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Para M
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ALVORADA CIVIL
CREPÚSCULO
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UM
HOSPITAL DE ST. LUKE
Quando acordei, não me lembrava de nada â" exceto de uma coisa. E,
ainda assim, bem pouco: me lembrava de que estava deitado de costas
enquanto uma mulher cavalgava sobre mim, esfregando os quadris nos meus.
Tenho a impressão de que isso ocorreu embaraçosamente rápido; mas, no
momento, pareceu ter durado algum tempo. O fato é que me lembro de como
eu me sentia, mas não de com o que tudo se parecia. Quando tento me recordar
do rosto dela, não consigo. Quando tento me recordar do que havia em volta,
não consigo. Não consigo visualizar nada. Estou tentando, tentando mesmo, ao
máximo, porque estou preocupado.
Depois de algum tempo, algo volta à lembrança: o gosto de cinzas.
⢠⢠â¢
Enfim, a perda de memória talvez tenha sido o menor dos problemas.
Tecnicamente, encontro-me num estado de âœinimputabilidadeâ. Foi o que a
polÃcia concluiu após me visitar no hospital. O que me aconteceu foi atravessar
uma cerca com o carro e bater numa árvore num lugar chamado Downham
Wood, perto da divisa entre Hampshire e Surrey. Eu não tinha a menor ideia de
onde ficava Downham Wood, tampouco o que estava fazendo por lá. Não me
lembro de ter atravessado a cerca e batido na árvore. Por que eu teria â" por que
alguém teria â" feito isso?
Uma das enfermeiras me diz que a polÃcia não vai levar o caso adiante,
devido às circunstâncias.
â" Que circunstâncias?
Isso é o que tento dizer, mas minha fala está confusa. Sinto minha lÃngua
áspera e mole. A enfermeira parece habituada a isso.
â" Tenho certeza de que você vai acabar se lembrando de tudo, Ray.
Ela ergue meu braço direito, estendido feito um pedaço de carne a meu
lado sobre o leito e alisa o lençol antes de colocá-lo de volta.
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⢠⢠â¢
Aparentemente, o que aconteceu foi o seguinte: um homem fazia sua
costumeira corrida matinal pelo bosque quando viu um carro sair da estrada e
se arrebentar em uma árvore. Então, ele percebeu que havia alguém dentro do
carro. Depois de correr até a casa mais próxima, chamou a polÃcia, que chegou
com uma ambulância, um carro de bombeiros e equipamentos para o resgate.
Para surpresa geral, a pessoa dentro do carro não tinha um arranhão sequer. De
inÃcio, acharam que estava bêbada; depois, concluÃram que devia estar drogada.
A pessoa no carro â" eu â" estava ao volante, mas não conseguia falar ou â" a
não ser pelas convulsões â" se mover.
Era o primeiro dia de agosto, um dia que seria abafado e com céu azul e
opaco, como deviam ser os dias de agosto, embora raramente o sejam.
Tudo isso foi transmitido para mim, por alguém de quem não me
recordo, enquanto eu estava deitado na cama do hospital. Quem quer que tenha
sido, essa pessoa me disse que, durante as primeiras 24 horas, eu não consegui
falar nada â" uma paralisia havia travado minha lÃngua e os músculos do
pescoço, assim como o restante do meu corpo. Minhas pupilas estavam
dilatadas; meu pulso, acelerado. O corpo, queimando de calor. Quando tentava
falar, eu só produzia uma série de murmúrios e sons ininteligÃveis. Na ausência
de feridas externas, eles estavam esperando os resultados dos exames que
diriam se eu havia sofrido um derrame, ou se havia um tumor no meu cérebro,
ou se era, de fato, um caso de overdose. Eu não conseguia fechar os olhos nem
mesmo por um segundo.
Durante aquele perÃodo, acho que eu não me incomodava muito com o
que havia causado aquilo â" confusão, delÃrio, imobilidade, eu estava
atormentado por uma visão apavorante que não conseguia identificar. Eu nem
mesmo tenho certeza de que queria identificá-la. Aquilo me perturbava, pois
parecia uma lembrança, mas não podia ser o caso, porque uma mulher, por
mais misteriosa que seja, não é um cachorro, um gato. Uma mulher não tem
patas ou presas. Uma mulher não inspira horror. Fiquei repetindo isso para
mim. Estou misturando alucinações e memórias. Não sou responsável. Com um
pouco de sorte, aquilo tudo não passava de um sonho â" como nos três
primeiros episódios de Dallas.
⢠⢠â¢
Agora, alguém se inclina sobre mim, o rosto tomado por óculos de aros
pretos e espessos; cabelos louros no alto de uma testa ampla e arredondada. Ela
me lembra uma foca. Tem uma prancheta nas mãos.
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â" Muito bem, Ray, como está se sentindo? A boa notÃcia é que você não
teve um derrame.
Ela parece saber quem sou. E eu a conheço de algum lugar, então talvez
ela venha aqui todos os dias. Ela fala muito alto. Não estou surdo. Tento dizer
isso, mas não sai nada compreensÃvel da minha boca.
â" ⦠nem há indÃcios de tumor. Ainda não sabemos o que está
provocando essa paralisia. Mas está melhorando, não é mesmo? Você parece
estar se controlando melhor hoje, não é? Ainda não sente nada no braço direito?
Não? Tento fazer um gesto com a cabeça e dizer sim e não.
â" A ressonância magnética não apontou danos cerebrais, o que é ótimo.
Estamos aguardando os resultados da toxicologia. Parece que você ingeriu
algum tipo de neurotoxina. Pode se tratar de uma overdose. Tomou alguma
droga, Ray? Ou comeu algo venenoso? Como cogumelos silvestres, talvezâ¦
Você comeu algum cogumelo ou fruta silvestre? Algo assim?
Tento me recordar daquelas imagens escorregadias e traiçoeiras. Eu comi
alguma coisa, mas acho que não foram cogumelos. E tenho certeza de que não
tomei drogas. Não voluntariamente, pelo menos.
â" Acho que não.
As palavras saem da minha boca como se eu dissesse: âœach⦠ãoâ.
â" Viu alguma coisa estranha hoje de manhã? Consegue se lembrar? O
cachorro voltou?
O cachorro� Será que eu a chamei assim? Tenho certeza de que nunca a
chamaria assim.
O nome na plaquinha presa em seu traje branco parece começar com Z.
Seu sotaque é incisivo e estridente â" talvez de alguém do Leste Europeu. Mas
ela e sua prancheta desaparecem antes que eu possa elucidar aquele acúmulo
de consoantes.
⢠⢠â¢
Penso em danos cerebrais. Tenho tempo de sobra para pensar, deitado
aqui â" na verdade, não há nada mais que eu possa fazer. Escurece e clareia
novamente. Meus olhos ardem pela falta de sono, mas, quando os fecho, é aÃ
que vejo as coisas se arrastando até mim, saindo furtivamente dos cantos,
espreitando-me além de meu campo de visão; por isso, fico grato ao que quer
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que me mantenha acordado. O menor esforço muscular me deixa arfante e
exausto; meu braço direito está dormente e inútil.
Posso ver pela janela o sol batendo nas folhas de uma cerejeira. Deduzo,
então, que devo estar no primeiro andar. Mas não sei em que hospital me
encontro ou há quanto tempo estou aqui. Lá fora, onde se vê uma cerejeira, está
quente, há um torpor denso e abafado. Depois de toda a chuva que andou
caindo, parece que estamos nos trópicos. Aqui dentro também faz calor; tanto
que, finalmente, resolvem desligar o aquecedor do hospital.
Minha condição mental parece melhorar. É como ser catapultado para
uma idade extremamente avançada â" comendo comida amassada, sendo
lavado por estranhos e ouvindo falarem frases simples em voz alta. Não é
muito divertido. Por outro lado, não há muito pelo que se sentir responsável.
⢠⢠â¢
Agora, outra pessoa: um rosto diferente sobre mim. Este, com certeza, eu
reconheço. Cabelos claros e sedosos caindo na testa. Ã"culos de armação de
metal.
â" Ray⦠Ray⦠Ray? Uma voz bastante educada. Meu sócio no trabalho.
Não sei como vim parar aqui, mas conheço Hen e sei que ele está se sentindo
culpado. Sei também que não é culpa dele. Solto um grunhido, tentando dizer
oi.
â" Como você está? Parece bem melhor do que ontem. Você se lembra de
que eu estive aqui ontem? Tudo bem, não precisa falar. Só quero que saiba que
estamos todos pensando em você. Todos mandam lembranças. Charlie fez um
cartão para você, olheâ¦
Ele segura um pedaço de papel amarelo dobrado com um desenho
infantil. É difÃcil dizer o que representa.
â" Esse é você na cama. Acho que isso aqui é um termômetro. Olhe só,
você está usando uma coroaâ¦
Confio no que ele diz. Hen sorri afetuosamente e põe o cartão sobre uma
mesa ao lado da cama â" perto de uma xÃcara de plástico e de uma caixa de
lenço de papel para secar minha boca â", onde acaba caindo, sendo frágil
demais para ficar em pé sozinho.
⢠⢠â¢
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Gradualmente, percebo que volto a falar â" primeiro, em fragmentos,
frases entrecortadas. Minha lÃngua se enrola nela mesma. Nesse ponto, tenho
algo em comum com meu parceiro de quarto â" Mike, um sem-teto bêbado e
simpático que esteve, pelo que diz, na Legião Estrangeira francesa. Formamos
uma bela dupla â" os dois parcialmente paralisados e propensos a começar a
gritar no meio da noite.
Ele me contou sobre o derrame causado pelo alcoolismo do qual foi
vÃtima alguns meses atrás. Mas não foi isso que o trouxe ao hospital. O derrame
resultou em graves queimaduras de sol em seus pés porque ele não conseguia
senti-los ardendo, e só percebeu que alguma coisa estava errada quando a
queimadura começou a gangrenar e a cheirar mal. Agora, estão falando em
cortar alguns pedaços de seu corpo. Por incrÃvel que pareça, ele ficou satisfeito
com isso. Nós nos damos muito bem, a não ser quando ele começa a praguejar
em francês no meio da noite. Como na noite passada â" fui arrancado do meu
transe sonolento por um berro estridente, ele gritava âœTirez!â Depois voltou a
berrar, tal como costumam fazer nos filmes de guerra quando estão enfiando a
baioneta num saco de forragem uniformizado. Eu me perguntei se não devia
tentar fugir â" com minhas pernas nesse estado, levaria cinco minutos para sair
pela porta se ele voltasse a exteriorizar seus pesadelos.
Meu companheiro de quarto não gosta muito de falar sobre seus dias de
legionário, mas fica fascinado quando descobre que sou um detetive particular.
Ele insiste em que eu lhe conte algumas histórias (âœEi, Ray⦠Ray⦠Está
acordado? Rayâ¦â). Estou sempre acordado. Então, conto-lhe algumas num
murmúrio monótono, que está melhorando com a prática. Começo a temer que
venha me pedir um emprego, embora, pensando bem, provavelmente já tenha
passado desse estágio. Ele me pergunta se o trabalho é perigoso.
Faço uma pausa antes de responder.
â" Em geral, não.
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DOIS
RAY
Tudo começou em maio â" um mês em que todo mundo, até mesmo
detetives particulares, devia se sentir feliz e otimista. Os erros do ano anterior
são varridos e tudo recomeça. As folhas se abrem, os ovos são chocados e os
homens se enchem de esperança na primavera. Tudo é novo, verde e em
expansão.
Mas nós â" isto é, a Lovell Price Investigações â" estamos duros. O único
caso que tivemos na última quinzena foi conjugal â" o do coitado do Sr. M. Ele
me ligou e, depois de hesitar e pigarrear um bocado, pediu que eu o
encontrasse no café, pois achava muito constrangedor vir até o escritório. É um
homem de negócios, 40 e tantos anos, dono de uma pequena fornecedora de
materiais de escritório. Jamais havia feito aquilo antes â" ele disse isso pelo
menos oito vezes durante o primeiro encontro. Tentei reconfortá-lo dizendo
tratar-se de um sentimento normal naquelas circunstâncias, mas ele não parava
de se mexer e olhar para trás enquanto conversávamos. Confessou que, só em
falar comigo, já se sentia culpado â" como se admitir sua suspeita para um
profissional fosse um ácido corrosivo que, uma vez derramado, não poderia
mais ser recolhido. Ressaltei que, se ele estava desconfiado, falar comigo não
pioraria em nada a situação e, é claro, ele tinha muitas razões para suspeitar da
infidelidade da esposa: ela andava distraÃda, ausentando-se em horas não
habituais, vestindo roupas novas e mais sensuais, tinha começado a trabalhar
até tarde⦠Era quase desnecessário reunir provas; eu poderia ter dito, olhe,
sim, sua esposa está tendo um caso â" fale com ela e, provavelmente, ela se
sentirá aliviada em admitir. E assim você economizará um bocado de dinheiro.
Eu não disse isso. Aceitei o trabalho e passei algumas noites seguindo a esposa
dele, que era gerente de uma lojinha de bugigangas na rua principal do bairro.
Um dia após ter encontrado o Sr. M., ele me telefonou â" apenas para
dizer que a mulher faria um inventário do estoque após o expediente.
Estacionei próximo à loja para observá-la da rua e a segui quando ela saiu de
carro rumo a Clapham, onde parou em frente a uma casa num bairro elegante e
residencial. Eu não podia saber com certeza o que aconteceu durante as duas
horas e vinte minutos que levou para sair novamente, mas, no dia seguinte, o
homem com quem a fotografei de mãos dadas numa adega certamente não era
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a amiga com quem tinha dito que ia se encontrar. Liguei para o Sr. M. e disse
que havia algo que eu precisava lhe contar. Marcamos de nos encontrar no
mesmo café em que tÃnhamos nos conhecido. Não precisei sequer começar a
falar; sabendo o que eu ia dizer, ele começou a chorar. Mostrei-lhe a prova
fotográfica, explicando onde e quando as fotos tinham sido tiradas e fiquei
vendo-o soluçar. Sugeri que tentasse conversar calmamente com a esposa, mas
o Sr. M. não parava de balançar a cabeça.
â" Se eu mostrar isso para minha mulher, ela vai me acusar de a estar
espionando. E é verdade. Uma tremenda falta de confiança.
â" Mas ela está traindo você.
â" Estou me sentindo uma pessoa horrÃvel.
â" Você não é uma pessoa horrÃvel. É ela a errada. Mas, se conversar com
ela, há uma boa chance de resolverem a situação. Você precisa descobrir o que
há por trás desse romance. Não sei o que estava dizendo, mas senti que
precisava falar alguma coisa. E já fiz isso várias vezes.
â" Talvez você tenha razão.
â" Pode valer a pena tentar, não é? Ele enxugou o nariz e os olhos num
lenço de aparência imunda. Seu rosto era uma ruÃna de seu antigo eu.
Ontem, o Sr. M. ligou para dizer que havia falado com a esposa. De
inÃcio, não lhe falou sobre as fotos, e ela negou completamente uma relação
extraconjugal; então, o Sr. M. mostrou as fotografias e ela gritou com toda a ira
cruel de uma adúltera encurralada. Os adúlteros, em geral, culpam seus
cônjuges, tenho notado. Agora, a mulher quer o divórcio. Ele voltou a chorar. O
que eu podia lhe dizer? Ele não culpava nem a mim nem a esposa, mas a si
mesmo. Por fim, eu lhe disse que, a longo prazo, seria melhor assim; se sua
esposa queria o divórcio imediato, era porque já o desejava antes de
conversarem. Pelo menos, não tentei prolongar a investigação para cobrar-lhe
ainda mais; e existem detetives inescrupulosos por aà que teriam feito isso.
Esses tipos de caso, que compõem a maior parte de nosso trabalho, podem nos
deprimir se não tomarmos cuidado.
⢠⢠â¢
Hoje é um dia cinza e indistinto. São quase cinco da tarde em nosso
escritório, localizado em cima de uma papelaria na Kingston Road. Digo para
Andrea, a secretária, para ir para casa. De qualquer modo, estávamos matando
o tempo havia horas. Hen não está aqui. Através da vidraça dupla da janela,
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com sua camada também dupla de poeira, vejo surgir entre as nuvens um
avião, curiosamente lento em sua descida. Tenho bebido café demais, percebo
pelo gosto amargo na boca. Estou pensando em encerrar o expediente quando,
logo após a saÃda de Andrea, um homem entra no escritório. Sessentão, cabelos
grisalhos e lustrosos penteados para trás; ombros largos e olhos inchados.
Assim que o vejo, sei de quem se trata: há um ar, uma aparência que é difÃcil
descrever com palavras, mas, quando você sabe, você sabe. As mãos imensas
estão dentro dos bolsos da calça, mas, quando ele estende a mão direita em
minha direção, percebo um maço de cédulas novinhas â" propositalmente Ã
mostra. Deve ter acabado de sair de uma corrida de cavalos, após um dia de
sorte â" o hipódromo de Sandown Park fica a menos de meia hora daqui. Ele
não tem aquela expressão nervosa, ligeiramente suspeita que as pessoas em
geral demonstram quando entram numa agência de detetives. Parece confiante
e à vontade. Entra no meu escritório como se fosse o dele.
â" Vi seu nome â" diz, depois de apertar minha mão com força, sem
sorrir. â" É por isso que estou aqui.
Tampouco é o que as pessoas dizem normalmente. Em geral, não se
importam com quem você é ou como se chama â" Ray Lovell, no meu caso â",
sabem apenas que encontraram Detetives Particulares (sigilo, eficiência,
discrição) nas Páginas Amarelas e esperam que você resolva os problemas
delas.
Temos um formulário, em duas vias â" uma amarela e outra branca â",
que Andrea pede para as pessoas preencherem quando vêm aqui pela primeira
vez. Contém todos os detalhes habituais, mais as razões que as trouxeram até
aqui, onde ouviram falar em nós, quanto pretendem gastar⦠esse tipo de coisa.
Algumas pessoas dizem que isso não devia ser feito assim formalmente, mas já
testei várias maneiras e, acredite, é melhor deixar tudo por escrito. Algumas
pessoas não têm a menor ideia de quanto custa uma investigação, e, quando
descobrem, saem correndo. Mas, com esse sujeito, nem preciso pegar um
formulário na gaveta. Não faria sentido. Não estou dizendo isso porque acho
que ele seja analfabeto, mas por outras razões.
â" Lovell⦠â" começa o homem. â" Quando li, pensei: âœEle é um dos
nossos.â
Seu olhar é desafiador.
â" Em que posso ajudá-lo, Srâ¦?
â" Leon Wood, Sr. Lovell.
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Leon Wood é baixo, um pouco acima do peso, do tipo mais gordo na
parte superior, um rosto corado, bronzeado. As pessoas não dizem mais
âœqueimado de solâ, dizem? Mas é o que ele é. Suas roupas parecem caras,
especialmente o casaco de pele de carneiro que deve aumentar em alguns
centÃmetros seus ombros.
â" Minha famÃlia vem de West Country; você provavelmente sabe disso.
Inclino a cabeça.
â" Conheço alguns Lovell⦠Harry Lovell, de Basingstoke⦠Jed Lovell,
perto de Newburyâ¦
Ele observa minha reação. Já aprendi a não reagir, procuro não
demonstrar nada, mas o Jed Lovell a que se refere é meu primo â" na verdade,
primo de meu pai, um cara que sempre censurou o comportamento dele e,
consequentemente, o nosso. Então, me ocorreu que ele não tinha apenas visto
meu nome, mas havia feito uma pesquisa sobre mim; sabe exatamente quem
sou e quais são as pessoas com que mantenho relações. Com quem. Tanto faz.
â" Somos muitos por aÃ. Mas o que o traz aqui, Sr. Wood?
â" Muito bem, Sr. Lovell, trata-se de um problema complicado.
â" É disso que cuidamos aqui. Ele limpa a garganta. Tenho a impressão
de que isso pode levar algum tempo. Ciganos raramente vão direto ao ponto.
â" Um problema de famÃlia. É por isso que vim aqui. Você vai entender. É
minha filha. Ela está⦠desaparecida.
â" Permita-me interrompê-lo, Sr. Woodâ¦
â" Pode me chamar de Leon. â" Não procuramos pessoas desaparecidas
aqui. Mas posso passar o caso para um colega, ele é muito competente.
â" Sr. Lovell⦠Ray⦠Preciso de alguém como você. Alguém de fora não
poderá ajudar. Pode imaginar um gorjio* se envolvendo nisso, incomodando as
pessoas, fazendo perguntas?
â" Sr. Wood, fui criado numa casa. Minha mãe era gorjio. Então, sou um
gorjio, na verdade. É apenas um nome.
â" Nãoâ¦
Ele aponta um dedo para mim e avança para a frente. Se não houvesse
uma mesa entre nós, tenho certeza de que seguraria meu braço.
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â" Nunca é apenas um nome. Você sempre é quem você é, ainda que
esteja sentado aqui em seu escritório, atrás dessa mesa elegante. Você é um dos
nossos. De onde vem sua famÃlia?
Tenho certeza de que ele já sabe tudo o que há para saber. Jed deve ter
dito a ele.
â" Kent, Sussex.
â" Ah, sei. Conheço um Lovell de lá tambémâ¦
Ele cita outros nomes.
â" Certo, mas como eu disse, meu pai se instalou numa casa e deixou de
lado a vida de viajante. Eu nunca a conheci. Portanto, não sei se poderia ser de
muita ajuda. E pessoas desaparecidas, realmente, não são minha
especialidadeâ¦
â" Não sei se é ou não sua especialidade. Mas o que aconteceu com
minha filha aconteceu conosco, e um gorjio não tem a menor ideia de como
falar com nosso povo. Não chegaria a lugar algum. Você sabe disso. Basta olhar
para você e vejo que sabe como falar com as pessoas. Elas vão ouvi-lo. Vão falar
com você. Um gorjio não teria a menor chance!
Ele fala com tanta veemência que preciso conter o impulso de me inclinar
para trás em minha cadeira. Sua adulação e minha pobreza estão a seu favor. E,
talvez, haja um pouco de curiosidade da minha parte. Nunca vi um cigano aqui
antes. Não consigo imaginar nenhuma circunstância em que alguém como ele
fosse levado a procurar auxÃlio fora de seu cÃrculo familiar. Vagamente,
pergunto-me quantos outros detetives particulares meio-ciganos existem no
sudeste para ele escolher. Não muitos, imagino.
â" Você deu parte à polÃcia do desaparecimento?
Em tais circunstâncias, essa pergunta pode parecer estúpida, mas é
necessária.
Leon Wood encolhe os ombros, o que eu tomo como uma resposta
negativa.
â" Para falar a verdade, receio que algo tenha acontecido a ela. Algo de
ruim.
*gorjio â" gói, não cigano
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â" O que o leva a pensar assim?
â" Faz mais de sete anos. Nenhuma notÃcia. Ninguém a viu. Ninguém
falou com ela. Nenhum telefonema⦠Nem ao menos uma palavra⦠Nada.
Agora⦠Minha querida esposa faleceu recentemente, e estamos tentando
encontrar Rose. Ela precisa, pelo menos, saber da mãe. Mas⦠nada. Não
consigo achá-la. Não é normal, é? Sempre fiquei imaginando, de verdade, mas
agoraâ¦
Ele perde o fio da meada.
â" Lamento muito por sua esposa, Sr. Wood, mas deixe-me ver se
entendi direito: faz mais de sete anos que não vê sua filha?
â" Por aÃ. Sei que se casou, e depois disso nunca mais a vi. Dizem que ela
fugiu, mas agora não acredito nisso.
â" Quem disse que ela fugiu?
â" O marido dela e o pai dele. Disseram que ela fugiu com um gorjio.
Mas achei suspeito na época e, agora, acho ainda mais.
â" O que pareceu suspeito?
â" Ora⦠â" Leon Wood olha por cima do ombro, no caso de estarem nos
ouvindo e, depois, apesar de nos encontrarmos sozinhos e da hora avançada,
inclina-se ainda mais em minha direção⦠â" Suspeito que tenham dado um
sumiço nela.
Ele não parece estar brincando.
â" Está achando que eles⦠você quer dizer o marido dela⦠deu um
sumiço em sua filha, sete anos atrás?
Leon Wood olha para cima.
â" Bem, talvez uns seis anos, eu acho. Depois de ela ter o neném. Seis
anos e meio, talvez.
â" Certo. Está dizendo que suspeita que sua filha tenha sido assassinada
há seis anos⦠E você nunca falou sobre isso com ninguém até hoje?
Leon Wood abre as mãos, volta a me olhar e dá de ombros.
⢠⢠â¢
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Não costumo pensar com frequência em minha⦠Minha o quê? Raça?
Cultura? Ou qualquer palavra que os sociólogos estejam usando atualmente. O
fato é que meu pai nasceu numa área rural em Kent, enquanto seus pais
colhiam lúpulo durante a Primeira Guerra Mundial. Os pais dele viviam na
estrada; viajando e trabalhando por todo o sudeste com seus irmãos. O único tio
que me restou agora está instalado permanentemente perto do litoral sul, mas
só porque sua saúde piorou e tornou sua vida na estrada árdua demais. Mas,
após a Segunda Guerra â"durante a qual meu pai conheceu uma moça gorjio
chamada Dorothy, quando trabalhou num hospital da Itália dirigindo
ambulâncias e aprendeu a ler â", ele se afastou deliberadamente da famÃlia, e
não a vÃamos com frequência. Eu e meu irmão fomos criados numa casa; fomos
à escola. Não éramos nômades. Dorothy â" nossa mãe â" era uma moça alegre
da zona rural de Tonbridge que nunca se deixaria seduzir pela vida romântica
nas estradas. Ela acreditava piamente na educação universal e meu pai era um
autodidata à sua maneira, macambúzio e triste. Ele chegou ao ponto â" longe
demais para a maioria de nossos parentes â" de se tornar carteiro.
Apesar disso, sabÃamos algumas coisas. Eu (especialmente eu, o de pele
mais escura) sabia o que significava ser chamado de ciganinho sujo; sei também
sobre as longas e mesquinhas disputas pelos terrenos onde ficavam os trailers,
as ordens de despejo e os abaixo-assinados, além das brigas com o sistema
educacional. Sei da desconfiança mútua que impediu Leon de procurar a polÃcia
â" ou qualquer outro detetive particular. Pressinto o que o fez me procurar e me
dou conta de que ele devia estar desesperado para agir assim.
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TRÊS
JJ
Suponho que minha famÃlia não seja como a da maioria das pessoas. Para
começar, somos ciganos ou roms, ou algo assim. Nosso nome é Janko. Nossos
ancestrais vieram da Europa oriental, embora já estejam por aqui há muito
tempo, mas minha avó casou-se com meu avô, que era um cigano inglês, então
minha mãe é metade rom e metade cigana e depois ela fugiu com meu pai, que
era um gorjio, segundo ela. Nunca o conheci, portanto, não sei. Eles não se
casaram, então meu sobrenome é Smith, como o dela, o da minha avó e o de
meu avô. JJ Smith. Minha mãe me deu esse nome por causa de seu pai, Jimmy,
mas não gosto que me chamem de Jimmy, e agora ela me chama de JJ. Para ser
franco, eu preferia não ter o nome do meu avô. Gostaria de ter o nome de outra
pessoa â" como James Hunt. Ou James Brown. Mas não é assim.
Temos cinco trailers em nosso acampamento. Para começar, há o nosso
trailer, onde eu e minha mãe moramos. O nome da minha mãe é Sandra Smith.
Ela é bem jovem â" tinha 17 anos quando se encrencou e me deu à luz. Seus
pais ficaram furiosos e a expulsaram, e ela teve que ir morar em Basingstoke,
mas, depois de alguns anos, eles cederam e deixaram que ela voltasse a viajar
com eles novamente. Não podia ser de outra forma, na verdade, já que ela é
filha única, o que é bastante incomum. E eu sou o único neto. Nosso trailer é um
Lunadale â" não muito grande, nem muito novo, mas é revestido com madeira
de carvalho e tem uma aparência antiga e bonita. Não é um esplendor, mas
gosto dele. Acho que, por sermos apenas nós dois, somos muito amigos. Acho
que ela é uma ótima mãe, de modo geral. Ãs vezes, me deixa louco, é claro e,
bem, às vezes, eu também a deixo louca, mas, em geral, nos damos muito bem.
Mamãe costuma trabalhar como entregadora sempre que paramos em
algum lugar por algum tempo. Ela é ótima para achar um emprego onde quer
que estejamos. Trabalha bastante e, além desse tipo de emprego, ajuda a cuidar
do meu tio-avô que está numa cadeira de rodas. Todos nós fazemos isso â"
mamãe, eu, vovô e vovó, e meu tio também. Essas são as pessoas com quem
viajamos. Vovó e vovô têm dois trailers â" ambos Vickers e bem bacanas,
cromados e com janelas com vidros em relevo. Eles vivem e dormem no maior e
mais bonito, e vovó cozinha, lava e faz esse tipo de coisa no outro. E serve
também como quarto sobressalente, no caso de precisarem. Meu tio-avô tem
um do tipo Westmorland Star que foi especialmente adaptado para ele, embora
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seja o mesmo em que vivia quando minha tia-avó Marta estava viva. Tem uma
rampa por onde pode subir e descer com sua cadeira de rodas; e possui também
um item que a maioria das pessoas acha nojento: uma cadeira de rodas
higiênica. Mas ele precisa disso; senão, sua vida seria mais difÃcil. As
enfermeiras disseram que era isso ou então morar num bangalô. Então, é o jeito.
No último trailer, um Jubilee, moram meu tio e meu primo. Meu tio é
filho de meu tio-avô. Ele se chama Ivo e seu filho, meu primo, chama-se Christo
e tem 6 anos. A mulher de Ivo foi embora â" fugiu há muito tempo. O nome da
vovó é Kath, abreviação de Katarina, e o do vovô é Jimmy.
Vocês devem ter notado alguns nomes estrangeiros em nossa famÃlia,
embora o mais esquisito seja o de meu tio-avô. Ele se chama Tene, e se
pronuncia Ten-er. Ele e Kath são irmãos. Os Janko vieram dos Bálcãs no século
XIX, antes que todos os paÃses de lá existissem e tivessem seus próprios nomes.
Meu tio-avô diz simplesmente âœos Bálcãsâ. Ele e vovó dizem que somos
Machwaiya, que são os aristocratas do mundo cigano, e podemos olhar com
superioridade os Lee, os Ingram e os Wood. Não dá para saber se é verdade. Na
minha escola, ninguém sabe nada sobre os Bálcãs. Só eu.
O trailer principal de vovô e de vovó é o maior de todos, o mais bonito â"
ou pelo menos o mais vistoso â" e o de Ivo, o menor e o menos vistoso. Ele é o
que tem menos dinheiro, mas isso é porque Christo é deficiente, e Ivo tem que
tomar conta dele. Todo mundo ajuda com dinheiro e de outras maneiras. E é
assim que funciona. Quando digo deficiente, é totalmente diferente do modo
como meu tio-avô é, porque Christo é doente. Tem uma doença de famÃlia.
Tenho sorte de não ser assim, ainda que eu seja um menino: geralmente, só os
meninos têm isso. Os meninos não costumam transmitir se a tiverem, pois não
vivem o bastante para isso. Meu tio Ivo é a exceção, ele contraiu a doença
quando era mais jovem, mas melhorou. Ninguém sabe como. Ele foi para
Lourdes e, depois, melhorou. Foi um milagre.
Particularmente, não sou religioso, mas acho que não dá para deixar de
lado as coisas. Vejam o caso de Ivo. Oficialmente, somos católicos, embora
ninguém vá muito à igreja, com exceção de vovó. Mamãe vai de vez em
quando, vovô também. Mas, ainda que as pessoas que frequentem a igreja
sejam cheias de gentileza e caridade cristãs, meus parentes às vezes são
ofendidos e houve uma vez que alguém chegou a cuspir em vovô. Acho isso
horrÃvel. Ele disse que não cuspiram nele, cuspiram perto dele, mas, ainda
assim, é algo muito mal-educado. A última vez em que fui à igreja com mamãe
e vovó, foi algumas semanas atrás, na Páscoa. Estávamos bem-vestidos e
elegantes, mas algumas pessoas nos reconheceram e houve uma série de
16
resmungos e mal-estar, já que ninguém queria se sentar perto de nós. Vi Helen
Davies, uma garota da minha classe, com a famÃlia, e ela olhou para mim,
depois sussurrou algo para a mãe, e todos nos olharam. Nem todo mundo agiu
assim, mas nem todos sabiam quem éramos. Fiquei sentado no banco muito
tenso, só porque estava imaginando o que eu faria se alguém cuspisse em mim.
Meus punhos estavam cerrados e os dentes também, até começarem a doer. Os
pelos nas minhas costas ficaram em pé â" eu estava só esperando alguém cuspir
em mim para pular em cima da pessoa. Eu já me via virando para trás e dando
uma boa surra no imundo gorjio, embora eu não goste nada de violência. O
vovô tinha sido um boxeador durão quando mais jovem, talvez ele tenha
transmitido isso para mim.
Não escutei uma palavra do sermão, porque estava superpreocupado
que alguém cuspisse em mim. Mas ninguém fez isso.
De qualquer maneira, essa coisa de religião é importante, pois é essa a
razão pela qual estou aqui agora, num navio em direção à França. Estou muito
animado, já que nunca viajei para fora do paÃs, muito embora já esteja com 14
anos. Estamos levando Christo a Lourdes, a fim de ver se ele pode ser curado,
como Ivo. âœNósâ significa todo mundo, menos mamãe e vovô, o que me parece
um tanto injusto, mas alguém tem de ficar e vigiar o acampamento. O lugar é
ótimo, e eles precisam ficar de olho para ninguém invadir enquanto estivermos
ausentes. Vovó está conosco porque ela queria mesmo que viéssemos. Na
verdade, ela nos obrigou a viajar. Meu tio-avô está conosco porque fica numa
cadeira e faz o que quer. Eu consegui vir porque estudo francês na escola e
assim posso servir de intérprete. Ninguém mais fala a lÃngua, portanto sou
essencial. Estou contente porque eu realmente queria vir. E também Ivo, e
Christo, óbvio, que é a razão de tudo isso.
Eu disse que Christo tem essa doença de famÃlia, não disse? Não conto
que doença é essa porque ninguém a conhece. Ele foi examinado por alguns
médicos, mas eles não souberam o que era e, por conta disso, não podem ajudá-
lo a melhorar. Acho que os médicos não servem para muita coisa, se não são
capazes de ajudar um garoto como Christo. Ele não sente dores, na maior parte
do tempo, mas é muito pequeno para a idade, e fraco, só aprendeu a andar há
alguns anos â" mas fica tão cansado que não consegue andar muito, então fica a
maior parte do tempo deitado. Ele também não conversa. Essa é sua doença:
como se ele estivesse apenas cansado, não consegue fazer nada.
Frequentemente, ele fica ofegante e não consegue respirar direito. E contrai um
bocado de infecções, então é preciso mantê-lo longe de outras crianças e deixar
tudo limpo a sua volta. Se ele fica resfriado ou algo assim, é realmente grave.
Seus ossos fraturam com facilidade também â" ele quebrou o braço no ano
17
passado simplesmente batendo com a mão na mesa. Ivo era assim também â"
quando tinha a idade de Christo, alguém quebrou seu pulso simplesmente
apertando a mão dele. Mas, apesar de tudo isso, Christo nunca se queixa. É
muito corajoso. De certo modo, é bom que ele seja tão pequeno e leve, porque
tio Ivo tem que carregá-lo o tempo todo. Eu também carrego Christo à s vezes â"
ele pesa pouco mais do que uma pluma. Nós nos entendemos muito, muito
bem. Faço qualquer coisa por ele. É como meu irmãozinho, embora
tecnicamente sejamos primos de primeiro grau. Ou será de segundo grau?
Nunca consigo me lembrar. Isso não importa.
De qualquer maneira, espero, de fato, que funcione. Ivo não gosta de
falar sobre o que aconteceu com ele, mas sei que ficou doente durante toda a
infância â" embora não tanto quanto Christo. Depois de sua viagem para
Lourdes, melhorou lentamente, aos poucos. Imagino que seja possÃvel dizer que
foi apenas uma coincidência, mas quem sabe? Talvez não. E, de qualquer modo,
não custa tentar, não é? Tenho tentado acreditar em Deus desde que decidimos
fazer esta viagem, para que assim minhas preces façam alguma diferença. Não
tenho certeza de que acredito, mas estou me esforçando de verdade; espero que
isso ajude. E, se Deus não tiver piedade de Christo, que é tão meigo e corajoso e
nunca fez mal a ninguém, então não acho que ele valha grande coisa.
⢠⢠â¢
Na primeira metade da travessia de navio, fiquei observando pela janela
o porto de Newhaven cada vez menor e indefinido. A travessia até Dieppe
levou séculos, mas isso significava menos tempo de estrada. É a primeira vez
que vejo a Inglaterra de fora. Não parece tão grande assim, para ser honesto.
Plana e cinzenta. Quando o contorno do litoral desaparece e vejo a esteira do
navio bem turva, na escuridão do mar, vou até a proa, procurando a primeira
visão de outro paÃs. Começa a chover sobre mim. É estranho: nunca pensei que
a chuva caÃsse sobre o mar como cai sobre a terra. Ã"bvio, claro. Il pleut, digo a
mim mesmo. Il pleut sur la mer. Nous allons à Lourdes pour chercher un
miracle.
É importante conseguir dizer o que você está fazendo, ainda que seja
para si mesmo.
Então, Ivo e Christo aparecem e ficam a meu lado. Ivo acende um cigarro
sem me oferecer um.
Bonjour, mon oncle, bonjour, mon petit cousin, eu digo. Ivo apenas olha
para mim. Ele não fala muito, meu tio Ivo. Sou eu o tagarela da famÃlia.
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C"est un jour formidable, n"est-ce pas? Nous sommes debout sur la mer!
Christo sorri para mim. Ele tem um sorriso radiante, meigo e feliz, que
me deixa feliz também. Dá vontade de fazê-lo sorrir o tempo todo. Ivo
raramente sorri. Ele cerra os olhos e sopra a fumaça de seu cigarro na direção da
França, mas o vento a intercepta e a leva de volta para o lugar de onde viemos.
19
QUATRO
RAY
Tenho meu próprio fantasma. Talvez você se lembre do nome â" Georgia
Millington. Uma menina de 15 anos, desaparecida a caminho da escola, em
1978. Houve um alarido e algumas lágrimas quando ela sumiu â" após todos os
acontecimentos lá em Yorkshire, garotas desaparecidas viraram notÃcia. Mas,
talvez, garotas desaparecidas sempre tenham sido notÃcia. Elas nos assombram
â" aquelas fotos desfocadas e ampliadas nos jornais: aqueles sorrisos
impetuosos e tÃmidos das fotografias escolares, ou otimistas, nos instantâneos
feitos no pub local. Garotas desaparecidas são sempre descritas como sendo
bonitas, não são? Esfuziantes; estimadas por todos. Quem vai discordar?
Nenhum corpo foi descoberto no caso de Georgia e, semanas depois,
tendo a polÃcia encerrado as investigações, seus pais â" ou melhor, sua mãe e
seu padrasto â" solicitaram meus serviços. Após poucas semanas, eu a
encontrei. Encontrei-a e a trouxe de volta; irritada, relutante e calada. Por que
tinha ficado calada? Ainda não consigo entender. Se ela tivesse me contado
tudo, será que eu ficaria quieto e a deixaria ir embora? Ou ela se deu conta de
que eu estava satisfeito demais comigo mesmo para escutá-la, tendo obtido
sucesso quando a polÃcia havia falhado? Verdade, eu estava contente comigo
mesmo: fazia pouco tempo que eu tocava meu negócio; achava que poderia ser
o começo para casos maiores e melhores â" daria algumas entrevistas: âœO
Homem que Achou Georgiaâ⦠Ãs vezes, deixamos nossa imaginação correr
solta, não é mesmo? Mas então⦠bem, vocês sabem o que aconteceu em
seguida â" ou, pelo menos, o que aconteceu seis ou sete meses mais tarde.
Houve algum alarido e lágrimas. Aquilo era notÃcia. Não voltei a vê-la, mas eu
podia imaginá-la. Não havia nada bonito, Ãntegro ou otimista em relação à sua
imagem.
Desde então, não aceitei mais casos de garotas desaparecidas. Devedores
foragidos, eu aceito; parentes perdidos há muito tempo, com esse tipo de coisa
eu sei como lidar. Problemas conjugais também â" todo tipo de sordidez, mas
nada de garotas desaparecidas. Não.
⢠⢠â¢
20
Com muitas interrupções, Leon Wood me conta o que aconteceu. Em
outubro de 1978, sua filha, Rose, casou-se com um rapaz de outra famÃlia
cigana, Ivo Janko. Um casamento arranjado, embora ele não explique isso com
muitas palavras. Leon e a famÃlia foram à cerimônia nupcial, que aconteceu em
West Sussex, e depois Rose partiu com sua nova famÃlia â" tornando-se
efetivamente parte daquele clã. Desde então, Leon não a viu mais. Isso não é tão
comum quanto pode parecer. Concluo que Leon viva em seu próprio terreno,
mas os Janko mantêm o estilo antigo. São viajantes no sentido verdadeiro da
palavra â" não ciganos que vivem em casa, tampouco parcialmente instalados
num acampamento permanente, mas se movendo de modo contÃnuo, de
estacionamentos rodoviários a fazendas abandonadas, passando pelos
acostamentos nas estradas, tentando se manter um passo à frente do próximo
policial que os visitará e os expulsará dali.
â" Você ficou feliz por ela se casar com Ivo Janko?
Leon deu de ombros.
â" Eles queriam se casar. O pai de Ivo, Tene Janko, queria isso, já que nos
considerava sangue puro. Essas palavras me chocam; um arrepio frio e
incômodo percorre minha espinha dorsal.
â" Sangue puro?
â" Ora, vamos, Lowell; você sabe⦠roms puros. Era esse o grande lance
para Tene, entende? Eu e você sabemos que é bobagem; isso não existe mais,
não é mesmo? Mas ele sempre teve essa cisma com o sangue puro, âœo puro
sangue negroâ. Está entendendo?
Meu pai nunca falou muito sobre os tempos de estrada, quando ainda
era menino. Dava sempre a impressão de que se sentia⦠não envergonhado,
mas aquilo estava acabado e pronto. Ele não havia escolhido ser cigano.
Quando as pessoas o olhavam, ele queria que vissem um carteiro honrado, um
exemplo do novo mundo de esclarecimento e progresso, e era isso que ele
representava. Quando lhe perguntávamos sobre sua infância â" e, quando eu e
meu irmão éramos pequenos, nossa curiosidade era enorme â" ele nos dava os
fatos básicos, mas não entrava em detalhes. Com certeza, não romanceava,
divagando sobre a liberdade e o vento nos cabelos ou os prazeres das estradas
sem fim, nada disso. Tentava fazer com que parecesse entediante, mesmo a
parte sobre não frequentar a escola, o que, evidentemente, nós achávamos
incrÃvel. Papai tinha o ardor do autodidata em relação à educação. Após
aprender a ler no Exército, aproveitou todas as oportunidades que surgiram no
caminho; fez uma assinatura da Reader"s Digest e pesquisava tudo numa
21
imensa enciclopédia chamada O Livro do Saber, que havia sido publicada nos
anos 1920. Mamãe dizia que, quando mais novo, ele costumava ler um verbete a
cada noite, guardando a palavra na memória. Mais tarde, tornou-se espectador
assÃduo dos documentários de televisão, embora discordasse cada vez mais
deles, suspeitando de todas as descobertas registradas no Livro.
Por isso, expunha ideias engraçadas sobre as coisas, mas não estava
interessado em nenhum âœpuro sangue negroâ. Lembro-me de Tata â" meu avô
â" se referindo a isso. Ele ficou zangado, e eu, magoado, me dei conta disso
tardiamente, quando papai se casou. Durante anos, ele se recusou a falar com
meus pais â" até que eu e meu irmão começamos a dar os primeiros passos.
Então, como as crianças costumam fazer, nós o acalmamos. Eu sabia que era seu
neto favorito porque, conforme ficou bem claro para mim, eu tinha puxado ao
papai e, por extensão, a ele.
âœVocê é um verdadeiro rom chaviâ, ele dizia â" um verdadeiro menino
cigano. Diferente, como consequência, de meu irmãozinho, que puxou à mamãe
â" alto e com as bochechas avermelhadas, olhos cinzentos e perspicazes.
Mamãe e Tom foram feitos para caminhar pelos jardins da aristocracia, mas,
filhos da baixa classe média, isso nunca iria acontecer. Tom, ciente desse
favoritismo, detestava visitar Tata. Eu adorava.
Certa vez, Tata me sentou no colo â" eu devia ter uns 7 anos â" e disse:
âœVocê tem o puro sangue negro, Raymond, apesar de tudo. Você é meu
pai reencarnado. Ãs vezes, isso acontece. Você traz nas veias o puro sangue
negro.â
Suponho que estivéssemos a sós naquele momento. Lembro-me do olhar
mortalmente sério em seu rosto, dos olhos ardentes; lembro-me de meu
constrangimento, embora não tivesse a menor ideia do que aquilo significava.
⢠⢠â¢
â" Então, ele estava enganado â" disse eu a Leon. â" Sua famÃlia não é
rom pura?
â" E quem é? Mas ele parecia achar que éramos, e Rose queria muito
aquilo. Era um rapaz bonito, esse Ivo.
â" Nunca ouvi falar desse nome Janko. São ingleses?
â" São. Ou algo assim. Tene dizia que eram Machwaiya ou algo parecido,
que o pai ou o avô vinham dos Bálcãs ou de um buraco parecido, mas não sei.
22
Eles têm algum parentesco com os Lee, de Sussex. Primos ou algo semelhante.
Então, pode ser bobagem essa história de terem vindo dos Bálcãs.
â" E como os conheceu? Ele encolheu os ombros antes de responder:
â" Estavam sempre por aÃ. Eu conhecia umas pessoas que os conheciam.
Você sabe como são essas coisas.
â" Bem⦠Após o casamento, vocês não voltaram a se encontrar nas
feiras⦠eles não foram visitá-lo?
Leon olha fixamente para as mãos. Talvez ele esteja, afinal de contas, um
pouco transtornado em relação à filha que perdeu há alguns anos.
â" Os Janko⦠costumavam ficar entre si e viajar sozinhos. Do tipo
reservado. Não se misturavam muito. Ele parou bruscamente de falar.
â" Ainda assim, sua filha⦠Você deve ter desejado vê-la, ou sua esposa,
presumoâ¦
â" Quando se viaja⦠Não me surpreendeu que ela não voltasse. Ela
passou a ser uma Janko após o casamento. Não era mais uma Wood. Mas
quanto a isso⦠havia certas coisas⦠Tenho certeza de que algo ruim lhe
aconteceu. Estou certo disso.
â" Quer dizer⦠Acha que os Janko fizeram algo a ela de alguma forma?
â" É, acho que sim.
â" Por quê?
â" Não confio neles. Havia sempre algo estranho em relação a eles⦠É
difÃcil dizer exatamente.
â" Talvez você possa tentar.
â" Pois bem⦠A esposa de Tene morreu, e ninguém soube o motivo. Ela
estava lá e, de repente, não estava mais. E Tene tinha uma irmã que fugiu e os
deixou. Acho que ele tinha um irmão que morreu também⦠Desafortunados.
Mas desafortunados demais, entende o que digo?
â" Não tenho certeza.
â" Bem, talvez não fosse uma questão de infortúnio. As pessoas
costumavam comentar⦠Toda essa falta de sorte⦠bem. Ele balança a cabeça e
sibila entre os dentes.
23
â" Isso não o incomodou quando Rose se casou? Leon cerrou os lábios,
como se eu estivesse enchendo sua paciência.
â" Foi ela quem quis. E, para ser honesto, ela não teve muitas chances,
sabe, com aquela⦠â" Ele ergueu a mão, tirou uma foto do bolso e a estendeu
para mim. â" Muito poucos rapazes aceitariam isso. A moça na fotografia
parece inteiramente normal, exceto por uma marca de nascença arroxeada no
pescoço. O tamanho e a cor escura eram ligeiramente alarmantes, até se
perceber do que se trata.
â" Enfim, os Janko costumavam partir sozinhos em viagem e sumiam de
vista por muito tempo. Então, quando voltei a ter notÃcias, ela havia
desaparecido. Eles não sabiam para onde.
â" Então, pode ter sido isso que aconteceu.
â" Sei que ela se foi. Meus nervos dizem isso. Eu simplesmente sei.
â" Entendoâ¦
Leon bateu as mãos uma na outra, e as deixou cair sobre a mesa
pesadamente.
â" Para falar a verdade, Ray, e digo isso a você já que o considero um de
nós, tive um sonho recentementeâ¦
Tenho a repentina impressão de que alguém está tentando me tirar deste
ramo; ou pelo menos fazer com que eu pareça ridÃculo.
â" No meu sonho, ela estava morta â" continua Leon.
â" Veio e me disse que Ivo e Tene tinham acabado com ela. E eu não sou
muito ligado em sonhos, dukkering, nada disso; não tenho essa propensão, mas
isso foi diferente. Simplesmente, eu sei. Olho para meu bloco de notas, irritado.
Não consigo imaginar um caso mais sem esperança. Por outro lado, aquilo
poderia significar um bocado de trabalho entediante, porém lucrativo. Não se
pode ser muito exigente nesta vida. Leon olha para mim.
â" Sei o que está pensando. Está pensando que sou um velho loucoâ¦
com sonhos e essas bobagens. Hein? Faz muito tempo que sei disso. Mas ela
não está mais aqui, a minha filha. E ninguém sabe onde ela está, nem mesmo se
está em algum lugar. Então, o que aconteceu com ela?
24
O telefone toca. Levo um susto. Andrea deve ter se esquecido de ligar a
secretária eletrônica. Pego o aparelho e o desligo novamente. Uma pena se for
outro caso. Mais provável que fosse o proprietário do imóvel.
â" Você sabe como entrar em contato com os Janko?
â" Eles não vão lhe dizer nada. Dizem que ela fugiu sete anos atrás, ou
seis, com um rapaz qualquer.
â" Ainda assim, precisamos começar por aÃ, onde ela foi vista pela última
vez. Em seguida, vamos em frente. â" Tinham alguma grana, os Janko. Tene
gostava de viajar. Ele era um desses ciganos dos velhos tempos, sabe,
determinado.
â" Quando viu essa famÃlia pela última vez? Leon se impacientava na
cadeira.
â" Não os vi mais desde então. Não.
â" Desde⦠o casamento. Ele assente, meneando a cabeça.
â" Ray⦠Sr. Lovell⦠nós dois sabemos muito bem que, se eu fosse Ã
polÃcia com essa história, eles ririam da minha cara. Eles pensariam: esse cigano
é meio maluco, melhor levar para um asilo. Afinal de contas, quem se importa
com sua filha imbecil? Um cigano a menos não fará falta, é isso que iam pensar.
Meu olhar é atraÃdo pelo volume das notas de dinheiro que escapam do seu
bolso, e ele percebe isso. As notas pelo menos parecem bastante verdadeiras.
â" Você pode verificar todos os arquivos oficiais, não pode? Tudo que há
no computador. Você sabe sobre isso.
Ele parece feliz sabendo que conseguiu me enganar. Olha
confiantemente para o computador em minha mesa, como se fosse uma bola de
cristal, como se eu pudesse ligá-lo e ver qualquer coisa que desejasse. Concordo
em dar uma olhada. Dou-lhe as caracterÃsticas habituais sobre os casos de
pessoas desaparecidas: longos, caros, frequentemente ingratos. E ele me lembra
do caso de Georgia Millington. Concluo que ele lê os jornais. Ou alguém os lê
para ele. E, antes de sair, Leon retira um rolo de notas de dez do bolso e o deixa
sobre a mesa, na qual, aos poucos, elas se abrem, como criaturas despertando
após a hibernação.
Quando fico novamente sozinho, dou uma olhada nas notas. Já vi muitas
falsas e aquelas são de verdade. Depois, sento e fico batendo com a ponta do
lápis na mesa. Não é estranho como você pensa em si mesmo como sendo algo
durante 95 por cento de sua vida e, então, um encontro repentino com alguma
25
coisa ou alguém o força a se lembrar de que você é outra coisa, aqueles outros
cinco por cento que sempre estiveram ali, mas adormecidos, mantendo-se
discretos? Estou um pouco diferente da pessoa que eu era antes de Leon entrar
aqui. Meu escritório está um pouco mudado também. Leon deixou seus
vestÃgios, transformando-o. Preciso absolutamente reduzir a cafeÃna, eu acho;
está me deixando paranoico. Então, um minuto depois, registro essa diferença
como algo tangÃvel: um aroma vago e persistente de cigarros. Cigarros?
Charutos? Algo parecido, mas não exatamente o mesmo. Sinto-me aliviado. Por
um instante, pensei que estava enlouquecendo. Então, me dou conta â" trata-se
de cheiro de lenha.
Olho meu relógio. Já passa das 18 horas do final de um dia cinzento e
chuvoso no subúrbio. Outro avião sobrevoa a cidade com seu ronco, a caminho
de um lugar mais bonito. Tenho que seguir em frente. Não que eu esteja indo
para um lugar bonito. Tenho trabalho a fazer. Pode-se dizer que trabalho por
amor.
26
CINCO
JJ
Leva séculos para chegar a Lourdes. Temos que ficar parando para fazer
comida, levar Christo para tomar ar fresco ou diminuir o desconforto de meu
tio-avô. Houve uma tremenda briga quando vovó quis que usássemos o trailer
número um â" na verdade, para se exibir para algum viajante francês que
pudéssemos encontrar. Vovô bateu o pé. Ele o chama de âœa cozinhaâ, e até onde
as coisas lhe dizem respeito, não tem nada a ver com ele. Então, vovó teve que
ceder e viemos no número dois, embora ele seja bastante elegante para
impressionar as pessoas, eu acho. Mas não vimos um único viajante francês,
pelo menos até agora.
Paramos nos postos de conveniência â" que aqui na França, por algum
motivo, são chamados de aires â" para irmos ao banheiro e essas coisas, e
ninguém vem nos incomodar. Os postos de conveniência franceses são muito
mais bonitos do que os ingleses â" eles oferecem gelo de graça e micro-ondas
que qualquer um pode usar: não precisa pagar nada â" e máquinas de café
enormes que servem um ótimo café preto. Eu adoro café. Mamãe fica
resmungando que sou jovem demais para beber tanto café, mas eu gosto tanto
que não consigo parar. Reconheço que sou viciado. Mas não acho que café faça
mal. Não é como heroÃna ou cigarro. O tio Ivo fuma um maço por dia desde que
tinha uns 10 anos, ele diz, e meu tio-avô nunca falou nada sobre isso.
Estamos no meio da França agora. Ainda falta um bocado para chegar a
Lourdes, já que Lourdes fica lá embaixo. Vovó estaciona num aire cercado de
árvores bem pequeninas, e eu carrego Christo para tomar sol.
â" Olha, Christo, um lago. Un lac. Regarde!
Este lugar é lindo â" há um lago de verdade, com patos e gansos se
agitando de um lado para outro, a água estremecida pela brisa ligeira que faz as
folhas das árvores balançarem como milhões de bandeirinhas de um tom verde-
pálido. Elas fazem um barulho suave maravilhoso. Está tudo limpo, também â"
não há lixo em lugar algum. No último dia e meio, percebi que amo a França; eu
queria que pudéssemos viver aqui para sempre e não ter que voltar.
27
Ivo salta do carro e acende um cigarrinho. Parece exausto, o que é uma
expressão bem comum no seu rosto. Ele se aproxima e me oferece um, mas
balanço a cabeça, já que a vovó vai sair daqui a um minuto e começar a berrar
comigo. Ela mesma fuma feito uma chaminé, e não dá a mÃnima para isso, mas
mamãe fez com que ela prometesse não me deixar fumar.
â" Como você está, meu amor?
Ivo afaga os cabelos de Christo e ele retribui com o sorriso mais lindo.
Geralmente, meu tio está mal-humorado, mas realmente adora Chris â"
qualquer um pode ver. Acho que se sente infeliz principalmente porque
nenhum médico consegue ajudar seu filho, não posso culpá-lo.
Passo Christo para ele â" é tão leve quanto um saco plástico â", e Ivo sai
andando ao longo do pequeno lago, o cigarrinho ainda na boca.
Eu me dou conta de que o lago é artificial, feito recentemente. Ainda há
vestÃgios de terra à beira da água, e os arbustos estão cercados de terra. Mas
uma coisa se pode dizer sem pestanejar: as plantas vão cobrir a terra e se
enraizar, e vai ficar parecendo o lago que sempre esteve ali, com os patos e a luz
do sol. O cuidado evidente que esses franceses tomaram me deixa feliz. Serve
apenas para as pessoas de passagem por alguns minutos; ninguém mora aqui.
Talvez parem por meia hora. Mas, ainda assim, se deram o trabalho de fazê-lo
bonito.
â" JJ! â" Vovó grita atrás de mim. â" Tene está precisando de você.
Isso sempre acontece. Quando estou olhando para algo bonito e me
sentindo feliz, minha famÃlia vem e me chateia. Eles parecem estar ficando mais
chatos com a idade, já percebi.
â" Sei que você me escutou.
Eu me afasto do lago e desço a cadeira de rodas do meu tio-avô pelos
degraus do trailer. A rampa é pesada demais para ficar retirando e guardando o
tempo todo, por isso não a trouxemos. Esta foi a barganha para eu poder vir:
além de falar francês, tenho também que levá-lo ao banheiro, pois, embora haja
uma cadeira de rodas higiênica, ele só a usa se for absolutamente necessário.
Então, eu e Ivo nos revezamos fazendo isso. O lance de falar francês é divertido,
embora desafiador; o lance do banheiro não é nem um pouco divertido.
â" Cuidado!
28
Meu tio-avô esbraveja quando bato a cadeira na lateral da porta. Ele é
realmente pesado â" não gordo, mas era um homem grande e, apesar de estar
bem mais magro do que era, ainda pesa um bocado nesta cadeira.
â" Que inferno, garoto! O que está fazendo?
Não consigo responder, pois preciso de todo meu fôlego para descer a
cadeira pelos degraus sem deixá-la cair. Dá a impressão de que as veias em meu
rosto estão a ponto de explodir. E também tenho certeza de que era vez do Ivo.
â" Desculpeâ¦
â" Está bem, vamos visitar minha tia.
É assim que meu tio-avô pede para ir ao banheiro. Nunca o ouvi dizer a
palavra âœbanheiroâ â" isso não é legal.
Dentro do posto de conveniência, ouve-se música pop francesa e há um
cheiro de café de verdade. É preciso admitir, o pop francês é bem ruim
comparado ao pop inglês, que é o melhor do mundo, mas talvez seja apenas os
que tocam nos postos de conveniência. Quando eu vier morar aqui, espero
descobrir as coisas boas que eles guardam para si mesmos.
Fomos para o banheiro masculino, onde meu tio-avô, como de hábito,
pede para eu aguardar do lado de fora. É para preservar sua privacidade e a
minha, eu acho, mas, honestamente, eu preferia entrar a ficar esperando do lado
de fora do banheiro dos homens, parecendo uma bichona. Não tenho permissão
tampouco para me afastar, já que ele costuma gritar me chamando quando tem
algum problema. Tento parecer alguém que não está sequer remotamente
interessado nas pessoas entrando no banheiro masculino, mas elas sempre
ficam olhando para mim. Talvez seja porque tenho os cabelos compridos.
Ontem, um homem veio até mim e me perguntou as horas (Je suis desolé,
monsieur, mais je n"ai pas une montre), mas ele apenas sorriu para mim e
apontou com a cabeça em direção à porta. Eu o encarei, confuso. Então, ele fez
um gesto repugnante. De repente, me dei conta do que ele tinha em mente e saÃ
correndo. Meu tio-avô ficou bastante zangado â" ele deu um jeito de deixar o
seu cachimbo cair e rolar para trás do vaso, onde não conseguia alcançar. Ficou
berrando até um homem e sua esposa conseguirem nos achar. Eles disseram
que meu avô estava precisando de mim. Pareciam assustados: as pessoas
costumam ficar assim em relação às cadeiras de rodas. Meu tio-avô ficou o dia
todo sem falar comigo. Mas como eu podia saber?
Não quero dar a impressão de que não amo meu tio-avô. Eu o amo. É
interessante conversar com ele, e ele consegue ser muito divertido. Gostamos
29
dos mesmos programas de televisão â" velhas séries de faroeste em preto e
branco e seriados policiais. Ele conhece um monte de histórias de ciganos
sanguinários e costumava me contar algumas quando eu era menor. Ele não
conta mais, porque já estou muito velho â" e talvez também porque eu
costumava perguntar um monte de coisas que o incomodavam â" como âœMas
por que então o filho do rei conseguiu uma pena dourada? Ele não usou!â e
âœComo pôde o outro irmão ser tão imbecil? Ele vê seu irmão morrer e depois
faz o mesmo!â.
Ele também me deixa escutar seus discos â" Sammy Davis Jr., Johnny
Cash, um monte de velhos sucessos americanos. Ele gosta de música country, já
que são sempre sobre pessoas passando por sérias dificuldades, o que faz você
se sentir melhor quando as escuta. Johnny Cash, por exemplo: muitas de suas
músicas contam como ele matou alguém, e como está na prisão, cumprindo
uma pena dura, embora merecida. Gosto dessas canções. Ano passado, na aula
de Artes, tivemos que fazer algumas pinturas de natureza morta. A maioria dos
alunos fez frutas e coisas assim, mas eu fiz um quadro com armas letais. O
professor quis falar com mamãe depois disso. Mas não eram desenhos
sangrentos ou algo assim, eram mais coisas do tipo Agatha Christie â" castiçais,
uma corda, frascos de veneno⦠(não guardavam revólveres no armário de
Artes, o que era uma pena, pois eu gostaria de ver um ali). Quer dizer, pintar
não é a mesma coisa que matar, não é? Da mesma forma que canções sobre
matar pessoas não são nem um pouco a mesma coisa que matar pessoas. Na
realidade, Johnny Cash nunca matou alguém, até onde sei, e não é por isso que
querem falar com a mãe dele. As pessoas, às vezes, são muito literais.
Meu tio-avô tem que aguentar uma barra, é claro. Nem sempre ele
precisou de cadeira de rodas. Ele sofreu um acidente de carro alguns anos atrás
e quebrou a coluna. Estava dirigindo sozinho e, ao sair da pista, o carro bateu
contra um muro. Foi incrÃvel ele ter sobrevivido. Desde então, não é mais capaz
de andar, e isso â" se você já passou por essa situação â" torna a vida num
trailer realmente difÃcil. Queriam que ele fosse viver numa casa de repouso
depois do acidente, dizendo que ele precisava de um cômodo sem degraus, e
não há como ter um trailer sem degraus, então o que ele podia fazer? Meu tio-
avô disse apenas que preferia morrer a viver num asilo â" ele não era um
cigano caseiro e nunca o seria. Disse que tinha a famÃlia a seu redor e que eles
dariam um jeito, embora, na verdade, ele não tivesse a famÃlia por perto na
época: eram só ele, Ivo e Christo, mas, quando vovó, vovô e mamãe souberam o
que aconteceu, perceberam que precisavam ajudá-lo, e a Christo também, então
voltamos todos a nos reunir e estamos juntos desde o acontecido.
30
Isso foi há seis anos, mais ou menos. Na verdade, várias coisas
aconteceram naquele momento. Na nossa famÃlia, as coisas tendem a acontecer
ao mesmo tempo â" é como se tivéssemos predisposição para acidentes ou algo
assim. Meu tio-avô sofreu um acidente de carro e teve que ficar no hospital por
muito tempo, e, na mesma época, a esposa de Ivo, Rose, fugiu porque descobriu
que Christo, ainda bebê, tinha aquela doença de famÃlia. Foram eventos bem
ruins. Embora eu só tivesse 7 anos, aquilo me deu muita pena. Especialmente
em relação a Rose fugindo daquele jeito. Só a vi uma vez, no casamento, mas ela
era legal.
Quando digo que só a vi uma vez, na verdade foram várias vezes ao
longo de vários dias, que foi o tempo que o casamento durou. Foi uma festa de
longa duração, com um bocado de comida e bebida, até onde me recordo. Eu
me lembro de ter brincado com ela de esconde-esconde dentro de um pub. E me
lembro também da marca estranha que Rose tinha no pescoço; ela sempre
colocava a mão por cima, a fim de escondê-la, o que só chamava mais atenção.
Eu lhe disse que seu pescoço estava sujo e ela precisava lavá-lo, e ela disse que
aquilo não saÃa. Fiquei olhando e ela me deixou tocar. Era macio, como o
restante de sua pele, nem um pouco assustador. E
u não me importava com aquele sinal de nascença. Eu a achava adorável,
não parecia alguém capaz de fugir e deixar um bebê porque ele era doente.
Mas, também, como eu podia saber? Era apenas um garotinho.
31
SEIS
RAY
Ãs vezes, ficamos sabendo coisas demais. Estou em boa posição para
dizê-lo. A ignorância é uma bênção. Conhecimento é poder. Qual você
preferiria? Tenho visto incontáveis pessoas atravessando nossa porta tendo
escolhido, como o Sr. M., a segunda opção. Acabam sofrendo e me pagam para
que eu os faça se sentirem assim. Eles precisam saber. Certa vez, perguntei a
outro cliente â" um homem adorável â" se, após descobrir que sua esposa era
infiel, teria preferido ter voltado ao ponto em que ignorava isso, e ele fez uma
longa pausa antes de me responder:
â" Não, porque haveria algo que eu não sabia. Ela sabia e eu não. E isso é
um pouco como roubar minha vida. Durante todo o tempo em que ela mentisse
para mim, eu não teria a escolha de ficar ou não com ela. Ela poderia escolher e
eu não. É isso que eu não posso suportar. Os anos perdidos.
â" Mas é apenas no momento em que você olha para o passado e sabe
que ela o enganava que você se sente, retrospectivamente, infeliz. Você não era
infeliz na época. Aquele tempo não foi perdido ou roubado. Quando não sabia,
você era feliz.
â" Eu pensava que era.
â" Se você acha que é feliz, então você é. Não é o melhor que podemos
esperar?
Ele esboçou um sorriso doloroso. Acho que gostava dela de verdade, mas
acabou se divorciando mesmo assim. Não posso fazer nada. Não digo à s
pessoas como devem agir; sou apenas o sujeito a quem eles pagam para filtrar
sua desgraça. De qualquer maneira, não me dariam ouvidos.
⢠⢠â¢
Seja como for: vigilância.
É melhor do que fazer reciclagem de lixo, o que, em geral, não é tão
frutÃfero quanto deveria ser. Honestamente, há certa excitação em vigiar as
pessoas â" pelo menos por cinco minutos, quando você estaciona o carro do
outro lado da rua, a câmera no banco ao lado, um gravador, garrafa térmica,
sanduÃches, rolos de filme sobressalentes⦠É o mesmo em relação à porta do
32
escritório. Insisti para colocar uma porta parcialmente envidraçada quando
estávamos montando o local. Por quê? Assim, poderÃamos colocar nossos
nomes no vidro, como Phillip Marlowe em O sono eterno. Todo detetive
particular que encontrei na vida fala sobre a ausência de glamour na profissão.
São todos mentirosos. O tédio é imenso, é claro, com um monte de coisa capaz
de nos deprimir: incerteza, insegurança, encontrar várias pessoas que não ficam
felizes em nos ver. Mas, toda vez que atravesso aquela porta, bato os olhos nas
letras de um dourado sóbrio e penso âœEste é meu nomeâ, só isso, por apenas
um segundo: uma sensação de prazer. Isso não é a mesma coisa que glamour?
O mesmo ocorre com os perÃodos de vigÃlia. Todos vocês já viram num
filme. Bem, nós também. Qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento.
Em geral, não acontece nada, é verdade, mas nunca se sabe. Ainda assim, desta
vez não há glamour algum, mas isso é porque se trata de algo que já vi antes: já
tenho as provas, um punhado delas; esta noite é somente uma confirmação de
segurança. O prego no caixão do defunto.
Durante cinquenta minutos nada acontece, exceto eu ter comido meu
sanduÃche de presunto e bebido uma xÃcara de chá. Estou espreitando uma casa
numa rua de casas idênticas na periferia de Twickenham. Há uma luz acesa no
andar de cima, mas pode estar ligada a um temporizador, portanto não dá para
interpretar nada a partir disso. Ãs 19h28, um carro estaciona mais à frente na
rua e um homem â" quarentão, vestido de modo casual, ligeiramente acima do
peso â" salta, caminha até a casa e entra, abrindo a porta com uma chave.
Parece ter havido um movimento rápido de alguém na entrada, mas não tenho
certeza.
Ele tem uma chave.
Ãs 20h09, a porta é novamente aberta e o homem volta a sair, tendo
mudado sua veste por outra mais pesada. Conclusão, ele tem roupas naquele
endereço. Acompanha-o uma mulher de idade próxima à dele, vestida com
extravagância, bonita, magra, chinesa. Os dois caminham em direção ao carro,
lado a lado, mas sem se tocar e, aparentemente, sem trocar palavras. Quando
saem do portão e ganham a calçada, a mulher faz um gesto com a cabeça na
minha direção, mas não tenho certeza de que tenha percebido meu carro, ou
que isso signifique algo para ela. Mechas de cabelos bem lisos caem sobre seu
rosto quando ela faz isso â" como se estivessem sendo rapidamente escovados.
Tiro algumas fotos. Não saem muito boas; alguns perfis, no máximo, e a
claridade é bem pouca, escondendo os detalhes. Não que isso faça diferença.
Sei exatamente quem são.
33
⢠⢠â¢
De manhã, Hen me observa fixamente de sua mesa. Teve uma briga com
a esposa, Madeleine, isso é certo. Os olhos parecem cansados, após uma noite
insone. Aparentemente, Charlie, o caçula, ficou acordado a noite toda, por conta
de alguma indisposição infantil não identificada.
â" Ele está melhor agora, não está?
â" Espero que sobreviva.
O lápis entre seus dentes não para de se mexer â" um substituto para o
cigarro.
â" Madeleine quer que eu o convide para jantar. Amanhã.
â" Amanhã? Não sei seâ¦
â" Ela não aceita um não como resposta.
â" E se eu já tiver um compromisso?
â" Você tem?
â" Pode ser. Pode ser que eu tenha minha própria vida. Por que ela
imagina que passo minhas noites me embriagando de desespero e solidão?
â" Porque ela o conhece. Não⦠você sabe, ela só quer que vocêâ¦
continue vendo gente. Olho para ele.
â" Acho que ela não convidou mais ninguém, para falar a verdade.
Vamos, é só um jantar. Vai ser⦠divertido.
⢠⢠â¢
A ordem do dia é simples. Só temos um caso ativo no momento â" Rose
Janko; nome de solteira, Wood. Seu pai foi, enfim, persuadido a apresentar
alguns fatos concretos e algumas fotografias. A primeira que Leon me entregou,
aquela que mostra o sinal de nascença, foi tirada alguns anos antes do
casamento. Está sentada com a mãe numa arquibancada do hipódromo. Ela tem
um ar reservado, grave até, mas sorri ligeiramente. Seus cabelos são castanho-
claros, lisos e longos; as sobrancelhas, espessas, e o queixo é imponente e
arredondado. A cabeça está levemente virada para longe da câmera, e dá para
ver com nitidez a marca escura no pescoço. Tem a forma aproximada de uma
mão, se você fechar parcialmente os olhos; como se alguém estivesse agarrando
34
a garganta dela por trás. Eu me pergunto se Ivo viu isso antes do casamento; se
alguém da famÃlia viu.
A segunda fotografia é do próprio casamento. Nela, os recém-casados
fazem pose em frente a um reluzente trailer bege; estão de mãos dadas, mas
afastados um do outro. Um cachorro passa, desfocado, ao fundo. Os aros
cromados do veÃculo cintilam sob o sol. Ambos têm os olhos ligeiramente
cerrados por causa da claridade. Rose está com os cabelos penteados, um
permanente de cachos louros emoldurando-lhe o rosto. A gola alta do vestido
de noiva oculta seu sinal de nascença. Seu sorriso é nervoso. Seu novo marido,
Ivo Janko, veste um terno preto; é magérrimo, os cabelos longos e negros estão
penteados para trás, as maçãs do rosto são proeminentes e grandes, os olhos
negros. É muito bonito e parece saber disso. Ele não sorri â" há alguma
arrogância em sua expressão, até mesmo certa hostilidade. Parece se inclinar
para se afastar dela, seu corpo tenso, o queixo erguido. Analisando seu rosto na
fotografia â" em busca de pistas â", concluo que sua expressão é menos
arrogante do que nervosa. Ambos são bem jovens, afinal de contas, estão se
casando com uma pessoa que mal conhecem. Quem ficaria à vontade assim?
Os demais fatos são poucos e superficiais; Leon deu a impressão de estar
se esforçando para se lembrar de sua filha com alguma clareza. Quando lhe
perguntei que tipo de pessoa era ela, disse que era âœsossegadaâ e âœuma boa
garotaâ. Mas a moça no hipódromo não parece uma pessoa fácil. Rose era a
mais nova das três filhas. Imagino que sua posição dentro da famÃlia, com
aqueles cabelos castanho-claros e aquela estranha e sinistra marca de nascença,
não era privilegiada. Talvez por isso, acabou se casando com o filho de uma
famÃlia que ocupava â" pelo que pude concluir â" a escória da sociedade cigana.
Ambos, de modos distintos, rejeitados.
Em tese, ela e Ivo tiveram um filho no primeiro ano de casados; depois,
segundo Leon, correu a notÃcia de que havia algo de anormal com a criança, e
que Rose tinha fugido com um gorjio, cujo nome ninguém conhecia. Leon se
aborrecera com o fato de sua filha abandonar o marido e o filho. O dever da
esposa cigana é se ocupar de seu marido e de sua famÃlia â" gerando filhos e
cuidando dos afazeres domésticos. Ela deve obedecer e encarar tudo o que vier
pela frente â" incluindo tapas. Fugir do casamento â" especialmente com um
não cigano â" significa se colocar numa situação inaceitável. Resumindo, Rose
devia ter ficado, pois seu lugar era ao lado do marido.
A miséria dita as regras. Meu pai nunca me explicou isso, mas não era
necessário. Ele enfrentou um racha profundo com o pai dele quando se casou
com mamãe. Meu avô também nunca falou sobre isso. Mas eu e meu irmão
35
entendemos que, para ele â" para Tata â", papai havia se tornado impuro ao
escolhê-la. E, mesmo quando ele relaxou e a deixou entrar em sua casa e sentar-
se à mesa, ela não podia se aproximar da pia nem lavar a louça, e ele tinha um
estojo especial de talheres e louças que só usava para nós, quando vÃnhamos
visitá-los. Dizia que era a âœboaâ porcelana para os convidados enquanto ele
usava aquelas do dia a dia, mesmo quando estávamos lá, mas tenho certeza de
que eram utensÃlios especiais reservados para os âœoutrosâ. Ele não colocaria na
boca um garfo em que ela houvesse tocado. Era simplesmente impossÃvel. Papai
e ele discutiam sempre, mas ainda éramos pequenos quando nosso avô morreu
e nunca pudemos lhe perguntar sobre isso. Tata era sempre cordial conosco, os
meninos, mas crianças não podem ser impuras. Éramos inocentes e
desfrutávamos de um estado de graça cigano; sujos sim, impuros não â"
mokady, não.
⢠⢠â¢
Não dispomos de muito para seguir em frente. Primeiro, fazemos as
pesquisas básicas: carteira de motorista, listas eleitorais, contas de luz e
registros de imóveis. O nome Rose Wood ou Rose Janko não aparece em lugar
algum. Eu teria ficado surpreso se aparecesse. Ainda hoje, poucos ciganos têm
passaporte ou aparecem nas relações de eleitores. E, se Rose tivesse mudado de
nome, ainda assim não acharÃamos informação alguma. Quando tratamos de
pessoas desaparecidas, há um conjunto de procedimentos a adotar. Por
exemplo, verificar os registros oficiais â" um trabalho entediante e longo. Você
percorre nos jornais as seções dedicadas à s pessoas desaparecidas â" pequenos
anúncios pedindo-lhes que entrem em contato para tomarem conhecimento de
algo importante para elas, ou se apresentarem para receber uma herança.
Quando não se sabe em que área alguém está vivendo, esse método é como
uma rede imensa para capturar um peixinho â" nem todos leem esses pequenos
anúncios â" mas, assim mesmo, nunca se sabe. E, evidentemente, é preciso falar
com as pessoas que as conheceram, começando com a famÃlia mais próxima e
expandindo para cÃrculos maiores â" amigos de escola, colegas de trabalho,
conhecidos, cabeleireiros, médicos, dentistas, comerciantes do bairro,
entregadores de jornais⦠Só que, com Rose, não parece haver um conjunto de
cÃrculos sociais; há apenas um. Não há amigos da escola, pois Rose
praticamente não a frequentou; colegas de trabalho, tampouco, já que nunca
trabalhou. Há somente a famÃlia, e muito tempo atrás: um mundo pequeno,
reprimido, fechado, do qual uma boa moça não deve se afastar.
⢠⢠â¢
36
Ãs 19h30 da noite seguinte, caminho em direção à porta de Hen. Graças
ao dinheiro de Madeleine, eles moram numa casa ampla e afastada, situada
num bairro arborizado. Embora vivam muito mais perto do centro de Londres
do que eu, tenho a impressão de estar no campo. Quando toco a campainha,
Madeleine me acolhe com um beijo no rosto. Tenho sempre a impressão de que
a nobre esposa de Hen não gosta mesmo de mim. Basta ver aqueles olhos azuis
para sentir que eu deveria entrar pela porta dos fundos.
â" Ray⦠Que ótimo ver você! Faz tanto tempoâ¦
Trago uma garrafa de vinho comigo. Provavelmente, é o vinho errado,
mas pelo menos uma coisa eu aprendi ao longo dos anos: parei de me
preocupar com esse tipo de coisa.
â" Que bom! Obrigada. Prometemos a Charlie que você leria uma
história para ele. Não se importa, não é? Não me importo. Charlie é o caçula e
meu afilhado. Não sei como Hen conseguiu convencer Madeleine; talvez ele
tenha um arquivo de fotos comprometedoras escondido no cofre.
Charlie está na cozinha, agarrado à perna de Hen e arrastando seu
cobertor de estimação, que ele chupa, enrolado no dedo polegar. Tem os cabelos
claros e encaracolados do pai, assim como a mesma postura desconfiada em
relação à vida. Ponho a garrafa de vinho na geladeira. Noto que, colada à porta,
há uma lista com uma série de habilidades que Charlie precisa começar a
desenvolver. Leio com interesse: âœFala â" não lhe dar nada até que tenha usado
o nome adequado. Só deve comer sem seu cobertor â" não ceda! Coordenação
das mãos e do olhar â" jogar para ele sua maçã de pano ou a bola azul.
Números â" fazer com que os repita todos os diasâ¦â. A lista está protegida por
um plástico adesivo. Charlie me observa com seus olhos verdes, úmidos; há
neles um toque de ressentimento: sabe que me afastarei da lista ao final da
noite, mas ele ficará preso àquilo a vida toda. Ele me arrasta para o andar de
cima para ler uma história â" sobre um grande lobo que assusta as pessoas
involuntariamente. Mas Charlie está mais interessado em me contar que houve
uma grande tempestade e ele acabou molhando a cama.
â" Quando foi isso, Charlie?
â" Quando eu era pequeno.
Charlie está com 4 anos. Acho que seu desenvolvimento está
incrivelmente adiantado.
Para um jantar na casa deles, a noite parece tolerável. Há um momento
desagradável, quando Madeleine me surpreende dizendo que convidou uma de
37
suas amigas â" supostamente, no último minuto. Vanessa se divorciou
recentemente â" pura coincidência, óbvio. Hen olha para cima para deixar claro
que a ideia não foi sua, mas será que posso acreditar? Na verdade, Vanessa é
uma pessoa surpreendentemente simpática: não parece uma mulher cheia de
expectativas ou de amarguras. Uma loura bonita, firme, de belas formas;
secretária jurÃdica. Comemos lasanha e bebemos vinho tinto (o meu era da cor
errada), seguidos de um doce com gosto de café forte e um nome estrangeiro â"
tudo feito por Madeleine, com sua necessidade de provar que é capaz de fazer
tudo. As duas meninas mais velhas â" ambas adolescentes â" estão âœestudando
com as amigasâ, ao que parece, embora eu espere que estejam fazendo algo bem
mais repreensÃvel.
Na verdade, a conversa é moderada; a atmosfera, bem descontraÃda.
Vanessa ri das minhas brincadeiras e demonstra, de fato, interesse em nosso
trabalho. Suspeito que Madeleine tenha exagerado ao contar sobre a natureza
excitante de nosso negócio â" para melhorar a imagem de Hen, é claro, mas eu
sou o patrão do seu marido. Evidentemente, ela deve ter acrescentado â" como
um tempero â" que sou meio cigano. Um toque picante. Por um momento,
sinto-me bem ali sentado, fazendo uma refeição e conversando â" como fazem
as pessoas, quando param de frequentar pubs. É uma situação normal.
Suponho que seja agradável. Vanessa é agradável. Ela merece alguém melhor
do que eu. Reflito sobre isso â" para Madeleine fazer essa aproximação entre
nós, ela não deve ser uma de suas melhores amigas. Paro de pensar quando
Vanessa me acompanha até minha casa, após o jantar. Ela é divertida, uma boa
pessoa, mas ocupo parcialmente meu pensamento me perguntando se ela vai
falar com Madeleine, e depois, me lamentando antecipadamente por Hen.
Madeleine reclamará com ele sobre meu comportamento arredio, e será ele â"
não eu â" quem ficará em apuros. A outra metade de meus pensamentos
também está em outra coisa. Não que Vanessa demonstre perceber minha
distração.
Ela vai embora de manhã com um sorriso e um aceno, e não há qualquer
tentativa hesitante e frágil sugerindo futuras ligações, troca de números de
telefone ou um novo encontro. Uma mulher sensata. Baixo nÃvel de expectativa:
a chave da felicidade.
38
SETE
JJ
Estamos a apenas 60 quilômetros de Lourdes! Então, viva. Viva, ainda
que hoje à noite seja minha vez de cozinhar. Vou fazer um Joe Gray â" que é um
cozido feito com uma lata de sopa, qualquer tipo de sopa, batatas, cebolas,
cenouras e toucinho. É um prato tradicional, e um dos meus favoritos.
Descubro que o toucinho se chama lardon em francês, o que me faz rir. Faço
uma piada, dizendo para tomarem cuidado com o ladrón â" acho muito
engraçado, pessoalmente, mas apenas Christo ri â" isso porque fico bancando o
palhaço, não porque tenha entendido â" e vovó só deixou escapar um risinho.
Ninguém mais acha graça. Tio Ivo e meu tio-avô tiveram alguma desavença
séria, mas não sei sobre o quê. Mais cedo, Ivo saiu para dar uma volta com ele, e
os dois retornaram calados. Na verdade, Ivo voltou sem sequer trazer meu tio-
avô, e tive que procurá-lo. Estava começando a chover. Felizmente, ele não
estava muito longe.
Agora, os dois estão de mau humor e com saudades da Inglaterra. Ivo
fuma e olha pela janela. Isso apesar de a vovó ter-lhe pedido quatro vezes para
apagar ou ir fumar lá fora. Meu tio-avô está olhando para o vazio e fumando
seu cachimbo. Ele tem permissão para fumar dentro do trailer, já que está na
cadeira de rodas e é preciso haver algum tipo de compensação. Mas o cheiro é
muito ruim. Mal posso respirar. Ele interrompe o silêncio tenso com um suspiro
igual a uma rajada de vento.
â" Sinceramente, você me dá pena, garoto.
Ele diz isso para Ivo, que o ignora, estalando a lÃngua de maneira
insultante.
â" Ivo, faça o favor⦠já vamos comer.
São cinco vezes. Estão vendo? Posso continuar contando e avaliando o
mau humor de todos e cozinhar ao mesmo tempo.
â" Abra a janela.
â" Você podia pensar no seu filho!
Isso, com certeza, é capaz de irritar Ivo. Ele não para de pensar em
Christo nem sequer por um instante.
39
â" Meu Deus, Kathâ¦
E isso, com certeza, é capaz de irritar a vovó.
â" Então, me ajude⦠Precisamos chegar a essa porcaria de Lourdes! Ãs
vezes, eu realmente me surpreendo com você.
Ela fala assim em um tom de voz bem baixo, embora estejamos todos
apinhados em torno da mesa e seria difÃcil não ouvir. Ivo lança-lhe um olhar
furioso. Meu tio-avô esvazia o cachimbo.
â" Bom, vamos comer. JJ está começando a servir. Que cheiro delicioso,
garoto.
â" Aqui está, aqui está. Bacon bacon bacon bacon bacon. Está chegando o
ladrón, está chegando o ladrón. Escondam seu dinheiro. Senão, ele leva tudoâ¦
Sou capaz de ficar fazendo esse tipo de coisa durante horas.
Simplesmente, desligo meu cérebro e deixo minha lÃngua no automático. É uma
excelente maneira de incomodar um bocado todo mundo e impedir que fiquem
implicando uns com os outros. Vovó, que sabe apreciar isso, ainda que
ninguém mais o faça, me lança um sorriso encorajador.
â" Obrigada, querido. O aroma está mesmo delicioso. Diferente de lá de
casa, não é?
Ivo, enfim, apaga seu cigarrinho.
Derramo meu Joe Gray no prato de cada um e eles atacam, comendo
como uma matilha esfaimada. Ivo, porém, só dá algumas colheradas; depois,
empurra o prato e se levanta. Apesar de estar chovendo, sai do trailer, deixando
uma espécie de vácuo com sua ausência â" e todo o bom humor é sugado por
ele. É sério, às vezes não sei o que se passa com ele. Sei que todo mundo fica
deprimido de vez em quando, mas com Ivo é diferente.
⢠⢠â¢
Tenho pensado sobre a sorte enquanto viajamos rumo ao sul, e a França
fica mais quente, montanhosa e arborizada. Eu me pergunto se é verdade que
certas pessoas nascem com sorte e outras não. Acredito que sim. Excluindo o
fato óbvio de algumas pessoas nascerem ricas e outras pobres â" e sei que vocês
podem argumentar que o dinheiro não é necessariamente algo bom â", há
pessoas que sofrem mais do que é justo. Pegue meu tio-avô como exemplo. Seus
dois irmãos morreram com a doença de famÃlia. Ele foi o único menino de sua
geração a sobreviver â" como Lon Chaney Jr. na série O último dos moicanos, Ã
40
qual costumávamos assistir juntos. Então, casou-se e teve dois filhos que
morreram ainda bebês â" mamãe diz que, provavelmente, é porque minha tia-
avó Marta era também sua prima de primeiro grau, portanto, os dois, de
alguma forma, tinham a doença. Depois, ele teve um filho e uma filha â" o filho
era tio Ivo e a filha era minha tia Christina. No inÃcio, achavam que Ivo era
normal, mas, depois, ele começou a ficar doente. Em seguida, minha tia-avó
Marta morreu de câncer. Ivo tinha apenas 14 anos quando ela morreu â" a
mesma idade que eu â" e isso foi horrÃvel também. Então, dois anos depois, Ivo
foi a Lourdes, houve o milagre e ele se curou. Mas, na mesma época, minha tia
Christina â" que tinha apenas 17 anos â" morreu num acidente na estrada. Foi
quase como se ela tivesse que morrer para Ivo poder viver, ou algo assim. Acho
que é uma quantidade terrÃvel de mortes para uma famÃlia â" quer dizer, não
acho mesmo que isso seja normal. A menos que você viva na Ãfrica, talvez. E,
como se não bastasse, depois a esposa de Ivo foi embora, deixando-o com
Christo, e meu tio-avô teve seu acidente de carro, perdendo a mobilidade das
pernas. Ainda assim, apesar de sua falta de sorte, que, na verdade, é um grande
azar, meu tio-avô é uma pessoa bem alegre. No entanto, Ivo, que tem tido
também um bocado de azar (embora nunca tenha conhecido seus irmãos, que
morreram antes de ele nascer, então presumivelmente não sente falta deles),
não é uma pessoa alegre. Vovó diz que ele e sua irmã eram muito unidos â"
nasceram com menos de um ano de diferença â" e ele nunca mais foi o mesmo
após sua morte. Embora eu ache que ter a mãe morta e depois alcançar uma
cura milagrosa sejam coisas capazes de transformar qualquer pessoa. Talvez ele
se sinta culpado por ter sido o único a sobreviver. Seja qual for a razão, não é
uma pessoa fácil de se conviver. Seu temperamento é terrÃvel. Ãs vezes, penso
nisso, quando meu tio-avô amaldiçoa Rose por ter fugido. Tio Ivo já disse coisas
maldosas para mim, mesmo quando eu era pequeno, e isso não era nada justo.
Eu costumava ficar abalado por causa dele, mas agora não me importo tanto.
Certa vez, mamãe disse que ele deve ficar com o coração apertado ao me ver
saudável â" eu, que nasci por engano â", quando seu próprio filho, o único
herdeiro com o nome Janko, está tão doente.
⢠⢠â¢
Mais tarde naquela noite, estou deitado na cama dobrável do trailer da
vovó. Ela dorme no outro canto, na cama maior, e há uma cortina de vinil
estendida entre nós. Somos só nós dois neste grande trailer enquanto os outros
dormem no menor, do meu tio-avô. Acho que estão acostumados a ficar juntos.
Mas não consigo dormir. Depois do jantar, quando estava levando Christo para
dormir, meu tio-avô disse algo sobre crianças para a vovó, houve um
desentendimento e, antes de baterem a porta, ouvi-a sussurrar para ele, dizendo
41
que deixasse de ser tão estúpido. Mas dá para imaginar do que se trata quando
tanta coisa ruim nos acontece. Encontrei Ivo sentado no outro trailer, fumando e
olhando para o vazio, mas, assim que me viu com Christo, ele se mexeu.
â" Tudo bem? â" perguntei.
â" Tudo.
â" Não está com fome?
â" Não.
â" Você está ansioso pelo dia de amanhã?
Ele deu os ombros. Não consigo entender como não se sente mais
animado em relação a Lourdes. Afinal de contas, ele é a prova viva de que
aquilo pode funcionar. Ivo apenas sorriu para Christo.
â" Sabe, precisamos tomar cuidado. Eles dão banho de água benta em
você.
â" É mesmo? E depois?
â" Temos que tomar cuidado para ele não pegar um resfriado. Eles
molham a gente até os cabelos. Temos que enxugá-lo e aquecê-lo logo depois.
Vamos levar umas toalhas ou algo assim.
â" Ok. Ivo estava ajoelhado no tapete, retirando a roupa de cama da
gaveta.
â" É por isso que você está de mau humor? Está preocupado?
â" Senti que estava forçando a barra.
â" Ele vai ficar bem. Olhe para você mesmo.
â" É. Bemâ¦
⢠⢠â¢
A chuva parou e uma lua brilhante cintila na janela a meu lado â" ela
ilumina a borda das cortinas e um rasto de luar se estende sobre meu peito
como um arranhão de luz. E, então, uma das histórias repulsivas do meu tio-
avô volta à minha mente â" uma das histórias mais tristes e horrÃveis â"
chamada âœOs demônios da doençaâ. Ela diz que existem nove demônios que
provocam todas as enfermidades do mundo â" resfriados, dor de barriga,
eczemas, tudo. Não consigo me lembrar de como se chamam todos os
42
demônios, mas me recordo de um chamado Melalo, pois era o que mais me
assustava. Melalo era o filho mais velho do rei demônio e da fada-rainha; ele é
um pássaro de duas cabeças com garras afiadas que rasgam o coração e o
enchem de loucura e violência.
É Melalo quem leva as pessoas a assassinar e estuprar. Começo a suar.
Mexo na cortina, para transformar o arranhão de luz em uma bolha. Existe
outro demônio chamado Minceskro, que causa as doenças do sangue, como a
de Christo. Talvez devêssemos todos estar rezando por ele. Talvez eu pudesse
rezar secretamente.
Eu me pergunto â" como da outra vez â" se uma pessoa precisa morrer
para outra ficar curada. Não acho que isso seja muito cristão â" embora conheça
a história do olho por olho, dente por dente, do Antigo Testamento. Mas
Lourdes não faz parte do Antigo Testamento, não é mesmo? É Maria, que,
certamente, faz parte, eu acho, do Novo Testamento. E não acho que Maria exija
uma vida pela outra.
Mas se ela exigisse, digamos⦠Eu me pergunto, de quem seria essa vida?
Seria meu tio-avô? Talvez eu? Será que eu estaria preparado para morrer
por Christo?
Não quero responder a essa pergunta.
43
OITO
RAY
Segundo Leon, a pessoa que melhor conhecia Rose era a irmã dela,
Kizzy. Kizzy Wood chama-se agora Kizzy Wilson e mora com a famÃlia em um
acampamento administrado pelo conselho municipal, perto de Ipswich.
Falamos rapidamente ao telefone. Ela diz que não tem notÃcias da irmã desde o
casamento, assim sendo, não faz sentido que eu a visite. Eu falei que gostaria de
ir assim mesmo. Ela respondeu: âœSe fizer questãoâ¦â
Faz anos que não ponho os pés num acampamento municipal. Este é
amplo â" com mais de vinte trailers. A aparência é bem uniforme,
estacionamentos alinhados com demarcações visÃveis. Canteiros de flores do
lado de fora. Um vasto espaço coletivo. Sou observado por expressões curiosas
quando bato à porta. Ela se abre e vejo uma mulher baixa que parece ter pouco
mais de 28 anos. Seus cabelos estão puxados para trás, em um rabo de cavalo,
revelando rugas precoces de preocupação em sua testa. Procuro naquele rosto
algumas semelhanças com Rose, mas acho poucas: Kizzy tem a pele clara e é
bem sardenta, as maçãs do rosto delicadas e proeminentes, e um queixo
pronunciado. A única caracterÃstica que parece partilhar com a irmã é a boca:
lábios volumosos, simétricos; os dentes branquÃssimos. Ela deve ter um belo
sorriso, mas neste instante não está sorrindo. Eu me apresento.
â" Pode entrar. Eu esperava que você chegasse mais cedo.
A porta fica perto da parte posterior do trailer, próximo à cozinha, onde
tigelas de metal se encontram dispostas sobre um balcão imaculado. Lá dentro,
um fogão a gás e uma geladeira, mas sem pia â" neste ponto, nada mudou,
desde a época de meu avô. As paredes são revestidas de fórmica lustrosa bege,
há um aquecedor a lenha â" apagado â" sob uma cornija de lareira, espelhos
emoldurados com motivos florais em todas as paredes. Num banco curvo na
parte de trás, tendo ao fundo cortinas de babado cor de marfim, há outra
mulher â" e, no instante em que a vejo, meu coração acelera por um segundo.
â" Minha outra irmã â" diz Kizzy Wilson. â" Margaret.
Margaret Wood â" ou Mullins, seu nome atual â" se parece com Rose.
Uma mulher firme, empertigada, cabelos castanhos pálidos e um queixo
arredondado. Suas sobrancelhas são retas e escuras. Mas â" agora eu sei â" é
44
mais velha do que Rose; e mais pesada também. E não tem um sinal de
nascença.
â" Kizzy falou que você vinha. Moro aqui também. Sou a mais velha.
Ela não estende a mão. Kizzy me acompanha até o banco e me deixo cair
sobre o plástico claro e escorregadio, fincando os pés no chão para não sair do
lugar.
â" Este trailer é muito bonito, Sra. Wilson.
â" Obrigada. â" Kizzy despeja leite e água em canec
â" Daqui a pouco, tenho que sair para buscar as crianças â" diz ela,
olhando para um relógio cuco barulhento. â" Não tenho muito tempo.
â" É claro. Isso não vai levar muito tempo. Na verdade, só quero ter uma
ideia da pessoa que era Rose⦠Qualquer coisa que se lembrem do casamentoâ¦
ou após.
Dirijo-me a ambas. Elas estão instaladas cada uma de um lado; assim,
tenho que ficar virando a cabeça como um espectador de partida de tênis. Kizzy
fala, olhando para sua caneca de chá.
â" Já disse ao telefone. Não tive mais notÃcias dela depois do casamento.
Foi a última vez que a vi e a última vez que falei com ela. Essa gente que viajaâ¦
não a vemos com muita regularidade, entende?
â" E você? â" pergunto para Margaret.
â" A mesma coisa. Fomos todos ao casamento. â" Ela encolhe os ombros,
os lábios se retorcem para baixo, como se isso fosse um assunto pouco
preocupante. â" Depois⦠Nunca mais.
â" Vocês não acharam estranho não ter mais notÃcias dela? â" Não. No
começo, não. Ela estava casada, não estava? â" Margaret olha para mim com
um ar de provocação nos olhos.
â" E depois? Quando ficaram sabendo que alguma coisa⦠não estava
certa? As irmãs trocam olhares, e Kizzy fala:
â" Foram só rumores. Alguém ouviu dizer que Rose tinha fugido.
Ninguém sabe com quem.
â" Mas ela estava saindo com alguém?
â" Estava. É o que diziam. Não sabiam com quem.
45
â" E vocês não tinham a menor ideia de que as coisas não estavam indo
bem antes disso?
É como ter que arrancar-lhes os dentes para que falem. Pressentem que
as estou acusando de não tomarem conta da irmã. Elas insistem que não é
incomum que as famÃlias fiquem sem se ver por longos perÃodos; que elas
viviam ocupadas; esposas ocupadas com os maridos e os filhos. Não ouviram
mais nada. Não tinham ideia de como andava o casamento de Rose. Tampouco
tentaram descobrir.
â" Vocês poderiam me dizer que tipo de pessoa ela era quando estavam
juntas? Vocês eram próximas, não? Cresceram juntas. â" Sorrio para Kizzy.
â" Acho que sim. Era minha irmã caçula, afinal. Eu costumava tomar
conta dela.
â" De que maneira? Ela dá de ombros.
â" De todas as maneiras. Levava à escola, brincava com ela⦠Essas
coisasâ¦.
â" Rose tinha outros amigos na escola ou em outro lugar?
Kizzy balança a cabeça.
â" Ela era uma moça sossegada. TÃmida, sabe? Não falava com ninguém
que não conhecesse. Costumava ficar me seguindo, como se fosse minha
sombra. Eu saberia se ela tivesse outros amigos eâ¦
Ela encolhe os ombros outra vez.
As duas voltam a trocar olhares.
Dirijo-me a Margaret.
â" Vocês duas parecem ter permanecido unidas. Margaret olha para
mim.
â" Nós nos casamos com dois primos. Steve e Bobby trabalham juntos.
â" Ah, entendo. Os Janko não eram próximos de sua famÃlia?
â" Não.
â" O que você achava de Ivo Janko?
Margaret bufa, mas não responde.
46
â" Vocês não gostavam dele?
Kizzy franze as sobrancelhas, realçando as rugas da testa.
â" Até que ponto vocês o conheciam antes do casamento? Ou outra
pessoa da famÃlia dele?
â" Na verdade, não conhecÃamos ninguém. Ninguém os conhecia direito.
Eram reservados, diferentes.
Ela olha para a irmã em busca de ajuda. Margaret diz:
â" O que Kizzy quer dizer é que ninguém gostava deles.
â" Engraçado⦠O Ivo paquerava mesmo a Rose, não é, Marg? E não
faltavam moças em volta dele. Moças que não se importavam com a famÃlia.
Rose parecia ser a última moça que eleâ¦
Ela olha para o chão, parecendo se sentir desleal. Margaret emenda:
â" Era um rapaz bonito demais. Não é bom se casar com um homem que
é mais bonito do que você, era essa a minha impressão.
â" Eles não formavam um casal óbvio, então?
Margaret sacode a cabeça, insinuando desaprovação.
â" Rose era tão sossegada⦠Ela deveria ter escolhido alguém⦠gentil.
Ivo não era gentil. Era o tipo de pessoa que só pensa em si.
Ela olha para a irmã.
Kizzy parece devastada agora, agarrada a sua caneca de chá. Ela morde
seu lábio inferior carnudo e fala tão baixo que preciso me inclinar para a frente,
a fim de ouvir suas palavras.
â" Não pude acreditar quando me disseram que ela havia fugido. E eu
não sabia de nada. Pensei: para onde poderia ter ido? Quem mais ela conhecia?
Fiquei esperando que ela aparecesse. Mas isso não aconteceu. Já não aguentava
mais. Achei que, se ela quisesse, voltaria a me procurar. Mas ela não queria. Na
época, eu já tinha dois filhos⦠O que eu podia fazer?
Ela olha para mim novamente, a emoção avivando sua expressão,
fazendo com que parecesse mais jovem, mais bonita. Sinto uma pontada de
compaixão.
â" O que você acha que aconteceu?
47
â" Não sei. Como saber? Não me surpreenderia se ele a tratasse mal,
mas⦠fiquei surpresa por ela ter tido coragem de ir embora.
A voz dela parece entrecortada na última frase, o olhar perdido na janela.
â" Tenho que ir apanhar os meninos.
â" Kizzy, você pensou alguma vez na possibilidade de Rose estar morta?
Kizzy olha ao redor, a boca entreaberta. Ela parece realmente abalada.
â" O quê? Não! Que coisa horrÃvel para se dizer! Tenho certeza de que
está viva. Talvez tenha apenas⦠viajado para fora do paÃs⦠Não sei.
Margaret afasta-se de mim com a expressão desgostosa.
â" Que maldade dizer isso.
â" O pai de vocês pensa que ela está morta. Depois que sua mãe morreu,
pensou que ela ficaria sabendo⦠entraria em contatoâ¦
Margaret pragueja baixinho com um suspiro.
â" O papai⦠Meu Deus.
Kizzy revira os olhos e se levanta. Seus olhos brilham com as lágrimas
não derramadas.
â" Preciso ir. Eles vão ficar esperando no frio. Ela não está morta.
Na parede de fórmica, há retratos emoldurados de dois garotinhos
sorridentes e rÃgidos, o corte dos cabelos lhes dá a aparência de recrutas em
miniatura. Um deles tem o queixo empinado que lembra a foto de Rose. É seu
sobrinho. Margaret se levanta também.
â" Acho que não há mais nada a dizer. Mas espero que você a encontre, e
espero que Ivo Janko receba a punição que merece.
Kizzy Wilson apanha um casaco de couro e saÃmos. Agradeço-lhe pela
ajuda. Sua irmã continua como uma sentinela obstinada na porta do trailer â"
no caso de eu querer voltar, talvez. Depois de alguns passos, Kizzy para por um
instante.
â" Se eu me lembrar de alguma coisa, ligo para você.
â" Obrigado. Pode ligar, mesmo que seja algo sem importância. Ela
encolhe os ombros sob a chuva fina.
48
â" DeverÃamos ter feito isso há muito tempo. Espero que não seja tarde
demais.
â" Não, não é tarde demais⦠â" Procuro palavras para confortá-la. â"
Farei o possÃvel para encontrá-la.
Ela assente com a cabeça, parecendo triste. Obviamente, eu não lhe
inspiro muita confiança. Ela se vira e, sem dizer mais nada, caminha cabisbaixa
até seu carro.
49
NOVE
JJ
Enfim, chegamos a Lourdes. Estamos todos tensos, imaginando o que vai
acontecer. Chegamos ontem à noite, depois de nos perdermos três vezes pelas
pequenas estradas entre as montanhas. Aqui no sul da França, todas as estradas
têm uma placa indicando o caminho para Pau. Então, todas as vezes que
achávamos que estávamos na estrada para Lourdes, acabávamos, em vez disso,
por nos dirigir para Pau. Foi um pouco engraçado, na verdade, como se
avançássemos em direção a uma paulada de desenho animado. Foi o que eu
pensei, de qualquer maneira, mas não disse nada, já que vovó estava ficando
irritada. Já era tão tarde quando chegamos a Lourdes que seguimos em frente
no escuro, procurando um lugar para estacionar, cegos como morcegos. Não há
qualquer iluminação nas ruas fora da cidade, então estacionamos numa área
escura que parecia sossegada e onde achamos que não incomodarÃamos
ninguém.
Hoje de manhã, fomos acordados às 6 horas por um barulho imenso,
ensurdecedor. Pulei da cama e olhei pela janela â" acontece que tÃnhamos
estacionado num pedaço do terreno de uma fábrica, e todas as máquinas
estavam começando a funcionar. Levantamos bem rápido e, é claro, em poucos
minutos, veio um homem da fábrica berrar com a gente. Não sei bem o que ele
estava dizendo, mas ficamos repetindo âœLourdesâ e apontando para Christo e a
cadeira de rodas do meu tio-avô. Por fim, ele se acalmou e fomos embora dali.
Lourdes é um lugar estranho. O santuário parece bem afastado da cidade
em si. Por alguns minutos, andamos em cÃrculos sem saber para onde ir. Até
que me dou conta de que deverÃamos seguir as placas até âœSanctuairesâ para
chegar à Gruta, onde tudo acontece. Há um monte de igrejas e muitas pessoas.
Muitos ônibus de turismo e pessoas uniformizadas. A maioria delas é idosa.
Algumas realmente idosas. Vejo um desses ônibus cuspindo um monte de
passageiros, e isso leva séculos. Aqueles que não estão em cadeiras de rodas
mal conseguem caminhar e se agarram à preciosa vida à medida que descem
com dificuldade os degraus do ônibus. Todas aquelas pessoas viveram um
bocado. Todos juntos devem somar uns 2 mil anos, só naquele ônibus.
50
Literalmente. Christo tem apenas 6, e todos eles vividos com a doença. Acho
que ele merece um milagre mais do que qualquer um. Espero que Deus anote
isso.
Estacionamos numa área reservada para os ônibus e nos dirigimos
primeiramente à Gruta, já que é lá que dizem que Maria fez sua aparição para
Santa Bernadette, muitos anos atrás. Ivo carrega Christo, e eu empurro meu tio-
avô. É engraçado. Agora que estou aqui me sinto bastante animado. Tenho
realmente a impressão de que algo pode acontecer, muito embora,
secretamente, tenha duvidado até agora. Quer dizer, Bernadette era uma
menina com necessidades especiais â" em outras palavras, uma retardada. E
tinha a minha idade. Não consigo imaginar alguém fazendo uma aparição para
qualquer uma das meninas da escola. A maioria é incrivelmente estúpida ou
chata de verdade, ou as duas coisas. Helen Davies, por exemplo, que em tese é
uma tremenda beata católica, adoraria ver uma aparição diante dela, já que
poderia se sentir ainda mais distinta e poderosa do que de costume. Mas ela é
totalmente preconceituosa em relação aos ciganos. Então, me pergunto o que
Santa Bernadette achava dos ciganos. Meu tio-avô está sempre contando como
éramos perseguidos em algumas partes da Europa, em geral muito mais do que
na Grã-Bretanha, então, na verdade, somos bem sortudos. Durante o
Holocausto, os ciganos eram exterminados a gás junto com os judeus. Mas, se
você fosse apenas 1/4 judeu, contava como não judeu e tinha permissão para
viver. Mas, se fosse apenas 1/16 cigano, você ainda era um cigano e ia
diretamente para a câmara de gás. Dá para ver como odiavam os ciganos. E, na
Romênia, durante séculos e séculos, os ciganos foram escravos de verdade,
comprados e vendidos como gado. Não ensinam isso na escola. Mas meu tio-
avô me contou. Ele sabe um bocado sobre o assunto. Então, talvez, Bernadette
também tivesse preconceito contra os ciganos. Talvez ninguém jamais tenha lhe
perguntado isso. No inÃcio, pensei que deverÃamos pedir um milagre a Santa
Sara â" que é a padroeira dos ciganos, afinal. O santuário dela não fica longe
daqui â" e podÃamos aproveitar e ir para o litoral ao mesmo tempo. Mas
ninguém escuta o que eu digo.
Há uma grade ao longo da lateral da estrada, perto de um penhasco, e a
gruta de Bernadette fica bem em cima. Na verdade, não é possÃvel subir por
causa das grades. As pessoas passam por ali, com ar casual, como se não fosse
nada importante. Fico imaginando se eles acreditam mesmo em como tudo
aquilo é sagrado â" muitos não parecem se incomodar. Há uma espécie de
candelabro, enorme, na parte inferior e atrás das grades. É bonito. Prefiro ele Ã
estátua de Maria que está na Gruta â" que parece de plástico, na minha opinião.
Assim mesmo, fecho os olhos, como vovó, e tento rezar. Ela está com os olhos
51
fechados e seus lábios se movem em silêncio. Quando abro os olhos, Christo
está observando a estátua lá no alto com um semblante totalmente calmo. Eu
me pergunto no que estaria pensando. Nesse instante, meu tio-avô manobra a
cadeira de rodas e se afasta, como se estivesse com pressa. Não diz nada a
nenhum de nós. Saio atrás dele, mas Ivo me segura pelo braço.
â" Deixa â" diz ele.
Vovó abre os olhos e parece zangada.
Depois de olharmos e rezarmos, Ivo se afasta com Christo em direção à s
casas de banho. É lá que os aflitos são banhados na água benta â" supostamente
onde os milagres acontecem, se vierem a acontecer. Antes de chegarmos lá, eu
estava um pouco preocupado em como explicaria as coisas para as pessoas, mas
há um monte de guias por aqui, de diferentes nacionalidades â" na verdade, a
maioria das pessoas jovens que vemos parece estar ali para ajudar e não para
implorar um milagre. É isso que somos â" suplicantes. Ivo achou um que fala
inglês, embora seja, na verdade, um canadense francês chamado Balthazar (que
nome legal!), e ele os acompanhou até a casa de banho. Ivo não o olha nos
olhos, como se estivesse constrangido com toda aquela situação. Eu gostaria
que ele fizesse um pouco mais de esforço. Pergunto a Ivo se quer que eu vá com
eles, mas sua resposta é não. Ele carrega uma toalha sobre os ombros, embora
faça realmente calor e o dia esteja ensolarado, portanto acho que não precisa se
preocupar com a possibilidade de Christo pegar um resfriado. Tenho certeza de
que em Lourdes já pensaram nisso, de qualquer maneira. Talvez haja secadores
de cabelo para os peregrinos. Então, vovó e eu ficamos para trás. Ela faz fila
para tocar os muros da Gruta e olhar a fonte. Faz questão que eu fique a seu
lado.
â" Não quero ver você andando por aà sozinho. E se alguma coisa
acontecer com você?
â" Como o quê?
â" Estamos em outro paÃs. Qualquer coisa pode acontecer!
Ressalto para ela que estamos num lugar de peregrinação cheio de
pessoas religiosas e com pouca saúde. Os cristãos não vão fazer nada de mal
comigo, vão? E, ao contrário dela, sei falar francês. Ela não encontra argumentos
para isso, então prometo que volto logo. Provavelmente, vai ficar séculos
naquela fila. Mal-humorada, acende um cigarrinho.
Balthazar nos disse onde podÃamos conseguir água benta para levar
conosco â" você se serve sozinho, o que é bastante cristão da parte deles, ótimo
52
para Lourdes. É possÃvel comprar pequenas garrafas de plástico e enchê-las. Há
um retrato de Maria nelas e a palavra âœLourdesâ, mas me dou conta de que
você pode usar o que quiser. Então, volto até o trailer e apanho dois galões de
plástico.
Entro na fila para a torneira. A maior parte das pessoas tem pequenas
garrafas de plástico â" principalmente as oficiais, de Maria, embora outras
encham garrafas de refrigerante e de água também. Algumas olham para meus
galões e resmungam, mas, como não sei o que estão dizendo, não me importo.
Quando chega minha vez, seguro os galões sob a torneira e os encho, ignorando
os resmungos atrás de mim. Francamente, é apenas uma torneira saindo da
terra, como uma mangueira num acampamento. Não sei o que faz com que seja
sagrada â" supostamente vem de uma fonte sob a Gruta, mas poderia vir do rio
â" como saber? E muitas pessoas a derramam por todo o lado, portanto não
penso que seja assim tão preciosa. Contas feitas, admito que a) não há
problemas em encher os galões e, de qualquer maneira, b) a doença do Christo é
bem grave, portanto ele provavelmente vai precisar de mais do que as outras
pessoas.
O lado ruim é que, depois disso, saio me arrastando com dois galões de
água. Levo-os de volta aos trailers e os deixo ali com um bilhete bem grande
dizendo que aquilo é água benta, e não deve ser usada para lavagens (ponto de
exclamação!). Desenho também uma imagem de Maria com uma auréola em
cima, só para ter certeza, embora todos na minha famÃlia saibam ler um pouco,
exceto Christo. Melhor não se arriscar, como vovó diz sempre, duas vezes.
Melhor não se arriscar!
Volto à Gruta e encontro vovó, que está esperando, sentada num banco Ã
margem do rio. Não há sinal dos outros. Ela está preocupada com meu tio-avô,
mas estou com tanta fome que não consigo me preocupar com nada enquanto
não comer, então saÃmos em busca de almoço. Enfim, encontramos um lugar â"
já praticamente na cidade, onde é possÃvel almoçar por um prix fixe (isso até a
vovó consegue entender) de apenas 15 francos, o que é barato. E delicioso â"
uma omelete e um monte de batatas fritas finas e crocantes, servidas com
maionese ao lado. Estranho, mas ótimo. Vovó come, e isso me surpreende, pois,
em geral, ela não toca em alimentos de gorjio. Ela está tão bem-humorada que
dou a ideia de vivermos na França. Ela esboça um sorriso cansado, como faz
quando fico falando bobagens divertidas. Acho que ela não se dá conta de que
estou realmente falando sério.
⢠⢠â¢
53
Mais tarde, naquela noite, depois de encontrarmos meu tio-avô â" ele
havia descoberto um bar e ficara conversando com um cigano francês â" e Ivo e
Christo terem retornado da casa de banho, voltamos todos à Gruta. Depois que
escurece, é muito mais bonito â" as velas nos castiçais são todas acesas, e uma
luz suave brilha sobre a estátua de Maria, e assim ela não parece mais de
plástico, mas quase como uma pessoa real, ou uma visão, como a que apareceu
para Bernadette à noite, muitos anos atrás. A nossa volta, ao redor da cidade, há
luzes sobre as Ãngremes colinas arborizadas, e, na mais alta delas, muito acima
de nós, uma enorme cruz iluminada. A noite está morna, agradável e linda.
Insetos fazem barulho nas árvores e há milhões de estrelas â" mais do que isso,
e muito mais brilhantes do que jamais vi em casa.
Um padre reza uma espécie de missa. Sua voz é linda â" ele parece
cantar as palavras em vez de dizê-las. Vovó fica me perturbando, perguntando
o que ele está falando, mas eu não sei. Entendo mais ou menos uma palavra em
dez, porém me agrada não ser capaz de compreender o que ele diz â" isso deixa
minha mente vagar por outros lugares, como se estivesse liberada de seus
hábitos comuns e maçantes. Olho para o alto, para a cruz iluminada e as
estrelas, e para a estátua e as velas. Todas as pessoas a nossa volta murmuram
respostas para o padre. Então, começa uma música vinda de algum lugar â"
suave e confortante, cantada por uma mulher. Quero tanto que isso funcione
que não ouso mais olhar para Christo. Na verdade, isso me faz chorar. Vovó
põe o braço sobre meus ombros. Ela está chorando também.
Naquele instante, acredito mesmo. Acredito em tudo aquilo.
⢠⢠â¢
Finalmente, temos que sair da Gruta e procurar algo para comer. Vovó
empurra meu tio-avô à frente, e Ivo carrega Christo, que adormeceu em seus
braços. Ele deve estar muito cansado depois de toda aquela coisa sagrada. Ivo
me dá um cigarro. Parece bem mais calmo agora.
â" Correu tudo bem no banho? â" pergunto. Não consigo imaginar
mesmo o que deve ter acontecido lá.
â" É. Tudo bem.
â" Que bom que está calor, não é? Tenho certeza de que Christo está
bem.
â" É.
â" Foi a mesma coisa que aconteceu quando você veio antes?
54
â" É. Bem parecido. Agora eles têm mais guias. Ele fica olhando para a
noite escura.
â" Você sabia, na época, quando estava lá, quer dizer, você sabia que
estava sendo curado?
â" No momento, não. Era apenas água. Igual a qualquer outra. Bem
gelada.
â" Foi o que pensei â" digo. Mas me sinto bastante aliviado. Sempre me
perguntei se ele soube imediatamente que estava curado.
â" Balthazar queria que eu voltasse para falar com o padre sobre o que
aconteceu comigo.
â" É mesmo? Talvez seja uma boa ideia.
Tenho algumas dúvidas quanto a isso. Talvez achem que as pessoas lhes
pertencem se obtiveram um milagre. E sei pelo tom de sua voz que ele não irá,
nem agora nem em milhares de anos.
â" O que vocês andaram fazendo, garoto?
â" Comemos omeletes e batatas fritas. Estava ótimo. Ah, eâ¦
Não acredito que eu tenha esquecido até agora.
â" Consegui 18 litros de água benta! Ivo sorri ao ouvir isso. Depois,
começa a rir â" um riso de felicidade, e não de maldade. Ele ri com vontade. Faz
muito tempo que não o vejo rindo assim.
55
DEZ
RAY
â" Sra. Hearne? Meu nome é Ray Lovell. Estou tentando entrar em
contato com seu irmão e seu sobrinho.
â" Meu irmão?
â" Tene Janko. E Ivo. Há um silêncio.
â" Isso é uma brincadeira?
â" Não, de modo algum. Sra. Hearneâ¦
â" O nome é Janko. Srta. Janko.
â" Peço desculpas. Disseram-me que poderia me ajudar a descobrir o
paradeiro de sua famÃlia.
â" Vou ter que retornar sua ligação. Qual é seu número?
Dou-lhe o número do escritório. Luella Janko é uma mulher desconfiada.
Ela liga para mim dez minutos depois, tendo, provavelmente, procurado por
nós no catálogo telefônico. Andrea me passa a ligação.
â" Por que quer falar com eles?
â" É sobre Rose Wood. Rose Janko. Estou tentando descobrir onde ela
está.
â" Está tentando encontrar Rose? Depois de tantos anos?
â" Eu sei.
Segue outra longa pausa. Não fico muito surpreso com toda essa cautela.
Ciganos têm diversas razões para desconfiarem das pessoas que fazem
perguntas sobre suas famÃlias. Enfim, ela concorda em se encontrar comigo
num café no centro da cidade. Provavelmente, trata-se de uma estratégia
disfarçada; assim, ela pode se informar melhor ao redor.
â" Como poderei reconhecer você? â" pergunto.
â" Eu irei me apresentar â" responde ela asperamente. â" Como você é?
56
â" Cabelos pretos, olhos castanhos, 1,80 metro, 40 anos. Aguardo um
segundo. E acrescento:
â" Sou cigano.
Uma pausa se prolonga no outro lado da linha e, então, ela diz:
â" Certo. Vou reconhecê-lo.
⢠⢠â¢
Chego ao café no centro de Reigate 15 minutos mais cedo, mas não
consigo identificar ninguém que possa ser ela. Peço um café, que vem em um
copo comprido â" fraco e horrÃvel como um milk-shake derretido â" e me sento
num canto de onde posso observar a porta. Estou de costas para a parede; de
olho em todas as saÃdas. Algo que não precisei aprender com meu antigo
patrão, já que Doc Holliday já me ensinara isso quando eu tinha 17 anos. Trago
comigo as fotografias de Rose. Há nelas algo de indefinivelmente antiquado,
embora tenham sido tiradas há menos de dez anos. Em parte, pelas roupas e
cabelos dos anos 1970, mas também pela cor das imagens, como se tivessem
sido extraÃdas de um velho filme, elas parecem ainda mais remotas, além do
desgaste quÃmico.
Estou olhando a fotografia de casamento quando uma mulher chega a
minha mesa.
â" Sr. Lovell.
Não é uma pergunta.
â" Olá, Srta. Janko. Sente-se, por favor. Peço desculpas pelo outro dia no
telefone. Fiquei confuso em relação ao nome que você prefere usar.
â" Desde que o Sr. Hearne fez as malas, não me sinto mais
particularmente ligada a esse nomeâ¦
Luella Janko. Para começar, ela é mais jovem do que eu pensava. Tene
deve estar chegando aos 60 anos; seu filho Ivo, aos 30. Luella deve estar no
outro extremo de uma grande famÃlia; parece ter minha idade. Tudo o que sei
sobre ela é que está divorciada do marido cigano, instalada numa casa e que
nunca vê a famÃlia. Ela é o mais próximo que consigo chegar dos Janko.
Fisicamente, é pequena e magra. Os cabelos bem negros são tingidos; ela usa
maquiagem demais, o que a deixa com a pele branca como talco, e um batom
vermelho brilhante. Sua maquiagem tem um quê de máscara â" quase uma
gueixa; um disfarce. As roupas são discretas, porém, elegantes; um conjunto
57
cinza recatado de calça e blusa e uma daquelas bolsas gigantes e disformes que
podem encarar qualquer contingência de meteorologia e circunstâncias. Ela
parece bem adaptada aos gorjio, tal como eu.
â" Então, você está procurando Rose? â" diz, quando pouso o café na
mesa. Ela já está olhando as fotografias.
â" Pode me dizer alguma coisa sobre ela?
â" Que tipo de coisa? Só estive com ela uma vez. No casamento.
â" Certo. E foi a última vez que a viu?
â" A primeira e a última.
â" Sabe onde ela está atualmente?
â" Não.
â" O que você acha que aconteceu?
â" Ela fugiu. Com outro homem, aparentemente.
â" Quem lhe disse isso?
â" Meu irmão e minha irmã.
â" Seu irmão seria Tene Janko?
â" Só tenho um.
â" E a irmã?
â" Kath. Kath Smith.
â" E quando foi isso?
Ela suspira, mas parece estar pensando.
â" Aproximadamente um ano após o casamento, eu acho. Talvez um
pouco mais⦠Não fiz muitas perguntas.
â" Por que não?
â" Por que deveria?
Ela me lança um olhar rápido, depois se vira em direção à janela. Seus
olhos claros têm cor de avelã e o rÃmel em seus cÃlios miúdos ressalta as rugas
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ao redor deles. Sua voz é fraca e entrecortada, quase aguda â" embora isso
possa se dever às circunstâncias.
â" Pensei que era normal fazer perguntas quando o casamento de um
parente acaba.
â" Isso depende da famÃlia, eu acho. Não éramos próximos. Apesar disso,
creio não ter ficado muito surpresa.
â" Com a fuga dela?
Luella Janko sorri ligeiramente e me olha de frente pela primeira vez,
avaliando-me.
â" Olhe, Sr. Lovell⦠suponho que tenha sido por isso que Leon Wood o
contratou, porque você é um de nós? Mas não há muito o que eu possa contar.
Acho que eles só se encontraram umas poucas vezes antes do casamento. Ela
parecia uma pessoa bem sossegada, tÃmida.
Ela faz uma pequena pausa, olhando para baixo.
â" Acho que não devia ser fácil viver com Ivo. E Tene, à s vezes, também
age como um velhaco.
â" Mas ela deixou um filho para trás.
â" É, achou outro homem que lhe interessava. Você sabe como é a vida
para uma moça cigana. Ela ia acabar virando uma empregada doméstica.
â" Pode me dizer onde encontrar seu sobrinho?
â" Não. Posso dizer onde talvez o encontre.
â" Tudo bem, já é um começo. Anoto o que ela me diz; é bem vago,
porém, melhor do que nada.
â" Por que não vê sua famÃlia com mais frequência⦠se não se importa
com a pergunta?
â" Não me importo. Não tem nada a ver com Rose. Na verdade, euâ¦
Nós somos muito diferentes. Eu e Tene. Não quero viver no passado. Não faz
sentido.
O tom da sua voz é casual.
â" E o que é o passado, neste caso?
Ela aperta os lábios.
59
â" Digamos apenas que eles não aprovam o fato de eu morar numa casa.
Eu passei para o outro lado, pelo que dizem.
Ela encolhe os ombros. Seus movimentos, tal como a voz, são bruscos,
quase irregulares.
â" Você acha que Ivo pode ter machucado Rose?
Seus olhos se arregalam. Ela me lança um olhar arrasador e sorri, um
sorriso de piedade pela minha insensatez.
â" Minha famÃlia não deu um fim nela, se é o que está pensando. Achar
que Tene ou Ivo fizeram alguma coisa com ela⦠você está batendo na porta
errada.
Sacudindo a cabeça, ela parece achar aquilo realmente divertido e, ao
morder o lábio, esmaece um pouco o vermelho do batom.
â" Eu estava apenas imaginando. Preciso considerar todas as
possibilidades.
â" âœTodas as possibilidades.â
As palavras parecem se contorcer em sua boca e ela sorri como se eu
fosse um completo idiota: um garotinho brincando de detetive.
â" Tenho certeza de que há muita coisa na minha famÃlia capaz de fazê-la
fugir. Pergunte a eles. Não sei onde Rose está. Se soubesse, eu diria.
Ao se levantar para ir embora, Luella Janko pendura a bolsa no ombro.
Lá dentro, há agora um cartão com meu telefone, perdido naquelas
profundezas, âœpara o caso de ela se lembrar de alguma coisaâ. Não alimento
grandes expectativas.
â" Só mais uma coisaâ¦
Ela se vira, impaciente.
â" Você gostava de Rose? Sua expressão é de autêntica surpresa, como
se nunca houvesse lhe ocorrido pensar nisso.
â" Se eu gostava dela? Só a vi uma vez. Como eu disse, ela era quieta,
não falava muito, parecia um camundongo; não causava muita impressão,
sabe?
60
Luella Janko vai embora, empurrando a porta para o lado com um gesto
violento. Usa sapatos de salto alto â" do tipo que faz o som de estalido
agradável â" que têm o mesmo tom vermelho e cintilante de seu batom.
Rose Wood não parecia causar grande impressão em ninguém, nem
sequer em seu pai. Sinto um pouco de frustração com todos eles â" pelo menos,
os que encontrei até agora. Uma moça discreta de 19 anos desaparece e
ninguém ergue um dedo para achá-la, nem mesmo para comunicar à polÃcia.
De repente, eu me sinto seriamente determinado a encontrá-la, pois
ninguém mais parece, de fato, se importar.
⢠⢠â¢
Quando chego em casa, há uma mensagem de Hen. Ele conversou com
um contato da polÃcia que investiga pessoas desaparecidas. Eles não têm pistas
de Rose, o que significa que ninguém jamais deu parte de seu desaparecimento.
Em outras palavras, ninguém nunca fez questão que ela voltasse. Sei que as
mulheres â" especialmente as mais jovens â" são pouco consideradas nas
famÃlias ciganas; e as noras menos ainda, mas mesmo assim⦠Apesar do que
Luella Janko disse, Rose pode estar morta. Mesmo que não tenha havido crime
algum, ainda assim as pessoas morrem.
Do modo como funcionam as investigações â" qualquer tipo de
investigação â", logo que dispomos de alguma informação, determinamos uma
hipótese de trabalho. Conseguimos mais informações e vemos se elas se
encaixam na hipótese. Se não encaixarem, é preciso reformular a hipótese de
maneira adequada. Mas a informação em si não é realmente de muita utilidade.
Informação é âœouvi dizer queâ, relatos descompromissados, opiniões. É o que
as pessoas falam, e as pessoas têm suas razões para mentir. É preciso
transformar essas informações em fatos â" verificando uma, duas vezes;
utilizando todas as fontes à disposição. Quando dispomos de uma ou duas
informações confirmadas e tudo parece fazer sentido, então podemos começar a
pensar sobre os fatos. Mas mesmo os fatos não adiantam muito â" não se
estivermos falando de um tribunal. É preciso transformar os fatos em provas, o
que quer dizer: documentos autenticados, fotografias, filmagens, perÃcias
judiciárias, confissões e â" em última instância â" testemunhas. É assim que
aprendi a trabalhar como investigador. Não há espaço para especulações ou
sentimentos. O tangÃvel, o racional, o explicável: é assim que é necessário
pensar.
61
O risco é ficar preso a uma hipótese. É preciso ser flexÃvel. Admitir que
podemos nos enganar, e, à s vezes, é possÃvel estar certo e ainda errar. Como
aconteceu com Georgia Millington.
⢠⢠â¢
A secretária eletrônica também contém, para minha surpresa, uma
mensagem de Vanessa. Perguntando de modo casual e cheio de rodeios se eu
gostaria de ir ao cinema naquela noite. Imagino que Madeleine tenha-lhe dado
o número do meu telefone. Isso não me agrada, embora não haja nada de
errado com ela ou a noite que passamos juntos. Na verdade, talvez eu queira
ver um filme. Por que não? Sou solteiro, livre e desimpedido. Posso fazer o que
bem entendo. Anoto seu número num pedaço de papel e depois o guardo no
meio da desordem generalizada da minha mesa. Em seguida, apago a
mensagem. Sem uma mensagem, desaparece a prova de que ela me telefonou
um dia.
Se me sirvo uma boa dose de vodca com água tônica depois disso e fico
sentado e bebendo enquanto a luz se extingue na sala de estar, permitindo que
a escuridão se espalhe e me cubra como uma manta, não é por estar pensando
na mulher que ainda é, em tese, minha esposa. Para ser sincero, não penso em
nada. Para provar o quanto sou sensato, decido ligar para Vanessa amanhã. Se
resolvi assim, não importa o que eu pense ou faça nesta noite, já que amanhã
me comportarei normalmente.
⢠⢠â¢
O álcool é ótimo, não é? Sem ele, acho que já teria me matado. Hen
concordaria comigo sobre o álcool, embora tenha parado de beber há anos.
Quando nos encontramos pela primeira vez, Hen era corretor de ações.
Eu o detestei imediatamente. Ele era tudo o que eu não era â" privilegiado,
bem-educado, confiante (na superfÃcie, ao menos), com aquela voz arrastada e
penetrante que se ouve do outro lado do salão e das encostas cobertas de urze.
E havia eu â" o cigano mestiço, que havia conseguido com dificuldade concluir
a escola politécnica e obter o diploma em Administração. Estava trabalhando â"
verificando alguns desvios numa pequena firma de Londres. Eu tinha jeito para
os números, então Eddie me passava esse tipo de coisa, mesmo depois de eu
parar de trabalhar para ele. Minha investigação rapidamente se afunilou e
chegou a um ponto: Henry Hamilton-Price. Logo descobri qual era o problema:
ele andava escondendo seu vÃcio em álcool e se esforçando para manter sua
elegante esposa e duas filhas pequenas. Ele havia tomado âœemprestadoâ algum
dinheiro da firma e, inevitavelmente, a coisa começou a se elucidar. Não houve
62
necessidade de muita vigilância direta; então, fiquei surpreso quando, numa de
minhas visitas disfarçado à firma, Hen me encurralou no escritório do vice-
presidente.
â" Eu sei quem é você â" disse ele. â" Você trabalha para uma agência de
detetives particulares. E sei o que está fazendo aqui.
â" Não tenho autorização para discutir minhas atividades â" entoei.
Sempre gostei de dizer isso.
â" Por favorâ¦
Foi então que percebi que ele não estava me ameaçando, estava me
implorando.
Eu não estava acostumado que me implorassem qualquer coisa, ainda
mais alguém em posição social tão obviamente superior à minha. Aquilo era
inebriante. Ele disse que logo estaria em condição de reembolsar o dinheiro; se
perdesse o emprego, a esposa o deixaria, levando as crianças. Então, depois de
um minuto me encarando intensamente â" acho que eu não tinha dito nada â"
ele parou e se recompôs, como se estivesse se forçando a manter-se ereto.
â" Desculpe. É claro que você deve fazer o que considerar certo.
Virando-se rapidamente, ele saiu do escritório, deixando-me perplexo.
Ele havia sido muito convincente. Não duvidei de sua angústia sequer um
segundo. Eu o dedurei assim mesmo. É claro que ele foi demitido, mas a firma
absteve-se de abrir um processo judicial, algo bastante decente da parte deles.
E, para a surpresa de todos, especialmente sua, Madeleine ficou a seu lado. Ela
merece crédito por isso.
Localizei-o uma semana mais tarde, pois não tinha entendido como ele
havia descoberto meu disfarce, e lhe ofereci trabalho. Ele ficou profundamente
comovido que alguém pudesse voltar a confiar nele, sabendo o que tinha feito,
e, de minha parte, fiquei comovido com o fato de ele ser tão completamente
despretensioso.
Ele nunca me fez sentir como se fosse melhor do que eu; na verdade,
sempre me deu a impressão de que me admira â" minha independência, minha
habilidade profissional e, antigamente, meu casamento com Jen. Ele costumava
achar â" como ele dizia â" que formávamos o casal perfeito.
Eu também.
63
Dizem que a bebida nos mata, mas não mata; senão, estarÃamos todos
mortos. É a tristeza que mata: se essa tristeza for tão imensa e opressora, você
simplesmente não suporta ficar sóbrio ou mesmo consciente.
Pensei, quando ela me deixou, que minha tristeza não podia ser maior;
que a dor não podia ser mais aguda e que eu não conseguiria sobreviver a ela.
Mas eu estava enganado, pois aqui estou: bebendo, reconheço, mas não
alcoólatra. Sei a diferença. Quando a coisa fica ruim, e, mesmo após dois anos,
ela ainda piora, bebo até que isso já não me machuque tanto.
⢠⢠â¢
A primeira coisa que descobri sobre Jen foi que tinha um sopro no
coração. Eu tinha oito anos e estava andando pela rua depois da escola quando
uma menina que já tinha visto no bairro â" eu sabia que seus pais tinham uma
lanchonete chinesa ali perto â" veio até mim. Ela não mostrava nenhum sinal de
timidez.
â" Tenho um segredo no meu coração â" anunciou.
â" Um quê?
â" Um segredo.
Ela pôs a mão sobre seu plexo solar.
â" Não é aà que fica o coração. Ele está aqui â" falei, batendo com a mão
em minha clavÃcula.
â" O meu fica aqui â" insistiu. â" Ele tem um segredo.
Refleti por um instante.
â" Por que está me dizendo isso?
â" O médico falou que isso pode me matar. â" Ela não demonstrava estar
chateada. Mas orgulhosa, por ser uma escolhida. â" Mas é provável que não.
â" Ah.
Eu estava perplexo.
â" Ele falou que era um segredo?
â" Ele disse⦠â" Ela franziu as sobrancelhas, concentrando-se. â" Talvez
não â" concedeu. â" Mas ele é muito, muito sossegado. Só dá para escutar com
um aparelho.
64
Seus olhos eram bem escuros, e os cabelos pretos, brilhantes, com uma
surpreendente franja quadrada, geométrica. Fiquei fascinado por eles; nunca
tinha visto cabelos tão lisos e sedosos, como os de uma boneca.
â" Bem, tchau.
Ela saiu correndo por uma rua transversal.
Seus pais tinham chegado aqui no paÃs, vindos de Xangai, fugindo da
Revolução. Jen era a caçula dos filhos. Com certeza, ela nunca tinha ouvido a
palavra âœsoproâ, e, quando a mãe lhe explicou, descreveu-a como a âœmaneira de
falar quando se conta um segredoâ. Após esse encontro casual, eu a via nas ruas
de vez em quando, mas nunca nos falamos. Depois, fomos para escolas
diferentes e mudamos para cÃrculos diferentes. Só anos mais tarde, depois de
termos saÃdo de casa e só voltarmos para as visitas obrigatórias aos pais,
acabamos nos cruzando outra vez â" quase na mesma esquina de nosso
encontro anterior. Seus cabelos ainda eram maravilhosos, embora agora presos
com nós pontudos que partiam em todas as direções, e uma sombra púrpura e
fulgurante sobrevoava seus olhos oblÃquos; muito incomum naquela época
hippie. Ela parecia incrÃvel. Eu não conseguia me lembrar de seu nome.
â" É Jen!
Ela estava um pouco amuada, como se se sentisse ofendida. Eu
realmente não queria ofendê-la.
â" Mas, pelo menos, me lembro do sopro do seu coração. Você o
chamava de âœsegredo do seu coraçãoâ.
Seus olhos se abriram com espanto e ela começou a rir.
â" E você é o menino cigano.
Assenti. Ficamos rindo.
â" Meus pais me impediram de fazer esforços durante anos. Cheguei a
ficar bem gorda em uma época.
â" Mas você está bem agora?
â" Não cheguei a ficar tão mal assim!
â" Quero dizer⦠seu coração. Seu coração está bom agora?
â" Acho que sim. O sopro se acalmou. Na verdade, sou bem forte.
Ela não estava mentindo quanto a isso.
65
Assim foi o começo, embora só tenhamos começado a sair juntos alguns
anos depois. Ela estava namorando alguém que também era da escola de artes.
Alguém mais animado e boêmio que eu. E eu tinha uma namorada, embora não
consiga lembrar qual delas, de uma série de relacionamentos de médio prazo
em que eu me encontrava na época. Mas acabamos ficando juntos, pois é isso
que se faz quando se encontra uma pessoa que faz com que tudo ganhe sentido;
que sabe o que está pensando antes de você dizer; cujas frases você pode
concluir e ela nem se importa.
Não, tudo isso está errado. Parece sem graça demais. Eu me apaixonei
por Jen porque ela era a parte que faltava em mim, e eu era a que faltava a ela.
Não havia nada a ser ponderado â" claro que um dia morarÃamos juntos; claro,
um dia sairÃamos para nos casar, sem dizer a ninguém â" imaginando os olhos
revirados e a desaprovação (mais da famÃlia dela do que da minha) â" e foi
assim que entramos furtivamente no cartório, rindo feito crianças. Nunca houve
a menor dúvida. VivÃamos numa república de duas pessoas, falando nosso
próprio idioma e estabelecendo leis próprias. O que mais há a dizer? Falar sobre
a felicidade é enfadonho.
Talvez fosse perfeito demais. Talvez fôssemos autossuficientes demais,
estivéssemos satisfeitos demais. Não sei, realmente não sei. Deus sabe que
tentei refletir sobre isso com bastante frequência â" como pode a pessoa em que
mais se confia trair você? Eu não fazia a menor ideia. É irônico, eu sei: o
detetive particular que descobre adúlteros todas as semanas não fazia a menor
ideia de que sua esposa o estava enganando.
⢠⢠â¢
A escuridão é quase absoluta na sala. É o momento do dia em que os
franceses, assim me disseram, chamam de âœentre le chien et le loupâ â" entre o
cão e o lobo. Primeiro, o sol se põe; depois, o crepúsculo se intensifica, quando o
céu atinge uma tonalidade de azul-escuro que ainda não é preto, o cão se retira
e o lobo está esperando nos bastidores, ou caminhando em nossa direção na
próxima esquina. A silhueta na sombra pode ser a de um amigo ou adversário.
Eu me pergunto quanto tempo dura o momento que não pertence a nenhum
dos dois. Olho pela janela, a fim de descobrir na árvore que preenche a maior
parte da minha visão. É uma árvore cinza, com poucas folhas ainda, que corta o
céu em pedaços de um quebra-cabeça que não se encaixa direito. Aos poucos,
os pedaços perdem sua cor. É agora que o lobo aparece? Quando a distinção
entre o tronco da árvore e o céu começa a se turvar?
É⦠agora?
66
Será que eu perdi?
Quando a vi outra noite, tive que apoiar a cabeça nos joelhos, até que
aquela impressão de que eu estava virando ao avesso dentro de mim tivesse
passado. Nem mesmo sei a razão que me levou a voltar à casa que compramos
juntos e costumávamos dividir.
Teoricamente, deveria estar seguindo em frente, como as pessoas não
param de dizer. Mas sou um homem de hábitos. Peguei o hábito de amá-la. E,
de qualquer maneira, quando seguimos em frente, para onde devemos ir?
67
ONZE
JJ
Estou determinado a vir morar na França quando tiver idade suficiente.
Eu me pergunto se conseguirei persuadir mamãe a vir morar aqui também. É
claro que terei que aprender a falar bem o francês â" pelo visto, sempre que
tento pedir alguma coisa não consigo falar nem de longe tão bem quanto eu
achava. E me pergunto se nossa professora de francês já veio à França alguma
vez â" quando ela fala, soa completamente diferente dos franceses. Alguém
devia lhe dizer isso.
Um dia antes de nossa chegada à velha e chata Inglaterra, é o aniversário
de vovó. Ela está com 58 anos. De certa forma, parece muito, mas suponho que
não seja de fato, não se compararmos com aquelas pessoas extremamente
idosas se arrastando em Lourdes. Comprei um presente para ela quando
estávamos lá. Não conseguia descobrir o que lhe dar antes de sairmos, então me
arrisquei a tentar comprar algo por lá, o que poderia ter dado incrivelmente
errado. Mas acabou que havia várias lojas em Lourdes. Não surpreende que
haja também vários lugares vendendo artigos religiosos: incontáveis estátuas de
Maria, da Gruta e de Santa Bernadette (Bernadette é sempre menor e mais
barata que Maria). Numa dessas lojas, vovó pegou uma nécessaire com o
desenho da Gruta. Estava escrito nela âœFique âdivinamente" limpo!â Dentro,
vinham uma esponja, espuma para banho, um sabonete e essas coisas, todos
com frases engraçadas como âœO asseio nos aproxima da religiosidadeâ e âœSeu
pecador imundo!â. Vovó riu bastante. Era como se estivessem dizendo: âœMuito
embora sejamos cristãos, ainda temos senso de humor!â Então, voltei e comprei
para lhe dar depois. Comprei também uma pulseira com enfeites para dar Ã
mamãe, e um saquinho de balas de hortelã feitas com água benta (para quando
seu hálito estiver infernal?).
Quando vovó abre seu presente â" fiz com que eles embrulhassem num
papel bonito na loja, depois de um bocado de mÃmica â", primeiro ela franze as
sobrancelhas, depois sorri e me abraça. Não sei se ela gostou de verdade. Ela
pareceu gostar na loja, mas agora não tenho certeza. De qualquer maneira, é o
único presente que ganhou, além daquele que Christo deu, e isso porque eu
comprei para ele dar para ela também â" é um espelhinho, do tipo daqueles que
as mulheres levam nas bolsas, com o fundo esmaltado coberto de flores azuis. É
realmente bonito. Quando o abre, ela sorri imediatamente e se abaixa para dar
68
um beijo em Christo. Ele sorri, satisfeito. Obviamente, ela sabe que Christo não
o comprou. Talvez pense que tenha sido Ivo, embora saiba que não é do feitio
dele. Meu tio-avô fica dizendo âœGarota, você não parece ter passado dos 21â, o
que a faz rir (não é verdade), mas ela está contente. Até Ivo sorri e lhe deseja um
feliz aniversário. Estavam todos com um bom humor razoável, ao menos uma
vez.
No entanto, tenho a impressão de que estamos na expectativa. Temos
que nos comportar o melhor possÃvel, já que estamos aguardando um milagre, e
é melhor não fazermos nada que possa estragar tudo. Fico observando Christo
para ver se alguma mudança acontece com ele. Tenho certeza de que os outros
também estão fazendo isso. Sei que só faz alguns dias que ele foi banhado na
água benta, mas, ainda assim, não dá para parar de pensar. Alguns milagres,
supostamente, acontecem de imediato â" pessoas erguendo-se de suas cadeiras
de roda e andando; pessoas cegas, de repente, conseguindo enxergar â" esse
tipo de coisa. Mas até agora não consigo ver mudança alguma. Temos que dar
um tempo para acontecer, eu acho. É isso, ou então tudo não passa de uma
imensa bobagem, e não quero mesmo pensar nisso.
Mas, quanto mais nos afastamos de Lourdes, mais ridÃculo tudo isso me
parece. As estátuas de plástico que são feitas em Taiwan (eu verifiquei); a
multidão de pessoas idosas, lentas e doentes, os guias com seus olhares ávidos e
sorrisos amistosos. As garrafas de refrigerante cheias de água da bica sagrada.
Não sei. Claro que damos água benta para Christo beber todos os dias, e ele
parece gostar. Eu me pergunto se ele se dá conta do que está por trás disso tudo
â" ultimamente, ele não tem falado. Não sei o que pensa; talvez acredite nisso
â" pois tem 6 anos e nós dizemos que a água benta vai fazê-lo melhorar, e nós
somos adultos, portanto devemos ter razão. Mas não dizemos nada uns aos
outros sobre milagres e essas coisas. De uma maneira estranha, parece que
estamos encenando uma peça para um menino de 6 anos. Uma peça com atores
não muito bons, mas desesperados.
Fora o aniversário da vovó, nada mais importante acontece no caminho
de volta. Ivo e meu tio-avô fizeram com que fôssemos a uma aldeia chamada
Saint-Jean-sur-Alguma-Coisa. Fica um pouco fora do nosso caminho e temos
que pegar umas estradinhas para chegar até lá. Fica no meio do trajeto â" algum
lugar no meio da França, porém mais montanhoso do que o caminho pelo qual
descemos. Região rural â" desolada, sem o calor e as árvores lá do sul. Vovó e
eu os seguimos quando eles saem dessa pequena aldeia e, então, param o
trailer. Ela se sente exausta, pois está levando mais tempo por esse caminho e se
sente cansada de estar num paÃs diferente. Este lugar não é bonito, como tantos
69
outros pelos quais passamos, e não consigo entender o motivo para alguém vir
até aqui. Ela suspira e acende um cigarrinho.
â" Já poderÃamos ter passado de Paris a essa hora.
Salto e vou até o trailer do meu tio-avô. Ivo sai com Christo no braço.
â" Pode ficar um pouco com ele? Você vai com o JJ, ok? Seguro Christo
no colo.
â" Por que paramos aqui?
Ivo me lança um olhar que faz com que eu me afaste sem perguntar
mais nada.
â" Vamos sentar ali na grama? Vamos.
Ivo volta para o trailer onde seu pai está e fecha a porta. Talvez estejam
brigando de novo â" eles têm brigado um bocado ultimamente. Vovó se
aproxima enquanto caminhamos à margem da estrada. Tem chovido, está tudo
molhado e não há um lugar bom para sentarmos.
â" O que eles estão fazendo agora? â" pergunta para mim.
â" Sei não.
â" Que inferno. Só quero ir para casa, e você? Está com saudades de sua
mãe?
â" Estou.
Sinto falta de mamãe, mas, por outros motivos, eu queria que não
estivéssemos voltando para casa, o que significa voltar para a vida comum e
chata, para a escola e os transtornos dos exames no ano que vem.
â" Acho que seria ótimo viver na França.
Eu não quis dizer isso realmente, mas saiu antes que pudesse me conter.
Vovó retira o cigarrinho da boca e olha para mim fixamente, como se eu
acabasse de dizer: âœNão seria ótimo se tivéssemos duas cabeças?â
â" Morar aqui e fazer o quê?
â" As pessoas fazem isso. Vêm e vivem aqui. Basta aprender francês, só
isso.
â" Ah, é?
70
Ela esboça um sorriso de desdém e olha para mim daquele modo
irritante que os adultos costumam olhar â" como se houvesse tantas coisas que
você não sabe, e que não vale a pena perder tempo explicando.
â" O que há de errado nisso? Vovó encolhe os ombros, ainda sorrindo
com desdém.
â" Eu conseguiria. Sei o que está pensando, e você está enganada.
â" Ah, sabe o que estou pensando, é? Acabo de me meter numa situação
delicada, mas alguma coisa me faz prosseguir.
â" Sei.
Ela aponta o dedo na minha cara.
â" Você não tem a menor ideia do que estou pensando, rapazinho.
â" Você está pensando que pessoas como nós não se mudam para a
França. Está pensando que o estúpido do JJ já está novamente com a cabeça nas
nuvens. Ele vai aprender um dia. Quando sair para vasculhar o lixo com o avô,
ele vai arrancar todas essas baboseiras de gorjio da sua cabeça.
Minhas bochechas estão ardendo por causa da ousadia quando digo isso.
O rosto de vovó fica tenso.
â" Não ouse desrespeitar seu avô. Quem você acha que está pagando sua
preciosa educação? O vovô e seu caminhão, ele mesmo.
â" Na verdade, a escola é gratuita.
â" Gratuita? Na sua idade, você deveria estar trabalhando, e não ficar
sentado o dia todo. Deveria estar ajudando sua mãe. Agir como um homem.
Mas, não. Você é como seu pai⦠um gorjio vagabundo!
Por um momento, achei de verdade que vovó fosse me bater. Na
verdade, tinha me esquecido de que ainda estou com Christo nos braços e
estamos discutindo por cima da cabeça dele, por mais ridÃculo que pareça.
Vovó deve estar furiosa â" raramente ela solta palavrões, embora sempre
que está zangada comigo ela mencione meu pai gorjio e vagabundo. E isso é
muito injusto já que: a) não posso fazer nada em relação ao meu pai; b) nem ao
menos sei seu nome, não sei nada sobre ele. Assim sendo, o que posso
responder?
71
Neste exato instante, Christo ergue o dedo e aperta meu queixo. É sua
maneira de dizer âœparem de gritar vocês doisâ.
â" Desculpe, Christo. Isso é estúpido, não é?
E vovó diz:
â" Isso mesmo, Christo. Desculpe. Todo esse tempo dirigindo está me
deixando louca. Quero ir para casa.
E, ainda me encarando, diz:
â" Acho que todos nós precisamos voltar para casa.
Ivo sai do trailer e acende um cigarrinho. Vem andando em nossa
direção. Vovó diz a ele:
â" Vamos indo, pelo amor de Deus. Meu neto está me deixando louca.
â" Desculpe, tia Kath. Eu e papai precisávamos conversar. Entende? A
razão que nos levou a parar aqui é queâ¦
Ele olha a estrada atrás dele.
â" É aqui que Christina morreu. Nesta estrada.
â" É mesmo? â" digo.
â" Por Deus, Ivo â" diz vovó, fazendo o sinal da cruz. â" Você podia ter
dito antes.
Ivo encolhe os ombros.
â" Podemos ir visitar a sepultura se quiser â" acrescenta ela.
Ivo olha para minha orelha direita.
â" Não â" responde. â" Ela foi⦠cremada. Você entende?
â" Ah. â" Fico admirado de novo.
Olho para a estrada, em todas as direções, achando que devÃamos colher
algumas flores e deixá-las ali. Mas não parece haver nenhuma ao redor â"
apenas ramos de capim. Não se pode oferecer capim a alguém que morreu.
Ivo estende os braços para pegar Christo, que logo encosta a cabeça no
ombro do pai. Vovó e Ivo saem caminhando ao longo da estrada, conversando
em voz baixa e me ignorando. É claro que vovó se lembra de Christina. Eu não
72
â" eu tinha só 2 anos quando ela morreu, nem ao menos a conheci, já que isso
aconteceu quando mamãe ainda estava sofrendo lá em Basingstoke.
Procurando entre o capim, descubro algumas flores bem pequenas e,
quanto mais eu olho, mais encontro. Acabo me distraindo e quase me esqueço
do motivo de estar colhendo flores. Enfim, consigo um buquê respeitável, com
algumas folhas de samambaia e tudo. Está bem bonito. Penso nessa pessoa que
nunca conheci. Não sei se gostava de flores, mas quem não gosta? Volto até
onde estão os outros. Estão entrando nos trailers e, quando chego lá, não há
ninguém para ver as flores.
Vovó berra de seu Land Rover:
â" JJ! Vamos embora. O que está catando por aÃ? â" Ela dá partida no
motor, acelerando de modo ameaçador. â" Até mais ver, então!
Deixo as flores à beira da pista dizendo âœIsso é para você, Christina, do
seu sobrinho JJâ. E entro no trailer.
73
DOZE
HOSPITAL DE ST. LUKE
As visões voltam de tempos em tempos. Basta eu achar que estou livre
delas. Elas atacam sem aviso, e se vão com a mesma rapidez. Vejo coisas que sei
que não existem. Na maior parte das vezes â" e não sei o que fiz para merecer
isso â", as visões são horrÃveis, aterradoras. Nada a ver com os efeitos de ácido,
que eram, até onde me lembro, magnÃficos, estúpidos e extremamente
engraçados. Ainda que desta vez, antes de a mulher-cadela chegar, houvesse
algo de maravilhoso em relação às cortinas na janela. Resplandeciam
extraordinariamente. Não é uma boa descrição, mas não há palavras para
descrever essas coisas.
Ela é uma estranha, mas há algo de familiar nela. Uma familiaridade
desagradável â" como quando você vê um homem de meia-idade na rua e se dá
conta de que, na última vez que o viu, vocês dois estavam na escola; e que seu
rosto deve ter mudado tanto quanto o dele. A criatura está montada em mim,
como antes, e ainda assim me sinto atormentado pelo medo de que ela não
quisesse fazer aquilo, que, de algum modo, eu a obriguei. Há um clima deâ¦
relutância, eu acho. A relutância pode até ser minha, mas me sinto impotente
para me conter. Então, no sonho â" por falta de palavra melhor â", ela começa a
me devorar. Seus dentes são longos. Ela tem garras e muitas cabeças. Não é
mais uma mulher e, sim, uma criatura de terror. Mas estou paralisado e mudo,
incapaz de salvar a mim mesmo. A coisa toca no meu peito â" a dor é
abominável â" e arranca alguma coisa de dentro de mim. É minha vergonha, a
parte que mais desprezo em mim; aquela sem a qual não posso viver.
Por que estou pensando âœRoseâ?
⢠⢠â¢
É um alÃvio quando a Dra. Zybnieska entra com sua prancheta e senta-se
na cadeira a meu lado. Ela parece especialmente satisfeita consigo.
â" Muito bem, Ray, como estamos esta manhã?
O tom de voz dela sempre me surpreende. Tento não vacilar.
â" Tudo bem â" murmuro. Minha voz soa normal a meus ouvidos agora.
â" Ã"timo. Algum pesadelo esta noite?
74
Balanço a cabeça com firmeza.
Inclinando-se, ela pega minha mão esquerda e a examina.
Escreve alguma coisa na prancheta. Depois, olha o gráfico preso a minha
cama.
â" E a mão direita? Nada ainda?
Viro a cabeça e olho para minha mão. Não consigo erguê-la, portanto é o
único jeito de saber se ainda está ali.
Ela pega um instrumento de metal e o pressiona contra meu pulso. Não
sinto nada. Ela anota.
â" Ok. Finalmente recebemos alguns resultados dos exames. â" Ela
parece animada. Como alguém pronto a desferir uma frase de efeito. â" O
exame toxicológico mostra vários vestÃgios de alcaloide tropânico em seu
organismo!
Não digo nada, já que não sei o que dizer. Ela prossegue:
â" Encontramos traços de algo que parece ser escopolamina,
hiosciamina⦠também ergotamina. Muito interessante. Isso certamente
explicaria as alucinações que anda tendo.
Alucinações. Graças a Deus. Obrigado, Senhor. Não é real. Nunca houve
nada, nem ninguém. Tento dizer isso a mim mesmo.
â" Você sabe o que são? â" pergunta ela.
â" Não.
â" Alcaloides derivados de plantas venenosas. Mais especificamente, são
psicotrópicos, na verdade. Você estava fazendo alguma experiência? Uma
âœviagemâ? Talvez uma overdose acidental?
Balanço a cabeça vigorosamente, na medida do possÃvel. Nos meus
remotos dias de experimentações, nenhuma bad trip chegou perto desse horror.
â" Você deve ter ingerido duas ou três espécies de plantas tóxicas para
apresentar estes resultados. Tem alguma ideia de como isso aconteceu? Você
planta seus próprios legumes? Colhe cogumelos no bosque?
Outra vez sacudo a cabeça, pensando que ela devia ver o conteúdo da
minha geladeira. Como papai, que, depois de comer alimentos silvestres
75
quando criança, aderiu à comida processada industrialmente com fervor
religioso, sei que o que é natural nem sempre é o melhor.
Ela faz outra anotação.
â" Estranho. Ergotamina⦠Você sabe o que é isso?
â" Não.
â" É mais conhecida como ergot.
O que tampouco me diz alguma coisa. Ela parece animada. Do meu
ponto de vista, não acho que seja tão animador.
â" O ergot é um fungo que cresce em cereais. Onde não são utilizados
fungicidas, isso pode ocorrer, em especial nos verões úmidos, como agora. Mas,
provavelmente, não há um caso de intoxicação por ergot neste paÃs desde a
Idade Média!
Ela ergue os ombros, sorrindo.
â" Portanto, você é um caso muito raro.
â" Obrigado.
â" O LSD é um derivado criado pelo homem. Talvez algumas pessoas
ainda usem ergot para ficarem doidonas. Foi isso que você fez?
â" Não.
â" Nenhuma ideia de como pode ter ingerido isso?
â" Não.
Eu digo não, mas é claro que já faço uma ideia.
â" Isso vai passar⦠vou me recuperar?
â" Tudo indica que sim. O quadro é bem complexo⦠a paralisia é
incomum, embora haja casos documentados de intoxicação por ergot
originando paralisia e alucinação. Algumas pessoas acreditam que casos de
bruxaria na Idade Média se deviam ao consumo de pão contaminado com
ergot. Talvez todos os casos. Você teve sorte. Todos esses componentes podem
ser fatais.
â" Vou conseguir me lembrar do que aconteceu?
76
â" Teremos que esperar para ver. Mas, com a intoxicação por
escopolamina, a perda da memória costuma ser permanente.
â" Isso também é um fungo?
â" Não, vem das plantas da famÃlia do estramônio. Beladona e
meimendro. Todas as partes da planta são venenosas, mas têm um gosto
amargo, portanto é difÃcil serem consumidas acidentalmente. Provocam delÃrio,
mas, sendo altamente tóxica, induz a overdose.
Ela está me observando; suponho que seja para ver se eu começo a corar
de vergonha. A última coisa de que me lembro é estar dentro do trailer. Cerveja.
Comida. Um momento de paz. Sorrindo. Falando. Conversando. Era tudoâ¦
normal.
Balanço a cabeça, querendo dizer que eu não sei; talvez. E, então, algo
surge repentinamente em minha mente.
â" A intoxicação por ergotina é a mesma coisa do que fogo de Santo
Antônio?
â" Também é um caso de ergotismo, sim. Sorte sua que não ingeriu o
suficiente para isso. O fogo de Santo Antônio é a forma gangrenosa do
ergotismo. Os vasos capilares se contraem, as extremidades dos membros ficam
secas e dormentes, mas quase sempre é fatal. Você ficou com alguma
escamação, mas só isso.
Devo parecer confuso, pois ela pega minha mão esquerda novamente.
Virando-a, me mostra a pele no meu antebraço, descascando como se tivesse
pegado sol demais.
â" Está vendo? Pouco sangue irrigando a pele. Nada sério no seu caso.
Você simplesmente ingeriu demais, provocando a forma convulsiva: espasmos
musculares, fraqueza, alucinaçõesâ¦
â" Entãoâ¦
â" Realmente não sei como exprimir isso. â" Se você toma essas coisas
por vontade própria, o que pode esperar em seguida?
â" Não sou especialista nesse tipo de coisa, mas suponho que aconteça
uma viagem, alucinações. Mas seria correr um sério risco.
â" É possÃvel usá-las para envenenar alguém? Matar alguém?
Ela parece transtornada.
77
â" Acho que se você quisesse realmente matar alguém, daria uma dose
mais elevada. Você recebeu uma dose pequena. Escopolamina é usada para
fazer as pessoas esquecerem. De onde eu venho, eles costumam dar isso
durante o parto. É chamado trombeteira. As mulheres esquecem a dor.
â" Então eu não vou me lembrar?
â" Talvez não.
Seu olhar é analÃtico, avaliando alguma coisa. Talvez esteja a ponto de
me dizer algo, mas não diz.
⢠⢠â¢
Tenho que pensar sobre isso. Reunir todas as peças. Há uma lacuna na
minha memória, mas há coisas de que consigo me lembrar. Não tenho dúvida
delas. E talvez â" não vou além disso, apenas talvez â" o fato de eu estar aqui,
nesta condição, seja outro elemento de prova. Pois só assim isso faz sentido.
Eu me pergunto quando Hen voltará a me visitar. Ele falou sobre isso?
Tenho certeza de que preciso falar com ele. Não havia algo que eu precisava lhe
contar? Alguma coisa sobre Rose⦠Alguma coisa importante, mas escondida,
como um litoral distante, oculto pela neblina.
Então, consigo me lembrar. E, embora Hen ainda não saiba (como
poderia, se não lhe contei?), não parece tão importante agora, para falar a
verdade. Não se compara ao irresistÃvel desejo de dormir.
Isso foi há tanto tempo⦠Afinal de contas, não é como se, ao encontrá-la,
eu a tenha salvado.
Estou longe, longe demais para isso.
78
TREZE
RAY
O lugar fica numa estrada secundária da A32, não muito longe de
Bishop"s Waltham, em Hampshire. A estrada começa a descer a partir de um
ponto e há uma curva semioculta pelas cercas vivas que cresceram demais, em
direção a um trecho desolado de mata. Um cinturão de sempre-vivas, plantadas
como proteção contra o vento, assegura que os passantes não façam nada a não
ser passar por ali. É preciso seguir por um atalho estreito e anguloso para
encontrar o terreno onde os Janko moram. Se não tivessem me dito que os
trailers estavam ali, eu nunca os teria localizado. Sei que essa terra pertence a
uma fazenda e um fazendeiro a aluga para eles. É bem diferente do
acampamento municipal onde encontrei Kizzy Wilson. Aqui, os trailers â"
conto cinco deles â" estão dispostos num cÃrculo irregular, os eixos dos
reboques para fora. As janelas grandes ficam frente a frente. Mas há pequenas
árvores aqui e ali entre eles; somente o espaço central está descampado e ali há
vestÃgios de uma fogueira. Outros veÃculos â" uma BMW de modelo recente e
um Land Rover â" estão estacionados atrás dos trailers. Deve haver outros
veÃculos em algum lugar, a julgar pelas marcas profundas e largas de pneus
sobre a lama. Há também uma pilha de sacos de lixo perto do trecho por onde
passei, mas, fora isso, está bem limpo. Parece não haver ninguém por ali. Nem
mesmo cachorros. Mas escuto o murmúrio de um pequeno gerador e vejo um
pouco de fumaça escapar da chaminé de um dos trailers. Saio do carro, bato a
porta e aguardo que alguma coisa aconteça.
A porta do trailer maior, com a carroceria cromada e a pintura refletindo
a claridade, se abre. Uma mulher pequena e corpulenta sai por ela. Parece ter
quase 60 anos, os cabelos penteados e tingidos de preto se agitam sobre seu
rosto excessivamente maquiado.
Ela usa um conjunto de calça e blusa marrom e amarelo-claro. Traz um
cigarro entre os dedos.
â" Este é um terreno particular. A entrada é proibida.
79
â" Oi. Eu me chamo Ray Lovell. Estou procurando Ivo e Tene Janko.
Disseram que estariam por aqui.
Ela me observa de cima a baixo por alguns instantes.
â" É mesmo? E quem lhe disse isso?
â" A irmã de Tene, Luella.
â" Lulu! Meu Deus! Você viu Lulu?
â" Ah⦠eu a vi.
â" Qual é mesmo seu nome?
â" Ray Lovell. E a senhora é a Sra. Smith? Sua boca se contorce â"
obviamente, não está a fim de responder.
â" E do que se trata?
â" Bem, se trata de⦠Estou tentando encontrar Rose Wood, a esposa de
Ivo.
â" Que inferno! Ela não está aqui! Você perdeu seu tempo.
â" Sei que faz muito tempo. Eu gostaria apenas de conversar com eles.
Sou detetive particular. Preciso falar com todas as pessoas que a conheciam.
Ela parece refletir por um momento: um minuto durante o qual me
examina cuidadosamente. Sem dúvida, registrou meu sobrenome cigano, mas,
mesmo sem isso, ela saberia só de olhar para mim. Penso no que Leon disse e
como ele tinha razão: um gorjio não teria a menor chance.
â" Espere aà â" diz enfim, dirigindo-se a outro trailer, o que se encontra
mais afastado da entrada.
Dou uma olhada ao redor. A mulher â" que suponho se tratar de Kath
Smith â" saiu do trailer mais caro; o maior também. Aquele no qual acaba de
entrar é mais antigo; um Westmorland Star com cerca de 12 metros. Os outros
três são menores e, comparativamente, mais modestos. Eu me pergunto se
alguém mais está me espiando â" em geral, há um bocado de gente nos
acampamentos ciganos, muitas crianças e cães â" no entanto, não vejo nenhum
indÃcio deles. Estou curioso, mas não quero parecer muito intrometido. Seria
grosseiro. Então, espero ao lado do meu carro até que ela reapareça e me
convide a entrar.
80
Lá dentro, sinto como se estivesse entrando numa época diferente. O
trailer é obscuro; as janelas estão cobertas por uma curta cortina em rede e há
um leve odor de alcatrão. A área da cozinha está vazia, mas o fogão aceso a
deixa quente e abafada. Na parte de trás, bem no meio da janela de vidro, um
homem idoso está sentado diante de uma mesa dobrável. Ele parece grande
para o espaço que ocupa, ou talvez seja a decoração que deixe o lugar
abarrotado â" o armário superior está cheio de louças, vidro e porcelana, e
praticamente cada polegada das paredes envernizadas está repleta de
fotografias, pratos e quadros.
â" Espero que não se incomode se eu não me levantar. Já não sou tão ágil
quanto antes.
Tene Janko tem os cabelos grisalhos num tom escuro esparramando-se
sobre a testa e caindo em cachos sobre o pescoço. Os olhos são castanho-
escuros, um rosto simpático e desgastado pela idade, o bigode é farto. Rugas
profundas contornam seus olhos, dando-lhe um aspecto bem-humorado. Ele
lembra uma pintura romântica de velho cigano; um rom belo, velho e rai na
capa de um livro infantil. Não sabia que ainda havia gente com essa aparência.
Sem se erguer, ele estende o braço e aperta minha mão com firmeza.
â" Prazer em conhecê-lo, Sr. Janko⦠obrigado.
Eu me acomodo no lugar indicado por ele.
â" Kath, traga um pouco de chá.
Ele fala sem olhar na direção dela. Kath vai até a cozinha, passando sob
um arco estreito, e põe a chaleira no fogo.
â" Talvez o Sr. Lovell prefira um trago.
â" Não, obrigado, está bem assimâ¦
â" Mas eu prefiro.
Kath olha para o irmão, larga a caixa de chá e sai do trailer. Tene está
olhando para mim, os cotovelos apoiados sobre a mesa.
â" É um belo trailer, Sr. Janko.
â" Obrigado. Tento mantê-lo como minha esposa fazia quando ainda era
viva.
â" Ah⦠Lamento muitoâ¦
81
â" Então você é um detetive particular. Nunca encontrei um antes.
â" Não perdeu grande coisa.
â" Eu me sinto como se estivesse no cinemaâ¦
â" É, mas não é tão emocionante assim, Sr. Janko.
â" Pode me chamar de Tene.
â" É um nome incomum.
â" É um velho nome da famÃlia. Mas você é um cigano inglês e, no
entanto, não está familiarizado com esses nomes.
â" Pois é. Meu pai acabou se instalando numa casa. Minha mãe era
gorjio.
â" Mas você ainda é um Lovell.
â" Sou.
â" Eu pensava que todos os detetives particulares fossem ex-policiais,
mas algo me diz que você não é um. Tampouco vem do Exército.
â" Não. Comecei a trabalhar para um detetive particular quando saà da
faculdade. E acabei gostando.
â" Faculdade? Você se saiu bem. Seu pai deve estar muito orgulhoso.
â" Ele já morreu. Mas, sim, sentia orgulho.
â" Ele era carteiro, não era? Bart Lovell?
Aquilo me surpreende um pouco e procuro respirar mais devagar.
â" Isso mesmo. Vocês se conheciam?
Tene sacode a farta cabeleira.
â" Ele não frequentava muito as feiras, não é? Nunca ia para Epsom ou
Stowe, esses lugares.
â" Não, quer dizer, ele era carteiro, conforme você disse. Não tinha muito
tempo para tirar férias.
Tene assente.
â" Quanto a nós, sempre estamos na estrada.
82
â" Deve ser duro hoje em dia.
Ele encolhe os ombros, e prossigo:
â" Mas de onde vem sua famÃlia? Não conheço o nome Janko.
â" Meu avô veio com os Kalderash no século passado. Veio dos Bálcãs,
que ainda faziam parte do Império Otomano na época. Mas ele se esqueceu do
caminho de casa. Casou-se com uma moça cigana inglesa chamada Talaitha
Lee. E diziam que a mãe dela tinha o nome de famÃlia Lovell. Assim sendo,
devemos ter algum parentesco.
Ele abre um largo sorriso. Tomo isso como um indÃcio de que devo
escutar o que me diz com bastante cautela.
â" Pode ser.
Sorrio, mas receio que o puro sangue negro não deve estar muito longe.
â" O pai da moça o contratou, não foi?
â" Sinto muito, não posso revelar a identidade do meu cliente.
Ele me dá uma piscada de olho, assentindo com a cabeça. Como um ator
num filme mudo, todos os seus gestos parecem exagerados.
â" Mas por que só agora? É isso que estou pensando. Já faz tanto tempo
que ela foi emboraâ¦
â" Lamento não poder revelar isso também. Estou apenas conversando
com todos que conheciam Rose. Como o senhor. E Ivo, é claro. Espero um
pouco para ver o que virá em seguida.
â" Foi muito triste tudo o que aconteceu. Ela ir embora. Ficamos todos
muito tristes. Foi terrÃvel.
â" Sabe onde ela está agora?
â" Não, não sei. E, se você me contasse que ela está lá fora neste instante,
eu não teria nada a dizer a ela.
â" Sabe me dizer o que aconteceu?
â" Com certeza. Não sei o que o pai dela lhe falou, mas a verdade é a
seguinte, e ninguém sabe mais do que isso: ela fugiu com um gorjio, deixando
meu filho e meu querido neto, e nunca mais a vimos desde então. Não deixou o
menor vestÃgio.
83
â" Quando isso aconteceu?
â" Seis anos atrás⦠mais ou menos.
â" Ajudaria bastante se me contasse o que se lembra disso.
Tene sacode a cabeça, agitando a vasta cabeleira grisalha. Há algo de
leonino nele, quase régio. Ele olha pela janela; os pintores adorariam retratar
aquele perfil.
â" Foi uma coisa muito triste. Que tipo de mãe sumiria deixando seu
filho dessa maneira?
â" É isso que estou tentando descobrir.
Tene olha para mim e sorri.
â" DeverÃamos tê-lo contratado seis anos atrás.
â" Vocês, ao menos, tentaram encontrá-la? Ele encolhe os ombros.
â" Ela fugiu com outro homem. Não se pode obrigar as pessoas, não é
mesmo?
Nesse momento, Kath retorna com uma garrafa e uma bandeja. A louça é
dourada e delicadamente pintada, uma tigela com o vidro em relevo contém
torrões de açúcar e os pratinhos estão apinhados de bolinhos de laranja. Ela põe
a bandeja sobre a mesa à frente de Tene e serve o chá em xÃcaras finas. Depois
de colocar uma garrafa de conhaque em frente ao irmão, sai novamente.
â" E, ainda por cima, meu neto está doente. Doente desde o dia em que
nasceu.
â" Sinto muito. Sua irmã, Luella, disse algo a respeito. O que há de
errado com ele?
â" Uma daquelas⦠coisas de sangue.
â" Não entendo⦠Uma daquelas coisas de sangue?
â" Uma doença no sangue. Ele nasceu com ela. Há outros na famÃlia que
também sofreram disso. Não existe cura.
Ele faz um gesto com a mão, como se fosse muito doloroso falar sobre o
assunto. Depois, destampa o conhaque e serve um pequeno copo para nós dois.
â" Eles conseguem descobrir novos tratamentos o tempo todoâ¦
obrigado⦠quem sabe achem alguma cura?
84
Tene acena com a cabeça, olhando para a mesa. Sua expressão é trágica.
â" Deve ser difÃcil para todos vocês â" acrescento.
â" É, sim. Mas devemos seguir o exemplo de Nosso Senhor, não
devemos? Suportar nosso fardo sem queixas. E não fugir deles.
â" Foi isso que Rose fez?
â" Algumas pessoas não têm força.
â" Consegue se lembrar da ordem dos acontecimentos? De quando
exatamente ela se foi? Que idade tinha o bebê?
Ele balança a cabeça, soltando um suspiro teatral. Prossigo:
â" Ajudaria muito. Por exemplo, onde vocês estavam acampados na
época? Era perto daqui?
â" Acho que era. Talvez⦠tenha sido no inverno. Fazia frio. Estávamos
num ótimo lugar, o Black Patch, antes de ser vendido. É, foi isso mesmo, lá em
Seviton.
Aceno com a cabeça, sem saber onde fica esse lugar, mas era comum
haver centenas de paradas como essa em terrenos públicos, ou terras privadas
que pertenciam a proprietários tolerantes. Agora, nos últimos vinte ou trinta
anos, a maioria foi engolida pelos novos empreendimentos imobiliários. Ou
então as prefeituras começaram a se irritar com aquelas pessoas parando ali,
com os moradores locais pressionando o tempo todo.
â" Quando é o aniversário de seu neto?
â" Dia 25 de outubro. Ele tinha apenas poucos meses quando a mãe foi
embora. Cinco meses, quatro⦠Algo assim.
â" A doença dele já era evidente nessa época?
â" Era, claro que sim. Quase morreu. Tivemos que levá-lo para o
hospital.
â" E quanto tempo depois ela se foi?
â" Uns dois meses⦠talvez menos. É difÃcil lembrar. Anoto o que ele
acaba de dizer.
â" Aconteceu alguma coisa pouco antes de ela ir embora? Talvez uma
briga com o marido?
85
â" Isso eu não saberia dizer. Tudo o que sei é que, certa manhã, ela havia
partido. Simplesmente se foi, deixando Christo, deixando todos nós.
â" Christo é seu neto? Ela carregou muitas roupas? Bens pessoais?
â" Bem, tenho certeza de que levou algumas roupas. Ela não iria embora
pelada, não é mesmo?
Ele começa a gargalhar, como se a simples alusão à nudez feminina fosse
uma tremenda indiscrição.
â" Se alguém leva muitos pertences, roupa, dinheiro e bens pessoais, em
geral é porque já havia planejado tudo antecipadamente.
â" Ela levou a maior parte das coisas que lhe pertencia⦠sim, foi tudo
planejado. Alongo a mão com a qual escrevo para aliviar a cãibra.
â" Pode se lembrar dos nomes dos amigos dela? Conhecidos?
Tene dá de ombros mais uma vez.
â" Honestamente, não consigo me lembrar. Ela costumava pegar o carro
emprestado e sair de vez em quando, mas não sei aonde ia. Nunca encontrou
alguém. Acho que não.
â" Rose era uma rom completa, não era? Uma rom de sangue puro.
â" Era.
â" Acho que era uma moça tÃmida. Não tinha muitos amigos, segundo
sua famÃlia⦠Apenas me pergunto⦠Aonde ela teria ido para conhecer um
gorjio?
â" Não sei, Sr. Lovell. Mas ela se foi depois que descobrimos o que
Christo tinha; foi nessa época. Ela não conseguia mesmo enfrentar isso. Deve ter
encontrado alguém então.
â" Mas vocês achavam que era um gorjio, não um cigano, não é verdade?
Foi isso que⦠sua irmã disse. Por que vocês acham isso?
De repente, Tene se inclina em minha direção, sua mão se fecha sobre a
mesa; é a primeira vez que tem uma reação agressiva.
â" Se fosse um cigano, ficarÃamos sabendo. TerÃamos ouvido alguma
coisa. Você sabe disso. Mas não ouvimos nada⦠portantoâ¦
86
Ele recosta novamente e esvazia o copo como se fosse o último trago de
sua vida.
â" O senhor está me ajudando muito, Sr. Janko, mas eu gostaria de
conversar com Ivo. Ele está aqui? Tene sacode a cabeça.
â" Ele estava sem dinheiro quando ela foi embora. Sozinho com o
bebezinho. Sua querida mãe já havia morrido na época. Deus a abençoe. O que
ele poderia fazer?
â" O que ele fez? Tene parece furioso outra vez; o leão mostrando suas
garras.
â" O que um homem pode fazer nessas horas? Ele é o pai e a mãe do
menino. Cria sozinho o garoto.
â" Ele não se casou de novo?
Tene agita a cabeça.
â" É muito difÃcil para ele. Com uma criança doente. Ivo faz tudo pelo
menino. Christo é sua vida.
Aceno a cabeça em solidariedade.
â" Eles moram aqui?
â" Foi terrÃvel para ele. Não há nada que ele possa contar a você. Estava
dormindo com o bebê quando ela partiu. Ficou esperando que ela voltasse. Não
saber o motivo foi a pior parte. Se ela tivesse deixado um bilhete dizendo que
não voltaria, teria sido melhor. Ele não teria ficado esperando meses a fioâ¦
anos. Quase pirou. Se começar a remexer em tudo isso outra vez⦠não quero
que ele enlouqueça. Ivo é a única pessoa que o menino tem.
â" Entendo. Mas ele ainda é o marido dela. Não acha estranho que nem
mesmo a famÃlia de Rose tenha tido notÃcias desde então?
Tene solta o ar pelas narinas, impaciente.
â" Se eu tivesse feito algo assim, também ficaria com vergonha de dar as
caras.
â" E se alguma coisa aconteceu e ela não pôde voltar?
Tene olha para mim, espantado.
â" Não pôde voltar?
87
â" É possÃvel, não é?
â" Como assim? Como se tivesse sido sequestrada?
â" Não necessariamente isso. Alguma coisa pode ter lhe acontecido
depois. Saber o que houve poderá trazer um pouco de paz para todos.
Tene bufa outra vez.
â" Meu velho costumava dizer: âœNão se deve cutucar onça com vara
curtaâ. E sempre achei que valia a pena seguir esse conselho.
Dou um sorriso, inadvertidamente. Não é um clichê que se ouve com
frequência quando se é um detetive particular, embora eu sinta, às vezes,
vontade de dizer isso para meus clientes, em média uma ou duas vezes por
semana. Mas nunca o faço.
â" Meu pai também costumava dizer isso.
â" Pois então: estou pedindo para não incomodar meu filho. Não vai
ajudar em nada e ele ficará magoado.
â" Entendo o que diz, mas não posso prometer não falar com ele.
Tene me observa e então parece decidir alguma coisa.
â" Eu entendo, Sr. Lovell. O senhor está apenas fazendo seu trabalho,
como qualquer homem. Quando estou pegando meu cartão no bolso, ao me
levantar, bato com o joelho contra a mesa. Tene reage e a segura, erguendo uma
parte da toalha ao fazer isso. E eu me dou conta, com surpresa, de que ele está
sentado numa cadeira de rodas.
â" Sinto muitoâ¦
Um cobertor xadrez está enfiado entre suas pernas murchas, fora de
proporção em relação ao resto de seu corpo. Fico constrangido. E não posso
acreditar que não tenha percebido antes.
â" Opa, opaâ¦
â" Tene parece não se preocupar.
â" Se lembrar de mais alguma coisa, Sr. Janko⦠Qualquer coisa que
possa ser relevante, qualquer coisa mesmo⦠nunca se sabeâ¦
⢠⢠â¢
Kath Smith está lá fora, para me ver indo embora.
88
â" Então, conseguiu o que queria?
â" Consegui, obrigado por tudo. Será que a senhora não saberia me dizer
alguma coisa sobre quando Rose foi embora? Não sabe com quem ela se foi?
â" Não estávamos lá. Só havia Tene, Ivo e ela. Ficamos sabendo mais
tarde.
â" Sabe onde posso encontrar o Ivo?
â" Na última vez em que o vi, ele estava em algum lugar chamado
Fenland.
â" Ele está viajando?
â" Está.
â" Por onde? Pausa.
â" Para os lados de Wisbech, eu acho. â" Ela apanha o maço de cigarros e
acende um. â" Foi o que ouvi da última vez.
â" Ok. Obrigado. â" Sorrio ligeiramente. â" Foi um prazer conhecê-la,
Sra. Smith.
Enquanto sigo até meu carro pela parte mais enlameada, tenho a
impressão de que algo se movimenta dentro do menor dos veÃculos, um Jubilee
â" talvez uma cortina se mexendo. Fico imaginando se Ivo Janko não está
naquele último trailer. Se não estiver, vou comer minha licença de detetive no
café da manhã. Mas não quero contrariá-los. Ainda não. E, depois de seis anos,
não acho que um dia ou dois possam fazer grande diferença para Rose Janko,
onde quer que ela esteja.
89
QUATORZE
JJ
Hoje, depois da aula, nosso professor, Sr. Stewart, me reteve até que
todos tivessem partido.
â" Muito bem, JJ â" começou ele. Isso é sempre um mau sinal. â" Estamos
chegando ao final do ano.
â" Hum.
â" E ainda não resolvemos nada sobre sua próxima prova, não é mesmo?
â" Er, não.
â" Sua mãe não respondeu à carta que enviamos.
â" Oh. Isso não me surpreende, pois não moramos onde eles pensam
que moramos. Como se suspeitasse de alguma coisa assim, ele me entregou um
envelope.
â" Aqui está uma cópia. GostarÃamos que ela viesse aqui. Assim,
poderÃamos sentar e conversar sobre seu futuro. Assinto com a cabeça. Parece
tão sério quando eles dizem essas coisas!
â" Certifique-se de que ela a receba desta vez. Não há nada com que se
preocupar. Você pode ter um futuro bem promissor, sabe?
â" Ok.
Ele sorriu. Acho que estava realmente tentando ser simpático. O Sr.
Stewart é bacana, diferente de alguns professores, mesmo que perca a paciência
à s vezes. Não suporta quando os alunos ficam distraÃdos; ele solta altos berros.
Ãs vezes, atira um pedaço de giz.
Depois da escola, vovô me pega em seu caminhão. Ele estava recolhendo
sucatas. Fico feliz que todos já tenham ido embora, porque ninguém vem Ã
escola buscar os outros alunos com um caminhão. Não que eu me importe,
realmente â" é só que algumas pessoas ficam zombando de mim e não gosto de
ser incomodado com isso. Vovô é bacana. Não fica falando que eu deveria estar
90
trabalhando na minha idade. Mas, embora não diga, sei que ele concorda com
mamãe em relação à escola. Se for para ficar trabalhando com sua famÃlia â"
pavimentando estradas, digamos, ou negociando sucatas â", não há problema
se você não sabe ler e tal. Mas é preciso que permaneçamos juntos para isso; é
preciso ter um bom número de gente â" um bocado de crianças ou irmãos
casando com irmãs (não as próprias irmãs, é óbvio), e nossa famÃlia não é muito
boa nisso, por causa da doença. Mesmo sem a doença, olhem para tio Ivo e
mamãe: eles não conseguiram ficar com ninguém. Então, acham que não há
muitas esperanças para mim. Se você tiver que ficar sozinho, é melhor ter
estudado um pouco. De qualquer modo, gosto da escola por alguns motivos.
Gosto de ler; sempre gostei. Isso me torna um pouco estranho na minha famÃlia;
mamãe só lê formulários, ou os jornais se houver um bom assassinato. Meu tio-
avô nem sequer aprendeu a ler, mas sabe mais coisas do que qualquer outra
pessoa que conheço.
No ano passado, quando vim pela primeira vez à escola, estávamos
vivendo no acampamento da prefeitura. Alguns parentes do vovô tinham ido
para a estrada e nos deixaram ficar lá. Teoricamente, não se pode fazer isso, mas
e da� Não era tão bacana assim. As outras pessoas não eram amistosas, exceto
as moças que costumavam sair com tio Ivo. Mas a maioria era jovem e estúpida.
Na época, uma moça da idade de Ivo â" ele está com 28 anos â" já estaria casada
há tempos, a menos que houvesse algo de errado com ela. E, dificilmente,
alguém se divorcia. Você não vai se casar com alguém que já foi casado antes ou
então com alguém muito mais velho que você. Isso simplesmente não se faz.
Quando nos disseram que deverÃamos partir, pois estávamos em situação ilegal,
não lamentamos muito.
Este aqui é um bom local, onde estamos atualmente. É propriedade
particular, e não tem vizinho nenhum para criar caso. Vovô pode trazer sua
sucata para cá e há até um riacho de água limpa. Meu tio-avô e vovó o adoram
â" é como antigamente, pelo que dizem. Ivo também gosta: ele é uma pessoa
bem reservada, e não gostava quando as garotas ficavam aborrecendo-o o
tempo todo e dando beijinhos em Christo só porque ele é muito fofo.
Quando chegamos, mamãe ainda não tinha voltado; então, tomo um chá
com vovó e vovô. Ele liga a televisão, comemos pão com manteiga e assistimos
a um seriado policial americano. Acho que me entendo melhor com meu avô
quando estamos vendo televisão. Vovó está um pouco mal-humorada, mas
nenhum de nós quer saber o motivo, o que fazemos de um modo um tanto
proposital, para ver até que ponto ela pode se irritar. Ela se vinga esperando até
a parte mais emocionante do seriado para nos dizer.
91
â" Um detetive particular veio fuçar aqui hoje.
â" Kath, quieta. Estamos vendo o seriado â" diz vovô.
â" O quê? â" pergunto.
â" Ele veio aqui fazendo perguntas sobre Rose.
â" Rose?
Agora, ela conseguiu a atenção do vovô.
â" Dá para acreditar? Depois de todo esse tempo, a famÃlia dela quer
encontrá-la.
â" Uma coisa é certa: não vão encontrá-la aqui.
â" Eu sei, mas Tene decidiu que não quer que ele fale com Ivo. Dissemos
que ele estava para os lados de Fens. Wisbech. Portanto, nenhum de vocês dois
deve dizer outra coisa se ele voltar.
Vovô dá de ombros, volta a assistir ao Dragnet e aumenta o volume para
deixar claro que o assunto está terminado, até onde isso lhe diz respeito. Olho
para vovó, imaginando se ela inventou essa história. Parece inacreditável â"
excitante demais para estar acontecendo conosco.
â" Como ele era?
â" Como ele era?
â" É, o detetive.
â" Bom, ele era um cigano.
â" É mesmo? Ele vai voltar?
Um detetive cigano â" nunca ouvi falar de algo semelhante.
â" Por que está tão entusiasmado?
â" Não estou entusiasmado.
Mais tarde, volto para casa e encontro mamãe, Ivo e Christo prontos para
jantar. Frequentemente comemos juntos, já que mamãe trabalha e temos que
cuidar de Christo. Quando entro, mamãe e Ivo estão conversando em voz baixa.
Christo assiste à televisão. Ele fica alegre ao me ver. Estendo minha mão e ele
entrelaça seus dedos nos meus: é um cumprimento nosso.
92
â" Lá vem encrenca â" diz Ivo. Ele costumava dizer essa frase quando eu
era pequeno, mas soa um pouco esquisito, agora que tenho 14 anos. O que me
faz pensar que há muito tempo ele não fala isso.
â" Você ouviu sobre o detetive particular?
â" Tsc. â" Ivo revira os olhos.
â" É uma tolice aparecerem agora. O que acham que vão descobrir?
É mamãe que diz isso. Concluo que ela também estava falando sobre o
assunto.
â" Você deveria estar em Wisbech. Ivo sorri para mim.
â" É⦠acho que eu deveria mesmo.
â" Tene disse para vocês que ele é cigano?
â" Disse, meio-cigano, pelo menos.
â" Nunca ouvi falar de um detetive particular cigano. E vocês?
â" Não. Você gosta disso, não?
â" Não sei.
Mamãe sorri. Fico contente que ela não esteja cansada demais esta noite.
Ãs vezes, quando passa o dia dirigindo para fazer entregas, fica tão cansada
que mal consegue falar. Simplesmente desaba no sofá e cai no sono após o
jantar. Mas ela costuma ficar mais animada quando Ivo e Christo estão por
perto. Ela e Ivo são bons amigos.
Mas há uma coisa que não me deixa contente. Não deixa contente
nenhum de nós. Christo não tem passado muito bem. Faz quatro semanas que
voltamos de Lourdes e ele não melhorou nem um pouco. Na verdade, acho que
está piorando. . Está falando menos e parece mais fraco. Não faz praticamente
nada, a não ser ficar deitado o tempo todo no sofá de Ivo ou no nosso, olhando
para tudo com olhos que parecem grandes demais para seu rosto. Ele é muito
pequeno e magro â" mais ou menos a metade do tamanho de outros meninos
de 6 anos. E, às vezes, nem olha para as coisas. Apenas fica deitado e dá para
escutar sua respiração, como se estivesse ofegante, muito embora fique parado
o tempo todo. Ãs vezes, sinto vontade de gritar. Por que alguém não pode fazer
alguma coisa?
93
De quanto tempo Deus precisa para curar um menino de 6 anos?
Perguntei a Ivo quanto tempo ele levou para começar a melhorar, e ele disse
que não conseguia se lembrar, mas achava que havia sido tão gradual que não
deu para perceber. Tipo de resposta inútil.
Acho que temos que enfrentar o fato de que não vai haver milagre
algum, não desta vez. Na verdade, vamos encarar, pessoal, foi um tudo uma
imensa perda de tempo, porra. E agora? Fazer o quê?
94
QUINZE
RAY
O pedaço de papel com o número de Luella está soterrado sob uma pilha
ao lado do telefone, onde já se encontra há alguns dias. Sei que está ali, mas fico
sentado diante do telefone alguns longos minutos, antes de apanhá-lo e ligar.
Para minha surpresa, ela o atende quase de imediato. Sua voz soa mais relaxada
do que antes; menos defensiva.
â" Oi. É Ray Lovell. Pausa.
â" Oh. Volta à defensiva e, desta vez, com reforços.
â" Desculpe incomodar novamente, mas eu gostaria de lhe fazer mais
algumas perguntas.
â" Estou de saÃda. Do que se trata?
â" Podemos nos encontrar? Onde for melhor para você. Posso ir até aà se
preferir.
â" Você se encontrou com meu irmão?
â" Sim. Não digo mais nada. Talvez ela sinta uma ponta de curiosidade
em relação a eles.
â" Tenho que ir até Wimbledon. Há um pub na Broadway, o Green Man.
Perto do teatro. Podemos nos encontrar lá às 21 horas. Só disponho de meia
hora.
â" Muito obrigado, Srta. Janko. Agradeço sua atenção. Nós nos vemos
mais tarde, então.
Para ser honesto, não sei o que ela poderá me dizer. Nem sequer sei o
que vou perguntar. Talvez fosse melhor eu espionar o acampamento lá em
Hampshire, embora esse tipo de vigilância seja extremamente difÃcil, sem
prédios ou veÃculos para oferecer camuflagem. Logo, isso significa se arrastar
pelo mato com uma câmera objetiva feito um idiota. E, para bancar o idiota,
nunca há muita pressa.
⢠⢠â¢
95
Desta vez, ela está esperando por mim; estou na hora, mas ela chegou
cedo e está sentada a uma mesa de canto, fumando um cigarro. Está vestida de
modo mais casual, jeans e um suéter largo e volumoso, que faz com que ela
pareça ainda menor. Contudo, ainda está de salto alto e batom. Tenho a
impressão de que ela não sai de casa sem eles.
â" Obrigado por ter vindo, Srta. Janko. Posso lhe oferecer alguma coisa?
â" Só um chá, por favor. E pode me chamar de Lulu. Senão, parece que
você está falando com outra pessoa.
â" Ok. Lulu. Volto com um chá e meia caneca de cerveja para mim.
Nada de excessos esta noite.
â" E, então, como vai meu irmão?
â" Eu não tinha me dado conta de que ele precisa de uma cadeira de
rodas. Ela encolhe os ombros e bebe seu chá.
â" Deve ser muito difÃcil a vida na estrada assim.
â" Ele tem uma famÃlia por perto para ajudá-lo.
â" Ainda assimâ¦
â" Descobriu alguma coisa sobre Rose?
â" Na verdade, não. Eu queria ver o Ivo, mas Tene não quer que eu fale
com ele. Disse que isso o deixaria transtornado. Como ele costuma viajar?
â" Com Tene, pelo menos era o que fazia antes.
â" Disseram que ele estava em Fens. Ela dá de ombros outra vez; seu
gesto brusco é a única coisa que faz lembrar Tene.
â" Talvez esteja.
â" Você não sabe?
â" Já lhe disse, não temos mais muito a ver um com o outro. Já não o vejo
há uns⦠três anos mais ou menos.
â" Mas você falou com Tene.
â" Falei. É meu irmão.
â" É claro. Encontrei com sua irmã também. E eu⦠eu tive a impressão
de que Ivo estava lá. Por que ela e Tene o esconderiam de mim?
96
Lulu franze as sobrancelhas.
â" Você acha que estavam mentindo?
â" Acho que estavam tentando protegê-lo. Mas por quê?
â" Como ele disse, é provável que ainda esteja transtornado. E se ele não
sabe de nadaâ¦
â" As pessoas, normalmente, sabem mais do que imaginam saber.
â" É por isso que está me perguntando onde se encontra meu sobrinho?
Mesmo depois de eu lhe dizer que não sei?
Sorrio, reconhecendo seu argumento.
â" Acho que sim. Você tem um telefone?
Ela suspira, sorri e olha para o teto.
Pergunto-me se está rolando um clima entre nós.
â" Rose se mandou há muito tempo. Ela não queria saber deles. Por que
eles iam querer saber dela? Ou de alguém querendo saber sobre ela?
Bebo minha cerveja e descubro que a caneca está quase vazia. O chá dela
continua fumegante.
â" Mas então⦠por que você não vê sua famÃlia? â" pergunto, e Lulu
suspira novamente. â" Você gostava dele, não é?
â" De Tene? Eu⦠Ele é uma pessoa bastante carismática.
Acho que ela tem razão. Eu gostei dele.
â" Carismática â" ela repete, fazendo soar como um palavrão. â" Você
não sai por aà gritando que é cigano, sai? Tampouco eu. Mas Tene sai. Fazendo
seu espetáculo. Só que não é sequer um espetáculo. Na sua cabeça, está sempre
pensando primeiro nos ciganos, tudo mais vem depois.
Ela sacode a cabeça e, sem olhar em meus olhos desta vez, prossegue:
â" Para mim isso não é o começo e o fim de tudo. Não se pode mais viver
desse jeito, não é? Ficar se apegando ao passado e ao âœpuro sangue negroâ.
Como se isso houvesse um dia existido. Novamente esta frase.
â" Há algo em que Tene se interessa?
97
â" Claro. Não apenas o sangue. A cultura, sabe, o modo de vida. Não ser
obrigado a se instalar numa casa e simplesmente⦠desaparecer.
â" Como eu fiz.
â" E eu. Sou uma traidora.
â" Traidor é uma palavra muito forte.
Ela dá de ombros mais uma vez. Não parece disposta a reagir a meu
estÃmulo.
â" Não havia nada para mim naquele tipo de vida. A mulher é uma
escrava. O que se pode esperar? Casar, apanhar. Não, para mim chega,
obrigada. Tenho minha casinha, meu emprego, e isso não foi fácil com minha
pouca escolaridade.
â" Você era próxima de seu irmão quando criança?
â" Nem um pouco. Ele é 17 anos mais velho do que eu. Na verdade, era
mais como um tio. Quando nasci, ele já havia se mudado e morava sozinho.
â" Outros irmãos ou irmãs, fora Kath?
â" Outra irmã.
â" Ah?
â" Imagino que vai querer o telefone dela também.
â" Seria muito útil.
â" Duvido. Sibby mora na Irlanda. Mas você pode tentar.
â" Eu queria entender melhor a doença de Christo. Parece que isso pode
ter assustado Rose. Seu irmão não disse do que se tratava, mas afirmou que é
incurável.
â" E é mesmo.
Seu rosto se contrai. Se ela estava flertando comigo antes, agora não está
mais.
â" Ele disse que outros membros da famÃlia tiveram o mesmo problema.
Ela bebe um pouco de chá antes de responder.
â" Tiveram.
98
â" Desculpe, euâ¦
Lulu acende outro cigarro, olhando seriamente para seu indefectÃvel
isqueiro. Ela fuma demais, eu acho; ou talvez só fume durante conversas
complicadas. Ela fala rapidamente.
â" TÃnhamos dois outros irmãos. Istvan morreu ainda bebê e Matty⦠Ele
não estava tão doente, conseguiu chegar aos 30.
â" Nossa, eu lamento. É por isso que Teneâ¦
â" Não, não, ele sofreu um acidente de carro. Tene está bem⦠nesse
sentido. Mas ele e Marta tiveram dois filhos antes de Ivo. Stevie⦠também se
foi ainda bebê. E Milo, com 6 anos. Não consigo achar nada para dizer sobre
isso.
â" Há pouco tempo, eles levaram Christo a Lourdes. Acredito que toda
tentativa valha a pena. Funcionou com Ivo.
â" Ivo era doente também?
â" Era quando mais jovem. Mas melhorou.
â" Mas você não disse que era incurável?
Ela dá de ombros. Definitivamente, gosto quando ela faz isso.
â" Sei lá. Talvez a cura esteja em Lourdes. Talvez ele tivesse outra coisa.
Uma enfermidade diferente.
â" E isso só afeta⦠os homens?
Ela olha para mim; há dor em seus olhos. Eu gostaria de não ter causado
isso.
â" Só. Ao que parece.
â" Lamento muito.
Ela se recompõe. Como se voltasse a colar as partes soltas.
Fico pensando sobre seu casamento. Terá tido filhos?
Ela olha para o pulso e verifica as horas.
â" Tenho que trabalhar.
â" Ok. Você trabalha com o quê?
99
â" Sou dançarina numa boate.
â" Que ótimo.
Um sorriso breve e sarcástico.
â" Sou cuidadora de pessoas incapacitadas.
â" Que ótimo.
â" Eu gosto.
â" Você trabalha num asilo?
â" Não, atendo a domicÃlio.
â" Bom⦠Obrigado por se encontrar comigo e⦠por conversar comigo.
â" Boa sorte.
â" Posso ligar de novo para você? â" Isso não saiu exatamente como eu
pretendia. Tento emendar. â" No caso de haver novidades.
Ela dá de ombros. Eles me fazem pensar em asas: ela as desfralda e, antes
de decolar, responde:
â" Não posso impedi-lo.
Ela sai andando do bar e escuto o estalo de seus saltos na calçada se
perder na distância, como um refluxo do tempo.
É apavorante se o que ela diz for verdade. Isso me faz pensar em outra
coisa⦠os czares russos â" eles não tinham uma doença que afetava unicamente
os meninos e, consequentemente, a sucessão do czar? Alguma coisa a ver com a
Rainha Victoria, também, eu acho, mas não consigo lembrar direito. Meu pai
teria sabido. E, se não soubesse, teria pesquisado. Mas meu irmão Tom ficou
com o Livro do Saber. Jen dizia que ele fedia e não o queria dentro de casa.
100
DEZESSEIS
JJ
Uma das piores coisas em morar num trailer é que você não pode
convidar as pessoas para o visitarem. Notei isso na escola, especialmente com as
meninas: elas estão batendo papo depois das aulas, ou andando para o ponto de
ônibus, e uma delas diz casualmente: âœVamos até minha casa. Podemos
estudar/tomar um chá/ouvir um disco do Pet Shop Boys.â Tranquilo. Nada de
mais. Depois, elas pegam o ônibus, vão embora e se divertem um bocado.
Eu nunca ando até o ponto de ônibus porque nosso acampamento não
fica perto de nenhum ponto, portanto não faria sentido. Normalmente, mamãe
vem me buscar, geralmente com a van que estiver dirigindo â" que pode ser de
uma loja de flores ou de entregas de uma padaria. Houve uma vez muito
constrangedora em que ela me buscou dirigindo um caminhão frigorÃfico com a
inscrição âœAs melhores salsichasâ na lateral, em letras garrafais. Danny Sinclair
e Bem Goldman â" quem mais? â" viram e fiquei sendo chamado de âœSalsichaâ
durante mais ou menos um ano. Outras vezes, ela vem me buscar no carro do
vovô, o que é legal, pois ele tem uma BMW. Muito ocasionalmente, vovó ou
vovô vem me buscar â" e isso quer dizer âœna hora que lhes for convenienteâ.
Assim, já passei horas a fio na esquina, parecendo suspeito, provavelmente.
Depois, mamãe berra com eles, mas isso não faz com que sejam mais pontuais.
Sempre que ela reclama de algo em relação a eles, fazem-na lembrar de que teve
muita sorte de a terem acolhido â" e a mim â" de volta. Estou acostumado a
esperar.
Só uma vez, tentei convidar alguém para ir aonde moramos. Era Stella
Barclay, pouco depois de eu começar a frequentar essa escola, e ela parecia ser
minha amiga. Não sei se Stella ainda é minha amiga ou não. É uma das pessoas
mais bacanas da escola, e já tivemos ótimas conversas. Ela gosta do mesmo tipo
de música que eu â" ela me apresentou The Smiths, que eu adoro, não só
porque meu nome é Smith. Mas agora ela fez amizade com uma menina
chamada Katie Williams e, quando estão juntas, ela não fala comigo. É como se
não me visse mais. Então, não forço minha presença.
De qualquer maneira, isso foi no ano passado. Eu havia lhe dito que
morava em um trailer â" foi quando estávamos no acampamento municipal â"
e ela pareceu interessada. Então, perguntei para mamãe se podia convidar uma
amiga para um chá depois da escola. Ela ponderou um instante, mas disse que
101
claro que eu podia, desde que ela fosse avisada um pouco antes, assim poderia
deixar tudo limpinho e comprar alguma coisa legal para comer. Então, falei com
Stella, e ela concordou em vir. Depois, perguntei para mamãe e ela disse âœok,
que tal amanhã?â, e perguntei para Stella, mas naquele dia era sua aula de judô.
Então, fiquei nesse vai e vem até que conseguÃssemos marcar uma data â" foi
bem complicado, basicamente por conta das aulas de judô, clarinete e dança. Eu
não tenho nenhuma atividade extra. Então, no dia previsto, mamãe veio nos
buscar â" pontualmente, depois de eu enfatizar a importância disso para ela
umas 25 vezes. Na verdade, ela chegou mais cedo. Mamãe se mostrou bem
bacana e simpática com Stella â" e fez o esforço de colocar um vestido, um azul
e cinza que lhe cai muito bem. Ela parecia saber o quanto era importante para
mim que ela aparentasse ser uma mãe legal, e isso me deixou realmente feliz.
As duas pareciam estar se dando superbem, mas então chegamos ao
acampamento e foi quando me dei conta de que tudo tinha sido um horrÃvel,
horrÃvel engano, e eu não deveria ter nunca, jamais sugerido isso.
Stella olhou ao redor, observando os outros trailers com um misto de
medo e fascÃnio. Sei que ela nunca havia visto um acampamento cigano antes, e
talvez tivesse ouvido histórias sobre como os ciganos são sujos e malvados, ou
algo do tipo. Imagino que tenha parecido um tanto esquisito, todos aqueles
trailers enfileirados em vagas de cimento, e um monte de carros, centenas de
sacos de lixo empilhados, em vez de se encontrarem num contêiner. Havia um
monte de cachorros vadiando. Mas não era sujo. Vovô saiu de seu trailer e
olhou fixamente para Stella de um modo um tanto inamistoso e, mesmo
quando os apresentei, e ele disse âœoiâ, ela pareceu sentir medo dele.
Fomos para nosso trailer, que mamãe tinha deixado com um aspecto
alegre e bacana. Como de costume, tudo estava limpo e brilhante, e mamãe fez
chá e nos serviu pão e queijo. Ela comprou também uns doces da confeitaria
Mr. Kipling.
Stella ficou bastante interessada no trailer, olhou a parte da cozinha e
exclamou que não havia uma pia, e mamãe lhe contou como lavamos as coisas
em diversas bacias e atiramos a água suja lá fora. Porque a água da lavagem é
mokady, que significa âœmais do que imundaâ. Ou seja, você não pode lavar
suas roupas e depois as coisas que põe na boca â" como garfos â" na mesma
bacia, porque isso é nojento, não é mesmo? Stella assentiu com a cabeça e disse
âœsei, estou entendendoâ.
Obviamente, não podÃamos ir para meu quarto porque não tenho um,
então sentamos no sofá no canto do trailer, com o aquecedor aceso, e mamãe
fazendo perguntas chatas de adulto a Stella, do tipo qual era sua matéria
102
preferida na escola e há quanto tempo a famÃlia dela morava na região. Pela
primeira vez na vida, eu me senti constrangido dentro do nosso trailer;
inquieto, como se um monte de bichos-de-conta estivesse subindo pelo meu
corpo e eu não pudesse fazer nada. Comecei a sentir dificuldades para respirar
e pensei que fosse explodir. Quando mamãe disse que ia falar com a vovó e nos
deixaria a sós um pouco, achei que ia morrer, muito embora eu estivesse o
tempo todo desejando secretamente que ela se calasse e fosse embora. Houve
um silêncio depois que ela se foi. Stella ficou batendo com os pés na base do
sofá.
â" Vocês moram aqui de verdade?
Sua voz tinha um tom de incredulidade. Não malvada ou coisa parecida,
simplesmente como se não conseguisse mesmo entender como fazÃamos. â"
Moramos.
â" Onde fica sua cama?
â" É aqui â" respondi, apontando para onde estávamos sentados.
â" Mas você não tem nenhuma privacidade?
Pensei sobre o que ela disse.
â" Não muita. Posso fechar essa cortina aquiâ¦
Fiz a demonstração, mas aquilo pareceu nos deixar confinados num
espaço tão pequeno e abafado que entrei em pânico e a abri imediatamente.
â" Acho que eu não aguentaria não ter meu próprio quarto, para onde
posso ir e fechar a porta. Quer dizer, sua mãe é muito bacana e tudo mais, mas
não poder escutar música sozinho, sabe⦠E se você estiver de mau humor?
â" Isso não é problema. Não penso nessas coisas.
â" Ah.
Ela sorriu.
Mas eu soube que, a partir daquele momento, ficaria pensando naquilo.
Não seria capaz de parar de pensar sobre o assunto. Tomamos mais chá,
comemos outros docinhos e conversamos sobre The Smiths â" nossa banda
favorita â", como costumávamos fazer na escola, mas havia em nossa conversa
alguma coisa que não existia antes; uma coisa quente e ácida que me fazia sentir
como se minhas mãos tivessem de repente inchado e ficado duas vezes maior
103
que seu tamanho normal. Como se eu fosse uma aberração. E, então, uma coisa
muito ruim aconteceu. Ela perguntou:
â" Hum⦠onde fica o banheiro?
â" Hum⦠lá fora.
â" Do lado de fora?
Stella parecia horrorizada. Como se eu tivesse dito que ele ficava em
Marte. Ou como se não houvesse nenhum. Isso nunca tinha me ocorrido antes
â" que ter um banheiro do lado de fora é ruim. Mas por que alguém ia querer
um banheiro bem perto? É melhor que fique bem afastado, não? Quero dizer,
eca.
â" É, só que⦠temos uma chave. É nosso próprio banheiroâ¦
SaÃmos e levei-a até o banheiro. Era um cubÃculo dentro de um bloco de
vários banheiros. Teria sido melhor se ele fosse nosso, mas estávamos
sublocando, e não podÃamos fazer muita coisa. Infelizmente, quando chegamos
lá, meu tio-avô já estava usando o banheiro. Tivemos que esperar e, então, ele
saiu em sua cadeira de rodas, parecendo irritado ao nos ver ali, aguardando, e
aquela menina gorjio olhando enquanto ele saÃa de lá. Ela pareceu um pouco
espantada quando os apresentei, mas disse âœoiâ. Foi tudo horrÃvel.
Stella entrou e depois saiu bem quieta. Voltamos para o trailer e
conversamos mais um pouco, mas eu queria morrer. Não acho que era culpa de
Stella. Ela não ficou desdenhando do nosso trailer Lunedale ou o tratando como
se não fosse suficientemente bom ou algo do tipo. Apenas me lembro de ter
pensado: âœNão posso mais, nunca mais, voltar a fazer isso. Não devo deixar
ninguém de quem eu goste ver onde moro.â
E eu gostava dela. Gostava mesmo dela. Foi a melhor amiga que tive na
escola ou em qualquer outro lugar.
Depois de um tempo, que pareceu durar um ano, mamãe a levou de
volta e a deixamos em casa. Ficava numa área residencial ao norte do centro da
cidade, onde casas bacanas, afastadas umas das outras, são cercadas por jardins
na frente e nos fundos, com espaço extra nas laterais para garagem, bicicletas e
essas coisas. Eu nunca tinha visto sua casa antes, e aquilo me fez perceber o
choque que nosso trailer deve ter causado nela â" que estava acostumada a ter o
próprio quarto, provavelmente com móveis combinando nas cores, uma
irmãzinha, um cachorrinho e uma tartaruga, e um pai que era professor de
FÃsica e uma mãe que trabalhava meio expediente numa loja de roupas. Era
104
tudo tão gorjio e bacana, e tão diferente dos Janko, com seus meninos mortos e
banheiro sublocado, suas cadeiras de rodas e sua falta de sorte, horrÃvel, fatal.
Acenei me despedindo quando mamãe manobrou o carro e ela fez o
mesmo da porta de sua casa. Tive a impressão de que ela estava voltando para
outro paÃs e que eu nunca mais a veria â" não da mesma maneira que antes.
Mamãe disse âœParece ser uma garota legalâ e eu respondi âœHumâ.
E isso foi tudo o que falamos sobre o episódio.
⢠⢠â¢
Na biblioteca da escola, li um livro chamado Na estrada: um modo de vida
ameaçado. Eu me perguntava o que as outras pessoas pensavam de nós. O livro
foi escrito por um gorjio para outros gorjios e, embora fosse direcionado para os
alunos, ele parecia estúpido e simples. Falava de tendas improvisadas, carroças,
flores esculpidas na madeira, cavalos e facas remendadas. Dizia que os ciganos
têm pele e cabelos escuros e âœolhos particularmente brilhantesâ. O que isso
significa? Como alguns olhos podem ser mais brilhantes do que outros?
Ficando molhados?
Acho que algumas das coisas que o livro dizia eram verdade. Alguns
ciganos costumavam esculpir flores na madeira, mas isso foi há muito tempo e
não tem nada a ver com minha famÃlia ou com qualquer pessoa que eu conheça.
Diz também que estamos em contato com a natureza e sabemos como preparar
antigos medicamentos à base de ervas e plantas e coisas desse tipo. Bem, não
sei. A esposa do meu tio-avô sabia tudo sobre ervas e plantas, pelo que dizem,
mas ela está morta agora. Mas não há nada escrito sobre exames escolares, por
exemplo. Aparentemente, ciganos não têm exames escolares. Eles não se
formam médicos.
⢠⢠â¢
Quando vi Stella novamente na escola, foi diferente. De inÃcio, nada
importante â" ainda conversávamos e sentávamos lado a lado em algumas
aulas, mas faltava alguma coisa â" algo misterioso que fazia com que fôssemos
almas gêmeas, não importa o quanto éramos diferentes por fora. Gradualmente,
fomos conversando menos e menos, e então ela se tornou a melhor amiga da
superesnobe Katie Williams, cujo pai faz parte do conselho municipal, e elas
passaram a sentar juntas e agora mal nos falamos, exceto um âœoiâ de vez em
quando.
Gorjio. Entendo melhor o que meu tio-avô quer dizer agora quando fala
que somos diferentes. Não piores ou melhores, apenas diferentes. Como eu e
105
Stella â" podemos ter os cabelos escuros e falar inglês, gostar de The Smiths e
detestar aulas de geografia. Mas somos como trens que correm sobre trilhos
mais ou menos paralelos, mas que nunca se encontram. E não posso ir para seus
trilhos, nem ela, para os meus.
106
DEZESSETE
RAY
No dia seguinte, o céu desabou. As calhas inundaram e transbordaram.
O solo, saturado desde a primavera, não consegue absorver a água. Ela não tem
para onde ir. As manchetes de jornal estão obcecadas com a chuva. Todo
mundo fala sobre isso. A chuva pode ser radioativa e nos matar a todos.
Procuro por Seviton. Fica em Sussex, na região de Downs; uma aldeia
inexpressiva longe demais de uma estação de trem para os trabalhadores e
demasiadamente desinteressante para passar os fins de semana. Mas tem um
pub â" o White Hart â" cujo emblema é uma interpretação moderna de uma
residência imitando o estilo Tudor. No interior, as costumeiras máquinas de
apostas barulhentas com frutas na tela e um cheiro desagradável de cigarro.
Alguns habitantes locais estão encostados no balcão, embora ainda não estejam
na idade de se aposentar e ainda não sejam nem 11h30 da manhã. Peço uma
água tônica e pergunto onde fica o Black Patch. Ninguém parece saber do que
estou falando. Menciono que deve ser um lugar onde os ciganos costumavam
parar e um dos homens bebendo sozinho franze a testa.
â" Havia um lugar, perto da Egypt Lane. Há um poço de matéria calcária
no qual os ciganos costumavam parar, mas foi fechado há alguns anos. Estava
sempre uma bagunça, lixo para todo ladoâ¦
Ele me indica o caminho. O nome é um indÃcio gritante. Dá para achar
alguns nomes assim em todo o sul da Inglaterra â" Egypt Wood, Egypt
Meadow â" e isso significa que o lugar foi outrora ocupado por um
acampamento de pessoas do Little Egypt. Quando o primeiro bando de
viajantes exóticos e de pele escura chegou à Inglaterra, quinhentos anos atrás, o
lÃder se autodenominava o rei do Little Egypt. Eles não eram do Egito, mas
ninguém sabia de onde vinham, e assim o nome pegou: egÃpcios⦠Gypsies,
ciganos em inglês. Eles afirmavam ter a missão de viajar por sete anos em
penitência com autorização para mendigar. Traziam uma carta do Papa
atestando isso. Ou talvez fosse do Sagrado Imperador Romano. De qualquer
maneira, não voltaram para seja lá de onde vieram, quando a penitência de sete
anos se encerrou. Ainda estamos aqui.
A Egypt Lane é uma rua estreita que conduz para fora da aldeia; os
canteiros estão encharcados nos dois lados, impossibilitando o estacionamento.
107
Após alguns minutos dirigindo em meio a um bosque úmido, encontro uma
curva que leva à encosta do morro e o caminho é interrompido por uma cerca
de arame farpado recente e uma placa que diz: âœEntrada proibida. Fogueiras
proibidas. Pernoite em acampamento proibido.â É um código para dizer
âœCiganos, foraâ.
Calço minhas botas, subo a cerca e desbravo uma série de arbustos
espinhosos. Está escuro, por causa das árvores frondosas e a massa do Downs
estendendo-se para o sul, mas consigo ver um velho poço de calcário â" uma
picada enorme cortando a encosta, revelando um penhasco esbranquiçado
raiado de manchas verdes. Parece provável, mas só tenho certeza de que é o
lugar que procuro quando descubro a carcaça enferrujada de uma caminhonete
encalhada, sem rodas e sombria, em meio a urtigas esguias e olmeiras.
O que o proprietário do terreno pensa que pode fazer com este lugar está
além da minha compreensão. Mas também esta provavelmente não era a
intenção. A intenção era fazer com que os viajantes fossem para outro lugar â"
ainda que fosse para pouco além dos limites da comunidade. Geralmente, as
terras que costumavam ser comunitárias â" locais em que os ciganos tinham
autorização para usar como todo mundo â" eram reclassificadas como parques
ou áreas residenciais, especificamente para impedi-los de parar ali. Os campos
foram escavados a fim de deixá-los impraticáveis para os veÃculos. Muros de
concreto foram erguidos. Na casa de Kizzy Wilson, um muro de concreto pré-
fabricado cercava todo o local, de modo que não se podia ver o interior e, lá de
dentro, era impossÃvel enxergar o lado de fora. Apesar da entrada desimpedida,
havia um aspecto de prisão.
Meu pai costumava contar histórias sobre os gavvers â" a polÃcia â"
chegando com tratores para arrastar os trailers para fora à força. Ãs vezes, nem
sequer davam às pessoas a chance de empacotar seus pertences, e aà todas as
louças e copos se quebravam. Não adiantava reclamar. Não havia nada
parecido com indenização para ciganos. E, antes que me perguntem, sim, isso
ainda acontece.
Tento formar uma ideia de como era aqui, na época em que se podia
acampar â" pequeno, apartado â" algo capaz de agradar os Janko. Tento
imaginar o Westmorland Star de Tene aqui â" e o outro trailer com aquele Ivo
esquivo e a ainda mais esquiva Rose. Aonde ela pode ter ido para encontrar um
namorado gorjio? Seviton? O White Hart? Não consigo ver uma moça cigana
tÃmida indo a um pub sozinha. Ou será que isso nunca aconteceu? Terá
acontecido algo a ela ali, sob a camuflagem dessas árvores? No refúgio do
penhasco branco?
108
⢠⢠â¢
De volta ao White Hart, secando-me em frente ao aquecedor elétrico e
esquentando-me com uma dose de Bell"s, começo a conversar com o homem
mais velho dali. Ele se recorda com certa nostalgia de Egypt Lane como um
ponto de parada, mas não que tenha um dia sido chamado de Black Patchâ¦
Pergunto se existem acampamentos municipais nas cercanias, e ele apenas ri.
Em seguida, olha para mim.
â" Mas por que está tão interessado nos ciganos?
â" Estou procurando uma moça que desapareceu por aqui. Uma cigana.
Mostro aos fregueses do pub a fotografia de Rose no hipódromo. As
cabeças se agitam em negativa. Meu amigo encolhe os ombros, sem demonstrar
nenhum interesse particular.
â" Duvido que alguém na aldeia tenha visto o tipo de gente que parava
por lá. Eles chegavam e partiam o tempo todo. Como saber se um deles
desapareceu? É preciso ter algum lugar de onde desaparecer, não é mesmo?
Como você saberia? Ele começa a rir descontroladamente, achando-se muito
esperto.
â" A moça tinha uma famÃlia. Foi de onde ela sumiu.
É verdade o que disse Leon; parecem dois mundos diferentes, ciganos e
gorjios vivem lado a lado, mas não frente a frente. Um monte de gente não se dá
conta de que ainda há ciganos vivendo nas estradas deste paÃs, até a manchete
de um jornal popular criar uma encrenca com os acampamentos sujos ou áreas
de acampamento arriscadas. Eles gostam de pensar que os ciganos são coisas do
passado, como jarras de hidromel e cavalos entregando o carvão semanal.
Pitorescos talvez, mas basicamente coisa do passado.
â" Aqueles ali não eram ciganos de verdade, de qualquer maneira. Eram
mais uns vagabundos, parasitas, sabe?
â" Ciganos de verdade? Não sei se entendo bem a diferença.
â" Desde que estou aqui, não vi ciganos de verdade. Verdadeiros roms,
quero dizer. E sempre vivi aqui. Eles não existem.
Já nem sei quantas vezes ouvi essa história sobre ciganos de verdade.
Todos gostam de ciganos de verdade. Não há um acordo sobre quem são eles,
mas têm certeza de que não sobrou nenhum. As pessoas que eles estão tentando
retirar das terras comuns são⦠outra coisa. Na maioria das vezes, tento me
109
manter neutro. Afinal de contas, estou aqui a trabalho. Mas acho que não
conseguirei ir além disso por hoje.
â" Meu pai era um cigano, um verdadeiro cigano. E ele trabalhou a vida
toda.
Sorrio e me levanto, pondo meu copo sobre o balcão. Quando me afasto,
tenho a impressão de ouvi-lo resmungar âœCiganos é o caralhoâ em voz baixa,
mas eu não poderia jurar isso num tribunal.
Só quando estou saindo de Seviton em meu carro me dou conta de que
agi como um idiota. Ninguém reconheceu o nome de Black Patch porque a
Egypt Lane não é chamada de Black Patch⦠e nunca foi. Os nomes perduram,
mesmo quando os lugares mudaram completamente de aparência. Dê uma
volta pela cidade de Londres.
Neste caso, por que Tene disse que Black Patch ficava em Seviton? Essas
inconsistências fazem diferença. Enfie os dedos numa pequena fenda e poderá
mover todo o bloco. Ou Tene se enganou, ou estava tentando me desviar de
uma pista. Um lapso ou uma mentira. De qualquer modo, é a primeira coisa
interessante que acontece neste caso.
⢠⢠â¢
Eu estava certo. Poucos dias depois, encontrei o verdadeiro Black Patch.
Telefonei novamente para Lulu Janko. Ela pareceu aborrecida quando falei meu
nome, então perguntei apenas sobre Black Patch. Surpresa, ela disse: âœAh, é,
bem perto da cidade⦠Como se chama? Watley? É esse o nome? Perto de Ely. É
mesmo, costumávamos parar por lá. Acho que o lugar foi vendido já faz algum
tempo.â
Em seguida, ela deu outra vez a desculpa do âœtenho que trabalhar agoraâ
â" já passa das 15 horas â" e fico matutando sobre esse emprego misterioso de
cuidadora particular.
⢠⢠â¢
Hen veio até minha mesa hoje de manhã, o que expôs seu
constrangimento: sua mesa fica a apenas pouco mais de três metros da minha e
minha audição é ótima.
â" E então⦠Na outra noite, lá em casa? Foi agradável, não foi?
â" Foi.
110
â" Fiquei pensando⦠você sabe. Vanessa⦠ela é legal, não é? Achamos
queâ¦
â" Por favor, não comece, ok?
â" Não me olhe assim!
â" Não estou fazendo nada.
â" Então⦠o que você acha?
â" Pode dizer à sua esposa que achei a moça muito simpática, mas⦠não
é o meu tipo. Hen é muito cavalheiro para mencionar que eu dormi com ela,
mas ele sabe. Tenho certeza. Ele empurrou a lata de lixo com seu mocassim. â"
Nós nos preocupamos com você.
â" Fico comovido com isso.
â" Já faz mais de dois anos.
â" Eu sei quanto tempo faz.
Olhei para meu bloco de anotações, peguei minha xÃcara de café e bebi
um gole, apesar de estar frio. Ele não se mexeu.
â" Há algo mais? â" perguntei.
Hen aquiesceu e tomou extremo cuidado para não me olhar nos olhos.
â" Já é hora de você parar de espionar sua ex-mulher.
Fico imóvel, a xÃcara pairando sobre a mesa.
Tenho sido tão discreto⦠Onde foi que vacilei? Não pude ficar zangado
com ele. Faz parte de seu trabalho observar bem as coisas.
â" Ela não é minha ex-mulher.
â" Pelo amor de Deus, Rayâ¦
Tento me acalmar. Não faz o menor sentido que Jen e eu ainda sejamos
marido e mulher, a não ser no papel, e ela vem há meses me pedindo para
assinar o divórcio. Ou melhor, seu advogado vem me pedindo. Não sei por que
ainda não fiz isso, sinceramente.
â" Você está certo. E eu⦠parei.
111
Faz mais de uma semana desde a última vez. Estarei finalmente me
cansando disso? É assim que acontece?
â" Bem⦠que bom.
â" Ela me viu? â" Ele me lança um olhar severo. â" Então, vai dizer a
Madeleine para me deixar em paz?
â" Só se você se comportar direito.
â" Na verdade, acho que encontrei alguém.
â" É verdade? Quem?
â" Talvez haja uma quÃmica entre nósâ¦
â" É Vanessa?
â" Acabei de dizer que não! Você não a conhece. Então, eu agradeçoâ¦
agora volte para sua mesa e continue a fazer seja lá o que você faz ali.
Fiz um gesto com a mão, dispensando-o e fazendo pouco dele. Ele sorriu
e sentou-se em minha mesa.
â" Então, como ela é?
â" Quem?
â" Ora, vamos⦠Já rolou alguma sacanagem?
Os alunos de escolas públicas são assim: nunca amadurecem.
⢠⢠â¢
Desta vez, estou na região de Fen, próximo de Ely, em Stowmarket â"
aquela terra estranha e plana entremeada de catedrais e bases aéreas. Eles se
divertem nesta parte do paÃs inventando nomes bizarros para suas aldeias â"
passo de carro por Bruisingford, Shangles, Soberton. Encontro a aldeia que Lulu
mencionou e me dirijo ao pub. É autenticamente vitoriano, em oposição àqueles
falsamente jacobinos. Faço perguntas. Desta vez, é fácil. Sou encaminhado até
um senhor bem idoso, conhecedor da história local. Ele me explica a origem do
nome Black Patch: aquela antiga terra coletiva na periferia da aldeia foi o
cemitério dos indigentes vÃtimas da Peste Negra, embora escrupulosamente
saliente que isso, até onde ele sabe, não foi substancialmente comprovado.
Quando lhe falo sobre moças desaparecidas, contudo, ele não tem nada a
acrescentar. A história recente â" com menos de cem anos â" parece não lhe
interessar.
112
Cemitério ou não, o Black Patch atualmente é um depósito de lixo.
Próximo a um supermercado novo, com vários acres de terra devastados até se
tornarem uma paisagem lunar ampla e lamacenta â" grande o suficiente para
uma população duas vezes maior do que a da aldeia. Um tapume na beira da
estrada anuncia a iminente chegada da âœAlder View â" Um Empreendimento
Exclusivo de Residências à Margem do Rioâ, com uma imagem improvável que
não tem relação alguma com as valas cheias de detritos à minha frente.
Tampouco vejo um rio â" até perceber que a fileira de salgueiros e amieiros
depois do terreno devem ocultar algum riacho. Algumas escavadeiras estão
imóveis com suas mandÃbulas abertas no ar, o amarelo gritante destacando-se
na terra cinzenta. Um homem solitário de capacete fuma ao lado de um
contêiner transformado em escritório. Atravesso com dificuldade o lamaçal em
sua direção.
â" Lamento, mas aqui é um terreno particular.
â" Sinto muito⦠só queria saber se é este lugar que chamam de Black
Patch.
Ele sorri.
â" Não, aqui é âœAlder Viewâ agora. Mas antes, sim, era assim que
chamavam. Mas não é muito atraente para os yuppies, não é mesmo?
O operário, Rob, diz que a obra em Alder View está atrasada por causa
da umidade do solo. É loucura, em sua opinião; estão construindo casas sobre
um terreno alagadiço. Há uma série de plantações ao redor: frutos silvestres e
hortas de verduras â" e, se antigamente fosse alagadiço, os ciganos logo teriam
se mudado para outro lugar. Pergunto-lhe se as escavações descobriram algum
vestÃgio de vÃtimas da Peste, mas ele dá de ombros: não que ele saiba. Cacos de
cerâmica e estranhos fragmentos de ossos, provavelmente animais: na maior
parte das vezes, apenas lixo. Explico o motivo da minha presença: foi aqui que,
possivelmente, uma moça desapareceu seis anos atrás. Enfatizo que não estou
procurando um cadáver, mas alguém ainda vivo. Caso ele saiba de algo. Meu
novo amigo â" por agora â" fica tão animado que promete perguntar nos
arredores. Dou-lhe meu cartão.
Há somente um problema com essa pista. Segundo Rob, o Black Patch foi
vendido há quase dez anos â" muito antes de Rose desaparecer. Será que o local
ainda é usado como parada â" ilegalmente â" enquanto atola num complicado e
lento processo de planejamento?
Rob acha que não. Eu me pego esperando que ele esteja enganado.
113
DEZOITO
JJ
Ontem, acho que foi a pior noite da minha vida. Fomos acordados com
uma pancada na porta do trailer por volta das 2 horas. Era Ivo, e ele parecia
assustado. Christo não estava conseguindo respirar direito. Eu e mamãe nos
vestimos rapidamente e saÃmos correndo e, embora eu tenha ficado atrás deles
na porta de entrada, deu para perceber que era grave. Sua respiração não estava
apenas fraca e entrecortada, como acontece às vezes, mas pesada e ruidosa. Foi
horrÃvel.
â" Temos que levá-lo para o hospital â" disse mamãe.
Ivo ficou branco feito cera. Ele detesta hospitais. Quer dizer, ninguém
gosta, obviamente, mas ele realmente os odeia. Como se tivesse uma fobia ou
algo assim. Suponho que tenha tido muitas experiências ruins quando era um
menino doente â" e elas não o ajudaram em nada. Mas ele concorda, assim
mesmo, já que não havia o que discutir. Estávamos todos assustados. Vovó
acordou com a barulheira que fizemos â" ninguém estava tentando manter o
silêncio. Concordamos que precisávamos levá-lo para o hospital. Todos se
mostraram muito práticos e solÃcitos, como nos casos de emergência,
oferecendo lenços, cobertores e pomada Vicky Vaporub. É necessário manter o
pensamento ocupado, eu acho, em pequenos detalhes, de maneira a não pensar
no pior â" como se uma pomada pudesse sanar o problema.
Assim, acabamos todos no hospital â" quer dizer, mamãe, Ivo, Christo e
eu. Mamãe tentou me convencer a voltar para a cama, mas eu nunca
conseguiria dormir e, de qualquer modo, era sábado à noite. Pensei que Christo
provavelmente gostaria de me ver lá também se pudesse dizer alguma coisa.
Enfim, seguimos até o hospital mais próximo â" há um na cidade, portanto
levamos apenas uns 15 minutos â" e corremos para o setor de emergência. Ivo
carregou Christo nos braços até o balcão da recepcionista e, após uma breve
conversa, levaram-no para outra sala, na frente de todas aquelas pessoas que
estavam esperando ali havia séculos. Havia uns caras sentados ali com o rosto
ensanguentado, pessoas deitadas nos bancos â" podiam estar mortas. Ou seja, o
lugar estava lotado. Não sei se as emergências estão sempre cheias assim, mas
talvez estejam: uma enfermeira â" a que era bacana, ao contrário da outra,
sentada na recepção â" disse âœtÃpica noite de sábadoâ ao passar apressada por
nós.
114
Eu e mamãe sentamos juntos das pessoas que aguardavam â" um monte
delas estava bêbada, reparei (bem óbvio, sendo uma noite de sábado) â"
enquanto Ivo e Christo estavam com o médico em algum lugar. Algumas
pessoas resmungavam ou xingavam â" ou gemiam. Achei que os resmungões
estavam, provavelmente, exagerando um pouco, porque, se estivessem mesmo
mal, seriam levados para dentro, em vez de serem deixados ali horas a fio, que
era o que acontecia. Outro homem não parava de gritar, berrando e falando
com as enfermeiras de maneira bem grosseira. Elas o ignoravam, e concluà que,
certamente, a cabeça dele não estava funcionando direito e ele não sabia o que
dizia. A enfermeira bacana passou um momento por ele e disse âœQuando for
sua vez, nós o veremos, Dennisâ, o que me fez pensar que ela o conhecia.
Talvez ele vá lá nas noites de sábado. Uma hora, olhei em volta e ele estava me
encarando. Seus olhos eram medonhos: um deles era vermelho onde devia ser
branco, e havia sangue coagulado escorrendo de seu nariz. Parecia ter saÃdo de
um filme de terror: O vagabundo do inferno. Desviei o olhar, fingindo que eu
não tinha percebido a presença dele ou seu olho horrÃvel, ou o cheiro de urina
que seu corpo exalava, temendo que começasse a berrar comigo ou coisa pior.
Peguei café na máquina automática para continuarmos atentos. Não era
muito bom â" quente demais e bem amargo, mesmo despejando um monte de
açúcar no copo. Eu queria também pegar umas batatas fritas, mas não tÃnhamos
mais dinheiro trocado. Reclamei com mamãe quando ela se recusou a trocar
uma nota de cinco libras â" era tudo o que tinha sobrado. Fiquei de mau humor
por algum tempo e então me dei conta de que estava sendo egoÃsta e que
deveria pensar em Christo, que podia estar seriamente doente, e não em mim,
que estava de modo geral saudável, apesar de faminto. As horas se arrastaram
como uma cambaleante e velha centopeia. Apesar de estar caindo de fome,
acabei adormecendo; acordei e vi mamãe e Ivo cochichando.
Pareciam estar discutindo. Segundo Ivo, os médicos queriam que Christo
permanecesse no hospital enquanto tentavam descobrir o que havia de errado
com ele. Achei que era uma boa ideia, mas Ivo parecia irritado com isso. Ele
ficava repetindo: âœQuerem apenas examiná-lo.â Mamãe ficou bastante brava
então, argumentando que o hospital era o melhor lugar para ele. Concordei com
ela, mas achei melhor não dizer nada. Ivo estava especialmente furioso, pois
pediram a ele para preencher alguns formulários â" um monte de perguntas do
tipo onde moramos â" então ele teve que inventar algum endereço; assim não
ficariam sabendo que éramos ciganos. Mas faziam todo tipo de perguntas
traiçoeiras, como, por exemplo, quem é seu médico de famÃlia, e não temos
nenhum, e, por isso, aquilo foi bem complicado.
115
Acabei voltando para casa com mamãe às 6 horas, quando o sol nascia,
deixando Ivo e Christo para trás. E dormi até tarde naquela manhã. Na
verdade, quando acordei, já passava de meio-dia, portanto era mesmo de tarde.
Eu tinha pensado em levar Christo para pescar, e o tempo estava perfeito para
isso â" úmido e agradável. Mas, naquele momento, eu não conseguia me
concentrar em leitura, em música e em nada, pois estávamos apenas esperando
para saber o que tinha acontecido.
⢠⢠â¢
Finalmente, Ivo retornou por volta das 17 horas, e Christo estava com ele.
Todos saÃmos correndo do trailer da vovó, onde estávamos sentados,
esperando, impacientes.
â" Como está ele?
â" Não deveria ter ficado lá?
â" Ele está bem? Você está bem, não está? Hein?
Ivo deu-lhe um beijo na cabeça. Christo está adormecido, mas sua
respiração parece melhor do que na noite passada.
â" Eles lhe deram alguns antibióticos. Disseram que ele podia voltar para
casa. Ivo demonstra certa resignação. Parece completamente exausto, com
aquelas olheiras enormes.
â" Temos que mantê-lo bem aquecido. Ivo, por que você não vai tirar
uma soneca no trailer dois e eu ponho Christo na cama?
â" É uma boa ideia. Você está esgotado. Mamãe afaga seu braço
carinhosamente. Ela parece preocupada.
â" Estou bem.
â" Vamos, Ivo. Você precisa deitar um pouco. Vovó estende os braços
para pegar Christo. Ivo recua.
â" Vou sim. Nós dois vamos deitar um pouco. Em nosso trailer. Eu posso
tomar conta dele, está bem?
â" Só estamos tentando ajudarâ¦
â" Não preciso de ajuda. Ele se vira e vai para seu trailer.
â" O que deu nele? â" indaga vovó.
116
â" Ele está cansado, mãe. Não dormiu nem um pouco.
â" Eu sei! Estamos oferecendo ajuda. Não há necessidade de ser
grosseiro!
Ela termina a frase gritando um pouco, de modo que Ivo possa ouvir; ele
acabou de bater a porta.
â" Não tem modos, esse rapaz. Nunca mais teve, desde⦠E era um
garoto tão adorávelâ¦
â" Ele tem que suportar um monte de coisas, mãe.
â" Não sei por que você sempre o defende.
Elas se encaram, como dois gatos.
Visto que Ivo não quer saber de nós, desistimos. Não consigo parar de
pensar que Christo estaria melhor se ficasse um tempo no hospital. Quem sabe
â" talvez encontrassem um jeito de curá-lo de verdade. Os cientistas estão
trabalhando o tempo todo nisso. Podem ter descoberto algo novo, desde que ele
era bebê.
Quando eu e mamãe voltamos para nosso trailer a fim de beber um
pouco mais de chá, ela parece inquieta. Então, pergunto se não acha que Christo
estaria melhor se ficasse um tempo no hospital.
Ela suspira e balança a cabeça.
â" Tenho certeza de que não o deixariam ir embora se achassem que ele
precisava ficar no hospital, querido.
â" É, eu sei, masâ¦
Mas não sei, e não digo mais nada. Então, um pensamento horrÃvel me
vem à cabeça. De repente, imagino que Ivo saiu do hospital com Christo, muito
embora os médicos quisessem mantê-lo internado. Talvez não tenham
autorização para impedi-lo se você for um dos pais. Talvez nem tenham
reparado â" são tão poucos e estão tão ocupados. Parece uma coisa terrÃvel
pensar isso de Ivo, então fico calado. Mas, por alguma razão, não consigo parar
de pensar assim.
⢠⢠â¢
É engraçado⦠Quando eu era menor, eu realmente admirava Ivo.
Apesar de seu temperamento e seus humores inesperados, ele era o adulto com
117
o qual eu queria me parecer. Talvez seja necessário existir pessoas na famÃlia ou
por perto com quem possamos nos sentir assim: âœQuando crescer, quero ser
como tal pessoa.â Não tenho pai, então a quem devo admirar? Não o vovô, com
seus olhos esbugalhados e a pele avermelhada que parece torrada pelo sol,
mesmo no inverno, e aquela pança â" é difÃcil acreditar que tenhamos algum
parentesco, basta olhar para nós. Ele é bacana, mas não faz muita coisa, exceto o
que vovó manda e, quando toma alguns copos, gosta de contar histórias de
quando era boxeador e arrancou os dentes de um cara chamado Long Pete, ou
Black Billy, ou algo assim. Nem sei se é verdade. Vovó está sempre
resmungando, dizendo o quanto ele é inútil. E eu também não queria ser como
meu tio-avô, o mais azarado daqui, embora eu goste de conversar com ele
quando está de bom humor. Mas não se pode desejar ser como alguém que está
numa cadeira de rodas e que precisa ser empurrado até o banheiro quando sai
de férias, pode? Então, sobra apenas tio Ivo.
Quando ele â" com meu tio-avô e Christo â" veio morar conosco, eu
tinha 7 anos. Até então, eu só conhecia mamãe, em primeiro lugar, depois vovô
e vovó. Eu mal tinha ido à escola nessa época. Acho que se pode chamar de
uma criação protegida. Ou, se não protegida de coisas como despejo e
aborrecimentos com a polÃcia, então⦠trivial. Subpovoada, como diria meu
professor de geografia. Meu tio-avô e Ivo certamente animaram as coisas. E Ivo
era bacana. Ele era â" e ainda é â" não muito alto, mas muito magro, e de ótima
aparência, eu acho. Tem cabelos pretos e olhos escuros, uma pele bem macia, e
um modo de olhar para as pessoas bastante confiante, como se soubesse que é
melhor do que elas, pouco importam quem sejam. Se andamos pela rua, as
moças sempre se viram e olham para ele. Em outros casos, as pessoas tendem a
demonstrar um pouco de medo dele. Mas, quando o vemos com Christo,
podemos saber que tem, de fato, bom coração. E, quando ele sorri para você, a
impressão é de que acaba de lhe dar um presente especial. Você se sente ótimo.
Assim, eu admirava Ivo. Ãs vezes, as pessoas que não nos conheciam pensavam
que eu era filho dele, porque nos parecemos â" mesmos cabelos, mesmos olhos.
Não estou sendo vaidoso ao dizer isso â" é realmente verdade. Eu costumava
ficar contente quando as pessoas faziam essa suposição e, em segredo,
imaginava que, talvez, ele fosse mesmo meu pai. Afinal de contas, mamãe não
falava do gorjio que, supostamente, era meu pai â" jamais vi sequer um retrato.
Tampouco sei o nome dele, meu Deus. Dá para ver que ela não me contou
muita coisa. Então, pensei que, talvez, fosse por isso que meu tio Ivo e eu
tÃnhamos um tipo de ligação especial e por isso que eu me dava tão bem com
Christo â" isto é, até eu ficar um pouco maior e começar a pensar nisso, e me
dar conta de que aquilo era uma grande bobagem. Ivo tinha apenas 14 anos
quando nasci (e sua saúde não era das melhores).
118
Desde que voltamos da França, recomecei a perguntar para mamãe sobre
meu pai. Ela diz: âœQuando você for mais velho, querido. Já tem muita coisa com
que se preocupar, como as provas na escola e tudo o mais.â
Ãs vezes, me pergunto se esse gorjio, de fato, existiu.
De qualquer modo, desde que fiquei mais preocupado com Christo, não
tenho certeza do que penso sobre Ivo. Na verdade, acho que estou furioso com
ele. Sei que ele ama Christo, porém acho que poderia fazer mais para encontrar
um modo de curar o filho. Ir para Lourdes foi ótimo, mas parece que não
ajudou em nada. O nÃvel da água benta restante no galão está baixando aos
poucos â" meu bilhete ainda colado nele â", mas Christo está deitado na cama
com uma infecção respiratória. Não fala; não anda. E Ivo não quer deixá-lo no
hospital no qual, talvez, descobrissem um pouco mais sobre o que há de errado
com ele. Que mal faria isso? Só por que ele não gosta de hospitais, não significa
que isso não possa ser bom para Christo. Não consigo parar de pensar que ele
está sendo egoÃsta.
Não consigo me lembrar de por que eu me sentia tão esperançoso na
França. Quando penso que eu estava em Lourdes poucas semanas atrás, não
posso acreditar que me sentia tão otimista. É como se estivesse olhando para o
passado e vendo uma pessoa totalmente diferente, bem mais jovem, mais
ingênua e muito mais estúpida.
119
DEZENOVE
RAY
Hen me cumprimenta no trabalho com um sorriso e um tapinha nas
costas â" ele sabe que hoje é meu aniversário e, apesar da minha suspeita de
que, se dependesse dele, teria alegremente ignorado isso, incentivado por
Madeleine, ele me pergunta se tenho algum programa para mais tarde.
â" Tenho â" respondo.
â" E quais são?
â" Nenhum que você conheça.
â" Ooohh⦠â" Ele estende a vogal a dimensões ridÃculas. â" A mulher
misteriosa?
â" Talvez.
â" Sei. É só que, caso não tivesse pensado em nada, você seria muito
bem-vindo lá em casa esta noite.
â" Obrigado, mas tenho mesmo um compromisso.
Ele olha para mim. Aparentemente satisfeito, insiste em me levar para
almoçar.
Fazemos uma análise do caso Rose Wood, embora não haja muito a ser
dito. Falei com Leon sobre Black Patch e Egypt Lane e, mesmo tendo
reconhecido os dois nomes, pouco tinha a acrescentar, e não havia nenhuma
ideia concreta sobre as datas. Ele não tinha certeza se Rose algum um dia
aparecera por lá. Na verdade, não sabemos praticamente nada: não sabemos
onde desapareceu nem exatamente quando, tampouco quem eram seus amigos
ou se ela, de fato, tinha algum. Não encontramos nenhum registro de alguém
que a tenha visto desde aquele inverno, seis anos atrás. Nenhuma de suas irmãs
recebeu sequer um único cartão-postal, elas disseram. Não aparece nos registros
oficiais. Ela realizou um notável e bem-sucedido espetáculo de
desaparecimento.
â" Ela está morta â" diz Hen, enfim. â" Tem que estar.
120
Ele confirma o que tenho começado a achar. Mas também não há indÃcios
positivos de uma morte. Por um instante me pergunto se de fato ela existiu.
Solto um suspiro de frustração.
â" Todos com quem falei⦠todos parecem terrivelmente vagos.
Hen agita sua xÃcara de café e ergue as sobrancelhas. Depois, sorri.
â" Talvez ela esteja no fundo de um lago.
Um amigo de infância da mãe de Hen jogou o corpo da esposa numa
represa, anos atrás. Ele alegara que ela havia fugido com um de seus amantes e,
aparentemente, ninguém suspeitou de nada. O corpo só foi encontrado quando
dragaram a represa em busca de outro cadáver. Ela foi estrangulada com as
próprias meias. Em consequência disso, eu e Hen temos uma especial afeição
por lagos. Por enquanto, não há lagos envolvidos neste caso, mas isso não quer
dizer que não aconteceu. E, é claro, se esposas são mortas, em geral são
assassinadas por seus maridos. Ivo Janko, outra vez. O puro, generoso e
resignado Ivo.
Nesse momento exato, o telefone toca. Andrea me passa a ligação.
â" Estive pensando⦠â" diz ele. â" Talvez você devesse se encontrar com
Ivo, afinal de contas.
É Tene Janko. Alguém o ajudou, levando-o até uma cabine telefônica. E
ele andou pensando no assunto.
â" Ok, isso é ótimo. Onde posso encontrá-lo?
Nenhuma das minhas investigações revelou seu paradeiro. Já começava
a pensar que ele era tão esquivo quanto sua ex-esposa.
â" Ele estará aqui conosco, amanhã. Se quiser aparecerâ¦
â" No mesmo local?
â" Mesmo local.
â" Chegarei por volta das⦠11 horas? Desligo o telefone.
â" Por que ele está me telefonando agora?
â" Talvez porque sentiu que você anda desconfiado.
â" Eles estão ajustando suas versões.
â" Quer que eu o acompanhe? Balanço a cabeça.
121
â" Está tranquilo.
Penso em Lulu Janko â" será que ela voltou a falar com o irmão?
⢠⢠â¢
Pode ter sido durante o almoço que aquela ideia doida me veio à cabeça.
As sutis insinuações de Hen sobre meu encontro misterioso desta noite â" é
claro que não tenho nenhum â" e o vinho que bebi uniram forças de um modo
definitivamente doentio. Meu pai costumava dizer, ou pelo menos disse uma
vez, num dos raros momentos em que não estava gritando com o aparelho de
televisão: âœDescubra o que sabe fazer direito e faça.â
Tudo bem, pensei após meia garrafa de borgonha (Hen bebe água) e o
filé reforçado com ostras e batatas que ele insistiu em bancar como presente de
aniversário. Tudo bem, eu farei isso.
Por esse motivo, estou aqui, horas mais tarde, fazendo o que sei fazer
direito, observando uma casa em Richmond. É uma casa grande com
proporções elegantes dispostas em quatro andares, uma sacada de ferro
fundido sobressaindo do primeiro piso. Janelas que vão do chão ao teto,
revelando pesadas cortinas. O jardim da frente é tão discreto quanto um buquê
de sempre-vivas.
Inicialmente, fiquei sentado em meu carro com uma teleobjetiva, mas a
entrada de carros é muito longa e curva; os arbustos são espessos demais para o
olhar ávido de um pateta como eu conseguir descortinar. Então, espero até o
cair da tarde; depois, penetro sob as sombras da entrada para carros e me diluo
na escuridão dos arbustos â" grandes, exagerados, cheios de azaleias e camélias.
O Ãndigo começa a vazar no céu, e eu sou uma mancha azul-escura perdida nas
sombras. Como dizem por aqui, a hora entre o cão e o lobo. Qual sou eu?
Parece haver luz somente no andar térreo. Os andares de cima â" a maior
parte da casa â" estão na escuridão. Tenho que abrir caminho no meio da selva
densa até os fundos da casa, onde duas janelas altas e sem cortinas lançam uma
claridade sobre o gramado descuidado e os lúgubres arbustos. Apesar de suas
dimensões, parece se tratar de um jardim que ninguém frequenta ou sobre o
qual sequer pensa. Muito bem, raciocino, pertence a alguém velho e enfermo.
Alguém que precisa de uma cuidadora particular, mas não pode pagar pelo
serviço.
Segui Lulu Janko desde sua casa. Aguardei até que saÃsse com o carro e
viesse até aqui, acompanhando seu minúsculo Fiat bege com a luz do freio
quebrada. Ela estacionou numa rua sossegada entre Volvos, Audis e Range
122
Rovers e depois entrou na casa usando a própria chave. Não vi mais nada até
me esgueirar pelo jardim dos fundos. E, então, vi tudo.
Lulu empurra uma cadeira de rodas através de uma porta e a coloca
perto da lareira. A luz morna e móvel indica que o fogo está aceso, muito
embora não faça frio. Lá dentro, deve estar fervendo. A primeira surpresa é que
o homem na cadeira de rodas é bastante jovem. Provavelmente mais novo do
que eu e inegavelmente bonito â" tem cabelos longos e castanhos escovados
para trás e seu rosto é fino, aquilino, de traços bem-delineados. Ar aristocrático
é o que me vem à mente, embora possa ser o ambiente que me faça pensar
assim. Sua boca se abre e se fecha, como a dela, enquanto eles conversam. Pela
linguagem corporal dela, parecem estar à vontade juntos; como se já se
conhecessem há muito tempo, o que pode de fato ser o caso.
Aproximo-me um pouco mais pelos arbustos úmidos para obter uma
visão melhor da sala. Lulu olha intensamente para a janela durante um instante,
o que faz meu coração saltar, ainda que eu saiba que estou muito bem
escondido nas moitas de azaleia. Parecem estar argumentando se devem ou não
fechar as cortinas. Após um momento de hesitação, ela acaba não fazendo isso.
Depois sai, deixando-o ao lado da lareira.
Por que odeio esse homem? Ele merece minha piedade. Embora sua boca
se mova e a cabeça gire de um lado para outro, nada mais se mexe: ele está
paralisado do pescoço para baixo. Um homem impotente.
Lulu volta com uma bandeja e a coloca sobre uma mesinha. Ela pega
uma espécie de colher para alimentar bebês e a estende em direção ao homem
na cadeira de rodas. Será que ela ajudou seu irmão Tene quando ele começou a
usar cadeira de rodas â" terá sido assim que entrou nesse ramo de trabalho?
Então, uma porta se abre e aparece uma mulher mais velha, bem-vestida
e de aparência impressionante. Ela é instantaneamente identificável como sendo
a mãe do homem na cadeira de rodas â" seus rostos se parecem, até mesmo o
nariz fino e pontudo e as sobrancelhas arqueadas. Eles conversam por um
minuto â" todos riem sem parar e depois ela sai. Todos parecem felizes com
alguma coisa â" não consigo entender o motivo. Por um instante, perco a
concentração tentando imaginar os movimentos da mulher mais velha. Tenho a
impressão de escutar a porta da frente sendo fechada. Isso faz sentido; a
enfermeira está trabalhando, então, a mamãe dá uma saÃda para um descanso
bem merecido â" xerez, uma partida de bridge, uma atividade qualquer na
escola local â" esse tipo de coisa. Prendo a respiração para o caso de ela vir até o
jardim dos fundos, mas, é claro, ela não vem.
123
Lulu segura aquela xÃcara especial para ele. Ela está sorrindo â" eles
seguem fazendo pausas para dizer alguma coisa. Só consigo ver a metade do
rosto do homem, já que Lulu está entre nós. De repente, ele mexe bruscamente a
cabeça, afastando-se da xÃcara, e um filete de lÃquido marrom escorre por seu
queixo. Ele sorri, obviamente constrangido, e ela se inclina para limpá-lo. Mas,
em vez de procurar o guardanapo, que se encontra, na verdade, sobre a bandeja
a seu lado, como era de se esperar, ela o limpa com o dedo. Apenas o dedo. Ele
volta a sorrir. Qual é a expressão no rosto dela, eu não faço ideia.
Em seguida, ela ergue outra vez a xÃcara até seus lábios e a inclina para
que ele possa beber. De alguma forma, irritantemente, a mesma coisa volta a
acontecer. Eu me surpreendo prendendo o fôlego, nervoso por ela, pensando:
âœQue falta de jeito! Desta vez, ele vai perder a paciência com ela â" se zangar
mesmo!â O filete de lÃquido escorre do queixo até a gola de sua camisa. Ele
parece encará-la, mas ela não se apressa para limpá-lo. É muito estranho. Então,
mal tenho certeza do que estou vendo; ela parece se inclinar na direção dele â"
embora eu não possa afirmar com certeza â" e lamber o filete marrom do
pescoço e do queixo dele. Acontece tão rapidamente que penso ter imaginado
tudo. Como isso poderia ter acontecido?
No instante seguinte, ela volta a sentar-se e tudo parece normal. Então,
entendo a razão â" a porta da sala de estar abre-se novamente e a mulher mais
velha enfia a cabeça. Parece estar rindo â" talvez tenha esquecido alguma coisa.
Lulu e o homem na cadeira de rodas riem também. Os três parecem felizes.
Alegres. A mãe sai outra vez. Desta vez, Lulu se levanta e sai também pela
mesma porta, deixando-o sozinho. Olho fixamente para ele â" quem é esse
cara? Que espécie de armação doentia e infernal é essa? Terá ele algum tipo de
controle sobre ela que o permite forçá-la a fazer essas coisas? Humilhando-a?
Lulu volta para a sala e fecha a porta, um sorriso em seu rosto. Ela diz alguma
coisa. Depois ela leva a bandeja, a xÃcara e o guardanapo até a mesa ao lado da
porta, e aproxima um pouco a cadeira de rodas da lareira. Ela se abaixa e engata
o freio da cadeira e, quase no mesmo gesto, ergue uma das pernas e senta-se no
colo dele, frontalmente. Ele recua a cabeça até onde é capaz. Observo o relevo
da espinha dela, visÃvel por meio de sua camiseta; observo seus sapatos
vermelhos de salto alto: são os mesmos â" aqueles que calçava quando nos
encontramos. Posso ver as solas desgastadas; o brilho dos pregos usados para
consertar os saltos. Ela deve gostar muito desses sapatos. Ela move seu corpo
para mais perto dele â" ele não pode fazer nada, além de ficar ali sentado, é
claro â" e, curvando-se, ela o beija.
Até onde posso perceber â" da minha experiência com esse tipo de coisa
â", ele retribui o beijo. Não há nada de errado com sua cabeça, afinal de contas.
124
Noto que estou ofegante, triturando um punhado de folhas,
transformando-as numa polpa nojenta e de odor ácido. Sinto enjoo. Estou com
calor. Com vergonha. Não foi para isso que vim até aqui. Isso não deveria estar
acontecendo.
E o que deveria estar acontecendo, Ray?
Quando duas pessoas estão sentadas na mesma cadeira de rodas, todos
devem ir embora. E assim eu faço. Não espero para ver a que horas ela sairá da
casa em Richmond. Arranco com o carro cantando pneu. E este som quer dizer
âœnão quero saber de porra nenhumaâ. Não sei por que vim até aqui. Não estou
interessado. Estou apenas enganando a mim mesmo, tentando mostrar que
superei a perda de Jen. AÃ, vou e acho alguém que se parece um pouco com ela,
meu Deus. Que idiota. Eu nem estava pensando nisso. Que idiota.
Em casa, sento na sala escura, balançando em minha cadeira, vodca e
tônica na mão, me agarrando à beira do abismo, olhando através das folhas
cinzentas os trilhos da estrada de ferro que se estendem ao longo da rodovia
principal. Trens que parecem de brinquedo avançam lentamente sobre a ponte,
me hipnotizando: os freios chiam e estalam, rodas chocalhando pontualmente;
as janelas do trem passam como fotogramas de um filme, flagrantes de seres
humanos sendo transportados para casa, para aqueles que amam e que os
amam, sem se importar que eu esteja aqui no escuro enquanto sacodem dentro
de seus vagões.
Talvez alguns deles estejam voltando para lares sombrios, onde ninguém
os espera. Algumas daquelas pessoas que fazem palavras cruzadas ou olham
sem ver para a noite podem estar imperceptivelmente desesperadas; rostos
entediados ocultando um entrelaçamento de aflitivos escombros. Afinal de
contas, o que seria mais comum do que um casamento fracassado? O que seria
mais banal?
Será que dez anos é o máximo que se pode esperar?
Feliz aniversário, Ray.
125
VINTE
JJ
Tenho que ir ver o diretor. O professor Smith não disse do que se tratava,
mas tenho um bom palpite. Todos os professores estão alvoroçados com as
provas ultimamente, e tenho a impressão de que logo, logo, vai sobrar para
mim.
McDonagh â" nosso diretor â" não é má pessoa. Ele me olha e sorri ao
me ver passar pela porta.
â" Muito bem, James. Entre e sente-se.
Sempre soa estranho quando alguém me chama de James. Eu me
pergunto com quem eles estão falando.
â" Chamou minha atenção o fato de sua frequência ter sido bem irregular
este ano â" diz o diretor.
Oh.
â" James, você teve algum problema em casa recentemente? â" prossegue
ele.
â" Não.
â" O fato é que você conseguia sempre manter a assiduidade na escola.
⦠para um cigano, ele não diz, mas sei que é o que está pensando.
â" Então me perguntei â" arremata ele â" se algumas circunstâncias
mudaram para você.
Dou de ombros. Não quero encrencas com mamãe. Ela, certamente, já
está encrencada.
â" Não, senhor. É só que⦠à s vezes, quando mamãe está trabalhandoâ¦
eu não consigo carona. São quilômetros até o ponto de ônibus.
Saiu tudo errado. Como se eu a culpasse, e não é culpa dela.
â" Entendo. E onde você está morando atualmente?
126
A pergunta que sempre me aterrorizou. Eu acho que ele pensa que
estamos no acampamento municipal, perto do novo supermercado. Até onde
consigo me lembrar. Algum lugar com um ponto de ônibus. Mas já faz meses
que saÃmos de lá.
â" Em Backs Lane â" murmuro uma mentira finalmente. Mas McDonagh
não parece desconfiar ou se interessar.
â" Não estou querendo me intrometer, James, mas você tem uma chance
razoável de obter uma qualificação, e não quero que nada tire essa chance de
você. Quero ajudar.
E como ele vai poder me ajudar? Talvez me dando uma carona para a
escola todas as manhãs? Acho que não.
â" Vou dar um jeito de conseguir uma carona â" digo, o que soa bem
estúpido.
â" Vai mesmo? Porque podemos conseguir ajuda para esse tipo de coisa,
você sabe? Se houver algum⦠problema.
â" Obrigado. Está tudo bem.
â" E quanto aos deveres de casa? Você dispõe de um lugar sossegado
onde possa estudar?
Concordo com um veemente movimento de cabeça.
â" Porque, você sabe, sempre será bem-vindo se quiser ficar depois das
aulas e estudar na biblioteca se precisar de um pouco de paz e tranquilidade.
â" Não, está tudo bem⦠éâ¦
Já que somos só eu e mamãe, tranquilidade não é problema. Muito
melhor onde estamos agora do que no acampamento municipal, onde você olha
pela janela e já está praticamente na cama do trailer vizinho. E dá para ouvir
tudo o que está acontecendo. Quer dizer, tudo mesmo.
â" Se precisar de mais alguma coisa, sabe que poderá sempre vir até
aqui, ou falar com um de seus professores. Temos grandes esperanças em você,
James.
Ele sorri de um jeito sincero, mas ligeiramente doentio. Espero que isso
esteja acabando.
â" Obrigado, diretor McDonagh â" murmuro.
127
â" Então, você acha que pode melhorar sua frequência?
â" Claro.
â" Você tem um caminho promissor. A professora Casanada falou
extremamente bem de seu inglês. Se tudo correr bem, já podemos pensar nos
exames finais do ensino médio.
Ele diz âœexames finais do ensino médioâ como se fosse o gran finale de
uma piada realmente boa. Concordo feito um idiota, não sabendo mais o que
dizer.
â" Muito bem, então. Obrigado por ter vindo, James.
Ele sempre agradece, como se não tivesse dado ordens para você ir vê-lo.
(Isso faz dele uma pessoa mais legal? Não sei.) Eu agradeço também. Temos
uma ótima reputação pelos nossos bons modos na escola. É principalmente por
isso que a mamãe ficou tão satisfeita quando conseguiu me matricular.
De qualquer maneira, já passa das 16h30 e a última aula acabou faz
algum tempo. Está chovendo. Parece que está chovendo sem parar desde o
começo da primavera, e já estamos em junho. Os jornais não param de falar que
se trata de um recorde ou coisa parecida. Vovó deve vir me buscar hoje, mas
não vejo nenhum sinal de nosso carro. Fico sentado sobre o muro exterior da
escola. Há um pequeno abrigo por causa das árvores às margens do campo de
esportes; então, tento me esconder sob elas, mas não faz muita diferença â" o
vento parece soprar a chuva nas folhas bem em cima de mim. Fecho os olhos e
finjo que não está chovendo e, quando isso não funciona, tento imaginar que a
chuva é morna, como a água dos chuveiros da piscina, que não para de cair
enquanto seu dedo estiver apertando o botão. Brilhante. Quando morar na
França, terei um desses chuveiros. E sempre haverá água mais morna do que
esta, de qualquer maneira. Estamos em junho, mas a chuva está
desgraçadamente fria. Meus cabelos estão molhados e a água escorre por meu
pescoço, o que não é uma sensação legal. Então, me lembro de algo que
algumas pessoas na escola andam falando: âœEsta chuva é assassina.â Que ela
está cheia de veneno por causa daquela explosão na Rússia, e isso provoca
câncer. Se for verdade, provavelmente já é tarde demais para mim. Mas não
parece uma chuva diferente das outras. Tem o mesmo gosto â" gosto de nada.
Começo a imaginar que vou ficar com câncer e morrer. Será que a Stella viria ao
meu funeral? Será que iria chorar?
Devo ter delirado um pouco, pois, quando reabro os olhos, há um
Ranger Rover preto na minha frente. A única pessoa que já vi dentro de um
128
carro assim foi Katie Williams, mas os vidros daquele ali têm uma pelÃcula
escura e, por isso, não consigo ver quem está lá dentro. Então, o vidro do
motorista desce devagar com um ruÃdo levemente elétrico. Uma mulher com o
rosto bonito e um penteado caprichado olha para mim e sorri.
â" Você foi abandonado?
Surpreso por alguém que não conheço vir falar comigo, balanço
vigorosamente a cabeça. Então, o rosto reluzente de Katie Williams aparece,
surgindo do banco traseiro.
â" Vamos lhe dar uma carona, JJ. Entre.
Katie Williams, a menina que me odeia â" pelo menos, sempre achei que
sim. Surpreendente. Deve ser brincadeira. Ela deve estar me preparando algo
medonho e todo mundo vai achar graça. Voltarei à época do âœSalsichaâ.
â" Estou esperando minha avó. Ela já vai chegar. Está tudo bem.
Obrigado.
â" Mas já faz séculos que você está aà esperando! Quando vim buscar a
Katie na aula de oboé, você já estava aÃ. Deve fazer uns 20 minutos.
A Sra. Williams parece gentil e preocupada. Seu olhar me faz sentir um
garotinho novamente, que precisa de atenção. Até que gosto disso.
â" Ela só está um pouco atrasada. Tenho certeza de que logo vai chegar.
â" Você está totalmente encharcado! Vai pegar uma gripe fatal.
â" Estou bem. De verdade. Não está nem um pouco frio.
â" Você está batendo os dentes. Não podemos deixá-lo aÃâ¦
Há um murmúrio no interior do carro.
â" Katie está dizendo que você mora próximo da estrada de Eastwick â"
prosseguiu ela. â" Não fica muito longe de nosso caminho. E, se sua avó está
atrasada, pode ter havido um problema com o carro ou algo assim⦠Explicarei
para ela. Não se preocupeâ¦
A porta se abre e, de algum modo, embora continue dizendo que está
tudo bem, acabo entrando no Ranger Rover, impelido pelo poder do dinheiro
ou algo parecido. Os assentos são revestidos de couro macio e tenho medo de
estragá-los. Uma vez dentro do carro, me sinto cem vezes mais molhado do que
lá fora. Katie, seca, lustrosa e exalando um aroma de batom de morango, olha
129
bem para a frente e masca seu chiclete sem se virar na minha direção. Como ela
pode saber onde eu moro? Será que Stella lhe contou? O que terá dito? Só em
pensar no que ela pode ter falado, fico doente e com calor em todo o corpo.
Mas, também, a ideia de que ela falou algo sobre mim é estranhamente
excitante.
No rádio do carro toca uma música clássica bem suave â" há uma
multidão de pessoas cantando de uma maneira que me faz pensar em um
exército marchando com passos regulares, fazendo uma pausa entre cada um
deles.
â" Você terminou o trabalho sobre Jane Austen?
Katie pergunta sem olhar para mim â" sinto isso mais do que vejo,
porque tampouco estou olhando para ela.
â" Hum⦠Não, ainda não.
â" JJ é muito bom em inglês â" anuncia Katie de repente, para minha
total e completa surpresa.
A Sra. Williams se vira um pouco para falar.
â" Seria bom se você desse algumas dicas para Katie.
Eu sorrio um pouco, já que a ideia é tão bizarra que chega a ser
engraçada.
â" Por que não vem até nossa casa? Podemos dar uma olhada juntos.
Você pode se secar⦠e depois lhe damos uma carona de volta. Por favor,
mamãe.
Ela se inclina para a frente, sorrindo de um jeito infantil, bem próxima ao
rosto da mãe. Estou tão perplexo que não consigo falar. Katie Williams, a
superesnobe com cheiro de morango, me convidando para ir à sua casa? Como
é?
A Sra. Williams me olha de relance sobre o ombro.
â" Bem⦠talvez seja uma boa ideia. Você parece mesmo ensopado.
â" Bem⦠é que a mamãe está me esperando.
â" Você pode ligar para eles e dizer onde está. Estamos a um minuto de
casa.
â" Euâ¦
130
Não quero dizer que não posso ligar para a mamãe porque não temos
telefone. Katie deve saber disso. Ou talvez ela não se dê conta â" talvez não
consiga imaginar que alguém possa não ter um telefone em casa. Não sei o que
dizer, então fico calado, e isso é tomado como assentimento, pois um minuto
depois o Ranger Rover desliza pela entrada de uma casa que deixa a de Stella
parecendo um barracão de jardim (e nosso trailer uma casinha de cachorro). É
uma mansão. Não consigo imaginar quantos quartos deve haver ali. Um monte.
É quase tão grande quanto a escola.
⢠⢠â¢
Talvez Katie Williams seja bacana, afinal de contas. Tomamos xÃcaras de
chá e comemos bolos â" um bolo de frutas excelente, delicioso e, certamente,
bom para a saúde também. Provavelmente, feito na cozinha gigante que tem
um balcão para tomar o café da manhã â" que é, literalmente, um balcão sobre o
qual se toma o café da manhã â" assim como a mesa de jantar, grande e
comprida, presumivelmente para almoço e chá, e há também uma sala de jantar
separada, onde podem se sentar umas vinte pessoas de uma só vez. Numa
salinha incrustada na parede fica o telefone. Finjo ligar para minha mãe.
Sentindo frio, murmuro alguma coisa no aparelho, embora ninguém esteja me
escutando. Não acredito que o telefone tenha um quarto próprio. Katie não tem
nenhum irmão ou irmã, e há apenas três pessoas vivendo nessa imensa casa.
Dez quartos para cada um, calculo. Pessoalmente, acho que eu não aguentaria
morar aqui. Isso me daria arrepios.
Agora, estamos sentados no quarto de estudo (!) de Katie com nossos
livros na mesa e mais canecas de chá. Sinto que alguma coisa está para
acontecer, mas não tenho certeza do que é ou se vou gostar. Ela tem uma mesa
adequada e uma cadeira com rodinhas como num escritório, e há um sofá e
pôsteres nas paredes â" alguns são reproduções de pinturas verdadeiras: tem
um bailarino e um cavalo empinando. E um pôster do Tears for Fears e outro da
Madonna. E este nem é seu quarto de dormir.
â" Como vai Stella?
De algum modo, consegui romper o silêncio. Faz quase uma semana que
Stella não vai às aulas por causa de um resfriado.
â" Não sei.
Isso me surpreende. Em tese, melhores amigas não devem se telefonar e
fofocar todo dia?
131
Katie examina as unhas, que estão cobertas de esmalte rosa-shoking,
descascando. E, então, ela diz:
â" Você gosta dela, não gosta?
â" De quem? Da Stella?
â" É. Vocês ficavam juntos o tempo todo no ano passado.
â" É⦠bem, isso foi no ano passado.
Antes de você roubá-la de mim, eu acho. Embora, para ser justo, não foi a
Katie, mas a visita ao trailer que estragou tudo.
â" E, então, ainda gosta dela?
â" Meu Deus! Eu não gostava dela! Éramos apenas colegas. Você sabeâ¦
Isso jorra da minha boca antes que eu possa me conter. Sinto-me mal
assim que acabo de dizer, porque eu gostava â" gosto â" de Stella, muito
mesmo. Apesar de ter meio que desistido dela nos últimos meses.
â" Ela agora gosta do Andrew Hoyte.
â" Ah. É, eu sei.
Andrew Hoyte é manjado. A maioria das meninas gosta dele â" é alto,
louro e parece ter uns 20 anos. Acho que sofre de uma doença de
envelhecimento precoce. Digo isso, e Katie começa a rir.
É um espanto. Parece até que somos amigos. Encorajado por sua reação,
começo a falar sobre mais alguns babacas da escola. Katie morre de rir de quase
tudo que eu digo. Parece concordar comigo. Impressionante.
â" Você curte The Smiths?
Antes que eu possa responder, ela sai engatinhando na direção de um
gravador largado no chão e põe o álbum mais recente â" um que ainda não
tenho.
â" Qual é sua música preferida?
Como ela pode saber que gosto dessa banda, a menos que Stella tenha
lhe contado?
â" É⦠âœHand in Gloveâ.
132
â" É mesmo? Eu imaginava que fosse âœThe Boy With The Thorn In His
Sideâ.
Na verdade, minha favorita mesmo é âœPlease, Please, Please, Let Me Get
What I Wantâ, mas não vou me expor dessa maneira na sua frente. Ela pode
pensar que é uma espécie de cantada grosseira.
â" Por quê? â" pergunto.
Katie está olhando fixamente para mim. Seus olhos parecem quase febris
e estranhamente brilhantes, como se estivesse a ponto de chorar.
â" Porque você é o garoto sempre encrencado de que fala essa música,
não é?
Tento rir e consigo. Não entendo o que ela quer dizer. O que a Stella
andou falando sobre mim? Katie abre um sorriso bem estranho. Tenho a
impressão de que ela está mesmo dizendo alguma coisa, mas não sei o que é.
Como se estivesse falando alemão â" que ela estuda, e eu não.
Por que eu seria o garoto encrencado da canção?
Encolho os ombros, o que provavelmente me dá um ar estúpido, mas é o
máximo que posso fazer neste momento.
â" Então, você não se importa que Stella goste do Andrew?
Dou de ombros outra vez. Parece que tenho alguma doença que me faz
encolher os ombros o tempo todo.
â" Não.
Katie apanha seu exemplar de Jane Austen e desliza pelo sofazinho até
ficar bem perto de mim. Ela dissera, ao entrarmos nesse quarto, bem
casualmente: âœÃ‰ aqui que venho pensar.â Como se pensar fosse uma atividade
especÃfica que exige um local determinado para ser executada, como uma
piscina para natação. Ela não para de se agitar e jogar os cabelos para trás a
cada dez segundos. Gradualmente, parece ficar mais próxima, até sua coxa
tocar na minha, mas ela nem parece notar. Mas como poderia não notar? Tento
me afastar dela, mas bem sutilmente, como se fosse acidental. Porém, ela
continua se mexendo e acaba tocando em mim outra vez. Talvez seja uma
dessas pessoas bem naturais em relação ao contato fÃsico com outras â" e este
sofá é bem pequeno. Ela abre o livro e aponta para um trecho ou outro. Estamos
meio que dividindo o livro, então, talvez, seja normal que fiquemos sentados
bem juntos.
133
â" É a partir daqui que devemos estudar, não é?
â" Humâ¦
No momento, não consigo me lembrar do que estávamos falando ou do
que quer que seja sobre o livro. Ela se curva para a frente e seus cabelos se
soltam de trás da orelha e caem como uma cortina brilhante entre nós; depois,
ela os lança para trás novamente. Deve ter sido de propósito; seus cabelos
acertam meu rosto, mas ela não se desculpa. Seus cabelos são bonitos â" cor de
mel â" lisos e bem compridos. Uma mecha deles roça meus lábios e,
bruscamente, tenho uma enorme ereção. Em pânico, me inclino para a frente, a
fim de que ela não perceba, e finjo estar estudando Razão e sensibilidade, mas, é
óbvio, não consigo ler nem uma palavra.
Não consigo entender direito o que acontece nos instantes seguintes;
estou agarrado ao livro enquanto tento pensar em coisas horrÃveis e nojentas,
como o cheiro de chulé do banheiro dos meninos, mas então (como? por quê?) o
livro some das minhas mãos. Ajoelhando-se no chão, Katie pressiona sua boca
contra a minha. Seus lábios são quentes, macios e ligeiramente pegajosos, e,
então, sua lÃngua penetra na minha boca, numa luta corporal com a minha
lÃngua, com gosto de chá e de bolo de frutas. Não sei se consigo reagir, pois
todas as moléculas sensoriais estão concentradas na minha boca, saboreando
sua lÃngua quente e úmida. Não sei o que minhas mãos estão fazendo,
tampouco o restante do meu corpo.
Enfim (depois de um segundo, dez minutos?), Katie recua. Descubro que
suas mãos estavam em meus ombros, e as minhas estão boçalmente caÃdas no
sofá. Ela olha para mim com os olhos parcialmente fechados, arfando
levemente. Alguns fios de cabelo cruzam seu rosto, colados a seu lábio com
nossa saliva. Seus lábios parecem mais vermelhos do que antes. Faço o possÃvel
para me conter e não lhe dar o bote novamente.
â" Você fez isso com Stella?
â" Não.
Com certeza, ela já sabe disso â" ou talvez Stella não tenha lhe contado
tudo. Talvez esteja me testando para ver se eu minto e digo que fomos até o
final, embora o máximo que já fizemos foi conversar.
Tento beijá-la novamente, mas ela se afasta, sua mão fazendo uma leve
pressão contra meu peito.
â" Você não vai contar a ninguém sobre isso?
134
â" Não. E você?
â" Não.
â" Nem mesmo para Stella?
â" Por quê? Quer que eu conte?
â" Não. Mas vocês são muito amigas, não?
Ela dá de ombros, muito casualmente. Se eu fosse Stella, me sentiria bem
insultada. Mas eu não sou.
â" Não conto tudo para ela. O que faço não é assunto de ninguém.
â" Tudo bem.
No momento em que penso que ela vai tirar a mão do meu peito e
poderemos voltar a nos beijar, aquele estranho sorrisinho aparece novamente.
â" Você quer ver meu cavalo?
Por um instante, pensei que ela estivesse brincando â" ou que âœcavaloâ
significasse outra coisa â" mas, na verdade, era isso mesmo. Ela, de fato, tem
um cavalo: seu próprio cavalo, meu Deus, lá fora, num estábulo atrás da casa. O
estábulo tem luz elétrica, água corrente e um aquecedor. As paredes são feitas
de tijolos amarelos estreitos, e o piso, de tijolos azuis. É um palácio. Não
entendo muito de cavalos, embora Katie pareça achar que eu deveria. Mas
percebo que se trata de um animal lindo â" aparentemente, é um puro-sangue
ou coisa parecida e chama-se Subadar (que significa âœcapitãoâ em hindustâni,
ela diz) e âœele tem o gene champagneâ, seja lá o que for isso. Ele tem uma
expressão bem inteligente em seus olhos grandes e escuros. Katie me levou até
o estábulo segurando minha mão, mas a soltou quando entramos. Eu me
pergunto se ela vai me beijar outra vez â" nem penso em tentar beijá-la
novamente, porque ela é elegante e eu não, e se ela começar a berrar? Mas, de
qualquer maneira, em vez disso, Katie envolve o pescoço do cavalo com seus
braços e o beija e acaricia numa entrega tão absoluta que sinto ciúmes na
mesma hora. Ela murmura seu apreço por ele, esfregando seus lábios contra o
sedoso pescoço castanho e dourado â" âœOlha como o focinho dele é macioâ â" e
obedeço afagando o cavalo enquanto olho para Katie e volto a ficar excitado, o
que é ridÃculo e bem constrangedor.
Estou bem longe de ser suficientemente idiota para pensar que,
repentinamente, Katie Williams é minha namorada, pois apenas os tolos
pensam assim. Na verdade, aposto que amanhã, na escola, ela vai me ignorar,
135
como sempre faz. Mas, neste instante, estamos aqui, afagando o belo pelo
castanho do cavalo e há algo esquisito, mas incrÃvel, acontecendo, como se uma
corrente magnética vibrando pelo corpo do cavalo passasse da minha mão para
a sua e depois retornasse, me atravessando com um arrepio de deliciosa
excitação. Isso quer dizer que não posso retirar minha mão do pescoço do
cavalo, nem ela. Estamos ligados. O cavalo nos olha, desinteressado, mas
compreensivo. Talvez isso nunca mais volte a acontecer, mas quero me lembrar
disso. Lembrar este momento.
Fico pensando que o cavalo vive num lugar melhor do que eu â" o que
parece bastante justo: ele é um verdadeiro prÃncipe dos cavalos. Então, me
lembro da hora. Está quase escuro. Mamãe não sabe onde estou. Vai ficar
preocupada. Sinto uma sensação de pavor crescer em mim. E se isso tudo não
tiver nada de incrÃvel? Como poderia ter? Está tudo errado. Nunca deveria ter
acontecido. Esta é Katie Williams, caramba⦠A polÃcia deve estar a caminho
neste exato momento!
â" É melhor eu ir embora. Minha mãe⦠Eu disse que voltava cedo.
Não consigo fitar seus olhos. Até o cavalo vira a cabeça e olha para mim,
como se eu tivesse feito algo errado ou estúpido.
â" Ok, então.
Katie tira a mão do pescoço de Subadar, quebrando o encanto. A corrente
magnética é desligada e, de repente, me sinto exausto. Seu tom de voz insinua
que acabo de perder uma das maiores oportunidades da vida.
O presidente do conselho municipal local me dá uma carona de má
vontade â" num carro diferente, um sedã azul. Pelo menos agora estou seco.
Katie acena rapidamente e sobe a escada. Não consigo tirar meus olhos dela,
mas não há um contato visual significativo entre nós. Nenhum olhar sob
pálpebras parcialmente cerradas a saborear, nenhuma promessa ou aperto de
mãos. Eu me pergunto se o Sr. Williams vai me levar até o bosque e me matar.
â" Então, você mora na estrada de Eastwick? â" pergunta ele
brevemente.
A Sra. Williams deve ter dito a ele que sou cigano. Meu coração vem até
a boca, enquanto espero o que virá em seguida. (Foi ela que começou! Não movi
nem um músculo â" pelo menos, não voluntariamenteâ¦) Mas nada acontece.
Ele me pergunta como é morar num acampamento particular e num
acampamento municipal â" creio que tenha algum interesse profissional.
136
Consigo emitir algumas palavras, mas sou incapaz de lhe explicar como é de
fato. Não acho que queira ouvir mesmo sobre isso.
â" Então, por que vocês saÃram de lá?
â" Hum⦠Não havia lugar. Era a vaga de outra pessoa. Apenas
sublocamos por um tempo.
â" As pessoas não têm autorização de sublocar, você sabe?
Todos sabem disso, mas por que não viajar no verão se temos um trailer
com rodas? Gorjios saem de férias e ninguém vem ocupar suas casas; por que
nós não podemos? Mas, se você deixar sua vaga vazia, o conselho municipal
põe alguém em seu lugar, portanto é necessário tomar providências, senão a
vaga está perdida. Contei a algumas pessoas na escola que estive na França
(mas não que fomos até Lourdes implorar por um milagre) e elas olharam para
mim com uma cara do tipo: âœMas vocês são ciganos â" o que pensam que estão
fazendo saindo assim de férias? Teoricamente, vocês são pobres, não?â Então,
resolvi parar de falar no assunto.
â" Onde devo deixá-lo?
Seguimos pela estrada A32 agora. Não estamos longe de nosso
acampamento. Mas tenho toda a certeza do mundo de que não quero que o Sr.
Williams veja onde moro. Se ele vir isso, nunca mais serei admitido novamente
naquela casa; nunca poderei me aproximar sequer daquele estábulo lindo, ou
do sofá onde ela se refugia para pensar â" ou de nada que lhe pertença â",
jamais.
â" Hum⦠pode me deixar na próxima curva. Fica bem perto.
Por sorte, parou de chover.
â" Tem certeza? Ok.
O Sr. Williams não insiste. Quer voltar para sua poltrona em frente Ã
televisão, após um dia duro, dizendo às pessoas que elas não podem sublocar
suas vagas nos acampamentos. Ele estaciona o carro no acostamento e eu desço.
â" Muito obrigado, Sr. Williams⦠E agradeça a Katie por⦠hum⦠pela
carona e tudo mais.
Ele arranca antes que eu acabe de falar. Está ansioso para sair daqui.
Espero até que o carro suma de vista, assim não verá que, em vez de seguir pela
137
estrada, parto na outra direção, até enxergar a luz de um dos nossos velhos e
bons trailers reluzindo fragilmente em meio às árvores.
Sigo até nosso trailer. Não estou tentando ficar tranquilo ou algo assim,
mas mamãe não fechou as cortinas, e é então que vejo a coisa mais estranha em
todo este dia bem estranho. Honestamente, não quero nem mesmo pensar sobre
isso.
138
VINTE E UM
RAY
Ele é facilmente reconhecÃvel na fotografia de casamento. Os longos
cabelos escuros, os olhos atentos, a postura. A aparência jovial e delicada só
endureceu um pouco: as bochechas tornaram-se um pouco mais cavadas, os
olhos, um pouco mais magoados. Esguio e magro, está vestido de modo bem
antiquado para um homem ainda jovem â" alguém que declara sua identidade:
uma camisa de mangas compridas, um colete abotoado até em cima â" mesmo
em junho â" e um lenço amarrado em volta do pescoço.
Quando Kath me conduz ao trailer (um dos Jubilee, que reconheço da
minha primeira visita, conforme minha suspeita), Ivo está sentado à mesa com
um garotinho no colo, alimentando-o com mingau de cereais. Ele não se
levanta, mas faz um gesto com a cabeça, apontando uma cadeira na outra
extremidade.
â" Papai me disse que você quer saber tudo sobre Rose.
Fixo meu olhar â" contra a vontade â" na criança. Sei que tem 6 anos,
mas é muito magra; um frágil filhote de passarinho, menor do que meu
afilhado Charlie. Eu diria que está com 3 ou 4 anos, no máximo. E eu teria dito
que era uma menina se não soubesse. Christo Janko se parece com o pai, com
cabelos longos quase pretos e olhos enormes e escuros num rosto em forma de
coração. Uma linda criança, mas visivelmente anormal: a cabeça grande demais
para o corpo franzino e o pescoço comprido. Os membros parecem gravetos
cobertos de sarjas.
Sorrio para ele.
â" Oi, Christo.
O menino olha para mim, mas não reage.
Ergo meu olhar para Ivo.
â" Ele entende?
â" Claro que entende! Não dá para ver? Apenas não costuma falar muito.
Christo sorri para seu pai.
139
â" Já lhe falaram sobre ele? â" pergunta Ivo.
â" Já. Bem, não sobre qual é o problema, mas⦠sim, falaram.
â" É uma maldição na famÃlia.
â" Do que se trata?
â" Nem eles sabem. Já fomos ver todo tipo de médico, mas eles não
sabem nada. Eu tive a mesma coisa, quando jovem, mas me recuperei. O jeito é
ter esperança, não é?
Ivo tem uma voz estranha, persuasiva â" leve e jovial, ainda assim
rÃspida, como se estivesse se recuperando de um resfriado. O tipo de voz que é
preciso estar perto para escutar cada palavra.
â" Você conseguiu se curar? Isso é⦠ótimo. Ouvi dizer que alguns de
seus parentes morreram por causa da doença.
Ivo olha para o chão.
â" É. Eu tive sorte.
â" Vocês não sabem como conseguiu se recuperar?
Ele sacode a cabeça. Não parece estar a fim de conversar sobre isso.
â" Se soubéssemosâ¦
Olho para ele e para o menino. Imagino que, se uma doença mortal e
misteriosa pode sumir, talvez também possa retornar. Que marcas ela deixou
em Ivo? Ele parece bastante normal, ainda que franzino e muito pueril. Mas, se
costumava ser como Christo, isso explicaria tudo.
â" De qualquer maneira, admito que foi isso que a assustou. Rose.
Quando nos demos conta de que ele sofria da doença, ela não conseguiu
suportar. Não quis ter mais nada a ver conosco. Eu não sabia se devia culpá-la.
Quem vai querer ter mais filhos quando não se sabe o que pode acontecer?
Quando lhe peço para se lembrar dos eventos de seis anos atrás, no
momento em que Rose se foi, ele evita meu olhar, falando com o filho â"
perguntando se já comeu o bastante, se quer beber água. Parece nunca obter
uma resposta, mas deve haver alguma comunicação silenciosa entre eles que
não consigo interpretar, pois Ivo reage como se Christo tivesse lhe dito alguma
coisa. Não digo que entende o que está acontecendo; ele não dá atenção Ã
conversa, concentrando-se nas coisas sobre a mesa, ou na miniatura de algum
140
herói de brinquedo que tem na mão. Suponho que Ivo esteja acostumado a isso,
mas a impressão que tenho é de que ele está se escondendo atrás do menino.
Christo e sua doença misteriosa são sua barricada contra o mundo. Contra o
mundo e contra as perguntas de detetives particulares impertinentes.
Ivo agora está limpando alguma baba invisÃvel no queixo de Christo.
â" Disseram que Rose se foi no meio da noite. Isso não lhe pareceu
estranho?
â" Não.
â" Seu pai disse que Black Patch fica muito longe de qualquer estação. A
mais próxima é a de Ely, não é?
Ivo olha para cima. Será um olhar cáustico? Um segundo depois, ele
muda de posição, erguendo as pernas de Christo e o aconchegando novamente.
â" Black Patch fica perto de Seviton.
â" Ah, entendo.
â" Por que você disse Ely? Faz muitos anos que não paramos mais por lá.
â" Tenho certeza de que ouvi seu pai mencioná-la. Perto de Watleyâ¦
próximo a Ely.
â" Não. Watley foi isolada com cercas faz, sei lá, uns dez anos? E não
terÃamos ido para lá no inverno. Há sempre uma inundação.
â" E o local de acampamento em Seviton⦠havia ali um velho poço de
calcário, não?
Ivo olha para o teto outra vez.
â" Havia. Você conhece o local?
â" Estive lá. E aquele lugar é conhecido também como Black Patch?
â" Era assim que a gente chamava.
Ele dá a impressão de estar realmente pensando. Não há tensão agora,
não que eu perceba.
â" Meu pai abandonou a estrada. Estava cada vez mais difÃcil para ele.
Ivo solta um grunhido em resposta. Eu continuo:
â" Então, em Seviton, como você acha que ela fugiu?
141
â" Deve ter conseguido achar alguém para lhe dar uma carona. Foi o que
pensamos. Ela estava sempre indo para Seviton. Costumava pegar o carro do
papai e sumia durante horas.
Provavelmente, conheceu alguém.
â" Você já a viu em alguma ocasião com outra pessoa? Ouviu-a
mencionar algum nome, algo assim?
Ivo sacode a cabeça devagar.
â" Não tenho certeza. Mas⦠eu não parava de pensar no Christo o
tempo todo. Talvez não tenha dado muita atenção a ela. Ele olha de novo para
o menino, e sua expressão fica mais serena.
â" O que ela levou?
â" Praticamente tudo.
â" E quanto ao dinheiro?
â" É⦠suponho que tivesse dinheiro.
â" Ela não levou seu dinheiro?
Ele encolhe os ombros.
â" Não havia muito o que levar. Ela carregou suas joias e essas coisas,
sabe, pulseiras, brincosâ¦
â" Você ainda tem algo que pertencia a ela?
Ivo balança a cabeça outra vez.
â" O que ela não carregou, eu joguei fora.
â" O que ela deixou para trás?
Olha-me como se eu fosse um idiota. Depois, dá de ombros.
â" Algumas roupas.
â" E o que você fez com suas coisas?
â" Como eu disse, me livrei de tudo.
â" Você não achava que ela podia voltar?
142
â" Não a teria aceitado de volta. Não depois de ter fugido. Eu estava
furioso.
Olha para o filho, que lhe sorri â" um sorriso de misteriosa doçura. Ivo
sorri também â" adequadamente, pela primeira vez â" e beija a cabeça do
menino.
â" Somos só eu e você, garoto â" diz. â" Não é? Ela não sabe o que está
perdendo.
Há algo de triste em seu sorriso quando ergue a cabeça e me encara por
um breve momento.
â" E isso foi em⦠novembro?
â" É. Acho que sim. Não lembro bem.
â" Então, Christo tinha apenas alguns meses de idade?
â" É. Ou⦠talvez tenha sido um pouco depois.
Anoto isso em meu bloco. Tene tinha dito que Rose foi embora quando
Christo tinha poucos meses de idade, sugerindo que tivesse ocorrido depois do
Natal. Mas as pessoas esquecem.
â" E as irmãs dela? Você já falou com elas? Elas devem saber alguma
coisa.
â" Já, sim. Elas não têm notÃcia alguma.
Ivo arqueia as sobrancelhas e encolhe os ombros de novo.
â" Eu sabia que ela não estava feliz. Depois que ele nasceu⦠Ãs vezes,
ela dizia umas coisas bem esquisitas. Por exemplo, às vezes ela⦠Vamos lá para
fora um instante.
Ele coloca um boné velho na cabeça, abaixando a aba sobre os olhos e,
ainda carregando o filho, sai andando em direção ao outro Jubilee, no qual um
adolescente abre a porta. Certamente, mais um Janko. Este rapazinho pega
Christo nos braços e o carrega para dentro do trailer.
â" Quem é ele? â" pergunto de modo casual enquanto caminhamos e Ivo
acende um cigarro.
â" JJ, meu sobrinho.
â" Ah! Você tem um irmão⦠ou irmã?
143
Volto a pensar no que Lulu me contou. Todos os meninos morreram,
exceto Ivo. Então é uma irmã.
â" Na verdade, ele é filho da minha prima, Sandra. Então, ele é meu⦠o
quê? Meu primo também. De segundo grau, sei láâ¦
Sem a presença de Christo, ele parece nervoso. Traga profundamente o
cigarro. Visto em plena luz do dia, sua pele parece bem lustrosa, como se fosse
de cera. Penso na doença outra vez. Será essa uma de suas marcas?
â" Você tem uma irmã?
Pausa.
â" Tinha, mas morreu.
â" Lamento⦠Estava doente também?
â" Não. Acidente de carro.
â" Sei⦠Foi aà que seu pai ficou inválido?
â" Não. Muito antes. Eu estava com 16 anos, ela com 17. â" Ivo me encara
em meio à fumaça de seu cigarro. Há uma sutil truculência naquela atitude
reservada. Ele começa a perder a paciência.
â" O que você ia me contar lá dentro, sobre Rose? As coisas que ela dizia?
Ele fecha parcialmente os olhos, o cigarro balançando ligeiramente nos
lábios, deixando a fumaça subir-lhe aos olhos. Ele não pisca, apenas cerra as
pálpebras com longos cÃlios. Depois, num gesto brusco, retira o cigarro da boca
e bate a cinza com tanta força que a brasa cai sobre algumas folhas de dente-de-
leão. Isso não é legal.
â" Ela começou a se comportar como se Christo não existisse. Como se
nunca tivesse dado à luz a criança. Eu não sabia o que fazer. Estava com medo
de que⦠ela pudesse machucá-lo ou algo parecido. Eu não o deixava sozinho
com ela. Quando ela se foi⦠foi uma espécie de⦠alÃvio.
Ivo parece estar concentrado num trator que sobe lentamente a pista em
direção ao horizonte. Bem atrás, uma caminhonete branca parece impaciente
para ultrapassá-lo.
â" Você diria que ela andava deprimida?
144
â" Não sei. Mas ela não parecia feliz. â" Algumas mulheres sofrem de
depressão pós-parto. Os sintomas podem ser bem graves. E se o bebê não
estava bem⦠a coisa só pioraria.
â" Ninguém jamais disse isso, mas ela não era feliz. Não parecia boa da
cabeça.
â" Ela procurou um médico?
â" Não.
Seu tom de voz sugere âœpor que o fariaâ?
â" Você⦠conversou com alguém sobre ela?
Ele balança a cabeça.
â" Nem mesmo com seu pai?
â" Não queria que ele se preocupasse. Além do mais, ela era minha
esposa. Era minha famÃlia. Assunto meu.
Ele volta a acender o cigarro partido e dá um trago, ressaltando ainda
mais o rosto abatido.
â" Você amava Rose?
Ele fica paralisado. A única coisa que se move é a fumaça do cigarro.
Bruscamente, a visão de Lulu reaparece na minha cabeça. Lulu montada
sobre o corpo inerte de seu â" o quê? â" amante? cliente?
Ivo não respondeu. Parece fazer um grande esforço para pensar.
â" Você sabe como é, estávamos casadosâ¦
â" Era um casamento feliz? No inÃcio, quero dizer.
â" Eu não a matei. É isso que você está pensando não, é?
Não há agressividade alguma em seu tom â" a voz permanece suave
como sempre, e ele ainda está observando o trator ao longe, avançando pela
pista.
â" Eu nunca faria mal a ela â" prossegue Ivo. â" Ela nos deixou. Acho
que não aguentava mais. Teve um colapso nervoso ou sei lá como chamam isso.
Talvez ela quisesse nos tirar por completo, Christo e eu, de sua vida, como se
nada houvesse acontecido. Começar de novo. É o que eu acho.
145
Ele lança a guimba do cigarro no mato e se vira, em direção aos trailers.
Estou dispensado.
Sigo-o de volta ao trailer, onde apanha o filho com seu jovem primo que,
por sua vez, fica parado no degrau, espiando-me através de seus cabelos
negros.
â" Você é um detetive?
â" Sou. Meu nome é Ray Lovell.
Estendo a mão. Lentamente, ele estende a dele e nos cumprimentamos.
â" Eu sou JJ.
â" Prazer. Posso falar com você um minuto?
Fico tentando me lembrar de como se fala com um adolescente.
Infelizmente, eu nunca soube.
146
VINTE E DOIS
JJ
Não acho que o Sr. Lovell seja um detetive particular bem-sucedido â" o
carro dele é velho e está imundo. Mas parece um cara bacana. Algumas pessoas
nos deixam constrangidos, outras não. Ele não. Faz você ficar à vontade.
Perguntei-lhe sobre a vida de detetive particular e ele respondeu que me
contaria um dia sobre isso. Foi engraçado â" não tive a impressão de que
estivesse me repelindo.
Cerca de um minuto depois, ele vai embora em seu carro, e Ivo entra
abrindo com força a porta do trailer.
â" Nossa, você não pode bater antes? â" protesto.
â" O que ele queria?
â" O quê?
â" Aquele bisbilhoteiro. O que ele queria falar com você?
â" Você sabe⦠o mesmo que perguntou a você. O que eu me lembrava
sobre Rose.
â" E por que ele perguntaria isso a você?
â" Sei lá.
â" O que você disse a ele?
â" O que eu me lembrava. O casamento. Só isso. Por quê?
â" Por que ele lhe perguntou isso? Você não passava de um moleque
ranhoso!
â" E eu sei lá! Acho que está fazendo perguntas a todo mundo.
â" Não gosto daquele jeito dele, se metendo em tudo. Como se estivesse
desconfiado. Como se achasse que fiz alguma coisa com ela.
â" Não enxerguei dessa forma. Acho que ele é um cara decente.
147
â" Ele não vai achar que você acabou com Rose, não é?
Solto um suspiro. Odeio quando as pessoas vão entrando no trailer sem
bater. Isso é o mÃnimo que podem fazer quando não se tem o próprio quarto,
em minha opinião.
â" Acho que ele não pensa⦠que alguém aqui a matou.
Mas nunca pensei nisso antes. Olho para meu tio com um novo olhar.
Poderia um parente meu ter assassinado a esposa? Meu tio Ivo? Não, claro que
não. Ivo parece mais relaxado.
â" Desculpa, garoto, é que⦠Como se não bastasse toda a preocupação
com o Christo⦠agora isso.
â" Na verdade, o Sr. Lovell perguntou sobre Christo também.
â" Sobre Chris? Mas que porra é essa? Christo não tem nada a ver com
isso! Que abuso.
â" Ele disse que você deveria procurar uma segunda opinião. Levá-lo a
um especialista em Londres.
â" Ah, é? Que tipo de especialista?
â" Um especialista em crianças. Não sei. Talvez devêssemos fazer isso.
â" Ah, agora você virou perito em medicina e tudo mais, não é? Mas não
é você que vai pagar a conta, é?
â" Não.
Na verdade, eu já não aguentava mais o tio Ivo, do contrário eu não
falaria o que disse em seguida:
â" Mas está claro que nenhum milagre estúpido vai acontecer, não é? Por
que estamos todos nos enganando? É tudo bobagem, não é?
Ivo não discorda. Tampouco concorda. Simplesmente não diz nada.
Parece triste.
â" Porque quando vocêâ¦
Ele puxa meus cabelos na nuca, me machucando e pondo seu rosto bem
perto do meu, gritando tanto que consigo ver as manchas de nicotina nos seus
dentes e sentir o fedor de cigarro em seu hálito.
â" Por Deus, JJ! Você não sabe ficar calado de vez em quando?
148
Seus olhos parecem furiosos, como se fosse um estranho, um louco!
Estou perplexo demais para dizer alguma coisa. Faz anos que meu tio não grita
comigo. Ele nunca perde o controle. Nunca, nunca. Mesmo quando está
realmente zangado, é uma espécie de raiva sossegada e amuada. Então, ele me
solta e agarra os próprios cabelos, a boca contorcendo-se como se estivesse
tentando manter alguma coisa lá dentro. Por um momento, acho que ele vai
mesmo começar a chorar, ou algo parecido, mas ele engole em seco.
â" Desculpe, JJ. Desculpe. Você tem razão. Nós deverÃamos ir lá, sim.
Vamos fazer isso. Ok? Um especialista.
â" Posso acompanhar você se quiser.
â" Isso. Ok. Vamos fazer isso. Eu e você.
Ele diz isso de uma maneira que significa que não voltaremos mais a
falar sobre esse assunto. Depois, pega um cigarrinho e coloca na boca.
â" Quer um? â" Ele oferece o maço de JPS. Eu recuso, embora mamãe
não fosse ficar sabendo porque está no trabalho.
Desde a outra noite, quando voltei da casa de Katie, tenho ficado nervoso
perto de Ivo. Tento não pensar sobre o que eu vi, mas a coisa não para de
aparecer em minha mente, disputando espaço com os cabelos de Katie e seus
lábios vermelhos. E aquele cavalo castanho bonito no estábulo, mais lindo ainda
que a casa deles. Dá para entender o que quero dizer â" como quando não
conseguimos reunir todas as peças da nossa cabeça e acalmá-las para que não se
mexam por um tempo suficiente, para que possamos olhá-las? Quando eu viâ¦
nem sei. Eu estava caminhando para o trailer e as cortinas não estavam
fechadas. Embora a cortina de renda estivesse, é claro; assim, pude ver que as
luzes estavam acesas, mas não nitidamente⦠E a mamãe e o tio Ivo estavam lá
dentro. Isso já é em si bastante incomum â" sem que eu ou Christo ou alguém
esteja por perto, quero dizer. Mas o mais estranho foi que⦠parecia que
estavam⦠não se beijando. Não. Não era um beijo, mas mamãe estava com as
mãos no rosto dele, de uma maneira que as pessoas normalmente não se tocam.
De uma maneira que primos não se tocam. Normalmente. Mas só durou um
segundo e, então, ele se afastou dela, foi até a porta e saiu. E ela pôs as mãos
sobre o balcão da cozinha, e se inclinou, cabisbaixa, ombros caÃdos, parecendo
muito triste.
Fiquei paralisado entre as sombras do lado de fora, sem saber o que
fazer. Ivo deu alguns passos, afastando-se da porta, e prendi a respiração,
torcendo para que não tivesse me visto. Ele soltou um suspiro profundo e
149
acendeu um cigarro. Fiquei feito uma estátua, esperando que ele fosse embora,
ou me visse ou outra coisa e, depois de um bom tempo, ele se dirigiu ao trailer
de meu tio-avô. Dei um suspiro de alÃvio. Mas não me senti aliviado. Não sabia
o que fazer. Ainda não sei.
Penso em como eu costumava fingir que Ivo era meu pai quando eu era
pequeno demais para saber o que isso significava. E penso em como meu tio-
avô se casou com uma prima de primeiro grau, e foi por isso que todos os seus
filhos, exceto Ivo, morreram por causa da doença de famÃlia. Então fico
imaginando se vou contrair essa doença de famÃlia também. E, pensando nisso,
o pai dele, meu bisavô, que se chamava Milos Janko, também se casou com uma
prima⦠Então, assim⦠se tudo isso foi aceito, por que mamãe não se casou
com Ivo? Porque ele estava doente? Porque ele era mais jovem que ela? Será
que ela o ama agora?
Onde eu estava? Katie. Não quero pensar nem um pouco neles. Quero
pensar na Katie. Nos beijos com gosto de chá, nos cabelos sedosos roçando
minha boca. A impressão era exatamente a mesma de quando você usa um
pincel novinho em folha na aula de arte â" um daqueles bem caros, feitos com
pelos de esquilo (da pele do corpo, não da pele do rabo) â" e o roça contra os
lábios quando ninguém está olhando, porque não se pode fazer isso. O que teria
acontecido se eu não tivesse dito que precisava voltar para casa? No chão de
tijolos azuis do estábuloâ¦
No momento em que começo a me perder nessa fantasia, vejo Ivo e
mamãe de novo â" isso, provavelmente, ficou gravado em meus olhos. Foi a
expressão no rosto dela que me assustou tanto. Será que consegui entender
alguma coisa olhando de fora? E se eu tiver entendido tudo errado?
Normalmente, quando tenho o trailer só para mim por algum tempo â"
mesmo sem a ajuda de Katie Williams â", eu celebro isso me masturbando, mas,
neste instante, me sinto bastante deprimido.
150
VINTE E TRÊS
RAY
Quando voltei de Richmond na outra noite, foi uma luta para me segurar
e não pegar o telefone e ligar para Jen. Combati o Ãmpeto, lembrando-me do que
aconteceria se eu falasse com ela. Ela soaria distante e confusa. Aliviada por não
ter mais uma relação comigo. Ã"dio, berros, insultos, tudo isso eu poderia
enfrentar, pois me alimentariam, seria um sinal de que ela ainda sente alguma
coisa. É a indiferença que mortifica.
Quando me contou que estava tendo um caso, Jen disse que não o
amava. Importava-se com ele porque, dizia, não era uma pessoa insensÃvel.
Mesmo no estado de choque em que me encontrava, consegui me enfurecer.
â" Você é, sim â" gritei. â" Você é insensÃvel. Veja o que você fez comigo.
Como pôde fazer isso comigo? Com a gente?
Jen soltou um suspiro de tédio, exausta até os ossos. Uma lágrima
cintilou em seus olhos. Para ela, minha garota durona e explosiva, aquilo era
uma façanha.
â" Oh, Ray⦠Você cria tantas expectativas. De como tudo tem de ser tão
perfeito. Você quer ser tudo para mim. Não aguento isso. E eu não sou perfeita!
Não podia acreditar que ela estivesse falando isso. Queixando-se porque
eu queria ser tudo para ela. O que há de errado nisso? Eu não disse â" pois me
faltava confiança para falar â" que ela sempre havia sido tudo para mim.
Fiquei andando a esmo pela sala de estar. Ainda eram 22 horas. Minhas
mãos tremiam. Quando ela me contou, minhas mãos tremiam o tempo todo,
como se eu estivesse com mal de Parkinson. Quando fiquei órfão, minhas mãos
não tremeram assim. Alguém me disse que a morte do último dos pais é pior,
pois é nesse instante que você se dá conta de que não há ninguém no caminho
entre você e a sepultura. Quando meu pai morreu, indo fazer companhia a
minha mãe em um cemitério bem na saÃda de Hastings, com vista para o Canal
da Mancha, eu chorei por ele. Derramei lágrimas por ele â" intensamente,
algumas vezes. Mas os acessos eram breves. De repente, em meio à s
profundezas da dor, eu me surpreendia ligando para pedir uma pizza,
esfaimado, obcecado por uma calabresa. Acho muito estranho que o adultério,
que em hipótese alguma é uma tragédia, seja tão mais doloroso do que a morte.
151
⢠⢠â¢
O que eu disse? É claro que liguei. Liguei assim mesmo, apesar de tudo.
O telefone tocou e tocou. Mas ou ela não estava em casa ou foi bastante esperta
para não atender. Após um tempo, recoloquei o telefone no gancho e comecei a
vasculhar alguns papéis que estavam na mesa. Achei um com o número do
telefone de Vanessa e liguei, tentando delinear seu rosto na lembrança. Percebi,
com uma ponta de culpa, que já não conseguia me recordar da aparência dela.
Tinham-se passado mais de duas semanas desde a noite que passamos
juntos, portanto não me surpreenderia com uma reação defensiva.
â" Quanto tempo.
â" Eu sei. Lamento. Andei⦠â" Descartei a ideia de dizer âœandei
ocupadoâ. Teria sido um insulto. â" Eu não estava certo do que queria, não sei
se Madeleine explicou, mas estou me divorciando, e⦠não sou muito bom em
seguir em frente. Não é assim que dizem?
â" Então, por que está ligando?
â" Bem, eu⦠eu queria saber se você ainda quer se encontrar comigoâ¦
para ir ao cinema ou algo assim⦠sabe?
Houve uma pausa. Imaginei-a ponderando sobre suas opções. Imaginei
que estivesse pensando que a maior parte dos homens que ela pode encontrar
â" em nossa existência, quer dizer â" seria até certo ponto como mercadorias
avariadas.
â" Não sei. Posso pensar no assunto?
â" Pode, é claro.
â" Ok, então. Tchau.
Reponho o fone no lugar, um pouco surpreso. Pelo menos, isso
conseguiu afastar outras coisas da minha cabeça.
⢠⢠â¢
Na noite seguinte, quando ela ligou de volta, meu ânimo melhorou. Eu
tinha concluÃdo que ela não ligaria para me punir â" algo que eu bem merecia.
Assim, o prazer foi ainda maior ao ouvir a voz dela. Então, ela me disse que
havia pensado bem e, embora gostasse de mim, não queria se envolver com
alguém tão incerto. Falou que já estava velha demais para isso. Desculpou-se, o
que era gentil, mas desnecessário. Eu disse que lamentava também, e
152
compreendia. Os dois cheios de lamentações e compreensão. Quando desliguei,
senti como se tivesse cem anos.
⢠⢠â¢
Hoje, por sua vez, Lulu parece alegre, satisfeita mesmo. Peço-lhe para
nos encontrarmos outra vez, a fim de âœesclarecer alguns pontosâ. Ela não me
pergunta que pontos são esses ou por que não posso esclarecê-los pelo telefone.
Marcamos no mesmo café. Está mais cheio desta vez, por ser sábado.
Lulu chega um minuto depois de mim, usando jeans e, nos pés â" não pude
deixar de notar â", botas pretas, brilhantes, com saltos maliciosamente altos.
Parece mais relaxada, como se tivessem tirado um peso de suas costas. Até os
cabelos parecem mais macios, com um negrume menos agressivo.
â" Como vai sua investigação?
â" Não muito bem, receio. Está trabalhando hoje? â" Na verdade, eu não
queria perguntar isso, mas acabou escapando.
â" Não.
â" Espero não estar interrompendo seu dia de folga.
â" Na verdade, está. Mas tudo bem. Eu precisava sair para fazer compras
de qualquer maneira. Lulu remexe na bolsa e, depois de um tempo, saca um
maço de Silk Cut e um isqueiro descartável. Precisou de umas dez tentativas até
acender o cigarro.
â" Imagino que, como enfermeira particular, você deve trabalhar muitas
horasâ¦
â" Ãs vezes. É, mas David, o cara de quem cuido, tem uma famÃlia que
ajuda muito. Ele mora com a mãe. Ela ainda faz um bocado de coisas por ele.
â" Ah, ele não é tão velho então?
Tento parecer surpreso.
â" Não. Ele é inválido. Uma história horrÃvel. Aos 18 anos, detectaram
um tumor na coluna vertebral, ele foi operado, mas lesionaram a coluna dele.
Em dois lugares, imagina? Está todo paralisado do pescoço para baixo.
â" Coitadoâ¦
Lulu concorda.
153
â" Ele faz com que a gente realmente agradeça pelo que tem. Mas é bem
alegre. Na maioria das vezes.
Ela sorri afetuosamente. Aposto que ele é. Lulu cruza as pernas e
observa uma das botas pretas que brilha quando ela a mexe para cima e para
baixo. Eu me pergunto o que mais ela faz com o cara da cadeira de rodas. Ouvi
falar de gente assim, que gosta de ter o controle da situação, dispor de alguém
absolutamente sob seu domÃnio. Será que é isso que ela faz?
â" E como você entrou nesse ramo profissional?
â" Quando não se tem nenhuma qualificação, não se tem muita escolha.
E, quando se é mulher, e não tão jovem quanto antes, é isso ou fazer faxina.
Ela não parece amargurada em relação a isso, apenas expõe os fatos
casualmente.
â" Parece um trabalho decente.
â" E é. Antes eu trabalhava num asilo para idosos. Mas este trabalho éâ¦
melhor.
Ela sorri. Não consigo pensar numa réplica adequada. Bebemos o chá em
pequenos goles.
â" Ainda nenhum sinal de Rose?
â" Não, mas conheci seu sobrinho. E o filho dele.
â" Ah. E aÃ?
â" Ele não parece lembrar muita coisa sobre o desaparecimento da
esposa. Ou não quis me contar.
Ela não reage a isso.
â" Há coisas que não consigo entender direito.
â" É mesmo? Como o quê?
â" Tene disse que Rose desapareceu enquanto estavam acampados em
Black Patch, perto de Seviton.
â" Foi isso que você me perguntou.
â" E você disse que Black Patch ficava próximo de Watley, o que é
verdade.
154
â" Ele deve ter se enganado.
â" O acampamento em Seviton não se chama Black Patch. Chama-se
Egypt Lane. Ninguém chama aquele lugar de Black Patch.
Ela apenas dá de ombros.
â" Mas Ivo insistiu que ficava perto de Seviton, e que se chamava Black
Patch.
Ela parece confusa, mas prudente.
â" E daÃ?
â" Nada, talvez⦠mas você não conhecia Seviton como Black Patch?
Sua expressão agora é de infelicidade.
â" Não que me lembre⦠mas faz uns vinte anos que estive lá. Eu não
sabia onde eles estavam. Sabia apenas o que ouvia dizer, e isso foi mais tarde.
â" Quando?
â" Nossa! Provavelmente, quando Tene sofreu o acidente. Isso. Foi nessa
época. Foi a primeira vez que os vi desde o casamento.
â" O acidente dele. Quando foi que aconteceu?
â" O que isso tem a ver com Rose? Aconteceu depois que ela foi embora.
â" Sei que pode parecer irrelevante. Mas não há muita coisa que pareça
relevante por enquanto. Já procurei por algumas pessoas desaparecidas e⦠é
estranho que não haja nenhuma pista. Estou em busca de qualquer coisa.
Ela suspira e olha para o teto por um instante, os lábios apertados, o pé
batendo ritmadamente.
â" Um dia, recebi um telefonema de Kath, dizendo que Tene tinha
sofrido um acidente de carro. Ele estava no hospital.
â" Onde foi isso?
â" Cambridge. Então, fui até lá. Tinha fraturado a coluna. No inÃcio,
acharam que haveria sequelas no cérebro.
â" Como esse acidente aconteceu?
â" Ele estava dirigindo à noite. Perdeu a direção e bateu num muro.
155
â" Ele estava sozinho?
â" Estava.
â" Havia gelo na pista? O tempo estava muito ruim?
â" Não. Acho que não. Não, estava apenas escuro. Acharam que ele tinha
caÃdo no sono.
â" Aonde ele estava indo?
â" Não sei.
â" E, então, quem você viu no hospital?
â" Kath, Jimmy, Ivo e Christo, é claro.
â" Estavam todos lá ao mesmo tempo?
â" Não, só Tene e Ivo. Kath e Jimmy vieram quando souberam o que
aconteceu.
â" E quem lhe falou sobre Rose?
â" Perguntei onde ela estava e Kath me contou que ela havia fugido com
um gorjio.
Lulu sacode a cabeça antes de continuar:
â" Foi uma tragédia. Tene era o cabeça da famÃlia. O único homem Janko
de sua geração a sobreviver. E não sabÃamos se escaparia. Depois⦠é quase
impossÃvel viver na estrada quando se é inválido. Eles o ameaçaram com uma
internação domiciliar. Isso o teria matado. Sobrou para a famÃlia cuidar dele, e
isso não foi fácil. Kath, Jimmy, Ivo e Sandra concordaram que deviam
permanecer juntos; desse modo, ele poderia continuar na estrada com eles.
â" Isso foi muito generoso da parte deles. Especialmente Ivo, com uma
criança doente para cuidar. Um grande desafio.
â" Na época, não sabiam que ele era doente. Meu Deus, se soubéssemos
disso, talvez não tivessem concordado.
Minha mão que faz anotações para um instante.
â" Então, Rose também não sabia da doença dele?
â" Não. Suponho que não.
156
Pondero sobre isso por um instante.
â" Você também falou com Ivo sobre Rose?
â" Er⦠Eu me lembro de ter dito a ele que lamentava pelo acontecido.
â" E?
â" E nada. Ele parecia perplexo com tudo, o acidente de Tene e com um
bebê para cuidar. Estava esgotado, provavelmente. Lulu hesita um segundo.
â" Ele nunca foi de falar muito. Era um garoto adorável, sabe? Mas, com
aquilo tudo acontecendo, a mãe e a irmã mortas⦠Ele se fechou, eu acho.
â" Quando elas morreram? E⦠de quê?
Lulu solta outro longo suspiro.
â" Marta teve câncer de pulmão. A mãe dele. Ela morreu quando ele
estava com uns 14 anos. E Christina morreu num acidente de carro na França.
Tinham ido a Lourdes⦠logo onde⦠por causa de Ivo. Foi o último desejo de
Marta, que o levassem até lá. A fim de rogarem por um milagre.
Ela dá uma risadinha amarga. Tento demonstrar solidariedade.
â" Ela estava só com 17 anos.
O olhar dela foge do meu campo de visão, concentrando-se em algo que
não se encontra na mesa à sua frente. Ela prossegue:
â" Aposto que você está pensando que não é possÃvel uma famÃlia ser tão
azarada. Balanço a cabeça.
â" Não, acho apenas lamentável.
â" Não conseguÃamos acreditar. Quer dizer⦠â" Lulu acende outro
cigarro. â" Você não fuma, não é? Já ouviu falar em prikaza?
â" Prikaza? Nãoâ¦
â" Isso vem do lado de meu avô. As coisas não acontecem por acaso. As
doenças não são um azar. Prikaza é a punição por desrespeito às leis de
mokady.
â" Sua famÃlia acredita nisso?
Lulu sorri e mexe a cabeça levemente.
157
â" Não, mas a gente fica imaginando. Uma das razões para a prikaza é a
mistura excessiva com os gorjios.
â" E sua famÃlia se misturou muito?
â" Muito pouco. É tradição em nossa famÃlia se casar com uma prima de
primeiro grau. Talvez tenhamos feito algo ainda pior. Sabe que escarlate é algo
bem mokady? Por exemplo, se você usar escarlate ou pintar o carro dessa cor,
você sofrerá uma prikaza.
Penso nos sapatos vermelhos dela, e na última vez que os vi. Não devo
pensar nisso. Não devo. Mas tenho a impressão de que Lulu também está
pensando neles.
â" Você já se perguntou⦠se Rose estava no carro com Tene? Ela olha
para mim como se eu fosse um doido varrido.
â" Não, claro que não! Que coisa mais absurda de se pensar. Ela já tinha
ido embora havia muito tempo. Muito tempo! Francamenteâ¦
â" Desculpe, tenho que perguntar. Mas é uma coincidência esses dois
eventos acontecendo quase ao mesmo tempo.
Lulu sacode a cabeça, incrédula.
â" Tene quebrou a colunaâ¦
Aproveito para atualizar minhas anotações; em seguida, descanso a mão,
que está começando a dar sinais de cãibra. Lulu fuma intensamente; está
tentando consumir o cigarro o mais rápido possÃvel. Isso é algo nela que me
remete a seu sobrinho. Lulu observa o pouco que restou do cigarro, mostrando
quem manda.
â" Você é bom nisso?
â" No quê?
â" Como detetive particular. Você é um bom detetive?
â" Não estou me saindo bem neste momento.
Digo isso na esperança de fazê-la sorrir e, para meu deleite, acontece.
Lulu parece sincera, ainda que confusa. Mas as informações continuam
tão escorregadias quanto antes. Datas, locais⦠A ordem em que as coisas
aconteceram â" todas essas mudanças, guinadas e deslizes fora do meu alcance,
158
justamente quando acho que entendi algo. Ninguém se lembra com clareza.
Ninguém viu coisa alguma. Ninguém estava lá.
Tempos atrás, quando estava procurando por Georgia Millington, eu me
encontrava no mesmo estágio. Não tinha nada. Nenhuma pista, nenhum
indÃcio, nenhuma ideia. Trabalhei incansavelmente. Repassando os mesmos
fatos, as mesmas testemunhas, falando sem parar com as pessoas. E então
houve um ponto decisivo, tal como ocorre com tanta frequência, e alguém
tropeçou. Nesse caso, uma amiga da escola de Georgia que fez dois relatos
conflitantes sobre a última vez que a viu. Eu me lembro dela por causa do nome
â" Jakki Painter. Chamavam a si mesmas de Jak e George. Ela sabia o tempo
todo onde estava Georgia.
Naquele caso, desejei ter fracassado. Gostaria que a virada não tivesse
acontecido nunca. Mas nunca se sabe do que as pessoas são capazes, não é? Até
que elas comecem a agir.
â" Então, o que vai fazer agora?
Lulu encosta-se na cadeira, balançando uma das pernas. Eu queria
conseguir apagar a imagem dela naquela sala de Richmond.
â" Pensei em convidá-la para jantar.
Isso vem como um raio do nada, surpreendente até para mim. E o pior
de tudo é que não tenho certeza se a estou convidando porque quero jantar com
ela (embora talvez queira) ou se é para vê-la ficar constrangida.
Ela parece surpresa. Mas um músculo no canto de sua boca se retrai. â"
Isso é permitido? Quase tão permitido quanto trepar com um legume, diz uma
vozinha na minha cabeça.
â" Bem, sou divorciado⦠solteiro.
â" Quer dizer, enquanto detetive particular e⦠eu, envolvida no caso, ou
seja lá como você chama isso.
â" Não tenho a menor suspeita em relação a você.
â" Ah, humâ¦
Duas vezes em dois dias. As mulheres ficam perplexas com o convite de
Ray Lovell.
â" Não sei se é uma boa ideia.
159
â" Lamento. Você está saindo com alguém⦠Eu deveria ter perguntado.
â" Bem, é que⦠Desculpe. Acho que eu não deveria. Desculpe mesmo.
Ela parece realmente ficar constrangida. Não confirmou nem negou que
estivesse envolvida com alguém. Então, o que isso significa?
A essa altura, suponho que seja irrelevante.
160
VINTE E QUATRO
JJ
Perguntei ao Sr. Lovell se ele seguia as pessoas. Ele sorriu e disse que à s
vezes, mas que se tratava de uma atividade chata. Ele espiona também. Como
na tevê. Mas falou que não usa uma arma, portanto não é como o Crockett e o
Tubbs do Miami Vice; faz mais o estilo Shoestring. Fico pensando â" e tenho
coisas demais para pensar, sem contar os exames finais do ensino médio â",
mas, quando penso nisso, me sinto um pouco menos estúpido e desamparado.
Fico imaginando que, talvez, eu possa descobrir algumas coisas sobre meu pai.
O Sr. Lovell me explicou como passamos das informações para os fatos e,
depois, para as provas: é este o procedimento de investigação. Ele disse que, à s
vezes, tem que vasculhar as latas de lixo das pessoas para encontrar provas
(não sei se entendi direito a diferença entre informações e fatos, mas parece que
há alguma). Disse que as pessoas são muito descuidadas com o que jogam fora.
âœComo o quê?â, perguntei, e ele respondeu âœComo recibos de cartão de
créditoâ, que aparentemente revelam para todo mundo o que você comprou.
Não falei para ele que eu nunca tinha visto um cartão de crédito. E há também
embalagens de comprimidos, que permitem saber o estado de saúde da pessoa.
Isso me incomodou â" quer dizer, essas coisas deveriam ser particulares, mas
ele falou que é parte do trabalho, e, se as pessoas estão fazendo algo errado, isso
se justifica.
Se eu for esperto, talvez também descubra sobre mamãe e Ivo. O
problema é que não acho que haja alguma coisa em nosso lixo â" ou em todo
nosso trailer â" que eu já não conheça. É muito pequeno. Quer dizer, estamos
até bem, com privacidade entre nós quando necessário, mas isso não acontece
com frequência. Mamãe nunca foi muito complicada em relação a essas coisas.
Eu costumava brincar com as joias dela quando era mais novo, mexia em suas
caixas e pegava brincos e braceletes, colocava tudo no chão, esse tipo de coisa.
Desde então, andei mexendo em seus pertences algumas vezes. Não me
orgulho disso, mas acho que ela nunca percebeu. Nunca encontrei nada além
do que se espera encontrar em coisas de mulher. Pensei que, talvez, houvesse
uma foto do meu pai, ou algo que pertencesse a ele, alguma pista. No entanto,
nunca achei nada. Não posso seguir mamãe e Ivo quando eles saem em seus
carros. Só me resta fazer perguntas, sem deixar muito óbvio o que quero saber.
Já tentei. Até agora, nada.
161
Então, hoje, quando volto da escola, digo que vou pescar. Pego a vara e
fico pescando por algum tempo, mas nenhum peixe morde a isca. Não consigo
nada, exceto ficar com o traseiro molhado por sentar na grama úmida. Depois
de escurecer, por fim, volto me esgueirando pelas árvores, para que não me
vejam.
Não estou ouvindo o rádio do meu tio-avô, o que, provavelmente,
significa que vovó e vovô o levaram até o pub. Talvez todos tenham saÃdo. As
luzes estão apagadas no trailer de Ivo. Vou rastejando e parando até ficar bem
embaixo da janela dele. As cortinas estão fechadas e, por mais que tente, não
consigo ver nada pelas brechas. Então, escuto uma voz, mas não parece ser do
Ivo, talvez seja a tevê ligada. É um som estranho. Alguém gemendo. Talvez seja
um filme de suspense.
Então, tenho a sensação de que alguém jogou uma pedra de gelo dentro
da minha camisa. Porque a tevê não está ligada. O som estranho está vindo de
uma pessoa. Parece alguém gemendo e falando ao mesmo tempo. Tento captar
as palavras, mas não consigo. Nem parece ser em inglês, para ser franco. Talvez
falem em romani, mas só conheço poucas palavras. É o som mais estranho que
já ouvi. Começo a me preocupar â" e se for Christo e ele estiver doente outra
vez? Não parece a voz de Christo, mas⦠Ou se Ivo estiver passando mal?
Talvez tenha acontecido alguma coisa e Christo não consegue ajudar.
Então, outro pensamento me acerta como um soco no estômago. E se for
a mamãe que está lá com o Ivo enquanto os outros estão no pub? E se eles
estiveremâ¦
Eu me afasto alguns passos, sem me dar conta do que estou fazendo, e
depois volto ao trailer, como se acabasse de chegar. Ando de propósito sobre as
pedras, chutando o que encontro pela frente, fazendo um bocado de barulho,
tossindo⦠tudo isso. Paro em frente à porta e bato. Os gemidos cessam, mas
ninguém diz nada. Bato outra vez.
â" Ivo? Você está aÃ?
Silêncio.
â" Ivo?
Mais silêncio, depois um ruÃdo de algo se arrastando.
â" Ivo?
â" Agora não posso, garoto.
162
â" Você está bem?
Após um momento de silêncio, a porta é aberta só um pouquinho. Ivo
põe a cabeça para fora.
â" Claro que sim. Apenas um pouco cansado, só isso. Christo está
dormindo.
â" É porque eu ouvi um barulho⦠pensei⦠Ele está bem?
â" Está. Ã"timo.
Ele obviamente quer que eu vá embora, mas não me mexo. Ivo encolhe
um pouco os ombros, abre a porta e faz um gesto para que eu entre.
â" Já que está aqui⦠â" diz ele.
Eu entro. Mamãe não está lá. O trailer parece estranho, mas não sei dizer
o motivo. Então, percebo: as únicas luzes vêm das velas sobre a mesa.
â" Deu pane no gerador?
â" Não. Só aà ele percebe a razão da minha pergunta.
â" Ah⦠as velas. Não. É só⦠Olhe.
Christo está deitado na cama com os olhos abertos. Fico arrepiado,
vendo-o ali, só com as velas e os ruÃdos esquisitos que escutei. Sinto meu
pescoço sendo agarrado por uma mão â" a impressão pelo menos é essa â" e
avanço em direção à cama, convencido por um fiapo de segundo de que ele está
morto⦠mas ele vira a cabeça e olha para mim com seus enormes olhos
castanhos. E sorri.
Uma parte de mim quer sair correndo, pensar numa desculpa e ir
embora, mas como posso deixar Christo ali?
â" O que está havendo?
Ivo olha para mim por trás das velas. É incrÃvel; o trailer parece maior
quando não se pode vê-lo direito, e o rosto dele parece estranho, como se
estivesse liso e pálido, como se fosse de cera. Os olhos são como espelhos
negros geminados, com as chamas das velas refletidas na superfÃcie.
â" Você sabe quando fomos até Lourdes⦠esperando que Chris
melhorasse? Estávamos esperando um milagre. E ele não aconteceu, não é
mesmo? Você tinha razão.
163
Dou de ombros, como se tal coisa jamais me tivesse ocorrido.
â" Talvez simplesmente ainda não tenha acontecido. Talvez leve
tempo⦠como aconteceu com você.
â" A única coisa que aconteceu é que ele piorou.
Ele olha para Christo, deitado ali, calmo e comportado. Paciente. Nunca
pede coisa alguma. Nunca fica gemendo. Ivo assume outra expressão quando
olha para Christo. Mais meiga. Gostaria de poder discordar dele, mas não é
possÃvel.
â" Tenho tentado me convencer do contrário â" diz Ivo â", mas ele
piorou. Não aguento mais. Vejo que está sofrendo. Eu sei que dói⦠e é minha
culpa. Eu o fiz assim.
Sua voz muda, ficando mais áspera. Suas mãos se agitam
impacientemente. Muito chocado, me dou conta de que ele está chorando. Ivo
chorando. Numa sensação semelhante ao terror, vejo uma lágrima escorrer por
seu rosto.
â" A culpa não é sua. Não podemos fazer nada.
â" Eu não deveria nunca terâ¦
â" Você não podia fazer nada. Não é sua culpa!
Tudo isso é terrÃvel. Quero estender a mão e tocar nele â" na manga da
camisa, talvez. Nunca o vi tão transtornado. Mas estamos falando de Ivo, e, por
isso, não faço nada.
â" Entãoâ¦
Ele olha para baixo e funga com força.
â" Então, isso é⦠pode parecer loucura, mas não é mais loucura do que
esperar um milagre, certo? Somos ciganos. Esta é nossa maldição. Assim sendo,
talvez devêssemos tentar algum feitiço cigano com ele. Você já ouviu Kath ou
Tene falar sobre chovihano?
â" Não.
â" O chovihano é um feiticeiro. Um curandeiro. Como um xamã. Você
sabe o que é isso?
â" Os xamãs vivem no Ãrtico â" digo. â" Podem se transformar em ursos
e coisas assim. E podem voar.
164
â" É isso⦠algo assim. Um chovihano é um xamã cigano. Alguém que
consegue tirar a doença do corpo.
Imagens de ervas ferventes surgem diante de meus olhos. Sapos
dissecados e plantas com nomes como artemÃsia e asfódelo. Olho para a mesa,
na qual uma tigela com um lÃquido escuro reflete as chamas oscilantes das
velas. É pior do que eu imaginava. Nem sei mais para onde olhar; com certeza,
não para Ivo.
â" Porque, antigamente⦠a doença nunca é só uma doença. É prikaza.
Como⦠como um castigo.
â" Mas por que Christo seria castigado? Ele nunca fez nada!
â" Toda a famÃlia é castigada, no sangue.
â" Por ter feito o quê?
Ivo sacode a cabeça e diz:
â" Não sei. Esta maldição se abate sobre nós há gerações.
â" Vamos, Ivoâ¦
â" Isso não é mais loucura do que ir até Lourdes.
â" Mas funcionou para você, não foi?
O silêncio continua por alguns instantes.
â" O que aconteceu comigo não vai acontecer com ele.
Sua voz é baixa e estranha. Quando ouso encará-lo, vejo lágrimas
escorrendo por seu rosto.
Christo tosse.
â" Então, é isso que estou tentando fazer: tirar a doença.
â" Você é um⦠chovihano?
Ivo esboça uma espécie de sorriso, como se estivesse, pelo menos, um
pouco ciente da estranheza de tudo isso.
â" Minha mãe era. Você sabia disso? Ela sabia tudo sobre ervas. Sobre
cura. Ela me ensinou um pouco. Existem receitas e tudo mais. Tudo escrito. Não
há nada de perigoso nisso.
165
Ele aponta para a tigela com o lÃquido escuro. Há também um recipiente
de sal em cima da mesa, e então percebo que há sal por todo canto, como se ele
o tivesse espalhado em todas as direções.
â" O que tem aà dentro?
â" Plantas. Cozidas.
â" Ah.
â" Admito que, se alguém está qualificado para isso, este alguém sou eu.
Não sei o que Ivo quer dizer com isso, e realmente não estou a fim de
perguntar. De repente, sinto uma pena terrÃvel dele. Deve estar se sentindo tão
desesperado. Todos nós nos sentimos, mas deve ser muito pior para ele, sendo
o pai de Christo.
â" O Sr. Lovell disse que conhece um pediatra, em Londres. Um
especialista.
â" É?
â" A gente podia conversar com ele sobre isso. Se todo mundo der uma
contribuição, talvez a gente consiga pagar.
â" É. Talvez.
â" Vale a pena tentar, não é? Pelo Chris?
â" Ok. É.
â" Ã"timo, então⦠Bemâ¦
Sorrio, esperando animá-lo um pouco. Querendo que ele fique normal e
acenda a luz. Estranho â" me sinto mais velho do que ele.
â" Até mais tarde â" digo.
â" Até.
â" Você vem tomar um chá?
â" Vou. Estou chegando num instante. Olho para Christo. Ele olha para
mim, sossegado. Não parece angustiado.
â" Tudo bem, Christo?
166
Ele solta um grunhido, que significa âœoiâ. Tudo normal. Saio aliviado,
imaginando se ele vai recomeçar a gemer e jogar sal para todo lado. Acho que
isso não faz grande diferença. Talvez esteja tudo bem. É tudo uma tapeação.
Velas, cheiros esquisitos e alguns gemidos.
Quer dizer, que mal pode fazer?
167
VINTE E CINCO
RAY
Aproveitamos a tarde para ir de carro até Cambridge. Ao hospital em
que Tene foi socorrido. Hen conhece um dos pediatras de lá â" frequentaram a
mesma escola. Gavin é irlandês, não é um bacana como Hen; é mais do tipo
universitário. Ele parece estar sempre exausto. Gosto dele.
â" Então, é possÃvel que uma mulher que teve um bebê dois ou três
meses antes, digamos, possa sumir e largar tudo?
Estamos sentados no refeitório do hospital, discutindo depressão pós-
parto. Gavin não dispõe de tempo para sair do local. Ele engole um prato de
massa descongelado enquanto conversamos.
â" Não precisa ser psicótica para agir assim. Pode haver uma série de
razões.
â" O marido dela disse que, antes de ir embora, ela fingia, talvez
acreditando mesmo, que o bebê não existisse. Gaving dá de ombros.
â" É possÃvel. Há todo tipo de manifestações. As doenças mentais são
como um velhaco arisco. Literalmente, tudo o que você pensar é possÃvel.
â" SuicÃdio?
â" Qualquer coisa é possÃvel. Estou contente de ter ajudado vocês. â" Ele
sorri para nós. â" Mandarei a conta.
Ele está de brincadeira. E não é esta a verdadeira razão que nos trouxe
aqui. Descrevo os sintomas de Christo o melhor que posso. Gavin escuta com
atenção; sua expressão é de total concentração. Quando termino de contar tudo
o que sei, ele olha para mim.
â" O que você acha, Gavin?
â" Não tenho a mÃnima ideia.
168
Quando encontro pessoas como Gavin, dá vontade de ser um perito em
qualquer coisa. Mesmo quando você não sabe a resposta, consegue inspirar
respeito.
â" Mas gostaria de dar uma olhada nele â" concluiu. â" Você disse que o
pai se recuperou? â" Ele raspa o prato. â" Não acredito que comi esse troço.
Vocês acham que poderiam levar os dois até Londres, à clÃnica?
Gavin trabalha também na Harley Street. Segundo dizem, é um médico
conceituado.
â" Estava esperando você falar isso. Ray fará o possÃvel â" diz Hen.
â" Obrigado, Gavin. Já que estamos aqui, pode nos fazer mais um favor?
⢠⢠â¢
Apesar de sua relutância â" algo a ver com o juramento hipocrático,
creio, parei de escutar nesse ponto â", conseguimos falar com um sujeito que
cuida dos arquivos do hospital. Sinto que, se estivesse aqui sozinho, não
conseguiria nada, mas o sotaque de escola pública de Hen e seu charme são
uma chave-mestra em várias circunstâncias. E essa é uma delas.
Enfatizamos que não queremos ver nenhum detalhe médico particular,
apenas a data em que ele esteve no hospital e, com a ajuda de Gavin,
conseguimos a informação de que um homem de 54 anos chamado Tene Janko
(parece improvável que haja muitos outros) deu entrada no hospital com danos
na coluna vertebral há 6 anos e meio, em 18 de dezembro de 1979, tendo sofrido
uma lesão na espinha num acidente de carro. Ele ficou lá durante 18 semanas e
depois saiu por conta própria, contrariando as recomendações. Não há registro
de tratamentos domiciliares para o paciente.
⢠⢠â¢
Mais tarde, Hen diz:
â" Talvez ela tenha cometido suicÃdio.
Acabamos o dia numa antiga casa de chá no centro da cidade.
â" Então, onde está o corpo?
â" Talvez tenha pulado dentro de um poço fora de uso. Ou dentro de
uma represa. Pode ter se jogado no mar.
Todas essas opções são possÃveis, mas ainda assimâ¦
169
â" A tia de Ivo, Lulu Janko, disse que Rose já tinha ido embora quando
Tene sofreu o acidente, e eles não sabiam ainda sobre a doença de Christo. âœIdo
embora havia muito tempoâ foi o que ela disse. Mas tanto Ivo quanto Tene
dizem que Rose foi embora depois de descobrir que a criança era doente, que
esta doença foi a razão que a levou a ir embora.
Hen dá de ombros.
â" Eles a culpam por ter ido embora. É menos constrangedor do queâ¦
admitir que você bate na sua esposa, por exemplo.
â" Então, você concorda que estão mentindo, não concorda?
Hen sorri.
â" É o que parece.
170
VINTE E SEIS
JJ
Tenho pensado um bocado desde que vi mamãe e tio Ivo juntos no nosso
trailer. Isso me dá nojo. Não que os dois estivessem fazendo algo de errado â"
não sei com certeza o que faziam. Mas é como se alguém tivesse puxado o
tapete sob meus pés; estou tentando manter o equilÃbrio, mas não sei se vou
conseguir. E, desde aquela noite, com Ivo bancando o curandeiro, fiquei ainda
mais desequilibrado. Até agora, não percebi efeito algum, a não ser ter me
deixado assustado: Christo parece estar exatamente como antes.
Uma coisa que aconteceu, e que acho que é uma coisa boa, foi que o Sr.
Lovell voltou a nos visitar, e sugeriu a Ivo que levasse Christo até Londres para
consultar um especialista em doenças infantis. Nem precisei tocar no assunto.
Aparentemente, ele conhece um médico que não cobrará nada. Isso provocou
uma grande reunião familiar â" ou melhor, houve uma reunião familiar com
todos, menos eu, porque, embora eu tenha que fazer faxina e lavar minhas
próprias coisas e, no geral, tenha que ser responsável â" âœagora que você está
com 14 anos, já não é mais criançaâ â", quando se trata de decisões desse
gênero, parece que tampouco sou um adulto.
Falei sobre isso com mamãe, e ela disse bem, você ainda não é um adulto,
é? Não pode dirigir e ainda vai à escola. De qualquer maneira, você devia estar
feliz por não ser adulto; há coisas que você não sabe e devia estar contente por
não saber. E perguntei do que você está falando? Talvez eu já saiba, e ela
respondeu não, você não sabe. Eu sei que não sabe. E eu falei você não sabe o
que eu sei, e ela disse sim, eu sei.
Depois disso, fiquei ainda mais preocupado, tentando descobrir o que
haveria de tão horrÃvel que eu nunca ouvi falar (mas ela, sim). Quer dizer, já sei
sobre um bocado de coisas horrÃveis, como o Holocausto, a guerra, os estupros,
as torturas â" existe algo pior do que isso?
Então me perguntei se ela estava falando sobre Rose. Alguma coisa deve
ter acontecido para ela desaparecer totalmente. Por que ela não ia querer voltar
e visitar Christo? Mesmo sem haver mais nada entre ela e Ivo, ainda que não se
suportem mais, Christo continua sendo filho dela, e ela deveria querer vê-lo,
acho.
171
Então lembrei que meu pai não quis me ver.
Mamãe diz que é diferente para os homens. Eu me pergunto por que
nunca juntei as duas coisas, antes: Rose e meu pai. Rose teve um bebê com
alguém da famÃlia Janko e sumiu. Meu pai teve um bebê com uma Janko⦠e
sumiu. Num momento de fúria, devo admitir que imaginei algo louco â" que
Ivo era meu pai, e mamãe, a mãe de Christo â" antes de me lembrar, com alÃvio,
que conheci Rose. Ela realmente existiu. E eu teria percebido se mamãe tivesse
outro bebê, não é mesmo? Eu tinha apenas 7 anos, mas não era nenhum idiota.
Mesmo sem me preocupar com os exames na escola, minha cabeça está
explodindo.
⢠⢠â¢
Minhas investigações começam com vovó. Mamãe estava morando com
eles â" ainda que num outro trailer â" quando engravidou.
â" Posso perguntar uma coisa?
Vovó olha para mim da cozinha do trailer número dois.
â" Acabou de perguntar.
â" Você chegou a conhecer meu pai? Vovó larga as cenouras que está
descascando.
â" Você andou conversando com sua mãe de novo?
â" Ela não me conta nada.
â" Bem, isso é problema dela.
â" Não, não é. Eu tenho o direito de saber de onde vim!
â" Ah, você tem o direito, é? O único direito que tem é de fazer o que sua
mãe mandar.
â" Isso não é justo.
â" A vida não é justa.
â" Então, você o conheceu?
â" Não, não conheci. Não sei quem é e não sei nem seu nome. Deus é
testemunha de que tentamos fazer com que San nos contasse, mas ela estava
com tanto medo que o pai fosse quebrar a cara do homem que nunca disse
nada. Ela fez bem em não falar.
172
â" Vovó fecha a boca, parecendo séria e zangada. â" Ele estragou a vida
de sua mãe, aquele gorjio. É com alguém assim que você quer falar?
â" Eu não disse que queria falar com ele⦠Só quero saber. É como seâ¦
Não sei o que dizer. Como se eu só existisse pela metade.
Vovó volta a atenção para as cenouras.
E, ao que parece, isso é tudo.
Não estou a fim de fazer perguntas a Ivo agora. Acho que devo obter as
versões de todos, primeiro. Então, em seguida, tento com meu tio-avô. Não me
surpreende que ele não me ajude em nada.
â" Você sabe o que dizem: âœÃ‰ uma criança sábia aquela que conhece seu
próprio pai.â
â" O quê? Meu tio-avô pisca o olho para mim.
â" Meu garoto, você deveria se considerar sortudo. Você é filho de
ciganos, e todos nós cuidamos de você, você sabe disso. Ãs vezes, ele me deixa
louco. Esta é uma dessas vezes.
â" Você sempre diz que famÃlia é mais importante do que qualquer coisa.
âœFamÃlia em primeiro lugar. FamÃlia em primeiro lugar!â Mas não conheço a
metade da minha famÃlia. Metade do meu DNA vem de algum outro lugar, e
não sei nada sobre isso! Você não sabe como me sinto! É⦠horrÃvel! â" Tome
cuidado com seus desejos, meu garoto. Eles podem se tornar realidade. E,
depois, você pode desejar que isso não tivesse acontecido. Ele parece mais sério
agora.
â" JJ, você deve perguntar para sua mãe. Quando chegar a hora certa, ela
vai contar tudo.
â" Ela não vai saber quando chegar a hora certa. Agora, ele aponta o
dedo para mim.
â" Não desrespeite sua mãe. Ela sabe mais do que você jamais saberá.
â" Não é de se espantar, já que ninguém me conta nada. Meu tio-avô
inclina a cabeça para trás e começa a rir, mas há algo de advertência naquela
risada.
173
â" Ah, é? Ninguém nunca conta nada para você, não é? Você estuda
numa boa escola, sendo educado como um gorjio. Um dia, você ficará sabendo
de tudo.
â" Não é isso que eu quero dizer. O que quero dizer é⦠coisas sobre
nósâ¦
â" Que coisas sobre nós? O que você não sabe? Dou de ombros.
â" Um bocado de coisas. Por exemplo, o que aconteceu com Rose.
â" Ah, Rose, não é mesmo? Você andou conversando com aquele
detetive?
â" Não. E então? Eu me lembro dela. Ela era legal. Brincava comigo.
Fiquei triste quando ela foi embora.
â" Todos ficamos. E você sabe disso tanto quanto eu.
â" Mas você estava lá! Você deve se lembrar com quem ela foi embora ou
por quê⦠ou o que aconteceu um pouco antesâ¦
Meu tio-avô franze o cenho para mim, unindo as grandes sobrancelhas
como costuma fazer, e seus olhos parecem espiar de dentro de um arbusto.
â" As pessoas, à s vezes, simplesmente vão embora. Como seu pai. Ele
simplesmente se foi. Talvez não queiram ter mais nenhuma relação com as
pessoas que deixam para trás. E, às vezes, ficamos melhor depois que se vão.
Você já pensou nisso?
â" Ivo ficou melhor depois que ela se foi? E Christo?
Espero que fique zangado. Mas ele não fica. Parece⦠triste.
â" Não sei, garoto. Ela não batia bem da cabeça.
Olho para meu tio-avô, boquiaberto. Nunca ouvi ninguém dizer isso
antes.
â" O que quer dizer com não batia bem da cabeça? É por isso queâ¦
Christo?
â" Não sabemos. Talvez esta seja uma das coisas que descobriremos com
esse tal médico.
â" Então⦠ela não se foi com outra pessoa?
174
â" Não sei. Pode ser que sim. Meu Deus, não sei. JJ, quando as pessoas
não lhe dizem as coisas, não é sempre para esconder algo, pode ser que nós
tampouco saibamos. Apenas Deus sabe tudo. E escute⦠â" ele se inclina o
máximo possÃvel para a frente em sua cadeira e aponta o dedo para meu rosto.
â" Não incomode Ivo com isso. Ele já tem bastante preocupação. Quero que me
prometa. Promete?
â" Ok, está certo. Não vou incomodar.
â" Promete?
â" Prometo.
â" Jura pela sua mãâ¦
â" Juro!
Não ajudou muito. Este é um exemplo bem simples. É possÃvel conversar
com meu tio-avô durante horas e horas e não descobrir absolutamente nada. É
incrÃvel o talento que ele tem para isso. Praticamente um superpoder.
175
VINTE E SETE
RAY
Persuadir Ivo foi mais fácil do que eu esperava. Fui de carro até lá e o
encontrei conversando com a prima, Sandra. Eles são bem diferentes: Ivo é
moreno e taciturno; ela é loura, ligeiramente roliça e simpática. Eu me enterneço
com ela. Foi, provavelmente, por causa dela que concordaram em levar Christo
para uma consulta. Ivo disse que eles teriam que pensar no assunto, mas, logo
no dia seguinte, Sandra ligou para o escritório dizendo que adorariam se meu
amigo pudesse ver Christo. Foi a palavra que ela usou: âœadorariamâ.
⢠⢠â¢
Uma semana mais tarde, me ofereço para buscar Christo e Ivo no
acampamento e levá-los até Londres, mas Ivo insiste em ir com sua van.
Preocupo-me, achando que vão se atrasar para a consulta â" ou nem mesmo
aparecer â" mas, quando chego ao café onde marcamos de nos encontrar, na
esquina perto da clÃnica, encontro Ivo e Christo amuados num canto, diante de
um cinzeiro abarrotado de guimbas de cigarro. Christo sorri para mim quando
me aproximo, e eu retribuo o sorriso.
Ivo está visivelmente nervoso, tragando com intensidade outro cigarro;
os olhos sempre me dardejando e depois escapando.
â" O que esse médico vai fazer?
â" Imagino que ele fará apenas algumas perguntas, para começar. Talvez
alguns exames de sangue. Trata-se apenas de uma consulta preliminar, e ele
pode indicar outro médico para Christo se achar que é o mais adequado.
â" Outro médico? Quem, por exemplo?
â" Eu não sei. Outro especialista. Depende do que ele achar.
Ivo concorda com veemência, mas parece estar fazendo um imenso
esforço para controlar seus nervos. Christo está sentado a seu lado, encostado
nele, e não parece nervoso nem infeliz â" mas é difÃcil saber.
â" Gavin é um homem bom. Muito correto. E ele realmente quer ajudar.
Um dos mais famosos em pediatria; foi mesmo uma sorte para nós. Ivo observa
o cigarro, quase completamente amassado, comprimido entre seus dedos. Um
176
tremor lhe atravessa o rosto. A boca se mexe como se fosse falar alguma coisa,
mas não diz nada.
â" Não há com o que se preocupar â" afirmo. â" É só uma conversa.
â" Ele vai querer saber certas coisas?
â" Bem⦠algo sobre a doença, eu acho. Ele precisa ter uma ideia geral do
que aconteceu na famÃlia, eu imagino.
Como de costume, ele não me olha nos olhos.
â" E isso não vai nos custar nada?
â" Não, absolutamente nada. Não se preocupe.
Sorrio de um modo que imagino ser reconfortante, mas, como Ivo não
olha para mim, ele não vê.
Ivo carrega Christo no colo até a clÃnica. Assim que entramos na
recepção, atravessando as pesadas portas envidraçadas que se fecham com um
silvo de sucção, todo o ruÃdo exterior é extirpado, como se por um bisturi. Os
passos são amortecidos por um tapete espesso e denso. Até mesmo as vozes
soam amortecidas. A quietude que, em Londres, só o dinheiro pode comprar.
Caminho até a recepcionista â" uma mulher de meia-idade, bem-maquiada e
com um penteado que parece um capacete â" e explico quem somos. Ivo fica em
pé no meio do tapete, parecendo desconfortável e deslocado.
Eu me pego pensando que ele poderia ter se esforçado um pouco em
relação à aparência â" em vez disso, o boné asqueroso cobre os olhos e está
usando o mesmo colete abotoado até em cima, com um lenço marrom
amarrado⦠na verdade, ainda não o vi vestido de outra maneira. Enquanto
aguardamos, numa sala repleta de armários bege e um tapete bege também â"
chego a olhar para baixo, a fim de ver se deixamos nossas pegadas â", tento
puxar conversa com Ivo. Mas ou ele está muito nervoso ou é incapaz de falar
sobre assuntos amenos. Ele reage com grunhidos ou monossÃlabos
murmurantes, afagando os cabelos de Christo, penteando-os com seus dedos
amarelados. Ele exala cheiro de cigarro e medo. As unhas estão roÃdas até o
sabugo, orlas pretas nas cutÃculas. Apesar da minha frustração, sinto uma
comovente solidariedade por esse homem difÃcil. Ele teve que enfrentar muita
desavença em sua breve vida. Uma coisa que meu pai costumava dizer vem Ã
minha mente: ciganos são mesmo rejeitados, mas, convenhamos, eles não fazem
nem a metade do que deviam para conseguir a simpatia das pessoas.
177
A recepcionista nos avisa que Gavin nos aguarda. Eu me ofereço para
entrar com eles.
â" Não. Pode deixar⦠obrigado.
Leio na National Geographic um artigo sobre uma tentativa de escalar o
Annapurna. O silêncio na sala de espera é tão absoluto que me faz pensar que o
mundo foi dizimado por um furtivo ataque nuclear. Então, a batida do relógio.
Cerca de meia hora depois, a recepcionista aparece no corredor. Parece
transtornada.
â" Seu amigo está aqui?
â" Não. Por quê?
Ela esboça um sorriso forçado.
â" Não estamos conseguindo achá-lo.
â" Deve ter saÃdo para fumar um cigarro.
â" Já procuramos. Ele não está em lugar algum nas vizinhanças. Olho
com firmeza para ela.
â" E o menino?
â" Ah, o filho ainda está aqui, com o Dr. Sullivan. Talvez você
pudesse�
Saio à caça de Ivo pelo quarteirão; pelas esquinas, depois em outros
quarteirões; os lugares mais próximos vendendo cigarros; dentro do café onde
nos encontramos⦠Não consigo imaginar mais aonde ele pode ter ido. E por
quê. Quando volto à clÃnica, a recepcionista e, depois, Gavin, já vasculharam o
prédio até o sótão.
Absolutamente nenhum vestÃgio dele.
178
VINTE E OITO
JJ
Mamãe sempre foi muito cautelosa quando o assunto é meu pai. Ela
disse que, já que ele se foi e a largou antes mesmo que eu nascesse, estávamos
melhor sós do que mal acompanhados. E é isso o que ela diz novamente, desta
vez durante o jantar.
â" Só quero saber quem é ele â" digo. â" Não sei nem o nome dele, sabe?
Tenho o direito de saber de onde vem a outra metade do meu DNA.
â" O direito? â" Ela olha para mim sobre nossos pratos com ensopado,
depois suspira. â" Eu sei que é seu pai, querido. Mas ele partiu meu coração.
Não quero que parta também o seu.
Suspeito que esteja a ponto de ceder, portanto, não digo nada.
â" Você teria que encontrá-lo, primeiro â" diz ela. â" Antes que ele
pudesse machucar você. E eu não saberia por onde começar procurando, a
verdade é essa.
â" Não estou dizendo que quero encontrá-lo â" murmuro. Tenho um
pensamento alarmante. Saber sobre uma pessoa é uma coisa. Vê-la na vida real
é outra bem diferente. â" Se ao menos você tivesse uma fotografia ou algo
assimâ¦
â" Bom, isso é simples. Não tenho fotografia nenhuma, portanto não há o
que mostrar. Você não se parece com ele. Você é um Janko completo.
Meu coração bate com mais força. O que ela quer dizer com isso?
â" Diga-me apenas o nome dele, por favor, mãe.
Ela suspira novamente e fica olhando para o prato durante séculos. Meu
coração acelera. Minha boca está seca. Eu me pergunto se é tarde demais para
recuar. E se ela disser algo terrÃvel e, assim que eu souber, não puder mais
ignorar?
â" Acho que precisávamos ter essa conversa em algum momento. Mas,
sabe⦠Só não quero que fique magoado.
179
â" Por que ficaria magoado sabendo o nome dele? Ele está na prisão ou
algo assim?
â" Não, não, claro que não! Bem, até onde eu sei⦠Sabe, se você fosse
adotado, ao completar 18 anos você poderia solicitar todas essas informações.
â" Mas eu não fui adotado, fui?
â" JJ, ele era um⦠um⦠Você merece mais do que isso. Você merece o
melhor pai do mundo, querido, mas isso não posso lhe dar.
â" Não estou dizendo que quero encontrá-lo, mãe. Só seu nome. Tenho
14 anos. Tenho o direito de saber isso. Mamãe olha para mim calada por uns
trinta segundos. Cronometrados pelo relógio amarelo.
â" Ok, JJ⦠O nome dele era Carl. Carl Atkins. Eu o conheci numa
discoteca. SaÃmos durante algumas semanas. Era um gorjio, trabalhava com
revestimento de gesso em obras. Eu ainda não tinha tido um namorado, então
não sabia nada. â" Ela examina o prato, como se isso pudesse lhe dizer aquilo
que ela deveria ter sabido na época. Mamãe fica olhando para ele por um bom
tempo sem dizer mais nada.
â" Você⦠o amava? Seu sorriso é triste.
â" Eu achava que ele era o máximo.
â" E ele⦠ele também achava você o máximo?
Ela quase chega a rir, como se eu tivesse dito algo engraçado.
â" Bom, ele disse que achava⦠Disse que ia se casar comigo.
Ela dá de ombros de um modo doloroso de se ver. Como se o que tivesse
sobre os ombros fosse insuportavelmente pesado.
â" Fui uma tola.
â" Por quê?
Outro suspiro.
â" A velha história: mocinha inocente, um cara mais velho vem e
encrenca sua vida⦠Então, ela descobre que ele já é casado. Seu falso sorriso é
horrÃvel.
â" Ele era casado?
â" Era.
180
â" Como ele pôde?
â" Ah, querido⦠os homens podem.
â" Mas como⦠Quer dizer, onde estava a esposa dele?
â" Em casa. Ele estava aqui a trabalho. Ninguém o conhecia ou sabia da
vida dele.
Meu pai é uma babaca. Isso é algo que preciso encarar. E se eu for como
ele? Sinto enjoo, não consigo comer mais nada.
â" E você não sabia?
â" É claro que eu não sabia! Meu Deus, JJ! Eu não teria nada com ele se
soubesse!
â" Não dava para ver?
â" Não, não dava para âœverâ.
â" Mas, então, do que você gostava nele?
Tento dizer a mim mesmo que não me importo como ele era, já que,
obviamente, ele não deu a mÃnima para mim, tampouco para a mamãe, mas me
sinto tomado pela necessidade de saber; uma necessidade irritante e terrÃvel
que não consigo controlar.
â" Bem⦠ele era engraçado. Fazia as pessoas rirem. E generoso. Sempre
pagava a rodada de bebida. Ganhava um salário decente, e não era pão-duro.
Tinha os cabelos escuros cacheados e usava brincos de ouro. Olhos azuis. Tinha
uma rosa tatuada no braço. Eu costumava dizer brincando que ele queria ser
cigano. Ele era bonito⦠talvez você tenha puxado a ele nesse pontoâ¦
Ela se inclina para a frente e segura minha mão. Eu me solto; cruzo meus
braços, assim ela não pode me pegar.
â" Achei que eu não parecia com ele. Achei que eu era um Janko
completo.
â" Você é. Mas há alguma coisaâ¦
Ela examina meu rosto, tentando sorrir, mas isso dá cada vez mais
trabalho. Inclina-se outra vez na minha direção e põe a mão no meu braço.
â" Meu filho, é por isso que eu não queria contar. Sabia que ia acabar
aborrecendo você. Melhor esquecer isso. Você tem sua famÃlia aqui. Nós todos
181
amamos você. Nós somos bons demais para ele! Aperto meus braços com mais
força ainda. Estou tentando não ficar furioso; estou mesmo.
â" Alguma vez⦠ele me viu?
Não é isso que eu quero perguntar, mas é o que acabo dizendo. Ela
hesita.
â" Não. Isso acontece, JJ. É horrÃvel, mas algumas pessoas são assim, e a
melhor coisa a fazer⦠é se afastar delas, tentar esquecer. Você devia estar
contente por não conhecer um homem assim. Bem, já é o suficiente, não? Eu lhe
contei o que você me pediu. Tenho umas coisas para lavar.
Ela se levanta, despeja a comida dos pratos dentro de um saco, leva tudo
para a cozinha e começa a fazer barulho. Fico sentado à mesa, sentindo-me mais
sujo do que jamais me senti na vida.
Pais, mesmo se eles estão ausentes desde o nascimento â" mesmo se
estão mortos, caramba â" eles deviam deixar alguma coisa para os filhos. Um
medalhão com uma foto no meio. Ou um livro raro. Uma caixa contendo um
segredo especial e maravilhoso. Nas histórias, é isso que eles fazem.
Mas, na vida real, você não fica com nada. Eu sabia disso, é claro. Não se
trata de um conto de fadas. Eu não estava esperando descobrir que eu era um
prÃncipe, ou receber um milhão de libras. Não sei o que me deixa tão irritado de
repente.
É porque eu acho que ela está mentindo.
E isso me deixa furioso. A ponto de explodir. Alguma coisa se solta
dentro de mim; uma represa arrebenta; como se eu fosse um vulcão à beira de
uma erupção.
â" Você poderia ter mantido algum contato com ele. Por mim. Você deve
ter imaginado que cedo ou tarde eu ia querer saber sobre ele.
Mamãe está de costas para mim, lavando ruidosamente pratos e talheres
na bacia, então não sei exatamente como ela reage. Ela fala sem se virar para
mim.
â" Eu tinha minha dignidade. Não podia sair procurando por ele,
sabendo que era casado.
182
â" Você me teve! O filho dele! Se você pensasse em mim, poderia ter feito
isso. Pelo menos, descobrir onde ele estava⦠Como o Sr. Lovell. É isso que ele
faz. Ele acha as pessoas. Até quando elas não querem ser achadas!
Estou berrando. Mamãe deixa a panela que está lavando cair
bruscamente dentro da bacia, derramando água com sabão no chão.
â" É. Mas ele não achou Rose, achou? Há um silêncio pesado. Ela está
satisfeita com seu triunfo, tenho certeza. Ela se vira para mim.
â" JJ, se quiser contratar um detetive particular quando tiver 18 anos para
encontrar esse homem, o problema é seu. Lamento que as coisas tenham
acontecido desse modo. Desculpe-me se não consegui dar a você um bom pai.
Lamento que as coisas não sejam diferentesâ¦
â" Você quer dizer que lamenta eu ter nascido?
â" Não, claro que não⦠JJ, agora chega!
Olhando para minha mãe, tenho a impressão de estar vendo alguém que
não conheço. Não reconheço a mulher com cabelos louros frisados e mãos
avermelhadas â" é uma estranha, uma pessoa feia e assustadora que está dentro
do meu trailer. Falo bem serenamente.
â" Você fala de dignidade. O que estava fazendo com o tio Ivo na outra
noite, quando voltei? Eu vi vocês.
A mamãe-estranha parece encolher contra a pia. Seus lábios se movem,
mas não sai som algum. Então suas bochechas ficam vermelhas; ela parece se
sentir tão culpada e tão envergonhada que não preciso ouvir mais nada.
â" Você não sabe do que está falando.
Solto uma risada meio nervosa, imbecil. Não tenho a menor ideia do que
se trata, além de que, neste instante, eu a odeio. Eu a odeio e sinto desprezo por
mim mesmo.
â" Tire esse sorrisinho nojento do rosto â" diz ela. â" Você não sabe de
nada.
â" Não sei?
â" Não.
â" Nem é preciso dizer. Eu vi com meus próprios olhos.
183
Os olhos dela parecem ter ficado ainda maiores. Ela está muito, muito
brava. Também me pergunto se ela vai admitir e dizer algo como âœVocê não
entende? Ivo é seu pai de verdadeâ.
Fico esperando. Nada mais me surpreenderia.
Mas ela não diz isso. Tudo se passa bem lentamente, como num filme de
ação, quando alguma coisa explode. Tudo está cristalino: vejo cada molécula de
seu rosto avermelhado num espantoso microscópio de longo alcance. Posso vê-
lo vindo, mas não consigo impedir, porque estou também me movendo muito
lentamente.
Mamãe me acerta um belo tapa na cara com a mão molhada, bem no
osso. Não dói muito, mas é revoltante. Faz cinco anos que ela não me bate. Isso
me deixa duas vezes mais furioso do que antes. Da incandescência à explosão. E
isso me deixa feliz, pois, agora, posso ser tão mau quanto quiser.
Sorrio, sentindo a água e o sabão escorrerem pelo rosto, entrando pela
gola da minha camisa.
â" O que teria acontecido se eu não tivesse voltado para casa naquela
hora?
Vapt.
Com o dorso da mão. Desta vez, senti o anel no dedo acertar minha
orelha. O sangue assobiando e rosnando na minha cabeça, como uma onda
arrebentando no filme de surf Big Wednesday.
â" Não é de estranhar que não estivessem preocupados comigo.
Vapt.
Ela começa a perder o controle; apenas raspou no meu rosto, com as
pontas dos dedos; sem vigor nenhum. Ela parece a ponto de chorar, as
bochechas cheias de manchas brancas e vermelhas, os olhos apertados e
brilhando.
â" Saia daqui! Saia daqui!
Ela berra com uma voz profunda e engraçada, áspera. E, sentindo-me
mau, contente, vulcânico e terrÃvel, esbarro com tanta força na mesa que os
copos caem no chão â" ótimo! â" e me vou.
Está chovendo. Não me importa. Como ela pôde me colocar para fora
quando está chovendo? Ela não devia ter autorização para ser minha mãe.
184
Todos os outros trailers estão com as cortinas fechadas, de modo que
pouquÃssima luz escapa do interior. Mamãe provavelmente está pensando que
vou tomar um chá com a vovó ou com meu tio-avô, mas não. Isso seria fácil
demais para ela. Agora, vou embora, conforme ela disse.
Mas, primeiro, forço a porta do trailer de Ivo. Ele está em Londres com
Christo, no médico. Quebro a janela da porta com uma pedra. Não ouço o
barulho. Não sinto nada. Fico meio que esperando cortar a mão fazendo isso,
mas não corto. Eu poderia me esvair em sangue e não sentir dor; neste exato
instante, nada pode me deter. Lá dentro, fecho a porta, as cortinas e reviro tudo.
Sou implacável. Radical. O Sr. Lovell ficaria orgulhoso de mim.
Por quê? Não sei mesmo. Não sei o que estou procurando. Tenho apenas
a mais obscura das ideias â" alguma coisa que possa me dar uma pista para o
desaparecimento de Rose? Alguma coisa que prove que Ivo é meu pai? Não
estou muito convencido de que ele fez alguma coisa com Rose. Tenho apenas a
mais vaga intuição sobre a outra coisa. Mas quero castigá-lo. Por realizar aquele
exorcismo louco e me deixar ficar sabendo disso. Por estar em meu trailer com
minha mãe. Por fazer com que ela tocasse no rosto dele daquele jeito e depois se
inclinasse no balcão e chorasse.
Por me fazer odiá-la.
Nunca arrombei nenhum lugar antes. Nunca roubei nada. Não é meu
verdadeiro eu; é o vulcão que está fazendo isso. (Eu sou o vulcão). Sou mau por
fazer coisas ruins? Se eu achar algo que prove um crime, isso anula o que é ruim
e faz com que eu seja bom? No final, isso aparentemente não importa. Acabo
achando uma coisa, mas não é a prova de um crime. Coisas particulares de
mulheres â" um pouco nojento â" mas por quê? Será que foi Rose que deixou
isso aqui? Por que ele não jogou tudo fora? Ou⦠tem algo a ver com a mamãe?
Não é mesmo a prova de coisa alguma.
E, então, no fundo de um armário na cozinha, atrás de alguns produtos
de limpeza e panos velhos, encontro um saco plástico bem fechado. Parece
conter lixo. Nunca guardamos o lixo dentro do trailer â" nós o colocamos do
lado de fora, onde o cheiro não incomoda. Mas penso no que o Sr. Lovell disse
â" é possÃvel descobrir o segredo das pessoas no lixo â" e esse saco foi
empurrado bem para o fundo do armário de produtos de limpeza, no qual
ninguém procuraria. Desfaço o nó, cuidadosamente para não rasgar o plástico,
e então⦠acabo me encostando na parede oposta com repugnância. As coisas
de mulher não foram deixadas aqui por Rose, pois aqui está um â" usado. Uma
mancha escura e seca. O cheiro metálico me atinge antes que eu consiga recuar.
185
É tão mokady que não parece verdade. Isso me torna mokady também⦠Será
que toquei nisso? Isso é uma coisa que um homem não deveria ver ou saber.
Tem o poder de o tornar impuro. Estou tremendo. Mas, ainda assim, tenho que
colocar o saco de volta no lugar, amarrá-lo e enfiá-lo no fundo do armário.
Não se trata da prova de um crime ou algo realmente errado. Mas é uma
prova de que estão mentindo para mim. O que mais poderia ser? Não um
crime. Mas arrombar o trailer de Ivo naquela noite foi a pior coisa que já fiz. É a
coisa de que mais me arrependo.
186
VINTE E NOVE
RAY
Agora já passa de 18 horas e todo mundo foi para casa. Ficamos
esperando por mais uma hora, no caso de o Ivo resolver voltar, mas não há
indÃcios dele. A secretária de Gavin liga para o departamento de acidentes,
porém nenhuma descrição das vÃtimas corresponde à de Ivo. Não sei onde ele
estacionou a van, e Christo não responde nada que eu consiga entender quando
lhe faço perguntas, então acabo tendo que telefonar para Lulu. Afinal de contas,
ela faz parte da porra da famÃlia e tem um telefone. E é a que está mais perto.
Felizmente, ela também está em casa.
â" Onde você está? â" Acho que acabei de explicar a situação de forma
bem sucinta. â" Você está com Christo? Na Harley Street?
â" Estou. E Ivo desapareceu. É preciso um membro da famÃlia para ficar
com o menino. Ele precisa ir para o hospital. Na Great Ormond Street. Você
conhece? O hospital infantil.
Silêncio.
â" Preciso ir trabalhar em 20 minutos.
â" Mil desculpas. Não sabia para quem mais ligar. Não sou parente,
então⦠Alguém precisa vir aqui, entende, para dar o consentimento. Precisa
assinar uns papéis.
Acho que ouvi um suspiro de capitulação no outro lado da linha.
â" E você tem certeza de que o Ivo não vai voltar? Ele tem que voltar!
â" Já faz três horas que ele sumiu.
â" Vou matar Ivo.
â" Então, você está vindo?
⢠⢠â¢
Gavin é o máximo. Ele fica esperando até Lulu chegar, o que leva mais
de uma hora; em seguida, explica o que acha que deve ser feito. Fico pensando
que, com certeza, Ivo voltará para a clÃnica com alguma explicação que soará
187
sensata e contrita. Mas ele não volta. Enfim, Gavin nos põe para fora e faz sinal
para um táxi. Ele revira os olhos comicamente quando digo que estou lhe
devendo uma. Não consigo pensar em algo que pudesse fazer por ele. Espionar
sua esposa gratuitamente, talvez.
Vou buscar meu carro e volto dirigindo. Lulu e Christo me aguardam na
calçada. Christo parece calmo, apesar do alvoroço em torno dele. Lulu está
tensa. Pela primeira vez, não está usando salto alto. Verifiquei assim que ela
chegou: tênis, calçados mais sensatos para ajudar as pessoas. Somos muito
educados. Nenhum de nós menciona nosso último encontro. Estamos de volta a
uma esfera profissional. Mas, ainda assim, ela e este garoto estranho em estado
lastimável estão no meu carro, aceitando meu auxÃlio. Tenho alguma utilidade
para ela, no fim das contas. De certo modo, é mais Ãntimo do que qualquer
jantar poderia ser.
â" Imagino que devÃamos lhe agradecer por fazer isso por ele. Ela não
soa agradecida. Balanço a cabeça.
â" Você sabe se ele tinha fobia a agulhas? Gavin acha que pode ser isso.
Ela dá de ombros.
â" Não sei.
â" Você tem alguma ideia de aonde ele pode ter ido?
â" Talvez para casa.
â" Não podemos entrar em contato com Tene?
â" Diretamente, não. É mais rápido ir de carro até lá. Meu Deus⦠como
ele pôde deixar Christo lá, sozinho? Essa famÃlia⦠vou te contarâ¦
Lulu está sentada no banco de trás com Christo apoiado nela. Seu braço
em torno dele. A chuva lustra as ruas enquanto nos dirigimos ao hospital
infantil. As luzes borram as cores sobre os vidros. Observo os dois pelo
retrovisor. Lulu olha pela janela. Seu batom parece mais escuro nessa luz; ela
fica diferente, desconhecida. Christo está me olhando pelo espelho â" os olhos
grandes como um poço escuro, o rosto brilhando como uma pérola. Lulu disse
que não o encontrava havia mais de três anos. Será que ele consegue mesmo se
lembrar dela? Ele tinha apenas 4 anos. Talvez se comportasse com a mesma
tranquilidade com qualquer pessoa. Talvez, em sua mente, Ivo ainda esteja com
ele. Talvez ele saiba exatamente onde o pai está.
188
â" Só espero que vocês consigam descobrir o que há de errado com ele.
Isso seria magnÃfico, não? Depois, então, talvez sejam capazes de curá-lo.
Lulu sorri distraidamente, mas não me responde. De repente, penso
tolamente que, qualquer que seja a doença, ela também pode tê-la em si,
hibernando em suas veias. O que ela disse antes â" que ela só afetava os
homens da famÃlia? Isso significa que é uma dessas coisas que pode ser
carregada pelas mulheres, como um presente de grego? A capacidade de dar a
vida e retirá-la numa única operação?
A partir da segurança sombria da minha posição atrás do volante, lanço-
lhe uns olhares furtivos. O rosto azulado. A franja escura e de lado. Um dos
olhos piscando com o reflexo das luzes. Vejo a sombra de uma veia escura que
lhe desce pela lateral do pescoço, antes de desaparecer sob a gola de sua blusa.
O sangue sob a pele.
⢠⢠â¢
Algumas horas mais tarde, sigo pela rodovia, acompanhando um rio
vermelho de luzes traseiras acesas, dirigindo-se para sudeste. O brando fluir de
corpúsculos em vermelho-vivo, correndo por uma veia inferior da noite. Não
acho realmente que esperasse minha oferta, razão pela qual a fiz, ganhando um
sorriso, primeiro de incredulidade, depois de autêntica gratidão abismada â"
meu prêmio esta noite. Imagino-a contando isso para seus amigos (mas não
para um amigo inválido do sexo masculino): âœNão sei o que terÃamos feito sem
Ray. Ele chegou mesmo a nos levar até Hampshire no meio da noite para achar
Ivo. Imagina só! Eu estaria perdida sem eleâ¦â
É claro que, provavelmente, ela não me chama de Ray.
A chuva volta a cair, mais forte do que antes, depois, ainda mais forte e o
vento aumenta, batendo contra o carro quando me aproximo de Bishop"s
Waltham. O chão do estacionamento molhado, refletindo como sangue sob as
luzes do freio.
Por que não paro de pensar em sangue esta noite?
189
TRINTA
JJ
Como o clÃmax de um filme, a chuva desaba no momento em que saio.
Não me importo. Na verdade, para começar, meu corpo está tão quente que é
um alÃvio sentir a água fresca em minha pele e em meus cabelos. Não estou de
casaco. Se estivesse, provavelmente o tiraria, de modo a me comportar mais
corretamente errado, e eles lamentariam ainda mais. Embora já esteja escuro
quando passo correndo agachado pelos trailers, perto das árvores; a única luz
vem dos faróis ligeiros dos carros de passagem, e eles não se importam comigo,
se é que conseguem me ver â", não penso em nada. Fora isso, estou indo
embora daqui e para o mais longe possÃvel deles e de seus segredos imundos. É
isso que mamãe estava falando â" aquela coisa que eu possivelmente não sei?
Vejo seu rosto estranho, os olhos vermelhos, ardentes, envergonhados, e me
odeio pelo que eu disse. Mas ela me mandou embora. Ela falou isso.
Corro pelo acostamento da estrada principal, mas há muitos carros por
perto, aturdindo-me com os faróis. Um deles buzina bem na hora em que passa
por mim â" provavelmente, acham que é engraçado â" e meu coração quase sai
pela boca. Então, desço pela pequena estrada secundária chamada Swains Lane,
que é pouquÃssimo utilizada a essa hora da noite. O vento brando e habitual
sopra as copas das árvores que se cruzam em arco sobre a pista, formando um
túnel, e a chuva espirra entre elas. Sob as árvores, há um farfalhar em todos os
cantos, um bramido, como se o campo estivesse sendo remexido por uma mão
gigantesca. A paisagem me oculta; abafa minha respiração ofegante que é quase
um soluço. Preciso desacelerar e caminhar um pouco de vez em quando para
recuperar o fôlego, mas, assim que o recupero e meu coração para de tentar
arrebentar minhas costelas, preciso continuar correndo.
Mais ou menos na metade da descida da Swains Lane, uma coisa
engraçada acontece. Vejo um carro parado no final da pista, onde ela
desemboca na estrada principal, que leva de volta à zona industrial. Não há luz
acesa dentro do carro nem ninguém em seu interior, tampouco alguma
residência nos arredores. Não consigo imaginar quem deixaria o carro ali Ã
noite, daquele jeito. Sem nenhuma razão particular, quando passo por ele,
ponho a mão na maçaneta da porta e puxo. A porta se abre.
Depois de dar uma olhada ao redor para ver se não havia alguém se
aproximando, sento-me no interior por um instante, fora da chuva, e imagino
190
que sou uma pessoa totalmente diferente, que sabe coisas totalmente diferentes.
Que não sabe o que eu sei. Que não tem tênis velhos cheios de furos, que ficam
encharcados. Talvez eu seja um homem de 25 anos com uma esposa e estou
voltando para casa e para ela. Talvez eu tenha estado no hipódromo hoje e
tenha ganhado milhares de libras. Ainda não decidi o que vou fazer com todo
esse dinheiro; é um prazer que tenho ainda que aguardar ansiosamente, assim
como contar a ela sobre meu sucesso. O dinheiro está no assento ao lado; um
bolo de notas enroladas em uma fita elástica vermelha â" passaram do guichê
para o meu bolso. Como ela vai ficar feliz! Minha esposa que é parecida com
Katie Williams, com os cabelos cor de mel.
Teria sido agradável ficar dentro do carro â" talvez me deitar no assento
traseiro, escondido sob um cobertor xadrez bem sequinho e cair no sono. Talvez
acordar num lugar muito distante. Bem longe, com um novo nome. Mas não há
cobertor algum.
Abro o porta-luvas. Lá dentro, só um mapa, um caderno de anotações
com alguns números que não significam nada para mim e uma latinha dessas
de bala dura e adocicada que as pessoas consomem em viagens: daquelas que
vêm embaladas num papel e ajudam a evitar o enjoo dentro do carro nos longos
trajetos. De repente, sinto a maior fome, e então agarro um punhado de balas e
ponho na boca, guardando a latinha no bolso. O açúcar mela meus dedos:
minha boca é inundada por uma doçura de limão e groselha. Há um limpador
de para-brisa no compartimento da porta e eu o levo comigo, sem saber muito
bem por quê.
Em seguida, escuto um ruÃdo estranho lá fora. Eu me viro, o coração
batendo dolorosamente; alfinetes e agulhas parecem perfurar meus pés e
minhas mãos. Salto do carro e saio correndo, convencido de que alguém me viu
e vai berrar comigo, mirando o revólver em mim no meio das sombras.
Mas ninguém sai correndo do bosque em minha direção. Ninguém berra.
Ninguém atira. Ninguém está me observando.
Ninguém se importa.
Não me passa pela cabeça sentir medo aqui fora. Sinto muito mais medo
de voltar para casa e encarar os olhos da mamãe â" ou ver Ivo â" do que disso
aqui. Mas, ainda assim, não quero tomar o atalho do bosque; acho que não
encontraria o caminho nessa escuridão. Em vez disso, continuo na estrada,
andando rápido, mas não rápido demais, e é assim que acabo passando por
mais dois carros que foram deixados em lugares escuros e desertos.
191
Por alguma razão que não consigo imaginar, resolvi que agora preciso
arrombar os carros, como um teste, e levar alguma coisa â" um talismã â" de
cada um. Neste momento, imagino que estou num conto de fadas, em que o
herói tem que capturar três objetos aparentemente cotidianos, mas na verdade
mágicos, e quando estiver correndo riscos extremos, eles vão socorrê-lo e salvar
sua vida.
Sou o herói, espero, mas não esperamos todos?
Aproximo-me do segundo carro sem acreditar que não haverá ninguém
lá dentro â" provavelmente, algum casal velho e triste se beijando, que não dará
a mÃnima para mim â" mas está vazio. Novamente: ninguém! Mas a porta está
trancada. Então, utilizando minhas novas habilidades de pessoa má, quebro o
vidro lateral com uma pedra, um serviço perfeito. Desta vez, encontro apenas
um par de luvas para dirigir: dessas usadas pelos velhos, feitas de couro e com
furinhos ao longo do dorso. Estão bem gastas; mesmo dentro do
compartimento, elas estão curvadas, modeladas em torno dos fantasmas das
mãos do motorista. São macias e ensebadas, quase desgastadas nas
extremidades dos dedos, e grandes demais para mim, mas, ainda assim,
servem. Enquanto me afasto â" desta vez, sem correrias â", meu peito se infla e
me sinto poderoso com minha façanha. Ninguém me vê. Ninguém para me
escutar. Nem ao menos preciso me apressar.
Porque ninguém se importa.
De repente, fica claro para mim: este é o segredo que eles têm escondido
de mim. Todas as coisas que você deve fazer ou não fazer â" por que se
incomodar? Porque, na verdade, ninguém dá a mÃnima.
Como exemplo, meu pai.
Não tenho a menor ideia de há quanto tempo estou na chuva quando me
aproximo do terceiro carro. Estou todo molhado, como se tivesse mergulhado
num rio; até minha cueca está encharcada. O frio é tanto que mal posso sentir
minhas mãos. Eu podia ser feito de mármore; uma estátua ambulante. Com um
movimento de meu punho de mármore, quebro o vidro da janela lateral.
Preciso desferir alguns golpes antes de quebrá-la, mas não sinto nada.
Destranco a porta e me sento lá dentro. Ãgua pinga da minha franja em meus
olhos. Mas consigo sentir minhas orelhas. Meu nariz está dormente. No porta-
luvas, acho uma revista pornô e uma pequena garrafa de uÃsque. Penso se devo
levar a revista, mas, considerando para onde vou, isso não parece certo. E talvez
o uÃsque seja útil também; mágico também; deveria encontrar outra coisa. No
chão, há outro limpador de para-brisa, só isso. Decido trocar esse limpador pelo
192
outro do primeiro carro. Isso parece incrivelmente engraçado â" eu me
pergunto quando é que vão notar!
Não há mais nada a levar, então abro a garrafa de uÃsque e tomo um
gole. Só percebo um gosto amargo, metálico, que parece estar na minha boca há
tempos, mas, depois de um segundo ou dois, sinto um lÃquido flamejante que
desce arranhando minha garganta. É incrÃvel â" o calor e o frio. Lava e gelo.
Bebo outro gole e um segundo depois, quando atinge meu estômago, tenho
ânsia de vômito. Fico encostado no banco, ofegante, a boca salivando, até que a
vontade de vomitar acaba passando.
Aqui estou, então, ensopado, pingando, congelado, sentado ao volante
de um Ford Sierra que pertence Deus sabe a quem. Sinto-me esmagado pelo
cansaço. Não sei ainda por quanto tempo preciso seguir em frente. A certeza
que tive mais cedo foi arremessada para longe. Bruscamente, começo a rir em
silêncio, meio que me sacudindo, fora de controle. A coisa toda é muito
engraçada quando paramos para pensar; um absurdo danado. Se fizer isso com
um primo, é um incesto? As pessoas na escola fazem piadas dizendo que os
camponeses são muito burros, porque os pais deles são parentes. Mas talvez
isso não seja verdade â" e, talvez, entre mamãe e Ivo seja mais recente do que
isso, de qualquer modo⦠Talvez⦠Talvez não. Tomo outro gole de uÃsque.
Desta vez, não arde muito, e não sinto mais enjoo. Há uma pepita de calor
dentro de mim, e o nó cego dentro do peito está se soltando; dissolvendo-se.
Mal chego a sentir o quarto gole.
A chuva martela o teto do carro â" num agradável e monótono rufar de
tambores. Está chovendo desde sempre. Encosto no assento, olhando para o
céu, as gotas de chuva sendo arremessadas do espaço na minha direção â"
como se estivesse na espaçonave Enterprise, atravessando galáxias em espirais,
indo para lugar nenhum.
Arranco o caco do vidro partido que ainda está preso à janela do carro e
o observo. Tem mais ou menos a mesma forma que a montanha na embalagem
de Toblerone, só um pouco mais fina.
Um vidro-punhal. Um objeto verdadeiramente mágico, cintilando no
escuro. Ãs vezes, sabemos exatamente o que fazer.
Arregaço a manga esquerda da minha camisa e pressiono a ponta contra
a pele. Sob ela, corre o sangue dos Janko â" o puro sangue negro. Pelo menos, a
metade dele â" e talvez totalmente. Um Janko por inteiro. Enfermo, incestuoso e
maldito. Pressiono mais forte, vendo o entalhe aumentar sob a ponta.
193
Ainda mais forte â" e, então, rasgo com força a pele.
Escuto uma espécie de miado.
Abro bem a boca e observo minha própria escuridão se esvair de mim.
194
TRINTA E UM
RAY
Atrasado pela tempestade, só chego ao acampamento perto de meia-
noite. As luzes de todos os trailers estão acesas; a chuva cai oblÃqua; o vento
açoita as árvores, num êxtase de autoflagelação. Antes mesmo de parar o carro,
Sandra Smith chega correndo até mim â" os cabelos louros ficam lisos e escuros
no percurso entre a porta de seu trailer e meu carro. Seu rosto pálido brilha sob
meus faróis, é a máscara do medo.
â" Onde ele está? Você o encontrou?
Ela está olhando para o banco traseiro. Está num estado próximo Ã
histeria. Não entendo a razão.
â" Não sei por onde ele anda, mas está com a vanâ¦
â" O quê?
Logo, aparecem Kath e Jimmy ao seu lado. Jimmy inclina-se em minha
direção.
â" Onde está Ivo?
â" É o que estou tentando descobrir. Ele não voltou para cá?
Kath afasta-se do meu carro, levando Sandra. Aguço os ouvidos para
escutar o que diz.
â" É o detetive. Ele não veio aqui por causa do JJ. Vamosâ¦
â" Sr. Smith, o que está havendo? Aconteceu alguma coisa? â" pergunto.
Jimmy torce a cabeça para o lado, como se dissesse saia do carro.
â" O filho dela fugiu. Ela está louca de preocupação.
â" Meu Deus, sinto muito⦠Bem, Ivo também fugiu. Ele deixou Christo
no médico. Liguei para sua cunhada. Ela está com o menino agora, no hospital.
â" Quem?
195
â" Lulu⦠Luella.
â" Por que ligou para ela?
â" Bem⦠ela é a única nesta famÃlia que tem telefone.
Jimmy me encara, como se não conseguisse registrar todas essas
informações. Em seguida, me conduz até o trailer de Tene.
Eu me pergunto se existe um buraco em algum lugar da Inglaterra por
onde os Janko vão desaparecendo um depois do outro.
⢠⢠â¢
Agora, estamos esperando Ivo aparecer. Não ouso voltar a Londres e
olhar para Lulu sem algum tipo de informação. Tene é a mais pura tradução de
cortesia, insistindo em sentar-se ao meu lado, enchendo os copos de uÃsque,
afirmando que não dormirá enquanto âœos rapazesâ não voltarem. Mas ele
parece estar confiante de que eles voltarão, e confiante também de que sua
irmã, embora tenha se afastado deles, cuidará bem de Christo.
Uma hora se passa. Então, outra. Já esgotamos o que tÃnhamos a dizer.
Tene fuma seu cachimbo. A chuva martela o trailer. Não consigo imaginar
como alguém pode dormir com esse barulho; é como se estivéssemos dentro de
um tambor. Algum tempo depois, Tene me pergunta se eu conheço alguma
história de ciganos. Balanço a cabeça. Se meu pai sabia alguma, guardou para si.
Ele queria que o filho fosse carteiro, como ele; ou vendedor de aspirador de pó,
como meu irmão.
â" Lembro-me de uma que meu pai costumava nos contar. Você quer
escutar? â" pergunta Tene.
â" Claro.
Ele limpa a garganta. Sua voz cai alguns tons. Depois de ficar um tempo
concentrado, ergue a cabeça, o rosto parecendo transformado; inebriado. É
claro: trata-se de um contador de histórias nato.
â" Era uma vez uma terra distante, governada por uma rainha e um rei.
A rainha das fadas era muito linda e vivia no alto de uma montanha, num
castelo feito de cristal e, ao pé da montanha, vivia o rei dos demônios, tão
malvado quanto a rainha era boa.
âœO rei viu o belo rosto da rainha e se apaixonou por ela. Pediu sua mão,
mas ela não aceitou. Furioso, o rei declarou guerra às fadas e começou a
196
aniquilar todas. Para salvar seu povo, a rainha concordou em se casar com ele,
mas ela achava seu esposo tão repulsivo que o rei precisava drogá-la antes de
encostar um dedo nela. Então, tiveram nove filhos, porém eram as crianças
mais terrÃveis que o mundo já tinha visto, pois provocavam todas as doenças da
espécie humana.
âœO primeiro a nascer foi Melalo, um pássaro de duas cabeças que fincava
suas presas nos corações dos homens, tornando-os insanos e violentos; a quarta
foi uma menina, Tcaridyi, um verme que dá febre; e o oitavo foi Minceskro, que
provoca doenças no sangue. Mas o pior dos filhos foi o nono, Poreskoro, que
não era nem macho nem fêmea, mas ambos, e que espalhou a Peste. Até o rei
dos demônios ficou assustado com este filho, então ele deixou, enfim, que a
rainha se fosse, e ela se escondeu na montanha, onde derramou suas lágrimas, e
lá permanece até hoje.
âœAo final desta história, meu querido pai costumava dizer: âAgora, não
me peça nunca mais para contar mentiras!"â
Tene se recosta com um riso rouco. O ar está saturado com a fumaça do
cachimbo. Ele não parece sentir frio, mas talvez seja porque se cobriu com
várias camadas de suéteres que não combinam entre si. Estou congelado:
impregnado com a umidade e o frio que o vento sopra às 3 da madrugada.
Tene tenta encher de novo meu copo, mas eu o tampo com a mão. Em
algum momento, ainda terei que dirigir de volta para casa.
â" Você entende por que pensei nessa história? Minceskro⦠Não consigo
lembrar os nomes de todos eles. Meu pai conseguia, mas⦠É revoltante como
esquecemos as coisas. Minhas irmãs não se interessavam por isso. E os mais
jovens, eles não se importam com as histórias antigas. Só querem saber de
música pop e futebol, esse lixo dos gorjiosâ¦
O barulho de carro irrompe no ar abafado. Dou um pulo, tão rápido
quanto me permitem meus combalidos membros, e vou até a porta. O rosto de
Tene muda â" a ansiedade fluindo em seus olhos. Ele diz algo como âœnão seja
duro com eleâ.
É a van de Ivo. Meu furor me leva à metade do caminho até a porta do
motorista. Kath, Jimmy e Sandra já estão lá, em volta dele. Eles parecem
furiosos também. Jimmy segura o braço dele e murmura alguma coisa. De
repente, Ivo olha para mim, a expressão assustada. Parece um cara derrotado e
estranhamente jovem.
â" Mas que diabo aconteceu com você?
197
Assim que digo isso, percebo que foi um grave erro. Os outros viram o
rosto para mim, protegendo Ivo. Mas ele os afasta e vem na minha direção. Os
olhos fundos, exaustos.
â" Christo⦠Ele está bem?
Sua voz soa ainda mais pesada do que de costume, um lúgubre sussurro.
â" Se ele está bem? Não sei se esta é a expressão mais adequada. Gavin
lhe oferece um tempo precioso para nada. Você não pode bagunçar o tempo dos
outros desse jeito. Por que ele vai querer ajudar alguém assim?
Ele não responde, apenas olha para mim, como se suplicasse.
â" Lulu o levou ao hospital para mais exames â" digo. â" É, ele está bem.
Provavelmente, está se perguntando também o que houve com você. Deve estar
bem assustado.
Um espasmo de angústia cruza seu rosto.
â" Eu⦠não podia. Lamento. Eu precisavaâ¦
Kath segura seu braço e o empurra com firmeza para seu trailer.
â" Sr. Lovell! â" Ele se vira para mim. Parece um prisioneiro cercado
pelos outros três. â" Obrigado pelo que fez por ele. Foi muito gentil.
Em seguida, é carregado para dentro do trailer e a porta é fechada com
uma pancada. Fico sozinho.
â" Por favor, não seja duro com ele.
Tene está à porta, lutando com sua cadeira. Sinto um travo de
solidariedade por ele. É o chefe da famÃlia, apenas na teoria; não pode controlá-
los ou acompanhá-los â" tudo o que pode fazer é se desculpar.
â" Vamos dar um jeito nele. Vamos resolver isso, não se preocupe. Não
vá embora ainda⦠Ainda não.
Lá dentro, ele me oferece mais uÃsque, tentando apaziguar as coisas,
consertar a encrenca que seus parentes estão armando em suas vidas. E,
consequentemente, na minha também.
â" Você precisa entender â" diz ele â" que Ivo tem sofrido demais. Eu
tive dois irmãos, sabe? Matty e Istvan. Os dois morreram. Istvan, quando era
menino. Por isso, Ivo não o conheceu, mas ele conheceu Matty, que morreu com
30 anos.
198
Tene nem imagina que Lulu já me contou alguma coisa sobre isso. Em
tese, ainda não sei nada sobre o assunto.
â" De que ele morreu?
â" Os dois tinham a doença. A de Istvan era pior do que a de Christo,
sabe? Não teve força para crescer. Matty também era doente, mas nem tanto.
Apenas tinha muitas infecções, pneumonia, essas coisas. Ele era ótimo. Um
homem adorável.
â" Sinto muito.
â" E, depois, Ivo perdeu os irmãos. Milo e Steven. Morreram ainda
pequenos. Com um ano de diferença.
Assinto com a cabeça. Ele prossegue:
â" Mas nós tivemos Christina, e depois Ivo. E nós pensamos⦠Marta e
eu⦠pensamos que, enfim, nossa sorte estava mudando. Mas Ivo adoeceu com
4 ou 5 anos. Eles eram como gêmeos, aqueles dois. E, então, minha esposa
faleceu. Câncer. Dois anos depois disso, Christina morreu.
â" Sinto muito mesmo.
Sussurro aquelas palavras. Repito-as muitas vezes, e elas começam a soar
ofensivas.
Ele não revela mais nada. Seu sofrimento surge de repente, invadindo o
trailer, como se tudo houvesse acontecido ainda ontem.
â" Eu⦠sinto muito mesmo por tudo isso.
Sinto que preciso dizer isso novamente, mas, após tantas condolências, o
lugar-comum parece ficar grudado em minha boca. Tantas perdas; não consigo
sequer começar a imaginar como deve ter sido sua vida. Aliás, a vida de todos
eles.
Há uma fotografia em preto e branco na parede, em uma moldura
prateada. Nela, uma mulher jovem de cabelos pretos, vestida à moda dos anos
1960. Um rosto solene, tÃpico da Europa central; maxilares grandes. Está
sentada à frente de um fundo fotográfico â" uma cortina de cetim â" e duas
crianças estão agarradas a ela. A mulher é a esposa de Tene, Marta, e as crianças
são Ivo e Christina. Os sobreviventes â" pelo menos, até aquele ponto. Ivo é
menor do que a irmã â" é evidente, pois é mais novo â" e assustadoramente
magro, mas tem um sorriso delicado e feliz. Deve estar com 6 anos â" a mesma
199
idade de Christo atualmente. Christina tem um dos braços em volta dele; uma
irmã mais velha impetuosa, encarando a câmera com o queixo um pouco
arrebitado. Eles se parecem bastante.
Presumivelmente, eles sabiam, naquela época, que Ivo era doente. Não
sabiam por quanto tempo ainda resistiria.
⢠⢠â¢
Já está clareando quando chego em casa. A secretária eletrônica pisca,
informando que há mensagens para mim, e, embora esteja cansado demais para
pensar nisso, automaticamente aperto o botão. Não reconheço a voz masculina.
â" Ray? Sr. Lovell? Desculpe ligar para sua casa, mas como estamos no
fim de semana⦠Eu queria lhe dizer que⦠desculpe, aqui é Rob. Rob
Anderson, de Adler View. Acho que você deveria voltar aqui. Todo o trabalho
foi interrompido. Acharam alguma coisa no canteiro de obra. Acharam restos
humanos.
200
TRINTA E DOIS
HOSPITAL DE ST. LUKE
Por algum motivo, minha mão direita continua entorpecida e inerte,
mesmo após o restante do meu corpo voltar à vida. Evidentemente, sou destro.
Consigo erguer a mão direita com a esquerda, apertá-la, dobrar os dedos,
beliscar a pele, mas não sinto nada. Como se eu usasse uma luva cheia de areia.
Uma das enfermeiras vem diariamente e me espeta com uma agulha. Fico
fascinado por vê-la enfiar a ponta de metal sob minha pele enquanto a dor
esperada não se materializa.
â" E se eu ficar assim? Vocês não podem fazer alguma coisa?
A enfermeira é jovem e alegre. Suas bochechas são rosadas, embora tente
ineficazmente abrandar com pó de arroz, e uma pequena cruz dourada escapa
do vão entre seus seios e balança sobre a minha cama como uma bênção.
Mesmo sem aquela cruz, pode-se ver que ela se sente aconchegada em seu amor
por Jesus.
â" Vamos programar sessões de fisioterapia para você. Mas não há danos
fÃsicos, portanto, os nervos deverão se recuperar sozinhos. Há boas razões para
ter esperança.
Ela sorri para mim. É tão jovem â" uns 24 anos â", confiante, gentil e
agradável. Aposto que queria ser enfermeira desde que tinha 5 anos.
Boas razões para ter esperanças. Isso soa tão bem. Gostaria que fosse
verdade.
Estou melhorando; sinto isso. Nos últimos dias â" não sei bem quantos
â", tenho recuperado a fala e o movimento. Mas ainda não consigo me lembrar
de como vim parar aqui. E não posso reparar os erros que talvez tenha
cometido. O fato de ser uma vÃtima não nos isenta. Depois do fiasco de Georgia,
as pessoas me diziam que não era minha culpa; não podia ter previsto o que
aconteceu. Mas estavam enganadas. Eu havia encontrado seu assassino. Olhei
nos olhos dele. Eu deveria ter sabido.
201
⢠⢠â¢
Algum tempo depois â" devo ter finalmente cochilado â", abro os olhos e
vejo alguém sentado ao lado da minha cama, numa daquelas poltronas
revestidas de plástico à prova de vazamento. (Eles temem que os visitantes
também sofram de incontinência.) De inÃcio, é só a luz débil do sol atravessando
a cerejeira que causa um efeito diferente. Lulu Janko. Com seus sapatos
vermelhos e batom vermelho; e suas unhas vermelhas roÃdas. E, hoje, um fino
lenço carmesim envolve o pescoço dela como um talho de sangue. Preciso de
um segundo para me lembrar por que eu deveria ficar surpreso com sua
presença; meu cérebro preguiçoso, obscurecido pelos sedativos que me dão
para dormir, range e entra em ação, e me sinto devidamente envergonhado.
Mas ela está aqui. Não sei se devo me sentir feliz ou preocupado por isso. Acho
que, no geral, estou feliz.
â" Você está acordado, Ray? Oi, Ray.
Ela parece um pouco irritada.
â" Oi. Minha voz sai razoavelmente clara.
â" Você está bem melhor, hoje.
â" Você esteve aqui antes? Tento me lembrar, mas não consigo de jeito
algum imaginá-la neste quarto de hospital.
â" Estive. Mas você não estava acordado. Não muito⦠Não fiquei muito
tempo.
Por Deus. Em que tipo de estado eu me encontrava? Mas ela já veio, e
duas vezes! E, agora, o que me diz disso, cara da cadeira de rodas?
â" Deve ter sido uma visão horrorosa.
â" É, foi mesmo.
Ela sorri.
â" Mas por que veio aqui?
O sorriso some. Não tive a intenção de soar agressivo.
â" Você prefere que eu vá embora?
â" Não. Não quis dizer isso. Estou muito feliz que tenha vindo. Sabe, na
última vez que nos encontramos⦠bem, eu lamento por tudo. Não me
surpreenderia se você nunca mais quisesse me ver.
202
Não devia ter dito âœmuito felizâ. Apenas feliz. Ou comovido. Ouâ¦
indiferente: algo um pouco abaixo da verdade.
â" Não tem importância. Então, como está se sentindo?
â" Bem melhor.
â" Que alÃvio.
â" Você passou aqui indo para algum lugar?
Ela balança a cabeça.
â" Só queria ver como você estava.
â" Ah.
Não consigo encontrar mais nada para dizer. Estou cheio de perguntas,
mas elas não são oportunas agora.
â" Er⦠Como vai Christo?
Há algo se manifestando nos limites da minha consciência. Alguma coisa
que tem a ver com ela.
â" Ele está bem. Ainda no hospital, mas⦠estão realmente cuidando
dele.
Quanto mais penso nisso, menos entendo por que ela está aqui. Por que
está sendo tão gentil comigo?
Como se estivesse lendo minha mente, ela diz:
â" Liguei para seu escritório. Falei com seu chefe. Ele me disse que você
estava no hospital e⦠aqui estou.
â" Meu chefe? Eu não tenho chefe.
â" Ah⦠O homem com quem falei tinha uma vozâ¦
â" Uma voz de bacana? Pega em flagrante, ela fica corada. Ela não é a
primeira pessoa a achar que Hen é o chefe.
â" Ele disse o que aconteceu?
â" Disse que você tinha sido internado após bater com o carro. E que
estava num estado bem ruim.
Ela se mexe na cadeira.
203
â" Pois é. Fui envenenado.
Seus olhos se arregalam.
â" Envenenado? Como assim? Intoxicação alimentar?
â" Fui ver Tene e Ivo. Acho que me deram algo para comer. E⦠aqui
estou.
â" Meu Deus. Ela se inclina para a frente, franzindo a testa. Parece
horrorizada.
â" O que você comeu? Foram mariscos?
â" Não sei. Não me lembro. Mas me pergunto se⦠eles estão se sentindo
bem. Podem ter sido envenenados também.
â" Ah⦠meu Deus, não sei. Ela respira fundo e solta um suspiro curto e
brusco.
â" Eu lamento tudo isso, Ray. É horrÃvel. Ela me chama de Ray. Não
pode estar zangada demais comigo.
â" Segundo o pessoal daqui, foram plantas.
â" Plantas?
â" É. Plantas venenosas. Acho que meimendro era uma, e a outra,
ergotina. Ela não está mais olhando para mim. A ruga em sua testa se
aprofunda. Por fim, ela diz:
â" Você⦠tem alguma ideia de como isso pode ter acontecido?
â" Bem⦠suponho que deve ter sido colocado na comida, de alguma
maneira. Falo olhando para o topo de sua cabeça. Pela primeira vez, percebo as
raÃzes grisalhas dos cabelos dela. Ela deve andar bem distraÃda e não notou.
DistraÃda? Com o quê? Por alguma razão, esse fato aperta meu coração,
provocando uma dor quase fÃsica.
â" Você podia tentar saber como eles estão. Não é possÃvel que tenham
ficado neste estado e não tenham sido internados num hospital. Especialmente
Tene.
Ela concorda, mexe na bolsa de mão sobre as pernas, embora bolsa de
mão seja um termo inadequado. Daria para colocar um cocker spaniel lá dentro.
204
Finalmente, ela olha para mim. Não estou certo se há lágrimas em seus
olhos.
â" Lamento tanto por tudo isso, Ray. Eu⦠Eles apanham coisas para
comer, Ã s vezes, como cogumelos, frutos silvestres, essas coisas, sabe. Talvez
tenham se enganadoâ¦
â" É.
Fecho os olhos por um minuto. Depois da aspereza do sol, formas
ardentes vão se desenhando por dentro de minhas pálpebras â" parecem
monstros com longos dentes e garras imundas.
Lulu parece não estar à vontade, insegura. Por duas vezes, começou a
gaguejar. Surpreende-me que seja a primeira vez que ela não esteja numa
posição capaz de me colocar automaticamente no lado errado: provocação,
suspeita, afronta.
â" Lamento tanto por tudo isso. Minha famÃlia me deixa louca, mas não
são más pessoas. Não fariam mal a você de propósito. Ivo⦠sei que ele nem
sempre parece⦠educado, você sabe, mas ele ama aquele menino com todo o
coração. E está muito agradecido por tudo que você tem feito por ele, com o
especialista e tudo mais.
Não sei o que dizer. Não acho que eu tenha acusado Ivo de algo na frente
dela.
Então, penso, se ela não os viu, como sabe que ele está agradecido?
Ela vira bruscamente a cabeça em direção à porta do meu quarto.
â" Eles dizem que você vai ficar bem. Espero que melhore bem rápido.
â" Obrigado. Mas você deveria falar com Ivo, caso ele não saiba que
pode ser perigoso.
â" É, claro. Falarei com ele.
Ainda me incomoda a impressão de que há alguma coisa importante da
qual preciso me lembrar. Alguma coisa envolvendo Lulu.
Simplesmente, não consigo me recordar de jeito algum do que se trata.
Ela evita meu olhar e o concentra no meio da distância entre nós,
mordendo sua boca vermelha, reduzindo a aspereza da cor, deixando-a borrada
e irritada. Uma mecha de cabelos negros se soltou, caindo como uma onda em
205
seu rosto â" ela forma uma curva reversa, que é o S alongado, a mais bela linha,
segundo os estetas chineses: a linha dos quadris e a cintura de uma mulher
quando ela se encontra deitada de ladoâ¦
Oh, my girl, you don"t know. You don"t know what you do to me.
â" Sabe, descobri uma coisa â" digo, temerariamente, pois receio que ela
esteja pronta para partir; sinto sua atenção escapulindo, o cão que tenta se
soltar. Quero recuperá-la. â" Eu estava para contar ao Tene, mas não houve
chanceâ¦
Tento mover minha mão direita, mas não consigo. A carne ainda está
morta.
â" É sobre Rose⦠Sobreâ¦
Uma expressão de ansiedade surge em seus olhos, e ela se inclina em
minha direção. E, bruscamente, como se sacudido por mil choques elétricos,
estou ciente de que sua mão está sobre a minha. Minha mão direita entorpecida,
estendida no cobertor com seu bracelete de plástico, como se fosse um coelho
morto numa armadilha. Com a mesma sensibilidade. Ela está segurando minha
mão. Bem, segurando não, mas, com certeza, tocando-a â" consigo ver de
soslaio. Bem tÃpico. Ela me toca quando estou paralisado â" ou, talvez, por isso.
Então, penso: mas é claro, é desse jeito que ela gosta dos homens. Não sinto
coisa alguma. Nada mesmo. Embora eu imagine que eu seja capaz.
Eu imagino tudo.
â" E o que é?
Percebo que não consigo me lembrar se já lhe contei antes. Ou havia
outra coisa?
â" Você já me contou sobre os ossos que encontraram. É isso? â" diz ela.
Abro a boca para falar. Os restos humanos⦠Sim. E havia ainda outra
coisa, tenho certeza, mas o pensamento se parte à medida que se forma na
minha cabeça. Talvez, se eu sussurrar, ela se curve sobre mim; sua orelha a
alguns centÃmetros dos meus lábios. Talvez eu consiga um bafejo de seu aroma
de cigarros e perfume.
Ao mesmo tempo, ela parece se dar conta do meu olhar sobre nossas
mãos, e, embora eu tente não reagir, ela tira a mão, enfia na bolsa e começa a
remexer naquelas turvas profundezas. Para quê? A resposta? Ela aparece de
novo, vazia.
206
â" Você parece cansado. Eu não deveria incomodar você por muito
tempo. â" (Não, não, você deve sim!) â" Tenho que ir de qualquer maneira.
Começo o trabalho daqui a pouco.
É como uma bofetada na cara. Vá. Trabalhar. Com ele. A ilusão de
intimidade evapora como perfume.
â" Trabalhar. É claro. â" Ela se ergue, olha para mim desconfiada,
embora eu não tenha pretendido soar agressivo. Mas ela fica em pé ao lado da
cama por um longo momento, prestes a falar.
â" Ray⦠er, espero que fique bom logo. A gente se vê, ok?
Ela se vai, seus sapatos marcando ativamente os segundos sobre o linóleo
do corredor. Ouço o som desaparecer e o tempo volta ao seu habitual
rastejamento hospitalar.
Nas lentas horas que se seguem à sua visita, tenho tempo para pensar em
algumas coisas. O que ela ia falar no final, antes de mudar de ideia? Por que
veio me ver duas vezes? Para ver se eu não estava morrendo? Para informar Ã
famÃlia que eles não teriam necessidade de fugir do paÃs?
Para abrandar seu próprio sentimento de culpa?
E, com os diabos, o que é que ela guarda dentro daquela bolsa imensa
que precisa carregar o dia todo de um lado para outro? Sua carteira, seus
cigarros, uma série de batons⦠um estoque de hostilidade capaz de durar um
ano⦠um pacote econômico de desaprovaçãoâ¦
A cópia heliográfica, secreta e inexplicável, de todo o meu desejo e
prazer?
Como isso foi acabar lá dentro?
207
TRINTA E TRÊS
JJ
A dor me acorda. Volto a mim sem ter a menor ideia de onde me
encontro. Estou todo enroscado, envolvido por alguma coisa áspera. Há um
cheiro estranho. Algo rÃgido pressiona meu quadril. Meu punho direito parece
palpitar e, quando tento, parece que não sou capaz de esticar os dedos.
Mudo de posição e ouço um sussurro em volta de mim. Está bem calmo
aqui. Então, vindo de algum lugar exterior, escuto o som do motor de um carro
â" o motor suave de um automóvel caro â" dando partida e saindo, e só então
me lembro de onde estou. Uma batida regular e branda vem de muito mais
perto, que significa um cavalo andando em cÃrculos dentro do estábulo. Uma
explosão de ar sai das narinas do cavalo. É um som agradável. Fiz bem em vir
até aqui, eu acho. Tudo vai dar certo.
Tive que forçar a entrada no estábulo na noite anterior: a porta estava
trancada, o que me surpreendeu â" nunca pensei que as pessoas trancassem um
cavalo durante a noite â", mas, felizmente, havia uma janela aberta. Então,
deslizei por ela, arranhando toda a minha coxa no parapeito ao fazer isso. O
cavalo estava se mexendo, no entanto não parecia alarmado com minha
aparição. Pelo menos, não começou a fazer muito barulho. Falei com ele em voz
baixa, dizendo-lhe quem eu era. Dava para ver apenas o brilho de seus olhos no
escuro. Ele parecia só um pouco curioso, nada mais.
Não quis acender a luz para não chamar a atenção, mas lembrei que o
estábulo era dividido em três compartimentos distintos e mais um pequeno
espaço no final, para as selas. As paredes de madeira entre eles não chegam até
o teto. O último compartimento é onde Subadar vive; o do meio está vazio,
exceto por alguns fardos de feno e outras quinquilharias; e o da outra
extremidade é onde eles guardam as palhas para forrar o chão, sacos de ração,
ferramentas e outras coisas. Há ali uma grande pilha de fardos de palha â" me
lembro de que não dava para ver o topo quando estive ali antes, mas já faz
algumas semanas, e agora não há tanta palha. Assim mesmo, subi até lá e fiz
uma espécie de buraco, de onde não poderia ser visto caso alguém entrasse pela
porta, e também espalhei um monte de palha sobre mim, de modo que ficaria
bem difÃcil me descobrirem, mesmo se chegassem muito perto. O único
208
momento ruim foi quando eu desci para buscar uma das mantas listradas de
Subadar. Presumi que ele não se incomodaria. Mas acabei batendo o pé contra
um balde de metal no escuro e aquilo fez um barulho enorme e estridente
quando rolou pelo chão. Fiquei congelado, o suor encharcava minhas axilas, e
esperei as luzes serem acesas e o som da sirene da polÃcia, mas nada aconteceu.
Suponho que Subadar deve chutar seus baldes com frequência. Subi de volta
até minha plataforma de palha e me deitei, passando a manta por cima da
cabeça, tentando não começar a rir nervosamente de pavor por ter chutado o
balde.
Acho que sou supersticioso. Disse a mim mesmo que tinha sido apenas
uma coincidência. As pessoas â" especialmente os fazendeiros, gente assim â"
devem chutar baldes o tempo todo, e não morrem por isso. Não na hora, pelo
menos. Para me acalmar, bebi um pouco mais de uÃsque e comi mais algumas
balas â" estou racionando tudo, é claro â" e, depois, não me lembro de mais
nada.
⢠⢠â¢
Quanto mais tempo fico acordado, mais me lembro do que aconteceu na
noite passada, e mais percebo a encrenca em que me meti. Minha mão direita
está roxa e inchada desde que dei um soco no vidro do último carro. As
articulações dos meus dedos estão feridas e o sangue coagulou sobre elas.
Minha coxa está vermelha como carne crua depois que deslizei pela janela, e
estou com um longo e doloroso arranhão na lateral â" e não tenho a menor
ideia de como aconteceu. O pior de tudo, porém, é meu braço esquerdo.
Lembro-me de ter enfiado a lâmina de vidro dentro da pele acima do pulso,
mas de um modo bem distraÃdo â" como se estivesse pensando em outra pessoa
fazendo isso â" um maluco qualquer, que estou observando por alguma razão.
Não estava tentando me matar, ou outra estupidez qualquer; não foi nada
disso. Simplesmente, eu sabia que precisava fazer isso; era como se eu
lancetasse um furúnculo ou coisa semelhante. Deixar o veneno sair. Foi
terrivelmente fascinante. Duro de fazer, apesar do uÃsque. Tive que forçar
minha mão direita como se outra pessoa estivesse tentando afastar meu braço.
Tive que ranger os dentes.
Mas a emoção quando vi o sangue jorrar e escorrer pelo meu braço⦠â"
foi incrÃvel.
Lembro-me de tudo isso agora com muita clareza, embora, Ã luz do dia,
pareça algo bem imbecil de se fazer. Até que eu gostaria de não ter feito isso,
para ser sincero. Não acho que o corte em si seja muito grave â" quer dizer, não
209
é tão profundo assim, e parou de sangrar, mas ainda dói um bocado, e me deixa
enjoado quando olho a ferida exposta desse jeito; então, abaixo a manga da
minha camisa para esconder. Parece que meu braço palpita com uma espécie de
dor quente. E isso não é possÃvel esconder.
Como mais duas balas â" uma laranja e uma das verdes, que não são tão
boas. Que gosto deveriam ter, afinal de contas? Só sobraram quatro, e três delas
são verdes. Estou com uma sede terrÃvel e muita vontade de ir ao banheiro. Por
sorte, tenho meu relógio, e assim sei que, a esta hora, Katie deve estar sendo
levada para a escola e, provavelmente, não tem ninguém em casa. Ou talvez só
a Sra. Williams. Devagar e cautelosamente, espio de cima de meu ninho, depois
deslizo pela palha. O estábulo é tão luxuoso que tem até uma torneira, então
ponho a cabeça embaixo e bebo sem parar; depois, tento lavar um pouco o
sangue. Subadar olha ao redor, indulgente. Agora, percebo que ele está preso a
uma argola no muro, provavelmente para impedir que coma todo o feno de
uma vez. Há um pouco de comida na manjedoura, então é provável que alguém
tenha estado ali naquela manhã, e não notou nada estranho. Sinto meu coração
se aquecer de repente. Terá sido Katie? Será que ela chegou perto de mim
enquanto eu dormia?
Na metade de uma longa mijada â" dentro de uma calha que se estende
ao longo do estábulo, considerando que o cavalo faz o mesmo, não deve haver
problema â", eu lembro que é sábado. Por que achei que Katie estaria na escola?
Ela poderia entrar ali a qualquer momento. Felizmente, isso não acontece â"
acho que não conseguiria parar de urinar de jeito nenhum. Em seguida, volto ao
meu esconderijo e fico deitado. Não me sinto muito bem. Estou meio doente, a
cabeça dói, provavelmente por causa do uÃsque, e os vários arranhões e cortes
me martirizam em diferentes nÃveis de violência e calor. Daqui a pouco, vou
ficar faminto. E, então â" mas só então â", terei que pensar no que fazer.
⢠⢠â¢
Quando acordo novamente, sem precisar olhar meu relógio, sei que já é
de tarde. Onde estão todos? Será que ela deixa o cavalo sozinho o dia todo? É
claro que ela virá e o levará para passear. Estou morrendo de fome e como o
resto das balas, até mesmo as verdinhas. Não vejo nenhum sentido em
economizá-las. Mas, quando coloco alguma coisa na boca, só sinto mais fome
ainda. Minha dor de cabeça passou, mas o corte no braço esquerdo me
incomoda loucamente. Ao arregaçar a manga para dar uma olhada, vejo que a
pele está vermelha e inchada, e parece queimar â" sinto o calor emanando dali
quando a aproximo dos lábios. A carne viva é repulsiva â" úmida e, ao mesmo
tempo, cheia de crostas. Sei que isso não é bom â" será preciso desinfetar. Levar
210
alguns pontos, provavelmente. E minha mão direita está toda imobilizada,
curvada como se fosse uma pata intumescida, portanto, não é fácil usá-la. Eu
me pergunto se consigo aguentar por mais uma noite.
O problema é⦠este é o problema. O problema é que eu e Katie não
somos namorados. Na verdade, mal falei com ela nestas últimas duas semanas.
Desde aquela tarde em sua sala de estudo, na qual já pensei pelo menos umas
mil vezes por dia, voltamos ao nosso hábito precedente de, basicamente,
ignorar a existência um do outro. Eu esperava que fosse assim na escola, então
não fiquei surpreso e não me importei demais. Katie ergueu as sobrancelhas
para mim no segundo dia, eu sorri antes que pudesse me conter e ela virou a
cara, batendo os cabelos, rápido como um relâmpago. Senti que não havia
passado em algum tipo de teste, e me culpei por ser tão descontrolado. Mas
Stella tem conversado comigo, o que me faz pensar que Katie contou alguma
coisa para ela. No geral, acho que não. Pelo menos, não disse nada que me
fizesse suspeitar que ela soubesse o que aconteceu; mostrou-se apenas normal,
amistosa, como era antes de irmos ao trailer e tudo dar errado.
Porém, de algum modo, tenho tido a impressão de que Katie também
andou pensando em mim. Tinha a impressão de que voltaria a vê-la fora da
escola â" e não assim, invadindo seu estábulo â" quer dizer, de uma maneira
adequada. Porque ela estava a fim. Apesar de que estou bem ciente do imenso
risco que é tentar abordá-la, razão pela qual eu estava planejando deixar isso
para outro dia. Mas estou ficando preocupado com meu braço. E digo a mim
mesmo que não fará diferença nenhuma para ela se eu ficar ali um dia ou dois.
Algum tempo depois, a porta é aberta e ela entra. Não consigo vê-la â"
não ouso erguer a cabeça, mas escuto os passos e suponho que sejam os dela.
Em seguida, eu a ouço falando com Subadar naquela voz afetuosa que usa para
se dirigir a ele, como se conversasse com um bebê. Meu coração está batendo a
mil por hora. Sinto vertigens. Levanto a cabeça até conseguir enxergar o brilho
daqueles cabelos cor de mel e respiro fundo.
â" Ei⦠Katie!
Tento emitir um sussurro que a alcance. E funciona. Ela fica paralisada,
sinto seu medo daqui.
â" Katie⦠aqui em cima. Ela vira a cabeça e seus olhos se arregalam
cheios de receio.
â" Stella?
Ela parece furiosa. Por que diabos pensa que seria Stella?
211
â" Katie. Sou eu, JJâ¦
â" É! Estou chegandoâ¦
Stella está lá fora; esta é a explicação. Ela entra pela porta; enterro a
cabeça na palha, mas é tarde demais. Katie percebe que a voz não vinha do lado
de fora; que não era a voz de Stella.
Eu me sento, livrando-me nervosamente das palhas em meus cabelos a
tempo de ver os olhares das duas se defrontando e, depois, fixando-se em mim
â" duros, cortantes, desconfiados.
â" Sou eu. Desculpem se assustei vocês.
â" Porra! â" diz Katie. Ela parece assustada. â" Pelo amor de Deus, JJ!
Stella diz:
â" O que está fazendo aÃ?
Estico as pernas sobre a pilha e escorrego até o chão. Ao fazer isso, me
sinto bem tonto, e minhas pernas não parecem dispostas a me sustentar. Com a
turva impressão de que tudo pode acontecer, resolvo me deixar levar pela
corrente e acabo caindo sobre um monte de feno no chão. Meus olhos se fecham
e minha cabeça vai parar num ângulo incômodo contra algo rÃgido e doloroso
â" o mesmo maldito balde em que tropecei na noite passada.
Penso: Ok. Agora vou apenas esperar e ver o que acontece.
Durante um longo momento, ninguém fala ou se mexe.
Imagino-as entreolhando-se, horrorizadas.
â" Minha nossa, você acha que ele está morto? â" indaga Katie.
â" Acho que está só desmaiado â" responde Stella.
Alguém se aproxima de mim.
â" O que ele está fazendo aqui? â" Stella está bem perto de mim. Consigo
sentir o tom afiado de sua voz.
â" Eu sei lá! Não sabia que estava aqui!
â" É mesmo? Mas ele já esteve aqui antes?
â" Esteve⦠Uma só vez! Faz séculosâ¦
212
â" É melhor ir chamar sua mãe.
â" Ah, ela está com um humor péssimo. Vai dizer que é minha culpa.
â" Você não sabia mesmo que ele estava aqui?
â" Não! Nossa, olhe a mão deleâ¦
â" Ah, é nojento⦠JJ? â" Stella ajoelha-se sobre a palha a meu lado. Toca
delicadamente no meu ombro.
â" JJ, você está bem?
Quanto tempo dura um desmaio? Nunca dizem isso naqueles velhos
livros, falam apenas de sais aromáticos capazes de trazer de volta as pessoas.
Tenho a impressão de que não dura muito tempo. Além disso, pode ser que elas
resolvam chamar os pais a qualquer momento. Minhas pálpebras piscam um
pouco, e então abro os olhos. Penso que poderia soltar um gemido também,
mas não sei se consigo produzir algum som.
â" JJ?
â" Oi? Stella parece aliviada, mas ainda zangada. Katie agacha-se a seu
lado e sorri para mim. Ela não parece mais furiosa agora.
â" Meu Deus⦠O que aconteceu?
â" Katie⦠Lamento por isso. Estar aqui. Não sabia mais para onde ir.
â" Tudo bem. Não acho que elas vão sair e chamar alguém. Estão a meu
lado agora; eu sinto isso. Impressionante. E tudo o que fiz foi cair no chão.
â" O que aconteceu com sua mão?
Ergo minha mão para ser o centro das atenções: está roxa, inchada e com
uma aparência medonha.
â" Foi numa briga⦠Tive que fugir. Ele queria me matar.
Ficam assustadas.
â" Quem?
Isso me faz sentir um pouco mal, mas, fechando os olhos como se não
pudesse suportar pensar em nada, digo:
â" Meu tio. Eleâ¦
213
Com algum esforço, uso minha mão ferida para levantar a manga do
braço esquerdo. As duas tomam mais um susto.
â" Meu Deus! Foi ele quem fez isso?
â" JJ, você precisa chamar a polÃcia! Balanço a cabeça. Existem limites,
mesmo em relação a Ivo, que não estou preparado para ultrapassar.
â" Não, não posso. Isso causaria problemas para todo mundo. Minha
mãe, meu tio-avô⦠Vão ser todos expulsos.
â" Isso está infeccionado. Está todo vermelho. Você precisa⦠que
alguém dê uma olhada.
Katie soa preocupada. Acho que nunca a ouvi falar num tom de
preocupação como aquele. Até que é legal.
Afasto minha cabeça do balde, e as duas se inclinam sobre mim, tentando
ajudar, mas sem me tocar, enquanto me sento e me recosto na pilha de feno.
â" Sinto muito ter vindo parar aqui, mas não sabia o que fazer. Tinha que
fugir e acabei perto daqui, no meio da noite⦠Só queria um lugar para dormir e
pensar.
â" Você deveria ter me acordado.
Katie parece doce agora, com os lábios entreabertos. Stella olha para ela.
â" Temos que arrumar alguma coisa para esse corte. Na verdade, você
devia ir a um hospital. Vão precisar dar uns pontos.
Encosto minha mão machucada na testa, o que provoca um sincero
gemido de dor.
â" Não quero fazer nada que ponha minha famÃlia numa encrenca. Vocês
não devem chamar a polÃcia ou algo assim, por favor. Vocês prometem?
Encaro as duas. Ambas assentem. Stella mais relutantemente que Katie.
â" Se eu conseguisse apenas algum antisséptico⦠e algo para comer.
Depois, vou pensar em algo.
Não tenho a menor ideia de como pensar em alguma coisa. Mas imagino
que, se eu der a impressão de que sei o que estou fazendo, há menos chances de
elas irem chamar o chefe do conselho. Por algum motivo, acho que ele não se
mostraria muito solidário comigo.
214
â" Mas você não pode se esconder aqui para sempre. Os pais dela vão
acabar suspeitando de alguma coisa.
â" Eu sei. Eu sei. É só por um dia ou dois.
â" Sua mãe sabe dessa⦠briga?
Stella franze as sobrancelhas, refletindo bem sobre tudo.
Hesito por um instante. O que dizer sobre mamãe? No momento, mal
consigo me imaginar falando com ela. O que eu diria?
Faço que sim com a cabeça. Stella parece chocada.
Katie, em contraste, parece metódica.
â" Claro que você pode ficar aqui. Vou trazer comida e tudo mais. Isso é
moleza. Depois, pensamos no que fazer. Você não pode voltar para casa. Não
neste momento, de qualquer maneira.
Katie estava satisfeita. Acho que decidiu se divertir com isso. É um jogo;
um segredo que pode guardar de seus pais.
â" Ok. Vou buscar essas coisas no banheiro. E depois⦠vou dizer que
vamos levar um lanche e sair para passear com Subadar. Podemos pegar
algumas coisas na cozinha.
Ela sorri, entusiasmada. Stella ainda parece em dúvida. Ela morde o
lábio.
â" Obrigado, Katie. Eu agradeço mesmo por isso. Senão, eu não saberia o
que fazer â" digo. Katie levanta-se, os olhos cintilando, cheios de planos.
â" Stella, venhaâ¦
â" Ok â" responde Stella, séria.
â" Você consegue voltar lá para cima sozinho?
â" É, acho que consigo.
â" Não vamos demorar.
Sinto a cabeça mais leve, aliviada. Estou completamente arrebatado de
amor pelas duas. São como anjos.
Katie vai até Subadar por um momento, como se para afirmar seu álibi.
E, então, as duas saem, conversando, parecendo distraÃdas, como se estivessem
215
andando pelo corredor da escola e eu, em outro lugar, a quilômetros de
distância.
Assim que me deito em meu esconderijo, começo a tremer. Há quase 24
horas não como nada, além de tudo mais que me aconteceu. Por um instante,
acho que vou ficar enjoado, mas aÃ, por alguma razão, começo a chorar. Por que
agora? Não sei. As lágrimas escorrem, caindo sobre a palha. Devo ser uma
pessoa ruim. Andei fazendo tanta coisa ruim desde ontem â" invadindo a casa
de alguém, quebrando coisas, roubando e mentindo â" não há a menor dúvida
quanto a isso. Mas não existem pessoas piores do que eu?
Quero ver minha mãe, e não consigo suportar pensar nela, tudo ao
mesmo tempo. Espero que ela lamente ter me expulsado ontem à noite e ter dito
o que disse. Lamento também tudo o que eu lhe disse, embora me pareçam
verdades. E Ivo já deve ter voltado a esta hora. Eles vão se dar conta de que fui
eu quem invadiu o trailer dele. Talvez até se deem conta de que mexi em tudo.
Que eu vi o que ele guarda no armário. E da� Não me importo. Nunca mais
voltarei a vê-lo. Só preciso mandar um recado para mamãe em algum
momento, para ela ficar sabendo que estou bem. Enfimâ¦
Uma coisa de cada vez, digo a mim mesmo. Uma coisa de cada vez.
Tudo o que preciso fazer agora é parar de chorar, antes que Katie e Stella
voltem e me vejam assim.
216
TRINTA E QUATRO
RAY
O canteiro de obras em Black Patch transformou-se na cena de um crime.
Vejo a tremulante fita amarela estendida na entrada quando me aproximo do
meu carro. É a primeira coisa que se vê da estrada; a segunda é o manto de
água turva e marrom rastejando através do canteiro, vindo do riacho que corre
sob os amieiros.
Há uma pequena tenda verde na extremidade sul do terreno. A água não
a alcançou. Ainda.
A situação não é muito promissora. Tenho que convencer a pessoa
responsável de que temos algo de que precisam. Trouxe cópias das fotografias
de Rose; é a única moeda de troca de que disponho.
Policiais usando capas de chuva baratas formigam em torno da tenda. A
lama gruda nas minhas botas enquanto caminho em direção a eles.
Descubro quem é o inspetor no comando, um homem de olhos
castanhos, sombras escuras sob eles, pálpebras caÃdas, pele de fumante e
cabelos um tanto longos demais que â" talvez ele ache â" fazem-no parecer um
envelhecido ator de cinema turco. Seu nome é Considine. â" Ray Lovell. â" Eu
lhe mostro minha licença.
â" Quando aconteceu isso?
Ele me olha com enfastiada superioridade; uma expressão que diz
simplesmente que ele não é obrigado a me contar nada.
â" O que exatamente você está fazendo aqui?
Já expliquei a dois subalternos, mas faz parte do jogo, então começo
outra vez.
â" Fui contratado para investigar um desaparecimento. Uma moça de 19
anos que desapareceu perto daqui, há uns seis anos.
217
Entrego-lhe a cópia de um folheto com as duas fotos de Rose que temos
â" no hipódromo e no casamento. Ele as examina rapidamente, sem demonstrar
grande interesse.
â" Nem parece se tratar da mesma pessoa â" diz ele com voz
desdenhosa.
â" Foram tiradas com dois anos de diferença. Esta é a mais recente.
Bato de leve com o dedo na foto de casamento. Na verdade, acho que ele
tem um pouco de razão. De algum modo, a fotocópia ressaltou as diferenças
provocadas por aqueles dois anos: a moça despreocupada, com um queixo forte
e um sorriso misterioso; e a noiva hesitante, insegura â" quase como se já
tivesse começado a desaparecer.
â" É a mesma moça â" confirmo. â" O nome dela é Rose Wood. O de
casada é Rose Janko.
â" Janko. Que tipo de nome é esse?
â" É um sobrenome cigano. Originário do leste europeu. FamÃlia inglesa.
Ele solta um grunhido. Não de maneira pejorativa, como muitas pessoas fariam.
Na realidade, parece um pouco mais interessado. Eu me pergunto se ele
próprio não terá sangue cigano correndo nas veias, mas não é o tipo de coisa
que se pergunta a um policial quando se acaba de conhecê-lo.
â" Há uns seis anos? Não dá para ser mais especÃfico?
â" Os registros são inconsistentes. Janeiro ou fevereiro de 1980. Com
certeza, ela desapareceu no inverno.
â" Ok, obrigado pela informação.
Ele não está me dispensando.
â" Então, o que aconteceu aqui?
Pego um velho maço de cigarros no bolso e ofereço-lhe um. Ele aceita e
acabo acendendo um também, para acompanhá-lo. Somos apenas dois
camaradas com os pés na lama, fumando sob a chuva.
Ele pondera o quanto pode me confidenciar.
â" A escavadeira desenterrou alguns pedaços de ossos. Alguém viu e nos
chamou.
218
â" E é a primeira vez que isso acontece aqui? Quer dizer, ouvi falar que
esse lugar serviu como vala comum para enterrar as vÃtimas da praga. Deve
haver muitos corpos aqui.
â" Ah, essa história. Não, é a primeira vez que isso acontece. Acho que a
vala de que você fala não passa de lenda espalhada pelos habitantes locais. Ou,
talvez, esteja abaixo do nÃvel das fundações.
â" Então esses ossos não estavam enterrados em uma profundidade
muito grande?
Tento parecer casual, mas um entusiasmo se alastra por dentro de mim.
Considine sorri. É uma conversa de homem para homem. De um investigador
para o outro.
â" Ouça. Vou lhe contar o que eu sei. Depois, você cai fora, certo? E não
tenho muito a dizer.
â" Claro â" concordo.
â" Estavam a mais ou menos 1,5 metro de profundidade. A escavadeira
ficou bem em cima, acabou triturando tudo. Vai ser um pesadelo reunir todas
as partes, mesmo que as encontremos. Ou seja, é como aquele jogo de varetas.
â" Idade e sexo?
â" Não batem.
Faço um hum-hum educado.
â" Não posso dizer nada ainda. Acharam fragmentos de uma costela, de
um braço e de vértebras. Só iremos saber depois da análise em laboratório, e
parece que aqueles safados ganham por hora, pois trabalham bem devagar. â"
Ele dá de ombros.
â" Estou contando só porque você trouxe isso.
Ele agita nas mãos as fotografias e uma grossa gota de chuva cai no rosto
de Rose. Contenho minha vontade de pegar as fotos de volta.
â" Eu agradeço.
â" Não vá sair por aà falando com todo mundo. Acho que não preciso
dizer isso.
Mesmo assim, acabou de dizer.
219
â" Claro que não. Em quanto tempo você acha que haverá novas
informações sobre o corpo?
O inspetor Considine dá de ombros, dá uma última tragada no que resta
do cigarro e o arremessa numa poça d"água.
â" A gente avisa.
Ele diz isso de má vontade.
â" FicarÃamos muito gratos. A famÃlia está ansiosa para saber qualquerâ¦
coisa. Você sabe.
Considine caminha de volta à tenda e, de repente, se vira para dar a
última palavra, tenho certeza.
â" O rio deve encher de novo, então, provavelmente, teremos que sair
daqui.
Depois disso, tudo é possÃvel. Não alimente muitas esperanças.
Dispensado, caminho até o rio; até a margem inundada pelas águas. A obra
teria que ser paralisada, de qualquer maneira, mesmo sem a descoberta. Daqui
é possÃvel ver o curso original do rio, serpenteando através das árvores e da
mata, mesmo ele tendo inundado as margens. A água parece marrom e um
tanto viscosa, espessa como petróleo, mantendo as coisas em suspensão: coisas
arrancadas da terra; segredos. Um pacote de batatas fritas é levado pela
corrente invisÃvel, seguido de uma sacola de papel. Gravetos de árvores surgem
na superfÃcie. Qualquer coisa pode estar escondida no fundo. Retornando da
margem do rio, olho para o terreno onde ficava Black Patch.
Imagino que havia mais árvores antes de iniciarem os trabalhos de
terraplanagem, talvez cercando o terreno, possivelmente ao longo da área onde
se encontra agora a tenda. Uma cova rasa no bosque? Ou, talvez, não tão rasa
assim: alguém se deu o trabalho de cavar 1,5 metro. Não é algo que se faça em
cinco minutos, com medo e pressa. Será que tentaram fazer isso corretamente?
Com cuidado e decência? Ou, simplesmente, com eficácia profissional?
Além da tela de arame, há um cinturão de mata virgem â" bordos, faias e
aveleiras â" depois, há terras cultivadas, afastando-se do rio e, portanto, num
terreno mais seguro contra as inundações, presumivelmente uma bela barganha
para os ávidos empresários imobiliários. Neste ponto, à beira d"água, basta ficar
parado um minuto que nuvens de mosquitos se formam ao meu redor. Não é o
tipo de lugar que eu escolheria para construir uma casa. De qualquer forma, os
220
homens de negócio que o escolheram e os empreiteiros que o constroem não
virão morar aqui.
Imagino como seria parar ali num trailer, antigamente. O terreno devia
ser muito menor, bem escondido da estrada pelas árvores. De qualquer modo, é
uma estrada sossegada, não conduz diretamente a lugar algum. Não há outras
construções visÃveis, até onde dá para ver. Contanto que outros viajantes não
parassem ali, o lugar seria ótimo para desovar um cadáver. É claro que não
posso provar que eles tenham ido até aquele local um dia. Ou melhor, a única
prova que tenho é o equÃvoco de Tene. Ele disse âœBlack Patchâ e depois tentou
desviar minha atenção, afirmando tratar-se de outro lugar. Por que ele teria
feito isso? Por que essas palavras teriam saÃdo de sua boca se ele não estivesse
atormentado por elas?
Olho para a tenda. Um dos mosquitos acerta meu olho; outro voa sobre
meu nariz. Pego outro cigarro e o acendo, apenas tentando me livrar da vida
selvagem. A chuva começa a cair com mais força, agitando a superfÃcie calma
das águas, apagando o cigarro na minha mão. Jogo-o fora e alguma corrente
oculta o carrega para longe. Parece algo fantástico e proposital, como um Ãmã
movendo-se na mesa. O que quer que tenha acontecido a Rose, preciso
descobrir. Qualquer que tenha sido a corrente oculta que a levou, ela deve
ainda se encontrar sob a superfÃcie.
â" Você está aÃ, Rose? â" digo calmamente, mas em voz alta. â" Se
estiver, dê um sinal. Sei que você está esperando por isso.
Pergunto ao bosque, à água, à terra acolhedora:
â" Ela está aqui?
221
TRINTA E CINCO
JJ
Recomeça a chover. Gosto do barulho da chuva caindo sobre o telhado
daqui â" é mais suave do que no trailer. Ao menos, dá para ouvir os barulhos lá
fora. Como a chuva e a raposa uivando à noite. Sempre gostei do som das
raposas. Elas parecem tão desoladasâ¦
Quando escurece, meu braço está pegando fogo. Katie traz alguns
antissépticos e gaze para o ferimento. Ela fica comigo, a fim de trocar uns
carinhos, e embora, teoricamente, eu também queira, estou me sentindo muito
mal e não acho uma boa ideia. Estou assustado e acho que vou vomitar. Acho
que Katie está irritada. Um instante depois, ela se vai. Talvez o antisséptico
tenha chegado tarde demais; não parece ter adiantado nada. Algum tempo
depois, acordo e estou só. Está completamente escuro. Ouvi um grito, alguém
pedindo socorro; foi isso que me despertou. Talvez tenha sido a raposa ou
talvez um sonho.
Talvez tenha sido eu.
Meu braço está produzindo calor feito uma fornalha. Eu o levanto, mas
está escuro demais para enxergar alguma coisa. Dá a impressão de que é feito
de chumbo. Pulsando com uma dor vermelho-escura. Estou apavorado. Talvez
pela primeira vez nisso tudo, realmente apavorado. Meus receios mais
profundos sobem à superfÃcie e me encaram. Com a gente, é sempre o sangue
â" o que está no interior â" que nos derruba. Eu me pergunto â" e este é um
medo intenso que há muito tempo não sinto â" se eu também tenho a doença.
Talvez seja isso. Talvez tenha ficado latente esse tempo todo, escolhendo o
momento de dar o bote. Sinto-me fraco, mole, imprestável. E se eu morrer aqui
neste estábulo? O que as pessoas dirão?
Deslizei pela pilha de palha e estou no chão novamente. Não me importa
minha origem, não quero morrer num estábulo com apenas um cavalo por
companhia. Subadar olha em volta, pouco interessado; reconhecendo que
minha estadia no estábulo chega ao fim. Tento me colocar de pé â" sinto-me
bem estranho, como se meus braços fossem muito compridos e minhas mãos,
extremamente pesadas â" e me arrastar até a porta. Felizmente, está trancada
apenas no trinco: saio na chuva. Tenho que dar a volta no estábulo para chegar
222
até a casa. Parece levar uma eternidade. A casa está à frente, mas nunca a
alcanço. Em algum momento, percebo que estou chorando como um bebezinho.
É repugnante, mas não consigo parar. Parece que estou andando para os lados,
como se houvesse um campo de força em volta da casa capaz de manter os
ciganos afastados. E, desse jeito, dou a volta até a frente da casa. O quarto da
Katie fica deste lado, mas não sei qual das muitas janelas é a dela. As luzes
estão apagadas. Em seguida, fico imaginando se Katie é a pessoa certa a
acordar. Tenho a impressão de que ela não vai querer que seus pais fiquem
sabendo, mesmo que eu esteja doente; assim, ela poderá me manter no estábulo,
tal como seu cavalo. Como um bicho de estimação. E, neste exato momento,
preciso de um adulto.
Luto longamente contra o campo de força â" até alcançar a porta da
frente. Quando chego, estou ofegante. Levei horas até aqui. Apoio meu rosto
contra o vidro deliciosamente frio da porta com motivos florais e aperto a
campainha. Não me importa o que farão comigo, pois não pode ser pior do que
o que meu sangue já está fazendo. Não sei por quanto tempo aperto a
campainha, não escuto nada, até que, enfim, uma luz é acesa no interior. Deixo-
me cair contra a porta, pensando que logo alguém poderá decidir o que deve
ser feito. Não me importa o que ou quem seja, mas não serei eu. Há uma voz
berrando, mas não consigo ouvir o que diz. É preciso muito esforço para ficar
em pé outra vez, especialmente quando se tem uma porta deliciosamente fria
na qual se encostar. Quando a abrem, escorrego devagar até o chão, aos pés do
chefe do conselho. Desta vez, não preciso fingir.
223
TRINTA E SEIS
RAY
Lulu tem a voz cansada.
â" Como vai Christo?
Um suspiro.
â" Vai bem, eu acho. Kath está com ele agora. Acabo de chegar em casa.
â" Você está sabendo sobre Ivo, então.
â" Estou. Ouça⦠você precisa saber⦠eu⦠nós todos agradecemos
muito o que fez por Christo. O especialista e tudo mais, e também o que fez
ontem. E lamento por Ivo e todas essas coisas. Prejudicando você como ele fez.
â" Não tem importância. Desde que Christo esteja bem, isso é o que
conta.
â" Bem, obrigada. Ainda acho que ele tem seus motivos, embora deva
dizer que não sei quais são. Aposto que meu irmão já encheu seu saco na noite
passada com aquela história de âœpobre coitado do Ivoâ.
â" É, algo assim. Sinto pena dele.
â" Não se dê o trabalho. Ele não sofreu mais do que todos nós.
â" Eu me refiro ao seu irmão. Tanto azar; é quase⦠inacreditável.
Há uma pausa desconfortável. Sou mesmo estúpido: sempre esqueço que
ela, sendo sua irmã, compartilhou a maior parte desses sofrimentos.
â" Sei. Pois é⦠parece que você conquistou Tene.
Sinto uma necessidade urgente e perigosa de lhe contar sobre os ossos
achados em Black Patch. O que ela diria? Com esforço, controlo-me.
â" Bem, se houver algo que eu possa fazerâ¦
Silêncio.
224
Ela soa como se desejasse não ter dito isso.
â" Vamos sair para jantar. Como amigos.
Outra pausa longa.
Pelo amor de Deus, Ray, quando você vai aprender?
E, então, ela diz sim.
⢠⢠â¢
As coisas parecem melhorar. Com certeza, estão melhores. Não apenas
tenho uma pista para o caso, ainda que seja um fiapo de pista inconsistente e
sutil, como também Lulu concordou em sair para jantar comigo. Um encontro.
Um encontro no sábado à noite. Como amigos, certamente, mas já é um bom
começo. E não apenas isso: às 17h30, a chuva finalmente para de cair.
Desço a London Road a pé após ter tomado uma ducha, me barbeado e
vestido uma camisa nova que encontrei no armário, enquanto um avião decola
alegremente no céu e um sol hesitante surge entre as nuvens que se dissipam,
pálidas e vagas, feito um paciente em estado febril, saindo ao ar livre pela
primeira vez. Enfim, depois de muito tempo, um pouco de calor.
E, então, acontece um daqueles momentos. Você sabe o que quero dizer
â" quando há um estalo inaudÃvel e o universo prende a respiração. Quando a
beleza surge, inesperada, num instante de graça. Sem que eu identifique a
razão, as ruas de Staines ficam repentinamente livres do trânsito e estou
completamente só. Sob a luz do sol poente, as gotas de chuva agarradas à s
folhas e aos postes de iluminação brilham como milhares de chamas
minúsculas; a iridescência brota no asfalto molhado. Estou cercado de cristais e
madrepérolas. O avião sumiu no ar. Não há som algum â" o tráfego se calou, os
pássaros emudeceram. Não há mais ninguém nesta calçada para ver isso. A rua
é minha.
Respiro longa e profundamente â" o ar é suave e doce, como se um
batalhão perfumado tivesse acabado de atravessar a rua. Tenho vontade de
berrar, quero que tudo se imobilize. âœParado! Não se mexaâ¦â
E é neste instante que eu a vejo. Subindo pela calçada em minha direção
com seu casaco preto e brilhante, inconfundÃvel como sempre, mesmo a um
quarteirão de distância. De algum modo, parece mais elegante e definida do
que as outras pessoas. E, agora, há outras pessoas por perto; carros também,
livres do feitiço. Os sons retornam aos nÃveis normais. Ela está sozinha. Sinto
vontade de correr; quero que ela saia correndo, mas nenhum dos dois o faz. Ela
225
me vê e não interrompe seu avanço, nem hesita; aparentemente, não sofre
nenhum tipo de impacto. Fico parado sob as luzes, como se tivesse criado
raÃzes.
Ela sorri de um jeito estranho.
â" Oi, Ray.
â" Oi.
É tão irritante. É tão injusto. Eu nem sequer a estava vigiando. Não
pensei mais nela desde que falei com Lulu ao telefone. Durante quase três
horas. E, agora, meu coração está apertado e encolhido dentro do peito por
causa daqueles cabelos pretos e lisos, uma sombra roxa realçando os olhos; por
causa de Jen, minha esposa, e nunca houve outra.
â" Como vai?
â" Bem. Estou só⦠indo encontrar alguém.
Eu não tinha a intenção de dizer nada, mas, ao que parece, já perdi o
controle sobre minhas palavras.
â" Ah, é?
Ela arregala os olhos e pesa as palavras, dando-lhes um tom
artificialmente interessado e luminoso. Talvez esteja com ciúmes, afinal de
contas. Talvezâ¦
â" Tenho pensado em ligar para você, na verdade. Meu advogado está
sempre ligando para mim. Você vai assinar os papéis?
â" Ah, claro, é queâ¦
Os papéis do divórcio, é óbvio. Ciúmes? Onde eu estava com a cabeça?
â" Já faz tanto tempo, Ray.
Eu concordo. Evidentemente. Sei que já faz tempo. Sofri cada minuto que
passou.
â" É. Certo. Vou assiná-los. Sorrio, ou pelo menos tento. Na verdade,
sinto vontade de vomitar.
â" Ok⦠Foi bom vê-lo. Você parece⦠bem.
â" Obrigado. Você tambémâ¦
226
Ela se vai, seu casaco brilhando sob o sol, e atravessa na esquina
seguinte, desaparecendo em meio à multidão de consumidores. Não olha para
trás sequer uma vez. Nem mesmo uma.
Como eu sei? O que acha? Porque eu a sigo. Preciso de quase um minuto
para recuperar o equilÃbrio e, enfim, voltar a raciocinar, parar e entrar em uma
loja para me perder.
⢠⢠â¢
Comporto-me de modo entediante e desajeitado durante todo o jantar. Se
Lulu está achando isso enigmático, após eu ter me mostrado tão insistente mais
cedo, ela não o diz. Desculpo-me por estar cansado â" a primeira vez antes de
fazermos nossos pedidos, a segunda durante a entrada, e uma terceira diante do
filé. Digo que tenho dormido muito pouco nos últimos três dias.
â" Então, somos dois â" diz ela.
Há um coquetel de camarão com molho rosé e um filé com outro tipo de
molho; vinho branco com os camarões e vinho tinto com a carne, mas não sinto
muito o gosto dessas coisas. Faço algo terrÃvel, algo que não se deve fazer
jamais: olho para a mulher sentada à minha frente; essa mulher complicada,
paciente, generosa e misteriosa no outro lado da mesa, e a comparo com a
minha futura ex-esposa. E as coisas vis e maldosas que penso são: ela não tem o
mesmo encanto de Jen, não é tão culta nem tão alta. Sem dúvida, trabalhando
como enfermeira particular, tampouco ganha o mesmo. Não é tão sincera. Nem
é tão bonita, para ser objetivo. Claro que não é, ela é ela mesma. Eu devia me
sentir envergonhado. E eu me sinto.
Ela parece ter feito esforço. Há um reflexo sutil de amora silvestre em
seus cabelos. Está usando botas pretas e lustrosas com saltos altos. A saia reta
valoriza a cintura fina. É assim que as mulheres se vestem para encontrar um
amigo? Pergunto-me se ela pensou em calçar os sapatos vermelhos â" e rejeitou
a ideia porque aqueles são para ele.
Há tanta coisa que não sei sobre ela; não entendo nada. Tento, então,
perguntar-lhe sobre a infância, mas ela reage com reticência, como se
pressentisse em minha voz uma nota mais forçada. Procuro recuperar o
sentimento que tive mais cedo: estava tão animado para encontrá-la. Eu estava
feliz. Isso é o que eu queria. O que quero. Respiro fundo, tento me recordar do
perfume. Da madrepérola.
â" Mas, diga, há quanto tempo você já trabalha para esse cara em
Richmond?
227
â" David? Faz uns dois anos.
â" E você gosta?
â" Gosto. É um bom trabalho, dentro do possÃvel. Depois de um asilo
para pessoas idosas, sabe⦠Ãs vezes, fico um pouco nervosa com a mãe dele.
Ela é bem esnobe e, você sabe, acostumada a dar ordem às pessoas. Mas, com
ele, ela é fantástica. Largou até o empregoâ¦
A voz dela definha, como se algo a distraÃsse. Eu esperava que ela não
tivesse percebido. Alguém arranha ruidosamente o garfo em seu prato; sou eu.
â" Eu não lhe disse onde trabalho.
Não ouso olhar para ela. Fico imóvel, mastigando. Poderia mentir.
FicarÃamos quites. Talvez conseguisse. Mas, depois da conclusão a que cheguei,
como eu poderia ser alguém que mente? Se tenho consideração por essa
mulher, se quero ter algum futuro com ela â" ou com qualquer pessoa â",
certamente terei de falar a verdade. Os mentirosos são sempre descobertos no
final.
â" Ninguém na minha famÃlia sabe onde trabalho. Para quem eu trabalho
â" Suas sobrancelhas estão franzidas, duas rugas desenham-se em sua testa. â"
É isso o que você faz? Vasculha a vida das pessoas que interroga? Isso faz parte
das suas⦠investigações?
Na verdade, ela não parece assim tão furiosa. Mas, se eu concordasse
agora, isso também seria uma mentira.
â" Não⦠Bem, algumas vezes. Mas não neste caso. Você não é suspeita
de nada. Eu queria saber mais sobre você porque gosto de você, e eu⦠eu segui
você uma vez. Até Richmond.
Só bebi uma taça e meia de vinho. E, esta noite, isso age em mim como
um soro da verdade.
Lulu parece espantada, tanto quanto possÃvel; como se tentasse resolver
se deve se mostrar ultrajada ou⦠ou o quê? Lisonjeada? Duvido.
â" Você me seguiu até Richmond? Quando?
â" Er⦠algumas semanas atrás.
Ela engole em seco, com um gesto brusco da cabeça, como se a repulsa a
deixasse engasgada.
228
â" Por que você não me perguntou simplesmente onde eu trabalhava?
Fico perplexo. Por que tal ideia nunca me veio à mente?
â" Não sei. Porque⦠porque é isso que eu faço, eu acho. Estou
habituado.
Uma sombra cruza o rosto dela.
â" E o que fez quando chegou lá?
Eu poderia mentir. Eu poderia mentir. Mas, assim, eu seria um
mentiroso.
â" Vi⦠você entrar na casa. â" Ainda há tempo para recuar. Ainda há
tempo de salvar alguma coisa desta noite, minha reputação, talvez. A
dignidade. Um futuro. â" Saà do meu carro, segui até o jardim dos fundos e
fiquei observando você por algum tempo.
Seu rosto está, por mais inacreditável que seja, ainda mais pálido. Sua
lÃngua se agita como se estivesse tomada por uma sede desesperada.
â" E o que você viu?
Meu pescoço está estranhamente tenso e rÃgido. Talvez minha voz não
saia, e então terei uma desculpa.
Não consegui dizer nada.
Eu podia dizer: âœNada.â
â" Vi⦠você e um homem numa cadeira de rodas dentro da sala de estar.
A lareira acesa. Havia uma mulher mais velha. A mãe dele, suponho. Entrando
e saindo. Você estava usando sapatos vermelhos de salto alto. Notei que você os
tinha consertado. As solas, quer dizer. E vi⦠você na cadeira. Com ele.
O olhar dela me atravessa, congelado.
â" Depois, fui embora â" concluo.
Ela recosta na cadeira, afastando-se de mim. O rosto contraÃdo, os olhos
parecendo agulhas. Os músculos da face tensos. Uma aflição se espalha. Acho
que ela está tentando não chorar. Oh, não, por favor, não chore. Eu ficaria
devastado.
Sua voz, então, soa áspera como uma serra:
229
â" Por que me convidou esta noite? Por que está me contando isso? Você
não passa de um pervertido, porra, por que está me contando isso? Isso também
o excita?
Balanço a cabeça. Um dos problemas de se falar a verdade é que ficamos
desesperados para que acreditem em nós.
â" Não, isso não me excita. Estava apenas curioso sobre o que você fazia.
Não estava esperando⦠Eu gosto de você. De verdade. E foi por isso, e eu⦠eu
lamento muito; foi estúpido e errado o que fiz. Não quero mentir para você.
Nunca vou mentir para você.
Ela se levanta, arrastando a cadeira para trás, os lábios cerrados de
horror e desgosto, ou seja lá o que estiver sentindo. Sinto-me desanimado,
porém não mais do que antes. Na verdade, talvez até menos.
â" Mas que merda é essa? Quem lhe deu o direito de me espionar? É
porque você é um grande detetive e pode fazer o que bem entende? Pensa que é
Deus, metendo o nariz onde não é chamado? Porra, você acha que tem o direito
de fazer isso?
Ela cospe as palavras. Nunca a ouvi pronunciá-las com tanta clareza.
Abro minha boca na intenção de dizer não, mas, com toda honestidade,
não posso negar. Em vez disso, eu digo:
â" Era meu aniversário.
Ela fica boquiaberta, no momento em que tomava fôlego. Depois, ri um
pouco, numa explosão convulsiva e desairosa de incredulidade.
â" Você precisa de ajuda.
â" Preciso. Acho que sim.
Um garçom paira ao lado, imóvel em sua curiosidade aterrorizada.
Nenhum de nós diz nada por não sei quanto tempo. Inacreditavelmente, ela
não se vai. Inacreditavelmente, senta-se outra vez. E, fazendo isso, ela vence.
Apanhando sua taça, ela sorve um longo gole de vinho. Depois, pega a
bolsa e retira seus cigarros e o isqueiro. Observo, sem ousar dizer palavra, me
perguntando o que acontecerá em seguida. O garçom tira nossos pratos, olhos
fixos na mesa.
â" Então⦠o que pensou quando nos viu?
230
â" Não sei. Sim, sei. Fiquei decepcionado⦠não, magoado, talvez.
Ela me olha em meio à fumaça de cigarro.
â" Você achou que era um serviço pelo qual ele estava pagando?
â" Não! Não. Fiquei com ciúmes. E envergonhado. Principalmente com
ciúmes.
Ela parece pensar no que eu disse por um minuto.
â" Não ficou surpreso?
â" Fiquei. Embora⦠nunca tivesse pensado nisso antes. Ele⦠ainda é um
cara bonito.
â" âœAinda é um cara bonitoâ? É. E rico também. Rico⦠impotente⦠não
é isso o que você quer dizer?
â" Não⦠nada dissoâ¦
Não mentir é duro. Não sei bem o que passou pela minha cabeça naquela
noite.
â" Nada em você é como eu esperava.
Ela revira os olhos; sacode a cabeça. Fuma em silêncio durante um
minuto e, depois, amassa o cigarro no cinzeiro de vidro. O garçom traz nossa
sobremesa.
â" Eu gostaria de contar outra coisa. Sobre a investigação. Sobre Rose.
Alguma coisa aconteceu, em parte graças a sua ajuda. Talvez tenhamos
descoberto algo. Nada definitivo, por ora, masâ¦
â" É mesmo? Ela está bem?
â" No local onde ela desapareceu, encontraram restos humanos.
Os olhos de Lulu ficam imensos. Uma de suas mãos toca o pescoço.
â" E são dela?
â" Ainda não sabemos. É possÃvel. Logo descobriremos.
Ela está obviamente sob um grande choque. Balançando a cabeça
lentamente e se mexendo na cadeira. Com um ar sofrido, ela me pergunta:
â" Por que você está me contando isso?
231
â" Nem eu mesmo sei. Sinto como se eu devesse alguma coisa a você. E
isso é tudo o que posso oferecer por enquanto.
â" Não acredito nisso. Não acredito. â" Ela se refere a Rose, refere-se Ã
famÃlia tê-la matado. â" Você está falando de Black Patch? Foi lá que acharam?
Ficamos sentados por alguns minutos em silêncio. Não tocamos em
nossas sobremesas, embora estivessem incluÃdas na conta. Sinto-me exausto.
Minha vontade é me arrastar até uma mesa do canto e me deitar. Eu não
deveria ter contado nada para ela, mas não consegui me conter.
â" Por que me contar isso? Devo contar agora para meu sobrinho?
Contar para Tene? Meu Deusâ¦
Balanço a cabeça.
â" Não quero colocar você numa posição difÃcil. Mas, pelo visto, já
coloquei. Eu lamento. Nestes dias, não tenho conseguido pensar direito.
â" Mas você não sabe se é ela, sabe? Você ainda não sabe de nada.
â" Não.
â" Pode ser qualquer⦠outra pessoa.
â" Pode.
â" Quando vai saber?
â" Não disseram exatamente.
â" Sei. â" Ela se recompõe e olha fixamente para mim. â" Você não pode
me deixar com isso na consciência. Não sei o que fazer. Você precisa contar a
eles o mais rápido possÃvel. Eu não posso.
â" Tudo bem. Irei até lá amanhã; contarei a eles.
â" Vai ser a primeira coisa que você vai fazer. Promete?
â" Prometo. â" Não era o que eu estava planejando, mas, afinal, por que
não? O que mais posso fazer senão esperar? â" Mas, como eu disse, eles ainda
não têm certeza de coisa alguma. Os⦠restos humanos podem estar ali há mais
de vinte anos. Pode ser qualquer pessoa.
â" Mas pode ser ela. É o que você acha.
⢠⢠â¢
232
A tristeza que sinto agora é tão aguda quanto a felicidade que senti na
London Road, algumas horas antes. Ao nosso redor, os outros clientes parecem
perceber e curvar suas cabeças, pressionados pelo peso de minha melancolia
atrapalhada e estúpida. Os garçons são rápidos e respeitosos, circulando
cabisbaixos. Os crepes suzette desfalecem em nossos pratos. Sabem que não são
desejados.
Enquanto aguardamos a conta, reúno coragem para mais uma afronta.
Afinal, provavelmente não terei outra oportunidade. Não acredito que eu ainda
tenha algo a perder.
â" Posso perguntar uma coisa?
Lulu pisca por causa da fumaça do cigarro enquanto o acende.
â" Essa pergunta é sempre estúpida.
â" É mesmo. Você não precisa responder. Você está feliz com ele?
Ela traga a fumaça do cigarro, espera um instante, depois a exala
lentamente, transformada, como se fosse mágica, como se a fumaça viesse de
seu âmago. Como invejo os fumantes; eles possuem desculpas imediatas para
protelar as situações. Seus olhos estão muito, muito distantes â" no passado?
No futuro? Com ele? Em seguida, Lulu reage bruscamente.
â" Você é muito abusado.
Fora do restaurante, ela pergunta, aparentando autêntica curiosidade:
â" Como chegamos a essa... honestidade? Não me lembro do que eu
disse.
â" Mentir machuca as pessoas.
â" A verdade também machuca. Posso lhe garantir.
Eu pedi por isso.
â" Ok, está certo⦠mas⦠só quando vem depois de uma mentira. A
mentira é que causa o dano. Pelo menos⦠foi assim comigo.
â" Foi por isso que se divorciou?
â" Acho que sim. Minha ex-esposa mentiu para mim. Tinha as razões
dela, eu sei, mas⦠quase me matou.
233
Lulu olha para mim de soslaio, com um interesse sarcástico, como se eu
fosse uma nova espécie patética de criatura, inadequada para este mundo cruel.
â" É mesmo? Meu ex-marido mentiu para mim. Eu quase o matei.
234
TRINTA E SETE
JJ
Nunca passei sequer uma noite trancado dentro de uma construção de
tijolos como esta. É horrÃvel. Dá vontade de berrar. Tudo bem. Houve o
estábulo antes, mas não era uma verdadeira construção. Parecia frágil, com
barulho em volta, o ar carregado de cheiro de chuva e terra molhada
penetrando o local. Não é como uma casa. Ou este hospital, com corredores sem
fim e janelas com vidraças duplas que parecem nunca se abrir â" é como estar
lacrado dentro de um vácuo que, aos poucos, se exaure de seu ar.
É quente como o inferno: um calor fedorento e abafado, que parece o
hálito da morte no rosto. Esse odor horrÃvel de doença e desinfetante, tal como
naquela noite em que levamos Christo para o setor de emergência. Agora, estou
trancado aqui, no meio de tudo isso. E, provavelmente, estou impregnado desse
cheiro. O ar é tão seco e artificial que mal posso respirar normalmente. E há um
zumbido constante, vindo Deus sabe de onde. Se dependesse de mim, eu ia
embora agora, mas, desde ontem à noite, nada mais depende de mim.
Há um tubo com uma agulha na ponta penetrando meu braço, presa com
um esparadrapo para não se soltar. Eles podem injetar qualquer coisa, e você
nunca ficaria sabendo. É meu braço direito. O esquerdo está coberto com um
curativo e não consigo ver até que ponto está inchado e vermelho, mas sei que
está assim â" parece um forno cuspindo calor e vibrando como um motor. Meus
dedos â" só consigo ver as pontas â" estão inchados como salsichas e
estranhamente vermelhos. Acordei mais cedo me sentindo péssimo: indisposto,
abafado e estúpido, mas como se eu não me importasse muito com coisa
alguma. Tenho vagas lembranças do chefe do conselho e da Sra. Williams me
trazendo para o hospital â" foi adorável, nem um pouco zangada, muito pelo
contrário: foi gentil e solÃcita. Ela ficou afagando meus cabelos. Acho que estava
mesmo preocupada comigo. Não parava de dizer: âœJohn, como puderam fazer
isso?â Suponho que âœJohnâ seja o nome do chefe do conselho. Obviamente, ele
não sabia a resposta.
Mas será que foi assim mesmo? Ela não deve ter deixado Katie sozinha.
Talvez tenha me afagado os cabelos ainda em sua casa, e ele me trouxe até aqui
sozinho. Realmente, não consigo me lembrar. Eu me pergunto se Katie se meteu
235
em apuros por ter me escondido no estábulo. Fico imaginando se ela mentiu e
disse que não sabia. E me pergunto o que ela estará fazendo neste instante. Sabe
de uma coisa? A verdade é que não me importo.
Estou usando uma espécie de camisola hospitalar. Não sei onde minhas
coisas estão. Será que alguém da minha famÃlia sabe que estou aqui? Acho que
agora é só uma questão de tempo. Quer dizer, Katie vai lhes contar o que sabe,
impossÃvel não fazer isso. E o chefe do conselho me deu uma carona até perto
do acampamento naquele dia, portanto não levarão muito tempo para achar
minha mãe e lhe contarem. Mas eu não falei nada. Não vou facilitar. Ela só vai
ficar zangada. Na verdade, me pergunto se ela virá me visitar. Talvez esteja tão
furiosa depois de nossa briga â" agora, não consigo lembrar direito o que eu
disse, mas me recordo vagamente de ter sentido vergonha de mim mesmo. O
que ela me disse? Tampouco me lembro.
Gostaria que ela viesse. De verdade.
â" Um pouco de animação, James.
É a enfermeira. Lembro que ela estava aqui ontem à noite. Ela é bacana.
Bem bonita também. E bastante jovem. Inclinando-se sobre mim e sorrindo, põe
a mão em minha testa. É agradável quando alguém faz isso â" desde que as
mãos não estejam suadas, é claro. As delas estão sempre quentes, mas secas.
â" Ah, acho que a febre já baixou. Vamos ver isso. Ela apanha um
termômetro em algum lugar perto da minha cabeça e o sacode. Abro a boca
obedientemente â" engraçado como fazemos isso de maneira automática. A
gente se sente como um bebê quando está no hospital.
â" Você quer fazer xixi? Balanço a cabeça, envergonhado. Espero que eu
não tenha ficado corado, mas acho que fiquei. Na verdade, estou com vontade,
mas não vou lhe dizer isso. Existem limites. Isso significa que terei de esperar
até que uma das enfermeiras velhas e assustadoras esteja por aqui. Ou um
enfermeiro, aquele ruivo com manchas na pele e uniforme azul-claro.
â" Ok⦠É, caiu um pouco. Ã"timo. É muito bom ser jovem, não é? Ontem
à noite, você estava delirando. E, agora, olha sóâ¦
Ela volta a sorrir. É agradável ter alguém como ela por perto. Éâ¦
tranquilo. Embora eu não queira me entusiasmar. Eu me empolguei um pouco
com Katie, eu acho, e veja o que aconteceu. Há uma vantagem em se sentir
assim tão doente: posso pensar em como a enfermeira é bela, os cabelos louros e
lisos que devem ser macios e sedosos ao tato, puxados para trás num rabo de
cavalo â" todas essas coisas â", enquanto estou aqui deitado, vestido apenas
236
com uma camisola hospitalar e um lençol fino sobre o corpo, e não tenho sequer
uma ereção. Milagre.
⢠⢠â¢
Ãs 21 horas, mamãe aparece. O horário de visitas está quase no fim â" já
sei quais são os horários de visita â" mas certamente lhe deram permissão
especial, já que é minha mãe e eu estou aqui sozinho há quase 24 horas. Vejo em
seu rosto que andou chorando; os olhos e o nariz estão vermelhos. Mas ela não
parece uma estranha â" parece novamente minha mãe.
â" Oh, JJâ¦
Ela praticamente se atira sobre mim e me abraça, machucando meu braço
ao fazer isso, mas consigo conter um âœaiâ. Estou tão feliz em vê-la que acho que
vou chorar também. Acabo me controlando.
â" Oi, mãe.
â" Meu querido. Que garoto bobo⦠â" Ela acaricia meu rosto e me
abraça de novo, depois se recompõe para, no caso de alguém entrar, não
parecer tão sentimental. â" Eu deveria lhe dar uma bronca pelo que fez. Por me
assustar desse jeito! O que passou pela sua cabeça?
O que passou pela minha cabeça? Será que ela resolveu esquecer nossa
briga?
â" Não sei.
â" E indo à casa daquelas pessoas? Quem são eles, afinal? Um homem
com ar arrogante veio me falar sobre você. De onde você conhece essa gente?
â" Eu não o conheço. Katie é da minha sala.
â" Sei. Ela não pode me censurar. Sempre sentiu tanto orgulho daquela
escolaâ¦
â" Ele faz parte do conselho municipal.
â" É mesmo?
Esta é uma pergunta retórica. Se mamãe está fazendo perguntas
retóricas, então não pode estar assim tão furiosa comigo.
â" Mas o que você andou aprontando? Disseram que teve uma infecção
sanguÃnea!
237
â" É⦠quando fugi, tropecei na estrada e estava escuro⦠havia cacos de
vidro no chão.
Estalando a lÃngua, mamãe demonstra sua desaprovação. Não parece
surpresa que eu tenha feito algo tão estúpido.
â" Mas isso foi na sexta-feira. Por onde andou desde então?
Respiro fundo. Não quero contar tudo para ela. Mas não sei o quanto ela
já sabe.
â" Eu⦠hum⦠Katie tem um cavalo. Eu me escondi no estábulo.
Mamãe balança a cabeça.
â" O que você fez? Você sabe o que eles pensam de nós? Que somos uns
bárbaros sanguinários deixando você escapar desse jeito. E correr para casa de
gorjiosâ¦
â" Eu não corri para casa de gorjios. Apenasâ¦
Apenas fugi. Mas não consigo explicar-lhe exatamente por que tive que
fugir de nossa famÃlia. Fecho os olhos, esperando que ela mude de assunto.
â" Oh, meu querido, me desculpe⦠Como estão tratando você aqui?
Ela baixou a voz, como se eu fosse denunciá-los por qualquer coisa.
â" Estou bem. Ã"timo.
â" E a comida? É horrÃvel? Amanhã, trago algo para você.
â" Não precisa. Mesmo. Não precisa fazer isso.
Sei que vai trazer, mesmo assim. Ela tem essa profunda desconfiança em
relação à alimentação dos gorjios. Já basta ter que almoçar no colégio.
Ela toca em meu braço enfaixado.
â" Seu bobinho. Estou sempre falando para você tomar cuidado com os
vidros.
â" Eu sei.
Agora, ela está sorrindo. Talvez eu consiga esquecer aquela noite. Fingir
que não aconteceu. Senão, o que vou fazer com isso? O que posso fazer?
â" Desculpe, mãe. Eu não quis⦠deixar você preocupada. Só que, à s
vezes⦠sabe?
238
â" Também peço desculpas, querido. Vamos esquecer isso tudo, certo?
Sorrio ligeiramente. Adoraria me esquecer de tudo, mesmo, mas há
coisas que não consigo esquecer, por mais que tente.
239
TRINTA E OITO
RAY
Fui contratado pelos pais de Georgia Millington após a polÃcia ter
fracassado. Um casal gentil e aturdido. Todas as vezes que me encontrei com
eles, a Sra. Millington estava usando um lenço nos cabelos, como se tivesse sido
interrompida quando fazia uma faxina. E a casa deles era imaculadamente
limpa. Pareciam simpáticos e um pouco enfadonhos; como são os pais decentes
em todos os lugares. O desaparecimento da filha foi o pior e mais inexplicável
evento de suas vidas. Eu queria realmente ajudar.
Quando encontrei Georgia, num enorme prédio invadido e bastante
deteriorado em Torquay, senti-me no topo do mundo. Disse a mim mesmo que
havia vencido. Eu tinha superado a polÃcia, e as forças da estupidez e do caos,
além de achar a mocinha ingênua que queria se entregar inteiramente ao
namorado viciado. Não que eu não tenha lhe perguntado do que estava
fugindo. Mas não devo ter perguntado da maneira certa. Na época, não me dei
conta de que estava com medo de mim. Que ela havia aprendido ao longo de
toda sua vida a sentir medo. E o que me ocorreu não foi a verdade. Eu tinha
pensado em abuso sexual, é claro. O Sr. Millington era seu padrasto, e estamos
sempre ouvindo rumores a esse respeito. Quando perguntei sobre isso a
Georgia, ela riu com desdém.
Quando, sete meses mais tarde, foi encontrada, espancada até a morte
com um martelo, o Sr. Millington foi preso. Ele nem sequer tentou negar, mas
descobriu-se que, afinal, devido a algumas discrepâncias em sua posição, havia
sido sua esposa, a dona de casa obsessiva com limpeza, que matara Georgia. A
própria mãe. Uma mulher sujeita a acessos de cólera; furiosamente possessiva
em relação ao marido. Ela não queria dividi-lo com ninguém, nem mesmo com
a filha.
Como não previ isso? Como eu poderia ter evitado?
A partir daÃ, não entendi mais nada. Nada mesmo.
240
Pergunto-me se meu casamento não começou a ruir nessa época. Isso foi
depois de eu ter conhecido Hen e ele me ensinar a beber. A bebida não era a
maneira mais lógica de esquecer a violência extraordinária infligida a Georgia,
eu sei agora, mas, até certo ponto, funcionou. Jen estava enjoada de me ouvir
falar sobre isso, e, quando eu bebia, parava. Mas, quando não estava falando
sobre isso, os pensamentos circulavam como tubarões sob a superfÃcie,
consumindo-me.
⢠⢠â¢
Quando alcanço a estrada principal na manhã seguinte, sem pensar duas
vezes, dobro à direita em vez de virar à esquerda. Posso ter feito uma promessa
para Lulu, na noite anterior, de visitar sua famÃlia e lhes contar o que foi
descoberto, mas, antes, fiz uma promessa a Rose. Quero que Rose saiba que,
mesmo que ninguém tenha lhe dado ouvidos enquanto estava viva, estou
fazendo o máximo para ouvi-la agora. Eu me surpreendo murmurando em voz
alta enquanto dirijo â" desculpando-me com ela. Não posso mudar o passado
â" cometi um engano terrÃvel com Georgia, e deveria ter feito alguma coisa â"
eu estava lá. Não posso salvar Rose, é claro, e nunca poderia. O que está feito,
está feito. O mÃnimo que posso fazer é descobrir o que aconteceu.
Quando estaciono perto do portão, de inÃcio, não entendo o que estou
vendo; está muito diferente. Então, me dou conta de que, durante a noite, o rio
a tomou.
Black Patch expandiu-se com a inundação. A terra remexida está coberta
por um lençol de águas turvas. As árvores, as hastes de metal para as
fundações, as varas plantadas pela polÃcia para marcar o terreno de suas
operações, tudo está submerso. Todos os demais indÃcios do canteiro de obra
sumiram, exceto por uma escavadeira, que não saiu a tempo â" sozinha e
encalhada, as mandÃbulas amarelas abertas para o céu. A tenda verde ainda está
ali também, parecendo um chapéu no meio de uma poça d"água.
Saio do carro, calço minhas galochas e caminho até o único policial de
plantão. Voltou a chover, uma garoa regular, e ele está tremendo de frio â"
apesar de estarmos no final de julho â", protegido por uma capa de chuva que
parece ter saÃdo de um seriado de detetives da era vitoriana. Seu nome é Derek.
Não fuma, mas, assim mesmo, fica contente de ter alguém com quem conversar,
ainda que seja um detetive particular. Conto-lhe algumas histórias e sugiro que
posso dispor de informações. Ele começa a rir.
â" Não posso lhe dizer nada, camarada. Nada mesmo. Porque não sei de
nada!
241
Seu sotaque é suave como o dos habitantes de Fenland.
Mostro-lhe as fotos de Rose, e lhe falo sobre ela. Ele para de rir.
â" Na verdade, eles disseram que podia ser uma menina ou uma moça,
por conta do tamanho dos ossos. Mas não tinham certeza, entende. Agora
precisam esperar até a água baixar para encontrar o restante. Mas que isso fique
entre nós. Não há prova alguma. Pode ter vindo parar aqui há cinco anos; ou
pode ter vindo para cá há 25. Eles simplesmente não sabem.
Não me surpreende que, com alguns pedacinhos de ossos do braço e da
costela, e alguns da vértebra, eles não tenham a menor noção da causa da
morte. São apenas fragmentos. A escavadeira moveu-se exatamente sobre a
sepultura.
â" Quando você acha que as águas vão baixar?
Ele encolhe os ombros, fazendo um som com os lábios; desdenhando
daqueles que não sabem para onde as águas vão, que é para onde elas sempre
foram.
â" Loucura, não é? Construir aqui. É procurar encrenca.
â" Você não moraria aqui, Derek? Numa dessas belas casas que vão
construir? Ele cai na gargalhada outra vez.
â" Você está brincando! Além do mais, não tenho recursos para isso.
Teria que economizar durante 150 anos para poder comprar uma delas. Ou ser
promovido a superintendente. E, para isso acontecer, é preciso esperar que
todos eles morram.
Então, antes de eu ir embora, ele se aproxima de mim, tornando-se
loquaz por causa do frio e do tédio, e diz:
â" Não gosto de ficar aqui sozinho. Ninguém por aqui gosta. Já foi uma
vala comum, sabe? Centenas de anos atrás, durante a Peste Negra. As pessoas
morriam muito rápido para serem enterradas no cemitério perto da igreja e, de
qualquer jeito, não havia sobrado gente suficiente para enterrar os mortos.
Apenas traziam até aqui em carroças e os despejavam na vala. Depois, tacavam
fogo. Só Deus sabe quantos corpos estão enterrados sob aquele que
encontraram. â" Ele baixa a voz, com uma expressão extremamente grave. â"
Os mortos voltam, sabe? Voltam de verdade. Já viu um fantasma?
Não acho que ele esteja brincando. Um arrepio percorre minha espinha,
contra minha vontade.
242
â" Não, nunca.
â" Pois eu, sim. Meu avô voltou depois de ter morrido. Eu o vi. Estou
vendo que você não acredita em mim, mas sei que o vi; eu o vi tão claramente
quanto vejo você agora, na minha frente.
â" Ah. â" Não sei mais o que dizer.
â" É por isso que não gosto de ficar aqui sozinho. Todos eles, lá embaixo.
Você gostaria de morar numa casa em cima disso tudo?
⢠⢠â¢
Quando dou a partida no meu carro, o sol aparece, hesitante. O rio em
Black Patch deve ter subido mais de um metro. Quanto tempo levará para
baixar? E, depois, quanto tempo ainda antes de a lama endurecer o bastante
para os trabalhos serem retomados? Acho que não consigo esperar tanto tempo.
Não sei o que fazer, então sigo dirigindo, passo do desvio e vou cumprir
minha segunda promessa. A estrada agora me é familiar. E, como se me
abençoassem, os raios de sol estendem longos dedos através das nuvens. O
vapor sobe dos prados encharcados e reluzentes; o bosque tem um verde
profundo, misterioso. Toda essa chuva reteve o atrito do verão; estamos no final
de julho, mas tudo parece fresco e recente.
Estou tentando não pensar em ontem à noite. Não acredito que eu disse
aquelas coisas para Lulu. E, ainda assim, de certa forma, estou contente de ter
feito isso. Não tenho certeza do que sinto por ela. Não se pode chamar de amor.
Não se pode amar alguém que mal se conhece. Mas esta ternura violenta
merece outro nome que não seja âœpaixãoâ. Não sei se ela voltará a falar comigo
um dia, mas minha confissão me deixou aliviado. Não se pode retirar o que foi
dito. O júri não pode ignorar. Você tira seu segredo da escuridão e o expõe Ã
luz. Coloca-o no chão, onde qualquer um pode pisar.
Esperei que ela pisasse. Depois de acompanhá-la até o carro, eu disse
adeus. Não perguntei se poderÃamos nos ver novamente. Ela disse adeus, sem
olhar para mim. Não fugiu de mim. Poderia â" deveria, talvez â", mas ela não
fugiu.
⢠⢠â¢
Quando saio da estrada algumas horas depois, o acampamento está
banhado por raios raros de sol. Parece deserto, os trailers silenciosos e fechados.
Bato na porta do trailer de Ivo. Sem resposta. Está trancado. O silêncio é
243
absoluto. Todos os carros estão ausentes. Em seguida, bato na porta de Tene,
perguntando-me o que farei depois, quando escuto um berro vindo do interior.
â" Quem é?
â" É Ray. Ray Lovell.
â" Entre! Entre! Está aberta.
à primeira vista, o trailer parece vazio. Depois, vejo algo se movendo â"
a mão de Tene â" erguendo-se como uma onda do chão, ao lado de sua cadeira.
â" Estou bem. Está tudo bem. Caà e não consigo me levantar. Só isso.
â" Não se mexa. O que aconteceu? â" Eu me ajoelho ao seu lado.
â" Eu estava tentando voltar para minha cadeira eâ¦
â" Não tente se levantar. Está tudo bemâ¦
Ele está puxando a cintura de sua calça. Não posso me impedir de ver
que a braguilha está aberta. Provavelmente, estava usando o banheiro quando
caiu, mas, não querendo ser encontrado daquele jeito, deu um jeito de se
arrastar até ali, antes de perder as forças. Procuro em minhas lembranças
fragmentos do treinamento de primeiros socorros que Eddie Arthur insistiu que
eu fizesse, como detetive estagiário.
â" Bateu com a cabeça, Sr. Janko?
â" Não, basta me ajudar a levantar. Vou ficar bem.
Examino seu rosto, buscando sinais de algum derrame, mas, pelo que
vejo, ele parece normal.
â" Talvez seja melhor chamar uma ambulânciaâ¦
â" Não, não, não. Foi só uma queda. Só me ajude a levantar.
â" Sabe que dia é hoje?
â" Não me importa!
Enfio meus braços sob seus ombros, cruzo as mãos e ergo seu corpo.
Temo fazer algum movimento errado. Embora eu ache que nada poderia ser
pior do que a paraplegia â" digo a mim mesmo. Apesar de seu peso, fico
impressionado com a protuberância de seus ossos; como parecem pequenos
dentro daquele saco de pele. Receio que, se apertar demais, algo se quebre. Em
seguida, há uma constrangedora pantomima na qual, assim que o ergo, tenho
244
que levantá-lo no ar, a fim de que ele possa puxar sua calça para cima e abotoá-
la. Por fim, ele recupera a dignidade, sentado na cadeira de rodas. Seu rosto tem
uma cor doentia, muito mais pálida do que habitualmente.
â" Quanto tempo ficou caÃdo no chão?
Minha voz soa áspera, do mesmo modo que eu a usava com meu pai
quando ele não estava tomando cuidado consigo mesmo.
â" Não muito.
â" Quanto tempo, Sr. Janko?
â" Eles todos saÃram⦠Não havia ninguém por pertoâ¦
â" Quando isso aconteceu?
â" Ora, não sei. Não faz muito tempo.
â" Tudo bem. Vou preparar um chá para você.
â" Esta é uma boa ideia. Uma xÃcara de chá, eu aceito.
Na pequenina cozinha no canto do trailer, ponho a chaleira no fogo e
abro e fecho portas, procurando xÃcaras e pratos. Encontro pacotes de biscoitos
e um armário inteiro entupido de sacos de batatas fritas. Acho também
saquinhos de chá e leite. Há também barras de chocolate. Meu pai era
igualzinho â" viciado em sal, gordura e qualquer coisa prática e ruim para a
saúde.
Quando trago os biscoitos e as xÃcaras de chá, Tene está com uma
aparência um pouco melhor. Ele coloca várias colheres de açúcar no chá â"
perco a conta â" e o sopra.
â" Viver num trailer não é fácil â" digo.
â" Não há vida melhor.
â" Mas morar numa casa facilitaria bem as coisas, não acha? Um bangalô.
Teria mais espaço⦠e nenhum degrau. Ficaria mais fácil para entrar e sair.
Tene olha para mim, com as sobrancelhas franzidas.
â" Ray. Olha para mim, rapaz. Estou com 60 anos. Vivi na estrada toda a
minha vida. Nasci num vardo puxado a cavalo. Quando eu era criança, nossa
égua, Bryn, era minha melhor amiga. Só compramos um trailer quando
completei 30 anos. É claro que não podÃamos ficar parados no tempo. Era isso
245
que se fazia naqueles dias, senão riam da gente. Mantivemos Bryn conosco até
ela morrer. Foi uma amiga de verdade.
Faço alguns cálculos mentais. Evidentemente, ainda havia carroças
puxadas a cavalo nas estradas durante os anos 1940 e 1950 â" mesmo mais
tarde. Carroças pintadas e barracas improvisadas eram a norma. Meu pai viu
isso quando era jovem.
â" Você consegue imaginar Tene Janko dentro de uma casa? Um caixote
de tijolo numa fileira de caixotes de tijolo? Seria a mesma coisa que me colocar
no caixão. Seria minha morte. Eles tentaram fazer com que eu desistisse quando
sofri o acidente; ficavam dizendo você não pode mais viver num trailer⦠não é
possÃvel. Não pode! Pois bem. Provei que estavam todos errados, não foi?
â" Provou, sim.
â" Não dá para mudar as pessoas. Foi assim que nasci e assim será
quando eu morrer. Os gorjios não entendem isso. Eu disse a eles: âœVocês me
matariam como se estivessem enfiando uma faca no meu coração.â Eu podia
muito bem ter morrido no acidente. Está em meu sangue. Todos nós. Até
Christo. Está em nosso sangue!
Há orgulho em sua voz.
â" âœAssimilaçãoâ, eles chamam. Na verdade, é uma aniquilação.
Ele morde um biscoito ferozmente. Há um brilho febril em seus olhos.
Pelo menos, a raiva deu-lhe um pouco mais de cor ao rosto.
â" Como foi que aconteceu, então? Foi numa batida com o carro, não é?
â" Ele abaixa a cabeça e depois toma um longo gole de chá. â" Isso aconteceu
depois de Rose ir embora? â" Silêncio. O silêncio de uma nuvem de tempestade.
â" Ou foi antes? Você disse que foi há uns seis anos⦠Eu fiquei imaginandoâ¦
â" Imaginando o quê?
â" Sabe⦠deve ter sido um perÃodo muito difÃcil, com Christo e tudo
mais.
Ele produz um som que escapa a minha capacidade de interpretação;
depois, fica calado. Tomo mais chá, mastigo um biscoito envelhecido e me
pergunto se ele percebe que o estou interrogando.
246
â" Nessa época, já fazia um tempo que ela havia ido embora â" diz ele.
Esta é a frase que Lulu disse: já fazia um tempo. Mas não podia fazer tanto
tempo assim, com Christo ainda tão pequeno. Ele prossegue:
â" Não me lembro da batida. Só depois. Quando me disseram o que eu
podia e não podia fazer. E as dores eram terrÃveis. Insuportáveis.
Ele me olha de forma acusadora.
â" Imagino que tenham sido mesmo. Mas você mostrou para eles, não
foi? Que é capaz de viver do jeito que quiser.
â" Mostrei mesmo.
â" Foi uma sorte ter a famÃlia ao seu lado.
â" É para isso que servem as famÃlias, não é?
â" Ainda assim⦠há famÃlias que são mais unidas do que outras.
â" Estou vendo que você está pensando em minha irmã Luella. Bem,
apesar de tudo o que possa dizer, ela ainda é uma Janko.
Ouço o motor de um carro estacionando e sendo desligado lá fora.
Tene vira o pescoço para ver pela janela.
â" Veja só. É o Ivo. E ela deixou que ele ficasse em sua casa, é claro,
enquanto o menino estiver no hospital.
Quase cuspo meu chá.
â" Ele está morando com Lulu?
â" Está, é claro. É ela quem mora mais perto. É nessas horas que
precisamos unir a famÃlia, não importa como.
Dou outra mordida no biscoito, a fim de me dar um tempo para pensar.
Por que ela não falou nada sobre Ivo estar em sua casa? Merda. Merda! Eu
nunca teria contado nada sobre a descoberta em Black Patch se soubesseâ¦
Porra. Mas não há razão para que tenha contado a ele. Pode não ter encontrado
com ele desde entãoâ¦
Ouvem-se passos lá fora e Ivo bate ligeiramente à porta de Tene, abrindo
sem esperar uma resposta. Sua silhueta está parcialmente recortada diante da
porta, e ele traz sacos de compra nas mãos.
â" Sr. Lovell⦠Pai⦠Tudo bem? Eu trouxe algumas coisas.
247
â" Obrigado, meu filho. Pode deixar lá na cozinha.
Ivo passa por mim e vai até a cozinha, onde esvazia os sacos sobre a
bancada. Mais sacos de batatas fritas, ao que parece. Embalagens de refeições
instantâneas.
â" Por que não fica mais um pouco e tomamos outro chá?
â" Outra hora, talvez. â" Eu me levanto. â" Não quero incomodar. Na
verdade, eu devo ir agora⦠â" Olho para Tene e pergunto: â" Tem certeza de
que está bem agora? â" E virando-me para Ivo: â" Seu pai teve um pequeno
acidente. Ele caiu ao voltar para a cadeira. Não havia ninguém por perto.
Felizmente, passei por aqui; todo mundo tinha saÃdoâ¦
â" Você o quê? Caiu? Como foi que aconteceu?
Ele parece irritado.
â" Não é nada, meu filho. Você sabe⦠isso acontece à s vezes. Estou bem.
â" Tene agita uma das mãos em desdém. â" Sabe, Ray está fazendo tempestade
em copo d"água. Mas foi muito atencioso. Muito atencioso. Ainda bem que
passou por aqui. De verdade.
Ivo vira-se para mim, os olhos mais firmes agora, como se estivesse me
vendo pela primeira vez. Ele se afasta para me deixar passar pela porta, mas
fala antes que eu a alcance:
â" Por favor, não vá embora agora. Fique e coma alguma coisa comigo.
Eu queria agradecer por tudo o que tem feito por Christo⦠E me desculpar
por⦠você sabe. Por favor.
Ele sorri, se é que podemos chamar aquilo de sorriso. Acho que
podemos.
â" Realmente, eu não quero incomodar. Não há necessidade deâ¦
â" Incômodo nenhum. Por favor, fique.
Ele tem uma expressão no rosto que nunca vi antes. Quase⦠afetuosa.
Olho para ele e para Tene.
Talvez esta seja a oportunidade perfeita. Talvez os obstáculos tenham
caÃdo, enfim. Talvez seja o bom momento de eu contar as novidades.
â" Olha só⦠e se eu desse um pulo até a loja de bebidas e comprasse
algumas cervejas? O que acham?
248
TRINTA E NOVE
JJ
Hoje de manhã, retiraram a sonda do meu braço, portanto estou livre
para sair da cama. O braço ainda dói, mas não está tão quente. E me sinto quase
normal. Quando Emma, a jovem e bela enfermeira, trocou o curativo, ela me
felicitou pela rápida recuperação.
Então, vovó chegou trazendo um monte de comida, convencida de que
eu devia estar passando fome. Ela encheu o armário ao lado da minha cama de
pacotes de fritas e croquetes de linguiça, âœpara mais tardeâ. Não sinto muita
fome atualmente, mas não lhe disse isso. E trouxe também um pijama listrado,
um roupão e um par de chinelos de couro â" para homens. São grandes demais
(para que meus pés possam crescer dentro deles), mas, ainda assim, não são
nada mal. O roupão é comprido, xadrez, um tecido meio aveludado, com um
cinto que parece uma corda com borlas nas pontas. Quente demais para ser
usado neste tempo, mas gosto dele; me faz sentir como Sherlock Holmes. Pensei
que ela fosse ficar furiosa comigo, mas não, e isso me comoveu.
Estou andando por um dos corredores no andar de cima, arrastando
meus chinelos grandes demais e espiando pelas brechas das portas quando, de
repente, o vejo. Não diria que é a última coisa que esperava ver por aqui, mas
deve estar lá no final da lista: o detetive particular, Sr. Lovell, também está
internado neste hospital! Dou uma espiada em um dos quartos pequenos nos
quais só existem duas camas e lá está ele, com minha amiga Emma inclinada
sobre ele. Paro e olho, para ter certeza.
â" Sr. Lovell! Surpreso, eu quase grito. É como encontrar um velho
amigo â" fico satisfeito. Ele está deitado na cama, mas se vira em minha direção
e olha. Sua expressão parece estranha, um tanto ausente e flácida. Não sei se ele
se lembra de mim.
â" Sou eu, JJ!
â" Oi, JJ â" diz Emma. â" Vocês dois se conhecem?
Confirmo, repentinamente inseguro sobre o que falar a respeito de nos
conhecermos. Emma põe de lado o que quer que estivesse fazendo e vem até
mim, dizendo para ele:
249
â" Vou falar aqui com JJ e volto logo.
Já no corredor, ela põe a mão sobre meu ombro e fala:
â" JJ, acho que seu amigo, o Sr. Lovell, ainda não está em forma. Ele
ainda está⦠confuso. Pode ser que não reconheça você.
â" Ah! O que houve com ele? Ela faz uma pausa e eu acho que ela não
vai me contar o que aconteceu.
â" Ele sofreu um tipo rarÃssimo de intoxicação alimentar.
Tento olhar o quarto através de Emma. Ela sorri, mas bloqueia a porta
com o corpo.
â" Ah! Mas ele está melhorando?
â" Está, sim. Temos certeza de que vai se recuperar completamente. Mas,
por ora, seu estado ainda é frágil, então⦠por que você não volta amanhã?
â" Ele vai ficar bom, não vai?
â" Claro que vai. Mas é preciso um tempo para tudo voltar ao normal.
â" Entendo.
Na verdade, não entendo nada, mas, às vezes, é preciso fingir que a
gente entende, só para deixar as pessoas à vontade. Assim como, às vezes
(muitas vezes, na minha experiência), precisamos fingir que não entendemos
algo que alguém disse ou o que está acontecendo. Caso contrário, as coisas
podem ficar complicadas.
â" Que tipo de intoxicação alimentar causa isso?
Já ouvi falar de gente que ficou doente depois de comer um kebab
suspeito â" a pessoa começa a vomitar e tem diarreia. Mas nunca ouvi falar de
alguém que tenha comido alguma coisa e depois ficado confuso. O que
exatamente significa isso, afinal? Por que ele não me reconhece?
â" É um tipo rarÃssimo. Mas não se preocupe. Não é contagioso.
Saio arrastando os chinelos pelo corredor, me sentindo estranho, mas não
de um modo que tenha alguma coisa a ver com o fato de haver uma infecção
sanguÃnea em meu braço. É mais como se alguém andasse sobre meu túmulo.
⢠⢠â¢
250
Mamãe chega algumas horas depois, trazendo meu tio-avô. Ninguém
menciona a discussão que tivemos. Eu me pergunto se mamãe comentou com
alguém. Acho que, provavelmente, não. Mas uma coisa eu consigo descobrir, e
é uma ótima notÃcia: Ivo vai morar um tempo em Londres para ficar perto de
Christo. Como ninguém sabe quando ele vai poder voltar, isso é um alÃvio.
â" Você não imagina quem eu vi aqui â" digo a meu tio-avô. â" Você se
lembra daquele detetive particular, o Sr. Lovell? Pois ele está internado aqui.
Por um instante, meu tio-avô não olha para mim. Acho que ele não ouviu.
â" E o que aconteceu? Por que ele está internado aqui?
â" Ele sofreu algum tipo de intoxicação alimentar. Ele está muito mal, na
verdade. Disseram que isso o deixou confuso. Que tipo de intoxicação alimentar
deixa alguém confuso? Meu tio-avô olha para as mãos e suspira.
â" Não sei, garoto. Não sei mesmo.
â" Disseram que amanhã posso falar com ele.
â" Coitado do homem⦠â" diz mamãe.
â" É mesmo â" concorda meu tio-avô. â" Mas isso acontece o tempo todo.
Bill, o irmão de Jimmy, foi internado outro dia. Uma coisa horrÃvel.
â" Trouxe algumas uvas â" diz mamãe. â" E alguns biscoitos, querido,
seus preferidos.
â" Obrigado, mãe.
Ofereço a todos o saco de uvas.
â" Não, guarde para você. Não queremos que emagreça e desapareça,
não é?
Uvas são um presente especial. Ela deve tê-las comprado no saguão do
hospital, numa loja em que tudo é supercaro. Até onde me lembro, ela nunca
comprou uvas antes; só comi uvas uma ou duas vezes, na escola. Na casa de
Katie, havia um monte delas dentro de uma travessa sobre a mesa na qual
tomam o café da manhã â" ou seria na mesa onde tomam chá? Pareciam tão
perfeitas que não ousei tocá-las. Pensei que, talvez, não fossem verdadeiras.
Mamãe se dirige a meu tio-avô.
â" Ele não voltou no outro dia? O dia em que eu vim ver JJ. O que ele
queria?
251
â" Não sei â" responde ele, dando de ombros. â" Tinha algo a ver com
Christo, eu acho. Não ficou muito tempo.
â" Ele está fazendo amizade com Ivo! Isso é legal, não?
Mamãe pisca para mim, e meu tio-avô pigarreia, mas não responde.
â" Vocês estão dizendo que o Sr. Lovell foi vê-los no acampamento outra
vez?
â" Foi. É esse o trabalho dele, não é mesmo?
Ele parece constrangido, contudo. Volto a ter aquela sensação que
experimentei ao sair do quarto do Sr. Lovell, aquela coisa irritantemente fria
percorrendo minha espinha.
â" Querido, você está bem? De repente, você ficou pálidoâ¦
O fato é que existe outra palavra para chovihano. Mamãe se curva sobre
mim e afaga meus cabelos, tirando-os da testa.
â" Estão tão grandes esses cabelos. Parece até um hippie⦠Você está
cansado? Você quer dormir?
â" É. Quero.
Ela me dá um beijo na testa fazendo um som engraçado. Acho que vou
começar a chorar, então fecho os olhos. Queria apenas aproveitar esse
momento. Gostaria de ser um bebê novamente; apenas um garotinho pequeno
demais para ver certas coisas e pequeno demais para se preocupar com
qualquer coisa. Mas não sou, e nunca mais serei.
Sei coisas demais, e tenho certeza de que isso só vai ficar pior.
O outro nome para chovihano é drabengro, que significa âœhomem do
venenoâ.
252
QUARENTA
RAY
Saà para comprar cerveja e acabei tendo que rodar de carro até encontrar
um pub que vendesse bebida para viagem. Portanto, levei mais de meia hora
para voltar ao acampamento e encontrar Ivo cozinhando com um cigarro em
uma das mãos. Imagino que, depois que Rose foi embora, ele tenha passado a
cuidar da própria comida. Mas, ainda assim, isso me espanta â" um homem
cigano na cozinha é algo raro de se ver. Há pacotes de batatas fritas sobre a
mesa e ele faz sinal para que eu me sirva.
â" Amanhã volto para ver Christo â" diz ele.
â" Isso é ótimo⦠Você está morando com sua tia?
â" Pois é. Mais prático.
â" Claro. Você costuma vê-la com frequência?
â" Não. Não a encontrava havia anos.
Ela pode não ter contado nada, concluo.
â" Christo é um menino adorável â" digo.
Ivo sorri para as panelas.
â" É⦠Ele é o máximo.
O sorriso some.
â" Você deve sentir falta dele.
â" Sinto mesmo.
Ivo raspa alguma coisa numa tigela e derrama dentro da panela. Não
consigo ver o que é. Depois, coloca um bocado de sal e mexe o conteúdo, uma
espécie de ensopado. Ele se apoia na bancada da cozinha, de olho na panela,
falando de lado, fumando um cigarro atrás do outro. O ensopado não parece
necessitar de muita atenção, mas ele não sai de perto. Precisa de alguma coisa
253
que o ocupe e, desse jeito, não precisa olhar para mim⦠ou ser olhado por mim.
Ele não precisa falar.
â" Então, você nunca pensou em dar o menino para outra famÃlia criar?
A sua tia, por exemplo?
Ele me olha rapidamente com uma expressão surpresa, depois balança a
cabeça. Pergunto isso porque os homens ciganos, em geral, não criam sozinhos
seus filhos; não é raro um viúvo entregar o filho para uma mulher da famÃlia
criá-lo.
â" Nunca pensei nisso, nunca â" diz, calmamente. â" Christo é tudo para
mim. E eu entendo meu filho, sabe, sei como é isso.
â" É claro⦠Você deve saber melhor do que ninguém.
Acho fascinante sua sobrevivência. É realmente extraordinário se a gente
parar para pensar.
â" Posso perguntar⦠se era muito doloroso?
â" Ãs vezes⦠â" Ele suspira. â" Mas não o tempo todo.
â" Você era exatamente como ele?
â" Meu estado não era tão ruim.
â" Mas que idade você tinha quando começou a melhorar?
â" Quinze⦠16. Bem mais velho do que Christo.
Bebo minha cerveja. Ivo lava algumas batatas dentro de uma tigela de
metal, depois as descasca, curvado sobre a pia.
â" Seu pai disse que você tem tios e irmãos que morreram dessa doença.
Você deve ter tido uma sorte incrÃvel.
â" É.
â" Um fenômeno. Os médicos ficariam interessados em saber como você
melhorou.
Ivo joga as batatas de volta na tigela, respingando água em si mesmo.
Depois, solta um grunhido.
â" Alguém mais se recuperou, como você?
254
Um momento de silêncio.
â" Acho que um dos meus tios, tio do papai, melhorou. Não o conheci.
Faz anos.
â" E essa doença só afeta os homens, não é?
Outra pausa.
â" Não tenho certeza. Acho que sim.
Ele fica murmurando, virado para a panela, relutando em falar sobre o
assunto.
â" Bem, sei que Gavin está muito entusiasmado para descobrir isso.
Ivo corta as batatas em pedaços e os despeja na água fervente. Depois,
vira-se pela primeira vez em minha direção.
â" Estou feliz que tenha conseguido fazer com que ele examinasse
Christo. Todos nós estamos. E somos muito gratos.
â" Tenho certeza de que, assim que descobrirem do que se trata, eles
serão capazes de ajudar.
Ele esboça um sorriso.
â" Preciso apanhar uma coisa no trailer de meu pai, ok?
â" Claro.
Deixo escapar um longo suspiro quando fico sozinho. É uma dificuldade
enorme fazer com que ele fale. Perguntas sobre a doença são, obviamente, bem
penosas para ele, e a impressão predominante que tenho é de que ele é muito
tÃmido. Abro um pacote de fritas e uma segunda cerveja â" Ivo parece não
gostar de beber â" e tento pensar em como abordar o caso de Rose.
Ivo volta após alguns minutos e retorna para seu poleiro na cozinha.
Bebericamos nossas cervejas em silêncio durante alguns momentos.
â" Está quase pronto â" diz ele.
â" Vou dar um pulo lá fora.
Está escurecendo no acampamento, mas há uma luminosidade suave e
dourada no céu. Tudo está quieto e úmido. Sob as árvores, o silêncio se impõe;
os pássaros estão mudos, não se ouve barulho vindo dos outros trailers. Depois
de alguns passos, acho um banheiro improvisado entre as árvores, protegido
255
por um encerado. É mais do que eu esperava. E Ivo deixou uma bacia com água
do lado de fora do trailer para lavar as mãos â" ele me mostrou quando saÃ.
Meu avô fazia a mesma coisa. Molho um pouco as mãos com a água gelada,
esperando que seja o suficiente.
Ausentei-me por uns quatro minutos.
Foi nesse momento que aconteceu?
Quando entro novamente, Ivo já está sentado à mesinha. Ele nos serve
duas doses de um rum escuro e dois pratos de comida. Tomo meu lugar. Ele
ergue o copo num brinde.
â" Bom⦠à saúde.
â" Com certeza. à saúde.
Brindamos e, depois, eu bebo o rum. Lágrimas surgem em meus olhos â"
forte teor alcoólico; algo rústico e poderoso. Ivo bebe o seu, franzindo
rapidamente os olhos ao engolir.
Comemos.
â" Está gostoso â" digo. E, realmente, não está nada mal.
Ivo apagou a luz da cozinha e estamos sentados na penumbra. Imagino
que tenham que economizar o gerador para usá-lo quando for de fato
necessário. Ele come como se estivesse morrendo de fome, cabisbaixo.
Mergulha uma fatia de pão no ensopado, dobra-o e o enfia dentro da boca. Ele
está quase terminando de comer quando volta a falar.
â" Eu tinha uma irmã, sabia? Christina. Ela deu a vida por mim.
Olho fixamente para ele â" que é, provavelmente, o que ele pretendia.
â" Pensei que ela havia morrido num acidente de carroâ¦
Ivo dá de ombros.
â" Se não fosse isso, seria outra coisa.
Ele fala de maneira casual, como se estivéssemos falando do tempo.
â" Não entendo.
Ivo mastiga um pedaço de cartilagem e o tira da boca, examinando-o.
256
â" Papai queria um milagre. Para mim. Mas é preciso pagar por isso se
você for cigano. É uma vida pela outra, não é? É o que a BÃblia diz.
â" Hum⦠acho que não é bem assim.
â" Mas é verdade. Foi assim que acabou acontecendo. Só um de nós
podia viver.
â" Imagino que você possa⦠enxergar as coisas desse jeito, talvezâ¦
Ivo larga a colher, apanha um cigarro e o acende sem olhar pra mim.
Desvio o olhar, irritado. Estou me sentindo mal; só agora me dou conta.
â" Papai sabia que perderia outro filho. Ele sabia disso. E⦠Ivo Janko era
o último. O único com o nome. E eu tenho que passá-lo adiante.
Acho que isso soa um pouco estranho. Mas estou me sentindo um pouco
estranho. Diferente.
â" É isso que⦠â" Estou tentando me lembrar da palavra que Lulu
usou⦠qual foi? Pri alguma coisa? Não consigo me recordar. Isso é irritante. â"
Como se chama aquilo⦠algo como karma? Pri⦠kada⦠Não⦠â" Por que
meu coração está tão acelerado? â" Prikaza?
Ele me lança um olhar direto, curioso. Quando quer, seus olhos
demonstram plena segurança.
â" Você conhece. Se uma pessoa faz alguma coisa errada, ela é punida.
Christina foi punida. Isso não é justo, concorda? Ãs vezes, penso que teria sido
melhor se ela tivesse⦠mas a famÃlia⦠está morrendo.
â" Você⦠você ainda é jovem. Pode se casar⦠novamente.
Será que é insensÃvel da minha parte dizer isso? Como se estivesse
envergonhado, meu corpo começa a esquentar muito de repente. Bebo um gole
de cerveja para tentar me refrescar. Tenho a sensação desagradável de que
algumas gotas escorrem por meu queixo. Ivo olha para o chão, portanto não vê.
Ele solta um suspiro.
â" Você pode ter outros filhos.
Ivo, então, olha para cima. Há mágoa em seus olhos. Sua boca se abre,
mas ele não fala. Minha lÃngua parece espessa, mas tento continuar.
â" Você pode⦠as chancesâ¦
257
Por que estou com tanto calor? Meu coração martela dentro do peito.
Meu rosto está ardendo â" deve estar vermelho. Passo a mão direita sobre a
testa. A cabeça parece pesada e fora de controle.
â" Ray? Ray?
Minha mão desaba ruidosamente sobre a mesa, como se eu quisesse
dizer algo importante. Olho para ela horrorizado. De repente, percebo que há
algo se aproximando rasteiramente de mim, algo que vejo apenas de esguelha.
â" Pode me dar⦠um pouco d"água?
â" Está se sentindo bem, Ray?
Ivo está inclinado, pairando sobre mim. A última coisa da qual me
lembro é seu olhar inquieto. Um olhar que é quase⦠terno.
258
QUARENTA E UM
HOSPITAL DE ST. LUKE
Hen e Madeleine vieram me visitar. Trazem uvas e flores; tudo ideia
dela. Sei que é gentil de sua parte, mas preferiria que não tivesse feito isso.
Quando ela está por perto, tenho que investir toda a minha energia para não
parecer imbecil e inferior. Deitado na cama, vestido com uma camisola
hospitalar, com a lÃngua espessa e um braço morto, não há a menor chance.
â" Como vai, Ray?
â" Er, não tão mal, na verdade.
â" É bom ver você melhor. Ficamos muito preocupados. â" Ela olha para
Hen. â" Você nos deu o maior susto.
Tenho que resistir ao impulso de me desculpar.
â" Mas nos disseram que você está bem agora. â" Hen inclina-se e sacode
meu braço bom. â" Você parece bem melhor do que no outro dia.
â" Pois é. Você foi ao acampamento?
â" Que acampamento?
â" Dos Janko. Você precisa falar com Ivo.
Hen e Madeleine trocam olhares.
â" Não se preocupe com o trabalho. Está tudo sob controle.
Ele parece quase presunçoso. Ignora tudo. Não é sua culpa. Não lhe
contei nada.
â" Há algo que preciso lhe contar⦠â" olho expressivamente para meu
sócio. â" Desculpe, Madeleine, você poderiaâ¦
â" Oh⦠â" Madeleine se levanta. â" É claro⦠Vou sair para pegar um
café.
Seu sorriso brilha quando sai do quarto. Hen suspira.
259
â" Ela veio até aqui para ver você, sabe? Não dá para ser maisâ¦
civilizado?
As palavras me surpreendem.
â" Desculpe, mas é importante.
â" Tão importante que não pode esperar 15 minutos?
Ele levanta as sobrancelhas.
â" Ivo me envenenou.
â" O quê?
â" Você falou com os médicos? Eles contaram a você? Fui envenenado
com ergot e meimendro. Como você acha que aconteceu? â" Hen olha para o
chão. â" O que você acha que eu estava fazendo num bosque no meio do nada?
â" Tudo bem. Conte o que aconteceu.
Conto-lhe o que eu me lembro. Ou melhor, conto o que é relevante. Nada
sobre ter visto Lulu, a conversa que tivemos, tampouco ter encontrado Jen.
Ele franze a sobrancelha quando lhe falo sobre a descoberta feita em
Black Patch.
â" O que você estava esperando para me contar isso?
â" Era sábado. Entende? Fim de semana. Achei que poderia contar na
segunda-feira. Mas, no domingo, fui visitar os Janko.
Hen parece desaprovar cada vez mais meu relato. Acho que eu deveria
ter lhe contado isso também. Mas ele teria tentado me impedir.
â" Então â" prossigo â", Ivo me convidou para jantar. E, agora, estou
aqui.
â" Você não falou com ele sobre os restos humanos?
Este foi o motivo que tinha me levado até lá. Mas o problema é que não
lembro se disse algo sobre isso.
â" Hum⦠Não sei. â" Então⦠por que você acha que ele envenenou
você?
â" Devo ter contado algo para ele. Para ver que tipo de reação ele teria.
260
Hen suspira.
â" Deixando de lado seu julgamento sobre isso⦠Você está presumindo
que ele já estava com as plantas venenosas⦠ou ele saiu para o bosque e colheu
enquanto você não estava por lá?
â" Ele pode ter feito isso. Eu saà para comprar cervejaâ¦
Eu me calo, pois sei que não lhe disse nada antes de ir até o pub. A
menos que minha memória, ao voltar, esteja me pregando uma peça.
â" A polÃcia disse que você estava com as plantas no seu carro. Olho
para ele bastante perplexo.
â" Havia vestÃgios de meimendro em seu carro.
â" Como pode ser? A menos que Ivo tenha colocado as plantas lá.
O olhar de Hen é severo.
â" Não sei, Ray. Talvez você tenha colocado as plantas lá.
â" Eu? Por que diabos faria isso?
Ainda não consigo entender aonde ele quer chegar.
â" Sei que as coisas andam difÃceis para você, com Jen e o divórcio⦠Ele
evita meus olhos.
Eu estico a coluna.
â" Você acha que eu queria me matar? Pelo amor de Deus, Hen!
Ele olha para mim com uma expressão magoada e relutante.
â" Você tem estado estranho ultimamente. Jen me disse que esbarrou
com você no sábado e perguntou se já havia assinado os papéis do divórcio. Ela
disse que você parecia⦠bem, âœabatidoâ foi a palavra que ela usou.
â" É? E daÃ? A situação nunca esteve tão boa quanto agora. Estamos
elucidando o caso⦠e quanto a ela, sim, eu estava achando difÃcil, mas agora
estou bem⦠Acho que encontrei outra pessoa.
Ele assente com a cabeça, mexendo em seu relógio. Sorri novamente com
aquela gentileza horrÃvel e dolorosa.
â" Está se referindo a Lulu Janko?
261
Não quero confirmar nem negar. Dou de ombros.
â" Falei com ela também â" diz ele categoricamente.
â" O quê? E aÃ?
â" Ela ligou para o escritório. Falou sobre o jantar na noite antes deâ¦
tudo isso acontecer. Tive a impressão de que você sofreu um baque.
Ele parece constrangido.
â" Hen, pelo amor de Deus, eu não fiz isso comigo. Se vamos continuar
com essa conversa, você tem que acreditar em mim. â" Ele me encara e
concorda calmamente. â" Então, se eu não fiz isso comigo, as plantas devem ter
sido misturadas a alguma coisa lá no trailer de Ivo. Seja de propósito ou, é
possÃvel, por acidente.
â" Mas você não sabe se contou a ele sobre os restos humanos em Black
Patch. Talvez, até agora, Ivo não saiba.
â" Você precisa descobrir isso. Outra coisa⦠Voltei a Black Patch no
domingo, e estava tudo submerso. Todos os trabalhos foram suspensos. Mas já
faz dias.
â" Tudo bem. Vou dar um pulo até lá.
Sinto-me tomado por uma maré de alÃvio.
â" Acho que, finalmente, estamos chegando a alguma coisa.
Hen olha para mim. Parece nervoso.
â" O que há?
Ele se mexe na cadeira, que range sob seu peso.
â" Uns dias atrás, recebi um telefonema. Uma resposta ao nosso anúncio.
â" Mas que anúncio?
â" O aviso de procura por Rose.
â" E então?
â" Um homem, que não quis revelar o nome, disse que poderia nos dar
informações sobre o paradeiro atual dela.
262
Olho para ele. Por um momento, pergunto-me se não estará inventando
tudo isso, mas sua expressão é totalmente séria.
â" Um maluco?
â" Pode ser que sim, pode ser que não. Ele não está atrás de uma
recompensa.
â" É o que ele diz. E, então, ele está esperando o quê?
â" Um encontro frente a frente.
â" Tenho alta amanhã. Podemosâ¦
â" Não, você não vai. De qualquer maneira, ele disse que queria refletir
mais um pouco. Perguntou um monte de coisa sobre quem estava procurando
Rose e por quê.
â" Ele está atrás de dinheiro.
â" De qualquer modo, tenho que esperar a ligação dele.
â" Isso está me parecendo bobagem.
Hen dá de ombros e sorri. Quando finalmente se levanta para ir buscar
Madeleine, olha para mim com um sorriso discreto.
â" É claro, Raymond. Mas você sabe qual é o seu problema?
Penso em centenas de problemas pelos quais sou responsável. Não sei de
qual problema especÃfico ele está falando. Mas o que ele me diz me deixa sem
fôlego.
â" Você é um esnobe.
â" O quê? Eu? â" Isso me faz rir. â" Meu pai era um carteiro cigano!
â" Você trata a Madeleine de modo diferente porque ela vem de um meio
diferente do seu. Ela não teve que lutar para subir na vida, então você acha que
a vida dela é moleza.
Olho para ele boquiaberto.
â" Não sei do que você está falando.
Mas eu sei. E ele sabe que eu sei.
263
â" Ela é casada comigo, lembra? E ela ficou ao meu lado quando me meti
em apuros. Ela foi forte.
Pisco várias vezes.
â" Vou tolerar sua agressividade elegante.
Ele sorri.
â" Até breve.
â" Não se esqueça de Black Patch.
â" Não me esquecerei. Mas é apenas uma pista. Nada mais. Como esse
telefonema anônimo. Podem não levar a nada.
Eu sei disso. Claro que sei. Mas, ao mesmo tempo, Ã s vezes, temos
palpites sobre certas coisas. E eles custam a passar.
264
QUARENTA E DOIS
JJ
A enfermeira Emma me falou que eu poderia ir vê-lo. Bato levemente Ã
porta, pensando que, talvez, ele não tenha me reconhecido porque não se
lembra de mim â" e isso seria constrangedor. Mas estou aqui para tirar as coisas
a limpo, portanto, não importa.
Ele sorri assim que se vira para mim.
â" Oi, JJ. Pensei ter visto você por aqui antes. Depois, achei que era uma
alucinação.
â" Hum, não. Eu estive aqui. A enfermeira Emma disse que você está
melhor agora.
â" Estou, sim, obrigado. Entre.
Ele aponta para meu braço esquerdo, que permanece todo enfaixado.
â" Está voltando da guerra? O que aconteceu com você?
â" Caà em cima de uns cacos de vidro. Acabou infeccionando.
Septicemia. Está quase bom, agora.
â" Ainda bem.
â" Você está melhor?
â" Melhorando. Acho que vão me deixar sair daqui a alguns dias. Mal
posso esperar. Ficar preso aqui está me deixando louco.
â" É mesmo. Já pode sair para dar uma volta?
â" Essa me parece uma excelente ideia.
SaÃmos e caminhamos até o lago, no limite dos jardins. É o lugar mais
bonito daqui, embora isso não queira dizer grande coisa. Tenho que desacelerar
meu passo para que ele me acompanhe.
â" Engraçado que nós dois nos encontremos aqui, não é?
265
â" É mesmo uma tremenda coincidência â" responde ele. â" Mas o que
houve com você?
â" Intoxicação alimentar.
â" As pessoas, em geral, não são hospitalizadas por isso, não é?
â" Não. Mas foi uma⦠forma incomum da doença.
â" O que você comeu?
â" Isso que é estranho: eu não me lembro.
â" E há quanto tempo está aqui?
â" Já faz alguns dias.
Isso é mais difÃcil do que eu pensava.
â" Cheguei sábado à noite. Você já estava aqui?
â" Disseram que cheguei aqui na segunda-feira.
â" Segunda-feira?
Olho para ele. Ele olha para mim, um pouco surpreso com meu tom de
voz. Segunda-feira. Um dia depois de ele se encontrar com Ivo. Olho para a
água, cintilando entre as árvores. É como se eu tivesse alguma coisa engasgada
na garganta.
â" Então sua casa fica perto daqui?
â" Não. Fui visitar sua famÃlia. Bem no domingo. Jantei por lá, também.
Talvez eles tenham me dopado!
Ele dá uma risadinha para mostrar que está brincando. Tento rir
também. Não sei mais o que dizer.
Na verdade, o lago é mais um tanque do que um lago, e não aumenta de
tamanho quando nos aproximamos. Para ser sincero, tem um cheiro forte. As
margens são sólidas e retas, ao longo de um caminho cimentado. Uma espuma
verde e amarela se acumula num canto. Não se parece com o lago da França,
com água fresca e limpa. Isso me faz pensar que também não sou como o JJ que
esteve na França. Aquela pessoa parecia feliz, jovem e confiante; na verdade,
um pouco idiota. Avançamos pelo caminho até onde os barcos estão atracados.
Há uma pequena barraca na qual um homem está apoiado na parte inferior de
uma porta dividida, um cigarrinho na boca e ódio no olhar. Ao lado dele, há um
266
cartaz que diz: âœBarcos: 1 libra por 1 horaâ. Parece que ele está vigiando os
barcos, no caso de alguém querer alugá-los. Mas, hoje, não há pretendentes. São
barquinhos velhos e bonitos, feitos de pranchas de madeira cobertas de verniz
brilhante cor de mel. Eles mal se mexem sobre a água. Não parecem combinar
com este tanque de margens retas e água espumosa. Eu me pergunto de onde
vieram; deviam pertencer a um lugar mais bonito.
â" Todos têm nomes de mulher â" digo, atestando o óbvio.
â" Geralmente, todos os barcos são assim â" diz ele. â" Eu acho.
Aqui, pelo menos, isso é verdade; pintados em cada popa, com tinta
branca, estão o nome e a capacidade: AMY â" DOIS PASSAGEIROS, CHRISSIE
â" TRÊS PASSAGEIROS, VIOLET â" SEIS PASSAGEIROS, ISOBEL â"
QUATRO PASSAGEIROS.
â" São bonitos, não?
â" São, sim.
A água brilha como cetim sujo. Apresenta uma cor de café; pode ter dez
centÃmetros de profundidade, ou dez metros, não dá para saber. Encontro um
graveto perto do caminho e enfio dentro d"água. Não alcanço o fundo, mas o
graveto é bem curto. Algumas plantas aquáticas ficam agarradas nele quando o
retiro. Empurro a lateral de um dos barcos (CHRISSIE â" TRÊS PASSAGEIROS)
para fazê-lo balançar. A água fica batendo no casco.
â" Ei, você aÃ! Vai alugar um?
A voz do homem é agressiva. O Sr. Lovell se vira para ele.
â" Não.
â" Então, não mexa nos barcos!
â" Desculpe!
O Sr. Lovell ergue a mão num gesto amistoso. Eu me imagino dando um
soco no homem, e me dou conta de que seria um exagero. Em vez disso, olho
para ele com cara feia, mas jogo o graveto fora. Ele lança a ponta do cigarro em
minha direção.
â" Acho que, com ele por perto, ninguém vai querer alugar um barco.
â" Acho que não.
267
â" Mas eles são bem bonitos, não são? â" digo outra vez, me sentindo
imediatamente tolo.
â" São mesmo. Por que não damos um passeio?
Olho preocupado para ele. Não tenho dinheiro algum e apenas um
braço saudável.
â" Er⦠Acho que não éâ¦
Ergo meu braço machucado.
â" É, acho que tem razão. Numa outra oportunidade, então.
Ele ri de um modo estranho, como se percebesse que nunca haverá outra
oportunidade. Por que haveria? Por que ele iria querer rever este garoto bobo e
idiota novamente? Seguimos pelas margens do tanque.
â" Como vai Christo? Já voltou para casa?
â" Não. Meu tio foi para Londres para ficar mais perto dele. Talvez fique
por lá⦠â" Pigarreio. Estou falando muito alto. â" Acho que ele foi para lá na
segunda-feira.
â" Ah, é?
â" É. Um dia depois de vocês se encontrarem.
Ele para e me encara. Parece que, enfim, consegui atrair sua atenção.
â" E quais são as novidades sobre Christo? Já sabem qual é o problema
dele?
â" Acho que não. Aparentemente, estão fazendo um monte de exames.
Leva muito tempo para os resultados ficarem prontos.
â" Com certeza. Você sabe⦠seu tio fugiu quando estávamos com o
especialista. Simplesmente desapareceu. Só porque lhe pediram uma amostra
de sangue.
â" Ah.
A imagem daquela coisa branca manchada de vermelho surge na minha
mente. Sinto que começo a corar.
â" Você sabia que ele tinha fobia de agulha?
â" Não.
268
â" Pelo menos, ele está com o filho agora, em Londres.
â" É.
â" Onde ele está morando? Com sua tia-avó?
Olho para ele, confuso.
â" Com quem?
â" Com Lulu. Ela deve ser sua tia-avó, não? Lulu. Luella.
â" Ah⦠É, acho que sim. Não sei mesmo.
Ele olha ao redor. Há um quiosque na outra margem do lago vendendo
sorvete e chá.
â" Eu deveria ter trazido algum dinheiro. PoderÃamos tomar um sorvete.
Notei que a mão direita do Sr. Lovell está meio estranha: pendurada ao
lado do corpo. Eu lhe pergunto o que houve.
â" Quando me acharam, eu nem conseguia me mexer. Então, isso já é um
avanço.
â" Isso é horrÃvel.
â" É, não é muito divertido. Mas dizem que vai se recuperar, assim como
o restante de mim. Mas está demorando.
As coisas parecem estar ficando piores. Ele poderia ter morrido, do jeito
que fala.
â" Você sabe o que é um⦠chovihano? â" pergunto para ele.
â" Já ouvi falar. Uma espécie de curandeiro cigano, não é? Ervas
medicinais, esse tipo de coisa.
â" Isso. É que⦠Eu vi um, certa vez, fazendo⦠um exorcismo. Em
Christo. Tentando curar meu primo.
â" Quem fez isso?
â" Meu tio Ivo.
Há uma pausa. Ele continua andando, sem olhar para mim.
â" Você está dizendo que seu tio Ivo é um⦠chovihano?
269
â" Estou. Bem, pelo menos foi o que ele disse. E falou que conhecia
ervas⦠plantas venenosas e tudo mais.
Meu coração vibra quando a palavra âœvenenosasâ sai da minha boca.
Sinto as bochechas arderem.
Agora, com certeza, atraà sua atenção. Sei que está olhando para mim,
embora eu não queira olhar para ele.
â" Por que você está dizendo isso, JJ? Você acha que há alguma razão
para ele me fazer mal?
Deve haver mil razões â" relacionadas a Rose, minha mãe e mulheres
secretas. Talvez⦠até⦠â" como não pensei nisso antes? â" Rose é a mulher
secreta. O que quer dizer que não é a mamãe⦠mas não tenho certeza de que
isso faça algum sentido, entãoâ¦
â" Eu não sei.
â" Deve haver alguma coisa.
â" Acho que ele⦠você não dirá a ninguém. Nem a minha mãe nem a
ninguém? â" Olho para ele e o vejo concordar. â" Acho que ele tem uns
segredosâ¦
â" Que tipo de segredos?
â" Talvez⦠não sei. Acho que ele tem uma⦠namorada secreta.
â" É mesmo? â" Ele segue andando por um instante, como se refletisse.
â" E você sabe quem é?
Balanço a cabeça. Agora me sinto bem estúpido. Eu ia lhe contar sobre o
que achei dentro do armário no trailer, mas não consigo. Não consigo dizer as
palavras. E como posso contar que, talvez, seja minha mãe? Arrasto a ponta do
meu pé pelo caminho, remexendo o musgo.
â" Você acha que ele tinha uma namorada secreta quando estava casado
com Rose?
Ao me perguntar isso, ele não parece estar rindo da minha cara. Está
falando sério. Nunca pensei nessa possibilidade, mas, agora que penso, por que
não?
â" Não sei. Meu tio-avô é a única pessoa que pode saber.
â" Você já viu alguém assim o visitando?
270
â" N⦠não.
Penso naquela noite, olhando para dentro do meu próprio trailer. Ele e
ela. Respiro fundo. Solto o ar. Não consigo falar.
â" Você já ouviu alguém em sua famÃlia falar numa planta chamada
meimendro⦠ou ergot?
â" Não.
Minha voz sai com um som agudo e estúpido, como se eu tivesse 8 anos.
â" É claro que eles não sabem dizer com certeza como foi que aconteceu.
Pode ser que alguém tenha colhido algumas ervas e se enganado. Isso acontece.
â" Claro que acontece.
â" Ivo não estava doente na segunda-feira, estava? Foi quando ele partiu
para Londres.
â" Foi o que mamãe disse.
â" E mais ninguém em sua famÃlia ficou doente?
â" Não, estão todos bem. Todos vieram me visitar. Exceto ele.
Já estamos quase de volta ao ponto de onde partimos, próximos à barraca
de aluguel de barcos. Quero lhe perguntar no que está pensando, mas não sei
como. Tudo o que consigo concluir é que Ivo o envenenou. Ele não pode ter
cometido um engano, porque, se fosse assim, ele também estaria doente, não é
mesmo? E se Ivo envenenou o Sr. Lovell, se foi capaz de fazer isso, talvez
também tenha matado Rose. Talvez por isso ele o tenha envenenado, porque
estava com medo de ser descobertoâ¦
Nós dois falamos ao mesmo tempo.
â" O que você vai fazer?
â" Talvez seja melhor voltarmos.
Olhamos um para o outro.
â" Vou descobrir o que aconteceu. É isso que vou fazer. Pode não ser o
que parece. Tente não se preocupar com isso, JJ.
Minha mente se enche de mil perguntas, até se tornar uma tremenda
confusão. Estou aterrorizado; uma espécie de tonteira e um horrÃvel sentimento
de culpa, tudo ao mesmo tempo.
271
â" Não seiâ¦
Ele olha para mim.
â" JJ, você não me contou nada que eu não teria descoberto nos próximos
dias, de qualquer maneira. Agradeço pelo que disse. Nem sempre é fácil, eu sei.
â" Mas e o Christo? O que acontecerá com ele seâ¦?
Tenho vergonha de dizer, mas algumas lágrimas escorrem pelo meu
rosto; água quente e salgada deslizando até minha boca, antes que eu consiga
enxugá-la.
â" Ainda é cedo para você se preocupar. Vamos ver o que acontece.
Voltamos em silêncio para o hospital. Posso sentir seus olhos sobre mim
na maior parte do trajeto. Ele parece ser um homem bom, decente; acho que é
uma boa pessoa, mas, muito embora seja adulto, percebo que não sabe o que
dizer, não mais do que eu.
272
QUARENTA E TRÊS
RAY
Hen não encontrou Ivo. Nem no acampamento, onde a famÃlia afirmou
que ele se encontrava em Londres, com Christo, nem no hospital, onde os
funcionários achavam estranho que o pai do menino não tivesse ido visitá-lo
desde o inÃcio da semana. Hen foi ver Lulu, suspeitando que ela talvez estivesse
escondendo Ivo. Depois de visitá-la, saiu convencido de que não era o caso. Ele
contou à polÃcia suas suspeitas, sabendo que havia pouca chance de se
interessarem com base em tão poucas evidências. Após três dias de
investigações infrutÃferas, parece que Ivo Janko, assim como a ex-esposa antes
dele, realizou um prodigioso truque de desaparecimento.
Pergunto-me se todo o acampamento não terá desaparecido, e os Janko
sumido com ele. Pergunto-me se, sendo este o caso, eu conseguiria provar que
eles um dia estiveram ali. Mas o terreno, quando Hen me leva até lá, um dia
após eu ter saÃdo do hospital, não apresenta nenhuma mudança. Todos os
trailers estão estacionados como sempre, em seus ângulos estranhos, inclusive o
do Ivo.
â" Não prefere que eu espere você por aqui?
Hen só aceitou me conduzir até ali porque ameacei vir dirigindo sozinho,
algo que, considerando que minha mão direita ainda está ruim, foi ótimo.
â" Não. Volte daqui a uma hora, mais ou menos.
Alguns dias atrás, Tene disse a Hen que Ivo estava em Londres.
Aparentemente, ele demonstrou inocência e gentileza. Depois disso, sua
confiança acabou.
â" Sr. Janko.
â" Oi, Sr. Lovell. Como vai?
â" Estou ciente de que você sabe que passei um perÃodo no hospital.
â" Lamentei saber disso, Sr. Lovell. Espero que esteja plenamente
recuperado.
273
â" Bem, quase. Foi uma espécie cruel de intoxicação alimentar. Ao que
parece, aconteceu quando eu estava aqui, no domingo passado. Eu queria saber
se alguém mais ficou doente. Em particular⦠se Ivo está bem.
â" Ele está em Londres. Já faz algum tempo que não o vemos. Acho que
ele está bem.
â" E você está bem?
â" Eu não jantei com vocês.
Ele continua sem olhar para mim; aparentemente não quer que nossos
olhares se encontrem.
â" Quando foi a última vez que viu Ivo?
â" Ele foi para Londres na⦠segunda ou terça-feira, eu acho. Para ficar
perto do filho.
Ele dá um último trago no cigarro e o amassa numa pilha de guimbas
dentro do cinzeiro. O lugar tem uma aparência suja e descuidada; os vidros das
janelas não brilham mais, a louça não parece tão limpa.
â" Mas ele não está lá. Meu sócio, Hen, verificou no hospital. Faz dias
que não o veem. Ivo não foi visitar Christo nem uma vez.
â" Isso não é possÃvel. Devem estar enganados. â" Tene fala para a mesa.
As mãos estão cruzadas sobre as pernas, mas ele continua olhando para seus
dedos entrelaçados. â" Ele nunca deixaria o filho.
â" Hen pensou a mesma coisa. Por isso ele voltou várias vezes. Na
unidade em que Christo se encontra, não se pode sair e entrar sem ser visto. Há
sempre um funcionário de plantão. Só há uma porta. Ivo teria sido visto. Mas
ele não foi até lá.
â" Então, alguma coisa aconteceu. Ele vai voltar.
â" Um tanto esquisito, não? Pensei que o mundo dele girava em torno de
Christo.
Desta vez, Tene Janko olha para mim, a expressão contraÃda.
â" Conheço meu filho. Ele nunca o deixaria.
â" Mas ele o deixou, Sr. Janko. Já faz quase uma semana.
Seus olhos percorrem o teto, depois se concentram no chão.
274
â" Então, alguma coisa deve ter acontecido com ele. Talvez algo de ruim.
â" Como aconteceu com Rose?
Tene respira fundo e me encara.
â" Você está pegando minhas palavras e deturpando tudo. Estou falando
de Ivo!
â" Não deixa de ser uma coincidência, não é? Primeiro, Rose desaparece
sem deixar vestÃgios. Agora, Ivo.
â" Não! Você está enganado. Ele nunca fez mal a Rose! Um dia, você vai
entender isso.
â" Espero mesmo que sim. O problema é⦠em Black Patch, Watley⦠â"
digo isso bem lentamente. Ele fecha os olhos como se sentisse dores, ou estará
apenas piscando bem devagar? â" Em Black Patch, onde vocês costumavam
acampar, foram encontrados os ossos de uma mulher jovem. Eles foram
enterrados perto das árvores, à direita, vindo da estrada. Cerca de 1 metro de
profundidade. A idade é a mesma⦠o perÃodo é o mesmo. A equipe de perÃcia
da polÃcia está fazendo análises agora para saber o que matou essa moça.
Isso não é exatamente verdade, mas, com o tempo, há de ser.
â" Pois bem, não se trata de Rose! Sr. Lovell, tudo o que lhe contamos era
verdade⦠Nenhum de nós a machucou. Rose fugiu. E ninguém acampa em
Watley faz mais de dez anos. Ela nunca esteve lá, até onde sei, e não está lá
agora.
Há sinceridade em sua voz, e isso só me deixa mais enfurecido.
â" Fui envenenado com meimendro⦠no domingo, jantando com seu
filho! Como explica isso? Como, exatamente, você acha que isso aconteceu?
Tene sacode a cabeça; os olhos estão pesarosos.
â" Não sei, Sr. Lovell, não sei. Ele deve ter se enganado.
â" Eu podia ter morrido!
â" Escute⦠lamento muito mesmo, mas, se isso aconteceu aqui, não foi
de propósito.
Olho fixamente para ele, frustrado. Tenho dois problemas â" o primeiro é
que, quase contra minha vontade, acredito nele. Eu tinha certeza de que veria
algo em sua expressão quando mencionasse os ossos encontrados, mas, embora
275
eu esteja seguro de que alguma coisa em relação a Black Patch o incomoda,
acho que não tem algo a ver com Rose. Tendo a achar que, se Ivo agiu contra
mim â" ou contra Rose, há tantos anos â", deve ter agido sozinho. O segundo
problema é que, apesar de tudo, gosto dele. E sinto pena dele. E sei que isso
pode ofuscar o raciocÃnio.
â" Sei que está furioso â" diz ele. â" E não posso culpá-lo, mas isso não
significa que sejamos más pessoas. Não somos. Somos aqueles que são
agredidos incessantemente. Será que é por que somos ciganos? Não sei. Mas
somos amaldiçoados. O que fizemos para merecer isso? Você acha que estou
criando mitos? Já perdi tantos entes que não me importo mais com o que
possam dizer. Perdi meus tios, meus irmãos⦠meus próprios filhinhos, minha
querida esposa⦠Perdi minha única filha, minha nora⦠e agora, ao que parece,
meu último filho, meu único filho⦠foi embora. O que posso dizer? O que mais
me importa agora?
Sua voz é baixa, mas ele poderia estar berrando. Sinto-me desarmado.
Procuro meu argumento no escuro, mas ele se assemelha a uma arma perigosa
e cruel.
â" E Black Patchâ¦
â" Black Patch! As pessoas cometem enganos. â" Há um pouco de saliva
escorrendo no canto de sua boca. â" Eu cometi um! Sinto muito ter enganado
você, se é o que pensa.
â" E Ivo desaparecer quando são encontrados restos mortais de uma
moça, e eu ser envenenado? São enganos também?
â" Não estou dizendo que entendo tudo o que se passa no mundo.
Duvido que você entenda. Você sabe por que minha famÃlia é amaldiçoada por
essa desgraça?
Seus olhos brilham com lágrimas que não conseguem cair.
â" Sabe onde está seu filho?
Tene pisca os olhos outra vez, e, agora, uma lágrima rola por sua face,
caindo no bigode.
â" Não. Sinto-me um assassino.
⢠⢠â¢
276
Lá fora, viro meu rosto para o sol. Sinto-me exausto. Com uma irritante
impressão de que deixei passar algo importante. Bato na porta do trailer onde JJ
mora. Sandra vem atender, protegendo os olhos contra os raios de sol. Ela fica
parada na porta, mas sorri.
â" Olá, Sr. Lovell. É bom vê-lo em boa forma outra vez. JJ nos disse que o
viu no hospital.
â" Obrigado. De fato, nós nos vimos. Eu queria saber como vai JJ. Como
está o braço dele?
â" Ele está ótimo. Em perfeito estado. Não está aqui agora. Saiu com
amigos.
â" Que bom. Ele é um garoto brilhante, não é mesmo? Muito atencioso.
â" É, mas vive com a cabeça nas nuvens, não é?
â" Você deve ter orgulho dele.
Ela sorri, mas parece constrangida. Os elogios atraem o mau-olhado.
Examino seu rosto por partes: pálido, pele granulosa; olhos castanho-
escuros com as pálpebras ligeiramente caÃdas; um jeito de ajeitar os cabelos
soltos e louros atrás da orelha. Estou tentando me lembrar de alguma coisa
relacionada àquela noite⦠mas nada me vem à mente. E ela não demonstra o
menor sinal de embaraço ou constrangimento na minha presença.
â" Imagino que você não saiba onde posso encontrar Ivo?
â" Ele está em Londres, é tudo o que sei. â" Ela não parece estar
escondendo alguma coisa. â" Tente falar com Lulu. Acho que ele vai ficar na
casa dela novamente. Tenho o endereço dela em algum lugarâ¦
Não lhe digo que já sei onde ela mora. Ela recua um passo e me diz para
entrar. Fico na soleira da porta e olho ao redor. Seu trailer é arrumado e limpo,
agradavelmente rústico. As paredes são de carvalho escuro. As janelas,
impecáveis; as cadeiras, revestidas de um tecido verde-claro.
â" É bonito aqui â" digo, com sinceridade.
â" Obrigada⦠Achei.
Ela abre o caderno de endereços e copia o de Lulu com letras maiúsculas.
â" Pode ser que ele esteja lá.
277
Ela me entrega o pedaço de papel que parece ter sido rasgado de um dos
livros de exercÃcios de seu filho.
â" Obrigado. Pode ser também que ele esteja na casa da namorada.
Digo isso com a maior casualidade possÃvel, mas não creio que a maneira
de dizer faça alguma diferença: seus lábios claros ficam brancos; os olhos se
retraem, buracos negros sobre cinza. Os lábios se movem sem som por um
instante.
â" Ivo não tem namorada.
â" Não? Eu pensei⦠alguém falou alguma coisa sobreâ¦
â" Não, eu⦠Não. Nós ficarÃamos sabendo. Eu saberia.
Ela tenta sorrir, mas parece abalada.
â" Ok⦠Devo ter entendido mal, imagino.
Dobro o papel com o endereço de Lulu e o enfio no bolso do peito, com
cuidado para não amassar.
â" Vocês são bem Ãntimos então, você e Ivo? Acha que ele vai fazer
contato?
Ela me olha boquiaberta, antes de resolver que, provavelmente, a
intimidade a que me refiro é aquela existente entre primos.
â" Acho que sim.
Mas ela olha para baixo, melancólica, de braços cruzados, na defensiva.
â" Você é sua única prima?
Ela franze as sobrancelhas; estou forçando um pouco a barra, agora.
â" Temos primos vivendo na Irlanda⦠por quê?
Encolho meus ombros.
â" Eu também sou meio cigano. Normalmente, sempre há um bocado de
primos nas famÃlias.
Ela fixa o olhar em mim; sou uma besta. Hen tinha razão: eu deveria ter
ficado sossegado em casa, aguardando o retorno do meu juÃzo.
â" Não na nossa famÃlia, Sr. Lovell.
278
O som do carro de Hen me enche de gratidão. Saio do trailer me
desculpando e agradecendo-lhe. Ela fecha a porta com um breve aceno da
cabeça e sem dizer adeus.
279
QUARENTA E QUATRO
JJ
Não reconheço nem um pouco a mulher baixa, magra, bem-arrumada,
com o carro caindo aos pedaços, que acaba de bater a nossa porta.
â" Você deve ser o JJ â" diz ela.
â" Eu mesmo.
Ela me olha de cima a baixo.
â" O que houve com seu braço?
â" Cortei no vidro.
â" Você se parece com seu bisavô. Alguém já lhe disse isso? Eu sou Lulu,
sua tia-avó. Não deve se lembrar de mim.
É uma constatação. Mas ela sorri ao dizer isso.
â" Mais ou menosâ¦
Então essa é a titia Lulu. Faz anos que não a vejo. Desde nem sei mais
quando. Ela tem cabelos pretos e a pele branca, usa batom vermelho nos lábios;
as roupas são elegantes e justas. A aparência é a de alguém da cidade, com suas
calçadas limpas onde se pode pisar com aqueles saltos altos e brilhantes, não
aqui, na lama do campo.
â" Não precisa fingir. Não tem importância. Eu mal o conheço. Você
devia ter só uns 8 anos, na última vez em que nos vimos. Não mudei tanto
assim. Bem, talvez tenha mudado sim.
Ela dá de ombros e sorri. Quando ela sorri, é difÃcil não sorrir também.
Também é difÃcil pensar que se trata da irmã da vovó e do meu tio-avô.
Ela não parece velha como eles. Ela é a caçula, é claro, mas ainda assim.
â" Você veio ver meu tio-avô? Aquele é o trailer dele.
Aponto para o que tem uma rampa na porta.
280
Ela solta um suspiro.
â" Vim falar com todos vocês. Imagino que você não saiba onde está Ivo.
O nome ainda me causa arrepios.
â" Não. A gente pensava que ele estivesse em Londres.
â" É, precisamos conversar.
⢠⢠â¢
Ficamos sabendo, então, que o hospital não para de telefonar para ela
porque querem que ela leve Christo embora. Aparentemente, não há mais nada
que possam fazer por ele no momento, e seu estado não é tão grave que precise
continuar internado. Suponho que essas sejam boas notÃcias. É evidente que o
hospital preferiria que Ivo fosse buscá-lo, mas nem eles conseguem localizá-lo.
A má notÃcia é que, se a famÃlia não for buscá-lo, Christo será levado para um
abrigo de crianças. Assim sendo, precisamos resolver quem irá fazer o quê.
Lulu olha ao redor â" para mamãe e vovó, pelo menos, e para mim, pois
me recusei a ser excluÃdo desta vez. Vovô não está presente (foi ao pub â"
talvez, possivelmente, quem sabe) e meu tio-avô não está se sentindo muito
bem.
Parece-me perfeitamente óbvio o que devemos fazer.
â" Ele deveria vir morar com a gente, não é, mãe?
Olho para ela, esperando que concorde. Li em algum lugar que isso
funciona, se o olhar for bem firme.
â" Não sei, JJâ¦
Mamãe aparenta cansaço. De algum modo, ela parece descorada perto de
tia Lulu, como se tivesse sido lavada diversas vezes.
â" Temos que ficar com ele!
Em minha opinião, é a única coisa que faz sentido, porque vovó está
realmente muito velha, meu tio-avô não tem condições e tia Lulu não gosta de
crianças. Acho que eu não deveria dizer tudo isso em voz alta, mas é óbvio.
â" É como se ele fosse meu irmão, de qualquer maneira. E é o que ele iria
querer.
281
â" Eu sei, querido, mas⦠você não sabe o que está dizendo⦠tudo o que
isso envolve. É uma criança com deficiênciaâ¦
â" E daÃ?
â" Dá um trabalho enorme cuidar dele, e eu tenho o meu emprego, você
vai à escola. Quem ficaria com ele durante o dia? Além disso, ele precisa voltar
ao hospital uma vez por semana, eu acho.
Ela olha para Lulu.
â" É, acho que sim.
â" E⦠Não sei. Ivo vai acabar voltando. Ele pode voltar a qualquer
instante. E o que vai pensar?
Vovó diz:
â" Ele não tem direito nenhum de pensar o que quer que seja, depois de
sumir desse jeito.
Ela funga e Lulu diz:
â" Não acho que Ivo vai voltar.
Há algo de tão frio e definitivo no jeito que diz isso que todos olhamos
em sua direção. Ela dá um trago no cigarro, fazendo rugas surgirem em torno
de sua boca. Eu me pergunto se ela sabe de alguma coisa. Porque eu acho que
Ivo não vai voltar.
Mamãe balança a cabeça.
â" Não sei. Isso não parece correto. O Ivo é doido por Christoâ¦
â" Então, onde ele está?
Vovó e Lulu trocam olhares. Elas parecem concordar em relação a Ivo.
â" Mãe, eu vou ajudar! Todos nós vamos ajudar. Como sempre fizemos.
â" Não é só o trabalho. É⦠há outras coisas, não é?
â" Como o quê?
Mamãe suspira e esfrega as mãos no rosto.
282
â" O que sua mãe quer dizer â" diz tia Lulu â" é que virão fiscalizar
qualquer um que fique com Christo, já que não somos sua famÃlia imediata. E
eles⦠bem, é improvável que aprovem alguém que more num trailer.
â" Mas ele morou num trailer a vida toda!
â" É verdade, mas⦠agora ele está no radar deles, JJ. Já começaram a
fazer perguntas. E visto que⦠como diz a San, ele é deficiente, eles estão sendo
bastante⦠intrometidos.
â" Malditos gorjios. Eles não têm o direito!
Meu tio-avô ficaria orgulhoso de mim.
â" Eles não consideram um trailer um ambiente adequado â" diz mamãe.
â" O serviço social, sabe?
Vovó bate a cinza do cigarro.
â" Não há muito o que fazer. Mas você sabe que nós ajudaremos o
quanto pudermos. Dinheiro, essas coisasâ¦
Ela quer dizer ela e vovô. É neste instante que me dou conta de que não é
a primeira vez que eles conversam sobre o que fazer com Christo. Mamãe não
costuma usar expressões como âœambiente adequadoâ.
Pela primeira vez, tenho a impressão â" uma impressão forte e
assustadora â" de que as coisas vão mudar um bocado. Acho que já começaram
a mudar com Ivo indo embora, mas agora me dou conta de que as coisas não
podem continuar como estão. E, de repente, quero que continuem assim. Não
quero ter que mudar para uma escola diferente, na qual não conheço ninguém;
não quero que nós todos nos separemos. Somos os últimos Janko â" não há
mais nenhum. Se não ficarmos juntos, o que acontecerá conosco?
â" Mas por que são eles que decidem? Christo é da famÃlia. É um de nós!
â" Porque Ivo caiu fora! E Deus sabe o que mais⦠ele nos deixou na
merda, francamente.
Mamãe parece transtornada.
Olho para tia Lulu. Ela mora na cidade, deve saber como lidar com eles.
Agora, ela não está sorrindo.
â" Você se sente preparado para morar numa casa de tijolos, JJ? â"
pergunta para mim.
283
Minha cabeça começa a fazer um zumbido com um medo inominável. Eu
me concentro em pensar em Christo, sozinho no hospital.
â" Claro, se é o que temos que fazer. â" Mesmo enquanto digo isso, a
lembrança do ar abafado do hospital parece encher meus pulmões e minha
garganta, como se fosse algodão. â" Mas não entendo como eles podem dizer
onde devemos morar. Somos o que somos. E Christo é o que é. Como isso pode
depender de pessoas que não sabem nada sobre nós?
â" Simplesmente, é assim, querido â" diz mamãe em uma voz exausta.
Vovó se inclina para a frente.
â" Ivo acha que pode fazer o que bem entende. Tene o ajudou mais do
que vocês imaginam, com dinheiro e de outras maneiras. Senão, ele já teria se
metido em apuros antes. Agora, temos que remendar os cacos.
â" Christo não é um âœcacoâ â" digo.
â" Você entendeu o que ela quis dizer, JJ.
Lulu é a única pessoa que parece ainda razoavelmente calma. Ela se vira
para vovó, que está fumando seu Rothmans como um bebê sugando a
mamadeira.
â" O que você acha, Kath?
Vovó solta a fumaça pelo nariz.
â" Não vejo por que você não pode ficar com ele, Lu. Você é a única a
morar numa casa.
Tia Lulu acende um cigarro. Felizmente, mamãe não fuma, senão o ar
ficaria irrespirável. Minha tia fala sem olhar para o alto.
â" Não sei se isso seria a melhor coisa para ele, Kath. Ele não me conhece
como conhece vocês. Quer dizerâ¦
â" Mãe, temos que ficar com ele! Eu amo Christo⦠e você também. Ele
será feliz com a gente. Posso morar em qualquer lugar. Poderemos sempre abrir
as janelas, e, se estivermos na periferia da cidade, não será tão ruim⦠Você
precisa dizer sim, mãe, você não percebe?
Mamãe encolhe os ombros; ela parece mesmo cansada. De repente,
percebo que ela tem pensado nisso noite e dia. Já há algum tempo,
provavelmente.
284
Eu me vejo dando um pulo e a abraçando.
â" Christo merece uma mãe como você. Sempre mereceu.
â" Oh, meu querido. â" Mamãe apoia a cabeça no meu ombro. Sinto suas
costelas sob minhas mãos. Ela deixa escapar um soluço estremecido. Não
consigo acreditar que tenha gritado com ela. â" Nunca pensei que voltaria um
dia a morar numa casa de tijolosâ¦
â" Esta seria a melhor solução se você puder, San â" diz tia Lulu; sua voz
é calorosa e entusiasmada. â" Ajudarei como puder. A achar uma casa e tudo
mais.
Com tudo isso, mamãe parece a ponto de ceder. Elas discutem ainda um
pouco, cada vez mais certas de que Christo deve ficar conosco. Então, Lulu se
oferece para levar as duas até um pub.
â" Nós bem que merecemos.
Acho que mamãe merece. Digo que ficarei para olhar meu tio-avô.
Mamãe me lança um sorriso. Lulu me dá um beijo na bochecha e diz que tenho
crédito com ela. Só bem depois, quando olho no espelho, vejo aquela droga de
mancha vermelha do batom no meu rosto e esfrego até sair.
285
QUARENTA E CINCO
RAY
A equipe de perÃcia da polÃcia está de volta â" e, com seus uniformes de
plástico branco e galochas, parecem astronautas de brechó arrastando-se numa
desolada paisagem lunar. As águas recuaram, criando marcas estranhas no
solo: algo deixou uma trilha sinuosa que desliza até quase tocar na lateral da
tenda, antes de dar uma guinada e se afastar; detritos foram arrastados até aqui
e ficaram â" um pneu de trator, sacos plásticos, um carrinho de bebê em
frangalhos, galhos de árvores retorcidos. O terreno está cheio de montinhos
disformes; alguns se cobriram com uma crosta. E tudo ficou com uma cor
marrom-acinzentada por conta da lama espalhada.
Esta é a primeira visita de Hen a Black Patch. Não acharemos nada de
útil, mas não consigo me afastar daqui. Como disse, em minha defesa, pelo
menos saberemos se a polÃcia sabe mais do que diz saber â" e eles falam que os
trabalhos acabaram de recomeçar; e que, após a inundação, é como começar do
zero novamente. Até mesmo encontrar o local exato onde os ossos foram
achados está sendo complicado. Pelo que vejo agora, dá para acreditar.
ImpossÃvel impedir que a água da inundação cubra a sepultura improvisada.
Considine não está ali, e a mulher da perÃcia, toda enlameada, que veio
falar com a gente, não quer que ponhamos os pés lá dentro. Aparentemente,
seremos informados.
Mas, então, um pensamento lhe ocorre.
â" A pessoa desaparecida⦠ela tem um histórico médico?
â" Podemos verificar. Por quê?
â" Um dos ossos do braço⦠Parece que tem uma fratura bem antiga, um
rompimento parcial do osso, ocorrido ainda na infância. Não muito bem
tratado. Procure saber sobre acidentes que aconteceram quando criança.
â" Qual dos braços?
â" O direito. Rádio direito nesta altura. â" Ela indica com o polegar e o
indicador no próprio pulso. â" Por ora, é tudo o que posso dizer.
286
⢠⢠â¢
Quando voltamos ao escritório, há um recado de Andrea â" o homem
misterioso que diz saber de Rose voltou a telefonar. Ela lhe disse para ligar
novamente e, Ã s 16 horas, ele liga.
A essa altura, já falei com Leon. Ele me disse que não se lembra de Rose
ter quebrado o braço. Meia hora após conversarmos, ele volta a ligar.
â" Acabei de falar com a irmã dela â" diz ele, de modo rude e defensivo.
Não expliquei o motivo de minha pergunta, mas ele não é estúpido. â" Ela
disse⦠disse que Rose caiu e machucou o braço direito quando tinha uns 5
anos. Nós não a levamos para o hospital. Pensamos que era só uma distensãoâ¦
eu tinha me esquecido.
Ele se cala abruptamente.
â" Talvez tenha sido só isso⦠â" digo com cuidado, mas meu coração
está acelerado.
â" Você está perguntando porque acharam alguma coisa, não é? Vocês
acharam umâ¦
Ele não consegue pronunciar a palavra âœcorpoâ.
â" Sr. Wood, ainda não temos certeza de nada⦠Alguns⦠restos mortais
foram encontrados. Mas não sabemos ainda se a idade corresponde⦠pode ser
que não. Não há muito ainda. Mas há uma fratura no antebraço direito; uma
fratura óssea parcial, como eles chamamâ¦
â" Meu Deus⦠â" ele desaba, soluçando e chorando pela linha de
telefone.
â" Eu lamento. Mas você deve lembrar que a busca ainda não chegou ao
fim⦠Ainda não conseguiram identificar os restos mortais. Pode ser apenas
uma coincidência. Por favor, não pense no pior.
Digo as palavras que devo dizer, mas meu coração está ausente, e acho
que ele pode notar isso.
â" Oh, meu Deus â" diz novamente. â" Pelo menos⦠pelo menos a mãe
dela não está aqui para ouvir isso.
Agora, eu preferiria que tivéssemos conversado pessoalmente, mas ele
insistiu que eu lhe falasse pelo telefone. E, realmente, como volto a lhe dizer,
287
trata-se apenas de uma peça do quebra-cabeça, insuficiente para nos levar a
pensar no pior, impossÃvel ainda de se ter alguma certeza.
Hen está falando com o informante anônimo no telefone. Eu já lhe contei
sobre o telefonema de Leon, e ele está lidando com o informante usando sua
voz educada e entediante.
â" PaÃs de Gales? â" Ele revira os olhos. â" Acho que poderemos ir
amanhã⦠â" Olha para mim buscando uma confirmação, e eu concordo. Tanto
faz esperar aqui ou lá. â" Ã"timo, então. Muito bem⦠Você estaráâ¦? Ok. Nós
nos vemos, então.
Sinto um frio na barriga. Um frio de fim de caso.
â" Pode valer a pena ir até lá â" diz Hen. â" pelo tom da voz dele. É claro
que você não precisa vir se não quiser.
Eu apenas o encaro em resposta.
288
QUARENTA E SEIS
JJ
Mamãe estava bem calma quando elas voltaram do pub. Praticamente
não disse nada. Mais tarde, naquela noite, acordei e tive certeza de que ela
estava chorando, bem baixinho. Eu não sabia o que dizer ou se havia algo a ser
dito. No dia seguinte, tentei ao máximo alegrá-la um pouco, mas é quase como
se ela não me enxergasse; como se estivesse em transe. Sei que ela não odeia
Christo, portanto, tenho certeza de que não se trata disso. Enfim, vou até o
trailer da vovó.
â" Sei que sua mãe está chateada, meu amor. Isso não é justo com ela,
nada disso. Ela também gostava muito de Ivo, provavelmente mais do que
todos nós.
Tento ignorar esse detalhe.
â" Ela parece tão⦠deprimida.
â" Nós todos estamos assim. Não paramos de pensar nisso.
Há alguma coisa estranha em relação a isso, e vovó, de repente,
interrompe o que está fazendo e recomeça, como se arrependida.
â" Vovó⦠está pensando em quê?
De inÃcio, ela finge que não é nada, mas, por fim, ela me fala. Não que eu
ache que ela realmente queira falar. Porém ela diz que, no pub, Lulu lhes
contou algo terrÃvel: falou sobre a ossada encontrada pela polÃcia, que pensam
ser de Rose.
⢠⢠â¢
Não voltei ao trailer dele desde aquela noite. Não quis nem me
aproximar. A janela que quebrei foi simplesmente remendada com um pedaço
de madeira preso à porta. Estranho que ninguém tenha dito nada sobre isso.
Forçando um pouco, consigo abri-la, quebrando mais um pedaço do vidro.
O trailer está vazio há mais de uma semana. O cheiro é ruim no interior
â" está abafado e sufocante, com um leve odor de alguma coisa amarga. De
repente, me assusto â" e se houver uma armadilha neste lugar? Ervas que
289
podem matar com o cheiro⦠Existe algo assim? Deixo a porta aberta, só para
prevenir.
Para ser honesto, não há nada diferente em relação à última vez que
estive aqui. Na cozinha, tudo foi limpo e guardado. A geladeira está vazia,
restam apenas um pacote de biscoitos e um mingau instantâneo dentro do
armário. Eu me esforço para verificar no fundo dos armários, mas não acho
nada de estranho desta vez â" o saco plástico atrás dos produtos de limpeza
sumiu â", ele não o colocou lá fora, junto do nosso lixo, então, deve tê-lo levado
para o depósito de entulhos. Não encontro nada de suspeito.
Abro as gavetas e os armários. A única coisa que parece ter desaparecido
são suas roupas. Não lembro bem o que havia aqui antes, mas todas as
fotografias e bugigangas, até mesmo alguns brinquedos de Christo e seus livros
infantis, continuam no lugar. É como se ele tivesse saÃdo por alguns dias e
pudesse retornar a qualquer momento. Este pensamento me deixa arrepiado.
No geral, não encontro nada de extraordinário. Aquelas coisas de mulher
sumiram. E, apesar do cheiro estranho â" que não sinto mais, e deve ter se
dissipado; ou isso ou então acabei me acostumando â", não encontro nenhum
vestÃgio de ervas ou plantas. Nada esquisito desse tipo. Nada do que vi naquela
sessão de exorcismo, nem mesmo as velas. Nada que obviamente pertença a um
assassino.
Mas, num compartimento sob um dos bancos, encontro um galão de
plástico. Com certeza, não era usado havia meses. É um daqueles que enchi com
água benta em Lourdes, mas ainda está quase cheio, ainda tem minha etiqueta
improvisada e o desenho a lápis de Maria (ou seria Bernadette? â" não me
lembro) com a auréola e os pontos de exclamação infantis. Não estava aqui na
última vez, ou talvez eu não tenha notado. Fico com calor só de olhar para ele.
Ivo deve tê-lo guardado aqui, logo depois que voltamos, e o deixou
acumulando poeira.
Ele deve ter rido de mim.
Quando o levanto, parece haver resÃduos no fundo do galão, turvando a
água benta. Arranco a etiqueta constrangedora, a vergonha e a raiva crescendo
em mim como uma maré, como um vulcão. Então, desatarraxo a tampa e o viro
de cabeça para baixo, despejando a água sobre os bancos e almofadas, o tapete
e, então, de novo sobre os bancos, de modo a deixar tudo bem molhado. Em
poucos dias, isso vai começar a apodrecer e feder. Quando toda a água foi
despejada e não me sinto nem um pouco melhor com isso, apenas lanço o galão
com toda a força no chão. Ele sai rolando. Sinto-me como uma criança. Um
idiota. Uma criança idiota de 4 anos. Ivo me fez de palhaço. Fez a todos nós de
290
palhaços. Nem sequer sabemos o que ele aprontou â" mentiras e segredos,
certamente, e agora, ao que parece, pior ainda â" com o Sr. Lovell, Ã s
escondidas, matando Rose, ainda⦠talvez. E nós todos fomos gentis com ele e
sentimos pena dele, e nos deixamos tratar como marionetes por causa dele
quando fomos para Lourdes, fingindo acreditar naquilo.
Tenho vontade de destruir tudo com as mãos. Chuto as gavetas, sem
conseguir arranhá-las, apenas machuco meu pé. Fico rangendo os dentes, mas
isso não ajuda em nada. Jogo água benta em cima de tudo. Batizei o lugar em
vez de destruÃ-lo. Sou menos do que inútil.
Saio do trailer, batendo a porta. Agora, não me importo se me ouvirem.
Mais um pedaço de vidro despenca da janela quebrada. Foda-se. Foda-se Ivo.
Foda-se tudo.
Esfrego a mão no rosto. Como o tapete e as almofadas, ele está molhado.
291
QUARENTA E SETE
RAY
A Capela Unitarista da cidade litorânea do PaÃs de Gales, aonde
chegamos, parece uma caixa feita de tijolos. Ela fica no fim de uma rua de casas
idênticas, como as do jogo Banco Imobiliário. A única concessão que faz a seus
propósitos é uma estreita janela de vitrais na forma de uma cruz que, de longe,
sugere mais a mira de uma arma do que uma fonte de inspiração divina.
Hen e eu trocamos olhares curiosos.
Percebo que ele está pensando o mesmo que eu. O homem se recusou a
nos fornecer um número de telefone. A única coisa que sabemos a respeito dele
é o nome que nos deu â" Peter. Pedra.
Como estamos numa tarde de quarta-feira, tudo está sossegado. Mas a
porta da igreja está aberta, então entramos pelo átrio, chegando a uma nave
ampla e fria, com fileiras de bancos forrados, diante de um púlpito em madeira
clara. Sob os pés, um tapete verde de náilon estala com a estática. As janelas â"
exceto a de vitral, cruciforme â" têm grades de ferro, por alguma razão. Mas há
um homem esperando por nós. Ele está em pé à nossa frente, ao lado do
púlpito, as mãos cruzadas sobre as genitálias e de colarinho clerical.
â" Peter?
O homem sorri. É jovem: menos de 30 anos, cabelos louros, queixo
retangular, barba bem-feita e a pele corada, mas com um ar tão sereno e
autoritário que não tenho dúvida de que se trata do pastor da igreja, e que as
senhoras da congregação encontram nele tanto inspiração quanto conforto.
â" Obrigado por terem vindo de tão longe. Estamos realmente gratos.
Ele inclina a cabeça numa rápida reverência. Olho ao redor para ver de
quem mais ele está falando, contudo, não há mais ninguém ali. Talvez esteja se
referindo a Deus.
â" Lamento não ter sido mais comunicativo pelo telefone â" prossegue.
â" Por que não nos sentamos?
292
Ele fala rapidamente â" a voz é alegre e bem galesa. Faz um gesto na
direção dos bancos. Não quero sentar enquanto ele fica ali em pé, como se eu
fizesse parte de seu rebanho de ovelhas, mas ele pega uma cadeira e a coloca de
frente à fileira de bancos, sentando-se conosco.
â" Nem parece que estamos em agosto, não é mesmo? Evitamos usar o
aquecedor durante a semana, economiza dinheiro. â" Ele sorri outra vez,
pesarosamente. â" Er, antes de começarmos, poderiam mostrar suas
credenciais? â" Apresentamos nossas licenças. Ele as examina cuidadosamente,
antes de devolvê-las. â" Obrigado. Lamento se isso lhes parece desnecessárioâ¦
desconfiado, mas, bem, vocês devem querer ouvir o que tenho a dizer. Como
sabem, vi seu anúncio no jornal, pedindo informações sobre Rose Wood, ou
Rose Janko. Antes de eu lhes falar, podem me dizer quem é que quer encontrá-
la e por quê?
â" Conforme eu disse pelo telefone, receio que não possamos abordar a
privacidade de nosso cliente.
O pastor Peter franze ligeiramente as sobrancelhas.
â" Nem mesmo o nome? Afinal, vocês estão abordando nossa
privacidade. Trata-se de nossa segurança pessoal.
â" Garanto que seu nome não precisa ser mencionado. Trataremos todas
as informações de modo estritamente confidencial; nosso cliente só deseja saber
se⦠Rose está bem. O nome da pessoa não precisa ter envolvimento algum com
isso.
Ele parece confuso.
â" Não é em mim que estou pensando.
Se não é nele, em quem então?
â" Ouça, posso assegurar â" agora estou pensando em Georgia
Millington â" que ninguém será obrigado a fazer algo que não queira. No que
diz respeito a estabelecer um contato entre as partes envolvidas, isso dependerá
unicamente de vocês.
Reconhecidamente, no fundo, estou pensando: até que ponto uma ossada
necessita de discrição?
Peter recosta em sua cadeira. Ele dá a impressão de que nada pode
enervá-lo, embora haja, talvez, um tom mais vermelho em seu rosto corado.
293
â" Lamento, senhores, se não me disserem quem está procurando por
Rose Wood, não serei capaz de ajudá-los.
Olho para Hen. Ele encolhe os ombros, resignado.
â" Foi Leon Wood quem entrou em contato comigo.
Ele assente com a cabeça, como se estivesse esperando por isso.
â" Quando?
â" Já faz alguns meses.
â" E por que agora?
â" Pelo que entendi, a Sra. Wood faleceu recentemente, de modo bastante
inesperado. Acho que o Sr. Wood está ciente de que ele não vai viver para
sempre.
Peter parece inquieto.
â" Ele está doente?
â" Não sei, senhorâ¦?
â" Reverendo. Reverendo Hart. E o pai é o único que está procurando
por ela?
â" O Sr. Wood é nosso único cliente.
Ele assente outra vez e cruza as mãos, apoiando os cotovelos nas pernas.
Suas mãos, de unhas largas e pálidas, são muito limpas e rosadas, como se
tivesse acabado de passar cinco minutos esfregando-as.
â" Eu pergunto porque, como tenho certeza de que sabem, Rose teve um
casamento anterior infeliz, embora tenha sido um casamento unicamente
segundo as práticas da comunidade cigana, não aos olhos da Igreja.
Pela primeira vez, sinto surgir em mim uma impressão de urgência. Ele
parece saber uma quantidade surpreendente de coisas sobre elaâ¦
surpreendente, isto é, a menos queâ¦
â" Trata-se de um episódio de sua vida â" continua ele â" que ela prefere
esquecer para sempre. Algumas coisas são tão dolorosas que ninguém deveria
ser obrigado a revivê-las.
â" Tudo o que tenho que fazer â" digo, uma sensação de tontura
tomando conta de mim, embora esteja impressionado â", é transmitir os
294
detalhes ao Sr. Wood sobre⦠seja lá qual for seu nome. Ninguém é obrigado a
ver ninguém ou falar com alguém, a menos que seja isso o que desejam.
Não consigo me referir a ela diretamente. Por que será?
â" Você parece saber um bocado sobre Rose â" diz Hen.
â" Sei mesmo â" admite Peter, sorrindo.
Um traço de impaciência avulta-se na voz de Hen, embora isso só fique
evidente para mim, pois eu o conheço.
â" Então, você sabe onde está Rose agora?
â" Peço que os senhores me deem licença por um momento.
Em vez de responder, ele se levanta e caminha até uma porta lateral da
igreja e desaparece por ela.
Encaro Hen.
â" O que ele está armando?
Ele encolhe os ombros, como se dissesse vamos ver.
Passa um minuto, dois. Ficamos sentados em silêncio. Ocasionalmente, o
ruÃdo de um carro atravessa a rua, rompendo a monotonia. Faz mesmo muito
frio aqui dentro. Vêm a minha lembrança as esporádicas visitas à igreja quando
era criança. Na época, as igrejas também eram sempre frias. Iluminação
lúgubre, fria e bancos terrivelmente desconfortáveis. Não me impressiona que
haja cada vez menos frequentadores.
Cinco longos minutos se passam, pelo meu relógio. Então, a porta é
reaberta e Peter entra. Com ele, há uma mulher. Ele a conduz pelo cotovelo,
sério e solÃcito, como se ela fosse uma delicada criatura de ossos de porcelana.
Ela está olhando para o chão. Ok, tudo bem, ela se parece com Rose, tenho que
admitir.
â" Senhores, esta é minha esposa: Rena Hart. Mas, numa vida anterior,
ela foi Rose Wood.
A mulher fica a nossa frente, em silêncio, o olhar alheio. Calados, eu e
Hen a observamos. Os cabelos são louros claros com reflexos acinzentados e
estão penteados para cima, formando uma auréola. Sombra azul-clara nos
olhos, a cor das unhas combinando com o batom. Ela usa um vestido longo e
largo, a gola cobrindo o pescoço com um laço, estilo Lady Di. O vestido parece
295
grande demais para ela, chega quase aos tornozelos. Mas, apesar da gola
recatada, posso ver algo com muita nitidez: a marca de nascença cor de vinho
que se estende até o queixo, feito uma mão escura agarrando o pescoço.
â" Rena Hart? â" consigo dizer, enfim, incapaz de pensar em outra coisa.
Ela olha para o marido, como se ele tivesse todas as respostas. O pastor
segura a mão dela.
â" Quando nos casamos, Rena resolveu cortar completamente seus laços
com o passado. Então, decidiu se chamar Rena, que significa renascer, e, em
hebreu, significa alegria. Em nossa igreja, somos batizados e, no sentido mais
verdadeiro, renascemos à luz do Senhor, portanto este nome pareceu o mais
apropriado.
Ele sorri para ela, afagando sua mão cativa. Pigarreio e tento sorrir.
Desajeitadamente, estendo minha mão adormecida â" desajeitadamente, isto é,
até Peter Hart largar sua mão e ela poder apertar a minha rapidamente,
evitando um contato visual.
â" Estou muito contente em conhecê-la. Meu nome é Ray Lovell, e este é
meu sócio, Henri Price.
Estamos todos em pé, agora. Há uma pausa. Ninguém parece muito
inclinado a sentar-se novamente.
â" Tenho que dizer que eu não a teria reconhecido⦠Eu trouxe essas
fotografias.
Eu lhe mostro as fotos de Rose com 16 e 18 anos. A segunda,
particularmente, é comovente; a moça em seu vestido de noiva parece olhar
suplicante para fora da fotografia, pedindo para ser resgatada. Mas,
comparando os retratos e a mulher à nossa frente, é difÃcil não concluir que esta
é, pouco importa o quanto mudou, a moça que foi certa vez Rose Wood e, por
um breve perÃodo, Rose Janko.
â" Mas isso é bastante revelador, não é? â" Ela coloca os dedos na
mancha escura em seu pescoço. â" Eu costumava cobrir completamente⦠até
Peter me persuadir a não fazê-lo mais.
Ela fica ligeiramente corada e olha para ele; a visão de seu rosto parece
reconfortá-la. Ela desenvolveu um sotaque galês e uma dicção levemente
entrecortada, como o Reverendo Hart.
296
â" Isso é⦠surpreendente. Seu pai estava⦠bem, estava com medo de
que você estivesse morta.
Ela ergue o queixo; um movimento indicando teimosia, enfatizado pelo
maxilar proeminente.
â" Ah⦠Pois é, estou viva. Não que alguém tenha feito algo para me
achar durante todos esses anos. Onde ele estava quando precisei de ajuda?
â" Você lhe pediu ajuda? â" Ela não me responde. â" Eu gostaria muito
de poder lhe dizer que você está, evidentemente, muito bem.
Ela olha novamente para o esposo, e ele assente calmamente.
â" Ok, você pode fazer isso.
â" E você se importaria se ele entrasse em contato com você?
Ela olha de novo para o esposo, em busca de sua opinião.
â" Sobre isso, eu gostaria de pensar com calma.
â" Mas é claro. Posso deixar o endereço dele com você. E sua irmã, Kizzy,
ela me pareceu muito triste por ter perdido contato com você. E Margaret
também.
Rose â" acho que agora devo dizer Rena â" encolhe os ombros e contrai
os lábios.
â" E, é claro, há seu filho⦠embora eu saiba que já faz muito tempo⦠Ele
está com 6 anos agora.
A temperatura dentro da igreja parece mudar de repente. Passando de
fria para gelada. Tanto o pastor quanto Rose me encaram, os olhos arregalados
e firmes. Ambos falam ao mesmo tempo.
â" Acho que está enganadoâ¦
â" Meu o quê?
â" Seu filho. Seu e de Ivo⦠Christo.
Rose e o marido trocam olhares. O dele talvez hesitante. Ela balança a
cabeça, um sorriso de desdém no rosto.
â" Não sei com quem vocês andaram falando. Eu não tenho um filho.
Nunca tive. Eu não posso ter filhos.
297
Volto a pensar em Ivo; ele se queixando de que Rose estava deprimida,
delirante, negando tudo. Talvez tivesse razão. Mas ela não parece delirante.
Apenas muito, muito irritada.
Peter segura a mão dela novamente, e dá um passo em sua direção.
â" Minha esposa⦠infelizmente não pode ter filhos.
â" Quem lhe contou sobre essa criança? â" Rose me pergunta. â" Não foi
o papai, não é? Nem Ivo, certo?
â" Por que não Ivo?
Ela suspira exasperada. Balança a cabeça incessantemente, uma luz forte
e brilhante em seus olhos.
â" Meu Deus! â" exclama ela, enfim.
O marido parece espantado, os lábios apertados.
â" Lamento, mas nunca ouvi tamanha bobagem! Se Ivo tem um filho,
certamente não o teve comigo⦠isso nunca poderia acontecer.
Ela deixa escapar um riso breve e sem graça. Peter olha para Rose com
uma expressão suplicante; com certeza, ele acha que isso está indo longe
demais.
â" Talvez devamos parar por aqui, senhores. Vocês descobriram o que
queriam saber⦠Como podem notar, essas lembranças são angustiantesâ¦
Mas Rose olha em sua direção, não mais como uma donzela de
porcelana, e sim como se tivesse uma couraça de ferro.
â" Não quero que esses senhores acreditem nas mentiras que contam
sobre mim.
Ela se vira para nós, afastando-se dele.
â" Talvez nós devêssemos conversar em algum lugar. Outro lugar.
⢠⢠â¢
Resolvemos ir até uma confeitaria na rua principal. Enquanto Rose vai
buscar seu casaco, Peter nos sorri de um modo ligeiramente contido e
desaprovador.
â" Por favor, eu lhes peço que não a pressionem demais. Espero que
tenham notado que minha esposa é⦠uma pessoa bem frágil.
298
O tom de voz continua pretensioso, como se estivesse fazendo um
sermão, mas seus olhos suplicam. Talvez ele não consiga dar à voz um tom
diferente.
â" Ela passou por momentos difÃceis e⦠â" acrescenta ele, antes de Rose
voltar, agora vestida com um casaco verde-claro com ombreiras e carregando
uma bolsa. Frágil não é a primeira palavra que vem à cabeça. â" Bem, vou
deixar que vocês tratem desse assunto. Até mais tarde, querida.
Ele lhe dá um beijo no rosto, e Rose sorri para ele. A expressão do pastor
ainda é tristonha.
⢠⢠â¢
â" Há quanto tempo você conhece seu marido, Sra. Hart?
Estamos sentados nos fundos de uma confeitaria local. O ambiente é de
uma afabilidade ligeiramente desconcertante, com suas luminárias
fluorescentes e uma armadilha para insetos que fica zumbindo de modo
intermitente, ávida por mais uma vÃtima.
Rose â" ainda não consigo pensar nela com outro nome â" mexe o chá na
xÃcara. Ela pediu um prato de doces cobertos com glacê, que está no meio da
mesa, brilhando como um lixo radioativo.
Em vez de responder à pergunta, ela bebe o chá e olha ao redor,
sorrindo.
â" É legal aqui, não?
â" É, bem simpático.
Hen concorda em silêncio.
â" Peter? Eu o conheci quando estava tentando fugir de meu primeiro
casamento. Casar com Ivo Janko foi um erro terrÃvel, pavoroso. Você é rom, não
é, Sr. Lovell?
â" Em parte â" respondo. â" Meu pai era; minha mãe era uma gorjio.
â" Então, talvez faça uma ideia de como é isso. Foi difÃcil para mimâ¦
sabe, com uma famÃlia como a minha⦠eles não me quiseram de volta depois
do casamento. Uma desgraça, sabe? Peter me ajudou. Não sei o que teria feito
sem ele.
â" Você conhecia bem Ivo antes de se casarem?
299
â" Não, quase nada. Acho que nos encontramos duas vezes, e nunca a
sós, sabe? Mais para ver se poderÃamos suportar um ao outro.
â" Então, foi um casamento arranjado pelas famÃlias?
Ela confirma com a cabeça.
â" Papai estava entusiasmado, pois eles são uma famÃlia genuinamente
cigana. Mamãe não tinha tanta certeza, mas ele sempre fez o que quis.
Ela engole em seco, olhando para o prato. Suponho que seu marido
tenha acabado de lhe contar sobre a morte da mãe. Ela está se saindo muito bem
se considerarmos isso.
â" Foi tudo arranjado por papai e o Sr. Janko. Eu não era um bom
partido⦠com isso então⦠â" Ela faz um gesto em direção ao pescoço, um
sorriso amargo no rosto. â" As pessoas viam isso como um sinal de azar. E eleâ¦
ele era bastante bonito, sem dúvida, mas havia alguns rumores. Eles tentavam
manter segredo, mas havia uma doença na famÃlia. Não sei bem o quê. Eles não
eram muito estimados. Acho que pensavam que nenhum de nós conseguiria
encontrar nada melhor.
Ela pega a xÃcara e bebe um pouco de chá, recompondo-se novamente.
Depois, arremessa para trás os cabelos â" que mal se movem â" e, sorrindo para
mim, apanha um doce de um rosa lúgubre. A mudança brusca em sua
expressão é desconcertante. Ela empurra o prato para mim.
â" Você não vai querer um? São ótimos. Caseiros.
Isso parece improvável, mas, obediente, escolho o que está mais perto â"
uma bolha de cor amarelo-gema que me faz pensar numa pústula gigante â" e o
ponho em meu prato.
â" E o casamento foi em⦠outubro de 1978? â" Ela aquiesce com a
cabeça. â" E quanto tempo vocês ficaram juntos?
â" Poucos meses. Não muito mais do que isso⦠Nós nos casamos em
outubro, depois fomos para a estrada com o pai dele. Fomos para Lincolnshire e
Fens, eu acho, algum lugar assim.
Sua voz definha.
â" E o que aconteceu?
Ela suspira, sua cabeça está inclinada, os olhos grudados na toalha de
mesa florida.
300
â" Sei que deve ser difÃcil para você falar sobre isso, Sra. Hart. Não tenha
pressa.
Mais um longo silêncio.
â" Ele não queria saber de mim.
â" Ivo, você quer dizer?
â" Por exemplo, no dia depois do casamento, assim que ficamos a sós, ele
não suportava olhar para mim. Não disse coisa nenhuma. Eu não sabia o que
tinha feito de errado. â" Sua voz é tão baixa que precisamos nos curvar para a
frente se quisermos ouvi-la. â" TÃnhamos nosso trailer, e o Sr. Janko, o dele, mas
Ivo passava a maior parte do tempo no trailer do pai. Quando eu o via, ele se
mostrava bastante frio.
â" Frio como?
â" Frio! Você sabe. Antipático. De mau humor o tempo todo. E eu ficava
lá, sentada, me perguntando o que eu tinha feito.
â" Ele era⦠violento com você?
â" Ãs vezes, eu o escutava berrando com o pai.
â" Ele berrava com você também?
Rose olha para os farelos do doce no prato e aperta um com a ponta dos
dedos. Ela move os ombros magros de um jeito que me faz lembrar que ela tem
só 25 anos; uma mulher jovem, apesar das roupas e do penteado de meia-idade.
â" Sra. Hart?
â" Bem, ele⦠Eu não conseguia entender. Pensei que estávamos casados,
sabe? Que éramos homem e mulher, mas se eu⦠quando eu tentava⦠ele agia
como se eu fosse completamente estúpida e feia. Não queria tocar em mim. Não
me deixava tocar nele. Não se⦠despia na minha frente.
Ela fala olhando para o prato à sua frente.
â" Alguma vez ele bateu em você?
Ela percorre com o dedo o contorno de uma flor na toalha de mesa, mas
sacode vigorosamente a cabeça.
301
â" Não. Ele só⦠dizia certas coisas. Apanhando um lenço de papel, ela
enxuga as extremidades de seus olhos cuidadosamente, a fim de não borrar a
sombra azul.
â" Então, espere⦠Você está dizendo que⦠Nunca houve nenhumâ¦
Procuro a palavra adequada.
Ela sorri, olhando para a luminária fluorescente sobre nós, e as lágrimas
refletem seu brilho.
â" Como eles chamam isso? Casamento não consumado? Pois foi isso
mesmo. Portanto, se ele tem esse filho, isso aconteceu⦠com outra pessoa.
Ela diz isso com um sorriso rápido e contido.
â" Pode ter acontecido depois que você foi embora. Christo nasceu em
outubro de 1979. No dia 25, eu acho.
Ela parece refletir, calcular.
â" Fui embora no inverno⦠fevereiro, eu acho. Final de fevereiro, issoâ¦
Porra, ele devia estar saindo com alguma vadia enquanto eu ainda estava lá!
Sua voz estremece. Dou-lhe algum tempo para digerir. Parece que ela
ficou com um gosto ruim na boca.
â" Acho que eu tomaria outro chá, por favor.
â" Claroâ¦
Num segundo, Hen está em pé. É estranho â" a moça diante de mim
parece ter derramado lágrimas e, com elas, sua frágil confiança. Ela se encolhe
como um porco-espinho; sob a roupa, percebo, ela é brutalmente magra. Hen
vem sentar-se novamente e três outras xÃcaras de chá são colocadas sobre a
mesa, assim como mais alguns doces.
â" Você suspeitava que seu marido na época tivesse uma namorada?
Ela faz uma careta.
â" Bem, pensando nisso agora⦠acho que me passou pela cabeça. Mas
não uma namorada, não, se entendem o que quero dizerâ¦
Ela me olha com um ar expressivo.
302
â" Naquela época, eu não sabia de nada, não é? Achei que, talvez, ele não
gostasse de mulher, entende? â" O sorriso é breve e sem graça. â" Mas, na
verdade, acho que ele simplesmente não gostava de mim.
â" Então, depois de⦠quatro meses vivendo assim⦠o que fez com que
você finalmente fosse embora?
â" Eu teria partido antes se tivesse algum lugar para ir. Comecei, então, a
frequentar encontros religiosos, perto de Lincoln⦠era um lugar para onde eu
podia escapar, sabe, uma vez por semana pelo menos. Peter era um dos
pregadores. Um assistente. Mas⦠foi engraçado. Eu nunca teria ido lá se o Sr.
Janko não tivesse me emprestado o carro. Ele era legal, às vezes. Então, fiquei
sabendo que a igreja estava indo embora e isso me deixou triste. Era a única
coisa boa na minha vida. Não sabia o que iria fazer sem ela. E contei isso um dia
para o Sr. Janko⦠não pude me conter: comecei a chorar, chorar e ele disse que
eu deveria procurar alguém da igreja e dizer o quanto aquilo era importante
para mim. Foi estranho porque foi quase como se⦠ele estivesse me dizendo
para pedir ajuda a eles⦠para ir embora, quero dizer. Você entende? Entende o
que quero dizer? Como se ele sentisse pena de mim, de algum modo. Entãoâ¦
foi o que fiz.
Ela dá de ombros novamente.
â" Contei a Peter que estava presa a um casamento infeliz⦠e perdendo
o juÃzo. E, imediatamente, ele me propôs um trabalho com a igreja. Assim, eu
poderia seguir com eles. Mas não havia nada â" ela fica profundamente corada
â", nada ambÃguo entre nós. Nada disso. Ele é um reverendo. Só queria me
ajudar. Passei a trabalhar para a igreja. No começo, foi apenas isso.
â" Você não considerou voltar para sua famÃlia nessa época?
Ela balança a cabeça com veemência, estalando a lÃngua nos dentes.
â" Nem pensar. Depois de tudo o que gastaram no casamento⦠Quer
dizer, tenho duas irmãs, e era preciso se livrar de nós três. Papai nunca parou
de resmungar isso. Eles ficaram felicÃssimos em poder se livrar de mim.
â" Sei que não é esse o caso â" digo delicadamente, mas ela continua
balançando a cabeça negativamente.
Olho para Hen. Ele parece estar concentrado naquela coisa verde nojenta
sobre o prato. Há um terror reprimido em sua expressão.
â" Então, você e Ivo⦠não foi um casamento de verdade?
303
Ela balança a cabeça, os olhos se arregalam repentinamente. Acho quase
inconcebÃvel que ela não esteja dizendo a verdade.
â" O que pensei na época foi que ele era⦠homossexual. â" Ela baixa a
voz a ponto de a última palavra sair num vago sussurro, apenas com o
movimento dos lábios. â" Pensei que aquilo fosse mais fachada, ou coisa
parecida. Mas talvez ele estivesse saindo com alguém, uma mulher com quem
não pudesse se casar, ou algo assim⦠Eu não sei. â" Ela dá de ombros mais
uma vez. â" Se ele tem um filho, tenho pena desse pobre bastardo.
Ficamos em silêncio por um minuto.
â" Você faz alguma ideia sobre o que Ivo e o pai discutiam?
â" Não. Isso nunca acontecia na minha frente. Eu não entendia nada. Não
tinha com quem falar⦠até conhecer Peter. Foi o perÃodo mais solitário da
minha vida.
Ela diz isso casualmente. Mas me sinto pela primeira vez realmente
solidário a ela.
â" Obrigado por nos contar tudo isso, Sra. Hart. Foi muito⦠útil.
Hen reduziu o doce verde a um monte de migalhas. Bom trabalho,
penso.
â" Você conheceu a prima de Ivo, Sandra Smith?
â" Sandra⦠â" Ela franze a testa ao se concentrar. â" Acho que a conheci
no casamento. Eles se mostraram muito reservados, após o casamento. Por quê?
Era ela? â" Uma expressão zangada cruza seu rosto, mas se vai tão rapidamente
quanto chega. â" Não posso acreditar. Ele estava me traindo! Eu devia ter
percebido, não devia? Sou tão idiota!
Balanço a cabeça.
â" Não, não é. Não ter percebido faz de você uma pessoa melhor.
É o que costumo dizer aos meus clientes. Hen olha para a mesa.
Nossas xÃcaras estão vazias, assim como nossos pratos â" isto é, exceto o
meu. Rena Hart recuperou a postura e parece decepcionada.
â" Não gostou dos doces?
â" Não sou muito apreciador de doces.
304
â" O Sr. Lovell já é bastante doce por si só â" diz Hen com ar sério.
Rena olha para ele e depois solta uma risada barulhenta de menina, mas
que parece um tanto forçada.
⢠⢠â¢
Descemos com ela pela rua, de volta à igreja e ao carro. Ela diz que não
precisamos nos incomodar, que não há necessidade de nos despedirmos de seu
marido. Depois, ela some dentro do bunker de cimento. Vista de costas, ela dá a
impressão desconcertante de ser uma mulher de meia-idade.
â" Então, estamos de parabéns. â" Ao ouvir isso, olho perplexo para Hen.
â" Ora, Ray, acabamos de resolver um caso com sucesso. DevÃamos estar
celebrando.
Dou de ombros. As fotos da Rose ainda jovem estão no meu bolso.
Talvez tenhamos encontrado Rose⦠Não, encontramos Rena. Acho que Rose se
foi para sempre.
Hen mexe no rádio do carro e acaba desligando-o.
â" Você está decepcionado, não é? â" pergunta ele. â" Não pode mais
sentir pena dela.
â" Não, não é isso!
Mas é verdade. Uma falha do meu caráter â" uma entre muitas, eu acho
â" é que eu tendo a gostar mais das pessoas antes de conhecê-las.
â" Ainda não acabamos, é isso? â" pergunta ele.
Sinto um cansaço insuportável me pesar nas costas, como uma manta.
Murmuro, quase para mim mesmo:
â" Podemos acreditar nela?
â" Em relação ao casamento e à criança? Temos que verificar. Mas, pelo
que vi, sim, acredito nela.
â" Então, por que os Janko dizem para todo mundo que Rose é a mãe de
Christo?
â" Para esconder o fato de outra pessoa ser a mãe de verdade.
305
Nós dois pensamos um pouco nisso enquanto atravessamos a rua de
casas de Banco Imobiliário a caminho da estrada. Hen olha para mim
rapidamente.
â" Talvez não importe muito quem seja a mãe verdadeira de Christo.
Alguma moça da região que não quis assumir⦠pode ser algo simples assim.
â" Ainda assim, pode ser que não.
â" O importante é descobrir de quem é o cadáver em Black Patch. E,
depois, com alguma esperança, saberemos se há alguma relação com Ivo
Janko⦠ou não.
Hen cala-se, mas sei que está pensando o mesmo que eu. Precisamos
resistir à tentação de supor que as respostas a essas duas perguntas são uma só,
e a mesma. Mas meu instinto de investigador me diz que são. A mãe de Christo
encontra-se em Black Patch. Tudo se encaixa. Deixo minha cabeça se apoiar no
descanso do banco. O ruÃdo do motor me adormece. Estamos chegando perto:
tudo o que eu preciso é de um nome.
306
QUARENTA E OITO
RAY
Não que eu quisesse que ela estivesse morta. Não consigo explicar. Bem,
isso não é estritamente a verdade; não gosto de estar errado, não mais do que
ninguém. Não estou decepcionado que ela esteja viva, saudável e feliz no
casamento (devo supor) com o pastor galês bem-asseado. Que ela pinte as
unhas de rosa e tenha um riso tão pouco convincente quanto os reflexos nos
cabelos.
Leon Wood parece chocado; quase pasmo.
â" Viva? Tem certeza?
Aguardo que os soluços se acalmem, um pouco constrangido, mas
também especialmente feliz. Não é sempre que transmito boas notÃcias.
â" Desculpe, Sr. Lovell. Desculpe.
â" Não há de quê. Está tudo bem. Mas é preciso que entenda: foi um
tremendo choque para ela também. Ficar sabendo do falecimento da mãe. Ela
precisará de algum tempo para se adaptar.
â" Então, quando posso vê-la?
â" Isso depende dela.
â" Mas onde ela está?
â" Ela me pediu para não passar essa informação, por enquanto, até se
acostumar com a ideia. Ela entrará em contato quando se sentir preparada.
â" Por quê? â" pergunta ele, cada vez mais ressentido. â" Só quero saber
onde ela está. Com o que ela precisa se acostumar?
â" Por favor, não se preocupeâ¦
â" Não estou preocupado, Sr. Lovell. Não estou preocupado! Só quero
ver minha querida filha após sete anos e o senhor está me impedindo!
Esse tipo de coisa ocorre com frequência. Tenho que ranger os dentes e
evitar falar mais alto. Sinto vontade de simplesmente informar o nome e o
307
endereço â" qual é o problema com essas pessoas, pelo amor de Deus? â" e
deixar que eles resolvam as coisas sozinhas; lembre-se de Georgia. Hen ergue
as sobrancelhas em solidariedade quando finalmente ponho o telefone no lugar.
â" Ele vai ficar satisfeito. Outra coisa: Andrea e eu não ficamos à toa
durante sua ausência: conseguimos alguns novos casos. Quer dar uma olhada?
â" Que tal o caso em que seu sócio foi envenenado?
â" Quem é mesmo que está pagando por essa investigação?
â" Quero saber quem é a mãe de Christo. E o que aconteceu com a irmã.
Hen inclina-se para trás, e a cadeira protesta com um rangido.
â" Então, você acha que a irmã deu à luz Christo e eles a mataramâ¦
incesto ou algo parecido⦠e ela está em Black Patch?
â" Bem, é uma possibilidade.
â" Muito mais fácil do que apenas forjar um pai, certamente.
â" Bom⦠e quanto ao nome Janko? E por que Ivo fugiu? Tem alguma
coisa a ver com Black Patch. Eu⦠sei.
Ele me observa por cima dos óculos. Trata-se de uma simulação, pois ele
não enxerga nada sem eles.
â" Isso você não pode saber, porque ainda não sabe se ele sabe alguma
coisa sobre o corpo. E pode haver uma explicação bem simples.
â" Pois bem, quando obtivermos essa explicação bem simples, deixareiâ¦
essa história de lado. Até láâ¦
Guardei o pedaço de papel com o endereço de Lulu, escrito com a
caligrafia infantil de Sandra â" não fui capaz de jogá-lo fora. Pensei â" desejei â"
que ela me ligasse após minha saÃda do hospital. Então, lembro-me do que Hen
me disse, como os dois tinham falado sobre mim. Talvez eu devesse ter mais
orgulho e não ficar cheio de esperanças em relação a ela. Por outro lado, talvez
eu devesse ser menos orgulhoso. Afinal de contas, ela segurou minha mão. Mas
acabo encontrando razões para esperar até voltar para casa antes de ligar para
ela. Tenho vários outros telefonemas a fazer; e um fax que estou esperando,
para ter uma confirmação.
308
Para minha surpresa, ela atende quase imediatamente. Por algum
motivo, achei que ela estivesse no trabalho; já estava preparado para deixar um
recado.
â" Você não está trabalhando?
â" Não. Como vai você?
â" Tudo bem. É. Eu queria saber se poderÃamos nos encontrar.
Pausa.
â" Para quê?
â" Para quê? Ora, eu⦠hum, tenho mais algumas perguntas que gostaria
de fazer.
â" Ah. Estará decepcionada? Ela não diz mais nada.
â" Suponho que não tenha tido notÃcias de Ivo?
â" Não.
â" E Christo? Alguma novidade?
Ela solta um suspiro, inconfundÃvel.
â" É complicado. Quer dizer, ele está bem⦠ótimo. Só que, bem, posso
contar isso quando nos encontrarmos.
â" Ok.
Logo em seguida, meu coração dispara como o de um corredor. Tenho
que me conter para não pegar uma bebida.
âœNão comece a desabarâ, advirto a mim mesmo. Não é hora.
Aqueles barcos, os barcos a remo no lago, eles ficaram na minha cabeça
desde então. Eu queria muito embarcar num deles e sair remando para longe. A
cor do verniz; o som da água batendo no casco. E os nomes: AMY â" DOIS
PASSAGEIROS, ISOBEL â" QUATRO PASSAGEIROS. Tão competentes... Tão
generosos...
Ray â" um passageiro. E olhe lá.
⢠⢠â¢
309
Considerando que ainda não posso dirigir, ela vem até o pub na esquina
da minha rua. Pela janela â" estou adiantado, é claro â" observa-se o trem
avançando sobre a ponte, cheio de gente exausta do trabalho. A luz começa a
definhar outra vez; mesmo com o verão finalmente â" tardiamente â"
chegando, o dia acaba escurecendo.
Lulu chega calada e senta a meu lado.
â" Tenho uma novidade para você â" digo. Seus olhos se arregalam,
assustados. â" Trata-se de uma boa notÃcia. Encontramos Rose.
â" Oh, meu Deus! E ela está bem? Mesmo?
â" Perfeitamente bem.
â" Oh! â" Lulu absorve a informação. â" Então, o corpo, em Black
Patch⦠Não tinha nada a ver com Ivo?
Há um grande fluxo de tensão proveniente de seu corpo.
â" Bom, quem quer que seja, não é Rose Wood.
â" Um final feliz⦠â" Ela ergue seu copo, sorrindo. â" Não devemos
brindar a isso?
â" Ainda não.
A expressão dela se altera.
â" Não. Ainda não é o final, não é? Você diz isso por conta do que
aconteceu com você. E o Ivo, ainda desaparecido.
â" Pois é. Tem isso também.
â" Você acha que ele fez aquilo de propósito? Mas por que, se não tinha
nada a esconder? Se não tinha nada a ver com o sumiço de Rose?
Ela acende um cigarro e toma um gole de seu Bacardi com Coca-Cola.
Parece nervosa outra vez; o copo se choca contra seus dentes e o lÃquido
derrama um pouco. Olhando para a mesa, seus dedos tocam levemente os
lábios.
â" Mas pode ser qualquer pessoa â" diz ela. â" Alguém sem ligação
alguma. Eles não sabem quem é?
â" Ainda não. Ivo estava com medo. Se não havia ligação alguma, por
que me envenenar?
310
â" Você está deduzindo que⦠ele fez isso de propósito.
â" Se não foi assim, por que ele desapareceria? Por que abandonaria
Christo?
Ela olha pela janela e balança a cabeça; parece inquieta.
â" O que você queria me perguntar?
A voz é bem baixa.
â" Ivo estava em sua casa na noite em que saÃmos para jantar, não
estava? â" Lulu olha para baixo e não responde. â" Eu estava me
perguntandoâ¦
â" Mas você contou para eles, de qualquer maneira. Ou não contou?
Você prometeu que falaria com eles. Não foi o que você disse?
Então, ela contou para ele. Sem olhar para mim, ela prossegue:
â" Eu estava tão atormentada⦠Com ele⦠com você. Acabei deixando
escapar. Desculpe. Sei que não deveria ter contado. Eu estava tão preocupadaâ¦
Achei que era culpa minha⦠você cair adoentadoâ¦
A mão que segura o copo está tremendo. Tenho vontade de envolver seu
corpo em meus braços.
â" Nada disso é culpa sua. Eu não deveria ter deixado você nessa
situação.
Ivo sabia. Já tenho a prova.
â" Como ele reagiu quando lhe contou?
â" Não sei⦠â" Ela suspira profundamente. â" Na verdade, não reagiu.
Não olhou para mim. Tive que dizer âœVocê está me ouvindo?â e ele disse
apenas âœEstou, e daÃ?â naquele tom de voz. Você sabe. Mas⦠qual é a
importância disso? Ela está bem.
â" O corpo em Black Patch pertence a alguém.
â" Claro, masâ¦
â" Pode ser o de Christina?
â" Christina? â" Ela chega a rir, olhando incrédula para mim. â" Faz anos
que ela morreu. Você não está sugerindo que seja ela! Isso é ridÃculo.
311
â" Ninguém me disse exatamente quando ela morreu.
Lulu suspira, apertando os lábios. Ela franze o cenho mais uma vez.
â" Aconteceu há tanto tempo. Ela estava com 17 anos, portanto⦠faz 12
anos. Doze anos! Além do mais, ela morreu na França. É impossÃvel que o corpo
esteja em Black Patch.
â" Em que local da França?
â" Não sei com exatidão. Aconteceu quando eles foram para Lourdes.
â" Você foi ao enterro?
â" Não houve enterro.
â" Não houve enterro? Isso é um pouco⦠esquisito, não?
â" Ela morreu no exterior. Foi por isso. â" Ela engole em seco e se mexe,
desconfortável, na cadeira. â" Você sabe. Eles não conseguiram trazê-la de
volta. E esse tipo de coisa⦠sai muito caro⦠Eu não sei. Não me pareceu
esquisito. Não foi esquisito.
â" Então, ela morreu há 12 anosâ¦
â" Sim!
â" Quando viu Christina pela última vez?
â" Nossa⦠â" Ela olha para baixo. â" Alguns anos antes de isso
acontecer.
â" Deve ter sido terrÃvel quando ela morreu, depois de tudo o que
aconteceu.
â" É.
â" Você sabe quem estava presente quando ela morreu?
â" Tene, imagino. E Ivo também. Isso aconteceu depois da morte de
Marta. Você os está acusando de terem matado Christina agora?
â" Não. Apenas⦠tentando esclarecer as coisas.
Bebo minha cerveja com a mão esquerda. Lulu fica em silêncio.
Aborrecida, ela acende outro cigarro. Um trem passa rangendo sobre a ponte;
agora está meio vazio; carrega apenas os mais obstinados, aqueles que ficaram
trabalhando até mais tarde. Tene e Ivo. Ivo e Tene. Os dois, únicas testemunhas
312
de uma série de eventos estranhos e trágicos. Uma sequência de mortes cujo
espectro os persegue como um cão no escuro; um lobo nas sombras. Mas Ivo
era apenas um menino doente⦠Amaldiçoado, talvez, como disse Tene.
â" Como está sua mão?
Lulu está olhando para minha mão direita, ainda quase inútil, estendida
a meu lado. Eu a levanto e a movimento diante dela.
â" Está bem. Está melhorando.
Flexiono os dedos com dificuldade. Eles se mexem lentamente, como se
fossem os membros lânguidos de alguma criatura subaquática.
â" Você consegue sentir alguma coisa com ela?
â" Não muito.
â" Precisa tomar cuidado para não queimá-la.
â" Eu sei. Eles me disseram isso no hospital várias vezes.
â" Porque é fácil de esquecer.
É claro, ela é uma profissional no assunto. Penso em David. Até que
ponto ele sente alguma coisa? É ela que deve tomar cuidado com ele. Lulu olha
para minha mão, mas não a toca. Eu me pergunto se ela está pensando nele
também.
Eu me surpreendo lhe contando sobre meu ex-colega de quarto, Mike, e
seus pés gangrenados. Como ele estará agora? É quase como se tivéssemos
concluÃdo os complicados assuntos familiares dos Janko e pudéssemos agora
conversar sobre coisas normais, como pessoas normais. Só que, como ela
mesma disse, ainda não é o final.
â" Há mais uma informação que preciso contar. â" Pigarreio,
constrangido â" Quando conversei com Rose, eu⦠eu fiquei sabendo que Rose
não é a mãe de Christo.
Lulu me encara.
â" O quê?
â" Ela não é a mãe dele.
â" Mas claro que é! â" Lulu sorri, tentando ver nisso uma brincadeira.
Então, bruscamente, para de sorrir. â" O que você quer dizer? Isso é loucura.
313
â" Rose disse que o casamento dela com Ivo não foi consumado. Rose
não teve filho. Nem nessa época nem depois.
Lulu me lança um olhar acusador. Por ter guardado isso comigo. Por
fazer com que ela no inÃcio sentisse empatia por mim.
â" Foi o que ela disse?
â" Foi.
â" Pois ela está mentindo!
Balanço a cabeça.
â" Como vocês sabem que não? â" insiste ela.
Eu respiro fundo.
â" Não sabÃamos. Então, nós verificamos. Rose voltou a se casar menos
de um ano após seu casamento com Ivo. Ela deixou Ivo em fevereiro de 1979.
â" Não! Foi em 1980, no invernoâ¦
â" Ela se casou com o atual marido no dia 30 de agosto do mesmo ano,
1979. Christo nasceu sete semanas depois.
Lulu está de olhos arregalados. A pele parece estar rachando ao redor
deles. Os lábios estão secos.
â" Isso não pode ser verdade! Não.
â" Foi o que pensei. Então, conferi duas vezes. E é isso mesmo. Christo
nasceu em outubro de 1979, certo?
Contra sua vontade, ela concorda.
â" Conversei com pessoas que foram ao casamento em agosto de 1979.
Eu vi as fotos de casamento. Não há dúvida. Ela não pode ser a mãe de Christo.
Lulu parece tão perdida que eu gostaria de estar enganado. Gostaria de
retirar o que disse. Mas não posso.
â" Desculpe-me, mas preciso perguntar: você sabe quem é a mãe de
Christo?
Ela olha em minha direção. Raiva, incredulidade, traição.
â" Lamento tudo isso, Lulu. Eu gostariaâ¦
314
Ela balança ligeiramente a cabeça. É mais um tremor do que um gesto de
negação. Uma explosão de ar escapa de sua garganta. Lulu coloca o copo com
cuidado sobre a mesa e cobre o rosto com as mãos.
â" Vou pegar outro drink para você.
â" Não! Tenho que ir embora. â" A ferocidade em sua voz afasta meu
olhar. Quando volto a olhar para ela, Lulu está concentrada em seus dedos. â"
Quando Tene sofreu o acidente, e eu voltei a ver todo mundo, em dezembro de
1979, Ivo disse que já fazia tempo que ela havia ido embora. Pensei que ele
queria dizer semanas.
â" Isso também não me ocorreu. Deveria, já que estava faltando um ano
inteiro nessa história.
â" Então, quem foi? Você acha que, seja quem for, essa pessoa está⦠em
Black Patch? â" sussurra ela.
â" Eu não sei.
Lulu pede licença e vai ao banheiro, levando sua bolsa cheia de segredos.
Olho para a mesa baixa entre nós, o cinzeiro quase cheio de pontas de cigarro
manchadas de batom, as marcas do copo de cerveja. Seu casaco vermelho ainda
se encontra no encosto da cadeira, o forro de cetim é simples e traz ainda seu
calor e a marca de seu corpo. Não consigo aguentar isso. Todas as vezes que nos
vemos, somos sequestrados pelo drama dos Janko. Sou obrigado a lhe dizer
coisas que a magoam. Mas há algo, alguma coisa â" tênue, delicada, tensa,
quase a ponto de explodir â" entre nós. Tenho quase certeza disso. Mas o que
posso fazer?
Seguindo um impulso, antes de ela voltar, pego seu copo, com a marca
de batom, delicada e vermelha, e esvazio seu conteúdo doce e gelado. O aroma
do rum vai minguando aos poucos. Só assim posso pressionar meus lábios
contra o fantasma de sua boca.
315
QUARENTA E NOVE
RAY
Tene Janko está extremamente mudado. Parece menor, a pele mais
cinzenta, mais magro; como se não tivesse visto o sol desde minha última visita.
Custo a crer que minha primeira impressão foi a de um homem corpulento.
â" Vim aqui porque estou devendo desculpas â" digo. Tene olha para
mim e faz sinal para que eu me sente. â" Como vai indo? Está tudo bem, Sr.
Janko?
â" Estou bem â" responde ele, encolhendo os ombros.
â" Preciso contar algo. Gostaria de poder contar também a seu filho,
mas⦠Bem⦠Encontramos Rose Wood.
â" Eu não disse?
â" Sim, disse. Portanto, minha suposição de que Ivo tivesse algo a ver
com seu desaparecimento estava equivocada. Peço desculpa a vocês dois.
Lamento muito a aflição que posso ter lhes causado.
Tene parece estar olhando para a mesa. Pergunto-me se escutou o que eu
disse. Por que essa reação inexpressiva, sem autossatisfação, sem cólera⦠sem
nada? Em seguida, ele diz:
â" Você a viu?
â" Sim, nós a vimos e conversamos. Ela nos contou como precisou
fugir⦠do casamento com Ivo. Disse também que você ajudou. Mostrou-se
grata por isso.
Eu o observo. Seu rosto não revela nada; os olhos estão fixos no chão.
â" Então, está tudo acabado.
â" Não completamente. Tê-la encontrado traz mais perguntas do que
respostas, como você deve saber.
â" O que quer dizer?
O tom de voz é neutro.
316
â" Ela falou que nunca teve um filho.
Por fim, Tene aquiesce, mexendo a cabeça lentamente por alguns
instantes.
â" Foi o que pensei â" diz ele. â" Rose não conseguiu aceitar o que tinha
acontecido. Foi demais para ela.
â" Não. Ela não pode ter filhos. Nunca pôde. Ela não é a mãe de Christo.
Cito as datas para ele. Mostro a foto de casamento. Falo das testemunhas.
Seus olhos ainda voltados para o chão. Não consigo ver seu rosto.
â" Seu acidente ocorreu em dezembro de 1979 â" digo. â" Rose não
deixou Ivo semanas após o nascimento de Christo, mas sim meses antes. Um
ano inteiro se passou. Ela não é a mãe dele.
Tene permanece imóvel. Não há sequer sinal de que está me
entendendo.
â" Quem é então? â" pergunto, sem obter resposta. â" Por que vocês dois
dizem para todo mundo que ela é a mãe do menino?
â" Porque ela é a mãe dele. Não entendo por que você está dizendo essas
coisas.
Tento controlar um acesso de impaciência.
â" Sr. Janko, eu sei que é impossÃvel! Está me ouvindo? O que aconteceu
naquele ano? Ivo tinha uma namorada? O que aconteceu com ela? Onde ela está
agora? â" Não consigo manter a calma. Estou inclinado em sua direção, meu
rosto agressivamente próximo do dele. â" Por que está guardando os segredos
dele?
Tene ergue um pouco a cabeça, mas seu olhar atravessa o meu, indo em
direção à janela, e além.
â" Ela é a mãe do menino.
Conto até dez. Pressiono as mãos contra minha perna.
â" Sr. Janko, eu sei que você sabe! â" recomeço. â" E, no caso de ter
esquecido, a polÃcia está investigando o corpo que acharam em Black Patch. Vão
identificá-lo. Eles sabem também que Ivo desapareceu, e sabem o que aconteceu
comigo. Se estiver escondendo algo⦠Se estiver protegendo Ivoâ¦
317
â" Sr. Lovell, não estou protegendo meu filho. Ele está além da minha
proteção. Só posso lhe contar aquilo que lembroâ¦
Ele parece se distrair. Os olhos observam os átomos no ar à frente.
Minhas pernas tremem de irritação.
â" Não posso obrigá-lo a falar, mas a polÃcia talvez não seja tão
compreensÃvel.
Não há jeito de ele dizer do que se lembra. Além de não falar, ele
também não se move. Até sua respiração é imperceptÃvel. Parece que foi
embora daqui, para muito longe dentro de si mesmo. O tique-taque hiperativo
do relógio dourado se espalha pelo trailer. Isso me enlouquece, me força a
lembrar de todo tempo perdido, desperdiçado; lembrar que estamos chegando
rapidamente ao fim. Começo a entrar em pânico.
â" Sr. Janko⦠Sr. Janko⦠Está passando bem? Sr. Jankoâ¦
Aos poucos, minha raiva se esvai. Ponho a mão em seu ombro e o
balanço.
â" Tene⦠Está me ouvindo? Tene. Por favor⦠Está me ouvindo?
Não sei se está utilizando alguma manobra desesperada para evitar me
responder, mas ele parece uma estátua.
Fico em pé; corro para fora e bato nas portas dos outros trailers. Logo,
Sandra, JJ e Kath estão no trailer de Tene, e eu sou colocado para fora, como
pasta de dente fora do tubo, sob o sol. Ando apressado de um lado para outro.
Não sei se devo ficar mais furioso com Tene ou comigo mesmo. Não há dúvida
de que é um excelente ator, mas fui desajeitado. Entrei no tempo errado. Nesta
profissão, não se trata de um engano que se possa voltar e retificar. Ou serei
culpado por algo ainda pior?
As vozes no interior estão exaltadas; discussões aflitivas.
Começo a sentir um pavor gelado. Não há nada que eu possa fazer a não
ser ficar e esperar, já que Hen, por insistência minha, me deixou aqui
discretamente e não deve voltar tão cedo.
Por favor, meu Deus, não o deixe morrer. Após alguns minutos, a porta
se abre e JJ sai, sozinho. Ele vem até mim. Seu rosto demonstra preocupação e
gravidade.
318
â" Ele está bem agora. Só um pouco grogue. Ultimamente, ele não tem
passado muito bem.
â" Oh, graças a Deus! Lamento saber que ele não anda bem. Mas agora
está se recuperando, não é?
â" É⦠ele está falando.
JJ dá de ombros, constrangido. Agora, é Kath Smith que sai do trailer e
caminha em nossa direção. Suas bochechas estão coradas; os olhos parecem
gotas de mercúrio, vingativos.
â" O que diabos você andou falando para ele?
â" Vim lhe contar que encontramos a esposa de Ivoâ¦
Kath me encara, os olhos quase saltando das órbitas. Posso ouvir a
respiração ofegante de JJ ao meu lado.
â" Muito bem! Está feliz agora? Acabou de lhe causar um derrame!
Meu sangue congela nas veias. Não, por favorâ¦
â" Eu lamento muito que tenha sido um choque para ele, mas era preciso
que soubesse.
â" Bem, agora você já contou e quase o matou, então acho que está na
hora de você dar o fora daqui, merda!
Sua mão, carregando um cigarro aceso, aponta contra meu rosto. Dou
um pequeno passo para trás.
Ela olha ao redor, procurando meu carro; sente-se insultada por não vê-
lo por ali.
â" Vou ter que esperar meu colega passar para me apanhar. Não vai
demorar. Nós podemos levá-lo para o hospital se for necessárioâ¦
â" Se ele precisar ir para o hospital, nós levaremos, muito obrigada. Acho
que você já causou estrago demais.
â" Vó, ele tem sidoâ¦
Kath faz um gesto para ele se calar, como se afastasse um mosquito.
â" E você⦠volte lá para dentro.
â" Mas nósâ¦
319
Ela aponta o dedo para o rosto de JJ.
â" Para dentro! Agora! E espere até seu avô voltarâ¦
JJ me lança um olhar desesperado, cheio de perguntas, e depois se retira
furioso em direção a seu trailer.
Kath murmura algo inaudÃvel para mim, e volta apressada para o trailer
de Tene. JJ vira-se e olha para mim, parecendo triste.
â" Lamento pela vovó. Ela está aborrecida.
â" Posso entender.
â" Não, mas é que⦠ele não tem passado bem ultimamente. Você quer
entrar?
â" Não, de verdade. Está tudo bem.
â" Por favorâ¦
⢠⢠â¢
Dentro do trailer, ficamos em pé, um diante do outro, um pouco
constrangidos. Ele parece não saber ao certo o que fazer em seguida. Seus dedos
brincam com o curativo sujo em seu braço.
â" Quando disse que⦠vocês tinham encontrado Rose⦠ela estáâ¦?
De repente, percebo que não havia terminado a frase.
â" Oh, não. Não. Rose está viva. Ela está ótima!
Ele fica boquiaberto.
â" Quer dizer que⦠ela está bem?
â" Está.
Um sorriso toma conta de seu rosto e continua se expandindo.
â" Mas isso é fantástico! Que bom⦠pensei que as notÃcias fossem ruins.
Eu sorrio também; é contagiante.
â" Realmente, é uma boa notÃcia. Não há dúvida⦠â" Pela primeira vez,
parece que esta parte, pelo menos, é de fato uma satisfação. â" É um alÃvio
imenso saber que ela passa bem, depois de todo esse tempo.
320
â" Onde ela está? Por onde tem andado?
â" Hum⦠está vivendo no PaÃs de Gales. Casou-se outra vezâ¦
â" Isso quer dizer então que o tio Ivo não⦠fez nada.
â" E ninguém foi responsável pelo seu desaparecimento. Em geral, é
assim, sabe? Quando as pessoas somem, em geral é por que querem.
JJ olha para mim timidamente.
â" Gostaria de uma xÃcara de chá, Sr. Lovell?
â" Não, obrigado. Não se incomode.
â" Vou fazer para mim de qualquer maneiraâ¦
â" Bem, já que você vai fazer⦠aceito.
Aliviado, ele vai até a cozinha. Olho pela janela e vejo dois carros saindo
do acampamento.
â" Devem estar levando Tene para o hospital. Isso é bom.
JJ coloca os saquinhos de chá nas canecas.
â" Como vai seu braço? â" pergunto.
â" Está melhor. Mas dá a maior coceira.
â" É um bom sinal.
Em seguida, enquanto está servindo o leite, seu rosto fica sério. Por um
minuto, ele não diz nada; depois, vira-se para mim com a expressão pesarosa.
â" Ela vai querer ficar com Christo, agora?
â" Ficar com Christo?
â" Ela vai pegá-lo de volta, não vai? Quer dizer, ela é a mãe dele⦠ele ia
ficar com a gente, e Ãamos arrumar uma casa e tudo mais, para poder tomar
conta dele, eu e mamãeâ¦
Momentaneamente, fico confuso, até perceber que ele está falando de
Rose.
â" Não, ela não vai. De maneira alguma.
â" Mas ela é a mãe deleâ¦
321
Hesito um instante. Suponho que, em breve, todos vão ficar sabendo.
Então, conto tudo para ele.
322
CINQUENTA
JJ
Meu tio-avô teve alta no hospital ontem, depois de passar algumas horas
lá. Disseram que não havia nada de terrivelmente errado com ele; parece que
ele nem mesmo teve um derrame, mas lhe deram alguns comprimidos assim
mesmo e lhe disseram para parar de fumar â" como se isso pudesse acontecer.
Vovó e vovô saÃram hoje de manhã no caminhão. Eles andam muito
misteriosos atualmente. E mamãe foi trabalhar. No momento, trabalha
entregando pizzas. Acho que ela detesta o emprego, mas não há outro em vista.
Ela foi despedida da floricultura, embora não tivesse feito nada errado.
Disseram que não havia trabalho suficiente para todos, embora não tenham
demitido mais ninguém. Normalmente, gosto quando estou sozinho aqui, mas
hoje sinto um vazio, como se eu não fosse o bastante para encher o trailer com
minha presença. De qualquer maneira, mamãe me fez prometer que eu iria ver
se meu tio-avô está tomando os remédios e tentar animá-lo um pouco.
Quando chego lá, ele está dormindo em sua cadeira. Ando na ponta dos
pés e aproveito para lavar em silêncio alguma louça (muito bem, JJ!), mas,
apesar de tomar cuidado e não fazer praticamente barulho algum, quando
acabo de limpar e arrumar a cozinha, me viro e o vejo olhando para mim.
Quase tenho um ataque do coração â" fico chocado por ele ficar olhando para
mim e não dizer nada. Ele sorri.
â" Não tive a intenção de assustá-lo.
â" Oi, tio! â" digo eu. Minha voz sai alta e um tanto histérica.
â" JJ, meu garoto. Faça um pouco de chá.
â" Como está se sentindo? Deve estar na hora de tomar os comprimidos.
Mamãe pediu para eu lembrar. São estes aqui?
Ele confirma, e eu lhe entrego o frasco, mas ele não o abre
imediatamente.
â" Como vai você, garoto?
323
Sorrio para ele, porque a pergunta é bem esquisita. Na verdade, acho que
ele nunca disse isso antes para mim â" como se não me conhecesse de verdade.
Ou como se eu fosse um adulto. Ou, então, ele quer mesmo que eu responda.
â" Humâ¦
Sinto vontade de dizer sou o JJ â" você sabe quem sou eu.
â" Estou bem â" respondo apenas.
â" Você é um bom garoto, JJ.
Enfio a cara dentro da geladeira e, assim, não tenho que olhar para ele.
Depois, pego sua xÃcara de chá, delicioso e fervente, com um bocado de açúcar.
Acho o resto de um pão fatiado e preparo-o com um pouco de manteiga
também.
â" Posso colocar uma música?
â" Pode, se quiser. É⦠faça isso.
Procuro entre os discos â" agradecido por ter o que fazer, para ser
sincero â" e acho um álbum duplo de Sammy Davis Jr. Tem uma das minhas
músicas favoritas neste disco. Ponho para tocar, mas abaixo o volume, já que o
estado de saúde de meu tio-avô não é muito bom.
â" Olhe só⦠â" Ele lança o comprimido dentro da boca e o engole com o
chá. â" Pode falar para sua mãeâ¦
Eu me sento com meu chá, segurando a caneca com as mãos, embora
esteja um pouco quente ainda. Não consigo encontrar nada para dizer. Só
consigo pensar em Rose. Então, me vem à mente que meu tio-avô, talvez,
tampouco soubesse. E se, suponhamos, Ivo tivesse uma namorada secreta, ela
tivesse um bebê e não quisesse ficar com ele, então Ivo o traria para casa e
pronto. Não precisa haver algo de sinistro. Talvez meu tio-avô nunca a tivesse
encontrado â" afinal de contas, isso aconteceu enquanto Ivo estava casado com
Rose. Quer dizer, pode não ter sido muito correto, mas acontece. Vejam meu,
assim chamado, pai.
Quero lhe perguntar, mas tenho medo que ele tenha mais uma daquelas
crises.
Meu tio-avô pigarreia. Isso leva um tempo.
â" Como vai a escola, garoto? â" pergunta.
324
Olho para ele, realmente preocupado. Talvez esteja perdendo a cabeça.
â" Estamos de férias. As aulas terminaram emâ¦
â" Eu sei, garoto. Sei disso. Quero dizer, em geral. Como vai? Você vai
passar nas provas?
â" Hum⦠vou. Acho que vou.
â" Isso é ótimo. Você deve fazer isso. Parece que você está mesmo
aprendendo alguma coisa. Nós precisamos disso.
â" É.
Não sei o que dizer. Embora ele me pergunte sobre a escola de tempos
em tempos, nunca o vi tão interessado.
â" Tome cuidado apenas para que não o transformem num gorjio.
â" Claro.
â" Fico feliz que Christo vá viver com Sandra e você. Vocês vão ficar
bem.
â" É⦠a menos que tio Ivo volte.
Ouvindo isso, meu tio-avô solta um grunhido e assopra o chá.
â" Você não acha que ele vai voltar? â" pergunto.
Ele suspira. Eu prendo a respiração.
â" Por que está me perguntando isso?
â" Você é o pai dele. Você conhece seu filho melhor do que ninguém.
Meu tio-avô mexe a cabeça devagar.
â" Ivo não vai voltar. Eu não deveria nunca ter tentado fazer com que
ficasse.
Eu não sabia que ele tinha tentado fazê-lo ficar. Suponho então que eles
tenham falado sobre isso.
â" Mas você sabe para onde ele foi?
â" Não.
325
Meu tio-avô segura a cabeça, como se ela pesasse enormemente e seu
pescoço pudesse se quebrar.
Sinto um frio na espinha.
â" Adoro essa música â" digo em voz alta, a fim de mudar de assunto.
Mas eu gosto. De verdade. O cara que a escreveu estava na prisão, em Nova
Orleans, quando todos os sem-teto foram detidos, suspeitos de um assassinato.
Ele acabou conversando com um velho que lhe contou como teve que dançar
em troca de comida, como seu cachorro foi atropelado e como ficou tão triste e
se tornou alcoólatra. Todos os sem-teto tinham apelidos; assim, a polÃcia não
conseguia identificá-los, e o dele era Sr. Bojangles.
Prefiro pensar nessas coisas a pensar no motivo que leva meu tio-avô a
falar comigo desse jeito estranho. Quando olho de novo para ele, ele está me
observando de um jeito que me deixa sem graça.
â" Nunca lhe demos atenção suficiente, não é? â" diz ele. â" DevÃamos
ter dado.
Solto um grunhido, pois não sei o que ele quer dizer.
â" Claro que deram â" respondo com um sorriso, tentando parecer
natural.
â" Você esteve lá o tempo todo.
â" O quê? Como assim?
Mas meu tio-avô balança a cabeça outra vez.
Sammy chega à parte em que ele solta os bichos, e todos os metais e
violinos mergulham juntos num clÃmax estupendo. E observo, horrorizado,
uma gota de saliva escorrer pelo queixo do meu tio-avô, deixando um rasto
brilhante à meia-luz.
â" O que está havendo? Está passando mal novamente?
Ele balança a cabeça.
â" Não, estou bem.
â" Tem certeza?
Agora, ele tenta sorrir para mim, embora seus olhos estejam úmidos.
â" Estou bem, sim, garoto.
326
â" O que posso fazer por você? Quer mais chá?
â" Não⦠nada.
â" Você deve estar cansado, não? Quer que eu vá embora?
Minha cadeira parece estar me expulsando. É excruciante. Nunca o vi
assim antes e não sei o que fazer.
â" Estou bem. â" Ele olha para mim, tremendo um pouco. â" É⦠estou
um pouco cansado, garoto. Acho que vou tirar um cochilo.
â" Está certo. Tem certeza?
Eu me levanto, sorrindo, sem a menor intenção de permanecer ali.
Porque, se eu sorrir, então tudo vai ficar bem.
Volto para o trailer vazio e acendo todas as luzes, mas não consigo ficar
sentado nem quieto. Procuro um vÃdeo para assistir, mas não encontro nada
que me agrade. Ponho um pouco de música e logo desligo, pois isso me faz
sentir culpado. Eu me odeio. Sou inútil e patético, e, o que é pior, desatencioso.
Meu tio-avô está doente e triste, e eu não consigo nem fazer um pouco de
companhia para ele. Sou um grande covarde, essa é a verdade.
Saio do trailer de novo e fico andando pelo acampamento, me torturando
com o que pode estar acontecendo dentro do trailer dele (mas não faço nada!),
olhando para sua janela apagada, à beira das lágrimas, até a noite cair e eu
começar a tremer debaixo da camiseta, os pássaros pararem de cantar e eu ser
incapaz de identificar as cores das coisas.
327
CINQUENTA E UM
RAY
Ontem à noite assinei os papéis do divórcio e os coloquei dentro de um
envelope, prontos para serem enviados. Assinei sem nenhuma emoção. Agora,
pelo menos, penso, estou indo em frente com minha vida. Seguirei adiante.
Nesta manhã, tive um desses sonhos que parecem mais verdadeiros do
que qualquer coisa na vida real. Sonhei que ainda estava com Jen, em nossa
casa. Ela chegou e me apresentou casualmente a seu amante, que era Hen. Não
me lembro de mais nada do sonho; só o choque da descoberta: a sensação de ter
uma ferida aberta no peito. Nunca houve nada entre Jen e meu sócio â" nem
Hen foi infiel a Madeleine, eu acho, ele jamais quis sê-lo â" é puro masoquismo
da minha parte.
Acendo a luz de cabeceira, que torna negra a claridade cinzenta lá de
fora. Ainda não amanheceu. Pisco os olhos, grudentos; minha boca está seca,
meus dentes parecem ásperos e sinto um gosto de glutamato monossódico.
Nessas horas, nunca há quem procurar. Nunca houve. Vou até o banheiro, bebo
ruidosamente água da torneira e molho o rosto. E, voltando para a cama, paro
na porta, ao perceber um reflexo na janela.
Ontem, tive um impulso estranho. Estava voltando do restaurante
chinês, no qual tinha comprado comida, quando passei por um quiosque de
jornais que fica aberto até tarde. Meu olhar foi capturado por uma mancha
vermelha entre os baldes de flores. Não sabia o nome delas, mas a cor e a
textura das flores me fizeram lembrar de Lulu. Comprei todas as vermelhas,
levei-as para casa e as coloquei na maior jarra que encontrei. Deixei-as sobre a
cômoda do quarto, de onde podia observá-las da cama. Era uma infinidade de
pequenos sinos vermelhos com caules pálidos e sarapintados; um perfume doce
e enjoativo. Adormeci pensando nela. Eu estava feliz. Então, como pude cair
nessa? Aterrado por lembranças que ainda têm o poder de me fazer sofrer?
O quarto no reflexo tem pouca relação com o real. Uma incandescência
luminosa jorra sobre as flores vermelhas, que pulsam com uma vitalidade
incrÃvel. Atrás delas, a figura de um homem parece uma presença sombria e
sinistra. Quando Jen finalmente me contou seu caso â" esqueci as palavras
exatas que ela usou â", ela começou a chorar. Como se minha reação realmente
328
a surpreendesse. Como se tivesse convencido a si mesma de que eu não me
incomodaria. Senti-me insultado, furioso com sua estupidez: como você não
sabe o quanto isso dói? Como pôde ser assim tão insensÃvel? Minha vontade era
de uivar como um animal ferido. Queria incendiar o carro dela. Queria
espancar até a morte o filho da puta com uma pá e deixar um monte de marcas
profundas naquele rosto desprezÃvel e indecoroso. Talvez lá fora, no outro
quarto, esteja o homem que fez isso.
Há um glamour sombrio no outro quarto que me acena e me assusta; é o
glamour de beira de penhasco, de catarata, glamour da dor que rasteja e vem
me pegar quando penso que o pior já passou. Para ser franco, às vezes me
pergunto se tenho a força de vontade necessária para escapar disso; ou se esse
sofrimento fulgurante será para sempre a coisa mais profunda e mais brilhante
da minha vida.
Sei que não vou conseguir voltar a dormir, então vou até a cozinha fazer
café. Enquanto a água ferve, volto a pensar em algo que não me ocorria há anos:
no começo de nosso casamento, Jen e eu fomos caminhar às margens de um
lago na Escócia. A superfÃcie da água estava lisa e calma, nenhuma marola para
perturbar seu frágil sossego. Estávamos procurando pedrinhas na beira e
tentávamos fazê-las saltar na superfÃcie da água â" algo em que sempre fui
bom. Jen aborrecia-se porque não conseguia: suas pedras mergulhavam a
poucos metros dali ou iam parar longe demais. Eu seguia pela beira d"água,
aumentando meu placar â" seis, sete, nove⦠quando algo me atingiu nas costas
com extrema violência. Virei-me bruscamente, enfurecido, e vi Jen com as mãos
no rosto, aterrorizada.
â" Perdão, querido, perdão! â" gritava ela. â" Saiu na direção errada! Foi
um acidente!
Evidentemente, ela estava tentando conter o riso também. Sorri, embora
estivesse doendo e, depois, fiquei com uma escoriação profunda nas costas, da
qual fizemos algumas piadas.
Ela nunca conseguiu fazer as pedras quicarem. Era incapaz de acertar a
cesta de lixo a 1 metro de distância (âœNão vale! Ela se mexeu!â). Mas, quando se
tratava de me atingir diretamente, sua mira era infalÃvel.
⢠⢠â¢
Até que enfim, um dia lindo. O sol saiu, escaldando a neblina matinal.
Do trem, vejo sua luz cintilando sobre as valas e as pequenas poças formadas
pela chuva. Chego a Ely às 10h30.
329
Considine mantém a fachada de homem rude, mas, na verdade, acho que
ele está grato por um pouco de novidade.
â" O que houve com seu braço? â" pergunta ele, depois de me servir uma
xÃcara de café quente e notar a imobilidade de minha mão direita.
Explico rapidamente. Isso é importante, afinal de contas, para justificar
minha presença aqui.
â" Venha comigo â" diz ele depois de bebermos o café, conduzindo-me
para fora da estação. Em seguida, leva-me de carro até um prédio na periferia
de Huntingdon.
Ali, fica o laboratório de análises da polÃcia. Entramos e subimos até um
escritório no terceiro andar. Dentro de uma sala pequena e cheia de coisas
amontoadas, uma mulher olha para nós por cima dos óculos, os cabelos
grisalhos presos com um laço e vestindo um conjunto de calça e blusa de
aparência carÃssima. Mal consigo reconhecer a mulher que encontrei em Black
Patch; na última vez em que a vi, ela usava um macacão de plástico manchado
de lama, com botas e luvas imundas.
â" Dra. Alison Hutchins, este é Ray Lovell.
â" Já nos encontramos antes. Não tenho nada de novo para você,
Considine.
A maneira submissa com que ele aceita a autoridade dela é interessante.
â" Gostaria de convidar os dois para sentar um pouco, mas⦠â" Ela
passa a mão nas pilhas de pastas surradas na mesa, em duas cadeiras e algumas
até mesmo no chão.
Nós dois insistimos que preferimos ficar em pé.
â" É sobre a possÃvel identificação que ele nos forneceu â" diz Considine.
â" Ela foi achada viva, portanto está esclarecido.
â" Ah⦠â" Ela me olha por cima das lentes. â" Uma penaâ¦
â" Mas ele tem algo mais a nos dizer.
Hutchins ergue as sobrancelhas.
â" Não posso dar um nome, mas ainda há uma pessoa desaparecida. Era
a mãe de uma criança pequena. Ela deu à luz há uns sete anos e, desde então,
parece ter sumido completamente. Há, com certeza, alguma conexão com Black
330
Patch. Eu achava que a mulher que procurava era a mãe desse menino, mas, na
verdade, não é.
â" Pode me dar mais detalhes: a idade dela quando desapareceu?
Qualquer coisa?
â" Não. Não disponho de mais nada. A não ser um⦠â" Ergo os ombros,
como posso descrever isso? â" Um espaço em branco nessa famÃlia.
Ela olha para Considine.
â" E o que o leva a pensar que nosso corpo pode se encaixar em seuâ¦
espaço em branco?
â" Pois bem⦠A famÃlia sempre afirmou que a mãe da criança era Rose
Wood, que estava desaparecida havia alguns anos. Mas, quando a encontramos,
ficamos sabendo que ela nunca teve filhos, e isso faz sentido. Ela não pode ser
mãe, portanto, eles mentiram. Com certeza, a criança tem uma mãe, mas não há
sinal dela. O pai da criança ficou sabendo sobre o corpo achado por vocês eâ¦
bem, depois de comer uma refeição preparada por ele, fui vÃtima de uma grave
intoxicação alimentar. â" Aproveito para mostrar meu braço direito. â" Minha
mão direita ainda está quase totalmente paralisada. E, agora, ele desapareceu.
â" Envenenamento por ergot â" diz Considine.
A Dra. Hutchins mostra-se impressionada.
â" Ergot e meimendro. Acho difÃcil acreditar que tenham colocado duas
plantas venenosas em minha comida, e só na minha, por acidente. Estou
convencido de que ele sabe alguma coisa sobre o corpo em Black Patch. O
comportamento dele é suspeito, para dizer o mÃnimo.
â" Que vida atribulada a sua, Sr. Lovell. Bom, podemos conseguir o
DNA do garoto?
â" Não sei. Ele está hospitalizado atualmente.
â" Ah, é? Por quê?
â" Ele sofre de uma doença crônica ainda não identificada. Muitos
membros dessa famÃlia tiveram a mesma enfermidade, e vários morreram ainda
jovens. A maioria, homens, pelo que sei. O pai dele teve essa doença na
infância, mas se recuperou.
â" Cada vez mais estranho. Como os Romanov.
331
Aparentemente, minha expressão é estupefata.
â" Os czares russos â" esclarece ela. â" Só que o problema deles era a
hemofilia. E disso ninguém se recupera. â" Ela faz uma careta cujo significado
não consigo entender. â" Então, você acha que nosso corpo não identificado
pode ser o da mãe dessa criança, e que ela foi parar lá por causa do pai?
Encolho meus ombros outra vez.
â" Isso me parece, pelo menos, uma possibilidade, não acha?
A Dra. Hutchins bate com a ponta de sua caneta na mesa. Parece perdida
em pensamentos. Ela tira os óculos e pressiona a ponte do nariz.
â" Isso é interessante.
Ela apanha alguns papéis cobertos por uma caligrafia miúda e os
examina por alguns instantes. Por tempo suficiente para que eu me pergunte se
ela vai ainda dizer alguma coisa. Sem levantar a cabeça, ela diz:
â" Até onde vai seu conhecimento sobre osteologia forense?
â" Não muito longe. Li alguns livrosâ¦
Ela faz um gesto com a mão, interrompendo-me.
â" As pessoas tendem a achar que isso é bem óbvio. Sexo, idade, tudo
bem-definido. Mas, evidentemente, não é bem assim. Algumas ossadas são
mais fáceis, é claro, se estiverem inteiras, ou se houver aspectos corroborantes.
Mas é raro que se possa ter certeza sobre uma identificação a partir de tecidos
apenas. Ainda que se disponha de um osso sexualmente dimórfico
perfeitamente preservado. Quer dizer, o osso pubiano, por exemplo, as pessoas
acham que, se for quadrado, é o de uma mulher; se for triangular, o de um
homem. Mas e se for intermediário entre os dois?
Ela fica me observando ao dizer isso. Em parte para interpretar minha
reação e em parte, suspeito, porque gosta do som da própria voz. Não a culpo
por nos fazer esperar; acho que ela merece.
â" E, quanto mais jovem a ossada, maior a dificuldade. Mas poucas que
tive diante de mim foram tão frustrantes quanto esta. Evidentemente, temos
poucos ossos, até agora. E praticamente todos estão quebrados. Mas há outras
caracterÃsticas que os tornam especialmente complicados. Para começar, o
tamanho: são muito pequenos. Em alguns aspectos, poderiam ser os de um
332
adolescente, mas outras caracterÃsticas, e a epÃfise, sugerem uma idade mais
avançada no momento da morte.
Pausa para entendermos o que isso tudo significa.
â" Então, que idade você acha que tinha?
â" Bem, adolescente. Algo entre 13 e 18 anos; não posso ser mais precisa
no estágio atual.
â" Ok⦠Mas era uma menina.
â" Pelo tamanho e pela forma dos ossos que encontramos, diria que é
mais provável que pertençam a uma moça; mas não posso ter certeza até
acharmos o osso dimórfico.
Ela vira a cabeça para Considine e pergunta:
â" Você contou para ele o que achamos ontem? Considine balança a
cabeça negativamente.
â" Vocês acharam algo? O quê?
Ele responde:
â" Encontramos o pedaço de uma corrente de ouro. Não muito valiosa.
Está quebrada, mas estava perto de alguns fragmentos de costela, portanto isso
sugere que podia estar sendo usada quando foi enterrada.
â" Assim sendo, é improvável que tenha sido morta para ser roubada.
â" E há outra coisa. Algo bem mais⦠estranhoâ¦
Hutchins toma a palavra, não querendo deixar que ele fique no centro do
palco. Surpreendentemente, Considine não parece se importar.
â" Encontramos um monte de matéria vegetal perto do corpo, o que era
de se esperar, mas essa era diferente. A mais ou menos 1 metro de
profundidade, no mesmo nÃvel do corpo, havia uma série de caules amarrados
por um fio de lã. O que pode ser isso?
â" Um ramo de flores? â" digo eu, sentindo como se estivesse fazendo
uma prova na escola primária.
Hutchins sorri, aguardando que eu prossiga.
â" Mas⦠como pode ser? As plantas não sobreviveriam todo esse tempo
enterradas, não é? Quer dizer, apodreceriam logo.
333
Seu sorriso aumenta.
â" Em geral, sim. Mas estas são flores de madeira, crisântemos de
madeira, conhece?
O silêncio no escritório se adensa.
â" Elas eram⦠sabe dizer como eram elas?
â" Elas são difÃceis de deteriorar.
â" Pareciam feitas à mão?
Hutchins e Considine trocam olhares.
â" Eu diria que são feitas à mão, mas muito bem-feitas. Não algo feito
por uma criança.
Meu coração está acelerado, mas o significado, sinto, não é ainda
totalmente tangÃvel. Procuro as perguntas certas.
â" Pelos ossos, é possÃvel saber se alguém deu à luz?
â" Não há como ter certeza. Mas, se achássemos algum osso pélvico, já
seria um avanço; à s vezes, encontramos vestÃgios nele. Ainda temos esperança,
não é mesmo, Considine?
â" Você está pensando: quem faz flores de madeira? Os ciganos fazem.
Considine diz isso olhando para mim.
â" Bom⦠â" Ergo os ombros. â" É um artesanato tradicionalâ¦
Vasculho minhas lembranças em busca de imagens de flores de madeira
em algum dos trailers dos Janko. Não consigo achar nenhuma.
â" Só isso, é óbvio, não prova nada.
â" Não, claro que não.
Ficamos todos em silêncio.
Talvez não seja uma prova. Tampouco uma evidência. Mas é um fato.
Significa alguma coisa. Significa, talvez, que, antes de ser simplesmente
ocultada, a menina em Black Patch teve um funeral.
334
CINQUENTA E DOIS
JJ
Parece que encontrei outro passatempo: chama-se Esperando pelo Pior.
Não sei o que é o pior, mas as últimas semanas da minha vida têm me
desgastado. O que quer que seja o pior, sinto sua proximidade. Coisas horrÃveis
continuam acontecendo â" não é minha imaginação. Tem Christo e Ivo, é claro,
e meu tio-avô doente, e o Sr. Lovell e eu no hospital. Uma pobre criatura
encontrada morta em Black Patch. A chuva radioativa que envenenou todo o
rebanho. Os granizos enormes que caÃram do céu e mataram gente â" na Ãndia,
justamente na Ãndia. Está tudo enlouquecendo. Mal consigo me levantar de
manhã. É claro, estou de férias, por isso não há muita razão para levantar, mas
mesmo assim. Normalmente, mamãe sai por volta das 9 horas enquanto ainda
estou deitado, atrás das cortinas, semiacordado. Ela desistiu de gritar para me
acordar. Depois, me levanto e tomo o café da manhã frio que mamãe deixou
pronto para mim. Em seguida, geralmente, volto para a cama. Já tentei ler, me
masturbar, ouvir música e assistir a uns vÃdeos, mas nada prende tanto minha
atenção quanto a preocupação com todas essas coisas terrÃveis que têm
acontecido com a gente, ou estão a ponto de acontecer.
Estou Esperando pelo Pior desde que chegamos ao hospital infantil de
Londres â" na verdade, desde que saÃmos de carro, hoje de manhã cedo. O
médico de Christo, um jovem indiano, tem a pele bem escura, cabelos espessos
que crescem a partir da testa como uma penugem densa e óculos redondos com
aros dourados. Ele fala com muita precisão. Parece gostar de Christo e, por isso,
estou pronto para gostar dele. Mamãe e eu estamos sentados no canto da sala
de espera, em frente a uma espécie de playground interno para crianças
pequenas. Está cheio de brinquedos coloridos e as superfÃcies pintadas em cores
gritantes. Há até uma estrutura de ferro colorida para escalada. Acho que é
destinada aos irmãos e irmãs das crianças que estão internadas aqui. Mas há
também uns garotos brincando que não têm cabelo; então, concluo que devem
ser pacientes também. Há um monte de crianças carecas no hospital. Isso me
dava arrepio nas primeiras vezes que as vi; parecem pequenos alienÃgenas.
Depois, lembrei que, durante o tratamento contra o câncer, os cabelos caem, e
agora sorrio para elas se alguma delas por acaso olha para mim. Eu me sinto
mal por ter tanto cabelo.
335
Agora, o médico está a ponto de nos dizer alguma coisa, e eu gostaria
que ele fosse rápido.
â" Você é o meio-irmão de Christopher?
O médico, cujo nome comprido nunca conseguirei me lembrar, olha para
mim.
Mamãe e eu assentimos com a cabeça. Fui avisado sobre aquilo. Não sei o
que disseram no hospital para voltarem a mencionar, mas, provavelmente,
ajuda se pensarem assim. Ironicamente (tento não insistir nisso), isso pode, de
fato, ser verdade.
â" Achamos que estamos progredindo no sentido de obter um
diagnóstico do estado de Christopher. Porém, antes de termos certeza,
precisamos enviar os resultados desses exames para um hospital na Holanda.
Eles têm mais experiência nesse campo. Pensamos se tratar de um distúrbio
genético recessivo associado ao cromossomo X. Portanto, quanto mais
informações vocês puderem nos fornecer sobre o estado de saúde da famÃlia,
mais poderemos restringir nossas pesquisas.
Mamãe parece confusa e preocupada. Imagino que eu também pareça
confuso e preocupado.
â" Um quê? O que é isso?
â" Isso significa que é um tipo de doença hereditária. As mulheres
podem carregar a doença e transmitir para seus filhos. Na verdade, só os
homens são afetados.
â" Transmitir comoâ¦?
Mamãe olha para mim aterrorizada.
â" Não há motivos para você ficar assustada.
Agora, ele olha para mim e continua:
â" O mais provável é que o princÃpio da doença possa ser facilmente
distinguÃvel muito cedo, na infância. Por isso, seu filho não tem nenhuma
probabilidade de ser afetado. No entanto, seria melhor fazer um exame do
sangue de vocês dois. E também em todos os membros da famÃlia, se possÃvel.
Desta forma, poderemos elaborar um quadro mais completo.
â" Sangue⦠nosso?
336
A voz da mamãe está fraca.
â" É um procedimento muito rápido. Não dói nada. E será muito útil
para Christopher. E para vocês também.
â" Bom⦠queremos ajudar, é claro.
Ela soa hesitante.
â" Vocês podem procurar o médico de vocês ou podem fazer isso aqui.
Parece ter terminado, mas sem chegar ao ponto mais importante, pelo
que estou vendo.
â" Mas vocês vão conseguir curar Chris?
O médico olha para mim e sorri. Não é um sorriso esperançoso, e eu
preferia que ele não tivesse sorrido.
â" Quando se trata de distúrbio genético é muito difÃcil, ou impossÃvel,
realizar uma cura. Seria como mudar a cor dos olhos de alguém. Mas somos
capazes de abrandar alguns, até mesmo muitos, dos sintomas de Christopher.
Esperamos lhe dar uma boa qualidade de vida; com certeza, melhor do que a
que ele tem atualmente. Mas, até que saibamos do que se trata, nada podemos
dizer de definitivo.
â" Ok, então⦠talvez você consiga curá-lo? Se você não sabe ainda,
talvez quando souberâ¦
O médico olha para mamãe, depois para mim, e de novo para ela.
â" Bem, é verdade o que você disse. Mas⦠não recomendo que tenha
esperanças demais quanto a uma cura completa.
⢠⢠â¢
Quando voltamos para a unidade onde Christo está internado, há
alguém sentado a seu lado. Tia Lulu chegou. Ao nos ver, ela dá um pulo da
cadeira, sua expressão se transforma e ela estende um pedaço de papel para
nós.
â" A enfermeira acabou de trazer isso â" diz ela, sibilante. Percebo que
ela está falando desse jeito porque está furiosa. â" Porra, vocês não vão
acreditar⦠É uma carta do desgraçado do Ivo!
Eis o que diz a carta:
337
MEU QUERIDO CHRISTO
DESCULPA MAS TIVE QUE IR EMBORA
NÃO QUERIA MAS TIVE SEI QUE SANDRA
E SEU PRIMO JJ VÃO CUIDAR DE VOCÊ
DIREITO PORQUE VOCÊ MERECE MAIS
DO QUE EU ENTÃO NÃO SE PREOCUPE
EU AMO VOCÊ COM TODO O MEU CORAÇÃO
PARA SEMPRE MEU QUERIDO GAROTO
SEU PAI QUE TE AMA
ABRAÇO E BEIJO
PS DESCULPA.
Como reagir a isso? É só o que há. A carta de adeus de Ivo para Christo.
Lulu enfia o papel na mão de mamãe e ela o lê enquanto espio por cima de seu
ombro. Reconheço a caligrafia do Ivo â" o jeito de ele escrever em letras
maiúsculas, sua ortografia e tudo mais.
â" Será que é dele mesmo?
Nós dois assentimos. O envelope é endereçado a Christo no hospital. Foi
postado na região sudeste de Londres há três dias.
â" Devemos ler isso para ele? Seria⦠cruel. Seriaâ¦
Mamãe parece horrorizada. Lulu suspira.
â" É o que suspeitávamos, não é? Agora, sabemos. E você tem sua
aprovação.
Ela acrescenta um sorriso frio às palavras, pois, como todos sabemos, a
aprovação do Ivo não é algo que ainda tenha alguma importância.
â" Porra, que cara de pau. Ahâ¦
338
Mamãe treme de tanta raiva. Estamos ainda aglomerados na porta do
quarto de Christo, então teoricamente ele não pode nos ouvir. Olhamos para
ele. Ele retribui o olhar com um ar calmo e vigilante. Fico pensando se já sabe o
que está escrito na carta. Ele foi a última pessoa a ver Ivo â" deve ter sido. O
que será que Ivo lhe disse quando foi embora? Talvez tenha lhe contado tudo, e,
agora, Christo sabe mais do que nós.
Vou até sua cama e pego a mão dele, as pontas dos meus dedos
entrelaçando-se com seus dedinhos. Depois, pergunto:
â" Tudo bem?
E ele responde de modo quase totalmente articulado:
â" Tudo bem.
339
CINQUENTA E TRÊS
RAY
Nos dois dias que se seguem, fico em minha mesa, o telefone colado Ã
orelha, verificando registros, fazendo averiguações, pedindo favores.
Oferecemos uma recompensa por informações â" sem muita esperança de que
isso traga algum resultado. Converso com todo tipo de pessoas das
comunidades viajantes â" parentes meus que não via há anos; membros
distantes da famÃlia de Rose; até mesmo, canhestramente, com meu irmão. As
pessoas prometem pensar no caso, perguntar ao redor. Algumas chegam até a
me telefonar. Meu irmão menciona uma possÃvel visita quando a venda de
aspiradores de pó lhe permitir. Mas, no final de tudo, não encontrei uma
candidata adequada para ser a mãe de Christo. Nenhuma moça da comunidade
dos ciganos desapareceu misteriosamente. Nenhuma garota da mesma idade
sumiu naquela parte do paÃs. Na realidade, a mãe de Christo poderia ser
qualquer pessoa â" uma gorjio local que não quis ou não pôde tomar conta de
uma criança. Há várias possibilidades â" várias peças de um quebra-cabeça
lutando por um lugar onde se encaixar: a identidade da mãe de Christo, o corpo
da moça cigana⦠ou, pelo menos, a moça sepultada pelos ciganos. E há ainda
outra mulher misteriosa, que está bem viva e que, até agora, tenho afastado do
meu pensamento.
Quando pergunto a Hen se há algo que está me escapando, ele balança a
cabeça.
â" No que diz respeito à mãe do garoto, sinto-me inclinado a pensar em
alguém mais próximo deles. A prima que mora com eles⦠qual é o nome dela?
â" Sandra Smith. Pensei nela, mas⦠realmente, acho que não.
â" Suponha por um minuto que a pessoa achada em Black Patch não
tenha relação alguma com nada. Sandra parece ser a candidata mais forte. Tem
a mesma idade, obviamente os dois se conhecem, e ela pode muito bem ser
portadora da doença da famÃlia⦠você mesmo disse que ela poderia ter algum
tipo de, sei lá, sentimento por ele, não falou? Isso pode ser a base de uma
história entre eles.
â" Pode. Pode, masâ¦
340
Balanço a cabeça. Mas o quê?
â" Sei que tive essa impressão, eu sei, mas, de algum modo, isso
simplesmente não parece verdade.
â" Por que não?
â" Porque⦠não é ela.
â" Mas você não sabe se é ou não.
â" Não estou me referindo a Christo. Quer dizer, não é ela que⦠â"
Respiro fundo. â" Tem mais uma coisa, algo que não lhe contei sobre aquela
noite quando fui envenenado. Foi tudo tão confuso, e não faz sentidoâ¦
Eu paro. Porque não sei como prosseguir.
â" E você ficou viajando atrás da árvore.
â" Foi. Mas, apesar disso, tenho absoluta certeza de que⦠eu fiz sexo
naquela noite.
Ele me olha com espanto.
â" Você não falou sobre isso antes.
â" Eu sei. Bem, agora você sabe. Tudo isso soa tão⦠louco.
â" O que lhe garante que não foi mais uma de suas alucinações?
â" Tenho pensado bastante nisso, acredite em mim. Foi uma impressão
bem diferente de qualquer visão. Sei que andei vendo umas coisas loucas, mas
eu sempre soube, em algum nÃvel, que não eram reais. E isso foi⦠isso foi
diferente, totalmente diferente dos monstros e das chamas e⦠tudo mais.
Hen parece preocupado.
â" Sei que isso tudo não faz muito sentido â" continuo, tentando achar
graça. â" Quer dizer, quem poderia ter sido?
â" Não sei, Ray. Talvez você devesse consultar um médico. Talvez ele o
ajude a elucidar essas coisas.
â" Então, você não acha que há algo estranho nisso tudo?
â" Não sei. Não sei mesmo. Você se lembra da aparência dela?
â" Não. Acho⦠ela pode ter coberto meu rosto.
341
â" Coberto seu rosto?
Ele olha para mim, parece a ponto de rir, depois muda de ideia e
pergunta:
â" Porra, para quê?
Dou de ombros.
â" Mas, apesar de ter o rosto coberto e não conseguir ver nada, de
alguma forma você sabe que não era Sandra Smith?
â" Isso.
â" Ray, é impossÃvel você ter certeza.
â" Ela não deu sinal de ter feito isso. Nós conversamos depois disso eâ¦
simplesmente tenho certeza.
â" Isso não é garantia nenhuma. Como você sabe. E, depois do que Rose
disse, bem⦠não poderia ter sido o Ivo?
Tenho pensado nisso. Também. Vasculhei nas minhas lembranças
daquela noite, os mÃnimos detalhes, as sensações.
â" Pensei nisso, Hen. E, não, acho que eu teria notado.
Ele me examina. Tento não desviar o olhar. Enfim, ele ergue os braços,
exasperado.
â" Seja como for. Quer dizer, se foi uma pessoa⦠real, ou não, pouco
importa. Isso não nos ajuda no que estamos investigando, ajuda? Não prova
coisa alguma.
Olhamos um para o outro em silêncio e, depois, sinto vontade de olhar
pela janela. Há um clima denso, saturado, dentro da sala. Não deveria ter
tocado nesse assunto.
⢠⢠â¢
Em casa, depois do trabalho, observando os aviões subirem no céu
dourado, escutando os trens barulhentos passando â" como podem as outras
pessoas estar sempre em movimento? â" digo a mim mesmo que devo ter sido
presa de uma alucinação. Nunca deveria ter contado isso a ninguém. Por que,
então, essa convicção de que isso é relevante?
342
A questão é: não acredito nisso. Aquelas sensações desordenadas, o
cheiro de fumaça, o gosto de cinzas⦠Meu Deus, com certeza, não era um
homem! Não, aquela fenda escorregadia e quente, a pressão de seus lábios⦠só
podia ser uma mulher, só⦠e, mais forte do que eu, a recordação me excita. Foi
real. E é então, pela primeira vez, que penso em Lulu. Por que não pensei nisso
antes? Com certeza, é assim que devem ser seus beijos. E ela adora homens
impotentes, imóveis â" pude ver com meus olhos. Confessei tê-la espionado â"
algo muito feio de se fazer. Ivo estava na casa dela naquela noite; ela não falou
nada sobre isso. Haveria uma parceria entre eles desde o inÃcio? Teria sido essa
sua vingança excêntrica, pervertida?
Em casa, depois do trabalho, colocando um bolo de carne no forno com
as mãos trêmulas, digo a mim mesmo que estou ficando louco.
⢠⢠â¢
Estou num limbo â" tenho estado assim nos últimos meses. Encalhei.
Parece que não estou funcionando direito, nem normalmente. Isso é óbvio para
Hen, que tenta me provocar. Tenta discutir; ele me pergunta qual é o problema
â" afinal de contas, resolvemos o caso de Rose Wood, também conhecida como
Rena Hart. E recebemos por isso. Leon Wood telefona para se desculpar por sua
truculência anterior; sua filha recém-encontrada ligou para ele e há esperança
de se encontrarem num futuro não muito distante. Ele a chama de Rose; depois,
corrige-se e diz âœRenaâ. Um cliente feliz.
Hen passa a me repreender: estou sendo comodista, mórbido e esquisito.
Meu sócio tem razão â" conseguimos o que é importante, um sucesso na
nossa carreira. Mas, nas entrelinhas, criei uma grande confusão na minha
cabeça. Nunca, profissionalmente, estive tão convencido de que algo estava
errado, e isso me deixa abalado. Nunca fui tão longe num beco sem saÃda.
Mesmo agora, acordo no meio da noite me perguntando se os convidados do
casamento de Rose estavam mentindo; se a data da certidão não é falsa. Na
verdade, não posso mesmo dizer que, naquele verão, nada aconteceu â" estou
divorciado e perdi grande parte do tato na mão direita.
Um dos novos casos â" uma esposa desconfiada â" acaba sendo mais
interessante do que pareceu inicialmente, levando-nos a desvendar um harém
indiscutÃvel de outras mulheres e uma rede de delitos financeiros. Andrea
pediu um aumento, que Hen e eu concordamos em dar â" sabendo que
deverÃamos ter lhe oferecido meses atrás, espontaneamente. Para expressar seu
agradecimento, ela traz um bolo feito em casa, sobre o qual nenhum de nós dois
disse, de fato, o que pensava.
343
E, então, Lulu me telefona.
â" Acho que devo contar para você â" ela começa a falar sem esperar
nenhuma das minhas brincadeiras constrangedoras. â" Chegou uma carta de
Ivo. Foi enviada para o hospital. Nela, ele diz que não vai voltar.
Andrea está trabalhando na recepção do escritório. Ela tem um vaso de
flores amarelas na mesa, que capta os últimos vestÃgios de sol que atravessam
as duas camadas de vidro empoeirado. Hen saiu. Aperto o fone contra meu
ouvido naquele estado de consciência sensorial ampliada na qual o medo e o
amor costumam nos arremessar, indistintamente.
â" O que mais ele diz? Ele dá um motivo para o que fez?
â" Não. Diz apenas que precisava ir embora. É uma carta para Christo,
desculpando-se e dizendo que sempre o amará. Foi postada em Plumstead no
dia 14. â" A voz me parece rÃspida. â" Dá para entender isso?
â" Você tem certeza de que ela é de Ivo mesmo?
â" Eu não. Mas Sandra e JJ disseram que é a caligrafia dele. Então, sim. E
ele diz que quer que Sandra tome conta de Christo, então, obviamente, ele não
vai voltar.
â" Certo⦠Bem⦠Obrigado por me contar isso. Imagino que⦠eu não
poderia ver essa carta? Você ainda a tem?
â" Está com Sandra.
â" Sei, é claro. Você concluiu alguma coisa a partir dessa carta? Sobre os
motivos de ele estar agindo assim?
â" Não. Ele não diz nada.
â" Parecia⦠parecia uma carta de suicida?
Ouço-a inspirar bruscamente.
â" SuicÃdio? Não sei⦠Ele não fala nada sobre isso. Imagino que sejaâ¦
ele disse que lamentava muito, mas tinha que ir embora⦠não queria, mas
precisava. Isso é uma carta de suicida? Nenhum de nós pensou nisso.
â" Não sei. Estava só me perguntando se você tinha extraÃdo alguma
impressão dessa carta.
344
â" Ela simplesmente me deixa com raiva. Que ele seja capaz de
abandonar todo mundo desse jeito e sem se explicar. Essa foi a única impressão
que tive. Mas, ainda assim, eu mal o conheço.
Não foi ela, penso. Toda essa charada elaborada não pode ser coisa dela.
â" E Sandra, como reagiu? Ela o conhece bem, não é?
â" Acho que sim. Ela ficou furiosa. E transtornada. Por conta de Christo.
â" E quanto a seu irmão?
â" Não tenho visto. Ele não anda muito bem.
â" Não. Tudo isso deve ter lhe afetado terrivelmente.
â" Imagino que sim.
â" Você se lembra como a carta estava assinada?
â" Eu me lembro de tudo. Ela estava assinada: âœSeu pai que te amaâ. E,
embaixo, âœDesculpaâ novamente.
â" Muito obrigado. Fico agradecido por me contar isso.
â" De nada⦠E você descobriu mais alguma coisa?
â" Não. Sem novidades.
â" Sei.
Ela suspira.
â" Obrigado por responder a minhas perguntas, Lulu.
â" Tudo bem. â" Uma pausa. â" Você vai continuar procurando por ele?
â" Por Ivo? Vou, sim.
â" Ok, então.
Ela desliga antes que eu tenha tempo de dizer algo mais.
Neste exato instante, Andrea vira-se e, ao me ver olhando em sua
direção, sorri. Ela tem estado bastante alegre ultimamente; mais, com certeza,
do que pode ser creditado ao seu irrisório aumento. Talvez esteja apaixonada.
Talvez alguém esteja apaixonado por ela. Nunca perguntei.
Talvez eu tenha sido sempre muito reservado.
345
CINQUENTA E QUATRO
JJ
Hoje, o hospital permitiu que levássemos Christo para um passeio no
jardim zoológico. Ele parece estar muito bem. Ainda não sabem o que há de
errado com ele, mas começaram a lhe passar exercÃcios para se fortalecer. Ele
está aprendendo a andar num ginásio especial para crianças com um monte de
equipamentos. Uma enfermeira de Israel, Rahel, o acompanha nos exercÃcios.
Christo adora a moça porque ela lhe dá um pirulito no fim da sessão. Mas ela é
mesmo bacana. Pensa que somos irmãos. Imagino que ache que a mamãe é mãe
dele também. Nós não falamos mais sobre isso.
O hospital consegue um táxi para nos levar, embora não seja tão longe â"
fica bem no centro de Londres. Mas, quando chegamos lá, vemos árvores por
todo o lugar e uma colina e um canal, também, que o circunda como um fosso
em torno de um castelo. Imagino que tenham feito isso para impedir que os
animais escapassem. O sol brilha sobre nós. Christo está mesmo de bom humor;
ele ri das girafas e dos pinguins, fica fascinado com as cobras, mas seus
favoritos são os macacos. Também gosto deles. Até mamãe, embora estivesse
resmungando antes, preocupada com o fato de que ele pudesse contrair alguns
germes dos animais, parece estar se divertindo. O hospital nos deu uma cadeira
de rodas, embora tenham dito que seria bom para ele tentar andar um pouco,
para se acostumar. Na verdade, ele ainda está fraco demais para andar, mas eles
dizem que vai melhorar com a prática. É ótimo ouvir isso. Ele vai melhorar!
Eles disseram isso mesmo. Mas, por ora, a cadeira torna a vida bem mais fácil.
Tomamos sorvetes e chá sentados ao sol, em meio a outras famÃlias. Há um
monte de crianças correndo ao redor e se divertindo, e vários pais e mães
sorriem para nós, ou para Christo, quando percebem que ele não está muito
bem. É bacana. Eu, praticamente, nem penso em Ivo.
O jardim zoológico é muito mais interessante do que pensei que seria.
Passamos o dia todo por lá, e só vamos embora porque temos que levar Christo
para o hospital até as 16 horas. E ainda temos que voltar para casa depois disso.
É estranho pensar que não ficaremos lá por muito mais tempo. Lulu está nos
ajudando a encontrar uma casa para morarmos. Aparentemente, ela achou uma
para alugar que fica bem perto da dela, transversal à rodovia M25 â" de modo
que também estaremos próximos ao hospital, em Londres. E há uma escola
próxima que poderei frequentar. Eu achava que tudo isso seria bem difÃcil, mas
346
parece tranquilo. Consigo até pensar em morar dentro de uma casa sem entrar
em pânico. Eu me pergunto se alguém na antiga escola sentirá minha falta.
Stella ou Katie. Aposto que não. Talvez Stella, um pouquinho. Mas não tenho
certeza.
Estamos seguindo de carro pela rodovia A3, o sol baixo entrando pelo
para-brisa, entrecortado pelas árvores, iluminando os insetos esmagados no
vidro e outras sujeiras que o deixam turvo. A viagem leva horas â" e estou com
muita fome, o que faz o trajeto parecer ainda mais longo. Tento lembrar o que
há na geladeira e fico imaginando se mamãe está de bom humor para esbanjar
numa refeição para viagem. Há um restaurante chinês no inÃcio da aldeia e não
chega a ficar muito fora do nosso caminho. Ressalto para ela as vantagens â"
não precisamos cozinhar nem lavar as louças â" e, surpreendentemente, ela
concorda. Então, quando chegamos lá, pedimos nossos pratos â" frango com
caju e arroz cantonês para mim, e ela pede asas de frango ao molho agridoce e
arroz. Pedimos também uma porção de batatas fritas com molho curry para
dividirmos.
â" Que se dane â" diz mamãe.
Dentro do carro, o vapor aromático de comida enche o ar e deixa o vidro
embaçado, quase me levando à tontura de tanta fome. De repente, sinto uma
felicidade imensa me invadir. Christo vai melhorar â" está tomando remédios
para ajudar seu sistema imunológico; eles vão descobrir exatamente o que ele
tem e vão tratar dele. Voltaremos ao jardim zoológico â" e a outros lugares:
iremos à praia, ao cinema. As aulas vão começar em breve, e descubro que
estou ansioso para isso; assim, poderei pensar em algo diferente, e não só na
famÃlia. Neste instante, tudo parece possÃvel. Sorrio para mamãe e ela sorri para
mim; provavelmente, ela pensa que é só por causa da comida chinesa, mas não
me importo.
Estamos a apenas alguns minutos de casa quando, repentinamente,
mamãe diz:
â" O que é aquilo?
â" O quê?
â" Aquilo! Meu Deus⦠Minha Nossa Senhoraâ¦
Olho pelo vidro embaçado, através da neblina que oculta a maior parte
da visão, mas não toda; ela não consegue esconder a espessa fumaça preta
acima das árvores. Nossas árvores. Nosso acampamento. Onde moramos. Passo
347
a mão no para-brisa para limpá-lo. Ele não é capaz de esconder a fumaça escura
nem, quando chegamos mais perto, o piscar de luzes azuis.
Assim que o carro começa a descer o caminho até o acampamento, vejo
as cores azul, vermelha e laranja â" como um filme, mas um filme que salta e
estremece, como se houvesse algo de errado com o projetor. Dois caminhões de
bombeiro estão parados o mais longe possÃvel do incêndio, que se concentra no
trailer de Ivo, sobressaindo no meio da luminosidade ardente. Uma espuma
branca começa a ser despejada por um dos caminhões nas chamas, que reage
com mais fumaça, ainda mais negra.
Uma onda de alÃvio se choca contra uma onda de terror dentro de mim.
Os carros da vovó e do vovô não estão lá, e não vejo mais ninguém além dos
bombeiros. Pelo menos, foi só o trailer de Ivo, penso. E então: será que Ivo
voltou para se matar lá dentro? E então: ótimo.
Um bombeiro â" uma figura preta e atarracada, cujo capacete parece
gigantesco, grande demais para a cabeça, vê nossa van e corre até nós.
â" Vocês moram aqui?
â" Moramos!
â" Quem mora naquele trailer?
Mamãe balança a cabeça.
â" Meu primo⦠mas ele foi embora. Está vazio. Mamãe e papaiâ¦?
Ela faz um gesto em direção dos outros trailers, a faixa cromada
brilhando com o reflexo das chamas.
â" Não havia ninguém aqui quando chegamos â" diz o bombeiro. â"
Verificamos dentro dos outros trailers e estavam todos vazios. Sinto muito, mas
tivemos que arrombar as portas. Foi preciso.
â" Ahâ¦
Mamãe se sente aliviada demais para ficar zangada.
â" Então, não há ninguém lá dentro?
Eu já havia visto que os carros não estavam lá. Presumo que vovó e vovô
levaram meu tio-avô a algum lugar. Ao pub, possivelmente, talvez.
â" E os outros trailers? Não correm perigo?
348
â" Estamos começando a controlar tudo. Mas não entrem enquanto não
tivermos extinguido esse fogo. Você sabe se havia algum material inflamável
naquele trailer?
Volto a pensar na minha última e infrutÃfera averiguação. A água benta
não adiantou muito⦠a menos que, por milagre, ela tenha se transformado em
gasolina.
Mamãe está balançando a cabeça.
â" Um botijão de gás para o fogão, eu acho.
â" Estava queimando de modo tão violento quando chegamos que
pensamos que houvesse combustÃvel lá dentro. Vocês não guardam diesel ou
gasolina de reserva lá dentro, não é?
â" Não â" diz mamãe, sacudindo a cabeça.
â" Então, por favor, fiquem afastados enquanto controlamos a situação.
Assim, ficamos sentados no carro, observando. É incrivelmente estranho,
como se estivéssemos num drive-in assistindo a um filme â" ou o que imagino
que isso seja. Só que, em vez de um filme, estamos vendo o trailer de meu tio
queimar até a carroceria.
Eu como minha refeição, mas mamãe diz que não consegue pôr nada na
boca. Acabo comendo a dela também. E todas as batatas fritas que devÃamos
dividir. Em cerca de uma hora, o incêndio está apagado, restando apenas uma
fumaça escura e medonha, saindo das ferragens carbonizadas. A pintura
queimou toda, e a carroceria ficou torta e deformada, tornando-o quase
irreconhecÃvel. Bolhas de algum material branco despejado com a espuma
cobrem toda a carcaça do trailer.
Nosso bombeiro volta até o carro.
â" Deve estar tudo bem, agora. Ficaremos de olho nele por mais algum
tempo. Então, se quiserem entrar em seu trailer agora, não tem problema.
Mamãe concorda. Ela ainda está em estado de choque.
â" Mas como foi que pegou fogo?
O bombeiro ignora.
â" Só saberemos quando alguém puder dar uma olhada de perto, e isso
não vai ser hoje. Vai levar um tempo para esfriar. Não cheguem perto dele.
349
Ouvimos uma explosão, mas, se houver mais de um botijão de gás lá dentro, ele
ainda pode estourar.
Ele olha para a mamãe e para mim com um ar expressivo.
â" Obrigada â" diz mamãe. â" É⦠vocês aceitam uma xÃcara de chá?
â" Seria ótimo.
â" Ok, então.
O bombeiro pisca para mim. Eu me surpreendo e percebo que não me
importo.
Quando mamãe entra para pôr a chaleira no fogo, fico andando lá fora,
vendo os danos nas portas. Não parece muito grave. Outro bombeiro se
aproxima de mim e explica como eles vão consertar o trinco para que
continuemos usando-os. Ele é bacana, bem-educado e respeitoso. Eu me
pergunto como deve ser a vida de um bombeiro; provavelmente, não dá para
ficar entediado, a menos que não haja incêndios. Começo a me sentir
importante, como se fosse uma aventura excitante que acaba de nos acontecer.
Agora que o perigo passou, isso se transforma numa história que posso contar
às pessoas. Mas preciso entender direito; organizá-la adequadamente para que
seja eletrizante de verdade. Ando em meio às árvores e em volta do
acampamento, tentando notar todos os detalhes, mantendo uma boa distância
dos destroços fumegantes.
Acho que pode ser pelo modo como está estacionado â" com a porta e o
toldo na direção das árvores afastadas da entrada â" que ninguém percebeu
antes e, por alguns segundos, não consigo entender o que estou vendo, embora
esteja olhando diretamente para ela.
Está tombada desajeitadamente nos degraus, com uma aparência
estranha por conta do fogo e da espuma, e um murmúrio sombrio de terror
range dentro de mim.
Corro até o trailer de meu tio-avô; está vazio, totalmente vazio.
Em seguida, corro até onde está minha mãe, servindo um prato cheio de
biscoitos. Seguro seu braço e sussurro em seu ouvido:
â" Mãe⦠a cadeira do meu tio-avô está no trailer de Ivo. Por que ele a
deixaria lá?
350
Nós dois sabemos a resposta. Mamãe põe o prato no chão, sem
desgrudar os olhos dos meus.
â" A cadeira dele? Tem certeza?
â" O que houve? â" pergunta um bombeiro.
â" A cadeira de rodas do meu tio-avô está ali.
Mamãe já correu em direção a ela.
â" Ele tinha uma sobressalente?
Os bombeiros põem as xÃcaras no chão, consternados, e dois deles põem
os capacetes e correm até o trailer. O rosto de mamãe está branco como uma
vela. Um dos bombeiros está diante dela segurando suas mãos para impedi-la
de passar. Tento me aproximar, mas alguém segura meus braços.
â" Por favor, se afastem. Não é seguro.
â" Ah, meu Deus! Tire-o de lá! â" mamãe grita com voz esganiçada.
â" Talvez tenham levado meu tio sem a cadeira â" digo, tentando pensar
nisso, mas sem sucesso. â" Talvez só tenham saÃdo para passear de carro, ou
entãoâ¦
Mas os bombeiros acabam entrando e chamam a polÃcia. E ficamos
sabendo da verdade muito antes de vovó e vovô voltarem sozinhos do pub, e
antes de vovó começar a chorar e berrar, vociferando para os homens de
uniforme, que a ignoram e estendem faixas amarelas em volta de todo o
acampamento, deixando-nos ali, como se fôssemos pedaços de prova, enquanto
caminhões de portas abertas continuam lampejando luzes azuis até o raiar do
dia.
351
CINQUENTA E CINCO
RAY
Há sempre a possibilidade de não haver resposta. Que os pedaços de
ossos quebrados sejam arquivados dentro de uma gaveta sem identificação, que
nenhuma conexão seja jamais confirmada. Mas, ignorando essa possibilidade,
voltei a Black Patch, pois não sei mais para onde ir. Agora, já conheço a maioria
das pessoas. Elas me viram com Considine, ou com Hutchins, e sou tolerado.
Atrás da cerca de arame e dos cartazes anunciando o futuro, há poucos sinais
de uma obra em construção; todas as máquinas se foram. O terreno em volta do
local da descoberta está marcado por estacas como um sÃtio arqueológico;
literalmente, pois a escavadeira e a inundação fizeram um trabalho devastador,
espalhando os restos humanos. A lama está secando e rachando. Ganhou um
tom marrom-claro e o cheiro é forte. Em breve, a terra irá assentar, a perÃcia
recolherá suas coisas e as escavadeiras estarão de volta.
Em Huntingdon, Hutchins está no laboratório, reunindo peças em uma
mesa como se fosse um imenso quebra-cabeça. Embora o nome oficial da moça
morta seja âœDesconhecida nº 34â, fico satisfeito ao ver que os funcionários a
chamam de Moça Cigana.
â" Ainda farejando por aÃ? Alguma novidade sobre a mãe desaparecida?
â" Não. Nada. E você? Novas candidatas?
â" Se acharam, não me disseram nada.
â" Acho que você está se saindo bem.
Parece haver centenas de fragmentos de ossos sobre a mesa, embora a
maioria deles seja irreconhecÃvel como sendo humanos â" ou mesmo como
sendo ossos.
â" Bem⦠sim. Temos agora alguns fragmentos do crânio.
Ela aponta com a caneta. O maior pedaço não chega ao tamanho da
palma da minha mão.
â" Algum indÃcio sobre a causa da morte?
352
â" Nada. Não⦠Mas as mesmas deformações. E quanto ao menino?
Algum diagnóstico?
â" Acho que ainda não.
Ela me observa por cima dos óculos.
â" Como assim? Não falam mais com você?
â" Agora que Rose foi encontrada, não estamos investigando mais nada,
oficialmente. Eles não nos pediram para encontrarmos o pai do menino; parece
que o homem sumiu mesmo. Portanto⦠não é mais um caso a ser investigado.
Devo ter soado patético. Ela acha graça.
â" Parece um ótimo momento para sair de férias.
Não tiro férias desde que Jen me deixou.
â" É, eu devia pensar nisso.
Hutchins vai até uma gaveta e retira dela um saco plástico â" dentro há
uma das flores de madeira que acharam junto aos ossos. Está esmagada e
escurecida, mas reconhecÃvel, e instantaneamente me faz lembrar meu avô.
Quando eu tinha uns 8 anos, ele me deu uma faca â" contra a vontade da minha
mãe â" e tentou me ensinar como entalhar um crisântemo num pedaço de
sabugueiro, cortando tiras do núcleo esbranquiçado e enrolando-as para trás.
Ãs vezes, eram tingidas com cores vivas, mas ele gostava quando ficavam ao
natural. É preciso muita habilidade. Aos 8 anos, eu não tinha paciência para
isso, e a paciência que tinha era dedicada a montar miniaturas de aviões. Hoje
em dia, lamento não ter prestado mais atenção.
â" Não achoâ¦
â" Certamente, não.
â" Posso tirar uma foto? Poderá vir a ser muito útil.
â" Acho que tenho uma aqui. Pode ficar com elaâ¦
Ela vasculha suas pastas â" parece haver várias cópias de tudo. Ela
também me dá uma fotografia da corrente de ouro achada enrolada numa
vértebra. Sinto-me carregado de nova energia. Pergunto-me quando poderei ir
até o acampamento.
â" Mais uma coisa⦠É possÃvel que os restos mortais estejam lá há 12
anos?
353
â" Doze? É possÃvel, eu diria. Mas, neste caso, não seria a mãe do
menino, não é mesmo?
â" Não.
â" Por que 12 anos?
â" O pai do menino tinha uma irmã de 17 anos que morreu 12 anos atrás.
â" Ela sofria da mesma doença?
â" Isso eu não sei. Segundo o histórico oficial, não. Mas perdi a fé nos
históricos oficiais. Ela talvez tenha morrido na França, num acidente de carro,
mas não houve funeral. Não há registro da morte, na verdade. E tudo isso pode
ser uma pista falsa.
Ela é educada, mas percebo que não está mais interessada em minhas
insanas teorias. A conversa desloca-se, brevemente, para suas férias na SuÃça.
Ela diz que vai para lá todos os anos e escala montanhas com o marido e a filha.
Todos os três são médicos, embora os dois tratem de ouvidos, narizes e
gargantas dos vivos; ela é a única que recolhe pedaços de mortos.
354
CINQUENTA E SEIS
JJ
Interrogaram cada um de nós sem, eu acho, jamais acreditarem que
tivéssemos alguma responsabilidade pelo incêndio. Fizeram um monte de
perguntas sobre Ivo, que, evidentemente, não podÃamos responder, já que não
sabemos por onde ele anda ou por que foi embora.
Tampouco mencionei o que ele pode ter feito com o Sr. Lovell. Pensei
nesse caso, e, pode parecer estranho, mas, simplesmente, não consegui fazer
isso, apesar do que penso dele. Devo admitir: continuo achando que foram os
restos mortais carbonizados de Ivo que eles encontraram no trailer, mesmo
depois de dizerem que era o corpo de um homem idoso e que trazia nos dedos
os anéis do meu tio-avô.
A polÃcia nos contou o que achavam que havia acontecido. Naquela
manhã, mamãe e eu tÃnhamos ido de carro bem cedo para Londres, a fim de
levar Christo ao jardim zoológico. Na hora do almoço, vovó e vovô resolveram
ir visitar uns amigos. Falaram que queriam levar meu tio-avô, mas ele se
recusou a ir e lhes disse para irem sozinhos; então eles foram, embora ele não
andasse muito bem. Não comentei nada sobre isso, apesar de ficar aborrecido
com eles, por que⦠quem sou eu para falar alguma coisa? Assim que ficou só,
ele foi até o trailer de Ivo, deixou a cadeira do lado de fora e deu um jeito de
entrar. Depois, espalhou gasolina nos móveis, ligou o gás e acendeu um fósforo.
Acharam-no caÃdo no chão, perto do fogão. Falaram que deve ter morrido
sufocado pela fumaça antes de ser carbonizado.
Falaram que não deve ter sofrido.
Não sei se podem, de fato, ter certeza disso, ou se dizem apenas para
tornar as coisas menos horrÃveis. Algo que ninguém soube nos dizer é o motivo
de meu tio-avô ter se arrastado até o trailer de Ivo para fazer isso, em vez de
ficar no dele. Eu me pergunto se ele estaria tão furioso com Ivo por ter ido
embora a ponto de querer queimar para sempre os últimos vestÃgios de sua
presença; ou se estava destruindo algum indÃcio dos crimes de Ivo â" algo que
eu, obviamente, não notei. Todos nós vasculhamos as coisas do meu tio-avô
atrás de uma pista, ou de razões, qualquer coisa, na verdade. Mas não havia
coisa alguma. Nada.
355
Então, ficaram dizendo que ele fez de propósito. Que queria se matar.
Vovó não consegue aceitar isso. Ela me pediu para não contar a ninguém o que
a polÃcia havia falado.
â" Afinal de contas â" disse ela â", não sabemos se não foi apenas um
terrÃvel, terrÃvel acidente. É maldade eles falarem que era essa a intenção dele.
Eles não sabem. Não conheciam Tene.
Olhei para mamãe quando vovó disse isso. Senti que mamãe não
conseguia achar, não mais do que eu, que aquilo havia sido um acidente. Mas
ficamos calados.
Não tenho certeza de que seja verdade, mas me lembro de como ele
estava estranho naquela vez em seu trailer. Certas coisas que disse agora soam
como uma despedida. Eu nunca tinha visto meu tio-avô chorar antes. E embora
eu ache que Ivo é um covarde por ter fugido, nos deixando para limpar a
sujeira dele, não sinto o mesmo em relação a meu tio-avô. Não havia ninguém
que dependesse dele. Estava velho. Precisava de uma cadeira de rodas. Sofreu
praticamente de todas as maneiras que se pode imaginar e, depois, arrumou
mais uma doença para enfrentar. Eu chorei. Se eu tivesse voltado ao trailer dele
naquela vez, teria feito alguma diferença? Ninguém respondeu a esta pergunta,
porque não a fiz em voz alta.
⢠⢠â¢
Os rumores se espalham. E, entre os ciganos, eles circulam bem rápido
mesmo. Tivemos que seguir em frente e enterrá-lo, pois as pessoas começaram a
dizer que viriam prestar suas homenagens, e isso não era nada simples, porque
a polÃcia levou seus restos mortais e ficou com eles. Estão levantando uma
investigação. E, depois, houve uma discussão enorme em relação ao trailer.
O trailer do meu tio-avô, embora ele não tenha morrido lá dentro, foi
considerado mokady a partir do momento em que ele estava morto. Tia Lulu
veio nos ver â" isso aconteceu dois dias depois â" e nos disse que antigos
veÃculos Westmorland como o dele valiam um bom dinheiro e deverÃamos
vendê-lo e usar o dinheiro com Christo. Ele está sempre precisando de alguma
coisa, além de ser, agora, o único descendente de meu tio-avô (sem contar com
Ivo, já que ele se foi). Vovó ficou brava de verdade, e falou que ele deveria ser
queimado, que devia ter sido queimado há anos, quando minha tia-avó Marta
morreu. De fato, isso deveria ter sido feito muitos anos antes, quando seus dois
primeiros filhos morreram. E, como ele ainda estava por lá depois disso,
deveria ter sido incendiado quando Christina morreu. Segundo a vovó, seu
trailer deveria ter sido queimado quatro vezes, e ele é quatro vezes mokady
356
porque ainda está ali. Em resumo, ele é tão mokady que, se não o queimássemos
desta vez, todos nós morrerÃamos. Já vi minha avó furiosa antes, mas nunca tão
brava como naquele momento. Lulu estava zangada também. Disse que, se meu
tio-avô (elas o chamam de âœnosso irmãoâ agora, em vez de pelo nome) quis
guardá-lo após a morte de Marta, isso era problema dele, pois ele esperava que
ela voltasse para vê-lo, e Christo iria precisar de todos os tipos de equipamentos
e ajuda especial, o que custa caro. Ela disse que o trailer e as coisas que havia lá
dentro valiam, pelo menos, 2 mil libras. Falou que um bocado de gente costuma
comprar um trailer barato para realizar um funeral e, depois, se livra dele, e de
qualquer maneira, ele não morreu dentro deste trailer. Ela olhou para mamãe
ao dizer isso, como se achasse que teria seu apoio, mas mamãe nunca se
posicionaria contra a vovó nesse assunto. Ninguém me perguntou o que eu
achava, mas concordei com vovó. Acho que já tivemos muito azar, e dinheiro é
apenas dinheiro. Christo, que nada fez para merecer tudo o que tem acontecido,
merece que isso chegue ao fim. Mamãe disse que era a favor de queimar o
trailer, e fiquei contente.
Tem sido terrÃvel e estranho acordar todas as manhãs e, de repente, me
lembrar de que ele não está mais aqui, mas seu trailer sim, vazio e meio
assombrado. Assim que pudermos, chamaremos alguém para levar o que
restou do trailer queimado de Ivo, graças a Deus. É uma visão horrÃvel. Até
agora, há uma enorme mancha preta carbonizada no local onde ele ficava.
⢠⢠â¢
Quando a polÃcia finalmente liberou o corpo, já tinham se passado umas
duas semanas. Mamãe e Kath foram pendurar lençóis nas paredes do trailer
dele, preparando-o para o caixão. Não pude deixar de me perguntar o que
havia, de fato, dentro do caixão quando foi trazido pelos agentes funerários. É
algo horrÃvel de pensar, mas não consegui evitar. Deve-se vestir o morto com
suas melhores roupas, ao avesso â" mas quem faria isso? O caixão fechado foi
colocado dentro do trailer e, no dia seguinte, vários tipos de pessoa â" muitas
vindo do acampamento do outro lado da cidade, assim como outros â"
chegaram para lhe prestar homenagens. Mamãe e Kath tiveram que fazer chá o
dia todo. Eu e meu avô acendemos duas fogueiras na clareira â" uma para os
homens e outra para as mulheres â" e as pessoas se aproximaram e se sentaram
em volta para conversar. Acho que vovô se divertiu; nunca tÃnhamos sido tão
sociáveis desde que nos mudamos. Lulu esteve presente a maior parte do
tempo. Assim que a disputa sobre o trailer do meu tio-avô terminou, ela nos
ajudou bastante, indo buscar refeições e preparando chá, além de outras coisas.
Comecei a me perguntar por que ela havia ficado tanto tempo afastada de nós.
357
Mas, no meio de tudo isso, algo bacana aconteceu: alguns dias antes do
enterro, Stella veio me ver. Ela conseguiu que a mãe a trouxesse. De algum
modo, todo mundo está sabendo do incêndio e da morte do meu tio-avô. Até o
pessoal da escola. Fiquei tão surpreso ao vê-la que, de inÃcio, não sabia o que
dizer. Vovó achou que devÃamos mandá-la embora, que não era certo ela estar
ali naquele momento. E eu estava terrivelmente consciente de que havia aquela
mancha preta e enorme bem ali, no terreno, onde tudo havia acontecido. Stella
não parava de olhar para ela, embora o resto do trailer de Ivo já tivesse saÃdo
daqui. Felizmente, Lulu estava aqui também e ela me deu 10 libras, dizendo que
era para sairmos de lá e darmos um pulo até a cidade. Então, a mãe de Stella
nos levou até o shopping, e fomos assistir a Curtindo a vida adoidado.
Depois da sessão, fomos a um café em frente ao cinema e tomamos
refrigerante de mãos dadas. Não sei ao certo como foi que começou, mas foi em
algum momento, durante o filme, e, uma vez juntas, elas não se soltaram mais.
Pode parecer insensÃvel da minha parte, apenas uma semana após a morte do
meu tio-avô, eu sei. Não significou que eu tivesse me esquecido dele
completamente. Mesmo nas partes mais engraçadas do filme, eu, às vezes,
pensava nele, e tenho certeza de que Stella também pensava, embora só o
tivesse visto uma vez, e numa situação bastante embaraçosa. Acho que é por
isso que ela segurou minha mão.
Contei a ela sobre Christo, sobre termos que nos mudar para uma casa e
que eu teria que ir para outra escola. Stella afastou sua mão e olhou para a
espuma em seu copo.
â" Escreverei para você, se quiser â" digo.
Ela suspirou. Eu não sabia o que tinha feito de errado.
â" Stella?
â" Sabe, quando você⦠foi até a casa de Katie?
â" Sei.
Eu vinha temendo essa pergunta; de verdade, desde aquele momento em
que ela me viu no estábulo e pareceu aborrecida.
â" Vocês estavam⦠sabe⦠saindo juntos?
â" Hum, não. Não estávamos saindo juntos. Fui à casa dela uma vez. Ela
me chamou para tomar chá num dia de chuva. E me mostrou o cavalo dela; foi
assim que descobri um lugar para ir. Simplesmente, não conseguia pensar em
mais nenhum lugar.
358
Stella ergue as sobrancelhas de um jeito que sugere não acreditar
realmente no que eu disse.
â" Eâ¦?
â" E, hum, nós nos beijamos. Uma vez. E foi tudo. Você sabe como ela é
na escola. Nunca mais falou comigo depois disso.
â" Então, você gosta dela?
Eu queria dizer que não, mas achei que ela saberia que eu estava
mentindo.
â" Acho que sim⦠mas foi só naquela vez. E nunca fomos amigos.
Sabe⦠Sempre gostei mais de você do que de qualquer outra garota. Só que eu
achava que não havia nenhuma⦠você sabe⦠esperança.
â" Ah.
Stella olhou pela janela e bebeu seu refrigerante com o canudo. Seu copo
estava quase vazio e fez um som de gorgolejo. Eu chupei meu canudo e fiz um
barulho ainda mais forte. Então, ela começou a rir, e eu me senti à vontade para
rir também.
Então, Stella disse:
â" Sempre há esperança.
⢠⢠â¢
Para o velório, uso um terno escuro novo, camisa branca e gravata preta,
o que é bem esquisito. Mas, também, todo mundo está vestido de preto e todos
estão bem elegantes â" toda a minha famÃlia e uma dúzia de outras pessoas que
mal conheço, ou não conheço nem um pouco, e vieram à igreja apresentar suas
condolências. Todos apertam as mãos de vovó e de Lulu, que são os parentes
mais velhos do falecido. A outra irmã de meu tio-avô, Sibby, não veio da
Irlanda por causa de sua artrite, mas ela e o marido enviaram uma coroa de
flores vermelhas e brancas em forma de dossel. Há um monte de coroas de
flores. Há até uma no formato de uma cadeira de rodas. Fico surpreso. Nunca
pensei que meu tio-avô tivesse tantos amigos, mas são pessoas que devem ter
gostado um pouco dele. Não é como um daqueles enterros de que a gente ouve
falar, de parar o trânsito durante horas por causa das centenas de pessoas que o
acompanham, mas, ainda assim, há bastante gente.
359
Algumas apertam a minha mão também. E murmuram algo sobre como
é lamentável isso tudo, ou que é uma bênção e meu tio-avô está em paz agora.
Vários mencionam a falta de sorte que ele sempre teve. Ninguém sabe que ele
se matou. Algumas das pessoas mais velhas dizem que me pareço com ele. Uma
senhora idosa agarra meus cabelos com as duas mãos â" não estou brincando; e
nem sei quem ela é â" e diz que sou a cara dele. Eu me queixo para mamãe
depois, e ela me diz que claro que não, não sou a cara dele; tenho apenas o
mesmo tom de pele. Ela me explica que esse é só o tipo de coisa que as pessoas
costumam dizer â" e, se eu tivesse mais primos, provavelmente todos ouviriam
a mesma coisa, mas sou o único. Christo não está aqui, ainda se encontra no
hospital â" e, mesmo se não estivesse, provavelmente não o trarÃamos para cá.
De repente, percebo que, para um funeral cigano, não há muitos jovens e
crianças. Normalmente, há um exército de crianças correndo para todos os
lados, um monte de primos. Não na nossa famÃlia. Agora, sou uma espécie de
Último dos Moicanos. Eu e Christo.
Eu me pergunto â" imagino que todos nós nos perguntamos â" se Ivo
virá, disfarçado ou de outro modo, e fico sempre me virando e encarando as
pessoas que não conheço, nunca se sabe. Mas não o vejo, e não há ninguém que
pudesse ser ele, nem mesmo remotamente.
Eu me pergunto se ao menos ele sabe que o pai morreu.
360
CINQUENTA E SETE
RAY
Por fim, é a perspectiva de ver Lulu que me faz tomar a decisão. Foi ela,
afinal de contas, que me telefonou informando o horário e o local do enterro de
Tene. Quando ela me disse como ele morreu, ficamos em silêncio. Não consegui
perceber quão chateada ela estava. Fiquei imaginando se ela o tinha visto
novamente antes de morrer, mas não senti vontade de lhe perguntar.
Sigo de carro até Andover e encontro a igreja católica de tijolos
vermelhos, no meio de um condomÃnio residencial. Visto um velho terno azul-
escuro, que usei pela última vez no enterro de Eddie. Percebi, ao vesti-lo, que
emagreci desde então. Isso me animou ligeiramente. No geral, estou contente
que ele não esteja ali para ver a merda que fiz.
Aguardo em meu carro até todos entrarem na igreja. Em seguida, chego
calmamente e fico em pé perto da porta. Vejo a famÃlia lá na frente; Lulu entre
eles. Ela não se vira. Há muita gente aqui atrás, e encontro-me no meio de um
bando de homens usando ternos pretos bolorentos, todos aparentemente
preferindo ficar em pé a sentar-se num dos lugares vazios. Volta e meia, alguns
saem para fumar e bater um papo durante a breve missa. Vários outros nem
sequer se dão o trabalho de entrar.
Depois disso, espero afastado até que os Janko terminem de
cumprimentar as pessoas. Mas, enquanto aguardo, tentando não chamar a
atenção, JJ aparece a meu lado, com um ar tenso dentro de seu terno preto, os
cabelos presos num rabo de cavalo. A aparência dele, assim, fica diferente;
parece mais adulto.
â" Oi, Sr. Lovell.
â" Oi, JJ.
Apertamos as mãos.
â" Obrigado por ter vindo.
Ele soa sincero.
â" Tudo bem. Você está elegante. Lamento muito pelo seu tio.
361
â" Quem? Ah, o senhor quer dizer pelo meu tio-avô. Obrigado.
Ele parece estar bem â" mais confiante do que antes. Talvez esteja maior,
ou então seja apenas um efeito causado pelo terno e pelo cabelo; é possÃvel ver
que está virando um homem. Ele me conta que estão prestes a se mudar para
uma casa, com Christo. E que ele está fazendo grandes progressos.
â" Não está pensando em ir embora agora, está? â" pergunta ele. â" Tia
Lulu vai querer ver você.
O sangue lateja em meus ouvidos quando ele diz isso.
Ela falou com eles sobre mim. O que terá dito? JJ me deixa ali no pátio da
igreja, enquanto as pessoas começam a debandar, entrando em seus carros e
vans, dirigindo-se a um pub.
Fico ali, sentindo-me constrangido e preocupado, achando que ela vai
embora sem me ver, ou pior: logo que me vir. Mas, finalmente, ela se afasta de
um grupo perto da porta da igreja e vem em minha direção. Ela não sorri, mas
eu sorrio para ela; não consigo evitar.
â" Vamos andar um pouco â" diz ela, me conduzindo por uma alameda
entre fileiras de lápides.
â" Como vai? â" pergunto.
â" Vou bem. Obrigada por ter vindo.
â" Obrigado por ter me convidado. Lamento por seu irmão. É uma
tragédia terrÃvel.
Um trailer incendiado. Isso acontece. De vez em quando, ouço falar. E
pior â" uma prima mais nova da minha avó estava brincando ao lado da
fogueira quando seu vestido pegou fogo e ela morreu por causa das
queimaduras. Mas o momento em que Tene morreu â" logo após saber sobre
Ivo e Rose â" terá sido mesmo uma coincidência? Mais uma vez, isso não é algo
que eu possa perguntar. Não aqui.
Lulu pega um cigarro de sua bolsa â" uma bolsa de couro preta, por
conta da ocasião, mas de tamanho quase tão exagerado quanto a outra â" e,
após uma breve busca, encontra o isqueiro.
â" Ele não ia conseguir viver muito tempo daquele jeito. Talvez seja
melhor assim, ainda queâ¦
362
Ela encolhe os ombros e dá um trago no cigarro com uma expressão de
alÃvio.
Algumas pessoas dão a impressão de que fumar é bom. Lulu é uma
delas. Hoje ela está vestida de preto, usando sapato de solado grosso, com um
conjunto de saia preta com ares de anos 1940. O batom chega a brilhar tamanho
o frescor, e os cabelos parecem diferentes; mais claros talvez, ou, quem sabe,
seja uma nova cor, com reflexos bronze realçando o preto. Lulu parece
inatingÃvel, perfeita, linda.
â" Sempre me perguntei o que você guarda nessa bolsa.
Ela olha para mim.
â" Você sabe. Coisas. Para o caso de precisar de algo.
â" Pronta para as emergências? â" (Mas o que é que estou dizendo?)
â" É, esse tipo de coisa.
Seus sapatos estalam e se arrastam pelo concreto. Eu ficaria ouvindo esse
som para sempre.
â" Eu deveria pedir desculpas a você direito.
Lulu diz isso olhando para as lápides enquanto continua andando.
â" Não⦠Por quê?
Ela lança a ponta do cigarro atrás de uma lápide â" Ann Mendonza,
falecida em 1923 â" e apanha outro dentro da bolsa.
â" Tenho me sentido muito mal em relação a isso. O fato de ter contado a
Ivo, sabe⦠Foi estupidez minha. Eu queria⦠Não acredito que ele tenha feito
isso. Quer dizer, agora acredito. Acredito em qualquer coisa. Mas não que ele
faria algum mal a vocêâ¦
â" Fui eu que me comportei de maneira horrÃvel. Você não tem por que
se sentir mal. De qualquer maneira, eu lhe contei, portanto não fez diferença
alguma.
Ãs vezes, é melhor mentir.
â" Fiquei preocupada. Pensei que você fosse morrer.
363
Fecho meus olhos para degustar essas palavras. A frase mais meiga que
já ouvi. Os estalos na calçada param. Quando abro os olhos, ela está olhando
para mim.
â" Bem, eu não morri â" digo.
Ela suspira, franzindo levemente as sobrancelhas.
â" Não.
â" Lulu!
Passos apressados se aproximam.
É Sandra, andando decididamente em nossa direção em um traje preto
apertado, os olhos vermelhos de tanto chorar. Ela para a uns 15 metros de nós e
evita olhar para mim.
â" Oi, Sr. Lovell. Mamãe está no meu pé, Lu. Você vem conosco ou não?
Todos já foram.
â" Sim, estou indo.
Lulu vira-se para mim e, ao mesmo tempo, se afasta. Sinto que dei um
passo errado mais uma vez. A distância entre nós aumenta. Ela sorri; um
sorriso suave, simples.
â" Tchau, então. Obrigada por ter vindo.
â" Ok⦠Foi bom ver você.
Começo a segui-la de volta, em direção ao portão principal, até me dar
conta de que ela quer aparecer diante da famÃlia sozinha.
â" Vou telefonar⦠posso?
Não digo essas palavras muito alto. É mais para mim mesmo do que
outra coisa. Não sei se me ouviu. Sua cabeça se inclina; espero que seja uma
resposta afirmativa, mas não tenho certeza e, em menos de um segundo, ela já
virou a esquina e sumiu. Paro aleatoriamente em meio às lápides. A conversa
lacônica entre os acompanhantes do enterro aos poucos evapora-se. Sou a única
pessoa viva que sobrou por aqui.
364
CINQUENTA E OITO
JJ
Todo mundo se foi. Já preparamos tudo; estamos prontos para ir
embora. Vovó e vovô estão indo para um acampamento em Kent, onde moram
alguns de seus parentes. Pelo menos, por algum tempo. Mamãe e eu vamos
acampar na casa da tia Lulu até podermos ir para a nossa â" daqui a apenas
duas semanas. Mamãe encontrou um comprador para o trailer. Até lá, Christo
vai permanecer no hospital. Na próxima semana, vou para a nova escola, em
Londres. Não consigo imaginar como será minha vida daqui em diante.
Esvaziamos o trailer do meu tio-avô. As louças e outras coisas, como as
belas molduras de prata para fotografias, vão para um antiquário. Ajudei o
vovô a carregar os objetos em seu caminhão â" louças do dia a dia, recipientes
de metal, facas e garfos, todas as coisas mais resistentes, que não queimam,
tudo isso⦠E, mais tarde, naquela noite, fomos até uma ponte sobre o rio Itchen
e jogamos tudo n"água. Não havia ninguém por perto. Basta jogar e as coisas
afundam; e pronto⦠não se vê mais nada.
Só resta algo a fazer aqui, e nós a deixamos para o último minuto,
porque o fazendeiro a quem pertence essa terra não pode ficar sabendo.
Todas as coisas que sobraram e pertenciam ao meu tio-avô â" roupas,
discos, rádio, roupa de cama⦠até as fotografias, embora mamãe tenha
separado algumas para guardar numa gaveta â", tudo isso está dentro do
trailer, exatamente como na época em que ele estava lá. Vovô entra e espalha
gasolina por todos os cantos. Depois, sai e fecha a porta, e mal posso respirar,
temendo que algo dê errado. Acho que vou vomitar.
Ele entra no caminhão e sai, rebocando o trailer número um. Vovó dirige
o Land Rover rebocando o dois. E mamãe e eu estamos na van, com nosso
trailer atrás. Faz meses que ele não se movimenta. Seguimos lentamente pelo
caminho e nada acontece. Meu coração está disparado como um cavalo louco.
Eu me pergunto se vou ter um ataque cardÃaco.
Quando já estamos a mais de 1 quilômetro na estrada, vovô diminui a
velocidade e para. Está escuro, não dá para ver muita coisa, mas, aos poucos,
365
consigo ver a fumaça acima das árvores â" fina e branca entre o azul-escuro do
céu, mas ficando cada vez mais espessa e negra. Como da última vez.
Arrancando ruidosamente com o caminhão, vovô ganha a estrada. E nós
o seguimos.
366
III
CREPUSCULO
MATUTINO
367
CINQUENTA E NOVE
RAY
Ela fez: âœShhh!â
E não disse mais nada.
Não vi nada. Não podia. Pois ela havia coberto meus olhos, por
precaução. Mas pude sentir o cheiro; o gosto.
Fumaça nas minhas narinas.
Cinza na minha boca.
Ela deve ter me beijado.
Um desejo ridÃculo e inútil se expande dentro de mim. Uma eufórica
confusão. Fogos de artifÃcio de escopolamina â" acho que foi isso. Mas sei que
ela era real. É uma lembrança, não uma ilusão. Ela trouxe à tona minha
balbuciante confissão. Mas é neste ponto que tudo desaba, é nesta recordação:
na neblina e no medo. Uma imagem repentina em minha mente, e o som da voz
de Tene Janko: o nono filho, Poreskoro, cão e gato, macho e fêmea, nem uma
coisa nem outra. E isso não é uma lembrança, é claro, pois como poderia ser?
Então, isso é tudo o que me resta: como um cachorro leal e estúpido,
persisto fazendo a mesma coisa: vou até o hospital infantil todas as semanas
quando Christo faz fisioterapia. Ãs vezes, fico sentado no carro quando consigo
estacionar em frente à entrada principal, ou entro, sento na recepção, onde
posso ficar de olho na porta e ficar imaginando se os pássaros pintados no
mural são papagaios ou andorinhas. Felizmente, existe uma única entrada para
o público: portas duplas, com vidro reforçado, que deslizam automaticamente,
facilitando a entrada de cadeiras de rodas. Ãs vezes, converso com alguns pais.
O tempo todo de olho na porta pela qual ele teria que passar. Apenas a
paciência leva a alguma coisa, pois não há mais ninguém a quem fazer
perguntas.
Farei isso todas as semanas pelo tempo que for necessário. Pelos
próximos dez anos, se precisar, por causa daquilo que ele tirou de sua famÃlia.
368
De todos nós, até de mim. Por me agredir e me deixar no escuro. Pelo meu
braço direito, ainda sofrendo com formigamentos e que, ocasionalmente, ainda
para de funcionar. O tempo que for preciso, Ivo.
⢠⢠â¢
Hoje, Sandra me vê ao chegar com Christo. Ela me cumprimenta com um
aceno de cabeça. Normalmente, nossa interação resume-se a isso â" ela some na
unidade de fisioterapia e só volto a ver os dois quando vão embora. Naquele
dia, porém, para minha surpresa, ela volta até a sala da recepção e senta-se a
meu lado.
â" Você acha mesmo que ele vai voltar?
â" Ãs vezes, acho sim.
â" Você é muito⦠humâ¦
â" Obstinado?
â" Digamos que sim.
â" Como vai Christo?
â" Os médicos acham que agora sabem o que há de errado com ele.
â" É mesmo?
â" O nome é sÃndrome de Barth.
â" Acho que nunca ouvi falar.
â" É rarÃssima. Não se sabe muito sobre a doença.
â" E eles podem fazer alguma coisa?
â" Não podem curar. Ainda não. Mas podem deixá-lo mais saudável.
Segundo eles, de modo geral, essa é uma boa notÃcia.
â" Bom, é um primeiro passo. Então⦠é disso que tem sofrido sua
famÃlia?
â" É hereditário, sim.
Sandra faz uma careta. Pergunto-me se fizeram um exame com ela para
detectar a doença, se é que isso é possÃvel.
â" E como vão todos vocês? Estão em uma casa agora, não é?
369
É. Agora, temos uma casa. Finalmente nos mudamos da casa de Lulu.
â" Sei. Ã"timo⦠E como vai Lulu?
Sandra me olha de soslaio, com certa malÃcia. Não sei até que ponto está
a par do assunto.
â" Ela está bem. Arrumou um novo trabalho.
Sinto meu coração se chocar contra minhas costelas.
â" Ela até que gostava⦠do último, não é?
Sandra não reage, então concluo que ela não estava inteirada dos
detalhes do trabalho dela em Richmond.
â" Onde ela está trabalhando agora? â" insisto.
â" Num asilo para idosos em Sutton.
â" Seiâ¦
Ficamos olhando fixamente para a frente por um instante.
â" Quer tomar alguma coisa, Sra⦠hum, Sra. Smith?
Apanho dois copos de papel na máquina que se encontra no saguão e
volto a meu posto. Sandra sorri ao pegar sua bebida.
â" Meu filho se interessa bastante por seu trabalho.
â" É mesmo? Ele é um garoto esperto. Tenho certeza de que poderá fazer
um monte de coisas na vida.
â" Ele não para de falar em você. Seria muito gentil de sua parte se
pudesse conversar com ele um dia desses. Falar sobre formação escolar, esses
assuntos. Não sei o que dizer para ele.
â" Claro. Seria um prazer.
â" Eu mesma não estudei muito, sabe? â" Ela bebe seu chocolate quente.
â" Uau. Está fervendo, não está?
â" Sim⦠Você se incomodaria em me falar sobre Christina?
â" Christina? Minha prima? Meu Deus, por quê?
â" Porque ela⦠me parece tão misteriosa. Não houve enterro, certo?
370
â" Não há mistério algum. Ela morreu no exterior. E Tene estava sozinho
com Ivo. Você sabeâ¦
Ela dá de ombros, como quem diz: âœO que você quer? Essas coisas
acontecem.â
â" Quando foi a última vez que você a viu?
â" Deve ter sido antes de eu ter JJ. Éramos boas amigas quando jovens.
Embora fosse mais nova, ela era mais corajosa. Destemida, sabe? Mas então
Tene levou todos para a estrada. Praticamente não nos vimos mais depois disso.
â" Quantos anos você tinha nessa época?
â" Quando éramos amigas? Uns 8 anos.
â" O que aconteceu?
Ela faz um gesto de resignação.
â" Vocês e Ivo eram amigos também quando crianças?
â" Éramos, mas ele era mais jovem, adoentado, e tinha que ficar sempre
em casa. Quando Christina faleceu⦠Ivo e o pai partiram sozinhos. Ivo não
podia suportar ninguém, eu acho. Só voltei a vê-los no casamento⦠Quero
dizer, anos depois.
â" Passaram-se anos sem que você visse Tene e Ivo?
â" Não só eu, todo mundo.
â" Mesmo Kath, mesmo sua mãe? Nem ela voltou a vê-los?
â" Pois é. Não sei se eles se desentenderam por alguma coisaâ¦
â" Em que ano Christina morreu?
â" Em 1974. JJ estava com quase dois anos. Foi então que meus pais
voltaram a entrar em contato comigo. Acho que foi um choque para eles, sabe.
Todos nós estávamos meio acostumados com a doença, mas isso fez com que
vissem que as pessoas também morriam por outras razões.
â" Então⦠você e Ivo se tornaram amigos Ãntimos quando viviam juntos.
â" Éramos primos.
Ela parece na defensiva.
371
â" Você não ficou surpresa por ele não ter se casado de novo?
Agora estou chegando ao centro da questão. Ela não vai olhar para mim.
â" Por que está me fazendo todas essas perguntas?
â" Acho que é porque estou tentando entendê-lo.
Ela solta um grunhido de desdém.
â" Pode esquecer! Ninguém conseguiu entender o Ivo enquanto ele
estava aqui!
â" Nem mesmo você?
â" Eu menos ainda.
Sua voz ficou quase inaudÃvel. Ela tem seu copo na mão e está rasgando
as bordas, curvando-as e formando pequenos parapeitos.
â" Você gostava dele.
Tento dizer isso com a maior delicadeza possÃvel. Ainda assim, acho que
fui longe demais, e não vou obter uma resposta.
Depois de um tempo, ela diz, calmamente:
â" Ele não estava interessado. Quando você disse que ele tinha uma
namorada, eu pensei⦠talvez seja por isso.
â" Você acha que ele foi capaz de guardar esse segredo de todos vocês?
Ela suspira e se inclina para trás em sua cadeira.
â" Por que não? É assim que ele era, sabe⦠â" Ela ergue as mãos com as
palmas viradas para a frente. â" Não deixava ninguém chegar perto.
Olhando para mim, vejo que seu rosto está cansado. Somos dois
ingênuos trocando olhares. Soa como Rose, tudo novamente. Ivo e seus
segredos.
â" De qualquer maneira, ele foi embora. Fim da história.
Ela se levanta, pesadamente, e joga seu copo vazio no lixo.
372
SESSENTA
RAY
O outono começa a mostrar suas garras. O calor atrasado e de vida curta
se foi, as árvores começam a mudar de aparência no parque externo do hospital.
Atravesso a rua e noto que as primeiras folhas começam a cair, amassadas entre
meus pés e o chão.
Como de costume, quando chego ainda é bem cedo. Não quero que haja
a menor chance de deixá-lo escapar â" embora ainda faltem horas para as
consultas começarem. Hoje, pela primeira vez, é Lulu quem traz Christo ao
hospital. Não a vejo desde o enterro, não porque não quisesse, mas porque
minha carência de respostas revela uma insuportável â" para mim â"
incompetência. Ela parece idêntica⦠não⦠parece melhor⦠Não fica surpresa
quando me vê. Imagino que Sandra deve ter contado a ela que estou sempre
por aqui. Permito a mim mesmo, por um segundo, indagar se não terá sido por
isso que ela veio.
Depois de deixar Christo com o fisioterapeuta, ela volta à recepção.
Parece tensa, eu acho. No entanto, também me sinto assim.
â" Oi, Ray.
â" Oi. Como vai?
â" Tudo bem⦠e você?
â" Não posso me queixar. E como está Christo?
â" Vai bem. Os médicos parecem satisfeitos com ele. De vez em quando,
ele diz alguma coisa, sabe?
â" É mesmo? Isso é ótimo. E fizeram um diagnóstico. Sandra me contou.
â" Fizeram, embora não seja tão promissor.
â" Pelo menos, agora vocês sabem do que se trata. É sempre melhor
conhecer o que temos de enfrentar, não é?
Lulu pensa por um segundo e então diz:
373
â" Acho que sim.
Ela senta-se a meu lado, de modo que não consigo vê-la direito. Seu olhar
está mais à frente, observando duas crianças que se encaram em cima de um
brinquedo.
â" Como vai seu trabalho? Anda muito ocupado? â" pergunta ela.
â" Sim⦠E você?
â" Muito ocupada. Na verdade, larguei o trabalho em Richmond. Voltei a
trabalhar num asilo.
A voz muda de tom, adotando uma nota mais baixa.
â" Ah⦠E como está se saindo? â" pergunto.
â" Tudo bem.
Espero Lulu falar mais alguma coisa sobre o assunto, mas ela desvia a
conversa.
â" Como está sua mão?
â" Vai bem. Ainda um pouco dormente. Mas já consigo fazer a maior
parte dos movimentos. Eu a agito para mostrar que já posso mexê-la.
â" Deve ser um alÃvio.
â" É, ser capaz de dirigir, especialmente. E digitar⦠os números de
telefone. É incrÃvel como pode parecer simplesâ¦
â" É mesmo. Ela me oferece um breve sorriso. Sinto meus ouvidos
latejando. Pergunto-me se devo tomar aquele sorriso como um incentivo.
â" Então⦠você estáâ¦? Seu trabalho, quer dizer⦠hum, em que tipo de
asilo você trabalha?
â" Idosos. Eles não são tão chatos, a maioria deles. Não estão tão senis
assim, nada disso. É um lugar bem agradável. E não muito longe.
â" Ã"timo. É uma mudança, de qualquer modo.
â" É.
Ficamos em silêncio por um momento. Vou meter uma bala na cabeça se
não conseguir perguntar, eu acho.
374
â" Você ainda o vê? Lulu fica imóvel e eu, instantaneamente, me
arrependo.
â" Desculpe⦠â" Tento corrigir. â" Isso não é da minha conta. Esqueçaâ¦
â" Não, não é. Não.
Ela respira fundo e olha para o mural na parede oposta. No alto dele, há
um sol amarelo e brilhante. Os pássaros improváveis voam ao seu redor. Lulu
dá um sorrisinho.
â" Na verdade, é bem engraçado. Ele encontrou alguém. Alguém mais
parecido com ele.
â" Numa cadeira de rodas? Isso escapa antes que eu tenha noção do que
estou dizendo.
â" Não! Uma mulher gorjio e elegante.
â" Ah, entendo. Tudo bem. Imagino que você⦠esteja ok?
â" Estou. Tenho que estar, não é mesmo? Pelo menos, arrumei outro
trabalho.
Sua voz soa cansada. Talvez Lulu gostasse mesmo dele. Pergunto-me o
que posso dizer em seguida. É vital que não haja engano. Ela verifica as horas
no relógio.
â" É melhor eu ir ver como ele está.
Então, ela olha para o alto, seu olhar me ignora e ela parece congelada.
Olho para seu rosto, depois sigo seu olhar até as portas duplas. Meu
primeiro pensamento é: deve ser o David. As portas abrem-se
automaticamente, pois uma mulher está em pé diante delas, mas, em vez de
entrar, ela recua; os olhos varando a sala de recepção, atentos. Eu relaxo. No
inÃcio, parece vagamente familiar, mas não é alguém que eu conheça.
E, apenas quando seus olhos encontram os meus, me dou conta. É a
reação que vejo que me convence de que não estou sonhando. O terror em seus
olhos. A culpa. Num segundo, ou menos que um segundo, não há mais
ninguém na passagem das portas.
Lulu agarra meu braço.
â" Puta merda!
375
A voz dela é um grito estrangulado.
Levanto-me e corro até as portas, Lulu a meu lado. E, desesperadamente,
temos que esperar as portas se reabrirem, lenta, delicada, automaticamente.
SaÃmos correndo sob a luz forte lá fora. Nem no estacionamento, nem na
calçada, em lugar algum.
Lulu vai para a esquerda; eu, para a direita.
Ivo â" usando um vestido florido de algodão e um suéter largo â" só
teria saÃdo por aqui, mas não o vemos, e não há muita gente atrás de quem
pudesse se esconder. A calçada vazia. Nenhum carro saindo do estacionamento.
Corro pela rua, verifico as entradas das casas, o portão do parque.
Nenhum sinal dele. Pode ter entrado numa loja, imagino, qualquer loja; num
escritório⦠Vejo um casal caminhando pela calçada oposta; corro até lá e
pergunto se viram alguém, uma mulher, alguns instantes antes.
â" Ele saiu um pouco antes de mim, cabelos pretos, vestido azul de
algodão⦠Quer dizer, ela saiu⦠Vocês não viram alguém assim?
O casal â" turistas, cheios de mapas, capas e câmeras fotográficas â" olha
para mim com uma expressão abobada, balançando a cabeça. Parecem
assustados comigo.
Recomeço a correr até chegar a um cruzamento. Não o vejo. Não faz mais
sentido ir para a direita ou para a esquerda. Escolha uma direção, e a outra
estará perdida. Se me enganar, não terei outra oportunidade. Sigo pela direita.
Acabo correndo e andando apressado, passando por uma esquina após a outra.
Minhas pernas queimam; meus pulmões se queixam. Estou fora de forma desde
que fui internado. Mentira. Quando é que estive em forma pela última vez?
Volto correndo até a primeira esquina e tomo outro caminho. Não vejo Ivo em
lugar algum.
Após um tempo, estou curvado, as mãos nos joelhos, respirando fundo
com meus pulmões em chamas, vendo uma mulher empurrando uma criança
num cavalinho de madeira e rodinhas. Os dois param na faixa de pedestres. Os
cabelos louros da criança balançam quando ela vira a cabeça para os dois lados.
Não dá para dizer se é um menino ou uma menina. A mãe me vê ali parado e se
apressa para atravessar a rua, um olhar preocupado e hostil.
Ao voltar enfim para a recepção do hospital, Lulu já está lá, conversando
com um funcionário. Ela se precipita em minha direção, o olhar interrogador.
376
Balanço a cabeça. Voltei andando devagar para recuperar o fôlego e
esfriar a cabeça. E para pensar.
â" Você não o viu? â" Sua voz soa angustiada e furiosa. â" Eu não o viâ¦
mas, por onde passei, havia um monte de lojas⦠talvez⦠â" Ela ergue as mãos,
frustrada. â" Que droga!
â" Desculpa, também não o vi. Mas não há tantos lugares assim para ele
sumir. Devia estar de carro.
â" Não acredito. Aquele puto pervertido⦠Como ousa⦠Vou acabar
com aquele desgraçado!
Sua voz estremece com a raiva. Lágrimas ameaçadoras cintilam em seus
olhos.
Balanço outra vez a cabeça. Lulu não vai acabar com ele. Acho que isso é
impossÃvel.
377
SESSENTA E UM
RAY
Quando volto para casa, resolvo beber algo forte. Sirvo-me uma vodca
com água tônica. Preciso disso, embora não mereça. Fico sentado por um bom
tempo, a luz apagada, observando os trens passarem, suas luzes cada vez mais
brilhantes à medida que o dia esmaece, ouvindo os aviões rosnando no céu: um
ritmo monótono, estridente, com o qual pensei que nunca me acostumaria, mas
agora, quando passo algum tempo em outro lugar, descubro que me faz falta.
Aciono a secretária eletrônica. Andrea liga para mim nos dias em que
passo no hospital, a fim de me atualizar. Hen disse que eu deveria esperar até a
manhã seguinte, já que isso não faria a menor diferença. Querida Andrea⦠Em
sua mensagem, consigo escutar o ruÃdo do lápis riscando os itens no papel Ã
medida que ela vai falando.
âœOi, Ray. Nada de muito importante a informar hoje. Hen está
verificando o pagamento de Porter; até agora nada. Algumas averiguações
sobre casos conjugais. E um policial chamado Considine telefonou. Pediu para
você retornar a ligação quando tiver tempo.â
Conscienciosamente, ela deixou o número. Do telefone residencial.
Quando digo meu nome, percebo pela voz que algo aconteceu.
â" Alguma novidade?
â" Sim.
â" Conseguiram descobrir a identidade?
â" Não. Mas Hutchins me ligou hoje. Acaba de voltar de férias.
Ele soa estranhamente hesitante.
â" E aÃ?
â" Bom, agora ela diz que o corpo era de um rapaz, provavelmente com
15 anos, mas subdesenvolvido.
378
â" Você está falando do corpo em Black Patch?
â" Isso.
â" Com as flores de madeira.
â" Não conheço nenhum outro.
â" O corpo em Black Patch é de um garoto.
â" Exato. Surpreendente, não? Ao que parece, o laudo é bastante
conclusivo. Hutchins disse que a margem de erro é de apenas três por cento.
Mudo o fone de ouvido para ganhar tempo, pensando que é muito
preciso, mas é muito pouco também. O sentimento que vem com esse
pensamento é, estranhamente, o de felicidade.
â" Ray? Ainda está na linha?
â" Estou. Mas, como se trata de uma ossada jovem, pensei que não fosse
possÃvel ter certeza. Pensei que eram mais complicados.
â" Ela parece ter certeza, agora. Acharam os ossos pélvicos e
reconstituÃram tudo. O crânio também.
â" Ela explicou o que quer dizer com âœsubdesenvolvidoâ?
â" Disse que poderia parecer mais jovem do que a idade real. Pequeno e
leve, sabe? Pode ter sofrido alguma doença que retardou seu desenvolvimento.
E outra coisa: não há causa evidente de morte.
â" Certo.
Eu espero. Pelo que, não sei.
â" Lamento, parceiroâ¦
Desligo o telefone. Engulo de uma vez a vodca com tônica. Em seguida,
telefono para a casa de Gavin. Leva um tempo enorme para eu conseguir falar
com ele. A babá me informa que ele saiu e tenho que esperar seu retorno. Ele
não parece muito satisfeito em ouvir minha voz às 23h30, mas, Deus o abençoe,
está disposto a conversar.
Quando desligo o telefone, 20 minutos depois, sei que não vou conseguir
dormir.
⢠⢠â¢
379
Ela parece estar desconfiada e impaciente.
â" Meu Deus, já passa de meia-noite!
â" Você estava dormindo?
â" Não.
â" Foi o que pensei. Fiquei pensando no que aconteceu hoje. E⦠posso ir
até aà para ver você? Tenho algo a contar.
â" Agora? No meio da noite?
â" Eu sei. Mas quem sabe haja um lugar aberto, um bar ou qualquer
coisa? Tem algum lugar assim perto de você?
â" Acho que não.
â" Bom, então vai ser preciso aguardar. Desculpe incomodar.
Um suspiro.
â" Tudo bem. Não vou conseguir dormir de qualquer maneira⦠Meu
endereço é Tennyson Way, 24⦠ah, mas você já sabe disso, não sabe?
⢠⢠â¢
Lulu preparou uma xÃcara e a colocou sobre uma bandeja na sala de
estar. O cômodo é pequeno, mas bem-arrumado. Ela está vestida como antes.
Eu me troquei. Tomei uma ducha também.
â" Então, o que há de tão importante assim?
Passei um bom tempo tentando achar um meio de lhe contar. Ainda não
cheguei a uma conclusão.
â" Sei que vai parecer loucuraâ¦
Ela se acomoda na poltrona e acende um cigarro. Depois, lança uma
baforada em minha direção. Seu olhar já é cético.
â" Você se lembra do que falei sobre os restos humanos encontrados em
Black Patch?
â" Aqueles que não são os de Rose?
â" Exato. Mas havia flores de madeira ao lado, então pareciam ser os de
um cigano. Eu tinha certeza de que Ivo e Tene tinham alguma ligação comâ¦
380
essa pessoa. Pensei que podia ser a mãe de Christo, quem quer que fosse ela.
Mas, nesta noite, descobri: os restos são de um rapaz e não de uma moça. Um
rapazinho de seus 16 anos. Muito pequeno para a idade e fraco. O patologista
disse que isso se devia, provavelmente, a uma doença que afeta o
desenvolvimento. A doença de Christo.
Lulu me encara. Então, desvia o olhar.
â" E daÃ?
â" O que estou dizendo é que⦠â" Respiro fundo. â" E se Ivo tiver
morrido em Black Patch, há 12 anos? Ivo está morto; como os irmãos, como os
tios. Ele tinha a sÃndrome de Barth. Nunca se recuperou. Não houve milagre.
Ela fixa os olhos em mim; parece preocupada, ligeiramente compassiva.
â" Nós vimos Ivo hoje!
â" Outra coisa que descobri é que a SÃndrome de Barth só pode ser
transmitida pela mãe. Christo deve ter tido uma mãe portadora. Ele deve ter
tido uma mãe da famÃlia Janko e não um pai.
â" Mas Ivo não está morto! Nós o vimos hoje. Você viu.
Lulu continua me olhando. Ela está concluindo, com tristeza, que estou
perdendo o juÃzo. Respiro fundo novamente.
â" E se Christina não tiver morrido?
Seu olhar é penetrante. É assim que me parece: o olhar dela me machuca.
Preferia não ter que fazer isso. Lulu balança ligeiramente a cabeça e olha para o
chão.
â" Isso é loucuraâ¦
â" Sei que parece inacreditável.
â" Inacreditável! Você está dizendo que⦠o que está dizendo?
â" Estou dizendo que a pessoa que você conhece como sendo Ivo, na
verdade, é Christina nos últimos 12 anos.
Lulu balança a cabeça e solta um suspiro que parece uma risada.
â" Você está doente, Rayâ¦
â" Pense no que vimos ainda hojeâ¦
381
â" Eu vi Ivo!
â" E se⦠apenas imagine, se não fosse Ivo disfarçado de mulher, mas
Christina que, pela primeira vez em anos, não estava disfarçada de homem?
Ela não me responde. Eu prossigo:
â" A doença, a SÃndrome de Barth, nos dá a resposta. Lulu⦠ouça, por
favor: são fatos. Christo não podia ter herdado a doença do pai. Falei com
Gavin, o médico; isso não é possÃvel. Trata-se de um distúrbio genético
recessivo associado ao cromossomo X. Isso significa que só pode ter sido
transmitido pela mãe. A mãe dele, Christina.
â" Christina morreu! Ela está morta!
â" Outro fato que sabemos, com certeza, é que a sÃndrome de Barth é
incurável. Não há como ficar curado. A recuperação de Ivo não é um milagreâ¦
Não era Ivo.
Lulu esmaga o cigarro fumado pela metade dentro do cinzeiro. Sua
expressão parece rÃgida, desairosa.
â" A morte de Christina â" continuo â" foi uma⦠ficção. Por isso, não
houve enterro. É por isso que ninguém sabe o que aconteceu ou ondeâ¦
Não consigo pensar em mais nada para dizer. Tomo coragem e volto a
olhar para ela. Está acendendo outro cigarro; seu chá, assim como o meu,
permanece intocado. Quando ela fala, a voz é áspera.
â" Por quê?
A adrenalina, a certeza que estava me sustentando, repentinamente foge.
Cubro o rosto com as mãos. Acho que sei, mas é pura especulação. Tudo parece
tão esfumaçadoâ¦
â" Apenas Christina sabe responder isso com certeza; e Teneâ¦
â" Meu irmãoâ¦?
â" Ele devia saber. Ele estava lá. Quer saber o que penso, Lulu?
De repente, vejo lágrimas escorrendo por seu rosto, embora ela se
mantenha em silêncio. Seria mais suportável se ela desabasse em turbulentos
soluços; se desmoronasse, eu poderia confortá-la, mas não terei essa
oportunidade. Seu rosto está molhado, mas perfeitamente inerte, como um
manequim esquecido na chuva. Seus ombros estremecem de vez em quando.
382
â" Hum, bem⦠acho que eles eram muito próximos, Ivo e Christina â"
digo. â" Ivo foi ficando cada vez pior. A mãe deles tinha morrido; você sabe de
tudo isso, é claro. Tene levou Ivo para Lourdes, numa derradeira tentativa de
ajudá-lo, mas não funcionou. Ele morreu; talvez em Black Patch, não sei⦠mas,
de qualquer forma, eles o enterraram lá, secretamente, de modo que ninguém
viesse a saber. E, entre eles, decidiram que⦠seria Christina que teria morrido.
Ivo era o último Janko. O único menino, aquele no qual colocaram suas
esperanças⦠E não suportavam a ideia de perdê-lo.
Ela permanece calada. Sem olhar para mim. Sem saber o que fazer,
prossigo:
â" Eles eram muito parecidos, não eram? Eu vi as fotografias. Durante
anos, ninguém de sua famÃlia se encontrou com Tene e⦠bem⦠com quem eles
pensavam ser Ivo. Até o casamento. E, naquela época, a pessoa que todos vocês
pensavam ser Ivo tinha se transformado de uma criança adoentada em um
adulto saudável. Claro que ele mudou. Sei que é tremendamente espantoso,
mas não é impossÃvel.
Lulu agora olha para mim com uma expressão de raiva. Ela cospe as
palavras.
â" Não é impossÃvel? Você acha que somos estúpidos ou algo assim?
â" Não! Claro que não. Eu também não percebi.
â" Kath, Jimmy e Sandra viam Ivo diariamente! Durante seis anos, todos
os dias! Acha que eles não notariam?
Engulo em seco. Deveria ter previsto isso.
â" As pessoas aceitam o que veem. Quando todos viram Tene de novo, o
que esperavam? Sabiam que a filha dele tinha morrido, sabiam que Ivo havia se
recuperado⦠Se alguém parece ser alguma coisa, você aceita. E, uma vez que é
aceito⦠Acho que ele teria ficado mais preocupado em ver pessoas como você,
que raramente fazia visitas, não com as que via todos os dias.
Percebo que, contra sua vontade, ela está pensando no que eu disse.
â" Ele se casou. Por que se casaria? Se era preciso⦠guardar esse
segredo?
Esta é a parte mais difÃcil. Se eu tiver razão, é horrÃvel. Parece não haver
mais oxigênio suficiente na sala.
383
â" Pelo que Rose me disse, ela nunca conseguiu se aproximar de Ivo a
ponto de descobrir alguma coisa.
â" Então, para que se casar?
â" Tene se preocupava com o puro sangue negro, não é? O sangue puro
dos Janko. Acho que pensavam que, se encontrassem uma moça realmente
inocente de sangue puro, ele poderiaâ¦
â" Pare! Pare! Pare⦠de falar essas coisas.
Sua voz parece uma faca cega. O rosto, pálido e cheio de lágrimas, afasta-
se de mim.
Eu aguardo, mal conseguindo respirar, encarando o perfil dela,
desejando que ela se volte para mim e diga qualquer coisa. Os segundos se
arrastam. Então ela diz, em voz baixa, olhando para o tapete:
â" Talvez seja possÃvel, não sei. Talvez haja uma resposta inteligente que
faça tudo se encaixarâ¦
Lulu respira fundo, trêmula.
â" Mas não é verdade⦠e você não pode acusar as pessoas dessa
maneira.
â" Não estou⦠talvez não seja⦠masâ¦
â" Quero que vá embora. Saia!
â" Certo. Sinto muito. Eu⦠me desculpe.
Ela crava uma lâmina pequena e fatal em meu coração.
â" Quero que vá embora. Simplesmente, vá embora. Não quero mais ver
você.
Depois de um momento, eu me levanto. Ela não olha para mim quando
saio.
384
SESSENTA E DOIS
RAY
Quando chego à porta da minha casa, uma grande raposa passa correndo
pela entrada. Parece ser a única criatura acordada quando volto. Não há luzes
acesas nas casas vizinhas. Não há trens, nem aviões. As ruas respeitam um
silêncio profundo e total. Paro com as chaves na mão, banhado pela luz
amarelada do poste de rua, que afugenta o animal. Ninguém sabe que estou
aqui, pois ninguém está olhando. Ainda não amanheceu, porém há luz
suficiente para enxergar alguma coisa, na cidade â" para enxergar que uma
raposa é uma raposa, que um cachorro não é um lobo, e que um detetive
particular cometeu um terrÃvel erro de julgamento. Mas é preciso olhar.
Lulu teria que descobrir, mais cedo ou mais tarde, digo a mim mesmo.
Todos eles. Por que deveriam ser poupados da perturbadora e indigesta
verdade? Há coisas que eles nunca terão que saber, como a sedução por meio
das drogas, e existem coisas que não há como saber, só podem ser imaginadas.
Eu as suponho, pois esse é meu trabalho. Um trabalho que, neste caso, não foi
bem realizado. Principalmente porque me sinto um tolo. Burro. Um cão
estúpido, latindo para a árvore errada por muito tempo. Um cão vira-lata.
Tenho certeza de que Lulu se sente tola também. Humilhada por causa das
mentiras contadas. Depreciada. E, quanto mais tempo mentem para você, pior é
a sensação.
Entro pelo corredor e subo os degraus até meu apartamento, meus
passos ecoando bem ruidosos e pesados, a chave retinindo na fechadura. A
verdade também machuca â" foi o que Lulu disse; machuca, talvez, mas, a
longo prazo, com certeza, é melhor⦠não é?
O apartamento me parece pequeno e imundo sob a luz. Pelo fato de ser
alugado, nunca fiz muito esforço; sempre achei que havia uma chance de Jen
me aceitar de volta. Agarrei-me a isso. Não mais, agora. Já faz tempo que eu
devia ter me mudado. Encontrado um lugar adequado para mim. Algo
permanente. Algum lugar em que eu não fique observando as pessoas em
trânsito.
⢠⢠â¢
385
Já está tarde quando me deito, observando os objetos sombrios no
escuro. Ouvi dizer que isso cura a insônia, mas acho que não conseguirei
dormir esta noite. Eu imaginava que ela ficaria impressionada? Em parte, sim.
Mas não pensei o bastante sobre o que isso significaria. O que suponho â"
deduzo â" é que Tene e Christina fizeram isso por puro desespero e dor, e uma
incapacidade, uma rejeição à ideia de ver a famÃlia morrer.
Eles teriam dado tudo para salvar Ivo, mas não havia nada que
pudessem fazer. Imploraram por um milagre e foram ignorados. E, quando Ivo
enfim morreu, naquele pântano deserto, pouco depois de voltarem de Lourdes,
suponho que tenha sido, então, que ela deu sua vida pela dele. Do único jeito
possÃvel.
Loucura. Ou talvez tenha sido este o milagre.
Também estou assumindo, eu acho, que ela queria trocar uma vida de
aparências e submissão por uma vida de mentiras. O que Sandra havia dito
sobre Christina? Ela era corajosa. Sim. Talvez. Talvez isso oferecesse a saÃda que
ela já estava procurando.
Não foi Tene, com aquele jeitão cheio de rodeios, quem me disse isso? O
nono filho, Poreskoro â" nem macho nem fêmea, mas ambos. O mais terrÃvel de
todos os filhos. Isso explica muita coisa sobre Ivo â" o rosto imberbe, que
julguei ser uma sequela da enfermidade, as roupas pesadas, o medo da
intimidade⦠E, é claro, o que aconteceu comigo naquela noite.
Um jogo perigoso. Eles apostaram e perderam; com Christo, todo aquele
ciclo trágico recomeçou.
Poreskoro, o filho mais terrÃvel de todos. É surpreendente, eu sei. Mas
algumas coisas são surpreendentes.
Eu poderia estar enganado. Talvez Tene não seja o pai de Christo. Tudo
isso é conjectura. A única coisa que sei realmente é que o corpo em Black Patch
é de um rapaz cigano â" e que a mãe de Christo era membro da famÃlia Janko.
São fatos. São provas.
Porém, no mais, todas as coisas não são sequer informações; são apenas
muita fumaça.
386
SESSENTA E TRÊS
JJ
Nossa casa nova fica no número 23 da Sunningdale Lane. Gostei do
nome da rua logo que ouvi pela primeira vez. Achei que soava como uma
alameda campestre sob o sol do verão, cheia de ramos verdes. Sossegada.
Meninas com seus cavalos trotando por ela.
Claro que não é assim. É uma caixa de tijolos vermelhos cercada por
outras iguais numa rua comprida por onde passam ônibus e que tem, portanto,
um trânsito bem barulhento. Mas meu quarto (nossa, como isso soa esquisito)
fica nos fundos e dá para o jardim (!), que é bem grande e se encontra ao lado
da área de esporte da minha escola, ou seja, é mais sossegado. Posso deixar a
janela aberta e ouvir os galhos das árvores se mexendo e os pássaros cantando,
até mesmo os uivos das raposas â" isso tudo e estamos praticamente em
Londres, embora o código postal o desminta.
É tão estranho viver numa casa. Mamãe morou em uma antes â" quando
meus avós a expulsaram por ter me dado à luz (então, talvez eu também tenha
morado numa casa antes, mas não lembro). Na verdade, às vezes é muito
estranho, e no restante do tempo (a maior parte do tempo, para ser honesto) não
é nada estranho. Quando me mudei para meu quarto, ele pareceu enorme e
solitário â" eu não quis fechar a porta â" e tive a impressão de que nunca
conseguiria preenchê-lo com minhas coisas e minha presença. Mas, agora,
poucas semanas depois, parece que estou acumulando mais coisas;
expandindo-me, de algum modo. Andamos falando sobre comprar um piano.
Vou pintar meu quarto de azul-celeste.
Uma coisa que eu adoro é ir até o andar de cima para me deitar. Ou só
subir até lá. E, depois, olhar pela janela. A gente se sente diferente quando está
no alto. Não é tão alto, então, se houver um incêndio, posso pular no gramado e
não me machucar. Eu penso bastante nisso. Sonho com incêndios; verdadeiros
pesadelos. Meu tio-avô não está neles, mas o fogo, sim. Não os tenho todas as
noites, só às vezes. Acordo suando, e fico contente que estejamos na cidade e
não num bosque, pois sempre há um pouco de luz dos postes de rua. Não
quero acordar no escuro.
Outra coisa que mudou é que não suporto mais comida chinesa.
387
O quarto do Christo fica no térreo. Ele precisa de acesso para a cadeira de
rodas, embora esteja ficando mais forte graças à fisioterapia. E está falando
mais, embora nem tanto assim ainda. Os médicos acham que talvez ele tenha
uma doença que descobriram na Holanda. Uma doença genética rara, e ainda
não sabem muito sobre ela, mas sempre há esperança. A boa notÃcia é que não
tenho isso, e não vou ter, pois se nasce com ela. Fico aliviado, e me sinto
culpado por esse alÃvio. Só quero que Christo viva momentos formidáveis com
a gente. Ele pode morar comigo a vida toda. Não me importo â" na verdade, até
gosto. É o mÃnimo que posso fazer.
⢠⢠â¢
Ontem, Christo teve sua mais recente consulta. Lulu o trouxe de volta e
ela estava bem nervosa. Falou alguma coisa para mamãe e, depois, mamãe me
pediu para levar Christo para o jardim até que ela nos dissesse para voltar. Foi a
primeira vez que ela fez algo assim. Sei que os gorjios guardam muitos segredos.
Então, ela bateu a porta da sala de estar e, apesar de conseguir ouvir que
estavam conversando, não conseguia entender o que diziam. Felizmente, fazia
um fim de tarde agradável e as últimas andorinhas cantavam e voavam em
volta dos fios telegráficos. Achamos algumas minhocas e procuramos insetos
pegajosos embaixo do depósito de ferramentas; depois, tentamos fazer com que
apostassem corrida. Christo é capaz de ficar fazendo isso horas a fio, mas,
depois de uns quarenta minutos, mamãe veio e disse que era melhor entrarmos,
senão Christo poderia pegar um resfriado.
Ela se comportou de um jeito diferente no restante da noite.
⢠⢠â¢
Isso foi na noite passada. E então, hoje de manhã, Lulu apareceu de novo.
Não são nem 9 horas, mas ainda estou em casa porque é sábado. Na verdade,
para ser absolutamente franco, quando escuto a campainha, ainda estou na
cama. Mamãe vai abrir e ouço a voz de tia Lulu â" soando alta e transtornada.
Percebendo que alguma coisa está acontecendo, desço silenciosamente a escada
de pijama. Desta vez, elas estão na cozinha, com a porta fechada, mas mamãe,
com certeza, pensa que ainda estou dormindo.
â" O quê? O quê?
Ela está praticamente berrando.
â" É o que eu disse. Eles trocaram de identidade durante todos aqueles
anos⦠e ele disse que isso explica tudo, por causa da doença e⦠Meu Deus,
San, isso está me deixando louca⦠â" Lulu parece estar à beira das lágrimas;
388
algo difÃcil de imaginar. â" Mas não pode ser verdade. Você o conhece melhor
do que eu⦠Quer dizer, é loucura, não é?
Mamãe não diz nada que eu consiga escutar da escada. De que diabos
estão falando? Pelo tom de voz, deve ser algo terrÃvel. Começo a me mover
vagarosamente até a porta da cozinha quando, para meu pavor, escuto minha
mãe chorando; soluços trêmulos e incessantes. Isso é demais para mim; então,
paro de rastejar e abro a porta.
Lulu e mamãe tomam um susto e olham para mim. As duas parecem
muito pálidas e esquisitas; Lulu tem os braços apertados em volta do corpo e
sua expressão é diferente â" menos corada e com uma aparência um tanto
exausta. Mamãe andou passando as mãos pelos cabelos, deixando-os
arrepiados em todas as direções. Ela detesta quando ficam assim. Eu me
pergunto se devo ficar furioso com tia Lulu por perturbar minha mãe desse
jeito, num sábado, quando me dou conta de que me enganei em relação àquele
som que escutei. Apoiada contra o fogão, com os olhos arregalados e se
balançando, mamãe não está chorando. Está rindo.
389
SESSENTA E QUATRO
RAY
Várias vezes, nos dias que se seguiram, penso em ligar para ela. Deveria
ligar e pedir desculpas. Atenuar algumas de minhas suposições. Mas não sei
como me desculpar pela verdade. Talvez eu devesse conversar com Sandra;
depois, penso que é melhor deixar para o próximo encontro no hospital
quando, imagino, Lulu não virá.
Não tenho trabalhado muito desde aquele dia; parece que sou incapaz de
me concentrar. E, cada vez que estou a ponto de contar para Hen o que
aconteceu, alguma coisa me impede. Terei que contar, em algum momento, mas
não sei como; talvez seja porque a pergunta que, indubitavelmente, ele vai me
fazer eu não saberei responder, embora eu ache que devesse. E, então, de
repente, o telefone começa a tocar; inacreditavelmente, é ela. Começo a suar.
â" Eu ia ligar para você. Queria me desculpar por ter falado daquela
maneira. Foi estupidez minha. â" Disparo de uma vez só.
â" É. Foi mesmo. Tenho pensado⦠sobre tudo o que você disse. Falei
com Sandra, sabe, e o que aconteceu foi que, depois de um tempo, ela começou
a rir. Ela disse que não pode acreditar. Ela o conhece melhor do que ninguémâ¦
Quer dizer⦠você está me entendendo?
â" Estou⦠Ah. Bemâ¦
â" Fiquei tão furiosa⦠Aquilo foi um⦠tremendo choque.
â" Não, não, eu deveriaâ¦
⢠⢠â¢
Combinamos de nos encontrar no mesmo pub de antes. O lugar está
calmo, pois ainda estamos no meio da tarde; hora incoerente para beber quando
se é um bebedor profissional. Dois homens solitários parecem estátuas ao lado
do balcão, a fumaça emanando de dedos nodosos. Não fique empolgado
demais, digo a mim mesmo. Minha capacidade de estragar tudo é infinita. Mas,
assim mesmo, a esperança pula e se alvoroça dentro de mim na caixa de
Pandora de meu coração.
390
Chego mais cedo ao pub e peço uma cerveja. Bebo devagar enquanto
espero. Tomei uma ducha. Aparei minhas unhas. Minha mão treme
ligeiramente. A primeira coisa que faço quando meus olhos a veem
atravessando a rua é olhar para seus pés. Está com os sapatos vermelhos.
Lulu não sorri ao me ver, e me surpreendo ao notar que está nervosa.
Seus cabelos estão soltos e ondulam suavemente. Um arrepio percorre minha
espinha quando penso que, talvez, tenha se penteado especialmente. Não sei
como fui achar que ela era menos linda do que Jen; do que qualquer outra.
Ela senta-se ao meu lado. Passo-lhe o rum com refrigerante que pedi com
antecedência.
â" Eu não devia beber a essa hora do dia.
â" Bem⦠É um dia atÃpico, uma semana atÃpica.
â" É.
Lulu pega sua bolsa e fisga lá de dentro os cigarros e o isqueiro.
â" Então, você vai bem? â" pergunto.
Ela dá de ombros.
â" Estou tentando me acostumar com a ideia. Não é tão difÃcil para mim.
Quer dizer, só o vi algumas poucas vezes em 12 anos.
Ela não se corrige, e não digo nada. Parece menos errado continuar se
referindo a Christina como âœeleâ.
â" E quanto a Kath e Jimmy? Eles já sabem?
Lulu revira os olhos, antes de responder.
â" Não. Não contamos a mais ninguém. Achamos melhor deixar isso de
lado por um tempo. Talvez, se pudesse haver mais provas de que o corpo era
mesmo de Ivo, ou algo assim. Aà não seria tão⦠você sabeâ¦
â" É, sei. Talvez. Mas Sandra acredita nisso?
â" Ela disse que faz sentido em relação a muitas coisas que ela jamais
conseguiu entender.
â" Ela ficou aborrecida?
391
â" Era o que eu esperava, mas não. Eles eram muito próximos, sabe, eâ¦
acho até que ela sentia alguma coisa por ele. Acho que isso a deixou triste, mas
agora ela diz que entende por que ele não a queria.
Mais uma vez, Lulu dá de ombros.
â" Como eu disse, vai levar algum tempo para nos acostumarmos.
â" Sei. Bem⦠obrigado.
â" Por quê?
â" Por ter vindo.
Tomo um bom gole de cerveja. Atrás de nós, o liquidificador tritura
algumas frutas. Um comentário sobre corrida na televisão acima do balcão
chega a um clÃmax desanimado.
â" E como está sua mão agora?
A voz soa abrupta.
â" Está bem.
Estendo minha mão direita na mesa entre nós, com os dedos esticados.
â" Você vai fazer aquele truque com a faca?
â" Não. â" Já recuperou a sensibilidade?
â" Já, quase completamente.
Ela põe a mão sobre a minha. Sua palma está quente e seca. Viro minha
mão sob a sua. Na última vez em que me tocou, não consegui sentir nada.
392
SESSENTA E CINCO
JJ
Hoje é o aniversário de Christo e vamos pegar o ônibus para ir ao grande
parque não muito longe de nossa casa. E Stella vem nos visitar, já que é sábado.
Nós a apanhamos na estação de trem. No parque, há um lago com pedalinhos,
que não são exatamente barcos, embora pareçam. O dia está lindo, embora
bastante frio. Amanhã, os relógios serão atrasados.
Stella e eu conversamos sobre a escola. Minha nova escola não é nada
mal. Se ainda não fiz amigos de verdade até agora, tampouco fiz inimigos. E há
tantos tipos diferentes de pessoas lá, que eu certamente não chamo a atenção.
Um garoto, que, às vezes, é um pouco irritante, me perguntou por que nos
chamam de roms. Eu lhe disse que era porque vÃnhamos de Roma. Ele pareceu
bastante impressionado. Acho até que acreditou em mim. Falei isso porque
achava que ele estava tirando onda comigo, mas depois me ocorreu que ele
estava mesmo a fim de saber. Agora, me sinto um pouco mal em relação a isso.
Vou ter que dar um jeito de esclarecer durante a semana.
⢠⢠â¢
â" Parece que está tudo bem.
â" É mesmo.
Stella olha para o chão. Estamos andando em volta do lago; mamãe e
Christo mantêm-se discretamente mais atrás, falando com os patos.
â" Sinto falta de você â" diz ela.
â" É? Quer dizer, também sinto sua falta.
Meu coração dispara. Será que ela está sendo franca?
â" Obrigada!
Ela sorri, mas está um pouco corada.
â" É verdade! Sinto mesmo!
â" Sei, com todas aquelas garotas novasâ¦
393
Eu empurro Stella delicadamente, e ela finge perder o equilÃbrio e vai
cambaleando para trás das árvores. Eu a sigo e, quando a alcanço, ela me beija
nos lábios, onde ninguém pode nos ver, e seus lábios estão frios e quentes ao
mesmo tempo. Eu não tinha certeza se ela queria mesmo ser minha namorada,
mas, nesse momento, acho que ficou evidente.
Convencemos mamãe a nos deixar levar Christo num pedalinho, como
uma diversão especial de aniversário. É a primeira vez que ele entra num barco
desde que voltamos da França. Eu também. Mamãe se recusa a embarcar numa
daquelas coisas â" e, de qualquer forma, alguém tem que ficar tomando conta
da cadeira de rodas e de todos os nossos pertences. Subimos no pedalinho e
zarpamos. Mesmo pedalando com vontade, o deslocamento é bem devagar, e
faz um bocado de barulho com a água chapinhando no casco. Não é nada fácil
fazer com que siga um curso reto; os dois que estão na frente, isto é, Stella e eu,
temos que pedalar no mesmo ritmo, algo que acaba se revelando
complicadÃssimo. E fico olhando para trás o tempo todo, a fim de ver se Christo
está bem e não caiu, e isso não ajuda. Resumindo: é uma porcaria como meio de
transporte.
Aqui, me lembro dos barcos lindos que eu e o Sr. Lovell vimos no lago
do hospital, tão elegantes e bonitos. Aqueles em que não passeamos. Adorei os
nomes: VIOLET â" SEIS PASSAGEIROS; CHRISSIE â" TRÊS PASSAGEIROSâ¦
Por pouco, evitamos uma colisão no meio do lago com um pai e sua filha.
Christo e a filha do homem, com uns 5 anos, acharam muita graça. Stella está
sorrindo. Olho para ela, me perguntando como aconteceu. Ela não olha para
mim, mas parece feliz, rindo e me encorajando a apostar corrida com o outro
pedalinho; suas bochechas estão vermelhas.
Sigo meio distraÃdo.
â" JJ⦠JJ! Pare! Vai bater na beira!
Stella está berrando para mim. De algum modo, conseguimos fazer uma
curva. Não sei bem o que aconteceu. E, então, de fato, batemos contra a
margem. Não foi com força ou violência, pois, como já disse, isso é um lixo
como meio de transporte. Mas houve um tranco.
â" Desculpem, desculpem, desculpem! â" berro e olho para Christo, que
está bem, morrendo de rir, pensando ou preferindo pensar que fizemos aquilo
de propósito.
â" Mais! â" grita ele. Não é muito claro, mas sei o que quer dizer, pois já
o ouvi antes. â" Mais! Mais!
394
E, então, considerando que é seu aniversário, ele está fazendo 7 anos e
não está mais morrendo â" e porque eu sinto vontade de gritar â" fazemos mais
uma vez.
FIM!
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http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=122800260
Este livro é uma digitalização feita de fã para fã.
Não possui fins lucrativos.
Prestigie o autor comprando o livro ;)
Envio: INVISÍVEIS - STEF PENNEY


Quando Rose se casou com o atraente Ivo Janko, integrante de uma família de ciganos nômades, muitos se perguntavam o que os dois tinham em comum. Rose é quieta e tímida. Ivo é taciturno, porém carismático. Depois que ela desapareceu, boatos diziam que ela fugira por causa de um filho que nasceu com o problema genético da família. Mas o pai de Rose, Leon, não tem tanta certeza disso. Ele quer saber a verdade e contrata um detetive particular para descobri-la. É aí que entra Ray Lovell, um detetive, que embora pouco renomado, tem a vantagem de ser descendente de ciganos. Lovell concorda em pegar o caso. No entanto, sete anos após o desaparecimento de Rose, ele teme que tenha se passado tempo demais. Além disso, sua investigação é dificultada pelas únicas pessoas que poderiam ajudá-lo: a família Janko. Trata-se de um clã fechado, e a última coisa que desejam é um estranho se metendo em seus assuntos particulares. Ray não consegue entender a relutância deles em ajudar. Qual é o motivo de não quererem que Rose Janko seja encontrada?
Boa Leitura

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