Livros - Maria José Dupré - Gina

Gina

SRA. LEANDRO DUPRÉ


2ª. EDIÇÃO
1945
EDITORA BRASILIENSE


PRIMEIRA PARTE

Sentada na beira da calçada, os pés na água barrenta que corria, a boneca de pano apertada no braço direito, Gina esperava a mãe que se despedia das vizinhas, lá
no fundo do cortiço. A irmã mais, velha amarrava a caçarola e a frigideira num canto da carrocinha, onde ia a mudança. A criançada da rua rodeava a carroça e as
duas meninas, alvoroçadas com a partida da família do professor, o homem que bebia vinho todos os dias ao jantar. Ele já havia saído para o Liceu de Artes e Ofícios,
onde ensinava escultura; de sobrecasaca preta, chapéu coco, baixo e magro, uma barbicha em ponta sobre o peito. Era calmo, tranqüilo, e falava pouco; mal conhecia
os vizinhos. Algumas mulheres saíram à janela das suas casas baixas, outras ficaram no portão, gordas e falantes; uma delas com as mãos sobre o ventre, olhava o
filho que engatinhava na calçada, entre cascas de banana e sujeira. A mãe de Gina veio do fundo, acompanhada por algumas vizinhas:
- Venha dar uma prosa de vez em quando, dona Julica. Não se esqueça da gente.
Só dona Raimunda não apareceu para se despedir.
Cortara relações com dona Julica por causa de uma panela. Fechou a casa e prendeu os filhos lá dentro; não queria que eles acompanhassem "aquela amaldiçoada" até
o portão.
A carrocinha principiou a rodar, a caminho da rua S. Caetano, onde haviam alugado dois quartos. As despedidas então começaram; oculta pela criançada, à sua volta,
Gina conversava; dizia que o pai, o professor, alugara dois quartos grandes e ela teria daí em diante uma cama para ela só. A irmã dormiria em outra e teriam um
quarto para elas; não era como ali, onde dormiam todos juntos e escorria água das paredes. Ela nunca se importara, mas a mãe passava o dia enxugando as paredes e
xingando a água, até que o professor resolvera procurar outra casa para morarem. De repente, ouviu-se uma voz estridente:
- Gina!
Ela calçou depressa os sapatos furados, levantou-se com a bonequinha apertada contra o peito e acompanhou a mãe e a irmã que já estavam na esquina. Nem se despediu
da criançada; correu para alcançá-las; seus sapatinhos não tinham sola e ela sentia nos pés toda umidade da calçada, molhada da chuva, que caíra durante a manhã.
Logo alcançaram a carroça da mudança, na esquina da rua S. Caetano; andavam muito depressa, a mãe tinha que fazer o almoço.
Gina caminhava ao seu lado, pensando na casa nova; o pai dissera que os quartos eram bonitos, tudo muito limpo e as famílias eram distintas; o amigo Giacomo, o serralheiro,
arranjara esse lugar.
Foram andando sem parar e passaram diante da carroça, viraram a rua Antiga Amélia, lá estava a casa. Era grande, amarelada, com três janelas na frente e um portão
de ferro ao lado. Em cima moravam os donos e alguns pensionistas que deviam ser ricos; em baixo havia quartos grandes e pequenos, dando para um corredor cimentado;
cada quarto tinha uma abertura na parede que servia de janela; alguns inquilinos pregavam cortinas feitas de roupas velhas nessas aberturas, outros pregavam jornal.
O professor alugara dois quartos no porão; um deles dava para o corredor cimentado. A mãe e a irmã foram logo colocando as trouxas de roupa no chão, enquanto Gina,
com a boneca nos braços, lançava à volta um olhar desiludido. O chão desse primeiro quarto era cimentado e Gina começou a sentir frio, encolhida num canto. A mãe
gritou-lhe:
- Anda, vai ver se a carroça vem vindo.
Gina foi espiar no portão; a carroça rodava no principio da rua e o carroceiro vinha pela calçada, fumando cachimbo e olhando os números das casas; Gina fez-lhe
sinal levantando os bracinhos. Num instante a carroça foi descarregada e o carroceiro levou para dentro as duas camas de ferro, os colchões, a lata de querosene
que servia de fogão, algumas panelas e outras trouxas de roupa. Sem perder tempo, dona Julica colocou a lata de querosene sobre dois pedaços de pau, tirou uns carvões
de um saco de papel, colocou-os na lata, pôs fogo e começou a assoprar; logo a chama se elevou e ela despejou água numa panela para o macarrão. Em seguida, para
pagar o carroceiro, tirou o dinheiro que estava amarrado na ponta de um lenço, no bolso do casaco. Pagou o homem que esperava fora e entrou apressadamente; os dois
quartos recendiam a sarro de cachimbo. Sacudiu a ponta do avental no ar para acabar com aquele cheiro e gritou para as duas meninas que viessem auxiliá-la; Gina
deixou a bonequinha sentada no chão, num lugar onde ninguém pudesse pisá-la e foi ajudar a irmã a abrir o saco de roupas e estender as camas. A dos pais foi armada
no quarto de dentro e lá puseram também uma pequena cômoda onde guardavam a roupa; a das meninas ficou no segundo quarto, com o fogão e a mesa que servia para comer.
Ao meio dia, quando o professor Pasquale chegou para almoçar, estava tudo pronto; Gina tirou a boneca do canto e sentou-se perto da porta com o prato de macarrão
no colo e a boneca de trapo ao lado; depois que acabou de comer, começou a fingir que estava dando comida à boneca; enchia a colher de molho e encostava na cara
da bruxa, cuja boca era feita de linha vermelha; achara-a numa lata de lixo num dia de chuva; nunca mais se separara dela. Estava suja, feia e maltrapilha, mas para
Gina era linda. Enquanto dava almoço à boneca, viu um gato que se aproximava miando, o rabo esticado e os olhos amarelados, cheio de risquinhos pretos. Estava com
fome; Gina empurrou o prato fundo para perto do gato que lambeu tudo num instante. Depois foi auxiliar a mãe a lavar os pratos e a panela; quando o pai saiu de novo
para o Liceu, à uma hora, a chuva havia recomeçado a cair, uma chuvinha fina e persistente. O professor levantou a gola da sobrecasaca surrada, colocou o chapéu-coco
na cabeça e pegando o velho guarda-chuva, saiu pelo portão. Ao passar por Gina, acariciou-lhe a cabeça num gesto carinhoso:
- Eh! Gigina! Gigina!
Todos os quartos do porão estavam alugados; era um vir de pessoas o dia todo pelo corredor cimentado. Nessa mesma tarde, depois de por tudo em ordem e de ter colocado
um trapo escuro na abertura que servia de janela, a mãe de Gina puxou conversa com as vizinhas. Havia dona Umbelina, a preta que vendia pastéis, mãe do Cosme e que
morava no quarto da frente; dona Assunta, casada com um vendedor de jornais e mãe de duas crianças pequenas; dona Cidóca, a lavadeira de roupas finas. Todas as crianças
rodearam logo Gina e a irmã; queriam saber de onde vinham, o que o pai fazia, quanto tempo iam ficar ali, o nome da boneca... Havia duas meninas da idade de Gina,
filhas de dona Cidóca; estudavam no Grupo Escolar da Avenida Tiradentes. Quando souberam que Gina não sabia ler, fizeram, cara de dó; apontaram-na com o dedo:
- Ela não sabe ler. Ela não sabe ler.
Gina sentiu o rosto em fogo. Naquela mesma noite, pediu ao pai que a matriculasse no Grupo Escolar Prudente de Morais, na Avenida Tiradentes; o pai prometeu que
um dia havia de levá-la, quando tivesse tempo. Beberam vinho ao jantar; houvesse o que houvesse, havia sempre vinho e queijo à mesa do professor Pasquale. Despejou
um pouquinho no copo de Gina e no copo de Zelinda, a enteada. Zelinda era filha de dona Julica, pois quando esta se casara com o professor de escultura, era viúva
e tinha Zelinda que estava agora com quatorze anos. O professor também era viúvo e tinha filhos homens do primeiro matrimônio; era vinte e cinco anos mais velho
que dona Julica e o casal só tinha Gina que estava com oito anos.
Foram deitar cedo, logo após o jantar. Gina dormia na mesma cama de Zelinda, com a cabeça ao lado contrario; brigavam muito e Zelinda não a suportava. Acordava muitas
vezes com os pés de Gina sobre seu estômago ou encostados no seu rosto; empurrava-os com força e dizia um nome feio. Uma noite empurrou-os tão brutalmente que Gina
caiu e se machucou; o pai prometeu no dia seguinte dar-lhe uma cama nova, só para ela, e a mãe deu razão a Zelinda como fazia sempre. Mas o tempo foi passando e
nunca sobrava dinheiro, para a cama nova de Gina; por isso continuava a brigar quase todas as noites.
Um vento carregado de umidade entrava pela abertura da parede; Gina sentiu frio e aconchegou-se mais à irmã para se aquecer; Zelinda empurrou-a. Gina encolheu-se
mais na caminha estreita; ouviu os miados do gato passando pelo corredor. As filhas de dona Cidóca haviam dito que o gato não era de ninguém, era do cortiço inteiro;
um dava-lhe um pouco de comida, outro um pedaço de pão velho, outro os restos da panela. E quando ninguém dava comida e o gato sentia fome, ia procurar qualquer
coisa na lata de lixo dos ricos, que ficava no portão todas as manhãs, e comia até restos de banana, se encontrasse. Gina pensou que devia ser engraçado ver o gato
comendo bananas e prometeu a si mesma dá-las ao gato no dia seguinte, e também perguntar o nome dele, pois se esquecera disso. O vento frio levantava o trapo escuro
e invadia o quarto todo; de repente, dona Julica levantou-se e acendeu uma vela, depois pegou uma porção de roupa suja que ia lavar no dia seguinte e tapou a abertura.
O vento cessou dentro do quarto. O gato passou miando outra vez pelo corredor. Dona Julica voltou ao quarto e apagou a vela. Ouvia-se o ressonar tranqüilo do professor
de escultura. Os olhinhos de Gina foram se fechando devagar, um calor gostoso começou a invadi-la e pensando no gato, na cama nova que iria ganhar, no Grupo onde
ia aprender a ler, na bonequinha de trapo que dormia abraçada a si, adormeceu.
Alguns dias se passaram. Zelinda saía logo depois do almoço e ia para o atelier de dona Adélia, onde aprendia costura. Gina ficava brincando com os filhos de dona
Assunta no portão. Muitas vezes o amigo Giacomo entrava e ficava lá dentro conversando com a mãe; Gina tinha ordem de não entrar enquanto Giacomo estivesse lá; um
dia estava chovendo e ela bateu na porta para que a mãe abrisse, pois estava armando chuva lá fora. Dona Julica abriu a porta e Gina viu o amigo Giacomo deitado
na cama do pai, fumando e esperando o café que a mãe estava preparando na lata de querosene.
Mais tarde, depois que Giacomo foi embora, Dona Julica chamou Gina para um canto e deu-lhe uma sova, dizendo que ela era uma desaforada, uma desobediente, pois não
devia entrar quando houvesse visitas. Gina soluçou durante horas inteiras sentada no chão cimentado; de vez em quando a mãe gritava:
- Cala essa boca! E já!
Ela sufocava os soluços no vestidinho rasgado e sujo.
Depois desse dia, quando a mãe tinha visitas, podia chover que Gina não batia na porta; ficava encolhida num canto, esperando a chuva passar e olhando a água que
formava poças no cimento esburacado.
Muitas vezes o Cosme, filho da dona Umbelina, que fazia pastéis, dava um para Gina; ela comia bem devagar e ficava triste quando terminava, a boca se enchia de água
com vontade de comer outro. Quando Cosme passava para ir à venda, chamava-a:
- Gigina, vamos na venda?
Ela ia. Cosme era um moleque de nove anos, preto como carvão, tinha olhos e dentes que brilhavam de tão brancos. Usava calças rasgadas, sempre sujas, e uma camisa
listada; andava assobiando, as mãos nos bolsos, e dava pontapés em tudo que encontrava. Gina gostava dele; Cosme parava de assobiar para cuspir; cuspia longe, de
lado, e o cuspe saía zunindo da boca dele. Perguntava com orgulho:
- Você é capaz de cuspir assim?
Gina experimentava. Parava, enchia a boca de saliva e esperava para ganhar forças; a cabeça para trás e depois para a frente num movimento rápido, mas o cuspe não
ia longe, ficava ali mesmo aos pés dela; Cosme dava uma gargalhada, depois sacudia os ombros e dizia com desprezo:
- Mulher não sabe cuspir.
E continuava a andar, Cosme com as mãos nos bolsos e assobiando. Na venda, ele batia a moeda sobre o balcão e dizia bem alto, com voz autoritária, para o vendeiro:
- Dois mil réis de farinha de trigo. Da melhor. Era para os pastéis de dona Umbelina. Gina via o homem pesar a farinha, embrulhar num papel pardo e entregar ao Cosme.
Este adquiria um ar importante, de quem se julga superior, mas de repente ficava humilde, os olhos compridos nas balas que estavam dentro de um vidro grosso; as
balas melavam contra o vidro. Gina olhava também, a boca cheia de saliva; o vendeiro tirava a tampa do vidro, mergulhava a mão gorda e peluda lá dentro, tirava duas
balas cor de rosa e dava uma para cada um. Numa atitude de adoração, Gina colocava a bala sobre a língua e dava um estalo, como via Cosme fazer; agradeciam e saíam
a caminho da casa. Cosme não assobiava mais, nem cuspia, chupava a bala devagar, saboreando-a. Ensinava Gina a dizer nomes feios e a chutar as cascas de frutas que
encontravam nas calçadas; cada pontapé que davam, diziam:
- Vá...
E riam gargalhadas longas, intermináveis. Cada um inventava uma palavra nova para colocar depois do vá, e as variações eram muitas. Aquele que inventava palavras
mais feias era o mais esperto e o mais importante da rua. Gina sabia uma bela coleção.
Quando as filhas da lavadeira de roupas finas passavam e viam Gina sentada no portão com a boneca ao lado, riam e caçoavam dela. Iam ao Grupo Escolar; levavam livros,
cadernos e um embrulho de jornal com o lanche. Uma delas, a mais velha, provocava-a. Colocava os livros no chão, encostados no portão, depois enfiava os polegares
nas orelhas e sacudia as mãos fingindo orelhas de burro; Gina ficava vermelha de raiva; levantava-se para dar na menina, mas ela já havia carregado os livros e já
correra, enquanto a irmã dava gargalhadas:
- Olhe a burra! Ela não sabe ler!
Gina pediu ao pai que a levasse ao Grupo, queria aprender, queria saber. O professor Pasquale riu-se, coçou a barba escura e disse misturando italiano com português:
- Piu tarde, piu tarde, tu sei ancora troppo bambina.
Um dia Gina não suportou mais as caçoadas das filhas de dona Cidóca. Esperou que todos saíssem e como a mãe também havia ido à cidade, deixou a boneca em cima da
cama e foi em direção ao Grupo Escolar Prudente de Morais. Hesitou um pouco quando viu o grande edifício com as janelas abertas para a claridade; depois resolveu
e subiu timidamente os primeiros degraus. Um homem velho apareceu em cima da escada e perguntou o que queria; ela tornou a hesitar, disse que precisava falar com
o diretor do Grupo, tinha um recado do pai para dar. O porteiro perguntou: E quem é seu pai?
Gina abriu mais os olhos:
- Meu pai? É o professor Pasquale do Liceu.
Sentia certo orgulho do pai, por isso falou com ênfase, a cabeça bem levantada. O porteiro olhou-a, esperou um pouco e disse:
- Venha então comigo.
O coração de Gina começou a bater forte quando entrou com o porteiro. Enquanto caminhava, olhou de soslaio para os sapatos furados com buracos na frente; para o
vestido encardido com manchas de gordura e remendado de um lado; no lugar do remendo, a fazenda estava esgarçada e via-se através dela, a camisa grossa de algodãozinho.
Num instante, pôs a mão esquerda sobre o remendo e viu que até as mãos estavam encardidas. Que horror! Nem lavara as mãos para falar com o Diretor. Como se atrevera?
Arrependeu-se e quis voltar, mas que pensaria o velho que ia na frente, se ela fugisse? Tudo isso por causa das filhas de dona Cidóca que caçoavam dela. O velho
era capaz de correr atrás dela e gritar e iria parar na cadeia. Lembrou-se da filha mais velha de dona Cidóca com os polegares dentro das orelhas, abanando as mãos:
"Burra!" "Burra". Subiu uma longa escada, entrou num corredor largo e viu o velho parar em frente a uma cortina verde, onde havia grandes letras douradas; ficou
aflita quando viu o velho sumir por trás da cortina; não teve tempo para pensar e já o velho estava outra vez diante dela, fazendo sinal para que entrasse. Uma ponta
da cortina foi suspensa e Gina entrou; teve medo que o sapato do pé direito saísse, pois estava largo, parecia um chinelinho. Deu uns passos sentindo o chão macio
e fofo, apertou o lugar do remendo para que o Diretor não visse a camisa grossa e parou diante de uma mesa larga. Só nesse instante levantou a cabeça; atrás dessa
mesa cheia de livros, tinteiro com bolas e papeis, e outras coisas que ela não conhecia, estava um homem sentado, escrevendo. Gina olhou-o. Usava óculos no nariz,
como o pai, e tinha bigode. Começou a tremer enquanto olhava o bigode preto do homem de óculos. Afinal, o que diria si ele lhe fizesse perguntas? Por que viera até
ali, sozinha? Se ao menos. tivesse trazido consigo um dos filhinhos de dona Assunta... Continuou fixando o bigode e de repente o bigode se moveu e uma voz perguntou
enquanto a cabeça do homem se levantava:
- Então menina o que quer?
E dois olhos escuros fixaram Gina por trás dos vidros dos óculos; Gina baixou a cabeça e olhou os sapatos furados; viu as pontas dos dedos sujos e ficou vermelha;
lembrou-se das mãos encardidas e quis escondê-las nas costas. E o remendo do lado esquerdo? Pôs a mão esquerda sobre a parte esgarçada do vestido e a direita atrás
das costas. A voz perguntou outra vez num tom impaciente:
- Quer falar comigo? O que deseja? É aluna do Grupo?
Gina resolveu falar; sua voz tremia; respondeu a ultima pergunta:
- Não, senhor. Vim me matricular hoje.
- Não há vagas.
Houve um breve silencio. Ela ficou imóvel como se não tivesse ouvido. O diretor repetiu:
- Não há vagas.
Ela parecia refletir. De repente teve uma idéia:
- Meu pai é o professor Pasquale, do Liceu; ele me mandou para o senhor me matricular.
- Como é o seu nome?
- Gina. Georgina. Sou filha do professor Pasquale do Liceu. Eu preciso aprender a ler.
- Vou fazer oito anos, tenho sete e meio. As filhas de dona Assunta vivem caçoando de mim porque eu não sei ler. Preciso aprender.
O diretor ficou parado olhando para Gina. Havia tal intensidade de expressão nos olhos dela que ele ficou impressionado. Perguntou:
- Qual o recado que seu pai me mandou?
Nem se lembrava mais. Ficou vermelha e respondeu:
- Ele mandou pedir para o senhor me matricular. Ele não tem tempo de vir porque é muito ocupado. Trabalha até de noite.
- Não há vagas. Porque não veio no princípio do ano? Volte mais tarde, talvez depois das férias de Junho.
Ela continuou imóvel no mesmo lugar. Teve vontade de chorar. Então não arranjaria lugar depois de tamanho sacrifício? Olhou firme para o diretor: Eu quero aprender
a ler. Quero muito...
- Você não tem mãe?
- Tenho sim, senhor.
- Por que sua mãe não veio falar comigo?
- Ela também não tem tempo. Tem que cozinhar, lavar roupa e fazer compras. Hoje foi fazer compras na cidade. Minha irmã está aprendendo costura; ela deixou o terceiro
ano para costurar. Só eu quero aprender, quero muito. Será que o senhor não arranja um lugar para mim?
Seus olhos encheram-se de lagrimas. Seria ela mesma que havia falado assim? Como se atrevera? Ele iria expulsá-la com certeza.
Durante uns instantes ele fitou Gina; viu-lhe os andrajos, a mãozinha suja tapando o buraco do vestido, os cabelos despenteados sobre a testa. Teve a intuição de
que naquela criaturinha havia uma incalculável força de vontade, havia ali uma personalidade. Teve pena e sorriu:
- Então você quer mesmo aprender a ler?
- Quero sim, senhor.
- Seu pai é professor de escultura do liceu de Artes e Ofícios?
- É sim, senhor. Ele mesmo.
O diretor ficou pensativo brincando com a caneta; não fora em vão que estudara psicologia. Ali havia força, resolução, confiança, intrepidez: fatores de inigualável
valor. Deixou a caneta e fixou a menina:
- Diga para seu pai vir falar comigo amanhã. Ou então sua mãe. Depois veremos o que se pode fazer; quero ver se matriculo você no primeiro ano.
Gina não acreditou, ou não entendeu bem; continuou parada diante da mesa larga, sem saber o que fazer, tão intensa era sua emoção. Viu a mão do diretor fazer um
gesto como que a despedindo. Olhou o bigode outra vez, parecia que o bigode estava sorrindo. Ouviu a voz dele:
- Está bem. Pode ir. Seu pai que venha amanhã falar comigo.
Sem dizer nada, Gina voltou-se para o lado da cortina verde, inclinou-se quase até o chão para passar debaixo dela e viu-se no corredor largo outra vez. Depois a
escada. Desceu apressadamente, atravessou o corredor debaixo, passou pelo velho que estava sentado perto da porta enrolando um cigarro de palha, desceu mais uns
degraus e viu-se afinal na rua. Sem tomar fôlego, atravessou a Avenida Tiradentes, desceu correndo a rua S. Caetano e chegou em casa quando a mãe entrava. Vermelha
e cansada da corrida, disse-lhe:
- Mamãe, falei com o diretor do Grupo. Ele vai me arranjar um lugar. Vou aprender a ler.
Colocando uns carvões na lata de querosene para cozinhar o macarrão, dona Julica perguntou:
- O que está dizendo, Gina? Onde foi?
- Falei com o diretor agorinha mesmo. Ele me disse que vai arranjar um lugar no primeiro ano. Mas papai precisa ir falar com ele, ou então a senhora. Amanhã sem
falta.
Dona Julica endireitou o busto e olhou para ela; falou quase gritando:
- O quê? Você foi falar com o diretor? E foi assim desse jeito? Suja como uma mendiga? Não tem vergonha?
Gina recuou uns passos e falou com medo:
- Mas, mamãe, eu pedi para papai, mas papai não pôde ir. A senhora não tem tempo, então fui sozinha.
- Pois então tome, sua burra; Só serve para envergonhar a gente. Saia daqui.
Deu dois tapas na cabeça dela. Encolhida, com os dois braços tapando a cabeça no lugar onde a mãe havia batido, Gina foi sentar-se no canto, onde estava a boneca
de trapo e baixando o rosto sobre a boneca chorou um choro triste, angustiado.
Seis meses depois, Gina lia corretamente e escrevia. Mandou uma carta para sua avó que morava em Campinas. O pai deu-lhe uma bola de borracha e a mãe um par de sapatos.
Só Zelinda ficou com raiva e começou a brigar com ela todos os dias; reclamava porque Gina não lavava os pés para dormir ou porque se mexia durante o sono e a acordava,
reclamava porque Gina gostava da boneca de pano e ameaçava-a dizendo que um dia jogaria aquela porcaria no lixo. Só em ouvir essa ameaça, Gina chorava aos gritos,
desesperada. Mais tarde, ficou conhecendo uma menina, filha dos ricos que moravam em cima; essa menina tinha muitos livros. Gina começou a ler; leu tudo que encontrou.
Tinha apenas oito anos quando leu a coleção de Júlio Verne, emprestada pela menina dos ricos, como dizia ela. Compreendeu que a vida tinha mais do que bonecas e
gatos para enfeitá-la; tinha livros também.
Passaram quase um ano no porão da rua Antiga Amélia; no inverno seguinte, nos dias muito frios, a água começou a cair pelas paredes e dona Julica voltou às antigas
reclamações. Passava o dia enxugando as paredes e quando o professor estava em casa, discutiam por causa da água. Dona Julica ficava às vezes tão zangada que não
fazia o almoço; quando o marido chegava ao meio dia, não havia o que comer, coçava então a barbicha com ar desanimado, olhava o seu rosto ameaçador e dizia calmo:
- Non li arrabiare, Dona Julica, se mangia quello che cose, Gina ia comprar mortadela e pão na esquina; comiam os dois sentados lado a lado na porta e davam as migalhas
para o gato que passava miando, o rabo esticado. O amigo Giacomo ia sempre visitá-los; propôs um dia morarem todos juntos nuns cômodos da rua S. Caetano, com janelas
dando para a rua. Ele ajudaria a pagar as despesas. Dona Julica exultou e Gina sentiu-se feliz. Nessa mesma semana mudaram-se para lá; embaixo era uma venda e a
família do professor instalou-se em cima com o amigo Giacomo.
Gina ficava à janela todas as tardes, vendo o movimento da rua S. Caetano. As noites de sábado eram barulhentas na venda; ela ouvia gritos de homens, batidas de
mãos cerradas no balcão de madeira e tinir de copos, uns contra os outros. Muitas vezes ouvia gritos mais fortes e uma noite, já era quase de madrugada, ouviu a
policia entrar e levar um bêbado. Acordou assustada e teve vontade de espiar o bêbado mas, foi retida pelo medo. Os domingos eram divertidos. O pai trazia massa
do Liceu e fazia figurinhas para Gina; das suas mãos cheias de veias, mãos que pareciam mágicas, iam saindo figuras de crianças, de anjos, de bichos. Gina aplaudia
batendo palmas. Às vezes, ele desmanchava tudo para fazer outras, e Gina guardava cuidadosamente depois no seu quarto, num lugar onde a irmã não visse, se não jogaria
tudo fora, aos gritos.
Um domingo, Gina acompanhou o pai ao Liceu; quando voltou para casa, antes dele, não encontrou a mãe; queria mostrar-lhe o dinheiro que havia ganho de um professor
amigo do pai. Não encontrando ninguém, ia descer para comprar doces na venda, quando ouviu vozes no quarto de Giacomo. Então o amigo Giacomo estava em casa, mostraria
o dinheiro a ele. Empurrou devagar a porta e espiou para dentro do quarto; tornou a fechar imediatamente e saiu correndo, tremendo de susto. Vira a mãe e Giacomo
deitados na cama.
À hora do almoço, enquanto comia, viu Giacomo olhá-la por cima do copo de vinho. Teve medo. Fingiu que não viu e baixou a cabeça sobre o prato outra vez. O pai estava
alegre e conversador; tomou o grande pão escuro encostou-o ao peito; cortou grossas fatias que distribuiu na mesa, depois cortou o queijo e encheu os copos de vinho.
Seus olhos espertos corriam de cá para lá, enquanto contava casos do Liceu. Gina espiava a mãe; dona Julica parecia distraída e não olhou para o lado dela uma vez
sequer; enchia os pratos de nhoque e passava aos outros. O amigo Giacomo espetava o garfo em cada nhoque, passava no molho muitas vezes e levava-o à boca; o molho
escorreu-lhe uma vez pela barba; ele limpou rapidamente com a manga da camisa e continuou a comer, despreocupado e alegre.
Gina tornou-se uma das primeiras alunas da classe; no fim do ano, após oito meses apenas de estudos, passou para o segundo ano. Quando voltava das aulas, ficava
brincando na rua com as crianças dos vizinhos; brincavam de "amarelinha" na calçada. Gina pulava com um pé só nos quadrados riscados a carvão e quando alguém passava,
tinha que se desviar das crianças. Mas quando os meninos brincavam com bolinhas de vidro, Gina ficava de cócoras olhando; às vezes dizia qualquer coisa e os meninos
riam dizendo: "Isto não é brinquedo pra você. Dá o fora".
Às vezes encontrava Cosme ou a "menina dos ricos"; Cosme contava quantos pastéis vendera aos soldados da Avenida Tiradentes e mostrava-lhe o dinheiro fazendo as
moedas tilintarem no côncavo da mão. Depois oferecia-lhe um pastel, A menina emprestava-lhe novos livros que ela lia em algumas horas apenas, sofregamente.
Não gostava da casa. Todos os dias ouvia brigas e discussões; se não era entre o pai e a mãe, era entre a mãe e o amigo Giacomo, quando estavam sozinhos. Diziam
palavrões um para o outro e quando Giacomo estava cambaleando e com os olhos faiscantes, ameaçava de matar dona Julica com a faca de cortar pão. Nesse dia Gina,
teve muito medo e à hora do jantar, enquanto o professor cortava o grande pão contra o peito, Gina tirou os olhos da faca: tinha dentes como uma serra, era comprida
e fina na ponta. Depois olhou a mãe; imaginou então em que lugar o amigo Giacomo espetaria a faca pontuda: no peito ou na barriga?
Zelinda detestava a irmã. Quando voltava da oficina de costura, ficava conversando na esquina com o namorado, obrigava-a a dizer que não vira nada, caso a mãe perguntasse.
Dona Julica não queria que ela namorasse aquele moreno antipático. E Gina mentia, mas seu rosto ficava vermelho e ela parecia sufocar. Se hesitava às vezes em mentir,
Zelinda dava-lhe beliscões e os braços e as pernas de Gina estavam sempre arroxeados; se se queixava a dona Julica, esta dizia:
- Não me amole. Vá trabalhar.
Um dia, quando Gina chegou do Grupo, encontrou a mãe empacotando roupas; ficou admirada e perguntou se ia viajar. Inclinada sobre o saco de roupa, Com rugas na testa
e gotas de suor escorrendo pelo rosto, dona Julica disse que estava se preparando para irem a Campinas visitar a avó que estava doente. Gina perguntou:
- Eu também vou?
- Então? Quer ficar aqui para viver na rua. Anda. Gina pensou nos estudos que iria deixar, nas aulas que perderia, agora que ia passar para o terceiro ano, mas como
desobedecer à mãe? Começou a auxiliá-la. À tarde, quando o professor Pasquale veio jantar, dona Julica contou que ia com as filhas a Campinas visitar a mãe doente;
recebera uma carta. O professor nada disse. Levantou os ombros num gesto resignado e encostou o pão contra o peito para cortá-lo; depois comeu o macarrão, bebeu
o vinho e foi se deitar. Na manhã seguinte, logo depois que o professor foi para o Liceu, dona Julica e as duas meninas pegaram o saco de roupa e foram para a estação
da Luz, mas em vez de entrarem na estação, passaram direito e desceram a rua Prates. Admirada, Gina olhou a mãe e nada perguntou; andaram mais de meia hora, afinal
chegaram à rua Areal, no Bom Retiro; a mãe parou na frente de uma casinha com duas janelas e uma porta no meio. Uma porção de crianças brincavam na calçada e no
meio da rua; jogavam bola, corriam e gritavam numa grande algazarra. D. Julica bateu e a porta se abriu. Quem estava ali diante delas, sorridente e alegre? O amigo
Giacomo. Gina compreendeu imediatamente. Não havia carta de Campinas, nem a avó estava doente, nada disso. D. Julica tinha apenas abandonado o professor Pasquale;
dali em diante iriam morar com o Giacomo. Entraram cheias de curiosidade e a casa tinha uma sala, dois quartinhos e a cozinha. Pegado à cozinha, havia outro quartinho,
onde dormia um amigo de Giacomo, o Santoro, mas que só vinha à noite para casa. Enquanto olhavam tudo, Giacomo passava o braço na cintura de dona Julica que se esquivava
e sorria satisfeita. Começaram a arrumar as roupas e as panelas. Giacomo, em mangas de camisa, auxiliava a colocar as coisas nos lugares. Pregou uma folhinha colorida
na parede da sala, depois deu uns passos para trás para ver o efeito: a folhinha representava quatro crianças brincando na areia, coradas e risonhas. Na salinha,
havia uma mesa tosca e quatro cadeiras. Dona Julica ia e vinha, preparando o almoço; quando passava perto do amigo Giacomo, este a segurava pela cintura:
- Giulia, mia Giulia...
Ela olhava para ver onde estavam as meninas e sussurrava qualquer coisa que o fazia rir. Gina fingia nada ver. Tirou a boneca de trapo do fundo do saco e foi sentar-se
à porta da rua para olhar a criançada brincar. A mãe chamou-a:
- Gigina.
Depois explicou em voz baixa:
- Você não pode ficar na porta da rua; podem descobrir que estamos aqui e o excomungado do teu pai vem nos buscar.
Depois acrescentou:
- Se perguntarem teu nome, você é Iracema. Ouviu bem?
Zelinda é Lídia e meu nome é Maria. Entendeu? Zelinda também entendeu? Não fique aí fora.
Gina arriscou:
- Então não posso ir ao Grupo? Eu queria continuar ....
- Cala a boca. Zelinda também não vai na costura. Ninguém sai de casa. No mês que vem, o Giacomo vai nos levar para uma casa perto da cidade, uma casa maior que
esta. Vais ver.
A vida era muito estranha na rua do Areal; não podiam sair, não podiam falar com ninguém. O amigo Giacomo trazia vinho todas as tardes e bebiam muito. O Santoro
também jantava com eles algumas vezes e quando Zelinda passava perto dele, Santoro puxava-a pelo braço ou beliscava-lhe o queixo. Um dia Gina viu Zelinda no colo
de Santoro e ficou muito admirada; Santoro era um velho, tinha cabelos brancos. Dona Julica dizia que ele era sem vergonha. Velho ordinário. Aos domingos, depois
do almoço, dona Julica e Giacomo iam dormir; Gina e Zelinda sentavam-se então nos degraus da escada que dava para a rua; era um lugar escuro e pela porta entreaberta,
ficavam olhando quem passava na rua. Apostavam. "Agora é um menino". "Não é. É homem." "Mulher." "Velho." "Acertei, burra." "Burra é você". Brigavam.
Quando Santoro entrava e as via ali, dava uma risada e convidava-as para irem ao quarto dele, conversar. Um dia Zelinda foi e no dia seguinte, quando dona Julica
soube, deu-lhe uma sova muito grande. Zelinda gritava:
- Eu não fiz nada. Não fiz nada. Só conversei. Juro.
Soluçando, entrou depois no quarto onde Gina estava vestindo a boneca de trapo; apontou-lhe o dedo indicador, o rosto em fúria:
- Foi você que contou pra mamãe. Foi você.
Gina levantou-se, assustada:
- Eu? Eu não, Zelinda. Eu não disse nada. Juro que não disse nada. Eu.
Os socos de Zelinda interromperam-lhe a frase; deu-lhe no rosto na cabeça, nos ombros. Gina saiu correndo do quarto e foi para o fundo do quintal, onde ficou o resto
do dia, com a bonequinha entre os braços. Só à noite, quando o amigo Giacomo veio da rua, foi buscá-la e, para a agradar mandou-a comprar doces na venda. Santoro
passou uma semana sem aparecer. Dona Julica e Giacomo continuavam a discutir e a brigar; quando ele bebia, dizia que havia de matar dona Julica com a faca de pão.
Gina vigiava a faca de pão. Via a lâmina que nem serra, acabando em ponta. Tinha medo.
Uma tarde, uns quatro meses depois de estarem morando na rua do Areal, a discussão entre os dois foi mais forte e dona Julica disse que ia embora. Estavam jantando
e já haviam bebido muito vinho. Quando Giacomo ouviu-a dizer isso, ficou vermelho de raiva e foi buscar a faca na cozinha. Zelinda e Gina ficaram brancas de medo
e correram para a porta dá rua; dona Julica gritou que ficassem trancadas no quarto, não queria que ninguém saísse. Quando o amigo Giacomo entrou cambaleando na
sala, a faca comprida na mão, os olhos vermelhos e injetados, dona Julica segurou uma cadeira e levantou-a no ar, ameaçando atirá-la na cabeça do Giacomo. Ele hesitou,
depois começou a persegui-la à volta da mesinha; sempre segurando a cadeira acima da cabeça, ela se afastava e se desviava, enquanto as duas meninas tremiam e gritavam
num canto da sala, perto da porta do quarto. Dona Julica não tirava os olhos dele; e ele rangia os dentes de raiva porque não podia alcançá-la. Pareciam duas feras;
Foi nesse instante que ouviram batidas na porta da rua ficaram todos parados, imóveis. Dona Julica mostrou maior calma; sem tirar os olhos de Giacomo, gritou para
as meninas:
- Abram a porta. É o Santoro.
Zelinda correu e abriu; Santoro entrou, sacudindo as roupas molhadas; lá fora estava chovendo. Admirado, perguntou o que havia; então, o Giacomo, atirou longe a
faca e caiu de joelhos diante de dona Julica, chorando e implorando:
- Giulia, mia Giulia...
Ela sacudiu, a cabeça desgrenhada e voltou as costas a Giacomo. Nessa mesma noite, chamou as duas filhas para dormirem no quarto com ela; não deixou Giacomo entrar.
E no dia seguinte bem cedo, logo que os homens deixaram a casa, ela cobriu-se com um chalé de lã preta, chamou as duas meninas e saram. Seus olhos estavam secos
e ardentes. Chovia ainda e a rua do Areal era só lama e poças de água suja. Foram andando. Chegaram em frente ao Liceu de Artes e Ofícios; dona Julica mandou Zelinda
perguntar o endereço do professor Pasquale. Enquanto moraram no Bom Retiro, haviam sabido que o professor se mudara. Ninguém conhecia Zelinda no Liceu; ela disse
na portaria que seu nome era Lídia, era parente de uma sobrinha do Signor Pasquale. Contou que a família queria vir de Campinas e não sabia o novo endereço do professor.
Dona Julica e Gina esperavam no portão do Jardim da Luz. Quando Zelinda voltou com o endereço escrito num papelzinho, dona Julica começou a falar que o professor
era muito bom, muito sossegado e que se arrependia de ter ido morar com Giacomo. Enquanto iam voltando para casa, chorou de arrependimento dizendo que o velho Pasquale
nunca batera nela, nem quando bebia um pouco mais, coitado, e o amigo Giacomo era um bandido. Seu corpo estava cheio de manchas roxas; ali mesmo na rua, levantou
a ponta da saia e mostrou às duas meninas a perna toda marcada. Não queria mais saber dele; eram dois bandidos, Santoro e Giacomo.
Chegaram em casa, molhadas e friorentas. Antes mesmo de trocar de roupa, dona Julica sentou-se na mesinha da sala, onde estavam ainda as xícaras sujas de café e
escreveu ao marido. Disse que devido à moléstia da mãe, passara todo o tempo em Campinas, mas estaria de volta muito breve com as duas meninas. Gigina estava forte
e bonita, a viagem fizera-lhe bem. Pôs data atrasada e mandou Zelinda colocar a carta numa caixa de ferro, na rua dos Italianos.
Passaram o dia todo preparando a mudança e à tardinha, antes do amigo Giacomo voltar para casa, saíram com sacos de roupa e panelas e foram sob a chuva para o novo
endereço do professor, lá para o lado da Praça João Mendes. Havia uma porção de casas iguais no primeiro quarteirão da praça; lá estava o número indicado no endereço.
Já era escuro, quase noite; havia uma luz na sala da frente. Dona Julica parou e olhou para a luz. Murmurou:
- Imagine a surpresa do velho.
Subiram alguns degraus e ela bateu com a ponta dos dedos; o velho Pasquale abriu a porta e ficou surpreendido, a boca aberta, olhando as três diante dele. Depois
gritou, levantando os braços para cima:
- Gigina! Eh! Gigina!
Dona Julica abraçou-o olhando à volta, perguntou:
- Não recebeu minha carta? Escrevi em Campinas contando que vinha.
- Não. Nada recebera. Ele estava jantando na cozinha. Cortava rodelas de lingüiça crua e comia com pão e cebolas. Bebia. Bebia vinho, D. Julica olhava tudo agradavelmente
surpreendida. Havia fartura. O velho Pasquale mandou que sentassem e comessem; e com a boca cheia, contou que o filho Pepino estava com ele, aquele que trabalhava
no circo, o Pepino. Então dona Julica fechou a cara; não gostava desses filhos do primeiro matrimônio. Mas o professor explicou; enquanto mastigava, contou que o
Pepino estava com ele só enquanto. o circo estivesse em S. Paulo, depois iria novamente para o interior; quem sabe para mais longe, Minas, Paraná. Ela se acalmou
e, enquanto comia, contou fatos ocorridos em Campinas durante o tempo que estivera lá; falou longamente sobre a moléstia da mãe e explicou porque não haviam voltado
antes. O professor sacudia a cabeça e mastigava com ruído, depois bebia vinho e estalava a língua.
Gina sentiu-se feliz essa noite; estava ao lado do pai e depois havia o circo do irmão. Iria ao circo uma noite.
As duas meninas dormiram no chão para deixar o colchão para Pepino, quando voltasse do circo. Ele só chegou de madrugada quando a chuva começara a cair. E no dia
seguinte à uma hora ainda dormia, enrolado no cobertor vermelho, a luz do dia batendo-lhe em cheio sobre o rosto esbranquiçado de pintura. Dona Julica foi acordá-lo:
Pepino! Acorda, Pepino! Venha almoçar. Ele abriu os olhos, espantado. Levantou-se de mau humor, foi se lavar na torneira do tanque e voltou, ainda se enxugando para
a cozinha. As orelhas estavam vermelhas e a água corria-lhe ainda pelos cabelos. Sentou-se à mesa queixando-se da pouca freqüência do circo devido ao mau tempo.
Achou Gina crescida e bonita.
Depois do almoço, tirou um cigarro do bolso e começou a conversar; gostava de falar. Todos ficaram escutando-o sobre a vida que levava. Contou que o circo percorrera
várias cidades do interior e voltava agora de Amparo, onde tiveram prejuízo. Chovera durante três meses e o circo não podia trabalhar com chuva. Choveu tanto que
o capim cresceu dentro do circo "desta altura" e Pepino mostrava a cintura. Não havia dinheiro, não havia comida. De manhã bem cedo, a cozinheira fazia uma lata
de querosene de café e os artistas passavam o dia bebendo-o, às vezes com um pedaço de pão, mas não comiam todos os dias, senão o dinheiro não sobrava para a viagem
de volta. Tinham fome e não podiam dormir; e quanto mais sentiam fome, mais a chuva caía, barulhenta e alegre como a rir daquela miséria grande. Batia na lona esburacada
e cheia de remendos, caía por lodos os lados, salpicava a cara dos homens e das mulheres que, acocorados à volta da lata de querosene, esperando a chuva passar;
mas ela não passava. Dia e noite caía, forte e barulhenta; às vezes em pingos grossos e às vezes em salpicos leves e claros, para fingir que estava cansada e ia
parar de cair. Mas quando os homens e as mulheres levantavam-se e iam espiar lá fora, pisando sobre o capim encharcado, os corações cheios de esperança, ela tornava
a cair, barulhenta e alegre, como a rir daquela situação triste.
O tempo passava e a miséria crescia com a chuva; as mulheres enterravam as cabeças entre as mãos e ficavam molhadas e friorentas esperando que o tempo melhorasse;
os homens com as barbas crescidas e olhares amortecidos, blasfemavam à volta da lata de querosene e fumavam, fumavam sem parar. Chuva! Chuva a cantar lá fora e a
fome a chorar li dentro, aquela fome que aumentava, que crescia e fazia as cabeças se esconderem, desanimadas, entre as mãos crispadas. E no dia seguinte, a mesma
coisa; o mesmo céu escuro e carregado, as mesmas nuvens negras tapando o sol, o capim crescendo no picadeiro, verde e ondulado, e a fome, a desesperança crescendo
nos corações.
Três longos meses se passaram assim. Um dia um raio de sol espantou a chuva e o dia clareou; as nuvens negras foram embora e só ficaram nuvens brancas como bandos
de carneirinhos a percorrer um campo azul. Os homens do circo desfizeram a carranca e as mulheres começaram a cantar; cortaram o capim, armaram o circo e o programa
foi organizado; lá estavam os nomes de todos os artistas, o do Juvêncio e o da mulher do Juvêncio, a Rosalina, que estava esperando criança. Quando Juvêncio viu
o nome da mulher no programa, correu e falou ao diretor: Rosalina não podia trabalhar no trapézio, - estava grávida de seis meses.
O diretor tirou o cigarro da boca, cuspiu longe e disse que ela trabalharia só naquela noite; o programa já estava feito e trazia o nome dela; não podia tirar. Rosalina
precisava trabalhar. Juvêncio foi embora com o coração apertado; a chuva caíra durante tanto tempo e o bebê estava para chegar. Como Rosalina poderia trabalhar?
E à noite, o circo estava cheio. Todo o mundo foi assistir ao espetáculo; quando Rosalina apareceu e sorriu para o público, os artistas estremeceram; ela poderia
trabalhar naquele estado? E ela trabalhou. Jogou-se no ar de um trapézio a outro e atirou beijos ao publico que aplaudiu. Juvêncio respirou fundo. Que grande artista
era Rosalina! Os companheiros se entreolharam sorrindo: A Rosalina ia bem! Era preciso o nome dela no cartaz. Não havia dinheiro e a miséria era tão grande que se
não tivessem um lucro com esse primeiro espetáculo, que seria do circo? Rosalina precisava trabalhar.
E no último instante, ninguém sabe como foi; a banda de música. estava tocando uma valsa muito triste: "O vendedor de pássaros". Rosalina sorriu para todos os lados
e atirou-se no ar; suas mãos não alcançaram o outro trapézio, ninguém sabe como foi, seu corpo pesado volteou no ar e caiu no chão, todo esparramado. Um grito só
saiu de todas as bocas, a música parou, os artistas correram: estava morta. Só suas mãozinhas muito brancas e leves fizeram ainda um movimento no ar como dois pássaros
feridos. Mais nada. Mas os que estavam perto, ouviram um grito de criança quando o corpo de Rosalina bateu no chão; disseram que a criancinha dera um grito de dor.
Mais nada. Só isso. Pepino parou de falar.
Dona Julica sacudiu a cabeça, silenciosa e Gina não compreendeu bem, mas não perguntou. Imaginou onde estaria o filho de Rosalina e à noite, com os olhos muito abertos,
ouviu na sombra, os ais da criancinha.
Todas as tardes, quando Pepino saía para os ensaios, Gina ficava olhando-o e admirando seu corpo elástico e esbelto. Era bonito, o Pepino.
Uma tarde ele arranjou entradas para toda a família. Foi inesquecível para Gina. Viu o irmão suspenso no espaço, Seguro, apenas pelos pés e seu corpo fino vestido
de malha branca ia e vinha no ar em piruetas estonteantes. Com as mãos úmidas de suor e o coração aos pulos, Gina não perdia um movimento sequer; sentiu nesse dia
uma admiração sem limites pelo irmão.
Mas não se passou muito tempo e o circo seguiu para Santos. Lá se foi Pepino outra vez e Gina passou muitas noites sonhando com ele; via seu corpo branco balançando
no espaço e depois pairando como se tivesse asas. E Pepino dizia-lhe adeus com as duas mãos e atirava-lhe beijos. Depois viu Rosalina com a criancinha nos braços;
volteavam no ar como duas folhas perdidas, dessas que caem das árvores nas tardes sombrias e vão rolando, caindo, voando e se arrastando, abandonadas e amarelas,
sem ter para onde ir.
Acordava então suando frio, o coração batendo, descompassado.

















II

Durante algum tempo residiram nessa casa, perto da Praça João Mendes. Gina conseguiu matricular-se no Grupo Escolar da Liberdade e Zelinda entrou para outra oficina
de costura.
Sempre que podia, Zelinda maltratava a irmã, era má, invejosa e mesquinha. Não podia ver a irmã brincando ou fazendo as lições, vinha sorrateiramente com um ar inocente,
um sorriso nos lábios e começava:
- Você pensa mesmo que é minha irmã? Uma ova! Você foi encontrada por mamãe numa estrada de ferro.
Esperava. Gina sentia o sangue afoguear-lhe as faces; baixava a cabeça. Zelinda então ficava furiosa por não obter resposta e continuava, sarcástica:
- Se não acredita pergunte pra mamãe. Foi entre Campinas e Jundiaí; o trem ia andando e nós olhamos pela janelinha, íamos visitar vovó em Campinas. De repente o
trem parou perto de uma estaçãozinha para tomar água. Você sabe que os trens bebem água? E enquanto o trem estava bebendo água, vimos uma criança suja, feia, horrível,
engatinhando na beira da estrada...
Gina sentia-se sufocar. E se fosse verdade? Zelinda falava com tantos detalhes, devia ser verdade. Sentia vontade de chorar. Quem sabe era por isso que a mãe só
gostava de Zelinda. A irmã percebia-lhe a emoção e continuava:
- Os cabelos nem pareciam cabelos, estavam imundos e emaranhados; não tinha quase roupas, parecia um bicho. Gina gritava, revoltada, os olhos em fogo:
- Mentira!
Zelinda riu-se às gargalhadas:
- Mentira? Pergunte pra mamãe. Quando ela viu aquela criança, desceu do trem e viu uns homens ali por perto rachando lenha. Perguntou: Sabem de quem é esta criança?
Não. Ninguém sabia. Então ela pegou você, enrolou num xale que ia levando pra vovó e trouxe aquela imundície para o trem. De dó.
Gina começava a chorar. Protestava:
- Mentira. Não acredito. É mentira.
- É verdade. Mamãe, não é verdade que Gina foi encontrada na estrada perto de Campinas?
Dona Julica, distraída levando os pratos na cozinha ou costurando perto da janela, respondia com indiferença:
-É.
A cabecinha de Gina pendia para a frente, sobre o caderno onde fazia as lições; seu rosto se contraía de dor. Zelinda dizia, triunfante:
- Eu não disse? Estava mais suja que um cachorro da rua, desses que vivem fuçando nas latas de lixo. Ninguém sabe de onde você veio, ninguém sabe. Mamãe criou você
de dó.
Gina chorava cada vez mais e levantava para dar em Zelinda. Esta, mais forte, empurrava-a. A mãe gritava:
- Cale a boca.
Zelinda deixava a sala e ia se enfeitar para passear na calçada; quando passava perto de Gina, puxava-lhe os cabelos:
- Trouxa!
Quando o professor estava em casa, Zelinda não fazia isso. E quando ele voltava e via Gina chorando, queria saber o que se passava. Ela contava entre soluços o que
a Irmã havia dito; o pai consolava-a dizendo que tudo era mentira, brincadeira, não acreditasse. Zelinda era astuciosa e má. Quanto tinha de feia, tinha de má. Não
acreditasse. Gina enxugava os olhos e continuava a fazer as lições. O professor dirigia-se a dona Julica:
- Per che tu lasci Zelinda maltratare la piccina? Per che?
Dona Julica sacudia os ombros e não respondia. Ele ficava zangado e falava alto; seus gritos repercutiam na rua. De repente, dona Julica perdia a paciência e gritava
também. Discutiam durante muito tempo. Gina fechava os cadernos, guardava tudo na prateleira da cozinha e corria para o quintal. Chamava as crianças da vizinha,
pulava o muro meio desmoronado e iam brincar de esconde-esconde.
Passava-se algum tempo assim. Na primeira oportunidade, Zelinda atormentava a irmã outra vez, falava sobre o encontro da criança que parecia bicho. E Gina chorava
até o pai vir consolá-la. Um dia quando ela voltou da escola, encontrou a casa desorganizada; o pai tivera um ataque no Liceu e viera carregado para casa. Estava
na cama, muito mal. O médico havia dito que era um ataque cerebral e que necessitava muito cuidado. Durante os primeiros dias, viu o pai de longe, da porta do quarto;
ele estava sempre com os olhos fechados, a barba esbranquiçada sobre o peito, a respiração irregular. O médico vinha vê-lo uma vez por dia. Dona Julica suspirava
e lamentava-se, aborrecida, toda despenteada. Vinham algumas visitas, amigas do Liceu, mas o professor não as via; sempre de olhos fechados, imóvel sobre o leito.
Só na segunda semana, começou a melhorar e a sentar na cama. Então perguntou por Gina e ela conversou com ele; sentou-se na beira da cama e falou sobre as lições,
a professora, sobre os próximos exames.
Passaram mal depois da doença do professor Pasquale; tiveram que fazer uma refeição só por dia para que o dinheiro sobrasse para pagar o médico e a farmácia; dona
Julica reclamava todas as noites quando iam se deitar, depois de ter jantado uma sopa rala. O professor recomeçou a trabalhar; um ano depois, teve o segundo ataque.
Não tinha saído ainda para o Liceu; estava se aprontando e no momento em que dava o laço na gravata, caiu estendido no chão. Dona Julica mandou chamar a Assistência,
disse que não precisava médico porque ela sabia como havia de tratá-lo. Durante muitos dias, ele ficou no quarto escuro, sem falar; só se ouviam seus gemidos de
vez em quando. Às vezes, quando Gina chegava do Grupo Escolar, às quatro e meia, encontrava a mãe com, visitas; um dia reconheceu a voz do amigo Giacomo. Enquanto
o pai gemia no quarto escuro, ela recebia as visitas no quarto das filhas, fechada a chave. Gina ouvia as risadas do homem e a voz da mãe que falava alto, sem se
importar com o que se passava lá fora. O pai gemia no quarto escuro. O amigo Giacomo quando a via brincando na calçada, dava-lhe uma moedinha; os outros também.
Gina entrava furtivamente e ia na ponta dos pés até à cozinha; lá, entre os cadernos e livros, numa das prateleiras, ela escondia as moedinhas que os homens davam.
Durante algumas semanas foi assim.
Depois o professor voltou a trabalhar no Liceu; mas Gina notou alguma diferença no pai. O professor Pasquale já não era o mesmo; estava esquisito, indiferente, não
falava mais com ela e um dia em que Zelinda bateu-lhe, o pai não a defendeu como das outras vezes; sorriu até, o olhar distante como se não entendesse o que se passava
perto dele. Um dia, afinal, surgiu a verdade: o professor Pasquale estava ficando louco. Levaram-no para um hospício. Gina chorou muito nessa noite, a cabeça escondida
sob o travesseiro para que ninguém ouvisse; lembrava do olhar do pai nos últimos dias; era um olhar estranho que mesmo que pousasse sobre ela, não a fixava; parecia
passar por cima da sua cabeça ou atravessar o seu corpo e ir longe, muito longe, onde ela não alcançava.
Sem o pai em casa, tudo foi se modificando: as visitas chegavam de dia e de noite, Gina vivia na rua. Às vezes ia para as casas dos vizinhos, ou ficava brincando
na calçada com outras crianças. Quando a mãe não fazia nada para o jantar, ela procurava um pedaço de pão pelos cantos da cozinha e comia-o com cebola ou torresmos
que a mãe deixava sempre no fundo da panela sobre o fogão. Comprava às vezes um doce com o dinheiro que ajuntava; ia à venda da praça e escolhia um daqueles doces
coloridos que havia numa vitrina lá dentro. Pensava muito antes de escolher; queria um grande, que rendesse.
Um domingo, a mãe ordenou que se aprontasse, pois iriam ao hospício visitar o professor. Gina lavou com água e sabão os sapatos furados na sola, esfregou a cabeça,
tomou banho no tanque perto da escada da cozinha e saiu com a mãe depois do almoço. Tomaram um trem e depois de uma hora desceram numa estação pequena cheia de gente.
Andaram a pé por uma estrada empoeirada, onde muitas pessoas caminhavam .em direção ao hospício. De quando em quando, um automóvel passava levantando poeira vermelha:
os arbustos e o capim da beira da estrada, estavam também vermelhos de pó. O sol brilhava implacável sobre as cabeças; dona Julica cobriu-se com um jornal para defender-se
do calor. No portão do hospício tiveram que esperar um pouco, depois entraram, atravessaram um jardim e subiram uma escada de pedra. Do terraço que rodeava o edifício,
viram um pátio cheio de homens vestidos com uniforme pardo; uns estavam sentados nos bancos, outros passeavam de um lado a outro, poucos conversavam. Tinham as cabeças
raspadas e alguns olharam as visitas com indiferença. Através da grade de ferro do terraço, Gina ficou olhando e procurando o pai, enquanto a mãe conversava com
um homem que devia ser o diretor. De súbito, divisou o pai que vinha vindo devagar, com a roupa parda, as mãos atrás das costas; sua barba estava completamente branca,
tinha um ar abatido e desanimado. O coração de Gina começou a bater forte. Coitado! pensou. Estava diferente, olhava para o chão com um olhar obstinado. O diretor
chamou-o; ele levantou a cabeça e seus olhos fixaram-se em dona Julica; ela sorriu e fez sinal com a mão. A fisionomia do professor não se modificou, continuou,
impassível como se não visse ninguém. Depois seu olhar fixou Gina; então, muito lentamente, seu rosto foi se transformando. Primeiro foram os lábios; abriram e tornaram
a se fechar sem pronunciar som algum; depois o olhar foi se fixando, foi adquirindo um brilho estranho enquanto suas mãos moveram-se e seus dedos; crisparam-se;
todo o corpo do professor parecia vibrar sob uma violenta emoção. Gina tremia, o rosto inclinado para o pátio, olhando o pai e sorrindo, sorrindo como se quisesse
falar: "Papai sou Gigina; sou eu, papai". E de repente um grito rouco saiu dos lábios do pai, um grito de agonia, de alivio, de dor:
- Gigina!
Como se nesse grito estivesse contida toda a tortura de sua alma. Houve um momento de expectativa. Dona Julica recuou dando um gemido; o diretor deu ordens a um
enfermeiro para que trouxesse o professor Pasquale. Entraram todos numa sala pequena ao lado do gabinete do diretor, dona Julica estava nervosa; tirou o lenço da
bolsa de couro preto (presente do amigo Giacomo) e começou a passá-lo nos olhos e na testa. Falava apressadamente com o diretor, dizendo que o marido já -estava
bom, pois reconhecera a filha tão depressa: o diretor sacudia a cabeça dizendo que o professor iria ficar curado, mas ainda não podia deixar o hospício. Tivesse
paciência e esperasse uns meses mais, até Junho talvez. D. Julica assustou-se:
- Tanto tempo ainda? Coitado do Pasquale.
Foi quando o professor entrou na pequena sala, rodeado por dois enfermeiros de uniforme branco. O diretor adiantou-se e falou com ele, perguntou-lhe se estava melhor
e se já estava preparado para ver a mulher e a filha; ele sorriu para o diretor, um sorriso morto sem expressão; depois deu uns passos trôpegos até o meio da saleta.
Olhou um por um; Gina quase não o reconheceu. Seria esse seu pai? Tão velho, alquebrado, a boca torta e puxada para cima, um ar tão triste. Nem parecia aquele homem
alegre que cantava "Santa Lúcia" nas manhãs de domingo, enquanto se vestia. O olhar do professor passou por dona Julica, imperturbável; fixou Gina outra vez; ela
tornou a sorrir e deu um passo à frente: - Papai. Mas o olhar do professor passou também por ela, um olhar ausente como se não a conhecesse e voltou-se para o diretor.
Dona Julica começou a chorar enquanto Gina olhava sem compreender; tornou a dizer: Papai! E estendeu os braços; o professor Pasquale recuou como que temendo que
a filha o tocasse e procurou a porta para sair; os dois enfermeiros levaram-no para fora. Os passos ressoaram no corredor enquanto dona Julica chorava alto e o diretor
explicava que isso era muito comum e que ele estava melhor, pois, num momento de lucidez, reconhecera a filha. Imóvel de um lado, Gina escutava e olhava; depois
acompanhou a mãe e voltaram para a estação pela estrada empoeirada, cheia de sol. Só quando estava no trem, de volta a S. Paulo, Gina lembrou-se de que não entregara
o presente que havia levado ao pai. Como ele gostava muito de queijo, guardara durante várias semanas, as moedinhas que os amigos de dona Julica depositavam na sua
mão quando saíam, e comprara um pedaço de queijo, enrolara num jornal para dar ao pai sem que a mãe percebesse. Vendo agora o embrulho na mão, abriu-o e começou
a mastigar o pedaço de queijo, enquanto olhava a paisagem que passava rapidamente diante dos seus olhos. Via através dos campos, das árvores, das casas que iam ficando
para trás, a imagem triste do professor com a barba comprida toda branca, os olhos mortos como se não enxergassem, arrastando os pés na saleta do diretor. Depois
lembrou-se que quase todos tinham a cara lisa, sem barba, sem bigode; o pai tinha a barba e não haviam raspado os cabelos dele. Pensou: "Também ele não é qualquer
um. É professor do Liceu, e professor de escultura. Por isso." Lembrou-se do grito que ele dera: Gigina! quando ainda estava no pátio. E das lagrimas de dona Julica
e das palavras do médico; o diretor era médico. Tudo foi ficando para trás como a paisagem que parecia correr ao lado dela; pensou como seria bom se tivesse um cavalo
negro e galopasse ao lado do trem para ver quem chegaria primeiro. Ela havia de fazer o cavalo galopar tanto que passaria adiante do trem: seria negro, negríssimo.
Pêlo brilhante, luzidio, orelhas espetadas para cima, crina comprida que parecesse voar no galope, lindo e valente; pularia aquela cerca, o rio. O rio não seria
nada para ele. Seria como sopro? Puf!... já estariam do outro lado. Voaria por cima da ponte, espantaria aquelas galinhas no terreiro, passaria através daquelas
florestas (árvores não seriam nada para seu cavalo) daria um pulo naquele barranco, passaria na frente daquela casa, passaria todo o mundo e chegaria antes do trem
na estação. Ganharia a corrida. Acabou de comer o queijo, amassou o pedaço de jornal e arremessou-o pela janelinha. Dona Julica nem perguntou onde ela encontrara
o queijo, pois estava entretida conversando com um homem que encontrara na estrada. Gina debruçou-se para ver onde iria parar o jornal amarrotado; viu que havia
dado de encontro a um poste, depois caiu numa poça d'água. Imaginou que aquela água empoçada não seria nada para seu cavalo. Foi quando percebeu o trem entrando
na estação de S. Paulo. Dona Julica acabava de passar pó de arroz e depois deu o endereço para o homem conhecido. Passou tinta vermelha nos lábios; nem parecia que
havia chorado. Desceu do trem rindo muito para o homem, porque escorregara na escadinha e o homem, segurara-lhe o braço. Ainda olhou para trás para dizer adeus a
ele. Depois apressou-se:
- Vamos, Gina. É tarde.
Quase um ano depois, o professor voltou para casa. D. Julica que estava esperando, recebeu-o com uma macarronada e uma garrafa de Chianti. Gina estava com onze anos
nessa ocasião; foi a única que se sentiu realmente feliz com a volta do pai. Ele continuou a trabalhar no Liceu; já estava com a cabeça branca, andava devagar e
falava lentamente, procurando as palavras. Em casa era chamado "o velho".
Um dia ele voltou mais cedo porque não estava passando bem no Liceu, e encontrou dona Julica com um homem no quarto das filhas. Brigaram durante toda a tarde; quando
Gina chegou, ainda brigavam. Nessa noite, o professor saiu para dar uma volta como fazia sempre e não voltou mais para a casa. Às onze horas, quando dona Julica
fechou as janelas e a porta, Gigina perguntou: Papai ainda não voltou?
Dona Julica sacudiu os ombros e não respondeu. Nem no dia seguinte, nem durante muito tempo, tiveram noticias do professor Pasquale. Às escondidas, Gina procurava.
Foi ao Liceu, lá disseram-lhe que o professor não mais aparecera nas aulas de escultura, estava doente da cabeça.
Com o tempo, Gina foi se esquecendo dele; no fim desse ano, quando já havia tirado o diploma no Grupo Escolar, Pepino voltou a S. Paulo acompanhando o circo, foi
visitá-las uma noite, e prometeu levá-las ao espetáculo. Gina bateu palmas de satisfação, depois lembrou-se de contar que o pai havia desaparecido, ninguém sabia
dele. Pepino prometeu descobrir-lhe o paradeiro.
Um sábado à tarde, Pepino apareceu com entradas para dona Julica, Zelinda e Gina. Todos foram ao circo, armado no caminho do Ipiranga e de longe, Gina viu as luzes
através da lona que o vento sacudia de vez em quando. A banda tocava um dobrado alegre; lá dentro, Gina sentiu-se deslumbrada; uma multidão aplaudia os artistas;
e havia dois palhaços que viravam cambalhotas, um deles tinha um grande sol pintado nas costas. Gina pensou: engraçadíssimo. Riu e aplaudiu. Como era divertido!
Comia amendoim, e batia palmas para tudo o que via; seus olhos brilhavam de excitação. Maravilhoso. Queria ser artista de circo, pediria a Pepino. E nunca Pepino
trabalhou tão bem como nessa noite; seu corpo fino e branco fazia piruetas no ar e parecia voar de um trapézio a outro. Toda a gente batia palmas entusiásticas e
Gina sentiu-se orgulhosa do irmão. Era o melhor artista.
No dia seguinte, um domingo, ele apareceu à hora do almoço. Levou um quilo de lingüiça para dona Julica fritar e uns pastéis de anchovas. Almoçaram tomando cerveja
e ouvindo as histórias de Pepino: contou que numa cidade do interior, o Bentóca morrera, o negrinho que não era de ninguém. Zelinda perguntou com a boca cheia:
Como não era de ninguém?
Pepino enxugou, com as costas da mão, a boca molhada de espuma de cerveja:
- O Bentóca apareceu não se sabe de onde; não tinha pai, nem mãe, não tinha ninguém no mundo. O diretor ensinava-o a andar em cima do cavalo; o negrinho tinha um
medo louco, mas debaixo de muita chicotada, ia aprendendo.
Gina franziu a testa:
- Ele apanhava, Pepino?
- Então! Para aprender, todos têm que apanhar. Eu também apanhei. Um dia ele ficou magrinho, magrinho e começou a tossir. Ninguém se importava. Quem ia se importar
com um negrinho sem dono? E o diretor, plaf! plaf! chicote no Bentóca. Aprende, negro!
Mastigou um grande pedaço de lingüiça com pão e continuou:
- Fomos indo de cidade em cidade. O negrinho tossindo e emagrecendo. Um dia vi ele escarrando sangue e contei ao diretor: "Creio que ele está tuberculoso". O diretor
franziu a testa, pensou um pouquinho e virou as costas.
Gina mexeu-se na cadeira:
- Ele não se importou?
Pepino parou de comer:
- Bem. Não chamou mais o Bentóca para andar no cavalo, mas também não tratou do negrinho. O diabo estava cada vez pior; ninguém queria chegar perto dele, de medo
da doença. Afinal quando chegamos em Guará, o negrinho não podia nem ficar de pé. Estava agonizando. A voz nem saía mais, de tão baixa. Todos os artistas ficaram
numa casa alugada em Guará e cada um tomou o melhor quarto. Mas o Bentóca, estava deitado sobre uns trapos, em cima do cimento.
Olhou à volta da mesa e repetiu:
- Em cima do cimento frio como o diabo. Então chamei um companheiro, tiramos uma porta do batente e pusemos no chão para servir de cama para o negro. Aí ele agonizou
três dias e morreu. A mulher do meu companheiro dava café para ele de hora em hora; ele tomava umas colherinhas que nem criança. Na véspera de morrer, ele me chamou
e pediu uma galinha com molho pardo. Sonhava durante anos de vontade de comer uma galinha com molho pardo.
Dona Julica interrompeu com uma risada:
- Que engraçado! Deram a galinha para o negrinho?
Pepino parou um pouquinho:
- Fizemos uma "vaca": cada um deu um pouco. Um deu quinhentos réis, outro deu dez tostões, até juntar tudo.
O diretor não deu nada, disse que era besteira do negro.
Compramos uma galinha e a mulher do meu companheiro de trapézio preparou a bicha com molho pardo. Levamos ao Bentóca.
Fez uma pausa para provocar a curiosidade e encheu o copo de cerveja. Começou a beber pausadamente. Zelinda não se conteve:
- Bentóca comeu?
- Não. Já tinha morrido. Não estava bem morto ainda, mas não pôde provar a galinha, acho que nem percebeu nada. Foi tarde demais.
Houve um silencio. De repente Zelinda começou a rir. Dona Julica gritou:
- O que viu? Por que ri assim? Boba alegre!
Ela riu mais:
- Estou lembrando da galinha com molho pardo. Que azar do Bentóca. O que ele perdeu. Podia ter adiado a morte só por um dia... um dia só...
Dona Julica riu também, depois falou:
- Você está tocada pela cerveja. Bebeu demais. Ela subiu; Pepino, ponha o resto dessa garrafa no meu copo, faça o favor.
Os outros riram. Haviam tomado muita cerveja; Zelinda tinha os olhos úmidos; Dona Julica dava gargalhadas e batia nas costas do Pepino para ele contar mais histórias.
Pepino contou que suas finanças haviam melhorado, agora tinha porcentagem nos lucros do circo; pretendia um dia ser o proprietário. No meio da conversa, Gina perguntou
de repente:
- Pepino, e quem comeu a galinha?
- Que galinha?
- A do Bentóca...
Pepino deu ma palmada com força no joelho direito:
- Ainda está pensando no Bentóca, Gigina? Ah! Ah! Ah! Quem havia de comer? Nós todos comemos, não iríamos jogar fora só porque ele morreu. Não é todo o dia que se
tem galinha com molho pardo.
Estalou os lábios. Dona Julica deu uma gargalhada; olhou as garrafas vazias sobre a mesa; Pepino disse que ia comprar mais cerveja. Quando voltou Gina lembrou o
pai que continuava desaparecido; dona Julica tirou um lenço cor de rosa de dentro do decote e começou a se lamentar dizendo que viviam mal e que era uma tristeza
não terem noticias do marido. Bem ou mal, sempre Pasquale ajudava nas despesas. Coitado! Pepino despejou mais cerveja no copo de dona Julica dizendo que o pai havia
de aparecer e ele até já tinha um indício; não contaria ainda, mas sabia mais ou menos onde ele estava. Bebendo mais cerveja, dona Julica perguntou quem era a artista
que trabalhava com Pepino no circo; piscou e deu-lhe outra palmada nas costas; depois pediu mais histórias.
Uma semana depois, Pepino apareceu antes do espetáculo do circo, dizendo que não trabalharia essa noite porque encontrara o pai, mas ele havia morrido. Dona Julica
levou as mãos à cabeça:
- O que está dizendo? Não entendo nada. Encontrou Pasquale e ele morreu? De que morreu? Quando?
Pedindo calma, Pepino sentou-se e contou o que sucedera. Todos ficaram escutando; Gina tinha os olhos secos, parece que tinha areia dentro.
Descobrira o pai no Braz, morava com uma família italiana; ninguém sabe como ele havia ido parar lá, fazia algum serviço para essa família. Ele achava que o pai
não estava bom da cabeça quando saiu de casa. Havia deixado o Liceu há muito tempo. Pepino quis convencer o professor a voltar para casa, queria fazer uma surpresa
para dona Julica e para Gina, por isso não contara nada. E como estivera muito ocupado no circo, passara uma semana sem ver o pai. Na véspera, fora visitá-lo e encontrara-o
agonizando; apanhara uma pneumonia dias antes, quando tomara chuva, e nessa mesma madrugada, fora preciso chamar a Assistência, pois o velho gemia sem poder dormir,
seu peito sibilava como um apito de trem. Agora estava morto. Quando ele chegara à tarde para uma visita, antes do espetáculo da noite, encontrara o professor muito
mal, nem reconhecia ninguém, nem falava. E de repente morreu. Pepino acabou de falar e ficou olhando o chão, um olhar um pouco apalermado. Dona Julica foi lá para
dentro sem dizer nada, pôs um xale preto nas costas e chamou Gina. Saíram. Quando já estavam a uma certa distância, Gina lembrou-se que devia calçar seus sapatos
novos, pois aqueles estavam tão furados que o dedo grande aparecia, mas a mãe não deixou, disse que fosse assim mesmo, pois para visitar o pai morto, sapatos velhos
serviam. Tomaram o bonde do Braz; durante todo o tempo, Pepino foi se queixando: não tinha dinheiro para o enterro; o pouco que economizara, estava guardando para
o seu casamento, pretendia se casar um ano mais tarde. Perguntou se dona Julica não tinha economias; ela disse que não. Sua voz ficou irritada; o que ele estava
pensando? Sustentar uma casa com duas filhas mocinhas que precisavam de roupas, de calçados, de alimentos, era horrível. Há quanto tempo o professor não entrava
com um vintém para as despesas? Zelinda trabalhava na oficina e o pouco que ganhava, era para o bonde e para os trapos que vestia. Gina só gastava e comia; Ela é
que tinha que trabalhar na costura dia e noite; às vezes trabalhava até meia noite para ter o que comer no dia seguinte. Voltou o rosto do outro lado. O bonde avançava
barulhentamente pela avenida afora. Pepino tirou o chapéu e coçou a cabeça; lamentou-se outra vez. O dinheiro que custara tanto a ganhar, o dinheiro era dele, não
dava ninguém. Fez uma carranca. Dona Julica explodiu:
- Mas é teu pai, Pepino, é teu pai!
Desceram do bonde discutindo; Gina pensava como encontraria o pai. Na casa onde o professor morava, havia loja de calçados na frente e a família morava nos fundos.
Algumas crianças estavam brincando na calçada ao lado de uma velha e uma mulher gorda com uma criança pequena nos braços. Pareciam estar tomando a fresca ali fora.
Um homem que devia ser o dono da casa, guiou-os para os fundos; atravessaram um pátio cimentado, passaram perto de um tanque cheio de roupas e garrafas e chegaram
à porta de um quartinho. O homem mandou que entrassem. Dona Julica entrou na frente, seguida de Gina e Pepino. Viram então o professor deitado sobre uma tábua apoiada
sobre caixões de gasolina. Duas velas brilhavam na cabeceira; uma delas estava quase derretida, no chão havia montes de espermacete. Gina olhou um pouco assustada
para o rosto do pai. Estava quase irreconhecível; sua barba branca toda emaranhada caía-lhe sobre o peito; os poucos cabelos brancos não estavam penteados, seu rosto
parecia de cera, os olhos levemente entreabertos fixavam a parede da frente. A boca também não estava fechada. Gina procurou nas feições imóveis, o sorriso alegre,
o olhar malicioso quando brincava com ela, mas a rigidez do cadáver fazia-o quase um desconhecido. Uma lagrima brilhou nos olhos de Gina enquanto dona Julica começou
a chorar alto e tirou o lenço cor de rosa do fundo do decote. Pepino ficou embaraçado, muito quieto, o chapéu na mão. O homem deixou-os. Então dona Julica começou
a se lamentar, fungando e passando o. lenço pelos olhos e pelo nariz. Gina olhava fixamente o rosto do pai; viu uma mosca passeando pelos lábios do professor e espantou-a
com a mão. Teve vontade de alisar-lhe os cabelos brancos, mas não ousou. Viu-lhe as mãos cruzadas sobre o lençol, aquelas mãos que faziam coisas tão bonitas, aquelas
mãos que faziam carinhas de anjos tão perfeitas. Reparou que à volta das unhas havia círculos escuros. Era um lençol que cobria o corpo do pai. Onde estavam suas
roupas? O paletó? A calça? Então iam enterrá-lo envolto num lençol como um mendigo? Não era possível. Sentiu uma revolta tão grande que teve ímpetos de gritar: "Ladrões,
tiraram as roupas de meu pai. Ladrões."
Sem saber ainda que fazer, ficou olhando. Depois chamou Pepino para um lado e falou baixinho. Preocupado com as despesas do enterro, Pepino não respondeu, fez um
gesto vago e continuou a olhar para o chão. Gina deixou o quartinho, atravessou o pátio e entrou na casa do proprietário da sapataria. Umas quatro crianças tomavam
café, sentadas à volta da mesa enquanto a velha mastigava um pedaço de broa com a boca sem dentes e a mulher do sapateiro servia as crianças. Parada à porta da sala,
Gina perguntou de repente:
- Onde estão as roupas de meu pai?
Como ninguém respondesse, ela continuou:
- Onde estão as roupas? O paletó? A calça? O chapéu?
A velha parou de mastigar e olhou-a estranhamente como se perguntasse: "O que quer essa menina?" A mulher continuou a servir o café e o homem apareceu na outra porta
abotoando os suspensórios. Gina não teve medo; tomou um ar resoluto e levantou a voz, ameaçando:
- Onde estão as roupas de papai? Se não entregarem a roupa de meu pai, vou dar parte à policia. Papai tinha roupas muito boas. Vou dar parte à policia e vou chamar
meu irmão.
O homem ficou parado com as calças meio desabotoadas; começou a dizer que o velho apareceu lá quase sem roupa, eles é que haviam dado tudo, ela que calasse a boca
ou eles iriam pô-la para fora. Gina falou mais alto; disse que de qualquer modo, o pai não poderia ter aparecido na casa deles enrolado em lençóis e ela queria as
roupas. Bateu o pé no chão num gesto resoluto; percebeu Pepino atrás dela e lançou um olhar ameaçador para o dono da casa. O homem sacudiu os ombros e resmungou;
olhou a mulher que sem dizer nada, deixou a cafeteira sobre a mesa e entrou num quarto; logo mais voltou com um embrulho que jogou aos pés de Gina com desprezo.
Pepino pegou o embrulho e quis brigar com o homem, mas Gina segurou-o pelo braço. Pepino resmungou: ladrões.
Quando voltaram com o embrulho, o quartinho estava quase às escuras; as velas haviam se apagado e dona Julica estava cochilando. Pepino acendeu as velas novamente,
ouviram de lá as imprecações e as ameaças dos donos da casa; diziam que as roupas deviam ser deles porque o velho só comera e dera prejuízo, não trabalhara nada.
Um vagabundo. Pepino fez um movimento para ir dar naquela gente, Gina segurou-o outra vez pelo braço. Vestiram o pai: as calças, a camisa, a sobrecasaca. Passaram-lhe
um pano úmido sobre o rosto, onde as moscas pousavam a todo instante e pentearam-lhe os raros cabelos e a barba. Pepino saiu para comprar mais velas e voltou com
um embrulho sob o braço; era pão e salame que eles comeram de madrugada, num canto do quarto, enquanto dona Julica cochilava sentada no chão com as costas contra
a parede. O defunto repousava entre quatro velas e o vento fresco que vinha do pátio, renovava o ar abafado e agitava molemente as chamas.
No dia seguinte cedo, o professor Pasquale foi enterrado no cemitério do Araçá; Pepino foi avisar o Liceu. Todos os amigos compareceram para acompanhar até o ultimo
instante o grande artista, o escultor que fazia milagres com um pedaço de massa entre seus dedos mágicos e esculpia figuras maravilhosas em madeira.
























III

Mudaram de residência na mesma semana; dona Julica alugou um quarto ligado a um pequeno pátio onde colocou o fogão de lata de querosene e ali foram residir, ela
e as duas filhas, na rua Livre.
Gina fez logo amizade com a filha de uma professora que morava em frente e que, em pouco tempo, percebeu a vontade que Gina tinha de aprender, como queria que a
filha também estudasse, começou então a dar lições às duas meninas: história, geografia, matemática. Gina aprendia com assombrosa facilidade. Tinha também extraordinária
vocação para música; uma tarde em que passava pela Avenida Luis Antonio, parou para ouvir uma musica muito bonita que cantavam numa casa: "Ave Maria" de Gounod.
Nessa mesma noite, cantou toda a musica em casa, diante da mãe estupefata.
Mas a miséria começou a bater na casa da rua Livre. Zelinda declarou que não queria mais aprender costura, não nascera para isso. Queria arranjar um emprego de vendedora;
tinha uma amiga que vendia linhas e botões numa loja da rua Santa Efigenia e ela queria um emprego assim. Gina também começou a procurar trabalho. A amizade com
a professora e a filha durou pouco; a vizinhança começou a murmurar sobre as visitas que dona Julica recebia. A professora resolveu mudar-se e não deixou endereço
a Gina, apesar de ter prometido.
Zelinda namorava um rapaz que residia na rua Liberdade; um dia convidou-o para entrar e tomar um café feito pela mãe. Ele entrou e ficou conhecendo Gina, nunca mais
se interessou por Zelinda. Chamava-se Osório. Gina tinha apenas doze anos nessa época e já era bonita, bonita de chamar atenção. Cabelos pretos e ondulados, a tez
delicada e rosada, olhos enormes, um pouco amortecidos como se tivessem febre. O corpo fino e perfeito, as mãos longas e brancas.
Osório começou a freqüentar a casa de dona Julica quase todos os dias; trabalhava como vendedor numa casa de couros do largo da Sé e estudava à noite; dizia que
queria ser jornalista e escritor. Quando vinha dar uma prosa na rua Livre, trazia um salame enrolado em papel prateado e dona Julica cortava-o em rodelas finas e
distribuía entre as três. Era o jantar que, disfarçadamente comiam ali mesmo com pão e bananas, diante de Osório. Ele percebeu que elas não tinham quase o que comer,
e então prometeu arranjar empregos para Zelinda e Gina. Mas o tempo passou e os empregos estavam cada vez mais raros. Por mais que procurassem, nada encontravam.
Zelinda começou a odiar Gina, dizia que ela lhe tomara o namorado; se não fosse a irmã, Osório casar-se-ia com ela. Gina sacudia os ombros com displicência e não
dava importância às palavras da outra. Saía todos os dias à procura de colocação e quando voltava para casa, cansada e desiludida, encontrava Osório conversando
com dona Julica e Zelinda. Comiam juntos, sentados na cama. A fumaça que vinha do pátio, onde as vizinhas cozinhavam seus jantares, enchia o pequeno quarto, misturada
com cheiro de cebolas, gordura e coisas fritas. Havia também a gritaria das crianças; corriam em algazarra, brigavam, diziam palavrões. Às vezes eram brigas entre
casais; havia ruído de pancadaria e gritos de mulheres. Gina então tapava os ouvidos e tinha pressa que Osório saísse, para que ela pudesse se deitar e descansar.
Tomava banho no tanque onde todas lavavam suas roupas; era um banho rápido e medroso quando tudo ainda estava escuro, tinha medo de.ser surpreendida.
Um dia, apresentou-se à Cia. Telefônica e conseguiu uma colocação; apesar de sua idade não ser suficiente para trabalhar na Companhia foi aceita porque mentiu afirmando
que já fizera quinze anos. Zelinda também empregou-se na mesma Companhia, mas trabalhavam em horas diferentes; cada uma começou ganhando 30$000 por mês. Gina suspirou
aliviada. Ia, enfim, ganhar algum dinheiro. Trabalhava com coragem. Tinha que sair tão cedo de casa que no inverno precisava vestir-se com luz acesa. Mas a luz fora
cortada por falta de pagamento; então dona Julica queimava jornais velhos que encontrava na Praça João Mendes, fazia uma tocha com eles e ficava segurando acima
da cabeça para que Gina se vestisse. Em cinco minutos, estava pronta; saía às vezes sem café e à hora do almoço, voltava faminta e friorenta, encontrava a mãe fazendo
uma sopa magra, onde molhavam o pão para fazê-la render. Quando os primeiros ordenados das filhas entraram em casa, dona Julica sentiu-se novamente feliz; comprou
alguma roupa de que precisava e convidou Osório para almoçar com elas aos domingos. Fazia então uma macarronada com pedaços de carne e molho farto; comiam com apetite,
como no tempo no velho Pasquale. Depois do almoço, Osório costumava convidar Gina para darem uma volta pela cidade; passeavam até tarde nos parques e jardins; às
vezes no centro da cidade para ver as vitrinas. Paravam e ficavam olhando. Gina suspirava diante de tanta coisa bonita e inacessível. Osório dizia que havia de ser
rico um dia e daria a ela tudo o que quisesse. Sorriam e continuavam a andar vagarosamente, sem destino. Comiam amendoim torrado, sentados no banco dos jardins.
Osório contava os artigos que escrevia para os jornais, tinha esperança de ser jornalista. Queria ser escritor, havia de escrever livros, queria ser um homem de
letras. Por enquanto trabalhava vendendo couros, mas um dia seria diferente. Voltavam à noitinha tomavam café que dona Julica fazia na lata de querosene. No quarto
cheio de fumaça e de cheiro de coisas fritas, eles conversavam ouvindo os gritos das crianças e os ralhos das mulheres. Depois Osório se despedia prometendo voltar
no domingo seguinte; dona Julica dizia que ia dar uma "voltinha" pela Praça. Zelinda ia conversar no portão com outro namorado que havia arranjado. Gina deitava-se
o adormecia para levantar no dia seguinte quando todos ainda dormiam.
Gina começou a fazer amizades na Companhia Telefônica; conheceu uma porção de moças que sabiam conversar, contavam casos que a principio ela não compreendia e davam
gargalhadas quando ela corava. Era divertido. Quando saía com a Pascoalina, iam juntas passear na cidade; Pascoalina ensinava-lhe como se deve arranjar namorado,
como se deve aproveitar a vida. E Gina ria, ria. Como a Pascoalina era engraçada!
Pascoalina tinha sempre dinheiro; oferecia um sorvete a Gina nos dias de calor e, no inverno oferecia-lhe chocolate quente num bar que havia perto da Companhia.
Gina saboreava a bebida com prazer nunca havia tomado nada tão delicioso, e agradecia a Pascoalina, emocionada.
A amiga dava-lhe palmadinhas nas costas:
- Não tem que agradecer, Gigina! Eu ganho um dinheirinho extra!
Ambas riam com gosto. Um dia, quando estavam trabalhando, Pascoalina mandou-a ouvir uma conversa curiosa pelo fone, Gina ouviu uma voz de homem falando com uma mulher.
Escutou, interessada;
- Quando então? Amanhã?
- Não sei... Vamos ver...
- Por que "vamos ver"? Diga amanhã meu amor. Estou com tantas saudades...
- Amanhã é perigoso.
- Por quê? Vamos, amor. Tenho tanta coisa para contar...
- O que é? Conte agora.
- Agora não posso. Lá eu conto, no nosso ninho. Sonhei com você...
- O sonho foi bom?
- Delicioso. Diga que vai amanhã...
- Está bem. Eu vou, mas...
- Adoro você. Então à hora do costume. Amanhã. Um beijo.
Gina ouviu um som prolongado de beijo. Começou a rir e olhar para Pascoalina. A outra piscou:
- Isso é sempre assim, Gigina. Quase todos os dias.
Eu me divirto um colosso.
Gina ficou pensativa. Nunca ouvira palavras tão agradáveis, tão carinhosas, tão doces. Havia de ser bom a gente ouvir uma voz assim, tão terna.
Perguntou:
- Quem será?
Pascoalina voltou-se, admirada:
Quem? Os gajos do telefone? Dois diabos que fazem coisas proibidas.
Dois dias depois, Gina ouviu as mesmas vozes conversando marcando novos encontros. Resolveu intervir. Quando o homem pediu ligação, ela intrometeu-se na conversa
deles. O homem assustou-se: "Tem alguém escutando nossa conversa. Amanhã eu telefono", desligou. Gina nada contou às companheiras, mas divertiu se muito; sentiu
prazer em assustar os dois. No dia seguinte fez a mesma coisa. Deu apartes no meio da conversa, ouviu um desaforo. Respondeu com outro e uma risada. Chamou uma das
companheiras e contou toda a história, No dia seguinte esperaram a hora com ansiedade; estavam nervosas. Pascoalina não viera nesse dia era uma pena. Ficaram esperando
e de repente ouviram o pedido de ligação e a voz do homem, um pouco ressabiada: É você? A voz feminina respondeu:
- Sou, sim. Como vai?
Houve um silêncio. Parece que os dois estavam receosos de uma interrupção; de súbito ele perguntou, medroso, a voz bem baixa:
- Hoje?
Gina e a amiga puseram a mão na boca para rir. Antes da voz feminina respondesse, Gina falou: hoje não, vou tomar banho. Ela falou alto, divertida. Admirada da outra
não acompanhar a brincadeira, levantou, a cabeça. Diante delas, estava a chefe das telefonistas, a mesma que a havia admitido na Companhia. Estava séria, furiosa,
fitando as duas meninas com olhares coléricos. Nessa mesma tarde foram expulsas e Gina ficou sem trabalho.
Voltou para casa muito desanimada e contou que perdera o emprego. Foi então que Zelinda exultou; enquanto Gina ficava em casa, sem ganhar nada, ela voltou à Companhia
e continuou a trabalhar. Osório tornou-se mais assíduo na casa de dona Julica; quando percebia que antes do fim do mês não havia mais dinheiro e ninguém vendia fiado,
dava cinco mil réis para dona Julica ir se arranjando até Zelinda trazer o ordenado. Gina começou a procurar emprego outra vez, mas agora era mais difícil encontrar
algum trabalho, pois fora expulsa de uma Companhia.
Osório dizia que se ganhasse mais um pouco, ajudaria a todos, mas o dinheiro não dava para tudo, tinha que estudar à noite e precisava de livros. O que pudesse dar,
daria de boa vontade.
Uma tarde, convidou Gina para dar uma volta e durante o passeio pelo Jardim da Luz, perguntou se ela faria o que ele pedisse. Gina olhou-o:
- Por que não? Tudo o que você quiser, eu faço.
Você tem sido tão bom para nós, tem dado dinheiro pra ma mãe, tem levado coisas para nosso jantar, tem procurado emprego para mim. Como não?
Fechou os olhos ao lembrar da penúria do quartinho da rua Livre. Afinal Osório havia feito tudo para suavizar aquela miséria. Ele parou na margem do lago e segurou
com força a mão de Gina. Olhou para os peixinhos vermelhos que nadavam entre nenúfares verdes. Olhou-a, o rosto bem pertinho do rosto dela. Perguntou com a voz um
pouco diferente:
- Gina, Gigina, você faz o que eu pedir? Faz? Ela sorriu, divertida:
- Faço.
Ele puxou-a mais para perto e sentiu o corpo trêmulo de Gina junto ao seu. O sol já ia sumindo e um vento frio começou a passar através das plantas do Jardim da
Luz; a água do lago se encrespava toda quando o vento passava. O jardim estava quase deserto devido ao frio. Gina sentiu um arrepio; sua mão, vermelha e gelada,
estava entre as mãos quentes de Osório. Ficou olhando os peixes. Ele perguntou baixinho, sempre apertando a mão dela:
- Jura?
- Juro.
- Então venha comigo.
Puxou-a pela mão. Ela acompanhou-o entre curiosa e trêmula. Seu coração batia tão depressa que pareceu-lhe que ia perder a respiração. Atravessaram a estação da
Luz e foram andando pelas ruas da vizinhança. As luzes se acenderam todas, de repente. Osório pediu que ela esperasse um pouco na esquina; ele voltaria logo. Não
demorou muito tempo e apareceu com uma expressão feliz na fisionomia, os olhos alegres de excitação. Nervosamente, segurou-a pelo braço:
- Vamos, Gigina.
Chegaram em frente a uma porta onde havia apenas uma tabuleta: "Alugam-se quartos". Entraram, ele sempre na frente; não viram ninguém.
Gina viu-se num quarto, onde havia uma cama e uma cadeira; sobre uma pequena mesa uma lâmpada com luz fraquinha. Osório apagou a luz e abraçou-a fortemente; Gina
deixou-se abraçar. Era isso que Osório queria? Coitado! Fora sempre tão bom, faria a vontade dele. Sentiu os beijos de Osório sobre seu rosto, seu pescoço, sua boca.
Lembrou-se da conversa que ouvira no telefone entre os dois "diabos", como Pascoalina dissera. Por que diabos? Era tão bom deixar-se abraçar, beijar. Lembrou-se
da água do lago, ficava toda crespa quando o vento passava; decerto era frio. Ela também estava com frio e tremendo. Sentia a respiração de Osório junto ao seu rosto,
e seus beijos cálidos, perturbadores. Abraçou-se a ele. Mal ouvia o vento que continuava a soprar pelas ruas, vindo do Jardim da Luz. Lembrou-se dos peixinhos do
lago e do rosto radiante de Osório quando ela disse: "Juro."
A miséria foi aumentando no quartinho da rua Livre.
Há muitos anos, dona Julica não recebia mais as visitas misteriosas que se fechavam no quarto com ela e cochichavam e davam risadinhas. Estava envelhecida, feia,
quase sem dentes, não atraía mais ninguém; passava ainda vermelho nas faces e vermelhos nos lábios, penteava os cabelos com esmero, usava blusas decotadas, onde
escondia, no decote, o lenço cor de rosa e depois de cobrir-se com o que tinha de melhor, ia dar uma volta pela Praça João Mendes. Procurava conversar com uns e
outros, ria-se quando ouvia piadas; ou gracejos, e rebolando seu corpo magro, voltava sozinha para o quartinho da rua Livre, desanimada e miserável. Seu rosto enrugado
e murcho não tinha mais o viço da mocidade, como no tempo do professor Pasquale e quanto mais as rugas aumentavam nas suas faces, mais aumentavam também as miséria
e o desalento.
Em vão, Gina continuava a procurar trabalho; aceitaria qualquer coisa, só não queria ser copeira em casa de família. Isso não.
Um dia dona Julica lembrou-se de visitar os padrinhos; eram ricos e importantes, residiam na rua Duque de Caxias. Como não lembrara antes? Chamou as filhas; explicou
que talvez o padrinho, ex-senador, arranjasse um emprego para Gina, era um homem importante, antigo amigo de sua família, em Campinas. Resolveram ir num domingo
à tarde. Nesse dia, dona Julica não pintou as faces e os lábios; ficou pálida e tristonha. Pediu emprestado um casaquinho escuro de uma das vizinhas, uma mulata
que fazia cocadas, e foram para a rua Duque de Caxias, depois de terem pensado bem sobre o que iriam dizer. Contariam toda a verdade.
Na casa do ex-senador, ficaram sentadas num terraço ao lado, esperando que as mandassem entrar, mas ninguém mandou. Esperaram durante uns vinte minutos; viram canarinhos
em gaiolas, flores nas trepadeiras, goivos nos canteiros ao lado da casa. Falavam pouco e baixinho. Ouviam vozes que vinham lá de dentro, entremeados com risos e
tinir de copos. Com certeza estavam almoçando, nem lembraram que os ricos almoçam tarde.
De repente a madrinha apareceu acompanhada por uma filha moça e duas crianças que traziam grandes pedaços de bolo nas mãos e comiam devagar, olhando com indiferença
para as visitas. Gina e Zelinda olharam o bolo gulosamente; parecia delicioso, coberto com creme. Gina sentiu a boca encher-se de saliva e virou o rosto para não
ver mais. A madrinha lembrou-se de repente, interrompendo a, conversa com dona Julica e dirigindo-se à criança mais velha:
- Vá dizer lá dentro que tragam bolos e café para as visitas. Ande, Francisco.
Gina e Zelinda olharam Francisco com ar suplicante; Gina até esboçou um sorriso. Iriam comer daquele bolo? Ah! Meu Deus! Inclinando a cabeça para trás a fim de não
perder o creme que se estava desprendendo do pedaço de bolo, Francisco comeu as ultimas migalhas e sumiu correndo lá para os fundos do terraço. Gina seguiu-o com
os olhos, interessada e esperançosa. O menino entrou na casa por uma porta lateral. Ansiosamente, ficou esperando; via um pratinho nas suas mãos e sobre ele um grande
pedaço daquela maravilha amarelada; decerto o creme era de chocolate porque era escuro, quase preto. Comeria devagar para não mostrar que estava faminta, faminta
de tudo que era bom e gostoso; com certeza nunca esqueceria aquela fatia deliciosa. A mãe respondia às perguntas da madrinha, falavam de pessoas conhecidas de Campinas.
Ouviu uma voz grossa, lá dentro; "O desenvolvimento econômico do Brasil..." Outra voz grossa falou: "As eleições provocaram sempre pontos de divergência entre..."
Gina pensou: "Por que será que o bolo está demorando tanto? A criada está cortando..." "As assembléias..." "Está pondo nos pratos, um pedaço para cada visita..."
"Aqueles que assinaram o manifesto..." "Os três pratos estão sobre a bandeja grande. Agora vem trazer, vem vindo, vem vindo..."
Gina prestou atenção no que a madrinha estava falando; queixou-se de dona Julica ter passado tantos anos sem procurá-la. Por que não a visitava de vez em quando?
Dona Julica com voz repassada de dor, começou a desfiar o rosário de misérias; contou primeiro a morte do Pasquale. Como o destino fora cruel! Eles que viviam tão
felizes, tão unidos, sem nunca se separarem, e de repente a morte os separa brutalmente, deixando-a desesperada com aquelas duas meninas... Gina lembrou-se da morte
do pai, as moscas passeando sobre o rosto e a barba do professor e a mãe cochilando com as costas contra a parede. Contou depois a corrida atrás dos empregos para
as filhas, as dificuldades, as lutas, a falta de roupas para se apresentarem decentemente nos empregos. A madrinha ouvia com condescendência mas impaciente, porque
a todo o instante consultava as horas num relógio pulseira cravejado de brilhantes. A filha moça havia se levantado, fora lá dentro falar ao telefone, voltara outra
vez e sorrira para Gina e Zelinda enquanto ouviam o relato de dona Julica.
Houve um movimento de portas, ouviram vozes, Gina pensou que era a bandeja com o bolo que vinha, era o padrinho, homem rico, ex-senador, que entrou na sala, acompanhado
de uma senhora e um senhor que decerto haviam também almoçado lá, comido o bolo com creme. Olhando novamente o relógio, a madrinha apresentou dona Julica ao marido
e ao casal que entrara; contou que queriam um emprego para a filha mais moça, Georgina. E sorriu para Gina. O padrinho ouviu distraidamente alisando os bigodes grisalhos.
De súbito, quando a madrinha estava terminando e o ex-senador parecia ter prestado atenção, ele se levantou num impulso rápido e aproximou-se de uma das gaiolas
dos canários. Ficou nas pontas dos pés e espiou para dentro; todos seguiam os movimentos do ex-senador. Ele voltou-se para a madrinha, um ar contrariado:
- Como é que deixaram o canário sem alface hoje? Eu já disse que precisa alface todos os dias para o canarinho. Leontina! Onde está Leontina?
A mocinha levantou-se e foi chamar Leontina na porta da sala. Uma criada apareceu e o padrinho interpelou-a com energia:
- Onde está a alface para o canarinho?
Todos estavam interessados na alface. A madrinha voltou-se para dona Julica:
- Ele adora os canários. Mas veremos o que podemos fazer. Talvez a gente possa arranjar alguma colocação para sua menina. A senhora que entrara com o dono da casa,
falou para a madrinha:
- Esta menina está boa para tomar conta das crianças de Eulália. Você não acha?
E olhou Gina sorrindo. A madrinha perguntou:
- Que idade tem? Quer ser pajem das crianças de minha sobrinha? A filha mocinha que não dissera nada, respondeu depressa:
- Ora, mamãe, ela tem aptidões para um emprego melhor do que tomar conta de crianças. Quem sabe papai pode arranjar algum lugar numa Companhia? Ou num escritório?
Tornaram a prestar atenção na criada que trouxera alface; o ex-senador em pessoa colocou uma folha na gaiola do canário; fez um gesto com a boca como se estivesse
assobiando, os bigodes quase roçando as grades da gaiola. Como se se lembrasse de súbito, voltou-se para a esposa, o relógio entre as mãos:
- Não são horas de ir? Três e meia. Peça licença...
Dona Julica fez um movimento para se levantar e desculpou-se, mas a madrinha levantou-se mais depressa e pedindo que esperasse um instante, foi lá dentro. "Agora
vem o bolo, ela foi buscar o bolo," pensou Gina. E cravou os olhos na porta. A madrinha apareceu com um pacote que colocou delicadamente nas mãos de dona Julica;
ela e as filhas que já estavam de pé para sair, despediram-se agradecendo muito. Quando desciam a escada de mármore, a madrinha recomendou com carinho:
- O que eu puder fazer para as meninas, eu faço. Pode ficar certa. Mandarei chamá-la logo que houver alguma coisa.
Na rua, durante o percurso de volta, Gina e Zelinda quiseram saber o que havia no pacotinho. Seria o bolo inteiro? Antes de abrir, apalparam-no, cheiraram-no, querendo
adivinhar o conteúdo. Afinal dona Julica abriu-o com curiosidade; havia uma blusa velha de tricô, uma saia de linho desbotada e um envelope com uma nota de cinco
mil réis. Gina apertou os lábios sem dizer nada, Zelinda disse um nome feio. Dona Julica lembrou-se de repente que não deixara o endereço; de que forma a madrinha
avisaria se arranjasse alguma colocação? Nem perguntara onde elas moravam. Fez um movimento pra voltar, mas Gina segurou-a pelo braço:
- O que? Voltar para dar o endereço àquela gente?
Não senhora. Estavam loucos para nos verem pelas costas, nem perguntaram onde nós morávamos, querem que eu seja pajem das crianças da Eulália... Nada disso. Prefiro
procurar emprego sozinha... até morrer. Mamãe, nem nos deram um pedaço de bolo...
Sentiu a boca cheia de saliva. Zelinda pediu a nota de cinco mil réis, entrou na primeira confeitaria que encontrou e comprou doces. Começou a mastigar e ofereceu
um à mãe e à irmã. Gina tornou a falar:
- Eles não querem saber, de nós, mamãe. Eu estava louca para comer aquele bolo. Bandidos.
Imitou a voz do ex-senador:
- Leontina! O canarinho precisa de alface. Alface todos os dias, ouviu, Leontina?
Riu-se e continuou com a boca cheia:
- Deixe aquela gente, mamãe. E nós que não comemos alface há quantos anos? Nem sei. E aquele bolo, meu Deus! Pestes!
Chegaram à rua Livre e encontraram Osório esperando-as com um pacote de lingüiça nas mãos. Dona Julica ficou satisfeita; foi convidando Osório para entrar, tirou
logo o casaquinho emprestado, arregaçou as mangas e foi fritar a lingüiça. O cheiro encheu o quarto; Osório, sentado na cama ao lado de Gina, tirou do bolso um papel
e mostrou-lhe; era um artigo que escrevera para um jornal, não sabia ainda se seria aceito.
Enquanto ela lia, em voz baixa, ele olhava-a fascinado; desde um domingo antes em que haviam estado juntos perto da estação da Luz, juntos e sozinhos num quarto,
ele não aparecera mais. Pensara nela a semana inteira, sem coragem de aparecer; agora estavam juntos novamente, esperando o jantar que dona Julica preparava. Começaram
a comer, ouvindo os gritos das crianças que brincavam no pátio; Osório olhava para Gina; ela comia pão com lingüiça sofregamente, sem tirar os olhos do artigo que
colocara sobre o travesseiro. Terminaria de ler depois. Dona Julica enquanto comia contava a Osório a visita que haviam feito ao ex-senador; mastigava e falava ao
mesmo tempo. Quando Dona Julica levantou-se para fazer café, Osório pegou a mão de Gina, apertou-a e perguntou quando estariam juntos novamente sozinhos... Seu olhar
tinha qualquer coisa de vidrado, de amortecido... Devorava-a com os olhos. Perguntou baixinho:
- Quando?
Ela levantou os ombros num gesto displicente; ele tornou a perguntar:
- Quando, Gigina, por favor... responda.
Quando Dona Julica foi para o pátio a chamado de uma vizinha e Zelinda deixou o quartinho, Osório apertou Gina entre os braços e começou a beijá-la. - Ela empurrou-o:
- Não faça assim...
- Por que, Gigina? Não gosta de mim?
Ela não teve tempo de responder; Dona Julica entrou e pegando a cafeteira fumegante entre as mãos, foi servi-los. Osório tinha uma expressão tão desesperada no olhar,
que Gina teve pena; sorriu para ele e começou a tomar café aos golinhos, assoprando a caneca antes de cada gole.













IV

Gina pedia jornais emprestados; em casa cortava os anúncios de empregos: "Precisa-se de moças..." "Precisa-se de meninas..."; ela se apresentava. Assim arranjou
vários; um deles para oferecer produtos de beleza em todos os bairros, de porta em porta. Era um suplício. Tocava a campainha de uma casa e ficava esperando; nas
mãos, um embrulho cheio de potes e latinhas. A porta se abria e ela começava, rápida:
- Tenho aqui uns produtos muito bons. É um creme especial para a pele; ela fica macia que é uma beleza.
- Não interessa.
E a porta se fechava com força. Mais adiante, a mesma coisa. As criadas estavam todas ensinadas:
- A patroa não quer nada...
Às vezes nem sabiam o que ela estava oferecendo, já faziam sinal com a mão ou com a cabeça dizendo que não; a porta se fechava. Gina resolveu falar ainda mais depressa
para ver se dava tempo de interessar a compradora; ficava com o potinho de creme nas mãos e assim que a porta se abria, ela apresentava-o e dizia rapidamente:
- Faça-o-favor-de-experimentar-esta-maravilha. É um creme-especial-que-vai-deixar-sua-pele-macia-e-sem-manchas. - Veja...
- Obrigada. Não quero nada.
"Esta ao menos foi delicada, disse "obrigada", antes de fechar a porta."
Uma gritou da janela, lá em cima, enquanto batia o tapete do quarto:
- Tenho mais que fazer. Gina respondeu:
- Eu também tenho.
A mulher que já havia se retirado da janela, tornou a aparecer e a voz gritou, estridente:
- Sua malcriada. Aprenda a ser delicada e deixe desaforos.
Gina respondeu:
- Quem fez desaforo foi a senhora, eu não disse nada.
- Vá embora e não me aborreça.
- Se eu quiser, não vou.
- Ah! Não vai? Eu chamo a policia e já. Saia da frente da minha casa.
- Não saio.
- Não sai? Espere um pouco que eu mostro se sai ou não, desaforada.
Gina berrou com toda força:
- Bruxa velha!
E saiu correndo com o pacote na mão. Quando chegou na esquina, diminuiu o passo e olhou para trás; a vizinhança estava em alvoroço e a mulher, no portão da casa,
falava e gesticulava. Gina correu mais e tomou o bonde que ia passando. Nunca mais voltou àquele bairro. No fim de vinte e cinco dias de trabalho, depois de ter
gasto o par de sapatos, tomado chuva e se cansado horrivelmente, vendeu cinco potes de creme e ganhou dois mil réis. Nessa tarde o fabricante de cremes que já era
velho e tinha bigodes cortados bem rentes, disse que ela não precisava trabalhar tanto; com aquele rostinho, ganharia muito mais sem trabalhar. E antes que Gina
deixasse o escritório, passou-lhe a mão, velha e áspera pelo rosto, ela saiu correndo e não voltou mais para vender produtos de beleza.
Num outro escritório em que se apresentou, cujo anúncio dizia: "Precisa-se de vendedoras moças e de boa aparência", Gina foi recebida por um homem simpático que
sorria docemente; estava numa saleta pequena, onde havia uma escrivaninha grande, prateleiras com papéis, várias cadeiras e uma mesa pequena perto da porta e sobre
ela uma máquina de fazer café. Sobre a escrivaninha, vários retratos de crianças e de uma mulher ainda moça, de fisionomia serena. O homem, que tinha os cabelos
grisalhos e aparência distinta, explicou o serviço a Gina; ganharia uma boa comissão e, se fosse esperta, ganharia bom dinheiro. Ela ficou satisfeita e diante do
sorriso doce e simpático, prometeu fazer o possível; apresentou-se nesse mesmo dia em diversos escritórios e ofereceu ações da Companhia; vendeu várias nessa tarde
e nos dias seguintes.
Uma semana depois, quando Gina voltou com o resultado da venda das ações, o homem simpático ficou satisfeito e ofereceu-lhe café feito por ele mesmo sobre a mesinha
perto da porta. Ela ficou encantada. Tomar café com o chefe? Era esplêndido. Nesse mesmo dia contaria a dona Julica. Aceitou, um pouco admirada, e sentou-se perto
da escrivaninha; olhou a fotografia das crianças. O homem sorriu docemente diante do retrato dos filhos e falou sobre eles enquanto ia de um lado a outro, preparando
o café. Gina ouviu o barulhinho da água fervendo; cuidadosamente, ele fechou a porta para que o vento que vinha do corredor, não esfriasse o café. Gina pensou: "Esse
homem é bom, tem dó de mim e me oferece café; tem o retrato da mulher e dos filhos sobre a escrivaninha, esse é correto. Ainda não vi um homem bom assim. Se ele
soubesse como eu gosto de café! Ainda mais assim quentinho, feito na hora. Homem bom! E tem um sorriso tão simpático!"
Ele ofereceu-lhe uma xícara que ela, de pé, começou a beber um pouco desorientada. Na frente dela, o homem também bebeu, olhando-a e sorrindo meigamente. Quando
terminou, tomou-lhe a xícara das mãos, colocou-a sobre a mesa e segurou o braço dela, num gesto delicado e simples, como uma criança brincando com outra criança.
Gina deu uns passos para trás, um pouco assustada, mas ele sorriu e perguntou:
- Não precisa ter medo de mim, não faço nada. Gina procurou sorrir e olhou a porta, depois olhou o homem, o coração batendo forte. Ele percebeu e para acalmá-la,
começou a falar sobre negócios; para adquirir confiança, falou sobre o movimento da Companhia no interior, sobre a comissão que seria aumentada. E ofereceu mais
café; Gina não aceitou, disse que precisava sair e dirigiu-se para a porta. Ele foi mais esperto, ficou na frente, para não deixá-la sair, e disse a Gina que ela
não precisava trabalhar tanto. Para que essa vida estúpida? Se havia vidas muito mais leves e cheias de encantos? Quando Gina, indignada, estendeu os dois braços
para empurrá-lo e abrir a porta, ele procurou enlaçá-la; seu doce sorriso havia desaparecido, sua fisionomia estava carregada, feia, parecia outro homem. Gina gritou
com toda a força:
- Abra a porta. Abra a porta.
Ele tornou a avançar, mas ela deu-lhe um tapa no rosto; antes que pudesse reagir, Gina abriu a porta e saiu correndo pelo corredor, chorando de raiva. Perdeu o emprego.
Voltou para casa, desesperada, pois esse emprego fora o melhor de todos. Contou à mãe o sucedido, dona Julica riu-se. Os sapatos de Gina estavam velhos e deformados;
ela dobrava jornais velhos para forrar a sola, mas nada adiantava; sentia através dos jornais rasgados, as asperezas das ruas, o calor das calçadas e a umidade da
chuva. Um dia encontrou uma caixa de papelão numa lata de lixo; tirou-a e levou-a para casa; cortou-a com o formato da sola do pé e colocou dentro do sapato. Para
ficar mais garantido, colocou duas folhas de papelão e calçou os sapatos; ficaram apertados, mas não se importou. Saiu à rua e andou a tarde toda procurando emprego;
passou pelo largo da Sé, onde Osório trabalhava. Ele estava à porta da casa de couros e fez sinal de que precisava falar-lhe. Quando Gina se aproximou, ele disse
que estava arranjando um emprego ótimo para ela: vendedora de cabides. A comissão seria boa e todo o mundo precisava de cabides. Gina sorriu, esperançosa; depois
queixou-se dos pés que doíam horrivelmente. Disfarçando, ele tirou do bolso da calça, uma nota de dois mil réis, bem amassadinha e deu a ela, dizendo que era o único
dinheiro que podia dispor. Gina não quis aceitar, mas ele insistiu, era para dona Julica. Depois perguntou se ela não queria dar uma volta pelo Jardim da Luz, domingo
à tarde; distraída, pensando no que iria comer com aquele dinheiro, ela respondeu que talvez pudesse ir. E despedindo-se de Osório, dirigiu-se para uma esquina onde
vendiam pastéis quentes e café. Pediu dois e comeu-os num instante, pediu mais dois e um café na xícara grande. Depois lembrou-se da mãe e resolveu dar o resto do
dinheiro para ela jantar, pois há muito tempo só tinham uma refeição por dia. À noite, tomavam água com açúcar preto por ser mais barato e iam dormir com fome. Quando
voltou para casa e tirou os sapatos, seus pés doloridos tinham bolhas enormes; devido ao papelão, eles ficaram comprimidos e cheios de bolhas. Teve que banhá-los
em salmoura e passou dois dias sem poder calçá-los.
Dona Julica ficou furiosa e disse nomes feios. Zelinda continuava na Companhia Telefônica; contou um dia que Pascoalina ia deixar o emprego para se casar. O noivo
era rico e alugara uma casa com jardim na Barra Funda; Gina resolveu procurá-la e expor-lhe a situação. No fim dessa semana, Osório apareceu, radiante: arranjara
o emprego para Gina. Ele mesmo levou-a à casa de móveis do seu Isaac e apresentou-a; o dono tinha um filho sardento de cabelos vermelhos e dentes muito grandes que
se chamava Teodoro; Teodoro olhou para Gina e sorriu. Ela não sorriu, não gostou da cara do moço. Reparou nas mãos dele; eram grandes e pareciam aranhas, pegajosas
e moles.
Nessa mesma hora, deram-lhe cabides para oferecer de casa em casa; Gina despediu-se de Osório e tomou o bonde para Higienópolis, com oito cabides no braço. Não vendeu
nada nessa tarde, todo o mundo já tinha cabides. Voltou muito triste para a casa do seu Isaac, mas Teodoro consolou-a dizendo que no dia seguinte, ela venderia tudo.
No outro dia, bem cedo, ela já estava na rua com os cabides no braço; para não perder tempo com o almoço, a mãe deu-lhe um pedaço de pão e uma banana para comer
no caminho. Tomou o bonde de Vila Mariana; duas horas depois, vendeu o primeiro cabide; logo depois outro. Entusiasmada, sentou-se num muro meio desmoronado e devorou
o pão e a banana. Depois vendeu mais dois e quando já ia voltando para a casa do seu Isaac viu uma mulher na porta vigiando o filho; ao passar, perguntou-lhe si
queria um cabide; "eram fortes, bons e perfeitos, uns para paletós de homem, outros para vestidos de senhoras." Antes que terminasse de falar, a mulher disse: "Me
dá dois que estou precisando."
Gina teve Ímpetos de beijá-la; acariciou a cabeça da criança enquanto a mulher ia buscar o dinheiro lá dentro. Quando entrou na loja do seu Isaac, tinha apenas dois
cabides no braço. Teodoro pagou-lhe a comissão e perguntou se não queria que a acompanhasse até à esquina; já era noite. Ela disse que não, estava acostumada a andar
sozinha a qualquer hora da noite, mas Teodoro insistiu e acompanhou-a até quase a rua Livre. Gina achou-o mais simpático nesse dia.
Começou a ajuntar dinheiro para comprar alguma roupa e, quem Sabe, um par de sapatos. Ia precisar também de um casaquinho de lã; o frio já se fazia sentir, pois
era Junho e no céu pardacento as nuvens passavam com lentidão, como a querer avisar que se aprontassem, o inverno vinha vindo atrás delas.
Gina olhou á sua volta, admirada. Fazia frio e ela não tinha nada, nem um agasalho para se cobrir. Os pássaros com as penas arrepiadas, encolhiam-se nos galhos,
as cabecinhas escondidas sob as asas; as rosas tombavam murchas, e só ficavam os galhos e os espinhos para resistir ao frio. Os jardins foram perdendo aos poucos
o colorido e todas as plantas como que se encolheram, amedrontadas. O vento que vinha lá dos lados de Santo Amaro, era frio e irreverente; se encontrava uma janela
aberta, entrava sem cerimônia e jogava os papéis no chão, sacudia as cortinas fora das janelas, batia as portas, punha arrepios nos braços das crianças. Nas ruas,
procuravam arrancar o chapéu das cabeças dos homens que se inclinavam segurando-o com as duas mãos; espiava debaixo da saia das mulheres e quanto mais elas corriam
e seguravam as saias mais ele se divertia. Depois passava assobiando e virava a esquina; fazia piruetas nos cantos das ruas; ajuntava papéis sujos e folhas secas,
rodopiava, rodopiava com eles no ar e depois ia arremessá-los longe, bem esparsos, para dar trabalho aos varredores.
As nuvens passavam apressadas no céu pardacento, como que fugindo, e o vento dava uivos anunciando o inverno.
E Gina parava diante das vitrinas e ficava olhando os casacos, de lã; calculava quanto dinheiro precisaria para comprar um casaco como aqueles; com bolsos grandes
onde afundaria as mãos geladas e vermelhas; a gola alta e espessa defenderia seu pescoço do vento frio; como havia de ser bom.
O dinheiro dos cabides ia aumentando; só numa tarde, no Braz, vendeu oito; seu Isaac disse que era assim mesmo e esfregava, uma contra a outra, as mãos gananciosas
e murchas. No fim desse primeiro mês, era sábado, Teodoro pediu-lhe que voltasse à tarde na loja; havia um trabalho extra. Gina quis perguntar ao seu Isaac se ele
viria também, mas ele já havia deixado a loja.
Quando ela voltou, encontrou Teodoro debruçado sobre a mesa do pai trabalhando; vendo-a entrar, levantou-se e mandou-a copiar umas faturas. Ela pensou: "Que tolice
a minha. Estava com medo dele à toa; está tão cheio de serviço que nem olhou pra mim".
Sem dizer nada, começou a fazer o trabalho. Meia hora depois, Teodoro fechou a porta da frente dizendo que estava fazendo frio; tornou a sentar-se em frente da escrivaninha
e começou a escrever. Às quatro e meia, disse a ela que esperasse; voltou logo depois com uma garrafa de cerveja, dois copos e dois sanduíches grandes de salsichas.
Gina agradeceu e começou a comer, ali mesmo ao lado da mesa; admirou-se do ar sério e distraído de Teodoro, parecia preocupado com algum negócio importante.
Quando ele acabou de comer e beber, aproximou-se da mesa dela e, sem dizer nada, segurou-a pelos dois braços inclinou-se para beijá-la. Gina viu o rosto sardento
bem perto do seu, os cabelos vermelhos, os dentes enormes e amarelados. Num impulso rápido, recuou e estendeu o braço; uma bofetada estalou no rosto do rapaz. Teodoro
levou a mão direita à face que havia sido batida; ficou vermelho de cólera e avançou para Gina que parara, sem saber o que fazer, tão inesperado fora o ataque. Num
pulo, ele conseguiu segurar-lhe o braço; fungou no rosto dela, os olhos dilatados de raiva e desejo:
- Agora você me paga.
Ela lutou; colocou os punhos fechados no peito dele e empurrou-o com força, mas Teodoro era forte. Com uma das mãos, segurou os braços dela, o outro braço rodeou-lhe
a cintura; ela sentiu na sua face o hálito de cerveja, ele procurava dobrar-lhe o corpo com toda a força, e ela percebeu que ele ia derrubá-la; conseguiu curvar-se
e encostar o rosto no dela, um rosto flácido e úmido. Ela então deu um grito, um grito agudo, forte, estridente. Assustado, ele largou-lhe os braços para tapar-lhe
a boca; Gina mordeu-lhe a mão, cega de raiva. Ele retirou a mão e rodeou-lhe a cintura novamente, antes que ela pudesse fugir; apertou-a tanto que ela não podia
respirar, o rosto amassado contra o peito dele. As respirações estavam confundidas, ofegantes; ela se esforçava para fugir, ele apertava-a cada vez mais. Gina sentiu
os seus lábios sobre a testa; o contato foi tão horripilante e desagradável que ela deu outro grito, agudíssimo. Teodoro afrouxou o abraço e nesse instante, ela
conseguiu fugir. Rápida, pulou e correu para a porta da rua; na pressa de abri-la, arranhou as mãos, que sangravam. Sentiu novamente o hálito quente de Teodoro no
seu pescoço; ele quase a alcançou e quando viu que ela já estava na calçada, gritou, ameaçando:
- Víbora, tu hás de me pagar.
Um homem que ia passando na calçada fronteira, parou para ver o que havia; Gina respirou o ar frio da tarde e começou a caminhar rapidamente para casa, ouviu ainda
o barulho da porta fechada por Teodoro.
Não voltou mais à casa do seu Isaac; contou tudo à mãe que a chamou de idiota e cretina. Hipócrita também.
Zelinda contou que Pascoalina estava casada e perguntara por ela; aparecera bem vestida no escritório da Companhia para despedir-se das colegas. Estava com uma saia
azul marinho, de lã, e uma blusa vermelha, de seda. Do que mais Zelinda havia gostado fora dos sapatos de Pascoalina: pretos novos, brilhantes. Descrevendo outros
detalhes, disse que todas haviam ficado com inveja. Ela morava na casinha da Barra Funda, onde esperava as visitas das colegas; o marido era muito bom e ela era
muito feliz. Ah! Zelinda esquecera de contar que Pascoalina tinha um broche de ouro pregado na blusa de seda; recebera do marido no dia do casamento. Zelinda bebeu
água e comentou:
- Há gente que tem uma sorte neste mundo: Gina prestou atenção no broche de ouro:
- Então Pascoalina está rica...
Pensou mais uma vez em visitar Pascoalina na casa nova que tinha um jardim na frente.
Continuou a procurar emprego; o dinheiro dos cabides não dera nem para comprar uma blusa, dera apenas para não passarem muita fome.
Cortou novo anúncio do jornal e se apresentou; pediam uma moça séria.
Ela foi. Era uma casa de doces, Gina tinha que oferecer o produto que vinha num pacotinho; explicava que deviam despejar água fervendo no conteúdo e o pudim estava
pronto. Cada pacotinho custava oitocentos reis e ela ganharia 100 reis de comissão; precisava andar e vender muito para ganhar algum dinheiro. Começou a percorrer
os bairros com um embrulho nas mãos; tocava a campainha das casas e quando aparecia alguém, explicava. Duvidavam. As mulheres perguntavam, desconfiadas:
- Então é só despejar água fervendo?
- É sim senhora.
- E o açúcar? O leite?
- Já tem açúcar e leite aí dentro. É' um produto garantido.
A mulher ria, incrédula:
- Então o leite está aqui, neste pózinho? E isto dá um pudim? Vá vender pra algum trouxa, eu é que não vou na onda...
- Eu juro que é pudim. Faça o favor de comprar um e experimentar.
- Não, vá vender pra outro. Não quero experimentar.
A porta se fechava. Gina continua a andar e a oferecer.
Cansada e faminta. Algumas pessoas quando a viam com um pacote nas mãos, um ar suplicante, gritavam das janelas: "Não quero nada." Antes que Gina falasse alguma
palavra. No fim de uma semana havia ganho mil e pouco de comissão. Na volta para casa, parou diante de um restaurante, onde havia vitrinas cheias de frangos, pedaços
sangrentos de carne, pratos com couve flor, outros com maionese, enfeitados com azeitonas grandes e pretas. Peixes com as guelras abertas, olhos vidrados, o rabo
brilhando como prata. Gina encostou o rosto no vidro da vitrina e ficou olhando; seus olhos fixaram-se no prato de maionese; viu o molho amarelo misturado com pedaços
de peixe, outro molho avermelhado (decerto era de tomates) fazendo desenhos por cima e as azeitonas graúdas enfeitando aqui e ali. A saliva cresceu-lhe na boca;
teve uma vontade desesperada de comer aquela comida com desenhos coloridos. Parada diante da vitrina, o nariz encostado no vidro, começou a pensar se aqueles mil
e duzentos dariam para comer um pedaço, apenas um pedaço do que havia naquele prato. Espiou para dentro do restaurante; as mesas estavam quase vazias porque ainda
era cedo, uma ou outra pessoa jantava. E se ela entrasse e pedisse um pedaço? Olhou seus sapatos; estavam sujos e furados; os dedos já começavam a espiar para fora;
seu vestido amarrotado e velho estava também muito feio para ela se apresentar ali. Seus olhos ficaram parados novamente no prato de maionese e sua boca tornou a
encher-se de saliva. Resolveu entrar. Um homem de paletó listrado interpelou-a logo à entrada:
- O que quer, menina?
Gina emudeceu. Corou. Depois criou coragem e disse:
- Queria um pouco do que está naquele prato ali.
Timidamente apontou a vitrina. O homem foi dizendo depressa:
- Não vendemos. Vá saindo.
Ela apresentou os níqueis na palma da mão:
- Eu tenho dinheiro, eu pago...
O homem riu-se quando viu os níqueis e empurrou-a pelo ombro:
- Já disse que não vendemos. Dá o fora.
Na rua, ela não olhou para trás. Chorando de fome e de vergonha, foi para casa. No quarto da rua Livre, ninguém; ficou no escuro porque não havia luz, cortada outra
vez por falta de pagamento. Tateando, procurou alguma coisa para matar a fome; encontrou uma banana podre e um pedaço de pão duro e velho. Comeu-os assim mesmo.
Depois; lembrou-se que tinha um pacotinho de pudim que havia sobrado. E se fizesse o pudim e comesse? Quem sabe mataria a fome? Não hesitou. Pôs meio litro de água
na panela para ferver, despejou o pó e experimentou com a ponta do dedo; era delicioso. Tirou do fogo e comeu-o assim mesmo, ainda quente; impossível esperar esfriar,
a fome era demasiada. Enquanto comia, lembrou-se que tinha de pagar oitocentos reis pelo pacotinho no dia seguinte e ficaria sem dinheiro, mas ao menos dormiria
com o estômago cheio. Comeu tudo, sem deixar nada para a mãe e a irmã. Depois deitou e dormiu; mal percebeu quando as duas chegaram da rua e se deitaram. Acordou
de madrugada com um mal estar terrível e vontade de vomitar. Levantou-se cambaleando, a cabeça pesada e dolorida, foi vomitar no pátio onde havia o tanque das inqüilinas
lavarem roupa. Voltou para o quarto sentindo arrepios de frio e dor de cabeça. Deitou-se e não pôde dormir. No dia seguinte, dona Julica ficou furiosa quando soube
de tudo; avançou para ela com os cabelos desgrenhados e sua mão pesada caiu mais de uma vez sobre a cabeça dolorida da filha que chorava e se encolhia na cama:
- Esta desgraçada é a minha ruína, por causa dela sofremos desse jeito. Se trabalhasse como Zelinda, viveríamos melhor, mas não trabalha. Vive na rua namorando o
dia inteiro como uma sem vergonha. Diz que procura trabalho, mas é mentira, só gastando sapato. Sirigaita.
E pá! outro tapa na cabeça dela.
- Quem vê esta peste sair de manhã cedo, pensa que vai mesmo trabalhar, mas qual o quê. É bater perna só, dinheiro mesmo nada. Zelinda sim, trabalha direito, já
está ganhando mais, é uma boa filha. Mas tu puxou teu pai, é uma safada sem vergonha.
Pá! Outro tapa na cabeça inclinada de Gina.
- Mas tu me paga. Qualquer dia vamos embora e tu que se arranje. Não podemos sustentar vadias. Ela sai de manhã com os sapatos furados desse jeito e volta com os
sapatos mais furados ainda, sem dinheiro nem para comer. Desgraçada!
Outro tapa. Os tapas eram em intervalos. Parece que dona Julica lembrava de repente que estava com fome e lá vinha o braço que descarregava a fome sobre a cabeça
de Gina. Zelinda assistiu a tudo sorrindo; depois acabou de se aprontar e foi depressa para o emprego, sem intervir na cólera da mãe. Durante muito tempo, Gina ficou
deitada, a cabeça escondida no travesseiro encardido, imóvel e dolorida, enquanto dona Julica ainda resmungando preparava um café fraco para tomarem sem açúcar.











V

Osório chegou à hora do almoço; estivera fora de S. Paulo e só nesse dia soubera que Gina deixara de vender cabides por causa de Teodoro. Queria que ela voltasse;
falaria com o próprio Isaac e daria uma lição ao rapaz. Gina disse que não, preferia continuar a vender pacotinhos de doces do que sofrer as perseguições do Teodoro.
Osório havia levado um pouco de toucinho que dona Julica estava fritando para comerem com pão; o quartinho encheu-se de fumaça e de cheiro de toucinho frito. Mais
animada, Gina levantou-se e foi lavar o rosto na água fria do tanque; tinha ainda a cabeça dolorida e quando a água quase gelada correu-lhe pelo rosto, sentiu-se
melhor. Voltou ao quartinho onde havia calor; num canto, a mãe conversava com Osório e preparava o almoço; ele estava sentado num caixote de gasolina, que servia
de cadeira. Haviam fechado a única janela por causa do frio; o dia estava escuro e preparando chuva. Os sapatos de Gina estavam tão velhos que, ao calçá-los, os
dedos dos pés ficaram para fora; Osório prometeu levá-los depois do almoço a um sapateiro e pediu a Gina que esperasse, voltariam novos. Mastigando toucinho com
pão e cebola crua, Gina sorriu para Osório e prometeu esperar. Zelinda chegou logo depois com um pão doce sob o braço; foi quase um banquete aquele almoço. Osório
levou os sapatos para consertar e prometeu passar na doceira e pagar o doce que Gina havia comido; Zelinda voltou ao emprego e dona Julica foi dar umas voltas pela
cidade.
Gina começou a lavar os pratos sujos e a frigideira; depois lavou a única xícara que também servia, para beber água. Arrumou as duas camas e deitou-se numa delas,
aconchegando as cobertas até o pescoço. Tremia de frio.
Às quatro horas, Osório chegou com os sapatos consertados; trouxe umas balas para Gina., Encontrando-a sozinha, deu umas voltas pelo quarto, tomou um pouco d'água,
em seguida tirou os sapatos e deitou-se ao lado dela dizendo que estava com muito frio. Conversaram durante algum tempo, depois ficaram silenciosos; Gina sentiu
um grande bem estar e teve vontade de dormir sentindo o calor de Osório ao seu lado. Fechou os olhos e ficou imóvel. Lá fora, no pátio, as mulheres lavavam roupas,
apesar do frio; uma criança chorava, um chorinho triste e cansado de quem tem fome. Ouvia-se a água correr no tanque, as vozes das mulheres, o choro da criancinha.
Lentamente, a mão de Osório passou pelo corpo de Gina; ela abriu os olhos num sobressalto.
- Não, Osório, mamãe chega de repente... Ele voltou-se para ela, rosto contra rosto:
- Vamos nos casar, Gigina...
Ela tentou levantar-se; teve medo dele, mas Osório apertou-a mais e beijou-a longamente nos cabelos, no pescoço na boca. Ela sussurrava:
- Mamãe vem vindo, mamãe, vem vindo...
Ele beijou-a mais, os olhos alucinados. À criancinha chorava mais alto e as mulheres tagarelavam perto do tanque.
Osório pediu que se casasse com ele; sua voz estava rouca e trêmula; disse que estava trabalhando muito para melhorar no emprego e pretendia alugar uma casinha com
dois cômodos; então se casariam. Já escrevia para um jornal todas as semanas e seus artigos eram apreciados; ganharia muito e seriam felizes. Gina não dizia nada,
ouvia e sorria.
Às cinco horas Osório deixou-a; foi então que Gina tomou uma resolução; iria procurar um emprego de copeira, ao menos teria casa e comida. Quando dona Julica chegou,
vermelha de frio, as mãos encarquilhadas sob o chalé preto, ela falou: O quê? Minha filha copeira? Não senhora. Você esquece que somos de boa família? Minha gente
é gente de nome em Campinas e ficaria revoltada em saber que você, filha de Julica Torres, limpa chão em S. Paulo. Não. Isso nunca. É preciso ter dignidade apesar
de tudo, é preciso ter altivez, orgulho. Lembre-se de que tem um nome a guardar.
- Mas esse nome não me dá o que comer, mamãe...
- Cale a boca. Bem mostra que é filha de seu pai, homem do povo.
Gina começou a chorar:
- Coitado de papai. Não podemos viver assim-, sem ter o que comer.
Não seja idiota. Procure trabalho que você encontra. É porque não sabe procurar. Não vê Zelinda? Zelinda sim, sempre foi uma boa filha.
E tomando a única xícara que estava sobre o caixão de gasolina, foi ao tanque, resmungando sempre, encheu-a de água e bebeu. O quarto estava quase escuro. Dona Julica
encheu o a panela de água e colocou-a sobre a lata de querosene; pôs dentro alguns ossos que havia trazido e soprou o carvão. A chamazinha azul subiu e começou a
lamber o fundo da panela; ela continuou a falar:
- Nada do ser criada dos outros. Quando os parentes de Campinas souberem, o que irão dizer? Que irão dizer? Que eu caí tão baixo que até minha filha é copeira dos
outros. Lavando o chão, servindo mesa, não quero. Nós temos nome.
Gina lembrou: Eu troco de nome, ninguém precisa saber.
Não quero. Já disse. No escuro, a voz de dona Julica tinha um som rouco e ríspido; ouvia-se o barulho da água fervendo na panela e a única luz era a das brasas que
chiavam sob a lata. Dona Julica continuou a falar, sentada no caixote de gasolina:
- Minha mãe era de família importante, família rica. Eu me lembro da casa dos seus pais, era enorme com grandes terraços à volta toda. Muitos escravos. Família de
nome.
Levantou-se para pôr uns restos de carne na água fervendo, algumas batatas e couve. Provou. Sacudiu a colher comprida na direção onde estava a filha:
- Você procurando bem, encontra emprego. Não vê Zelinda?
Zelinda entrou; dona Julica censurou:
- Veio tarde, hein? Onde andou?
Zelinda estava aborrecida. Queixou-se do tempo, não pudera ainda comprar um agasalho e sentia frio. Às apalpadelas pelo quarto escuro, procurou a xícara que estava
sobre o caixote e foi tomar água no tanque; tropeçou nos sapatos de Gina e resmungou um nome feio. Depois contou à mãe que estivera em casa de uma colega que morava
ali perto, por isso viera tarde; a mãe pingou um pouco de caldo na palma da mão e provou estalando a língua. Não respondeu, estava preocupada com a sopa. Ficaram
em silêncio algum tempo, depois Zelinda disse, voltando-se para a cama, onde Gina estava estendida:
- Pascoalina mandou um recado para você. Quer que você apareça lá para ver a casinha dela. Eu e mais duas colegas vamos no domingo.
Novo silêncio. Zelinda perguntou:
- Você vai?
- Vou.
- Podemos ir juntas.
O silêncio reinou de novo. Zelinda aproximou-se da janelinha e levantou o pano que a mãe pregara na vidraça:
- Ih! O céu está cheinho de estrelas. Dona Julica suspirou:
- Mas está fazendo frio...
Mexeu a panela. Tornou a por o caldo na palma da mão e provou com outro estalinho da língua. Colocou na panela uns pedaços de toucinho que Osório trouxera para o
almoço, colocou uns restos de pão doce e mexeu outra vez. Tornou a provar. Zelinda voltou-se da janela:
- Mamãe, eu não agüento este frio. Preciso comprar nem que seja um casaquinho curto, mas preciso. Não posso trabalhar assim, sem nada para me agasalhar, mas se eu
comprar o casaquinho, não podemos pagar o aluguel do quarto.
Como há de ser? Morro de frio,..
Despejando a sopa nos pratos fundos desbeiçados, dona Julica resmungou:
- Tudo por causa desta vadia.
Gina se encolheu como se tivesse sentido uma chicotada. Dona Julica e Zelinda começaram a tomar a sopa; ouvia-se o mexer das colheres nos pratos e o ruído como se
chupassem.
De repente dona Julica disse a Gina:
- Venha tomar sopa.
- Não quero sopa.
- Pois então não queira.
Tornaram a despejar mais sopa nos pratos e tomaram tudo. Imediatamente dona Julica apagou as brasas para economizar e o quarto ficou em completa escuridão. Depositaram
os pratos no chão, atrás do caixote de gasolina, para serem lavados no dia seguinte, à luz do dia. Zelinda tirou o único vestido e deitou-se ao lado de Gina que
se encolheu mais no canto. Dona Julica ainda andou pelo quartinho, tateando para não bater em nada; viu se não entrava ar frio pela janela, foi lá fora e voltou
tiritando, deitou-se mesmo vestida para não sentir muito frio e cobriu a cabeça com o xale preto dando um longo suspiro. No quarto estreito e fechado, havia um cheiro
de gordura e de suor. Ouviu-se a voz de Zelinda:
- Como é, mamãe, compro o casaquinho?
Dona Julica mexeu-se na cama próxima:
- Você não pode esperar um pouco, Zelinda? Se não pagarmos o aluguel e ficarmos sem o quarto, como há de ser?
Houve um breve silêncio, depois Gina falou do cantinho perto da parede:
- Zelinda pode comprar o casaquinho, eu arranjo o dinheiro para o aluguel.
Dona Julica riu com ironia: ouviu-se o riso abafado pelo xale preto. Depois disse:
Será que está com idéias de ser copeira? Não admito. Zelinda perguntou: Como è que você arranja o dinheiro? Já tem outro emprego?
- Já. Juro que arranjo o dinheiro, pode deixar por minha conta.
Dona Julica riu-se outra vez:
- Mentira dela, Zelinda, não acredite.
Ninguém mais falou. Dona Julica começou a ressonar e logo Zelinda também. Só Gina ficou ainda acordada, pensando que não podia continuar assim, precisava agir. Lembrou-se
de Pascoalina que dissera uma vez:
- Quando você resolver não ser trouxa, me procure.
Resolveu procurar a amiga. No céu pardacento, as nuvens passavam apressadas como se fossem perseguidas pelo inverno que corria atrás delas, enquanto o vento que
vinha do lado de Santo Amaro, assobiava nas esquinas, entre os galhos das arvores e fazia as últimas rosas tombarem desfolhadas.
No dia seguinte cedo, Gina dirigiu-se para a rua Garibaldi, na Barra Funda; foi à casa de Pascoalina. Bateu no portãozinho de ferro e uma criada negra abriu a porta;
quando Pascoalina ouviu a voz dela mandou que entrasse para o quarto, ainda estava deitada. Gina observou a casa da amiga; era pequena, com duas janelas apenas de
frente, mas bem mobiliada e limpa. Na salinha de jantar, havia uma gaiola com um pintassilgo; sobre um sofá, três almofadas bordadas; uma de veludo preto com flores
vermelhas, duas de seda, uma rosa e outra azul. Pascoalina estava envolvida num roupão colorido, os cabelos soltos caídos nas costas; contou que já tomara café e
deitara outra vez porque não tinha o que fazer; estava com frio. Gina olhou suas próprias mãos inchadas e arroxeadas; depois olhou as mãos da amiga; eram brancas
e tratadas, com longas unhas polidas. Pascoalina não parava de falar; perguntava pelas colegas antigas, falava na Companhia onde trabalhara durante anos, falava
da casa dizendo que estava muito satisfeita com a nova vida. Gina sorria:
- Mas eu não trabalho mais na Companhia, Pascoalina... As colegas...
- Ah! é verdade, mas que tal minha casa?
- Muito bonita.
Convidou-a para irem à sala de jantar e enquanto Gina sentou-se no sofá entre as almofadas de seda, Pascoalina tirou a gaiola do pintassilgo da parede, colocou-a
sobre a janela que dava para o quintalzinho e começou a limpá-la dizendo que ela própria gostava de tratar do passarinho.
Quando a criada passou pela sala de jantar com a vassoura e um pano de pó, Pascoalina disse:
- Benedita, traga um café bem quente com pão e manteiga.
Acabou de limpar a gaiola, sempre conversando; às vezes assobiava com o passarinho; voltou-se sorrindo:
- Ele me conhece, Gina...
- Conhece?
- Então! Hein, lindo? Não conhece sua dona? A Pascoalina?
Gina começou a rir; era sempre aquela Pascoalina risonha e alegre, sempre brincando. A amiga foi à cozinha, trouxe uma folha de alface, arrumou tudo, colocou a gaiola
no prego do lado de fora da janela e convidou Gina para ver o banheiro. Nunca vira nada tão bom e tão bonito; apalpou os aparelhos, as paredes, invejou a sorte de
Pascoalina. Voltaram à sala de jantar para tomar café; Gina tomou-o com prazer e, mais reconfortada, começou a falar na vida de misérias que estava levando ao lado
da mãe e da irmã. Não suportava mais. Falou sobre os empregos que perdera, sobre o dinheiro que não dava nem para comer, quanto mais para comprar roupas e calçados.
Falou sobre Osório que queria casar-se com ela, mas também tinha pouco dinheiro, não dava para casar, não podia sustentá-la. Com a xícara vazia diante dela, Pascoalina
escutava em silêncio, depois empurrou a cafeteira para perto de Gina:
- Tome mais café com pão.
Gina tomou outra xícara e comeu outra fatia de pão com bastante manteiga. Como era bom estar ali ao lado da amiga; era reconfortante, agradável e amena aquela sala,
aquele café, aquele pão com manteiga. Mastigava devagar, como se tivesse dó de parar de comer; sentiu cansaço de repente.
Pascoalina perguntou, abrupta, debruçando-se sobre a mesa:
- Escute, Gigina, você já esteve com algum homem? Gina não corou; levantou os olhos para a amiga e respondeu mastigando:
- Estive com Osório duas vezes já; passeamos no Jardim da Luz, depois fomos para um quarto de hotel... Depois...
Pascoalina levantou-se, um ar revoltado:
- Então você é uma boba. Por que sofrer desse jeito se você pode ganhar uma fortuna com essa cara e esse corpo? Deixe de ser trouxa!
Gina não respondeu; baixou a cabeça sobre a xícara. Pascoalina continuou:
- Eu tenho um amigo muito simpático, vou apresentar você a ele. Vai ver, tudo se arranja.
Gina levantou a cabeça, assustada:
- E o que dirá seu marido, Pascoalina? Pascoalina riu, seu corpo todo sacudiu-se de riso:
- Meu marido? Eu não tenho marido, boba.
Gina olhou à volta, estarrecida, como se dissesse: "E isto tudo aqui?" Pascoalina tornou a rir:
- Meu amante é que me dá tudo isto...
- Mas na Companhia...
- Sim. Na Companhia eu disse que ia me casar para não provocar escândalo. Casar coisa nenhuma. Para que?
Casamento é burrada.
Gina esboçou um sorriso e ficou olhando o rosto radiante da amiga; perguntou:
- E ele vem almoçar aqui? quero dizer, seu...
- Às vezes, mas hoje não. Vem jantar de vez em quando. Mas todas as tardes ele me visita e às vezes também dorme. É casado.
- Casado?
- É sim, mas não gosta da mulher. Você quer ver minhas roupas? Venha no quarto.
No quarto de dormir, Pascoalina abriu um guarda roupa, cuja porta era um grande espelho e mostrou seus vestidos, seus casacos; depois abriu uma gaveta e mostrou
suas camisolas de seda e renda. Gina abria a boca, muda de admiração, nunca vira nada tão lindo, tão rico. Tirou os casacos do guarda roupa e passou as mãos na lã
macia; Pascoalina vestiu um deles e revirou-se diante dela.
- Este é para os dias bem frios, este para dias regulares...
Gina apalpava as sedas, estonteada; estava muda de espanto. Pascoalina levantou de repente uma cortina de cretone cheio de ramagens e mostrou a sapateira com orgulho:
- Veja, Gigina.-..
Gina contou cinco pares de sapatos enfileirados um ao lado do outro: branco, preto, marrom, vermelho e roxo. Havia sapatos roxos de veludo!
Perguntou gaguejando:
- E ele dá tudo isso a você? Pascoalina deu uma gargalhada:
- Então? Dá tudo isso e mais ainda.
De repente mudou de tom e perguntou abruptamente:
- Escute uma coisa; você gosta de Osório? Quer casar-se com ele?
Gina refletiu um pouco:
- Não. Ele é que gosta de mim e falou em casar. Pra mim é a mesma coisa, quero dizer, tinha vontade de casar só para não passar fome. Mas tenho dó dele porque leva
dinheiro para nós e comida algumas vezes.
Pascoalina tirou o roupão colorido e procurou um vestido de lã no guarda roupa:
- Então, está tudo arranjado; se você não gosta dele, melhor. Vamos sair.
- Sair? Assim?
Pascoalina perguntou:
- Você não tem um vestido melhor que este? Um par de sapatos?
- Não. Tudo o que tenho é este aqui.
Corou fortemente. Pascoalina encorajou-a:
Não faz mal. Eu empresto um vestido para você. Depois do almoço vamos dar umas voltas pela cidade. Mostrou o guarda roupa:
Olhe este aqui, Gigina. É de lãzinha azul, hoje está muito frio. Experimente.
Gina tirou o vestido velho e remendado, vestiu o da amiga; estava um pouco largo. Pascoalina aconselhou: Espera aí, eu aperto a cintura, quer ver? Olhe, não fica
melhor assim? Prende-se um alfinete de gancho por dentro, ninguém vê.
Gina admirou-se; o vestido ficara bem e dera-lhe uma aparência de mais velha, mas ao mesmo tempo, embelezara-a. Pascoalina apertou o cinto:
- Agora está bem. Veja. Vamos dar um jeito na cara. Lavar.
Gina, já entusiasmada, correu para o banheiro e esfregou o pescoço, o rosto, as orelhas com sabonete perfumado; depois cheirou as próprias mãos para sentir o perfume.
Voltou correndo:
- Pronto.
Pascoalina passou rouge, pó de arroz no rosto da amiga:
- Olhe agora.
Gina levou um susto. Seria ela mesma? Não era possível. O que estava vendo era uma imagem maravilhosa. Sorriu para o espelho encantada; não podia tirar os olhos
daquela imagem que não parecia a sua, tão linda era.
Pascoalina falou:
- Agora os sapatos. Mas estas meias não servem, Gigina. Vamos ver um par de meias para você..
Escolheu as meias e os sapatos; os sapatos ficaram grandes, mas Gina disse que estavam bons assim mesmo. Depois do almoço, foram para a cidade. Num apartamento da
Avenida São João, Pascoalina apresentou Gina à dona da casa; era uma senhora gorda e amável que tinha as mãos flácidas e polpudas. Recebeu Pascoalina com gentileza,
mandou servir cerveja para as visitas. Quando falava, tinha o hábito de juntar os cinco dedos da mão direita junto aos lábios; fazia um muxoxo e piscava um olho
para dizer, mostrando Gina:
- É muito bonita, vai fazer sucesso. Pascoalina foi lá para dentro, disse que não demorava. Gina ficou só na sala pequena, cheia de revistas, jornais e retratos
de família nas paredes. A dona da casa conversava enquanto tomavam cerveja; mostrou o retrato do marido, dos filhos, dos sobrinhos. Um dos filhos morrera de desastre
numa estrada de ferro, ela suspirou e parou de falar quando lembrou do desastre, depois fungou e tomou mais cerveja. Passou então as costas da mão pelos olhos pequeninos
e sumidos entre as pálpebras Gina não percebeu se eram lagrimas.
Chamaram a dona da casa e ela ficou só; havia uma luz vermelha sobre a mesa do canto. Apesar de ser dia claro, deixaram a luz acesa na saleta; ela fixou a luz e
teve uma sonolência. Seria a cerveja? Ou o almoço? Há quanto tempo não almoçava assim? Depois estava vivendo num mundo tão diferente do seu que não sabia o que ia
acontecer.
Com os olhos fechados, recostou a cabeça para trás e ficou imóvel; ouviu vozes lá dentro; riam e conversavam. Outra pessoa falava no telefone:
- Não pode então?
- Quando?
- Está muito bem amanhã.
Ouviu Pascoalina entrar na saleta e conversar em voz baixa com a dona da casa; depois despediram-se. Só quando ela viu a luz do sol batendo nas casas e uma porção
de gente passando pela Avenida, percebeu onde estava e apertou com força o braço da amiga. Tomaram sorvete num bar ali perto. No momento de se despedirem, Pascoalina
recomendou:
- Ficou combinado para amanhã sem falta às duas horas, hein? Leve este dinheirinho, para você se arranjar...
- Já dera uns passos quando voltou:
- Espera aí, Gigina. Você tem uma camisa bonita? Gina corou. A amiga fez um gesto condescendente:
- Não faz mal, eu te empresto amanhã.
No dia seguinte, à tarde, voltou para a casa com uma nota de duzentos mil réis apertada na mão direita. Toda a cidade estava iluminada e os automóveis passavam buzinando.
Nunca se sentira tão segura de si, de sua felicidade. Isso sim, era felicidade. Tinha dinheiro para se vestir, para se cobrir do frio, para matar a fome, aquela
fome nunca saciada. Olegário alisava-lhe as mãos grossas e ásperas ao despedir-se; e no momento de sair, dera a nota de duzentos mil réis. Chamava-se Olegário; dissera
que era rico e podia dar-lhe muitas coisas bonitas. Nunca fora tão feliz, encontrara afinal apoio e dinheiro; conversavam longamente e ele prometera alugar uma casa
pequena só para ela, uma casa cheia de coisas bonitas; almofadas de seda, pintassilgos em gaiolas, guarda roupa com casacos e vestidos. Um banheiro como aquele de
Pascoalina, onde ela pudesse mergulhar o corpo inteiro e passar o sabonete perfumado bem devagar, como uma carícia. Que felicidade! Nunca vira tanto dinheiro. De
repente uma onda de calor subiu-lhe ao rosto ao lembrar as coisas boas que compraria com aquele dinheiro. Pascoalina era bondosa, não quisera que ela devolvesse
a camisa; e era uma bela, com ronda na gola; sentia ainda a maciez da seda contra seu corpo. O vestido de lã azul devolveria quando tivesse outro; nem que Pascoalina
não quisesse, tinha que aceitar. Desceu a Avenida São João. Parou numa loja pequena, onde havia apenas uma portinha e entrou; escolheu um casaquinho de lã azul marinho.
Vestiu. Sentiu um calor agradável cobrir-lhe as costas e o peito. Pagou os trinta mil réis que o homem barbudo pedira e saiu depressa, feliz por ter o casaco azul
e os grandes bolsos, onde mergulhou as mãos frias. Dirigiu-se para casa.
Ao entrar no quartinho da rua Livre, já eram seis e meia, estava escuro. Com ela, entrou uma onda de perfume no pobre quarto; encontrou a mãe sentada na cama, encolhida
de frio, sem ter nada para fazer o jantar. Nada. Com um gesto de suprema satisfação, Gina tirou do bolso do casaco, uma nota de cem mil réis e apresentou à mãe.
Na escassa luz que entrava pela única janelinha, dona Julica viu o dinheiro; abriu muito os olhos e estendeu as mãos ávidas, com medo que fosse um sonho e se desvanecesse.
Seus dedos descarnados seguraram a nota; imediatamente levou-a perto dos olhos para ver se era realidade, se era dinheiro mesmo. Gina deu uma risadinha alegre.
- Vá comprar as coisas que precisa, mamãe. Eu não disse que arranjaria o dinheiro?
Sem dizer nada, dona Julica colocou o xale preto sobre os ombros e apertando a nota contra o peito, saiu apressada. Meia hora depois, voltou com pacotes enormes
e pesados: carne, peixe, pão, frutas e queijo. Fritou o peixe e a fumaça encheu o quartinho; sem se incomodar, dona Julica andava de um lado a outro, alegre e cantarolando.
Acendeu uma vela que também comprara, derramou um pouco de espermacete sobre o caixote e grudou a vela em cima. Cortou o pão e o queijo em fatias finas no quartinho
agora iluminado; tirou do embrulho um pacotinho de chá para tomar depois do jantar; finalmente tirou uma garrafa de vinho tinto e sorriu para Gina.
Deitada na cama, as mãos atrás da cabeça, Gina seguia com olhos alegres os preparativos de dona Julica. Quando Zelinda entrou, a mãe disse apenas:
- Olhe o que Gigina trouxe hoje.
À luz da vela, Zelinda examinou o vestido de Gina, admirou o casaco azul, ficou um tempo sem dizer nada, de repente explodiu com lágrimas nos olhos:
- Você tem uma sorte assim. Eu não consegui nada até hoje, nem comprar um casaco miserável. Por que você tem sorte e eu não?
Antes que ela continuasse, Gina pôs-lhe na mão uma nota de cinqüenta mil réis com toda generosidade:
- Não se queixe, Zelinda. Amanhã você compra um igual ao meu. A primeira coisa que você faz, ouviu? Logo de manhã bem cedo.
Zelinda calou-se e pegou a nota; guardou-a no seio e foi tirar o vestido para não estragar. Enrolou-se numa colcha velha e ficou esperando o jantar; depois disse:
- Sempre fui sua amiga, Gigina. Ainda bem que você reconhece.
Gina apertou os lábios e não respondeu. Cearam lautamente nessa noite. Tomaram vinho; a única xícara correu de mão em mão até a garrafa ficar vazia. Dona Julica
contou fatos passados e lembrou-se da bondade do Pasquale; sempre fora assim como Gina: bom e generoso. Dava sempre o que tinha, nunca negava. Homem bom estava ali.
E depois um artista. Até de um miolo de pão fazia figuras perfeitas. Sim. Perfeitas. Arrotou alto e repetiu, a cabeça pendida para um lado:
- Um verdadeiro artista.
Tomaram chá quente antes de dormir. Dona Julica elogiou a beleza de Gina, disse que nunca pensara que ela fosse ficar assim tão bonita, não parecia. Lembrou-se de
que também fora assim aos dezesseis anos. Em Campinas costumavam chamá-la: A flor de maracujá. Riu-se baixinho ao lembrar. Nunca pudera esquecer. Quantos homens
ficaram apaixonados por ela? Nem se lembrava, mas fora muito amada. A cabeça pendia cada vez mais para o lado. Contou que não tivera fortunas porque não quisera,
mas tivera amores. Sim, amores. E a vida sem amor o que vale? Se não tivesse resolvido casar-se com o professor, teria muito mais. Esta resolução perdera; ao dizer
isso, arrependeu-se e corrigiu:
- Coitado. Já morreu. Deus que o perdoe. Sofri por causa dele.
Deu um arroto forte e levantou-se; apagou as brasas, colocou o fogareiro no pátio para o quarto não ficar abafado, soprou a vela e deitou-se dando um gemido de satisfação,
pensou durante algum tempo o que compraria com aquele dinheiro que sobrara das compras, precisava de tanta coisa; também Gigina arranjaria outras notas como aquela
Por que não? Adormeceu sorrindo.
Placidamente Zelinda dormiu também pensando no casaquinho que compraria no dia seguinte bem cedo. Gostava de roxo, compraria um casaco roxo; se não tivesse dessa
cor, compraria um amarelo. Eram suas cores prediletas, sempre fora extravagante. Gostava de tudo que chamasse atenção.
Tinha desgosto de não ser bonita como Gina. Ah! Se fosse bonita assim...
Só Gina ficou mais tempo acordada; pensava na nova vida que iniciara, pensava no moço chamado Olegário, na casa que ele prometera, nos presentes que receberia. Teria
tudo que desejasse. Que bom! Antes de dormir, teve um pensamento estranho; levantou a cabeça impulsionada pela força desse pensamento: a mãe não perguntara onde
ela arranjara tanto dinheiro; nem a irmã. Era esquisito. Também era natural. Saber para que?
Viu a vela se derretendo sobre o caixote de gasolina. Haviam esquecido a vela acesa; tudo fora tão surpreendente... o dinheiro, o jantar, as recordações da mãe,
o vinho, o casaco novo, tudo... Haviam esquecido a vela acesa. Pulando por cima da irmã adormecida, Gina levantou-se para apagar a vela. Deitou-se outra vez. Lá
fora estava frio, sentia o ar entrando por baixo da porta, um ar frio e úmido.
Saber para que?























SEGUNDA PARTE

VI

Sentada à cabeceira da mesa, Gina conversava com os convidados; pratos variados cobriam a toalha rendada; risoto de camarões, peru, saladas, vinhos e por último
champanhe. Ela gostava de ver a mesa coberta de pratos finos e gostava também de abundância. Não se esquecia daquela vez que fora enxotada da porta de um restaurante
porque tinha fome e queria comprar dez tostões de maionese; agora comia maionese todas as semanas. Estava rica. Olegário, sentado do outro lado da mesa, sorria para
ela; dera-lhe nesse dia uma pulseira de ouro com brilhantes; ela pusera-a no estojo e este passava de mão em mão entre comentários de admiração. Gina festejava seu
décimo-sétimo aniversário.
Sua casa na rua da Liberdade; uma casa pequena, onde nada faltava. Olegário era generoso e o dinheiro sobrava nos primeiros tempos nas mãos dela; comprava vestidos,
casacos, sapatos, roupas brancas, tinha muito mais que Pascoalina.
Os convidados nessa noite eram três amigos de Olegário e três amigas de Gina; bebiam mais do que comiam, por isso estavam alegres e entusiasmados com o jantar. A
fumaça dos cigarros subia pela cabeça dos convidados, enroscava-se no lustre faiscante e diluía-se depois na cor azulada do teto. No breve silêncio que se fez quando
veio a primeira garrafa de champanhe, uma das amigas de Gina começou a contar sua própria história; sua voz era um pouco rouca e gaguejava de vez em quando, o que
provocava risos. Ouviram a princípio com certo interesse, mas depois as interrupções foram tantas que tudo terminou em risadas prolongadas. Ela então entornou o
copo de vinho na mesa; os outros convivas estenderam os braços, umedeceram as pontas dos dedos no vinho da toalha e passaram pela testa, outros passaram atrás da
orelha, para dar sorte. De mão em mão, o estojo voltou para Gina; tirou então a pulseira de dentro e o convidado mais próximo prendeu-a delicadamente no seu braço.
Riam sem motivo, queriam dar expansão à alegria que os contagiava.
Depois do jantar, foram para a sala da frente, onde havia um piano; seu gosto pela música se aperfeiçoara; em dois anos aprendera a tocar e a cantar. Sua voz era
firme, agradável e, dava as notas mais altas sem esforço. Pediram-lhe uma canção que ela cantou sorrindo, a pulseira faiscando em seu braço esquerdo, ao menor movimento.
Pediram outra e outra ainda; todos conservavam as taças ao alcance das mãos e de vez em quando, tomavam champanhe em grandes goles. Quando Gina parou de tocar, uma
das amigas, Linda, começou a dançar no meio da sala imitando as dançarinas árabes; estava bêbada. Seu corpo se retorcia para a frente para trás, seus braços enroscavam-se
como serpentes acima da cabeça e procurava cantar dando gritos agudos que mais pareciam uivos de chacais.
Riam perdidamente. De repente, a dançarina caiu sentada no colo de um dos homens, a cabeça para trás, como desmaiada; o homem carregou-a e deitou-a sobre um sofá,
onde ela ficou imóvel, olhos fechados, como se dormisse.
As risadas continuaram até tarde; as criadas de Gina já haviam se retirado quando os convivas resolveram ir à cozinha preparar um café sem açúcar para Linda que
ainda dormia, a cabeça pendida para um lado, a boca aberta, como que babando. Entre cantos e risos, fizeram uma infusão forte que veio para a sala, meio derramando
sobre a bandeja. Beberam, e um deles levantou a cabeça de Linda enquanto outro punha-lhe entre os lábios uma colherinha de café que ela cuspia fazendo caretas. Beberam
mais champanhe. Gina cantou outra vez e todos acompanharam. Linda acordou dizendo que ia dançar a dança da serpente; mas ao ficar de pé, cambaleou e teria caído
se não a tivessem amparado. Eram três da manhã quando deixaram a casa de Gina; cansada, ela apagou ás luzes e subiu as escadas sem pensar em mais nada. Apenas tirou
o vestido e jogou-se na cama.
No dia seguinte, às três horas da tarde, ainda estava deitada. Acordada, ficou recapitulando sua vida naqueles dois anos. Nem sabia se era feliz, não havia tempo
para pensar.
Sustentava a mãe e a irmã; Zelinda estava casada e já tinha uma filha. Dera um mal passo com o empregado da padaria que vendia pãezinhos doces cobertos com açúcar
cristalizado. O resultado dos pãezinhos doces foi que ela ficou grávida e o empregado, que se chamava Zeca, não pensava em se casar. Mais tanto Zelinda chorou e
se lamentou mostrando o ventre crescido que Zeca num rasgo de nobreza, resolveu-se. Zelinda não soube que ele tomara tal resolução ao perceber que Gina era rica
e pagava uma casa, onde Dona Julica morava com Zelinda, além da casa, pagava todas as despesas. Então Zeca casou-se com Zelinda e um mês depois a criança nasceu.
Zeca, porém, tornou-se vadio depois do casamento; achou que vender pãezinhos doces numa padaria era ofício muito inferior à sua competência. Começou a procurar emprego
melhor e enquanto não aparecia nada, vadiava em casa brincando com a filha ou brigando com a mulher. Gina pagava tudo.
Pagava também os vestidos de dona Julica que só vestia seda; no último inverno até mandara fazer um, de veludo verde garrafa, que deixara a vizinhança ralada de
inveja, como ela contara. Colocara dentadura completa, engordara e agora ria-se por qualquer motivo, demonstrando abundância e alegria.
Gina levantou-se, vestiu um roupão de seda cor de rosa e foi para a biblioteca, pois agora também tinha uma. Dera-Ihe a mania de ler, então comprara livros e mais
livros. Mandara fazer estantes apropriadas e lá estavam os volumes enfileirados nas prateleiras, encadernados em couro, verde e vermelho.
Enquanto a criada arrumava o quarto, tomou um café com torradas num canto da biblioteca; acendeu um cigarro e ficou olhando os livros. Não tivera tempo de ler todos
ainda, mas naqueles últimos dois anos aprendera muito. Tomara professor de canto e piano que Olegário pagava; aprendia francês com sua amiga Lolô e ainda tinha tempo
para se dedicar à leitura. Era inteligente e essa ânsia de saber havia aprimorado seu espírito. A pobre Gigina que andava com os sapatos furados e as mãos grossas
vendendo cabides, doces ou outras bugigangas, faminta e feia, se esvaíra no tempo, ninguém mais se lembrava dela e muito menos a própria Gina. Agora era uma mulher
do mundo. Bonita, inteligente e meio culta.
O que mais admiravam nela eram os olhos grandes e luminosos, depois a fileira de dentes iguais e branquíssimos.
As duas pegaram a estatueta e reviraram de todos os lados. Na mesa do chá, Gina perguntou pelo cunhado. Zelinda fez uma careta:
- Vai bem, mas não há meio de arranjar um emprego que preste. Todos que aparecem são tão ordinários, não é mesmo, mamãe?
Dona Julica, comendo um pedaço de bolo, não confirmou, apenas piscou para Gina às escondidas de Zelinda. Esta continuou:
- Não é por ser meu marido, mas ele tem aptidões para arranjar uma boa colocação. É correto, honesto e trabalhador.
Trincou um biscoito e mudou de assunto; começou a falar na criança que já estava com um ano. Contou as graças da filha e falou sobre um vestido que vira nesse dia
numa vitrina. Gina pensou que era um vestido para a criança, Zelinda protestou:
- Não. Para gente grande. Deve servir para mim, talvez precise alargar na cintura. Estou um pouco gorda.
Bem que eu precisava de um vestidinho assim...
Suspirou. Dona Julica pediu à criada que trouxesse a garrafa de vinho do Porto que ficara na biblioteca. Depois do chá, recomeçou a tomar golinhos de vinho. Zelinda
continuou:
- Lembra do nosso tempo na rua Livre, Gigina? Como o tempo passa, não? Ah! Aqueles tempos foram danados...
Gina perguntou:
- Quanto custa o vestido que você viu na vitrina?
Zelinda sorriu carinhosamente e estendeu o braço para apertar a mão de Gina sobre a mesa:
- Será que minha irmã vai me dar o vestido? Ah! Gigina, que bondade! Você é um anjo...
E mudando de tom:
- Custa cento e vinte mil reis; para você que ganha pulseira de contos de reis, não é nada... Não é, mamãe?
Gina sorriu e subiu a escada dizendo que esperasse; voltou com uma nota na mão. Zelinda falou:
- Também fomos sempre tão amigas... Brigávamos às vezes, isso é certo, não Gigina? Mas qual a irmã que não briga com a outra? Quantas vezes auxiliei você nos estudos?
E quando mamãe se zangava, não te defendi sempre? Você era a irmãzinha mais moça e eu sua defensora, lembra?
Gina confirmou sem responder, com a cabeça. Sabia que a irmã era assim; gabava-se de coisas que nunca fizera, gabava-se de ter sido boa, estudiosa e ajuizada; e
Gina sabia que nunca fora boa, nunca estudara e nunca tivera juízo. Conhecia-a muito bem e às vezes ficava olhando Zelinda, quando esta falava sobre a filha:
- Tem me dado um trabalhão, a Gracinha. Passei várias noites sem dormir por causa da febre que teve com sarampo e nem saía de casa durante esses dias. Fiquei presa
durante duas semanas, não foi, mamãe?
Dona Julica confirmava. Nunca dizia que não para Zelinda, por mais absurdas que fossem suas mentiras. Mas; Gina sabia que não era verdade. Sabia que Zelinda seria
incapaz de sacrificar mais de uma noite pela filha doente, sabia que não deixaria um dia de sair, e sabia que acima da filha e de todos os outros, Zelinda se amava
a si própria. Era mais fácil, Zeca, o marido, ficar com a criança do que a própria mãe. Mas como todas as pessoas que têm esse temperamento, era autoritária e geniosa,
não admitia réplicas ou contradições, de modo que todo o mundo baixava a cabeça diante das suas mentiras e aceitavam-nas como verdade. Gina tinha certeza de que
Zelinda saía diariamente, bem vestida e perfumada e ia à cidade com amigas para um chá ou para visitas inadiáveis. A criança ficava com uma menina inexperiente ou
com o pai, quando este estava em casa à espera de emprego. Quando Zelinda chegava da rua, trazia balas para a menina e enchia-a de beijos:
- Queridinha da mamãe, não me esqueci de você, anjinho.
Alguém maltratou você? Conte pra mamãe. Olhe o que eu trouxe pra minha filhinha.
E enchia a criança de doces; a pobrezinha tinha desarranjo intestinal todas as semanas e Zelinda se lamentava:
- Não sei o que ela tem. Vive doentinha, creio que o organismo de Gracinha é fraco mesmo. Olhe que a gente tem tanto cuidado, ela tem tudo o que há de melhor e vive
doente dos intestinos. Pobre da minha filhinha.
E tornava a sair e tornava a trazer balinhas e chocolates. Às vezes Gracinha tinha febre e chamavam o médico; Gina pagava tudo. Um dia dona Julica ousou falar:
- Eu penso que o que faz mal para Gracinha são os doces que você traz da cidade.
Zelinda levantou os braços num gesto de protesto:
- O que? A senhora tem coragem de falar nisso? Tem coragem? Umas balinhas feitas de água com açúcar podem fazer mal? E eu trago tão pouco. Ela gosta tanto... Não.
A senhora está enganada. Não pode fazer mal algum; depois, se trago essas coisinhas é porque quero bem minha filha, minha anjinha. Achava que enchendo a criança
de doces, demonstrava seu grande afeto de mãe amorosa. Abraçava com força a menina; esta choramingava de dor de barriga e procurava fugir dos braços da mãe; preferia
uns braços que a apertassem menos e a amassem mais.
Gina sabia de- tudo isso. Sabia que Zelinda era mentirosa, falsa e invejosa; então para fazer diminuir aquela inveja e evitar o mais possível a raiva e a falsidade
da irmã, dava-Ihe presentes, do contrário não teria paz.
Na mesa do chá, Zelinda dobrou a nota dada por Gina e guardou-a na carteira; dona Julica tomava vinho, sentada diante da mesa. De repente, Zelinda lembrou-se:
- Gigina, deixa eu levar um pouco desses biscoitos para minha filha. Estão tão gostosos...
Enquanto Gina embrulhava os biscoitos, Zelinda falava:
- Gracinha está um amor. Qualquer dia eu trago ela aqui para você ver. Já quer escolher vestidos. Imagine! O pai outro dia comprou uns sapatinhos cor de rosa para
ela pois não quer outro sapato. Só quer o cor de rosa. Já sabe escolher, a garotinha. Ela promete.
De repente, piscou para Gina chamando-a para fora da sala; deixaram a mãe sozinha diante da garrafa de vinho. No vestíbulo, Zelinda segurou o braço da irmã e sussurrou:
- Gigina, eu também vim aqui hoje para fazer um pedido. Apareceu um emprego para Zeca, mas é preciso que ele faça um depósito de dinheiro. Chama fiança, sabes?
Ele tem que depositar pelo menos cinco contos num Banco se quiser pegar esse lugar. Lembrei de Olegário, será que você não pode falar com ele? Será apenas um empréstimo,
depois Zeca paga.
Gina sentiu um aperto na garganta; as mãos ficaram úmidas. Como iria pedir tanto dinheiro? Teria coragem para isso? Sacudiu a cabeça vagamente, sem afirmar, sem
negar. Zelinda continuou em voz baixa:
- Eu não quero falar perto de mamãe porque ela não acredita que Zeca arranje emprego, sabes? Diz que Zeca não procura. Mas ele procura tanto, Gina. É porque não
tem sorte de encontrar uma colocação firme. Qualquer dia eu brigo com mamãe, já estou ficando enfezada. Deu para implicar com o Zeca porque ele está sempre em casa.
Ela não falou nada para você?
- Não.
- Pois deu pra falar até pras vizinhas. Uma caceteação. Parou um pouquinho e perguntou:
- Será que você arranja o dinheiro? Fala com Olegário... Gina resolveu ser franca:
- Não sei Zelinda, é muito dinheiro, nunca pedi tanto... Ele dá o que quer, nunca exige nada. Você sabe...
Zelinda deu uma risadinha astuciosa:
- Então você está bancando a trouxa... Pois exija o que quiser que está no seu direito. E digo mais: você podia até ameaçá-lo de um escândalo, contar à mulher dele
por exemplo, ele daria tudo o que você quisesse...
Gina recuou, espantada:
- Oh! Zelinda...
- Ué! Por que não? Deixe de ser boba, de ter escrúpulos, trouxa. Peça e exija. Está no seu direito.
Os olhos faiscaram como se tivessem raios; deu uma palmadinha nas costas da irmã. Dona Julica falou da sala de jantar:
- Onde é que vocês estão? Ih! Estou vendo tudo rodar, acho que bebi muito vinho, quase uma garrafa, Gigina, por que você me deixou beber tanto vinho?
Cantarolou. Zelinda murmurou, enojada:
- Está bêbada. Então fale com Olegário; você sabe, é importante que Zeca pegue esse emprego.
Beijou a irmã e chamou a mãe para irem embora. Carinhosamente, dona Julica beijou a filha e entrou no automóvel que Gina mandou vir. No portão, Zelinda ainda piscou
para a irmã como quem diz: "Não se esqueça do meu pedido."
Gina entrou em casa, pensativa. Que fazer? Ainda havia mais: Osório, o velho amigo Osório visitava-a algumas vezes; uns meses antes fizera um pedido: pedira a Gina
para auxiliá-lo nos estudos de Direito. Continuava a trabalhar durante o dia e à noite, estudava, mas como tinha que sustentar mãe e irmãs, sua vida era penosa.
Penalizada, Gina começou a auxiliar Osório. No primeiro mês depois desse pedido, ele havia dito que cem mil réis não chegavam para as despesas; no segundo mês, pedira
mais cinqüenta mil réis porque já estava matriculado e precisava de livros. Agora, na véspera do seu aniversário, viera buscar duzentos mil réis porque com menos
não seria possível pagar as despesas. Mas também Gigina era rica, podia ajudar o velho amigo. Assim estava ela comprometida a custear os estudos de Osório até formar-se
em Direito. Que fazer?
Jantou sozinha, cheia de preocupações. Lembrou-se que podia vender aquela pulseira e dar o dinheiro a Zelinda; arranjaria uma pulseira falsa para substituir aquela,
os homens não reparam nessas coisas. Lembrou-se de pedir a Olegário. Mas como? Que diria? Pedir dinheiro para a irmã sem juízo e o cunhado vadio? Que pensaria Olegário.
Não. Tinha que encontrar uma solução. Passou parte da noite sem dormir. Amava Olegário? Não. Era-lhe apenas grata por tê-la tirado da miséria, mas não o amava. Com
a mão na consciência, refletiu e mediu seus sentimentos.
Nessa noite tornou então uma resolução; resolveu executá-la no dia seguinte. Abriu a gaveta do móvel, onde guardava suas jóias e seus segredos, tomou um cartão entre
os dedos e ficou revirando-o, depois leu-o devagar; era de um homem riquíssimo. Mandara-lhe um dia umas rosas amarelas e esse cartão escondido entre elas, convidando-a
para jantar. Recusara. Ele telefonara uma tarde, dizendo-lhe que quando quisesse jantar com ele ou quando precisasse dele, telefonasse. Gina ficou de pé no meio
do quarto, revirando o cartão e lembrando das palavras dele; resolveu então telefonar. Ficou combinado um jantar para alguns dias depois. Ela sabia que Olegário
iria ao Rio levar a mulher para consultar um especialista do coração.
No terceiro dia, enquanto se aprontava para sair, perguntou a si própria se não estava cometendo uma traição, mas sua consciência disse que não. Só sabia que precisava
ganhar mais dinheiro para auxiliar a família e Osório que queria ser advogado. Tinha apenas uma idéia em mente. Eles precisavam dela e ela não podia faltar.
Um automóvel grande e negro foi buscá-la. Gina entrou. O interior do carro ficou todo perfumado. Um homem de aparência simpática recebeu-a com um sorriso; depois
tomou entre as suas mãos as mãos dela e beijou-as sem nada dizer.
A principio, só aceitava esses convites quando Olegário viajava, depois começou a ir a teatros e ceias, mesmo sabendo que Olegário estava em S. Paulo. Ganhou presentes
sem conta. Tinha o cuidado de ocultar tudo do amigo. Ganhou uma pulseira de brilhantes que vendeu logo depois substituindo-a por uma falsa e deu o dinheiro para
o marido de Zelinda se colocar. Zeca se empregou e dona Julica contou a Gina muito em segredo que Zelinda dissera que ela era avarenta; é verdade que ela pedira
cinco contos, mas pensara que Gina desse mais, pelo menos dez. Podia ter sido mais generosa. Era tão fácil para ela! Ganhava tanto!
Num outro dia, Gina ganhou um casaco de peles; era difícil de esconder; então, nos dias das visitas de Olegário, o casaco de peles ia para o quarto da cozinheira
e a criadinha, quando servia a mesa, punha a mão na boca para rir. Olegário perguntava:
- O que Gabriela tem? Está rindo à toa.
Gina disfarçava:
- Decerto está rindo porque a cozinheira levou um tombo hoje no quintal. Bobagens.
E assim Gina tornou-se também mentirosa. Mentia todos os dias para enganar Olegário. Quando saía com o homem riquíssimo, levava nos ombros o casaco de peles; e por
onde passava deixava um pouco do seu perfume pairando no ar. Freqüentava teatros e lugares onde se dançava. Ceava de madrugada. Ficou conhecendo outros homens e
foi aceitando outros convites.
Assim foi passando de mão em mão como uma bela flor.
Então Olegário descobriu tudo; na madrugada cinzenta de um dia de inverno, quando Gina subiu a escada da sua casa arrastando o casaco de peles preguiçosamente, encontrou
Olegário em cima do hall, pálido como um morto. Olhou-o sem dizer nada e quis alcançar a porta do quarto, mas ele segurou-a pelo braço e ela sentiu como se fossem
tenazes de ferro magoando-lhe a carne. Ele gritou-lhe ao ouvido, um grito desesperado de ciúme e revolta:
- Onde esteve? Diga onde esteve! Com quem andou?
Seu hálito cheirava a whisky, havia bebido; Gina cerrou os lábios e tentou escapar, mas ele apertou-lhe o braço com tanta força que ela gemeu. Então resolveu contar
tudo.
Para que continuar a mentir? Continuar a ocultar a verdade?
A enganar? Falou tudo ali mesmo, à luz pálida da madrugada; contou que a família pedia, pedia, pedia dinheiro. Ela sustentava a mãe, a irmã, o cunhado, a sobrinha,
o amigo Osório que estudava Direito. E todos levavam boa vida, andavam bem vestidos, passeavam, tinham casa confortável, mesa farta. Diziam, rindo e pilheriando:
"Ora, a Gigina ganha fortunas, Gigina pode." Com o que ele dava, não podia sustentar todos. Então... Não terminou. Sobre sua face esquerda, caiu a mão pesada de
Olegário:
- Sua.
Gina suportou o insulto. Sabia que merecia isso e ainda mais. Não chorou. Muito pálida, correu e fechou-se no quarto. Olegário começou a bater na porta fechada e
a gritar:
- Miserável. Abra esta porta, se não arrebento tudo.
Tirei você da lama das sarjetas e você me faz isso? Infame!
Traidora. Abra essa porta.
As criadas vieram, assustadas, espiar o que estava se passando. Com uma touca roxa na cabeça, a cozinheira ficou no vestíbulo em baixo, escutando; seu rosto negro
e reluzente confundia-se com o roxo da touca. A criadinha Gabriela veio na ponta dos pés, um xale negro sobre a camisola, os olhos arregalados de medo. Perguntou
com os lábios, sem falar: "O que foi?" A cozinheira fez-lhe sinal de que o barulho estava feio, lá em cima. Olegário prometia arrombar a porta; batia, com as mãos
fechadas contra ela, ameaçava, gritava. Algumas janelas das casas vizinhas começaram a se abrir e rostos brancos à luz cinzenta da manhã, surgiram interrogadores.
De repente, Gina abriu a porta. A cozinheira e a criadinha ouviram a porta se abrir. Houve um grande silêncio; a cozinheira levou as mãos à cabeça com medo do que
ia acontecer, mas nada aconteceu. A voz de Gina se elevou; uma voz de timbre calmo e sereno; pediu a Olegário que fosse embora; voltasse quando estivesse mais tranqüilo
e quando tivesse pensado melhor. A verdade era aquela que ela havia contado; refletisse e voltasse para conversarem depois. Pediu-lhe que fosse embora, mas Olegário
estava desesperado; começou a falar muito depressa, não podia viver sem ela, não podia... Sua voz era rouca e suplicante. As lágrimas interromperam-lhe as palavras.
Quando a cozinheira ouviu os soluços de Olegário, sorriu e, fazendo um sinal a Gabriela, convidou-a para se retirarem, pois tudo estava acabado. Nas pontas dos pés
voltaram ao quarto próximo à cozinha. Não valia a pena dormir, eram quase cinco horas. Deitaram-se e começaram a comentar a vida atormentada de Gina; a cozinheira
levantava o punho fechado para cima:
- Tudo explora ela, querem tirar tudo da coitada. Nunca vi uma coisa assim, também não pode ser.
Gabriela bocejava confirmando. Lembraram de fazer um café e levar ao quarto dos patrões, bem que estavam precisando.
Quando Gabriela levou o café e ia bater no quarto, viu a porta aberta e Gina deitada num divã encostada à parede; viu também numa das suas faces, uma grande mancha
escura. Ao seu lado havia um vidro de algodão; Gina, segurava uma compressa sobre a face. Havia chorado. Seus olhos estavam molhados de lagrimas. O quarto estava
em desordem; havia roupas espalhadas pela cama e pelas cadeiras, a porta do guarda roupa estava aberta, cabides no chão e sobre as cadeiras. Quando Gabriela colocou
a bandeja de café sobre uma banqueta e aproximou-se do divã, ela e Gina ouviram os passos de Olegário que descia a escada apressadamente, depois ouviram a porta
da rua bater com estrépito. Ele se fora. Gina fez um gesto desanimado e suspirou. Olegário levara a roupa que guardava em casa dela, colocara tudo dentro da maleta
de couro marrom e saíra às pressas. Não pretendia voltar. Tudo terminara entre eles.
Nos primeiros dias, Gina não aceitou convite algum, tratou do olho pisado. No fim da semana, Pascoalina apareceu uma noite, fora de horas, os olhos vermelhos de
chorar; foi pedir a Gina que a hospedasse durante uns dias pois não sabia o que fazer de si, sentia-se profundamente infeliz. Abraçava-se ao pescoço da amiga e chorava:
- Ele me abandonou, Gigina. Didi me abandonou.
Gina sentiu o calor das lágrimas de Pascoalina sobre seu ombro. Mandou preparar o quarto de vestir para a amiga dormir e todas as noites, Pascoalina chorava e contava
a Gina toda sua história. Ela falava misturando palavras feias na narrativa e Gina escutava pacientemente.
Uma noite, oito dias depois, Gina recomeçou a sair; quando voltou às duas horas da manhã, encontrou sobre a mesa do vestíbulo, um bilhete da mãe: O irmão Pepino
havia caído do trapézio e morrido nessa tarde, no circo. O enterro seria no dia seguinte às dez horas, não havia dinheiro era preciso que ela mandasse.
Gina foi para o quarto com o bilhete na mão; havia se esquecido de que o circo estava em S. Paulo há mais de uma semana, lá para os lados da Moóca. Recebera um recado
de Pepino; mandara dizer por dona Julica que iria visitá-la qualquer dia e levaria uma frisa de presente. Ela esquecera e agora ele morrera. Pepino morrera. Lembrou-se
do corpo fino do irmão vestido com uma malha colante, balançando-se no ar; lembrou-se das reviravoltas que aquele corpo fino fazia lá em cima e como seu coração
batia apressado com medo que ele caísse.
Lembrou-se do pai quando a levava pela mão para ver Pepino trabalhar; quando desciam do bonde, ouviam de longe a banda tocando, viam as luzes que brilhavam lá dentro
e a multidão que se comprimia para comprar bilhetes, e todo aquele vai-vem, os gritos dos vendedores de amendoim, de doces, pastéis, e ela apertava com força a mão
do pai, tinha medo de se perder no meio daquele esplendor. Guardou na memória a música do circo; tocavam sempre a mesma e quando Pepino trabalhava era uma valsa:
"O vendedor de pássaros." Os músicos usavam jaquetas vermelhas desbotadas com cordões dourados sobre os ombros. E Pepino saltava de um trapézio a outro com uma agilidade
felina; ela sentia as mãos úmidas como se estivessem molhadas na água; era aflição. E quando Pepino fazia duas voltas no ar antes de alcançar o outro trapézio, a
banda tocava em surdina; ela olhava para os músicos para disfarçar sua emoção; eles tinham o olhar fixo em Pepino e o "Vendedor de pássaros" quase que parava, o
seu compasso. Só quando os tambores tocavam anunciando o fim do trabalho ela respirava com alívio e olhava então o irmão. Ele estava lá em cima, agradecendo para
todos os lados e sorrindo; às vezes enviava um beijo para o lado dela. Ela aplaudia também, as mãozinhas molhadas de suor, feliz por ver Pepino ainda com vida.
Depois vinha a mulher que andava sobre a bola; era uma bola grande, pintada de várias cores e a moça de saiote curto coberto de vidrinhos que cintilavam contra a
luz, equilibrava-se, e a bola corria de um lado a outro no picadeiro, enquanto a multidão aplaudia com entusiasmo. E a menina que andava sobre o arame lá no alto?
O arame balouçava-se e os pezinhos da menina deslizavam sobre ele, os braços abertos, o saiote brilhante, as pernas finas. Às vezes levava uma sombrinha colorida
sobre a cabeça; a sombrinha revirava e volteava no espaço como uma flor ao vento.
E haviam rapazes que saltavam sobre um cavalo branco e forte, as ancas largas, as crinas compridas. Eles faziam piruetas em cima do cavalo, subiam e desciam sem
ele parar, um subia no ombro do outro e equilibravam-se sobre a anca enquanto o cavalo dava voltas e voltas, a cabeça baixa, as crinas sedosas a caírem-lhe sobre
a testa.
Depois desse número, Pepino aparecia outra vez para trabalhar com o palhaço; vinha com o rosto pintado de branco, o nariz vermelho como um pimentão; fazia graça,
dava cambalhotas, levava palmadas do palhaço.
Gina ria-se, ria-se. Sabia que era Pepino pela voz; achava graça em tudo o que ele dizia, retorcia-se de rir quando ouvia as piadas do irmão. O palhaço tinha uma
roupa de seda, muito larga, onde havia caras pintadas e quando ele se voltava, toda a gente dava gargalhadas porque havia uma cara muito grande pintada; no seu traseiro.
Como era engraçado! Pepino e o palhaço deixavam o picadeiro e as palmas e as risadas estouravam de todos os lados. Pepino era um grande artista.
Os olhos de Gina encheram-se de lágrimas. Como era engraçado! Lembrava-se da última vez que o vira trabalhar; o professor Pasquale já havia morrido e ela fora com
a mãe e Zelinda, assistir ao último espetáculo em S. Paulo; o circo partiria no dia seguinte para o interior.
Quando começaram a representar a pantomima, começou a chuva. A princípio, ninguém deu importância; era uma chuvinha à toa, fraquinha, mas aumentou e começou a cair
dentro do circo. O circo era velho e a lona que o cobria estava furada em muitos lugares. Gina sentiu um pingo d'água escorrer-lhe pelo pescoço, mas não disse nada,
com medo que a mãe quisesse ir embora. Sentiu outro pingo e outro; muita gente começou a mudar de lugar, a reclamar, a ir embora. Mas ela não queria sair, Pepino
estava representando; tinha o rosto triste enquanto falava, sua voz era suplicante como se chorasse. Era um artista, o Pepino. Foi a última vez que o viu. Ficou
de despedir-se delas no dia seguinte, e não apareceu mais. Soube mais tarde que ele havia se casado com uma das artistas do circo. E depois não teve mais notícias.
Já ia longe esse tempo.
Deitou-se para dormir; viu ainda na imaginação o corpo elástico do irmão saltando de um trapézio a outro, naquela grande altura. Sentiu as mãos úmidas como se estivesse
ainda no circo e os olhos ficaram cheios de lágrimas. Pobre Pepino. Acordou às seis horas com o ruído da campainha do telefone. Era dona Julica; disse a Gina que
se aprontasse, pois passaria por lá a fim de irem ver Pepino; fez uma pausa e acrescentou:
- Por causa do Pasquale, compreendes? Foi um bom homem...
Pascoalina apareceu na porta do quarto de vestir, toda despenteada, dizendo que iria também; esperara Gina até uma hora para contar o sucedido, depois dormira, não
sabe como. Em poucos minutos estavam prontas. Dona Julica passou de táxi e foram para a Moóca; o enterro sairia do próprio circo, conforme pedido de Pepino.
Ao passar por uma casa de flores, mandaram parar o automóvel e compraram rosas e cravos; o carro ficou salpicado de água que caíra das flores e um leve perfume de
rosas dominou o cheiro de couro e cigarros. Era uma manhã de Julho e toda a gente passava encapotada e encolhida por causa do vento frio; as mãos nos bolsos, os
rostos avermelhados.
De longe, avistaram a lona do circo, remendada em vários lugares; eram remendos grandes feitos de lona mais escura.
Quando o táxi parou e elas desceram sobraçando grandes ramos de flores, a proximidade do circo ficou cheia de gente que parecia ter brotado da terra; uma mulher
com um ventre enorme, sussurrou para outra:
- La sorella...
Um homem falou do outro lado:
- É milionária.
O dono do circo apareceu para recebê-las; contou rapidamente que durante o ensaio da tarde anterior, Pepino havia caído do trapézio; estava inventando um número
sensacional. A altura não era grande e ele não morreria, se não sofresse do coração. O médico dissera que ele morreria do coração qualquer dia, e de fato morreu,
não da queda. Dona Julica perguntou:
- Mas ele não se tratava? Não tomava remédios?
A mulher do dono do circo apareceu atrás do marido; respondeu:
- Tratava, tomava remédios, mas o médico não queria que ele saltasse do trapézio, disse que se continuasse a fazer acrobacia, morreria.
Um outro que os rodeou, terminou:
- E morreu mesmo.
Gina teve vontade de perguntar por que ele ainda trabalhava no trapézio se estava sofrendo do coração, depois lembrou-se que decerto era para ganhar mais dinheiro
e sustentar a família. Perguntou:
- Deixou família?
Deixou mulher e dois filhos pequenos.
O dono convidou-as para entrar; Gina chamou-o de lado e recomendou que fizesse tudo da melhor maneira possível, ela pagaria. Pascoalina tinha o rosto contraído como
se fosse chorar. No meio do picadeiro, estava o caixão sobre um tablado de madeira; ao lado, estava uma mulher inconsolável e duas crianças e que também choravam.
À volta do tablado, havia uma porção de homens e mulheres, quase todos artistas que tinham sido companheiros do morto. Abraçaram a viúva; Gina achou-a parecida com
a menina de pernas finas que trabalhava no arame; depois soube que era ela mesma, apenas mais velha, um pouco gorda, esperando outro filho. As duas crianças teriam
seis e oito anos, eram magras e pálidas. Gina ficou olhando estupidamente o caixão; Pascoalina começou a chorar alto; tirava o lenço e passava nos olhos num grande
abatimento, apesar de não ter conhecido Pepino. Os que chegaram depois, deram pêsames a Pascoalina pensando que ela fosse a irmã; a viúva e as crianças choraram
fortemente quando viram Pascoalina chorar. Dona Julica tirou um lenço de seda cor de rosa da bolsa de couro e enxugou os olhos; de repente guardou o lenço outra
vez e o fecho dá bolsa fez tóc! no silêncio do picadeiro.
Tornou a abrir a bolsa logo depois porque estava novamente em pranto e a bolsa tornou a fazer tóc! Todas as cabeças voltaram-se para o lado de dona Julica. Imperturbável,
ela continuou a tirar e a guardar o lenço a todo o instante.
Entrou mais gente e todo o picadeiro ficou cheio; trouxeram cadeiras para perto do tablado e quase todos ficaram sentados, esperando a hora do enterro. Alguns levantaram-se
para ir fumar, outros conversavam contando a história de outras mortes como aquela. O macaquinho começou a dar guinchos lá dentro e alguém foi aquietá-lo. Os três
cães latiram inquietos.
Tudo já estava determinado e Gina já havia dado ao dono do circo, todo o dinheiro que trazia na carteira; ficara de dar mais depois.
Meia hora antes do enterro, a banda de música apareceu fardada e colocou-se à entrada do picadeiro, como a avisar que o espetáculo ia ter início. Gina olhou-os;
eram aqueles mesmos homens que usavam as fardas vermelhas desbotadas, com cordões dourados sobre os ombros. No silêncio que se fez, ouviu-se a banda tocar a Valsa
de Pepino; "O vendedor de pássaros". Tocou de uma maneira tão triste que Gina começou a chorar, mas seu desejo era chorar aos gritos, como uma criança desconsolada.
Começaram depois as despedidas; todos os artistas desfilaram diante do caixão para se despedirem de Pepino; uns inclinavam-se e beijavam a testa do morto, outros
passavam simplesmente: os meninos do trapézio, a menina que andava sobre a bola, o palhaço, os equilibristas, os que faziam piruetas a cavalo, a família do dono
do circo, os que representavam a pantomima, os empregados e finalmente o cavalo branco, o macaquinho e os cachorros.
A banda tocava em surdina, sempre a mesma valsa. Fizeram os animais parar ao lado do caixão; o cavalo roçou a cabeça no caixão, as crinas sobre os olhos, como se
compreendesse.
- Por que fazem isso?
Uma mulher falou ao lado dela:
- Pepino disse antes de morrer que a vontade dele era despedir-se de um por um, de todos os companheiros; a senhora sabe, pode-se dizer que ele nasceu no circo...
Pascoalina perguntou:
- Mas ele falou antes de morrer?
- Como não? Conversou com quase todos e recomendou muitas coisas para a mulher e os filhos. Ele me disse... Ele me disse...
E a mulher começou a chorar sem terminar a frase. Vieram os cães amestrados conduzidos por um dos tratadores; levavam capinhas vermelhas sobre o dorso, como o macaquinho.
Pararam ao lado do caixão e ficaram em silencio aspirando o ar; de repente um deles levantou o focinho para cima e deu um uivo prolongado como se fosse um gemido.
O tratador inclinou-se e falou-lhe qualquer coisa ao ouvido; o cão levantou as patas dianteiras e ficou de pé procurando ver o rosto de Pepino, depois deu um gemido
baixinho e olhou à volta como à procura de alguém. O tratador sentiu-se orgulhoso; voltou-se para os que estavam ao lado:
- O Feitiço sabe o que aconteceu, veja como ele procura.
E chamou:
- Feitiço! Pirata! Vamos embora. Nosso amigo morreu...
Pascoalina soluçou e segurou Gina por um braço:
- Ah! Gigina, até os animais gostavam dele. Veja um pouco...
O macaquinho passou segurando a mão do domador; sua mãozinha negra e murcha desaparecia nas mãos grandes do homem; passou arrastando o rabo e dando saltinhos, de
casaca encarnada. Os olhos vivos percorriam a cena de um lado a outro; antes de desaparecer, deu um guincho estridente.
Gina chorava com a cabeça inclinada. A mulher de Pepino levantou-se e beijou longamente o marido; as crianças também. Foi quando a banda cessou de tocar e um sacerdote
acompanhado por um coroinha, entrou para recomendar o corpo. Rezou e espargiu água benta sobre o caixão; as gotinhas d'água alcançaram algumas pessoas que se benzeram
contristadas. Alguns homens aproximaram-se e levaram o caixão; a banda tocou uma marcha fúnebre diante de uma multidão que esperava na rua da Moóca; só cessou de
tocar quando o automóvel que levava Pepino, desapareceu numa esquina.
Todos se dispersaram aos poucos; Gina entrou novamente no circo e foi perguntar à viúva se tinha onde ir, se tinha família. Chorando muito, ela disse que tinha uma
tia que morava em Barretos e não via há muito tempo, não tinha mais ninguém. Fez um, gesto vago com as mãos como quem não sabe que fazer de si. Gina convidou-a então
para ir para a casa dela pelo menos até a criança nascer. Uma das amigas que estava ali perto, aproximou-se e tomou nota do endereço, prometendo levar a mulher de
Pepino e as crianças logo que pudesse. Deixasse por conta dela, providenciaria.
Gina quis deixar algum dinheiro, mas não tinha mais nada na carteira, então pediu a Pascoalina que emprestasse alguma coisa; Pascoalina deu cinqüenta mil réis. Despediram-se
e entraram no táxi; quando este começou a rodar, Pascoalina deu um suspiro fundo e recostou-se, inclinando a cabeça para trás; tinha os olhos inchados de tanto chorar.
Dona Julica estava impressionada, empurrou o chapéu para a testa e deu um gemido; Gina estava hirta olhando para a frente.- De repente, Pascoalina perguntou passando
a mão pelos olhos:
- Me diga uma coisa, Gigina, a vida vale alguma coisa? Gina encolheu-se sentindo frio; sem voltar-se, respondeu:
- Nada. Não vale nada, Pascoalina.
- Também acho. O que adianta a gente brigar? Nada.
A gente morre mesmo como o pobre Pepino. Acabou-se.
Porca vida! Disse um palavrão. Nesse instante o táxi parou de súbito para evitar um bonde que vinha em sentido contrário. As três foram atiradas com força no fundo
do carro, umas sobre as outras. Dona Julica fez uma careta e endireitou o chapéu que havia caído de lado. Pascoalina bateu a cabeça no fundo do carro, levantou-se
um pouco para ver o que havia e gritou:
- Nossa Senhora da Boa Morte, o que houve? E vendo que não havia nada, acrescentou:
- Porca miséria!
Outro palavrão. E de súbito, as três começaram a rir; riram desesperadamente, com alívio, com satisfação, com alegria, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada
da mundo.
Dois dias depois, a viúva de Pepino chegou com os dois filhos, um cachorro, duas malas e uma porção de pacotes e embrulhos à casa de Gina. Foi preciso comprar camas
que foram colocadas no quarto dos fundos, em cima, onde Gina guardava malas e objetos pouco usados. A viúva tinha sempre os olhos vermelhos e falava incessantemente
no marido, quando havia alguém para escutar. As crianças pálidas e magrinhas carregavam o cachorro no colo, este também era triste, tinha o pêlo curto e marrom,
grandes orelhas caídas e olhos de desamparado. As crianças não saíam de perto da mãe, olhando tudo com admiração.
Nesse mesmo dia, Gina ouviu Pascoalina falar duas vezes ao telefone; e à noite, quando voltou para casa depois de ter jantado na cidade, encontrou um bilhete da
amiga sobre a mesa do quarto; agradecida a hospedagem e dizia que resolvera fazer as pazes com Didi, a vida é curta para se viver brigando.
Gina riu e picou o bilhete em pedacinhos; tivera uma boa noticia nesse dia: na próxima semana iria mudar-se para uma bela casa na Avenida Brigadeiro Luís Antonio,
teria um automóvel e chauffeur. Ganharia mais dinheiro também. Era preciso muito dinheiro agora, pois as despesas aumentariam com a família de Pepino que tinha de
sustentar.
Na nova casa, para onde se mudaram, havia dois belos quartos em cima da garage e lá ficou instalada a família do irmão.
Gina compreendeu então o que era ser realmente rica; a casa da rua Liberdade era insignificante e feia ao lado dessa que possuía agora, com grande jardim, salão,
quartos grandes e bons banheiros. Comprou mais vestidos, possuía tudo o que havia de melhor e mais bonito na cidade, foi disputada, ganhou jóias de valor. Muitas
vezes, ao despertar, seus olhos pousavam sobre a mesa da cabeceira, onde ela sabia que ia encontrar um estojo; antes de abrir, adivinhava: um anel, uma pulseira,
um colar? Nunca errava.
O padrão de vida de dona Julica subiu também com a riqueza da filha; começou a fazer estação de águas, passava o inverno no Rio, vestia roupas finas e gastava um
dinheirão em automóvel. Zelinda começou a viver no luxo, tinha tudo o que queria; um dia disse uma frase para a irmã, frase que Gina nunca pôde esquecer. Gina mostrava
os vestidos novos que comprara; Zelinda olhou, apalpou às sedas, examinou e, voltando-se para Gina disse:
- Que engraçado, Gina. Você com esse luxo todo, com vestidos caríssimos e no entanto não pode entrar em toda a parte enquanto eu com um vestido de saco, posso.
Deu uma risadinha aguda. Gina cerrou os lábios e não respondeu. Não decorreu muito tempo, Zelinda separou-se do marido. Percebera que Zeca tinha uma amante lá pelos
lados do Braz; chamou um detetive para descobrir o que havia na vida do Zeca, pois ele andava arredio e nem com a filha se importava. Uma semana depois, o detetive
voltou e contou com ares misteriosos que o Zeca tinha um quarto por conta dele numa pensão cara.
Nesse quarto, ele se encontrava com a outra. Zelinda quis fazer escândalo e surpreendê-los em flagrante, mas dona Julica pediu que não fizesse isso, pelo amor de
Deus. Nesse dia Zelinda teve uma discussão violenta com Zeca; quando ele chegou para jantar, ela disse tudo até o endereço do quarto. Ele ficou apatetado, olhando
a mulher; não negou, nem confirmou. Diante de tanta indiferença, ela avançou para ele, furiosa; quando ele procurou defender-se ela mordeu-lhe a mão. Ele reagiu
e empurrou-a com força; ela bateu numa cadeira da sala de jantar e quase caiu; mais furiosa ainda, deu um soco com tal ímpeto no estômago do Zeca que ele cambaleou.
Zelinda aproveitou-se disso e caiu de tapas e pontapés em cima do marido. Ele novamente se defendeu e empurrou-a; desta vez ela caiu sentada no chão, do outro lado
da sala. Dona Julica gritava dum lado, tentando segurar o braço da filha, mas esta era forte e se desvencilhava facilmente; as duas criadas que haviam entrado atraídas
pelo barulho, não sabiam que fazer e Gracinha, nos braços da pajem, dava gritos agudos. Quando Zelinda se levantou e tornou a avançar contra o Zeca toda desgrenhada,
a blusa rasgada, os olhos vermelhos de cólera, dona Julica e as duas criadas puseram-se na frente do Zeca para defendê-lo; isso foi tão inesperado que Zelinda parou
indecisa. E nada pôde fazer. Ele passou as mãos pelos cabelos, endireitou a gravata e com passos apressados, dirigiu-se para o quarto. Ouviram então o ruído de gavetas
abrindo e fechando, portas de armário que se batiam passos de um lado a outro, de quem tem muita pressa. Enquanto isso, davam água com açúcar a Zelinda e a Gracinha
para se acalmarem. Minutos depois, quando Zeca apareceu com uma mala nas mãos, na porta da sala, Zelinda fez um movimento para se levantar, mas as três mulheres
puseram-se na frente dela. Zeca pôde deixar a casa tranquilamente; não muito tranquilamente porque ouviu de longe, os gritos roucos de Zelinda:
- Vadio! Saia já desta casa, seu vagabundo. Vá agora sustentar tua bruxa, quero ver com o que! Anda! Arranja dinheiro agora, bandido!
Sua boca espumava de ódio. Gracinha nos braços da avó recomeçou a chorar dando gemidos como um cãozinho.
Zeca foi diretamente à casa de Gina para contar tudo; Gina estava no salão dando aula de canto. Quando o professor saiu, Zeca desabafou: "Impossível viver com Zelinda.
Tem um gênio violento, desleixa a filha, é má dona de casa. Só o que quer é viver na cidade com as amigas, bem vestida e perfumada... vadiando.... A pobre Gracinha
fica nas mãos das criadas e tem sempre dor de barriga porque come as porcarias que a mãe traz da cidade. E se não tem dor de barriga, tem dor de ouvidos ou qualquer
dor... A mãe só sabe voltar à noite e encher a criança de doces. Uma lástima. Não suporto mais, o melhor é mesmo a separação. E ainda fala mal de você, Gina... Diz
que você é mal agradecida, ingrata... Diz que você não se lembra que foi ela que ensinou você a ler e a escrever, diz que defendia você quando do a mãe queria bater.
E tudo o que ganhava, dividia com você..
Ele continuou diante do silêncio de Gina; contou que estava bem no emprego para o qual Gina pagara fiança um ano antes e perguntou se Gina o auxiliaria ainda, caso
ele precisasse. Gina prometeu e Zeca deixou a casa mais aliviado. Foi para a pensão do Braz.
Quando Gina estava se preparando para sair, Zelinda chegou com dona Julica; vinha ainda com as feições transtornadas pela cólera, os olhos fascinantes de ódio. Disse
horrores do Zeca; fazendo gestos nervosos com as mãos gordas e brancas, onde brilhavam pedras falsas, falou:
- Sempre foi péssimo marido, Gigina... Sempre. Desde o princípio do nosso casamento, foi ruim. Nunca me iludi a respeito dele; e afinal o que ele era antes do casamento?
Vendedor de pão numa padaria de bairro! Ficou importante depois de casado. Aí ficou gente. Teve boas roupas, casa confortável, boa mesa. E deve tudo a quem? Se não
casasse comigo, teria tudo isso?
Engoliu seco e continuou:
- Quero dizer, deve tudo a você, Gigina, deve tudo a você. E às vezes ainda critica a vida que leva. Não é mesmo, mamãe?
Dona Julica, entretida em comer bombons que encontrou num prato de cristal, confirmou, distraída. Zelinda tornou a falar:
- Miserável. Ele há de me pagar. Pagará tudo o que me fez. Tudo.
E dirigindo-se à mesa, onde havia uma garrafa de licor, perguntou mudando de tom:
- É de cacau, Gigina? Vou tomar um pouquinho. Estou precisando. Quer um trago, mamãe?
Calçando as luvas brancas de pelica, Gina ouviu as queixas da irmã, olhando o relógio de vez em quando. Zelinda, olhou o cálice de licor contra a luz:
- Não faça cerimônia, Gigina... Se tem que sair, pode sair, pode ir. Só o que eu quero é tratar do desquite amanhã mesmo. Vou falar com o advogado, não quero nem
ver mais aquele miserável.
Parou um pouco indecisa:
- Não sei em quanto ficarão as despesas; será muito caro? Bebeu um gole de licor; Gina olhou o relógio outra vez:
- Desquite?
- Você me ajuda nas despesas, não Gigina? Não sei em quanto ficará.
- Naturalmente que ajudo, mas não pense nisso ainda... Olhe, se querem aproveitar o automóvel, vamos. Vou à cidade. Vamos mamãe?
Dona Julica e Zelinda levaram os cálices aos lábios e beberam todo o licor. Acompanharam Gina e tomaram o automóvel. Durante todo o percurso, Zelinda falou mal do
Zeca; agradeceu a Gina o auxilio prometido. Gina avisou:
- Não faça as coisas precipitadamente. Por que falar em desquite já? Espere um pouco.
- Então você pensa que vou fazer as pazes com o bandido?
Despediram-se. Nessa madrugada, quando Gina voltou para casa, cansada e aborrecida, tomou um lápis e papel e começou a fazer as contas; as despesas eram enormes.
Se não tomasse cuidado, o dinheiro não daria; ainda mais com o desquite de Zelinda. Deixou cair o lápis e o papel no tapete e adormeceu sobre o divã, apreensiva
e infeliz.
O diretor do circo onde Pepino trabalhava, foi um dia falar com Gina; propôs que os filhos de Pepino voltassem ao circo, pois com a aprendizagem que já tinham, seriam
grandes artistas no futuro. O menino estava aprendendo, a equilibrar-se sobre o cavalo e a menina trabalhava no trapézio, como o pai. Gina chamou a cunhada e explicou
a proposta; quando as crianças ouviram, exultaram. Pediram à mãe para voltarem ao circo, não se acostumavam longe dele; tinham saudades daquele meio e daquela gente,
nunca haviam vivido outra vida, nem conhecido outras pessoas.
Gina ficou pensativa olhando para as duas crianças, às quais ela havia proporcionado uma vida melhor; havia dado roupas e brinquedos, procurara por todos os meios,
dar-lhes instrução e alegria. Ei-los preferindo abandonar tudo e voltar ao circo, deixar o palacete com seus jardins, a mesa com suas iguarias, a instrução e o futuro
garantido para uma vida incerta: pular sobre um cavalo ou girar perigosamente no ar entre um trapézio e outro. A viúva, também pensativa, olhava as crianças. Resolveu
voltar depois de ter a criança; ficou então combinado que Gina auxiliaria no que fosse preciso, com roupas e dinheiro, e o diretor faria um contrato para que as
crianças trabalhassem sob sua direção.
Nessa tarde, Gina viu de uma das janelas, os dois sobrinhos no jardim sobre um gramado que se estendia ao lado esquerdo da casa vizinha. Um virava cambalhotas e
outro fazia o cachorro ficar sentado sobre as patas traseiras e equilibrar uma flor sobre o focinho. Gina sorriu, divertida. Eram crianças de circo e nunca seriam
outra coisa; tinham na alma, no sangue e no coração o amor pelo circo, herdado do pai.
Quando nasceu a criancinha no hospital, Gina foi visitar a cunhada e ficou resolvido que batizaria o novo sobrinho. Teria o nome do pai, Pepino.
Um mês depois, Gina fez o batizado e deu uma festa; convidou as amigas da cunhada e a casa se encheu de gente do circo. O diretor compareceu com a família e também
os artistas amigos de Pepino.
As crianças viravam cambalhotas no gramado e os artistas fizeram sorte no salão, equilibrando copos na ponta dos dedos e fazendo desaparecer pratos de doces num
piscar de olhos. Dona Julica divertia-se bebendo vinho espumante e olhando as proezas, mas Zelinda ficou enciumada. Falou à mãe, num canto da sala, enquanto os outros
olhavam:
- Admiro como Gigina teve coragem de receber essa gente aqui; são todos cafajestes e mal educados. Já derramaram vinho no tapete do salão e surrupiaram um prato
de canudos. Se Gigina não abrir os olhos, vão surrupiar outras coisas, isso sim...
Dona Julica sacudiu os ombros com indiferença:
- O que tem, Zelinda? Deixe se divertirem um pouco...
Olhe, aquele é o palhaço...
Zelinda resmungou:
- O que mais admiro é Gigina dizer que gosta tanto de Gracinha e no entanto nunca fez uma festa aqui para ela. E faz pra essa gente de circo, que ela mal conhece...
Diga uma coisa, mamãe, ela queria assim tanto bem a Pepino?
Nesse momento um dos artistas havia pedido um lenço e estava no meio da sala fazendo sair outros lenços desse primeiro. Os outros aplaudiram com entusiasmo. Dona
Julica não ouviu a pergunta de Zelinda; bebeu mais vinho e sorriu. Com um olhar de desprezo para o mágico dos lenços, Zelinda voltou-se para a mãe:
- Ela queria tanto bem assim o Pepino? Estou falando com a senhora. Como ela agüenta essa gentalha no salão?
Dona Julica impacientou-se:
- O que você está dizendo? Quem queria bem Pepino?
Gigina? Naturalmente queria. Veja o que ele está fazendo agora: pediu um chapéu e disse que vai fazer sair um passarinho lá de dentro. Quero só ver onde está o passarinho.
Olhe, Zelinda...
Mas Zelinda não olhou. Saiu furiosa da sala, revoltada com a mãe que não dera atenção às suas palavras e com Gigina que aturava aquilo tudo para agradar uma cunhada
que mal conhecia.
No hall, encontrou quatro crianças; duas eram visitas. Acompanhavam o cachorro que se dirigia para o salão caminhando nas patas traseiras e equilibrando um doce
em cima do focinho. Zelinda olhou com ódio e saiu batendo com força a porta da rua.













VII

O professor de canto de Gina, um maestro eminente, gostava de reunir artistas para vê-la cantar. E Gina, que sempre estudava muito, foi se aperfeiçoando. Uma vez
por mês pelo menos, ela reunia em seu salão cantores, pianistas e intelectuais. E quando um artista célebre passava por S. Paulo, era logo convidado para os salões
da Avenida Luiz António. Todos admiravam profundamente Gina: sua beleza, sua inteligência, seu gosto pela música. Tornou-se a mulher mais disputada da época; os
jantares que oferecia eram famosos; famosos pelos pratos especiais, pela alegria que reinava sempre e pelos vinhos. Seus cigarros eram escolhidos e tinham numa das
pontas seu nome em letras douradas: Gina.
Uma noite ofereceu um jantar ao maestro de uma Companhia Lírica que estava dando espetáculos no Teatro Municipal de S. Paulo; convidou doze pessoas e encomendou
um jantar especial. Enfeitou a casa para a festa: flores, luzes, a mesa coberta de rendas e cristais reluzentes, e no salão, o piano aberto, iluminado apenas pelas
velas de dois candelabros.
Pascoalina e Didi foram os primeiros a chegar; era uma noite quente de Novembro e o ar parado ameaçava tempestade. Pascoalina estava com um vestido de cetim azul
muito justo e muito decotado nas costas; Didi vinha com ar misterioso de menino desobediente. Entraram pela cozinha, receosos de encontrarem visitas no hall; sob
o braço direito de Didi, havia duas garrafas de vinho que ele depositou com carinho sobre o mármore da pia da copa. Nesse instante Gina entrou na copa; estava com
vestido de renda branco, vaporoso e leve. Nos braços e no colo, as jóias cintilavam; Pascoalina segurou-a pelo braço:
- Veja o que Didi trouxe para você. É vinho calabrês que você gosta tanto. Cheire!
Tomou a garrafa de sobre a pia e encostou-a ao nariz de Gina; esta recuou rindo e exclamando:
- O vinho calabrês? Oh! Didi onde você arranjou essa preciosidade?
E pôs as mãos cheias de anéis sobre o ombro de Didi:
- Muito obrigada.
Ele quis falar, mas Pascoalina interrompeu:
- Quando for beber o vinho, não se esqueça de jogar o azeite fora; o azeite que está em cima do vinho... no gargalo...
E diante da expressão admirada de Gina, pediu: , - Explique, Didi.
Ele tomou uma das garrafas e levantou-a à altura da cabeça mostrando a Gina:
- Está vendo esta cor mais clara aqui no pescoço da garrafa?
Pascoalina gritou:
- Gargalo, Didi. Gina respondeu:
- Estou vendo sim.
- Quando você quiser tomar o vinho, abra a garrafa e jogue fora isto aqui. É o azeite que eles põem para preservar o vinho de se estragar.
Gina reclamou:
- Mas então vou desperdiçar o vinho?
- Nada disso, Gigina. Você vira a garrafa rapidamente assim na pia, olhe e endireite outra vez. Só o tempo de cair o azeite.
- É só o tempo da garrafa dar uma cuspida, falou Pascoalina.
- Já sei, vou guardar as duas garrafas para beber quando estivermos sozinhos.
Tomando as duas garrafas, Gina foi guardá-las numa prateleira da despensa. Pascoalina começou a tirar azeitonas que a criada colocara num prato grande e chato para
levar ao salão.
- É das que eu gosto, Didi. Prove.
- Não quero agora, Pascoela.
- Mas eu quero que você prove. E não me chame de Pascoela, já disse.
Colocou uma azeitona na boca de Didi e perguntou a Gina onde estava o aperitivo, queria tomar um cálice. Didi aconselhou-a a não beber antes de comer alguma coisa,
já havia bebido em casa. Pascoalina riu-se alto e bateu-Ihe nas costas:
- Eh! Velho, está com medo que eu fique bêbada? E o que tem que eu fique? Pode assustar o maestro italiano que vem aqui?
Gina que fora à cozinha inspecionar tudo pela ultima vez, entrou na copa novamente. Pascoalina gritou:
- Didi está com medo que eu beba demais. Temos peixe, Gigina? E levantou o nariz para cima.
- Temos camarões, Pascoalina, vamos lá para dentro.
- Você já agradeceu o vinho a Didi?
- Naturalmente. Você não viu?
- Mas não o beijou.
- Ora, Pascoalina, vamos para a sala.
- Beije Didi. Beije, Gigina. Eu dou licença.
Gina percebeu que ela estava embriagada; antes que ela insistisse mais, deu um leve beijo na face de Didi. Riram e encaminharam-se para o hall. Zelinda vinha entrando
nesse instante, tirou a capa de peles e todos puderam ver então suas espáduas morenas cheias de carne, seu busto grande, seus braços gordos. Revirou-se diante do
espelho, mostrando o vestido verde berrante:
- Estou bem?
Todos confirmaram dizendo que sim. Vinham do salão levíssimos acordes de piano; era Dr. Epaminondas, um intelectual, velho amigo de Gina que na intimidade chamavam
de Nondas. Tocava piano. Era alto e moreno e suas faces magras conservavam uma beleza interior muito pronunciada; nem os cabelos brancos, nem a velhice haviam-lhe
levado a beleza dos traços; percebia-se que fora um belo homem. E quando sorria, revivia a mocidade, seu sorriso era de jovem. Levantou-se ao ver Gina entrar e foi
encontrar-se com ela; inclinou-se e beijou-lhe as duas mãos. Estava irrepreensível, de smoking. Logo chegaram outros convidados e começaram a bebericar; a criada
havia colocado uma bandeja grande na mesa de vidro do centro e eles mesmo se serviam; bebiam e comiam cebolinhas e batatas fritas enquanto falavam animadamente.
Parece que todos tinham novidades a contar. Dr. Nondas tomou um pouco de bebida, tornou a encher o cálice, depois colocou-o sobre o piano; sentou-se e tocou uma
valsa muito levemente. Zelinda e Pascoalina discutiam vestidos; Lolô, a amiga de Gina que lhe dava lições de francês, contava-Ihe qualquer coisa e ela ria-se enquanto
Lolô exagerava a história para torná-la mais engraçada; fazia gestos, levava as mãos à garganta como se sufocasse, tossia, revirava os olhos. Paul, que viera com
Lolô, aproximou-se vagarosamente, queria ouvir também. Lolô parou de falar quando o viu aproximar-se, e pegando uma cebolinha, trincou-a piscando disfarçadamente
a Gina. Paul perguntou sobre que estavam falando; Gina disse que Lolô estava contando a história de um filme que havia assistido, engraçadíssimo. Paul queria saber
o nome do filme e Lolô começou a inventar, mentindo e exagerando, foi quando Gina viu seu professor de pé na entrada do salão, ao lado do maestro italiano e de outras
pessoas que estavam mais atrás.
Ela foi ao encontro dos novos convidados; além do maestro, vinha a soprano da Companhia Lírica, uma outra atriz que fazia papéis secundários, e um rapaz alto e alourado,
secretário do maestro. Os que já estavam no salão, ficaram em silêncio enquanto Gina fazia as apresentações. A criada trouxe mais bebidas e novos pratos com pepinos
adocicados e cebolinhas; solenemente, o maestro levantou o cálice a altura dos olhos, saudou Gina em italiano e inclinou-se; depois bebeu e depositou o cálice com
cuidado sobre o espelho azulado da mesa. E de repente, todos começaram a falar como se tivessem muita coisa a contar uns aos outros; falavam sobre os espetáculos
da Companhia, sobre a temporada de Buenos Aires, sobre música. O maestro não tinha ainda cinqüenta anos; era moreno e tinha um ar distinto, parecia triste. Não era
feio e quando falava ou sorria, tornava-se simpático e atraente. Compreendia vagamente português e preferia falar francês ou italiano. Começou a comer cebolinhas
e a contar a Gina o sucesso dos últimos espetáculos no Rio. A soprano estava ao lado de Didi; era bonita e elegante; à volta do seu pescoço, havia um colar de pérolas
muito bonito. Um pouco ao lado, Zelinda tentava descobrir se o colar era falso ou verdadeiro; perguntou ao Dr. Nondas; ele, sentado no banco do piano, disse que
não entendia de jóias.
A soprano provou um pedaço de pepino adocicado, comeu outro pedaço e perguntou a Didi como se preparava; Didi apressou-se em oferecer-lhe mais e perguntar a Gina
como se preparava aquilo. Gina deixou de ouvir o maestro e explicou a Didi que precisava deixar o pepino de molho no açúcar para tomar aquele gosto e fez um gesto
como que despedindo-o; Didi voltou para perto da soprano e explicou que o pepino ficava de molho no açúcar por isso tomava esse gosto delicioso. E ofereceu um cálice
de vinho extra bem gelado que ela aceitou; Pascoalina que conversava com o secretario, seguiu Didi com os olhos e piscou, chamando-o. Ele fingiu que não viu e explicou
detalhadamente à soprano como eram preparados os pepinos. Fez gestos explicando como se cortava, como se colocava numa vasilha em açúcar dentro, explicou com detalhes
e inventou.
A soprano tomou notas num livrinho que tirou da bolsa de miçangas; escreveu em cima: Pepinos doces.
Nesse instante, avisaram que o jantar estava servido; o maestro inclinou-se para Gina e ofereceu-lhe o braço num gesto elegante. Tomando o braço do maestro, Gina
olhou os outros convidados, pedindo que a seguissem.
Entraram na sala de jantar e procuram seus lugares à mesa; havia em cada lugar um cartão, onde estavam pintados dois pombinhos se beijando entre flores e logo abaixo
o nome do convidado.
Sentaram-se e começaram a trocar algumas .palavras sobre o calor, as flores da mesa, a toalha de renda. Um trovão reboou longe. Todos se olharam, apreensivos; Lolô
deu uma risadinha nervosa, tinha medo de trovões.
Para disfarçar, Gina perguntou ao alto, voltando-se para a direita:
- Maestro, quando volta a Milão?
Com o garfo dourado, o maestro espetou um pedaço de abacaxi, antes de responder:
- De hoje a um mês, estaremos em Milão.
E engoliu o pedaço de fruta. Houve exclamações na mesa diante da resposta do maestro; Pascoalina disse que tinha inveja de quem ia para a Europa. Olhou significativamente
para Didi que desviou o olhar e observou a salada diante dele.
Gina lera numa revista estrangeira que durante o verão a sopa ao jantar devia ser substituída por uma salada de frutas bem gelada. E seguindo esse conselho, mandara
picar as frutas e salpicar de gelo moído. Zelinda, ao lado do Dr. Nondas cochichou que estavam começando o jantar pelo fim, apenas haviam esquecido o café (nunca
deixava passar a ocasião de criticar Gina, seus atos e suas atitudes). Disse que o jantar finalizaria com um prato de sopa de aspargos, bem quente. E riu-se com
prazer; Dr. Nondas sorriu, depois disse que seria interessante, que o maestro italiano iria contar na sua terra que os brasileiros são muito extravagantes e tomam
sopa como sobremesa. Que sucesso. Zelinda riu alto. Pascoalina e Lolô queriam saber por que estavam rindo. Diante de Pascoalina, havia um pratinho de frisos dourados,
cheio de azeitonas negras que nadavam num azeite amarelo; com as unhas muito compridas e polidas, ela começou a escolher as azeitonas maiores e a mastigar; depois
explicou que todas as vezes que jantava em casa de Gigina, a criada já sabia e trazia azeitonas especiais de que ela mais gostava no mundo; vinham de uma aldeia
de Portugal. As unhas de Pascoalina pareciam pequenas chamas irrequietas. A soprano perguntou o nome da aldeia e disse que também gostava de azeitonas, Do outro
lado da mesa, Pascoalina disse que a aldeia chamava-se Nossa Senhora da Hora, o que fez alguns acharem graça; e não ofereceu azeitonas à soprano. Zelinda disse que
ela devia se chamar - a dama das azeitonas; Pascoalina não gostou. A outra atriz que fazia papéis secundários e era amiga da soprano, estava ao lado de Dr. Nondas;
começou a falar que era a primeira vez que vinha ao Brasil e tivera surpresas incríveis, nunca pensara encontrar tanto progresso. Dr. Nondas perguntou se ela tivera
medo de encontrar cobras pelas ruas e tigres sentados nas esquinas esperando os estrangeiros. Todos começaram a rir; ela perguntou por que os estrangeiros; ele disse,
sorrindo:
- Novidade. Carne fresca.
O maestro prestou atenção ao que Dr. Nondas havia dito; Dr. Nondas continuou dizendo que geralmente os estrangeiros fazem essa idéia do Brasil; ele tivera um amigo
que ao desembarcar em Santos, munira-se de carabina e cartucheira à volta da cintura para se defender dos índios ferozes, das cobras, dos tigres traiçoeiros. Todos
riram e o maestro italiano contou que vira cobras sim, mas no Instituto Butantã e que o Brasil ainda era desconhecido na Itália. A soprano sentiu um arrepio ao lembrar
das cobras que vira no Butantã; depois falou sobre a beleza do Rio de Janeiro; entusiasmada, parou de comer para contar que havia visto no Rio, coisas encantadas:
praias, montanhas, a cidade com seus prédios belíssimos. A atriz que fazia papéis secundários falou no progresso de S. Paulo, comparou a cidade a uma grande colméia
e os milhares de operários que se dirigiam às fabricas pareciam abelhas. Dr. Nondas disse que a comparação estava muito adequada e a imagem era bonita, a atriz sorriu,
lisonjeada, e tomou um gole de vinho.
Então cada um dos visitantes deu sua própria impressão sobre, o Brasil e a conversa generalizou-se. Com os camarões, foi servido um vinho branco; num certo momento,
todas as conversas cessaram de repente como se tivessem combinado e só se ouviu a voz da soprano que conversava com Didi. Este havia perguntado:
- Como é seu nome?
Com voz suave, ela respondeu:
- Pérola.
Olharam para a direção deles como se se interessassem pelo que estavam falando e Pascoalina fitou Didi furiosamente. Um clarão rápido apareceu através das venezianas
e outro trovão reboou no horizonte.
As criadas enchiam os copos de vinho e quando acabavam de dar volta à mesa, os copos estavam vazios. Gina fazia sinal para que despejassem mais vinho nos copos;
o maestro contava uma longa história para Gina, e Lolô que estava do outro lado da mesa, explicava aos vizinhos como estudara música. Gina ouviu o Dr. Nondas dirigir-se
à soprano e chama-la dona Pérola, com cerimônia; os que estavam perto começaram a rir e ela pediu que dissesse - Pérola - simplesmente.
Zelinda, animada com o vinho que bebera, contava ao secretário do maestro quanto fora infeliz no casamento; depois contou que tinha uma filha única que era uma maravilha,
perguntasse a Gigina; todas as mães são corujas, mas a filha dela era diferente, perguntasse a Gigina. O secretário queria saber o que era coruja, Dr. Nondas explicou.
Ele sacudiu a cabeça dizendo que compreendera perfeitamente. Zelinda continuou a falar sobre a filha; chamava-se Graça, mas para os íntimos, era Gracinha. O secretário
repetiu com, dificuldade:
- Gra-ci-nha.
Os braços gordos de Zelinda descansavam sobre a mesa; distraída, ela brincava com os talheres (não comera o primeiro prato por causa do regime para emagrecer) e
no decote exagerado do vestido verde, percebia-se os seios enormes querendo saltar fora do decote. O secretário ouviu com atenção o que ela contava e alisava os
bigodes curtos aloirados; de vez em quando, seus olhos pousavam sobre o decote. Tomava vinho. Sorria.
Distraidamente o maestro tirava um lenço perfumado do bolso do smoking e passava-o pela testa, onde as gotinhas de suor tornavam a aparecer. Os braços de Zelinda
também brilhavam de suor.
Gina deu ordem para que abrissem as janelas completamente; um vento quente correu pela sala toda, mas os clarões eram muitos, seguidos um do outro e todos encolheram-se
como se tivessem medo. As venezianas foram fechadas novamente. Zelinda, distraída e satisfeita por ter encontrado no secretário um ouvinte atento e delicado, continuava
a contar a história do seu casamento e de vez em quando passava o guardanapo nos braços, para enxugá-los. O professor de Gina conversava em voz baixa com Pascoalina
e esta não tirava os olhos de Didi que estava cada vez mais encantado por Pérola. Então para se distrair, fumava.
Foi servido peru e champanhe. O professor chamou a atenção do maestro e da soprano de que eles iriam comer um prato bem brasileiro. Todos os olhos fixaram-se na
grande travessa que uma das criadas apresentou diante da soprano; perguntas e respostas, cruzavam-se sobre a mesa; queriam saber quais os outros pratos caracteristicamente
brasileiros. De repente a chuva caiu com intensidade e ruído; ouviram-se as gotas grossas baterem contra as venezianas e caírem no jardim. Foi um alívio; começaram
a falar todos ao mesmo tempo:
-. Agora sim, vai refrescar...
- Quer saber outro prato brasileiro? Tutu de feijão!
- O que é isso?
- Que engraçado! Ela está perguntando o que é isso?
- O peru com farofa é muito gostoso...
- Como se diz? Fa-ro-fa!
- E minha filha Gracinha ficou comigo.
- Que quer que eu diga? Ca-ro no-me che il mio cór festi primo ramentar.
- Bonito! O que quer dizer?
- "Caro nome" do Rigoleto. Depois tem outro pedaço: II foi lultimo suspira... Caro nome tuo sara...
- Todos os estrangeiros têm uma idéia errada; depois que vêm aqui
- E se fôssemos a Milão?
Era o maestro que fazia a pergunta a Gina. Ela ficou com o garfo no ar e olhou, perplexa, para o maestro. Perguntou:
- Milano?
- Sim. Milano. Pois não disse que quer estudar canto? Venha comigo.
Sem responder, Gina começou a mastigar sem saber o que estava comendo. De repente, olhou o maestro e disse bem alto:
- Vamos, maestro.
Então ele levantou a taça de champanhe e pediu silêncio; fez um brinde a Gina dizendo que ao lado dele estava uma grande artista; iria estudar em Milão sob sua direção
e quem sabe não iria encantar o mundo com sua voz maravilhosa? O professor já havia dito o tesouro que havia naquela garganta. Todos gritaram ao mesmo tempo saudando
Gina; ela agradeceu e fez um brinde ao maestro chamando-o "mio caro maestro". As taças batiam umas contra as outras num tinir de cristais; todos sentiam-se entusiasmados,
alegres, leves como o ar fresco que entrava pelas janelas abertas. Aspiravam o ar com volúpia. A chuva caía copiosamente e a atmosfera tornou-se respirável, como
que aliviada.
A soprano saudou Didi em italiano; Pascoalina bateu sua taça na do professor de Gina e fez um muxoxo para Didi que, nesse instante saudava Lolô. Dr. Nondas desejou
muitas felicidades à atriz que fazia papéis secundários; esta levantou a taça e bateu de leve na do Dr. Nondas agradecendo e dizendo: Viva o Brasil! O secretário
disse em voz alta dirigindo-se a Zelinda;
- À felicidade de Gra-ci-nha!
Zelinda bateu na taça do secretário e tentou sorrir agradecendo, mas todos viram lágrimas no rosto de Zelinda. Ela levou o guardanapo aos olhos e enxugou-os rapidamente;
o secretário passou-lhe o lenço, num gesto discreto. Gina percebeu que ela estava embriagada, só chorava quando se excedia na bebida; tornava-se então sentimental,
boa, encantadora, delicada. Viu-a pedindo mais champanhe à criada que passava. Levantou os ombros num gesto displicente: "Que importa? Só importa agora minha ida
à Itália! Estudar canto em Milão! Foi sempre meu sonho dourado. Nunca contei a ninguém porque não valia a pena, mas acaricio essa idéia há tantos anos..."
Sorrindo para si mesma, num enlevo, levantou a taça à altura dos olhos e fez um brinde à cidade de Milão, depois bebeu toda a champanhe e jogou a taça com força
no chão pensando: "À moda russa." O tapete impediu que a taça se quebrasse; todos riram. Ela ficou de pé rapidamente, pegou-a do chão, correu à janela e atirou-a
no jardim; ouviram o ruído de vidros quebrados contra o cimento, juntamente com o ruído da chuva. Voltou ao seu lugar e pediu outra taça à criada; todos falavam
com entusiasmo. Gina olhou à volta da mesa e pensou consigo: "Estarei bêbada também? Sim. Estou bêbada com a idéia de estudar canto em Milão. Oh! Milão!"
Voltaram ao salão. A chuva ainda caía impetuosamente e o céu estava carregado, mas o ar estava fresco e agradável. As portas de vidro que davam para o terraço foram
abertas e um vento de chuva e de umidade, cheirando a terra molhada, invadiu a casa toda. Fizeram grupos no salão e as conversas continuavam animadas. Uma das criadas
entrou logo depois trazendo uma grande bandeja com taças, a outra trouxe dois baldes de metal contendo gelo picado; via-se apenas os gargalos que sobressaíam na
brancura do gelo.
Continuaram a beber. O maestro italiano dirigiu-se ao piano e tocou durante algum tempo; uns escutavam com atenção, outros conversavam em voz baixa. Depois ele pediu
à soprano que cantasse a ária da Tosca; inclinada sobre o braço de Didi, Pérola disse que cantaria mais tarde, quando diminuísse o ruído da chuva. Continuou a conversar
com Didi como se estivesse contando um segredo, confidencialmente. Pascoalina olhava furiosa, mas Didi fingia não perceber; ria-se ao ouvir a história de Pérola
e fazia-lhe perguntas. Pascoalina então aproximou-se do secretário e com um ar gaiato, fez-lhe perguntas; depois ficou ouvindo o que o secretário contava a Zelinda
e riu-se dando grandes gargalhadas como se estivesse se divertindo muito, mas percebia-se que sua risada soava falsamente, era só para provocar Didi.
A atriz que fazia papéis secundários não se afastava do Dr. Nondas e de Paul; depois pediu com voz suplicante ao Dr. Nondas que declamasse uns versos brasileiros,
ela estava tão sentimental essa noite; tão saudosa de qualquer coisa que não sabia explicar, talvez da sua infância longínqua numa cidadezinha italiana, talvez dos
pais. E seus olhos umedeceram-se. Dr. Nondas levou-a para um canto afastado do salão, sentaram-se ao lado do outro; Paul ficou de pé a uma certa distância. Dr. Nondas
começou a declamar uns versos de Bilac, bem devagar, para ela entender; logo mais houve um silêncio súbito no salão e os que estavam próximos, ouviram a voz grave
de Dr. Nondas recitando: "E paramos de súbito na estrada da vida... Longos anos, presa à minha a tua mão..."
Hesitou quando viu que olhavam para ele; Gina pediu:
- Continue, poeta...
Ele recitou calmamente até o fim; houve aplausos e os que não tinham ouvido o princípio, pediram que repetisse. A atriz, a cabeça inclinada para o lado dele, suspirava
de emoção; tinha os olhos úmidos como se chorasse. Sua mão pequena e magra, levava a todo o momento a taça aos lábios; percebia-se que estava comovida. Dr. Nondas
repetiu os versos, depois o maestro italiano pediu música e a soprano cantou um trecho do Barbeiro de Sevilha, acompanhada pelo professor de Gina.
Pediram então a Gina que cantasse também; ela hesitou, ainda não sentia-se firme, sua voz estava ainda em estudos, depois resolveu cantar "Ideale" de Tosti.
Quando terminou, todos elogiaram-na e o maestro italiano olhando-a com olhos ternos, juntou os cinco dedos da mão direita e fez um gesto para exprimir o que sentira:
- Bela você! Rica você!
Gina sentou-se um pouco excitada; começou a abanar-se com uma das músicas; sentia-se feliz e percebeu que cantara muito bem, com muito sentimento. Seus olhos sorriam
de encantamento.
Zelinda foi com o secretário sentar-se num recanto do terraço; puxaram uma mesinha para perto deles; colocaram os cigarros e as taças sobre a mesinha e ficaram assim
durante muito tempo olhando a chuva que caía mansamente, o jardim encharcado de água e uma ou outra mariposa que vinha esvoaçar contra a lâmpada do terraço. Não
falavam quase; a fumaça dos seus cigarros perdiam-se no ar; ouviam o que se passava no salão, mas como se tudo estivesse muito longe, muito remoto. De repente, a
cabeça de Zelinda caiu sobre o ombro do secretário e ele inclinou-se também para o lado dela; ficaram assim muito tempo e os cigarros queimaram-se sozinhos entre
os dedos esquecidos. Ouviram a soprano cantar "Una você poço fa" acompanhada pelo maestro. Zelinda pensou com os olhos fechados: "A diaba da mulher canta bem. Será
que o maestro vai levar mesmo Gina para Europa? Que sorte! Gigina sempre teve sorte, sempre. Bonita, inteligente, tem tudo. E eu? Nunca tive nada, quase nada. Este
homem decerto pensa que estou gostando dele. Qual! Minha cabeça é que está cansada, talvez eu esteja um pouco tonta. Só um pouquinho. Está tão bom aqui! Se Gina
for para Milão, vou com ela. Vou sim. Deixo Gracinha com mamãe e vou. Desaforo. Só eu nunca tive um convite assim... O que será que vão cantar agora? O secretário
está gostando da minha companhia, nem se mexe. Nem sei o nome dele, creio que vou perguntar. Não. Depois... Agora está bom assim, sem a gente falar nada. Nada."
Pascoalina chegou-se a uma das portas do terraço, olhou-os e voltou ao salão, piscando para Gina. Dr. Nondas sussurrava para a atriz que fazia papéis secundários;
Pascoalina foi sentar-se ao lado de Paul e começou a falar mal de Didi:
- É sempre assim. Veja um pouco. Qualquer mulher o atrai; fica logo apaixonado. Me diga uma coisa, o que tem essa soprano melhor do que eu? A voz? Mas ele nunca
se importou com canto, Paul, nunca deu importância a essas coisas! É um embusteiro. O que eu tenho sofrido! Veja a cara dele agora... Não tira os olhos da mulher,
essa Pérola de uma figa! Isso é pérola secundária, não é fina. É pérola vagabunda sem valor, é falsa. Não é nem cultivada...
Paul sorriu e amassou o cigarro contra o cinzeiro. Ela continuou:
- Eu já estou acostumada, sabe? Didi sempre foi assim.
Sempre! Nunca me iludi com esse homem, qualquer mulher o atrai e fico logo babando... Gosta de novidade sabe? Amanhã se aparecer outra por aqui, ele vai atrás da
outra. Doença, sabe? Desgraçado! Levou a piteira aos lábios e tirou uma grande fumaça. Olhou à volta um olhar cansado, aborrecido.
Eram quatro horas da manhã quando deixaram a casa de Gina. A chuva havia cessado de cair, o ar estava leve e todos respiravam com satisfação. Despediram-se. Pascoalina
foi discutindo com Didi; entraram no automóvel de mau humor, trocando frases duras; Pascoalina ameaçou-o de deixá-lo. Didi não respondeu.
Só Zelinda ficou. Estava tão embriagada que não pôde levantar-se ficou no sofá do hall, recostada; sua cabeça estava mergulhada numa almofada de seda que alguém
bondosamente lhe colocara sob a cabeça.
Quando Gina voltou, depois de ter acompanhado os convidados, chamou uma das criadas e levaram Zelinda lá para cima; ela resmungava querendo reagir; despiram-na e
deitaram-na num divã. Cansada, Gina foi para o quarto. Tinha a cabeça um pouco confusa, tudo se misturava em seus pensamentos; antes de deitar-se, banhou o rosto
com água fria, passou água de Colônia na nuca, na testa, deitou-se. Tentou dormir, mas não conseguiu. Seu pensamento voava para Milão. Iria enfim realizar seu sonho.
Quem não tem um sonho na vida? Estudar música. Cantar. Milão.
Às duas da tarde do dia seguinte, quando Gina acordou e pediu café, a criada contou que Zelinda acordara ao meio-dia com muita dor de cabeça; tomara um copo d'água
e fora embora. O primeiro pensamento de Gina foi para a viagem; estava resolvida a ir para a Itália com o maestro. Pensou em visitar a mãe nessa tarde mesmo e contar-lhe
a resolução.
Quando entrou em casa de dona Julica, uma hora depois, percebeu o ambiente carregado; com certeza Zelinda já falara sobre a viagem. Dona Julica recebeu-a censurando
com amargura, quando estava zangada, tratava as filhas por "tu".
- Então vais nos deixar, Gigina? Não acreditei no que Zelinda me contou.
Olhou de lado para Gina, os olhos semicerrados, como a perscrutá-la; Gina sentou-se numa cadeira e olhou a mãe. Dona Julica continuou:
- Tu pretendes mesmo ir? Hein? Será possível?
Gina escolheu um cigarro de uma caixa que estava sobre a mesa:
- Por que não, mamãe? Eu não disse sempre à senhora que queria estudar música? Então vou deixar fugir esta oportunidade?
Levou o cigarro aos lábios e acendeu-o. Houve um silêncio e Gina pressentiu a cólera que se acumulava sobre ela; de repente Dona Julica levantou-se e foi fechar
uma janela, parecia querer dar vazão à sua impaciência. Voltou-se com a boca cerrada, os olhos coléricos:
- E nós, Gigina? E nós? Como vamos viver? Bem sabes que dependemos de ti. Tudo o que temos, tudo o que comemos, estas roupas que vestimos, vêm de ti. Como iremos
viver? Já pensaste nisso, criatura?
Sentou-se outra vez, fungando. Como Gina continuasse em silêncio, tornou a falar:
- Esse maestro está brincando contigo. Como vais viver lá? Ele vai te sustentar? Ele vai pagar teu luxo? Não sejas boba.
Calmamente Gina tirou o cigarro da boca:
- Mamãe, eu seria incapaz de abandonar a senhora, Zelinda, Gracinha. Deixo todas muito bem. Se eu for, mamãe, quem sabe, não irei; quem sabe o maestro me falou num
momento de entusiasmo, com a taça de champanhe nas mãos; não se preocupe pelo lado pecuniário, a senhora ficará amparada. Pensa que só gastei nesses anos todos?
Guardei também alguma coisa. Depois tenho boas jóias, tenho o automóvel, tudo isso é dinheiro...
- Dinheiro? Mas não sabes que quando se quer vender alguma coisa, ninguém dá o que vale? Não. Não posso acreditar que nos abandones, principalmente a mim, tua mãe.
Que idéia ir estudar canto tão longe, quando poderias estudar aqui mesmo. Pois não tens tão bom professor? Fez uma pausa e continuou:
- E o que pretendes com esses estudos? Vamos dizer que aprendas canto. Muito bem. E então? Que pretendes fazer? Ir para o teatro?
- Pretendo cantar no teatro.
- Então estás louca. Pensas que o teatro dá muito dinheiro? Hein? És a primeira mulher de S. Paulo, és a mais bonita, a mais rica, a mais querida, como queres deixar
tudo isso para ires com esse maestro italiano para um país desconhecido? Perdeste o juízo?
- Mas, mamãe, eu não disse sempre à senhora que meu sonho dourado era estudar música? Toda a gente tem um sonho dourado, o meu era esse. Agora aparece essa chance',
como eu vou deixá-la? Impossível.
- Mas estás estudando música... Sempre estudaste. Já vens com essa história de sonhos dourados. Pareces uma idiota.
Zelinda entrou nesse instante; Gina percebeu que ela havia escutado atrás da porta, como era seu costume. Sem falar com ninguém, escolheu um cigarro da caixinha,
acendeu-o e sentou-se com displicência dando um suspiro. Gina olhou a irmã e a mãe; dona Julica tinha o rosto contraído e as rugas cobriam-lhe a testa. Perguntou
levantando a cabeça:
- Ao menos me diga uma coisa. Esse maestro é rico?
- Dizem que é muito rico.
A fisionomia de dona Julica serenou levemente; sorriu para Gina, um sorriso malicioso, como quem vai dizer uma brincadeira, mas uma brincadeira que pode se tornar
uma doce realidade.
- Então dizes a ele que não podes deixar tua mãe e tua irmã, pois sempre viveste com elas, e leva-nos contigo.
Gina compreendeu o que ela pretendia. Olhou-a perplexa:
- Mas, mamãe, não posso dizer isso. Como vou dizer uma coisa dessas? Ele pensará que estou louca. Levar a família inteira?
O rosto de dona Julica transformou-se outra vez; sua voz estava embargada pela cólera; retrucou:
- Então achas que tua velha mãe, tua irmã, tua sobrinha que é uma menina inocente e não dá trabalho algum, é uma família inteira? Hein? E assim que pagas os sacrifícios
que fiz por ti? Todos aqueles anos de trabalho e luta, de misérias mesmo, agüentando o velho que era teu pai, os trabalhos que tive para criar-te e educar-te, não
significam nada? Nada para ti? Às vezes que me humilhei no trabalho pesado, eu que nunca trabalhei quando era solteira e nem quando fui casada com o pai de Zelinda,
tudo isso não foi nada? É assim que me pagas?
Sua tez estava transtornada; sacudiu o dedo indicador na direção de Gina:
- Fique sabendo que só fiz serviço pesado quando fui casada com teu pai... Antes não... Minhas mãos eram como seda. Corno seda.
Olhou as mãos como para provar que estava dizendo a verdade, depois continuou com voz fina como se imitasse alguma outra pessoa:
- O professor Pasquale! O escultor Pasquale! Professor do Liceu! Bonita vida ele me deu, o professor Pasquale!
Morei em porões sujos onde o vento e a chuva entravam por um buraco da parede que chamavam de janela, comi mal, quase não tinha o que vestir e tudo isso eu agüentei
por ti, por ti!
Olhou Gina com uma expressão encolerizada e ao mesmo tempo suplicante e continuou a falar:
- Durante semanas inteiras, passei comendo pão com cebola; só aos domingos comia salame, salame ordinário, de segunda; agüentei essa vida de misérias com o Pasquale
só por ti, para não fazer escândalo, porque se me separasse dele, minha família ficaria escandalizada, pois é uma boa família, e uma das melhores de Campinas. Nunca
dei esse desgosto à minha mãe, nunca. Enquanto ela viveu, nunca lhe dei desgosto algum. Agora tu, tu... queres me deixar... deixar tua velha mãe na miséria para
seguir a carreira da arte.. Arte!
Queres por acaso morrer de fome? És feita da mesma massa que teu pai. Tens nas veias o mesmo sangue. Miséria! Tudo pela arte! Tudo pela arte! Abandonar tua vida
de riquezas pela arte! És uma idiota!
Levantou-se colérica e foi fechar uma das portas; depois resolveu abri-la outra vez e gritou para a criada que trouxesse um pouco de água, estava com sede. Arrependeu-se
de ter pedido água e chamou outra vez a criada, dizendo que trouxesse o refresco que estava na geladeira. A tarde estava quente. Abriu a veneziana que dava para
o quintal e falou com a neta, Gracinha, que brincava no gramado com uma criança da vizinha. Zelinda dirigiu-se a Gina com a voz repassada de inveja:
- Está resolvida a ir embora com o maestro?
- Estou.
- E se ele te abandona e te deixa sozinha lá?
- Venho embora.
- E dinheiro para vir embora?
- Eu não me aperto. Sempre que eu quis tive dinheiro. Sempre que eu quis não é verdade? Desde aquele dia que eu disse a você que podia comprar o casaquinho, que
eu pagaria, lembra-se? Nunca faltei, até hoje.
Zelinda não respondeu. Dona Julica voltou-se da janela; parecia mais calma. Falou com expressão calma:
- Então tens algum dinheiro guardado, hein? Pois leva-nos com esse dinheiro... Não é, Zelinda?
- Mas, mamãe, vou reservar esse dinheiro para voltar se eu não for feliz por lá, não posso levá-las. As despesas serão enormes. Impossível.
Fez uma pausa e tirou outro cigarro:
- Escute, mamãe. Escute, Zelinda. Não pensem que vou abandoná-las. Deixo tudo bem organizado com meu advogado e receberão dinheiro todos os meses como se eu estivesse
aqui. Compreendem? Se eu pudesse, levaria todas, seria tão bom... Mas não posso. E prometo: se eu for feliz lá, mandarei buscá-las. Ah! Não me esquecerei de mandar
buscá-las se tudo correr bem... Enquanto que aqui, tudo continuará na mesma. Por que não posso então fazer o que eu quero? Tentar a carreira? Com o auxilio do maestro,
estudarei e me dedicarei; se no fim de algum tempo não conseguir nada, voltarei e acabou-se, não pensarei mais nisso.
Se tudo correr bem, mandarei buscá-las. Quem sabe daqui a dois anos não está aqui uma grande cantora? Por que não?
Imaginem eu cantando no Municipal de S. Paulo e do Rio:
- Caro nome che il mio cór... Festi primo ramentar..
Gina cantarolou olhando para as duas:
- Então? Ficarão orgulhosas de mim, tenho a certeza...
E o dinheiro que vou ganhar?
Mais calma, dona Julica olhou-a; teve uma idéia e perguntou:
- E se resolves ficar mais tempo lá, mais tempo do que pretendes ficar e teu dinheiro se acaba aqui? Como viveremos?
Gina teve vontade de rir a essa idéia; respondeu, resoluta;
- Quando eu prometo, cumpro. Nunca deixei de cumprir minha palavra. Pode ficar tranqüila que não faltará nada. Sei cumprir o que prometo.
Houve um rápido silêncio. Dona Julica suspirou e perguntou:
- Então preferes ser artista?
- Ora, mamãe então pensa que vou levar a vida inteira esta vida que estou vivendo? Tudo tem um fim...

























VIII

Em Milão, Gina ficou conhecendo artistas, músicos, maestros e autores. O maestro Campobasso que a levara para lá, instalou-a num bonito apartamento: Piazzale Caiasso;
e o apartamento de Gina tornou-se o centro de todos os artistas e intelectuais de Milão em princípios de 1912.
Começou a receber lições de canto com o professor Natale e uma vez por semana ia ao Conservatório Musicale na Via dela Passione ouvir música fina e bons cantores.
Sua paixão pela música desenvolveu-se então em toda sua plenitude. Tornou-se amiga de Bianchina que não tinha família em Milão; também estudava canto com Natale
e residia num pequeno apartamento nas proximidades da praça dei Duomo.
Saíam juntas muitas vezes a caminho do Conservatório; Bianchina tinha voz de contralto e Gina de soprano ligeiro.
No princípio desse ano, em Fevereiro, logo depois de inaugurada a estação teatral no Scala, havia grande movimento na cidade; parece que os italianos das outras
cidades e os forasteiros de todas as partes do mundo estavam visitando Milão. Os hotéis, os restaurantes, as ruas tinham movimento desusado. Gina recebia visitas
todas as tardes, depois das lições; tornou-se logo conhecida pela sua beleza e pelo seu talento. Já falava regularmente o italiano - aprendera com Bianchina desde
que chegara. Sua beleza apenas desabrochada, pois contava nessa época dezoito anos, enternecia. As tardes, eram dedicadas aos admiradores que iam visitá-la e levavam-lhe
flores e contavam as ultimas novidades da temporada. Os artistas que cantavam no Scala nesse ano, também compareciam às reuniões de Gina. As conversas eram variadas
e animadas. O maestro Campobasso, riquíssimo e sem família, pois era viúvo e tinha duas filhas casadas que residiam em Roma, freqüentava diariamente o apartamento
e orgulhava-se de Gina. Chamava-a "mia figlia dileta"; levava-a ao teatro todas as noites numa frisa especial, onde Gina ficava sempre acompanhada por dois ou três
admiradores e de onde assistia ao espetáculo magnífico; a orquestra, era dirigida pelo próprio Campobasso. Quando ele agradecia as palmas entusiásticas, disfarçadamente
olhava para a frisa de Gina e sorria-lhe, mas ela pensava: "Quem sabe um dia cantarei neste palco."
Todos os olhares convergiam para ela, principalmente quando se levantava nos intervalos e ficava de pé no fundo da frisa ou saía para os corredores; admiravam sua
elegância, seus vestidos, suas jóias. Diziam uns para os outros, entre duas fumaças: "A última amiga de Campobasso, uma brasileira."
Quando distraidamente, sua mão delicada e branca apoiava-se sobre o veludo vermelho da frisa, os que estavam nas proximidades olhavam curiosos para a mão bem feita
e os ricos anéis. Em pouco tempo, tornou-se a mulher da moda, a mais bela mulher de Milão. Depois da temporada teatral, continuou as lições de canto e a receber
visitas todas as tardes. Bianchina admirava-a mais que qualquer outra pessoa; era uma amiga dedicada e bondosa. Muitas vezes, às noites, quando não havia visitas,
ficavam as duas sentadas diante da lareira, conversando sobre fatos passados e remotos, sobre as famílias distantes. Bianchina contava que pertencia a uma família
pobre de Magliano; família de camponeses. Contava com gestos bruscos e voz alta; o pai chamava-se Pietro, era bom homem, mas não trabalhava, vivia bebendo. A mãe
trabalhava dia e noite para sustentar os cinco filhos; ela era a mais velha. Já tinha vinte e seis anos. E Bianchina sorria ao lembrar da família distante e estendia
as mãos para a lareira, a fim de aquecê-las; ouvia-se o crepitar do fogo e a voz áspera de Bianchina. Contava que a mãe lavava roupa para fora e quem cozinhava para
a família, era ela, desde os nove anos. Bianchina batia no peito: "Eu, Bianchina." Trabalhava na cozinha ou no tanque. Possuíam um pedaço de terra, uma casinha uma
vaca e uma cabra. Vendiam tudo o que podiam: leite, verduras, ovos. É verdade, possuíam também meia dúzia de galinhas. Comiam o que a terra produzia e todas as noites
o pai e a mãe brigavam porque o pai vinha embriagado para casa. Mas Bianchina tinha uma mania: cantava. Podia chover ou haver sol, podia estar trabalhando na cozinha,
na horta, no tanque, podia ouvir o pai discutir com a mãe, ou as crianças chorarem, Bianchina cantava. Então toda a aldeia começou a dizer que Bianchina ia ser cantora,
cantora de ópera; e um tio que tinha posses e gostava muito de música... (neste ponto Bianchina baixava a voz e punha a mão no canto da boca para ninguém ouvir)
diziam até que o tio tinha uma amiga cantora, o que dava muito desgosto à tia, esse tio enfim pagava-lhe as despesas. Quando ela deixou a aldeia, toda a gente foi
acompanhá-la à estação; levaram-lhe flores, coelhos, galinhas de presente. Orgulhavam-se de Bianchina ter nascido em Magliano e esperavam que um dia ela cantasse
no Scala; nesse dia, que seria grandioso, a aldeia compareceria em peso para festejá-la. Há dois anos e meio ela estudava em Milão e só uma vez fora visitar a família,
numas férias de verão. Contou que encontrara o pai embriagado e a mãe lavando roupa; os dois irmãos mais velhos estavam empregados, outro menor guardava o rebanho
do Signore Giacinto na beira do rio. Os mais velhos auxiliavam a mãe; ela ficara tão contente em ver a filha que até chorara, depois oferecera-lhe chá com mel. Havia
ali uma criação de abelhas e como o açúcar estava difícil, adoçavam tudo com mel. E Bianchina passara uns dias na aldeia e fora muito visitada; todos queriam saber
de seus estudos. Mas ela não pretendia voltar a casa dos pais; achara tudo tão pobre e a aldeia tão atrasada que não voltara mais. Tinha pena da mãe e esforçava-se
para mandar-lhe todos os anos pela Páscoa e pelo Natal, presentes para ela e os irmãos, mas não voltaria. O dinheiro que o tio rico mandava não era grande coisa,
mas tinha um amigo, o Nunzio, que a auxiliava e com quem se divertia nas noites de sábado. Nunzio residia em Milão e era de família distinta, tinha, sorte de ter
encontrado esse amigo. Gina ouvia confirmando com a cabeça tudo o que Bianchina contava.
Passou o inverno e chegou o verão. Nessas férias, o maestro Campobasso levou Gina para uma excursão à Suíça. Na volta, reiniciou novamente os estudos. De vez em
quando, recebia cartas da mãe e da irmã; em todas elas, lia-se palavras de censura pela demora tão prolongada. "Como é que Gigina tinha coração para se divertir
tanto assim, quando elas, as pobres não tinham nada e viviam tão mal? Não podiam compreender como Gigina mudara tanto, pois não haviam sido sempre tão amigas? Ou
quem sabe ia mandar buscá-las? Gigina não tinha saudades? Nem da sobrinha, a Gracinha, que já estava com três anos e era um encanto? Nem ao menos, poderia dizer
quando voltaria? Elas achavam tanta falta em Gigina!"
Gina rasgava a carta em pedacinhos bem miúdos e com um leve sorriso, atirava os papeizinhos através da janela do seu apartamento num gesto infantil; gostava de fazer
isso em dias de vento; via os pedacinhos de papel ficarem pairando no ar, depois seguia-os com o olhar divertido: alguns pousavam sobre os telhados mais baixos,
outros desapareciam como por encanto e outros ainda se confundiam com os pombos que voavam baixo, levando nas asas cintilações de azul e prata.
Mais de um ano se passou. Chegou novamente o inverno e depois outra primavera. Gina continuava a estudar com o professor Natale e este sempre se entusiasmava pela
aluna, mas o maestro Campobasso já não se interessava tanto pela "figlia dileta." Viajava durante meses inteiros; dizia que ia a Viena, Roma, outras vezes a Paris.
Gina soube então por Bianchina que ele sempre fora assim, gostava apenas da novidade e seu entusiasmo era ardente como um vulcão; depois arrefecia. Essa paixão pela
novidade não durava mais que um ano, mas com Gina já durava um ano e meio e ele não a abandonara ainda. Gina riu-se quando soube mas no íntimo, sentiu certa inquietude;
não sabia quando terminaria seus estudos e receava o futuro.
Todos os artistas que passavam por Milão, visitavam-na; seu apartamento era sempre alegre e o ponto de reunião do mundo musical da cidade. Ela às vezes saía com
Bianchina; a beleza de Gina sempre atraía a atenção, fosse onde fosse. Tinha também outras amigas; visitava muitas vezes Carmela e Cristina Spina que possuíam um
atelier de costura na via Dante.
Muitas vezes, Nunzio, o amigo de Bianchina, convidava-a para dançar no Sempiocino.
O ambiente era agradável, sombrio, quase silencioso; só a música suave e o ruído das conversas perturbavam o silêncio da sala. As luzes eram veladas. Havia um piano
ao lado e um violino que tocavam para dançar; poucas mesas e muita animação.
Depois das horas ininterruptas de estudo de canto, Gina sentia-se bem no ambiente um pouco sombrio.
Sempre havia amigos de Nunzio; ele então apresentava-a, sentavam-se na mesa ao lado dela e conversavam. Conheciam toda a cidade e cada pessoa que aparecia na porta
de entrada tinha sua história comentada; às vezes, esmiuçada, analisada. Comiam grandes bifes com cebolas, saladas de tomates, bebiam cerveja. Nunzio perguntava
mastigando:
- Quem não tem uma história? Bianchina ria-se:
- Eu!
- Tens também tua pequena história.
- Virgem Mãe! Só porque vim de uma aldeia, estudo canto em Milão com Natale, tenho um amigo chamado Nunzio que me traz ao Sempiocino para comer bifes com cebolas...
Achas que isso é uma história?
Ele tomava um gole de cerveja:
- É uma história. Não é Gigina?
Gina confirmava distraída:
- Sim, é uma pequena história. Historiazinha, como se .diz em minha terra. Um conto para crianças.
- Como se diz? Historiazinha? Que graça!
Nunzio continuava:
- Todas as vidas são histórias. A tua, Bianchina, é também interessante. Vieste de Magliano, mas enquanto moravas lá, quanta coisa não te sucedeu? Passaste miséria,
comeste couves com toucinho durante semanas inteiras, viste teu pai e tua mãe em conflitos tremendos por causa da bebida, e apesar de tudo isso cantaste... cantaste
como se o mundo fosse belo e teus pais fossem uns santos e tivesses aspargos para comer em vez de couves. Cantaste apesar de tudo!
Então nasceu em ti a idéia de cantar para o mundo, de fazer tua bela voz ser ouvida para alegrar tanta tristeza, para enfeitar a fealdade da vida. Deixar a aldeia,
onde tudo era estreito e onde de manhã bem cedo toda a gente sabe quem dormiu bem e quem não dormiu, sabe quem tem dor de cabeça e quem bebeu uma pinga. Não! Teu
espírito criou asas e abandonaste tua terra para cantar para o mundo. Eis a tua historieta! Cantar! Cantar! Que belo! Bianchina começou a rir:
- Cantarei algum dia para o mundo?
- Sim. Naturalmente. Voltou-se para Gina:
- Conta Gigina. Conta tua história. Deve ser linda!
- É verdade, nunca contaste tua vida. Conta!
Gina falou sobre o pai que havia sido escultor, era do sul da Itália, contou como havia vivido em S. Paulo, como começara a cantar, como fora trazida a Milão por
Campobasso. Terminou:
- Minha história é curta, não há nada para enfeitar.
- E queres ser cantora?
- Sim. Uma vez uma cigana leu minha sorte em S. Paulo. Disse que minha vida ia sempre subir, subir... Como hei de subir a não ser pela arte? Deve ser o canto que
me levará aos palcos do mundo...
Parou um pouco, os olhos fixos na porta de entrada:
- Olha, aquela mulher deve ter uma história. Vejam que tipo!
Os olhares cravaram-se na porta; uma mulher, alta e morena acabava de entrar. Estava bem vestida e era elegante. Toda a toalete era preta, e tinha à volta do pescoço
um colar de pérolas. Nunzio sorriu:
- Como? Não conheces a Maria da Esperança?
Bianchina admirou-se:
- Não conheces Maria da Esperança? Chamava-se Maria Manzoni, hoje é Maria Esperança.
Nunzio lembrou-se:
- Agora sei, ela esteve fora de Milão. Ouvi dizer que foi visitar os filhos, por isso Gigina não a viu ainda.
- E tem história?
- Uma bela e triste história de amor!
- Logo vi! Adivinhei. Conta!
- Espere. Quem vai contar é o Túlio que vem entrando e a conhece muito bem.
E Nunzio levantou-se para chamar o amigo que parara perto de uma mesa. Túlio aproximou-se, cumprimentou Gina e Bianchina. Nunzio ofereceu-lhe bebida e pediu a história
de Maria Esperança. Túlio sorriu:
- Querem que conte a história dela? Mas é uma história tão conhecida... tão vulgar...
- Bianchina protestou;
- Como? Achas vulgar uma mulher esperar um homem durante três anos? Fielmente? Em que século estás? Esqueceste por acaso?
Gina animou-se:
- Conta, Túlio.
- Há quatro anos ela apareceu em Milão com ele; viveram juntos aqui durante seis meses. Depois ele foi embora e ela ficou esperando. É só. Por isso mudaram o nome
dela para Maria Esperança. Espera sempre.
Nunzio começou a falar:
- Não é assim tão simples, Gigina. Ela abandonou o marido e os filhos por causa dele...
- Ele quem afinal? perguntou Gina.
- O amante.
- Sim. O amante. Apareceram aqui apaixonados loucamente um pelo outro. Seis meses, oito meses assim, depois ele foi viajar dizendo a ela que esperasse e nunca mais
voltou.
- E ela espera até hoje?
- Fielmente. Nunca aceita os galanteios de homem algum. Bianchina riu:
- É uma heroína! Gina ficou interessada:
- Mas não é possível. Não teve mais noticias dele?
- Nada. Indagou durante um ano inteiro por todos os meios possíveis, ninguém soube informar. Uns dizem que ele morreu, ninguém sabe. Outros dizem que ele voltou
para a esposa. Era casado. Dizem que ela procurou ver os filhos mais de uma vez, mas eles negam-se a falar com a mãe, não querem saber mais dela.
- Coitada! É um drama!
- E Túlio disse que era vulgar!
Olharam para a mesa de Maria da Esperança; com um chapéu preto caindo sobre os olhos, mal lhe viram o rosto meio oculto na sombra. Fumava uma longa piteira dourada
e tinha uma atitude sonhadora. Um dos companheiros da mesa convidou-a para dançar; ela levantou-se vagarosamente, largou a piteira sobre o cinzeiro e foi dançar
a valsa que o violino parecia gemer acompanhado pelo piano. Varias cabeças voltaram-se para acompanhar com os olhos o corpo esguio e elegante de Maria Esperança.
Gina suspirou:
- Coitada! E como ela vive? Tem dinheiro?
- Trabalha num escritório importante. É muito instruída, não quer deixar Milão porque ele disse que o esperasse aqui.
Bianchina perguntou, excitada:
- Não é formidável, Gigina?
Nesse momento entrou na sala o pintor Henderson e a companheira; era um inglês alto e magro, as mãos nos bolsos, um cachimbo entre os lábios. A moça era pequena
e graciosa, tinha um ar infantil como se surpreendesse de tudo que via. Ria sempre e mostrava seus dentinhos brancos que Túlio chamava de dentes de rato; ela achava
graça. Sentaram-se à mesa de Nunzio; Henderson pediu logo whisky com soda e bastante gelo; Túlio convidou Gina para dançar. Havia muitos pares dançando nessa ocasião.
Nunzio perguntou distraidamente:
- Então viste a exposição? Os quadros de Fava?
- Vi e gostei. E tu?
- Não.
Henderson tirou o cachimbo da boca e fixou Nunzio; tinha um olhar claro e límpido, como o de uma criança; em toda sua fisionomia, uma vontade inflexível que destoava
do olhar límpido; um poder de persuasão como se procurasse por todos os meios convencer o interlocutor. Falou com firmeza:
- Pois acho-o ótimo. Um dos melhores da Itália contemporânea. Viste a exposição, não? Viste o quadro em que ele pintou uma parte de Nápoles? Pois bem. Reparaste
de que forma ele explica que a cidade está situada numa elevação? Viste por acaso a linha do horizonte marcada como fazem os outros? Hein?
Nunzio sacudiu a cabeça negativamente. Henderson animou-se:
- Pois aí é que está o grande pintor, meu caro. Nos detalhes, apenas nos detalhes. Espera, se eu fosse fazer aquele quadro, que faria? Colocaria a linha demarcatória
do horizonte para o leigo perceber que a cidade se eleva para a colina. Ele não pôs nada, absolutamente nada, e todo o mundo pode ver que a cidade está inclinada.
Por quê?
- Não gosto das cores, são muito vivas.
- Como? É uma das mais belas coisas naquele quadro. Escuta, Nunzio... Gina e Túlio sentaram-se à mesa novamente. Henderson levou o cachimbo à boca e esperou. Bianchina
curvou-se para Gina:
- Escuta, o violinista vai tocar o "canário". Ficou de pé.
Houve um silencio súbito na sala. Túlio começou a falar em voz baixa; estava na cabeceira da mesa, entre Bianchina e Gina:
- Escutem, sei uma história mais bonita do que a de Maria da Esperança...
Bianchina curvou-se mais:
- Conta, conta - Há muitos, muito anos antes, quando um navio levava três meses para fazer a travessia Europa-América...
Bianchina interrompeu:
- Graças a Deus não vivi nessa época. Morria na viagem. Depois?
- Pois bem. Um navio russo chegou à Califórnia e um tenente do Czar apaixonou-se pela moça mais bonita da cidade...
A companheira do pintor inclinou-se também para ouvir:
- Que belo!
- Ficaram noivos. Mas vocês sabem, um oficial russo não podia se casar sem ordem do Imperador; então depois de festejarem o noivado com toda a pompa e grandes festas,
ele voltou para a Rússia a fim de pedir licença ao Czar...
Bebeu um gole da bebida que havia na frente dele; os outros da mesa interessaram-se também pela história. O violinista tocava o "canário" e muitos tinham as cabeças
inclinadas, pensativas.
- Vinte e seis anos se passaram... E ela esperou o noivo que nunca mais voltou.
- Morreu?
- O que aconteceu?
Túlio sorriu diante da curiosidade que despertara:
- O navio naufragou, quero dizer, desapareceu. Naquele tempo, havia dramas assim: Um navio desaparecia sem deixar vestígios. Naturalmente todos morreram e o noivo
também. Ela não soube de nada... Ficou esperando... esperando... e envelheceu esperando o noivo que nunca voltou. Só muitos anos depois, contaram-lhe, mas ela não
acreditou, dizia que um dia ele havia de voltar. Foi pedida em casamento muitas vezes porque era muito bonita e de uma grande família, mas não aceitou, conservou-se
fiel à memória do noivo. Dizem que foi a criatura mais festejada da cidade; morreu com setenta e tantos anos e toda a gente a venerava.
Bianchina suspirou:
- Lindo! Bateram palmas ao violinista. O piano começou a tocar um tango. Gina falou:
- Hoje não existem mulheres assim. Ah! Vamos dançar este tango. Chama-se "Nora." Eu gosto muito.
A companheira do pintor replicou:
- Como não há mulheres assim? E Maria Esperança?
- Maria Esperança é um caso. Esperou até agora, mas vinte e seis anos, quero dizer a vida toda? Duvido! Qualquer dia ela muda de idéia.
- Aposto que não.
Henderson explicava a Nunzio:
- A técnica da pintura moderna é essa que acabei de explicar, asseguro que não é fácil...
Houve um silêncio na mesa. Gina dançava com Túlio; sua elegância chamava a atenção. Bianchina dançava com Nunzio; suas faces estavam unidas e Bianchina conservava
os olhos fechados, como se dormisse. Quando se reuniram outra vez à volta da mesa, Nunzio falou a Henderson:
- Mas a técnica em geral não é essa que acabaste de explicar...
Túlio avisou, olhando a porta de entrada:
- Olhe o "comunista".
Um homem simpático, ainda moço, passou pela mesa deles e cumprimentou fazendo um gesto amistoso com a mão. Tinha belos dentes e estava vestido com certa negligência.
Gina perguntou, curiosa:
- Esse é o chefe anarquista de Milão? Queria conhecê-lo...
Nunzio falou em voz baixa:
- Não se sabe ao certo, parece que é um dos chefes.
Eles se dizem outra coisa.
- Então por que o chamam de "anarquista"?
Ninguém respondeu. Túlio disse:
- Ele está olhando muito para cá. Olhe, Gigina, ele vem tirar você para dançar.
Gina sacudiu os ombros. O "anarquista" havia se aproximado; apertou a mão do pintor e da companheira. Convidaram-no para sentar; ele perguntou a Gina:
- Quer dançar?
Tinha o rosto moreno e olhos ardentes que fixavam as pessoas de perto como se quisessem penetrá-las. Bianchina dizia que os olhos dele despendiam faíscas. Gina sentiu-se
analisada, levantou-se e foi dançar com o "anarquista"; ele apertava-a e olhava-a de perto. Ela se inclinava de lado, um pouco atemorizada; ouvira dizer tanta coisa
dele. Mas, para aparentar que o não temia, perguntou pelo "partido" ele afastou-a um pouco para vê-la de frente e sorriu.
- Quer fazer parte dele? Gina titubeou:
- Não sei. Quem sabe!
- Conheço as pessoas ao primeiro contato. Nunca serás do partido.
- Oh! Por quê? É uma ideologia muito elevada para mim?
- Não. Não é elevada para ti, mas é uma ideologia e as mulheres em geral não gostam dessas teorias.
Ela insistiu:
- Então? Não poderei entender?
Ele começou a falar como se falasse a uma criança:
- Nós estamos numa fase que se chama teórica, compreendes? Isso não interessa a mulheres. É a fase da doutrina, somente da doutrina. Quando chegar a fase pratica,
então, talvez...
- Acho que você está enganado. As mulheres sabem doutrinar muito bem.
- Talvez crianças, não homens...
Gina pediu:
- Fale alguma coisa sobre isso. Quero tanto compreender ...
Os olhos do "anarquista" pareciam despedir chamas:
- Para que compreender?
E apertou-a mais. A música era lenta e repetida; todo mundo dançava. Quando a música parou e pediram bis, ele puxou Gina por um braço, para uma mesa solitária, no
fundo da sala; as mãos dele eram grandes e ossudas. Pediu bebidas ao garçom e perguntou a Gina de repente:
- O que queres saber? Como vivemos? O que fazemos? Se matamos alguém?
Ela perturbou-se:
- Não propriamente isso. Por exemplo, por que se tornou anarquista? Algum desengano? Teve alguma razão?
O sorriso dele era amargo:
- Muitas razões, mas escute... Teu nome é Gina, não é? Eu passo o dia todo falando, discutindo, mastigando o mesmo assunto... A noite, quero descansar a cabeça com
outras coisas. Coisas mais alegres, como tu...
Gina percebeu que ele não queria falar e fingiu-se tristonha; ele observava-a. Inclinou-se para perto dela:
- Escute, estamos numa fase de palavrório. Só palavras... Não chegou ainda a hora da ação. Mas creio uma coisa, vivemos numa fase de muita importância, porque é
a fase inicial de um movimento que abalará o mundo...
Mudou de tom:
- És muito criança para compreenderes...
E colocou a mão ossuda sobre a mão fina de Gina:
- És muito bela também...
Ela protestou e puxou a mão:
- Não. Não sou criança. Escute, chefe, virá então uma revolução?
- Não sou chefe algum. Virá sim uma revolução.
- Quando?
Ele fez um gesto evasivo e não respondeu. O garçom colocara a bebida sobre a mesa. Ela tomou um gole e falou:
- Por que me trouxe a esta mesa? Não foi para me explicar? Para falar? Fale então.
Ele sorriu como uma criança descoberta em falta:
- Quero conversar contigo. Ver-te de perto. Ouvir tua voz.
Gina alterou-se:
- Escute, chefe, você e seu partido podem conseguir muita coisa no mundo, mas nunca com revolução. Tudo o que é conseguido com a força e a opressão, não é duradouro.
A revolução só provoca ódios, desordens e não consegue triunfar por completo...
Fez uma pausa e terminou:
- Pode conseguir triunfar, mas será um triunfo passageiro, não duradouro. Nunca.
- Como falas bem! Ela fingiu não ouvir e olhou a sala. . O piano e o violino tocavam uma valsa. Ele pediu:
- Continue...
Ela não respondeu, então ele convidou-a para dançar. Perguntou:
- Onde aprendeste essas teorias?
E seu braço rodeou a cintura de Gina.
- Isso não se aprende. É intuitivo.
- Gosto de ti. És de uma franqueza a toda a prova. Admirável. Amas ou não. Queres ou não. Dizes ou não. Não hesitas nunca; és como eu. Foste sempre assim?
- Sempre.
- Também não aprendeste? É intuitivo?
- É. Mas nem sempre é aconselhável. Às vezes é contra nós.
- O que? A franqueza?
- Sim. Nem sempre se pode ser franco.
- Tens razão.
Dançaram o resto da valsa em silêncio; Gina sentia o olhar perscrutador do "anarquista" sobre seu rosto; ele era um pouco mais alto que ela e observava-a enquanto
dançavam. Voltaram depois à mesa de Nunzio; Henderson ainda discutia pintura e sua companheira ouvia, extasiada. Já havia bebido vários copos de whisky e falava
cada vez mais alto, mais convicto de suas opiniões. De vez em quando ria; tinha um riso gutural e estranho; também seu riso estava em desacordo com os límpidos olhos
azuis. O "anarquista" sentado ao lado de Gina, falava sobre o caráter de certas pessoas; gabava-se de conhecer as pessoas ao primeiro contato: conhecia o caráter
tímido, o ousado, o impulsivo, o que se encolhe como um caramujo no momento de ação. De repente perguntou a Bianchina que o escutava, as mãos cruzadas sobre a mesa:
- Podes me dizer qual é o traço predominante do teu caráter?
- A bondade, apressou-se em dizer Gina.
Bianchina hesitava:
- Não. Não sei. Não posso saber.
- É a avareza, disse Nunzio que ouvira do outro lado da mesa.
Riram-se todos e Bianchina replicou, um ar zangado:
- Bonito, hein? E o teu?
Ele respondeu, entusiasmado, mostrando os inúmeros copos sobre a mesa:
- O meu? A liberalidade...
O "anarquista" interveio, falando seriamente e olhando Bianchina:
- É a timidez.
Henderson olhou o relógio:
- Bravos. Ela é mesmo tímida. Um dia pedi-lhe um beijo e ela corou até o pescoço.
Riram. Henderson levantou-se:
- Amigos, hoje é um novo dia e teremos novos trabalhos. Quase três horas! Não é verdade, Bianchina?
- É verdade que são três horas, mas nunca me pediste um beijo. É mentira.
- Pois peço agora!
- Levantaram-se para sair. As ruas Milão estavam desertas e um vento frio passava, rápido, zunindo em surdina. O "anarquista" beijou a mão de Gina e pediu licença
para visitá-la. Ela consentiu. Nunzio levou Gina e Bianchina no automóvel dele; as estrelas brilhavam no céu azul cobalto. Já em caminho, Nunzio falou:
- O Henderson a esta hora está tomando notas do céu para o próximo quadro...
Bianchina bocejou:
- Mas o céu está mesmo estupendo. Tenho aula amanhã às dez horas. Que preguiça!
- Preguiça? E eu que tenho de estudar pelo menos duas horas? O professor Natale fica uma fera quando não estudo.
Fez uma pausa e acrescentou:
- Mas o "anarquista", é um homem esquisito mesmo!
Foi a primavera desse ano em Milão que ficou gravada para sempre no coração de Gina. O maestro Campobasso ofereceu um jantar em sua residência no Sempione, seguido
de uma hora de arte para que os artistas e músicos pudessem ouvir sua aluna cantar pela primeira vez.
O maestro vivia quase só com os criados na sua bela residência; no salão principal, havia dois pianos de cauda; nos outros salões, alguns quadros e obras de arte.
Bustos de grandes músicos enfeitavam o hall. Gina já conhecia a casa, pois jantara muitas vezes a sós com o maestro.
A noite do banquete estava suave e muito clara, o céu salpicado de estrelas. Todas as portas do salão davam para um terraço enorme ao lado da casa nesse terraço,
foram se reunindo os convidados até o momento de irem para a mesa. Eram vinte pessoas. Gina trazia um vestido preto e levava jóias de rubis; os sapatinhos eram também
rubi e na cintura havia uma fita da mesma cor. Estava encantadora. Apesar de quase todas as mulheres usarem cabelos compridos então, ela usava-os quase curtos, presos
na nuca por um pequeno enfeite também vermelho. Parecia mais jovem ainda do que era, com seu rosto cor de lírio, seus olhos enormes e escuros.
À volta de duas mesinhas de ferro, os convidados estavam reunidos tomando aperitivos; alguns trajavam casaca, outros smoking. Havia oito mulheres: cantoras, pianistas
e atrizes. Todos pareciam alegres; falavam ao mesmo tempo trocando impressões diversas sobre inúmeros assuntos.
Quase à hora do jantar, quando Gina se achava num canto do terraço conversando com o ator de uma companhia francesa de passagem por Milão, ouviu a voz de um retardatário
desculpando-se por ter chegado atrasado. Ela voltou-se e viu um rapaz alto e magro conversando com o maestro; ele também a viu e nesse momento o dono da casa segurou-o
pelo braço e levou-o para perto de Gina:
- Gina, eis aqui um patrício. Que surpresa, hein, Gina?
- Brasileiro?
O rapaz riu-se com alegria:
- Sim. Brasileiro.
Gina estava cada vez mais admirada:
- Oh! Que surpresa! E conhecia o maestro?
- Campobasso? Conheço-o há muito tempo, desde o Rio de Janeiro. Mas a minha surpresa ainda é maior, nunca pensei encontrar aqui uma brasileira... Os dois ficaram
sós um na frente do outro. Olharam-se. Gina perguntou:
- E está viajando? Ou reside aqui?
- Não. Minha família está agora em Viena. Há seis meses que viajamos; meu pai é brasileiro e minha mãe é de origem italiana. De Roma.
- Ah! Pretendem voltar logo ao Brasil?
- Daqui a uns meses, não sei ainda. E a senhora? Está morando em Milão?
- De passagem apenas. Estudo canto aqui.
- Ah! É cantora?
- Não ainda. Pretendo ser.
Ela riu-se; disfarçadamente observou-o; ele tinha uma palidez impressionante e ao mesmo tempo qualquer coisa que atraía; Gina não soube dizer se era o olhar, o modo
de sorrir, de falar; era uma atração irresistível. Olhava para ela, surpreendido e alegre: - Como é bom falar nossa língua! Não sente prazer?
- Muito! Estou encantada.
Ela ia continuar a falar, mas o dono da casa aproximou-se e tomando-a pelo braço, convidou-os para a sala de jantar; fez então ao recém-chegado imperceptível sinal
de que depois conversariam.
O salão de jantar da casa do maestro tinha painéis de carvalho quase até o teto, era sóbrio e bonito; todo o mobiliário era escuro. Somente a mesa cintilava de cristais
e flores na brancura da toalha ; era o único ponto claro no ambiente sombrio. A luz de doze velas iluminava a mesa. Gina ficou à direita do maestro; logo que se
instalou, procurou com os olhos o rapaz brasileiro; nesse instante o maestro estava indicando o lugar dele; ouviu-o chamando-o de Frederico. No momento que se sentou,
Frederico olhou-a e sorriu como se dissesse: "Que pena. Não podemos conversar."
Foi servida uma sopa de tartarugas do Adriático. As conversas animaram-se e subiram de tom; cada convidado tinha um caso a contar. Falavam e riam em toda a extensão
da mesa; Gina viu Frederico conversando animadamente com uma atriz muito bonita que tomava aulas com o professor Natale. Era uma vienense; falava mal o italiano
e misturava de vez em quando palavras francesas. Gina quis ouvir o que diziam, mas não conseguiu, só percebeu que o rapaz respondia em francês. Em certo momento
(já haviam servido vinho branco com o primeiro prato) os dois levantaram os copos e tocaram um ao outro, num brinde silencioso; Gina sentiu certa tristeza que não
soube a que atribuir. Era como um aperto de coração. Fingindo-se muito interessada na conversa ao lado e dando um ou outro aparte, seguia todos os movimentos de
Frederico e esforçava-se por ouvir o que ele falava com a atriz vienense. Observou-o enquanto respondia ao vizinho:
- Sou de S. Paulo. Brasil. Conhece?
Ouviu a resposta do vizinho pensando em Frederico: "É extremamente simpático; aquela palidez exagerada dá-lhe certo encanto. Casado não pode ser; falou nas viagens
com o pai e a mãe."
- Sim senhor. S. Paulo tem uns setecentos mil habitantes mais ou menos.
- "Vai ver que é rico. Bonito não é, mas tem qualquer coisa... O que será?"
Nesse instante, seu vizinho de frente, um barítono que estivera ausente de Milão na última temporada e não pudera cantar no Scala, perguntou-lhe a opinião sobre
o barítono que o substituíra; hesitando um pouco, Gina respondeu que sua própria opinião era insignificante, o que provocou protestos na vizinhança, mas segundo
a opinião de pessoas competentes, ele não havia cantado muito bem. O barítono sorriu, encantado, e começou a explicar porque o colega fracassara. Um dos convivas
que estava do outro lado da mesa, referiu-se ao barítono ausente dizendo:
- Una voce troppo spinta.
Houve protestos. Uns disseram que achavam a voz dele como se fosse presa: "In gola", o que provocou novos protestos. Gina disse que ouvira dizer que a Clara, a bela
Clara que todo o mundo elogiava, tinha "Una voce de pecara", o que fez alguns rirem.
Depois disso, toda a mesa se movimentou e comentou "la stagione scaligera" que já se aproximava. Nesse momento, Gina viu o sorriso de Frederico em sua direção; ela
também sorriu para ele e sentiu grande alegria, sem poder explicar a causa.
Começaram em seguida a planejar as viagens que pretendiam fazer durante o verão. "O que ele pensará de mim? Pensará a mesma coisa que eu penso dele? Gostará da minha
pessoa? Perguntaram-lhe onde passaria as férias; distraidamente, ela respondeu que talvez fosse a Monte Catini. Alguns falaram sobre as vantagens de uma estação
de águas para quem tem vida ativa e árdua nas cidades grandes.
No momento de fazer o brinde, Gina e o maestro foram os primeiros a serem saudados, em seguida o barítono, a pianista, outros cantores e finalmente trocaram-se brindes
em todas as direções. Após o jantar, foram para o salão e para o terraço; todos fumaram, menos Gina e a outra cantora: estavam proibidas para que a voz não ficasse
prejudicada.
Gina aproximou-se do piano e preparou as músicas; ouviu então uma voz quente atrás dela:
- Que felicidade encontrá-la. aqui! Estava ansioso para falar português!
Ela voltou-se sorrindo para Frederico:
- Há quanto tempo mesmo está viajando?
- Seis meses.
- E quando pretende voltar ao Brasil?
Ele hesitou; depois olhou-a nos olhos:
- Não sei bem. Às vezes tenho,vontade de voltar, às vezes quero ficar. Nem sei. E você? Permita que chame de você?
- Naturalmente. Pretendo voltar o ano que vem, depois de terminar meus estudos aqui.
- Pretende dar concertos? Ou prefere cantar no teatro?
- Pretendo tudo. Por isso estou aqui, me aperfeiçoando Como é o seu nome mesmo?
- Frederico. Alguns me chamam de Fred.
Sorriram um para o outro. Antes que ele perguntasse o nome dela, disse:
- O meu é Georgina, mas me chamam de Gina. Ou Gigina.
- Eu já sabia. Ouvi o maestro chamá-la...
- Gosta de ouvir cantar?
- Muito. Sempre gostei de música. Aprendi piano durante uns quatro anos. Minha mãe é pianista.
- Ah! É? Então sabe tocar?
- Não. Deixei de tocar. Quero dizer, toco ainda um pouco, mas só músicas leves, ligeiras. Não toco perto de ninguém.
- É tão egoísta assim?
- Não. É porque toco mal e só eu posso ouvir. Como é bom falar brasileiro!
Riram. Ele perguntou:
- Não acha bom?
- Muito. Eu também estava saudosa de falar minha língua. Sentia uma saudade...
- Saudade! Que palavra bonita!
Nesse instante, o dono da casa aproximou-se e pediu a Gina que cantasse; o rapaz afastou-se e foi ficar de pé numa das portas do terraço. Acendeu um cigarro e ficou
olhando-a de longe. Ela ficou de pé ao lado do piano; houve um sussurro por todo o salão, depois silêncio. O maestro Campobasso preparou-se para acompanhá-la; como
nunca tivesse cantado diante de tantos músicos e entendedores de música, Gina teve um momento de medo a principio; mas depois dos primeiros acordes, sentiu tal segurança
como se dominasse o auditório e cantou com toda a alma o "Ideale" de Tosti. Palmas vibrantes romperam no salão quando ela terminou; pediram que cantasse mais; cantou
um trecho do "Barbeiro de Sevilha." As opiniões eram todas favoráveis a ela; mas todos achavam que precisava de um pouco mais de estudos, uns dois anos talvez; outros
achavam que precisava mais quatro anos de canto.
Em seguida a soprano cantou "Caro nome"; depois outras cantaram trechos de "Lúcia de Lamérmoor" e Gina voltou a cantar "Quem sabe" de Carlos Gomes, um verdadeiro
sucesso.
As horas passaram rapidamente; o dono da casa mandou servir champanhe aos convidados. Nos intervalos da música, as conversas eram quase sempre sobre o mesmo tema:
música e concertistas. Contavam-se casos, citavam-se anedotas sobre os grandes interpretes.
Às duas horas da manhã, terminou a reunião; um pouco antes, o barítono cantou uma ária e Gina cantou uma canção francesa para finalizar.
Saíram todos ao mesmo tempo. Frederico ofereceu-se para levar Gina e a atriz vienense que sentara na mesa ao seu lado. Gina aceitou e tomaram juntos um automóvel.
Frederico deixou a atriz vienense em primeiro lugar, o que fez Gina exultar-se; depois levou-a e deixou-a à porta do apartamento. No instante de se separarem, perguntou-lhe
se queria almoçar com ele no dia seguinte; ela aceitou e ele ficou de ir buscá-la à uma hora. Despediram-se.
Quando Gina entrou no quarto e atirou a capa de peles sobre o divã, dirigiu-se logo ao espelho. Ficou satisfeita com seu rosto essa noite; suspirou e começou a deixar
cair as jóias uma por uma sobre o vidro da penteadeira. Comparou-se com a atrizinha vienense; pensou no rosto da outra; tinha o nariz arrebitado, o que a fazia bonita,
em compensação os dentes de baixo, acavalados, apareciam quando ela ria. E era muito magra. Gina sorriu, contente. "Fred!" Começou a despir-se pensando que nunca
encontrara um homem tão simpático e atraente como Frederico. "Pensará o mesmo de mim? Como é agradável viver!"














IX

No dia seguinte, quando Frederico chegou, ela estava nervosa, esperando-o; sentia seu coração bater como se sua vida dependesse daquele encontro. Almoçaram no restaurante
Cova; jantaram juntos também nessa noite. E não se separaram mais.
Fizeram todos os passeios juntos. Muitas vezes, à noite, jantavam com Bianchina e Nunzio, depois saíam de automóvel com os amigos. Tomavam a direção de Florença
e. enquanto o automóvel deslizava pela estrada silenciosa, conversavam ou cantavam. Bianchina cantava trechos conhecidos e os outros acompanhavam em voz baixa. Gina
inclinava a cabeça sobre o ombro de Frederico e beijavam-se apaixonadamente; um tinha medo de perder o outro e só esse pensamento, fazia-os sofrer. Estreitamente
abraçados, no fundo do carro, sussurravam entre carícias; Nunzio gritava alegremente:
- Estão muito silenciosos. O que estarão fazendo? É preciso cantar.
Cantavam então acompanhando Bianchina em voz tão estridente que os pássaros que por acaso dormiam na beira da estrada acordavam assustados, e o automóvel corria
entre risadas e beijos. Voltavam muitas vezes quando a madrugada dourava o céu azul. Separavam-se. No dia seguinte, Gina dava mal a aula de canto; estava cansada
e o pensamento fixo em Fred.
Uma tarde, um mês depois, enquanto procurava cantar acompanhada pelo professor Natale, pensava: "Será que ele já se levantou? Onde iremos hoje? Gomo é bom amar!
Nunca amei, mas agora é diferente. Di-fe-ren-te!"
Cantava as notas pensando: "Di-fe-ren-te". O professor Natale olhou-a admirado:
- Que tens, Gigina? Hoje não estás bem? Que aconteceu?
Ela sorriu desajeitadamente:
- Nada, professor.
Esforçou-se para dar melhor a lição, mas sentia-se empolgada; era como se estivesse pairando no espaço, num mundo diferente, num mundo que não conhecera até então.
Sorria para si mesma olhando as mãos, o teclado, o chão, nada. Olhava o professor e procurava ficar firme; logo mais seu pensamento estava longe outra vez: certo
compasso significava amo. Então repetia uma porção de vezes na imaginação: "Amo! Amo! Amo! O que é mesmo amar? Amar é isto que estou sentindo. Vem o compasso amo:
Todas as vezes que o professor repetir este compasso, quer dizer: amo. Quero ver quantas vezes eu amo hoje. Aí vem o compasso: amo. Nunca pensei que amasse. Nunca.
Dizia: amor é para os bobos, sentimentais, não sou nada disso. Bianchina disse que eu paguei a língua. Paguei a língua! Será que todo o mundo ama como eu? O homem
que passa na rua de bicicleta vendendo flores? A mulher que vende lingüiças na venda da esquina? A moça que bate na máquina o dia inteiro? E ele? Será que me ama?
O tal compasso vem já. O compasso do amor. Amo! Amo! Amo!. Se Natale soubesse!"
O professor sacudiu a cabeça, desanimado. Levantou-se enquanto Gina continuou cantando sem acompanhamento; na imaginação repetia: amo. Ele passeou pela sala; parou
em frente a uma das janelas; levantou a cortina e espiou a rua. Percebia-se que estava nervoso; voltou para perto do piano e ficou observando o rosto de Gina; ela
parara de cantar e olhava o teclado atentamente. Ele pensou que o rosto de Gina era bonito demais, não podia nunca ser cantora. Era muito perfeita. Gina recomeçou
a cantar o trecho que repetia o compasso: Amo. Amo. Amo. O professor Natale impacientou-se:
- Por que repete tanto este compasso? Per ché? Onde está sua cabeça, Gigina? Atenção!
E bateu uma das mãos sobre o piano que deu uma nota falsa, vinda lá do fundo de suas entranhas metálicas, com um gemido. O vaso com flores tremeu como se fosse cair;
tornou a passear pela sala:
- Impossível. Nunca deu uma lição tão mal como hoje.
Impossível. Repita tudo outra vez.
Gina recomeçou. Não queria afastar, seu pensamento da lição, mas não conseguia; quando chegou, ao compasso que havia apelidado de amo seu pensamento voou para Frederico
e falou: Amo. Amo. Amo.
Nessa tarde o professor Natale foi se queixar ao maestro Campobasso disse que Gina não era a mesma aluna aplicada e estudiosa. Dava mal as lições, não prestava atenção
aos conselhos dele e ele não sabia a que atribuir. O maestro replicou que talvez ela estivesse cansada: iam chegar as férias de verão e ele a mandaria para Monte
Catini afim de descansar uma temporada. A vida de estudos na cidade cansa qualquer aluno, terminou o maestro.
Chegaram as férias. Gina recusou-se ir com o maestro para Monte Catini; houve séria discussão entre eles. Ela disse que iria para outro lugar; mas não com ele. O
maestro ficou indignado e ameaçou Gina de abandoná-la; abandoná-la para sempre, não se importar mais com ela, nem com lições de canto, nem com coisa alguma. Fizesse
o que quisesse e não o procurasse mais. Gina alterou a voz dizendo-se farta da proteção dele, da autoridade dele, de tudo. No íntimo, pensou: "Do seu eterno hálito
de cebola e alho." Queria fazer o que bem entendesse, estava cansada de obedecer: "É preciso estudar oito horas por dia." "Não pode beber." "Não pode passear." "Não
pode deitar tarde." "Não pode fumar." Estava cansada. Cansadíssima. Ele gritou:
- Mas tudo isso é para teu bem, criatura! Não queres estudar canto? Ou estás louca?
Gina teve vontade de gritar mais: "Estou louca sim. Louca."
E fazendo um gesto com a mão como se cortasse qualquer coisa no ar, falou fortemente:
- Chega!
O maestro falou mais forte:
- Pois chega! Vá para onde quiser e não me apareça mais!
Cruzou os braços sobre o peito e continuou olhando-a de frente, como a esperar que ela se arrependesse. Diante do silêncio de Gina, continuou:
- És uma ingrata. Fiz tudo por ti. Tudo. Trouxe-te daquela terra para dar-te uma educação musical bem firme, sólida, pois não tinhas nenhuma e com o que me pagas?
Com a desobediência, com a ingratidão, com o desprezo. Como se não me devesses nada, nada...
Ela levantou a cabeça com altivez:
- Maestro, não precisa me lançar em rosto o que eu devo. Se o senhor fosse um "gentleman" nunca me diria isso.
Não se diz a um vencido que ele é vencido. Não se diz a um doente de câncer: és um canceroso. Não se diz a um negro: és negro. Nem a um doente: não tens cura. Há
coisas que um homem educado nunca diz, maestro. Não há necessidade. E por que dizer: "aquela terra"? É a minha Pátria, o Brasil! Não é "aquela terra", é o Brasil!
Uma cor avermelhada inundou as faces pálidas do maestro Campobasso; sua voz tremeu quando respondeu:
- Não estou ofendendo sua terra, seu País. Estou só dizendo que és uma ingrata e isso não podes negar. Negas acaso? Eu já devia estar acostumado a isso; a ingratidão
é muito comum neste mundo. Pensei que fosses diferente, mas não és. Acabou-se.
Voltou as costas e batendo os pés no chão como a desabafar sua indignação, deixou o apartamento sem mais uma palavra. Nessa tarde, Gina preparou as malas, empacotou
tudo o que tinha e mandou para o apartamento de Bianchina; depois resolveria o que fazer. Bianchina assustou-se quando a viu chegar. Gina contou que rompera com
o maestro e precisava falar com Fred. Bianchina sacudiu a cabeça, com um ar desolado:
- E tuas aulas de canto, Gigina? Tua arte? Tua voz? Gina fez um gesto evasivo:
- Depois, Bianchina, depois eu penso nisso. Preciso telefonar a Fred.
Deixou as malas com a amiga e desceu as escadas para telefonar novamente, pois telefonara do seu próprio apartamento e não encontrara Fred. Sentia-se nervosa e indecisa.
Como Bianchina não tinha telefone, foi ao bar que havia embaixo do prédio; estava cheio de fregueses. Eram cinco horas da tarde; havia homens tomando aperitivos,
outros jogando dados em volta de mesas de ferro; o dono estava em mangas de camisa, tendo à mostra os braços gordos e roliços, cheios de pêlos. Enxugava os copos
com uma toalha encardida. Quando Gina pediu para falar ao telefone, ele não respondeu, apenas fez um gesto com a cabeça mostrando o aparelho e continuou no seu serviço,
atrás do balcão. Todos os olhares fixaram-se nela; alguns interromperam o jogo para observá-la; outros sorriram e piscaram. Gina conseguiu falar com Fred; havia
chegado ao hotel naquele momento e estava se preparando para tomar um banho; depois iria buscá-la no apartamento. Ela deu apressadamente o endereço da amiga e pediu-lhe
que viesse, viesse logo, precisava falar. Pagou ao homem do bar e deixou a sala sem olhar para ninguém. Estava mais calma.
Subiu correndo as escadas. No apartamento minúsculo de Bianchina tudo ficara em desordem depois da sua chegada. Bianchina estava na cozinha preparando chá. Cantava.
Quando a viu aparecer à porta da sala com um avental azul à volta da cintura; tinha também uma fita azul amarrando-lhe os cabelos. Foi falando enquanto preparava
a bandeja para colocar o bule e as xícaras de chá:
- Olhe, Gigina. Não tenho duas camas, mas tenho esse sofá-cama que é bem cômodo. Vais dormir aí. Para teus vestidos, há um lugar no meu guarda roupa, nem que seja
para apertar um pouco. Essas malas grandes ficarão no depósito, falarei com o zelador. Estou muito contente de estares aqui, só penso nas tuas aulas. Então o maestro
Campobasso ficou danado, hein? Que se dane. Com certeza ele já sabe de tudo, digo, a tua história com Frederico, por isso ficou tão furioso.
Abrindo uma das malas de mão e tirando os objetos mais necessários Gina respondeu:
- Se ele soubesse, me diria tudo na cara, tenho certeza.
Penso que não sabe. Esses últimos tempos, passou fora da cidade não se lembra?
- Não falta quem conte...
Olhe, estas coisas de toalete vou deixar no banheiro. Quero arrumar tudo depressa porque daqui a pouco .Fred está aí.
- Falou com ele?
- Falei. Vou tomar um banho, espere um pouco.
Bianchina que havia voltado à cozinha, gritou através da porta aberta:
- Espere o chá. Está pronto.
- Eu tomo banho em dois minutos. Venho já.
- Fiz torradas também, daquelas que você gosta.
Ouviu-se o ruído da água correndo e a voz de Gina cantarolando:
- Bian-chi-na, és um anjo! La chanson de l'amour!
Bianchina começou a rir:
- O que? Estás maluca?
- Penso que sim. Se Fred chegar, recebe-o.
- Não. Deixo-o esperando na porta. Não recebo. E Bianchina começou a rir, um risinho fino e agudo; quanto mais lembrava de suas próprias palavras, mais ria. Deixar
Fred esperando na porta... Arrumou as torradas e as xícaras sobre a pequena bandeja de charão forrada com uma toalhinha branca, derramou a água fervendo sobre o
chá, tapou o bule e escutou. De dentro do quarto de banho, vinha o ruído da água e a voz de Gina cantado: "II fui Tultimo suspiro..." Bianchina respondeu da salinha
de jantar: "Caro nome tuo será..."
Quando Fred chegou, meia hora depois, as duas contaram tudo a ele, entre goles de chá frio. Fazia calor; vinha um vento cálido lá de fora e sacudia a cortina branca
de etamine que enfeitava a única janela da sala. Fred ficou pensativo. O chá esfriou completamente na sua xícara. Depois perguntou:
- E os estudos de Gina? Ela não pode perder essa oportunidade. Agora que está aqui, precisa continuar.
Olhou à volta:
- E piano? Precisamos arranjar um piano para Gina continuar a tomar lições com o professor Natale. Ou com algum outro.
Gina sacudiu a cabeça:
- Não, Fred. Já estudei bastante e creio que é suficiente o que sei. Suficiente para continuar a estudar em S. Paulo; lá também há bons professores...
Não contou que no íntimo tinha medo de perder Fred, um medo desesperado, alucinante. Pretendia voltar ao Brasil com ele.
Jantaram juntos, Bianchina telefonou para Nunzio e foram os quatro à Piazza dei Duomo, num restaurante modesto, onde havia reservados no andar de cima.
Depois do jantar, foram passear no automóvel de Nunzio; em seguida foram dançar no Sempiocino; festejaram então a liberdade de Gina e dançaram até quatro horas da
manhã.
Gina passou mais de um mês no apartamento de Bianchina; Fred foi para Viena encontrar-se com os pais e combinar a volta ao Brasil.
Vieram as férias de verão; toda a cidade parecia movimentar-se para as praias ou para as montanhas. Bianchina resolveu não sair para fazer economias e Gina ficou
esperando Fred voltar. Nunzio deixara a cidade com a família, fora a uma estação de águas.
As duas ficaram sozinhas no apartamento; o calor tornou-se abrasador. De manhã, depois do café, faziam a limpeza; depois Bianchina estudava canto. Gina ouvia; tinha
a impressão de que a voz de Bianchina subia, e descia uma montanha muito alta. Só de combinação por causa do calor, os cabelos amarrados com uma fita azul, ela estudava
andando de um lado para outro, os braços magros cruzados sobre o peito; Ah! Ah! Ah! Ah! Chegava ao agudo e Gina pensava: "Está no alto da montanha."
Bianchina demorava-se lá em cima repetindo os agudos para treinar a garganta: Ah! Ah! Ah! Ah! "Agora vai descer a montanha. Começou a descida." E Bianchina ia do
agudo ao grave vagarosamente: Ah! Ah !Ah! Durante horas inteiras. Só de combinação também, deitada sobre o sofá que à noite servia de leito, Gina pensava: "Como
fui abandonar assim minha carreira? Pois sacrifiquei tudo por ela, vim aqui estudar, agora deixei tudo? Por quê? Creio que nunca serei cantora. Nunca. Que pena.
Bianchina sim, ama a arte. Nunca a abandonará. Por homem nenhum ela deixaria esses "ahs"; e eu deixei tudo por Fred. Podia continuar com as aulas e com Fred. Que
saudade que eu tenho. Mas como poderia continuar com o maestro? Não se pode conciliar tudo."
E sua garganta movia-se como se de fato cantasse: "Agora vou cantar a Tosca... Agora a última aula do professor Natale."
E cantava, cantava. Um dia recebeu um cartão de Frederico, da Áustria; depois recebeu outro do sul da França. Dizia: "Que felicidade se estivesses aqui comigo, meu
amor. Eu seria um homem realmente venturoso."
Ela beijou o cartão e guardou-o num lugar fácil; de vez em quando ia revê-lo; ficava absorta olhando uma paisagem de Cannes onde havia um hotel no fundo, depois
o mar muito azul e gaivotas voando baixo; quase no horizonte, um barquinho à vela, muito branco.
À hora do almoço, Gina preparava um prato de frios e legumes; enfeitava com fatias de tomate e rodelas de ovo cozido formando flores e pensava: "De repente ele chega.
Quem sabe hoje. Agora. E vai almoçar este prato preparado por mim. Vai perguntar primeiro: "Quem enfeitou tão bem este prato? Foi você, Gina? Sim senhora. Está bonito.
Parabéns."
E prestava atenção todas as vezes que ouvia a campainha; mas passou-se mais de um mês e Frederico não chegou. Gina foi ficando triste. Por que ele não vinha? Ele
prometera que viria em Agosto e já estavam em Setembro. Cinco ou seis de Setembro? Não queria saber. Por onde andaria? Por. que não escrevia mais? Só aqueles dois
cartões! Nunzio chegara da estação de águas e aparecia sempre, Gina dizia que ia dar uma volta e saía para deixá-los sós.
No dia quinze de Setembro, numa tarde em que ela havia chorado porque não recebia notícias de Frederico, ouviu o toque da campainha. Estava com um vestidinho leve
de fustão e sapatos sem meias. Bianchina, na cozinha, preparava um assado para o jantar; Nunzio dissera que viria às sete horas. A vizinha do apartamento não tinha
geladeira, então pedia quase todos os dias a Bianchina que guardasse o leite na geladeira dela para o menino; podia se estragar por causa do calor. E todas as tardes,
àquela hora, vinha buscar o leite para fazer a mamadeira da criança. Gina ia abrir a porta quando Bianchina gritou:
- É o leite.
Gina voltou à cozinha, tomou a vasilha e dirigiu-se para a porta. Quando abriu, viu Frederico diante dela, risonho, uma expressão de felicidade na fisionomia. Gina
deu um gritinho:
- Ah! Fred! E desviou a vasilha para um lado, pois Frederico abraçou-a fortemente; Bianchina apareceu à porta da sala; estava vermelha e suada, uma colher na mão.
Pegou a ponta do avental azul e começou a passar no rosto para enxugá-lo enquanto olhava a cena. Gina e Fred estavam fortemente abraçados; a leiteira estava meio
entornada na mão direita de Gina. A amiga correu para segurá-la e gritou:
- Olhe o leite, Gigina. Vais entornar o leite da vizinha!
Riu quando tomou a vasilha e depositou-a sobre a mesa; depois colocou as duas mãos na cintura e olhou para os dois, que continuavam abraçados como se estivessem
sozinhos no mundo.
Depois dos primeiros momentos de expansão, Fred recostou-se no sofá ao lado de Gina e começou a contar o que havia feito e de que forma havia conversado com os pais
a fim de convencê-los da viagem que pretendia fazer. E disse olhando-a:
- E você vai comigo, Gina.
Ela abriu muito os olhos e exclamou como uma criança deslumbrada, juntando as duas mãos:
- Fred! Será possível? Para onde?
- Egito.
Bianchina que havia deixado a sala e fora espiar o assado no forno, estava de pé outra vez na porta. Perguntou, com a colher numa das mãos, enquanto que, com a outra,
aparava as gotas de gordura:
- Egito? Quem vai para o Egito? Eu? Sono io?
Gina respondeu em vez de Fred. levantando-se e batendo palmas de alegria:
- Egito! Vamos ao Egito, Bianchina! Vou ver os faraós. Não é lá que há faraós?
Fred riu-se, quase comovido.









X

Uma semana depois, deixaram Milão, passaram um dia em Roma e embarcaram para Nápoles. No mesmo dia da chegada a Nápoles, às sete horas da noite, tomaram um vapor
para Palermo. Palermo estava envolta em garoa e nevoeiro; tomaram a estrada de ferro e viajaram durante doze horas até chegar a Syracusa. Em Syracusa um luxuoso
vapor, "Esperia", levou-os ao Egito. Nas faces de ambos havia felicidade e ternura. Passaram por Alexandria e foram até Cairo. Viajaram pelo Nilo, visitaram as pirâmides
e a esfinge; passearam em camelos no deserto escaldante, andaram a pé à volta das pirâmides para sentir o calor da areia queimar os sapatos.
Embarcaram depois para Jerusalém, onde chegaram às nove e meia de uma manhã fria e escura. Visitaram os Santos Sepulcros, depois percorreram as ruas da cidade, subindo
e descendo escadas. Foram a Belém. Pararam diante do túmulo de David. Acompanharam a romaria dos hebreus que todas as sextas-feiras rezam e se lamentam diante dos
muros que outrora serviam de defesa à cidade, que não mais lhes pertencem.
Foi um espetáculo surpreendente; os hebreus rezavam com calma, depois as rezas foram se transformando num lamento desesperado e inquietante; debateram-se, gritaram,
levantaram os braços e seus lamentos foram ouvidos longe, enquanto batiam as cabeças contra o velho muro. Pediam em altos brados ao Messias que fizesse o milagre
de lhes devolver a cidade que lhes pertencera. Homens com barbas longas e brancas, outros com olhos profundos e negros, outros ainda mostrando através dos mantos
a magreza extrema, as mãos curvas como garras cruzadas no alto das cabeças, lábios lívidos e murmurantes. Mulheres envoltas em mantos de cor, choravam e batiam a
cabeça nos muros; outras tinham as cabeças descobertas e puxavam os cabelos num gesto contínuo e teimoso, enquanto lágrimas corriam pelas suas faces emagrecidas.
Gina sentiu-se impressionada e de repente percebeu também que estava chorando. Apertou o braço de Fred:
- Coitados! Não há um meio de evitar isso, Fred? Como sofrem os coitados!
Fred levantou os ombros num gesto desanimado:
- Decerto não há meio, Gina, senão não estariam aqui.
Ela enxugou os olhos:
- Então vamos embora, do contrário também bato a cabeça no muro.
Visitaram o túmulo de Salomão. Foram ao mar Morto e ficaram olhando a água tépida, onde os peixes não podem viver. Passearam de bote pelo rio Jordão; depois almoçaram
numa das margens, tendo à volta deles, cabras, patos, cães, burricos, pombos, um porco branco que, famintos, pareciam pedir um pouco de comida. Deram miolo de pão,
pedaços de carne, ossos de frangos aos animais esfomeados. Já tinham terminado o almoço e antes de partir, disfarçadamente, Gina tomou um pão inteiro e repartiu
entre as cabras, os cães e os burricos.
Embarcaram de novo. Ela estava silenciosa; pensava naqueles animais que pareciam ter sempre fome: "Hoje demos tudo o que podíamos, mas amanhã? O que irão comer?
Olhando as margens do Jordão por onde o bote deslizava, pensava na fome dos animais. "Quanta gente não passa fome aqui? Quantas crianças não terão o que comer?"
Para distrair-se olhou Fred; ele conversava com um dos homens do barco. Gina lembrou:
- Fred, pergunte ao homem se vêm turistas sempre aqui.
Frederico fez a pergunta em inglês; o homem respondeu qualquer coisa e Fred traduziu: "Todos os dias." Gina sentiu-se mais alegre a este pensamento: "Então os animais
têm comida todos os dias."
E começou a cantarolar baixinho, olhando Fred.
No dia seguinte foram a Jericó e a Jafa que acharam encantadora, habitada por hebreus sob o domínio inglês. Numa tarde, tomaram o vapor para Trieste; desembarcaram
em Brindisi, depois foram para Veneza; Passaram uns dias rápidos em Veneza, onde o tempo era pouco para ver tudo e embarcaram para Milão.
Gina começou se preparar para a volta ao Brasil; voltaria no mesmo vapor em que ia Fred com a família. Transbordava de felicidade.
Despediu-se de inúmeros amigos; escreveu um cartão ao professor Natale agradecendo as lições. Escreveu também ao maestro Campobasso; queria provar sua gratidão.
Nunzio organizou um jantar de despedida no Sempioncino. Foi alegre e divertido; mais de vinte pessoas sentaram-se à volta da mesa para jantar com Gina pela ultima
vez. O "anarquista" apareceu com o olhar ardente e flores numa caixinha; estendeu a mão perguntando:
- Então vais mesmo nos deixar? E não voltas mais?
Seus olhos ardentes e negros pareciam queimar o rosto suave de Gina. Dançaram juntos muitas vezes, apesar do olhar inquieto de Fred que os observava. O "anarquista"
estava inconsolável; conversava pouco e bebia muito olhando para ela.
Por toda a parte falava-se em guerra; parecia inevitável. Numa manhã alegre de Maio, Gina abraçou Bianchina que chorava; Carmela, Cristina, Nunzio e Bianchina foram
à estação; trocaram endereços, recomendaram muitas vezes: "Escreva mesmo. Não se esqueça." E seguravam a mão de Gina. "Quando pretendes voltar?" E de súbito, como
em todas as despedidas, não acharam mais o que dizer uns aos outros; ficaram olhando e sorrindo; em silêncio. Só Bianchina chorava. Gina e Fred estavam à janela
do trem. Gina tinha os olhos avermelhados e debruçava-se para Bianchina que tinha um lencinho de renda entre as mãos; o lencinho estava úmido. Nunzio afirmava que
não haveria guerra. Gina dizia:
- Não chores, Bianchina. Voltarei um dia, depois da guerra.
- Mas quando? Quando? Não haverá guerra. Quem disse?
- Não sei. Toda a gente diz. Um dia voltarei...
- Una voce mi dice che non tornerai piu.
- Una voce? Que voce?
- Una voce...
Apertou a mão de Gina fortemente. E o trem partiu de repente. No meio dos adeuses e dos apertos de mão, Gina e Fred deixaram a cidade, onde se haviam conhecido e
sido felizes. Foram diretamente a Gênova, onde tomariam o navio que os levaria ao Brasil. Quando estavam chegando a Gênova, Fred despediu-se dela:
- Não nos conhecemos mais, Gigina. Não se esqueça disso. Todas as vezes que eu tiver oportunidade, falarei com você a bordo, procurarei você em sua cabine, mas cuidado...
Meu pai é muito rigoroso para certas coisas.
Gina concordou, tristonha. Antes do trem parar na estação separaram-se com um breve beijo. Foram cada um para um hotel; no dia seguinte, Gina dirigiu-se ao cais,
onde estava atracado o "Giulio Cesare." Suas malas já estavam a bordo; começou a subir as escadas quando viu Fred ao lado de sua família, num dos tombadilhos. Estavam
os pais e várias moças, duas eram irmãs de Fred. Gina passou como se não os visse, mas não pôde deixar de olhar disfarçadamente para o lado deles; Fred estava rindo
e conversando.com uma moça clara e de olhos verdes; com o braço estendido, a moça mostrava-lhe uma parte da cidade.
Gina passou, mas Fred nem sequer voltou-se; ela sorriu consigo mesma, um sorriso amargo e doloroso.
Durante toda a viagem, foi assim; viam-se de longe ou às escondidas, rapidamente. Fred que, em Milão era tão natural, espontâneo, simples, tornou-se medroso, sombrio
sempre assustado, sempre se esquivando. Gina ficava às vezes horas inteiras num canto do salão, observando a família de Fred; era uma família austera composta dos
pais, duas irmãs e um menino. As moças tinham duas amigas inseparáveis; as famílias haviam viajado juntas e continuavam sempre em grupo conversador e alegre.
Gina tinha medo da mãe de Frederico; era uma senhora alta e magra, cabelos grisalhos, rosto levemente moreno onde se notavam logo uns olhos escuros que pareciam
olhos de jovem. Vestia-se bem, sempre de escuro e com muita distinção; vivia ao lado das filhas e acompanhava-as nos jogos e nas danças à noite.
Durante o dia, Fred estava sempre ao lado da família; as duas moças amigas das irmãs não o deixavam também; convidavam-no para jogar, para dançar, para andar à volta
do deck depois do jantar. As refeições, sentavam-se à mesa; a mãe das moças raramente deixava a cabine à hora do jantar.
Gina percebeu que a moça clara de olhos verdes gostava de Fred; ele disfarçava e fingia-se distraído quando via Gina observando-o de longe. O irmãozinho de Fred,
um menino de dez anos, conversava às vezes com ela, assim como conversava com quase todas as pessoas a bordo. Um dia em que ele estava sozinho no deck, Gina convidou-o
para jogar; o menino não hesitou; foi sorrindo buscar o jogo e começaram. Uma meia hora depois, Gina viu a mãe de Fred que vinha vindo para perto deles; ensaiou
um sorriso tímido como a 154 desculpar-se de estar jogando com o menino; ela não correspondeu e antes mesmo que se aproximasse mais, gritou colérica:
- Venha, Dêcinho.
O menino aturdido, deixou o jogo e acompanhou a mãe que se dirigiu apressada para a escadinha, desaparecendo; o menino foi atrás dela e nunca mais falou com Gina
quando a encontrava, fingia que não a via. As irmãs e as amigas de Fred evitavam-na; se estava num canto do deck, elas iam para outro canto; às vezes cochichavam
e mostravam-na umas às outras com ar de desprezo. Uma delas chamou o criado um dia apressadamente para mudar a cadeira de lugar, só por que Gina distraidamente se
aproximara dela.
As horas foram longas para Gina; conversava com algumas pessoas e passava quase o tempo todo lendo, sentada numa cadeira de lona. Quando o vapor atracou no Rio de
Janeiro, lembrou-se de telefonar à mãe e à irmã avisando-as da sua chegada, mas resolveu não o fazer; preferia desembarcar sozinha em Santos e desaparecer o mais
depressa possível.
Lembrava que a mãe e a irmã não tinham aparência distinta e Zelinda vestia-se às vezes com roupas de cores berrantes; sentiria vergonha se Fred visse sua família,
ainda mais em comparação com a dele que era tão diferente.
Enquanto o navio viajava para Santos, lembrou de casos em que um rapaz de boa família casava-se com uma moça igual a ela. Começou a lembrar onde soubera de casos
assim. Em romances? Mas romances não são a vida, são coisas da imaginação. Por mais que se esforçasse não pôde recordar onde soubera de um caso semelhante; só se
lembrou da história da Dama das Camélias que lera quando mocinha. Entristeceu.
Um pouco antes do vapor atracar, na azáfama da chegada, Fred procurou-a na cabine para despedir-se; combinaram então o próximo encontro em S. Paulo, no dia seguinte.
Ela desembarcou e sozinha, tomou o trem para S. Paulo; dirigiu-se para o Hotel d'"Oeste" no largo São Bento, onde pediu um quarto. Instalou-se e à noite, foi procurar
a mãe e a irmã; residiam à rua Rego Freitas. Gina só encontrou a mãe e a filha de Zelinda que estava com três anos. Zelinda e o marido tinham ido ao cinema. A mãe
recebeu-a com certa desconfiança.
- Por que não avisou sua chegada? Assim iríamos a Santos. Zelinda sonhou uma noite destas que você estava para chegar. Como foi de viagem? Zelinda e Zeca foram ao
cinema. O que conta da viagem? Boa?
- Zelinda e Zeca?
A mãe hesitou, depois começou a rir:
- Não sabe que fizeram as pazes? Faz seis meses que ele voltou pedindo perdão e Zelinda perdoou. Por causa de Gracinha, sabe? Estamos vivendo todos juntos outra
vez.
Não acha Gracinha crescida? Muita gente acha ela parecida com você. Lembra da Pascoalina? Sempre vem aqui, querendo saber quando você estaria de volta. Conta alguma
coisa.
Gina abraçou a menina que a olhava com admiração.
Dona Julica queria saber como iam os estudos de canto, se já podia dar concertos, se os concertos davam grande lucro.
Gina contou a viagem, os estudos, os passeios, os amigos que deixara. Falou sobre Bianchina, Nunzio e o "anarquista".
Contou que estava hospedada no Hotel d'"Oeste". Dona Julica fixou-a:
- Não vai ter uma casa, Gigina? É desagradável viver sempre em hotéis. Lembra da casa que você tinha na Av. Luiz Antonio? Creio que vai ter uma casa assim agora,
não?
Aquilo sim era casa, com boa cozinheira, criados, automóvel...
Gina ficou pensativa e disse que mais tarde resolveria; mal acabara de desembarcar. Percebeu que a mãe estava aborrecida como se algum fato a contrariasse; não manifestou
alegria, nem entusiasmo pela sua chegada. A única que parecia contente era a menina; foi buscar o cachorrinho para mostrar à tia dizendo que havia ganho do pai no
Natal do ano passado. O cachorrinho chamava-se Charuto; sabia sentar e dar boa noite com a patinha. Gina brincou com o cachorro e pôs Gracinha no colo; era hora
de dormir. Continuou a conversar com dona Julica. Às onze horas e pouco da noite, Zelinda e Zeca chegaram do cinema; ficaram surpreendidos quando viram Gina sentada
num canto da sala de jantar e Gracinha dormindo no colo dela. Com a chegada ruidosa dos pais e com as exclamações do encontro, a menina acordou; quando quiseram
levá-la para a cama, aconchegou-se melhor no colo da tia dizendo que queria dormir ali. Conversaram até meia noite; dona Julica foi fazer café. Gina tomou-o, saboreando:
- Oh! Café do Brasil, feito por mamãe. Não há coisa melhor!
A conversa continuou, animada. No momento de deixar a casa, Gina levantou-se e levou a menina para a cama, lá em cima. Gracinha tornou a acordar, olhou para ela,
sorriu e contou que o Charuto uivava todas as vezes que ouvia o realejo da rua tocar. Gina disse:
- Ah! Como o Charuto é engraçado! Decerto ele não gosta do realejo. Agora você vai dormir bem direitinho.
Vamos. Zelinda começou a despir a menina; vestiu a camisola branca com preguinhas no peito. Mostrou a perfeição do trabalho a Gina dizendo que dona Julica havia
feito. Gracinha perguntou:
- Quando você vem agora?
- Qualquer dia eu volto.
- Venha amanhã.
- Está bom. Durma. Amanhã eu volto.
A menina bocejou ruidosamente e beijou Gina:
- Tia Gigina, sabe como é que Charuto faz?
- Como.é?
- Uh! Uh! Uh! E levanta o focinho para cima. Uh Uh!
- Está bem. Agora durma. Feche os olhos e durma. Bem direitinho.
- Você vem amanha para ver Charuto uivar?
- Venho.
Cobriram Gracinha, apagaram a luz e deixaram o quarto. Despediram-se. Quando Gina entrou no hotel, procurou na portaria algum recado, algum telefonema, algum cartão
de Fred. Nada. Piscando porque estava cochilando e havia acordado de repente, o porteiro sorriu para ela:
- Nada não, senhora. Se tivesse alguma coisa, estava aqui. É aqui que eles colocam os recados.
E Fred prometera. Deitou-se e não conseguiu dormir. Só de madrugada, quando a claridade do dia começou a passar através das venezianas, ela adormeceu, o rosto molhado
de lágrimas.
A vida de Gina transformou-se novamente. Foi morar na Aclimação, numa casa modesta; tomava lições de canto três vezes por semana, estudava muito e amava Frederico.
Dona Julica e Zelinda ficaram revoltadas; chamavam-na de tola, pouco inteligente, temperamento doentio. Diziam que Gina possuía um sentimentalismo de indolente.
Era apática. Onde se viu sacrificar-se assim por causa de Fred? Algum dia dar-lhe-ia seu nome, casar-se-ia com ela? Nunca. Estava se sacrificando inutilmente, estupidamente.
Era bela, moça, tinha todas as qualidades para triunfar, até talento para música, e no entanto fechava-se naquela vida de burguesa ignorante, tocando piano e pensando
em Fred. Só um temperamento doentio como o dela seria capaz de tal dedicação por nada, pois o que lucrava? Uma mísera casa e um piano. E se ela fosse livre? Teria
tudo como já tivera uma vez. Tudo.
Passou-se um ano. Gina continuou a viver retraidamente, dedicando-se apenas a Fred. Sofria muitas vezes, pois havia semanas que ele mal aparecia, nunca a levava
a lugares muito freqüentados, tinha sempre medo que descobrissem o segredo. Ela não contava a ninguém que no fundo do seu coração guardava a secreta esperança de
casar-se com ele.
No segundo ano percebeu uma leve mudança em Frederico; observava-o quando vinha visitá-la. Parecia o mesmo aparentemente, mas não era. Havia qualquer coisa entre
eles. Um dia Fred contou que os pais queriam casá-lo com uma menina muito amiga de sua família; Gina perguntou se era a mesma que viajara com eles da Europa para
o Brasil.
- Uma clara de olhos verdes?
Fred confirmou. A menina era amiga das irmãs e procurava-o muito; o pai já havia falado uma porção de vezes que ele devia casar-se, a mãe também. Estava numa situação
desagradável; não sabia como esquivar-se. Gina lembrava-se da moça; via-a apontando a Fred uma parte de Gênova, naquele dia do embarque. Perguntou um pouco trêmula:
- E você, Fred? O que vai resolver?
Ele inclinou-se e deu um beijo rápido na face de Gina:
- Se algum dia me casar, meu bem, será com você.
Ela não respondeu; se falasse, ele perceberia sua emoção. Estavam sentados um ao lado do outro no terraço da casa. A noite caía devagar e o ruído do trânsito mal
chegava até eles num som abafado.
Enquanto imaginava em ser algum dia esposa de Fred, pensava na mãe e na irmã; continuava a auxiliá-las; dava algum dinheiro, dava roupas, vestia a sobrinha. O cunhado
ganhava pouco. Muitas vezes Zelinda ia à casa da Aclimação e queixava-se do marido; Gina ouvia as queixas acerbas da irmã, percebia que eram mais contra ela do que
contra Zeca, pois se Zelinda sofria, se não tinha tudo o que queria ou de que precisava, era por causa de Gina que não dava; Gina que podia dar tudo, como dava antes
da ida a Milão. Ela sabia que a mãe e a irmã comentavam a viagem de Gina como um erro imperdoável; deixara tudo para seguir o maestro Campobasso e estudar. O que
lucrara? Estudos de canto. E o que lhe adiantavam os estudos se não dava concertos? Não dava concertos, nem nunca daria, não estudara o suficiente para ser concertista;
abandonara a arte por Fred. O que ganhara então? Fred. Mas quem era Fred? Não dava a bela vida a que Gina estava habituada, prendia-a em casa estudando canto. Para
que? Amor? Oh! O amor!
Quando começou o terceiro ano de união entre Gina e Fred, este apareceu um dia pálido de cólera na casa da Aclimação. Foi logo depois do almoço. Gina assustou-se:
- Que foi? Aconteceu alguma coisa?
Ele contou então a discussão tremenda que tivera com o pai à hora do almoço; o pai descobrira tudo, não se sabe como e chegara a insultá-lo; ele não negara. Confessara
a verdade terminando por dizer que se casaria com ela, estava tratando disso. Uma verdadeira catástrofe. O pai mandara chamar a mãe e quando esta soube das intenções
do filho, tivera uma espécie de desmaio, de que sofria às vezes. Caíra no sofá com falta de ar e tiveram que chamar um medico; uma das irmãs dissera:
- Você ainda mata mamãe.
Todos estavam inconsoláveis e a mãe na cama, desesperada.
Gina e Fred passaram a tarde confortando-se mutuamente; sentaram-se no terraço; Gina inclinou a cabeça sobre o ombro de Frederico. Não disse que estava com medo.
Tinha a sensação de que nuvens negras se acumulavam no céu azul, nuvens tempestuosas e ameaçadoras. Que fazer? Dirigir-se a quem? Pediu a Fred que tivesse calma
e esperasse. Quem sabe apareceria uma solução inesperada? Fred sorriu, cético. Não acreditava em milagres. Ou eles se casariam ou ele se separaria da família. Não
havia outra solução.
E recostando a cabeça sobre o ombro de Gina, chorou.
No dia seguinte, ela foi procurar Pascoalina, a velha amiga que a visitava todas as semanas. Contou tudo. Pascoalina ouviu-a em silencio, fumando um cigarro; depois,
em vez de consolá-la começou a citar casos idênticos em que os rapazes acabavam sempre casando-se com quem os pais queriam. E as companheiras de tantos anos... Oh!
Que fosse para onde fosse... Pascoalina fez um gesto com a mão:
- São assim mesmo... Todos iguais.
Gina começou a sentir amargura pela vida e por todas as pessoas que se aproximavam dela; aquele sentimento de felicidade e ternura desaparecera. Agora só sentia
ansiedade, ansiedade e desilusão. E descobriu, decepcionada, que essa infelicidade que sofria, esse sentimento de falsidade provinham de Fred. Continuaram a jantar
juntos todos os dias, a sair juntos, a ficar um ao lado do outro, sentados no terraço estreito que dava para a rua quieta. Viam as luzes das casas e das ruas, ouviam
o rumor surdo dos bondes que passavam longe, continuaram a ficar em silêncio como costumavam, mas ela percebeu que isso se acabaria. Teve intuição. A serenidade
que gozavam era só aparente; era como se fosse uma máscara que os dois colocavam para se iludirem mutuamente, mas. Gina sabia que sob essa máscara não havia mais
serenidade, nem esperanças. Viviam inquietos. Era como se o fogo estivesse se anunciando dentre cinzas aparentemente frias; e esse fogo, tinha certeza, seria implacável
e destruidor. Observava Fred sem que ele percebesse; sentia no olhar, no abraço, nas palavras que ele pronunciava qualquer coisa diferente, como se o elo da corrente
estivesse quebrado, ou frouxo e não os ligasse mais. Toda aquela segurança em que julgara viver, ruía por terra de repente, impelida por uma força oculta; sentiu
o impulso que os separava e percebeu de onde provinha, mas nada pôde fazer. Ficou parada, inerte, como uma pessoa assustada que ouve um barulho e não sabe de onde
vem o perigo, sentindo sobre si todo o peso da desgraça.
Durante uns dias, ficou só. Fred fora viajar. Uma tarde quente, estava na sala preparando-se para estudar, quando a empregada anunciou uma visita; Gina disse que
a fizesse entrar, sem imaginar quem seria o visitante. Levantou-se e viu um senhor de idade parado na porta, um ar austero, uma fisionomia fechada. No primeiro instante
pensou: Onde já vi este homem? Eu o conheço. De onde? Sentiu um mal estar como se só aquela presença perturbasse seu equilíbrio. E de repente, sentiu um frio percorrer-lhe
o corpo todo: era o pai de Fred. Lembrou-se da viagem e daquela travessia desagradável. Convidou-o a sentar-se, ainda perturbada, e tomou o chapéu que ele conservava
entre as mãos, desajeitadamente. Ele apenas cumprimentou e sentou-se; olhou à volta toda, pigarreou e fixou-a; era um olhar penetrante e malicioso, parecia atravessar
o corpo de lado a lado. Os olhos eram pequeninos e vivos, desses olhos que vêm tudo dissimuladamente. Gina imaginou a aranha atraindo a mosca; suas mãos ficaram
úmidas e frias. Houve um silêncio prenunciador de tempestade, depois o velho perguntou:
- A senhora vive com meu filho há muito tempo?
Gina tentou sorrir quando pensou: "É como a "dama das camélias", a "dama das camélias"." Ele vem impor a separação. A "dama..."
- Sim senhor. Há dois anos e meio.
Sentiu um zumbido nos ouvidos, e ao mesmo tempo certo alívio. "Foi bom o velho perguntar assim a queima roupa, foi um alívio. O pior passou; depois que se toca num
assunto assim francamente, com tanta calma e cinismo, é porque não há mais cerimônias e tudo vai dar certo. Foi bom até.... Velho insuportável."
O homem colocou uma das mãos sobre a perna direita e pigarreou de novo; Gina observou a mão; era pálida, cheia, cor de cera. Os olhos dele percorreram a sala como
a avaliar o que havia de valor ali, quanto o filho despendia com aquela mulher; fixaram-se no piano. A voz se fez ouvir, cortante, fingindo firmeza:
- Pois, minha senhora, vamos diretamente ao fim; não gosto de rodeios: a senhora precisa deixar o meu filho.
Tudo tremeu diante dela; viu a mão cor de cera dando voltas no ar, viu a sala girar e até o piano parecia ter mudado de lugar. Fez um esforço para se manter firme
e suas mãos apertaram o braço da poltrona; percebeu a fazenda esgarçada nesse lugar e lembrou-se de que Fred falara qualquer coisa a respeito: "Precisamos mandar
trocar o pano da poltrona", ou "fazenda ordinária". Fora isso. Fora isso que Fred dissera. Automaticamente seus dedos apalparam o lugar esgarçado uma porção de vezes.
Olhou o velho e reuniu toda sua coragem para responder; precisava falar qualquer coisa, não podia ficar assim... parada.
- Mas Fred... Frederico e eu nos queremos, muito há bastante tempo; ele disse que vamos nos casar.
Viu o rosto do homem transfigurar-se; ficou pálido e moveu os lábios sem falar. A mão estava tremendo; levantou-a no ar como se fosse batê-la, quase gritou:
- Ele disse isso? Ele disse que vai casar com a senhora?
Ele... Sua voz estava engasgada, parou um pouco e continuou:
- Pois sim. Ele pode se casar com a senhora porque não há força humana que possa impedir um rapaz de fazer loucuras, mas nunca perdoarei. Nem eu nem minha mulher
havemos de perdoá-lo. E digo mais: vou deserdá-lo...
Tirou um lenço do bolso e passou sobre a testa rapidamente, em gestos bruscos:
- Sim. Vou deserdá-lo. Estava, prevendo isto. Adivinhei.
Falava frases curtas, os olhos em Gina. Continuou:
- A educação que ele recebeu não devia permitir que levasse essa vida. Não o considero mais como filho. É um filho ingrato e sem coração. Os conselhos, as advertências,
a boa vontade, tudo têm sido inútil, inútil; não ouviu meus conselhos, nem se importou com as lágrimas da mãe.
Olhou-a como se quisesse ter certeza de que ela escutava:
- A senhora não sabe como temos vivido lá em casa; não sabe o que temos sofrido por sua causa. Mas precisa saber. Precisa. A senhora foi a desgraça de Frederico,
foi a infelicidade maior que ele teve na vida, na nossa vida também, pois isso nos arrastou. A senhora deve ser inteligente e compreender porque estou falando assim.
A senhora que conhece o mundo e seus preconceitos, não acha uma loucura o que Frederico está fazendo? O que ele pretende fazer? Pense um pouco nas conseqüências,
veja a nossa família, não é possível isso. Eu dou quanto a senhora quiser, mas depende da senhora evitar essa desgraça, essa loucura. Dou quanto pedir.
Gina apertou os lábios e fixou o velho de frente; seus olhos brilharam de cólera:
- O senhor considera uma desgraça ele casar-se comigo? É a isso que o senhor está se referindo? Mas eu nunca pensei em casar-me com ele, ele é que me falou nisso.
Eu nunca esperei que ele se casasse comigo, não pense o senhor que eu quis me casar com Frederico...
A mão do velho volteou no ar; a voz era rouca e terrível quando interrompeu Gina:
- Se ele se casar consigo, nunca o perdoarei.
Respirou o ar como se estivesse se afogando e tornou a falar:
- Mesmo que eu esteja agonizando, mesmo que eu esteja nos meus últimos momento de vida e Frederico mandar dizer que quer falar comigo, não o perdoarei, não o receberei.
Os portões da minha casa estarão fechados para ele. Fechados. Não o reconheço como filho... Nunca o perdoarei.
Ficou de pé na saleta, a mão estendida para Gina como a amaldiçoá-la:
- A senhora não compreende que está fazendo a infelicidade dele? Não compreende que esta ligação é a desgraça da nossa vida, a desonra da nossa velhice? Ele não
poderá viver sem nosso auxílio, sem nosso apoio. Faltando esse apoio, ele fracassará. E é a si que ele vai acusar, é a si que ele vai dizer: Por tua culpa! Por tua
culpa!
E o dedo do velho continuava apontando-lhe o rosto:
- Porque tudo passa, minha senhora. Este amor que a senhora pensa que é eterno, passara também. Ele será infeliz, sofrerá, ele a abandonará. Esse é o seu fim, ficará
abandonada. Fez uma pausa diante do silêncio estupefato de Gina e deu uns passos pela sala. Foi até uma das janelas, parecia que a cólera ia se amainando. Voltou-se:
- Há quatro anos esse rapaz era noivo de uma menina das nossas relações, uma menina boa e distinta. Depois que conheceu a senhora, tudo terminou entre eles. Desmanchou
o noivado. Começou a faltar ao trabalho, vive uma vida diferente da nossa, vive à parte, não se importa mais com sociedade, com família. Uma vida amalucada. E tudo
isso por quê? Por sua causa. A senhora é a causadora de todo esse mal. A menina que era noiva de Frederico está doente em Campos de Jordão; o desgosto foi muito
grande e ela enfraqueceu. Eu e minha mulher não temos sossego. Sofremos. Tudo por quê? Por sua causa. Somente por sua causa. Tirou o lenço do bolso e passou novamente
pela testa suada. Seus olhos pareciam úmidos de pranto. Gina baixou o olhar: "Não, não pode ser. Sinto-me sufocar. O velho não chora. Eu a causa de todo esse mal?
Dessa infelicidade tão grande? Mas eu não sabia, Frederico nunca me contou que era noivo... Nunca me contou que eu sou a causa de tudo. Como eu poderia adivinhar?
Coitada da moça! O que farei agora? O que direi a este homem? Frederico me falou só uma vez.. Falou só uma vez... Depois nunca mais. Mas se ele for embora, o que
será de mim? Para onde vou viver? Cantar? Sim. Vou cantar." Lembrou-se do cachorrinho da sobrinha que uivava quando ouvia o realejo tocar na rua. "Vou cantar para
viver." Sua voz estava trêmula quando falou:
- Mas eu não tenho culpa; nem sabia que ele era noivo, nunca me contou.
O velho exaltou-se novamente:
- Como não é sua culpa? Como assim? Tudo depende da senhora exclusivamente. Vá viajar, deixe S. Paulo por algum tempo, diga a ele que quer viver outra vida e não
esta; depende unicamente da senhora.
Houve uma pausa longa. Ele tornou a tirar o lenço e passar sobre a testa, sobre o rosto todo. Guardou o lenço e olhou o chão numa atitude obstinada e melancólica..
Por uns instantes ninguém falou. Depois ela disse com voz um pouco tremula:
- Está bem. Vou ver o que posso fazer, mas creia o senhor que durante esse tempo que vivi com Frederico, fui boa, leal, honesta. Tão honesta... (ia dizer como sua
filha ou sua mulher)... como uma mulher honesta e casada que só vive para o marido e os filhos. Nem Frederico, nem o senhor, nem ninguém no mundo podem dizer que
faltei a algum dever... Amei Frederico e ainda o amo, senão não levaria esta vida que o senhor está vendo, vida simples modesta, vida de gente pobre, quero dizer,
casal pobre, que vive um para o outro... Eu conheço a vida e compreendo o que o senhor deseja. Sei também que não há amor eterno, tudo passa e desaparece como nós
mesmos, e sigo seu conselho.
Mal se ouviu quando ela perguntou:
- Que quer que eu faça?
Pela primeira vez os olhos do velho pareciam humanos; olhou-a e falou rapidamente antes que se arrependesse:
- Quero que deixe imediatamente S. Paulo. Pagarei sua viagem. Deixe a cidade o mais depressa possível.
E o homem pôs a mão no bolso para tirar a carteira. "É horrível isso. Como cedi assim tão depressa? O que dirá Fred? Então vou fazer a vontade deste homem? Não posso,
não posso..."
- Então eu vou me embora. Vou para o Rio de Janeiro.
Os movimentos dele eram apressados, nervosos, mas sua voz havia mudado; estava calmo, senhor de si:
- Vejo que é inteligente e boa. Promete deixar a cidade?
- Sim. Vou me embora daqui.
- Está bem. Pago sua viagem e dou mais alguma coisa, mas não posso dar muito. Lá fora a senhora não ficaria inativa...
Foi como se tivesse recebido uma bofetada; olhou para ele. A cólera transfigurou-a. O que? O velho agora insultava-a? Porque falara desse modo, se fora correta e
cedera tão depressa? Por quê? Velho desprezível e miserável. Tivera pena porque vira lágrimas nos olhos dele e agora ele a insultava. Levantou-se. Ficou de pé na
frente dele e falou firmemente:
- O senhor é um homem mesquinho e bruto. Sim. É um bruto. Fique com seu dinheiro, não preciso dele. Por que pensa que vivi todos estes anos ao lado de Frederico?
Para ter luxo? Para viver a grande vida á qual o senhor se referiu? Nada disso. Porque o amava, fique sabendo. Vivi uma vida modesta e pobre; não tive vestidos,
não tive jóias, não tive automóvel, não tive dinheiro. Só tive amor, mas não se vive do amor como não se vive das brisas. Mas eu amava Frederico e durante o tempo
que o amei, fui tão digna, tão honesta como sua filha. (Tivera coragem para falar agora.) Por que vem então me ofender? Por quê? Pois eu não concordei em deixar
S. Paulo e seguir seu conselho abandonando seu filho? Por que me insulta?
Sua voz ia se elevando cada vez mais. Indeciso, a carteira na mão, o velho não sabia o que fazer. Ela percebeu o gesto dele e apontou a porta da rua:
- Guarde seu dinheiro, já disse. E deixe esta casa que por enquanto é minha casa. Não preciso do seu dinheiro, nem do senhor. Frederico já tinha me avisado que a
gente dele é assim: mesquinha. É por isso que ele se sente infeliz lá. Vá embora desta casa. O homem voltou-se rubro de cólera. Levantou a mão como se fosse esbofeteá-la,
mas baixou-a outra vez. Fez um gesto brusco guardando a carteira e dirigiu-se para a porta. Na passagem, pegou o chapéu que estava sobre a cadeira, passou pela porta
da rua que estava aberta, atravessou o jardim e desapareceu.
Gina ficou imóvel durante algum tempo, sentada numa cadeira da saleta; de repente ouviu os passos da criada que vinha lá de dentro; rapidamente dirigiu-se ao piano
e abriu-o; fingiu que estava procurando uma música. Respondeu ao que a criada perguntou sobre o jantar e quando esta deixou a sala, sentou-se na banqueta e cantou
em voz baixa "Ideale" de Tosti, cega pelas lágrimas.
No dia seguinte, Gina deixou esta carta para ser entregue a Frederico:
"Fred. Sempre acreditei numa coisa: no destino das criaturas. Ele é como ferro em brasa que nos marca ao nascer. É uma força poderosa que cada um carrega consigo;
e o caminho está traçado de antemão.
Quando nos conhecemos em Milão, acreditei que nossas vidas se ligassem para sempre. Por quê? Por você? Por mim? Não sei por que, na verdade. Mas hoje os laços estão
desfeitos, a corrente se quebrou. Nada pode existir entre nós.
Ver um homem colérico entrar na minha casa, apontar o dedo para meu rosto e dizer: "A senhora é a desgraça da nossa família. Será uma desgraça se meu filho casar-se
consigo."
Você acha que eu posso suportar essa idéia de ser a desgraça de alguém? Não de uma só pessoa, mas de uma família inteira? Não. Continue onde está, nas alturas onde
sempre esteve; siga seu caminho que é bem diferente do meu, ouça os sábios conselhos de seu pai, veja as lágrimas que correm dos olhos de sua mãe. Eu continuarei
onde sempre estive, no caminho pantanoso. Não tenha pena de mim e nem diga: "Coitada!" Não sou coitada de ninguém e nem estou sofrendo. Acho que seu pai tem razão.
Como posso eu ousar empanar o brilho dos seus brasões?
Fred, você conhece uma flor que dá na beira dos rios, nos "lugares pantanosos"? É uma bonita flor, mas se você colocá-la num vaso de cristal com água pura, ela não
agradece, empalidece e morre em poucas horas. Não se acostuma nos salões fechados, onde as rosas e as flores dos jardins brilham e perduram.
Fred, eu sou como a flor dos charcos. Se me casasse com você, levaria comigo um pouco da lama do lugar onde nasci e sua família me odiaria. Eu creio que não suportaria
os salões perfumados onde vivem as outras mulheres, esses salões onde você está acostumado a viver. Não. Morreria de tédio ou abandonaria você, dando à sua família
um desgosto irremediável.
Seu pai tem razão. Se eu me casasse com você, não poderia levar comigo as três qualidades que sua família exige, e sem as quais, acha que não pode haver felicidade:
nascimento, dinheiro, nome. Não tenho nada, Fred..
Aquele dia em que desembarcamos em Santos, não quis dizer a você que não avisei minha gente para não vê-la tão miserável no meio das outras gentes que estavam lá,
a sua também.
Desde o tempo em que passei fome, adquiri uma filosofia chinesa para o irremediável.
Amamo-nos. e fomos felizes; ficou a lembrança. Isso ninguém nos tira e basta. Sempre pensei que o fim seria esse, mas dizem que a esperança é a ultima flor que morre
no coração humano e eu a conservei até o dia em que seu pai me disse aquelas palavras cruéis.
Não me procure, Fred, seria inútil. Não tenha ódio em mim, nem piedade. Afirmo a você que não estou sofrendo.
Vou cantar como as cigarras e esquecerei.. Lembrarei algumas vezes dos nossos sonhos, com certeza, e do quanto fomos felizes.
Veja bem que escrevi "algumas vezes" e não sempre.
Adeus e felicidades.
GIGINA.
Quando Frederico chegou de viagem dias depois e foi procurá-la, encontrou a criada numa casa vazia, com a carta na mão.

















XI

No dia em que resolveu desaparecer da vida de Frederico, passou toda a noite sem dormir e mentalmente preparou a carta; no dia seguinte, às seis horas da manhã,
escreveu-a. Depois juntou todas suas economias, determinou quais os móveis e as roupas que teriam de ir para a casa de dona Julica, e foi procurar Pascoalina. Quando
desceu do táxi, às oito da manhã, à porta da casa da amiga, não sabia ainda o que iria fazer. A criada que a recebeu avisou que Pascoalina ainda estava dormindo;
Gina disse que esperaria na sala de jantar. A criada levou-lhe as malas lá para dentro e colocou-as na porta da copa, depois perguntou com solicitude se queria café;
Gina agradeceu, já havia tomado, não queria nada. Sentou-se no sofá entre as duas almofadas de seda e esperou; viu a criada passar várias vezes com a vassoura e
o pano de pó sob o braço; todas as vezes que olhava para Gina, sorria. Às dez horas perguntou-lhe se queria ler o jornal, nem se lembrara de oferecê-lo. Gina aceitou.
Às onze horas cansada de estar só, levantou-se e foi à cozinha pedir um copo d'água; depois lembrou-se de telefonar à mãe. Perguntou lhe se os móveis haviam chegado.
Dona Julica admirou-se e levantou a voz:
- Que móveis? Compraste algum móvel?
Gina impacientou-se:
- Uns móveis que mandei para aí. Guarde na garage e não se incomode comigo, depois explicarei tudo. Vou viajar.
Desligou e voltou para a sala de jantar; espiou a gaiola com o pintassilgo; havia dois agora. A criada apareceu, tornou a sorrir e explicou que a fêmea tinha botado
dois ovos.
- Quer ver os ovinhos? São pequeninos assim...
Nesse instante, ouviu a voz de Pascoalina; abriu-se uma porta lá em cima e Pascoalina gritou:
- Café, Ângela!
Depois um bocejo ruidoso. Gina subiu a escada apressadamente; encontrou a amiga na porta do quarto, despenteada, pálida e envelhecida. Olhou admirada para Gina:
- O que é isso? A esta hora?
Gina respondeu, desorientada:
- Não é muito cedo. Fugi simplesmente.
- Hein? Fugiu? De quem? De Fred? Ele te bateu? Gina ia confirmar, mas ao ouvir a ultima pergunta, gritou:
- Fugi porque o pai dele foi lá em casa e fez um barulho danado.
Pascoalina riu:
- Briguinha de namorados? Oh! Como é romântico!
- Não é romântico. Fugi para sempre. Rompemos definitivamente. Ele não sabe ainda, está viajando,..
- Mas por quê? Que é que houve? Meu Deus!, Não entendo nada.
- Por causa dele... A família me odeia.
Pascoalina dirigiu-se ao banheiro:
- Venha cá; eu vou escovar os dentes e você me conta.
Não sei tomar café com este gosto de corrimão de escada na boca. Conte tudo.
Deixou a porta do banheiro aberta; despejou dentifrício cor de rosa num copo, encheu-o de água e pegou a escova de dentes falando sempre:
- Mas, escute, brigaram? Ele disse alguma coisa?
Conte tudo, Gigina, você está com uma cara... Ah! Ele está viajando, então não brigaram, mas conte...
Encostada no batente, Gina contou:
- O pai de Fred foi lá em casa e me desfeiteou, disse as últimas. Não agüento mais; fugi e não quero saber dele nunca mais.
Pascoalina escovava os dentes furiosamente; resmungou espumando:
- Velho miserável. O que tinha ele de ir lá? E depois?
Inclinou a cabeça para trás e gargarejou. Gina tornou a falar:
- Você sabe, a gente vai agüentando, mas chega um dia que não agüenta mais... Eu sabia que a família de Fred me odiava, mas agora é diferente, foi pior. O velho
foi fazer barulho lá em casa.
Pascoalina olhou para ela, com a boca ainda cheia de espuma:
- Mas agüentando o que? Ele te batia?
Gina ofendeu-se e tomou uma atitude desesperada:
- Não Pascoalina. Agüentando a oposição da família; há muito tempo eu sei disso, ele mesmo me contou. E agora o pai foi lá em casa e disse que eu sou a desgraça
da família....
Pascoalina bochechou com ruído; voltou-se:
-Desgraça de quem?
Gina gritou:
- Da família. Família inteira dele.
- E o que você tem com isso? Com o pai dele? Com a família dele? Não dá confiança, trouxa.
Gina não respondeu; ficou olhando o rosto largo da amiga que de pé, na frente dela, enxugava-o. Pensou consigo:
"Pascoalina é boa, mas não compreende certas coisas. Se eu pedisse a camisa, por exemplo, compreenderia."
Pascoalina bateu-lhe no ombro:
- Vamos, vamos tomar café.
Desceram. Sentadas num canto da mesa da sala de jantar, uma na frente da outra, conversaram enquanto Pascoalina tomava café. Quando Gina parou de falar, ela perguntou
enxugando a boca com cuidado:
- Então é por isso? Não seja idiota. Dê o fora nessa gente toda e vá embora com Fred. Sumam-se daqui. Vá morar no Rio, em Belo Horizonte, em Pequim, em qualquer
lugar...
- Mas ele trabalha com o pai, não pode deixar S. Paulo. O pai vai deserdá-lo se ele não me deixar. Vai amaldiçoá-lo.
Pascoalina catava pedacinhos de pão de sobre a toalha e levava-os á boca, mastigando. muitas vezes com os dentes da frente:
- Então, bolas! Que quer que eu faça, se não me aceita os conselhos?
- Quero ficar escondida aqui em sua casa até resolver minha vida; não quero que ninguém saiba, nem minha gente e muito menos Fred. Eu pago, não quero ser pesada
a ninguém. E você vai jurar que, se encontrar Fred, não dirá nada. Jure.
- Juro. Lá em cima tem um quarto vazio, se quiser tome conta dele. Ângela! Arrume o quarto pra dona Gigina. Onde está sua mala? Mas se você falar outra vez em pagar,
eu te ponho pra fora.
- Minhas coisas estão aí na copa; meus vestidos e minhas jóias. Alguns móveis que trouxe da Europa, mandei pra casa de mamãe.
Pascoalina sacudiu os ombros;
- Faça o que quiser... Mas não seja muito burra.
Piscou para Gina:
- Tem muita gente que fala em você até hoje. Assim... olhe (juntou os cinco dedos da mão direita). Se você quiser, pode ganhar um dinheirão.
Gina não respondeu. Ouviu a criada subir com as malas e foi auxiliá-la; estenderam a cama e arrumaram os objetos principais. Pascoalina disse que ia almoçar na cidade;
à uma hora, despediu-se e saiu.
Durante algum tempo, Gina ficou sentada diante da janela, pensando. Estava outra vez com a vida sem rumo. Iria trabalhar, fazer alguma coisa. Lembrou-se de aprender
datilografia, aprenderia em três ou quatro meses, depois se empregaria. Arranjaria um emprego decente; tantas moças faziam isso. Trabalharia. A criada apareceu perguntando
se ela queria almoçar; respondeu que aceitaria qualquer coisa. Desceu com a criada e sentou-se à mesa da cozinha; comeu arroz, batatas e um bife; goiabada com queijo
e café. A criada contou que Pascoalina raramente almoçava; jantava quase sempre; mas às vezes também não, pois ficava na cidade até tarde. Perguntou se ela queria
mais alguma coisa e se jantaria lá, Gina disse que preferia uma xícara de café com leite ao jantar; Ângela protestou:
- Não senhora. Temos sopa e assado todos os dias, venha ou não venha dona Pascoalina.
Subiu a escada dizendo que ia terminar o arranjo das coisas; entrou no quarto estreito, sentou-se na cama e sentiu-se de repente, cansadíssima. Lembrou-se de que
quase não dormira na noite anterior; recostou-se no travesseiro para descansar e dormiu até seis horas. Acordou um pouco assustada e recordou-se de tudo outra vez;
sentou-se na cama, pensando em que iria fazer. Ouviu uma porta bater e os passos de Pascoalina subindo à escada; acendeu a luz e abriu a porta. A amiga apareceu
diante dela, as faces vermelhas como se tivesse bebido muito:
- Escute, Gigina, você continua com suas idéias? Vamos passear de automóvel. Temos uns amigos esperando aí no portão. Vim buscar meu casaco, vamos...
Gina olhou-a escandalizada:
- Já disse que não, Pascoalina... Não quero sair, não quero que ninguém saiba que estou aqui. Pedi a você e você jurou.
- Está bem. Está bem. Ninguém sabe. O que pensa que eu sou? Linguaruda?
Fez um rosto amuado e correu para o quarto, gritando:
- Faça o que quiser, mas também não seja idiota. Aposto que você vai se arrepender um dia. Oh! Se vai.
Gina deu uns passos atrás dela:
- Você jurou, Pascoalina.
- Eu sei não precisa lembrar. Mesmo que. eu beba, sei cumprir meu dever... Vou trocar de vestido e levar o casaco, pode ser que faça frio. Penso que vamos até Santos..,
Lá lá ri lá... lálárilá.
Minutos depois, Pascoalina tornou a passar; trocara de vestido e levava um casaco sobre os ombros. Falou para Gina.
- Olhe, pombinha, Ângela vai te dar jantar, ouviu?
Fique aí rezando bem direitinho. Até logo.
Depois que Pascoalina saiu, Gina voltou para o quarto, alisou as cobertas, tirou uns objetos da mala pequena e pôs sobre a mesa de toalete: "Este, Fred me deu em
Milão, quando nos conhecemos... Isto foi a bordo; e este perfume onde foi mesmo? Ah! Ele trouxe do Rio uma vez, agora me lembro." Colecionou tudo em cima da mesa
e ficou olhando; depois penteou os cabelos. A criada subiu e perguntou se queria que arrumasse a mesa na sala de jantar; Gina protestou:
- Não, não, eu janto na cozinha mesmo.
- Então quando quiser; tá pronto.
Ela desceu e sorriu para a criada; havia mais duas pessoas na cozinha. Ângela explicou que uma era amiga, outra era irmã mais moça; trabalhavam numa fábrica de meias
e passavam lá todas as tardes para auxiliá-la. Gina pensou que decerto jantavam à custa da amiga. Sentia-se tímida e infeliz, comendo sob os olhares das três mulheres.
Tomou a sopa, a cabeça baixa, sem falar; depois comeu um pedaço de carne assada com salada de agrião. Ângela confessou que adorava agrião; admirou-se de Gina comer
tão pouco. Deixou a cozinha; foi para a sala e sentou-se no sofá; estendeu as pernas e ficou pensando. Depois lembrou-se de que não tinha mais cigarros; pediu a
uma das moças que fosse comprar. Fumou diante da janela aberta que dava para o jardinzinho. Andou pela casa toda; foi até a sala de jantar, ao terraço, espiou os
pintassilgos, voltou à sala da frente; ouviu o som das vozes animadas na cozinha e o ruído dos talheres sobre os pratos. Jantavam alegremente despreocupadas. E ela
que iria fazer? Espiou as horas: oito e meia. Decerto Pascoalina nem jantara ainda. Subiu devagar, contando os degraus. Acendeu a luz do quarto, deitou-se e fumou
outro cigarro: "Amanha vou começar vida nova. Amanhã cedo, enquanto Pascoalina estiver dormindo, vou procurar uma escola de datilografia. Amanhã às oito horas."
Às dez horas, resolveu dormir. Deitou-se e apagou a luz. Uma hora depois, tornou a acender e espiou as horas. "Pascoalina não volta tão cedo para casa; não tenho
sono. Onde estará Fred? Terá voltado?"
Tornou a ficar no escuro. Lembrou-se do dia em que conhecera Fred em Milão na casa do maestro Campobasso. "Ficava em Sempione, lembro-me tão bem, perto do Castelo
Sforzesco. Fui com Fred visitar o Castelo. Fred disse: Imagine só se a gente vivesse naquela época? E eu respondi: Seria muito interessante. Eu com aquele vestido
vermelho... Ele deu risada e disse: Eu sentado naquela cadeira... Eu com este sapato de veludo... Eu com esta espada na cintura ... Eu... Fred era tão engraçado."
Cada um dizia uma coisa; Gina riu-se ao recordar. Dormiu mais tarde e acordou às quatro horas, assustada. Acendeu a luz estranhando o quarto, depois fumou um cigarro.
Fumou outro. Abriu a janela e atirou os cigarros meio queimados no jardim. Olhou o céu, o casario todo mergulhado na escuridão; deitou-se outra vez, mas não conseguiu
dormir. Começou a pensar em Bianchina; recebera uma carta da amiga seis meses antes; contava que ia cantar num teatro de Turim; nem se lembrava se respondera essa
carta. Lembrou-se do "Conservatório Musicale" e as duas caminhando pela "Via Delia Passione": as aulas, os professores, as gargantas repetindo "Ahs!" uma porção
de vezes.
Às sete horas, tornou a dormir e às oito menos um quarto, deu um pulo fora da cama como se tivesse perdido a hora. Vestiu-se rapidamente, desceu, tomou café e ia
sair quando se lembrou de procurar o endereço da escola de datilografia. Tomou a lista telefônica, escreveu o endereço numa ponta de jornal e saiu, apressada.
Matriculou-se e começou a aprender no mesmo dia. Usava o chapéu caído sobre os olhos e os vestidos mais modestos que possuía, para não ser reconhecida; resolveu
também usar óculos. Andava depressa, a cabeça baixa; voltava para a casa da amiga, depois de duas horas de aula, arrumava o próprio quarto e ia ler revistas que
comprava todos os dias. Pascoalina perguntava à hora do almoço ou do jantar:
- Não mudou de idéia, pombinha?
- Não.
A amiga sacudia os ombros e olhava-a com ar de pouco caso; Gina percebeu que a outra compadecia-se dela, mas, ao mesmo tempo, desprezava-a. Na primeira semana, à
tarde, o telefone tocou; era dona Julica perguntando se não tinha noticias de Gina; queixou-se de que a filha parecia doida; largara casa, Fred, tudo e desaparecera.
Onde estaria? Com o fone na mão, Pascoalina piscou para Gina e respondeu:
- Ela me disse que ia para o Rio de Janeiro, dona Julica. Não sei mais nada; penso que volta logo.
- Foi fazer o que?
- Negócios...
-E nos abandona desse jeito? Criatura ingrata, sem c oração. Falou mal da filha durante algum tempo. Nessa tarde, Gina foi vender um dos seus anéis; Pascoalina daria
o dinheiro a dona Julica, dizendo que recebera do Rio. Mas nessa tarde, enquanto Gina estava fora, negociando a venda da jóia, Fred desceu do automóvel em frente
à casa de Pascoalina e bateu com força no portãozinho; Pascoalina recebeu o rapaz desesperado. Ele subiu os degraus da escada do terraço de dois em dois, entrou
pela sala a dentro e apertou o braço de Pascoalina que estava pronta para sair.
- Para onde ela foi, Pascoalina? Você deve saber, para onde?
Tinha olheiras, os cabelos despenteados caíam-lhe sobre a testa; toda sua aparência era negligente e seu olhar aflito. A palidez acentuara-se; os lábios pareciam
brancos. Pascoalina fitou-o com calma procurando não dar a perceber que sabia tudo; fez um gesto compungido:
- Ela me telefonou que ia para o Rio de Janeiro, Fred, e me falou de uma visita que seu pai fez a ela. Desgostou-se muito e resolveu fugir, ir embora, sumir de sua
vida. Creio que foi por causa dessa visita.
Fred amassou o chapéu entre as mãos nervosas:
- Mas por que, Pascoalina? Eu sei da visita do velho, mas não tenho culpa, ela sabe que não tenho culpa. Ela sabe que nos queremos muito, apesar de tudo. Eu não
fiz nada, nada.
Pascoalina colocou uma das mãos sobre o ombro do rapaz:
- Escute aqui, vamos sentar primeiro. Venha cá no sofá; dá aqui o seu chapéu. Deixe primeiro ver um pouco de vinho para tomarmos, espere um instante.
- Foi lá para dentro e ordenou a Ângela que ficasse no portão esperando; se visse dona Gigina, avisasse-a da visita e lhe dissesse que esperasse em qualquer lugar;
e Pascoalina fez um gesto mostrando a esquina:
- Olhe, ali na venda do seu Manoel.
Tirou dois cálices do armário e uma garrafa de Moscatel; levou para a sala e encontrou Fred com a cabeça entre as mãos, em atitude de desalento:
- Não fique assim, Fred. Tudo há de dar certo, tenho uma secreta esperança. Beba isso.
Beberam dois cálices cada um; então ele tirou a carta de Gina de dentro do bolso do paletó; alisou-a um pouco, pois estava todo amarfanhada e deu a Pascoalina para
que a lesse. Ela leu-a fingindo muita atenção; Fred tirou um cigarro da carteira e ofereceu-lhe outro. Perguntou:
- Então?
Pascoalina sacudiu a cabeça, desanimada; tirou uma baforada e olhou Fred; o vinho havia-lhe posto manchas rosadas na pele, mas os olhos estavam febris, encovados.
Tornou a perguntar:
- Então, Pascoalina? Que achas?
- Acho que devemos ter calma, Fred. Havemos de encontrá-la, ou ela mesma há de se cansar e voltar. Ela sempre teve a cabeça dura, duríssima, é verdade, mas ela há
de raciocinar e ter juízo outra vez.
A fisionomia dele animou-se a essas palavras; contou:
- Eu estava de viagem e não sabia de nada. O velho me fez uma traição indo lá na minha ausência. Quando volto, encontro tudo vazio, a besta daquela criada com uma
carta na mão. Diz que não sabia nada, nem para onde Gigina foi, nem o que ela disse, nada. É possível isso? Só diz que Gigina chamou um táxi, pôs as malas dentro
e mandou tocar, mas a idiota não sabe para onde, não ouviu nada. Ela embarcou com certeza e, pelo horário, foi para o Rio. Ninguém me tira da cabeça que ela embarcou
no rápido das sete horas para o Rio. Enfim deixou S. Paulo, porque se ela ficasse aqui, eu descobriria.
Pascoalina apertou os lábios.
- Seu pai fez muito mal, Fred. Estragou tudo. Não precisava ir ofendê-la daquela forma; foi isso que doeu.
Gigina é sensível, eu a conheço bem, conheço-a há quase vinte anos.
Ele ficou de pé e falou nervosamente:
- Mas como eu poderia adivinhar que o velho ia fazer isso? Tive que deixar S. Paulo por uns dias, mas quantas vezes viajei e encontrei tudo bem na volta! Quase morri,
Pascoalina; depois de tantos anos... Há duas noites que não durmo. Você sabe, o velho ficou danado porque eu falei em casamento; antes casasse na surdina, ninguém
falaria.
Agora... Não tenho culpa se o velho fez isso, não tenho culpa.
Passeou pela sala de um lado para outro, as mãos nos bolsos:
- O que me aconselha? Procurá-la no Rio de Janeiro?
Pascoalina hesitou um momento:
- Ela me telefonou que ia para o Rio, mas... como hei de saber? Teria mesmo seguido para lá?
Fred estava debruçado ao lado dela, todo trêmulo:
- Que disse ela? Repita tudo, Pascoalina, por favor.
Ela disse que voltaria?
Pascoalina começou a falar pensando que se Fred subisse a escada e entrasse na segunda porta à direita, encontraria os chinelinhos verdes de Gigina ao lado da cama,
o roupão verde claro dependurado atrás da porta, as roupas, o pente, os perfumes, os grampos, o cheiro de Gigina...
- Tome outro cálice de vinho.
- Não. Obrigado.
- Ora, Fred, bem que precisamos disto. Beba.
Tomaram novamente; ele então começou a falar sobre o amor que tinha por Gina; não poderia viver sem ela, era capaz de se matar se não a encontrasse. Pascoalina apertou-lhe
um braço.
- Não diga isso, por favor. Ele levantou-se num ímpeto:
- Sou capaz de me matar, fazer uma loucura, afirmo-te, Pascoalina. Juro. Quase enlouqueço quando me lembro que ela foi embora.
Sentou-se outra vez no sofá ao lado dela e inclinando a cabeça para a frente, escondeu o rosto entre as mãos e chorou. Os olhos de Pascoalina encheram-se de lágrimas;
falou com a voz traspassada de ternura:
- Tenha coragem, Fred. Peço a você que tenha coragem. Como eu sinto isso que está acontecendo; eu que sou tão amiga de vocês dois que acompanho tudo desde o princípio.
Lembra-se, Fred, quando chegaram da Itália? Fui visitá-la... E Gigina me disse ao ouvido: Esse é pra toda a vida, Pascoela. Esse era você; lembro-me tão bem.
Abraçou-o pelos ombros e chorou com ele; ficaram assim uns instantes; depois ela afastou-se e deu-lhe um tapinha no braço :
- Também com essa oposição da família, é triste mesmo, Seu pai, sua mãe, suas irmãs, seu irmão, sua noiva. Tudo isso mortificou-a.
Ele levantou a cabeça, indignado; havia sinais de lágrimas em suas faces:
- Mentira. Não sou noivo; mentira do velho.
Ficaram um instante em silêncio; de repente ele encarou Pascoalina:
- Como é que você sabe tudo isso? Estiveram juntas?
Pascoalina sentiu-se corar; gaguejou:
- Pelo telefone, Fred. Tudo foi pelo telefone, antes de Gigina sumir. Nem a vi mais...
- Contou tudo isso por telefone?
Levantou-se para jogar fora o cigarro. Ela continuou:
- Levou uma boa meia hora falando comigo; contou tudo, tudo. Depois não soube mais nada, disse que ia embarcar naquela noite...
- Noite? Ela não foi pelo rápido? Onde passaria o dia?
- Não. Disse que ia embarcar naquele dia; me enganei. Com certeza foi naquela hora mesmo.
- Falou com você de manhã?
- Falou.
- Para onde será que ela foi? Não deixou um sinal?
- Nada. Disse apenas que me escreveria.
Ele recomeçou a passear pela sala:
- Se ela mandar o endereço ou se você tiver alguma notícia dela, me avisará?
- Naturalmente. Você será a primeira pessoa a saber.
- Então eu já vou; embarco hoje à noite para o Rio. Vou contratar uma agência para me auxiliar a encontrá-la; hei de encontrá-la, custe o que custar. Tem aí algum
retratinho de Gigina?
Parecia mais calmo, na certeza de encontrá-la. Pascoalina pensou durante algum tempo e foi lá para dentro:
- Creio que tenho um, espere um pouco.
Voltou com um instantâneo minúsculo onde parecia o rosto das duas: ela e Gina, risonhas, os braços entrelaçados.
Fred aproximou-se da janela e fixou o instantâneo durante algum tempo:
- Está pequeno, mas serve. Posso levar?
Colocou o retrato cuidadosamente na carteira; estendeu a mão a Pascoalina:
- Obrigado por tudo e até breve.
- Até breve e seja feliz.
Ele desceu a escada do jardim e antes de entrar no automóvel, fez um gesto amistoso. Ela gritou-lhe:
- Coragem!
Ângela passeava na calçada de um lado a outro; ele debruçou-se na janelinha do carro:
- Quer aproveitar? Vou à cidade.
- Obrigada. Estou esperando uma amiga.
O carro partiu.
Em vez de sair, Pascoalina esperou pela amiga. Quinze minutos depois, Gina entrou com as feições animadas, mostrando o dinheiro que recebera com a venda do anel.
Pascoalina contou tudo; sentia-se revoltada com a calma da amiga:
- Isso não pode continuar assim, Gigina. Tenho dó do rapaz; dá pena vê-lo. Mordi os punhos de raiva de mim mesma, por enganá-lo desse jeito.
- Então você vai morder os punhos a vida toda porque ele nunca mais me verá.
Levantou a voz:
- Que quer que eu faça? Como continuar a viver com ele? Com esse ódio sobre minha cabeça? E viver assim até quando? Um dia ele me abandona e casa-se com alguma moça...
E eu fico sozinha. Não. Preciso refazer minha vida desde já. Recomeçar de novo. Será para a felicidade dele, eu te juro, Pascoalina. Há muita distância entre nós
dois. Pascoalina continuava indignada :
- Eu mentindo desse jeito... Você podendo entrar de um momento para outro... Ele chorando nesse sofá. É insuportável a situação... Você nessa calma animal.
- Eu vou então para uma pensão onde ninguém me conheça. Não se incomode tanto assim.
- Não seja burra. Agora vem com a mania de escrever a máquina. Fique aí onde está, não estou mandando-a embora, faça como entender, mas passei apuros hoje por sua
causa. Oh! Se passei.
Acendeu outro cigarro e continuou:
- Por que esses ares de donzela ofendida? Se Fred aparecer aqui outra vez, não sei o que fazer. Francamente...
Gina saiu da sala resolvida a mudar-se. Por intermédio da amiga, mandou o dinheiro do anel para a mãe e dois dias depois deixou a casa de Pascoalina; foi para uma
pensão modesta no Largo do Cambucy. Contou que viera do interior para estudar e alugou um quarto pequeno que dava para uma área escura. Não deixou endereço a Pascoalina.
Vendeu seus vestidos e casacos mais finos; ficou com pouca roupa e algumas jóias que trazia embrulhadas dentro da sua bolsa de couro preto.
Um mês depois, telefonou para a amiga; Pascoalina estava furiosa. Fred ia lá todas as semanas atrás de noticias; fora ao Rio duas vezes, estivera duas vezes em Santos,
procurando. Dona Julica estava desesperada, sem dinheiro; só perguntava: "Para onde teria ido aquela maluca?" Estava devendo no empório, açougue, médico. A menina
estivera doente e não haviam pago nem farmácia, nem médico. O Osório também aparecera em casa de Pascoalina; contou que estava devendo mais de um conto de réis,
pois Gina cessara de repente de dar a mesada e ele ficara atrapalhado. Como viver assim? Pascoalina implorou:
- Você precisa aparecer, Gigina. Até quando vai viver assim como um bicho do mato? Precisa aparecer, viver.
Isso não é vida.
Gina prometeu tomar providências e desligou o telefone; foi para o quartinho, deitou-se e ficou pensando. Que fazer?
Tirou os óculos e enxugou os olhos. Estava adiantada em datilografia, mas ainda não poderia procurar emprego; e na tarde anterior, haviam-lhe dito que o máximo que
poderia ganhar era 100$00. Talvez 120. Como sustentar toda aquela gente que dependia dela, com tão pouco dinheiro? Lembrou-se do seu irmão Pepino e das misérias
que ele passara no circo. Uma vez Pepino contou a história de um cavalo que pegou fogo. "O circo foi para Ribeirão Preto fazer uma temporada. Na noite da estréia,
estava uma enchente danada, o filho do diretor ia aparecer montado no cavalo e tinha de atravessar um circulo de fogo. No momento em que ia entrar no picadeiro a
iluminação era a querosene) o cavalo bateu num lampião e o querosene esparramou na garupa do animal e nas roupas do moço. Então, quando os dois entraram, o povo
tremeu de entusiasmo, o cavalo era que nem tocha correndo; pulou e passou pelo círculo mais de uma vez, depois foi lá para dentro e o diretor jogou a casaca em cima
dele para apagar o fogo. O moço ficou doente, mas sarou; o cavalo morreu das queimaduras. O povo não gostou do circo porque queria o cavalo de fogo todas as noites
e o cavalo não apareceu mais. O povo gritava: "Queremos o cavalo de fogo! Queremos o cavalo de fogo!" A temporada fracassou e Pepino voltou mais pobre ainda. Gina
pensou: Coitado! Uma outra vez, (Pepino contava fazendo muitos gestos) havia dois palhaços irmãos que trabalhavam juntos todas as noites. E uma noite, oh! uma noite,
o circo estava cheio assim e todo o mundo queria ouvir as piadas dos palhaços. Eles eram tão engraçados... Então veio o primeiro e começou a fazer graça. Sempre
era assim; no momento em que dizia esta frase: "Tenho um irmão muito burro chamado Zebedeu", entrava o outro irmão e diziam coisas estupendas, um para o outro. Pois
bem, nessa noite de que estou falando, oh! nessa noite, o primeiro entrou e falou, falou, falou, depois disse a frase que era a senha para o outro entrar. Nada.
O outro não apareceu. Ele olhou para os lados e viu o diretor fazer sinal, os empregados fazerem sinal, os colegas fazerem sinal para ele parar de falar, mas ele
não entendeu e não parou. Pensou que o irmão estava pregando uma peça e continuou a contar piadas sozinho e a dizer a frase: "Meu irmão Zebedeu é muito burro..."
Enfim ele teve uma saída: "Vou ver o que aconteceu com o burro do Zebedeu". Não te digo nada. Que noite! Encontrou o irmão morto, estendido no camarim. No momento
em que ele estava pronto para entrar em cena, com a cara toda pintada, bumba! - caiu com um colapso. Morto. O mais engraçado você não sabe. O primeiro pintou a cara
com a boca até aqui para o povo rir e agora estava chorando: "Meu irmão! Meu irmão está morto, meu Deus!" Mas a cara estava rindo, coitado! E todos tinham vontade
de rir quando olhavam para a cara dele. Depois ele limpou a pintura do rosto do morto, sempre chorando com aquela boca que ria, de uma orelha a outra. Oh! Palhaço
engraçado! Até chorando ele fazia rir!"
De repente, Gina lembrou: "E se eu fosse cantar? Poderia ganhar dinheiro cantando. Não. Minha voz ainda não está firme. E depois cantar aonde? Nalgum teatro ordinário?
Se Pepino fosse vivo, talvez me pudesse auxiliar."
As manhãs de segunda feira, eram animadas na pensão; todos contavam onde haviam estado na véspera, o que tinham visto, os passeios feitos. Havia a contramestra de
uma casa de modas, cuja família residia no interior; havia o professor de matemática, de óculos, sempre muito, sério; havia o caixeiro-viajante, fazedor de graça.
Tomavam café na mesma mesinha todas as manhãs, servidos por uma negrinha que a contramestra chamava em voz baixa de "fedorenta." O professor de matemática gostava
de conversar com Gina; sabia que estava sozinha em S. Paulo e sua família residia no interior e que Gina procuraria emprego depois de tirar diploma na escola de
datilografia. Passava o lenço nas lentes dos óculos e falava pausadamente:
- Olhe, dona Georgina, talvez eu arranje o emprego de que lhe falei outro dia. Ontem estive com a pessoa indicada.
Não gostava de citar nomes, nunca. Gina ouvia-o dizer: "Fulano", ou "pessoa indicada"; às vezes quando estava muito animado, dizia "beltrano".
Gina levantava a cabeça da xícara do café:
- Muito obrigada, seu Rezende. Essa pessoa vai precisar mesmo de datilógrafa?
- Vai. Penso que é negocio arranjado.
A contramestra fazia uma careta e dizia baixinho:
- A manteiga está ruim hoje outra vez. Intragável.
Nem acredito quando minha família mudar para S. Paulo.
Nem acredito mesmo.
O caixeiro-viajante piscava para Gina:
- Então terá manteiga sem ser rançosa, hein, dona Semiramis? E se fossemos ser pensionistas de dona Semiramis?
- Quem sabe. Nem sei como agüento isto. Reclamava sempre. O professor de matemática voltava ao assunto; queria se fazer valer:
- Não foi muito fácil convencê-lo, dona Georgina. Ele tem um pedido antes do meu.
- Quem, professor?
- A pessoa indicada, a de que lhe falei.
- Ah! Sim. Será que o senhor arranja assim mesmo?
- Quase certeza; em todo o caso, farei o possível. Passou um bom dia ontem, dona Georgina?
- Passei sim, senhor. Visitei umas amigas na Penha; moram numa chácara muito bonita. A mais velha é casada, e tem uma filhinha encantadora.
Tomava um grande, gole de café; tinha vergonha de contar que passara o dia sentada num banco da Praça de República. O viajante perguntava:
- E seu Teodoro vai mesmo nos deixar? Ouvi dizer ontem..."
A contramestre sabia tudo:
- Vai, sim. Ele mesmo me contou na semana passada; a mulher vem de Barretos morar aqui.
O viajante suspirava:
- Mais um que deixa esta linda mansão. Gina dizia:
- E eu que pensava que ele era solteiro.
Dona Semiramis corava um pouquinho; havia namorado seu Teodoro durante os primeiros tempos, pois ele não contara que era casado. Só contou quando a casa estava alugada
para esperar a família, uma casa na Barra Funda.
O professor sorria:
- Casado e com uma turma de filhos.
O caixeiro-viajante replicava:
- Turma não, seu Rezende. Apenas quatro. Pode me passar o pão, dona Georgina? Que bom quando estivermos morando em casa de dona Semiramis.
- Em vésperas do quinto.
- É?
- Ele mesmo me contou. Por que acha que deve ser bom morar em minha casa?
- Ainda pergunta? Ah! dona Semiramis, teremos boa manteiga e nada de "fedorentas", tenho certeza...
Riam. O professor de matemática tirava o relógio grande do bolso do colete:
- Sabe as horas, minha gente? Vinte para as oito; tenho uma aula de geometria plana às oito em ponto.
Todos levantavam-se, apressados. Gina também saía:
- Então, até logo.
- Até logo. Quando voltava, subia para o quartinho frio, onde não havia sol no inverno. Tirava o chapéu e os óculos e ficava pensando. Estaria certa? Ficaria bem
abandonar assim a família?
Veio a primavera. Os jardins ficaram floridos e o ar era bom de se respirar. Quando ela abria a veneziana quebrada, bem cedo, sentia um cheiro de flores que vinha
dos jardins vizinhos.
Depois o verão. Nessa época, o quartinho ficava uma fornalha; Gina pensava: "Por que não é o contrário, meu Deus?" Acordava banhada em suor durante a noite e às
vezes não dormia mais; sentia de manhã o cheiro de repolho cozido que vinha dos quintais vizinhos.
Foi procurar o emprego indicado pelo professor de matemática, mas não foi aceita, não tinha prática. Seu Rezende ficou tristonho e prometeu procurar um outro. Gina
continuou a praticar mais de duas horas por dia numa maquina que seu Rezende arranjou de um amigo. Telefonou novamente para Pascoalina num dia muito quente de Janeiro.
A amiga disse-lhe nomes feios pelo telefone, perguntou até quando a loucura continuaria; o marido de Zelinda fora operado no Instituto Paulista, dona Julica estava
desesperada; a família devia "a raiz dos cabelos". Um horror. Por que não aparecia? Onde estava? Fred estava viajando atrás dela, procurando, procurando sempre.
Nesse mesmo dia, vendeu as últimas jóias e mandou o dinheiro para a família e para Osório; prometeu procurar Pascoalina muito breve. Voltou desanimada para o quartinho;
começou então a procurar emprego. Um escritório precisava de datilógrafas; foi lá e ofereceram-lhe 100$00; num outro o homem que a recebeu riu-se junto ao rosto
dela. Perguntou-lhe porque vivia assim procurando trabalho, se podia viver de outra forma, mais fácil, mais alegre, com aqueles olhos... Lembrou-se do tempo em que
vendia pó de pudim.
Veio o outono. Com os sapatos velhos e gastos, Gina pisou sobre as folhas amarelas dos plátanos; viu as árvores perderem as folhas e o vento arrastá-las para lugares
desconhecidos. Sentou-se no banco das praças publicas e passou horas inteiras pensando. Conheceu velhos sonolentos e filósofos e conversou com eles, sentada no mesmo
banco; uns tinham cabelos longos sobre a gola do paletó, outros usavam botinas de elástico, as meias dobradas sobre elas e enquanto conversavam balançavam a perna
mostrando um pedaço de carne velha, encardida e peluda, entre as meias e as calças.
Passavam amas solenes empurrando carrinhos de bebês rosados; mulheres chorosas diziam em voz baixa que ainda não haviam almoçado e pediam auxílio. Quase ninguém
dava; a maioria era mais pobre que elas. Rapazes desempregados e barbudos sentavam-se nas pontas dos bancos e liam jornais na seção de "Precisa-se". Alguns levantavam-se
cheios de pressa e iam embora decorando mentalmente o endereço ou dobrando o jornal sob o braço. Gina, o chapéu sobre os olhos, de óculos, o rosto sem pintura, pobremente
vestida, dava impressão de ter mais idade. Sacudia a cabeça ouvindo os velhos falarem sobre a guerra que aniquilara o mundo. Um deles contava todas as vezes a mesma
coisa; um belga que fizera a guerra e viera ao Brasil, vira um obus arrancar a cabeça de um alemão na batalha do Marne. A cabeça voara pelos ares, e o velho fazia
um gesto com a mão como se cortasse uma planta, e o corpo do homem ainda ficara de pé balançando pra lá e pra cá um bom minuto, até cair também.
Ela sacudia a cabeça horrorizada e o velho ria diante do horror de Gina, um riso idiota, a boca murcha e enrugada. Terminava: "A guerra é a guerra."
Outro contava as desavenças familiares; com uma perna sobre a outra, balançando sem parar, falava sobre os filhos, a mulher, a nora, o genro, as brigas, as discussões,
a pobreza. Gina tornava a sacudir a cabeça penalizada e indecisa sobre o que diria àquele pobre velho. Todos eram sujos e caspentos, tinham as roupas manchadas,
as mãos trêmulas e encarquilhadas. Olhavam-na com simpatia e como ela era silenciosa e gostava de ouvir contavam suas vidas e suas misérias, depois cuspiam longe,
um cuspo amarelo e cheio de tabaco e balançavam as pernas magras, olhando para a frente como quem não vê.
Um dia, quando ela voltava para a pensão e subia a escada, o professor de matemática abriu a porta do quarto e perguntou solícito:
- Nada ainda, dona Georgina?
- Nada, professor. Mas hoje tive uma esperança; uma das minhas amigas, uma que mora na Penha, o senhor sabe, prometeu arranjar com um cunhado, irmão do marido. Vim
agora mesmo de lá; vamos ver, quem sabe agora tenho sorte. Depois recebi carta de mamãe dizendo que não devo me apressar, tem tempo. Coitada de mamãe! Sempre pensando
nos filhos, sempre se sacrificando por nós.
- As mães são assim mesmo, dona Georgina; são anjos que zelam por nós.
Ela entrava, fechava a porta e deitava-se de costas, pensando. O que fazer? Não tinha mais jóias para vender, não tinha mais nada. Poderia resistir muito tempo ainda?
E depois aquela solidão, aquela solidão que pesava, como uma rocha. Ouviu a chuva cair na área e sentiu o cheiro da terra molhada que vinha de longe; depois o primeiro
arrepio, o frio ia voltar. Suspirou.
No começo do inverno, resolveu procurar Pascoalina; foi uma tarde à casa da amiga, depois de ter telefonado. Sentia-se como uma pessoa prestes a desmaiar, a morrer.
Pascoalina recebeu com uma risada irônica e um piscar de olhos:
- Ah! Então está arrependida, hein? Que tal a honestidade, pombinha? Pesa muito? Fred vai exultar, me telefona de dois em dois dias.
Gina revoltou-se e respondeu que não viera para isso; viera apenas se despedir porque ia trabalhar em Santos, arranjara afinal um emprego. Disse a primeira idéia
que lhe veio à cabeça, repentinamente... Pascoalina ficou de boca aberta, um pouco atarantada; Gina deixou a amiga antes que ela continuasse a falar, mas no momento
em que fechava o portão, ouviu Pascoalina gritar, zangada:
- Louca! Idiota! Ao menos não deixe tua família na miséria! Desnaturada!
Gina voltou para o quartinho da pensão. Era um sábado e os pensionistas estavam alvoroçados; o domingo prometia ser belíssimo e todos contavam seus próprios planos.
O professor de matemática iria a Santo Amaro à casa de uma família amiga; a contramestra tomaria parte num piquenique na Cantareira; o caixeiro-viajante almoçaria
na chácara de um amigo e sentia a boca cheia d'água quando descrevia o churrasco que iria saborear. Todos saíram. Olharam para Gina e perguntaram sobre seus planos;
resolutamente ela sorriu contando que iria passar o dia em Santos com umas primas. Foi um alvoroço.
- Todos vão sair.. Que domingo esplêndido vai ser esse. Dona Georgina é quem vai aproveitar mais!
Na madrugada seguinte, Gina levantou-se antes dos outros e deixou a pensão. Comprou uma passagem de segunda classe para Santos e sentou-se num banco da estação esperando
o trem das seis horas. Fez a viagem sem falar com ninguém; tomou um café no alto da Serra. Em Santos, foi de bonde para a praia; durante duas horas esteve sentada
num banco olhando o mar. Procurou conversar com umas moças que corriam e brincavam na frente dela. Riu e disse com timidez:
- O dia está tão bonito. A água está muito fria?
- Não, respondeu uma. das moças. Está muito agradável. Por que não toma banho?
- Não tenho maiô. Vim só passear; adoro o mar. Sorriu:
- São daqui mesmo de Santos?
- Não. Viemos hoje de S. Paulo só para passar o dia.
Joga a bola pra cá, Dina.
E a moça correu atrás das companheiras numa grande algazarra. Gina comprou pão e salame e comeu sentada na areia, sozinha. Como suportar a solidão. Nem podia compreender.
Foi para S. Vicente e lá, sentada numa pedra, recebendo nas faces o vento morno do mar, pensou no que iria fazer. Não encontrava empregos bons. Como auxiliar a mãe,
a irmã, Osório, todos? Não sabia. Voltou para a estação; ainda era cedo, mas nada havia a fazer. Comprou uma revista e resolveu embarcar; chegou a S. Paulo e teve
vergonha de voltar logo para a pensão. Ficou vagando pelo jardim da Luz até anoitecer. Quando subiu para seu quartinho, fingiu que estava muito cansada e deitou-se
sem querer tomar lanche. Depois que já estava deitada e ouviu as vozes dos que falavam e riam lá em baixo, na sala de jantar, lembrou-se de que ainda estava de óculos;
tirou-os, cobriu a cabeça com o lençol e chorou durante muito tempo.
Na manhã seguinte, desceu risonha, a fisionomia feliz. A contramestra foi a primeira a fazer perguntas à mesa do café:
- Então? Que tal o banho de mar?
- Esplêndido. Muito agradável; a água nem estava fria... Uma gostosura... Jogamos bola na praia... O dia estava uma beleza.
O professor de matemática tirou os óculos para limpá-los no guardanapo; serviu-se de café:
- Dona Semiramis pode me passar o pão? E suas primas, dona Georgina? Residem em Santos?
- Sim senhor. Sabe a segunda rua logo depois do Gonzaga? Uma rua estreitinha....
Coçou a testa e continuou:
- Nunca me lembro do nome daquela rua, parece incrível. E tenho ido lá tantas vezes... pois é lá que moram minhas primas, seu Rezende. Uma casa no fim da rua, bem
lá no fim.
O viajante perguntou com a boca cheia:
- Muita gente na praia? Hum! O pão é o mesmo que sola de sapato de vendeiro...
Gina riu e respondeu:
- A praia estava cheinha, gente por todos os lados; já estou com saudades do dia de ontem. Por que sapato de vendeiro?
- Porque tem gosto de tudo, menos de pão. Pois o churrasco estava uma delicia; umas vinte pessoas. Comemos na chácara debaixo das árvores. Esplêndido.
Gina mentiu:
- E eu comi um cuscuz de camarão; estava delicioso. Nunca vi fazer cuscuz tão bem como minha tia. Ela é perita.
Dona Semiramis perguntou passando manteiga no pão:
- É irmã de sua mãe?
- Não. É irmã de minha avó; minha tia avó. A manteiga hoje não está tão ruim, não acham?
Dona Semiramis que era maldosa e sarcástica porque nada dava certo na sua vida observou:
- Você veio muito cedo, Georgina. Por que não aproveitou mais e não veio no último trem?
Gina riu:
- Pois disseram que não havia mais trens para passageiros, só para soldados. Então vim no das cinco, mas senti bem. Fez o cálculo rapidamente tentando lembrar a
que horas entrara na pensão. O professor interessou-se sobre o trem de soldados.
- Do exército?
- Voluntários. Penso que foram fazer manobras; a estação estava repleta.
O viajante queria também saber:
- E para onde foram, dona Georgina?
- Isto não sei, ninguém sabia. Uma das primas que me acompanhou à estação, bem que perguntou, mas nada disseram.
O professor tirou o relógio do bolso:
- Quero lhe lembrar, dona Georgina, que o emprego de que lhe falei, o daquele beltrano importante, talvez se resolva por estes dias.
- Oh! Seu Rezende, muito obrigada.
- E devo avisar que são oito menos vinte. Às oito em ponto tenho uma aula de geometria no espaço.
Levantaram-se. Gina dizendo-se um pouco atrasada, despediu-se e saiu quase correndo. Na cidade, começou a andar devagar, pensando onde poderia ir. Não freqüentava
mais as aulas de datilografia porque não tinha dinheiro para pagar; e já estava começando a dever o quarto da pensão. Passou pelo largo Santa Efigenia e resolveu
entrar na igreja; vozes cantavam acompanhadas pelo órgão; era uma música conhecida mas não pôde lembrar-se no momento. Sentou-se no último banco e ficou ouvindo,
embevecida. Pensou: "Uma religião que tem músicas tão bonitas para acompanhá-la, deve ser uma boa religião."
Quando toda a gente deixou a igreja e apenas o sacristão ficou apagando as velas, levantou-se também e saiu. Nove horas ainda. Lembrou-se de visitar o pai no Cemitério
do Araçá; já várias vezes visitara o professor Pasquale. Tomou o bonde para lá, aproximou-se do túmulo e começou a arrancar ervas más dentre as plantas que ela mesma
plantara. O sol estava quente, e apesar de ser mês de Junho, fazia calor. Sentou-se depois ao lado do túmulo e ficou durante algumas horas esperando o tempo passar.
Voltou para a pensão à hora do almoço fingindo-se cansada de tanto andar à procura de emprego. Dizia que nas horas vagas vendia apólices para uma Companhia cujo
presidente era amigo de sua família.
Não suportou mais tempo aquela vida; sentiu-se desesperar. No fim da semana, apresentou-se diante de Pascoalina, cansada, triste e mais pobre ainda. Miserável mesmo.
Soube que Fred tivera pneumonia e saíra de S. Paulo; fora para uma fazenda.
Declarou à Pascoalina que iria com ela naquela noite à cidade; desta vez a amiga não riu; apenas comentou:
- Justamente agora que Fred está doente. Coitado. Que azar! E depois que sarar vai de mudança para o Rio porque pensa que você está escondida por lá. Pobre rapaz!
Festejaram ruidosamente a volta de Gigina à vida boêmia, da cidade; durante alguns meses ela viveu essa vida, até que um dia apareceu um novo caminho diante dela;
e esse foi o último, o definitivo, o melhor de todos.















TERCEIRA PARTE

XII

Foi numa tarde de Setembro, em 1930, que Gina conheceu Dr. Fernando. Viram-se pela primeira vez num lugar alegre e barulhento, entre pessoas que falavam ruidosamente
e riam muito. Ouvia-se o tinir de copos, sons de música, pedidos que os garçons transmitiam em voz alta por uma janelinha da parede:
- Dois cafés com creme!
- Um conhaque!
- Uma media com pão quente, um vinho do porto!
- Três cafés simples!
Os dois eram os únicos que falavam pouco e observavam a alegria dos outros e o movimento de vai-vem de toda aquela gente. Foi isso que os aproximou no primeiro instante.
Conversaram ligeiramente sobre as pessoas que entravam, sobre os que bebiam demais, sobre a música que ouviam; ele, então, convidou-a para irem a um lugar silencioso
onde pudessem estar à vontade. Sentaram-se diante da última mesa de um café da Avenida S. João, um café onde as mesinhas eram cobertas de pano xadrez, não havia
música, nem ruído de vozes. Conversaram. Os últimos fregueses já haviam se retirado e os dois ainda conversavam, esquecidos de tudo. Garçons bocejavam encostados
no balcão, os guardanapos sob os braços, esperando que os retardatários fossem embora. O dono do café, de pé perto da porta, esperava que os ponteiros marcassem
uma hora para descer a porta de ferro; outros para adiantarem o serviço, colocavam as cadeiras sobre as mesas já nuas, fazendo um barulhão. E eles conversavam, admirados
por terem encontrado reciprocamente alguém com as mesmas idéias que eles próprios. No dia seguinte, encontraram-se novamente no mesmo lugar, depois no outro dia
e nos outros também. Ambos tinham a impressão de que eram infelizes, que eram como que abandonados a si mesmos e não tivessem ninguém por eles. Sentiam-se sozinhos.
Foi então que Gina se uniu a Dr. Fernando, peia simpatia e pelo desgosto que a oprimia; ambos procuraram nesse encontro, esquecer suas próprias vicissitudes. Era
um homem alto e moreno, quinze anos mais velho do que ela. Advogado, nunca exercera a profissão; possuía, entre S. Paulo e Paraná, uma grande fazenda de criação.
Fora infeliz no casamento e estava separado da esposa há algum tempo; tinha um casal de filhos que vivia com ela no Rio e o visitava uma vez por ano. Passava a maior
parte do tempo na fazenda; algumas vezes ia a S. Paulo, ou ao Rio a negócios ou para ver a família. Achava a vida vazia e sem interesse. Quando conheceu Gina, contou
tudo de repente, como se aquela fosse a companheira que seu coração esperara tantos anos; desfiou diante dela as desilusões e incertezas, o que nunca fizera antes,
nem ao seu maior amigo.
Convidou-a então para irem juntos à Argentina; precisava visitar fazendas de criação, comprar algum gado e estudar assuntos referentes ao negócio. E pela primeira
vez na vida, Gina sentiu paz, uma paz serena, leve, profunda, inigualável.
Sentiu que o amava pela confiança que ele depositava nela e ele amou-a pelo que ela era: boa, delicada, gentil, carinhosa. Contou-lhe tudo o que havia passado e
sofrido, contou a história de Frederico, sem esconder detalhes.
Em Montevidéu, onde pretendiam passar dois meses, Gina teve uma surpresa inesperada: estava grávida. Foi então que Dr. Fernando propôs-lhe casamento. Ela aceitou.
Mandaram buscar os papéis; durante esse ínterim, ele teve que esperar uns meses por causa dos negócios; e foi nessa cidade que se casaram, numa tarde azul de Maio.
Gina chorou. Debruçada sobre o ombro de Dr. Fernando, chorou todas as lágrimas guardadas desde que havia se separado de Fred. Não chorou de tristeza, nem de saudade,
nem de arrependimento; foi um pranto calmo e feliz de alívio, de alegria, de felicidade. A partir daquele dia, seu caminho seria diferente, bem diferente dos que
havia palmilhado até então; era como um sonho, uma nuvem que pairava acima da compreensão, da incerteza, da realidade. Sentia uma segurança e um repouso que até
então desconhecera, tinha um companheiro que caminharia ao seu lado, ouviria suas queixas, enxugaria suas lágrimas. Com ele poderia contar de olhos fechados; não
era como Fred que, com toda sua expansão e impetuosidade, tinha entre ele e seu amor, a família a tradição, o nome, os preconceitos. Dr. Fernando era bom, sincero,
superior, compreensivo. E além de tudo, conhecia o mundo. Conhecia a vida de Gina contada por ela mesma; sabia que ela trazia os olhos a poeira dos caminhos que
havia trilhado, e sabia que cada caminho deixara vestígios. O caminho da miséria deixara a poeira escura e pegajosa das amarguras e da fome; o caminho da falsa riqueza
e do falso amor, deixara a poeira impalpável das humilhações e desilusões. Mas nada a havia contaminado; sobre os caminhos ásperos e cheios de pedras passara incólume.
Ele sabia que a criatura que nasce com o coração puro, terá sempre pureza no coração, mesmo que tenha caminhado sobre lama e mesmo que tenha nascido no pântano.
E aquela que nasce com o coração impuro, mesmo que tenha nascido num berço de ouro, e que os seus antepassados lhe tenham legado um nome honrado e carregado de brasões,
mesmo que tenha nome, fortuna e nascimento, será sempre impura porque a impureza está nos corações.
De Buenos Aires, Gina passou um telegrama para a mãe contando que se casara e dois meses depois chegou a S. Paulo com o marido.
Em 1934, Gina tinha dois filhos, Helena e Fernandinho. Criava-os com muita facilidade, na fazenda Pinheiral. Ia a S. Paulo apenas uma vez por ano; passava uns dias
comprando roupas e para isso trazia uma lista grande; visitava a mãe e a irmã, ia a teatros e concertos, conversava com a velha amiga Pascoalina e embarcava de novo
para Pinheiral, levando pacotes de roupas, brinquedos para os filhos, presentes para o marido e os empregados. Mais de uma vez, levara a mãe consigo para passar
uma temporada na fazenda, mas dona Julica parecia não gostar muito e por um pretexto qualquer, voltava a S. Paulo. Queixava-se da viagem muito longa, estranhava
o silêncio da fazenda apenas cortado pelos mugidos dos bois, dizia que isso lhe dava insônia, queixava-se de tudo. Gina nada dizia, mas sabia que a mãe não se demorava
lá porque só gostava de Zelinda, a filha mais velha. Desde menina achara estranha aquela preferência; agora compreendia-a ainda menos, pois, para ela, seus filhos
eram iguais e não saberia dizer, se alguém perguntasse, se amava Helena mais que Fernandinho ou ao contrário. Eram seus filhos e ambos igualmente amados.
Procurava ser boa para os enteados; o menino, Eduardo, estava já com dezesseis anos e a menina com quatorze; todos os anos, iam à fazenda, nas férias de Dezembro.
Gina saía a cavalo com eles, aconselhava-os nos estudos, davam juntos longos passeios a pé. Raramente ela ia à cidade mais próxima a Pinheiral, onde Dr. Fernando
tinha amigos, e quando ia fazer compras ou dar um passeio hospedava-se em casa do Juiz de Direito ou na do vigário, padre Ernesto, muito amigo do marido.
As principais famílias da cidade discutiam às vezes para saber quem hospedaria dona Georgina; sempre dona Sinhá, a senhora do Juiz ou o padre Ernesto saiam vencedores,
pois tinham casas maiores e mais confortáveis. Dona Sinhá recebia Gina com sorrisos amáveis:
- Dona Georgina, temos aqui um bolo que fiz, especialmente para a senhora. Vamos primeiro tirar o chapéu...
Os anos passam para todos. Vão levando dentro de si as alegrias, os ódios, as desconfianças, os dissabores. E com eles, também o brilho da mocidade. A idade madura
vem chegando devagar, com passos lentos, mas inexoráveis. Para Gina também eles passaram; já estava com mais de trinta anos e parecia ter vivido uma eternidade;
o passado ficara para trás e estava tão distante que ela fazia um esforço às vezes para lembrar-se da primeira parte da sua vida; era como se ela passasse rapidamente
por uma estrada larga e visse rios, lagos, montanhas, planícies ficarem para trás e desaparecerem dos seus olhos.
A serenidade que sentia às vezes era tão perfeita que a torturava; tinha impressão de que muito breve teria um fim. Sempre que via o marido apear-se à porta dá fazenda
e entrar em casa, cansado depois do trabalho, tinha ímpetos de atirar-se nos braços dele e apertá-lo contra si fortemente. Como o amava! Tudo o que se passara antes
e ela julgara amor, fora ilusão, apenas ilusão. Amor era o que sentia agora pelo marido, um amor que nada podia destruir, nem a separação, nem mesmo a morte, pois
se ele morresse antes dela continuaria a amá-lo nos seus filhos, até sua própria morte. Esse era o verdadeiro amor que seu coração ansiara sempre; não o amor falso
que depende dos preconceitos, do dinheiro, da família ou da sociedade. Mas um amor afeição que paira acima de tudo e tem a força poderosa das coisas irremediáveis.
Em fins de 1936, sua filha Helena estava com três anos de idade e Fernandinho com ano e meio.
Numa quente manhã de Novembro, havia grande agitação na fazenda Pinheiral. A mãe de Dr. Fernando, dona Belmira, chegara quinze dias antes para passar uma temporada
como fazia todos os anos.
Era uma senhora austera e reservada; quando conheceu Gina no Rio de Janeiro, depois do casamento, tratou-a muito bem e sentiu-se feliz por ver o filho casado. Mas
não compreendia por que Gina quase não falava na mãe e na irmã, nem no falecido pai. Para saber alguma coisa da família da nora, precisava arrancar-lhe as palavras.
Achava estranho, mas não comentava.
E um dia, quando dona Belmira estava lá, Gina recebeu uma carta de Zelinda anunciando sua chegada em Pinheiral com a mãe e Gracinha. Gina contrariou-se; quis telegrafar
à irmã que não viesse porque a sogra estava lá e a casa cheia, mas Dr. Fernando aconselhou-a a não telegrafar, pois sua mãe queria tanto conhecer a família de Gina,
agora apresentava-se a oportunidade. Gina suspirou:
- Mas, Fernando, Zelinda é tão irreverente, você não a conhece bem.
E mandou preparar os quartos; era a primeira vez que a irmã a visitava; queria que tivesse boa impressão.
Chegou afinal o dia. Desde cedo a casa estava em alvoroço. O trem em que viriam chegaria às duas horas da tarde. Logo depois do almoço, enquanto dona Belmira fazia
a sesta, Gina aprontou-se para acompanhar o marido à estação; levaria só Helena.
Tomaram o automóvel e seguiram; enquanto esperavam, conversavam com o chefe da estação e o telegrafista; o trem vinha com atraso de meia hora. Helena estava impaciente
e perguntava a todo o momento por vovó Julica; pensava nos presentes que receberia.
Quando o trem parou com um ranger de ferragens, como que cansado de viagem tão longa, Gina avistou logo o rosto da irmã espiando através de uma janelinha. Acenou
e sorriu para ela; as viajantes desceram com malas e pacotes entre exclamações e abraços. O chefe da estação e o telegrafista foram logo se chegando, querendo conhecer
a família de dona Georgina. Dr. Fernando apresentou-os ligeiramente e entraram no automóvel que seguiu para Pinheiral; vinham cansadas e suarentas, queixosas da
viagem. Zelinda estava com um vestido listado de amarelo e azul, um chapéu cor de gema de ovo; perguntou se na fazenda havia banheiros. Observando o vestido esquisito
da irmã, Gina respondeu que sim, havia todo o conforto. Zelinda olhou para Gina; achou-a gorda, a pele estragada e escura. Gina riu. Antes do automóvel entrar no
jardim da frente da casa, avistou a sogra, corretamente vestida de preto, os cabelos grisalhos lisos e presos atrás, pronta para receber as visitas, tendo Fernandinho
todo de branco ao seu lado.
Furtivamente, Gina olhou os cabelos da mãe; sob o chapéu, percebeu os cabelos cortados rentes, "á l'homme." Suspirou desanimada. Gracinha que já estava com quatorze
anos, perguntou, rindo:
- Aquele é Fernandinho? Veja, mamãe, como é engraçadinho.
Desceram do automóvel e Dr. Fernando fez as apresentações; foram logo subindo os degraus que davam para o terraço da frente. Dona Julica mostrou a Zelinda, as paineiras
que rodeavam o jardim; Zelinda, em vez de olhar, gritou para um dos cães policiais que havia se aproximado:
- Sai cachorro. Não gosto de cachorros.
Gina deu ordem para que o prendessem. Perguntou à sobrinha:
- E o Charuto? Que fim levou?
- O Charuto morreu de velho. Mamãe bem que gostava dele.
- Qual o que!
Dona Belmira, muito cerimoniosamente, perguntou sobre a viagem; Zelinda tirou logo o chapéu e sentou-se numa cadeira de lona, estendendo as pernas:
- Uf! Que calor!
E pegando o chapéu, atirou-o à filha que o apanhou no ar:
- Toma, Gracinha. Seus cabelos estavam oxigenados e suas unhas pareciam roxas; num relance, Gina observou tudo. Toda a pessoa da irmã era artificial e chocante;
tornou a falar sobre a gordura de Gina:
- Não dou muito tempo, você estará uma velha. Tenha cuidado.
Gina sorriu:
- Mas eu já sou uma velha. Não quer entrar para tomar banho? Vamos nos refrescar e depois teremos o lanche.
Entraram acompanhados das crianças; Gina fazia um esforço enorme para aparecer natural e não observar os modos vulgares da mãe e da irmã. Mostrou-lhe os quartos.
Num instante, Zelinda tirou toda a roupa e com um roupão sobre o corpo, dirigiu-se ao quarto de banho. Ouviu-se o ruído da água do chuveiro. Gina começou a auxiliar
a mãe e abrir a mala de mão e colocar os objetos sobre a mesa de toalete. De repente, falou em voz um pouco baixa:
- Mamãe, dona Belmira, minha sogra, vai perguntar à senhora muitas coisas referentes à nossa família. É muito curiosa por questões de nome. Eu contei que era dos
Camargo de Piracicaba... Hum! Que água de Colônia gostosa. É de Zelinda?
Dona Julica que estava escovando o vestido, voltou-se para Gina:
- É. Pois nós somos mesmo dos Camargo. O que a velha tem com isso?
- Nada, mamãe. Estou só prevenindo a senhora para quando ela perguntar. À toa...
Dona Julica falou sobre a viagem; estava cansadíssima; começou a pentear os cabelos queixando-se do pó. Fazia gestos bruscos. Zelinda voltou do banheiro, os cabelos
úmidos pregados no pescoço e na testa:
- O banho estava ótimo. Como é que conseguem estas coisas neste sertão?
- Não é tão sertão assim. Você pintou os cabelos?
- Estavam ficando muito brancos. Pintei para tapear. Onde está Gracinha? Que menina! Em vez de trocar um vestido leve ou tornar um banho, ficou já lá fora. Está
num assanhamento! Você sabe, ela nunca viu fazenda alguma...
Enquanto falava, passava o pente nos cabelos curtos. Dona Julica perguntou, tirando umas roupas da mala:
- Então a velha é aristocrata? O que ela tem com nossa vida?
Zelinda voltou-se, o pente no ar:
- Que velha? Essa aí? Como é mesmo o nome?
- Dona Belmira. Não. Eu estava só contando à ma mãe que ela vai querer saber sobre nossa família. Ela gosta dessas coisas. Eu já disse que somos da família Camargo,
mas ela vai perguntar à mamãe também.
Gina procurava dar um tom despreocupado às palavras. Gracinha entrou, encantada com o que vira:
- Vi um bezerrinho deste tamanho, mamãe. Helena disse que daqui a pouco eu vou ver ele mamar. Mamar na vaca.
A mãe gritou:
- Vá tomar banho primeiro. Anda. Onde queria que ele mamasse? Tem muito tempo para ver essas coisas.
Gracinha correu para o banheiro falando sempre:
- Podia mamar na mamadeira. E vou andar a cavalo também. Tem um cavalinho branco, Helena disse...
Fechou a porta do banheiro. Rapidamente, Zelinda começou a vestir-se; olhou a irmã:
- Olhe, Gigina vamos ensinar essa velha. Mamãe vai dizer que é sobrinha do Conde de Toledo e eu digo que sou casada com o visconde de Zécarão e o Zécarão é sobrinho-neto
da duquesa de Goiás.
Gina quis rir, mas ficou séria. Mudou de assunto:
- E falar nisso, como vai o Zeca?
- Vai indo bem. Sempre muito burro. Fez uma pausa:
- E seu marido? Que tal?
Gina já estava arrependida de ter facilitado a vinda da irmã e da mãe; há tanto tempo perdera o contato com elas que esquecera o quanto suas maneiras eram vulgares.
Respondeu, hesitante:
- Fernando é muito bom. É uma pérola. Vamos para a sala? Você devem estar com fome. Tem queijo feito em casa, coalhada, requeijão, bolos, tudo da roça.
Zelinda falou sorrindo, enquanto calçava as meias de seda:
- Fernando é um pedaço, isso sim.
Fez um gesto como se lembrasse de repente de alguma coisa:
- Ah! Gigina, sabe quem encontrei outro dia, casado e com uma filha?
- Quem?
- Osório. Está formado em Direito, jornalista, muito importante, pelo menos no caminho da importância e casado. Perguntou de você.
Vestiu o vestido e apertou o cinto:
- Viu como emagreci? Mas deixe eu contar como foi que encontrei Osório. Encontrei com ele na rua Direita. Penso que ele me viu, mas fingiu, sabe? Fingiu que não
viu e ia passando, mas eu segurei o braço dele assim: "Então! Está tão importante que não conhece mais os pobres"? Ele ficou desapontado: Ah! Zelinda, como vai você?
E dona Julica? Eu disse que tudo ia bem. Aí perguntou de você.
Disse que você está muito bem casada e muito rica. Ele ficou pensativo, depois começamos a lembrar aquele tempo da rua Livre. Tempos danados. Demos risadas quando
lembramos.
Afinal, Gigina, você sustentou aquele diabo durante o tempo que ele estudou; se não fosse você, não tinha nada, e no entanto, ele nem se importa com a gente. Que
ingrato! Até falei para mamãe. Ingrato!
Gina tentou rir:
- Não. Ele é assim mesmo, Zelinda. É despreocupado, tem um gênio boêmio, mas é muito bom. Ele também nos auxiliou tanto... Vamos para a sala.
Aquele passado voltava, aquele passado que ela queria enterrar para sempre. Por que lembrar? Fez um esforço para afastar todo pensamento que a perturbasse, que a
fizesse sofrer. Saiu do quarto dizendo que as esperaria na sala de jantar.
As crianças estavam encantadas com as visitas. Zelinda e dona Julica entraram na sala distribuindo carrinhos, brinquedos, uma grande boneca para Helena. Sentaram-se
à volta da mesa. Enquanto tomavam café, coalhada e comiam bolos, falavam da viagem; sobre a mesa, havia mimos-de-Vênus, vermelhos como fogo. Através das janelas
abertas, viam o campo, depois a planície cheia de ondulações, onde vacas pastavam tranqüilas; do outro lado, a mata cerrada, quase inacessível.
Comiam com apetite. Num canto da sala, Helena admirava a boneca; nem quis comer. Inclinava-a para a frente e para trás e sorria quando a boneca falava: Ma-mã, numa
vozinha tremida. Depois abraçou-a com carinho num gesto cuidadoso; Fernandinho aproximou-se e pediu para carregá-la um pouco; estendeu os braços pedindo: Dá... Dá...
Mas Helena recusou e para livrar-se do irmãozinho, mudou de lugar e foi para o terraço, sempre abraçada à boneca. Na passagem, pediu a Gina:
- Mamãe, Fernandinho tá querendo minha boneca...
Vinha um ar morno pelas janelas. Zelinda levantou-se e deixou a sala; voltou logo depois fumando um cigarro na ponta de uma piteira comprida; Gina, em sobressalto,
percebeu o olhar reprovador da sogra. Para disfarçar, começou a falar com o filho. Dr. Fernando deixou a sala dizendo que tinha um serviço para ver. Gracinha que
havia comido com apetite, levantou-se também e saiu para o terraço, curiosa por ver tudo. Dona Julica tornou a mostrar as paineiras à filha; de pé, no terraço, tirando
grandes baforadas do cigarro, Zelinda olhou as paineiras e não respondeu, fez um gesto indiferente. Fumava ostensivamente perto de dona Belmira como numa provocação
como querendo saber o que a velha estava pensando. Gina convidou-as para darem uma volta pelo pomar, atrás da casa; foram andando vagarosamente enquanto a tarde
caía sobre o sertão.
Naquela noite, após o jantar, Gina cantou para os hóspedes; cantou trechos do "Barbeiro de Sevilha", depois a "Casinha Pequenina", depois "Caro nome"". Se alguém
passasse àquela hora pelas terras da fazenda Pinheiral, ficaria surpreendido ouvindo o som de um piano e uma doce voz de mulher a se elevar no silêncio. Era como
se fadas boas andassem pelo mundo e procurassem os lugares ermos para derramar magias de sons nos corações dos viajantes solitários.
Em Pinheiral, as manhãs eram destinadas aos passeios a cavalo, ou a ver o banho do gado, ou a pescar à beira do rio que atravessava a mata do lado esquerdo ou ainda
a tomar banho na cascatinha que havia além, onde o rio fazia uma curva e despencava nas pedras. Dona Belmira quase não saía do terraço; ficava costurando para os
netos, no canto que dava para a porteira, os óculos sobre o nariz, atenta e diligente.
Zelinda dizia que ela ficava nesse lugar para ser a primeira a ver quem vinha da cidade; era curiosa a velha. Gracinha estava aprendendo a andar a cavalo; o cavalo
era manso, mas ela tinha medo, dava gritos e se agarrava às crinas do animal, provocando risadas. Dona Julica ia ao galinheiro recolher ovos frescos; era seu primeiro
cuidado todas as manhãs. Levava uma cestinha no braço e voltava com ela cheia, mostrando-a a todos; depois entrava na cozinha e preparava dois ovos quentes e levava
a Zelinda que dormia até tarde. Quase sempre, Gina acompanhava o marido ao serviço; iam ver as plantações e o gado. Deixavam as crianças com Eugenia, a empregada
de confiança, e iam a cavalo, atravessavam o rio e saíam do outro lado, onde começava a plantação de amoreiras.
Às sete e meia, dona Julica vinha da cozinha com a bandeja e dirigia-se ao quarto da filha; entrava no quarto escuro e colocava a bandeja sobre a mesinha; dizia
em voz baixa para não assustá-la:
- Zelinda, quase oito horas. Olhe os ovos quentes.
Zelinda fazia um movimento e continuava com os olhos fechados.
- Zelinda, tome os ovos, filha. Eu trouxe agora mesmo do galinheiro. Estão fresquinhos.
A filha respondia com voz sonolenta:
- Não quero ovos hoje.
Dona Julica redobrava de agrados:
- Como não, minha filha? Pois você veio aqui para se fortalecer, estava fraca em S. Paulo, emagrecendo tanto.
Veja que ovos grandes e bonitos, parecem ovos de pata.
- Não diga que são ovos de pata, aí que não tomo mesmo.
- Por quê? É a mesma coisa que ovos de galinha. Experimenta só. Já tem sal dentro.
- Por que vir me acordar só por causa dos ovos? Tomo depois.
- Agora que é bom, Zelinda, tomar bem cedo. E, que horas pensa que são? Oito horas! Vamos, depois você dorme outra vez.
Zelinda começava a se espreguiçar, levantava os braços para cima, fazia caretas, bocejava várias vezes, afinal sentava-se na cama e com a bandeja sobre os joelhos,
tomava com a colherinha, os ovos quentes. Carinhosamente, dona Julica ficava assistindo de pé, de um lado; abria um pouquinho a janela para a claridade entrar. Falava:
- Está um dia lindo. Gigina e Fernando saíram a cavalo, diz que foram ver o gado. Estão combinando uma pescaria para quando voltarem. As crianças estão passeando
no pomar com Gracinha.
- E a velha?
- Está costurando como sempre, no terraço. Você não quer se levantar para tomar banho na cascata?
- Não. Quero dormir. Não gosto de banho frio.
- Então durma. Eu fecho a janela e recomendo que não façam barulho para você dormir sossegada.
Fechava a janela, tirava a bandeja do colo de Zelinda e saía nas pontas dos pés. Zelinda deitava outra vez, bocejava, acomodava-se para dormir. Às vezes dizia:
- Olhe, qualquer dia sou capaz de ir tomar banho na cascata só para passar de maiô diante da velha, sem toalha nenhuma, nua ao sol.
Dona Julica deixava o quarto e sorria; fechava a porta cuidadosamente.
Após o almoço em que todos tomavam parte, dispersavam-se outra vez. Uns iam dormir, outros ficavam cochilando nas redes do terraço. Zelinda, sentada na cama, lustrava
as unhas. Dona Julica de pé, perto da janela, falou-Ihe um dia com voz monótona:
- Não sei como é que você deixa. De repente ela pode cair e se machucar muito, pode até quebrar uma costela ou um braço.
Ficava quieta e olhava Zelinda, esperando uma resposta; como se não ouvisse, Zelinda continuava a lustrar as unhas; de vez em quando, assobiava.
- Não compreendo como é que você não se importa. Se Gracinha soubesse andar a cavalo, eu não diria nada; mas não sabe, de repente cai. É perigoso.
Olhava a filha outra vez. Zelinda parava de assobiar para responder:
- Não cai, mamãe. Todo o mundo aprende a andar a cavalo. E se cair, paciência.
Dona Julica se irritava diante de tanta indiferença. Continuava:
- Quando você e Gigina eram pequenas, tive sempre tanto cuidado. Não sei como você pode ser assim, não liga para um perigo em que Gracinha pode se machucar e machucar
muito.
Zelinda deixava de lustrar as unhas e bocejava tapando a boca com a mão direita; depois continuava outra vez, entretida na ocupação. Dona Julica continuava:
- Olhe, sei de um caso que se passou com um menino; queria muito aprender a andar a cavalo, deixaram e ele caiu e quebrou duas costelas. Não tem graça nenhuma se
acontecer uma coisa assim para Gracinha, ainda mais neste sertão.
Houve um silencio. Dona Julica perto da janela, olhava o jardim e o pombal ao lado. Com o calor, tudo estava recolhido e quieto. Nenhuma pomba, nenhum sinal de vida.
A voz de censura tornava:
- Sempre fui tão cuidadosa com vocês duas, não sei como podem ser assim.
Zelinda parou de assobiar e olhou a mãe:
- A senhora cuidou mesmo muito de nós...
Havia uma leve ironia na voz, mas não se sabia verdadeiramente se estava brincando ou não. Baixou a cabeça e olhou as unhas a uma certa distância, estendendo o braço,
um sorriso nos lábios. Dona Julica observou-a, um ar zangado, a fisionomia alterada:
- O que? O que você disse?
- Nada, mamãe. Só disse que a senhora sempre cuidou muito de nós.
Desta vez a voz era séria; ela não sorriu. Dona Julica ficou satisfeita e voltou ao assunto:
- Mas não deixe Gracinha andar a cavalo. É perigoso.
Zelinda fez um gesto de impaciência, levantou-se e foi chamar a filha que estava com as crianças e Eugenia no quarto próximo. Gracinha estava sentada numa cadeirinha
de palha; Helena e Fernandinho estavam sentados no chão. Eugenia costurava perto da janela. Ouvia-se a voz de Gracinha.
- Esta chama-se: A menina dos cabelos de ouro.
- Conte, conte, gritou Helena.
- Era uma vez uma menina muito bonita que tinha os cabelos de ouro.
Eugenia perguntou:
- De ouro mesmo?
- De ouro mesmo. Verdadeiro. Ela morava com a avó no fundo de uma floresta...
Em vez de entrar, Zelinda ficou escutando atrás da porta; de quando em quando, Helena fazia uma pergunta:
- Por que a avó bateu nela?
- Porque ela gostava do príncipe e a avó não queria.
- Por quê?
- Porque não. O príncipe queria levar ela embora. ..
Então arranjou um cavalo branco e roubou a menina dos cabelos de ouro.
Helena sorriu, deliciada. Perguntou:
- O cavalo é como o meu? Branco?
- Igualzinho. Então, sabe?... onde é mesmo que eu estava?
Zelinda entrou no quarto; Gracinha continuou a contar:
- Ah! Depois casou com ela e foram muito felizes. O príncipe mandou fazer uma estátua igual a ela, e pôs na entrada do palácio...
Helena interrompeu:
- O que é estátua?
- Uma estátua. De mármore, fazem do tamanho da gente, igualzinho a gente, só falta falar.. Só que os cabelos dela não eram, mais de ouro...
- Por quê?
- Porque a avó pôs feitiço nos cabelos dela. Ficaram castanhos.
- O que é feitiço?
- Gracinha perturbou-se um pouco:
- Bobagem.
Zelinda ouviu o fim da história e chamou Gracinha; quando Gracinha entrou no quarto de dona Julica, ela explicou:
- Olhe, Gracinha não quero que você anda a cavalo. É perigoso, pode cair e quebrar um braço ou uma perna. Estamos longe de tudo.
- Mas, mamãe...
- Não quero, já disse. , Gracinha começou a chorar; dona Julica olhou a neta. Parecia satisfeita;
- Não é por nada, mas se você cair e se quebrar, como há de ser? O que seu pai vai dizer? Que não zelamos por você.
Gracinha chorou mais:
- Agora que estava aprendendo a andar...
- E deixe de lamúrias. Vá brincar...
Recomeçou a lustrar as unhas. Gracinha deixou o quarto falando: "burra, burra, burra..." uma porção de vezes. Helena que estava no corredor, esperando-a para ouvir
outra história, perguntou:
- Quem é burra?
- Mamãe e vovó. As duas.
Helena ficou admirada e não respondeu; ficou olhando Gracinha como um ser extraordinário.
Nessa tarde, tiveram as primeiras visitas da cidade; o Juiz de direito e dona Sinhá. Conversaram na sala, entre copos de limonada e geléia de mocotó. Zelinda que
já estava cansada da fazenda e pensando em voltar a S. Paulo, animou-se com as visitas; apareceu com um vestido vermelho sem mangas, os cabelos oxigenados muito
crespos à volta da cabeça e conversou com animação; mostrava-se desembaraçada diante de dona Sinhá. Depois da segunda xícara.de café, foi buscar a piteira e colocou
um cigarro na ponta; tirou uma grande fumaça e olhou a esposa do Juiz; dona Sinhá e dona Belmira ficaram sem assunto de repente e olharam para o chão, distraídas.
Quando as visitas estavam se preparando para entrar no automóvel, Zelinda viu Gracinha montando a cavalo às escondidas, atrás da casa. Ficou furiosa.
- Ela vai ver a sova que vai tomar. Pensa que porque está aqui, diante das visitas, não apanha? Ela vai ver.
Entrou em casa indignada e foi se queixar a Gina. Acalmaram-na. Quando Gracinha entrou, medrosa, e foi tomar banho de chuveiro, encontrou a mãe: Indecisa, olhou-a.
Distraída, Zelinda perguntou:
- Você não viu minha escova de cabelos, Gracinha? Não encontro em parte alguma.
Não se lembrava mais da desobediência da filha. Era assim. Um temperamento irrequieto mas inconseqüente.
No dia seguinte, o padre Ernesto apareceu na fazenda para uma breve visita à família de dona Georgina. Estavam todos no terraço quando ele chegou de automóvel; Dr.
Fernando fez as apresentações. Zelinda estendeu-lhe a mão de unhas vermelhas dizendo sem cerimônia:
- Então padre, como vai?
Gina percebeu o olhar horrorizado da sogra sobre o Dr. Fernando como quem diz: "Você permite essas coisas?" Dr. Fernando tinha um leve sorriso nos lábios e o padre
Ernesto sentou-se numa cadeira de palha; era um velho de sessenta e poucos anos, a cabeleira branca, a fisionomia alegre e inteligente. Perguntou cerimoniosamente
dirigindo-se a Gina:
- Está contente, dona Georgina? Ao lado de sua mãezinha, da irmã, da sobrinha. Ah! Esta é Maria da Graça? Como vai, Gracinha?
Gina respondeu que estava muito contente, era pena não poderem vir mais vezes por ano; a irmã, por exemplo, era a primeira vez que vinha a Pinheiral. O padre olhou
para o lado de Zelinda que estava com as pernas cruzadas, muito negligentemente sentada numa cadeira de braço, a saia arregaçada, os joelhos à mostra; balançava
uma das pernas e sorria:
- Quem manda ela morar tão longe, não é mesmo, padre? Vieram morar aqui neste sertão longe de tudo. O trem leva não sei quanto tempo para chegar, um trem sujo, um
calor insuportável. Eu suava por todos os poros durante a viagem, o vestido grudou no corpo, cheguei quase derretida, louca por um banho.
Deu uma risada. Padre Ernesto perguntou suavemente:
- A senhora e a senhora sua mãe não tiveram ocasião de visitar ainda nossa cidade? Pois não é tão ruim e não é também sertão. A senhora não imagina, o que é sertão.
Voltou-se para os donos da casa:
- Dona Georgina, quando for à missa domingo, mostre a nossa cidadezinha à senhora sua mãe e sua irmã.
- Meu nome é Zelinda, padre.
Padre Ernesto perturbou-se levemente.
- Sim, senhora, dona Zelinda.
- Nem sei há quantos anos não vou à missa. Aqui a gente vai à missa então? Deve ser .engraçado.
Houve um silêncio desagradável. Gina olhou a irmã com ar aborrecido. Dona Belmira olhou para o chão do terraço e Zelinda continuou a balançar a perna, sorrindo.
Falou num tom provocante:
- Mas não faz mal, padre. Desta vez eu vou à missa, só por sua causa. É o senhor que vai dizer a missa?
- Sim, senhora.
- Pois então eu vou. Quando o padre é simpático, eu gosto de ir à missa.
Gina viu rubor no rosto do padre Ernesto; sentiu-se desagradavelmente constrangida ao ouvir as palavras irreverentes da irmã; para mudar de assunto, perguntou dando
às palavras um tom alegre:
- Afinal, padre Ernesto, a turminha que o senhor estava preparando para a primeira comunhão já está preparada?
O padre sentiu-se satisfeito por falar em assunto tão ameno.
- Quase pronta, dona Georgina, quase pronta. Creio, que daqui a um mês, poderemos fazer a festinha.
Dona Belmira perguntou se eram muitas crianças; ele respondeu que eram quatorze entre meninos e meninas; falou ao dono da casa:
- Falar nisso, Dr. Fernando, não me esqueci da sua promessa. Vou precisar do seu automóvel nesse dia.
- Pois não, padre Ernesto. Está às ordens.
- Ah! dona Georgina, lembra-se do filho de dona Benvinda? Um menino travesso, um verdadeiro moleque que vivia brincando na rua e dizendo nomes feios?
Gina ficou um pouco hesitante:
- Não sei, não me lembro...
Dr. Fernando auxiliou-a:
- Aquela mulher que faz pé-de-moleque, Georgina, a que mora atrás da igreja...
- Ah! Sei. Agora me lembro. Eu não sabia o nome dela, chamava: "A mulher do pé-de-moleque". Agora sei quem é.
- Sim, senhora. Depois de muita luta, consegui que o filho, o Bentinho, viesse fazer parte da turma da primeira comunhão...
E sorriu triunfante. Dr. Fernando perguntou se padre Ernesto preferia café ou limonada; Gina levantou-se para dar ordens dizendo que tomariam lanche lá dentro, na
mesa. No outro extremo do terraço, Gracinha brincava de "dona de casa" com Helena e Fernandinho. De vez em quando, ouvia-se uma frase dita por Gracinha:
- Agora você é a dona da casa e eu venho fazer uma visita. Meu filho é Fernandinho e sua filha é a boneca. Vou bater na porta: Tóc, tóc, tóc.
A vozinha de Helena falava:
- Quem é? Ah! É dona Gracinha? Faça o favor de entrar. Como vai seu filhinho? Sarou bem?
- Graças a Deus sarou da tosse comprida. Teve uma tosse horrível na semana passada; eu e meu marido não podíamos dormir. E sua filhinha? Está melhor?
- Eu tenho duas, dona Gracinha. A mais velha está na escola, mas está com sarampo. Veja um pouco o rostinho dela como está vermelho.
Gracinha curvava-se para olhar a boneca no colo de Helena. Todos sorriam ao ouvir a conversa das crianças; elas percebiam que os "grandes" estavam olhando; paravam
e ficavam perturbadas, esperando que as deixassem tranqüilas. Zelinda comentou:
- Gracinha é mesmo uma criança. Já está com quatorze anos feitos e brinca com Helena que só tem três. Fico admirada!
Padre Ernesto interveio:
- Deixe que se prolongue a idade da inocência, minha senhora. É a idade mais feliz da vida. Dona Julica perguntou:
- Padre Ernesto é daqui mesmo?
- Não, senhora. Venho de muito longe; minha família é de Piracicaba.
Dona Julica se animou:
- Eu tenho parentes em Piracicaba.
- De que família, minha senhora?
- Da família Camargo. O padre sorriu:
- Que coincidência. Tenho uns parentes na família Camargo. Eu me lembro de ter ouvido minha mãe falar nisso muitas vezes.
Zelinda sacudiu a mão direita na direção do padre:
- Vai ver que somos parentes, padre. Tem graça... Parente de uma herege...
- Quem sabe, dona Zelinda, quem sabe.
Gina voltou ao terraço e convidou os hóspedes para entrar; a mesa estava pronta. Dr. Fernando convidou o padre a passar à frente:
- Tenha a bondade, padre Ernesto, vamos entrar...
Sentaram-se à volta da mesa, ainda falando sobre o parentesco; Zelinda dirigiu-se à Gina e piscou, maliciosa:
- Gigina, sabe que somos parentes do padre Ernesto?
- É mesmo? Seria interessante descobrir isso. Padre Ernesto prefere café, coalhada ou geléia de mocotó?
Dona Julica interrompeu:
A geléia está uma especialidade, padre Ernesto. Não sei se porque gosto de geléia, quero que todos aceitem geléia. O padre agradeceu:
- Muito obrigado. Deve estar muito boa como tudo em casa de dona Georgina, mas prefiro café. Durante o dia, só costumo tomar uma xicrinha de café forte. E o café
de Pinheiral é muito bom, tem fama.
Dona Belmira perguntou a dona Julica:
- A senhora é da família Pires de Camargo?
Gina sobressaltou-se; olhou a mãe. Dona Julica engoliu uma colherada de geléia:
- Não, senhora. Eu sou Camargo só. Minha mãe era Antunes e meu pai era Camargo. Conheci meu avô, ele se chamava Pedro Belizário Nunes de Camargo. Nunes era da mãe
dele.
- De Campinas?
- Meu avô tinha uma fazenda em Campinas.
Ocupada em falar com a filha que tinha entrado para pedir um pedaço de bolo, Zelinda não prestou atenção à conversa.
- Agora vá brincar, chispa! Não gosto de criança na mesa.
Gracinha voltou ao terraço comendo o bolo; ouviu-se a voz dela brincando outra vez:
- Aceita um pedacinho de bolo, dona Helena? Seu filhinho também aceita? Não faça cerimônia, é de araruta, muito bom.
Tomando um gole de café, padre Ernesto acrescentou:
- Que idade feliz! A gente quando tem essa idade, não sabe o que tem. Deus abençoe as criancinhas!
Dona Belmira aproveitou a pausa e voltou ao assunto dirigindo-se a Dona Julica:
- Não era em Piracicaba que seu avô tinha fazenda? Eu entendi a senhora dizer Piracicaba outro dia.
Dona Julica ficou um tanto indecisa:
- Eu falei Piracicaba? Zelinda falou com veemência:
- Mamãe, a senhora sempre nos contou que nosso avô paterno tinha fazenda em Piracicaba e o avô materno em Campinas. Não lembra, Gigina?
- Lembro sim.
- E quantos escravos a senhora contou que ele tinha, mamãe?
- Quem?
- O avô, mamãe. Seu pai.
- Ah! Tinha uns cem escravos.
- Muito mais, a senhora falou trezentos outro dia. Não foi, Gigina?
- Nem me lembro mais.
Gina percebeu que ela estava mentindo; como Gina não a acompanhasse na mentira, Zelinda explodiu:
- Arre! Que memória a sua, parece que cada dia está pior. Fernando, dê um remédio para sua mulher, não perder a memória de uma vez.
Dr. Fernando prometeu ver um remédio; aborreceu-se e perguntou ao padre:
- Está melhor o nosso amigo Ribas?
- Um pouquinho melhor. Um pouquinho. Esta noite, a febre baixou um pouco. Também está preparado, Dr. Fernando. Está pronto para a viagem.
Zelinda perguntou, fingindo não entender:
- Que viagem, padre?
- A última viagem, dona Zelinda. A viagem da qual não se volta.
Houve um silêncio na mesa. O padre tornou a falar:
- Já se confessou e tomou a extrema unção. Está preparado.
Zelinda provocou, rindo:
- E para onde ele vai, padre? Para o céu?
- Quem pode saber, minha senhora? Quem pode adivinhar os desígnios de Deus?
- Mas se ele está preparado, vai para o céu com certeza, senão não adiantava nada disso. Não acha, Gigina?
Gina começou a sentir-se mal; olhou Zelinda com um sorriso indulgente, mas no íntimo fervia de raiva. Padre Ernesto respondeu:
- Quem sabe ele vai para o céu. Nada podemos saber.
E se adivinhássemos, nossas vidas talvez fossem diferentes...
Ela interrompeu:
- Minha vida seria a mesma, eu não mudaria nada.
- Deus a abençoe, dona Zelinda, Deus a abençoe. É tão raro ver uma pessoa feliz como a senhora; tão feliz que se pudesse recomeçar desde o principio, viveria a mesma
vida, passaria pelos mesmos caminhos. Nem todos são felizes assim. Que felicidade para a senhora, pensar assim.
Ela perturbou-se um pouco e inclinou-se para trás, na cadeira:
- Não me queixo mesmo. Não posso dizer que sou infeliz. Só que às vezes, tenho vontade de fumar. Com licença, padre.
Riu-se e levantou-se, dirigindo-se a uma mesinha ao lado; tirou um cigano da caixa e colocou-o na piteira; de onde estava, perguntou: Fuma padre?
- Não, senhora, muito obrigado.
- É proibido fumar?
- Não aprecio o cigarro, dona Zelinda.
- Pois é muito bom e faz esquecer as mágoas...
- Mas a senhora não tem mágoas.
Ela voltou para a mesa e olhou fixamente o padre. Tirou uma baforada de fumaça:
- Eu não disse que não tenho mágoas. Disse que viveria a mesma vida, se pudesse.
Dr. Fernando interrompeu:
- Então é incoerente. Se você quer viver a mesma vida, quer dizer que é feliz. Agora vem dizer que tem mágoas...
Dona Belmira respondeu:
- E quem não as tem neste mundo?
Dona Julica suspirou e começou a comer uma broinha de fubá. Gina levantou-se para ver os filhos no terraço. Padre Ernesto e Dr. Fernando ficaram conversando ainda
uns minutos; depois levantaram-se e o padre despediu-se de todos. Quando entrou no automóvel, Dr. Fernando cochichou:
- Não repare na minha cunhada; é assim meio irreverente, meio aloucada, mas é muito boa pessoa.
Padre Ernesto fez um gesto complacente:
- Oh! Meu caro amigo, eu conheço as criaturas. Meus longos anos de confessionário, deram-me alguma experiência do mundo. Há pessoas que para se evadir de um estado
d'alma, de um desgosto, de uma tortura que lhes pesa ou de um sentimento de inferioridade, são assim: altivas, altaneiras, irreverentes, arrogantes mesmo, pretendendo
ser conhecedoras do mundo e principalmente superiores aos outros. Mas não enganam os observadores: acima de tudo são infelizes, profundamente infelizes e é dessas
pessoas que devemos ter pena. Vivem em conflitos consigo mesmas, vivem, se torturando. Têm esses modos altivos e essa maneira arrogante para ocultar os sentimentos,
mas no fundo, sofrem, são infelizes.
Dr. Fernando sorriu:
- Está bem, padre Ernesto. Fico contente em saber que o senhor compreende.
Segurando o velho guarda-chuva do qual não se separava e tirando um grande lenço azul do fundo do bolso da batina, o padre continuou:
- Tudo é exterioridade, Dr. Fernando. No fundo são boas criaturas de Deus. Coitadas!
Assoou-se ruidosamente e acenou a mão para o amigo:
- Até à vista, caro amigo. Até por lá! O automóvel partiu. No quarto, a sós Gina censurou a irmã:
-Você afinal, precisa respeitar nossos amigos. Onde se viu falar desse jeito com padre Ernesto? O que ele havia de pensar? Zelinda franziu a testa:
- Ora, Gigina, não seja estúpida. Desrespeitei o homem? Falei alguma coisa errada? Estou aqui há uma semana e não disse um nome feio, nem "safado".
- Tinha graça você falar perto das crianças. Fique quieta por favor.
- Também você mudou tanto que não me acostumei ainda. Antigamente eram jantares com champanhe, homens simpáticos, divertidíssimos, e depois tudo variado, barítonos,
maestros, secretários de maestro...
Deu uma gargalhada e continuou:
- Uma sarabanda danada. Não havia tempo de enjoar de nada, tudo era variado e alegre. Agora é só padre, primeira comunhão, irmandade não sei de que, extrema unção,
o diabo. Ando desnorteada com tudo isso, mas não se incomode que não perturbo mais seu padre Ernesto. Também vou me embora logo, não fico aqui...
Gina apertou os lábios e não respondeu. Deixou o quarto e dirigiu-se para o seu; Dr. Fernando estava se preparando para tomar banho.
- Que dia quente, hein, Georgina? Notou o rosto contrariado da esposa:
- Que há? Aconteceu alguma coisa?
- Zelinda. Ela me aborrece com aqueles modos livres e antipáticos. Parece que quer se mostrar. Viu o modo como ela conversou com padre Ernesto? Sem respeito algum,
até convidando-o para fumar. É o cumulo! O marido riu:
- Não leve a sério, Georgina. Não diga nada pra ela. É a primeira vez que vem aqui, deixe a coitada. E padre Ernesto conhece as almas, disse que ela é mais digna
de pena que qualquer outra pessoa.
- Ele disse isso? Mas eu fui no quarto falar com ela...
- Não. Não diga mais nada. Deixe. Há criaturas assim, não se incomode por causa dela.
E passando por Gina, beijou-a com ternura, antes de ir ao banheiro. Ficando só no quarto, ela sentou-se diante do espelho e começou a pentear-se. Ouviu as vozes
das crianças que ainda brincavam no terraço:
- Espere, agora você é o médico que vem ver meu filhinho. Eu falo com o doutor: "Ele está com uma pontinha de febre, veja como está vermelhinho. O que devemos dar,
doutor?"
Gina sorriu. Pensou como o padre Ernesto: "Como as crianças são felizes, tão longe das atribulações. Deus as abençoe!"

























XIII

No domingo seguinte, foram todos à cidade assistir à missa das dez. Às nove horas, Gina entrou no quarto da mãe para ver se ela e Zelinda estavam prontas; dona Julica
estava com um vestido de seda preta, de pé, abotoando o vestido de Zelinda; era um vestido branco de mangas curtíssimas.
Gina observou cortesmente:
- Se eu fosse você, não ia com esse vestido... Vá com o azul marinho de bolinhas, é tão bonito...
- Está fazendo calor e o azul marinho é muito fechado;
- Por isso mesmo, Zelinda. Ninguém vai à missa aqui sem ser com mangas compridas ou então assim pelos cotovelos.
E Gina mostrou seu vestido marrom com mangas pelos cotovelos. Zelinda levantou a cabeça e encarou a irmã:
- Ora esta, seu padre Ernesto manda na gente? Nunca vi uma coisa dessas! Um padre mandar na manga do vestido da gente. Que vá mandar nas beatas e nas carolas, em
mim é que não manda. Vou como quiser.
Gina foi ficando aflita:
- Você não conhece as cidadezinhas do interior, Zelinda.
Todo o mundo repara, fala, ainda mais que você veio de S. Paulo. Se fosse com o vestido azul marinho, era muito mais distinto.
Zelinda falou com ironia:
- É? Agora a senhora só quer gente distinta ao seu lado. Esqueceu os velhos tempos da rua Livre, hein?
Gina sentiu-se sufocar; olhou a mãe como a pedir auxílio. Dona Julica havia chegado à janela e avisou:
- Fernando já está pondo as crianças no automóvel. Está na hora.
Diante da espelho, Zelinda passava batom nos lábios; depois tornou passar pó de arroz; sacudiu a esponja no ar e o pó perfumado espalhou-se pelo quarto. Gina aconselhou:
- Seja cordata, Zelinda. Mamãe já tem vindo aqui e sabe como o povo é reparador. Não é mesmo, mamãe?
Dona Julica voltou-se:
- Toda a cidade do interior é assim mesmo. É melhor você seguir o conselho de Gina. Troque de vestido.
Zelinda olhou revoltada para a mãe, os olhos coléricos:
- A senhora também? Pois então não vou. Que vão para o diabo a cidade, o padre e todo o mundo. Não vou. Pronto.
E desabotoou o vestido com raiva. Nesse instante ouviu-se a buzina do Ford. Dr. Fernando estava chamando. Zelinda tirou o vestido num ímpeto raivoso e disse à irmã
enquanto tirava do cabide o vestido de usar em casa:
- Não vou. Desaforo quererem mandar na gente. Desaforo.
Antes que ela vestisse o velho, Gina entregou-lhe o azul marinho de bolinhas:
- Ora, Zelinda, seja camarada. Vista este e vamos embora. Se você não for, o que irei dizer aos conhecidos que perguntarem?
- Diga que fui para a China. Morri. Diga que caí do cavalo e quebrei vinte costelas. Diga que estou com dor de barriga. Pronto. Estava de combinação. Passou o pente
nos cabelos arrepiados. Gina percebeu que ela estava mais calma; falou:
- Vamos. Você vai conhecer todos nossos amigos; o delegado, o médico, Dr. Pinheiro, vários fazendeiros... Vista... Este vestido, afinal, é um dos mais bonitos. Vai
fazer furor na cidade.
Zelinda deixou que Gina a vestisse; enfiou as mangas e perguntou:
- Nessa turma toda, há alguém interessante?
Gina percebeu que ela estava curiosa; ouviu-se outra buzinada. Dirigiu-se à janela e falou ao marido:
- Dois minutos só, Fernando. Já vamos.
Olhou a irmã que estava outra vez diante do espelho:
- Há varias pessoas interessantes e inteligentes. Você vai gostar.
Auxiliou a irmã nos últimos preparativos e deixaram o quarto.
A cidade estava movimentada; no largo da Matriz havia muitos automóveis e outros ainda iam chegando e trazendo gente para a missa. Nas ruas principais, o comércio
funcionava; as lojas estavam abertas e muitas pessoas faziam compras. Nas portas das barbearias, das lojas, dos armazéns, havia cavalos que esperavam pacientemente
enquanto os donos faziam compras para a semana toda. Os que moravam longe, nos sítios, nas roças, vinham a cavalo para a cidade.
Os sinos da matriz tocavam anunciando a hora da última missa; a igreja estava cheia, mas para Dr. Fernando e a família, sempre havia lugares. Algumas senhoras conhecidas
de Gina mandaram as crianças ficarem de pé e cederam os lugares para a família do Dr. Fernando; havia uma separação onde ficavam os homens; era uma grade de madeira
quase no fim da igreja. Um portãozinho também de madeira separava as senhoras e as crianças dos homens; estes não tinham licença de ir além da grade e ficavam atrás,
de pé ou sentados nos bancos que havia para eles. Fora ordem de um padre muito rigoroso que dirigira a paróquia durante anos; e nenhum outro tivera a coragem de
modificar esse hábito.
Começou a missa solene. Toda a assistência seguiu, em concentração, as orações. Zelinda começou a ouvir o que o órgão e o violino tocavam: "Reverie" de Schuman.
Olhou para os lados observando as fisionomias vizinhas, distraiu-se depois ouvindo o padre Ernesto falar.
Quando terminou a missa, todo o povo saiu para o largo e muitas pessoas que se conheciam ficaram em grupos, conversando. A família de Dr. Fernando foi logo rodeada;
cumprimentavam, desculpavam-se por não terem ainda visitado a irmã e a mãe de dona Georgina, perguntavam sobre as crianças. Dona Sinhá convidou-os para irem um instantinho
à casa dela, era ali perto, logo atrás do largo. Aceitaram o convite e foram andando a pé e conversando; a casa do Juiz era uma das maiores da cidade: de um lado
havia uma trepadeira roxa carregada de flores.
Entraram comentando as flores e admirando o colorido, pena era não ter perfume. As filhas do Juiz, duas meninas de dez e doze anos, convidaram Gracinha para brincar
no jardim. Sentaram num banco tosco de madeira que havia sob umas árvores e ficaram conversando muito seriamente, como se fossem moças.
Os outros sentaram-se no terraço; automóveis passavam buzinando, homens a cavalo tinham pressa de voltar ao sítio, e levavam na garupa sacos brancos cheios de mantimento.
Moças a pé, em grupo de quatro ou cinco, conversavam e riam com os rapazes que encontravam. Comentavam antecipadamente a festa que haveria à noite no clube.
Muito cerimonioso, o Juiz inclinou-se diante de Gina:
- O que prefere, dona Georgina, um vinhozinho do Porto ou café? Ou talvez uma limonada?
Gina aceitou limonada. Zelinda preferiu vinho do Porto. Enquanto tomava, pensou, olhando para Gina: "Como está diferente. Nem bebe vinho, prefere limonada. O marido
a transformou completamente. Ou foi ela mesma que se transformou? Nada disso. Foi o amor. Ela ama Fernando. Por isso pode agüentar esta vida."
Dr. Fernando conversava com o Juiz e outro amigo num canto do terraço; comentavam a morte do Ribas. O Juiz disse:
- Teve uma bonita morte. Não sofreu para morrer; quando a mulher aproximou-se e falou, estava morto.
- Mas sofreu muito, antes. Há mais de um mês estava de cama.
- Sim, mas podia ter uma morte penosa com falta de ar, etc. Não. Morreu como um passarinho.
- Deve ser bom morrer assim. Está excelente este vinho. Que marca é?
O. Juiz sorriu satisfeito:
- Ferreirinha.
- Logo vi. É diferente dos outros.
O Juiz foi buscar a garrafa e mostrou. Do outro lado, dona Sinhá contava de que forma curara os pintos de "bouba". Explicava a Gina corno devia fazer, o que devia
pôr na água e como evitar que os outros tivessem a moléstia. Depois perguntou a Zelinda quantos filhos tinha; ela apontou Gracinha que estava sentada no banco com
as duas meninas.
- Graças a Deus só tenho essa. É uma garota levada.
Se tivesse duas assim ficava louca.
Dona Sinhá olhou Gracinha:
- Parece tão boa menina. Pois eu tenho essas duas e mais dois rapazes que estão passeando por aí. Quatro.
Dona Belmira reclamou:
- A senhora se esqueceu da receita de biscoito de polvilho que prometeu a Georgina? Eu não me esqueci, dona Sinhá.
Ela se desculpou:
- A senhora acredita que ia me esquecendo mesmo?
Mas vou buscar já. Está copiada.
Levantou-se e dona Belmira protestou:
- Não tem pressa, dona Sinhá. Fica para depois. Ela falou da porta:
- Um instantinho só. Posso me esquecer outra vez. Trouxe a receita e antes de entregá-la, leu alto para dona Belmira entender bem. Zelinda bocejou olhando a rua.
Dona Sinhá terminou:
- Tem gente que põe duas claras. Eu costumo por quatro. Fica mais bonito e mais gostoso.
Gina disse:
- Ah! Isso fica mesmo. Sempre ponho quatro também.
Dona Sinhá sorriu:
- Dona Georgina é da minha opinião. Quatro.
Dr. Fernando levantou-se:
- Vamos indo? Então quando aparecem em Pinheiral? Vão jantar qualquer dia, não é, Georgina?
Despediram-se. Ficaram no portão enquanto Dr. Fernando voltou ao largo da Matriz e foi buscar o automóvel. Partiram. Zelinda perguntou logo:
- Que é do pessoal interessante que você disse que tinha, Gigina?
- São aqueles mesmo que cumprimentamos na porta da igreja. Ficaram de aparecer hoje, à tarde na fazenda.
Quando chegaram a Pinheiral e desceram do automóvel, Zelinda sussurrou para a irmã:
- Essa é a caipirada que você disse que é interessante?
Passo! Vou voltar para S. Paulo amanhã mesmo. Só falam em biscoito, bouba de pinto e não sei que mais...
Gina começou a, subir a escadinha do terraço; Zelinda ia atrás:
- Admiro uma coisa, Gigina. Como é que você agüenta isto anos e anos?
Gina olhou-a admirada:
- Isto o que?
- Esta vida, esta gente, biscoito, bouba, etc... esta solidão, tudo...
E fez um gesto mostrando longe. Gina voltou-se para a irmã e parou um pouquinho:
- Como é que eu agüento? Mas eu não agüento, eu gosto disso tudo, Zelinda. Estou aqui porque gosto.
E entrou na sala. Todos já tinham se retirado para os quartos a fim de trocar de roupa para o almoço. Zelinda explodiu:
- Gosta? Você gosta disso tudo? Meu Deus! Então sou burra ou bonde elétrico, não entendo você, criatura.
No corredor que dava para seu quarto, Gina respondeu alto sem se voltar:
- Nem eu.
Nessa mesma tarde, várias visitas chegaram a Pinheiral; dois fazendeiros vizinhos, um dos médicos da cidade e Dr. Pinheiro.
Alguns ficaram sentados no terraço, outros no jardim; a tarde estava linda. As senhoras fizeram um grupo à parte; todas curiosas por conhecer a mãe e a irmã de dona
Georgina. Zelinda auxiliava a irmã a servir refrescos e café; estava excitada, sabendo-se alvo de todos os olhares. Com o vestido branco de mangas curtíssimas, os
braços cheios e queimados de sol, os cabelos encaracolados à volta da cabeça, era diferente de todas.
Usava sempre vestidos mais curtos e quando Gina olhava e dizia: "Zelinda, seu vestido está curto demais: ela fingia-se zangada: "É a burra daquela costureira, Gigina.
Quantas vezes já disse a ela que não faça curto assim. Vou devolver este vestido para ela arranjar. Que mulher estúpida! Sempre erra com meus vestidos." Mas não
devolvia nada e quando encomendava outro, vinha curto também. Gina advertia algumas vezes: "Gente chique não usa curto assim." Ela respondia: "Pois eu sei, Gigina,
é aquela costureira, mas eu vou encompridar, você vai ver."
E apesar do desejo que tinha de ser chique, tinha o desejo ainda maior de mostrar as pernas e continuava a vestir-se do mesmo modo.
Julgava-se entendida em todos os assuntos; se ouvia os homens falarem sobre política, ficava esperando a primeira oportunidade para dar sua opinião; havia então
um silêncio compreensivo na roda dos homens. Se algum respondia delicadamente, ela se animava e continuava a falar; mas, em geral, ninguém dizia nada porque seus
argumentos eram sempre tolos e ela voltava-se de novo para as senhoras.
Se uma pessoa contava um caso de um desastre de automóvel, Zelinda também contava dois ou três semelhantes. Se outra pessoa falava sobre doença de criança, ela contava
de uma vizinha cujo filho tivera a mesma moléstia, por mais estranho que fosse. Nada era novo para ela. Conhecia todos os assuntos e discorria sobre tudo. Se alguém
falava sobre um filme muito interessante a que assistira, Zelinda contava também a história de outro semelhante, porem ainda melhor do que aquele descrito antes.
Se outra pessoa dizia ter apreciado certo prato muito bom, uma especialidade feita com marreco, Zelinda contestava e dizia que feito com pato ainda era melhor. Assim
era tudo; livros, viagens, comida, vestidos e política. Julgava entender de tudo mais do que qualquer outra pessoa.
E quando a senhora do Dr. Pinheiro falou naquela tarde sobre uma viagem que fizera aos Estados Unidos, Zelinda não pode contestar imediatamente; mordeu os lábios
e ficou escutando com ar despeitado. Mas quando a senhora terminou, ela voltou-se e disse que uma sua amiga fizera uma viagem tão interessante ou mais ainda do que
a contada por dona Odete Pinheiro, pois alem de ver as cataratas do Niágara, viajara também pelo deserto da Califórnia.
Houve então um silêncio à volta e começaram a tomar refrescos; a senhora de um dos fazendeiros elogiou a beleza da tarde:
- Há muito tempo não tínhamos uma tarde assim, dona Georgina. Lembra-se da última vez que estivemos aqui?
- Como chovia!
- Tarde boa para um piquenique! Não tem uma nuvem no céu. Está tão azul... Zelinda dirigiu-se à irmã:
- Gigina, vamos organizar um piquenique aqui? Deve ser tão divertido. Na cascata.
Gina concordou e as outras também aprovaram a idéia. Zelinda levantou-se e dirigiu-se ao cunhado:
- Fernando, estamos organizando um piquenique na cascata. Que tal?
- Bela idéia! Todos aprovaram. Dr.Fernando sugeriu:
- Então faremos um churrasco, será mais divertido.
- Melhor ainda. Quando teremos o churrasco? Houve troca de idéia; alguém sugeriu:
- Sábado que vem.
- Então será sábado próximo. Está resolvido.
As senhoras combinaram o que haviam de trazer; Gina protestou, dizendo que arranjaria tudo, ninguém precisava trazer nada. Mas Odete Pinheiro continuou insistindo
nos doces:
- Trago um prato de cocadinhas.
Uma traria bons-bocados, outra balas de chocolate e doce de batata roxa com coco, outra amarelinhas e outra ainda, pamonhas.
Despediram-se depois de tudo combinado. Zelinda falou nisso durante todo o jantar, excitada como se tivesse quinze anos. Mais tarde disse a Gina que achara alguns
homens simpáticos, mas as senhoras eram todas iguais: insípidas e caipiras. Gina procurou defender as amigas:
- Você não teve tempo ainda de conhecê-las bem, Zelinda. São preparadas e boazinhas, principalmente Odete Pinheiro. E não são caipiras nem um pouco, viajam muito.
Ela fez um muxoxo:
- Mas dona Sinhá só fala em geléias; uma outra também que estava com um vestido verde claro de risquinhos...
- Dona Carmen.
- Creio que é. Só falou na catapora que o filho teve na semana passada.
- Falou em catapora porque o assunto era doenças; mas sabe falar de outros assuntos e muito bem.
Zelinda fez um ar de pouco caso:
- Está bem. Vou dormir que é melhor.
Estava a sós com Gina e antes de despedir-se, levantou-se, bocejou e disse:
- São todas umas idiotinhas assanhadas, umas burguesinhas. Portaram-se bem porque não têm remédio. Não podem. Águas paradas... Mas se pudessem...
Gina ficou vermelha de raiva:
- Não diga bobagens. E você o que é? Grande dama?
Ela já estava perto da porta que dava para o quarto.
Voltou-se:
- Eu? Sou o que sempre fui, uma senhora casada com uma mentalidade mais avançada do que essa burguesia toda.
Sempre fui uma senhora de respeito, sempre tive a cabeça levantada, sempre fui alguém...
Fez uma pausa e perguntou com maldade, a voz sarcástica:
- E você o que foi?
Fechou a porta. Gina sentiu-se sufocar de raiva; era interessante como sendo Zelinda sua meia irmã, a conhecia tão pouco. Só conhecia o lado mau e egoísta da irmã,
desde pequena descobrira essas qualidades: maldade, inveja, egoísmo. Nunca outras. Para Gina fora sempre assim: agressiva e má. Parece que seu desejo era bater nela,
maltratá-la, fazê-la sofrer, ofendê-la. Quando falava com Gina, parecia agredi-la; dizia frases ofensivas e maldosas. É verdade que não parecia boa para ninguém;
nem para a mãe nem para a filha, nem para o marido. O seu lema era: eu. Sempre eu.
Começou a percorrer,. as portas e janelas, como fazia sempre, para ver se estavam fechadas. "Como Zelinda era invejosa. Eterna invejosa." Apagou o lampião da sala
de jantar; dirigiu-se ao quarto das crianças, olhou para ver se tudo estava em ordem e foi para o seu quarto, onde Dr. Fernando já estava deitado. Gostava de conversar
com o marido a sós e comentar os fatos do dia. Adorava-o e ao seu lado esquecia os pesares, as atribulações, as pequenas alegrias e contrariedades de mãe e de dona
de casa. Colocou a vela sobre a camiseira e olhou o marido; encontrava na sua presença paz e segurança.
- Ah! Fernando, não tive tempo ainda de contar a você o que descobri hoje. Uma coisa esplêndida!
- O que foi?
- Imagine que mamãe rouba cerveja da adega!
Tinham um lugar fresco em baixo da casa, onde guardavam caixas de vinho e cerveja.
Ele admirou-se;
- Sua mãe? Como?
Ela riu e sentou-se na cama ao lado dele:
- Depois que as visitas foram embora, fui procurar no jardim o boneco de Fernandinho, aquele polichinelo, sabe?
Pois junto à moita onde encontrei o boneco, estava uma garrafa de cerveja vazia. Quase perguntei às criadas como é que aquela garrafa estava ali, mas lembrei que
mamãe sempre gostou de cerveja, então fiquei quieta. Fui depois à adega e olhei; pois faltam umas dez garrafas e nós não temos tomado cerveja. Descobri depois as
garrafas vazias num canto. Quem mais se não mamãe pode fazer isso? Por isso é que ela desaparece durante o dia e fica horas sozinha no quarto bebendo a cervejinha.
Os dois riram. Dr. Fernando lembrou:
- Então precisamos pôr cerveja na mesa todos os dias. Se ela gosta tanto...
- Não, Fernando. Na mesa ela não gosta porque tem que dar aos outros e não bebe à vontade. Ela gosta é de beber no quarto, uma garrafa inteira, sozinha.
- E como é que ela descobriu a chave da adega?
- Decerto viu onde eu coloco sempre, no prego atrás da janela. O que eu sei é que a velha não se aperta, está tomando sua cervejinha, como em S. Paulo.
O marido teve pena:
- Coitada. Deixe agora a adega aberta, Georgina.
Finja que esqueceu de fechar, assim fica mais fácil para ela.
Gina riu:
- Ela è capaz de acabar com tudo...
- Será?
Começou a despir-se e continuou a conversar:
- Não posso com Zelinda. Viu o jeito dela hoje? Discutindo até política com seus amigos! Quer saber tudo e é uma ignorante.
- Ora, ninguém leva a sério. Acham graça.
- E o modo que ela se veste, Fernando? Sempre foi assim: exagerada em tudo. E quer ser elegante!
Tirou a camisola de sob o travesseiro:
- Ah! Agora me lembro! Você precisava ouvir o que Helena estava dizendo hoje para Dr. Pinheiro. Dr. Pinheiro ficou espantado.
- O que foi?
- Dr. Pinheiro estava brincando com ela, de repente disse: "Você vai se casar com Jucá, você já prometeu." Ela então olhou bem para ele, muito séria e respondeu:
"Dr. Pinheiro, dona Odete já me disse que vou casar com seu filho, mas eu não posso agora. Agora quero casar com papai." Foi só risada, pena você não ter ouvido.
Dr. Fernando sorriu:
- Ela ainda está na idade de casar com papai e com mamãe.
Gina enfiou a camisola pela cabeça:
- Está quente, não? Vamos ver se no dia do piquenique, o tempo melhora. Tomara que faça um dia bonito como hoje, mas mais fresco.
Tirou os sapatos e as meias; deitou-se ao lado do marido e assoprou a vela; de repente lembrou-se:
- Estou achando Fernandinho um pouco magro. Acho que é calor. Não come quase.
- Eu também reparei que ele não jantou. É melhor pedir um remédio ao Dr. Pinheiro.
- Um fortificante?
- Acho melhor fortificante.
- Mas Zelinda é um caso sério. Sempre assim, parece amalucada. Nunca se importou muito com a filha; quem criou Gracinha foi mamãe e Zeca. Ela é só passear e dizer
asneiras. Nunca vi. Vai à cidade amanhã?
- Vou. Ouviu o pessoal contar da família do Ribas?
- Não.
- A coitada da mulher não ficou com quase nada. Dívidas até o pescoço.
- Coitada. E como vai se arranjar com dois filhos?
- Não sei. Diz que vai para casa de uns parentes fazendeiros até ver o que há de fazer.
- Coitada. Se eu fosse amiga dela, convidava-a para passar uns tempos aqui. Precisamos dar um jeito.
- Pois você pode convidá-la.
- Será que posso? Amanhã vou pensar nisso. Estou com sono hoje.
- Eu também. É o calor. E a cerveja que dona Julica toma?
- Ê formidável, não? ;
- Não sabia que ela gostava tanto assim.
- Gosta, sim. Então amanhã quando for à cidade, peça o fortificante para as crianças. Não se esqueça.
No dia seguinte, logo após o almoço, Gina viu dona Julica sair, dar uma volta pelo jardim e dirigir-se para a adega; percebeu quando ela voltou com qualquer coisa
embrulhada sob o xale e viu-a ir para o quarto.
Não pôde deixar de rir; dona Julica era como uma criança que faz uma travessura, deixa sinais evidentes, depois aparece com um rostinho cheio de inocência; e se
perguntarem, não viu nada, não sabe de nada. Como era possível uma pessoa dessa idade, portar-se como uma criança? Então não percebia que uma travessura assim não
pode passar desapercebida?
O dia do piquenique amanheceu bonito e claro, um pouco quente. Às dez horas chegaram a Pinheiral, os primeiros automóveis conduzindo visitantes; os convites haviam
se estendido para muitas famílias, de modo que o terraço da casa ficou logo cheio de gente. Alguns fazendeiros vizinhos chegaram a cavalo e algumas senhoras e moças
apareceram de culote e botas de montar; Zelinda mordeu os lábios de inveja; imaginou o quanto ficaria elegante com roupas assim, infelizmente não tinha. "Poderia
ter pedido emprestado a de Gigina, mas talvez não servisse, Gigina era mais alta que ela, mas poderia ter experimentado, ainda mais que Gina engordara, não era elegante
como anos atrás."
Espalhados pelo jardim e terraço, os convidados conversavam, antes de se dirigir ao lugar do piquenique; falavam com animação. Os últimos a chegar foram o padre
Ernesto e a família de Dr. Pinheiro; Zelinda cochichou no ouvido de dona Julica:
- Não sabia que o padre também vinha se divertir; ele vai dar azar. A mãe achou graça. Às onze horas, entraram nos automóveis, outros montaram a cavalo e partiram
para a cascata que ficava alguns quilômetros longe da casa.
Lá, os empregados da fazenda, já haviam matado o boi para o churrasco e preparavam os espetos e o fogo. Todos agruparam-se para olhar a cascata; a água caía de uma
altura enorme, entre pedras e plantas, formando um lago escuro embaixo. O lugar era frio; muitas pessoas começaram a dizer que estavam com arrepios e encolhiam-se
friorentas. Outros preparavam as varas de pescar; outros entraram pela mata a dentro, à procura de orquídeas e plantas raras.
Gina recomendou a Eugenia que não se afastasse muito com as crianças; Zelinda começou a pular de uma pedra a outra, a fim de se aproximar mais da cascata e refrescar-se
com as gotinhas d'água; levou um escorregão e quase caiu; deu gritos estridentes e chamou a atenção de todos que estavam perto. Dona Julica ralhou:
- Você vai cair e se machucar, minha filha. Sente numa pedra.
Ela deu mais uns passos com cuidado e foi sentar-se perto do padre Ernesto; serenamente, ele acompanhava o curso d'água. De repente, ela perguntou:
- Padre, eu ouvi seu sermão no domingo. É verdade que Cristo mandou parar a tempestade?
- É verdade. Ele era Cristo.
- Mas, padre, o senhor não viu. Pode ser uma lenda.
- Eu não vi, dona Zelinda, mas outros viram antes de mim; viram e contaram. Assim as noticias vão rolando pelo mundo de boca em boca. E assim chegou até nós.
Ouviu-se o ruído da água bater contra as pedras; mais longe o som abafado das conversas, depois uma voz disse: "Desta vez pesquei. Quer ver?"
Zelinda olhou para o padre Ernesto:
- Pois escute uma coisa. Eu só acredito naquilo que vejo. O mais não creio. Podem vir me dizer isto ou aquilo, que Fulano fez isto, que Sicrano fez aquilo, eu não
acredito. Não vi.
Padre Ernesto levantou a cabeça e fixou Zelinda:
- A senhora não vê às vezes os atos, mas tem que acreditar neles, pois vê as conseqüências desses atos. Por exemplo, acredita na bondade?
- Na bondade?
- Sim, na bondade.
- Acredito. Minha mãe é boa, Gigina é boa, o senhor deve ser bom, pelo menos tem obrigação. Portanto, acredito.
Ele sorriu:
- Mas a senhora não vê a bondade e ela existe. A senhora vê as conseqüências da bondade, de um ato bom, generoso.
Ela riu e pegou uma plantinha que estava à beira d'água:
- Ora, padre Ernesto, não se pode comparar um sentimento com um fato, um episódio. Bondade, ódio, amor, tudo isso são sentimentos e a gente acredita porque tem provas
de que eles existem. Agora esse caso de Cristo mandar parar a tempestade e dizer: "Homens de pouca fé... etc." é difícil a gente acreditar porque não viu o ato material.
Entende?
- Mas existem as provas, dona Zelinda, assim como existem provas de amor e de ódio. As provas ficaram. A senhora acredita na bondade ou no ódio porque tem provas;
Cristo também deixou provas da sua passagem pelo mundo, provas impagáveis. Todos os atos que praticou, de bondade, de indulgência, de perdão, foram provas, foram
testemunhos que deixou. E os milagres então? Também não acredita?
Ela esmagou a plantinha entre os dedos e cheirou:
- Ah! Hoje é difícil a gente acreditar em milagres. Olhe, padre, se Cristo voltasse ao mundo, ninguém acreditaria. Então se aparecesse um homem qualquer, mal vestido,
andando entre pescadores e gente humilde e dissesse Eu sou Cristo. Quem ia acreditar?
- Como não? Padre Ernesto se animou:
- E se na sua frente, esse homem fizesse parar a tempestade? Se ele tomasse um pão e de repente uma centena de pães saísse de suas mãos, não acreditaria? E se ele
curasse um leproso, não acreditaria? Ela baixou a cabeça.
- Diriam logo que era um fato sobrenatural, tapeação ou a ciência provaria que não era milagre.
O padre sacudiu a cabeça e olhou a cascata com olhar melancólico:
- Ah! Dona Zelinda, o pior cego é aquele que não quer ver.
- Mas eu quero ver, padre. Eu quero.
Ele sorriu com indulgência:
- Não parece. Só acredita naquilo que vê. Muitas vezes não vemos um fato, mas vemos as conseqüências dele. Não se vê o perdão, mas ele existe. Como Cristo com seus
milagres, com seus atos de bondade, de perdão, deixou provas irrefutáveis de que existiu.
Ela começou a rir, a mão dentro d'água:
- Tudo é brincadeira, padre. Estou brincando com o senhor. Falei isso só para provocá-lo. Gosto de provocar certas pessoas. Que plantinha cheirosa, já viu?
Ele suspirou e olhou a cascata novamente:
- A natureza humana é insondável.
- Por que insondável? Acho que não tem nada de mais.
Ouviu-se a voz de Gina chamando a filha: "Assim você fica toda molhada, meu bem. Venha cá. Ainda bem que eu trouxe outro vestido para trocar. Cuidado. Não vá cair!"
Mais além, dona Belmira e dona Julica, auxiliadas por mais duas senhoras, abriam os pacotes que haviam trazido, sobre uma mesa improvisada na grama. Dr. Fernando,
ajoelhado no chão, colocava garrafas de cerveja e de limonada num lugar fresco à beira do lago, para refrescar. Gina tirou o vestido de Helena e vestiu outro. Dona
Odete aproximou-se e sentou-se na pedra ao lado de Zelinda:
- Estão com muita fome? O churrasco está quase pronto. Já é meio-dia.
Zelinda aborreceu-se com a interrupção; não respondeu e voltando-se para o padre Ernesto, perguntou:
- Por que é insondável, padre? Tem provas também?
Ele riu:
- Centenas. Dona Odete também deve ter e a senhora também.
E explicou a dona Odete o motivo da palestra; ela ficou pensativa, depois disse:
- Padre Ernesto tem razão. As pessoas às vezes cometem atos que a gente não compreende, para os quais não há explicação certa, lógica plausível. Conte algum caso,
padre Ernesto. O senhor deve saber muitos.
Ele sorriu e não respondeu, perceberam que não queria falar. Dona Odete continuou:
- Eu me lembro de um fato que minha mãe contava sempre, um fato tão complicado, tão complexo, tão inexplicável que para ele nunca encontrei resposta. E prova quanto
é insondável o coração humano e muitas vezes a própria pessoa não sabe o que sente no coração.
Zelinda enxugou a mão apressadamente no lenço, interessada na história:
- Pode contar?
- Posso. Na cidadezinha onde meus pais residiam, no fim da linha Sorocabana, deu-se o caso que vou contar, há muitos, muitos anos. Minha avó sempre foi muito religiosa
e fazia parte de várias irmandades; nessa época, ela era presidente da irmandade do Coração de Jesus. Reunia as zeladoras uma vez por semana na igreja e tratava
de assuntos referentes à irmandade. Ora, há várias semanas que corria um boato muito esquisito, prenunciador de escândalos, pela cidade: diziam que a senhora do
Juiz de direito namorava um fazendeiro casado e pai de vários filhos. Essa senhora tinha também quatro filhos, era muito religiosa e fazia parte também dessa irmandade.
Sabem o que são esses boatos em cidades pequenas; crescem dia a dia com a maior facilidade e ninguém sabe de onde partiu. Só se falou nisso durante uma semana inteira.
Minha avó continuou a reunir as zeladoras como se não soubesse de nada; no íntimo, decerto não acreditava. Pois bem! Um dia, depois da reunião na igreja, minha avó
estava sozinha, preparando-se para sair quando viu a senhora do Juiz entrar e dirigir-se a ela. Essa senhora não tinha assistido à reunião, só chegou à igreja depois
que todas haviam saído. Perguntou assim pra vovó: "Dona Chiquinha, a senhora tem ouvido falar mal de mim, não tem? Tem ouvido falar o que estão falando por aí?"
Vovó ficou sem jeito e ela continuou: "Tudo é calúnia, dona Chiquinha, tudo é calúnia. Sou inocente. Tudo que falam de mim, é mentira. Peço à senhora que não acredite.
Foi por isso que vim hoje falar com a senhora. Todos sabem quanto a senhora é criteriosa, e eu faço questão que saiba que tudo é mentira. Não sei por que me caluniam
assim, não sei por quê. Pretendo continuar a freqüentar as reuniões da irmandade e creia na minha palavra, na minha sinceridade. Estou sendo horrivelmente caluniada,
peço que creia em mim." Minha avó, morrendo de pena dela, disse que acreditava nessas palavras e ficasse sossegada, pois a defenderia da calúnia sempre que pudesse.
A moça ainda falou mais coisas, chorou e protestou sua inocência. Vovó consolou-a como pôde, depois se separaram. Essa noite, vovó contou a história para vovô e
eles discutiram; vovô disse que a moça era uma grande mentirosa. Vovó defendeu-a energicamente dizendo que a verdade havia de brilhar novamente e eles todos haviam
de ver a calúnia que pesava sobre a inocente. Para encurtar a história, no dia seguinte, vejam bem, no dia seguinte, no primeiro trem que deixava a cidade, às cinco
horas da manhã, a mulher fugiu com o fazendeiro, abandonando marido e filhos e ninguém nunca mais soube dela. Disseram que tinham fugido para o Acre, mas ninguém
sabe ao certo. Tanto o juiz de Direito, como a mulher do fazendeiro não deram um passo a fim de procurá-los. Agora pergunto eu: Por que essa mulher que com certeza
já tinha premeditado a fuga, foi falar com vovó e pedir que acreditasse na inocência dela e que tudo era mentira? Por quê? Nunca pude compreender.
Dr. Pinheiro e Dr. Fernando disputavam para ver quem pescava mais peixinhos. Gina começou a preparar uma frigideira para fritá-los. Padre Ernesto ficou silencioso
olhando a água. Zelinda arriscou:
- Já sei. Quando ela falou com sua avó, não pensava ainda em fugir. Pensava em ser boa e honesta.
Odete Pinheiro retorquiu:
- Como? Então uma fuga tão sensacional pode ser resolvida em poucas horas? Num tempo em que não havia telefones, nem combinações rápidas? Ela já tinha pensado em
tudo, abandonou o marido e quatro filhos. Foi horrível.
- Então por que foi falar com sua avó?
- Quem pode saber? Até hoje não achei a explicação. Por isso o padre Ernesto falou sobre o quanto é insondável a natureza humana. Quem pode ler nos corações?
O padre sorriu e acenou para Dr. Fernando que estava chamando-o; o churrasco estava pronto. Falou lentamente:
- Não sei. Há muito tempo desisti de pensar nesses problemas. Problemas humanos. São indecifráveis para mim.
Agora pergunto a dona Zelinda: "Como podemos acreditar nessa fuga se nós não vimos?"
Dona Odete Pinheiro que já estava de pé, olhou estranhamente para o padre Ernesto:
- Minha avó contava a historia, padre Ernesto, toda a cidade soube e comentou durante anos inteiros; o senhor não acredita então?
- Acredito. Acredito em tudo o que contou. Quero saber se dona Zelinda acredita, pois ela tem um hábito muito estranho, dona Odete, só acredita naquilo que vê.
Zelinda levantou-se auxiliada por Odete Pinheiro; com o vestido pelos joelhos, começou a pular de pedra em pedra. Riu-se e falou:
- Brincadeira, padre. Já disse que tudo é brincadeira, gosto de brincar.
Voltou-se para dona Odete:
- Já sei, dona Odete, ela falou para sua avó para poder ser defendida quando a atacassem. Dona Odete parou:
- Mas como minha avó podia defendê-la se ela foi pelo pior caminho?
- Bolas; então não sei. Vamos comer churrasco. Desisto de compreender.
Sentaram-se no chão, à volta da mesa improvisada; entre risadas e frases alegres, começaram a comer e a beber. Um pouco mais longe, as crianças mostravam o que haviam
encontrado na mata. Sentadas, esperavam que as servissem. De repente, Zelinda falou; com um pedaço sangrento de carne no prato de papelão, olhou o padre:
- Olhe, eu esperava tudo num piquenique, mas conversar sobre o que conversamos, nunca!
Todos riram e alguns quiseram saber o assunto:
- Que foi que falaram?
- Sobre que assunto?
- As profundezas do coração humano. Do que ele é capaz de fazer.
Dr. Pinheiro riu-se:
- Ah! Isso é assunto para um livro.
Zelinda replicou:
- Para um livro, sim, mas para um piquenique? Pipocas!
Todos se entreolharam e sorriram; a irmã de Dona Georgina era muito engraçada, mas tão diferente dela, tão diferente. .. Nem pareciam irmãs...
No domingo seguinte após o piquenique, Gina foi convidada para cantar na igreja durante a missa das dez horas. Zelinda admirou-se:
- Você também canta na igreja? Não sabia.
Gina corou:
- É a primeira vez que padre Ernesto me pede para cantar. Por que não hei de ir?
Zelinda levantou os ombros num gesto de pouco caso; resmungou:
- Só faltava isso! Cantar na igreja! Está uma verdadeira beata.
Gina resolveu cantar a "Ave Maria" de Gounod. O domingo amanhecera chuvoso e feio; quando estavam se aprontando, Zelinda disse que não iria e quando todos já estavam
no automóvel, ela apareceu, apressada, um casaco cinzento sobre o vestido de listas amarelas, na cabeça o chapéu cor de gema de ovo. No momento de entrarem na cidade,
a chuva diminuiu, mas havia água barrenta escorrendo nas sarjetas e das árvores caíam grossas gotas. O sol apareceu palidamente e Gracinha gritou:
-"O casamento da raposa! A raposa está casando. Sol e chuva!
Dirigiram-se imediatamente para a igreja que estava repleta. Correra pela cidade que dona Georgina iria cantar e toda a gente queria ouvi-la.
Durante toda a missa, ouviu-se a voz maravilhosa de Gina; era uma voz forte, cheia e harmoniosa. Pôs toda sua alma na música, pois o canto era para ela uma das razões
de viver. O povo que enchia a igrejinha ouviu, emocionado. À saída da missa, foram cumprimentá-la:
- Que voz! Que encanto dona Georgina!
- Eu fiquei até arrepiada!
- Mas é uma maravilha!
- Nunca se dedicou ao canto?
O Juiz de direito que entendia de música, disse, enlevado, os olhos para o alto:
- Mas é voz de teatro! Voz de soprano e que voz! Se fosse cantar numa Companhia Lírica, faria um sucesso nunca visto!
Outro disse:
- Entendo pouco de música, mas posso considerá-la uma cantora excepcional. Se fosse cantar no teatro, sua carreira seria brilhantíssima!
De um lado, um tanto esquecida, Zelinda mordia os lábios de inveja ao ouvir os elogios feitos à irmã; abria e fechava a bolsa de couro num gesto automático e nervosa.
Pensava: "Sempre foi assim. Sempre. Ela em primeiro lugar, eu em segundo. Em beleza, em talento, em elegância, em tudo. Depois ainda encontra um marido bom que a
adora e vem morar nesta cidade vagabunda onde é querida por todos. Simplesmente querida. Por quê? Por que tudo para ela e nada para mim? Tenho ódio quando penso
nisso. Tenho ódio."
Sorriu para dona Sinhá que se dirigiu a ela nesse momento:
- Sua irmã tem uma voz privilegiada. Meu marido que entende muito de música, sempre freqüentou Lírico, disse que a voz dela é admirável. A senhora também canta?
- Não, senhora. Encanto.
Dona Sinhá não compreendeu logo e sorriu, contrafeita, depois bateu de leve no ombro de Zelinda:
- Sempre brincando, não, dona Zelinda?
- Não me chame de Dona, diga Zelinda só.
Dona Sinhá não respondeu. Dirigiram-se para a casa do padre Ernesto que ofereceu um chocolate aos amigos.
Quinze dias depois, dona Julica, Zelinda e Gracinha voltaram para S. Paulo; foram acompanhadas até o último instante pelas principais famílias da cidade. Na estação,
rodeavam-nas e pediam que voltassem logo que pudessem, pois ali deixavam verdadeiros amigos. Uns levaram flores, outros doces, outros pamonhas para comer na viagem.
Os protestos de amizade e de "Não se esqueça da gente" foram repetidos até o último momento; já no trem, depois de colocar os pacotes e as flores nos lugares certos,
ainda ouviam, debruçadas nas janelas, as últimas recomendações:
- Voltem em Junho, nas férias de Gracinha.
- Não se esqueça de mandar o endereço da costureira que a senhora prometeu, dona Zelinda.
- Esperamos breve noticias suas, dona Julica.
- Dona Julica não vá se esquecer da receita de pé-de-moleque.
Zelinda pediu que suspendessem Helena; queria beijá-la pela última vez. Gracinha estava chorando, Zelinda comentou:
- Não chore, boba. Nós voltamos.
- Adeus. Adeus. Obrigada pelas pamonhas.
- Pelas flores também. Pelos doces, por tudo.
- Adeus, Gigina, até por lá. Fernando, adeus.
Quando fez a promessa de voltar no próximo ano, Zelinda estava certa de cumpri-la, mas não podia adivinhar os caprichos da sorte, pois nunca mais voltou a Pinheiral.

























XIV

Seis meses depois, Gina teve outra menina, Ana Luiza. Nesse ano, a mãe escreveu que não podia ir visitá-la porque estava com reumatismo e a viagem era muito longa.
No mês seguinte, Zelinda escreveu uma carta queixando-se; dizia que estava sofrendo do coração. A mãe, o marido e o médico não queriam que ela soubesse, mas descobrira
por acaso e sentia-se mal. Emagrecera muito e talvez fosse preciso uma operação. Não tinha vida para muito tempo. Queixava-se de sufocação no peito, principalmente
do lado esquerdo; achava que era um tumor no seio, apesar de ninguém falar, sofria. Pretendia fazer uma estação de águas para ver se melhorava, pois o médico recomendara
e pedia a Gina "pela grandes amizades que nos uniu sempre, pois nem todas as meias irmãs vivem unidas como nós, desde pequenas, peço que me mande algum dinheiro
para a viagem."
Gina mostrou a carta ao marido; resolveram pagar a estação de águas para dona Julica também e mandaram o dinheiro; com a pressa de seguirem viagem, ninguém lembrou
de agradecer; mais tarde, Zelinda lembrou-se e disse:
- Também o que é isso para eles? São tão ricos, tem aquela fazenda tão grande com aquele mundo de gado que podiam dar até mais. Isso é uma migalha para eles.
Zelinda voltou quase carregada da estação de águas; sentiu-se pior de repente e teve um colapso. Dona Julica levou-a imediatamente para S. Paulo e quando o médico
a viu, pediu mais dois colegas para uma conferência e varias radiografias.
Declararam então a verdade à mãe e ao marido; Zelinda estava mal, deveria ser operada quanto antes. Gina recebeu o telegrama quase à hora do jantar; resolveu seguir
no dia seguinte no primeiro trem. As crianças ficariam com Dr. Fernando; Ana Luiza já não mamava, tomava sopa de legumes na xícara. Passou a noite sem dormir pensando
na irmã; no dia seguinte de madrugada beijou os filhos e seguiu para a estação, o coração apertado de saudades das crianças.
Antes de embarcar, recomendou a Dr. Fernando tudo o que já recomendara antes, despediu-se do chefe da estação e do telegrafista que vieram apertar-lhe a mão e desejar
"prontas melhoras para dona Zelinda."
Sentiu lágrimas nos olhos quando viu a cidade desaparecer da sua vista; queria que o tempo corresse como o trem e pensava na volta, quando apertasse os seres queridos
em seus braços outra vez.
Chegou a S. Paulo no dia seguinte, depois de uma longa noite de viagem; dirigiu-se para a casa da mãe, na rua Rego Freitas. Lá informaram que Zelinda estava no Sanatório
Santa Catarina, fora operada nessa manhã e ia passando regularmente. Gina foi para o hospital; encontrou a mãe desolada. Abraçou Gina sem perguntar pelo marido e
pelos filhos, só pensava na filha doente, só Zelinda e a doença de Zelinda existiam para ela. Pegou Gina pela mão e levou-a para o quarto da irmã; pelo caminho,
Gina foi perguntando o que havia e como fora a operação. Dona Julica falou com lágrimas nos olhos:
- A operação foi horrível, Gigina. Tiraram o seio esquerdo.
Gina parou no meio do corredor, umas das mãos sobre o peito:
- Não diga, mamãe. Coitada da Zelinda! Então o que era? Ela me escreveu que era no coração que sentia as dores, depois disse que talvez fosse um tumor.
- Ela não quer que ninguém saiba, nem você, mas foi um tumor maligno que ela teve, tirou hoje. Finja que não sabe.
Encostada na parede do corredor, Gina ficou pálida, sem ver nada do que se passava à sua volta.
- Será possível, mamãe? Dona Julica enxugou os olhos:
- Pois foi isso que estou contando. Vamos agora para lá. Você precisa animá-la, dar-lhe coragem.
O quarto estava na penumbra; percebia-se um vulto sobre o leito; dona Julica abriu ligeiramente a veneziana e debruçou-se ao lado da doente:
- Olhe quem chegou, minha filha. Gigina! Viajou a noite inteira e o dia de hoje para vir fazer uma visita a você.
A mão de Zelinda moveu-se e a cabeça voltou-se no travesseiro, mas não disse uma palavra. A mãe tornou a falar:
- Zelinda! Olhe quem está aqui. É Gigina que veio ver você. Gigina. Você perguntou por ela antes de ser operada.
Gina inclinou-se também:
- Como vai, Zelinda? Mamãe disse que você foi feliz na operação e está melhor.
Ela sacudiu a cabeça:
- Estou pior!
Dona Julica estremeceu:
- Está melhor. Está melhor. Não diga que está pior, está melhor.
Durante toda a semana, dona Julica, Zeca e Gina passaram horas inteiras no hospital, ao lado da doente. Oito dias depois, as melhoras se acentuaram visivelmente.
Dona Julica ficou animada:
- Está muito melhor. Essa doença é assim mesmo. Dá esse abatimento, mas depois você sara. Já está sarando.
Gina observava as feições desfiguradas, os círculos roxos à. volta dos olhos, a magreza de Zelinda. Para esconder a emoção, começou a falar:
- Assim que você melhorar, vai comigo para Pinheiral.
Lá está mais bonito agora. O jardim está lindo, você precisa ver. Você nem conhece Ana Luiza, está com um ano e quatro meses. Anda, corre e está até falando algumas
palavras. Um encanto.
Sentada na cama, do outro lado da cabeceira, dona Julica observou o rosto magro da filha; sentia uma aflição quando a via desanimada. Falou também:
- Vamos com Gigina para Pinheiral. Levamos Gracinha e passamos lá uma temporada bem grande. A paineira está com flor, Gigina?
- Ih! mamãe. Que beleza está a paineira! Ia esquecendo de contar à senhora. Se Zelinda puder viajar nestes vinte dias, alcança a paineira ainda com flor.
Olharam ambas para Zelinda; ela moveu lentamente a cabeça:
- Não tenho mais tempo para ver a paineira.
Dona Julica torceu as mãos num gesto desesperado; sua voz era angustiosa:
- Não fale assim, Zelinda. O que me mata é esse seu desânimo para tudo. Por que fala assim para encher de tristeza o coração da gente? Gigina veio de tão longe para
ver você e levar depois para a fazenda.
Vislumbrando um leve sorriso no rosto de Zelinda, falou mais animada:
- Escute, filha, vamos todos para a fazenda de Gigina.
Que temporada boa vamos passar lá... Organizaremos piqueniques como aquele da cascata, lembra-se? Vamos receber aquelas visitas todas: dona Sinhá, dona Carmen, dona
Odete, dona Belinha... dona... Como é mesmo que chama? A mulher do Dr. Cosme?
- Dona Teodolinda.
- Dona Teodolinda, padre Ernesto. Lembra do padre Ernesto, Zelinda? Ele vai ficar com cara de tacho quando você puxar a piteira perto dele. Depois vai comer coalhada
todos os dias, ovos quentes todas as manhãs. Eu levo para você no quarto, quer? E aqueles bolos de fubá que a Vicência faz? Lembra? Com pedaços de queijo dentro...
Zelinda fez um gesto de impaciência. Dona Julica calou-se; houve um breve silêncio, depois ela pediu que fechassem a janela. Quando Gina voltou para perto da cama,
disse:
- Que todos vão para o diabo... para o diabo...
E afundou o rosto no travesseiro. Dona Julica saiu do quarto soluçando; queixou-se para Gina:
- É sempre assim, Gigina, não quer saber de nada, nada.
Uma indiferença para tudo... Nem se importa mais com Gracinha, com Zeca, com ninguém. Pobre de minha filha.
Enxugou ligeiramente os olhos e perguntou:
- O que você acha, Gigina? Acha que ela vai sarar? Está melhor?
Gina apoiou o braço sobre o ombro da mãe:
- Não sei, mamãe. Penso que ela vai bem. Devemos ter esperança, os médicos dizem que é assim mesmo, ela vai melhorar. Ela que tem tanto amor à vida, há de sarar...
Nessa semana, levaram Zelinda de volta para casa e durante os quinze dias que Gina passou em S. Paulo, não notou melhoras na irmã. Resolveu voltar a Pinheiral porque
sua presença era inútil em S. Paulo, Passou uns meses na fazenda tendo sempre noticias da irmã; Zeca escrevia que Zelinda estava sempre na mesma, sempre na mesma.
E de repente, um dia, foi novamente chamada por telegrama; Zelinda estava pior e talvez fosse preciso outra operação. Quando entrou na casa da rua Rego Freitas,
dona Julica contou tudo no vestíbulo, antes que Gina tirasse o chapéu:
- Ah! Gigina, o que temos sofrido. O tumor do seio foi tirado, agora apareceu outro no pulmão.
Os olhos muito abertos fixos em dona Julica, Gina ficou imóvel, sem saber o que dizer. Dona Julica deu um gemido:
- O pior é o sofrimento dela, sofre demais, demais...
- Não é possível, mamãe. No pulmão?
- No pulmão.
- Então... não tem cura. Dona Julica soluçou, apoiada na chapeleira, o braço de Gina sobre seu ombro. Gina também começou a chorar e tirou lentamente o chapéu para
dependurá-lo no cabide.
Bateram na porta; dona Julica foi atender enxugando os olhos; era uma vizinha pedindo notícias de Zelinda. Gina ouviu a voz da mãe falando com convicção:
- Está bem melhor, obrigada. Já está mais animada, amanheceu alegre hoje. Já conversa; está contente com a chegada da irmã.
- Ah! Sua outra filha chegou?
- Chegou sim, senhora. Veio visitar Zelinda, sempre foram muito amigas. Nunca se separaram. Uma amizade como esta estou para ver outra igual... Nunca se separaram.
- É tão bonito isso.
- Nem fale.
Gina pensou: "Ela sabe que Zelinda está muito mal e diz a todos que está melhor, bem melhor. Quer enganar-se a si própria. Coitada."
Durante uns dias o estado de Zelinda não se modificou; parecia melhor um dia, de repente caía em grande abatimento; tomava injeções para diminuir as dores. Amigas
e vizinhos telefonavam todos os dias; outros vinham vê-la e ficavam conversando com dona Julica, dando coragem, contando casos semelhantes em que a doente havia
se curado. Dona Julica vivia em estado de desespero; quase não dormia, sempre ao lado da filha. Havia outra cama no quarto, onde ela se recostava, mas a qualquer
movimento da doente, estava de pé, aflita e desgrenhada:
- O que é, Zelinda? Está sentindo alguma coisa? Sente dor?
Seu almoço era uma xícara de café e um pedaço de pão que a criada trazia numa bandeja e ela comia ali mesmo no quarto, entre os cheiros dos medicamentos. Seu jantar
era um prato de sopa que tomava da mesma maneira, às pressas, às vezes de pé. Em vão, Gina pedia que descansasse um pouco, fosse comer na sala de jantar enquanto
ela ficava com Zelinda, dormisse algumas horas noutro quarto. Não. Como se tivesse medo de que alguém roubasse a filha se ela se ausentasse, ficava ali noite e dia
vigiando, os olhos fixos em Zelinda, incansavelmente. Disputava uma luta silenciosa com a morte; era como se dissesse: "Não. Ela é minha e você não a levará enquanto
eu viver. Não a levará." Coitada. E a morte a levou.
Na segunda quinzena, Zelinda melhorara consideravelmente; sentava-se numa cadeira do quarto, interessava-se por tudo, mandou fazer um chapéu novo, falou em mandar
fazer vestidos brancos para o verão. Pediu à mãe que fosse dormir no quarto dela, não era necessário ficar ali a noite inteira no mesmo quarto. Para que? Se ela
estava passando tão bem? E ria, cheia de animação. Gina começou a preparar-se para voltar à fazenda; sentia intensamente a falta do marido, dos filhos. Escrevia
de dois em dois dias e recebia cartas de Dr. Fernando também de dois em dois dias. Eram cartas apaixonadas como se essa separação fosse a primeira entre eles: "Meu
adorado marido. Não posso mais de saudades suas e dos filhos queridos. Ana Luiza não sente muita falta de mim? Zelinda continua na mesma e ainda não posso deixá-la.
Nem acredito quando chegar o dia de abraçá-los." As respostas eram idênticas: "Minha querida Georgina, sem você Pinheiral é demasiado triste. Ontem choveu e ventou;
o barulho do vento entre as árvores me deixou tão nervoso que tomei uma resolução; se até o fim da semana, você não voltar, vou até aí..."
Alguns dias depois, acentuaram-se as melhoras de Zelinda e Gina preparou-se para deixar S. Paulo. Algumas vezes, a irmã descia para jantar; nessa noite, estavam
todos reunidos à volta da mesa e Zelinda conversou serenamente. Não disse a ninguém que ouvira uma conversa dias antes. O marido dissera:
- A radiografia confirmou o que eu esperava. Infelizmente.
Gina perguntou em voz baixa:
- Então é verdade? Mas é horrível isso.
- É verdade. Localizou-se agora no pulmão.
- Coitada!
Ouviu a voz de dona Julica:
- Mas câncer é uma coisa medonha. Pobre de minha filha! Pobrezinha!
Gracinha que saía cedo para o colégio e voltava para o jantar, perguntou, satisfeita:
- Deixe eu ir também, mamãe?
Dona Julica pensou que ela ia dizer não, como sempre. Descascando uma pêra, Zelinda perguntou simplesmente:
- Já fez as lições?
- Fiz quando cheguei. Só falta estudar um pouco de história, mas eu estudo amanhã bem cedo, levanto de madrugada.
Admirada com a calma da mãe, perguntou com voz meiga:
- Deixa, mamãe? , Ela respondeu sem levantar a cabeça:
- Pode ir. Os olhos da menina brilharam de contentamento; acabou de jantar apressadamente, passou o guardanapo na boca com um gesto brusco e levantou-se para ir
se aprontar. A avó reclamou:
- O café, Gracinha...
- Não quero café, vovó. Dá licença...
E subiu correndo as escadas. O pai sorriu e mexeu a xícara de café; olhou a esposa. Ela estava distraída, olhando a mesa e comendo pedacinhos de pêra; depois pediu
um pouco de café. A mãe advertiu, sobressaltada:
- O médico não quer que você tome café, filha. Ela fez um gesto de indiferença:
- Um dia só, mamãe, não faz mal.
Olhou o marido e Gina como a pedir apoio. Gina perguntou:
- Há quanto tempo você não toma café?
- Faz muito tempo. Nem sei quanto. Um pouco só não faz mal, não acha?
Zeca aconselhou:
- Misture um pouco d'água, não tome forte.
- Não. Ou tomo um pouco de café forte ou nada. Dá uma xicrinha, mamãe.
Dona Julica preparou o café, um pouco contrariada. Queria que a filha seguisse o regime cegamente, pois esse regime talvez dependesse as melhoras dela; sabia que
não havia cura, mas queria prolongar aquela vida o mais possível. E o médico dissera: "Talvez possa viver muito ainda".
Zelinda tomou o café saboreando, os olhos fechados, Gina teve pena: "Coitada. Que suplício." Zeca deixou o guardanapo amassado sobre a mesa e levantou-se; Gracinha
já vinha descendo a escada, de dois em dois degraus; levava na cabeça um chapeuzinho de feltro verde.
- Vamos, paizinho?
Dona Julica pegou o guardanapo do genro, alisou-o sobre a toalha e dobrou-o cuidadosamente- Gracinha beijou a mãe na testa num gesto carinhoso:
- Até logo, mamãe.
Zelinda levantou a cabeça e olhou para a filha; parecia querer dizer alguma coisa, chegou a abrir a boca para falar. Todos ficaram olhando e esperando, ela apenas
disse:
- Adeus, filhinha.
Dona Julica e Gina olharam com admiração; nunca Zelinda dizia assim para a filha: "filhinha". A própria menina ficou tão admirada que tornou a beijar a mãe. Quando
o marido também saiu Zelinda disse:
- Vou me deitar; estou cansada hoje. Boa noite, mamãe. Boa noite, Gigina.
Dona Julica perguntou:
- Vai tão cedo?
- Vou.
- Então eu levo o chá para você.
- Hoje não quero chá, mamãe. Obrigado. Já tomei café.
Gina observou a irmã quando subiu a escada; estava magríssima e abatida. "Coitada. Que sofrimento".
Zelinda entrou no quarto e fechou a porta com chave; não queria ser interrompida no que ia fazer. Acendeu a luz e aproximou-se do espelho; olhou-se bem. "Terei coragem?
Naturalmente. Hei de ter coragem." Abriu a primeira gaveta do guarda roupa; tirou umas cartas, releu-as ligeiramente e rasgou-as; eram cartas de amigas, da irmã,
do marido; sempre gostara de guardar essas cartas; de vez em quando sentia prazer em lembrar. Abriu a segunda gaveta, onde havia algumas contas e recibos; abriu
a conta da costureira e para que ficasse bem claro quanto às suas pequenas dívidas, pegou o lápis e escreveu no mesmo papel, em baixo, estas palavras: "Devo a Mme.
Luciana, a quantia de 465$00."
Pôs a data de dois dias antes, assim não haveria dúvida. Procurou um recibo velho da chapeleira; precisava avisar a família que tinha um chapéu novo, vermelho na
casa de dona Olga. Não queria deixar nada escrito diretamente, era pior. Escreveu em baixo do recibo: "Dona Olga deve me mandar por estes dias, até sábado, o chapéu
de feltro vermelho." Pôs a data atrasada. Colocou os dois papéis sobre a penteadeira, sob um vidro vazio de perfume; quando gostava muito de um perfume, tinha a
mania de guardar o vidro vazio. Destapou e cheirou antes de pô-lo sobre os papéis. Pensou: "O que mais? Não quero esquecer nada. Quero ir em paz comigo mesma. Em
paz."
Abriu a porta quase sem ruído e ficou escutando: "Primeiro preciso garantir o principal. O principal." Ouviu as vozes da irmã e da mãe conversando com uma das vizinhas
na sala de jantar; da cozinha, vinha o ruído abafado da lavagem dos pratos. Silenciosamente, encaminhou-se para o quarto do marido; entrou; acendeu a luz e sem perder
tempo, dirigiu-se à mesinha da cabeceira. Lá estava o que procurava, no fundo da gaveta, esquecido. Tomou entre as mãos firmes, o revólver pequeno, preto e brilhante,
enfeitado de madrepérola. "Ele não vai achar falta nisto, nunca lembra de usá-lo. Terei coragem? Por que não? Prefiro morrer assim a morrer de câncer. Câncer! Meu
corpo está sendo comido, devorado! Sei que é uma morte lenta e dolorosa. Horrível. Prefiro que seja já, hoje mesmo, esta noite. Ficarei libertada deste horror."
Apertou o revolver na. mão direita e deixou o quarto do marido; atravessou o pequeno hall e ouviu as vozes conversando lá embaixo. A irmã dizia:
- A minha mais nova está com um ano e seis meses. Já fala quase tudo.
- As meninas falam mais depressa que os meninos. Por que será?
Ouviu risos. Entrou no próprio quarto; seu primeiro pensamento foi esconder o revólver, podia alguém entrar antes da hora determinada; colocou-o entre as roupas
de uma gaveta do guarda-roupa. Endireitou-se: "O que mais? Não quero esquecer nada. Se eu acreditasse em Deus... Não, Sempre tive uma teoria só minha..."
Riu-se num riso amargo, desesperado. Estranhando o som do próprio riso, aproximou-se novamente do espelho e olhou-se: "Hoje ainda sou eu, uma criatura viva que fala,
ri, pensa, anda... Amanhã serei um monte de carne apodrecida. E acabou-se. Tão bom assim. Que alivio! Se eu viver, sofrerei dores atrozes, não quero! Quero acabar
com tudo desde já. E se o revólver não tiver balas?"
Dirigiu-se para a gaveta, sentindo certo alivio; não sabia se queria ou não encontrar balas no revólver. E se não tivesse? Não seria melhor? Abriu a gaveta, tirou
o revólver e examinou-o; as balas estavam ali: seis. Então seu destino era esse. Estava escrito. Escondeu-o outra vez; com gestos automáticos, abriu outra gaveta,
onde guardava as bolsas e carteiras: "Quero ver quanto dinheiro tenho. Para que deixar este dinheiro aqui? É pouco, mas para a cozinheira, é muito. Vou dar a ela
e à copeira, vou dizer que há muito tempo queria dar esta gorjeta, mas não tinha dinheiro trocado; esta noite Zeca trocou para mim." Abriu uma bolsa azul marinho,
tirou o dinheiro e contou-o: oitenta e oito mil e quinhentos reis. "Darei cinqüenta para Benedita e o resto para Joana. Vão ficar espantadas com minha generosidade,
mas vão gostar muito. Coitadas."
Pegou o dinheiro, foi até à porta, abriu-a e ficou perto da escada, escutando. As vozes estavam agora na sala da frente decerto a visita ia sair; ouviu quando Joana
entrou na sala de jantar para guardar os pratos lavados. Chamou em voz baixa, não queria que a mãe e a irmã ouvissem:
- Joana!
A criadinha chegou ao pé da escada:
- A senhora chamou, dona Zelinda?
- Chamei sim, venha cá.
Joana subiu depressa as escadas; perguntou:
- Quer que chame dona Julica?
- Não. Não tenho nada. Estou muito bem, quero só gratificar você e Benedita.
Joana parou na frente dela, indecisa; Zelinda pôs o dinheiro nas mãos da copeira:
- Este é pra você e esta nota de cinqüenta é pra Benedita.
Entregue pra ela.
Joana ficou vermelha e risonha:
- Mas é muito, dona Zelinda.
- Não, vocês foram muito boas quando estive doente, trabalharam muito. Não pude dar antes, mas hoje posso, por isso dou.
- Vendo que a criada estava parada no mesmo lugar, continuou:
- Agora vou me deitar porque estou cansada; avise mamãe que não quero chá hoje. Boa noite.
- Muito obrigada, dona Zelinda. Deus lhe pague muito.
Ela que já segurara o trinco da porta, voltou-se:
- Olhe, não diga que eu dei o dinheiro, não diga a ninguém. É melhor assim.
- Não falo nada. Deus lhe pague.
- Está chovendo?
- Começou agora mesmo, uma chuvinha fina que nem garoa...
Zelinda entrou no quarto e fechou a porta; ouviu os passos de Joana descendo a escada: "Está chegando a hora. Terei coragem? Preciso esperar, esperar ainda. Está
chovendo, chuva fina que nem garoa."
Apagou as luzes, tirou os sapatos e deitou-se vestida como estava. Apagou a luz da cabeceira: "A dor é aqui no pulmão. Câncer no pulmão. Miséria." No escuro, em
silêncio, começou a recapitular sua vida, sua infância, seus amores. Pensou no marido, na filha, na mãe. Pensou na irmã, em todas suas amigas e conhecidas; seu pensamento
parecia pular de um fato a outro, de uma época a outra; parecia querer relembrar toda sua vida nos últimos instantes que ainda eram seus. Pensou nos vestidos que
possuíra, nas festas que freqüentara, em tudo que ouvira e vira nessas festas. Recordou-se de um vestido azul de bolinhas brancas; quando o vestia, toda a gente
elogiava: "Que elegância." "Como está bonita hoje." "Que vestido chique.' Pensou nos livros que havia lido, nos fatos que haviam ficado gravados no seu cérebro.
"Morrer! Por que ter medo da morte? Deve ser boa, dá descanso e esquecimento. O que adianta viver como estou vivendo? Sofrendo? Gemendo? Vivendo de injeções e de
palavras de piedade? Até quando? Nunca mais serei forte e bonita, nunca mais poderei viver. Quero tranqüilidade. Só isso."
Ouviu o relógio da sala de jantar dar dez horas. Sentiu um frio dentro de si e estremeceu: "Falta pouco, falta pouco.
Meia hora talvez; não. Talvez mais. Uma hora. Duas horas. Depois... nada."
Ouviu os passos da mãe e a irmã que vinham subindo a escada; rapidamente cobriu-se com a colcha para pensarem que já estava dormindo, caso abrissem a porta. Sentiu
medo; deixara a porta do quarto fechada a chave; tinha que abri-la, depressa, depressa se não desconfiariam. Tateando no escuro, foi até à porta, torceu a chave
bem devagar, voltou quase correndo para a cama, deitou-se e cobriu-se. No mesmo instante, a mãe abriu a porta e enfiou a cabeça dentro do quarto. Escutou. Deu uns
passos e perguntou, baixinho:
- Zelinda!
Ela fez um movimento como se despertasse:
- O que é?
- Quer um pouco de chá?
- Não senhora. Hoje não, estou muito bem.
- Joana me disse que você não queria, mas o chá faz bem, faz dormir, o medico recomendou.
- Hoje não, mamãe. Estou com sono.
- Não quer nada?
- Nada.
- Se quiser alguma coisa, me chame.
- Eu chamo.
Os dedos de Zelinda crisparam-se sobre a colcha. A voz da mãe sussurrou:
- Então, boa noite.
- Boa noite, mamãe.
"Era a última vez que dizia: boa noite, mamãe." Ouviu a mãe fechar a porta do quarto e andar pelo hall. Escutou mais; ouviu a porta do banheiro fechar e abrir, ouviu
ruído de portas que se fechavam lá em baixo, depois tudo silenciou na casa. Os bondes passavam longe, com um ruído de ferragens e campainhas. Dez e meia. Ouviu a
voz da irmã dizer boa noite:
- Boa noite, mamãe!
Silêncio. Chegara finalmente a hora. Levantou-se, foi até à porta, torceu a chave. Acendeu a luz. Num instante, tirou o vestido caseiro; procurou no guarda-roupa
um vestido bom e vestiu-o; calçou meias finas. Estava com roupa fina por baixo; não queria que ninguém tocasse no seu corpo depois de morta. Para que? Ela mesma
se vestia para dormir. Iria dormir. Apenas dormir. De repente lembrou-se do seu "diário"; quando era mocinha, escrevia um "diário" e mesmo depois de casada, escrevera
durante muito tempo. Havia se esquecido dele. Procurou-o febrilmente na última gaveta; lá estava o caderno entre dois chapéus; gostava de guardar seus chapéus pequenos
em gavetas. Abriu-o. Releu alguns trechos, não havia nada demais: "25 de Dezembro. Faz muito calor aqui em Pinheiral, em toda a parte faz calor nesta época. Deve
ser bom passar o Natal na Europa, entre a neve e o vento frio. Gigina mandou fazer o bolo de Natal, com pedaços de frutas, um bolo enorme. Gracinha bancou o Papai
Noel; durante a noite, colocou no meu sapato, um lindo corte de vestido. Não sei de que jeito trouxe de S. Paulo sem eu perceber. Todos ganharam presentes, inclusive
os criados. Há grande alegria na fazenda. Os bois mugem espalhados pelos campos. Vieram contar agora mesmo que nasceram dois bezerrinhos hoje. Estão todos alegres."
Sorriu. Podia acrescentar algumas linhas na última pagina. Para que? Tudo isso pertencia ao passado, a este mundo a que ela não pertencia mais. Iria desertar. Ouviu
uma porta se fechar lá embaixo. Assustou-se. O marido e a filha vinham voltando do cinema. Eles nunca entravam no quarto dela a essa hora. Ouvi-os subindo as escadas;
de súbito, Gracinha falou atrás da porta:
- Mamãe! Está sentindo alguma coisa?
Aborreceu-se por ter sido perturbada; teve vontade de não responder, mas seria pior. Falou:
- Não. Estou bem. A filha desculpou-se:
- Vi luz debaixo da porta, por isso estou perguntando.
- Ah!
- A fita é formidável. A senhora precisa ir ver. Pode ir com tia Gigina na matinée. Amanhã tem matinée.
- Está bem.
- Boa noite, mamãe.
- Boa noite, Gracinha.
- Papai está perguntando se a senhora não quer nada.
- Não. Obrigada.
Sua voz não tremeu. Fechou o "diário", dirigiu-se para a porta e torceu a chave outra vez para deixá-la aberta. Tudo estava bem. Apagou a luz maior e deixou só a
lâmpada da cabeceira. Tirou o revólver da gaveta, da mesma gaveta onde colocou o "diário" e encaminhou-se para o leito. Esticou bem a colcha, prendeu-a, tirou os
sapatos, deitou-se, arranjou, as pregas da saia ao lado do corpo. "Câncer. Não. Prefiro morrer, sei que não tem cura." Ficou imóvel um instante, escutando. Silêncio.
Seus lábios murmuraram: "Mamãe! Coitada de mamãe. Os outros não, mas ela vai sofrer." Seus olhos encheram-se de lágrimas. "Por que será que todo o mundo pensa na
mãe em certos momentos difíceis da vida? Parece que a gente vira criança outra vez. Mamãe!"
Aproximou o revólver da testa e sentiu o frio do aço na pele. "E se errar? Não. Não errarei. Eu quero mesmo morrer. Não posso viver assim, não posso. Sofro horrivelmente,
sinto dores atrozes, só a injeção faz passar. Como é que vou viver assim? Até quando? Sou covarde para sofrer, sou covarde". No último instante, lembrou-se de que
não era covarde, pois tinha a coragem inaudita de se matar; um último sorriso crispou seus lábios. Lembrou-se de um dia em que enfrentara um gato tido como louco;
toda a vizinhança e as mulheres do cortiço admiraram-na: "Como é corajosa!" Apertou o gatilho.
Dona Julica acordou com um ruído esquisito. Que seria? Um estampido? Um tiro? Um pneu de automóvel? Não era nada, sonhara com certeza. Ficou escutando longo tempo.
De súbito escutou uns gemidos, pareciam de gente. "Zelinda? Não é possível. Se ela quisesse alguma coisa, tocava a campainha, como tem tocado algumas vezes. São
os gatos da vizinha; são insuportáveis, não deixam a gente dormir tranqüila. O barulho que ouvi, foi alguma coisa que derrubaram no quintal. Que mania dessa gente
ter tanto gato... Amanhã eu vejo o que foi."
Dormiu outra vez. No dia seguinte cedo; quando entrou no quarto da filha, depois de ter dado o prato de aveia para Gracinha que saia às seis e meia de casa, encontrou-a
vestida de preto, estendida sobre a colcha lisa. A lâmpada da cabeceira ainda estava acesa e a luz esverdeada que se espalhava pelos móveis e pelo tapete, parecia
sinistra. A mão direita de Zelinda apertava ainda o revólver preto, enfeitado de madrepérola; apenas um fio de sangue escorria-lhe pelo rosto; o tiro fora direitinho
no ouvido direito. Sua fisionomia estava serena e parecia que um leve sorriso pairava na sua boca; apesar do sangue, do revólver, do quadro desolador, da atitude
de abandono, da morte, de tudo, ela parecia dormir.
Com o grito angustioso de dona Julica, todos correram; encontraram-na de joelhos ao lado da cama, a cabeça encostada no corpo da filha, os braços trêmulos procurando
ainda abraçar Zelinda; os olhos estavam secos e seu olhar desvairado pousava sobre o cadáver; seus lábios não cansavam de murmurar:
- Zelinda! Minha filhinha!
Houve um momento de pânico indescritível, depois tudo serenou; nada havia a fazer. Todas as pessoas da casa ficaram dentro do quarto, ouvindo os lamentos da mãe
desolada:
- Filha, escute, filha, sou eu, a velha. Você dizia: Mamãe, você está muito rabugenta, está ficando velha. Escute filha, não deixe a velha sozinha. Você me deixa
sozinha?
Abra os olhos, Zelinda, abra os olhos, nem que seja uma vez, quero ver seu olhar, só uma vez... Zelinda, está me ouvindo?
Vamos para Pinheiral no mês que vem. Não se lembra do que combinamos? Você está me ouvindo? Se não quer responde, sacuda a cabeça para eu saber que você está me
ouvindo. Só uma vez, filha, nem que seja só uma vez.
Fazia uma breve pausa; seu olhar enlouquecido passeava pelo quarto sem ver nada; os cabelos brancos desgrenhados, pálida e desesperada, tornava a falar:
- Filha, você dizia sempre: mamãe, este mundo não vale nada, é uma droga. Uns tem demais, outros não tem nada. Por quê? É mesmo, filha este mundo é miserável. E
no entanto, você tem coragem de me deixar neste mundo miserável e vai embora? Não, filha, você não vai. Não deixo você ir embora. Não deixo. Eu então vou junto.
Ah!
Aqui eu não fico sem você. Que me importa o resto? Está ouvindo, Zelinda? Filha, está me ouvindo? Eu sou a velha, não deixe a velha sozinha. Filha do meu coração,
você não é a filha do meu coração? Sempre foi, Zelinda, e você sabia disso. Como é que me abandona então? Impossível. Você não vai me deixar- Quem disse isso? Quem
foi? Quero saber quem foi.
A cozinheira persignou-se; solícito, Zeca inclinou-se e sussurrou:
- Dona Julica, vamos descansar um pouquinho lá dentro.
Gigina fica aqui. A senhora não quer tomar um café? Faz bem...
Ela agarrou-se com mais força às mãos de Zelinda; sacudiu a cabeça dizendo que não queria nada; logo mais sua voz continuou:
- Filha, está me ouvindo? Mundo desgraçado! Você não vai me deixar sozinha, não filhinha. Não vai. Não vai.
Algumas vizinhas entraram no quarto e começaram a chorar quando ouviram os lamentos de dona Julica. Horas passaram-se. Mais tarde, Gina e algumas pessoas aproximaram-se
de dona Julica para levá-la dali; seu rosto estava desfigurado pela dor e pelo desespero; começou a gemer e a puxar os cabelos e não quis deixar a cabeceira da filha:
- Não vou. Não saio daqui. Não abandono ela. Me deixem. Me deixem. Zelinda, querem me levar daqui. Está me ouvindo? Tenho certeza que ela me ouve; está sorrindo
para mim. Vejam...
E quando quis levantar-se para empurrar as importunas que queriam levá-la, não conseguiu e caiu sem sentidos sobre a cama. Levaram-na para o quarto; a criada lembrou-se
de ir buscar um vidro de amoníaco que dona Zelinda guardava no banheiro para limpar manchas de suor dos vestidos; passaram várias vezes o vidrinho sob o nariz de
dona Julica; ela abriu os olhos com esforço e de repente lembrou-se; levantou-se num salto, afastou as pessoas que estavam na frente dela e correu para o quarto
de Zelinda, cambaleando e gemendo:
- Filha! Filhinha! Zelinda!
Caiu de joelhos ao lado da cama e abraçando a morta pela cintura, gemeu e soluçou:
- Está me ouvindo, Zelinda? Está me ouvindo? Estou aqui com você, filhinha...
Consternadas, as vizinhas rodeavam dona Julica, sem saber o que fazer. Zeca que estava ajoelhado ao lado da cama e segurando uma das mãos de Zelinda, levantou-se,
assoou-se e chegando ao lado de Gina, cochichou no seu ouvido. - E Gracinha?
- É verdade. E Gracinha?
Gina prometeu ir buscá-la imediatamente; ela saíra muito cedo para o colégio e não sabia de nada. Gina vestiu um casaco, penteou rapidamente os cabelos e chamou
um automóvel. No colégio, explicou à Madre o que havia sucedido e pediu que chamassem Gracinha. Enquanto ficou sozinha na sala de espera, meio escura, pensou de
que forma iria contar a Gracinha, a morte de Zelinda. Olhou o chão, as cadeiras, a mesa do centro com um vaso azul cheio de cravos; já não estavam frescos, deviam
ter sido colocados ali dois ou três dias antes, talvez mais. Pensou: "Cravo é uma flor que dura tanto." Olhou os sapatos: "Preciso comprar uns sapatos novos, pretos.
Preciso um vestido preto também de crepe... Que crepe? Nem sei. A costureira deve saber. Crepe romain, crepe cetim, crepe... tem tanta qualidade de crepe. Digo a
Gracinha: "Estou tão triste, minha filha, sua mãe..." Parando assim no meio da frase, ela compreende. Há de compreender. Ela vai sentir a morte da mãe. Coitada!
Zeca também vai sentir, todos queriam bem Zelinda. E eu? Não sei, mas creio que não. Engraçado! Só conheci o lado mau de Zelinda. Parece que para todos ela foi boa,
para mim nunca foi. Por quê? Penso que tinha inveja de mim. É a única explicação. Inveja. Sempre foi injusta, maldosa e egoísta, mas para os outros não, só para
mim. Será que há muita gente assim? Não sei. Este mundo é tão engraçado... Mamãe disse que o mundo é isto ou aquilo... Para mim o mundo é Fernando e as crianças.
Meu Deus! Como eu sinto falta deles. Como os adoro! Preciso mandar telegrafar a Fernando. É Gracinha que vem vindo... O que irei dizer? Eu devia estar chorando,
afinal minha irmã morreu hoje, agora mesmo. Preciso chorar... Se eu chorar, não preciso nem falar, ela compreende... Mas não tenho vontade de chorar. Meu Deus! O
que irei dizer a ela? Sua mãe morreu agora mesmo. Impossível. Que brutalidade. Sua mãe está muito mal, Gracinha, está mesmo à morte. Mas depois, chega em casa, encontra
a mãe morta, é pior. O melhor é contar já, já. Sua mãe se matou. Como eu sou estúpida. Um raio de sol entrou pela janela e refletiu a poeira do tapete. Tapetinho
velho! Tão amassado, tão pisado. Quantos milhares de pessoas já passaram por aqui? Que saudades de Ana Luiza! Por que me lembrei dela agora? Já sei, porque uma vez
ela quis pegar um raio de sol e ficou uma porção de tempo estendendo a mãozinha. Que vontade de apertá-la em meus braços. E Fernandinho? Já sei o que ele vai dizer
quando eu chegar: Mãezinha, o que você trouxe para mim? Meu filho adorado! Agora é Gracinha que vem vindo, vem vindo... O que irei dizer? Meu Deus! Dai-me vontade
de chorar... Não é ainda. Eu devia sentir a morte de Zelinda, afinal era minha irmã, crescemos juntas, lutamos juntas, passamos fome juntas, (parece incrível que
já passei fome) choramos juntas, nossa miséria era tão grande. E não sinto ela ter morrido. Sempre tive pena dela, mas não afeição, nem amizade, apenas dó... Dai-me
vontade de chorar, meu Deus... Que hei de fazer? Não tenho vontade de chorar... Se eu chorasse agora, Gracinha compreenderia e eu nem precisava falar. Parece até
que estou aliviada de Zelinda ter morrido, agora posso voltar para Pinheiral, para o meu mundo. Não, não estou aliviada. Deus me perdoe. Agora é ela. É Gracinha."
No seu passinho rápido e leve, Gracinha entrou na sala, acompanhada pela Madre Superiora. Entrou sorrindo; Gina que estava sentada olhando o raio de sol sobre o
tapete, não viu mais raio, viu o vulto escuro da menina interceptando a luz. Levantou-se sem dizer nada e olhou Gracinha; o sorriso se apagou no rosto da menina;
Gina abriu os braços e apertou Gracinha contra si, num abraço longo e angustioso. Então Gracinha perguntou, sufocada:
- Mamãe, tia Gigina? Gina sussurrou:
- Sua mãe, Gracinha, sua mãe.
Viu tal angústia no rosto da menina que não teve coragem de continuar; a Madre pegou as mãozinhas de Gracinha e apertou-as contra o peito, depois disse, baixinho:
- Sua mãe, Maria da Graça, está melhor que nós. Está no céu.
Ela deu um grito de dor e começou a soluçar nos braços da Madre; depois voltou-se para Gina:
- Mas, quando? Quando ela morreu? Vovó disse que ela estava melhor, muito melhor...
- Morreu hoje, depois que você saiu. Seu pai pediu-me para vir buscar você. Vamos ter coragem, filhinha. Temos que ter coragem...
Não falou mais. Gracinha foi soluçando para o automóvel; a Madre acompanhou-a aconselhando e confortando. Gina não dizia nada, sentia horror de si mesma porque não
tinha vontade de chorar, nem vendo o desespero da menina. O pai esperava-as na porta da rua; abraçou a filha prolongadamente, depois entraram e subiram devagar as
escadas; desde a sala de jantar ouviram os lamentos de dona Julica. As vizinhas e amigas enchiam o quarto; afastaram-se quando a menina entrou abraçada ao pai. Dona
Julica ainda estava de joelhos ao lado da cama falando com Zelinda:
- Está me ouvindo? Filha, está me ouvindo? É Gracinha que vem chegando; você deixa Gracinha também? Fale filha...
A menina abraçou a avó pelos ombros:
- Vovozinha, ela morreu, ela não pode ouvir mais a senhora. Oh! Mamãe, minha mãezinha... Inda ontem quando eu vim do cinema, falei com ela; disse que a fita era
boa e ela me disse que ia ver... Mãezinha...
Começou a beijar as mãos da mãe num desespero, de joelhos ao lado do leito; dona Julica olhou estranhamente a neta; alguém sentia a morte de Zelinda tanto ou mais
que ela. Foi se acalmando ao ver a angústia de Gracinha, depois começou a consolar a neta; achara afinal quem precisava do seu consolo:
- Não chore assim, filhinha. Ela estava sofrendo tanto. Descansou. Nem dormia mais direito, nem comia, até a respiração estava difícil.
- Mas eu não queria que mamãezinha morresse. Eu não queria.
- Mas é a vontade do destino. Tinha que ser.
- Ah! Vovó, ela era tão boa...
- Era boa, sim, minha filha. Ah! Gracinha, como eu sofro....
- E eu, vovozinha? E eu? Eu não queria que ela morresse. Inda ontem de noite falei com ela, ouvi a voz dela. Ela disse: Boa noite, filhinha...
Foram se acalmando aos poucos. Levantaram-se e deixaram o quarto, uma nos braços da outra. Pela primeira vez depois de muitas horas, dona Julica concordou em tomar
algum alimento e descansar; encontrara afinal um pequeno consolo em Gracinha. Era como um lenitivo para seu desespero, era um raiozinho de sol na sua negra noite,
era um bálsamo na sua ferida.
Recostada na cama ao lado de Gracinha, ficou durante muitas horas imóvel, quase sem chorar; só o calor da neta ao seu lado era um consolo; de vez em quando falavam
na morta:
- Coitada de Zelinda!
- Não fale assim, vovó, ela está melhor que nós. A Madre disse.
- Como é que a Madre sabe essas coisas?
- Ah! Não sei, decerto é porque ela reza.
- O que ela reza?
- Reza as orações todas, vovó. E isso consola.
- Então vamos rezar juntas.
- O que?
- O que quiser.
No quarto vizinho Gina ouviu Gracinha ensinando dona Julica rezar:
- Depois da Ave Maria, diga: "Jesus, manso e humilde de coração, tornai meu coração semelhante ao vosso".
Se a senhora rezar isso uma vez por dia, terá trezentos dias de indulgência. Diga.
Dona Julica repetiu em voz alta a oração. Depois perguntou:
- Por que tem indulgência? Quem disse isso?
- Está escrito no livro de reza, vovó. Quer ver?
Houve um longo silêncio. No quarto de Zelinda, as amigas rodeavam o corpo da morta; Gina ouviu uma dizer à outra: "Este par de sapatos está quase novo. Veja um pouco.
Nem foi quase usado." A outra respondeu: "Ela fez de propósito, pôs o que havia de melhor." Gina pensou: "Bobagem. Para essa viagem, os sapatos não precisam ser
novos- Não se vai a pé."

























XV

Dr. Fernando chegou depois do enterro; encontrou a casa ainda cheia de gente, flores pisadas pelo chão, um cheiro esquisito de vela queimada e flores murchas. Gina
estava no quarto da mãe tentando consolá-la; o médico havia dado uma injeção em dona Julica, depois um calmante; ela estava recostada na cama, os cabelos brancos
caindo sobre a testa e uma expressão de desespero em toda sua figura. Gracinha estava deitada, atravessada nos pés da mesma cama e tinha um lencinho todo molhado
que levava aos olhos a todo o momento. Sentada numa cadeira ao lado de dona Julica, Gina passava as mãos sobre os ombros e os cabelos da mãe numa terna carícia.
Pascoalina que chegara de viagem dias antes, estava sentada noutra cadeira do lado oposto e suspirava enxugando os olhos. Duas vizinhas estavam de pé ao lado de
Gina; uma delas falava:
- Essas coisas são terríveis mesmo. Eu me lembro quando morreu minha mãe; quase morri. Passei três dias sem comer, nem beber, num estado... só vendo. Também eu era
mocinha, nunca tinha visto ninguém morrer, podia ter uns quinze anos.
A outra vizinha respondeu:
- Nem fale. Eu quando perco alguém da família, dou para gritar. Me dá um nervoso que não há quem me segure. Lá em casa, já sabem; morreu algum parente e ouviram
gritos na hora do enterro, dizem logo: "Já sabemos. É a Adélia que está gritando." "É um horror, não me contenho." Pascoalina levantou-se e foi fumar perto da janela
entreaberta; as vizinhas ficaram olhando para ela com ar de admiração; ela falou depois de ter assoprado a fumaça:
- Dona Julica tem razão de estar tão triste. Perder uma filha moça, assim com tanta vida... A Zelinda tinha muita vida, era alegre... Onde ela estava, estava a alegria.
As outras confirmaram; ela continuou:
- Perder em tão pouco tempo, não é brincadeira. E depois eram tão amigas. Nunca vi uma longe da outra; Zelinda casou e continuaram a morar juntas, nunca se separaram.
Gigina foi morar longe, viajou pela Europa, mas Zelinda sempre esteve com a mãe. Nunca vi.
Uma vizinha sorriu ao contar:
- Eu achava até graça quando as três iam passear juntas: dona Julica, dona Zelinda e Gracinha. Sempre juntas no cinema, nas visitas, nos passeios...
- Não se lembra daquele dia que dona Julica caiu da escada? Que susto! Dona Zelinda ficou tão aflita, foi correndo lá em casa perguntar se eu não tinha arnica para
esfregar na perna da mãe. Eu não tinha, aconselhei passar salmoura quente, fazer compressas e pôr assim no lugar. É muito bom. Ela estava com medo de que a velha
tivesse quebrado algum osso. Estava branca.
A outra vizinha respondeu:
- Ela era muito boa, muito amável. Quando Juquinha ficou doente, ela perguntava todos os dias pelo menino: O Juquinha está melhor? Passou a febre? Todo o santo dia.
Quando não era ela, mandava a Benedita.
Pascoalina jogou fora o cigarro e veio se aproximando da roda outra vez; sentou-se e cruzou as pernas, depois perguntou:
- Gigina, você viu quando beijei disfarçadamente os pés de Zelinda?
Gina sacudiu a cabeça negativamente; Pascoalina continuou:
- Dizem que é bom para a gente não sonhar com defunto. Tenho um medo horrível de defuntos e fico sem dormir a noite inteira quando vejo um. Um vizinho lá do apartamento
morreu e eu fui lá. Pra que fui? Não dormi de noite, vi o homem a noite inteira na minha frente. Então beijei os pés dele, dizendo que é uma simpatia muito boa.
Uma das vizinhas falou, convicta:
- Eu também já ouvi dizer que isso é muito bom. Mas é que às vezes a gente não lembra.
Pascoalina riu:
- Ah! Mas eu me lembrei e agora fico sossegada. O defunto não vem para meu lado.
Gina falou baixinho:
- Mas Zelinda é diferente, Pascoalina, ela era sua amiga. Não é a mesma coisa.
- Quem vai se fiar em defunto?
Dona Julica moveu-se e sentou-se na cama; Gracinha perguntou:
- Vovozinha quer alguma coisa?
Dona Julica não respondeu, calçou os chinelos e foi em direção ao banheiro; Gina foi amparando-a. Pascoalina sussurrou:
- Coitada da velha. Foi um baque.
As duas vizinhas confirmaram com a cabeça. Ouviu-se um movimento lá embaixo e ruído de vozes; uma das vizinhas correu para a janela e espiou:
- Será que o pessoal já voltou do enterro? Impossível, não dava tempo.
Outra correu para o hall e debruçou-se no corrimão da escada. Gritou;
- Chegou gente!
Pascoalina levantou-se para ver quem era; Gina que voltava do banheiro onde deixara dona Julica, pôs a mão no coração como a conter-lhe as batidas; reconhecera a
voz do marido. Desceu a escada depressa e caiu nos braços de Dr. Fernando:
- Estava ansiosa para que você viesse, meu bem."..
Ele abraçou-a sem dizer nada. As vizinhas foram se retirando; Pascoalina ainda ficou para tomar outro café, depois despediu-se dizendo que voltaria no dia seguinte.
Zeca voltou do cemitério e ficou sentado numa cadeira da sala de jantar, como que apalermado. À hora do jantar, dona Julica não quis descer, mas Gina insistiu para
que ela tomasse ao menos um prato de sopa; Gracinha levou-lhe e ela tomou umas colheradas. A menina também declarou que não queria nada, nem sopa; mas sentou-se
à mesa para assistir ao jantar. Tomou uns goles de sopa dizendo que era um sacrifício engolir, depois resolveu comer um pedaço de carne assada com arroz porque tia
Gigina pediu; depois comeu couve-flor com molho branco, sobremesa e queijo. Quando terminou, olhou o pai e os tios e falou muito admirada, dando um suspiro:
- Juro que não estava com fome, não sei como é que comi tanto.
Gina sorriu e acariciou-lhe os cabelos.
No dia seguinte, Gina encontrou o diário de Zelinda; abriu-o e leu algumas paginas: "Adoro Debussy. "Au clair de lune" me faz chorar. Ontem vi numa loja da rua Direita
uma fazendinha azul clara com bolinhas marrom. Comprei três metros e meio para um vestido"
Mais adiante: "Os rios correm para o mar. Há os que têm tudo e os que nada têm. Eu nada tenho. Não. Não posso me queixar, tenho alguém que pensa em mim, mesmo de
longe."
Noutra página, depois de casada: "Penso que morrerei cedo. Tenho esse pressentimento sombrio e todas as vezes que vejo um carro fúnebre passar, penso que em breve,
passarei também. Irei a caminho do Araçá; é lá que temos nossa futura casa. Ontem ouvi "Fuga" de Bach e "Jesus, alegria dos homens", também de Bach. Chorei."
Mais adiante: "Meu dia foi cheio hoje. Fui ver uma fita com uma amiga, depois tomei chá com doces e trouxe chocolate para Gracinha. A noite fui ao teatro com Zeca
- ótima peça do Procópio. Depois do espetáculo, encontrei umas amigas que não via há muito tempo, fomos todos juntos tomar novamente chá numa confeitaria. Eu estava
com meu vestido marrom, novo, acharam-me elegante. Recordamos muita coisa nessa noite, ficaram de me telefonar para sairmos juntas: Branca e Jeny. Não contei que
já fiz quarenta anos. Me acharam moça."
Adiante: "Estou emagrecendo sem regime, sem remédio, sem nada. Mamãe falou ao almoço que devo consultar um médico. Pois se estou contente de estar emagrecendo, por
que consultar? Recebi carta de Pinheiral, tudo bem. Estarei doente? Um emagrecimento assim não é natural."
Noutra página: "Branca me telefonou, ficamos de sair juntas qualquer dia. Jeny me disse que tem dois filhos e está separada do marido. Contei que também estive separada
do Zeca, depois fizemos as pazes por causa de Gracinha que chorava muito. Menina sensível! Por amor não foi que fiz as pazes. Gina está esperando outro filho e está
contente. Tola!"
Quando acabou de ler outros trechos, Gina ficou pensativa; a irmã era muito diferente do que ela pensava, recordou-se do que lera num livro: "Não se chega a compreender
uma pessoa senão depois da sua morte. Enquanto ela vive, todas as coisas que poderá ainda realizar, e que nós ignoramos, constituem incógnitas que alteram os cálculos.
A morte determina os contornos: é como se a pessoa se destacasse de suas possibilidades e se isolasse. Andamos em seu redor, vemo-la como é na verdade, podemos fazer
um julgamento de conjunto... mas não a conhecemos." Como isso era verdade. Não conhecera Zelinda; não sabia que ela gostava tanto de música. Arrependia-se de não
ter sido mais amiga da irmã, de não ter procurado compreendê-la melhor. Como fora cega! Nessa noite, após o jantar, Dr. Fernando convidou a sogra e Gracinha para
residirem em Pinheiral, ao menos passar uma temporada grande. Dona Julica falou com energia:
- Então vou deixar Zelinda sozinha? Não tem perigo, não posso ir.
Zeca aconselhou-a a ir; faria bem a ambas e Gracinha estava tão adiantada nos estudos que a perda de uns meses não a prejudicaria. Dona Julica tornou a falar voltando-se
para o genro: - Então pensa que vou deixar minha filha aqui? Pois se pretendo ir visitá-la todos os dias, como é que vou para a fazenda? Não posso!
- Gina impacientou-se:
-• Mas, mamãe, quando a senhora voltar, vai visitá-la. O que adianta agora ficar aqui? Vamos embora. Lá a senhora descansa, faz bem para Gracinha também. Ela está
magrinha, vamos. Mudança de ares faz bem a todos.
Ela falou resoluta e teimosa:
- Não. Vocês vão embora, eu não abandono minha filha.
Deus me livre.
Gina insistiu:
- Isso não é abandonar, mamãe. Se Zelinda fosse viva, compreenderia.
- Já disse que não vou e não vou. Não adianta discutir.
Gracinha preferiu ficar com o pai e a avó; resolveram procurar outra casa, não queriam continuar nessa onde Zelinda sofrera e morrera.
Dr. Fernando e Gina pagaram todas as despesas do enterro, deram dinheiro a dona Julica para pagar o colégio da menina, despediram-se e embarcaram alguns dias depois.
Dona Julica prometeu ir à fazenda nas próximas férias da neta.
Nesses primeiros dias, em Pinheiral, receberam muitas visitas; toda a cidade foi dar pêsames ao Dr. Fernando e dona Georgina pela morte de Zelinda; "tão boa, coitada,
mas um pouco aluada, nem parecia irmã de dona Georgina, tão diferente, mas eram só meias irmãs, por isso..." Na missa do sétimo dia, a igreja ficou repleta; todo
o povo se comprimiu para abraçar o casal e o padre Ernesto rezou uma missa solene por alma da defunta, "tão boa, coitada, mas..."

































XVI

Durante anos e anos a vida não se modificou na fazenda Pinheiral; os donos eram sempre generosos e amáveis para com as pessoas da cidade e os da cidade interessavam-se
vivamente pelo que se passava na fazenda. Costumavam visitar dona Belmira todos os anos quando ela vinha do Rio para passar uns meses na fazenda; visitavam também
dona Julica que vinha com Gracinha passar as férias de Dezembro. Mandavam pratinhos de doces para a menina e quando os da fazenda iam à cidade para a missa das dez
aos domingos, comiam geléia feita por dona Sinhá, a senhora do Juiz. Toda a cidade sabia que os filhos de Dr. Fernando, os filhos do primeiro matrimônio, estavam
crescidos e fortes, moravam com a mãe no Rio de Janeiro e vinham uma vez por ano visitar o pai em Pinheiral; sabia também que Maria Clara, já com dezesseis anos,
respondera um dia para dona Georgina, só porque esta a mandara limpar os sapatos antes de entrar; estava chovendo e os sapatos enlameados.
- A senhora não é minha mãe, não manda em mim.
Todos ficaram penalizados e acompanharam o sentimento de dona Georgina, que ficara muito sentida, depois desculparam a menina; afinal era criancice. Isso passava.
Em 1931, quando Maria Clara fez dezoito anos, a cidade toda soube que ela ficara noiva no Rio, de um moço muito distinto. Acompanharam Dr. Fernando e dona Georgina
em pensamento, quando eles foram para o Rio fazer o casamento; depois souberam dos detalhes: o vestido era de cetim e o véu, de rendas verdadeiras, fora da avó de
Maria Clara, a defunta dona Eulália. Souberam que o casal ficara residindo no Rio e quando Dr. Fernando e dona Georgina voltaram, foram visitá-los para comentar
o acontecimento. Souberam também que Eduardo, o filho, entrara para a Escola da Marinha; na primeira vez que ele foi a Pinheiral, depois desse fato, ficaram curiosos
para vê-lo de farda. Cumprimentaram Dr. Fernando por ter um filho tão bonito e já numa carreira tão boa e tão honrosa.
Quando Gracinha fez dezoito anos e foi com a avó para a fazenda, toda a cidade se interessou pela menina e o jornal local publicou nas "Sociais" de domingo: "Acham-se
entre nós vindas de S. Paulo, onde residem, dona Júlia Camargo Franceschini, viúva do professor Pasquale Franceschini, e sua gentilíssima neta, Maria da Graça. Para
os íntimos - Gracinha. Auguramos a Gracinha, uma feliz estadia entre nós." E Gracinha recebeu convites para festas e bailes; os rapazes principais da cidade procuraram
namorá-la; as casamenteiras trataram de arranjar casamento para a menina. Dona Loló insinuara o Chico, um rapaz de futuro, pois já tinha um sítio, mas dona Ermengarda
não gostou da idéia da amiga; o Chico já estava prometido para Lucinha há muitos anos. Dona Loló protestou:
- Mas dizem que a Lucinha gosta do Genaro.
- Qual o que, respondeu dona Ermengarda. Ela namora de vez em quando o Genaro para fazer ciúmes ao Chico, mas gosta do Chico e é com ele que vai se casar. Dona Loló
perguntou:
- Então quem você acha que está bom pra Gracinha?
- O Ramos. No domingo, no clube, vou apresentar o Ramos pra Gracinha. Você vai ver que dá certo. Sempre acerto essas coisas.
Dona Ermengarda fez ar de pouco caso; não simpatizava muito com o Ramos porque quinze anos antes discutira com a mãe dele e haviam ficado de mal, por uma coisinha
à toa.
Mas Gracinha não namorou ninguém; brincou, dançou, divertiu-se e voltou com a avó para S. Paulo; dois anos depois, ficou noiva de um primo, parente longe do pai.
Gina foi a S. Paulo providenciar o enxoval da sobrinha; residiam numa casa da Alameda Tietê. Gina comprou, encomendou, tratou de tudo. Gracinha e o marido resolveram
continuar a residir na mesma casa com dona Julica; Zeca, o pai, vivia em casa de uma irmã viúva e visitava a.filha todas as semanas.
Dona Julica andava com umas manias muito esquisitas; ia um dia sim, um dia não no cemitério do Araçá e conversava com Zelinda; contava à filha, todas as novidades
da família. Descreveu-lhe o casamento de Gracinha, quem era o noivo, contou que Dr. Fernando pagou as despesas, que o Zeca estava cada vez mais envelhecido, queixando-se
de uma úlcera no duodeno.
Contou como era o vestido de Gracinha, os vestidos das convidadas, os presentes que Gracinha ganhou, as cestas de flores... depois voltou para casa contente e feliz.
Era sempre assim desde a morte da filha; em todos esses anos visitou a filha no cemitério e contou tudo o que sabia e o que ouvia. Vinha contente para casa, rindo
sozinha, feliz.
A cidade também comentava as esquisitices de dona Julica; dona Ermengarda olhava dona Loló e levava o dedo indicador à testa como quem diz: "Ela não regula bem da
bola." Quando souberam que Maria Clara havia tido um filho, no Rio de Janeiro, foram cumprimentar Dr. Fernando "um avô tão moço e sacudido; assim era bonito ser
avô." E quando Gracinha teve a primeira filha, dona Georgina recebeu os cumprimentos; "era pena a defunta dona Zelinda não conhecer a neta; tão boa, coitada, mas...
havia de ter tanto gosto nisso."
E os anos foram passando um a um sobre Pinheiral. Um dia, Helena e Fernandinho fizeram a primeira comunhão; desde um mês antes, a cidade comentou o acontecimento.
Dona Clarisse que preparava as crianças todos os domingos depois da missa, ficou encantada com a inteligência dos filhos de Dr. Fernando. Dizia que Helena "tinha
grande agilidade mental e uma vivacidade fora do comum", enquanto que Fernandinho era mais inteligente: não parecia, mas era, dona Clarisse afirmava com convicção.
Contavam, uns aos outros, as respostas que Helena dava às perguntas de dona Clarisse e num dos últimos domingos correu de boca em boca a melhor graça de Fernandinho;
enquanto dona Clarisse explicava o inferno e ele ouvia com olhos dilatados de espanto (dona Clarisse até pensou que ele estivesse atemorizado) perguntou de repente:
"Dona Clarisse, sabe que ganhei um cavalinho alazão do papai?" Todos riam quando contavam a "última de Fernandinho."
No domingo da primeira comunhão, padre Ernesto pediu a dona Georgina que cantasse no coro; doze crianças iam comungar pela primeira vez, diversas famílias disputaram
a honra de hospedar Dr. Fernando e dona Georgina para um "chocolate" oferecido aos comungantes; ficaram pesarosas quando souberam que já estavam comprometidos com
dona Sinhá. Dona Loló e dona Ermengarda ficaram aborrecidas e chegaram a censurar dona Sinhá que sempre chegava em primeiro lugar em toda a parte. Dona Loló suspirou:
- Afinal ela é mulher do Juiz, Erme.
O vestido de Helena viera de S. Paulo, de uma casa importante e ficara caríssimo; era todo entremeado de rendas; o véu viera também de S. Paulo, uma riqueza. As
mães de quase todas as crianças comungaram também e isso emocionou os que assistiram; perguntaram a Gina se não ia comungar:
- Dona Georgina não acompanha os filhinhos nesse ato de fé?
Gina disse que dessa vez não, porque iria cantar; e quando cantou a "Ave Maria" de Schubert durante a missa, muitas pessoas tiveram vontade de chorar porque a voz
de dona Georgina comovia até às lagrimas.
Ninguém sabe como começou, nem de onde surgiu o primeiro boato na cidadezinha; a principio, eram apenas frases veladas em voz baixa, ditas discretamente com a mão
no canto da boca: "A senhora soube do que está correndo por aí?" A outra respondia baixinho: "Soube sim. Será verdade? Quase nem acreditei." A primeira continuava:
"Me asseveraram que é a verdade pura. O irmão de um cunhado meu tem um primo em S. Paulo e esse primo soube de fonte limpa por um outro. É verdade."
Continuava o diálogo sem disfarce algum, bem às claras:
- Quem havia de dizer. Parece incrível!
- Nem fale. E nós com tanta amizade pra cá e pra lá. Que horror.
- Até fico arrepiada quando penso nisso.
- Eu também. Este mundo está perdido. Não vale mais nada; nem um vintém.
- Isso eu digo sempre, não vale mesmo.
Entre os homens havia comentários também; quando se encontravam na porta do clube ou na mesa do jogo; antes de dar cartas ou então quando pediam uma cerveja no balcão
do bar. Um sussurrava:
- Será certo esse boato que corre por aí?
- Não sei, dizem que é exato.
O terceiro afirmava:
- É exato, sim. Pois o Alcebíades da Tudinha tem um cunhado em S. Paulo que soube por um irmão e contou tudo. Nunca pensei.
- Mas não parecia. Nunca supus que isso pudesse ser verdade.
- Nem eu. Então, à nossa.
- À nossa!
E emborcavam os copos de cerveja, recostados no balcão de mármore do bar do Chancharulo.
Depois os comentários foram aumentando; um dia dona Loló, dona Ermengarda e dona Cilota foram à casa do Juiz para comentarem o caso com dona Sinhá. Estavam excitadas;
aproximaram as cadeiras umas das outras e falaram depressa:
- Quem diria, hein, dona Sinhá? E nós recebendo ela em nossa casa, tratando de igual pra igual... Que coisa!
- Eu tenho dó é do marido. Tão bom, tão esmoler e casado com uma mulher dessa espécie!
- Não faz muito ele deu dinheiro para o altar de Nossa Senhora do Rosário... O "Município" deu a notícia.
- Pois é isso mesmo. Tenho muita pena dele. Será que não sabia antes?
- Vai ver que não. Essas mulheres têm lábia.
- Elas sabem iludir os homens. Pobre do marido!
- E os homens são tão inocentes pras manhas de mulher...
- Inocentes, dona Loló? Que é isso?
- Quero dizer que acreditam em tudo que mulher diz...
- Ah! Isso sim.
De repente dona Ermengarda falou com mais animação:
- Eu não queria dizer nada antes porque não valia a pena, mas sempre desconfiei de alguma coisa.
As outras olharam para dona Ermengarda e ficaram atentas, com cintilações nos olhos. Dona Loló perguntou:
- Por que você desconfiou, Erme, viu alguma coisa imprópria?
Dona Ermengarda pigarreou, olhou para o lado da porta para ver se não havia alguém e falou inclinando-se para a frente:
- Desconfiei por causa da irmã dela; aquilo não eram modos de moça distinta. O que nós pensávamos que era esquisitice, era sem-vergonhice. Quem não está vendo que
a irmã era uma bisca? Me diga uma coisa, alguma das senhoras viu algum dia o marido dela? Garanto que não tinha marido nenhum. Era só "meu marido" pra cá e pra lá.
Mentira, não havia marido, sou capaz de jurar.
Dona Ermengarda falava com entusiasmo, com convicção. As outras ficaram ponderando. Dona Cilota arriscou:
- Mas a menina também falava no pai. Eu me lembro... Dona Loló interrompeu:
- Ah! Isso podia ser ensinado...
Dona Sinhá procurou apaziguar:
- Não. Podia ser que ela fosse mesmo casada e depois tivesse separado. É estranho que o marido nunca tenha vindo aqui.
As outras quase aplaudiram:
- Então é isso. Dona Sinhá tem razão. Com certeza viviam separados.
- Dona Ermengarda interrompeu:
- Lembram-se de uma vez no clube o jeito que ela apareceu? Estava com um vestido creme com rosas vermelhas deste tamanho... Não sei que jeito a sirigaita deu (Deus
me perdoe, já morreu) e fez com que duas rosas ficassem aqui nos dois seios... Lembram-se? Pois meu marido não tirava os olhos das duas rosas, eu já estava ficando
enfezada...
Dona Cilota sorriu:
- Os homens gostam dessas coisas...
- Pois por isso mesmo precisamos ser enérgicas e não tolerarmos certas facilidades...
- Precisamos ser intransigentes para certos fatos...
- Dizem até que uma vez que ela veio à cidade fazer compras, parou no bar do Chancharulo pra beber uma cerveja.
- Essa eu não sabia...
- Ela era capaz de tudo.
Dona Cilota falou, tímida:
- Viemos pedir sua opinião, dona Sinhá. Que devemos fazer? Qual a atitude que devemos adotar?
Dona Ermengarda e dona Loló falaram depressa:
- Dona Cilota, devemos cortar o mal pela raiz. Dona Sinhá é da nossa opinião, nem se discute.
Dona Sinhá hesitou um instante:
- Não sei, é uma questão tão delicada. Eu me dava tanto com ela, vinha sempre aqui depois da missa dos domingos, fico sem saber o que fazer. Vou falar com Sebastião...
Dona Loló exaltou-se:
- Dona Sinhá, não há o que escolher. Então vamos deixar nossos filhos brincarem com os filhos dele? Pense bem, dona Sinhá, pense bem. Não devemos permitir isso,
temos que ser os censores dos nossos filhos.
Dona Ermengarda interveio:
- Ela tem razão. Vejam um pouco: se nós não zelarmos pelo futuro dos nossos filhos, quem vai zelar? E se deixamos os nossos brincarem com os dela, quanta ruindade
não poderão aprender? Quanto mau costume? E somos nós, as mães, que temos que arcar com as responsabilidades; os homens não têm tempo para ver certos fatos.
As outras concordaram. Dona Sinhá levantou-se e foi pedir um café na sala de jantar; voltou e sentou-se. Dona Cilota estava com a palavra:
- Devemos fazer as coisas com muito critério, isto é que estou falando pras nossas amigas, dona Sinhá. Sem ela perceber nada, vamos nos afastando aos poucos, não
aceitaremos mais os almoços na fazenda, não convidaremos mais ela para vir à nossa casa, ela há de perceber.. Vamos cortando aos poucos.
Dona Loló bateu uma mão na outra:
- Agora estou me lembrando; por isso ela não quis comungar quando os filhos fizeram primeira comunhão. Quase todas as mães comungaram, a Tuda não foi porque estava
muito pesada; Leontina estava com gripe, naquele dia mesmo estava com febre de 38; e ela não tinha nada, até cantou na igreja. Dava pra gente desconfiar.
- Dava mesmo. Achei sempre a mãe dela diferente das outras senhoras da idade; não conversava muito bem, sempre desconfiada de um lado. Nós é que devíamos desconfiar.
- Não. Pra mim o pior era o modo como a irmã se vestia; parecia mesmo vulgaríssima...
- E esse negócio de cantar... vai ver que foi cantora de teatro.
- E de teatro barato, se não a gente havia de ouvir falar.
Pararam de comentar para tomar café; elogiaram; o café de dona Sinhá dizendo que tinha fama; depois que a criada levou a bandeja, continuaram com mais animação:
- Tenho dó é do marido. Tão bom homem.
- É verdade, dona Sinhá. E a primeira mulher dele foi distinta, toda a gente fala. Pena ele não ter escolhido bem na segunda vez.
- Pena mesmo. Por isso agora estou me lembrando, os filhos do primeiro matrimônio não paravam na fazenda, vinham do Rio e voltavam logo. Não se davam bem aí.
- A mãe dele também. Vinha todos os anos, é verdade, mas não demorava muito, e sempre com um ar triste.
- Eu também reparei. Não atinava com a tristeza dela, agora compreendo.
- Decerto era desgosto.
- Naturalmente. Penso também nas crianças. Como irão criar essas crianças?
Dona Sinhá procurou defender:
- Mas as crianças são até bem educadas, já fizeram a primeira comunhão, o fato é que a gente não pode criticar.
Dona Ermengarda ficou de pé:
- Mas dona Sinhá, a senhora já viu árvore bichada dar bons frutos? Os frutos têm que ser bichados por força. Eu nunca vi e já tenho vivido muito...
Dona Cilota gostou da comparação:
- Dona Ermengarda dava um bom advogado de defesa. Sabe falar muito bem.
Dona Ermengarda sentou-se e ficou numa atitude imponente, para que a admirassem. Dona Loló sorriu:
- De defesa? Acho que dava melhor da acusação...
Sorriram. Houve uma pausa curta. Dona Cilota falou outra vez:
- A gente quando não tem do que desconfiar, não leva a mal nada do que vê e ouve; mas depois, a gente começa a pensar e a ligar certos fatos. Eu achava que eles
viviam convidando a gente para ir à fazenda, para almoçar, para piqueniques, tudo isso parece que era para disfarçar... Agora estou acreditando. Era para passar
mel nos lábios do povo.
- É mesmo. Quem não deve, não teme. Essas amabilidades demais eram para esconder alguma coisa, para engambelar a gente. Nós é que nunca desconfiamos de nada...
- É porque temos a consciência tranqüila; quando a gente não deve nada, não desconfia.
Dona Sinhá falou:
- Mas eu custei a acreditar. Acho que ela enganou todos muito bem.
- Muito bem. E eu andei dando receitas de biscoito de polvilho, até me arrependo. Dona Sinhá deu aquela receita especial de "papo de anjo?"
- Pois dei também. Ela me pediu...
- Antes não tivesse dado, ela não merecia. Então vamos minha gente; a prosa está boa, mas precisamos ir andando.
- Nossa atitude então será essa, de defesa, não é dona Sinhá?
- Acho que sim. Será melhor nos afastarmos aos poucos sem escândalo, sem nada. É para não magoar o Dr. Fernando. Ele é tão bom...
Dona Loló bateu na testa:
- Lembrei agora, quem sabe nem são casados! Dona Ermengarda sentiu um arrepio:
- E nós nos dando com gente amigada! Que horror!
Dona Cilota defendeu:
- Isso creio que não. Dr. Fernando é incapaz disso.
- Vamos indo?
- Quem poderá saber? Os homens...
- Eu ensino ela a respeitar gente honesta.
- Ela há de ver.
Despediram-se com protestos de muita amizade e deixaram a casa de dona Sinhá. Toda a cidade soube dessa conferência em casa do Juiz; e todos resolveram adotar a
mesma atitude de dona Sinhá: fugir de dona Georgina. E a cidade ferveu de comentários e diz-que diz-que; falavam agora abertamente. Dona Georgina, a distinta esposa
do Dr. Fernando tinha sido "mulher da vida" em S. Paulo. Desaforada. Pensar que era igual às outras! Ela havia da ver. Tinha feito uma farsa e enganara a todos,
mas ela ia ver agora a verdadeira farsa: ia ser posta de lado da sociedade, afastada, desprezada.
Todas as qualidades de Gina tornaram-se defeitos; sua amabilidade para com as pessoas era para iludir e não dar tempo de se lembrarem ou quererem saber do seu passado;
sua beleza era pecaminosa; sua voz era péssima, voz de teatro barato; sua dedicação pelo marido era fingida e seu amor pelos filhos era só para enganar as outras
mães; nada era sincero.
No primeiro domingo depois de declarada a guerra, Gina percebeu a animosidade contra ela; ao deixar a igreja, não encontraram dona Sinhá e o Juiz que os convidavam
sempre para tomar um café ou um refresco. Procuraram os conhecidos, que paravam todas as vezes para falar com eles à saída da missa e não viram ninguém; avistaram
de longe dona Loló e dois filhos, mas caminhavam com tanta pressa e tão rapidamente que não foi possível alcançá-los; viram depois o seu Tobias, um fazendeiro vizinho
e a família. Seu Tobias e as duas filhas cumprimentaram Gina de longe e entraram depressa no automóvel; a senhora do seu Tobias não a viu, estava distraída.
Resolveram então passar pela casa de dona Sinhá para saber se alguém estava doente; encontraram o Juiz muito ocupado, disse que dois homens o esperavam no escritório
para tratar de negócios e dona Sinhá, com uma dor de cabeça como nunca tivera antes, estava deitada. O Juiz, muito desajeitadamente convidou-os para entrarem e tomarem
um café, mas eles não aceitaram, ficou para outro domingo; despediram-se e entraram de novo no automóvel. Passaram pela farmácia de seu Inácio para comprar sabão
para barba e pasta dentifrícia; seu Inácio serviu-os muito apressadamente e quando Gina perguntou pela esposa disse que ela havia saído com as crianças, (moravam
nos fundos da farmácia). Gina achou muito esquisito e não disse nada, mas ouviu gritos de criança lá dentro e olhou para seu Inácio: estava todo ruborizado.
Voltaram para Pinheiral. Durante toda a semana não apareceram visitas na fazenda. Gina nada disse ao marido mas desconfiava que alguma coisa acontecera; Dr. Fernando
também percebeu, mas não comentou.
No domingo seguinte, quando foram à cidade, quase não encontraram conhecidos à saída da missa; viram dona Cilota e uma filha, mas dona Cilota estava muito atarefada
amarrando um laço de fita na cabeça da menina e não viu Gina; só quando ela parou ao seu lado e perguntou: "Bom dia, dona Cilota, como vai a senhora?" Dona Cilota
levantou a cabeça e disse com falsa alegria:
- Ah! É dona Georgina? E eu que não tinha visto a senhora... Também estou com tanta pressa, meu menino não passou muito bem a noite, creio que foi indigestão. Por
isso vou indo... Até logo.
Gina perguntou: - Dona Sinhá continua doente? Há dois domingos que não a vejo...
Dona Cilota voltou-se com ar triunfante, como se a ela coubesse a ventura de atirar a primeira pedra:
- Doente? Não me consta. Só sei que dona Sinhá não vem mais a esta missa, vem à das oito porque é melhor pra ela. Passe bem, dona Georgina...
E foi embora, apressada, empurrando a menina para a frente. O pior foi dona Ermengarda, logo depois. Dr. Fernando entrou num cartório para falar sobre um negocio
e Gina ficou sentada no automóvel, esperando. Viu dona Ermengarda e o marido virem a pé pela calçada fronteira; olhou-os para cumprimentá-los, viu então dona Ermengarda
e o marido voltarem os rostos e olharem atentamente uma vitrina. Nessa mesma noite, no Clube, dona Ermengarda gabou-se com orgulho; fora a primeira, a única que
tivera coragem de voltar o rosto e não cumprimentar aquela mulher que as enganara durante tanto tempo; e mais orgulhosa se sentia porque o marido a acompanhara no
gesto. Fora magnífica essa adesão muda do marido, pois às vezes os homens pensam tão diferente... E dona Ermengarda sorriu com triunfo.
Gina assustou-se; estavam todos contra ela. Todos. Não escapava ninguém. Por quê? Tinha adivinhado a resposta: porque fora infeliz. Desprezavam-na e humilhavam-na
pela desgraça que sofrera, pela vida humilhante que levara. Que mundo estranho este! Nesse dia conversou com o marido sobre o que estava sucedendo na cidade; a guerra
era às claras, declarada, sem perdão. Dr. Fernando ainda duvidou, parecia-lhe impossível; para tirar uma prova definitiva, resolveu convidar os amigos para um almoço
no dia do seu aniversário, como fazia todos os anos. Uns dias antes, ele em pessoa telefonou a uma dúzia de amigos fazendo o convite e o dia do almoço chegou. Veio
um automóvel da cidade trazendo padre Ernesto e o Juiz; veio outro automóvel trazendo dois fazendeiros vizinhos, cujas esposas estavam gripadas, alguns amigos solteiros
e só. O almoço que fora preparado para vinte amigos, foi servido para seis e logo depois de terminado, o Juiz pediu licença e voltou à cidade "tinha um mundo de
papéis para despachar".
Nessa noite o casal ficou só, à luz do lampião, um na frente do outro, tristemente abandonado. O único pensamento que os aniquilava era o futuro dos filhos. Não
sofreriam mais tarde sentindo essa animosidade? Como cresceriam nesse ambiente hostil e como suas mentalidades se desenvolveriam sentindo o desprezo sobre eles?
Por quê? Que culpa tinham esses filhos? Por que o mundo os condenava e os separava do convívio social, se nada haviam feito? Pois se os pais estavam condenados ao
desprezo, mais tarde os filhos também sofreriam o mesmo desprezo. Onde estava a justiça?
Pela primeira vez pensaram em vender Pinheiral e retirarem-se para uma grande cidade, onde viveriam desconhecidos na multidão. Mas Gina sofria à idéia de desfazer-se
da fazenda. Foi se tornando rancorosa e revoltada; seu temperamento, tantos anos tranqüilo pela felicidade que desfrutara, veio à tona como as águas bravias em dia
tempestuoso. Tornou-se uma revoltada; explodia a todo,o momento em palavras de ódio contra aquela sociedade que a bania pelo seu passado, pelo seu desgraçado passado.
Essa mesma sociedade que a abandonara no caminho tenebroso da perdição. Que culpa tinham seus filhos inocentes?
Daí em diante, começaram a viver como caramujos, recolhidos em si mesmos; pouco deixavam a fazenda. Tinham raras visitas de velhos ou amigos solteiros; a única preocupação
era o futuro dos filhos. Como aceitariam mais tarde a situação?
Gina ia às vezes à cidade para experimentar um vestido, para levar as crianças ao dentista, para alguma compra, e não visitava ninguém. Algumas pessoas cumprimentavam-na
de longe; o marido de dona Ermengarda cumprimentava-a quando sozinho, mas quando em companhia da mulher fingia que não a via. A única pessoa que continuou a procurar
Gina foi Odete Pinheiro; ela e o marido estavam no Rio de Janeiro quando os primeiros boatos circularam pela cidade. Foi a primeira notícia que ouvira quando desembarcaram;
no dia seguinte à sua chegada, dona Áurea, a mulher do farmacêutico, foi visitar dona Odete. Sentou-se na saleta da frente, e contou tudo que sabia.
- Oh! Áurea, você tem coragem? Freqüentamos tanto a casa dela, há alguém que possa acusá-la? Há algum motivo para desconfiar? Diga!
- Motivo não há, mas basta eu lembrar o que ela foi, não posso nem olhar para ela. Tenho até asco.
Houve um silencio. Dona Odete sussurrou:
- Coitada de Georgina! Tenho pena do que está acontecendo, francamente.
- Você é tolerante demais, eu não tenho pena. E é por causa dessas tolerâncias que a sociedade está como está, uma podridão. Se todos fossem mais exigentes a respeito
dessas sem-vergonhices, o mundo seria diferente, haveria mais respeito e mais critério na sociedade.
Dona Odete perguntou admirada:
- Que sem-vergonhice você está falando? Ela fez alguma coisa incorreta? Que eu saiba, nada. Georgina é uma das senhoras mais distintas que conheço, vive só para
a família, nem é vaidosa, nem se pinta quase... Uma mulher que quer ser sem vergonha, é vaidosa acima de tudo e Georgina é tão simples... O passado é o passado e
nós não sabemos nada, nada.
Dona Áurea levantou-se:
- Nunca pensei que você fosse tomar o partido dela, nós todas estamos contra e continuaremos contra. Ermengarda nem cumprimenta mais ela; se encontra na rua, vira
o rosto. Assim é que está direito. Dona Sinhá, dona Cilota, todas...
- Pois eu penso diferente; tenho pena e continuo a considerá-la como sempre. Ela é correta e não tem culpa do seu passado.
Dona Áurea deu um grito:
- O que? Continua sua amiga? Então amanhã você deixa sua filha ser amiga da filha dela? Com o passado que ela teve? E quem nos diz que ela não teve culpa? Diga!
Uma mulher ignóbil, desclassificada...
Dona Odete ficou um pouco indecisa e dona Áurea continuou, triunfante:
- Deixa sua filha ser amiga? Hein? Não sei se foi dona Loló que disse uma coisa muito certa outro dia em casa do Juiz: "Os frutos de uma arvore bichada, têm que
ser bichados forçosamente."
- Não acho...
- Odete, você me desilude...
- Mas, Áurea, quem sabe foi uma criatura que cresceu num meio ruim, num meio pernicioso e não teve auxílio de espécie alguma... Não se sabe de nada, quem sabe foi
infeliz.
- Infeliz? Sem vergonha é o que ela foi! Toda mulher pode ser honesta em qualquer circunstância. Sempre. Há sempre trabalho para mulher que quer ser honesta, digna.
E aquela que leva essa vida é porque quer. Por que não foi lavar roupa? E quem foi, sempre será. Se amanhã ela namorar seu marido, você deixa? Está de acordo?
- Meu Deus! Mas ela nunca namorou ninguém, pelo menos nunca vi. Você viu?
- Nós não vimos, mas não ponho a mão no fogo por ela. Eu já vou indo. Este seu vestidinho está muito bonito. Comprou no Rio? Comprou feito?
- Comprei. É cedo ainda.
- Não. Pense bem na nossa conversa. O caso é muito sério e a cidade não fala noutra coisa. Ela deve ser expulsa do nosso convívio, já foi aliás. Não merece a nossa
amizade... lembrança ao Dr. Pinheiro. Conte para ele, ouviu? Até loguinho.
Desceu uns degraus da escada que dava para um jardinzinho e voltou-se:
- Olhe, Odete, depois que você refletir melhor, verá que temos razão. Se não formos enérgicas e intransigentes para certos casos, a sociedade ficará cada vez pior...
Já está ruim e se nós não reagirmos será pior. Temos que combater pelos nossos filhos, pelo futuro deles...
Parou no portão. Dona Odete alcançou-a e retrucou:
- Mas afinal, aponte alguma coisa de mal que ela tivesse feito aqui. Nunca fez nada, Áurea. Precisamos ser justas, o que passou, passou.
- Você tem o coração muito mole. Acha pouco o passado vergonhoso que ela teve? Lembre-se das árvores carunchosas de dona Cilota ou dona Loló, não sei bem... não
podem dar frutos perfeitos. Cesteiro que faz um cesto, faz um cento, minha cara.
- Bobagens.
- Não crê na hereditariedade? Olha que vai se arrepender depois... Reflita, até logo.
Deu dois passos e voltou-se;
- Você gostaria que seu filho casasse com a filha dela? Hein?
- Ah! Não sei...
Dona Áurea riu-se:
- Toquei no alvo, hein, Odete? Até logo, seu vestido está uma gracinha...
Dona Odete segurou-a pelo braço:
- Escute uma coisa, conheço moças que não tiveram passado algum, foram criadas ao lado do papai e da mamãe, foram santinhas no colégio das freiras e depois de casadas
são piores que três mulheres da vida juntas.
Dona Áurea parou indecisa:
- Isso acontece...
- Acontece também que uma mulher por circunstâncias que desconhecemos teve um passado pouco recomendável e depois torna-se uma senhora da grande distinção, com mais
linha que muita moça sem passado algum...
- Isso é verdade. Mas não volto atrás. Até logo...
Nessa noite, Dona Odete e o Dr. Pinheiro conversavam a respeito do "escândalo" como diziam na cidade. Resolveram continuar as mesmas relações de amizades com Pinheiral,
mas breve toda a gente censurou-os e apontaram dona Odete como uma leviana. Dona Loló chegou a dizer com desprezo, a respeito deles.
- São aves de arribação, por isso não se importam, qualquer dia vão embora da cidade.
Outros disseram que o Dr. Pinheiro tinha grandes lucros como médico da fazenda e outros ainda que a educação dele era muito moderna, por isso não se importava com
escândalos, estava acostumado.
De repente esqueceram esse caso para tratar de um assunto palpitante para a cidade: o Presidente do Estado iria até lá no próximo mês inaugurar uma Escola, uma ponte
e uma estrada de rodagem; seria hóspede da cidadezinha durante um dia inteiro. À noite, haveria banquete e baile; a cidade esqueceu provisoriamente a história de
Gina que passou para segundo plano e começou a comentar a visita do Presidente e as festas; viria de S. Paulo uma grande comitiva. As costureiras começaram a trabalhar
ativamente, algumas senhoras encomendaram vestidos na Capital, e todos já sabiam a cor do vestido de dona Sinhá, que dona Loló mandara vir de S. Paulo um par de
sapatos prateados e dona Ermengarda encomendara um vestido de cetim branco; comentaram em voz baixa que dona Ermengarda estava muito gorda para usar branco, isso
era para mocinhas ou senhoras de corpo fino. Com a mão na boca diziam com malícia uma para outra: "Está um pouco velha também".
De súbito, uma lembrou-se de perguntar:
- Será que a bisca da Georgina vai ao baile?
A que ouviu teve uma idéia que foi considerada magnífica:
- Pois se ela for, eu não irei, está aí.
Todas aplaudiram e juntaram-se imediatamente; cada uma celebrizou-se com frases assim: "Se ela for não iremos." "Nenhuma de nós." "Vamos fazer uma greve." "Ela há
de ver."







XVII

- Em Pinheiral Gina disse a marido que preferia não ir ao baile, mas Dr. Fernando protestou: "Por que não haviam de ir? Ele era amigo do Presidente e haviam se formado
juntos; tinham sido sempre amigos e visitava-o quando ia a S. Paulo. Por que não ir? O que o presidente diria sabendo que eles residiam em Pinheiral e não compareciam
às festas? Precisavam ir."
Discretamente, Gina dirigiu-se à cidade e foi procurar Natália, a costureira que trabalhava para ela e os filhos. Na segunda semana, quando apareceu em casa de Natália
para experimentar o vestido, encontrou-a nervosa, e embaraçada. Experimentou, puxou, prendeu, ajoelhou-se para ver o comprimento da saia e de repente, tirou os alfinetes
da boca para falar:
- Dona Georgina, não sei se eu devia contar à senhora, mas...
Pelo espelho, Gina viu o rosto vermelho de Natália e notou seu embaraço; perguntou:
- O que há, Natália? Pode contar o que quiser. Fale, estou quase adivinhando.
- Não. Não pode adivinhar, dona Georgina.
- Eu sei que falam mal de mim. O que disseram agora?
Natália levantou-se e medindo a cintura de Gina para fazer o cinto, explicou:
- Estão dizendo por aí... Não vá se zangar, dona Georgina. Estão dizendo que se a senhora for ao baile do Presidente, nenhuma senhora irá.
Gina respirou fortemente:
- Falaram isso?
- Falaram, sim senhora. Todas que vêm experimentar o vestido aqui falam a mesma coisa. Fiquei indignada, dona Georgina, mas a senhora sabe, são minhas freguesas
também e não quero ofender ninguém.
Gina afastou uns passos e olhou Natália bem de frente; levantou a cabeça altiva, os olhos brilhantes de cólera:
- Pois diga para essas mulheres que vêm aqui, diga mesmo, - ouviu Natália? - Que não me importo se elas vão ou não vão ao baile do Presidente, mas eu irei. Ouviu?
Não devo nada a ninguém e irei; mesmo que seja a única mulher no baile, irei.
Começou a tirar o vestido pela cabeça. Natália falou com humildade:
- Cuidado que um alfinete pode cutucar a senhora. Eu fiquei tão furiosa que nem dormi direito essas três noites. Isso não se faz... mas eu estava louca de vontade
de prevenir a senhora.
- Fez muito bem, Natália. Obrigada por ter me contado, mas se alguma daquelas feras tornar a falar, pode dizer: ela vai ao baile. Ouviu bem?
- Ouvi, sim senhora.
Gina vestiu-se auxiliada por Natália; suas faces estavam vermelhas de raiva:
- Diga também que se elas tiveram a sorte de nascer abastadas, de não precisar pedir, nem se humilhar para viver, não devem desprezar as que não tiveram essa felicidade,
não devem desprezar as que choraram por um pedaço de pão...
Natália começou a se desculpar:
- Não leve a mal eu ter contado, dona Georgina, desculpe.
- Não tem que pedir desculpa. Fez bem em contar, mas não fale nada disso que falei antes, não merecem minhas explicações. Não fale nada.
- Nada direi, dona Georgina.
O Presidente chegou num sábado à cidade; entre os que o esperavam na estação, estava o Dr. Fernando. Assim que viu o velho amigo, o Presidente abraçou-o e perguntou
pela família. À noite, depois do banquete realizado na Prefeitura, as famílias se dirigiram ao Clube para assistir ao grande baile. Eram onze horas da noite. Gina
veio de Pinheiral e ao lado do marido, entrou no Clube juntamente com a comitiva do Presidente. Os salões estavam repletos; num relance percebeu que. todas as senhoras
estavam presentes e, apesar da ameaça, nenhuma havia faltado.
O presidente voltou-se, solícito, quando a viu numa das portas do salão principal; Dr. Fernando apresentou-a. Muito gentilmente, o Presidente deu-lhe o braço e dirigiram-se
ao lugar de honra; então a orquestra tocou uma valsa e ele que só dançava valsa, convidou-a para dançar. Sorrindo, um pouco assustada entre tantos inimigos, ela
aceitou. Estava bonita, num vestido preto muito discreto e elegante; enquanto valsava, viu rostos conhecidos sorrirem para ela; percebeu dona Ermengarda, dona Loló,
dona Cilota... Seria possível? Não estaria sonhando? Conversava com o Presidente, mas nem sabia o que falava; sentia-se emocionada e um pouco sufocada. Viu dona
Ermengarda dançando com Dr. Pinheiro; estava de branco, muito apertada numa cinta nova; todas sabiam que dona Ermengarda estava estreando uma cinta. O que não se
sabia naquela cidadezinha? Percebeu dona Sinhá falando dela a uma vizinha; quando passou, a outra disfarçou e sorriu levemente fingindo que estava falando sobre
o calor. Depois da valsa, sentou-se ao lado do Presidente e olhou o baile; Odete Pinheiro e o marido aproximaram-se para cumprimentá-la; dona Cilota passou dançando
e cumprimentou, muito formalizada.
Então dona Odete contou que todas estavam assim amáveis por causa do Presidente; antes da comitiva .desembarcar, toda a gente sabia que Dr. Fernando era íntimo do
Presidente; mas ela não se iludisse; no dia seguinte a guerra continuaria, talvez mais acerba ainda. E foi verdade. À meia noite a comitiva embarcou no trem especial;
assim que o Presidente deixou o Clube, tudo transformou-se para Gina. Parece que até o salão tornou-se hostil, como a expulsá-la; não viu mais rostos risonhos a
cumprimentá-la, só viu fisionomias fechadas em carrancas e olhares furtivos quando ela não estava olhando. Pediu ao marido para voltar à fazenda; e nessa noite ficou
determinado que Pinheiral seria vendido. Iriam residir no Rio de Janeiro definitivamente, por causa dos filhos. Gina revoltava-se à idéia de deixar a fazenda:
- Miseráveis. Riram para mim só porque dancei com o Presidente, assim que ele deixou o baile, viraram-me a cara. Mulheres bandidas .
E dando um soco no travesseiro, deitou-se; Dr. Fernando procurou acalmá-la:
- Não leve tão a serio, Georgina, A sociedade é mesmo hipócrita e em cidades pequenas assim, com mentalidades tão pouco desenvolvidas, não é de estranhar. Vamos
embora e acabou-se.
- Decadência mental. Elas todas são decadentes mentais. O que eu fiz, Fernando, que elas pudessem me recriminar?
- Nada. É assim mesmo. Não perdoam.
- Que coisa horrível. Vamos embora, até é melhor para as crianças; muito melhor que cresçam noutro ambiente mais adiantado, mais civilizado, mais puro.
- Muito melhor mesmo.
Na semana seguinte, Dr. Fernando seguia para S. Paulo e a fazenda Pinheiral com terras que se estendiam a perder de vistas, foi posta à venda.
Os comentários que haviam enfraquecido depois do baile do Presidente, fortaleceram de novo com a venda da fazenda. Reuniram-se outra vez em casa de dona Sinhá para
resolverem um problema que parecia sem solução: iriam ou não despedir-se deles na estação?
Dona Loló era de opinião que deviam ir; seu peito arfava em suspiros fundos e dizia:
- Afinal, coitada! Vai embora de mudança, a gente devia ter pena dela.
Dona Cilota protestava:
- Eu por mim não ia. Já cortamos mesmo as relações, para que reatar no momento da despedida? Para que?
Dona Mirtes que batizara um filho de dona Sinhá e era muito considerada por ser mais velha e avó de dois netos, chegou atrasada à reunião desse dia:
- Boa tarde, comadre. Boa tarde para todos. De que se trata?
Explicaram a dona Mirtes e perguntaram a opinião; ela era muito alegre e tudo levava em brincadeira, teve uma idéia:
- Vamos pôr o caso em votação. Que acha, comadre?
Dona Sinhá concordou:
- Pois vamos. Começamos aí por dona Cilota: vamos ou não à estação?
-Meu voto é contra. Eu não vou. Dona Loló o que acha?
- Acho que devemos ir. Afinal fomos amigas dela, freqüentamos tantas vezes a fazenda, almoçamos lá... Houve o que houve nos afastamos e acho que está muito direito,
mas como vão embora de uma vez e não voltam mais, o que tem que a gente vá à estação?
Dona Áurea interveio:
- Para ela se rir de nós?
Dona Mirtes protestou:
- Não chegou sua vez ainda, dona Áurea. Espere um pouco; vamos saber a opinião de dona Ermengarda.
Dona Ermengarda conservava-se silenciosa nesse dia; quase não falava e tinha uma aparência tristonha. Logo à chegada, foi dizendo que estava com uma terrível dor
de cabeça. Quando se viu interpelada, passou a mão pela testa, como a confirmar que a dor continuava, depois titubeou e respondeu:
- Não sei bem, não pensei ainda no caso, mas acho... nem sei.
Dona Cilota e dona Áurea protestaram vivamente:
- O que Ermengarda? Ainda hesita? Você que é a mais valente, até virou a cara para eles desde o primeiro dia, ainda hesita? Está ficando como Odete Pinheiro? É o
cúmulo!
Dona Ermengarda sorriu tristemente:
- Ah! Desde o baile, tenho uma pena de Georgina...
Olharam admiradas para dona Ermengarda. Dona Sinhá respondeu:
- Pena por quê? Pois eu não tive nenhuma. Achei ela tão altaneira, tão orgulhosa dançando com o Presidente que até tive raiva. Francamente.
Dona Ermengarda falou com humildade:
- Mas eu acho que devemos ir à estação, dona Sinhá. Afinal eles vão embora de mudança e enquanto viveram em Pinheiral e freqüentaram a cidade, o que temos contra
eles? Nada. Sempre foram bons e amigos...
Dona Ermengarda baixou os olhos, toda confusa. Houve um coro de protestos e exclamações; dona Mirtes adivinhou logo:
- Isso foi arte de Odete Pinheiro; ela tem muita lábia, encheu a cabeça de Ermengarda.
Dona Ermengarda reagiu fracamente:
- Não. Não foi, nem estive com Odete. É porque refleti melhor... Dona Mirtes interrompeu:
- Está bem. Dois votos a favor e um contra. Muito bem. Dona Áurea, sua vez.
Com os lábios apertados de raiva, dona Áurea disse logo:
- Eu não vou. Contra.
- Dois contra dois. E a comadre o que diz? Dona Sinhá hesitou um instante:
- O meu voto é a favor; apesar de tudo, devemos ir. Dona Mirtes exultou:
- A eleição está se tornando interessante. Três contra dois. Agora vou dar meu voto: não dou nem contra, nem a favor. Acho que aquelas que eram mais amigas de dona
Georgina como dona Sinhá, dona Cilota devem ir à estação...
Agora, aquelas que freqüentaram Pinheiral, mas não eram amigas de peito como eu, dona Ermengarda, dona Loló, dona Áurea não devemos ir...
Aplaudiram dona Mirtes; deu provas de mais ponderada e mais criteriosa de todas. Dona Loló chegou a bater palmas:
- Muito bem, dona Mirtes.
Dona Mirtes sorriu lisonjeada e tomou um gole de limonada que dona Sinhá mandara servir. Dona Ermengarda pediu licença, levantou-se para sair; disse que não estava
muito boa e retirou-se.
Nessa mesma tarde, Gina estava fazendo compras na loja do seu Arruda quando viu dona Ermengarda entrar; fingiu que não a viu e continuou a escolher fazendas, mas
dona Ermengarda aproximou-se e falou:
- Boa tarde, dona Georgina, como vai a senhora?
Depois perguntou pelas crianças, deu uma prosa e se foi sem comprar nada. Gina ficou pensativa; o que teria dona Ermengarda?
No dia seguinte Dr. Fernando contou o que havia: tinha ido à Câmara e dois amigos de Dr. Fernando haviam pedido pelo marido de dona Ermengarda que estava para perder
o emprego; uma carta para o Presidente, pois eram tão amigos... Era preciso salvar o Bentinho. Gina compreendeu. Então era para pedir, pedir uma carta para o Presidente,
por isso dona Ermengarda sorria, procurava falar com ela, perguntava pelas crianças... O Bentinho não sabia que Dr. Fernando era tão amigo do Presidente, se não
não teria rompido. Interesseiros. Gina perguntou ao marido se ele ia atender ao pedido e escrever a carta; Dr. Fernando ficou indeciso. Gina pediu:
- Não dê carta nenhuma. Ela é muito desaforada e andou se gabando de me desfeitear. Não dê, Fernando.
Dr. Fernando lembrou:
- Mas ele vai perder o emprego na Câmara se não houver um pedido nesse sentido.
- Pois que perca. Quem manda dona Ermengarda ser tão fingida? Agora vive me procurando para falar... Porque precisa de mim, não sou ruim, não é? Não dê nada.
Os pedidos continuaram a chegar para a carta do Bentinho. Coitado! Perderia o emprego. E uma carta, apenas uma carta do Dr. Fernando poderia salvar a situação. Tivesse
pena.
Uma tarde, Gina estava sozinha no terraço de Pinheiral, quando viu um automóvel se aproximar; era Dr. Pinheiro e dona Odete. Ficaram conversando ali mesmo no terraço,
estava um dia quente. De súbito, dona Odete pediu a Gina, a carta para o Presidente. Tivesse pena, o Bentinho perderia o emprego se Dr. Fernando não pedisse.
Nessa mesma noite, quando Dr. Fernando chegou, Gina telefonou a dona Odete que a carta seria enviada no dia seguinte. A cidade suspirou, aliviada. Dona Loló falou
nessa mesma tarde para dona Cilota:
- Nunca, devemos desprezar os outros. Olha aí a Ermengarda; fez pouco caso da Georgina, virou a cara, pintou o sete, agora foi pedir favor. Que sirva de lição pra
muita gente...
Dona Cilota baixou os olhos e não respondeu; e o Bentinho não perdeu o emprego na Câmara, graças a D. Georgina.
Pinheiral com seu gado, suas enormes plantações, sua cascata que caía de tão alto como um véu branco, suas terras que se perdiam de vista, seus pinheiros perfumados
e sua paineira em flor na frente da casa, foi um dia vendida.
Um dia de tristeza para seus habitantes. Gina chorou. Ana Luiza e Fernandinho foram se despedir dos cavalos, das árvores, da cascata. Dias depois deixaram a fazenda
para sempre. Percorreram a casa, o pomar e as crianças despediram-se de toda a criação. Fernandinho ficou um tempo soluçando, abraçado ao pescoço do alazão; o pai
disse que o cavalo não fora vendido, seguiria muito breve para o Rio.
Quando entraram no automóvel e dirigiram-se para a estação, voltaram muitas vezes a cabeça, para ver Pinheiral ainda uma vez. Lá estava a paineira dominando tudo
pelos arredores; suas flores cor de rosa pareciam dar gritos de saudade na beleza da manhã; o sol batia em cheio sobre a casa e o jardim. Viram Benedita, a preta
velha que fazia parte da fazenda e morava numa casinha nas terras que Dr. Fernando dera, sacudindo o braço em direção ao automóvel; viram seu braço magro e preto
agitando-se no ar num adeus triste porque era para sempre; Benedita estava chorando, coitada! O cavalinho alazão, excitado com a beleza da manhã de sol, corria pelo
campo ao lado do automóvel, como a apostar corrida, depois parou perto da cerca e apoiando a cabeça na porteira ficou olhando o carro que desaparecia. Fernandinho
com os olhos cheios d'água gritou:
- Adeus Alazão! Gina consolou o filho:
- Daqui a um mês, ele estará no Rio, meu filho, não chore.
E pela última vez olhou para trás. A casa e a paineira pareciam envolvidas na leve neblina da manhã; viu as janelas dos quartos das crianças, o terraço, as janelas
do seu quarto, a arvore florida, o chão salpicado de rosa e aquilo tudo imóvel, parado, sem vida, como um quadro; do outro lado, viu os animais esparsos pelo campo,
cabeças inclinadas para o solo, mastigando; o rio mais longe e o braço negro de Benedita suspenso, no ar, como uma advertência de que tudo aquilo já pertencia ao
passado, ao esquecimento. Seu coração diminuiu como se fosse desaparecer. Meu Deus! Era ela mesma que ficava ali também no quadro que via da janelinha, do automóvel;
era um pedaço do seu coração que ficava como que dependurado num galho da paineira, era sua saudade, era sua vida.
O carro deu um solavanco e fez uma curva rápida; Gina fechou os olhos um instante para guardar na retina o ultimo quadro; Ana Luiza agarrada ao braço dela, falou:
- Mamãe, não chore...
Ela abriu os olhos e sorriu:
- Não, minha filha, isso é demais para chorar.
As crianças não compreenderam; o marido olhou-a e não disse nada.
No pátio da estação, despediram-se do rapaz que guiara o automóvel e que ficava na fazenda. Entraram. A primeira pessoa que viram foi padre Ernesto que estendeu
as duas mãos para eles, sorrindo com tristeza; as crianças apertaram a mão do padre. Lá estava o Juiz e dona Sinhá, o delegado, Dr. Pinheiro e dona Odete, vários
amigos de Dr. Fernando e num canto, humildes e silenciosos, o Bentinho e dona Ermengarda. Muito desapontados, foram se aproximando para agradecer a carta mais uma
vez. Outras pessoas chegaram com um pouco de atraso e a estação ficou cheia. O chefe da estação, o telegrafista e outros funcionários foram apertar a mão de dona
Georgina; todos desejaram boa viagem e feliz estadia no Rio de Janeiro; "e que não esquecessem dos velhos amigos." O Juiz chegou mesmo a dizer que Dr. Fernando não
devia ter vendido Pinheiral; podiam residir no Rio para educar melhor os filhos e conservar a fazenda para as férias ou para uma temporada grande, de vez em quando.
Dr. Fernando não respondeu. Eram sete horas da manhã; o sol parecia querer incendiar a cidade. Dona Odete levou flores para Gina; despediram-se em abraços longos
e palavras repassadas de, amizade; promessas de mandar o novo endereço muito breve, muito breve.
- Hoje o dia vai ser quente.
- Vão sentir calor na viagem.
- Que pena irem embora de uma vez.
- Quem sabe aparecem um dia para fazer uma surpresa pra gente? Adeus, dona Georgina...
- Boa viagem, Dr. Fernando. Felicidades.
O trem começou a rodar e todas as mãos agitaram-se na despedida; Gina percorreu todos os rostos com o olhar. Lembrou-se que dona Ermengarda sussurrara ao seu ouvido,
a voz tremula: "Deus lhe pague, nunca esquecerei o que fez por nós."
Coitada! Lá estava ela dizendo adeus também. Adeus, cidadezinha! O trem deu um apito triste. Parecia triste; viu umas casas na beira da estrada, galinhas ciscando,
uma delas era carijó estava cercada de pintos. Com as azas abertas, chamava os pintos que corriam, assanhados. Viu cachorros sonolentos que mal abriram os olhos
para ver o trem passar; uma criança sem graça levantou a mão para dizer adeus aos viajantes, ninguém respondeu. As últimas casas foram ficando para trás; o trem
corria como louco. Contentes com a novidade da viagem, as crianças se acomodaram, discutindo, por que queriam ficar junto às janelas; queriam ver a paisagem. Decerto
Fernandinho já esquecera o Alazão. Ana Luiza estava rindo e mostrando os bois que pastavam perto da cerca; Helena pensando na vida feliz que iria levar no Rio de
Janeiro. Gina não viu mais as casas da cidade. Bois vagarosos na beira da linha, plantações espalhadas aqui e ali, bezerrinhos ao lado das vacas, riozinhos, postes,
matas, campos, aves de caudas longas no pau da cerca, flores humildes espiando no meio do capinzal, um homem parado olhando o trem, nada. Recostou a cabeça no banco
e suspirou baixinho: "Adeus, Pinheiral."





















XVIII

Dr. Fernando e Gina fizeram inúmeras amizades no Rio de Janeiro: instalaram-se numa bela casa em Copacabana e matricularam os filhos nos melhores colégios.
Helena foi se tornando cada dia mais bonita; era parecida com Gina, mas,com os olhos negros do pai. Muito sociável, tinha um círculo grande de amigas e nos dias
de aniversário a casa ficava alegre e animada. Dançavam. Ana Luiza tinha personalidade marcada; não tão bonita como Helena, mas inteligente e viva, tinha resposta
para tudo. Fernandinho era estudioso e considerado bom menino, tranqüilo e ajuizado.
Com o tempo, Gina foi se esquecendo do que sucedera na cidadezinha; seu passado era uma névoa quase apagada que raramente vinha à memória. Visitava a mãe todos os
anos em S. Paulo; dona Julica vivia sempre com Gracinha e auxiliava-a a criar os filhos; Gracinha tinha três crianças; tornara-se uma senhora muito quieta, amiga
da casa e dos seus, não parecia filha de Zelinda. Zeca residia Com a irmã, viúva, mas almoçava diariamente em casa da filha. Estava aposentado, envelhecido pela
doença e sua única alegria eram os três netos; gostava de pô-los no colo e contar-lhes historias de Maria e Joãozinho. As crianças ficavam ouvindo o avô num encantamento
e quando Zeca falava imitando a voz da feiticeira: "Joãozinho, deixa ver seu dedinho, quero ver se está bem gordo", o menor dos netos, no colo, encolhia-se todo
e escondia as mãozinhas gordas, atrás das costas, medroso. Gracinha que costurava sentada ali perto, ria sempre. Era tão diferente de Zelinda, tão sensata, tão preocupada
com sua família que Gina se sentia feliz quando vinha a S. Paulo. Comprava então presentes bons e caros e distribuía generosamente à família de Gracinha; parece
que era o único meio que encontrava para demonstrar sua satisfação.
Dona Julica nunca pudera esquecer a filha; visitava-a todas as semanas no cemitério; não ia todos os dias porque sua idade não permitia, mas ia pelo menos uma vez
por semana. Trôpega e reumática, toda de preto, tomava o bonde para ir ao túmulo de Zelinda. Gracinha contava em voz baixa a Gina, um pouco assustada: "É sempre
a mesma coisa, tia Gigina. Até impressiona; conversa com mamãe, pergunta se ela sabe que o último neto já está falando, conta tudo como se mamãe pudesse escutar.
Fico até arrepiada, já vi mais de uma vez."
Gina aconselhava-a que a deixasse, era uma mania como outra qualquer, tinha pena da mãe. Distribuía os presentes, beijava os filhos de Gracinha, abraçava dona Julica
e a sobrinha e voltava para o Rio, entre os seus. Via seus filhos fortes, bonitos e inteligentes; esquecia o passado, feliz com seu próprio destino.
Possuíam uma chácara em Teresópolis, para onde tinham vindo alguns cavalos de Pinheiral, entre eles o Alazão e os cães caçadores, dos quais Dr. Fernando não pudera
se separar. Todos os anos, durante o verão, tomavam o automóvel e seguiam para Teresópolis, onde passavam dois ou três meses; era quase como se estivessem na fazenda
outra vez: passeios a cavalo, tranqüilidade, vida de roça. Os menores adoravam a chácara, mas Helena, que já estava mocinha, achava falta do Rio com suas atrações.
Gina não se importava consigo mesma; queria só saber se seus filhos e seu marido estavam bem, se não sentiam nada, se haviam tomado coalhada, se haviam almoçado,
se haviam gostado da receita do pato assado com aquela farofa, se não haviam acordado durante a noite com os latidos do Black. Era a mãe de família burguesa e pacata,
vivendo somente para os seus, como se nada mais tivesse importância. Em Teresópolis, ia todos os dias à cozinha fazer um prato novo e quando Dr. Fernando o elogiava,
sentia-se feliz. Engordara, mas não se importava; tinha bons vestidos, gostava de andar sempre com roupas boas, mas não dava importância a certos detalhes; sua única
preocupação era a família. Começou a usar óculos por causa da vista cansada; quando chegava em casa, perguntava logo se Ana Luiza tinha voltado do colégio, onde
estava Fernandinho, porque Helena não tomara o copo de leite. Não era vaidosa, era amorosa, profundamente amorosa. Queria bem a tudo que a rodeava: pessoas, animais,
plantas. Preocupava-se com uma roseira que não dera quase rosas aquele ano; chamava o jardineiro e ficavam os dois à volta da planta, comentando e procurando descobrir
a causa. Percebia que Black, o cachorro predileto das crianças, estava perdendo o pêlo; consultava o veterinário que mandava dar um vermífugo mas Black saia correndo
e ninguém conseguia segurá-lo. Uma das empregadas chamava-a: ela vinha com mansidão e fazia o cachorro tomar o remédio; ele relutava um pouco e tomava. Descobrira
no jardim que o pé de manacá estava cheio de bichos e por isso não dava bastante flores; ia buscar um remédio e ficava mais de uma hora tratando da planta.
Ensinava música aos filhos; Ana Luiza gostava de piano, talvez um dia fosse pianista; Fernandinho era admirável no desenho, quem sabe seria pintor? Como seu velho
pai, o Pasquale, quem sabe seria escultor? Cantava quase todas as noites quando estavam sós; Dr. Fernando ficava ouvindo em silêncio. Os filhos, extasiados. Freqüentava
a sociedade por causa dos filhos, mas não gostava; não sabia se era devido ao passado e ao medo de encontrar algum conhecido daquele tempo ou se não gostava por
não gostar; nunca se aprofundara em si mesma para saber.
Considerava-se feliz por ser casada com Dr. Fernando; era um homem bom e afetivo e ela nada mais queria a não ser isso: amor do marido e afeto dos filhos.
Quando Helena fez dezesseis anos, Gina percebeu que ela estava preocupada e distraída; descobriu logo que a menina tinha um pesar. Educava os filhos de tal modo
que contavam tudo a ela: as intrigas de colégio, os namoros, a preguiça de estudar certas matérias, as notas baixas. A mãe aconselhava, ensinava como deviam agir
nesta ou naquela questão; procurava uma solução para todos os casos, sempre com muito critério e calma. Era mãe e amiga ao mesmo tempo. Quando percebeu a tristeza
de Helena, ficou esperando que ela mesma viesse contar; não perguntou, não inquiriu, como se nada quisesse saber. Passou-se muito tempo antes que Helena contasse.
Um dia Ana Luiza entrou na sala, onde Gina estava colocando flores numa jarra; deu uma volta, levantou a cortina e espiou o jardim, contou que Mimosa, a cachorrinha,
não quisera almoçar; depois chegou-se a Gina e olhou as flores de perto:
- Mamãe, vou tirar os espinhos desta rosa.
E tirou fora da jarra as rosas de cabo longo, respingando água sobre a mesa de vidro.
- Ana Luiza, olhe o que você está fazendo. Deixe isso.
- Quero só tirar os espinhos, mamãe. Veja quantos.
- Mas tirar para que? Ninguém vai pegar os espinhos. Deixe as rosas.
Ana Luiza tirou uns dois ou três espinhos, feriu um dedo tornou a respingar água que Gina enxugou cuidadosamente com o lenço. Depois sussurrou:
- Mamãe, eu descobri uma coisa...
Gina não respondeu e continuou a procurar gotas d'água na mesinha; a menina foi até à janela e voltou outra vez, inquieta:
- Helena tem um namorado...
- Não invente coisas, Ana Luiza.
- Juro por Deus.
- Não jure por Deus toda hora. Já disse pra você.
Ela passou o braço pelo pescoço de Gina que estava inclinada sobre a mesa:
- Sabe, mamãe? Helena escondeu de mim, mas eu descobri. Ele é meio alto, simpático, tem o nariz assim meio comprido e é estudante de medicina.
- Como é que você sabe tudo isso?
Ela afastou-se de Gina e fez uma pirueta no meio da sala, depois riu:
- Ah! Ah! Descobri, mamãe. O que é que eu não descubro? Sei até onde eles se encontram três vezes por semana.
Gina encarou a menina:
- Eles se encontram? Aonde?
Ela fez outra pirueta:
- Lá no fim da praia. Eu vi! Depois baixou a voz.
- Olhe, mamãe, e quando ela diz que vai estudar em casa de Margarida, vai encontrar com ele.
- Tem certeza, Ana Luiza?
- Juro... Tenho certeza, mamãe, já vi porque fui atrás deles.
- Você fez isso? Não se envergonha?
- Fui só uma vez, para depois vir contar pra você. Juro... Gina cerrou as janelas da sala com um ar despreocupado.
- Vá brincar e não fale mais nisso.
Ana Luiza aproximou-se rapidamente, beijou-lhe a face e deixou a sala correndo e gritando:
- Mimosa! Mimosa! Venha brincar no jardim.
Gina ficou perplexa. Por que Helena não lhe contara? Ela que fora sempre tão sincera e franca? Por quê? Pois não contava tudo, tudo o que se passava com ela desde
pequenina? Os filhos são surpreendentes às vezes... Não se compreende. À noite contou ao marido; acabou dizendo que ia interpelar a filha; Dr. Fernando aconselhou-a
que esperasse ainda, não falasse nada, mas vigiasse mais.
No dia seguinte, ouviu a voz de Ana Luiza falando com a cachorrinha no quarto. Ana Luiza era assim, um pouco sonhadora; sonhava que era isto ou aquilo. Em Pinheiral,
desde que começara a falar, dizia: "Mamãe, hoje sou uma borboleta." E ficava sentada, olhando na frente dela, imaginando em que flores pousaria, se fosse borboleta.
Outro dia, dizia: "Papai, hoje sou andorinha." E na sua imaginação, voava de galho em galho, depois vinha ao beiral da casa, voava longe de novo, sobre os altos
pinheiros. O pai perguntava muitas vezes, quando a via brincando: "Ana Luiza, o que você é hoje? Ela respondia: "Hoje sou um peixinho do mar." Dr. Fernando ria:
"Ah! É um peixinho? Então vou comer este peixe."
Levantava Ana Luiza nos braços e fingiu que a mordia e mastigava alto, dizendo: "Que peixinho gostoso." E a menina ria até não poder mais, nos braços do pai. Agora
que ela estava crescida e residiam no Rio, sonhava coisas mais elevadas; sonhava que ia para Europa, visitava as Índias, cavalgava os camelos do deserto; ou então
falava em modas e jóias. Era vaidosa.
Gina sorriu quando ouviu a voz dela falando com Mimosa: "Olhe, Mimosa, faz de conta que você é gente e chegou de Paris há três dias. Fique aí sentada na cadeira
e eu venho fazer uma visita. Espere aí; as bonecas são outras visitas e eu venho chegando: "Boa tarde, dona Mima, como foi de viagem? Estava ansiosa por lhe fazer
uma visita, mas a senhora sabe, tive um filho há pouco tempo e ainda estou amamentando. Boa tarde, dona Margarida. Boa tarde dona Consuelo. Como vão? Pois como ia
contando, meu filhinho fez três meses hoje. Se tenho leite bastante? Graças a Deus, tenho muito leite."
Fazia uma pausa e andava pelo quarto: "Mas dona Mima, conte alguma coisa da sua viagem. Divertiu-se muito? Viu muita coisa bonita? Do que a senhora gostou mais?"
Outra pausa. Mudava o tom de voz para falar com a cachorrinha: "Fique aí na cadeira, não levante."
Voltava a voz aguda outra vez: "A senhora esteve também na Rússia? Que tal? Sim, senhora. Pois não; recebi sim, senhora. E em Paris? Muitos divertimentos? Que maravilha
é Paris! Ah! Pois não. Trouxe vestidos de Patou? Sim? Muitos? Eu quando estive lá comprei vestidos de Molineux. Acho Molineux um assombro. Tem um corte! E os perfumes
de Lanvin? Adoro a água de colônia de Jeanne Lanvin. Não experimentou ainda? Deliciosa! O que a senhora disse, dona Margarida? Gosto de jóias também, minha paixão
são os rubis. Oh! Como os adoro! A senhora também? Que coincidência interessante! A prosa está boa, mas estão me chamando. Dão licença?"
Gina ouviu os passos de Helena; subiu a escada e entrou no quarto; de repente saiu outra vez e gritou:
- Ana Luiza!
A menina que parara de falar porque ouvira os passos de Helena, não respondeu logo; houve um silêncio. Helena foi até o quarto da irmã, gritando sempre:
- Ana Luiza! Ana Luiza!
- Não precisa gritar, não sou surda.
Helena estava zangada:
- Onde está minha blusa azul?
Silêncio.
- Já foi tirar outra vez, não é? Espere aí, vou contar pra mamãe. Ela já disse que cada um tem o que é seu, por que tirar dos outros?
A voz de Ana Luiza era suave:
- Que blusa, my sister?
Tinha aulas de inglês e sempre que podia encaixava palavras inglesas na frase porque sabia que isso irritava Helena. A voz de Helena estava cada vez mais zangada:
- Não sabe, é? Vou contar já pra mamãe. Você vai ver.
- Não precisa contar nada; não vou comer sua blusa. Está aqui. Tome.
- Mas você tem a verde, por que tira a minha?
- I like.
- Vou contar que você anda usando minhas roupas e deixe de falar inglês, sua boba.
Ana Luiza respondeu prontamente:
- Pode contar. Também tenho coisas para contar. All right.
Houve outro silêncio entre as duas. A voz de Helena estava um pouco assustada quando perguntou:
- Contar o que? O que você tem para contar? Não uso sua roupa, graças a Deus.
- Mas anda com namorado na praia que é pior, muito pior. Pensa que não vi? É moreno claro, meio alto e tem o cabelo repartido deste lado. Vi os dois de maillot outro
dia. E mamãe pensa que você toma banho aqui perto. Ah! Pensa que sou boba? I am no...
Helena zangou-se mais:
- E o que você tem com isso?
- Muita coisa. Não quero permitir que minha irmã ande com qualquer um. E por isso vou contar...
- Mas ele não é qualquer um. Eu o conheço há muito tempo, e não é meu namorado. É um moço muito distinto.
- Não é seu namorado? Coitada! Vá enganar outra a mim não. Poor thing!
- Dá aqui minha blusa.
- Está aqui sua namoradeira.
- Malcriada!
Gina ouviu a voz de Ana Luiza:
- Mamãe, olhe Helena me beliscando.
Gina aproveitou a oportunidade e aproximou-se:
- O que é isso? Estão brigando? Duas moças!
- Ela tomou minha blusa.
- Não tomei, mamãe. Emprestei, nem cheguei a usar.
- Então por que a blusa está aqui?
- Porque ia usar hoje com aquele costume cinza.
- Não disse, mamãe? Usando minhas roupas...
- Gina olhou para Ana Luiza:
- Você tem suas blusas, minha filha. Por que quer usar as de sua irmã? Cada um com o que é seu...
- É, mas eu não ando na praia...
Helena enrubesceu e tomou o braço de Gina:
- Mamãe, venha cá, quero conversar com você.
Levou-a para o quarto dela; fechou a porta. Ouviram a voz de Ana Luiza outra vez: "Pois é, dona Mima, na Europa uma vez..."
Helena fez Gina sentar-se numa cadeira, ela sentou-se na cama e começou:
- É verdade, mamãe. Tenho um namorado...
Pela primeira vez, Gina pensou seriamente que suas filhas se casariam. Ouviu Helena em silêncio e quando ela acabou de falar e ficou olhando a mãe, como que interrogando,
Gina estava com o pensamento longe. Voltou à realidade.
- Fez muito bem em me contar tudo, Helena. Se ele é um bom rapaz e de boa família, será uma felicidade para você e para nós também. Seu pai e eu só pensamos na felicidade
dos filhos. Nosso ideal é ver vocês três encaminhados na vida, bem casados e felizes...
Continuou depois de um momento:
- Mas é muito cedo para pensar em casamento, filha. Você só tem dezessete anos...
- Mas ele ainda está estudando, mamãe. Só vamos casar depois que ele se formar, daqui a dois anos...
Parou um pouquinho e perguntou:
- Então você aprova?
- Aprovo. Por que não? Se ele é bom e distinto como diz, aprovo. Não sei por que escondeu tanto tempo de mim, devia me contar logo.
- Desculpe, mamãezinha. Queria ter certeza que ele casava mesmo comigo; só isso.
Gina beijou a filha e só riu:
- E casa então?
- Ele disse que sim. Ficaremos noivos no fim deste ano. Que felicidade!
Os olhos de Gina encheram-se de lágrimas; Helena surpreendeu-se:
- Que é isso, mamãe?
E abraçou fortemente a mãe. Gina sorriu:
- Nada, só quando penso que vou perder você... Parece um sonho.
- Mas você não vai me perder, mamãe. Fico aqui sempre; Eduardo vai trabalhar aqui mesmo no Rio.
Ficaram ambas silenciosas. Gina falou depois:
- Lembro de vocês em Pinheiral, tão pequeninas... E agora falando em casamento. Quase não acredito.
Helena deu uma risada:
- Você tem cada uma, mamãe.
Ouviram Fernandinho subindo a escada correndo e chamando:
- Mamãe! Mamãe! Onde você está?
- No quarto de Helena!
Ele empurrou a porta e espiou;
- Estão conspirando? Mamãe, olhe a nota que tirei hoje em matemática. Tenho certeza que vou ser engenheiro; quer ver meu desenho?
Estava vermelho e suado, os cabelos despenteados, a camisa desabotoada no peito. Ana Luiza foi entrando também no quarto acompanhada pela cachorrinha que abanou
a cauda quando viu o menino. Todos se inclinaram para ver o caderno do menino:
- Deixa ver, deixa ver, gritou Ana Luiza.
Deu um grito de admiração:
- Puxa! Que desenho!
- Não falta nada no avião. Veja, mamãe.
- Olha a nota que ele tirou, mamãe.
- A mais alta da classe.
Gina beijou a testa suada do filho:
- Como eu fico contente com você, Fernandinho. Muito bem. Fernando é que vai ficar radiante.
- E a nota de matemática, mamãe? Veja que colosso!
- Puxa! Ele tirou a nota mais alta.
- Chega de falar "puxa", Ana Luiza. Mamãe não gosta.
- Foi sem querer.
Inclinou-se e tomou a cachorrinha no colo, dizendo:
- Veja, Mimosa, veja a nota do Fernandinho.
- Ela vai manchar o desenho, Ana Luiza! Mamãe, o focinho da Mimosa vai manchar o desenho.
- Nossa Senhora! Nem encostou o focinho. Só para ver.
- Que menina!
Nos braços de Ana Luiza, o focinho preto da cachorrinha debruçou-se sobre o caderno do menino:
- Veja, Mimosa!
Gina acariciou a cabeça do filho:
- Quando seu pai chegar, vai ficar contentíssimo. Vá agora tomar seu banho e se vestir para o jantar. Vamos descer.
De repente Ana Luiza gritou olhando pela janela:
- Papai vem vindo! Vou encontrar com ele!
E desceu correndo as escadas. Fernandinho tomou os cadernos e os livros, juntou tudo rapidamente e desceu as escadas, também. Gina pôs o braço à volta do pescoço
de Helena:
- Vamos, filhinha. Vamos também...
Desceram devagar; encontraram Dr. Fernando no hall, Ana Luiza de um lado e Fernandinho com o caderno aberto na frente do pai. Dr. Fernando colocara os óculos e olhava,
satisfeito. O menino falava:
- Veja, papai, o professor ficou satisfeitíssimo. Olhe que nota!
- Bravos!
Beijou Gina que se aproximara:
- Viu, Georgina? O desenho está muito bom.
Ana Luiza apontou o dedinho:
- Veja, papai, tem hélice, tem tudo, até o nome escrito aqui.
O pai aproximou o caderno dos olhos e leu:
- Pinheiral. Muito bem. O nome do avião está sugestivo. E na matemática?
- Acertei todos os problemas. Olhe a nota.
- Vai ganhar um presente por isso. Fernandinho exultou; Ana Luiza quis saber:
- O que, papai? Conte!
- Não seja curiosa!
Gina interveio:
- Suba, meu filho, vá tomar banho e trocar roupa, daqui a pouco o jantar está pronto.
Fernandinho ajuntou tudo outra vez e subiu as escadas, radiante. Ana Luiza foi ao terraço levando Mimosa. Gina sentou-se ao lado do marido, tendo Helena junto a
ela. Falou:
- Temos mais novidades hoje, Fernando. Helena andou me falando...
Sorriu e olhou a filha. Helena corou e começou a brincar com o cabelo da mãe. Ela continuou:
- Parece que Helena está pensando em casamento, não tão cedo bem entendido, mas querem ficar noivos logo... Ela me contou tudo...
Dr. Fernando olhou a filha:
- Que é isso, Helena? Quem é ele? Mas é muito cedo para pensar em casamento, você só tem dezessete anos...
- Quase dezoito, papai. Daqui a cinco meses, faço dezoito,
- Mesmo assim é cedo. Ela corou mais e disse:
- Mamãe conta tudo pra você, papai.
Deixou o hall quase correndo. Gina então contou a Dr. Fernando; ele ficou silencioso, escutando. Depois levantou-se, passeou pelo hall e sentou-se de novo; Gina
aproximou-se dele e sentando-se no braço da cadeira do marido, falou:
- Parece impossível, hein, Fernando? Já temos uma para casar!
Ele ficou olhando o chão sem dizer nada. Depois repetiu, pensativo:
- Parece impossível. Outro dia mesmo ela era tão peque nininha...
Pela primeira vez, nessa noite, uma dúvida atravessou o cérebro de Gina: contaria ou não o seu passado a Helena? Nunca pensara antes em agitar o lodo por onde caminhara,
mas ali estava a idéia dominando a lembrança desse passado que procurava esquecer por todos os meios. Era tão doloroso lembrar, ainda mais reviver contando à filha.
Não. Era impossível contar; só em pensar nisso, sentia horror e miséria. Não. Mas se a filha viesse a saber um dia por outrem? Não seria pior? Se viesse a saber
pelo próprio marido um dia, por acaso? Não há tantos acasos na vida da gente? E não seria uma humilhação para Helena? Uma vergonha? Não seria pior? Era preciso contar.
Mas onde encontrar palavras que não ferissem a filha? Que passasse por cima do seu amor próprio como a água que desliza sobre pedras? Sem ferir, sem bater, sem magoar,
sem fazê-la sofrer? Como? De que forma? Teria essa coragem um dia? Sem poder dormir, recapitulou seu passado cheio de misérias; viu sua infância nítida na memória:
as inúmeras mudanças de quarto em quarto, dona Julica cozinhando num canto e a água que fervia numa lata de querosene. Ouviu na imaginação o ruído da água fervendo
e o pai chegando para o almoço. O professor Pasquale, calmo e silencioso, falando numa mistura de português e napolitano. Quando a mãe não fazia o almoço, ele cortava
um pedaço de pão e comia com cebolas, sentado na porta do quarto. Lembrou dos dias de chuva; ela ficava lá fora, de pé, rente, à parede, encolhida, vendo a chuva
cair, salpicar, escorrer, formando poças no cimento arrebentado do corredor que ia até o fundo da vila. Às vezes entrava em casa de uma vizinha e ficava esperando
a chuva passar; mentia não sabia por que, talvez por instinto; dizia que a mãe havia saído para comprar osso para a sopa, mas sabia que a mãe estava lá dentro com
o amigo Giacomo. "Como contar tudo isso a Helena? Ainda mais Helena que é altiva, tem um arzinho de comiseração para as colegas cujos pais são divorciados. Diz assim:
"Imagine, mamãe, ela vai visitar o pai uma vez por semana, tenho até dó." Esse dó é misturado com orgulho por ter sua situação firme, saber que seu lar é organizado.
Compara-se mentalmente com a colega e sente-se feliz. Como hei de contar? Quebrar essa firmeza? Destruir essa fé? Ana Luiza é diferente; parece mais compreensiva,
mais humana. Apesar de mais criança, compreende certos fatos com mais coração do que. Helena; Helena é mais dura, mais inaccessível. É orgulhosa. Como falar? De
que forma?"
Ouviu a tosse de Ana Luiza no quarto próximo; pensou no xarope que daria à menina no dia seguinte. Seus pensamentos continuaram a deslizar como a água de um rio
numa noite escura; no silêncio e na treva: "Deve ser mais de meia noite. Estou tão distraída que não ouvi o relógio da sala de jantar dar as horas. E ouve-se tão
bem aquele relógio! Precisarei mesmo contar a Helena? Ela, não me desprezará depois? E se me desprezar? Como viverei com o desprezo de minha filha? E se eu não contar?
Não me arrependerei um dia? Que poderá acontecer? Ela virá a saber por outra pessoa e que pensará de mim? Que fui uma covarde? Não virá me recriminar cheia de desespero?"
"Mamãe, você..." E' melhor falar, contar tudo, de qualquer maneira. Sempre fui leal, sincera, franca em todos os atos da minha vida; sempre achei que a verdade precisa
ser dita apesar de tudo, mesmo que seja contra nós; deve pairar sempre sobre todas as coisas e agora vou ocultar, de minha filha a história da minha vida? Não. Por
pior que seja e por mais penosa que seja para mim a situação, contarei. Ana Luiza está tossindo outra vez, amanhã sem falta lhe darei o xarope. Vou consultar Fernando
se devo ou não contar a Helena. Não, não consultarei, isso é entre mim e minha consciência, ele nada tem com isso. Apenas direi: "Fernando, vou contar tudo a Helena."
Tenho certeza de que ele aprovará e nem que ele diga: "Acho que não deve", contarei. Contarei tudo. Há momentos na vida da gente em que é o mesmo que passar sobre
uma tábua num abismo. Passarei ou cairei? Que idéia. Qual será a reação de Helena? Será de desespero? Sim, ela vai me odiar. Terá vergonha e desprezo por mim. Como
poderei saber o que ela vai sentir? Assim como souberam tudo em Pinheiral, poderão saber também aqui; tudo o que é ruim, sabe-se logo. Fernandinho é que estava satisfeito
hoje com as notas que tirou. Que satisfação! E como está crescido! Com calças compridas, parece um homem. Forte e bonito, com aqueles dentes grandes na frente da
boca. Engraçado. Parece com Fernando, mas penso que vai crescer mais, ficar mais alto. Que direi a Helena? Ah! Se eu tivesse uma inspiração! Poderei começar deste
modo: "Helena, venha cá, quero contar a você uma história verdadeira". Ela dará uma risada, talvez responda: "Virei criancinha outra vez, mamãe?" "Escute, minha
filha, já sofri muito, tive uma mocidade cheia de contratempos. Meus caminhos já foram penosos... Você não pode saber o que é isso, nunca poderá imaginar o que é
ter fome e frio, viver pelas ruas pedindo emprego, mendigando colocação e não encontrar nada, apenas o vento frio a uivar nas esquinas, a fome, a desolação e a miséria..."
Os olhos de Helena ficarão fixos em mim, mas ela não acreditará. Dará um suspiro: "O que mamãezinha? Quando isso? Não acredito." E eu que farei? Como continuarei
a falar? A falar que quando voltava para casa, com os sapatos rotos, cansada de tanto procurar trabalho, encontrava minha mãe fazendo uma sopa rala sem se importar
comigo, papai morto... Eu sentada na cama, esperando a sopa e noutro dia a mesma coisa, sempre... Terei coragem de ir até o fim? Falarei a ela sobre os caminhos
que já trilhei? Nitidamente, vejo diante de mim, os três caminhos; talvez haja alguns atalhos entre eles, mas são três os que me lembro bem: o da miséria, o da riqueza
falsa e o do amor, amor verdadeiro. Quando cansei do caminho da miséria, escolhi o mais fácil, o mais fácil de todos... Mas não tive outro remédio, parece que tudo
estava vedado para mim e só havia aquele por onde enveredei. É estranho, nunca minha mãe me ensinou a rezar, nunca me disse que havia um Deus; nunca tive o que quase
todas as crianças têm: um lar, carinho, religião, amparo. Nada. Só senti necessidade, desprezo, e só ouvi queixas e palavras de revolta. Como poderia escolher outro
senão aquele? Foi o mais fácil, mas também o mais enganador; tudo nele foi ilusório e passageiro, teve o brilho das pedras falsas, foi transitório e enganador. Nele
não havia paz, havia só desassossego e falsidade. Nada era duradouro. Caminhei por ele porque não conhecia outro, só havia aquele diante de mim. Foi como um refúgio,
ao menos não passei necessidade, tive sapatos e casacos para o frio, e roupas para me cobrir e não sentia mais, na sola dos pés, o frio e o calor das calçadas; a
chuva não me maltratou mais, tive dinheiro para me abrigar dos vendavais. Eu sabia que tudo era falso, mas servia de abrigo contra a necessidade; Mas não era feliz.
Como podia ser feliz vivendo na falsidade? O primeiro caminho foi o do desamparo, o segundo o da falsidade; toda aquela riqueza que me rodeava era enganadora; de
um dia para outro, poderia perder tudo e ficar novamente desamparada. Foi quando tive as maiores desilusões e não mais suportei a vida falsa: era como se caminhasse
sobre pedras que me magoassem os pés e me fizessem sofrer. Era preferível voltar ao desamparo outra vez, era preferível o primeiro. Foi então que se me deparou o
terceiro, o da segurança. Pela primeira vez na minha vida, me senti com firmeza, como se visse diante de mim uma estrada plana e limpa, sem atalhos, sem pedras,
sem tormentas. E nesse estou até hoje graças a Fernando. Fiquei conhecendo Deus e contei aos meus filhos a historia de Jesus. Dei-lhes o que nunca tive: um lar sólido,
carinho, religião, amor. Dei tudo. Vivi para eles e para meu marido desde o primeiro dia e posso dizer que acertei. Venci! Uma badalada. Uma hora já? Quem sabe uma
e meia? E eu pensando... pensando... sem poder dormir. E se depois que eu contar tudo a Helena, ela me disser: "Está bem, mamãe sei agora quanto você sofreu, sei
tudo, mas escute uma coisa, você podia ter escolhido outro caminho. Mamãe, eu preferia lavar chão, ser criada, tomar conta de uma criança, encerar casa, lavar vidros,
tudo menos o que você fez. Esse serviço você arranjaria se quisesse. Ao menos teria comida e um pouco de dinheiro, não precisaria levar outra vida, essa vida horrível
que você me contou. Eu sofreria trabalhando, mas não faria o que você fez". Helena vai me falar assim, ela é orgulhosa... Então responderei: "Helena, talvez você
esteja com a razão. Nunca procurei esse serviço, mas sabe por quê? Porque nunca tive Deus no coração e quem não conhece Deus, não sabe distinguir entre a honra e
desonra. Eu só sabia que estávamos num mundo, onde aquele que não luta, perece; num mundo onde temos de vencer de qualquer maneira porque se não morreremos de fome.
E escolhi o caminho mais fácil porque não tinha ninguém comigo. Estava só e precisava vencer; nem um conselho, nem um carinho, nem uma palavra amiga, e nem Deus.
E se hoje você pensa assim é porque eu coloquei Deus em seu coração. Você conhece Deus e por isso prefere qualquer outro caminho, por mais áspero que seja, ao da
desonra. Mas fui eu que dei a você o que nunca tive: a religião. Somente em Pinheiral, quando vocês dois se prepararam para a primeira comunhão, foi que aprendi
religião com padre Ernesto. E foi porque Deus entrou tarde no meu coração que escolhi o caminho mais fácil, minha filha. Foi por isso. Naquele tempo, só sabia que
aquele que lutasse mais arduamente, venceria. E de que forma lutar? Pobre de mim! Não tinha ninguém a não ser eu mesma. Helena me compreenderá; e me dirá com os
braços à volta do meu pescoço: "Mamãezinha, você é um anjo." Que felicidade se ela compreender e falar assim. Oh! Meu Deus! Dai-me forças para vencer este obstáculo,
o mais difícil que até hoje encontrei em meus caminhos."
Gina cerrou as pálpebras e tentou dormir; mas só o conseguiu quando o dia estava raiando. Ouviu uns latidos da Mimosa lá embaixo, ouviu o canto dos pássaros no jardim
e tornou a abrir os olhos. Percebeu a tênue claridade do dia ameaçando passar através das venezianas, ouviu carrocinhas em disparada pela rua a fora, depois ouvir
o mar. Era embalador o ruído do mar; como uma canção suave e doce prometendo paz aos corações aflitos, como se cantasse melodias de amor por toda extensão da praia.
Pensou: "O dia deve ser lindo hoje. Deve ser um desses dias brilhantes de luz e de vida. O que os filhos irão pensar do meu passado? Irão recriminar-me? Não. Para
eles, serei sempre a mãezinha querida. Deus é grande." Dormiu.
Alguns meses depois, Helena foi pedida em casamento; Eduardo estudava medicina e pertencia a distinta família. Gina e Dr. Fernando ofereceram uma recepção para festejar
o noivado da filha. Desde manhã chegaram cestas de flores com cartõezinhos dependurados; grande excitação, Ana Luiza encarregou-se de guardar todos os cartões para
serem respondidos depois; a cada nova cesta que chegava, ela gritava para cima com toda a força.
- Mais uma. Cinco já. Às vezes acrescentava:
- Esta é linda, Helena, só rosas vermelhas, venha ver. Demonstrando displicência, Helena descia as escadas bem devagar, parando em cada degrau para mostrar indiferença
e lustrando as unhas com cuidado, mas Gina sabia que tudo isso era para esconder a emoção e disfarçar a alegria que sentia. Estava emocionada. Olhou com pouco caso
as cestas que Ana Luiza colocara à volta do salão e depois os cartões que estavam escondidos sob um cinzeiro de mármore. Perguntou:
- É assim que você está guardando os cartões Debaixo do cinzeiro?
- Isso é provisório, Helena, depois vou guardar direito. Veja esta, só de copos de leite e cravos. Não é linda?
- É.
- E esta?
- Também.
Fernandinho desceu para ver; olhou à volta querendo criticar:
- Hum! Parece um mercado de flores! Helena zangou-se:
- Bobo. Nunca viu cestas de flores?
- Tantas assim não.
Ana Luiza mostrou-lhes as rosas vermelhas; ele perguntou:
- Onde estão os cartões? Quero ver quem mandou.
Helena interveio:
- Para que? Que interesse tem nisso?
- Só para ver. Onde estão, Ana Luiza?
- Não mostre, Ana Luiza.
Mas pelo olhar da menina, ele percebeu; correu para o lado do cinzeiro e descobriu-os. Helena estendeu o braço:
- Deixa os cartões aí.
- Que bobagem, menina, não vou rasgar nem comer seus cartões; quero ver se o pai de um amigo meu mandou. Ele disse que ia mandar. Percorreu um por um lendo alto
os nomes e os dizeres; de repente ouviram a campainha e Ana Luiza deu um pulo:
- Juro que é outra. Querem ver?
A criada entrou com uma cesta enorme com hortênsias azuis e cor de rosa; a menina bateu palmas:
- Esta ganha! Esta ganha de todas. Vamos ver de quem é.
Fernandinho precipitou-se é arrancou o cartão; Helena gritou:
- Não seja bruto. Deixa eu ler primeiro.
- Deixa que eu leio. Eu leio, Helena. É do pai do meu amigo Fritz. Veja.
- É a mais bonita.
- Não é. Cada uma que vai chegando Ana Luiza diz que é a mais bonita.
Dr. Fernando chegou para o almoço; toda a família reuniu-se à volta dele para comentar os últimos preparativos... O telefone tocou e Helena correu para atender.
Fernandinho observou:
- Até na última hora ela tem que falar com Eduardo. Nunca vi.
Segurando o braço do pai, Ana Luiza perguntou:
- E você tem alguma coisa com isso?
Ele fez uma careta e não respondeu; durante o almoço falaram no noivado de Helena, em Eduardo, nos convidados que esperavam. Gina sentia-se um pouco nervosa; há
meses seu cérebro trabalhava incessantemente: contaria ou não à filha? Observava os filhos para compreendê-los melhor e poder adivinhar o que cada um sentiria quando
ela contasse; que diriam? Olhou a filha mais velha: Helena seria a primeira a saber. Era bonita e inteligente; usava os cabelos soltos nos ombros, tinha as feições
delicadas e distintas. Clara, cabelos castanhos escuros; não crescera muito, mas era esbelta e elegante. Muito elegante. Toda a gente admirava a beleza de Helena,
mas ela tinha qualquer coisa que Gina não conseguia descobrir; guardava na sua fisionomia ou na sua alma, um segredo. Mas que segredo poderia ter uma menina de dezoito
anos, sempre junto dos pais? Saberia alguma coisa do passado da mãe? Impossível. Era apenas impressão, não havia segredos. Mas parecia ter qualquer coisa que a mãe
nunca aprofundara, não conseguira. Ana Luiza e Fernandinho eram livros abertos, lia-se-lhe nas fisionomias o que se passava nas suas almas; eram francos, alegres,
despreocupados. Helena era retraída, fechada. Guardava tudo para si, "Como é difícil reconhecer as pessoas retraídas", pensou Gina. "Nunca dizem o que sentem". Os
outros dois filhos diziam claramente se gostavam disto ou daquilo e porque gostavam; explicavam o que sentiam e porque sentiam. Helena não. Por mais que se perguntasse,
vinha com evasivas: "Nem sei por que..." "À toa." "Porque gosto." Era difícil de ser compreendida. Havia momentos em que seu belo rosto parecia adormecido; tinha
os olhos abertos, olhava para a frente e parecia não ver, mas atrás dos seus olhos, quanta vida, quanto entendimento. Isso é que perturbava a mãe. Dr. Fernando dizia:
"Ela tem muita vida interior Georgina, vive mais para si mesma."
Muitas vezes nas reuniões, nos espetáculos ou nos passeios, onde iam todos, os dois filhos mais moços vinham contando tudo o que viram; Helena vinha silenciosa;
mas quando se lhe perguntava, ela às vezes respondia mais do que os outros, porém apenas nos dias em que estava disposta a falar. Ana Luiza se admirava: "Você não
viu, Helena, você não foi lá perto." Ela respondia: "Mas vi muito bem." E descrevia com detalhes o que os outros não haviam percebido.
Durante o almoço, Gina observou a filha. De repente, Dr. Fernando falou;
- Hoje vamos festejar o noivado, mas o casamento será daqui a um ano ou mais. Está bem claro, filha. Já falei com Eduardo. Quando você fizer dezenove anos, marcamos
o casamento.
Ela não respondeu, sorriu e tornou um pouco d'água. Fernandinho deu opinião:
- Também acho, papai. Casamento muito cedo, dá em droga. O que eles estão sabendo da responsabilidade de casados?
Ana Luiza cruzou os talheres:
- Eu não me casarei, nem quando tiver trinta anos.
Ele riu-se:
- Então o que vai fazer? Ficar para tia? Mulher precisa casar.
Ana Luiza interveio:
- Tudo você dá opinião. Frangote não dá opinião.
O pai e a mãe censuravam a menina; Fernandinho ficou vermelho de raiva, estendeu o braço e beliscou a irmã por baixo da toalha; Ana Luiza deu um gritinho:
- Papai, olhe Fernandinho.
Ele continuou a comer. Helena pediu licença para se levantar:
- Mamãe, eu não quero sobremesa. Deixa eu subir?
Fernandinho começou a rir:
- Está nervosa hoje? É salada de fruta, você gosta.
Gina sussurrou:
- Não fale tão alto, meu filho. Por que gritar? Vá, Helena.
Ela começou a subir as escadas; Ana Luiza comeu apressadamente a salada:
- Mamãe, deixa experimentar meu vestido?
- Você não experimentou ontem?
- Estava com aquele defeitinho na cintura. Quero ver se ficou bom.
- Vá.
Ana Luiza subiu correndo as escadas; Fernandinho procurou imitar a voz da irmã:
- Mamãe, deixa experimentar meu vestido?
Ela gritou lá de cima:
- Não seja bobo... Gina ficou mexendo a xícara de café:
- Ana Luiza é vaidosa... Nunca vi...
Uma hora antes da chegada dos convidados, Ana Luiza ainda não estava pronta. Só de combinação, andava de um lado para outro no quarto, falando sozinha como era hábito
seu; parou diante do espelho. Tirou os cabelos que caíam sobre as orelhas, voltou-se para um lado para ver como ficavam, tornou a deixar cair os cabelos e sorriu,
satisfeita: "Mas como ia dizendo, este meu vestido veio da Europa. Conhece Paris? Não? Pois é pena, morei lá três anos no boulevard... boulevard Maupassant." Penso
que tem um boulevard com esse nome. O que será um boulevard?
Inclinou-se diante do espelho para sua própria imagem. "Muito prazer em conhecê-lo... Não sabia que Pinheiral era de papai? Não? Pois nasci lá."
Fez um gesto faceiro e quis piscar um olho, mas não conseguiu; piscou os dois. Então parou de falar e ficou uns minutos diante do espelho tentando piscar um olho
só. Ouviu o barulho da cachorrinha arranhando a porta; falou alto: É dona Mima? Faça o favor de entrar... (fez uma pirueta e abriu a porta). "Como vão seus filhos,
dona Mima? Estão com saúde? O último sarou da coqueluche. Ah! Não era coqueluche? Era o que? Varíola? Nossa Senhora!!"
Deu uma risada gostosa à idéia de inventar essa doença para o filho da cachorrinha; Mimosa subira sobre uma poltrona coberta de cretone e se aninhara, espiando Ana
Luiza com olhinhos muito negros. Dançando, ela aproximou-se da cachorrinha: "Você precisa ficar bonita, hoje, mais bonita do que nos outros dias. Hoje é o noivado
de Helena. Não sabia?"
Cantarolou e dirigiu-se à gaveta de onde tirou uma fita vermelha: "Levante-se, Mimosa, vamos pôr esta fita no seu pescoço. Ande."
Amarrou a fita com cuidado e deu um laço grande: "Você está um amor, garotinha. Mimosa você já esteve noiva alguma vez? E não se casou? Por quê?"
Riu alto ao lembrar do noivado de Mimosa; depois cantarolou outra vez: "Lá... lá... lá..." E fingiu que estava dançando num salão nos braços de um rapaz: "Agora
uma valsa assim..." Girou pelo quarto dando voltas; deitada na poltrona, a cachorrinha espiava-lhe os movimentos com um olho só, vivo e negro. De repente a menina
parou perto do guarda-roupa: "Bem, agora vamos vestir o vestido de Paris... Que amorzinho... Tão azul..." Alisou a seda do vestido e tirou-o do cabide; enfiou-o
pela cabeça, ajeitou, puxou as saias para baixo. Lembrou da careta que Fernandinho fazia para ela todas as vezes que brigavam; era uma careta horrível: puxava as
pálpebras para baixo, arrebitava o nariz e arreganhava os dentes, tudo de uma só vez; nessa manhã fizera uma porção de vezes quando ela estava no salão arranjando
as flores. A essa lembrança, recostou a cabeça no espelho do guarda roupa e riu até ficar com os olhos úmidos. De repente lembrou-se de que precisava acabar de se
vestir; olhou sua própria imagem: o vestido não estava bem. O que seria? Puxou-o para um lado e para outro. E agora? Parecia largo demais na cintura, teve vontade
de chorar. Ficou desolada. A idéia brilhou de repente: "Mamãe dá um jeito." Abriu a porta do quarto e gritou com a voz aflita:
- Mamãe!
Gina que estava sentada diante da penteadeira e ia começar a se pentear, foi ao quarto da filha; encontrou Ana Luiza de pé no meio do quarto, um ar aborrecido: o
vestido estava largo demais na cintura. Voltou-se para Gina, vermelha e nervosa:
- Eu não disse? Olhe que coisa horrível. Que defeito medonho!
- Mas pode se arranjar, filhinha. Deixa ver.
Fez a menina voltar-se em todos os sentidos; foi falando:
- Prendendo aqui deste lado fica bom. Quer ver? Vire um pouco, não, para a direita. Veja agora. Vai ficar bom.
- Parece que fica.
Gina. animou-a:
- Então tire o vestido. Conserto num instante; vá se penteando, para não perder tempo.
Sentou-se na cadeira do quarto e começou a costurar; Ana Luiza de combinação, ia de um lado para outro, mais calma. Chegou à janela e espiou.
- Vá se penteando, Ana Luiza.
- Depois. É só passar o pente. O cabelo está ótimo hoje.
Ouviram os passos de Helena e uma leve batida na porta do quarto. Sua voz era autoritária:
- Abra, Ana Luiza.
Helena entrou; estava com um vestido branco muito simples. Ana Luiza levantou a cabeça e aspirou o ar franzindo o nariz:
- Hum! Está perfumada demais, senti de longe!
Diante do espelho, Helena fingiu que não ouviu; começou a se voltar de um lado para outro, observando-se.
Perguntou:
- Você ainda não está pronta? Mamãe precisa se aprontar.
- Meu vestido estava com defeito, mamãe está consertando.
À última hora?
Ouviram os passos de Fernandinho. Ana Luiza correu e gritou:
- Não entre!
Fechou a porta à chave. Helena pediu:
- Mamãe, prenda minha pulseira.
Estendeu o braço; Gina deixou a costura e prendeu a pulseira de Helena. Continuou a costurar apressadamente. Dr. Fernando chamou do outro quarto:
- Georgina, está na hora de se vestir. Quatro e meia.
A voz de Gina estava sufocada de aflição:
- Abra a porta e diga a seu pai que já vou.
Passaram-se alguns minutos; Ana Luiza passeava, impaciente:
- Pronto, mamãe?
- Pronto.
Vestiu o vestido na menina e ficou observando; prendeu de um lado com um alfinete; tornou a tirá-lo e perguntou:
- Está bem agora?
A menina sorriu, satisfeita:
- Agora sim, mamãe. Você é um anjo.
Gina apressou-se em deixar o quarto; estava atrasada. Era preciso correr; viu quando Helena ia descendo a escada; ia devagar, a cabecinha levantada como se fosse
desafiar o mundo todo. Seu rosto claro e rosado destacava-se no vestido branco muito simples; ia arranjando o colar à volta do pescoço e toda sua figurinha delgada
e bonita demonstrava altivez. Gina suspirou e entrou no quarto: "Dai-me forças, meu Deus, tenho medo." Tirou o vestido pela cabeça e arremessou-o no divã; descalçou
os sapatos e foi escolher um par de meias na gaveta. Dr. Fernando, pronto, avisou do hall:
- Você está atrasada...
- Ninguém vem às cinco em ponto, Fernando. Num instante estarei pronta.
Tirou os óculos e começou a se pentear, apressada. Desceu quando todos estavam no salão; havia cestas de flores no terraço e no jardim. Ana Luiza tinha uma porção
de cartões entre as mãos; o pai aconselhou:
- Vá guardá-los numa gaveta, filha.
- Já vou, papai.
Gina falou: Prenda a Mimosa.
Ana Luiza começou a rir:
- Viu como ela está bonita com a fita vermelha no pescoço? Mimosinha, venha cá. Deixa ela ficar, mamãe. Ela não morde ninguém.
Dr. Fernando ordenou:
- Ana Luiza, prenda a cachorrinha lá dentro.
- Que tem que ela fique num cantinho do salão, papai? Ela não incomoda ninguém...
Mas vendo o rosto contrariado de Gina, fez uma careta e saiu correndo e chamando:
- Mima, vem!
Parou um automóvel no portão; num instante Helena estava na porta, sorrindo para Eduardo. Gina viu quando as faces de ambos se uniram; depois Helena apertou o braço
do noivo num gesto carinhoso. Ele falou qualquer coisa e ela riu-se toda corada. Gina pensou: "Terei coragem?" Sorriu e estendeu a mão ao seu futuro genro.
Recebia os convidados, dirigia uma palavra a um e outro, olhava as bandejas que as criadas levavam ao salão. Observou os noivos; Eduardo era bem mais alto que Helena;
ela era pequena e esbelta; brincava com o colar e olhava para ele enquanto conversavam. Viu Fernandinho num grupe de homens; esforçava-se por mostrar-se desembaraçado,
mas magrinho e alto, ainda tinha um rosto de criança. Ana Luiza não parava, ia e vinha, sorria, falava. Gina lembrou da sua irmã Zelinda; que triste impressão causaria
sua irmã ali naquele meio, entre essa fina sociedade onde ela vivia agora. Seria deplorável. Pensou: "Graças a Deus ela morreu." Sentiu um choque; como estava dando
graças a Deus da irmã ter morrido? Mentalmente fez o sinal da cruz e disse: "Deus me perdoe."
A sala de jantar estava movimentada; grupos de pessoas conversavam animadamente. Dirigiu-se para lá a fim de ver se nada faltava. Muita gente à volta da mesa, bebericava
e comia salgado; ela aproximou-se e conversou, com alguns convidados. Estava com um discreto vestido preto, um colar de pérolas no pescoço; engordara ultimamente
e sentia-se "forte", como as modistas diziam. Tinha ainda a pele bonita e os dentes perfeitos, mas usava óculos por causa da fraqueza da vista.
Muitas senhoras falavam-lhe sobre a beleza da festa, os noivos, o encanto da filha. De repente seu coração como que parou de bater e a palavra que ia pronunciar
morreu-lhe nos lábios: o marido estava diante dela apresentando Dr. Frederico. Era Fred. Era o passado que surgiu diante dela, esse passado que levara anos para
sepultar. "É o meu passado que revive". Estendeu a mão quando o marido fez as apresentações, mas não entendeu uma palavra do que disseram. Ficou parada no mesmo
lugar e viu-os afastarem-se novamente; teve vontade de se esconder. Voltou ao salão um pouco desorientada e ficou de pé perto do piano, olhando à volta; viu Fernandinho
passar com um grupo de moças; e falava alto, convencido do que afirmava. Viu Helena e Eduardo receber felicitações de um casal conhecido; viu Ana Luiza conversando
com uma mocinha de olhos azuis. Ouviu frases soltas:
- O teatro estava repleto e acabou quase à uma hora. Mas também valeu, eles representaram muito bem... Foi esplêndido.
- Não gostei muito daquele modelo preto. Achei a saia muito rodada.
- Ah! O azul é um encanto. Será possível que não tivesse reparado?
- A música é suave... Eu gostei muito. Não foi no aniversário dela?
- É de Máximo Gorki: "Minha Infância."
- O mais engraçado foi quando ela disse: "Sou uma infeliz. Ninguém me quer." Umas frases assim... Não me lembro bem.
- E você achou engraçado? Devia ser triste.
- Devia, mas não foi. Tinha qualquer coisa de humorístico.
- Há o tragicômico, na vida é muito comum.
- Há situação incríveis na vida da gente...
Foi quando viu Frederico diante dela; sorriu contrafeita, sem saber que dizer. Ele inclinou-se e cumprimentou; Gina viu-lhe fios brancos entre os cabelos escuros;
olhou-a. Estavam sós um na frente do outro. Ela apoiou a mão direita na tampa do piano como se nesse gesto procurasse uma defesa, estava desorientada. Ele disse
com calma:
- Admiro-a profundamente, muito mais do que a senhora pensa... (Hesitou quando disse: senhora, Gina percebeu que ele queria dizer você.)
Confortada por essas palavras, ela sentiu-se mais calma; mas não sabia o que dizer. Ele tirou-a do embaraço continuando a falar:
- Tive hoje a maior surpresa da minha vida vindo a esta festa. Ouvi meu filho falar muitas vezes no Fernandinho, mas não sabia que ele era "seu filho". E levo uma
recordação desta casa, recordação que me acompanhará até o fim dos meus dias como uma das mais gratas ao meu coração.
Ele falava olhando-a intensamente; seus olhos pareciam ávidos da imagem dela. Gina sorriu e olhou em torno um pouco pálida:
- Eles são muito amigos, nossos filhos...
Não sabia que dizer. Ele tornou a falar:
- Foi uma grata surpresa encontrá-la aqui. Reside há muito tempo no Rio de Janeiro?
Queria dar à pergunta um tom indiferente, mas traiu-se; antes que Gina respondesse, ele continuou com voz mais baixa e surda de emoção:
- Procurei-a desesperadamente durante um ano... Não, dois anos, nem sei... Onde se escondeu? Por quê?
Olhou para um lado e sorriu para uma pessoa conhecida fazendo um gesto amistoso com a mão. Os lábios de Gina cerraram-se; embaraçada, tirou o óculos e colocou-os
sobre o piano, depois cerrou os olhos mansamente e perguntou com indiferença:
- O Dr. reside aqui ou em S. Paulo?
Seu tom de voz era metálico e duro. Ele endireitou-se e fitou-a; sua fisionomia pareceu enrijecer:
- Ultimamente resido no Rio devido aos negócios. Aqui é muito bom para se viver; uma grande cidade...
Depois perguntou friamente:
- Canta ainda?
Gina reanimou-se:
- Às vezes para as crianças.. Ana Luiza, minha segunda filha, gosta muito de música. Está estudando piano e estuda com prazer...
- Isso é raro nesta época... Em geral a mocidade prefere o rádio ou a vitrola.
- É verdade.
Notou seu rosto envelhecido e um pouco cansado, mas era o mesmo homem que ela havia amado; aquelas feições delineadas demonstrando força, a boca suave, o queixo
um pouco grande, parecia grande demais para o rosto, mas o rosto era simpático e agradável. Quando falava, toda sua fisionomia parecia sorrir e seu sorriso era encantador.
Ela também sentia-se envelhecida e o olhos que ele tanto amara estavam, também cansados... Estendeu o braço para tomar os óculos de sobre o piano quando ele falou
novamente:
- Foi uma grata surpresa... Meus lábios continuarão cerrados a nosso respeito, como cerrados têm estado até hoje...
Retirou-se com seu andar calmo, atravessou a multidão que enchia as salas e sumiu-se no terraço. Gina viu-o de longe tirar um cigarro, batê-lo na própria cigarreira
e levá-lo aos lábios. Pensou: "Que foi que ele disse? Qual foi a última frase de Fred?" Viu Ana Luiza aproximar-se:
- Mamãe, você está branca... Está doente?
- Não. Estou com calor, só queria tomar alguma coisa.
- Uma limonada?
Algumas senhoras começaram a falar perto dela sobre diversos assuntos; durante algum tempo, foi incapaz de reunir idéias, de dar opinião. Só muito mais tarde, quando
começaram a se retirar, ficou mais calmo, e lembrou-se do que se passara. Os filhos reunidos no salão, comentavam a festa Ana Luiza foi buscar a cachorrinha e dançou
com ela nos braços; depois beijou o focinho de Mimosa. O irmão censurou:
- Não beije a cachorra. Pega doença em você.
- Que doença? Mentiroso!
- Então beije.
- Beijo mesmo.
De repente lembrou-se:
- Mamãe, você estava doente àquela hora? Estava branca.
Gina voltou-se:
- Não. Uma tontura apenas, depois passou. O marido sobressaltou-se:
- Sentiu tonturas? Quando? Gina sorriu:
- Não foi nada, passou logo. Com certeza foi por causa do calor.
- E você se preocupou muito esses dias. Por que não vai descansar?
- Isso mesmo que eu vou fazer, vou deitar mais cedo. Também estava bem cansada.
Do quarto, ouviu as vozes dos filhos conversando no hall. Mimosa latiu várias vezes; depois a voz de Ana Luiza:
- Não provoque a cachorrinha. Papai, olhe Fernandinho maltratando a Mimosa.
A voz do filho:
- Quem é que está maltratando, sua boba? Mimosa, Mimosa, vem cá...
- Não vá, Mimosa.
Tomou então uma inabalável resolução.

XIX

Quando foi marcado o casamento de Helena, Gina foi procurá-la uma tarde no quarto e contou tudo. De um ímpeto, receosa de arrepender-se ou de esquecer algum detalhe
importante contou à filha a vida que levara, as dificuldades, a luta que sofrera; falou sobre o professor Pasquale, a mãe, a vida na rua Livre e tudo o que passara
antes de conhecer Dr. Fernando. Estavam as duas sentadas no sofá, uma ao lado da outra, no quarto de Helena. Quando terminou, levantou os olhos e viu um quadrinho
da primeira comunhão dos dois filhos mais velhos; era uma fotografia tirada em Pinheiral. Helena tinha ainda as feições infantis, os cabelos presos em duas tranças.
Enquanto olhava, admirou o silêncio da filha; então voltou o rosto para olhá-la; ela estava imóvel fixando o chão e sua bela face parecia adormecida. Gina nada pôde
ler naquelas feições que pareciam sem vida; de súbito, Helena fez um movimento como se fosse apertar uma das mãos da mãe que estava sobre o colo e Gina sobressaltou-se,
mas Helena puxou as saias sobre os joelhos, depois falou com voz inexpressiva:
- Ora, mamãe, você não precisava me contar nada disto. Por quê?
- Porque era meu dever, Helena. Achei que era meu dever. Não peço que me julgue, não diga nada por enquanto porque você ainda não conhece a vida, mas como sempre
fui muito franca e coloco a lealdade acima de tudo, acho que meus filhos não devem ignorar meu passado. Tenho horror à mentira, por isso ensinei vocês a serem sinceras
e contar sempre a verdade. Pensando assim, como poderia esconder certos fatos da minha vida? Seria mentir, enganar, e eu odeio a mentira.
Parou para olhar Helena; ela continuava imóvel como se não ouvisse; Gina tornou a falar;
- Você vai casar daqui a dois meses, por isso achei que você precisava saber a verdade. A verdade acima de tudo.
A menina continuou silenciosa ela levantou-se para sair e colocou uma das mãos sobre o ombro de Helena:
- Isso me pesava, filha, por isso falei.
Helena franziu a testa e perguntou, como se lembrasse de súbito:
- E papai?
- Nada ignora. Sabe tudo a meu respeito, naturalmente.
Suspirou e acrescentou olhando a filha:
- Foi Fernando que me salvou. Você sabe agora o quanto sofri. Peço a você que procure esquecer, não pense nada sobre meu passado. Seria horrível continuar a pensar,
numa coisa que acabou. Procure esquecer.
Atravessou o quarto e abriu a porta; antes de fechá-la, relanceou os olhos pela filha; ela continuava no mesmo lugar, como que petrificada. Gina fechou a porta de
vagar e se foi.
Helena continuou imóvel. Por que a mãe viera falar sobre esse passado vergonhoso? Por quê? Sentiu uma onda de sangue subir-lhe ao rosto; escondeu-o entre as mãos
sentindo asco. Por quê? Que miséria! Levantou-se rápida, fechou a porta com chave; queria ficar sozinha com sua dor e sua vergonha. E também sua desilusão. E se
Eduardo soubesse, o que pensaria? Era capaz de não querer mais se casar com ela pois a mãe fora uma mulher... indigna. Deu um gemido e deitou-se na cama, horrorizada;
ficou de cabeça para baixo, os braços crispados sobre o travesseiro: "Detesto-a. Por que veio me tirar tanta ilusão? Sou infeliz agora por causa dela. Parece que
tem inveja da minha felicidade, do meu amor. Há mães assim, eu sei, que têm inveja das filhas. Ela nunca teve isso, talvez nem papai saiba. Pobre papai. Por isso
que tia Zelinda era esquisita, eu me lembro, decerto também era... Que horror! Mamãe dizia para ela não falar nomes feios perto de mim. Tenho ódio... ódio... Que
vergonha. Sou filha dela... Não. Não."
Começou a soluçar, a cabeça enterrada no travesseiro. "Preferia morrer. Ela é miserável e eu a detesto. Ah! Como a detesto."
Enxugou as lágrimas com a ponta da fronha: Será que vovó Julica também... Impossível! Coitada de vovó Julica, tão boa, tão direita. Ela não. Que idéia horrível.
Mamãe me perturbou, tirou minha alegria, minha tranqüilidade. E Gracinha? Não, Gracinha é tão quieta, tão boa... Escreveu que não pôde vir para a festa do noivado
porque as crianças estavam com catapora, mas vem para o meu casamento sem falta. Não. Gracinha não. Só mamãe. Por quê?
Parou de chorar. Levantou-se e foi procurar um lenço na gaveta. Assuou-se, enxugou as faces e olhou-se ao espelho: "Ela disse que foi por miséria... Miséria o que!
Não acredito... É mentira. Tenho vergonha de olhar para Eduardo... Mas ele nunca saberá. Nunca. Que rosto maravilhoso eu tenho... Sou formidável! Daqui a pouco é
hora do jantar, vou descer como se nada tivesse acontecido, ela vai ver de que fibra sou feita. Pensa que me esmagou? Ela vai ver."
Acendeu as luzes do quarto, fechou as venezianas e sentou-se diante da penteadeira. Lembrou-se de ir ao banheiro para banhar o rosto; abriu a porta do quarto e escutou
para ver onde "ela" estava. Foi ao banheiro e voltou, tornou a fechar a porta. "Ela fez de propósito Veio me contar tudo hoje porque sabe que Eduardo não vem jantar.
É para eu chorar à vontade. Pois não choro. Ela vai ver; eu sou forte. Tenho fibra. Não choro."
Passou o batom nos lábios, penteou-se: "Sou mesmo formidável. Dizem que sou uma beleza. E ninguém sabe nunca o que sinto. Ninguém. Papai disse que tenho muita vida
interior. Talvez. Hei de tratá-la com indiferença de hoje em diante, ainda é pior que o desprezo. Ela vai ver. Isso não se faz, tirar a ilusão de uma menina de dezoito
anos. Eu tinha ilusões, ela me tirou."
Ouviu os passos ligeiros de Ana Luiza perto da porta do quarto; ouviu a menina mexer no trinco:
- Helena, abra um pouco, quero mostrar uma coisa pra você. Você não está aí? Estou vendo luz!
Bateu na porta.
- Estou me vestindo, Ana Luiza! Agora não posso abrir.
- Só um instantinho, Helena. Abra um pouco.
- Agora não.
- Quero mostrar uma pedra que eu ganhei de Tidinha. É azul e tem um brilho amarelo de vez em quando. Venha ver.
- Já disse que agora não, estou ocupada.
Ouviu Ana Luiza resmungar qualquer coisa e depois afastar-se. Ficou deitada na cama, esperando que a chamassem para o jantar. Mais tarde, ouviu vozes; era o papai
que subia a escada. Continuou fechada no quarto; percebeu quando todos desceram para o jantar. Pensou que tivessem se esquecido dela e teve vontade de chorar outra
vez. Resolveu descer. Olhou-se ao espelho, compôs uma fisionomia serena e desceu depressa, com ar despreocupado. Beijou o pai no momento em que se sentavam à volta
da mesa. Não olhou para o lado da mãe. Durante todo o jantar esforçou-se por parecer natural; contou a Fernandinho uma história que lera num livro, conversou com
Dr. Fernando, mas nem uma vez sequer olhou para o lado de Gina. Depois do jantar ficaram sentados no terraço, sentindo o ar fresco que vinha da praia. Dr. Fernando
entrou logo para ler os jornais; Ana Luiza e Fernandinho ligaram o rádio e ficaram ouvindo uma comédia. Helena foi buscar um livro e começou a ler, mas não entendeu
nada do que lia. Viu Gina ir lá para dentro, voltar, ler jornais, tocar piano; continuou lendo como se a história fosse muito interessante, mas disfarçadamente observou
os gestos da mãe, o modo de andar. Teria sido muito bonita? Ainda era. Quando todos subiram, ela subiu também e fechou-se no quarto. Logo depois, Ana Luiza bateu
e falou em voz baixa:
- Helena, abra, quero conversar...
Silêncio.
- Heleninha, o que você tem hoje? Eu não fiz nada.
Perguntou depois de uma pausa:
- Fiz alguma coisa ?
A voz de Helena veio lá de dentro, áspera e zangada:
- Vá embora e não me aborreça, Ana Luiza. Vá embora.
Ana Luiza gritou fora de si:
- Estúpida! Bruxa!
Imediatamente o pai abriu a porta do quarto e perguntou:
- Que é isso, Ana Luiza?
Todas as portas se fecharam e a luz do hall foi apagada. Helena pensava sem poder dormir: "Sou uma infeliz. Por que ela quis me contar esses horrores? Para me fazer
desgraçada? Para tirar minha alegria e minha felicidade? Ela fez de propósito, achou que eu era feliz demais. Ela me paga, hei de desprezá-la. Ela vai ver. Detesto-a."
Não tinha sono, mas começou a se despir rapidamente. Onze horas. Vestiu o pijama branco de risquinhos verdes e deitou-se ficou só com a luz da cabeceira; colocou
os braços atrás da cabeça: "Não gosto mais dela, nem um pouco. Será que gostei um dia? Não. Tenho ódio de todos, todos. Odeio minha família e nunca perdoarei o que
ela fez. E dos outros eu gosto? Dos meus irmãos?"
Lembrou-se de que Fernandinho se machucara uma vez quando caíra de uma árvore em Teresópolis e ela chorara por vê-lo sofrer. Sentiu os olhos cheios de lágrimas a
essa lembrança. Voltou-se de lado e olhou a lâmpada: "Só quero Eduardo, só amo Eduardo. Só penso nele. Tenho certeza que gosto dele; quando ele não vem, como hoje,
sinto um vácuo perto de mim. Adoro Eduardo. Quero Eduardo."
Passou o braço direito ao redor da sua cintura e imaginou que era o braço do noivo que estava a sua volta; fechou os olhos e mergulhou a cabeça no travesseiro para
sentir mais nitidamente a presença de Eduardo ao seu lado; lembrou-se dos seus olhos, da sua boca, do seu modo de falar, do seu andar, das suas roupas, da sua gravata,
do seu relógio-pulseira. Apertou mais o braço e sussurrou: Eduardo! Voltou-se do outro lado e com a mão esquerda acariciou levemente seu peito pensando na mão de
Eduardo apertando-a com doçura; lembrou-se dos beijos dele. Quantas vezes já haviam se beijado? Sentiu tão nitidamente o beijo que estremeceu. Voltou-se outra vez
e espiou o relógio na mesinha da cabeceira: quase meia-noite. Imaginou Eduardo ali também espiando o relógio. Murmurou: "Meu amor". Ajeitou-se como se estivesse
se ajeitado nos braços do noivo e apagou a luz. Imediatamente pensou na mãe: "Por que ela me tirou essa ilusão? Por quê? Por que preciso saber o passado dela?" Estendeu
o corpo e ficou de costas olhando a escuridão. Ouviu o ruído do mar bem longe, nas suas atribulações até se esquecera do mar; imaginou o vai-vem das ondas àquela
hora da noite. Desejou morrer. Viver com aquele peso no coração? Era demasiado para ela. Sentiu os olhos cheios de lágrimas quando imaginou Eduardo chorando sua
morte. Ouviu um leve ruído: era a cachorrinha arranhando a porta do quarto de Ana Luiza. De vez em quando dava para fazer uma travessura, aquela Mimosa. Satisfeita
por poder afastar os tristes pensamentos, levantou-se no escuro, abriu a porta do quarto e acendeu a luz do hall; lá estava Mimosa com um ar desapontado, sentada
na porta do quarto da irmã. Olhou para Helena e não se moveu; Helena ralhou em voz baixa para não acordar os outros:
- Vá embora, Mimosa, vá para sua cama.
A cachorrinha continuou imóvel e baixou as orelhas; ela ameaçou:
- Quer ver como eu te bato? Vá embora.
Diante do seu gesto de ameaça, o braço estendido, a cachorrinha obedeceu; passou por ela, toda humilde, esperando um tapinha nas costas, mas não sentiu nada. Desceu
as escadas e voltou-se duas ou três vezes para ver se Helena a chamava, mas Helena continuou fazendo carrancas e ameaçando com as mãos, sem falar para não acordar
os pais. Mimosa desceu, atravessou a sala de jantar e foi para a copa, onde dormia numa cesta de vime. Helena apagou a luz e voltou tateando para o quarto. Deitou-se.
Pensou mais uma vez no noivo e dormiu.
No dia seguinte, acordou um pouco tarde; levantou-se e lembrou-se do que havia se passado na véspera. Resolveu esquecer; pensou no sonho que tivera com Eduardo.
Desceu; todos já tinham tomado café; viu a mãe auxiliando a criada na limpeza da sala. Disse tristemente:
- Bom dia, mamãe.
Tornou a lembrar do que havia se passado e seu rosto tornou-se mais sério. Sob sua xícara havia um bilhetinho da irmã que já havia ido para o colégio: "Desculpe
os nomes que eu disse ontem pelo buraco da fechadura, mas você estava impossível. Tenho exame hoje, de matemática. E não estudei nada. Reze por mim. Ana Luiza, sua
irmã."
Teve um acesso de riso; Gina veio saber o que era e ela mostrou o bilhete, já sem rir. Pensou: "Como poderei ser feliz outra vez? Ela pensa decerto que já esqueci;
diz sempre: mocidade esquece depressa. Pois mostrarei a ela que não esqueço." Estendeu o bilhete para Gina, sem uma palavra e começou a tomar café. Gina percebeu
a animosidade da filha; leu o bilhete sorriu e deixou a sala. Helena seguia-a com os olhos: "Parece incrível. Por que me contou? Para me fazer infeliz? Sempre ouvi
dizer que há gente assim; gente que se sente feliz com a desgraça dos outros, mesmo dos seus próprios filhos. Que coisa horrível."
Tomou um bordado entre as mãos e foi para o caramanchão do fundo do jardim; sua resolução da noite anterior havia caído por terra; não pensava mais em demonstrar
indiferença pelo que ouvira, nem provar que era forte, superior e estava acima do que a mãe contara. Nova resolução viera-lhe à mente essa manhã; queria provar que
sofria e sofria muito; queria demonstrar o mal que a mãe havia lhe feito; queria provar com a sua atitude francamente desgostosa que fora atingida no mais profundo
do seu coração. Queria que todos notassem seu abatimento e perguntassem uns aos outros: "Que tem Helena que está tão triste?" Mesmo que o noivo percebesse, ela diria
que não tinha nada e nada contaria, mas sua mãe havia de sofrer, havia de ter remorsos e passar noites sem dormir, arrependida do que fizera. Seria essa a sua vingança;
muda, mas terrível. Enquanto bordava, pensava em Gina: "Com que cinismo ela me contou tudo; ainda se chorasse, se eu visse lágrimas nos olhos dela, podia ter pena.
Não. Contou-me com tanta calma que me revoltou; foi isso que mais me revoltou. Mas ela há de se arrepender do que me fez, há de sofrer e chorar de remorso. Por que
me contou? Por que levou essa vida indigna? E agora me conta tudo como se fosse tudo muito natural. Mas há de se arrepender; papai, Eduardo, Fernandinho, todos hão
de perceber meu desgosto e ela vai se arrepender, tenho certeza. Vai chorar de remorso. Por que me fez isso?"
Desde esse dia, começou a evitar a mãe: quando estava conversando com os irmãos ou com amigas e Gina entrava na sala ela parava de falar e ficava pensativa, um ar
desgostoso. Não procurou mais a mãe para pedir-lhe opinião ou conselhos sobre o enxoval e só respondia o que Gina perguntava. E quando respondia, era com os lábios
meio cerrados, o olhar perdido no espaço como se estivesse empolgada por outro pensamento.
Durante os dois meses que precederam o casamento de Helena, Gina esteve tão ocupada que não teve tempo de prestar atenção na filha; via-a ir e vir, experimentar
os vestidos, escolher modelos, conversar com o noivo. Pensou consigo que fora muito mais fácil do que imaginara; às vezes, à noite, observava a filha disfarçadamente;
essa tranqüilidade aparente não significava nada? Helena era tão diferente dos outros que essa placidez assustava-a um pouco. Preferia que a filha tivesse reagido,
tivesse chorado em seus braços, respondido alguma coisa, recriminando-a. Nada. Com seu rosto bonito e fino, andava de um lado para outro atendendo ao telefone, discorrendo
sobre apartamento onde ela e Eduardo iriam residir. Às vezes, muito raramente, surpreendia o olhar da filha sobre ela; era um olhar frio, como que acusador. Mas
não era possível, talvez fosse engano porque logo depois Helena estava alegre e conversando animadamente.
Uma semana antes do casamento, Gina estivera na cidade ultimando os preparativos para a recepção que ia haver após a cerimônia; chegou um pouco cansada e subiu as
escadas devagar, acompanhada por Mimosa que dava latidos de alegria aos seus pés. Tirou o chapéu diante do espelho do quarto; havia emagrecido bastante e tinha olheiras.
Era cansaço, com certeza. Preocupações. Rugas nos cantos da boca e à volta dos olhos; falou consigo: "Estou velha. Quarenta e poucos anos para uma criatura que sempre
se preocupou com os outros, mais com os outros do que consigo mesma, é alguma coisa." Tirou os sapatos e trocou-os por uns mais largos, caseiros; estava se preparando
para trocar de vestido quando ouviu batidas leves na porta e a voz de Ana Luiza:
- Mamãezinha, posso entrar?
A menina apertou o pescoço de Gina, deu-lhe um beijo no rosto e, falou:
- Tirei dez hoje outra vez em História Universal.
- Cada vez mais estudiosa, hein? Isso é uma maravilha. Muito bem.
Passou o pente pelos cabelos depois de ter trocado o vestido; Ana Luiza levantou Mimosa do chão e falou, confidencial:
- Mamãe, Helena está chorando...
- Chorando? Por quê?
- Não sei. Passei pelo quarto dela, ouvi um chorinho, parei para escutar; era ela. Pedi para entrar ela não deixou, mas está chorando.
Gina encaminhou-se rapidamente para o quarto da filha mais velha. Ana Luiza recomendou:
- Não conte que eu falei, faça de conta que não sabe de nada.
E sumiu pela porta do quarto dela. Gina bateu:
- Helena, quer abrir a porta um pouquinho? Preciso falar.
Ouviu a voz dela um pouco rouca:
- Espere um pouco. Já vai.
Abriu a porta. Estava ainda com os olhos vermelhos e, apesar de ter passado pó de arroz sobre o nariz, percebia-se que havia chorado. Gina fingiu que não viu e falou:
- Encontrei aquela seda azul que você queria, sabe? Trouxe uma amostrinha para você ver. Creio que as cortinas dessa cor ficarão lindas. Trouxe outras amostras também;
encontrei um cetim maravilhoso, só indo lá embaixo ver... De repente reparou no rosto da filha:
- O que você tem? Está tão vermelha...
- Dor de dente outra vez.
- É aquele dente que já tratou?
- É. Tornou a doer hoje.
- Mas não pode ficar assim, filhinha. Precisa ir ao dentista outra vez. Tomou algum comprimido?
- Ainda não. Mais tarde...
- Espere aí que eu vou buscar, não pode esperar para mais tarde.
E fez um movimento para a porta; Helena segurou-lhe o braço:
- Não precisa, mamãe.
Os olhos encheram-se de lágrimas; Gina assustou-se:
- Mas está doendo tanto assim? Ela sentou-se na beira da cama:
- Não, mamãe. Não é dor de dente, já sarei do dente.
- Então o que é, Helena? O que aconteceu com você? Fale.
Helena continuou calada, os olhos marejados. Gina debruçou-se:
- Alguma coisa com Eduardo? Brigaram?
- Não, mamãe. Nada.
- Conte o que há. Sempre fui sua confidente. O que aconteceu?
Sentou-se ao lado da filha e puxou a menina para si:
- Então, filhinha?
Helena começou a chorar sem dizer nada. De que modo contar à mãe aquele sentimento de remorso que sentia desde dois meses antes? Chorava sem poder se conter e não
tendo lenço passava as mãos sobre o rosto, num gesto aflito. Era um choro desconsolado e sentido; Gina insistiu:
- Será que você não pode contar para sua mãe, Helena? Baixou mais a voz:
- É sobre nossa conversa de outro dia? Helena sobressaltou-se; negou:
- Não, mamãe. Nada disso. Estou triste à toa.
- Não é possível. Há sempre uma causa para nossas tristezas. Fale o que quiser, filha. Estou aqui para escutar. Para que servem as mães? Para amparar os filhos nos
momentos de incerteza. Seja o que for, pode contar, Helena. Não há ninguém que compreenda tão bem uma filha como a própria mãe. Fale.
Soluçando, Helena ajoelhou-se diante de Gina, tomou-lhe uma das mãos e beijou-a:
- Mamãezinha, oh! Mamãezinha...
As lágrimas correram dos olhos de Gina. No fundo do coração, percebeu o que Helena estava sentindo. Fez a menina levantar-se e sentar-se outra vez ao seu lado, foi
buscar um lenço na gaveta da penteadeira e enxugou o rosto da filha, depois o seu próprio. Foram se acalmando, depois Gina perguntou:
- Não está sentido mesmo nada?
- Nada. Juro para você; só tristeza.
- Então chorou porque estava nervosa... Isso acontece algumas vezes. Quando Eduardo vier hoje, vai encontrar você com cara feia.
Helena sorriu. Gina inclinou-se para um lado e se olhou no espelho do guarda-roupa; fez Helena inclinar-se também:
- Olhe que duas feiosas. Daqui a pouco seu pai chega para o jantar. Passou o nervoso?
- Passou, mamãe.
Começaram a rir vendo os dois rostos unidos diante do espelho; Helena pediu:
- Não conte nada a papai.
- Não, não conto. Por melhores que sejam os homens, às vezes não compreendem certas coisas.
Fez uma pausa e continuou:
- Se você soubesse como chorei no dia do nosso casamento. Parecia não ter fim... Seu pai foi tão bom, tão compreensivo.
- Papai é um amor.
- É mesmo um amor. Quer adivinhar nossos pensamentos; veja seu nariz como está vermelho, parece um tomate.
Helena riu-se olhando no espelho.
- Nem tanto, mamãe!
- A que horas Eduardo vem?
- Ele prometeu estar aqui às sete horas.
- Então vamos nos aprontar, está quase na hora. Vá lavar seu rosto, eu também vou. Hoje está bem quente.
Beijou a filha na testa e deixou o quarto. Ouviu a voz de Fernandinho no hall, em baixo:
- Ana Luiza! Vem ver Mimosa querendo pegar um passarinho. Sai Mimosa.
- Mi-mo-sa! Mi-mo-sa!
Ouviu as risadas intermináveis da menina, com certeza Fernandinho fizera uma careta.
Pela primeira vez, Gina pensou conhecer um pouquinho o coração de Helena; desde esse dia, tornaram-se mais amigas. Havia um segredo que guardavam juntas, até à morte.















XX

Naquele mesmo ano, depois do casamento de Helena, Fernandinho entrou para a Escola de Engenharia; no primeiro semestre, dedicou-se muito aos estudos e foi um aluno
aplicado. No segundo ano o entusiasmo foi esmorecendo; ninguém mais viu Fernandinho estudando; voltava para casa altas horas da noite e dia seguinte ia para a praia,
onde ficava durante a manhã toda. Os pais inquietaram-se. Ana Luiza veio um dia com a novidade; contou a Gina confidencialmente.
- Ele tem uma pequena, mamãe. Não é bonita, parece mais velha que ele e ainda por cima é peituda. Tem uns seios assim, enormes...
E Ana Luiza fez um gesto mostrando o busto numa distância exagerada.
- Você vê sempre os dois juntos?
- De uma semana para cá vejo sempre. Eu, se fosse ele, teria vergonha de namorar ela.
- Não compreendo, Ana Luiza. Vergonha por quê?
- Ela é esquisita... Não sei explicar para você, mas não é como eu, nem como Helena. Dá gritos no banho de maré chama a atenção de toda a praia... É muito pintada,
muito exagerada nas roupas. Quando ela passa, os homens olham e dão risada. Não sei explicar, mas eu não gosto dela.
Sacudiu o dedinho na direção de Gina:
- Não conte nada disso para ele, viu? Se não ele me come. Nessa tarde, Gina e Dr. Fernando conversaram a respeito do filho; Dr. Fernando prometeu chamar a atenção
de Fernandinho para os estudos. Depois do jantar, chamou-o ao escritório; mandou-o sentar-se e começou:
- Preciso falar seriamente com você. Como vão seus estudos?
- Vão bem.
- Mas eu não vejo você estudar. Fernandinho tomou uma atitude defensiva:
- Mas você passa o dia todo fora, papai. Como é que você pode ver? Estudo durante o dia.
- Mas sua mãe me disse que não vê você pegar um livro. No princípio do ano você estudou, depois nada. Assim você será reprovado.
Fernandinho tirou um cigarro do bolso, bateu e estendeu a cigarreira ao pai, sorrindo:
- Não tem perigo, papai. Agora não há necessidade de muito estudo, mas na véspera dos exames, você vai ver. Pego no duro.
Dr. Fernando levantou-se e deu uma volta pelo escritório; parou na frente do filho que fumava olhando o tapete:
- Me diga uma coisa: quem é essa menina que anda com você pra baixo e pra cima?
E cerrou os olhos por causa da fumaça do próprio cigarro observando o filho através dos cílios; Fernandinho perturbou-se um instante, depois falou com firmeza olhando
o pai.
- É uma menina muito correta. O que tem isso?
- Não tem nada, mas é por causa dos estudos; você não estuda mais como estudava. Não fica bem ir a toda a parte com ela...
Fernandinho riu, constrangido:
- Ora, papai, que idéia. Ela não influi na minha vida particular. Isso é um absurdo.
- Você de repente deixou de estudar, volta fora de horas, não o vejo pegar num livro. Só com essa menina, na cidade na praia, em toda parte.
- Mas eu estudo, papai. Quem disse que não estudo? Todos os dias pelo menos duas horas.
- Quem disse foi sua mãe...
- Como é que mamãe pode saber? Eu me fecho no quarto e estudo durante horas.
Houve um silêncio entre os dois; continuaram a fumar. Dr. Fernando aconselhou:
- Está bem filho. Estou apenas fazendo lembrar seus estudos, parece que você está se esquecendo deles. Não quero que seja reprovado.
- Você vai ver que não serei. Não tenha receio.
Antes de Dr. Fernando deixar o escritório, voltou-se para o filho:
- Você está com dezenove anos, não é?
- Vou fazer dezenove.
Parece que ia dizer mais alguma coisa, mas não falou, apenas respondeu:
- Está bem.
Ficando só, Fernandinho aproximou-se da janela e jogou fora o cigarro; viu a pequena chama desaparecer na grama do jardim. Estava agitado: "Já começou o barulho,
eu sei que mais cedo ou mais tarde eles haviam de saber. Terei que lutar, mas lutarei. E vencerei. Quem seria que contou?"
Refletiu um instante: "Ana Luiza? Foi Ana Luiza. Ela me viu passeando com Jujú muitas vezes. Ela me paga novidadeira. Vai ouvir boas; por que aborrecem tanto a gente?
Família é um caso sério."
Deixou o escritório e atravessou o hall com ar de grande superioridade, a cabeça levantada. Não viu ninguém. Entrou no quarto e fechou-se; deitou-se na cama com
os pés para fora para não estragar a colcha, numa posição incomoda: "Afinal o que papai quer? Que eu deixe Jujú? Nunca. Disse que ela me atrapalha os estudos. Que
idéia absurda. Eu não tenho estudado mas não faz mal. Tenho meses inteiros na minha frente. Jujú é um colosso. Que pernas perfeitas, parecem modeladas em mármore;
serviria de modelo para um escultor. Mas o que mais gosto é a boca. Que boquinha admirável!"
Voltou-se para um lado e colocou com cuidado um pé sobre o outro, por causa da colcha. "Vamos ver que horas são. Sete e meia. Daqui a pouco me chamam para o jantar.
Que gente cacete! Tenho que aturá-los durante todo o jantar, nem acredito quando der o fora e abraçar Jujú." Apertou os braços contra o peito e cerrou os olhos,
num enlevamento. "Ela é adorável, simplesmente adorável. Ainda não tinha encontrado uma garota assim, tão completa. Ela se finge de esquiva para me provocar, bem
que conheço o jogo dela, mas gosta de mim. Oh! Se gosta."
A esse pensamento levantou-se num salto; todo seu corpo vibrava. Procurou um cigarro no bolso, tirou e acendeu-o; abriu a janela e olhou o jardim solitário àquela
hora; viu depois Ana Luiza e a cachorrinha entre os canteiros de hortênsia: "Pestinha. Foi ela que contou. Quem mais? Também ela não pode saber nada do que se passa.
Que eu passeio com Jujú? Ora, o que tem isso? Eles tinham que saber um dia, antes saberem já. O dia que eu contar que minha resolução é casar-me com Jujú, vai haver
um estouro aqui em casa. Vão ficar estonteados, vão ver. Mas ela há de ser minha, menina danada." Ouviu o gongo chamando para o jantar; jogou fora o cigarro, correu
para o banheiro e pôs a cabeça sob a torneira d'água fria; penteou-se com esmero e desceu para jantar.
No fim do ano, foi reprovado. Teve que repetir o segundo ano. Foi uma consternação na família e Dr. Fernando chamou-o novamente ao escritório. Repreendeu-o acerbamente;
Fernandinho ouviu tudo calado e quando o pai falou na menina com quem ele andava, revoltou-se. Disse que era uma menina distinta com quem pretendia casar-se algum
dia. Dr. Fernando elevou a voz:
- Distinta? Você acha distinta uma menina que vai sozinha com você a toda parte? Até a Cassinos?
Fernandinho cerrou os lábios com força:
- Você está muito bem informado, informado demais. Fui uma vez com ela ao Cassino da Urca, só para levar um casal parente dela. Ficamos só um instante.
- Acha isso correto? Voltar fora de horas sozinho com ela? Suas irmãs algum dia fizeram isso?
- Que tem, papai? Hoje é diferente do seu tempo. Nos Estados Unidos...
Dr. Fernando cortou a frase:
- Não estamos nos Estados Unidos. Aqui é diferente, desde o começo é diferente. Eu sabia que você ia tomar bomba, vi sua vadiação, Georgina me avisou. Preveni você,
mas você ficou queimado; disse que estudava fechado no quarto não sei quantas horas por dia, que sua mãe não podia saber. Estou vendo que estudou mesmo. Estou vendo.
Fernandinho ficou vermelho de raiva:
- Isso acontece a muita gente.
- Mas não quero que aconteça a um filho meu. Trate de estudar para não tomar outra reprovação este ano, seria uma vergonha.
O rapaz levantou-se para sair. O pai ficou tamborilando os dedos sobre a escrivaninha; Fernandinho falou da porta com voz irônica:
- Já perdi o gosto pelos estudos. Preferia trabalhar...
- Não fale coisas sem nexo. Você mesmo escolheu essa carreira. Como não quer estudar? Por quê? Estude e não será reprovado. Mas estude.
Fernandinho subiu, furioso, as escadas; fechou-se no quarto: "Tenho ódio quando se intrometem na minha vida. Pensam que não me casarei com Jujú? Eles hão de ver
Agora querem que eu vá para Teresópolis. Vou, mas toda semana venho ver Jujú. Isso ninguém me tira. Gosto dela e sou capaz de me casar mais cedo do que eles pensam.
Quantos homens não se casam com antigas companheiras? Quando a gente ama, ama e acabou-se. Papai quer que eu continue a estudar, vamos ver. Depende de minha vontade.
Vou assobiar para ele Ver que estou muito contente com minha situação. Que diabo! Pensa que me intimida?"
E assobiou bem alto uma valsa; examinou o rosto diante do espelho: "Esta espinha está cacete, vou espremê-la. Jujú é um amor: o diabo é a mesada; preciso pedir a
mamãe que dê um jeito para aumentar a mesada. Mas justamente agora que tomei bomba. Esperemos."
Começou a espremer a espinha do nariz; nesse instante ouviu batidas na porta do quarto. Pensou que fosse Ana Luiza, mas não era. Era a mãe.
- O que, mamãe? Você por aqui a esta hora? Que novidade é essa?
Tirou uma toalha de cima da cadeira para que a mãe se sentasse comodamente; ela olhou-o:
- Cuidado com a espinha, Fernandinho. Às vezes pode infeccionar.
- Eu desinfetei as mãos com água de Colônia. Mas então? Vamos para Teresópolis?
- Vamos na semana que vem.
- Muito bem.
Pensou: "Ela vem aqui para me pedir para deixar a Jujú. Está muito enganada. Quando souber da minha resolução, vai se assustar. E minha resolução é irrevogável."
- Escute, filho, por que você não trás essa menina aqui em nossa casa? Essa menina que você gosta tanto? Convide a mãe e ela para tomarem um chá aqui em casa. Seria
agradável conhecê-las; a titulo de amizade, convida em meu nome.
Ele assustou-se; a unha do polegar enterrou-se na espinha inflamada, nem sentiu a dor. Aparentou calma:
- Quem? Jujú?
- Ah! Chama-se Jujú? Que apelido engraçadinho.
Gostaria de conhecê-la pessoalmente, já falei até com seu pai e ele me disse que devo mesmo convidá-las. Traga logo que elas puderem.
Ele voltou-se, já calmo:
- Sério mesmo, mamãe?
- Por que não? Pois vocês são namorados, gostam-se tanto há mais de um ano. Ela é uma menina distinta e pode ser minha nora um dia, tenho vontade de conhecê-la.
Ele sorriu:
- Papai não pensa assim...
- Seu pai ficou aborrecido com sua reprovação e é severo demais para certas coisas. Mas já o convenci, se você gosta de Jujú, por que não hão de se casar?
- Ela não tem mãe.
- Ah! Coitada!
- Quero dizer, a mãe não mora no Rio, mora no interior Mas tem mãe.
- Com quem ela mora aqui? Alguma irmã casada?
- Não, mora com uma amiga.
- Ah! Pois traga essa amiga com quem ela mora.
Fernandinho sentiu de repente que não tinha mais com quem lutar; perdeu o entusiasmo por um instante, depois exultou:
- Mamãe, você é um anjo. Já esperava isso da sua bondade.
Inclinou-se e beijou-a nas duas faces. Gina riu:
- Está bem; faço tudo para meus filhos mas é preciso estudar. Seu pai ficou tão triste quando você foi reprovado...
Aceito seu noivado e seu casamento com Jujú, mas não enquanto estudar; apenas um conhecimento mais profundo.
Por isso convido-a para vir aqui; assim fico querendo bem minha futura nora.
Enquanto ela falava, Fernandinho molhou a toalha na água de Colônia e fez uma espécie de compressa sobre a espinha: "Já sei o que ela pretende. Percebi tudo, peguei
no ar. Quer que eu traga Jujú aqui para eu me aborrecer de Jujú. Acha que meu entusiasmo irá esmorecendo vendo todos aceitarem Jujú Está en-ga-na-da. Logo vi que
tanta amabilidade encobria qualquer coisa, mas a mim não me engana. Ainda não nasceu a pessoa que poderia me passar a perna. Digo - poderia - e não poderá. Condicional
do verbo poder. Espertinha. Mas eu sou mais." Gina continuou:
- Só o que eu quero é que você estude. Faço questão; quanto ao noivado, não me importo, podem ficar noivos entre vocês dois. Mais tarde participa-se. Marque o dia
de trazê-la aqui, quero fazer aquele bolo de nozes que você gosta tanto.
Ele animou-se outra vez:
- Quando?
- Quando quiser. Acho bom antes de irmos a Teresópolis. Segunda feira por exemplo.
- Ótimo. Falo com ela hoje mesmo. Assim ela poderá dar um pulo na chácara também. Num domingo, quando estivermos lá.
Gina aquiesceu:
- Naturalmente. Se ela quiser, teremos muito prazer em recebê-la.
Levantou-se para sair. Ele não pôde deixar de exclamar:
- Como você é boa, mamãe. Camarada mesmo. E deu-lhe um beijo na testa. Ela riu e saiu fechando a porta.
No domingo, Fernandinho avisou:
- Mamãe, Jujú vem amanhã à tarde. Vou buscá-la às quatro horas. Dou um jeito e papai me empresta o carro.
- Pois fico contente que ela possa vir amanhã. Vou mandar chamar Helena para vir também. No dia seguinte, ela própria preparou a mesinha do chá no jardim de inverno,
junto à sala de jantar; depois de pronto, esperou. Helena chegou pouco antes; estava um pouco mais gorda e mais bonita; suas feições pareciam mais firmes e havia
mais expressão no seu olhar. Não era mais aquele olhar adormecido. Beijou a mãe e sentou-se; tirou um cigarro da caixinha e acendeu-o. Assoprou a fumaça:
- Afinal resolveram aceitar a tal mulherzinha, mamãe?
Eduardo ouviu falar mal dela. Andava com todo o mundo antes de Fernandinho. Deve ser terrível.
Gina interrompeu:
- Psiu! Não se fala ainda, minha filha. Vamos esperar e depois falaremos, se tivermos o que falar.
Helena ficou olhando a mãe com ar constrangido; Gina adivinhou-lhe o pensamento. Endireitou as flores na jarra.
Helena perguntou:
- Então é um chá de observação?
- Que idéia, Helena.
Ouviram o automóvel do pai estalando na areia do jardim; o próprio Fernandinho vinha guiando. Parou junto à escada do terraço, desceu e deu a mão a uma moça de vestido
fantasia, um grande chapéu de palha na cabeça. Gina e Helena foram ao encontro dos dois; Fernandinho apresentou:
- Mamãe, esta é Jujú.
Gina abraçou a moça e levou-a ao jardim de inverno; num relance percebeu que espécie de moça era Jujú. A principio, a moça quis mostrar superioridade; sabia que
a família era contra ela, depois sentou-se com desembaraço e cruzou as pernas nuas. Estendeu a mão para Fernandinho e ficaram de mãos dadas um instante; Gina percebeu
que o filho ficara desapontado com o desembaraço da moça; levantou-se e foi procurar cigarros. Jujú seguiu-o com a vista, perguntando, curiosa :
- Onde vais, Nando?
Ele não respondeu: Gina fingiu que não tinha ouvido e começou a conversar; falaram sobre a tarde bonita, a beleza da casa onde residiam, as flores da jarra, a ida
a Teresópolis. Helena pensou logo: "Vulgaríssima. Como é que ele gosta dela? Que estúpido. Nem parece que é meu irmão."
A moça tirou um cigarro da caixa que Fernandinho ofereceu e bateu na ponta da unha vermelha; ele apressou-se em acendê-lo. Jujú começou a falar:
- Eu fazia outra idéia da senhora.
Gina perguntou, admirada:
- De mim? Por quê?
Ela deu uma risada:
- Não sei. Pensei que a senhora fosse mais velha. A senhora é muito moça; sempre tive idéia de ter uma sogra velhinha acho tão engraçadinho.
Assoprou uma baforada para cima; falava alto e tinha uma voz desagradável e estridente. Gina, sentada na frente dela, via-lhe as pernas nuas, quase até às cochas.
Tirara o chapéu de palha que o rapaz levara lá para dentro; tinha os cabelos oxigenados, a cabeça estava cheia de cachos miudinhos presos com grampos. A boca não
era pintada simplesmente, era desenhada de vermelho escuro, a linha natural aumentada pela batom. Uma boca falsificada. Ria alto e desagradavelmente, por qualquer
coisa. O mais estranho era o seu olhar; @@@@ um olhar velado, não tinha franqueza. Olhava as pessoas sempre de lado, como quem finge que não está vendo o que se passa;
parecia um animal que vigia antes de atacar. Não se podia chamá-la de feia e a pintura deformava de tal maneira a sua fisionomia que não se sabia dizer se era bonita.
Gina qualificou em pensamento: "Bonitinha, mas vulgar. Horrivelmente vulgar; sem querer lembro de minha irmã Zelinda. Era quase assim. Esse mesmo modo de rir, essa
maneira estranha de se vestir e pentear, de chamar a atenção, de prender o olhar de todos em sua pessoa, esse mesmo cabelo mal pintado. Estou vendo a imagem de Zelinda.
No entanto, Gracinha que é filha dela, é tão diferente, graças a Deus."
Mandou servir o chá. Fernandinho procurava conversar sobre assuntos interessantes, mas Jujú teimava em falar sobre a própria família. Contou que a mãe e o pai moravam
numa cidade do interior; Gina perguntou o nome da cidade e ela disse: Valença. Depois na conversação, falou-se em Valença e ela retrucou que eles residiam em Campos.
Helena que não perdia detalhes da conversa, perguntou:
- Campos ou Valença?
Ela retificou corando muito:
- Um tempo residiram em Valença, agora em Campos.
Gina interveio:
- Fernandinho me contou que você mora aqui no Rio com uma amiga, não é? Precisa trazê-la um dia aqui também, em nossa casa.
Ela olhou Fernandinho um pouco desconfiada:
- Eu morava antes com minha irmã, mas ela foi embora.
Agora moro com duas amiguinhas, mas são muito sapecas, dona Gina, não gostam de visitas.
Percebendo que havia dito uma tolice, procurou corrigir:
- Mas são muito camaradas, muito boazinhas.
Deu uma risada. Fernandinho corou; Gina teve pena e procurou disfarçar:
- Quer chá com leite?
- Não gosto de leite; leite é pra criança ou pra velho que não pode mastigar. Quando eu estiver desdentada, aceito seu leite. Mamãe era assim como a senhora, fazedora
de doces. Fernandinho me disse que a senhora ia fazer um bolo de nozes. É esse?
- É sim. Você gosta?
- Ih! Sou louca.
Voltou-se para Helena:
- Há quanto tempo está casada, mocinha?
- Ontem fez seis meses.
Ela examinou Helena dos pés à cabeça :
- Que tal a vida de casada? É boa?
Riu-se muito com a própria pergunta. Helena respondeu:
- É muito boa. Eu gosto muito.
Ela riu-se mais:
- Está se vendo que você gosta.
Helena corou e Fernandinho mexeu-se na cadeira perguntando:
- Você não disse que queria bolo? Olhe no seu prato.
- Que é isso, meu bem, quer que eu coma e fale? Ou quer as duas coisas junto? Ou assobio ou chupo cana. Não te contei nada, Nando, as granfas da frente foram embora
ontem.
Enquanto tomava chá e comia pedaços de bolo, contou uma história desagradável sobre umas moças que residiam no mesmo prédio e recebiam rapaziada à noite, fazendo
algazarra. Terminou:
- Eu te disse desde o principio. São cafajestes. Fizeram cada frege... Granfas ordinárias; bebiam e cantavam Maria Cachucha a noite inteira...
Deu risadas intermináveis. Gina começou a servir mais chá e perguntou se não queriam sanduíches, haviam esquecido. Fernandinho apenas provou o bolo. Gina protestou:
- Mas fiz de propósito para seu chá, meu filho. Você gosta tanto deste bolo...
Jujú interrompeu:
- Ele está cheio, dona Georgina. Comemos pamonhas lá em casa antes de sair. Oh! pamonhas gostosas, comi umas quatro. Eu sou assim, quando gosto de uma coisa como
até quase arrebentar.
Helena deu uma risadinha e Jujú riu francamente dando uma palmada no joelho de Fernandinho. Enquanto sorvia o chá, Gina pensava de que modo impediria aquele namoro,
impossível que fosse até o fim. De qualquer, maneira, era preciso impedir. O automóvel que fora buscar Ana Luiza no Colégio, entrou no jardim esmagando pedrinhas.
Jujú perguntou:
- É essa a sua garota? Ana Luiza? Eh! Garota bonita.
Ana Luiza entrou no jardim de inverno e cumprimentou Jujú com certo acanhamento; esta sacudindo três vezes a mão da menina:
- Eh! Ana Luiza, vamos ser boas camaradas. Estou vendo que você é das minhas. Tristeza pouca é bobagem.
Ana Luiza riu com gosto. Pensou: "Ela é estupenda. Gosto dela." Via-se os braços morenos e torneados de Jujú, o busto muito desenvolvido para a altura, o pescoço
fino e comprido. Quando se levantou dizendo que queria ver as salas e o jardim, Gina observou-lhe o vestido curtíssimo; tudo nele era exagerado, extravagante, sem
gosto. Usava brincos de ouro, colar, broche com vários berloques e varias pulseiras em cada braço que tilintavam a todo movimento que fazia; e fazia movimentos rápidos
com os braços, de modo que o ruído das pulseiras era ouvido constantemente. Nas mãos, dois anéis com pedras falsas. No instante em que deixava o jardim de inverno,
voltou-se para esmagar o cigarro no cinzeiro e as pulseiras tilintaram ruidosamente; depois deu um pulinho para perto de um retrato que havia numa das paredes; era
de um irmão de Dr. Fernando que falecera anos atrás. Jujú fez uma exclamação de espanto:
- Parecidíssimo com um irmão meu. Ana Luiza aproximou-se e contou:
- É titio.
- Pois é igual meu irmão; nem que fosse irmão dele.
Voltou-se para Fernandinho e explicou:
- É aquele que te contei que pegava bezerros pelo rabo. Lembras? Era um colosso para lidar com o gado, nunca vi. Agora está louco, no hospício.
Helena que rira quando ouvira falar em bezerros, assustou-se; Ana Luiza recuou um passo:
- Louco?
- Chi! Louco varrido. Precisou camisa de força pra levarem ele.
Acrescentou com displicência:
- Sífilis cerebral.
Olhou Gina e Fernandinho:
- Eu não tinha te contado isso? Pois quero que saibas tudo a respeito da minha gente, não escondo nada.
Com gestos sinuosos, aproximou-se do rapaz e quis segurar o queixo dele; ele desviou em tempo, vermelhou até à testa. Ela murmurou,com enlevo:
- Então?
Ana Luiza começou a rir; Fernandinho perguntou, impaciente:
- Quer ou não ver a casa?
- Vamos sim. Dá licença, dona Georgina. Vamos.
Saíram os dois acompanhados por Ana Luiza; Gina ouviu a voz da moça na sala de jantar:
- Sua mãe é um doce. Você me disse que não são ricos? Então isto não cheira riqueza? Você é milionário, tutuzinho...
Ana Luiza riu, deliciada. Ouviu-se a voz impaciente do rapaz:
- Ora, Jujú...
Os passos deles afastaram-se; Helena suspirou e tirou um cigarro da caixinha vermelha:
- Mamãe, que lástima! Onde meu irmão descobriu isso?
Gina recostou-se com desânimo na poltrona de vime:
- Ele é muito criança e foi levado pela lábia que ela tem. Ela deve ter mais de vinte anos, talvez uns vinte e cinco. Não sei, mas parece que ela está exagerando
tudo, não sei se você reparou: os modos, a maneira de falar, de rir. Não compreendo. Em vez de conter-se diante de nós, parece que faz de propósito.
- Nada disso, mamãe. Não se iluda. Acho que não está exagerando coisa alguma, o natural dela é esse; quem sabe está se controlando?
- Você acha, Helena?
- Claro.
Gina ficou pensativa. Depois que Jujú foi embora, pediu às filhas que não comentassem a visita e estranhou o filho não lhe perguntar a impressão que teve da moça.
Pensou: "É um bom sinal. Ficou talvez envergonhado com o procedimento dela." Na semana seguinte, seguiram para a chácara de Teresópolis e Fernandinho só se referiu
um dia a Jujú, pedindo licença à mãe para levá-la à chácara:
- Para ela conhecer a chácara, mamãe. Passar o dia conosco.
Gina consentiu, não demonstrando aborrecimento algum.
Um dia antes de Fernandinho ir buscá-la, procurou-o no quarto dizendo que precisava falar com ele. O rapaz pensou: "Ela vem me pedir para eu não ir buscar Jujú Vai
dizer que achou Jujú moderna demais. Pois eu direi: É sincera, isso que ela é. Não é hipócrita como muita gente que conheço, gente que vive fingindo. Eu gosto de
Jujú assim mesmo e está acabado. Ela diz o que sente, por isso implicam com ela. Jujú faz a minha felicidade, não posso negar. É um pouco rude de maneira, um pouco
livre, fala às vezes demais, mas o que tem isso? Não diz mentiras, isso tenho certeza. Gosto dela." Parecia querer convencer-se a si próprio de que a amava. Gina
sentou-se perto da janela:
-Que linda vista.
- Linda mesmo. Da minha janela a paisagem é mais bonita.
- É verdade. Venha sentar-se aqui perto, vou contar uma história bem longa.
Ele riu:
- Como é que começa? Era uma vez...
- Justamente. Era uma vez...
E Gina contou ao filho sua triste história; quando terminou, viu lágrimas nos olhos de Fernandinho:
- Mamãe, como você sofreu. Mas sofreu tudo isso?
- Sofri tudo isso. E contei a você, filho, por um motivo muito plausível: quem sabe algum dia poderão fazer a você insinuações maldosas a meu respeito, o mundo é
invejoso. É preciso que você esteja prevenido e saiba a verdade pra me defender ou defender minha memória, se eu já tiver desaparecido. A gente só pode defender
quando sabe compreender.
Baixou os olhos sobre as mãos e ficou silencioso; durante alguns momentos nenhum falou, depois ele murmurou:
- Parece um sonho.
Num movimento brusco, levantou-se e procurou cigarros nos bolsos do paletó e na mesinha do quarto; acendeu um e tornou a sentar-se. Ela tirou os óculos e limpou
os vidros com o lenço; falou:
- Você há de dizer: "por que mamãe me contou tudo isso?" Vou explicar por que: em primeiro lugar porque a verdade deve pairar acima de tudo, mesmo que seja contra
nós, mesmo que seja doloroso confessá-la. Sempre pensei assim, foi uma espécie de dogma que herdei de meu pai. Tenho horror à mentira, à dissimulação, ao engano.
Quanto mais eu via a dissimulação e a mentira à minha volta, mais horror sentia, como se aquela vida de enganos e subterfúgios me causasse asco, repugnância. Em
segundo lugar porque conheço o mundo o suficiente para poder aconselhar você a respeito de Jujú...
Ele ficou imóvel como se não tivesse ouvido, apenas as pálpebras cerraram-se por um instante.
- Conheço as moças como Jujú, meu filho; elas não podem fazer a felicidade de um homem como você, de nenhum homem...
Fernandinho fez um movimento brusco, parecia querer falar, mas ela levantou a mão pedindo silêncio e continuou:
- Nessa minha vida passada, conheci muita coisa e aprendi a discernir o bem do mal. Serviu de experiência para mim; foi como se tivesse cursado uma escola chamada
a escola da desgraça. E não há nada que nos ensine a viver, a saber viver, como o infortúnio. Aquele ou aquela que passou por muitos infortúnios, que conheceu a
necessidade mais premente: a fome, que conheceu as noites de frio sem agasalho, que conheceu a procura de trabalho sem nunca encontrar, que viu de perto, a miséria
e a doença, pode dizer que sabe o que é a vida. O sofrimento ensina; portanto posso dizer que conheço as criaturas. Não digo a você: não se case com Jujú. Nada disso.
Apenas conto quem é Jujú e previno-o dizendo que ela não pode fazer sua felicidade: vem de um meio muito diferente e de um nível inferior.
Parou um pouco indecisa e não soube continuar: "Ela também não viera de um meio inferior? De um nível mais baixo?" Fernandinho compreendeu o embaraço de Gina:
- Mamãe, então não há muita lógica nisso tudo. Você conta uma coisa e contradiz logo depois.
Ela corou:
- Há exceção em tudo, filho. Você quer dizer que eu também vim de um meio inferior apesar de não parecer, não é? Mas seu avô, o professor Pasquale foi um homem de
educação superior. Foi pobre, infeliz no casamento, um artista incompreendido. Colocava a arte acima de tudo e foi isso que o fez infeliz porque não foi compreendido.
Mas era um homem distinto, um gentleman.
Fernandinho continuou calado:
- Você pode se casar com ela, mais tarde; apenas previno: essas mulheres não servem para esposas; minha irmã Zelinda era assim leviana e fútil, fez do marido e da
filha uns infelizes. Falo para seu bem, para sua felicidade. Jujú é apenas uma borboleta à procura de mel; nada nela é profundo, apenas superficial. Mas talvez me
engane; quem não se engana às vezes?
Ele levantou-se e ficou na frente de Gina, as mãos nos bolsos:
- Você esteve com Jujú apenas uma hora, na hora do chá. Como pode dizer que a conhece? Acha leviana por que fala a verdade? Por que é franca? Por que não esconde
o que sente? Você mesmo não acabou de dizer que a verdade deve pairar acima de tudo? Jujú tem sido infeliz e tem passado muitos apertos, mas é correta. Trabalhou
durante algum tempo e o dinheiro que ganhava mandava para a mãe, lá no interior. Penso que você está enganada, mamãe.
- Talvez esteja mesmo, já disse isso a você. Mas o que me faz pensar que ela é leviana, ou não pensa bem o que diz, é isso: mal ela chegou em nossa casa naquele
dia foi dizendo que sempre idealizou uma sogra velhinha, de cabelos brancos. Como podia falar em sogra se vocês ainda não são noivos? Foi pelo menos imprudente;
outra moça ficaria calada.
Fernandinho riu-se e começou a andar de um lado a outro:
- Isso foi brincadeira dela, quis agradar você. Era uma maneira de dizer que você é muito moça.
- Depois foi dizer que haviam comido pamonhas, por isso não quis comer à hora do chá. Meu filho, se ela foi convidada para um chá, não devia comer pamonhas antes
e se comeu não devia contar. Isso desilude a dona da casa.
Ele começou a rir francamente:
- Mas, mamãe, você faz questão dessas coisinhas? Uma das companheiras de apartamento entrou na hora em que íamos saindo e nos deu umas pamonhas. Comemos e pronto.
Não tem nada de mais. Brincadeira de Jujú. Ela sempre fala a verdade, por isso você não gosta dela.
- Não digo que não gosto dela; digo que a conheço bem e por essas pequeninas coisas, percebem-se as grandes. Não falemos mais nesse assunto, quis apenas prevenir
você.
Ficaram quietos uns instantes olhando através da janela aberta. Gina tornou a falar:
- Que vista tão bonita.
- Bonita mesmo. Não me canso de ver.
- A gente não cansa de ver a beleza, sob qualquer aspecto. Há muitas formas de beleza, mas nem todos sabem apreciar; às vezes é uma simples flor, uma árvore, um
rosto, uma atitude, uma música, uma frase, um ato generoso. A pintura, a escultura e a música têm nos dado muita beleza. A musica principalmente.
Fernandinho continuou a fumar em silencio; ela tornou a falar: .
- Há trechos de música que me comovem até as lágrimas; não posso ouvir "Capricho Italiano" de Tchaikovsky sem que meus olhos fiquem úmidos. Sabe aquele trecho?
(Gina cantarolou). Me faz chorar.
Ele aquiesceu com a cabeça.
Todas as vezes que eu cantava o "Caro Nome" ficava comovida. A beleza comove. Certos atos tocam o coração da gente; eu me lembro de três irmãzinhas, já estavam ficando
moças e quase não tinha vestidos nem sapatos bonitos. Um dia o pai fez um bom negócio e prometeu dar a cada uma delas duzentos mil réis na véspera de Natal. Cada
uma fez uma listinha do que mais precisava e a mais moça disse: "Precisamos reservar trinta mil réis para um presente pra mamãe; somos três ficam noventa mil réis".
Ora, com esse dinheiro, elas poderiam comprar tanta coisinha: pó de arroz, ruge, cinto; elas não tinham quase nada, mas lembraram da mãe. Acho lindo um ato assim.
- E deram o presente?
Gina sorriu:
- O pai não realizou o negócio ou se arrependeu de dar tanto; deu apenas trinta mil réis para cada filha. Não puderam comprar nem um par de sapatos.
- Então não deram nada para a mãe?
- Deram. Deram um par de chinelinhos azuis. Olhe, uma vez foi você, Fernandinho.
- Eu?
- Você. Eu andava um pouco doente nesse tempo e sentia muita falta de ar; sempre me queixava para seu pai: "É horrível esta falta de ar." Você teria uns sete anos
nesse tempo. Um dia levei você à igreja S. Bento, em S. Paulo expliquei que cada pessoa que entra numa igreja pela primeira vez, tem direito de pedir três graças.
Estávamos atravessando o Largo e você ia segurando minha mão, quando disse: "Mamãe, sabe a primeira graça que vou pedir? Pra você não sentir mais falta de ar. Peço
em primeiro lugar porque é mais importante, não é?" Fiquei comovidíssima e agradeci a Deus por ter um filho assim. Isso é beleza, filho.
Fernandinho começou a rir:
- Não me lembro mais disso.
- Mas eu não me esqueci; as mães não esquecem.
Ele atirou o cigarro pela janela:
- Mas não estou muito de acordo com você. Acho que a beleza é o que se vê ou o que se ouve. É concreto, é matéria, não acha?
- Não. Acho que a beleza é tudo o que nos toca, o que nos faz vibrar, como a música por exemplo. Como as paisagens bonitas, os objetos, as criaturas e os atos heróicos.
- Está certo. De acordo. Mas um ato de generosidade como o daquelas meninas, por exemplo, é bonito e nos comove, mas não significa beleza.
- Como não? Um ato de renúncia ou de generosidade, uma prova de amor desinteressado ou de dedicação são as belezas da vida, Aí de nós se não houvesse isso.
Ficaram os dois em silêncio por um instante, depois Fernandinho disse:
- São pontos de vista. Não sei se a beleza estará nesses atos humanos.
- Então que é isso? Esses belos atos humanos?
Ele refletiu um momento:
- São estados d'alma, assim como a paixão, a bondade, a perversidade. Mas não vejo nisso a essência da beleza que vejo numa flor, por exemplo.
- É como você diz: pontos de vista. Eu vejo assim.
Assim como vejo daqui esta bela paisagem.
Ele riu e, aproximando-se, beijou-a na testa:
- Não confundo, mamãe. Não confundo uma paisagem encantada com um ato de bondade.
- Por que não? Se um ato de bondade nos comove, é belo; assim como é bela a paisagem, e bela a flor, é belo um rosto...
Levantou-se e debruçou-se na janela:
- Creio que é o automóvel de seu pai que vem vindo; veja um pouco.
- É sim.
- Vamos nos encontrar com ele... A prosa fica para depois.
Ia deixar o quarto quando Fernandinho disse, rindo:
- Sabe por que você pensa assim? Você é artista, mamãe.
Ela riu-se e sacudiu o dedo indicador na direção dele:
- Talvez. Mas não se esqueça dos meus conselhos; são valiosos, são de mãe amorosa...
Fernandinho ficou só e resolveu fumar outro cigarro: "Coitada de mamãe. Sensível como é, deve ter sofrido muito. Quando é que eu poderia imaginar? Aproveitou e falou
o que quis de Jujú. Vamos ver mais tarde o que se resolve. Agora não vale a pena insistir, depois do que ela contou. Já sofreu muito, coitada!"
De repente começou a se sentir mal; fechou a porta do quarto e sentou-se na mesma cadeira onde a mãe estivera. Olhou a paisagem. "Ficou louco. Como é que eu podia
imaginar mamãe levando outra vida senão está? Estou chocadíssimo. Só Deus, sabe o esforço que fiz para me controlar. Coitada, nem percebeu. É horrível pensar, não
quero pensar."
Levantou-se e andou pelo quarto, as mãos nos bolsos; esforçou-se por chorar, os olhos ficaram úmidos. "Chorar pra que? Que diabo! E Papai? Sabe de tudo? Naturalmente
sabe. Que idéia idiota. Ela disse que eu preciso defendê-la se algum dia ouvir uma insinuação a esse respeito. Mas quem irá falar dela pra mim, um filho? Poderão
rir de mim às escondidas, isso sim. Disse que eu nunca poderia avaliar o que ela passou; não posso mesmo. Saberei por acaso o que é necessidade? Fome? Sempre encontrei
a mesa farta, coberta de pratos. Como é possível neste Brasil tão grande, haver gente que passe necessidade? Fome? Nunca acreditei; e no entanto minha mãe passou.
Deve ter sido horrível. Como é possível isso?"
Parou no meio do quarto e passou a mão direita pelos cabelos, como fazia sempre que estava nervoso, Lembrou-se de que ia fazer a mesma coisa que seu pai fizera vinte
anos antes. Sorriu amargamente. "Casar-me com uma mulher que tem um passado... Compreendo tudo agora. Por isso mamãe convidou Jujú para tomar chá, por isso não se
importa que Jujú venha aqui passar o dia, almoçar, jantar... É porque ela conhece a vida, conheceu a mesma vida de Jujú."
Recomeçou o passeio: "Mas estou ficando maluco. Jujú não é o que ela pensa; nunca foi. Teve algumas aventuras que ela mesma me contou, coitadinha, mas hoje é séria.
Vive apenas para mim. Jujú me ama. Tenho certeza."
Riu alto: "Como é forte a lei da hereditariedade! Aquilo que meu pai fez antes, vou fazer agora. Por quê? Não posso compreender. E por que ela me contou toda essa
história?"
Ouviu batidas na porta e a voz de Ana Luiza:
- Fernandinho, me empresta seu chicote?
Sentiu raiva da irmã; por que vinha interrompê-lo? Estava tão acabrunhado. Fingiu não ouvir e procurou cigarros nos bolsos do paletó.
- Fernandinho, me empresta seu chicote?
- Não me amole. Não sei onde está.
- Não precisa vir com má-criação; está dependurado atrás do guarda-roupa perto da janela. Eu mesma dependurei aí.
Ele olhou; lá estava o chicote. Mal humorado, tirou-o do prego e o entregou à irmã através da porta entreaberta, viu-lhe o rostinho alegre, os olhos cintilantes.
- Você não vem?
- Não.
- Por quê? O dia está estupendo. Papai chegou. Ele fechou a porta sem responder; ela gritou afastando-se.
- Malcriado. Vou no Tinhoso, por isso preciso do chicote. Até logo.
"Em que mesmo estivera pensando? Na lei da hereditariedade. Por que ela me contou? Ninguém vai falar mal de minha mãe para mim, um filho. Nem insinuação, nem nada.
Quem? Mentira dizer que o mundo é tão mau assim. Exagero."
Sentou-se perto da janela para fumar. Ouviu a voz alegre de Ana Luiza falando com o pai; ouviu a voz de Gina recomendando à filha que tivesse cuidado. Ana Luiza
riu alto um riso de intensa felicidade, despreocupação, alegria. Depois gritou:
- Vamos, Tinhoso. Vamos!
"Ela ri porque não sabe de nada. Por que o mundo é tão mau? Tão cheio de misérias? Por que faz uma criatura sofrer até o limite? E depois... Queria saber o que meu
amigo Amadeu pensaria se soubesse. Dona Georgina... Dona Georgina... Que obsessão. E se Jujú também soubesse? Preferia morrer a contar. Morrer. Desaparecer da face
da terra. Agora já sei por que mamãe não se importa que eu me case com Jujú; papai também não se importa. Como é que ele vai me recriminar se fez a mesma coisa?
O mesmo sangue. Barbaridade. Como eles são dissimulados! Como eu poderia adivinhar isso? Que minha mãe teve um passado? Se meus amigos soubessem, teriam pena de
mim. Pena por quê? Isso pode acontecer a qualquer um. As mães deles também não poderiam?"
Na imaginação, reviu todas as mães dos amigos. "Nenhuma podia ter sido assim. Impossível. O mesmo pensarão de mamãe; impossível. E no entanto... Que deverei fazer?
Dissimular também? Fingir? Parece que envelheci dez anos. Que peso!"
Aproximou-se do espelho e começou a se examinar. "Amanhã vou ver Jujú. Estou com saudades dela; Jujú me ama; percebo isso no olhar, no modo dela, em tudo. Quando
me vê, ela se transfigura e estremece. Isso não é fingimento, é amor."
Fez com os lábios um gesto como se fosse dar um beijo no espelho, em sua própria imagem. Sorriu ao lembrar-se dos lábios carnudos e vermelhos de Jujú. "Amanhã não
posso, mas depois de amanhã vou surpreendê-la. E mamãe? Que coisa medonha. Como é que nunca desconfiei de nada? É horrível pensar nisso. Sem querer estou pensando;
tenho vontade de gritar aos quatro ventos: Minha mãe foi... Quem sabe assim desabafo."
Contraiu o rosto com vontade de chorar e afastou-se do espelho; sentou-se na beira da cama e inclinou a cabeça entre as duas mãos. Um soluço agitou-lhe os ombros:
"Mamãe!" De repente reagiu e levantou-se: "Sou um homem. Que diabo. Não posso chorar." Aproximou-se da janela e viu ao longe um automóvel que vinha em direção à
chácara. Amadeu ficara de vir. Seria ele? Passou as mãos rapidamente pelos olhos para apagar algum vestígio; olhou-se ao espelho. Passou o lenço pelo rosto e preparou-se
para deixar o quarto. Avistou o pai lendo jornal num canto do terraço; a mãe vinha lá de dentro com uma bandeja. Fernandinho sentiu-se mal ao lembrar; sua mãe fora
sempre sua mãe, um ser à parte. Reparava pela primeira vez que era uma mulher; era estranho.
- Creio que Amadeu vem vindo, mamãe. Vi um automóvel na estrada.
Gina sorriu ternamente mostrando a bandeja com bolos:
- Olhe os bolos que fiz para vocês. Prove um.
Ele começou a mastigar: "Não é possível. Não e não; não quero que seja assim."
- Vou mandar arrumar a cama do Amadeu no seu quarto. Reparou como Ana Luiza é desconfiada com Amadeu? Acho-o tão simpático!
- Criancice de Ana Luiza!
A mãe foi em direção ao terraço levando a bandeja: "Sempre assim. Pensando em nós, fazendo tudo para nosso bem estar, para nossa alegria. Que pena ela ter me contado;
parece que não a admiro mais."
Viu o automóvel do amigo parar em frente ao terraço, correu para recebê-lo. Passaram toda a tarde juntos andando pelos arredores. Pouco antes do jantar Fernandinho
foi buscar gelo; ia fazer um "veneno" para ele e Amadeu; viu Ana Luiza na sala de jantar, falando com cachorrinha:
- Eu já sabia que você vinha pedir; parece que adivinha. Ponho uma bala na boca, vem ela muito lampeira pedir a bala. E vem passando essa língua vermelha no focinho.
Gulosa.
Tirou o resto da bala da boca e deu à Mimosa. Fernandinho pediu:
- Vamos para o terraço, Ana Luiza. Traga as garrafas vamos fazer uma mistura para Amadeu.
- Já vou.
Mas ficou no mesmo lugar falando com Mimosa. Fernandinho voltou para procurar o Cinzano; estava sobre o móvel da sala de jantar:
- Eu não disse para você levar isto para mim?
- Eu já ia levar...
- Ia nada...
Fernandinho saiu resmungando: Diabo de menina. Implicou com Amadeu. Não há quem tire isso. Será que ele desconfia? Não é nenhum trouxa."
Após o jantar, Gina tocou piano. Depois levantou-se dizendo que ia preparar o quarto para Helena e Eduardo que deveriam chegar domingo pela manhã. Ana Luiza conservou-se
arredia durante toda a tarde; quase não falou, não quis tocar piano quando o pai pediu e logo depois do jantar, deixou a revista que estava folheando e disse que
ia dormir. Deu um boa noite geral e retirou-se para o quarto. Fernandinho aborreceu-se; resolveu falar seriamente com a irmã no dia seguinte. Por que fazia esse
ar desdenhoso para o amigo dele? Pensou consigo: "Enjoada. Tão raras vezes ele vem e ela sempre assim. Adota um ar superior, insuportável, de rainha ofendida."
À noite, no quarto, Fernandinho abriu a janela para fumar um cigarro antes de dormir; de súbito voltou-se para o amigo e perguntou:
- Amadeu, você acredita na hereditariedade?
Amadeu que estava se descalçando, ficou com um sapato na mão:
- Por que pergunta isso?
- À toa. Vontade de saber.
Amadeu colocou o sapato no chão, depois de o ter observado: "Logo vai precisar de uma meia sola; não durou nada."
Era três anos mais velho que Fernandinho e cursava a Escola de Medicina. Quase bonito, se não fosse o nariz comprido demais; era simpático e muito estudioso. Começou
a descalçar outro sapato:
- Como não hei de acreditar? Estudo medicina, rapaz. Fernandinho tirou uma baforada do cigarro; disfarçou:
- A noite está estrelada.
- Por que perguntou? Algum caso interessante?
- Hein? Ah! papai falou hoje no almoço sobre o caso de uma mulher. É interessante sim, muito interessante.
Olhou o amigo e a luz deu-lhe em cheio sobre o rosto. Pensou: "É preciso que ele não desconfie de nada. Mas contarei; preciso desabafar."
- Vou apagar a luz e só deixar a da cabeceira. Posso? Pode entrar mariposas.
- Pode. Já estou deitado.
De pijama, Amadeu estendeu-se sob as cobertas:
- Puxa! Faz frio aqui; mas um friozinho gostoso. Diante do silêncio do amigo que se deitara também, perguntou:
- Então? Qual é a história?
Fernandinho resolveu ir até o fim, resoluto:
- Uma mulher que foi prostituta por necessidade. Compreende? A família paupérrima, passando as maiores necessidades; o pai preocupado com sua arte, a mãe cansada
de sofrer miséria e prevaricando para ter roupas melhores. Afinal um dia, a menina, filha desse casal, envereda pelo caminho mais fácil, cansada de passar fome...
Interrompeu um pouco assustado: "Cuidado. Preciso ter cuidado. Ele não poderá saber nunca; preferia morrer." Disfarçou:
- Está mesmo friozinho; vou puxar o cobertor. Afinal ela encontra um homem que a tira dessa vida miserável. Casa-se com ela, têm filhos, vivem felicíssimos... Fe-li-cis-sí-mos.
Houve uma pausa. Lá fora o vento passava entre as árvores e sacudia o toldo do terraço que começou a ranger. Amadeu perguntou encolhendo-se:
- Será chuva?
- Não. Mais tarde pode ser que chova.
- Adoro dormir com o barulho da chuva.
Bocejou. Vendo que o amigo não continuava, perguntou;.
- E então? A que você quer chegar?
- Ah! Não acabei ainda. O mais engraçado é que vinte ou trinta anos depois, o filho faz a mesma coisa, Casa-se com uma moça de vida alegre.
Amadeu riu:
- Que família? E deu certo também como o pai?
- Hein?
- O filho foi feliz como o pai?
Fernandinho embaraçou-se:
- Ah! Isso não se sabe. Papai parece que perdeu a família de vista.
Houve um breve silencio. Depois a voz de Amadeu, já sonolenta:
- Olhe, meu caro. Nada nesta vida é positivo, infalível, indestrutível, a não ser a morte. Tudo é incerto e móvel como a água, como as folhas das árvores sacudidas
pelo vento, como o próprio vento que vem ora do Norte, ora do Sul. Tudo é vago. Pode uma mulher descender de uma respeitável família e ser uma meretriz. Pode a filha
de uma meretriz ser puríssima e entrar para um convento. O filho pode seguir o caminho do pai, mas depende do meio; para mim, o meio é tudo. Compreende? Tudo é produto
do meio; isso é importante para mim, Mais que a hereditariedade. Mas em todo caso, não há regra sem exceção. Se uma mulher levou essa vida, depois casa-se e cria
os filhos num meio puro, forçosamente os filhos têm que ser puros. O meio é tudo.
Fez uma pausa:
- E depois você me disse que a mulher desviou-se por necessidade não por temperamento. E isso é importantíssimo.
- Mas se o filho que foi criado num meio bom, foi pelo mesmo caminho? Como se compreende isso? É o mesmo sangue.
- Talvez. Mas não creio, creio mais numa coincidência. Fernandinho respondeu num bocejo:
- Também penso assim...
- Estou com sono hoje, decerto é o ar daqui. Ouviram o vento outra vez e o barulho do toldo do terraço batendo levemente; Amadeu perguntou, quase dormindo:
- Como vai Jujú?
- Bem.
Amadeu começou a ressonar; os olhos de Fernandinho encheram-se de lágrimas: "Vou-me embora para longe, longe de todos. Ela esmagou minha personalidade, não poderei
ser eu mesmo de agora em diante. Serei hipócrita, falso, dissimulado. Envelheci."
Sentiu inveja de Amadeu, inveja de todo o mundo. Sofreu. No dia seguinte, pretextando ter o que fazer no Rio, voltou à tarde com Amadeu, de automóvel.
O caráter de Fernandinho acentuou-se; de um dia para outro, tornou-se mais sensato, mais retraído, mais recolhido a si mesmo. Foi como um amadurecimento prematuro.
Pensou nos segredos que os outros teriam também; cada pessoa devia carregar consigo um segredo. Atrás de cada fronte, havia uma consciência e nessa consciência,
quantos segredos? Quantos mistérios insondáveis? Começou a observar as pessoas de uma maneira diferente. Quando olhava um homem ou uma mulher pensava: "Deve ter
um segredo também, um grande segredo. Que haverá atrás dessa testa? Pensa que só ele tem segredos? Também tenho."
Passou algumas semanas numa grande prostração; esteve com Jujú quase todos os dias; ela passava-lhe as mãos úmidas na testa escaldante:
- O que você tem, Nando? Conte pra mim.
Deitado na cama, com a cabeça no colo de Jujú, ele procurava esquecer; o pior era não poder repartir com alguém aquele segredo, aquele peso que o oprimia. Puxava
Jujú para perto de si e apertava-a com força. Ela ria:
- Olhe meu cabelo, você desmanchou ele todinho. Ele sussurrava:
- Jujú, se eu tivesse dinheiro, nós íamos embora daqui.
- Chi! Pra onde?
- Para a Argentina. Para os Estados Unidos. Ia viver por aí com você. Ela se entusiasmava e acomodava-se melhor ao seu lado.
- Vamos, vamos largar esta joça e vamos embora correr mundo. Há de ser tão bom!
Os dois ficavam quietos escutando as ondas quebrarem-se na praia. Sonhavam. Ela dizia:
- Havia de ser uma delícia. Por que você não pede dinheiro emprestado? A gente trabalha e manda pagar depois. Peça pra Amadeu.
- Amadeu não tem para dar.
- Há de ter alguém que tenha. Vamos, vamos correr mundo, meu nego. Ver coisas diferentes, cidades cheiinhas de gente que a gente não conhece.
- Seria bom demais, Jujú.
- Por que então você me deixa com água na boca? Não fale essas coisas boas. Por que fala?
- Às vezes sou tão infeliz, Jujú... Você é a única que me compreende. Tenho vontade de fugir, me libertar destes grilhões. Parece que tenho cadeias de ferro nos
pés. Cadeias de preconceitos...
- Puxa! Você falando assim... Você que tem uma família tão boa, não deve falar assim. Eu não tenho ninguém, eu sim, posso ficar triste. Minha mãe e meu pai me tocaram
de casa, tu sabes... minhas irmãs não sei onde andam... Só tenho tu, meu nego...
Ela inclinava a cabeça cheia de cachos e encostava o rosto no rosto de Fernandinho; ficavam assim unidos por um instante, depois ela recostava-se no ombro do rapaz
e pedia carinhosamente:
- Conte, conte o que a gente faria se pudesse ir embora. Para aonde? Buenos Aires?
- Primeiro, Buenos Aires. Faz de conta que eu arranjava o dinheiro e a gente tomava um navio. Depois...
Ela interrompia, animada, os olhos brilhantes; levantava a cabeça:
- E se fossemos sem dinheiro mesmo?
- Impossível, Jujú...
- Por que não? Você vai como marinheiro e eu como criada: vamos...
Ficavam amadurecendo essa idéia; a cabeça dela caía outra vez sobre o ombro dele. De súbito ela lembrava:
- E sua mãe, Fernandinho? Ela não pode arranjar dinheiro? Diga que tu precisas pra fazer um negócio e a gente foge...
Ela levantava a cabeça outra vez e continuava:
- De lá a gente escrevia um cartão: "Tudo bem. Não se preocupem. Jujú e Fernandinho."
Ela batia palmas:
- Vamos mesmo?
- Quem sabe?
Ficavam em silêncio outra vez e a cabeça de Jujú inclinava-se de novo. Pensavam nas aventuras que arrostariam, sem dinheiro, em países desconhecidos... Ou então
a mãe emprestaria o dinheiro sem o pai saber. A tarde caía, vinha a noite, uma noite cheia de estrelas. Tomavam cerveja no quarto até se embriagarem; depois dormiam
nos braços um do outro. O último pensamento de Fernandinho era seu segredo: "Como se evadir? Fugir? Esquecer?
Um dia que chegou fora da hora de costume para visitar Jujú, encontrou a porta fechada; bateu e ouviu sussurros de vozes. Jujú gritou que estava se vestindo, esperasse.
Quando abriu a porta, um pouco desorientada, convidou-o para saírem. Queria espairecer, passear. Ele perguntou quem estava com ela no quarto, ouvira vozes; ela respondeu
que era uma amiga doente e ele não podia entrar. Ele insistiu, gritou, ficou furioso; ela pôs-se na frente da porta, os braços abertos, dizendo que não entrasse,
fosse embora. Estava trêmula e chorosa. Ele não disse mais nada, deu um empurrão em Jujú e tentou arrombar a porta aos pontapés; várias pessoas correram e seguraram
Fernandinho. Jujú começou a gritar estridentemente, depois caiu nos braços de uma amiga, desacordada. Foi um reboliço. Gritavam e falavam todos ao mesmo tempo; empurraram
o rapaz para fora do prédio. Fernandinho saiu furioso e jurou que havia de vingar-se; Jujú havia de pagar.
Não voltou para casa. Entrou num bar e passou toda a tarde bebendo; a noite também. De madrugada, um amigo levou-o para casa. Então telefonaram para Teresópolis
e chamaram os pais que vieram imediatamente, apreensivos. Chamaram um médico; durante vários dias ficou de cama, sem falar, tendo a mãe ao seu lado que nada perguntou,
nada censurou. Apenas velou-o, noite e dia.
Passou toda a semana num mutismo absoluto, sucumbido e desesperado. Depois vendo que Gina nada queria saber, nada perguntava, contou tudo. Seu grande aborrecimento,
suas tristezas, sua desilusão com Jujú. Gina então mostrou-lhe as cartas que haviam chegado durante essa semana; todas eram da mesma pessoa. A letra era incerta,
como a de uma criança. Ele abriu uma e leu: "Nego, sofro desesperadamente. Não posso suportar tua ausência. Venha nem que seja por uma hora, meia hora, uns minutos.
Quero ver-te, quero apertar-te contra mim. Quero amar-te. Explicarei tudo o que houve, tudo bem direito. Eu estava arranjando um negócio que ia dar dinheiro pra
nós irmos pra Argentina. Te juro, te juro que não tenho culpa. Pelo que há de mais sagrado. Venha amor, amor, amor. Tua para sempre. Teu tutuzinho."
Ele rasgou a carta em pedacinhos e pediu à mãe que rasgasse as outras também; não queria ler. Gina fez o que ele pediu. Depois sentou-se na cabeceira do filho e
segurou-lhe as mãos; estava tão comovida que não podia falar. Ele beijou-a e disse com os olhos cheios de lágrimas:
- Mamãezinha, você é uma só.
Ouviram a cachorrinha arranhando a porta; Gina levantou-se para abrir. Ana Luiza entrou acompanhada por Mimosa que pulou sobre o leito; Ana Luiza começou a cantar:
- Viva, viva, Fernandinho já está bom. Viva, viva!
Dava voltas pelo quarto, batendo palmas; Mimosa latiu.
Fernandinho gritou:
- Boba alegre! E atirou-lhe um travesseiro. Gina riu. Fernandinho estava feliz outra vez; tudo havia passado.

XXI

Ana Luiza e Fernandinho conversavam no hall. Ele dizia:
- Acho você muito engraçada. Gosta de todo o mundo e diz que não gosta de Amadeu, meu melhor amigo.
- Gosta de todo o mundo não. Alto lá! Há muita gente que detesto.
- Cite alguém por exemplo...
- Agora assim de momento não me lembro.
- Como não lembra?
- Não me aborreça, Fernandinho, você às vezes é desagradável. Não gosto daquelas moças que moram na casa de pedra, da esquina.
- Você nunca falou com elas, nem conhece as moças.
- Não conheço? Nossa Senhora! Encontro sempre com elas no banho de mar; até viro a cara.
- Assim à toa?
- À toa. Vem cá, Mima, deixa arranjar sua fita.
Com uma perna passada por cima do braço da poltrona, Fernandinho começou a assobiar, despreocupado. A tarde caía rapidamente, mas ainda havia luz no céu, onde o
sol se escondia. Vinha uma aragem fresca que sacudia a folhagem do terraço e refrescava toda a casa, como que renovando-a. Fernandinho tirou um cigarro do bolso
e acendeu-o. Voltou ao assunto:
- Pois o Amadeu é um dos melhores caracteres que tenho conhecido. Bom e nobre. Ótimo amigo.
Ana Luiza fez que não ouviu e passou o queixo na cabeça da cachorrinha:
- Como ela é macia- Como é aquela, canção, Fernandinho? Aquela que você estava cantando outro dia.
- Olhe Eduardo que vem chegando... Levantou-se para receber o cunhado; gritou lá para cima:
- Helena, Eduardo está aqui.
Às quintas feiras, Helena e Eduardo jantavam em casa dos pais. Eduardo cumprimentou, puxou os cabelos de Ana Luiza num gesto brincalhão e foi encontrar-se com Helena
que já vinha descendo a escada, a fisionomia radiante. Abraçaram-se e beijaram-se; Fernandinho piscou para Ana Luiza mostrando os dois abraçados no meio da escada;
ela fingiu-se distraída e encheu Mimosa de caricias:
- Mimosinha... Que amor de cachorrinha...
De repente ficou tesa na cadeira, olhando a porta; avistara Amadeu parado no terraço, um pouco embaraçado; o chapéu na mão. Num pulo, Fernandinho foi encontrar-se
com o amigo e convidou-o para entrar; ele apertou a mão de Ana Luiza e sentou-se muito naturalmente. Antes, porém, deu um piparote na cabeça da cachorrinha. Ana
Luiza ficou ali uns instantes e de repente, falou alto:
- Papai vem vindo.
Saiu para o jardim a fim de encontrar Dr. Fernando; entraram os dois meio abraçados. O pai subiu e Ana Luiza foi para a copa; de lá, pela porta entreaberta, começou
a fazer sinais ao irmão, chamando-o. Fernandinho deixou o amigo e foi até à copa, um pouco aborrecido:
- O que você quer?
Com um joelho sobre uma cadeira, Ana Luiza inclinava o corpo para a frente e para trás; fez um gesto mostrando o hall:
- Por que você convidou ele para jantar?
O mau humor de Fernandinho acentuou-se; respondeu levantando os ombros:
- Para isso que está me chamando? Porque quis. E você não tem nada com as pessoas que convido.
Ficou na frente dela encarando-a; Ana Luiza fez um muxoxo e baixou a voz:
- Não gosto dele. Você sabe muito bem.
- Você não gosta de Tilinha? Não vive procurando ela em casa de dona Gertrudes?
Tilinha e Amadeu eram irmãos; visitavam a avó todas as semanas; e a casa de dona Gertrudes era ao lado da casa de Dr. Fernando. Ana Luiza defendeu-se:
- Mas Tilinha é diferente, é minha amiga. E eu visito Tilinha nas horas que ele não está lá. Eu sei as horas que ele visita a avó e nessas horas não vou.
Inclinou o corpo mais para trás e repetiu, convicta:
- Já disse que não gosto dele.
Fernandinho perdeu o ar preocupado e ordenou á irmã:
- Tire umas pedras de gelo; vou preparar um drink. Depressa.
Procurou garrafas e copos no armário e começou a assobiar; com gestos lentos, Ana Luiza abriu o refrigerador e tirou uma gavetinha cheia de gelo; por cima do ombro
falou para o irmão:
- Mas por que você convida para jantar? Ele é pau.
Não gosto de gente assim com espírito de contradição.
Ele parou de assobiar e mediu um cálice de vermute com todo cuidado:
- Ele não é espírito de contradição. Nunca foi. E quando contradiz uma pessoa, sabe o que está fazendo. Conheço-o muito bem. Você não viu o vidrinho de angustura?
Ao lado da pia, Ana Luiza tirava as pedrinhas de gelo:
- Não. Deve estar por aí mesmo. Quantas pedras você quer?
- Umas quatro. Ainda outro dia estava aqui. Ah! Achei.
Recomeçou a assobiar; parou para falar:
- Ele disse que vinha visitar dona Gertrudes, depois iria jantar na cidade. O pai está viajando, você sabe. Eu então disse: jante conosco. Helena e Eduardo também
estão hoje lá. Ele aceitou, por isso veio. É um bom camarada; você que é implicante...
Ela não respondeu; bateu a porta do refrigerador com toda a força e enquanto Fernandinho recomeçava a assobiar, deixou a copa sorrateiramente, atravessou o hall
quase correndo e entrou no salão; aproximou-se do piano, abriu-o e passou as mãos pelo teclado: "Felizmente não me viu quando passei pelo hall, também passei correndo.
Antipático. Com aquele carão que nem sei o que parece. Feio. Só tem dentes bonitos, mas muita gente tem dentes bonitos. Eu também tenho. Já disse para Fernandinho
não convidá-lo para jantar, é inútil. Convida sempre. Que irei tocar? Não quero ficar no hall só porque ele está lá. A cara não é feia... mas não sei o que ele tem
que eu não gosto. Vive dando piparotes na Mimosa. Detesto-o. Fernandinho disse que ele não tem espírito de contradição, mas eu sei que tem. Ora, então já não percebi?
Depois devia tratar melhor a cachorrinha, que coisa! Vou tocar qualquer música viva, palpitante, alegre. Preciso me distrair. Ninguém me compreende, essa é a verdade.
Agora é só Helena, Helena, só porque ela vai ter filho... Comigo ninguém se importa, mal falaram comigo. Já estou acostumada; sempre fiquei de lado, sempre. Sempre
a segunda em tudo; também não sou bonita e ela é. Esse Amadeu disse que só gosta de moças bonitas, por isso que tenho raiva. Pois que fique com as bonitas... Que
vem fazer aqui? Helena é casada, seu trouxa... Também por que Fernandinho convida?"
Sem sentir, começou a tocar a Valsa do Adeus: "E eu que queria tocar músicas alegres... É porque estou triste hoje."
Mesmo sem se voltar, pressentiu uma presença estranha ao seu lado; percebeu que era Amadeu e começou a tocar mais depressa do que devia, sem dar atenção à música.
Quando terminou, voltou-se para se levantar, mas ele suplicou com voz terna:
- Toque outra vez, faça o favor. Gosto tanto desta música.
Ela estava séria e quis recusar, mas não teve coragem. Tocou melhor, com mais sentimento; quando terminou, ele explicou:
- Minha mãe tocava isso muito bem e todas as vezes que ouço essa música, tenho tantas saudades dela...
Corrigiu, um pouco embaraçado:
- Quero dizer, tenho saudades, mesmo sem a música, mas assim lembro mais, com tanta intensidade... Faz três anos que ela morreu.
Ana Luiza ficou tão comovida que teve vontade de chorar; Amadeu parecia sempre tão brincalhão, tão cético, arrogante mesmo. Agora percebia que decerto ele brincava
assim para esconder seus sentimentos mais Íntimos. Pensou: "Coitado! Ele é bom; vai que Fernandinho tem razão".
Olhou-o de lado. Amadeu estava de cabeça baixa e ela viu-lhe a risca dos cabelos negros do lado direito da cabeça; os cabelos estavam lisos e, perfumados; pareceu-lhe
sentir um leve perfume conhecido. Perguntou enquanto passava as mãos pelo teclado:
- Quer outra?
- Naturalmente, se você quiser...
- Escute esta. É nova, de Jacques AIbert. Chama-se "Le petit âne blanc." Minha professora me ensinou agora; é um burrinho que trota pela estrada.
Ele ouviu em silêncio, a cabeça inclinada. Quando ela terminou Amadeu felicitou-a calorosamente:
- Muito bem. Você é uma pianista estupenda. Não conhecia essa música. Como é mesmo o nome?
- "Le petit âne blanc." Jacques AIbert.
Fernandinho entrou trazendo bebidas para o amigo; ofereceu a Ana Luiza, mas ela recusou e continuou a passar as mãos sobre o teclado, brincando. Os dois amigos falaram
sobre um caso que se dera na Escola de Medicina uma semana antes. Ana Luiza observou Amadeu disfarçadamente; ele estava de pé e a luz dava-lhe sobre o rosto - "Está
arrogante outra vez. Narigudo. Não gosto dele. Pensa que é dono do mundo. Quando fala, pensa que só ele sabe, ninguém mais sabe. Bobão."
E começou a tocar uma musica movimentada de Albeniz; tocava com força para não ouvir a voz de Amadeu. Queria abafar aquela voz antipática, não gostava dele nem um
pouquinho "nem a ponta de uma unha." Sorriu a essa idéia pueril. Quando parou de tocar, viu o pai, a mãe, Helena, Eduardo e os dois amigos atrás dela aplaudindo
com entusiasmo; ficou muito vermelha e deixou a sala quase correndo, acompanhada por Mimosa.
No dia seguinte, à tarde, foi à casa vizinha onde residia dona Gertrudes. A tarde estava muito bonita e quente; Ana Luiza ouviu a voz de Tilinha chamando-a; como
sabia que Amadeu não estava lá àquela hora, segurou Mimosa nos braços e foi. Cumprimentou dona Gertrudes, a filha com quem ela vivia, e conversou com Tilinha. Foram
para a mesa do chá. Mal haviam começado a tomá-lo, Ana Luiza sentiu um baque no peito; ouvira a voz de Amadeu que vinha entrando e brincando com a cachorrinha. Entrou
na sala acompanhado por Mimosa, que dava pulos de alegria; Ana Luiza olhou-a e pensou: "Assanhada. Sem vergonha."
Amadeu sentou-se ao lado da tia e pediu chá; Ana Luiza não falou mais. Não achou mais nada a dizer; viu dona Gertrudes tirar disfarçadamente a dentadura com o lenço
e escondê-la no bolso do casaco. Tilinha contava entre risadas que a avó tirava os dentes para comer; as duas haviam rido muito com o caso. Olhou dona Gertrudes;
com a boca murcha mastigava com satisfação um pedaço de bolo. Amadeu contava um desastre de automóvel que assistira pouco antes:
- Vi o corpo do camarada voltear no ar; creio que foi atirado a uns dez metros de distancia. Ofereci meus serviços, mas já haviam chamado a Ambulância.
Tilinha ficou pálida; dona Gertrudes não ouvia bem, era surda. Pediu a Tilinha que contasse outra vez. A menina repetiu a história em poucas palavras, a voz bem
alta. Dona Gertrudes perguntou:
- E ele morreu?
Tilinha pronunciou bem as sílabas:
- Não se sabe ainda, vovó. A ambulância levou o homem.
Ela sacudiu a cabeça branca:
- Que horror!
Mimosa estava passeando sob a mesa; de repente começou a arranhar dona Gertrudes, pedindo colo. Todos os dias dona Gertrudes brincava com a cachorrinha através da
cerca do jardim, dava-lhe balas e a cachorrinha adorava-a, Ana Luiza levantou-se para tirar Mimosa do colo de dona Gertrudes, ela pediu:
- Deixa, Ana Luiza.
Sentiu-se corar quando percebeu Amadeu olhando-a. Acompanhou Tilinha e foram para o terraço; Tilinha queria a opinião da amiga para um vestido de baile; Ana Luiza
pensou um pouquinho e começou a descrever um vestido muito bonito que vira numa casa de modas:
- Azul e rosa. Um amor. Você compra uma...
Ouviram a voz da tia chamando Tilinha; quase imediatamente, apareceu no terraço seguida por duas criadas:
- Não viram a dentadura de mamãe? Perdeu.
Voltaram à sala e começaram a procurar sob a mesa, sob as cadeiras, em todos os recantos. Nada. Amadeu e a avó olhavam o chão, procurando; já haviam procurado no
terraço e na escada, não estava em lugar nenhum. A avó, a boquinha murcha, afirmava:
- Eu estava com ela quando me sentei na mesa. Tirei para comer o bolo; tenho certeza.
Amadeu ficou de quatro no chão:
- Então está aqui mesmo, vovó. Vamos procurar.
Procuraram até atrás das portas; a tia que havia ido ao terraço, voltou:
- A Mimosa está com uma coisa branca na boca, não será a dentadura?
Ana Luiza sentiu um sobressalto. Seria a Mimosa? Correu e chamou a cachorrinha; num canto do jardim, entre pés de hortênsia, Mimosa estava entretida com qualquer
coisa na boca. Ana Luiza aproximou-se, mas Mimosa correu para outro extremo do jardim; a copeira apareceu, um guardanapo sobre o braço:
- A cozinheira deu um osso pra ela roer. O osso da sopa.
Mas Ana Luiza, cada vez mais desconfiada, correu atrás da Mimosa para verificar. De repente gritou:
- É a dentadura! A dentadura de dona Gertrudes!
A copeira levantou os braços:
- Nossa Senhora! A cachorrinha carregou a dentadura de dona Gertrudes!
A cozinheira apareceu na porta da cozinha:
- É mesmo a dentadura. Ela correu pra cá.
Começou então a corrida atrás da Mimosa; dona Gertrudes de pé no terraço, ria-se mostrando as gengivas cor de rosa:
- Olha que cachorrinha levada!
Amadeu correu para um lado da casa, dando as ordens:
- Cerca daquele lado, Tilinha. Ana Luiza, corra para o outro lado.
Mimosa adorou a brincadeira; nunca pensou que todos da casa fossem brincar com ela aquela tarde. Com a dentadura na boca, corria de um lado para outro, a cauda peluda
volteando no espaço, pulando sobre canteiros de cravos, dando pinotes sobre os pés de buxo, escondendo-se sob as hortênsias. Divertidíssimo. A copeira arremessava
o guardanapo quando ela passava perto, mas qual! Mimosa corria mais que todos. A arrumadeira procurava cercá-la:
- Ave Maria! A dentadura de dona Gertrudes! E eu pensando que era o osso da sopa.
A cozinheira gritava:
- Mas eu dei mesmo o osso da sopa, ela trocou...
Amadeu corria mais:
- Cerca daquele lado, Ana Luiza! Agora pegamos ela!
Pega!
Mimosa corria mais; saltava canteiros desafiando todos. Nunca correu tanto. Ana Luiza ria, mas no intimo, estava furiosa com a cachorrinha.
- "Pestinha! A gente vem fazer visita e ela tira a dentadura de vovó".
Chamava às vezes dona Gertrudes de vovó para acompanhar a amiga; mas corou quando viu Amadeu olhando para ela e rindo:
- Você precisa ensinar essa bichinha para que tenha mais educação.
Ana Luiza zangou-se; ia responder, mas a copeira passou correndo, suando, quase sem fôlego e gritou:
- Ela já está cansada, dona Ana Luiza. Agora nós seguramos...
A avó perguntava de vez em quando, do terraço:
- Não pegaram ainda?
E ria. A tia voltou para o terraço e esperou. De súbito, Amadeu berrou:
- Peguei! Ah! Diabinha! Dá aqui a dentadura, sua danada.
Todos correram para ver. Sem poder se conter, furiosa por causa de Amadeu, Ana Luiza bateu com força na cachorrinha; ela não estava acostumada a ser tratada assim
gritou desesperadamente. Recriminaram Ana Luiza por bater na Mimosa. Amadeu quis tirar a cachorrinha das mãos dela; Ana Luiza não deixou. Ele então inclinou-se para
beijar a cabeça de Mimosa, com pena por ela ter apanhado e beijou a mão de Ana Luiza. A avó foi lá para dentro com a dentadura nas mãos; todos se dispersaram entre
risadas, a tia aconselhava:
- Ponha a dentadura na boca, antes que perca outra vez.
D. Gertrudes perguntou:
- Mesmo, sem lavar? Novas risadas.
Ana Luiza despediu-se rapidamente, dizendo que voltaria mais tarde, ouvira a mãe chamando-a. Levou Mimosa.
Quando entrou no jardim de sua casa, começou a chorar; chorou de pena da cachorrinha. Dera nela por causa de Amadeu, se não fosse ele não daria. Chorou de raiva
de Amadeu: "Tenho ódio dele. Ódio. E fez de propósito para beijar minha mão. Por que faz isso se não gosta de mim? Eu sou feia." Chorou ainda mais; subiu correndo
as escadas e fechou-se no quarto soluçando.
Teve medo que a mãe ouvisse e viesse perguntar por que estava chorando; abriu a porta, espiou o hall e não vendo ninguém, correu para o banheiro e se fechou; abriu
as duas torneiras para que o ruído da água abafasse seu pranto e chorou alto, num desespero. Gina bateu na porta:
- Ana Luiza, está sentindo alguma coisa?
Ela demorou um pouquinho para responder, indignada: "Não me deixam tranqüila, nem no banheiro. Por que mamãe vem me importunar? Eu quero ficar sozinha e chorar.
Me deixem ao menos chorar."
- Ana Luiza, o que você tem?
- Nada.
Fechou as torneiras e se conteve para não chorar mais. Esperou. Não ouviu mais nada; molhou os cabelos para que pensassem que havia tomado banho; depois abriu a
porta, espiou novamente o hall e correu para o quarto: encontrou Gina sentada numa cadeira, esperando. Ficou contrariada, mas não deu a perceber; virou as costas
e começou a pentear os cabelos úmidos, rapidamente. A mãe olhou-a:
- Por que estava chorando, Ana Luiza?
Ana Luiza não sabia mentir; respondeu logo:
- Porque dei na cachorrinha e depois me arrependi.
- Deu na Mimosa? Por quê?
Ana Luiza contou o que Mimosa fizera em casa de dona Gertrudes; Gina começou a rir:
- E por isso você deu nela? Coitadinha!
- Não foi por isso só...
- Então por que foi?
- Por causa de Amadeu, mamãe. Ele me provoca tanto que me dá raiva.
Fez uma pausa e continuou:
- Disse que eu devia dar educação pra Mimosa. Fiquei danada de raiva.
- Mas só por isso, filha? Foi brincadeira de Amadeu. Ele gosta de brincar.
Ela não respondeu e continuou a passar o pente com força nos cabelos. Houve um silêncio prolongado. De súbito, Gina disse :
- Bem, eu vim aqui por outro motivo. Quero contar uma história a você.
- Uma história, mamãe?
Riu-se, mas vendo o rosto sério de Gina ficou séria também; sentou-se na cama e ficou esperando. E pela terceira vez, Gina voltou ao passado. Ana Luiza ouviu atentamente,
sem interromper; tinha os olhos fixos no rosto da mãe e sua face impassível, nada revelava. Enquanto Gina prosseguia na narrativa o cérebro de Ana Luiza estava em
tumulto: "Minha mãe está contando uma coisa horrível. Será mesmo verdade? Eu não sinto nada. Será que não sinto nada? O que havia de sentir? Desgosto? Tristeza?
Vergonha? Nada. Apenas frieza de sentimentos. Sou cínica. Que horror. Cínica. Estou olhando o rosto da minha mãe, vejo que só em lembrar, ela sofre, ela respira
com dificuldade, ela fica com os olhos lacrimejando e eu nada, absolutamente nada. Então sou cínica. Devia chorar, sofrer com ela, sentir o que ela está sentindo.
Nada. Tenho vergonha de ser assim sem sentimentos. Há muito tempo eu desconfiava que era assim, agora tenho, certeza. Não tenho dó dela. Tenho raiva. Disse que me
conta essas coisas porque tem horror à mentira, ao embuste, à falsidade. Mas ocultar uma verdade não é mentir. Será? Ninguém perguntou nada. Por que conta? Helena
saberá? Fernandinho saberá? O que eles pensarão? Eu não penso nada; se perguntarem, direi que não penso nada, Por que pensar? Há tanta coisa que se precisa pensar,
mas isso não, não preciso. Tenho raiva dela. Que horror."
Pela janela aberta entrava um vento morno e levantava a cortina branca de bolinhas verdes; Mimosa entrou e aninhou-se no tapete ao lado da cama. A voz de Gina parecia
cansada; quando terminou, levantou os olhos e fitou pensativamente a cortina branca; depois olhou para a filha. O rosto sério de Ana Luiza não dizia nada; nem parecia
ter ouvido. Gina levantou-se, arrumou umas roupas que estavam espalhadas sobre a cadeira, deu um piparote no travesseiro um pouco amassado e inclinando-se sobre
a cabeça da filha, beijou-a de leve. Ana Luiza ficou imóvel; depois num gesto de carinho habitual tomou uma das mãos de Gina e apertou sem uma palavra.
Quando ficou só no quarto, continuou sentada no mesmo lugar: "Não quero pensar. Para que? Creio que sou infeliz. Não sou bonita como Helena, não sei se sou muito
inteligente, tenho um gênio esquisito por que tenho raiva de certas pessoas sem ter motivo (pensou em Amadeu) e depois... tenho uma mãe assim... Não posso ser feliz.
Como poderei ser feliz? Tenho papai e meus irmãos que eu quero bem, Tenho esta Mimosa que me adora mas um dia morrerá, cachorro não dura muito. Ela já tem cinco
anos; um dia morrerá. Todos morrerão porque são mais velhos do que eu, só eu ficarei no mundo... sozinha... Não me casarei para não... porque nunca poderei gostar
de homem algum para casar. Sou infeliz."
Sentiu os olhos rasos d'água. Repetiu: "Todos morrerão. Nunca tinha pensado nisso. Como é triste pensar... Ficaria sozinha."
Ouviu os passos de Fernandinho que subia a escada de dois em dois degraus; levantou-se com medo de ser surpreendida nessa atitude triste e num pulo ficou diante
do espelho com o pente na mão. Ele pôs a cabeça no vão da porta:
- Ana Luiza, você não vai no coquetel dos Menezes? Deve ser bom.
- Ah! Tinha me esquecido. Creio que não.
- Vamos. Deve ser bom. Todo o pessoal conhecido vai; vamos.
- Estou com uma leve dor de cabeça.
Ele dirigiu-se para o quarto, quase gritando:
- Um drink cura dor de cabeça; já vou me vestir.
Fechou a porta do banheiro com estrépito. Ela ficou imóvel olhando a própria imagem. Sentia-se tão infeliz... Não. Não iria... Sua mãe,.. O que mesmo havia acontecido
com sua mãe? Era o mesmo que tivesse morrido... Sua mãe havia morrido para ela. Não tinha mãe. Ouviu os movimentos de Fernandinho quando deixou o banheiro; sua voz
cantarolada alegremente. De repente perguntou do quarto, aos gritos:
- Ana Luiza, como foi a dentadura de dona Gertrudes? Mimosa correu com ela na boca?
E começou a rir; seu riso era tão contagioso que Ana Luiza riu também. Ele repetiu:
- Amadeu me contou. Disse que foi formidável, hein?
Todo o mundo correndo atrás da bichinha e ela pensando que era brincadeira e correndo mais...
Deu uma gargalhada. Ana Luiza resolveu de repente se vestir. Tirou o vestido e jogou-o sobre a cadeira; abriu o guarda roupa e olhou o vestido branco: "Sim. Vou
de branco. Gosto deste vestido; eu me visto num instante. Cinco minutos. Dez minutos."
- Fernandinho, se você visse a Mimosa com a dentadura, morria de rir.
- Eu sei. Amadeu me contou. Você resolveu ir?
Deu outra risada. Depois começou a assobiar enquanto terminava a toilette; Ana Luiza vestiu-se pensando: "Amadeu decerto vai também. Que me importa o Amadeu? Não
gosto dele. Nem dele, nem do nome. Eu vou me divertir; preciso me divertir. Sinto-me abafada. Es-ma-ga-da. Ela fez mal em me contar. Não quero pensar. Amadeu é espírito
de contradição, pensa que só ele sabe as coisas. Não gosto dele. Por que ela me contou? Serei cínica? Parece que estou até com raiva."
O irmão perguntou da porta:
- Você está pronta?
- Quase.
Desceram a escada depressa e despediram-se de Gina; entraram no automóvel que os esperava. Ana Luiza sentiu um vento fresco no seu rosto; de repente perguntou:
- Se você for chamado, você vai, Fernandinho?
- Se for convocado? Naturalmente que vou. Por quê?
- Por nada. Que guerra medonha; queria que já tivesse acabado.
O automóvel partiu pela rua asfaltada. Ana Luiza pensou: "Tenho tanto em que pensar sem ser no caso de mamãe. Se ele for para a guerra, por exemplo? Que tristeza.
Nosso irmão ir combater tão longe... Morrerei de desgosto." Suspirou e olhou o rosto do irmão; seu perfil se destacava forte e enérgico conduzindo o automóvel através
das ruas movimentadas. "Imagine se ele morrer na guerra? Não permita, Deus de Misericórdia."
Uns dias depois, eram quase seis horas e Gina estava sentada no terraço, quando ouviu gritos lancinantes da cachorrinha. Levantou-se sem compreender o que tinha
havido e viu umas das criadas aparecer correndo e muito pálida; Mimosa estava inanimada nos seus braços. Contou que enquanto falava com o empregado do empório, a
cachorrinha saíra para a rua e um automóvel passara-lhe por cima, ainda respirava, mas saía sangue da barriga, decerto ia morrer. Ana Luiza não estava; o primeiro
pensamento de Gina foi chamar um veterinário; a cozinheira e a arrumadeira vieram de dentro para ver o que era. Rodeavam a cachorrinha e uma delas lembrou-se de
passar salmoura; outra disse que não valia a pena, "a bichinha estava nas últimas." Gina, com a lista telefônica entre as mãos, procurava aflitamente o veterinário,
quando viu Amadeu no portão; perguntou o que houvera com Mimosa; estava em visita à avó quando ouviu os gritos. Então mostraram-lhe a cachorrinha que gemia no chão
da copa, sobre uns panos que a cozinheira trouxera lá de dentro. Amadeu tirou o paletó, arregaçou as mangas e ajoelhou ao lado do animalzinho, começou um exame atento.
Seu rosto adquiriu de súbito uma espécie de rigidez; tornou-se sério e concentrado, parecia empolgado pela profissão. Gina notou a transformação: "como ele gosta
de ser médico. Está se vendo; neste instante não ouve nada, não vê nada, a não ser a cachorrinha doente. Será um grande médico, não há duvida." Amadeu pediu iodo;
a arrumadeira foi correndo buscar o vidro no armário do banheiro; ele continuou examinando os membros de Mimosa, apalpou-os repetidas vezes; disse como se estivesse
falando consigo: "Não. Nada está quebrado."
Escutou o coração da cachorrinha; Mimosa vendo-lhe a cabeça tão próxima da sua, procurou lamber-lhe a orelha; gemia baixinho como a querer contar o que havia sucedido,
O rapaz estava assim, ajoelhado no ladrilho da copa, escutando Mimosa quando Ana Luiza entrou; Gina foi ao encontro dela para explicar o que acontecera, mas ela
já sabia; uma das empregadas de dona Gertrudes contara tudo. Estava pálida e perguntou ansiosamente para o grupo reunido na copa:
- Morreu?
Ninguém respondeu; ela empurrou o braço da cozinheira e aproximou-se mais; Gina acalmou-a :
- Amadeu está examinando-a. Não morreu e creio que não morrerá. Não é, Amadeu?
O rapaz respondeu evasivamente sem levantar a cabeça:
- Não há fraturas, foi mais o choque. Não vai morrer.
Os lábios de Ana Luiza tremeram; pensou que estivessem enganando-a; perguntou:
- E esse sangue?
- Não é nada demais. Saiu de um ferimento pequeno aqui na barriga.
Amadeu falou sem olhar para Ana Luiza; a cachorrinha vendo a dona, abanou a cauda e olhou-a ternamente. Amadeu passou iodo nos ferimentos, sem dar atenção à moça.
Ela admirou-se da sisudez do rapaz, parecia transfigurado pelo trabalho. Irritou-se e dirigiu-se diretamente a ele, o que nunca fazia; sua voz era trêmula:
- Amadeu, e o ferimento da barriga não é grave? Ele respondeu preocupado:
- Não.
Aliviada, ela inclinou-se para auxiliá-lo; a cachorrinha gemia por causa do iodo. A cozinheira segurava a cabeça da Mimosa; do avental dela, vinha um cheiro de alho
e cebolas. Ana Luiza sentiu-se mais tranqüilizada: "Que cheiro bom de cebolas. Amadeu está diferente hoje. Gosto mais dele assim. Não gosto, mas acho-o mais simpático.
Fiz força para não chorar; não chorarei, ainda mais perto dele. Me ridicularizará com certeza. Todos são bons, todos tiveram pena da Mima. Pobrezinha! Deve estar
sentindo dores. E como me olha..." Inclinou-se mais e chamou com voz suavíssima:
- Mimosinha! Pobre da minha Mimosa!
A cachorrinha tornou a agitar a cauda, depois ficou imóvel, os olhos cerrados.
- Ela vai sarar, Amadeu?
- Vai, sim.
Uma onda de ternura subiu ao coração de Ana Luiza: "Meu Deus, como ele é bom." Perguntou por perguntar, para dizer alguma coisa:
- E não quebrou nada mesmo?
- Nada. Só choque.
Ele afinal levantou a cabeça e encarou Ana Luiza, o olhar inteligente e suave:
- Pronto. Sua Mimosa está curada. Leve-a para a cesta, tem que ficar imóvel uns dias, depois ficará completamente boa.
As criadas começaram a rir:
- Que susto esta bichinha nos pregou!
A copeira levantou punho e explicou pela décima vez:
- Também aquele chauffeur não podia desviar? Desalmado! Eu estava falando com o homem do empório quando Mimosa passou pelas minhas pernas; não tive tempo de nada
e pronto! O automóvel pegou...
Havia satisfação em todas as faces. Carregaram com cuidado a cachorrinha e levaram-na para o cesto de vime. Gina chamou Amadeu para lavar as mãos e perguntou o que
ele prefere: café ou um cálice de vinho do Porto. Ele foi para dentro dizendo que fora uma sorte a cachorrinha ter escapado. Lavou as mãos, enxugou-as, desceu as
mangas da camisa e vestiu o paletó. Aceitou um cálice de vinho que Gina ofereceu e saiu dizendo que voltaria no dia seguinte para fazer os curativos. Ana Luiza ficou
na copa, debruçada sobre o cesto de vime.
Na tarde do dia seguinte, esperou Amadeu; ele chegou perguntando logo pela doente; ela sorriu:
- Está bem melhor. Levantei duas vezes essa noite para ver se ela estava bem. Papai também foi olhar à meia-noite, mamãe foi às duas horas. Passou bem; venha ver.
Dirigiram-se para a copa e inclinaram-se sobre a cachorrinha; Mimosa sacudiu a cauda e olhou ternamente as duas cabeças:
- Não terá febre?
- Se tiver é muito pouco, vamos ver os ferimentos primeiro.
Tiraram Mimosa da cesta para os curativos; Gina e a copeira foram auxiliar. Amadeu examinou os ferimentos e Mimosa começou a gritar. Seguravam os braços e as pernas
da Mimosa; a copeira falou:
- Dona Ana Luiza está tão pálida que parece que vai ter alguma coisa...
Preocupado, Amadeu levantou a cabeça:
- Que é isso, Ana Luiza? Ela está melhor, vai sarar nestes três dias.
Os olhos de Ana Luiza encheram-se de lágrimas e ela tentou um pálido sorriso:
- Não posso ver essas coisas, fico nervosa... Cala a boca, Mimosa.
Gina acalmou-a dizendo que Mimosa estava bem melhor, até tomara leite naquela manhã. Logo estaria boa. Ana Luiza teve vontade de dizer que não estava chorando por
causa da Mimosa; estava comovida pela bondade de Amadeu; só por isso. Ele olhou Ana Luiza outra vez:
- Daqui a uma semana ela não terá mais nada.
Terminou os curativos em silêncio; depois lavou as mãos e foi para o terraço; Ana Luiza sentou-se ao lado dele, pensativa. Amadeu repetiu:
- Ficará logo curada, mas no primeiro dia tive medo, pensei que ela morresse...
- Mamãe disse que você foi admirável. Se não estivesse em casa de dona Gertrudes naquela hora decerto a Mimosa morreria...
- Olhou-o timidamente; ele sacudiu os ombros:
- Dona Georgina ia chamar um veterinário e ela ficaria curada da mesma forma. Vamos dar uma volta peio jardim ou você prefere ficar aqui?
Juntos desceram a escada e foram ao caramanchão coberto de buganvílias; sentaram-se um ao lado do outro, em silêncio. O dia estava no fim. Havia paz em toda a parte
e o mar parecia salpicado de branco e azul. Sem saber por que, Ana Luiza teve vontade de chorar e baixou a cabeça; sem dizer uma palavra, Amadeu apertou-lhe uma
das mãos.
- O que? Ainda está nervosa? Não há razão para isso.
Ela, que não podia admitir o mais leve contato com Amadeu e nem gostava de dançar com ele, sentiu a pressão das mãos grandes do rapaz sobre a sua e não a retirou.
Ficou silenciosa, a mão esquerda cobrindo os olhos e a direita entre as dele. Amadeu perguntou, solícito:
- Está pensando na cachorrinha? Ela vai sarar...
A voz dela era tremula:
- Não é por isso que estou nervosa...
- Então por que é? Aconteceu alguma coisa?
- Não sei. Estou triste, só triste.
Ele voltou-se para ela, sem deixar-lhe a mão:
- Engraçado. Eu tenho isso também. Há dias que sinto uma tristeza... e se me perguntarem por que, não sei dizer. Os americanos chamam de "blue". I am blue... São
certos estados d'alma que toda a gente tem. Talvez os insensíveis não... Há gente que sofre porque perde um negócio, ou dinheiro, ou uma oportunidade boa, mas sabem
sempre porque sofrem. Não sofrem por nada... Eu sofro às vezes por nada. Os psicólogos devem ter explicação para isso...
- Não é sempre que eu tenho isso... Às vezes só.
Ela procurou retirar a mão, mas ele apertou-a com mais força e falou.
- Bom. Eu também não tenho isso sempre; de vez em quando. Imagine se fosse sempre, seria intolerável. Quem suportaria?
Ela sorriu e descobriu os olhos:
- Eu pensei que você nunca ficasse triste, você parece diferente...
- Eu, diferente? Por quê? Em que sentido? Então você não me conhece. Ela ficou embaraçada.
- Penso que não conheço mesmo; achei sempre você era um pouco indiferente a tudo... Como quem não está ligando.
Ele riu-se:
- Como quem adota uma atitude de superioridade, não é? Isso é muito comum nas pessoas tímidas e eu sou muito tímido.
Ela admirou-se - Você é tímido. Amadeu? Não parece. Você parece sempre tão senhor de si, tão seguro do que diz, do que quer...
Delicadamente retirou a mão que Amadeu apertava e procurou um lenço; ele apressou-se em dar-lhe o próprio lenço e ela passou-o sobre os olhos e sobre os lábios.
Sorriu e entregou-lhe de novo; quando ele retomou-o, tornou a prender a mãozinha dela. Ana Luiza baixou a cabeça sentindo-se corar, depois falou um pouco enleada:
- Creio que manchei o seu lenço de batom, nem me lembrei que era seu.
- Isso não tem importância. Então pareço arrogante, hein?
Se ele tivesse dito: "Guardarei o lenço como lembrança desta hora adorável," ou qualquer coisa assim ela acharia a frase antipática, mas ele apenas dissera "não
tem importância" e mudara de assunto. Respondeu animadamente:
- Não. Arrogante não, mas nada tímido. Pensei que os tímidos não falassem muito, conservassem silêncio numa roda grande onde todos falam muito, nunca procurassem
se salientar e você é o contrario. Conversa bastante, dá apartes, conta histórias.
- Então procuro me salientar? Santo Deus, serei assim?
Ela deu uma gargalhada:
- Não. Nada disso; você nunca procura salientar-se. Conversa, ri, conta um fato ou outro, por isso pensei que não fosse tímido, mas você diz que é...
- Sempre fui. Nunca fui muito estudioso, você sabe... Criei um complexo de ignorância. Sou um ignorante, sempre pensei assim. Mas depois resolvi estudar e aprendi
alguma coisa; então procuro falar sempre para provar que não sou mais ignorante, tenho noções gerais sobre os assuntos, sei o "porque" de muita coisa. Então falo
para provar que sei, tirar esse complexo que me acompanha... Mas por mim, ficava quieto, falava menos e escutava mais. Chega de falar de mim; e você? Não diga, eu
sei o que você é. Você é quietinha... Não gosta de falar muito, mas observa tudo, vê tudo. É terrível.
Ela tornou a rir achando graça:
- Eu? Pobre de mim! Nem sei o que está se passando muitas vezes. O que eu observo? Nada. Você está errado a meu respeito, Amadeu.
- Não senhora. E vou dizer mais uma coisinha muito importante: você não gostava de mim... Agora não sei se gosta um pouquinho.
Ela riu-se mais para disfarçar o embaraço; depois recostou a cabeça para trás e falou sem olhar Amadeu:
- E depois você diz que eu observo. Quem observa é você. Vê até de mais. Por que foi inventar essa bobagem?
- Você nega isso, Ana Luiza?
- Negar o que?
- Que não gostava de mim?
Ela endireitou-se e olhou-o de frente; fitaram-se nos olhos.
- Amadeu, se há alguém que não goste do outro aqui é você. Você não gostava de mim, tenho certeza. Você...
Ele inclinou-se para o lado dela e falou bem pertinho:
- Meu Deus! Se você fugia de mim, como é que ia dizer: Ana Luiza não fuja, eu gosto de você. Eu via má vontade em você para comigo. Eu via quase raiva... Eu via
animosidade...
Rapidamente ela retirou a mão e cobriu os olhos:
- Então nós dois somos ignorantes ou não entendemos nada de psicologia... Tinha certeza que você me detestava. No primeiro dia que você veio em casa - lembra-se?
- Fernandinho trouxe você e apresentou. Começamos a conversar e você disse que não tolerava moças feias... Só gostava das bonitas...
Ele segurou as duas mãos de Ana Luiza e apertou-as; riu-se:
- Então?
- Então Helena era muito bonita e eu não; você declarou no primeiro dia que não gostava de mim. Eu não... não me esqueci.
Sentiu os olhos rasos d'água; ele inclinou-se e beijou-a de leve na face ela procurou afastar-se e corou. Ele sorriu:
- Ana Luiza, sou mesmo um ignorante. Desde o momento que vi você, gostei de você. Gostei muito... mas achei você tão altiva, tão inacessível, tão rude comigo...
Falei sem saber o que estava falando, é o tal complexo que me acompanha, mas eu gosto de você e você é muito bonita. Você é linda, Ana Luiza. Para mim, não há ninguém
mais bonita que você. Eu não disse que falo para disfarçar? Às vezes falo demais e falo errado. Adoro você...
Houve um silêncio; ela recostou-se melhor no banco e inclinou a cabeça para trás, sem ver nada. Cachos de buganvílias caíam à volta. Amadeu estava ao seu lado e
apertava-Ihe a mão docemente; ela também apertou a mão dele e sorriu. Sentiu uma coisa esquisita tomar conta dela, invadi-la, apoderar-se de todo seu ser. Mas era
delicioso. Delicioso! Voltou devagar a cabeça e olhou Amadeu; ele estava fitando-a e uma luz também esquisita brilhava-lhe nos olhos. Ele sussurrou:
- Ana Luiza!
E puxou-a para .si. Ana Luiza recostou a cabeça no ombro de Amadeu; ficaram imóveis, de mãos dadas, olhando as flores. Ana Luiza pensou: "Gosto dele. Amo-o. Amo
o Amadeu. Há muito tempo que eu gosto dele, mas não sabia; pensei que não gostasse. Amor. Que mundo esquisito. Será que vamos nos casar? Como é bom a gente recostar
a cabeça no ombro dele. Como sou feliz. Sinto a respiração dele nos meus cabelos, sinto Amadeu perto de mim, me apertando, me apertando. Casarei com ele. Penso que
ele me beijou de leve os cabelos. E se ele quiser me beijar a boca? Deixo? Sinto-o cada vez mais perto de mim, mais perto; Sou tão feliz. Quero-o, quero-o só para
mim. Amo Amadeu."
Ana Luiza recostou a cabeça para trás sob a pressão de uma das mãos de Amadeu que lhe levantava o queixo; os olhos de ambos se cruzaram. Havia tanta luz nos olhos
dele uma luz tão irradiante, tão intensa e ao mesmo tempo havia tanta força no seu olhar que ela fechou os dela, fascinada, e sentiu sobre os seus os lábios de Amadeu.



















XXII

A casa de Dr. Fernando estava em festa; às cinco e trinta realizar-se-ia o casamento de Ana Luiza e Amadeu. Era Setembro e o dia estava quente, o ar pesado. Desde
cedo chegavam cestas de flores; as salas ficaram floridas, depois o terraço, depois o próprio jardim. Tudo era belo naquele dia. Telegramas amontoavam-se sobre uma
bandeja. A noiva estava diante do espelho do quarto, o longo vestido branco, o véu, as flores de laranjeira. No quarto do casal, Gina colocou cuidadosamente, sobre
os cabelos grisalhos, o chapéu de plumas verdes; seu vestido era longo, de veludo negro. As únicas jóias eram um colar de pérolas que o Dr. Fernando lhe dera quando
se conheceram e na mão esquerda um grande brilhante de tons azulados. Olhou-se demoradamente depois de colocar o chapéu e viu as rugas no rosto bonito; eram muitas.
Suspirou. Sua missão estava quase cumprida: Helena era feliz, Fernandinho formar-se-ia em engenharia no próximo ano e agora casava a última filha, sua querida Ana
Luiza. Sua vida, daí em diante, seria uma espécie de recapitulação, seria um retorno, tornaria a viver, desde o principio, na vida dos netos, seus descendentes.
Cada vez estariam mais distanciados de si pelas circunstâncias que os separava, pela idade, pelas idéias mas veria neles a continuação do seu sangue, do seu próprio
eu. Tornou a tirar o chapéu para colocá-lo de novo, pois não ficara bem assentado e pensou na primeira neta, a filha de Helena que nascera seis meses antes. Imaginou
Dr. Fernando e ela, já bem velhos, na chácara de Teresópolis, rodeados de netos de várias idades.... Sorriu. O chapéu agora ficara bem, pelo menos parecia melhor.
Ouviu os passos de Helena que vinha subindo a escada e recomendava qualquer coisa à ama que carregava a criança. Ouviu os balbucios da neta e apressou-se em abrir
a porta; Helena estava diante dela com um longo vestido cor de pérola e levava na cabeça um chapéu de plumas vermelhas, altíssimas. Nunca vira a filha mais velha
tão bonita assim e sentiu orgulho por ela. Depois viu a criancinha nos braços da ama e inclinou-se para vê-Ia melhor. Beijou-a de leve, segurando-lhe a mãozinha.
Helena falou, admirada:
- Mamãe, você está uma beleza. Seu vestido está ótimo; vire um pouco.
Ela voltou-se e riu para Helena:
- Quem está bonita é você, minha filha; Está muito bem.
Gracinha que viera de S. Paulo para assistir à cerimônia, passou empurrando diante dela o filho mais novo; riu-se para as duas:
- Que troca de cumprimentos são esses (Mostrou a criança à Gina). Olhe, tia Gigina, manchou a gola da blusa; por mais que a gente recomende, não adianta. Criança
é criança.
Entrou no banheiro, para lavar a gola do menino. Helena falou:
- Meu vestido está bem? - É porque você não sabe meus apuros, mamãe: O leite está saindo sempre e tenho medo que o vestido fique todo molhado na igreja...
- Você não pôs qualquer coisa?
Ela riu-se:
- Olhe como eu estou gorda. Fiz o que pude, mas não sei se vai valer. Vamos ver a noiva?
Dirigiram-se para o quarto de Ana Luiza; a costureira dava os últimos retoques no véu que havia acabado de colocar.
Gracinha entregou o filho a empregada e voltou ao quarto de Ana Luiza para auxiliar. A arrumadeira acabava de preparar a mala de mão que Ana Luiza levaria na viagem,
Apontou vários frascos:
- E água de Colônia? Qual a senhora quer levar?
Ana Luiza voltou-se um pouco:
- Esse aí de rótulo verde. Esse mesmo. Não se esqueça do perfume que eu falei.
Gracinha, toda de preto, admirava a noiva:
- Está linda, tia Gigina. O vestido cai que é uma maravilha. Ande um pouco, Ana Luiza.
Vagarosamente, com muito cuidado, Ana Luiza deu uns passos de um lado para outro para que a admirassem. A cozinheira apareceu na porta do quarto com Mimosa nos braços:
- Deixa ver também a noiva. Que beleza! Benza-a Deus.
Ficou como que em êxtase diante de Ana Luiza que sorriu alegremente; depois disse:
- Mimosa está bonita com a fita branca.
A cozinheira explicou:
- É pra acompanhar a dona; tem que usar fita branca hoje...
Riram. Gina falou:
- Foi uma pena mamãe não ter podido vir. Fiquei triste.
Gracinha tomou a contar:
- O reumatismo não deixa, tia Gigina. Ela tem sofrido. Coitada!
Houve um silêncio. Os homens esperavam embaixo; Fernandinho subiu até o meio da escada e gritou olhando o relógio pulseira:
- Está quase na hora! Cinco e vinte!
Alguém respondeu:
- Já vamos!
Ana Luiza desceu as escadas acompanhada por palavras admirativas. Estava um pouco comovida; aproximou-se de Dr. Fernando e apoiou-se no braço dele; o pai deu-lhe
um tapinha na mão:
- Então? Estamos quase na hora.
Fernandinho assobiou de leve quando viu a irmã, depois disse que estava nervoso e foi à sala de jantar tomar um gole de vinho. Eduardo dirigiu-se a Helena e perguntou
pela criança; ela disse que estava lá em cima, quase adormecida. Num gesto carinhoso, endireitou-lhe o laço da gravata. Gina e Gracinha percorreram mais uma vez
a sala de jantar, depois o terraço e o salão; tudo estava determinado para a recepção e os garçons passavam de um lado para outro sem ter nada que fazer. No jardim
havia muitas mesas sob toldos listados e a chuva que ameaçara às duas horas, havia desaparecido. A tarde estava clara e mais fresca; no céu, nuvens brancas e volumosas
quedavam imóveis, como que indecisas. Todas as fisionomias pareciam alegres à idéia de que a chuva não caíra, a tarde estava bonita e a festa seria um sucesso. Havia
flores por todos os recantos da casa e do jardim; flores aos montes nas jarras e nas mesas; e um perfume agradável se espalhava por toda a parte, uma mistura de
flores com o das geléias, bolos e cremes. Gracinha inclinou-se para arranjar mais uma vez os cabelos dos filhos e recomendou-lhes que entrassem na igreja como Ana
Luiza havia ensinado: vagarosamente, acompanhado a música, e olhando para a frente, bem comportados e corretos. Eram um menino e uma menina encantadores. Gina perguntou
se a mancha da gola havia desaparecido; Gracinha disse que sim, quase. Fernandinho olhou mais uma vez o relógio:
- Já estamos atrasados; papai. Cinco e meia! Até chegar à igreja...
Dr. Fernando havia se afastado e procurava qualquer coisa entre os telegramas amontoados na mesa fez um gesto para que Gina se aproximasse. Tirou um telegrama, uma
carta recebida essa manhã e dois cartões; Gina olhou-os curiosa: eram de Pinheiral. Uns enviavam votos de felicidades, outros davam apenas - parabéns. A carta era
um convite do antigo Juiz de Direito e de dona Sinhá; enviavam também felicitações e convidava-os para passar uma temporada com eles. Haviam comprado uma fazenda
nas imediações e o Juiz terminava: "Consideramos uma honra e uma grata felicidade poder hospedá-los em nossa fazenda por quanto tempo os amigos quiserem. Não é como
Pinheiral, é simples e pequena, mas oferecida de coração."
Gina leu duas vezes, olhou o marido sem dizer nada; Dr. Fernando apenas comentou:
- Ainda não se esqueceram de nós...
- Vamos, mamãe.
Gina não teve tempo de pensar; foi para a igreja com os padrinhos do genro que estavam no portão, esperando. Os automóveis estavam enfileirados na frente da casa;
Dr. Fernando deu o braço à filha:
- As noivas sempre se atrasam. Vamos, filhinha.
Durante a cerimônia, Gina não pôde deixar de lembrar de seu próprio casamento numa igreja de Buenos Aires, os dois sozinhos, isolados, tendo por padrinhos dois desconhecidos.
Fizera tudo para que as filhas tivessem outro caminho e conseguira; o das filhas era brilhante e fácil. Sem obstáculos. Ali estava sua segunda filha. Sentiu uma
leve emoção, mas procurou reprimi-la: "Devo estar contente hoje, não devo chorar. Como Amadeu está simpático... Quando me lembro que Ana Luiza fugia dele... tenho
até vontade de rir. As fugas acabaram em casamento. Vão ser felizes; os dois são bons, ele tem uma bela carreira diante de si... Médico e com o nome do pai, irá
longe. E ela, a minha filhinha é boa, carinhosa, bem educada e tem no coração, um tesouro de ternura. Como vão se amar! Mas para mim, Ana Luiza mudou; mudou um pouquinho,
é verdade, mas mudou. Desde aquele dia que eu contei meu passado, ela não é a mesma, seu espírito amadureceu. Ficou magoada, percebi desde o princípio. Muitas vezes
ela me beijava e me abraçava com força assim, área, para distribuir um pouco desse tesouro que trás no coração... Mas desde esse dia notei bem, desde esse dia...
nunca mais me beijou, nem disse: mamãezinha querida... Só me beija à noite quando se despede para ir dormir. Percebi muito bem, mas não digo nada, não me queixo.
Para que? As mães devem fingir que não percebem muitas coisas. E depois... eu criei a situação. Eu fui a culpada. Helena e Fernandinho continuaram os mesmos; Fernandinho
tornou-se ainda mais carinhoso, mais amoroso para mim, e Ana Luiza, minha caçulinha, aquela que eu sempre acreditei que me compreenderia melhor porque tinha mais
coração, não me perdoou. Estarei enganada? Não. Percebi tão bem, percebi tudo; talvez porque essa ainda seja muito moça e não conheça o mundo... Mais tarde deve
mudar, tenho quase certeza. O que o padre estará falando? Preciso prestar atenção. Conselhos... Conselhos... Os noivos estarão ouvindo? Amadeu está tão sério, tão
concentrado. Ela não devia contar nada a Ana Luiza. Por quê? Fernando disse que eu fizesse o que entendesse e eu achei melhor falar. Não posso esconder, simular,
mentir. Fui sempre assim: franca demais, sincera demais, até contra mim mesma, Fernandinho irá mesmo para a África? Ele disse que irá como engenheiro, mas eu não
queria que ele fosse nem como engenheiro. Oh! Deus de Misericórdia e de bondade, livrai os meus filhos de todos os males e de todos os horrores. E das doenças também,
e de tudo o que possa fazê-los infelizes. Neste momento feliz da minha vida, deponho meu coração aos vossos pés. Quero sofrer por eles, por meus filhos; todo o mal
que tiver que recair sobre qualquer deles, que recaia sobre mim, sobre este coração de mãe, porque acima de tudo, na vida fui mãe e mãe amorosíssima. Perdoe se peço
essas coisas assim neste momento, durante o casamento de Ana Luiza, mas peço-vos que livre meus filhos e aqueles a quem eles estão ligados, de todo o mal. Amém.
Ainda não terminou a cerimônia. Peço-vos também longa e feliz vida ao meu marido, aos meus netos e não se esqueça desses meus pedidos neste momento solene. Vós bem
conheceis a minha vida, sabeis que nasci na pobreza e vivi muitos anos na adversidade. Tive tudo contra mim e apesar disso, desde que vivi num mundo melhor, procurei
sempre elevar meus filhos, ensinar-lhes religião, dar-lhes o que nunca tive na minha infância e na minha adolescência: um lar feliz. Quantas vezes me esforcei por
aprender, para não voltar àquele tempo, pelos meus atos pelas minhas palavras, para que meus filhos ou meu marido nunca sofressem por minha causa. Vós sabeis disso
muito bem. Afastei minhas velhas amizades porque achei que podiam ser perniciosas às minhas filhas. Por exemplo: Pascoalina a quem sempre quis tanto bem, mas dizia
nomes horríveis; a Lolô que me ensinou um pouco de francês, mas tinha modos tão livres. E no entanto eu gostava imensamente delas deliberadamente afastei-me e quando
vou a S. Paulo não as procuro, apesar das saudades que sinto dessas amigas, mas não quero contaminar a pureza das minhas filhas. Adoro a pureza. Adoro a candura.
Adoro tudo o que é belo e puro e bom no mundo. E às vezes fico pensando: nasci meio pobre e triste, mas Deus teve pena de mim. Amém." Gina inclinou-se levemente
e as plumas verdes ondularam sobre sua cabeça; o marido pensou que ela estivesse chorando e tocou-lhe o braço num gesto carinhoso. A cerimônia havia terminado.
Quando o cortejo se formou para deixar a igreja, Ana Luiza percebeu que Gina tinha lágrimas nos olhos, "Coitada de mamãe. Está comovida. Tenho vontade de dizer a
ela: Não chore, mãezinha. Sou tão feliz..." Não sei por que ela me contou o passado, só para tirar-me as ilusões. Eu era tão orgulhosa... E agora sinto-me até humilhada.
Decerto foi por isso que ela me contou, para quebrar-me o orgulho. Mas ela é admirável, tão firme sempre nas suas resoluções, tão segura de si, tão confiante em
tudo. Venceu... E venceu brilhantemente. É admirável. Procurarei ser como mamãe; procurarei ter a mesma presença de espírito, a mesma calma, o mesmo critério, a
mesma segurança, a mesma maneira de encarar os acontecimentos, por piores que se apresentem. Serei como mamãe, uma triunfadora. Terei a mesma distinção, o mesmo
sorriso, a mesma sóbria elegância. Amadeu é um palmo mais alto do que eu e eu o adoro! Todas as pessoas que têm confiança em si, vencem sempre. E eu que às vezes
tinha raiva de Amadeu; já era amor e eu não sabia. Meu amor! Pensei que ele não gostasse de mim, mas quando ele tratou de Mimosa com tanto carinho e me viu chorar
e teve pena de mim, percebi que ele me queria. Então vi que tudo o que sentia antes e pensava que era raiva, era amor. Que amor eu tenho por ele! Como é bonita esta
marcha nupcial de Mendelssohn! Todos os olhares estão fixos agora na minha pessoa. Olham para meu vestido, para meu rosto, para tudo. Passarei com toda a firmeza
pelo braço do meu marido. Meu. Deus! Amadeu é meu marido! Não estarei sonhando? Ele olhou para mim e sorriu; estou um pouco trêmula, só um pouquinho, estou achando
extraordinário ser esposa dele. Vamos passar entre alas de convidados e lírios brancos que fenecem entre ramos verdes. Ouço a marcha Nupcial de Mendelssohn e sinto
alegria no meu coração. Ouço sussurros entre os convidados, vejo ondular plumas e flores nos chapéus de senhoras, não distingo nada, vejo tudo em conjunto e só sei
que sou esposa de Amadeu, meu marido muito querido. Sinto que caminham atrás de nós, papai e mamãe, nossos padrinhos, minha irmã Helena dando o braço a Eduardo.
Sinto-me tão feliz que até tenho medo de morrer, ouço a música e ando devagar, arrastando meu longo vestido branco que vai varrendo o tapete vermelho. Amadeu acha
que estou muito séria, fala qualquer coisa e sorri ternamente para mim. Olhamos um para outro e entramos no automóvel. Durante o percurso, ele pega minha mão e beija
várias vezes, tão apaixonadamente. Pergunto baixinho: "Será que somos marido e mulher?" Ele não respondeu, apenas aperta minha mão entre as dele e sussurra ao meu
ouvido: "Minha adorada mulherzinha."
A recepção decorreu animada. Gracinha preocupada com os filhos, vigiava-os; o menino derramou sorvete na roupa e ela levou-o para dentro. Nos grupos espalhados pelos
cantos do salão, comentava-se a guerra; falava-se sobre a invasão da Europa. Uns davam opiniões desanimadoras, outros menos pessimistas, achavam que a guerra estava
no fim. Fernandinho num grupo de jovens dizia que seguiria em breve para a Itália. Dois rapazes iriam como correspondentes de guerra; um terceiro declarou que sentia
inveja dos que partiam. Outro levantou a taça dizendo:
- Aos soldados do Brasil que lutam pela Liberdade dos povos!
Um perfume sutil espalhava-se por toda a casa. Fernandinho respondeu:
- À nossa vitória!
Ana Luiza e Amadeu, junto à mesa principal, estavam rodeados de convidados. Viram vovó Gertrudes lá no outro lado, sentada numa poltrona, tendo ao lado, duas filhas.
Já havia feito desaparecer a dentadura que com certeza estava no bolso do casaco, e comia, com a boca murcha, um grande pedaço de bolo de noiva. Seu queixo subia
e descia em movimentos rítmicos, indiferente ao que pudessem pensar da sua falta de dentes: Ana Luiza e Amadeu riram. No tapete, encostada à sua saia, Mimosa estava
sentada, com o olhar desiludido. O laço de fita branca caía na frente do pescoço, quase até o chão; tinha um olhar admirativo e ao mesmo tempo receoso, para toda
aquela gente tão desassossegada.
Gina e Dr. Fernando conversavam no salão principal com um grupo de amigos; Helena subiu para amamentar a criança, depois desceu e contou ao marido que a menina estava
dormindo "com as mãozinhas assim". E fechou as duas mãos sobre o peito; Eduardo achou graça. Muitos convidados subiram para ver os presentes que se alinhavam, inúmeros,
no quarto que fora de Helena.
No escritório de Dr. Fernando, que dava para o salão, um grupo de pessoas trocava idéias sobre vários assuntos. Dr. Frederico já havia cumprimentado os donos da
casa; agora conversava com um Ministro. De repente o Ministro perguntou:
- Conhece dona Georgina, a senhora do Dr. Fernando?
Antes de ouvir algumas respostas, continuou:
- Acho-a tão bonita e tem um ar de tanta distinção que admiro. Lembrou-se:
- Ela é de S. Paulo. O amigo também é de lá, não a conheceu?
Fred olhou os livros alinhados nas estantes do escritório e respondeu com indiferença:
- Conheci muito dona Georgina. Há muitos anos quase desde criança.
O Ministro insistiu:
- De família conhecida?
Fred respondeu sem hesitar:
- Família conhecida, sim. Pobre, sabe? Sem aparência mas gente distinta.
O Ministro sorriu triunfante:
- Logo vi. A distinção é nata, meu caro. Ninguém adquire, nasce-se com ela. Ou a pessoa é bem nascida ou não é. Demonstra nos menores gestos, nunca me engano.
Fred concordou:
- Tem razão.
O Ministro convidou:
- Vamos tomar qualquer coisa? Fred pareceu despertar:
- O que? Champanhe?
- Eu preferia um refresco ou água Mineral. Uma laranjada, talvez.
- Vamos.
Viram Gina de pé conversando com outras pessoas no fundo do salão; seu rosto ainda era belo, emoldurado por muitos cabelos brancos; tirara os óculos a pedido dos
filhos "assim mamãe fica mais bonita" e sorria para os convidados. O Ministro, num gesto discreto, indicou-a:
- Uma grande dama! Fred repetiu como um eco:
- Uma grande dama!
E inclinou-se levemente para que o Ministro passasse em primeiro lugar.

Este livro foi composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da "Revista dos Tribunais" Ltda., à rua Conde de Sarzedas, 38, São Paulo, para a Editora Brasiliense
Ltda., em 1945.

 

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