desconcertante!"
No dia seguinte, Maria Letícia recebeu uma carta de Leopoldina:
Mana muito querida:
Nosso pai não está passando bem; isso foi desde que recebeu uma carta do mano Inácio. Imagine que mano Inácio escreve nessa carta que vem para S. Paulo nestes dois meses e vem casado. Casado! com quem? Com uma italiana. Mamãe já disse que deve ser uma aventureira. Conheceu-a em Roma quando estudava pintura com o professor Bernardelli. Diz na carta que ela é romana, muito bonita e canta. Acho que é cantora de teatro. Chama-se Carmela.
Nossos irmãos agora deram para fazer asneiras; um casa-se com uma desconhecida, de uma família sem tradição, outro casa-se com uma estrangeira. Nossa mãe chorou muito quando leu a notícia; papai leu a carta sem dizer nada, depois ficou agitado, as mãos tremendo. Fez o que faz sempre que está amofinado; pegou a bengala e jogou longe no chão; desta vez ela se quebrou. O Benedito foi apanhá-la, mas estava em dois pedaços. Tivemos que mandar comprar outra às pressas. Desde esse dia, não quis mais ir para a mesa, só quer comer no quarto. Não fala quase. Por que você não vem fazer-lhe visita? Deixe mana Rosa com as crianças na fazenda e venha. Faria bem a papai e quem sabe até há de melhorar?
Seus meninos já deram noticias da viagem?
Estou aborrecida porque Fortunato não quer estudar, só nos dá desgosto. Quando vier, contarei tudo. Venha, mana. Estamos tão saudosos! A Ernestina já está andando? Está engraçadinha? É bonita como as outras?
D. Escolástica contou-me que da fazenda dela, em Guaratinguetá, fugiram cerca de cinqüenta escravos. Isso é importante, a lei da abolição se aproxima a passos largos e isso tem concorrido para agravar os males de papai.
Cada vez que Félix vem de Guararema, ele pergunta: Quantos mais fugiram? E fica acabrunhado. Dizem que os próprios abolicionistas dão guarida em suas casas aos negros fugidos. É uma loucura. Alberto já disse: "Precisamos acautelar-nos. O grito é "Sauve qui peu", como dizia nosso mestre M. Jean. Até breve.
Um abraço da mana Leopoldina
Nessa mesma tarde, Maria Letícia disse que queria ir a S. Paulo visitar papai, mas levaria todas as crianças, Modesta e eu. Fernão olhou Maria Letícia, como que observando-a, depois disse que podia ir, sem muito entusiasmo.

QUANDO chegamos ao casarão do Largo do Ouvidor, encontramos um ambiente triste e silencioso; papai, cada vez falava com mais dificuldade. Todo o lado esquerdo estava tomado pela paralisia; a boca entortara mais, de modo que as palavras saíam dificilmente e só mamãe e Benedito, que lidavam com ele, podiam entendê-lo. Passava os dias sentado na antiga poltrona de veludo desbotado e dali só saía para o leito, pois raramente se arriscava ir à sala de jantar e sentar-se à cabeceira da mesa para presidir as refeições. Os poucos passos que dava eram arrastados e sempre se apoiava na bengala e no Benedito. Todas as noites recebia os amigos costumeiros: Dr. Maranhão, Cônego Soares, Lopes Velho, Bulhões, os genros e os filhos. Eram as únicas horas distraídas dos seus longos dias; contavam-lhe novas, davam opiniões sobre os problemas que apareciam e acaloradamente discutiam política. Papai ouvia quase sem replicar; e, quando queria falar, batia com a bengala na cadeira próxima, pois o braço direito ainda se conservava normal. Os outros procuravam auxiliá-lo a encontrar as palavras, a adivinhar-lhe o pensamento, mas quando não o conseguiam, o que acontecia muitas vezes, ele se irritava mais e a boca entortava visivelmente, num ríctus doloroso. Discutiam as conseqüências da lei de 1885. Quando eu ajudava a servir café, água ou alguma tisana, encontrava papai ouvindo os amigos. O Dr. Maranhão, ar pensativo, olhava o teto e dizia:
— Vi hoje um bando de escravos velhos pedindo esmolas na porta da Igreja de São Pedro.
Lopes Velho exaltava-se:
— Vamos mandar esse bando de mendigos para a casa dos abolicionistas; eles que dêem comida e casa para essa gente.
O Cônego Soares replicava:
— Quiseram fazer o bem e praticaram o mal. Quem aceita hoje um homem velho para trabalhar na roça?
O Bulhões tomava a xícara de café de minhas mãos e interrompia:
— Muito obrigado. Não serve para a roça, nem para a cidade. Eis aí o resultado. Mas eu sabia disso, falei desde o princípio.
E olhava papai, que confirmava com a cabeça, penosamente. O Dr. Maranhão falava com voz compungida:
— Causam dó esses coitados andando pela cidade pedindo trabalho; ninguém lhes dá trabalho. Pedem então uma esmola ou um prato de comida. É lastimável. Um pouco mais de açúcar, D. Rosa? Faça o favor.
Outro continuava, nervoso:
— Queriam liberdade, não é? Pois aí a têm. Ei-la. São homens livres, mas que adianta a liberdade quando não há forno?
Fazia uma pausa; depois:
— Este café está delicioso. É aquele café de Guararema? Da colheita de 85?
Eu dizia que sim, enquanto outro continuava com o assunto:
— Não. Que adianta a liberdade quando se tem sessenta anos ou mais? Que fazer com ela? Antes continuassem escravos, O Dr. Maranhão replicava, irônico:
— Continuar escravo até morrer? Trabalhar até não poder mais? Também não.
Eu dava o café para papai; segurava o pires bem perto enquanto ele levava a xícara à boca, vagarosamente. De repente, deixou a xícara no pires e levantou a bengala. Ia falar. Todos ficaram na expectativa, esperando. Levantando o braço direito como se o braço pudesse auxiliá-lo a emitir as sílabas, falou devagar, procurando as palavras:
— Sempre fui... contra a... a... lei de 85. Quando meu irmão Sou... sa... Sou... sa...
O cônego auxiliou:
— Sousa Mendes?
Papai fez sinal que sim e continuou:
— ... me falou, sobre a lei... eu... disse que era e... ener... ener...
Lopes Velho terminou a frase:
— Energicamente?
— Isso, confirmou papai, aliviado.
E a mão trêmula baixou outra vez na xícara. O Dr. Maranhão falou:
— Muitas vezes não se pensa nas conseqüências de um ato; pensa-se irrefletidamente. E os resultados são espantosos. É triste ver um homem trabalhar até setenta anos, sempre escravo, sob o jugo da escravidão, mas também é triste ver esses velhos sem trabalho, sem saber o que fazer de si.
— E quando vier a lei total, como dizem que vem? Milhares de homens vão perambular pelas ruas sem destino, sem ter onde dormir, sem ter o que comer. Então, senhores, veremos o lado mais triste do problema. Por enquanto não é nada.
Protestavam:
— Isso também não. Homens moços terão trabalho. E os braços para a lavoura?
— A lei total não virá tão cedo...
Lopes Velho falou em voz baixa:
— Dizem que o Sousa e Castro já bandeou para o lado dos abolicionistas.
Houve um coro de admiração e protesto:
— Não é possível.
— Não acredito.
— Como soube isso? É boato...
Papai levantou a bengala para falar. Houve um silêncio:
— Eu sa... bia. Não acredi... tei, mas é ver... da... de.
Dizem... que... até que...
O Bulhões interrompia:
— Vai entrar para a Ordem do Rosário?
— Isso, concluiu papai.
Eu ajuntava as xícaras e copos. Voltava lá para dentro e quando mais tarde eles deixavam nossa casa, falando alto, iam comentando a situação pela rua afora. O futuro era incerto e ninguém poderia prever os acontecimentos.
Eu sabia que bandos de homens e mulheres andavam pelas ruas, magros e maltrapilhos, pedindo um canto para ficar ou um meio para ganhar algum dinheiro. Mas nada encontravam; andavam de casa em casa, vivendo de esmolas, famintos e esquálidos. Não sabiam e não podiam viver libertos, estavam habituados, desde crianças, a ser escravos e como tais tratados, tendo quem lhes desse comida, roupa e remédios; e a liberdade, depois de sessenta anos, era-lhes um fardo pesado. Seus ombros velhos e cansados não suportavam o fardo; ficaram como criaturas perdidas numa longa noite, tateando a escuridão e a escuridão estendendo-se cada vez mais diante deles, até o infinito. Corações generosos, davam-lhes esmolas e tratavam deles algum tempo; outros não encontravam ninguém que os socorresse, viviam tremendo de frio e fome nas portas das igrejas, procurando em vão um recanto onde viver e morrer.
Esse era o tema palpitante de todas as reuniões; e todas as noites nossa casa animava-se com o grupo de amigos; às vezes faltava um ou outro.
As noites eram assim animadas mas durante o dia, reinava profunda: quietude no casarão, só interrompida, algumas vezes, pela vozinha fina de Carola que cantava uma romança de Beethoven: Delizia, acompanhada pela professora, lá no fundo do salão. O grupo animado e alegre dos nossos irmãos, sentados à volta da velha mesa de jacarandá da sala de jantar, havia-se desvanecido havia muitos anos. Um por um, tinham partido para seus destinos e o casarão tranqüilo guardava, nos seus recantos e nos seus silêncios, a saudade dos dias idos.
Passamos uma temporada em S. Paulo, e apesar de Leopoldina, os irmãos casados e as cunhadas insistirem com Maria Letícia para levá-la a teatros ou passeios, não os acompanhou uma vez sequer, vivia retraída e só saía para ir à igreja.
Uma tarde, quando estávamos todos reunidos na sala de jantar, ouvimos um carro de boi parar em frente à casa; pensamos que vinha de Guararema trazendo frutas ou café, mas de repente Modesta entrou na sala, muito assustada, as mãos na cabeça:
— Sinhá Baronesa, Sinhá Francisca taí no carro, acho que tá doente.
Levantamo-nos todos e corremos para a porta da rua, Rodolfo, auxiliado por dois escravos da Fazenda Santa Engraça, tirava Francisca Miquelina do carro de boi com todo o cuidado; houve exclamações de susto, gritos, perguntas: "Que aconteceu?"
Francisca Miquelina estava deitada num colchão, branca como o lençol que a cobria, gemendo de dor: havia caído do cavalo e quebrado uma perna. Houve um rebuliço escravos correram para chamar o Dr. Maranhão, enquanto Francisca Miquelina era levada para dentro e colocada em sua antiga cama de solteira; ficou deitada sem se mover, prostrada pela dor. Gente corria pela casa toda; uns foram providenciar, na cozinha, e arranjar tudo o que o médico precisasse; eu fui contar o sucedido a papai que, ouvindo o movimento e não sabendo do que se tratava, batia a bengala com força na cadeira da frente.
E na mesma tarde a perna de Francisca Miquelina foi tratada por dois médicos e colocada entre talas de madeira. A notícia correu célere pela cidade; cunhados, tios e primas, e todos da família vieram visitá-la. Era um entrar e sair do sobrado; primas solícitas mandavam pratinhos de cocada, copinhos de geléia de mocotó feita por elas mesmas, ou levavam as primeiras rosas do ano, em raminhos preparados, com fitinhas à volta. A Baronesa de Sobral apareceu na cadeirinha forrada de veludo verde; contou todas as novidades que sabia. D. Escolástica veio da fazenda em Guaratinguetá apenas para visitar e confortar mamãe que estava atravessando um momento aflitivo.
Maria Letícia resolveu prolongar sua estada em S. Paulo por causa de Francisca Miquelina. "Que Fernão fique por lá, decerto está dando graças a Deus com minha ausência", pensava ela, colérica. E franzia a testa.
Durante alguns meses, Francisca Miquelina ficou em tratamento; Rodolfo ia para a Santa Engraça e vinha de quinze em quinze dias. Os filhos ficaram com ela. Durante sua convalescença conversamos muito. Um dia perguntei-lhe sobre a assombração de Santa Engraça; respondeu-me que ia cada vez pior, mais ousada, mais intrometida. Um mês antes, havia dado uma tapa nas costas de Alexandrina. Eram nove horas da noite e todos já se tinham recolhido; Alexandrina deixou o quarto das crianças e foi acender o pito na cozinha. Toda a casa estava às escuras e, no fogão, apenas algumas brasas. Alexandrina debruçou-se sobre as brasas e quando estava entretida assoprando-as para acender o pito, sentiu um bafo gelado e uma grande tapa nas costas. Assustou-se tanto que deu um grito e começou a correr, deixando o pito queimar-se nas brasas; Francisca Miquelina disse que, como o caso estava cada vez mais grave, Rodolfo mandara vir um padre para benzer a fazenda. O padre percorreu todos os recantos da casa, depois foi ao pomar, ao tanque, ao curral, ao jardim onde as sempre-vivas, as perpétuas e os malmequeres morriam de sede. Depois, mandaram rezar duas missas por alma da defunta Carlotinha; uma na fazenda e outra na Igreja de S. Francisco, em S. Paulo. Em vista disso, a assombração estava mais sossegada e nos últimos dias, antes de Francisca Miquelina vir à cidade, não dera mais sinal de vida, parece que iria ficar tranqüila daí em diante.
Uma noite, Francisca Miquelina estava sofrendo muito, e cansada de estar na mesma posição, sem saber quando ficaria boa, começou a chorar. Maria Letícia sentou-se num lado da cama e eu no outro. Maria Letícia consolou-a:
— Não chore assim, mana. Logo ficará boa.
— Mas estou cansada de sofrer, nem sei como ainda tenho lágrimas. Sofro muito.
Maria Letícia começou a arranjar as cobertas da cama e percebi que ela ia falar alguma cousa. Começou:
— Todos sofremos, Francisca Miquelina. De um modo ou de outro, todos sofremos.
— Não diga isso. O sofrimento não é para todos, parece que tem seus prediletos. Eis o que não compreendo.
— Uns sofrem mais tarde, outros mais cedo, mas todos sofrem. Todos.
Francisca Miquelina levantou a mão num gesto de protesto.
— Você sofre também?
— Também.
— E por quê?
Antes de responder, Maria Letícia levantou-se e deu uma volta pelo quarto para verificar se estávamos sós. Pegou o castiçal de prata e trouxe-o para perto de nós. Depois mandou-me espiar no corredor para ver se estava deserto. Então perguntou em voz baixa:
— Lembras, Francisca Miquelina, no dia. em que fiquei noiva de Fernão?
— Lembro.
— Foi neste quarto que dormíamos juntas, não foi? Você nesta cama perto da sacada, eu ali, e mana Rosa lá do outro lado.
— Isso mesmo.
Maria Letícia fez uma pausa e fixando a chama da vela que dançava como se fosse assoprada pelo vento, continuou:
— Pois nessa noite eu estava cheia de orgulho. Meu Deus! Como eu era orgulhosa! Achava que no mundo tudo era meu porque era bonita, era rica e fora pedida em casamento por Fernão Seixas. Escolhida por ele! Quase arrebentei de orgulho, mana, mas foi meu castigo.
Escutávamos atentamente, Francisca Miquelina ainda com os olhos brilhantes de lágrimas. Maria Letícia tirou com a ponta da unha o espermacete que se acumulava no castiçal e prosseguiu:
— Isso faz dezenove anos e nesses dezenove anos passei por tantos sofrimentos que você não pode saber, nem adivinhar.
— Refere-se ao júri?
— Primeiro a morte da escrava, depois a denúncia, a prisão de Fernão, depois o júri. E se Fernão fosse condenado? Pense um pouco! A culpa seria minha. Minha!
— Seria doloroso.
— Nem me fale. Depois a viagem à Europa que mais parecia uma fuga. Lembra-se, mana Rosa? E pensa que fui feliz nesse tempo que passei na Europa? Pensa?
— Não foi?
— Pergunte a mana Rosa. Fui muito infeliz. Desde aí vivemos sempre meio separados, cada vez mais longe um do outro. Na Europa, Fernão passava semanas viajando, meses mesmo, e eu em Paris com mana Rosa e as crianças. Quando Paulo nasceu, até rezei para morrer. Rezei mesmo...
Procuramos consolá-la; Francisca Miquelina falou:
— Oh! Maria Letícia, você foi sempre tão forte, tão valorosa, não chore...
Maria Letícia chorava, a cabeça entre as mãos; depois continuou quase sorrindo:
— Não estou chorando. Lembrei-me até de uma frase dita por um rei, na literatura clássica que M. Jean nos ensinava. Vocês lembram? "Naquele mesmo dia, entre as tormentas d'alma, implorei a Morte, mas a Morte não veio para aplacar-me a ânsia desabrida."
— Lembro, sim. Como eu custava a decorar e você decorava tudo com tanta facilidade...
— E eu? Eu então não conseguia decorar nada.
Maria Letícia continuou:
— Desejei tanto morrer, mas não morri. Não agüentava mais viver assim... com a indiferença dele. Tratava-me bem, com delicadeza, mas com a maior indiferença. Era como se eu não fosse alguém, compreende? Como se eu fosse uma boneca; era preciso ter cuidado porque era frágil. Estava escrito no pacote: Fragile. Mas era como se eu não fosse gente. Sorriu outra vez:
— Na Europa, viveu a grande vida. Freqüentou teatros, festas, teve amigos, teve carruagens e passeava a cavalo todos os dias. Eu não fui a lugar nenhum.
— Mas ele me disse uma vez que você não queria passear, ir a teatros, não queria viajar por outros países, nada...
Maria Letícia explicou:
— Ele me convidava algumas vezes, mas a gente sente quando o convite é sincero ou não. E eu sentia que ele não queria que eu aceitasse...
— Louvado Deus! Protestei:
— Oh! Maria Letícia, não diga isso...
— Como não? Ainda afirmo mais: Fernão acreditou que eu tivesse dado a ordem para dar na escrava até matar...
Francisca Miquelina e eu protestamos com energia. Ela continuou:
— Eu sei que foram quase oito anos de desilusões. Na Europa passeava e ceava com mulheres...
— Será possível?
— Ora, tenho certeza. Por mais de uma vez li os bilhetes que elas punham no bolso dele... lencinhos perfumados, flores. Quando regressamos e compareci perante o Tribunal, pensei que depois fosse feliz, depois que tudo tivesse passado. Pensava então: Agora sim, vou ser feliz outra vez, tão feliz, como quando nos casamos.
Fez outra pausa e deu um piparote na chama da vela. Continuou:
— Então aconteceu o pior; lembra-se de que vim a S. Paulo para ter a Ernestina? Passei aqui quatro meses porque estava muito fraca e doente, e, quando voltei a Santarém, encontrei Fernão vivendo com Estefânia, filha do feitor Belisário, Mana Rosa sabe de tudo.
Francisca Miquelina afogou um grito de surpresa com a mão sobre a boca:
— Maria Letícia! Fernão?
— Sim, senhora e em minha própria casa...
— Pobre da mana!
— Pobre de mim! O que sofri e sofro. Já teve um filho dele e Fernão faz tudo como se eu não estivesse lá. Na fazenda, todos sabem...
Francisca Miquelina disse com um leve tom de triunfo na voz:
— Ah! Isso Rodolfo nunca fez. Nunca trouxe Ambrosina para dentro de casa, nunca.
Houve uma pausa breve e, de repente, Maria Letícia baixou a cabeça e começou a chorar, escondendo o rosto entre as mãos. Ao leve clarão da vela, vimos sobre a cabeça inclinada os primeiros fios brancos. Muito de leve, afaguei-lhe o braço:
— Não chore assim, tudo há de acabar. Entre soluços, ela respondeu:
— Tenho uma vontade de morrer... Francisca Miquelina falou:
— Eu também já tive essa vontade, mas agora não. Rodolfo é muito bom. Tem lá essa fraqueza pela Ambrosina, mas é bom. Não viu agora na minha doença como ele tem sido dedicado?
Olhei Francisca Miquelina duvidando das suas palavras; ela desviou o olhar e fixou o teto. Maria Letícia, admirada, levantou a cabeça e encarou a irmã enquanto enxugava as lágrimas:
— Mas... ele... Rodolfo deixou a escrava?
— Não. Creio que nem deixará, mas isso não impede que seja bom para mim. Um bom marido, dedicado, amável.
— Ah!
— E os filhos da Ambrosina brincam com os meus todos os dias. Brincam juntos.
— E você, deixa, mana?
— Por que não? Eles até são bonzinhos. Que é que tem brincarem juntos?
Durante alguns instantes ficamos silenciosas olhando a chama da vela; Francisca Miquelina tinha nos lábios um calmo sorriso. Maria Letícia assoava-se e olhava de soslaio para a irmã, quase não acreditando no que ouvira. Francisca Miquelina tornou a falar:
— Daqui a uns anos você vai mudar também. Vai achar tudo natural e vai deixar seus filhos brincarem com os da Estefânia.
Maria Letícia fez um gesto de revolta:
— Isso nunca. Nunca perdoarei.
Francisca Miquelina deu uma risadinha:
— Um dia você vai contar-me isso! A gente muda tanto neste mundo. Não se lembra quando me disse aqui nesta casa que preferia morrer a suportar a situação que eu suportava?
Não se lembra? Ou já esqueceu? Não se lembra, mana Rosa?
— Sim, lembro-me.
Maria Letícia suspirou:
— Lembro-me, sim. Nunca pensei que fosse acontecer o mesmo comigo.
- — Nunca se deve dizer: Desta água não beberei... Humilhada, Maria Letícia ouviu em silêncio. Francisca Miquelina tornou a falar:
— A gente muda muito! Hoje me considero feliz, pois vejo outras sofrerem mais.
Suspirou, depois continuou:
— Lembra-se daquele soneto que M. Jean traduziu do inglês para nós? Nós achávamos muito bonito e decoramos logo. Começava assim: Sem vós, ó sol dos dias passageiros, triste inverno tem sido minha vida. ..
Maria Letícia sorriu tristemente:
— Como não hei de me lembrar? Como a gente muda com o tempo. Achávamos que a vida seria sempre assim, como um sonho.
Fitei a chama da vela com um olhar parado e continuei o soneto:
— Não me encantam os lírios de alvo manto, nem a profunda púrpura das rosas... E termina assim: E com elas eu fico à vossa espera, sentindo o inverno em plena primavera...
Riram ambas. Maria Letícia falou:
— Não se esqueceu, mana Rosa? Mana Rosa também gosta de poesia?
— Por que não? Por que sou velha e não me casei?
Maria Letícia disse:
— Não. Olhe, eu estou assim como o soneto: Sentindo o inverno em plena primavera...
Levantei-me dizendo:
— É tarde, Francisca Miquelina. Vou mandar a mucama aqui para tratar de você. Quer alguma cousa?
— Obrigada. Não quero nada.
Maria Letícia também se levantou. Francisca Miquelina disse:
— Olhe, Maria Letícia, vamos esquecer nossos dissabores. A vida não é tão ingrata assim, não pense mais em morrer...
— Não pensarei mais. Boa noite, durma bem.
— Boa noite.
Deixamos o quarto. Os olhos de Francisca Miquelina refletiam felicidade e paz. Pensei: Será que ela ficou contente de saber que Maria Letícia está sofrendo do mesmo mal? Parece que ficou aliviada, principalmente quando disse: "Não diga desta água não beberei". Tinha triunfo no olhar. Será?... Maria Letícia foi andando pelo corredor escuro e dizendo para si mesma: Sem vós, ó sol dos dias passageiros, triste inverno tem sido minha vida... Coitada, pensei com meus botões.
Como o fogo que diminui de intensidade e vai morrendo aos poucos por falta de combustível, só deixando brasas que queimam inutilmente, assim a paixão de Fernão Seixas pela Estefânia foi diminuindo como chama sem alimento. Foi isso que eu pensei quando, certo dia, chegou a S. Paulo, queixando-se da solidão de Santarém e da falta que sentia de Maria Letícia e das crianças. A esposa recebeu-o apática, indiferente.
Começamos os preparativos para voltar à fazenda. Às ocultas Fernão mandou vir do Rio de Janeiro um medalhão de ouro cravejado de pérolas para dar a Maria Letícia no aniversário de casamento. Foi nessa ocasião que tivemos notícias da chegada, ao Rio de Janeiro, de mano Inácio com a mulher. Alvoroçados por conhecermos a estrangeira, adiamos a viagem a Santarém e reunimo-nos para esperá-la. O casal chegou a S. Paulo dias depois.
Mano Inácio, que passara na Europa quase vinte anos, sem vir ao Brasil, parecia desambientado, como se fosse ele o estrangeiro; a mulher, ainda muito jovem, começou logo a adaptar-se ao meio. A atmosfera continuava carregada em nossa casa; numa ala do sobrado, papai reclamava e batia a bengala no chão ou na cadeira; na outra ala, Francisca Miquelina, ainda na cama, queixava-se, o rosto muito pálido e os lábios exangues, contrastando com os cabelos negros. Mamãe e papai receberam a estrangeira friamente, quase hostilmente. Tratavam-na com cerimônia e reserva que colocavam a moça a uma distância quase intransponível. Carmela falava corretamente o francês, e embora todos em casa falassem essa língua, teimavam na sua presença em só se exprimir em português.
Mano Inácio esquecera muitas palavras, e pedia a Carola que o ensinasse a falar; todos os dias, priminha Carola chamava mano Inácio e a mulher; fazia-os sentarem-se diante dela no escritório de papai e mandava-os falar. Da sala, eu ouvia a vozinha fina de Carola:
— Agora diga: Fui à fazenda e voltei em duas horas e meia sem me fatigar...
— Andai ed voltai in due ori...
— Não. Em português. Por-tu-guês.
E Carola batia uma régua na mesa, convencida da sua autoridade:
— Diga!
— Fui e voltei dalla campagna... A régua batia outra vez:
— Fazenda! Você falou campagna...
— Fa-zen-da.
— Bem. Em duas horas e meia sem me fatigar.
— In due ori in mezzo senza a affatigar...
— Nossa Senhora da Boa Morte! Está falando italiano! Batia a régua com mais força; mano Inácio intervinha em francês:
— Diga uma frase mais curta...
— Fale português, primo. Quer aprender ou não?
— Quero sim...
Os dois esforçavam-se. Carola tornava a pronunciar bem devagar:
— O dia está muito bonito e o sol muito quente.
— O dia stá molto belo...
— Muito bonito.
— Molto bonito.
— Fale direito. Português.
— Bonito ed il sole molto caldo...
— Credo! É quente, Carmela.
— Quente. Oh! Cesí três difficile...
— Não é difficile. Leia aqui:
— II sole molto caldo.
— Não é caldo, Carmela. Quente.
— Quente.
— Che graciotta!
— Não acho nada de graciotta. Estamos em aula de português.
A régua subia e descia repetidas vezes. Mano Inácio repetia a lição; pronunciava as palavras erradamente. Chamava pátio de patio e ninguém entendia. Um horror. Muito tempo depois, o gelo começou a derreter entre nossa família e a estrangeira.
Voltamos de novo a Santarém. Fernão recebeu boas notícias dos filhos mais velhos que estudavam na Inglaterra, num grande colégio. Passou-se o aniversário de casamento e Maria Letícia recebeu o medalhão com calma indiferença.
Naquele ano, houve uma epidemia de febre em Santarém; ninguém descobriu a causa. Desconfiou-se de que as águas do ribeirão vinham contaminadas desde as nascentes, no alto da serra, mas nada ficou provado. A primeira vítima foi um escravo velho que, malgrado a lei que o libertara, não quisera deixar a fazenda por não ter para onde ir; prestava serviço batendo feijão e socando farinha.
Começou com febre alta, depois sua temperatura estacionou durante alguns dias, e afinal morreu; o médico que visitava Santarém todos os meses, foi chamado e apenas constatou a morte do negro; ao mesmo tempo, dois companheiros do escravo caíram com febre. No dia seguinte, um casal adoeceu também; então o pânico apoderou-se de todos.
O médico procurou atalhar o mal por todos os meios ao seu alcance, mas a epidemia continuava sem lhe dar tréguas, e ao fim de uma semana quatro escravos haviam morrido. Todas as medidas foram tomadas para impedir a propagação do mal; Maria Letícia não deixava as filhas saírem de casa, não comiam frutas e eu fervia toda a água que devíamos beber. O ar da fazenda parecia tomado pela peste; muitos colchões foram queimados, as senzalas lavadas; certos objetos atirados ao rio; mas a desolação continuava a imperar.
E ninguém descobria a origem do mal. Entre os escravos, havia alguns feiticeiros — uma dezena de negros e negras que não se misturavam com os outros; respeitados e temidos por suas artes de mandinga e por suas magias, ocupavam senzalas separadas das outras e mesmo na roça, capinando ou plantando, semeando ou colhendo, se mantinham afastados dos demais. Fernão simulava ignorar-lhes as bruxarias e os encontros que realizavam na mata, em dias determinados.
Um dia, durante a epidemia, Ricardo, o filho da cozinheira, disse que iria à mata, ao lugar onde os feiticeiros se reuniam e assistiria, escondido, aos bruxedos que eles iam fazer para espantar os demônios da peste. Ricardo saiu de casa, tomando o caminho do pomar; deu uma grande volta e alcançou a mata lá pelo lado do brejo. Entrou sorrateiramente pelo bosque adentro e dirigiu-se para uma clareira, apontada como o lugar preferido pelos feiticeiros. Subiu numa perobeira gigante, ocultou-se lá em cima entre os galhos fechados. Caiu a noite e tudo silenciou; apenas um ou outro bicho passava entre as árvores, estalando as folhas secas do chão, uma ou outra ave soltava um silvo agudo entre a ramagem escura; encarapitado num galho, Ricardo esperava, atento e excitado pela curiosidade. De repente, ouviu vozes que se aproximavam. Acertara... era ali a macumba; apesar de nada ver através da espessura da folhagem, ficou imóvel, à escuta.
Os negros foram chegando e reunindo-se à volta da clareira, iluminados pelos raios do luar e por duas ou três achas acesas que alguns deles traziam. Conversavam em sussurros, cautelosos. Ricardo desceu um ou dois galhos para poder espreitar alguma cousa e viu-os; eram todos velhos africanos, homens e mulheres, sentados em semicírculo; trocavam uma ou outra frase ininteligível esperando o momento de dar início à bruxaria a fim de espantar o espírito do mal que trouxera febres a Santarém. Apesar da distância e da escuridão, Ricardo conheceu alguns escravos; lá estavam o Galdino Angola, Júlia Baiana, Fidêncio Mina. Galdino Angola e Júlia Baiana pareciam os chefes; de pé, no meio da clareira, determinavam os lugares onde os recém-chegados deviam ficar. Uns doze já lá estavam quando teve início a macumba. Galdino Angola, no meio da roda, começou a entoar um canto monótono acompanhando-o de gestos esquisitos e batendo o pé no chão entre palavras de nagô. Os que estavam sentados "no chão, com as pernas cruzadas, inclinavam-se para a frente e levantavam os braços para o alto numa invocação, repetindo as palavras e depois batendo com força no peito: Tum — tum -tum.
Interessado, Ricardo debruçou-se mais e ficou assombrado. Júlia Baiana levantara-se e principiara uma dança no meio da roda; parecia uma serpente fazendo trejeitos; inclinava-se para a frente e para trás, até quase tocar a cabeça no chão, soltando gritos guturais que não pareciam sons humanos:
Eh! Eh! Eh! Ricardo sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha; não era a Júlia Baiana que cantava, era outro espírito no corpo dela. Afinal, ela deu um grito estridente e caiu de borco no chão, estrebuchando. Galdino Angola parou de cantar e todos se entreolharam. Que seria? Então Júlia Baiana levantou-se, assustada, e olhou à volta com expressão de pânico, de pavor. Houve cochichos; depois Galdino Angola disse, naquela sua fala extravagante de negro velho:
— Não pudemo fazê nossa reza hoje. Júlia Baiana viu gente estranha aqui perto. Vamo, companhero. Vamo embora.
Ricardo ouviu-o e viu quando todos se levantaram e com as achas no alto da cabeça começaram a procurar, entre as moitas, quem era o ousado que se atrevera a penetrar no mundo da bruxaria. Estremeceu. Como podiam saber que ele estava ali? Então eles tinham mesmo parte com o demo. Tremendo, procurou conservar-se imóvel, quase sem respirar, certo de que, se o descobrissem, seria morto no mesmo instante. Nada encontrando, mas cientes de estarem sendo vigiados, os feiticeiros começaram a dispersar-se pela mata afora, coléricos e revoltados. Olhavam para trás, levantavam os braços para a lua cheia e faziam gestos amaldiçoando o intruso.
Ricardo passou a noite toda em cima da árvore, receando ser descoberto se descesse. Só no dia seguinte, e já dia claro, apareceu na cozinha da casa grande, assustado e sonolento. Contou-me tudo o que presenciara, trêmulo de medo. Gabriela que estava fazendo café, olhou firmemente o filho e ali mesmo, perto de mim, deu-lhe dois tabefes bem dados e mandou-o socar arroz. Vagaroso, ele se dirigiu ao pilão. O papagaio gritou do alto do poleiro: Soca, Ricardo.
E a epidemia continuou em Santarém.
Fernão andava alarmado; tornou-se irascível, nervoso, revelando seu temperamento irrequieto. Saía a cavalo bem cedo procurando descobrir a causa da epidemia; percorria o ribeirão, os cafezais, as matas. Deu ordens para suspenderem a moagem de cana, enquanto perdurasse o surto da febre. Quando entrava em casa para tomar as refeições, sentava-se à mesa, contrariado, a testa cheia de rugas, maldizendo-se, receoso de que as meninas apanhassem a febre; empurrava o prato sem tocá-lo. À tarde, saía outra vez, em galopadas furiosas, aborrecido e infeliz. Consultava o médico, perguntava, queria saber; mas o médico, silencioso e cabisbaixo, tirava do bolso a caixinha de rapé, onde havia a figura de uma dançarina, tomava uma pitada, aspirava com força e sacudia os ombros num gesto resignado de ignorância.
Depois ficavam ambos quietos e imóveis, olhando o sol amarelado que brilhava em Santarém e fazia com que as águas do ribeirão, através da distância, tivessem enganosas cintilações de prata líquida.
Maria Letícia continuou estranhamente calma; proibiu as filhas de saírem, tomou enérgicas providências para manter a ordem, e resolveu ir ela própria levar algum conforto aos escravos convalescentes. Penetrou, então, num mundo até então desconhecido para ela; começou a visitar as senzalas todos os dias, acompanhada por mim e por Modesta, que ia atrás levando a cesta carregada de garrafas de leite, pacotes de araruta e medicamentos. Parece que sentia prazer em enfrentar a febre, parecia querer sentir o ar carregado e pestilento e apanhar a moléstia. Dizia-me que era profundamente infeliz e achava que sua vida fracassara desde o casamento. Por mais que eu lhe dissesse o contrário, não se convencia. Dizia que só o primeiro ano de casamento fora realmente feliz, mas passara com rapidez e quase não deixara vestígios. Quando a escrava Inocência morreu, imaginava que tudo fosse esquecido logo e seu marido continuasse como antes, mas se enganara. Fernão transformara-se, era outro homem. Até agora, vinte anos depois, ainda pensava muitas vezes consigo mesmo se o marido acreditara realmente que ela dera a bárbara ordem.
Não compreendia como Fernão podia acreditar nisso e dizia que, durante horas inteiras, pensava na desdita que a acompanhava. Via tudo sombrio à sua volta, tristemente sombrio. Por onde se voltasse, a sombra seguia. Sabia que nunca poderia ser feliz e sua desgraça culminaria com a humilhação sofrida por causa de Estefânia. Era deprimente sua vida, profundamente deprimente. Saber e fingir ignorar um fato que saltava aos olhos, sabido de toda a fazenda. Disse-me uma noite que, se apanhasse a febre e morresse, não sentiria a morte, seria como a libertação depois de anos de cativeiro. Quantas vezes desejara a morte? Nem a lembrança dos filhos lhe arrefecia o desejo de morrer. Suas belas ilusões haviam-se desvanecido no ar como fumaça; tinha o amor dos filhos, mas isso não bastava. Os mais velhos já haviam deixado o ninho e as meninas, ainda que bonitas e fortes, não lhe bastavam. Ansiava por outro afeto, como a planta por água. Comparava-se a uma flor em rico vaso de cristal; sem trato, murchava dia a dia e o afeto que seria para ela como a água pura para a flor, o marido dava-o a uma mísera e ignorante cabocla. Como a odiava! Nunca pensou que pudesse odiar assim com tal intensidade, com tal força.
Maria Letícia sempre gostara de fazer comparações; desde menina, quando fazia composições na aula de literatura, escrevia imagens poéticas que a professora elogiava. Disse-me nessa ocasião que sua vida partira-se com a morte de Inocência e ninguém poderia consertá-la; era como o piano das primas Sousa Mendes: desde que uns negros descuidados o haviam deixado tombar na ladeira, nenhum afinador conseguira dar-lhe o som antigo. E pressentia que nunca mais as cousas voltariam à normalidade. Seria um castigo do céu para seu orgulho de outros tempos? Não merecia tanto. Sua vida era como a morte longa, morria cada dia um pouquinho, como a flor sem água...
Resolveu contrair a febre e morrer. Era uma idéia doentia, mas um lenitivo. Penetrava nas senzalas, onde a recebiam como a uma rainha; falava com os doentes, indagava dos remédios, distribuía os pacotes e o leite. Os negros, reverentes, postavam-se à sua volta, comovidos e agradecidos. Levantavam os braços pedindo a bênção do céu para Sinhazinha tão boa, tão caridosa. Maria Letícia começou a ver as cousas que nunca vira antes. Muitos moleques tinham os pés inchados e andavam com dificuldade; mancavam, andavam aos pulos. Indagou a razão e responderam-lhe com evasivas, quase sempre a mesma explicação: bicho-de-pé inflamado. Um dia, mandou um dos moleques à casa grande para ser examinado; o negrinho chegou assustado, os olhos muito abertos. Modesta perguntou:
— Lavou os pé, Simplício? Sinhá vai examina ocê.
O moleque disse que sim, mas Modesta esfregou-lhe os pés de novo. Quando Maria Letícia e eu nos curvamos para examiná-lo, vimos tratar-se realmente de bicho-de-pé, mas em grande quantidade; sob a pele, havia cavernas profundas, sujeitas a infecção de um momento para outro. Com cuidado e paciência, tiramos os bichos, um por um, enquanto Modesta segurava Simplício que gritava e estorcia-se, pedindo para deixar assim mesmo, pois preferia ter os pés inchados. Com o dedal, Modesta raspou depois a cal da parede e encheu os buraquinhos deixados pelos bichos; disse que era o melhor remédio para evitar ferida braba. Em outro dia, vimos um menino com um enorme pelote na cabeça; parecia tumor. Tratavam havia muito com ervas fervidas e folhas pisadas, sem melhora; pelo contrário, cada vez mais crescia. Mandamo-lo para a casa grande a fim de ser examinado no dia da visita do médico. Quando este viu o calombo, tratou de rasgá-lo: não passava de um berne, ali localizado havia meses e desenvolvendo-se ativamente. Seguramos a cabeça do menino para auxiliar o médico. Como era possível tal cousa? Um bicho asqueroso a desenvolver-se na cabeça de uma criança? Maria Letícia nunca imaginara nada semelhante. E então uma procissão de misérias passou-lhe pela mente angustiada; falou-me no velho trôpego, arrastando-se pela neve, em Paris; naquela noite longínqua em que o negro cego que nunca mais vira o sol, nem as flores, nem céu azul, fora a S. Paulo consultar um médico; nos moleques de pés inchados e disformes que andavam aos pulos e em todas as tristezas que presenciara. Encontrava, afinal, uma evasão para as suas próprias torturas; dali por diante, disse-me, iria dedicar-se a minorar o sofrimento alheio, começando pelos seus escravos. Em suas visitas, vira cobertas rotas, colchões gastos e fétidos; verificara também que à falta de travesseiros, a maioria dos negros dormia com a cabeça apoiada sobre os braços.
O que mais a impressionou, porém, foi assistir ao almoço das crianças nas senzalas; antes que depusessem no terreiro o gamelão cheio de feijão com angu, misturados numa só massa amarelada e escura, os molecotes já o rodeavam erguendo os bracinhos e gritando com satisfação; e, quando os viu comer servindo-se das mãos, que avançavam com avidez para a comida insossa, sentiu náuseas e comparou-os a porcos. Então era assim que se alimentavam os filhos de seus escravos? Como animais sujos e irracionais? Não, nunca pudera imaginar tal cousa. Olhou-os mais uma vez. Sentados à volta do gamelão, os negrinhos levavam a comida à boca com a mão direita, em movimentos seguidos e rápidos a fim de não perder tempo, conservando a mão esquerda cheia de comida, para o fim. As mãozinhas iam e vinham com velocidade e aquela comida era empurrada, forçada, jogada pela garganta abaixo, sem tempo sequer para ser mastigada, do contrário os outros acabariam com a gamela e aquele que perdesse tempo em mastigar, ficaria com fome. Fascinada, Maria Letícia olhou de novo, sem poder acreditar. Em poucos segundos a comida desapareceu; quando nada mais restava no fundo da gamela, principiaram eles a mastigar vagarosamente a comida guardada desde o começo na mão esquerda. Mas era tão pouco o que cabia naquelas mãozinhas tão pequenas! Insatisfeitos, sujos e magros, espalharam-se pelo terreiro da senzala; à distância, mais se lhes destacavam as barrigas salientes nos corpos mirrados. Alguns deitaram-se na terra batida, e ficaram com a barriga exposta ao sol, rolando no chão, como porquinhos, nada mais que porcos. Maria Letícia impressionou-se; naquele mesmo dia deu ordens para que a comida fosse aumentada, para que comessem com colher e mandou fazer farta distribuição de bananas e laranjas nas senzalas. Os feitores protestaram, indignados: "Negros não precisam de frutas. E onde iriam encontrar frutas para mais de quinhentos escravos?" Mas as frutas foram distribuídas.
Alguns dias depois fomos de novo ver os molecotes comer. Continuavam a comer com as mãos; algumas colheres haviam desaparecido, outras caíam dependuradas de suas cinturas, como enfeites. Estavam deformadas, tortas, quebradas; serviam para fazer montes de terra da barranca do rio, cavoucar o chão ou outras cousas, menos para comer. E apesar de ser o dobro, a comida parecia sempre pouca, pois levantaram-se depois de esvaziada a gamela e foram mastigar a comida da mão esquerda, os olhos arregalados, com cara de fome.
Ouvimos dizer por Modesta que os negros murmuravam: "Enquanto não vié um padre benzê Santarém, as febre continuam a matá gente". Maria Letícia mandou buscar um padre na cidade próxima; antes do dia designado, avisou os escravos que haveria batizados e casamentos nesse dia; aqueles que viviam amancebados deviam casar-se, e os que não haviam sido batizados, deviam batizar-se. Houve grande movimento em Santarém. Dias antes, muitos receberam roupas novas e prepararam-se para o dia esperado. Ricardo, filho da Gabriela, disse que queria casar-se com Tição, a negrinha que auxiliava as passadeiras; ganhou roupa, nova também. Armamos um altar no fundo do galpão, com velas acesas em altos castiçais e um grande Cristo de ônix no fundo, contra uma alva toalha de crochê. Aos lados, colocamos jarras azuis cheias de goivos e sempre-vivas, as únicas flores existentes na ocasião. Não era a primeira vez que um padre visitava Santarém, mas sempre que isto acontecia os escravos ficavam excitados e tagarelas; para eles a visita de um padre constituía um acontecimento inolvidável. No dia da vinda do sacerdote, logo de manhã bem cedo, ainda bem escuro, toda a fazenda se movimentou; por toda a parte, os negros limpos e bem vestidos falavam e moviam-se. Um trole fora buscar o padre na estação e Maria Letícia e eu entramos na sala de jantar para ver se nada faltava à mesa do café. Ouvimos a voz da Gabriela falando com o filho na cozinha:
— Ricardo, hoje é o dia do seu casamento; ocê lavô os pé, nego?
Não ouvindo resposta, a voz continuou:
— Vá lavá as oreia também. Anda. E bem lavado!
Ricardo saiu assobiando lá para os lados do ribeirão.
Ouviu-se ainda a voz de Gabriela, num tom mais baixo:
— Lave os suvaco também...
Maria Letícia olhou para mim e sorriu. O assobio de Ricardo perdeu-se na beira do rio. Voltou de lá com a cara alumiando, as orelhas reluzentes salientando-se na carapinha armada, e já de roupa nova. Estava tomando café na cozinha quando a noiva entrou. Tição tinha treze anos, a pele negríssima, os dentes tão alvos que ofuscavam. Estava com um vestido novo que eu havia feito para ela, branco, e com um ramo de saias de Maria entre as mãos, a única flor encontrada em toda a redondeza.
Acompanhado por todos nós, o padre visitou as senzalas, deu bênção aos doentes, coragem aos desanimados e alegria aos tristes. Dirigiu-se depois ao altar, onde celebrou missa. Após o café, voltou ao galpão e celebrou casamentos e batizados. Ricardo e Tição foram os primeiros; muito acanhados, aproximaram-se do altar, olhos baixos e medrosos. Eu fazia sinal a Tição que levantasse a cabeça para ouvir o padre; mas ela inclinava cada vez mais a cabeça para a frente e olhava o chão, obstinada. Quando iam saindo, ela tropeçou num dos bancos do galpão e quase caiu; as saias de Maria pendiam das suas mãos grossas, completamente murchas. Depois da cerimônia, houve um almoço especial para todos os escravos. Não houve batuque aquela noite por causa dos doentes, mas fez-se farta distribuição de frutas e doces para todos. À tarde, o trole levou o padre à estação e Santarém retornou ao silêncio.
Uma semana depois, tendo diminuído o surto da epidemia, os escravos recomeçaram a trabalhar; aos poucos a fazenda retomava o aspecto habitual e os negros, de dentro ou do eito, entregues de novo às suas tarefas, já quase não se lembravam do perigo passado.
Um dia, levamos um susto horrível. Chegou aos nossos ouvidos que havia um quilombo na Serra, não muito longe da fazenda. Negros fugidos acoitavam-se lá e viviam saqueando as fazendas vizinhas. Fernão estava no Rio de Janeiro há mais de uma semana e tio António andava de visita a S. Paulo.
Maria Letícia não teve medo; mandou chamar os feitores de mais confiança e todos confirmaram a notícia. Um deles saíra pela mata para verificar e ouvira gritos mais de uma vez e vira fogueiras na beira do rio, no sopé de serra. Pensamos na melhor forma de agir, caso os negros aparecessem em Santarém; Maria Letícia disse que não poderíamos contar com os próprios escravos, pois poderiam de um momento para outro juntar-se aos quilombolas. Lembrei que poderíamos mandar um escravo pedir socorro nas fazendas vizinhas, mas ela não quis e serenamente ficou esperando os acontecimentos; mandou dois escravos postarem-se de sentinela na porteira, dia e noite. Tomou uma das carabinas dependuradas na parede do escritório, examinou-a, viu se nada faltava e esperou. Aprendera a atirar desde moça na fazenda de papai e mais de uma vez matara um pássaro em pleno vôo. Era a melhor atiradora da família. Proibiu a professora e as meninas de se afastarem de casa, e esperou, sem saber ainda o que faria se os negros viessem. Um pouco assustada, tirei outra carabina de Fernão da parede e esperei. Estávamos prontas para qualquer eventualidade. Uma noite, cerca das dez horas, não havíamos dormido ainda, quando Ricardo chegou, assustadíssimo; estava de sentinela na porteira quando pressentiu um bando de negros dirigir-se à casa grande. Vinham protegidos pela escuridão; ele correra na frente para avisar que chegariam de um momento para outro. A professora apareceu na porta do quarto, torcendo as mãos e chorando. Maria Letícia deu ordens rápidas: Ricardo que fosse chamar os feitores e trouxessem foices. Repreendeu a professora, proibindo-a de sair do quarto das meninas, e tirando a carabina da parede examinou-a mais uma vez, pálida de susto. Tomei a outra carabina e ela pediu-me que ficasse no quarto com as crianças; disse-lhe que não, que onde ela estivesse, também eu estaria. Precisávamos enfrentar a situação da melhor forma possível; os negros deviam saber que Fernão viajara e tio António estava ausente. Modesta, ao nosso lado, não se afastou; Gabriela veio da cozinha com um grande facão oculto entre as saias.
O silêncio era horrível e penoso; por mais que quiséssemos ouvir algum ruído, nada se ouvia. Minutos mais tarde, a porta da cozinha foi arranhada de leve. Antes de tirar a tranca, Gabriela perguntou quem era. Eram os feitores acompanhados de Ricardo. Entraram e dirigiram-se à sala de jantar, onde estávamos de pé, Maria Letícia com uma das mãos apoiada na carabina, iluminada pela luz avermelhada do lampião. Deu ordens; ninguém devia aparecer enquanto ela não chamasse; vigiassem as portas dos fundos e o alpendre do lado. Os feitores olharam-na, estupefatos. "Como? Sinhá Letícia ia aparecer sozinha diante dos quilombolas? Podiam até desrespeitá-la, eram negros perigosos. Negros fugidos." Modesta choramingou:
— Aceite o conseio de uma nega veia, Sinhazinha. Não apareça diante dos quilombola. Sinhá Rosa, diga pra ela...
Estavam trocando essas frases, quando ouvimos um sussurro de vozes no jardim da frente é uma voz rouca chamar:
— Ó de casa!
Meu coração parou. Todos se olharam, apavorados. Maria Letícia encaminhou-se, resoluta, para a sala da frente e disse a Modesta:
— Leve o lampião bem alto.
E voltando-se para mim que estava mais branca que um cadáver:
— Quer vir comigo, mana Rosa?
Os outros olhavam-na sem nada dizer. Ricardo tirou a tranca da porta da frente com mãos trêmulas; Maria Letícia apareceu no alpendre, iluminada pelo lampião que Modesta levantava bem alto, a carabina entre as mãos. Olhei seu rosto pequeno e branco; sobressaía no halo de luz e parecia uma flor esmaecida. Estava intensamente pálida. A princípio, não vimos nada, depois vislumbramos três vultos escuros que deram uns passos à frente e ficaram sob o foco do lampião Eram horrendos e maltrapilhos. A voz clara de Maria Letícia vibrou na noite escura:
— Que querem.na fazenda de Santarém?
Houve um breve silêncio; admirados talvez de ver a intrepidez e a calma daquela mulher que não os temia, ficaram silenciosos. Depois um deles, falou hesitante:
— Sinhá, somo pobre nego que não temo o que comê. Viemo pedi pra Sinhá um poco de comida. Tamo com fome.
— Quantos são?
— Somo vinte, Sinhá.
Outros vultos foram aparecendo também sob o foco de luz; ela tornou a perguntar serenamente:
— E por que fugiram?
— Muito sofrimento, Sinhá. Patrão ruim como cobra. Nóis viemo de Barrero; esses daqui viero de uma fazenda pertinho de S. Paulo.
Um outro deu um passo à frente e falou:
— Tenho a marca das pancadas que recebi, Sinhá. Quase morri.
Outro também falou:
— Puseram nóis num formigueiro pra diverti as visita.
Despois que nóis tava bem mordido, puseram água e salmora por cima. E as visita dava risada com nossos grito. Ficamo inteirinho mordido. Diziam que era pra nóis não fugi mais.
Maria Letícia levantou as mãos como a pedir silêncio e disse aos negros que esperassem. Chamou Gabriela e mandou arranjar um saco de arroz, outro de feijão, café e açúcar. Mandou cortar grandes nacos de toucinho dependurado nas traves da despensa; ordenou que trouxessem farinha também. Enquanto esperava, ficou de pé à porta do alpendre, olhando os negros esparsos no chão do terreiro, em atitude humilde.
Quando viram Ricardo trazer os sacos de mantimentos e depositar aos pés deles, começaram a agradecer e a levantar as mãos para o céu:
— Deus abençoe a Sinhazinha, seus fio e sua famia intera...
Ela mandou buscar sal. Jogaram os sacos nas costas, dispostos a partir. Então um deles, o mais velho talvez, com a carapinha quase toda branca, pôs um joelho em terra e deu uma espécie de bênção a Maria Letícia, chorando de contentamento. Ouvimos sua voz rouca dizer alto depois:
— Deus abençoe vossuncê.
Ficamos de pé, vendo-os partir a caminho da serra. Ela apenas disse:
— Estavam famintos, os pobres.
Quando Fernão chegou, dois dias depois, alarmou-se: "Então ela protegera negros fugidos? Nunca devia ter feito isso. Afugentasse-os de Santarém à bala, para isso havia uma gaveta cheia de cartuchos".
Maria Letícia olhou-o sem nada dizer. Ele interpelou-a:
— Tem idéias abolicionistas? Pretende proteger sempre os escravos?
— Sempre, respondeu ela. Tenho horror à escravidão.
Ele fitou-a, incrédulo. Olhei também para ela quando Fernão tornou a perguntar:
— Já pensou que ficaremos pobres se vier a abolição? Ela correspondeu ao olhar com firmeza:
— Já. E prefiro a pobreza.
Fernão virou-lhe as costas, furioso; e nada mais disseram a respeito. Foi nesse dia que percebi que ela também era abolicionista, mas não trocamos uma palavra sobre isso.
No dia seguinte, Modesta chegou-se de manso a Maria Letícia e disse em voz baixa:
— Sinhá, a Estefânia tá com a febre.
Maria Letícia nada disse e eu fingi não ter ouvido. Creio que Maria Letícia se sentiu feliz com a notícia. Depois de uns minutos, perguntou:
— Quem está tratando dela?
— A mãe e duas negra. Começô há dois dia com um febrão.
Mais tarde, ouvi-a quando falava com a mucama:
— Modesta, veja que nada falte a Estefânia. Nada. E tudo o que o médico disser, será feito.
Modesta deixou-a dizendo:
— Eu já sabia que vossuncê ia falá ansim.
Fernão continuava preocupado com os efeitos da epidemia, mas não parecia emocionado, nem pediu maiores notícias quando soube da doença da Estefânia. Passaram-se dias, e ao fim de uma semana Modesta informou:
• — De ontem prâ hoje, miorô um tiquinho, Sinhá.
Dois dias depois deu a notícia:
— O médico tá sem esperança. Piorô muito de ontem pra cá.
No íntimo, creio que Maria Letícia estava desejando a morte de Estefânia, mas não me disse nada. Eu é que rezei: Tomara que morra. Tomara. Fiquei esperando as notícias por Modesta. No dia seguinte, a mucama falou de novo:
— Ela tá ruim, Sinhá. Não engole mais nada. O dotô acha ela muito mal.
E no fim do décimo primeiro dia, Modesta disse com voz mais baixa:
— Sinhá, Estefânia tá gonizando. Maria Letícia assustou-se. Perguntei:
— Está tão mal assim?
— Tá gonizando.
— E o médico nada pode fazer?
— Nada. Já féis tudo. Maria Letícia perguntou:
— E Sinhô Fernão sabe, Modesta?
— Deve sabê. Tão sempre junto, ele e o dotô.
E no dia seguinte, Modesta voltou com outra nova:
— Sinhá, ela chamô vossuncê.
— Quem? Estefânia? Que disse ela? Que quer comigo? E Maria Letícia olhou-me, assustada. Modesta respondeu:
— Ninguém sabe o que ela qué. Ouvimo ela dizê duas veis: "Sinhá Letícia! Sinhá Letícia!", revirando os óio, numa aflição.
Perguntei se ela ouvira, disse que sim. Olhei Maria Letícia; parecia revoltada como se dissesse: "Pois que morra".
Deixou o quarto e foi para o alpendre; voltou ao quarto e foi à sala; afinal resolveu dar uma volta pelo pomar. Fiquei no alpendre e via-a caminhando entre as laranjeiras e mangueiras; vi-a depois parada diante da enorme figueira, onde seu nome e o de Fernão estavam gravados no tronco. Com certeza estava se recordando do primeiro dia de sua chegada a Santarém, quando Fernão com o canivete entalhara na figueira os nomes entrelaçados. Foi quando eu chegara ao lado deles; ela sentia-se tão feliz que até dissera uns versos de Fagundes Varela; tentei recordar-me, mas só me lembrei das duas últimas estrofes: E nessas letras que aos céus subiam, meus belos sonhos de amor perdi... As iniciais haviam crescido com a árvore; lá estavam elas destacadas no tronco, como uma ferida, um sinal, uma advertência de que vinte anos antes Maria Letícia acertara ao pronunciar aqueles versos, pois perdera mesmo seu amor... Foi então que a vi entrar apressadamente e chamar Modesta. Voltou-se para mim:
— Mana Rosa, vamos ver Estefânia...
Fomos. Em casa do Belisário, predominava a desolação que precede a morte; os olhos vermelhos, fisionomias abatidas.
Quando entramos, o silêncio fez-se maior, mais profundo; só se ouvia, no quarto ao lado, o estertor da agonizante. Estava rodeada pelos pais e algumas escravas da fazenda. O médico já se havia retirado porque nada mais podia fazer.
Aproximamo-nos do leito e olhamos; ali estava a mulher que tanto concorrera para a infelicidade de Maria Letícia. A mãe de Estefânia, ajoelhada perto da cabeceira, passava de momento a momento um pano úmido na testa da doente e do outro lado, aos pés da cama, Belisário soluçava com a cabeça entre as mãos; seus soluços pareciam gemidos. Maria Letícia comoveu-se; quem estava estendida ali no leito, sofrendo e morrendo, não era mais a mestiça bonita e forte, mas um ser humano despedindo-se da vida. Então, muito lentamente, Maria Letícia estendeu a mão e passou-a pela cabeça de Estefânia; parece que a doente sentiu uma presença porque abriu os olhos e procurou vê-la; fixou-os no rosto de Maria Letícia que, inclinada sobre o leito, procurava animá-la.
— Você vai sarar, Estefânia. A febre vai passar.
Sentimos um bafo quente e fétido que se evolava do corpo de Estefânia. "Dai-me coragem, meu Deus, dai-me forças", pedi mentalmente. E inclinei-me também. Surpresa com o que via, Estefânia abriu mais os olhos e levantou a mão direita com dificuldade; seus dedos moviam-se automaticamente, não tinham mais firmeza. Maria Letícia pegou aquela mão que tateava o espaço e, ajoelhando-se à cabeceira, perguntou baixinho:
— Quer alguma cousa, Estefânia? Diga o que deseja...
Sou eu, Sinhá Letícia...
A cabocla queria falar; seus lábios procuravam formar as palavras, mas estas não se articulavam; não se ouvia som algum. Maria Letícia inclinou-se mais:
— Deseja alguma cousa, Estefânia? Fale...
Com a cabeça, a enferma fez um leve sinal de assentimento. Queria falar. Deram-lhe água, mas a água voltou-lhe da boca e escorreu pelos cantos do travesseiro. A mãe tomou a passar-lhe o pano úmido na testa e no pescoço; Estefânia segurava a mão de Maria Letícia, não querendo largá-la. Afinal, fez um esforço maior para falar:
— Sinhá...
Maria Letícia curvou-se mais:
— Fale, Estefânia. Estou aqui.
Era tal o silêncio naquele momento, na alcova sombria, que se ouviu vindo lá do fundo da mata muito longe o grito de uma araponga. Pela terceira vez a doente falou com esforço:
— Sinhá o meu fio... Sinhá... Tenha dó dele...
Compreendemos e por cima do leito Maria Letícia olhou para mim. Confirmou com a cabeça e disse para Estefânia:
— Pode ficar sossegada, eu ouvi! Olharei por seu filho, Estefânia!
Nunca admirei Maria Letícia como naquele instante; achei-a grandiosa na promessa que fez a Estefânia.
Então, fechando os olhos, a testa gotejando suor pelo esforço feito, a doente começou a morrer. Do canto dos olhos, descia uma lágrima grossa, seguida de outra, depois outra, que lhe umedeciam a camisola. Fiquei comovida e procurei à volta um crucifixo para colocar nas mãos da agonizante; não achei nenhum. Parece que Maria Letícia me compreendeu porque chamou Modesta com um gesto e mandou-a depressa à casa grande buscar o Cristo que havia comprado em Viena, havia muitos anos... Olhei-a, atônita de surpresa. Mandar buscar o Cristo Redentor de Thorwaldsen. . . Pusemos uma vela acesa na mão de Estefânia e a mãe ficou ajudando a moribunda a segurar a vela que vacilava de um lado para outro. Ela continuava a chorar; dos olhos cerrados descia um manancial de lágrimas que parecia inesgotável. Belisário, tomando um velho livro de rezas de cima da prateleira, entregou-mo soluçando; pediu-me que rezasse uma oração.
Lembrei-me da oração dos moribundos e procurei-a no livrinho; li então umas frases que todos começaram a repetir com voz trêmula: Repouso eterno dai-lhe, Senhor. Sobre ela brilhe a eterna luz. Li a ladainha inteira de Nossa Senhora e quando disse: Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, ouvi-nos, Senhor, Modesta entrou.
Maria Letícia, tomando o Cristo Redentor que comprara para si mesma, depô-lo carinhosamente no peito de Estefânia, murmurando: Cor Jesus in agonia factum, miserere morientium. Amém! Disse eu.
Entreabrindo os olhos, Estefânia pareceu perceber o gesto generoso; apertou o Cristo de Thorwaldsen com as duas mãos como se nunca mais quisesse separar-se d'Ele e morreu.

A 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei da Abolição. O País todo estremeceu tocado pela borrasca. Os chefes da Confederação Abolicionista exultavam e enalteciam a Redentora, enquanto bandos de escravos partiam das fazendas em busca de outros destinos. Patrocínio, o rosto transformado pelo delírio de ver sua raça libertada caiu, chorando, aos pés da princesa, exclamando: "Minha alma sobe de joelho nestes Paços!" A multidão nas ruas, delirava de entusiasmo. Machado de Assis escreveu mais tarde: "Houve sol, o grande sol naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Todos respirávamos felicidade, tudo era delírio. Na corte e nas províncias. Rebouças, atirava-se nos braços de Taunay: La joie fait peur".
O êxodo das fazendas continuava, como um rio que engrossava cada vez mais, correndo em diversas direções. Negros partiam para as cidades, ou para fazendas diferentes.
Em Santarém numa madrugada clara e radiosa de fim de maio, Maria Letícia e eu chegamos à janela e recuamos assustadas; uma fila de escravos rumava para outras plagas a caminho da serra... Liberdade!
Maria Letícia olhou-me surpreendida:
— Os nossos também partem? Depois de tudo que fizemos por eles? Por que nos abandonam? Não fomos sempre bons?
Respondi que nem eles mesmos por certo sabiam por que partiam. Foram sem dizer uma palavra aos Sinhôs. Passavam, passavam, um atrás do outro, risonhos e palradores, livres para sempre do eito; as senzalas ficaram desertas, os campos e os cafezais abandonados.
Maria Letícia disse de repente:
— Eles têm razão, coitados! Viver cativos a vida toda como um animal, humilhado, deprimido, surrado. Lembra-se do que nosso pai contava quando ia comprar escravos no Largo do Piques? Disse que uma porção de gente ficava assistindo ao leilão e eles, encurralados, de pé, como mercadoria a ser escolhida e comprada. O leiloeiro batia o martelo e gritava, exibia os braços de uns e as pernas de outros. Lembra-se?
— Lembro-me. E mandava-os rir. "Ria, negro." E o pobre ria sem vontade para mostrar os dentes. Mandavam abrir a boca para examiná-la, ver-lhe as gengivas. Não eram gente, eram peças.
— Que cousa horrível! Imagine o leiloeiro dizer: "Tenho vinte peças para serem vendidas..." Oh!
— E quando eram escolhidos por alguém, benziam-se na esperança de que o Sinhô fosse bom e benigno, mas muitas vezes não era... Quando todas as peças eram vendidas, eles partiam, cada um com seu dono, sem saber para onde.
— E o pior era separar irmão de irmão, mãe de filho, marido de mulher... Muitas vezes era assim... Que dor!
— Viva a Princesa Isabel!
— Viva!
— A Magnânima!
— A Santa!
— A Redentora!
As cabeças continuavam a passar sob nossa janela e logo mais elevou-se um canto distante. Eram eles que subiam a serra, libertos dos grilhões, cantando para a liberdade. Maria Letícia lembrou:
— E aquele escravo preso do tio barão? Como será agora?
— Nem me lembrei. Que farão com ele?
O tio Sousa Mendes tinha, na fazenda dele, havia muitos anos, um escravo preso com corrente pelos pés. O negro tinha tanto ódio no tio que dizia que se o soltassem, mataria o Sinhô barão. Então vivia assim, acorrentado.
Horas depois, quando o silêncio voltou à fazenda, uma grande quietude de abandono e morte, Maria Letícia e eu fomos percorrer a casa para ver quem tinha ficado. Com o coração a palpitar, entramos na cozinha; lá estava Gabriela moendo os grãos torrados de café no moinho velho, como se nada tivesse ocorrido. Saímos para o terreiro, onde Ricardo se preparava para socar arroz no pilão. Quem mais? Chegamos ao alpendre do lado, e avistamos Tomásio tratando dos cães caçadores, como fazia sempre àquela hora, todos os dias. Os cães sacudiam as caudas longas e peludas, satisfeitos com a aproximação de Tomásio que lhes trazia água e angu em grandes gamelas. O coração de Maria Letícia inundou-se de compaixão pelo Tomásio. Depois entramos no quarto das meninas. Como se aquele dia fosse igual a todos os dias do ano e nunca tivesse havido uma lei de 13 de maio. Modesta vestia as crianças, aprontando-as para saírem com a professora. Maria Letícia comoveu-se; teve ímpetos de atirar-se nos braços dela e chorar: Modesta, minha negra, minha velha! Mas não disse nada, não sabia expressar-se com palavras; fora sempre assim, vivendo para si mesma. E eu a compreendia tão bem! Modesta, inclinada, calçava os sapatinhos de Ernestina e a menina ria-se e puxava-lhe a carapinha. Maria Letícia aproximou-se de Modesta, a fez levantar e colocou as duas mãos sobre os ombros dela, sem dizer nada, olhos lacrimejando. Então, para disfarçar a emoção, Modesta explicou:
— Aqueles bandidos que foram embora, Sinhá,.. Eles vão se arrependê um dia... Sinhá vai vê...
E fungando inclinou-se outra vez para calçar o outro sapatinho, enquanto Ernestina lhe agarrava com força os cabelos, Maria Letícia foi encontrar Fernão no terreiro, olhando tudo à volta com expressão de desalento. Uma centena de escravos havia ficado em Santarém, mas a erva daninha já começava a medrar nos cafezais. Os braços não eram suficientes para plantar e capinar, nem para tratar da moagem. A derrocada.
Todo o ano de 1888 foi de lutas, lutas contra homens e cousas; mamãe escreveu que Guararema estava quase deserta; nossos irmãos já haviam estado na Inspetoria da Imigração para ver se resolviam o problema, mas a solução parecia difícil. Ela pressagiava, para toda a família, grandes vicissitudes.
Maria Letícia e Fernão ouviam clamores de todos os lados; procuravam viver como podiam, mas as dificuldades eram muitas. Em 1889, Fernão mandou preparar toda uma parte da fazenda perto do ribeirão para receber os primeiros colonos italianos. Não podendo manter os filhos mais velhos na Inglaterra, ordenara-lhes que voltassem imediatamente. E tudo isso os acabrunhava. Enchiam-se de temores para o futuro. Que lhes reservava? Tudo ia mal. A política também vacilava. Conservadores e liberais continuavam a discutir nas ruas, nas casas, nos teatros e até nos templos. A Monarquia agonizava. Fernão, tendo conhecimento do que se passava na corte e nas capitais das províncias, exclamava a todo instante:
— Isso é cousa da maçonaria...
Maria Letícia e eu observávamos conciliadoramente:
— Não, Fernão, é a vida que se modifica, o mundo que caminha.
Maria Letícia perguntava:
— Maçonaria por que, se dizem que o imperador é o seu grão-mestre?
Todos os dias chegavam-nos novas, ora através de cartas dos parentes, ora por um ou outro viajante que pedia pousada. Afinal, uma tarde, tivemos notícia da queda do regime. A 15 de novembro daquele ano, foi proclamada a República. Embora afastados do centro por léguas e léguas, acompanhávamos, emocionados, os fatos desenrolados no Rio de Janeiro. Organizado o Governo Provisório, enviou-se uma mensagem ao imperador; o Major Sólon, um dos integrantes da comissão republicana, incumbido de entregar o documento histórico a Suas Majestades Imperiais, dissera a D. Pedro II: "Venho da parte do Governo Provisório entregar mui respeitosamente a V. M. esta mensagem". Eram duas horas da tarde.
E foi naquela mesma tarde que a Princesa Isabel disse uma frase digna da sua grandeza. Passando junto da mesa em que assinara, a 13 de maio de 1888, o Decreto da Abolição, murmurou: "Se nos expulsam, a mim e a minha família, pelo que assinei nesta mesa, repostas as cousas como dantes, hoje eu tornaria a escrever o meu nome sem vacilação".
E a 16 de novembro escreveu: "É com o coração partido de dor que me afasto de meus amigos, de todos os brasileiros e do País que tanto amei e amo, para cuja felicidade me esforcei por contribuir, e pela qual continuarei a fazer os mais ardentes votos. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1889. Isabel, Condessa d'Eu".
O Alagoas levou-os para o exílio.
Numa tarde quente de janeiro de 1890, Maria Letícia parecia feliz; alguns escravos tinham voltado à fazenda e, apesar da desolação, Santarém poderia renascer um dia. Trajando uma montaria de sarja negra, preparava-se para sair a cavalo com o marido; e ao tomar do chicotinho, dependurado na parede do escritório, entregaram-lhe uma carta. Era de Leopoldina e ela leu alto:
Saudosa mana:
Em primeiro lugar devo falar sobre a saúde de nosso pai. Está passando bem, principalmente as noites, quando os amigos se reúnem para conversar. Abateu-se muito a princípio com a República, agora vai melhor. A maior alegria desse ano que findou, foram as pazes entre papai e Lourenço. Parece milagre. Foi num domingo, logo depois de proclamada a República; Lourenço chegou resolutamente e, depois de falar conosco, disse que ia falar com papai. Antes que pudéssemos impedi-lo, Lourenço enveredou para o quarto e quando corremos atrás dele, esperando ouvir gritos e imprecações, ouvimo-lo dizer calmamente: "Meu pai, vim participar que já há o terceiro Lourenço na família".
Houve um minuto de espanto, depois ouvimos papai dizer; "Pois desejo ao terceiro Lourenço felicidade e saúde". Lourenço beijou a mão dele e todos choramos. Não sei, mana, mas depois que a gente sofre um abalo muito grande, aceita fatos que antes não aceitaria. Depois da República, papai aceita tudo. Essa é a verdade.
Adelaide e Cristina escreveram do Rio de Janeiro que Bonifacinho vai ficar noivo da filha mais moça do primo Lourenção e isso foi também motivo de júbilo para nós.
Carmela não pode mais ser chamada a "estrangeira"; é a alegria da casa. Carola não a deixa; cantam juntas duetos em italiano e francês e as duas vozes combinam muito bem. Outro dia visitei a Baronesa de Sobral; está doente, mas sabe de tudo que se passa na cidade e fora dela. Contou que D. Deolinda Menezes, lembra-se? (Que pergunta, então não há de se lembrar?) foi abandonada pelo marido e pelas filhas e enlouqueceu; está num hospício, sustentada por caridade. Devemos dizer como disse um Santo de cujo nome não me lembro agora: "Largo é o caminho da vida e nem todos acertam com ele..." D. Deolinda não acertou, errou desde o princípio.
Quando nos vem visitar? Temos tanto que conversar...
Ouvimos a voz de Fernão:
— Maria Letícia! Vamos!
Deixou a carta na minha mão para ler depois até o fim e, segurando o roupão de montar, desceu os degraus para o jardim. Ernestina correu-lhe ao encontro para abraçá-la: Mamãe! E atrás de Ernestina surgiu o filhinho da Estefânia, as perninhas levemente tortas, estendendo-lhe os braços. Maria Letícia inclinou-se para beijar a filha e passou a mão sobre a cabeça do menino numa terna carícia. Modesta que tomava conta do menino, adiantou-se:
— Deixem Sinhá Letícia sossegada!
Ela endireitou-se e aproximou-se do animal. Tomásio que segurava as rédeas, juntou as duas mãos em concha onde Maria Letícia colocou o pé direito e, num pulo ágil, montou o cavalo. Partiram. O sol ia descambando e do lado da mata vinha uma leve viração; toda a fazenda parecia inundada de luz. Vi quando os cavaleiros se distanciavam e alcançaram os cafezais; devido às chuvas o mato crescia rapidamente entre os pés de café; os poucos colonos chegados não eram suficientes para a capinação. Vi quando subiram a encosta, depois desapareceram dos meus olhos. Fiquei olhando as crianças que brincavam no terreiro; o filho da Estefânia brincava com Ernestina. E Maria Letícia havia dito: "Prefiro morrer a ver meus filhos brincarem com os filhos dela..." E não morrera e ali estavam brincando juntos. Por que certos fatos se sucedem sem que possamos impedir?
À tardinha, quando já estava anoitecendo, Maria Letícia e Fernão voltaram do passeio; os cavalos vinham devagar, os dois conversavam animadamente. Depois, no quarto, ela me contou:
— Mana Rosa, lá de cima da encosta, avistamos as casas brancas que antigamente eram senzalas e hoje estão reformadas. Tudo alinhadinho com as famílias dos imigrantes... Mas Fernão está triste, apontou com o chicote para o arrozal, e o canavial, dizendo: Falta gente para tudo isso, veja que desolação.
— Mas essa gente virá, não acha? Logo mais tudo estará capinado e poderá continuar a moagem da cana.
— E nossos filhos, que não podem mais ser educados na Inglaterra?
— Ora, Maria Letícia, aqui também se educam filhos, quem sabe até serão mais felizes conosco!
Então ela me contou que percorreram as roças e os pomares. Chegaram ao ribeirão. Enquanto caminhavam, ela ia pensando que os sentimentos de orgulho que lhe haviam enchido a vida, tinham desaparecido pouco a pouco no espaço, como fumaça. Tudo de que se orgulhara, fora espezinhado. Nada ficara intacto. Até sua fortuna estava agora abalada e prestes a soçobrar no abismo. Ouvia brados de socorro de todos os lados, mas que podia fazer? Também eles estavam ameaçados de ruína. Nunca pensara que seus filhos não pudessem seguir um curso superior na Europa, por falta de recursos. Lamentou-se olhando para o teto:
— Oh! Vida cheia de revelações... Que me resta?
Quase nada. O amor de meu marido em quem confiei cegamente, é agora incerto e cheio de dúvidas. Nunca pensei que pudesse perdoar-lhe. Imaginava que, por mais que desejasse, não o poderia. Mas agora ele é pobre e infeliz, não é mais aquele arrogante e vibrante Fernão; aquele desapareceu para dar lugar a um outro, quieto, humilde e triste Fernão que ia ao meu lado hoje, no cafezal.
Houve uma pausa, depois perguntei:
— Então você lhe perdoou?
•— Os vencidos devem ser perdoados porque são infelizes, não acha? E a infelicidade é um fardo muito pesado. Eu não devia perdoar-lhe, ele me abandonou quando eu mais precisava de conforto e carinho, humilhou-me, não se importou quando eu sofri, fugiu de mim. Pensei sempre em vingar-me, mana Rosa. Viver longe dele tanto quanto fosse possível, fugir, não perdoar nunca... Mas foi impossível.
Pensou um pouquinho com o rosto apoiado, entre as mãos, depois continuou:
— E sabe de uma cousa? Estamos pobres! Nunca analisei esta palavra, nunca imaginei que algum dia meu pensamento se fixasse nela. Acreditava-me tão acima de tudo: da humilhação, da infidelidade, da pobreza, da mediocridade... E provei de tudo. De todos os meus princípios, que me resta?
— A coragem.
— Mas de que me serve a coragem? Para vencer o quê? Para quê?
— Todo mundo precisa de coragem para viver; você há de precisar muito também, verá. Conte como foi que você perdoou a Fernão. Foi hoje?
Ela riu-se e sacudiu o dedo indicador para mim; seus olhos cintilavam:
— Curiosa! Sabe onde o rio forma lagoas profundas? Lá, paramos os cavalos e ficamos olhando os redemoinhos que o rio fazia, como se não quisesse continuar seu curso. Margeamos o rio e dirigimo-nos para a ponte a fim de atravessá-lo. De repente, Fernão falou com ternura: "Maria Letícia, você tem sido tudo para mim. Se não fosse você, eu não suportaria a situação..."
— E você, que respondeu?
— Nada. Não houve tempo porque ele continuou: "Tem-me dado força e coragem. Tem-me auxiliado a vencer esta tremenda crise que atravessamos. Tem sido meu guia e meu esteio. Não sei, mas creio que abandonaria tudo, se não fosse você e sua coragem..."
— Não digo que a gente precisa sempre de coragem?
— Espere. Os cavalos estavam caminhando juntos um do outro; de repente, ele pegou minhas mãos e beijou. Depois disse que minha mãozinha não era fina e sedosa, era a mão grossa de quem faz qualquer trabalho.
— E você?
— Fiquei emocionada e não respondi. Os cavalos iam a passo. Ele tornou a falar: "Tenho errado muitas vezes, mas quem não erra neste mundo? Tenho sido injusto e até cruel muitas vezes. E sinto-me tão cansado... Parece que sou um velho. Sinto-me como uma pessoa que tem vivido sempre na obscuridade, de repente vê a luz e fica estonteada, não sabe onde está o caminho. E tudo é tão enganoso na vida. Bem dizem: Nem tudo que brilha é ouro. Como nos enganamos e como nos debatemos sem saber onde está a verdade..."
Maria Letícia olhou para mim e ficou quieta. Depois perguntou:
— Você acha que ele se estava referindo a... a... Estefânia?
— Acho, sim. E depois?
— Depois ele disse que nossa vida vai ser diferente de agora em diante, que devemos lutar, lutar muito. Não teremos a mesma grande vida que tivemos sempre; precisaremos economizar, nossas despesas vão ser enormes porque teremos de pagar os trabalhadores. Mas disse que, comigo ao lado, ele se sente outro porque eu lhe dou coragem e confiança no futuro. Tudo muda e fica diferente quando se lembra de que estou junto dele. E diz que tudo deve a mim...
— Que felicidade, Maria Letícia! E que respondeu você?
Ela ficou quieta e pensativa outra vez; apoiou os cotovelos nos joelhos, numa atitude pensativa. Depois disse:
— Mana, lembra-se de uma frase que papai diz sempre? "Todos aqueles que reconhecem seus próprios erros, devem ser perdoados..."
— Lembro, sim.
— Então eu sorri para ele e estendi-lhe a mão assim... Estava tremendo... Ele pegou minha mão entre as dele e beijou-a uma porção de vezes. Falei então:
— Então tudo deu certo, como nos romances que tio António tem na escrivaninha do quarto. E tudo vai bem quando acaba bem.
Ficamos silenciosas longo tempo. Cheguei-me à janela; no poente, o sol despedia-se numa magnificência de cores: ouro, azul, vermelho e roxo, a confundirem-se no horizonte. Lembrei-me de uma música de Cherubini que Francisca Miquelina tocava na harpa: As duas jornadas. Maria Letícia já vencera uma: árdua, penosa, humilhante. Agora havia outra pela frente, talvez mais espinhosa, mais difícil, mais áspera; vencê-la-ia também?
O sol era como uma grande bola de fogo no céu crepuscular; vi os girassóis enfileirados à volta do pátio, as cabeças redondas inclinadas para o poente, como que pensativos. Mais além, na beira da mata, Estefânia dormia; num recanto solitário e ermo, onde ninguém passava, seu sono não seria jamais interrompido. Apenas uma cruz de madeira e um nome resumiam a história de uma breve vida, tão breve que não tivera tempo de realizar um único dos seus sonhos de ambição. Lá estava ela sozinha, na entrada da mata; sua gente havia partido na derrocada de 88.
Olhei o vale. Saracuras gritavam no brejo, sapos coaxavam em vários tons. Depois silêncio. Em todo aquele resplendor que parecia iluminar Santarém, vi uma luz muito tênue que conduzia Maria Letícia, que a levava para a frente, a apontar-lhe o caminho. Senti que era uma luz pura e duradoura. Era a luz das consciências tranqüilas e da paz dos corações; a luz da bondade, da ternura e do perdão. Luz que brilha somente para os que sabem amar, sofrer, esperar. E para os que sabem perdoar.
Olhando então Maria Letícia que estava de pé na minha frente, vi que seu sorriso era completamente feliz, depois de muitos, muitos anos.
Mais um ano se passou sobre a velha Santarém e, apesar de ser um ano de apreensões quanto ao futuro, foi também de felicidades.
O ribeirão corria murmurando entre as pedras, e os pássaros faziam seus ninhos nas árvores próximas à casa-grande. Os colonos passavam a caminho dos cafezais quando o sino da fazenda tocava nas madrugadas, levando as enxadas nos ombros e, quando o sol brilhava sobre as velhas telhas, as pombas abriam as asas em leque e brincavam de roda.
O monjolo que Fernão mandou fazer quebrava o silêncio batendo com força o milho que se partia em pedacinhos brancos e amarelos e o murmúrio doce da água como que cantava quando o monjolo caía. O papagaio estava velho e sonolento no poleiro da cozinha, mas gritava todas as vezes que Ricardo passava: "Soca, Ricardo".
Novo mastro de S. João foi levantado esse ano em Santarém, entre jogos e alegrias; lá estava ele, rangendo e fazendo a vontade do vento. A cabecinha crespa de S. João voltava-se para todos os lados, apertando o carneirinho nos braços e o vento parecia querer contar-lhe que Santarém era feliz novamente.
Não havia mais senzalas, nem gemidos de viola, nem canto de negros. Aos sábados à noite, os colonos dançavam na tulha; Sirelli, com o velho cachimbo num canto da boca, tocava sanfona e seguia com os olhos sua filha Assunta que dançava com Giuseppe uma valsa rodada, enquanto o pó se levantava do chão e empanava a luz do lampião de querosene, suspenso numa trave do teto.
António Fernão e Paulo chegaram da Inglaterra e passaram um mês na fazenda; novamente as gavetas emperradas das velhas cômodas foram abertas com estrépito e mais uma vez as colchas de seda da Índia, multicores e alegres foram estendidas sobre os leitos de jacarandá. Havia riso e paz. As tardes eram bonitas. Com chapéus de palha, Maria Letícia e eu cantávamos a ciranda com as meninas: Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar... E as vozes estridentes das crianças perdiam-se ao longe, na beira do rio: O anel que tu me deste sexta-feira da paixão, ficou largo no meu dedo e apertou meu coração... Meu coração está apertado até agora quando me lembro de como esse ano se findou. Fomos todos para São Paulo porque Maria Letícia ia ter uma criança. Os dois meninos mais velhos foram para o Rio de Janeiro continuar os estudos; na casa do Largo do Ouvidor, ficamos nós, as três meninas, a professora e Modesta; Fernão ia e vinha da fazenda. Papai contou-nos que ia vender o sobrado; já estava em negociações. Nada corria muito bem e preferia residir em Guararema com os filhos solteiros. Os casados continuariam em S. Paulo. Ficamos penalizados ao lembrar que o casarão com as sacadas de ferro enfeitadas de abacaxi, com seu jardim interno, onde passeávamos entre os canteiros rodeados de caramujos, com seus corredores, seus quartos e seu salão com o lustre de cristal, iria passar para outras mãos, mas nada dissemos.
Nunca o jasmineiro dera tantas flores como nesse ano: adivinhou talvez que ficaria abandonado. As flores caíam em pencas perfumadas e havia jasmins sobre a mesa da sala de jantar, dependurados nos lustres e nas jarras azuis do salão. Chegou dezembro.
Num dia bonito e quente, Maria Letícia teve outra menina; Fernão disse que se chamaria Maria Letícia. O batizado seria para quando a mãe se levantasse, mas a mãe nunca mais se levantou. Teve febre. A princípio, ninguém imaginou o que seria, mas depois o Dr. Maranhão começou a se alarmar porque a febre não cedia. E ela foi-se enfraquecendo, seus olhos foram-se amortecendo, suas mãos queimavam. Veio uma ama para amamentar a criancinha que dormia no meu quarto e eu sentia por ela todo o amor que a mãe não lhe podia dar. Um mês se passou; a febre foi minando o organismo de Maria Letícia até matá-la. Francisca Miquelina veio da fazenda, toda a família se reuniu em volta do leito mas a febre foi mais forte que a vontade dos homens e as preces das mulheres. Nada pôde salvá-la. Tio António chegou de Santarém, completamente apalermado com a notícia; correu para o quarto dela e apertou-lhe a mão:
— Ma petite Marie, o que é isso então? Vamos voltar para Santarém lá é muito triste sem você.
Ela sorriu tristemente e balbuciou os versos de Verlaine que ele nos havia ensinado e repetia sempre que ia viajar:
— Tio António, et je m'en vais au vent mauvais...
— Não, petite Marie, não...
Engasgou um pouquinho e continuou:
— Santarém está tão bonita... Vamos para lá. Toda a fazenda está se enfeitando para esperar a dona: as árvores, o rio, o canavial, os cafezais...
Ela não disse nada e ficou olhando o teto como se não tivesse ouvido. Na véspera de morrer, pediu a Francisca Miquelina que tocasse harpa, mas, como a harpa estava na Fazenda Santa Engraça, Leopoldina tocou piano e Luís, flauta. Mas ela insistiu em que queria ouvir harpa porque gostava mais; nesse mesmo dia, Rodolfo foi a Santa Engraça a cavalo e no dia seguinte chegava a harpa num carro de boi. Viajara durante a noite toda e de manhã o carro parava rinchando em frente do sobrado. A harpa, enrolada em cobertores, foi levada para o salão.
Nesse dia, na obscuridade do quarto de Maria Letícia foi ouvida uma valsa de Chopin tocada por Francisca Miquelina, Leopoldina e Luís como nos velhos tempos. Todos choramos. Papai foi carregado na cadeira de veludo e ficou num canto escutando. Depois de ouvir a música, Maria Letícia levantou a mão e disse: "Deus lhe pague". Falou tão baixo que mal entendemos e foram suas últimas palavras. Veio um frade franciscano dar-lhe extrema-unção e os santos óleos, mas não sei se ela percebeu. Foi morrendo aos poucos como vela que se apaga. Fernão, sentado ao lado do leito, segurou-lhe a mão até o fim; quando o Dr. Maranhão disse que tudo estava acabado, ouvi a voz de papai: "Vamos rezar". Mamãe ajoelhou-se soluçando ao lado do leito, Fernão ficou do outro lado, os irmãos e cunhados estavam espalhados pelo quarto, Sentado na cadeira, papai começou: Padre nosso que estais no céu... Nós repetimos em voz alta: Padre nosso que estais no céu... Santificado seja o vosso nome... Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade... Ao chegar a essas palavras, a voz de papai quebrou-se num soluço. Tentou rezar e repetiu: Seja feita a vossa vontade...
Chamou em voz alta: "Minha filha! Oh! Meu Deus!" Aproximei-me dele e apertei-lhe a mão direita para infundir-Ihe coragem. Sua longa barba, agora toda branca, estava úmida de pranto. Então a voz do frade continuou com serenidade: Assim na terra como no céu...
Lídia entrou no quarto na ponta dos pés, olhou a mãe sobre o leito, depois o pai. As lágrimas corriam dos olhos de Fernão; então Lídia, sem se perturbar, tirou o lencinho do bolso do vestido, aproximou-se do pai e enxugou-lhe as lágrimas; depois, ajoelhou-se e juntou as mãozinhas para acompanhar a oração do frade. Olhou outra vez o pai, cujo rosto estava novamente molhado de lágrimas; tornou a tirar o lencinho do bolso e de novo enxugou o rosto de Fernão. Aninhas aproximou-se sem dizer nada, tomou Lídia pela mão e levou-a do quarto; ouvimos seu pranto abafado no fim do corredor.
Saí também e fui ver a criancinha. Pareceu-me ouvi-la chorar. Dormia com as mãozinhas fechadas em sono plácido. Fernão havia dito nesse dia que eu tomaria conta da criança. Era minha. Comecei a falar com ela como se me pudesse entender, confundindo a Maria Letícia que eu havia perdido com a outra Maria Letícia que havia nascido: "Pobre filhinha sem mãe, coração da mana Rosa... Que poderei fazer por você? Que poderei dar-lhe para que você seja feliz? As horas dos meus dias e o sono das minhas noites? Minha dedicação e minha ternura? Todo o meu amor? Este amor que guardei a vida inteira dentro do peito?" Ouço ainda a voz de Maria Letícia quando brincava com as crianças: Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar... Seja feita a vossa vontade, ó meu Deus! Assim na terra como no céu. Não quero lembrar-me do quanto ela foi boa para mim. Não. Quero recordar apenas as vezes em que me chamou de bobona, água parada, solteirona. Não quero lembrar-me da nossa grande amizade, porque me faz sofrer; quero lembrar-me do seu orgulho, dos seus defeitos, das brigas que tivemos. Mas de todo modo eu sofro porque a amizade que nos uniu foi tão forte como o aço... "O anel que tu me deste... ficou largo no meu dedo e apertou meu coração... Meu coração está tão apertado, tão pequenino, Maria Letícia... Minha pobre filhinha..."
Olhei através da janela. Enfileiradas na trave do alpendre onde tinham seus ninhos sob o telhado as andorinhas passavam os biquinhos entre as penas, alegres e apressadas, chilreando num alvoroço... "Oh! Meu Deus, seja feita a vossa vontade..."
Senti que não podia mais, a dor era demasiada; lembrei-me de que teria uma tarefa daí em diante e isso foi como um lenitivo: teria que olhar um berço. Foi como um raio de sol para minha imensa dor. Tentei sorrir e inclinei-me ao lado do leito, onde Maria Letícia, a segunda, dormia tranquilamente.

































VALE A PENA LER OS CLÁSSICOS!

BOM LIVRO Nossos grandes escritores e os títulos mais importantes da literatura brasileira estão reunidos na série Bom Livro da Ática, com textos integrais e notas de rodapé que facilitam o entendimento.
Conheça-os:

Adolfo Caminha:
Bom-Crioulo
A normalista
Alexandre Herculano
Eurico, o presbítero

Aluísio Azevedo:
Casa de pensão
O cortiço
O mulato

Bernardo Guimarães:
A escrava Isaura
O garimpeiro
O seminarista

Camilo Castelo Branco:
Amor de perdição

Domingos Olímpio:
Luzia-Homem

Eça de Queirós:
O crime do Padre Amaro
O primo Basílio

Franklin Távora:
O cabeleira

Joaquim Manuel de Macedo:
A luneta mágica
A moreninha
O moço loiro

José de Alencar:
A pata da gazela
Cinco minutos — A viuvinha
Diva
Encarnação
Iracema
Lucíola
O gaúcho
O guarani
O sertanejo
O tronco do ipê
Senhora
Sonhos d'ouro
Til
Ubirajara

Júlio Dinis:
As pupilas do Senhor Reitor

Lima Barreto:
Os bruzundangas
Recordações do escrivão Isaías Caminha
Triste fim de Policarpo Quaresma

Lindolfo Rocha:
Maria Dusá




Machado de Assis:
A mão e a luva
Contos (seleção)
Dom Casmurro
Esaú e Jacó
Helena
laiá Garcia
Memorial de Aires
Memórias póstumas de Brás Cubas
O alienista
Quincas Borba
Ressurreição

Manoel de Oliveira Paiva:
Dona Guidinha do Poço

Manuel A. de Almeida:
Memórias de um sargento de milícias

Raul Pompéia:
O Ateneu

Visconde de Taunay:
Inocência












"Na vida também é assim, como a luz da lamparina; a alegria e a tristeza, a subida e a descida, a felicidade e a desventura, a luz e a sombra." Essas palavras da autora revelam bem a mensagem deste livro: retratar a ambigüidade do homem e da vida.
A estória se passa no século XIX, numa época de profundas transformações sociais no Brasil e na Europa.
O seu estilo é agradável e notadamente lírico, narrando episódios marcados pela graça, pela emoção, e ainda pela revolta. O ambiente é de uma aristocracia rural, onde são mostrados os seus aspectos positivos e negativos, abordando inclusive a condição do escravo na sociedade da época. Paralelamente se faz referência a acontecimentos históricos da Europa e do Brasil no final do século passado.
Cada página atrai a próxima leitura, e assim o leitor vai penetrando no mundo de Maria Letícia, Fernão, Rosa, Francisca Miquelina, seus pais e outros. Um mundo que apresenta duas faces: a luz e a sombra — neste contraste está a essência humana, tão bem retratada por Maria José Dupré.



 

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