envio a escola do priorado - Arthur Conan Doyle





Arthur Conan Doyle

A Escola do Priorado








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Em nosso pequeno palco, na Baker Street, temos tido dramáticas entradas e saídas, mas não posso me lembrar de nada mais súbito e surpreendente do que a primeira aparição do dr. Thorneycroft Huxtable, M. A., Ph. D., etc. O cartão, que parecia pequeno demais para conter a lista de seus diplomas, precedeu-o de alguns segundos. Depois, entrou o homem: tão grande, tão pomposo, tão digno, que era a personificação da solidez. Apesar disso, seu primeiro gesto, depois de fechar a porta, foi apoiar-se à mesa, cambaleante. No minuto seguinte, escorregou para o chão, e lá ficou a majestosa figura, estendida, inconsciente, no nosso tapete de pele de urso.
Tínhamo-nos levantado de um salto e, por segundos, ficamos olhando, em silencioso espanto, para aquele náufrago, que nos falava de alguma tempestade fatal no mar da vida. Depois, Holmes correu com uma almofada, que colocou sob a cabeça do homem, e eu com um cálice de conhaque, para reanimá-lo. O rosto pálido tinha rugas causadas pela preocupação, sob os olhos havia círculos escuros, a boca descaía dolorosamente nos cantos, o rosto estava de barba por fazer. A camisa e o colarinho apresentavam vestígios de uma longa viagem, e os cabelos estavam em desalinho, na cabeça bem-feita. O homem a nossos pés era uma criatura ferida pelo destino.
- Que me diz, Watson? - perguntou-me Holmes.
- Completa exaustão... talvez apenas fome e cansaço - respondi, segurando o pulso, onde a vida se fazia sentir debilmente.
- Passagem de regresso para Mackleton, no norte da Inglaterra - disse Holmes, tirando-lhe o bilhete do bolso do colete. - Ainda não é meio-dia. Não há dúvida de que partiu cedo.
As pálpebras inchadas tinham começado a estremecer, e agora uns olhos cinzentos, de expressão vazia, fitavam-nos. No momento seguinte, o homem pôs-se de pé, rubro de vergonha.
- Perdoe-me a fraqueza, sr. Holmes; ando esgotado. Muito obrigado. Se me derem um copo de leite e um biscoito, creio que me sentirei melhor. Vim pessoalmente, sr. Holmes, para lhe pedir que volte comigo. Receei que um telegrama, por mais insistente que fosse, não o convencesse da urgência do caso.
- Depois que estiver melhor.
- Estou bem. Não sei como pude sentir tal fraqueza. Desejo que me acompanhe a Mackleton no próximo trem, sr. Holmes.
Meu amigo sacudiu a cabeça.
- Meu colega, o dr. Watson, poderá dizer-lhe que estamos muito ocupados presentemente. Estou trabalhando no caso dos Documentos Ferrers e no assassinato de Abergavenny, que em breve irá a julgamento. Somente um assunto muito grave me afastaria de Londres nesta altura.
- Grave! - exclamou nosso visitante, atirando as mãos para o ar. - Não ouviu falar do rapto do único filho do duque de Holdernesse?
- O quê? O ministro?
- Exatamente. Procuramos manter o fato fora dos jornais, mas houve uma alusão no Globe, ontem à noite. Pensei que talvez tivesse chegado aos seus ouvidos.
Holmes estendeu o braço longo e magro e apanhou o volume "H" de sua enciclopédia particular.
- "Holdernesse, sexto duque, K. G., P. C." Quase metade do alfabeto...! "Barão Beverley, conde de Garston"... Deus do céu, que lista! "Lorde-tenente de Hallamshire desde 1900. Casou-se com Edith, filha de Sir Charles Appiedore, em 1888. Tem um único filho e herdeiro, Lorde Saltire. Dono de duzentos e cinquenta acres. Minas em Lancashire e Gales. Endereço: Carlton Terrace; Holdernesse Hall, em Hallamshire; Castelo Carston, em Bangor, Gales. Lorde do Almirantado, 1872; secretário-chefe de..." Bom, bom, não há dúvida de que este homem é um dos maiores súditos da coroa!
- O maior e talvez o mais rico. Sei, sr. Holmes, que o senhor é muito digno, quando se trata da profissão, e que está sempre pronto a trabalhar por amor ao trabalho. Mas quero dizer-lhe que Sua Graça já declarou que um cheque de cinco mil libras será entregue à pessoa que lhe disser onde está seu filho, e mais um de mil, para aquele que indicar o nome ou os nomes das pessoas que o raptaram.
- Oferta principesca - declarou Holmes. - Watson, creio que acompanharemos o dr. Huxtable ao norte da Inglaterra. E agora, dr. Huxtable, depois de ter tomado o seu leite, peço-lhe que me conte o que aconteceu, quando e como, e o que tem o senhor, dr. Thorneycroft Huxtable, da Escola do Priorado, perto de Mackleton, a ver com o caso, e por que vem, três dias após o acontecimento (percebo-o pelo estado da sua barba), pedir a minha humilde colaboração.
Nosso visitante tinha tomado o leite e os biscoitos. Voltara-lhe o brilho aos olhos e a cor às faces, e começou a explicar a situação, com vigor e lucidez.
- Quero informá-los, senhores, de que a Escola do Priorado é uma escola preparatória, da qual sou fundador e diretor. Meu livro Huxtable's sidelights on Horace talvez faça com que se lembre do meu nome. A escola é, sem dúvida, a melhor e a mais seleta escola preparatória da Inglaterra. Lorde Leverstoke, o conde de Blackwater, Sir Cathcart Soames - todos eles me confiaram os seus filhos. Mas achei que minha escola chegara ao apogeu quando, há três semanas, o duque de Holdernesse mandou seu secretário, sr. James Wilder, avisar-me que Lorde Saltire, de dez anos de idade, seu filho e herdeiro, me seria confiado. Mal sabia eu que isto seria o prelúdio do maior infortúnio de minha vida.
"O menino chegou no dia 1.° de maio, começo das aulas de verão. Era um menino encantador, que logo se habituou às normas do internato. Creio poder dizer-lhes (espero não estar sendo indiscreto, mas num caso como este é necessário falar com absoluta franqueza) que o menino não era muito feliz em casa. Ninguém ignora que a vida matrimonial do duque não foi das mais venturosas, pois terminou em separação, por consentimento mútuo, tendo a duquesa ido residir no sul da França. Havia pouco tempo que isso acontecera, e era sabido que o menino se inclinava para o lado da mãe. Parece que ficou triste, após sua partida de Holdernesse Hall, e foi por esse motivo que o pai resolveu mandá-lo para minha escola. Depois de quinze dias, o menino já se sentia completamente à vontade, parecendo muito feliz em nossa companhia.
"Foi visto pela última vez na noite de 13 de maio, isto é, na última segunda-feira. Seu quarto ficava no segundo andar, ao qual se tinha acesso por outro quarto maior, onde dormiam dois meninos. Estes nada viram ou ouviram, de modo que calculamos que o jovem Saltire não tenha saído por lá. Sua ausência foi notada às sete da manhã, na terça-feira. A cama estava desfeita e a janela aberta; pelas paredes da casa cresce hera, desde o chão até esta altura. Não vimos vestígio algum, mas não há outra saída. Ele se vestira completamente, e saíra com sua jaqueta preta de Eton e calças cinza. Não havia sinais de alguém ter entrado no quarto, e não há dúvida de que gritos ou luta teriam sido ouvidos, uma vez que Caunter, o menino mais velho, que dorme no quarto contíguo, tem um sono muito leve.
"Quando verifiquei que Lorde Saltire havia desaparecido, chamei todo o estabelecimento, alunos, professores e criados. Foi então que verificamos que Lorde Saltire não era o único desaparecido. Sentimos a falta de Heidegger, professor de alemão. O quarto dele ficava no segundo andar, na extremidade oposta do prédio, e dava para o mesmo lado que o de Saltire. Também sua cama estava desfeita, mas aparentemente ele saíra meio vestido apenas, pois encontramos sua camisa e suas meias no chão. Deve ter descido pela hera, pois vimos as marcas de seus pés quando caiu na grama. Sua bicicleta desaparecera.
"Trabalhava comigo há dois anos, tendo trazido as melhores referências, mas era um homem silencioso, soturno, não muito popular entre alunos e professores. Não encontramos sinal dos fugitivos, e hoje, quinta-feira, estamos na mesma ignorância de terça. Claro que mandamos imediatamente indagar em Holdernesse Hall, que fica apenas a alguns quilômetros de distância. Imaginamos que o menino, ao se sentir subitamente indisposto, tivesse ido procurar o pai, mas lá não sabiam de coisa alguma. O duque está muito preocupado. Quanto a mim, os senhores viram a que estado de nervosismo e prostração me vi reduzido pela expectativa, e pelo senso de responsabilidade. Sr. Holmes, se algum dia usou ao máximo seus dons, suplico-lhe que o faça agora, pois dificilmente terá encontrado caso mais digno deles."
Sherlock Holmes ouvira, com a máxima atenção, as palavras do infeliz mestre-escola. Sua expressão séria mostrava que não precisava que o incitassem a concentrar a atenção num problema que, além dos grandes interesses em jogo, devia apelar para seu amor ao complexo e ao incomum. Tirou o caderno de notas e tomou um ou dois apontamentos.
- Fez muito mal em não me procurar mais cedo - disse severamente. - Faz-me começar a investigação com uma grande desvantagem. É incrível que a hera, por exemplo, não revelasse coisa alguma para um perito.
- A culpa não é minha, sr. Holmes. Sua Graça desejava que não houvesse escândalo. Receava que a desventura da família fosse exposta ao público. Tem horror a essas coisas.
- Mas houve investigação oficial?
- Sim, senhor, e foi decepcionante. Foi obtido um indício, imediatamente, pois viram um menino e um homem apanharem o primeiro trem, numa estação vizinha. Ontem à noite, soubemos que os dois tinham sido procurados em Liverpool, mas ficou provado que nada tinham a ver com o caso. Foi aí que, desesperado, após uma noite de insônia, vim procurá-lo, pelo primeiro trem.
- Com certeza a investigação local foi desprezada, enquanto seguiam a pista falsa.
- Foi abandonada por completo.
- Então temos três dias perdidos. O caso foi tratado de maneira deplorável.
- Sinto isso e reconheço-o.
- Apesar de tudo, é possível encontrar uma solução. Terei muito prazer em aceitar o caso. Conseguiu estabelecer relação entre o menino e o professor de alemão?
- Nenhuma.
- Era aluno desse professor?
- Não, e nunca trocaram uma palavra, ao que sabemos.
- É estranho... O menino tinha bicicleta?
- Não.
- Desapareceu mais alguma?
- Não.
- Tem certeza? - perguntou Holmes.
- Absoluta.
- Mas o senhor não supõe que o alemão tenha saído no meio da noite, de bicicleta, com o menino nos braços, não?
- Claro que não.
- Então qual é sua teoria?
- Talvez a bicicleta tenha sido usada como pista falsa. Talvez esteja em algum lugar, tendo eles partido a pé.
- Exatamente. Mas teria sido uma artimanha absurda, não acha? Havia outras bicicletas guardadas?
- Várias.
- Não teriam escondido duas, se quisessem dar a impressão de que tinham partido de bicicleta?
- Creio que sim.
- Claro que sim. A teoria da pista falsa não serve. Mas o incidente é um admirável ponto de partida para a investigação. Afinal de contas, uma bicicleta não é coisa fácil de se ocultar ou destruir. Outra pergunta. Alguém veio visitar o menino, no dia do seu desaparecimento?
- Não.
- Recebeu cartas?
- Recebeu uma.
- De quem?
- Do pai.
- O senhor abre as cartas dos alunos?
- Não.
- Como sabe que era do pai?
- Havia o brasão no envelope, e o endereço fora escrito na letra característica, dura, do duque. Além disso, o duque se lembra de lhe ter escrito.
- Quando recebera o menino outra carta, antes dessa?
- Dias antes.
- Chegou alguma da França?
- Não; nunca.
- Naturalmente o senhor sabe aonde quero chegar. Ou o menino foi levado à força, ou foi de livre vontade. Neste último caso, é de supor que seria preciso algum incitamento de fora, para fazer com que um menino dessa idade agisse assim. Se não recebeu nenhuma visita, esse incitamento deve ter vindo por carta. Por isso procuro saber quem lhe escreveu.
- Creio que não posso ajudá-lo muito. Pelo que sei, somente o pai lhe escrevia.
- E escreveu-lhe no dia do desaparecimento. As relações entre pai e filho eram afetuosas?
- O duque não é afetuoso com ninguém. Está completamente submerso nos negócios públicos, e imune às emoções comuns. Mas, à sua maneira, sempre foi bom para o menino.
- Mas este estava do lado da mãe?
- Estava.
- Ele disse isso?
- Não.
- Foi o duque então?
- Santo Deus, não!
- Então como é que sabe?
- Tive uma conversa particular com o secretário, sr. James Wilder. Foi quem me deu as informações a respeito dos sentimentos de Lorde Saltire.
- Está certo. Por falar nisso, a última carta do duque... foi encontrada no quarto do menino, depois que ele partiu?
- Não. Deve tê-la levado consigo. Creio, sr. Holmes, que está na hora de partirmos para a estação.
- Vou mandar chamar um carro. Dentro de um quarto de hora estaremos às suas ordens. Se telegrafar para casa, sr. Huxtable, é bom que a vizinhança pense que as investigações continuam em Liverpool, ou onde estiverem seus homens. Nesse meio tempo, trabalharei tranqüilamente na escola. Talvez a pista não esteja tão fraca, a ponto de dois cães de caça, como Watson e eu, nada poderem farejar.
Encontramo-nos nessa noite no clima frio e excitante de Peak, onde ficava a famosa escola. Estava escuro quando lá chegamos. Havia um cartão na mesa, e o mordomo murmurou qualquer coisa para o patrão, que se voltou para nós muito agitado.
- O duque está aqui - disse ele. - O duque e o sr. Wilder estão no meu escritório. Venham, senhores, vou apresentá-los a eles.
Eu, naturalmente, conhecia o grande estadista, de fotografia, mas o homem era diferente. Alto e imponente, vestido com esmero, de rosto fino e abatido, nariz grotescamente curvo e longo. Sua pele era extraordinariamente pálida, contrastando com a barba ruiva, que descia até o colete, por entre os fios do qual brilhava a corrente do relógio. Era essa a augusta personagem que nos olhava duramente, de pé, sobre o tapete do dr. Huxtable. A seu lado, um rapaz que tomei como sendo Wilder, o secretário particular. Era baixo, nervoso, alerta, com inteligentes olhos azuis. Foi ele quem, em tom positivo e claro, iniciou a conversa.
- Vim vê-lo hoje de manhã, dr. Huxtable, tarde demais para impedir sua ida a Londres. Fiquei sabendo que sua intenção era convidar o sr. Sherlock Holmes para investigar o caso. Sua Graça ficou admirado, dr. Huxtable, pelo fato de o senhor ter tomado tal iniciativa sem consultá-lo.
- Quando soube que a polícia fracassara...
- Sua Graça não está de forma nenhuma convencido de que a polícia tenha fracassado.
- Mas, enfim, sr. Wilder...
- O senhor sabe perfeitamente que Sua Graça deseja evitar um escândalo. Prefere que o mínimo possível de pessoas tomem conhecimento do caso.
- O remédio é fácil - disse o abatido professor. - O sr. Holmes poderá voltar para Londres, pelo trem da manhã.
- Nada disso, doutor, nada disso - disse Holmes, no seu tom mais suave. - O ar do norte é revigorante e agradável, de modo que pretendo passar uns dias aqui, da melhor maneira possível. Se terei o abrigo da sua casa, ou da estalagem da vila, é coisa que o senhor decidirá.
Vi que o pobre professor estava no auge da indecisão, mas foi socorrido pela profunda e sonora voz do duque de barba ruiva, que soou como um gongo.
- Concordo com o sr. Wilder, dr. Huxtable, quando diz que eu devia ter sido consultado. Mas, já que o sr. Holmes foi inteirado do caso, seria absurdo não utilizarmos seus serviços. Em vez de ir para a estalagem, sr. Holmes, eu teria prazer em hospedá-lo em Holdernesse Hall.
- Agradeço a Vossa Graça. Mas, para o sucesso de minha investigação, acho que será acertado eu permanecer na cena do mistério.
- Como quiser, sr. Holmes. Qualquer informação que desejar de mim ou do sr. Wilder estará, é claro, à sua disposição.
- Será, provavelmente, necessário visitá-lo na mansão - disse Holmes. - Só desejo lhe perguntar agora se tem, pessoalmente, alguma teoria a respeito do misterioso desaparecimento de seu filho.
- Não, senhor, não tenho.
- Perdoe-me aludir a algo que lhe deve ser penoso, mas não tenho outra alternativa. Acha que a duquesa tem alguma relação com o caso?
O ministro mostrou certa hesitação.
- Não creio - respondeu finalmente.
- Outra possibilidade é o menino ter sido raptado, para efeito de resgate. Não recebeu nenhum pedido nesse sentido?
- Não, senhor.
- Mais uma pergunta. Ouvi dizer que escreveu a seu filho, no dia do ocorrido.
- Não; escrevi na véspera.
- Exatamente. Mas ele recebeu a carta no dia, não?
- Recebeu.
- Havia em sua carta alguma coisa que pudesse perturbá-lo e levá-lo a dar tal passo?
- Não, senhor, de forma nenhuma.
- O senhor mesmo pôs a carta no correio?
A resposta foi dada pelo secretário, que falou acaloradamente.
- Sua Graça não tem o hábito de levar suas cartas ao correio - disse ele. - A carta foi colocada junto com as outras, na mesa do escritório, e eu mesmo a coloquei na sacola do correio.
- Tem certeza de que estava no meio das outras?
- Sim.
- Quantas cartas escreveu Sua Graça naquele dia?
Desta vez foi o duque quem respondeu.
- Vinte ou trinta. Mantenho vasta correspondência. Mas, certamente, isto é sem importância, não?
- Não de todo - declarou Holmes.
- De minha parte, aconselhei a polícia a dedicar sua atenção ao sul da França - informou o duque. - Já disse que não acredito que a duquesa tenha participação em ato tão monstruoso, mas o menino tem idéias errôneas, e é possível que tenha ido procurá-la, ajudado por esse alemão. Creio, sr. Huxtable, que vamos regressar à mansão.
Vi que Holmes não tinha mais perguntas a formular, mas a atitude brusca do duque indicou que dava a entrevista por terminada. Não havia dúvida de que aquela conversa sobre assuntos de família desagradava sumamente à sua natureza aristocrática, e ele temia que novas perguntas lançassem luz sobre os pontos obscuros de sua história ducal.
Depois que o duque e o secretário partiram, Holmes atirou-se ao trabalho, com o zelo habitual.
    O quarto do menino foi examinado cuidadosamente, mas nada nos revelou, a não ser que a fuga se dera pela janela. O quarto do alemão também nada nos esclareceu. Ali, um ramo de hera se quebrara sob o peso do homem, e vimos com uma lanterna a marca dos saltos onde ele caíra. Aquela marca na grama era a única prova material da inexplicável fuga noturna.
Sherlock Holmes saiu de casa sozinho, e só voltou depois das onze horas. Conseguira um vasto mapa da região. Levou-o para o meu quarto e estendeu-o na cama. Equilibrando o candeeiro no centro, começou a examiná-lo, mostrando de vez em quando, com a boquilha do cachimbo pontos de interesse.
- O caso me interessa, Watson - disse ele. - Há, sem dúvida, alguns pontos interessantes. Mesmo no início, quero que note a topografia, que poderá nos ser útil.
Holmes fez uma pausa.
- Olhe para este mapa. O quadrado escuro indica a escola. Ponho aqui um alfinete. Esta linha indica a estrada. Veja que vai de leste para oeste, passando pela escola, e note que não há atalhos, numa extensão de um quilômetro e meio, nem de um lado nem de outro. Se os dois seguiram por alguma estrada, foi por esta aqui.
- Exatamente.



- Por uma feliz e singular coincidência, podemos verificar o que se passou nesta estrada, na noite da fuga. Neste ponto, onde o meu cachimbo descansa, um policial esteve de guarda da meia-noite às seis da manhã. Como vê, é a primeira encruzilhada, a leste. O homem garante que não se afastou um instante de seu posto e tem certeza de não ter visto homem ou criança passar por ali. Conversei com ele e parece-me pessoa de absoluta confiança. Isso exclui este lado. Temos agora o outro. Há aqui uma estalagem, Touro Vermelho, e sua proprietária estava doente. Ela mandara alguém a Mackleton chamar um médico, mas este chegou de manhã, pois estava ocupado com outro caso. O pessoal da estalagem ficou acordado a noite toda à espera, e parece que esteve sempre uma ou outra pessoa vigiando a estrada. Declaram que não passou ninguém. Se pudermos acreditar nisso, temos a sorte de poder também excluir o lado oeste e dizer que os fugitivos não se serviram da estrada.
- Mas, e a bicicleta? - perguntei.
- Exatamente. Já chegaremos à bicicleta. Continuando o nosso raciocínio: se eles não foram pela estrada, devem ter atravessado o campo, ao norte ou ao sul da casa. Isso é certo. Vamos analisar as hipóteses. Ao sul da casa existe, como você vê, um grande trecho de terra de lavoura, dividida em pequenos campos, separados por muros de pedra. Aqui é impossível admitir-se a hipótese da bicicleta. Podemos abandonar a idéia. Voltemos nossa atenção para o norte. Temos um bosque pequeno, assinalado "Ragged Shaw", e na extremidade há o pântano Lower Gill, estendendo-se por dezesseis quilômetros e subindo gradualmente. Deste lado, fica Holdernesse Hall, a dezesseis quilômetros da estrada, mas a apenas dez do pântano. Lugar estranhamente deserto. Há alguns pequenos fazendeiros, que criam bois e ovelhas. A não ser eles, os únicos habitantes são aves, até que se chegue à auto-estrada de Chesterfield. Ali há uma igreja, como vê, algumas casas e uma estalagem, a Galo de Briga. Adiante, os morros se tornam mais escarpados. Não há dúvida de que aqui, para o norte, é que devemos procurar.
- Mas, e a bicicleta? - perguntei.
- Ora, ora! - exclamou Holmes, impaciente. - Um bom ciclista não precisa de boa estrada. O pântano está cheio de veredas, e a lua brilhava no céu. Oh, que é isso?
Ouviu-se bater agitadamente à porta. No momento seguinte, o dr. Huxtable entrava no quarto. Na mão trazia um boné azul, com uma divisa branca em cima.
- Finalmente, um indício! - disse ele. - Graças a Deus, estamos na pista do querido menino! Eis o seu boné.
- Onde foi encontrado?
- Na carroça dos ciganos acampados no pântano. Eles saíram na terça-feira. Hoje a polícia os alcançou e examinou a caravana. O boné foi encontrado com eles.
- Como os ciganos explicam isso?
- Esquivaram-se às perguntas e mentiram, dizendo que o tinham encontrado no pântano, na manhã de terça-feira Sabem onde está o menino, os miseráveis! Felizmente estie todos na cadeia. O medo da lei, ou o dinheiro do duque, acabarão por fazer com que soltem a língua.
- Até aqui, muito bem - disse Holmes, depois que o professor finalmente se retirou. - Pelo menos isso reforça a teoria de que é do lado do pântano que devemos esperar resultados. A polícia não fez realmente nada, a não ser prender esses ciganos. Veja isso, Watson! Passa um riacho através do pântano. Está aqui marcado no mapa. Em alguns lugares, abre-se num paul, principalmente na região entre Holdernesse Hall e a escola. É inútil procurar a pista em outro ponto, com esta seca, mas ali há a possibilidade de terem ficado marcas. Irei acordá-lo amanhã muito cedo, e juntos procuraremos desvendar o mistério.
O dia começava a clarear, quando acordei e vi o vulto magro e alto de Holmes a meu lado. Ele estava completamente vestido e parecia já ter saído.
- Examinei o gramado e o galpão das bicicletas - disse ele. - Estive no bosque Ragged Shaw. Agora Watson, um chocolate o espera no quarto contíguo. Peço-lhe que se apresse, pois temos um dia cheio à nossa frente.
Seus olhos brilhavam e seu rosto estava corado, com a alegria do artesão que sabe que o trabalho está à sua espera. Um Holmes muito diferente, esse homem alerta, ativo, do introspectivo e pálido sonhador da Baker Street. Ao olhar para a figura flexível, repleta de energia nervosa, compreendi que tínhamos, de fato, um dia atarefado à nossa espera.
Mas começou com a maior das decepções. Atravessamos, esperançosos, o pântano cheio de veredas, até chegarmos à larga faixa verde do paul entre a escola e Holderness Hall. Se o menino se dirigira para casa, certamente passara por ali e não podia ter passado sem deixar vestígios. .Mas não havia sinal dele, e tampouco do alemão. Com expressão sombria, meu amigo andou pela margem, observando atentamente todos os sinais de lama na relva. Havia, em profusão, marcas de patas de ovelhas, e em certo ponto, a quilômetros de distância, via-se que também haviam passado bois por ali. Nada mais.
- Decepção número um - disse Holmes, olhando melancolicamente a vasta extensão de pântano. - Há outro paul mais longe ainda. Ora, que é isto?
Tínhamos chegado a uma vereda que formava um traço escuro no chão. No meio, viam-se claramente as marcas de uma bicicleta.
- Viva! - exclamei. - Acertamos.
Mas Holmes sacudiu a cabeça, com o rosto perplexo e expectante, mais do que alegre.
- Uma bicicleta, sem dúvida, mas não a bicicleta. Conheço quarenta e duas impressões deixadas por pneumáticos. Estas aqui são, como pode ver, de pneus Dunlop, com um remendo do lado de fora. Os pneus do professor alemão, Heidegger, eram de marca Palmer, e deixavam riscos longitudinais. O professor de matemática, Aveling, foi categórico nesse ponto. Não é, portanto, a bicicleta de Heidegger.
- Do menino, então.
- Provavelmente, se pudermos provar que estava de posse de uma bicicleta. Mas não conseguimos apurar nada nesse sentido, como sabe. Essas marcas foram feitas por pessoa que vinha do lado da escola.
- Ou que para lá se dirigia?
- Não, não, caro Watson. A marca mais forte é, naturalmente, feita pela roda traseira, onde recai o peso. Você vê vários lugares por onde ela passou e apagou a marca mais fraca da roda da frente. A bicicleta, indubitavelmente, vinha do lado da escola. Isso pode ou não ter relação com o caso, mas vamos seguir as marcas, para trás, antes de tentar qualquer outra coisa.
Foi o que fizemos, mas dali a centenas de metros perdemos as marcas, ao sairmos da parte lamacenta do pântano. Voltando, encontramos um lugar onde havia uma nascente. Também ali se viam marcas de bicicleta, embora quase apagadas pelas patas dos bois. Depois disso, não havia mais nada, mas a vereda entrava no bosque Ragged Shaw, que ia quase até a escola. Dali devia ter saído o ciclista. Holmes sentou-se numa pedra e descansou o rosto nas mãos. Fumou dois cigarros, antes de se levantar.
- Ora, ora - disse, afinal. - É possível, naturalmente, que um homem esperto trocasse os pneus da bicicleta, para deixar sinais diferentes. O criminoso capaz de pensar nisso é homem com quem eu sentiria prazer em lutar. Deixemos isso por enquanto e vamos voltar, pois ficou muita coisa por explorar.
Continuamos a busca sistemática e logo nossa perseverança foi recompensada.
Bem no meio da parte baixa do paul, havia um caminho lamacento. Holmes soltou um grito de prazer ao aproximar-se. Vimos uma marca, como que de fios telegráficos.
- Aqui está Herr Heidegger, sem a menor dúvida! - exclamou Holmes, exultante. - Meu raciocínio estava certo, Watson.
- Parabéns.
- Mas temos muito o que fazer ainda. Faça o favor de sair do caminho. Vamos agora seguir a pista. Receio que ela não nos leve muito longe.
À medida que avançávamos, víamos que aquele trecho do pântano estava cheio de marcas leves, e, embora muitas vezes perdêssemos a pista, logo adiante encontrávamos as marcas da bicicleta.
- Percebe que aqui o ciclista começou a acelerar? - perguntou Holmes. - Veja esta impressão onde se notam claramente as marcas dos dois pneus, tanto do da frente como do de trás, pelo fato de o ciclista se inclinar para a frente com o esforço. Por Deus! Aqui ele caiu.
Uma marca grande, irregular, cobria um trecho da vereda. Depois, havia pegadas e, logo adiante, surgiam de novo as marcas da bicicleta.
- Uma escorregadela - disse eu.
Holmes segurava um galho de urze em flor. Vi, com horror, que os botões amarelos estavam manchados de vermelho. Também na vereda havia manchas escuras de sangue.
- Mau, mau! - disse Holmes. - Fique de lado, Watson. Nem um passo desnecessário! Que vejo aqui? Ele caiu ferido, levantou-se, tornou a subir na bicicleta e continuou. Mas não há outras marcas. Passou gado por aqui. Teria ele sido atacado por um touro? Impossível! Mas não noto vestígios de pessoas em parte alguma. Temos de continuar, Watson. Não há dúvida de que, com as manchas de sangue a nos guiar, além da marca dos pneus, ele não poderá escapar.
Nossa busca não foi demorada. As marcas dos pneus descreviam agora curvas fantásticas, no chão úmido. De repente, ao olhar para diante, um brilho de metal chamou-me a atenção, no meio das moitas de urzes. Dali tiramos uma bicicleta, com pneus Palmer. Um pedal estava torto, e a frente da bicicleta, toda manchada de sangue. Corremos para trás dela e lá encontramos o infeliz ciclista. Era um homem alto, de barba, óculos, com uma das lentes quebrada. A morte fora causada por uma terrível pancada na cabeça, que lhe esmagara o crânio. O fato de ter continuado, após ter recebido tão rude golpe, indicava que era homem de coragem e energia. Estava de sapatos, mas sem meias e, pelo casaco aberto, via-se que ainda vestia roupa de dormir. Era, sem dúvida, o professor alemão.
Holmes virou respeitosamente o corpo e examinou-o com atenção. Sentou-se, depois, ficando em profunda meditação. Vi, pela sua atitude, que aquela descoberta não o auxiliava no esclarecimento do caso.
- É um pouco difícil saber o que se deve fazer, Watson - disse ele finalmente. - Meu desejo seria prosseguir, pois já perdemos tanto tempo, que não podemos desperdiçar uma hora sequer. Por outro lado, temos de informar a polícia sobre esta descoberta, para que venham retirar o corpo do pobre homem.
- Eu podia ir avisar.
- Mas preciso da sua companhia e do seu auxílio. Espere um pouco! Está ali um sujeito, cortando turfa. Traga-o aqui, e ele irá buscar a polícia.
Fui chamar o assustado camponês, e Holmes despachou-o com um bilhete para o dr. Huxtable.
- Agora, Watson, já conseguimos dois indícios, hoje de manhã. Um foi a bicicleta com pneus Palmer, e vimos ao que ela nos conduziu. O outro é a bicicleta com um pneu Dunlop remendado. Antes de começarmos a investigar, temos de verificar o que sabemos, para tirar o máximo proveito, e separar o essencial do acidental. Em primeiro lugar, quero frisar que o menino fugiu de livre e espontânea vontade. Desceu pela janela e partiu, só ou acompanhado. Isso é certo.
Concordei com as deduções.
- Voltemo-nos agora para o infeliz professor. O menino estava completamente vestido quando partiu. Sabia, portanto, o que ia fazer. Mas o mestre estava sem meias. É evidente que saiu precipitadamente.
- Não há dúvida.
- Por que saiu? Porque viu a fuga do menino, pela janela do seu quarto. Porque desejava alcançá-lo e fazê-lo regressar. Pegou a bicicleta e seguiu o garoto, encontrando assim a morte.
- É o que parece.
- Chego agora à parte crítica da minha argumentação. O natural, para um homem que perseguisse um menino, seria correr atrás dele. Sabia que poderia alcançá-lo. Mas o alemão não o fez. Ouvi dizer que era ótimo ciclista. Apanhou a bicicleta, mas não o teria feito, a não ser que percebesse que o menino tinha um meio rápido de evasão.
- A outra bicicleta.
- Continuemos a reconstituição. Ele é morto a oito quilômetros da escola, não por uma bala, note bem, que até um menino poderia disparar, mas por um golpe forte, desferido por um homem. O menino tinha, portanto, um companheiro. E a fuga foi rápida, uma vez que um bom ciclista levou oito quilômetros para alcançá-lo. Já examinamos a cena da tragédia. Que encontramos? Sinais de gado, nada mais. Examinei o local, e não há caminho no espaço de cinqüenta metros. Outro ciclista não poderia ter tido relação com o crime. E não há pegadas.
- Holmes, isso é impossível! - exclamei.
- Admirável! Observação esclarecedora. É impossível da maneira como descrevi a situação, e, portanto, devo tê-la descrito erradamente. Você já o percebeu. Pode sugerir onde está a falha?
- Não poderia ele ter quebrado a cabeça na queda?
- Num paul, Watson?
- Não sei o que pensar.
- Calma, já resolvemos problemas mais duros. Temos, pelo menos, muito material, se soubermos usá-lo. Venha. Já que acabamos de examinar os pneus Palmer, vamos ver o que os Dunlop poderão nos revelar.
Pegamos a vereda e por ela seguimos durante algum tempo. Mas logo o pântano começou a subir, coberto de urzes, e deixamos para trás o riacho. Já não podíamos esperar encontrar sinais no chão. Do ponto onde vimos as últimas marcas dos pneus Dunlop, podia-se ir para Holdernesse Hall, cujas torres se erguiam à nossa esquerda, a alguns quilômetros de distância, ou então para a vila baixa, cinzenta, que estava à nossa frente e que indicava a posição da auto-estrada de Chesterfield.
Quando nos aproximamos da estalagem sombria e abandonada, com um galo de briga em cima da porta, Holmes deixou escapar um gemido e agarrou-se ao meu ombro, para não cair. Torcera o tornozelo e teve de ir coxeando até a porta, onde vimos um homem atarracado, moreno, fumando um cachimbo.
- Como vai, sr. Reuben Hayes? - perguntou Holmes.
- Como vai o senhor, e como sabe o meu nome? - perguntou o homem, com um brilho suspeito nos olhos astutos.
- Pois bem, está escrito na tabuleta acima da sua cabeça. É fácil reconhecer o dono da casa. Não tem uma carruagem na sua cocheira?
- Não, não tenho.
- Mal posso firmar o pé no chão.
- Pois não o faça.
- Mas não posso andar.
- Então pule.
O homem estava longe de se mostrar amável, mas Holmes aceitou-o com extraordinário bom humor.
- Escute aqui, homem - disse ele. - Estou em maus lençóis. Pouco me importa a maneira como terei de continuar.
- A mim também - respondeu o calmo estalajadeiro.
- O caso é sério. Ofereço-lhe um soberano pelo empréstimo de uma bicicleta.
- Aonde quer ir?
- A Holdernesse Hall.
- Amigos do duque, com certeza? - perguntou ele, olhando com ironia para as nossas roupas enlameadas.
Holmes soltou uma gargalhada.
- Ele há de ficar satisfeito ao nos ver.
- Por quê?
- Porque levo boas notícias do filho desaparecido.
O homem teve um sobressalto.
- Estão no seu encalço?
- Sei que tiveram notícias dele, em Liverpool. Esperam encontrá-lo a qualquer momento.
Houve de novo uma mudança no rosto pesado, mal-barbeado, do estalajadeiro. O homem tornou-se subitamente alegre.
- Não tenho motivos para querer bem ao duque, pois fui seu cocheiro e ele me tratou muito mal - declarou. - Despediu-me, sem referências, por ter dado ouvidos a um mentiroso negociante de trigo. Mas estou satisfeito por saber que o menino está em Liverpool, e vou ajudá-lo a levar a notícia à mansão.
- Muito obrigado - disse Holmes. - Vamos comer qualquer coisa, primeiro, depois pode trazer sua bicicleta.
- Não tenho bicicleta.
Holmes mostrou-lhe o soberano.
- Já disse, homem, que não tenho bicicleta - declarou o sujeito. - Posso emprestar-lhes dois cavalos.
- Bom, bom, falaremos sobre isso depois de termos comido - disse Holmes.
Quando nos vimos a sós, na sala de pedra, foi extraordinária a maneira como o tornozelo torcido ficou bom. Era quase noite, e nada tínhamos comido desde a manhã, de modo que nossa refeição foi longa. Holmes, perdido em seus pensamentos, foi uma ou duas vezes até a janela, e ficou olhando para fora. A janela dava para um pátio imundo. Na outra extremidade havia uma forja, onde trabalhava um garoto sujo. Do outro lado ficava a cocheira. Holmes sentara-se de novo, após uma das suas idas à janela, quando, de repente, se levantou de um salto, exclamando:
- Diabos, Watson, creio que descobri! - exclamou ele. - Sim, sim, deve ter sido isso, Watson; lembra-se de ter visto sinais de patas de gado?
- Sim, muitos.
- Onde?
- Por toda parte. No paul, na vereda e perto do lugar onde Heidegger foi morto.
- Exatamente. Agora, Watson, quantos bois você viu no pântano?
- Não me lembro de ter visto um sequer.
- Estranho, Watson, que tenhamos visto as marcas e nenhum boi, em todo o pântano. Muito estranho, hein, Watson?
- Sim, de fato.
- Agora, Watson, faça um esforço, procure lembrar-se! Vê essas marcas no caminho?
- Vejo, sim.
- Consegue lembrar-se de que eram marcas assim...
- Holmes colocou sobre a mesa várias partículas de pão, da seguinte maneira : : : : :, e às vezes assim: • : • : • : • , e, de vez em quando assim:
. • . • . •
"Lembra-se?"
- Não, não me lembro.
- Mas eu me lembro. Podia jurar que é assim. Mas vamos voltar, com calma, para verificar. Que idiota fui, em não ter tirado minha conclusão.
- Que conclusão?
- Que somente um boi extraordinário poderia andar, trotar e galopar. Com mil diabos, Watson, não foi um camponês que pensou em semelhante dissimulação! Parece que o campo está livre, a não ser por aquele garoto, na forja. Vamos sair de mansinho e ver o que há por aí.
Na cocheira havia dois cavalos maltratados. Holmes ergueu a pata traseira de um deles e soltou uma risada.
- Ferraduras velhas, mas ferradas recentemente; ferraduras velhas, mas pregos novos. Este caso merece ser considerado clássico. Vamos até a forja.
O garoto continuava trabalhando, sem olhar para nós. Vi Holmes olhar para a direita e para a esquerda, por entre os ferros e a madeira espalhada pelo chão. De repente, ouvimos passos atrás de nós e demos com o estalajadeiro, de sobrancelhas contraídas sobre os olhos selvagens, o rosto convulsionado pela cólera.
Tinha na mão uma curta barra de ferro e avançava tão ameaçadoramente que me senti feliz por ter o revólver no bolso.
- Espiões do inferno! - exclamou ele. - Que estão fazendo aqui?
- Ora, sr. Reuben Hayes, até parece que está com medo de que venhamos a descobrir alguma coisa - disse Holmes friamente.
O homem dominou-se com um tremendo esforço e soltou uma risada falsa, que era mais ameaçadora do que a carranca.
- A forja está às suas ordens - disse ele. - Mas fique sabendo, cavalheiro, que não gosto que andem revistando a casa sem minha licença, de modo que, quanto mais depressa pagarem a conta e desaparecerem, melhor.
- Está bem, sr. Hayes, não houve má intenção - disse Holmes. - Estivemos examinando os seus cavalos, mas acho que prefiro ir a pé, afinal de contas. Creio que não é longe.
- Não mais de três quilômetros, até os portões da mansão - respondeu o homem, olhando-nos com ar sombrio, quando nos afastamos.
Não fomos muito longe, na estrada, pois Holmes parou no momento em que uma curva nos escondeu dos olhos do estalajadeiro.
- Estava "quente", como dizem as crianças, lá na estalagem - disse ele. - E parece que vai ficando "frio", a cada passo que dou em direção contrária. Não, não posso sair daqui.
- Estou convencido de que aquele homem sabe de tudo - observei. - Que sujeito mal-encarado!
- Oh, achou? Lá estão os cavalos, a forja. Sim, é interessante essa Galo de Briga. Creio que vamos dar mais uma espreitadela, disfarçadamente.
Atrás de nós erguia-se uma colinazinha, coberta por pedras cheias de limo. Deixamos a estrada e começamos a subir o morro, quando, olhando na direção de Holdernesse Hall, vimos um ciclista que de lá vinha apressadamente.
- Deite-se, Watson! - exclamou Holmes, pondo a mão pesada no meu ombro.
Mal nos escondêramos, o homem passou voando pela estrada. No meio de uma nuvem de poeira, vi um rosto pálido e agitado, com o horror estampado em todas as feições, a boca aberta, os olhos fixos na estrada à sua frente. Era uma caricatura do correio James Wilder que víramos na noite anterior.
- O secretário do duque! - exclamou Holmes. - Venha, Watson, vamos ver o que ele vai fazer.
Andamos de pedra em pedra até chegar a um ponto de onde podíamos ver a entrada da estalagem. A bicicleta de Wilder estava à porta. Ninguém se movia dentro de casa, nem víamos pessoa alguma às janelas. Lentamente, descia a noite, à medida que o sol se ocultava atrás das altas torres de Holdernesse Hall.
Vimos, então, acenderem-se duas luzes, numa carruagem que estava na cocheira. Logo em seguida ouvimos ruídos de patas de cavalos, quando o carro ganhou a estrada, dirigindo-se velozmente para Chesterfield.
- Que me diz disso? - murmurou Holmes.
- Parece uma fuga.
- Apenas um homem nessa carruagem, ao que parece. Bom, não é o sr. Wilder, pois lá está ele, na porta.

Um retângulo de luz rubra se refletia da casa. No meio, vimos o vulto do secretário com a cabeça para a frente, perscrutando a escuridão. Não havia dúvida de que esperava alguém. Finalmente ouvimos passos na estrada, e logo outro vulto surgiu no retângulo de luz. Fechou-se a porta e de novo ficou tudo escuro. Cinco minutos mais tarde, acendeu-se uma luz no andar de cima.
- Parece que a Galo de Briga tem fregueses estranhos - observou Holmes.
- Mas a estalagem fica do outro lado.
- De fato. Aqueles são os que poderíamos chamar de "hóspedes particulares". Agora, que diabo estará o sr. Wilder fazendo na estalagem, a estas horas, e quem é a pessoa que veio ao encontro dele? Vamos, Watson, temos de nos arriscar a investigar mais um pouco.
Juntos, dirigimo-nos para a estalagem. A bicicleta ainda estava contra a porta. Meu amigo riscou um fósforo, e vi-o dar uma risadinha, quando a luz caiu sobre os pneus Dunlop. Lá em cima a luz brilhava, no primeiro andar.
- Tenho de dar uma olhadela, Watson - disse Holmes. - Se você se abaixar, encostando-se à parede, creio que me arranjarei.
No momento seguinte, seus pés firmavam-se nos meus ombros. Mas ele desceu imediatamente.
- Vamos, amigo, nosso dia de trabalho foi bastante longo. Temos uma boa caminhada até a escola, e quanto mais depressa partirmos, melhor.
Mal abriu a boca enquanto atravessamos o pântano, e nem entrou na escola quando lá chegamos. Continuou até a estação de Mackleton, de onde expediu alguns telegramas. Já tarde da noite, ouvi-o consolar o dr. Huxtable, muito abalado com a morte do professor de alemão. Mais tarde ainda, entrou no meu quarto, parecendo tão vivo e alerta como nas primeiras horas do dia.
- Tudo bem, amigo - disse ele. - Prometo-lhe que, antes que o dia de amanha termine, teremos a solução do mistério.
Às onze da manhã do dia seguinte, meu amigo e eu entrávamos na alameda de teixos de Holdernesse Hall. Fizeram-nos passar pelo magnífico portal elisabetano, e entramos no escritório do duque. Ali encontramos o sr. Wilder, grave e cortês, mas ainda com vestígios do horror da noite anterior nos olhos furtivos e nas feições contraídas.
- Vieram ver Sua Graça? Sinto muito, mas o caso é que o duque não está passando bem. Ficou abalado com a trágica notícia. Recebemos ontem um telegrama do dr. Huxtable contando-nos sua descoberta, sr. Holmes.
- Preciso ver o duque, sr. Wilder.
- Mas ele está no quarto.
- Então tenho de ir ao quarto.
- Creio que ainda está na cama.
- Vê-lo-ei de qualquer maneira.
A atitude fria e inexorável de Holmes mostrou ao secretário que não adiantava insistir na negativa.
- Muito bem, sr. Holmes, dir-lhe-ei que estão aqui.
Meia hora mais tarde, aparecia o nobre senhor. Seu rosto estava mais cadavérico do que nunca, os ombros, caídos para a frente, e pareceu-me muito mais velho do que na manhã anterior. Recebeu-nos com muita cortesia e sentou-se à escrivaninha, com a barba ruiva batendo na madeira.
- Então, sr. Holmes?
Os olhos de meu amigo estavam fixos no secretário, atrás da cadeira do patrão.
- Creio, senhor, que falarei mais livremente na ausência de seu secretário.
O rapaz tornou-se mais pálido e lançou a Holmes um olhar malévolo.
- Se Vossa Graça assim o desejar...
- Sim, sim, é melhor sair. Agora, sr. Holmes, que tem a dizer?
Meu amigo esperou até que a porta se fechasse, após a saída, do secretário.
- O fato é, senhor duque, que meu amigo e eu ouvimos o dr. Huxtable dizer que há uma recompensa, neste caso. Gostaria de ouvir isso de seus próprios lábios.
- Sem dúvida, sr. Holmes.
- Parece-me que são cinco mil libras a quem lhe disser onde está seu filho.
- Exatamente.
- E mais mil para aquele que indicar a pessoa ou pessoas que o mantêm prisioneiro.
- Exatamente.
- Neste último caso, estão incluídas não só as pessoas que o levaram como também as que conspiram para mantê-lo preso?
- Sim, sim - disse o duque com impaciência. - Se fizer bem seu trabalho, sr. Holmes, não poderá queixar-se de mesquinhez da minha parte.
Meu amigo esfregou as mãos, mostrando uma avidez que me surpreendeu, pois conhecia-lhe os gostos simples.
- Parece-me que vejo seu talão de cheques sobre a mesa - continuou Holmes. - Gostaria que me passasse um cheque de seis mil libras.
O duque estava muito rígido, em sua cadeira, e olhou com frieza para meu amigo.
- É algum gracejo, sr. Holmes? Parece-me que o caso não é para brincadeiras.
- De forma nenhuma, senhor duque. Nunca estive mais sério em minha vida.
- Que quer dizer, então?
- Quero dizer que mereço a recompensa. Sei onde está seu filho e os nomes pelo menos de algumas das pessoas que o mantêm prisioneiro.
A barba do duque tornou-se agressivamente mais ruiva, contra o rosto horrivelmente pálido.
- Onde está ele? - perguntou.
- Está, ou estava, na noite passada, na Galo de Briga, a três quilômetros dos seus portões.
O duque afundou-se na cadeira.
- E a quem o senhor acusa?







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