Dashiell Hammett
A Chave de
Vidro
Tradução: Marcos Santarrita
Editora Brasiliense S.A.
1984
ÍNDICE
1 - O CADÁVER NA RUA DA CHINA
2 - O TRUQUE DO CHAPÉU
3 - O TIRO DE CANHÃO
4 - A DOG HOUSE
5 - O HOSPITAL
6 - O OBSERVER
7 - OS CAPANGAS
8 - O BEIJO DE DESPEDIDA
9 - OS CANALHAS
10 - A CHAVE DESPEDAÇADA
1
O CADÁVER NA RUA DA CHINA
1
Os dados verdes cruzaram rolando a mesa verde, bat-
eram na borda juntos e voltaram. Um parou logo,
mostrando seis pontinhos brancos em duas fileiras
iguais para cima. O outro rolou até o centro da mesa e
imobilizou-se com um único ponto para cima.
Ned Beaumont resmungou baixinho -- "Uumm!" -- e
os vencedores limparam o dinheiro da mesa.
Harry Sloss pegou os dados e chocalhou-os na peluda
mão branca.
--Dois lances -- disse. Jogou uma nota de vinte
dólares e outra de cinco sobre a mesa.
Ned Beaumont recuou dizendo:
--Vão vocês, eu preciso me reabastecer.
Cruzou a sala de bilhar até a porta. Ali encontrou-se
com Walter Ivans, que entrava.
--Olá, Walt.
E teria seguido adiante, se Ivans não o pegasse pelo
braço, fazendo-o voltar-se.
6/372
--Vo-você con-conversou com Pa-Paul? -- Ao
dizer a última palavra, uma fina espuma voou
entre os seus dentes.
--Vou ver ele agora -- disse Ned Beaumont. Os
olhos de Ivans, de um azul da China,
iluminaram-se no rosto redondo, até que o
outro, estreitando os seus, acrescentou: -- Não
espere muita coisa. Se puder agüentar mais
um tempo.
Ivans torceu o queixo. -- Ma-mas ela va-vai ter ne-
nenén no mês que vem.
Os olhos negros de Ned Beaumont apresentaram uma
expressão de espanto. Ele puxou o braço da mão do
homem mais baixo e recuou. Depois retorceu um canto
da boca, sob o bigode negro, e disse:
--Ê uma hora ruim, Walt, e... você vai poupar
um bocado de decepção não esperando muita
coisa antes de novembro. -- Estreitava nova-
mente os olhos, atento.
--Ma-mas se vo-você disser a e-ele...
--Vou pintar as coisas o mais feio possível, e
você deve saber que ele vai fazer o máximo,
mas neste momento está num beco sem saída.
Moveu os ombros, e o rosto tornou-se sombrio, com ex-
ceção do vigilante brilho nos olhos.
7/372
Ivans umedeceu os lábios e piscou os olhos muitas
vezes. Inspirou profundamente e deu tapinhas no peito
de Ned Beaumont com ambas as mãos.
--A-ago-agora vá-vá -- disse numa voz urgente e
suplicante. -- Eu vo-vou espe-perar por vo-você
aqui.
2
Ned Beaumont subiu ao andar de cima acendendo um
charuto manchado de verde. No patamar do segundo
andar, onde estava pendurado o retrato do governador,
voltou-se para o lado da frente do prédio e bateu na
larga porta de carvalho que fechava o corredor naquela
ponta.
Ao ouvir o "Tudo bem" de Paul Madvig, abriu a porta e
entrou.
Paul Madvig estava só na sala, parado de pé, diante da
janela, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, de costas
para a porta, olhando através da tela a escura rua da
China lá embaixo.
Voltou-se lentamente e disse:
-- Oh, você por aqui.
8/372
Era um homem de quarenta e cinco anos, alto como
Ned Beaumont, mas com uns vinte quilos a mais, sem
flacidez. O cabelo, claro, partia-se no meio, emplas-
trado na cabeça. Tinha um rosto bem proporcionado,
com aspecto sadio, corado e robusto. As roupas es-
capavam do berrante pela qualidade e pelo modo
como ele as usava.
Ned Beaumont fechou a porta e disse:
--Me empreste algum dinheiro.
Madvig retirou do bolso interno do paletó uma grande
carteira marrom.
--Quanto quer?
--Umas duas de cem.
Madvig deu-lhe uma de cem e cinco de vinte,
perguntando:
--Dados?
--Obrigado. -- Ned Beaumont embolsou o
dinheiro. -- É.
--Faz muito tempo que você não dá uma gan-
hadazinha, não é? -- perguntou Madvig,
voltando a enfiar as mãos nos bolsos.
--Não muito... um mês ou um mês e meio.
Madvig sorriu.
--É muito tempo pra ficar perdendo.
--Não pra mim. -- Sentia-se uma nota de irrit-
ação em sua voz.
9/372
Madvig chocalhou algumas moedas no bolso.
--O jogo está bom esta noite? -- Sentou-se numa
quina da mesa e baixou os olhos para os sapatos
marrom-reluzentes.
Ned Beaumont olhou curiosamente o homem loiro,
balançou a cabeça e disse:
--Mixaria. -- Andou até a janela. Acima dos prédios
do outro lado da rua o céu mostrava-se negro e
denso. Ele foi até o telefone às costas de Madvig e
discou um número. -- Alô, Bernie. Aqui é Ned. Qual
é a cotação de Peggy OToole?... Só isso?... Bem, me
dê quinhentos de cada... Claro... Aposto que vai
chover, e se chover ela vence Incinerator... Tudo
bem, me dê uma cotação melhor então... Certo. --
Repôs o telefone no gancho e voltou para a frente
do outro.
Madvig perguntou:
--Por que não tenta parar um pouco quando está
numa maré de azar?
Ned Beaumont fechou a cara.
--Não adianta, só faz estender o azar. Eu devia ter
posto aqueles mil e quinhentos na cabeça, em vez
de espalhar. É melhor a gente receber o castigo de
uma vez e acabar logo com a coisa.
Madvig deu uma risadinha e ergueu a cabeça para
dizer:
10/372
--Se você agüenta o arrocho.
Ned Beaumont deixou cair os cantos da boca, seguidos
pelas pontas dos bigodes.
--Eu agüento o que tiver de agüentar -- disse,
encaminhando-se para a porta.
Já estava com a mão na maçaneta quando Madvig
disse, seriamente:
--E eu acho que agüenta mesmo, Ned.
Ned Beaumont voltou-se e perguntou, irritado:
--Agüento o quê?
Madvig desviou o olhar para a janela.
--Qualquer coisa.
Ned Beaumont estudou o rosto desviado de Madvig. O
loiro mexeu-se desconfortavelmente e tornou a chocal-
har as moedas no bolso. O outro perguntou, de olhos
vazios, num tom extremamente intrigado:
--Quem?
Madvig corou. Ergueu-se da mesa e deu um passo em
direção a Ned Beaumont.
--Vá pro inferno!
Ned Beaumont deu uma risada.
Madvig sorriu encabulado e enxugou o rosto com um
lenço de bordas verdes.
--Por que não tem ido lá em casa? -- pergun-
tou. -- Mamãe estava dizendo ontem de noite
que não vê você há um mês.
11/372
--Talvez eu apareça uma noite dessas, esta
semana.
--Deve aparecer. Sabe como mamãe gosta de
você. Venha jantar. -- Madvig guardou o
lenço.
Ned Beaumont tornou a se encaminhar para a porta,
devagar, olhando o loiro pelos cantos dos olhos. Com a
mão na maçaneta, perguntou:
--Era pra isso que você queria me ver?
Madvig franziu a testa.
--Era, quer dizer... -- Pigarreou. -- Hum... oh, tem
outra coisa. -- De repente, desaparecera sua
timidez, deixando-o aparentemente tranqüilo e
dono de si. -- Você sabe mais dessas coisas que eu.
O aniversário da srta. Henry é quinta-feira. Que
acha que devo dar a ela?
Ned Beaumont retirou a mão da maçaneta da porta. Ao
tornar a encarar Madvig de frente, seus olhos já haviam
perdido a aparência de espanto. Soprou a fumaça do
charuto e perguntou:
--Vão fazer esses troços de aniversário, não
vão?
--Vão.
--Você foi convidado?
Madvig balançou a cabeça.
--Mas vou jantar lá amanhã de noite.
12/372
Ned Beaumont baixou o olhar para o charuto, depois
tornou a olhar o rosto de Madvig e perguntou:
--Vai apoiar o senador, Paul?
--Acho que vamos.
O sorriso de Ned Beaumont era tão brando quanto sua
voz quando fez a pergunta seguinte:
--Porquê?
Madvig sorriu.
--Porque com a gente por trás ele vai pôr Roan no
chinelo, e com a ajuda dele a gente pode eleger toda
a chapa como se nem tivesse concorrentes.
Ned Beaumont pôs o charuto na boca. Perguntou,
ainda brandamente:
--Sem você -- acentuou o pronome -- por trás, o
senador conseguiria desta vez?
Madvig foi calmamente decisivo.
--Nem uma chance.
Após uma pequena pausa, Ned Beaumont perguntou:
--Ele sabe disso?
--Deve saber melhor que ninguém. E se não
sabe... Mas que diabo deu em você?
A risada de Ned Beaumont foi de escárnio.
--Se ele não soubesse -- insinuou -- você não estar-
ia indo jantar lá amanhã. É isso?
Carrancudo, Madvig tornou a perguntar:
--Que diabo deu em você?
13/372
Ned Beaumont retirou o charuto da boca. Tinha es-
traçalhado a ponta com os dentes.
--Em mim não deu nada. -- Armou uma ex-
pressão pensativa. -- Acha que o resto da
chapa não precisa do apoio dele?
--Apoio é coisa que uma chapa nunca tem de-
mais -- respondeu Madvig com indiferença. --
Mas sem a ajuda dele a gente podia dar um
jeito do lado da gente.
--Já prometeu alguma coisa pra ele?
Madvig franziu os lábios.
--Está tudo acertado.
Ned Beaumont baixou a cabeça até ficar olhando o loiro
por baixo das sobrancelhas. Seu rosto tornara-se
pálido.
--Deixe ele, Paul -- disse numa voz baixa e rouca. --
Acabe com ele.
Madvig pôs os punhos nos quadris e exclamou baix-
inho, com descrença:
--Ora, macacos me mordam!
Ned Beaumont passou por ele e, com dedos inseguros,
esmagou a ponta acesa do charuto na bacia de cobre
martelado em cima da mesa.
Madvig fitava o homem mais jovem, até que ele se en-
direitou e se voltou. Então o loiro sorriu com afeição e
irritação.
14/372
--Que deu em você, Ned? -- queixou-se. -- Vai bem
até um certo ponto, e depois, sem motivo algum, sai
com uma dessas. Quero ser mico de circo se en-
tendo você!
Ned Beaumont fez uma careta de repugnância.
--Está bem. Esqueça. -- E voltou imediatamente ao
ataque com uma pergunta cética: -- Acha que ele
vai fazer o seu jogo depois de reeleito?
Madvig não se preocupava com isso.
--Posso dar um jeito nele.
--Talvez, mas não se esqueça que ele nunca le-
vou a pior em nada na vida.
Madvig concordou.
--Certo, e esse é um dos melhores motivos que
eu conheço pra me juntar a ele.
--Não, não é, não, Paul -- disse seriamente
Ned Beaumont. -- É o pior dos piores. Reveja
isso, mesmo que lhe dê dor de cabeça. Até
onde aquela estonteante filha loira dele fisgou
você?
Madvig disse:
--Eu vou me casar com a srta. Henry.
Ned Beaumont franziu os lábios como quem assobia,
mas não assobiou. Estreitou mais ainda os olhos e
perguntou:
--Isso faz parte da barganha?
15/372
Madvig deu um sorrisinho de garoto.
--Ninguém sabe disso ainda -- respondeu --, a não
ser você e eu.
Manchas rubras surgiram nas faces magras de Ned
Beaumont. Ele deu seu mais belo sorriso e disse:
--Pode confiar em mim, que eu não vou sair tagare-
lando por aí, e aqui vai um conselhozinho. Se é isso
que você quer, faça com que ponham a coisa por es-
crito, prestem juramento perante um tabelião e de-
positem um sinal em dinheiro, ou, melhor ainda,
insista no casamento antes do dia da eleição. Aí
pode ter certeza ao menos de sua libra de carne, {1}
ou será que ela pesa umas cento e dez?
Madvig mexeu os pés. Evitava o olhar fixo de Ned
Beau- mont quando disse:
--Não sei por que você fica aí falando do sen-
ador como se ele fosse um vigarista. É um
cavalheiro e...
--Certamente. Li sobre isso no Post... um dos
poucos aristocratas que restam na política
americana. E a filha é uma aristocrata. É por
isso que estou lhe avisando pra costurar a
camisa no corpo quando for se encontrar com
eles, senão vai sair sem ela, porque pra eles
você é uma forma inferior de vida animal, à
qual não se aplica nenhuma das regras sociais.
16/372
Madvig deu um suspiro e começou:
--Ora, Ned, não seja tão...
Mas Ned Beaumont havia se lembrado de alguma coisa.
Seus olhos brilhavam de malícia.
--E não devemos esquecer que o jovem Taylor
Henry é um aristocrata também, e provavelmente
foi por isso que você proibiu Opal de andar por aí
com ele. Como vai ser quando você se casar com a
irmã dele e ele se tornar tio emprestado de sua filha
ou algo assim? Isso dará a ele o direito de re-
começar a sair com ela?
Madvig bocejou.
--Você não entendeu direito, Ned. Eu não perguntei
nada disso a você. Só perguntei que presente eu de-
via dar à srta. Henry.
O rosto de Ned Beaumont perdeu a animação, tornou-
se uma máscara ligeiramente sombria.
--Até onde você chegou com ela? -- pergun-
tou, numa voz que nada manifestava o que ele
poderia estar pensando.
--Não cheguei a parte alguma. Estive lá talvez
meia dúzia de vezes pra falar com o senador.
Às vezes vejo ela, às vezes não, mas apenas pra
cumprimentar ou alguma coisa assim, com
outras pessoas em volta. Sabe, ainda não tive
17/372
uma oportunidade pra dizer alguma coisa a
ela.
Um brilho de gozação surgiu por um momento nos ol-
hos de Ned Beaumont, e depois desapareceu.
--Amanhã é seu primeiro jantar lá?
--É, mas não espero que seja o último.
--E não recebeu convite pra festa de
aniversário?
--Não. -- Madvig hesitou. -- Ainda não.
--Então não vai gostar da resposta.
O rosto de Madvig se manteve impassível.
--Qual, por exemplo? -- perguntou.
--Não dê nada a ela.
--Ora, diabos, Ned!
Ned Beaumont deu de ombros.
--Faça como quiser. Foi você quem me
perguntou.
--Mas por quê?
--A gente não deve dar nada às pessoas
quando não se tem certeza de que elas gostari-
am de receber alguma coisa da gente.
--Mas todo mundo gosta de...
--Talvez, mas a coisa vai mais fundo. Quando
a gente dá alguma coisa a alguém, está
dizendo alto e em bom som que sabe que essa
pessoa gostaria que a gente desse...
18/372
--Entendi -- disse Madvig. Esfregou o queixo
com os dedos da mão direita. Franziu a testa e
acrescentou: -- Acho que você tem razão. --
Seu rosto se tranqüilizou. -- Mas diabos me
levem se vou perder essa oportunidade.
Ned Beaumont apressou-se a dizer:
--Bem, então mande flores ou alguma coisa
assim. Caía bem.
--Flores? Meu Deus, eu queria...
--Claro, queria dar um carro de luxo ou uns
dois metros de colar de pérolas. Vai ter opor-
tunidade pra isso mais tarde. Comece de baixo
e vá subindo.
Madvig armou uma expressão de desagrado.
--Acho que você tem razão, Ned. Sabe mais
dessas coisas que eu. Então serão flores.
--E não demais. -- Depois, no mesmo fôlego:
-- Walt Ivans está dizendo a todo mundo que
você devia ajudar o irmão dele.
Madvig puxou para baixo o botão do colete.
--Todo mundo pode dizer pra ele que Tim vai
ficar fora de circulação até depois da eleição.
--Vai deixar que ele vá a julgamento?
--Vou -- respondeu Madvig, e acrescentou
com mais ênfase: -- Você sabe muitíssimo
bem que não posso impedir, Ned. Com todo
19/372
mundo empenhado na reeleição e os clubes
femininos em pé de guerra, seria entregar o
pescoço à forca conchavar o caso de Tim
agora.
Ned Beaumont deu um sorrisinho malicioso ao loiro e
falou com voz arrastada.
--A gente não ligava muito pros clubes femini-
nos antes de se juntar à aristocracia.
--Mas agora liga. -- Madvig tinha os olhos
opacos.
--A mulher de Tim vai ter nenêm no mês que
vem -- disse Ned Beaumont.
Madvig soprou uma rajada de impaciência.
--Tudo tem de acontecer pra tornar a coisa
mais difícil -- queixou. -- Por que eles não
pensam nessas coisas antes de se meter em
encrencas? Não têm miolos, nenhum deles.
--Têm votos.
--É isso que é o diabo -- rosnou Madvig. Ol-
hou furioso para o chão, por um momento, e
ergueu a cabeça. -- Vamos cuidar dele assim
que os votos estejam contados, mas até lá,
nada feito.
--Isso não é muito generoso com os rapazes --
disse Ned Beaumont, olhando enviesado para
20/372
o outro. -- Com miolos ou não, estão acos-
tumados a que cuidem deles.
Madvig adiantou um pouco o queixo. Os olhos, redon-
dos e de um brilho opaco, encararam Ned Beaumont.
Em voz baixa, perguntou:
--E então?
Ned Beaumont sorriu e manteve a voz num tom casual.
--Você sabe que não é preciso muita coisa as-
sim pra que eles comecem a dizer que era
diferente nos velhos tempos, antes de você se
juntar ao senador.
--É?
Ned Beaumont sustentou sua posição sem mudar a voz
ou o sorriso.
--Você sabe que é preciso pouca coisa desse tipo pra
que comecem a dizer que Shad 0'Rory ainda cuida
dos rapazes dele.
Madvig, que tinha escutado com um ar de total
atenção, disse então, numa voz baixa e bastante
decidida:
--Eu sei que você não vai começar a fazer com que
falem isso, Ned, e sei que posso contar com você pra
fazer o que puder pra parar qualquer conversa
desse tipo que por acaso ouça.
Por um momento, após isso, os dois ficaram calados,
olhando-se nos olhos, sem qualquer mudança no rosto
21/372
de nenhum dos dois. Ned Beaumont quebrou o
silêncio.
--Ajudaria um pouco se a gente cuidasse da
mulher e do nenéndeTim.
--O negócio é esse. -- Madvig recolheu o
queixo e seus olhos perderam aquele ar som-
brio. -- Cuide disso, está bem? Dê tudo a eles.
3
Walter Ivans esperava por Ned ao pé da escada, de ol-
hos brilhantes e esperançoso.
--Que-que fo-foi que ele di-disse?
--É o que eu disse a você: não pode fazer nada. Depois
da eleição, Tim vai ter tudo que precisa pra sair, mas
nada de agitação até lá.
Walter Ivans deixou pender a cabeça e emitiu um baixo
grunhido de dentro do peito.
Ned Beaumont pôs uma mão no ombro do homem
mais baixo e disse:
--É duro, e ninguém sabe melhor disso que Paul,
mas ele não pode fazer nada. Quer que você diga à
mulher dele pra não pagar nenhuma conta. Que
mande tudo pra ele... aluguel, mercearia, médico e
hospital.
22/372
Walter Ivans ergueu a cabeça rapidamente e tomou a
mão de Ned Beaumont nas suas.
--Po-por De-Deus, é mu-muito ba-bacana da parte
dele! -- Tinha os olhos azuis molhados. -- Ma-mas
eu que- queria ti-tirar Tim de-de lá.
Ned Beaumont disse:
--Bem, sempre tem uma possibilidade de aparecer
alguma coisa pra tirar ele de lá. -- Tirou a mão e
acrescentou: -- Vejo você por aí. --Passou pelo lado
de Ivans e foi para o salão de bilhar.
O salão de bilhar estava deserto.
Ele pegou seu chapéu e sua capa e foi até a porta da
frente. A chuva caía, em compridas cordas enviesadas,
cinzentas, na rua da China. Ele sorriu e falou à chuva,
baixinho:
--Caia, queridinha, três mil duzentos e cinqüenta
dólares de chuva.
Voltou e chamou um táxi.
4
Ned Beaumont tirou as mãos de cima do morto e
levantou-se. A cabeça do morto rolou um pouco para a
esquerda, despencando do meio-fio, e o rosto recebeu
em cheio a luz do poste da esquina. Era um rosto
jovem, e a expressão de raiva parecia intensificada pelo
23/372
inchaço escuro que atravessava diagonalmente a testa,
do início dos cabelos loiros cacheados até uma das
sobrancelhas.
Ned Beaumont olhou a rua da China acima e abaixo.
Até onde podia ver, não havia ninguém. Duas quadras
abaixo, diante do Log Cabin Club, dois homens
saltavam de um automóvel. Deixaram o carro parado
ali, de frente para Ned Beaumont, e entraram no clube.
Após olhar fixamente o automóvel por alguns segun-
dos, Ned Beaumont girou depressa a cabeça para torn-
ar a olhar rua acima, e então, com a rapidez que fez de
ambos os movimentos um só e contínuo, rodopiou e
saltou para cima da calçada, escondendo-se à sombra
da árvore mais próxima. Respirava de boca aberta, e
embora minúsculas gotas de suor houvessem brilhado
em suas mãos à luz, agora tremia, e levantou a gola da
capa.
Permaneceu à sombra da árvore, apoiando-se nela, por
meio minuto talvez. Depois empertigou-se de repente e
começou a andar em direção ao Log Cabin Club. An-
dava com rapidez crescente, curvado para a frente, é já
ia mais acelerado quando notou um homem que vinha
do outro lado da rua. Afrouxou imediatamente o passo
e obrigou-se a andar ereto. O homem entrou numa casa
antes de passar por ele.
24/372
Quando Ned Beaumont chegou ao clube, tinha parado
de respirar pela boca. Ainda tinha os lábios um tanto
franzidos. Olhou o automóvel vazio sem se deter, subiu
os degraus do clube entre as duas lanternas e entrou.
Harry Sloss e outro homem atravessavam o saguão,
vindos do vestiário. Pararam e disseram juntos:
--Olá, Ned.
Sloss acrescentou:
--Soube que você apostou em Peggy O'Toole
hoje.
--Foi.
--Pra ganhar muito?
--Três mil e duzentos.
Sloss passou a língua pelo lábio inferior.
--Isso é ótimo. Deve estar pronto prum
joguinho hoje de noite.
--Mais tarde, talvez. Paul está aí?
--Não sei. Acabamos de chegar. Não venha
tarde demais: prometi à garota que estaria em
casa cedo.
Ned Beaumont disse:
--Certo. -- E foi ao vestiário. -- Paul está? --
perguntou à moça.
--Está, chegou há uns dez minutos.
Ned Beaumont olhou seu relógio. Eram dez e meia. Su-
biu até a sala da frente do segundo andar. Madvig em
25/372
trajes de jantar, sentava-se à mesa com a mão esten-
dida para o telefone quando Ned Beaumont entrou.
Retirou a mão e perguntou:
--Como está, Ned? -- O rosto bonito parecia corado
e plácido.
Ned Beaumont disse:
--Já estive pior. -- Fechou a porta atrás de si e
sentou-se numa poltrona não distante da de Mad-
vig. -- Como foi o jantar de Henry?
A pele nos cantos dos olhos de Madvig enrugou-se.
--Já estive em piores -- disse.
Ned Beaumont cortava a ponta de um charuto claro
com manchas escuras. O tremor de suas mãos não
combinava com a firmeza da voz ao perguntar:
--Taylor estava lá?
Ergueu o olhar para Madvig sem erguer a cabeça.
--No jantar, não. Por quê?
Ned Beaumont estirou as pernas cruzadas, reclinou-se
na poltrona, moveu a mão que segurava o charuto num
arco indiferente e disse:
--Ele está morto numa sarjeta lá pra cima.
Madvig, imperturbável, perguntou:
--É mesmo?
Ned Beaumont curvou-se para a frente. Os músculos de
seu rosto magro enrijeciam-se. O envoltório do charuto
26/372
partiu-se entre seus dedos com um fraco estalido. Ele
perguntou irritado:
--Você entendeu o que eu disse?
Madvig assentiu com a cabeça, vagarosamente.
--E então?
--Então o quê?
--Ele foi assassinado.
--Tudo bem -- disse Madvig. -- Quer que eu
fique histérico por causa disso?
Ned Beaumont empertigou-se na poltrona.
--Chamo a polícia?
Madvig ergueu um pouco as sobrancelhas.
--Eles ainda não sabem?
Ned Beaumont encarava o loiro. Respondeu:
--Não tinha ninguém por perto quando encontrei
ele. Eu queria falar com você antes de fazer
qualquer coisa. Posso dizer que encontrei ele?
Madvig baixou as sobrancelhas.
--Por que não? -- perguntou, sem expressão
alguma.
Ned Beaumont levantou-se, deu dois passos na direção
do telefone, parou e tornou a voltar-se para o loiro.
Falou dando um certo destaque:
--O chapéu dele não estava lá.
27/372
--Não vai precisar dele agora. -- Depois Mad-
vig franziu a testa e disse: -- Você é um
maldito idiota, Ned.
Ned Beaumont disse:
--Um de nós dois é.
E dirigiu-se ao telefone.
5
TAYLOR HENRY ASSASSINADO Cadáver do filho do
senador encontrado na rua da China "Taylor Henry,
vinte e seis anos, filho do senador Ralph Bancroft
Henry, foi encontrado morto na rua da China, perto da
esquina com a avenida Pamela, poucos minutos após às
10h da noite passada. Acredita-se que tenha sido vítima
de um assalto.
"O juiz de instrução William J. Hoops declarou que a
morte do jovem Henry foi causada por fratura no
crânio e concussão, causadas quando bateu a nuca na
quina do meio- fio, após ser derrubado por uma pan-
cada com um porrete ou outro instrumento contun-
dente na testa.
"Acreditava-se que o corpo tenha sido encontrado
primeiramente por Ned Beaumont, avenida Randall,
914, que se dirigiu ao Log Cabin Club, a duas quadras
de distância, para telefonar à polícia; mas antes de
28/372
alcançar a Central de Polícia pelo telefone, o corpo já
fora encontrado e o assassinato comunicado pelo
patrulheiro Michael Smitt.
"O Chefe de Polícia Frederick M. Rainey ordenou ime-
diatamente a prisão em massa de todos os tipos suspei-
tos da cidade e emitiu uma declaração dizendo que fará
de tudo para prender o assassino ou assassinos de
pronto.
"Membros da família Henry declararam que o rapaz
deixou sua casa, na rua Charles, por volta das 9h,
para..."
Ned Beaumont pôs o jornal de lado, engoliu o café que
ainda restava em sua xícara, pôs a xícara e o pires em
cima da mesa de cabeceira e tornou a recostar-se con-
tra os travesseiros. Tinha o rosto cansado e pálido.
Puxou o cobertor até o pescoço, cruzou as mãos por
trás da cabeça e ficou fitando com olhos insatisfeitos o
desenho pendurado entre as duas janelas.
Ficou ali deitado durante meia hora, movendo apenas
as pálpebras. Depois pegou o jornal e releu a matéria.
Enquanto lia, a insatisfação espalhava-se dos olhos
para todo o rosto. Tornou a pôr o jornal de lado, saiu da
cama, envolveu o corpo magro, que usava um pijama
branco, num quimono com figurinhas marrom e
negras, enfiou os pés nuns chinelos marrom, e,
tossindo um pouco, passou à sala de estar.
29/372
Era uma sala grande, à maneira antiga, de pé direito
alto e janelas largas, com um tremendo espelho acima
da lareira e muito veludo vermelho nos móveis. Pegou
um charuto numa caixa em cima da mesa e sentou-se
numa ampla poltrona vermelha. Os pés descansavam
numa faixa de sol, de fim de manhã, e a fumaça que ele
soprava encorpava-se de repente ao entrar na luz do
Sol. Tinha a testa franzida agora, e roía uma unha
quando não tinha o charuto na boca.
Soaram batidas na porta. Ele se endireitou, de olhos at-
entos, alerta.
--Entre.
Entrou um garçom de paletó branco.
Ned Beaumont disse:
--Oh, tudo bem -- num tom desapontado, e tornou
a relaxar contra o veludo vermelho da poltrona.
O garçom passou para o quarto, saiu com uma bandeja
cheia de pratos e foi-se. Ned Beaumont jogou o que
restava do charuto na lareira e entrou no banheiro. De-
pois de se barbear, tomar banho e se vestir, o rosto per-
deu a palidez, e o porte a maior parte de cansaço.
6
Não era exatamente meio-dia quando Ned Beaumont
deixou seus aposentos e andou oito quadras até um
30/372
prédio de apartamentos cinza-claro na rua Link. Aper-
tou um botão na entrada, entrou quando a fechadura
deu um estalido e subiu até o sexto andar num pequeno
elevador automático.
Apertou o botão da campainha no umbral de uma porta
assinalada com o número 611. A porta foi aberta imedi-
atamente por uma garota miúda, que devia estar ter-
minando a adolescência. Tinha os olhos negros e
raivosos, o rosto branco, a não ser em volta dos olhos, e
também raivoso. Ela disse:
-- Oh, olá. -- E com um sorriso e um gesto de mão vag-
amente apaziguante desculpou-se por sua raiva. A voz
tinha uma finura metálica. Ela usava um capote de
peles marrom, mas não chapéu. O cabelo curto -- era
quase negro -- assentava-se liso e brilhante como es-
malte na cabeça redonda. Os pingentes de ouro com
brilhantes incrustados, nas orelhas, eram cornalina. Ela
recuou, puxando a porta.
Ned Beaumont adiantou-se, passando pela poria e
perguntando:
--Bernie já voltou?
A raiva tornou a arder no rosto dela, que disse numa
voz aguda:
--Aquele bastardo miserável!
Ned Beaumont fechou a porta sem se voltar.
31/372
A garota aproximou-se dele, pegou-lhe os braços acima
dos cotovelos e tentou sacudi-lo.
--Sabe o que eu fiz por aquele vagabundo? -- per-
guntou. -- Deixei a melhor casa que qualquer moça
já teve, e uma mãe e um pai que achavam que eu
era a própria srta. Jesus. Me disseram que ele não
valia nada. Todo mundo me disse isso, e tinham
razão, mas eu fui burra demais pra ver. Bem, espero
dizer ao senhor que sei agora, aquele... -- O resto
era gritante obscenidade.
Ned Beaumont, imóvel, ouvia seriamente. Seus olhos
não eram agora os de um homem sadio. Quando a falta
de fôlego a interrompeu por um instante, ele
perguntou:
--Que foi que ele fez?
--Fez? Me deu o fora, aquele... -- O resto da
frase era obscenidade.
Ned Beaumont retraiu-se. O sorriso com que ele abriu
os lábios era aguado. Perguntou:
--Acho que não deixou nada pra mim.
A garota cerrou os dentes e aproximou o rosto do dele.
Tinha os olhos arregalados.
--Ele deve alguma coisa a você?
--Eu ganhei... -- Pigarreou. -- Devo ter ganho
três mil duzentos e cinqüenta mangos no
quarto páreo de ontem.
32/372
Ela tirou as mãos dos braços dele e deu uma risada de
desprezo.
--Tente receber. Veja. -- Estendeu as mãos. Um
anel de cornalina no dedo mínimo da mão es-
querda. Ela ergueu as mãos e tocou os brincos de
cornalina. -- Estas são as únicas peças fedorentas
de minhas jóias que ele me deixou, e não deixava, se
eu não estivesse com elas.
Ned Beaumont perguntou, numa voz estranhamente
distanciada:
--Quando foi que isso aconteceu?
--Ontem de noite, mas eu só descobri hoje de
manhã. Mas não pense que não vou fazer
aquele filho da puta se arrepender de ter me
conhecido. -- Enfiou a mão nas roupas e tirou-
a fechada. Aproximou-a do rosto de Ned Beau-
mont e abriu-a. Continha três pedacinhos de
papel amassados. Quando ele quis pegá-los,
ela tornou a fechar os dedos, recuando e pux-
ando a mão.
Ele moveu os cantos da boca, impaciente, e deixou cair
a mão.
Ela disse, excitada:
--Viu o jornal hoje de manhã, sobre Taylor?
33/372
A resposta de Ned Beaumont -- Sim -- foi bastante
calma, mas seu peito inchou e esvaziou com a respir-
ação apressada.
--Sabe o que é isso aqui? -- Estendeu mais uma vez
os três pedaços de papel embolados na mão aberta.
Ned Beaumont balançou a cabeça. Estreitara os olhos,
que brilhavam.
--São as notas promissórias de Taylor Henry -- ela
disse triunfantemente. -- No valor de mil e duzen-
tos dólares.
Ned Beaumont ia dizer alguma coisa, conteve-se, e
quando falou sua voz era sem vida.
--Não valem um centavo com ele morto.
Ela tornou a enfiá-los no vestido e aproximou-se de
Ned Beaumont.
--Escute -- disse --, nunca valeram um
centavo, e por isso é que ele está morto.
--Isso é um palpite?
--É qualquer droga que você queira chamar.
Mas deixe eu lhe dizer uma coisa: Bernie tele-
fonou pra Taylor sexta-feira passada e disse
que só dava a ele três dias pra dar as caras.
Ned Beaumont alisou um lado do bigode com a unha
do polegar.
--Você não está apenas se fazendo de brava, está? --
perguntou cautelosamente.
34/372
Ela armou uma expressão furiosa.
--É claro que estou brava -- disse. -- Estou brava o
bastante pra entregar as notas pra polícia, e é o que
eu vou fazer. Mas se acha que não foi isso que
aconteceu, é um maldito idiota.
Ele ainda não parecia convencido.
--Onde conseguiu elas?
--No cofre. -- Gesticulou com a mão esguia em
direção ao interior do apartamento.
Ele perguntou:
--A que horas, ontem de noite, ele deu o fora?
--Não sei. Cheguei em casa nove e meia, e
fiquei sentada por aqui a maior parte da noite
esperando por ele. Só de manhã foi que come-
cei a desconfiar de alguma coisa, dei uma ol-
hada na casa e vi que ele tinha limpado cada
centavo em dinheiro e cada jóia minha que eu
não estava usando.
Ele tornou a alisar o bigode com a unha do polegar e
perguntou:
--Aonde acha que ele iria?
Ela bateu o pé e, sacudindo os punhos para cima e para
baixo, voltou a xingar Bernie numa voz esganiçada e
furiosa.
Ned Beaumont disse:
35/372
--Páre com isso! -- Pegou os pulsos dela e
imobilizou- os. -- Se só vai ficar gritando, neste
caso, me dê essas notas que eu faço alguma coisa.
Ela arrancou os pulsos das mãos dele, gritando:
--Não vou lhe dar nada! Vou dar elas à polícia,
e a ninguém mais!
--Está bem, então dê. Aonde acha que ele foi,
Lee?
Lee disse irada que não sabia aonde ele iria, mas sabia
aonde gostaria de fazê-lo ir.
Ned Beaumont disse, cansado:
--É isso mesmo. Piadinhas vão fazer muito
bem à gente. Acha que ele voltaria pra Nova
Iorque?
--Como vou saber? -- Os olhos dela haviam se
tornado de repente cautelosos.
A irritação provocou manchas vermelhas nas faces de
Ned Beaumont.
--Que é que você está aprontando agora? -- pergun-
tou, desconfiado.
O rosto dela era uma máscara inocente.
--Nada. Que quer dizer?
Ele se curvou para ela. Falou com considerável
seriedade, balançando lentamente a cabeça de um lado
para outro com as palavras.
36/372
--Não pense que não vai à polícia com elas, Lee,
porque vai mesmo.
Ela disse: -- É claro que vou.
7
Na mercearia que ocupava parte do térreo do prédio de
apartamentos, Ned Beaumont foi ao telefone. Discou o
número do Departamento de Polícia, chamou o tenente
Doolan e disse:
-- Alô. Tenente Doolan?... Estou falando da parte da
srta. Lee Wilshire. Ela está no apartamento de Bernie
Despain, na rua Link, 1666. Parece que ele desapareceu
de repente ontem à noite, deixando algumas notas
promissórias de Taylor Henry pra trás... Correto, e ela
diz que ouviu ele ameaçar Taylor uns dois dias atrás...
Sim, e ela quer falar com você o mais breve possível...
Não, é melhor você vir ou mandar buscar ela o mais de-
pressa possível... Sim... Isso não faz muita diferença.
Você não me conhece. Estou só falando em nome dela
porque ela não queria telefonar do apartamento dele...
Ficou à escuta por mais um instante, e depois, sem
mais nada dizer, pôs o telefone no gancho e saiu da
mercearia.
8
37/372
Ned Beaumont dirigiu-se a uma bonita casa de tijolos
aparentes, numa fila de bonitas casas de tijolos apar-
entes, no alto da rua Tâmisa. A porta foi aberta, quando
ele tocou a campainha, por uma jovem negra que sorria
com todo o rosto pardo.
--Como vai, sr. Beaumont?
E fez do ato de abrir a porta um caloroso convite.
Ned Beaumont disse:
--Olá, June. Tem alguém em casa?
--Sim, senhor, estão na mesa almoçando.
Ele se encaminhou para a sala de jantar, nos fundos,
onde Paul Madvig e a mãe sentavam-se um em frente
ao outro numa mesa de toalha vermelha e branca.
Havia uma terceira cadeira, mas não estava ocupada, e
o prato e prataria no lugar não haviam sido usados.
A mãe de Paul Madvig era uma mulher alta e magra,
cujos cabelos loiros haviam desbotado, mas sem ficar
inteiramente brancos, aos setenta e tantos anos. Os ol-
hos eram tão azuis, límpidos e jovens quanto os do
filho -- e mais jovens ainda quando ela ergueu o olhar
para Ned Beaumont que entrava na sala. Aprofundou
as rugas da testa, porém, e disse:
--Então aí está você finalmente. É um garoto im-
prestável, esquecendo uma velha desse jeito.
Ned Beaumont deu um sorrisozinho leviano.
38/372
--Ora, mãe, já sou um garoto crescido, e tenho de
cuidar de meu serviço. -- Acenou levemente para
Madvig. -- Olá, Paul.
Madvig disse:
--Senta aí, que June vai trazer alguma coisa pra vo-
cê comer.
Ned Beaumont curvava-se para beijar a mão enrugada
que a sra. Madvig lhe estendia. Ela recolheu-a e armou-
lhe uma carranca.
--Onde foi que você aprendeu esses truques?
--Eu disse a você que estava ficando crescido.
-- Ele se dirigiu a Madvig: -- Obrigado, faz só
alguns minutos que tomei o café da manhã. --
Olhou a cadeira vazia. -- Onde está Opal?
A sra. Madvig respondeu:
--Está deitada. Não está se sentindo bem.
Ned Beaumont balançou a cabeça, esperou um mo-
mento e perguntou delicadamente:
--Nada sério?
Madvig balançou a cabeça.
--Dor de cabeça ou alguma coisa assim. Acho que a
menina dança demais.
A sra. Madvig disse:
--Você sem dúvida é um ótimo pai, nem sabe
quando a filha tem dores de cabeça.
A pele em torno dos olhos de Madvig enrugou-se.
39/372
--Ora, mãe, não seja inconveniente -- disse, e
voltou-se para Ned Beaumont. -- Qual é a boa-
nova?
Ned Beaumont passou por trás da sra. Madvig e se diri-
giu à cadeira vazia. Sentou e disse:
--Bernie Despain deu o fora ontem de noite com o
dinheiro que ganhei com Peggy OToole.
O loiro arregalou os olhos.
Ned Beaumont continuou:
--Ele deixou atrás mil e duzentos dólares em notas
promissórias de Taylor Henry.
Os olhos do loiro se estreitaram repentinamente.
Ned Beaumont disse:
--Diz Lee que ele chamou Taylor sexta-feira e deu a
ele três dias pra acertar as contas.
Madvig tocou o queixo com as costas da mão.
--Quem é Lee?
--A garota de Bernie.
--Oh. -- Depois, como Ned Beaumont nada
dizia, Madvig perguntou: -- Que foi que ele
disse que fazia se Taylor não aparecesse?
--Eu não soube. -- Ned Beaumont pôs um
antebraço na mesa e curvou-se sobre ele para
o loiro. -- Me faça sub-xerife ou alguma coisa
assim, Paul.
40/372
--Pelo amor de Deus! -- exclamou Madvig,
piscando. -- Por que quer uma coisa dessas?
--Vai facilitar pra mim. Vou atrás desse cara, e
um distintivo pode evitar que eu me meta em
encrenca.
Madvig fitou com olhos preocupados o homem mais
jovem.
--O que está pressionando você tanto assim?
-- perguntou devagar.
--Três mil duzentos e cinqüenta dólares.
--Está bem -- disse Madvig, ainda falando de-
vagar --, mas alguma coisa já inquietava você
ontem de noite, antes de saber que tinham lhe
passado o calote.
Ned Beaumont moveu um braço, impaciente.
--Você espera que eu tropece em cadáveres sem pis-
car um olho? -- perguntou. -- Mas esqueça isso.
Não importa agora. O que importa é que preciso
apanhar esse cara. Tenho de apanhar. -- Tinha o
rosto pálido, endurecido, e a voz desesperadamente
séria. -- Escute, Paul: hão é só o dinheiro, embora
três mil e duzentos sejam um bocado, mas seria o
mesmo se fossem cinco mangos. Eu passo dois
meses sem ganhar uma aposta, e isso me chateia.
Pra que sirvo, se minha sorte foi embora? Aí eu fa-
turo, ou acho que faturo, e fico bem de novo. Posso
41/372
tirar o rabo do meio das pernas e sentir que sou
uma pessoa novamente, e não uma coisa que anda
levando pontapés por aí. O dinheiro é muito im-
portante, mas não é o essencial. Esse negócio de
perder, perder e perder me deixa assim. Entende
isso? Está me deixando fulo. E aí, quando acho que
cansei o azar, esse cara dá uma dessas em cima de
mim. Não posso suportar. Se suportar, estou frito,
minha coragem me abandonou. Não vou tolerar.
Vou atrás dele. Vou de qualquer jeito, mas você
pode amaciar um bocado o caminho me arrumando
isso.
Madvig estendeu uma mãozona aberta e empurrou del-
icadamente o rosto contraído de Ned Beaumont.
--Ora, diabos, Ned! É claro que arrumo. O único
problema é que não quero você metido em coisas,
mas... diabos!... se é desse jeito... acho que o melhor
seria tornar você investigador especial do gabinete
do Promotor Distrital. Assim você fica sob o
comando de Farr, e ele não mete o nariz.
A sra. Madvig levantou-se com um prato em cada mão.
--Se não fosse uma regra minha não me meter nos
assuntos dos homens -- disse severamente --, eu
certamente teria alguma coisa a dizer a vocês dois,
correndo por aí com Deus sabe que espécie de
42/372
negócios escusos, que podem meter vocês sabe
Deus em que tipo de encrenca.
Ned Beaumont deu um sorrisinho até que ela deixou a
sala com os pratos. Depois parou de rir e disse:
--Quer arrumar isso agora, pra que hoje de
tarde esteja tudo pronto?
--Claro -- concordou Madvig, levantando-se.
-- Vou telefonar pra Farr. E se tiver mais al-
guma coisa que eu possa fazer, você sabe.
Ned Beaumont disse: -- Claro -- e Madvig saiu.
Jung entrou e começou a tirar a mesa.
--A srta. Opal está dormindo? -- perguntou
Ned Beaumont.
--Não, senhor, ac-ibo de levar chá e torradas
pra ela.
--Vá perguntar a ela se posso aparecer por um
minuto.
--Sim, senhor, claro que vou, sim.
Depois que a negra saiu, Ned Beaumont levantou-se da
mesa e começou a andar de um lado para outro da sala.
Manchas rubras aqueciam-lhe as faces logo abaixo dos
pômulos. Parou de andar quando Madvig entrou.
--Tudo certo -- disse Madvig. --Se Farr não esiver
lá, fale com Barbero. Ele arruma você, e você não
precisa dizer nada a ele.
43/372
Ned Beaumont disse: -- Obrigado -- e olhou a mulata
na entrada.
Ela disse:
--Ela pediu pra subir.
9
O quarto de Opal Madvig era quase todo azul. Ela,
metida num roupão azul e prata, recostava-se nos
travesseiros da cama quando Ned Beaumont entrou.
Tinha os olhos azuis como o pai e a avó, ossos com-
pridos como os deles, e uma pele rosada de textura
ainda infantil. Seus olhos estavam vermelhos.
Ela largou um pedaço de torrada na bandeja em seu
colo, estendeu a mão para Ned Beaumont, mostrou-lhe
uns dentes fortes num sorriso e disse:
--Olá, Ned.
Não tinha a voz firme.
Ele não pegou a mão dela. Bateu de leve nas costas da
mão, dizendo:
--Olá, pequena. -- E sentou-se no pé da cama.
Cruzou as pernas compridas e tirou um
charuto do bolso. -- A fumaça incomoda a
cabeça?
--Oh, não -- disse.
44/372
Ele assentiu, como para si mesmo, tornou a pôr o
charuto no bolso e abandonou o seu ar despreocupado.
Virou-se na cama para olhá-la mais diretamente. Tinha
os olhos úmidos de simpatia, e a voz rouca.
--Eu sei, garota, é duro.
Ela o olhava fixamente, com olhos de bebê.
--Não, na verdade grande parte da dor de cabeça já
passou, e de qualquer forma não era tão terrível as-
sim. -- A voz não estava mais insegura.
Ele sorriu para ela com os lábios finos e perguntou:
--Quer dizer então que eu sou um estranho agora?
Ela armou uma pequena ruga entre as sobrancelhas.
--Não sei do que você está falando, Ned.
Com a boca e os olhos duros ele respondeu:
--Estou falando de Taylor.
Embora a bandeja se mexesse um pouco nos joelhos
dela, nada em seu rosto mudou.
--É, mas... você sabe... eu não via ele há meses,
desde que papai fez...
Ned Beaumont levantou-se abruptamente. Disse:
--Está bem -- por cima dos ombros, adiantando-se
para a porta.
A garota na cama não disse coisa alguma.
Ele saiu do quarto e desceu a escada.
Paul Madvig, vestindo o casaco no saguão embaixo,
disse:
45/372
--Tenho de ir ao escritório para ver aqueles con-
tratos de esgotos. Deixo você no gabinete de Farr, se
quiser.
Ned Beaumont já tinha dito: -- Ótimo -- quando a voz
de Opal chegou até eles, lá de cima.
--Ned, oh, Ned!
--Já vou indo! -- ele respondeu gritando, e de-
pois, para Madvig: -- Não espere, se está com
pressa.
Madvig olhou o relógio.
--Tenho de correr. Vejo você no Club hoje de noite.
Ned Beaumont disse: -- Hum-hum -- e tornou a subir a
escada.
Opal empurrara a bandeja para o pé da cama.
--Feche a porta. -- Depois que ele fechou, ela
se afastou na cama para lhe dar lugar, para
que se sentasse a seu lado. Depois perguntou:
-- Por que está agindo desse jeito?
--Não deve mentir pra mim -- disse
gravemente, sentando-se.
--Mas, Ned! -- Os olhos azuis dela tentavam
sondar os negros dele.
Ele perguntou:
--Quanto tempo faz que viu Taylor?
--Você quer dizer falar com ele? -- O rosto e a
voz dela eram francos. -- Faz semanas e...
46/372
Ele se levantou abruptamente. Disse: -- Está certo --
por sobre o ombro, encaminhando-se para a porta.
Ela deixou que ele chegasse a um passo da porta antes
de chamar:
--Oh, Ned, não torne a coisa tão difícil pra mim.
Ele se virou lentamente, o rosto sem expressão.
--Não somos amigos? -- ela perguntou.
--Claro -- respondeu prontamente, sem
entusiasmo. -- Mas é difícil lembrar isso
quando a gente mente pro outro.
Ela se virou de lado na cama, repousando a face no
travesseiro de cima, e começou a chorar. Não emitia
som algum. As lágrimas caíam no travesseiro e form-
avam uma mancha acinzentada.
Ned voltou à cama, tornou a sentar-se ao lado dela e
puxou-lhe a cabeça do travesseiro para o seu ombro.
Opal ficou chorando ali por vários minutos. Depois,
começou a dizer palavras abafadas contra o paletó dele:
--Vo-você sabia que eu estava me encontrando
com ele?
--Sabia.
Ela se endireitou, alarmada.
--Papai sabia?
--Não creio. Não sei.
Ela baixou a cabeça no ombro dele, e suas palavras
seguintes foram abafadas:
47/372
--Oh, Ned, estive com ele ontem de tarde, a tarde
toda!
Ele apertou os braços em torno dela, mas nada disse.
Após outra pausa, ela perguntou:
--Quem... quem você acha que pode ter feito aquilo
com ele?
Ele piscou.
Ela ergueu a cabeça de repente. Já não havia fraqueza
nela agora.
--Você sabe, Ned?
Ele hesitou, umedeceu os lábios, murmurou:
--Acho que sei.
--Quem foi? -- ela perguntou ferozmente.
Ele tornou a hesitar, evitando os olhos dela, e depois
fez-lhe uma pergunta, vagarosamente:
--Promete guardar pra si mesma até chegar a
hora?
--Prometo -- se apressou a responder, mas
quando ele ia falar ela o deteve, agarrando o
ombro mais próximo com ambas as mãos. --
Espere. Não prometo se você não me prometer
que eles não escaparão, que serão apanhados e
punidos.
--Não posso prometer isso. Ninguém pode.
Ela o encarou, mordendo o lábio, e disse:
48/372
--Está bem então, eu prometo de qualquer
forma. Quem foi?
--Ele algum dia lhe disse que devia a um
jogador chamado Despain mais dinheiro do
que podia pagar?
--Esse... esse Despain...?
--Eu penso que sim, mas algum dia ele lhe
falou alguma coisa sobre a dívida... ?
--Eu sabia que ele estava numa encrenca. Ele
me disse isso, mas não disse o que era, a não
ser que ele e o pai tinham tido uma briga por
causa de um certo dinheiro, e que estava...
"desesperado", foi o que disse.
--Mencionou Despain?
--Não. Que foi? Por que acha que esse tal
Despain fez isso?
--Ele estava com mais de mil dólares em notas
promissórias de Taylor e não podia resgatar.
Deixou a cidade às pressas ontem de noite. A
polícia está à procura dele agora. -- Baixou a
voz, olhando um pouco enviesado para ela. --
Você faria uma coisa pra ajudar a prender e
condenar esse cara?
--Faria. O quê?
--Me refiro a uma coisa meio baixa. Sabe, vai
ser duro condenar ele, mas, se for culpado,
49/372
você faria alguma coisa que pudesse ser
meio... bem... feia... pra garantir que ele fosse
grampeado?
--Qualquer coisa -- respondeu.
Ele deu um suspiro e esfregou os lábios.
--Que é que você quer que eu faça? -- ela per-
guntou ansiosa.
--Quero que me consiga um dos chapéus dele.
--Quê?
--Preciso de um dos chapéus de Taylor --
disse Ned Beaumont. Tinha o rosto corado. --
Pode me conseguir um?
Ela estava pasma.
--Mas pra quê, Ned?
--Pra garantir que Despain será grampeado. É
só o que posso" dizer a você no momento.
Pode me arranjar ou não?
--Eu... eu acho que posso, mas gostaria que
você...
--Quando?
--Hoje de tarde, acho -- ela disse --, mas
gostaria...
Ele tornou a interrompê-la.
--Você não precisa saber nada a respeito.
Quanto menos souberem, melhor, e o mesmo
se aplica à obtenção do chapéu por você. --
50/372
Passou o braço em volta dela e puxou-a para
si. -- Você amava realmente ele, pequena, ou
era só porque seu pai...
--Eu realmente amava ele -- ela soluçou. --
Tenho toda certeza... tenho certeza de que
amava.
2
O TRUQUE DO CHAPÉU
1
Ned Beaumont, usando um chapéu que não lhe as-
sentava bem, seguiu o carregador que levava suas
malas pelo Terminal Grand Central em direção a uma
saída para a rua Quarenta e Dois, e dali para um táxi
marrom. Deu uma gorjeta ao carregador, subiu no táxi,
deu ao motorista o nome de um hotel nos arredores da
Broadway, na Quadra dos Quarenta, e recostou-se
acendendo um charuto. Mascava mais que fumava o
charuto, enquanto o táxi se arrastava através do tráfego
que se dirigia aos teatros, em direção à Broadway.
Na avenida Madison, um táxi verde dobrando com o
sinal fechado, bateu de cheio no marrom de Ned
Beaumont, jogando-o contra um carro estacionado no
meio-fio, que o fez cair para um canto, debaixo de uma
chuva de estilhaços de vidro.
Ele se aprumou e saiu no meio da multidão que se
acotovelava. Disse que não estava ferido. Respondeu às
perguntas de um policial. Encontrou o chapéu que não
era exatamente de seu número e o pôs na cabeça.
52/372
Mandou transferir suas malas para outro táxi, deu o
nome do hotel ao segundo motorista e encolheu-se
num canto, pálido e trêmulo enquanto durou o resto da
corrida.
Depois de registrar-se no hotel, pediu sua corres-
pondência e deram-lhe dois recados telefônicos e dois
envelopes lacrados, sem selos do correio.
Ele pediu ao boy que o levou ao seu quarto que lhe ar-
ranjasse um quartilho de uísque. Quando o rapaz se foi,
girou a chave na fechadura e leu os recados telefônicos.
Ambos estavam datados daquele dia, um das 4,50 da
tarde, outro das 8,5 da noite. Ele olhou o relógio de
pulso. Eram 8,45 da noite.
O primeiro recado dizia: No Gargoyle. O último dizia:
No Tom & Jerry's. Telefono depois. Ambos estavam
assinados: Jack.
Ele abriu um dos envelopes. Continha duas folhas de
papel cobertas com uma vigorosa letra masculina, data-
das do dia anterior.
Ela está hospedada no Matin, quarto 1211, registrada
como Elleen Dale, de Chicago. Deu alguns telefonemas
do depósito, e contatou um homem e uma moça que
moram na 30 L. Foram a um monte de lugares, em
sua maioria bares clandestinos, provavelmente à pro-
cura dele, mas não parecem ter tido muita sorte. Meu
quarto é o 734. O homem e a moça chamam-se Brook.
53/372
A folha de papel no outro envelope, coberta com a
mesma letra, era datada daquele dia.
Vi Deward hoje de manhã, mas ele disse que não sabia
se Bernie estava na cidade. Telefono mais tarde.
Ambas as mensagens estavam assinadas: Jack.
Ned Beaumont lavou-se, pôs nova roupa de baixo
tirada das malas, e acendia um charuto quando o boy
lhe trouxe seu quartilho de uísque. Ele pagou, pegou
uma coqueteleira no banheiro e puxou uma poltrona
para perto da janela do quarto. Ficou ali sentado, fu-
mando, bebendo e fitando o outro lado da rua, até que
o telefone tocou.
-- Alô? -- disse. -- Sim, Jack... Ainda agora... Onde?
Claro... Claro, estou a caminho.
Tomou outra dose de uísque, pôs o chapéu que não era
exatamente do seu número, pegou o casaco que tinha
jogado sobre o encosto de uma poltrona, vestiu-o,
bateu num dos bolsos, apagou a luz e saiu.
Eram nove e dez.
2
Passando por uma dupla porta envernizada, sob um
anúncio elétrico que dizia Tom & Jerry's, na frente do
térreo de um prédio que ficava à vista da Broadway,
Ned Beaumont entrou num corredor estreito. Uma
54/372
porta de uma só folha, de vaivém, na parede esquerda
do corredor, que dava para um pequeno restaurante.
Um homem numa mesa de canto levantou-se e ergueu
um indicador para ele. Era de estatura média, jovem e
elegante, com um rosto magro e moreno.
Ned Beaumont caminhou até ele.
--Olá, Jack -- disse, ao apertarem-se as mãos.
--Estão lá em cima, a garota e os tais Brook --
disse-lhe Jack. -- Aqui você deve ficar numa
boa posição, sentado de costas pra escada. Eu
localizo eles se saírem, ou se ele entrar, e tem
muita gente no meio pra impedir que ele veja
você.
Ned Beaumont sentou-se à mesa de Jack.
--Estão"esperando por ele?
Jack moveu os ombros.
--Não sei, mas estão de tocaia, pra alguma coisa.
Quer alguma coisa pra comer? Não se arranja nada
pra beber aqui embaixo.
Ned Beaumont disse:
--Eu quero uma bebida. Não podemos arran-
jar um lugar lá em cima onde eles não vejam a
gente?
--Não é um estabelecimento muito grande --
afirmou Jack. -- Tem uns dois reservados lá
em cima onde a gente podia ficar escondido
55/372
deles, mas se ele aparecer, é provável que veja
a gente.
--Vamos arriscar. Eu quero uma bebida e
tanto faz falar com ele aqui mesmo, se ele
aparecer.
Jack olhou curiosamente para Ned Beaumont, depois
desviou os olhos e disse:
--Você é quem manda. Vou ver se um dos reserva-
dos está vazio. -- Hesitou, moveu os ombros de
novo e deixou a mesa.
Ned Beaumont virou-se na cadeira para observar o
jovem elegante ir até a escada e subir. Ficou olhando o
pé da escada até que o jovem voltou. Do segundo de-
grau, Jack chamou-o. Quando Ned Beaumont o al-
cançou, ele disse:
--O melhor deles está vazio, e ela está de costas, de
modo que você pode dar uma olhada de lado pros
Brook ao passar.
Subiram. Os reservados -- mesas e bancos dentro de
anteparos de madeira à altura do peito -- ficavam à
direita do alto da escada. Eles tinham de se virar e ol-
har através de um largo arco e além do bar para ter
uma visão do restaurante do segundo andar.
Ned Beaumont olhou bem para as costas de Lee
Wilshire, que usava um vestido castanho-claro deco-
tado e um chapéu marrom. O casaco de peles marrom
56/372
pendia do encosto da cadeira. Ele olhou os compan-
heiros dela. À esquerda, sentava-se um sujeito pálido,
de nariz adunco e queixo comprido, um animal pred-
atório de uns quarenta anos. Na frente dela, uma ga-
rota carnuda e ruiva, de olhos bastante separados, que
ria.
Ned Beaumont acompanhou Jack até o reservado.
Sentaram-se em lados opostos da mesa. Ned Beaumont
dava as costas para o restaurante, perto da ponta do
banco, para aproveitar inteiramente a amurada de
madeira. Tirou o chapéu, mas não o casaco.
Veio um garçom. Ned Beaumont disse:
-- Uísque.
Jack disse:
--Rickey.
Jack abriu um maço de cigarros, tirou um e, olhando-o,
disse:
--O jogo é seu, e estou trabalhando pra você,
mas isso aqui não é um lugar lá muito bom pra
enfrentar ele, se ele tiver amigos por aqui.
--Tem?
Jack pôs o cigarro no canto da boca, fazendo-o mover-
se como um bastão quando falava.
--Se eles estão esperando por ele aqui, é que pode
ser um dos redutos dele.
57/372
O garçom aproximou-se com as bebidas. Ned Beau-
mont esvaziou o seu copo imediatamente e queixou-se:
--Não deu pra nada.
--É, acho que sim -- disse Jack, e tomou um
gole do seu copo. Acendeu o cigarro e tomou
outro gole.
--Bem -- disse Ned Beaumont --, vou partir
pra cima dele assim que ele dê as caras.
--Muito justo. -- O rosto bonito e moreno de
Jack nada demonstrava. -- E eu, que faço?
Ned Beaumont disse:
--Deixe comigo -- e chamou o garçom.
Pediu um scotch duplo, e Jack outro rickey. Ned Beau-
mont esvaziou o seu copo assim que ele chegou. Jack
deixou que levassem sua primeira dose pela metade e
bebericou da segunda. Ned Beaumont acabou tomando
outro scotch duplo e mais outro, não dando a Jack
tempo de acabar nenhuma de suas doses.
E então Bernie Despain surgiu subindo a escada.
Jack, olhando o alto da escada, viu o jogador e pisou o
pé do companheiro por baixo da mesa. Ned Beaumont,
erguendo o olhar de seu copo vazio, tornou-se subita-
mente duro e frio nos olhos. Espalmou a mão sobre a
mesa e levantou-se. Saiu do reservado e postou-se di-
ante de Despain. Disse:
--Quero meu dinheiro, Bernie.
58/372
O homem que subia atrás de Despain contornou-o e
golpeou com muita força o corpo de Ned Beaumont
com o punho esquerdo. Não era um homem alto, mas
tinha os ombros maciços e os punhos pareciam globos
enormes.
Ned Beaumont foi jogado para trás, contra a divisória
do reservado. Curvou-se para a frente e seus joelhos
cederam, mas ele não caiu. Vacilou ali por um instante.
Tinha os olhos vidrados e a pele assumira uma color-
ação esverdeada. Disse alguma coisa que ninguém po-
deria entender e dirigiu-se ao alto da escada.
Desceu a escada, com as pernas bambas, pálido e sem
chapéu. Atravessou o restaurante de baixo, chegou à
rua e ao meio-fio, onde vomitou. Depois disso,
encaminhou-se para um táxi que estava parado a uns
cinco metros, entrou nele e deu ao chofer um endereço
em Greenwich Village.
3
Ned Beaumont saltou do táxi na frente de uma casa
cujo porão, com a porta aberta embaixo de uns degraus
marrom, despejava na rua escura barulho e luz. Passou
pela entrada e achou-se numa sala estreita, onde dois
barmen de paletó branco serviam a uma dúzia de
59/372
homens e mulheres, e dois garçons se movimentavam
entre mesas às quais se sentavam os clientes.
O barman mais calvo disse:
--Deus do céu, Ned!
Largou uma mistura cor-de-rosa que estava batendo
num copo comprido e estendeu a mão molhada por
cima do balcão.
Ned Beaumont disse:
--Olá, Mack -- e apertou a mão molhada.
Um dos garçons aproximou-se para apertar a mão de
Ned Beaumont, e depois um italiano redondo e corado,
a quem Ned Beaumont chamou de Tony. Quando
acabaram esses cumprimentos, Ned Beaumont disse
que pagaria uma bebida.
--Pagar uma ova -- disse Tony. Voltou-se para o
balcão e raspou-o com um copo de coquetel vazio.
-- Esse cara não paga nem um copo d'água esta
noite -- disse, quando conseguiu atrair a atenção
dos barmen. -- O que ele quiser, é por conta da
casa.
Ned Beaumont disse:
--Tudo bem pra mim, contanto que eu peça. Um
scotch duplo.
Duas garotas sentadas a uma mesa na outra extremid-
ade dobalcão levantaram-se e gritaram:
--Ora viva, Ned!
60/372
Ele disse a Tony:
--Volto num minuto -- e foi até a mesa das garotas.
Elas o abraçaram, fizeram-lhe perguntas,
apresentaram-no aos homens que as acompanhavam e
abriram lugar para ele à mesa.
Ele se sentou e respondeu às perguntas, dizendo que
voltara a Nova Iorque apenas para uma breve visita, e
não para ficar, e que aquilo era um scotch duplo.
Pouco mais das três horas da manhã, levantaram-se da
mesa, deixaram o estabelecimento de Tony e foram
para outro quase exatamente igual, a três quadras de
distância, onde se sentaram a uma mesa que dificil-
mente poderia se diferenciar da primeira e beberam a
mesma bebida que bebiam antes.
Um dos homens saiu às três e meia. Não se despediu
dos outros, nem eles dele. Dez minutos depois, Ned
Beaumont, o outro homem e as duas garotas saíram.
Entraram num táxi na esquina e foram para um hotel
perto da praça Washington, onde o outro homem e
uma das garotas saltaram.
A garota restante levou Ned Beaumont, que a chamava
de Fedink, para um apartamento na rua Setenta e Três.
O apartamento estava muito abafado. Quando abri-
ram a porta, receberam uma baforada de ar quente.
Depois de dar três passos pela sala de estar adentro, ela
suspirou e caiu no chão.
61/372
Ned Beaumont fechou a porta e tentou despertá-la,
mas não conseguiu. Com dificuldade, carregou-a,
arrastando-a para o quarto ao lado e a pôs numa cama
coberta de chita. Tirou parte das roupas dela, encon-
trou alguns cobertores para cobri-la e abriu uma janela.
Depois foi ao banheiro e vomitou. Em seguida, re-
tornou à sala de estar, deitou-se no sofá com roupa e
tudo, e adormeceu.
4
Um telefone, tocando junto à sua cabeça, acordou-o.
Ele abriu os olhos, pôs os pés no chão, virou de lado e
olhou a sala em volta. Quando viu o telefone, fechou os
olhos e relaxou.
O telefone continuava tocando. Ele gemeu, tornou a ab-
rir os olhos e contorceu-se até libertar o braço esquerdo
de debaixo do corpo. Levou o pulso para perto dos ol-
hos e olhou o relógio, meio vesgo. O cristal do mecan-
ismo se fora e os ponteiros haviam parado às doze para
as doze.
Ned Beaumont contorceu-se de novo no sofá, até
erguer-se sobre um dos cotovelos, segurando a cabeça
com a mão esquerda. O telefone ainda tocava. As luzes
estavam acesas. Por uma porta aberta ele via os pés de
Fedink, debaixo das cobertas, na ponta da cama.
62/372
Tornou a gemer e sentou-se, passando os dedos por
entre os cabelos desgrenhados e comprimindo as têm-
poras entre as palmas das mãos. Tinha os lábios secos e
pardacentos. Passou a língua por eles e fez uma careta
de repugnância. Depois levantou-se, tossindo um pou-
co, tirou as luvas e o casaco, jogou-os no sofá e entrou
no banheiro.
Quando saiu, foi até a cama e olhou para Fedink. Ela
dormia profundamente, de cara para baixo, um braço
dentro de uma manga azul, dobrado sobre a cabeça. O
telefone parara de tocar. Ele ajeitou a gravata e voltou à
sala de estar.
Viu três cigarros Murad numa caixa aberta em cima da
mesa entre duas poltronas. Pegou um dos cigarros,
murmurou "Indiferente" sem humor, encontrou uma
caixa de fósforos, acendeu o cigarro e foi até a cozinha.
Espremeu o suco de três laranjas num copo comprido e
bebeu-o. Fez café e tomou duas xícaras.
Quando saía da cozinha, Fedink perguntou numa voz
dolorosamente chã:
--Onde está Ted?
Seu único olho visível estava meio aberto.
Ned Beaumont aproximou-se dela:
--Quem é Ted? -- perguntou.
--Aquele cara com quem eu estava.
--Você estava com alguém? Como vou saber?
63/372
Ela abriu a boca e emitiu um arroto desagradável ao
fechá-la.
--Que horas são?
--Também não sei. Algum momento de um
dia ainda claro.
Ela esfregou o rosto no travesseiro de chita e disse:
--Acabei me mostrando uma dona legal
mesmo, prometendo casar com ele ontem e
deixando ele pra trazer o primeiro vagabundo
que encontro pra casa comigo. -- Abriu e
fechou a mão que tinha sobre a cabeça. -- Ou
não estou em casa?
--Bem, de qualquer modo você tinha a chave
-- disse Ned Beaumont. -- Quer um suco de
laranja e um café?
--Não quero merda nenhuma, a não ser mor-
rer. Quer ir embora, Ned, e nunca mais voltar?
--Vai ser duro pra mim -- ele disse mal-
humorado --, mas vou tentar.
Pôs o casaco e as luvas, tirou um gorro muito amassado
de um dos bolsos do casaco, colocou-o na cabeça e
deixou o apartamento.
5
64/372
Meia hora depois, Ned Beaumont batia na porta do
quarto 734 de seu hotel. Afinal a voz de Jack,
sonolenta, soou do outro lado.
--Quem é?
--Beaumont.
--Oh -- sem entusiasmo --, tudo bem.
Jack abriu a porta e acendeu as luzes. Usava pijamas de
bolinhas verdes. Estava descalço. Tinha os olhos em-
botados, o rosto vermelho de sono. Bocejou, assentiu
com a cabeça e voltou para a cama, onde se estendeu de
costas olhando para o teto. Depois perguntou, sem
muito interesse:
--Como está você esta manhã?
Ned Beaumont fechara a porta. Estava parado entre ela
e a cama, olhando mal-humorado o homem deitado.
Perguntou:
--Que aconteceu depois que eu fui embora?
--Nada. -- Jack tornou a bocejar. -- Ou quer
saber o que foi que eu fiz? -- Não esperou uma
resposta. -- Saí e me plantei do outro lado da
rua até eles saírem, Despain, a garota e o cara
que acertou você saíram. Foram até o Buck-
man, na rua Quarenta e Oito. É onde Despain
está escondido... apartamento 939... com o
nome de Barton Dewey. Fiquei por ali até de-
pois das três, e depois caí fora. Eles ainda
65/372
estavam lá, a não ser que tivessem me passado
a perna. -- Acenou com a cabeça, ligeira-
mente, em direção a um canto do quarto. --
Seu chapéu está na cadeira ali. Pensei que po-
dia salvar ele pra você.
Ned Beaumont foi até a poltrona e pegou o chapéu que
não era exatamente do seu número. Enfiou o gorro
amassado no bolso do casaco e pôs o chapéu na cabeça.
Jack disse:
--Tem um pouco de gim em cima da mesa, se você
quiser uma dose.
Ned Beaumont disse:
--Não, obrigado. Você tem uma arma?
Jack deixou de olhar para o teto. Sentou na cama,
espreguiçou-se, bocejou pela terceira vez e perguntou:
--Que imagina que vai fazer?
Sua voz não revelava nada além de uma cortês
curiosidade.
--Vou ver Despain.
Jack encolhera os joelhos, cruzando as mãos em torno
deles, e sentava-se um pouco curvado para a frente, fit-
ando os pés da cama. Disse devagar:
--Não acho que você deva, não neste
momento.
--Eu preciso, neste momento.
66/372
Sua voz fez com que Jack o olhasse. O rosto de Ned
Beaumont estava num cinza-amarelado doentio. Os ol-
hos turvos, cercados de olheiras, não se abriam o sufi-
ciente para mostrar as escleróticas. Os lábios pareciam
secos e mais grossos que de hábito.
--Passou a noite toda acordado? -- perguntou
Jack.
--Dormi um pouco.
--Bêbado?
--Sim, mas e aquela arma?
Jack jogou as pernas para fora das cobertas e pôs os pés
no chão.
--Por que não dorme um pouco primeiro? Depois a
gente pode ir atrás deles. Você não está em forma
agora.
Ned Beaumont disse:
--Eu vou agora.
Jack disse:
--Está bem, mas está errado. Sabe que eles
não são bebês, pra gente partir pra cima deles
de pernas bambas. Eles não estão brincando.
--Onde está a arma? -- perguntou Ned
Beaumont.
Jack levantou-se e começou a desabotoar o paletó do
pijama.
Ned Beaumont disse:
67/372
--Me dê a arma e volte pra cama. Eu vou.
Jack abotoou o botão que acabara de desabotoar e se
meteu na cama.
--A arma está na gaveta de cima. Tem mais balas
também, se você quiser. -- Virou-se de lado e
fechou os olhos.
Ned Beaumont encontrou a arma, colocou-a no bolso
traseiro da calça e disse:
--Vejo você depois.
Apagou as luzes e saiu.
6
O Buckman era um prédio de apartamentos quadrado,
amarelo, que ocupava a maior parte da quadra onde
ficava. Dentro, Ned Beaumont disse que queria falar
com o sr. Dewey. Quando lhe perguntaram o seu nome,
respondeu: -- Ned Beaumont.
Cinco minutos depois, deixava um elevador e camin-
hava num longo corredor, na direção de uma porta
onde Bernie se achava parado.
Despain era um homenzinho baixo e musculoso, com
uma cabeça grande demais para o corpo. E os cabelos
compridos, fofos e ondulados exageravam ainda mais o
tamanho da cabeça, até fazê-la parecer uma deformid-
ade. O rosto moreno apresentava feições graúdas, com
exceção dos olhos, e fortes vincos sulcavam-lhe a testa
68/372
e desciam das narinas até abaixo da boca. Numa das
faces, via-se uma cicatriz levemente avermelhada. O
terno azul estava cuidadosamente passado, e ele não
usava jóias.
Parado na porta, sorrindo forçadamente, disse:
--Bom dia, Ned.
--Quero falar com você, Bernie.
--Era o que eu achava. Assim que deram seu
nome pelo telefone, eu disse pra mim mesmo:
"Aposto que ele quer falar comigo".
Ned Beaumont nada disse. Tinha o rosto amarelo,
reprimido.
O sorriso de Despain alargou-se mais.
--Bem, meu rapaz, não precisa ficar parado aí.
Entre.
Pôs-se de lado.
A porta dava para um pequeno hall. Por uma porta
mais à frente, que estava aberta, viam-se Lee Wilshire e
o homem que batera em Ned Beaumont. Haviam
parado de arrumar duas malas de viagem para olhá-lo.
Ele entrou.
Despain seguiu-o, fechou a porta do corredor e disse:
--O "Garoto" é meio apressado, e quando você par-
tiu pra mim daquele jeito, ele achou que você talvez
estivesse procurando encrenca, sabe? Pintei o diabo
69/372
com ele, e talvez se você falar com ele, ele até peça
desculpas.
O Garoto disse alguma coisa num murmúrio a Lee
Wilshire, que fuzilava Ned Beaumont com os olhos. Ela
deu uma risada má e respondeu:
--É, um esportista até o fim.
Bernie Despain disse:
--Pode ir entrando, sr. Beaumont. Já conhece o
pessoal, não conhece?
Ned Beaumont adiantou-se para dentro do quarto onde
estavam Lee e o Garoto.
O Garoto perguntou:
--Como vai a barriga?
Ned Beaumont não disse coisa alguma.
Bernie Despain exclamou:
--Deus! Prum cara que diz que veio aqui con-
versar, você conversa menos que qualquer um.
--Quero conversar com você -- disse Ned
Beaumont. -- Precisamos ter toda essa gente
em volta?
--Eu preciso -- respondeu Despain. -- Você,
não. Pode se livrar deles simplesmente saindo
e indo cuidar de seus próprios negócios.
--Tenho negócios aqui.
--Correto, tinha alguma coisa sobre um din-
heiro. -- Despain sorriu para o Garoto. -- Não
70/372
tinha alguma coisa sobre um dinheiro,
Garoto?
O Garoto estava agora na porta pela qual Ned Beau-
mont entrara no quarto.
--Alguma coisa assim -- disse numa voz áspera --,
mas esqueci o que era.
Ned Beaumont tirou o casaco e pendurou-o no encosto
de uma espreguiçadeira marrom. Disse:
--Não se trata de meus negócios desta vez. Estou...
Me deixe ver. -- Tirou um papel do bolso interno do
paletó, desdobrou, olhou-o e disse: -- Estou aqui
como investigador especial do gabinete do Promo-
tor Distrital.
Por uma breve fração de segundo, o brilho nos olhos de
Despain embotou-se, mas ele disse imediatamente:
--Ora, se você não está subindo na vida! Da última
vez que vi você, andava por aí quebrando galhos pra
Paul.
Ned Beaumont tornou a dobrar o papel e a recolocá-lo
no bolso.
Despain disse:
--Bem, vá em frente, investigue alguma coisa
pra nós... qualquer coisa... só pra mostrar à
gente como é que se faz. -- Sentou-se de frente
para Ned Beaumont, balançando a cabeça
grande demais. -- Não vai me dizer que fez
71/372
todo esse caminho até Nova Iorque pra me
perguntar sobre o assassinato de Taylor
Henry?
--É.
-- Isso é muito ruim. Eu podia ter poupado a viagem
pra você. -- Acenou com uma mão para as malas no
chão. -- Assim que Lee me contou do que se tratava,
comecei a fazer as malas pra voltar e rir de sua arapuca.
Ned Beaumont recostou-se confortavelmente na pol-
trona. Tinha uma mão às costas.
--Se é uma arapuca, foi Lee quem armou. A
polícia conseguiu a muamba com ela.
--Foi -- ela disse furiosa -- quando tive de en-
tregar porque você mandou eles lá, seu
bastardo.
Despain disse:
--Ho-ho, Lee é uma frangota burra, está certo,
mas aquelas notas não significam nada. Elas...
--Eu sou uma frangota burra, sou? -- Lee grit-
ou indignada. -- Não vim até aqui pra avisar
você, depois que você fugiu com toda peça fe-
dorenta de...
--É -- Despain concordou brincando --, e
vindo aqui você mostrou exatamente como é
burra, porque trouxe esse cara direto pra mim.
72/372
--Se é assim que você pensa, estou muito sat-
isfeita por ter dado à polícia aquelas notas
promissórias. Que acha disso?
Despain disse:
--Vou lhe dizer exatamente o que penso disso de-
pois que nossa visita for embora. -- Voltou-se para
Ned Beaumont. -- Então o honesto Paul Madvig es-
tá deixando você soltar os cachorros em cima de
mim, hem?
Ned Beaumont sorriu.
--Ninguém armou nada contra você, Bernie, e
sabe disso. Lee nos deu uma pista e o resto nós
juntamos a ela.
--Tem mais alguma coisa, além do que ela deu
a vocês?
--Muito.
--Quê?
Ned Beaumont tornou a sorrir.
--Tem um monte de coisas. Eu podia dizer a você,
Bernie, que não gostaria de falar diante de uma
multidão.
Despain disse:
--Maluco!
O Garoto falou da porta a Despain em sua voz áspera:
--Vamos chutar esse sapo pra fora da lata dele
e ir andando.
73/372
--Espere -- disse Despain. Depois armou uma
carranca e fez uma pergunta a Ned Beaumont:
-- Tem uma ordem de prisão contra mim?
--Bem, eu não...
--Sim ou não? -- O humor fanfarrão de
Despain se fora.
Ned Beaumont disse devagar:
--Não que eu saiba.
Despain levantou-se e empurrou sua poltrona para
trás.
--Então vá dando o fora daqui e depressa, antes que
eu deixe o Garoto tirar outra casquinha de você.
Ned Beaumont se levantou. Pegou seu casaco. Tirou o
gorro do bolso do casaco e, segurando-o com uma mão,
o casaco no outro braço, disse seriamente:
--Você vai se arrepender.
Foi para a saída com toda dignidade. A áspera risada do
Garoto e a aguda vaia de Lee o acompanharam.
7
Ao sair do Buckman, Ned Beaumont desceu a rua em
passo apressado. Tinha os olhos reluzentes no rosto
cansado, e os bigodes negros retorciam-se acima de um
trêmulo sorriso.
Na primeira esquina, deu de cara com Jack. Perguntou:
--Que está fazendo aqui?
74/372
Jack disse:
--Ainda estou trabalhando pra você, até onde
sei, e por isso vim pra cá, pra ver se podia en-
contrar alguma coisa pra fazer.
--Ótimo. Arranje um táxi rápido pra gente.
Eles estão fugindo.
--É pra já -- e desceu a rua.
Ned Beaumont permaneceu na esquina. Dali podia ver
as entradas da frente e lateral do Buckman.
Em pouco tempo Jack voltou num táxi. Ned Beaumont
entrou, e disseram ao chofer onde estacionar.
--Que foi que você fez com eles? -- perguntou
Jack, quando pararam.
--Umas coisas.
--Oh.
Passaram-se dez minutos, e Jack, dizendo "Olhe", in-
dicou com um dedo um táxi que encostava na porta lat-
eral do Buckman.
O Garoto, carregando duas malas de viagem, deixou o
prédio primeiro, e depois, quando já estava no táxi,
Despain e a garota correram para juntar-se a ele. O táxi
partiu a toda.
Jack curvou-se para a frente e disse ao chofer o que
fazer. Correram atrás do outro táxi. Ziguezaguearam
por ruas iluminadas pelo sol da manhã, entraram por
um caminho tortuoso até chegarem finalmente a uma
75/372
decaída mansão de pedras na rua Quarenta e Nove
Oeste.
O táxi de Despain parou diante da casa, e mais uma vez
o Garoto foi o primeiro do trio a saltar na calçada. Ol-
hou rua acima e abaixo. Foi até a porta da frente e
abriu-a. Depois voltou ao táxi. Despain e a garota sal-
taram literalmente e entraram apressados na casa. O
Garoto seguiu-os com as bagagens.
--Fique aqui com o táxi -- disse Ned Beau-
mont a Jack.
--Que vai fazer?
--Tentar a sorte.
Jack balançou a cabeça.
--Este é outro lugar não recomendado pra se
procurar
encrenca -- disse.
Ned Beaumont disse:
--Se eu sair com Despain, você dá o fora. Pegue
outro táxi e vá vigiar o Buckman. Se eu não sair,
faça o que julgar melhor.
Abriu a porta do táxi e saltou. Tremia. Os olhos bril-
havam. Ignorou alguma coisa que Jack se curvou para
fora para dizer e atravessou correndo a rua até a casa
na qual os dois homens e a garota haviam entrado.
Marchou direto para os degraus da frente e pôs a mão
na maçaneta, que girou. A porta não estava trancada.
76/372
Ele a empurrou, abrindo-a, e após examinar um escuro
saguão entrou.
A porta bateu atrás dele, fechando-se, e um dos punhos
do Garoto deu-lhe na cabeça um soco de raspão que lhe
arrancou o gorro e o mandou voando contra a parede.
Ele se abaixou um pouco, tonto, quase com um joelho
no chão, e o outro punho do Garoto atingiu a parede
acima de sua cabeça.
Ned Beaumont arreganhou os dentes e deu um soco
nas virilhas do Garoto, um soco curto e duro que arran-
cou um rosnado do outro e o fez cair para trás, dando-
lhe tempo de se refazer antes que o adversário pudesse
vir em cima dele.
Um pouco mais além, no saguão, Bernie Despain
encostava-se na parede, a boca escancarada e fina, os
olhos estreitados reduzidos a pontos negros, dizendo
repetidas vezes numa voz lenta:
--Dê nele, Kid, dê nele...
Lee Wilshire não estava à vista.
Os dois socos seguintes do Garoto pegaram no peito de
Ned Beaumont, esmagando-o contra a parede e
fazendo-o tossir. O terceiro, que visava o seu rosto, ele
evitou. Depois afastou o Garoto de si: forçou o anteb-
raço contra a garganta dele, e o chutou na barriga. O
Garoto rugiu furiosamente e veio com ambos os pun-
hos, mas, Ned Beaumont teve tempo para enfiar a mão
77/372
no bolso traseiro da calça e sacar a arma de Jack. Mas
não teve tempo de fazer pontaria, e, com ela ainda
apontada para baixo, puxou o gatilho e conseguiu at-
ingir o Garoto na coxa direita. O outro berrou e caiu no
chão do saguão. E ali ficou, olhando Ned Beaumont de
baixo para cima, com olhos sanguinolentos e
assustados.
Ned Beaumont recuou dele, pôs a mão esquerda no
bolso da calça e falou a Bernie Despain:
--Vamos comigo. Quero conversar com você.
Tinha no rosto uma sombria determinação.
Ouviu passos que corriam no andar acima, em algum
ponto no fundo da casa uma porta se abriu, e vozes ex-
citadas ecoaram no saguão, mas não apareceu
ninguém.
Despain olhou por um longo instante para Ned Beau-
mont, como se horrivelmente fascinado. Depois, sem
uma palavra, passou por cima do homem caído no chão
e saiu da casa na frente do outro. Ned Beaumont pôs o
revólver no bolso do palfetó antes de descer os degraus
para a rua, mas sem largá-lo.
--Pra aquele táxi -- disse a Despain, indicando o
carro, do qual Jack saía. Quando chegaram lá, ele
disse ao chofer que os levasse a qualquer parte,
"simplesmente por aí, até eu dizer a você aonde ir".
78/372
Já estavam em movimento quando Despain recuperou
a voz.
--Isto é um assalto. Vou lhe dar o que você quiser
porque não quero ser morto, mas é simplesmente
um assalto.
Ned Beaumont deu uma risada desagradável e bal-
ançou a cabeça.
--Não esqueça que eu subi na vida e sou al-
guma coisa no gabinete do Promotor Distrital.
--Mas não existe acusação contra mim. Não
sou procurado. Você disse...
--Estava gozando você, Bernie, por meus
próprios motivos. Você é procurado.
--Porquê?
--Por matar Taylor Henry.
--Isso aí? Diabos, vou voltar e enfrentar isso.
Que é que vocês têm contra mim? Eu tinha al-
gumas notas promissórias dele, claro. E fugi
na noite em que ele foi assassinado, certo. E
apertei ele como o diabo porque ele não queria
resgatar elas, certo. Que tipo de acusação é
essa pra um advogado de primeira não re-
bater? Deus do céu, se eu deixei as notas numa
hora qualquer antes das nove e meia... pra
ficar com a história de Lee... isso não mostra
79/372
que eu não estava tentando receber naquela
noite?
--Não, e esse não é o único material que temos
contra você.
--É só o que podem ter -- disse Despain,
ansioso.
Ned Beaumont deu um sorriso de escárnio.
--Errado, Bernie. Lembra que eu tinha um
chapéu quando fui falar com você hoje de
manhã?
--Talvez. Acho que tinha.
--Lembra que eu tirei um gorro do bolso do
casaco e pus ele na cabeça?
Pasmo e temor começaram a surgir nos olhinhos do
homem moreno.
--Por Deus! E então? Onde quer chegar?
--Quero chegar à prova. Lembra que o chapéu
não assentava direito na minha cabeça?
A voz de Bernie Despain tornou-se rouca:
--Não sei, Ned. Pelo amor de Deus, que quer
dizer?
--Quero dizer que não me assentava direito
porque não era meu. Lembra que o chapéu
que Taylor usava quando foi morto não foi
encontrado?
--Não sei. Não sei nada sobre ele.
80/372
--Bem, o que estou tentando dizer é que o
chapéu que eu usava hoje de manhã era de
Taylor, e está agora plantado entre a almofada
do assento e a do encosto daquela poltrona
marrom no apartamento que você tinha no
Buckman. Acha que isso, com o resto, seria
bastante pra fazer você sentar na cadeira
elétrica?
Despain teria gritado de terror, se Ned Beaumont não
houvesse posto a mão em sua boca e rosnado em seu
ouvido:
--Calado!
O suor escorria pelo rosto moreno. Despain caiu sobre
Ned Beaumont, agarrando as lapelas do casaco dele
com as mãos e balbuciando:
--Escute, não faça isso comigo, Ned. Pode ficar com
todo centavo que eu lhe devo, cada centavo com jur-
os, se não fizer isso. Eu nunca pensei em roubar vo-
cê, Ned, por Deus. Só que fiquei duro e pensei em
pegar a grana como um empréstimo. Por Deus,
Ned. Não tenho muita coisa agora, mas vou receber
dinheiro pelas pedras de Lee que vou vender hoje, e
dou sua grana, até o último centavo. Quanto era,
Ned? Eu lhe dou tudo imediatamente, esta manhã
mesmo.
81/372
Ned Beaumont empurrou o homem moreno para o lado
no táxi e disse:
--Eram três mil duzentos e cinqüenta dólares.
--Três mil duzentos e cinqüenta dólares. Vai
receber, até o último centavo, esta manhã
mesmo, imediatamente. -- Despain olhou o
relógio. -- Sim, senhor, neste minuto mesmo,
assim que eu consiga chegar lá. O velho Stein
vai estar em casa antes disso. Só diga que vai
me soltar, Ned, pelos velhos tempos.
Ned Beaumont esfregou as mãos pensativamente.
--Eu não posso, exatamente, soltar você. Não
neste momento, quer dizer. Preciso me lem-
brar da ligação com o Promotor Distrital, e
que você é procurado pra interrogatório.
Assim, a única coisa que a gente pode resolver
é o chapéu. Eis a minha proposta: me dê meu
dinheiro, que dou um jeito de estar sozinho
quando pegar o chapéu, e ninguém mais vai
saber disso. De outro modo, dou um jeito pra
que metade da polícia de Nova Iorque esteja
comigo e... aí está. É pegar ou largar.
--Oh, Deus! -- gemeu Bernie Despain. -- Diga
a ele pra levar a gente à casa do velho Stein.
Fica na...
3
O TIRO DE CANHÃO
1
Ao deixar o trem que o trouxera de volta de Nova
Iorque, Ned Beaumont era um homem empertigado,
alto e de olhos límpidos. Só o peito chato indicava al-
guma fraqueza em sua constituição. O rosto, na cor e
nas linhas, parecia saudável, o passo longo e elástico.
Subiu agilmente a escada de concreto que ligava a es-
tação ao nível da rua, atravessou o salão de espera,
acenou para um conhecido atrás do balcão de inform-
ações e saiu por uma das portas que davam para a rua.
Enquanto esperava na calçada que o carregador
trouxesse suas malas, comprou um jornal. Abriu-o
quando já estava dentro do táxi, em direção à avenida
Randall, com a bagagem. Leu uma meia coluna na
primeira página:
SEGUNDO IRMÃO ASSASSINADO
Assassinado Francis F. West próximo ao local onde
irmão também encontrou a morte
"Pela segunda vez em quinze dias a tragédia se abateu
sobre a família West, da avenida N. Achland, 1342.
83/372
Francis F. West, de trinta e um anos, foi morto a tiros
na rua, a menos de uma quadra da esquina onde tinha
visto o irmão Norman ser atropelado e morto por um
caminhão que supostamente contrabandeava bebidas
no mês passado.
"Francis West, que trabalhava como garçom no Café
Rockaway, voltava do trabalho pouco depois da meia-
noite, quando, segundo testemunhas da tragédia, foi al-
cançado por um carro em andamento, vindo da avenida
Achland em alta velocidade. O carro encostou no meio-
fio ao alcançar West, e diz-se que mais de uma dúzia de
tiros foi disparada de dentro dele. West caiu com oito
balas no corpo, morrendo antes que alguém pudesse
chegar até ele. O carro dos assassinos, que segundo as
testemunhas não parou, retomou imediatamente velo-
cidade e desapareceu na esquina da rua Bowman. A
polícia está tendo dificuldade para descobrir o carro,
pois há descrições conflitantes fornecidas pelas
testemunhas, nenhuma das quais afirma ter visto
qualquer um dos homens dentro do automóvel.
"Boyd West, o irmão sobrevivente, que também presen-
ciou a morte de Norman no mês passado, não pode en-
contrar motivos para o assassinato de Francis. Disse
que não sabe de nenhum inimigo de seu irmão. A srta.
Marie Shepperd, da avenida Baker, 1917, com quem
Francis West ia se casar na próxima semana, foi
84/372
igualmente incapaz de citar alguém que pudesse dese-
jar a morte de seu noivo.
"Timothy Evans, suposto motorista do carro que atro-
pelou e matou acidentalmente Norman West, no mês
passado, recusou-se a falar com os repórteres em sua
cela, na Prisão Municipal, onde está sendo mantido
sem fiança, à espera de julgamento por homicídio
culposo."
Ned Beaumont dobrou o jornal cuidadosamente e
guardou-o num dos bolsos do casaco. Tinha os lábios
meio franzidos e os olhos brilhantes, pensando. Fora
isso, era um rosto sério. Reclinou-se num canto do táxi
e ficou brincando com um charuto não aceso.
Em seu apartamento, dirigiu-se, sem parar para tirar o
casaco, ao telefone e fez quatro chamadas, perguntando
a cada vez se Paul Madvig estava e se sabiam onde po-
deria ser encontrado. Após o quarto telefonema, desis-
tiu de tentar localizá-lo.
Largou o telefone, pegou o charuto onde o deixara, em
cima da mesa, pegou o telefone e discou o número da
prefeitura. Pediu para falar com o gabinete do Promo-
tor Distrital. Enquanto aguardava, puxou uma cadeira,
com um pé, sentou-se e pôs o charuto na boca. Então
disse ao telefone:
85/372
-- Alô. O sr. Farr está?... Ned Beaumont... Sim, obri-
gado. -- Tragou e exalou a fumaça lentamente. -- Alô,
Farr?... Cheguei há poucos minutos... Sim. Posso ver
você
agora?... Certo. Paul lhe falou alguma coisa sobre o as-
sassinato de West?... Não sei onde ele está, você
sabe?... Bem, tem um ângulo do caso que eu gostaria de
discutir com você... Sim, digamos meia hora... Certo.
Largou o telefone e atravessou a sala para ir examinar a
correspondência na mesa perto da porta. Havia algu-
mas revistas e nove cartas. Olhou rapidamente os
envelopes, jogou-os de novo em cima da mesa sem ab-
rir nenhum e foi ao quarto despir-se. Depois entrou no
banheiro para barbear-se e tomar banho.
2
O Promotor Distrital Michael Joseph Farr era um
homem robusto de quarenta anos. Cabelo escovinha,
acima de um rosto rosado e obstinado. O tampo de sua
mesa de nogueira estava vazio, a não ser por um tele-
fone e um grande tinteiro de ônix verde, onde uma
figura de metal nua, segurando um avião, erguia-se
num pé só entre duas canetas-tinteiro preto e branco,
inclinadas para os lados, em ângulos.
86/372
Ele apertou a mão de Ned Beaumont com as suas e
mandou-o sentar numa poltrona de couro, antes de re-
tornar a seu assento. Balançou-se para trás na cadeira e
perguntou:
--Fez uma boa viagem?
A curiosidade brilhava por trás da amistosidade em
seus olhos.
--Foi tudo bem -- respondeu Ned Beaumont. --
Sobre esse tal Francis West: com ele fora do cam-
inho, como fica o caso contra Tim Ivans?
Farr teve um sobressalto, mas depois fez desse espanto
parte de uma contorção deliberada para se ajeitar
numa posição mais confortável na cadeira.
--Bem, não vai fazer muita diferença -- disse. --
Quer dizer, não muita, pois tem ainda o outro irmão
pra depor contra Ivans. -- Era óbvio que não en-
carava Ned Beaumont, mas olhava para uma quina
da mesa de nogueira. -- Por quê? Que é que você
tem em mente?
Ned Beaumont olhava seriamente o homem que não o
olhava.
--Eu estava apenas imaginando. Mas suponho que
esteja tudo bem, se o outro irmão pode e quer iden-
tificar Tim.
Farr, ainda sem erguer o olhar, disse:
87/372
--Claro. -- Balançou a cadeira para frente e para
trás suavemente, uns poucos centímetros em cada
sentido, meia dúzia de vezes. As faces carnudas
moviam-se em pequenas ondas, nos pontos onde
cobriam os músculos do maxilar. Pigarreou e
levantou-se. Olhou para Ned Beaumont, agora com
olhos amistosos. -- Espere um minuto -- disse. --
Tenho de ir ver uma coisa. Esquecem de tudo se
não fico em cima deles. Não vá embora. Quero falar
sobre Despain com você.
Ned Beaumont murmurou:
--Não se apresse -- quando o Promotor Distrital
deixou o escritório, e sentou-se e ficou fumando
placidamente durante todos os quinze minutos que
o outro ficou fora.
Farr retornou carrancudo.
--Desculpe por deixar você desse jeito -- disse,
sentando-se --, mas estamos atolados de tra-
balho. Se continuar assim... -- Completou a
frase fazendo um gesto de desamparo com as
mãos.
--Está tudo bem. Alguma novidade no assas-
sinato de Taylor Henry?
--Nada. Era isso que eu queria perguntar a vo-
cê... sobre Despain. -- Também dessa vez Farr
88/372
decididamente não olhava o rosto de Ned
Beaumont.
Um leve sorriso de deboche, que o outro não podia ver,
contorceu por um instante os cantos da boca de Ned
Beaumont. Ele disse:
--Não temos muita coisa contra ele quando ol-
hamos o caso de perto.
Farr assentiu lentamente com a cabeça para a quina da
mesa.
--Talvez, mas deixar a maldita cidade na
mesma noite não parece coisa muito boa.
--Ele tinha outro motivo pra isso -- disse Ned
Beaumont. -- Um motivo muito bom. -- O sor-
riso fantasma apareceu e desapareceu.
Farr tornou a assentir, como alguém que quer ser
convencido.
--Você não acha que há uma possibilidade de ele ter
realmente matado Henry?
A resposta de Ned Beaumont foi dada com indiferença:
--Não acho que foi ele, mas sempre existe uma pos-
sibilidade, e você tem o bastante pra segurar ele um
pouco, se quiser.
O Promotor Distrital ergueu a cabeça e olhou para Ned
Beaumont. Sorriu com um misto de retraimento e ca-
maradagem, e disse:
89/372
--Me mande pro inferno se não for de minha conta,
mas por que, em nome de Deus, Paul mandou você
a Nova Iorque atrás de Bernie Despain?
Ned Beaumont conteve sua resposta por um momento.
Depois deu de ombros um pouco e disse:
--Ele não me mandou. Me deixou ir.
Farr não disse nada.
Ned Beaumont encheu os pulmões de fumaça de
charuto, esvaziou-os e continuou:
--Bernie embolsou uma aposta minha. Foi por isso
que se mandou. Acontece que Taylor Henry foi as-
sassinado na noite do dia em que Peggy O'Toole
chegou na frente, com mil e quinhentos de meus
dólares em cima dela.
O Promotor Distrital apressou-se a dizer:
--Está tudo bem, Ned. Não é de minha conta o que
você e Paul fazem. Eu... você sabe, é só que não es-
tou tão certo de que Despain não se deparou por
acaso com Henry na rua e deu uns trancos nele.
Acho que talvez mantenha ele guardado uns tem-
pos, por segurança. -- A boca dura curvou-se num
sorriso que era um tanto aliciante. -- Não pense que
estou enfiando o nariz nos assuntos de Paul, ou nos
seus, mas... -- O rosto rosado estava tenso e bril-
hante. Ele se curvou de repente e puxou uma
gaveta, abrindo-a. Ouviu-se um ruído de papel sob
90/372
seus dedos. Ele retirou a mão da gaveta e estendeu-
a por cima da mesa em direção a Ned Beaumont.
Nela havia um pequeno envelope branco com um
canto cortado. -- Aí, olhe. -- Tinha a voz empas-
tada. -- Olhe isso e veja o que acha, ou se é uma
maldita tolice.
Ned Beaumont recebeu o envelope mas não o olhou
logo. Manteve os olhos, agora frios e reluzentes, focaliz-
ados no rosto vermelho do Promotor Distrital.
O rosto de Farr tornou-se vermelho-escuro sob o olhar
fixo do outro homem, e ele ergueu uma mão carnuda
num gesto de reconciliação.
--Não dou nenhuma importância a isso, Ned, mas...
quer dizer, a gente sempre recebe um monte de lixo
desse tipo em todo caso que aparece, e... bem, leia e
veja.
Após outro considerável momento, Ned Beaumont
transferiu o olhar de Farr para o envelope. O endereço
estava datilografado:
Exmo. sr. M. J. Farr
Promotor Distrital Prefeitura
Centro Pessoal
O carimbo era datado do sábado anterior. Dentro, uma
única folha de papel branco, com três frases, sem
saudação nem assinatura, datilografadas:
91/372
"Por que Paul Madvig roubou um dos chapéus de
Taylor Henry depois que ele foi assassinado?
Que aconteceu com o chapéu que Taylor Henry usava
quando
foi assassinado?
Por que o homem que alegou ter sido o primeiro a en-
contrar o cadáver de Taylor foi feito membro de sua
equipe?"
Ned Beaumont dobrou o comunicado, tornou a enfiá-lo
no envelope, largou-o em cima da mesa e alisou o bi-
gode do centro para a esquerda e da esquerda para o
centro, com a unha do polegar, olhando o Promotor
Distrital com olhos parados e falando-lhe num tom
monótono:
--Eentão?
As faces de Farr tornaram a enrugar-se nos pontos
onde recobriam os músculos maxilares. Ele franziu a
testa, acima dos olhos suplicantes.
--Pelo amor de Deus, Ned -- disse, ansioso --, não
pense que estou levando isso a sério. A gente recebe
montes desse tipo de lixo toda vez que acontece al-
guma coisa. Eu só queria mostrar a você.
Ned Beaumont disse:
--Tudo bem, enquanto você continuar
pensando desse jeito. -- Ainda tinha os olhos e
92/372
a voz inalterados. -- Falou alguma coisa a Paul
sobre isso?
--Sobre a carta? Não. Não vejo ele desde que a
carta chegou, hoje de manhã.
Ned Beaumont pegou o envelope de cima da mesa e
colocou-o no bolso interno do paletó. O Promotor Dis-
trital, olhando a carta ser metida no bolso, pareceu
pouco à vontade, mas não disse nada.
Depois de guardar a carta e retirar outro fino charuto
mosqueado de outro bolso, Ned Beaumont disse:
--Não creio que eu diria alguma coisa a ele sobre
isso se fosse você. Ele já tem muita coisa em que
pensar.
Farr já dizia: -- Claro, o que você disser, Ned -- antes
de Ned Beaumont encerrar sua fala.
Após isso nenhum dos dois disse coisa alguma por al-
gum tempo, durante o qual Farr voltou a olhar para a
quina da mesa, e Ned Beaumont a encará-lo pensativa-
mente. Esse período de silêncio foi quebrado por um
zumbido que vinha de debaixo da mesa do Promotor
Distrital.
Farr pegou o telefone e disse:
--Sim... Sim. -- Seu lábio pequeno avançou sobre o
superior, e o rosto vermelho cobriu-se de manchas.
-- O diabo que não vai! -- rosnou. -- Traga o bas-
tardo e ponha ele contra o outro, e aí, se ele não
93/372
falar, vamos trabalhar um pouco nele... Sim. Faça
isso. -- Bateu o telefone no gancho e fuzilou Ned
Beaumont com os olhos.
Ned Beaumont imobilizara-se no ato de acender seu
charuto, que estava numa mão, e o isqueiro, aceso, na
outra. Inclinava um pouco o rosto para a frente, entre
os dois. Seus olhos reluziam. Ele pôs a ponta da língua
entre os lábios, recolheu-a e moveu os lábios num sor-
riso que nada tinha a ver com diversão.
--Novidades? -- perguntou, em voz baixa e
persuasiva.
A voz do Promotor Distrital estava selvagem:
--Boyd West, o outro irmão que identificou Ivans.
Comecei a pensar nisso enquanto a gente conver-
sava e mandei ver se ainda identificava. Ele diz que
não tem certeza, o bastardo.
Ned Beaumont balançou a cabeça, como se tal notícia
não fosse inesperada.
--Onde isso deixa as coisas?
--Ele não pode se safar assim -- resmungou
Farr. -- Identificou o outro uma vez, e vai
garantir isso quando chegar diante do júri.
Vou mandar trazer ele agora, e quando acabar
com ele, será um menino bonzinho.
NedBeaumont disse:
--É? E se não for?
94/372
A mesa do Promotor Distrital estremeceu com um soco
do punho dele.
--Será!
Aparentemente, isso não impressionou Ned Beaumont.
Ele acendeu seu charuto, apagou e guardou o isqueiro,
soprou a fumaça e perguntou num tom levemente
divertido:
--Claro que será, mas suponha que não. Suponha
que ele olhe pra Tim e diga: "Não tenho certeza de
que é ele"?
Farr tornou a bater na mesa.
--Ele não fará isso... não quando eu acabar com
ele... não fará outra coisa senão se levantar diante
do júri e dizer: "É ele".
O ar de divertimento desapareceu do rosto de Ned
Beaumont e ele falou meio cansado:
--Ele vai recuar na identificação e você sabe disso.
Bem, que é que você pode fazer? Não tem nada que
possa fazer, tem? Isso significa que seu processo
contra Tim Ivans foi pelos ares. Você encontrou o
carro cheio de bebida onde ele deixou, mas a única
prova que tem de que era ele quem estava difigindo
quando atropelou Norman West era o testemunho
ocular dos dois irmãos. Bem, se Francis está morto
e Boyd com medo de falar, você não tem acusação, e
sabe disso.
95/372
Em voz alta e enfurecida, Farr começou a dizer:
--Se acha que vou ficar aqui sentado em meu...
Mas com um gesto de impaciência da mão que se-
gurava o charuto, Ned Beaumont interrompeu-o.
--Sentado, de pé ou montado numa bicicleta
-- disse --, você está frito, e sabe disso.
--Estou? Sou o Promotor Distrital desta cid-
ade e município e... -- Abruptamente, parou
de estourar. Pigarreou e engoliu em seco. Seus
olhos perderam a agressividade, que foi sub-
stituída primeiro pela confusão, e depois por
algo semelhante ao medo. Ele se curvou sobre
a mesa, preocupado demais para impedir que
a preocupação se mostrasse em seu rosto ver-
melho. Disse: -- É claro que você sabe que, se
você... se Paul... quer dizer, se existe algum
motivo pelo qual eu não deva... você sabe... a
gente pode deixar pra lá.
O sorriso que nada tinha com diversão erguia de novo
as pontas dos lábios de Ned Beaumont, cujos olhos
brilhavam por trás da fumaça do charuto. Ele balançou
devagar a cabeça e falou devagar, num tom desagrada-
velmente suave:
--Não, Farr, nao existe nenhum motivo, ou
nenhum desse tipo. Paul prometeu soltar
Ivans depois da eleição, mas, acredite você ou
96/372
não, Paul nunca mandou matar ninguém, e,
mesmo que tenha mandado, Ivans não era su-
ficientemente importante para que se man-
dasse matar ninguém por ele. Não, Farr, não
existe nenhum motivo, e não me agradaria
pensar que você vai ficar andando por aí
pensando que existe.
--Pelo amor de Deus, Ned, não me entenda
errado -- queixou-se Farr. -- Você sabe muito
bem que não tem ninguém na cidade mais a
favor de Paul e você do que eu. Deve saber
disso. Eu não queria dizer nada disso, a não
ser que... bem, que vocês podem sempre con-
tar comigo.
Ned Beaumont disse: -- Isso é ótimo -- sem muito
entusiasmo, e levantou-se.
Farr levantou-se e rodeou a mesa com a mão vermelha
estendida.
--Qual é a pressa? -- perguntou. -- Por que
não fica por aqui e vê como esse tal de West
age quando trouxerem ele? Ou -- olhou o reló-
gio -- que vai fazer hoje de noite? Que tal
jantar comigo?
--Sinto, não posso -- respondeu Ned Beau-
mont. -- Tenho de correr.
97/372
Deixou que Farr balançasse sua mão, murmurou um
"Sim, farei isso", em resposta à insistência do Promotor
Distrital em que ele aparecesse com freqüência e
saíssem uma noite, e saiu.
3
Walter Ivans estava parado junto a uma fila de homens
que operavam máquinas de bater pregos, na fábrica de
caixas onde era empregado como capataz, quando Ned
Beaumont entrou. Ele o viu imediatamente e,
saudando-o com a mão erguida, desceu o corredor
central, mas em seus olhos azuis e em seu branco rosto
redondo havia, de algum modo, menos prazer do que
ele parecia tentar expressar.
Ned Beaumont disse:
--Olá, Walt. -- E virando-se levemente para a porta,
escapou da necessidade de falar ou ignorar ostens-
ivamente a mão estendida do homem mais baixo. --
Vamos sair desse barulho.
Ivans disse alguma coisa, que foi abafada pelo barulho
de metal enterrando metal em madeira, e saíram pela
porta aberta por onde Ned Beaumont entrara. Do lado
de fora havia uma larga plataforma de madeira sólida.
Um lance de escada descia uns seis metros até o chão.
Ficaram na plataforma e Ned Beaumont perguntou:
98/372
--Sabe que uma das testemunhas contra o seu
irmão foi morta ontem de noite?
--S-sim, eu vi-vi no jor-jornal.
Ned Beaumont perguntou:
--Sabe que a outra não tem certeza se pode
identificar seu irmão?
--Na-não, eu na-não sabia di-disso, Ned.
--Sabe que se ele não identificar, Tim sai?
--S-sim.
Ned Beaumont disse:
--Você não parece tão satisfeito a esse respeito
quanto devia estar.
Ivans enxugou a testa com a manga da camisa.
--Mas-mas eu esto-tou, Ned, po-por Deus que
estofou!
--Você conhecia West? Aquele que foi
assassinado.
--Na-não, a na-não ser que eu fu-fui fa-falar
com e-ele uma ve-vez, pra pe-pedir que alivi-
viasse o la-lado de Ti-Tim.
--Que foi que ele disse?
--Na-não quis.
--Quando foi isso?
Ivans mexeu os pés e enxugou o rosto na manga da
camisa outra vez.
--Do-dois ou tr-três di-dias atra-trás.
99/372
Ned Beaumont perguntou em voz baixa:
--Tem alguma idéia de quem podia ter matado
ele, Walt?
Ivans balançou a cabeça.
Por um momento, Ned Beaumont fitou pensativamente
um ponto por cima do ombro de Ivans. O barulho das
máquinas de pregar saía pela porta a uns três metros
de distância, e de outro andar vinha o zumbir das ser-
ras. Ivans inspirou e expirou um longo trago de ar.
A expressão de Ned Beaumont se tornara simpática
quando ele transferiu o olhar para os olhos azuis do
homem mais baixo outra vez. Ele se curvou um pouco e
perguntou:
--Você está bem, Walt? Quer dizer, vai ter
gente que vai pensar que talvez você tenha
atirado em West pra salvar seu irmão. Você
tem...?
--E-eu esta-tava no clube ontem de-de no-
noite, da-das oito até-té depois da-das du-
duas da ma-manhã -- respondeu Walter
Ivans, tão rápido quanto sua gagueira per-
mitia. -- Harry Sloss e B-Ben Fer-ferris e
Brager po-podem dizer isso a vo-você.
Ned Beaumont deu uma risada.
--É muita sorte sua, Walt -- disse alegremente.
100/372
Deu as costas ao outro e desceu os degraus de madeira
até a rua. Não deu atenção ao "Até logo, Ned", muito
amistoso, de Walter Ivans.
4
Da fábrica de caixas Ned Beaumont andou quatro
quadras até um restaurante e usou um telefone. Fez as
quatro ligações que tinha feito antes, nesse mesmo dia,
tornado a perguntar por Paul Madvig e, não o encon-
trando por telefone, deixou instruções para que Madvig
o chamasse. Depois entrou num táxi e foi para casa.
Havia mais cartas sobre as que já estavam na mesa
junto à porta. Ele pendurou o chapéu e o casaco,
acendeu um charuto e sentou com a correspondência
na maior das poltronas de veludo vermelho. O quarto
envelope que abriu era idêntico ao que o Promotor Dis-
trital lhe havia mostrado. Continha uma única folha de
papel trazendo três frases datilografadas, sem saudação
ou assinatura:
"Você encontrou o cadáver de Taylor Henry depois que
ele morreu ou estava presente quando ele foi
assassinado?
Por que só comunicou a morte dele depois que a polícia
já tinha descoberto o cadáver?
101/372
Acha que pode salvar os culpados fabricando provas
contra os inocentes?"
Ned Beaumont revirou os olhos e franziu a testa lendo
essa mensagem, e puxou muito mais fumaça de seu
charuto. Comparou-a com a que o Promotor Distrital
recebera. O papel e os tipos eram idênticos, como o era
a forma como as três frases de cada papel se achavam
dispostas e a hora nos selos.
De testa franzida, tornou a enfiar ambas em seus envel-
opes, mas apenas para tornar a retirá-las imediata-
mente e relê-las e reexaminá-las. Como fumava muito
rápido, o charuto ardeu irregularmente de um lado. Ele
o pôs na borda da mesa ao lado com uma careta de re-
pugnância e alisou o bigode com dedos nervosos.
Guardou mais uma vez as mensagens e recostou-se na
poltrona, fitando o teto e mordendo uma unha. Passou
os dedos pelos cabelos. Enfiou a ponta de um dedo
entre o colarinho e o pescoço. Endireitou o corpo e
tornou a tirar os envelopes do bolso, mas os guardou de
volta sem olhar. Mordia o lábio inferior. Finalmente,
sacudiu-se impacientemente e começou a ler o resto de
sua correspondência. Estava lendo-a quando o telefone
tocou.
Foi atender.
102/372
-- Alô... Oh, olá, Paul, onde está?... Quanto tempo vai
ficar aí?... É, ótimo, dê um pulo aqui ao voltar... Certo,
estarei aqui.
Retornou à leitura da correspondência.
5
Paul Madvig chegou ao apartamento de Ned Beaumont
quando os sinos da igreja cinzenta do outro lado da rua
batiam a hora do Angelus. Entrou dizendo animado.
--Como vai, Ned? Quando voltou?
Tinha o corpanzil envolto num terno de tweed cinza.
--No fim da manhã de hoje -- respondeu Ned
Beaumont, quando apertavam as mãos.
--Conseguiu?
Ned Beaumont mostrou as bordas dos dentes, num sor-
riso satisfeito.
--Consegui o que fui buscar... tudo.
--Isso é ótimo. -- Madvig jogou o chapéu
sobre uma poltrona e sentou em outra junto à
lareira.
Ned Beaumont voltou à sua poltrona.
--Aconteceu alguma coisa enquanto estive
fora? -- perguntou, pegando o copo de
coquetel pela metade, ao lado da coqueteleira
na mesa, junto do seu cotovelo.
103/372
--Acertamos a confusão sobre o contrato de
esgotos.
Ned Beaumont bebericou seu coquetel e perguntou:
Teve de fazer um corte muito grande?
--Muito. Não vai ter nada como o lucro que ia ter,
mas é melhor do que arriscar agitar as coisas tão
perto da eleição. A gente compensa isso nas obras
de rua do ano que vem, quando as extensões para
Salem e Chestnut forem feitas.
Ned Beaumont concordou com a cabeça. Olhava os
tornozelos estendidos e cruzados do loiro. Disse:
--Não deve usar meias de seda com tweed.
Madvig ergueu uma perna para olhar o tornozelo.
--Não? Eu gosto do contato da seda.
--Então abandone os tweeds. Taylor Henry já
foi enterrado?
--Sexta-feira.
--Você foi ao funeral?
--Fui -- respondeu Madvig, e acrescentou,
meio constrangido: -- O senador sugeriu que
eu fosse.
Ned Beaumont repôs o copo na mesa e tocou os lábios
com um lenço branco tirado do bolso de cima do
paletó.
--Como vai o senador?
104/372
Olhou de lado para o loiro e não ocultou o divertimento
em seus olhos.
Madvig respondeu, ainda meio constrangido:
--Vai bem. Passei quase toda esta tarde lá em
cima com ele.
--Na casa dele?
--Um-hum.
--A ameaça loira estava lá?
Madvig não franziu exatamente a testa. Disse:
--Janet estava lá.
Ned Beaumont, guardando o lenço, emitiu um som
abafado na garganta e disse:
--Huumm. Agora é Janet. Está conseguindo alguma
coisa com ela?
Madvig recompôs o rosto. Disse numa voz chã:
--Ainda acho que vou me casar com ela.
--Ela sabe disso? Que suas intenções são
honrosas?
--Pelo amor de Deus, Ned! -- protestou Mad-
vig. -- Por quanto tempo vai me manter no
banco das testemunhas?
Ned Beaumont deu uma risada, pegou a coqueteleira
de prata, sacudiu-a e serviu outra dose.
--Que acha do assassinato de Francis West? -- per-
guntou, quando voltou a sentar com o copo na mão.
105/372
Madvig pareceu intrigado por um instante. Depois seu
rosto se desanuviou e ele disse:
--Oh, aquele cara que foi morto a tiros na
avenida Achland ontem à noite.
--Esse mesmo.
Um leve ar de intriga voltou aos olhos azuis de Madvig.
Ele disse:
--Bem, eu não conhecia ele.
Ned Beaumont disse:
--Era uma das testemunhas contra o irmão de
Walter Ivans. Agora a outra testemunha, Boyd
West, está com medo de depor, e com isso a
acusação cai.
--Isso é ótimo -- disse Madvig, mas quando a
última palavra deixou seus lábios uma ex-
pressão de dúvida já se instalara nos olhos. Ele
encolheu as pernas e se curvou para a frente.
-- Está com medo? -- perguntou.
-- Estou, a menos que você prefira "apavorado".
O rosto de Madvig se endureceu, atento, e seus olhos se
tornaram discos azuis endurecidos.
--Onde está querendo chegar, Ned? -- perguntou,
em voz quebradiça.
Ned Beaumont esvaziou seu copo e o recolocou na
mesa.
106/372
--Depois que você disse a Walt Ivans que não podia
soltar Tim até depois da eleição, ele foi chorar suas
mágoas junto a Shad O'Rory -- disse, com delib-
erada monotonia, como se recitasse uma lição. --
Shad mandou alguns dos gorilas dele assustar os
dois Wests para que não testemunhassem contra
Tim. Um deles não se assustou, e eles liquidaram.
Madvig, de cara fechada, protestou:
--Que diabos tem Shad com os problemas de Tim
Ivans?
Estendendo a mão para pegar a coqueteleira, Ned
Beaumont disse, irritado:
--Está bem, eu estava só imaginando.
Esqueça.
--Deixe disso, Ned. Você sabe que seus pal-
pites são bastante bons pra mim. Se tem al-
guma coisa em mente, desembuche.
Ned Beaumont pôs a coqueteleira sem servir a dose e
disse:
--Pode ser só um palpite mesmo, Paul, mas é o que
me parece. Todo mundo sabe que Walt Ivans andou
trabalhando pra você no Terceiro Pavilhão, e é
membro do Club e tudo, e que você faria o que
pudesse pra tirar o irmão dele de uma encrenca se
ele lhe pedisse. Bem, todo mundo, ou um bocado de
gente, vai começar a se perguntar se você não
107/372
mandou atirar e assustar as testemunhas contra o
irmão dele, pra que ficassem caladas. Isso se aplica
aos de fora, os clubes femininos que você tanto
teme hoje e os cidadãos respeitáveis. Os de dentro...
os que, em sua maioria, não dariam a mínima se vo-
cê tivesse feito isso... vão saber de alguma coisa
parecida com a verdade. Vão saber que um de seus
rapazes precisou recorrer a Shad, e que Shad deu
um jeito. Bem, esse é o buraco que Shad meteu vo-
cê... ou não acredita que ele iria tão longe pra meter
você num buraco?
Madvig rosnou entredentes:
--Sei muito bem que ele iria, o piolhento. -- Olhava
uma folha verde entretecida no tapete a seus pés.
Ned Beaumont, após olhar atentamente o loiro,
prosseguiu:
--E a gente pode olhar por outro ângulo ainda.
Talvez não aconteça, mas você estará com o flanco
aberto pra isso se Shad quiser explorar.
Madvig ergueu o olhar para perguntar:
--Qual?
--Walt Ivans esteve no Club toda a noite de
ontem, até duas da manhã de hoje. Isso signi-
fica mais três horas do que o tempo que ele já
permaneceu algum dia no Club antes, a não
ser em noites de eleição ou de banquete.
108/372
Compreende? Estava criando um álibi pra si...
no nosso Club. E se... -- a voz de Ned Beau-
mont baixou um tom e seus olhos negros se
arregalaram, sérios -- Shad encrencar Walt
plantando provas de que ele matou West?
Seus clubes femininos e todas as pessoas que
gostam de berrar sobre coisas desse tipo vão
pensar que o álibi de Walt é falso... preparado
por nós pra proteger ele.
Madvig disse:
--O piolhento. -- Levantou-se e enfiou as
mãos nos bolsos da calça. -- Eu gostaria, por
Deus, que a eleição ou já tivesse passado ou
ainda estivesse longe.
--Nada disso teria acontecido então.
Madvig deu dois passos para o centro da sala. Murmur-
ou: -- Maldito -- e ficou franzindo a testa para o tele-
fone na mesinha junto à porta do quarto. O peito
imenso subia e descia com a respiração. Ele disse pelo
canto da boca, sem olhar para Ned Beaumont:
--Arranje um meio de bloquear esse ângulo. -- Deu
um passo na direção do telefone e parou. -- Esqueça
-- disse, e se voltou para ficar de frente para o
outro. -- Acho que vou expulsar Shad de nossa cid-
ade. Estou cansado de ter ele em volta. Acho que
109/372
vou expulsar ele imediatamente, começando esta
noite.
Ned Beaumont perguntou:
--Como, por exemplo?
Madvig deu um risinho:
--Por exemplo -- respondeu --, acho que vou man-
dar Rainey fechar a Dog House e o Paradise Gar-
dens e todos os antros em que sabemos que Shad ou
qualquer um de seus amigos tem interesses. Acho
que vou mandar Rainey fechar todas, uma por uma,
esta noite mesmo.
Ned Beaumont falou, hesitante:
--Está metendo Rainey numa enrascada. Nos-
sos tiras não estão acostumados a se preocu-
par com a aplicação da lei. Não vão gostar
muito disso.
--Podem fazer isso uma vez, por mim -- disse
Madvig --, sem achar que pagaram todas as
dívidas que têm comigo.
--Talvez. -- O rosto e a voz de Ned Beaumont
pareciam duvidosos ainda. -- Mas a coisa
desse jeito parece como dar um tiro de canhão
pra arrombar a porta de um cofre quando se
poderia conseguir a mesma coisa sem nenhum
barulho, usando persuasão.
110/372
--Você tem alguma coisa escondida na manga,
Ned?
Ned Beaumont balançou a cabeça.
--Nada de que tenha certeza, mas não faria mal es-
perar uns dias até...
Então foi Madvig quem balançou a cabeça.
--Não -- disse. -- Eu quero ação. Não sei merda
nenhuma sobre como se abrem cofres, Ned, mas sei
lutar... do meu jeito... partir com as mãos. Nunca
consegui aprender a boxear, e nas únicas vezes que
tentei levei foi surra. Daremos no sr. O'Rory o tiro
de canhão.
6
O homem magro e musculoso, de óculos de aros de tar-
taruga, disse:
--Assim, não precisa se preocupar de modo algum
com isso. -- E recostou-se calmamente em sua
poltrona.
O homem à esquerda dele -- um sujeito magro, com bi-
godes castanhos ralos e arrepiados e sem muito cabelo
na cabeça -- disse ao homem à sua esquerda:
--Não me soa tão bem assim.
111/372
O magro disse:
--Ora, bobagens!
Madvig falou ao magro:
--Você viu Parker, Breen?
Breen disse:
--Sim, vi, e ele diz cinco, mas acho que a gente
pode conseguir mais uns dois dele.
O homem de óculos disse zombando:
--Meu Deus, eu diria que sim!
Breen deu um sorriso de escárnio, de lado.
--É. E de quem você algum dia conseguiria tanto
assim?
Três batidas soaram na larga porta de carvalho.
Ned Beaumont levantou-se da cadeira onde se achava
montado e foi até a porta. Abriu-a menos de um palmo.
A pessoa que tinha batido era um homenzinho moreno,
de sobrancelhas pequenas, usando um terno azul amas-
sado. Não tentou entrar na sala, e procurou falar num
murmúrio, mas a excitação tornou sua voz audível a
todos.
--Shad O'Rory está lá embaixo. Quer falar com
Paul.
Ned Beaumont fechou a porta e voltou-se, encostado
nela, a fim de olhar para Paul Madvig. Só eles dois,
entre os dez que se achavam na sala, pareciam inal-
terados pelo anúncio do homem de sobrancelhas
112/372
pequenas. Os demais não demonstravam abertamente
sua excitação -- em alguns, se podia vê-la no enrijeci-
mento súbito -- mas em nenhum deles a respiração era
a mesma de antes.
Ned Beaumont, fingindo não saber que não era ne-
cessário repetir, disse, num tom que manifestava o
devido interesse em suas palavras:
--O'Rory quer falar com você. Esta lá embaixo.
Madvig olhou o seu relógio.
--Diga a ele que estou ocupado agora, mas se quiser
esperar um pouco, vou falar com ele.
Ned Beaumont assentiu com a cabeça e abriu a porta.
--Diga a ele que Paul está ocupado agora -- instruiu
ao homem que batera na porta --, mas se ele ficar
por aí algum tempo, Paul fala com ele. -- Fechou a
porta.
Madvig interrogava um homem de cara quadrada e am-
arelada sobre as possibilidades de conseguirem mais
votos do outro lado da rua Chestnut. O homem de cara
quadrada respondeu que achava que conseguiriam
mais que da última vez, "com uma margem dos di-
abos", mas ainda não o bastante para prejudicar muito
a oposição. Enquanto falava, deslizava os olhos de lado
para a porta.
Ned Beaumont sentava-se acavalado em sua cadeira
junto da janela, fumando um charuto.
113/372
Madvig fez uma pergunta a outro homem sobre o
volume da contribuição para a campanha que se devia
esperar de um sujeito chamado Hartwick. Esse outro
homem mantinha os olhos longe da porta, mas faltou
coerência à sua resposta.
Nem a expressão calma de Madvig e de Ned Beaumont
nem a concentração objetiva dos dois nos problemas da
campanha conseguiam conter o aumento da tensão na
sala.
Após quinze minutos, Madvig levantou e disse:
--Bem, ainda não estamos por cima, mas estamos
chegando lá. É só vocês darem duro que a gente tira
o diploma. -- Foi até a porta e apertou a mão de
cada um, à medida que saíam. E os homens saíram
um tanto apressadamente.
Ned Beaumont, que não deixara sua cadeira, pergun-
tou, quando ele e Madvig eram os únicos na sala:
--Fico por aqui ou dou o fora?
--Fique por aqui. -- Madvig se encaminhou
até a janela e olhou a rua da China, ensol-
arada, lá embaixo.
--Com os punhos prontos? -- perguntou Ned
Beaumont, após uma pequena pausa.
Madvig se voltou da janela, assentindo.
114/372
--Não sei de nada melhor -- sorriu juvenilmente
para o homem acavalado na cadeira --, a não ser,
talvez, que com os pés também.
Ned Beaumont ia dizer alguma coisa, mas foi inter-
rompido pelo ruído da maçaneta sendo girada.
Um homem abriu a porta e entrou. Era de estatura
pouco acima da média, de constituição esbelta, de uma
esbelteza que dava uma aparência falsa de fragilidade.
Embora parte dos cabelos estivessem brancos,
provavelmente não passava muito dos trinta e cinco
anos. Tinha os olhos de um azul-cinza notavelmente
límpidos, num rosto meio longo e estreito, mas fina-
mente esculpido. Usava um casaco azul-escuro, sobre
um terno também azul-escuro, e trazia um chapéu
derby na mão metida em luva negra.
O homem que entrou atrás dele era um sujeito de per-
nas bambas, da mesma altura, um sujeito moreno com
algo de macaco na curvatura dos ombros enormes, no
comprimento dos braços grossos e no rosto achatado.
O chapéu deste último, do tipo diplomata, estava na
cabeça. Ele fechou a porta e se recostou contra ela,
pondo as mãos nos bolsos do casaco xadrezado.
O primeiro homem, tendo avançado a essa altura uns
quatro ou cinco passos sala adentro, pôs o chapéu
numa cadeira e começou a tirar as luvas.
115/372
Madvig, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças,
sorriu amistosamente e disse:
--Como vai, Shad?
O homem de cabelos brancos disse:
--Otimamente, Paul. E você? -- A voz era um forte
barítono, musical, com um leve sotaque irlandês.
Madvig indicou com um pequeno aceno de cabeça o
homem na cadeira e perguntou:
--Conhece Ned Beaumont?
O'Rory disse:
--Conheço.
Ned Beaumont disse:
--Conheço.
Nenhum cumprimentou o outro com um aceno de
cabeça, e Ned Beaumont não se levantou de sua
cadeira.
Shad O'Rory acabava de tirar as luvas. Colocou elas
num bolso do casaco e disse:
--Política é política e negócios são negócios.
Venho abrindo meu caminho com dinheiro e
estou disposto a continuar assim, mas quero
receber pelo que pago. -- Sua voz modulada
era apenas divertidamente séria.
--Que quer dizer com isso? -- Perguntou Mad-
vig, como se não ligasse muito.
116/372
--O que quero dizer é que metade dos tiras da
cidade compra o leite das crianças com a
grana que recebe de mim e de alguns dos
meus amigos.
Madvig sentou junto à mesa.
--E daí? -- Perguntou com o mesmo desin-
teresse de antes.
--Quero receber pelo que estou pagando.
Estou pagando pra que me deixem em paz.
Quero que me deixem em paz.
Madvig deu uma risadinha.
--Você não quer dizer, Shad, que veio se
queixar a mim porque seus tiras não querem
continuar vendidos?
--Quero dizer que Doolan me disse ontem à
noite que as ordens pra fechar minhas casas
vieram direto de você.
Madvig tornou a dar uma risadinha e se virou para
falar com Ned Beaumont.
--Que acha disso, Ned?
Ned Beaumont deu um sorriso débil, mas não disse
nada.
Madvig disse:
--Sabe o que penso disso? Penso que o capitão
Doolan tem trabalhado demais. Penso que alguém
117/372
devia dar ao capitão Doolan umas longas férias.
Não deixe que eu esqueça isso.
O'Rory disse:
--Comprei proteção, Paul, e quero ela. Negócios são
negócios e política é política. Vamos manter as duas
coisas separadas.
Madvig disse:
--Não.
Os olhos azuis de Shad 0'Rory olharam sonhadora-
mente alguma coisa distante. Ele deu um sorriso meio
triste, e havia um tom de tristeza em sua voz musical,
levemente irlandesa, quando falou. Disse:
--Isso vai dar em matança.
Os olhos azuis de Madvig estavam opacos, e a voz tão
indecifrável quanto os olhos. Ele disse:
--Se você quiser que dê.
O homem de cabelos brancos balançou a cabeça.
--Vai ter de dar -- disse, ainda tristemente. -- Estou
grande demais pra lamber suas botas agora.
Madvig se recostou na cadeira e cruzou as pernas. O
tom com que falou dava pouca importância às palavras.
Disse:
--Talvez você esteja grande demais pra lamber min-
has botas deitado, mas vai lamber. -- Franziu os lá-
bios e acrescentou, como uma reconsideração: -- Já
está lambendo.
118/372
O ar sonhador e a tristeza desapareceram rapidamente
dos olhos de Shad O'Rory. Ele pôs o chapéu negro na
cabeça. Ajeitou a gola do casaco no pescoço. Apontou
um dedo longo e branco para Madvig e disse:
--Vou reabrir a Dog House hoje de noite. Não quero
ser perturbado. Se você me perturbar, eu perturbo
você.
Madvig descruzou as pernas e pegou o telefone em
cima da mesa. Chamou o número do Departamento de
Polícia, pediu para falar com o Chefe e disse-lhe:
--Alô, Rainey... Sim, ótimo. Como estão os
parentes?... Isso é bom. Escute, Rainey, eu
soube que Shad está pensando em reabrir hoje
de noite... Sim.. Sim... Feche aquela joça com
tanta força para que ela balance... Certo...
Claro. Até logo. -- Empurrou o telefone e disse
a O'Rory:
--Entende agora qual é a sua posição? Está li-
quidado, Shad. Está liquidado aqui pra
sempre.
O'Rory disse baixinho:
--Eu entendo. -- Voltou-se, abriu a porta e saiu. O
sujeito bambo parou para cuspir -- deliberada-
mente - no tapete à sua frente e encarar Madvig e
Ned Beaumont. Depois, saiu.
119/372
Ned Beaumont enxugou as palmas das mãos com um
lenço. Nada disse a Madvig, que o olhava com olhos in-
terrogadores. Os de Ned Beaumont estavam sombrios.
Após um instante, Madvig perguntou:
--Então?
Ned Beaumont disse:
--Errado, Paul.
Madvig levantou e foi até a janela:
--Deus do céu! -- queixou-se por sobre o ombro. --
Nada jamais serve pra você?
Ned Beaumont levantou de sua cadeira e caminhou
para a porta.
Madvig, voltando da janela, perguntou furioso: -- É
mais alguma de suas malditas tolices? Ned Beaumont
disse: -- É -- e saiu da sala. Desceu a escada, pegou o
chapéu e deixou o Log Cabin Club. Caminhou sete
quadras até a estação ferroviária, comprou uma pas-
sagem para Nova Iorque e fez reservas para o trem da
noite. Depois tomou um táxi e foi para o seu
apartamento.
7
Uma mulher robusta e disforme, usando roupas cinza,
e um garoto gorducho arrumavam a mala e três valises
120/372
de couro de Ned Beaumont, sob a supervisão dele,
quando a campainha da porta tocou.
A mulher levantou, grunhindo, e foi atender. Abriu a
porta inteiramente.
--Deus do céu, sr. Madvig -- disse. -- Vá entrando.
Madvig entrou dizendo:
--Como vai, sra. Duveen? Está com uma aparência
cada vez mais jovem. -- Passeou o olhar pela mala,
as valises, até o garoto. -- Olá, Charley. Pronto pro
trabalho na misturadora de cimento?
O garoto sorriu acanhadamente e disse:
--Como vai, sr. Madvig?
O sorriso de Madvig chegou finalmente a Ned
Beaumont.
--Vai a algum lugar?
Ned Beaumont sorriu educadamente.
--Vou -- disse.
O loiro olhou em volta da sala, fixando novamente a
mala e as valises, as roupas empilhadas sobre as poltro-
nas e as gavetas escancaradas. A mulher e o menino re-
tornaram a seu trabalho. Ned Beaumont encontrou
duas camisas meio desbotadas numa pilha sobre uma
poltrona e colocou elas de lado.
Madvig perguntou:
--Pode me dar meia hora, Ned?
--Tenho bastante tempo.
121/372
Madvig disse:
--Pegue seu chapéu.
Ned Beaumont pegou o chapéu e o casaco.
--Ponha o máximo que puder -- disse à mulher, en-
quanto ia com Madvig para a porta --, e o que so-
brar pode ser mandado com as outras coisas.
Ele e Madvig desceram a escada até a rua. Caminharam
uma quadra, em direção ao sul. Então Madvig
perguntou:
--Aonde vai, Ned?
--Nova Iorque.
Dobraram num beco.
MadVig perguntou:
--Praquê?
Ned Beaumont deu de ombros.
--Estou indo embora de vez.
Abriram uma porta verde, de madeira, na parede de ti-
jolos vermelhos no fundo de um prédio, subiram um
corredor, passaram por outra porta e entraram no salão
de um bar onde meia dúzia de homens bebia. Trocaram
cumprimentos com o barman e com três dos clientes
ao se dirigirem a uma salinha onde havia quatro mesas.
Não havia mais ninguém ali. Sentaram numa das
mesas.
O barman enfiou a cabeça na porta e perguntou:
--Cerveja como sempre, cavalheiros?
122/372
Madvig disse: -- É -- e depois, quando o barman se re-
tirou: -- Por quê?
Ned Beaumont disse:
--Estou cansado dessa coisa de cidade
provinciana.
--Se refere a mim?
Ned Beaumont não disse coisa alguma.
Madvig também nada disse por algum tempo. Depois
deu um suspiro e disse:
--Essa é uma hora dos diabos pra me largar na mão.
O barman entrou com duas canecas de cerveja clara e
uma tigela de biscoitos salgados. Depois que tornou a
sair, fechando a porta atrás, Madvig exclamou:
--Deus, é duro se dar com você, Ned!
Ned Beaumont moveu os ombros.
--Eu nunca disse que não era. -- Ergueu sua caneca
e bebeu.
Madvig quebrava um biscoito em pequenos pedaços.
--Quer mesmo ir embora, Ned? -- perguntou.
--Estou indo.
Madvig largou os fragmentos do biscoito na mesa e
sacou um talão de cheques do bolso. Destacou um
cheque, tirou uma caneta-tinteiro do outro bolso e
encheu-o. Depois balançou-o, para secar, e jogou-o na
mesa, na frente de Ned Beaumont.
123/372
O outro, baixando o olhar para o cheque, balançou a
cabeça e disse:
--Não preciso de dinheiro, e você não me deve
nada.
--Devo, sim. Devo a você mais do que isso,
Ned. Gostaria que aceitasse.
Ned Beaumont disse: -- Está bem, obrigado -- e pôs o
cheque no bolso.
Madvig bebeu a cerveja, comeu um biscoito, recomeçou
a beber, pôs a caneca na mesa e perguntou:
--Você tinha alguma coisa em mente... alguma
bronca... além daquela lá no Club?
Ned Beaumont balançou a cabeça.
--Você não pode falar comigo daquele jeito.
Ninguém pode.
--Diabos, Ned, eu não disse nada.
Ned Beaumont não disse nada.
Madvig tornou a beber.
--Se incomoda de me dizer por que acha que
agi errado com O'Rory?
--Não ia adiantar nada.
--Experimente.
Ned Beaumont disse:
--Está bem, mas não vai adiantar nada. -- Re-
clinou a cadeira para trás, segurando a caneca
numa mão e alguns biscoitos na outra. -- Shad
124/372
vai reagir. Tem de reagir. Você acuou ele.
Disse que ele está liquidado pra sempre. A ún-
ica coisa que ele pode fazer é jogar a longo
prazo. Se puder perturbar essa eleição, estará
em posição de fazer o que puder pra ganhar.
Se você ganhar a eleição, ele vai ter de dar o
fora de qualquer jeito. Você está botando a
polícia em cima dele. Ele vai ter de reagir con-
tra a polícia, e vai reagir. Isso significa que vo-
cê vai criar alguma coisa que poderá ser ap-
resentada como uma onda de crime. Você está
tentando reeleger toda a administração muni-
cipal. Bem, dar a eles uma onda de crime... e
uma onda que segundo todas as possibilidades
eles não vão poder controlar... exatamente
antes da eleição, não vai fazer com que
pareçam muito eficientes. Eles...
--Acha que eu devia maneirar com ele? -- per-
guntou Madvig, franzindo a testa.
--Não acho isso. Acho que você devia ter deix-
ado uma saída pra ele, uma linha de retirada.
Não devia botar ele contra a parede.
A carranca de Madvig se aprofundou.
--Eu não sei nada sobre seu jeito de lutar. Foi ele
quem começou. Só sei é que, quando a gente acua
alguém, vai em frente e liquida. Esse sistema tem
125/372
funcionado bem pra mim até agora. -- Corou um
pouco. -- Não quero dizer que me ache um Na-
poleão, ou alguma coisa assim, Ned, mas subi de
menino de recado de Packy Flood, na velha rua
Cinco, para o lugar onde me sento confortavel-
mente hoje.
Ned Beaumont esvaziou sua caneca e deixou as pernas
da frente da cadeira descerem até o chão.
--Eu lhe disse que não ia adiantar. Faça como quis-
er. Continue pensando que o que servia pra velha
rua Cinco serve pra qualquer parte.
Havia na voz de Madvig alguma coisa de ressentimento
e alguma coisa de humildade quando ele perguntou:
--Você não me tem em grande conta como político,
tem, Ned?
Então foi o rosto de Ned Beaumont que corou. Ele
disse:
--Eu não disse isso, Paul.
--Mas foi o mesmo que dizer, não foi? -- insis-
tiu Madvig.
--Não, mas acho que você deixou que lhe pas-
sassem pra trás. Primeiro, deixou os Henrys
manobrarem você pra apoiar o senador. Aí es-
tava a sua oportunidade de entrar e liquidar
um inimigo acuado, mas acontece que esse
126/372
inimigo tinha uma filha, posição social e sei
mais o que, e você...
--Deixe disso, Ned -- resmungou Madvig.
O rosto de Ned Beaumont ficou sem expressão. Ele se
levantou, dizendo:
--Bem, tenho de me apressar.
E voltou-se para a porta.
Imediatamente Madvig saltou nos seus calcanhares,
com uma mão em seu ombro, dizendo:
--Espere, Ned.
Ned Beaumont disse:
--Tire a mão de mim.
Não se voltou.
Madvig pôs a outra mão no braço de Ned Beaumont e o
fez voltar.
--Escute aqui, Ned -- começou.
Ned Beaumont disse:
--Me solte. -- Tinha os lábios pálidos e rígidos.
Madvig sacudiu-o. Disse:
--Não seja um maldito idiota. Você e eu...
Ned Beaumont atingiu a boca de Madvig com o punho
esquerdo.
Madvig tirou as mãos de cima de Ned Beaumont e re-
cuou dois passos. Enquanto seu pulso tinha tempo
talvez de bater três vezes, ele permaneceu boquiaberto,
o pasmo estampado na face. Depois seu rosto
127/372
enegreceu de cólera e ele cerrou a boca com força,
fazendo com que o queixo ficasse duro e inchado. Cer-
rou os punhos, ergueu os ombros e avançou.
Ned Beaumont passou a mão de lado para pegar uma
das pesadas canecas de cerveja, embora não a erguesse
da mesa. Curvou o corpo um pouco para o lado, ao se
inclinar para pegar a caneca. Fora isso, enfrentava
diretamente o loiro. Tinha o rosto franzido e rígido, lin-
has brancas de tensão em torno da boca. Os olhos
negros fuzilavam ferozmente os azuis de Madvig.
Ficaram assim, a menos de um metro de distância --
um loiro, alto e de físico poderoso, curvado para a
frente, os enormes ombros encolhidos, os grandes pun-
hos em posição; o outro de cabelos e olhos negros, alto
e magro, o corpo um pouco curvado para o lado, com
um braço estendido desse lado para segurar a pesada
caneca de vidro pela alça -- e a não ser pelas respir-
ações, não se ouvia som algum na sala. Também não
vinha som algum do bar do outro lado da fina porta,
nem o tinir de copos, nem o zumbido de conversas,
nem o barulho de água correndo.
Depois de bem uns dois minutos, Ned Beaumont re-
tirou a mão da caneca e deu as costas a Madvig. Nada
mudara em seu rosto, a não ser nos olhos, que, já que
não se concentravam nos de Madvig, se tornaram
128/372
duros e frios em vez de furiosos. Ele deu um passo até a
porta, sem pressa.
Madvig falou em voz rouca, do fundo do peito.
--Ned.
Ned Beaumont parou. Seu rosto ficou mais pálido. Ele
não se voltou.
Madvig disse:
--Seu filho da puta louco.
Então Ned Beaumont se voltou, devagar.
Madvig estendeu a mão aberta e empurrou o rosto de
Ned Beaumont para um lado, fazendo-o perder o
equilíbrio e afastar rapidamente um pé e pôr uma mão
numa das cadeiras à mesa.
Madvig disse:
--Eu devia lhe dar uma surra dos diabos.
Ned Beaumont sorriu irritado e sentou na cadeira con-
tra a qual cambaleara. Madvig sentou na frente dele e
bateu no tampo da mesa com a caneca.
O barman abriu a porta e enfiou a cabeça.
--Mais cerveja -- disse Madvig.
Do bar, através da porta aberta, vinha o som de ho-
mens conversando e de copos batendo em copos e em
madeira.
4
A DOG HOUSE
1
Ned Beaumont, tomando o café da manhã na cama,
gritou:
--Entre -- e depois, quando a porta da frente se ab-
riu e fechou: -- Sim?
Uma voz grave e rouca na sala de estar perguntou:
--Onde está você, Ned?
Antes que ele pudesse responder, o dono da voz arran-
hada entrou no quarto e disse:
--Que moleza, hein?
Era um jovem forte, com um pálido rosto quadrado,
boca larga de lábios grossos, de um dos cantos da boca
pendia um cigarro, e alegres olhos vesgos.
--Olá, Whisky -- disse Ned Beaumont. -- Pegue
uma cadeira.
Whisky olhou em volta do quarto.
--Bom lugarzinho você tem aqui -- disse.
Tirou o cigarro dos lábios e, sem virar a cabeça, usou-o
para indicar a sala de estar atrás, por cima do ombro.
--Pra que toda aquela bagagem? Está se mudando?
130/372
Ned Beaumont mastigou bem e engoliu os ovos mex-
idos que tinha na boca, antes de responder:
--Estou pensando.
Whisky disse: -- É? -- enquanto pegava uma cadeira
que estava diante da cama. -- Pra onde?
--Nova Iorque, talvez.
--Que quer dizer com talvez?
Ned Beaumont disse:
--Bem, arranjei um ducado que aponta pra lá.
Whisky bateu a cinza do cigarro no chão e tornou a
pôr no canto esquerdo da boca. Fungou.
--Quanto tempo vai ficar fora?
Ned Beaumont segurava a xícara de café no meio do
caminho entre a bandeja e a boca. Ficou olhando pens-
ativamente o jovem por cima dela. Afinal, disse:
--É uma passagem só de ida.
E bebeu.
Whisky olhava para ele de lado agora, até fechar in-
teiramente um dos olhos negros, enquanto o outro não
passava de um fino brilho negro. Tirou o cigarro da
boca e bateu-o de novo, jogando mais cinza no chão.
Sua voz arranhada tinha um tom persuasivo.
--Por que não procura Shad antes de ir embora? --
sugeriu.
Ned Beaumont largou a xícara e sorriu. Disse:
131/372
--Shad e eu não somos tão amigos assim pra que ele
fique sentido se eu for embora sem dizer adeus.
Whisky disse:
--Não é isso.
Ned Beaumont transferiu a bandeja do colo para a mes-
inha de cabeceira. Virou-se de lado, apoiando-se num
dos cotovelos sobre o travesseiro. Puxou os lençóis
mais para cima, no peito. Depois perguntou:
--Que é então?
--É que você e Shad podem se entender.
Ned Beaumont balançou a cabeça.
--Acho que não.
--Não pode estar errado? -- perguntou
Whisky.
--Claro -- admitiu o homem na cama. -- Uma
vez, em 1912, cometi um erro. Esqueci o que
foi.
Whisky levantou-se, para esmagar seu cigarro num dos
pratos da bandeja, parado ao lado da cama, junto à
mesinha, disse:
--Por que não tenta, Ned?
Ned Beaumont franziu a testa.
--Me parece perda de tempo. Não acho que Shad e
eu possamos nos dar bem.
132/372
Whisky chupou um dente ruidosamente. Os lábios
grossos, caídos nos cantos, deram ao ruído um tom de
escárnio.
--Shad acha que podiam. Ned Beaumont abriu
os olhos.
--É? -- perguntou. -- Foi ele quem mandou
você aqui?
--Diabos, foi -- disse Whisky. -- Não acha que
eu ia estar aqui, falando desse jeito, se ele não
tivesse mandado.
Ned Beaumont tornou a estreitar os olhos e perguntou:
--Porquê?
--Porque ele acha que você e ele podem se
entender.
--O que quero dizer -- explicou Ned Beau-
mont --, é por que ele achou que eu ia querer
me entender com ele?
Whisky fez uma expressão de repugnância.
--Está querendo brincar comigo, Ned? --
perguntou.
--Não.
--Bem, pelo amor de Deus, não acha que todo
mundo na cidade sabe que você e Paul
brigaram no bar de Pip Carson ontem?
Ned Beaumont assentiu com a cabeça.
133/372
--Então é isso -- disse baixinho, como para si
mesmo.
--É isso -- garantiu o homem de voz arran-
hada, e mais:
--Acontece que Shad sabe que você ficou
bravo porque achava que Paul não devia man-
dar fechar as casas dele. Agora, você está em
boa situação com Shad, se souber usar a
cabeça.
Ned Beaumont disse, pensativamente:
--Não sei, não. Eu gostaria de dar o fora da-
qui, voltar pra cidade grande.
--Use a cabeça -- disse Whisky. -- A cidade
grande vai estar no mesmo lugar depois da
eleição. Fique por aí. Sabe que Shad está cheio
da nota e soltando muito pra derrotar Madvig.
Fique por aí e pegue uma fatia.
--Bem -- disse lentamente Ned Beaumont --,
não ia fazer mal nenhum discutir o assunto
com ele.
--Você está danado de certo -- disse Whisky,
animado.
--Prenda a fralda com o alfinete e vamos agora
mesmo.
Ned Beaumont disse: -- Certo -- e saltou da cama.
134/372
2
Shad O'Rory levantou e fez uma reverência.
--É um prazer ver você, Beaumont -- disse. --
Jogue o chapéu e o casaco em qualquer lugar.
Não ofereceu a mão para um aperto.
Ned Beaumont disse: -- Bom dia -- e começou a tirar o
casaco.
Da porta, Whisky disse:
--Bem, vejo vocês depois.
0'Rory disse: -- É, faça isso -- e Whisky, puxando a
porta ao recuar, deixou-os.
Ned Beaumont largou o casaco no braço do sofá, pôs o
chapéu em cima e sentou ao lado. Olhava O'Rory sem
curiosidade.
O'Rory tinha voltado para sua cadeira, uma coisa quad-
rada e fofa de um dourado e um vinho mortiços.
Cruzou as pernas e juntou as mãos -- as pontas dos de-
dos se tocando -- sobre o joelho de cima. Deixou a
cabeça finamente esculpida afundar em direção ao
peito, de modo que os olhos azuis-cinza olhassem Ned
Beaumont de baixo para cima, por baixo das sobrancel-
has. Disse, em sua voz irlandesa de agradável
modulação:
--Devo alguma coisa a você por tentar conven-
cer Paul a não...
135/372
--Não deve nada -- disse Ned Beaumont.
O'Rory perguntou:
--Não?
--Não. Eu estava do lado dele. O que disse foi
pro próprio bem dele. Achei que estava
fazendo uma má jogada.
O'Rory sorriu delicadamente.
--E ele vai saber disso antes de acabar.
Fez-se silêncio durante algum tempo, então. O'Rory
sentava meio afundado em sua poltrona, sorrindo para
o visitante. Ned Beaumont sentava no sofá, olhando
com olhos que não davam qualquer indicação do que
ele pensava.
O silêncio foi quebrado por O'Rory, que perguntou:
--Que foi que Whisky lhe falou?
--Nada. Disse que você queria falar comigo.
--Agiu muito bem no que se refere a ele --
disse O'Rory. Separou as pontas dos dedos e
bateu as costas de uma das finas mãos na
palma da outra. -- É verdade que você e Paul
romperam pra sempre?
--Eu achava que você sabia disso -- respondeu
Ned Beaumont. -- Achava que foi por isso que
mandou me chamar.
136/372
--Eu soube -- disse O'Rory --, mas nem
sempre é a mesma coisa. Que pensa que podia
fazer agora?
--Estou com uma passagem pra Nova Iorque
no bolso e as malas prontas.
O'Rory ergueu uma mão e alisou o lustroso cabelo
branco.
--Você veio pra cá de Nova Iorque, não foi?
--Eu nunca disse a ninguém de onde vim.
O'Rory tirou a mão dos cabelos e fez um pequeno gesto
de protesto.
--Não acha que eu ligo pro lugar de onde qualquer
cara vem, acha? -- perguntou.
Ned Beaumont não disse nada.
O homem de cabelos brancos disse:
--Mas me importo em saber pra onde você vai,
e se dependesse de mim gostaria que não fosse
pra Nova Iorque por uns tempos. Já pensou
por acaso que talvez possa ganhar muito fic-
ando aqui?
--Não -- disse Ned Beaumont --, isto é, não
até Whisky aparecer.
--E que pensa agora?
--Não sei de nada. Estou esperando pra ouvir
o que você tem a me dizer.
137/372
O'Rory tornou a levar a mão aos cabelos. Seus olhos
azul-cinza se mostravam amistosos e astutos.
Perguntou:
--Há quanto tempo está aqui?
--Um ano e três meses.
--E há quanto tempo você e Paul eram como
carne e unha?
--Um ano.
O'Rory balançou a cabeça.
--Deve saber um monte de coisas sobre ele --
disse.
--Sei, sim.
O'Rory disse:
--Deve saber um monte de coisas que poderiam me
ser úteis.
Ned Beaumont disse, numa voz chã:
--Faça sua proposta.
O'Rory se levantou das profundezas de sua poltrona e
se dirigiu até uma porta oposta àquela pela qual Ned
Beaumont tinha entrado. Quando a abriu, um imenso
buldogue inglês saiu. O'Rory retornou à sua poltrona. O
cão se deitou no tapete na frente da poltrona vinho e
dourado, olhando com olhos sombrios o dono.
O'Rory disse:
--Uma coisa que posso lhe oferecer é a oportunid-
ade de uma boa vingança contra Paul.
138/372
Ned Beaumont disse:
--Isso não significa nada pra mim.
--Não?
--No que me diz respeito, estamos quites.
O'Rory ergueu a cabeça. Perguntou baixinho:
--E não gostaria de fazer alguma coisa que
prejudicasse ele?
--Eu não disse isso -- respondeu Ned Beau-
mont meio irritado. -- Não me importa preju-
dicar ele, mas posso fazer isso qualquer hora
por mim mesmo, e não quero que você pense
que estará me dando alguma coisa quando me
der uma oportunidade de fazer isso.
O'Rory balançou a cabeça pra cima e pra baixo,
agradavelmente.
--Pra mim está bem -- disse --, contanto que ele
seja prejudicado. Por que ele liquidou o jovem
Henry?
Ned Beaumont deu uma risada.
--Vá devagar -- disse. -- Ainda não fez sua
proposta. É um cachorro bonito. Que idade
tem?
--Mais ou menos o limite, sete anos. -- O'Rory
esticou v um pé e esfregou a ponta do focinho
do cachorro com ele. O animal balançou a
cauda indolentemente.
139/372
--Que tal acha isso? Depois da eleição eu ar-
rumo pra você a melhor casa de jogo que este
Estado já viu, e deixo que dirija ela do jeito
que te agradar, com toda a proteção que já
ouviu falar.
--Isso é uma oferta na base do se -- disse Ned
Beaumont, de um jeito meio chateado. -- Se
vocês vencerem. Seja como for, não tenho cer-
teza se quero ficar aqui depois da eleição, ou
mesmo até lá.
O'Rory parou de esfregar o focinho do cachorro com a
ponta do sapato. Ergueu o olhar para Ned Beaumont,
sorriu ambiciosamente e perguntou:
--Não acredita que a gente vai ganhar a eleição?
Ned Beaumont sorriu.
--Você nem mesmo aposta nisso.
Ainda sorrindo ambicionamente, O'Rory fez outra
pergunta:
--Você não é bom demais pra se juntar
comigo, é, Beaumont?
--Não. -- Ned Beaumont levantou-se e pegou
o seu chapéu. -- Não foi idéia minha. -- A voz
era casual, o rosto cortesmente inexpressivo.
-- Eu disse a Whisky que ia ser pura perda de
tempo. -- Estendeu a mão para pegar o casaco.
O homem de cabelos brancos disse:
140/372
--Sente aí. A gente ainda pode conversar, não pode?
E talvez chegue a alguma parte antes de acabar.
Ned Beaumont hesitou, ergueu levemente os ombros,
tirou o chapéu, colocou-o com o casaco no sofá e
sentou-se junto deles.
O'Rory disse:
--Eu lhe dou dez mil mangos em dinheiro agora, se
você vier pra cá, e outros dez mil na noite da
eleição, se a gente vencer Paul, e mantenho a oferta
daquela casa pra você pegar ou largar.
Ned Beaumont franziu os lábios e olhou sombriamente
para O'Rory, por baixo de sobrancelhas unidas.
--Quer que eu traia ele, é claro -- disse.
--Quero que vá ao Observer e conte tudo o
que sabe sobre as coisas em que ele está en-
volvido... os contratos dos esgotos, como e por
que Henry foi assassinado, aquela sujeira de
Shoemaker no fim do ano passado, a maneira
corrupta como ele governa a cidade.
--Não tem nada no caso dos esgotos agora --
disse Ned Beaumont, falando como se tivesse
a mente mais ocupada com outras coisas. --
Ele abriu mão dos lucros pra não levantar
nenhuma suspeita.
141/372
--Está bem -- admitiu O'Rory, com leve confi-
ança. -- Mas tem alguma coisa no caso de
Taylor Henry.
--É, a gente podia pegar ele por aí -- disse Ned
Beaumont, franzindo a testa --, mas não sei se
poderia usar o caso de Shoemaker... -- hesitou
-- sem criar encrenca pra mim.
--Diabos, não queremos isso -- disse correndo
O'Rory. -- Isso está fora. Que mais temos?
--Talvez a gente possa fazer alguma coisa com
a extensão da concessão dos bondes, e com
aquele problema no ano passado no tribunal
de contas do município. Mas vamos ter de cav-
ar um pouco primeiro.
--Valerá a pena pra nós dois -- disse O'Rory.
-- Eu mando Hinkle... é o cara do Observer...
arrumar o material. Basta você dar o serviço
pra ele, que ele escreve. Podemos começar
com esse negócio de Taylor Henry. É uma
coisa que está quente.
Ned Beaumont alisou o bigode com a unha do polegar e
murmurou:
--Talvez.
Shad O'Rory deu uma risada.
--O que você quer dizer é que a gente deve começar
primeiro com os dez mil dólares? -- perguntou. --
142/372
Tem certa razão nisso. -- Levantou-se, atravessou a
sala até a porta que abriu para o cachorro e fechou
atrás de si. O cão não se levantou da frente da pol-
trona vinho e ouro.
Ned Beaumont acendeu um charuto. O cão virou a
cabeça e olhou-o.
O'Rory voltou com um grosso maço de verdes notas de
cem dólares presas por uma tira de papel pardo, na
qual estava escrito em tinta azul: $ 10.000. Bateu o
maço na outra mão e disse:
--Hinkle está aqui agora. Disse a ele que viesse.
Ned Beaumont enrugou a testa.
--Devia me dar um pouco de tempo pra arru-
mar minha mente.
--É só passar a coisa a Hinkle do jeito que sair.
Ele dá a forma.
Ned Beaumont assentiu com a cabeça. Soprou a fumaça
do charuto e disse:
--É, posso fazer isso.
O'Rory estendeu o maço com a grana.
Dizendo "Obrigado", Ned Beaumont recebeu e guardou
o dinheiro no bolso interno do paletó. O maço formou
um volume no lugar, sobre o peito chato.
Shad O'Rory disse:
--O agradecimento é nos dois sentidos.
E retornou para sua poltrona.
143/372
Ned Beaumont tirou o charuto da boca.
--Tem uma coisa que eu quero lhe dizer enquanto
ainda me lembro -- disse. -- Cavar provas contra
Walt Ivans no assassinato de West não prejudicará
tanto Paul quanto se a gente deixar como está.
O'Rory olhou curiosamente para Ned Beaumont por
um momento, antes de perguntar:
--Porquê?
--Paul não vai deixar ele usar o álibi do Club.
--Quer dizer que vai ordenar aos rapazes que
esqueçam que Ivans esteve lá?
--É.
O'Rory fez um ruído com a língua e perguntou:
--Como ele teve a idéia de que eu ia jogar com
Ivans?
--Oh, a gente imaginou.
O'Rory sorriu.
--Você quer dizer que você imaginou -- disse. --
Paul não é tão esperto assim.
Ned Beaumont fez uma careta de modéstia e
perguntou:
--Que tipo de serviço vocês empurraram pro Ivans?
O'Rory deu uma risadinha.
--Mandamos o palhaço a Braywood comprar
as armas que foram usadas. -- Seus olhos
azul-cinza tornaram-se de repente duros e
144/372
penetrantes. Depois tornaram a se mostrar di-
vertidos, e ele disse: -- Oh, bem, nada disso é
grande coisa, agora que Paul está decidido a
criar barulho grosso. Mas foi isso que fez ele
começar a dar em cima de mim, não foi?
--Foi -- disse Ned Beaumont --, embora
provavelmente isso fosse acontecer mais cedo
ou mais tarde. Paul acha que foi ele quem
ajudou você no início, aqui, e que você devia
ficar debaixo da asa dele, e não crescer o
bastante pra enfrentar ele.
O'Rory sorriu delicadamente.
--E eu sou o cara que vou fazer ele se arrepender de
um dia ter me dado essa ajuda. -- prometeu. -- Ele
pode...
Abriu-se uma porta e entrou um homem. Era um jovem
de roupa cinza, folgada. Tinha o nariz e as orelhas
muito grandes. O cabelo, de um castanho indefinido,
precisava de um corte, e o rosto um tanto sujo parecia
demasiado enrugado para a idade.
--Entre, Hinkle -- disse O'Rory. -- Este é Beau-
mont. Vai dar o serviço pra gente. Me mostre
quando tiver arrumado tudo, e a gente faz a
primeira jogada no jornal de amanhã.
Hinkle sorriu, exibindo dentes ruins, e murmurou algo
educado ao visitante.
145/372
Ned Beaumont se levantou, dizendo:
--Ótimo, vamos pra minha casa agora e começar a
trabalhar.
O'Rory balançou a cabeça.
--Será melhor aqui -- disse.
Ned Beaumont, pegando o chapéu e o casaco, sorriu e
disse:
--Sinto muito, mas estou esperando alguns tele-
fonemas e coisas assim. Pegue seu chapéu, Hinkle.
Hinkle, parecendo assustado, ficou parado e mudo.
O'Rory disse:
--Vai ter de ficar aqui, Beaumont. Não podemos
deixar que lhe aconteça alguma coisa. Aqui terá
bastante proteção.
Ned Beaumont deu seu mais belo sorriso.
--Se é com o dinheiro que está preocupado --
pôs a mão no interior do paletó e tirou o maço
--, pode ficar com ele até eu entregar o
material.
--Não estou preocupado com nada -- disse
calmamente O'Rory. -- Mas você está ferrado
se Paul souber que veio a mim, e não quero
correr nenhum risco de que seja liquidado.
--Vai ter de correr -- disse Ned Beaumont. --
Eu vou.
O'Rory disse:
146/372
--Não.
Ned Beaumont disse:
--Sim.
Hinkle se virou rapidamente e saiu da sala.
Ned Beaumont virou e se dirigiu para a outra porta,
aquela que tinha entrado, andando empertigado e sem
pressa.
O'Rory falou algo ao buldogue a seus pés. O cão se le-
vantou numa pressa desajeitada e passou por Ned
Beaumont, se postando contra a porta. Ficou parado,
com as pernas abertas, mal-humorado.
Ned Beaumont sorriu com os lábios presos e se voltou
novamente para O'Rory. Tinha o maço de dez mil
dólares na mão. Ergueu-o e disse:
--Você sabe onde pode enfiar isso.
E atirou o pacote para O'Rory.
Quando baixou o braço, o cão, saltando desajeitado,
veio em cima dele. As mandíbulas fecharam-se sobre o
seu pulso. Ned Beaumont foi jogado para a esquerda
pelo impacto e caiu sobre um joelho, com o braço perto
do chão para tirar dele o peso do animal.
O'Rory levantou de sua poltrona e foi até a porta por
onde Hinkle batera em retirada e abriu. Disse:
--Chegue aqui um minuto.
Depois se aproximou de Ned Beaumont, que, ainda
sobre um dos joelhos, tentava soltar o braço dos puxões
147/372
do cachorro. O animal estava quase agachado no chão,
as quatro patas retesadas, segurando apresa.
Whisky e dois outros homens entraram na sala. Um
deles era o sujeito amacacado e bambo que acompan-
hara Shad O'Rory ao Log Cabin Club. O outro era um
garoto de cabelos cor de areia, de dezenove ou vinte
anos, forte, rosado e sombrio. O garoto sombrio passou
por trás de Ned Beaumont, ficando entre ele e a porta.
O sujeito bambo pôs a mão direita sobre o braço es-
querdo de Ned Beaumont, o braço que o cão não se-
gurava. Whisky parou a meio caminho entre Ned Beau-
mont e a outra porta.
Então O'Rory disse ao cão:
--Patty!
O animal soltou o pulso de Ned Beaumont e se en-
caminhou para seu dono.
Ned Beaumont se levantou. Tinha o rosto pálido e mol-
hado de suor. Olhou a manga do paletó e o pulso
rasgados, e o sangue escorrendo pela mão, que tremia.
O'Rory disse, em sua voz irlandesa musical:
--Foi você quem pediu.
Ned Beaumont ergueu o olhar do pulso para o homem
de cabelos brancos,
--É -- disse --, e vai ser preciso um pouco mais do
que isso pra me impedir de sair daqui.
148/372
3
Ned Beaumont abriu os olhos e gemeu.
O garoto de faces rosadas e cabelo cor de areia virou
a cabeça por sobre o ombro para rosnar:
--Cala a boca, seu bastardo!
O homem amacacado disse:
--Deixe ele em paz, Rusty. Talvez tente sair de novo,
e aí agente se diverte mais. -- Sorriu olhando os nós
dos dedos inchados. -- Dê as cartas.
Ned Beaumont murmurou alguma coisa sobre Fedink e
sentou. Estava numa cama estreita, sem lençóis nem
colcha de qualquer espécie. O colchão nu exibia man-
chas de sangue. Ele tinha o rosto inchado, ferido e en-
sangüentado. Sangue seco colava a manga de sua cam-
isa ao pulso que o cachorro mordera, e a mão tinha
uma crosta de sangue coagulado. Estava num quart-
inho amarelo e branco, mobiliado com duas cadeiras,
uma mesa, uma cômoda, um espelho de parede e três
gravuras francesas em molduras brancas, além da
cama. Diante dos pés da cama havia uma porta aberta,
mostrando parte do interior de um banheiro de azule-
jos brancos. A outra porta que havia estava fechada.
Não havia janelas.
149/372
O homem moreno amacacado e o garoto de faces rosa-
das e cabelo arenoso sentavam nas cadeiras jogando
baralho na mesa, sobre a qual se viam cerca de vinte
dólares em notas e em moeda.
Com uns olhos negros onde o ódio se mostrava como
um brilho embaçado, vindo de muito abaixo da super-
fície, Ned Beaumont olhou os jogadores e começou a
sair da cama. Era uma tarefa difícil. O braço direito
pendia inútil. Teve de jogar uma perna de cada vez por
sobre a beira da cama, com a mão esquerda, e duas
vezes caiu de lado e teve de se reerguer com o braço
esquerdo.
Uma vez o homem amacacado olhou de lado, esque-
cendo as cartas, para perguntar gozadoramente:
--Como está indo, irmão?
Fora isso, os outros dois deixaram ele em paz.
Ele se levantou finalmente, trêmulo, ficando de pé
junto da cama. Se firmando com a mão esquerda na
cama, chegou até a extremidade dela. Então se en-
direitou e, olhando fixamente sua meta, avançou para a
porta fechada. Perto dela tropeçou e caiu de joelhos,
mas a mão esquerda, estendida desesperadamente,
pegou a maçaneta e ele tornou a erguer-se.
Então o homem amacacado pôs as cartas cuida-
dosamente na mesa e disse:
--Agora.
150/372
Seu sorriso, que mostrava dentes notavelmente bonitos
e brancos, era largo o bastante para mostrar que não se
tratava de dentes naturais. Ele se aproximou e ficou
parado junto a Ned Beaumont.
Ned Beaumont puxava a maçaneta da porta.
O homem amacacado disse:
--Vamos lá, Houdini.
E, com todo o seu peso por trás do soco, enfiou o punho
direito no rosto dele.
Ned Beaumont foi jogado contra a parede. Bateu
primeiro com a parte de trás da cabeça, e depois todo o
corpo grudou contra a parede, e ele deslizou até o chão.
O rosado Rusty, ainda segurando suas cartas na mesa, -
disse sombriamente:
--Deus do céu, Jeff, você vai rebentar ele.
Jeff disse:
--Ele? -- Indicou o homem a seus pés, chutando
não especialmente com força na coxa. -- Ninguém
pode rebentar ele. É duro. É um garoto duro. Gosta
disso. -- Curvou o corpo, agarrou as lapelas do
homem inconsciente, uma em cada mão, e o pôs de
joelhos. -- Não gosta, nenén? -- perguntou, e,
segurando-o sobre os joelhos com uma mão, lhe at-
ingiu o rosto com o outro punho.
Alguém sacudiu a maçaneta da porta do outro lado.
Jeff gritou:
151/372
--Quem é?
A voz agradável de O'Rory:
--Eu.
Jeff arrastou Ned Beaumont o bastante para abrir a
porta, deixou que ele caísse e a abriu com uma chave
tirada do bolso.
Entraram O'Rory e Whisky. O'Rory olhou para o
homem caído no chão, depois para Jeff, e finalmente
para Rusty. Tinha os olhos azul-cinza embaçados.
Quando falou, foi para perguntar a Rusty:
--Jeff esteve batendo nele só pra se divertir?
O garoto de faces rosadas balançou a cabeça.
--Esse Beaumont é um filho da puta -- disse
mal- humorado. -- Toda vez que acorda, se le-
vanta e começa alguma coisa.
--Não quero ele morto, ainda não -- disse
O'Rory. Baixou o olhar para Ned Beaumont. --
Vê se consegue fazer ele acordar de novo.
Quero falar com ele.
Rusty se levantou da mesa.
--Não sei -- disse. -- Ele está muito ruim.
Jeff estava mais otimista.
--Claro que a gente consegue -- disse. -- Vou
mostrar a vocês. Pegue os pés dele, Rusty. -- Passou
as mãos sob os braços de Ned Beaumont.
152/372
Levaram o homem inconsciente para o banheiro e o
puseram na banheira. Jeff fechou o ralo e abriu a
torneira de água fria embaixo e o chuveiro em cima.
--Isso vai fazer ele se levantar cantando num
instante.
Cinco minutos depois, quando o arrastaram pingando
da
banheira e o puseram de pé, Ned Beaumont conseguia
firmar- se. Levaram ele de novo para o quarto. O'Rory
sentava numa das cadeiras, fumando um cigarro.
Whisky tinha ido.
--Ponham ele na cama -- ordenou O'Rory.
Jeff e Rusty depositaram Ned Beaumont na cama, vir-
aram ele para cima e o ajeitaram. Quando tiraram as
mãos dele, ele caiu de costas. Puxaram-no para cima,
sentando-o, e Jeff lhe esbofeteou o rosto machucado
com a mão aberta, dizendo:
--Vamos lá, Rip Van Winkle, acorde.
--Bela chance dele voltar à vida -- resmungou
o mal- humorado Rusty.
--Acha que não vai voltar? -- perguntou Jeff,
animado, e tornou a esbofetear sua vítima.
Ned Beaumont abriu o único olho não fechado pela
inchação.
O'Rory disse:
--Beaumont.
153/372
Ned Beaumont ergueu a cabeça e tentou olhar em volta
do quarto, mas nada mostrava que ele via Shad O'Rory.
O'Rory se levantou da cadeira e ficou parado na frente
dele, se curvando até ter o rosto a poucos centímetros
do rosto do outro. Perguntou:
--Está me ouvindo, Beaumont?
O olho aberto de Ned Beaumont olhou com opaco ódio
os olhos de O'Rory.
O'Rory disse:
--Aqui é O'Rory, Beaumont. Está ouvindo o que eu
digo?
Movendo os lábios inchados com dificuldade, Ned
Beaumont externou um enrolado:
--Estou.
O'Rory disse:
--Bom. Agora escute o que vou lhe dizer. Você vai
me dar material sobre Paul. -- Falava muito dis-
tintamente, sem que sua voz perdesse nada do tom
musical. -- Talvez ache que não, mas vai. Vou man-
dar darem duro em você até você falar. Está me
entendendo?
Ned Beaumont sorriu. As condições do rosto tornavam
o sorriso horrível. Ele disse:
--Não falo.
O'Rory recuou e disse:
--Dêem duro nele.
154/372
Enquanto Rusty hesitava, o amacacado Jeff bateu na
mão erguida de Ned Beaumont, afastando-a para um
lado, e o empurrou em cima da cama.
--Vou experimentar-uma coisa -- disse.
Pegou as pernas de Ned Beaumont e as jogou sobre a
cama. Se curvou sobre ele, as mãos trabalhando no
corpo.
O corpo, os braços e as pernas de Ned Beaumont es-
tremeceram convulsivamente e ele gemeu três vezes.
Depois disso ficou quieto.
Jeff se endireitou e tirou as mãos de cima do homem
deitado na cama. Ofegava pesadamente pela boca de
macaco. Rosnou, meio queixoso, meio em desculpa:
--Não adianta agora. Ele desmaiou de noto.
4
Quando Ned Beaumont recobrou a consciência, estava
sozinho no quarto, com as luzes acesas. Tão pen-
osamente quando antes, se arrancou da cama e atraves-
sou o quarto até a porta. Estava fechada. Ele mexia na
maçaneta quando ela se abriu de repente, o empur-
rando de costas contra a parede.
Jeff, em roupas de baixo e descalço, entrou.
-- Mas você não é mesmo uma maravilha? -- disse. --
Sempre com algum truquezinho. Nunca se cansa de ser
155/372
jogado no chão? -- Pegou-o pela garganta com a mão
esquerda
e lhe golpeou o rosto com o punho direito, duas
vezes,mas não com tanta força quanto antes. Depois o
jogou para trás, sobre a cama. -- E desta vez fique aí --
resmungou.
Ned Beaumont ficou quieto, com os olhos fechados.
Jeff saiu, fechando a porta atrás de si.
Dolorosamente, Ned Beaumont saiu da cama e se en-
caminhou para a porta. Experimentou-a. Depois recu-
ou dois passos e tentou jogar-se contra ela, con-
seguindo apenas cambalear até ela. Continuou tent-
ando até que a porta foi novamente escancarada por
Jeff.
Jeff disse:
--Eu nunca vi um cara que gostasse de apanhar
tanto, ou que eu gostasse de bater tanto. --
Inclinou-se bastante para um lado e desferiu o
punho desde o joelho.
Ned Beaumont permanecia cegamente no caminho do
punho, que atingiu sua face e o jogou do outro lado do
quarto. Ele ficou onde caiu. E ainda estava ali duas hor-
as depois quando Whisky entrou.
Whisky o acordou com água do banheiro e o ajudou a ir
para a cama.
156/372
--Use a cabeça -- pediu. -- Esses arruaceiros vão
matar você. Não têm juízo nenhum.
Ned Beaumont olhou com um olho sangrento e opaco.
--Deixe eles -- conseguiu dizer.
Dormiu até ser acordado por O'Rory, Jeff e Rusty.
Recusou-se a dizer a O'Rory qualquer coisa sobre os
negócios de Paul Madvig. Arrastaram-no para fora da
cama, espancaram até deixá-lo inconsciente, e o jogar-
am novamente na cama.
Isso se repetiu algumas horas depois. Não lhe troux-
eram comida.
Indo do quarto ao banheiro, quando recuperou a con-
sciência após a última dessas surras, ele viu, no chão ao
lado da base da pia, uma fina lâmina de barbear ver-
melha de meses de ferrugem. Pegá-la de trás da base
foi uma tarefa que lhe tomou dez minutos inteiros, e
seus nervos insensíveis falharam uma dúzia de vezes
até conseguirem pegá-la do chão de azulejos. Tentou
cortar a garganta com ela, mas a lâmina caiu de suas
mãos depois que ele apenas arranhara o queixo em três
partes. Deitou no chão do banheiro e soluçou até
adormecer.
Quando tornou a acordar, podia se levantar, e se levan-
tou. Molhou a cabeça com água fria e bebeu três copos
d'água. Isso o fez sentir náusea, e em seguida começou
a tremer de frio. Foi para o quarto e se deitou no
157/372
colchão nu manchado de sangue, mas se levantou
quase imediatamente para voltar cambaleando e
tropeçando apressado ao banheiro, onde se pôs de
quatro e vasculhou o chão até encontrar a lâmina de
barbear enferrujada. Sentou-se no chão e guardou-a no
bolso do colete. Ao fazer isso, seus dedos tocaram o
isqueiro. Ele o tirou e olhou. Um brilhe malicioso sur-
giu no seu único olho aberto, enquanto olhava o
isqueiro. Não era um brilho de sanidade.
Tremendo tanto que os dentes batiam, se levantou do
chão do banheiro e voltou ao quarto. Riu asperamente
quando viu o jornal debaixo da mesa onde o homem
moreno amacacado e o sombrio rapaz de faces rosadas
tinham jogado baralho. Rasgando, amassando e em-
bolando o jornal, levou-o até a porta e o pôs no chão.
Em cada uma das gavetas da cômoda encontrou um
pedaço de papel de embrulho dobrado, cobrindo o
fundo. Embolou-os e os colocou junto ao jornal contra
a porta. Com a lâmina de barbear, fez um rasgão no
colchão, retirou os grandes bolos de algodão cinza que
recheiam tais colchões e os levou até a porta. Não
tremia mais, nem cambaleava, e usava as mãos com ha-
bilidade, mas acabou se cansando de estripar o colchão
e arrastou o que restava dele -- com capa e tudo -- para
a porta.
158/372
Deu uma risadinha então e, após a terceira tentativa,
acendeu o isqueiro. Ateou fogo ao pé do monte contra a
porta. A princípio ficou junto do monte, agachado
sobre ele, mas à medida que a fumaça aumentou, recu-
ou passo a passo, relutantemente, tossindo enquanto
isso. Acabou entrando no banheiro, onde encharcou
uma toalha com água e enrolou em torno da cabeça,
cobrindo os olhos, nariz e boca. Voltou cambaleando
para o quarto, uma figura indefinida no ambiente enfu-
maçado, caiu contra a cama e sentou no chão ao lado
dela.
Jeff o encontrou ali ao entrar.
O homem amacacado entrou praguejando e tossindo
através do trapo que mantinha contra o nariz e a boca.
Ao abrir a porta, empurrara a maior parte do monte ar-
dente para trás, um pouco. Chutou mais um pouco para
fora do seu caminho e pisou por cima do resto para
chegar até Ned Beaumont. Pegou-o pela parte de trás
da gola e o arrastou para fora do quarto.
Do lado de fora, ainda segurando pela parte de trás da
gola, Jeff o colocou de pé a pontapés e fez que corresse
até o fim do corredor. Ali, o empurrou por uma porta
aberta. Gritou:
-- Vou comer uma de suas orelhas quando voltar, seu
bastardo.
159/372
Tornou a chutá-lo, voltou ao corredor, bateu a porta e
girou a chave na fechadura.
Ned Beaumont, metido no quarto a chutes, escapou de
uma queda se agarrando numa mesa. Endireitou o
corpo mais um pouco e olhou em volta. A toalha tinha
caído em torno do pescoço e sobre os ombros, como um
cachecol. O quarto tinha duas janelas. Ele se dirigiu à
mais próxima e tentou levantá-la. Estava fechada. Ele
destrancou e tentou levantá-la. Lá fora era noite. Pas-
sou uma perna pelo batente, depois a outra, virou-se de
modo a ficar de barriga para baixo sobre o batente,
escorregou até ficar pendurado pelas mãos, tateou com
os pés em busca de algum apoio, não encontrou nen-
hum e se deixou cair.
5
O HOSPITAL
1
Uma enfermeira fazia alguma coisa no rosto de Ned
Beaumont.
--Onde estou? -- ele perguntou.
--No Hospital São Lucas -- ela disse. Era
pequena, tinha olhos cor de avelã muito
grandes e brilhantes, uma voz sem fôlego e
abafada, e um cheiro de mimosa.
--Que dia?
--Segunda-feira.
--Que mês e ano? -- ele perguntou. Quando
ela franziu a testa, ele acrescentou: -- Oh,
deixe pra lá. Há quanto tempo estou aqui?
--Este é o terceiro dia.
--Onde tem um telefone? -- Ele tentou sentar.
--Pare com isso -- ela disse. -- Não se pode
usar o telefone, e não deve se excitar.
--Então use você. Chame Hartford seis e diga
ao sr. Madvig que preciso falar com ele
imediatamente.
161/372
--O sr. Madvig vem aqui todas as tardes -- ela
disse. -- Mas não creio que o dr. Tait deixe o
senhor falar com alguém ainda. Na verdade, já
falou agora um bocado mais do que devia.
--Que hora do dia é agora? Manhã ou tarde?
--Manhã.
--É muito tempo pra esperar -- ele disse. --
Chame ele agora.
--O dr. Tait virá aqui daqui a pouco.
--Não quero falar com o dr. Tait -- ele disse,
irritado. -- Quero Paul Madvig.
--Vai fazer o que lhe mandarem -- ela re-
spondeu. -- Vai ficar deitado aí, e calado, até o
dr. Tait chegar.
Ele armou uma carranca para ela.
--Que bela enfermeira você é. Ninguém nunca lhe
disse que não é bom pros pacientes que a gente dis-
cuta com eles?
Ela ignorou a pergunta.
Ele disse:
--Além disso, você está machucando meu queixo.
Ela disse:
--Se o senhor ficasse quieto, não doeria.
Ele ficou calado por um instante. Depois perguntou:
162/372
--Que acham que aconteceu comigo? Ou não
se adiantou bastante ainda em suas lições pra
saber?
--Provavelmente uma briga de bêbados -- ela
disse, mas não pôde se manter séria depois
disso. Deu uma risada e disse: -- Mas, hon-
estamente, o senhor não devia falar tanto, e
não pode ver ninguém enquanto o médico não
autorizar.
2
Paul Madvig chegou no início da tarde.
--Deus, é um prazer ver você vivo de novo! -- disse.
Pegou a mão não enfaixada do inválido nas suas.
Ned Beaumont disse:
--Eu estou bem. Mas escute o que a gente tem
de fazer: pegar Walt Ivans, mandar levar ele
até Braywood e mostrar ele aos negociantes de
armas de lá. Ele...
--Você já me disse tudo isso -- disse Madvig.
-- Já foi feito.
Ned Beaumont franziu a testa.
--Eu disse?
--Claro... na manhã que te acharam. Levaram
você pro pronto-socorro, e você não quis deix-
ar que lhe fizessem nada enquanto não falasse
163/372
comigo, e eu vim aqui e você me falou de Ivans
e Braywood e caiu duro.
--Desapareceu de minha mente -- disse Ned
Beaumont. -- Você grampeou eles?
--Pegamos os Ivans, claro, e Walt Ivans falou,
depois de ser identificado em Braywood, e o
Grande Júri indiciou Jeff Gardner e dois
joões-ninguém. Mas não vamos conseguir
grampear Shad com isso. Gardner é o cara
com quem Ivans tratou, e qualquer um sabe
que ele não ia fazer nada sem ordem de Shad,
mas provar isso é outra coisa.
--Jeff é o cara que parece um macaco, não é?
Já pegaram ele?
--Não. Shad escondeu ele depois que você fu-
giu, imagino. Eles pegaram você, não foi?
--Um-hum. Na Dog House, em cima. Fui lá ar-
mar uma arapuca pro cavalheiro e foi ele
quem armou uma pra mim. -- Franziu a testa.
-- Me lembro que fui lá com Whisky Vassos,
fui mordido por um cachorro, espancado vári-
as vezes por Jeff e um rapaz loiro. Depois teve
alguma coisa com um incêndio e... acho que é
só isso. Quem me encontrou? E onde?
164/372
--Um tira encontrou você se arrastando de
quatro no meio da rua Colman às três da man-
hã, deixando atrás uma trilha de sangue.
--Estou pensando em fazer umas coisas en-
graçadas -- disse Ned Beaumont.
3
A enfermeirinha de olhos grandes abriu caute-
losamente a porta e enfiou a cabeça.
Ned Beaumont falou numa voz cansada:
--Está bem... brincando de esconde-esconde! Não
acha que está um pouco velha demais pra isso?
A enfermeira abriu mais a porta e ficou na soleira,
segurando-a com uma mão.
--Não admira que os outros batam no senhor --
disse. -- Eu queria ver se estava acordado. O sr.
Madvig e... -- o tom sem fôlego tornou-se mais pro-
nunciado em sua voz, e os olhos mais brilhantes -- e
uma senhora estão aqui.
Ned Beaumont olhou com curiosidade e um pouco
gozadoramente,
--Que tipo de senhora?
--É a srta. Janet Henry -- ela respondeu, como
quem revela alguma inesperada brincadeira
agradável.
165/372
Ned Beaumont se virou de lado, dando as costas para a
enfermeira. Fechou os olhos. Um canto da boca
contorcia-se, mas a voz soou vazia de expressão.
--Diga a eles que ainda estou dormindo.
--O senhor não pode fazer isso -- ela disse. --
Eles sabem que não está dormindo... mesmo
que não tivessem ouvido o senhor falando...
ou que eu já tivesse voltado.
Ele gemeu dramaticamente e se ergueu sobre um dos
cotovelos.
--Isso só vai fazer com que ela volte outra hora --
resmungou. -- É melhor acabar logo com isso.
A enfermeira, olhando-o com olhos de pouca importân-
cia, disse ironicamente:
--Tivemos de pôr policiais diante do hospital
para conter todas as mulheres que querem ver
o senhor.
--Está muito bem você dizer isso -- ele disse.
-- Talvez se impressione com filhas de sen-
adores que estão nas colunas sociais todos os
dias, mas nunca foi cercado por elas do jeito
que eu fui. Digo a você que elas fizeram minha
vida infeliz, elas e suas colunas sociais. Filhas
de senadores, sempre filhas de senadores,
nunca a filha de um deputado ou de um minis-
tro de gabinete ou de um vereador, pra
166/372
variar... nunca outra coisa que não... Acha que
os senadores são mais políticos que...
--O senhor não tem graça nenhuma -- disse a
enfermeira. -- É a maneira como penteia o ca-
belo. Vou mandar que entrem. -- Deixou o
quarto.
Ned Beaumont inspirou profundamente. Seus olhos
brilhavam. Ele umedeceu os lábios, e depois os
comprimiu num contido sorriso cheio de segredo, mas
quando Janet Henry entrou no quarto o rosto dele era
uma máscara de polidez casual.
Ela veio direto à sua cama, e disse:
--Oh, sr. Beaumont, fiquei tão satisfeita ao saber
que estava se recuperando bem, que simplesmente
tive de vir. -- Pôs uma mão na dele e sorriu. Em-
bora seus olhos não fossem castanho-escuros, os ca-
belos loiros faziam parecer escuros. -- Assim, se não
queria que eu viesse, não deve culpar Paul. Fui eu
que fiz com que ele me trouxesse.
Ned Beaumont lhe retribuiu o sorriso e disse:
--Estou muitíssimo satisfeito que tenha feito isso. É
muitíssima bondade sua.
Paul Madvig, seguindo Janet Henry dentro do quarto,
fora para o outro lado da cama. Deu um sorriso afetu-
oso para ele e disse:
167/372
--Eu sabia que você ficaria, Ned. Foi o que
disse a ela. Como está hoje?
--Ótimo. Puxem umas cadeiras.
--Não podemos ficar -- respondeu o loiro. --
Tenho de me encontrar com M'Laughlin no
Grandcourt.
--Mas eu não -- disse Janet Henry. Tornou a
dirigir seu sorriso para Ned Beaumont. -- Não
posso ficar... um pouquinho?
--Eu adoraria -- garantiu Ned Beaumont, en-
quanto Madvig, contornando a cama para
oferecer uma cadeira à jovem, irradiava prazer
com cada um dos dois e dizia:
--Isso é ótimo.
Quando a garota sentou junto à cama, seu casaco negro
pendurado no encosto da cadeira, Madvig olhou o reló-
gio e falou:
--Preciso correr. -- Apertou a mão de Ned
Beaumont. -- Precisa de alguma coisa?
--Não, obrigado, Paul.
--Bem, melhoras. -- O loiro voltou-se para
Janet Henry, parou e tornou a falar a Ned
Beaumont: -- Até onde acha que devo ir com
M'Laughlin desta vez?
Ned Beaumont encolheu um pouco os ombros.
168/372
--Até onde você queira, contanto que não ponha
nada em termos claros. Isso ia assustar ele. Mas
pode contratar ele até pra cometer assassinatos, se
puser a coisa de uma maneira indireta, como por
exemplo: "Se houvesse um cara chamado Smith,
que morasse em tal e tal lugar, e ficasse doente ou
alguma coisa assim. O cara não ficava bom, você
aparecia por acaso pra falar comigo, e por sorte eu
tinha um envelope endereçado a você aos meus
cuidados. Como iria eu saber que ele continha quin-
hentos dólares?".
Madvig assentiu com a cabeça.
--Não preciso de assassinos -- disse --, mas
precisamos daquele voto ferroviário. -- Armou
uma carranca. -- Queria que você estivesse de
pé, Ned.
--Vou estar dentro de um ou dois dias. Você
viu o Observer esta manhã?
--Não.
Ned Beaumont olhou em volta do quarto.
--Alguém pegou ele. O lixo estava num editorial
dentro de um box no meio da primeira página. Que
vão nossas autoridades municipais fazer a re-
speito? Uma lista de crimes de um mês e meio, para
mostrar que estamos tendo uma onda de crimes. E
uma lista menor de quem foi preso, pra mostrar que
169/372
a polícia não pode fazer muita coisa a esse respeito.
A maior parte do berreiro é sobre o assassinato de
Taylor Henry.
Quando o nome de seu irmão foi citado, Janet Henry
piscou e abriu os lábios num leve suspiro. Madvig a ol-
hou, e depois rapidamente para Ned Beaumont,
movendo a cabeça num ligeiro gesto de advertência.
Ignorando o efeito de suas palavras sobre os outros,
Ned Beaumont continuou:
--Foram brutais a respeito. Acusaram a polícia de
manter deliberadamente as mãos longe do assas-
sino durante uma semana, pra que um jogador alta-
mente situado nos círculos políticos aproveitasse
pra acertar uma disputa com outro jogador... se
referiam à minha ida atrás de Despain pra pegar
meu dinheiro. Perguntavam o que o senador Henry
achava do uso feito pelo seu novo aliado político do
assassinato do filho dele pra esse fim.
Madvig, vermelho, remexendo em busca do relógio,
disse apressadamente:
--Vou arranjar um exemplar e ler. Preciso...
--Também -- prosseguiu serenamente Ned
Beaumont -- acusam a polícia de invadir... de-
pois de ter protegido eles durante anos... os
bares cujos donos não quiseram fazer con-
tribuições à campanha. É assim que
170/372
descrevem sua briga com Shad O'Rory. E pro-
metem publicar uma lista de estabelecimentos
que ainda estão funcionando porque os donos
contribuíram.
Madvig disse desconfortavelmente:
--Bem, bem, até logo. -- A Janet Henry: -- Tenha
uma boa visita. -- E a Ned Beaumont: -- Vejo você
depois. -- E saiu.
Janet Henry se curvou para a frente em sua cadeira.
--Por que você não gosta de mim? -- pergun-
tou a Ned Beaumont.
--Acho que talvez goste -- ele disse.
Ela balançou a cabeça.
--Não gosta. Eu sei.
--Não pode julgar pelos meus modos -- ele
disse. -- Eles sempre foram muito ruins.
--Você não gosta de mim -- ela insistiu, sem
corresponder ao sorriso dele. -- E quero que
goste.
Ele se mostrou modesto.
--Porquê?
--Porque você é o melhor amigo de Paul -- ela
respondeu.
--Paul -- ele disse, olhando-a enviesado -- tem
um monte de amigos: é um político.
Ela moveu a cabeça, com impaciência.
171/372
--Você é o melhor amigo dele. -- Fez uma
pausa, e acrescentou: -- Ele acha isso.
--E que acha você? -- ele perguntou, meio
sério.
--Acho que é mesmo -- ela disse gravemente
--, ou então não estaria aqui agora. Não teria
passado por isso tudo por ele.
Ele retorceu a boca num sorriso frouxo. Não disse
nada.
Quando ficou claro que não ia falar, ela disse
seriamente:
--Eu gostaria que você gostasse de mim, se pudesse.
Ele repetiu:
--Eu acho que talvez goste.
Ela balançou a cabeça.
--Não gosta, não.
Ele sorriu. Seu sorriso era muito jovem e atraente, os
olhos tímidos, a voz juvenil, retraída e confidente,
quando disse:
--Vou lhe dizer o que faz você pensar desse jeito,
srta. Henry. É que... sabe, Paul me tirou da sarjeta,
a gente pode dizer, há mais ou menos um ano, e por
isso eu fico meio desajeitado e atrapalhado quando
estou no meio de gente como você, que pertence a
outro mundo, inteiramente... Sociedade, colunas
sociais e essas coisas todas... e você interpreta
172/372
erradamente essa... hum... gaucherie como inimiz-
ade, que não é de jeito nenhum.
Ela levantou e disse:
--Está me ridicularizando.
Mas sem ressentimento.
Depois que ela se foi, Ned Beaumont se recostou nos
travesseiros e ficou olhando o teto com olhos reluzentes
até a chegada da enfermeira.
Ela entrou e perguntou:
--Que esteve aprontando agora?
Ned Beaumont ergueu a cabeça para olhá-la mal-
humoradamente, mas não falou.
A enfermeira disse:
--Ela saiu daqui quase à beira das lágrimas.
Ned Beaumont tornou a baixar a cabeça sobre os
travesseiros.
--Devo estar perdendo o jeito -- ele disse. -- Geral-
mente faço as filhas dos senadores chorarem.
4
Um homem de estatura média, jovem e elegante, com
um rosto fino e moreno, quase bonito, entrou.
Ned Beaumont se pôs sentado na cama e disse:
--Olá,Jack.
173/372
Jack disse:
--Você não parece tão ruim quanto eu achava
que estava.
--Ainda estou inteiro. Pegue uma cadeira.
Jack sentou e tirou um maço de cigarros.
Ned Beaumont disse:
--Tenho outro serviço pra você. -- Enfiou a mão sob
os travesseiros e tirou um envelope.
Jack acendeu o cigarro antes de pegar o envelope na
mão do outro. Era um envelope simples, branco, en-
dereçado a Ned Beaumont, no Hospital São Lucas, e
trazia o carimbo do correio local datado de dois dias
antes. Dentro, uma única folha de papel datilografado,
que Jack tirou e leu, dizia:
"Que sabe você sobre Paul Madvig que Shad O'Rory es-
tava tão ansioso por saber?
Tem alguma coisa a ver com o assassinato de Taylor
Henry?
Se não, por que você chegaria a tais extremos para
manter a coisa em segredo?"
Jack tornou a dobrar a folha de papel e a enfiá-la no en-
velope, antes de erguer a cabeça. Depois perguntou:
--Faz sentido?
--Não que eu saiba. Quero que descubra quem
escreveu isso.
Jack concordou com a cabeça.
174/372
--Posso ficar com ela?
--Pode.
Jack pôs o envelope no bolso.
--Alguma idéia sobre quem poderia ser?
--Absolutamente nenhuma.
Jack estudou a ponta acesa de seu cigarro.
--É um serviço, você sabe -- acabou dizendo.
--Eu sei -- concordou Ned Beaumont. -- E só
posso dizer a você que teve um monte delas...
ou várias delas... nas últimas semanas. Essa é
a terceira que eu recebo. Sei que Farr recebeu
pelo menos uma. Não sei quem mais tem
recebido.
--Posso ver alguma das outras?
Ned Beaumont disse:
--Essa foi a única que guardei. Mas são muito
iguais... o mesmo papel, a mesma máquina, três
perguntas em cada, todas sobre o mesmo assunto.
Jack encarou Ned Beaumont com olhos inquisitivos.
--Mas não exatamente as mesmas perguntas?
-- perguntou.
--Não exatamente, mas todas dirigidas ao
mesmo ponto.
Jack assentiu e puxou uma tragada do cigarro.
Ned Beaumont disse:
175/372
--Você compreende que isso é pra ser estrita-
mente confidencial.
--Claro. -- Jack tirou o cigarro da boca. -- O
"mesmo ponto" que você falou é a ligação de
Madvig com o assassinato?
--É -- respondeu Ned Beaumont, olhando
direto o elegante jovem moreno --, e não tem
ligação nenhuma.
O rosto moreno de Jack permaneceu impenetrável.
--Não vejo como poderia ter -- disse, e se levantou.
5
A enfermeira entrou trazendo uma grande cesta de
frutas.
-- Não é linda? -- disse.
Ned Beaumont concordou atenciosamente.
A enfermeira retirou um envelope compacto de dentro
da cesta.
--Aposto que é dela -- disse, dando ó envelope
a Ned Beaumont.
--Aposta o quê?
--Qualquer coisa que o senhor queira.
Ned Beaumont assentiu, como se alguma negra sus-
peita se confirmasse.
--Você olhou -- disse.
176/372
--Ora, seu... -- As palavras dela se inter-
romperam quando ele riu, mas a expressão da
moça permaneceu indignada.
Ele retirou o cartão de Janet Henry do envelope. Havia
um só pedido escrito nele: Por favor! Franzindo a testa
para o cartão, ele disse à enfermeira:
--Você ganhou. -- E bateu no cartão com a unha do
polegar: -- Sirva-se dessa porcaria e tire o bastante
pra parecer que eu comi.
Mais tarde, naquela mesma tarde, ele escreveu:
"Minha cara srta. Henry,
Você me deixou esmagado com sua bondade --
primeiro vindo me visitar, e depois com as frutas. Não
sei absolutamente como lhe agradecer, mas espero
poder algum dia lhe mostrar mais claramente minha
gratidão.
Sinceramente seu,
Ned Beaumont"
Ao acabar, leu o que escrevera, rasgou e tornou a escre-
ver em outra folha de papel, usando as mesmas palav-
ras, mas rearrumando-as para que a segunda frase ter-
minasse: "poder algum dia lhe mostrar minha gratidão
mais claramente".
6
177/372
Ned Beaumont, de roupão de banho e chinelos, lia
nessa manhã um exemplar do Observer, tomando o
café da manhã à mesa junto da janela, em seu quarto
de hospital, quando Opal Madvig entrou. Ele dobrou o
jornal, colocou-o virado para baixo na mesa junto à
bandeja e se levantou, dizendo cordialmente:
--Olá, pequena. -- Estava pálido.
--Por que não me telefonou quando voltou de
Nova Iorque? -- ela perguntou, num tom acus-
ador. Também estava pálida. A palidez acen-
tuava a textura infantil de sua pele, mas fazia o
rosto parecer menos jovem. Tinha os olhos
azuis arregalados e sombrios de emoção, mas
não facilmente decifrável. Mantinha um ar or-
gulhoso, à maneira de alguém mais seguro de
seu equilíbrio do que da estabilidade do chão
embaixo dos pés. Ignorando a cadeira que ele
puxou de perto da parede para ela, a jovem re-
petiu, imperativamente como antes: -- Por
que não telefonou?
Ele riu para ela suavemente, indulgentemente, e disse:
--Gosto de você nesse tom de marrom.
--Oh, Ned, por favor...
--Assim está melhor -- ele disse. -- Eu preten-
dia ir à sua casa, mas... bem... estava aconte-
cendo um monte de coisas quando voltei, e
178/372
tinha um monte de pontas soltas de outras que
haviam acontecido enquanto estive fora, e
quando acabei com elas me deparei com Shad
0'Rory e fui mandado pra cá. -- Acenou com o
braço indicando o hospital.
A seriedade dela não foi afetada pela leveza do tom.
--Vão enforcar aquele Despain? -- ela perguntou.
Ele tornou a rir e disse:
--Não vamos chegar muito longe falando desse
jeito.
Ela franziu a testa, mas disse com altivez:
--Vão, Ned?
--Não creio -- ele disse, balançando um pouco
a cabeça. -- Tudo indica que ele não matou
Taylor mesmo.
Ela não pareceu surpresa.
--Você sabia disso quando me pediu pra... pra
ajudar a... arranjar... ou plantar... provas contra
ele?
Ele sorriu repreensivamente.
--É claro que não, pequena. Que acha que eu
sou?
--Não sabia. -- A voz dela era fria e indiferente
como os olhos azuis. -- Só queria pegar o din-
heiro que ele lhe devia, e me fez usar o assas-
sinato de Taylor pra isso.
179/372
--Entenda como quiser -- ele respondeu com
desdém.
Ela deu um passo na direção dele. Um leve tremor
agitou
o seu queixo por um instante, e depois o rosto jovem
tornou-se novamente firme e ousado.
--Você sabe quem matou ele? -- perguntou, os ol-
hos sondando os dele.
Ele balançou a cabeça, devagar, de um lado para outro.
--Papai?
Ele piscou.
--Quer dizer, se Paul sabe quem matou ele?
Ela bateu o pé.
--Quero dizer se papai matou ele? -- ela gritou.
Ele tapou-lhe a boca com a mão. Seus olhos focalizando
a porta fechada.
--Cale a boca -- murmurou.
Ela tirou a mão dele, de seu rosto com uma das suas.
--Matou? -- insistiu.
Numa voz baixa e irada, ele disse:
--Se tem de ser uma débil mental, pelo menos não
vá sair por aí com um megafone. Ninguém dá a
mínima pra suas idéias idiotas, contanto que guarde
elas pra si mesma, mas tem de guardar elas pra si
mesma.
Ela tinha os olhos arregalados e sombrios.
180/372
--Então foi ele quem matou mesmo -- disse numa
voz baixa e chã, mas com absoluta certeza.
Ele aproximou o rosto do dela.
--Não, minha cara. -- A voz estava furiosa e adoci-
cada. -- Paul não matou ele. -- Segurava o rosto
dela junto do seu. Um sorriso mau distorcia suas
feições.
Com voz e expressão firmes, não recuando dele, ela
disse:
--Se ele não matou, não entendo que diferença faz o
que eu diga ou em que altura de voz.
Ele torceu um canto da boca.
--Ficaria surpresa se soubesse quantas coisas ex-
istem que você não pode entender -- disse furioso
-- e nunca entenderá, se continuar desse jeito.
Recuou dela, um longo passo, e enfiou os punhos nos
bolsos do roupão. Tinha os cantos da boca caídos, e se
viam rugas em sua testa. Os olhos estreitados fitavam o
chão em frente aos pés dela.
--De onde você tirou essa idéia maluca? --
resmungou.
--Não é uma idéia maluca. Você sabe que não
é.
Ele moveu os ombros com impaciência e perguntou:
--De onde tirou?
Ela também deu de ombros.
181/372
--Não tirei de lugar nenhum. Eu... eu de re-
pente vi.
--Bobagem -- ele disse de um modo cortante,
olhando-a por baixo das sobrancelhas. --
Você viu o Observer hoje de manhã?
--Não.
Ele a encarou com olhos duros e céticos.
O rosto dela começou a corar de aborrecimento.
--Não vi, não. Por que pergunta?
--Não?. -- O tom de voz dizia que não acred-
itava nela, mas o brilho de ceticismo desapare-
cera de seus olhos, que estavam opacos e
pensativos. De repente se iluminaram. Ele
tirou a mão direita do bolso do roupão, e
estendeu-a para ela, a palma virada para cima.
--Me mostre a carta -- disse.
Ela o olhou firme, de olhos arregalados.
--Quê?
--A carta -- ele disse --, a carta datilografada...
três perguntas e sem assinatura.
Ela baixou os olhos para evitar os dele, e o embaraço
perturbou muito levemente suas feições. Após um mo-
mento de hesitação, perguntou:
--Como você sabia? -- E abriu a bolsa
marrom.
182/372
--Todo mundo na cidade recebeu pelo menos
uma -- ele disse com indiferença. -- Essa aí é a
primeira que recebeu?
--É. -- Ela lhe entregou uma folha de papel
amassada.
Ele a desamassou e leu:
"Será você realmente estúpida demais para não saber
que seu pai matou seu namorado?
Se não sabe, por que ajudou a ele e a Ned Beaumont na
tentativa que fizeram de atribuir o crime a um
inocente?
Sabe que, ajudando seu pai a escapar da justiça, está se
tornando cúmplice do crime dele?"
Ned Beaumont assentiu com a cabeça e deu um leve
sorriso.
--São bastante parecidas. -- Fez uma bola com o
papel e jogou-a na cesta de lixo ao lado da mesa. --
Provavelmente vai receber mais delas, agora que es-
tá na lista de correspondência.
Opal Madvig prendeu o lábio inferior entre os dentes.
Seus olhos azuis brilhavam sem calor. Estudavam o
rosto de Ned Beaumont.
Ele disse:
--O'Rory está tentando extrair material de cam-
panha disso. Você sabe de meu problema com ele.
Foi porque ele pensou que eu tinha rompido com
183/372
seu pai e podia ser comprado pra ajudar a envolver
Paul no assassinato... pelo menos o bastante pra
vencer ele na eleição... e eu não quis.
Os olhos dela não se alteraram.
--Por que você e papai brigaram? --
perguntou.
--Não é da conta de ninguém, pequena -- ele
disse delicadamente --, se a gente brigou.
--Brigaram, sim, na espelunca de Carson. --
Cerrou os dentes com um estalido e disse ou-
sadamente: -- Brigaram quando você
descobriu que ele realmente tinha... tinha
matado Taylor.
Ele deu uma risada e perguntou em tom de
brincadeira:
--E eu não sabia disso o tempo todo?
A expressão dela não foi alterada pelo humor dele.
--Por que perguntou se eu tinha visto o Ob-
server? Que é que tem nele?
--Um pouco mais desse mesmo tipo de be-
steira -- ele disse, calmamente. -- Está ali em
cima da mesa, se quiser dar uma olhada. Vai
ter muita coisa assim até o fim da campanha:
vai ser desse jeito. E você vai dar a seu pai
uma ótima vantagem, aceitando... --
184/372
Interrompeu-se com um gesto de impaciência,
porque ela não mais o ouvia.
Tinha se dirigido à mesa e pegava o jornal que ele
largou quando ela havia entrado.
Ele sorriu divertido às costas dela e disse:
--Está na primeira página, Carta Aberta ao
Prefeito.
Enquanto lia, ela começou a tremer -- os joelhos, as
mãos, a boca -- de modo que Ned Beaumont franziu a
testa, apreensivo, mas quando ela acabou e jogou o jor-
nal em cima da mesa para olhá-lo de frente, o corpo
alto e o rosto loiro pareciam de estátua, em sua imobil-
idade. Ela falou com ele numa voz baixa, entre os lá-
bios, que mal se moviam para deixar passar as
palavras.
--Eles não se atreveriam a dizer essas coisas se
não fossem verdade.
--Isso não é nada diante do que ainda vão
dizer antes de acabarem. -- A voz estava ar-
rastada e preguiçosa. Parecia divertido, em-
bora houvesse sinais de uma raiva difícil de
conter no brilho dos olhos.
Ela o olhou por um longo instante, e depois, sem nada
dizer, voltou-se em direção à porta.
Ele disse:
--Espere.
185/372
Ela parou e o enfrentou de novo. O sorriso dele era
amistoso agora, aliciante. O rosto dela era o de uma es-
tátua pintada.
Ele disse:
--A política é um jogo duro, pequena, da
maneira como se joga aqui agora. O Observer
está do outro lado da cerca, e eles não estão se
preocupando muito com a verdade de
qualquer coisa desde que prejudique Paul.
Eles...
--Eu não acredito nisso. Conheço o sr.
Mathews... a mulher dele estava apenas uns
poucos anos na minha frente na escola, e
éramos amigas... e não acredito que ele dis-
sesse qualquer dessas coisas sobre papai se
não fosse verdade, ou se não tivesse um bom
motivo pra achar que são.
Ned Beaumont deu uma risadinha.
--Você sabe um bocado sobre isso. Mathews está
afundado até as orelhas em dívidas. A State Central
Trust Company tem hipotecas sobre a oficina dele...
e uma sobre a casa dele também, aliás. A State Cen-
tral pertence a Bill Roan, que concorre ao Senado
contra Henry. Mathews faz o que mandam ele fazer,
e publica o que mandam ele publicar.
186/372
Opal Madvig não disse coisa alguma. Nada indicava
que tivesse sido convencida pelos argumentos de Ned
Beaumont.
Ele prosseguiu, falando num tom amigável, persuasivo:
--Isso -- ele indicou o jornal na mesa com um
dedo -- não é nada em comparação com o que
virá depois. Vão chocalhar os ossos de Taylor
Henry até pensarem em alguma coisa melhor,
e nós vamos ter esse tipo de matéria pra ler até
acabar a eleição. É melhor a gente ir se acos-
tumando, e você, mais que ninguém, não deve
deixar que lhe aborreçam com isso. Paul não
se importa muito. É um político e...
--É um assassino -- ela disse, numa voz baixa
e distinta.
--E a filha dele é uma idiota! -- ele exclamou
irritado. -- Quer parar com essa tolice?
--Meu pai é um assassino.
--Você é louca. Escute, pequena. Seu pai não
teve nada, absolutamente nada, a ver com o
assassinato de Taylor Henry. Ele...
--Não acredito em você -- ela disse seria-
mente. -- Nunca mais vou acreditar em você.
Ele fez uma carranca para ela. Ela se virou e marchou
para a porta.
--Espere. Me deixe...
187/372
Ela saiu e bateu a porta atrás de si.
7
O rosto de Ned Beaumont, após uma careta de raiva
para a porta fechada, se tornou profundamente pensat-
ivo. Surgiram rugas em sua testa. Os olhos negros se
tornaram estreitos e introspectivos. Os lábios se fran-
ziram sob o bigode. Ele acabou levando um dedo à boca
e mordendo a unha. Respirava regularmente, porém de
um modo mais profundo que o habitual.
Soaram passos do outro lado da porta. Ele abandonou
sua aparência pensativa e se encaminhou como quem
não quer nada até a janela, cantarolando Little Lost
Lady. Os passos não pararam em sua porta. Ele parou
de cantarolar e se curvou para pegar a folha de papel
com as três perguntas que haviam sido endereçadas a
Opal Madvig. Não alisou o papel, mas enfiou-o, em-
bolado frouxamente como estava, num dos bolsos do
roupão.
Encontrou e acendeu um charuto, e com ele acesso
entre os dentes ficou junto à mesa, olhando enviesado,
através da fumaça, a primeira página do Observer.
UMA CARTA ABERTA AO PREFEITO
"Senhor,
188/372
O Observer recebeu certas informações que julga ser-
em de capital importância para esclarecer o mistério
que cerca o recente assassinato de Taylor Henry.
Essas informações estão limitadas a vários depoimen-
tos por escrito ora no cofre de segurança do Observer.
A essência desses depoimentos é a seguinte:
1. Que Paul Madvig brigou com Taylor Henry há alguns
meses devido às atenções que o jovem dedicava à sua
filha, e proibiu a filha de tornar a ver Henry.
2. Que a filha de Paul Madvig, apesar disso, continuou a
se encontrar com Taylor Henry num quarto mobiliado
que ele alugara para isso.
3. Que estiveram juntos nesse quarto mobiliado na
tarde do mesmo dia em que ele foi assassinado.
4. Que Paul Madvig foi para a casa de Taylor Henry
naquela noite, supostamente para discutir com o
jovem, ou com o pai dele, novamente.
5. Que Paul Madvig parecia furioso quando deixou a
residência de Henry poucos minutos antes de Taylor
Henry ser assassinado.
6. Que Paul Madvig e Taylor Henry foram vistos a meia
quadra um do outro, menos de uma quadra do local
onde se encontrou o corpo do jovem, não mais de quin-
ze minutos antes do corpo ser encontrado.
189/372
7. Que o Departamento de Polícia não tem atualmente
um único detetive empenhado em tentar descobrir o
assassino de Taylor Henry.
O Observer acredita que o senhor deve saber dessas
coisas, e que os eleitores e contribuintes também
devem sabê-las. O Observer não tem sede de vingança,
nenhum outro motivo além de ver que se faça justiça. O
Observer aguardará a oportunidade de entregar esses
depoimentos, assim como todas as outras informações
de que dispõe, ao senhor ou a qualquer autoridade
qualificada municipal ou estadual, e, se se puder
mostrar que tal atitude constitui uma ajuda à justiça, se
absterá de publicar qualquer um ou todos os detalhes
desses depoimentos.
Mas o Observer não deixará que se ignorem as inform-
ações contidas em tais depoimentos. Se as autoridades
eleitas e nomeadas para fazer vigorar a lei e a ordem
nesta cidade e neste Estado não considerarem esses de-
poimentos suficientemente importantes para que se
tomem iniciativas com base neles, o Observer levará o
assunto àquele tribunal maior, o Povo desta Cidade,
publicando-os na íntegra.
H. K. MATHEWS, Editor"
Ned Beaumont resmungou e soprou fumaça de charuto
nessa declaração, mas seus olhos permaneceram
sombrios.
190/372
8
No início dessa tarde a mãe de Paul Madvig veio visitar
Ned Beaumont.
Ele abraçou-a e beijou ambas as faces até que ela o re-
peliu, dizendo com fingida severidade:
--Pare com isso. Você é pior que o Airedale
que Paul tinha.
--Eu sou parte Airedale do lado de meu pai. --
E se pôs atrás dela para ajudá-la a tirar o
casaco de pele de foca.
Alisando o vestido negro, ela foi até a cama e sentou,
Ele pendurou o casaco nas costas de uma cadeira e
ficou parado -- pernas abertas, mãos nos bolsos do
roupão -- diante dela.
Ela o estudou criticamente.
--Você não parece tão mal -- acabou dizendo
-- nem tão bem ainda. Como se sente?
--Ótimo. Só estou demorando aqui por causa
das enfermeiras.
--Isso não me surpreenderia muito. Mas não
fique aí me olhando como um gato Cheshire.
Me deixa nervosa. Sente-se. -- Bateu na cama
a seu lado.
Ele se sentou junto dela.
191/372
Ela disse:
--Parece que Paul acha que você fez alguma
coisa muito grandiosa e nobre, fazendo o que
quer que tenha feito, mas não venha me dizer
que, se tivesse se comportado, teria entrado
em seja qual for a encrenca que se meteu.
--Ora, mãe...--ele começou.
Ela o cortou. O olhar de seus olhos azuis, jovens como
os do filho, penetrou nos negros de Ned Beaumont.
--Escute aqui, Ned, Paul não matou aquele
malandro, matou?
A surpresa fez com que se abrissem os olhos e a boca de
Ned Beaumont.
--Não.
--Eu não acreditava -- disse a velha. -- Ele
sempre foi um bom menino, mas eu soube que
estão correndo umas insinuações maldosas, e
só Deus sabe o que acontece na política. Eu,
certamente, não tenho a menor idéia.
O espanto, tingido de malícia, sé mostrava nos olhos
com que Ned Beaumont fitava o rosto ossudo dela.
Ela disse:
--Bem, pode ficar me olhando, mas eu não tenho
nenhum meio de saber o que vocês homens estão
aprontando, ou o que fazem sem sequer pensar.
192/372
Muito tempo antes de vocês terem nascido eu já
tinha desistido de descobrir.
Ele deu tapinhas no ombro dela.
--Você é uma pessoa maravilhosa, mãe -- ele disse,
com admiração.
Ela se encolheu da mão dele e tornOu a encará-lo com
olhos penetrantes.
--Você me diria se ele tivesse matado Taylor Henry?
Ele balançou a cabeça dizendo que não.
--Então como vou saber se não matou?
Ele riu.
--Porque -- explicou -- se ele tivesse matado eu
ainda diria "não", mas aí, se me perguntasse se eu
lhe diria a verdade, eu responderia "sim". -- A
alegria abandonou seus olhos e sua voz. -- Ele não
fez isso, mãe. -- Sorriu para ela. Sorriu com os lá-
bios apenas, e eles se mostravam finos, contra os
dentes. -- Seria ótimo se alguém na cidade, além de
mim, achasse que não foi ele, e seria especialmente
ótimo se essa outra pessoa fosse a mãe dele.
9
Uma hora após a partida da sra. Madvig, Ned Beau-
mont recebeu um pacote contendo quatro livros e o
193/372
cartão de Janet Henry. Escrevia um bilhete para ela,
agradecendo, quando Jack chegou.
Soltando as palavras com a fumaça do cigarro, Jack
disse:
--Acho que descobri alguma coisa, mas não sei se
você vai gostar.
Ned Beaumont olhou pensativo o jovem elegante e ali-
sou a banda esquerda do bigode com um indicador.
--Se for o que contratei você pra descobrir, vou
gostar muito. -- Sua voz era tão objetiva quanto a
de Jack. -- Senta aí e me conta.
Jack sentou-se cuidadosamente, cruzou as pernas, pôs
o chapéu no chão e ergueu os olhos do cigarro para Ned
Beaumont. Disse:
--Parece que essas coisas foram escritas pela filha
de Madvig.
Ned Beaumont arregalou um pouco os olhos, mas
apenas por um instante. O rosto perdeu um pouco de
cor e a respiração tornou-se irregular. Não houve
mudança na voz.
--Que é que lhe dá impressão?
De um bolso interno, Jack tirou duas folhas de papel
idênticas em tamanho e fabricação, dobradas igual.
Deu-as a Ned Beaumont, que, ao desdobrá-las, viu em
cada uma três perguntas datilografadas, as mesmas em
ambas.
194/372
--Uma delas é a que você me deu ontem -- disse
Jack. -- Pode dizer qual?
Ned Beaumont balançou a cabeça vagarosamente de
um lado para outro.
--Não têm diferença -- disse Jack. -- Eu escrevi a
outra na rua Charter, onde Taylor Henry tinha um
quarto que era freqüentado pela filha de Madvig...
com uma máquina de escrever Corona que tem lá, e
em papel que tem lá. Até onde se sabe, o lugar só
tem duas chaves. Ele tinha uma, e ela a outra. Ela
voltou lá pelo menos umas duas vezes depois que
ele foi morto.
Franzindo agora a testa para as folhas de papel que se-
gurava, Ned Beaumont assentiu com a cabeça, sem
erguer os olhos.
Jack acendeu outro cigarro com o que estivera
fumando, levantou-se e foi até a mesa esmagar o an-
terior no cinzeiro que havia ali, e depois voltou para a
sua cadeira. Nada em seu rosto ou em seus modos in-
dicava que tinha qualquer interesse na reação do outro
à sua descoberta.
Após outro minuto de silêncio, Ned Beaumont ergueu a
cabeça um pouco e perguntou:
--Como conseguiu isso?
Jack pôs o cigarro no canto da boca, onde ele ficou bal-
ançando com as palavras.
195/372
--A dica do Observer sobre o quarto, hoje de man-
hã, me deu a pista. Foi onde a polícia achou a dela
também, mas ela chegou lá primeiro. Mas eu tive
uma vantagem muito boa: o tira que ficou de
guarda é um amigo meu... Fred Hurley... e por dez
mangos me deixou fuçar lá dentro à vontade.
Ned Beaumont sacudiu os papéis que tinha na mão.
--A polícia sabe disso? -- perguntou.
Jack deu de ombros.
--Eu não disse a eles. Interroguei Hurley, mas
ele não sabia de nada... tinha sido apenas
posto ali pra tomar conta até decidirem o que
iam fazer. Talvez saibam, talvez não. -- Jogou
a cinza do cigarro no chão. -- Eu podia
descobrir isso.
--Deixe pra lá. Que mais desencavou?
--Não procurei mais nada.
Ned Beaumont, após uma rápida olhada ao rosto do
rapaz moreno, baixou o olhar de novo para as folhas de
papel.
--Que tipo de pocilga é essa?
--Mil trezentos e vinte e quatro. Eles tinham
um quarto com banheiro sob o nome de
French. A mulher que dirige o lugar diz que
não sabia quem eles eram na verdade até a
polícia aparecer hoje. Talvez não soubesse
196/372
mesmo. É o tipo de casa onde não se faz muita
pergunta. Ela diz que eles iam lá muitas vezes,
principalmente de tarde, e que a garota voltou
lá umas duas vezes na semana passada, pelo
que ela sabe, embora pudesse aparecer e sair
sem ser vista com muita facilidade.
--Tem certeza de que é ela?
Jack fez um gesto descompromissado com a mão.
--A descrição corresponde. -- Fez uma pausa, e de-
pois acrescentou cuidadosamente, soltando a fu-
maça do cigarro: -- Ê a única que a mulher viu
desde que ele foi assassinado.
Ned Beaumont tornou a erguer a cabeça. Tinha os ol-
hos duros."
--Taylor recebia outras lá?
Jack tornou a fazer o gesto descompromissado.
--A mulher diz que não. Diz que não sabia,
mas pela maneira como disse, é quase certo
que mentia.
--Não se pode dizer pelo que tem no quarto?
Jack balançou a cabeça.
--Não. Não tem muita coisa de mulher lá... só
um quimono e artigos de toalete e pijamas, e
coisas assim.
--Muitas?
197/372
--Oh, um terno e um par de sapatos, umas
roupas de baixo, meias e coisas assim.
--Chapéus?
Jack sorriu.
--Nenhum -- disse.
Ned Beaumont se levantou e foi até a janela. Lá fora, a
escuridão era quase completa. Gotas de chuva
grudavam-se à vidraça e muitas outras batiam leve-
mente enquanto ele permaneceu ali. Tornou a voltar-se
de frente para Jack.
--Muito obrigado, Jack -- disse devagar. Focalizava
os olhos no rosto do outro, um olhar distraído. --
Acho que talvez tenha outro serviço pra você
breve... talvez hoje de noite. Dou uma ligada pra
você.
Jack disse:
--Certo -- levantou-se e saiu.
Ned Beaumont foi até o armário para pegar suas
roupas, levou-as para o banheiro e as vestiu. Quando
saiu, uma enfermeira estava no quarto, uma mulher
alta e corpulenta, com um rosto pálido e lustroso.
--Ora, o senhor está vestido! -- ela exclamou.
--É, preciso sair.
À surpresa juntou-se alarme na expressão dela.
198/372
--Mas não pode, sr. Beaumont -- protestou. --
Já é de noite e está começando a chover, e o
dr. Tait...
--Eu sei, eu sei -- ele disse com impaciência, e
passou por ela, dirigindo-se à porta.
6
O OBSERVER
1
A sra. Madvig abriu a porta da frente.
--Ned! -- exclamou. -- Está louco? Andando
por aí assim numa noite dessas, e mal saiu do
hospital.
--O táxi não tinha goteiras -- ele disse, mas
seu sorriso carecia de firmeza. -- Paul está?
-- Ele saiu há mais de meia hora. Acho que foi pro
Club. Mas entre, entre.
--Opal está em casa? -- ele perguntou, en-
quanto fechava a porta e a acompanhava pelo
corredor.
--Não. Foi a alpum lugar, desde de manhã.
Ned Beaumont parou na porta da sala de estar.
--Não posso ficar -- disse. -- Vou dar uma corrida
até o Club e ver Paul lá. -- Não tinha a voz lá muito
firme.
A velha voltou-se rapidamente para ele.
--Não vai fazer nada disso -- disse, numa voz
repreensiva. -- Olhe só pra você, está pra
200/372
pegar um resfriado. Vai se sentar direitinho
aqui junto ao fogo e deixar que eu lhe traga al-
guma coisa quente pra beber.
--Não posso, mãe. Tenho coisas a fazer.
Os olhos azuis dela, nos quais a idade não aparecia,
tornaram-se brilhantes e penetrantes.
--Quando deixou o hospital? -- perguntou.
--Agora mesmo.
Ela comprimiu os lábios, tornou a abri-los e disse
acusadoramente:
--Você não teve alta.
Uma sombra turvou o límpido azul de seus olhos. Ela
se aproximou dele e segurou o rosto dele junto ao seu:
era quase tão alta quanto ele. Tinha a voz áspera agora,
embora viesse vacilante.
--É alguma coisa sobre Paul? -- A sombra em seus
olhos tornou-se reconhecível como medo. -- E
Opal?
A voz dele saiu quase inaudível.
--É alguma coisa que tenho de discutir com eles.
Ela tocou uma das faces dele, meio timidamente, com
dedos ossudos.
--Você é um bom rapaz, Ned.
Ele passou um braço em torno dela.
201/372
--Não se preocupe, mãe. Nada disso é tão
ruim quanto poderia ser. Apenas... se Opal
voltar pra casa faça ela ficar aqui... se puder.
--É alguma coisa que você possa me dizer,
Ned? -- ela perguntou.
--Agora, não, e... bem... talvez seja melhor não
deixar nenhum deles saber que você acha que
alguma coisa está errada.
2
Ned Beaumont caminhou quatro quadras debaixo de
chuva e entrou numa mercearia. Usou o telefone dali
primeiro para pedir um táxi, e depois para fazer duas
ligações e pedir para falar com o sr. Mathews. Não
conseguiu.
Ele discou outro número e chamou o sr. Rumsen. Um
momento depois, dizia:
-- Olá, Jack, aqui é Ned Beaumont. Ocupado?... Ótimo.
É o seguinte. Quero saber se a garota da qual falamos
foi ver Mathews, do Observer, hoje, e o que fez depois,
se foi... Certo, Hal Mathews. Tentei falar com ele pelo
telefone, lá e na casa dele, mas não consegui... Bem, na
moita, se puder, mas descubra e descubra rápido...
Não, saí do hospital. Estarei em casa esperando. Você
202/372
sabe meu número... Sim, Jack. Ótimo, obrigado, e me
chame tantas vezes quanto possa... Até...
Foi para o táxi, que o esperava, entrou e deu seu en-
dereço ao motorista, mas após meia dúzia de quadras
bateu no vidro com os dedos e deu outro endereço.
O táxi parou finalmente na frente de uma casa térrea
cinza, no centro de um terreno de macio gramado.
--Espere aqui -- ele disse ao motorista, ao sair.
A porta da casa acinzentada foi aberta, quando ele to-
cou a campainha, por uma criada ruiva.
--O sr. Farr está? -- ele perguntou.
--Vou ver. A quem devo anunciar?
--O sr. Beaumont.
O Promotor Distrital entrou na sala de recepção com
ambas as mãos estendidas. Seu rosto rosado e tenaz era
todo sorrisos.
--Ora, ora, Beaumont, é um verdadeiro prazer --
disse, indo até ele. -- Vamos, me dê seu casaco e
chapéu.
Ned Beaumont sorriu e balançou a cabeça.
--Não vou poder ficar -- disse. -- Passei só por
um segundo na volta do hospital.
--Inteiramente em forma de novo?
Esplêndido!
--Estou me sentindo muito bem -- disse Ned
Beaumont. -- Alguma novidade?
203/372
--Nada muito importante. Os caras que
pegaram você ainda "estão soltos... escondidos
em algum canto... mas vamos pegar eles.
Ned Beaumont fez um gesto depreciativo com a boca.
--Eu não morri, e eles não tentaram me matar: você
só poderia pegar eles com uma acusação de
agressão. -- Olhou meio sonolento para Farr. -- Re-
cebeu alguma outra daquelas cartas com três
perguntas?
O Promotor Distrital pigarreou.
--Hum... sim, pensando bem, recebi mais uma
ou duas delas.
--Quantas? -- perguntou Ned Beaumont. A
voz soou polidamente casual. Erguera os can-
tos dos lábios um pouco, num leve sorriso. Os
olhos brilhavam divertidos, mas seus olhos se-
guravam os de Farr.
O Promotor Distrital pigarreou.
--Três -- disse relutantemente. Depois seus olhos se
iluminaram. -- Soube do esplêndido comício que
fizemos em...?
Ned Beaumont o interrompeu.
--Todas na mesma linha?
--Hum... mais ou menos. O Promotor Distrital
lambeu os lábios e uma expressão de súplica
começou a surgir em seus olhos.
204/372
--Quanto mais... ou menos?
Os olhos de Farr deslizaram dos de Ned Beaumont para
a gravata dele, e depois para o ombro esquerdo. Ele
moveu os lábios vagamente, mas não emitiu um som.
O sorriso de Ned Beaumont era abertamente malicioso
agora.
--Todas dizendo que Paul matou Taylor Henry? --
perguntou, numa voz adocicada.
Farr deu um salto, o rosto empalideceu até um laranja-
claro, e em sua excitação ele deixou os olhos espanta-
dos focalizarem os de Ned Beaumont outra vez.
--Deus do céu, Ned!
Ned Beaumont deu uma risada.
--Está ficando nervoso, Farr -- ele disse, ainda
com a voz adocicada. -- É melhor se cuidar,
senão vai cair em pedaços. -- Tornou-se sério.
-- Paul lhe disse alguma coisa sobre isso?
Sobre seus nervos, quero dizer.
--Nã-não.
Ned Beaumont tornou a sorrir.
--Talvez ele não tenha notado ainda. -- Ergueu um
braço, olhou seu relógio de pulso, e depois para
Farr. -- Já descobriu quem escreveu elas? -- per-
guntou cortante.
O Promotor Distrital gaguejou:
205/372
--O-olhe aqui, Ned. Eu não... você sabe... não é... --
engasgou e parou.
Ned Beaumont perguntou:
--Então?
O Promotor Distrital engoliu em seco e disse,
desesperado:
--Descobrimos alguma coisa, Ned, mas é cedo de-
mais para saber. Talvez não seja nada. Você sabe
como são essas coisas.
Ned Beaumont assentiu com a cabeça. Em seu rosto só
havia amistosidade agora. A voz era plana e fria, sem
indiferença, quando disse:
--Você descobriu onde elas foram escritas e a
máquina em que foram escritas, mas foi só
isso que descobriu até agora. Não tem materi-
al bastante sequer pra supor quem escreveu.
--Certo, Ned -- Farr despejou, com um ar de
grande alívio.
Ned Beaumont pegou a mão de Farr e balançou-a
cordialmente.
--A coisa é essa -- disse. -- Bem, tenho de correr.
Você não pode errar indo devagai, assegurando-se
de que está certo antes de seguir em frente. Aceite
minha palavra sobre isso.
O rosto e a voz do Promotor Distrital estavam cheios de
emoção.
206/372
--Obrigado, Ned, obrigado.
3
Às nove e dez dessa noite, o telefone na sala de estar de
Ned Beaumont tocou. Ele correu a atender.
--Alô... Sim, Jack... Sim... Sim... Onde?... Sim, isso é
ótimo... É só por esta noite... Muito obrigado.
Quando se levantou do telefone, sorria com lábios
pálidos. Os olhos brilhavam, irrequietos. As mãos
tremiam um pouco.
O telefone tornou a tocar antes que ele desse o terceiro
passo. Ele hesitou, voltou ao aparelho.
--Alô... Oh, alô, Paul... É, cansei de bancar o in-
válido... Nada especial... pensei só em dar uma pas-
sadinha pra ver você... Não, receio que não possa.
Não estou me sentindo tão forte quanto julgava que
estava, e por isso acho melhor ir pra cama... Sim,
amanhã, claro... Até...
Vestiu o casaco e pôs o chapéu quando já descia. O
vento açoitava a chuva em cima dele quando abriu a
porta da rua, e batia em seu rosto quando ele andou
meia quadra até a garagem da esquina.
No escritório envidraçado da garagem, um homem
desengonçado, de cabelos castanhos e macacão outrora
branco, se reclinava para trás numa cadeira de pau, os
pés numa prateleira acima de um aquecedor elétrico,
207/372
lendo um jornal. Ele baixou o jornal quando Ned Beau-
mont disse:
--Olá, Tommy.
A sujeira no rosto de Tommy fazia seus dentes parecer-
em mais brancos do que eram. E ele exibiu muitos
deles num sorriso e disse:
--Meio chuvosa esta noite.
--É. Tem um carro que possa me arranjar?
Um que me leve por estradas de terra esta
noite?
Tommy disse:
--Deus do céu! É sorte sua escolher essa noite.
Podia ter de escolher uma ruim. Bem, eu
tenho um Buick que não ligo muito pro que
acontecer a ele.
--Mas ele me leva lá?
--Quase tanto quanto qualquer outro numa
noite desta.
--Tudo bem. Encha o tanque pra mim. Qual é
a melhor estrada pra subir pra Lazy Creek
numa noite desta?
--Até onde?
Ned Beaumont olhou pensativamente o garagista e
disse:
--Mais ou menos até onde dá no rio.
Tommy assentiu:
208/372
--A casa de Mathews? -- perguntou.
Ned Beaumont não disse nada.
Tommy disse:
--É importante saber pra que lugar você vai.
--É? A casa de Mathews. -- Ned Beaumont
franziu a testa. -- Isso é por baixo do pano,
Tommy.
--Você me procurou porque achava que eu
falaria ou porque sabia que não? -- perguntou
Tommy, esquentado.
Ned Beaumont disse:
--Estou com pressa.
--Então pegue a estrada do Rio Novo até Bar-
ton, pegue a estrada de terra que passa pela
ponte... se puder ver ela... e depois a primeira
encruzilhada, voltando pra esquerda. Isso vai
levar você atrás da casa de Mathews, mais ou
menos por cima do topo do morro. Se não en-
contrar a estrada de terra com este tempo, vai
ter de subir a estrada do Rio Novo até onde ela
cruza e depois voltar pela velha.
--Obrigado.
Quando Ned Beaumont entrava no Buick, Tommy lhe
disse num tom marcadamente casual:
--Tem um revólver de reserva no bolsão do lado.
Ned Beaumont olhou o homem desengonçado.
209/372
--De reserva? -- perguntou sem expressão.
-- Boa viagem -- disse Tommy. Ned Beaumont fechou a
porta e partiu.
4
O relógio no painel marcava dez e trinta e dois. Ned
Beaumont apagou os faróis e saiu um tanto rigida-
mente do Buick. A chuva, jogada pelo vento, martelava
árvores, matagais, chão, homem e carro com pancadas
de água incessantes. Morro abaixo, em meio à chuva e à
folhagem, brilhavam fracamente manchas irregulares
de luz amarela. Ned Beaumont tremia, tentava apertar
mais a capa de chuva contra o corpo, e começou a des-
cer o morro aos tropeções, pelo mato encharcado, em
direção às manchas de luz.
O vento e a chuva, às suas costas, o empurravam en-
costa abaixo em direção às manchas. Ã medida que
descia, a rigidez o abandonava aos poucos, e assim, em-
bora ele tropeçasse e cambaleasse muitas vezes,
deparando-se com obstáculo aos seus pés, mantinha-os
funcionando e os movia com bastante habilidade, se
bem que de um jeito meio sem rumo.
Acabou encontrando uma trilha. Dobrou para ela,
seguindo-a em parte pelo chão escorregadio debaixo
dos pés, e em parte pela sensação do matagal roçando
210/372
seu rosto de ambos os lados, mas de modo algum pela
visão. A trilha o levou para a esquerda por uma certa
distância, mas então, fazendo uma larga curva,
conduziu-o à beira de uma pequena garganta, pela qual
a água se precipitava ruidosamente, e dali, em outra
curva, para a porta da frente da casa onde a luz amarela
brilhava.
Ned Beaumont foi direto à porta e bateu.
Abriu-a um homem grisalho e de óculos, de rosto bon-
doso e acinzentado, e os olhos que espiavam ansiosos,
através de lentes cercadas por aros de tartaruga claros,
eram cinza. Ele vestia um terno marrom alinhado e de
boa qualidade, mas o corte não era da moda. Um lado
do colarinho duro um tanto alto fora molhado em
quatro lugares por gotas d'água. Ele se pôs de lado, se-
gurando a porta aberta, e disse num tom amistoso, em-
bora não entusiasmado:
-- Entre, senhor, saia da chuva. Uma noite desgraçada
pra se estar fora.
Ned Beaumont baixou a cabeça não mais que uns pou-
cos centímetros, no início de um cumprimento, e
entrou. Viu-se numa grande sala, que ocupava todo o
térreo da casa. A escassez e simplicidade do mobiliário
lhe davam um ar primitivo agradavelmente desprovido
de ostentação. Era cozinha, sala de jantar e sala de
estar.
211/372
Opal Madvig levantou-se da banqueta na qual se sen-
tava numa ponta da lareira e, mantendo-se ereta, enca-
rou com olhos hostis e sombrios.
Ele tirou o chapéu e começou a desabotoar a capa de
chuva. Os outros o reconheceram então.
O homem que abrira a porta disse:
--Ora, é Beaumont!
Disse isso num tom de incredulidade, e arregalou os ol-
hos para Shad O'Rory.
Shad O'Rory sentava-se numa cadeira de madeira no
centro da sala, na frente da lareira. Sorriu sonhadora-
mente para Ned Beaumont, dizendo, em seu barítono
irlandês levemente musical:
--É mesmo -- E: -- Como vai, Ned?
O rosto amacacado de Jeff Gardner alargou-se num
sorriso que exibia seus belos dentes falsos e quase
escondia inteiramente os olhinhos vermelhos.
--Por Deus, Rusty! -- disse ao sombrio rapaz de
faces rosadas que se refestelava no banco a seu
lado. O pequeno "Bola de Borracha" voltou pra
gente. Eu disse a você que ele gostava da maneira
que a gente fazia ele saltar por aí.
Rusty fuzilava Ned Beaumont com os olhos e rosnou al-
guma coisa que não chegou do outro lado da sala.
212/372
A magra garota de vermelho sentada não longe de Opal
Madvig olhou Ned Beaumont com olhos negros
interessados.
Ned Beaumont tirou o casaco. Seu rosto magro, que
ainda trazia as marcas dos punhos de Jeff e Rusty, es-
tava tranqüilo, a não ser pela inquietude que brilhava
nos olhos. Pôs o casaco e o chapéu numa comprida cô-
moda não pintada contra a parede, perto da porta. Sor-
riu educadamente para o homem que o tinha recebido e
disse:
--Meu carro quebrou quando eu passava por aqui.
É muita bondade sua me dar abrigo, sr. Mathews.
Mathews disse:
--De modo algum... É um prazer -- um tanto
vagamente.
Depois, seus olhos assustados tornaram a olhar suplic-
antes para O'Rory.
O'Rory alisou o lustroso cabelo branco com uma mão
fina e pálida, e sorriu agradavelmente para Ned Beau-
mont, mas não disse nada.
Ned Beaumont foi até a lareira.
--Olá, pequena -- disse a Opal Madvig.
Ela não respondeu ao seu cumprimento. Ficou ali de
pé, olhando-o com olhos hostis.
Ele dirigiu seu sorriso para a garota magra de
vermelho:
213/372
--Essa é a sra. Mathews, não é?
Ela disse: -- É -- numa voz macia, quase doce, e es-
tendeu a mão.
--Opal me disse que a senhora foi colega de escola
dela -- ele disse, apertando a mão. Voltou-se de
frente para Rusty e Jeff. -- Olá, rapazes -- disse com
indiferença. -- Eu esperava encontrar vocês
qualquer hora dessas, breve.
Rusty não disse nada.
O rosto de Jeff tornou-se uma feia máscara de sor-
ridente prazer.
--Eu e você -- disse entusiasmado --, agora que os
nós dos meus dedos sararam. Que acha que me faz
gostar tanto de bater em você?
Shad O'Rory falou delicadamente ao homem
amacacado, sem se voltar para olhá-lo:
--Você fala demais, Jeff. Talvez, se não fosse isso,
ainda tivesse os dentes.
A sra. Mathews falou alguma coisa a Opal em voz baixa.
Opal balançou a cabeça e tornou a sentar na banqueta
junto à lareira.
Mathews, indicando uma cadeira de madeira na outra
ponta da lareira, disse nervosamente:
--Sente-se, sr. Beaumont, seque os pés e... se
aqueça.
214/372
--Obrigado. -- Ned Beaumont puxou a cadeira
mais diretamente exposta ao calor do fogo e
sentou.
Shad O'Rory acendia um cigarro. Quando acabou,
tirou-o dos lábios e perguntou:
--Como está se sentindo, Ned?
--Muito bem, Shad.
--Isso é ótimo. -- O'Rory virou a cabeça um
pouco para falar aos dois homens no banco: --
Vocês rapazes podem voltar pra cidade aman-
hã. -- Tornou a se voltar para Ned
Beaumont, explicando suavemente: -- A gente estava se
prevenindo até ter certeza de que você não ia morrer,
mas não importa uma acusação de agressão.
Ned Beaumont assentiu.
--É possível que eu não me dê o trabalho de ap-
resentar queixa contra você por isso, de qualquer
modo, mas não esqueça que nosso amigo Jeff é pro-
curado pelo assassinato de West. -- A voz era casu-
al, mas nos olhos, fixos no tronco que ardia na
lareira, surgiu um breve brilho de maldade. Nada
havia neles, porém, a não ser gozação, quando en-
carou Mathews. -- Embora, sem dúvida, eu pudesse
apresentar queixa, pra encrencar Mathews por
esconder vocês.
Mathews apressou-se a dizer:
215/372
--Eu não fiz isso, sr. Beaumont. Eu nem sabia que
eles estavam aqui até subir hoje, e fiquei surpreso
como... -- Interrompeu-se, o rosto em pânico, e
falou a Shad O'Rory, gemendo: -- Você sabe que é
bem-vindo. Sabe disso, mas o que estou querendo
dizer -- um sorriso de alegria iluminou de repente o
seu rosto -- é que, ajudando você sem saber, eu não
fiz nada pra ser legalmente responsabilizado.
O'Rory disse baixinho:
--Sim, você me ajudou sem saber. -- Os sérios e
límpidos olhos azuis olharam sem interesse o editor
do jornal.
O sorriso de Mathews perdeu a alegria, tremulou e
morreu inteiramente. Ele mexeu na gravata, nervoso,
com os dedos, e acabou evitando o olhar de O'Rory.
A sra. Mathews disse a Ned Beaumont, suavemente:
--Todo mundo estava tão chato esta noite. Estava
simplesmente horrível até o senhor chegar.
Ele a olhou com curiosidade. Os negros olhos dela eram
luminosos, suaves, convidativos. Sob seu olhar de
avaliação, ela baixou um pouco a cabeça e comprimiu
um pouco os lábios. Tinha os lábios finos, muito
escuros de batom, mas bonitos. Ele sorriu e,
levantando-se, se aproximou dela.
216/372
Opal Madvig fitava o chão a seus pés. Mathews, O'Rory
e os dois homens observaram Ned Beaumont e a dona
da casa.
Ele perguntou:
--Que é que faz deles tão chatos? -- E sentou-
se no chão diante dela, de pernas cruzadas,
não diretamente de frente para ela, mas de
costas para o fogo, apoiando-se numa mão no
chão, atrás, o rosto virado para um lado, para
ela.
--Tenho certeza que não sei -- ela disse,
fazendo biquinho. -- Achei que ia ser divertido
quando Hal me perguntou se queria vir aqui
pra cima com ele e Opal. E aí, quando
chegamos aqui, encontramos esses... -- fez
uma ligeira pausa: -- amigos de Hal. -- Falava
de forma ambígua. Prosseguiu: -- Todos
ficaram sentados por aí insinuando algum se-
gredo deles do qual eu não sei nada, e foi in-
suportavelmente estúpido. Opal estava tão
ruim quanto o resto. Ela...
O marido disse:
--Vamos, Eloise -- num tom ineficazmente
autoritário, e quando ela ergueu os olhos para
enfrentar os dele, viu mais embaraço que
autoridade no olhar que ele lhe dirigia.
217/372
--Estou pouco ligando -- ela disse, petulante.
-- É verdade, e Opal é tão ruim quanto o resto
de vocês. Ora, vocês e ela nem falaram do que
era que vinham pra cá discutir, pra começar.
Acham que eu teria ficado aqui até agora? Não
fosse pela tempestade, não teria.
Opal Madvig tinha o rosto vermelho, mas não ergueu
os olhos.
Eloise Mathews baixou a cabeça em direção a Ned
Beaumont e a petulância em seu rosto se tornou
brincalhona.
--É isso que o senhor tem de compensar --
assegurou-lhe. -- E foi por isso, e não pelo fato de o
senhor ser bonito, que fiquei tão satisfeita com sua
chegada.
Ele franziu a testa para ela, fingindo-se indignado.
Ela franziu a testa para ele, e nela, isso era autêntico.
--Seu carro quebrou mesmo? -- perguntou. -- Ou
veio aqui falar com eles sobre o mesmo assunto
chato que está deixando eles tão estupidamente
cheios de mistérios. Foi isso. O senhor é mais um
deles.
Ele deu uma risada. Perguntou:
--Não faria diferença alguma o motivo pelo
qual eu vim, se mudei de idéia depois de ter
visto a senhora, faria?
218/372
--Nã-ã-ã-o -- ela estava desconfiada --, mas
eu teria de estar certíssima de que você tinha
mudado.
--E de qualquer modo -- ele prometeu superfi-
cialmente -- eu não vou ser misterioso sobre
coisa alguma. Não tem mesmo idéia nenhuma
do motivo pelo qual estão todos tão ansiosos?
--Nem a mínima -- ela respondeu despeitada-
mente --, a não ser que tenho toda certeza de
que deve ser alguma coisa muito estúpida, e
provavelmente política.
Ele ergueu a mão livre e deu tapinhas numa das dela.
--Garota esperta, acertou nas duas coisas. --
Virou a cabeça para olhar O'Rory e Mathews.
Quando seus olhos voltaram para ela, luziam
de divertimento. -- Quer que eu lhe diga o que
é?
--Não.
--Primeiro -- ele disse. --, Opal acha que o pai
dela assassinou Taylor Henry.
Opal Madvig emitiu um som de estrangulamento da
garganta e saltou de sua banqueta. Pôs as costas da
mão contra a boca. Tinha os olhos tão arregalados que
os brancos apareciam em toda a volta das íris, vidrados
e terríveis.
219/372
Rusty se pôs de pé num salto, o rosto vermelho de
raiva, mas Jeff, com um olhar enviesado e mau, segur-
ou o braço do rapaz.
--Deixe ele pra lá -- falou, bem-humorado. -- Ele
está bem.
O rapaz ficou de pé, olhando para a mão do macaco em
seu braço, mas não tentou se libertar.
Eloise Mathews sentava-se passada em sua cadeira, ol-
hando Opal sem compreender.
Mathews tremia, um homem doente, de rosto cinza e
enrugado, com o lábio e as pálpebras inferiores caídos.
Shad O'Rory sentava-se curvado para a frente em sua
cadeira, o rosto finamente modelado, pálido e duro, os
olhos parecendo gelo azul-cinza, as mãos agarrando os
braços da cadeira, os pés plantados no chão.
--Segundo -- disse Ned Beaumont, totalmente
inalterado pela agitação dos outros. -- Ela...
--Ned, não! -- exclamou Opal Madvig.
Ele se virou no chão a fim de olhar para ela.
Ela tirara a mão da boca. Apertava as mãos contra o
peito. Os olhos apavorados, todo o rosto desvairado pe-
diam piedade a ele.
Ele a estudou por algum tempo. Através da janela e das
paredes vinha o som da chuva em selvagens rajadas. Os
olhos dele, estudando-a, eram frios, decididos. Ele
220/372
acabou por falar-lhe, numa voz bastante bondosa, mas
distante.
--Não é por isso que você está aqui?
--Não, por favor -- ela disse roucamente.
Ele moveu os lábios num fino sorriso, com o qual os ol-
hos nada tinham a ver, e perguntou:
--Ninguém deve andar falando disso por aí, a não
ser você e os inimigos de seu pai?
Ela deixou cair as mãos -- os punhos -- dos lados, er-
gueu furiosa o rosto e disse numa voz de som duro:
--Ele assassinou Taylor.
Ned Beaumont se reclinou sobre a mão atrás e ergueu
os olhos para Eloise Mathews.
--Era o que eu lhe dizia -- falou arrastado. --
Pensando assim, ela foi ver o seu marido, depois de
ler a sujeira que ele escreveu hoje de manhã. É claro
que ele não achava que foi Paul quem matou
mesmo: apenas está num aperto... com as hipotecas
nas mãos da State Central, que pertence ao candid-
ato de Shad O'Rory ao Senado... e tem de fazer o
que lhe mandam. O que ela...
Mathews o interrompeu. A voz do editor estava fina e
desesperada.
--Vamos parar com isso, Beaumont. Você...
0'Rory interrompeu Mathews, com uma voz tranqüila e
musical.
221/372
--Deixe ele falar, Mathews. Deixe ele dizer a
parte dele.
--Obrigado, Shad -- disse Ned Beaumont com
indiferença, sem virar a cabeça, e prosseguiu:
-- Ela foi procurar seu marido pra confirmar
as suspeitas dela, mas ele não podia fornecer
nada nesse sentido, a não ser que mentisse.
Ele não sabe de coisa alguma. Simplesmente
está jogando lama onde quer que Shad lhe
ordene que jogue. Mas tem uma coisa que ele
pode fazer, e fará. Pode publicar no jornal de
amanhã que ela veio ver ele e lhe disse que
acredita que o pai matou o amante dela. Isso
será um belo golpe. "Opal Madvig Acusa o Pai
de Assassinato; Filha do Chefão Diz que ele
Matou o Filho do Senador!" Não está vendo
isso, em letras negras, estampado na primeira
página do Observer?
Eloise Mathews, de olhos arregalados, o rosto pálido,
ouvia de respiração presa, curvada para a frente,
acima dele. A chuva, jogada pelo vento, batia nas
paredes e janelas. Rusty encheu e esvaziou os pulmões
com um longo suspiro.
Ned Beaumont pôs a ponta da língua entre os lábios
sorridentes, recolheu-a e disse:
222/372
--Foi por isso que ele trouxe ela pra cá, pra manter
ela escondida até a publicação da matéria. Talvez
soubesse que Shad e os rapazes estavam aqui, talvez
não. Não faz nenhuma diferença. Ele trouxe ela pra
um lugar onde ninguém pode descobrir o que ela
fez até os jornais estarem nas ruas. Não quero dizer
que teria trazido ela, ou mantido ela aqui, contra a
vontade dela... isso não seria muito inteligente da
parte dele da forma como estão as coisas... mas
nada disso é necessário. Ela está disposta a chegar a
qualquer extremo pra arruinar o pai.
Opal Madvig disse, num sussurro, mas claramente:
--Ele matou ele.
Ned Beaumont endireitou-se e a olhou. Olhou-a solene-
mente por um momento, e depois sorriu, balançou a
cabeça num gesto de divertida resignação, e voltou a
apoiar-se nos cotovelos.
Eloise Mathews olhava o marido com seus olhos
negros, onde predominava o espanto. Ele sentara e
tinha a cabeça abaixada. Ocultava o rosto nas mãos.
Shad 0'Rory tornou a cruzar as pernas e tirou um
cigarro.
--Acabou? -- perguntou suavemente.
Ned Beaumont lhe dava as costas. Não se voltou para
responder:
223/372
--Você nem acreditaria como acabei. -- Tinha a voz
plana, mas o rosto parecia subitamente cansado,
gasto.
O'Rory acendeu seu cigarro.
--Bem -- disse, depois de fazer isso --, que diabos
vale isso? Agora é nossa vez de pendurar uma acus-
ação das grandes em vocês, e vamos fazer isso. A
garota procurou a gente com a história dela por
vontade própria. Veio porque quis. O mesmo vale
pra você. Ela, você e qualquer outra pessoa podem
ir aonde querem. -- Levantou-se. -- Pessoalmente,
estou querendo ir pra cama. Onde vou dormir,
Mathews?
Eloise Mathews falou, ao marido:
--Isso não é verdade, Hal. -- Não era uma pergunta.
Ele demorou a tirar as mãos do rosto. Conseguiu dig-
nidade ao dizer:
--Querida, existe uma dúzia de indícios sufi-
cientes contra Madvig pra justificar nossa in-
sistência em que a polícia ao menos interrogue
ele. É só o que temos feito.
--Eu não me referia a isso -- disse a mulher.
-- Bem, querida, quando a srta. Madvig apareceu... --
Ele vacilou, parou, um homem de rosto cinza, que
tremia diante do olhar da esposa, e tornou a levar as
mãos ao rosto.
224/372
5
Eloise Mathews e Ned Beaumont estavam sozinhos na
grande sala do térreo, sentados em cadeiras um pouco
separadas, à frente da lareira. Ela se curvava para di-
ante, fitando com olhos trágicos o último tronco que ar-
dia. Tinha as pernas cruzadas, um dos braços passado
pelo encosto da cadeira. Ele fumava um charuto e a ol-
hava disfarçadamente.
Os degraus rangeram e o marido desceu até o meio da
escada. Estava inteiramente vestido, apenas tirara o
colarinho. A gravata, meio frouxa, pendia para fora do
colete. Ele disse:
--Querida, não vem pra cama? Já é meia-noite.
Ela não se moveu.
Ele disse:
--Sr. Beaumont, o senhor...?
Ao ouvir o seu nome, Ned Beaumont se voltou para o
homem na escada, o rosto cruelmente plácido. Quando
o jornalista interrompeu a frase, ele voltou a olhar o
charuto e a mulher de Mathews.
Após algum tempo, o jornalista tornou a subir.
Eloise Mathews falou sem tirar o olhar do fogo.
--Tem uísque na cômoda. Quer ir pegar?
225/372
--Certamente. -- Ele encontrou o uísque e o
trouxe para ela, depois arranjou dois copos. --
Puro? -- perguntou.
Ela assentiu com a cabeça. Os seios redondos moviam
irregularmente a seda vermelha do vestido, com a
respiração.
Ele serviu duas grandes doses.
Ela só ergueu o olhar do fogo quando ele lhe pôs um
copo na mão. Quando o fez, sorriu maliciosamente,
contorcendo os lábios muito pintados e finos, perfeitos,
para um lado. Os olhos, refletindo a luz do fogo, pare-
ciam demasiado brilhantes.
Ele sorriu para ela, de cima.
Ela ergueu o copo.
--Ao meu marido!
Ned Beaumont disse casualmente: -- Não -- e jogou o
conteúdo do copo na lareira, onde o líquido fez saltar-
em chamas dançantes.
Ela deu uma risada gostosa e ficou em pé.
--Sirva outro -- ordenou.
Ele pegou a garrafa do chão e tornou a encher seu copo.
Ela ergueu o dela acima da cabeça.
--A você!
Beberam. Ela teve um arrepio.
--É melhor beber alguma coisa junto ou depois --
ele sugeriu.
226/372
Ela balançou a cabeça.
--Quero desse jeito. -- Pôs uma mão no braço
dele e deu as costas ao fogo, parada junto dele.
-- Vamos trazer aquele banco pra cá.
--É uma idéia -- ele concordou.
Afastaram as cadeiras da frente da lareira e trouxeram
o banco para ali, ele segurando numa ponta, ela na
outra. O banco era largo, sem encosto.
--Agora apague as luzes -- ela disse.
Ele obedeceu. Quando voltou ao banco, ela já se sentara
e servia uísque em seus copos.
--A você, desta vez -- ele disse, e beberam e ela se
arrepiou.
Ele se sentou ao lado dela. Estavam rosados ao calor da
lareira.
Os degraus rangeram e o marido dela desceu até eles.
Parou no degrau de baixo e disse:
--Por favor, querida!
Ela sussurrou no ouvido de Ned Beaumont,
selvagemente:
-- Jogue alguma coisa nele.
Ned Beaumont deu uma risadinha.
Ela pegou a garrafa de uísque e perguntou:
--Onde está seu copo?
Enquanto ela enchia os copos, Mathews tornou a subir.
227/372
Ela entregou a Ned Beaumont o copo dele e tocou-o
com o seu. Tinha os olhos alucinados. Uma mecha de
cabelos negros soltara-se e caía-lhe na testa. Ela res-
pirava pela boca, arquejando baixinho.
--A nós! -- disse.
Beberam. Ela largou o seu copo e caiu nos braços dele.
E já tinha a boca colada na dele quando se arrepiou. O
copo que caíra quebrou-se ruidosamente no piso de
madeira. Ned Beaumont tinha os olhos estreitados,
matreiros. Os dela estavam firmemente cerrados.
Não haviam se mexido quando os degraus rangeram.
Ned Beaumont não se mexeu nem nesse momento. Ela
apertou os finos braços em torno dele. Ele não podia
ver a escada. Ambos respiravam pesadamente agora.
Então a escada tornou a ranger, e pouco depois eles
separaram os rostos, embora se mantivessem abraça-
dos. Ned Beaumont ergueu o olhar para a escada. Não
havia ninguém lá.
Eloise Mathews escorregou a mão para a nuca dele,
correndo os dedos por entre os seus cabelos, enter-
rando as unhas no couro cabeludo. Não tinha os olhos
totalmente fechados, mas em negras fendas risonhas.
--A vida é assim -- ela disse, numa vozinha de fin-
gido amargor, deitando-se para trás no banco e
puxando-o para si, a sua boca para a dela.
Estavam nessa posição quando ouviram o tiro.
228/372
No mesmo instante, Ned Beaumont estava longe dos
braços dela e de pé.
--O quarto dele? -- perguntou alto.
Ela piscou para ele cega pelo terror.
--O quarto dele? -- repetiu Ned Beaumont.
Ela moveu a mão debilmente.
--Na frente -- disse, em voz enrolada.
Ele correu para a escada e subiu em longos saltos. No
alto, deparou-se com o amacacado Jeff, inteiramente
vestido, a não ser pelos sapatos, que piscava para
afastar o sono dos olhos inchados. Jeff levou uma mão
ao quadril, estendeu a outra para deter Ned Beaumont
e falou:
--Vamos lá, que é isso tudo aí?
Ned esquivou-se à mão estendida, saiu de lado e
mandou o punho fechado no focinho do macaco. Jeff
cambaleou para trás, resmungando. Ned Beaumont
saltou passando por ele e correu em direção à frente da
casa. O'Rory saiu de outro quarto e correu atrás dele.
De lá de baixo veio o grito da sra. Mathews.
Ned Beaumont escancarou uma porta e parou.
Mathews jazia de costas no chão do quarto, sob um
abajur. Tinha a boca aberta, e um pouco de sangue
escorria dela. Um de seus braços estendia-se atraves-
sado no chão. O outro repousava no peito. Contra a
parede, no ponto para o qual o braço estendido parecia
229/372
apontar, via-se um revólver negro. Numa mesa junto à
janela, um tinteiro -- com a tampa voltada para cima ao
lado -- uma caneta e uma folha de papel. Uma cadeira
perto da mesa, de frente para ela.
Shad O'Rory empurrou Ned Beaumont para um lado e
ajoelhou-se ao lado do homem caído no chão. En-
quanto estava ali, Ned Beaumont, por trás dele, deu
uma rápida olhada ao papel sobre a mesa, e depois
enfiou-o no bolso. Jeff entrou, seguido por Rusty, que
estava nu. O'Rory levantou-se e estendeu as duas mãos
para fora, num pequeno gesto de que estava tudo
terminado.
--Deu um tiro no céu da boca -- disse. -- Finis.
Ned Beaumont se virou e deixou o quarto. No corredor,
encontrou Opal Madvig.
--Que foi, Ned? -- ela perguntou, numa voz
assustada.
--Mathews se matou com um tiro. Vou lá pra
baixo ficar com ela até você se vestir. Não
entre lá. Não tem nada pra ver. -- Desceu.
Eloise Mathews era um vulto obscuro deitado no chão
ao lado do banco.
Ele deu dois rápidos passos na direção dela, parou, ol-
hou a sala em volta com olhos astutos e frios. Depois
dirigiu-se até a mulher, pôs um joelho no chão ao lado
dela e sentiu o seu pulso. Olhou-a tão de perto quanto
230/372
podia, à luz fraca do fogo agonizante. Ela não dava
sinais de consciência. Ele tirou do bolso o papel que
pegara na mesa do marido dela e ficou de joelhos para
a lareira, onde, ao brilho das brasas, leu:
"Eu, Howard Keith Mathews, em pleno gozo da mente e
da memória, declaro que é esta a minha última vontade
e testamento:
Dou e lego à minha amada esposa, Eloise Braden
Mathews, seus herdeiros e cessionários, todos os meus
bens reais e pessoais, de qualquer natureza ou espécie.
Nomeio por esta a State Central Trust Company única
executora deste testamento.
Em testemunho disso, assino esta..."
Ned Beaumont, sorrindo sombriamente, parou de ler e
rasgou o testamento três vezes. Levantou-se, ergueu a
grade da lareira e jogou os pedaços de papel nas cinzas
ardentes. Os pedaços inflamaram-se luminosamente
por um momento e desapareceram. Com a pá de ferro
trabalhado que estava ao lado, ele desfez as cinzas do
papel entre os carvões.
Depois voltou para o lado da sra. Mathews, despejou
um pouco de uísque no copo do qual bebera, ergueu a
cabeça dela e forçou um pouco da bebida por entre os
lábios da jovem. Ela já estava parcialmente recuperada,
tossindo, quando Opal Madvig desceu.
231/372
6
Shad O'Rory desceu a escada. Jeff e Rusty vinham atrás
dele. Estavam todos vestidos. Ned Beaumont achava-se
de pé junto à porta, de capa de chuva e chapéu.
--Aonde vai, Ned? -- perguntou Shad.
--Procurar um telefone.
O'Rory assentiu.
--É uma boa idéia, mas tem uma coisa que eu quero
lhe perguntar. -- Desceu o resto da escada, os
seguidores logo atrás.
Ned Beaumont disse:
--Sim? -- Tirou a mão do bolso. A mão era visível
para O'Rory e os homens atrás dele, mas o corpo de
Ned Beaumont ocultava-a do banco onde Opal se
sentava abraçando Eloise Mathews. E nessa mão
havia uma pistola quadrada. -- Só pra que vocês
não façam nenhuma tolice. Estou com pressa.
O'Rory não pareceu ver a pistola, embora não se aprox-
imasse. Disse, pensativamente:
--Eu estava pensando que, com um tinteiro aberto e
uma caneta em cima da mesa, e uma cadeira junto
dela, é meio engraçado que a gente não tenha en-
contrado nada escrito lá em cima.
Ned Beaumont sorriu com fingida surpresa.
232/372
--Como, nada escrito? -- Deu um passo para
trás, em direção à porta. -- Essa é engraçada,
claro. Discutirei isso com você durante horas
quando voltar do telefone.
--Seria melhor agora -- disse O'Rory.
--Sinto. -- Ned Beaumont recuou rapidamente
para a porta, apalpou atrás em busca da
maçaneta, encontrou-a e abriu-a. -- Não me
demoro muito. -- Saltou para fora e bateu a
porta.
A chuva parara. Ele deixou a trilha e correu pelo meio
do mato alto para o outro lado da casa. De dentro da
casa veio o som de outra porta batendo nos fundos.
Ouvia-se o rio não muito longe, à esquerda de Ned
Beaumont. Ele se dirigiu com esforço para lá, através
do mato.
Um apito agudo, não alto, soou em algum canto atrás
dele. Ned Beaumont afundou num lugar de lama mole
e chegou até um grupo de árvores, afastando-se do rio
por entre elas. O apito tornou a soar à sua direita. De-
pois das árvores vinham arbustos que chegavam aos
ombros. Ele se afundou entre eles, curvando-se para se
ocultar, embora a escuridão da noite fosse quase
completa.
Seu caminho era encosta acima, subindo um morro
muito escorregadio, sempre cheio de altos e baixos,
233/372
através de um matagal que arranhava seu rosto e suas
mãos, enganchava-se em sua roupa. Caiu três vezes e
tropeçou muitas outras. O apito não tornou a soar. Ele
não encontrou o Buick. Não encontrou a estrada pela
qual viera.
Arrastava os pés agora, e tropeçava mesmo sem ob-
stáculos, e quando chegou ao alto do morro e ia descer
do outro lado, começou a cair com mais freqüência. No
pé do morro, achou uma estrada e dobrou para a
direita nela. O barro da estrada grudava-se cada vez
mais em seus pés, fazendo com que ele parasse de vez
em quando para raspá-lo. Usava a pistola para isso.
Quando ouviu um cachorro latir às suas costas, parou e
voltou-se oscilantemente e olhou para trás. Perto da es-
trada, uns quinze metros atrás dele, via-se o vulto de
uma casa, pela qual ele passara. Refez seus passos e
chegou a um portão alto. O cachorro -- um monstro
agigantado na noite -- lançou-se do outro lado do
portão e latiu de uma maneira terrível.
Ned Beaumont tateou numa das extremidades do
portão, achou o ferrolho, abriu-o e cambaleou para
dentro. O cão recuou, circulando, fintando ataques que
não fazia, enchendo a noite de clamor.
Uma janela abriu-se rangendo, e uma voz pesada
gritou:
-- Que diabo você está fazendo com o cachorro?
234/372
Ned Beaumont deu uma fraca risada. Depois sacudiu-
se e respondeu em voz não muito apagada:
--Aqui é Beaumont, do gabinete do Promotor Dis-
trital. Preciso usar seu telefone. Tem um homem
morto lá embaixo.
A voz pesada rugiu:
--Não sei de que você está falando. Cale a
boca, Jane! -- O cachorro latiu três vezes com
crescente energia, e depois calou-se. -- Agora,
que é que há mesmo?
--Preciso telefonar. Gabinete do Promotor
Distrital. Tem um homem morto lá embaixo.
A voz pesada exclamou:
--Ao diabo com você! -- A janela fechou-se
rangendo de novo.
O cachorro recomeçou a latir, a rondar e a fintar. Ned
Beaumont atirou sua pistola enlameada em cima dele.
O animal correu e desapareceu por trás da casa.
A porta da frente foi aberta por um homem vermelho e
atarracado, metido numa comprida camisola de dormir
azul.
--Santa Maria, você está imundo! -- exclamou
quando viu Ned Beaumont aproximar-se da
luz que saía da porta.
--Telefone -- disse Ned Beaumont.
235/372
O homem vermelho amparou-o, porque ele
cambaleava.
--Pronto -- disse mal-humorado. -- Me diga a
quem chamar e o que dizer.Você não pode
fazer coisa alguma.
--Telefone -- disse Ned Beaumont.
"O homem vermelho firmou-o pelo corredor, abriu
uma porta e disse:
--Lá está ele, e é uma sorte danada sua a velha não
estar em casa, senão você nunca que ia entrar com
essa lama toda em cima.
Ned Beaumont desabou sobre uma poltrona diante do
telefone, mas não estendeu logo a mão para pegá-lo.
Franziu a testa para o homem de camisola de dormir
azul e disse numa voz enrolada:
--Saia e feche a porta.
O homem vermelho não entrara na sala. Fechou a
porta.
Ned Beaumont pegou o telefone, curvou-se para a
frente até apoiar-se na mesa com os cotovelos e discou
o número de Paul Madvig. Meia dúzia de vezes, en-
quanto esperava, suas pálpebras se fecharam, mas a
cada vez ele as abria, e quando afinal falou, foi
claramente:
--Olá, Paul... Ned... Esqueça. Escute. Mathews
cometeu suicídio na casa dele, no rio, e não deixou
236/372
testamento... Escute. Isso é importante. Com um
monte de dívidas e sem testamento nomeando um
executor, caberá aos tribunais indicar alguém pra
administrar a propriedade. Pegou?... Sim. Dê um
jeito pra que a coisa vá pro juiz certo... Phelps, di-
gamos... e podemos manter o Observer fora da
briga... a não ser do nosso lado... até depois da
eleição. Pegou?... Está bem, está bem, agora escute.
Isso é só uma parte. É o que tem de ser feito agora.
O Observer está carregado de dinamite pra aman-
hã. Você tem de parar ele. Tire Phelps da cama e
consiga um interdito... qualquer coisa pra parar o
jornal até você poder mostrar aos empregados do
Observer a posição deles, agora que o jornal vai ser
dirigido durante mais ou menos um mês por seus
amigos... Não posso lhe dizer agora, Paul, mas é di-
namite, e você tem de impedir que seja distribuído.
Tire Phelps da cama e desça com ele e vejam por vo-
cês mesmos. Você tem umas três horas, talvez,
antes que esteja nas ruas... Exato... Quê?... Opal?
Oh, ela está bem. Está comigo... Sim, levo ela pra
casa... Quer telefonar às autoridades sobre
Mathews? Vou voltar lá agora. Certo.
Colocou o telefone na mesa e levantou-se, cambaleou
até a porta, abriu-a após a segunda tentativa e desabou
237/372
no corredor, onde a parede da frente o impediu de cair
no chão.
O homem vermelho veio correndo até ele.
--Se apóie em mim, irmão, que eu dou um jeito.
Estendi um cobertor no sofá, e você não precisa se
preocupar com a lama e...
Ned Beaumont disse:
--Quero um carro emprestado. Preciso voltar
à casa de Mathews.
--Foi ele que morreu?
--Foi.
O homem vermelho ergueu as sobrancelhas e emitiu
um assobio abafado.
--Me empresta um carro? -- perguntou Ned
Beaumont.
--Meu Deus, irmão, seja razoável! Como pode
dirigir um carro?
Ned Beaumont recuou da frente do outro, inseguro.
--Vou a pé -- disse.
O homem vermelho fuzilou-o com o olhar.
--Também não vai, não. Se você agüentar um
pouquinho aí enquanto ponho as calças, eu levo vo-
cê de carro lá, embora provavelmente você vá mor-
rer no caminho.
Opal Madvig e Eloise Mathews estavam juntas na
grande sala quando Ned Beaumont foi mais carregado
238/372
do que conduzido para dentro pelo homem vermelho.
Os homens haviam entrado sem bater. As duas garotas
estavam de pé juntas, de olhos arregalados,
assombradas.
Ned Beaumont arrancou-se dos braços de seu compan-
heiro e olhou em volta da sala.
--Onde está Shad? -- murmurou.
Opal respondeu-lhe:
--Foi embora. Todos eles foram embora.
--Tudo bem -- ele disse, falando com di-
ficuldade. -- Quero falar a sós com você.
Eloise Mathews correu para ele.
--Você matou ele! -- gritou.
Ele deu uma risadinha idiota e tentou abraçá-la.
Ela gritou, esbofeteou-lhe o rosto com a mão aberta.
Ele caiu duro para trás, sem dobrar-se. O homem ver-
melho tentou ampará-lo, mas não pôde. Ele não se
moveu mais de modo algum depois que bateu no chão.
7
OS CAPANGAS
1
O senador Henry pôs o guardanapo na mesa e se levan-
tou. De pé, parecia mais alto e mais jovem do que era. A
cabeça um tanto pequena, sob a tênue cobertura de ca-
belos grisalhos, era notavelmente simétrica. Os múscu-
los, com a idade, cediam naquele rosto aristocrático,
acentuando as linhas verticais, mas a frouxidão não lhe
atingira os lábios, e os anos hão pareciam ter tocado de
modo algum os seus olhos: eram de um cinza esver-
deado, profundos, não grandes mas brilhantes, e com
as pálpebras firmes. Ele falou com uma cortesia grave
estudada:
--Me perdoa se levar Paul lá pra cima por algum
tempo?
A filha respondeu:
--Sim, se me deixar o sr. Beaumont e prometer não
ficar lá em cima a noite toda.
Ned Beaumont sorriu polidamente, inclinando a
cabeça.
240/372
Ele e Janet Henry passaram a uma sala de paredes
brancas, onde o carvão ardia indolentemente numa
grade, sob um console branco, lançando sombrios re-
flexos rubros nos móveis de mogno.
Ela acendeu um abajur junto ao piano e sentou-se a ele,
de costas para o teclado, a cabeça entre Ned Beaumont
e a luz. Os cabelos loiros captavam a luz do abajur e
mantinham uma auréola em torno da cabeça. O vestido
negro era de um material parecendo couro, que não re-
fletia a luz, e ela não usava jóias.
Ned Beaumont curvou-se para bater a cinza de seu
charuto sobre o carvão em brasa. Uma pérola escura no
peito de sua camisa, faiscando à luz do fogo quando ele
se movia, parecia um olho rubro piscando. Quando se
endireitou, perguntou:
--Vai tocar alguma coisa?
--Vou, se você desejar... embora eu não toque
excepcionalmente bem. Gostaria de conversar
com você agora, enquanto tenho uma opor-
tunidade. -- Tinha as mãos juntas no colo. Os
braços, retos, forçavam os ombros para cima e
em direção ao pescoço.
Ned Beaumont concordou educadamente mas nada
disse. Afastou-se da lareira e sentou-se não distante
dela, num sofá cujas extremidades eram em forma de
241/372
lira. Embora estivesse atento, não havia curiosidade em
sua expressão.
Virando-se na banqueta do piano para de frente para
ele, ela perguntou:
--Como está Opal? -- A voz era baixa, íntima.
A dele era casual:
--Perfeitamente bem, até onde eu sei, embora não
veja ela desde a semana passada. -- Ergueu o
charuto meio palmo em direção à boca, baixou-o e,
como se a pergunta acabasse de lhe ocorrer, disse:
-- Por quê?
Ela arregalou os olhos castanhos.
--Ela não está de cama com um colapso
nervoso?
--Oh, isso! -- ele disse descuidadamente. --
Paul não lhe falou?
--Sim, ele me disse que ela estava de cama
com um colapso nervoso. -- Encarou-o perpl-
exa. -- Ele me disse isso.
O sorriso de Ned Beaumont tornou-se suave.
--Acho que ele é sensível a isso -- disse devag-
ar, olhando o charuto. Depois ergueu o olhar
para ela e moveu os ombros um pouco. -- Não
tem nenhum problema com ela nesse ponto.
Só que ela meteu na cabeça a idéia idiota de
que ele matou seu irmão e... o que é mais
242/372
idiota ainda... andava por aí falando nisso.
Ora, Paul não podia deixar a filha dele andar
por aí acusando ele de assassinato, e por isso
teve de segurar ela em casa até ela tirar essa
idéia da cabeça.
--Quer dizer que éla está... -- hesitou: seus ol-
hos brilhavam -- está... bem... prisioneira?
--Você faz a coisa soar melodramática. -- Ele
tinha um ar indiferente. -- Ela é apenas uma
criança. Fazer as crianças ficarem em casa não
e um dos meios habituais de disciplinar elas?
Janet Henry apressou-se a responder:
--Oh, sim! Apenas... -- Olhou as mãos no colo e
tornou a erguer o rosto. -- Mas por que ela pensou
isso?
A voz de Ned Beaumont soou morna, como seu sorriso.
--Quem não pensa?
Ela pôs as mãos na borda da banqueta do piano, e
curvou-se para a frente. Tinha o rosto branco muito
sério.
--Isso era o que eu queria perguntar ao senhor, sr.
Beaumont. As pessoas pensam isso?
Ele fez que sim com a cabeça. Tinha o rosto tranqüilo.
Os nós dos dedos dela estavam brancos sobre a borda
da banqueta. A voz estava ansiosa, ao perguntar:
--Porquê?
243/372
Ele se levantou do sofá e foi até a lareira jogar o resto
do charuto no fogo. Quando voltou ao seu assento,
cruzou as pernas compridas e reclinou-se à vontade.
--O outro lado acha que é boa política fazer as pess-
oas pensarem isso. -- Nada havia em sua voz, seu
rosto ou suas maneiras que mostrasse que ele tinha
algum interesse no que falava.
Ela levantou as sobrancelhas.
--Mas, sr. Beaumont, por que as pessoas pensariam
uma coisa dessas se não houvesse alguma espécie
de indício, ou algo que se possa fazer parecer um
indício?
Ele a olhou curiosa e divertidamente.
--Há, é claro. Pensei que a senhorita sabia. -- Alisou
uma banda do bigode com a unha de um polegar. --
Não recebeu nenhuma das cartas anônimas que têm
corrido por aí?
Ela se levantou rapidamente. A excitação distorcia o
seu rosto.
--Sim, hoje! -- exclamou. -- Queria mostrar ao sen-
hor, para...
Ele- deu uma risada baixinho e ergueu uma mão, a
palma voltada para fora, num gesto de quem detém al-
guma coisa.
--Não se incomode. Todas parecem ser muito
iguais, e já vi muitas.
244/372
Ela tornou a sentar, lentamente, relutantemente.
Ele disse:
--Bem, essas cartas, o material que o Observer es-
tava publicando até que tiramos ele da briga, as
conversas que os outros têm ventilado por aí... --
ergueu os finos ombros -- pegam quaisquer fatos
que existem e fazem uma bela acusação contra Paul.
Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes para
perguntar:
--Ele... está realmente em perigo?
Ned Beaumont fez que sim com a cabeça e falou com
calma certeza:
--Se perder a eleição, perder o domínio no governo
municipal e estadual, vão eletrocutar ele.
Ela teve um arrepio e perguntou, numa voz que tremia:
--Mas se vencer estará seguro?
Ned Beaumont tornou a assentir.
--Claro.
Ela prendeu a respiração. Os lábios tremiam tanto que
as palavras saíram aos saltos.
--Vai ganhar?
--Creio que sim.
--E não fará diferença então, seja quais forem
os indícios que tiverem contra ele? Ele... -- a
voz falhou -- não estará em perigo?
245/372
--Não irá a julgamento -- disse Ned Beau-
mont. Ficou em pé de repente. Fechou os ol-
hos com força, abriu-os e olhou o tenso rosto
pálido dela. Um brilho alegre surgiu nos olhos
dele, e a alegria se espalhou por todo o rosto.
Riu -- não alto, mas com total prazer -- e ex-
clamou: -- A própria Judite!
Janet Henry permanecia sentada, sem fôlego, olhando
para ele com olhos castanhos, sem compreender, no
rosto pálido e vazio.
Ele começou a andar pela sala, num caminho irregular,
falando depressa -- não a ela -- embora de vez em
quando virasse a cabeça por cima do ombro e sorrisse.
--É esse o jogo, claro -- dizia. -- Ela podia tolerar
Paul... ser gentil com ele... por causa do apoio
político que o pai dela precisava, mas isso teria seus
limites. Ou era tudo que seria preciso, uma vez que
Paul estava tão apaixonado por ela. Mas quando se
convenceu de que Paul tinha matado seu irmão e ia
escapar do castigo se ela não... Isso é esplêndido! A
filha e a namorada de Paul tentando levar ele pra
cadeira elétrica. Não há dúvida de que ele tem uma
sorte dos diabos com as mulheres. -- Tinha na mão,
agora, um fino charuto manchado de verde-claro.
Parou diante de Janet Henry, cortou a ponta do
charuto e disse, não acusadoramente, mas como
246/372
partilhando uma descoberta com ela: -- Foi você
que espalhou essas cartas anônimas por aí. Certa-
mente que foi você. Elas foram escritas na máquina
de escrever que está no quarto onde seu irmão e
Opal se encontravam. Ele tinha uma chave e ela
outra. Ela não escreveu, porque ficou perturbada
com elas. Você, sim. Você tirou a chave, quando ela
foi entregue a vocês com o resto das coisas dele pela
polícia, foi para o quarto e escreveu elas. Essa é
ótima. -- Recomeçou a andar. Disse: -- Bem, bem,
temos de fazer o senador arranjar um esquadrão de
boas enfermeiras e trancar você em seu quarto com
um colapso nervoso. Isso está começando a ser epi-
dêmico entre as filhas de nossos políticos, mas pre-
cisamos garantir a eleição, mesmo que toda casa da
cidade tenha de ter seu paciente. -- Voltou a cabeça
por cima do ombro e sorriu amistosamente para
ela.
Ela levou a mão à garganta. Fora isso, não se moveu.
Não falou.
Ele disse:
--O senador não vai nos causar muita encrenca, fel-
izmente. Não dá a mínima pra nada... nem pra você
nem pra seu irmão morto... a não ser prá reeleição,
e sabe que não consegue isso sem Paul. -- Deu uma
risada. -- Foi isso que impeliu você pro papel de
247/372
Judite, hein? Sabia que seu pai não ia romper com
Paul... mesmo achando que ele era culpado... até
vencer a eleição. Bem, é reconfortante saber disso...
pra nós.
Quando ele parou de falar para acender seu charuto,
ela falou. Tirara a mão da garganta. Tinha as mãos no
colo. Sentava-se ereta, mas sem rigidez. Sua voz era fria
e composta.
--Não sou muito boa pra mentir. Sei ciue Paul
matou Taylor. Escrevi as cartas.
Ned Beaumont tirou o charuto aceso da boca, voltou ao
sofá com liras nas extremidades e sentou-se de frente
para ela. Tinha o rosto sério, mas sem hostilidade.
--Você odeia Paul, não é? Mesmo que ele
provasse a você que não matou Taylor, você
ainda odiaria ele, não é?
--É -- ela respondeu, os olhos castanho-claros
firmes nos dele, mais escuros. -- Acho que
sim.
--É isso -- ele disse. -- Não odeia ele por achar
que matou seu irmão. Acha que ele matou seu
irmão porque odeia ele.
Ela moveu lentamente a cabeça de um lado para outro.
--Não.
Ele sorriu ceticamente. Depois perguntou:
--Você discutiu isso com seu pai?
248/372
Ela mordeu o lábio e enrubesceu um pouco.
Ned Beaumont tornou a sorrir.
--E ele disse a você que isso era ridículo.
O rubor acentuou-se das faces dela, que começou a
dizer alguma coisa, mas não o fez.
Ele disse:
--Se Paul matou seu irmão, seu pai sabe.
Ela baixou o olhar para as mãos no colo e disse com um
ar de infelicidade:
--Meu pai deve saber, mas não acredita.
Ned Beaumont disse:
--Ele deve saber. -- Estreitou os olhos. -- Paul falou
alguma coisa a ele naquela noite sobre Taylor e
Opal?
Ela ergueu a cabeça, espantada.
--Não sabe o que aconteceu naquela noite? --
perguntou.
--Não.
--Não teve nada a ver com Taylor e Opal -- ela
disse, atropelando as palavras na ânsia de
dizê-las. -- Era... -- Virou a cabeça abrupta-
mente em direção à porta e fechou a boca com
um estalido. Ouviu-se o som de uma profunda
risada do outro lado, e depois o de passos que
se aproximavam. Ela tornou a voltar-se para
Ned Beaumont, apressada, erguendo as mãos
249/372
num gesto de apelo. -- Preciso contar a você --
sussurrou, numa ânsia desesperada. -- Posso
falar com você amanhã?
--Pode.
--Onde?
--Em minha casa.
Ela assentiu rapidamente com a cabeça. Ele teve tempo
de murmurar seu endereço, e ela de sussurrar:
--Depois das dez?
Ele fez que sim com a cabeça, antes que o senador
Henry e Paul Madvig entrassem na sala.
2
Paul Madvig e Ned Beaumont despediram-se dos
Henry às dez e meia da noite e entraram num sedan
marrom que Madvig dirigiu pela rua Charles abaixo.
Depois de percorrerem uma quadra e meia, Madvig
soltou a respiração numa rajada de satisfação e disse:
--Deus do céu, Ned, não sabe como estou excitado
por você e Janet estarem se dando tão bem.
Olhando de viés para o perfil do loiro, Ned Beaumont
disse:
--Eu posso me dar bem com qualquer pessoa.
Madvig deu uma risadinha.
250/372
--É, pode, sim -- disse com certa tolerância. -- O di-
abo que pode.
Ned Beaumont curvou os lábios num sorrisinho fino e
cheio de segredos.
--Tem lima coisa que quero falar com você amanhã.
Onde vai estar, digamos, no meio da tarde?
Madvig dobrou com o sedan para a rua da China.
--No escritório. É o dia primeiro do mês. Por
que não fala agora? Ainda temos muita noite
pela frente.
--Ainda não sei o que é. Como vai Opal?
--Está bem -- disse Madvig sombriamente, e
depois exalamou: -- Deus! Eu gostaria .de ter
pena dela. Tornaria as coisas um bocado mel-
hores. -- Passaram por uma luz de poste. Ele
despejou: -- Ela não está grávida.
Ned Beaumont nada disse. Tinha o rosto inexpressivo.
Madvig reduziu a velocidade do sedan ao se aproximar-
em do Log Cabin Club. Tinha o rosto corado. Perguntou
num sussurro:
--Que é que você acha, Ned. Ela era... -- pigarreou
ruidosamente -- amante dele? Ou era só namoro?
Ned Beaumont disse:
--Não sei. Não me importa. Não pergunte a ela,
Paul.
251/372
Madvig parou o sedan e ficou por um momento sen-
tado atrás do volante, olhando diretamente em frente.
Depois tornou a pigarrear e falou numa voz baixa e
áspera:
--Você não é tão mau assim, Ned.
--Um-hum -- concordou Ned Beaumont, en-
quanto saltavam do sedan.
Entraram no Club, separando-se casualmente sob o re-
trato do governador no alto da escada no segundo
andar.
Ned Beaumont entrou numa sala meio pequena no
fundo, onde cinco homens jogavam pôquer e três
bicavam. Os jogadores abriram espaço para ele, e às
três da manhã, quando se suspendeu o jogo, ele já gan-
hara uns quatrocentos dólares.
3
Era quase meio-dia quando Janet Henry chegou ao
apartamento de Ned Beaumont. Ele estivera andando
de um lado para outro, roendo as unhas e fumando
charutos alternadamente, por mais de uma hora.
Dirigiu-se sem pressa até a porta quando a campainha
tocou, abriu-a e Janet, sorrindo com um ar de leve mas
agradável surpresa, disse:
252/372
--Sinto muitíssimo estar atrasada ela começou
-- mas...
--Mas não está -- ele garantiu. -- Era qualquer
hora depois das dez.
Fez com que entrasse em sua sala de estar.
--Gosto disso -- ela disse, girando lentamente,
examinando a sala antiquada, a altura do teto,
a largura das janelas, o tremendo espelho
sobre a lareira, o veludo vermelho dos móveis.
-- É delicioso. -- Voltou os olhos castanhos
para uma porta entreaberta. -- Aquele é o seu
quarto?
--É. Gostaria de ver?
--Adoraria.
Ele mostrou-lhe o quarto, depois a cozinha e o
banheiro.
--É perfeito -- ela disse, quando voltaram à sala de
estar. -- Eu não sabia que ainda restavam coisas as-
sim numa cidade tão horrivelmente modernizada
como se tornou a nossa.
Ele fez uma pequena curvatura de reconhecimento da
aprovação.
--Eu gosto, e, como pode ver, não tem ninguém
aqui pra ficar nos escutando, a menos que estejam
enfurnados no armário, o que não é provável.
Ela se recompôs e olhou direto dentro dos olhos dele.
253/372
--Eu não pensava nisso. Podemos não concordar,
podemos até nos tornar... ou ser já... inimigos, mas
sei que você é um cavalheiro, senão não estaria
aqui.
Ele perguntou num tom brincalhão.
--Quer dizer que aprendi a não usar sapatos
marrom com camisas azuis? Essas coisas?
--Não me refiro a essas coisas.
Ele sorriu.
--Então está enganada. Sou um jogador e um
agregado político.
--Não estou enganada. -- Uma expressão de
súplica surgiu em seus olhos. -- Por favor, não
vamos discutir, pelo menos enquanto não for
preciso.
--Sinto muito. -- O sorriso dele era de quem
pedia desculpas agora. -- Não quer se sentar?
Ela se sentou. Ele também, numa ampla poltrona ver-
melha de frente para ela.
--Agora vai me contar o que aconteceu em sua
casa na noite em que seu irmão foi
assassinado.
--É -- ela disse, de um modo quase inaudível.
Corou, e transferiu o olhar para o chão.
Quando tornou a erguê-lo, estava inibido. O
embaraço dificultava-lhe a voz:
254/372
--Eu queria que você soubesse. É amigo de
Paul e isso... isso pode tornar você inimigo
dele, mas... acho que, quando souber o que
aconteceu... quando souber a verdade... não
será... pelo menos não será meu inimigo. Não
sei. Talvez você... Mas você deve saber. Depois
poderá decidir. E ele não contou a você. --
Olhou-o atentamente, e a inibição abandonou
os seus olhos. -- Contou?
--Não sei o que aconteceu em sua casa
naquela noite -- ele disse. -- Ele não me
contou.
Ela se curvou para ele, num movimento rápido, para
perguntar:
--Isso não mostra que tem alguma coisa que ele
quer esconder, alguma coisa que precisa esconder?
Ele moveu os ombros.
--E se mostrar? -- Sua voz não tinha excitação
alguma.
Ela franziu a testa.
--Mas você tem de entender... Deixe isso pra
lá agora. Vou lhe dizer o que aconteceu e verá
por si mesmo. -- Continuou a curvar-se para a
frente, olhando os olhos dele com olhos
castanhos atentos. -- Ele veio jantar, a
primeira vez que recebemos ele pra jantar.
255/372
--Eu sabia disso -- disse Ned Beaumont --, e
seu irmão não estava lá.
--Taylor não estava à mesa -- ela se apressou
em corrigir --, mas estava no quarto dele. Só
meu pai, Paul e eu estávamos à mesa. Taylor ia
jantar fora... não queria jantar com Paul,
devido à briga que tinham por causa de Opal.
Ned Beaumont concordou atentamente, sem
entusiasmo.
--Depois do jantar, Paul e eu ficamos sozinhos por
algum tempo no... no quarto onde eu e você conver-
samos ontem à noite, e de repente ele me abraçou e
me beijou.
Ned Beaumont deu uma risada, não alta, mas de uma
alegria abrupta e irreprimível.
Janet Henry ergueu o olhar para ele, surpresa.
Ele reduziu a risada a um sorriso e disse:
--Desculpe. Prossiga. Digo depois por que ri.
-- Mas, quando ela ia prosseguir, ele disse: --
Espere. Ele disse alguma coisa quando beijou
você?
--Não. Isto é, pode ter dito, mas nada que eu
tenha entendido.
Ned Beaumont tornou a rir.
--Deve ter dito alguma coisa sobre sua libra de
carne. Provavelmente, foi minha culpa. Eu tinha
256/372
tentado convencer ele a não apoiar seu pai na
eleição, disse que seu pai estava usando você como
isca pra ganhar o apoio dele, e aconselhei que, se
estava disposto a se vender desse jeito, devia se
garantir e cobrar sua libra de carne antes da eleição,
pois de outro modo jamais ia receber.
Ela arregalou os olhos, e havia menos perplexidade
neles.
Ele disse:
--Isso foi naquela tarde, embora eu não
achasse que tivesse influenciado muito ele. --
Enrugou a testa. -- Que fez você com ele? Paul
estava querendo casar com você, e todo cheio
de respeito e essas coisas todas, e você deve ter
feito alguma coisa muito errada pra fazer ele
saltar desse jeito.
--Eu não fiz nada com ele -- ela respondeu de-
vagar --, embora tivesse sido uma noite difícil.
Nenhum de nós estava à vontade. Eu
pensava... tentava não demonstrar que...
bem... que me chateava ter de fazer sala a ele.
Sei que ele não estava à vontade, e suponho
que... o embaraço dele... e talvez uma certa
desconfiança de que você tivesse razão fizeram
com que ele... -- Terminou a frase com um
257/372
breve e rápido movimento para fora de ambas
as mãos.
Ned Beaumont assentiu com a cabeça.
--Que aconteceu então?
--Eu fiquei furiosa, é claro, e deixei ele ali.
--Não disse nada pra ele? -- Os olhos de Ned
Beaumont faiscavam com uma gozação muito
mal disfarçada.
--Não, nem ele disse qualquer coisa que eu
ouvisse. Subi e encontrei papai "que descia.
Enquanto contava a ele o que tinha aconte-
cido... estava tão furiosa com ele quanto com
Paul, porque era culpa dele o fato de Paul es-
tar lá em casa... Enquanto eu falava, ouvimos
Paul sair pela porta da frente. E então Taylor
desceu de seu quarto. -- Seu rosto ficou pálido
e tenso, a voz rouca de emoção. -- Tinha me
ouvido conversando com papai e me pergun-
tou o que acontecera, mas deixei ele ali com
papai e fui pro meu quarto, furiosa demais pra
continuar falando naquilo. E não vi mais nen-
hum dos dois, até que papai veio ao meu
quarto e disse que Taylor tinha... tinha sido
assassinado. -- Parou de falar e olhou, pálida,
para Ned Beaumont, torcendo os dedos, à es-
pera de uma resposta para a sua história.
258/372
A resposta dele foi uma fria pergunta:
--Bem, e daí?
--E daí? -- ela repetiu espantada. -- Não está
vendo? Como pude deixar de saber então que
Taylor tinha corrido atrás de Paul, alcançado
ele e sido morto por ele? Estava furioso e... --
Seu rosto iluminou-se. -- Você sabe que o
chapéu dele não foi encontrado. Ele saiu
apressado demais... furioso demais... pra parar
pra pegar o chapéu. Ele...
Ned Beaumont balançou lentamente a cabeça de um
lado para outro e interrompeu-a. A certeza em sua voz
era indiscutível.
--Não. Isso não significa nada. Paul não teria ne-
cessidade de matar Taylor, nem mataria. Daria um
jeito nele com um braço só, e não perde a cabeça
numa briga. Eu sei disso. Já vi Paul brigar e já
briguei com ele. Isso não significa nada. -- Estreitou
as pálpebras sobre os olhos, que se haviam tornado
mais duros. -- Mas e se matou? Quero dizer,
acidentalmente, embora eu não possa acreditar
nem mesmo nisso. Você poderia fazer outra acus-
ação que não de legítima defesa?
Ela ergueu a cabeça, com desdém.
--Se foi legítima defesa, por que ele esconderia?
Ned Beaumont não pareceu impressionado.
259/372
--Ele quer casar com você -- explicou. -- Não ia
ajudar muito admitir que matou seu irmão,
mesmo... -- Deu uma risadinha. -- Estou ficando
tão ruim quanto você. Paul não matou ele, srta.
Henry.
Os olhos dela estavam tão duros quando os dele antes.
Olhou-o e não disse nada.
A expressão dele tornou-se pensativa. Perguntou:
--Você tem apenas -- mexeu os dedos de uma
mão -- o dois e o dois que acha que somou
para deduzir que seu irmão correu atrás de
Paul naquela noite?
--Isso basta -- ela insistiu. -- Ele matou. Tem
de ter matado. De outro modo... ora, de outro
modo, que estaria ele fazendo lá embaixo na
rua da China sem chapéu?
--Seu pai não viu ele sair?
--Não. Ele também só soube quando nos
disseram...
Ele a interrompeu.
--Ele concorda com a senhorita?
--Tem de concordar! -- ela exclamou. -- É in-
equívoco. Tem de concordar, não importa o
que diga, do mesmo modo que você. Tinha lá-
grimas nos olhos agora. -- Não pode esperar
que eu acredite que não concorda, sr.
260/372
Beaumont. Não sei o que sabia antes. Foi você
quem encontrou Taylor morto. Não sei o que
mais descobriu, mas agora deve estar sabendo
a verdade.
As mãos de Ned Beaumont começaram a tremer. Ele se
arriou mais na poltrona, para poder enfiar as mãos nos
bolsos das calças. Tinha o rosto tranqüilo, a não ser
pelas marcadas linhas de tensão em redor da boca.
Disse:
--Achei ele morto. Não tinha mais ninguém lá.
Não achei nada mais.
--Achou agora -- ela disse.
A boca dele contorceu-se sob o bigode. Os olhos
tornaram-se vermelhos de cólera. Ele falou numa voz
baixa, áspera, deliberadamente irada:
--Sei que quem matou seu irmão prestou um favor
ao mundo.
Ela se encolheu para trás na poltrona, levando a mão à
garganta a princípio, mas imediatamente o horror
abandonou o seu rosto e endireitou-se, olhando-o com
compaixão. Disse baixinho:
--Eu sei. O senhor é amigo de Paul. Isso dói.
Ele baixou um pouco a cabeça e murmurou:
--Foi uma coisa desagradável de dizer. Uma coisa
tola. -- Sorriu enviesado. -- Como vê, eu tinha razão
quando disse que não era um cavalheiro. -- Deixou
261/372
de sorrir e a vergonha abandonou os seus olhos,
deixando-os claros e firmes. Disse em voz baixa: --
Tem razão quando diz que eu sou amigo de Paul.
Sou, não importa quem ele tenha matado.
Após um instante encarando-o seriamente, ela falou
numa vozinha sincera:
--Então é inútil? Eu achei que podia lhe mostrar a
verdade... -- Interrompeu-se com um gesto de
desânimo do qual participaram as mãos, os ombros
e a cabeça.
Ele moveu lentamente a cabeça de um lado para outro.
Ela deu um suspiro e se levantou, estendendo a mão.
--Sinto muito e estou decepcionada, mas não pre-
cisamos ser inimigos, precisamos?
Ele se levantou na frente dela, mas não apertou sua
mão. Disse:
--A parte de você que tapeou Paul e está tentando
me tapear é minha inimiga.
Ela continuou de mão estendida, enquanto dizia:.
--E a outra parte de mim, a parte que nada tem a
ver com isso?
Ele tomou a mão dela e fez uma reverência.
4
Depois que Janet Henry se foi, Ned Beaumont dirigiu-
se ao telefone, discou um número e disse:
262/372
-- Alô, aqui é Beaumont. O sr. Madvig já chegou?...
Bem, quando ele chegar diga que chamei e vou passar
por aí praverele... Sim, obrigado.
Olhou o seu relógio. Passava um pouco da uma da
tarde. Ele acendeu um charuto e sentou perto de uma
janela, fumando e olhando a igreja cinza do outro lado
da rua. A fumaça que expelia do charuto espiralava-se,
afastando-se das vidraças em nuvens cinza, acima de
sua cabeça. Ele mastigava a ponta do charuto. Ficou ali
sentado durante dez minutos, até que o telefone tocou.
Foi atender.
--Alô... Sim, Harry... Claro. Onde está você? Vou ao
centro. Espere lá por mim... Meia hora... Certo.
Jogou o charuto na lareira, pôs o chapéu e o casaco, e
saiu. Andou seis quadras até um restaurante, comeu
uma salada e pãezinhos, bebeu uma xícara de café,
andou mais quatro quadras até um hotelzinho cha-
mado Majestic e subiu ao quarto andar num elevador
operado por um rapaz franzino que o chamou de Ned e
perguntou o que ele achava do terceiro páreo.
Ned Beaumont pensou e disse:
--Lord Byron deve conseguir.
O ascensorista disse:
--Espero que esteja errado. Apostei em Pipeorgan.
Ned Beaumont deu de ombros.
263/372
--Talvez, mas ele está carregando um monte de
peso.
Foi até o quarto 417 e bateu na porta.
Harry Sloss, em mangas de camisa, abriu-a. Era um
homem atarracado de trinta e cinco anos, cara larga, e
parcialmente calvo. Disse:
--Em ponto. Entre.
Depois que ele fechou a porta, Ned Beaumont
perguntou:
--Qual é o problema?
O homem atarracado foi até a cama e sentou-se. Fran-
ziu a testa ansiosamente para o visitante.
--Não me parece tão bem assim, Ned.
--O quê?
--Esse negócio de Ben ir à prefeitura falar.
Ned Beaumont disse irritado:
--Está bem. Na hora em que estiver disposto a me
dizer do que está falando eu ficarei agradecido.
Sloss ergueu uma mão pálida.
--Espere, Ned, eu digo do que se trata. Escute só. --
Apalpou o bolso em busca de cigarros, tirou um
maço amassado. -- Se lembra da noite em que o ga-
roto de Henry foi apagado?
O "um-hum" de Ned Beaumont foi indiferente.
--Se lembra que eu e Ben tínhamos acabado
de entrar quando você chegou lá, no Club?
264/372
--Lembro.
--Bem, escute: a gente viu Paul e o rapaz dis-
cutindo lá, embaixo das árvores.
Ned Beaumont alisou um lado do bigode com a unha
do polegar, e falou vagarosamente, parecendo
intrigado.
--Mas eu vi vocês saltarem do carro diante do
Club... pouco depois que achei ele... e vocês vinham
do outro lado. -- Moveu um dedo. -- E Paul já es-
tava no Club, chegou antes de vocês.
Sloss fez que sim com a cabeça, vigorosamente.
--Está tudo bem -- disse --, mas a gente foi de carro
da rua da China até o bar de Pinky Klein, e como ele
não estava lá a gente deu meia-volta e foi pro Club.
Ned Beaumont assentiu.
--Que foi exatamente que vocês viram?
--Vimos Paul e o rapaz parados debaixo das
árvores, brigando.
--Conseguiram ver isso passando de carro?
Sloss tornou a assentir vigorosamente com a cabeça.
--Era um lugar escuro -- lembrou-lhe Ned
Beaumont. -- Não percebo como puderam dis-
tinguir os rostos deles, passando assim de
carro, a não ser que tenham diminuído a
marcha ou parado.
265/372
--Não, não fizemos nada disso, mas eu recon-
heceria Paul em qualquer lugar -- insistiu
Sloss.
--Talvez, mas reconheceria que era o rapaz
que estava com ele?
--Era ele. Claro que era. A gente viu o bastante
pra saber disso.
--E conseguiram ver que estavam brigando.
Que quer dizer com isso? Lutando?
--Não, parados como se estivessem dis-
cutindo. Você sabe, a gente pode saber quando
duas pessoas estão brigando, às vezes, pela
maneira como agem.
Ned Beaumont sorriu sem alegria.
--É, se um deles estiver pisando na cara do
outro. -- Seu sorriso desapareceu. -- E foi isso
que Ben foi contar na prefeitúra?
--É. Não sei se foi por conta própria ou se Farr
soube de alguma coisa, de algum modo, e
mandou chamar ele, mas de qualquer forma
ele despejou tudo pra Farr. Isso foi ontem.
--Como você soube disso, Harry?
--Farr está me caçando -- disse Sloss. -- Foi
assim que eu soube, Ben disse que eu estava
com ele e Farr mandou um recado pra que eu
266/372
aparecesse pra falar com ele, mas não quero
tomar parte nisso.
--Espero que não tome, Harry -- disse Ned
Beaumont.
--Que vai dizer se Farr pegar você?
--Não vou deixar ele me pegar, se puder
evitar. Era por isso que queria ver você. -- Pi-
garreou e umedeceu os lábios.
--Achei que talvez fosse bom deixar a cidade
por uma semana ou duas, até a coisa murchar,
e que precisavam de um dinheirinho.
Ned Beaumont sorriu e balançou a cabeça.
--Não é isso que deve fazer -- disse ao homem
atarracado. -- Se quer ajudar Paul, vá a Farr e
diga que não reconheceu os dois homens em-
baixo das árvores, e que acha que ninguém, de
um carro, poderia reconhecer.
--Está bem, é o que eu vou fazer -- disse Sloss
prontamente. -- Mas escute, Ned, preciso gan-
har alguma coisa com isso. Estou me ar-
riscando e... bem... você sabe como é.
Ned Beaumont fez que sim com a cabeça.
--A gente arranja um lugar mole pra você de-
pois da eleição, um emprego onde só tenha de
aparecer talvez uma hora por dia.
267/372
--Isso vai ser... -- Sloss levantou-se. Os olhos
claros mostravam urgência. -- Vou dizer a vo-
cê, Ned, estou duro como o diabo. Não podia
em vez disso me arranjar uma graninha
agora? Chegaria numa hora danada de boa.
--Talvez. Vou discutir isso com Paul.
--Faça isso, Ned, e me telefone.
--Claro. Até logo.
5
Do hotel Majestic, Ned Beaumont foi à prefeitura, ao
gabinete do Promotor Distrital, e disse que queria falar
com o sr. Farr.
O rapaz de cara redonda a quem disse isso deixou a sala
de espera e retornou um minuto depois com uma ex-
pressão de quem se desculpa.
--Sinto muito, sr. Beaumont, mas o sr. Farr
não está.
--Quando vai voltar?
--Não sei. A secretária dele disse que ele não
deixou recado.
--Vou me arriscar. Esperarei no escritório
dele.
O rapaz de cara redonda barrou-o.
--Oh, não pode fazer...
268/372
Ned Beaumont deu seu mais belo sorriso ao rapaz e
perguntou baixinho:
--Não gosta desse emprego, filho?
O jovem hesitou, remexeu-se e saiu da frente dele. Ned
Beaumont desceu o corredor interno até a porta do
Promotor Distrital e abriu-a.
Farr ergueu o olhar de sua mesa, saltou de pé.
--Era você? -- exclamou. -- Diabo de rapaz!
Nunca entende nada direito. Disse que era um
tal sr. Bauman.
--Não faz mal -- disse suavemente Ned Beau-
mont. -- Eu entrei.
Deixou o Promotor Distrital sacudir sua mão para cima
e para baixo e conduzi-lo a uma poltrona. Depois de
sentados, ele perguntou ociosamente:
--Alguma novidade?
--Nada. -- Farr balançou-se para trás em sua
poltrona, os polegares enfiados nos bolsos de
baixo do colete. -- Só a mesma velha história,
embora Deus saiba que tem bastante.
--Como vai indo a campanha?
--Podia ir melhor... -- Uma sombra passou
pelo rosto obstinado e vermelho do Promotor
Distrital. -- Mas acho que vamos dar um jeito,
é claro.
Ned Beaumont manteve a voz desinteressada.
269/372
--Que é que há?
--Uma coisinha aqui, outra ali. Estão sempre
surgindo. É a política, imagino.
--Alguma coisa que eu possa fazer... ou Paul...
pra ajudar? -- perguntou Ned Beaumont, e,
depois de Farr balançar a cabeça de cabelos
ruivos à escovinha: -- Essa conversa de que
Paul teve alguma coisa a ver com o assassinato
de Henry é a pior que você está enfrentando?
Um brilho de susto surgiu nos olhos de Farr, mas desa-
pareceu quando ele piscou. Ele se endireitou na
poltrona.
--Bem -- disse cautelosamente --, tem muita
gente achando que a gente devia ter esclare-
cido o assassinato há muito tempo. Esta é uma
das coisas... talvez uma das maiores.
--Fez algum progresso desde a última vez que
te vi? Descobriu alguma coisa nova?
Farr balançou a cabeça. Os olhos demonstravam
cautela.
Ned Beaumont sorriu sem entusiasmo.
--Ainda indo devagar em algum dos ângulos do
caso?
O Promotor Distrital retorceu-se na poltrona.
--Bem, sim, claro, Ned.
270/372
Ned Beaumont assentiu. Tinha os olhos reluzentes de
malícia. A voz, quando falou, era de escárnio:
--O ângulo de Ben Ferriss é um desses que você es-
tá examinando devagar?
A dura boca pequena de Farr se abriu e fechou. Ele es-
fregou os lábios, juntos. Os olhos, depois de se ar-
regalarem de espanto, tornaram-se desprovidos de ex-
pressão. Ele disse:
--Não sei se existe alguma coisa na história de Fer-
riss ou não, Ned. Não creio que exista. Nem sequer
pensei muito nela pra lhe falar.
Ned Beaumont deu uma risada de gozação.
Farr disse:
--Você sabe que eu não esconderia nada sobre
você e Paul, nada que fosse importante. Me
conhece muito bem pra saber disso.
--Nós conhecíamos você antes de começar a
ficar com medo -- respondeu Ned Beaumont.
-- Mas está tudo bem. Se quer o cara que es-
tava no carro com Ferriss pode pegar ele agora
mesmo no quarto 417 do Majestic.
Farr olhava o tinteiro de sua mesa, a figura nua
dançante segurando um avião no alto, entre as duas
canetas inclinadas para fora. Tinha o rosto enrugado.
Não disse nada.
271/372
Ned Beaumont levantou-se da poltrona sorrindo com
os lábios finos.
--Paul sempre tem prazer em ajudar os rapazes a
saírem do buraco. Acha que ajudaria se ele se
deixasse prender e julgar pelo assassinato de
Henry?
Farr não moveu os olhos do tinteiro de mesa. Disse
obstinadamente:
--Não sou eu quem vai dizer a Paul o que fazer.
-- Está aí uma idéia! -- exclamou Ned Beaumont.
Curvou-se sobre a borda da mesa até aproximar o
rosto do ouvido do Promotor Distrital, e baixou a voz a
um tom confidencial. -- E aqui vai outra que acom-
panha aquela: você não deve fazer muita coisa que Paul
não diga pra fazer.
Saiu sorrindo, mas parou de sorrir do lado de fora.
8
O BEIJO DE DESPEDIDA
1
Ned Beaumont abriu uma porta onde estava escrito
Companhia Construtora e Empreiteira East State e
trocou boas-tardes com as duas moças que se sentavam
às mesas lá dentro, depois passou a uma sala maior, na
qual havia meia dúzia de homens, aos quais falou, e ab-
riu uma porta com a palavra "Privado". Entrou numa
sala quadrada onde Paul Madvig se sentava a uma
mesa bem gasta, olhando uns papéis colocados à sua
frente por um homenzinho que rondava re-
speitosamente em torno do ombro dele.
Madvig ergueu a cabeça e disse:
--Olá, Ned. -- Afastou os papéis e disse ao homen-
zinho: -- Traga esse lixo de volta daqui a pouco.
O homenzinho juntou seus papéis e, dizendo -- Certa-
mente, senhor -- e -- Como vai, sr. Beaumont? -- deix-
ou a sala.
Madvig disse:
--Você parece que teve uma noite difícil, Ned. Que
foi que fez? Sente aí.
273/372
Ned Beaumont tinha tirado o casaco. Colocou-o numa
poltrona, pôs o chapéu em cima e tirou um charuto.
--Não, estou bem. Que novidades há com
você? -- Sentou-se numa quina da mesa gasta.
--Eu gostaria que você fosse falar com
M'Laughlin -- disse o loiro. -- Pode dar um
jeito nele, se é que alguém pode.
--Tudo bem. Que é que há com ele?
Madvig fez uma careta.
--Só Deus sabe! Eu achava que tinha ele na linha,
mas está falseando a gente.
Um brilho sombrio surgiu nos olhos escuros de Ned
Beaumont. Ele baixou o olhar para o loiro e disse:
--Ele também, hein?
Madvig perguntou devagar, após pensar um momento:
--Que quer dizer com isso, Ned?
A resposta de Ned Beaumont foi outra pergunta:
--Tudo está indo a seu gosto?
Madvig moveu os ombros com impaciência, mas os ol-
hos não perderam o olhar fixo de vigilância.
--Também não está tão ruim assim. A gente
pode passar sem o conjunto de votos de
M'Laughlin, se for preciso.
--Talvez. -- Os lábios de Ned tornaram-se fi-
nos. -- Mas não podemos continuar perdendo
e nos dar bem. -- Pôs o charuto num canto da
274/372
boca e disse em torno dele: -- Sabe que não es-
tamos tão bem quanto há duas semanas.
Madvig deu um sorriso de tolerância ao homem sobre
sua mesa.
--Deus, você parece contar os votos, Ned! Alguma
coisa lhe parece errada? -- Não esperou por uma re-
sposta, e prosseguiu placidamente: -- Nunca passei
por uma campanha, ainda, que num momento ou
outro, não parecesse que estava indo pro brejo.
Ned Beaumont acendia seu charuto. Soprou a fumaça e
disse:
--Isso não significa que nunca vá. -- Apontou o
charuto para o peito de Madvig. -- Se o assassinato
de Taylor Henry não for esclarecido imediatamente,
você não precisará se preocupar com a campanha.
Estará liquidado, vença quem vencer.
Os olhos azuis de Madvig tornaram-se opacos. Fora
isso, não houve mudança em seu rosto. A voz permane-
ceu inalterada.
--Que quer dizer exatamente com isso, Ned?
--Todo mundo na cidade acha que você matou
ele.
--É? -- Madvig levou a mão ao queixo,
esfregou-o pensativamente. -- Não se pre-
ocupe com isso. Já falaram mal de mim antes.
275/372
Ned Beaumont deu um sorriso morno e perguntou com
fingida admiração:
--Existe alguma coisa pela qual você não tenha pas-
sado antes? Já se submeteu a um tratamento
elétrico?
O loiro deu uma risada.
--Nem acho que vá me submeter um dia --
disse.
--Não está muito longe dele neste momento,
Paul -- disse baixinho Ned Beaumont.
Madvig tornou a rir.
--Deus do céu! -- gozou.
Ned Beaumont deu de ombros.
--Não está ocupado? Não estou tomando seu
tempo com minhas tolices?
--Estou ouvindo você -- Madvig disse em voz
baixa. -- Nunca perco nada ouvindo você.
--Muito obrigado, senhor. Por que acha que
M'Laughlin está tirando o dele da reta?
Madvig balançou a cabeça.
--Ele imagina que você está liquidado -- disse
Ned Beaumont. -- Todos sabem que a polícia
não tentou descobrir o assassino de Taylor, e
todos acham que é porque foi você quem
matou ele. M'Laughlin acredita nisso o
276/372
bastante pra lhe dar o fora nas urnas desta
vez.
--É? Ele acha que seria melhor pra ele ter
Shad dirigindo a cidade em meu lugar? Acha
que o fato de ser suspeito de um assassinato
torna minha reputação pior que a de Shad?
Ned Beaumont franziu a testa para o loiro.
--Você ou está se enganando ou tentando me en-
ganar. Que é que a reputação de Shad tem a ver
com isso? Ele não apóia abertamente os candidatos
dele. Você apóia, e são seus candidatos os responsá-
veis pelo fato de não se fazer nada em relação ao
assassinato.
Madvig levou a mão ao queixo e apoiou o cotovelo na
mesa. Seu belo rosto corado não tinha rugas. Ele disse:
--Falamos um bocado sobre o que os outros
imaginam, Ned. Vamos falar do que você ima-
gina. Acha que estou liquidado?
--Provavelmente está -- disse Ned Beaumont
numa voz baixa e segura. -- Está numa enras-
cada, se ficar parado. -- Sorriu. -- Mas seus
candidatos devem ganhar, sem dúvida.
--Isso -- disse Madvig calmamente -- requer
uma explicação.
277/372
Ned Beaumont curvou-se e bateu cuidadosamente a
cinza do charuto na escarradeira junto à mesa. Depois
disse, sem nenhuma emoção:
--Eles vão te trair.
--É?
--Por que não? Você deixou Shad lhe tirar a
metade da ralé que lhe dava base. Está cont-
ando com as pessoas respeitáveis, o elemento
melhor, pra ganhar a eleição. Eles estão fic-
ando astutos. Bem, seus candidatos fazem
uma encenação grandiosa, prendem você por
assassinato, e os cidadãos respeitáveis... deli-
ciados com essas nobres autoridades, corajo-
sas o bastante pra prender o reconhecido
chefão delas por violar a lei... os cidadãos re-
speitáveis vão se atropelar uns aos outros na
corrida às urnas pra eleger os heróis pra mais
quatro anos de administração municipal. Você
não pode censurar muito os rapazes. Eles
sabem que estarão em boa posição se fizerem
isso, e desempregados se não fizerem.
Madvig tirou a mão do queixo e perguntou:
--Você não conta muito com a lealdade deles, conta,
Ned?
Ned Beaumont sorriu.
278/372
--Quase tanto quanto você -- respondeu. Seu
sorriso desapareceu. -- Não é só um palpite,
Paul. Fui faiar com Farr esta tarde. Tive de en-
trar na marra, arrombar a porta... ele tentou
me evitar. Disse que não estava investigando o
assassinato. Tentou esconder de mim o que
descobriu. No fim, minimizou a coisa. -- Ar-
mou uma expressão de desprezo cem a boca.
-- Farr, o sujeito que eu sempre conseguia
fazer saltar a meu comando.
--Bem, isso é só Farr -- começou Madvig.
Ned Beaumont interrompeu-o.
--Só Farr, e aí é que está o sinal. Rutlege ou Brody,
ou mesmo Rainey, podiam deixar você na mão indi-
vidualmente, mas se Farr está fazendo alguma
coisa, isso é um anúncio de que sabe que tem outros
ao lado dele. -- Franziu a testa para o rosto imper-
turbável do loiro. -- Pode deixar de acreditar em
mim na hora que quiser, Paul.
Madvig fez um gesto de indiferença com a mão que
levara ao queixo.
--Eu informo a você quando deixar -- disse. --
Como você foi parar no gabinete de Farr?
--Harry Sloss me telefonou hoje. Parece que
ele e Ben Ferriss viram você brigando com
Taylor na rua da China, na noite do
279/372
assassinato, ou dizem que viram. -- Ned Beau-
mont olhava o loiro sem qualquer expressão
particular nos olhos, e a voz era vulgar. -- Ben
tinha ido contar isso a Farr. Harry queria din-
heiro pra não ir. Alguns membros de seu Club
estão lendo os sinais. Venho observando Farr
perder a coragem já há algum tempo, e por
isso fui lá dar uma conferida nele.
Madvig assentiu.
--E tem certeza de que ele está me es-
faqueando pelas costas?
--Tenho.
Madvig levantou de sua poltrona e foi até a janela.
Ficou ali, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, olhando
através da vidraça, por uns três minutos talvez, en-
quanto Ned Beaumont, sentado na mesa, fumava e ol-
hava as largas costas do loiro. Depois, sem virar a
cabeça, Madvig perguntou:
--Que foi que você disse a Harry?
--Pedi tempo.
Madvig deixou a janela e voltou à mesa, mas não se
sentou. Seu rubor aumentara. Fora isso, não se via
mudança alguma no rosto. A voz era plana.
-- Que acha que devemos fazer?
280/372
--Sobre Sloss? Nada. O outro macaco já foi
falar com Farr. Não importa muito o que Sloss
fizer.
--Eu não me referia a isso. Falava da coisa
toda.
Ned Beaumont deixou o charuto cair na escarradeira.
--Eu disse a você. Se o assassinato de Taylor Henry
não for esclarecido imediatamente, você está liquid-
ado. É só isso. É a única coisa sobre a qual vale a
pena tentar alguma ação.
Madvig deixou de olhar para Ned Beaumont. Ficou ol-
hando o amplo espaço vazio na parede. Comprimiu os
lábios carnudos. O suor umedecia as têmporas. Ele
disse, do fundo do peito:
--Não vai adiantar. Pense em outra coisa.
As narinas de Ned Beaumont se moveram com a respir-
ação, os olhos pareciam mais negros. Ele disse:
--Não tem mais nada, Paul. Qualquer outra coisa
vai cair direitinho nas mãos de Shad ou Farr e a
turma dele, e qualquer um deles arruinará você.
Madvig disse meio asperamente:
--Tem de haver uma saída, Ned. Pense.
Ned Beaumont levantou-se da mesa e postou-se diante
do loiro, muito próximo.
--Não tem. Essa é a única saída. E você vai usar ela
quer goste, quer não, senão eu uso por você.
281/372
Madvig balançou violentamente a cabeça.
--Não. Fique fora.
Ned Beaumont disse:
--Está aí uma coisa que não vou fazer pra você,
Paul.
Então Madvig olhou-o nos olhos e disse num áspero
sussurro:
--Eu matei ele, Ned.
Ned Beaumont inspirou e expirou, um longo suspiro.
Madvig pôs as mãos nos ombros de Ned Beaumont e
falou com palavras enroladas e imprecisas.
--Foi um acidente, Ned. Ele desceu a rua correndo
atrás de mim quando eu saí, com uma bengala que
tinha pegado na saída. Nós tínhamos... tinha havido
um problema lá e ele me alcançou e tentou me bater
com a bengala. Não sei como aconteceu, mas tir-
ando a bengala da mão dele bati na cabeça dele com
ela... não com força... não pode ter sido com muita
força... mas ele caiu e despedaçou a cabeça no meio-
fio.
Ned Beaumont assentiu. Seu rosto tornara-se de re-
pente vazio de qualquer expressão, a não ser a fixa con-
centração nas palavras de Madvig. Perguntou numa voz
seca, que combinava com o seu rosto:
--Que aconteceu com a bengala?
282/372
--Escondi debaixo de meu casaco e queimei.
Quando soube que ele estava morto, vi a
bengala em minha mão, já a caminho do Club,
e aí guardei ela debaixo do casaco e depois
queimei.
--Que tipo de bengala era?
--Nodosa, marrom, pesada.
--E o chapéu dele?
--Não sei, Ned. Creio que caiu com a pancada
e alguém pegou.
--Ele estava de chapéu?
--Estava, claro.
Ned Beaumont alisou o lado do bigode com a unha do
polegar.
--Lembra se viu o carro de Sloss e Ferriss passar
por você?
Madvig balançou a cabeça.
--Não, mas pode ter passado.
Ned Beaumont franziu a testa para o loiro.
--Você bagunçou tudo fugindo com a bengala
e queimando ela, e ficando calado esse tempo
todo -- resmungou.
--Tinha uma nítida alegação de legítima
defesa.
--Eu sei, mas não queria isso, Ned -- disse
Madvig asperamente. -- Quero Janet Henry
283/372
mais do que jamais quis qualquer coisa em
minha vida, e que possibilidade eu teria então,
mesmo tendo sido um acidente?
Ned Beaumont riu na cara de Madvig. Um riso abafado
e amargo. Disse:
--- Teria mais possibilidade do que tem agora. Madvig,
olhando-o fixamente, nada disse. Ned Beaumont disse:
--Ela sempre achou que você matou o irmão dela.
Odeia você. Vem tentando manobrar você pra sent-
ar na cadeira elétrica. Ela foi a primeira a lançar
suspeitas sobre você, com cartas anônimas enviadas
a todo mundo que estivesse interessado. Foi ela
quem voltou Opal contra você. Esteve esta manhã
em meu apartamento me contando isso, tentando
fazer com que eu me voltasse também. Ela...
Madvig disse:
--Chega! -- Endireitou-se, um loiro altão cujos
olhos pareciam frios discos azuis. -- Que é,
Ned? Quer ela pra você ou será... --
Interrompeu-se com desprezo. -- Não
importa.
--Indicou a porta com o polegar, indiferente-
mente. -- Dê o fora, seu patife, este é o beijo
de despedida.
Ned Beaumont disse:
--Saio quando acabar de falar.
284/372
Madvig disse: --- Você sai quando recebe ordem pra
sair. Não pode dizer coisa alguma que eu acredite.
Nunca mais. Ned Beaumont disse:
--Tudo bem. -- Pegou seu chapéu e casaco e saiu.
2
Ned Beaumont foi para casa. Tinha o rosto pálido e
soturno. Arriou-se numa das grandes poltronas vermel-
has com uma garrafa de Bourbon e um copo na mesa
ao lado, mas não bebeu. Fitava sombriamente os sapa-
tos pretos e mordia uma unha. O telefone tocou. Ele
não atendeu. O crepúsculo começava a expulsar o dia
na sala, que já estava meio escura quando ele se levan-
tou e foi até o telefone.
Discou um número. Depois disse:
--Alô, eu gostaria de falar com a srta. Henry, por fa-
vor. -- Após uma pausa, que ele passou assobiando
em surdina, disse: -- Alô, srta. Henry?... Sim... Ac-
abo de contar tudo a Paul, sobre você... Sim, e você
tem razão. Ele fez o que você disse que ele fez... --
Deu uma risada. -- Tinha razão. Sabia que ele ia me
chamar de mentiroso, se recusar a me ouvir e me
expulsar, e ele fez tudo isso... Não, não, está tudo
bem. Tinha de acontecer... Não, realmente... Oh,
provavelmente é definitivo. A gente disse coisas que
285/372
dificilmente poderão ser desditas... Sim, a noite
toda, creio... Isso será ótimo... Tudo bem. Até.
Serviu uma dose de uísque então e bebeu-a. Depois foi
até o quarto, onde as sombras da noite avançavam, pôs
o despertador para as oito horas e deitou-se inteira-
mente vestido, de barriga para cima, na cama. Ficou al-
gum tempo olhando o teto. Depois adormeceu, respir-
ando irregularmente, até que o alarme soou.
Levantou-se preguiçosamente da cama e, ligando as
luzes, entrou no banheiro, lavou o rosto e as mãos, pôs
um colarinho limpo e acendeu o fogo na lareira da sala
de estar. Leu um jornal até a chegada de Janet Henry.
Ela estava excitada. Embora começasse logo assegur-
ando a Ned Beaumont que não previra o resultado da
conversa dele com Paul, que não contara com isso, seus
olhos mostravam uma alegria franca, e ela não podia
evitar que os sorrisos curvassem seus lábios quando
formavam as palavras de desculpa.
Ele disse:
--Não importa. Eu teria de fazer isso, mesmo
sabendo como terminaria. Acho que, no fundo,
sabia. É uma dessas coisas. E se você tivesse me
dito que seria assim, eu tomaria isso como um de-
safio e mergulharia de cabeça.
Ela estendeu as mãos para ele.
286/372
--Estou satisfeita. Não vou fingir que não
estou.
--Sinto muito -- ele disse, tomando as mãos
dela --, mas eu não me afastaria um passo de
meu caminho pra evitar isso.
Ela disse:
--E agora sabe que tenho razão. Ele matou Taylor.
-- Os olhos eram inquisitivos.
Ele assentiu.
--Ele me disse que matou.
--E você vai me ajudar agora? -- As mãos dela
apertavam as dele. Ela se aproximou.
Ele hesitou, franzindo a testa para o ansioso rosto dela
abaixo.
--Foi legítima defesa, ou um acidente -- disse
devagar. -- Eu não posso...
--Foi assassinato? -- ela exclamou. -- É claro
que ele ia dizer que foi legítima defesa. --
Balançou a cabeça impaciente. -- E mesmo
sendo legítima defesa ou acidente, não se deve
fazer com que ele vá ao tribunal provar isso,
como qualquer outro?
--Ele esperou demais. Este mês que ficou
calado pesaria contra ele.
287/372
--Bem, e de quem foi a culpa? -- ela pergun-
tou. -- E você acha que ele ficaria calado tanto
tempo se fosse legítima defesa?
Ele assentiu com lenta ênfase.
--Foi por sua causa. Está apaixonado por você.
Não queria que soubesse que ele matou seu
irmão.
--Eu sei! -- ela exclamou com ferocidade. -- E
todo mundo vai saber!
Ele moveu um pouco os ombros. Tinha o rosto
sombrio.
--Não vai me ajudar? -- ela perguntou.
--Não.
--Ora, você brigou com ele.
--Acredito na história dele. Sei que é tarde de-
mais pra ele fazer o tribunal acreditar.
Estamos separados, mas não vou fazer isso
com ele. -- Umedeceu os lábios. -- Deixe ele
em paz. É provável que peguem ele sem sua
ajuda ou a minha.
--Não vou deixar. Não vou deixar ele em paz
enquanto não for punido como merece. --
Prendeu a respiração e seus olhos escure-
ceram. -- Acredita nele o bastante pra se ar-
riscar a descobrir provas de que ele mentiu
pra você?
288/372
--Que quer dizer? -- ele perguntou, com
cautela.
--Me ajudará a descobrir provas de verdade,
se ele está mentindo ou não? Tem de haver
provas conclusivas em algum canto, alguma
prova que possamos encontrar. Se realmente
acredita nele, não vai ter medo de me ajudar.
Ele estudou o rosto dela por algum tempo, antes de
perguntar:
--Se eu fizer isso e a gente encontrar prova
concreta, promete aceitar ela, seja em que sen-
tido for?
--Prometo -- ela disse --, se você também
prometer.
--E guardará o que a gente descobrir até
acabarmos o serviço... encontrar nossa prova
positiva... não vai usar o que a gente achar
contra ele até conseguirmos tudo?
--Sim.
--Feito -- ele disse.
Ela soluçou de felicidade, e lágrimas vieram-lhe aos
olhos.
Ele disse:
--Sente aí. -- Tinha o rosto fino e duro, a voz
cortante. -- Temos de armar alguns esquemas.
289/372
Soube de alguma coisa dele esta tarde ou
noite, desde que brigamos?
--Não.
--Então não sabemos ao certo em que pé você
está com ele. Há uma possibilidade de que ele
tenha decidido depois que eu tinha razão. Isso
não fará nenhuma diferença entre eu e ele
agora... estamos separados... mas precisamos
descobrir o mais breve possível. -- Levantou
as sobrancelhas olhando os pés dela e alisou o
bigode com a unha do polegar. -- Vai ter de es-
perar até que ele lhe procure. Não pode se dar
o luxo de telefonar pra ele. Se ele estiver inde-
ciso a seu respeito, isso pode fazer com que se
decida. Até onde está segura dele?
Ela sentava na poltrona junto à mesa.
--Estou tão segura dele quanto uma mulher pode
estar de um homem. -- Deu uma risadinha encabu-
lada. -- Sei que isso soa... Mas estou, sr. Beaumont.
Ele assentiu.
--Então provavelmente está tudo bem, mas
você deve ter certeza disso até amanhã. Já
tentou interrogar ele?
--Ainda não, realmente não. Estava
esperando...
290/372
--Bem, isso está fora de questão por enquanto.
Por mais segura que estiver sobre ele, vai ter
de ter cuidado agora. Descobriu mais alguma
coisa que não me contou?
--Não -- ela disse, balançando a cabeça. --
Não sabia muito bem como tratar disso. É por
isso que eu queria tanto que você...
Ele tornou a interrompê-la:
--Já pensou contratar um detetive particular?
--Já, mas tinha medo, medo de ir a um que
contasse a Paul. Não sabia a quem me dirigir,
em quem confiar.
--Eu tenho um que podemos usar. -- Ele pas-
sou os dedos pelos cabelos negros. -- Agora
tem duas coisas que quero que você descubra,
se já não sabe. Está faltando algum dos
chapéus de seu irmão? Paul diz que ele estava
de chapéu. Não tinha nenhum lá quando en-
contrei ele. Veja se consegue descobrir quan-
tos ele tinha, e se estão todos lá... -- sorriu --
com exceção do que eu tomei emprestado.
Ela não deu atenção ao seu sorriso. Balançou a cabeça e
ergueu um pouco as mãos, desencorajada.
--Não posso. Nós nos livramos de todas as coisas
dele há algum tempo, e de qualquer forma eu
291/372
duvido que alguém saiba exatamente o que ele
tinha.
Ned Beaumont deu de ombros.
--Eu não achava que a gente ia chegar a parte
alguma com isso. A outra coisa é uma bengala,
se está faltando alguma delas... dele ou de seu
pai... particularmente uma nodosa, pesada e
marrom.
--Era de papai -- ela disse ansiosamente --, e
acho que está lá.
--Verifique. -- Ele mordeu a unha do polegar.
-- Basta fazer isso, por hoje e amanhã, e talvez
descobrir em que pé está com Paul.
--Que é que há? -- ela perguntou. -- Quer
dizer, com a bengala. -- Levantou-se, excitada.
--Paul diz que seu irmão atacou ele com ela e
foi golpeado com ela quando Paul tentava to-
mar ela dele. Ele diz que levou a bengala con-
sigo e queimou.
--Oh, tenho certeza de que todas as bengalas
de papai estão lá. -- Tinha o rosto pálido, os
olhos arregalados.
--Taylor não tinha nenhuma?
--Só uma preta de castão de prata. -- Ela pôs a
mão no pulso dele. --Se estiverem todas lá,
isso significa que...
292/372
--Pode significar qualquer coisa -- ele disse, e
pôs a mão sobre a dela. -- Mas nada de
truques -- advertiu.
--Não vou fazer -- ela prometeu. -- Se você ao
menos soubesse como estou feliz por ter sua
ajuda, como eu queria isso, saberia que pode
confiar em mim,
--Espero. -- Ele tirou a mão de cima da dela.
3
Sozinho em seu apartamento, Ned Beaumont andou de
um lado para outro por algum tempo, o rosto tenso, os
olhos brilhantes. Às vinte para as dez, olhou o relógio
de pulso. Depois, vestiu o casaco e desceu até o hotel
Majestic, e lá lhe disseram que Harry Sloss não estava.
Ele saiu, pegou um táxi e disse:
--West Roadlnn.
A West Road Inn era uma construção quadrada, branca
-- cinza à noite --, escondida da estrada por árvores,
uns cinco quilômetros além dos limites da cidade. O
térreo estava intensamente iluminado, e havia uma
meia dúzia de automóveis parados na frente. Outros se
achavam num comprido galpão escuro à esquerda.
Ned Beaumont, com um aceno familiar ao porteiro, en-
trou num grande restaurante, onde um conjunto de
293/372
três membros tocava de modo extravagante, e oito ou
dez pessoas dançavam. Ele atravessou um corredor por
entre as mesas, contornou a pista de dança e parou di-
ante do bar que ocupava um canto do salão. Ele era o
único do lado de fora do balcão.
O barman, um homem gordo de nariz esponjoso, disse:
--Boa noite, Ned. Não temos visto muito você
ultimamente.
--Olá, Jimmy. Estou me comportando. Um
Manhattan.
O barman começou a preparar o coquetel. O conjunto
acabou a música. Ouviu-se uma voz de mulher, fina e
aguda:
--Não vou ficar no mesmo lugar com aquele bas-
tardo daquele Beaumont.
Ned Beaumont voltou-se, recostando-se à borda do bal-
cão. O barman imobilizou-se com a coqueteleira na
mão.
Lee Wilshire estava parada de pé no centro da pista de
dança fuzilando Ned Beaumont com os olhos. Tinha
uma das mãos no antebraço de um jovem troncudo de
terno azul, um pouco apertado demais para ele. Tam-
bém o rapaz olhava para Ned Beaumont, meio estupi-
damente. Ela disse:
--É um vagabundo bastardo, e se você não botar ele
pra fora daqui, eu vou embora.
294/372
Todos os demais, no estabelecimento, estavam num
silêncio atento.
O rapaz corou. A tentativa de carranca que fez
aumentou o seu embaraço.
A garota disse:
--Vou lá dar uma bofetada nele, se você não for.
Sorrindo, Ned Beaumont disse:
--Olá, Lee. Viu Bernie depois que ele foi solto?
Lee xingou-o e deu um furioso passo em direção a ele.
O rapaz troncudo estendeu a mão e a deteve.
--Vou dar um jeito nele -- disse --, nesse bas-
tardo. -- Ajeitou a gola do paletó, deu um
puxão nas abas e deixou a pista de dança pis-
ando forte em direção a Ned Beaumont.
--Que é que está pensando? -- perguntou. --
Que está pensando, falando a uma dona desse
jeito?
Ned Beaumont, fixando sombriamente o rapaz, es-
tendeu o braço direito e pôs a mão com a palma voltada
para cima no balcão.
--Me dê alguma coisa pra bater nele, Jimmy. Não
estou a fim de usar os punhos.
Uma das mãos do barman já desaparecera embaixo do
balcão. E tornou a aparecer com um pequeno porrete,
que colocou na mão de Beaumont, que o deixou ali en-
quanto dizia:
295/372
--Ela já foi chamada de um monte de coisas. O úl-
timo cara que vi com ela chamava ela de frangota
burra.
O rapaz endireitou-se, os olhos se movendo de um lado
para outro.
--Não vou esquecer de você, e um dia desses a
gente se encontra sem ninguém por perto. --
Girou nos calcanhares e falou a Lee Wilshire.
--Vamos, vamos dar o fora desta espelunca.
--Dê o fora você -- ela disse com desprezo. --
O diabo me leve se vou sair com você. Você me
dá nojo.
Um homem atarracado, com quase todos os dentes de
ouro, surgiu e disse:
--Vai, sim, todos dois. Fora.
Ned Beaumont deu uma risada e disse:
--A... hum... damazinha está comigo, Corky.
Corky disse:
--Muito justo. -- E para o rapaz: -- Fora,
vagabundo.
O rapaz saiu.
Lee Wilshire retornara à sua mesa. Sentou-se lá com as
faces entre os punhos, fitando a toalha.
Ned Beaumont sentou-se diante dela. Disse ao garçom:
--Jimmy tem um Manhattan lá que é meu. E
quero alguma coisa pra comer. Já comeu, Lee?
296/372
--Já -- ela disse, sem erguer os olhos. -- Quero
um silverfizz.
Ned Beaumont disse:
--Ótimo. Quero um bife com cogumelos, qualquer
legume que Tony tenha aí que não seja enlatado,
um pouco de alface e tomate com tempero de
Roquefort, e café.
Depois que o garçom se afastou, Lee disse com
amargura:
--Os homens não prestam, nenhum deles.
Aquela grande fraude! -- Começou a chorar
em silêncio.
--Vai ver você pegou o tipo errado -- sugeriu
Ned Beaumont.
--É você quem vem me dizer isso -- ela disse,
erguendo o olhar furioso para ele --, depois do
truque sujo que fez comigo.
--Não fiz nenhum truque sujo com você -- ele
protestou. -- Se Bernie teve de botar suas jóias
no prego pra pagar o dinheiro que afanou de
mim, não foi minha culpa.
O conjunto começou a tocar.
--Nada é nunca culpa de ninguém -- ela disse.
-- Vamos dançar.
--Oh, está bem -- ele disse, com relutância.
297/372
Quando voltaram à mesa, o coquetel dele e o fizz dela
os esperavam.
--Que é que Bernie anda fazendo? -- ele per-
guntou, enquanto bebiam.
--Não sei. Não vejo ele desde que saiu, e não
quero ver. Outro cara bacana! Que sorte eu
tenho tido este ano. Ele, Taylor e esse
bastardo!
--Taylor Henry? -- ele perguntou.
--É, mas não tive muita coisa com ele -- ela se
apressou a explicar -- porque foi quando eu
morava com Bernie.
Ned Beaumont acabou seu coquetel antes de
perguntar:
--Você era apenas uma das garotas que se en-
contravam de vez em quando com ele no
quarto que ele tinha na rua Charles.
--Era -- ela disse, olhando-o cautelosamente.
Ele disse:
--Acho que a gente precisa de uma bebida.
Ela passou pó no rosto enquanto ele chamava o garçom
e pedia as bebidas.
4
298/372
A campainha da porta acordou Ned Beaumont. Ele se
levantou da cama, sonolento, tossindo um pouco, ves-
tiu o quimono e calçou os chinelos. Passava um pouco
das nove em seu despertador. Ele foi até a porta.
Janet Henry entrou desculpando-se.
--Sei que é muito cedo, mas eu não podia es-
perar nem mais um minuto. Tentei repetidas
vezes chamar você no telefone ontem de noite,
e mal preguei os olhos porque não consegui.
Todas as bengalas de papai estão lá. Assim,
como você vê, ele mentiu.
--Ele tinha uma pesada, nodosa e marrom?
--Tinha, é a que o major Saebridge trouxe pra
ele da Escócia. Ele nunca usa, mas está lá. --
Ela sorriu triunfantemente para Ned
Beaumont.
Ele piscou, sonolento, e passou os dedos pelos cabelos
assanhados.
--Então mentiu, certo.
--E -- ela disse alegremente -- ele estava lá
quando voltei pra casa ontem de noite.
--Paul?
--É. E pediu que eu casasse com ele.
A sonolência desapareceu dos olhos de Ned Beaumont.
--Ele falou alguma coisa sobre a briga da
gente?
299/372
--Nem uma palavra.
--Que foi que você disse?
--Eu disse que estava muito em cima da morte
de Taylor pra eu ficar noiva dele, mas não
disse que não aceitaria mais tarde, e assim
temos o que julgo ser um entendimento.
Ele olhou-a curiosamente.
A animação deixou o rosto dela, que pôs a mão no
braço dele. A voz falhou um pouco.
--Por favor, não pense que sou inteiramente cruel
-- disse. -- Mas... oh!... eu quero tanto... fazer o que
decidimos fazer, que tudo mais parece... bem... não
ter nenhuma importância.
Ele umedeceu os lábios e disse numa voz grave e
delicada:
--Em que enrascada estaria ele, se você amasse ele
tanto quanto odeia.
Ela bateu o pé e gritou:
--Não diga issoíNunca mais diga isso!
Linhas de irritação surgiram na sua testa e em seus lá-
bios comprimidos.
Ela disse, arrependida:
--Por favor, eu não posso suportar isso.
--Desculpe. Já tomou café da manhã?
--Não. Estava ansiosa demais pra trazer min-
has notícias a você.
300/372
--Ótimo. Vai comer comigo. Que gostaria? --
Encaminhou-se para o telefone.
Depois de pedir a comida, ele entrou no banheiro para
escovar os dentes, lavar o rosto, as mãos e pentear o ca-
belo, Quando voltou à sala de estar, ela tirara o chapéu
e estava de pé junto à lareira fumando um cigarro. Ia
dizer alguma coisa, mas parou quando o telefone tocou.
Ele foi atender.
--Alô... Sim, Harry, dei uma passada aí, mas você
não estava... Queria lhe perguntar sobre... você
sabe... o cara que você viu com Paul naquela noite.
Estava de chapéu?... Estava? Tem certeza?... E se-
gurava uma bengala?... Tudo bem... Não, não con-
segui nada com Paul nesse ponto, Harry... É melhor
você mesmo falar com ele... É... Até.
Os olhos de Janet Henry interrogavam-no quando ele
deixou o telefone.
Ele disse:
--Era um dos dois caras que dizem que viram
Paul conversando com seu irmão na rua,
naquela noite. Ele diz que viu o chapéu, mas
não a bengala. Mas estava escuro, e os dois
passaram de carro. Não acredito nem que ten-
ham visto alguma coisa.
--Por que está tão interessado no chapéu? É
tão importante assim?
301/372
Ele deu de ombros.
--Não sei. Sou apenas um detetive amador,
mas parece uma coisa que poderia ter algum
significado, num sentido ou no outro.
--Você soube de mais alguma coisa depois de
ontem?
--Não. Passei parte da noite bebendo com
uma garota com quem Taylor se divertia, mas
não deu em nada.
--Alguém que eu conheça?
Ele balançou a cabeça, depois olhou-a penetrantemente
e disse:
--Não era Opal, se é onde quer chegar.
--Não acha que nós poderíamos... obter al-
guma informação dela?
--De Opal? Não. Ela acha que o pai matou
Taylor, mas que foi por causa dela. Não for
nada que ela soubesse que fez ela pensar as-
sim... nenhuma informação que tivesse... fo-
ram suas cartas e o Observer, e coisas assim.
Janet Henry assentiu com a cabeça, mas não pareceu
convencida.
Chegou o café.
O telefone tocou quando comiam. Ne d Beaumont foi
atender e disse:
302/372
--Alô... Sim, mãe... Quê? -- Ficou à escuta, de
testa franzida, por um momento, e depois
disse: -- Você não pode fazer muita coisa, a
não ser deixar eles, e não creio que isso faça
mal algum... Não, não sei onde ele está... Não
creio que vá... Bem, não se preocupe com isso,
mãe, vai dar tudo certo:.. Claro, isso é certo...
Até. -- Voltou à mesa sorrindo. -- Farr teve a
mesma idéia que você -- disse ao sentar-se. --
Era a mãe de Paul. Um homem do gabinete do
Promotor Distrital está lá, pra interrogar Opal.
-- Um brilho intenso tinha aparecido em seus
olhos. -- Ela não pode ajudar eles de modo al-
gum, mas estão fechando o cerco sobre ele.
--Por que ela telefonou pra você? -- perguntou
Janet Henry.
--Paul tinha saído e ela não sabia onde encon-
trar ele.
--Ela sabe que você e Paul brigaram?
--Aparentemente, não. -- Ele largou o garfo.
-- Escute. Tem certeza de que quer ir até o fim
com isso?
--Quero ir até o fim com isso mais do que ja-
mais quis fazer qualquer coisa na vida.
Ned Beaumont deu um riso amargo e disse:
303/372
--Essas são praticamente as mesmas palavras que
Paul me dizia pra me dizer o quanto queria você.
Ela estremeceu, o rosto endureceu, e olhou-o
friamente.
Ele disse:
--Não sei sobre você. Não estou certo sobre você.
Não tenho certeza sobre você. Tive um sonho do
qual não gostei muito.
Ela sorriu então.
--Certamente não acredita em sonhos?
Ele não sorriu.
--Não acredito em nada, mas sou jogador demais
pra deixar de ser afetado por um monte de coisas.
O sorriso dela tornou-se menos gozador. Ela
perguntou:
--Qual foi esse sonho que fez você desconfiar
de mim? -- Ergueu um dedo, em fingida
seriedade. -- Depois eu lhe conto um que eu
tive sobre você.
--Eu estava pescando e peguei um peixe
enorme... uma truta arco-íris, mas enorme... e
você disse que queria ver, pegou o bicho e
atirou na água antes que eu pudesse impedir.
Ela riu alegremente.
--Que foi que você fez?
--O sonho acabou aí.
304/372
--Era uma mentira. Não vou atirar sua truta
de volta à água. Agora vou lhe contar o meu.
Eu estava... -- Arregalou os olhos. -- Quando
foi o seu? Na noite em que veio jantar?
--Não. Na noite passada.
--Oh, isso é muito ruim. Seria mais bonito e
impressionante se a gente tivesse os sonhos na
mesma noite, na mesma hora e no mesmo
minuto. Nós estávamos... no sonho... estáva-
mos numa floresta, você e eu, cansados e mor-
tos de fome. Andávamos e andávamos, até
chegar a uma casinha, e batemos na porta,
mas ninguém atendeu. Experimentamos a
porta. Fechada. Então espiamos por uma
janela, e vimos lá dentro uma grande mesa
cheia de todo tipo imaginável de comida, mas
não podíamos entrar por nenhuma das
janelas, porque elas tinham barras de ferro.
Por isso, voltamos à porta e tornamos a bater e
a bater, mas mesmo assim ninguém atendia.
Aí a gente se lembrou de que às vezes as pess-
oas deixam as chaves embaixo do capacho da
porta, e lá estava ela. Mas quando abrimos a
porta, vimos centenas e centenas de cobras no
chão, onde não podíamos ver antes pela
janela, e elas vieram todas se contorcendo e
305/372
rastejando pra cima de nós. Batemos a porta e
fechamos e ficamos ali mortos de medo, ou-
vindo as bichas silvarem e baterem as cabeças
contra o lado de dentro da porta. Aí você disse
que talvez, se abríssemos a porta e nos escon-
dêssemos das cobras, elas sairiam e iriam em-
bora, e foi o que fizemos. Você me ajudou a
subir para o telhado... que era baixo nessa
parte do sonho: não me lembro como era
antes... e subiu atrás de mim, se abaixou e ab-
riu a porta, e todas as cobras rastejaram pra
fora. Ficamos prendendo a respiração no tel-
hado até que a última das centenas e centenas
de cobras se esgueirou para a floresta. Então
saltamos, corremos para dentro e fechamos a
porta, e comemos e comemos e comemos, e
acordei sentada na cama batendo palmas e
rindo.
--Acho que você inventou isso -- disse Ned
Beaumont, após uma pequena pausa.
--Porquê?
--Começou como um pesadelo e terminou
como outra coisa, e todos os sonhos que eu já
tive sobre comida terminavam antes que eu
tivesse uma oportunidade de comer mesmo.
Janet Henry deu uma risada.
306/372
--Não inventei tudo. Mas não precisa pergun-
tar que parte é verdade. Você me acusou de
mentir, e não vou lhe dizer nada agora.
--Oh, está bem. -- Ele tornou a pegar o garfo,
mas não comeu. Perguntou, com um ar de
quem acaba de ter uma idéia: -- Seu pai sabe
de alguma coisa? Acha que a gente poderia ar-
rancar alguma coisa dele, se procurasse ele
com o que já temos?
--Acho -- ela disse avidamente -- sim.
Ele franziu a testa, pensativamente.
--O único problema é que ele pode ficar bravo e ex-
plodir a coisa toda antes da gente acabar. Ele é es-
quentado, não é?
A resposta dela foi dada com relutância.
--É, mas... -- o rosto dela iluminou-se, suplicante --
tenho certeza de que, se a gente mostrasse a ele
como é importante esperarmos até... Mas estamos
prontos já, não estamos?
Ele balançou a cabeça.
--Ainda não.
Ela fez beicinho.
--Talvez amanhã -- ele disse.
--Mesmo?
--Não é uma promessa -- ele advertiu-a. --
Mas acho que estaremos.
307/372
Ela estendeu a mão por cima da mesa para pegar uma
das dele.
--Mas você vai me prometer que me informa
no mesmo minuto em que estivermos prontos,
não importa que hora do dia ou da noite seja.
--Claro, isso eu lhe prometo. -- Ele olhou de
lado para ela. -- Não está muito ansiosa pra
assistir à execução, está?
O tom dele fez com que ela corasse, mas ela não baixou
os olhos.
--Sei que você me acha um monstro. Talvez eu seja.
Ele baixou os olhos para o seu prato e murmurou:
--Espero que goste, quando conseguir.
9
OS CANALHAS
1
Depois que Janet Henry se foi, Ned Beaumont dirigiu-
se ao telefone, discou o número de Jack Rumsen, e
quando ele atendeu, disse:
--Pode dar uma passadinha aqui, Jack?... Ótimo.
Até. Quando Jack chegou, ele já estava vestido. Os
dois se
sentaram em poltronas uma em frente à outra, ambos
com um copo de Bourbon e água mineral, Ned Beau-
mont fumando um charuto, Jack um cigarro.
Ned Beaumont perguntou:
--Soube de alguma coisa de minha briga com
Paul? Jack disse casualmente:
--Soube.
--Que acha?
--Nada. Me lembro de que a última vez que
acharam que vocês brigaram era só um truque
pra pegar Shad O'Rory.
Ned Beaumont sorriu, como se houvesse esperado essa
resposta.
309/372
--É isso que todo mundo pensa desta agora? O
jovem elegante disse:
--Um monte de gente pensa.
Ned Beaumont aspirou lentamente a fumaça do
charuto e perguntou:
--E se eu dissesse a você que desta vez foi pra valer?
Jack não disse nada. Seu rosto nada revelava do que
lhe ia pela mente.
Ned Beaumont disse:
--Foi. -- Bebeu de seu copo. -- Quanto lhe
devo?
--Trinta mangos pelo serviço sobre a jovem
Madvig. O resto você já acertou.
Ned Beaumont tirou um rolo de cédulas do bolso da
calça, separou três de dez dólares e deu-as a Jack.
Jack disse:
--Obrigado.
Ned Beaumont disse:
--Agora estamos quites. -- Aspirou a fumaça e
soprou-a, dizendo: -- Quero que você faça outro
serviço. Estou atrás do escalpo de Paul no assas-
sinato de Taylor Henry. Ele me disse que foi ele,
mas eu preciso de um pouco mais de provas. Quer
trabalhar nisso pra mim?
Jack disse:
--Não.
310/372
--Por que não?
O jovem moreno levantou-se para pôr seu copo vazio
na mesa.
--Fred e eu estamos montando um belo negócio de
detetive particular aqui. Mais uns dois anos e es-
taremos bem. Eu gosto de você, Beaumont, mas não
o bastante pra mexer com o manda-chuva da
cidade.
Ned Beaumont disse, inalterado:
--Ele está em baixa. A turma toda está se pre-
parando pra derrubar ele. Farr, Rainey e...
--Deixe eles fazerem isso. Não quero entrar
nessa quadrilha, e só vou acreditar que eles
podem fazer isso quando fizerem. Talvez dêem
uns dois ou três trompaços nele, mas derrubar
mesmo é outra coisa. Você conhece ele melhor
do que eu. Sabe que tem mais fibra que o resto
deles todos juntos.
--Tem, e é isso que está acabando com ele.
Bem, se você não quer, não quer.
Jack disse:
--Não quero. -- E pegou o chapéu. -- Qualquer
outra coisa, eu teria prazer em fazer, mas... --
Moveu uma mão num gesto terminante.
Ned Beaumont levantou-se. Não havia ressentimento
em suas maneiras nem em sua voz quando disse:
311/372
--Eu achava que seria essa a sua reação. -- Alisou
uma banda do bigode com um polegar e olhou
pensativamente além de Jack. -- Talvez você possa
me dizer o seguinte: tem alguma idéia de onde
posso encontrar Shad?
Jack balançou a cabeça.
--Depois da terceira vez que invadiram o es-
tabelecimento dele... quando os dois tiras fo-
ram mortos... ele não está pintando por aí,
embora não pareçam ter muita coisa contra
ele pessoalmente. -- Tirou o cigarro da boca.
-- Conhece Whisky Vassos?
--Conheço.
--Pode descobrir com ele, se conhece ele o
bastante. Está na cidade. Geralmente pode ser
encontrado numa hora ou outra da noite no
bar de Tim Walker, na rua Smith.
--Obrigado, Jack, vou tentar isso.
--Tudo bem -- disse Jack. Hesitou. -- Sinto
como o diabo que você e Paul tenham brigado.
Desejo que você... -- Interrompeu-se e
encaminhou-se para a porta. -- Você sabe o
que faz.
2
312/372
Ned Beaumont desceu até o gabinete do Promotor Dis-
trital. Desta vez não houve demora para o levarem à
presença de Farr.
Farr não se levantou de sua poltrona, não estendeu a
mão. Disse:
--Como vai, Beaumont? Senta aí.
A voz era friamente cortês, e o rosto agressivo não
parecia tão vermelho como de hábito. Os olhos estavam
parados e duros.
Ned Beaumont sentou-se, cruzou as pernas con-
fortavelmente e disse:
--Eu queria contar a você o que aconteceu quando
fui falar com Paul depois que saí daqui, ontem.
O "E?" de Farr foi frio e educado.
--Eu disse a ele como encontrei você... em pânico.
-- Ned Beaumont, dando seu mais belo sorriso,
prosseguiu, como quem conta uma anedota muito
engraçada, mas sem importância: -- Disse a ele que
você estava tentando juntar coragem suficiente pra
pendurar o assassinato de Taylor Henry nele. Ele
acreditou a princípio, mas quando eu disse que a
única maneira dele se salvar era apresentar o ver-
dadeiro assassino, ele disse que isso não adiantava.
Disse que era ele o verdadeiro assassino, embora
chamasse o caso de acidente, ou legítima defesa, ou
qualquer coisa assim.
313/372
O rosto de Farr tornara-se mais pálido e rígido em
torno da boca, mas ele não falou.
Ned Beaumont levantou as sobrancelhas.
--Não estou entediando você, estou? --
perguntou.
--Vá, continue -- disse friamente o Promotor
Distrital.
Ned Beaumont inclinou a cadeira para trás. Seu sorriso
era de gozação.
--Acha que estou brincando, não é? Acha que é um
truque que estamos fazendo com você. -- Balançou
a cabeça e murmurou: -- Você é uma pobre alma
tímida, Farr.
Farr disse:
--Tenho satisfação em receber qualquer informação
que você possa me dar, mas estou muito ocupado, e
por isso vou ter de lhe pedir...
Ned Beaumont riu então e respondeu:
--Tudo bem. Achei que talvez você gostasse de
ter essa informação num depoimento por es-
crito, ou algo assim.
--Muito bem. -- Farr comprimiu um dos
botões perolados de sua mesa.
Uma mulher grisalha, vestida de verde, entrou.
--O sr. Beaumont deseja ditar um depoimento. --
Farr disse a ela.
314/372
Ela disse:
--Sim, senhor. -- Sentou-se do outro lado da mesa
de Farr, pôs a caderneta de notas na mesa e, segur-
ando uma lapiseira de prata no ar, olhou para Ned
Beaumont com olhos castanhos vazios.
Ele disse:
--Ontem à tarde, em seu escritório, no Edifício
Nebel, Paul Madvig me disse que tinha ido jantar na
casa do senador Henry na noite em que Taylor
Henry foi assassinado; que ele e Taylor Henry
tiveram algum tipo de problema por lá; que depois
que ele deixou a casa, Taylor Henry correu atrás
dele, alcançou e tentou bater nele com uma bengala
nodosa, pesada e marrom; que ao tentar tomar a
bengala de Taylor Henry, bateu acidentalmente
com ela na testa dele, derrubando o outro; e que le-
vou a bengala consigo e queimou. Disse que seu
único motivo para ocultar sua participação na
morte de Taylor Henry foi o desejo de ocultar isso
de Janet Henry. É só isso.
Farr disse à estenógrafa:
--Transcreva isso imediatamente.
Ela saiu do escritório.
Ned Beaumont disse:
315/372
--Eu achava que estava lhe trazendo notícias que
iam deixar você muito excitado. -- Deu um suspiro.
-- Pensava que você ia arrancar os cabelos.
O Promotor Distrital encarou-o firmemente.
Ned Beaumont, nem um pouco intimidado, disse:
--Pensava que você pelo menos ia mandar arrastar
Paul até aqui e confrontar ele com essa... -- acenou
com a mão -- "revelação danosa" é um bom termo.
O Promotor Distrital falou num tom contido:
--Por favor, deixe que eu dirija meu próprio
gabinete.
Ned Beaumont tornou a rir e calou-se, até que a estenó-
grafa grisalha voltou com uma cópia datilografada da
declaração dele. Então, perguntou:
--Tenho de jurar isso?
--Não -- disse Farr --, apenas assine. Será o
bastante.
Ned Beaumont assinou o documento.
--Não é nem metade tão divertido quanto eu achava
que ia ser -- queixou-se animado.
O maxilar de Farr enrijeceu-se.
-- Não -- ele disse, com sombria satisfação --, não creio
que seja.
--Você é uma alma tímida, Farr -- repetiu Ned
Beaumont. -- Tenha cuidado com os táxis quando
316/372
atravessar a rua. -- Fez uma curvatura. -- Vejo você
depois.
Do lado de fora, fez uma careta de raiva.
3
Nessa noite, Ned Beaumont tocou a campainha de uma
casa escura de três andares, na rua Smith. Um homem
baixo, de cabeça pequena e ombros atarracados, abriu a
porta meio palmo, disse:
-- Tudo bem -- e abriu-a toda.
Ned Beaumont, dizendo "Olá", entrou, desceu seis met-
ros de um corredor escuro, passando por duas portas
fechadas à direita, abriu uma à esquerda e desceu uma
escada de madeira até um porão onde havia um bar e
onde um rádio tocava baixinho.
Do outro lado do bar, uma porta de vidro fosco com a
palavra "Banheiro". Essa porta abriu-se e saiu um
homem, um homem moreno com algo de macaco no
caimento dos ombros grandes, no comprimento dos
braços grossos, no achatamento do rosto e na curva das
pernas bambas: Jeff Gardner.
Ele viu Ned Beaumont e seus olhinhos avermelhados
reluziram.
317/372
--Ora, pelo amor de Deus, se não é o "Beaumont-
Me-Bata-Mais"! -- resmungou, mostrando os belos
dentes numa imensa careta.
Ned Beaumont disse:
--Olá, Jeff -- enquanto todos na sala os olhavam.
Jeff adiantou-se oscilando para Ned Beaumont, passou
o braço esquerdo rudemente sobre os ombros dele,
tomou-lhe a mão direita na sua e falou jovialmente ao
pessoal:
--Este aqui é o cara mais legal contra quem já es-
folei os nós dos dedos, e olhem que já esfolei um bo-
cado. -- Arrastou Ned Beaumont para o bar. --
Vamos todos tomar uma bebidinha, e depois eu
mostro como é que a gente faz. Por Deus que
mostro! -- Olhou com malícia o rosto do outro. --
Que diz disso, meu rapaz?
Ned Beaumont, olhando imperturbável o feio rosto
escuro tão perto, embora mais baixo, do seu, disse:
--Scotch.
Jeff riu deliciado e tornou a falar aos outros:
--Estão vendo, ele gosta. É um... -- hesitou,
franzindo a testa, lambeu os lábios -- um
maldito massacrista, é isso que ele é. -- Olhou
com malícia para Ned Beaumont. -- Sabe o
que é um massacrista?
--Sei.
318/372
Jeff pareceu decepcionado.
--Uísque -- disse ao barman. Quando as bebidas
foram postas à frente deles, soltou a mão de Ned
Beaumont, embora mantivesse o braço em torno de
seus ombros. Beberam. Jeff colocou o copo no bal-
cão e pôs a mão no pulso de Ned Beaumont. --
Tenho um lugar certo pra mim e você lá em cima --
disse --, uma sala pequena demais pra você cair.
Posso jogar você de um lado pra outro, contra as
paredes. Desse jeito a gente não vai perder tanto
tempo enquanto você se levanta do chão.
Ned Beaumont disse:
--Eu pago uma bebida.
--Não é má idéia -- concordou Jeff.
Tornaram a beber.
Depois que Ned Beaumont pagou, Jeff virou-o em
direção à escada.
--Desculpem a gente, cavalheiros -- disse aos out-
ros no bar --, mas prcisamos ensaiar nosso número.
-- Bateu no ombro de Ned Beaumont. -- Eu e meu
queridinho.
Subiram dois lances de escada e entraram numa sa-
linha em que se amontoavam um sofá, duas mesas e
meia dúzia de cadeiras. Viam-se alguns copos vazios e
pratos com restos de sanduíches numa das mesas.
Jeff espiou o quarto em volta e perguntou:
319/372
--Pra onde diabos foi ela? -- Soltou o pulso de
Ned Beaumont, tirou o braço de cima dos om-
bros dele e perguntou: -- Não está vendo nen-
huma dona por aqui, está?
--Não.
Jeff balançou a cabeça para cima e para baixo,
enfaticamente.
--Foi embora -- disse. Deu um passo incerto
para trás e apertou um botão de campainha
junto à porta, com um dedo sujo. Depois,
acenando com a mão, fez uma grotesca
curvatura e disse:
--Senta aí.
Ned Beaumont sentou-se à menos desarrumada das
duas mesas.
--Sente em qualquer dessas malditas cadeiras
em que queira -- disse Jeff com outro gesto
largo. -- Se não gosta dessa, pegue outra.
Quero tratar você como meu convidado, e ao
diabo com você se não gostar disso.
--É uma ótima cadeira -- disse Ned
Beaumont.
--É uma cadeira dos diabos -- disse Jeff. --
Não tem uma cadeira nesta espelunca que
valha nada. Veja. -- Pegou uma das cadeiras e
arrancou-lhe uma das pernas da frente. --
320/372
Você chama isso de uma ótima cadeira? Es-
cute, Beaumont, você não sabe merda nen-
huma sobre cadeiras. -- Largou a que tinha na
mão, jogou a perna no sofá. -- Não me engana.
Sei o que está aprontando. Pensa que estou
bêbado, não é?
Ned Beaumont deu um sorriso.
--Não, você não está bêbado.
--O diabo que não estou. Estou mais bêbado
que você. Estou mais bêbado que qualquer um
nesta espelunca. Estou bêbado como o diabo,
e não pense que não estou, mas... -- Ergueu
um grosso e sujo indicador.
Um garçom entrou perguntando:
--Que vai ser, pessoal?
Jeff virou-se de frente para ele.
--Onde estava você? Dormindo? Toquei chamando
você faz uma hora.
O garçom começou a dizer alguma coisa.
Jeff disse:
--Eu trago o melhor amigo que tenho no
mundo aqui em cima pra uma bebida, e que
diabo acontece? Temos de ficar sentados toda
uma merda de uma hora esperando um
garçom imundo. Não admira que ele esteja
chateado comigo.
321/372
--Que querem? -- perguntou o garçom, com
indiferença.
--Quero saber pra onde diabos foi a garota que
estava aqui.
--Oh, ela? Foi embora.
--Embora pra onde?
--Não sei.
Jeff armou uma carranca.
--Ora, descubra, e rápido, diabos. Que está
pensando com essa de não saber pra onde ela
foi? Ora, se esta não é uma bela espelunca,
onde ninguém... -- Um brilho de astúcia sur-
giu nos seus olhos. -- Vou lhe dizer o que
fazer. Vá no banheiro das damas e veja se ela
está lá.
--Não está -- disse o garçom. -- Saiu.
--Bastarda imunda! -- disse Jeff, e voltou-se
para Ned Beaumont. -- Que é que a gente faz
com uma bastarda imunda dessas? Trago você
aqui em cima, porque quero que conheça ela,
porque sei que você vai gostar dela e ela de vo-
cê, e ela é metida a besta demais pra conhecer
meus amigos e dá o fora.
Ned Beaumont acendia um charuto. Não disse nada.
Jeff coçou a cabeça.
322/372
--Ora, traga alguma coisa pra gente beber então. --
Sentou-se à mesa, em frente a Ned Beaumont e
disse selvagemente: -- Quero um uísque.
Ned Beaumont disse:
--Scotch.
O garçom afastou-se.
Jeff fuzilava Ned Beaumont com os olhos.
--Não vá pensando que não sei o que você está
aprontando, também -- disse furioso.
--Não estou aprontando nada -- respondeu in-
diferentemente Ned Beaumont. -- Queria ver
Shad, e achei que talvez encontrasse Whisky
Vassos aqui e ele me encaminhasse a Shad.
--Acha que eu não sei onde Shad está?
--Deve saber.
--Então por que não me perguntou?
--Muito bem. Onde está ele?
Jeff bateu na mesa com força, com a mão aberta, e
berrou:
--Você é um mentiroso! Não dá a mínima pra onde
Shad está! Ê de mim que está atrás!
Ned Beaumont sorriu e balançou a cabeça negando.
--É, sim -- o homem amacacado insistiu. -- Você
sabe muito bem quê...
Um homem de meia-idade, mas ainda jovem, de gordos
lábios vermelhos e olhos redondos, chegou à porta.
323/372
Disse: -- Deixe disso, Jeff. Está fazendo mais barulho
que todo mundo junto na casa.
Jeff contorceu-se na cadeira.
--É esse bastardo -- disse ao homem à porta, indic-
ando Ned Beaumont com um aceno do polegar. --
Ele pensa que não sei o que está aprontando. Eu sei
o que ele está aprontando. É um canalha, é isso que
ele é. E eu vou dar uma surra dos diabos nele, é isso
que eu vou fazer.
O homem à porta disse, sensatamente:
--Bem, não precisa fazer tanto barulho por causa
disso. -- Piscou para Ned e se foi.
Jeff disse ameaçadoramente:
--Tim também está virando um canalha. -- E cuspiu
no chão.
Apareceu o garçom com as bebidas.
Ned Beaumont ergueu seu copo e disse:
--Olhando você -- e bebeu.
Jeff disse:
--Eu não quero olhar pra você. Você é um
canalha. -- Encarava ameaçadoramente Ned
Beaumont.
--Você é doido.
--Você é um mentiroso. Eu estou bêbado. Mas
não estou tão bêbado que não saiba o que você
está aprontando.
324/372
--Esvaziou o seu copo, enxugou a boca com as
costas dá mão. -- E digo que você é um
canalha.
Sorrindo amigavelmente, Ned Beaumont disse:
--Está certo. Seja como você quiser.
Jeff adiantou um pouco o focinho de macaco.
--Você acha que é muito esperto, não é? Ned
Beaumont não disse nada.
--Acha que é um truque esperto vir aqui e
tentar me enrolar pra poder me entregar.
--Isso é correto -- disse Ned Beaumont, in-
diferente. -- Tem uma acusação de assassinato
contra você por matar Francis West, não tem?
Jeff disse:
--Pro diabo com Francis West. Ned Beaumont
deu de ombros.
--Eu não conhecia ele. Jeff disse:
--Você é um canalha. Ned Beaumont disse:
--Eu pago uma bebida.
O homem amacacado assentiu solenemente e inclinou
sua cadeira para trás, para apertar o botão da cam-
painha. Ainda com o dedo no botão, disse:
--Mas ainda é um canalha.
A cadeira oscilou para trás, virando. Ele plantou os pés
no chão e a colocou de novo em pé, antes que ela o
derrubasse.
325/372
--Bastarda! -- resmungou, puxando-a nova-
mente para a mesa. Pôs o cotovelo na mesa e
apoiou o queixo num punho.
--Que diabos me importa se você me en-
tregar? Não pensa que vão me fritar, pensa?
--Por que não?
--Por que não? Deus do céu! Eu só precisava
agüentar o tranco até a eleição, e depois, é
com Shad.
--Talvez. .
--Talvez o diabo!
O garçom entrou e eles pediram suas bebidas.
--Talvez Shad deixasse você se lixar de
qualquer maneira -- disse com indiferença
Ned Beaumont, quando voltaram a ficar a sós.
-- Coisas dessas já aconteceram antes.
--Bela chance -- zombou Jeff -- com tudo que
sei sobre ele.
Ned Beaumont expeliu a fumaça do charuto.
--Que é que você tem contra ele?
O homem amacacado deu uma risada, ruidosa, com
menosprezo, e bateu na mesa com a mão aberta.
--Deus do céu! -- gritou. -- Ele acha que estou
bêbado a ponto de dizer a ele.
Da entrada veio uma voz discreta, um musical barítono
levemente irlandês:
326/372
--Vá em frente, Jeff, diga a ele.
Shad O'Rory estava na entrada. Seus olhos azul-cinza
fitavam Jeff um tanto tristemente.
Jeff virou os olhos alegremente para o homem na en-
trada e disse:
--Como vai, sr. Shad? Entre e sente pra uma be-
bida. Conheça o sr. Beaumont. É um canalha.
O'Rory disse em voz baixa:
--Eu disse a você pra ficar escondido.
--Mas, meu Deus do céu, Shad, eu estava fic-
ando de um jeito que achei que ia acabar me
mordendo! E esta espelunca é escondida, não
é? Ê um boteco clandestino.
0'Rory olhou durante mais um momento para Jeff, e
depois para Ned Beaumont.
--Boa noite, Beaumont.
--Olá, Shad.
O'Rory sorriu delicadamente e, indicando Jeff com um
leve aceno, perguntou:
--Tirou muita coisa dele?
--Não muita que eu já não soubesse -- re-
spondeu Ned Beaumont. -- Ele faz um bocado
de barulho, mas nada do que diz faz sentido.
Jeff disse:
--Eu acho que vocês dois são um par de canalhas.
O garçom chegou com as bebidas. O'Rory deteve-o.
327/372
--Esqueça. Já beberam bastante. -- O garçom
levou as bebidas. Shad O'Rory entrou na sala e
fechou a porta, ficando de costas para ela.
Disse:
--Você fala demais, Jeff. Já lhe disse isso
antes.
Jeff respondeu, furioso:
--Que diabos deu em você?
Ned Beaumont deu uma risada.
--Estou mandando você sair, Jeff -- disse
O'Rory.
--Deus do céu, e eu não sei disso?
O'Rory disse:
--Chegamos ao ponto em que vou deixar de falar
com você.
Jeff levantou-se.
--Não seja um canalha, Shad -- disse. -- Que diabo!
-- Contornou a mesa. -- Eu e você, a gente tem sido
companheiros há muito tempo. Você sempre foi
meu chapa e eu vou ser sempre seu. -- Estendeu os
braços para abraçar O'Rory, adiantando-se para ele.
-- Claro, estou encrencado, mas...
O'Rory pôs uma mão branca no peito do homem
amacacado e empurrou-o para trás.
--Sente-se. -- Não ergueu a voz.
328/372
O punho esquerdo de Jeff partiu para o rosto de
O'Rory.
O'Rory moveu a cabeça para a direita, o mínimo
bastante para que o soco passasse raspando o seu rosto
finamente esculpido, que permaneceu sério. Ele levou a
mão direita ao quadril.
Ned Beaumont voou de sua cadeira ao braço de O'Rory,
pegou-o com ambas as mãos, e caiu de joelhos.
Jeff, jogado contra a parede pelo ímpeto de seu próprio
soco, virou-se então e agarrou a garganta de Shad
O'Rory com ambas as mãos. O rosto do homem
amacacado estava amarelo, distorcido, hediondo. Não
havia mais nenhuma embriaguez nele.
--Pegou o trabuco? -- Jeff estava ofegante.
--Peguei. -- Ned Beaumont levantou-se e re-
cuou, segurando uma pistola negra apontada
para O'Rory.
O'Rory tinha os olhos vidrados, esbugalhados, o rosto
manchado, túrgido. Não lutava contra o homem que
lhe apertava a garganta.
Jeff virou a cabeça para dar um risinho para Ned Beau-
mont. Um sorriso largo, genuíno, idiotamente bestial.
Os olhinhos vermelhos brilhavam de prazer. Ele disse,
numa voz rouca e de boa índole:
--Agora veja o que a gente vai ter de fazer. Vai ter
de aplicar o serviço nele.
329/372
Ned Beaumont disse:
--Eu não quero ter nada a ver com isso. --
Tinha a voz firme, e as narinas abriam e
fechavam rapidamente.
--Não? -- Jeff zombou. -- Acho que você
pensa que Shad é o tipo do cara que esquece o
que a gente fez. -- Passou a língua pelos lá-
bios. -- Vai esquecer. Vou dar um jeito pra que
esqueça.
Sorrindo de uma orelha a outra para Ned Beaumont,
sem olhar o homem cuja garganta tinha nas mãos, Jeff
começou a inspirar e expirar longa e lentamente. O
paletó enrugava-se no ombro, nas costas e ao longo dos
braços. O suor brotava em sua feia face escura.
Ned Beaumont estava pálido. Também respirava pesa-
damente, e o suor lhe umedecia as têmporas. Olhou por
cima do ombro de Jeff o rosto de O'Rory.
Estava cor de fígado. Os olhos esbugalhados, cegos. A
língua projetava-se para fora, azul, entre lábios azula-
dos. O corpo esguio retorcia-se. Ele começou a bater na
parede atrás dele com uma das mãos, mecanicamente,
sem força.
Sorrindo para Ned Beaumont, sem olhar para o homem
cuja garganta apertava, Jeff separou mais um pouco as
pernas e curvou as costas. A mão de O'Rory parou de
bater na parede. Houve então um estalido abafado, e
330/372
depois, quase imediatamente, um mais forte. O'Rory
não se contorcia mais. Pendia frouxo nas mãos de Jeff.
O macaco deu uma risada gutural.
--Apagou -- disse.
Afastou uma cadeira com um pontapé e jogou o corpo
de O'Rory no sofá. O corpo caiu de cara para baixo,
uma mão e um pé pendendo para fora, no chão. Jeff es-
fregou as mãos nos quadris e voltou-se para Ned
Beaumont.
--Eu sou um boboca de natureza boa -- disse. --
Qualquer um pode me chutar por aí o quanto quis-
er, que eu nunca faço nada.
Ned Beaumont disse:
--Você tinha medo dele.
Jeff deu uma risada...
--Acho que tinha. Como qualquer um com a cabeça
no lugar. Quer me dizer que você não tinha? --
Tornou a rir, olhou a sala em volta e disse: --
Vamos, dar o fora antes que apareça alguém. --
Estendeu a mão. -- Me dê o trabuco. Eu me livro
dele.
Ned Beaumont disse:
--Não. -- Moveu a mão para o lado, até ter a
pistola apontada para a barriga de Jeff. -- A
gente pode dizer que isso foi legítima defesa.
331/372
Estou com você. A gente pode se safar num
inquérito.
--Deus, mas é uma bela idéia! -- exclamou
Jeff. -- Eu com uma acusação de assassinato
pendurada em cima de minha cabeça no caso
daquele cara, West! -- Os olhinhos vermelhos
continuavam mudando o foco de Ned Beau-
mont para a pistola.
Ned Beaumont sorriu com finos lábios pálidos.
--Era nisso que eu estava pensando -- disse
baixinho.
--Não seja um trouxa de merda -- explodiu
Jeff, dando um passo à frente. -- Você...
Ned Beaumont recuou, contornando uma das mesas.
--Não me importa lhe dar um tiro, Jeff -- disse. --
Se lembre que me deve alguma coisa.
Jeff parou e coçou a nuca.
--Que espécie de canalha é você? -- pergun-
tou, perplexo.
--Só um chapa. -- Ned Beaumont adiantou de
repente a pistola. --Senta aí.
Após um momento de furiosa hesitação, Jeff sentou-se.
Ned Beaumont estendeu a mão esquerda e apertou o
botão da campainha.
Jeff levantou-se.
Ned Beaumont disse:
332/372
--Senta.
Jeff sentou-se.
Ned Beaumont disse:
--Ponha as mãos na mesa.
Jeff balançou a cabeça, tristemente.
--Que bastardo espertinho você acabou sendo. Não
acha que vão deixar você me arrastar pra fora da-
qui, acha?
Ned Beaumont contornou a mesa outra vez e sentou-se
numa cadeira de frente para Jeff e para a porta.
Jeff disse:
--O melhor que você tem a fazer é me dar essa arma
e esperar que eu esqueça isso. Deus do céu, Ned,
este é um dos meus esconderijos! Você não tem a
mínima chance no mundo de aprontar qualquer
coisa aqui.
Ned Beaumont disse:
--Mantenha a mão longe do vidro de ketchup.
O garçom abriu a porta e arregalou os olhos.
--Diga a Tim pra dar uma subida aqui -- disse Ned
Beaumont. E depois para o homem amacacado, que
ia dizer alguma coisa: -- Cale a boca.
O garçom fechou a porta e correu.
Jeff disse:
--Não seja trouxa, Ned. Com isso, só vai conseguir
uma surra. Que vantagem vai ter tentando me
333/372
entregar? Nenhuma. -- Passou a língua nos lábios.
-- Sei que você está magoado pela surra que a gente
deu em você, mas... diabos!... não foi minha culpa.
Só fiz o que Shad mandou, e já não acertei as contas
apagando ele pra você?
Ned Beaumont disse:
--Se não mantiver a mão longe desse vidro de
ketchup, vou fazer um buraco nela.
Jeff disse:
--Você é um canalha.
O homem de meia-idade mas jovem, de lábios gordos e
olhos redondos, abriu a porta, entrou rapidamente e
fechou-a atrás de si.
Ned Beaumont disse:
--Jeff matou O'Rory. Chame a polícia. Vai ter
tempo de limpar o lugar antes que eles cheguem.
Melhor chamar um médico também, caso ele não
esteja morto.
Jeff deu uma risada de desprezo.
--Se ele não está morto, eu sou o Papa. -- Parou de
rir e dirigiu-se ao homem de lábios gordos com in-
diferente familiaridade: -- Que acha desse cara,
pensando que você vai deixar ele se safar com essa?
Diga a ele a chance que ele tem de fazer isso, Tim.
334/372
Tim olhou o morto no sofá, olhou para Jeff e para Ned
Beaumont. Tinha os olhos redondos sóbrios. Disse a
Ned Beaumont, lentamente:
--Isso é ruim pra casa. A gente não pode arrastar
ele pra rua e deixar ele ser achado lá?
Ned Beaumont balançou a cabeça.
--Limpe sua casa antes que os tiras cheguem aqui,
que tudo fica bem pra você. Prometo fazer o que
puder por você.
Enquanto Tim hesitava, Jeff disse:
--Escute, Tim, você me conhece. Sabe...
Tim disse, sem ênfase especial:
--Pelo amor de Deus, feche a matraca.
Ned Beaumont sorriu.
--Ninguém conhece você, Jeff, agora que Shad
está morto.
--Não? -- O homem amacacado reclinou-se
mais confortavelmente na cadeira. -- Bem, me
entregue. Agora que sei que tipo de canalhas
são vocês, prefiro enfrentar a prisão do que
pedir uma maldita coisa que seja a qualquer
um dos dois.
Tim, ignorando Jeff, perguntou:
--Tem de ser assim?
Ned Beaumont fez que sim com a cabeça.
335/372
--Acho que posso agüentar -- disse Tim, e pôs
a mão na maçaneta.
--Se importa de verificar se Jeff tem uma
arma? -- perguntou Ned Beaumont.
Tim balançou a cabeça.
--Isso aconteceu aqui, mas eu não tenho nada a ver,
e não vou ter -- disse, e saiu.
Jeff, refestelando-se confortavelmente na cadeira, as
mãos ociosas na borda da mesa, conversou com Ned
Beaumont até a polícia chegar. Conversou animada-
mente, chamando o outro de inúmeros nomes feios,
obscenos e simplesmente ofensivos, acusando-o de
uma longa e variada lista de vícios.
Ned Beaumont escutava com polido interesse.
Um homem grisalho e ossudo, em uniforme de tenente,
foi o primeiro policial a chegar. Meia dúzia de detetives
vinham atrás dele.
Ned Beaumont disse:
--Olá, Brett. Acho que ele tem uma arma.
--Que é que há? -- perguntou Brett, olhando o
corpo no sofá, enquanto dois dos detetives,
passando por ele, agarravam Jeff Gardner.
Ned Beaumont contou a Brett o que acontecera. Sua
história foi verdadeira, a não ser por dar a impressão de
que O'Rory fora morto no calor da briga, e não depois
de ter sido desarmado.
336/372
Enquanto Ned Beaumont falava, entrou um médico,
virou o corpo de Shad O'Rory para cima no sofá,
examinou-o ligeiramente e levantou-se. O tenente ol-
hou o médico, que disse:
--Foi-se. -- E saiu da pequena sala.
Jeff xingava jovialmente os dois detetives que o se-
guravam. Toda vez que xingava, um dos detetives dava-
lhe um soco no rosto. Jeff ria e continuava a xingá-los.
Os dentes postiços haviam saltado. A boca sangrava.
Ned Beaumont deu a pistola do morto a Brett e
levantou-se.
--Quer que eu vá à central de polícia agora?
Ou amanhã está bem?
--Melhor ir agora -- respondeu Brett.
4
Passava muito da meia-noite quando Ned Beaumont
deixou a central de polícia. Despediu-se dos dois repór-
teres que saíram com ele e entrou num táxi. O endereço
que deu ao chofer foi o de Paul Madvig.
Havia luz no térreo da casa de Madvig, e enquanto ele
subia os degraus da frente, a porta foi aberta pela sra.
337/372
Madvig. Vestia-se de negro, e tinha um xale sobre os
ombros.
Ele disse:
--Olá, mãe. Que faz de pé tão tarde?
Ela disse:
--Pensei que era Paul. -- Embora o olhasse sem
decepção.
-- Ele não está em casa? Eu queria falar com ele. --
Deu-lhe um olhar penetrante. -- Que é que há?
A velha recuou, puxando a porta consigo.
--Entre, Ned.
Ele entrou.
Ela fechou a porta e disse:
--Opal tentou se suicidar.
Ele baixou os olhos e murmurou:
--Quê? Que quer dizer?
--Cortou um dos pulsos antes que a enfer-
meira pudesse impedir. Mas não perdeu muito
sangue, e está bem, se não tentar de novo. --
Havia um pouco de fraqueza, tanto na voz
quanto na expressão dela.
Ned Beaumont não tinha a voz firme.
--Onde está Paul?
--Não sei. Não conseguimos encontrar ele. Já
devia estar em casa. Não sei onde está. -- Pôs
uma mão ossuda no braço de Ned Beaumont,
338/372
e agora sua voz tremia um pouco. -- E você...
você e Paul...? -- Parou, apertando o braço
dele.
Ele balançou a cabeça.
--Está acabado, pra sempre.
--Oh, Ned, não pode fazer nada pra dar um
jeito? Você e ele... -- Tornou a perder a voz.
Ele ergueu a cabeça e olhou-a. Tinha os olhos molha-
dos. Disse delicadamente:
--Não, mãe, está acabado pra sempre. Ele lhe
contou?
--Só me disse quando eu contei a ele que tinha
telefonado pra você sobre o homem do gabine-
te do Promotor Distrital que estava aqui, que
eu não devia nunca mais fazer isso, que vo-
cês... que vocês não eram mais amigos.
Ned Beaumont pigarreou.
--Escute, mãe, diga a ele que vim falar com ele.
Diga que vou pra casa esperar lá por ele, vou ficar
esperando a noite toda. -- Tornou a pigarrear e
acrescentou: -- Diga isso a ele.
A sra. Madvig pôs as mãos ossudas nos ombros dele.
--Você é um bom menino, Ned. Não quero que
você e Paul briguem. Você é o melhor amigo
que ele já teve, não importa o que surgiu entre
os dois. Que foi? Ê aquela Janet...
339/372
--Pergunte a Paul -- ele disse, numa voz baixa
e amarga. -- Moveu a cabeça com impaciência.
-- Vou embora, mãe, a não ser que possa fazer
alguma coisa por Opal. Posso?
--Não, a não ser ir falar com ela. Não está dor-
mindo ainda, e talvez fizesse algum bem con-
versar um pouco com ela. Ela ouvia você
antes.
Ele balançou a cabeça.
--Não, ela não ia querer falar comigo -- engoliu em
seco -- tampouco.
10
A CHAVE DESPEDAÇADA
1
Ned Beaumont foi para casa. Tomou café, fumou, leu
um jornal, uma revista e metade de um livro. De vez em
quando, parava de ler para andar inquieto pelo aparta-
mento. A campainha da porta não tocava. O telefone
não tocava.
Às oito da manhã, tomou banho, barbeou-se e pôs
roupas limpas. Pediu o café da manhã e o comeu.
Às nove horas, foi ao telefone, discou o número de
Janet Henry, pediu para falar com ela e disse:
--Bom dia... Sim, ótimo, obrigado... Bem, estamos
prontos para os fogos de artifício... É... Se seu pai
está aí, acho que devemos primeiro contar tudo a
ele... Ótimo, mas nem uma palavra até eu chegar
aí... É só o tempo de ir daqui até aí. Estou saindo
agora... Certo. Vejo você em alguns minutos.
Levantou-se do telefone fitando o espaço, bateu as
mãos ruidosamente e esfregou as palmas. A boca era
uma linha mal-humorada sob o bigode, os olhos pontos
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negros ardentes. Foi até o armário e com gestos rápidos
vestiu o casaco e pôs o chapéu. Deixou o quarto assobi-
ando baixinho Little Lost Lady e atravessou as ruas em
largas passadas.
--A srta. Henry está me esperando -- disse à criada
que abriu a porta dos Henry.
Ela disse:
--Sim, senhor. -- E o conduziu a uma sala ensol-
arada, com um vistoso papel de parede, onde o sen-
ador e a filha se sentavam tomando o café.
Janet Henry saltou imediatamente e veio ao encontro
dele com ambas as mãos estendidas, gritando com
excitação:
--Bom dia!
O senador levantou-se de um modo mais calmo, ol-
hando a filha com polida surpresa, e depois estendeu a
mão para Ned Beaumont, dizendo:
--Bom dia, sr. Beaumont. É um grande prazer
vê-lo. Não quer...?
--Não, obrigado, já tomei o meu.
Janet Henry tremia. A excitação tirara-lhe a cor das
faces, escurecera-lhe os olhos, dando-lhe a aparência
de uma pessoa drogada.
--Temos uma coisa pra contar ao senhor, pai -- ela
disse, numa voz plana e sem tensão. -- Uma coisa
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que... -- Voltou-se abruptamente para Ned Beau-
mont. -- Diga a ele! Diga a ele!
Ned Beaumont olhou-a de lado, juntando as sobrancel-
has, e depois olhou diretamente para o pai dela. O sen-
ador permanecera de pé em seu lugar à mesa. Ned
Beaumont disse:
--O que temos são provas muito fortes... incluindo
uma confissão... de que Paul Madvig matou seu
filho.
O senador estreitou os olhos e pôs a mão espalmada
sobre a mesa à sua frente.
--Que provas fortes são essas? -- perguntou.
--Bem, senhor, o principal é a confissão, é
claro. Ele diz que seu filho correu atrás dele
naquela noite e tentou bater nele com uma
bengala nodosa e marrom, e que ao tomar a
bengala bateu acidentalmente nele com ela.
Diz que levou a bengala consigo e queimou,
mas sua filha... -- fez uma leve curvatura para
Janet Henry -- diz que ela ainda está aqui.
--Está -- ela disse. -- É aquela que o major
Sawbridge trouxe pro senhor.
O rosto do senador estava pálido como mármore, e
igualmente firme.
--Prossiga.
Ned Beaumont fez um leve gesto com a mão.
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--Bem, senhor, isso estouraria a história dele de que
foi acidente ou legítima defesa... o fato de seu filho
não estar com a bengala. -- Moveu um pouco os
ombros. -- Contei isso a Farr ontem. Ele aparente-
mente está com medo de correr muitos riscos...
sabe como ele é... mas não vejo como pode deixar
de prender Paul hoje.
Janet Henry franziu a testa para Ned Beaumont, obvia-
mente perplexa com alguma coisa, fez que ia falar, mas
em vez disso comprimiu os lábios.
O senador Henry tocou os lábios com o guardanapo
que segurava na mão esquerda, soltou-o sobre a mesa e
perguntou:
--Existe... ah... alguma outra prova?
A resposta de Ned Beaumont foi outra pergunta feita
com indiferença:
--Essas não bastam?
--Mas ainda existem outras, não existem? --
perguntou Janet.
--Coisas em apoio a essas -- disse Ned Beau-
mont com indiferença. Dirigiu-se ao senador:
-- Posso lhe fornecer mais detalhes, mas o
senhor já tem o essencial da história. É o
bastante, não é?
--Demais -- disse o senador. Levou a mão à
testa. -- Não posso acreditar, e no entanto é
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verdade. Se me desculpa por um minuto e...
você também, minha querida, eu gostaria de
ficar só, para pensar, para me ajustar a... Não,
não, fiquem aqui. Eu gostaria de ir para o meu
quarto. -- Fez uma graciosa curvatura. -- Por
favor, fique, sr. Beaumont. Não vou demorar
muito... apenas um momento para... para me
ajustar ao conhecimento de que esse homem,
com quem trabalhei ombro a ombro, é o assas-
sino de meu filho.
Fez outra curvatura e saiu, andando ereto, rígido.
Ned Beaumont pôs uma mão sobre o pulso de Janet
Henry e perguntou numa voz tensa e baixa:
--Escute, ele é capaz de alguma loucura?
Ela o olhou, espantada.
--Ele é capaz de sair por aí caçando Paul -- ex-
plicou Ned Beaumont. -- Não queremos isso.
Não se pode dizer o que iria acontecer.
--Eu não sei -- ela disse.
Ele fez uma careta de impaciência.
--Não podemos deixar que ele faça isso. Não
podemos ir pra algum lugar perto da porta da
frente, pra podermos deter ele se ele tentar?
--Sim. -- Ela estava ássustada.
Conduziu-o à frente da casa, a uma salinha mergulhada
em penumbra por pesadas cortinas, cuja porta ficava a
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alguns palmos da frente. Ficaram juntos na penumbra
da sala, perto da porta entreaberta alguns centímetros.
Ambos tremiam. Janet Henry tentou sussurrar alguma
coisa, mas ele fez um "psiu", pedindo silêncio.
Não estavam muito tempo ali quando passos abafados
soaram no tapete do saguão, e o senador Henry, de
chapéu e casaco passou depressa em direção à porta da
rua.
Ned Beaumont saiu e disse:
--Espere, senador Henry.
O senador voltou-se. Tinha o rosto duro e frio, os olhos
imperiosos.
--Quer fazer o favor de me desculpar. Preciso
sair.
--Isso não adianta -- disse Ned Beaumont.
Chegou mais perto do outro. -- Só mais
encrenca.
Janet Henry foi para o lado do pai.
--Não vá, pai -- pediu. -- Escute o sr.
Beaumont.
--Já escutei o sr. Beaumont -- disse o senador.
-- Estou inteiramente disposto a escutá-lo de
novo, se ele tiver mais alguma informação a
me dar. Fora isso, devo pedir a vocês que me
desculpem. -- Sorriu para Ned Beaumont. -- Ê
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com base no que o senhor me disse que estou
agindo agora.
Ned Beaumont encarou-o com olhos inalterados.
--Não acho que o senhor deve ir falar com ele --
disse.
O senador olhou altivamente para Ned Beaumont.
Janet disse:
--Mas, pai... -- antes que a expressão nos olhos dele
a detivesse.
Ned Beaumont pigarreou. Manchas vermelhas surgiam
em suas faces. Estendeu rápido a mão e tocou o bolso
direito do casaco do senador.
O senador Henry recuou indignado.
Ned Beaumont assentiu, como para si mesmo.
--Isso não adianta de jeito nenhum -- disse
seriamente. Olhou para Janet Henry. -- Ele
tem uma arma no bolso.
--Pai! -- gritou ela, e levou a mão à boca.
Ned Beaumont franziu os lábios.
--Bem -- disse ao senador --, está claro que não po-
demos deixar o senhor sair daqui com uma arma no
bolso.
Janet Henry disse:
--Não deixe, Ned.
Os olhos do senador ardiam de desprezo por eles.
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--Acho que vocês dois esqueceram quem são
-- disse.
--Janet, quer por favor ir para o seu quarto.
Ela se afastou dois passos, relutante, depois parou e
gritou:
--Não vou! Não vou deixar você fazer isso! Não
deixe, Ned.
Ned Beaumont umedeceu os lábios.
--Não vou deixar -- prometeu.
O senador, olhando-o friamente, pôs a mão direita na
maçaneta da porta da rua.
Ned Beaumont adiantou-se e pôs a mão sobre a dele.
--Escute aqui, senhor -- disse respeitosamente
--, não posso deixar o senhor fazer isso. Não
estou apenas interferindo. -- Tirou a mão do
senador, vasculhou o bolso interno do paletó e
tirou um pedaço de papel dobrado, puído, en-
rugado e sujo. -- Aqui está minha nomeação
como investigador especial do gabinete do
Promotor Distrital, no mês passado.
--Estendeu-o para o senador. -- Até onde eu
sei, nunca foi cancelada, e assim -- encolheu
os ombros --, não posso deixar o senhor sair
pra dar tiros em ninguém.
O senador não olhou o papel. Disse com desprezo:
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--Você está é tentando salvar a vida de seu
amigo assassino.
--O senhor sabe que não é isso. O senador
recompôs.
--Chega disso -- disse, e girou a maçaneta.
Ned Beaumont disse:
--Pise na calçada com essa arma no bolso, e eu
lhe prendo.
Janet Henry gemeu:
--Oh, pai!
O senador e Ned Beaumont fitavam-se dentro dos ol-
hos, ambos respirando de uma maneira audível.
O senador foi o primeiro a falar. Falou à filha:
--Quer nos deixar uns poucos minutos, minha
querida? Tem umas coisas que eu gostaria de dizer
ao sr. Beaumont.
Ela olhou interrogativamente para Ned Beaumont. Ele
assentiu.
--Sim -- ela disse ao pai --, se você não sair antes de
eu ver você de novo.
Ele sorriu e disse:
--Você me verá.
Os dois homens observaram-na afastar-se saguão
abaixo, dobrar à esquerda com um olhar para eles por
sobre o ombro e desaparecer numa porta.
O senador disse pesarosamente:
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--Receio que o senhor não tenha uma influência tão
boa sobre a minha filha quanto devia ter. Ela não é
habitualmente tão... ah... teimosa.
Ned Beaumont deu um sorriso de desculpa, mas não
falou.
O senador perguntou:
--Há quanto tempo dura isso?
--O senhor se refere à nossa investigação
sobre o assassinato? Pra mim, só um ou dois
dias. Sua filha está nisso desde o início.
Sempre achou que foi Paul.
--Quê? -- A boca do senador permaneceu
aberta.
--Ela sempre achou que foi ele. O senhor não
sabia? Ela odeia ele como veneno... sempre
odiou.
--Odeia ele? -- O senador estava ofegante. --
Deus, não!
Ned Beaumont fez que sim com a cabeça e sorriu curi-
osamente para o homem encostado à porta.
--O senhor não sabia disso?
O senador expeliu o ar com força.
--Entre aqui -- disse, e entrou na frente na
sala escura onde Ned Beaumont e Janet Henry
haviam se escondido. O senador acendeu as
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luzes, enquanto Ned Beaumont fechava a
porta. Os dois ficaram frente a frente, de pé.
--Quero falar com o senhor de homem para
homem, sr. Beaumont -- começou o senador.
-- Podemos esquecer suas -- sorriu -- ligações
oficiais, não podemos?
Ned Beaumont assentiu.
--É. Farr provavelmente já se esqueceu delas
também.
--Exatamente. Agora, sr. Beaumont, eu não
sou um homem sanguinário, mas diabos me
levem se posso suportar a idéia de que o assas-
sino de meu filho anda por aí livre e impune,
quando...
--Eu disse ao senhor que vá pegar ele. Não
têm saída. A prova é forte demais, e todo
mundo conhece.
O senador tornou a sorrir, gelidamente.
--O senhor certamente não está tentando me
dizer, como um político praticante para outro,
que Paul Madvig corre algum perigo de ser
punido por alguma coisa que fez nesta cidade?
--Estou, sim. Paul está liquidado. Estão
traindo ele. A única coisa que segura eles é que
estão habituados a saltar quando ele estala o
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chicote, e precisam de um tempo pra juntar
coragem.
O senador Henry sorriu e balançou a cabeça.
--Permite-me discordar do senhor? E apontar
o fato de que estou na política há mais anos do
que os que o senhor tem de vida?
--Claro.
--Então posso garantir ao senhor que eles ja-
mais vão juntar a coragem necessária, por
mais tempo que tenham. Paul é o chefão deles,
e apesar de possíveis rebeliões temporárias,
continuará sendo.
--Acho que não concordo com isso -- disse
Ned Beaumont. -- Paul está liquidado. --
Franziu a testa. -- Agora, sobre esse negócio
da arma. Não adianta. É melhor me entregar.
-- Estendeu a mão.
O senador enfiou a mão no bolso do casaco.
Ned Beaumont aproximou-se e pôs a mão no pulso do
senador.
--Me dê.
O senador fuzilava-o com o olhar.
--Está bem -- disse Ned Beaumont --, se
tenho de fazer isso... -- E, após uma breve
luta, em que uma cadeira caiu, tomou a arma,
um antiquado revólver niquelado, do senador.
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Enfiava-o num dos bolsos traseiros das calças
quando Janet Henry, de olhos alucinados e
rosto pálido, entrou.
--Que é isso? -- gritou.
--Ele não quer ouvir a voz da razão -- res-
mungou Ned Beaumont. -- Tive de tomar a
arma dele.
O senador contorcia o rosto e respirava asperamente.
Deu um passo em direção a Ned Beaumont.
--Saia já de minha casa! -- ordenou.
--Não saio -- disse Ned Beaumont. As ex-
tremidades de seus lábios arquearam-se. A
raiva começou a arder em seus olhos.
Estendeu a mão e tocou rudemente o braço de
Janet Henry. -- Sente aí e escute isso. Você pe-
diu e vai receber. -- Falou ao senador: --
Tenho muita coisa pra dizer, portanto é mel-
hor o senhor se sentar também.
Nem Janet Henry nem o pai se sentaram. Ela olhava
para Ned Beaumont com pânico nos olhos, ele com ol-
hos cautelosos. Os rostos dos dois estavam igualmente
brancos.
Ned Beaumont disse ao senador:
--O senhor matou o seu filho.
Nada se alterou no rosto do senador. Ele não se mexeu.
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Por um demorado momento, Janet Henry ficou tão
imóvel quanto o pai. Depois, uma expressão de ex-
tremo horror surgiu no rosto dela, e ela se sentou lenta-
mente no chão. Não caiu. Dobrou lentamente os joel-
hos e arriou no chão, sentada, inclinada para a direita,
a mão direita apoiando-se no chão, o rosto horrorizado
erguido para o pai e para Ned Beaumont.
Nenhum dos dois olhava para ela.
Ned Beaumont disse ao senador:
--O senhor quer matar Paul agora pra ele não poder
dizer que foi o senhor quem matou o seu filho. Sabe
que pode matar ele e ficar impune... aquela história
do cavalheiro impulsivo da velha escola... se puder
impingir ao mundo a atitude que tentou impingir a
nós. -- Parou.
O senador nada disse.
Ned Beaumont prosseguiu:
--O senhor sabe que ele vai parar de acobertar o
senhor se for preso, porque não vai querer que
Janet pense que matou o irmão dela, se puder im-
pedir. -- Deu uma risada amarga. -- E que maldita
piada contra ele, essa! -- Passou os dedos pelos ca-
belos. -- O que aconteceu foi mais ou menos o
seguinte: quando Taylor soube que Paul tinha bei-
jado Janet, correu atrás dele, levando a bengala e
usando um chapéu, embora isso não seja tão
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importante. Quando o senhor pensou no que podia
acontecer às suas possibilidades de se reeleger...
O senador interrompeu-o num áspero tom de raiva:
--Isso é insensatez! Não vou deixar minha filha
sujeita...
Ned Beaumont riu brutalmente.
--Claro que é insensatez -- disse. -- E o fato do sen-
hor trazer a bengala com que matou ele pra casa, e
usar o chapéu dele porque tinha corrido atrás dele
de cabeça descoberta, também é insensatez, mas é a
insensatez que vai pregar o senhor na cruz.
O senador Henry disse numa voz baixa e indiferente:
--E a confissão de Paul?
Ned Beaumont sorriu.
--É muita coisa -- disse. -- Vou lhe dizer o que va-
mos fazer. Janet, telefone pra ele e peça que ele
venha aqui imediatamente. Depois diremos a ele
que seu pai ia sair atrás dele com um revólver, pra
ver o que ele diz.
Janet mexeu-se mas não se levantou do chão. Seu rosto
estava branco.
O pai disse:
--Isso é ridículo. Não vamos fazer nada disso.
Ned Beaumont disse, decisivo:
--Telefone pra ele, Janet.
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Ela se pôs de pé, ainda com o rosto branco, e, sem dar
atenção ao veemente "Janet!" do senador, foi até a
porta.
O senador mudou de tom então e disse:
--Espere, querida. -- E depois: -- Gostaria de
falar a sós com você de novo -- disse a Ned
Beaumont.
--Está bem -- disse Ned Beaumont, voltando-
se para a moça que hesitava na porta.
Antes que ele pudesse dizer-lhe alguma coisa, ela dizia
obstinadamente:
--Eu quero ouvir. Tenho o direito de ouvir.
Ele assentiu com a cabeça, tornou a olhar o pai dela e
disse:
--Ela tem.
--Janet, querida -- disse o senador --, estou
tentando poupar você. Eu...
--Não quero ser poupada -- ela disse numa
vozinha plana. -- Quero saber.
O senador mostrou as palmas num gesto de derrota.
--Então não direi nada.
Ned Beaumont disse:
--Telefone pra Paul, Janet.
Antes que ela pudesse mover-se, o senador falou:
--Não. Isso é mais difícil do que vocês deviam torn-
ar para mim, mas... -- Tirou um lenço e enxugou as
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mãos. -- Vou contar a vocês exatamente o que
aconteceu, e depois vou pedir um favor a vocês, um
favor que acho que não podem recusar. Contudo...
-- Interrompeu-se para olhar a filha. -- Entre,
minha querida, e feche a porta, se tem de ouvir.
Ela fechou a porta e sentou-se numa cadeira perto dele,
curvando-se para a frente, o corpo rígido, o rosto tenso.
O senador pôs as mãos às costas, ainda segurando o
lenço, e, olhando sem inimizade para Ned Beaumont,
disse:
--Eu corri atrás de Taylor naquela noite porque não
gostaria de perder a amizade de Paul por causa do
esquentamento de meu filho. Alcancei-os na rua da
China. Paul tinha tomado a bengala dele. Estavam,
ou pelo menos Taylor estava, discutindo furi-
osamente. Pedi a Paul que nos deixasse, para que eu
pudesse cuidar de meu filho, e ele fez isso, me
dando a bengala. Taylor falou comigo como filho
nenhum deve falar com um pai, e tentou me empur-
rar da sua frente pra poder tornar a perseguir Paul.
Não sei exatamente como aconteceu... a pancada...
mas aconteceu, e ele caiu e bateu a cabeça no meio-
fio. Paul voltou então... não se afastara muito... e
descobrimos que Taylor tinha morrido instantanea-
mente. Paul insistiu em que deixássemos o corpo ali
e não admitíssemos nossa participação na morte
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dele. Disse que por mais inevitável que fosse, po-
diam criar um escândalo desagradável com aquilo
na campanha iminente, e... bem... deixei que ele me
convencesse. Foi ele quem pegou o chapéu de
Taylor e me deu pra voltar pra casa... eu tinha saído
de cabeça descoberta. Garantiu que a investigação
da polícia seria detida se ameaçasse chegar muito
perto de nós. Mais tarde... na verdade, na semana
passada... quando fiquei assustado com os rumores
de que ele tinha matado Taylor, fui a ele e perguntei
se não era melhor a gente contar tudo. Ele riu de
meus temores e me garantiu que era inteiramente
capaz de cuidar de si mesmo. -- Tirou as mãos das
costas, enxugou o rosto com o lenço e disse: -- Foi
isso que aconteceu.
A filha gritou numa voz sufocada:
--Você deixou ele lá, daquele jeito, caído na rua!
Ele piscou, mas não disse nada.
Após um momento de carrancudo silêncio, Ned Beau-
mont disse:
--Um discurso de campanha... um pouco de ver-
dade enfeitada. -- Fez uma careta. -- O senhor tinha
um favor a nos pedir.
O senador baixou os olhos para o chão, depois tornou a
olhar para Ned Beaumont.
--Mas isso é só pra você ouvir.
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Ned Beaumont disse:
--Não.
--Me perdoe, querida -- o senador disse à
filha, e depois, a Ned Beaumont: -- Eu lhe
contei a verdade, mas compreendo muito bem
a posição em que me coloquei. O favor que lhe
peço é que me devolva meu revólver e me dê
cinco minutos... um minuto... sozinho nesta
sala. Ned Beaumont disse:
--Não.
O senador hesitou, com a mão no peito, o lenço pen-
dendo da mão.
Ned Beaumont disse:
--Vai receber o que merece.
2
Ned Beaumont foi até a porta da rua com Farr, a es-
tenógrafa grisalha, dois detetives da polícia e o senador.
--Não vem com a gente? -- perguntou Farr.
--Não, mas vejo você depois.
Farr sacudiu-lhe a mão com entusiasmo.
--Apareça logo e com mais freqüência, Ned -- disse.
-- Você faz truques comigo, mas não me incomodo
com isso quando vejo o que resulta.
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Ned Beaumont deu-lhe um sorriso, trocou acenos de
cabeça com os detetives, despediu-se da estenógrafa e
fechou a porta. Subiu a escada até a sala de paredes
brancas onde ficava o piano. Janet Henry levantou-se
do sofá com liras nas extremidades quando ele entrou.
--Já foram -- ele disse, numa voz consciente-
mente banal.
--Eles... eles...?
--Arrancaram um depoimento completo
dele... com mais detalhes que os que ele nos
contou.
--Você me dirá a verdade?
--Sim -- ele prometeu.
--Que... -- A voz falhou. -- Que vão fazer com
ele, Ned?
--Provavelmente não muita coisa. A idade e a
importância dele e essas coisas todas vão
ajudar. As possibilidades são de que
condenem ele por assassinato culposo, e de-
pois afastem ou suspendam a sentença.
--Você acha que foi um acidente?
Ned Beaumont balançou a cabeça. Tinha os olhos frios.
Disse brutalmente:
--Acho que ficou furioso com o fato do filho inter-
ferir em suas chances de se reeleger e bateu nele.
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Ela não protestou. Torcia os dedos, juntos. Quando fez
a pergunta seguinte, foi com dificuldade.
--Ele... ele ia atirar em Paul?
--Ia. Podia se safar com aquela história do
grande homem que vinga a morte que a lei não
podia vingar. Sabia que Paul não ia ficar
calado se fosse preso. Paul fez aquilo, como
apoiou a reeleição de seu pai, porque queria
você. Não poderia conquistar você dizendo
que matou seu irmão. Pouco estava ligando
pra o que os outros pensavam, mas não queria
que você pensasse que foi ele, e sairia de baixo
num segundo se precisasse.
Ela assentiu com a cabeça, infeliz.
--Eu odiava ele, e fiz mal a ele e ainda odeio. -- Deu
um soluço. -- Por que, Ned?
Ele fez um gesto de impaciência com a mão.
--Não me peça pra decifrar enigmas.
--E você me enganou e me fez de tola, e me
causou tudo isso, e eu não odeio você.
--Mais enigmas -- ele disse.
--Há quanto tempo, Ned -- ela perguntou --,
há quanto tempo você sabia sobre... sobre
papai?
--Não sei. Estava lá no fundo de minha mente
há muito tempo. Era a única coisa que se
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encaixava na idiotice de Paul. Se ele tivesse
matado Taylor, teria me dito antes. Não havia
motivo pra esconder isso de mim. Havia um
motivo pra que ele me ocultasse os crimes de
seu pai. Sabia que eu não gostava dele. Deixei
isso bastante claro. Não achava que podia con-
fiar em mim pra não denunciar seu pai. E
sabia que podia em relação a ele mesmo.
Assim, quando eu disse pra ele que ia esclare-
cer o assassinato independente do que ele dis-
sesse, ele fez aquela falsa confissão pra me
deter.
Ela perguntou:
--Por que você não gostava de papai?
--Porque -- ele disse -- não gosto de cafetões.
O rosto dela ficou vermelho, os olhos envergonhados.
Ela perguntou numa voz seca e arrependida:
--E não gosta de mim por quê... ?
Ele não disse nada.
Ela mordeu o lábio e gritou:
--Me responda!
--Você é decente -- ele disse --, só não com
Paul, não da maneira como manobrou ele.
Nenhum dos dois era outra coisa que não ven-
eno pra ele. Tentei dizer isso a ele. Tentei dizer
a ele que vocês dois consideravam ele uma
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forma inferior de vida animal, e boa caça para
qualquer tipo de tratamento. Tentei dizer a ele
que seu pai era um homem habituado toda a
vida a vencer sem muito esforço, e que num
aperto ou perderia a cabeça ou viraria bicho.
Bem, ele estava apaixonado por você; assim...
-- Bateu os dentes com um estalido e
encaminhou-se para o piano.
--Você me despreza -- ela disse, numa voz
baixa e dura. -- Me acha uma prostituta.
--Eu não desprezo você -- ele disse, irritado,
sem voltar-se de frente para ela. -- O que quer
que tenha feito, já pagou por isso, e foi paga, e
isso se aplica a todos nós.
Fez-se silêncio entre eles, até que ela disse:
--Agora você e Paul vão voltar-a ser amigos.
Ele se voltou do piano com um movimento que era
como se fosse sacudir-se e olhou o relógio no pulso.
--Agora vou ter de dizer adeus -- disse.
Um brilho de espanto brilhou nos olhos dela.
--Não está indo embora?
Ele fez que sim com a cabeça.
--Posso pegar o trem das quatro e trinta.
--Não está indo embora pra sempre?
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--Se puder evitar que me tragam aqui pra um
desses julgamentos, e acho que isso não será
tão difícil assim.
Ela estendeu as mãos, impulsivamente.
--Me leve com você.
Ele piscou os olhos.
--Quer mesmo ir embora ou está apenas histérica?
-- perguntou. Tinha o rosto cor de carmim agora.
Antes que ela pudesse falar, disse: -- Não faz nen-
huma diferença. Levo você, se quiser ir. -- Franziu a
testa. -- Mas e tudo isso? -- acenou com a mão, in-
dicando a casa. -- Quem vai tomar conta?
Ela disse amargamente:
--Não me importa... nossos credores.
--Tem outra coisa em que você precisa pensar
-- ele disse, devagar. -- Todo mundo vai dizer
que você desertou seu pai assim que ele entrou
num aperto.
--Eu estou desertando ele -- ela disse --, e
quero que as pessoas digam isso mesmo. Não
me importa o que digam... se você me levar
com você. -- Soluçou. -- Se... Eu não faria isso
se ao menos ele não tivesse vindo embora e
deixado ele lá sozinho naquela rua escura.
Ned Beaumont disse bruscamente:
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--Esqueça isso agora. Se vai mesmo, arrume suas
coisas. Só o que puder levar numas duas malas. Po-
demos mandar buscar as outras coisas depois,
talvez.
Ela emitiu um riso agudo e não natural e saiu correndo
da sala. Ele acendeu um charuto, sentou-se ao piano e
tocou baixinho até ela voltar. Ela pusera um chapéu e
um casaco negros, e trazia duas malas de viagem.
3
Foram de táxi até o apartamento dele. Durante a maior
parte da corrida, ficaram calados. A certa altura, ela
disse de repente:
--Naquele sonho... não contei a você... a chave era
de vidro e se despedaçou em nossas mãos assim que
abrimos a porta, porque a fechadura estava emper-
rada e tivemos de forçar.
Ele olhou de lado para ela e perguntou:
--E daí?
Ela teve um arrepio.
--Não pudemos trancar as cobras, e elas sal-
taram todas em cima da gente, e eu acordei
gritando.
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--Foi só um sonho -- ele disse. -- Esqueça. --
Sorriu sem alegria. -- Você jogou minha truta
de volta na água... no sonho...
O táxi parou diante do prédio dele. Subiram ao aparta-
mento. Ela se ofereceu para ajudá-lo a arrumar suas
coisas, mas ele disse:
--Não, eu posso fazer isso. Sente aí e descanse.
Ainda temos uma hora antes da partida do trem.
Ela se sentou numa das poltronas vermelhas.
--Aonde você... aonde vamos? -- perguntou
timidamente.
--Nova Iorque, pelo menos por enquanto.
Já arrumara uma mala quando a campainha da porta
tocou.
--É melhor você passar pro quarto -- ,ele disse a
ela, e levou as malas dela para lá. Fechou a porta de
comunicação ao sair.
Foi até a porta da frente e abriu-a.
Paul Madvig disse:
--Vim lhe dizer que você tinha razão, e que sei
disso agora.
--Não veio ontem à noite.
--Não, eu não sabia então. Cheguei em casa
logo depois que você saiu.
Ned Beaumont assentiu com a cabeça.
--Entre -- disse, afastando-se para um lado.
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Madvig entrou na sala de estar. Olhou imediatamente
as malas, mas deixou o olhar vaguear pela sala algum
tempo, antes de perguntar:
--Está indo embora?
--Estou.
Madvig sentou-se na poltrona que Janet Henry ocu-
para. A idade mostrava-se em seu rosto, e ele se sentou
cansadamente.
--Como está Opal? -- perguntou Ned
Beaumont.
--Está bem, pobrezinha. Vai ficar bem agora.
--Foi você quem fez isso com ela.
--Eu sei, Ned. Deus, como sei! -- Madvig es-
tendeu as pernas e olhou os sapatos. -- Espero
que não ache que estou me sentindo orgulhoso
de mim mesmo. -- Após uma pausa, acres-
centou: -- Acho... sei que Opal gostaria de ver
você, antes de você ir embora.
--Vai ter de se despedir dela por mim, e de
mamãe também. Vou partir no das quatro e
trinta.
Madvig ergueu os olhos azuis enevoados pela angústia.
--Você está certo, claro, Ned -- disse numa voz
sumida --, mas... bem... Deus sabe que você está
certo! -- Tornou a baixar o olhar para os sapatos.
Ned Beaumont perguntou:
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--Que vai fazer com seus seguidores não muito
fiéis? Chutá-los de volta à linha? Ou eles mes-
mos já fizeram isso?
--Farr e o resto daqueles ratos?
--Um-hum.
--Vou ensinar uma coisinha a eles -- Madvig
falou com determinação, mas não havia
entusiasmo em sua voz, e não ergueu o olhar
dos sapatos. -- Vai me custar quatro anos, mas
posso aproveitar esses quatro anos pra limpar
a casa e montar uma organização que se
mantenha de pé.
Ned Beaumont ergueu as sobrancelhas.
--Vai acabar com eles na eleição?
--Acabar com eles? Diabos, vou dinamitar
eles! Shad está morto. Vou deixar a turma dele
dirigir isso aqui pelos próximos quatro anos.
Não tem nenhum deles que possa montar
nada bastante sólido pra me preocupar. Recu-
pero a cidade na próxima vez, e aí já fiz a
limpeza da casa.
--Podia ganhar agora.
--Claro, mas não quero ganhar com esses
bastardos.
Ned Beaumont assentiu com a cabeça.
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--É preciso paciência e raça, mas acho que é a
melhor maneira de fazer o jogo.
--É só o que eu tenho -- disse Madvig, com
um ar infeliz. -- Jamais vou ter crânio. --
Mudou o foco dos olhos dos sapatos para a
lareira. -- Você tem de ir embora, Ned? -- per-
guntou, quase inaudivelmente.
--Tenho, sim.
Madvig pigarreou violentamente.
--Não quero ser um merda de um idiota --
disse --, mas me agradaria pensar que, indo
ou ficando, você não guarda ressentimento de
mim, Ned.
--Não guardo nenhum ressentimento de você,
Paul.
Madvig ergueu a cabeça num gesto rápido.
--Aperta minha mão?
--Certamente.
Madvig saltou de pé. Sua mão agarrou a de Ned
Beaumont, esmagou-a.
--Não vá embora, Ned. Fique comigo. Deus sabe
que preciso de você agora. Mesmo que não precisas-
se... farei o melhor que possa pra compensar tudo
isso.
Ned Beaumont balançou a cabeça.
--Não tem nada pra compensar comigo.
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--E você...?
Ned Beaumont tornou a balançar a cabeça.
--Não posso. Tenho de ir.
Madvig soltou a mão do outro e tornou à sentar-se, ta-
citurno, dizendo:
--Bem, eu mereço.
Ned Beaumont fez um gesto de impaciência.
--Não tem nada a ver com isso. -- Parou e mordeu o
lábio. Depois disse brutalmente: -- Janet está aqui.
Madvig encarou-o.
Janet Henry abriu a porta do quarto e entrou na sala.
Tinha o rosto pálido e tenso, mas o mantinha erguido.
Foi direto a Paul Madvig e disse:
--Fiz um bocado de mal a você, Paul. Eu...
O rosto dele ficara tão pálido quanto o dela. E de re-
pente o sangue precipitou-se de volta a ele.
--Não, Janet -- disse com voz rouca. -- Nada do que
você pudesse fazer... -- O resto do discurso foi um
murmúrio ininteligível.
Ela recuou, encolhendo-se.
Ned Beaumont disse:
--Janet está indo comigo.
Madvig entreabriu os lábios. Olhou estupidamente para
Ned Beaumont, e ao fazer isso o sangue tornou a aban-
donar suas faces. Quando estava sem uma gota de
sangue, murmurou alguma coisa, da qual só se
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conseguiu entender a palavra "sorte", virou-se desajeit-
adamente, foi até a porta e saiu, deixando-a aberta
atrás.
Janet Henry olhou para Ned Beaumont. Ele olhava
fixamente a porta.
{1}
Alusão à peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, em que o judeu Shylock faz
um empréstimo de três mil ducados a Antônio, nobre veneziano, sob a condição, regis-
trada em cartório, de que, caso ele não pague no dia, lhe será retirada do corpo uma libra
(meio quilo) de carne. -- N. T.
A Chave de Vidro – Dashiell Hammett
A Chave de Vidro – Dashiell Hammett
Estados Unidos, 1930. Dois grupos de mafiosos se digladiam por poder político. O chefe de um deles,Paul Madvig, está empenhado na campanha de reeleição do senador Ralph Bancroft Henry. Seus interesses são políticos e afetivos, já que tem a intenção de se tornar seu genro. Às vésperas das eleições, o filho do senador, Taylor Henry, é encontrado morto. O capanga de Madvig, Ned Beaumont, jogador contumaz e detetive amador, inicia a investigação disposto a incriminar um sujeito que lhe deve dinheiro. Consegue rapidamente, e sem nenhum escrúpulo, acertar as contas com o desafeto,mas se enreda, definitivamente, no caso. A morte de Taylor Henry se transforma em arma na disputa pelo poder, e uma série de cartas anônimas e notícias de jornal acusam Madvig do crime. Num cenário de corrupção, que envolve um promotor público subserviente, policiais desonestos e muito uísque, sucedem-se cenas de violência,seqüestros, assédio, traição e até um suicídio.
Boa Leitura
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