quarta-feira, 1 de maio de 2013
TRABALHO E POÇO >> Carla Dias >>
Hoje, nesse dia em que se comemora o trabalho, penso em alguns trabalhadores que passaram pela minha vida. Pessoas que me mostraram a importância que qualquer profissão
tem.
Penso em meu avô materno, um homem miúdo, de olhar aguado, autor de muitos poços na região onde vivíamos. Poceiro sim, muito obrigada, ensinou aos filhos e aos netos
a importância da água. Lembro-me claramente de que, em boa parte da minha infância, as palavras poço e sarilho, e a expressão "puxar água" faziam parte da minha
rotina, assim como o exercício repetido de subir as escadas com baldes de água para lavar louça, limpar a casa, tomar banho, fazer comida e beber. Antes da água
encanada, era o poço do meu avô, aberto em nosso quintal, que matava a nossa sede. Mais tarde, tornou-se segurança em uma empresa. Não me lembro que empresa era,
mas sim de ir com minha mãe ou minha tia levar o jantar para ele. Era diferente, não aquele que se enfiava em buracos na terra para encontrar água, mas sim um homem
sentado em uma cadeira, escutando rádio de pilha, dando segurança a um lugar que não era dele.
Nas horas extras, meu avô, eterno poceiro, também cuidava dos problemas dos seus. Lembro-me vagamente do motivo, mas claramente do ritual. A mãe, com o filho pequeno
que já estava na idade de andar, mas não andava, e meu avô davam voltas pela casa. Meu avô na frente, riscando o chão com o facão, fazendo um X como se, dessa forma,
cortasse o medo da criança de andar. A mãe atrás, segurando a criança no chão, levando-a a dar seus passos. Acredito que, independente da crendice de cada um, aquele
ritual ajudava as pessoas, porque meu avô riscou o chão para muitas pessoas.
Minha mãe foi empregada doméstica durante boa parte de sua vida. Cheguei a ajudá-la em algumas faxinas, mas acabava sendo mais útil em casa, com meus irmãos. Foi
como faxineira que ela começou a trabalhar em um hospital. O trabalho era pesado, minha mãe saia de casa cedinho, voltava para casa e encarava os afazeres domésticos
que, ainda crianças, eu e meus irmãos não conseguíamos encarar. Durante pra lá de uma década, minha mãe trabalhou honrando essa profissão, mesmo quando pessoas próximas,
que presenciavam o esforço dela para dar a mim e aos meus irmãos a melhor realidade possível, não perdiam a chance de criticá-la, de mostrar o quanto a achavam perdedora
por ser faxineira. Eu não conseguia compreender essa bobagem, afinal, enquanto essas pessoas a criticavam, ela fazia a cama deles, limpava suas casa, deixava tudo
em ordem em seus lares para que eles vivessem, tranquilamente, a vida perfeita deles. E depois, passou a fazer isso no hospital. A ajudar a cuidar do lugar onde
as pessoas iam procurar soluções para seus problemas de saúde.
Minha mãe começou a trabalhar em turnos. Ela saía muito cedo de casa, então deixava bilhetes para nós todos os dias, sobre a mesa da cozinha. Aqueles bilhetes nos
mantinham, minha mãe, eu e meus irmãos, conectados. Quando estava em casa, enveredava-se em bicos, entre eles o de costureira. Minha mãe sempre costurou, costumava
fazer boa parte das nossas roupas. Em determinado momento, ela decidiu mudar de função. E mesmo tendo demorado para compreender que era possível, ela estudou e se
tornou assistente de enfermagem no hospital onde trabalhava. Aposentou-se lá.
Minha tia teve profissões que exigiam que andasse muito bem arrumada. Uma delas foi cuidando de um parque, do parque que eu, minhas irmãs e primas frequentávamos,
aos domingos. Nós adorávamos as roupas dela. E ela me emprestava algumas para sair nos finais de semana. O que mais me impressionava em minha tia, além das roupas,
era a forma como ela lidava com uma equipe de pessoas que garantia o funcionamento de um lugar imenso, com tanta gente entrando e saindo, que às vezes eu pensava
ser impossível controlar aquele espaço. Obviamente, era preciso ser mais do que a mulher que se vestia bem, e minha tia o era. Na hora de colocar ordem na casa,
as pessoas sabiam que ela era justa e que faria o necessário para resolver os problemas. Pensando bem, era essa posição mediante a sua profissão que tornava a sua
figura tão especial.
Meu avô paterno foi dono de pensão, e me lembro que exercia a função de cozinheiro com muita competência. Na minha memória de criança, há essa imagem dele servindo
a mim e a minha irmã mais velha a macarronada mais bonita já vista por nós, até então. Essa lembrança não tem a ver com a fome que sentíamos, mas com a forma como
ele nos servia, com o carinho com o qual nos alimentava. E nas horas extras, esse meu avô era poeta.
Eu trabalhei em poucos lugares. Meu primeiro emprego foi em uma loja de roupas. Cinco minutos depois de contratada para o período de festas de fim de ano, eu já
sabia que não servia para aquilo. Minha irmã mais velha, que foi contratada comigo, ela sim levava jeito para a coisa. Ainda assim, não fomos efetivadas. Nosso próximo
emprego foi lixando cadeiras. Esse durou um dia, não pelo esforço, mas pelo pó. Minha renite não aceitou o emprego. Então, meu tio me contratou para ajudá-lo em
sua empresa de montagem de móveis. Meu tio é desses homens que não há como não admirar. As coisas se complicam e ele se reinventa, e tenta novamente, não desiste.
De montadora de móveis, a empresa migrou para a área da tecnologia, comercializando produtos acessórios para computadores. Durante três anos eu trabalhei com ele,
saindo desse emprego somente para me dedicar a uma paixão: a música. Fui recepcionista em uma escola de música e estúdio. Menos de um ano depois, acumulava funções
lá: recepcionista, auxiliar administrativo da gravadora e professora de bateria. Fiquei neste emprego por quase quatro anos, até conseguir o emprego que tenho agora,
ajudando a cuidar da escola de música e exercendo o papel de produtora de eventos. Já vão aí vinte anos de profissão.
Nesse dia do trabalho, eu comemoro os trabalhadores que, compreendendo a importância de se fazer o melhor, afetam positivamente a vida do outro. Trata-se de uma
troca justa: a empregada doméstica limpa sua casa e você, médico, cuidará da saúde dela. O gari manterá a cidade limpa... E quem não a deseja assim? E você, de profissão
que seja, tratará o trabalho dele com respeito, respeitando a cidade. Que não sejam apenas os benefícios os conquistados pelos trabalhadores. Que também conquistem
oportunidades de se tornarem os profissionais que desejam ser.
Afinal, trata-se de encontrar o melhor lugar para se abrir um poço e encontrar com o que se matar a sede.
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Mundo Celestrin TRABALHO E POÇO(Carla Dias)
05:18
Ricardo
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