Mundo Celestrin Em terra de cegos quem tem olho pode ser escravo

EM TERRA DE CEGO, QUEM TEM UM OLHO PODE SER ESCRAVO!

Escrito por Sonia B. Hoffmann
Porto Alegre, 28 de agosto de 2010.


É corriqueiro o dito popular "em terra de cego, quem tem um olho é rei".
No entanto, uma análise realista da situação nos mostra claramente um
equívoco nesta afirmativa. É mais fácil que torne-se um escravo do que
propriamente um rei.

Esta condição é cronificada, se for uma pessoa castradora, de
personalidade servil ou adepta do pensamento de que os deficientes
visuais são incapazes e sem possibilidades para providenciarem até mesmo
a satisfação de necessidades e vontades primárias no que diz respeito
aos cuidados pessoais e à administração doméstica.

Há muitos pais e parentes que, desde a infância da pessoa cega ou com
baixa visão, colocam-se na posição de cuidadores ou tutores omni
presentes, enredando-se na vitimização e causando, com esta postura, um
mal estar no relacionamento parental e um sentimento de piedade ou de
indiferença nas outras pessoas.

Por sua vez, em função deste comportamento do outro social, é possível
que a pessoa com deficiência visual também desenvolva sentimentos
egóicos fragilizados ou superfortalecidos que, ao longo do tempo,
provocam o adoecimento das interrelações e até seu isolamento social. Ao
sentirem-se reféns, é provável que muitos Inconscientemente tornem-se ou
submissos, ou insatisfeitos, ou agressivos com aqueles que julgam
responsáveis por semelhante condição.

José Espínola Veiga , em seu livro A vida de quem não Vê, ilustra
brilhantemente a condição de sequestradores de vivências que muitos pais
e parentes adotam em relação à pessoa cega ou com baixa visão:

"O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. - Coitadinho,
deixa! ... Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na boca,
descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. - Coitadinho!
Já basta o que ele sofre!... E a criança não sofre nada com a falta da
vista ... Sofrerá, sim, mais tarde, a consequência dessa educação mal
dirigida."

Vários grupos familiares são condescendentes e mesmo irresponsáveis na
orientação e instrumentalização de pessoas cegas com os conhecimentos e
informações sobre o desempenho e o modo de realização de atividades da
vida diária, afrouxando comportamentos disciplinadores e dispensando a
aquisição de hábitos saudáveis de condutas para seus filhos, irmãos ou
parentes deficientes visuais. Com isto, parecem esquecer que não estarão
eternamente disponíveis, que seus parentes com deficiência visual têm o
direito de construirem-se por vias alternativas de desenvolvimento e que
o outro social não poderá ou terá vontade de responsabilizar-se pela
solução de problemas criados pela imprudência ou pela superproteção
alheia.

Como profissional da área da educação e da reabilitação de pessoas com
deficiência visual, ouvi muitos depoimentos e relatos de pessoas que
enxergam sobre seus sentimentos diante do comportamento de muitos cegos,
enfatizando principalmente sua maneira de alimentar-se, o seu vestuário
e a negligência com sua aparência pessoal.

Muitos afirmaram que evitam almoçarem, jantarem ou fazerem qualquer tipo
de lanche junto com uma pessoa cega ou com baixa visão, pois suas
experiências foram lastimáveis. Alguns disseram do seu sentimento de
pena ao verem pessoas cegas vasculhando no prato ou na mesa pedaços e
restos de alimentos com suas mãos, sem utilizarem faca, garfo ou colher
quando necessário e como previdência. Muitos comentaram sobre o
sentimento de impotência ao verem que uma pessoa cega pode levar, com
frequência, o garfo ou a colher vazia à boca porque os alimentos se
desprenderam ou caíram do talher durante o trajeto. Outros comentaram
sobre a repugnância sentida ao verem pessoas cegas ou com baixa visão
levando à boca pedaços enormes de alimentos, mastigarem de "boca aberta"
e sem usarem adequadamente sua arcada dentária, deixarem alimentos
caírem da boca, falarem de "boca cheia" ou fazerem barulhos ou ruídos
excessivos na mastigação e ingestão de líquidos ou alimentos cremosos.

Relativamente ao vestuário, muitas pessoas relatam que percebem haver
uma certa negligência ou descaso da pessoa cega com a combinação de
cores, texturas, adequação e limpeza da roupa, do calçado e de possíveis
acessórios. O mesmo afirmam sobre os cuidados com a aparência de muitos
cegos, especialmente quanto à limpeza e corte das unhas, escovação de
dentes, limpeza do nariz e da prótese ocular, quando presente.

No entanto, pessoas cegas também relatam sobre os seus sentimentos na
realização de atividades rotineiras e muitas afirmam que evitam
alimentar-se em público ou participarem de encontros e festas, pois
sentem-se inseguros, envergonhados e que não estão preparados para
conviverem socialmente com outras pessoas que não sejam os pais, os
irmãos, parentes ou cônjuges. Referem,também, que evitam a
diversificação de cores e texturas em seu vestuário, pois temem o
ridículo ou acharem-se "descombinantes", mesmo que a moda nem sempre
esteja apontando tal preocupação. Esta moda, muitas vezes, é compassiva
com aqueles que enxergam, mas pode ser perversa com aqueles que não
veem.

Dificilmente, entretanto, são encontrados familiares, amigos ou
professores que mantêm uma conversa franca e adequada com a pessoa com
deficiência visual sobre sua maneira de alimentar-se, vestir-se ou
cuidar da sua aparência. Da mesma forma, dificilmente são encontradas
pessoas cegas ou com baixa visão que aceitam estes comentários e estas
informações com naturalidade porque acostumaram-se ou foram acostumadas
à displicência ou descaso, melindrando-se ou magoando-se diante da menor
contrariedade.

Contudo, já é hora de todos nos alertarmos para a inclusão do respeito,
da sensibilidade e da generosidade em nossas interrelações e,
urgentemente, adquirirmos o hábito de sairmos da nossa posição e nos
percebermos na condição do outro, exercitando dificuldades,
possibilidades, papéis e funções - sejam elas de reis ou de escravos.

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