natsume soseki
eu sou um gato
tradução do japonês e notas
Jefferson José teixeira
1
Eu sou um gato.1 Ainda não tenho nome.
Não faço a mínima idéia de onde nasci. Guardo apenas a lembrança
de miar num local completamente sombrio, úmido e pegajoso.
Deparei-me nesse lugar pela primeira vez com aquilo a que comumente
se denomina criatura humana. Mais tarde, descobri que era um estudante-
pensionista2, a espécie considerada mais malévola entre todas
essas criaturas. Contam que por vezes esses humanos denominados
estudantes nos agarram à força para nos comer fritos. Na época, ignorando
esse fato, não me senti intimidado. Experimentei apenas uma
agradável sensação quando o humano me soergueu com gentileza,
pondo-me sobre a palma da mão. Aconchegado nela, pela primeira
vez na vida encarei o rosto de um desses seres. Preservo até hoje na
memória a impressão desagradável daquele momento. Em primeiro
lugar, o rosto, que deveria estar coberto de pêlos, revelava a lisura de
uma lata de remédio. Em nenhum dos muitos de minha espécie com
os quais mais tarde me deparei observei essa horrenda deformação
física. Não apenas isso: bem no meio da face se destacava uma
protuberância, de cujos orifícios saía fumaça, por vezes em profusão,
que me sufocava e debilitava. Só recentemente descobri provir essa
fumaça de algo que os humanos costumam fumar e a que denominam
cigarro.
1.
No original, "Wagahai wa neko de aru", que dá título ao livro. Das muitas formas
de dizer eu em japonês, Soseki optou pelo pronome de primeira pessoa "wagahai",
cujo uso era restrito a políticos, militares, etc., e se revestia de certa arrogância.
2.
Em japonês, "shosei". O termo designa os estudantes originários geralmente das
províncias, que no início da Era Meiji (1868-1912) costumavam se hospedar na
casa de uma família da capital e, em troca da estadia, eram incumbidos de tarefas
domésticas simples.
Por um tempo permaneci sentado à vontade sobre a palma da mão
desse estudante, mas a certa altura comecei a me movimentar com espantosa
velocidade. Meus olhos giravam inconscientemente, e não fui
capaz de discernir se era o humano que se movia ou apenas eu. Senti
vontade de vomitar. Julguei não haver mais salvação para mim quando um
som forte me induziu a ver estrelas. Por mais que me esforce, não consigo
lembrar o que se passou depois.
Quando dei por mim, o estudante havia desaparecido. Tampouco
havia sinal de meus muitos irmãos, antes reunidos a meu redor. Até
mesmo a mais importante entre todos sumira: minha mãe. Estava então em
um local de luz intensa, completamente distinto do que me acostumara.
Sentia dificuldades em manter os olhos abertos de tão ofuscante que
estava a claridade. Como tudo era estranho! Ao tentar me locomover,
fortes dores me atacaram. De um monte de palha, de repente fui jogado
num matagal de bambus.
Ao sair me arrastando dessa floresta, avistei um imenso lago. Sentei-me
bem diante dele, ponderando como deveria agir em seguida. Contudo,
nenhuma boa idéia me ocorreu. Comecei a miar por um tempo, imaginando
que ao me ouvir o humano voltaria para me buscar, mas por mais
que me esgoelasse ninguém aparecia. Aos poucos, o sol começou a se
pôr; o vento acariciava com doçura a superfície do lago. Meu estômago
era invadido por uma fome enorme. Queria chorar, mas a voz não saía.
Sem alternativa qualquer coisa serviria. Dei então uma volta pelo lago a
partir do lado esquerdo, decidido a ir a qualquer lugar onde houvesse
comida. Que sacrifício extremo! Mas suportei. Com esforço, engatinhei
até encontrar um local onde poderia haver humanos. Acreditando que
obteria algo, passei por um buraco em uma cerca de bambu despedaçada,
e penetrei em uma casa. Como é curioso o destino! Se essa cerca
não estivesse destruída, eu provavelmente teria morrido de inanição na
sarjeta. Desígnios da sorte, como se costuma dizer. Esse buraco é até
hoje meu local de passagem para visitar meu vizinho Mike. Bem, já insinuado
na casa desconhecida, ignorava qual o próximo passo a tomar.
Lutava contra o tempo: logo anoiteceria, estava esfomeado, esfriava
e não demoraria a chover. Procurei então andar até um local claro e
confortável. Quando penso nisso, dou-me conta hoje de que naquele
momento eu já estava no interior da casa. Tive ali a oportunidade de
me deparar novamente com outros elementos da espécie humana,
diferentes daquele estudante-pensionista. A primeira dessas criaturas foi
Osan, cuja crueldade superava a do estudante. Logo que pôs os olhos
em mim me agarrou de súbito pelo cangote e me atirou para fora da
casa. Imaginei estar perdido e, de olhos cerrados, decidi entregar minha
sorte à providência divina. No entanto, a fome e o frio eram insuportáveis.
Aproveitando uma distração de Osan, penetrei de novo na cozinha.
Não demorou muito para eu ser expulso. Lembro-me que bastava ser
jogado para fora para eu voltar, e bastava voltar para ser jogado para
fora de novo, quatro, cinco vezes, repetidamente. Essa tal Osan já não
suportava mais me ver. Só quando há pouco dei o troco, roubando um
peixe agulhão que ela preparava, senti-me vingado e com o espírito por
fim apaziguado. Por fim, quando ela se preparava para me expulsar mais
uma vez, o dono dessa casa apareceu na cozinha indagando a razão de
tanto barulho. A criada me mantinha suspenso pela nuca na direção
do patrão, enquanto explicava o transtorno por que passava ao tentar se
livrar do gatinho vira-lata, que cismava em retornar para dentro da cozinha
toda vez que ela o colocava para fora. Enrolando os pêlos negros
sob o nariz, o amo fitou por instantes meu focinho, para apenas afirmar
"Então, deixe-o entrar", voltando em seguida para o interior da casa.
Imaginei-o um homem de poucas palavras. Decepcionada, a criada me
atirou para dentro da cozinha. E foi assim que decidi morar nessa casa.
Raramente meu amo se digna a me encarar. Ele parece exercer a
profissão de professor. Ao voltar da escola, passa o restante do dia trancado
em seu gabinete, praticamente não coloca os pés para fora dele.
Todos da casa o consideram muito estudioso. O professor também gosta
de exibir seu apego aos estudos. Contudo, na realidade, ele não é tão
diligente como o julgam os habitantes desse lar. Por vezes, adentro de
fininho o gabinete para espiar, e quase sempre ele está em plena sesta.
Em algumas ocasiões, baba sobre o livro que está lendo. De estômago
frágil, a tez de sua pele é levemente amarelecida, inelástica e sem viço.
Apesar disso, é um glutão. Após ingerir grande porção de arroz, toma
Taka-diastase3. Em seguida, abre um livro. Na segunda ou terceira página
cai no sono, babando sobre ele. Essa é a rotina de meu amo todas
as noites. Mesmo sendo um gato, há momentos em que pondero sobre
as coisas. Não há nada mais simples do que a vida de um professor.
Pudesse eu renascer na forma humana, desejaria ser um mestre. Se é
possível dormir tanto nessa profissão, é sinal de que até mesmo um gato
pode exercê-la. Apesar disso, meu amo diz que não há profissão mais
árdua do que a de um docente, e costuma se queixar dela a todos os
amigos que o visitam.
Na época em que comecei a viver neste lugar, meu amo era o
único da casa que demonstrava alguma predileção por mim. A qualquer
canto que eu fosse, era pisoteado e ninguém prestava atenção em
mim. O fato de até hoje não me haverem posto sequer um nome é
prova cabal do pouco valor que me atribuem. Acabei obrigado a me
resignar e, na medida do possível, procuro permanecer ao lado de
meu amo, por ter sido ele quem me aceitou na casa. Pela manhã, sempre
subo no seu colo quando ele lê o jornal. Na hora de sua sesta, trepo
sempre em suas costas. Isso não significa necessariamente que eu sinta
particular adoração por ele, é apenas uma retribuição por ser ele o único
a me demonstrar algum carinho. Depois disso, após várias experiências,
decidi dormir pela manhã sobre a panela de arroz, à noite sobre o kotatsu4,
e na varanda nas tardes de sol. Todavia, o que mais me agrada é quando,
caída a noite, penetro na cama das crianças da casa para dormir com
elas. São duas meninas, de cinco e três anos, e dormem na mesma
cama. Sempre encontro um espaço entre elas onde me enfiar, mas se
por infelicidade uma delas acorda me vejo em maus lençóis. As crianças
são verdadeiras pestes, em particular a menor. "O gato está aqui",
gritam repetidas vezes e se põem a chorar alto, a qualquer hora, mesmo
3.
A takadiastase, uma enzima que digere o amido, foi descoberta por Jokichi Takamine
(1854-1922), engenheiro químico que se tornou o mais proeminente cientista japonês
da Época Meiji. O remédio, Taka-diastase, muito em voga na época, também
passou a ser vendido nos EUA, para onde o doutor Takamine emigrou em 1894.
4.
Aquecedor de pés em formato de mesa, ao redor do qual a família se reúne para
as refeições e dentro colocam as pernas.
de madrugada. Quando isso acontece, meu amo, dono de uma dispepsia
nervosa, sempre acorda e surge às pressas do quarto vizinho. Ultimamente
usa uma régua para me crivar as ancas de fortes pancadas.
Quanto mais observo os humanos com os quais convivo sob o
mesmo teto, tanto mais me vejo obrigado a concluir que se tratam de
seres egoístas. As crianças com as quais às vezes compartilho a mesma
cama são particularmente abomináveis. Quando lhes dá na telha, me
viram de ponta-cabeça, cobrem minha cabeça com um saco, me atiram
para todos os lados, me enfiam dentro do forno. Como se isso não fosse
suficiente, basta eu revidar, mesmo de forma leve, e toda a família corre
atrás de mim para me molestar. Recentemente, quando eu afiava com
delicadeza as garras no tatame, a mulher de meu amo se enfureceu de
forma assustadora. A partir desse dia, ela quase nunca permite meu
acesso à sala de estar. Pouco se importam se morro de frio entre as tábuas
da cozinha. Shiro, a gata branca que mora na casa do outro lado
da rua e por quem sinto profundo respeito, comenta sempre que não há
neste mundo criatura mais impiedosa do que o ser humano. Pouco tempo
atrás, Shiro deu à luz quatro gatinhos, verdadeiros pompons. Porém, mal
se passaram três dias, o estudante da casa afogou os filhotes no lago
atrás da propriedade. Shiro me contou o fato entre lágrimas, afirmando
que, para os de nossa espécie poderem expressar seu amor filial e
manterem uma vida familiar decente, urge lutar contra os humanos até
levá-los à completa extinção. Julgo ser uma argumentação válida. Mike,
da casa vizinha, diz, imbuído de enorme indignação, que os humanos
não entendem o significado de direito de propriedade. Em nossa espécie,
aquele que encontra primeiro uma cabeça de sardinha ou tripas de
sargo tem o direito de comê-las. É permitido o uso de força bruta contra
os que infringem essa lei. Contudo, aparentemente inexiste entre os humanos
essa noção, e as iguarias que encontramos acabam todas por eles
confiscadas. Eles usam sua força para usurpar de nós o que teríamos
o direito de comer. Shiro vive na casa de um militar, e o amo de Mike é
advogado. Eu simplesmente vivo na residência de um professor, e com
relação a isso posso me considerar mais felizardo que meus amigos.
Minha vida cotidiana é de total tranqüilidade. Os humanos, por mais
humanos que sejam, não prosperarão para sempre. Esperemos pois pacientemente
o advento da era dos felinos.
Esse pensamento egoísta me lembra um fracasso devido à presunção
de meu amo, que gostaria de compartilhar com os leitores. Meu amo é
sempre incapaz de exibir superioridade sobre outros humanos em qualquer
coisa que se disponha a executar, mas experimenta constantemente
um pouco de tudo. Compõe haikus, que envia para a revista Hototogisu 5,
colabora com poemas em estilo moderno para a revista Myojo 6, redige
artigos em um inglês entremeado de erros, em certa ocasião tornou-se
aficionado por arco-e-flecha e estudou recitação, de outra feita tocou
desafinadamente violino, porém sem sucesso em nada que se empenha.
Quando principia algo, nem mesmo sua fraqueza estomacal serve para
lhe mitigar o entusiasmo. Canta dentro do banheiro, repetindo "Eu sou
Munemori de Taira", estrofe de certa canção, pouco se importando com o
apelido posto pela vizinhança de "Gogó de Mictório". Ao vê-lo, os vizinhos
em tom jocoso dizem "Lá vai o Munemori". Sabe-se lá a razão, transcorrido
um mês de minha chegada, no dia de seu pagamento, meu amo voltou
às pressas carregando um enorme pacote. Eu tentava adivinhar o que ele
comprara. Era material de aquarela, pincéis e papel Whatman. Supus
que ele fosse abandonar naquele mesmo dia a recitação e o haiku para
se dedicar à pintura. De fato, a partir do dia seguinte, e durante algum
tempo, não fazia outra coisa senão pintar diariamente em seu gabinete,
sem sequer interromper para a sesta. No entanto, ao ver o produto final,
ninguém saberia identificar o que fora pintado. Meu amo também deveria
considerar o resultado pouco promissor, pois certo dia, quando
um de seus amigos envolvido com artes veio visitá-lo, ouvi o seguinte
diálogo:
— É difícil obter bom resultado. Vendo os outros pintarem parece
simples, mas só ao pegar no pincel se vê que as coisas são mais complicadas
do que aparentam ser.
5.
Revista de haikus publicada em 1897 pelo poeta Masaoka Shiki, na qual também
foi editado Eu sou um gato.
6.
Revista de poesia publicada a partir de abril de 1900 pelo poeta Tetsukan Yosano.
Essa era a reflexão profunda de meu amo e representava a expressão
da mais pura verdade. O amigo o fitou por sobre a armação dourada
dos óculos.
— É natural não se pintar bem logo de início. Em primeiro lugar,
é impossível pintar algo trancado dentro de quatro paredes usando só
a imaginação. No passado, o grande mestre italiano Andrea del Sarto7
afirmou que toda pintura deve ser a expressão fiel da natureza. No céu,
há corpos celestes. Na terra, brilha o orvalho. Pássaros voam. Animais
correm. No lago, há carpas. No inverno, corvos pousam sobre árvores
decrépitas. A natureza é em si uma imensa pintura viva. Se sua intenção
é realmente pintar algo, aconselho-o a começar com esboços.
— Ah, quer dizer que Andrea del Sarto afirmou isso? Eu desconhecia
por completo. Ele está coberto de razão. É uma grande verdade.
Meu amo se mostrava impressionado em excesso. Percebi um sorriso
de escárnio por detrás da armação dourada dos óculos do amigo.
No dia seguinte, quando eu tirava agradavelmente na varanda minha
costumeira sesta, meu amo, em uma atitude rara, saiu do gabinete
e se postou atrás de mim, parecendo ocupado com algo. Como seu movimento
me despertou, entreabri os olhos para constatar que meu amo
estava absorto em se fazer passar por Andrea del Sarto. Ao ver a cena,
não pude refrear o riso. Por causa da pilhéria do amigo, ele resolveu
fazer esboços e me pegou para ser seu primeiro modelo. Eu dormira o
suficiente. Estava doido para bocejar. Porém, me contive, pois seria lamentável
que meu movimento perturbasse meu amo, tão concentrado
naquele momento no manejo de seu pincel. Desenhara meu contorno e
coloria justamente a área do rosto. Confesso que, como gato, nada tenho
de esplêndido. Não considero meu corpo, pêlos ou o formato de meu
focinho superiores aos de outros de minha espécie. Contudo, é impossível,
mesmo para um ser destituído de particular beleza como eu, aceitar
que minha aparência seja tão ignóbil quanto aquela desenhada por
meu amo. Em primeiro lugar, a cor era diferente. Assim como os gatos
persas, possuo um pêlo com manchas cinza claro entremeadas de tons
7. Andrea del Sarto (1486-1531). Pintor italiano da escola florentina.
de amarelo e partes em cor de laca. Esse é um fato incontestável por
todos aqueles que baterem os olhos em mim. Ora, meu amo não utilizou
nem o amarelo nem o preto. Tampouco empregou o cinza ou o
marrom, muito menos qualquer combinação dessas cores. Só se poderia
avaliar o desenho como o de um tipo único de cor. Além disso, era
curiosa a falta dos olhos. Seria algo até compreensível pelo fato de ser
o esboço de um gato adormecido; mas, por não se poder discernir sequer
um local onde os olhos supostamente deveriam estar, era impossível
afirmar com convicção se o gato estaria dormindo ou se seria
cego. Imaginei que mesmo Andrea del Sarto não se sentiria à vontade
caso visse o esboço. No entanto, sou obrigado a confessar minha admiração
ao constatar o entusiasmo de meu amo. Na medida do possível,
eu desejava permanecer inerte, mas precisava urinar já havia algum
tempo. Os músculos de meu corpo formigavam. Ao chegar ao ponto em
que se tornara impossível esperar mais um minuto sequer, fui forçado a
alongar minhas patas de maneira rude, baixar o pescoço e soltar um
enorme bocejo. Sob tais circunstâncias, era impossível permanecer imóvel.
Como já estragara mesmo os planos de meu amo, decidi ir me aliviar
atrás da casa; comecei então a engatinhar devagar. Nesse mesmo
instante, do interior da casa meu amo berrou "Peste de gato!", numa voz
imbuída de um misto de indignação e revolta. O professor tem o hábito
de usar esse "peste" sempre que maldiz alguém. Não conhecer outras
formas de praguejar é algo irremediável, mas julgo ser uma falta de respeito
direcionar esse termo indiscriminadamente a alguém que até aquele
momento agüentava com tanta paciência. Se ele o vociferasse com sua
habitual fisionomia complacente de quando lhe subo às costas, eu poderia
suportar com resignação esse abuso verbal. Mas como é cruel ser
chamado de "peste de gato" por alguém que nunca me fez nenhum
agrado em particular, apenas pelo fato de eu me levantar para ir urinar.
É da natureza de todo ser humano encher-se de empáfia e ufanar-se da
própria autoridade. Se não aparecer ninguém mais forte que possa maltratá-
los, não sei até onde sua presunção poderá chegar. Se seu egoísmo
parasse nesse nível, seria suportável, mas já tive notícia de que a depravação
moral dos seres humanos é inúmeras vezes mais lamentável.
Nos fundos de minha casa, há uma plantação de chá de uns trinta
metros quadrados. Não é tão ampla, mas é um local limpo, agradável e
ensolarado. Quando as crianças da casa fazem barulho a ponto de me
impedirem de tirar a sesta, ou quando estou entediado ou com má digestão,
sempre me desloco até lá para desanuviar o espírito. Por volta das
duas da tarde de certo dia quente de final de outono, logo após acordar
de uma pestana tirada depois do almoço, me dirigi até a plantação de chá
em busca de algum exercício. Passando por cada uma das plantas, cheguei
próximo à cerca de cedros do lado oeste, onde percebi um grande gato
dormindo profundamente sobre crisântemos secos, amassados por seu
peso. Ele, creio, não se dera conta de minha aproximação, ou apenas fingira
não ter me notado, bocejando enquanto permanecia dormindo alongado
de lado. Não pude deixar de admirar a audácia desse invasor de
jardins alheios em dormir com tanta tranqüilidade. Era um gato totalmente
negro. Os raios de sol transparentes de pouco depois do meio-dia se irradiavam
sobre seus pêlos, dando a impressão de que uma chama invisível
incendiava sua pelugem. Sua estrutura corpórea bem lhe valeria entre os
gatos o apelido de Rei. Certamente tinha no mínimo o dobro de meu tamanho.
Repleto de admiração e curiosidade, sem pensar me postei diante
dele e o observei com atenção. Foi quando a brisa outonal passou sobre a
cerca de cedros, atingindo de maneira suave os galhos do plátano e lançando
duas ou três de suas folhas sobre o monte de crisântemos secos.
O Rei abriu de repente seus enormes olhos redondos. Mesmo agora eu me
recordo daquele momento. Seus olhos brilhavam com mais beleza que o
tão valioso âmbar para os seres humanos. Ele permanecia inerte. Concentrou
em minha testa uma diminuta luz, como que atirada do fundo de
um de seus olhos, e me perguntou: "Afinal, quem diabos é você?". Partindo
de um rei, seu linguajar me pareceu um pouco deselegante, mas
havia no fundo de sua voz uma força capaz de acabar com um cão, me
inspirando certo pavor. Julgando perigoso não cumprimentá-lo, respondi
com calma, mostrando indiferença: "Eu sou um gato. Ainda não tenho
nome." Entretanto, naquele momento meus batimentos cardíacos se aceleravam
acima do normal. Num tom de menosprezo e de considerável
arrogância, revidou:
— Quê? Gato? Difícil de acreditar. E onde você se esconde?
— Moro aqui mesmo, na casa do professor.
— Bem que eu imaginava. Rapaz, você está pele e osso — afirmou
ele com a empáfia própria dos monarcas.
Pelo modo de falar, certamente não deveria ser um gato de família
respeitável. Contudo, suas formas adiposas e obesas mostravam que estava
sendo bem alimentado e deveria levar uma vida próspera.
— Afinal de contas, quem é você? — não resisti em perguntar.
— Sou Kuro, da casa do puxador de riquixá — respondeu triunfante.
Não havia nas redondezas quem não conhecesse o vândalo Kuro da
casa do puxador de riquixá. Mas, para um gato de uma casa como a dele,
mantinha poucos relacionamentos, pois apesar de sua força era desprovido
de qualquer educação. Era o tipo de felino de quem todos querem
manter distância. Senti certo embaraço ao ouvir seu nome, ao mesmo
tempo em que brotava em mim certo desdém. Lancei-lhe a seguinte pergunta
para avaliar o grau de sua ignorância:
— Quem você julga superior, um professor ou um puxador de
riquixá?
— Sem dúvida um puxador de riquixá tem mais força. Veja como
seu dono é franzino.
— Para um gato de um puxador de riquixá você parece também
muito forte. Seu dono deve alimentá-lo bem.
— Procuro comer sempre do bom e do melhor aonde quer que vá. Ao
invés de perambular o tempo todo por este campo de chá, me acompanhe
e garanto que em questão de um mês estará mais gordo, irreconhecível.
— Quem sabe um dia. Mas acho que o professor mora em uma
casa maior do que a do seu amo.
— Deixe de tolices. Por maior que seja, uma casa não enche barriga.
Ele parecia muito irritado, e afastou-se rápido movimentando suas
orelhas semelhantes a varetas de bambu pontiagudas. Foi a partir desse
dia que eu me tornei amigo de Kuro, o gato do puxador de riquixá.
Depois disso, encontrei-o por acaso inúmeras vezes. A cada encontro,
ele se vangloriava, como faria um puxador de riquixá. Na verdade, foi ele
que me contou sobre o lastimável incidente a que me referi há pouco.
Certo dia, eu e Kuro jogávamos conversa fora deitados no campo
tépido de chá. Após repetir orgulhosamente as mesmas histórias de
sempre como se fossem novidades, ele se virou em minha direção e
perguntou:
— Quantos ratos você já pegou até hoje?
Minha inteligência é indubitavelmente superior à dele, estou certo
disso, mas não me comparo a ele quando se trata de força física e coragem.
Senti-me embaraçado com a pergunta. Contudo, fatos são fatos.
Então, não havendo motivo para lhe mentir, respondi:
— Na realidade, penso sempre nisso, porém até o momento não
tive a oportunidade de pegar nenhum.
Kuro soltou uma gargalhada digna de fazer tremular os longos bigodes
que ornavam a ponta de seu focinho. Ele é um pouco simplório e
parece lhe faltar um parafuso ao se ufanar, mas até que é um gato fácil
de se lidar, contanto que você ronrone e demonstre estar ouvindo suas
fanfarronices com atenção e admiração. Logo após conhecê-lo, descobri
como tratá-lo e, também nesse momento, entendendo que seria tolice
piorar a situação caso procurasse defender minha posição, julguei mais
prudente deixá-lo contar prosa de suas proezas. Portanto, procurei instigá-lo
levemente.
— Claro que, com toda sua longa experiência, você deve ter abocanhado
muitos roedores.
Como esperado, Kuro se sentiu vitorioso e aproveitou a oportunidade
que eu lhe oferecera de bandeja.
— Nem tanto, mas uns trinta ou quarenta com certeza — respondeu
com ar triunfante. — Posso dar conta sozinho de cem ou duzentos
camundongos. Mas as doninhas são demais para mim. Já tive uma terrível
experiência com uma delas.
— Não me diga! — interrompi, demonstrando interesse.
Kuro prosseguiu, piscando seus grandes olhos.
— Foi na época da grande limpeza, no ano passado. Meu amo
engatinhava por baixo do piso da varanda com um saco de carvão,
quando uma enorme doninha apareceu completamente desconcertada.
— Hum — murmurei, mostrando admiração.
— Doninhas não passam de ratos de tamanho um pouco maior
— disse para mim mesmo. — Persegui a desgraçada até encurralá-la em
uma tubulação de esgoto.
— Bravo, bravo! — aplaudi.
— No entanto, na hora H, a peste me solta um peido tão fedorento,
que desde aquela época sinto ânsias só de ver uma doninha.
Dizendo isso, levantou a pata dianteira e roçou duas ou três vezes
o focinho, como se ainda sentisse naquele momento o odor do ano anterior.
Tive pena dele. Tentei animá-lo, dizendo:
— Mas com certeza os ratos não têm nenhuma chance com você.
Não é justamente por ser um notável pegador de ratos e comê-los aos
montes que está tão gordo e com o pêlo tão lustroso?
A pergunta pretendia encorajar Kuro, mas curiosamente surtiu o
efeito inverso. Kuro soltou um grande suspiro, dizendo:
— É deprimente pensar nisso. De que adianta apanhar tantos
ratos... Não há ninguém neste mundo mais injusto do que a criatura
humana. Tomam os ratos que pegamos e os levam ao posto de polícia.
Como os policiais não podem discernir quem de fato os capturou, acabam
pagando cinco sens8 por cada um deles. Graças a mim, meu amo
já embolsou cerca de um iene e cinqüenta sens, mas nem por isso me
regala com uma refeição decente. Os humanos são todos ladrões dissimulados.
Mesmo um iletrado como Kuro era capaz de entender esse raciocínio.
Os pêlos de suas costas se eriçaram e ele parecia muito zangado.
Senti certo mal-estar e voltei para casa inventando uma desculpa qualquer.
Desde aquela data decidi nunca caçar ratos. Contudo, mesmo me
tornando discípulo de Kuro tampouco saí à cata de outros regalos.
Ao invés de comer bem, prefiro dormir, algo muito mais apaziguante.
Parece que, ao morar com um professor, um gato adquire o temperamento
de um docente. Se não tomar cuidado, acabarei também com
problemas estomacais.
8.
A moeda japonesa, o iene, era dividida em sen (décimo de iene) e rin (milésimo
de iene), os quais deixaram de circular na forma de moeda no pós-guerra.
Falando em professores, meu amo parece ter se conscientizado
recentemente de que não possui dom para esboços de aquarela, pois
escreveu em seu diário em 1º de dezembro:
Encontrei pela primeira vez na reunião de hoje um certo senhor.
Ouvi dizer que leva uma vida dissoluta e tem mesmo ares de ser um homem
mundano. Homens com caráter semelhante ao dele exercem fascínio
sobre as mulheres, e seria mais adequado afirmar que ele fora
forçado a uma vida dissoluta do que propriamente a elegera por vontade
própria. Sua esposa é supostamente uma gueixa, algo invejável. A maior
parte dos que falam mal dos dissolutos são justamente aqueles sem condição
de sêlo.
Fora isso, dentre os que se pretendem depravados, muitos
não possuem qualificação para a libertinagem. Apesar de não possuírem
obrigação de se entregarem a esse tipo de vida, eles se esforçam nesse
sentido. Jamais se dão conta de que nunca dominarão essa arte, no que
em muito se assemelham a mim com relação à pintura em aquarela.
Mesmo assim, se consideram os tais. Se na teoria é possível julgar um
homem como bemsucedido
apenas porque bebe saquê em restaurantes
e freqüenta bordéis, depreendese
que eu também posso me tornar não
importa qual aquarelista. Da mesma forma que um rústico camponês é
muito superior a um tolo mundano, é melhor que não sejam pintadas
aquarelas semelhantes às minhas.
É difícil concordar com essa teoria sobre os homens mundanos.
Além do mais, invejar alguém casado com uma gueixa é algo tão absurdo
que não deveria escapar da boca de um professor. Todavia, era correta a
visão crítica que manifestou com relação a suas aquarelas. Não obstante
o inequívoco conhecimento que tem de si, meu amo é incapaz de se
desvencilhar de sua petulância. Três dias depois, em 4 de dezembro,
havia a seguinte anotação no diário:
Na noite passada sonhei que alguém se apossara de uma das aquarelas
que eu pusera de lado por julgála
imprestável, colocoua
em uma esplêndida
moldura e a pendurou entre a porta corrediça divisória e o teto.
Admirando a obra assim emoldurada, senti como me houvesse tornado
um hábil artista. Que indizível alegria! Não cessava de contemplála,
julgandoa
verdadeiramente fenomenal. Mas ao acordar pela manhã
me dei conta de que, sob a luz matinal, a pintura retornara à sofrível
condição anterior.
Meu amo parece carregar seu apego pela aquarela inclusive ao
reino dos sonhos. Homens com semelhante disposição de caráter com
certeza não se tornam pintores, muito menos homens bem-sucedidos.
Na noite seguinte àquela em que meu amo sonhara com a aquarela,
o esteta de óculos de armação dourada veio visitá-lo. Há tempos
não o fazia. Mal se sentou, logo indagou sobre o progresso das pinturas.
De fisionomia imperturbável, meu amo respondeu:
— Seguindo seu conselho, empenho-me agora em esboços, e devo
admitir que eles me levaram a notar detalhes, formas e delicadas variações
de cores que até então despercebia. Se os desenhos se desenvolveram
no Ocidente até atingirem a forma atual, isso se deve à ênfase posta
neles. Que grande pintor foi Andrea del Sarto!
Sem mencionar absolutamente o que escrevera no diário, elogiava
Andrea del Sarto.
— Na realidade, aquilo tudo não passou de invenção minha —
confessou o esteta rindo e coçando a cabeça.
— O quê? — perguntou meu amo.
Pelo visto ele ainda não se dera conta de que fora vítima de uma
pilhéria.
— Andrea del Sarto, que você tanto admira. O que lhe falei sobre
ele foi criado por minha fecunda imaginação. Não achei que você levaria
tão a sério. Ha, ha, ha...
O esteta não conteve o riso. Da varanda, eu escutava a conversa e
não pude deixar de imaginar o que meu amo escreveria hoje no diário.
O esteta era o tipo de homem cujo único prazer era enganar as pessoas,
descarregando sobre elas coisas sem pé nem cabeça. Triunfante, prosseguiu,
alheio ao impacto causado pelo caso Andrea del Sarto aos sentimentos
de meu amo.
— É interessante a grande excitação do sentido cômico que me
advém quando por vezes afirmo algo em tom de brincadeira e as pessoas
o tomam a sério. Recentemente, após afirmar a certo estudante que
Nicholas Nickleby9 aconselhara Gibbon10 a desistir de redigir em francês
a História da Revolução Francesa, a obra de sua vida, para publicá-la
em inglês, foi cômico ver esse estudante, dotado de invejável memória,
repetir seriamente durante uma conferência na Sociedade Literária Japonesa
o que eu lhe dissera. Cerca de cem ouvintes escutavam com entusiasmo
na platéia o que o estudante expunha. Há um outro caso também
engraçado. Determinado dia, em uma reunião na qual certo literato estava
presente, veio à baila o assunto do romance histórico Teofano, de
Harrison11. Eu afirmei ser a obra o que de melhor poderia existir no
gênero. Ao comentar que particularmente a cena da morte da heroína
era assustadora, um professor sentado defronte a mim, de cuja boca
nunca se ouvira confessar desconhecimento sobre algo, confirmou minhas
palavras comentando se tratar de uma passagem de verdadeira
riqueza literária. Descobri dessa forma que, assim como eu, aquele homem
não lera o romance.
Meu dispéptico amo arregalou os olhos e perguntou:
— E como você agiria, depois de soltar essas invencionices, caso o
interlocutor houvesse lido o livro?
Meu amo parecia mais preocupado com o transtorno, caso o engodo
se revelasse, do que propriamente com a questão de se ludibriar
outrem. O esteta não movia um único músculo.
— Bem, bastaria dizer que confundi com outro livro ou algo do
gênero — disse em meio a uma gargalhada.
O temperamento do esteta de óculos com moldura dourada se assemelhava
a certo ponto ao de Kuro. Calado, meu amo soltava círculos
9.
Nicholas Nickleby. Um dos mais conhecidos personagens do escritor inglês Charles
Dickens (1812-1870).
10.
Edward Gibbon (1737-1794). Historiador inglês e membro do Parlamento. Escreveu
Declínio e queda do Império Romano.
11.
Frederic Harrison (1831-1923). Crítico literário e historiador inglês. Publicou em
1904 o romance Teófano — A cruzada do século X.
de fumaça de seu cigarro Hinode, e sua fisionomia denotava falta de audácia
para semelhante farsa. O esteta prosseguiu, com seus olhos parecendo
expressar "por isso não é de se admirar que você pinte tão mal".
— No entanto, brincadeiras à parte, pintar quadros é realmente
uma tarefa complexa. Dizem que Leonardo da Vinci ensinava seus discípulos
a reproduzir em seus desenhos as manchas das paredes de uma
igreja. De fato, ao se contemplar com atenção, por exemplo, as paredes
de um banheiro cobertas de infiltrações de chuva, pode-se constatar que
são formadas por padrões naturais bastante bem elaborados. Procure
desenhar também observando com cuidado e o resultado será com certeza
muito interessante.
— Essa é sem dúvida mais uma de suas farsas.
— Não, é verídico. Você não acha isso bastante inteligente, que
mesmo Leonardo da Vinci poderia ter dito?
— Bem, é inegavelmente inteligente — admitiu meu amo com
certa relutância.
Entretanto, ele parecia ainda não se ter entregado à execução de
esboços dentro de privadas.
Kuro recentemente começou a mancar. Seus pêlos lustrosos começaram
a perder a cor e a cair. Seus olhos, que eu elogiava como
mais belos que o âmbar, se saturaram de remelas. A perda de vitalidade
e a deterioração de sua constituição física me chamaram a atenção.
A última vez que o encontrei no campo de chá, perguntei como
se sentia.
— Já tive minha cota de peidos de doninhas e balanças de peixeiro
— respondeu.
As folhas de outono, que formavam duas ou três camadas escarlates
por entre os pinheiros avermelhados, caíram como num sonho distante
e as camélias brancas e vermelhas próximas ao alguidar de água do jardim
ficaram desnudas, pois desabaram alternadamente uma a uma suas
pétalas. Os raios do sol invernal se estendiam logo cedo sobre os seis ou
sete metros da varanda voltada para o sul, e, por serem cada vez mais
raros os dias em que as brisas frias não soprassem, senti que o tempo de
minha sesta se reduzia.
Meu amo vai à escola todos os dias. Ao voltar se enfurna no gabinete.
A todos que o visitam confessa estar farto de ser professor. Raramente pinta
aquarelas. Por achar que não surte efeito, parou de tomar Taka-diastase.
As crianças, ativas como de costume, continuam a freqüentar o jardim-
de-infância. Ao voltarem, cantam canções, brincam com bolas de pano,
e por vezes me viram de ponta-cabeça me segurando pelo rabo.
Por não comer nada de nutritivo, não engordo muito, mas sou saudável,
não manco, e assim vou levando minha vida diária. Recuso-me
definitivamente a caçar ratos. Continuo a odiar Osan. Até o momento,
ainda não me puseram um nome. Porém, por não haver limites a meus
desejos, pretendo terminar minha vida na casa deste professor como um
gato sem nome.
Então, aproveite o intervalo!!!
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